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Poesia & Contos Infantis

 

 

 


BEATRIZ / Honoré de Balzac
BEATRIZ / Honoré de Balzac

                                                                                                                                                   

                                                                                                                                                  

 

Biblio VT

 

 

 

 

A SARAH (A dedicatória é dirigida à condessa Guidoboni-Visconti, em solteira Sarah-Lovell (1804-1883), bela inglesa casada com aristocrata italiano, a qual, segundo um testemunho recentemente publicado, desempenhou importante papel na vida sentimental do romancista.
Quando o tempo está límpido e sereno, nas margens do Mediterrâneo por onde outrora se estendia o elegante império de vosso nome, o mar por vezes deixa ver sob a gaze de suas águas uma flor marinha, obra-prima da natureza: o rendilhado de seus filetes tintos de púrpura, de bistre, de rosa, de violeta ou de ouro, a frescura de suas filigranas vivas, o veludo do tecido, tudo emurchece logo que a curiosidade a atrai e a expõe na praia. Assim também o sol da publicidade ofenderia vossa piedosa modéstia. Por esse motivo devo, ao dedicar-vos esta obra, calar um nome que certamente seria para ela um título de orgulho; mas, graças a esse meio silêncio poderão vossas magníficas mãos abençoá-la, poderá vossa fronte sublime inclinar-se sonhadora sobre ela, vossos olhos, cheios de amor maternal, poderão sorrir-lhe, porquanto estareis aqui presente e ao mesmo tempo velada. Como essa pérola da flora marinha, permanecereis sobre a areia lisa, fina e branca, onde desabrocha vossa bela vida, oculta por uma onda, diáfana somente para alguns olhos amigos e discretos.
Bem quisera depor a vossos pés uma obra em harmonia com vossas perfeições; mas a ser isso impossível, eu sabia, como consolo, que iria corresponder a um dos vossos instintos, oferecendo-vos algo a proteger.
DE BALZAC

 


 


I - UMA CIDADE DA BRETANHA
A França e, particularmente, a Bretanha, possuem ainda hoje algumas cidades completamente à margem do movimento social que imprime sua fisionomia ao século XIX.
Por falta de comunicações intensas e continuadas com Paris, deficientemente ligada por um caminho primitivo com a subprefeitura ou a sede administrativa de que dependem
essas cidades, ouvem ou olham passar a nova civilização como um espetáculo, admiram-na sem aplaudi-la; e, seja que a temam ou dela zombem, permanecem fiéis aos velhos
costumes cujo vinco nelas ficou. Quem quisesse viajar como arqueólogo moral e observar os homens em vez de observar as pedras, poderia encontrar uma imagem do século
de Luís XV em alguma aldeia da Provença, a do século de Luís XIV no fundo do Poitou, a dos séculos mais antigos ainda no fundo da Bretanha. A maioria dessas cidades
está decaída de algum esplendor não mencionado pelos historiadores, mais ocupados com os fatos e datas do que com os costumes, mas cuja recordação perdura ainda
na memória, como na Bretanha, onde o caráter nacional não consente esquecimentos no que se refere à terra. Muitas dessas cidades foram capital de um pequeno estado
feudal, condado, ducado conquistado pela Coroa ou partilhado por herdeiros por falta de uma descendência masculina. Deserdadas de suas atividades, essas cabeças
tornaram-se, desde então, braços. O braço, privado de alimentos, desseca-se e vegeta. Entretanto de há trinta anos para cá, esses retratos de velhas cidades começam
a apagar-se e se vão tornando raros. Ao trabalhar para as massas, a indústria moderna vai destruindo as criações da arte antiga, cujos trabalhos eram inteiramente
pessoais tanto para o consumidor como para o artesão. Hoje temos produtos, não temos mais obras. Os monumentos contribuem, pela metade, para esses fenômenos de retrospecção.
Ora, para a indústria, os monumentos são as canteiras de onde saem os blocos para a alvenaria, são as minas de salitre ou os armazéns-depósito de algodão. Mais alguns
anos e essas cidades originais serão transformadas e não mais se verão a não ser nessa iconografia literária.
Uma das cidades nas quais é encontrada mais corretamente a fisionomia dos séculos feudais é Guérande. Basta esse nome para despertar mil recordações na memória dos
pintores, dos artistas, dos pensadores, que podem ter ido até a costa onde jaz essa magnífica joia do feudalismo, tão altivamente colocada para comandar as terras
conquistadas ao mar e os cômoros de areia, e que é como o vértice de um triângulo em cujos outros dois ângulos se acham duas outras joias menos curiosas, o Croisic
e o burgo de Batz.
Além de Guérande, somente Vitré, situada no centro da Bretanha, e Aignon, no sul, conservam ainda intacta na nossa época sua configuração exata da Idade Média. Ainda
hoje Guérande está encerrada dentro de suas poderosas muralhas; seus largos fossos estão cheios de água, suas ameias estão em perfeito estado, suas seteiras não
estão atulhadas de arbustos, a hera não cobriu com um manto as suas torres quadradas ou redondas. A cidade tem três portas nas quais ainda se veem as argolas dos
rastrilhos, e para ela não se entra a não ser passando por uma ponte levadiça de madeira guarnecida de ferro que não se ergue mais, mas que poderia ainda erguer-se.
A mairie (Mairie: chefia da administração comunal ou cantonal (o cantão é uma circunscrição territorial formada por várias comunas).) foi censurada em 1820, por
ter plantado choupos ao correr dos fossos a fim de dar sombra ao passeio. Ela respondeu que fazia cem anos, do lado das dunas, que a comprida e bela esplanada das
fortificações que parecem obra de ontem tinha sido convertida numa alameda, sombreada por olmos onde os habitantes se compraziam. Nesse ponto as casas não sofreram
transformações, não foram aumentadas, nem diminuídas. Nenhuma delas sentiu na sua fachada o martelo do arquiteto, o pincel do caiador, nem enfraqueceu sob o peso
de um andar acrescentado. Todas têm seu caráter primitivo. Algumas repousam em esteios de madeira que formam galerias por sob as quais passam os transeuntes, e cujos
assoalhos vergam sem se quebrar. As casas dos mercadores são pequenas e baixas, de fachada coberta com ardósias pregadas. As madeiras agora apodrecidas se integravam
nos materiais esculpidos das janelas; e nos encostos avançavam por cima dos pilares, afetando feições de rostos grotescos, alongando-se nos cantos em forma de animais
fantásticos, animados pelo grande pensamento da arte que, naqueles tempos, dava vida à natureza-morta. Essas velharias, que resistem a tudo, oferecem aos pintores
as tonalidades pardas e as imagens apagadas de que tanto gostam seus pincéis.
As ruas são o que eram há quatrocentos anos. Somente, como a população não é mais abundante, um viajante que tivesse a curiosidade de examinar essa cidade, tão bela
como uma antiga armadura completa, poderia seguir, não sem melancolia, uma rua quase deserta na qual as janelas de pedra são tapadas com taipa a fim de evitar o
imposto (A importância do imposto pago pelos donos de casa aumentava com o número de janelas.). Essa rua vai dar na entrada de uma galeria subterrânea cuja porta
foi murada com pedras de alvenaria, e por cima da qual cresce um maciço de árvores elegantemente dispostas pelas mãos da natureza bretã, uma das mais luxuriantes,
das mais fertéis vegetações da França.
Um pintor, um poeta ficariam sentados, ocupados em saborear o silêncio profundo que reina sob a abóbada ainda nova dessa poterna, para onde a vida dessa cidade tranquila
não manda nenhum ruído, de onde a rica campanha se mostra em toda a sua magnificência, através das seteiras guarnecidas outrora pelos besteiros, pelos arqueiros
e que se assemelha aos vitrais panorâmicos dispostos em alguns belvederes.
É impossível passear por ali sem pensar, a cada passo, nos usos e costumes dos tempos idos; todas as pedras nos falam deles; enfim, as ideias da Idade Média acham-se
ali ainda no estado de superstições. Se por acaso vem a passar um gendarme de chapéu agaloado, a presença dele é um anacronismo contra o qual nosso pensamento protesta;
mas não há nada tão raro como encontrar em tal lugar um ser ou uma coisa do tempo presente. Há mesmo pouca coisa do vestuário atual: o que dele os habitantes admitem
adapta-se de algum modo aos costumes imóveis, à fisionomia estacionária dos filhos da região. A praça pública está cheia de trajes bretãos que têm um relevo incrível
e que os artistas vêm desenhar. A alvura das telas usadas pelos paludiers, nome das pessoas que extraem o sal das salinas, contrasta vigorosamente com as cores azuis
e pardas dos Paysans (Paludiers: salineiros, trabalhadores das salinas.—Paysans: camponeses.) com as vestes originais e santamente conservadas pelas mulheres. Essas
duas classes e a dos marujos de casaquinho, de chapéu pequeno de couro envernizado são tão distintas entre si como as castas da Índia, e reconhecem ainda as distâncias
que separam a burguesia, a nobreza e o clero. Ali tudo é ainda de limites definidos; a plaina revolucionária encontrou as massas ainda demasiado ásperas e duras
para nivelá-las; ter-se-ia amolgado e talvez quebrado. O caráter de imutabilidade que a natureza deu às suas espécies zoológicas encontra-se ali entre os homens.
Enfim, mesmo depois da revolução de 1830, Guérande continua sendo uma cidade à parte, essencialmente bretã, católica fervorosa, silenciosa, recolhida, na qual as
ideias novas têm pouco acesso.
A posição geográfica explica esse fenômeno. Essa linda cidade domina salinas cujo produto em toda a Bretanha é conhecido pelo nome de sal de Guérande, e ao qual
muitos bretões atribuem a excelência de sua manteiga e das suas sardinhas. Está ligada à França moderna somente por dois caminhos, o que vai ter a Savenay, circunscrição
de que ela depende, e que passa por Saint-Nazaire; o que conduz a Vannes e a comunica com o Morbihan. O caminho da circunscrição estabelece a comunicação por terra,
e Saint-Nazaire a comunicação marítima com Nantes. O caminho por terra só é frequentado pela administração. A via mais rápida, a mais usada é a de Saint-Nazaire.
Ora, entre esse burgo e Guérande há uma distância de pelo menos seis léguas que não é percorrida pela mala-posta, pela razão óbvia de que num ano não passam por
ali três viajantes que requeiram aquele meio de transporte. Saint-Nazaire é separada de Paimboeuf pelo estuário do Loire, que tem quatro léguas de largura. A barra
do Loire torna a navegação dos barcos a vapor muito caprichosa; mas, para cúmulo de impedimento não existia nenhum cais em 1829 no promontório de Saint-Nazaire e
esse lugar estava ornado de rochedos limosos, de recifes graníticos, de pedras colossais que servem de fortificações naturais à sua pitoresca igreja e que forçavam
os viajantes a se atirarem nas barcas com seus pacotes quando o mar estava agitado, ou, quando fazia bom tempo, a irem através dos escolhos até o molhe que a engenharia
estava então construindo. Esses obstáculos, de molde a pouco encorajar os amadores, existem talvez ainda. Em primeiro lugar a administração é lenta nas suas obras;
depois, os habitantes desse território, que podereis ver recortado como um dente num mapa da França, e está compreendido entre Saint-Nazaire, o burgo de Batz e o
Croisic, conformam-se facilmente com essas dificuldades que protegem o acesso de sua terra contra os estrangeiros. Atirada numa das extremidades do continente, Guérande
não conduz a parte alguma e ninguém vem até ela. Feliz por sentir-se ignorada, ela se preocupa apenas consigo mesma. O movimento da imensidade dos produtos das salinas
que não pagam menos de um milhão ao fisco faz-se no Croisic, cidade peninsular cujas comunicações com Guérande se realizam por sobre areias movediças, onde durante
a noite se apaga o caminho traçado durante o dia, e por meio de barcos indispensáveis para atravessar o braço de mar que serve de porto ao Croisic, o qual irrompeu
areias adentro. Essa encantadora cidadezinha é pois a Herculano (Herculano: rica cidade da Campânia, destruída por uma erupção do Vesúvio em 79 d.C., a mesma que
destruiu Pompeia.) do feudalismo, tendo a menos o sudário de lavas. Está de pé sem viver, não tem outros motivos de existir senão o não ter sido demolida. Se chegardes
a Guérande pelo Croisic, depois de terdes atravessado a paisagem das salinas, sentireis uma viva emoção à vista dessa imensa fortificação ainda completamente nova.
O pitoresco de sua posição e as graças singelas de seus arredores, quando a ela se chega por Saint-Nazaire, não seduzem menos. Em derredor a região é encantadora,
as sebes estão crivadas de flores, de madressilvas, de buxos, de roseiras, de belas plantas. Dir-se-ia um jardim inglês desenhado por um grande artista. Essa natureza
rica, tão acalentadora, tão pouco frequentada e que oferece a sedução de um ramalhete de violetas, de musgos, numa espessura de floresta, tem por quadro um deserto
da África cercado pelo oceano, mas um deserto sem árvores, sem uma erva, sem um pássaro, e onde, nos dias de sol, os salineiros vestidos de branco e espalhados nos
tristes pântanos onde se cultiva o sal lembram árabes cobertos com os seus albornozes. Por isso Guérande, com sua linda paisagem na terra firme, com seu deserto,
limitado à direita pelo Croisic, à esquerda pelo burgo de Batz, não se assemelha a nada daquilo que os viajantes veem na França. Essas duas naturezas tão opostas,
unidas pela última imagem da vida feudal, têm um não sei quê impressionante. A cidade produz sobre a alma o efeito que produz um calmante sobre o corpo; é tão silenciosa
quanto Veneza. Não há outro veículo público além do de um transportador que conduz numa carriola os viajantes, as mercadorias e talvez as cartas de Saint-Nazaire
a Guérande e reciprocamente. Bernus, o condutor, era, em 1829, o factótum dessa grande comunidade. Anda como lhe apraz, não há ninguém que não o conheça, faz os
mandados de todos.
A chegada de um carro, quer se trate de alguma mulher que passe por Guérande pelo caminho terrestre para ir a Croisic, quer se trate de algum velho doente que venha
para os banhos de mar, os quais nos rochedos dessa península têm virtudes superiores aos de Boulogne, de Dieppe e dos Sables, é um acontecimento extraordinário.
Os camponeses chegam a cavalo, a maioria trazendo frutos da lavoura em sacos.
O que os traz, sobretudo, do mesmo modo que aos salineiros, é a necessidade de comprar na cidade as joias próprias à sua casta, e que são dadas a todas as noivas
bretãs, bem como a roupa branca ou o pano para os seus vestidos. Num raio de dez léguas, Guérande, a cidade ilustre onde foi assinado o tratado famoso na história
(O tratado famoso na história é o que foi concluído em 1365 entre João de Montfort e Carlos V para pôr fim à Guerra da Sucessão da Bretanha.), a chave da costa e
que, não menos que o burgo de Batz, denuncia um esplendor perdido na noite dos tempos. As joias, a fazenda, a tela, as fitas, os chapéus são fabricados em outra
parte, mas para todos os consumidores são de Guérande.
Todos os artistas, e mesmo os burgueses, que passam por Guérande, experimentam, como os que se detiveram em Veneza, um desejo logo esquecido de ali acabarem seus
dias na paz, no silêncio, passeando em dias de bom tempo nas alamedas que orlam a cidade pelo lado do mar, de uma porta à outra. Por vezes a imagem dessa cidade
volta a golpear o templo das recordações: ela aí entra toucada com as suas torres, ornada de suas muralhas, desprega suas vestes semeadas de lindas flores, sacode
o manto de ouro de suas dunas, exala os perfumes embriagadores de seus lindos caminhos espinhosos e cheios de ramos atados ao deus-dará; ela vos prende a atenção
e vos chama como uma mulher divina por vós entrevista numa terra estranha e que se alojou num recanto do coração.
II - O SOLAR DU GUAISNIC
Perto da igreja de Guérande vê-se uma casa que representa para a cidade o que esta representa para o país, uma imagem exata do passado, o símbolo de uma grande coisa
destruída, uma poesia. Essa casa pertence à mais nobre família da terra, aos du Guaisnic, os quais, nos tempos dos du Guesclin, lhes eram tão superiores em fortuna
e antiguidade quanto os troianos o eram aos romanos. Os Guaisqlain (cuja ortografia era outrora du Glaicquin), de que se fez Guesclin, descendem dos Guaisnic. Velhos
como o granito da Bretanha, os Guaisnic nem são francos nem gauleses; são bretões, ou, para sermos mais exatos, celtas. Devem ter sido druidas (Druidas: sacerdotes
pagãos dos antigos celtas.) em outros tempos, devem ter colhido o agárico (O agárico era, para os antigos gauleses, uma planta sagrada.) das florestas sagradas e
sacrificado homens sobre os dólmens (Dólmen: monumento druídico formado de uma grande pedra chata colocada sobre duas pedras verticais.). É inútil dizer o que eles
foram. Hoje essa raça, como os Rohan, sem se ter dignado fazer-se principesca (Alusão à divisa dos Rohan, que—como muitas divisas—contém a etimologia suposta do
nome: Roi ne puis, prince ne daigne, Rohan suis - “Rei não posso [ser], príncipe não me digno [de ser], sou Rohan”.), que já era poderosa antes que se falasse dos
antepassados de Hugo Capeto (Hugo Capeto: filho do conde Hugo, o Grande, proclamado rei da França em 987. Conta-se que, tendo ele mandado perguntar a um dos senhores
que não lhe queriam obedecer: “Quem te fez conde?”, o interpelado teria respondido: “Quem te fez rei?”.), essa família pura de qualquer mescla, possui cerca de dois
mil francos de rendimento, a casa de Guérande e seu pequeno castelo de Guaisnic. Todas as terras que dependem da baronia do Guaisnic, a primeira da Bretanha, estão
hipotecadas a granjeiros e rendem cerca de sessenta mil francos, apesar da imperfeição das culturas. Os du Guaisnic, de resto, continuam sempre proprietários de
suas terras; como porém não podem restituir o capital, depositado faz duzentos anos em suas mãos pelos foreiros atuais, eles não recebem as rendas. Estão na mesma
situação que a Coroa de França com os seus engagistes (Engagistes: nome que se dava às pessoas que, por engajamento, usufruíam os domínios do rei.) antes de 1789.
Onde e quando os barões poderão encontrar o milhão que seus arrendatários lhes emprestaram? Antes de 1789, a enfiteuse dos feudos dependentes do castelo du Guaisnic,
pousado sobre uma colina, valia ainda cinquenta mil francos; um voto da Assembleia Nacional, entretanto, suprimiu o imposto dos laudêmios e das vendas percebidas
pelos senhores. Nessa situação, essa família que nada mais é para ninguém na França, seria objeto de mofa em Paris; em Guérande ela é toda a Bretanha. Em Guérande,
o barão du Guaisnic é um dos grandes barões da França, um dos homens acima dos quais não existe senão o rei da França, outrora eleito chefe. Hoje o nome de du Guaisnic,
cheio de significações bretãs e cujas raízes foram de resto explicadas em Os Chouans ou A Bretanha em 1799 (Romance de Balzac.), sofreu a alteração que desfigura
o de du Guaisclin. O coletor das contribuições escreve, como todos, Guénic.
Na extremidade de uma viela silenciosa, úmida e sombria, formada pelas muralhas com empenas das casas vizinhas, vê-se o arco abobadado de uma porta de um só batente,
suficientemente larga e alta para dar passagem a um homem a cavalo, circunstância que desde já indica que no tempo em que essa construção foi terminada ainda não
havia carros. Esse arco, suportado por duas pilastras, é todo de granito. A porta, de carvalho fendido como a casca das árvores que forneceram a madeira, está cheia
de pregos enormes, os quais desenham figuras geométricas. O arco é oco. Apresenta o escudo dos du Guaisnic tão nítido, tão limpo, como se o escultor acabasse de
terminá-lo.
Esse escudo encantaria um amador da arte heráldica por uma simplicidade que prova a altivez e a antiguidade da família. Está tal como era no dia em que os cruzados
do mundo cristão inventaram esses símbolos para se reconhecerem; os Guaisnic jamais o esquartelaram, conserva-se sempre o mesmo como o da casa de França, que os
conhecedores encontram em abismo ou esquartelado, semeado nas armas das mais velhas famílias. Ei-lo tal como o podeis ainda ver em Guérande: de goles, com uma mão
ao natural gonfolonada de arminho, empunhando uma espada de prata, posta em pala, com esta terrível palavra por divisa: fac (fac: palavra latina que significa “faze!”.)!
Não é isso uma coisa grande e bela? O fio de pérolas da coroa baronial encima esse escudo simples, cujas linhas verticais, empregadas na escultura para representar
os goles, ainda brilham. O artista deu não sei que feitio altivo e cavalheiresco à mão. Com que intrepidez ela segura essa espada da qual ainda ontem a família se
serviu! De fato, se fôsseis a Guérande depois de ler esta história, não vos seria possível deixar de estremecer ao ver esse brasão. Sim, o mais completo republicano
ficaria enternecido pela fidelidade, pela nobreza, pela grandeza ocultas no fundo dessa viela. Os du Guaisnic bem fizeram ontem, estão prontos a bem fazer amanhã.
Fazer é o grande termo da cavalaria.
— Bem fizeste na batalha—dizia sempre o condestável por excelência, esse grande du Guesclin (Du Guesclin: Bertrand du Guesclin (1320-1380), condestável da França,
um dos maiores capitães de seu país, que libertou da ocupação inglesa grande parte do território francês.), que expulsou da França os ingleses por algum tempo. A
profundidade da escultura, preservada de qualquer intempérie pela larga borda produzida pela saliência arredondada do arco, está em harmonia com a profundidade moral
da divisa na alma dessa família. Para quem conhece os du Guaisnic, essa particularidade torna-se comovedora.
A porta aberta deixa ver um pátio bastante amplo, à direita do qual estão as estrebarias, achando-se à esquerda a cozinha. O edifício é de pedra de cantaria desde
as adegas até o sótão. A fachada no pátio tem como adorno uma escada exterior de duplo lanço cujo vão é coberto de vestígios de esculturas apagadas pelo tempo, mas
onde o olho do antiquário ainda distinguiria, no centro, as massas principais da mão empunhando a espada. Embaixo daquela bonita tribuna, enquadrada por nervuras
quebradas em alguns lugares e como que envernizadas pelo uso em certas partes, há um pequeno cubículo, outrora ocupado por um cão de guarda. As rampas de pedra estão
desunidas: nelas crescem ervas, algumas pequenas flores e musgos nas fendas, bem como nos degraus da escada que os séculos deslocaram sem lhes tirar a solidez. A
porta deve ter sido de um belo estilo. Tanto quanto o resto dos desenhos permite julgar, ela foi trabalhada por um artista educado na grande escola veneziana do
século XIII. Encontra-se nela não sei que mistura do bizantino e do mourisco. É coroada por uma saliência circular carregada de vegetação, um ramo róseo, amarelo,
pardacento ou azul, segundo as estações. A porta de carvalho, cravejada de pregos, dá entrada para uma vasta sala, em cuja extremidade há outra porta com uma escada
semelhante que desce para o jardim. O estado de conservação desta sala é maravilhoso. O forro de madeira à altura do encosto é de castanheiro. Um magnífico couro
espanhol, ostentando figuras em relevo, mas cujas douraduras estão esfareladas e avermelhadas, cobre as paredes. O teto é composto de tábuas artisticamente unidas,
pintadas e douradas. O ouro apenas se vê; está no mesmo estado que o do couro de Córdova; mas é possível perceberem-se ainda algumas flores vermelhas e algumas folhagens
verdes. É de crer que uma boa limpeza faria reaparecerem pinturas semelhantes às que decoram os assoalhos da casa de Tristan em Tours, e que provariam terem sido
esses assoalhos refeitos ou restaurados no reinado de Luís XI. A lareira é enorme, de pedra esculpida, munida de gigantescas grelhas forjadas de um lavor precioso.
Ali caberia uma carrada de lenha. Todos os móveis da sala são de madeira de carvalho e ostentam acima do espaldar o escudo da família. Há três espingardas inglesas
que tanto podem servir para a caça como para a guerra, três sabres, duas bolsas de caça, os utensílios do caçador e do pescador pendurados em pregos.
Ao lado há uma sala de jantar que comunica com a cozinha por uma porta aberta numa torrinha de canto. Essa torrinha corresponde, no desenho da fachada, sobre o pátio,
a outra, pegada ao outro ângulo, e onde se encontra uma escada de caracol que sobe para os dois andares superiores.
A sala de jantar está forrada de tapeçarias que datam do século XIV, como fazem fé o estilo e a ortografia das inscrições constantes das bandeirolas existentes por
baixo de cada personagem; como porém estão redigidas na linguagem ingênua dos fabliaux (Fabliaux: pequenos contos populares em verso, dos séculos XII e XIII.), é
impossível transcrevê-las hoje. Essas tapeçarias, bem conservadas nos lugares em que a luz penetrou escassamente, são enquadradas por listões de carvalho esculpido
que se tornam negros como ébano. O teto tem vigas salientes enriquecidas com folhagens diferentes em cada uma delas; os espaços entre as vigas são forrados de tábuas
pintadas pelas quais corre uma braçada de flores douradas sobre fundo azul. Dois velhos trinchantes se acham em frente um do outro. Em cima de suas tábuas, esfregadas
com obstinação bretã por Mariotte, a cozinheira, veem-se, como nos tempos em que os reis, em 1200, eram tão pobres como os du Guaisnic em 1830, quatro velhos copinhos,
uma velha sopeira amolgada e dois saleiros de prata; depois, muitos pratos de estanho, numerosos potes de grés azul e cinzento, com desenhos, arabescos e com as
armas dos du Guaisnic, cobertos com uma tampa de dobradiças de estanho. A lareira foi modernizada. Seu estado prova que a família costuma reunir-se nessa peça desde
o último século. É de pedra esculpida no gosto do século de Luís XV, ornamentada com um espelho enquadrado num trenó de listões perolados e dourados. Essa antítese,
indiferente para a família, entristeceria um poeta. Sobre a placa da chaminé, coberta com veludo vermelho, há no centro um relógio de nácar incrustado de cobre,
e de cada lado dois candelabros de prata de um modelo estranho. Uma mesa larga, quadrada, de colunas retorcidas ocupa o centro da sala. As cadeiras são de madeira
torneada, guarnecidas de tapeçaria.
Em cima de uma mesa redonda de um único pé, imitando uma vara de videira e colocada em frente à janela que dá para o jardim, vê-se uma lâmpada estranha. Essa lâmpada
consiste num globo de vidro comum, um pouco menor do que um ovo de avestruz, fixada num castiçal por uma haste de vidro. De um orifício superior sai uma mecha chata
mantida numa espécie de calha de cobre, e cuja trama, dobrada como uma tênia num local, suga o óleo de nozes existente no globo.
A janela que dá para o jardim, assim como a que dá para o pátio—e as duas se correspondem—,tem caixilhos de pedra, sendo a vidraça de vidros hexagonais embutidos
em chumbo, com cortinados de dossel e grandes borlas em velho estofo de seda vermelha com reflexos amarelos, outrora denominado brocatel ou pequeno brocado.
Em cada andar da casa, que tem dois, nada mais existe senão essas duas peças. O primeiro serve de habitação para o chefe da família. O segundo, antigamente, era
destinado às crianças. Os hóspedes se alojavam nos quartos do sótão. Os criados moravam por cima das cozinhas e das estrebarias. O telhado pontudo, guarnecido de
chumbo nos cantos, é aberto em cima do pátio e do jardim por meio de uma magnífica janela em ogiva, que se ergue quase tão alto quanto a cumeeira, com mísulas delgadas
e finas cujas esculturas estão corroídas pelos vapores salinos da atmosfera. Por cima do tímpano bordado dessa janela de quatro pinázios de pedra range ainda o cata-vento
do nobre.
Não esqueçamos um detalhe precioso e cheio de singeleza, que não deixa de ter seu mérito aos olhos dos arqueólogos. A torrinha, na qual gira a escada, guarnece o
ângulo de um grande muro com empena no qual não existe nenhuma janela. A escada desce por uma pequena porta em ogiva até um terreno ensaibrado que separa a casa
do muro externo no qual estão encostadas as cocheiras. Essa torrinha forma par com outra, no jardim, a qual tem cinco faces e se remata por uma abóbada em quarto
de esfera, e suporta uma cúpula piramidal em vez de uma guarita como a irmã. Eis aí como aqueles graciosos arquitetos sabiam variar sua simetria. Somente na altura
do primeiro andar, essas duas torrinhas são ligadas por uma galeria de pedra sustentada por uma espécie de proa com faces humanas. Essa galeria exterior é guarnecida
de uma balaustrada trabalhada com elegância e finura maravilhosas. Depois, do alto da empena, sob a qual existe um único terraço oblongo, pende um ornato de pedra
representando um pálio semelhante aos que coroam as estátuas dos santos nos pórticos das igrejas. As duas torrinhas abrem para esse terraço por meio de uma linda
porta de arco de abóbada aguda. Tal é o partido que a arquitetura do século XIII tirava da muralha nua e fria que apresenta hoje a face cortada de uma casa. Vedes
uma mulher passeando, de manhã, nessa galeria e contemplando por sobre Guérande o sol iluminar o ouro das areias e espelhar o lençol do oceano? Não admirais essa
muralha pontuda, florida, mobilada nos seus dois cantos por duas torrinhas quase estriadas das quais uma se arredonda bruscamente como ninho de andorinha, enquanto
a outra apresenta sua linda porta de arco abobadado gótico e decorado com a mão que empunha a espada?
A outra empena da casa dos du Guaisnic liga-se à casa vizinha. A harmonia que tão cuidadosamente os mestres daquele tempo buscavam foi conservada na fachada do pátio
pela torrinha semelhante àquela por onde sobe o parafuso, tal era o nome dado outrora a uma escada, e que serve de comunicação entre a sala de jantar e a cozinha;
ela, entretanto, detém-se no primeiro andar, e termina por um pequeno zimbório aberto sob o qual se ergue uma estátua negra de são Calisto.
O jardim é luxuoso num velho recinto, tem um meio arpento mais ou menos, seus muros são guarnecidos de espaldeiras; é dividido em canteiros de legumes, cercados
de árvores frutíferas podadas em forma de roca, e é cultivado por um criado chamado Gasselin, o qual também cuida dos cavalos. Na extremidade desse jardim existe
um caramanchão no qual há um banco. No centro ergue-se um quadrante solar. As aleias são ensaibradas. No jardim a fachada não tem torrinha para corresponder àquela
que sobe ao longo da empena. Para compensar essa falta há uma coluneta contorcida em parafuso desde o pé até o topo e que, outrora, devia suportar o pendão da família,
porquanto se termina por uma espécie de ralo grosso de ferro enferrujado, do qual saem algumas ervas enfezadas. Esse detalhe, em harmonia com os vestígios da escultura,
prova que essa habitação foi construída por um arquiteto veneziano. Aquela haste elegante é como que uma assinatura que trai Veneza, a cavalaria, a finura do século
XIII. Se restassem dúvidas a esse respeito, seriam dissipadas pela natureza dos ornamentos. Os trevos do solar dos du Guaisnic têm quatro folhas em lugar de três.
Essa diferença indica a escola veneziana adulterada por seu comércio com o Oriente, onde os arquitetos meio mouros e pouco interessados pelo grande pensamento católico
davam quatro folhas ao trevo, ao passo que os arquitetos cristãos permaneciam fiéis à Trindade. Sob esse ponto de vista a fantasia veneziana era herética.
Se essa habitação surpreende vossa imaginativa é possível que a vós mesmos pergunteis por que motivo a época atual não renova esses milagres da arte. Hoje as belas
residências são vendidas, derrubadas e dão lugar a ruas. Ninguém sabe se sua geração conservará a mansão patrimonial onde cada um passa como numa taberna; ao passo
que outrora, ao edificar uma residência, trabalhava-se, ou, pelo menos, julgava-se trabalhar para uma família eterna. Daí a beleza das casas de moradia. A fé em
si próprio fazia milagres tanto quanto a fé em Deus.
Quanto às disposições e ao mobiliário dos andares superiores, nada mais se pode fazer do que presumi-los, de acordo com a descrição desse rés do chão e segundo a
fisionomia e costumes da família. Durante os últimos cinquenta anos, os du Guaisnic não receberam nunca uma visita em outro lugar a não ser nas duas peças onde respiravam,
como naquele pátio e nos acessórios exteriores daquela residência, o espírito, a graça, a simplicidade da velha e nobre Bretanha. Sem a topografia e a descrição
da cidade, sem a pintura minuciosa daquela casa residencial, as figuras surpreendentes daquela família talvez não fossem bem compreendidas. Por isso os quadros deviam
vir antes dos retratos. Todos pensarão que as coisas dominaram os seres. Há monumentos cuja influência é visível sobre as pessoas que vivem na sua vizinhança. É
difícil ser irreligioso à sombra de uma catedral como a de Bourges. Quando por todos os lados a alma se vê lembrada de seu destino por meio de imagens, é menos fácil
faltar com o seu dever. Tal era a opinião de nossos antepassados, opinião abandonada por uma geração que não tem mais sinais nem distinções e cujos costumes mudam
a cada dez anos. Não esperais encontrar o barão du Guaisnic com uma espada na mão, ou tudo aqui seria mentira?
III - O BARÃO
Em 1836, no momento em que se inicia esta cena, nos primeiros dias do mês de agosto, a família du Guénic compunha-se ainda do sr. e da sra. du Guénic, da srta. du
Guénic, irmã mais velha do barão, e de um filho único de vinte e um anos de idade chamado Gaudeberto Calisto Luís, segundo velho uso da família. O pai chamava-se
Gaudeberto Calisto Carlos. Não se variava senão o último nome. São Gaudeberto e são Calisto deviam proteger sempre os du Guénic. O barão du Guénic abandonara Guérande
assim que a Vendeia e a Bretanha se levantaram em armas, e estivera guerreando com Charette, com Cathelineau, La Rochejacquelein, d’Elbée, Bonchamps e o príncipe
de Loudon (Todos esses nomes—salvo o do príncipe de Loudon, inventado por Balzac—pertencem a personagens reais, chefes da revolta realista organizada na Vendeia
em 1793: François-Athanase Charette de la Conttie, fuzilado em Nantes; Jacques Cathelineau, mortalmente ferido durante o ataque a Nantes; Henri de la Rochejacquelein,
general em chefe dos revoltosos, morto no combate de Nouaillé; Maurice Gigot d’Elbée, fuzilado em Noirmouciers; marquês Charles de Bonchamps, ferido no combate de
Cholet e morto no dia seguinte.). Antes de partir, ele vendera todos os seus bens à sua irmã mais velha, a srta. Zefirina du Guénic, por uma medida de prudência,
única nos anais revolucionários. Depois da morte de todos os heróis do Oeste, o barão, a quem somente um milagre pudera preservar de ter o mesmo fim que os outros,
não se submetera a Napoleão. Andara metido em guerrilhas até 1802, ano no qual depois de ter escapado de se deixar prender, voltou a Guérande, e de Guérande ao Croisic,
de onde pôde chegar à Irlanda, fiel ao velho ódio dos bretões pela Inglaterra. A gente de Guérande fingiu ignorar a existência do barão e em vinte anos não houve
uma única indiscrição. A srta. du Guénic recebia os rendimentos e remetia-os ao irmão por intermédio de pescadores. O sr. du Guénic voltou em 1813 para Guérande,
tão simplesmente como se tivesse ido passar uma estação em Nantes. Durante sua estada em Dublin, o velho bretão, apesar dos seus cinquenta anos, apaixonou-se por
uma irlandesa, filha de uma das mais nobres e mais pobres famílias daquele infeliz reino. Miss Fanny O’Brien tinha então vinte e um anos. O barão du Guénic veio
buscar os papéis necessários para o casamento, voltou para a cerimônia e regressou dez meses depois, em começos de 1814, com a esposa, a qual lhe deu Calisto, exatamente
no mesmo dia em que Luís XVIII entrou em Calais, circunstância que explica o nome de Luís que lhe foi dado.
O velho e leal bretão tinha naquele momento setenta e três anos; mas a guerra de guerrilhas feita à república, seus sofrimentos em cinco travessias feitas em embarcações
costeiras e sua vida em Dublin tinham pesado sobre sua cabeça: ele parecia ter mais de um século. Por isso jamais em tempo algum nenhum Guénic esteve mais em harmonia
com a vetustez daquela mansão, edificada no tempo em que havia uma corte em Guérande.
O sr. du Guénic era um ancião de elevada estatura, reto, seco, nervoso e magro. Seu rosto oval enrugado por milhares de pregas que formavam franjas arqueadas por
sobre os molares, acima das sobrancelhas, davam ao seu semblante uma semelhança com os anciões que o pincel de Van Ostade, de Rembrandt, de Miéris, de Gerard Dow
(Van Ostade etc.: famosos pintores neerlandeses do século XVII. Adrien van Ostade (1610-1685), Franz van Miéris (1635-1681), Gérard Dow ou Dou (1613-1675) são conhecidos
por suas cenas familiares e seus retratos; o nome de Rembrandt van Ryn (1606-1669) não requer comentário.) tanto acariciou e que necessitam de uma lente para serem
admirados. Sua fisionomia parecia como que soterrada sob seus inúmeros sulcos, produzidos pela vida ao ar livre, pelo hábito de observar a campanha ao rigor do sol,
quer ao amanhecer, quer ao anoitecer. Não obstante, para o observador persistiam as formas imperecíveis do rosto humano e que dizem ainda alguma coisa à alma, mesmo
quando os olhos nela não veem mais senão uma cabeça morta. Os firmes contornos da face, o desenho da fronte, a seriedade das linhas, a rigidez do nariz, os lineamentos
do arcabouço que só os ferimentos podem alterar, indicavam uma intrepidez sem cálculo, uma fé sem limites, uma obediência sem discussão, uma fidelidade sem transações,
um amor sem inconstância. Nele o granito bretão se fizera homem. O barão não tinha mais dentes. Seus lábios, outrora vermelhos, mas agora violáceos, não sendo mais
sustentados senão pelas gengivas duras com as quais ele comia o pão que a mulher tinha o cuidado de amolecer, pondo-o num guardanapo úmido, infletiam-se para dentro
da boca, desenhando contudo um ríctus ameaçador e altivo. O queixo queria juntar-se com o nariz, mas viam-se no caráter desse nariz, acavaletado no meio, os sinais
de sua energia e de sua resistência bretã. A pele, marmorizada de manchas vermelhas que apareciam através das suas rugas, indicava um temperamento sanguíneo, violento,
talhado para as fadigas, graças às quais fora o barão, sem dúvida, preservado de múltiplas apoplexias. Essa cabeça era coroada por uma cabeleira branca como prata,
que lhe caía em cachos sobre os ombros.
O semblante, agora em parte extinto, vivia pelo brilho de dois olhos negros que cintilavam no fundo de suas órbitas escuras e despediam as últimas chamas de uma
alma generosa e leal. As sobrancelhas já tinham caído. A pele, que se tornara rude, não se podia desenrugar. A dificuldade de barbear-se obrigava o velho a deixar
crescer a barba em leque. Um pintor teria admirado, acima de tudo, naquele velho leão da Bretanha, de ombros largos, de peito nervoso, as suas admiráveis mãos de
soldado, mãos como deviam ser as de du Guesclin, mãos largas, espessas, peludas, mãos que tinham abarcado o punho da espada para não deixá-la, como fez Joana d’Arc,
senão no dia em que o estandarte real flutuasse na catedral de Reims: mãos que com frequência se ensanguentaram nos espinhos dos matagais do Bocage; que manejaram
o remo no Marais (Bocage: nome de uma região da Vendeia onde se desenvolveu a revolta de 1793.—Marais: região da Bretanha.), para ir surpreender os Azuis (Azuis:
apelido dos soldados republicanos, devido à cor do uniforme, por oposição aos Brancos, nome que se dava aos realistas por causa de sua bandeira branca.), ou em pleno
mar a fim de favorecer a chegada de Georges (Georges: Georges Cadoudal, famoso chefe monarquista, organizador de vários levantes e de uma tentativa de raptar Napoleão;
executado em Paris em 1804.), as mãos do guerrilheiro, do artilheiro, do simples soldado, do chefe; mãos então brancas, embora os Bourbons do ramo primogênito estivessem
no exílio; mas olhando-as atentamente ver-se-iam nelas marcas recentes que revelariam ter-se o barão, fazia pouco, reunido a Madame (Madame: a duquesa de Berry.)
na Vendeia. Hoje esse fato pode ser confessado. Essas mãos eram o comentário vivo da bela divisa à qual nenhum Guénic jamais faltara: fac!
A fronte chamava a atenção por tonalidades douradas nas têmporas, as quais contrastavam com o moreno daquela testa pequena, dura e estreita que a queda dos cabelos
aumentara bastante para dar mais majestade ainda àquela bela ruína.
Essa fisionomia um pouco material, de resto, e como poderia ter ela sido diferente? apresentava como todas as figuras bretãs, agrupadas em torno ao barão, aparências
selvagens, uma calma bruta que se assemelhava à impassibilidade dos hurões (Hurões ou huronianos: tribo indígena do Canadá e dos Estados Unidos.); um não sei quê
de estúpido, devido talvez ao repouso absoluto que sucede às fadigas excessivas e que deixa então reaparecer exclusivamente o animal. Ali o pensamento era raro.
Parecia ser um esforço, tinha sua sede antes no coração do que na cabeça, engendrava mais a ação do que a ideia. Ao examinar-se porém aquele belo ancião com atenção
persistente, adivinhar-se-iam os mistérios daquela oposição real ao espírito do seu século. Ele tinha religiões, sentimentos por assim dizer inatos que o dispensavam
de meditar. Seus deveres, ele os aprendera com a vida. As instituições, a religião pensavam por ele. Devia pois reservar seu espírito, tanto ele como os seus, para
agir, sem dissipá-lo em nenhuma das coisas julgadas inúteis, mas das quais os outros se ocupavam. Ele tirava seus pensamentos do coração, como tirava a espada da
bainha, deslumbrante de candor, como no seu brasão a mão circundada de arminho. Uma vez adivinhado esse segredo tudo se explicava. Compreendia-se a profundidade
das resoluções devidas a pensamentos nítidos, distintos, francos, imaculados como o arminho. Compreendia-se aquela venda feita à irmã antes da guerra e que atendia
a tudo, à morte, à confiscação, ao exílio. A beleza do caráter dos dois anciãos, porquanto a irmã vivia somente para e pelo irmão, não pode mais ser compreendida
em toda a sua extensão pelos costumes egoístas que a incerteza e a inconstância de nossa época nos impõem. Um arcanjo encarregado de ler nos corações de ambos não
descobriria neles um único pensamento que se pudesse acoimar de personalismo. Em 1814, quando o cura de Guérande insinuava ao barão du Guénic que fosse a Paris reclamar
sua recompensa, a velha irmã, tão avara para com a casa, exclamou:
— Nunca! Que necessidade tem meu irmão de ir estender a mão como um indigente?
— Acreditariam que servi o rei por interesse—disse o ancião.
— De resto compete a ele lembrar-se. E, ademais, esse pobre rei está bem embaraçado com todos os que o importunam. Desse ele a França aos pedaços, e ainda lhe pediriam
mais alguma coisa.
Esse leal servidor, que dedicava tanto interesse a Luís XVIII, teve o posto de coronel, a cruz de São Luís e uma reforma de dois mil francos.
— O rei recordou-se—disse ele ao receber suas patentes.
Ninguém lhe dissipou o engano. O trabalho fora feito pelo duque de Feltre (O duque de Feltre: Henri-Jacques-Guillaume Clarke, marechal e ministro da guerra de Napoleão;
passou-se depois para os Bourbons e foi organizador, em 1815, de tribunais excepcionais.), de acordo com o registro dos exércitos vendeanos, onde ele encontrara
o nome de du Guénic, com alguns outros nomes bretãos em ic. Por isso, como que para agradecer ao rei da França, o barão sustentou em 1815 (Em 1815: isto é, durante
os Cem Dias do segundo e efêmero reinado de Napoleão, fugido da ilha de Elba.) um assédio em Guérande contra os batalhões do general Travot, não consentindo em render
essa fortaleza, e, quando foi preciso evacuá-la, refugiou-se nos matos com um grupo de chouans (Chouans: nome que se dava aos rebeldes monarquistas da Bretanha,
sobre os quais Balzac escreveu um romance - A Bretanha em 1799.) que permaneceram armados até a segunda volta dos Bourbons. Guérande ainda conserva a recordação
desse último assédio. Se os velhos bandos bretãos tivessem vindo, a guerra despertada por essa resistência heroica teria incendiado a Vendeia.
Somos forçados a confessar que o barão du Guénic era completamente iletrado, mas iletrado como um campônio: sabia ler, escrever e contar um pouco; conhecia a arte
militar e a do brasão; mas a não ser seu livro de horas, em toda a vida não lera três volumes.
O vestuário, que não poderia ser qualquer um, era invariável e consistia em sapatos grossos, meias de pano, um calção de veludo esverdeado, um colete de pano e uma
sobrecasaca de gola à qual estava presa uma cruz de São Luís.
Reinava naquele rosto uma serenidade admirável que, fazia um ano, um sono precursor da morte parecia preparar para o repouso eterno. Essas constantes sonolências,
dia a dia mais frequentes, não inquietavam nem a esposa, nem a irmã cega, nem os amigos, cujos conhecimentos médicos não eram grandes. Para eles essas pausas sublimes
de uma alma irrepreensível, porém fatigada, explicavam-se naturalmente: o barão cumprira seu dever. Essa palavra encerrava tudo.
Naquela pobre mansão, os interesses maiores eram destinados ao ramo despojado. O futuro dos Bourbons exilados e o da religião católica, a influência das novidades
políticas na Bretanha ocupavam exclusivamente a família do barão. Não havia outro interesse mesclado a esses a não ser o devotamento de todos pelo filho único Calisto,
o herdeiro, a única esperança do grande nome dos du Guénic.
O velho vendeano, o velho chouan tivera, poucos anos antes, como que uma volta à mocidade a fim de acostumar aquele filho aos exercícios violentos que convêm a um
gentil-homem que poderia de um momento a outro ser chamado a guerrear. Assim que Calisto completou dezesseis anos, o pai acompanhara-o aos pântanos e às florestas,
mostrando-lhe nos prazeres da caça os rudimentos da guerra, pregando pelo exemplo, resistente à fadiga, firme na sela, seguro dos golpes que desferia, fosse qual
fosse a espécie de caçada, quer a de perseguição a cavalo e com cães, quer a de voo, intrépido em saltar os obstáculos, e incitando seu herdeiro a que afrontasse
o perigo como se tivesse dez filhos a arriscar. Por isso, quando a duquesa de Berry (A duquesa de Berry, filha de Francisco I de Nápoles, mulher romântica e ativa,
procurou em 1832 levantar a Vendeia contra Luís Filipe. Sua tentativa falhou, e ela foi presa por algum tempo. Era mãe do conde de Chambord, pretendente ao trono.)
veio à França para conquistar o reino, o pai levou o filho para fazê-lo praticar a divisa do seu brasão. O barão partiu durante uma noite, sem prevenir a esposa
que o teria talvez enternecido, levando o filho único para o fogo como se fosse para uma festa, e acompanhado por Gasselin, seu único vassalo, o qual o seguiu alegremente.
Os três homens da família estiveram ausentes durante seis meses, sem dar notícias à baronesa—a qual nunca lia a Quotidienne (La Quotidienne: jornal ultramonarquista,
aristocrático e clerical, de extrema direita.) sem tremer a cada linha—nem à velha cunhada daquela, heroicamente rígida, e cuja fronte não se franzia ao ouvir o
jornal. Os três fuzis pendurados na grande sala tinham pois servido recentemente. O barão, que julgou inútil aquela revolta, abandonara a campanha antes do encontro
da Penissière (O encontro da Penissière: único encontro digno de memória entre as tropas governistas e as da duquesa de Berry, em que uns cinquenta gentis-homens
e camponeses sacrificaram a vida, em vão, pela restauração do ramo primogênito dos Bourbons.), sem o que é bem possível que tivesse acabado a linhagem dos Guénic.
Quando, numa noite horrível, o pai, o filho e o servidor chegaram em casa depois de se terem despedido de Madame, e surpreenderam os amigos, a baronesa e a velha
srta. du Guénic, a qual, pelo exercício de um sentido de que são dotados todos os cegos, reconheceu o passo dos três homens na viela, o barão contemplou o círculo
formado por seus amigos inquietos em torno da pequena mesa iluminada por aquela lâmpada antiga e disse com voz trêmula, enquanto Gasselin tornava a pôr os três fuzis
e os três sabres nos seus lugares, estas palavras de uma singeleza feudal:
— Nem todos os barões cumpriram seu dever.
Em seguida, depois de ter abraçado a mulher e a irmã, sentou-se na sua velha poltrona e deu ordens para que preparassem a ceia para o filho, para Gasselin e para
ele. Gasselin, que se pusera em frente de Calisto, recebera no ombro um golpe de sabre—coisa tão simples que as mulheres mal lhe agradeceram. Nem o barão nem seus
convivas proferiram maldições ou injúrias contra os vencedores. Esse silêncio é um dos traços do caráter bretão. Em quarenta anos jamais alguém surpreendeu uma palavra
de desprezo nos lábios do barão contra seus adversários. A eles cabia fazerem seu ofício como ele cumpria seu dever. Esse silêncio profundo é o índice das vontades
imutáveis.
Esse último esforço, esses clarões de uma energia que beirava o esgotamento final causaram o enfraquecimento no qual se achava o barão naquele momento. Esse novo
exílio da família dos Bourbons, tão milagrosamente expulsa quão milagrosamente restabelecida, causava-lhe uma amarga melancolia.
Cerca das seis horas da tarde, no momento em que se inicia esta cena, o barão, que, segundo um velho hábito, terminara de jantar às quatro horas, acabara adormecendo
ao ouvir ler a Quotidienne. A cabeça recostara-se no espaldar da poltrona no canto da lareira, do lado do jardim.
IV - AS DUAS MULHERES
Junto a esse tronco nodoso da árvore antiga e em frente à lareira, a baronesa, sentada numa das velhas cadeiras, apresentava o tipo dessas criaturas adoráveis que
só existem na Inglaterra, na Escócia ou na Irlanda. Somente lá nascem essas raparigas amassadas com leite, de cabeleira de ouro, cujos cachos são encaracolados por
mãos de anjo, porque a luz do céu parece escorrer nas suas espirais com o ar que neles brinca.
Fanny O’Brien era uma dessas sílfides, de ternura robusta, invencível na desgraça, suave como a música de sua voz, pura como o azul de seus olhos, de uma beleza
fina, elegante, bonita e dotada dessa carnação sedosa sob a mão, acariciante para o olhar, que nem o pincel nem a palavra podem pintar. Bela ainda aos quarenta e
dois anos, muitos homens considerariam como uma felicidade o desposá-la, ante o aspecto dos esplendores daquele começo de outono calidamente colorido, cheio de flores
e de frutos, refrescado por celestes rocios.
A baronesa segurava o jornal com uma mão cheia de covinhas, de dedos voltados para cima e cujas unhas estavam cortadas rentes como nas estátuas antigas. Semirreclinada,
sem falta de graça nem afetação, na sua cadeira, com os pés para a frente a fim de aquecê-los, trazia um vestido de veludo preto, pois que o vento refrescara já
fazia alguns dias.
O corpete afogado modelava ombros de um contorno magnífico, e um colo exuberante que a amamentação do filho único não pudera deformar. Seu penteado dispunha os cabelos
em anéis que desciam ao longo das faces acompanhando-as de acordo com a moda inglesa. Trançada simplesmente no alto da cabeça e retida por um pente de tartaruga,
essa cabeleira, em vez de uma cor indecisa, cintilava à luz como filigranas de ouro luzidio. A baronesa fazia trançar os cabelos esparsos que brincavam em sua nuca
e que são um sinal de raça. Essa trança gentil, perdida na massa dos cabelos cuidadosamente levantados, permitia aos olhos seguirem com prazer a linha ondulada pela
qual seu pescoço se prendia aos seus belos ombros. Esse pequeno detalhe provava o cuidado com que ela sempre fazia sua toilette. Desejava alegrar os olhares daquele
ancião. Que encantadora e deliciosa atenção! Quando virdes uma mulher desenvolver na vida anterior o coquetismo que as outras mulheres vão buscar num único sentimento,
acreditai, é tão nobre mãe quanto nobre esposa, é a alegria e a flor do lar, compreendeu suas obrigações de mulher, tem na alma e na ternura as elegâncias do seu
exterior, pratica o bem em segredo, sabe adorar sem cálculo, ama aos próximos, como ama a Deus, por eles mesmos.
Por isso parece que a Virgem do paraíso, sob cuja guarda ela vivia, tivesse recompensado sua casta mocidade, a vida santa daquela mulher junto àquele nobre ancião,
cercando-a de uma espécie de auréola que a preservava dos ultrajes do tempo. Platão talvez celebrasse as alterações de sua beleza como outras tantas novas graças.
Sua tez, tão branca outrora, adquirira esses tons quentes e nacarados que os pintores adoram. Sua fronte larga e bem modelada recebia com amor a luz que ali brincava
em acetinados brilhos. A íris, de um azul de turquesa, cintilava sob sobrancelhas pálidas e aveludadas de extrema doçura. Suas pálpebras flexíveis e suas têmporas
enternecidas convidavam para não sei que muda melancolia. Por baixo, o contorno dos olhos era de um branco pálido, semeado de fibrilas azuladas como na raiz do nariz.
Este, de perfil aquilino, fino, tinha um não sei quê de régio que lembrava a origem dessa nobre moça. A boca, pura e bem desenhada, era embelezada por um sorriso
fácil, ditado por uma amenidade inesgotável. Os dentes eram brancos e pequenos. Ela engrossara levemente, mas suas cadeiras delicadas e seu talhe esbelto não haviam
sofrido com isso. O outono de sua beleza apresentava pois algumas flores vivazes de primavera esquecida e as ardentes riquezas do estio. Seus braços nobremente arredondados,
sua pele tensa e lustrosa tinham a superfície mais fina; os contornos haviam adquirido sua plenitude. Enfim, sua fisionomia aberta, serena e levemente rosada e a
pureza de seus olhos azuis, que um olhar demasiado vivo teria ferido, exprimiam a inalterável doçura, a ternura infinita dos anjos.
No outro canto da lareira, e numa poltrona, a velha irmã octogenária, semelhante em tudo, salvo quanto ao vestuário, ao irmão, ouvia a leitura do jornal, fazendo
meias de ponto de lã, trabalho para o qual a vista é inútil. Tinha os olhos cobertos por uma belida e recusava-se obstinadamente a submeter-se à operação, apesar
dos insistentes pedidos da cunhada. Somente ela sabia o motivo da sua obstinação: alegava uma falta de coragem, mas a verdade é que não queria que se gastassem vinte
e cinco luíses com ela. Essa quantia teria feito falta na casa. Entretanto muito desejaria ver o irmão. Esses dois velhos faziam ressaltar de modo admirável a formosura
da baronesa. Que mulher não pareceria jovem e bonita entre o sr. du Guénic e a irmã? A srta. Zefirina, privada da visão, ignorava as mudanças que seus oitenta e
quatro anos tinham determinado na sua fisionomia. Seu rosto pálido e encovado, que a imobilidade dos olhos brancos e sem luz fazia assemelharem-se aos de uma morta,
que três ou quatro dentes salientes tornavam quase ameaçador, no qual a órbita profunda dos olhos estava cercada de tonalidades vermelhas, e onde alguns sinais de
virilidade já encanecidos apareciam no queixo e nas vizinhanças da boca; aquele semblante frio, porém calmo, estava enquadrado por uma pequena touca de chita escura,
pespontada como uma colcha, guarnecida de pregas de percal e atada sob o queixo por cordéis sempre um pouco ruços. Ela vestia um saiote de fazenda encorpada por
cima de uma saia de piquê, verdadeiro colchão que escondia luíses duplos, e bolsas cosidas a um cinto que ela desprendia todas as noites e tornava a pôr todas as
manhãs, como um vestuário. Sua blusa estava apertada no casaquinho popular da Bretanha, de fazenda igual à do saiote, enfeitada com uma gola de mil pregas, cuja
lavagem era o objeto da única disputa que ela tinha com a cunhada, pois que não a queria mudar senão de oito em oito dias. Das grossas mangas algodoadas daquele
casaquinho saíam dois braços dessecados porém nervosos, em cujas extremidades se agitavam duas mãos, cuja cor um pouco ruça fazia os braços parecerem brancos, como
a madeira dos choupos. As mãos em forma de garras, devido à contração motivada pelo hábito de tricotar, eram como um tear para meias constantemente preparado: o
fenômeno teria sido o de vê-las paradas.
De quando em quando a srta. du Guénic pegava uma das compridas agulhas do seu tricô presa na sua gola a fim de a introduzir entre a touca e os cabelos, remexendo
sua branca cabeleira. Um estranho teria rido ao ver a despreocupação com que ela repicava a agulha sem o menor receio de ferir-se. Era direita como um campanário.
A majestade de seu porte podia passar por uma dessas faceirices de velho que provam ser o orgulho uma paixão necessária à vida. Tinha o sorriso alegre. Também ela
cumprira seu dever.
No momento em que Fanny viu o barão adormecido, cessou a leitura do jornal. Um raio de sol ia de uma janela a outra e dividia em dois, por uma lista de ouro, a atmosfera
daquela velha sala, onde ele fazia resplandecer os móveis quase negros. A luz bordava as esculturas do assoalho, borboleteava nas arcas, estendia um lençol brilhante
sobre a mesa de carvalho, alegrava aquele interior escuro e suave, como a voz de Fanny punha na alma da octogenária uma música tão luminosa, tão alegre como aquele
raio.
Logo os raios do sol adquiriram essas cores avermelhadas que por gradações insensíveis chegam aos tons melancólicos do crepúsculo. A baronesa engolfou-se numa dessas
meditações graves, num desses silêncios absolutos que sua velha cunhada observava fazia uns quinze dias, procurando-lhes uma explicação sem ter dirigido a mais insignificante
pergunta à baronesa; ela porém não deixava por isso de estudar as causas dessa preocupação à maneira dos cegos, que leem como num livro negro no qual as letras são
brancas, e na alma dos quais todo som repercute como num eco divinatório.
A velha cega, sobre a qual as sombras da noite já não influíam, continuava a tricotar, e o silêncio tornou-se tão profundo que se pôde ouvir o ruído das agulhas
de aço.
— Acaba de deixar cair o jornal, minha irmã, e entretanto não está dormindo—disse a velha com ar esperto.
Caíra a noite. Mariotte veio acender a lâmpada, colocou-a sobre uma mesa quadrada em frente ao fogo; depois, foi buscar a roca, o novelo de fio, uma pequena banqueta,
e pôs-se no vão da janela que dava para o pátio, ocupada em fiar como todas as noites. Gasselin ainda andava pelas peças de serviço, examinando os cavalos do barão
e de Calisto, vendo se tudo ia bem na estrebaria, e dando a dois belos cães de caça a ração da noite. Os ladridos alegres dos dois animais foram o último ruído que
despertou os ecos ocultos nas paredes negras daquela velha mansão. Aqueles dois cães e os dois cavalos eram o último vestígio dos esplendores da cavalaria.
Um homem de imaginação, sentado num dos degraus da escadaria exterior, que se tivesse deixado arrastar pela poesia das imagens ainda vivas naquela habitação, teria
estremecido talvez ao ouvir os cães e os coices dos cavalos que relinchavam.
Gasselin era um desses pequenos bretãos curtos, grossos, atarracados, de cabeleira preta, de rosto moreno, silenciosos, lentos, teimosos como mulas, mas seguindo
sempre pelo caminho que lhes foi traçado. Tinha quarenta e dois anos e fazia vinte e cinco que estava na casa. A senhorita empregara Gasselin quando este tinha quinze
anos, ao ter notícia do casamento e do provável regresso do barão. Esse servidor considerava-se como parte da família: brincou com Calisto, gostava dos cavalos e
dos cães da casa, falava-lhes e acariciava-os como se lhe pertencessem. Usava um blusão azul de lã com pequenos bolsos flutuantes nos quadris, um colete e calças
da mesma fazenda, em qualquer estação, meias azuis e sapatos grossos e ferrados. Quando fazia demasiado frio ou em tempo de chuva punha o couro de cabra que se usa
na sua terra.
Mariotte, que igualmente já passara dos quarenta anos, era como mulher o que Gasselin representava como homem. Nunca parelha foi mais igual: mesma tez, mesma estatura,
mesmos olhos, pequenos, vivos e negros. Não se compreendia como Mariotte e Gasselin não se tivessem casado; talvez se tal houvesse acontecido fosse como incesto,
pois pareciam irmãos. Mariotte tinha trinta escudos de ordenado e Gasselin cem francos; mas mil escudos em outro lugar não os teriam feito abandonar a casa du Guénic.
Ambos estavam sob as ordens da velha senhorinha, a qual, desde a guerra da Vendeia até a volta do irmão, tivera o hábito de dirigir a casa. Por isso, quando ela
soube que o barão ia trazer uma dona de casa para o lar, ficara muito emocionada ao acreditar que teria de abandonar o cetro da casa e abdicar em favor da baronesa
du Guénic, da qual seria a primeira súdita.
A srta. Zefirina teve uma agradabilíssima surpresa ao encontrar em miss Fanny O’Brien uma rapariga nascida para uma alta posição social, para quem os cuidados minuciosos
de um lar pobre repugnavam excessivamente e que, como todas as belas almas, teria preferido o pão seco do padeiro à melhor refeição que ela tivesse sido obrigada
a preparar; capaz de realizar os mais penosos deveres da maternidade, forte contra todas as privações necessárias, mas sem coragem para ocupações vulgares. Quando
o barão pediu à irmã, em nome de sua tímida esposa, que dirigisse os trabalhos domésticos, a velha solteirona beijou a baronesa como a uma irmã; fez dela sua filha,
adorou-a, felicíssima por poder continuar a cuidar da direção da casa, mantida com um rigor e hábitos incríveis de economia, dos quais não se apartava a não ser
nas grandes ocasiões, tais como partos, alimentação da cunhada e tudo o que dizia respeito a Calisto, a criança adorada por toda a casa. Conquanto os dois criados
estivessem habituados àquele regime severo e que nada fosse preciso dizer-lhes, que tivessem ademais pelos interesses dos amos mais cuidados do que pelos próprios,
a srta. Zefirina estava sempre com os olhos em tudo. Sua atenção nunca se distraía, era mulher capaz de saber, sem lá subir, a espessura do montão de nozes no celeiro,
e o que restava de aveia no caixão da estrebaria, sem ter de mergulhar nele o braço nervoso. Trazia na ponta de um cordel preso na cinta do casaquinho um apito de
contramestre com o qual chamava Mariotte com um silvo e Gasselin com dois.
A grande felicidade de Gasselin consistia em cultivar a horta e fazer com que nela dessem belos frutos e bons legumes. Havia tão pouco serviço a fazer que sem essa
cultura ele se cacetearia. Depois de cuidar dos cavalos, de manhã, ele esfregava os assoalhos e limpava as duas peças do rés do chão: tinha pouco que fazer às ordens
dos patrões. Mas também na horta não era possível ver-se uma erva ruim, nem o mais insignificante inseto nocivo. Às vezes surpreendiam Gasselin imóvel, com a cabeça
descoberta em pleno sol, espreitando um arganaz ou a terrível larva do besouro; depois ia correndo, com alegria infantil, mostrar aos amos o animal que o ocupara
durante uma semana. Era um prazer para ele, nos dias de jejum, ir buscar peixe ao Croisic, onde o comprava mais barato do que em Guérande.
Assim, pois, jamais família foi mais unida, nem teve mais compreensão mútua e coerência do que essa santa e nobre família. Patrões e criados parecia terem sido feitos
uns para os outros. Em vinte e cinco anos não houvera entre eles perturbações, nem discórdias. Os únicos pesares foram as pequenas indisposições do menino e os únicos
temores os causados pelos acontecimentos de 1814 e os de 1830. Se se faziam as mesmas coisas invariavelmente nas mesmas horas, se os manjares estavam submetidos
à regularidade das estações, essa monotonia, semelhante às da natureza, variáveis pelas alternativas de sombra, chuva ou sol, era sustentada pela afeição que reinava
em todos os corações, e tanto mais fecunda e benfazeja por emanar de leis naturais.
Quando terminou o crepúsculo, Gasselin entrou na sala e perguntou respeitosamente ao amo se precisavam dele.
— Podes sair ou ir deitar-te depois da oração—disse o barão despertando—,a menos que a senhora ou a sua irmã...
As duas mulheres fizeram um gesto de aquiescência. Gasselin ajoelhou-se ao ver os patrões todos de pé para se ajoelharem nas suas cadeiras, Mariotte pôs-se igualmente
a rezar sobre sua banqueta. A velha srta. du Guénic disse a prece em voz alta. Quando terminou, ouviram bater à porta da vila. Gasselin foi abrir.
— Deve ser com certeza o senhor cura—disse Mariotte—,ele é quase sempre o primeiro a chegar.
Efetivamente todos reconheceram o cura de Guérande pelo ruído dos seus passos nos degraus sonoros da escada exterior.
V - TRÊS SILHUETAS BRETÃS
O cura saudou respeitosamente os três personagens, dirigindo ao barão e às duas damas algumas dessas frases de untuosa amenidade que os padres sabem modelar. Ao
boa-noite distraído que lhe dirigiu a dona da casa ele respondeu com um olhar de inquisição eclesiástica.
— Estará a senhora inquieta ou indisposta, senhora baronesa?—indagou ele.
— Não, obrigada—disse ela.
O sr. Grimont, homem de cinquenta anos, de estatura mediana, sepultado na sua sotaina, da qual saíam dois sapatos grossos com fivelas de prata, apresentava acima
do cabeção um rosto rechonchudo, de tez geralmente alva, porém dourada. Tinha a mão gorducha e com covinhas. Seu semblante inteiramente abacial participava ao mesmo
tempo do burgomestre flamengo pela placidez da cútis e pelos tons da carne, e do campônio bretão pela cabeleira lisa e preta, pela vivacidade dos olhos castanhos,
a qual entretanto era contida pelo decoro do sacerdócio. Sua alegria, semelhante à das pessoas cuja consciência é calma e pura, admitia o gracejo.
Seu ar nada tinha de inquieto, nem de rabugento como o dos pobres curas cuja existência ou poder é discutido por seus paroquianos e que em lugar de serem, segundo
a expressão sublime de Napoleão, os chefes morais da população e juízes de paz naturais, são tratados como inimigos. Ao ver-se o sr. Grimont caminhando em Guérande,
o mais incrédulo dos viajantes teria reconhecido o soberano daquela cidade católica; esse soberano, porém, abaixava sua superioridade espiritual ante a supremacia
feudal dos du Guénic. Ele estava naquela sala como um capelão em casa de seu senhor. Na igreja, ao dar a bênção, sua mão sempre se estendia em primeiro lugar para
a capela pertencente aos du Guénic, e onde a mão armada deles e a divisa estavam esculpidas no arco da abóbada.
— Eu pensei que a srta. de Pen-Hoël tivesse chegado—disse o cura, sentando-se, tomando a mão da baronesa e beijando-a.—Ela se está incomodando. Será que se contrai
a moda da dissipação? Porque, vejo-o, o senhor cavaleiro está ainda esta noite nas Touches.
— Nada diga dessas visitas diante da srta. de Pen-Hoël—exclamou suavemente a solteirona.
— Ah, senhorita—respondeu Mariotte—,como quer a senhora impedir toda a cidade de dar com a língua nos dentes?
— E que é que dizem?—perguntou a baronesa.
— As moças, as comadres, toda a gente acredita estar ele apaixonado pela srta. des Touches.
— Um rapaz com o tipo de Calisto tem como ofício fazer-se amar—disse o barão.
— Aqui está a srta. de Pen-Hoël—disse Mariotte.
A areia do pátio rangia efetivamente sob os passos discretos daquela criatura, a quem acompanhava um pequeno criado munido de uma lanterna. Ao ver o criado, Mariotte
transportou as suas bugigangas para a sala grande, a fim de conversar com ele à luz da candeia de resina que ela queimava a expensas da rica e avara senhorinha,
economizando por essa forma a dos seus patrões.
Essa senhorinha era uma rapariga seca e delgada, amarela como o pergaminho de um olim (Olim: antigo registro dos Parlamentos de Paris.), enrugada como um lago varrido
pelo vento, com olhos cinzentos, dentes grandes e salientes, mãos de homem, bastante pequena, um pouco arqueada e talvez mesmo corcunda; mas ninguém tivera a curiosidade
de conhecer-lhe as perfeições ou imperfeições. Vestida no estilo da srta. du Guénic, ela movia uma quantidade de roupas e saias quando queria achar uma das duas
aberturas do vestido por onde alcançava os bolsos. O mais estranho barulho de chaves e de moedas retinia então sob aquelas fazendas. Tinha sempre de um lado toda
a quinquilharia das boas donas de casa e do outro a tabaqueira de prata, o dedal, o tricô e outros utensílios sonoros. Em vez da touca acolchoada da srta. du Guénic
ela estava com um chapéu verde com o qual devia ir visitar seus melões; como eles, passara do verde ao alourado, e, quanto à forma, depois de vinte anos, a moda
tornou a levá-lo para Paris com o nome de bibi. Esse chapéu confeccionava-se sob suas vistas pelas mãos das sobrinhas, com tafetá verde comprado em Guérande e com
uma carcaça que ela renovava a cada cinco anos em Nantes, pois concedia-lhe a duração de uma legislatura. As sobrinhas faziam-lhe igualmente os vestidos, talhados
por modelos imutáveis. Essa solteirona usava ainda a bengala de castão de bico de que se serviam as mulheres no começo do reinado de Maria Antonieta. Era da mais
alta nobreza da Bretanha. Suas armas ostentavam o arminho dos antigos duques. Ela e a irmã terminavam a ilustre casa bretã dos Pen-Hoël. A irmã mais moça desposara
um Kergarouët (Um Kergarouët: parente do almirante do mesmo nome, de quem se falará dentro em breve; só aparece neste trecho de A comédia humana.), o qual, não obstante
a desaprovação da terra, acrescentara o nome de Pen-Hoël ao seu e fazia-se chamar de visconde Kergarouët-Pen-Hoël.
— O céu castigou-o—dizia a velha senhorita -; ele não tem senão filhas e o nome de Kergarouët-Pen-Hoël se extinguirá.
A srta. de Pen-Hoël possuía cerca de sete mil francos de rendas em bens de terras. Maior havia trinta e seis anos, ela mesma administrava seus bens, ia inspecioná-los
a cavalo e evidenciava em tudo o caráter firme que se nota na maioria dos corcundas. Era de uma avareza admirada num raio de dez léguas e que não encontrava nenhuma
censura. Tinha consigo uma única criada e aquele criadinho. Toda a sua despesa, não incluindo os impostos, não ascendia a mais de mil francos por ano. Por isso era
ela alvo das adulações dos Kergarouët-Pen-Hoël, os quais passavam os invernos em Nantes e os verões na sua propriedade rural, situada à margem do Loire, abaixo de
Indret. Sabiam-na disposta a dar sua fortuna e suas economias àquela das suas sobrinhas que lhe agradasse. A cada três meses, uma das quatro srtas. de Kergarouët,
das quais a mais jovem tinha doze anos e a mais velha vinte, vinha passar alguns dias em casa dela.
Amiga de Zefirina du Guénic, Jaqueline de Pen-Hoël, educada na adoração das grandezas bretãs dos du Guénic, tinha desde o nascimento de Calisto formado projeto de
transmitir seus bens ao cavalheiro, casando-o com uma das sobrinhas que a viscondessa de Kergarouët-Pen-Hoël devia dar-lhe. Ela pensava em tornar a comprar algumas
das melhores terras dos du Guénic, reembolsando os granjeiros engagistes. Quando a avareza se propõe um fim, ela deixa de ser um vício, torna-se o meio de uma virtude,
suas privações excessivas tornam-se oferendas contínuas, tem finalmente a grandeza da intenção oculta sob suas pequenezas. É possível que Zefirina partilhasse o
segredo de Jaqueline. Talvez a baronesa, cujo espírito estava totalmente concentrado no amor pelo filho e na sua ternura pelo pai, tivesse adivinhado alguma coisa
ao ver com que maliciosa perseverança a srta. de Pen-Hoël trazia consigo, todos os dias, Carlota de Kergarouët, sua favorita, a qual tinha quinze anos de idade.
O cura Grimont estava certamente na confidência; ele auxiliava a solteirona a colocar bem seu dinheiro. Mas tivesse a srta. de Pen-Hoël trezentos mil francos em
ouro, soma a que estavam avaliadas suas economias, tivesse ela dez vezes mais terras do que as que possuía, os du Guénic não se permitiriam uma única atenção que
pudesse fazer crer à solteirona que eles pensassem em sua fortuna.
Por um sentimento de admirável orgulho bretão, Jaqueline de Pen-Hoël, feliz pela supremacia afetada por sua velha amiga Zefirina e pelos du Guénic, mostrava-se sempre
honrada com a visita que a filha dos reis da Irlanda e Zefirina se dignavam fazer-lhe. Ia a ponto de ocultar cuidadosamente a espécie de sacrifício a que consentia
todas as noites ao deixar seu pequeno criado queimar em casa dos du Guénic um oribus, nome dessa vela cor de pão de centeio que consomem em certas partes do Oeste.
Por isso essa rica solteirona era a nobreza, a altivez, a grandeza personificadas.
No momento em que ledes seu retrato, uma indiscrição do abade Grimont fez saber que na noite em que o velho barão, o jovem cavalheiro e Gasselin se rasparam munidos
de seus sabres e de suas escopetas para se reunirem a Madame na Vendeia aterrorizando com isso Fanny, causando grande alegria aos bretãos, a srta. de Pen-Hoël entregara
ao barão a quantia de dez mil francos em ouro, sacrifício imenso corroborado por outros dez mil francos, produto de um dízimo recolhido pelo cura, que o velho guerrilheiro
foi encarregado de oferecer à mãe de Henrique V (Henrique V: nome que os legitimistas davam ao conde de Chambord, neto de Carlos X, chefe do partido legitimista
desde 1836 e que nunca chegou a ser coroado.) em nome dos Pen-Hoël e da paróquia de Guérande.
Entretanto ela tratava Calisto como mulher que se julgasse com direitos sobre ele; seus projetos autorizavam-na a vigiá-lo; não que professasse ideias estreitas
em matéria de galanteria, pois tinha a indulgência das velhas damas do antigo regime; tinha porém horror aos costumes revolucionários. Calisto, que teria talvez
ganhado em seu espírito por aventuras galantes com bretãs, perderia consideravelmente no conceito da solteirona, se se tivesse embrenhado pelo que ela chamava de
novidades. A srta. de Pen-Hoël, que teria desenterrado algum dinheiro a fim de apaziguar alguma rapariga que tivesse sido seduzida, acharia ser Calisto um dissipador,
se o visse guiando um tílburi ou o ouvisse falar de ir a Paris. Se acaso o tivesse surpreendido lendo revistas ou jornais ímpios, não se sabe do que ela teria sido
capaz. Para a srta. de Pen-Hoël, as novas ideias eram a rotatividade das culturas perturbadas, a ruína sob o nome de melhoramentos e métodos, enfim os bens hipotecados
cedo ou tarde devido a experiências. Para ela, a prudência era o verdadeiro meio de fazer fortuna; finalmente a boa administração consistia em acumular nos celeiros
o trigo mourisco, o centeio, o cânhamo, em esperar a alta, corresse embora o risco de passar por açambarcadora; em deitar-se obstinadamente sobre os seus sacos.
Por um acaso singular ela realizara com frequência negócios felizes que a confirmavam nos seus princípios. Passava por ser maliciosa, entretanto não tinha espírito;
tinha, porém, uma ordem de holandesa, uma prudência de gata, uma persistência de padre que, numa terra tão rotineira, equivalia ao pensamento mais profundo.
— Teremos esta noite o sr. du Halga?—perguntou a velha solteirona, tirando as mitenes de lã tricotada, depois da troca dos cumprimentos habituais.
— Sim, senhorita, eu o vi passeando sua cadela na alameda—respondeu o cura.
— Ah, nossa mouche (Mouche: “mosca”, nome de um jogo de cartas.) estará então animada hoje!—replicou ela.—Ontem éramos apenas quatro.
Ao ouvir a palavra mouche, o cura ergueu-se para ir buscar na gaveta de uma das arcas um pequeno cesto redondo de vime fino, umas fichas de marfim já amarelas como
tabaco turco graças a um uso de vinte anos, e um baralho de cartas tão seboso como o dos aduaneiros de Saint-Nazaire, que só trocam o seu cada quinze dias.
O abade voltou para dispor ele próprio na mesa as fichas necessárias a cada jogador, pôs o cesto ao lado da lâmpada, no meio da mesa, com uma presteza infantil e
os modos de um homem habituado a fazer esse pequeno serviço.
Uma pancada fortemente batida, à moda dos militares, repercutiu nas profundidades silenciosas daquela velha mansão senhorial. O pequeno criado da srta. de Pen-Hoël
foi abrir a porta com toda a gravidade. Não tardou em destacar-se em negro na penumbra que ainda reinava na escadaria exterior o corpo longo e seco, metodicamente
trajado, de acordo com a época, do cavaleiro du Halga, antigo capitão porta-estandarte do almirante de Kergarouët (O cavaleiro du Halga já apareceu em A bolsa; seu
comandante, o almirante Kergarouët, foi quem desposou Emília de Fontaine, desprezada por Maximiliano Longueville (O baile de Sceaux).).
— Apresse-se, cavaleiro!—gritou a srta. de Pen-Hoël.
— O altar está pronto—disse o cura.
O cavaleiro era um homem de saúde periclitante, que usava flanelas por causa do reumatismo, um barrete de seda preta a fim de preservar a cabeça das brumas, um paletó
interior para resguardar seu precioso busto dos ventos súbitos que esfriavam a atmosfera de Guérande. Andava sempre armado com uma bengala de junco de castão de
ouro para afastar os cães que cortejavam intempestivamente sua cadela favorita. Esse homem, minucioso como uma jovem presumida, alterando-se ante qualquer obstáculo,
falando baixo para poupar um resto de voz, fora um dos homens mais intrépidos e mais sábios da antiga Marinha. Fora honrado com a estima do Bailio de Suffren (Balzac
cita aqui, lado a lado, uma personagem real e outra imaginária: O Bailio de Suffren (1726-1788), marinheiro francês que combateu os ingleses na Índia.) e com a amizade
do conde de Portenduère (Almirante Portenduère: inventado pelo romancista para servir de antepassado ilustre a vários Portenduère, protagonistas de A comédia humana;
um destes, Saviniano, aparecerá mais adiante.). Seu belo procedimento como capitão porta-estandarte do almirante de Kergarouët estava escrito em caracteres visíveis
em seu rosto lanhado de cicatrizes.
Ao vê-lo, ninguém reconheceria a voz que dominava a tempestade, o olhar que planava por sobre o mar, a coragem indomável do marujo bretão.
O cavaleiro não fumava, não praguejava; tinha a meiguice, a tranquilidade de uma rapariga, e ocupava-se de sua cadela Tisbé e dos seus pequenos caprichos com a solicitude
de uma mulher velha. Dava assim a mais alta ideia de sua defunta galanteria. Não falava nunca das ações surpreendentes que tinham causado admiração ao conde d’Estaing
(O conde d’Estaing: conde Henri d’Estaing, almirante francês que combateu os ingleses na Índia e na América.). Embora tivesse uma atitude de inválido e caminhasse
como se temesse a cada passo esborrachar ovos, embora se queixasse da frescura da brisa, do ardor do sol, da umidade da bruma, mostrava dentes brancos encravados
em gengivas vermelhas que tranquilizavam quanto à sua doença, de resto um pouco dispendiosa, porquanto consistia em fazer quatro refeições de abundância monástica.
Seu arcabouço, como o do barão, era ossudo e de força indestrutível, recoberto por um pergaminho e colocado aos ossos como o couro de um cavalo árabe sobre os nervos
que parecem reluzir ao sol. Sua cútis conservara uma coloração morena, devido às suas viagens às Índias, das quais não trouxera nem uma ideia nem uma história. Emigrara,
perdera a fortuna, depois tornou a encontrar a cruz de São Luís e uma pensão de dois mil francos legitimamente devida aos seus serviços e paga pelos cofres dos inválidos
da Marinha. A ligeira hipocondria, que lhe fazia inventar mil males imaginários, explicava-se facilmente pelos seus padecimentos durante a emigração. Servira na
Marinha russa até o dia que o imperador Alexandre quis empregá-la contra a França, apresentou então sua demissão e foi viver em Odessa junto ao duque de Richelieu
(O duque de Richelieu: Armand Emmanuel du Plessis (1766-1822), estadista francês que começou suas atividades diplomáticas como agente de Luís XVI. Durante o exílio
da dinastia dos Bourbons, empregou-se a serviço da Corte da Rússia, sendo nomeado governador de Odessa em 1803. Depois da Restauração, voltou à França; foi ministro
das Relações Exteriores em 1815 e presidente do Conselho de 1820 a 1821.), com quem regressou, o qual fez liquidar a pensão devida àquele destroço glorioso da antiga
Marinha bretã. Por ocasião da morte de Luís XVIII, época em que voltou para Guérande, o cavaleiro du Halga tornou-se maire (Maire: chefe da administração comunal
ou cantonal (o cantão é uma circunscrição territorial formada por várias comunas).) da cidade.
O cura, o cavaleiro, a srta. de Pen-Hoël tinham, fazia quinze anos, o hábito de passar os serões no solar du Guénic, onde vinham igualmente alguns nobres personagens
da cidade e da região. Cada leitor adivinha facilmente nos du Guénic os chefes do pequeno Faubourg Saint-Germain (Faubourg Saint-Germain: bairro aristocrático de
Paris.) da circunscrição, onde não penetrava nenhum dos membros da administração mandada pelo novo governo. Fazia seis anos que o cura tossia no ponto crítico do
Domine, salvum fac regem (Domine, salvum fac regem: frase latina que significa “Senhor, mantém o rei salvo”. O cura, como os outros bretões, mantinha-se fiel ao
ramo primogênito dos Bourbons, exilado, e infenso à monarquia liberal de Luís Filipe.). A política assim permanecia em Guérande.
VI - SERÃO NORMAL
A mouche é um jogo que se joga com cinco cartas, e uma virada na mesa. A virada determina o trunfo. A cada jogada o parceiro tem liberdade de se abster ou arriscar-se.
Abstendo-se, perde somente a aposta obrigatória, porque, enquanto não há remises no cesto, cada jogador aposta uma quantia pequena. Ao jogar, o jogador tem de fazer
uma vaza, a qual é paga em cotas proporcionais à parada. Se há cincos soldos na cesta a vaza vale um soldo. O jogador que não fez vaza é posto na mouche: tem de
pagar toda a aposta, que engrossa o cesto na dada de cartas seguinte. Inscrevem-se as mouches devidas; são postas sucessivamente no cesto por ordem de capital, primeiro
as maiores, depois as menores. Os que renunciam a jogar, jogam as cartas durante a parada, mas são consideradas como nulas. As cartas que sobram do baralho são trocadas,
como no écarté, mas por ordem de prioridade. Cada um pede tantas cartas quantas quiser, de modo que a mão e o seguinte poderão entre os dois ficar com as sobras
do baralho. O trunfo de mostra pertence ao que dá cartas, o qual é então o último; ele tem o direito de trocá-lo por uma das cartas do seu jogo. Há uma carta terrível
que vale mais do que todas as outras, chama-se Mistigris. Mistigris é o valete de paus. Esse jogo, excessivamente simples, não é despido de interesse. A cupidez
natural do homem desenvolve-se nele do mesmo modo que as sutilezas diplomáticas e as mutações fisionômicas. Na casa du Guénic, cada um dos jogadores recebia vinte
fichas e ficava responsável por cinco soldos, o que elevava a quantia total da aposta a cinco liards (Liard: antiga moeda francesa de cobre, que valia o quarto de
um sou.) por jogada, importância respeitável aos olhos dessa parceria. Admitindo-se uma sorte fantástica, era possível ganhar cinquenta soldos, capital que, em Guérande,
ninguém gastava num dia. Por isso a srta. de Pen-Hoël jogava esse jogo, cuja inocência não é sobrepujada na nomenclatura da Academia senão pela da Batalha (Batalha:
nome de outro jogo de cartas.), com uma paixão igual à dos caçadores numa grande caçada. A srta. Zefirina que ia a meias no jogo da baronesa, não atribuía menor
importância à mouche. Arriscar um liard para ter a possibilidade de ganhar cinco, à cada jogada, constituía para a velha entesourada uma imensa operação financeira,
na qual ela punha tanta ação interior quanto o mais ávido especulador põe durante o curso da Bolsa na alta e na baixa das rendas.
Por uma convenção diplomática, datada de setembro de 1825, depois de um serão no qual a srta. de Pen-Hoël perdeu trinta e sete soldos, o jogo cessava assim que um
dos jogadores manifestasse esse desejo, depois de ter dissipado dez soldos. A cortesia não permitia que se causasse a um jogador o pequeno pesar de jogarem a mouche
sem que ele tomasse parte nela. Todas as paixões porém têm seu jesuitismo. O cavaleiro e o barão, esses dois políticos, tinham achado meio de esquivar-se ao cumprimento
da lei orgânica. Quando todos os jogadores desejavam vivamente prolongar uma partida emocionante, o intrépido cavaleiro du Halga, um desses rapazes ricos e pródigos
das despesas que não fazem, oferecia sempre dez fichas à srta. de Pen-Hoël ou a Zefirina, quando uma delas, ou ambas, tinham perdido seus cinco soldos, com a condição
de restituí-los no caso de ganharem. Um velho solteirão podia permitir-se essa galanteria para com as senhorinhas. O barão também oferecia dez fichas às duas velhas
solteironas, sob o pretexto de continuarem a partida. As duas avarentas sempre aceitavam, não sem fingirem opor algumas dificuldades, de acordo com os usos e costumes
das raparigas. Para se entregarem a essa prodigalidade, o barão e o cavaleiro deviam ter ganho, sem o que esse oferecimento tomaria o caráter de uma ofensa.
A mouche era brilhante quando uma srta. Kergarouët sem mais nada estava de passagem em casa da tia porque, ali, os Kergarouët jamais se tinham podido fazer chamar
Kergarouët-Pen-Hoël por ninguém, nem mesmo pelos criados, os quais a esse respeito tinham ordens formais. A tia mostrava à sobrinha o jogo da mouche em casa dos
du Guénic como um prazer insigne. A pequena recebia ordem de ser amável, coisa bastante fácil, quando via o belo Calisto, que era a paixão das quatro srtas. de Kergarouët.
Essas jovens criaturas, educadas em plena civilização moderna, pouco ligavam a cinco soldos e faziam mouche sobre mouche. Havia então mouches inscritas, cujo total
alcançava às vezes cem soldos e eram escalonadas desde dois soldos e meio até meio franco. Eram serões de grande emoção para a velha cega. As vazas em Guérande eram
designadas mãos. A baronesa fazia em cima do pé da cunhada um número de pressões igual ao número de vazas que, pelo seu jogo, lhe pareciam seguras. Jogar ou não
jogar, segundo as ocasiões em que o cesto estava cheio, acarretava discussões íntimas, nas quais a cupidez lutava contra o medo. Perguntavam uns aos outros: “Vai?”,
manifestando sentimentos de inveja contra os que tinham jogo suficientemente bom para tentar a sorte, e sentimentos de desespero, quando era forçoso abster-se. Se
Carlota de Kergarouët, geralmente tachada de louca, era feliz nas suas audácias, ao regressarem à casa, a tia, quando não tinha ganho, tratava-a com frieza e lhe
fazia algumas admoestações: que ela era demasiado resoluta nos seus modos; que uma jovem não devia enfrentar desafiadoramente gente respeitável; que ela segurava
o cesto ou ia para o jogo de um modo insolente; que os costumes de uma moça exigiam um pouco mais de reserva e de modéstia; que não se devia rir da desgraça alheia
etc. Os eternos gracejos e que eram repetidos mil vezes por ano, mas que eram sempre novos, rolavam a respeito do modo de atrelar o cesto, quando ele estava muito
carregado. Falavam em atrelar bois, elefantes, cavalos, asnos, cães. Depois de vinte anos, ninguém se apercebia dessas repetições. O dito provocava sempre o mesmo
sorriso. O mesmo acontecia com os termos que o pesar de verem ganhar um cesto cheio ditava aos que o tinham engordado sem nada recolher.
As cartas eram dadas com uma lentidão automática. Conversava-se, discutindo. Esses dignos e nobres personagens tinham a adorável pequenez de desconfiar uns dos outros
no jogo. A srta. de Pen-Hoël quase sempre acusava o cura de trapaça, quando ele ganhava um cesto.
— É singular—dizia então o cura—que eu não faça trapaça quando entro na mouche.
Ninguém soltava sua carta no pano verde sem cálculos profundos, sem olhares espertos e palavras mais ou menos astuciosas, sem observações engenhosas e finas. As
jogadas, já podeis imaginar, eram entremeadas de narrativas a propósito dos acontecimentos sucedidos na cidade, ou por discussões sobre os negócios públicos. Com
frequência os jogadores ficavam até um quarto de hora com as cartas em leque apoiadas contra o estômago, ocupados em conversar. Se, em consequência dessas interrupções,
dava-se com a falta de uma ficha no cesto, todos asseguravam ter posto a sua. Quase sempre o cavaleiro completava a aposta, acusado por todos de estar pensando nos
seus sinos nos ouvidos, na sua cabeça, nos seus duendes, e de esquecer de pôr a aposta. Quando o cavaleiro punha a ficha, a velha Zefirina ou a maliciosa corcunda
sentiam-se presas de remorsos: imaginavam então que talvez uma delas não a tivesse posto, pensavam que sim, duvidavam; mas afinal o cavaleiro era bastante rico para
suportar essa pequena desgraça. Muitas vezes o barão não sabia mais o que pensar, quando falavam nos infortúnios da casa real.
Algumas vezes surgia um resultado sempre surpreendente para essas pessoas que, todas, contavam com o mesmo lucro. Depois de um certo número de partidas, cada um
tinha recuperado suas fichas e se ia, por já ser tarde, sem lucros nem perdas, mas não sem emoção. Nesses cruéis serões erguiam-se queixas contra a mouche: a mouche
não estivera picante; os jogadores acusavam a mouche como os negros fustigam a lua na água, quando o tempo é contrário. O serão era considerado incolor. Trabalhara-se
muito para muito pouco. Quando em sua primeira visita, o visconde e a viscondessa de Kergarouët falaram em uíste e em bóston como sendo jogos mais interessantes
do que a mouche, e foram encorajados, para que os ensinassem, pela baronesa, a quem a mouche aborrecia excessivamente, a sociedade da mansão du Guénic prestou-se
a isso, não sem alguns protestos contra essas inovações; mas foi impossível fazer compreender esses jogos, os quais, uma vez saídos os Kergarouët, foram classificados
de quebra-cabeças, de trabalhos algébricos, de dificuldades inauditas. Todos preferiam a querida mouche, a pequena e agradável mouche. A mouche triunfou dos jogos
modernos como por toda a parte na Bretanha triunfam as coisas antigas sobre as novas.
Enquanto o cura dava as cartas, a baronesa fazia ao cavaleiro du Halga as mesmas perguntas que já lhe fizera na véspera sobre a sua saúde. Para o cavaleiro era um
ponto de honra ter novos achaques. Se as perguntas se assemelhavam, o capitão porta-estandarte tinha uma vantagem singular nas suas respostas. Hoje eram as falsas
costelas que o tinham incomodado. Coisa notável, esse digno cavaleiro nunca se queixava dos seus ferimentos. Tudo o que era sério, ela já o esperava, conhecia-o;
as coisas fantásticas, porém, as dores de cabeça, os cães que lhe comiam o estômago, os sinos que lhe badalavam nos ouvidos e mil outros duendes inquietavam-no horrivelmente;
apresentava-se como incurável, e com tanto mais razão por não conhecerem os médicos nenhum remédio contra males inexistentes.
— Parece-me que ontem o senhor tinha formigueiros nas pernas?—disse o cura com ar grave.
— Aquilo salta—respondeu o cavaleiro.
— Como, das pernas às falsas costelas?—indagou a srta. Zefirina.
— Não se detiveram em caminho—disse a srta. de Pen-Hoël sorrindo.
O cavaleiro curvou-se gravemente, fazendo um gesto negativo passavelmente engraçado, que teria provado a um observador que, na sua mocidade, o marujo fora espirituoso,
amante e amado. Talvez que sua vida fóssil em Guérande ocultasse muitas recordações. Quando ele se firmava estupidamente nas suas pernas de garça real, ao sol, na
alameda, olhando o mar ou as correrias de sua cadela, talvez revivesse no paraíso terrestre de um passado fértil em recordações.
— Aí temos o velho duque de Lenoncourt (O velho duque de Lenoncourt: personagem de A comédia humana, antigo primeiro camarista do rei.) morto—disse o barão recordando
a passagem em que ficou a esposa na leitura da Quotidienne.—Vamos, o primeiro gentil-homem da câmara do rei não tardou em reunir-se ao seu senhor (Seu senhor: Carlos
X, que morreu no exílio em 1836.). Breve também irei.
— Meu amigo, meu amigo!—disse-lhe a mulher, dando palmadas suaves na mão ossuda e calosa do marido.
— Deixe-o falar, minha irmã—disse Zefirina -; enquanto eu estiver em cima, ele não estará embaixo, pois é mais moço do que eu.
Um sorriso alegre bailou nos lábios da velha solteirona. Quando o barão deixava escapar uma reflexão desse gênero, os jogadores e as visitas se entreolhavam emocionadas,
inquietas pela tristeza do rei de Guérande. Os personagens vindos para vê-lo diziam uns aos outros ao se retirarem: “O sr. du Guénic estava triste. Viu como ele
dorme?”. E no dia seguinte toda Guérande falava desse acontecimento.
“O Barão du Guénic se está apagando!”
Essa frase iniciava as conversações em todas as casas.
— Tisbé vai bem?—perguntou a srta. de Pen-Hoël ao cavaleiro logo que as cartas foram dadas.
— Essa pobrezinha é como eu—respondeu o cavaleiro—,ela tem os nervos em mau estado, constantemente, quando corre, ela levanta uma patinha, olhe, assim!
Para imitar a cadela e crispar um dos braços ao erguê-lo o cavaleiro deixou que a vizinha, a corcunda, lhe visse o jogo, a qual queria saber se ele tinha trunfos
ou o Mistigris. Era uma primeira esperteza à qual ele sucumbiu.
— Oh—disse a baronesa—,a ponta do nariz do senhor cura está branca, sinal de que ele tem o Mistigris!
Era tão intenso no cura o prazer de ter o Mistrigris, bem como nos demais parceiros, que o pobre padre não o sabia ocultar.
Há em todo semblante humano um lugar onde os movimentos secretos do coração se traem, e essas pessoas, habituadas a se observar, tinham acabado, ao cabo de alguns
anos, por descobrir o ponto fraco do cura: quando ele tinha o Mistigris, a ponta do nariz ficava branca. Ninguém então se metia na jogada.
— Teve visitas hoje em sua casa?—perguntou o cavaleiro à srta. de Pen-Hoël.
— Sim, um dos primos do meu cunhado. Surpreendeu-me com a notícia do casamento da sra. condessa de Kergarouët (O casamento da condessa de Kergarouët: isto é, da
viúva do almirante Kergarouët, em solteira Emília de Fontaine, com o marquês Carlos de Vandenesse.), srta. de Fontaine, em solteira.
— Uma filha de Grand-Jacques (Grand-Jacques: sobrenome dado ao conde de Fontaine—personagem já encontrado em O baile de Sceaux—pelos rebeldes monarquistas, seus
companheiros.)!—exclamou o cavaleiro.
— A condessa é herdeira dele, desposou um antigo embaixador. Ele contou-me as coisas mais singulares a respeito da nossa vizinha, a srta. des Touches, mas tão singulares
que não as quero crer, pois, se fossem verdade, Calisto não seria tão assíduo em casa dela, porque ele tem suficiente bom-senso para perceber tais monstruosidades.
— Monstruosidades?—disse o barão despertado por essa palavra.
A baronesa e o cura trocaram um olhar de inteligência.
As cartas tinham sido dadas, a velha solteirona tinha o Mistigris, não quis continuar aquela conversação, feliz por ocultar sua alegria, graças à estupefação geral
causada por aquela palavra.
— Toca-lhe jogar, senhor barão—disse ela pigarreando.
— Meu sobrinho não é desses rapazes que gostam das monstruosidades—disse Zefirina, remexendo os cabelos.
— Mistigris!—bradou a srta. de Pen-Hoël, a qual não respondeu à amiga.
O cura, que parecia informado de todo o caso de Calisto e da srta. des Touches, não tomou parte na discussão.
— Que faz de extraordinário a srta. des Touches?—perguntou o barão.
— Ela fuma—disse a srta. de Pen-Hoël.
— Isso é muito sadio—disse o cavaleiro.
— Para as terras dela?—perguntou o barão.
— As terras dela?—replicou a solteirona.—Ela as devora.
— Todas foram na parada, todas estão na mouche, tenho o rei, a dama, o valete de trunfo, Mistigris e um rei—disse a baronesa.—É nosso o cesto, minha irmã.
Esse golpe, ganho sem jogar, aterrorizou a srta. de Pen-Hoël, a qual deixou de se ocupar de Calisto e da srta. des Touches. Às nove horas não estavam mais na sala
senão a baronesa e o cura. Os quatro velhos se haviam ido deitar. O cavaleiro, segundo seu hábito, fora acompanhar a srta. de Pen-Hoël até a casa, localizada na
praça de Guérande, fazendo comentários sobre a finura da última jogada, sobre a maior ou menor dose de sorte dos dois, ou sobre o prazer sempre renovado com que
a srta. Zefirina mergulhava seus lucros no bolso, porquanto a velha cega não reprimia mais em seu rosto a expressão dos seus sentimentos. A preocupação da sra. du
Guénic foi o assunto da conversação. O cavaleiro notara as distrações da encantadora irlandesa. Na soleira da porta de sua casa, depois que o pequeno criado subiu,
a velha solteirona respondeu confidencialmente às conjeturas feitas pelo cavaleiro du Halga sobre o aspecto extraordinário da baronesa com esta frase, prenhe de
interesse:
— Conheço a causa de tudo isto. Calisto está perdido, se não o casarmos prontamente. Ele ama a srta. des Touches, uma comediante.
— Nesse caso mande vir Carlota.
— Amanhã minha irmã receberá minha carta—disse a srta. de Pen-Hoël, saudando o cavaleiro.
Imaginai por esse serão normal o alarido que podia produzir no interior dos lares de Guérande a chegada, a permanência, a partida ou somente a passagem de um estranho.
VII - CALISTO
Quando não se ouviu mais barulho, nem no quarto do barão, nem no da irmã, a sra. du Guénic olhou o padre, que estava brincando pensativamente com as fichas.
— Percebi que o senhor partilhou finalmente de minhas preocupações sobre Calisto—disse-lhe ela.
— Viu o ar afetado da srta. de Pen-Hoël esta noite?—perguntou o cura.
— Sim—respondeu a baronesa.
— Ela tem, estou certo disso, as melhores intenções para com o nosso querido Calisto—disse o cura—,ela o acarinha como se fosse o seu próprio filho; e o procedimento
dele na Vendeia, ao lado do pai, os louvores que Madame fez do seu devotamento aumentaram a afeição que a srta. de Pen-Hoël lhe tributava. Ela assegurará por doação
entre vivos toda a sua fortuna àquela das suas sobrinhas que Calisto desposar. Sei que a senhora tem na Irlanda um partido muito mais rico para o nosso querido Calisto;
mas é preferível termos duas cordas no nosso arco. No caso em que sua família não se encarregasse do futuro de Calisto, a fortuna da srta. de Pen-Hoël não é de desdenhar.
A senhora sempre achará para esse querido rapaz um partido de sete mil francos de renda; mas não encontrará economias de quarenta anos, nem propriedades rurais administradas,
edificadas, reparadas, como o são as da srta. de Pen-Hoël. Essa mulher ímpia, essa srta. des Touches veio estragar umas quantas coisas! Teve-se por fim informações
a respeito dela.
— E então?—disse a mãe.
— Oh, uma mulher à toa, uma meretriz!—exclamou o cura—,uma mulher de costumes equívocos, ocupada com coisas do teatro, frequentando comediantes dos dois sexos, devorando
sua fortuna com foliculários, pintores, músicos, numa palavra, a sociedade do diabo! Para escrever seus livros ela usa um nome falso pelo qual é mais conhecida do
que pelo de Felicidade des Touches. Uma verdadeira farsista que desde sua primeira comunhão não entrou numa igreja senão para ver quadros ou estátuas. Gastou a fortuna
fazendo decorar Touches do modo mais inconveniente, a fim de fazer dele um paraíso de Maomé onde as huris não são mulheres. Durante uma estada dela na sua propriedade,
bebe-se lá mais vinhos finos do que em Guérande durante um ano. As srtas. Bougniol hospedaram no ano passado uns homens de barba de bode, suspeitos de serem Azuis,
os quais iam à casa dela e cantavam canções ímpias de fazer corar e chorar essas virtuosas raparigas. Eis a mulher que presentemente o senhor cavaleiro adora! Se
essa criatura desejasse ter esta noite um desses livros infames nos quais os ateus de hoje zombam de tudo, o cavaleiro viria ele mesmo selar seu cavalo e partiria
a todo galope para Nantes, a fim de trazer-lho. Não sei se Calisto faria outro tanto para a Igreja. Finalmente, essa bretã não é realista. Se fosse preciso ir dar
uns tiros de espingarda pela boa causa, e a srta. des Touches, ou seja, o sr. Camille Maupin—lembro-me agora do nome—quisesse conservar Calisto junto a ela, o cavaleiro
deixaria o seu velho pai ir sozinho.
— Não—disse a baronesa.
— Eu não desejaria pô-lo à prova, pois isso fá-la-ia sofrer muito—retorquiu o cura.—Guérande em peso está transtornada com a paixão do cavaleiro por aquela anfíbia
que não é nem homem, nem mulher, que fuma como um hussardo, escreve como um jornalista e hospeda em sua casa, neste momento, o mais venenoso de todos os escritores,
no dizer do diretor dos correios, esse meio-termo que lê os jornais. Fala-se disso em Nantes. Esta manhã, esse primo dos Kergarouët que desejaria fazer Carlota desposar
um homem de sessenta mil francos de renda veio ver a srta. Pen-Hoël e virou-lhe a cabeça com histórias sobre a srta. des Touches que duraram sete horas. Estão dando
dez horas menos um quarto no campanário e Calisto não chega; ele está nas Touches, e é capaz de não voltar senão de manhã.
A baronesa ouvia o cura, o qual substituía o monólogo ao diálogo sem se aperceber; olhava para a sua ovelha, em cuja fisionomia se liam sentimentos inquietos. A
baronesa corava e tremia. Quando o abade Grimont viu rolarem lágrimas dos belos olhos daquela mãe aterrorizada, ficou enternecido.
— Amanhã verei a srta. de Pen-Hoël, tranquilize-se—disse ele com voz consoladora.—O mal não é talvez tão grande como dizem, eu saberei a verdade. De resto a srta.
Jaqueline tem confiança em mim. Ademais Calisto é nosso discípulo e não se deixará enfeitiçar pelo demônio. Ele não vai querer perturbar a paz de que a família goza
nem estragar os planos que formamos para seu futuro. Por isso, senhora, não chore, tudo não está perdido; uma falta não é o vício.
— O senhor não me comunica senão detalhes—disse a baronesa.—Não fui eu a primeira a me dar conta da mudança operada em Calisto? Uma mãe sente muito vivamente a dor
de não estar mais senão em segundo lugar no coração do filho, ou o pesar de não estar mais sozinha ali. Essa fase da vida do homem é um dos sofrimentos da maternidade;
mas, embora esperando por isso, não pensei que fosse tão cedo. Enfim, meu desejo seria que ao menos ele pusesse no coração uma criatura nobre e bela, e não chocarreira,
uma farsista, uma mulher de teatro, um autor acostumado a fingir sentimentos, uma mulher perversa que o enganará e o fará infeliz. Ela teve aventuras...?
— Com vários homens—disse o abade Grimont.—E entretanto essa ímpia nasceu na Bretanha! Ela desonra sua terra. Domingo farei um sermão a respeito.
— Do que Deus o livre!—disse a baronesa.—Os salineiros, os campônios seriam capazes de ir às Touches. Calisto é digno do seu nome, é bretão, poderia acontecer alguma
desgraça se ele estivesse lá, porque ele a defenderia como se se tratasse da Virgem Santa.
— São dez horas, desejo-lhe uma boa noite—disse o abade Grimont, acendendo a vela de resina da seca lanterna, cujos vidros eram límpidos e os metais brilhantes,
o que revelava os cuidados minuciosos de sua governanta para tudo o que dizia respeito aos afazeres domésticos.—Quem me diria, senhora, que um rapaz criado pela
senhora, educado por mim nas ideias cristãs, um católico fervoroso, uma criança que vivia como um cordeiro sem mácula, iria mergulhar em semelhante lamaçal?
— Será então mesmo certo—disse a mãe.—Mas como poderá uma mulher não amar Calisto?
— Não são precisas mais provas do que a estada dessa feiticeira nas Touches. Desde que ela é maior, e faz disso vinte e quatro anos, é a temporada mais prolongada
que ela aqui permanece. Felizmente para nós, suas aparições duravam pouco.
— Uma mulher de quarenta anos!—disse a baronesa.—Ouvi dizer na Irlanda que uma mulher dessa espécie é a mais perigosa amante para um rapaz.
— Nisso sou um ignorante—respondeu o cura.—Morrerei mesmo na minha ignorância.
— Ai de mim! E eu também—lamentou-se ingenuamente a baronesa.—Eu quisera ter sentido o verdadeiro amor para observar, aconselhar e consolar Calisto.
O cura não atravessou sozinho o pequeno pátio bem limpinho; a baronesa acompanhou-o até a porta, esperando ouvir os passos de Calisto em Guérande; entretanto nada
ouviu além do ruído pesado do andar prudente do padre, o qual acabou por enfraquecer pela distância e cessou quando, no silêncio da cidade, a porta do presbitério
reboou ao fechar-se. A pobre mãe entrou em casa, desolada ao ver que a cidade estava a par daquilo que ela julgava ser a única a saber. Sentou-se, reavivou a mecha
da lâmpada, cortando-a com uma tesoura velha, e recomeçou a trabalhar no bordado a mão que estava fazendo enquanto aguardava Calisto. A baronesa tinha assim a esperança
de forçar o filho a voltar mais cedo, a passar menos tempo em casa da srta. des Touches. Esse cálculo do ciúme materno era inútil.
Dia a dia as visitas de Calisto às Touches tornavam-se mais frequentes e cada noite ele voltava mais tarde; finalmente, na véspera, o cavaleiro só regressara à meia-noite.
A baronesa, imersa na sua meditação maternal, dava os pontos com a atividade das pessoas que pensam ao fazer algum trabalho manual. Quem a visse inclinada ao clarão
daquela lâmpada, sob os lambris quatro vezes centenários daquela sala, admiraria aquele sublime retrato. Fanny tinha uma tal transparência de carnação, que se poderiam
ler-lhe os pensamentos na fronte. Ora, espicaçada pelas curiosidades que surgem nas mulheres puras, ela a si mesma perguntava que segredos diabólicos possuiriam
essas filhas de Baal para tanto seduzir os homens e fazê-los esquecer mãe, família, pais, interesse. Por vezes chegava a ter desejo de encontrar aquela mulher a
fim de julgá-la de modo são. Media a extensão dos estragos que o espírito inovador do século, pintado pelo cura como tão perigoso para as almas jovens, devia causar
no seu filho único, até aquela época tão cândido, tão puro como uma jovem inocente, da qual também possuía a beleza e a frescura.
Calisto, esse magnífico rebento da mais velha raça bretã e do mais nobre sangue irlandês, fora cuidadosamente educado pela mãe. Até o momento em que a baronesa o
entregou ao cura de Guérande, ela tinha certeza de que nenhuma palavra impura, nenhuma ideia má tinham poluído os ouvidos e o espírito do filho. A mãe, depois de
o ter alimentado com o seu leite, depois de lhe haver dado assim duas vezes seu sangue, pôde apresentá-lo num candor de virgem ao pastor, o qual, por veneração por
aquela família, prometera dar-lhe uma educação completa e cristã. Calisto teve o ensino do seminário, onde o abade Grimont fizera seus estudos. A baronesa ensinou-lhe
o inglês. Acharam, não sem dificuldade, um professor de matemática entre os funcionários de Saint-Nazaire. Calisto ignorava necessariamente a literatura moderna,
a marcha e os progressos atuais das ciências. Sua instrução limitara-se à geografia e à história circunspecta dos internatos de meninas, ao latim e ao grego dos
seminários, à literatura das línguas mortas e a uma escolha restrita de autores franceses. Quando, aos dezesseis anos, começou isso que o abade Grimont denominava
sua filosofia, ele não era menos puro do que no momento em que Fanny o entregara ao cura. A Igreja foi tão maternal como a mãe. Sem ser devoto, nem ridículo, o adorado
rapaz era um católico fervoroso. Para esse filho tão belo, tão cândido, a baronesa queria arranjar uma vida feliz e obscura. Ela esperava alguma herança, duas ou
três mil libras esterlinas de uma velha tia. Essa quantia, junto à fortuna atual dos du Guénic, poderia permitir-lhe achar para Calisto uma esposa que lhe trouxesse
doze ou quinze mil francos de renda. Carlota de Kergarouët, com a fortuna da tia, uma rica irlandesa ou outra qualquer herdeira pareciam indiferentes à baronesa:
ela ignorava o amor; como todas as pessoas que a cercavam, ela via no casamento um meio de fazer fortuna. Para essas almas católicas, para essa gente velha exclusivamente
preocupada com a própria salvação, com Deus, com o rei, com a riqueza, a paixão era desconhecida. Ninguém se admirará pois da gravidade dos pensamentos que serviam
de acompanhamento aos sentimentos feridos no coração daquela mãe, que vivia tanto pelos interesses como pela ternura do filho. Se o jovem casal pudesse ouvir a voz
da sabedoria, os du Guénic, na segunda geração, vivendo privações, economizando como se sabe economizar na província, poderiam readquirir suas terras e reconquistar
o esplendor da riqueza. A baronesa almejava uma velhice prolongada, a fim de ver raiar a aurora do bem-estar. A srta. du Guénic compreendera e adaptara esse plano
posto agora em xeque pela srta. des Touches.
A baronesa ouviu com pavor soar a meia-noite; concebeu terrores horríveis durante uma hora, porquanto a pancada de uma hora repercutiu ainda no campanário sem que
Calisto tivesse chegado.
— Ficará ele lá?—perguntou a si mesma.—Seria a primeira vez. Pobre filho.
Nesse momento, o passo de Calisto animou a viela. A pobre mãe, em cujo coração a alegria sucedia à inquietude, voou da sala à porta e abriu-a para o filho.
— Oh—exclamou Calisto com ar pesaroso—,por que me esperaste, querida mãe? Eu tenho a chave do trinco e um isqueiro.
— Bem sabes, meu filho, que me é impossível dormir enquanto estás fora—disse ela abraçando-o.
Quando a baronesa entrou na sala, olhou o filho para adivinhar, segundo a expressão da fisionomia, os acontecimentos da noite; ele, porém, causou-lhe, como sempre,
essa emoção que o hábito não enfraquece, que todas as mães amantes experimentam à vista da obra-prima humana que elas fizeram e que sempre lhes perturba a vista
por um instante.
Excetuando os olhos negros cheios de energia e de sol que herdara do pai, Calisto tinha belos cabelos louros, o nariz aquilino, a boca adorável, os dedos arqueados,
a tez suave, a delicadeza, a brancura da mãe. Conquanto ele se assemelhasse muito a uma rapariga disfarçada de homem, tinha uma força hercúlea. Seus músculos tinham
a flexibilidade e o vigor de molas de aço, e a singularidade de seus olhos negros não deixava de ter seu encanto.
Não lhe nascera ainda a barba. Esse atraso anuncia, dizem, uma grande longevidade. O cavaleiro, trajando uma sobrecasaca curta de veludo preto, igual ao do vestido
da mãe, e guarnecida de botões de prata, trazia um lenço de pescoço azul, bonitas polainas e uma calça de cetim acinzentado. Sua fronte alva como a neve parecia
marcada com os traços de uma grande fadiga e não acusava entretanto, senão o peso de pensamentos tristes. Incapaz de suspeitar os pesares que devoravam o coração
de Calisto, a mãe atribuía à felicidade aquela alteração passageira. Não obstante, Calisto era belo como um deus grego, mas belo sem fatuidade; primeiro por estar
acostumado a ver a mãe, e depois porque pouco se preocupava com uma beleza que sabia inútil.
“Essas belas faces tão puras”, pensou ela, “nas quais o sangue jovem e rico irradia em mil retículos, pertencem pois a uma outra mulher, senhora igualmente daquela
fronte de moça? A paixão aí porá mil desordens e embaciará esses belos olhos, úmidos como os das crianças.”
Esse pensamento amargo apertou o coração da baronesa e perturbou o seu prazer. Aos que sabem fazer cálculos deve parecer extraordinário que, numa família de seis
pessoas, obrigadas a viver com três mil francos de renda, o filho tivesse sobrecasaca de veludo e a mãe um vestido da mesma fazenda; Fanny O’Brien tinha, porém,
tias e parentes ricos em Londres que se faziam lembrar pela bretã por meio de presentes. Várias irmãs suas, que tinham casamentos ricos, interessavam-se vivamente
por Calisto, a ponto de pensar em conseguir-lhe uma herdeira, por sabê-lo belo e nobre, tanto como Fanny, sua favorita exilada, era bela e nobre.
— Você ficou mais do que ontem nas Touches, meu bem-amado—disse por fim a mãe com voz comovida.
— Sim, querida mãe—respondeu ele sem dar explicação. A secura dessa resposta atraiu nuvens sobre a fronte da baronesa, a qual deixou a explicação para o dia seguinte.
Quando as mães concebem as inquietações que a baronesa sentia naquele momento, quase tremem ante os filhos, sentem instintivamente os efeitos da grande emancipação
do amor, compreendem tudo o que esse sentimento lhes vai arrebatar; mas têm ao mesmo tempo alguma alegria em saber os filhos felizes; há como que uma batalha no
coração delas. Embora o resultado seja o filho crescido, tornado superior, as verdadeiras mães não amam essa tácita abdicação; elas preferem o filho pequeno e protegido.
Está nisso talvez o segredo da predileção das mães pelos filhos fracos, defeituosos ou infelizes.
— Estás cansado, querido filho, deita-te—disse ela, retendo as lágrimas.
Uma mãe que não sabe tudo o que o filho faz julga tudo perdido, quando ama tanto e é tão amada como Fanny. Outra mãe, de resto, teria talvez tremido tanto quanto
a sra. du Guénic. A paciência de vinte anos podia ter se tornado inútil. Aquela obra-prima humana da educação nobre, sapiente e religiosa, Calisto, podia ser destruída;
a felicidade de sua vida tão bem preparada podia ser arruinada para sempre por uma mulher.
VIII - INQUIETAÇÕES AUMENTADAS
No dia seguinte Calisto dormiu até o meio-dia, porque a mãe proibiu que o acordassem; e Mariotte serviu ao filho mimado o almoço na cama. As regras inflexíveis e
quase conventuais que regiam as horas das refeições cediam aos caprichos do cavaleiro. Por isso, quando queriam arrancar da srta. du Guénic seu molho de chaves para
dar, fora das horas das refeições, alguma coisa que teria necessitado explicações intermináveis, não havia outro meio senão pretextar uma fantasia de Calisto. Cerca
da uma hora, o barão, sua esposa e a senhorita estavam reunidos na sala, porque jantavam às três horas. A baronesa pegara outra vez a Quotidienne e terminava a leitura
para o marido, sempre um pouco mais desperto antes das refeições. No momento em que a sra. du Guénic ia terminar sua leitura, ela ouviu do segundo andar o ruído
dos passos do filho e deixou o jornal cair, dizendo:
— Calisto vai com certeza jantar nas Touches; acaba de vestir-se.
— Se isso o diverte...—disse a velha, tirando do bolso o apito de prata e apitando.
Mariotte passou pela torrinha e desembocou pela porta de comunicação oculta por um reposteiro de estofo de seda, igual ao das cortinas.
— Pronto—disse ela—,precisa de alguma coisa?
— O cavaleiro vai jantar nas Touches, suspenda o peixe.
— Mas não sabemos ainda se é assim—disse a irlandesa.
— Isso parece contrariá-la, minha irmã, adivinho-o no seu tom de voz—disse a cega.
— O sr. Grimont soube afinal coisas graves a respeito da srta. des Touches, a qual, faz um ano, transformou muito nosso Calisto.
— Em quê?—perguntou o barão.
— Em leitor de toda espécie de livros.
— Ah! Ah!—fez o barão.—É por isso então que ele desleixa a caça e seu cavalo.
— Ela tem hábitos censuráveis e usa nome de homem—replicou a sra. du Guénic.
— Um nome de guerra—replicou o velho.—Eu me chamava l’Intimé (L’Intimé etc.: nomes de guerra usados pelos insurgentes bretões do romance A Bretanha em 1799.), o
conde de Fontaine o Grand-Jacques, o marquês de Montauram O Gars. Eu era o amigo de Ferdinand, o qual tanto como eu não se submeteu. Era o bom tempo! Davam-se tiros,
mas de qualquer forma a gente se divertia de um lado ou de outro.
Essa recordação de guerra, que substituía a inquietação paterna, entristeceu Fanny por um momento. A confidência do cura, a falta de confiança no filho tinham-na
impedido de dormir.
— E mesmo se o senhor cavaleiro amasse a srta. des Touches, onde estaria a desgraça?—disse Mariotte.—A sapeca tem trinta mil escudos de renda e é bonita.
— Que dizes aí, Mariotte?—exclamou o ancião.—Um du Guénic desposar uma des Touches! Os des Touches não eram ainda nossos escudeiros no tempo em que du Guesclin considerava
uma aliança com a nossa família como uma honra insigne.
— Uma rapariga que usa um nome de homem, Camille Maupin!—disse a baronesa.
— Os Maupin são antigos—disse o ancião -; são da Normandia e trazem de goles a três...—Deteve-se.—Ela não pode ser ao mesmo tempo des Touches e Maupin.
— Chama-se Maupin no teatro.
— Uma des Touches não poderia ser comediante—disse o ancião.—Se eu não a conhecesse, Fanny, diria que você está louca.
— Ela escreve peças e livros—acrescentou ainda a baronesa.
— Livros?—disse o velho, olhando para a mulher com ar tão surpreendido como se lhe tivessem falado de um milagre.—Ouvi dizer que srta. Scudéry e sra. de Sévigné
tinham escrito, e não foi o que elas fizeram de melhor; mas para tais prodígios foi preciso Luís XIV e sua corte.
— O senhor vai jantar nas Touches, não é, senhor?—disse Mariotte a Calisto que apareceu.
— Provavelmente—respondeu o rapaz.
Mariotte não era curiosa, ela fazia parte da família; saiu sem procurar ouvir a pergunta que a sra. du Guénic ia fazer a Calisto.
— Você vai outra vez às Touches, meu Calisto? (Ela apoiou sobre a expressão: meu Calisto.) E as Touches não são uma casa honesta e decente. A dona da casa leva uma
vida aloucada, ela corromperá o nosso Calisto. Camille Maupin fê-lo ler muitos volumes, ela que teve tantas aventuras! E você sabia isso tudo, filhinho malvado,
e nada disse aos seus velhos amigos!
— O cavaleiro é discreto—respondeu o pai—,uma virtude dos velhos tempos.
— Demasiado discreto—disse a ciumenta irlandesa, ao ver o rubor que corava a fronte do filho.
— Minha querida mãe—disse Calisto pondo-se de joelhos junto à baronesa—,não creio que seja muito necessário publicar minhas derrotas. A srta. des Touches, ou, se
quiser, Camille Maupin, rejeitou meu amor faz um ano e meio, por ocasião da sua última estada aqui. Ela zombou meigamente de mim: poderia ser minha mãe, dizia ela;
uma mulher de quarenta anos que amasse um menor cometeria uma espécie de incesto, e que ela era incapaz de semelhante depravação. Numa palavra, dirigiu-me uma porção
de gracejos que me acabrunharam, porquanto ela tem espírito como um anjo. Por isso, quando me viu chorando lágrimas ardentes, consolou-me, oferecendo-me sua amizade
do modo mais nobre possível. Ela tem ainda mais coração do que talento; é tão generosa como a senhora. Agora sou como que um filho para ela. Depois, ao seu regresso,
ao saber que ela amava um outro, eu me resignei. Não repita as calúnias que correm a respeito dela: Camille é artista, ela é genial, e leva uma dessas existências
excepcionais que não devem ser julgadas como as existências comuns.
— Meu filho—disse a religiosa Fanny—,nada pode dispensar uma mulher de proceder como exige a Igreja. Ela falta para com os seus deveres em relação a Deus e à sociedade,
abjurando as meigas religiões de seu sexo. Uma mulher já comete um pecado ao ir ao teatro; mas escrever as impiedades que os atores repetem, correr mundo, ora com
um inimigo do papa, ora com um músico, ah! Calisto, você terá trabalho para convencer-me de que essas ações são atos de fé, de esperança e de caridade. A fortuna
dela foi-lhe dada por Deus para fazer o bem; para que lhe serve?
Calisto ergueu-se de súbito, olhou a mãe e disse-lhe:
— Minha mãe, Camille é minha amiga; não posso ouvir falar dela assim, porque por ela eu daria a vida.
— Tua vida?—disse a baronesa olhando o filho com ar apavorado.—Tua vida é a vida de nós todos!
— Meu belo sobrinho disse aí muitas palavras que eu não compreendo—exclamou suavemente a velha cega, virando-se para ele.
— Onde ele as aprendeu?—disse a mãe.—Nas Touches.
— Mas, minha querida mãe, ela achou-me ignorante como uma toupeira.
— Tu sabias as coisas essenciais, conhecendo os deveres que nos ensina a religião—respondeu a baronesa.—Ah! essa mulher destruirá tuas nobres e santas crenças.
A velha solteirona ergueu-se, estendeu solenemente a mão na direção do irmão que dormitava.
— Calisto—disse ela, com voz que vinha do coração—,teu pai jamais abriu um livro, ele fala o bretão, ele combateu nos perigos pelo rei e por Deus. As pessoas instruídas
tinham feito o mal e os gentis-homens sábios tinham abandonado a pátria. Aprende, se quiseres!
Tornou a sentar-se e recomeçou a tricotar com atividade que a emoção interior lhe fornecia. Calisto ficou abatido com aquele discurso à maneira de Fócion (Fócion:
general e orador ateniense do século IV a.C., famoso pela simplicidade e pela intransigência de seus discursos.).
— Enfim, meu anjo, tenho o pressentimento de alguma desgraça para ti naquela casa—disse a mãe com voz alterada e derramando lágrimas.
— Quem fez Fanny chorar?—exclamou o velho, acordando sobressaltado pelo som da voz da esposa.
Olhou para a irmã, para o filho e para a baronesa.
— Que há?
— Nada, meu amigo—respondeu a baronesa.
— Mamãe—respondeu Calisto ao ouvido da mãe e em voz baixa -; neste momento não me é possível explicar-me; mas logo à noite conversaremos. Quando a senhora souber
tudo, abençoará a srta. des Touches.
— As mães não gostam de amaldiçoar—respondeu a baronesa—,e eu não amaldiçoarei a mulher que quisesse muito bem ao meu Calisto.
O rapaz disse adeus ao velho pai e saiu. O barão e a baronesa ergueram-se para olhá-lo passar no pátio, abrir a porta e desaparecer. A baronesa não retomou o jornal,
estava emocionada. Naquela vida tão tranquila, tão uniforme, a curta discussão que acabava de ter lugar equivalia a uma querela em outra família. Embora acalmada,
a inquietação da mãe não estava, de resto, dissipada. Para onde essa amizade, que poderia exigir a vida de Calisto e pô-la em perigo, o iria levar? Por que a baronesa
teria ela de abençoar a srta. des Touches? Essas duas interrogações eram tão graves para essa alma simples como seria para diplomatas a mais furiosa revolução. Camille
Maupin naquele interior suave e calmo era uma revolução.
— Tenho bastante receio de que essa mulher nô-lo estrague—disse ela retomando o jornal.
— Minha querida Fanny—disse o velho barão com ar malicioso—,você é por demais anjo para conceber essas coisas. A srta. des Touches é, segundo dizem, negra como um
corvo, forte como um turco, tem quarenta anos; nosso querido Calisto tinha de dirigir-se a ela. Ele dirá algumas mentirinhas muito honradas para ocultar sua felicidade.
Deixe-o divertir-se no seu primeiro engodo de amor.
— Se fosse outra mulher.
— Mas, querida Fanny, se essa mulher fosse uma santa, ela não acolheria seu filho.
A baronesa retomou o jornal.
— Irei vê-la—disse o ancião—e lhe direi o que há.
Essa palavra não pode ter sabor senão pela recordação. Depois da biografia de Camille Maupin, imaginai o velho barão às voltas com aquela mulher ilustre.
A cidade de Guérande, que, fazia dois meses, via Calisto, sua flor e seu orgulho, indo todos os dias, à tarde ou pela manhã, muitas vezes de tarde e de manhã, a
Touches, pensava que a srta. Felicidade des Touches estivesse perdidamente apaixonada por aquele belo jovem e que praticava feitiçarias sobre ele. Mais de uma moça
e mais de uma jovem dama a si mesmas indagavam que privilégios seriam os das mulheres idosas para exercer sobre um anjo um domínio tão absoluto. Por isso, quando
Calisto atravessou a rua principal para sair pela porta do Croisic, mais de um olhar o acompanhou.
Torna-se agora necessário explicar os rumores que planavam por sobre o personagem que Calisto ia ver. Esses rumores, avolumados pelas mexeriquices bretãs, envenenados
pela ignorância pública, tinham chegado aos ouvidos do cura. O coletor das contribuições, o juiz de paz, o chefe da aduana de Saint-Nazaire e outras pessoas letradas
do cantão não tinham tranquilizado o abade Grimont ao narrar-lhe a vida estranha da mulher artista que se ocultava sob o nome de Camille Maupin. Ela ainda não comia
as criancinhas e não matava escravos como Cleópatra, não mandava atirar um homem no rio como falsamente se acusa a heroína da Torre de Nesle (A Torre de Nesle: drama
de Alexandre Dumas e de Gaillardet, pseudo-histórico e patético, cheio de cenas de sangue, representado com êxito em Paris em 1832.); mas, para o abade Grimont,
aquela criatura monstruosa, que tinha algo de sereia e de ateu, formava uma combinação imoral da mulher e do filósofo, e fraudava todas as leis sociais inventadas
para conter ou utilizar as fraquezas do belo sexo.
SEGUNDA PARTE
UMA MULHER CÉLEBRE
I - A INFÂNCIA DA SRTA. DES TOUCHES
Do mesmo modo que Clara Gazul (Clara Gazul: pseudônimo com que o grande novelista Prosper Mérimée (1803-1870) assinou uma coleção de peças pequenas, atribuídas por
ele a uma cômica espanhola.) é o pseudônimo feminino de um homem de espírito, George Sand (George Sand: pseudônimo de Aurore Dupin (1803-1876), romancista célebre,
amiga de Balzac.) o pseudônimo masculino de uma mulher de gênio, Camille Maupin foi a máscara sob a qual se ocultou durante muito tempo uma encantadora moça, de
muito bom nascimento, uma bretã, chamada Felicidade des Touches, a mulher que causava tão vivas inquietações à baronesa du Guénic e ao bom cura de Guérande. Essa
família nada tem de comum com os des Touches da Touraine, aos quais pertence o embaixador do regente (O embaixador do regente: Philippe Néricault Destouches (1680-1754),
famoso comediógrafo, protegido de Filipe de Orléans, regente da França durante a menoridade de Luís XV, que o mandou para Londres em 1817 como ministro plenipotenciário.),
hoje mais famoso ainda por seu nome literário do que por seus talentos diplomáticos.
Camille Maupin, uma das poucas mulheres célebres do século XIX, passou muito tempo por ser um autor real, pela virilidade de sua estreia. Todo mundo conhece hoje
os dois volumes de peças não suscetíveis de representação, escritos à maneira de Shakespeare ou de Lopes de Véga (Lopes de Véga (sic): Félix Lope de Vega (1562-1635),
famoso autor teatral espanhol.), publicados em 1822, e que determinaram uma espécie de revolução literária, quando a grande questão dos românticos e dos clássicos
palpitava nos jornais, nos clubes, na Academia. Depois disso, Camille Maupin deu várias peças de teatro e um romance que não desmentiram o êxito obtido pela sua
primeira publicação, hoje um pouco demasiado esquecida.
Explicar por que encadeamento de circunstâncias se efetuou a encarnação masculina de uma moça, como Felicidade des Touches se fez homem e autor; por que, mais feliz
do que Madame de Staël (Madame de Staël (1766-1817): filha de Necker, célebre autora de Corina, Delfina e Da Alemanha.), permaneceu livre e é assim mais desculpável
por sua celebridade, não será isso satisfazer muitas curiosidades e justificar uma dessas monstruosidades que se erguem na humanidade como monumentos e cuja glória
é favorecida pela raridade? Porque, em vinte séculos, contam-se apenas vinte grandes mulheres. Por isso, embora ela aqui seja apenas um personagem secundário, como
teve uma grande influência sobre Calisto e representa um papel na história literária de nossa época, ninguém lamentará por se ter detido diante desta figura mais
tempo do que o permitido pela poética moderna.
A srta. Felicidade des Touches ficou órfã em 1793. Seus bens escaparam assim às confiscações em que sem dúvida incorreriam o pai e o irmão. O primeiro morreu em
10 de agosto, caído na entrada do palácio, entre os defensores do rei, junto ao qual o chamava seu posto de major dos guardas da porta. O irmão, jovem guarda do
corpo, foi massacrado no Convento dos Carmelitas (Conventos dos Carmelitas: alusão ao sangrento ataque dos revolucionários ao Convento dos Carmes em 2 de setembro
de 1792, quando muitos padres ali escondidos foram massacrados. No convento, onde é atualmente localizado o lnstituto Católico de Paris (rue de Vaugirard), existe
uma capela votiva em lembrança das vítimas.). A srta. des Touches tinha dois anos quando a mãe morreu vitimada pelo desgosto alguns dias depois dessa segunda catástrofe.
Ao morrer, a sra. des Touches confiou a filha à sua irmã, uma religiosa de Chelles.
A sra. de Faucombe, a freira, levou prudentemente a órfã para Faucombe, considerável propriedade rural situada perto de Nantes, pertencente à sra. des Touches, e
onde a religiosa se estabeleceu com três irmãs de seu convento. O populacho de Nantes veio durante os últimos dias do Terror arrasar o castelo, prenderam as religiosas
e a srta. des Touches, que foram atiradas ao cárcere, acusadas por um boato calunioso de terem recebido emissários de Pitt e de Cobourg (Pitt: Willian Pitt (1759-1806),
primeiro-ministro inglês que organizou três coalizões contra a França; Cobourg: Friedrich-Josias, príncipe de Cobourg (1737-1815), marechal de campo austríaco, aliado
de Pitt.). O 9 de termidor (O 9 de termidor: 27 de julho de 1794, dia da queda de Robespierre, que marcou o fim do Terror.) libertou-as. A tia de Felicidade morreu
de pavor. Duas das freiras deixaram a França; a terceira confiou a pequena des Touches ao seu parente mais próximo, o sr. de Faucombe, seu tio-avô materno, que habitava
em Nantes, e foi juntar-se às companheiras no exílio.
O sr. de Faucombe, ancião de sessenta anos, desposara uma mulher moça a quem deixava a direção de seus negócios. Não se ocupava senão de arqueologia, uma paixão
ou, para falar mais corretamente, uma dessas manias que ajudam os velhos a se julgarem ainda em vida. A educação de sua pupila foi inteiramente entregue ao deus-dará.
Pouco vigiada por uma jovem senhora entregue aos prazeres do período imperial, Felicidade criou-se sozinha, como um garoto. Ela fazia companhia ao sr. de Faucombe
em sua biblioteca, onde lia o que lhe agradava ler. Conheceu portanto a vida em teorias e não teve nenhuma inocência de espírito, embora se conservasse virgem. Sua
inteligência flutuou nas impurezas da ciência e seu coração permaneceu puro. Sua instrução, excitada pela paixão da leitura e servida por uma bela memória, tornou-se
surpreendente. Por isso, aos dezoito anos tinha o saber que os jovens de hoje deveriam ter antes de escrever. Essas leituras prodigiosas contiveram suas paixões,
muito melhor do que a vida de convento, na qual se incendeia a imaginação das moças.
Aquele cérebro, recheado de conhecimentos nem digeridos nem classificados, dominava aquele coração de criança. Essa depravação da inteligência, sem ação sobre a
castidade do corpo, teria causado admiração a filósofos ou a observadores, se alguém em Nantes pudesse suspeitar do valor da srta. des Touches. O resultado foi em
sentido inverso da causa. Felicidade não tinha nenhum pendor para o mal, tudo concebia pelo pensamento, mas abstinha-se da ação; encantava o velho Faucombe e auxiliava-o
nos seus trabalhos; ela escreveu três das obras do bom gentil-homem, o qual as julgou suas, por ter sido sua paternidade espiritual também cega. Tão grandes trabalhos
em desacordo com o desenvolvimento da moça tiveram suas consequências: Felicidade ficou doente, seu sangue estava aquecido, o peito parecia ameaçado de inflamação.
Os médicos prescreveram exercícios de equitação e as distrações da sociedade. A srta. des Touches tornou-se ótima cavaleira e restabeleceu-se em poucos meses.
Aos dezoitos anos, apareceu nos salões, onde produziu tão grande sensação que em Nantes ninguém a chamava senão de a bela srta. des Touches; mas as adorações que
ela inspirou deixavam-na insensível; fora a reuniões por um desses sentimentos imperecíveis numa mulher, seja qual for a sua superioridade. Magoada com a tia e os
primos que zombaram dos seus trabalhos e a debicaram por seu afastamento, supondo-a inábil para agradar, quis mostrar-se coquete e frívola, numa palavra, mulher.
Felicidade contava com uma troca qualquer de ideias, com seduções em harmonia com a elevação de sua inteligência, com a extensão de seus conhecimentos; ela experimentou
uma repulsa ao ouvir os lugares-comuns da conversação, as tolices da galanteria, e ficou sobretudo chocada pela aristocracia dos militares, que no momento eram os
senhores de tudo. Ela naturalmente tinha desleixado as artes recreativas. Ao ver-se inferior a bonecas que tocavam piano e faziam-se de interessantes, cantando romanças,
quis ser musicista; voltou para seu profundo retiro e pôs-se a estudar com obstinação, sob a direção do melhor mestre da cidade. Era rica, mandou buscar, com grande
espanto da cidade, Steibelt (Steibelt: personagem imaginada por Balzac, que só aparece neste trecho de A comédia humana.) para se aperfeiçoar. Ainda se fala nesse
rasgo principesco. A permanência desse mestre custou-lhe doze mil francos. Desde então tornou-se uma musicista consumada. Mais tarde, em Paris, ela fez com que lhe
ensinassem harmonia, o contraponto, e compôs a música de duas óperas que obtiveram o maior sucesso, sem que o público tenha sido jamais posto na confidência. Essas
óperas pertencem ostensivamente a Conti (Conti: personagem balzaquiana; desempenhará papel importante neste mesmo romance.), um dos mais eminentes artistas do nosso
tempo; mas essa circunstância está ligada à história do seu coração e se explicará mais tarde.
A mediocridade da sociedade da província entediava-a tão fortemente, ela abrigava na imaginação ideias tão grandiosas, que desertou os salões depois de neles ter
reaparecido a fim de eclipsar as mulheres pelo esplendor de sua beleza, gozar de seu triunfo como musicista e de se fazer adorar pela gente de espírito. Mas depois
de haver demonstrado seu poder aos dois primos e lançado ao desespero dois apaixonados, voltou para os seus livros, para seu piano, suas obras de Beethoven e para
o velho Faucombe. Em 1812, ela fez vinte e um anos, o arqueólogo prestou-lhe contas de sua tutela; assim pois, desde esse ano, ela tomou a direção da sua fortuna,
constante de quinze mil francos de renda que era o que rendiam as Touches, herança do pai; de doze mil francos que produziam então as terras de Faucombe, mas cuja
renda se acresceu de um terço por ocasião da renovação dos arredamentos; e de um capital de trezentos mil francos economizados pelo tutor. Da vida de província,
Felicidade aproveitou apenas a compreensão do que era a fortuna e essa inclinação para a sabedoria administrativa, a qual nela talvez restabeleça equilíbrio entre
o movimento ascensional dos capitais em direção a Paris. Retirou seus trezentos mil francos da casa na qual o arqueólogo os pusera a render e colocou-os em obrigações
do Estado no momento dos desastres da retirada de Moscou. Ficou com mais trinta mil francos de renda. Pagas todas as suas despesas, sobravam-lhe cinquenta mil francos,
por ano, a colocar. Aos vinte e um anos, uma rapariga com tal força de vontade era igual a um homem de trinta anos. Seu espírito adquirira uma vastidão enorme, e
hábitos de crítica permitiam-lhe julgar sensatamente os homens, as artes, as coisas e a política. Desde esse momento, ela teve a intenção de retirar-se de Nantes,
mas o velho Faucombe adoeceu e a doença levou-o. Ela era como que a esposa daquele ancião; cuidou-o durante dezoito meses com a dedicação de um anjo da guarda e
cerrou-lhe os olhos no momento em que Napoleão lutava contra a Europa sobre o cadáver da França. Ela protelou pois sua partida para Paris para o fim dessa luta.
Realista, ela correu a Paris, a fim de assistir à volta dos Bourbons. Foi acolhida pelos Grandlieu (Os Grandlieu: família aristocrática inventada por Balzac, da
qual uns dez membros aparecem em A comédia humana.), com os quais tinha laços de parentesco; mas sobrevieram as catástrofes de 20 de março (As catástrofes de 20
de março: alusão à volta inesperada de Napoleão a Paris, que motivou um novo, embora breve, exílio dos Bourbons.), e tudo ficou em suspenso para ela. Pôde ver de
perto essa última imagem do Império, admirar o Grande Exército, que foi ao Champs-de-Mars (Champs-de-Mars: grande terreno situado entre a Escola Militar e a margem
esquerda do Sena, cena de manobras militares e revistas de tropas na época do romance.), como a um circo, saudar seu César, antes de ir morrer em Waterloo. A alma
grande e nobre de Felicidade ficou impressionada por esse espetáculo mágico. As comoções políticas, a magia dessa peça teatral em três meses que a história denomina
os Cem Dias (Os Cem Dias: de 20 de março a 22 de junho de 1815, o tempo que durou o segundo reinado de Napoleão, após a sua volta da ilha de Elba.), ocuparam-na
e preservaram-na de qualquer paixão, em meio de uma confusão que dispersou a sociedade realista no ponto em que ela se iniciara. Os Grandlieu tinham acompanhado
os Bourbons a Gand (Tinham acompanhado os Bourbons a Gand: onde eles passaram o breve período de exílio determinado pela volta de Napoleão.), deixando seu palácio
com a srta. des Touches. Felicidade, que não queria posição subalterna, comprou, por cento e trinta mil francos, uma das mais belas casas residenciais da rue du
Mont Blanc, onde se instalou, quando os Bourbons voltaram em 1815, e cujo jardim vale hoje, ele só, dois milhões.
Acostumada a dirigir-se por si mesma, Felicidade familiarizou-se cedo com a ação que parece exclusivamente um atributo masculino. Em 1816, ela fez vinte e cinco
anos. Ignorava o casamento, concebia-o somente pelo pensamento, julgava-o nas suas causas em vez de o ver nos seus efeitos, e não lhe percebia senão inconvenientes.
Seu espírito superior recusava-se à abdicação pela qual a mulher casada começa a vida; ela sentia vivamente o valor da independência e não achava senão aborrecimento
nos cuidados da maternidade. É necessário fornecer detalhes para justificar as anomalias que caracterizam Camille Maupin. Ela não conheceu nem pai nem mãe, e foi
sua própria mestra desde a infância; seu tutor foi um velho arqueólogo, o acaso atirou-a no domínio da ciência e da imaginação, no mundo literário, em vez de a manter
no círculo traçado pela educação fútil dada às mulheres, pelos ensinamentos maternos sobre a toilette, sobre a decência hipócrita, sobre a graciosidade caçadora
do sexo. Por isso, muito tempo antes de ela tornar-se célebre, via-se logo à primeira vista que ela jamais se prestara ao papel de boneca. Para o fim do ano de 1817,
Felicidade des Touches percebeu não uma perda de viço, mas sim um começo de fadiga na sua pessoa. Compreendeu que sua beleza ia alterar-se pelo fato de seu celibato
obstinado, mas queria conservar-se bela, pois que, então, queria à sua beleza. A ciência notificou-lhe a sentença formulada pela natureza, sobre criações, as quais
deperecem tanto pelo não cumprimento como pelo abuso de suas leis. O rosto macerado da tia apareceu-lhe e fê-la fremir. Colocada entre o casamento e a paixão, ela
quis conservar-se livre; mas não foi indiferente às homenagens que a cercavam.
Estava, no momento em que começa esta história, quase igual a ela mesma, em 1817. Dezoito anos tinham passado sobre ela, respeitando-a. Aos quarenta anos podia dizer
que tinha apenas vinte e cinco. Por isso pintá-la em 1836 era representá-la como era em 1817. As mulheres que sabem em que condições de temperamento e de beleza
devem permanecer a fim de resistir aos ultrajes do tempo compreenderão como e por que Felicidade des Touches gozava de tão grande privilégio, ao estudar um retrato
para o qual estão reservados os mais brilhantes tons de paleta e a mais rica moldura.
II - O RETRATO
A Bretanha apresenta um problema singular a resolver na predominância da cabeleira castanho-escura, dos olhos castanhos e tez morena, numa região vizinha da Inglaterra,
onde as condições atmosféricas são tão pouco diferentes. Estará este problema ligado à grande questão de raças, a influências físicas inobservadas? Os sábios procurarão,
talvez um dia, a causa dessa singularidade que cessa na província vizinha, na Normandia. Até sua solução, esse fato estranho está ante nossas vistas: as louras são
bastante raras entre as bretãs, que têm, quase todas, os olhos vivos dos meridionais: mas, em lugar de ostentarem a alta estatura e as linhas serpentinas da Itália
e da Espanha, são em geral pequenas, socadas, bem-feitas, firmes, salvo as exceções da classe elevada, que se cruza por casamentos aristocráticos.
A srta. des Touches, como verdadeira bretã de raça, é de estatura mediana; não chega a ter cinco pés, mas parece tê-los. Esse erro provém do caráter de seu rosto
que a aumenta. Tem essa tez azeitonada à luz do dia e branca à luz artificial que distingue as belas italianas; dir-se-ia marfim animado. A luz desliza sobre essa
pele como por sobre um corpo polido, brilhando; é necessária uma emoção violenta para que débeis rubores se infundam nas faces, mas logo desaparecem. Essa particularidade
dá-lhe ao rosto uma impassibilidade selvagem.
Esse rosto, mais longo do que oval, assemelha-se ao de alguma bela Ísis de baixos-relevos eginéticos (Eginéticos: isto é, de Egina, pequena ilha do arquipélago grego
cuja escola de escultura, a primeira da Grécia, floresceu nos séculos VI e V a. C.). Direis ser a pureza das cabeças de esfinges polidas pelo fogo dos desertos,
acariciadas pela chama do sol egípcio. Assim pois a coloração da tez está em harmonia com a correção daquela cabeça. Os cabelos negros e abundantes descem em madeixas
ao comprido do pescoço como o toucado de dupla faixa raiada das estátuas de Mênfis (Mênfis: cidade do Egito antigo, sobre o Nilo; até hoje se lhe avistam as ruínas,
entre as quais umas estátuas colossais.), e continua admiravelmente a severidade geral da forma. A fronte é ampla, larga, cheia nas têmporas, iluminada por superfícies
onde a luz se detém, cortada, como a da Diana caçadora: uma fronte poderosa e voluntária, silenciosa e calma.
O arco das sobrancelhas, traçado vigorosamente, estende-se por sobre dois olhos cuja chama cintila às vezes como a de uma estrela fixa. O branco dos olhos não é
nem azulado, nem semeado de fios vermelhos, nem de um branco puro; tem a consistência da córnea, mas é de um tom quente. A íris é cercada de um círculo alaranjado.
É bronze cercado de ouro, mas de ouro vivo, bronze animado. Essa pupila é profunda. Não é forrada como em certos olhos por uma espécie de aço que reflete a luz e
os faz assemelharem-se aos olhos dos tigres ou dos gatos; ela não tem essa inflexibilidade terrível que provoca um arrepio nas pessoas sensíveis; mas essa profundidade
tem seu infinito, do mesmo modo que o brilho dos olhos de espelho tem seu absoluto.
O olhar do observador pode perder-se nessa alma, que se concentra e se retrai com a mesma rapidez com que jorra daqueles olhos aveludados. Num momento de paixão,
os olhos de Camille Maupin são sublimes; o ouro de seu olhar acende o branco amarelo e tudo chameja; mas em estado de repouso é embaciado, o torpor da meditação
empresta-lhe muitas vezes a aparência da tolice; quando a luz da alma falta neles, as linhas do semblante se entristecem igualmente. O cílios são curtos, mas densos
e negros como caudas de arminho. As pálpebras são morenas e semeadas de fibrilas vermelhas que lhes dão ao mesmo tempo graça e força, duas qualidades difíceis de
reunir numa mesma mulher. O contorno dos olhos não tem o menor desbotamento nem a mais leve ruga. Aí, ainda, encontrareis o granito da estátua egípcia suavizado
pelo tempo. Apenas a saliência dos pômulos, conquanto suave, é mais pronunciada do que nas outras mulheres e completa o conjunto de força expresso pelo rosto.
O nariz fino e reto é cortado por ventas oblíquas, bastante apaixonadamente dilatadas para deixar ver o róseo luminoso de seu delicado interior. Esse nariz continua
bem a fronte, à qual se une por uma linha deliciosa, é perfeitamente branco tanto na sua raiz como na ponta, e esta é dotada de uma espécie de mobilidade que faz
maravilhas nos momentos em que Camille fica indignada, se zanga, se revolta. Aí principalmente, como notou Talma (Talma: François-Joseph Talma (1763-1826), ator
trágico francês, comediante preferido de Napoleão.), pinta-se a cólera ou a ironia das grandes almas. A imobilidade das ventas indica uma espécie de secura. Jamais
o nariz de um avarento vacila; ele é contraído como a boca; tudo no seu semblante é fechado como nele.
A boca arqueada, nos cantos, é de um vermelho vivo, o sangue aí abunda e fornece-lhe esse mínio vivo e pensador que dá tantas seduções a essa boca e pode tranquilizar
o amante a quem a majestosa gravidade do rosto assustaria. O lábio superior é fino, o sulco que o une ao nariz desce muito baixo como num arco, o que dá um tom particular
ao seu desdém. Camille tem pouco a fazer para exprimir a cólera. Aquele lindo lábio é orlado pela forte margem rubra do lábio inferior, admirável de bondade, cheio
de amor e que Fídias (Fídias: grande escultor grego, do século V a.C.) parece ter colocado como o bordo de uma romã aberta, da qual ela tem a cor. O queixo arrebita-se
firmemente, é um pouco gorducho, mas exprime resolução e remata bem aquele perfil régio, se não divino. É necessário dizer que a região inferior ao nariz é levemente
obscurecida por uma penugem muito graciosa. A natureza teria cometido um erro se não tivesse atirado ali aquela suave fumaça. A orelha tem dobras delicadas, sinal
de muitas delicadezas ocultas.
O busto é amplo. O tronco é fino e suficientemente guarnecido. Os quadris são pouco salientes, mas graciosos. A cintura é magnífica e lembra mais o Baco do que a
Vênus Calipígia (Calipígia: palavra grega que significa “de belas nádegas”, usada como epíteto de uma estátua de Vênus, conservada em Nápoles.). Vê-se por aí a diferença
apenas sensível que separa quase todas as mulheres célebres de seu sexo; elas têm nesse ponto como que uma vaga semelhança com o homem, não têm nem a flexibilidade,
nem a moleza das mulheres que a natureza destina à maternidade; seu caminhar não se amacia por um movimento suave. Essa observação é como que bilateral, tem seu
reverso nos homens, cujos quadris são quase semelhantes aos das mulheres, quando são finos, astuciosos, falsos e covardes. Em vez de se encovar na nuca, o pescoço
de Camille forma um contorno cheio que une os ombros à cabeça sem sinuosidade, a mais evidente característica da força. Esse pescoço apresenta por vezes dobras de
uma magnificência atlética. A articulação dos braços, de contorno soberbo, parece pertencer a uma mulher colossal. Os braços são vigorosamente modelados, terminados
por um pulso de uma delicadeza inglesa, por mãos mimosas e cheias de fossetas, enfeitadas com unhas róseas cortadas em forma de amêndoa, com nervuras marginais,
de um branco que anuncia que o corpo tão nédio, tão firme, tão bem-feito, é de um tom completamente diferente do rosto.
A atitude resoluta e fria daquela cabeça é corrigida pela mobilidade dos lábios, por sua expressão variável, pelo movimento artístico das ventas. Mas, apesar dessas
promessas irritantes e suficientemente ocultas aos profanos, a calma daquela fisionomia tem algo de provocante. Aquele semblante, mais melancólico, mais sério do
que gracioso, é assinalado pela tristeza de uma meditação constante. Por isso, a srta. des Touches ouve mais do que fala. Assusta pelo seu silêncio e por aquele
olhar profundo de uma profunda fixidez.
Ninguém, entre as pessoas instruídas, pode vê-la sem pensar na verdadeira Cleópatra (Cleópatra: rainha do Egito, amante de Antônio (morta no ano 30 a. C.). É frequentemente
lembrada, a seu respeito, esta frase de Pascal: “Se o nariz de Cleópatra tivesse sido mais curto, teria modificado o aspecto do mundo”.), nessa pequenina morena
que esteve a ponto de transformar a face do mundo; em Camille, porém, o animal é tão completo, tão bem entesado, de uma natureza tão leonina, que um homem um pouco
turco lamenta a reunião de um tão grande espírito num semelhante corpo, e quisera-o todo mulher. Todos se arreceiam de encontrar as corrupções estranhas de uma alma
diabólica. A frieza da análise, o positivo da ideia não esclarecerão as paixões nela? Essa rapariga não julgará, em vez de sentir? ou, fenômeno mais terrível ainda,
não sentirá e não julgará ela ao mesmo tempo? Tudo podendo seu cérebro, deverá ela deter-se onde as outras mulheres se detêm? Essa força intelectual deixará o coração
fraco? Será ela graciosa? Descerá ela aos nadas comovedores pelos quais as mulheres ocupam, divertem, ou interessam um homem amado? Não destroça ela um sentimento,
quando ele não corresponde ao infinito que ela abarca e contempla? Quem poderá encher os dois precipícios de seus olhos? Tem-se receio de encontrar nela um não sei
quê de virgem, de indomável. A mulher forte não deve ser senão um símbolo; em carne e osso ela assusta. Camille Maupin é um pouco, porém viva, aquela Ísis de Schiller
(A Ísis de Schiller: alusão ao poema “A imagem velada de Saís” do grande romântico alemão Friedrich Schiller (1759-1805). Havia no Egito, no templo da cidade de
Saís, uma imagem velada da deusa Ísis, símbolo da verdade, cujo véu ninguém se atreve a levantar. Um jovem que o tenta fazer perde os sentidos, depois cai numa melancolia
profunda e morre dentro em breve.), oculta no fundo do templo, e a cujos pés os padres encontraram expirantes os ousados lutadores que a haviam consultado. As aventuras
consideradas verídicas na sociedade, e que Camille não negava, confirmam as interrogações sugeridas por seu aspecto. Mas talvez, quem sabe, ela goste dessa calúnia?
A natureza de sua formosura não deixou de ter influência sobre sua reputação: ela serviu-a, do mesmo modo que sua posição e fortuna a mantiveram no seio da sociedade.
Quando um estatuário quiser fazer estátua admirável da Bretanha, ele poderá copiar a srta. des Touches. Esse temperamento sanguíneo, bilioso, é o único que pode
repelir a ação do tempo. A polpa incessantemente nutrida da pele como que envernizada é a única arma que a natureza deu às mulheres para que resistissem às rugas,
aliás antecipadamente evitadas em Camille pela impassibilidade de seu rosto.
III - BIOGRAFIA DE CAMILLE MAUPIN
Em 1817, a srta. des Touches abriu sua casa aos artistas, aos autores de renome, aos sábios, aos publicistas para os quais seus instintos a levavam. Teve um salão
semelhante ao do barão Gérard (O barão Gérard: barão François Gérard (1770-1836), pintor da escola clássica, discípulo de David e autor de famosos quadros históricos;
era também um retratista procurado pela alta aristocracia.), onde a aristocracia se mesclava às pessoas ilustres, aonde foi a nata dos parisienses. A parentela da
srta. des Touches e sua fortuna, aumentada com a herança da tia religiosa, protegeram-na na empresa tão difícil em Paris de criar-se uma sociedade. Sua independência
foi um dos motivos de êxito. Muitas mães ambiciosas conceberam a esperança de fazê-la desposar um de seus filhos, cuja fortuna estivesse em desacordo com a beleza
de seus brasões. Alguns pares da França, atraídos por oitenta mil francos de renda, seduzidos por aquela casa magnificamente montada, levaram lá seus mais intratáveis
e difíceis parentes. O mundo diplomático, que busca os divertimentos do espírito, foi lá e agradou-se. A srta. des Touches, cercada por tantos interesses, pôde pois
estudar as diferentes comédias que a paixão, a avareza, a ambição fazem todos os homens, mesmo os mais superiores, representar. Cedo ela viu o mundo tal como ele
é, e foi suficientemente feliz para não sentir logo esse amor inteiro que herda o espírito, as faculdades da mulher e a impede de julgar sensatamente. Em regra geral,
a mulher sente, goza e julga sucessivamente: daí três idades distintas, das quais a última coincide com o triste período da velhice. Para a srta. des Touches a ordem
foi invertida. Sua mocidade foi cercada das neves da ciência e dos frios da reflexão. Essa transposição explica ainda a singularidade da sua existência e a natureza
de seu talento. Ela observava os homens na idade em que as mulheres veem apenas um; desprezava o que elas admiram; surpreendia mentiras nas lisonjas que elas aceitam
como verdades; ria do que as torna graves. Esse contrassenso durou muito tempo, mas teve um fim terrível: ela devia encontrar em si mesma, jovem e viçoso, o primeiro
amor, no momento em que as mulheres são intimadas pela natureza a renunciar ao amor.
Sua primeira ligação amorosa foi tão secreta que ninguém dela teve conhecimento. Felicidade, como todas as mulheres entregues ao bom senso do coração, foi levada
a ajuizar da beleza da alma pela do corpo; apaixonou-se por um rosto e conheceu todas as tolices de um homem feliz em amores, que nela via apenas uma mulher. Levou
algum tempo para refazer-se do seu nojo e desse enlace insensato. Um homem soube adivinhar-lhe a dor, consolou-a sem segundas intenções, ou pelo menos soube ocultar
seus projetos. Felicidade julgou ter encontrado a nobreza de coração e o espírito de que o dândi carecia.
Esse homem possuía um dos espíritos mais originais da época. Também ele escrevia sob um pseudônimo, e seus primeiros escritos revelavam um adorador da Itália. Felicidade
devia viajar, sob pena de perpetuar a única ignorância que lhe restava. Aquele homem cético e zombeteiro levava Felicidade para fazê-la conhecer a pátria das artes.
Esse célebre desconhecido pôde passar por ser o mestre e o criador de Camille Maupin. Pôs em ordem os imensos conhecimentos de Felicidade, aumentou-os pelo estudo
das obras-primas que adornam a Itália, deu-lhe esse tom engenhoso e fino, epigramático e profundo que é característico do talento dele, sempre um pouco estranho
na forma, mas que Camille Maupin modificou pela delicadeza do sentimento e pelo feitio engenhoso natural das mulheres; inculcou-lhe o gosto das obras da literatura
inglesa e alemã, e fê-la aprender essas duas línguas durante a viagem. Em Roma, no ano de 1820, a srta. des Touches foi deixada por uma italiana. Não fosse esse
infortúnio e talvez ela jamais tivesse alcançado a celebridade. Napoleão cognominou a Desdita como a parteira do Gênio. Esse acontecimento inspirou para sempre à
srta. des Touches esse desprezo pela humanidade que a tornou tão forte. Felicidade morreu, e Camille nasceu.
Ela voltou para Paris com Conti, o grande músico, para o qual ela fez dois libretos de ópera; mas não tinha mais ilusões e tornou-se, sem que a sociedade o soubesse,
uma espécie de donjuán fêmea, sem dívidas, nem conquistas. Encorajada pelo êxito, publicou dois volumes de peças teatrais, que logo colocaram Camille Maupin entre
os ilustres anônimos. Ela narrou sua paixão decepcionada num pequeno romance admirável, uma das obras-primas da época. Esse livro, que constituía um exemplo perigoso,
foi posto ao lado de Adolfo (Adolfo: breve romance autobiográfico (1816) de Benjamin Constant. Nele o autor analisa a vagarosa mais inevitável desagregação de um
amor infeliz.), horrível lamentação cujo contrário se achava no livro de Camille. A delicadeza de sua metamorfose literária conserva-se ainda incompreendida.
Alguns espíritos finos, e só eles, veem nesse livro essa generosidade que entrega um homem à crítica, e salva a mulher da glória permitindo-lhe permanecer obscura.
Apesar do seu desejo, sua celebridade aumentava dia a dia, tanto pela influência de seu salão como por suas réplicas prontas, pela justeza de seus julgamentos e
pela solidez dos seus conhecimentos. Suas opiniões tinham autoridade, suas frases eram repetidas, e ela não se pôde demitir das funções em que fora investida pela
sociedade parisiense. Tornou-se uma exceção admitida. A sociedade curvou-se ante o talento e a fortuna daquela estranha rapariga; ela reconheceu, sancionou sua independência,
as mulheres admiraram seu espírito e os homens a sua beleza. De resto o procedimento de Camille Maupin estava submetido a todas as conveniências sociais. Suas amizades
pareciam puramente platônicas. Nada apresentou da mulher autor. A srta. des Touches é encantadora como uma dama da alta sociedade; quando necessário, fraca, ociosa,
coquete, ocupada com coisas de toilette, encantada com as tolices que seduzem as mulheres e os poetas. Ela compreendeu perfeitamente bem que, depois de Madame de
Staël, não havia mais lugar neste século para uma Safo (Safo: poetisa grega do século VII a. C., famosa pela sua arte e pela sua vida passional. Segundo a tradição,
ter-se-ia suicidado, num acesso de desespero amoroso, atirando-se ao mar do alto de um rochedo.), e que Ninon (Ninon: Ninon de Lenclos (1620-1705), dama galante,
de beleza e espírito igualmente notáveis, cujo salão era frequentado pelas personagens mais ilustres da época.) não poderia existir em Paris sem grão-senhores nem
corte voluptuosa. Ela é a Ninon da inteligência, adora a arte e os artistas, vai do poeta ao músico, do estatuário ao prosador. É de uma nobreza, de uma generosidade
que chega ao logro, de tal forma é ela cheia de piedade pela desgraça, cheia de desdém pelos felizes. Vive desde 1830 num círculo escolhido, com amigos experimentados
que se querem ternamente e se estimam. Tão longe do estardalhaço da Madame de Staël como das lutas políticas, ela zomba muito bem de Camille Maupin, esse irmão mais
moço de George Sand a quem chama de seu irmão Caim, porque essa glória recente fez esquecer a dela. A srta. des Touches admira a sua feliz rival com uma angélica
despreocupação, sem sentir inveja nem pensamentos reservados.
Até o momento em que se inicia esta história, ela teve a mais feliz existência que uma mulher suficientemente forte para se proteger a si mesma pudesse imaginar.
De 1817 a 1834 ela viera cinco ou seis vezes à Touches. Sua primeira viagem teve lugar após a sua primeira decepção em 1818. Sua casa das Touches estava inabitável,
ela mandou seu encarregado de negócios para Guérande e ocupou a residência dele nas Touches. Não tinha então nenhuma suspeita da sua glória por vir, estava triste,
não viu ninguém, queria de algum modo contemplar-se a si mesma depois daquele grande desastre. Escreveu para Paris a uma das suas amigas suas intenções a respeito
da mobília necessária para arranjar as Touches. Essa mobília desceu num barco até Nantes, foi trazida por um pequeno navio até o Croisic e daí transportada, não
sem dificuldade, através das areias, até as Touches. Ela mandou vir operários de Paris e alojou-se nas Touches, cujo conjunto lhe agradou extraordinariamente. Quis
poder meditar aí sobre os acontecimentos da vida como numa cartuxa privada.
No começo do inverno voltou para Paris. A pequena cidade de Guérande foi então arrebatada por uma curiosidade diabólica; não se falava senão do luxo asiático da
srta. des Touches. O notário, seu homem de negócios, deu autorização para que se fosse ver as Touches. Veio gente do burgo de Batz, do Croisic, de Savenay. Essa
curiosidade rendeu, em dois anos, uma quantia enorme à família do porteiro e do jardineiro, dezessete francos. A senhorita não voltou às Touches senão dois anos
depois, em seu regresso da Itália, e veio pelo Croisic. Ficaram algum tempo sem saber da estada dela em Guérande, onde se achava com Conti, o compositor. As visitas
que ela aí fez sucessivamente pouco excitaram a curiosidade da pequenina cidade de Guérande. Seu gerente e quando muito o notário conheciam o segredo da glória de
Camille Maupin.
Nesse momento, entretanto, o contágio das ideias novas fizera alguns progressos em Guérande, várias pessoas conheciam ali a dupla existência da srta. des Touches.
O diretor dos Correios recebia cartas dirigidas a Camille Maupin, nas Touches. Finalmente rasgou-se o véu. Numa terra essencialmente católica, atrasada, eivada de
preconceitos, a vida estranha daquela moça ilustre devia causar os falatórios que tinham assustado o abade Grimont e não podia jamais ser compreendida; por isso,
pareceu ela monstruosa para todos os espíritos. Felicidade não estava sozinha nas Touches; tinha um hóspede. Esse hóspede era Cláudio Vignon (Cláudio Vignon: personagem
já encontrada em Uma filha de Eva, em que era colaborador do jornal de Nathan.), o escritor desdenhoso e soberbo que, conquanto não fazendo senão crítica, achou
meio de dar ao público e à literatura a ideia de uma certa superioridade.
Felicidade, que fazia sete anos recebera esse escritor como cem outros autores, jornalistas, artistas e homens do mundo, que conhecia seu caráter sem elasticidade,
sua preguiça, sua profunda miséria, sua incúria e sua repulsa por tudo, parecia querer fazer dele seu marido pelo modo por que agia com ele. Seu procedimento, incompreensível
para seus amigos, ela o explicava pela ambição, pelo pavor que lhe causava a velhice; queria confiar o resto de sua vida a um homem superior para quem a sua fortuna
seria um trampolim e que lhe manteria a importância no mundo poético. Trouxera pois Cláudio Vignon de Paris à Touches como uma águia carrega um cabrito nas suas
garras, a fim de estudá-lo e tornar um partido violento—mas iludia ao mesmo tempo Calisto e Cláudio; não pensava em casamento, achava-se nas mais violentas convulsões
que possam agitar uma alma tão forte quanto a sua, ao ver-se enganada por seu próprio espírito, ao ver a vida iluminada demasiado tarde pelo sol do amor, brilhante
como brilha nos corações de vinte anos. Eis aqui agora a cartuxa (Cartuxa: em geral, convento de cartuxos; aqui: eremitério, abrigo.) de Camille.
IV - AS TOUCHES
A alguns cem passos de Guérande termina o solo da Bretanha, e as salinas e as dunas começam. Desce-se para o deserto de areia que o mar deixou como margem entre
ele e a terra, por um caminho barrancoso, por onde jamais passou um carro. Esse deserto contém areias estéreis, pântanos de formas irregulares margeados de cristas
lodosas, onde se cultiva o sal, e o pequeno braço de mar que separa a ilha do Croisic do continente. Conquanto geograficamente o Croisic seja uma península, como
ela não se prende à Bretanha, senão pelas praias que a ligam ao burgo de Batz, areias áridas e movediças que não poderiam ser facilmente transportadas, pode passar
por uma ilha.
No ponto em que o caminho do Croisic a Guérande se entronca com a estrada da terra firme, há uma casa de campo cercada de um grande jardim, notável por seus pinheiros
tortuosos e atormentados, alguns em forma de guarda-sol, outros pobres de ramaria, todos mostrando os troncos avermelhados nos lugares em que a casca foi destacada.
Essas árvores, vítimas dos temporais, desenvolvidas apesar dos ventos e das marés—o termo é justo para elas!—preparam a alma ao espetáculo triste e estranho das
salinas e das dunas que se assemelham a um mar coagulado.
A casa, muito bem construída com pedras xistosas e argamassa, mantidas por correntes de granito, não tem nenhuma arquitetura, apresenta à vista uma muralha seca,
com aberturas regulares de janelas. Estas são de grandes vidraças no primeiro andar, e no rés do chão de vidros menores. Acima do primeiro andar estão os sótãos,
os quais se estendem sob um enorme telhado alto, pontudo, de dois frechais com duas grandes trapeiras em cada face. Sob o triângulo de frechal, uma janela abre o
seu olho de ciclope a oeste para o mar, a leste de Guérande. Uma fachada da casa dá para o caminho de Guérande e a outra para o deserto, em cujo extremo se ergue
o Croisic. Além dessa pequena cidade estende-se o alto-mar. Um regato escapa-se por uma abertura da muralha do parque, o qual beira o caminho do Croisic, atravessa-o
e vai perder-se nas areias ou no pequeno lago de água salgada cercada pelas dunas, pelos pantanais, e produzido pela irrupção do braço de mar. Uma estrada de algumas
toesas, praticada nessa brecha do terreno, conduz do caminho a essa casa. Entra-se nela por uma porta grande. O pátio é cercado de construções rurais bastante modestas,
havendo uma estrebaria, uma cocheira, uma casa para o jardineiro, junto à qual há um galinheiro com suas dependências, mais para uso do caseiro do que para o dono.
Os tons griséus dessa casa harmonizam-se admiravelmente com a paisagem que ela domina. Seu parque é o oásis desse deserto em cuja entrada o viajante acha uma cabana
de barro onde os aduaneiros vigiam. Essa casa sem terras, ou cujas terras estão situadas no território de Guérande, tem no pântano uma renda de dez mil francos e
o resto em herdades disseminadas na terra firme. Tal é o feudo das Touches, ao qual a Revolução suprimiu suas rendas feudais. Hoje as Touches são um bem; mas os
salineiros continuam a dizer “o castelo”; diriam “o senhor”, se o feudo não tivesse passado para mãos de mulher.
Quando Felicidade quis restaurar as Touches, como grande artista que era, teve o cuidado de não mudar coisa alguma naquele exterior desolado que dá um ar de prisão
àquela edificação solitária. Só a porta de entrada foi embelezada com duas colunas de tijolos sustentando uma galeria por sob a qual pode passar um carro. O pátio
foi plantado.
A distribuição de peças no rés do chão é a da maioria das casas de campo construídas faz cem anos. Evidentemente essa casa fora edificada sobre as ruínas de algum
pequeno castelo ali pousado como um anel que ligasse o Croisic e o burgo de Batz a Guérande, e que impunha servidão ao pantanal. Embaixo da escada fora estabelecido
um peristilo. Primeiro uma grande antecâmara assoalhada, na qual Felicidade pôs um bilhar, depois um imenso salão de seis janelas, das quais duas, abertas embaixo
da parede de empena formam portas, descem para o jardim por uns dez degraus e correspondem na disposição do salão às portas que levam uma ao bilhar e a outra à sala
de jantar. A cozinha, situada na outra extremidade, comunica com a sala de jantar por uma copa. A escada separa o bilhar da cozinha, a qual tinha uma porta sobre
o peristilo, que a srta. des Touches fez condenar imediatamente, mandando abrir outra para o pátio. A altura do andar, a grandeza das peças permitiram a Camille
desenvolver uma nobre simplicidade nesse rés do chão. Teve o cuidado de não colocar aí coisas preciosas. O chão inteiramente pintado de cinzento tem para guarnecê-lo
um velho móvel de acaju e seda verde, cortinas de calicô branco com uma moldura verde nas janelas, dois consolos, uma mesa redonda; no centro, um tapete de grandes
desenhos em quadro; sobre a ampla lareira de enorme espelho, um relógio que representava o carro do sol, entre dois candelabros de estilo imperial. O bilhar tem
cortinas de calicô cinzento com orlas verdes e dois divãs. O mobiliário da sala de jantar compõe-se de quatro grandes trinchantes de acaju, de uma mesa, doze cadeiras
de acaju com estofo de crinas, e magníficas gravuras de Audran (Audran: Gérard Audran (1640-1703), conhecido gravador francês que gravou, entre outras, as obras
de Le Brun, Mignard, Poussin e Le Sueur.) emolduradas em quadros de acaju. Do meio do teto desce uma lanterna elegante como costumava haver nas escadarias dos grandes
palácios, e nas quais cabem duas lâmpadas. Todos os tetos, de vigas salientes, foram pintados de cor de madeira. A velha escada, que é de madeira com grossos balaústres,
tem de alto a baixo um tapete verde.
O primeiro andar tinha dois apartamentos separados pela escada. Camille tomou para ela o que tinha vista para o pantanal, para o mar e as dunas, e distribuiu-o num
pequeno salão, num grande quarto de dormir, dois gabinetes, um para a toilette e outro para o trabalho. Na outra parte da casa ela achou meio de preparar dois apartamentos,
tendo cada um deles uma antecâmara e um gabinete. Os criados tinham seus quartos nos sótãos. Os dois apartamentos para hóspedes não tiveram a princípio senão o estrito
necessário. O luxo artístico que ela pedira a Paris foi reservado para o seu apartamento. Ela quis ter nessa sombria e melancólica habitação, em frente àquela sombria
e melancólica paisagem, as mais fantasiosas criações da arte. Seu pequeno salão é forrado com belas tapeçarias dos Gobelinos (Os Gobelinos: famosa manufatura de
rica tapeçaria de Paris, fundada no século XV pelos irmãos Gobelin. A ela foi reunida em 1826 a antiga manufatura real da Savonnerie.), emolduradas nos mais maravilhosos
quadros esculpidos. Nas janelas drapejam os mais caros estofos dos velhos tempos, um brocado magnífico de reflexos duplos, ouro e encarnado, amarelo e verde, que
abundam em pregas amplas ornadas de franjas régias de borlas dignas dos mais esplêndidos pálios da Igreja. Enchem esse salão uma arca que lhe foi conseguida pelo
seu homem de negócios e que vale hoje sete ou oito mil francos, uma mesa de ébano esculpida, uma secretária de mil gavetas, incrustada de arasbecos de marfim, e
vinda de Veneza, finalmente móveis góticos dos mais belos. Existem ali quadros, estatuetas, tudo o que um pintor amigo dela pôde achar de melhor nas lojas de negociantes
de curiosidades, os quais, em 1818, não suspeitavam do preço a que alcançariam mais tarde esses tesouros. Ela colocou sobre suas mesas belos vasos do Japão de desenhos
fantásticos. O tapete é um tapete da Pérsia que entrou de contrabando pelas dunas.
O quarto da srta. des Touches está arranjado, com perfeita exatidão, segundo o gosto do século de Luís XV. E justamente o leito de madeira esculpida, pintado de
branco, de cabeceiras curvas, encimado por Amores que atiram flores, acolchoados, guarnecidos de seda recamada, com o dossel ornado com quatro ramos de penas; as
paredes forradas de seda persa verdadeira, ajustada com fitas de seda, com cordões e nós; a guarnição da chaminé é feita de cascalho; o relógio de ouro gasto, entre
dois grandes vasos do melhor azul de Sévres, com suportes de cobre dourado; o espelho enquadrado no mesmo gosto; o gabinete de toilette Pompadour com suas rendas
e seu espelho; depois esses móveis tão torneados, sofás, uma espreguiçadeira, um pequeno canapé severo, a cadeira baixa junto da chaminé com espaldar acolchoado,
o biombo de laca, as cortinas de seda semelhante à da mobília, forradas de cetim cor-de-rosa e manejadas por meio de cordas grossas; o tapete da Savonnerie (Savonnerie:
antiga manufatura real de tapeçaria, reunida em 1826 à dos Gobelinos.), enfim todas as coisas elegantes, ricas, suntuosas, delicadas, no meio das quais as lindas
mulheres do século XVIII se entregavam ao amor.
O gabinete inteiramente moderno opõe às galanterias do século de Luís XV uma encantadora mobília de acaju; a biblioteca está completa; o gabinete assemelha-se a
um boudoir, tem um divã. Atopetam-no as encantadoras futilidades da mulher; atraindo o olhar com objetos modernos: livros de segredo, coisas de lenços e luvas, abajures
de litofania, estatuetas, chinesices, secretárias, um ou dois álbuns, pesos para papéis, enfim as inúmeras bugingangas na moda. Os curiosos veem ali com surpresa
inquieta pistolas, um narguilé, uma chibata, uma rede, um cachimbo, uma espingarda de caça, uma blusa, tabaco, uma mochila de soldado, estranha reunião que pinta
Felicidade.
Todas as almas grandes, ao chegar ali, sentir-se-ão impressionadas pelas belezas especiais da paisagem que estende suas savanas para além do parque, última vegetação
do continente. Aqueles tristes quadrados de água salobra, divididos pelos pequenos caminhos brancos por sobre os quais passeia o salineiro, todo vestido de branco,
a fim de raspar, recolher o sal e pô-lo em montões; esse espaço que as exalações salinas impedem aos pássaros de atravessar, sufocando assim todos os esforços da
botânica, essas areias nas quais os olhos não são consolados senão por uma pequena erva dura, persistente, de flores rosadas, e pelo cravo dos cartuxos; esse lago
de água marinha, a areia das dunas e a vista do Croisic, miniatura de cidade detida em pleno mar como Veneza; enfim o imenso oceano que orla os recifes de granito
com suas franjas de espumas, a fim de fazer melhor sobressaírem suas formas estranhas, esse espetáculo ergue o pensamento, embora entristecendo-o, efeito produzido
pela persistência do sublime, o qual dá saudades das coisas ignoradas, entrevistas pela alma em alturas desesperadoras. Por isso, essas harmonias selvagens não convêm
senão aos grandes espíritos e às grandes dores. Esse deserto cheio de acidentes, onde, por vezes, os raios do sol refletidos pelas águas, pelas areias, embranquece
o burgo de Batz, e escorrem pelos telhados du Croisic espalhando um brilho implacável, ocupava então Camille dias inteiros. Raramente ela se voltava para as deliciosas
vistas frescas, para os bosques e as baías floridas que cercam Guérande, como a uma mulher casada, de flores, fitas, véus e grinaldas. Sofria então horríveis dores
desconhecidas.
V - O SOLAR DE GUAISNIC
Assim que Calisto viu aparecer os cata-ventos dos dois frechais por sobre os juncos da estrada real e os cimos contorcidos dos pinheiros, achou o ar mais leve; Guérande
parecia-lhe uma prisão, sua vida estava nas Touches. Quem não compreenderá os atrativos que ali existem para um rapaz cândido? O amor, semelhante ao de Querubim
(Querubim: personagem de O casamento de Fígaro, de Beaumarchais. Primeiro pajem do conde Almaviva, é um adolescente cujos sentidos despertam sob a influência do
amor. “Não sei mais o que sou”, exclama, “mas há algum tempo sinto o peito agitado—meu coração palpita à simples presença de uma mulher; as palavras amor e volúpia
fazem-no tremer e o perturbam. Enfim, a necessidade de dizer a alguém amo-te tornou-se para mim tão premente que o digo sozinho, correndo no parque... às árvores,
às nuvens, ao vento que as carrega com minhas palavras perdidas.”), que o fizera cair aos pés de uma pessoa que se tornou uma grande coisa para ele antes de ser
uma mulher, devia sobreviver às inexplicáveis recusas de Felicidade. Esse sentimento, que é mais a necessidade de amor do que o próprio amor, não escapara sem dúvida
à terrível análise de Camille Maupin e daí talvez viesse sua recusa, nobreza incompreendida por Calisto. Além disso, ali brilhavam tanto mais as maravilhas da civilização
moderna por contrastarem com Guérande, onde a pobreza dos du Guénic era um esplendor. Ali se patenteavam aos olhares encantados daquele jovem ignorante, que não
conhecia senão as giestas da Bretanha e as urzes da Vendeia, as riquezas parisienses de um mundo novo; da mesma forma que ali ouvia uma linguagem desconhecida e
sonora. Calisto ouviu os acentos poéticos da mais bela música, a música surpreendente do século XIX, na qual a harmonia e a melodia lutam com forças iguais, em que
o canto e a instrumentação alcançaram perfeições inauditas. Viu as obras da mais pródiga pintura, a da escola francesa, herdeira hoje da Itália, da Espanha e dos
Flandres, onde o talento se tornou tão comum que todos os olhos, todos os corações dele fatigados chamavam a grandes brados pelo gênio. Ele leu ali essas obras de
imaginação, essas admiráveis criações da literatura moderna que produziram um efeito imenso naquele coração novo. Finalmente nosso grande século XIX apareceu-lhe
com suas magnificências coletivas, sua crítica, seus esforços de renovação de todo gênero, suas imensas tentativas e quase todas à medida do gigante que embalou
nas suas bandeiras a infância deste século, e cantou-lhe hinos acompanhados pelo terrível bordão dos canhões. Iniciado por Felicidade em todas essas grandezas que
talvez escapem aos olhares daqueles que as põem em cena e que são os obreiros que as fizeram, Calisto satisfazia, nas Touches, o gosto maravilhoso tão potente na
sua idade, e essa ingênua admiração, o primeiro amor da adolescência, que tanto se irrita com a crítica. É tão natural que a chama suba! Ele ouviu essa formosa zombaria
parisiense, essa sátira elegante que lhe revelaram o espírito francês e despertaram nele mil pensamentos adormecidos pelo suave torpor da vida em família.
Para ele, a srta. des Touches era a mãe de sua inteligência, uma mãe que ele podia amar sem crime. Ela era tão boa para ele! Uma mulher é sempre adorável para um
homem a quem ela inspire amor, embora pareça não partilhá-lo. Naquele momento Felicidade dava-lhe lições de música. Para ele, aqueles grandes apartamentos do rés
do chão ampliados pela hábil disposição dos prados e dos bosquetes do parque, aquele vão de escada mobiliado com obras-primas da paciência italiana, de madeira esculpida,
de mosaicos venezianos e florentinos, de baixos-relevos de marfim, de mármore, de curiosidades encomendadas pelas fadas da Idade Média, e aquele apartamento íntimo,
tão elegante, tão voluptuosamente artístico eram vivificados, animados por uma luz, um espírito, um ar sobrenatural, estranho, indefinível. O mundo moderno, com
suas poesias, opunha-se vivamente ao mundo melancólico e patriarcal de Guérande, pondo em presença dois sistemas. De um lado, os mil efeitos da arte; do outro, a
unidade da selvagem Bretanha.
Ninguém perguntará então por que o pobre rapaz, entediado como a mãe com as espertezas da mouche, estremecia sempre ao entrar nessa casa, ao tocar a sineta, ao atravessar-lhe
o pátio. É de notar que esses pressentimentos não agitam mais os homens maduros, afeitos aos inconvenientes da vida, aos quais nada mais surpreende e que já tudo
esperam. Ao abrir a porta, Calisto ouviu o som do piano, julgou que Camille Maupin estivesse no salão; mas, quando entrou no bilhar, a música não lhe chegou mais
aos ouvidos. Camille tocava com certeza no pequeno piano que lhe viera da Inglaterra, trazido por Conti, e colocado no seu salão do primeiro andar.
Ao subir a escada, com o ruído dos passos abafados pelo tapete, Calisto foi cada vez mais lentamente. Reconheceu qualquer coisa de extraordinário naquela música.
Felicidade estava tocando só para ela, entretinha-se consigo mesma. Em vez de entrar, o rapaz sentou-se num banco gótico forrado de veludo verde que se achava no
patamar, por baixo de uma janela artisticamente enquadrada em madeira esculpida, pintada de cor escura e envernizada. Nada mais misteriosamente melancólico do que
a improvisação de Camille: diríeis ser uma alma bradando algum De profundis a Deus do fundo do túmulo. O jovem amante reconheceu naquela música a prece do amor desesperado,
a ternura do queixume submisso, o gemido de uma aflição contida. Camille desenvolvera, variara, modificara a introdução da cavatina de Perdão para ti, perdão para
mim que é quase todo o quarto ato de Roberto, o Diabo (Roberto, o Diabo: título de uma ópera em cinco atos de Meyerbeer, com palavras de Scribe (1831).). Ela cantou
de repente esse trecho de um modo despedaçador e interrompeu-se. Calisto entrou e viu o motivo daquela interrupção. A pobre Camille Maupin! a bela Felicidade, mostrou-lhe
sem coquetismo um rosto banhado de lágrimas, pegou o lenço, secou-as e disse-lhe simplesmente:
— Bom dia.
Estava encantadora no seu traje matinal. Trazia na cabeça uma dessas coifas de veludo encarnado, que estavam então na moda, e da qual se escapavam luzidias madeixas
pretas. Uma sobrecasaca muito curta formava-lhe uma túnica grega moderna que deixava ver umas calças de cambraia de linho de extremidades bordadas e as mais lindas
pantufas turcas, vermelho e ouro.
— Que tem?—perguntou-lhe Calisto.
— Ele não voltou—respondeu ela, conservando-se de pé em frente à janela e olhando as areias, o braço de mar e os pantanais.
Essa resposta explicava a sua toilette. Camille parecia estar à espera de Cláudio Vignon, estava inquieta como uma mulher que faz esforços inúteis. Um homem de trinta
anos teria visto aquilo. Calisto viu apenas a dor de Camille.
— Está inquieta?—perguntou-lhe.
— Sim—respondeu ela com uma melancolia que aquela criança não podia analisar.
Calisto saiu com vivacidade.
— E então, onde vai?
— Buscá-lo—respondeu ele.
— Querida criança! – disse-lhe, tomando-lhe a mão, retendo-o junto a si e dirigindo-lhe um desses olhares úmidos que são para as almas jovens a mais bela das recompensas.—Está
louco? Onde quer achá-lo nesta costa?
— Eu o acharei.
— Sua mãe teria angústias mortais. De resto, fique. Vamos, quero-o—disse-lhe ela, fazendo-o sentar no divã.—Não se enterneça por minha causa. As lágrimas que me
vê são dessas que nos agradam. Existe em nós uma faculdade que os homens não têm, a de nos abandonarmos à nossa natureza nervosa, extremando os nossos sentimentos.
Ao imaginarmos certas situações e deixando-nos arrastar para elas, chegamos assim às lágrimas, e algumas vezes a estados graves, a desordens. Nossas fantasias não
são brinquedos do espírito, e sim do coração. Veio muito a propósito, a solidão não me serve de nada. Não me deixo lograr pelo desejo que ele teve de visitar sem
mim o Croisic e seus rochedos, o burgo de Batz e suas areias, e as salinas. Eu sabia que ele empregaria nisso vários dias, e não somente um. Ele quis deixar-nos
sós; ele tem ciúmes ou antes simula ciúmes. Você é jovem e belo.
— Por que não mo disse?! Quer que não venha mais?—perguntou Calisto, não podendo reter uma lágrima que lhe correu pela face, e comoveu vivamente Felicidade.
— Você é um anjo!—exclamou.
Depois cantou alegremente o Fique, de Matilde, em Guilherme Tell (Guilherme Tell: título de uma ópera em quatro atos, obra principal de Rossini, com palavras de
Bis e Jouy (1829).), para tirar qualquer gravidade a essa magnífica resposta da princesa ao seu súdito.
— Ele quis—continuou ela—fazer-me crer por essa forma em mais amor do que realmente sente por mim. Ele sabe o quanto lhe quero bem—disse olhando Calisto atentamente—,mas
sente-se humilhado talvez em se achar inferior a mim nisso. Talvez também lhe tenham sobrevindo suspeitas a seu respeito e queria surpreender-nos. Mas, embora não
fosse culpado senão de ir buscar os prazeres desse passeio selvagem sem mim, de não ter-me associado às suas excursões às ideias que esses espetáculos lhe inspirarão,
e dar-me inquietações mortais, já não é isso bastante? Não sou mais amada por esse grande cérebro do que o fui pelo músico, pelo homem de espírito, pelo militar.
Sterne (Sterne: Laurence Sterne (1713-1768), escritor inglês, um dos mestres de Balzac. No capítulo XXI de sua Vida e opiniões de Tristram Shandy, o pai do herói
expõe uma teoria extravagante acerca da influência dos nomes sobre as pessoas, dividindo-os em benfazejos, neutros e maléficos.) tem razão: os nomes significam alguma
coisa e o meu é o mais selvagem sarcasmo. Morrerei sem encontrar num homem o amor que tenho no coração e a poesia que tenho na alma.
Ficou de braços caídos, a cabeça apoiada na almofada, o olhar abstraído por tantas reflexões, fixo numa rosácea do tapete. As dores dos espíritos superiores têm
não sei quê de grandioso e de imponente, revelam imensas extensões de alma que o pensamento do espectador ainda aumenta. Essas almas partilham os privilégios da
realeza, cujas afeições se prendem a um povo e atingem então a todo o mundo.
— Por que me... ?—disse Calisto, que não pôde terminar.
A bela mão de Camille Maupin pousara-se queimante sobre a dele e interrompera-o eloquentemente.
— A natureza modificou para mim suas leis, concedendo-me ainda cinco ou seis anos de mocidade. Repeli-o por egoísmo. Cedo ou tarde a idade nos teria separado. Tenho
treze anos mais do que ele, e isso já é bastante.
— Será bela ainda aos sessenta anos!—exclamou heroicamente Calisto.
— Deus o ouça!—respondeu ela sorrindo.—De resto, minha querida criança, ainda quero amar Cláudio. Apesar da sua insensibilidade, da sua falta de imaginação, de sua
covarde despreocupação e da inveja que o devora, creio que nesses farrapos há grandezas, espero galvanizar aquele coração, salvá-lo dele mesmo, e prendê-lo a mim...
Ai de mim, tenho o espírito clarividente e o coração cego!
Foi espantosa de clareza a seu próprio respeito. Sofria e analisava seu próprio sofrimento como Cuvier, como Dupuytren (Cuvier: Georges Cuvier (1769-1832), fundador
da anatomia comparada—Dupuytren: Guillaume Dupuytren (1777-1835), célebre cirurgião; um museu de anatomia, criado com os fundos que deixou para criação de uma cadeira
de anatomia patológica, lhe perpetua o nome.) explicavam aos amigos a marcha fatal da doença e o progresso que neles fazia a morte. Camille Maupin conhecia-se em
assuntos de paixão como aqueles dois sábios conheciam anatomia.
— Vim aqui para bem julgá-lo, ele já se entedia. Paris faz-lhe falta, eu lho disse: ele tem a nostalgia da crítica, não tem nem autor a depenar, nem sistema a escavar,
nem poeta a desesperar, e não se atreve a entregar-se aqui a alguma orgia dentro da qual ele poderia depor o fardo do seu pensamento. Ai de mim! Meu amor não é suficientemente
verdadeiro, talvez, para distender-lhe o cérebro. Enfim, não o inebrio! Embebede-se esta noite com ele, eu direi que estou doente e ficarei no meu quarto, saberei
se não me engano...
Calisto ficou vermelho como uma cereja, vermelho do queixo à fronte e as orelhas se lhe incendiaram.
— Meu Deus—exclamou ela—,e eu que depravo, sem pensar, tua inocência de moça! Perdoa-me, Calisto. Quando amares saberás que se é capaz de pôr fogo no Sena para dar
um ínfimo prazer ao objeto amado, como dizem as cartomantes.
Fez uma pausa.
— Há naturezas soberbas e consequentes que exclamam em certa idade: “Se eu recomeçasse a vida, faria o mesmo!”. Eu que não me julgo fraca exclamo: “Seria uma mulher
como sua mãe, Calisto”. Ter um Calisto, que felicidade! Tivesse eu desposado o mais tolo dos homens, teria sido uma mulher humilde e submissa. E, entretanto, não
cometi faltas para com a sociedade, não fiz mal senão a mim mesma. Minha querida criança, tanto na sociedade como no que se chama o estado primitivo, a mulher não
pode ir sozinha. As afeições que não estão em harmonia com as leis sociais ou naturais, as afeições que não são obrigadas, enfim, nos fogem. Sofrer por sofrer, mais
vale ser útil. Que me importam os filhos de minhas primas Faucombe, que não são mais Faucombe, que não vejo faz vinte anos, e que, de resto, desposaram negociantes!
Você é um filho que não me custou os incômodos da maternidade, eu lhe deixarei minha fortuna e você será feliz, pelo menos por esse lado, por mim, querido tesouro
de beleza, de graça, que nada deve alterar nem desmerecer.
Depois dessas palavras ditas num tom de voz profundo, ela baixou suas lindas pálpebras para não deixar ler em seus olhos.
— A senhora nada quis de mim—disse Calisto—,eu restituirei sua fortuna aos seus herdeiros.
— Criança!—disse Camille no mesmo tom de voz, e deixando escorrerem lágrimas pelas faces.—Então nada me salvará de mim mesma?
— A senhora tem uma história a contar-me e uma carta a me...—disse o generoso jovem para distraí-la daquele pesar.
Mas não terminou, ela interrompeu-o.
— Você tem razão, é preciso ser antes de mais nada uma rapariga honesta. Ontem era muito tarde; mas hoje parece que vamos dispor de muito tempo—disse ela de um modo
simultaneamente pilhérico e amargo.—Para cumprir minha promessa, vou pôr-me de modo a mergulhar no caminho que vai ter à falésia.
Calisto colocou para ela nessa direção uma grande poltrona gótica e abriu a janela envidraçada. Camille Maupin, que partilhava o gosto oriental do ilustre escritor
de seu sexo, foi buscar um magnífico narguilé persa que lhe fora dado por um embaixador, encheu-lhe a câmara de patchuli, limpou o bocchettino(Bocchettino: palavra
italiana que quer dizer piteira.), perfumou o cano da pena que nele adaptava e de que não se servia nunca senão uma vez, pôs fogo nas folhas amarelas, colocou o
vaso de gargalo esmaltado de azul e ouro desse belo instrumento de prazer a alguns passos dela, e tocou a sineta para pedir chá.
— Quer cigarros?... Ah! sempre esqueço que não fuma. Uma pureza como a sua é tão rara! Parece-me que para acariciar a penugem acetinada de suas faces é necessário
a mão de uma Eva saída das mãos de Deus.
Calisto corou e sentou-se numa banqueta, mas não viu a intensa emoção que fez Camille enrubescer.
VI - A MARQUESA BEATRIZ
— A pessoa de quem recebi esta carta ontem, e que provavelmente estará aqui amanhã, é a marquesa de Rochefide—disse Felicidade.—Depois de ter casado a filha mais
velha com um grão-senhor português, instalado na França, para sempre, o velho Rochefide, cuja casa não é tão antiga quanto a sua, quis aparentar o filho à alta nobreza,
a fim de poder conseguir-lhe o pariato que não pudera obter para si. A condessa de Montcornet informou-o da existência no departamento do Orme de uma srta. Beatriz
Maximiliana Rosa de Casteran, filha mais moça do marquês de Casteran, o qual queria casar as duas filhas sem dote, a fim de reservar toda a sua fortuna para seu
filho, o conde de Casteran. Os Casteran são, segundo parece, da costela de Adão. Beatriz, nascida e criada no castelo de Casteran, tinha então—o casamento fez-se
em 1828—uns vinte anos. Era notável por isso que vocês, provincianos, denominam originalidade, e que nada mais é do que superioridade nas ideias, exaltação, um sentimento
pelo belo, um certo pendor pelas obras de arte. Acredite numa pobre mulher que se deixou arrastar por esses pendores; não há nada mais perigoso para as mulheres;
ao segui-los chega-se onde você me vê e onde chegou a marquesa... a abismos. Somente os homens possuem o bastão com o qual é possível sustentar-se ao longo desses
precipícios, uma força de que carecemos e que faz de nós monstros, quando a possuímos. A velha avó, a viúva sra. de Casteran, viu-a com satisfação desposar um homem
ao qual ela devia ser superior em nobreza e em ideias. Os Rochefide fizeram muito bem as coisas; Beatriz só teve de louvar-se deles; do mesmo modo que os Rochefide
devem ter ficado satisfeitos com os Casteran, os quais, aparentados aos Verneuil, aos d’Esgrignon e aos Troisville (Os Verneuil, os d’Esgrignon e os Troisville:
três famílias aristocráticas inventadas por Balzac, cujos membros aparecem em diversas partes de A comédia humana.), obtiveram o pariato para o genro na última grande
fornada de pares feita por Carlos X e cuja anulação foi decretada pela Revolução de Julho. Rochefide é bastante tolo; não obstante começou por ter um filho; e, como
ele destruiu a si próprio, inteiramente, no espírito da mulher, esta não tardou a enfarar-se dele. Os primeiros dias do casamento são um escolho para os espíritos
pequenos bem como para os grandes amores. Na sua qualidade de tolo, Rochefide interpretou como frieza a ignorância da esposa, classificou Beatriz entre as mulheres
linfáticas e frias—ela é loura—e arrancou daí para ficar na mais completa confiança, para viver como solteiro e para contar com a pretensa frigidez da marquesa,
sua altivez, seu orgulho, com um modo de vida grandioso que em Paris cerca uma mulher de inúmeras barreiras. Saberá o que quero dizer quando visitar essa cidade.
Os que contavam aproveitar de sua despreocupada tranquilidade diziam-lhe: “Você é um homem feliz; tem uma mulher fria que só terá paixões cerebrais; ela satisfaz-se
em brilhar, suas fantasias são puramente artísticas—seu ciúme, seus desejos ficarão satisfeitos, se ela organiza um salão onde possa reunir todos os belos espíritos;
fará orgias musicais e orgias literárias”. E o marido a engolir essas pilhérias com que em Paris se embromam os néscios. Entretanto Rochefide não é um tolo comum:
ele tem tanta vaidade e orgulho como um homem de espírito, com esta diferença que as pessoas de espírito fingem modéstia e se fazem gatos, acariciam-nos para serem
acariciados; ao passo que Rochefide tem um amor-próprio pesadão, rubro e viçoso que se admira em público e sorri sempre. Sua vaidade espoja-se na estrebaria e alimenta-se
ruidosamente na manjedoura, enquanto puxa a sua forragem. Tem desses defeitos que só são conhecidos pelas pessoas capazes de julgá-los na intimidade, defeitos que
não ferem senão na sombra e no mistério da vida privada, ao passo que nos salões e para a sociedade, o homem parece encantador; Rochefide devia ser insuportável
desde que se julgasse ameaçado no seu lar, porquanto tem esse ciúme equívoco e mesquinho, brutal quando é surpreendido, covarde durante seis meses, e assassino no
sétimo. Acreditava enganar a mulher e temia, duas causas de tirania no dia em que percebesse que a marquesa lhe fazia a caridade de parecer indiferente às suas infidelidades.
Analiso-lhe esse caráter a fim de explicar-lhe o procedimento de Beatriz. A marquesa teve por mim a mais viva admiração; mas da admiração à inveja não há senão um
passo. Tenho um dos mais notáveis salões de Paris, ela desejava organizar um, e procurava tomar-me os meus habituados. Eu não sei guardar os que me querem deixar.
Ela ficou com a gente superficial que são amigos de todos por ociosidade, e cujo fim é o de sair de um salão, assim que nele entraram; ela porém não teve tempo de
fundar uma sociedade. Nesse tempo, eu a julguei devorada pelo desejo de uma celebridade qualquer. Não obstante, ela tem grandeza de alma, uma altivez régia, ideias,
uma facilidade maravilhosa em conceber e compreender tudo; pode falar em metafísica e música, teologia e pintura. Vê-la-á mulher, como nós a vimos recém-casada;
há, entretanto, nela um pouco de afetação: tem demasiado o ar de saber coisas difíceis, o chinês, ou o hebraico, de ter ideias sobre os hieróglifos ou de poder explicar
os papiros que envolvem as múmias. Beatriz é uma dessas louras perto das quais a loura Eva pareceria uma negra. É delgada e ereta como um círio e branca como uma
hóstia; tem o rosto comprido e pontudo, uma tez variável segundo o dia, hoje cor de percal, amanhã trigueira e com mil pequeninas manchas sob a pele, como se o sangue
durante a noite houvesse acarreado poeira; sua fronte é magnífica, mas talvez um pouco audaciosa demais; suas pupilas são verde-mar pálido e nadam num branco sob
sobrancelhas delgadas e pálpebras preguiçosas. Tem com frequência olheiras. O nariz, que descreve um quarto de círculo, é apertado nas ventas e cheio de finura,
porém impertinente. Tem a boca austríaca, o lábio superior mais espesso do que o inferior, o qual cai de modo desdenhoso. Suas faces pálidas coloram-se somente sob
a influência de emoções fortes. Seu queixo é bastante gorducho; o meu não é delgado e talvez faça mal em dizer-lhe que as mulheres de queixo gordo são exigentes
em amor. Tem uma das mais belas cinturas que já vi, dorso de alvura deslumbrante, antigamente muito chato, mas que hoje, dizem, desenvolveu-se, forrou-se; mas o
busto não foi tão feliz quanto as espáduas, os braços permaneceram magros. De resto, ela tem um porte e maneiras desenvoltas que compensam o que possa ter de defeituoso,
e põem admiravelmente em relevo suas belezas. A natureza deu-lhe esse ar de princesa que não se adquire, que lhe senta e revela à primeira vista a mulher nobre,
em harmonia, aliás, com quadris franzinos, mas de curvas deliciosas, com o mais belo pé deste mundo, e essa abundante cabeleira de anjo, tão cultivada pelo pincel
de Girodet (Girodet: Anne-Louis Girodet-Roussy (1767-1824), famoso pintor francês.), a qual se assemelha a jorros de luz. Sem ser irrepreensivelmente bela nem bonita,
quando ela quer causa impressões inapagáveis. Não precisa mais do que vestir-se de veludo cereja, com fofos de renda, e pentear-se com rosas encarnadas, para ficar
divina. Se, por um artifício qualquer, ela pudesse envergar o vestuário do tempo em que as mulheres usavam corseletes pontudos com fileiras de fitas, projetando-se
delgados e finos da amplitude estofada das saias de brocado com pregas firmes e largas, no qual elas se cercavam de golas de pregas arredondadas, ocultavam os braços
em mangas com aberturas, de punhos de renda de onde a mão saía como o pistilo do cálice e que atiravam os mil bucles da cabeleira para além de um coque, atado com
pedrarias, Beatriz lutaria vantajosamente com as belezas ideais que o senhor vê com esses trajes.
Felicidade mostrava a Calisto uma bela cópia do quadro de Miéris (Miéris: Franz van Miéris, o Velho (1635-1684), pintor holandês. O quadro em apreço é intitulado
A lição de música.), no qual se vê uma mulher vestida de cetim branco, de pé, segurando um papel e cantando com um senhor brabantês, enquanto um negro enche um cálice
com vinho velho da Espanha, e uma mulher velha, criada, dispõe uns biscoitos.
— As louras—continuou ela—têm sobre nós, as morenas, as vantagens de uma preciosa diversidade: há cem modos de ser loura, mas apenas um de ser morena. As louras
são mais mulheres do que nós; nós nos assemelhamos demasiado aos homens, nós as morenas francesas. Pois bem—disse ela –, não vá apaixonar-se por Beatriz pelo retrato
que acabo de lhe pintar dela, absolutamente como qualquer príncipe dos Mil e um dias (Não se trata de um lapso: há um livro desse título do daroês Moclez, cuja tradução
francesa foi publicada em 1770-1772, e no qual se encontra, entre outras, a história da princesa Turandot.). Ainda aí chegarias demasiado tarde, minha pobre criança.
Mas consola-te. Ali toca o osso ao primeiro que chega!
Essas palavras foram ditas com intenção. A admiração expressa na fisionomia do rapaz estava mais excitada pela pintura do que pelo pintor, cuja feitura errava o
alvo.
— Apesar do seu estado de loura—continuou ela—,Beatriz não tem a finura de sua cor; tem severidade nas linhas, é elegante e dura; o desenho do rosto é seco, e dir-se-ia
que em sua alma há ardores meridionais. É um anjo que chameja e se desseca. Enfim, seus olhos têm sede. O que ela tem de melhor é a face; de perfil seu rosto parece
ter sido apertado entre duas portas. Você verá se me engano. Eis o que nos tornou amigas íntimas. Durante três anos, de 1828 a 1831, Beatriz, gozando dos últimos
restos da Restauração, ao vagar através dos salões, ao ir à Corte, ao ornar os bailes de fantasia do Elysée-Bourbon (O Elysée-Bourbon: ou palácio Bourbon, atualmente
residência do presidente da República.), julgava os homens, as coisas, os acontecimentos e a vida, do alto de seu pensamento. Estava com o espírito ocupado. Esse
primeiro instante de aturdimento causado pela sociedade impediu que seu coração despertasse, e ele ficou ainda entorpecido pelas primeiras malícias do casamento:
o filho, o parto e esse tráfico de maternidade de que não gosto. Por esse lado não sou mulher. As crianças são-me insuportáveis, dão mil aborrecimentos e inquietações
constantes. Por isso achei que um dos grandes benefícios da sociedade moderna, e do qual fomos privadas por esse hipócrita de Jean-Jacques (Esse hipócrita de Jean-Jacques:
isto é, Rousseau.), era de nos deixar livres de ser ou não ser mães. Se não sou a única a pensar assim, sou a única em dizê-lo. Beatriz foi, de 1830 a 1831, passar
a tormenta na propriedade rural do marido e lá se entediou como um santo na sua estada no paraíso. No seu regresso a Paris a marquesa julgou, talvez com justeza,
que a revolução, na aparência puramente política aos olhos de certas pessoas, ia ser uma revolução moral. O mundo ao qual ela pertencia, não se tendo podido reconstituir
durante o triunfo inesperado dos quinze anos de Restauração, ir-se-ia em migalhas sob os golpes do aríete movimentado pela burguesia. Esta grande sentença do sr.
Lainé (Lainé: visconde Joseph-Louis-Joachim Lainé (1767-1835 ), político e orador francês, várias vezes ministro, oposto às ideias ultrarrealistas. Teria pronunciado
essas palavras depois da publicação das reacionárias “ordenanças de julho” de 1830, de Carlos X, que realmente motivaram pouco depois a deposição desse monarca.),
“Os reis se vão!”, fora ouvida por ela. Essa opinião, creio eu, não deixou de influenciar o seu procedimento. Ela tomou parte intelectual nas novas doutrinas que
pulularam durante três anos, depois de julho, como moscardos ao sol, e que destroçaram alguns cérebros femininos; mas, como todos os nobres, embora achasse essas
novidades soberbas, ela queria salvar a nobreza. Não vendo mais lugar para as superioridades pessoais, vendo a alta nobreza recomeçar a oposição muda que ela fizera
a Napoleão, o que constituía seu único papel sob o império da ação e dos fatos, mas, que, numa época moral, equivalia a dar sua demissão, ela preferiu sua felicidade
a esse mutismo. Quando nos foi possível respirar um pouco, a marquesa encontrou em minha casa o homem com o qual eu esperava terminar minha vida, Gennaro Conti,
o grande compositor, de origem napolitana, porém nascido em Marselha. Conti tem muito espírito, como compositor tem talento, conquanto jamais consiga alcançar os
primeiros postos. Não fossem Meyerbeer e Rossini, talvez pudesse passar por ser um homem de gênio. Tem uma vantagem sobre eles, é em música vocal o que Paganini
(Paganini: Niccoló Paganini (1782-1840), violinista e compositor italiano.) era no violino, Liszt (Liszt: Ferenc Liszt (1811-1886), pianista e compositor húngaro,
autor das Rápsódias húngaras; era amigo de Balzac.) no piano, Taglione (Taglione (sic): Maria Taglioni (1804-1884), bailarina.) na dança e finalmente o que era o
famoso Garat (Garat: Dominique-Pierre-Jean Garat (1764-1833), cantor.), que ele lembra aos que o ouviram. Não é uma voz, meu amigo, é uma alma. Quando esse canto
responde a certas ideias, a disposições difíceis de pintar e nas quais se encontra por vezes uma mulher, ela fica perdida ao ouvir Gennaro. A marquesa concebeu por
ele a mais louca paixão e mo arrebatou. O feito é excessivamente provinciano, mas é um ardil de guerra permitido. Ela conquistou minha estima e minha amizade pelo
modo por que se portou comigo. Eu parecia-lhe uma mulher capaz de defender meus bens, não sabia que, para mim, a coisa mais ridícula no mundo, nessa posição, é o
objeto mesmo da luta. Veio à minha casa. Essa mulher tão orgulhosa estava tão apaixonada que me confessou seu segredo e tornou-me árbitro de seu destino. Foi adorável;
permaneceu mulher e marquesa a meus olhos. Dir-lhe-ei, meu amigo, que as mulheres são por vezes más; têm, entretanto, grandezas secretas que os homens jamais saberão
apreciar. Por isso, como posso fazer meu testamento de mulher à beira da velhice que me espera, eu lhe direi que era fiel a Conti, que o teria sido até a morte e
que, não obstante, eu o conhecia. É uma natureza encantadora na aparência e detestável no fundo. É um charlatão nas coisas do coração. Existem homens como Nathan
(Nathan: Raul Nathan, personagem balzaquiana, protagonista de Uma filha de Eva.) de quem já lhe falei, que são exteriormente charlatães e de boa-fé. Esses homens
mentem a si próprios. Trepados nas suas andas, pensam estar sobre seus pés; fazem suas charlatanices com uma espécie de inocência; a vaidade deles lhes está no sangue;
nasceram comediantes, fanfarrões de formas extravagantes como um vaso chinês; talvez riam deles mesmos. De resto a personalidade deles é generosa, e, como brilho
das vestimentas régias de Murat (Murat: Joachim Murat (1767-1815), cunhado de Napoleão, rei de Nápoles, conhecido por sua bravura e também por seu amor do luxo,
do vestuário rico, do brilho das cerimônias.) atrai o perigo. Mas a velhacaria de Conti não será jamais conhecida senão por sua amante. Ele tem na sua arte o célebre
ciúme italiano que levou o Carloni a assassinar Piola (Pellegro Piola: pintor genovês (1617-1640), que morreu assassinado. Entre seus confrades e conterrâneos havia
um Giambattista Carloni (1594-1680).), que valeu um golpe de estilete a Paesiello (Paesiello: Giovanni Paesiello (1741-1816), compositor italiano, autor de O rei
Teodoro, A menina louca de amor etc., que andou metido em muitas intrigas contra seus rivais Cimarosa e Guglielmi.). Essa inveja terrível está oculta sob a mais
graciosa camaradagem. Conti não tem a coragem do seu vício, sorri para Meyerbeer e felicita-o quando seu desejo seria estraçalhá-lo. Sente sua fraqueza, e dá-se
as aparências da força; ademais é de uma vaidade que o faz representar os sentimentos mais estranhos ao seu coração. Apresenta-se como um artista que recebe suas
inspirações do céu. Para ele a arte é algo santo e sagrado. É fanático, é sublime de zombaria para as pessoas da alta roda; é de uma eloquência que parece nascida
de uma convicção profunda. É vidente, um demônio, um deus, um anjo. Facilmente, conquanto precavido, Calisto, você será enganado por ele. Esse meridional, esse artista
ardente, é frio como uma corda de poço. Ouça-o: o artista é um missionário, a arte é uma religião que tem seus sacerdotes e deve ter seus mártires. Uma vez largado,
Gennaro chega ao mais descabelado pathos que jamais professor de filosofia alemã tenha vomitado sobre seu auditório. Você fica admirando-lhe as convicções, ele não
crê em nada. Ao arrebatá-lo para o céu por um canto que parece um fluido misterioso que derranca o amor, ele dirige-lhe um olhar extático; mas vigia sua admiração
e a si mesmo pergunta: “Serei mesmo um deus para eles?”. No mesmo momento por vezes a si próprio diz: “Comi demasiado macarrão”. Você julga-se querido, ele odeia-o
e você não sabe por que; eu, porém, sabia-o: ele vira na véspera uma mulher, amava-a por capricho e insultava-me com um falso amor, com carícias hipócritas, fazendo-me
pagar caro sua fidelidade forçada. Enfim, é insaciável em matéria de aplausos, arremeda tudo e troça de tudo; finge alegria tão bem quanto a dor; mas consegue-o
de modo admirável. Ele agrada, ama, pode ser admirado quando quer. Deixei-o odiando a própria voz, à qual devia mais triunfos do que ao seu talento de compositor;
e prefere ser homem de gênio como Rossini a ser um executante da força de Rubini (Rubini: Giambattista Rubini (1795-1854), tenor italiano.). Eu cometera o erro de
prender-me a ele, estava resignada a adornar aquele ídolo até o fim. Conti, como muitos artistas, é guloso; gosta das suas comodidades, dos seus prazeres; é faceiro,
rebuscado, veste-se bem; pois bem, eu lisonjeava-lhe todas as paixões, eu amava essa natureza fraca e astuciosa. Eu era invejada e por vezes sorria de piedade. Apreciava-lhe
a coragem; ele é valente, e a bravura é, segundo dizem, a única virtude que não tem hipocrisia. Em viagem, certa vez, eu o vi à prova; soube arriscar uma vida a
que tem apego; mas, coisa estranha! em Paris eu o vi cometer o que chamo covardias de pensamento. Meu amigo, eu sabia todas essas coisas. Eu disse à pobre marquesa:
“Não sabe em que abismo vai pôr o pé. Você é o Perseu de uma pobre Andrômeda (Perseu e Andrômeda: personagens da mitologia grega. Para expiar um crime da mãe, a
princesa Andrômeda foi atada a um rochedo pelas Nereidas, e ia ser devorada por um monstro, quando, montado no Pégaso, sobreveio o herói Perseu, que matou o monstro
e salvou Andrômeda para depois desposá-la.), livra-me do meu rochedo. Se ele a ama, tanto melhor!, mas tenho minhas dúvidas, pois ele só ama a si próprio”. Gennaro
estava no sétimo céu de orgulho. Eu não era marquesa, eu não nascera Castera, fui esquecida num dia. Concedi-me o selvagem prazer de ir até o fundo daquela natureza.
Certa do desenlace, quis observar as reviravoltas que Conti fazia. Minha pobre criança, vi numa semana horrores de sentimento, farsas infames. Nada lhe quero dizer,
você verá esse homem aqui. Somente como ele sabe que o conheço, hoje odeia-me. Se me pudesse apunhalar com alguma segurança, eu não existiria dois segundos. Nunca
disse uma palavra a Beatriz. O último e constante insulto de Gennaro é de crer que sou capaz de comunicar meus tristes conhecimentos à marquesa. Ele tornou-se incessantemente
inquieto, cismador; porquanto não crê nos bons sentimentos de ninguém. Continua representando em minha intenção o papel de um homem infeliz por ter-me deixado. Você
encontrará nele as cordialidades mais insinuantes: ele é carinhoso, cavalheiresco. Para ele toda mulher é uma madona. É preciso viver muito tempo com ele para perceber-se
o segredo dessa falsa bonomia e conhecer o estilete invisível das manifestações. Seu ar convencido enganaria Deus. Por isso você será envolvido por seus modos felinos
e jamais acreditará na profunda e rápida aritmética do seu pensamento íntimo. Deixemo-lo. Eu levei a indiferença a ponto de recebê-lo em minha casa. Essa circunstância
fez com que a mais perspicaz das sociedades, a sociedade parisiense, nada soubesse dessa intriga. Embora Gennaro estivesse ébrio de orgulho, ele sentia sem dúvida
a necessidade de bem colocar-se perante Beatriz: foi de uma dissimulação admirável. Surpreendeu-me, eu estava à espera de o ver solicitando uma explosão. Foi a marquesa
quem se comprometeu, depois de um ano de felicidade submetida a todas as vicissitudes, a todos os imprevistos da vida parisiense. Fazia alguns dias que ela não via
Gennaro, e eu o convidara a jantar em minha casa, onde ela devia vir à noite. Rochefide não desconfiava de nada; mas Beatriz conhecia tão bem o marido que teria
preferido, dizia-me muitas vezes, as maiores misérias à vida que a esperava junto a esse homem no caso em que ele tivesse o direito de desprezá-la ou de atormentá-la.
Eu tinha escolhido o dia da recepção de nossa amiga, a condessa de Montcornet (A condessa de Montcornet: em segundas núpcias sra. Emílio Blondet, personagem já encontrada
numa cena de Uma filha de Eva; foi em sua casa que a condessa Félix de Vandenesse conheceu o escritor Raul Nathan.). Depois de ver o café servido ao marido, Beatriz
saiu do salão para ir vestir-se, embora nunca começasse a fazer sua toilette tão cedo.
— Seu cabeleireiro não veio—observou-lhe Rochefide, quando soube do motivo da retirada da esposa.
— Tereza me penteará.
— Mas onde vai? Suponho que não quererá ir à casa da sra. de Montcornet às oito horas.
— Não—disse ela—,mas ouvirei o primeiro ato nos Italianos.
O indagador bailio do Hurão (O Hurão: referência ao romance O ingênuo, de Voltaire, em que há uma personagem cheia de curiosidades, o bailio de uma aldeia bretã
que assedia com perguntas o selvagem canadense (o Hurão), que lá chegou casualmente.) de Voltaire é um mudo comparado aos maridos ociosos. Beatriz fugiu para não
ser mais interrogada e não ouviu o marido dizer-lhe:
— Pois bem, iremos juntos.—Ele não fazia isso por malícia, pois não tinha motivo algum para suspeitar da mulher; ela tinha tanta liberdade! Ele esforçava-se por
não incomodá-la em nada e punha amor-próprio nisso. O marquês pretendia ir não sei aonde, talvez à casa da amante; vestira-se antes do jantar e só lhe restava pegar
as luvas e o chapéu, quando ouviu rodar o carro da esposa no pátio sob o terraço da escadaria. Foi aos aposentos dela e achou-a pronta para sair, mas muito admirada
de vê-lo.
— Onde vai?—perguntou ela.
— Não lhe disse que ia acompanhá-la aos Italianos?—a marquesa reprimiu as exteriorizações de uma violenta contrariedade; suas faces, porém, adquiriram uma tonalidade
de um róseo vivo, como se tivesse posto rouge.—Pois bem, partamos—disse ela.
Rochefide acompanhou-a sem prestar atenção à emoção traída pela voz da esposa, a qual devorava a mais concentrada cólera.—Aos Italianos!—disse o marido.
— Não!—exclamou Beatriz—para a casa da srta. des Touches. Tenho alguma coisa para dizer-lhe—replicou, depois de fechada a portinhola. O carro seguiu.—Mas se quiser—disse
Beatriz—,eu o levarei primeiro aos Italianos e irei depois à casa dela.
— Não—respondeu o marquês—,se são somente algumas palavras que tem a dizer-lhe, eu esperarei no carro, são sete horas e meia.
Se Beatriz tivesse dito ao marido: “Vá aos Italianos e deixe-me em paz”, ele teria obedecido tranquilamente. Como toda mulher de espírito ela teve receio de despertar-lhe
suspeitas por sentir-se culpada e resignou-se. Quando quis sair dos Italianos para vir à minha casa, o marido acompanhou-a. Ela entrou rubra de cólera e de impaciência.
Veio a mim e disse-me ao ouvido com o ar mais tranquilo deste mundo:
— Minha querida Felicidade, partirei amanhã à noite com Conti para a Itália, peça-lhe que faça seus preparativos e que esteja aqui com um carro e um passaporte.
Ela partiu com o marido. As paixões violentas querem a qualquer preço sua liberdade. Beatriz sofria, fazia um ano, com seus constrangimentos e a raridade de suas
entrevistas, considerava-se como unida a Gennaro. Assim, nada me surpreendeu. Em seu lugar, com o meu caráter, eu teria procedido da mesma forma. Ela resolveu-se
àquele escândalo ao ver-se contrariada do modo mais inocente. Preveniu a desgraça por uma desgraça maior. Conti sentiu-se feliz de um modo que me penalizou, estava
em causa apenas sua vaidade.
— Isso é ser amado!—disse-me ele por entre os seus transportes.—Como seriam poucas as mulheres capazes de perder assim a vida, a fortuna e a consideração!
— Sim, ela o ama—disse-lhe eu—,mas você não a ama!
Ele ficou furioso e fez-me uma cena—perorou, brigou, descreveu-me seu amor, dizendo que jamais pensara poder amar tanto. Permaneci impassível e emprestei-lhe o dinheiro
de que ele podia precisar para essa viagem que o pegava de um modo imprevisto. Beatriz deixou uma carta para Rochefide e partiu no dia seguinte para a Itália. Ficou
por lá dois anos; escreveu-me várias vezes, suas cartas são encantadoras de amizade; a pobre criança ligou-se a mim como a única mulher que a compreende.—Adora-me,
disse.—A necessidade de dinheiro obrigou Gennaro a fazer uma ópera, a qual não achou na Itália os recursos pecuniários que os compositores conseguem em Paris. Aqui
está a carta de Beatriz; você poderá compreendê-la agora, se é que na sua idade já se podem analisar as coisas do coração—disse ela, entregando-lhe a carta.
Nesse momento, entrou Cláudio Vignon.
VII - CLÁUDIO VIGNON
Aquele aparecimento inesperado deixou por um instante Calisto e Felicidade silenciosos, ela por surpresa, ele por uma vaga inquietação. A fronte imensa, alta e larga,
desse rapaz calvo aos trinta e sete anos (Parece haver aqui uma distração de Balzac: Se Cláudio Vignon tinha treze anos a menos do que Felicidade (nascida em 1791),
como esta declarou a Calisto, ele, na época de Beatriz, em 1836, deve ter trinta e três anos, e não trinta e sete.) parecia obscurecida por nuvens. A boca firme
e judiciosa revelava uma fria ironia. Cláudio Vignon é imponente, apesar dos estragos precoces de um rosto outrora magnífico e agora lívido. Entre os dezoito e os
vinte e cinco anos, ele se assemelhou quase ao divino Rafael; mas o nariz, esse traço do rosto humano que mais muda, afinou-se; sua fisionomia, porém, comprimiu-se
por assim dizer, sob misteriosas depressões, os contornos adquiriram uma plenitude de má cor, os tons plúmbeos dominam na tez fatigada, sem que se conheçam as fadigas
desse rapaz, envelhecido talvez por uma amarga solidão e pelos abusos da compreensão. Ele escuta o pensamento alheio, sem finalidade nem sistema, a picareta de sua
crítica arrasa sempre e nada constrói. Por isso sua lassidão é a do operário, e não a do arquiteto. Os olhos, de um azul pálido, outrora brilhantes, foram velados
por pesares desconhecidos, ou embaciados por uma tristeza sombria. A devassidão esfumou a região inferior das sobrancelhas com tonalidades escuras. As têmporas muito
perderam do seu frescor. O mento, de incomparável distinção, duplicou-se sem nobreza. A voz, já pouco sonora, enfraqueceu; sem estar nem extinta, nem enrouquecida,
está entre o enrouquecimento e a extinção. A impassibilidade daquela cabeça, a fixidez daquele olhar encobrem uma irresolução, uma fraqueza traídas por um sorriso
espirituoso e zombeteiro. Essa fraqueza atinge a ação e não o pensamento: há os traços de uma compreensão enciclopédica naquela fronte, nos hábitos daquele rosto
infantil e ao mesmo tempo soberbo. Há um detalhe que pode explicar as singularidades do caráter. O homem é de elevada estatura, já levemente encurvado, como todos
aqueles que carregam consigo o mundo de ideias. Jamais esses grandes corpos compridos foram notáveis por uma energia contínua ou por uma atividade criadora. Carlos
Magno (O próprio Balzac era de estatura abaixo da média. Os grandes homens de estatura alta que enumera como exceções à regra que acaba de enunciar são: Carlos Magno
(742-814), imperador do Ocidente, fundador da dinastia carolíngia;), Narsès (O eunuco Narsès (492-568), general de Justiniano, exarca da Itália;), Belisário (Belisário
(494-565), general de Justiniano, vencedor dos persas, dos vândalos e dos ostrogodos.) e Constantino (Constantino (274-337), imperador romano que adotou o cristianismo
como religião obrigatória do Império.) são, nesse gênero, exceções excessivamente notáveis. Certamente Cláudio Vignon oferece mistérios a adivinhar. Antes de mais
nada, ele é muito simples e ao mesmo tempo muito fino. Conquanto caia em excessos com a facilidade de uma cortesã, seu pensamento permanece inalterável. Essa inteligência
que pode criticar as artes, a ciência, a literatura, a política, é inábil para governar a vida exterior. Cláudio contempla-se na extensão de seu reino intelectual
e abandona sua forma com uma indiferença de Diógenes. Satisfeito por tudo penetrar, por tudo compreender, ele despreza as materialidades, mas, atingido pela dúvida
assim que se trata de criar, vê os obstáculos, sem se deslumbrar com suas belezas, e, à força de discutir os meios, permanece de braços caídos, sem resultado. É
o turco da inteligência adormecida pela meditação. A crítica é o seu ópio, e seu harém de livros feitos enojou-o de qualquer obra por fazer. Indiferente às menores
como às maiores coisas, é obrigado pelo próprio peso da cabeça a cair no deboche a fim de abdicar por alguns instantes do fatal poder de sua onipotente análise.
Está demasiado preocupado pelo avesso do gênio e pode-se agora conceber que Camille Maupin tentasse conduzi-lo ao bom caminho. Essa tarefa era sedutora. Cláudio
Vignon julgava-se também tão grande político quanto grande escritor; mas esse Maquiavel inédito ri-se interiormente dos ambiciosos, sabe tudo o que ele pode, mede
instintivamente seu futuro por suas faculdades, sente-se grande, olha os obstáculos, penetra a tolice dos parvenus, assusta-se ou desgosta-se, e deixa o tempo passar
sem pôr mãos à obra. Como Estêvão Lousteau (Estevão Lousteau: personagem importante de A comédia humana; já apareceu em Uma filha de Eva; desempenha papéis mais
importantes em Ilusões perdidas, Esplendores e misérias das cortesãs, A musa do departamento etc.), o folhetinista, como Nathan), célebre autor dramático, como Blondet
(Blondet: também ele membro destacado da boêmia balzaquiana, foi quem apresentou Nathan à condessa—encontramo-lo, também em Modesta Mignon, a troçar de Canalis.),
outro jornalista, ele saiu do seio da burguesia, à qual se deve a maioria dos grandes escritores ( O próprio Balzac, que usava a partícula de antes do nome sem justificativa,
vinha do seio da burguesia.).
— Por onde veio?—perguntou-lhe a srta. des Touches, corando de felicidade e de surpresa.
— Pela porta—disse secamente Vignon.
— Mas—exclamou ela, dando de ombros—sei perfeitamente que você não é homem para entrar pela janela.
— A escalada é uma espécie de cruz de honra para as mulheres amadas.
— Basta—disse Felicidade.
— Incomodo-os?—disse Cláudio Vignon.
— Senhor—disse o ingênuo Calisto—,esta carta...
— Guarde-a, nada peço; na nossa idade essas coisas compreendem-se—disse ele com ar zombeteiro interrompendo Calisto.
— Mas, senhor...—disse Calisto, indignado.
— Acalme-se, jovem, eu sou de uma indulgência excessiva para os sentimentos.
— Meu querido Calisto...—disse Camille querendo falar.
— Querido?—disse Vignon interrompendo-a.
— Cláudio graceja—disse Camille, continuando a falar a Calisto -; ele procede mal com você que nada sabe das mistificações parisienses.
— Eu não sabia que era engraçado—replicou Vignon com ar grave.
— Por que caminho veio? Faz duas horas que não deixo de olhar na direção de Croisic.
— A senhora nem sempre olhava—respondeu Vignon.
— Você é insuportável com as suas pilhérias.
— Estou pilheriando?
Calisto levantou-se.
— Não está mal aqui para ir-se—disse-lhe Vignon.
— Pelo contrário—disse o fogoso rapaz, a quem Camille Maupin estendeu a mão que ele beijou, em vez de apertá-la, nela deixando uma lágrima ardente.
— Eu quisera ser esse pequeno—disse o crítico, sentando-se e pegando a extremidade do houca (Houca: espécie de cachimbo usado na Índia, parecido com o narguilé dos
turcos.) -; como ele amará!
— Demasiado, porque então não será amado—disse a srta. des Touches—... A sra. de Rochefide está por chegar aqui.
— Bem!—disse Cláudio.—Com Conti?
— Ela ficará só, mas ele acompanha-a.
— Há desentendimento?
— Não.
— Toque-me uma sonata de Beethoven, nada conheço da música que ele escreveu para piano.
Cláudio pôs-se a encher de tabaco turco o bojo do houca, examinando Camille muito mais do que ela julgava; um pensamento horrível preocupava-o, ele se julgava tomado
por objeto de ludíbrio por uma mulher de boa-fé. Essa situação era nova.
VIII - A CARTA DE BEATRIZ
Calisto, ao retirar-se, não pensava mais em Beatriz de Rochefide nem na sua carta; estava furioso com Cláudio Vignon, irritava-se com o que tomava por indelicadeza,
tinha pena da pobre Felicidade. Como era possível ser amado por aquela mulher sublime e não adorá-la de joelhos, não acreditar nela sob a fé de um olhar ou de um
sorriso? Depois de ter sido testemunha privilegiada das dores que a espera causara a Felicidade, de tê-la visto voltando a cabeça para o Croisic, ele sentira o desejo
de despedaçar aquele espectro pálido e frio, ignorando, como lho dissera Felicidade, as mistificações de pensamento nas quais se luzem os trocistas da imprensa.
Para ele, o amor era uma religião humana. Ao avistá-lo no pátio, a mãe não pôde conter uma exclamação de alegria e logo a velha srta. du Guénic apitou, chamando
Mariotte.
— Mariotte, aqui está o menino, prepara o peixe.
— Já o vi, senhorita—respondeu a cozinheira.
A mãe, um pouco inquieta pela tristeza estampada na fronte de Calisto, sem suspeitar ser ela causada pelos supostos maus-tratos de Vignon para Felicidade, pôs-se
a trabalhar na sua tapeçaria. A velha tia pegou o seu tricô. O barão deu sua poltrona ao filho e passeou pela sala como para desenferrujar as pernas, antes de ir
dar uma volta pelo jardim. Jamais quadro flamengo ou holandês representou um interior de tom tão sombrio, mobiliado de figuras harmoniosamente suaves. Aquele belo
rapaz, vestido de veludo preto, aquela mãe ainda tão bela e os dois velhos enquadrados naquela sala antiga exprimiam as mais comovedoras harmonias domésticas. Fanny
bem quisera interrogar Calisto; ele, porém, puxara do bolso aquela carta de Beatriz, que iria, talvez, destruir toda a felicidade de que gozava aquela nobre família.
Ao desdobrá-la, a viva imaginação de Calisto mostrou-lhe a marquesa vestida como lha descrevera fantasticamente Camille Maupin.
CARTA DE BEATRIZ A FELICIDADE
Gênova, 2 de julho
Não lhe escrevi desde nossa estada em Florença, querida amiga; mas Veneza e Roma absorveram meu tempo, e, como sabe, a felicidade ocupa lugar na vida. Nem eu nem
você nos preocuparemos com mais uma ou menos uma carta. Estou um pouco cansada. Quis ver tudo e quando não se tem uma alma que facilmente se embota, a repetição
dos gozos causa lassidão. Nosso amigo teve belos triunfos no Scala, no Fenice e nestes últimos dias no San Carlos (Grandes teatros respectivamente de Milão, Veneza
e Nápoles.). Três óperas italianas em dezoito meses! Você não poderá dizer que o amor o torna preguiçoso. Por toda a parte fomos recebidos maravilhosamente, mas
eu teria preferido o silêncio e a solidão. Não é esse o único modo de ser que convenha a uma mulher em oposição direta com a sociedade? Eu acreditava que assim fosse.
O amor, minha querida, é um mestre mais exigente do que o casamento; mas é tão doce obedecer-lhe!
Depois de ter feito do amor toda a minha vida, eu não pensei que fosse preciso tornar a ver a sociedade, mesmo de modo esporádico, e as atenções com que me cercaram
eram outros tantos ferimentos. Eu ali não me achava mais em pé de igualdade com as damas de mais alta categoria. Quanto mais considerações me dispensavam, mais se
acentuava minha inferioridade. Gennaro não compreendeu essas sutilezas; mas estava tão feliz, que teria sido deselegante de minha parte não imolar algumas pequenas
vaidades a uma coisa tão grande, como a vida de um artista. Nós não vivemos senão pelo amor, ao passo que os homens vivem pelo amor e pela ação, de outra forma eles
não seriam homens. Entretanto para nós, mulheres, existem grandes desvantagens na posição em que me coloquei, e você a tinha evitado; você conservou-se grande perante
a sociedade que nenhum direito tinha sobre você; dispunha de seu livre-arbítrio e eu não tenho mais o meu. Não falo disso senão relativamente às coisas do coração
e não às coisas sociais, das quais fiz um completo sacrifício. Você podia ser coquete e voluntariosa, ter todas as graças da mulher que ama e pode tudo conceder
ou recusar à vontade; você conservava o privilégio dos caprichos, mesmo no interesse de seu amor e do homem que lhe agradava. Hoje, finalmente, você ainda tem seu
próprio consentimento; eu não tenho mais a liberdade de coração que sempre acho deliciosa de exercer em amor, mesmo quando a paixão é eterna. Não tenho esse direito
de brigar rindo, direito ao qual temos tanto apego e com muita razão: não é ele a sonda com a qual interrogamos o coração? Não tenho ameaças a fazer, devo buscar
todos os meus atrativos numa obediência e doçura ilimitadas, devo impor pela grandeza de meu amor; prefiro morrer a separar-me de Gennaro, porquanto meu perdão está
na santidade de minha paixão. Entre a dignidade social e minha pequena dignidade, que é um segredo para a minha consciência, não hesitei. Se tenho algumas melancolias,
semelhantes a essas nuvens que passam mesmo pelos céus mais puros, e às quais nós mulheres gostamos de nos entregar, calo-as, pois se assemelhariam a arrependimentos.
Meu Deus, vi tão bem a extensão de minhas obrigações que me armei de plena indulgência; mas até agora Gennaro não assustou meu sensível ciúme.
Enfim não chego a ver por onde esse querido belo gênio possa falir. Pareço-me um pouco, meu anjo, a esses devotos que discutem com o seu Deus, porquanto não é a
você a quem devo minha felicidade? Também, não pode duvidar de que eu pense com frequência em você. Vi a Itália, enfim! como você a viu, como deve ser vista, iluminada
em nossa alma pelo amor, como o é por seu belo sol e suas obras-primas. Tenho pena daqueles que são incessantemente movidos pelas adorações que ela reclama a cada
passo, por não ter uma mão a apertar, um coração no qual atirar a exuberância das emoções que ali se acalmam, ao se engrandecerem. Esses dezoito meses são para mim
toda a minha vida, e minha memória deles recolherá fartas messes. Não fez você como eu o projeto de permanecer em Chiavari, de comprar um palácio em Veneza, uma
casinha em Sorrento, uma vila em Florença? Não é a sociedade um temor comum para todas as mulheres que amam? Eu, porém, atirada para sempre para fora dela, não deveria
almejar sepultar-me numa bela paisagem, num monte de flores, em frente a um bonito mar ou a um vale que valesse um mar, como o que se vê em Fiesole? Mas, ai de mim!
Nós somos uns pobres artistas, e o dinheiro faz voltar a Paris os dois boêmios. Gennaro não quer que eu me aperceba de ter abandonado meu luxo, e vai a Paris a fim
de fazer ensaiar uma nova obra, uma grande ópera. Você compreende tão bem como eu, meu belo anjo, que não posso pôr o pé em Paris. Nem à custa do meu amor, quisera
topar com um desses olhares de mulher ou de homem que me fariam conceber o assassínio. Sim, eu faria um picadinho de quem quer que fosse que me honrasse com sua
piedade, me cobrisse com sua amabilidade, como essa adorável Chateauneuf, a qual, no reinado de Henrique III, creio, impeliu seu cavalo e espezinhou o preboste de
Paris por um crime dessa espécie. Escrevo-lhe pois para dizer-lhe que não tardarei em ir ter consigo nas Touches e esperar nessa cartuxa o nosso Gennaro. Vê como
sou ousada com minha benfeitora e irmã! Mas é que a grandeza das obrigações não me levará, como a certos corações, à ingratidão. Falou-me tanto das dificuldades
da estrada, que vou tentar chegar ao Croisic por mar. Ocorreu-me essa ideia ao saber aqui que havia um pequeno navio dinamarquês, já carregado de mármore, que vai
aí buscar sal ao regressar ao Báltico. Por esse caminho, evito a fadiga e as despesas de viagem pela mala-posta. Sei que você não está só e isso me faz muito feliz:
através da minha felicidade, eu tinha remorsos. Você é a única pessoa junto à qual eu poderia estar só e sem o Conti. Não será também para você um prazer de ter
a seu lado uma mulher que compreenderá sua felicidade sem invejá-la? Vamos, até breve. O vento é favorável, parto mandando-lhe um beijo.
IX - UMA PRIMEIRA CONFIDÊNCIA
“É claro, essa também ama”, pensou Calisto ao dobrar a carta com ar triste.
Essa tristeza jorrou sobre o coração da mãe como se algum clarão lhe tivesse iluminado um abismo. O barão acabava de sair. Fanny foi fechar o trinco da pequena torre
e voltou, colocando-se contra o espaldar da poltrona em que estava o filho, na posição da irmã de Dido no quadro de Guérin (O quadro de Guérin (1774-1833): “Eneias
contando a Dido os desastres de Troia”. Já em A bolsa, Balzac evoca esse mesmo quadro de Guérin, acerca do qual citamos ali curiosa observação de Baudelaire.), beijou-lhe
a fronte ao dizer-lhe:
— Que tens, meu Calisto, que te entristece? Prometeste explicar-me tuas assiduidades nas Touches; devo, segundo dizes, abençoar-lhe a dona?
— Sim, com certeza, querida mãe—disse ele -; ela demonstrou-me a insuficiência de minha educação numa época em que os nobres precisam conquistar um valor pessoal
para restituir a vida a seus nomes. Eu estava tão longe do meu século como Guérande está longe de Paris. Ela foi um pouco a mãe da minha inteligência.
— Não será por isso que eu a abençoarei—disse a baronesa, cujos olhos se encheram de lágrimas.
— Mamãe—exclamou Calisto, sobre cuja fronte caíram aquelas lágrimas quentes, duas pérolas de maternidade dorida—,não chore, mamãe, porque faz pouco eu queria, para
prestar-lhe um serviço, percorrer a região desde a ribanceira dos aduaneiros até o burgo de Batz e ela disse-me: “Em que inquietações ficaria sua mãe!”.
— Ela disse isso? Posso então perdoar-lhe muitas coisas—murmurou Fanny.
— Felicidade não quer senão meu bem—continuou Calisto -; ela retém muitas vezes essas palavras vivas e equívocas que escapam aos artistas, para não abalar em mim
uma fé que ela não sabe ser inabalável. Contou-me a vida em Paris de alguns rapazes da mais alta nobreza, vindos da província, como eu poderei ir, separando-se de
uma família sem fortuna e conquistando lá pelo poder da vontade e da inteligência grandes riquezas. Eu posso fazer o que fez o barão de Rastignac (O barão de Rastignac:
personagem de primeiro plano de A comédia humana. Foi ele que nos contou a anedota contida em Estudo de mulher. Sua difícil estreia é magistralmente narrada em O
pai Goriot.) hoje no ministério. Ela dá-me lições de piano, ensina-me o italiano, inicia-me nos mil segredos sociais, segredos de que em Guérande ninguém suspeita.
Ela não me pôde dar os tesouros do amor, dá-me os de sua vasta inteligência, do seu espírito, de seu gênio. Ela não quer ser um prazer para mim, e sim uma luz; ela
não choca nenhuma das minhas religiões: tem fé na nobreza, ama a Bretanha, ela...
— Ela transformou o nosso Calisto—disse a velha cega interrompendo-o—,porque não compreendo patavina do que dizes. Tens uma casa sólida, meu belo sobrinho, velhos
pais que te adoram, velhos criados ótimos; podes desposar uma boa pequena bretã, uma moça religiosa e cheia de qualidades que te fará feliz, e podes reservar tuas
ambições para teu filho primogênito, que será três vezes mais rico do que tu és agora, se souberes viver tranquilo, economicamente, à sombra, na paz do senhor, para
resgatar as terras da nossa casa. És simples como um coração bretão. Não serás tão rapidamente, mas mais solidamente, um rico gentil-homem.
— Tua tia tem razão, meu amigo, ela ocupou-se com a tua felicidade com tanta solicitude quanto eu. Se eu não conseguir casar-te com miss Margaret, a filha de teu
tio lord Fitz-William, é mais ou menos seguro que a srta. de Pen-Hoël dará sua herança àquela das sobrinhas que for tua eleita.
— Além disso, encontrar-se-ão por aqui alguns escudos—disse a velha tia, em voz baixa, e com ar misterioso.
— Casar com a minha idade?—disse ele dirigindo a Fanny um desses olhares que fazem amolecer a razão das mães.—Viverei então sem belos e tresloucados amores! Não
poderei tremer, palpitar, respirar, deitar-me sob olhares implacáveis e enternecê-los? Deverei não conhecer a beleza livre, a fantasia da alma, as nuvens que correm
pelo azul da felicidade e que o sopro do prazer dissipa? Não irei pelos pequenos atalhos úmidos de orvalho? Não permanecerei sob o chorro de uma goteira sem saber
que está chovendo, como os namorados de Diderot? Não pegarei, como o duque de Lorena, um carvão ardente na palma da mão? Não subirei por escadas de seda? Não me
suspenderei numa velha grade apodrecida sem a fazer vergar? Não me ocultarei num armário ou sob um leito? Não conhecerei da mulher senão a submissão conjugal, do
amor senão sua chama de lâmpada, sempre a mesma? Ficarão minhas curiosidades saciadas antes de terem sido excitadas? Viverei sem experimentar essas iras do coração
que engrandecem o poder do homem? Serei um monge conjugal? Não! Mordi a maçã parisiense da civilização. Não vedes que, pelos castos, pelos ignorantes costumes da
família, preparastes o fogo que me devora, e que eu serei consumido sem ter adorado a divindade que vejo por toda a parte, nas verdes folhagens, como nas aveias
incendiadas pelo sol, e em todas as mulheres belas, nobres, elegantes, descritas pelos livros, pelos poemas que devorei em casa de Camille? Ai de mim! Dessas mulheres
não há senão uma em Guérande, e essa sois vós, minha mãe! Esses belos pássaros azuis dos meus sonhos vêm de Paris, saem de entre as páginas de Lord Byron, de Scott:
é Parisina, Effie, Minna (Parisina, Effie, Minna: heroínas, respectivamente, do poema “Parisina”, de Byron, e dos romances A prisão de Edimburgo e O piloto, de Walter
Scott.)! Enfim é a régia duquesa que vi na charneca, através das urzes, e cujo aspecto fazia afluir o sangue ao meu coração!
A baronesa viu todos esses pensamentos mais claros, mais belos, mais vivos do que a arte os faz para aquele que os lê, ela os abarcou rápida, todos atirados por
aquele olhar como flechas de uma aljava que se derruba. Sem ter jamais lido Beaumarchais, ela pensou, como todas as mulheres, que seria um crime casar aquele Querubim.
— Oh, meu querido filho—disse ela, tomando-o nos braços, apertando-o e beijando-lhe os belos cabelos que eram ainda dela—,casa-te quando quiseres, mas sê feliz!
Meu papel não é de atormentar-te.
Mariotte veio pôr a mesa. Gasselin saíra para fazer passear o cavalo de Calisto, que este fazia dois meses não montava. Aquelas três mulheres, a mãe, a tia e Mariotte
entendiam-se com a manha peculiar às mulheres para festejar Calisto, quando ele jantava em casa. A pobreza bretã, armada com as recordações e os hábitos da infância,
tentava lutar com a civilização parisiense tão fielmente representada a dois passos de Guérande, nas Touches. Mariotte tentava desgostar seu jovem patrão das sábias
preparações culinárias de Camille Maupin, assim como a mãe e a tia rivalizavam de cuidados para enlear o querido pequeno nas malhas da sua ternura e tornar impossível
qualquer comparação.
— Ah, o senhor tem um peixe, sr. Calisto, e narcejas, e crepes, que só podem ser feitos aqui—disse Mariotte com ar sorrateiro e triunfante, olhando para a toalha
branca, uma verdadeira camada de neve.
Depois do jantar, quando a velha tia recomeçou a fazer seu tricô, quando o cura de Guérande e o cavaleiro du Halga voltaram, atraídos por sua partida de mouche,
Calisto saiu para voltar às Touches, tomando como pretexto a restituição da carta de Beatriz.
X - UM MOMENTO DE FELICIDADE
Cláudio Vignon e a srta. des Touches ainda estavam à mesa. O grande crítico tinha inclinação pelos bons petiscos, e esse vício era explorado por Felicidade, que
sabia o quanto uma mulher se torna indispensável por suas complacências. A sala de jantar, completada fazia um mês por acréscimos importantes, revelava com que condescendência
e com que prontidão uma mulher desposa o caráter, adota a profissão, as paixões e os gostos do homem a quem ama ou a quem quer amar. A mesa oferecia o rico e brilhante
aspecto que o luxo moderno imprime ao serviço, auxiliado pelos aperfeiçoamentos da indústria. A pobre e nobre casa du Guénic ignorava com que adversário tinha de
haver-se e que fortuna seria necessária para competir com a baixela de prata, reformada em Paris, e trazida pela srta. des Touches, com suas porcelanas consideradas
ainda boas para a campanha, com sua bela roupa de mesa, com a prata dourada, com as bugigangas de sua mesa e a ciência de seu cozinheiro. Calisto recusou tomar os
licores contidos num desses magníficos botequins de madeira preciosa que são como tabernáculos.
— Aqui está sua carta—disse ele, com inocente ostentação, olhando para Cláudio, o qual saboreava um cálice de licor das Ilhas.
— E então, que diz a isso?—perguntou a srta. des Touches, atirando a carta por sobre a mesa a Vignon, o qual pôs-se a lê-la, pegando e depondo alternativamente seu
cálice.
— Mas... que as mulheres de Paris são bem felizes, pois todas têm homens de gênio para adorar e que as amam.
— Pois bem, você ainda é da sua aldeia—disse Felicidade rindo.- Como! Não viu que ela já o ama menos e que...?
— É evidente!—disse Cláudio Vignon, que não percorrera senão a primeira folha.—Pode alguém observar seja lá o que for na própria situação, quando se ama verdadeiramente?
Pode-se ser tão sutil quanto o é a marquesa? Pode-se fazer cálculos? Fazem-se acaso distinções? A querida Beatriz está presa a Conti pelo orgulho, está condenada
a amá-lo quer queira, quer não.
— Pobre mulher!—disse Camille.
Calisto tinha os olhos postos na mesa, nada mais via.
A bela mulher, no traje fantástico desenhado de manhã por Felicidade, lhe aparecera brilhante de luz; ela sorria-lhe, agitava seu leque; e a outra mão, saindo de
um punho de rendas e de veludo nacarado, caía branca e pura sobre as pregas fofas de seu esplêndido vestido.
— Seria bem o negócio que lhe convém—disse Cláudio Vignon, sorrindo com ar sardônico para Calisto.
Calisto sentiu-se ofendido com o termo negócio.
— Não dê a este querido moço a ideia de semelhante aventura, você não sabe o quanto esses gracejos são perigosos. Eu conheço Beatriz, ela tem demasiada grandeza
no caráter para mudar e, além disso, Conti estaria presente.
— Ah!—disse sarcasticamente Cláudio Vignon—um pequeno gesto de ciúme?
— Acredita isso?—disse Camille altivamente.
— É mais perspicaz do que uma mãe—respondeu Cláudio.
— Mas é isso possível?—disse Camille, mostrando Calisto.
— Entretanto—redarguiu Vignon—,fariam um belo par. Ela tem dez anos mais do que ele e é ele que parece ser a moça.
— Uma mocinha, senhor, que já viu o fogo duas vezes na Vendeia. Se tivesse havido somente vinte mil moças semelhantes...
— Eu estava fazendo o seu elogio—disse Vignon—,o que é muito mais fácil do que fazer-lhe a barba.
— Tenho uma espada que já a fez aos que a têm demasiado comprida—respondeu Calisto.
— E eu faço muito bem o epigrama—disse Vignon, sorrindo—,somos franceses, o assunto pode arranjar-se.
A srta. des Touches dirigiu a Calisto um olhar suplicante que o acalmou subitamente.
— Por que—disse Felicidade, para pôr fim a esse debate—os jovens rapazes, como o meu Calisto, começam por amar mulheres de certa idade?
— Não conheço sentimento mais ingênuo, nem mais generoso, respondeu Vignon -; ele é a consequência das adoráveis qualidades da mocidade. De resto, como poderiam
as mulheres velhas terminar sem esse amor? A senhora é jovem e bela e sê-lo-á ainda durante vinte anos, a gente pode explicar-se na sua presença—acrescentou ele,
dirigindo um olhar sutil à srta. des Touches.—Primeiro, as semimatronas às quais se dirigem os rapazes sabem amar muito melhor do que as mulheres moças. Um adulto
assemelha-se demasiado a uma mulher moça para que uma mulher assim lhe agrade. Uma tal paixão beira a fábula de Narciso (Narciso: personagem mitológica; apaixonou-se
pela sua própria imagem, que vira nas águas de uma fonte, e atirou-se a esta última para se unir à sedutora figura.). Além dessa repugnância, há, creio, entre eles
uma inexperiência mútua que os separa. Assim, a razão que faz com que o coração das mulheres moças não possa ser compreendido senão por homens, cuja habilidade se
oculta sob uma paixão verdadeira ou simulada, é a mesma, pondo de parte a diferença dos espíritos, que torna uma mulher de certa idade mais apta para seduzir um
rapazinho: ele sente admiravelmente que triunfará com ela, e as vaidades da mulher ficam admiravelmente lisonjeadas com aquela perseguição. Enfim, é muito natural
que a mocidade se atire sobre os frutos e o outono da mulher oferece-lhe frutos magníficos e muito saborosos. Nada valerão, por acaso, esses olhares, ao mesmo tempo
atrevidos e reservados, langorosos a propósito, embebidos dos últimos clarões do amor, tão quentes e suaves? Essa sábia elegância de palavras, essas magníficas espáduas
douradas tão nobremente desenvolvidas, aquelas rotundidades tão cheias, aquela harmonia de linhas nutridas e ondulantes, aquelas mãos escavadas de covinhas, aquela
pele polposa e sadia, aquela fronte cheia de sentimentos abundantes por onde a luz se arrasta, aquela cabeleira tão bem-arrumada, tão bem cuidada, onde estreitos
raios de carne branca são admiravelmente desenhados, e aquele pescoço de dobras soberbas, aquelas nucas provocantes onde todos os recursos da arte são explorados
para fazer brilhar os contrastes entre os tons da pele e os cabelos, para pôr em relevo toda a insolência da vida e do amor? As próprias morenas tomam então tonalidades
louras, as cores de âmbar da maturidade. Ademais, essas mulheres revelam em seus sorrisos e desenvolvem nas suas palavras a ciência da sociedade; sabem conversar,
entregam-nos o mundo inteiro para fazer-nos sorrir, têm dignidades e orgulhos sublimes, dão gritos de desespero capazes de fender a alma, adeuses ao amor que sabem
tornar inúteis e que reavivam as paixões; tornam-se jovens, variando as coisas mais desesperadoramente simples; fazem-se a todo momento reerguer de sua decadência,
proclamando com coquetismo, e a embriaguez causada por seus triunfos é contagiosa; seus devotamentos são absolutos: elas ouvem, amam, enfim, apoderam-se do amor
como o condenado à morte se agarra aos menores detalhes da vida, assemelham-se a esses advogados que tudo pleiteiam nas suas causas sem entediar o tribunal, usam
de todos os seus meios, enfim, não se conhece o amor absoluto a não ser por intermédio delas. Não creio que seja possível esquecê-las nunca, como não se esquece
o que é grande, sublime. Uma mulher moça tem mil distrações; essas mulheres não se distraem nunca; não têm amor-próprio, nem vaidade, nem pequenez; seu amor é o
Loire na sua embocadura: é imenso, avolumado por todas as decepções, por todos os afluentes da vida, e eis por que... minha filha está muda (Eis por que... minha
filha está muda. Frase adaptada de O médico à força, de Molière (ato II, cena 4), peça em que o falso médico Sganarelle, consultado sobre a doença de uma moça que
se finge muda, e notando a ignorância do pai dela, põe-se a recitar uma série de frases pedantes com mistura de latim, para chegar a esta conclusão inesperada: Voilà
justemente ce qui fait que votre fille est muette.)—disse ele, ao ver a atitude extática da srta. des Touches, que apertava com força a mão de Calisto, talvez para
agradecer-lhe de ter sido o pretexto de semelhante momento, de um elogio, tão pomposo que nele não pôde perceber nenhuma armadilha.
Durante o resto do serão Cláudio Vignon e Felicidade estiveram cintilantes de espírito, contaram anedotas e descreveram o mundo parisiense a Calisto, o qual ficou
seduzido por Cláudio, porquanto o espírito exerce suas seduções, sobretudo nas pessoas de grande coração.
— Não me admirarei de ver a marquesa de Rochefide e Conti, que sem dúvida a acompanha, desembarcarem amanhã—disse Cláudio no fim do serão.—Quando saí do Croisic,
os marinheiros tinham identificado um pequeno navio dinamarquês, sueco ou norueguês.
Essa frase coloriu as faces da impassível Camille.
Nessa noite, a sra. du Guénic esperou ainda até uma hora da manhã o filho, sem poder compreender o que ele fazia nas Touches, visto que Felicidade não o amava.
“Mas ele os atrapalha”, pensava aquela mãe adorável.—O que você esteve falando tanto?—perguntou ela ao filho, ao vê-lo entrar.
— Oh, minha mãe, nunca passei um serão mais delicioso! O talento é uma coisa bem grande, bem sublime! Por que não me deste talento? Com talento deve-se poder escolher
entre as mulheres aquela a quem se ama, que é forçosamente da gente.
— Mas tu és belo, meu Calisto.
— A beleza só tem boa colocação aqui. De resto, Cláudio Vignon é belo. Os homens de gênio têm frontes luminosas, olhos de onde fuzilam relâmpagos; e eu, infeliz,
nada mais sei senão amar.
— Dizem que isso basta, meu anjo—disse ela, beijando-o na fronte.
— Isso é verdade?
— Disseram-me, nunca experimentei.
Tocou a vez a Calisto de beijar santamente a mão da mãe.
— Eu te amarei por todos os que te teriam adorado—disse-lhe ele.
— Querido filho, é um pouco teu dever, tu herdaste todos os meus sentimentos. Não sejas pois imprudente: procura amar somente mulheres nobres, se é necessário que
ames.
XI - PRIMEIRA ENTREVISTA
Qual o rapaz, cheio de amor transbordante e de vida represada, que não teria a ideia vitoriosa de ir ao Croisic, ver desembarcar a sra. de Rochefide, a fim de poder
visitá-la incógnito? Calisto surpreendeu estranhamente os pais, que nada sabiam da chegada de bela marquesa, ao partir desde manhã cedo sem querer almoçar. Sabe
Deus com que agilidade o bretão pôs o pé no mundo. Parecia que uma força desconhecida o ajudava; sentiu-se leve, deslizou-se ao correr dos muros das Touches para
não ser visto. Aquela adorável criança teve pejo do seu ardor e talvez um medo horrível de ser motejado: Felicidade, Cláudio Vignon, eram tão perspicazes! Nesses
casos, de resto, os jovens julgam que suas frontes são diáfanas. Ele seguiu as voltas do caminho através do dédalo das salinas, alcançou as areias e atravessou-as
como que de um salto, apesar do ardor do sol que ali faiscava. Chegou junto ao barranco, consolidado por um empedramento ao pé do qual há uma casa onde os viajantes
encontram um abrigo contra as tempestades, os ventos do mar, as chuvas e os vendavais. Nem sempre é possível atravessar o pequeno braço de mar, nem sempre se encontram
barcos, e durante o tempo que eles levam para chegar ao porto, é muitas vezes útil manter sob abrigo os cavalos, os burros, as mercadorias ou a bagagem dos viajantes.
Dali, avistam-se o mar largo e a cidade de Croisic; dali, Calisto não tardou em ver chegar dois barcos cheios de coisas, embrulhos, malas, sacos de roupa e caixas,
cuja forma e disposições anunciavam aos filhos do lugar objetos extraordinários que não podiam pertencer senão a viajantes de distinção. Num dos barcos havia uma
mulher jovem, com chapéu de palha e véu verde, acompanhada por um homem. Esse barco foi o primeiro a abordar. Calisto estremeceu; mas ao aspecto de ambos, ele reconheceu
um criado e uma criada de quarto; não se atreveu a interrogá-los.
— Vai vir ao Croisic, sr. Calisto?—perguntaram os marinheiros que o conheciam e aos quais ele respondeu com um sinal de cabeça negativo, envergonhado por terem dito
seu nome.
Calisto ficou encantado à vista de uma caixa coberta de tela alcatroada na qual se lia: A sra. marquesa de Rochefide. Esse nome brilhava a seus olhos como um talismã,
sentia nele um não sei quê fatal; sabia, sem sombra de dúvida, que amaria aquela mulher; as menores coisas que diziam respeito a ela já o ocupavam, interessavam-no
e aguçavam-lhe a curiosidade. Por quê? No deserto ardente de seus desejos infinitos e sem objetivo, não projeta a juventude todas as suas forças sobre a primeira
mulher que se lhe apresenta? Beatriz herdara o amor que Camille desdenhara. Calisto olhou o desembarque, dirigindo entretanto de quando em quando os olhos para o
Croisic, esperando ver um barco sair do porto, vir àquele pequeno promontório, onde o mar mugia, e mostrar-lhe aquela Beatriz que, em seu pensamento, já se tornara
o que fora Beatriz para Dante, uma eterna estátua de mármore em cujas mãos ele penduraria suas flores e seus louros. Permanecia de braços cruzados, imerso nas meditações
da espera. Um fato digno de notar, que entretanto não foi notado, é o modo por que submetemos muitas vezes nossos sentimentos a uma vontade, o quanto assumimos uma
espécie de compromisso com nós mesmos, e como criamos a nossa sorte: a parte do acaso nisso não é tão grande quanto acreditamos.
— Não vejo os cavalos—disse a criada de quarto, sentada numa mala.
— E eu não vejo caminho trilhado—disse o criado.
— Entretanto, aqui estiveram cavalos—replicou a criada de quarto, apontando para as provas da estada deles.—Senhor—disse ela, dirigindo-se a Calisto—,é bem este
o caminho que vai a Guérande?
— Sim—respondeu ele.—A quem esperam?
— Disseram-nos que viriam buscar-nos das Touches. Se demorassem, não sei como a senhora marquesa poderia vestir-se—disse ela ao criado.—Você deveria ir à casa da
srta. des Touches. Que terra de selvagens!
Calisto teve uma vaga suspeita da sua posição falsa.
— Sua patroa vai então às Touches?
— A senhorita veio buscá-la esta manhã às sete horas—respondeu a criada.—Ah, aqui estão os cavalos!
Calisto enveredou para Guérande com a velocidade e a ligeireza de uma camurça, fazendo uma gambeta de lebre a fim de não ser reconhecido pela gente das Touches;
mas encontrou-se com dois de lá no caminho estreito das salinas, por onde passou.
“Entrarei ou não entrarei?”, pensou ao ver surgirem os pinheiros das Touches.
Teve medo, voltou encalistrado para Guérande, e passeou na alameda, onde continuou suas deliberações. Estremeceu ao ver as Touches, examinava-lhe os cata-ventos.
— Ela não suspeita da minha agitação—monologava.
Seus pensamentos caprichosos eram outros tantos arpões que se lhe enterravam no coração, ali prendendo a marquesa. Calisto não tivera desses terrores e dessas alegrias
antecipadas com Camille; encontrara-a a cavalo, e seu desejo nascera como nasceria o desejo ao aspecto de uma bela flor que quisesse colher. Essas incertezas nas
almas tímidas compõem como poemas. Aquecidas pelas primeiras chamas da imaginação, essas almas se erguem, se irritam, se acalmam, se animam, alternativamente, e
chegam na solidão e no silêncio ao mais alto grau do amor, antes de terem abordado o objeto de tantos esforços. Calisto avistou de longe na alameda o cavaleiro du
Halga, que estava passeando com a srta. de Pen-Hoël e ouviu pronunciar seu nome; escondeu-se. O cavaleiro e a velha solteirona, julgando-se sós na alameda, falavam
em voz alta.
— Visto que a srta. Carlota de Kergarouët vem—dizia o cavaleiro—,conserve-a aqui três ou quatro meses. Como quer que ela seja coquete com Calisto? Ela nunca fica
o tempo suficiente para conquistá-lo; ao passo que, vendo-se todos os dias, essas duas crianças acabarão dominadas por uma bela paixão e a senhora os casará no próximo
inverno. Se a senhora disser a Carlota duas palavras das suas intenções, ela breve terá dito quatro a Calisto, e uma rapariga de dezesseis anos vencerá seguramente
uma mulher de quarenta e poucos.
Os dois velhos viraram-se para dar volta; Calisto nada mais pôde ouvir, mas compreendeu a intenção da srta. de Pen-Hoël. Na situação de alma em que ele se achava,
nada podia ser mais fatal. Pode lá um rapaz aceitar por esposa uma moça que lhe é imposta, estando mergulhado nas esperanças de um amor preconcebido? Calisto, para
quem Carlota de Kergarouët era indiferente, sentiu-se disposto a refugá-la. Era inacessível às considerações de fortuna, desde a infância acostumara-se à vida medíocre
da casa paterna, e, ademais, ignorava as riquezas da srta. de Pen-Hoël ao vê-la levar uma vida tão pobre como a dos du Guénic. Enfim, um rapaz educado como o era
Calisto, não devia fazer caso senão de sentimentos, e todo o seu pensamento pertencia à marquesa. Diante do retrato que Camille esboçara, o que era a pequena Carlota?
A companheira de sua infância a quem ele tratava como irmã. Só voltou para casa às cinco horas. Quando entrou na sala, a mãe apresentou-lhe, com um sorriso triste,
uma carta da srta. des Touches:
Meu querido Calisto, a bela marquesa de Rochefide chegou e contamos com você para festejar sua vinda. Cláudio, sempre trocista, acha que você será Bice e que ela
será Dante. A honra da Bretanha e a dos du Guénic está empenhada para bem receber uma Casteran. Até breve, pois, sua amiga
CAMILLE MAUPIN
Venha sem cerimônia, tal qual estiver; de outra forma, seríamos ridículos.
Calisto mostrou a carta à mãe e partiu.
— Quem são os Casteran?—perguntou ela ao barão.
— Uma velha família da Normandia, aparentada a Guilherme, o Conquistador—respondeu ele.—Eles apresentam terciado em faixa, de blau, de goles e de sable, com um cavalo
corrente, de prata, ferrado de ouro. A bela criatura por quem o Gars (A bela criatura por quem o Gars se fez matar em Fougères no ano de 1800: alusão aos trágicos
amores do marquês Alfonso de Montauran, chefe de rebeldes monarquistas alcunhado Gars, e da espiã republicana Maria de Verneuil, contada em A Bretanha em 1799.)
se fez matar em Fougères, no ano de 1800, era a filha de uma Casteran, a qual se tornou religiosa em Séez e lá se tornou abadessa, depois de ter sido abandonada
pelo duque de Verneuil.
— E os Rochefide?
— Não conheço esse nome, seria preciso ver-lhes o brasão—disse ele.
A baronesa ficou um pouco menos inquieta ao saber que a marquesa Beatriz de Rochefide pertencia a uma velha casa; mas ainda experimentou uma espécie de pavor por
saber o filho exposto a novas seduções.
Calisto, ao caminhar, tinha sensações ao mesmo tempo violentas e meigas; sentia a garganta apertada, o coração intumescido, o cérebro perturbado; ardia em febre.
Queria retardar a marcha, mas uma força superior precipitava-o sempre. Essa impetuosidade dos sentidos, excitada por uma vaga esperança, todos os rapazes a conheceram:
um fogo sutil chameja interiormente e faz irradiar em torno como que esses nimbos que aureolam os personagens divinos, nos quadros religiosos, e através dos quais
eles veem a natureza abrasada e a mulher radiosa. Não são eles, então, como santos cheios de fé, de esperança, de ardor e de pureza? O jovem bretão encontrou a sociedade
no pequeno salão do apartamento de Camille. Eram cerca de seis horas da tarde; o sol, ao pôr-se, espalhava pelas janelas suas tonalidades rubras, quebradas no arvoredo;
o ar estava calmo, havia naquele salão a penumbra de que tanto gostam as mulheres.
— Aqui está o deputado da Bretanha—disse Camille Maupin, sorrindo à amiga, apontando para Calisto, quando este soergueu o reposteiro da tapeçaria—,é pontual como
um rei.
— Reconheceu-lhe os passos?—perguntou Cláudio Vignon à srta. des Touches.
Calisto curvou-se ante a marquesa, a qual o saudou com um gesto de cabeça; ele não a olhara. Pegou a mão que Cláudio Vignon lhe estendia e apertou-a.
— Aqui está o grande homem de quem tanto lhe falamos, Gennaro Conti—disse-lhe Camille sem responder a Vignon.
Ela apresentava a Calisto um homem de estatura mediana, delgado, franzino, de cabelos castanhos, olhos quase vermelhos, de tez alva e salpicada de sardas, sendo
sua cabeça completamente semelhante à tão conhecida de Lord Byron, que descrevê-la seria supérfluo, mas trazia-a, talvez, melhor. Conti sentia-se bastante orgulhoso
por essa semelhança.
— Estou encantado por encontrar o senhor num único dia que passo nas Touches—disse Gennaro.
— Era a mim a quem competia dizer isso do senhor—respondeu Calisto com bastante desembaraço.
— Ele é belo como um anjo—disse a marquesa a Felicidade.
Colocado entre o divã e as duas mulheres, Calisto ouviu confusamente essas palavras, embora tivessem sido ditas murmuradas, e ao ouvido. Sentou-se numa poltrona
e dirigiu à marquesa alguns olhares furtivos. No suave clarão do poente, ele viu então, atirada no divã como se algum estatuário ali a tivesse colocado, uma forma
branca e serpentina que lhe causou deslumbramentos. Sem sabê-lo, Felicidade, por sua descrição, bem servira sua amiga. Beatriz era superior ao retrato pouco favorecido
feito na véspera por Camille. Não seria um pouco para o conviva que Beatriz pusera, na sua régia cabeleira, ramos de centáurea que realçavam o tom pálido de seus
bucles crespos, arranjados para acompanhar seu rosto, a brincar ao longo das faces? O contorno de seus olhos, sombreados de olheiras pela fadiga, assemelhava-se
ao mais puro e mais cambiante nácar, e sua tez tinha o fulgor de seus olhos. Sob a alvura da pele, tão fina como a película acetinada de um ovo, cintilava a vida
num sangue azulado. A delicadeza dos traços era inaudita. A fronte parecia diáfana. Aquela cabeça suave e meiga admiravelmente colocada num pescoço comprido, de
um desenho maravilhoso, prestava-se às mais diversas expressões. A cintura, que podia ser rodeada com as mãos, tinha uma naturalidade encantadora. As espáduas nuas
luziam na sombra como uma camélia branca numa cabeleira negra. A garganta, habilmente apresentada, porém coberta com um mantelete claro, deixava perceber dois contornos
de uma deliciosa sedução. O vestido de musselina branca semeada de flores azuis, as grandes mangas, o corpete de ponta e sem cintura, os coturnos cruzados sobre
meias de fio de Escócia velavam uma admirável ciência da toilette. Dois brincos de filigrana de prata, milagre de ourivesaria genovesa, os quais iriam sem dúvida
ficar na moda, estavam em perfeita harmonia com a leveza deliciosa daquela loura cabeleira estrelada de centáureas. Num único olhar, a ávida análise de Calisto apreendeu
essas belezas e gravou-as em sua alma. A loura Beatriz e a morena Felicidade lembrariam esses contrastes de keepsake (Keepsake: livrinho-álbum, ilustrado com gravuras,
que se dava como lembrança e cuja moda se estendeu da Inglaterra à França.), alguns tão procurados pelos gravadores e desenhistas ingleses. Eram a força e a fraqueza
da mulher em todos os seus desenvolvimentos, uma perfeita antítese. Essas duas mulheres jamais poderiam ser rivais, cada uma delas tinha o seu império. Era uma delicada
pervinca ou um lírio junto a uma suntuosa e brilhante papoula vermelha, uma turquesa ao lado de um rubi. Num momento Calisto foi dominado por um amor que coroou
a obra secreta de suas esperanças, de seus temores, de suas incertezas. A srta. des Touches despertara-lhe os sentidos, Beatriz inflamara-lhe o coração e o pensamento.
O jovem bretão sentia erguer-se em si uma força capaz de tudo vencer, de nada respeitar. Por isso dirigiu ele a Conti um olhar enciumado, carregado de ódio, sombrio
e temeroso da rivalidade, que ele jamais tivera para Cláudio Vignon. Calisto empregou toda a sua energia em conter-se, embora pensasse que os turcos tinham razão
em fechar as mulheres e que devia ser proibido a belas criaturas mostrarem-se nas suas irritantes faceirices a jovens rapazes abrasados de amor. Esse impetuoso vendaval
acalmava-se assim que os olhos de Beatriz pousavam nele e sua meiga voz se fazia ouvir; o pobre menino temia-a tanto quanto temia a Deus. Tocaram a sineta para o
jantar.
— Calisto, dê o braço à marquesa—disse a srta. des Touches, pondo Conti à sua direita e Vignon à sua esquerda, e desviando-se para dar passagem ao jovem par.
Descer assim a velha escada das Touches era para Calisto como que uma primeira batalha: o coração desvaneceu-lhe, não achava o que dizer, leves gotas de suor orvalhavam-lhe
a fronte e lhe molhavam as costas; seu braço tremia tão fortemente que no último degrau a marquesa lhe disse:
— Que tem o senhor?
— É que—respondeu ele com voz engasgada—jamais vi em toda a minha vida uma tão bela mulher como a senhora, salvo minha mãe, e não posso dominar minhas emoções.
— Não tem aqui Camille Maupin?
— Ah, que diferença!—disse ingenuamente Calisto.
— Bem, Calisto—sussurrou-lhe Felicidade ao ouvido—,não lhe dizia eu que você me esqueceria como se eu jamais tivesse existido? Ponha-se ali, perto dela, à sua direita,
e Vignon ficará à esquerda. Quanto a ti, Gennaro, guardo-te, vamos vigiar essas coqueterias—acrescentou ela rindo.
O acento particular que Camille pôs nessa frase impressionou Cláudio, o qual dirigiu-lhe esse olhar disfarçado e quase distraído pelo qual nele se traía a observação.
Não cessou de examinar a srta. des Touches durante todo o jantar.
— Coquetismos—respondeu a marquesa, tirando as luvas e descobrindo suas magníficas mãos—é o que não falta. Tenho de um lado—disse ela, mostrando Cláudio—um poeta
e do outro a poesia.
Gennaro Conti dirigiu a Calisto um olhar carregado de lisonjas. Às luzes artificiais, Beatriz parecia mais bela ainda do que antes. As brancas claridades das velas
produziam acetinados luzentes na sua fronte, acendiam lantejoulas nos seus olhos de gazela, e passavam através de seu bucles sedosos, abrilhantando-os e neles fazendo
resplender alguns fios de ouro. Ela atirou para trás num gesto gracioso seu mantelete de gaze e descobriu o pescoço. Calisto viu então uma nuca delicada e branca
como leite, covada por um sulco vigoroso separado em duas ondas, que se perdiam para cada ombro com macia e sedutora simetria. Essas transformações à vista que as
mulheres se permitem causam pouco efeito em sociedade, onde todos os olhares são embotados, mas fazem estragos nas almas novas, como era a de Calisto. Esse pescoço,
tão diferente do de Camille, revelava em Beatriz um caráter completamente diferente. Nele reconhecia-se o orgulho de raça, uma tenacidade peculiar à nobreza, e um
não sei quê duro naquelas duas raízes, último vestígio, talvez, da força dos antigos conquistadores.
Calisto teve exaustivos trabalhos para fingir que comia, sentia ímpetos nervosos que lhe tiravam a fome. Como em todos os homens moços, a natureza nele era presa
das convulsões que precedem o primeiro amor e o gravam tão profundamente na alma. Nessa idade, o ardor do coração, contido pelo ardor moral, determina um combate
interior que explica a longa hesitação respeitosa, as profundas meditações de ternura, a ausência de qualquer cálculo, atrativos próprios dos moços, cuja vida e
coração são puros. Ao estudar, embora disfarçadamente, a fim de não despertar suspeitas no ciumento Gennaro, os detalhes que tornavam a marquesa de Rochefide tão
nobremente bela, Calisto sentiu-se em seguida oprimido pela majestade da mulher amada: sentiu-se diminuído pela altivez de certos olhares, pela atitude imponente
daquele semblante, do qual transbordavam os sentimentos aristocráticos, por um certo orgulho que as mulheres imprimem em certos gestos, em meneios de cabeça, em
admiráveis lentidões de movimentos e que são efeitos menos plásticos, menos estudados do que se pensa. Esses gentis detalhes de sua variável fisionomia correspondem
às delicadezas, às mil agitações de suas almas. Há sentimentos em todas essas expressões. A falsa situação em que se achava Beatriz impunha-lhe vigiar-se a si própria,
tornar-se imponente sem ser ridícula, e as damas da alta roda sabem todas alcançar esse alvo, escolho das mulheres vulgares.
Aos olhos de Felicidade, Beatriz adivinhou a adoração interior que inspirava ao seu vizinho e que era indigno dela encorajar; dirigiu pois a Calisto em momento oportuno
um ou dois olhares repressivos que caíram sobre ele como aludes. O desditoso queixou-se à srta. des Touches por um olhar no qual se adivinhavam lágrimas conservadas
no coração com uma energia sobre-humana, e Felicidade perguntou-lhe com voz amigável por que motivo não comia nada. Calisto empanturrou-se, em obediência, e pareceu
tomar parte na conversação. Ser importuno ao invés de agradar era a ideia insuportável que lhe martelava o cérebro. Ficou tanto mais envergonhado por ver atrás da
cadeira da marquesa o criado que ele vira pela manhã no cais, o qual sem dúvida falaria da sua curiosidade. Contrito ou feliz, o fato é que a sra. de Rochefide não
prestou nenhuma atenção ao seu vizinho. A srta. des Touches mencionando sua viagem à Itália, ela achou meio de contar espirituosamente a paixão à queima-roupa com
que a honrara um diplomata russo em Florença, fazendo troça dos rapazinhos que se projetam sobre as mulheres como gafanhotos na verdura. Fez rirem Cláudio Vignon,
Gennaro, a própria Felicidade, embora esses ditos zombeteiros chegassem ao coração de Calisto, o qual, através do zumbido que reboava em seus ouvidos e no seu cérebro,
não ouvia senão palavras. A pobre criança não jurava a si mesmo, como certos teimosos, conseguir aquela mulher a qualquer preço; não, ele não sentia cólera, sofria.
Quando percebeu em Beatriz uma intenção de o imolar aos pés de Gennaro, disse consigo mesmo: “Que eu lhe sirva para qualquer coisa!”, e deixou-se maltratar com uma
mansidão de cordeiro.
— A senhora que tanto admira a poesia—disse Cláudio Vignon à marquesa—,por que a acolhe tão mal? Essas admirações ingênuas, tão bonitas nas suas expressões, sem
pensamentos reservados, e tão devotadas, não é isso a poesia do coração? Confesse que elas lhe deixam um sentimento de prazer e de bem-estar.
— Certamente—disse ela—,mas nós seríamos muito infelizes e sobretudo muito indignas se cedêssemos a todas as paixões que inspiramos.
— Se não escolhessem—disse Conti—,não nos sentiríamos tão orgulhosos de sermos amados.
“Quando serei eu escolhido e distinguido por uma mulher?”, a si mesmo perguntou Calisto, o qual dificilmente reprimiu uma emoção cruel.
Corou então como um doente, em cuja ferida se tivesse por descuido apoiado um dedo. A srta. des Touches impressionou-se com a expressão que se desenhou no rosto
de Calisto e procurou consolá-lo com um olhar carregado de simpatia. Esse olhar, Cláudio Vignon o surpeendeu. Desde esse momento, o escritor tomou-se de uma alegria
que o fez esfuziar em sarcasmos: sustentou para Beatriz que o amor não existia senão pelo desejo, que a maioria das mulheres enganava-se ao amar, que elas amavam
por motivos muitas vezes ignorados pelos homens e por elas mesmas, que queriam algumas vezes enganar-se e que a mais nobre de entre elas era ainda assim artificiosa.
— Contente-se com os livros, não critique nossos sentimentos—disse Camille, lançando-lhe um olhar imperioso.
O jantar deixou de ser alegre. As zombarias de Cláudio Vignon tinham deixado as duas mulheres pensativas, Calisto sentia uma dor horrível em meio à felicidade que
lhe causava a vista de Beatriz. Conti buscava adivinhar nos olhos da marquesa seus pensamentos. Quando terminou o jantar, a srta. des Touches tomou o braço de Calisto,
deu os dois outros homens à marquesa, e deixou-os ir na frente, a fim de poder dizer ao jovem bretão:
— Minha querida criança, se a marquesa o amar, ela atirará Conti pela janela; mas neste momento você procede de modo a apertar o laço que os une. Enquanto ela estiver
fascinada com a sua adoração, deveria ela dar-lhe atenção? Domine-se.
— Ela foi muito dura comigo, não me amará—disse Calisto—,e se ela não me amar morrerei.
— Morrer!... Você! meu querido Calisto?—disse Camille.—Você é uma criança. Não teria morrido por mim?
— A senhora fez-se minha amiga—respondeu ele.
XII - OS DOIS AMORES
Depois das conversações que o café sempre provoca, Vignon pediu a Conti que cantasse um trecho qualquer. A srta. des Touches pôs-se ao piano. Camille e Gennaro cantaram
o Dunque il mio bene tu mia sarai, o último dueto de Romeu e Julieta, de Zingarelli, uma das páginas mais patéticas da música moderna. A passagem Di tanti palpiti
(Dunque il mio bene tu mia sarai (em italiano): “Assim tu, meu bem, serás minha”.—Zingarelli: Niccoló Antônio Zingarelli (1752-1837), compositor italiano.—Di tanti
palpiti (em italiano): “De tantas palpitações...”.) exprime o amor em toda a sua grandeza. Calisto, sentado na poltrona na qual Felicidade lhe contara a história
da marquesa, ouvia religiosamente. Beatriz e Vignon estavam cada um de um lado do piano. A voz sublime de Conti casava-se bem com a de Camille. Ambos tinham cantado
muitas vezes aquele trecho, cujos recursos conheciam, e se combinavam maravilhosamente para valorizá-lo. Foi, nesse momento, o que o músico quis criar—um poema de
divina melancolia, o adeus à vida dos dois cisnes. Quando terminaram o dueto, todos estavam dominados por sensações que não se manifestam por aplausos vulgares.
— Ah, a música é a primeira das artes!—exclamou a marquesa.
— Camille põe em primeiro lugar a juventude e a beleza, a primeira de todas as poesias—disse Cláudio Vignon.
A srta. des Touches olhou para Cláudio, dissimulando uma vaga inquietação. Beatriz, não vendo Calisto, voltou a cabeça como que para saber qual o efeito que aquela
música lhe fazia sentir, menos por interesse por ele do que para satisfação de Conti: entreviu no vão de uma janela um rosto branco coberto de lágrimas. Ante esse
aspecto, como se uma dor viva a tivesse atingido, ela virou prontamente a cabeça e olhou Gennaro. Não somente a Música se erguera diante de Calisto, tocara-o com
sua varinha divina, lançara-o na criação e despira-a de seus véus, mas, mais ainda, estava aturdido com o talento de Conti. Apesar do que lhe dissera Camille Maupin
do caráter dele, atribuía-lhe uma bela alma, um coração cheio de amor. Como lutar contra semelhante artista? Como poderia uma mulher não adorá-lo sempre? Aquele
canto entrava na alma como uma outra alma. A pobre criança estava tão acabrunhada pela poesia como pelo desespero: achava-se tão pouca coisa! Essa acusação ingênua
de sua nulidade lia-se mesclada à sua admiração! Não se apercebeu do gesto de Beatriz, a qual, reconduzida a Calisto pelo contágio dos sentimentos verdadeiros, mostrou-o
por um sinal a srta. des Touches.
— Oh, que adorável coração!—disse Felicidade.—Conti, você jamais recolherá aplausos que valham a homenagem desta criança. Cantemos então um trio. Venha, querida
Beatriz.
Quando a marquesa, Camille e Conti se puseram ao piano, Calisto, sem que eles percebessem, levantou-se suavemente, atirou-se num dos sofás do quarto de dormir, cuja
porta estava aberta, e ali permaneceu mergulhado no seu desespero.
— Que tem, meu filho?—disse-lhe Cláudio, o qual se escorreu silenciosamente para junto de Calisto e segurou-lhe a mão.—Você ama, julga-se desdenhado; mas isso não
é verdade. Dentro de alguns dias você terá o campo livre aqui, reinará, será amado por mais de uma pessoa; enfim, se souber portar-se bem, você estará aqui como
um sultão.
— Que me diz!—exclamou Calisto, erguendo-se e puxando com um gesto Cláudio para a biblioteca.—Quem me ama aqui?
— Camille—respondeu Cláudio.
— Camille me amaria?—perguntou Calisto.—Mas, e você?
— Eu—replicou Cláudio—,eu...
Não continuou. Sentou-se e apoiou a cabeça, com profunda melancolia, numa almofada.
— Estou enjoado da vida, não tenho coragem de deixá-la—disse ele após um momento de silêncio.—Eu quisera ter-me enganado no que acabo de dizer-lhe; mas, faz alguns
dias, mais de um vivo clarão luziu. Não fui passear pelos rochedos do Croisic para meu prazer. A amargura das minhas palavras, quando voltei, quando o encontrei
conversando com Camille, tinha suas origens no fundo do meu amor-próprio ferido. Daqui a pouco eu me explicarei com Camille. Dois espíritos tão clarividentes como
o dela e o meu não se poderão enganar. Entre dois duelistas de profissão o combate não tem longa duração. Por isso posso de antemão anunciar-lhe minha partida. Sim,
deixarei as Touches, amanhã talvez, com Conti. Certamente passar-se-ão aqui, depois de partirmos, coisas estranhas, talvez terríveis, e terei o pesar de não assistir
a esses debates de paixão, tão raros em França, e tão dramáticos. Você é demasiado jovem para uma luta tão perigosa: você interessa-me. Sem a profunda repulsa que
as mulheres me inspiram, eu ficaria para auxiliá-lo a jogar esta partida: ela é difícil, você pode perdê-la, pois tem de haver-se com duas mulheres extraordinárias,
e você já está demasiado apaixonado por uma para servir-se da outra. Beatriz deve ser de caráter obstinado e Camille tem grandeza. É possível que, como uma coisa
franzina e delicada, você seja despedaçado entre esses dois escolhos, arrastado pelas torrentes de paixão. Tome cuidado!
A estupefação de Calisto, ao ouvir essas palavras, permitiu a Cláudio Vignon dizê-las e deixar o jovem bretão, o qual ficou como um viajante a quem, nos Alpes, um
guia tivesse demonstrado a profundidade de um abismo, nele atirando uma pedra. Ouvir dos próprios lábios de Cláudio que ele, Calisto, era amado por Camille, no momento
em que se sentia apaixonado por Beatriz para toda a vida! Havia nessa situação um peso demasiado forte para uma jovem alma tão ingênua. Premido por pesar imenso
que o acabrunhava no passado, morto no presente pela dificuldade de sua posição entre Beatriz, a quem amava, entre Camille a quem não amava mais, e pela qual Cláudio
o dizia amado, a pobre criança desesperava-se, permanecia indecisa, perdida nos seus pensamentos. Procurava inutilmente os motivos que tivera Felicidade para rejeitar
seu amor e ir a Paris, a fim de trazer de lá Cláudio Vignon. Por vezes a voz de Beatriz chegava pura e fresca aos seus ouvidos e causava-lhe essas emoções violentas
que ele evitara ao deixar o pequeno salão. Por várias vezes, ele não se sentira mais com forças para reprimir um feroz desejo de pegá-la e levá-la. Que iria ser
dele? Voltaria às Touches? Ao saber-se amado por Camille, como poderia adorar Beatriz ali? Não encontrava solução para essas dificuldades. Insensivelmente reinou
silêncio na casa. Ele ouviu sem prestar atenção ao ruído de várias portas que se fechavam. Depois, repentinamente, contou as doze badaladas da meia-noite no relógio
do quarto contíguo, onde as vozes de Camille e de Cláudio despertaram-no da entorpecente contemplação de seu futuro, e onde brilhava uma luz em meio às trevas. Antes
de mostrar-se, ele pôde ouvir terríveis palavras proferidas por Vignon.
— Você chegou de Paris perdidamente apaixonada por Calisto—dizia ele a Felicidade -; mas estava apavorada com as consequências de semelhante paixão na sua idade,
pois que a levava a um abismo, a um inferno, talvez mesmo ao suicídio. O amor não subsiste senão ao acreditar-se eterno, e você avistava a alguns passos na sua vida
uma separação horrível: o enfaramento e a velhice, terminando em breve um poema sublime. Você recordou-se de Adolfo, pavoroso desenlace dos amores de Madame de Staël
e de Benjamim Constant, os quais entretanto estavam muito mais em relação de idade do que você e Calisto. Você tomou-me então como se tomam faxinas para erguer trincheiras
entre o inimigo e a gente. Mas se queria fazer-me gostar das Touches, não era para aqui passar seus dias na adoração secreta de seu Deus? Para realizar seu plano,
ao mesmo tempo ignóbil e sublime, você devia procurar um homem vulgar ou um homem tão preocupado com pensamentos transcendentais, que pudesse ser facilmente enganado.
Você julgou-me simples, fácil de iludir como a um homem de gênio. Parece que sou apenas um homem de espírito: adivinhei-a. Quando ontem lhe fiz o elogio da mulher
de sua idade, ao explicar-lhe por que Calisto a amava, acredita que tomei para mim seus olhares encantados, brilhantes, felizes? Já não tinha eu lido na sua alma?
Os olhos estavam de fato virados para mim, mas o coração pulsava por Calisto. Você nunca foi amada, minha pobre Maupin, e não o será jamais depois de ter recusado
o belo fruto que o acaso ofereceu-lhe às portas do inferno das mulheres e que giram em seus gonzos impelidos pelo número cinquenta!
— Por que, pois o amor me fugiu?—perguntou ela com voz alterada.—Diga-mo, você que sabe tudo!
— Mas porque você não é amável—replicou ele—,você não se dobra ao amor, ele deve dobrar-se a você. Você poderá talvez entregar-se às malícias e ao ardor dos garotos;
mas não tem infância no coração, há demasiada profundidade no seu espírito, você nunca foi ingênua e não poderá começar a sê-lo hoje. Sua graça vem do mistério,
é abstrata e não ativa. Enfim, sua força afasta as pessoas muito fortes que preveem uma luta. Seu poder poderá agradar a almas jovens que, semelhantes à de Calisto,
gostam de ser protegidas; mas com a continuação ela cansa. Você é grande e sublime: suporte os inconvenientes dessas duas qualidades, elas entediam.
— Que sentença!—exclamou Camille.—Não posso ser mulher? Sou alguma monstruosidade?
— Talvez—respondeu Cláudio.
— Veremos!—exclamou a dama, ferida ao vivo.
— Adeus, minha querida; parto amanhã. Não lhe quero mal, Camille: considero-a a maior das mulheres; mas se continuasse a servir-lhe de biombo ou de painel—disse
Cláudio, com duas sábias inflexões de voz—,você me desprezaria singularmente. Podemos separar-nos sem pesar nem remorsos; não temos nem felicidade a nos pungir saudades,
nem esperanças fraudadas. Para você, como para alguns homens de gênio infinitamente raros, o amor não é o que a natureza o fez: uma necessidade imperiosa, em cuja
satisfação ela prende prazeres vivos, porém passageiros e que morre; você o vê tal como o criou o cristianismo: um reino ideal, cheio de sentimentos nobres, de grandes
pequenezes, de poesias, de sensações espirituais, de devotamentos, de flores morais, de harmonias sedutoras e situado muito acima das grosserias vulgares, mas para
onde vão duas criaturas reunidas num anjo, levadas pelas asas do prazer. Eis o que eu esperava, eu acreditava segurar uma das chaves que nos abrem a porta fechada
para tanta gente e pela qual nos projetamos no infinito. Você, sim, já lá estava! Assim, pois, enganou-me. Volto para a miséria, na minha vasta prisão de Paris.
No começo de minha carreira, esse engano ter-me-ia bastado para fazer-me evitar as mulheres: hoje, ele põe em minha alma um desencantamento que me mergulha para
sempre numa solidão pavorosa, onde me acharei sem a fé que auxiliava os padres a povoá-la de imagens sagradas. Aí está, minha querida Camille, onde nos leva a superioridade
do espírito: podemos ambos cantar o hino horrível que um poeta põe na boca de Moisés, quando falava a Deus:
“Fizeste-me, Senhor, poderoso e solitário!” (Fizeste-me, Senhor, poderoso e solitário (no original: Seigneur, vus m’avez fait puissant et solitaire): verso do “Moisés”,
de Vigny, que Balzac cita de memória deformando-o um pouco. No poema, com efeito, lê-se: Hélas, je suis, Seigneur, puissant et solitaire.)
Nesse momento surgiu Calisto.
— Não devo deixar que ignorem estar eu aqui.
A srta. des Touches manifestou o mais vivo temor, uma vermelhidão súbita corou seu rosto impassível com uma tonalidade de fogo. Durante toda essa cena, ela permaneceu
mais bela do que em qualquer outro momento de sua vida.
— Nós julgávamos que tivesse ido embora, Calisto—disse Cláudio -; mas essa involuntária indiscrição, quer de um lado quer do outro, não tem perigo: talvez você se
sinta mais à vontade nas Touches, conhecendo Felicidade completamente. Seu silêncio indica que não me enganei quanto ao papel que ela me destinava. Ela ama-o, como
eu lhe disse, mas ama-o por você e não por ela, sentimento que poucas mulheres são capazes de conceber e de adotar: poucas dentre elas conhecem a volúpia das dores
mantidas pelo desejo, uma das magníficas paixões reservadas ao homem; ela porém é um pouco homem!—disse ele motejando.—Sua paixão por Beatriz fá-la-á sofrer e a
tornará feliz ao mesmo tempo.
Lágrimas assomaram aos olhos da srta. des Touches, a qual não ousava olhar nem o terrível Cláudio Vignon nem o ingênuo Calisto. Estava amedrontada por ter sido compreendida,
não acreditava ser possível a um homem, qualquer que fosse o alcance de sua compreensão, adivinhar uma delicadeza tão cruel e um heroísmo tão elevado quanto o dela.
Ao senti-la assim humilhada por ver suas grandezas desvendadas, Calisto partilhou a emoção daquela mulher a quem colocara tão alto e a quem contemplava abatida.
Calisto, num movimento irresistível, arrojou-se de joelhos aos pés de Camille e beijou-lhe as mãos, nelas escondendo o rosto coberto de lágrimas.
— Cláudio—disse ela—,não me abandone, que será de mim?
— Que tem você a temer?—respondeu o crítico.—Calisto já ama a marquesa como um louco. Certamente que você não poderia achar uma barreira mais forte entre você e
ele do que este amor que você mesma excitou. Essa paixão vale tanto quanto eu. Ontem havia perigo para você e para ele; hoje, porém, tudo lhe será felicidade maternal—disse
ele, dirigindo-lhe um olhar escarninho.—Terá orgulho dos seus triunfos.
A srta. des Touches olhou Calisto, o qual, ante essas palavras, erguera a cabeça num gesto brusco. Cláudio Vignon, como única vingança, gozava o prazer de ver a
confusão de Calisto e de Felicidade.
— Você o impeliu para a sra. de Rochefide—continuou Cláudio Vignon—,ele está agora sob a ação do encantamento. Você mesma cavou sua sepultura. Se se tivesse confiado
a mim, teria evitado as desgraças que a esperam!
— Desgraças!—exclamou Camille Maupin, segurando a cabeça de Calisto, erguendo-a até ela e beijando-a nos cabelos, neles derramando abundantes lágrimas.—Não, Calisto,
você esquecerá tudo o que acaba de ouvir e me considerará como inexistente.
Levantou-se, perfilou-se ante aqueles dois homens e dominou-os com os relâmpagos que lançavam seus olhos nos quais brilhava toda a sua alma.
— Enquanto Cláudio falava—disse ela—,eu concebi a beleza, a grandeza de um amor sem esperança. Não é esse o único sentimento que nos aproxima de Deus? Não me ames,
Calisto; eu te amarei como nenhuma outra mulher será capaz de amar!
Foi o grito mais selvagem jamais soltado por uma águia ferida no seu ninho. Cláudio dobrou o joelho, pegou a mão de Felicidade e beijou-a.
— Separemo-nos, meu amigo—disse a srta. des Touches ao jovem—,sua mãe poderia ficar inquieta.
Calisto regressou a Guérande a passos lentos, voltando-se para ver a luz que brilhava nas janelas do apartamento de Beatriz. Ele próprio surpreendeu-se da pouca
compaixão que sentia por Camille, tinha contra ela a queixa de o ter privado de quinze meses de felicidade. Depois, por vezes, sentia em si os estremecimentos que
Camille acabava de causar-lhe; sentia nos cabelos as lágrimas que ela ali derramara, sofria com o sofrimento dela, julgava ouvir os gemidos que sem dúvida dava aquela
grande mulher, tão desejada poucos dias antes. Ao abrir a porta da casa paterna, na qual reinava um silêncio profundo, ele viu pela vidraça, à luz daquela lâmpada
de tão ingênua construção, a mãe trabalhando, à sua espera. Ante esse aspecto, os olhos de Calisto ficaram úmidos de lágrimas.
— Que te aconteceu?—perguntou Fanny, cujo semblante exprimia uma inquietação horrível.
Como única resposta, Calisto tomou a mãe em seus braços e beijou-a nas faces, na fronte, nos cabelos, com uma dessas efusões apaixonadas que encantam as mães e as
penetram com as chamas sutis da vida que elas deram.
— E a ti a quem amo—disse Calisto à mãe, quase envergonhada, e corando—,a ti que não vives senão para mim, a ti a quem quisera tornar feliz.
— Mas tu não estás no teu estado normal, meu filho—disse a baronesa, contemplando-o.—Que foi que te aconteceu?
— Camille ama-me e eu não a amo mais—disse ele.
A baronesa atraiu Calisto e beijou-lhe a fronte, e ele ouviu, no profundo silêncio daquela velha sala pardacenta e forrada, as pulsações de uma viva palpitação no
coração da mãe. A irlandesa tinha ciúmes de Camille e pressentia a verdade. Essa mãe, ao esperar o filho todas as noites, tinha aprofundado a paixão daquela mulher;
conduzida pelos clarões de uma meditação obstinada, ela penetrara o coração de Camille, e sem poder explicá-lo, imaginara naquela rapariga uma fantasia de maternidade.
A narrativa de Calisto aterrorizou aquela mãe simples e ingênua.
— Pois bem—disse ela após uma pausa—,ama a sra. de Rochefide, que essa não me causará desgosto.
Beatriz não era livre, ela não alteraria nenhum dos projetos formados para a felicidade de Calisto, pelo menos assim o acreditava Fanny, a qual via uma espécie de
nora a querer, e não outra mãe a combater.
— Mas Beatriz não me amará!—exclamou Calisto.
— Talvez—respondeu a baronesa com ar finório.—Não me disseste que ela ia ficar sozinha amanhã?
— Sim.
— Pois bem, meu filho!—acrescentou a mãe, corando.—O ciúme está no fundo de todos os nossos corações e eu não sabia que o iria encontrar um dia no fundo do meu,
porquanto não pensava que me pudessem disputar a afeição de meu Calisto—suspirou. —Eu acreditava—acrescentou—que o casamento seria para ti o que foi para mim. Quanta
luz projetaste na minha alma nestes dois meses! De que reflexos se colore teu amor tão natural, pobre anjo! Pois bem, simula de continuar amando a tua srta. des
Touches, a marquesa ficará enciumada, e assim a terás.
— Oh minha boa mãe, Camille não me teria dito isso!—exclamou Calisto agarrando a mãe pela cintura e beijando-a no pescoço.
— Tu me tornas bem perversa, meu filho—disse ela, bem feliz com a fisionomia radiante que a esperança dava ao filho, o qual subiu alegremente a escada da torrinha.
TERCEIRA PARTE
A RIVALIDADE
I - TRÊS MULHERES POR UMA
No dia seguinte de manhã, Calisto disse a Gasselin que fosse pôr-se de sentinela no caminho de Guérande a Saint-Nazaire, a fim de espreitar na passagem o carro da
srta. des Touches e contar as pessoas que nele se achassem.
Gasselin voltou no momento em que toda a família estava reunida e almoçava.
— Que há?—perguntou a srta. du Guénic.—Gasselin veio correndo, como se Guérande estivesse pegando fogo.
— Ele deve ter pegado o arganaz—disse Mariotte, a qual trazia o café, o leite e as torradas.
— Ele vem da cidade, e não do jardim—respondeu a srta. du Guénic.
— Mas o arganaz tem uma cova por trás do muro, do lado da praça—disse Mariotte.
— Senhor cavaleiro, eles eram cinco, quatro dentro e o cocheiro.
— Duas damas no fundo?—indagou Calisto.
— E dois senhores na frente—respondeu Gasselin.
— Sela o cavalo de meu pai e corre até lá, chega em Saint-Nazaire no momento em que o barco parte para Paimboeuf, e se os dois homens embarcam, vem avisar-me a toda
brida.
Gasselin saiu.
— Meu sobrinho, você está com o diabo no corpo!—disse a velha Zefirina.
— Deixe-o divertir-se, minha irmã!—exclamou o barão. -; ele andava triste como uma coruja, ei-lo agora alegre como um pintassilgo.
— Você talvez já lhe tenha dito que nossa querida Carlota está por chegar?—exclamou a velha solteirona, virando-se para a cunhada.
— Não—respondeu a baronesa.
— Eu acreditava que ele quisesse ir ao encontro dela—disse maliciosamente a srta. du Guénic.
— Se Carlota ficar três meses em casa da tia, ele terá bastante tempo para vê-la.
— Oh minha irmã, que foi que se passou de ontem para cá?—perguntou a velha solteirona.—Você estava tão feliz por saber que a srta. de Pen-Hoël ia esta manhã buscar
a sobrinha.
— Jaqueline quer fazer-me desposar Carlota para arrancar-me à perdição, minha tia—disse Calisto rindo e dirigindo à mãe um olhar de inteligência.—Eu estava na alameda,
quando a srta. de Pen-Hoël conversava com o sr. du Halga; ela, porém, não pensou que fosse uma perdição bem maior para mim casar-me na minha idade.
— Está escrito lá em cima—disse a velha tia, interrompendo Calisto—que eu não morrerei nem tranquila, nem feliz. Eu quisera ver nossa família continuar, e algumas
das nossas terras readquiridas por compra, mas nada disso acontecerá. Podes tu, meu belo sobrinho, pôr alguma coisa na balança com tais deveres?
— Mas—disse o barão—será que a srta. des Touches impedirá Calisto de casar-se, quando for preciso? Devo ir vê-la.
— Posso assegurar-lhe, meu pai, que Felicidade jamais será um obstáculo ao meu casamento.
— Eu já não vejo mais claro—disse a velha cega, a qual nada sabia da súbita paixão do sobrinho pela marquesa de Rochefide.
A mãe guardou o segredo do filho; em tais assuntos, o silêncio é instintivo em todas as mulheres. A solteirona caiu em profunda meditação, ouvindo com todas as suas
forças, espreitando as vozes e o ruído, a fim de poder adivinhar o mistério que lhe ocultavam. Gasselin não tardou a chegar e disse a seu jovem senhor que não precisaria
ir a Saint-Nazaire para saber que a srta. des Touches e sua amiga regressariam sozinhas, pois soubera-o na cidade em casa de Bernus, o almocreve que se encarregara
da bagagem dos dois senhores.
— Elas estarão sós na volta!—exclamou Calisto.—Sela meu cavalo.
Pelo tom de seu jovem senhor, Gasselin julgou que talvez houvesse algo de grave; foi selar os dois cavalos, carregou as pistolas sem nada dizer a ninguém e vestiu-se
para acompanhar Calisto. Este estava tão contente por saber que Cláudio e Gennaro haviam partido, que não pensava no encontro que ia ter em Saint-Nazaire; não pensava
senão no prazer de acompanhar a marquesa; pegava as mãos do velho pai e apertava-as ternamente, beijava a mãe e estreitava a velha tia pela cintura.
— Enfim, prefiro-o assim a vê-lo triste—disse a velha Zefirina.
— Onde vais, cavaleiro?—perguntou-lhe o pai.
— A Saint-Nazaire.
— Diabos! E para quando o casamento?—disse o barão, que pensou estar o filho com pressa de rever Carlota de Kergarouët.—Tarda-me de ser avô, já é tempo.
Quando Gasselin se apresentou na intenção bem evidente de acompanhar Calisto, o moço pensou que talvez pudesse voltar no carro de Camille com Beatriz, deixando seu
cavalo com Gasselin, pelo que lhe deu um leve tapa no ombro, dizendo:
— Tiveste espírito.
— Acredito—respondeu Gasselin.
— Meu rapaz—disse o pai, ao ir com Fanny até o terraço da escadaria exterior—,poupa os cavalos, pois eles terão de fazer doze léguas.
Calisto partiu, depois de ter trocado o mais penetrante olhar com a mãe.
— Querido tesouro—disse ela, ao vê-lo curvar a cabeça sob o arco abobadado da porta de entrada.
— Que Deus o proteja!—disse o barão—porque não o tornaríamos a fazer.
Essas palavras ditas no tom licencioso dos gentis-homens da província fizeram a baronesa estremecer.
— Meu sobrinho não ama suficientemente Carlota para ir ao encontro dela—disse a velha a Mariotte, que estava tirando a mesa.
— Chegou uma grande dama, uma marquesa nas Touches e ele corre atrás dela! Ora, é da idade!—disse Mariotte.
— Elas no-lo matarão—disse a srta. du Guénic.
— Isso não o matará, senhorita, pelo contrário—respondeu Mariotte, que parecia feliz com a felicidade de Calisto.
Calisto seguia numa marcha capaz de arrebentar o cavalo, quando Gasselin muito oportunamente perguntou ao patrão se ele queria chegar antes da partida do barco,
o que não era absolutamente a intenção daquele; não queria que o vissem, nem Conti, nem Cláudio. O rapaz retardou o passo do cavalo e pôs-se a olhar complacentemente
os duplos rastos deixados pelas rodas da caleça nas partes arenosas da estrada. Estava numa alegria louca só de pensar: “Ela passou por ali, ela voltará por ali,
seus olhares detiveram-se naqueles bosques, naquelas árvores!”.
— Que lindo caminho—disse ele a Gasselin.
— Ah senhor, a Bretanha é a mais bela terra do mundo!—respondeu o criado.—Em que outro lugar há flores nas sebes e frescos caminhos que se viram como aquele?
— Em terra nenhuma, Gasselin.
— Aí está o carro de Bernus—disse Gasselin.
— A srta. de Pen-Hoël e a sobrinha vêm nele; escondamo-nos—disse Calisto.
— Aqui, senhor?... Está louco? Estamos nas areias.
O carro, que subia efetivamente numa encosta bastante arenosa acima de Saint-Nazaire, apareceu ao olhar de Calisto na ingênua simplicidade de sua construção bretã.
Com grande espanto do rapaz, o carro vinha cheio.
— Nós deixamos a srta. de Pen-Hoël, a irmã e a sobrinha que se atormentam; todos os lugares estavam tomados pela aduana—disse o condutor a Gasselin.
— Estou perdido!—exclamou Calisto.
Efetivamente, o carro estava cheio de empregados que iam sem dúvida render os das salinas. Quando Calisto chegou à pequena esplanada que se estende em torno da igreja
de Saint-Nazaire, e de onde se avista Paimboeuf, e a majestosa embocadura do Loire, lutando com o mar, ele ali encontrou Camille e a marquesa, agitando os lenços
para dizer um último adeus aos dois passageiros que o barco a vapor levava. Beatriz estava encantadora assim: o semblante ameigado pelo reflexo de um chapéu de palha
de arroz, sobre o qual estavam atiradas papoulas e atado com uma fita vermelho vivo, um vestido de musselina estampada, avançando seu pequenino pé, delicado, calçado
com polainas verdes, apoiando-se na sua frágil sombrinha e mostrando sua bela mão enluvada. Nada tão grandioso para a vista como uma mulher no alto de um rochedo,
como uma estátua no seu pedestal. Conti pôde então ver Calisto abordando Camille.
— Pensei—disse o rapaz à srta. des Touches—que voltariam sozinhas.
— Fez bem, Calisto—respondeu ela apertando-lhe a mão.
Beatriz voltou-se, olhou o seu jovem apaixonado e dirigiu-lhe o mais imperioso olhar de seu repertório. Um sorriso que a marquesa surpreendeu nos eloquentes lábios
de Camille fez-lhe compreender a vulgaridade daquele meio, digno de uma burguesa. A sra. de Rochefide disse então a Calisto, sorrindo:
— Não será uma leve impertinência julgar que eu pudesse aborrecer Camille no caminho?
— Minha querida, um homem para duas viúvas não está demais—disse a srta. des Touches, tomando o braço de Calisto e deixando Beatriz ocupada em contemplar o vapor.
Nesse momento, Calisto ouviu na rua em declive que desce para o que se deve chamar o porto de Saint-Nazaire as vozes da srta. de Pen-Hoël, de Carlota e de Gasselin,
tagarelando os três como gralhas. A solteirona interrogava Gasselin e queria saber por que seu senhor e ele se achavam em Saint-Nazaire, onde a carruagem da srta.
des Touches causava escândalo. Antes de o rapaz poder retirar-se, fora visto por Carlota.
— Ali está Calisto!—exclamou a pequena bretã.
— Vá oferecer-lhes meu carro; a criada de quarto irá ao lado do cocheiro—disse Camille, que sabia não terem a sra. de Kergarouët, sua filha e a srta. de Pen-Hoël
conseguido lugares.
Calisto, que não podia deixar de obedecer a Camille, veio desempenhar-se de seu encargo. Assim que ela soube que viajaria com a marquesa de Rochefide e a célebre
Camille Maupin, a sra. de Kergarouët não quis dar atenção às reticências de sua irmã mais velha, a qual se negava a aproveitar-se do que denominava a carriola do
diabo. Em Nantes estava-se numa latitude um pouco mais civilizada do que em Guérande, lá se admirava Camille, ela era como que a musa da Bretanha e honrava a terra,
excitando tanta curiosidade quanto inveja. A absolvição dada em Paris pela alta sociedade, pela moda, estava consagrada pela grande fortuna da srta. des Touches
e talvez pelos seus antigos êxitos em Nantes, a qual se orgulhava de ter sido berço de Camille Maupin. Por isso a viscondessa, louca de curiosidade, arrastou a velha
irmã, sem dar ouvidos às suas jeremiadas.
— Bom dia, Calisto—disse a pequena Kergarouët.
— Bom dia, Carlota—respondeu Calisto sem lhe oferecer o braço.
Ambos confusos, ela por tanta frieza, ele por sua crueldade, subiram a ladeira escavada que em Saint-Nazaire chamam de rua e seguiram em silêncio as duas irmãs.
Num momento, a meninota de dezesseis anos viu esboroar-se no ar o castelo que construíra, mobiliado por suas romanescas esperanças. Ela e Calisto tinham brincado
juntos tantas vezes durante a infância, ela estava tão ligada a ele, que acreditava ser seu futuro inalterável. Ela vinha trazida por uma felicidade estonteada,
como um pássaro que se precipita sobre um trigal; foi detida no seu voo, sem poder imaginar qual fora o obstáculo.
— Que tens, Calisto?—perguntou, segurando-lhe a mão.
— Nada—respondeu o rapaz, desprendendo a mão com horrível pressa, ao pensar nos projetos de sua tia e da srta. de Pen-Hoël.
Os olhos de Carlota encheram-se de lágrimas. Olhou sem ódio para o belo Calisto; mas ia sentir seu primeiro ímpeto de ciúme e as pavorosas iras da rivalidade, ante
o aspecto das duas belas parisienses e ao suspeitar a causa da frieza de Calisto.
De estatura meã, Carlota de Kergarouët tinha um viço vulgar, um pequeno rosto redondo avivado por dois olhos negros com pretensões a espirituosos, cabelos castanhos
abundantes, uma cintura redonda, um dorso chato, braços magros, o falar conciso e decidido das filhas da província que não querem ter o ar de pequenas tolas. Era
a criança mimada da família por causa da predileção da tia por ela. Trazia sobre si naquele momento o manto de merino escocês de grandes quadros, forrado de seda
verde, que usava quando a bordo do barco a vapor. Seu vestido de viagem, de lã peluda bastante comum, de corpete castamente afogado, enfeitado com uma gola de inúmeras
pregas, ia parecer-lhe horrível ante o aspecto dos frescos vestidos de Beatriz e de Camille. Devia sofrer por estar de meias brancas que se haviam sujado nas rochas,
nos barcos por onde saltara, e botinas ordinárias de couro, expressamente escolhidas para não estragar coisa alguma bonita na viagem, segundo os usos e costumes
da gente da província.
Quanto à viscondessa de Kergarouët, era ela o tipo da provinciana. Alta, seca, emurchecida, cheia de pretensões ocultas, que só se mostravam depois de feridas, falando
muito e adquirindo, à força de falar, algumas ideias, como carambola no bilhar, e que lhe davam a reputação de ser espirituosa, tentando humilhar os parisienses
pela pretensa bonomia da sabedoria departamental e por uma falsa felicidade incessantemente posta para a frente, abaixando-se para se fazer elevar e furiosa por
ser deixada de joelhos; pescando de caniço as lisonjas, segundo uma expressão inglesa, e nem sempre fisgando-as; usando uma toilette ao mesmo tempo exagerada e pouco
cuidada, tomando a falta de afabilidade por impertinência, e pensando embaraçar muito as pessoas, não lhes dando nenhuma atenção; recusando o que desejava para que
lho oferecessem duas vezes e para dar-se ares de ser rogada além dos limites; ocupada com aquilo de que já não mais se fala, e muito admirada de não estar em dia
com a moda; enfim, contendo-se dificilmente uma hora sem trazer à baila Nantes, e os tigres de Nantes, e os assuntos da alta sociedade de Nantes, e queixando-se
de Nantes, e criticando Nantes, e tomando por personalidades as frases arrancadas por complacência àqueles que, distraídos, concordavam com ela. Suas maneiras, sua
linguagem, suas ideias tinham-se mais ou menos comunicado às suas quatro filhas.
Conhecer Camille Maupin e a sra. de Rochefide, havia ali para ela um futuro cabedal para cem conversações!... por isso caminhava para a igreja como se a quisesse
conquistar de assalto, agitando seu lenço, que desdobrou para mostrar os cantos pesados de bordados domésticos e guarnecido com uma renda inválida. Tinha um andar
passavelmente arrogante, o qual, para uma mulher de quarenta e sete anos, era sem consequências.
— O senhor cavaleiro—disse ela a Camille e a Beatriz, apontando para Calisto que vinha lastimosamente com Carlota—comunicou-nos vossa amável proposta; mas tememos,
eu, minha irmã e minha filha, incomodar-vos.
— Não serei eu, minha irmã, que incomodarei essas senhoras—disse a velha solteirona com azedume—,porque encontrarei seguramente um cavalo em Saint-Nazaire para voltar.
Camille e Beatriz trocaram um olhar oblíquo que Calisto surpreendeu, e bastou esse olhar para aniquilar todas as suas recordações da infância, suas crenças nos Kergarouët-
Pen-Hoël, e despedaçar para sempre os projetos concebidos pelas duas famílias.
— Podemos caber perfeitamente as cinco no carro—disse a srta. des Touches, a quem Jaqueline deu as costas.—Quando mesmo nos sentíssemos terrivelmente apertadas,
o que não é possível devido à finura de vossos talhes, eu seria fartamente compensada pelo prazer de prestar um obséquio a amigos de Calisto. Vossa criada de quarto,
senhora, encontrará lugar; e vossos pacotes, se os tendes, podem vir atrás da caleça, pois não trouxe lacaio.
A viscondessa desfez-se em agradecimentos e ralhou com sua irmã Jaqueline por ter querido que a sobrinha viesse tão depressa, a ponto de não lhe ter permitido vir
no próprio carro, por terra; mas é verdade que a estrada da mala-posta era não somente longa como também despendiosa; ela devia regressar prontamente para Nantes,
onde deixara outras três gatinhas que a esperavam com impaciência, disse ela acariciando o pescoço da filha. Carlota teve então um arzinho de vítima, ao erguer os
olhos para a mãe, o que fez imaginar que a viscondessa caceteava prodigiosamente as quatro filhas, pondo-as tão frequentemente em cena quanto o cabo Trim põe seu
boné em Tristram Shandy (Tristram Shandy: obra já citada do humorista inglês Laurence Sterne. O cabo Trim é um veterano que serve fielmente a seu antigo comandante,
o tio Toby, assistindo-o em sua mania que consiste em reconstituir na planta e no chão as batalhas a que os dois assistiram.).
— Sois uma mãe feliz, e deveis...—disse Camille, que se deteve ao lembrar-se que a marquesa tivera de privar-se do filho para seguir Conti.
— Oh!—replicou a viscondessa—se tenho a desdita de passar minha vida na campanha, em Nantes, tenho o consolo de ser adorada por minhas filhas. Tendes filhos?—perguntou
ela a Camille.
— Chamo-me srta. des Touches—respondeu Camille.—A senhora é a marquesa de Rochefide.
— Devemos condoer-nos da senhora por não conhecer a maior felicidade que existe para nós, simples mulheres, não é, senhora?—disse a viscondessa à marquesa, a fim
de reparar sua falta.—Mas a senhora tem tantas compensações!
Uma lágrima quente apontou nos olhos de Beatriz, a qual voltou-se bruscamente e foi até o grosseiro parapeito do rochedo, onde Calisto a seguiu.
— Senhora—disse Camille ao ouvido da viscondessa—,ignorais que a marquesa está separada do marido, que faz dois anos não vê o filho e não sabe quando o tornará a
ver?
— Ora—disse a sra. de Kergarouët—,pobre senhora! Judicialmente?
— Não, por gosto—disse Camille.
— Pois bem, compreendo isso—respondeu intrepidamente a viscondessa.
A velha Pen-Hoël, desesperada por ver-se no campo inimigo, entrincheirara-se a quatro passos dali com a sua querida Carlota. Calisto, depois de ter verificado que
ninguém os podia ver, tomou a mão da marquesa e beijou-a, nela deixando cair uma lágrima. Beatriz voltou-se, com os olhos secos pela cólera; ia soltar alguma palavra
terrível, e nada pôde dizer ao tornar a encontrar seus prantos no belo rosto daquele anjo, tão dolorosamente atingido quanto ela própria.
— Meu Deus, Calisto—disse-lhe Camille ao ouvido, vendo-o voltar com a sra. de Rochefide—,você teria aquilo por sogra e aquela tolinha por esposa!
— Porque a tia dela é rica—disse Calisto ironicamente.
Todo o grupo pôs-se em marcha para a estalagem, e a viscondessa julgou-se obrigada a fazer para Camille uma sátira sobre os selvagens de Saint-Nazaire.
— Amo a Bretanha, senhora—respondeu gravemente Felicidade -; nasci em Guérande.
Calisto não podia deixar de admirar a srta. des Touches, a qual, pelo som da voz, a serenidade do olhar e a calma das maneiras, punha-o à vontade, apesar das terríveis
declarações que haviam sido feitas durante a noite. Não obstante, parecia um pouco fatigada: suas feições revelavam uma insônia, estavam como que engrossadas, mas
a fronte dominava a tormenta interior com uma placidez cruel.
— Que rainhas!—disse ele a Carlota, mostrando-lhe a marquesa e Camille, e dando o braço à mocinha com grande admiração da srta. de Pen-Hoël.
— Que ideia teve tua mãe—disse a velha solteirona, ao dar também o braço à sobrinha—,de meter-se na roda dessa réproba.
— Oh minha tia, uma mulher que é a glória da Bretanha!
— A vergonha, minha filha. Espero que tu não a vás também amimar.
— Carlota tem razão, a senhora não é justa—disse Calisto.
— Oh, garanto a você—respondeu a srta. de Pen-Hoël—,ela o enfeitiçou.
— Eu dedico a ela a mesma amizade que dedico à senhora—replicou Calisto.
— Desde quando os du Guénic mentem?—disse a velha tia.
— Desde que as Pen-Hoël são surdas—replicou Calisto.
— Não estás apaixonado por ela?—perguntou a velha encantada.
— Já o estive, não estou mais—respondeu ele.
— Malvado! Por que nos deste tantas preocupações? Eu bem sabia, o amor era uma tolice; nada é sólido a não ser o casamento—disse ela, olhando para Carlota.
Carlota, um pouco tranquilizada, esperou poder reconquistar suas vantagens, apoiando-se em todas as recordações da infância, e apertou o braço de Calisto, o qual
então a si mesmo prometeu explicar-se nitidamente com a pequena herdeira.
— Ah, que belas partidas de mouche faremos, Calisto—disse ela—,e como vamos rir!
Os cavalos estavam atrelados, Camille fez Carlota e a viscondessa passarem para o fundo do carro, porquanto Jaqueline desaparecera; depois colocou-se com a marquesa
no assento da frente. Calisto, obrigado a renunciar ao prazer que a si mesmo prometera, acompanhou o carro a cavalo e os cavalos, cansados, foram suficientemente
devagar para que lhe fosse possível contemplar Beatriz. A história perdeu as estranhas conversações das quatro pessoas que o acaso reunira tão singularmente naquele
carro, porque é impossível admitir as cento e poucas versões que têm curso em Nantes, a respeito das narrativas, das réplicas, dos ditos que a viscondessa pescou
da célebre Camille Maupin, ele mesmo. Ela teve o cuidado de não repetir e de não compreender as respostas da srta. des Touches a todas as perguntas extravagantes
que os autores tão frequentemente ouvem, e com as quais os fazem expiar cruelmente os raros prazeres de que gozam.
— Como fez a senhora seus livros?—perguntou a viscondessa.
— Mas do mesmo modo pelo qual a senhora faz seus trabalhos femininos, filete ou bordado—respondeu Camille.
— E de onde tirou a senhora aquelas observações tão profundas e aqueles quadros tão sedutores?
— Onde a senhora foi buscar as coisas espirituosas que diz? Não há nada tão fácil como escrever e se a senhora quisesse...
— Ah, então tudo depende de querer? Aí está uma coisa em que eu não acreditaria! Qual é das suas composições a que prefere?
— É muito difícil ter preferências por uma dessas gatinhas.
— A senhora já está embotada em matéria de louvores, e a gente não sabe o que lhe dizer de novo.
— Creia, senhora, que sou sensível à forma que a senhora dá aos seus.
A viscondessa não quis parecer que desleixava a marquesa e disse, olhando-a com ar sutil:
— Jamais esquecerei esta viagem feita entre o espírito e a beleza.
— A senhora me lisonjeia—disse a marquesa rindo -; não é natural notar o espírito junto ao gênio, e eu ainda não disse grande coisa.
Carlota, que sentia vivamente os ridículos da mãe, olhou-a como que para detê-la, mas a viscondessa continuou a lutar bravamente com as duas zombeteiras de Paris.
O rapaz, que ia a trote lento e descansado ao lado da caleça, não podia ver senão as duas mulheres sentadas no assento da frente, e seu olhar abrangia-as alternativamente,
traindo pensamentos bastante dolorosos. Forçada a deixar-se ver, Beatriz evitou constantemente de pousar os olhos no rapaz; por uma manobra desesperadora para as
pessoas que amam, ela mantinha seu xale cruzado sob suas mãos contraídas, e parecia empolgada por profunda meditação. Num lugar em que a estrada era sombreada, úmida
e verde, como uma deliciosa vereda na floresta, em que o ruído da caleça mal se ouvia, em que as folhas roçavam a capota e o vento trazia odores balsâmicos, Camille
fez notar aquele lugar cheio de harmonias e apoiou a mão no joelho de Beatriz, mostrando-lhe Calisto.
— Como ele monta bem a cavalo—disse ela.
— Calisto?—disse a viscondessa.—É um cavaleiro encantador.
— Oh, Calisto é bem gentil!—disse Carlota.
— Há tantos ingleses que se lhe assemelham!...—respondeu indolentemente a marquesa sem terminar a frase.
— A mãe dele é uma irlandesa, uma O’Brien—replicou Carlota, que se julgou atacada pessoalmente.
Camille e a marquesa entraram em Guérande com a viscondessa de Kergarouët e a filha, com grande espanto de toda a cidade estupefata; elas deixaram os companheiros
de viagem na estrada da viela du Guénic, onde pouco faltou para que se formasse um ajuntamento. Calisto apressara o passo do cavalo para ir prevenir a tia e a mãe
da chegada dessa companhia esperada para jantar. A refeição fora retardada convencionalmente até as quatro horas. O cavaleiro voltou para dar o braço às duas damas;
depois beijou a mão de Camille na esperança de poder pegar a da marquesa, que manteve resolutamente os braços cruzados e à qual ele dirigiu as mais vivas preces
num olhar inutilmente umedecido.
— Tolinho—disse-lhe Camille, roçando-lhe a orelha com um modesto beijo cheio de amizade.
“É verdade”, disse Calisto consigo mesmo, enquanto a caleça dava volta, “esqueço as recomendações de minha mãe; mas creio que as esquecerei sempre.”
II - DIPLOMACIA FEMININA
A srta. de Pen-Hoël, tendo chegado intrepidamente montada num cavalo de aluguel, a viscondessa de Kergarouët e Carlota encontraram a mesa posta e foram tratadas
com cordialidade, senão com luxo, pelos du Guénic. A velha Zefirina tinha indicado, nas profundidades da adega, vinhos finos, e Mariotte esmerara-se nos seus pratos
bretões. A viscondessa, encantada por ter feito a viagem com a ilustre Camille Maupin, tentou explicar a literatura moderna e o lugar que nela ocupava Camille; mas
aconteceu com o mundo literário o mesmo que com o uíste: nem os du Guénic, nem o cura, que apareceu, nem o cavaleiro du Halga, nada entenderam. O abade Grimont e
o velho marujo tomaram parte nos licores da sobremesa. Assim que Mariotte, auxiliada por Gasselin e pela criada de quarto da viscondessa, tirou a mesa, houve um
brado de entusiasmo para se entregarem à mouche. Reinava a alegria na casa. Todos julgavam Calisto livre e viam-no casado dentro em pouco com a pequena Carlota.
Calisto permanecia silencioso. Pela primeira vez na vida, ele estabelecia um paralelo entre as Kergarouët e as duas mulheres elegantes, espirituosas, de muito bom
gosto, que, durante aquele momento, muito se deviam rir das duas provincianas, tendo em vista o primeiro olhar que haviam trocado. Fanny, que conhecia o segredo
de Calisto, observava a tristeza do filho, sobre quem as faceirices de Carlota ou os ataques da viscondessa deslizavam sem impressioná-lo. Evidentemente, seu querido
filho se aborrecia; o corpo estava naquela sala onde outrora ele se teria divertido com as pilhérias da mouche, mas o espírito passeava nas Touches. “Como mandá-lo
à casa de Camille?”, a si mesma perguntava a mãe, que simpatizava com o filho que amava e se entediava com ele. Sua ternura comovida deu-lhe espírito:
— Estás morto de desejos de ir às Touches, vê-la?—disse Fanny ao ouvido de Calisto.
O rapaz respondeu com um sorriso e um rubor que fizeram aquela mãe adorável estremecer até nos últimos refolhos do coração.
— Senhora—disse ela à viscondessa—,amanhã vai sentir-se muito mal no carro do recadeiro, e sobretudo obrigada a partir muito cedo; não será melhor que vá no carro
da srta. des Touches? Calisto—disse ela olhando para o filho—,vai arrumar esse assunto nas Touches; mas volta-nos depressa.
— Não preciso nem de dez minutos!- exclamou Calisto, o qual beijou aloucadamente a mãe na escadaria exterior até onde ela o acompanhara.
Calisto correu com a ligeireza de um jovem gamo e achou-se à entrada das Touches, quando Camille e Beatriz saíam do grande salão depois do jantar. Teve o espírito
de oferecer o braço a Felicidade.
— Você abandonou por nós a viscondessa e a filha—disse ela, comprimindo-lhe o braço—e nós estamos habilitadas a reconhecer a extensão desse sacrifício.
— Esses Kergarouët são parentes dos Portenduère e do velho Almirante de Kergarouët, cuja viúva desposou Carlos de Vandenesse?—perguntou a sra. de Rochefide a Camille.
— A srta. Carlota é sobrinha-neta do almirante—respondeu Camille.
— É uma criatura encantadora—disse Beatriz, instalando-se numa poltrona gótica—,justamente aquilo de que precisa o sr. du Guénic.
— Esse casamento jamais se realizará—disse vivamente Camille.
Abatido pelo ar calmo e frio da marquesa, a qual apontava a pequena bretã como sendo a única criatura que pudesse emparelhar-se com ele, Calisto ficou sem voz e
sem espírito.
— E por que, Camille?—perguntou a sra. de Rochefide.
— Minha querida—replicou Camille ao ver o desespero de Calisto—,eu não aconselhei Conti a que se casasse, e creio ter sido amabilíssima com ele: você não é generosa.
Beatriz olhou a amiga com uma surpresa mesclada de suspeitas indefiníveis. Calisto compreendeu mais ou menos o devotamento de Camille, ao ver invadir-lhe as faces
aquele leve rubor que indicava nela as mais violentas emoções; veio acanhadamente para perto dela e beijou-lhe a mão. Camille pôs-se negligentemente ao piano, como
uma mulher que deposita absoluta confiança na sua amiga e no adorador que ela se atribuía, dando-lhes as costas e deixando-os quase sós. Improvisou variações sobre
alguns temas escolhidos inconscientemente por seu espírito, pois foram excessivamente melancólicos. A marquesa parecia ouvir, mas observava Calisto, o qual, demasiado
jovem e ingênuo para desempenhar o papel que Camille lhe dava, estava em êxtase ante seu verdadeiro ídolo. Depois de uma hora, durante a qual a srta. des Touches
deixou-se naturalmente arrastar para o seu ciúme, Beatriz foi para seus aposentos. Camille fez logo Calisto passar para seu quarto, a fim de não ser ouvida, porquanto
as mulheres têm um admirável instinto de desconfiança.
— Meu filho—disse-lhe ela—,dê-se ares de quem me ama, ou do contrário estará perdido. Você é uma criança, não conhece absolutamente as mulheres, você apenas sabe
amar. Amar e fazer-se amar são duas coisas bem diferentes. Você vai sofrer horríveis dores, e eu quero-o feliz. Se você contrariar não o orgulho, mas a teimosia
de Beatriz, ela é capaz de voar para algumas léguas cerca de Paris, perto de Conti. Que será de você então?
— Eu a amarei—disse Calisto.
— Você não a tornará a ver.
— Oh sim!—disse ele.
— E como?
— Eu a seguirei.
— Mas tu és tão pobre como Jó, meu filho!
— Meu pai, Gasselin e eu permanecemos três meses na Vendeia com cento e cinquenta francos, caminhando noite e dia.
— Calisto—disse a srta. des Touches—,ouça-me bem. Vejo que você tem demasiada candura para fingir, não quero corromper uma índole tão bela quanto a sua; eu me encarregarei
de tudo. Você será amado por Beatriz.
— Será possível?—disse ele, de mãos postas.
— Sim—respondeu Camille—,mas é preciso vencer nela os compromissos que assumiu consigo mesma. Portanto eu mentirei por você. Unicamente, não vá estragar nada na
obra árdua que vou empreender. A marquesa possui uma finura aristocrática, é espirituosamente desconfiada; jamais caçador encontrou presa mais difícil de caçar:
aqui pois, meu pobre rapaz, o caçador deve ouvir seu cão. Promete-me uma obediência cega? Eu serei seu Fox—disse ela, atribuindo-se o nome do melhor lebreiro de
Calisto.
— Que devo fazer?—perguntou o rapaz.
— Muito pouca coisa—respondeu Camille.—Você virá aqui todos os dias ao meio-dia. Como uma amante impaciente, eu me colocarei numa das janelas do corredor, de onde
se avista o caminho de Guérande, a fim de o ver chegar. Retirar-me-ei para meu quarto para não ser vista e não lhe dar a medida de uma paixão que lhe pesa; mas algumas
vezes você me avistará e me fará um sinal com seu lenço. No pátio, e ao subir a escada, você aparentará um arzinho entediado. Isso não te forçará a dissimulações,
meu filho—disse ela inclinando a cabeça sobre o peito—,não é? Tu não irás depressa, olharás pela janela da escada que dá para o jardim, procurando ali Beatriz. Quando
ela estiver lá (e ela passeará por lá, podes ficar tranquilo!), se te vir, tu te precipitarás muito lentamente no salão pequeno e, daí, no meu quarto. Se me vires
na janela, espionando tuas traições, tu recuarás vivamente a fim de que eu não te surpreenda mendigando um olhar de Beatriz. Uma vez no meu quarto, serás meu prisioneiro...
Ah, ficaremos lá juntos até as quatro horas! Você empregará esse tempo lendo e eu a fumar; você se aborrecerá muito por não vê-la, mas eu lhe conseguirei livros
empolgantes. Você nada leu ainda de George Sand (George Sand: pseudônimo de Aurore Dupin (1803-1876), romancista célebre, autora de romances sentimentais, sociais
e campestres. Era amiga de Balzac, que a retratou justamente na figura de Camille Maupin. (Ver a Introdução.) Essa referência antes serve para despistar o leitor
e eventualmente defender Balzac da acusação de fazer romances à clef.), mandarei esta noite um dos meus serviçais comprar as obras dela em Nantes e as de alguns
outros autores que você não conhece. Serei a primeira a sair, e você não deixará seu livro, não virá ao meu pequeno salão, senão no momento em que ouvir Beatriz
conversando comigo. Todas as vezes que vir um livro de música aberto no piano, você me pedirá que fique. Permito-lhe que seja até grosseiro comigo, se é que o pode
ser; tudo irá bem.
— Sei, Camille, que você tem por mim a mais rara das afeições e que me faz lamentar ter visto Beatriz—disse ele com encantadora boa-fé—,mas que espera?
— Dentro de oito dias, Beatriz estará louca por você.
— Será possível, meu Deus?—disse ele, caindo de joelhos e juntando as mãos diante de Camille enternecida, feliz por dar-lhe uma alegria à sua própria custa.
— Ouça-me bem—disse ela.—Se tiver com a marquesa, não uma longa conversação, mas se trocar unicamente algumas palavras, enfim, se você a deixar interrogá-lo, se
não se cingir ao papel mudo que lhe dou, o qual é certamente fácil de representar, fique sabendo que a perderá para sempre—disse ela em tom grave.
— Não compreendo nada do que me está dizendo, Camille!—exclamou Calisto, olhando-a com adorável ingenuidade.
— Se compreendesses, não serias a criança sublime, o nobre e belo Calisto—respondeu ela, tomando-lhe a mão e beijando-a.
Calisto fez então o que jamais fizera; enlaçou Camille pela cintura e beijou-a no pescoço carinhosamente, sem amor, mas sim com ternura e como beijava a mãe. A srta.
des Touches não pôde conter uma torrente de lágrimas.
— Vá, meu filho, e diga à sua viscondessa que meu carro está às ordens dela.
Calisto quis ficar, mas foi obrigado a obedecer ao gesto imperativo e imperioso de Camille; voltou muito alegre, tinha certeza de, dentro de oito dias, ser amado
pela bela Rochefide. Os jogadores de mouche tornaram a encontrar nele o Calisto que fazia dois meses haviam perdido. Carlota atribuiu-se o mérito dessa mudança.
A srta. de Pen-Hoël foi encantadora de amáveis provocações para com ele. O abade Grimont buscava ler nos olhos da baronesa o motivo da calma que neles via. O cavaleiro
du Halga esfregava as mãos. As duas velhas tias tinham a vivacidade de duas lagartixas. A viscondessa devia cinco francos em mouches acumuladas. A cupidez de Zefirina
estava tão vivamente interessada que lamentava não ver as cartas, e desferiu alguns ditos picantes à cunhada, a quem a felicidade de Calisto causava distrações e
que por vezes o interrogava sem poder compreender coisa alguma nas suas respostas. A partida durou até as onze horas. Houve duas defecções: o barão e o cavaleiro
adormeceram nas suas respectivas poltronas. Mariotte fizera uns bolos de trigo mourisco, a baronesa foi buscar a lata de chá. A ilustre casa du Guénic serviu, antes
da partida dos Kergarouët e da srta. de Pen-Hoël, uma refeição composta de manteiga fresca, de frutas, de nata, e para a qual tiraram da arca o bule de chá de prata
e as porcelanas da Inglaterra enviadas à baronesa por uma de suas tias. Essa aparência de esplendor moderno naquela velha sala, a gentileza deliciosa da baronesa,
educada como boa irlandesa, a fazer e a servir o chá, esse grande acontecimento para as inglesas, tiveram um cunho encantador. O mais desenfreado luxo não obteria
o efeito simples, modesto e nobre produzido por aquele sentimento de alegre hospitalidade. Quando somente ficaram na sala a baronesa e o filho, ela olhou para Calisto
com ar curioso.
— Que te aconteceu nas Touches esta noite?—disse-lhe ela.
Calisto contou-lhe a esperança que Camille lhe havia infiltrado no coração e suas estranhas instruções.
— Pobre mulher!—exclamou a irlandesa, juntando as mãos, e apiedando-se pela primeira vez da srta. des Touches.
Alguns momentos depois da partida de Calisto, Beatriz, que o ouvira partir das Touches, voltou ao apartamento da amiga, a quem achou de olhos úmidos, meio reclinada
no sofá.
— Que tens, Felicidade?—perguntou-lhe a marquesa.
— Tenho quarenta anos e amo, querida!—disse, com um horrível tom de raiva, a srta. des Touches, cujos olhos se tornaram secos e brilhantes.—Se soubesses, Beatriz,
quantas lágrimas derramo pelos dias perdidos de minha juventude! Ser amada por piedade, saber-se que se deve a felicidade somente a trabalhos penosos, a sutilezas
de gata, a armadilhas preparadas contra a inocência e as virtudes de uma criança, não é isso infame? Felizmente, acha-se então uma espécie de absolvição no infinito
da paixão, na energia da felicidade, na certeza de estar para sempre acima de todas as mulheres, gravando nossa lembrança num coração jovem por meio de prazeres
inapagáveis, por um devotamento insensato. Sim, se ele mo pedisse, atirar-me-ia no mar a um simples sinal seu. Há momentos em que me surpreendo a almejar que ele
o queira, pois que isso seria uma oferenda e não um suicídio... Ah Beatriz, deste-me uma árdua tarefa ao vires aqui! Sei que é difícil levar vantagem sobre ti; mas
amas a Conti, és nobre e generosa, e não me enganarás; pelo contrário, auxiliar-me-ás a conservar meu Calisto. Eu já esperava a impressão que lhe causaste, mas não
cometi o erro de mostrar-me enciumada, o que seria incitar o mal. Pelo contrário, apresentei-te, pintando-te com cores tão vivas que jamais pudesses realizar o retrato,
e, por desgraça, estás mais bela do que nunca.
Essa violenta elegia, na qual o verdadeiro se mesclava à mentira, iludiu completamente a sra. de Rochefide. Cláudio Vignon dissera a Conti os motivos de sua partida;
Beatriz, como era natural, teve conhecimento disso; portanto, ao tratar Calisto friamente, ela demonstrava generosidade. Mas, nesse momento, ergueu-se em sua alma
esse movimento de alegria que se agita no fundo do coração de todas as mulheres quando se sabem amadas. O amor que inspiram a um homem comporta elogios sem hipocrisia
e que é difícil não saborear; mas quando esse homem pertence a uma amiga, suas homenagens causam mais do que alegria, são delícias celestes. Beatriz sentou-se junto
à amiga e animou-a.
— Não tens um cabelo branco—disse-lhe—,não tens uma ruga, tuas fontes têm ainda viço, ao passo que conheço mais de uma mulher de trinta anos obrigada a ocultar as
suas. Olha, querida—disse ela erguendo seus bucles—,vê o que me custou minha viagem!
A marquesa mostrou o imperceptível emurchecimento que fatigava a finura de sua pele tão macia; ergueu as mangas e fez ver uma pequena mácula nos pulsos, onde a transparência
do tecido já amarrotado deixava ver a rede dos vasos engrossada, e em que três linhas profundas formavam-lhe uma pulseira de rugas.
— Não são, como disse um escritor que vive na pista das nossas misérias, os dois lugares que em nós não mentem?—disse ela.—É preciso ter sofrido muito para reconhecer
a verdade de sua cruel observação; mas, felizmente para nós, a maioria dos homens ignora isso e não lê esse autor infame (Esse autor infame é sem dúvida o próprio
Balzac.).
— Tua carta disse-me tudo—respondeu Camille—,o amor ignora a fatuidade, tu nela gabavas-te muito de ser feliz. Em amor a verdade não é surda, muda e cega? Por isso,
sabendo-te com muitos motivos para abandonar Conti, temi tua estada aqui. Minha querida, Calisto é um anjo, é tão bom quanto belo, o pobre inocente não resistiria
a um único dos teus olhares, admira-te demasiado para não te amar ante um único encorajamento; teu desdém mo conservará. Confesso-te com a cobardia de verdadeira
paixão: tirar-mo seria matar-me. Adolfo, esse pavoroso livro de Benjamim Constant, disse-nos apenas as dores de Adolfo, mas e as da mulher? Hein! Ele não as observou
suficientemente para no-las descrever; e que mulher se atreveria a revelá-las? Elas desonrariam nosso sexo, humilhar-lhe-iam as virtudes e lhe ampliariam os vícios.
Ah! se os meço pelos meus temores, esses sofrimentos assemelham-se aos do inferno. Mas, em caso de abandono, meu tema está feito.
— E que decidiste?- perguntou Beatriz com uma vivacidade que fez Camille estremecer.
Ali as duas amigas se olharam com a atenção de dois inquisidores de Estado veneziano, com um olhar no qual suas almas se chocaram e deram fogo como duas pedras.
A marquesa baixou os olhos.
— Depois do homem, não há mais senão Deus—respondeu gravemente a mulher célebre.—Deus é o desconhecido. Eu me atirarei nele como num abismo. Calisto acaba de jurar-me
que te admira como se admira uma tela; mas tu, aos vinte e oito anos, estás em toda a magnificência da beleza. A luta acaba de começar entre mim e ele por uma mentira.
Sei felizmente como agir para triunfar.
— E como farás?
— Isto é meu segredo, querida. Deixa-me as vantagens da minha idade. Se Cláudio Vignon atirou-me brutalmente no abismo, eu, que me havia elevado até um lugar que
julgava inacessível, colherei ao menos todas as flores pálidas, estioladas, porém deliciosas, que crescem no fundo dos precipícios.
A marquesa foi modelada como cera pela srta. des Touches, que gozava um prazer selvagem a envolvê-la com seus ardis. Camille separou-se da amiga, a qual se foi espicaçada
pela curiosidade, flutuando entre a inveja e sua generosidade, mas certamente preocupada com o belo Calisto.
“Ela ficará encantada de enganar-me”, pensou Camille, ao dar-lhe o beijo de boa-noite.
Depois, quando ficou só, o autor cedeu o lugar à mulher; desatou em prantos, encheu de tabaco lavado no ópio a chaminé do seu houca e passou a maior parte da noite
a fumar, entorpecendo assim as dores de seu amor, e vendo através das nuvens de fumaça a deliciosa cabeça de Calisto.
“Que belo livro a escrever, esse no qual eu narrasse meus sofrimentos!”, disse comigo mesma, “mas ele já está feito. Safo viveu antes de mim, Safo era jovem. Bela
e comovedora heroína, verdadeiramente, uma mulher de quarenta anos! Fuma o teu houca, minha pobre Camille, nem sequer tens o recurso de fazer uma poesia da tua desgraça,
é o cúmulo!”
Deitou-se somente ao amanhecer, misturando assim de lágrimas, gritos de raiva e resoluções sublimes, a longa meditação em que por vezes ela estudava os mistérios
da religião católica, coisa em que, na sua vida de artista despreocupada e de escritor incrédulo, ela jamais pensara.
No dia seguinte, Calisto, a quem a mãe aconselhara que seguisse exatamente os conselhos de Camille, veio ao meio-dia, subiu misteriosamente para o quarto da srta.
des Touches, onde encontrou livros. Felicidade permaneceu numa poltrona ao lado da janela, entretida em fumar, contemplando ora o recanto selvagem dos pântanos,
ora o mar e Calisto, com quem trocou algumas palavras relativas a Beatriz. Houve um momento em que, ao ver a marquesa passeando no jardim, ela foi, fazendo-se ver
pela amiga, correr as cortinas e estendeu-as a fim de interceptar a luz, deixando entretanto que se escoasse um feixe de claridade que iluminava o livro de Calisto.
— Hoje, meu filho, eu te convidarei a que fiques para jantar—disse ela, pondo-lhe os cabelos em desordem—,e tu me recusarás, olhando para a marquesa; e não terás
dificuldade em fazer-lhe compreender o quanto lamentas não ficar.
Cerca das quatro horas, Camille saiu e foi representar a atroz comédia de sua falsa felicidade para a marquesa, a quem trouxe para seu salão. Calisto saiu do quarto,
compreendendo naquele momento a vergonha de seu papel. O olhar que dirigiu a Beatriz e que Felicidade esperava foi mais expressivo do que o que ela julgava. Beatriz
fizera uma toilette encantadora.
— Como estás coquetemente vestida, minha mimosa!—disse Camille, depois da partida de Calisto.
Esse manejo durou seis dias; foi acompanhado, sem que Calisto o soubesse, das mais hábeis conversações entre Camille e a amiga. Houve entre essas duas mulheres um
duelo sem tréguas, no qual usaram ardis, falsos golpes, generosidades ilusórias, confissões mentirosas, confidências astutas, na qual uma ocultava e a outra punha
a nu seu amor e onde, entretanto, o ferro aguçado, incandescente com as traidoras palavras de Camille, atingiu o fundo do coração da amiga e ali picava alguns desses
maus sentimentos que as mulheres honestas reprimem com tanta dificuldade. Beatriz acabara por ofender-se com as desconfianças manifestadas por Camille, desconfianças
que achava pouco honrosas quer para uma, quer para outra; estava encantada por encontrar naquele grande escritor as pequenezas de seu sexo, quis ter o prazer de
mostrar-lhe onde cessava sua superioridade e como podia ser humilhada.
— Querida, que lhe vais dizer hoje?—perguntou, fitando maldosamente a amiga, no momento em que o pretenso amante pedia para ficar.—Segunda-feira, tínhamos de falar
uma com a outra; terça-feira, o jantar não valia nada; quarta, não querias atrair sobre ti a cólera da baronesa; quinta, ias passear comigo; ontem, disseste-lhe
adeus, quando ele ia abrir a boca: pois bem! Quero que esse pobre rapaz fique hoje.
— Já, minha mimosa?—disse Camille a Beatriz com corrosiva ironia.
A marquesa corou.
— Fique, sr. du Guénic—disse a srta. des Touches, afetando ares de rainha e de mulher ferida.
Beatriz tornou-se fria e dura, foi brusca, epigramática, e maltratou Calisto, a quem sua suposta amante mandou que fosse jogar a mouche com a srta. de Kergarouët.
— Não é perigosa, essa—disse Beatriz, sorrindo.
Os jovens apaixonados são como os famintos, os preparativos do cozinheiro não os satisfazem, pensam demasiado no desenlace para compreender os meios. Ao regressar
de Touches para Guérande, Calisto estava com a alma cheia de Beatriz, ignorava a profunda habilidade feminina desenvolvida por Felicidade para, em termos consagrados,
fazer progredir seus assuntos. Durante essa semana, a marquesa escrevera somente uma carta a Conti, e esse sintoma de indiferença não escapara a Camille. Toda a
vida de Calisto estava concentrada no momento tão rápido durante o qual ele via a marquesa. Essa gota de água, longe de estancar-lhe a sede, o que fazia era duplicá-la.
Aquela palavra mágica: “Serás amado!”, dita por Camille e aprovada pela mãe, era o talismã por meio do qual ele continha o ímpeto de sua paixão. Devorava o tempo,
não dormia mais, lia nas suas insônias, e todos os dias trazia carregamentos de livros, segundo a expressão de Mariotte. A tia amaldiçoava a srta. des Touches; a
baronesa, porém, que por várias vezes subira ao quarto do filho ao ver que lá havia luz, conhecia o segredo daquelas vigílias. Embora tivesse ficado nas timidezes
da mocinha ignorante, e que o amor para ela tivesse mantido seus livros fechados, Fanny elevava-se pela ternura materna até certas ideias; mas a maioria dos abismos
desse sentimento era obscura e coberta por nuvens, por isso muito se assustava do estado em que via o filho, apavorava-se com o desejo único, incompreendido, que
o devorava. Calisto não tinha mais senão um pensamento, parecia-lhe ver sempre Beatriz na sua frente. À noite, durante a partida, suas distrações assemelhavam-se
ao sono do pai. Ao vê-lo tão diferente do que ele era, quando ele julgava amar Camille, a baronesa reconhecia, com uma espécie de terror, os sintomas que assinalam
o verdadeiro amor, sentimento inteiramente desconhecido naquele velho solar. Uma irritabilidade febril, uma absorção constante deixavam Calisto atoleimado. Muitas
vezes ele permanecia horas a fio olhando para uma figura da tapeçaria. Ela aconselhara-o certa manhã a não ir mais às Touches e deixar aquelas duas mulheres.
— Não ir mais às Touches!—exclamara Calisto.
— Vai, não te zangues, meu filho adorado—respondeu ela, beijando-lhe os olhos que lhe haviam desferido chamas.
Nessas circunstâncias, Calisto esteve a ponto de perder os frutos das sábias manobras de Camille pela fúria bretã de seu amor, que não pôde mais dominar. A si mesmo
jurou, apesar das promessas feitas a Felicidade, de ver Beatriz e de falar-lhe. Queria ler-lhe nos olhos, neles mergulhar seu olhar, examinar os mais leves detalhes
de sua toilette, aspirar-lhe os perfumes, ouvir a música de sua voz, analisar a elegante harmonia de seus movimentos, abranger num olhar aquele corpo, finalmente,
contemplá-la, como um grande general estuda o campo onde se ferirá alguma batalha decisiva; queria-o como querem os amantes, estava empolgado por um desejo que lhe
tapava os ouvidos, que lhe obscurecia a inteligência, que o punha num estado doentio, no qual ele não reconhecia mais nem obstáculos, nem distâncias; no qual não
sentia mais nem o próprio corpo. Imaginou então ir às Touches antes da hora convencionada, esperando encontrar Beatriz no jardim. Soubera que ela ali passeava de
manhã, enquanto esperava o almoço. A srta. des Touches e a marquesa tinham ido pela manhã ver as salinas e a bacia cercada de areias finas, onde o mar penetra e
que se assemelha a um lago no meio das dunas; elas tinham voltado para casa e conversavam, dando voltas nas pequenas aleias amarelas do relvado.
— Se esta paisagem a interessa—disse-lhe Camille—,deverá ir com Calisto dar a volta do Croisic. Há lá rochas admiráveis, cascatas de granito, pequenas enseadas enfeitadas
com cubos naturais, coisas surpreendentemente caprichosas, e além disso o mar com seus milhares de fragmentos de mármore, um mundo de divertimentos. Você verá mulheres
fazendo lenha, isto é, colando bostas de vaca ao longo das paredes a fim de dissecá-las e amontoá-las como bolos de carvão em Paris; depois, no inverno, aquecem-se
com essa lenha.
— Você então arrisca Calisto?—disse rindo a marquesa e num tom que provava que na véspera Camille, enfadada com Beatriz, forçara-a a pensar em Calisto.
— Ah! minha querida, quando você conhecer a alma angelical de uma tal criança, então me compreenderá. Nele a beleza nada é; precisa-se penetrar naquele coração puro,
naquela ingênua surpresa em cada passo que ele faz no reino do amor! Que fé! Que candura! Que graça! Os antigos tinham razão no culto que prestavam à santa beleza.
Não sei que viajante nos disse que os cavalos em liberdade tomam o mais belo de entre eles para chefe. A beleza, querida, é o gênio das coisas; é a tabuleta que
a natureza pôs nas suas mais perfeitas criações, é o mais verdadeiro dos símbolos, como é o maior dos acasos. Jamais representaram os anjos disformes; não reúnem
eles a graça e a força? Quem nos fez permanecer horas inteiras diante de certos quadros, na Itália, onde o gênio buscou durante anos realizar um desses acasos da
natureza? Vamos, com a mão na consciência, não era o ideal da beleza que uníamos às grandezas morais? Pois bem, Calisto é um desses sonhos realizados, ele tem a
coragem do leão que permaneceu tranquilo sem suspeitar da sua realeza. Quando ele se sente à vontade, é espirituoso, e amo-lhe a timidez de moça. Minha alma repousa
no coração dele, de todas as corrupções, de todas as ideias de ciência, da literatura, da sociedade, da política, de todos esses acessórios inúteis, sob os quais
asfixiamos a felicidade. Sou o que jamais fui, sou criança! Tenho absoluta confiança nele, mas gosto de simular a ciumenta, e isso o faz feliz. De resto, isso faz
parte do meu segredo.
Beatriz caminhava pensativa e silenciosa, Camille suportava um martírio inexprimível e dirigia sobre ela olhares oblíquos que se assemelhavam a chamas.
— Ah! minha querida, tu, sim, és feliz!—disse Beatriz, apoiando a mão no braço de Camille como o faria uma mulher cansada de alguma resistência secreta.
— Oh, muito feliz!—respondeu com selvagem amargura a pobre Felicidade.
As duas mulheres atiraram-se num banco, ambas esgotadas. Jamais uma criatura de seu sexo fora tão submetida às mais verdadeiras seduções e a um mais penetrante maquiavelismo
do que o estava sendo a marquesa, fazia uma semana.
— Mas eu! eu! ver as infidelidades de Conti e suportá-las!...
— E por que não o deixas?—disse Camille ao entrever o momento favorável em que poderia desferir um golpe decisivo.
— E posso acaso fazê-lo?
— Oh pobre criança!...
Ambas olharam com ar vago para um grupo de árvores.
— Vou mandar apressar o almoço—disse Camille—,esta caminhada aguçou-me o apetite.
— Nossa conversa tirou-me o meu—disse Beatriz.
Beatriz, em toilette matinal, desenhava-se como uma forma branca contra as massas verdes da folhagem. Calisto, que do salão deslizara para o jardim, seguiu uma aleia,
pela qual caminhou lentamente, a fim de se encontrar com a marquesa como que por acaso; e Beatriz não pôde dominar um leve estremecimento ao vê-lo.
— Em que lhe desagradei ontem, senhora?—disse Calisto, após a troca de algumas frases banais.
— Mas o senhor nem me agrada nem me desagrada—disse ela em tom suave.
O tom, o ar, a graça admirável da marquesa encorajaram o rapaz.
— Sou-lhe indiferente—disse ele com voz turbada pelas lágrimas que lhe assomaram aos olhos.
— Não devemos nós ser indiferentes um para o outro?—respondeu a marquesa. —Temos, um e outro, uma ligação verdadeira...
— Ora!—disse vivamente Calisto.—Eu amava Camille, mas hoje já não a amo.
— E que faz todos os dias, durante toda a manhã?—disse ela com um sorriso bastante pérfido.—Não posso supor, que apesar de sua paixão pelo tabaco, Camille prefira-lhe
um charuto, e que, apesar de sua admiração pelas mulheres autoras, passe quatro horas a ler romances femininos.
— Então sabe? ...—disse inocentemente o ingênuo bretão, cujo rosto estava iluminado pela felicidade de ver seu ídolo.
— Calisto!—exclamou violentamente Camille, surgindo, interrompendo-o, segurando pelo braço e levando-o a alguns passos dali.—Calisto, foi isso que me prometeste?
A marquesa pôde ouvir essa censura da srta. des Touches, a qual desapareceu ralhando e levando Calisto; permaneceu estupefata com a confissão de Calisto, sem nada
compreender. A sra. de Rochefide não era tão sabida como Cláudio Vignon. A verdade do papel horrível e sublime representado por Camille é uma dessas infames grandezas
que as mulheres não admitem senão no último extremo. Aí partem-se seus corações, aí acabam seus sentimentos de mulher, aí começa para elas uma abnegação que as mergulha
no inferno, ou que as leva ao céu.
III - CORRESPONDÊNCIA
Durante o almoço, para o qual Calisto fora convidado, a marquesa, cujos sentimentos eram nobres e altivos, já fizera um exame de consciência, asfixiando os germes
de amor que lhe cresciam no coração. Foi não fria e dura para Calisto, e sim de uma doçura indiferente que o magoou. Felicidade trouxe à baila a proposta para irem
daí a dois dias fazer uma excursão pelo recanto original compreendido entre as Touches, o Croisic e o burgo de Batz. Pediu a Calisto que empregasse o dia seguinte
em obter um barco e marinheiros para o caso de fazerem uma excursão por mar. Ela se encarregaria dos víveres, dos cavalos e de tudo que fosse preciso ter à disposição
para afastar qualquer fadiga daquela festinha. Beatriz cortou bruscamente o projeto, dizendo que não se exporia a percorrer assim a região. O rosto de Calisto, que
exprimia uma grande satisfação, velou-se subitamente.
— E que teme você, querida?—disse Camille.
— Minha posição é por demais delicada para que eu comprometa, não a minha reputação, mas a minha felicidade—disse ela, com ênfase, olhando para o jovem bretão.—Conhece
o ciúme de Conti; se ele soubesse...
— E quem lho irá dizer?
— Não virá ele buscar-me?
Essas palavras fizeram Calisto empalidecer. Apesar das instâncias de Felicidade, apesar das do jovem bretão, a sra. de Rochefide foi inflexível, e mostrou o que
Camille denominava sua obstinação. Calisto, não obstante as esperanças que lhe deu Felicidade, saiu das Touches dominado por umas dessas tristezas de enamorado,
cuja violência beira à loucura. De volta à mansão du Guénic não saiu do quarto senão para jantar, e para lá voltou pouco depois. Às dez horas, a mãe, inquieta, foi
vê-lo, e encontrou-o rabiscando em meio a uma grande quantidade de papéis riscados e rasgados; estava escrevendo a Beatriz, porque desconfiava de Camille; o ar que
vira na marquesa, durante a entrevista que tivera no jardim, encorajara-o singularmente. Jamais uma primeira carta de amor fora, como se poderia imaginar, um jato
ardente da alma. Em todos os rapazes ainda não atingidos pela corrupção, uma semelhante carta é acompanhada de ebulições por demais abundantes, por demais multiplicadas,
para não ser elixir de várias cartas ensaiadas, rejeitadas, refeitas. Eis aqui em que Calisto se firmou e leu para a pobre mãe assombrada. Para ela, a velha casa
estava como que pegando fogo, o amor do filho ali chamejava como as labaredas de um incêndio.
CALISTO A BEATRIZ
Senhora, eu vos amava quando éreis para mim somente um sonho; imaginai a força que adquiriu meu amor ao ver-vos. O sonho foi ultrapassado pela realidade. Meu pesar
é de nada ter a dizer-vos que já não saibais, e dizer-vos o quanto sois bela; mas, talvez, vossas belezas jamais despertaram em alguém tantos sentimentos quantos
os que em mim excitam. Sois bela de múltiplos modos; e estudei-vos tanto, pensando dia e noite em vós, que penetrei o mistério de vossa personalidade, os segredos
de vosso coração e vossas delicadezas ignoradas. Fostes jamais compreendida, adorada como mereceis sê-lo? Sabei-o, pois, não há uma única de vossas feições que não
seja interpretada em meu coração: vosso orgulho corresponde ao meu, a nobreza de vossos olhares, a graça de vossas atitudes, a distinção de vossos gestos, tudo em
vós está em harmonia com pensamentos, com desejos ocultos no fundo de vossa alma, e foi adivinhando-os que me julguei digno de vós. Se me não tivesse tornado faz
alguns dias um outro, vós mesma falar-vos-ia de mim? Ler-me será egoísmo: trata-se aqui muito mais de vós do que de Calisto. Para escrever-vos, Beatriz, fiz calar
os meus vinte anos, dominei-me, envelheci meu pensamento, ou talvez o houvesse envelhecido por uma semana dos mais horríveis sofrimentos, de resto inocentemente
causados por vós. Não me julgueis um desses amantes vulgares, dos quais zombastes com tanta razão. Que grande mérito o de amar uma jovem, bela, espirituosa e nobre
dama! Ai de mim! Nem sequer penso em merecer-vos. Que sou eu para vós? Uma criança atraída pelo brilho da beleza, pelas grandezas morais, como um inseto pela luz.
Não podeis agir de outro modo senão pisando as flores de minha alma, mas toda a minha felicidade será de vê-las calcadas por vossos pezinhos. Um devotamento absoluto,
a fé sem limites, um amor insensato, todas essas riquezas de um coração amante e sincero nada são; servem para amar e não nos fazem ser amados. Por vezes não compreendo
que um fanatismo tão ardente não aqueça o ídolo; e, quando encontro vosso olhar severo e frio, sinto-me gelado. É o vosso desdém que age e não minha adoração. Por
quê? Não me podereis odiar tanto quanto vos amo; poderá o sentimento mais fraco sobrepujar o mais forte? Eu amava Felicidade com todas as forças de meu coração;
bastou-me um dia, um momento para esquecê-la, ao ver-vos. Ela era o erro, vós sois a verdade. Sem o saber, destruístes minha felicidade e nada me deveis em troca.
Eu amava Camille sem esperança e vós nada me deixais esperar: nada foi mudado, salvo a divindade. Eu era idólatra, sou agora cristão, eis tudo. Somente, ensinaste-me
que amar é a primeira de todas as felicidades, ser amado não vem senão em segundo lugar. Segundo Camille, amar por alguns dias não é amar; o amor que não cresce
dia a dia é uma paixão miserável; para crescer ele não deve ver seu fim, e ela avistava o nosso pôr do sol. Ante vosso aspecto, compreendi essas palavras que eu
combatia com toda a minha mocidade, com todo o ímpeto de meus desejos, com a despótica autoridade dos meus vinte anos. Essa grande e sublime Camille misturava então
suas lágrimas às minhas. Posso pois amar-vos na terra e nos céus como se ama a Deus. Se me amásseis, não teríeis a opor-me os motivos pelos quais Camille destruía
meus esforços. Ambos somos jovens, podemos voar com asas equivalentes, sob o mesmo céu, sem temer a tormenta que aquela águia temia. Mas que vos estou a dizer! Deixo-me
levar muito além da modéstia dos meus desejos. Não acreditareis mais na subordinação, na paciência, na muda adoração que vos venho pedir que não firais inutilmente.
Sei, Beatriz, que não me podereis amar sem perder algo de vossa própria estima. Por isso, não vos peço nenhuma retribuição. Camille dizia recentemente, a propósito
do dela, que há nos nomes uma fatalidade inata. Essa fatalidade eu a pressenti para mim no vosso ( O nome Beatriz, de origem latina, significa primitivamente “aquela
que torna feliz”.), quando no cais de Guérande, ele impressionou meus olhos à beira do oceano. Passareis na minha vida como Beatriz passou na vida de Dante. Meu
coração servirá de pedestal a uma estátua branca, vingativa, ciumenta e opressiva. Não vos é permitido amar-me; sofreríeis mil mortes, seríeis traída, humilhada,
infeliz: há em vós um orgulho demoníaco que vos liga à coluna que abraçastes; aí parecereis sacudindo o templo como Sansão.
Essas coisas não as adivinhei, meu amor é demasiado cego para isso; Camille, porém, mas disse. Aqui não é meu espírito que vos fala, é o dela; eu não tenho mais
espírito quando se trata de vós, erguem-se de meu coração fervores de sangue que obscurecem minha inteligência com suas vagas, que me privam de minhas forças, que
me paralisam a língua, partem-me as pernas e as fazem dobrarem-se. Nada posso senão adorar-vos, faça o que que fizerdes. Camille classifica vossa resolução de obstinação;
eu defendo-vos, e acredito-a ditada pela virtude. Isso o que faz é tornar-vos mais bela ainda a meus olhos. Conheço meu destino: o orgulho da Bretanha pode erguer-se
à altura de uma mulher que fez do seu orgulho uma virtude. Assim, pois, querida Beatriz, sede boa e consoladora para mim. Quando as vítimas estavam designadas, coroavam-nas
de flores; deveis-me os ramos da piedade, as músicas do sacrifício. Não sou eu a prova de vossa grandeza, e a altura de meu amor desdenhado, apesar de sua sinceridade,
apesar de seu ardor imortal, não contribuirá a elevar-vos? Perguntai a Camille como procedi, desde o dia em que ela me disse que amava Cláudio Vignon. Permaneci
mudo, sofri em silêncio. Pois bem, para vós, encontrarei mais força ainda, se não me desesperardes, se apreciardes meu heroísmo. Um único louvor vindo de vós far-me-ia
suportar as dores do martírio. Se persistirdes nesse frio silêncio, nesse mortal desdém, far-me-íeis pensar que sou de temer. Ah! sede comigo tudo o que sois, sedutora,
alegre, espirituosa, amante. Falai-me de Gennaro, como Camille me falava de Cláudio. Não tenho outro talento que não o de amar, nada tenho que me torne terrível,
e portar-me-ei na vossa presença como se não vos amasse. Repelireis a prece de um amor tão humilde, de uma pobre criança que pede como supremo favor à sua luz que
o ilumine, ao seu sol que o aqueça? Aquele, que vos ama, ver-vos-á sempre; o pobre Calisto tem poucos dias para ele, breve estareis desobrigada. Assim pois voltarei
amanhã às Touches, não é? Não recusareis meu braço para ir visitar as praias do Croisic e o burgo de Batz? Se não fordes, isso será uma resposta, e Calisto a compreenderá.
Havia ainda mais quatro páginas de uma letra fina e apertada, nas quais Calisto explicava a terrível ameaça que aquela última palavra continha ao contar sua mocidade
e sua vida; mas o fazia por meio de frases exclamativas; havia ali muitos desses pontos prodigalizados pela literatura moderna nas passagens perigosas, como tábuas
oferecidas à imaginação do leitor para fazê-lo franquear abismos. Essa pintura ingênua seria uma repetição na sua narrativa; se ela não comoveu a sra. de Rochefide,
interessará mediocremente os amantes de emoções fortes; fez pois a mãe chorar e dizer ao filho:
— Não fostes então feliz?
Esse terrível poema de sentimentos caídos do coração de Calisto como um temporal, e que devia ir turbilhonando a uma outra alma, assustou a baronesa, que lia pela
primeira vez na vida uma carta de amor. Calisto estava de pé num terrível embaraço, não sabia como mandar entregar aquela carta. O cavaleiro du Halga ainda estava
na sala onde se jogava as últimas apostas de uma mouche animada. Carlota de Kergarouët, desesperada com a indiferença de Calisto, tentava agradar aos pais dele para,
por esse meio, garantir seu casamento. Calisto seguiu a mãe e tornou a aparecer na sala, conservando no bolso a carta, que lhe queimava o coração: agitava-se, ia
e vinha como uma borboleta que por descuido tivesse entrado num quarto. Finalmente, mãe e filho atraíram o cavaleiro du Halga do salão grande, de onde fizeram sair
o criadinho da srta. de Pen-Hoël e Mariotte.
— Que têm eles a pedir ao cavaleiro?—perguntou a velha Zefirina à velha Pen-Hoël.
— Calisto dá-me a impressão de um louco—respondeu esta—,não dá mais atenção a Carlota do que se esta fosse uma salineira.
A baronesa imaginara muito bem que, lá pelo ano de 1780, o cavaleiro du Halga devia ter navegado pelos mares da galanteria e aconselhara a Calisto que o consultasse.
— Qual é o melhor meio de fazer chegar secretamente uma carta às mãos da amante?—disse Calisto ao ouvido do cavaleiro.
— Põe-se a carta na mão da criada de quarto, acompanhando-a de alguns luíses, porque cedo ou tarde a criada de quarto partilha o segredo, e vale mais fazê-lo desde
o começo—respondeu o cavaleiro, cujo semblante deixou escapar um sorriso -; mas é preferível entregá-la ao próprio interessado.
— Luíses!—exclamou a baronesa.
Calisto entrou, pegou o chapéu; depois correu às Touches e foi como que uma aparição no pequeno salão onde ouvia a voz de Beatriz e de Camille. Ambas estavam sentadas
no divã e pareciam estar em perfeito entendimento. Calisto, com a subitaneidade de espírito que dá o amor, atirou-se estonteadamente no divã, ao lado da marquesa,
pegando-lhe a mão e nela pondo a carta, sem que Felicidade, por mais atenta que estivesse, pudesse percebê-lo. O coração de Calisto foi agitado por uma emoção aguda
e suave ao mesmo tempo, ao sentir que sua mão era premida por Beatriz, a qual, sem interromper sua frase nem parecer desconcertada, deslizava a carta para dentro
da luva.
— O senhor atira-se sobre mulheres como sobre divãs—disse ela rindo.
— Ele, entretanto, não chegou ainda à doutrina dos turcos—replicou Felicidade, que não se pôde recusar esse epigrama.
Calisto ergueu-se, tomou a mão de Camille e beijou-a; depois foi ao piano, fê-lo soar, correndo um dedo pelas teclas. Essa vivacidade alegre deu o que pensar a Camille,
a qual disse a ele que lhe fosse falar.
— Que tem?—perguntou-lhe ao ouvido.
— Nada—respondeu ele.
“Há alguma coisa entre eles”, pensou a srta. des Touches.
A marquesa foi impenetrável. Camille tentou fazer Calisto falar, na esperança de que ele se traísse; mas o rapaz pretextou a inquietação em que estaria a mãe e retirou-se
das Touches às onze horas, não sem ter sofrido o fogo de um olhar penetrante de Camille, para quem essa frase era dita pela primeira vez.
Depois das agitações de uma noite cheia de Beatriz, depois de ter ido durante a manhã vinte vezes a Guérande ao encontro da resposta que não vinha, a criada de quarto
da marquesa entrou no solar du Guénic e entregou a Calisto esta resposta, que ele foi ler no fundo do jardim, embaixo do caramanchão:
BEATRIZ A CALISTO
Sois uma nobre criança, mas sois uma criança. É a Camille, que vos adora, a quem vos deveis dedicar. Em mim, não acharíeis nem as perfeições que a distinguem, nem
a felicidade que ela vos prodigaliza. Embora penseis de outra forma, ela é moça e eu sou velha, ela tem o coração cheio de tesouros e o meu está vazio, ela tem por
vós um devotamento que não sabeis apreciar devidamente, ela não tem egoísmos, não vive senão em vós; e eu estaria cheia de dúvidas, eu vos arrastaria para uma vida
aborrecida, sem nobreza, numa vida estragada por culpa minha. Camille é livre, ela vai e vem como quer; eu sou escrava. Finalmente esqueceis que amo e que sou amada.
A situação em que me encontro deveria pôr-me ao abrigo de qualquer homenagem. Amar-me ou dizer-me que me amam é, num homem, um insulto. Uma nova falta não me colocaria
no nível das piores criaturas de meu sexo? Vós que sois jovem e cheio de delicadezas, como me obrigais a dizer-vos essas coisas que não saem do coração senão despedaçando-o?
Preferi o escândalo de uma desgraça irreparável à vergonha de uma constante fraude, minha própria perda à da probidade; mas aos olhos de muitas pessoas de cuja estima
faço questão, eu ainda sou grande: mudando, eu desceria mais alguns degraus. O mundo é ainda indulgente para aquelas cuja constância cobre com seu manto a irregularidade
da felicidade; mas é impiedoso para com os hábitos viciosos. Não sinto desdém ou cólera, respondo-vos com franqueza e simplicidade. Sois jovem, ignorais a sociedade,
sois arrastado pela fantasia, e incapaz, como todas as pessoas cuja vida é pura, de fazer as reflexões que a desgraça sugere. Irei mais longe. Fosse eu a mulher
mais humilhada, ocultasse eu espantosas misérias, fosse traída, enfim, abandonada—e graças a Deus nada de tudo isso é possível—,mas se assim fosse, por uma vingança
do céu, ninguém neste mundo me veria mais. Sim, sentir-me-ia então com a coragem de matar um homem que me falasse de amor se, na situação em que me achasse, fosse
ainda possível um homem chegar até a mim. Tendes aí o fundo de meu pensamento. Por isso, talvez, deva agradecer-vos por me terdes escrito. Depois de vossa carta
e sobretudo depois de minha resposta, posso sentir-me à vontade junto a vós, nas Touches, mostrar-me de acordo com o meu caráter e como mo pedis. Não vos falo do
ridículo amargo que me perseguiria no caso em que meus olhos cessassem de exprimir os sentimentos de que vos queixais. Um segundo roubo feito a Camille seria uma
prova de impotência a que uma mulher não se resolve duas vezes. Amasse-vos eu loucamente, estivesse cega, esquecesse tudo, sempre veria Camille! O amor dela por
vós é uma dessas barreiras demasiado altas para serem transpostas por uma potência qualquer, mesmo pelas asas de um anjo: não há senão um demônio que não recue diante
dessas infames traições. Há aqui, meu filho, um mundo de razões que as mulheres nobres e delicadas se reservam e das quais nada entendeis, vós outros, os homens,
mesmo quando eles são tão semelhantes a nós como o sois neste momento. Enfim, tendes uma mãe que vos mostrou o que deve ser uma mulher na vida; ela é pura e sem
mácula, ela realizou nobremente seu destino; o que dela sei umedeceu-me os olhos de lágrimas, e do fundo de meu coração elevaram-se gestos de inveja. Eu teria podido
ser assim! Calisto, assim deve ser vossa esposa, e tal deve ser a vida dela. Não tornarei a mandar-vos maldosamente, como fiz, para aquela pequena Carlota, que vos
entediaria rapidamente, mas sim para alguma divina jovem, digna de vós. Se me desse a vós, far-vos-ia falhar a vida. Haveria em vós uma falta de fé, de constância,
ou teríeis então a intenção de consagrar-me toda a vossa existência; sou franca, eu a tomaria, levar-vos-ia não sei onde, longe da sociedade; tornar-vos-ia infeliz,
sou ciumenta, vejo monstros numa gota de água, desespero-me com misérias com que outras mulheres se conformam; haveria mesmo pensamentos inexoráveis que viriam de
mim, não de vós, e que me feririam mortalmente. Quando um homem, no décimo ano de felicidade, não é tão respeitoso e tão delicado como na véspera do dia em que mendigava
um favor, afigura-se-me um infame e avilta-me aos meus próprios olhos! Um tal amante não crê mais nos Amadis (Amadis: herói do famoso romance de cavalaria de Montalvo,
Amadis de Gaula (1508), tipo do amante constante e respeitoso.) e nos Ciros (Ciro: outro representante do mesmo tipo no Grande Ciro (1648), romance de Mademoiselle
de Scudéry.) de meus sonhos. Hoje o amor puro é uma fábula, e não vejo em vós senão a felicidade de um desejo para o qual seu fim é desconhecido. Não tenho quarenta
anos, não sei fazer ainda minha altivez curvar-se sob a autoridade da experiência, não tenho esse amor que torna humilde, enfim sou uma mulher cujo caráter é ainda
demasiado jovem para não ser detestável. Não posso responder por meu humor, e em mim a graça é toda externa. É possível que não tenha sofrido ainda o bastante para
ter os modos indulgentes e a ternura absoluta que devemos a desenganos cruéis. A felicidade tem sua impertinência e eu sou muito impertinente. Camille ser-vos-á
sempre uma escrava devotada, e eu um tirano insensato. De resto, não foi Camille posta a vosso lado por vosso anjo de guarda, a fim de permitir-vos atingir o momento
em que começareis a vida que estais destinado a levar, e à qual não devereis faltar? Conheço-a, a Felicidade! Sua ternura é inesgotável; ela ignora talvez as graças
do nosso sexo, mas desenvolve essa força fecunda, esse gênio da constância e essa nobre intrepidez que fazem tudo. Ela vos casará, sofrendo embora horríveis dores;
saberá escolher-vos uma Beatriz livre, se é Beatriz que corresponde às vossas ideias sobre a mulher e sobre vossos sonhos; ela vos aplainará todas as dificuldades
de vosso futuro. A venda de um arpento de terra que ela possui em Paris desonerará vossas propriedades da Bretanha, e ela vos constituirá seu herdeiro; já não fez
ela de vós um filho adotivo? Que posso eu fazer por nossa felicidade? Nada! Não deveis trair pois um amor infinito que se converte em deveres maternais. Acho Camille
bem feliz! A admiração que vos inspira a pobre Beatriz é um desses pecadilhos para os quais as mulheres, da idade de Camille, têm grande indulgência. Quando têm
certeza de ser amadas, perdoam uma infidelidade à constância, é mesmo nelas um dos seus mais vivos prazeres esse de triunfar da juventude de suas rivais. Camille
está acima das outras mulheres; isso não se dirige a ela, não vo-lo digo senão para tranquilizar-vos a consciência. Estudei-a bem: Camille é a meu ver uma das maiores
figuras de nosso tempo. É espirituosa e boa, duas qualidades quase inconciliáveis nas mulheres; é generosa e simples, duas outras grandezas que raramente andam juntas.
Vi no fundo de seu coração tesouros certos, parece que Dante tenha escrito para ela, em seu Paraíso, a bela estrofe sobre a felicidade eterna que ela vos explicava
numa dessas noites passadas e que termina por Senza brama sicura ricchezza (Senza brama sicura ricchezza: “(possuir) sem inquietude riquezas certas”, palavras de
Dante frequentemente citadas por Balzac.). Ela falava-me de seu destino, contava-me sua vida, provando-me que o amor, esse objeto de nossos anseios e de nossos sonhos,
sempre fugira dela, e eu lhe respondia que ela parecia demonstrar-me a dificuldade de irmanar coisas sublimes, o que explica muitas desgraças. Sois uma dessas almas
angelicais para as quais parece impossível achar uma irmã. Essa desgraça, meu querido amiguinho, Camille vo-la poupará; ela encontrará, custe-lhe isso embora a vida,
uma criatura com a qual possais ser feliz no matrimônio.
Estendo-vos uma mão amiga e conto, não com vosso coração, mas com vosso espírito, para que possamos estar juntos, como irmão e irmã, e terminar aqui nossa correspondência,
a qual das Touches a Guérande é pelo menos uma coisa singular.
Beatriz de Casteran
Comovida ao extremo pelos detalhes e pela marcha dos amores do filho com a bela Rochefide, a baronesa não pôde ficar na sala onde trabalhava na sua tapeçaria, olhando
Calisto a cada ponto que dava; deixou sua poltrona e foi para perto dele de um modo ao mesmo tempo humilde e audaz. A mãe teve nesse momento a graciosidade de uma
cortesã que quer obter uma concessão.
— E então?—disse ela tremendo, sem pedir positivamente a carta.
Calisto mostrou-lhe o papel e leu-o para ela. Aquelas duas belas almas, tão simples, tão ingênuas, não viram naquela astuciosa e pérfida resposta nenhuma das malícias
e nenhum dos laços armados pela marquesa.
— É uma mulher nobre e grande!—disse a baronesa, cujos olhos estavam úmidos. —Rezarei a Deus por ela. Não pensava que uma mãe pudesse abandonar o marido e o filho
e conservar tantas virtudes! Ela é digna de perdão.
— Não tenho razão de adorá-la?—disse Calisto.
— Mas onde te levará este amor?—exclamou a baronesa.—Ah, meu filho, como as mulheres de sentimentos nobres são perigosas! As más são menos de temer. Desposa Carlota
de Kergarouët, libera os dois terços das terras da tua família. Vendendo algumas granjas, a srta. de Pen-Hoël obterá grande resultado, e essa boa mulher se encarregará
de valorizar teus bens... Podes deixar aos teus filhos um belo nome, uma bela fortuna...
— Esquecer Beatriz?—disse Calisto com voz surda e os olhos fitos no chão.
Deixou a baronesa e subiu para os seus aposentos, a fim de responder à marquesa. A sra. du Guénic tinha a carta da sra. de Rochefide gravada no coração; quis saber
ao certo o que deveria pensar relativamente às esperanças de Calisto. Mais ou menos a essa hora, o cavaleiro du Halga fazia sua cadela passear na avenida; a baronesa,
certa de o encontrar, pôs um chapéu, o xale, e saiu. Ver a baronesa du Guénic em Guérande num outro lugar que não fosse a igreja, ou nos dois lindos caminhos preferidos
para o passeio nos dias de festa, quando acompanhava o marido e a srta. de Pen-Hoël, era um acontecimento tão notável em toda a cidade que, duas horas depois, todos
se abordavam, dizendo:
— A sra. du Guénic saiu hoje, viu-a?
Por isso não tardou a notícia em chegar aos ouvidos da srta. de Pen-Hoël, a qual disse à sobrinha:
— Deve estar passando-se alguma coisa de muito extraordinário em casa dos du Guénic.
— Calisto está louco de paixão pela bela marquesa de Rochefide—disse Carlota -; eu deveria ir-me de Guérande e voltar para Nantes.
Nesse momento, o cavaleiro du Halga, surpreendido por estar sendo procurado pela baronesa, tinha desprendido a corrente de Tisbé, reconhecendo a impossibilidade
de dividir-se.
— Cavaleiro, o senhor foi dado a galanterias?—perguntou a baronesa.
O capitão du Halga perfilou-se numa atitude passavelmente fátua. A sra. du Guénic, sem nada dizer do filho, nem da marquesa, explicou a carta de amor, perguntando
qual poderia ser o sentido de semelhante resposta. O cavaleiro ia de nariz em riste e afagava o queixo, ouvia, fazia umas quantas caretas; finalmente, olhou fixamente
a baronesa com ar astuto.
— Quando os cavalos de raça devem saltar as barreiras, eles as vêm reconhecer e olfatear—disse ele.—Calisto será o mais feliz maroto deste mundo.
— Cht!—fez a baronesa.
— Sou mudo. Outrora, não tinha senão isso por mim—disse o velho cavaleiro.—O tempo está lindo—continuou após uma pausa—,o vento é noroeste. Por Deus! como a Belle
Poule (A Belle Poule: fragata francesa que, agredida perto de Brest em 1778 pelo navio de guerra inglês Arethuse, venceu-o depois de rude combate.) tomava bem esse
vento no dia em que... Mas—disse ele interrompendo-se—,tenho zumbidos nos ouvidos e sinto dores nas falsas costelas, o tempo vai mudar. Sabe que o combate da Belle
Poule foi tão célebre que as mulheres usaram toucados à Belle Poule. A sra. de Kergarouët foi a primeira em ir à Opera com esse penteado. “A senhora está toucada
em conquista”, disse-lhe eu. Esse dito foi repetido em todos os camarotes.
A baronesa ouviu complacentemente o velho, o qual, fiel às leis da galanteria, reconduziu a baronesa até a viela, descuidando-se de Tisbé. O segredo do nascimento
de Tisbé escapou ao cavaleiro. Tisbé era neta da deliciosa Tisbé, cadela da sra. almiranta de Kergarouët, primeira mulher do almirante, conde de Kergarouët. Esta
última Tisbé tinha dezoito anos.
A baronesa subiu celeremente ao quarto de Calisto, com uma alegria leve, tal como se fosse ela quem amasse. Calisto não estava no quarto, mas Fanny viu uma carta
dobrada em cima da mesa, dirigida à sra. de Rochefide e não lacrada. Uma curiosidade invencível levou essa mãe inquieta a ler a resposta do filho. Essa indiscrição
foi cruelmente punida; ela experimentou uma dor enorme ao entrever o precipício no qual o amor atirava Calisto.
CALISTO A BEATRIZ
Ora, que me importa a mim a raça dos du Guénic nestes tempos em que vivemos, querida Beatriz! Meu nome é Beatriz, a felicidade de Beatriz é a minha felicidade, sua
vida é a minha vida e toda a minha fortuna está em seu coração. Nossas terras estão hipotecadas faz dois séculos, podem permanecer assim mais dois séculos; nossos
granjeiros as conservam, ninguém as pode tomar. Ver-vos, amar-vos, eis a minha religião. Casar-me! Essa ideia convulsionou-me o coração. Há acaso duas Beatriz? Não
me casarei senão convosco, esperarei vinte anos se assim for preciso; sou moço e vós sereis sempre bela. Minha mãe é uma santa, não devo julgá-la. Ela não amou!
Sei agora o quanto ela perdeu e os sacrifícios que fez. Ensinastes-me, Beatriz, a melhor amar minha mãe, que está convosco em meu coração, e nunca haverá senão ela,
eis vossa única rival; não é isso dizer-vos que nele reinais sem competidora? Assim pois vossas razões nenhuma força têm sobre meu espírito. Quanto a Camille, não
tendes senão um sinal a fazer-me, eu lhe pedirei que vos diga, ela própria, que não a amo; ela é a mãe da minha inteligência, nada menos, nada mais. Assim que vos
vi, ela tornou-se minha irmã, minha amiga ou meu amigo, como quiserdes; mas não temos um sobre o outro senão os direitos da amizade. Tomei-a por uma mulher até o
momento em que vos vi. Mas demonstrastes-me que Camille é um rapaz; ela nada, caça, monta a cavalo, fuma, bebe, escreve, analisa um coração e um livro, não tem a
menor fraqueza, marcha na sua força; não tem nem vossos movimentos soltos, nem vosso andar que se assemelha a um voo de pássaro, nem vossa voz de amar, nem vossos
olhares sutis, nem vossa atitude graciosa; ela é Camille Maupin e nada mais; nada tem de mulher, e vós tendes delas tudo o que me agrada; pareceu-me desde o primeiro
dia em que vos vi que me pertencíeis. Rireis desse sentimento, ele porém nada mais fez senão crescer, parecer-me-ia monstruoso se ficássemos separados; sois minha
alma, minha vida, e não poderia viver onde não estivésseis. Deixai-vos amar! Fugiremos, iremos para muito longe da sociedade, numa terra onde não encontrareis ninguém,
e onde possais ter somente a mim e a Deus no coração. Minha mãe, que vos ama, virá algum dia viver junto a nós. A Irlanda tem castelos, e a família de minha mãe
me emprestará seguramente um. Meu Deus, partamos! Um barco, marinheiros, e lá estaríamos antes de ninguém poder saber para onde fugimos neste mundo que tanto temeis!
Não fostes amada, sinto-o ao reler vossa carta, e creio adivinhar nela que, se não existisse nenhum dos motivos de que falais, vos deixaríeis amar por mim, Beatriz,
um santo amor apaga o passado. Pode-se pensar em outra coisa senão em vós depois de ver-vos? Ah! amo-vos tanto que vos queria mil vezes infame, a fim de mostrar-vos
o poder de meu amor, adorando-vos como a mais santa das criaturas. Chamais meu amor uma injúria que vos faço. Ó, Beatriz, tu não o crês! O amor de uma nobre criança,
não é assim que me chamais? honraria uma rainha. Assim, pois, amanhã iremos como amantes lá pelos rochedos e o mar, e caminhareis por sobre as areias da velha Bretanha
a fim de as consagrar novamente para mim! Dai-me esse dia de felicidade; essa esmola passageira e talvez, ai de mim! sem recordação para vós, que será para Calisto
uma riqueza eterna...
A baronesa deixou a carta cair sem terminá-la, ajoelhou-se numa cadeira e dirigiu a Deus uma oração mental, pedindo-lhe que conservasse ao filho o juízo, que afastasse
dele toda loucura, todo engano, e de retirá-lo da senda em que o via.
— Que fazes aí, minha mãe?—disse Calisto.
— Rogo a Deus por ti—disse ela, mostrando-lhe os olhos cheios de lágrimas.—Acabo de cometer a falta de ler essa carta. Meu Calisto está louco.
— Da mais suave das locuras—disse o rapaz, beijando a mãe.
— Quisera ver essa mulher, meu filho.
— Pois bem, mamãe—disse Calisto—,embarcaremos amanhã para ir ao Croisic; esteja no cais.
Lacrou a carta e partiu para as Touches. O que acima de tudo apavorara a baronesa era ver o sentimento chegar por força de seu instinto à vidência, de uma experiência
consumada. Calisto acabava de escrever a Beatriz, como se o cavaleiro du Halga o tivesse aconselhado.
IV - UM DUELO ENTRE MULHERES
Um dos maiores gozos que talvez experimentem os espíritos pequenos ou os seres inferiores será o de ludibriar as grandes almas ou apanhá-las em alguma armadilha.
Beatriz sabia perfeitamente estar muito abaixo de Camille Maupin. Essa inferioridade não residia apenas nesse conjunto de coisas morais denominado talento, mas também
nas coisas do coração denominadas paixão. No momento em que Calisto chegava às Touches com a impetuosidade de um primeiro amor, levado nas asas da esperança, a marquesa
experimentava uma viva alegria por saber-se amada por aquele adorável rapaz. Não ia a ponto de querer ser cúmplice naquele sentimento, punha seu heroísmo em comprimir
aquele capriccio, como dizem os italianos, e julgava então igualar a amiga; sentia-se feliz de ter de fazer-lhe um sacrifício. Finalmente, as vaidades peculiares
à mulher francesa e que constituem esse célebre coquetismo de onde ela tira sua superioridade, achavam-se acariciadas e plenamente satisfeitas nela: entregue a imensas
seduções ela resistia-lhes, e suas virtudes cantavam-lhe ao ouvido um suave concerto de louvores.
Essas duas mulheres, aparentemente indolentes, estavam meio deitadas no divã daquele pequeno salão cheio de harmonias, no meio de flores, e com a janela aberta,
porquanto cessara o vento norte. Uma brisa dissolvente do sul lentejoulava a superfície do lago de água salgada que seus olhos podiam ver e o sol incendiava as areias
de ouro. Suas almas estavam tão profundamente agitadas quanto era calma a natureza, e não menos ardentes. Triturada nas engrenagens da máquina que ela própria punha
em movimento, Camille era forçada a vigiar-se, por causa da prodigiosa finura da amigável inimiga que ela pusera em sua jaula; mas para não revelar seu segredo,
entregava-se a contemplações íntimas da natureza, iludia seus sofrimentos buscando um sentido no movimento dos mundos, e encontrava Deus no sublime deserto do céu.
Uma vez Deus reconhecido pelo incrédulo, este se atira no catolicismo absoluto que, visto como um sistema, é completo. De manhã, Camille apresentara à marquesa uma
fronte banhada ainda pelos clarões de suas pesquisas, durante uma noite passada a gemer. Calisto estava sempre de pé diante dela, como uma imagem celeste. Aquele
belo rapaz, por quem se devotava, ela o olhava como a um anjo da guarda. Não era ele quem a guiava para as altas regiões onde cessam os sofrimentos, sob o peso de
uma incompreensível imensidão? Entretanto o ar triunfante de Beatriz inquietava Camille. Uma mulher não ganha de outra uma tal vantagem sem deixar que a adivinhem,
ao mesmo tempo que se defende de a ter conquistado. Nada mais estranho do que o combate moral e surdo daquelas duas amigas, ocultando um segredo uma à outra, e julgando-se
reciprocamente credoras de sacrifícios ignorados. Calisto chegou, trazendo a carta entre a mão e a luva, pronto a deslizá-la para a mão de Beatriz. Camille, a quem
a mudança de modos de sua amiga não escapara, pareceu não examiná-la, fazendo-o através de um espelho, no momento em que Calisto ia entrar. Há aí um escolho para
todas as mulheres. As mais espirituosas, assim como as mais tolas, as mais francas, como as mais astutas, não são mais senhoras de seu segredo; nesse momento ele
se exibe aos olhos de outra mulher. Demasiada reserva, ou demasiado abandono, um olhar livre ou luminoso, o abaixamento misterioso das pálpebras, tudo trai então
o sentimento mais difícil de ocultar, porquanto a indiferença tem qualquer coisa de tão completamente frio, que jamais pode ser simulada. As mulheres têm o talento
das nuanças, usam-nas demasiado para não conhecê-las todas: e, nessas ocasiões, seus olhos abrangem uma rival da cabeça aos pés; adivinham o mais leve movimento
de um pé sob o vestido, o mais imperceptível estremecimento no busto, e sabem a significação daquilo que para um homem parece insignificante. Duas mulheres em observação
representam uma das mais admiráveis cenas de comédia que se possa ver.
“Calisto fez alguma asneira”, pensou Camille, notando em ambos o ar indefinível de pessoas que se entendem.
Não havia mais rigidez nem falsa indiferença na marquesa, ela olhava Calisto como uma coisa sua. Calisto, esse foi explícito, corou como um verdadeiro culpado, como
homem feliz. Vinha fixar os arranjos para o dia seguinte.
— Então, querida, resolveu decididamente ir?—disse Camille.
— Sim—disse Beatriz.
— E como o sabe você?—perguntou a srta. des Touches a Calisto.
— Vinha para saber—respondeu a um olhar que lhe dirigiu a sra. de Rochefide, a qual não queria que a amiga tivesse a menor noção da correspondência deles.
“Eles já se entendem”, pensou Camille, que viu aquele olhar pelo poder circular de seus olhos. “Está tudo acabado, só me resta desaparecer.”
Sob o peso desse pensamento, operou-se no seu semblante uma espécie de decomposição que fez Beatriz fremir.
— Que tens, querida?—disse ela.
— Nada. De modo, Calisto, que você mandará meus cavalos e os seus para que os possamos encontrar além do Croisic, a fim de voltarmos a cavalo pelo burgo de Batz.
Almoçaremos no Croisic e jantaremos nas Touches. Você se encarregará dos barqueiros. Partiremos às oito e meia da manhã. Que belos espetáculos—disse ela a Beatriz.—Você
verá Cambremer (A história de Cambremer é contada em Um drama à beira-mar.), um homem que faz penitência em cima de um rochedo por ter morto voluntariamente o filho.
Oh! você está numa terra primitiva, onde os homens não experimentam sentimentos comuns. Calisto lhe contará essa história.
Ela foi para seu quarto, estava sufocada. Calisto entregou a carta e acompanhou Camille.
— Calisto, você é amado, creio-o, mas oculta-me alguma escapula, e certamente desatendeu às minhas ordens.
— Amado!—disse ele, caindo numa poltrona.
Camille pôs a cabeça na porta, Beatriz desaparecera. Esse fato era estranho. Uma mulher não deixa o quarto onde se acha aquele a quem ama, com a certeza de tornar
a vê-lo, sem que tenha coisa melhor a fazer. A srta. des Touches a si mesma perguntou: “Terá ela uma carta de Calisto?”. Mas julgou o inocente bretão incapaz de
tal ousadia.
— Se me desobedeceste, tudo estará perdido por tua culpa—disse-lhe ela em tom grave.—Vai preparar tuas alegrias de amanhã.
Fez um gesto ao qual Calisto não resistiu: há dores mudas de uma eloquência despótica. Ao ir ao Croisic ver os barqueiros, ao atravessar as areias e os pantanais,
Calisto teve temores. A frase de Camille estava impregnada de alguma coisa fatal, que traía a vidência da maternidade. Quando voltou daí a quatro horas, contando
jantar nas Touches, encontrou a criada de Camille de sentinela na porta, esperando-o, para dizer-lhe que a senhora e a marquesa não o poderiam receber naquela noite.
Quando Calisto, surpreendido, quis interrogá-la, ela fechou a porta e safou-se. Davam seis horas no campanário de Guérande. Calisto voltou para casa, fez com que
lhe preparassem um jantar e jogou a mouche, entregue a uma sombria meditação. Essas alternativas de felicidade e de infelicidade, o aniquilamento de suas esperanças
sucedendo à quase certeza de ser amado, despedaçavam aquela jovem alma que voava de asas espalmadas para o céu e chegava a uma tal altura que a queda deveria ser
terrível.
— Que tens, meu Calisto?—disse-lhe a mãe ao ouvido.
— Nada—respondeu ele, apresentando olhos de onde a luz da alma e o fogo do amor se haviam retirado.
Não é a esperança, é o desespero que dá a medida das nossas ambições. Entregamo-nos secretamente aos belos poemas da esperança, ao passo que a dor se mostra sem
véus.
— Calisto, você não é gentil—disse Carlota, depois de ter ensaiado em vão sobre ele esses pequenos derriços de provinciana que degeneram sempre em importunações.
— Estou cansado—disse ele, levantando-se e dando boa-noite aos presentes.
— Calisto está bem mudado—disse a srta. de Pen-Hoël.
— Não temos bonitos vestidos enfeitados de rendas, não movimentamos nossas mangas assim, não tomamos atitudes assim, não sabemos olhar de lado, virar a cabeça—disse
Carlota imitando e caricaturando os ares, a atitude e os olhares da marquesa.—Não temos uma voz que sai da cabeça, nem essa tossezinha interessante, eh! eh! que
parece ser o suspiro de uma sombra; temos a infelicidade de desfrutar de uma saúde robusta e de querer aos nossos amigos sem coquetismo; quando os olhamos não temos
o ar de espicaçá-los com um dardo ou de examiná-los com olhares hipócritas. Não sabemos inclinar a cabeça como um salgueiro chorão e parecermos amáveis ao erguê-la
assim!
A srta. de Pen-Hoël não pôde deixar de rir ao ver os gestos da sobrinha, mas nem o cavaleiro, nem o barão compreenderam aquela sátira da província contra Paris.
— Entretanto—disse a velha tia—a marquesa de Rochefide é muito bela.
— Meu amigo—disse a baronesa ao marido—,sei que ela vai amanhã ao Croisic; iremos dar um passeio por ali, pois muito desejo encontrá-la.
Enquanto Calisto quebrava a cabeça, a fim de adivinhar a causa que motivara o terem-lhe fechado a porta nas Touches, ocorria entre as duas amigas uma cena que devia
influir sobre os acontecimentos do dia seguinte. A carta de Calisto levou ao coração da sra. de Rochefide emoções desconhecidas. As mulheres nem sempre são alvo
de um amor tão jovem, tão ingênuo, tão sincero e absoluto como o daquele menino. Beatriz amara mais do que fora amada. Depois de ter sido escrava, ela sentia um
desejo inexplicável de ser por sua vez o tirano. Em meio à sua alegria, ao ler e reler a carta de Calisto, ela foi atravessada pela ponta de uma ideia cruel. Que
faziam pois juntos Calisto e Camille, depois da partida de Cláudio Vignon? Se Calisto não amava Camille, e se Camille o sabia, no que empregariam então suas manhãs?
A memória do espírito aproximou maliciosamente dessa observação os discursos de Camille. Parecia que um demônio sorridente fizesse aparecer num espelho mágico o
retrato dessa heroica rapariga com certos gestos e certos olhares que acabaram por esclarecer Beatriz. Em vez de lhe ser igual, ela era esmagada por Felicidade;
longe de ludibriá-la, ela é que estava sendo ludibriada; nada mais era do que um prazer que Camille queria dar ao seu filho amado, com um amor extraordinário e sem
vulgaridade. Para uma mulher como Beatriz, essa descoberta foi como o clarão de um relâmpago. Repassou minuciosamente a história daquela semana. Num momento o papel
de Camille e o seu desenrolaram-se em toda a sua extensão; ela se achou singularmente rebaixada. No seu acesso de ódio invejoso, pareceu-lhe perceber em Camille
uma intenção de vingança contra Conti. Todo o passado daqueles dois anos agia talvez sobre aquelas duas semanas. Uma vez no declive das desconfianças, das hipóteses
e da cólera, Beatriz não se deteve mais: ora caminhava no seu apartamento, impelida por impetuosos impulsos da alma, ora sentava-se, tentando tomar uma resolução;
mas ficou assim até a hora do jantar, dominada pela indecisão, e não desceu senão para ir para a mesa sem se ter vestido de modo apropriado. Ao ver entrar sua rival,
Camille adivinhou tudo. Beatriz, sem toilette, tinha um ar frio, uma fisionomia taciturna que, para uma observadora da força de Maupin, indicava a hostilidade de
um coração irritado. Camille saiu e deu imediatamente a ordem que tanta admiração devia causar a Calisto; ela pensou que se o ingênuo bretão chegasse com o seu amor
insensato no meio da disputa, ele talvez não tornasse mais a ver Beatriz, comprometendo o futuro de sua paixão com alguma franqueza tola; ela quis ficar sem testemunhas
naquele duelo de logros. Beatriz, sem auxiliar, estaria à sua mercê. Camille conhecia a secura daquela alma, as pequenezes daquele grande orgulho, ao qual ela tão
justamente aplicara o termo de obstinação. O jantar foi sombrio. Cada uma daquelas duas mulheres tinha demasiado espírito e bom gosto para explicar-se diante dos
criados ou fazer com que eles escutassem nas portas. Camille foi meiga e boa—sentia-se tão superior! A marquesa foi dura e mordaz, sabia que estava sendo enganada
como uma criança. Houve durante o jantar um combate de olhares, de gestos, de meias palavras que os criados não podiam compreender e que prenunciavam uma violenta
tempestade. Quando tiveram de subir, Camille ofereceu maliciosamente o braço a Beatriz, a qual fingiu não ver o gesto da amiga e precipitou-se sozinha para a escada.
Depois de servirem o café, a srta. des Touches disse ao seu criado de quarto um “deixe-nos” que foi o sinal do combate.
— Os romances que você faz, querida, são um pouco mais perigosos do que os que escreve—disse a marquesa.
— Têm entretanto uma grande vantagem—disse Camille puxando um cigarro.
— Qual?—perguntou Beatriz.
— São inéditos, meu anjo.
— Esse no qual me pôs vai formar um livro?
— Não tenho vocação para o ofício de Édipo; você tem o espírito e a beleza da esfinge, sei-o; mas não me proponha enigmas, fale claramente, Beatriz (Édipo: personagem
da mitologia grega; libertou a cidade de Tebas de uma esfinge que devorava os transeuntes que não lhe conseguiam resolver os enigmas.).
— Quando, para tornarmos os homens felizes, diverti-los, agradar-lhes e dissipar-lhes os aborrecimentos, pedimos ao diabo para nos ajudar...
— Os homens, mais tarde, censuram-nos nossos esforços e tentativas, julgando-os ditados pelo gênio da depravação—disse Camille, atirando o cigarro e interrompendo
a amiga.
— Esquecem o amor que nos arrebatava e justificava nossos excessos, pois até onde não chegaríamos?... Mas então eles fazem seu ofício de homens, são ingratos e injustos—replicou
Beatriz.
— As mulheres entre elas conhecem-se, sabem o quanto suas atitudes em qualquer circunstância são altivas, nobres, e, digamo-lo, virtuosas. Mas, Camille, acabo de
reconhecer a verdade das críticas de que você se tem queixado por vezes. Sim, querida, você tem alguma coisa dos homens, você procede como eles, nada a detém, e,
se você não tem todas as vantagens deles, tem no espírito as suas atitudes, a partilha do desprezo com que nos consideram. Não tenho motivos, querida, para estar
satisfeita com você, e sou demasiado franca para ocultá-lo. Ninguém me fará talvez no coração um ferimento tão profundo quanto esse de que estou sofrendo. Se em
amor você nem sempre é mulher, volta a sê-lo em assuntos de vingança. Era preciso uma mulher de gênio para encontrar o ponto mais sensível de nossas delicadezas:
quero referir-me a Calisto e às artimanhas, querida (é este o termo), que você empregou contra mim. Até onde, Camille Maupin, desceu você e com que intenção?
— Cada vez mais esfinge!—disse Camille sorrindo.
— Você quis que eu me oferecesse a Calisto; sou ainda demasiado jovem para tais procedimentos. Para mim, o amor é o amor com seus atrozes ciúmes e suas vontades
absolutas. Não sou autor: é-me impossível ver ideias em sentimentos...
— Julga-se capaz de amar tolamente?—disse Camille.—Tranquilize-se, você tem ainda muito espírito. Você se calunia, querida: você é bastante fria para fazer seu cérebro
ser sempre juiz das altas obras de seu coração.
Esse epigrama fez a marquesa corar; dirigiu a Camille um olhar carregado de ódio, um olhar venenoso, e, sem procurá-las, achou as flechas mais aceradas de sua aljava.
Camille ouviu friamente, e fumando cigarros, essa tirada furiosa que crepitava de injúrias tão corrosivas, que é impossível referi-las. Beatriz, irritada pela calma
de sua adversária, procurou horríveis personalidades na idade a que atingia a srta. des Touches.
— É tudo?—disse Camille, expelindo uma baforada de fumaça.—Ama Calisto?
— Certamente que não.
— Tanto melhor—respondeu Camille.—Quando a mim, amo-o e demasiado para minha tranquilidade. É possível que ele tenha por você um capricho, pois que você é a mais
deliciosa loura do mundo e eu sou negra como uma toupeira; você é esbelta, esguia, e eu tenho demasiado dignidade no porte; finalmente, você é jovem! Eis o grande
termo, e você não mo poupou. Abusou de suas vantagens de mulher contra mim, nem mais, nem menos, do que um jornaleco abusa da chalaça. Tudo fiz para impedir o que
está acontecendo—disse ela, erguendo os olhos para o teto.—Por pouco mulher que eu seja, sou-o ainda bastante, querida, para que uma rival tenha necessidade de mim
para vencer-me ... (A marquesa foi atingida no coração por aquela palavra cruel, dita do modo mais inocente.) Você toma-me por uma mulher bem tola ao crer de mim
o que Calisto quer fazer-lhe crer. Não sou nem tão grande nem tão pequena, sou mulher e muito mulher. Deixe esses grandes ares e dê-me a mão—disse Camille, apoderando-se
da mão de Beatriz.—Não ama Calisto, é essa a verdade, não é? Não se exalte! Seja dura, fria e severa com ele amanhã, isso o fará submeter-se depois da briga que
vou ter com ele, e sobretudo depois da reconciliação, porque ainda não esgotei os recursos do nosso arsenal, e, afinal de contas, o prazer pode sempre mais do que
o desejo. Mas Calisto é bretão. Se ele persiste em cortejá-la, diga-mo francamente, e você irá para uma pequena casa de campo que possuo a seis léguas de Paris,
onde encontrará todo o conforto da vida, e onde Conti poderá ir vê-la. Que Calisto me calunie, ora! meu Deus, o mais puro amor mente seis vezes por dia, suas imposturas
revelam sua força.
Houve na fisionomia de Camille um ar de soberba frieza que deixou a marquesa inquieta e temerosa. Não sabia o que responder.
Camille desferiu-lhe o golpe de misericórdia.
— Sou mais confiante e menos áspera do que você—continuou Camille -; não lhe suponho a intenção de cobrir com uma recriminação um ataque que comprometeria minha
vida; você me conhece, sabe que eu não sobreviveria à perda de Calisto e cedo ou tarde terei de perdê-lo. De resto, Calisto ama-me, bem o sei.
— Aqui está o que ele respondeu a uma carta, na qual eu só lhe falava de você—disse Beatriz entregando a Camille a carta de Calisto.
Camille tomou-a e leu-a; mas, ao lê-la, seus olhos encheram-se de lágrimas; chorou como choram todas as mulheres nas suas dores agudas.
— Meu Deus—disse—,ele a ama! Morrerei, pois, sem ter sido compreendida nem amada.
Ficou alguns momentos com a cabeça apoiada no ombro de Beatriz: sua dor era verdadeira, sentia nas entranhas o golpe terrível que a baronesa du Guénic recebera à
leitura daquela carta.
— Tu o amas?—disse ela, endireitando-se e olhando para Beatriz.—Tens por ele essa adoração infinita que triunfa de todas as dores e sobrevive ao desprezo, à traição,
à certeza de não ser nunca mais amada? Tu o amas por ele mesmo e pelo próprio prazer de o amar?
— Querida amiga!—disse a marquesa enternecida.—Pois bem, tranquiliza-te, partirei amanhã.
— Não partas, ele te ama, vejo-o. E eu o amo tanto que ficaria desesperada por vê-lo sofrer, infeliz. Muitos projetos eu formara para ele; mas se ele te ama, está
tudo acabado.
— Amo-o, Camille—disse então a marquesa, com adorável ingenuidade, mas corando.
— Tu o amas e podes resistir-lhe?—exclamou Camille.—Ah, tu não o amas!
— Não sei que novas virtudes ele despertou em mim, mas certamente deixou-me com vergonha de mim mesma—disse Beatriz.—Eu quisera ser virtuosa e livre para sacrificar-lhe
outra coisa que não os restos de meu coração e cadeias infames. Não quero um destino incompleto, nem para ele, nem para mim.
— Cabeça fria: amar e calcular!—disse Camille, com uma espécie de horror.
— Tudo o que você quiser, mas não quero manchar-lhe a vida, prender-me ao seu pescoço como uma pedra, e tornar-me um eterno arrependimento. Se não posso ser sua
esposa, não serei sua amante. Ele me... Você não zombará de mim? Não? Pois bem, seu amor adorável purificou-me.
Camille dirigiu a Beatriz o mais feroz e selvagem olhar que jamais mulher ciumenta tenha dirigido à sua rival.
— Nesse terreno eu julgava estar sozinha. Beatriz, essas palavras separam-nos para sempre, não somos mais amigas. Iniciamos um terrível combate. Agora digo-te: ou
sucumbirás, ou fugirás...
Felicidade precipitou-se para o quarto, após ter mostrado a Beatriz estupefata o aspecto de uma leoa enfurecida.
— Irá você amanhã ao Croisic?—disse Camille, soerguendo o reposteiro.
— Certamente—respondeu orgulhosamente a marquesa.—Não fugirei e não sucumbirei.
— Jogo com as cartas na mesa—respondeu Camille—,escreverei a Conti.
Beatriz ficou branca como a gaze de sua mantilha.
— Cada uma de nós joga a sua vida—respondeu Beatriz, que não sabia mais o que dizia.
As paixões violentas provocadas por essa cena entre aquelas duas mulheres acalmaram-se durante a noite. Ambas refletiram e tornaram a voltar para o sentimento das
pérfidas temporizações que seduzem a maioria das mulheres: sistema excelente entre elas e os homens, mau entre mulheres. Foi em meio a essa última tormenta que a
srta. des Touches ouviu a grande voz que triunfa dos mais intrépidos. Beatriz ouviu os conselhos da jurisprudência mundana, teve medo do desprezo da sociedade. A
última mentira de Camille, entremeada com as tonalidades do mais atroz ciúme, teve pois um pleno êxito. O erro de Calisto foi reparado, mas uma nova indiscrição
podia arruinar para sempre suas esperanças.
Chegava-se ao fim de agosto, o céu estava de uma pureza magnífica. No horizonte, o oceano, como nos mares meridionais, tinha tonalidades de prata em fusão, e junto
à praia borboleteavam pequenas ondas. Uma espécie de fumaça brilhante, causada pelos raios do sol que caía a prumo sobre as areias, produzia ali uma atmosfera pelo
menos igual à dos trópicos. Por isso, o sal florescia em pequenos cravos brancos na superfície dos charcos. Os corajosos salineiros, vestidos de branco precisamente
para resistir à ação do sol, estavam desde manhã no seu posto, armados com seus compridos ancinhos, alguns apoiados nos pequenos muros de barro que separam cada
propriedade, olhando o trabalho daquela química natural deles conhecida desde a infância; outros brincando com seus pimpolhos e suas mulheres. Aqueles dragões verdes,
chamados aduaneiros, fumavam tranquilamente seus cachimbos. Havia qualquer coisa de oriental nesse quadro, porquanto um parisiense, subitamente transportado para
ali, não teria com certeza acreditado estar na França. O barão e a baronesa, que haviam tomado como pretexto vir ver como ia a colheita do sal, estavam no cais,
admirando aquela silenciosa paisagem, onde somente o mar fazia ouvir o mugido de suas vagas, ritmicamente, onde barcos sulcavam o mar e onde o círculo verde da terra
cultivada produzia um efeito tanto mais gracioso, por ser excessivamente raro nas margens sempre desoladas do oceano.
— E então, meus amigos, terei visto ainda uma vez as salinas de Guérande, antes de morrer—disse o barão aos salineiros que se agruparam à entrada das salinas para
saudá-lo.
— Será que os du Guénic morrem?—disse um salineiro.
Naquele momento, a caravana que partira das Touches chegou ao pequeno caminho. A marquesa ia sozinha na frente, Calisto e Camille seguiam-na de braço dado. Vinte
passos atrás vinha Gasselin.
— Ali estão meu pai e minha mãe—disse o rapaz a Camille.
A marquesa deteve-se. A sra. du Guénic sentiu a mais violenta repulsa ao ver Beatriz, que estava entretanto vestida do modo mais favorável: um chapéu da Itália enfeitado
de centáureas e de grandes abas, seus cabelos crespos por baixo, um vestido de uma fazenda crua de cor acinzentada, um cinto azul de compridas pontas flutuantes,
finalmente um ar de princesa fantasiada de pastora.
“Ela não tem coração”, disse consigo mesma a baronesa.
— Senhorita—disse Calisto a Camille—,apresento-lhe a sra. du Guénic e meu pai.
Depois disse ao barão e à baronesa:
— A srta. des Touches e a sra. marquesa de Rochefide, da família Casteran, meu pai.
O barão saudou a srta. des Touches, a qual fez uma saudação humilde e cheia de gratidão à baronesa.
“Essa”, pensou Fanny, “ama verdadeiramente meu filho; parece agradecer-me ter posto Calisto no mundo.”
— Vinde ver, como o estou fazendo, se a colheita será boa; mas tendes melhores razões do que eu para estar curiosa—disse o barão a Camille—,pois tendes interesses
aí, senhorita.
— A senhorita é a mais rica de todos os proprietários—disse um dos salineiros—,e que Deus a conserve, pois é uma boa dama.
Os dois grupos saudaram-se e separaram-se.
— Não se daria mais de trinta anos à srta. des Touches—disse o velho à esposa.—É bem bela. E Calisto prefere essa pileca de marquesa parisiense a essa excelente
filha da Bretanha?
— Infelizmente, sim—disse a baronesa.
Um barco esperava junto ao cais, onde se fez o embarque sem alegria. A marquesa estava fria e digna. Camille ralhara com Calisto pela sua falta de obediência, explicando-lhe
o estado no qual estavam seus assuntos sentimentais. Calisto, tomado de um desespero sombrio, dirigia a Beatriz olhares nos quais amor e ódio se combatiam. Não disseram
uma palavra durante o curto trajeto do cais de Guérande à extremidade do porto du Croisic, lugar onde se carrega o sal, o qual é trazido por mulheres, em grandes
terrinas que colocam na cabeça, assemelhando-se por essa forma a cariátides. Essas mulheres andam descalças e usam apenas uma saia muito curta. Muitas, de entre
elas, deixam despreocupadamente esvoaçar os lenços que lhes cobrem o busto; muitas não têm senão a camisa e são as mais orgulhosas, porque quanto menos vestimenta
tiverem as mulheres, mais pudicas nobrezas ostentarão. O pequeno navio dinamarquês estava por terminar seu carregamento. O desembarque daquelas duas belas criaturas
excitou pois a curiosidade das carregadoras de sal; e, para escapar a isso, tanto quanto para servir Calisto, Camille pulou rapidamente para os rochedos, deixando-o
com Beatriz. Gasselin pôs entre seu senhor e ele uma distância de pelo menos duzentos passos.
V - PASSEIO AO CROISIC
Do lado do mar, a península do Croisic é cercada de rochas graníticas, cujas formas são tão singularmente caprichosas que não podem ser apreciadas senão pelos viajantes
em condições de estabelecer comparações entre esses grandes espetáculos da natureza selvagem. É possível que os rochedos do Croisic tenham sobre as coisas desse
gênero a superioridade concedida ao caminho da Grande Cartuxa (O maciço da Grande Cartuxa: faz parte dos Alpes franceses. Num de seus vales encontra-se o célebre
convento fundado por São Bruno em 1084.) sobre os outros vales estreitos. Nem as costas da Córsega, onde o granito apresenta recifes bem estranhos, nem as da Sardenha,
onde a natureza se entregou a efeitos grandiosos e terríveis, nem as rochas basálticas dos mares do Norte têm um caráter tão completo. A fantasia divertiu-se em
compor ali intermináveis arabescos nos quais as mais bizarras figuras se enovelam e se desenovelam. Encontram-se ali todas as formas. A imaginação cansa-se talvez
com aquela imensa galeria de monstruosidades, onde, nos tempos da ressaca, o mar se insinua, acabando por polir-lhes todas as asperezas. Encontra-se sob uma abóbada
natural e de um arrojo imitado de longe por Brunelleschi (Brunelleschi: Filippo Brunelleschi (1377-1446), grande arquiteto italiano. Uma de suas obras principais
é o palácio Pitti, em Florença.), pois que os maiores esforços da arte são sempre uma tímida imitação da natureza, uma cuba polida como uma banheira de mármore e
ensaibrada com uma areia fina, lisa, branca, na qual é possível a gente banhar-se sem temor, em quatro pés de água morna. Vai-se admirando pequenas enseadas frescas,
abrigadas por pórticos grosseiramente talhados, porém majestosos, à maneira do palácio Pitti, essa outra imitação dos caprichos da natureza. Os acidentes são inúmeros,
nada ali falta daquilo que a mais caprichosa imaginação poderia inventar ou desejar. Existe mesmo, coisa tão rara nas margens do oceano, que é essa talvez a única
exceção, uma grande moita da planta que fez criar aquele nome (A palavra francesa buisson (“moita”) deriva de buis (“buxo”).). Esse buxo, a maior curiosidade do
Croisic, onde as árvores não vingam, acha-se a cerca de uma légua do porto, na ponta mais avançada da costa. Num dos promontórios formados pelo granito e que se
erguem acima do mar, numa altura a que nunca alcançam as ondas, mesmo nos tempos de mar mais bravio, exposta ao sul, os caprichos diluvianos praticaram uma borda
escavada de cerca de quatro pés de saliência. Nessa fenda, o acaso, ou talvez o homem, colocou suficiente terra vegetal para que um buxo baixo e denso, semeado pelos
pássaros, ali nascesse. A forma das raízes indica ter ele pelo menos trezentos anos de existência. Abaixo, a rocha foi partida de modo nítido. A comoção, cujos vestígios
estão escritos em caracteres inapagáveis naquela costa, levou os pedaços de granito não sei para onde. O mar chega sem encontrar recifes ao pé daquela lâmina, onde
ela tem mais de quinhentos pés de profundidade; em torno, algumas rochas à flor da água, reveladas pela fervura das espumas, descrevem como que um grande círculo.
É preciso um pouco de coragem e de resolução para ir até o cume desse pequeno Gibraltar, cujo pico é quase redondo, e de onde alguma rajada de vento pode precipitar
os curiosos no mar, ou, o que seria mais perigoso ainda, sobre os rochedos. Essa sentinela gigantesca assemelha-se a lanternas de velhos castelos, de onde era possível
preverem-se os ataques, abarcando toda a região; daí veem-se o campanário e áridas culturas do Croisic, as areias e as dunas que ameaçam as terras cultivadas e que
invadiram o território do burgo de Batz. Alguns anciãos pretendem que, em tempos muito distantes, havia uma fortaleza naquele lugar. Os pescadores de sardinha deram
um nome a esse rochedo que se vê de longe no mar; mas deve-se perdoar o esquecimento desse nome bretão, tão difícil de pronunciar como de reter.
Calisto levara Beatriz para esse ponto, de onde a vista é soberba e onde as decorações do granito ultrapassam todas as admirações que tenha podido causar ao longo
da estrada arenosa que costeia o mar. É inútil explicar o motivo pelo qual Camille tomara a dianteira. Como um animal selvagem ferido, ela amava a solidão; perdia-se
nas grutas, reaparecia nos picos, expulsava os caranguejos das suas locas ou surpreendia em flagrante delito seus costumes originais. Para não se sentir atrapalhada
com seus trajes femininos, ela pusera calças de bainhas dobradas, uma blusa curta, um chapéu de castor, e como bastão de viagem ela trazia uma chibata, pois sempre
tivera a fatuidade de sua força e de sua agilidade; era assim cem vezes mais bela do que Beatriz: abrigava-se com um pequeno xale de seda vermelha, da China, cruzado
sobre o busto, como se põe nas crianças. Durante algum tempo Beatriz e Calisto viram-na voluteando nos cimos ou por sobre os abismos como um fogo-fátuo, tentando
iludir seus sofrimentos, afrontando o perigo. Foi a primeira a chegar à rocha da murta e sentou-se numa das anfractuosidades, à sombra, ocupada em meditar. Que podia
fazer uma mulher como ela de sua velhice, após ter bebido a taça da glória que todos os grandes talentos, demasiado ávidos para esmiuçarem os estúpidos gozos do
amor-próprio, esvaziam num hausto? Depois disso ela confessou que, aí, uma das reflexões sugeridas por um nada, por um desses acidentes que são uma tolice talvez
para pessoas vulgares, e que apresentam às grandes almas um abismo de reflexão, a decidira ao ato singular pelo qual devia terminar com a vida social.
Tirou do bolso uma pequena caixa onde pusera, para o caso de ter sede, pastilhas de morango; tirou umas tantas; mas, enquanto as saboreava, não pôde deixar de notar
que os morangos, que não existiam mais, reviviam entretanto em suas qualidades. Concluiu daí que o mesmo podia acontecer conosco. O mar oferecia-lhe então uma imagem
do infinito. Nenhum grande espírito pode tirar-se do infinito, admitindo a imortalidade da alma, sem concluir em algum futuro religioso. Essa ideia perseguiu-a ainda,
quando respirou seu frasco de água de Portugal. Seu manejo para entregar Beatriz ao amor de Calisto pareceu-lhe então bem mesquinho: sentiu morrer em si a mulher,
e desprender-se a nobre e angelical criatura, velada até aquele momento pela carne. Seu espírito imenso, seu saber, seus conhecimentos, seus falsos amores puseram-na
frente a frente com quê?—quem o diria—com a mãe fecunda, a consoladora dos aflitos, a Igreja Romana, tão benigna para com os arrependimentos, tão poética para com
os poetas, tão simples para com as crianças, tão profunda e misteriosa para com os espíritos inquietos e selvagens que eles podem ali escavar satisfazendo sempre
suas insaciáveis curiosidades, incessantemente excitadas. Rememorou os meandros que Calisto lhe havia feito percorrer e comparou-os aos caminhos tortuosos daqueles
rochedos. Calisto era sempre a seus olhos o belo mensageiro do céu, um divino guia. Sufocou o amor terrestre com o amor divino.
Depois de ter caminhado algum tempo em silêncio, Calisto não pôde deixar, ante uma exclamação de Beatriz relativa à beleza do oceano, que difere muito da do Mediterrâneo,
de comparar, como pureza, como extensão, como agitação, como profundidade, como eternidade, esse mar ao seu amor.
— Ele é margeado por um rochedo—disse Beatriz, rindo.
— Quando me fala assim—respondeu ele, dirigindo-lhe um olhar divino—,vejo-a, ouço-a e posso ter a paciência dos anjos; mas, quando estou só, teria piedade de mim
se pudesse ver-me. Minha mãe nesses momentos chora por meu pesar.
— Ouça, Calisto, é preciso acabar com isto—disse a marquesa, regressando ao caminho arenoso.—É possível que tenhamos chegado ao único lugar propício para falar sobre
essas coisas, porquanto nunca em minha vida vi a natureza mais em harmonia com os meus pensamentos. Vi a Itália, onde tudo nos fala de amor; vi a Suíça, onde tudo
é viçoso e exprime uma verdadeira felicidade, uma felicidade laboriosa; onde a verdejância, as águas tranquilas, os mais ridentes contornos são oprimidos pelos Alpes,
coroados de neve; mas nada vi que melhor pintasse a ardente aridez de minha vida do que essa pequena planura dissecada pelos ventos do mar, corroída pelos vapores
marinhos, onde uma mesquinha agricultura luta em frente ao oceano imenso, em frente aos bosquetes da Bretanha, de onde se erguem as torres de sua Guérande. Pois
bem, Calisto, é isso Beatriz. Não se prenda pois a ela. Amo-o, mas jamais serei sua, de nenhum modo, pois tenho consciência de minha desolação interior. Ah, você
não sabe a que ponto sou dura para comigo mesma, ao falar-lhe assim. Não, não verá seu ídolo, se é que sou seu ídolo, diminuído; ele não cairá das alturas em que
o colocou. Tenho agora horror a uma paixão que a sociedade e a religião reprovam, não quero mais ser humilhada nem ocultar meu amor; fico presa onde estou, serei
o deserto arenoso e sem vegetação, sem flores, nem verdor que aqui está.
— E se fosse abandonada?—disse Calisto.
— Pois bem, iria mendigar meu perdão, humilhar-me-ia diante do homem a quem ofendi, mas jamais correria o risco de atirar-me numa felicidade que, sei, deverá ter
um fim.
— Um fim!—exclamou Calisto.
A marquesa interrompeu o ditirambo que seu apaixonado ia perpetrar, ao repetir: “Um fim!”, com um tom que lhe impôs silêncio.
Essa contradição excitou no rapaz um desses furores íntimos, mudos, só conhecidos por aqueles que amaram sem esperança. Beatriz e ele deram cerca de trezentos passos
num silêncio profundo, não olhando nem o mar, nem os rochedos, nem os campos do Croisic.
— Eu a faria tão feliz—disse Calisto.
— Todos os homens começam prometendo-nos a felicidade, e levam-nos a infâmia, o abandono, o desprezo. Nada tenho a censurar ao homem a quem devo ser fiel; ele nada
me prometeu, eu é que fui a ele; mas o único meio que me resta para diminuir minha falta é de torná-la eterna.
— Diga, senhora, que não me ama! Eu, que a amo, sei por mim mesmo que o amor não argumenta, não vê senão a ele mesmo, não há um sacrifício que eu não fosse capaz
de fazer. Ordene e tentarei o impossível. Aquele que outrora desprezou a amante por ter atirado a luva entre os leões (Aquele que outrora desprezou a amante por
ter atirado a luva entre os leões: alusão a conhecido assunto do folclore universal, tratado, entre outros, por Lope de Vega e Schiller. Segundo a lenda, uma fidalga,
para experimentar o amor de um cavalheiro, joga sua luva branca numa jaula de leões. O cavalheiro arrisca a vida, retira a luva da jaula, mas, depois, dá uma bofetada
na dama cruel (ou segundo outra variante, abandona-a simplesmente). Balzac fez outra alusão a essa história em Memórias de duas jovens esposas.), ordenando-lhe que
a fosse buscar, esse não amava! Desconhecia o direito que tendes, as mulheres, de nos porem à prova a fim de terem certeza de nosso amor e não vos render senão a
grandezas sobre-humanas. Eu sacrificar-lhe-ia minha família, meu nome, meu futuro.
— Que insulto nessa palavra: sacrifício!—disse ela em tom de censura que fez Calisto sentir a tolice da sua expressão.
Somente as mulheres que amam de modo absoluto ou as coquetes sabem tomar como ponto de apoio uma palavra e daí se elevarem a alturas prodigiosas: o espírito e o
sentimento nessa circunstância procedem do mesmo modo: mas a mulher que ama se aflige, e a coquete despreza.
— Tem razão—disse Calisto, deixando cair duas lágrimas—,essa palavra somente pode classificar os esforços que me pede.
— Cale-se—disse Beatriz, impressionada com a resposta na qual, por vez primeira, Calisto pintava bem seu amor -; já cometi muitas faltas, não me tente.
Estavam naquele momento ao pé da rocha do buxo. Calisto experimentou as mais inebriantes alegrias ao sustentar a marquesa na subida daquele rochedo, a cujo cimo
ela fez questão de subir. Foi para a pobre criança o mais alto favor, esse de estreitar aquele busto, de sentir aquela mulher um pouco trêmula: ela precisava dele!
Esse prazer inesperado fê-lo perder o tino, nada mais viu, agarrou Beatriz pela cintura.
— E então?—disse ela com ar imponente.
— Não será minha nunca?—perguntou-lhe ele, com a voz abafada por uma tormenta de sangue.
— Nunca, meu amigo—respondeu ela.—Não posso ser para o senhor senão Beatriz, um sonho. Não é isso uma coisa meiga? Não teremos amarguras, nem pesares, nem arrependimentos.
— E voltará para Conti?
— É preciso.
— Não serás então jamais de ninguém!—disse Calisto, empurrando a marquesa com uma violência frenética.
Quis ouvir a queda de Beatriz, antes de precipitar-se atrás dela, mas não ouviu senão um clamor surdo, o rasgar estridente de uma fazenda e o ruído grave de um corpo
caindo no chão. Em vez de cair de cabeça para baixo, Beatriz dera uma reviravolta e estava abatida em cima do buxo; mas mesmo assim teria rolado para o fundo do
mar, não fosse seu vestido ter-se enganchado numa ponta, e, ao rasgar-se, amortecido o peso do corpo sobre o buxo; a srta. des Touches, que viu essa cena, não pôde
gritar, porquanto sua comoção foi tal, que nada mais pôde do que fazer um sinal a Gasselin, para que corresse em auxílio. Calisto inclinou-se por uma espécie de
curiosidade feroz, viu a situação de Beatriz, e estremeceu: ela parecia rezar, pensava que ia morrer, sentia que o buxo cedia. Com a habilidade súbita que o amor
dá, com a agilidade sobrenatural que a mocidade encontra no perigo, ele deixou-se escorregar por nove pés de altura, agarrando-se a algumas asperezas, até a beira
do rochedo, e pôde erguer a marquesa a tempo, tomando-a nos braços, em risco de caírem ambos no mar. Quando segurou Beatriz, ela perdera o conhecimento; ele, entretanto,
podia julgá-la inteiramente sua naquele leito aéreo onde iam ficar sós durante muito tempo, e seu primeiro movimento foi de prazer.
— Abra os olhos, perdoe-me—dizia Calisto—, ou morreremos juntos.
— Morrer?—disse ela abrindo os olhos e entreabrindo os pálidos lábios.
Calisto saudou aquela palavra com um beijo, e sentiu entrar na marquesa um frêmito convulsivo que o encantou. Nesse momento os sapatos ferrados de Gasselin fizeram-se
ouvir em cima. O bretão seguira Camille, com a qual examinava os meios de salvar os dois amantes.
— Não há senão um, senhorita—disse Gasselin—; eu vou escorregar até lá, eles subirão, trepando em meus ombros, e a senhora lhes dará a mão.
— E você?—disse Camille.
O criado pareceu surpreender-se por contarem com ele para alguma coisa, no meio do perigo que seu jovem senhor corria.
— É melhor ir buscar uma escada no Croisic—disse Camille.
“Mas que maliciosa”, pensou Gasselin enquanto descia.
Beatriz pediu em voz fraca que a deitassem, pois sentia-se desfalecer. Calisto deitou-a entre o granito e o buxo, na terra fresca.
— Eu o vi, Calisto—disse Camille.—Que Beatriz morra ou seja salva, isto não deverá ser senão um acidente.
— Ela me odiará—disse ele, com os olhos molhados.
— Ela te adorará—disse Camille.—Eis-nos de volta do nosso passeio, é preciso transportá-la às Touches. Que seria feito de ti se ela tivesse morrido?—disse-lhe ela.
— Eu a teria seguido.
— E tua mãe?...
Depois, após uma pausa:
— E eu?—disse, com voz débil.
Calisto permaneceu pálido, com as costas apoiada no granito, imóvel, silencioso. Gasselin voltou em seguida correndo, com uma escada que encontrara numa das pequenas
granjas esparsas nos campos. Beatriz readquirira alguma força.
Depois de Gasselin ter colocado a escada, a marquesa pôde, auxiliada por Gasselin, o qual pediu a Calisto que passasse o xale vermelho de Camille por baixo dos braços
de Beatriz e que lhe alcançasse a ponta, chegar à plataforma circular, onde Gasselin tomou-a nos braços como se ela fosse uma criança, e a desceu à praia.
— Não terei dito não à morte; mas os sofrimentos!—disse ela à srta. des Touches em voz fraca.
A fraqueza e alquebramento que Beatriz sentia obrigaram Camille a levá-la à granja, onde Gasselin pedira a escada emprestada. Calisto, Gasselin e Camille tiraram
a roupa que podiam dispensar, fizeram um colchão em cima da escada, colocando aí Beatriz e levando-a como numa padiola. Os granjeiros ofereceram seus leitos. Gasselin
correu ao lugar onde estavam os cavalos, montou num deles, e foi buscar o cirurgião do Croisic, depois de recomendar aos barqueiros que viessem à enseada mais próxima
da granja. Calisto, sentado numa banqueta, respondia com movimentos de cabeça e com raros monossílabos a Camille, cuja inquietação era excitada quer pelo estado
de Beatriz, quer pelo de Calisto. Após uma sangria, a doente sentiu-se melhor; pôde falar, consentiu em embarcar, e, cerca das cinco horas da tarde, foi transportada
do cais de Guérande às Touches, onde o médico da cidade a atendeu. O ruído desse acontecimento espalhara-se por aquela região solitária, e quase sem habitantes visíveis,
com inexplicável rapidez.
Calisto passou a noite nas Touches, junto ao leito de Beatriz, e em companhia de Camille. O médico prometera que no dia seguinte a marquesa não sentiria mais senão
uma certa lassidão. Através do desespero de Calisto brilhava uma alegria profunda: estava junto ao leito de Beatriz, contemplava-a, dormitando ou despertando-se;
podia estudar seu rosto pálido e seus menores movimentos. Camille sorria com amargura ao reconhecer em Calisto os sintomas de uma dessas paixões que tingem para
sempre a alma e as faculdades de um homem, fundindo-se com sua vida, numa época em que nenhum pensamento, nenhuma preocupação contrariam esse cruel trabalho interior.
Calisto jamais veria a verdadeira mulher que existia em Beatriz. Com que ingenuidade o jovem bretão deixava que lessem seus mais secretos pensamentos!... Ele imaginava
que aquela mulher era dele, ao se achar assim em seu quarto, e admirando-a na desordem do leito. Espreitava com atenção extática os mais leves movimentos de Beatriz,
sua atitude demonstrava uma tão linda curiosidade, sua felicidade revelava-se tão ingenuamente, que houve um momento em que as duas mulheres se olharam sorrindo.
Quando Calisto viu os belos olhos verde-mar da doente exprimindo uma mescla de confusão, de amor e de sarcasmo, ele corou e voltou a cabeça.
— Não lhe disse eu, Calisto, que vocês os homens começavam prometendo-nos a felicidade e acabavam atirando-nos num precipício?
Ao ouvir esse gracejo, dito num tom encantador, e que anunciava alguma mudança no coração de Beatriz, Calisto pôs-se de joelhos, pegou numa das mãos úmidas que ela
permitiu que ele pegasse e beijou-a de modo muito submisso.
— Tem o direito de rejeitar meu amor para sempre, e eu não tenho mais o direito de dizer-lhe uma única palavra.
— Ah—exclamou Camille ao ver a expressão desenhada no semblante de Beatriz e comparando-a com a obtida pelos esforços de sua diplomacia—,o amor terá sempre mais
espírito, ele sozinho, do que todo mundo! Tome seu calmante, querida, e durma!
Essa noite passada por Calisto junto à srta. des Touches, a qual leu livros de teologia mística, enquanto Calisto lia Indiana, o primeiro livro da célebre rival
de Camille (A célebre rival de Camille: George Sand.) e onde se achava a cativante figura de um rapaz amando com idolatria e devotamento, com uma tranquilidade misteriosa
e por toda a vida, uma mulher colocada na falsa situação em que se encontrava Beatriz, livro que foi um exemplo fatal para ele!, essa noite deixou vestígios inapagáveis
no coração daquele moço, ao qual Felicidade fez compreender que, a menos que fosse um monstro, uma mulher não podia senão sentir-se feliz e lisonjeada em todas as
suas vaidades, por ter sido alvo de um crime.
— A mim você não me teria atirado na água!—disse a pobre Camille, enxugando uma lágrima.
VI - CONTI
Ao amanhecer, Calisto, esgotado, adormeceu na sua poltrona. Tocou a vez à marquesa de contemplar aquela encantadora criança, empalidecida por suas emoções e por
sua primeira vigília de amor; ela ouviu-o murmurando-lhe o nome, dormindo.
— Ele ama dormindo—disse ela a Camille.
— É preciso mandá-lo dormir em casa—disse Felicidade, que o despertou.
Ninguém estava inquieto no solar dos du Guénic; a srta. des Touches escrevera um bilhete à baronesa. Calisto voltou para jantar nas Touches, encontrou Beatriz de
pé, pálida, fraca e lassa; mas não havia mais a menor dureza nas suas palavras, nem nos seus olhares. Depois desse serão, que Camille enchera de música, pondo-se
ao piano a fim de deixar Calisto pegar e apertar as mãos de Beatriz, sem que, quer um, quer outro, pudessem falar, não houve mais a mínima tormenta nas Touches.
Felicidade apagou-se completamente. As mulheres frias, franzinas, duras e delgadas, como a sra. de Rochefide, essas mulheres, cujo pescoço apresenta um arcabouço
ósseo que lhes dá uma vaga semelhança com os felinos, têm a alma da cor pálida de seus olhos claros, cinzentos ou verdes; por isso, para fundir, para vitrificar
essas pedras, são necessários raios. Para Beatriz a ira de amor e o atentado de Calisto tinha sido aquele raio, ao qual nada resiste e que transforma as mais rebeldes
naturezas. Beatriz sentia-se interiormente mortificada, o amor puro e verdadeiro banhava-lhe o coração com seus ardores macios e fluidos. Vivia numa atmosfera suave
e morna de sentimentos ignorados, na qual se sentia engrandecida, elevada; entrava nos céus em que a Bretanha, desde sempre, colocou a mulher. Saboreava as adorações
respeitosas daquela criança, cuja felicidade pouco lhe custava, porquanto um gesto, um olhar, uma palavra satisfaziam Calisto. Esse alto valor dado pelo coração
a esses nadas comoviam-na excessivamente. O roçar da sua luva podia tornar-se para aquele anjo mais do que toda a sua pessoa o era para aquele por quem deveria ter
sido adorada. Que contraste! Que mulher poderia resistir a essa constante deificação? Tinha certeza de ser obedecida e compreendida. Dissesse ela a Calisto que arriscasse
sua vida por um ínfimo capricho seu, e ele nem sequer refletiria. Por isso Beatriz adquiriu um não sei quê de nobre e de imponente; viu o amor pelo lado de suas
grandezas, nele buscou como que um ponto de apoio para conservar-se a mais magnífica de todas as mulheres aos olhos de Calisto, sobre quem queria ter um domínio
absoluto e eterno. Suas faceirices foram então tanto mais tenazes por sentir-se mais fraca. Fez-se de doente durante uma semana inteira, com uma hipocrisia encantadora.
Quantas vezes não deu ela a volta do tapete verde, que se estendia em frente à fachada das Touches, no jardim, apoiada no braço de Calisto e retribuindo então a
Camille os sofrimentos que esta lhe dera durante a primeira semana de sua estada.
— Ah! querida, tu o forças a dar a grande volta—disse a srta. des Touches à marquesa.
Antes do passeio ao Croisic, uma noite, aquelas duas mulheres charlavam a respeito do amor e riam dos diferentes modos empregados pelos homens para fazerem suas
declarações, confessando a si mesmas que os mais hábeis e, naturalmente, os menos apaixonados não se divertiam perambulando no labirinto da pieguice, e tinham razão,
de modo que as pessoas que amam mais eram durante certo tempo as mais infelizes.
— Eles procedem como La Fontaine (A eleição de La Fontaine à Academia Francesa foi bastante acidentada. Sua primeira candidatura, em 1682, não obteve êxito contra
certo Louis Courcillon, abade de Dangeau. Quando se candidatou pela segunda vez, foi eleito por 16 votos contra 7 de Boileau. No entanto o rei, Luís XVI, descontente
com essa eleição, só a ratificou depois que Boileau também foi eleito acadêmico em 1684.) para ir à Academia!—disse então Camille.
Seu dito lembrava à marquesa essa conversação, recriminando seu maquiavelismo. A sra. de Rochefide tinha um poder absoluto para manter Calisto nos limites em que
ela queria que ele permanecesse, recordava-lhe com um gesto ou um olhar sua horrível violência à beira-mar. Os olhos daquele pobre mártir enchiam-se de lágrimas,
calava-se e engolia seus argumentos, seus anseios, seus sofrimentos, com um heroísmo que teria certamente comovido outra mulher. Ela levou-o por seu infernal coquetismo
a um tão grande desespero, que um dia veio atirar-se nos braços de Camille, para pedir-lhe conselho. Beatriz armada com a carta de Calisto, dela extraíra as passagens
onde ele dizia que amar era a primeira felicidade, que ser amado vinha em segundo lugar, e servia-se desse axioma para restringir a paixão dele a essa idolatria
respeitosa que lhe agradava. Gostava tanto de se deixar acariciar a alma por esses meigos concertos de louvores e adorações que a natureza sugere aos moços; há tanta
arte sem rebuscamento, tantas seduções inocentes nos seus gritos, nos seus rogos, nas suas exclamações, nos apelos que fazem a si mesmos, nas hipotecas que oferecem
sobre o futuro, que Beatriz tinha o cuidado de não lhes dar resposta. Dissera-o, duvidava! Não se tratava ainda da felicidade, mas da permissão de amar que aquela
sempre pedia, a qual se obstinava em querer conquistar a praça pelo seu lado mais forte, o lado moral. A mulher mais forte em palavras é com frequência muito fraca
em ações. Depois de ter visto o progresso que fizera ao empurrar Beatriz para o mar, é estranho que Calisto não continuasse a pedir sua felicidade à violência; mas
o amor nos moços é de tal forma extático e religioso que quer obter tudo da convicção moral: e daí vem sua sublimidade.
Não obstante, o bretão, um dia, levado ao cúmulo da exasperação, queixou-se vivamente a Camille do procedimento de Beatriz.
— Quis curar-te, fazendo com que a conhecesse rapidamente—disse a srta. des Touches—e tu quebraste tudo na tua impaciência. Faz dez dias eras tu o senhor; hoje és
escravo, meu pobre rapaz. Assim, pois, nunca terás a força necessária para executar minhas ordens.
— Que é preciso fazer?
— Armar-lhe uma briga por causa de seu rigor. Uma mulher exalta-se sempre pelas palavras, faze com que ela te maltrate e não voltes às Touches, senão a chamado dela.
Há um momento, em todas as doenças violentas, em que o paciente aceita os mais cruéis remédios e se submete às mais horríveis operações. Calisto chegara a esse ponto.
Aceitou o conselho de Camille e ficou dois dias em casa, mas no terceiro ele estava arranhando a porta de Beatriz, prevenindo-a de que Camille e ele a estavam esperando
para o almoço.
— Mais um recurso perdido!—disse-lhe Camille, ao vê-lo proceder com tanta fraqueza.
Beatriz, durante esses dois dias, detivera-se com frequência na janela de onde se via a estrada de Guérande. Quando Camille a surpreendia ali, ela dizia estar entretida
com o efeito que no caminho produziam os juncos marinhos cujas flores de ouro estavam iluminadas pelo sol de setembro. Camille teve assim o segredo de Beatriz, e
bastava-lhe dizer uma palavra para que Calisto fosse feliz, mas não a dizia; era ainda demasiado mulher para impeli-lo a esse ato de que se apavoram os jovens corações
que parecem ter consciência de tudo o que seu ideal vai perder. Beatriz fez Camille e Calisto esperarem bastante tempo. Com qualquer outro que não ele, essa demora
teria sido significativa, porquanto a toilette da marquesa revelava o desejo de fascinar Calisto e impedir uma nova ausência. Depois do almoço ela foi passear no
jardim e arrebatou de alegria o rapaz a quem arrebatava de amor, exprimindo-lhe o desejo de rever com ele aquela rocha onde quase perecera.
— Vamos sozinhos—pediu Calisto com voz perturbada.
— Se recusasse—respondeu ela—,dar-lhe-ia direito de pensar que é perigoso. Infelizmente, já lho disse mil vezes, pertenço a outro e não posso pertencer senão a ele;
escolhi-o sem nada conhecer do amor. O erro é duplo, duplo é o castigo.
Quando ela falava assim, com os olhos umedecidos pelas poucas lágrimas que essa espécie de mulheres derrama, Calisto sentia uma compaixão que amenizava seu ardente
furor; adorava-a então como a uma madona. Não se deve pedir aos diferentes caracteres de se assemelharem na expressão dos sentimentos, do mesmo modo que não se deve
exigir os mesmos frutos de árvores diferentes. Beatriz estava naquele momento sujeita a violento combate; hesitava entre ela própria e Calisto; entre a sociedade,
na qual esperava reingressar um dia, e a felicidade completa; entre perder-se para sempre por uma segunda paixão imperdoável, e o perdão social. Começava a ouvir,
sem nenhum enfado, mesmo fingido, as palavras de amor cego; deixava-se acariciar pelas macias mãos da Piedade. Já, por várias vezes, ela se comovera a ponto de quase
chorar, ao ouvir Calisto prometendo-lhe amor por tudo o que ela perderia aos olhos da sociedade, e lamentando-a por estar ela presa a um tão mau gênio, a um homem
tão falso quanto Conti. Por mais de uma vez, ela não tapara a boca de Calisto, quando lhe contava as pequenezes e os sofrimentos que a haviam acabrunhado na Itália,
ao não se ver mais sozinha no coração de Conti. Camille, a esse respeito, dera mais de uma lição a Calisto, e este delas tirava proveito.
— Palavra—dizia ele—que a amarei de um modo absoluto: não encontrará em mim os triunfos da arte, os gozos que dá uma multidão comovida pelas maravilhas do talento;
meu único talento será o de amá-la, meus únicos gozos serão os seus, a admiração de nenhuma mulher me parecerá merecer recompensa; não terá de temer odiosas rivalidades;
não lhe fazem justiça, e lá onde a aceitam, eu quisera fazer-me aceitar todos os dias.
Ela ouvia essas palavras de cabeça baixa, deixando-o beijar-lhe as mãos, confessando silenciosamente, mas de bom grado, que ela era talvez um anjo ignorado.
— Estou demasiado humilhada—respondeu ela—, meu passado priva o futuro de toda e qualquer segurança.
Foi uma bela manhã para Calisto aquela em que ao chegar às Touches, às sete horas da manhã, ele entreviu, através de dois juncos marinhos, Beatriz numa janela, tendo
na cabeça o mesmo chapéu de palha que trazia no dia da excursão. Teve como que um deslumbramento. Essas pequenas coisas da paixão tornam o mundo maior. É possível
que somente as francesas possuam o segredo desses lances teatrais; devem-nos às graças de seu espírito, sabem pôr no sentimento tanto quanto ele pode aceitar sem
nada perder de sua força. Ah, como ela pesava pouco no braço de Calisto! Os dois saíram pela porta do jardim que dava para as dunas. Beatriz achou as areias lindas;
entreviu então aquelas pequenas plantas duras, de flores rosadas que ali crescem, colheu umas quantas às quais juntou o cravo dos Cartuxos que se acha igualmente
nessas areias áridas, e partilhou-as de modo significativo com Calisto, para quem aquelas flores e aquela folhagem deveriam ser uma eterna, uma sinistra imagem.
— Juntar-lhes-emos ramos de buxo—disse ela sorrindo.
Permaneceu algum tempo no cais, onde Calisto, enquanto esperava o barco, contou-lhe sua criancice no dia da chegada dela.
— Sua escapula, de que tive conhecimento, foi a causa de minha severidade no primeiro dia—disse ela.
Durante esse passeio, a sra. de Rochefide teve esse tom levemente jocoso da mulher que ama, bem como a sua ternura e o seu abandono. Calisto podia acreditar-se amado.
Mas quando, ao irem ao longo dos rochedos na areia, desceram numa dessas encantadoras angras para onde as vagas levam os mais extraordinários mosaicos, compostos
com os mármores mais estranhos, e depois de ali brincarem como crianças procurando os mais belos espécimes; quando Calisto, no cúmulo do enlevo, propôs-lhe nitidamente
que fugissem para a Irlanda, ela retomou um ar digno, misterioso, pediu-lhe o braço, e continuaram a marcha para a rocha que ela batizara de sua rocha Tarpeia (Rocha
Tarpeia: rocha, em Roma, de onde se precipitavam os criminosos.).
— Meu amigo—disse ela subindo a passos lentos aquele magnífico bloco de granito, do qual devia fazer-se um pedestal—,não tenho a coragem de ocultar-lhe tudo o que
o senhor é para mim. Faz dez anos que não tenho felicidade comparável à que acabamos de gozar, ao procurarmos conchinhas nesses rochedos à flor da água, ao trocarmos
essas pedrinhas com as quais eu me mandarei fazer um colar, que será para mim mais precioso do que se fosse feito com os mais belos diamantes. Acabo de ser uma meninazinha,
criança, tal como era aos catorze ou dezesseis anos, e então digna do senhor. O amor que tive a felicidade de inspirar-lhe reergueu-me aos meus próprios olhos. Ouça
essa palavra em toda a sua magia. O senhor fez de mim a mais orgulhosa das mulheres, a mais feliz do seu sexo, e viverá talvez mais tempo na minha memória do que
eu na sua.
Nesse momento chegara ao cume do rochedo de onde se via o imenso oceano de um lado e a Bretanha do outro, com suas ilhas de ouro, suas torres feudais e seus maciços
de juncos marinhos. Jamais esteve uma mulher num mais belo palco para fazer uma tão grande confissão.
— Mas—disse ela—não me pertenço, estou mais obrigada por minha vontade do que o estava pela lei. Sinta-se pois castigado por minha infelicidade e contente-se em
saber que sofremos juntos. Dante nunca mais tornou a ver Beatriz. Petrarca jamais possuiu Laura. Esses desastres alcançam somente as grandes almas. Ah, se eu for
abandonada, se desço mais mil degraus na vergonha e na infâmia, se tua Beatriz for cruelmente mal julgada pela sociedade, que para ela será horrível, se ela for
a última das mulheres!... então, criança adorada—disse ela, segurando-lhe a mão—,saberás que ela é a primeira de todas, que se poderá erguer até o céu apoiada em
ti; mas então, amigo—disse ela dirigindo-lhe um olhar sublime—,quando a quiseres precipitar, não erres o golpe: depois de teu amor, a morte!
Calisto enlaçava Beatriz pela cintura, apertou-a contra o coração. Para confirmar essas ternas palavras, a sra. de Rochefide depôs sobre a fronte de Calisto o mais
casto e o mais tímido de todos os beijos. Depois desceram e voltaram lentamente, conversando como pessoas que se entenderam e compreenderam perfeitamente; ela, julgando
ter a paz; ele, não duvidando mais de sua felicidade, e enganando-se um e outro. Calisto, segundo as observações de Camille, esperava que Conti ficaria encantado
com essa oportunidade de abandonar Beatriz. A marquesa, essa, deixava-se levar pelo indeciso de sua posição, à espera de um imprevisto. Calisto era demasiado ingênuo,
amava demasiado, para inventar o acaso. Chegaram ambos na situação de alma a mais deliciosa, e entraram nas Touches pela porta do jardim. Calisto munira-se da chave.
Eram cerca de seis horas da tarde. Os perfumes embriagadores, a tépida atmosfera, as cores amareladas dos raios da tarde, tudo se harmonizava com as disposições
de espírito em que se achavam, bem como com suas frases enternecidas. O passo de ambos era igual e rítmico como a marcha dos amantes, seus movimentos revelavam a
união de seus pensamentos. Reinava nas Touches um tão grande silêncio que o ruído da porta, ao abrir-se e fechar-se, reboou e deve ter sido ouvido em todo o jardim.
Como Calisto e Beatriz se haviam dito tudo e seu passeio cheio de emoções os fatigara, vinham suavemente e sem nada dizer. Repentinamente, ao dobrar uma alameda,
Beatriz experimentou a mais horrível surpresa, esse pavor comunicativo causado pela vista de um réptil e que gelou Calisto antes que lhe visse a causa. Num banco,
embaixo de um freixo de galhos chorões, Conti conversava com Camille Maupin. O tremor interior e convulsivo da marquesa foi mais perceptível do que ela o desejaria;
Calisto ficou então sabendo o quanto era querido por aquela mulher que acabava de erguer uma barreira entre ela e ele, sem dúvida para se propiciar mais alguns dias
de coquetismo antes de transpô-la. Num momento, um drama trágico desenvolveu-se em toda a sua extensão no fundo de seus corações.
— Não me esperava, talvez, tão cedo—disse o artista, oferecendo o braço a Beatriz.
A marquesa não pôde deixar de soltar o braço de Calisto e tomar o de Conti. Essa transição ignóbil, imperiosamente ordenada e que desonrava o novo amor, acabrunhou
Calisto, o qual foi atirar-se no banco ao lado de Camille, depois de ter trocado a mais fria saudação com seu rival. Sentia uma porção de sensações contrárias: ao
ter conhecimento do quanto era amado por Beatriz, quisera, num ímpeto, atirar-se sobre o artista, dizendo-lhe que Beatriz lhe pertencia; mas a convulsão interior
daquela pobre mulher, ao trair tudo o que ela sofria, porquanto ali pagara o preço de todas as suas faltas num momento, comovera-o tão profundamente que ficara estupidificado,
atingido como ela por uma implacável necessidade. Esses dois impulsos contrários produziram nele a mais violenta das tormentas a que já fora submetido desde que
amava Beatriz. A sra. de Rochefide e Conti passavam por diante do banco, onde jazia Calisto ao lado de Camille. A marquesa olhava para a rival dardejando-lhe um
desses olhares terríveis, pelos quais as mulheres sabem dizer tudo; evitava os olhos de Calisto e mostrava-se atenta a Conti, o qual parecia gracejar.
— Que poderão eles estar dizendo?—perguntou Calisto a Camille.
— Querido filho, não conheces ainda os direitos pavorosos que um amor extinto dá a um homem sobre uma mulher! Beatriz não lhe pôde recusar a mão; ele, sem dúvida,
a está escarnecendo sobre os seus amores, deve tê-los percebido pela vossa atitude e pelo modo por que vocês se apresentaram ante ele.
— Ele a está escarnecendo?...—disse o impetuoso jovem.
— Acalma-te—disse Camille—, ou perderás as oportunidades favoráveis que te restam. Se ele ferir um pouco demasiado o amor-próprio de Beatriz, ela o pisoteará como
a um verme. Ele, porém, é astucioso, saberá agir com espírito. Não suporá que a orgulhosa sra. de Rochefide pudesse tê-lo traído. Haveria demasiada depravação em
amar um homem por causa de sua beleza! Ele te pintará, sem dúvida, como uma criança dominada pela vaidade de possuir uma marquesa e tornar-se o árbitro dos destinos
de duas mulheres. Finalmente, fará estrondar a artilharia picante das mais injuriosas hipóteses. Beatriz será então forçada a opor-lhe negações mentirosas de que
ele vai aproveitar-se para ficar senhor da situação.
— Ah—disse Calisto—,ele não a ama! Eu a deixaria livre: o amor comporta uma opção feita a todo instante, e confirmada dia a dia. O dia seguinte aprova a véspera
e aumenta o tesouro de nossos prazeres. Mais alguns dias e ele não nos encontraria mais. Quem o fez voltar?
— Uma pilhéria de jornalista—disse Camille.—A ópera, com cujo sucesso ele contava, caiu, e caiu estrondosamente. Essa frase: “É duro perder ao mesmo tempo a reputação
e a amante!”, dita no foyer por Cláudio Vignon, talvez, atingiu-o sem dúvida em sua vaidade. O amor baseado em sentimentos pequenos é implacável. Interroguei-o,
mas quem pode conhecer uma natureza tão falsa e enganadora? Pareceu cansado de sua miséria e de seu amor, enojado da vida. Lamentou estar ligado tão publicamente
com a marquesa, e fez, ao falar-me de sua antiga felicidade, um poema de melancolia um pouco espiritual demais para ser verdadeiro. Com certeza, esperava arrancar-me
o segredo de vosso amor, em meio à alegria que suas lisonjas me causariam.
— E então—disse Calisto olhando Beatriz e Conti que se aproximavam, e já não escutando mais.
Camille, por prudência, mantivera-se na defensiva, não traíra nem o segredo de Calisto, nem o de Beatriz. O artista era homem para ludibriar todo o mundo, e a srta.
des Touches aconselhou Calisto a que desconfiasse dele.
— Querido filho—disse ela—,eis para ti o momento mais crítico; são necessárias uma prudência e uma habilidade que não tens, e vais deixar-te engodar pelo homem mais
astuto deste mundo, porque agora nada posso fazer por ti.
O sino anunciou o jantar. Conti veio oferecer o braço a Camille, Beatriz tomou o de Calisto. Camille deixou a marquesa passar na frente, podendo assim olhar para
Calisto e pondo um dedo nos lábios recomendando-lhe uma discrição absoluta. Conti mostrou uma alegria excessiva durante o jantar. Seria talvez um modo de sondar
a sra. de Rochefide, a qual representou mal seu papel. Faceira, teria podido enganar Conti; amante, porém, foi adivinhada. O astuto músico, longe de constrangê-la,
não pareceu perceber-lhe o embaraço. À sobremesa fez a conversação cair sobre as mulheres e louvou-lhes os sentimentos nobres. Tal mulher, prestes a abandonar-nos
na prosperidade, sacrifica-nos tudo na desgraça, dizia ele. As mulheres têm sobre os homens a vantagem da constância; é preciso tê-las ferido muito para desprendê-las
de um primeiro amante, a quem se sentem ligadas como à própria honra; um segundo amor é vergonhoso etc. Foi de uma perfeita moralidade, incensava o altar no qual
sangrava um coração trespassado por mil golpes. Somente Camille e Beatriz compreendiam a aspereza dos epigramas acerados que ele desferia em cada elogio. Às vezes,
as duas coravam; eram, porém, forçadas a conter-se; deram o braço uma à outra a fim de subirem ao apartamento de Camille e, de comum acordo, passaram pelo grande
salão onde não havia luz e onde podiam ficar sós um momento.
— É-me impossível deixar que Conti me espezinhe e dar-lhe razão contra mim—disse Beatriz em voz baixa.—O forçado está sempre sob o domínio do companheiro de corrente.
Estou perdida, terei de retornar ao presídio do amor. E foi você quem lá me tornou a atirar! Ah, você o fez vir um dia demasiado tarde ou um dia demasiado cedo!
Reconheço aí seu infernal talento de autor: a vingança é completa e o desenlace perfeito.
— Eu posso ter-lhe dito que escreveria a Conti, mas fazê-lo... sou incapaz disso!—exclamou Camille.—Sofres e por isso perdoo-te.
— Que será feito de Calisto?—disse a marquesa com admirável ingenuidade de amor-próprio.
— Mas então Conti leva-a?—perguntou Camille.
— Ah, julga triunfar?—exclamou Beatriz.
Foi com raiva, e com seu belo rosto desfeito, que a marquesa disse essas horríveis palavras a Camille, a qual tentou ocultar sua felicidade com uma falsa expressão
de tristeza; mas o brilho de seus olhos desmentia a contração de sua máscara, e Beatriz era sabida em caretas! Por isso, quando se viram as luzes, ao sentarem-se
naquele divã onde, fazia três semanas, tantas comédias haviam sido representadas, e onde se iniciara a tragédia íntima de tantas paixões contrariadas, aquelas duas
mulheres se observaram pela última vez: viram então que um ódio profundo as separava.
— Ficas com Calisto—disse Beatriz, ao ver os olhos da amiga -; mas eu estou instalada em seu coração e nenhuma mulher de lá me expulsará.
Camille respondeu com um inimitável tom de ironia e que atingiu a marquesa no coração, proferindo as célebres palavras da sobrinha de Mazarino a Luís XIV: “Tu reinas,
tu o amas, e partes!” (A sobrinha de Mazarino: os inimigos do famoso cardeal e político Giulio Mazarino (1602-1661) censuravam-lhe sobretudo o zelo excessivo em
colocar em bons lugares seus numerosos parentes, entre os quais várias sobrinhas de notável beleza. A mais famosa delas, Maria Mancini, por pouco não se tornou rainha
da França; foi justamente a oposição do tio, cujos motivos ainda não são bem elucidados, que levou Luís XIV a separar-se dela apesar da paixão que ela lhe inspirara.
As palavras citadas aqui foram pronunciadas por Maria na ocasião do rompimento.).
Nem uma, nem outra, durante essa cena que foi muito viva, se apercebia da ausência de Calisto e de Conti. O artista permanecera à mesa com o rival, intimando-o a
que lhe fizesse companhia e terminasse com ele uma garrafa de vinho de Champagne.
— Precisamos conversar—disse o artista, a fim de prevenir qualquer recusa por parte de Calisto.
Na situação em que se achavam, o jovem bretão foi obrigado a obedecer àquela intimação.
— Meu caro—disse o músico com voz carinhosa, depois de o pobre pequeno ter bebido dois copos de vinho—,somos dois bons rapazes, podemos falar com o coração na mão.
Não vim por suspeitas. Beatriz—disse ele num gesto cheio de fatuidade—ama-me. Eu não a amo mais; não vim aqui para levá-la, e sim para uma ruptura, deixando-lhe
as honras do rompimento. Você é jovem, não imagina o quanto é útil parecer-se vítima, quando se é o algoz. Os rapazes moços gostam de fazer escarcéu, separam-se
de uma mulher dando escândalo, desprezam-nas muitas vezes e fazem-se odiar; os homens sensatos, porém, fazem com que os despeçam e tomam um arzinho humilhado que
deixa às mulheres remordimentos e o doce sentimento de sua superioridade. O desfavor da divindade não é irreparável, ao passo que uma abjuração não tem remédio.
O senhor não sabe ainda, para sua felicidade, o quanto somos atrapalhados em nossa existência pelas promessas insensatas que as mulheres têm a tolice de aceitar,
quando a galanteria nos obriga a preparar seus nós corrediços, a fim de ocupar os ócios da felicidade. Jura-se então ser-se eternamente um do outro. Se se tem uma
aventura qualquer com uma mulher, não se deixa de dizer-lhe cortesmente que se quereria passar a vida com ela; tem-se o ar de esperar muito impacientemente a morte
de um marido, quando realmente se deseja que ele goze a mais perfeita saúde. Se o marido morre, há provincianas ou teimosas, bastante tolas ou muito trocistas, para
virem correndo dizer-nos: “Eis-me aqui, livre!”. Nenhum de nós é livre. Esse obus morto desperta e cai no meio do mais belo dos nossos triunfos, ou das nossas felicidades
mais bem preparadas. Eu vi que o senhor amaria Beatriz, comecei deixando-a numa situação na qual, sem nada perder de sua majestade sagrada, ela iria namoriscar consigo,
quando mais não fosse para mexer com esse anjo que é Camille Maupin. Pois bem, meu caro, ame-a, prestar-me-á assim um serviço, e eu quisera que ela se mostrasse
atroz comigo. Tenho medo do orgulho e da virtude de Beatriz. É possível que, apesar da minha boa vontade, precisemos de tempo para executar esse chassez-croisez
(Chassez-croisez: passo de dança; em sentido figurado, “sequência de evoluções de diligências que se sucedem inoportunamente e sem resultado”.). Nessas situações,
a coisa está em não sermos nós quem começa. Ali, faz pouco, ao voltear à roda do gramado, quis dizer-lhe que sabia de tudo e cumprimentá-la por sua felicidade. Pois
bem, ela zangou-se! Estou neste momento loucamente apaixonado pela mais bela e mais jovem cantora da Ópera, a srta. Falcon (A srta. Falcon: Marie-Cornélie Falcon
(1812-1897), personagem real, famosa cantora.), e quero desposá-la! Sim, estou nesse ponto, mas também quando o senhor for a Paris verá que troquei a marquesa por
uma rainha.
A felicidade nimbava com sua auréola o cândido semblante de Calisto, o qual confessou seu amor, o que era tudo que Conti queria saber. Não há homem no mundo, por
mais gasto e depravado que seja, cujo amor não se reacenda no momento em que o vê ameaçado por um rival. Pode e quer abandonar uma mulher, mas não quer ser abandonado
por ela. Quando os amantes chegam a esse extremo, homens e mulheres se esforçam por conservar a prioridade, tão profundo é o ferimento feito no amor-próprio. Trata-se
talvez de tudo o que a sociedade criou nesse sentimento, que decorre muito menos do amor-próprio do que da própria vida atacada então no seu porvir: parece que se
vai perder o capital e não os juros. Interrogado pelo artista, Calisto narrou tudo que se havia passado durante aquelas três semanas nas Touches, e ficou encantado
com Conti, o qual dissimulava sua raiva sob uma encantadora bonomia.
— Subamos—disse ele.—As mulheres são desconfiadas, elas não poderiam compreender como ficamos juntos sem nos puxarmos os cabelos, poderiam vir escutar-nos. Eu o
servirei por dois lados, meu caro rapaz. Vou ser insuportável, grosseiro, ciumento com a marquesa, suspeitá-la-ei continuamente de trair-me, não há nada melhor para
determinar uma mulher a trair; o senhor ficará feliz, e eu livre. Represente esta noite o papel de um amante contrariado; eu simularei o homem desconfiado e ciumento.
Lamente a sorte daquele anjo por pertencer a um homem sem delicadeza, chore! É moço, ainda pode chorar. Ai de mim! Chorar é coisa que não posso mais fazer, é uma
grande vantagem a menos.
Calisto e Conti subiram. O músico, solicitado por seu jovem rival para cantar um trecho, cantou a maior obra-prima musical que existe para os executantes, o famoso
Prima che spunti l’aurora (Prima che spunti l’aurora (em italiano): “Antes que a aurora aponte”; ária de O casamento secreto, ópera de Cimarosa, com letra de Bertalli.)
que o próprio Rubini não começa nunca sem tremer e que foi muitas vezes o triunfo de Conti. Nunca ele foi mais extraordinário do que nesse momento, em que tantos
sentimentos lhe ferviam no peito. Calisto estava em êxtase. À primeira palavra daquele cântico, o artista dirigiu à marquesa um olhar que dava às palavras uma significação
cruel, que foi percebida. Camille, que acompanhava, adivinhou aquela ordem que fez Beatriz baixar a cabeça; olhou para Calisto e pensou que o menino caíra em algum
laço, apesar de seu aviso. Teve disso a certeza quando o feliz bretão foi dizer adeus a Beatriz, beijando-lhe a mão e apertando-a com um arzinho confiante e ardiloso.
Quando Calisto chegou a Guérande, a criada de quarto e os criados carregavam o carro de viagem de Conti, o qual, assim que amanhecesse, como dissera, levaria Beatriz
até a posta com os cavalos de Camille. As trevas permitiram à sra. de Rochefide olhar para Guérande, cujas torres, branqueadas pelos últimos clarões do dia, brilhavam
no crepúsculo, e entregar-se à sua profunda tristeza: ela deixava ali uma das mais belas flores da vida, um amor como o sonhado pelas moças mais puras. O respeito
humano despedaçava o único amor verdadeiro que aquela mulher podia e devia conceber em toda a sua vida. A dama da sociedade obedecia às leis da sociedade, imolava
o amor às conveniências, como certas mulheres o imolam à religião ou ao dever. Muitas vezes o orgulho ergue-se à altura da virtude. Vista assim, esta horrível história
é a de muitas mulheres. No dia seguinte, Calisto foi às Touches, cerca do meio-dia. Quando chegou no ponto da estrada de onde na véspera vira Beatriz na janela,
ali distinguiu Camille que correu ao seu encontro. No sopé da escada, disse-lhe esta palavra cruel:
— Partiu!
— Beatriz?—bradou Calisto fulminado.
— Você foi ludibriado por Conti; nada me disse, nada pude fazer.
Levou o pobre rapaz para o seu pequeno salão; ele atirou-se no divã no lugar onde tantas vezes vira a marquesa, e desatou a chorar. Felicidade nada lhe disse, fumou
o seu houca sabendo que nada havia a opor aos primeiros acessos dessas dores, sempre surdas e mudas. Calisto, não sabendo que resolução tomar, ficou durante todo
o dia num profundo entorpecimento. Um momento antes do jantar, Camille tentou dizer-lhe algumas palavras, depois de lhe haver pedido que a ouvisse.
— Meu amigo, tu me causaste sofrimentos mais violentos e eu não tinha, como tu, para curar-me, uma bela vida pela frente. Para mim, a terra não tem mais primavera,
a alma não tem mais amor. Por isso, a fim de encontrar consolações, preciso ir mais alto. Aqui, na véspera do dia em que Beatriz chegou, eu te fiz seu retrato; não
a quis macular a teus olhos, terias acreditado que o fizesse por ciúme. Escuta hoje a verdade. A sra. de Rochefide não é nada menos do que digna de ti. O escândalo
de sua queda era necessário, ela nada teria sido sem esse barulho, ela o fez friamente para representar um papel: é uma dessas mulheres que preferem o estardalhaço
de uma falta à tranquilidade da felicidade, insultam a sociedade para obter dela a fatal esmola de uma maledicência, querem que falem delas a qualquer preço. Roía-a
a vaidade. Sua fortuna e seu espírito não lhe tinham podido dar a realeza feminina que ela procurava conquistar, reinando num salão; acreditou poder obter a celebridade
da duquesa de Langeais (A duquesa Langeais: personagem balzaquiana cuja história leremos em História dos treze.) e da viscondessa de Beauséant (A viscondessa de
Beauséant: personagem balzaquiana cuja história acabamos de conhecer, pelo menos em parte, em A mulher abandonada.), mas a sociedade é justa, não concede as honras
de seu interesse senão aos sentimentos verdadeiros. Beatriz, representando comédia, é julgada uma atriz de segunda ordem. Sua fuga não era autorizada por nenhuma
contrariedade. A espada de Dâmocles (Dâmocles: cortesão de Dionísio, o Velho, tirano de Siracusa. Como louvasse, certo dia, a felicidade do poderoso, este o fez
sentar em seu próprio lugar, no meio de um banquete, porém mandou suspender-lhe uma espada sobre a cabeça, significando-lhe assim as inquietações do poder.) não
brilhava em meio às suas festas, e, de resto, é muito fácil em Paris ser-se feliz isolando-se, quando se ama bem e sinceramente. Enfim, amante e terna, ela não teria
esta noite acompanhado Conti.
Camille falou muito tempo e eloquentemente; mas esse último esforço foi inútil, ela calou-se ante um gesto pelo qual Calisto exprimiu sua inteira crença em Beatriz;
ela o obrigou a descer e a assistir ao seu jantar, porque lhe foi impossível comer. Somente durante a juventude podem dar-se essas contrações. Mais tarde, os órgãos
formam hábitos e como que se endurecem. A reação do moral sobre o físico não é bastante forte para determinar uma doença mortal, a não ser que o sistema tenha conservado
sua primitiva delicadeza. Um homem resiste a um desgosto violento que mataria um rapaz, menos pela fraqueza da afeição do que pela força dos órgãos. Por isso a srta.
des Touches assustou-se a princípio com a atitude calma e resignada assumida por Calisto, depois da primeira efusão de lágrimas. Antes de deixá-la, quis rever o
quarto de Beatriz e foi enterrar a cabeça no travesseiro onde a dela repousara.
— Cometo loucuras—disse ele, dando um aperto de mão em Camille, e partiu, profundamente melancólico.
Voltou para casa, encontrou a companhia habitual, ocupada em jogar a mouche, e ficou durante todo o serão em companhia da mãe. O cura, o cavaleiro du Halga, a srta.
de Pen-Hoël sabiam da partida da sra. de Rochefide, e todos sentiam-se felizes com isso; Calisto lhes ia ser restituído; assim é que todos o observavam quase que
sorrateiramente, ao vê-lo um pouco taciturno. Ninguém, naquele velho solar, podia imaginar o fim daquele primeiro amor num coração tão ingênuo, tão sincero quanto
o de Calisto.
VII - O JOVEM DOENTE
Durante alguns dias, Calisto foi regularmente às Touches; girava em torno do gramado, onde por vezes passeara dando o braço a Beatriz. Muitas vezes ia até ao Croisic
e chegava ao rochedo, de onde tentara precipitá-la no mar: ficava algumas horas deitado em cima do buxo, porque, estudando os pontos de apoio existentes naquela
fenda, aprendera a descer e subir por ali. Suas excursões solitárias, seu silêncio e sua sobriedade acabaram por inquietar a mãe. Depois de quinze dias, durante
os quais durou esse manejo semelhante ao de um animal enjaulado (a jaula desse apaixonado em estado de desespero era, segundo a expressão de La Fontaine, “os lugares
honrados pelos passos e iluminados pelos olhos” de Beatriz), Calisto deixou de atravessar o pequeno braço de mar; não se sentiu mais senão com forças que lhe permitiam
arrastar-se até a estrada de Guérande, no lugar em que vira Beatriz à janela. A família, feliz com a partida dos parisienses, a fim de usarmos o termo da província,
nada percebia de funesto ou doentio em Calisto. As duas velhas tias e o cura, prosseguindo em seu plano, retiveram Carlota de Kergarouët, a qual, à noite, fazia
suas provocaçõezinhas a Calisto e dele não obtinha senão conselhos para jogar a mouche. Durante todo o serão, Calisto permanecia entre a mãe e a noiva bretã, observado
pelo cura e pela tia de Carlota, que conversavam sobre o abatimento maior ou menor do rapaz, ao voltarem para casa. Interpretavam a indiferença daquele infeliz moço
como sendo uma submissão aos seus projetos. Num serão em que Calisto, fatigado, se deitara cedo, cada qual deixou suas cartas em cima da mesa e todos se entreolharam
no momento em que o rapaz fechou a porta do quarto. Ouviram com ansiedade o ruído de seus passos.
— Calisto tem alguma coisa—disse a baronesa, enxugando os olhos.
— Ele nada tem—disse a srta. de Pen-Hoël -; é preciso casá-lo o mais depressa possível.
— Acredita que isso o divertirá?—perguntou o cavaleiro.
Carlota olhou severamente para o sr. du Halga, no qual ela achou, nessa noite, modos inconvenientes, imorais, depravados, sem religião e ridículos com sua cadela,
apesar das observações da tia, que defendeu o velho marujo.
— Amanhã de manhã eu repreenderei Calisto—disse o barão, que julgavam estar adormecido.—Não quisera ir-me deste mundo sem ter visto meu netinho, um du Guénic branco
e rosado, com a cabeça coberta com uma touca bretã no seu berço.
— Ele não fala—disse a tia Zefirina—,não se sabe o que ele tem; nunca comeu tão pouco; de que vive? Se se alimenta nas Touches, a cozinha do diabo não lhe senta
bem.
— Ele está apaixonado—disse o cavaleiro, arriscando essa opinião com excessiva timidez.
— Vamos seu velho reformado, não pôs o dinheiro no cesto!—disse a srta. de Pen-Hoël.—Quando está pensando no seu tempo de moço esquece tudo.
— Venham almoçar conosco amanhã de manhã—disse a velha Zefirina a Carlota e a Jaqueline—,meu irmão admoestará o filho e combinaremos tudo. Um prego empurra o outro.
— Não nos bretães—disse o cavaleiro.
No dia seguinte, Calisto viu chegar Carlota, vestida desde manhã com um requinte extraordinário, no momento em que o barão, na sala de jantar, terminava um discurso
matrimonial, ao qual o rapaz não sabia o que responder: conhecia a ignorância da tia, do pai, da mãe, dos amigos, da família; colhia os frutos da árvore da ciência,
achava-se no isolamento e não falava mais a linguagem doméstica. Por isso pediu apenas alguns dias ao pai, o qual esfregou as mãos e restituiu a vida à baronesa,
dizendo-lhe ao ouvido a boa-nova. O almoço foi alegre; Carlota, a quem o barão fizera um sinal, esteve muito animada. Em toda a cidade, espalhou-se a notícia difundida
por Gasselin, de um acordo entre os du Guénic e os Kergarouët. Depois do almoço, Calisto saiu pela escadaria do grande salão e foi para o jardim, onde Carlota o
seguiu; ele deu-lhe o braço e levou-a ao caramanchão, no fundo. Os pais estavam na janela e olhavam com uma espécie de enternecimento. Carlota virou-se para a bonita
fachada, bastante inquieta com o silêncio do seu prometido, e aproveitou essa circunstância para entabular a conversação, dizendo a Calisto:
— Eles nos estão examinando!
— Mas não nos ouvem—respondeu Calisto.
— Não, mas nos veem.
— Sentemo-nos, Carlota—replicou suavemente Calisto, segurando-a pela mão.
— É verdade que em outros tempos vossa flâmula flutuou nessa coluna torcida?—perguntou Carlota, contemplando a casa como sua.—Como ficaria bonita! Como se seria
feliz aqui! Você mudará alguma coisa no interior da casa, não, Calisto?
— Não terei tempo para isso, minha querida Carlota—disse o rapaz, pegando-lhe as mãos e beijando-as.—Vou confiar-lhe meu segredo. Amo demasiado a uma pessoa que
você viu, e que me ama, para poder fazer a felicidade de outra mulher, e sei que desde nossa infância nos tinham destinado um para o outro.
— Mas essa mulher é casada, Calisto—disse Carlota.
— Esperarei—disse o rapaz.
— E eu também—disse Carlota, com os olhos rasos de lágrimas -; você não poderá amar muito tempo essa mulher que, segundo dizem, fugiu com um cantor...
— Case-se, minha querida Carlota—replicou Calisto.—Com a fortuna que sua tia lhe destina, e que é enorme para a Bretanha, você poderá escolher alguém melhor do que
eu... Encontrará um titular. Não a trouxe aqui para dizer-lhe o que você já sabe, mas para aconselhá-la, em nome da nossa amizade de infância; que seja você que
provoque a ruptura, recusando-me. Diga que não quer saber de um homem cujo coração não está livre, e assim minha paixão terá servido, ao menos, para não lhe causar
nenhum dano. Você não pode imaginar quanto a vida me pesa! Não posso suportar nenhuma luta, estou enfraquecido como um homem a quem tivesse abandonado a alma, o
próprio princípio da sua vida. Sem o desgosto que a minha morte causaria à minha mãe e à minha tia, já me teria atirado ao mar, e não voltei mais às rochas do Croisic
desde o dia que a tentação se estava tornando irresistível. Não fale disto. Adeus, Carlota.
Pegou a cabeça da moça, beijou-lhe os cabelos, saiu pela aleia que ia ter ao portão da entrada e refugiou-se em casa de Camille, onde permaneceu até tarde da noite.
Ao voltar a uma hora da manhã, encontrou a mãe trabalhando na sua tapeçaria e esperando-o. Entrou mansamente, apertou-lhe a mão e perguntou-lhe:
— Carlota partiu?
— Parte amanhã com a tia, desesperadas as duas. Vamos à Irlanda, meu filho—disse ela.
— Quantas vezes pensei eu em fugir para lá!—replicou Calisto.
— Ah!—exclamou a baronesa.
— Com Beatriz—acrescentou ele.
Alguns dias depois da partida de Carlota, Calisto ia em companhia do cavaleiro du Halga, durante seu passeio na alameda, o qual sentava-se ao sol num banco de onde
seus olhos abarcavam a paisagem, desde os cata-ventos das Touches até os recifes que lhe indicavam as vagas espumosas que brincam por cima dos escolhos por ocasião
das marés. Naquele momento Calisto estava magro e pálido, suas forças diminuíam, começava a sentir alguns arrepios regulares que denunciavam febre. Seus olhos, cercados
de olheiras, tinham o brilho que um pensamento fixo comunica aos solitários, ou o ardor do combate aos intrépidos lutadores de nossa civilização atual. O cavaleiro
era a única pessoa com quem ele trocava algumas ideias; adivinhara naquele ancião um apóstolo de sua religião e reconheceu nele os vestígios de um amor eterno.
— Amou várias mulheres em sua vida?—perguntou-lhe da segunda vez que, segundo a expressão do marujo, bolinaram em conserva na alameda.
— Uma única—respondeu o capitão du Halga.
— Ela era livre?
— Não—disse o cavaleiro.—Ah! sofri muito! Era a mulher do meu melhor amigo, de meu protetor e meu chefe: mas nos amávamos tanto!
— Ela amava-o?—indagou Calisto.
— Apaixonadamente—respondeu o cavaleiro com uma vivacidade que não lhe era habitual.
— E foram felizes?
— Até a morte dela; morreu com quarenta e nove anos, na emigração, em São Petesburgo, cujo clima a matou. Ela deve sentir muito frio no seu caixão! Muitas vezes
pensei em ir buscá-la para fazê-la dormir na nossa querida Bretanha, perto de mim! Mas ela jaz no meu coração.
O cavaleiro enxugou os olhos, Calisto pegou-lhe as mãos e apertou-as.
— Quero mais a esta cadela do que à minha vida—disse ele mostrando Tisbé.—Essa pequena é em tudo semelhante à que ela acariciava com suas belas mãos e punha no colo.
Nunca olho para Tisbé sem ver as mãos da senhora almiranta.
— Viu a sra. de Rochefide?—perguntou Calisto ao cavaleiro.
— Não—respondeu ele.—Faz agora cinquenta e oito anos que não prestei mais atenção a mulher nenhuma, salvo sua mãe, que tem na tez alguma coisa da senhora almiranta.
Três dias depois, o cavaleiro disse, na alameda, a Calisto:
— Meu filho, tenho por toda fortuna cento e quarenta luíses. Quando você souber onde está a sra. de Rochefide, venha buscá-los em minha casa, para ir vê-la.
Calisto agradeceu ao ancião cuja existência causava-lhe inveja. Mas dia a dia foi ficando mais melancólico, parecia não querer a ninguém, dir-se-ia que todos o feriam,
não permanecia bom e meigo senão para a mãe. A baronesa seguia com inquietação crescente os progressos daquela loucura. Somente ela conseguia à força de rogos que
Calisto tomasse algum alimento. Cerca de começos de outubro, o jovem doente deixou de ir à alameda em companhia do cavaleiro, o qual vinha inutilmente buscá-lo para
o passeio, fazendo-lhe desafios de velho.
— Falaremos da sra. de Rochefide—dizia ele.—Eu lhe contarei a minha primeira aventura.
— Seu filho está bem doente—disse à baronesa o cavaleiro du Halga, no dia em que suas instâncias foram inúteis.
Calisto, a todas as perguntas respondia que estava às mil maravilhas, e, como todos os jovens melancólicos, comprazia-se em saborear a morte; mas não saiu mais de
casa; permanecia no jardim, aquecia-se ao pálido e morno sol de outono, sentado no banco, sozinho com seu pensamento, e fugia de toda sociedade.
Desde o dia em que Calisto não foi mais à sua casa, Felicidade pediu ao cura de Guérande que a fosse ver. A assiduidade do abade de Grimont, que passava nas Touches
quase todas as manhãs e por vezes lá jantava, tornou-se uma grande notícia: falou-se nisso em toda a região e mesmo em Nantes. Não obstante não falhou nunca a uma
das reuniões da noite do solar dos du Guénic, onde reinava a desolação. Patrões e criados, todos estavam aflitos com a obstinação de Calisto, sem contudo julgá-lo
em perigo; não ocorria ao espírito de nenhuma daquelas pessoas que aquele pobre rapaz pudesse morrer de amor. O cavaleiro não possuía nenhum exemplo de semelhante
morte colhido nas suas viagens ou nas suas recordações. Todos atribuíam a magreza de Calisto à falta de alimentação. Sua mãe ajoelhou-se-lhe aos pés suplicando-lhe
que comesse. Calisto esforçou-se em vencer sua repugnância para agradar à mãe. O alimento, ingerido com repulsa, acelerou a febrícula lenta que devorava aquele belo
rapaz.
Nos últimos dias de outubro, o filho querido não subiu mais para deitar-se no segundo andar; fizeram-lhe a cama na sala baixa e ele ali permanecia a maior parte
do tempo no meio da família, que finalmente recorreu ao médico de Guérande. O médico tentou cortar a febre com quinina e a febre cedeu por alguns dias. Ordenou que
fizessem exercícios e que o distraíssem. O barão refez-se de forças e saiu de sua apatia; tornou-se moço, enquanto o filho se fazia velho. Levou consigo Calisto,
Gasselin e seus dois belos cães de raça. Calisto obedeceu ao pai e durante alguns dias os três caçaram; foram à floresta e visitaram os amigos nos castelos vizinhos;
Calisto, porém, não se alegrou, ninguém podia arrancar-lhe um sorriso. Sua máscara lívida e contraída traía um ser inteiramente passivo. O barão, vencido pela fadiga,
caiu numa horrível prostração e foi obrigado a voltar para casa, conduzindo Calisto no mesmo estado. Poucos dias depois desse regresso, pai e filho estiveram tão
perigosamente doentes, que foram obrigados a mandar buscar, a pedido do próprio médico de Guérande, os dois mais famosos médicos de Nantes. O barão fora como que
fulminado pela transformação visível de Calisto. Dotado dessa espantosa lucidez que a natureza dá aos moribundos, tremia como uma criança por ver sua raça extinguir-se:
não dizia nada, juntava as mãos, rezava a Deus na sua poltrona, onde o imobilizava sua fraqueza. Estava virado para o leito ocupado por Calisto e olhava-o continuamente.
Ao menor movimento que o filho fazia, ele sentia uma viva comoção, como se o facho de sua vida tivesse sido agitado.
A baronesa não saiu mais daquela sala, onde a velha Zefirina tricotava no canto da chaminé, numa horrível inquietação: pediam-lhe lenha, porque o pai e o filho tinham
igualmente frio; atacavam seus estoques: por isso ela tomara a resolução de entregar suas chaves, não tendo mais suficiente agilidade para seguir Mariotte; mas queria
saber tudo e, a todo instante, em voz baixa, interrogava a criada e a cunhada; chamava-as à parte a fim de conhecer o estado do irmão e do sobrinho. Quando, uma
noite, durante uma modorra de Calisto e do pai, a velha srta. de Pen-Hoël lhe disse que era sem dúvida preciso resignar-se a ver morrer o barão, cujo rosto se tornara
branco e adquirira tons de cera, ela deixou cair o tricô, remexeu num bolso e de lá tirou um velho rosário de madeira preta e pôs-se a rezá-lo com um fervor que
restituiu a seu semblante antigo e dissecado um esplendor tão vigoroso que a outra velha tia imitou a amiga; depois todos, a um sinal do cura, uniram-se à elevação
mental da srta. du Guénic.
— Fui a primeira em rogar a Deus—disse a baronesa, recordando-se da carta fatal escrita por Calisto—,e ele não me atendeu.
— Faríamos bem, talvez—disse o cura—,de convidar a srta. des Touches para vir ver Calisto.
— Ela—exclamou a velha Zefirina—,a autora de todas as nossas desgraças, ela que o afastou da família, que no-lo roubou, que lhe fez ler livros ímpios, que lhe ensinou
uma linguagem ética! Maldita seja ela e que Deus jamais a perdoe! Ela despedaçou os du Guénic.
— Ela talvez o reerga—disse o cura com voz suave.—É uma criatura santa e virtuosa; sou seu fiador, ela não tem senão boas intenções a respeito dele. Assim seja possível
ela realizá-las.
— Avisem-me do dia em que ela puser os pés aqui, para que eu me retire—exclamou a velha.—Ela matou o pai e o filho. Pensa que não ouço a voz fraca de Calisto? Ele
mal tem forças para falar.
Foi nesse momento que os três médicos entraram; cansaram Calisto com perguntas; mas quanto ao pai o exame foi rápido; a convicção dos três foi completa num instante,
surpreendiam-se de vê-lo ainda em vida. O médico de Guérande comunicou tranquilamente à baronesa que, relativamente a Calisto, seria provavelmente necessário ir
a Paris consultar os homens mais competentes da ciência, pois que, para se moverem, pediriam mais de cem luíses.
— Morre-se de qualquer coisa; mas o amor não é nada—disse a srta. de Pen-Hoël.
— Infelizmente, seja qual for a causa, Calisto está morrendo—disse a baronesa—,reconheço nele todos os sintomas da consunção, a mais horrível das doenças de minha
terra.
— Calisto morre!—disse o barão, abrindo os olhos, de onde correram duas grossas lágrimas que deslizaram lentamente, retardadas no seu trajeto pelas numerosas rugas
do rosto, e ficaram na parte inferior das faces, as duas únicas lágrimas que, sem dúvida, ele houvesse derramado em toda a sua vida.
Ergueu-se sobre as pernas, deu alguns passos na direção do leito do filho, pegou-lhe as mãos e olhou-o.
— Que quer o senhor, meu pai?—perguntou Calisto.
— Que vivas!—exclamou o barão.
— Não poderia viver sem Beatriz—respondeu Calisto ao ancião, o qual caiu sentado na sua poltrona.
— Onde achamos cem luíses para mandar vir os médicos de Paris? Ainda é tempo—disse a baronesa.
— Cem luíses!—exclamou Zefirina.—E o salvariam?
Sem esperar a resposta da cunhada, a velha solteirona passou as mãos pela abertura dos bolsos e desatou a saia de baixo, a qual produziu ao cair um som pesado. Conhecia
tão bem os lugares onde cosera seus luíses, que os descoseu com uma rapidez que parecia coisa de magia. As moedas de ouro caíam uma a uma, tinindo sobre a saia.
A velha Pen-Hoël olhava-a, manifestando uma admiração estúpida.
— Mas eles a estão vendo!—disse ela ao ouvido da amiga.
— Trinta e sete—respondeu Zefirina, continuando sua conta.
— Todo mundo vai ficar sabendo quanto tem.
— Quarenta e dois...
— Duplos luíses, bem novos; onde os conseguiu, a senhora, que não via com clareza?
— Eu os apalpava. Aqui estão cento e quatro luíses—gritou Zefirina.—Bastará isso?
— Que lhe acontece?—perguntou o cavaleiro du Halga, que chegou naquele instante e não pôde explicar a atitude da velha amiga, apresentando a saia cheia de luíses.
Em duas palavras, a srta. de Pen-Hoël explicou o assunto ao cavaleiro.
— Eu tive conhecimento disso, e vinha trazer-lhe cento e quarenta luíses que tinha à disposição de Calisto, que ele bem o sabia—disse o cavaleiro, tirando do bolso
dois rolos e mostrando-os.
Mariotte, ao ver tais riquezas, disse a Gasselin que fechasse a porta.
— O ouro não lhe restituirá a saúde—disse a baronesa em prantos.
— Mas servir-lhe-á talvez para correr atrás da sua marquesa—respondeu o cavaleiro.—Vamos, Calisto.
Calisto sentou-se na cama e bradou alegremente:
— A caminho!
— Ele viverá—disse o barão com voz dorida—,posso morrer. Mandem chamar o padre.
Essas palavras difundiram o pavor. Calisto, ao ver o pai empalidecer pelas cruéis emoções dessa cena, não pôde conter as lágrimas. O cura, que conhecia a sentença
proferida pelos médicos, fora buscar a srta. des Touches, pois quanta fora a repulsa que manifestara anteriormente por ela, tanta era nesse momento a admiração que
lhe tributava, e defendia-a, como um pastor deve defender uma das suas ovelhas preferidas.
VIII - MORTE E CASAMENTO
Ao espalhar-se a notícia do estado desesperador em que se achava o barão, a multidão amontoou-se na viela; os camponeses, os salineiros e os habitantes de Guérande
ajoelharam-se no pátio, enquanto o abade Grimont administrava os últimos sacramentos ao velho guerreiro bretão. Toda a cidade estava emocionada por saber o pai moribundo,
junto ao filho doente. Achavam como uma calamidade pública a extinção daquela antiga raça bretã. Essa cerimônia impressionou Calisto. Sua dor fez seu amor calar
por um momento; permaneceu, durante a agonia do heroico defensor da monarquia, ajoelhado, contemplando os progressos da morte e chorando. O ancião expirou na sua
poltrona em presença de toda a família reunida.
— Morro fiel ao rei e à religião. Meu Deus, como prêmio aos meus esforços, fazei com que Calisto viva!—disse ele.
— Viverei, meu pai, e obedecer-lhe-ei—respondeu o rapaz.
— Se quiseres tornar minha morte tão suave quanto Fanny me fez feliz a vida, jura-me que te casarás.
— Prometo-lhe, meu pai.
Foi um espetáculo comovente o de ver Calisto, ou antes, sua aparência, apoiado no velho cavaleiro du Halga—um espectro conduzindo uma sombra—,seguindo o ataúde do
velho e presidindo o cerimonial. A igreja e a pequena praça, que se acha em frente ao pórtico, estavam cheias de gente, vinda de um raio de mais de dez léguas.
A baronesa e Zefirina ficaram mergulhadas em vivas dores ao ver que, apesar dos esforços para obedecer ao pai, Calisto permanecia num torpor de funesto augúrio.
No dia em que a família se cobriu de luto, a baronesa levou o filho ao banco do fundo do jardim e interrogou-o. Calisto respondia com doçura e submissão, mas suas
respostas eram desesperadoras.
— Minha mãe—dizia ele—,não há mais vida em mim: o que eu como não me nutre; o ar, ao entrar em meu peito, não me refresca o sangue; o sol parece-me frio, e, quando
ele ilumina para ti a fachada de nossa casa, como neste momento, onde tu vês as esculturas inundadas de claridade, eu vejo formas indistintas, envoltas num nevoeiro.
Se Beatriz aqui estivesse, tudo voltaria a ser brilhante. Não há senão uma coisa no mundo que tenha sua cor e sua forma, é esta flor e esta folhagem—disse ele, tirando
do seio e mostrando o ramo emurchecido que a marquesa lhe deixara.
A baronesa não se atreveu a perguntar mais nada ao filho, suas respostas revelaram loucura maior do que a dor que o seu silêncio anunciava. Entretanto, Calisto estremeceu
ao avistar a srta. des Touches, através das vidraças que se correspondiam: Felicidade lembrava-lhe Beatriz. Foi pois a Camille que as duas mulheres desoladas deveram
o único clarão de alegria que brilhou no meio de seu luto.
— E então, Calisto—disse a srta. des Touches, ao vê-lo—,o carro está pronto, vamos juntos buscar Beatriz, venha.
O rosto emagrecido e pálido daquele rapaz enlutado ficou logo levemente colorido e um sorriso animou suas feições.
— Nós o salvaremos—disse a srta. des Touches à mãe, a qual apertou-lhe a mão, chorando de alegria.
A srta. des Touches, a baronesa du Guénic e Calisto partiram para Paris oito dias após a morte do barão, deixando o cuidado dos negócios familiares à velha Zefirina.
A ternura de Felicidade por Calisto preparara o mais belo futuro para aquele pobre menino. Aparentada com a família de Grandlieu, cujo ramo ducal terminava com cinco
filhos, ela escrevera à duquesa de Grandlieu a história de Calisto, anunciando-lhe que vendia sua casa da rue du Mont-Blanc, pela qual alguns especuladores ofereciam
dois milhões e quinhentos mil francos. Seu procurador acabava de substituir essa habitação por uma das mais belas residências da rue de Grenelle, comprada por setecentos
mil francos. Sobre o resto do preço de venda da sua casa da rue du Mont-Blanc, ela consagrava um milhão à requisição das terras da casa du Guénic, e dispunha de
sua fortuna em benefício de Sabina de Grandlieu, que ela encarregava de curar Calisto de sua paixão pela sra. de Rochefide. Felicidade conhecia os projetos do duque
e da duquesa, os quais destinavam a última das suas cinco filhas ao visconde de Grandlieu, herdeiro de seus títulos; ela sabia que Clotilde-Frederica, a segunda,
queria permanecer solteira (Clotilde-Frederica de Grandlieu, apaixonada por Luciano de Rubempré, depois do suicídio deste conservou-lhe uma fidelidade póstuma (cf.
Esplendores e misérias das cortesãs).) sem entretanto fazer-se freira como a mais velha, e não restava por casar senão a penúltima, a linda Sabina, então com vinte
anos de idade.
Durante a viagem, Felicidade pôs a baronesa a par desses arranjos. Estavam mobiliando então o palacete da rue de Grenelle, que ela destinara para Calisto, no caso
dos seus projetos se realizarem. Os três hospedaram-se na residência dos Grandlieu, onde a baronesa foi recebida com toda a distinção a que seus nomes de casada
e de solteira lhe davam direito. A srta. des Touches aconselhou, naturalmente, a Calisto que percorresse Paris, enquanto ela procuraria saber onde se achava Beatriz
naquele momento, entregando-o às seduções de toda natureza que ali o esperavam. A duquesa, suas filhas e seus amigos fizeram a Calisto as honras de Paris no momento
em que a estação das festas ia iniciar-se. O movimento de Paris proporcionou violentas distrações ao jovem bretão. Ele achou algumas semelhanças de espírito entre
a sra. de Rochefide e Sabina de Grandlieu, a qual era então, fora de toda dúvida, uma das mais belas e mais encantadoras raparigas da alta sociedade parisiense,
e concedeu então às suas faceirices uma atenção que nenhuma outra mulher teria obtido dele. Sabina de Grandlieu representou tanto melhor seu papel, por ter-se agradado
de Calisto. As coisas foram levadas tão bem que, durante o inverno de 1837, o jovem bretão du Guénic, que readquirira suas cores e seu viço de juventude, ouviu sem
repugnâncias a mãe lembrar-lhe a promessa feita ao pai moribundo, e falar de seu casamento com Sabina de Grandlieu. Mas obedecendo embora à sua promessa, ele ocultava
uma indiferença secreta que a baronesa percebia e que esperava ver disssipar-se pelos prazeres de um casamento feliz. No dia em que a família de Grandlieu e a baronesa,
acompanhada para essa solenidade por seus parentes vindos da Inglaterra, se reuniram no grande salão do palácio de Grandlieu, e que Leopoldo Hannequin (Leopoldo
Hannequin: personagem de A comédia humana, já encontrada—era o melhor amigo de Alberto Savarus.), o notário da família, explicava o contrato, antes de o ler, Calisto,
em cuja fronte todos podiam ver algumas nuvens, recusou peremptoriamente aceitar as vantagens que lhe concedia a srta. des Touches; ainda contava com o devotamento
de Felicidade, acreditando estar ela à procura de Beatriz. Nesse momento, e no meio da estupefação das duas famílias, Sabina entrou vestida de modo a lembrar, embora
morena, a marquesa de Rochefide, e entregou a seguinte carta a Calisto:
CAMILLE A CALISTO
Calisto, antes de entrar para a minha cela de postulante, é-me permitido dirigir um olhar sobre o mundo que vou deixar, para ingressar no mundo da prece. Esse olhar
é inteiramente para você, que, nestes últimos tempos, foi para mim o mundo todo. Minha voz chegará, se meus cálculos não me enganarem, em meio a uma cerimônia, à
qual me era impossível assistir. No dia em que você estiver frente a um altar, dando sua mão a uma jovem e encantadora moça que poderá amá-lo à face do céu e da
terra, eu estarei numa casa religiosa em Nantes, também frente a um altar, mas noiva para sempre daquele que não trai ninguém. Não venho entristecê- lo, mas pedir-lhe
de não entravar por nenhuma falsa delicadeza o bem que lhe quis fazer desde que o vi. Não me conteste direitos conquistados por tão elevado preço. Se o amor é um
sofrimento, ah! eu o amei muito, Calisto; mas não tenha remorsos: os únicos prazeres que gozei em minha vida devo-os a você, e as dores vieram de mim mesma. Recompense-me
pois de todas essas dores passadas, dando-me uma alegria eterna. Permita à pobre Camille, que não mais existe, de contribuir com um pouco para a felicidade material
de que gozará todos os dias. Deixe-me, querido, ser algo assim como um perfume nas flores de sua vida, a ela mesclar-me para sempre sem lhe ser importuna. Dever-lhe-ei
sem dúvida a felicidade da vida eterna; não quer que eu me desobrigue para com você pelo dom de alguns bens frágeis e passageiros? Carecerá você de generosidade?
Não vê você nisto a última mentira de um amor desdenhado? Calisto, sem você, o mundo para mim nada mais era, você fez-me dele a mais horrível das solidões, e levou
a incrédula Camille Maupin, o autor de livros e de peças que vou solenemente renegar, você atirou aquela rapariga audaz e perversa, de pés e mãos atadas, ante Deus.
Sou hoje o que deveria ter sido, uma criança cheia de inocência. Sim, lavei meu vestido nos prantos do arrependimento, e posso apresentar-me ante os altares levada
por um anjo, pelo meu bem-amado Calisto! Com que doçura dou-lhe esse nome, que minha resolução santificou! Amo-o sem nenhum interesse próprio, como uma mãe ama seu
filho, como a Igreja ama uma criança. Poderei orar por você e pelos seus, sem pôr nisso nenhum outro desejo além do da sua felicidade. Se conhecesse a tranquilidade
sublime na qual vivo, depois de me haver erguido pelo pensamento acima dos pequenos interesses mundanos, e quanto é doce o pensamento de ter cumprido com o meu dever,
segundo o nosso nobre lema, você entraria com passo firme e sem olhar para trás, nem em torno, na sua bela vida! Escrevo-lhe pois sobretudo para pedir-lhe que seja
fiel a você mesmo e aos seus. Querido, a sociedade na qual você deve viver não poderia existir sem a religião do dever, e você a menosprezaria, deixando-se arrastar
pela paixão e pela fantasia, como eu o fiz. A mulher não é igual ao homem, senão fazendo de sua vida uma contínua oferenda, assim como a vida do homem é uma ação
perpétua. Ora, minha vida foi como um longo acesso de egoísmo. Por isso, possivelmente, Deus colocou-o, ao entardecer, na porta de minha casa, como um mensageiro
encarregado do meu castigo, e do meu perdão. Ouça esta confissão de uma mulher para quem a glória foi como um farol, cujo clarão lhe indicou o verdadeiro caminho.
Seja grande, imole suas fantasias aos seus deveres de chefe, de esposo, de pai. Reerga a flâmula abatida dos du Guénic, mostre neste século sem religião nem princípios
o gentil-homem em toda a sua glória e em todo o seu esplendor. Querido filho de minha alma, deixe-me representar um pouco o papel de mãe: a adorável Fanny não terá
mais ciúme de uma rapariga morta para o mundo, e da qual não verá mais do que mãos erguidas para o céu. Hoje a nobreza tem mais do que nunca necessidade da fortuna,
aceite pois uma parte da minha, Calisto, e faça dela um bom uso. Não é uma doação, é um fideicomisso. Pensei mais em seu filho e na sua velha casa bretã do que em
você, ao oferecer-lhe os lucros que o tempo me conseguiu sobre o valor dos meus bens em Paris...
— Assinemos—disse o jovem barão, com grande contentamento da assembleia.
QUARTA PARTE
OS ADULTÉRIOS VELADOS
I - DAS VIAGENS NAS SUAS RELAÇÕES COM O CASAMENTO
Na semana seguinte, depois da missa do casamento, a qual, segundo o uso de algumas famílias do Faubourg Saint-Germain, foi celebrada às sete horas em Saint-Thomas-d’Aquin,
Calisto e Sabina subiram para um bonito carro de viagem, por entre abraços, felicitações e lágrimas de vinte pessoas, reunidas ou agrupadas sob a marquise do palácio
de Grandlieu. As felicitações vinham das quatro testemunhas e dos homens, as lágrimas viam-se nos olhos da duquesa de Grandlieu e nos de sua filha Clotilde, e ambas
tremiam, agitadas pelo mesmo pensamento.
— Ei-la atirada na vida! Pobre Sabina, está à mercê de um homem que não casou por livre e espontânea vontade.
O casamento não se compõe somente de prazeres, tão fugitivos nesse estado como em outro qualquer; ele implica conveniências de gênio, simpatias físicas, circunstâncias
de caracteres que fazem dessa necessidade social um eterno problema. As filhas casadouras, tanto quanto as mães, conhecem os termos e os perigos dessa loteria; eis
por que as mulheres choram quando assistem a um casamento, ao passo que os homens sorriem; estes julgam nada arriscar, as mulheres sabem mais ou menos o que arriscam.
Em outro carro que precedia o dos recém-casados achava-se a baronesa du Guénic, a quem a duquesa veio dizer:
— A senhora é mãe, embora tenha tido somente um filho; procure substituir-me junto à minha querida Sabina!
Na frente desse carro via-se um criadinho de libré, que servia de correio, e atrás duas criadas de quarto. Os quatro postilhões, trajando seus mais belos uniformes,
pois cada carro estava atrelado com quatro cavalos, traziam todos ramos na botoeira da lapela e fitas nos chapéus, que o duque de Grandlieu teve infinito trabalho
para fazê-los tirar, mesmo pagando-os; o postilhão francês é eminentemente inteligente, mas é apegado aos seus gracejos; aqueles aceitaram o dinheiro, mas, ao chegar
às barreiras exteriores, repuseram as fitas.
— Vamos, adeus, Sabina!—disse a duquesa.—Lembra-te da tua promessa, escreve-me com frequência. Calisto, nada mais lhe digo, mas você me compreende!...
Clotilde, apoiada na sua irmã mais moça, Atenaïs, para a qual sorria o visconde Justo de Grandlieu, dirigiu à recém-casada um olhar sutil através de suas lágrimas,
e seguiu com o olhar o carro que desapareceu ao fragor dos estalos reiterados de quatro chicotes mais ruidosos do que pistolas.
Em alguns segundos, a alegre comitiva chegou à esplanada dos Inválidos, alcançou pelo cais a ponte de Iena, a barreira de Passy, a estrada de Versalhes, finalmente
a estrada real para a Bretanha.
Não é uma coisa pelo menos singular que os artesãos da Suíça e da Alemanha, e as grandes famílias da França e da Inglaterra obedeçam ao mesmo costume e se ponham
em viagem depois da cerimônia nupcial?
Os grandes se amontoam numa caixa que rola. Os pequenos vão alegremente pelas estradas, detendo-se nos matos, banqueteando-se em todas as tabernas, enquanto lhes
dura a alegria, ou melhor dito, o dinheiro. O moralista ver-se-ia muito embaraçado para decidir onde se acha a mais bela qualidade de pudor, se na que se esconde
do público inaugurando o lar e o leito doméstico, como fazem os bons burgueses, ou naquela que se oculta à família, exibindo-se publicamente, à clara luz do sol
pelos caminhos, diante dos desconhecidos? As almas delicadas devem desejar a solidão e fugir igualmente da sociedade e da família. O rápido amor que inicia um casamento
é um diamante, uma pérola, uma joia cinzelada pela primeira das artes, um tesouro a ser enterrado no fundo do coração.
Quem pode narrar uma lua de mel, a não ser a recém-casada? E quantas mulheres reconhecerão aqui que essa estação de duração incerta (algumas há que duram uma única
noite!) é o prefácio da vida conjugal.
As três primeiras cartas de Sabina para a mãe indicaram uma situação que, infelizmente, não será nova para algumas jovens casadas e para muitas mulheres velhas.
Todas aquelas que, por assim dizer, se viram como enfermeiras de um coração, como Sabina, não o perceberam logo. Mas as moças do Faubourg Saint-Germain, quando são
espirituosas, são já mulheres pela cabeça. Antes do casamento receberam da sociedade e da mãe o batismo das boas maneiras. As duquesas, ciosas de legar suas tradições,
ignoram muitas vezes o alcance de suas lições, quando dizem às filhas: “Não se faz tal movimento.—Não ria disto.—Nunca se deve atirar sobre um divã, e sim pousar
nele.—Não continue com esses modos detestáveis!—Mas isso não se faz, querida!” etc. Por isso, burgueses críticos recusaram, injustamente, inocência e virtudes a
moças que são, unicamente, como Sabina, virgens aperfeiçoadas pelo espírito, pelo hábito das grandes atitudes, pelo bom gosto, e que, desde a idade de dezesseis
anos, sabem servir-se de seus binóculos. Sabina, por ter-se prestado às combinações inventadas pela srta. des Touches, a fim de casá-la, devia ser da escola da srta.
de Chaulieu. Essa finura inata, esses dons de raça tornarão talvez essa jovem senhora tão interessante quanto a heroína das Memórias de duas jovens esposas, quando
se vir a inutilidade dessas vantagens sociais nas grandes crises da vida conjugal, na qual, com frequência, são anuladas sob o duplo peso da desgraça e da paixão.
II - UMA CARTA-MODELO
À SRA. DUQUESA DE GRANDLIEU
Guérande, abril de 1838
Querida mãe, a senhora compreenderá os motivos pelos quais não lhe pude escrever em viagem, nosso espírito está então como as rodas. Eis-me, faz dois dias, no fundo
da Bretanha na mansão du Guénic, uma casa enfeitada como uma cuia lavrada. Apesar das atenções afetuosas da família de Calisto, experimento uma viva necessidade
de voar para junto da senhora, de dizer-lhe uma porção de coisas que, sinto-o, só se confiam a uma mãe. Calisto, querida mamãe, casou-se conservando no coração um
grande pesar, nenhuma de nós o ignorava e a senhora não me ocultou as dificuldades com que ia deparar; mas, ai de mim! elas são maiores do que a senhora as imaginava.
Ah! querida mamãe, que experiência adquirimos em poucos dias, por que não direi em poucas horas? Todas as suas recomendações tornaram-se inúteis e adivinhará como
por esta única frase: amo Calisto como se ele não fosse meu marido. Quero dizer que, se casada com outro, viajasse com Calisto, eu o amaria e odiaria meu marido.
Que fazer, pois, com um homem amado tão completamente, involuntariamente, absolutamente, sem contar todos os outros advérbios que lhe aprouver acrescentar? Por isso
minha servidão estabeleceu-se, a despeito de seus bons conselhos. A senhora recomendou-me que permanecesse grande, nobre, digna e altiva, a fim de obter de Calisto
sentimentos que não fossem passíveis de nenhuma mudança na vida: a estima e a consideração que devem santificar uma mulher, no seio da família. A senhora manifestou-se,
seguramente com razão, contra as jovens senhoras de hoje que, sob pretexto de bem viverem com seus maridos, começam pela facilidade, pela complacência, pela bonomia,
pela familiaridade, por um abandono, segundo sua expressão, um pouco demasiado de rapariga fácil (qualificativo que lhe confesso não ter ainda compreendido, mas
veremos mais tarde), e que, a dar-lhe crédito, constituem como que etapas para chegar rapidamente à indiferença e talvez ao desprezo.
— Lembra-te de que és uma Grandlieu!—disse-me a senhora ao ouvido.
Essas recomendações, repletas da materna eloquência de Dédalo (A materna (sic!) eloquência de Dédalo: segundo a mitologia, Dédalo, que inventou a arte de voar, antes
de atar as asas a seu filho Ícaro, fez-lhe um discurso solícito para assinalar-lhe os perigos da empresa. Apesar da prudência do pai, Ícaro voou demasiado alto:
o sol derreteu a cera que ligava as asas, e o jovem caiu no mar.), tiveram a sorte de todas as coisas mitológicas. Querida mãezinha do meu coração, poderia a senhora
imaginar que eu começaria por essa catástrofe que, na sua opinião, termina a lua de mel das jovens senhoras de hoje?
Quando nos vimos sós no carro, Calisto e eu, sentimo-nos tão bobos um como o outro por compreendermos todo o valor de uma primeira palavra, um primeiro olhar, e
cada um de nós, aturdido pelo sacramento, olhou pela sua portinhola. Era tão ridículo que, perto da barreira, o senhor recitou-me, com uma voz um pouco perturbada,
um discurso, com certeza preparado como todos os improvisos, o que eu ouvi com o coração palpitando e que tomo a liberdade de resumir-lhe.
— Minha querida Sabina, quero-a feliz, e quero sobretudo que seja feliz a seu modo—disse ele.—Assim, pois, na situação em que nos achamos, em vez de nos enganarmos
mutuamente quanto aos nossos caracteres e nossos sentimentos por meio de nobres complacências, sejamos ambos o que seríamos daqui a alguns anos. Imagine que tem
em mim um irmão, como eu quero ver em você uma irmã.
Embora isso fosse cheio de delicadeza, nada achei nesse primeiro speech do amor conjugal que correspondesse aos anseios de minha alma, e fiquei pensativa, depois
de haver respondido que estava animada pelos mesmos sentimentos. Sobre essa declaração de nossos direitos a uma frieza mútua, falamos sobre a chuva e o bom tempo,
sobre a poeira, as mudas, as paisagens, do modo mais gracioso deste mundo, eu rindo com um risinho forçado, ele muito sonhador.
Enfim, ao sairmos de Versalhes, perguntei muito simplesmente a Calisto, a quem chamei de meu querido Calisto, assim como ele me chamava de minha querida Sabina,
se me podia contar os acontecimentos que o haviam levado a dois dedos da morte, e aos quais eu devia a felicidade de ser sua mulher. Ele hesitou durante muito tempo.
Foi isso motivo entre nós de um pequeno debate que durou durante três réplicas, eu, procurando mostrar-me uma rapariga voluntariosa e decidida a enfadar-me; ele
consultando consigo mesmo sobre a fatal pergunta apresentada como um desafio pelos jornais a Carlos X: O rei cederá (A fatal pergunta apresentada pelos jornais a
Carlos X, depois da publicação das reacionárias “ordenanças de julho” de 1830. Quando o rei, diante da revolta de Paris, consentiu finalmente em revogar as ordenanças,
já era tarde: a revolução havia triunfado.)? Finalmente depois da réplica de Verneuil e de ter-lhe feito promessas capazes de contentar três dinastias, de jamais
fazer-lhe exprobrações relativamente a essa loucura, de o não tratar com frieza etc., ele relatou-me seu amor pela sra. de Rochefide.
— Não quero—disse-me ele ao terminar—que haja segredos entre nós.
O pobre querido ignorava pois que sua amiga, a srta. des Touches, e a senhora tinham sido obrigadas a tudo confessar-me, porquanto não se veste uma jovem criatura
como o fizeram comigo no dia do contrato, sem antes iniciá-la no seu papel. Tudo se deve dizer a uma mãe tão terna como a senhora. Pois bem, fiquei profundamente
ferida ao ver que ele obedecera muito menos ao meu desejo do que à sua vontade de falar daquela paixão ignorada. Censurar-me-á, querida mãe, por ter eu querido conhecer
a extensão daquele desgosto, daquela chaga viva do coração que me fora assinalado pela senhora? Portanto, oito horas depois de ter sido abençoada pelo pároco de
Saint-Thomas-d’Aquin, sua Sabina achava-se na situação bastante falsa de uma jovem esposa ouvindo dos próprios lábios do marido a confidência de um amor decepcionado,
os delitos de uma rival! Sim, eu estava no drama de uma jovem senhora, informada oficialmente de que devia seu casamento aos desdéns de uma velha loira. Com essa
narrativa ganhei o que procurava. O quê?, dirá a senhora. Ah! querida mãe, já vi bastante Amores puxando uns aos outros, em relógios ou nos mármores frontões das
chaminés para pôr em prática essa lição!
Calisto terminou o poema de suas recordações com os mais calorosos protestos de um completo esquecimento do que denominou a sua loucura. Todo protesto precisa de
assinatura. O feliz desditoso tomou-me a mão, levou-a aos lábios, depois conservou-a muito tempo entre as suas. Daí seguiu-se uma declaração. Essa pareceu-me mais
de acordo com a primeira, com o nosso estado civil, embora nossas bocas nada dissessem. Devi essa felicidade à minha verbosa indignação sobre o mau gosto de uma
mulher suficientemente tola por não ter amado o meu belo e encantador Calisto...
Chamam-me para tomar parte num jogo de cartas que ainda não compreendi, amanhã continuarei. Deixá-la neste momento para ser o quinto parceiro na mouche, isso não
é possível senão no fundo da Bretanha!...
III - DE COMO, SEGUNDO SCRIBE, O SENTIMENTO CAMINHA RÁPIDO DE CARRO
*(Scribe: Eugène Scribe (1791-1861), o comediógrafo francês mais famoso da época de Balzac, autor de Um copo de água e mais 350 peças.)
3 de maio
Retomo o curso de minha odisseia. No terceiro dia, seus filhos não empregavam mais o vós cerimonioso, e sim o tu dos amantes. Minha sogra, encantada de nos ver felizes,
procurou substituir-se à senhora, querida mãe, e, como acontece com todos os que assumem um papel com o desejo de apagar recordações, foi tão resoluta que quase
foi a senhora para mim. Ela sem dúvida adivinhou o heroísmo do meu procedimento, porque, no começo da viagem, procurava tanto ocultar suas inquietações que, naturalmente,
o excesso de precauções as tornava visíveis.
Quando vi surgir as torres de Guérande, disse ao genro da senhora, ao ouvido:
— Esqueceste-a bem?
Meu marido, que se tornou meu anjo, ignorava sem dúvida as riquezas de uma afeição ingênua e sincera, porque aquelas palavrinhas deixaram-no quase louco de alegria.
Infelizmente o desejo de fazê-lo esquecer a sra. de Rochefide levou-me demasiado longe. Que quer! Amo e sou quase portuguesa (Quase portuguesa: porque a mãe, uma
Ajuda, é portuguesa. Balzac alia essa família aristocrática, inventada por ele, aos Braganças.), pois puxei mais à senhora do que a meu pai. Calisto aceitou tudo
de mim, como as crianças mimadas aceitam; antes de mais nada é filho único.
Aqui entre nós, jamais daria uma filha minha, se algum dia tiver uma filha, a um filho único. Já é bastante pôr-se a gente à frente de um tirano, e num filho único
vejo muitos tiranos. Assim, pois, invertemos os papéis, eu me portei como uma mulher devotada. Há perigos num devotamento de que se tira proveito, perde-se nele
a dignidade. Participo-lhe pois o naufrágio dessa meia-virtude. A dignidade nada mais é do que um biombo colocado pelo orgulho e por trás do qual nos enraivecemos
à vontade. Que quer, mamãe!... a senhora não estava aqui, eu via-me diante de um abismo. Se tivesse permanecido na minha dignidade, teria tido frias dores de uma
espécie de fraternidade que, com toda a certeza, ter-se-ia transformado, muito simplesmente, em indiferença. E que futuro ter-me-ia eu preparado? Meu devotamento
teve como resultado tornar-me escrava de Calisto. Poderei sair dessa situação? É o que veremos, por enquanto ela me agrada. Amo Calisto, amo-o absolutamente, com
a loucura de uma mãe que acha que tudo o que o filho faz está bem-feito, mesmo quando ela é um pouco castigada por ele.
15 de maio
Até agora, portanto, querida mãe, o casamento se me apresentou sob uma forma encantadora. Emprego toda a minha ternura no mais belo dos homens que uma tola desdenhou
por um musicastro, porque essa mulher é evidentemente uma tola, e uma tola fria, que é a pior espécie de tolas. Sou caridosa na minha paixão legítima, pois curo
feridas, fazendo-me ferimentos eternos. Sim, quanto mais amo Calisto, mais sinto que morreria de pesar se nossa atual felicidade terminasse. Sou, de resto, a adoração
de toda esta família e da sociedade que se reúne no solar dos du Guénic, tudo gente nascida numa tapeçaria de alto liço, e saída dali para provar que existe o impossível.
Um dia em que estiver só, descrever-lhe-ei minha tia Zefirina, a srta. de Pen-Hoël, o cavaleiro du Halga, as srtas. de Kergarouët etc. Até mesmo os dois criados
que, assim o espero, me permitirão levar a Paris—Mariotte e Gasselin—,os quais me olham como um anjo descido de seu lugar no céu e que estremecem ainda, quando lhes
falo, são figuras dignas de serem postas em redomas.
Minha sogra instalou-nos solenemente nos apartamentos precedentemente ocupados por ela e pelo seu falecido esposo. Essa cena foi comovedora.
— Aqui vivi toda a minha vida de mulher feliz—disse-nos ela -; que isso seja um feliz presságio para os meus queridos filhos.
E ficou com o quarto de Calisto.
Esta santa senhora parecia querer despojar-se de suas recordações e de sua nobre vida conjugal, para nela nos investir.
A província da Bretanha, esta cidade, esta família de costumes antigos, tudo, apesar dos ridículos que só existem para nós outros, parisienses galhofeiros, tem algo
de inexplicável, de grandioso até nas suas minúcias, que não se pode definir senão pelo termo sagrado. Todos os arrendatários dos vastos domínios da casa du Guénic,
domínios que foram resgatados, como a senhora sabe, pela srta. des Touches, a quem devemos ir visitar em seu convento, vieram saudar-nos, incorporados. Essa boa
gente, em trajes de gala, manifestando todos uma viva alegria por saberem Calisto novamente seu verdadeiro senhor, fizeram-me compreender a Bretanha, o feudalismo,
a velha França. Foi uma festa que não lhe quero descrever, pois lha narrarei de viva voz. A base de todos os contratos foi proposta por esses gars (Gars (termo do
francês regional e familiar): “rapaz”.) eles mesmos; nós os assinaremos depois da inspeção que vamos fazer nas nossas terras hipotecadas faz cento e cinquenta anos!...
A srta. de Pen-Hoël disse-nos que os rapazes tinham declarado as rendas com uma verdade de que a gente de Paris negaria.
Partiremos dentro de três dias e iremos a cavalo. No meu regresso, querida mãe, eu lhe escreverei; mas que lhe poderei dizer, se minha felicidade já está no cúmulo?
Escrever-lhe-ei pois o que a senhora já sabe, isto é, o quanto a amo.
IV - ENTRE NOVIÇAS DA MESMA PARA A MESMA
Nantes, junho
Depois de ter representado o papel de uma castelã adorada por seus vassalos, como se a revolução de 1830 e a de 1789 jamais houvessem abatido os pendões; depois
de cavalgadas nos bosques, paradas em granjas, jantares em velhas mesas e sobre toalhas centenárias que vergavam sob pratarrazes homéricos, servidos com louça antediluviana;
depois de ter bebido vinhos deliciosos em canecos como os que manejam os prestidigitadores, com tiros de espingarda à sobremesa! e “Viva os du Guénic!” capazes de
estontear! e bailes nos quais a totalidade da orquestra consistia em um biniou (Biniou: gaita de foles da Bretanha.) no qual um homem sopra durante dez horas seguidas!
e ramos! e jovens recém-casadas que se faziam abençoar por nós! e boas fadigas, cujo remédio se encontra na cama, em sonos que eu não conhecia, e em despertares
deliciosos em que o amor é radioso como o sol que brilha sobre nós e cintila com mil moscas que zumbem em baixo bretão!... enfim, após uma grotesca permanência no
castelo du Guénic, onde as janelas são portões, e onde as vacas poderiam tosar os prados nascidos nas salas, mas que juramos arranjar e reparar, para irmos lá todos
os anos por entre as aclamações dos rapazes do clã de Guénic, dos quais um empunhava nossa flâmula, uff! estou em Nantes!...
Ah, que dia o da chegada em Guénic! O reitor, minha mãe, veio com seu clero, todos corados de flores, receber-nos, abençoar-nos, manifestando uma alegria!... que
me faz as lágrimas assomarem aos olhos, enquanto te escrevo. E este altivo Calisto que representava seu papel de senhor, como um personagem de Walter Scott. O senhor
recebia as homenagens tal como se estivesse em pleno século XIII. Ouvi as raparigas e as mulheres dizerem:
— Que lindo senhor temos nós!—como num coro de ópera cômica.
Os anciãos discutiam entre eles a semelhança de Calisto com os du Guénic a quem conheceram. Ah, a nobre e sublime Bretanha, que terra de crenças e religião! Mas
o progresso a espreita, estão construindo-lhe pontes e estradas; as ideias virão e adeus o sublime! Os camponeses certamente nunca serão tão livres nem tão altivos
como os vi, quando lhes tiverem provado que eles são iguais a Calisto, se é, todavia, que eles o queiram crer. Depois do poema dessa restauração pacífica, assinados
os contratos, deixamos, pois, essa terra encantadora, sempre florida, alegre, sombria e deserta alternativamente, e viemos ajoelhar aqui nossa felicidade, diante
daquela a quem a devemos. Calisto e eu sentíamos a necessidade de agradecer à postulante da Visitação. Em atenção a ela, Calisto esquartelará seu escudo com o dos
Touches que é: partido, cortado, fendido e talhado de ouro e de sinople. Tomará uma das águias de prata para um dos seus suportes e pôr-lhe-á no bico esta linda
divisa de mulher: Souviègne-vous (Souviègne-vous! (em francês antigo): “Lembre-vos”.)!
Fomos pois ontem ao convento das damas da Visitação, onde nos levou o abade Grimont, um amigo da família du Guénic, o qual nos disse que sua querida Felicidade,
mamãe, era uma santa; ela não pode ser outra coisa para ele, porquanto essa ilustre conversão fez com que o nomeassem vigário-geral da diocese. A srta. des Touches
não quis receber Calisto e só me viu a mim. Achei-a um pouco mudada, pálida e emagrecida; pareceu-me muito feliz com a minha visita.
— Dize a Calisto—exclamou ela em voz baixa—que é uma questão de consciência e de obediência se não o quero ver, porque mo permitiram; mas prefiro não comprar essa
felicidade de alguns minutos por uns quantos meses de sofrimento. Ah, se soubesses como me penaliza responder quando me perguntam: “Em que pensa?”. A madre das noviças
não quer compreender a extensão e o número das ideias que me passam em turbilhão pela cabeça. Por momentos, revejo a Itália ou Paris, com todos os seus espetáculos,
pensando em Calisto, o qual—disse ela com aquele modo poético tão admirável que a senhora conhece—é o sol dessas recordações... Eu era demasiado velha para ser aceita
nas Carmelitas e entrei para a ordem de São Francisco de Sales unicamente por ter ele dito: “Eu vos descalçarei a cabeça em vez de vos descalçar os pés!”, recusando-se
àquelas austeridades que alquebram o corpo. É de fato a cabeça quem peca. O santo bispo andou bem, portanto, tornando sua regra austera para a inteligência e terrível
contra a vontade!... Era isso que eu desejava, porque minha cabeça era a verdadeira culpada, ela enganou-me a respeito do meu coração até esta idade fatal dos quarenta
anos, na qual se, por alguns instantes, se é quarenta vezes mais feliz do que as mulheres jovens, se é mais tarde cinquenta vezes mais infeliz do que elas... E então,
minha filha, estás contente?—perguntou-me, deixando com visível prazer de falar de si.
— A senhora me vê no encantamento do amor e da felicidade!—respondi-lhe.
— Calisto é tão bom e ingênuo quanto nobre e belo—disse-me ela gravemente.—Eu te instituí minha herdeira; possuis, além da minha fortuna, o duplo ideal que sonhei...
Aplaudo-me pelo que fiz—continuou ela, após uma pausa.—Agora, minha filha, não te iludas. Vocês agarraram facilmente a felicidade, nada mais tinham a fazer do que
estender a mão; pensa porém em conservá-la. Quando mesmo tivesses vindo aqui somente para levar os conselhos da minha experiência, tua viagem estaria bem paga. Calisto
sofre neste momento uma paixão comunicada, tu não a inspiraste. Para tornar tua felicidade durável, procura, minha querida, unir esse princípio ao primeiro. No interesse
de ambos, procura ser caprichosa, sejas coquete, um pouco dura, é preciso. Não te aconselho cálculos odiosos, nem a tirania, mas sim a ciência. Entre a usura e a
prodigalidade há a economia. Procura aprender a exercer honestamente alguma influência sobre Calisto. Eis as últimas palavras mundanas que pronunciarei, tinha-as
em reserva para ti, porque tremi na minha consciência de te haver sacrificado para salvar Calisto: prende-o bem a ti, que ele tenha filhos, que respeite em ti a
mãe deles... Enfim—disse-me com voz comovida—,arranja-te de modo a que ele nunca mais veja Beatriz!...
Esse nome mergulhou-nos a ambas numa espécie de torpor, e ficamos as duas com os olhos fixos uma na outra, trocando a mesma vaga inquietação.
— Voltam para Guérande?—perguntou-me.
— Sim—respondi-lhe.
— Pois bem, não vá nunca às Touches... Fiz mal em dar-lhe essa propriedade.
— E por quê?
— Criança, as Touches são para ti o gabinete do Barba-Azul (O gabinete do Barba-Azul: alusão à conhecida fábula de Perrault em que o Barba-Azul, partindo de casa,
proíbe à mulher de abrir a porta de seu gabinete durante a sua ausência. Esta proibição, naturalmente, serve apenas para aguçar a curiosidade da moça; acaba por
abrir o gabinete, onde encontra os cadáveres de várias mulheres mortas, suas predecessoras.), porquanto nada há tão perigoso como despertar uma paixão que dorme.
Dou-lhe em substância, querida mãe, o sentido de nossa conversação. Se a srta. des Touches fez-me conversar muito, deu-me tanto mais em que pensar, por ter eu, no
enlevo de minha viagem e das minhas seduções com meu Calisto, esquecido a grave situação moral de que lhe falava na minha primeira carta.
V - ONDE, NA LUA DE MEL, LEVAM AS DESAVENÇAS
Depois de muito ter admirado Nantes, uma cidade encantadora e magnífica, depois de ter ido ver, na praça da Bretanha, o lugar onde Charette tombou tão nobremente,
formamos o projeto de voltar pela Loire e Saint-Nazaire, visto já termos feito por terra a viagem de Nantes a Guérande. Decididamente, um barco a vapor não vale
um carro. A viagem em público é uma invenção do monstro moderno, o Monopólio. Três jovens senhoras de Nantes, bastante bonitas, movimentavam-se no tombadilho, atacadas
daquilo a que chamei de kergarouetismo, um gracejo que a senhora compreenderá quando eu lhe houver descrito os Kergarouët. Calisto portou-se muito bem. Como um verdadeiro
gentil-homem, não me exibiu. Conquanto satisfeita com o seu bom gosto, do mesmo modo que uma criança a quem se deu seu primeiro tambor, pensei que tinha uma magnífica
oportunidade de experimentar o sistema recomendado por Camille Maupin, pois não fora certamente a postulante quem me falara. Afetei um arzinho arrufado, e Calisto,
muito gentilmente, alarmou-se.
A pergunta: “Que tem? ...”, que me atirou ao ouvido, respondi a verdade:
— Não tenho nada!
E aí tive de reconhecer o pouco sucesso que obtém a princípio a verdade. A mentira é uma arma decisiva nos casos em que a celeridade deve salvar as mulheres e os
impérios. Calisto tornou-se muito solícito, muito inquieto. Levei-o para a proa do barco, para o meio de um monte de cabos; e ali, com voz cheia de susto, se não
de lágrimas, disse-lhe as desgraças, os temores de uma mulher, cujo marido resulta ser o mais belo dos homens...
— Ah, Calisto—exclamei—,há na nossa união uma desgraça atroz, você não me amou, não me escolheu! Não ficou imobilizado de pé, como uma estátua, ao ver-me pela primeira
vez! É meu coração, minha dedicação, minha ternura que solicitam sua afeição, e algum dia você me punirá por lhe haver trazido eu mesma os tesouros de meu puro,
de meu involuntário amor de moça... Eu deveria ser má, coquete, e não me sinto com forças contra você... Se aquela horrível mulher que o desdenhou estivesse em meu
lugar, aqui, você não teria percebido aquelas duas (Aquelas duas... Deve ter havido distração de Balzac, pois acima falava em “três jovens senhoras de Nantes”.)
horríveis bretãs que a aduana de Paris classificaria como gado...
Vieram duas lágrimas aos olhos de Calisto, e virou-se para ocultar-mas; viu o baixo Indre e correu a pedir ao capitão que nos desembarcasse ali. Não se pode resistir
a respostas como essa, sobretudo quando são seguidas de uma permanência de três horas numa enfezada taberna do baixo Indre, onde almoçamos peixe fresco, num pequeno
quarto como os que os pintores do gênero pintam, e por cujas janelas ouviam-se mugir as forjas de Indre, através do belo lençol do Loire. Ao ver como resultavam
as experiências da Experiência, eu exclamei:
— Ah, querida Felicidade...
Incapaz de suspeitar os conselhos da religiosa e a duplicidade do meu procedimento, Calisto fez um trocadilho divino, cortou-me a palavra, dizendo:
— Guardemos-lhe a recordação! Mandaremos um artista para copiar esta paisagem.
O que eu ri, mamãe! Ri-me a ponto de deixar Calisto desconcertado e esteve a ponto de zangar-se.
— Mas—disse-lhe eu—há desta paisagem, desta cena um quadro em meu coração que jamais se apagará e será de um colorido inimitável!
Ah, minha mãe, é-me impossível pôr assim as aparências da guerra ou da inimizade no meu amor; Calisto fará de mim o que ele quiser. Essa lágrima é a primeira, creio
eu, que ele me dá: não vale ela mais do que a segunda declaração dos meus direitos?... Uma mulher sem coração tornar-se-ia senhora e dona, depois da cena do barco;
eu tornei a perder-me. Segundo seu sistema, quanto mais me torno mulher, mais me faço rapariga fácil, porque sou pavorosamente fraca com a felicidade, não resisto
a um olhar do meu senhor! Não, não me abandono ao meu amor, prendo-me a ele como uma mãe aperta o filho contra o seio por temer alguma desgraça.
VI - JÁ!
DA MESMA PARA A MESMA
Julho, Guérande
Ah, querida mamãe, conhecer o ciúme ao cabo de três meses! Meu coração já está bem completo, sinto nele um ódio profundo e um profundo amor! Sou mais que traída,
não sou amada!... Como sou feliz por ter uma mãe, um coração no qual posso gritar à minha vontade... Nós outras, as mulheres que ainda somos um pouco como mocinhas,
basta que nos digam: “Aqui está uma chave enferrujada de recordações entre todas as do vosso palácio, entrai por toda parte, gozai de tudo, mas abstende-vos de ir
às Touches!” para que entremos ali, com os pés ardendo e os olhos acesos pela curiosidade de Eva. Que irritação a srta. des Touches pusera em meu amor! Mas também
por que vedar-me Touches? Que é uma felicidade como esta minha que dependeria de um passeio, de uma estada num buraco da Bretanha? E que tenho eu a temer? Enfim,
junte aos motivos da sra. Barba-Azul o desejo que morde todas as mulheres de saber se seu poder é precário ou sólido, e compreenderá como, um dia, pedi com um arzinho
indiferente:
— Que vem a ser das Touches?
— As Touches pertencem-lhe—disse-me a minha divina sogra.
— Se Calisto jamais tivesse posto os pés nas Touches!...—exclamou minha tia Zefirina, meneando a cabeça.
— Mas... ele não seria meu marido—disse eu à minha tia.
— Sabe então do que se passou?—replicou-me com fineza a minha sogra.
— É um lugar de perdição—disse a srta. de Pen-Hoël.—A srta. des Touches cometeu muitos pecados, dos quais agora está pedindo perdão a Deus.
— Não salvou isso a alma daquela nobre rapariga e fez a fortuna de um convento?—exclamou o cavaleiro du Halga.—O abade Grimont disse-me que ela dera cem mil francos
às damas da Visitação.
— Quer ir às Touches?—perguntou-me minha sogra.—É uma coisa que merece ser vista.
— Não, não!—disse eu com vivacidade.
Essa pequena cena não lhe parece uma página de algum drama diabólico? Repetiu-se vinte vezes, sob qualquer pretexto. Finalmente minha sogra disse:
— Compreendo por que você não vai às Touches e acho que tem razão.
Oh, mamãe, a senhora terá de confessar que essa punhalada, dada involuntariamente, tê-la-ia decidido a saber se sua felicidade repousava sobre bases tão frágeis,
que devesse perecer sob tais lambris. É preciso fazer justiça a Calisto, nunca me convidara para visitar aquela cartuxa que se tornara sua propriedade. Somos criaturas
carentes de senso assim que amamos; porque esse silêncio, essa reserva picaram-me e um dia disse-lhe:
— Que temes tu ver nas Touches, que és o único a nunca falar a respeito?
— Vamos até lá—disse ele.
Vi-me pois embaraçada como todas as mulheres que se querem deixar prender, e que confiam no acaso para desatar o nó górdio de sua indecisão. E fomos às Touches.
É delicioso, é de um gosto profundamente artístico, e agrada-me estar nesse abismo, onde a srta. des Touches tanto me proibira ir. Todas as flores venenosas são
encantadoras. Satã semeou-as porque há as flores do diabo e as flores de Deus; basta que nos recolhamos em nós mesmos para ver que eles criaram o mundo, metade cada
um. Que acres delícias nessa situação em que eu brincava não com fogo, mas com cinzas!... Eu estudava Calisto, tratava-se de saber se tudo estava bem extinto, e
eu cuidava das correntes de ar, pode crer-me! Espreitava seu rosto, ao ir de uma peça à outra, de um móvel a outro, absolutamente como uma criança que busca um objeto
escondido. Calisto pareceu-me pensativo, mas a princípio acreditei ter vencido. Senti-me suficientemente forte para falar da sra. de Rochefide, a quem, desde a aventura
do rochedo do Croisic, chamam de Rocheperfide. Finalmente fomos ver o famoso buxo, onde Beatriz se deteve, quando ele a atirou ao mar, a fim de ela não pertencer
a ninguém.
— Ela deve ser bem leve para ter ficado ali—disse eu rindo.
Calisto permaneceu calado.
— Respeitemos os mortos—disse eu, continuando.
Calisto mudo.
— Desagradei-te?
— Não, mas deixa de galvanizar essa paixão—respondeu-me.
Que frase!... Calisto, que me viu triste, redobrou de atenção e de ternura para comigo.
Agosto
Eu estava, infelizmente, no fundo do abismo, e divertia-me, como os inocentes de todos os melodramas, em ali colher flores. Repentinamente um pensamento horrível
cavalgou minha felicidade, tal como o cavalo através da balada alemã. Pareceu-me adivinhar que o amor de Calisto se engrandecia com suas recordações, que referia
a mim as tormentas que eu nele reavivava, ao lembrar-lhe os coquetismos daquela horrível Beatriz! Aquela natureza malsã e fria, persistente e mole, que tem algo
de molusco e de coral, atreve-se a chamar-se de Beatriz. Já me vejo forçada, querida mãe, a ter os olhos em uma suspeita, quando meu coração pertence todo ele a
Calisto, e não é uma grande catástrofe que os olhos tenham tido razão contra o coração e que a suspeita se achasse por fim justificada? Eis como:
— Esse lugar—disse eu a Calisto, uma manhã—me é caro porque lhe devo minha felicidade, por isso te perdoo, por me tomares algumas vezes por outra...
Esse leal bretão corou, saltei-lhe ao pescoço, mas deixei as Touches, lá jamais voltarei.
À força do ódio que me faz desejar a morte da sra. de Rochefide (oh! meu Deus, naturalmente de uma congestão pulmonar, de um acidente qualquer), reconheci a extensão,
o poder de meu amor por Calisto. Essa mulher veio perturbar-me o sono, vejo-a em sonhos; devo pois encontrá-la?... Ah! a postulante da Visitação tinha razão; as
Touches são um lugar fatal, Calisto voltou a encontrar ali suas impressões, que são mais fortes do que as delícias de nosso amor. Verifique pois, querida mãe, se
a sra. de Rochefide está em Paris, porque então eu ficarei nas nossas terras da Bretanha. Pobre srta. des Touches que agora se arrepende de ter me vestido de Beatriz,
para o dia do contrato, a fim de fazer seu plano triunfar; se ela soubesse até que ponto acabo de ser tomada por nossa odiosa rival, que diria ela? Mas isso é uma
prostituição! Não sou mais eu, tenho vergonha. Sinto-me dominada por um desejo furioso de fugir de Guérande e das areias do Croisic.
VII - CONCLUSÃO
25 de agosto
Decididamente, volto para as ruínas de Guénic. Calisto, bastante inquieto com minha inquietação, leva-me. Ou bem ele pouco conhece a sociedade, se não percebe nada,
ou se sabe a causa de minha fuga, ele não me ama. Tremo tanto de achar uma horrível certeza, se a procuro, que, como as crianças, ponho uma mão sobre meus olhos,
a fim de não ouvir uma detonação. Oh! Minha mãe, não sou amada com o mesmo amor que tenho no coração. Calisto é encantador, é certo, mas que homem, a menos de ser
um monstro, não seria como ele amável e gracioso ao receber todas as flores desabrochadas na alma de uma moça de vinte anos, educada pela senhora, pura como sou,
e que muitas mulheres disseram à senhora ser bela...
Em Guénic, 18 de setembro
Tê-la-á esquecido? Eis o único pensamento que repercute em minha alma como num remorso. Ah, querida mamãe, terão todas as mulheres recordações a vencer como eu?
Não se deveriam casar senão rapazes inocentes com raparigas puras! Mas é uma falaz utopia, é preferível ter a sua rival no passado, a tê-la no futuro. Ah! lamente-me,
minha mãe, embora neste momento eu me sinta bem feliz, feliz como uma mulher que tem medo de perder sua felicidade e nela se agarra!... Um modo de matá-la algumas
vezes, disse a profunda Clotilde.
Apercebo-me que faz cinco meses não penso senão em mim, isto é, em Calisto. Diga à minha irmã Clotilde que suas tristes sabedorias ocorrem-me por vezes; ela é bem
feliz em ser fiel a um morto, ela não teme mais rival. Beijo a minha querida Atenaïs, vejo que Justo está louco por ela. Segundo o que a senhora me diz em sua última
carta, ele tem medo de que não lha deem. Cultive esse temor como uma flor preciosa. Atenaïs será a senhora, e eu que temia não obter Calisto dele mesmo, serei a
serva. Mil ternuras, querida mamãe. Ah, se os meus terrores não fossem vãos, Camille Maupin ter-me-ia vendido cara a sua fortuna!...
Meus afetuosos respeitos a meu pai.
VIII - ONDE SE PROVA QUE, NO SEU SISTEMA, J. J. ROUSSEAU NÃO PENSOU NOS PERIGOS DO DESMAME
Essas cartas explicam perfeitamente a situação secreta da mulher e do marido. Onde Sabina via um casamento de amor, Calisto via um casamento de conveniência. Enfim,
as alegrias da lua de mel não tinham obedecido totalmente ao sistema legal da comunhão. Durante a estada dos dois cônjuges na Bretanha, os trabalhos de restauração,
as disposições do mobiliário da residência dos du Guénic tinham sido dirigidas pelo célebre arquiteto Grindot (O célebre arquiteto Grindot, personagem balzaquiana,
trabalha para os ricos de A comédia humana; foi ele que, em Uma estreia na vida, restaurou o castelo do conde de Sérisy.) com a fiscalização de Clotilde, da duquesa
e do duque de Grandlieu. Tendo sido tomadas todas as medidas para que, no mês de dezembro de 1838, o jovem casal pudesse voltar para Paris, Sabina instalou-se com
satisfação na rue de Bourbon, menos para representar o papel de dona de casa do que saber o que a família pensaria daquele casamento.
Calisto, como belo indiferente, deixou-se guiar, de bom grado, na sociedade, por sua cunhada Clotilde e por sua sogra, as quais lhe ficaram agradecidas por essa
obediência. Ele obteve o lugar devido ao seu nome, à sua fortuna e ao seu casamento. O triunfo de sua mulher, considerada como uma das mais sedutoras, as distrações
que a alta sociedade proporciona, as obrigações a cumprir, os divertimentos de inverno em Paris, restituíram um pouco de força à felicidade do casal, aí produzindo
ao mesmo tempo excitações e calmarias.
Sabina, considerada feliz pela mãe e pela irmã, as quais viram na frieza de Calisto um efeito de sua educação inglesa, abandonou suas ideias negras; ela ouviu sua
sorte invejada por tantas jovens senhoras malcasadas, que expeliu seus terrores para o país das quimeras. Finalmente, a gravidez de Sabina completou as garantias
oferecidas por aquela união do gênero neutro, uma dessas das quais as mulheres experimentadas auguram bem. Em outubro de 1839, a jovem baronesa du Guénic teve um
filho e cometeu a loucura de o amamentar, segundo a opinião de todas as mulheres, em semelhante caso. Como não ser inteiramente mãe quando o filho é de um marido
verdadeiramente idolatrado?
No fim do verão seguinte, em agosto de 1840, Sabina ia pois chegar ao fim do aleitamento de seu primeiro filho. Durante uma permanência de dois anos em Paris, Calisto
despojara-se completamente daquela inocência, cujos prestígios tinham decorado seus primeiros passos no mundo da paixão. Calisto, que se acamaradara com o jovem
duque Jorge de Maufrigneuse, como ele casado recentemente com uma herdeira, Berta de Cinq-Cygne; com o visconde Saviniano de Portenduère, com o duque e a duquesa
de Rhétoré, o duque e a duquesa de Lenoncourt-Chaulieu (De todos esses representantes da aristocracia balzaquiana, por enquanto só conhecemos o duque de Rhétoré,
irmão de Luísa Macumer (em Memórias de duas jovens esposas), e sua esposa, em solteira Francesca Soderini; por quem Alberto Savarus (na novela que lhe ostenta o
nome) se apaixonou, e de quem foi tão perfidamente separado pela srta. de Watteville.), com todos os frequentadores do salão de sua sogra, percebeu as diferenças
que separam a vida da província da vida parisiense. A riqueza tem horas funestas, ociosidades que Paris, mais do que qualquer outra capital, sabe divertir, encantar,
interessar. Ao contato daqueles jovens maridos que deixam as mais nobres, as mais belas criaturas, pelas delícias do charuto e do uíste, pelas sublimes conversações
do clube, ou pelas preocupações do turfe, muitas virtudes domésticas foram pois atingidas no jovem gentil-homem bretão. O maternal desejo de uma mulher, que não
quer aborrecer o marido, vem sempre em auxílio das dissipações dos jovens casados. Uma mulher sente-se tão orgulhosa por ver voltar a ela um homem a quem dera toda
a sua liberdade!...
Uma noite, em outubro daquele ano, para fugir dos gritos de uma criança em período de desmame, Calisto, a quem Sabina não podia, sem dor, ver uma ruga na testa,
foi, aconselhado por ela, ao Varietés, onde davam uma peça nova. O criado de quarto, encarregado de comprar um poltrona na orquestra, escolhera-a perto dessa parte
da plateia chamada proscênio. No primeiro entreato, olhando em torno na plateia, a quatro passos dele Calisto viu a sra. de Rochefide... num dos camarotes do proscênio,
na primeira ordem. Beatriz em Paris! Beatriz em público! Essas duas ideias atravessaram o coração de Calisto como duas flechas. Revê-la, ao cabo de quase três anos!
Como explicar a violenta perturbação que se operou na alma de um amante que, longe de esquecer, desposara, por vezes, tão realmente Beatriz na sua mulher, que esta
disso se apercebera! A quem se poderá explicar que o poema de um amor perdido, menosprezado, mas sempre vivo no coração do marido de Sabina, ali tornasse obscuras
as suavidades conjugais, a ternura inefável da jovem esposa? Beatriz tornou-se a luz, o dia, o movimento, a vida e o desconhecido; ao passo que Sabina foi o dever,
as trevas, o previsto! Uma, naquele momento, foi o prazer, a outra o tédio. Foi a fulminação do raio.
IX - UM PRIMEIRO ATAQUE À LÍNGUA ARMADA
Em sua lealdade, o marido de Sabina teve o nobre pensamento de abandonar a sala. À saída da orquestra, ele viu a porta do camarote entreaberta, e seus pés ali o
levaram, a despeito de sua vontade. O jovem bretão encontrou Beatriz entre dois homens dos mais distintos, Canalis e Nathan (Canalis e Nathan, protagonistas, respectivamente,
de Modesta Mignon e de Uma filha de Eva.), um político e um literato. Nesses três anos em que Calisto não a vira, a sra. de Rochefide sofrera transformações surpreendentes,
mas, embora sua metamorfose tivesse atingido a mulher, para Calisto nem por isso ela deixava de ser mais poética e mais atraente. Até à idade dos trinta anos, as
belas mulheres de Paris nada mais pedem à toilette do que um vestuário; mas, ao passar pelo pórtico fatal daquela idade, elas buscam armas, seduções, embelezamentos
nas coisas da moda; com elas compõem-se graciosidades, nelas encontram meios, tomam ali um caráter, rejuvenescem-se, estudam os mais insignificantes acessórios,
passam enfim da natureza à arte. A sra. de Rochefide acabava de sofrer as peripécias do drama que nesta história de costumes franceses no século XIX se denomina
A mulher abandonada. Deixada por Conti, ela naturalmente tornara-se uma grande artista em toilette, em coquetismo e flores artificiais de toda espécie.
— Como Conti não está aqui?—perguntou Calisto em voz baixa a Canalis, depois de ter feito as saudações banais, pelas quais se iniciam as mais solenes entrevistas,
quando têm lugar publicamente.
O antigo grande poeta do Faubourg Saint-Germain, duas vezes ministro, e voltando a ser pela quarta vez um orador aspirante a qualquer novo ministério, pôs significativamente
um dedo nos lábios. Esse gesto explicou tudo.
— Sinto-me muito feliz por vê-lo—disse felinamente Beatriz a Calisto.—A mim mesma dizia, ao reconhecê-lo ali, antes de ter sido vista, que o senhor não me renegaria!
Ah! meu Calisto, por que se casou?—disse-lhe ela ao ouvido—e de mais a mais com uma tolinha!...
Assim que uma mulher fala ao ouvido de um recém-chegado, em seu camarote, ao fazê-lo sentar-se ao seu lado, os mundanos acham sempre um pretexto para deixá-la a
sós com ele.
— Vem comigo, Nathan?—disse Canalis.—A senhora marquesa me permitirá que vá dizer duas palavras a d’Arthez (D’Arthez: já apareceu, embora por poucos minutos, em
Memórias de duas jovens esposas, como amigo de Maria-Gastão.) a quem estou vendo com a princesa de Cadignan (A princesa de Cadignan: outra personagem importante
de A comédia humana; nesse momento é amante de Daniel d’Arthez.); trata-se de uma combinação de tribuna para a sessão de amanhã.
Essa saída de bom gosto permitiu a Calisto refazer-se do choque que acabara de sofrer; mas acabou por perder o espírito e a força, ao aspirar o perfume, para ele
sedutor, conquanto venenoso, da poesia composta por Beatriz.
X - DEFINIÇÃO DE NÃO SEI QUÊ
A srta. de Rochefide, que se havia tornado ossuda e fibrosa, cuja tez se havia quase decomposto, emagrecida, fanada, com olheiras, tinha essa noite florido suas
ruínas prematuras pelas invenções mais engenhosas da cosmética. Como todas as mulheres abandonadas, ela imaginara dar-se o ar virginal lembrando, por meio de muita
fazenda branca, as raparigas terminadas em a de Ossian (Ossian: bardo legendário escocês do século III. Sob seu nome, Macpherson publicou em 1760 uma coletânea de
poesias sombrias e majestosas que tiveram grande repercussão e nas quais, entre outras personagens, aparecem Malvina, Têmora, Selma.) tão poeticamente pintadas por
Girodet (Girodet: Anne-Louis Girodet de Roussy (1767-1824), pintor da escola de David. Encarregado por Napoleão de compor uma alegoria militar para a qual Ossian
serviria de pretexto, representou as sombras dos soldados mortos de Napoleão errando nas regiões do “palácio das nuvens”, misturadas às personagens do bardo escocês.).
Sua cabeleira loura envolvia-lhe o rosto comprido, por madeixas encaracoladas, pelas quais escorriam os clarões do palco atraídos pelo brilho de um óleo perfumado.
A fronte pálida cintilava. Usara imperceptivelmente um pouco de carmim, cujo brilho iludia os olhos quanto à alvura insípida de sua tez, refeita com água de farelo.
Uma écharpe, de uma finura capaz de fazer duvidar que homens tivessem podido trabalhar a seda daquela forma, estava enrolada em seu pescoço, de modo a diminuir-lhe
o comprimento, a ocultá-lo, a não deixar ver senão de modo imperfeito tesouros habilmente engastados pelo colete. Seu busto era uma obra-prima de composição. Quanto
à sua atitude, uma palavra basta, valia todo o trabalho que tivera em buscá-la. Os braços emagrecidos, endurecidos, mal se viam sob os fofos de efeitos calculados
das mangas largas. Ela apresentava essa mistura de falsos clarões e sedarias brilhantes, de gaze flou e de cabelos frisados, de vivacidade, de calma e de movimento,
que se denominou o não sei quê. Todos sabem em que consiste esse não sei quê. É muito espírito, bom gosto e temperamento.
Beatriz era pois uma verdadeira peça com decoração e transformações, e prodigiosamente mecanizada. A representação dessas mágicas, que são também muito habilmente
dialogadas, enlouquece os homens dotados de franqueza, porque eles experimentam, pela lei dos contrastes, um desejo infrene de brincar com os artifícios. É falso
e arrebatador, é rebuscado, mas é agradável, e certos homens adoram essas mulheres que jogam sedução como se joga cartas. Eis por quê. O desejo do homem é um silogista
que por essa ciência exterior deduz os secretos teoremas da voluptuosidade. O espírito a si mesmo diz, sem palavras: “Uma mulher que sabe criar-se tão bela deve
ter muitos outros recursos na paixão”. E é verdade. As mulheres abandonadas são as que amam, as conservadoras, são as que sabem amar. Ora, se aquela lição do italiano
fora cruel para o amor-próprio de Beatriz, ela era de uma natureza demasiadamente artificial para não aproveitá-la.
— Não se trata de amá-los—dizia ela alguns momentos antes da entrada de Calisto—,é preciso incomodá-los, quando os temos presos; esse é o segredo das que os querem
conservar. Os dragões, guardiães de tesouros, estão armados de garras e de asas!
— Poderia fazer-se um soneto com essa ideia—respondera Canalis, no momento em que Calisto entrou.
XI - QUANDO UMA MULHER “POSA”
Com um único olhar, Beatriz adivinhou o estado de Calisto; tornou a encontrar frescos e vermelhos os sinais da coleira que lhe pusera nas Touches. Calisto, ferido
com as palavras ditas sobre a esposa, hesitava entre a dignidade de marido, a defesa de Sabina, e uma palavra dura a atirar num coração, de onde para ele se exalavam
tantas recordações, um coração que julgava estar sangrando ainda. Essa hesitação era observada pela marquesa; dissera aquelas palavras somente para saber até que
ponto alcançara seu domínio sobre Calisto; ao vê-lo tão fraco, acorreu em seu auxílio para tirá-lo do embaraço.
— Pois aqui está, meu amigo, encontra-me sozinha—disse ela depois que os dois cortesãos saíram—,sim, sozinha no mundo!...
— Não pensou então em mim?—disse Calisto.
— Você—respondeu ela—não está casado?... Foi uma das minhas dores em meio às que sofri, desde que não nos vimos mais. “Não, somente perco o amor”, disse a mim mesma,
“mas ainda uma amizade que eu julgava ser bretã.” A gente se acostuma a tudo. Agora sofro menos, mas estou despedaçada. É este, faz muito, o primeiro desabafo de
meu coração. Obrigada a mostrar-me altiva com os indiferentes, arrogante, como se não tivesse falido perante as pessoas que me cortejam, tendo perdido a minha querida
Felicidade, eu não tinha um ouvido no qual depusesse esta palavra: “Sofro!”. Por isso, agora, posso dizer-lhe qual foi a minha angústia ao vê-lo a quatro passos
de mim, sem que me reconhecesse, e qual a minha alegria ao vê-lo junto de mim... Sim—disse ela, respondendo a um gesto de Calisto—,é quase a fidelidade! Assim são
os infelizes! Um nada, uma visita é tudo para eles! Ah, você me amou como eu merecia sê-lo por aquele que se comprouve em espezinhar todos os tesouros que eu lhe
atirava aos pés! E, para minha desgraça, não sei esquecer, amo, e quero permanecer fiel a esse passado que jamais voltará.
Ao proferir essa tirada, já cem vezes improvisada, ela manobrava com os olhos de modo a reforçar pelo gesto o efeito das palavras, que pareciam arrancadas do fundo
da alma pela violência de uma torrente por muito represada. Calisto, em vez de falar, deixou que corressem as lágrimas que lhe caíam dos olhos. Beatriz tomou-lhe
a mão, apertou-lha, e o fez empalidecer.
— Obrigada, Calisto, obrigada, meu pobre menino, é assim que um verdadeiro amigo responde à dor de um amigo! Nós nos entendemos. Olhe, não acrescente uma palavra!...
Vá embora, que nos estão olhando, e você poderia magoar sua esposa, se por acaso lhe dissessem que nos tinham visto juntos, embora muito inocentemente, diante de
mil pessoas... Adeus; veja, sou forte!...
Enxugou os olhos, fazendo o que na retórica feminina se deve denominar uma antítese em ação.
— Deixe-me rir o riso dos danados com os indiferentes que me divertem—continuou.—Frequento artistas, escritores, a sociedade que conheci em casa da nossa pobre Camille
Maupin, a qual com certeza teve razão! Enriquecer aquele a quem se ama e desaparecer, dizendo-se: “Sou demasiado velha para ele!” é terminar como mártir. E é o que
há de melhor, quando não se pode terminar como virgem.
Pôs-se a rir, como que para destruir a impressão triste que devia ter causado ao seu adorador.
— Mas—disse Calisto—,onde poderei ir vê-la?
— Escondi-me na rue de Courcelles, em frente ao parque Monceaux, numa pequena casa, de acordo com a minha fortuna, e lá recheio-me a cabeça de literatura, mas só
para mim, a fim de distrair-me. Deus me livre da mania dessas senhoras!... Vamos, saia, deixe-me, não quero que a sociedade se ocupe de mim, e o que não diriam ao
ver-nos? De resto, olhe, Calisto, se você ficasse aqui mais um instante, eu choraria francamente.
Calisto retirou-se, mas depois de ter estendido a mão a Beatriz e ter experimentado pela segunda vez a sensação profunda, estranha, de uma dupla pressão cheia de
cócegas sedutoras.
“Meu Deus, Sabina nunca soube comover-me assim o coração!” Tal foi o pensamento que o assaltou nos corredores.
Durante o resto do espetáculo, a marquesa de Rochefide não dirigiu três olhares diretos a Calisto; mas houve olhares de soslaio que foram outros tantos despedaçamentos
de alma para um homem inteiramente entregue ao seu primeiro amor repelido.
XII - OS INCONVENIENTES DA INGENUIDADE
Quando o barão du Guénic se viu em casa, o esplendor dos seus apartamentos fê-lo pensar na espécie de mediocridade de que Beatriz falava, e ficou com ódio de sua
fortuna por não poder ela pertencer ao anjo decaído. Quando soube que Sabina, fazia muito, estava deitada, sentiu-se muito feliz por se achar senhor de uma noite,
para viver com suas emoções. Amaldiçoou então o poder divinatório que o amor dava a Sabina. Quando, por acaso, um homem é adorado pela esposa, ela lê naquele rosto
como num livro, conhece-lhe as menores vibrações dos músculos, sabe de onde lhe vem a calma, a si mesma indaga a origem da mais insignificante tristeza, e procura
saber se é ela quem a causa, estuda os olhos; para ela, os olhos tingem-se com o pensamento dominante, amam ou não amam. Calisto sabia ser objeto de um culto tão
profundo, tão ingênuo, tão cioso, que duvidou poder compor-se um semblante discreto sobre a mudança sobrevinda no seu moral.
“Como farei amanhã de manhã?”, a si mesmo perguntou ao adormecer, e receoso da espécie de inspeção a que Sabina se entregava.
Ao abordar Calisto, e mesmo, por vezes, durante o dia, Sabina perguntava-lhe: “Amas-me sempre?”, ou então: “Não te aborreço?”. Interrogações graciosas, variadas
segundo o caráter ou o espírito das mulheres e que lhes ocultam as angústias falsas ou reais.
Emergem à superfície dos mais nobres e puros corações lodos soerguidos pelas tormentas. Assim, pois, no dia seguinte pela manhã, Calisto, o qual certamente amava
seu filhinho, estremeceu de alegria ao saber que Sabina estava espreitando a causa de algumas convulsões, temendo o crupe, e que não queria sair de perto do pequeno
Calisto. O barão pretextou um negócio e saiu, evitando o almoço em casa. Evadiu-se como os prisioneiros se evadem, feliz por andar a pé, de caminhar pela ponte Luís
XVI e pelos Champs-Elysées, em direção a um café do bulevar, onde se deu ao gosto de almoçar como um celibatário.
XIII - QUESTÕES GRAVES
Que haverá pois no amor? Será que a natureza se rebela sob o jugo social? Quererá ela que o impulso da vida dada seja espontâneo, livre, que seja o curso de uma
torrente fogosa, quebrada pelos rochedos da contradição, do coquetismo, ao invés de ser uma água correndo tranquilamente entre as duas margens, a da mairie (Mairie:
edifício e repartições da administração municipal, e sede do maire, chefe dessa administração.) e a Igreja? Terá ela suas intenções, quando incuba essas erupções
vulcânicas, às quais são devidas, talvez, aos grandes homens?
Teria sido difícil encontrar um rapaz mais santamente educado do que Calisto, de costumes mais puros, menos poluído de irreligião; e ele saltava para uma mulher
indigna dele, quando um clemente, um radioso acaso lhe apresentara, na baronesa du Guénic, uma jovem de uma beleza verdadeiramente aristocrática, de um espírito
fino e delicado, devota, amante e dedicada unicamente a ele, de uma doçura angelical, de mais a mais enternecida pelo amor, por um amor apaixonado apesar do casamento,
como era o dele por Beatriz.
Talvez os mais grandes homens tenham guardado em sua constituição um pouco de argila, e por isso o lodo lhes agrade ainda. O ser menos imperfeito seria então a mulher,
apesar de suas faltas e de seus despropósitos. Não obstante, a sra. de Rochefide, no meio do cortejo de pretensões poéticas que a cercavam, e apesar de sua queda,
pertencia à mais alta nobreza; sua natureza era mais etérea do que lodosa, e ocultava a cortesã que ela se propunha ser, sob as mais aristocráticas aparências. Assim,
esta exposição não explicaria a estranha paixão de Calisto. Talvez o motivo fosse achado numa vaidade tão profundamente enterrada, que os moralistas ainda não descobriram
esse lado do vício.
Há homens cheios de nobreza como Calisto, belos como ele, ricos e distintos, bem-educados, que se cansam, inconscientemente talvez, de um casamento com uma pessoa
de natureza semelhante à deles, seres cuja nobreza não se admira da nobreza, que a grandeza e a delicadeza sempre consoante com a deles deixam calmos, e que vão
buscar junto a naturezas inferiores ou decaídas a sanção de sua própria superioridade, se é que todavia não lhes vão mendigar louvores. O contraste da decadência
moral e do sublime diverte-lhes o olhar. O puro brilha tanto na vizinhança do impuro! Essa contradição diverte. Calisto nada tinha que proteger em Sabina, ela era
irrepreensível, as forças perdidas de seu coração iam todas vibrar em Beatriz. Se grandes homens representaram ante nossos olhos esse papel de Jesus reerguendo a
mulher adúltera, por que as pessoas comuns iriam ser mais sensatas?
XIV - O NINHO DO ANJO DECAÍDO
Calisto alcançou as duas horas, vivendo sobre esta frase: “Vou revê-la!”, um poema que muitas vezes distraiu viagens de setecentas léguas... Foi com passo lépido
até a rua de Courcelles, reconheceu a casa, embora jamais a tivesse visto, e ficou, ele, genro do duque de Grandlieu, ele, rico, nobre como os Bourbons, detido no
primeiro degrau da escada pela pergunta de um velho criado:
— O nome do senhor?
Calisto compreendeu que devia deixar a Beatriz seu livre-arbítrio, e examinou o jardim, os muros ondeados pelas linhas negras e amarelas que as chuvas produzem nas
paredes novas de Paris.
A sra. de Rochefide, como quase todas as grandes damas que partem suas cadeias, fugira, deixando a fortuna ao marido; não tinha querido estender a mão ao seu tirano.
Conti e a srta. des Touches pouparam os aborrecimentos da vida material a Beatriz, a quem a mãe, de resto, por várias vezes, remetera algum dinheiro. Ao ver-se só,
ela foi forçada a economias bastante duras para uma mulher acostumada ao luxo. Subira portanto ao alto da colina, onde se estende o parque de Monceaux, e refugiara-se
numa antiga casinha de grão-senhor, situada na linha da rua, dotada porém de um pequeno jardim, e cujo aluguel não ultrapassava mil e oitocentos francos. Não obstante,
sempre servida por um velho criado, uma criada de quarto e uma cozinheira de Alençon, ligados à sua desdita, sua miséria teria constituído a opulência para muitas
burguesas ambiciosas.
Calisto subiu por uma escada, cujos degraus de pedra tinham sido polidos e cujos patamares estavam cheios de flores. No primeiro andar, o velho criado abriu, a fim
de introduzir o barão no apartamento, uma porta dupla de veludo encarnado, com losangos de seda encarnada e pregas douradas. A seda e o veludo forravam as peças,
pelas quais Calisto passou. Tapetes de cores sérias, cortinados entrecruzados nas janelas, os reposteiros, tudo no interior contrastava com a mesquinhez do exterior,
mal conservado pelo proprietário.
Calisto esperou Beatriz num salão de estilo sóbrio, no qual o luxo se fizera simples. Essa peça, forrada de veludo de cor granate, realçado por sedarias de um amarelo
mate, com tapetes de encarnado escuro, e cujas janelas assemelhavam-se a estufas, tal a abundância de flores em jardineiras, estava iluminada por uma claridade tão
fraca que Calisto mal pôde ver em cima da chaminé dois vasos de porcelana velha, encarnados, entre os quais brilhava uma taça de prata atribuída a Benvenuto Cellini
(Benvenuto Cellini (1500-1571): gravador, escultor e ourives italiano, autor de curiosas memórias.) trazida da Itália por Beatriz. Os móveis de madeira dourada,
forrados de veludo, os magníficos consolos sobre um dos quais havia um relógio curioso, a mesa, com um tapete da Pérsia, tudo atestava uma antiga opulência, cujos
restos haviam sido bem-dispostos. Em cima de um pequeno móvel, Calisto viu joias, um livro iniciado, no qual cintilava o cabo ornamentado de pedras preciosas de
um punhal, que servia de corta-papel, símbolo da crítica. Finalmente, na parede, dez aquarelas ricamente emolduradas, representando todas elas os quartos de dormir
das múltiplas habitações em que a vida errante fizera Beatriz permanecer, davam a medida de uma impertinência superior.
XV - O PRIMEIRO NÃO DO SIM
O ruge-ruge de um vestido de seda anunciou a desditosa; ela mostrou-se numa toilette estudada, a qual certamente teria dito a um devasso que estava sendo esperado.
O vestido, cortado em feitio de robe de chambre, a fim de deixar entrever um canto do alvo seio, era de moiré gris pérola, de grandes mangas abertas, de onde os
braços saíam cobertos por uma dupla manga fofa e debruada, guarnecida de rendas no punho. Os belos cabelos que o pente tornara soltos escapavam-se de debaixo de
uma touca de rendas e flores.
— Já?—disse ela sorrindo.—Um amante não se mostraria tão solícito. Tem, então, segredos a dizer-me, não é?
E sentou-se numa conversadeira, convidando, com um gesto, Calisto para que tomasse lugar ao lado dela. Por um acaso, talvez procurado (porque as mulheres têm duas
memórias, a dos anjos e a dos demônios), Beatriz exalava o perfume que usava nas Touches, quando do seu encontro com Calisto. A primeira aspiração daquele perfume,
o contato daquele vestido, o olhar daqueles olhos que, naquela penumbra, atraíam a luz para refleti-la, tudo isso fez Calisto perder a cabeça. O infeliz tornou a
encontrar aquela violência que estivera a ponto de o fazer matar Beatriz; dessa vez, porém, a marquesa estava à beira de uma conversadeira, e não do oceano; levantou-se
para tocar a sineta, colocando um dedo nos lábios. A esse sinal, Calisto, chamado à ordem, conteve-se; compreendeu que Beatriz não tinha nenhuma intenção belicosa.
— Antônio, não estou em casa para ninguém—disse ela ao velho criado.—Ponha lenha no fogo. Como vê, Calisto, trato-o como amigo—continuou com dignidade depois do
velho sair—,não me trate como a uma amante. Tenho duas observações a fazer-lhe. Primeiro, que não me disputaria tolamente a um homem amado; depois, que não quero
mais pertencer a nenhum homem no mundo, porque acreditei, Calisto, ter sido amada por uma espécie de Rizzio (Rizzio: Davidde Rizzio, músico italiano (1533-1566),
favorito de Maria Stuart, apunhalado aos olhos desta.), ao qual nenhum compromisso prendia, por um homem inteiramente livre, e vê onde esse arrebatamento fatal me
levou? Quanto a você, está sob o império do mais santo dos deveres, tem uma mulher moça, amável, deliciosa; enfim, é pai. Eu não teria, como você não tem, desculpas,
e seríamos dois loucos...
— Minha querida Beatriz, todas essas razões caem diante de uma palavra; nunca amei senão você no mundo, e me casaram contra a vontade.
— Uma peça que a srta. des Touches nos pregou—disse ela sorrindo.
Passaram-se três horas, durante as quais a sra. de Rochefide manteve Calisto na observação da fé conjugal, impondo-lhe o horrível ultimato e uma renúncia radical
a Sabina. Nada a poderia tranquilizar, afirmava, na situação horrível em que a colocaria o amor de Calisto. De resto, considerava o sacrifício de Sabina coisa de
pouca monta—conhecia-a tão bem!
— É, meu querido menino, uma mulher que cumpre todas as promessas da rapariga. É bem uma Grandlieu, morena como a mãe, a portuguesa, para não dizer alaranjada, e
seca como o pai. Para dizer a verdade, sua mulher não se perderá jamais, pois é como um rapaz já feito, que pode andar sozinho. Pobre Calisto, pois podia lá ser
essa a mulher que lhe convinha? Ela tem belos olhos, mas olhos como esses são comuns na Itália, na Espanha e em Portugal. Pode-se acaso ser terna com formas tão
magras? Eva é loura, as mulheres morenas descendem de Adão, as louras vêm de Deus, cuja mão deixou sobre Eva seu último pensamento, uma vez realizada a criação.
XVI - O SEGUNDO NÃO DO SIM
Cerca das seis horas, Calisto, desesperado, pegou o chapéu para retirar-se.
— Sim, vai-te, meu pobre amigo, não lhe dês o desgosto de jantar sem ti!
Calisto ficou. Tão moço, era fácil pegá-lo pelos seus maus lados.
— Atrever-se-ia a jantar comigo?—disse Beatriz, fingindo uma admiração provocadora.—Minha modesta refeição não o assustará, e terá suficiente independência para
cumular-me de alegria por essa pequena prova de afeição?
— Deixe-me somente—disse ele—escrever um bilhete à Sabina, pois do contrário ela me esperaria até as nove horas.
— Olhe, aqui está a mesa onde escrevo—disse Beatriz.—Ela própria acendeu as velas e trouxe uma para cima da mesa, a fim de ler o que Calisto escrevia.
“Minha querida Sabina...”
— Minha querida! Sua mulher lhe é ainda querida?—disse ela, olhando-o com um ar frio a ponto de gelar-lhe a medula dos ossos.—Vá, vá jantar com ela...
“Janto no restaurante com alguns amigos...”
— Uma mentira! Fora! Você é indigno de ser amado por ela ou por mim!... Os homens são todos covardes conosco! Vá, senhor, vá jantar com a sua querida Sabina.
Calisto recostou-se na poltrona e ficou pálido como a morte.
Os bretões possuem uma espécie de coragem que os leva a obstinar-se, quando encontram dificuldades. O jovem barão ergueu-se, apoiou o cotovelo na mesa, pôs o queixo
na mão e fitou com os olhos cintilantes a implacável Beatriz. Foi tão soberbo que uma mulher do Norte ou do Midi teria caído de joelhos, dizendo-lhe: “Toma-me!”.
Beatriz, porém, nascida nos limites da Normandia e da Bretanha, pertencia à raça dos Casteran, o ver-se abandonada desenvolvera nela as ferocidades do franco e a
maldade do normando; necessitava de um terrível escândalo como vingança, e não cedeu àquele sublime gesto.
— Dite o que devo escrever, obedecerei—disse o pobre rapaz.—Mas então...
— Pois bem, sim—disse ela-, porque ainda me amarás como me amavas em Guérande. Escreve: “Janto na cidade, não me espere!”.
— E? ...—disse Calisto, que esperou mais alguma coisa.
— Nada, assine. Bem—disse ela, saltando sobre aquele bilhete com uma alegria contida—,vou mandar levar isto por um mensageiro.
— Agora...—exclamou Calisto, levantando-se como um homem feliz.
— Ah! guardei, creio eu, o meu livre-arbítrio!...—disse ela, virando-se e detendo-se a meio caminho da mesa à chaminé onde foi tocar a campainha.—Tome, Antônio,
mande levar esse bilhete ao seu endereço. O senhor janta aqui.
XVII - A ESCOLA DA MENTIRA
Calisto voltou para casa cerca das duas horas da manhã. Depois de ter esperado até meia-noite e meia, Sabina deitara-se, acabrunhada de cansaço; dormia, embora tivesse
sido vivamente magoada com o laconismo do bilhete do marido; ela, porém, explicou-o!... o amor verdadeiro começa na mulher por explicar tudo vantajosamente para
o homem amado.
“Calisto estava com pressa”, pensou.
No dia seguinte de manhã a criança ia bem, as inquietações da mãe se haviam acalmado. Sabina veio rindo, com o pequeno Calisto nos braços, apresentá-lo ao pai, poucos
momentos antes do almoço, fazendo aquelas lindas doidices, dizendo aquelas palavrinhas bobas, que fazem e dizem as jovens mães. Essa pequena cena conjugal permitiu
a Calisto tomar uma atitude, foi encantador com a mulher, embora achando ser ele um monstro. Brincou como uma criança com o senhor cavaleiro, brincou mesmo um pouco
demais, exagerou seu papel, mas Sabina não chegara ainda a esse grau de desconfiança, no qual uma mulher pode distinguir um matiz tão delicado.
Finalmente, ao almoço, Sabina perguntou:
— Que fizeste ontem?
— Portenduère (Portenduère: visconde Saviniano de Portenduère, um dos pretendentes despedidos de Emília de Fontaine em O baile de Sceaux; depois se consolou casando
com Úrsula Mirouët (como veremos no romance deste nome).)—respondeu ele—reteve-me a jantar e fomos ao clube jogar algumas partidas de uíste.
— É uma vida tola, meu Calisto—disse Sabina.—Os jovens gentis-homens desta época deveriam pensar em reconquistar no seu país o terreno perdido por seus pais. Não
é fumando charutos, jogando uíste, tornando mais inaproveitável ainda a sua ociosidade, contentando-se em dizer impertinências aos parvenus que os expulsaram de
todas as suas posições, apartando-se das massas, para as quais deveriam servir de alma e de inteligência, aparecer-lhes como uma providência, que eles existirão.
Em vez de serem um partido, nada mais sereis do que uma opinião, como diz de Marsay (De Marsay: um dos grandes arrivistas de A comédia humana; já se fez notar em
vários romances por seus motejos e ditos picantes.). Ah! se soubesses o quanto meus pensamentos se ampliaram desde que embalei e amamentei teu filho! Quisera ver
esse velho nome du Guénic tornar-se histórico.
Repentinamente, mergulhando o olhar nos olhos de Calisto, que a ouvia pensativo, disse-lhe:
— Confessa que o primeiro bilhete que me escreveste foi um pouco seco, não?
— Só me lembrei de te prevenir no clube...
— Entretanto, escreveste-me em papel de mulher, pois tinha um perfume feminino.
— São uns tipos tão engraçados esses diretores de clube!
O visconde de Portenduère e a esposa, um casal encantador, tinham-se tornado íntimos dos du Guénic, a ponto de pagarem a meias o camarote nos Italiens. As duas jovens
senhoras, Úrsula (Úrsula: heroína do romance Úrsula Mirouët.) e Sabina, tinham sido levadas a essa amizade pela deliciosa troca de conselhos, de cuidados, de confidências
a propósito dos filhos. Enquanto Calisto, muito bisonho em mentiras, a si mesmo dizia: “Vou prevenir Saviniano”, Sabina pensava: “Pareceu-me que o papel traz uma
coroa!...”. Essa reflexão passou como um relâmpago naquela consciência, e Sabina censurou-se por tê-la feito; mas propôs-se procurar o papel que, na véspera, por
entre os terrores de que estava possuída, atirara na sua caixa de cartas.
XVIII - OS CAVALOS AINDA NÃO MENTEM
Depois do almoço, Calisto saiu, dizendo à mulher que voltaria; subiu em um desses pequenos veículos baixos, de um só cavalo, pelos quais começavam a substituir o
incômodo cabriolé de nossos antepassados. Correu em poucos minutos à rue des Saint-Pères, onde residia o visconde, a quem pediu lhe prestasse o pequeno obséquio
de mentir, a troco de possível pagamento, no caso em que Sabina interrogasse a viscondessa. Uma vez na rua, Calisto, tendo previamente pedido a maior rapidez, foi
da rue des Saint-Pères à rue de Courcelles em poucos minutos; queria ver como Beatriz passara o resto da noite. Achou a feliz desditosa à saída do banho, fresca,
embelezada, e almoçando com excelente apetite. Admirou a graça com que aquele anjo tomava ovos quentes e maravilhou-se do serviço de ouro, presente de um lord melômano,
para quem Conti fizera algumas romanças, para as quais o lord dera as suas ideias, e que as publicara como sendo dele. Ouviu alguns ditos picantes proferidos por
seu ídolo, cujo grande assunto era o de diverti-lo, ao mesmo tempo que se zangava e chorava no momento em que ele se retirava. Pensou ter ficado apenas meia hora
e voltou para casa somente às três horas. Seu belo cavalo inglês, presente da viscondessa de Grandlieu, parecia sair da água, de tal forma estava molhado de suor.
Por um acaso que todas as mulheres ciumentas preparam, Sabina estava de pé junto a uma janela que dava para o pátio, impaciente por não ver Calisto voltar, e inquieta
sem saber por quê. O estado do cavalo, cuja boca espumava, impressionou-a.
— De onde vem ele?
Essa pergunta foi-lhe assoprada ao ouvido por aquele poder que não é a consciência, que não é o demônio, que não é o anjo, mas que vê, pressente, mostra-nos o desconhecido,
faz crer em seres morais, em criaturas nascidas em nosso cérebro, que vão e vêm, e vivem na esfera invisível das ideias.
— De onde vens, querido anjo?—disse ela a Calisto, a cujo encontro ela desceu até ao primeiro patamar da escada.—Abdel-Kader está quase aguado, não devias ficar
senão um momento fora, e faz três horas que te espero.
“Vamos”, disse consigo mesmo Calisto, o qual fazia progressos na dissimulação, “sairei do aperto com um presente.”—Querida ama—respondeu em voz alta à mulher, enlaçando-a
pela cintura com mais carinho do que teria demonstrado se não fosse culpado—,já o vejo, é impossível ter um segredo, por mais inocente que ele seja, para a mulher
que nos ama...
— Não se contam segredos na escada—respondeu ela rindo.
—Vem.
XIX - ENSAIO DE TOXICOLOGIA MORAL
No meio do salão que precedia o quarto de dormir, ela viu num espelho o rosto de Calisto, o qual, não sabendo estar sendo observado, deixava transparecer sua fadiga
e seus verdadeiros sentimentos, não mais sorrindo.
— E o segredo?...—disse ela, voltando-se.
— Como ama de leite foste de um heroísmo que me torna mais caro ainda o herdeiro presuntivo dos du Guénic, e quis fazer-te uma surpresa, absolutamente como um burguês
da rue Saint-Denis. Estão terminando neste momento uma toilette para ti, na qual trabalharam artistas; minha mãe e tia Zefirina contribuíram para ela...
Sabina cercou Calisto com os braços, manteve-o apertado contra o coração, com a cabeça no seu pescoço, fraquejando sob o peso da felicidade, não por causa da toilette,
mas por ver dissipada a primeira suspeita. Foi um desses impulsos magníficos que se contam, e não podem ser prodigalizados por todos amores, mesmo excessivos, porquanto
a vida seria demasiado cedo consumida. Os homens deveriam cair então aos pés das mulheres para adorá-las, porque é um momento sublime no qual as forças do coração
e da inteligência derramam-se como as águas das ninfas arquiteturais jorram das urnas inclinadas. Sabina desatou em prantos.
Repentinamente, como se uma víbora a mordesse, ela afastou-se de Calisto, foi atirar-se num divã e ali desmaiou, porque a reação súbita do frio sobre o coração inflamado
quase a mata. Ao ter Calisto abraçado, ao mergulhar o nariz na gravata dele, entregue como ela estava à sua alegria, sentiu o perfume do papel da carta!... Uma outra
cabeça de mulher ali se esfregara, cabeça da qual os cabelos e o rosto deixavam um cheiro adúltero. Ela acabava de beijar o lugar onde os beijos de sua rival permaneciam
ainda quentes!...
— Que tens?—disse Calisto, depois de fazer Sabina voltar a si, passando-lhe pelo rosto um pano molhado.
— Vá buscar meu médico e meu parteiro, os dois! Sim, estou, sinto-o, com febre do leite... Eles não virão neste mesmo momento, se o senhor não for depressa chamá-los...
O senhor impressionou Calisto, o qual, muito assustado, saiu precipitadamente. Assim que Sabina ouviu fechar-se a porta da entrada, ergueu-se como uma corça assustada,
girou pelo salão como uma louca, bradando:
— Meu Deus! Meu Deus! Meu Deus!
Essas duas palavras consubstanciavam todas as suas ideias. A crise que ela anunciava como pretexto teve lugar. Os cabelos tornaram-se-lhe na cabeça outras tantas
agulhas aquecidas ao rubro pelo fogo dos nervos. O sangue em ebulição pareceu-lhe misturar-se simultaneamente aos seus nervos e querer sair-lhe pelos poros! Durante
um momento ficou cega. Gritou:
— Morro!
XX - DE COMO SE VERIFICA QUE NESSA VARIEDADE DE CRISES, A PRIMEIRA NECESSIDADE É A LUZ
Quando, ao ouvir aquele terrível grito de mãe e de esposa atacada, a criada de quarto entrou; quando, agarrada e levada ao leito, ela recuperou a vista e o espírito,
o primeiro clarão de sua inteligência foi o de mandar aquela rapariga à casa de sua amiga, a sra. de Portenduère. Sabina sentiu as ideias turbilhonarem-lhe na cabeça
como arqueiros levados num furacão.
— Vi—dizia ela mais tarde—miríades ao mesmo tempo.
Tocou a sineta, chamando o criado de quarto, e, na exaltação da febre, teve forças para escrever a seguinte carta, porque estava dominada por um furor, o de ter
uma certeza:
À sra. baronesa du Guénic
Querida mãe, quando vier a Paris, como nos deu a esperança de fazê-lo, eu lhe agradecerei pessoalmente o belo presente que me fez, e pelo qual quiseram a senhora,
tia Zefirina e Calisto agradecer-me o ter eu cumprido os meus deveres. Eu já estava bem paga pela minha própria felicidade. Renuncio a exprimir-lhe o prazer que
me fez esta encantadora toilette, e, somente quando a tiver junto de mim, poderei fazê-lo. Creia que ao enfeitar-me diante desta joia, pensarei sempre, como a dama
romana (Como a dama romana: alusão a Cornélia, filha de Cipião, o Africano, e mãe dos Gracos, que ficou viúva com doze filhos, aos quais educou com a maior dedicação.
Exibindo-lhe um dia uma rica patrícia sua coleção de joias e pedindo-lhe que mostrasse as suas, ela respondeu, indicando os filhos: “Eis as minhas joias”.), que
meu mais belo ornamento é nosso querido anjinho... etc.
Mandou a criada de quarto pôr esta carta no correio para Guérande. Quando a viscondessa de Portuendère entrou, os tremores de uma terrível febre sucediam, em Sabrina,
ao primeiro paroxismo da loucura.
— Úrsula, parece-me que vou morrer—disse-lhe ela.
— O que tens, minha querida?
— O que Saviano e Calisto fizeram finalmente ontem depois de terem jantado em tua casa?
— Que jantar?—retrucou Úrsula a quem o marido ainda não havia dito nada, pois não previa uma enquete imediata. Saviano e eu jantamos juntos ontem e fomos aos Italiens,
sem Calisto.
— Úrsula, minha queridinha, em nome do teu amor por Saviano, guarda segredo do que acabas de me dizer e sobre o que eu te direi. Só tu saberás do que estou morrendo...
Fui traída, ao cabo do terceiro ano, aos vinte e dois anos e meio!...
Seus dentes batiam, seus olhos estavam gelados, baços, seu rosto revestia-se de tons esverdeados e da aparência de um velho espelho de Veneza.
— Tu, tão bela!... E por quem?...
— Não sei! Mas Calisto contou-me duas mentiras... Nenhuma palavra! Não me lamentes, nem te corroas, finge ignorância, saberás talvez quem por Saviano. Ah! A carta
de ontem!... E tremendo, de camisola, ela pulou para um pequeno móvel onde pegou a carta... Um brasão de marquesa! E gemeu jogando-se de novo na cama. Sabes se a
sra. Rochefide está em Paris?... Terei então um coração para chorar, para gemer!... Ah! Minha queridinha, ver suas crenças, sua poesia, seu ídolo, sua virtude, sua
felicidade, tudo em pedaços, tudo murcho, perdido!... Não há mais Deus no céu! Nem mais amor na terra, nem vida no coração, mais nada... Não sei se é dia, duvido
do sol... Enfim tenho tanta dor no coração que quase não sinto os atrozes sofrimentos que me trabalham o seio e o rosto. Felizmente, o pequeno está desmamado, meu
leite o teria envenenado!
Só de pensar nisso, uma torrente de lágrimas brotou dos olhos até então secos de Sabina.
A linda sra. de Portenduère, tendo na mão o bilhete fatal que Sabina cheirava uma última vez, permanecia como que aturdida ante aquela dor verdadeira, empolgada
por aquela agonia do amor, sem poder explicá-la, apesar das narrativas inocentes pelas quais Sabina tentou contar tudo. Repentinamente, Úrsula foi como que iluminada
por uma dessas ideias que só ocorrem às amigas sinceras.
“É preciso salvá-la!’’, pensou.—Espera-me, Sabina—gritou-lhe—,vou saber a verdade.
— Ah, a ti, eu te quererei até no meu túmulo!—gritou Sabina.
XXI - PRIMEIRA MENTIRA DE UMA DEVOTA DUQUESA
A viscondessa foi à casa da duquesa de Grandlieu, pediu-lhe o mais profundo segredo e pô-la a par da situação de Sabina.
— Senhora—disse a viscondessa ao terminar—,não é de opinião que, para evitar uma doença horrorosa, e quem sabe, a loucura... tudo devemos confiar ao médico, e inventar,
em proveito desse horrível Calisto, alguma fábula que por enquanto o inocente?
— Minha querida filha—disse a duquesa, a quem essa confidência enregelara o coração—,a amizade emprestou-lhe, por um momento, a experiência de uma mulher da minha
idade. Sei como Sabina ama o marido, você tem razão, ela poderia ficar louca.
— Mas o que é pior, ela poderia perder a beleza!—disse a viscondessa.
— Corramos—disse a duquesa.
A viscondessa e a duquesa anteciparam-se alguns momentos ao famoso parteiro Dommanget, o único dos dois sábios que Calisto encontrou.
— Úrsula confiou-me tudo—disse a duquesa à filha—,e tu te enganas... Primeiro que tudo, Beatriz não está em Paris. Quanto ao que teu marido fez ontem, meu anjo,
ele perdeu muito dinheiro e não sabe onde ir buscá-lo para pagar tua toilette...
— E isto?—disse Sabina à mãe, apresentando-lhe a carta.
— Isto—exclamou a duquesa rindo—é o papel do Jóquei-Clube; todos escrevem em papel com coroa; brevemente nossos merceeiros terão títulos...
A prudente mãe atirou no fogo o malfadado papel. Quando Calisto e Dommanget chegaram, a duquesa, que acabava de dar instruções à criadagem, foi avisada; deixou Sabina
entregue aos cuidados da sra. de Portenduère e deteve no salão o parteiro e Calisto.
— Trata-se da vida de Sabina, senhor—disse ela a Calisto -; o senhor traiu-a com a sra. de Rochefide.
Calisto corou, como uma mocinha ainda honrada, pilhada numa falta.
— E—disse a duquesa continuando—,como o senhor não sabe enganar, fez tal quantidade de disparates que Sabina adivinhou tudo; mas tudo reparei. Não quer a morte de
minha filha, não é? Tudo isso, senhor Dommanget, o põe na pista da verdadeira doença e de sua causa... Quanto ao senhor, Calisto, uma mulher velha como eu compreende
seu erro, mas sem perdoá-lo. Tais perdões compram-se por toda uma vida de felicidade. Se quer que o estime, salve primeiro minha filha; depois esqueça a sra. de
Rochefide, que é mulher para se ter apenas uma vez!... Saiba mentir, tenha a coragem do criminoso e sua impudência. Eu mesma tive de mentir e vou ser forçada a rudes
penitências por este pecado mortal!...
E o pôs a par das mentiras que acabava de inventar.
XXII - UMA SUBLIMIDADE PECULIAR À MULHER, QUANDO SE JULGA AMADA
O hábil parteiro, sentado à cabeceira da doente, já estudava nos sintomas os meios de remediar o mal. Enquanto prescrevia medidas cujo êxito dependia da maior rapidez
na execução, Calisto, sentado nos pés do leito, mantinha os olhos postos em Sabina, tentando dar uma viva expressão de ternura ao seu olhar.
— Foi então o jogo que lhe provocou essas olheiras?—disse ela com voz fraca.
Essa frase fez o médico, a mãe e a viscondessa estremecerem, e todos se entreolharam disfarçadamente. Calisto ficou rubro como uma cereja.
— Aí está o que é amamentar—disse Dommanget espirituosa e brutalmente.—Os maridos se aborrecem de estar separados das mulheres, vão ao clube e jogam... Mas não lamente
os trinta mil francos que o senhor barão perdeu nessa noite.
— Trinta mil francos!—exclamou tolamente Úrsula.
— Sim, eu o soube—replicou Dommanget.—Disseram-me esta manhã em casa da jovem duquesa Berta de Maufrigneuse que foi o sr. de Trailles (O sr. de Trailles: um dos
principais protagonistas de A comédia humana; encontrá-lo-emos também em Gobseck.) quem os ganhou—disse ele a Calisto.—Como pode o senhor jogar com semelhante indivíduo?
Francamente, barão, compreendo por que está tão envergonhado.
Ao ver a sogra, uma duquesa devota, a jovem viscondessa, uma esposa feliz, e um velho parteiro, um egoísta, mentindo como vendedores de curiosidades, o bom e nobre
Calisto compreendeu a grandeza do perigo, e duas grossas lágrimas deslizaram-lhe pelo rosto, o que acabou de enganar a Sabina.
— Senhor—disse ela, sentando-se no leito e encarando, colérica, Dommanget—,o sr. du Guénic pode perder trinta, cinquenta, cem mil francos, se tal lhe aprouver, sem
que ninguém tenha o direito de censurá-lo e dar-lhe lições. É preferível que o sr. de Trailles lhe tenha ganho dinheiro do que se fôssemos nós que o tivéssemos ganho
ao sr. de Trailles.
Calisto ergueu-se, enlaçou a mulher pelo pescoço, beijou-a nas duas faces e disse-lhe ao ouvido:
— Sabina, és um anjo!...
XXIII - UMA MENTIRA COMO MUITAS OUTRAS
Dois dias depois, a jovem senhora foi considerada salva. No dia seguinte, Calisto estava em casa da sra. de Rochefide e fazia-se um mérito de sua infâmia.
— Beatriz—dizia-lhe—,você me deve a felicidade. Eu entreguei-lhe minha pobre mulher, ela descobriu tudo. Aquele fatal papel, no qual você me fez escrever e que tinha
seu nome e sua coroa que eu não tinha visto!... Eu não via senão você! Felizmente, a letra, seu B, estava apagado por acaso. Mas o perfume que você deixou em mim,
mais as mentiras nas quais me enredei como um tolo traíram a minha felicidade. Sabina quase morreu, o leite subiu-lhe à cabeça, ela está com uma erisipela, da qual
talvez conserve os vestígios por toda a vida...
Ao ouvir essa tirada, Beatriz ficou com uma cara polar, capaz de gelar o Sena, se a tivesse olhado.
— Pois tanto melhor—respondeu—,isso talvez lha torne mais clara.
E Beatriz, que secara como seus ossos, desigual como sua tez, azeda como sua voz, continuou nesse tom com uma ladainha de epigramas atrozes. Não há maior inépcia
para um marido do que falar da esposa, quando esta é virtuosa, à amante, a não ser a de falar da amante, quando esta é bela, à esposa. Calisto, porém, não recebera
essa espécie de educação parisiense que deve ser denominada a cortesia das paixões. Não sabia nem mentir à esposa, nem dizer a verdade à amante, duas aprendizagens
a fazer, para poder dirigir as mulheres. Por isso viu-se forçado a empregar todo o poder de paixão para obter de Beatriz um perdão solicitado durante duas horas,
recusado por um anjo irritado que erguia os olhos para o teto, a fim de não ver o culpado, e que declamava as razões próprias às marquesas com uma voz entremeada
de pequeninas lágrimas muito parecidas, furtivamente secadas com a renda do lenço.
— Falar-me em sua mulher, quase no dia seguinte ao da minha falta!... Por que não me diz ser ela uma pérola de virtude? Sei, ela o acha belo por admiração! Isso
sim é depravação! Eu amo sua alma! Porque, fique sabendo, querido, você é horroroso, comparado com alguns pastores da Campanha Romana!... etc.
XXIV - CAPÍTULO PARA SER MEDITADO POR TODAS AS MULHERES
Aquela fraseologia poderá surpreender, mas constituía um sistema profundamente meditado por Beatriz. Em sua terceira encarnação, porque a cada paixão a mulher se
torna completamente outra, ela avança mais e mais na velhacaria, única palavra que traduz bem o efeito da experiência dada por tais aventuras. Ora, a marquesa de
Rochefide julgara-se em seu espelho. As mulheres de espírito nunca se iludem sobre si mesmas; contam suas rugas, assistem ao nascimento dos pés de galinha, veem
surgir as erupções miliares, conhecem-se de cor, e o revelam mesmo demasiado pela grandeza de seus esforços para se conservarem. Por isso, para lutar com uma esplêndida
mulher moça, para obter sobre ela seis triunfos por semana, Beatriz pedira recursos à ciência das cortesãs.
Sem se confessar a perversidade desse plano, arrastada a empregar aqueles meios por uma paixão turca pelo belo Calisto, ela a si mesma prometera fazê-lo crer ser
ele desgracioso, feio, malfeito de corpo, e proceder como se o odiasse. Nenhum sistema é mais fecundo com os homens de natureza conquistadora. Para eles, ter de
vencer aquele sábio desdém, não é isso o triunfo do primeiro dia, recomeçado todos os dias? É mais, é a lisonja oculta sob a libré do ódio, e devendo-lhe todas as
mercês, a verdade de que são revestidas todas as metarmofoses, pelos sublimes poetas desconhecidos que as inventaram. Um homem diz-se então: “Sou irresistível!”
ou: “Amo bastante, pois venço-lhe a repugnância”.
Se negardes esse princípio, adivinhado pelas coquetes e as cortesãs de todas as zonas sociais, neguemos os pesquisadores científicos, os buscadores de segredos,
repelidos durante anos no seu duelo com as causas secretas. Beatriz duplicara o emprego do desprezo como pistão moral, com a comparação perpétua de um interior poético
e confortável, que ela opunha à residência de du Guénic. Toda esposa, que se vê desdenhada e se desleixa, desleixa seu lar, pelo desânimo que dela se apodera. Nessa
previsão, a sra. de Rochefide começava com ataques surdos contra o luxo do Faubourg Saint-Germain, classificado de tolo por ela. A cena da reconciliação na qual
Beatriz fez Calisto jurar ódio à esposa que representava, disse ela, a comédia do leite derramado, passou-se num verdadeiro bosquezinho onde ela se requebrava, cercada
de flores encantadoras, de jardineiras de um luxo desmedido. A ciência dos nadas, das bagatelas em moda, ela a levou até o abuso em sua casa. Caída em pleno desprezo
pelo abandono de Conti, Beatriz queria ao menos a glória que a perversidade dá. A desgraça de uma jovem esposa, de uma Grandlieu rica e bela, ia ser para ela um
pedestal.
XXV - PEQUENO TRATADO DA CERTEZA SOB OUTRO PONTO DE VISTA QUE NÃO O DE PASCAL
*(O ponto de vista de Pascal: em seus Pensamentos, Pascal procura estabelecer a certeza da existência de Deus.)
Quando uma mulher volta da amamentação do primeiro filho para a vida ordinária, reaparece encantadora, volta mais bonita para a sociedade. Se essa fase da maternidade
rejuvenesce as mulheres de uma certa idade, dá às jovens um resplendor elegante, uma alegre atividade, um brio de existência, se é permitido aplicar ao corpo o termo
que a Itália achou para o espírito.
Quando tentou recomeçar os sedutores hábitos da lua de mel, Sabina não encontrou mais o mesmo Calisto. A desditosa observou, em vez de entregar-se à felicidade.
Ela procurou o fatal perfume e sentiu-o. Finalmente não se confiou mais nem à amiga, nem à mãe que tão caridosamente a tinham enganado.
Quis uma certeza, e a certeza não se fez esperar. A certeza nunca falta, é como o sol, logo exige persianas. É, em amor, uma repetição da fábula do lenhador, chamando
a Morte (A fábula do lenhador, chamando a Morte: acabrunhado pela velhice e pelo cansaço, um pobre lenhador depôs sua carga de lenha e invocou a Morte. Esta apareceu
imediatamente, perguntando em que podia servi-lo. “Ajuda-me a colocar a carga outra vez no ombro”, pediu-lhe, assustado, o lenhador. “Sofrer antes que morrer, eis
a divisa dos homens”, conclui La Fontaine em sua bela fábula, La Mort et le Bûcheron.): pede-se à certeza que nos cegue.
Uma manhã, quinze dias após a primeira crise, Sabina recebeu esta carta terrível:
À SRA. BARONESA DU GUÉNIC
Guérande
Minha querida filha, minha cunhada Zefirina e eu perdemo-nos em conjecturas, a propósito da toilette de que nos fala em sua carta; escrevo a respeito a Calisto e
peço-lhe que me perdoe nossa ignorância. Não pode duvidar dos nossos corações. Estamos acumulando-lhes riquezas. Graças aos conselhos da srta. de Pen-Hoël, relativamente
à gestão dos bens de vocês, dentro de algum tempo estarão com um capital considerável, sem que as suas rendas nada tenham sofrido.
Sua carta, querida filha tão amada como se a tivesse trazido em meu seio e a tivesse amamentado com o meu leite, surpreendeu-me por seu laconismo e sobretudo pelo
seu silêncio sobre o meu querido pequeno Calisto; você nada tinha a dizer-me do grande. Sei que ele é feliz, mas... etc.
XXVI - UMA ALFINETADA NUMA ARMADURA DE AÇO
Sabina escreveu na carta, atravessado: A nobre Bretanha não pode estar toda ela a mentir!... e colocou a carta sobre a secretária de Calisto. Este achou a carta
e leu-a. Depois de ter reconhecido a letra e a linha de Sabina, atirou a carta no fogo, bem resolvido a não a ter jamais recebido. Sabina passou toda uma semana
em angústias, em cujo segredo estarão as almas angélicas ou solitárias, que a asa do anjo mau jamais roçou. O silêncio de Calisto apavorava Sabina.
— Eu, que devia ser toda meiguice, toda prazer para ele, eu lhe desagradei, feri-o!... Minha virtude fez-se odienta, com certeza humilhei meu ídolo!—dizia ela.
Esses pensamentos cavaram-lhe sulcos no coração. Queria pedir perdão daquela falta, mas a certeza arremessou-lhe novas provas.
Atrevida e insolente, Beatriz escreveu um dia a Calisto para a casa dele; a sra. du Guénic recebeu a carta, entregou-a ao marido sem abri-la; mas disse-lhe com a
morte na alma e a voz alterada:
— Meu amigo, esta carta vem do Jóquei-Clube... Conheço o perfume e o papel.
Dessa vez Calisto corou e pôs a carta no bolso.
— Por que não a lê?
— Já sei o que me querem.
A jovem senhora sentou-se. Não teve mais febre. Não chorou mais, mas sentiu uma dessas raivas que, nessas criaturas fracas, geram os milagres do crime, que lhes
põem o arsênico nas mãos, ou para elas ou para as suas rivais. Trouxeram o pequeno Calisto, ela o pegou para o embalar carinhosamente. A criança, recentemente desmamada,
buscou o seio através do vestido.
— Este aqui se lembra, o pobre!...—disse ela em voz baixa.
Calisto foi ler a carta no seu apartamento. Depois que ele saiu, a pobre senhora desatou a chorar, mas como as mulheres choram quando estão sós.
XXVII - UMA REFLEXÃO SOBRE A DOR
A dor, do mesmo modo que o prazer, tem sua iniciação. A primeira crise, como aquela a que Sabina quase sucumbira, não se repetiu, como não se repetem os começos
em todas as coisas. É o primeiro recanto da tortura do coração, os outros são esperados, o despedaçamento dos nervos é conhecido, o capital de nossas forças fez
sua contribuição para uma resistência enérgica. Por isso Sabina, tendo certeza da traição, passou três horas com o filho nos braços, no canto da lareira, de modo
a admirar-se, quando Gasselin, que se tornara criado de quarto, veio dizer:
— O jantar está na mesa, senhora.
— Avise o senhor.
— O senhor não vai jantar aqui, senhora baronesa.
Poderão saber-se todas as torturas que existem, para uma jovem senhora de vinte e três anos, no suplício de achar-se só no meio da imensa sala de jantar de um palácio
antigo, servida por criados silenciosos, em semelhantes circunstâncias?
— Atrelem—disse ela de repente -; vou aos Italiens.
Fez uma toilette esplêndida, quis mostrar-se só e sorridente como uma mulher feliz. No meio dos remorsos causados pela apostila que pusera sobre a carta, resolvera
vencer, fazer Calisto voltar por uma doçura excessiva, pelas virtudes da esposa, por uma ternura de cordeiro pascal. Quis mentir para toda Paris. Ela amava, amava
como amam as cortesãs e os anjos, com orgulho, com humildade. Mas davam Otello! Quando Rubini cantou: Il mio cor se divide (Il mio cor se divide (em italiano): “O
meu coração se parte”.), ela fugiu. A música é muitas vezes mais poderosa do que o poeta e o ator, as duas mais formidáveis naturezas reunidas. Saviniano de Portenduère
acompanhou Sabina até o peristilo e fê-la tomar o carro, sem poder explicar-se aquela fuga precipitada.
XXVIII - UM CAPÍTULO ESQUECIDO NA FISIOLOGIA DO CASAMENTO (Fisiologia do casamento: livro de Balzac publicado anteriormente a Beatriz.)
A senhora du Guénic entrou desde então num período de sofrimentos próprios à aristocracia. Invejosos, pobres, sofredores, quando vocês virem nos braços das mulheres
essas serpentes de ouro com cabeças de diamante, esses colares, esses prendedores, lembrem-se de que essas víboras mordem, que aqueles colares têm pontas venenosas,
que aqueles laços tão leves entram ao vivo naquelas carnes delicadas. Todo aquele luxo paga-se.
Na situação de Sabina as mulheres amaldiçoam os prazeres da riqueza, não veem mais os dourados dos seus salões, a seda dos divãs é estopa, as flores exóticas são
urtigas, os perfumes fedem, os milagres da cozinha arranham a garganta como pão de centeio e a vida toma a amargura do mar Morto. Dois ou três exemplos pintarão
essa reação de um salão ou de uma mulher sobre uma felicidade, de modo que todas aquelas que a sofreram nela encontram suas impressões domésticas.
Prevenida dessa horrível rivalidade, Sabina estudou o marido, quando ele saía, a fim de adivinhar o futuro do dia. E com que furor contido não se atira uma mulher
sobre as pontas rubras desse suplício de selvagem!... Que alegria delirante, se ele não ia à rue de Courcelles. Quando Calisto regressou à casa, a observação de
sua fronte, do penteado, dos olhos, da fisionomia e da atitude davam um interesse horrível a nadas, a indagações que esmiuçavam até as minúcias da toilette, e que
fazem então uma mulher perder sua nobreza e sua dignidade.
Essas funestas investigações, conservadas no fundo do coração, ali se azedavam e corrompiam as delicadas raízes de onde desabrochavam as flores azuis da santa confiança,
as estrelas de ouro do amor único, todas as flores do passado...
XXIX - DA IMPOSSIBILIDADE DE OPERAR OS CEGOS VOLUNTÁRIOS
Um dia Calisto olhou para tudo em casa com mau humor, porque não saíra! Sabina fez-se gatinha e humilde, alegre e espirituosa.
— Estás enfadado comigo, Calisto; achas então que não sou uma boa esposa?... Que há aqui que te desagrade?—perguntou ela.
— Todos estes aposentos são frios e nus—disse ele—,você não entende essas coisas.
— Que lhe falta?
— Flores.
“Bem”, disse Sabina consigo mesma, “segundo parece a sra. de Rochefide gosta de flores.”
Dois dias depois, os apartamentos tinham mudado de aspecto na residência dos du Guénic, ninguém em Paris poderia gabar-se de ter flores mais belas do que as que
os enfeitavam.
Algum tempo depois, Calisto, uma noite após o jantar, queixou-se de frio. Torcia-se na sua conversadeira para ver de onde vinha o ar, buscando alguma coisa em torno
dele. Sabina levou algum tempo para adivinhar o que significava aquela nova fantasia, ela, cujo palacete tinha um calorífero que aquecia as escadas, as antecâmaras
e os corredores. Enfim, após três dias de meditação, ela imaginou que a rival devia estar cercada de um biombo, a fim de obter a penumbra tão favorável à decadência
do seu rosto, e trouxe um biombo, porém de espelhos, e de uma riqueza israelita.
“De onde soprará agora a tormenta?”, a si mesma perguntava.
Não estava ainda no fim das críticas indiretas da amante. Calisto comeu em casa de modo a deixar Sabina louca, fazia os criados retirarem os pratos depois de ter
beliscado duas ou três garfadas.
— Não está bom?—perguntou Sabina, desesperada por ver perdidos assim todos os cuidados aos quais baixava, conferenciando com o cozinheiro.
— Não digo isso, meu anjo—respondeu Calisto sem se zangar -; o que há é que não tenho fome, simplesmente.
Uma mulher, devorada por uma paixão legítima, e que assim luta, entrega-se a uma espécie de fúria para triunfar da rival, e com frequência ultrapassa o alvo até
nas regiões secretas do casamento. Esse combate tão cruel, ardente e incessante nas coisas perceptíveis, e por assim dizer exteriores ao matrimônio, continuava igualmente
tão encarniçado nas coisas do coração. Sabina estudava suas atitudes, suas toilettes; ela se cuidava nos infinitamente pequenos detalhes do amor.
O assunto da cozinha durou cerca de um mês. Sabina, auxiliada por Mariotte e Gasselin, inventou ardis de vaudeville para saber quais os pratos que a sra. de Rochefide
apresentava a Calisto. Gasselin substituiu o cocheiro de Calisto, o qual adoecera por ordem, podendo então acamaradar-se com a cozinheira de Beatriz, e Sabina acabou
por oferecer a Calisto os mesmos pratos, e até melhores, mas viu-o fazer novamente luxos.
— Que falta?—perguntou.
— Nada—respondeu ele, procurando sobre a mesa um objeto que ali não se achava.
— Ah—exclamou Sabina, no dia seguinte ao despertar—,Calisto queria daqueles besouros moídos, daqueles ingredientes ingleses que não são vendidos em farmácias sob
forma de galheteiros, a sra. de Rochefide acostuma-o a toda qualidade de pimentas.
Comprou o galheteiro inglês e seus frascos ardentes; mas não podia prosseguir em tais descobertas até em todas as preparações inventadas pela rival.
XXX - UMA RAIVA QUE SE PODE CURAR
Esse período durou alguns meses: não há de que se admirar, se se pensa nos atrativos que uma luta apresenta. É a vida, preferível embora com ferimentos e dores,
às negras trevas da repugnância, ao veneno do desprezo, ao nada da abdicação, a essa morte do coração chamada a indiferença. Sabina, entretanto, viu fugir-lhe toda
a coragem uma noite em que se apresentou com uma dessas toilettes que o desejo de vencer a outra inspira às mulheres, e que Calisto disse-lhe rindo:
— Por mais que faças, Sabina, nunca serás senão uma bela andaluza.
— Infelizmente—respondeu ela caindo numa conversadeira—,jamais poderei ser loura; mas sei que, se isto continua, em breve terei trinta e cinco anos.
Recusou ir aos Italiens, quis ficar em casa todo o serão. Ao ficar só, arrancou as flores dos cabelos e pisoteou-as, despiu-se e calcou aos pés o vestido, a écharpe,
toda a toilette, absolutamente como uma cabra enredada nos laços de sua corda e que não para de debater-se, senão quando sente a morte. E deitou-se. A criada de
quarto entrou, imagine-se o seu espanto.
— Não é nada—disse Sabina—,foi o senhor!
As mulheres infelizes têm dessas sublimes fatuidades, dessas mentiras, nas quais, entre duas vergonhas que se combatem, a mais feminina prevalece.
Nesse jogo terrível, Sabina emagreceu, o desgosto corroeu-a; mas jamais se afastou do papel que a si própria impusera. Sustentada por uma espécie de febre, seus
lábios recalcavam as palavras amargas até a garganta, quando o sofrimento lhas sugeria; reprimia os fulgores dos seus magníficos olhos negros, e tornava-os meigos
até a humildade. Finalmente, seu definhamento tornou-se em breve sensível. A duquesa, mãe excelente, conquanto sua devoção se tivesse tornado cada vez mais portuguesa,
entreviu uma causa mortal no estado verdadeiramente doentio no qual se comprazia Sabina. Ela sabia da intimidade regularizada existente entre Beatriz e Calisto.
Teve o cuidado de atrair a filha à sua casa, a fim de tentar curar as feridas daquele coração e sobretudo de arrancá-la ao seu martírio; mas Sabina guardou durante
algum tempo o mais profundo silêncio sobre suas desditas por temer que interviessem entre ela e Calisto. Dizia-se feliz!... Na extrema desgraça, ela tornava a encontrar
seu orgulho e todas as suas virtudes. Mas depois de um mês, durante o qual Sabina foi acarinhada por sua irmã Clotilde e pela mãe, confessou seus pesares, confiou
suas dores, amaldiçoou a vida e declarou que via chegar a morte com uma alegria delirante. Pediu a Clotilde, que queria permanecer solteira, que se tornasse mãe
do pequeno Calisto, a mais bela criança que jamais raça real tivesse podido desejar como herdeiro presuntivo.
XXXI - UM DITIRAMBO CONJUGAL
Uma noite, em família entre sua jovem irmã Atenaïs, cujo casamento com o visconde de Grandlieu devia realizar-se no fim da quaresma, entre Clotilde e a duquesa,
Sabina soltou os gritos supremos da agonia do coração, provocados pelo excesso de uma última humilhação.
— Atenaïs—disse ela, ao ver partir, cerca das onze horas, o jovem visconde Justo de Grandlieu—,vais casar-te, que meu exemplo te sirva! Abstém-te, como se se tratasse
de um crime, de exibir tuas qualidades, resiste ao prazer de te adornar com elas, a fim de agradar a Justo. Sê calma, digna e fria, mede a felicidade que deves pela
que recebes! É infame, mas é necessário... Vês! Padeço por causa de minhas qualidades. Tudo o que em mim sinto de belo, de santo, de grande, todas as minhas virtudes
são escolhos sobre os quais se despedaçou a minha felicidade. Deixo de agradar, porque não tenho trinta e seis anos! Aos olhos de certos homens, a mocidade é uma
inferioridade! Nada há a adivinhar num semblante ingênuo. Rio francamente, e isso é um erro! quando, para seduzir, deve-se saber preparar esse meio sorriso melancólico
dos anjos decaídos, que são forçados a ocultar dentes compridos e amarelos. Uma tez fresca é monótona! Prefere-se uma maquiagem de boneca feita com carmim, espermacete
e cold-cream. Sou reta e é a perversidade que agrada! Estou lealmente apaixonada, como uma mulher honesta, e seria preciso ser astuciosa, trapaceira e luxenta como
uma comediante da província. Estou ébria de felicidade por ter por marido um dos mais encantadores homens da França, digo-lhe ingenuamente o quanto ele é distinto,
o quanto seus movimentos são graciosos, acho-o belo; para agradar-lhe, seria preciso virar a cabeça, com um horror fingido, nada gostar do amor, e dizer-lhe muito
simplesmente que sua distinção é um ar doentio, um porte de tuberculoso, gabar os ombros de Hércules Farnese (Hércules Farnese: estátua antiga de Glicão de Atenas,
personificação da força viril.), zangá-lo e defender-me, como se eu precisasse de uma luta, a fim de ocultar no momento da felicidade algumas dessas imperfeições
que podem matar o amor. Tenho a desgraça de admirar as belas coisas, sem pensar em elevar-me pela crítica amarga e invejosa de tudo o que reluz de poesia e beleza.
Não tenho necessidade de fazer-me dizer em verso e em prosa por Canalis e Nathan, que sou uma inteligência superior! Sou uma pobre rapariga ingênua, não conheço
senão Calisto. Ah, se eu tivesse corrido mundo como ela, se como ela eu tivessse dito: “Amo-te!” em todas as línguas da Europa, consolar-me-iam, lamentar-me-iam,
adorar-me-iam e eu serviria o regalo macedônico de um amor cosmopolita! Não se agradecem as ternuras que fazemos, senão quando as realçamos por meio de maldades.
Enfim eu, mulher nobre, tenho de instruir-me com todas as impurezas, com todos os cálculos das prostitutas!... E Calisto que é joguete de todas essas macaquices!...
Ó minha mãe! Ó minha querida Clotilde, sinto-me ferida mortalmente. Meu orgulho é uma enganadora defesa, sinto-me inerme contra a dor, continuo a amar meu marido
como uma louca, e para fazê-lo voltar a mim, eu deveria pedir à indiferença todas as suas claridades.
— Tola—soprou-lhe Clotilde ao ouvido—,finge que te queres vingar.
— Quero morrer irrepreensível e sem a aparência de uma falta—respondeu Sabina.—Nossa vingança deve ser digna de nosso amor.
— Minha querida—disse a duquesa à filha—,uma mãe deve ver a vida de um modo um pouco mais frio do que esse pelo qual a vês. O amor não é o fim, é o meio para a família;
não vás imitar essa pobre pequena baronesa de Macumer (A baronesa de Macumer: com o excesso de seu amor, matou o marido e causou a sua própria morte. (Ver Memórias
de duas jovens esposas.)). A paixão excessiva é infecunda e mortal. Enfim, Deus manda-nos as aflições com conhecimento de causa... Temos o casamento de Atenaïs arranjado,
vou poder ocupar-me de ti... já conversei sobre a crise delicada em que te encontras com teu pai e o duque de Chaulieu, com d’Ajuda ( O duque de Chaulieu: pai de
Luísa de Chaulieu, baronesa de Macumer, era amigo dos Grandlieu.—D’Ajuda: o marquês Miguel D’Ajuda Pinto, o mesmo que traiu a sra. de Beauséant, em A mulher abandonada,
era parente da duquesa de Grandlieu.), e nós acharemos seguramente o meio de tornar a trazer-te Calisto.
— Com a marquesa de Rochefide há recursos!—disse Clotilde sorrindo à irmã.—Ela não conserva por muito tempo seus adoradores.
— D’Ajuda, meu anjo—continuou a duquesa—,foi cunhado do sr. de Rochefide (Foi cunhado do sr. de Rochefide... Com efeito, a primeira esposa de Ajuda Pinto, morta
cedo, era irmã de Artur de Rochefide.)... Se nosso querido diretor aprovar as pequenas manobras a que precisamos entregar-nos para fazer vingar o plano que submeti
a teu pai, posso garantir-te a volta de Calisto. Minha consciência tem repugnância em servir-se de semelhantes meios, e eu os quero submeter à apreciação do abade
Brossett. Não vamos esperar, minha filha, que estejas in extremis, para acorrermos em teu auxílio. Espera! Teu pesar é tão grande esta noite que meu segredo me escapa;
mas é-me impossível não te dar alguma esperança.
— Isso causará algum desgosto a Calisto?—perguntou Sabina olhando inquieta para a duquesa.
— Oh, meu Deus—exclamou ingenuamente Atenaïs—,serei eu também tão tola assim?
— Ah, menina, tu não conheces os desfiladeiros nos quais a virtude nos precipita, quando ela se deixa guiar pelo amor—respondeu Sabina, fazendo uma espécie de fim
de estrofe, de tal forma se achava ela desnorteada pelo pesar.
Essa frase foi dita com uma amargura tão penetrante que a duquesa, esclarecida pelo tom, pelo acento e pelo olhar da sra. du Guénic, temeu alguma desgraça oculta.
— Minhas filhas, é meia-noite, retirem-se—disse ela às duas moças cujos olhos se animavam.
— Apesar dos meus trinta e seis anos, estou demais?—perguntou ironicamente Clotilde.
E enquanto Atenaïs beijava a mãe, ela inclinou-se para Sabina e disse-lhe ao ouvido:
— Tu me dirás o quê!... Irei amanhã jantar contigo. Se minha mãe achar sua consciência comprometida, eu tirarei Calisto das mãos dos infiéis!
XXXII - UMA COMPLICAÇÃO
— E então, Sabina—disse a duquesa, levando a filha para seu quarto de dormir—,vejamos o que há de novo, minha querida.
— Ora, mamãe, estou perdida!
— E por quê?
— Quis vencer aquela horrível mulher, venci, estou grávida, e Calisto ama-a de tal forma que prevejo um abandono completo. Quando a infidelidade que ele cometeu
estiver provada, ela vai ficar furiosa! Ah! sofro tonturas demasiado fortes para poder resistir-lhes. Sei quando ele a vai ver, vejo-o pela alegria; depois, seu
mau humor diz-me quando ele de lá volta. Enfim, ele não se constrange mais, sou-lhe insuportável. Ela tem sobre ele uma influência tão perniciosa quanto o são seu
corpo e sua alma. Verás, ela exigirá, como preço de uma reconciliação, um abandono público, uma ruptura no gênero da dela, ela mo levará talvez para a Suíça ou para
a Itália. Ele está começando a achar ridículo não conhecer a Europa, percebo o que significam essas palavras, ditas assim antecipadamente. Se Calisto não ficar curado
dentro de três meses, não sei o que acontecerá... Eu sei, matar-me-ei!
— Infeliz criança e tua alma! O suicídio é um pecado mortal.
— Compreende a senhora? Ela é capaz de dar-lhe um filho! E se Calisto quisesse mais ao dessa mulher do que aos meus! Oh, isso é o fim de minha paciência e de minha
resignação!
Atirou-se numa cadeira, libertara os últimos pensamentos de sua alma, não tinha mais dores ocultas, e a dor é como a haste de ferro que os escultores põem no interior
de sua argila, sustenta-a, é uma força!
— Vamos, volta para casa, pobre aflita! Em presença de tanta infelicidade, o abade dar-me-á sem dúvida a absolvição dos pecados veniais que as artimanhas do mundo
nos forçam a cometer. Deixa-me, minha filha—disse ela indo para o seu genuflexório—,vou implorar a Nosso Senhor e a Santa Virgem para ti mais especialmente. Adeus,
minha querida Sabina; sobretudo não esqueças nenhum dos teus deveres religiosos, se queres que triunfemos...
— Por mais que triunfemos, mãe, não salvaremos senão a família. Calisto matou em mim o santo fogo do amor, embotando-me em tudo, mesmo no sentimento da dor. Que
lua de mel essa em que achei, desde o primeiro dia, o amargor de um adultério retrospectivo!
QUINTA PARTE
AS PERFÍDIAS DE UMA DEVOTA
I - UMA CONSULTA ESPIRITUAL
No dia seguinte, cerca de uma hora da tarde, um dos curas do Faubourg Saint-Germain, designado para um dos bispados vagos, em 1840, cúria três vezes recusada por
ele, o abade Brossette, padre dos mais distintos do clero de Paris, atravessava o pátio do pálacio de Grandlieu, com esse passo que deve ser denominado passo eclesiástico,
de tal modo representa ele a prudência, o mistério, a calma, a gravidade e a própria dignidade.
Era um homem pequeno e magro, de cerca de cinquenta anos, de rosto alvo como o de uma mulher velha, enregelado pelos jejuns do padre, encovado por todos os sofrimentos
que ele desposava. Dois olhos negros, ardentes de fé, adoçados porém por uma expressão mais misteriosa do que mística, animavam aquelas faces de apóstolo. Quase
sorria ao subir os degraus da escadaria exterior, tal a desconfiança que tinha da enormidade dos casos, para os quais sua ovelha o mandava chamar; mas como a mão
da duquesa era furada para as esmolas, valia bem o tempo que suas inocentes confissões roubavam às sérias misérias da paróquia. Ao ouvir anunciar o cura, a duquesa
levantou-se, deu alguns passos no salão, na direção dele, distinção que só concedia aos cardeais, aos bispos, ao simples padres, às duquesas mais idosas do que ela
e às pessoas de sangue real.
— Meu caro abade—disse ela, designando-lhe ela mesma uma poltrona e falando em voz baixa—,necessito da autoridade de sua experiência, antes de me atirar numa perigosa
intriga, mas da qual deve resultar um grande bem, e desejo saber do senhor se acharei na senda da salvação espinhos a propósito disso...
— Senhora duquesa—respondeu o abade Brossette—,não misture as coisas espirituais com as coisas mundanas, elas são com frequência irreconciliáveis. Antes de mais
nada, de que se trata?
— Como sabe, minha filha Sabina se está consumindo de dor; o sr. du Guénic a está abandonando pela sra. de Rochefide.
— É muito horrível, é grave; mas a senhora sabe o que a respeito diz o nosso querido são Francisco de Sales (São Francisco de Sales: orador sacro, bispo de Genebra
(1568-1622), autor da Introdução à vida devota que abrange uma série de cartas de direção para as pessoas da sociedade. É particularmente nos capítulos “Da castidade”
e “Advertência às pessoas casadas” que o autor trata da vida sexual em relação ao casamento. Suas ideias a respeito resumem-se nesta frase: “No que diz respeito
ao estado do casamento, é um erro vulgar e muito comum pensar-se que nele a castidade não seja necessária, pois ela o é e até muito, não para a gente se privar dos
direitos da fé conjugal, mas sim para se conter nos limites”.). Enfim, lembre-se da sra. Guyon (Sra. Guyon: mística francesa (1648-1717), representante na França
da doutrina quietista, que faz consistir a perfeição cristã no amor de Deus e na inação da alma; combatida por Bossuet como herética.), que se queixava da falta
de misticismo nas provas do amor conjugal; ela ter-se-ia sentido muito feliz se visse seu marido ter uma sra. Rochefide.
— Sabina não pode exibir mais mansidão do que a que apresenta, é em toda a acepção do termo a esposa cristã; mas não tem a mínima queda para o misticismo.
— Pobre jovem senhora!—disse maliciosamente o cura.—Que foi que a senhora achou para remediar esse mal?
— Cometi o pecado, meu caro diretor, de pensar em soltar nas pegadas da sra. de Rochefide um lindo e jovem senhor, voluntarioso, cheio de más qualidades, que certamente
fará com que meu genro seja posto de lado.
— Minha filha, não estamos aqui—disse ele acariciando o queixo—no tribunal da penitência; não tenho de tratá-la como juiz. Sob o ponto de vista mundano, confesso
que seria decisivo.
— Esse meio pareceu-me realmente odioso!—replicou ela.
— E por quê? Sem dúvida, o papel de uma cristã seria antes o de retirar uma mulher pervertida do mau caminho do que empurrá-la mais para a frente; mas quando ela
se acha tão metida quanto o está a sra. de Rochefide, não é mais o braço do homem, e sim o de Deus que reconduz essas pecadoras ao bom caminho; necessitam que as
atinjam raios particulares.
— Meu pai—continuou a duquesa—,agradeço-lhe sua indulgência; mas pensei que meu genro é valente e bretão, foi heroico por ocasião da empresa temerária daquela pobre
madame (Aquela pobre madame: a duquesa de Berry.). Ora, se o jovem estouvado, que se encarregar de amar a sra. de Rochefide, tivesse seus dares e tomares com Calisto,
e daí se seguisse um duelo...
— Teve nisso, senhora duquesa, um pensamento ajuizado, o que prova que, nessas vias tortuosas, sempre se encontram obstáculos imprevistos.
— Descobri um meio, meu caro abade, de fazer um grande bem de retirar a sra. de Rochefide da senda fatal em que ela se acha, de restituir Calisto à esposa, e talvez
salvar do inferno uma pobre criatura transviada...
— Mas então por que consultar-me?—disse o cura sorrindo.
— Ah—replicou a duquesa—,precisamos permitir-nos ações bem feias...
— Não quer roubar ninguém?
— Pelo contrário, gastarei provavelmente muito dinheiro.
— Não vai caluniar? Não...?
— Oh!
— Não prejudicará ao próximo?
— Eh! eh! Não garanto.
— Vejamos seu novo plano—disse o abade, que ficou curioso.
— Se em vez de expulsar um prego com outro, pensei eu no meu genuflexório, depois de ter implorado à Santa Virgem que me esclarecesse, eu fizesse despedir Calisto
pelo sr. de Rochefide, convencendo a este para que se reconciliasse com a esposa; em lugar de emprestar as mãos ao mal a fim de operar o bem para minha filha, eu
realizaria um grande bem por outro não menor...
O cura contemplou a portuguesa e ficou pensativo.
— É evidentemente uma ideia que lhe veio de tão longe que...
— Por isso—continuou a boa e humilde duquesa—,agradeci à Virgem! E fiz a promessa, sem contar uma novena, de dar mil e duzentos francos a uma família pobre, se triunfasse.
Mas quando comuniquei esse plano ao sr. de Grandlieu, ele pôs-se a rir e me disse: “Na vossa idade, palavra de honra, creio que vocês têm um diabo só para vocês”.
— O senhor duque deu, como marido, a resposta que eu lhe ia dar, quando a senhora me interrompeu—replicou o abade, o qual não pôde deixar de sorrir.
— Ah, meu pai, se o senhor aprova a ideia, aprova também os meios de execução? Trata-se de fazer em casa de uma certa sra. Schontz, uma Beatriz do bairro de Saint-Georges,
o que eu queria fazer com a sra. de Rochefide, a fim de que o marido retomasse a esposa.
— Estou certo de que a senhora nada poderá fazer de mal—disse espirituosamente o cura, o qual nada mais quis saber, por achar necessário o resultado.—A senhora,
de resto, me consultaria, no caso em que sua consciência murmurasse—acrescentou ele.
— Se em vez de dar a essa senhora do bairro de Saint-Georges uma nova oportunidade de escândalo, a senhora lhe desse um marido?
— Ah, meu caro diretor, o senhor retificou a única coisa ruim que havia em meu plano. O senhor é digno de ser arcebispo, e espero não morrer sem dizer-lhe “Vossa
Eminência”.
— Em tudo isso não vejo senão um inconveniente—disse o cura.
— Qual?
— Se a sra. de Rochefide conservasse o senhor barão, mesmo reconciliando-se com o marido?
— Isso é comigo—disse a duquesa.—Quando se faz poucas intrigas, a gente as faz...
— Mal, muito mal—interrompeu o abade -; o hábito é necessário em tudo.—Trate de aliciar um desses tratantes, que vivem na intriga, e empregue-o sem que a senhora
apareça.
— Ah senhor cura, se nos servimos do inferno, o céu estará conosco?
— A senhora não está no confessionário—conclui o abade—,salve sua filha.
A boa duquesa, encantada com o seu cura, acompanhou-o até a porta do salão.
II - O HOMEM ABANDONADO
Como se vê, rugia uma tormenta sobre a cabeça do sr. de Rochefide, o qual, nesse momento, gozava da maior quantidade de felicidade que um parisiense possa desejar,
ao sentir-se em casa da sra. Schontz tão marido como em casa de Beatriz: e como judiciosamente dissera o duque à esposa, parecia impossível desorganizar uma existência
tão encantadora e completa.
Essa presunção obriga-nos a leves detalhes, a respeito da vida que o sr. de Rochefide levava, desde que a esposa fizera dele um homem abandonado. Compreender-se-á
então a diferença enorme que nossas leis e costumes estabelecem para os dois sexos, nessa situação. Tudo o que para uma mulher abandonada se torna uma desgraça,
transforma-se em felicidade num homem abandonado. Esse contraste impressionante inspirará, talvez a mais de uma jovem esposa, a resolução de permanecer no seu lar,
e de aí lutar, como Sabina du Guénic, praticando, à sua escolha, as mais assassinas virtudes ou então as mais inofensivas.
Alguns dias após a fuga de Beatriz, Artur de Rochefide, que se tornara filho único, devido à morte da irmã, primeira esposa do marquês d’Ajuda-Pinto, o qual não
teve filhos, viu-se senhor, primeiro, do palácio de Rochefide, na rue d’Anjou-Saint-Honoré, depois, de duzentos mil francos de renda que o pai lhe deixou. Essa opulenta
herança, acrescentada à fortuna que Artur possuía ao casar-se, elevou seus rendimentos, incluída a fortuna da esposa a mil francos por dia. Para um gentil-homem
dotado do caráter que a srta. des Touches descreveu em poucas palavras a Calisto, essa fortuna já era a felicidade.
Enquanto a mulher estava por conta do amor e da maternidade, Rochefide gozava de imensa fortuna, mas não a gastava, do mesmo modo que não gastava o espírito. Sua
boa e espessa vaidade, já satisfeita com o aspecto de belo homem, ao qual devera alguns êxitos que lhe serviam de base para desprezar as mulheres, expandia-se igualmente,
com toda a liberdade nos domínios da inteligência. Dotado dessa espécie de espírito que deve ser chamado refletor, apropriava-se dos bons ditos dos outros, dos das
peças teatrais ou dos jornalecos, pelo modo de repeti-los; parecia fazer troça deles, repetindo-os caricaturalmente e aplicando-os como fórmulas de crítica; finalmente,
sua alegria militar (servira na Guarda Real) apimentava com eles tão a propósito a conversação que as mulheres sem espírito proclamavam-no um homem espirituoso,
e as outras não se atreviam a contradizê-las.
Esse sistema, Artur seguia-o em tudo; devia à natureza o cômodo gênio da imitação; sem ser símio, imitava gravemente. Assim, pois, quase sem ter gosto, ele sabia
ser sempre o primeiro a adotar e a abandonar as modas. Acusado de passar demasiado tempo em sua toilette, e de usar espartilho, apresentava o modelo dessas pessoas
que nunca desagradam a ninguém, desposando incessantemente as ideias e as tolices de todos, e que, sempre a cavaleiro das circunstâncias, não envelhecem. São os
heróis da mediocridade.
Esse marido foi lamentado, acharam Beatriz indesculpável por ter abandonado a melhor criatura deste mundo, e o ridículo atingiu somente à mulher. Membro de todos
os clubes, assinante de todas as tolices engendradas pelo patriotismo ou pelo espírito de partido mal compreendidos, complacência que fazia com que o pusessem na
primeira fila a propósito de tudo, esse leal, esse bravo e muito tolo gentil-homem, com o qual infelizmente tantos ricos se parecem, devia naturalmente querer distinguir-se
por alguma mania na moda. Vangloriava-se pois, principalmente, de ser o sultão de um serralho de quatro patas, governado por um velho escudeiro inglês e que absorvia
por mês de quatro a cinco mil francos. Sua especialidade consistia em fazer correr, protegia a raça cavalar, sustentava uma revista consagrada a assuntos hípicos;
mas seu conhecimento em matéria de cavalos era medíocre, e, desde as rédeas até às ferraduras, confiava no seu tratador. É o quanto basta para dizer-lhes que esse
meio-celibatário nada tinha que intrinsecamente lhe pertencesse, nem o espírito, nem o gosto, nem a situação, nem os ridículos; finalmente, a fortuna vinha-lhe dos
pais.
Depois de haver saboreado todos os incômodos do casamento, sentiu-se tão feliz ao ver-se só, que entre amigos dizia: “Eu nasci empelicado!”. Feliz, sobretudo, por
viver sem as despesas de representação a que são forçadas as pessoas casadas; seu palácio, no qual desde a morte do pai nada mudara, assemelhava-se a esses cujos
donos estão viajando: ele permanecia pouco ali, não comia em casa, e raramente dormia lá. Eis a razão dessa indiferença.
III - DO MODO POR QUE O RATO, ACUSADO DE SER UM ANIMAL DESTRUIDOR, É UM ANIMAL CONSTRUTOR
Depois de muitas aventuras amorosas, enjoado das mulheres da alta sociedade, que verdadeiramente são enfadonhas e, ademais, abusam do plantio de sebes de espinhos
secos em torno da felicidade, ele casara-se, como se vai ver, com a célebre sra. Schontz, célebre na sociedade das Fanny Beaupré, das Suzana du Val-Noble, das Marieta,
das Florentina, das Jenny Cadine (Cortesãs célebres de A comédia humana: Fanny Beaupré, já encontrada em Uma estreia na vida, onde era amante do rico negociante
Camusot; Suzana du Val-Noble desempenhará papel de relevo em A solteirona; Marieta ou Maria Godeschal já apareceu em Uma estreia na vida; Florentina, amante do tio
Cardot, no mesmo romance; Jenny Cadine, amante do barão Hulot, há de figurar em A prima Bete.) etc. etc.
Essa sociedade, da qual um dos nossos desenhistas disse espirituosamente, ao apontar para o turbilhão por ela formado no baile da Ópera: “Quando se pensa que tudo
isso mora, veste-se e vive bem, temos uma valente ideia do homem!”, essa sociedade tão perigosa já fez irrupção nesta história de costumes, com as figuras típicas
de Florina e da ilustre Málaga de Uma filha de Eva e de A falsa amante mas, para pintá-la fielmente, o historiador deve proporcionar o número desses personagens
à diversidade dos desenlaces de suas singulares existências, as quais se terminam pela indigência sob sua forma mais hedionda, por mortes prematuras, pela abastança,
por casamentos felizes, algumas vezes pela opulência.
A sra. Schontz, a princípio conhecida por Pequena Aurélia, a fim de a distinguir de uma de suas rivais muito menos espirituosas do que ela, pertencia à classe mais
elevada dessas mulheres, cuja utilidade social não pode ser posta em dúvida nem pelo prefeito do Sena, nem por aqueles que se interessam pela prosperidade da cidade
de Paris. Certamente, o rato incumbido de demolir fortunas, muitas vezes hipotéticas, rivaliza, de preferência, com o castor. Sem as Aspásias do bairro de Notre-Dame
de la Lorette, não se construiriam tantas casas em Paris. Pioneiras das paredes novas, elas vão rebocadas pela especulação ao longo das colinas de Montmartre, plantando
as estacas de suas tendas, seja dito sem trocadilho (O trocadilho só existe em francês, língua em que tente (“tenda”) e tante (“tia”) se pronunciam de maneira igual.)
naquelas solidões de pedras de cantaria esculpidas que guarnecem as ruas europeias de Amsterdã, de Milão, de Estocolmo, de Londres, de Moscou, estepes arquiteturais,
onde o vento faz mugir numerosas tabuletas que lhes acusa o vazio por estas palavras: Aluga-se este apartamento!
A situação dessas damas determina-se pela que elas tomam nesses bairros apócrifos: se sua casa se aproxima da linha traçada pela rua de Provença, a mulher tem rendas,
seu orçamento é próspero; mas, se essa mulher sobe para a linha dos bulevares exteriores, ou ascende para a horrorosa cidade de Batignolles, é porque está sem recursos.
Ora, quando o sr. de Rochefide encontrou a sra. Schontz, ela ocupava o terceiro andar da única casa existente na rua de Berlim, acampando portanto nos limites da
desgraça e nos de Paris.
IV - HISTÓRIA NORMAL DAS GRISETTES DISTINTAS
Essa mulher de vida airada não se chamava, como o leitor já o deve ter previsto, nem Schontz, nem Aurélia. Ocultava o nome do pai, um velho soldado do Império, o
eterno coronel que floresce na aurora dessas existências femininas, seja como pai, seja como sedutor. A sra. Schontz fora favorecida com a educação gratuita de Saint-Denis,
onde se educam admiravelmente as jovens, mas não se lhes oferece nem marido, nem destino, ao saírem dessa escola, admirável criação do imperador, à qual nada falta,
a não ser uma única coisa: o imperador! “Eu estarei presente para prover às filhas dos meus legionários”, respondeu ele à observação de um dos seus ministros que
previa o futuro. Napoleão disse também: “Eu estarei aí!” para os membros do Instituto, aos quais não se deveria dar nenhum ordenado de preferência a enviar-lhes
oitenta e três francos por mês, ordenado inferior ao de certos serventes de escritório.
Aurélia era realmente a filha do intrépido coronel Schiltz, um chefe desses audaciosos partidários alsacianos, que estiveram a ponto de salvar o imperador na campanha
da França, e morreu em Metz, saqueado, roubado, arruinado.
Em 1814, Napoleão pôs em Saint-Denis a pequena Josefina Schiltz, então de nove anos de idade. Órfã de pai e mãe, sem asilo, sem recursos, essa pobre criança não
foi expulsa do estabelecimento na segunda volta dos Bourbons. Ela foi ajudante de professora até 1827; mas então faltou-lhe paciência, e sua beleza seduziu-a. Em
sua maioridade, Josefina Schiltz, afilhada do imperador, abordou a vida aventurosa das cortesãs, impelida para esse duvidoso futuro pelo exemplo fatal de algumas
camaradas, sem recursos como ela, e que se felicitavam pela resolução que haviam tomado. Substituiu um on ao il do nome paterno e colocou-se sob o patronato de Santa
Aurélia.
Viva, espirituosa, instruída, cometeu mais erros do que as suas estúpidas companheiras, cujas faltas tinham por base o interesse. Depois de ter conhecido escritores
pobres porém desonestos, espirituosos porém endividados; depois de ter experimentado algumas pessoas ricas, tão calculistas como tolas, depois de ter sacrificado
o sólido ao amor verdadeiro, de ter-se permitido todas as escolas onde se adquire experiência, num dia de extrema miséria, no qual, no baile de Valentino, essa primeira
etapa de Musard (Musard: chefe de orquestra (1789-1853) que deu o nome a uma sala de concertos e de bailes fundada por ele na rue Vivienne, em Paris.), ela dançava
trajando um vestido, um chapéu, uma mantilha emprestados, atraiu a atenção de Artur, que ali fora para ver o famoso galope! Com seu espírito fanatizou aquele gentil-homem
que não sabia mais a que paixão dedicar-se; e então, dois anos depois de ter sido abandonado por Beatriz, cujo espírito frequentemente o humilhava, o marquês não
foi censurado por ninguém por casar-se na décima terceira circunscrição de Paris (Na época de Balzac, Paris estava dividida em doze circunscrições (arrondissements),
e não em vinte como hoje. Como os casamentos se celebravam nas mairies (subprefeituras) das circunscrições, “casar-se na 13ª circunscrição” equivalia a “viver em
concubinato”.), com uma Beatriz de segunda mão.
V - OS QUATRO TEMPOS DA DÉCIMA TERCEIRA CIRCUNSCRIÇÃO
PRIMEIRO TEMPO
Esbocemos aqui as quatro estações dessa felicidade. É necessário mostrar que a teoria do casamento na décima terceira circunscrição abrange igualmente todos os administrados.
Marquês e quadragenário, ou sexagenário e negociante retirado, seis vezes milionário ou vivendo das rendas (ver Uma estreia na vida), grão-senhor ou burguês, a estratégia
da paixão, salvo as diferenças inerentes às zonas sociais, não varia. O coração e a caixa estão sempre em relações exatas e definidas. Enfim, avaliareis as dificuldades
que a duquesa devia encontrar na execução de seu plano caridoso.
Não se sabe qual é, na França, o poder das palavras sobre as pessoas comuns, nem o mal que fazem as pessoas de espírito que as inventam. Assim, nenhum guarda-livros
poderia calcular a cifra das quantias que permaneceram improdutivas, aferrolhadas no fundo dos corações generosos e das caixas por esta ignóbil frase: Tirer une
carotte (“cair no calote”). Essa expressão tornou-se tão popular, que é forçoso permitir-lhe que suje esta página. De resto, ao penetrar na décima terceira circunscrição,
é forçoso aceitar-lhe o patoá pitoresco. O sr. de Rochefide, como todos os espíritos estreitos, estava sempre com medo de ser logrado! Desde o começo de sua paixão
pela sra. Schontz, Artur esteve em guarda, e foi então muito rat, para pedir outro termo às oficinas de felicidade e de pintura. O termo rat, aplicado a uma rapariga,
significa a conviva, mas, aplicado ao homem, significa o anfitrião que regateia.
A sra. Schontz tinha demasiado espírito e conhecia demasiado bem os homens para não conceber as maiores esperanças, de acordo com semelhante começo. O sr. de Rochefide
estabeleceu uma mesada de quinhentos francos para a sra. Schontz, mobiliou-lhe mesquinhamente um apartamento de mil e duzentos francos, num segundo andar, na rue
Coquenard, e pôs-se a estudar o caráter de Aurélia, a qual imediatamente lhe forneceu um caráter para que ele o estudasse ao aperceber-se daquela espionagem. Por
isso Rochefide sentiu-se feliz por encontrar uma rapariga de tão belo caráter; mas nada viu de admirável nisso, porquanto a mãe era uma Barnheim de Baden, uma senhora
distinta; Aurélia, de resto, fora tão bem-educada!... Falando o inglês, o alemão e o italiano, ela possuía a fundo as literaturas estrangeiras. Podia lutar sem desvantagem
com pianistas de segunda ordem. E notem este ponto: portava-se com seus talentos como as pessoas de boa linhagem, nunca falava neles. Pegava um pincel na oficina
de um pintor, manejava-o por troça, e pintava uma cabeça bem às direitas, capaz de provocar uma admiração geral. Para encher o tempo, na época em que definhava como
professora adjunta, fizera suas pequenas excursões no terreno das ciências; mas sua vida de mulher amancebada cobrira essas boas sementes com uma capa de sal e,
naturalmente, galardoou o seu Artur com a floração desses germes preciosos, novamente cultivados para ele.
Aurélia começou, pois, por ser de um desinteresse igual à voluptuosidade, o que permitiu àquela frágil corveta opor solidamente seu arpão naquela nave de alto bordo.
Não obstante, para o fim do primeiro ano, ela fazia barulhos ignóbeis na antecâmara, com os seus tamancos, preparando-se para voltar no momento em que o marquês
a esperava, e ocultava, de modo a que o vissem bem, uma fímbria de vestido afrontosamente enlameada. Finalmente, soube tão bem convencer seu coronel que toda a sua
ambição, após tantos altos e baixos, era a de conquistar honradamente uma pequena existência burguesa, que dez meses depois de se terem encontrado, declarou-se a
segunda fase.
VI - SEGUNDO TEMPO
A sra. Schontz obteve então um belo apartamento na rue Neuve-Saint-Georges. Artur, não podendo mais dissimular sua fortuna à sra. Schontz, deu-lhe uma mobília esplêndida,
uma baixela de prata completa, mil e duzentos francos por mês, um pequeno carro baixo, para um cavalo, mas de aluguel, e concedeu muito graciosamente o tigre (Tigre:
pequeno criado de libré que os dândis da época, os “leões”, tinham às suas ordens.).
A sra. Schontz não lhe foi absolutamente grata por essa munificência, descobriu os motivos do procedimento do seu Artur e nele reconheceu os cálculos do rat. Farto
da vida de restaurante, onde o passadio é na maioria das vezes execrável, onde o mais insignificante jantar de um apreciador da boa mesa custa sessenta francos para
uma pessoa, e duzentos francos quando se convidam três amigos, Rochefide ofereceu à sra. Schontz quarenta francos diários para o seu jantar e o de um amigo, tudo
incluído. Aurélia aceitou. Depois de ter feito aceitar todas as suas letras de câmbio de moral, a um ano de prazo, sobre os hábitos do sr. de Rochefide, ela foi
então ouvida favoravelmente, quando reclamou mais quinhentos francos por mês para a sua toilette, a fim de não envergonhar seu bom papai, cujos amigos eram todos
sócios do Jóquei-Clube.
— Seria muito bonito—dizia ela—se Rastignac, Máximo de Trailles, d’Esgrignon, la Roche-Hugon, Ronquerolles, Laginski, Lenoncourt (Os nomes que Balzac enumera aqui
são de representantes da jeunesse dorée ávida e pouco escrupulosa de A comédia humana. Máximo de Trailles, que veremos em ação logo mais, aparecerá também em Gobseck
como amante da condessa de Restaud; Viturniano d’Esgrignon terá relevante papel em O gabinete das antiguidades; Marcial de la Roche-Hugon, amigo de Montcornet, esteve
com ele no baile de A paz conjugal; o marquês de Ronquerolles, irmão da condessa de Sérisy (Uma estreia na vida), também apareceu, juntamente com o conde Adão Laginski,
marido de sua sobrinha, em A falsa amante.) e outros viessem encontrá-lo com uma sra. Everard (Sra. Everard: personagem da comédia O velho solteirão, de Colin d’Harleville,
que desempenha o papel de uma governanta.)! De resto confie em mim, meu velhinho, você ganhará com isso.
Efetivamente, Aurélia arranjou-se para exibir novas virtudes nessa nova fase. Ela mostrou-se num papel de dona de casa, do qual tirou um maior partido. Chegava ao
fim do mês, dizia ela, com dois mil e quinhentos francos, o que jamais fora visto no Faubourg Saint-Germain da décima terceira circunscrição, e apresentava jantares
infinitamente superiores aos de Nucingen (Nucingen: rico banqueiro de A comédia humana, aparece não só em A casa Nucingen, como em vários outros romances e contos.),
nos quais bebiam vinhos deliciosos de dez a doze francos a garrafa. Por esse motivo, Rochefide, maravilhado, muito feliz por poder convidar frequentemente os amigos
para a casa da amante, fazendo com isso economias, dizia, enlaçando-a pela cintura:
— Aqui está um tesouro!...
Não tardou em tomar para ela a assinatura de um terço de camarotes nos Italiens, depois acabou levando-a às primeiras representações. Começava a consultar a sua
Aurélia, reconhecendo a excelência dos conselhos que ela lhe dava, a qual deixava-o apropriar-se dos ditos de espírito que ela dizia, a propósito de tudo, os quais,
não sendo conhecidos, aumentaram sua reputação de homem divertido. Finalmente adquiriu a certeza de ser amado verdadeiramente, e por ele mesmo. Aurélia recusou fazer
a felicidade de um príncipe russo, à razão de cinco mil francos por mês...
— Você é feliz, meu caro marquês—exclamou o velho príncipe Galathionne (Príncipe Galathionne: personagem secundária de A comédia humana. A condessa Félix de Vandenesse
(em Uma filha de Eva) ia aos bailes da princesa Galathionne.), ao terminar, no clube, uma partida de uíste.
— Ontem, quando você nos deixou a sós, a sra. Schontz e eu, quis ver se lha podia surrupiar; ela, porém, disse-me: “Príncipe, o senhor não é mais belo, mas é mais
velho do que Rochefide; o senhor me surraria, e ele é como que um pai para mim, ache-me aí a quinta parte de um bom argumento para mudar!... Não tenho por Artur
a paixão louca que tive por uns jovens biltres de botas envernizadas, e cujas dívidas era eu quem pagava; mas amo-o como uma mulher ama o marido, quando é uma mulher
honrada”. E com estas palavras pôs-me no olho da rua.
Esse discurso, que não cheirava a arranjo, teve como resultado auxiliar prodigiosamente o estado de abandono e de degradação que desonrava o palácio de Rochefide.
Em breve Artur transportou sua vida e seus prazeres para a casa da sra. Schontz e deu-se bem com isso; porque, ao cabo de três anos, achava-se com quatrocentos mil
francos por colocar.
VII - TERCEIRO TEMPO
A terceira fase começou. A sra. Schontz tornou-se a mais terna das mães para o filho de Artur; ia buscá-lo ao colégio e levava-o ela mesma; encheu de presentes,
de gulodices e de dinheiro aquela criança, que a chamava de mamãezinha, e que a adorou. Entrou no manejo da fortuna do seu Artur, fê-lo comprar títulos de renda
na baixa, antes do famoso tratado de Londres (O famoso tratado de Londres: concluído entre Inglaterra, Rússia, Prússia e Áustria em 1840, mirava pôr fim às pretensões
territoriais de Meemet-Ali, paxá do Egito, contra a Turquia. Thiers, chefe do gabinete francês nomeado em março desse ano, estava prestes a desencadear uma guerra
contra essa coalizão em defesa de Meemet-Ali; porém Luís Filipe, desejoso de evitar o conflito a qualquer preço, despediu Thiers em outubro ao cabo de apenas oito
meses de governo.) que derrubou o ministério do 1º de março. Artur ganhou duzentos mil francos e Aurélia não pediu um ceitil. Como um gentil-homem que era, Rochefide
colocou esses seiscentos mil francos em ações do banco, pondo a metade em nome da srta. Josefina Schiltz.
Um pequeno palacete, alugado na rue de la Bruyère, foi entregue a Grindot, esse grande arquiteto em pequenas decorações, com ordem de fazer dele uma voluptuosa bonbonnière.
Rochefide desde então não fez mais contas com a sra. Schontz, a qual recebia as rendas e pagava as despesas. Transformada em sua mulher... de confiança, ela justificou
esse título, tornando seu bom papai mais feliz do que nunca; reconhecera-lhe os caprichos, satisfazia-os como a Madame Pompadour (Madame Pompadour: em solteira Antoinette
Poisson (1721-1764), famosa favorita de Luís XV, sobre cuja política exerceu influência decisiva.) lisonjeava as fantasias de Luís XV. Finalmente, foi a amante oficial,
senhora absoluta. Por isso, permitiu-se então proteger alguns rapazinhos sedutores, artistas, homens de letras recém-nascidos para a glória, os quais negavam os
antigos e os modernos, e tratavam de conseguir uma grande reputação fazendo pouca coisa.
O procedimento da sra. Schontz, obra-prima de tática, deve revelar-lhes toda a sua superioridade. Primeiro, dez ou doze rapazinhos divertiam Artur, forneciam-lhe
ditos de espírito, opiniões refinadas sobre todas as coisas, e não punham em suspeição a fidelidade da dona da casa; depois, consideravam-na como uma mulher eminentemente
espirituosa. Por isso, esses anúncios vivos, esses artigos ambulantes, fizeram a sra. Schontz passar por ser a mulher mais agradável que se conhecesse nos limites
que separam a décima terceira circunscrição das outras doze.
As rivais de Aurélia, Suzana Gaillarde, a qual desde 1838 tinha sobre ela a vantagem de se ter tornado uma mulher casada, por um casamento legítimo, pleonasmo necessário
para explicar um casamento sólido, Fanny Beaupré (Fanny Beaupré: bela atriz, amiga do comerciante Camusot, em cuja casa Oscar Husson perdeu quinhentos francos no
jogo (Uma estreia na vida); contavam que era amiga do duque d’Hérouville (Modesta Mignon).), Marieta, Antônia (Antônia ou srta. Chocardelle: cortesã que também aparecerá
em Um príncipe da Boêmia, Um homem de negócios etc.), espalhavam calúnias mais do que maliciosas sobre a beleza daqueles rapazes, e a respeito da complacência com
que o sr. de Rochefide os acolhia. A sra. Schontz que distanciava de três pilhérias, dizia ela, todo o espírito daquelas damas, uma vez, numa ceia dada por Nathan
em casa de Florina, depois de um baile da Opéra, disse-lhes após ter-lhes explicado sua fortuna e seu êxito um “Façam outro tanto!...” cuja recordação foi conservada.
A sra. Schontz fez vender os cavalos de corrida durante esse período, entregando-se a considerações que sem dúvida devia ao espírito crítico de Claúdio Vignon, um
dos frequentadores de sua casa.
— Eu conceberia—disse ela uma tarde, depois de ter durante muito tempo chicoteado os cavalos com suas pilhérias—que os príncipes e a gente rica tomassem a peito
a hipiatria, mas para o bem do país, e não para as satisfações pueris de um amor-próprio de jogador. Se você tivesse haras em suas terras, se lá você criasse de
mil a mil e duzentos cavalos, se cada um fizesse correr os melhores cavalos de seu haras, se todos os haras da França e da Navarra concorressem a cada solenidade,
seria grande e belo; mas vocês compram animais, como os diretores teatrais fazem o comércio de artistas, vocês rebaixam uma instituição até não ser ela mais do que
um jogo, têm a Bolsa das pernas, como têm a Bolsa dos títulos! Isso é indigno. Gastaria você por acaso sessenta mil francos para ler no jornais: Lélia, do sr. de
Rochefide, venceu por um corpo a Flor de Giesta, do sr. duque de Réthoré (Duque de Rhétoré: irmão de Luísa de Chaulieu, protagonista de Memórias de duas jovens esposas.)?
Mais valeria então dar esse dinheiro a poetas, que o fariam ir em prosa ou em verso para a imortalidade, como o falecido Monthyon (Monthyon: Jean Baptiste Antoine
Auget, barão de Monthyon, filantropo e economista francês que em seu testamento deixou ao Instituto da França a renda de importante capital a ser distribuído em
prêmios pela Academia Francesa. Um deles—que continua a ser distribuído anualmente—é destinado a recompensar a ação mais virtuosa realizada por um francês pobre.)!
À força de ser picado, o marquês reconheceu o vazio do turfe, realizou essa economia de sessenta mil francos, e, no ano seguinte, a sra. Schontz disse-lhe:
— Eu não te custo mais nada, Artur!
Muita gente rica teve inveja, então, do marquês, por ter ele a sra. Schontz e procuraram tirar-lha; mas como aconteceu com o príncipe russo, perderam no intento
a sua velhice.
— Ouve, meu caro—dissera ela quinze dias antes a Finot (Finot: personagem balzaquiana, diretor de jornais e revistas. Aparece em vários romances e novelas; já o
encontramos no almoço, dado no Rocher de Cancal por Frederico Marest (em Uma estreia na vida).), que se tornara muito rico—,estou certa de que Rochefide me perdoaria
uma paixãozinha, se eu enlouquecesse por alguém, e nunca se deixa um marquês daquela boa pasta por um parvenu como tu. Jamais me manterias na posição em que Artur
me colocou, ele fez de mim uma meia esposa, comme il faut, e tu jamais o poderias conseguir, mesmo desposando-me.
Foi esse o último prego enterrado que completou o acorrentamento daquele feliz forçado. A declaração chegou aos ouvidos ausentes para os quais fora feita.
VIII - QUARTO TEMPO
Começara pois a quarta fase, a do hábito, a última vitória desses planos de campanha e que faz que essa espécie de mulheres digam de um homem: “Tenho-o fisgado!”.
Rochefide, que acabava de comprar o pequeno palacete em nome da srta. Josefina Schiltz, pela bagatela de oitenta mil francos, chegara, por ocasião dos projetos formados
pela duquesa, a envaidecer-se de sua amante, a quem chamava de Ninon II, celebrando-lhe assim a rigorosa probidade, as maneiras excelentes, a instrução e o espírito.
Resumira seus defeitos e suas qualidades, seus gostos e seus prazeres pela sra. Schontz e achava-se nessa passagem da vida, na qual, ou por lassidão, ou por indiferença,
ou mesmo por filosofia, um homem não muda mais e se contenta com a própria esposa ou com a amante.
Compreender-se-á todo o valor adquirido em cinco anos pela sra. Schontz, ao saber-se que era preciso ser proposto com muita antecedência para ser-se apresentado
em casa dela. A sra. Schontz recusava receber gente rica enfadonha, gente decadente; não se afastava dos seus rigores senão para os grandes nomes da aristocracia.
— Esses—dizia ela—têm o direito de ser burros, porque o são comme il faut.
Possuía ostensivamente os trezentos mil francos que Rochefide lhe dera e que um corretor bom moço, Gobenheim (Gobenheim: tio do jovem banqueiro do Havre que frequentava
a casa Mignon (em Modesta Mignon).), o único a ser admitido em casa dela, punha a render; ela porém manobrava sozinha uma pequena fortuna secreta, de duzentos mil
francos, provenientes de suas economias realizadas durante os últimos três anos, e dos juros produzidos pelo movimento perpétuo dos trezentos mil francos, pois que
ela não confessava nunca senão os trezentos mil francos conhecidos.
— Quanto mais a senhora ganha, menos se enriquece—disse-lhe um dia Gobenheim.
— A água está tão cara—respondeu ela.
— A dos diamantes?—perguntou Gobenheim.
— Não, a do rio da vida.
O tesouro ignorado se avolumava com as joias, os diamantes que Aurélia usava durante um mês e depois vendia, de quantias dadas para pagar fantasias passadas. Quando
a diziam rica, a sra. Schontz respondia que pela taxa das rendas, trezentos mil francos davam doze mil francos de juro, e que ela os gastava nos tempos mais rigorosos
de sua vida, quando amava Lousteau (Lousteau: membro da boêmia de A comédia humana. Era colaborador do jornal de Raul Nathan (em Uma filha de Eva); aparece como
amante da sra. Schontz em A musa do departamento.).
IX - ÚLTIMA PALAVRA DAS LORETTES DISTINTAS
*(Lorettes: moça elegante, de costumes fáceis. O nome vem do bairro de Notre-Dame de Lorette, em Paris, frequentado na época por essa espécie de mulheres.)
Esse procedimento anunciava um plano, e a sra. Schontz tinha efetivamente um plano, podem crê-lo. Invejosa, fazia dois anos, da sra. du Bruel (Sra. du Bruel: mais
conhecida como Túlia; bailarina da Ópera, de costumes galantes, que acabou por se casar com o pequeno funcionário du Bruel, a quem com suas intrigas conseguiu fazer
deputado, conde e membro do Instituto.), mordia-lhe o coração a ambição de ser casada na mairie e na igreja. Todas as posições sociais têm seu fruto proibido, uma
pequena coisa aumentada pelo desejo a ponto de pesar tanto como o mundo. Essa ambição estava necessariamente reforçada pela de um segundo Artur, que nenhuma espionagem
podia descobrir. Bixiou (Bixiou: desenhista, um dos heróis do primeiro plano de A comédia humana. Desenhou vinhetas para a obra de Canalis (em Modesta Mignon).)
quis ver o preferido no pintor Leão de Lora (Leão de Lora não é outro senão o divertido Mistigris de Uma estreia na vida.)), este o via em Bixiou que já passava
dos quarenta anos e que devia pensar em estabilizar sua vida.
As suspeitas também recaíam em Vítor de Vernisset (Vítor de Vernisset: personagem balzaquiana, poeta da “escola angélica”, cujo chefe era Canalis.), um jovem poeta
da escola de Canalis, cuja paixão pela sra. Schontz chegava ao delírio; e o poeta acusava Stidmann, um escultor, de ser seu feliz rival. Esse artista, um lindo rapaz,
trabalhava para os ourives, para os negociantes de bronze, para os joalheiros: queria repetir Benvenuto Cellini. Claúdio Vignon, o jovem conde de la Palférine (O
jovem conde de la Palférine: o mesmo que, no fim da novela A falsa amante, começou a cortejar a condessa Laginski e só não logrou êxito em virtude de uma intervenção
repentina de Tadeu Paz.), Gobenheim, Vermanton (Vermanton: personagem que só aparece neste romance.), filósofo cínico, outros frequentadores daquele salão divertido,
foram sucessivamente objeto de suspeição e mais tarde reconhecidos inocentes.
Ninguém estava à altura da sra. Schontz, nem mesmo Rochefide, que julgava ter ela um fraco pelo jovem e espirituoso la Palférine; ela era virtuosa por cálculo e
só pensava em fazer um bom casamento.
Em casa da sra. Schontz via-se apenas um homem de reputação equívoca, Couture (Couture: negocista e jornalista de reputação equívoca. Será visto ainda em A casa
Nucingen e Os pequenos burgueses.), o qual por mais de uma vez fizera os bolsistas berrarem, mas Couture era um dos primeiros amigos da sra. Schontz e somente ela
lhe permanecera fiel. O falso alerta de 1840 arrebatou os últimos capitais daquele especulador que acreditou na habilidade do 1º de março. Aurélia, vendo-o de má
sorte, fizera, como vimos, Rochefide jogar em sentido contrário. Foi ela quem classificou o último desastre daquele inventor de bônus e de comanditas, uma découture
(Uma découture: palavra forjada com o nome de Couture, parecida com déconfiture (“derrota, fracasso”).)... Feliz por ter seu talher sempre posto em casa de Aurélia,
Couture, a quem Finot, o homem hábil, ou, se quiserem, o mais feliz de entre os parvenus, dava, de vez em quando, algumas notas de mil francos, era o único suficientemente
calculista para oferecer seu nome à sra. Schontz, a qual o estudava para saber se o ousado especulador teria poder para abrir-se caminho em política, e suficiente
gratidão para não abandonar a esposa. Couture, homem de cerca de quarenta e três anos, muito gasto, não compensava a má sonoridade de seu nome pelo nascimento, pouco
falava dos autores de seus dias. A sra. Schontz gemia pela raridade das pessoas de valor, quando Couture, ele mesmo, lhe apresentou um provinciano que resultou possuir
duas asas pelas quais as mulheres pegam essa espécie de cântaros, quando os querem guardar.
Esboçar essa personagem será pintar uma certa parte da atual mocidade. A digressão aqui será histórica.
X - UMA DAS DOENÇAS DO SÉCULO
Em 1838, Fabiano du Ronceret, filho de um presidente da Câmara no real tribunal de Caën falecido fazia um ano, deixou a cidade de Alençon, dando sua demissão de
juiz, posto em que o pai o obrigara a perder o tempo, dizia ele, e veio para Paris com a intenção de se abrir caminho, fazendo barulho, ideia normanda difícil de
realizar, porquanto podia dispor apenas de oito mil francos de renda, por viver ainda sua mãe, e ocupar como usufrutuária um prédio muito importante no centro de
Alençon.
Esse rapaz em várias viagens a Paris já experimentara sua habilidade no arame, como saltimbanco, e reconheceu o grande vício da reestruturação social de 1820; por
isso contava explorá-la em proveito próprio, seguindo o exemplo dos espertalhões da burguesia. Isto exige um rápido exame dos efeitos da nova ordem de coisas.
A igualdade moderna, exageradamente desenvolvida nos nossos dias, despertou forçosamente na vida privada, numa linha paralela à vida política, o orgulho, o amor-próprio,
a vaidade, as três grandes divisões do eu social. Os tolos querem passar por gente de espírito, a gente de espírito quer ser tratada como gênio; quanto aos gênios,
esses são mais razoáveis, consentem em ser apenas semideuses.
Essa inclinação do espírito público atual, que na Câmara deixa o industrial com inveja do homem de Estado, e o administrador invejoso do poeta, impele os tolos a
difamar as pessoas de espírito, as pessoas de espírito a difamar os homens de talento, e estes a difamar aqueles de entre eles que os ultrapassam de algumas polegadas,
e os semideuses a ameaçar as instituições, o trono, tudo enfim que não os adora incondicionalmente. Assim que uma nação abateu muito impoliticamente as superioridades
sociais reconhecidas, abre diques por onde se precipita uma torrente de ambições secundárias, das quais a menor quer assim mesmo preponderar; tinha na sua aristocracia
um mal, no dizer dos democratas, mas um mal definido, circunscrito; troca-o por dez aristocracias rivais e armadas, a pior das situações.
Ao se proclamar a igualdade de todos, foi promulgada a Declaração dos direitos da inveja. Gozamos hoje das saturnais da Revolução transportadas para o domínio, na
aparência sossegado, do espírito, da indústria e da política; por isso, parece que as reputações devidas ao trabalho, aos serviços prestados, ao talento, sejam privilégios
concedidos à custa da massa. Em breve, a lei agrária será estendida até o campo da glória. Nunca, portanto, em tempo algum, foi pedida a seleção do próprio nome
na peneira pública a motivos mais pueris. As distinções são buscadas a qualquer preço, pelo ridículo, por um simulacro de amor pela causa polonesa, pelo sistema
penitenciário, pelo futuro dos forçados libertados, pelos pequenos biltres de mais ou de menos de doze anos, por todas as misérias sociais. Essas diversas manias
criam dignidades falsas, presidentes, vice-presidentes e secretários de sociedades, cujo número em Paris ultrapassa o das questões que se procuram resolver. Demoliram
a sociedade para fazer um milhar de pequenas sociedades, constituídas à imagem da defunta. Não revelam a decomposição essas organizações parasitas? Não é isso o
formigamento dos vermes do cadáver? Todas essas sociedades são filhas da mesma mãe, a vaidade. Não é assim que procedem a caridade católica ou a verdadeira beneficência;
elas estudam os males e as chagas, curando-as, e não peroram em assembleias sobre os princípios maléficos pelo prazer de perorar.
XI - UM ESPECULADOR EM IDIOTICES
Fabiano du Ronceret, sem ser um homem superior, adivinhara pelo exercício desse sentido ávido peculiar à Normandia todo o partido que podia tirar daquele vício público.
Cada época tem o seu caráter que as pessoas hábeis exploram. Fabiano não pensava senão em fazer falar dele.
— Meu caro, é preciso fazer falar da gente para ser-se alguma coisa!—dizia ele ao falar com o rei de Alençon, du Bousquier (Du Bousquier: personagem de A solteirona
e Gabinete das antiguidades.), um amigo do pai.—Daqui a seis meses, eu serei mais conhecido do que você.
Fabiano traduzia assim o espírito de seu tempo, não o dominava, obedecia-lhe. Estreara na Boêmia, um distrito da topografia moral de Paris, onde ficou conhecido
com o apelido de o Herdeiro, devido a algumas prodigalidades premeditadas. Du Ronceret aproveitara-se das loucuras de Couture pela linda sra. Cadine, uma das novas
atrizes a quem se atribuía mais talento numa das cenas secundárias, e para quem, durante sua efêmera opulência, ele arranjara, na rue Blanche, um delicioso andar
térreo com jardim. Foi assim que du Ronceret e Couture travaram relações.
O normando, que queria luxo pronto e já feito, comprou a mobília de Couture e os embelezamentos que fora obrigado a deixar no apartamento, um quiosque onde se fumava,
uma galeria de madeira rústica guarnecida de esteiras indianas e ornamentada de vasos de cerâmica, pela qual se ia para o quiosque em dias de chuva. Quando se felicitava
o Herdeiro pelo seu apartamento, ele o chamava de seu covil. O provinciano abstinha-se de dizer que Grindot, o arquiteto, ali desenvolvera todo o seu saber, como
Stidmann o fizera com as esculturas e Leão de Lora com as pinturas: porquanto tinha como defeito capital esse amor-próprio que vai até a mentira, no desejo de se
engrandecer. O Herdeiro completou aquelas magnificências por uma estufa que instalou ao correr de uma parede com exposição ao sul, não que gostasse de flores, mas
porque queria atacar a opinião pública pela horticultura. Naquele momento estava a ponto de atingir seu alvo. Tendo se tornado vice-presidente de uma sociedade jardineira
qualquer, presidida pelo duque de Vissembourg, irmão do príncipe de Chiavari, filho mais moço do falecido marechal Vernon (Duque de Vissembourg, príncipe de Chiavari,
marechal Vernon: personagens que, fora deste trecho, não aparecem em A comédia humana.), ornara com a fita da legião de honra sua casaca de vice-presidente, após
uma exposição de produtos, cujo discurso de abertura, comprado por quinhentos francos a Lousteau, foi ousadamente pronunciado como da sua lavra. Foi notado por uma
flor que lhe dera o velho Blondet (O velho Blondet: personagem de O gabinete das antiguidades.) de Alençon, pai de Emílio Blondet, e que ele exibiu como tendo sido
colhida em sua estufa. Esse êxito nada era. O Herdeiro, que queria ser aceito como um homem de espírito, formara o plano de ligar-se com as pessoas célebres, para
refletir-lhes a glória, plano de execução difícil ao se lhe dar por base apenas um orçamento de oito mil francos. Por isso, Fabiano du Ronceret dirigira-se sucessivamente
e, sem êxito, a Bixiou, a Stidmann, a Leão de Lora, para ser apresentado à sra. Schontz e fazer parte daquela turma de leões em todas as especialidades. Pagara tão
seguidamente o jantar a Couture, que este provou categoricamente à sra. Schontz que ela devia adquirir semelhante original, quando mais não fosse para fazer dele
um desses elegantes lacaios sem ordenado, que as donas de casa empregam em comissões para as quais não se encontram criados.
XII - UM POMBO REFRATÁRIO
Em três serões, a sra. Schontz penetrou Fabiano e a si mesma disse:
“Se Couture não me convém, tenho certeza de encilhar esse. Agora meu futuro vai caminhar por si só.”
Aquele tolo, de quem todos zombavam, tornou-se pois o preferido, mas numa intenção que tornava a preferência injuriosa, e essa escolha fugia a todas as suposições
por sua própria impossibilidade. A sra. Schontz embriagava Fabiano de sorrisos, concedidos disfarçadamente, de pequenas cenas representadas na soleira da porta ao
reconduzi-lo em último lugar, quando o sr. de Rochefide ficava à noite. Punha seguidamente Fabiano como terceiro com Artur no seu camarote, nos Italiens, e nas primeiras
representações, pretextando prestar-lhe ele tal ou qual serviço e que não sabia como agradecer-lhe.
Os homens têm entre eles uma fatuidade que, aliás, partilham com as mulheres, a de serem amados absolutamente. Ora, de todas as paixões lisonjeiras, nenhuma é mais
apreciada do que as de uma sra. Schontz, para aqueles a quem elas tornam objeto de um amor chamado de coração, em oposição ao outro amor. Uma mulher como a sra.
Schontz, que representava o papel de grande dama, e cujo valor real era superior, devia ser, e foi, um motivo de orgulho para Fabiano, o qual se apaixonou por ela
a ponto de nunca se apresentar senão em toilette de rigor, botas envernizadas, luvas cor de palha, camisa bordada e com bofes, coletes cada dia mais variados, enfim,
todos os sintomas exteriores de um culto profundo.
Um mês antes da conferência da duquesa com o seu diretor, a sra. Schontz confiara o segredo de seu nascimento e do seu verdadeiro nome a Fabiano, o qual não compreendeu
a finalidade daquela confidência. Quinze dias depois, a sra. Schontz, admirada da falta de inteligência do normando, exclamou:
— Meu Deus, que tolice a minha! Ele se julga amado por ele mesmo!
E levou então o Herdeiro na sua caleça, ao Bois, pois que fazia um ano que ela tinha uma pequena caleça, baixa, para dois cavalos.
Nessa entrevista em público, ela tratou do assunto de seu destino e declarou querer casar-se.
— Tenho setecentos mil francos—disse ela -; confesso-lhe que, se encontrasse um homem ambicioso e que soubesse compreender o meu caráter, eu mudaria de situação,
porque, quer saber qual é meu sonho? Eu quisera ser uma boa burguesa, entrar para uma família honrada e fazer meu marido e meus filhos muito felizes.
Ao normando agradava-lhe ser distinguido pela sra. Schontz; mas desposá-la pareceu-lhe uma loucura discutível para um rapaz de trinta e oito anos que fora feito
juiz pela Revolução de Julho. Ao ver essa hesitação, a sra. Schontz fez do Herdeiro alvo dos seus ditos de espírito, de seus gracejos, do seu desdém, e voltou-se
para Couture. Em oito dias o especulador, a quem ela fez farejar sua caixa, ofereceu-lhe a mão, o coração e o futuro, três coisas do mesmo valor.
As manobras da sra. Schontz achavam-se nesse ponto quando a sra. de Grandlieu procurou informar-se da vida e dos costumes da Beatriz da rue de Saint-Georges.
XIII - INFLUÊNCIA DE UMA POSIÇÃO SOCIAL
De acordo com o conselho do abade Brossette, a duquesa pediu ao marquês d’Ajuda que lhe trouxesse à casa o rei dos salteadores políticos, o célebre conde Máximo
de Trailles, o arquiduque da Boêmia, o mais jovem dos jovens, conquanto tivesse cinquenta anos. O sr. d’Ajuda arranjou-se de modo a jantar com Máximo no clube da
rue de Beaume, e propôs-lhe para ir fazer uma perna em casa do duque de Grandlieu, o qual, com um ataque de gota antes do jantar, achava-se só.
Conquanto o genro do duque de Grandlieu, o primo da duquesa, tivesse perfeitamente o direito de o apresentar num salão onde jamais pusera os pés, Máximo de Trailles
não se iludiu quanto ao alcance de um convite assim feito e pensou que o duque e a duquesa precisavam dele. Não é um dos menores caracteres dos tempos que correm
essa vida de clube, na qual se joga com gente a quem não se recebe na própria casa.
O duque de Grandlieu fez a Máximo a honra de fingir-se doente. Após quinze partidas de uíste, foi deitar-se deixando a esposa a sós com Máximo e d’Ajuda. A duquesa,
auxiliada pelo marquês, comunicou seu projeto ao sr. de Trailles e solicitou-lhe sua colaboração, afetando pedir-lhe somente conselhos. Máximo ouviu até o fim, sem
se pronunciar, e esperou, para falar, que a duquesa reclamasse diretamente sua cooperação.
— Senhora, compreendi tudo perfeitamente—disse-lhe ele então, depois de dirigir a ela e ao marquês um desses olhares atilados, profundos, astutos, completos, pelos
quais esses grandes tratantes sabem comprometer seus interlocutores.—D’Ajuda lhe dirá que se há em Paris alguém que possa dirigir essa dupla negociação, sou eu,
sem comprometê-la, sem mesmo que saibam ter eu estado aqui esta noite. Somente, antes de mais nada, estabeleçamos os preliminares de Leoben (Leoben: cidade da Áustria
onde o general Bonaparte e o arquiduque Carlos V concluíram, em 17 de abril de 1797, os preliminares do Tratado de Campo-Formio, que deu à França a Bélgica e as
Ilhas Jônicas.). Que é que se dispõe a sacrificar?
— Tudo o que for preciso.
— Bem, senhora duquesa. Assim, por preço de meus serviços a senhora me fará a honra de receber em sua casa e proteger seriamente a sra. condessa de Trailles.
— És casado?—exclamou d’Ajuda.
— Caso-me dentro de quinze dias com a herdeira de uma família rica, porém excessivamente burguesa, um sacrifício feito à opinião pública, entro no próprio princípio
de meu governo! Quero fazer vida nova. Assim, pois, a senhora duquesa compreende de que importância seria para mim a adoção de minha esposa por ela e por sua família.
Tenho a certeza de vir a ser deputado pela renúncia de meu sogro das suas funções e tenho a promessa de um posto diplomático em harmonia com a minha nova fortuna.
Não vejo por que motivo minha esposa não seria recebida tão bem como a sra. de Portenduère nessa sociedade de jovens senhoras, onde brilham as sras. de la Bastie
(Sra. de la Bastie: em solteira, Modesta Mignon.), Jorge de Maufrigneuse (Sra. Jorge de Maufrigneuse: personagem de Um caso tenebroso.), de l’Estorade (Sra. de I’Estorade:
em solteira, Renata de Maucombe (Memórias de duas jovens esposas).), du Guénic, d’Ajuda (Sra. d’Ajuda: em solteira, Rochefide.), Restaud (Sra. de Restaud: em solteira,
Goriot; aparecerá em Gobseck.), de Rastignac (Sra. de Rastignac: nascida Augusta de Nucingen.) e de Vandenesse (Sra. de Vandenesse: trata-se ou da marquesa Carlos
de Vandenesse, nascida Emília de Fontaine (O baile de Sceaux) ou da condessa Félix de Vandenesse, em solteira Maria Angélica de Grandville (Uma filha de Eva).)!
Minha mulher é bonita e encarrego-me de a desemburguesar!... Convém-lhe isso, senhora duquesa? A senhora é devota e, se disser sim, sua promessa, que sei ser sagrada,
muito auxiliará a mudança de minha vida. Será mais uma boa ação que a senhora praticará!... Infelizmente, fui durante muito tempo o rei dos libertinos; mas quero
ter um bom fim. Afinal de contas, nós usamos um escudo de blau, com uma quimera de ouro vomitando fogo, armada de goles e escamada de sinople; e um cúmulo de contra-arminho,
desde Francisco I, o qual julgou necessário enobrecer o criado de quarto de Luís XI, e somos condes desde Catarina de Médicis.
— Eu receberei e guiarei sua esposa—disse solenemente a duquesa—e os meus não lhe darão as costas, dou-lhe a minha palavra.
— Ah senhora duquesa—exclamou Máximo, visivelmente comovido—,se o senhor duque digna-se também tratar-me com alguma benevolência, prometo-lhe eu fazer seu plano
triunfar, sem que isso lhe custe grande coisa. Mas—prosseguiu ele após uma pausa—é preciso que a senhora se resigne a obedecer às minhas instruções... É esta a última
intriga de minha vida de rapaz, e por isso deve ela ser tanto mais bem dirigida, por tratar-se de uma bela ação—disse ele sorrindo.
— Obedecer-lhe?...—disse a duquesa.—Quer dizer que eu vou aparecer em tudo isso?
— Ah, senhora, eu não a comprometerei—exclamou Máximo—e estimo-a demasiado para não acautelar-me suficientemente. Trata-se unicamente de seguir meus conselhos. Assim,
por exemplo, é preciso que du Guénic seja levado como uma relíquia pela esposa, que fique ausente durante dois anos, que esta lhe faça ver a Suíça, a Itália, a Alemanha,
enfim o maior número de países possível.
— Ah, o senhor responde a um temor do meu diretor—exclamou ingenuamente, recordando-se da judiciosa objeção do abade Brossette.
Máximo e d’Ajuda não puderam deixar de sorrir, ante aquela concordância entre o céu e o inferno.
— A fim de que a sra. de Rochefide não reveja Calisto—retrucou ela—,nós viajaremos todos, Justo e sua mulher, Calisto e Sabina, e eu. Deixarei Clotilde com o pai...
— Não cantemos vitória, senhora—disse Máximo—,pois entrevejo enormes dificuldades, que sem dúvida vencerei. Sua estima e sua proteção são um prêmio que me vai obrigar
a fazer grandes sujeiras; mas serão as...
— Sujeiras?—disse a duquesa, interrompendo aquele moderno condottiere e mostrando na fisionomia tanta repulsa quanto admiração.
— E a senhora tomará parte nelas, visto que sou seu procurador. Mas ignora acaso a que grau de cegueira a sra. de Rochefide fez chegar seu genro... Estou informado
disso por Nathan e Canalis, entre os quais ela hesitava, quando Calisto se atirou na goela dessa leoa! Beatriz teve a habilidade de convencer a esse bravo bretão
de que ela jamais amou outro que não ele, que é virtuosa, que Conti foi uma dessas paixões cerebrais, na qual o coração e o resto não tomaram quase parte, finalmente
um amor musical!... Quanto a Rochefide, foi por dever. Assim, pois, como a senhora pode compreender, ela é virgem! Prova-o bem, não se lembrando do filho, não tendo
feito, faz um ano, o menor esforço para vê-lo. Na realidade, o pequeno conde fará em breve doze anos, e acha na sra. Schontz uma mãe que é tanto mais que, como a
senhora deve saber, a maternidade é a paixão dessa espécie de mulheres. Du Guénic far-se-ia cortar em pedacinhos e picaria ele mesmo a esposa por Beatriz! E a senhora
acredita que se possa retirar facilmente um homem, quando ele se acha no fundo do abismo da credulidade?... Mas, senhora, o Iago de Shakespeare ali perderia todos
os seus lenços. Acredita-se que Otelo (Iago: é, no Otelo de Shakespeare, o intrigante diabólico, que persuade a seu amo, o general mouro Otelo, de que este é enganado
pela mulher, a bela e virtuosa Desdêmona. Como prova dessa acusação, faz ver ao general um lenço de Desdêmona nas mãos de um de seus oficiais. Embora a esposa seja
completamente inocente, pois o lenço fora roubado por Iago, que o passara às mãos do oficial, Otelo, obcecado pelo ciúme, estrangula-a.), que seu irmão mais novo
Orosmane (Orosmane: protagonista do drama Zaïre de Voltaire.), que Saint-Preux (Saint-Preux: protagonista da Nova Heloísa, de Rousseau.), René (René: herói da novela
do mesmo nome, de Chateaubriand.), Werther (Werther: herói de Os sofrimentos do jovem Werther, de Goethe.) e outros apaixonados célebres representam o amor! Nunca
os pais deles, de coração de gelo, conheceram o que é um amor absoluto, somente Molière o suspeitou. O amor, senhora, não é amar uma nobre mulher, uma Clarissa (Clarissa:
heroína de Clarissa Harlowe, de Richardson.)! grande esforço, na verdade! O amor é dizer-se: “Aquela a quem amo é uma infame, engana-me, enganar-me-á, é uma velhaca,
tresanda a todos os assados do inferno...” e correr para ela, achar-lhe o azul do éter, as flores do paraíso. Eis como Molière amava, eis como nós outros, libertinos,
amamos; porque eu choro na grande cena de Arnolfo! (A grande cena de Arnolfo: é a cena 5 do ato V de Escola das mulheres, de Molière. Nessa comédia, Arnolfo educa
em sua casa uma moça ingênua, Agnes, mantendo-a na ignorância mais completa para depois casar-se com ela sem ter de temer uma traição conjugal. Mas Agnes, apesar
de todas as precauções de seu tutor, engana-o antes mesmo do casamento. Nessa cena trágica, Arnolfo, que aos poucos se apaixonara de sua pupila, declara-se não somente
pronto a perdoar como também a fechar os olhos, futuramente, às suas traicões, desde que Agnes queira casar ainda com ele—mas a moça recusa-o definitivamente.)...
E eis como seu genro ama Beatriz!... Terei trabalho em separar o sr. de Rochefide da sra. Schontz, mas a sra. Schontz prestar-se-á a isso com certeza; vou estudar-lhe
o interior. Quanto a Calisto e Beatriz, precisam de machadadas, de traições superiores e de uma tão baixa infâmia, que sua virtuosa imaginação não desceria a tanto,
a menos que seu diretor lhe desse a mão... A senhora pediu o impossível e será servida... E apesar de minha resolução de empregar o ferro e o fogo não lhe garanto
absolutamente o sucesso. Sei de amantes que não recuam ante as mais honrosas desilusões. A senhora é por demais virtuosa para conhecer o domínio conseguido pelas
mulheres que não o são...
— Não inicie essas infâmias sem que previamente consulte o abade Brossette, para saber até que ponto sou sua cúmplice!—exclamou a duquesa com uma ingenuidade que
revelava todo o egoísmo que há na devoção.
— A senhora ignorará tudo, minha querida mãe—disse o marquês d’Ajuda.
XIV - INFLUÊNCIA DE UMA RELAÇÃO SOCIAL E DE UMA POSIÇÃO
No peristilo, enquanto a carruagem do marquês se aproximava, d’Ajuda disse a Máximo:
— Você assustou essa boa duquesa.
— É que ela não suspeita a dificuldade do que pede!... Vamos ao Jóquei-Clube. É preciso que Rochefide me convide para jantar amanhã em casa da Schontz; porque esta
noite meu plano estará feito e terei escolhido no meu tabuleiro de xadrez os peões que terão de marchar na partida que vou jogar. No tempo do seu esplendor, Beatriz
não me quis receber, eu saldarei minha conta com ela e vingarei sua cunhada tão cruelmente que é bem possível ela ache ter sido vingada em demasia.
No dia seguinte, Rochefide disse à sra. Schontz que jantaria com eles o sr. Máximo de Trailles. Equivalia isso a preveni-la que exibisse seu luxo e preparasse a
mais deliciosa refeição para aquele conhecedor emérito, temido por todas as mulheres do gênero da sra. Schontz; por isso preocupou-se ela tanto em sua toilette como
em pôr a casa em estado de receber aquele personagem.
Em Paris existem quase tantas realezas como artes diferentes, especialidades morais, ciências e profissões; e o mais forte daqueles que a praticam tem sua majestade
que lhe é própria; é apreciado, respeitado por seus pares, os quais conhecem as dificuldades do ofício, e cuja admiração é adquirida por aqueles que as sabem manobrar.
Máximo, aos olhos dos rats e das cortesãs, era um homem excessivamente poderoso e capaz, porquanto soubera fazer-se prodigiosamente querer. Era admirado por quantos
sabiam o como era difícil viver em Paris em boas relações com os credores; enfim, não tivera outro rival em elegância, em atitudes e espírito, que não o ilustre
de Marsay que o empregara em missões políticas. Isto basta para explicar sua entrevista com a duquesa, seu prestígio em casa da sra. Schontz e a autoridade de sua
palavra numa conferência que ele pretendia ter no Boulevard des Italiens, com um rapaz moço e já célebre, conquanto recentemente ingressado na boêmia de Paris.
No dia seguinte, ao despertar, Máximo de Trailles ouviu anunciarem Finot, a quem na véspera mandara chamar, pediu-lhe que agenciasse o acaso de um almoço no Café
Inglês, onde Finot, Couture e Lousteau dariam à língua perto dele. Finot, que se achava em frente ao conde de Trailles na posição de um segundo-tenente diante de
um marechal da França, nada podia recusar-lhe; de resto era muito perigoso dar uma picada naquele leão. Por isso, quando Máximo veio almoçar, viu Finot e seus dois
amigos instalados à mesa; a conversação já se orientara para a sra. Schontz. Couture, bem manobrado por Finot e por Lousteau, que foi compadre inconsciente de Finot,
informou ao conde de Trailles tudo o que ele queria saber a respeito da sra. Schontz. Cerca de uma hora, Máximo mastigava seu palito enquanto conversava com du Tillet
(Du Tillet: personagem de A comédia humana; negocista sem escrúpulos, chega a ser grande banqueiro e deputado. Já o encontramos casado com uma sra. de Grandville,
irmã da condessa Félix de Vandenesse, em Uma filha de Eva, onde organizava uma intriga para perder Raul Nathan.), à entrada do Tortoni (Tortoni: nome de um famoso
café que existiu em Paris, na esquina da rue Taitbout e do Boulevard des Italiens, até 1887; encontro de escritores, artistas etc.), onde, entre especuladores, se
faz aquela pequena Bolsa, prefácio da grande. Parecia preocupado com negócios, mas estava à espera do jovem conde de la Palférine, que dentro de algum tempo devia
passar por ali.
O Boulevard des Italiens é hoje o que era a Pont-Neuf em 1650, todas as pessoas conhecidas atravessavam-no uma vez por dia pelo menos. Com efeito, ao cabo de dez
minutos, Máximo soltou o braço de du Tillet, fazendo um sinal de cabeça ao jovem príncipe da Boêmia e dizendo-lhe a sorrir:
— Duas palavras, conde! (Duas palavras, conde!: essas palavras são tiradas de um famoso trecho de Cid, de Corneille (ato II, cena 2: A moi, comte, deux mots), no
qual introduzem uma cena trágica; aqui, Máximo as emprega por brincadeira.)...
XV - AO LUSCO-FUSCO
Os dois rivais, o astro em declínio, e o outro um sol que se erguia, foram sentar-se em quatro cadeiras na calçada do café de Paris. Máximo teve o cuidado de colocar-se
a certa distância de alguns velhotes que, por hábito, se colocam como espaldeiras, desde uma hora da tarde, a fim de secar suas afecções reumáticas. Tinha excelentes
motivos para desconfiar dos anciãos. (Ver Um homem de negócios em Cenas da vida parisiense: onde viremos a saber como Máximo de Trailles foi logrado pelo velho usurário
Cérizet (nota de Balzac).) em Cenas da vida parisiense.)
— Você tem dívidas?—disse Máximo ao jovem conde.
— Se não as tivesse, seria eu digno de suceder-lhe?—respondeu la Palférine.
— Quando faço semelhante pergunta, não é que ponha a coisa em dúvida—replicou Máximo—,quero unicamente saber se o total é respeitável e se chega a cinco ou a seis!
— Cinco ou seis o quê?
— Seis algarismos! Se deve cinquenta ou cem mil francos?... Eu, por exemplo, cheguei a dever seiscentos mil.
La Palférine tirou o chapéu de modo tão respeitoso quanto irônico.
— Se eu tivesse crédito para tomar emprestados cem mil francos—respondeu o rapaz—,eu esqueceria os meus credores e iria passar minha vida em Veneza, no meio das
obras-primas da pintura, à noite no teatro, e mais tarde com lindas mulheres, e...
— E ao chegar à minha idade que seria de você?—respondeu Máximo.
— Não chegarei até aí—replicou o jovem conde.
Máximo pagou a gentileza do rival, erguendo ligeiramente o chapéu um gesto de gravidade risível.
— É um outro modo de ver a vida—respondeu num tom de conhecedor para conhecedor.—Você deve?
— Oh, uma miséria indigna de ser confessada a um tio; se acaso tivesse um, ele me deserdaria por causa desse pobre algarismo, seis mil!...
— Fica-se mais apertado por seis do que por cem mil francos—disse Máximo sentenciosamente.—La Palférine! você tem o espírito ousado, tem mesmo mais espírito do que
ousadia, poderá ir muito longe, tornar-se um político! Olhe!... de todos os que se atiraram na carreira, em cujo extremo me acho e que quiseram me opor, você é o
único que me agradou.
La Palférine corou, por tal forma se sentiu lisonjeado por aquela confissão feita com graciosa bonomia pelo chefe dos aventureiros parisienses. Esse movimento de
seu amor-próprio foi um reconhecimento de sua inferioridade que o feriu; Máximo, porém, adivinhou essa reviravolta ofensiva, fácil de prever numa natureza tão espirituosa,
e pôs-lhe remédio imediatamente colocando-se à discrição do rapaz.
— Quer fazer algo por mim, que me retiro do Circo Olímpico por meio de um belo casamento? Muito farei por você—disse ele.
— Vai deixar-me muito orgulhoso: é realizar a fábula do Rato e do Leão (Na fábula O rato e o leão, ou antes, O leão e o rato, de La Fontaine, um rato, poupado pelo
leão, encontra oportunidade para demonstrar a sua gratidão, salvando o rei dos animais, preso numa rede.)—disse la Palférine.
— Começarei por emprestar-lhe vinte mil francos—respondeu Máximo continuando.
— Vinte mil francos?... Eu tinha certeza de que à força de passear por este bulevar...—disse la Palférine à feição de parêntese.
— Meu caro, precisa pôr-se em certo pé—disse Máximo sorrindo—,não fique plantado nos seus dois pés, arrume seis; faça como eu que nunca desci do meu tílburi...
— Mas então vai pedir-me coisas acima das minhas forças!
— Não, trata-se de fazer-se amar por uma mulher em quinze dias.
— Trata-se de uma prostituta?
— Por quê?
— Seria impossível; mas, se se tratasse de uma senhora muito distinta e de muito espírito...
— É uma marquesa muito ilustre!
— Precisa conseguir cartas dela?—disse o jovem conde.
— Ah, feres-me o coração!—exclamou Máximo.—Não, não se trata disso.
— É preciso então amá-la?
— Sim, no sentido real...
— Se devo sair da estética, é completamente impossível—disse la Palférine.—Olhe, a respeito de mulher, tenho uma certa probidade; podemos supliciá-las, mas não...
— Ah, então não me enganaram!- exclamou Máximo.—Acreditas-me pois capaz de propor pequenas infâmias de dois soldos?... Não é preciso atirar-se, é preciso deslumbrar
e finalmente vencer... Dou-te vinte mil francos esta noite, compadre, e dez dias para triunfar. Até logo mais, em casa da sra. Schontz.
— Janto lá.
— Bem—respondeu Máximo.—Mais tarde, quando você precisar de mim, senhor conde—acrescentou num tom de rei que se compromete em vez de prometer—,você me achará.
— Essa pobre mulher fez-lhe então muito mal?—perguntou la Palférine.
— Não procures atirar a sonda nas minhas águas, meu garoto, e deixa-me dizer-te que, em caso de êxito adquirido, terás tão poderosas proteções que poderás, como
eu, retirar-te num bom casamento, quando te enfastiares da tua vida de boêmia.
— Há então um momento em que a gente se aborrece de divertir-se, de não ser nada, de viver como os pássaros, de caçar em Paris como os selvagens e de rir de tudo?—disse
la Palférine.
— Tudo cansa, até mesmo o inferno—disse Máximo rindo.—Até logo à noite.
XVI - UM PRIMEIRO PRÊMIO DE VIRTUDE
Os dois libertinos, o jovem e o velho, levantaram-se. Ao recuperar sua carruagem de um cavalo, Máximo disse com os seus botões:
— A sra. d’Espard não tolera Beatriz (A sra. d’Espard: intrigante e coquete não menos temível que Beatriz, foi uma das damas da sociedade que estimularam o namoro
de Nathan com a condessa Félix de Vandenesse (em Uma filha de Eva).), vai auxiliar-me. Ao palácio de Grandlieu—gritou ele ao cocheiro, ao ver passar Rastignac.
Encontrem, se puderem, um grande homem sem fraquezas!
Máximo viu a duquesa, a sra. du Guénic e Clotilde chorando.
— Que há?—perguntou à duquesa.
— Calisto não veio dormir em casa, foi a primeira vez, e a minha pobre Sabina está desesperada.
— Senhora duquesa—disse Máximo atraindo a devota senhora para o vão de uma janela—,em nome de Deus, que nos julgará, guarde o mais profundo segredo sobre o meu devotamento,
exija-o de d’Ajuda, que Calisto jamais saiba coisa alguma do que tivermos tramado, ou então teríamos os dois um duelo de morte... Quando lhe disse que não lhe custaria
grande coisa, referia-me a que a senhora não iria gastar quantias loucas, necessito de mais ou menos vinte mil francos; mas quanto ao resto isso é comigo. Será preciso
mandar dar postos importantes, e possivelmente uma recebedoria geral.
A duquesa e Máximo saíram. Quando a sra. de Grandlieu voltou para junto das duas filhas, ouviu um novo ditirambo de Sabina, matizado de ocorrências domésticas, mais
cruéis ainda do que aquelas pelas quais a jovem esposa vira terminar a sua felicidade.
— Fica tranquila, minha mimosa—disse a duquesa à filha -; Beatriz pagará bem caro tuas lágrimas e teus sofrimentos; a mão de Satanás abate-se sobre ela, e vai receber
dez humilhações por cada uma das tuas!
A sra. Schontz mandou prevenir Cláudio Vignon que, por várias vezes, manifestara o desejo de conhecer pessoalmente Máximo de Trailles; convidou Couture, Fabiano,
Bixiou, Leão de Lora, la Palférine e Nathan. Este último foi pedido por Rochefide para satisfazer a Máximo. Aurélia teve assim nove convidados, todos de primeira
força, com exceção de du Ronceret; mas a vaidade normanda e a ambição brutal do Herdeiro estavam à altura da potência literária de Cláudio Vignon, da poesia de Nathan,
da finura de la Palférine, da visão de financeiro de Couture, do espírito de Bixiou, do cálculo de Finot, da profundeza de Máximo e da genialidade de Leão de Lora.
A sra. Schontz, que fazia questão de aparecer jovem e bela, armou-se com uma toilette como essa espécie de mulheres sabe escolher. Fez um mantelete de guipura de
finura aracnoidana, um vestido de veludo azul, cujo delicado corpete era abotoado com opalas, e um penteado de bandós lustrosos como ébano. A sra. Schontz devia
sua celebridade de mulher formosa ao esplendor e frescura de uma tez alva e quente como a das filhas dos trópicos, àquele rosto cheio de detalhes espirituosos, às
feições nitidamente desenhadas e firmes, cujo tipo mais célebre foi durante muito tempo apresentado pela condessa Merlin (Condessa Merlin: em solteira Maria de la
Mercedes Jaruco (1788-1852); bela e espirituosa espanhola casada com o general conde Merlin, que tinha um dos salões mais brilhantes da época; mais tarde compôs
e publicou suas memórias.) e é talvez peculiar aos rostos meridionais. Infelizmente, a pequena sra. Schontz tinha tendência para engordar desde que sua vida se tornara
feliz e calma. O pescoço, de rotundidade sedutora, começava a engrossar, assim como os ombros. Na França nos fixamos tão principalmente à cabeça das mulheres, que
as belas cabeças fazem viver por muito tempo os corpos deformados.
— Minha querida filha—disse Máximo ao entrar, beijando a fronte da sra. Schontz—,Rochefide quis fazer-me ver seu estabelecimento, onde eu ainda não tinha vindo,
mas está quase em harmonia com os seus quatrocentos mil francos de renda... Pois bem, para alcançar essa cifra faltavam-lhe cinquenta mil, quando a conheceu, e,
em menos de cinco anos, você fez-lhe ganhar o que uma outra, uma Antônia, uma Málaga, Cadine ou Florentina lhe teriam comido.
— É que sou artista, e não uma cortesã!—disse a sra. Schontz com certa dignidade. —Espero terminar, como lá diz a comédia, por fazer-me tronco de uma raça de gente
de bem.
— É desesperador, todos nós nos casamos—disse Máximo atirando-se numa poltrona no canto da lareira.—Aqui, como me vê, estou em vésperas de fazer uma condessa Máximo.
— Oh, como quisera vê-la!—exclamou a sra. Schontz.—Mas permita-me—continuou—que lhe apresente o sr. Cláudio Vignon... sr. Cláudio Vignon, sr. de Trailles!...
— Ah, foi o senhor quem deixou Camille Maupin, a estalajadeira da literatura, ir para um convento?—exclamou Máximo.—Depois do senhor, Deus!... Nunca recebi semelhante
honra. A srta. des Touches tratou-o, senhor, como a um Luís XIV (Tratou-o como a um Luís XIV: alusão a Luísa La Vallière, favorita de Luís XIV, a qual, vendo-se
eclipsada pela sra. Montespan, se recolheu ao convento das Carmelitas.).
— E aí está como se escreve a história!—respondeu Cláudio Vignon.—Não sabe o senhor que a fortuna dela foi empregada em exonerar as terras do sr. du Guénic?... Se
ela soubesse que Calisto pertence à sua ex-amiga... (Máximo tocou o crítico com o pé, mostrando-lhe o sr. de Rochefide) ela sairia do convento, creio eu, para arrancar-lho.
— Palavra, Rochefide—disse Máximo ao ver que seu aviso não detivera Cláudio Vignon—,eu, no teu lugar, meu caro, restituiria à minha mulher a sua fortuna, a fim de
que não se acreditasse, no nosso mundo, que ela ataca Calisto por necessidade.
— Máximo tem razão—disse a sra. Schontz olhando para Artur, o qual corou extremamente.—Se eu lhe ganhei alguns mil francos de renda, você não poderia dar-lhes melhor
emprego. Eu teria feito a felicidade da mulher e do marido, isso é que é trabalhar bem!
— Foi coisa que jamais me passou pelo espírito—respondeu o marquês -; mas se deve ser gentil-homem antes de ser marido.
— Deixa-me dizer-te quando for tempo de ser generoso—disse Máximo.
— Artur—disse Aurélia—,Máximo tem razão... Vês, meu velho, nossas ações generosas são como as ações de Couture—disse ela, olhando pelo espelho para ver quem chegava—,é
preciso colocá-las em tempo oportuno.
Couture vinha acompanhado de Finot. Alguns instantes depois, os convivas foram reunidos no belo salão azul e ouro do palacete Schontz: tal era o nome que os artistas
davam à sua taberna, desde que Rochefide comprara-a para a sua Ninon II. Ao ver entrar la Palférine, que chegou por último, Máximo dirigiu-se a ele, levou-o ao vão
de uma janela e entregou-lhe as vinte notas de banco.
— Sobretudo, meu velho, não as poupes—disse com a graça peculiar aos estroinas.
— Não há como você saber duplicar assim o valor daquilo que parece dar!—replicou la Palférine.
— Estás decidido?
— Visto que recebo—respondeu o jovem conde com altivez e sarcasmo.
— Pois bem, Nathan, que aqui está, te apresentará dentro de dois dias em casa da marquesa de Rochefide—disse-lhe ele ao ouvido.
La Palférine deu um salto ao ouvir o nome.
— Não deixes de te confessar loucamente apaixonado por ela; e, para não despertar suspeitas, bebe vinho e licores até te emborrachares! Vou dizer a Aurélia que te
coloque ao lado de Nathan. Somente, meu caro, é preciso agora encontrar-nos todas as noites, no Boulevard de la Madaleine, a uma hora da manhã, tu, para comunicar-me
teus progressos, e eu, para dar-te instruções.
— Lá estaremos, mestre—disse o jovem conde, inclinando-se.
XVII - A ESCOLA DOS DIPLOMATAS
— Como é que nos fazes jantar com um tipo trajado como um primeiro garçom de restaurante?—perguntou Máximo, ao ouvido da sra. Schontz, designando-lhe Ronceret.
— Nunca tinhas visto o Herdeiro? Du Ronceret de Alençon.
— Senhor—disse Máximo a Fabiano—,deve conhecer meu amigo d’Esgrignon?
— Faz muito tempo que Viturniano não me conhece mais (Virtuniano d’Esgrignon: provavelmente se lembra dos maus serviços que lhe prestou, em Alençon, Fabiano du Ronceret.
Este último foi, com efeito, seu companheiro de prazeres e vícios, excitando-lhes os maus pendores. (Ver O gabinete das antiguidades.))—respondeu Fabiano -; mas
éramos muito unidos na nossa primeira mocidade.
O jantar foi um desses que só se dão em Paris, e em casa dessas grandes dissipadoras, porque seus requintes surpreendem os mais exigentes. Foi numa ceia semelhante,
em casa de uma cortesã bela e rica como a sra. Schontz, que Paganini declarou não ter jamais comido melhores petiscos em casa de nenhum soberano, nem bebido tais
vinhos à mesa de nenhum príncipe; nem ouvido conversação tão espirituosa, ou visto reluzir um luxo tão refinado.
Máximo e a sra. Schontz foram os primeiros a voltar para o salão, cerca das dez horas, deixando os convivas, que não velavam mais as anedotas, e se gabavam de suas
qualidades, colando os lábios viscosos nas bordas dos cálices, sem poder esvaziá-los.
— E então, minha querida—disse Máximo—,não te enganaste; sim, venho por teus belos olhos; trata-se de um grande negócio, é preciso deixares Artur, mas encarrego-me
de te fazer oferecer duzentos mil francos por ele.
— E por que o deixarei a esse pobre homem?
— Para te casares com esse imbecil, vindo de Alençon expressamente para isso. Ele já foi juiz, eu o farei nomear presidente no lugar do velho Blondet, que vai beirando
os oitenta e dois anos; e, se souberes governar teu barco, teu marido será deputado. Vocês serão personagens e poderás abafar a sra. condessa de Bruel.
— Nunca!—disse a sra. Schontz.—Ela é condessa.
— Tem ele estofo para vir a ser conde?
— Olha, ele tem brasão—disse Aurélia, procurando uma carta num cabaz magnífico, pendurado no canto da chaminé e apresentando-o a Máximo -; que quer isso dizer? Aí
estão uns pentes.
— Ele usa o escudo cortado: o primeiro de prata, com três pentes de goles em contrarroquete, entrecruzados com três cachos de uva de púrpura, hasteados e folhados
de sinople, em roquete; o segundo de blau, com quatro penas de ouro, passadas em frete, com Servir, como divisa, e capacete de escudeiro. Não é grande coisa, foram
enobrecidos por Luís XV, tiveram algum avô merceeiro, a linha materna fez fortuna no comércio de vinhos e o du Ronceret enobrecido devia ser escrivão... Mas, se
conseguires te desfazer de Artur, os du Ronceret serão pelo menos barões, isso te prometo, minha pequena corça. Vês, minha filha, terás de te fazer pôr em salmoura
durante uns cinco ou seis anos na província, se quiseres enterrar a Schontz na presidente... Aquele biltre lançou-te uns olhares, cujas intenções eram claras, tu
o tens...
— Não—respondeu Aurélia—,ao oferecimento de minha mão ele ficou, como a aguardente no boletim da Bolsa, muito calmo.
— Encarrego-me de o decidir, se ele está borracho... Vai ver em que ponto eles estão todos.
— É inútil ir até lá, não se ouve mais senão Bixiou que está fazendo uma das suas charges sem que ninguém o ouça; mas conheço o meu Artur, ele se julga obrigado
a ser polido com Bixiou e, de olhos fechados, deve estar ainda a olhá-lo.
— Vamos para lá, então.
— Ora esta! No interesse de quem trabalharei eu, Máximo?—perguntou a sra. Schontz, de repente.
— Da sra. de Rochefide—respondeu nitidamente Máximo—,é impossível reconciliá-la com Artur, enquanto tu o segurares; trata-se, para ela, de estar à frente de sua
casa e de gozar dos quatrocentos mil francos de renda!
— E ela propõe-me somente duzentos mil francos?... Quero trezentos mil, visto que se trata dela. Como! Cuidei-lhe do filho e do marido, faço as vezes dela em tudo
e ela regatearia comigo? Olhe, meu caro, eu então ficaria com o milhão. Com isso e, se prometes a presidência do tribunal de Alençon, poderei erguer a cabeça como
a sra. du Ronceret...
— Aceito—disse Máximo.
— Como me vão cacetear naquela cidadezinha!...—exclamou Aurélia filosoficamente.—Ouvi tanto falar daquela província por d’Esgrignon e pela Val-Noble que é como se
já tivesse vivido lá.
— E se eu te assegurasse o apoio da nobreza?
— Ah, Máximo, fale-me assim!... Sim, mas o pato recusa a asa.
— E é bem feio, com sua pele de ameixa; em vez de suíças ele tem umas sedas, tem o ar de um filhote de javali, embora tenha olhos de ave de rapina. Isso dará o mais
belo presidente do mundo. Tranquiliza-te! Dentro de dez minutos ele te cantará a ária de Isabel, no quarto ato de Roberto, o Diabo: “Estou a teus pés!...”, mas tu
te encarregas de expedir Artur para os de Beatriz?
— Vai ser difícil, mas entre vários se conseguirá...
Cerca das dez e meia os convivas voltaram para o salão, a fim de tomar o café. Nas circunstâncias em que se achavam a sra. Schontz, Couture e du Ronceret, é fácil
imaginar o efeito produzido sobre o ambicioso normando pela conversação seguinte que Máximo teve com Couture num canto, à meia-voz, para não serem ouvidos por ninguém,
mas que Fabiano ouviu:
— Meu caro, se você quiser ter juízo, você aceitará, num departamento afastado, a recebedoria geral que a sra. de Rochefide lhe fará dar; o milhão de Aurélia permitir-lhe-á
depor sua caução e você fará separação de bens, desposando-a. Você breve será deputado, se souber governar bem o seu barco, e o prêmio que quero por tê-lo salvo
será seu voto na Câmara.
— Sentir-me-ei sempre orgulhoso de ser um dos seus soldados.
— Ah, meu caro, escapou de boa! Imagina que Aurélia tinha se embeiçado por aquele normando de Alençon, pedia que o fizessem barão, presidente do tribunal da sua
cidade e oficial da Legião de Honra. O meu imbecil não soube avaliar o valor da sra. Schontz e você deve sua fortuna a um despeito; por isso não dê a essa espirituosa
rapariga o tempo de refletir. Quanto a mim, vou pôr os ferros no fogo.
E Máximo deixou Couture no cúmulo da felicidade, dizendo a la Palférine:
— Queres que te leve, meu filho?
XVIII - AINDA BEM
Às onze horas, Aurélia achava-se entre Couture, Fabiano e Rochefide. Artur dormia numa bergère, Couture e Fabiano tentavam um e outro fazer com que o adversário
se fosse, sem consegui-lo. A sra. Schontz terminou aquela luta com um “Até amanhã, meu caro!” dirigido a Couture que ele aceitou sem zangar-se.
— Senhorita—disse Fabiano em voz baixa—,quando me viu pensativo ante o oferecimento que me fez indiretamente, não creia que houve em mim a menor hesitação; mas a
senhora não conhece minha mãe e ela jamais consentiria na minha felicidade...
— O senhor tem a idade dos atos respeitosos (Atos respeitosos: ato judicial pelo qual um filho maior convida os pais a consentirem no casamento que deseja concluir.
Já assistimos a um desses atos em A vendeta.), meu caro—respondeu Aurélia insolentemente.—Mas se tem medo da mamãe, não é o que me convém.
— Josefina—disse ternamente o Herdeiro, passando atrevidamente o braço em torno à cintura da sra. Schontz—,eu pensei que me amasse.
— E daí?
— Talvez fosse possível amansar minha mãe e obter mais do que o seu consentimento.
— E como?
— Se a senhora quisesse empregar sua influência...
— A fazer-te criar barão, oficial da Legião de Honra, presidente do tribunal, não é, meu filho? Ouve, fiz tanta coisa na minha vida que sou capaz de virtude! Posso
ser uma boa mulher, uma mulher leal, e rebocar meu marido até bem alto; quero porém ser amada por ele, sem que jamais um olhar, um pensamento sejam desviados de
meu coração, nem mesmo em intenção... Convém-te isso?... Não te ligues imprudentemente, trata-se de tua vida, meu caro.
— Com uma mulher como a senhora, aceito sem ver—disse Fabiano inebriado por um olhar tanto quanto o estava pelos licores das ilhas.
— Jamais te arrependerás dessas palavras, meu bichano, serás par da França... Quanto a este pobre velho—continuou olhando Rochefide que dormia—,de hoje em diante
está a-ca-ba-do.
Aquilo foi tão bonito, tão bem dito, que Fabiano pegou a sra. Schontz e beijou-a num gesto de ira e de alegria, em que a dupla embriaguez do amor e do vinho cediam
à da felicidade e da ambição.
— Lembra-te, querido filho—disse ela—de proceder bem desde já com tua mulher, não banques o apaixonado, e deixa que eu me retire convenientemente do meu atoladouro.
E Couture, que se julga tão rico e recebedor geral!
— Tenho horror a esse homem—disse Fabiano—,quisera não mais vê-lo.
— Não o receberei mais—respondeu a cortesã, com um arzinho virtuoso.—Agora, que estamos de acordo, meu Fabiano, vai-te, pois já é uma hora.
XIX - O PÉ DE GUERRA EM SUAS RELAÇÕES COM A ESTABILIDADE
Essa pequena cena deu origem, no casal de Aurélia e de Artur, até então completamente feliz, à fase de guerra doméstica determinada no seio de todos os lares por
um interesse secreto num dos cônjuges.
Já no dia seguinte Artur despertou sozinho e achou a sra. Schontz fria, como essa espécie de mulheres se sabem mostrar frias.
— Que foi que houve afinal esta noite?—perguntou ele ao almoço e olhando para Aurélia.
— Em Paris é assim—disse ela.—A gente adormece com o tempo úmido; no dia seguinte o calçamento está seco e tudo está tão gelado que há até poeira; quer você uma
escova?
— Mas que tens tu, querida?
— Vá ter com seu estrepe de esposa...
— Minha esposa?...—exclamou o pobre marquês.
— Pensa que não adivinhei por que motivo você me trouxe Máximo ontem?... Você quer reconciliar-se com a sra. de Rochefide, que é capaz de estar precisando de você
por causa de algum garoto indiscreto... E eu, que você diz ser tão esperta, eu lhe aconselhava de restituir-lhe a fortuna!... Oh, percebo seu plano! Ao cabo de cinco
anos, o senhor está farto de mim. Eu tenho boas carnes, Beatriz tem bons ossos, isso ser-lhe-á uma variação. Você não é o primeiro que eu sei gostar de esqueletos.
De resto, sua Beatriz veste-se bem e você é um desses homens que gostam de cabides. E ademais quer fazer com que despeçam o sr. du Guénic. É um triunfo, isso vai
dar-lhe grande importância. Como se falará disso! Você vai ser um herói!
A sra. Schontz, às duas horas da tarde, não acabara ainda com os seus sarcasmos, apesar dos protestos de Artur. Ela disse estar convidada para jantar. Aconselhou
o seu infiel a que se conformasse de não tê-la nos Italiens, porque ela ia assistir a uma estreia no Ambigu-Comique (Ambigu-Comique: um dos teatros mais antigos
de Paris; inaugurado em 1769 no Boulevard du Temple, foi destruído por um incêndio em 1827 e reaberto pouco depois no Boulevard Saint-Martin, lugar onde existe até
hoje.) e travar relações com uma mulher encantadora, a sra. de la Baudraye (Sra. de la Baudraye: “A musa do departamento”, amante de Lousteau. Artur propôs, como
prova de afeição eterna para sua pequena Aurélia, e de sua aversão pela esposa, de partirem, já no dia seguinte, para a Itália, e de irem viver maritalmente em Roma,
em Nápoles ou Florença, à escolha de Aurélia, oferecendo-lhe uma dotação de sessenta mil francos de renda.
— Tudo isso são lorotas - disse ela.—Nada impede que você se reconcilie com sua mulher e andará muito bem.
Artur e Aurélia separaram-se depois desse diálogo formidável; ele, para ir jogar e jantar no clube, ela para vestir-se e ir passar o serão a sós com Fabiano.
O sr. de Rochefide encontrou Máximo no clube e queixou-se como homem que sentia que lhe arrancavam do coração uma felicidade, cujas raízes estavam presas a todas
as fibras. Máximo ouviu os lamentos do marquês como as pessoas corteses sabem ouvir, pensando em outra coisa.
— Sou homem de bom conselho nessa espécie de assuntos, meu caro—disse ele.—Pois bem, estás errando o caminho ao deixar Aurélia perceber o quanto te é cara. Deixa-me
apresentar-te à sra. Antônia. É um coração que está para alugar. Verás a Schontz tornar-se um cordeirinho... Ela tem trinta e sete anos, a tua Schontz, ao passo
que a sra. Antônia tem apenas vinte e seis primaveras! e que mulher! Não é só na cabeça que ela tem espírito! De resto, é minha discípula. Se a sra. Schontz permanecer
empertigada no alto de sua grandeza, sabe você o que isso significa?
— Palavra que não.
— Que talvez queira casar-se e então nada poderá impedi-la de te deixar. Depois de seis anos de arrendamento, convenhamos que essa mulher tem bem o direito... Mas
se me quiseres ouvir, haveria coisa melhor a fazer. Tua mulher hoje vale mil vezes mais do que todas as Schontz e todas as Antônias do bairro Saint-Georges. É uma
conquista difícil; mas não é impossível e agora ela te tornaria feliz como um Orgon (Feliz como um Orgon: alusão a uma personagem de Molière. Orgon, o hospedeiro
crédulo de Tartufo, só descobre os encantos da mulher depois que seu hóspede hipócrita tentou seduzi-la.)! Em todo caso, é preciso, se não quiseres ter o ar de um
toleirão, vir cear esta noite em casa de Antônia.
— Não, quero demasiado a Aurélia, não quero que ela tenha seja lá o que for a censurar-me.
— Ah, meu caro, que vida te estás preparando!—exclamou Máximo.
— São onze horas, ela deve ter voltado do Ambigu—disse Rochefide, saindo.
E bradou raivosamente ao cocheiro que o levasse a toda brida à rue de la Bruyère.
A sra. Schontz dera instruções precisas, e o senhor pôde entrar em casa, absolutamente como se estivesse nos melhores termos com a senhora, mas, prevenida da entrada,
em casa, do senhor, a senhora dispôs as coisas de modo a fazer o senhor ouvir o ruído da porta do gabinete de toilette fechar-se como se fecham as portas, quando
as mulheres são surpreendidas. Ademais, no canto do piano, o chapéu de Fabiano, esquecido propositalmente, foi muito desajeitadamente retirado pela criada de quarto,
nos primeiros momentos da conversação do senhor e da senhora.
— Não foste ao Ambigu, querida?
— Não, meu caro, mudei de resolução, estive tocando música.
— Quem te veio visitar?—disse o marquês com bonomia, ao ver a criada de quarto levar o chapéu.
— Ninguém.
Ante essa audaciosa mentira, Artur baixou a cabeça; estava passando por sob Forcas Caudinas (Forcas Caudinas: desfiladeiro do antigo país dos samnitas, onde os romanos
foram obrigados a render-se à discrição; figuradamente, concessão humilhante arrancada aos vencidos.) da complacência. O amor verdadeiro tem dessas sublimes covardias.
Artur portava-se com a sra. Schontz, como Sabina com Calisto, como Calisto com Beatriz.
XX - NOVA HISTÓRIA DAS VARIAÇÕES
Em oito dias fez-se a metamorfose da larva em borboleta no jovem, espirituoso e belo Carlos Eduardo, conde Rusticoli de la Palférine, o herói da cena intitulada
Um príncipe da Boêmia (ver Cenas da vida parisiense ( Nota de Balzac.)), o que dispensa fazer aqui seu retrato e descrever seu caráter. Vivera até então miseravelmente,
saldando seus débitos com uma audácia à Danton, mas pagou suas dívidas; depois, segundo o conselho de Máximo, teve seu carrinho baixo, foi admitido no Jóquei-Clube,
no clube da rue Gramont, tornou-se de uma elegância superior; finalmente publicou no Journal des Débats uma novela que, em poucos dias, lhe valeu uma reputação,
como os autores de profissão não conseguem senão após muitos anos de trabalhos e de êxitos, pois nada há em Paris tão violento como o que deve ser efêmero. Nathan,
seguro de que o conde jamais publicaria outra coisa, fez tal elogio daquele gracioso e impertinente jovem em casa da sra. de Rochefide, que Beatriz, aguçada pelas
narrativas do poeta, manifestou o desejo de ver aquele jovem rei dos ociosos de bom-tom.
— Ficará tanto mais encantado por vir aqui—respondeu Nathan—porque, pelo que sei, ele está apaixonado pela senhora a ponto de fazer loucuras.
— Mas ele já as fez todas, segundo me consta.
— Todas? Não—respondeu Nathan—,não cometeu ainda a de amar uma mulher honesta.
Seis dias após a conspiração urdida no Boulevard des Italiens, entre Máximo e o sedutor conde Carlos Eduardo, esse rapaz, ao qual a natureza dera, sem dúvida por
ironia, um semblante deliciosamente melancólico, fez sua primeira invasão no ninho da pomba da rue de Courcelles, a qual, para essa recepção, aproveitou uma noite
em que Calisto devia ir com a esposa a reuniões sociais. Quando encontrardes la Palférine, ou quando chegardes ao Príncipe da Boêmia, no terceiro livro desta longa
história de nossos costumes, concebereis perfeitamente o sucesso obtido numa única noite por aquele espírito cintilante, por aquela veia inaudita, sobretudo se imaginardes
o hábil jogo do cornaca que consentiu em servi-lo nessa estreia. Nathan foi um bom camarada, fez o jovem conde brilhar, como um joalheiro, ao mostrar um adereço
para vender, faz cintilar-lhe os diamantes.
La Palférine retirou-se discretamente, antes do companheiro, e deixou Nathan e a marquesa juntos, contando com a colaboração do autor célebre, o qual foi admirável.
Ao ver a marquesa aturdida, ele ateou-lhe fogo no coração por meio de reticências que fizeram vibrar nela fibras de curiosidades, que ela não conhecia. Nathan fez
compreender assim que o espírito de la Palférine não era tanto a causa de seus êxitos junto às mulheres, como a sua superioridade na arte de amar, e o engrandeceu
desmedidamente. É aqui o momento de constatar um novo efeito dessa grande lei dos contrários que determina muitas crises do coração humano, e que explica tantas
singularidades que se é forçado a lembrá-la algumas vezes, do mesmo modo que a lei dos similares. As cortesãs, para abranger todo o sexo feminino, ao qual se batiza,
se desbatiza e se rebatiza todos os quartos de século, conservam todas no fundo do coração um florescente desejo de recuperar sua liberdade, de amar pura, santa
e nobremente um ser ao qual tudo sacrificam. (Ver Esplendores e misérias das cortesãs (Nota de Balzac.).) Experimentam essa necessidade autêntica com tanta violência,
que é raro encontrar uma dessas mulheres que não tenha por mais de uma vez aspirado à virtude pelo amor. Não desanimam, apesar de horríveis logros. Ao contrário,
as mulheres contidas pela educação, pela sua hierarquia social, acorrentadas pela nobreza da família a que pertencem, vivendo no seio da opulência, ostentando uma
auréola de virtudes, são arrastadas, bem entendido secretamente, para as regiões tropicais do amor. Essas duas naturezas de mulheres, tão opostas, têm pois no fundo
do coração, uma, um pequeno desejo de virtude, a outra esse pequeno desejo de libertinagem que J. J. Rousseau foi o primeiro a ter a coragem de assinalar. Numa,
é o último reflexo do raio divino que ainda não se extinguiu; na outra, é o resto do nosso lado primitivo. Essa última garra da besta foi provocada, esse cabelo
do diabo foi puxado por Nathan com excessiva habilidade. A marquesa a si mesma perguntou seriamente se até agora não fora o ludíbrio de seu espírito, se sua educação
estava completa. O vício?... é talvez o desejo de tudo saber.
XXI - A SOCIEDADE VINGA-SE
No dia seguinte, Beatriz viu Calisto tal qual ele era, um leal e perfeito gentil-homem, mas sem verve e sem espírito. Em Paris, um homem a quem se classifica de
espirituoso é um homem que deve ter espírito como as fontes têm água, porque os mundanos e os parisienses em geral são espirituosos; mas Calisto amava demais, estava
por demais absorvido para aperceber-se das mudanças de Beatriz, e satisfazê-la, exibindo novos recursos; apareceu muito pálido ante o reflexo do serão precedente
e não deu a menor emoção à faminta Beatriz.
Um grande amor é um crédito aberto a uma potência tão voraz, que o momento da falência chega sempre. Apesar da fadiga daquele dia (o dia em que uma mulher se aborrece
junto ao amante!) Beatriz estremeceu de medo ao pensar no encontro entre la Palférine, o sucessor de Máximo de Trailles, e Calisto, homem de coragem sem fanfarronadas.
Hesitou pois em rever o jovem conde, mas esse nó foi cortado por um fato decisivo.
Beatriz tomara um terço de camarote nos Italiens, num camarote obscuro da primeira ordem, a fim de não ser vista. Fazia alguns dias, Calisto, encorajado, levava
a marquesa e mantinha-se no camarote atrás dela, combinando a chegada bastante tarde, a fim de não serem vistos por ninguém. Beatriz era das primeiras a sair da
sala, antes do fim do primeiro ato, e Calisto acompanhava-a de longe, vigiando-a, embora o velho Antônio viesse buscar a patroa.
Máximo e la Palférine estudaram essa estratégia inspirada pelo respeito das conveniências, por essa necessidade de mistério que distingue os idólatras da eterna
criança, e também por um medo que oprime todas as mulheres que, em outros tempos, pertenceram às constelações da alta sociedade e que o amor fez decair de sua posição
zodiacal. A humilhação é então temida como uma agonia mais cruel do que a morte; mas essa agonia do orgulho, essa afronta, que as mulheres permanecidas em seu posto
no Olimpo atiram sobre as que caíram, teve lugar nas mais horrorosas condições, graças aos cuidados de Máximo.
Numa representação da Lúcia (Lúcia: ópera de Donizetti, com letra de Salvatore Cammarano (1801-1852). Título completo: Lúcia de Lammermoor (1835).), que, como se
sabe, termina por um dos mais belos triunfos da Rubini, a sra. de Rochefide, a quem Antônio não viera prevenir, chegou pelo corredor costumeiro ao peristilo do teatro,
cujas escadas estavam cheias de lindas mulheres, escalonadas nos degraus, ou agrupadas embaixo à espera de que seus lacaios anunciassem seus carros. Beatriz foi
reconhecida ao mesmo tempo por todos os olhos e excitou em todos os grupos sussurros que fizeram ruído. Num abrir e fechar de olhos, a multidão se dissolveu, a marquesa
ficou só como uma pestosa.
Calisto não se atreveu, ao ver a esposa numa das escadas, ir fazer companhia à réproba, e Beatriz dirigiu-lhe, mas em vão, por meio de um olhar encharcado de lágrimas,
por duas vezes, uma súplica, para que viesse para perto dela.
Nesse momento, la Palférine, elegante, soberbo, encantador, deixou duas mulheres, veio saudar a marquesa e conversar com ela.
— Tome meu braço e saia altivamente, eu saberei encontrar seu carro—disse-lhe ele.
— Quer vir terminar o serão comigo?—respondeu-lhe ela, subindo para o carro e dando-lhe um lugar a seu lado.
La Palférine disse ao seu groom: “Siga o carro da senhora!” e subiu para junto da sra. de Rochefide com grande estupefação de Calisto, o qual ficou plantado nas
duas pernas como se elas se tivessem tornado de chumbo, porque foi por tê-lo entrevisto, pálido e lívido, que Beatriz fizera sinal ao jovem conde para subir a seu
lado. Todas as pombas são Robespierres de penas brancas. Três carros chegaram à rue de Courcelles com rapidez fulminante, o de Calisto, o de la Palférine e o da
marquesa.
— Ah! veio?—disse Beatriz ao entrar em seu salão, apoiada no braço do jovem conde, e lá achando Calisto, cujo cavalo tinha passado à frente dos dois outros carros.
— Conhece então o senhor?—perguntou raivosamente Calisto a Beatriz.
— O sr. conde de la Palférine foi-me apresentado por Nathan, faz dez dias—respondeu Beatriz—,e o senhor conhece-me há quatro anos...
— E estou pronto, senhora—disse Carlos Eduardo—,a fazer que se arrependa até seus netos a marquesa d’Espard, que foi a primeira a afastar-se da senhora...
— Ah, foi ela! - gritou Beatriz.—Ela me pagará isso.
— Para vingar-se, seria preciso reconquistar seu marido, mas sou capaz de trazê-lo a seus pés—disse o rapaz ao ouvido da marquesa.
A conversação assim iniciada foi até as duas horas da madrugada, sem que Calisto, cuja raiva foi incessantemente recalcada pelos olhares de Beatriz, lhe tivesse
podido dizer duas palavras em particular. La Palférine, que não gostava de Beatriz, foi de uma superioridade de bom gosto, de espírito e de graça igual à inferioridade
de Calisto, que se retorcia na cadeira como um verme cortado em dois e que, por três vezes, se ergueu para esbofetear la Palférine.
Da terceira vez em que Calisto deu um salto na direção do rival, o jovem conde disse-lhe um “Está sentindo algo, senhor barão?...” que fez Calisto sentar-se numa
cadeira, onde permaneceu como marco. A marquesa conversava com um desembaraço de Célimène (Célimène: personagem de O misantropo, de Molière; tipo da mulher faceira,
bonita, espirituosa e desembaraçada.), fingindo ignorar que Calisto ali estivesse.
La Palférine teve a suprema habilidade de sair, ao dizer uma frase de muito espírito, deixando os dois amantes brigados.
Assim, pois, pela habilidade de Máximo, o fogo da discórdia chamejava no duplo casal do sr. e da sra. de Rochefide.
XXII - OS INCURÁVEIS
No dia seguinte, ao ter notícia do êxito dessa cena por la Palférine, no Jóquei-Clube, onde o jovem conde jogava o uíste com muita sorte, Máximo foi à rue de la
Bruyère, à residência da sra. Schontz, saber como Aurélia governava o seu barco.
— Meu caro—disse a sra. Schontz, rindo ante o aspecto de Máximo—,estou no fim de todos os meus expedientes; Rochefide é incurável. Termino a minha carreira de galanteria
verificando que nela o espírito é uma desgraça.
— Explique-me essas palavras...
— Primeiro, meu caro amigo, mantive meu Artur, durante oito dias, no regime dos pontapés nos ossos das pernas, das serrazinas mais patrióticas e de tudo que conhecemos
de mais desagradável na nossa profissão. “Estás doente”, dizia-me ele com meiguice paternal, “porque nunca te fiz senão bem e amo-te até a adoração.” “Você tem um
defeito, meu caro”, disse-lhe eu, “você me caceteia”. “Pois bem, não tens acaso para te divertir as pessoas mais espirituosas e os mais belos rapazes de Paris?”,
respondeu-me aquele pobre homem. Fiquei arrolhada. Senti então que o amava!
— Ah!—disse Máximo.
— Que queres? É mais forte do que nós, não se pode resistir a esses modos. Mudei de pedal. Fiz umas provocações àquele javali judiciário, ao meu futuro transformado
em carneiro como Artur, fi-lo ficar ali na bergère de Rochefide, e achei-o bastante tolo. Como me entediei!... era preciso ter Fabiano ali para fazer-me surpreender
com ele...
— E então—exclamou Máximo—,conclui de uma vez!... Vejamos, quando Rochefide te surpreendeu com ele?
— Não acertaste, meu velho. Segundo tuas instruções, os proclamas estão publicados, nosso contrato está sendo redigido; assim, pois, Nossa Senhora de Loreto nada
tem a dizer. Quando há promessa de casamento, pode-se bem dar arras... Ao surpreender-nos, a Fabiano e a mim, o pobre Artur retirou-se na ponta dos pés até a sala
de jantar e lá pôs-se a fazer: “Bum! Bum!”, tossindo e esbarrando com uma porção de cadeiras. Esse grande idiota de Fabiano, ao qual não posso dizer tudo, teve medo...
Eis aí, querido Máximo, o ponto em que estamos... Artur, se me vir com alguém, uma manhã, ao entrar no meu quarto, é capaz de dizer-me: “Passaram bem a noite, meus
filhos?”.
Máximo meneou a cabeça e brincou durante alguns instantes com a bengala.
— Conheço esses temperamentos—disse ele.—Eis como deves proceder: nada mais resta do que atirar Artur pela janela e fechar bem a porta. Recomeçarás tua última cena
com Fabiano...
— É o que se chama uma maçada! Porque, afinal, o sacramento não me deu ainda sua virtude.
— Tu te arranjarás para trocar um olhar com Artur, quando ele te surpreender—disse Máximo, continuando -; se ele se zangar, está tudo dito. Se ele fizer outra vez
“Bum! Bum!”, aí então estará tudo definitivamente terminado...
— E como?
— Pois tu te zangas e lhe dizes: “Julgava-me amada, estimada; mas você nada mais sente por mim; não tem ciúmes...”. Conheces a tirada! “Nesse caso, Máximo (faze-me
intervir) mataria seu homem imediatamente (e choras). E Fabiano (envergonha-o, comparando-o a Fabiano), Fabiano a que amo, Fabiano puxaria um punhal para mergulhá-lo
no teu coração. Ah, isso sim é amor! Mas também, olhe, adeus, boa noite, fique com o seu palacete, desposo Fabiano, ele dá-me o seu nome! Pisoteia a velha mãe!...”
enfim, tu...
— Já se sabe! Já se sabe! Serei soberba!—exclamou a sra. Schontz.—Ah, Máximo, não haverá nunca senão um Máximo, como não houve senão um de Marsay.
— La Palférine é superior a mim—respondeu modestamente o conde de Trailles—,ele vai muito bem.
— Ele tem língua, mas tu tens pulso e ombros! O que suportaste! Os que embrulhaste!—disse a Schontz.
— La Palférine tem tudo, ele é profundo e instruído; ao passo que sou ignorante—respondeu Máximo.—Vi Rastignac, que confabulou imediatamente com o guarda-selos;
Fabiano será nomeado presidente e oficial da Legião de Honra, após um ano de exercício.
— Far-me-ei devota!—respondeu a sra. Schontz, acentuando essa frase de modo a obter um sinal de aprovação de Máximo.
— Os padres valem mais do que nós—replicou ele.
— Ah! sim?—perguntou a sra. Schontz.—Poderei então encontrar gente com quem falar na província. Comecei meu papel. Fabiano já disse à mãe que a graça me iluminará
e fascinou a boa velha com o meu milhão e com a presidência; ela consente em que moremos com ela, pediu o meu retrato e mandou-me o seu: se o Amor o olhasse, cairia...
de costas! Vai-te, Máximo; esta noite vou executar meu pobre homem, e isso me parte o coração.
XXIII - OS CASOS DA VIDA
Dois dias depois, ao se encontrarem na porta do Jóquei-Clube, Carlos Eduardo disse a Máximo:
— Está feito!
Essas palavras, que continham um drama horrível, espantoso, realizado muitas vezes por vingança, fez o conde de Trailles sorrir.
— Vamos ouvir as lamentações de Rochefide—disse Máximo—,porque vós alcançastes juntos o alvo, tu e Aurélia! Aurélia pôs Artur no olho da rua, e é preciso agora encerrá-lo;
ele deve dar trezentos mil francos à sra. du Ronceret e voltar para a esposa; vamos provar-lhe que Beatriz é superior a Aurélia.
— Temos bem dez dias pela frente—disse astutamente Carlos Eduardo—,e em consciência não é demais; porque, agora que conheço a marquesa, acho que o pobre homem vai
ser lindamente roubado.
— Como farás, quando a bomba arrebentar?
— Sempre se tem espírito quando se tem tempo de procurá-lo, e eu sou soberbo, principalmente quando me preparo.
Os dois jogadores entraram no salão e encontraram o marquês de Rochefide envelhecido de dois anos! Não pusera seu espartilho, estava sem sua elegância e de barba
comprida.
— E então, caro marquês?—disse Máximo.
— Ah, meu caro, estou com a vida despedaçada!
Artur falou durante dez minutos e Máximo ouviou-o gravemente; estava pensando em seu casamento que se realizaria dentro de oito dias.
— Meu querido Artur, eu te aconselhei o único meio de conservares Aurélia, e tu não quiseste...
— Qual era?
— Não te aconselhei a que fosses cear em casa de Antônia?
— É verdade... Que queres! Amo... e tu fazes o amor como Grisier (Grisier: Augustin-Edme-François Grisier (1791-1865), famoso mestre de armas, autor de um livro
sobre as regras do duelo; Dumas lhe escreveu as memórias em O mestre de armas.) faz esgrima.
— Ouve, Artur, dá-lhe trezentos mil francos por seu pequeno palacete e prometo-te que te encontrarei coisa melhor que ela... Falar-te-ei dessa bela desconhecida
mais tarde, vejo ali d’Ajuda que me quer dizer duas palavras.
E Máximo deixou o homem inconsolável, para ir ao representante de uma família por consolar.
— Meu caro—disse o outro marquês ao ouvido de Máximo—,a duquesa está desesperada, Calisto mandou arrumar secretamente as malas e tirou um passaporte. Sabina quer
seguir os fugitivos, surpreender Beatriz e arranhá-la. Sabina está grávida, e isso toma as proporções de um desejo bastante mortífero, porque ela foi comprar publicamente
umas pistolas.
— Dize à duquesa que a sra. de Rochefide não partirá e que dentro de quinze dias tudo estará terminado. Agora, d’Ajuda, tua mão? Nem tu, nem eu jamais dissemos nada,
nada soubemos! Admiraremos os acasos da vida!...
— A duquesa já me fez jurar, pelos santos evangelhos e pela cruz, que eu me calaria.
— Daqui a um mês receberá minha esposa?
— Com prazer.
— Todos ficarão contentes—respondeu Máximo -; unicamente, previne a duquesa de uma circunstância que vai retardar de seis semanas sua viagem à Itália e que diz respeito
ao sr. du Guénic; mais tarde saberás o motivo.
— Que é?—disse d’Ajuda que olhava para la Palférine.
— A palavra de Sócrates antes de partir: “Nós devemos um galo a Esculápio” (Nós devemos um galo a Esculápio...: a Esculápio, deus da medicina, os doentes curados
ofereciam um galo, símbolo de vigilância.), mas seu cunhado ficará quite com a crista—respondeu la Palférine, sem pestanejar.
XXIV - UMA TERRÍVEL LIÇÃO
E, durante dez dias, Calisto viveu sob o peso de uma cólera tanto mais invencível, por ter ela por base uma paixão verdadeira. Beatriz punha à prova aquele amor
exposto à duquesa de Grandlieu por Máximo de Trailles, tão brutalmente, mas com tanta fidelidade! É possível que não existam seres bem organizados que não tenham
experimentado essa terrível paixão, uma vez que seja, no decurso de sua vida. A marquesa sentia-se dominada por uma força superior, por um rapaz a quem sua linhagem
não impressionava, que, tão nobre quanto ela, contemplava-a com olhar poderoso e calmo, e ao qual seus maiores esforços de mulher arrancavam apenas um sorriso elogioso.
Era, finalmente, oprimida por um tirano que nunca a deixava a não ser chorando, ferida, e julgando-se cheia de culpas.
Carlos Eduardo representava para a sra. de Rochefide a comédia que esta, fazia seis meses, representava para Calisto. Beatriz, desde a humilhação pública que recebera
nos Italiens, não saíra mais com o sr. du Guénic fora desta proposição:
— Você preferiu, a mim, a sociedade e sua mulher, logo você não me ama. Se quer provar que me ama, sacrifique-me sua mulher e a sociedade. Abandone Sabina e vamos
viver na Suíça, na Itália ou na Alemanha!
Firmando-se nesse duro ultimato, ela estabelecera esse bloqueio que as mulheres denunciam por olhares frios, gestos desdenhosos e suas atitudes de praça forte. Julgava-se
libertada de Calisto, pensava que ele jamais ousasse romper com os Grandlieu. Abandonar Sabina, a quem a srta. des Touches dera sua fortuna, não era isso atirar-se
na miséria? Calisto, porém, que ficara louco de desespero, tirara secretamente um passaporte e pedira à mãe que lhe enviasse uma quantia considerável. Enquanto esperava
essa remessa de fundos, ele vigiava Beatriz, dominado pelo furor completo de um ciúme bretão.
Finalmente, nove dias após a fatal comunicação feita no clube por la Palférine a Máximo, o barão, a quem a mãe enviara trinta mil francos, foi célere à casa de Beatriz
com a intenção de forçar o bloqueio, expulsar la Palférine e abandonar Paris com seu ídolo acalmado.
Foi uma dessas alternativas terríveis, na qual as mulheres que conservaram um pouco de respeito por si mesmas mergulham para sempre nas profundezas do vício, mas
de onde podem voltar para a virtude. Até ali, a sra. de Rochefide considerava-se como uma mulher virtuosa e em cujo coração duas paixões tinham caído; mas adorar
Carlos Eduardo e deixar-se amar por Calisto ia fazê-la perder a própria estima; porque, onde começa a mentira, começa a infâmia. Dera direitos a Calisto, e nenhum
poder humano podia impedir o bretão de se lhe atirar aos pés e regá-los com as lágrimas de um arrependimento absoluto. Muita gente se admira da insensibilidade glacial
com que as mulheres extinguem seus amores; mas se elas não apagassem assim o passado, a vida não teria dignidade para elas, e jamais poderiam resistir à privança
fatal a que se submeteram uma vez.
Na situação inteiramente nova em que se achava, Beatriz ter-se-ia salvo se la Palférine tivesse vindo; mas a inteligência do velho Antônio perdeu-a.
Ao ouvir um carro que se detinha na porta, ela disse a Calisto:
— Aí tenho visitas.
E correu a fim de prevenir uma explosão.
Antônio, como homem prudente que era, disse a Carlos Eduardo que não vinha por outra coisa senão para ouvir aquelas palavras:
— A senhora marquesa saiu!
Quando Beatriz soube, pelo seu velho criado, da visita do jovem conde e da resposta que lhe fora dada, disse: “Está bem!”, e voltou ao salão dizendo para si mesma:
“Far-me-ei freira!”
Calisto, que se permitira abrir a janela, avistou o rival.
— Quem foi que veio?—perguntou.
— Não sei, Antônio ainda está lá embaixo.
— É la Palférine.
— É possível.
— Tu o amas, e eis por que me achas uma porção de culpas... Eu o vi!...
— Viste-o?
— Abri a janela.
Beatriz caiu como morta no divã. Transigiu então para ter um amanhã; transferiu a partida para daí a oito dias sob pretexto de negócios, e a si mesma jurou fechar
a porta a Calisto, se pudesse apaziguar la Palférine; porque tais são os espantosos cálculos e as queimantes angústias ocultas por essas existências, saídas dos
trilhos sobre os quais rola o grande comboio social.
XXV - BEATA BEATRIX
* (Beata Beatrix: trocadilho latino sobre o nome da heroína. Beata em latim significa “feliz”; Beatrix, “aquela que torna feliz a alguém”.)
Quando Beatriz ficou só, sentiu-se tão infeliz, tão profundamente humilhada que foi para a cama: estava doente; o violento combate, que lhe despedaçava o coração,
pareceu-lhe ter uma reação horrível; mandou chamar o médico; mas ao mesmo tempo mandou entregar em casa de la Palférine a seguinte carta, na qual se vingou de Calisto
com uma espécie de raiva:
Meu amigo:
Venha ver-me, estou desesperada. Antônio despediu-o quando sua chegada teria posto fim a um dos mais horríveis pesadelos de minha vida, livrando-me de um homem a
quem odeio e que jamais tornarei a ver, assim o espero. Não amo senão a você no mundo e não amarei a mais ninguém, embora tenha a infelicidade de não lhe agradar
tanto quanto eu o quisera...
Escreveu quatro páginas, que, começando assim, terminavam por uma exaltação por demais poética para ser impressa, mas nas quais Beatriz comprometia-se tanto, que
a terminou por: “Não estou assim suficientemente a tua mercê? Ah! nada me custará para provar-te o quanto és amado!”, e assinou, coisa que jamais fizera nem para
Conti, nem para Calisto.
No dia seguinte, à hora em que o jovem conde veio à casa da marquesa, ela estava no banho; Antônio pediu-lhe que esperasse. Por sua vez, despediu Calisto, o qual,
esfaimado de amor, veio cedo, tendo olhado para a janela no momento em que subia para o carro, desesperado.
— Ah, Carlos—disse a marquesa ao entrar no salão—,você perdeu-me!
— Sei perfeitamente disso, senhora—respondeu tranquilamente la Palférine.—Jurou-me que só amava a mim, ofereceu-se a dar-me uma carta, na qual escreveria os motivos
que teria para matar-se a fim de que em caso de infidelidade eu a pudesse envenenar sem nada ter a temer da justiça humana, como se pessoas superiores precisassem
recorrer ao veneno para vingar-se. Escreveu-me: Nada me custará fazer para provar-te o quanto és amado!... Pois bem, encontro uma contradição nessa frase: Você perdeu-me!
com esse fim de carta... Saberei agora se terá a coragem de romper com du Guénic.
— Pois bem, tu te vingaste dele antecipadamente—disse ela saltando-lhe ao pescoço. —E a começar desse assunto, tu e eu estamos ligados para sempre.
— Senhora—disse friamente o príncipe da Boêmia—,se me quer como amigo consinto nisso; mas com condições...
— Condições?
— Sim, as condições que aqui vão. A senhora se reconciliará com o sr. de Rochefide, recuperará as honras de sua condição social, voltará para o seu belo apartamento
da rue de Anjou e será uma das rainhas de Paris; poderá consegui-lo, fazendo Rochefide desempenhar um papel político e pondo na sua conduta a habilidade e a persistência
que a sra. d’Espard desenvolveu. Eis a situação em que se deve achar uma mulher, a quem faço a honra de dar-me...
— Mas esquece que o consentimento do sr. de Rochefide é necessário.
— Oh, querida filha—respondeu la Palférine—,nós já lho preparamos: eu empenhei-lhe minha palavra de gentil-homem que você valia mais do que todas as Schontz do bairro
de Saint-Georges, e deve ter-me na conta de um homem de honra...
XXVI - ASSIM É QUE OS ALMAVIVA SÃO SEMPRE MAIS FORTES DO QUE OS FÍGARO
*(Assim é que os Almaviva são sempre mais fortes que os Fígaro. Alusão ao Casamento de Fígaro, de Beaumarchais, em que o manhoso e espirituoso barbeiro vence em
intrigas o seu dono, o conde Almaviva, rico libertino. Balzac parece querer indicar, pelo título, que quando os aristocratas que têm espírito se metem em intrigas,
alcançam êxito ainda mais completo do que os Fígaro.)
Durante oito dias, diariamente, Calisto foi à casa de Beatriz, cuja entrada lhe foi recusada por Antônio, o qual tomava uma cara de circunstância para dizer: “A
senhora está perigosamente doente”. Dali Calisto corria à casa de la Palférine, cujo criado de quarto respondia: “O senhor conde está caçando”. De cada vez, o bretão
deixava uma carta para la Palférine.
No nono dia, Calisto, convidado por um bilhete de la Palférine para uma explicação, encontrou-o, mas em companhia de Máximo de Trailles, a quem o jovem estroina
queria dar, sem dúvida, uma prova da sua habilidade, tornando-o testemunha dessa cena.
— Senhor barão—disse tranquilamente Carlos Eduardo—,aqui estão as seis cartas que o senhor me fez a honra de escrever; elas estão perfeitas e completas, não foram
abertas; eu sabia de antemão o que poderiam conter, ao verificar que o senhor andava à minha procura por toda a parte, desde o dia em que o olhei pela janela, quando
o senhor estava na porta de uma casa, onde na véspera eu estava na porta, quando o senhor estava na janela. Achei que devia ignorar provocações descabidas. Entre
nós, o senhor deve ter demasiado bom gosto para querer mal a uma senhora que não o ama mais. É um péssimo meio de reconquistá-la esse de provocar briga com o preferido.
Nas circunstâncias atuais, porém, suas cartas estavam prejudicadas por um vício radical, por uma nulidade, como dizem os advogados. O senhor tem demasiado bom-senso
para querer mal a um marido pelo fato de ele retomar sua esposa. A sra. de Rochefide sentiu que a situação da esposa carecia de dignidade. O senhor não achará mais
a sra. de Rochefide na rue de Courcelles, mas sim no palácio de Rochefide, dentro de seis meses, no próximo inverno. O senhor atirou-se estouvadamente no meio de
uma reconciliação entre esposos, que o senhor mesmo provocou, ao não salvar a sra. de Rochefide da humilhação que ela sofreu nos Italiens. Ao sair dali, Beatriz,
a quem eu já levara algumas propostas amigáveis de parte do marido, tomou-me no seu carro e sua primeira palavra então foi: “Vá buscar Artur”.
— Oh, meu Deus!—exclamou Calisto.—Ela tinha razão, não lhe mostrei devotamento.
— Infelizmente, senhor, esse pobre Artur vivia com uma dessas mulheres atrozes, a Schontz, a qual, havia muito, se via de hora em hora em perigo de ser abandonada.
A sra. Schontz que, baseada na tez de Beatriz, nutria o desejo de ver-se um dia marquesa de Rochefide, ficou furibunda ao ver por terra seus castelos no ar, quis
vingar-se com um só golpe do marido e da mulher. Essas mulheres, senhor, são capazes de se furar um olho para poderem furar dois a seu inimigo; a Schontz, que acaba
de sair de Paris, furou seis!... E se eu tivesse tido a imprudência de amar Beatriz, aquela Schontz teria furado oito. O senhor deve ter percebido que está precisando
de um oculista.
Máximo não pôde deixar de sorrir ante a mudança operada no semblante de Calisto, o qual empalideceu ao abrir os olhos sobre a situação.
— Poderá crer, senhor, que essa ignóbil mulher deu a mão de esposa ao homem que lhe forneceu os meios de vingar-se? Oh, as mulheres!... Compreende agora o motivo
pelo qual Beatriz se encerrou com Artur, por alguns meses, em Nogent-sur-Marne, onde eles têm uma deliciosa casinha, eles aí recuperarão a vista. Durante essa estada,
vão restaurar o palácio, pretendendo a marquesa desenvolver nele um esplendor principesco. Quando se ama sinceramente uma mulher tão nobre, tão grande, tão graciosa,
vítima do amor conjugal no momento em que tem a coragem de se entregar novamente aos seus deveres, o papel daqueles que a adoram, como o senhor a adora, e a admiram,
como eu a admiro, é de permanecermos seus amigos, quando não se pode ser mais senão isso. Espero que queira desculpar-me se julguei dever fazer o sr. conde de Trailles
testemunha desta explicação; mas eu fazia questão fechada de ser claro em tudo isto. Quanto a mim, quero dizer-lhe que, se admiro a sra. de Rochefide como inteligência,
ela me desagrada soberanamente como mulher.
— Eis, pois, como terminam os nossos mais belos sonhos, nossos amores celestiais!—disse Calisto estonteado com tantas revelações e desilusões.
— Em rabo de foguete—exclamou Máximo—ou, o que é pior, em droga de botica! Não conheço primeiro amor que não termine tolamente. Ah, senhor barão, tudo o que o homem
tem de celestial não encontra alimento senão no céu!... Eis o que nos dá razão a nós outros, os devassos. Eu estudei muito esse assunto, senhor; e como vê sou um
casado de ontem e serei fiel à minha mulher, e aconselho-o a que volte para a sra. du Guénic, mas... daqui a três meses. Não tenha saudades de Beatriz, ela é modelo
dessas naturezas vaidosas, sem energia, coquetes por amor à gloríola, é a sra. d’Espard sem a sua política profunda, a mulher sem coração, nem cabeça, desastrada
no mal. A sra. de Rochefide só ama a sra. de Rochefide; ela o teria indisposto para sempre com a sra. du Guénic e o largaria em qualquer momento, sem remorsos; enfim
é incompleta para o vício como para a virtude.
— Não sou da tua opinião, Máximo—disse la Palférine—,ela será a mais deliciosa das donas de casa de Paris.
Calisto não saiu sem ter antes trocado um aperto de mão com Carlos Eduardo e Máximo de Trailles, agradecendo-lhes por terem-no operado das suas ilusões.
XXVII - QUANTAS COISAS AS FÁBULAS DE LA FONTAINE EXPLICAM
Três dias depois, a duquesa de Grandlieu, que não vira a filha Sabina desde a manhã em que tivera lugar aquela conferência, chegou uma manhã e encontrou Calisto
no banho; Sabina junto dele trabalhava em novos enfeites para o enxoval do próximo filho.
— E então, que lhes acontece, meus filhos?—perguntou a boa duquesa.
— Nada, a não ser de bom, querida mamãe—respondeu Sabina, a qual ergueu para a mãe dois olhos radiantes de felicidade—,nós representamos a fábula dos Dois pombos
(A fábula dos dois pombos é de La Fontaine (em francês Les Deux Pigeons). Conta o grande fabulista, nessa encantadora narrativa, o caso de um pombo que abandona
a companheira para viajar e ver o mundo. Em breve tempo vê-se, porém, envolvido em aventuras desastrosas e apressa-se a voltar ao ninho para junto da esposa abandonada.)!
eis tudo.
Calisto estendeu a mão para a esposa e apertou-lha ternamente.
1838-1844

 

 

                                                                  Honoré de Balzac

 

 

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