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Planeta Criança



Poesia & Contos Infantis

 

 

 


BENÇÃOS ROUBADAS / Lawrence Sanders
BENÇÃOS ROUBADAS / Lawrence Sanders

                                                                                                                                                   

                                                                                                                                                  

 

Biblio VT

 

 

 

 

A mulher mais bela do mundo, conhecida entre os produtores cinematográficos de Hollywood por Átila, a Huna, entra com grandes passadas na sede das Empresas Marilyn Taylor, situadas em El Camino Drive. O medo e a agitação que a precedem dão lugar a um verdadeiro pandemónio.
Começa por dizer à trémula recepcionista que nunca, mas nunca mais, vista aquela blusa: - O verde-bílis faz-me dores de dentes!
Depois, ordena a Murray, o jovem contínuo com aspecto de surfista, que lhe vá buscar um bloody maria (feito com tequila) bem condimentado: "Quero um caule de aipo e um quarto de lima."
Vira-se para o seu administrador, Benjamin Geltman, e diz-lhe que volte a conferir os números do inventário da boutique de Spokane, referentes à Marilyn Taylor Lingerie, Inc.: "Se os números forem mesmo aqueles, mande prender o gerente!"
Informa o seu advogado, A. Stewart Roche, de que a proposta de contrato apresentada pela Magnum Pathway Films, para Joan of Arkansas é inaceitável: "Quero um adiantamento de metade dos oito milhões."
Diz a Loretta Donovan, a sua esteticista negra, que quer pintar as unhas dos pés com verniz prateado: "Alguma coisa que brilhe muito!"
Dirigindo-se ao seu relações públicas, Gary Flomm, ordena-lhe que mande despedir o crítico de cinema da Cinema Today, por causa da crítica que ele fez ao seu desempenho num remake do Rebecca of Sunnybrook Farm e, quando Flomm, com uma risadinha nervosa, lhe dá a entender que isso pode ser difícil, Marilyn responde-lhe, furiosa: "Então, que lhe dêem uma sova que lhe dê cabo das rótulas, para que esse filho da mãe tenha de andar para o resto da vida em cima de um patim!"
Dá instruções a Shari, a estilista italiana das Marilyn Taylor Fashion, Inc., para que mande descer o decote do novo vestido de noite, em lamé dourado: "M e C, querida! Quando mais sexy melhor, porque mamas e eu é o que está a dar."
Diz à secretária, Harriet Boltz, que se certifique de que o jacto da companhia está abastecido e pronto para partir: "Vê lá se há bastante champanhe a bordo."
Voltando-se para Sidney, o seu perfumado cabeleireiro, informa-o de que a acompanhará a Nova Iorque: "Leve a peruca preta e o véu. Pode levar também a punk, só por brincadeira."
Quanto ao seu guarda-costas, Tony Perez, um mexicano que emigrara ilegalmente para os Estados Unidos, encarrega-o de levar a sua caixa de jóias: "Perca-as e ficará sem as suas"
Posto isto, entram todos para o seu gabinete, uma divisão espaçosa e decorada com retratos de produtores, realizadores, actores masculinos famosos e críticos de cinema, todos emoldurados com aros de sanita, em esmalte branco.

 


 


Ela despe-se, ficando apenas com o soutien e as calcinhas, senta-se na cadeira giratória em cabedal preto, por detrás da secretária de teca, e fica coberta por um lençol florido, uma criação das Marilyn Taylor Linens, Inc. Beberrica o seu bloody maría enquanto lhe penteiam artisticamente os caracóis louros e lhe pintam as unhas dos pés com Lua Cheia, um verniz dos Marilyn Taylor Cosmetics, Inc. Responde a um monte de perguntas que o stafflhe faz, com respostas rápidas, categóricas e, muitas das vezes, obscenas.
Atende igualmente uma série de chamadas telefónicas: o seu corretor, o conselheiro financeiro, o psiquiatra, o ginecologista e alguns repórteres; pedidos de contribuições, entrevistas e fotografias autografadas; ofertas
de papéis em filmes; apelos a empréstimos e convites para almoços, jantares, premières, orgias e bailes de beneficência. A todos dá a mesma resposta: está de abalada para Nova Iorque; por isso, voltem a ligar quando ela regressar, daqui a, oh, talvez três ou quatro semanas.
O mais insistente é Sam Davidson, um canalha que produziu o seu primeiro filme e que não se cansa de lho recordar. Chamava-se ele Private Parts, e Davidson ganhara uma fortuna. Não conseguiu, no entanto, produzir mais nenhum, perdeu o dinheiro todo na exploração de poços de petróleo secos e consta que, agora, se dedica à produção de vídeos pornográficos hard core, muitos dos quais protagonizados por um orangotango hiperexcitado. Mas tem um sonho na vida: produzir Private Parts, II, com Marilyn Taylor no papel principal!
Torna-se tão chato que ela, com uma linguagem clara e directa - escutada com reverência pelo seu staff-, lhe diz exactamente o que pensa dele, começando por "Ouça, seu parvalhão...", e, com um tom de voz baixo e rouco que já fez vibrar milhões de pessoas, refere-se ao seu aspecto físico, ao seu talento, aos seus antepassados caninos, à sua ética profissional e aos seus hábitos sexuais. Finalmente, e antes de atirar com o auscultador para cima do descanso, ainda lhe diz que, se continuar a incomodá-la daquela maneira, lhe manda dois gorilas, que lhe arrancam os testículos sem anestesia.
Depois, acabado o bloody maria, enrolados os caracóis e pintadas as unhas dos pés, Marilyn corre com todos para fora do gabinete, à excepção de Harriet Boltz, uma mulherzinha dura que usa fatos masculinos de tweed e coloca um monóculo para ler nas entrelinhas de todos os contratos e documentos importantes.
- Bem, minha filha - diz a mulher mais bela do mundo -, lá vamos nós até à Grande Metrópole, em busca de fama e riqueza!
- Isso já tu tens - replica a secretária. - Escuta, Marilyn, tens a certeza de que queres fazer isso?
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- Claro que tenho! É uma simples operação e custa menos que uma ida ao dentista.
- Não era a isso que eu me referia. Estou a falar da outra!
- Oh, que diabo, Harry! É o melhor que tenho a fazer. Já fiz mais abortos do que tu permanentes e estou farta. Mais vale acabar com isso de uma vez por todas.
- Podes vir a arrepender-te... um dia - argumenta Harriet, com uma expressão sombria.
- Nem pensar! Gosto da minha vida como ela é.
- Merda - limita-se a dizer a secretária.
Ao fim da tarde, cerca das 17.30 h, Cari Seaman, o motorista, chega com a enorme limusina cinzenta, um Mercedes. Atrás dela vem um Lincoln Towncar alugado. Marilyn Taylor e comitiva esperam que as malas sejam colocadas nos porta-bagagens e depois distribuem-se pelos dois carros.
Quem não vai a Nova Iorque é o advogado, A. Stewart Roche, e o administrador, Benjamin Geltman. Os dois homens vêm despedir-se ao passeio e depois voltam para o
gabinete de Roche. Este abre uma garrafa de Chivas Regai e deita-o puro em dois copos de papel.
- Se lhe tirarmos a cara e o corpo - diz -, o que é que fica?
- Um esqueleto que domina toda a gente - responde Geltman.
BROOKLYN, Nova Iorque
O Turks Bar é uma espelunca reles e imunda, mesmo para os padrões da Atlantic Avenue. Quem pedir um Martini muito seco e bem misturado está cheio de sorte se conseguir sair de lá com vida. O mais prudente é pedir um scotch puro e, quando o mastodonte do barman perguntar "E que é que vai para empurrar?", dizer resignadamente, que pode ser uma cervejinha. Desta forma, ainda que não se seja aceite, é-se, pelo menos, tolerado.
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Num reservado lá atrás, cujo chão não se apresenta totalmente coberto por serradura, cascas de amendoins e velhas pontas de charuto, três homens, sentados a uma mesa decrépita, emborcam os seus boilermakers.1 Dois deles apresentam-se vestidos com uniformes cinzentos e o terceiro enverga uma bata branca, manchada, própria de um enfermeiro ou de um técnico de laboratório.
O homem vestido de branco é Nicholas Kazanian e trabalha numa clínica de fertilização, em Manhattan; os outros dois, Solomon Pincus e Joseph (Dumbo) Abruzzi, são classificadores de correspondência nos correios de Brooklyn. Todos eles são apostadores nas corridas de cavalos, de uma forma obsessiva e extraordinariamente inepta, para quem os resultados diários e desanimadores dos seus palpites errados começaram a soar como um dobre de finados.
Agora, debruçados sobre a mesa, analisam o esquema que Kazanian engendrou para os livrar da crónica penúria.
- Antes de tudo - diz Nick -, temos de admitir que ela está cheia de massa, não é verdade?
- Além disso, é uma beleza! - exclama Solly, coçando a careca. - Aquela cara! E que corpo! Ainda por cima, sabe representar!
- Pois, pois - diz Dumbo -, já sabemos que a vida é injusta, mas diz-me alguma coisa que eu não saiba.
- O mais importante é que está cheia de guita - continua Nick - e cá para mim vai pagar sem fazer ondas. Sem chamar a polícia nem nada! E que uma mulher na sua posição não iria querer publicidade. É uma coisa muito pessoal, estão a perceber?
- Ouve - diz Abruzzi, piscando os olhos por detrás das lentes grossas -, conta tudo outra vez desde o princípio, está bem?
Kazanian suspira.
- Está bem, conto mais uma vez. É tudo muito simples. A coisa funciona assim: cada mulher produz um óvulo por mês...
- Isso é que eu não percebo - interrompe Dumbo. -
1. Mistura de uísque com cerveja. (N. da T.)
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As galinhas é que põem ovos, não são as gajas. Essas têm bebés!
- E donde raio achas tu que vêm os bebés? - riposta Solly. - Se calhar é a cegonha que os traz, não? O bebé forma-se num ovo, não é Nick?
- Correcto. Cada mulher produz um óvulo. Não é um ovo como o das galinhas, com casca e tudo, é uma coisinha tão minúscula que se agora estivesse aqui em cima da mesa nós não o víamos! Bem, a mulher é fornicada, e, quando o homem se vem, o seu esperma está cheio de muitos milhões de espermatozóides, que parecem girinos. Basta que um destes girinos entre no óvulo da mulher e, bingo!., aí temos nós um bebé. Mas o problema é que há muitas mulheres que não conseguem produzir esse óvulo; talvez por doença ou por terem a canalização enferrujada... Mas querem ter um filho! Então, o que é que fazem? Pedem um óvulo emprestado a uma amiga. bom, talvez não seja bem emprestado, porque esse óvulo nunca mais será devolvido. Uma amiga dá-lhe um óvulo ou, então, compram-no a uma profissional.
- Cum diabo! - exclama Solly. - Queres tu dizer que há mulheres que ganham a vida a vender os seus ovos?
- Não, por enquanto ainda não, mas são capazes de arranjar um dinheirinho, para aí uns quinhentos dólares, vendendo os seus óvulos a uma mulher que queira ter um filho. Então, o que se faz é o seguinte: o marido desta mulher vem-se dentro de uma proveta, combina-se quimicamente o esperma do tipo com o óvulo que foi doado e, quando o bebé, que é mais pequeno que uma cabeça de alfinete, começa a formar-se, enfia-se lá para dentro e a mulher fica grávida! Que tal?
Dumbo sacode a cabeça.
- Continuo a não perceber. Sei quem é o pai, é o gajo da proveta, mas, quem é a mãe?!
- bom, na verdade, a criança vai ter duas mães: a que doou o óvulo e a que a deu à luz. Mas esse problema não é teu! Vamos facturar a sério com estes óvulos, quando os raptarmos e pedirmos o resgate. Os ovos mais famosos do mundo! Já pensei em tudo e não vai falhar. Vamos ganhar uma fortuna!
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- Espera aí... - interrompe-o Solly, muito devagar Há aqui qualquer coisa que não bate certo... Tu não disseste que as mulheres produzem um óvulo por mês?
.- Normalmente, sim, e, às vezes, é mais do que um. Se forem injectadas com hormonas, até podem produzir uma dúzia!
- Então, qual é o interesse em raptá-los?! Ela não vai pagar o resgate, porque sabe que, no próximo mês, vai ter outra dose deles!...
Nicholas Kazanian chega-se mais para a frente e esboça um sorriso misterioso:
- Aí é que está a parte mais interessante da questão diz, suavemente.
MANHATTAN, Nova Iorque
A sede da Marilyn Taylor Merchandise, Inc. (bonecas, fotografias, cartazes, videocassetes, etc.), está instalada num prédio de seis pisos, situado na Rua 63, Este.
Os escritórios espalham-se pelos três primeiros, e o resto deste belo edifício, em pedra de calcário, é ocupado pela mulher mais bela do mundo e seus empregados particulares, quando vêm a Nova Iorque.
Os luxuosos aposentos dispõem do seu próprio pessoal: mordomo, criada, governanta e cozinheiro-chefe. São vários os quartos e casas de banho, sala de estar, sala de jantar, um pequeno estúdio, para projecções, e um ginásio, ainda mais pequeno.
Na segunda noite em Manhattan, e depois do jantar, Marilyn dirige-se para a sala de estar com os seus dois convidados: Eve e Eric Bannon, um casal mais ou menos da sua idade que veio à cidade, mas que vive em Scarsdale onde Eve é apenas dona de casa e Eric faz o seu estágio de advocacia, na Rimbaugh, Fliese, Global, Handringham, Mimsett, Norrington Tubbs, firma cuja telefonista, muito compreensivelmente, atende as chamadas com um simples "Escritório de advogados".
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- Fui falar com o doutor Primster, hoje à tarde - diz Marilyn, depois de o mordomo ter servido o café expresso e o Frangelico, retirando-se em seguida. - Ele esteve a ver-me, e as hormonas estão a dar resultado. Segundo a sua opinião, o período a que ele chama "fase de ovulação" deve ocorrer dentro de três ou quatro dias. Assim sendo, o melhor é vocês estarem a postos, porque o doutor não quer perder tempo.
- Jamais poderemos agradecer-te suficientemente, Marilyn - diz Eric, apertando com força a mão da mulher.
- Estás, de facto, a conceder-nos o dom da vida!
Ela olha para eles com uma expressão divertida: ambos louros, ambos entusiasmados e ambos transbordantes de amor.
- Deixem-se dessas pieguices - diz, olhando para Eric. - Afinal, não sou eu que vou fazer tudo! Tu é que vais ter de masturbar-te! A propósito, o doutor Primster mostrou-me o quarto onde terás de levar a cabo essa obscena tarefa. Chamam-lhe o "masturbatório". Já se viu tal coisa? Luzes suaves, música em surdina e cartazes muito sugestivos colados nas paredes, enfim, que mais se pode desejar?!
- A culpa é minha - lamenta-se Eve. - Se as minhas estúpidas trompas não estivessem obstruídas, não teríamos de passar por tudo isto! Mas não imaginas como estou emocionada por ir receber o teu óvulo. Quero que seja uma menina, e oxalá seja tão linda como tu!
- E se for rapaz - acrescenta o marido -, só espero que tenha o teu talento e a tua ambição.
- Ah, sim? - diz a estrela, olhando atenta para os dois. - E não vão ter pena, agora ou mais tarde, de que a criança seja metade minha?...
- Estás a gozar? - volve Eve, acaloradamente. - Sentir-nos-emos orgulhosos, não é, querido?
- Evidentemente! Quem me dera que pudéssemos contar a toda a gente o grande favor que estás a fazer-nos!
- Não é por ti, meu matulão - corta Marilyn, em tom seco. - Faço-o pela Eve. A tua mulher e eu andámos juntas pelas ruas da amargura, tentando todas as audições
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possíveis para conseguirmos uma hipótese na Broadway, e foste tu, Eve, quem andou a servir às mesas para conseguires aguentar-nos às duas. Nunca esquecerei isso e estava em dívida para contigo, miúda. Portanto, estou simplesmente a cumprir a minha obrigação! Agora, quanto a contar a toda a gente, nem pensar! Além de nós os três e da minha secretária, só o pessoal da clínica é que sabe. Não quero que mais ninguém fique a saber, mais ninguém mesmo! Não o faço pela publicidade e ficarei recompensada quando o vosso pimpolho me fizer chichi no colo. Mas... e se forem gémeos? Já pensaram nisso? com todas as drogas fertilizantes que temos tomado, podem vir a ser gémeos ou trigémios!
- Magnífico! - exclama Eve. - Quantos mais melhor! Nunca desempenhei esse papel no teatro, mas sei que sou capaz de me tornar uma óptima mãe de família!
Continuam a conversar durante mais uma hora sobre as laparoscopias programadas, a fecundação in vitro do óvulo de Marilyn pelo sémen de Eric e a implantação do embrião daí resultante no útero de Eve. Depois os Bannon levantam-se e, fungando cheios de alegria e gratidão, dão um abraço a Marilyn Taylor.
- Só espero - diz ela, libertando-se desse abraço que quando vos tornar a ver, seus patetas, vocês já estejam prestes a ser papás!
Depois de eles saírem, ela sente-se inexplicavelmente deprimida e chama por Harriet, que está no andar de cima. A secretária entra na sala trazendo na mão uma garrafa de Rémy Martin.
- Depois de um serão com aqueles dois maçadores, calculei que estivesses a precisar de uma bebida forte.
- E isso mesmo - concorda Marilyn. - Eu gosto muito deles os dois, mas são sempre tão estupidamente certínhos que me fazem nervos!
Harriet deita o conhaque em dois balões e pergunta-lhe:
- Disseste-lhes que ias ser esterilizada ao mesmo tempo?
- Claro que não! Não precisam de o saber.
- Porque vais fazê-lo?
- Quem é que quer um fedelho malcheiroso a andar pela casa? A Eve quer, mas eu, não!
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- Hum, hum... - Harriet olha fixamente para ela. Sabes o que eu acho que é? Acho que tens medo e que te aterroriza só a ideia de ficares grávida e de dares à luz uma criança. Não é só pelo desconforto e pelas dores mas também porque tens medo de que uma gravidez te estrague o corpo, e lá se vai a tua carreira. Tem tudo a ver com o teu ego.
- Muito obrigada, doutor Freud - replica Marilyn. Agora está mas é calada e dá-me mais um copo!
Descalçam os sapatos e, pondo os pés sobre a mesinha, deixam-se ficar caladas por um instante, bebendo.
- Ela era boa actriz? - pergunta Harriet, passado um bocado.
- Eve? Melhor do que eu! Mas nunca teve garra e nunca se mostrou disposta a atirar-se a um produtor.
- bom, isso são águas passadas...
- Exactamente - concorda Marilyn Taylor, sorrindo friamente. - Agora, é vice-versa.
STATEN ISLAND, Nova Iorque
Ronald Yates, um adolescente de trinta e quatro anos com todos os sonhos impossíveis e temores melodramáticos da adolescência, sai do seu emprego no Yum-Yum Burger Shoppe, em West New Brighton, onde trabalha como ajudante de cozinheiro, t vai para casa, ao volante do seu velho Volkswagen "Carocha". Este podia ser uma peça de coleção se não estivesse todo enferrujado, com o porta-bagagens amarrado com um pedaço de corda, com uma fita adesiva esfarrapada tapando ineficazmente um buraco no tejadilho e um grande Yum-Yum decalcado no vidro traseiro.
No banco a seu lado, dentro de um saco de papel engordurado, está o jantar da mãe: três cheese-burgers gigantes, duas doses grandes de batatas fritas onduladas, duas garrafas de Coca-Cola e uma tarte de maçã, a que, no Yum-
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Yum, se dá o nome de Tarte da Mãe. A tarte já tem quatro dias, mas, com todos os conservantes que lhes põem, aguenta-se um mês sem ficar verde.
A residência de Ronnie e de sua mãe, Mrs. Gertrude Yates, assemelha-se mais a um bungalow do que a uma casa, mas possui uma garagem para um carro, um relvado invadido pelas ervas daninhas, um frágil ailanto e uma fonte para os passarinhos tomarem banho, em cimento rachado, que normalmente se encontra repleta de latas de cerveja vazias e preservativos usados, que os desordeiros locais para lá atiram.
Gertrude Yates vive permanentemente no rés-do-chão, desde que se tornou tão chocantemente obesa a ponto de precisar de ajuda para se levantar da sua cadeira reforçada. Dorme naquilo que dantes costumava ser uma pequena sala de jantar, incapacitada de subir as escadas para o quarto que outrora ocupou com o marido, Horace Yates, que a abandonou há vários anos.
Ronnie tem agora todo o primeiro andar para si, o qual poderia ser um verdadeiro e recatado apartamento privativo se não fosse a constante barulheira do televisor de
104 em da mãe, lá em baixo. Ele dorme no quarto de casal, e o outro quarto, cuja porta está sempre fechada à chave, foi transformado num santuário.
As paredes estão cobertas por posters e fotografias de Marilyn Taylor, imagens onde ela aparece em biquini, em négligé, em baby-doll e num coleante vestido de noite; cartazes dos seus filmes e das suas cada vez mais raras actuações em teatros da Broadway; as fotos são em papel brilhante (duas delas autografadas "Para Ronnie, o meu admirador preferido"), e há também capas de revistas, recortes de jornais e um retrato, pintado à mão e emoldurado com uma imitação de madeira, vendido pela Marilyn Taylor Merchandise, Inc.
Os números da Marilyn Taylor Fanette, uma revista trimestral publicada pelo International Marilyn Taylor Fan Club (praticamente financiado a cem por cento pelas Marilyn Taylor Enterprises, Inc.), estão encadernados, e, por baixo do logotipo da revista, pode ver-se uma citação tirada
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de um artigo da Time sobre Marilyn: "A estrela de cinema mais adorada em todo o mundo a seguir ao Rato Mickey."
Ronnie tem um televisor de 63 em no seu santuário, um videogravador e uma prateleira com todos os filmes de Marilyn que já estão em cassete. Mas há ainda uma série
de recordações queridas: uma rosa, uma beata de cigarro e um par de calcinhas. Ela atirara a rosa para os seus admiradores aquando de uma participação sua numa festa de beneficência. Ronnie tivera a sorte de conseguir agarrar a flor, e, embora tivesse sido imediatamente assolado por outros admiradores, que lhe davam dez dólares por ela, as suas pétalas murchas estão agora amorosamente comprimidas entre duas folhas de plástico transparente.
A beata que ele tem, deitada fora por ela, ainda está manchada pelo seu bâton vermelho, mas o melhor de tudo é o par de calcinhas de nylon, vendidas pela Marilyn Taylor Lingerie, Inc., com o nome Marilyn bordado na parte de trás e cujos traços, segundo garantem, foram desenhados pela sua própria mão!
Mas nesta noite especial Ronald Yates não tem tempo para apreciar os seus tesouros. Leu, esta tarde, na coluna que Suzy escreve para o Post de Nova Iorque, que Marilyn Taylor e sua comitiva haviam chegado a Manhattan e se instalaram nos seus "chiques aposentos" na Rua 63, Este.
Ronnie toma um duche rápido e lava o cabelo, cor de palha e liso, para eliminar os cheiros do grelhador do Yum-Yum Burger Shoppe. Depois, veste uma T-shirt limpa, uns jeans lavados e um casaco de cabedal preto exactamente igual ao que usava o actor que contracenava com Marilyn no famoso musical The Merchant of Vénus.
- Até logo! - grita Ronnie para a mãe, antes de sair, mas ela nem sequer o ouve, lá sentada com o seu cabelo cor de laranja enrolado em rolos de plástico cor-de-rosa e os olhos grudados no seu televisor gigante. Começou um novo concurso que se chama "Enriqueça ou Morra!"
Ele dirige-se, no seu VW, em direcção ao terminal dos ferríes de Staten Island, sentindo-se excitado com a via-
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gem até Manhattan. Espera encontrar outros fãs agrupados defronte da casa dela, na Rua 63, Este, e talvez alguns fotógrafos. Yates conhece-os a todos, pois são seus correligionários, e haverá conversas cheias de excitação sobre o que é que Marilyn veio fazer a Nova Iorque, qual será o seu próximo filme e sobre as celebridades masculinas com quem ela se tem envolvido sentimentalmente, segundo as colunas de mexericos.
E talvez, quem sabe?, durante a noite ela venha à janela da frente, puxe a cortina para o lado, sorria e acene cá para baixo, para a multidão de fiéis. Essa visão fugaz da deusa em carne e osso é tudo por que Ronnie anseia. Será a grata recompensa pela longa viagem!
Mas, mesmo que as luzes do antigo e aristocrático edifício se apaguem e ela não faça qualquer aparição, mesmo assim ele ficará lá, olhando para cima, suspirando e ansiando, satisfeito por estar perto dela e disposto a esquecer o emprego, a passar fome e a não dormir, só para lhe manifestar a sua eterna devoção!
MANHATTAN, Nova Iorque
O doutor Reginald Primster tem um sorriso que mostra os dentes todos, levando Marilyn a comentar com Harriet Boltz: "Ele parece um castor com prisão de ventre." Mas o seu olhar mantém-se frio e sério, quase gelado. Talvez se lembre dos tempos em que o seu instituto de fertilização era uma clínica para abortos e as pessoas lhe punham bombas à porta.
- E notaram-se alguns efeitos secundários com as drogas? - pergunta ele.
- Não - responde Marilyn, alegremente. - Tudo normal!
- Ainda bem. Por vezes, essas hormonas provocam uma certa hiperexcitação...
- Comigo, isso seria difícil de notar!
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Outra vez o sorriso gelado.
- Como lhe disse na última consulta, creio que se aproxima da fase de ovulação. Não podemos ser precisos com estas coisas, que têm mais a ver com a natureza do que com a ciência, mas espero que os testes de hoje indiquem que o seu óvulo, ou óvulos, atinja a maturação necessária no sábado. Gostaria que estivesse cá às nove da manhã, e, se os testes finais o confirmarem, faremos a remoção dos óvulos e a laqueação das trompas. Está de acordo?
- Claro!
- Já preparámos os documentos legais para que os assine e aconselho-a a lê-los cuidadosamente antes de assinar.
- Oh, eu assino - diz Marilyn -, mas, antes disso, gostaria de ter a certeza de que a costura não se verá quando eu usar um biquini.
- Vai ser uma incisão muito pequena - assegura-lhe o médico. - Talvez um centímetro e pouco. Fechará rapidamente e sem deixar cicatriz. E na mesma altura em que tirarmos os óvulos procederemos ao processo de esterilização que pediu.
- Sim, gostaria de falar-lhe acerca disso. Faz-se enquanto eu estiver com a barriga aberta?
- Exacto. Continuaremos a utilizar o laparoscópio, além de a observarmos com ultra-sons. Isso dar-nos-á uma visão das trompas de Falópio. - Aponta para um quadro que está pendurado na parede. - Normalmente, cada trompa mede entre sete e doze centímetros e meio e os extremos inferiores abrem-se para o útero, ou matriz. Repare que as extremidades superiores não estão ligadas aos ovários, mas possuem aberturas folhosas, que terminam numa série de filamentos muito finos. São estes filamentos que arrancam aos ovários o óvulo amadurecido. Este óvulo entra, então, na trompa, mas, como não consegue movimentar-se sozinho, é transportado ao longo daquela por células ciliadas, que criam uma corrente que se contrai e dilata empurrando o óvulo em direcção ao útero, num processo que demora, normalmente, entre três e seis dias. E esse o período, e as trompas são o local onde se dá a concepção, desde que, bem entendido, existia um sémen fértil e que o
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óvulo seja fecundado. O óvulo fecundado (ovo) prossegue a sua viagem até ao útero, onde se fixa na parede interior, dá início à gravidez.
- Começo a entender - diz Marilyn. - A Eve Bannon não consegue engravidar porque tem as trompas obstruídas, não é?
- Correcto. Tentámos a macrocirurgia, mas não deu resultado. Depois, sugeri-lhe uma segunda tentativa através de técnicas de microcirurgia, mas Mistress Bannon optou pelo embrião transferido, o ET. É claro que isso, no filme, queria dizer extraterrestre. É engraçado, não acha?
- Oh, sim, um trocadilho engraçado! Então, para me esterilizar, o senhor vai fechar as minhas trompas, não é assim?
- Antes de falarmos sobre o processo de esterilização, devo perguntar-lhe novamente se mediu bem as consequências da sua decisão. A maioria das mulheres que pedem para fazer uma laqueação das trompas já teve filhos, mas a menina ainda é muito jovem, Miss Taylor. Pode acontecer que daqui a uns anos venha a lamentar profundamente o facto de se ter esterilizado. Sabe que existem outras alternativas, por certo.
- Refere-se aos preservativos e aos abortos? Não, eu quero fazer a laqueação. Afinal de contas, isso é reversível, não é?
O doutor Primster dá um suspiro:
- Quando uma mulher pergunta se o processo é reversível, ficamos quase com a certeza de que ela não está segura da sua decisão, mas, para responder à sua pergunta, deve dizer-lhe que, por vezes, a laqueação das trompas pode ser reversível, mas é sempre um processo difícil e os resultados não podem ser garantidos.
- Ouça - diz Marilyn -, eu não vou mudar de opinião. Diga-me só quanto tempo é que vou estar de cama.
- Não será por muito tempo. Após algumas horas na sala de recuperação do pós-operatório poderá voltar para casa. Se fizermos tudo isto no sábado, aconselho-a a ficar de cama no domingo e, a menos que surjam complicações imprevistas, poderá fazer a sua vida normal na segunda-feira.
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- Então, vamos a isso - afirma Marilyn, com determinação. - Dê-me essa bendita papelada, para eu assinar!
- O doutor Primster tira alguns documentos da gaveta da secretária e entrega-os à mulher mais bela do mundo, juntamente com uma esferográfica. Marilyn rabisca rapidamente a sua assinatura, sem ler as autorizações que está a assinar. - Quando é que o senhor vai implantar os óvulos fecundados na Eve? - pergunta Marilyn.
- O mais depressa possível. Se no sábado retirarmos os óvulos amadurecidos necessários, eles ficarão congelados até à próxima semana, e é então que o marido fornecerá o esperma. Depois da fecundação, normalmente aguardamos que se forme um embrião de quatro células, para procedermos à implantação.
- Quer dizer que os meus óvulos vão ficar alguns dias congelados? Coitadinhos!
O médico olha-a atentamente, durante um momento.
- Há coisa de um ano, nós iniciaríamos o processo de fecundação imediatamente após a colheita dos óvulos. Contudo, todos os especialistas neste campo reconheceram a importância que havia no aperfeiçoamento das técnicas de congelação e descongelação dos óvulos, técnicas essas que foram de tal forma aprimoradas que a percentagem de gravidezes aumentou em relação à que existia quando os óvulos não eram congelados.
É um grande avanço e, temos de admitir, um grande alívio.
- Um alívio? - pergunta Marilyn. - Porquê?
O doutor Primster mexe nervosamente nos papéis que tem sobre a secretária, mostrando-se visivelmente pouco à vontade.
- Existem dois problemas na conservação de embriões congelados: para começar, a quem é que, de facto, pertence o embrião? À mulher que doou o óvulo ou ao homem que forneceu o esperma? Podem ser dois estranhos, e um desentendimento sobre qual dos dadores tem direito à posse do embrião congelado pode, muitas vezes, acabar em tribunal.
- Isso é apenas mais trabalho para os advogados - replica Marilyn. - Qual é o outro problema?
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Quando se produzem mais embriões do que os que,
de facto, são necessários para a implantação, os que sobram são congelados, para futuras transferências, ou são destruídos. Há quem argumente que a destruição de um embrião, mesmo que ele seja dado como impróprio para implantação, equivale a um aborto. Tentamos fecundar apenas os óvulos que sejam necessários para implantar, isto é, normalmente três ou quatro. Agora, com a nova tecnologia, os óvulos excedentes podem ser congelados em azoto líquido, se a dadora desejar preservá-los para uma utilização no futuro e, contrariamente ao que sucede com os embriões, se os óvulos congelados vierem a ser eventualmente destruídos, já não poderá haver objecções de ordem moral.
- Claro... - observa Marilyn, com ar pensativo. Agora já percebo como facilita as coisas.
- Muito bem, chega de palestras - diz o médico, com um sorriso. - Acho melhor continuarmos com os nossos testes! - Prime um botão do seu intercomunicador e, passado um instante, entra no gabinete um sujeito alto e com aspecto melancólico envergando uma bata hospitalar branca. - Nick, vamos fazer os ultra-sons daqui a vinte minutos - diz-lhe o doutor Primster.
- Sim, senhor doutor - responde Nicholas Kazanian.
HOLLYWOOD, Califórnia
Sam Davidson teve um dia muito mau.
Os sacanas a quem fornece as videocassetes pornográficas, hard core, mandaram-lhe dois gorilas, para o recordarem de que estava atrasado no prazo, tanto na produção do material como no pagamento dos juros acumulados da sua enorme dívida.
Depois, a mulher que desempenha o papel principal no seu actual guião, Jungle Belles, aparece-lhe com uma grande pedrada, mal se aguentando de pé quanto mais sendo
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capaz de expressar um prazer orgiástico ao ser fornicada por um orangotango...
E aquele idiota daquele bicho! O seu treinador, um completo imbecil, injecta-lhe demasiados calmantes e o estupor do macaco não faz mais nada senão rir-se com os beiços arreganhados e comer bananas!
Por fim, Sam desiste. Apaga as luzes, manda toda a gente para casa e fecha-se no seu velho escritório. A mulher, sentada atrás da desconjuntada secretária, está entretida com uma das suas intermináveis paciências e Sam, tirando ; do frigorífico estragado uma garrafa de vinho morno, sen- í ta-se pesadamente numa poltrona, a que tem as molas a sair pelo estofo de vinil rasgado.
Tira a cápsula da garrafa e bebe um gole, estremecendo com uma careta.
- Ainda me lembro dos tempos em que só bebia Dom Perignon bem gelado e misturado com sumo de laranja natural.
A mulher levanta os olhos das cartas:
- Tiveste uma manhã difícil, Sam?
- São todas difíceis. Cortava os pulsos se tivesse di- í nheiro para comprar uma lâmina nova!
- Que vamos fazer? Passar fome?
- Ainda não puseste a tua aliança no prego, pois não?
- Nem vamos pôr! - diz ela, voltando a concentrar-se nas cartas. - Não penses mais nisso. Afinal, o que é que queriam aqueles dois matulões?
- Bem sabes o que eles queriam: cassetes e dinheiro. Ou a minha pele!
- Não estás a pensar que eles te façam mal, pois não?
- Na! A menos que, para ti, fazer mal seja um pontapé nos tomates. Syl, minha filha, toda a gente tem problemas, mas quem é que consegue aguentar tantos? Tenho de tentar outra vez com a Marilyn Taylor. É a esperança que me resta!
- Depois do que ela te disse?! Isso não é uma esperança, é uma alucinação!
- Só quero que ela leia o guião do Prívate Parts, II. Há cinco anos que eu e o Denny OKeefe trabalhamos nele e
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está pronto! Tem as cenas mais apetitosas que ela jamais filmou: tiros e acção, óptimos diálogos, uma história de amor que vai despedaçar corações, tem tudo! Eu conseguia sacar aquela pateta por cinco milhões. Meu Deus, com a fortuna que ela tem até podia ser ela a financiá-lo! Mas aquela cabra nem falar comigo quer. Depois
de tudo o que fiz por ela!...
- Que fizeste tu por ela? Pagaste-lhe umas coroas para ela mostrar as mamas!..
- E isso fez dela uma estrela, não fez?
- E fez de ti um milionário... até perderes tudo. O meu marido, o barão do petróleo!
- Não me cheteies, está bem? Foi pouca sorte, foi o que foi. Mas uma coisa boa que a sorte tem é que, mais tarde ou mais cedo, tem de mudar.
- No teu caso, é sempre mais tarde.
- Só te digo que, se conseguir que ela leia o guião, vai aceitar de certeza. Ela pode ser uma cabra, mas não é estúpida e sabe ver quando um material é bom. vou tentar outra vez!
- Não podes. Ela foi para Nova Iorque, segundo diz o .Repórter.
- E depois? Há aviões para Nova Iorque de hora a hora. vou até lá e obrigo-a a ler o guião, nem que tenha de lhe apontar uma arma!...
- Já não te lembras de que puseste a tua pistola no prego? E como é que vais comprar o bilhete de aviação? Cancelaram-te todos os cartões de crédito...
- com a tua aliança - responde ele.
- Oh, meu Deus! - exclama a mulher, com ar desconsolado.
Ele parte nessa mesma noite, levando consigo um saco de papel pardo com o guião e uma sanduíche de pão de centeio com salame.
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BROOKLYN, Nova Iorque
Estão no reservado, nas traseiras do Turks Bar, e Kazanian oferece aos companheiros um jantar de sexta-feira, que é um banquete de carne enlatada com couves. O mal-humorado criado põe os pratos em cima da mesa como se fosse um carcereiro que levasse a comida a um trio de; assassinos.
- Está tudo combinado - diz Nick, olhando fixamente para Abruzzi e interrogando-se como é que um tipo pode mastigar uma pastilha elástica e comer couves ao mesmo tempo. - Ela vai à faca amanhã de manhã e, se tudo correr bem, sai ao fim da tarde. Os óvulos dela vão ser colo cados em azoto líquido naquilo que eles chamam um
frasco Dewar. Os que nós utilizamos são de plástico e têm uma pega como se fosse um balde.
- É pesado? - pergunta Solly Pincus.
- Não, é como se fosse um termo grande e o azoto serve para congelar os óvulos, para impedir que se estraguem. Mas aquilo é mesmo frio, para aí uns cento e noventa graus centígrados negativos! Nem sequer tentem lá mergulhar o coiso porque ficarão com um tesão permanente. - Em silêncio acabam rapidamente o que têm nos pratos e depois Nick manda vir outra rodada de boilermakers. Esperam pelas bebidas e só então se concentram de novo no trabalho. - Portanto, amanhã - prossegue Nick -, eu vou dizer que tenho de ficar depois da hora para acabar uns relatórios que estão atrasados. É sábado e toda a gente sai cedo, pelo que serei eu o único que lá está às dez da noite para vos abrir a porta.
- E isso não te vai incriminar? - observa Pincus. Os chuis vão descobrir que foi um trabalho combinado.
- Se ela chamar a polícia, do que eu duvido, mas se o fizer, eu explico que bateram à porta dizendo que era uma emergência e que, portanto, abri. Calma, isso já aconteceu duas vezes! De uma vez, foi um tipo que tinha sido assaltado e estava todo ensanguentado; da outra, foi uma mulher que estava em trabalho de parto e não tinha conseguido
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arranjar um táxi que a levasse ao hospital. É que, como a primster tem a placa lá fora e os doentes não sabem que tipo de clínica é aquela, vão lá para falarem com o "senhor doutor".
- Está bem - diz Abruzzi -, pronto, estamos lá dentro. E, depois, o que é que acontece?
- Eu indico-vos o frasco que tem os óvulos dela e vocês pegam nele, mas, antes de se irem embora, amarram-me como se me tivessem atacado. Há lá muita fita adesiva que podem usar. Têm que fazer bem a coisa, para que, quando o vigilante vier, à meia-noite, e me encontrar, pense que eu não tive qualquer hipótese! Até podem tapar-me a boca com um bocado de fita, porque, afinal de contas, vocês não querem que eu grite, pois não? Mas não me tapem o nariz, se não eu não consigo respirar, não é?
- Portanto, agora temos os ovos dentro do termo - diz Pincus. - Que fazemos depois?
- Voltam para o carro, colocam o frasco no porta-bagagens e vão para casa como se nada tivesse acontecido!
- Eh, espera aí! - atira Abruzzi, acendendo um dos seus charutos de má qualidade. - Não me agrada a ideia de levar essa coisa no meu carro. E se me batem por trás ou coisa assim e os chuis a encontram?
- É só por um dia - argumenta Kazanian. - Na segunda de manhã, o meu irmão vai embarcar num cargueiro e deixa-me ficar sempre a chave do apartamento quando está em viagem. Ele mora na Rua 54, Oeste, perto da Oitava Avenida. Eu vou lá de vez em quando dar uma olhadela, para ver se não lhe assaltaram a casa, e é lá que vamos guardar o frasco até recebermos a massa, logo, tu só o guardas no teu carro até segunda de manhã. Certifica-te apenas de que ele fica direito e que não entorna. vou lá buscá-lo na segunda de manhã, está bem?
- A essa hora estou eu a trabalhar - diz Dumbo.
- Então, vou lá quando tiveres voltado do trabalho replica Nick, com um longo suspiro. - Não façam disto um bicho-de-sete-cabeças! É um plano muito simples e vai correr às mil maravilhas. Vocês vão ver!
- Quando achas que receberemos a massa? - pergunta Pincus.
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- Daqui a uma semana - responde Kazanian, encolhendo os ombros. - Talvez duas, no máximo. Não lhe vou mandar nenhuma carta. vou contactá-la por telefone, das cabinas, e com chamadas rápidas, para eles não conseguirem localizar-me.
- Quanto é que vais pedir? - quer saber Abruzzi. Nick olha fixamente para ele:
- Um milhão. Sem tirar nem pôr.
De súbito, todos eles, incluindo Nick, se mostram receosos e apreensivos. Kazanian foge regularmente ao fisco, Pincus engana regularmente a mulher e Abruzzi costuma andar de metro sem pagar, mas não são vigaristas a sério.
Agora, confrontados com o facto de estarem a envolver-se num assalto que representa um milhão de dólares, o medo começa a enfraquecer as suas esperanças de reforçarem as suas fortunas com uma injecção de dinheiro fácil, mas, inegavelmente, ilícito.
- Um milhão? - diz Solly, e a sua voz está rouca. Achas que ela vai nisso?
- Talvez fosse melhor não sermos gananciosos - observa Dumbo. - Cem mil seria melhor...
- Vai acabar por pagar um milhão - afirma Nick, esforçando-se por parecer confiante. - Essa quantia não significa nada para ela! A tipa é uma magnata, com todos os negócios que tem! Além disso, prometeu os óvulos à sua melhor amiga e não vai querer quebrar o contrato. E lembrem-se de que, a partir de amanhã, os tempos em que ela produzia óvulos pertencem ao passado; por isso, aquilo que nós vamos ter dentro do frasco é muito valioso para ela e ela vai pagar o que for preciso para o reaver. Esta é a nossa oportunidade de ganhar algum, e do grande! Acreditem em mim, pois sei o que estou a fazer.
Como os seus fiéis seguidores continuam calados, Kazanian faz sinal ao criado para que traga outra rodada de boilermakers.
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MANHATTAN, Nova Iorque
gue Bannon e Harriet Boltz insistem em acompanhá-la naquele dia tão decisivo, e as três mulheres saem do prédio da Rua 63, Este, às oito e meia da manhã de sábado. A estrela usa um impermeável de seda, e o chapéu de aba mole preto, que é uma das suas criações, está ligeiramente descaído, encobrindo-lhe um dos olhos.
Antes de conseguirem entrar para a enorme limusina Cadillac que as aguarda na esquina, Marilyn vê-se rodeada por um bando de admiradores, todos eles, com canetas e folhas de papel na mão, suplicando um autógrafo. Ela assina uma meia dúzia deles, incluindo um nas costas de uma T-shirt, e depois junta-se a Eve e a Harriet, que já estão no carro.
Ronald Yates tem estado a olhar com adoração para a sua deusa, mantendo-se atrás da multidão e, vendo que Marilyn entra para o Cadillac, corre como um louco para o seu Volkswagen amachucado, parado em segunda fila do outro lado da rua. Quando a limusina arranca suavemente, Ronnie segue-a no Carocha, decidido a passar o dia
todo no rasto da mulher sobre a qual um dia afirmara solenemente: "Significa mais para mim do que a própria vida!"
O Cadillac não vai para muito longe: Instituto de Fertilização do Doutor Primster, na Rua 70, Este. A limusina imobiliza-se por uns instantes e as três mulheres entram para a clínica. Yates consegue arranjar um lugar para estacionar, perto da 1." Avenida, e volta a pé, a fim de levar por diante a sua vigília.
Lá dentro, Eve e Harriet instalam-se na sala de espera, folheando velhos números da National Geographic e da Quarter Horse Gazette. Marilyn é conduzida ao andar de cima, para se submeter à última série de testes, e preparar-se para a intervenção cirúrgica.
Alguns minutos depois das onze horas, despe o roupão, trepa para a maca almofadada e a assistente tapa-a com um lençol. A maca é conduzida para a sala de operações, onde se encontram duas enfermeiras, dois cirurgiões adjuntos e
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um anestesista, todos eles já devidamente esterilizados, vestidos e com as máscaras colocadas. Marilyn é mudada para cima da mesa de operações e aplicam-lhe a anestesia geral. Esta faz efeito passados uns minutos, e, enquanto aguarda a chegada do cirurgião-chefe, a equipa do bloco operatório dá uma rápida espreitadela para debaixo do lençol, quedando-se todos mudos de espanto perante tal perfeição dourada pelo sol.
Durante a hora que se segue, o doutor Primster, espreitando através do seu laparoscópio, consegue retirar nove óvulos amadurecidos, que são rapidamente levados para o laboratório contíguo, colocados numa câmara de cultura e, posteriormente, congelados. Entretanto, o cirurgião procede à laqueação das trompas. As duas operações ficam concluídas num espaço de tempo que não chega a duas horas e, às catorze horas Marilyn Taylor já se encontra na sala de recuperação.
Quando acorda vê que Eve Bannon e Harriet Boltz se encontram, ansiosas, ao lado da sua cama. Olha para elas e sorri-lhes com ar triste:
- Foi facílimo.
- Tiraram nove óvulos! - diz Eve excitada. - Já viste uma coisa assim? Nove!
- Daria uma óptima omeleta - graceja Marilyn. Querida, podes ir ver se eles têm cá uma garrafa de brande? Preciso de uma bebida. - Por volta das dezasseis horas e trinta minutos e após um checkup feito pelo doutor Primster, dão-lhe alta e as outras duas mulheres ajudam-na a vestir-se. O penso que lhe aplicaram é incrivelmente pequeno. - Vocês têm uma saída pelas traseiras? - pergunta ela ao médico. - Só para o caso de aqueles grupinhos estarem lá fora à espera. Não me apetece nada dar autógrafos...
Ele afirma-lhe que existe uma saída que dá para o pátio, nas traseiras, e, depois de o atravessarem, podem entrar pelas traseiras de um prédio de escritórios, saindo finalmente para a Rua 69. - É o meu número preferido - diz Marilyn. - Harry, liga para a limusina e diz que vá lá ter connosco. Estou morta por chegar a casa! Acho que vou dormir durante uma semana.
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As mulheres saem e, defronte da clínica, na Rua 70, Ronald Yates anda de um lado para o outro com grandes passadas, esperando que a sua querida volte a aparecer.
Ele repara que, aos poucos, toda a gente sai lá de dentro, que as luzes se apagam e que a escuridão invade as ruas da cidade. Pensa que, provavelmente, vai ser despedido, mas não se preocupa com o facto de perder o emprego, pois tem, lá em casa, um diploma que o proclama como o "Mais Rápido Preparador de Hambúrgueres do Ano (Região Nordeste)" da cadeia Yum-Yum e sabe que, com a sua destreza no manejo da espátula, qualquer casa da especialidade o contratará.
Resolve manter a vigília por mais algumas horas e então, se Marilyn não aparecer, voltará para a sua casa, em Staten Island, parando no caminho, para comprar o jantar da mãe.
A rua está agora deserta e só há uma janela iluminada no edifício para onde Marilyn entrou. Poucos minutos depois das vinte e duas horas, um Chevrolet verde, com cinco anos pelo menos, pára no local de estacionamento proibido em frente da clínica. Saem de lá dois homens, que olham em redor com ar descontraído e depois se encaminham para a porta. São mandados entrar quase de imediato.
Yates, que tudo observara do outro lado da rua, fica baralhado. Os dois homens parecem simples operários, baixos e corpulentos. Um é calvo, o outro masca um charuto apagado e tanto um como o outro usam roupas que seriam rejeitadas pelo Exército de Salvação. Ronnie não compreende o que é que dois zés-ninguéns como eles estão a fazer no mesmo edifício em que se encontra a actriz mais famosa do mundo!
Não mais de meia hora depois, os homens voltam a sair. Agora, um deles traz na mão aquilo que parece um balde de plástico branco, e Ronnie, intrigado, atravessa a rua, tirando do bolso um maço de cigarros. Ele, de facto, até nem gosta de fumar, mas aquela é a marca que ela fuma.
- Eh! - chama-os ele. - Algum de vocês tem lume?
Eles assustam-se de tal maneira que quase deixam cair o
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balde, mas depois recompõem-se e o do charuto entrega a Yates uma carteira de fósforos.
- Toma lá, miúdo, e podes ficar com ela, que eu tenho mais.
- Muito obrigado - responde Yates, educadamente, continuando a andar pelo passeio fora.
Quando pára e olha para trás, vê que eles estão a meter o balde dentro do porta-bagagens do Chevrolet e que, depois de o fecharem à chave, se metem dentro do carro e arrancam.
Volta para o Volkswagen, mas, antes de iniciar a longa viagem de volta, examina a carteira de fósforos que o tipo lhe deu. É das baratuchas: branca com letras pretas.
Turks Bar Girl. Atlantic Avenue. Brooklyn.
MANHATTAN, Nova Iorque
O dinheiro que Sam Davidson arranjou ao empenhar a aliança da mulher deu-lhe para pagar um hotel dos mais reles da Times Square. O átrio, bafiento, está apinhado de gente, que mais parece constituir o elenco todo de Guys and Dolls, mais algumas pegas traficantes de cocaína e um tipo a vender pregadeiras "Jesus Salva-Te", a dois dólares cada. Sam lembra-se dos tempos em que costumava ficar no Plaza, mas isso era quando tinha no bolso mais do que quarenta e três dólares e setenta e oito cêntimos!
Sentando-se com todo o cuidado na beira da cama piolhosa, folheia o seu pequeno livro dos telefones, de capa preta, tentando descobrir alguém, em Nova Iorque, a
quem possa recorrer. Segundo os seus cálculos, precisa de, pelo menos, mil dólares, mas contentar-se-ia com quinhentos, duzentos ou até mesmo só com alguns trocados.
A primeira dúzia de telefonemas não se revela encorajadora: não atendem, o telefone foi desligado ou então o tipo do outro lado da linha desliga assim que Sam se
identifica. A verdade é que ele não lhes pode levar a mal. Já vigarizou
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tanta gente que a notícia se espalhou de costa a costa, avisando que Davidson estava falido e que o seu nome só poderia significar grandes sarilhos.
Por fim, agarrando-se à última esperança que lhe resta, dá com os nomes de Louella e Loretta Chin, duas atraentes gémeas sino-americanas que, em tempos, haviam protagonizado
um grande filme de guerra produzido por Sam, intitulado Two from Column P. A última notícia que ele teve das gémeas Chin é que elas tinham vindo para Manhattan e haviam arranjado um chulo que lhes pagava todas as contas, deixando-as actuar livremente na área de Central Park South, nunca lhes exigindo qualquer percentagem desses serviços.
Sam liga para elas fazendo figas. A voz do homem que atende é esganiçada e sibilante:
- Residência DuBois!
- Estou a tentar localizar Louella e Loretta Chin e ficar-lhe-ia muito grato se pudesse ajudar-me - diz-lhe Sam.
- Ssó um momento, por favor - responde o tipo. Sam aguarda e então ouve-se uma voz de mulher:
- Quem fala? - pergunta ela.
- Louella? Loretta? E o Sam Davidson!
Ele está preparado para levar uma corrida, mas, em vez disso a mulher dá uma gargalhada de satisfação.
- Sam, meu querido! Que óptimo! É a Louella. Onde é que estás? Em Los Angeles?
- Não, estou aqui mesmo na nossa querida Nova Iorque. Vim cá por uns dias, para tratar de uns negócios, e pensei que talvez pudéssemos encontrarmo-nos, beber uns copos e recordar os velhos tempos. Há alguma hipótese?
- Só um minuto, Sam. Deixa-me ver o meu horário. Passa-se mais do que um minuto mas Sam aguarda, pacientemente, até que...
- Viva, Sam! Agora, é a Loretta. Como tens passado?
- Cá se vai sobrevivendo... Ouvi dizer que vocês arranjaram um protector e que se safam muito bem na vida!
- Vamos vivendo! Ouve, Sam adorávamos poder estar contigo, mas temos de ir trabalhar por volta da meia-noite. E sábado e, como sabes, os clientes vão andar para aí,
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muito tristinhos e abandonados! Se pudesses passar por aqui agora, podíamos tomar um copo juntos e conversar um bocado.
- Por mim, está bem. Onde é que vocês moram?
- Na Park Avenue - responde ela, com uma pausa, para ver a reacção dele.
- Mazeltov! - exclama ele. - vou ter de mudar de meias! Qual é o endereço?
Apanha um táxi para a parte alta da cidade, não se importando com a despesa, pois está certo de que vai sacar algum. Vai oferecer-lhes uns papéis bem apetitosos no Private Parts, II, e calcula que elas possam abonar-lhe uns cem dólares, ou talvez até mais, se conseguir convencê-las de que a protagonista será Marilyn Taylor!
O prédio de apartamentos novo situado na zona norte da Rua 79 cheira a dinheiro. O porteiro fardado parece saído de The Student Prince e o tipo do elevador enverga um fraque branco com um peitilho engomado. Os corredores estão cobertos por uma alcatifa cor de malva e iluminados por candeeiros de parede cheios de enfeites, cada um deles guarnecido com uma franja de contas.
Pelos cálculos de Davidson, a decoração de interiores deve ter sido feita pela famosa firma Glitz Schlock, Inc.
Um ancião asiático (tailandês?, malaio?, birmanês?) envergando uma jaqueta de alpaca cinzenta vem abrir a porta. É o tipo que cicia e, com muitas vénias e palavras sibiladas, encaminha o visitante para um salão pouco mais pequeno que o átrio do Waldorf. Sam lança uma olhadela rápida ao cenário de cabedal, cromados e cristais, mas logo de seguida vê-se abraçado pelas duas bonecas de porcelana, que vieram a correr de uma outra sala, de lá de trás.
Elas sentam-no numa espécie de tipóia revestida com um cabedal muito macio e trazem-lhe um Chivas Regai num copo alto, Baccarat, tão pesado que ele tem de o segurar com as duas mãos. As gémeas bebem qualquer coisa verde em copos cujo o vidro forma pequenas covinhas, e depois enroscam-se a seus pés, refastelando-se indolentemente sobre uma pele de zebra que deve ter sido a mais gorda que havia em África.
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com risinhos e gargalhadas sufocadas, começam a relatar-lhe as excêntricas aventuras vividas com os fregueses nova-iorquinos e ele observa-as com atenção. Não há dúvida de que devem estar cheias de dinheiro. Vestem de igual: macacões muito justos, em veludo preto, que fecham à frente, com um enorme fecho de correr. E aqueles broches de diamantes formando um flamingo não saíram, por certo, num pacote de pipocas Cracker Jack!
Sam prepara-se para encaminhar a conversa para o seu scrípt do Private Parts, II, para Marilyn Taylor e para a sua actual necessidade de um financiamento, quando entra no salão um negro alto e usando óculos escuros.
Afundado na cadeira, Sam olha para cima e calcula que o tipo tenha para aí uns dois metros e dez. É magro como um palito e está envolto num roupão cor de vinho,
tão coberto de pesados bordados que ele mal consegue dobrar os braços esqueléticos. Pés descalços e pernas nuas sob o roupão permitem ver um dragão que ele tem tatuado
na superfície sem pêlos da barriga da perna esquerda.
- Champ, este é o Sam Davidson - apresenta-o Loretta, alegremente. - Sam, apresento-te Champ DuBois!
Davidson não consegue levantar-se da cadeira funda e limita-se a levantar a mão, num cumprimento. Champ, com um aceno de cabeça, dirige-se para o bar, cujo balcão é de mármore, e serve-se de um conhaque.
- Bem-vindo a Nova Iorque, Mister Davidson. Desejo-lhe uma estada agradável.
- Obrigado - responde Sam. - Tem aqui um belo apartamento!
- Ainda bem que gosta - diz o outro, despreocupadamente -, mas, quanto a mim, falta-lhe um pouco de cor. Estou de olho num Picasso que ficaria deslumbrante nessa parede, por cima daquele sofá de cabedal branco.
- Um Picasso?! Isso vai custar-lhe uma pequena fortuna!
- Oh, eu não faço tenções de comprá-lo - diz DuBois.
- Sou um ladrão profissional! Elas não lhe disseram?
Sam dá um gole na sua bebida.
- O quê?? Não, não me falaram disso. com que então, um ladrão profissional? Calculo que isso, nos dias que correm, dê uma data de massa!
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- É claro que dá - diz Champ -, mas é evidente que temos de calcular muito bem os riscos que se correm. E o que é que o traz à nossa linda cidade, Mister Davidson?
- Eu trabalho no cinema - diz Sam, com toda a ousadia - e resolvi lançar-me à grande num novo projecto. O script é magnífico. Um verdadeiro luxo! Estou a tentar contratar a Marilyn Taylor para o papel principal.
- Sim? Isso parece interessante e gostaria de saber mais pormenores - DuBois fez uma pausa para olhar para o seu Rolex de ouro. - Está na hora, meninas - diz ele às gémeas Chin. - Os vossos clientes vão ficar impacientes. Vá, ponham-se a andar que eu tenho muito prazer em ficar aqui a conversar com o nosso convidado.
No seu tagarelar contínuo, Louella e Loretta dirigem-se rapidamente para os seus quartos e voltam pouco depois com duas estolas de marta, brancas e idênticas, e bolsas a tiracolo em pele de crocodilo negra. Dão um beijo de boas-noites a Champ e a Sam e, sempre tagarelando, dirigem-se para a porta com passinhos curtos e saltitantes.
- São umas garotas amorosas - comenta Sam.
- Lá isso são - concorda DuBois - e tão deliciosamente tolinhas! - Senta-se, enroscando o corpo esgalgado numa funda poltrona redonda colocada à frente de Sam.
- Tenho uma pequena confissão a fazer-lhe, Mister Davidson. O meu nome verdadeiro não é Champ DuBois, mas sim Moses Leroy Washington, mas, como nunca gostei desses nomes, Moses ou Leroy, mesmo quando era mais novo, escolhi um que se adaptasse melhor à minha personalidade e às minhas aspirações.
Sam olha para ele com atenção, interrogando-se se o tipo está a gozar com ele ou se está, simplesmente, com uma pedrada, mas não consegue ver-lhe os olhos por detrás dos óculos escuros e, além disso, DuBois ainda não esboçou um único sorriso.
- Muito bem - diz Sam -, tem o direito de se chamar como quiser. Champ DuBois soa bem, faz lembrar um jogador de casino flutuante.
- Justamente - concorda o anfitrião. - Mas estou a ver que tem o copo vazio! Creio que o nosso mordomo já se foi deitar; por isso, sirva-se à vontade.
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- Claro - diz Sam, tentando levantar-se da cadeira. Deita uma nova dose no copo, reparando no balde de gelo de cristal, nos copos Baccarat, nos cinzeiros de ónix
e num shaker de prata com um monograma gravado, "KLR":
- Interessa-se por filmes, Mister DuBois?
- Muito até! Houve uma época em que ambicionei tornar-me actor, mas, por causa da minha cor e da minha altura, as oportunidades de emprego eram quase inexistentes e, por isso, optei por outra das minhas vocações. Mas continuo interessado no cinema! Conte-me lá, então, mais coisas acerca desse seu novo filme, Mister Davidson. Sinto-me sempre fascinado com projectos criativos!
Sam conta-lhe que foi ele que produziu Private Parts, o filme que fez de Marilyn Taylor uma estrela e que, agora, tendo um guião explosivo para fazer a sequela, veio a Nova Iorque para convencê-la a desempenhar o papel principal.
- É acerca de uma bibliotecária - explica ele, cheio de entusiasmo -, uma fulana muito certinha e envergonhada e que ninguém imagina como é bonita até verem a primeira cena de cama, quando ela tira os óculos. bom, o pai dela é um sujeito ordinário, um viúvo que é um autêntico vagabundo e que a mantém bem controlada, para que ela lhe faça a comida e lhe trate da casa. Há por ali um bocadinho de incesto também. Então, certo dia, aparece um tipo, um verdadeiro machão, que vem desentupir a fossa. E é ele que lhe abre os olhos, está a ver? Ensina-lhe até a masturbar-se, o que é uma novidade para ela. Então, resolvem arranjar um esquema para apagarem o velho, mas ela atraiçoa o tipo e ele vai parar à câmara de gás, acusado de assassínio. Ela herda a massa e passa a ter uma vida rica, cheia de aventuras sexuais, mas é aí que começa a aparecer-lhe o fantasma do sujeito e do pai, e o filme acaba com ela a ser levada para o hospital dos maluquinhos. Isto são só os traços gerais da história, mas só lhe digo que é material para um Oscar, é dinamite pura! Só que, para isso, falta-me a Marilyn Taylor...
- Sim, estou a ver - diz DuBois, com ar pensativo. Ela é uma mulher de talento, bom gosto e requinte. Vocês são bons amigos?
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- Oh, sim! Muitíssimo amigos!
- Então, sabe, por certo, que ela possui uma das melhores colecções de jóias do mundo. Estou a referir-me a peças de muito valor mesmo, algumas até com valor histórico, e sei, por exemplo, que, o ano passado, ela comprou num leilão, anonimamente, como é óbvio, um diamante "champanhe" de formato marquise com quarenta quilates, sem mácula, e que tinha pertencido originalmente a Ivã, o Terrível, ou a Hugo, o Grande, não sei bem a qual deles foi... Seja como for, dizem que ela pagou quase dois milhões pela pedra!
- Bem - comenta Sam, forçando um sorriso -, os diamantes são os melhores amigos duma mulher!
- Então, ela tem muitos amigos - diz o dono da casa, com um ar distante. - Muitos... Tenciona encontrar-se com ela durante esta sua visita?
- Espero bem que sim - responde Davidson, começando subitamente a não gostar nada do rumo que a conversa estava a tomar.
- Em casa dela?
- Creio que sim.
- Seria possível arranjar-me um encontro com ela? Muito breve, claro! Sou seu admirador há tantos anos!...
- Não sei... - responde Sam, com alguma cautela. Talvez se consiga.
Ficam os dois calados e Davidson tenta captar o olhar do outro, mas é difícil ver-lhe os olhos por causa daqueles dois discos de lentes escuras e reflectoras.
- Estou disposto a recompensá-lo pelo seu trabalho declarou Champ, muito calmamente. - Digamos que é uma espécie de gratificação para o intermediário...
- E tudo o que pretende é conhecê-la?
- Exacto. Mas tem de ser em casa dela! Pagaria mil dólares por isso.
- vou tentar - promete Sam, com voz rouca -, mas não garanto!
- Eu creio que vale a pena tentar - replica o outro. Só um instante, por favor.
Sai da sala por uns momentos e volta com um envelope branco.
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- Mil, em notas de cinquenta. Usadas. Por uma breve visita à casa de Marilyn Taylor. O mais depressa possível! por favor, não me desaponte.
- Tratarei disso na segunda, logo de manhã - promete
Sam. ,
- Óptimo. E dê notícias, pois não desejaria ter de ir à sua procura!
Champ DuBois sorri pela primeira vez, e Sam Davidson preferia que ele o não tivesse feito... fá-lo lembrar-se do célebre tubarão do Jaws!
MANHATTAN, Nova Iorque
O telefone toca no palacete da Rua 63, Este, um pouco depois das seis horas da manhã de domingo. Harriet, que tem o sono leve, atende ao segundo toque.
- Está?
- Fala da residência de Marilyn Taylor? - Voz de homem. Esganiçada.
- Sabe que horas são?! - pergunta-lhe Harriet, indignada. - Quem é o senhor e o que deseja?
- Fala o doutor Reginald Primster. Por favor, poderei falar com Marilyn Taylor? Trata-se de um assunto urgente!
Harriet senta-se na cama e pega num cigarro.
- Eu sou a secretária dela. Marilyn está a dormir e só vou acordá-la se o senhor me disser do que se trata.
Após um breve silêncio, o médico diz:
- Lamento informar, mas os óvulos de Marilyn foram roubados.
Harriet tenta segurar o cigarro com as mãos trémulas.
- O QUÊ?
- O instituto foi assaltado a noite passada, por volta das dez horas. A única pessoa que cá estava era um técnico do laboratório, que foi dominado e amarrado. O vigilante entrou de serviço à meia-noite e encontrou-o. Telefonou-
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-me e vim imediatamente para o instituto, de onde estou a telefonar. Já verifiquei tudo e, aparentemente, a única coisa que levaram foi o frasco de congelação que contém os óvulos de Miss Taylor.
- Oh, meu Deus! - exclama Harriet, desesperada. Já chamou a polícia?
- Não, ainda não - respondeu Primster, tentando manter uma voz serena. - Achei melhor comunicar primeiro a Miss Taylor, para saber o que é que ela pretende fazer.
Que eu saiba, foi a primeira vez que assaltaram uma clínica de fertilização. É tudo tão estranho! Qual poderá ser o motivo deles?
- Dinheiro - responde imediatamente a secretária. Ela tem dinheiro, e é isso o que eles querem. Trata-se de um rapto, doutor! Ouça, acho melhor o senhor vir já para cá. vou acordar Marilyn e contar-lhe o que aconteceu. Quando o senhor chegar, conversaremos sobre o que se vai fazer.
Desliga, consegue finalmente acender o cigarro e veste-se rapidamente, mas, antes de ir acordar Marilyn, tira a governanta da cama e diz-lhe que faça um grande bule de café e que aqueça pãezinhos doces, croissants, muffíns, o que houver. Depois, encaminha-se para o quarto de Marilyn.
A mulher mais bela do mundo ressona suavemente, os olhos cobertos por uma venda, tampões nos ouvidos e os seios protegidos por um soutien especialmente concebido
para evitar a flacidez e produzido pela sua empresa de roupa interior. Harriet sacode-lhe bruscamente o ombro, ignorando os seus protestos resmungados, e, por fim, Marilyn senta-se na cama, retirando a venda e os tampões.
- Que raio! - protesta, dando uma olhadela ao relógio da mesinha-de-cabeceira. - É cedíssimo! Espero que sejam boas notícias.
- Não são boas, não - comunica-lhe Harriet, com uma expressão grave. - São más!
E relata à estrela o que aconteceu. Conta com uma explosão de fúria, mas Marilyn não desata aos gritos, e, em vez disso, exibe um olhar duro e distante.
- Só os meus óvulos? De mais ninguém?
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- Foi o que o médico disse.
- Foi um trabalhinho combinado - afirma Marilyn, com ar decidido. - Quem é que sabia que os óvulos lá estavam? Eu, tu, a Eve e o Eric Bannon e a equipa do primster.
Alguém, lá da clínica, deu com a língua nos dentes!
- É provável - concorda Boltz -, mas pode ter sido um comentário inocente, do género "adivinha quem é que foi operada hoje?", esse tipo de conversa. Alguém ouviu e resolveu ganhar algum...
- Para pedir um resgate.
- É o que eu penso. Que mais poderão fazer com eles?
- Sacanas! - exclama Marilyn, soltando, finalmente, toda a sua raiva.
- O Primster vem para cá e quer saber se deve chamar a Polícia.
- Nem pensar! Se estivermos certas acerca do rapto, vamos ser contactadas pelos ladrões e faremos um acordo com eles.
- Vais pagar?
- Claro que vou! Não posso desapontar a Eve e o Eric e, além disso, que diabo!, são os meus óvulos, uma parte do meu corpo, uma parte de mim! Oh, claro que pagarei para os reaver e, depois disso, contratarei os melhores detectives do mundo, para que descubram os idiotas que fizeram o assalto e eu própria me encarregarei deles. Escuta, Harry, acho melhor acordares o Tony Perez e o Gary Flomm e contares-lhes o que aconteceu. Se tivermos de lidar com gente da pesada, vou precisar do meu guarda-costas, e armado! E, se os repórteres começarem a meter o nariz no assunto, o melhor é o Gary fazer por merecer o que ganha como agente para a imprensa.
- Esqueci-me de perguntar - diz Harriet. - Como te sentes? Estás com dores na costura?
- Nada que não consiga aguentar. Pensei que soubesses que sou uma garota rija! Agora, deixa-me vestir!
Uma hora depois estão todos sentados na grande cozinha, beberricando café simples e comendo pãezinhos doces aquecidos. O doutor Primster, cujos olhos pestanejam
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mais do que o costume, pede mais uma vez desculpas e relata mais alguns pormenores acerca do roubo.
- O empregado é Nicholas Kazanian, um técnico do laboratório, que já trabalha connosco há vários anos. Não é um homem muito instruído, mas é muito competente e da
máxima confiança. A noite passada, estava a fazer serão e, por volta das vinte e duas horas, ouviu bater à porta da frente. Foi lá abaixo, ouviu um homem gritar que era uma emergência e abriu. Não é um caso fora do normal, pois já temos tido incidentes desses. Quando ele abriu a porta, os dois homens forçaram a entrada. Kazanian diz que eram novos, vinte e tal anos e, aparentemente, hispânicos. Segundo ele, eram os dois bastante altos, um com bigode e o outro com barba, e tanto um como outro armados com revólveres. Obrigaram-no a levá-los até ao laboratório e a indicar-lhes o frasco que continha os óvulos de Miss Taylor.
- Então, sabiam exactamente o que queriam? - pergunta Marilyn.
- Não restam dúvidas! Depois de pegarem no frasco, amarraram Nick e amordaçaram-no. O vigilante entrou de serviço à meia-noite, soltou Nick e telefonaram-me. E é tudo!...
- Merda - comenta Marilyn, amargamente. - Não se pode dizer que a sua clínica tenha uma boa segurança, doutor...
- Quem é que podia prever um crime desta natureza?
- ripostou ele, tentando defender-se. - Os nossos óvulos congelados, o esperma e os embriões são valiosos, claro, mas apenas para os dadores e para os clientes. Não têm qualquer valor para mais ninguém!
- Não tenha assim tanta certeza disso - objecta Harriet. - Os dadores e clientes pagarão para os reaverem, não é? Eu disse-lhe que se tratava de rapto e vamos receber um telefonema, uma carta, indicando o valor do resgate!
- Mas nada de polícia - adverte Marilyn. - Não quero que isto se torne do conhecimento geral.
Cuidadosamente, Primster põe de lado o pãozinho meio comido.
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- Antes de tomar essa decisão, há uma coisa que tenho de participar-lhe. Os óvulos estão dentro de pipetas que estão suspensas em azoto líquido, e uma das suas características é que se evapora. Se a quantidade de líquido que está no frasco não for periodicamente restabelecida, o conteúdo acabará por descongelar.
Olham todos para ele com assombro.
- Quer dizer que os meus óvulos se estragarão?! pergunta Marilyn.
- Existe, de facto, essa possibilidade. Pela descrição do Kazanian, os ladrões são tipos de aspecto meramente criminoso e duvido que percebam alguma coisa de azoto líquido...
- Oh, meu Deus! - exclama Harriet. - Isso altera tudo!
- Quanto a mim, a única solução é fazer uma comunicação do roubo - aconselha o doutor Primster. - E, na sua conferência de imprensa, chame bastante a atenção para o facto de o azoto líquido que está no frasco roubado ter de ser continuamente acrescentado, para que os óvulos possam sobreviver.
Marilyn medita por um instante.
- Acha que os bandidos verão na televisão, ou nalguma notícia do jornal, e manterão o frasco cheio?
- É a nossa única hipótese - diz o médico. - Espero que se dêem conta de que, se deixarem estragar os óvulos, eles deixarão de ter qualquer valor como moeda de troca.
- Está bem - declara Marilyn -, vamos então a isso. Gary!
Flomm deixa cair o pãozinho e põe-se de pé, aguardando ordens:
- Minha senhora?
- Ligue para a secção de Relações Públicas da Merchandise. Escreva um comunicado, uma página chega, para ser distribuído à imprensa, mas eu quero lê-lo primeiro. Convoque os jornais, a rádio, a televisão... toda a gente! Marque a conferência para hoje à tarde a uma hora que possa vir a ser incluída no noticiário da noite. Tente pôr-me no Today de amanhã de manhã e marque com Dona-
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hue, Oprah, Walters e todos aqueles de quem se lembrar. Esqueci-me de alguma coisa, Harry?
- Da gratificação - responde a secretária.
- Claro! Gary, compre uma página inteira no Times, no Newsday, no Post e no News. Pagarei cem mil dólares pela rápida devolução dos meus óvulos, sem discutir. E oferecerei cem mil a qualquer pessoa que possa fornecer informações que conduzam à recuperação dos óvulos.
- Vai ter de chamar a polícia - informa Flomm.
- Disso trato eu! Harriet, liga para o Roche e diz-lhe que se meta num avião e que venha para cá o mais depressa possível. E acorda a Loretta, a Shari e o Sidney. Quero começar já a preparar o que vou vestir para a conferência de imprensa!
- Algo discreto e convincente - sugere Flomm.
- Eu sei ser convincente, pateta - replica-lhe Marilyn.
- vou fazer como naquela cena de tribunal na Pecadora Inocente. Doutor, gostaria que estivesse presente, para responder a algumas perguntas técnicas ou médicas, está bem?
- Claro, terei muito prazer em colaborar.
- E, Tony - diz ela, dirigindo-se ao guarda-costas -, lubrifique a sua arma e mantenha-se perto de mim. Tenho um pressentimento de que essa gratificação vai levantar muitas lebres. Vamos, pessoal, toca a trabalhar! Ainda bem que é domingo, um dia fraco para as notícias. Quero uma cobertura total da rádio e da televisão esta noite e cabeçalhos amanhã de manhã. Quero tudo!
O MUNDO
News de Nova Iorque: FURTO DE OVOS FAZ FERVER
ESTRELA! Post de Nova Iorque: ROUBO DE OVOS PODE SER
UM PLANO SECRETO DOS
COMUNISTAS!! Newsday de Nova Iorque: AGENTES DA POLÍCIA
MEXEM-SE PARA
RECUPERAR OVOS
ROUBADOS.
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Times de Nova Iorque: Actriz participa desaparecimento
de óvulos de uma clínica de fertilização.
A história do roubo dos óvulos de Marilyn Taylor transforma-se numa notícia internacional, eliminando das primeiras páginas de todos os jornais, em todo o mundo, as da crise no Médio Oriente, dos tumultos na Irlanda e da fome na Etiópia, e, através das maravilhas das transmissões por satélite, os ecrãs de televisão, desde a Austrália à Gronelândia, transmitem aos preocupados telespectadores o apelo da vedeta.
"A sua comovente mensagem aos ladrões: "Por favor, não façam mal ao meus óvulos!" emocionou os corações de milhões de pessoas."
- National Enquirer
A maior parte dos seus fervorosos admiradores não sabe nada acerca da fecundação in vitro ou da transferência de embriões, mas todos eles viram os filmes de Marilyn Taylor, leram artigos em revistas sobre a sua vida privada e seguiram, com ditosa admiração, os seus êxitos na carreira empresarial. Neste momento, sabendo da enormidade da sua tragédia, reagem com uma dedicação transbordante, pelo que houve que contratar mais empregados para se encarregarem dos telegramas, cartas, telefonemas e presentes, incluindo duas galinhas vivas, enviadas por avião e oferecidas por um lavrador jugoslavo, que, ao que tudo indica, interpretou mal a natureza da sua perda.
Os jornais de escândalos de todas as capitais do mundo apressam-se a explorar os aspectos mais sensacionalistas do caso, enchendo as páginas com fotografias da estrela envergando um reduzidíssimo biquini ou um modelo de fato de banho desenhado por ela e chamado Dois Selos e Um Penso Rápido.
Os jornais mais sérios, porém, utilizam o roubo como pretexto para os artigos que abordam as implicações éticas dos novos métodos de concepção. Os seus autores não deixam de realçar o carácter atractivo dos óvulos de Marilyn, ? que pressupõe a existência de genes que poderão transmitir
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a sua beleza, o seu talento e a sua perspicácia para os negócios. Mas existem problemas...
"Aumentam as discussões acerca do valor monetário dos óvulos roubados."
- The Wall Street Journal
As sondagens feitas à população, logo que o roubo foi publicitado, indicam que a grande maioria dos homens e mulheres de todas as raças se solidariza com Marilyn e acredita que ela foi vítima de um crime cruel e desumano, pelo qual os patifes que o cometeram devem ser duramente castigados.
"Sondagens indicam que 73 por cento são a favor da pena de morte para os ladrões dos óvulos."
- USA Today
É precisamente o valor monetário dos óvulos e qual o castigo a ser aplicado aos perpetradores o que preocupa o subinspector Hugh K. Gripsholm quando fala pela primeira vez com Marilyn:
- Ouça, menina - diz ele. - Neste momento, não sei se o Departamento está a investigar uma contravenção ou um crime muito grave. Não pode atribuir um valor, em dólares, aos óvulos?
- Eles não têm preço - responde-lhe ela. O inspector sacode a cabeça grisalha:
- Isso não vale nada, minha senhora. Nem isso nem o valor sentimental! Tem de atribuir um valor aos óvulos. A operação custou-lhe mais de mil dólares?
- Custou - responde Marilyn, omitindo a laqueação das trompas, a ele e a toda a gente.
- Muito bem, pode então alegar que os óvulos custam mais de mil dólares, pelo que o furto dos mesmos passa a ser qualificado muito grave.
- Ouça - interrompe ela -, não faça disto um drama tão grande, e o que eu realmente queria era que a Polícia de Nova Iorque nem sequer fizesse quaisquer investigações! Deixem-se ficar de fora, pois estou certa de que os patifes vão contactar-me e eu farei um acordo com eles, para que me devolvam os óvulos por cem mil dólares.
- Isso não pode ser assim - diz o inspector, com ar in-
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flexível. - Foi cometido um crime, foram infringidas leis, e, se os seus autores forem apanhados, terão de ser processados e punidos! Da forma como quer resolver
o caso, eles recebem uma boa maquia por terem infringido a lei e não lhes acontece nada! Não pode ser dessa maneira. Claro que queremos colaborar consigo, mas o caso já está tão badalado que nós não podemos ficar de fora. Já estou a ser pressionado pelo governador, pelo presidente da Câmara, pelo comissário, pela minha mãe e pela minha mulher. Todos eles querem que eu encontre os óvulos! bom, eu também quero encontrá-los e apanhar os tipos que os roubaram, mas, para isso, preciso da sua ajuda.
- Vocês vão é estragar tudo! - riposta Marilyn, encolerizada. - Os bandidos vão ver-se rodeados por polícias fardados e ficarão cheios de medo. Os malditos óvulos nunca mais vão aparecer!
- Escute... - Diz-lhe Gripsholm -, tenho uma ideia! Há um detective, um tenente, que poderei destacar para este serviço. É um tipo novo, bem-parecido e inteligente. Saiu da última fornada e tem formação universitária e essas coisas todas. E se eu o destacar para esta missão? Não anda fardado, logo, pode dizer aos repórteres que ele faz parte do seu pessoal. Entretanto, ele vai andando por aqui, à procura de pistas, e até pode ser que os seus empregados estejam envolvidos, quem sabe? E, se os patifes contactarem consigo, será ele quem fará a troca do dinheiro pelos óvulos, além de ter a hipótese de os apanhar. Que me diz?
- Um tipo? - pergunta Marilyn, desconfiada.
- Só um. Claro que ele vai estar protegido, mas nem a senhora nem mais ninguém dará por eles.
- E ele não estará fardado?
- Não. Vai andar à civil e sabe vestir-se bem.
- Está bem - concorda Marilyn, de má vontade -, mande-o cá. Como é que ele se chama?
- Jeffrey McBryde.
- É casado?
O inspector olha-a com um sorriso malicioso:
- Só com o Departamento de Polícia de Nova Iorque.
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LOS ANGELES, Califórnia
Mário (o Nariz) Zucchi está com problemas e diz à mulher:
- Há dias em que não me apetece nada levantar da cama.
- Tens de ir para o trabalho, Mário! - queixa-se ela.
- Que trabalho? - pergunta ele, com maus modos. Está tudo num rebuliço! Já não há disciplina nem respeito. Agora é cada um por si mesmo. O que é que aconteceu às velhas tradições? Perdeu-se tudo, é o que é!
Ainda não há muito tempo, Mário e a sua organização tinham um belo negócio montado, englobando agiotas, extorsão, drogas, prostituição e uma série de sindicatos filiados. As suas receitas permitiam que a divisão da Mafía de Los Angeles comprasse coisas legais, como bares, restaurantes, armazéns de cerveja e firmas de construção. Chegaram até a financiar alguns filmes e montaram uma rede de produção e distribuição de videocassetes de pornografia hard core.
O Homem de Chicago estava muito satisfeito com o êxito de Mário e disse-lho, mas isso pertencia ao passado. Agora o Homem não está nada satisfeito e aparece em Los Angeles, para uma reunião, exigindo que lhe expliquem por que razão os grandes lucros haviam descido de forma tão alarmante. E Zucchi explica-lhe: Os mexicanos e os asiáticos estão a tomar conta da cidade, controlando as actividades que dantes pertenciam apenas à Mafia. Ainda se pode fazer dinheiro com a marijuana e a heroina mas os forasteiros dominam o mercado da cocaína, quer para snifar quer para fumar, e, com os lucros fabulosos que têm, estão a abrir bares com sexo ao vivo, lojas de artigos pornográficos, e a invadir o campo da prostituição com adolescentes, tanto garotas como rapazes.
Os invasores são uma cambada de tarados que andam para aí a disparar contra as multidões com metralhadoras, só para se divertirem. Matam polícias, fazem explodir as casas dos rivais e não têm qualquer problema em violar a
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mulher ou a namorada de um inimigo, à sua frente, antes de o matarem. São absolutamente impossíveis de controlar, não têm lealdade para com qualquer organização criminal que seja maior e não estão minimamente interessados em aliar-se à Mafia, que, afinal de contas, estava aqui primeiro e trabalhou duramente para comprar os políticos e conseguir abafar os meios de comunicação.
E, como se isso tudo não bastasse, os novos elementos recrutados pela Mafia são uns bananas. Para eles a Cosa Nostra significa a "Cosa Mia". Estão-se nas tintas para a omertà1 e são capazes de entregar a mãe para conseguirem um acordo com o promotor público. Não são tipos de confiança e o facto de muitos deles snifarem duas espécies de coca ao pequeno-almoço também não ajuda nada!
O Homem de Chicago abana tristemente a cabeça e diz que as coisas na costa oriental estão igualmente más e não sabe ao que o país vai chegar com todos esses estrangeiros a tomarem conta dos negócios, mas, argumenta ele, por outro lado, a Organização não se pode permitir que uma competividade crescente e os problemas internos lhe destruam o negócio.
- Temos de descobrir novas fontes de rendimento diz ele a Mário. - Talvez devêssemos aproveitar, em vez de grandes facturações, um milhão aqui, outro ali, e, em breve, as coisas seriam melhores. Como isto dos óvulos da Marilyn Taylor. Ela oferece cem mil por eles. Deve estar a gozar! Sei muito bem que ela está cheia de dinheiro e que, se fosse bem apertada, era capaz de largar um milhão.
- Tem graça o senhor falar nisso - comenta Zucchi. - O tipo que nos fornece os filmes pornográficos conhece-a e foi a Nova Iorque para tentar convencê-la a protagonizar uma patetice qualquer que ele quer filmar.
- Sim?... - O Homem de Chicago parece interessado. - Esse tipo... como é que ele se chama?
- Sam Davidson. Deve-nos uma data de massa e é um
1 Lei do silêncio, entre os criminosos, contra a justiça. (N. da T.)
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completo idiota. Tem tantas chances de convencer aquela cabra a fazer um filme como eu de ser convidado para jantar na Casa Branca!
- Hum, hum... - resmunga o homem, com ar pensativo. - Não estás a pensar que foi ele quem fanou os ovos, para forçá-la a fazer o filme, ou estás?
- Não! Ele não tem coragem para isso.
- Quanto é que ele nos deve?
- Quase cinquenta mil. Tenho-o bem controlado, para que continue a fazer os seus filmes eróticos.
- Ele está desesperado?
- Calculo que esteja.
- Os homens desesperados fazem coisas desesperadas, Mário, e eu acho que tu deves ir a Nova Iorque, para te informares sobre esse Davidson. Leva dois homens, só por causa das coisas.
- Se acha que sim...
- Sim - confirma o Homem de Chicago, olhando-o bem de frente. - Acho que sim.
WASHINGTON, DC
O Federal Bureau of Investigation está sediado num prédio cuja graciosidade arquitectónica faz lembrar a de uma retrete pública. Assemelhando-se mais a uma fortaleza do que a um edifício oficial, as suas proporções, desmedidas, insinuam acções sombrias no seu interior, uma determinação a toda a prova e uma raríssima actividade. Não necessariamente! Há um supervisor, no primeiro andar, que se delicia quando pode dar que fazer aos sonolentos agentes.
No domingo, ao fim da tarde, as luzes acendem-se numa sala de reuniões onde se junta um grupo de especialistas, convocados à pressa. A reunião é presidida por um subdirector-adjunto e o único tema em agenda é o roubo dos óvulos de Marilyn Taylor.
- Este tema é quente - diz o subdirector -, pois
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creio que toda a gente, neste país, viu a transmissão da conferência de imprensa que ela deu. Já tivemos, até este momento, pedidos de informações da Casa Branca, do Ministério da Justiça e de uma dúzia de escritórios locais. Todos eles querem saber se vamos envolver-nos no caso.
- Também os jornais e as redes de televisão querem saber - declara o porta-voz para a imprensa. - O meu telefone não pára de tocar! Até já recebi uma chamada da InterpoL Qual é a nossa posição oficial nisto?
- É para o decidir que estamos aqui - explica o subdirector. - O director está a participar naquele torneio de golfe com fins caritativos em Palm Springs, e quer que nós façamos um pequeno comunicado, que será distribuído amanhã de manhã. Lou, qual é a situação na Delegação de Nova Iorque?
O seu assistente consulta uma série de apontamentos escritos à mão:
- Eles ainda não destacaram nenhum agente, mas já abriram um processo e estão a tentar estabelecer uma ligação não oficial com o Departamento de Polícia de Nova Iorque. Os tipos de lá não estão muito dispostos a colaborar, pois existe muita publicidade sobre o caso e eles querem ficar com os louros todos.
- Como é que o caso está a ser investigado? Contravenção ou crime muito grave?
- As últimas informações dizem que se trata de um crime de furto qualificado.
Ouve-se um tossicar tímido vindo de um supervisor míope, que é a mais alta autoridade em leis do Bureau:
- Eu não estou certo - diz ele, com ar sério - de que furto qualificado seja, hum, a classificação correcta para este crime... É muito possível que tenha sido... hum... um crime de roubo, que é ainda mais grave, pois envolveu o uso da força física, ou violência, para com uma pessoa. Pode argumentar-se, hum, que Marilyn Taylor não foi a vítima directa dessa violência, mas poderá igualmente afirmar-se que os seus óvulos, um produto, hum, íntimo do seu corpo, foram o alvo de tal força, ou violência.
O agente mais novo entre os presentes levanta a mão para
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falar, como se fosse um menino de escola dentro da sala de aula.
- Não poderia ter sido rapto? Se for rapto, nós podemos ocupar-nos da investigação, segundo a Lei Lindbergh, não podemos?
- O Decreto Lindbergh - corrige o subdirector. Mas só passaria para as nossas mãos se a vítima não fosse libertada dentro de vinte e quatro horas. Após esse prazo
parte-se do princípio de que a vítima foi levada para fora do estado ou para o estrangeiro. Mas será rapto? Qual é a sua opinião, Bernie?
- Segundo a lei, o rapto é o sequestro forçado de uma pessoa contra a sua vontade. Habitualmente, mas nem sempre, o rapto pressupõe um pedido de resgate; contudo, o factor, hum, crucial a ter aqui em conta é que o rapto tem de envolver o sequestro, ou transporte, de uma pessoa,, e o depoente desconhece se um óvulo, vivo ou não, mas aparentemente não fecundado, pode ser como tal considerado. Que eu tenha conhecimento essa questão nunca foi, até hoje, levantada.
- Merda! - exclama o subdirector. - Acho que é melhor pedirmos uma opinião legal a alguém lá de fora. Eu gostaria que o Bureau tivesse uma actuação importante nesta investigação, mas, antes de nos envolvermos, necessitaremos de uma justificação irrefutável! Bernie, como se chama aquele professor de Direito de Harvard? Aquele velhote que nós já temos consultado em questões complicadas?
- Ah! Suponho que esteja a referir-se ao professor T. Hiram Farthingale! É da máxima confiança e tem um cérebro muito activo para as questões jurídicas. Já está reformado, mas tenho a certeza de que se mostrará disposto a conceder-nos o privilégio das suas opiniões acerca deste assunto.
- Óptimo! Porque não lhe dá uma telefonadela? Não, melhor ainda, meta-se num avião, vá a Boston e explique-lhe o caso. Vamos lá a ver o que é que ele pensa disto! Entretanto, vamos preparar o comunicado para a comunicação social. Diremos que somos apenas observadores enquanto
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não se apurar se alguma das leis federais foi infringida e, se assim foi, tencionamos desempenhar um papel principal na investigação. Isso fará com que os
tipos do Departamento de Polícia de Nova Iorque saibam que estamos a controlar o trabalho deles, pois isto vai tornar-se um caso de proporções gigantescas e não queremos que o Bureau fique de fora.
- Se calhar - sugere o porta-voz -, se calhar, em vez de distribuirmos apenas um comunicado, talvez fosse melhor prepararmos cuidadosamente uma conferência de imprensa.
- Boa ideia - concorda o subdirector -, e não se esqueça de dizer que o director vai abandonar um torneio de golfe com fins caritativos, para se meter num avião e voltar para Washington, a fim de assumir, pessoalmente, o comando das actividades do Bureau no caso do roubo dos óvulos de Marilyn Taylor!
- O director vai mesmo abandonar o torneio?
- Não tem outro remédio! Foi eliminado logo na primeira classificativa!
MANHATTAN, Nova Iorque
Nicholas Kazanian começa a sentir, com um certo medo, que afinal não é um cérebro do crime. Até ver, ainda não entrou em pânico, mas, se o seu plano, tão cuidadosamente engendrado, continuar a desmoronar-se, o melhor será ele vender o seu Toyota e apanhar o primeiro voo para Hong Kong ou para qualquer outro sítio onde não exista um acordo de extradição com os Estados Unidos.
Ele assegurara a Pincus e a Abruzzi que Marilyn Taylor nunca chamaria a polícia, mas, agora, a clínica de fertilização está enxameada de agentes e Nick foi obrigado a contar a sua história inventada para aí uma dúzia de vezes.
Por enquanto, os chuis parecem acreditar na sua intrujice, mas quem pode adivinhar até quando continuarão eles
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com as investigações? No domingo à tarde, ele observa-os enquanto os agentes pulverizam o laboratório à procura de impressões digitais e, por mais que tente, não consegue lembrar-se se Sol e Joe tocaram em mais alguma coisa além do frasco. Essa é uma das suas preocupações.
A outra, a grande preocupação, atinge-o quando vê, no televisor portátil que está no laboratório, a conferência de imprensa de Marilyn, na qual a estrela implora aos ladrões que vão acrescentando o azoto líquido dentro do frasco, para que os seus óvulos não se estraguem. Se não houvesse dois chuis a seu lado, a ver a transmissão, Nick teria batido na testa vociferando: "Estúpido, estúpido, estúpido!"
Isto porque ele sabe muito bem que os frascos têm de estar cheios até acima, faz parte do seu trabalho! E por esse motivo que os médicos têm sempre um reservatório com azoto líquido arrumado a um canto do laboratório.
Mas Nick tivera tantas coisas em que pensar que se esquecera por completo de que o líquido tinha de ser acrescentado uma vez ao dia! Agora, dá-se conta de que, se não tirar o frasco de dentro do porta-bagagens do Chevy de Abruzzi antes de segunda-feira de manhã, os óvulos estragar-se-ão e lá se vai por água abaixo todo o seu famoso assalto.
É com uma grande aflição que ele aguarda a partida dos agentes, ao fim da tarde, para ficar sozinho no laboratório. Então, liga para Abruzzi, rezando para que a polícia não tenha colocado os telefones da clínica sob escuta, rezando para que Dumbo esteja em casa, rezando para que ainda se possa salvar o plano e que os três aprendizes de ladrão possam facturar naquilo que o tipo da televisão classificou como "o crime do século".
Abruzzi está em casa, graças a Deus!, e Kazanian, sem lhe dar qualquer hipótese de fazer perguntas, começa a falar num tom de voz baixo e preocupado:
- Não digas nada, Dumbo! Ouve só e faz o que eu digo. vou buscar aquela coisa que tu tens hoje à noite, e não amanhã de manhã, está certo? Pegas no teu carro e vais ter ao nosso local de encontro habitual, às oito horas, que eu estarei lá. Percebeste?
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- Eh! - grita Abruzzi -, o que é que aconteceu? Tu disseste que ela não chamava a polícia, e agora...
- Está calado! - volve Nick, furioso. - Vê mas é se estás lá às oito com o teu carro!
Desliga e começa a trabalhar rapidamente. Escolhe um dos maiores frascos e enche-o de azoto líquido. Em seguida, sai da clínica com uma última esperança: que os chuis não tenham ainda descoberto a saída das traseiras que dá para a Rua 69!
Só quando se dirige para Brooklyn, no seu Toyota, e com o frasco de gás liquefeito no banco a seu lado, é que as tremuras desaparecem e ele pode começar a fazer planos para o resto da noite.
O Turks Bar está deserto, mas Pincus e Abruzzi estão sentados a beber cerveja, no reservado lá atrás, e, pelas suas caras, Kazanian vê logo que estão assustados.
- Está tudo a correr às mil maravilhas - diz ele, para os acalmar. - Tal como eu vos disse.
- Tal como fu disseste - replica Abruzzi, fitando-o através das lentes grossas dos óculos. - Tu disseste que ela não chamava a polícia!
- Não fiquem assim tão aflitos - tranquiliza-os Nick, com frieza. - Pronto, ela chamou a polícia! E depois? Eu respondi às perguntas deles e eles engoliram tudo!
- Ah, sim? - diz Pincus. - Então, e essa coisa de termos de encher o frasco para que os ovos não fiquem negros?
Nick recosta-se na cadeira, aparentando uma grande descontracção:
- Não há problema! Eu já contava com isso e trouxe da clínica azoto líquido que chegue para conservar esses óvulos devidamente congelados, mas pensei que é melhor levar já o frasco, Dumbo, em vez de esperar até amanhã de manhã.
- Porquê? - pergunta Abruzzi. - Disseste-nos que o teu irmão só embarcava na segunda-feira!...
- Exactamente - responde Kazanian -, mas tu mostraste-se tão nervoso por ficares com o tesouro no teu carro que eu achei melhor levá-lo para minha casa.
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- Quando é que vais telefonar à vedeta? - pergunta Solly.
- Provavelmente amanhã.
- Olha lá, Nick, talvez fosse melhor sacarmos os cem mil que ela oferece e ficarmos por aí...
- Não! - riposta Kazanian. - Isso é só a primeira oferta dela e eu vou pedir um milhão, como já vos tinha dito. Escutem, nós podemos sempre baixar a parada, o que é mais fácil do que subir; por isso, vamos pedir um milhão e talvez nos fiquemos pelos quinhentos mil. Já não é mau de todo, pois não?
Eles parecem concordar e Nick espera pacientemente que acabem de beber as cervejas, para depois se levantarem e saírem. São observados atentamente por um tipo que está sentado ao balcão do bar, envergando umas jeans e um casaco de cabedal preto, e cujo cabelo, comprido e louro, está penteado para trás. Eles nem sequer olham para ele, o que é um erro, pois Abruzzi tê-lo-ia reconhecido.
BOSTON, Massachusetts
Monsenhor Terence Evelyn ODell sai do Retiro de São Bartolomeu, um paraíso de reclusão para padres reformados, e detém-se por um instante no passeio, para tirar
um charuto da charuteira de pele de porco que comprou em Londres, há cinquenta anos. Corta-lhe a ponta cuidadosamente, humedece-a com os lábios e acende-o com um
grande fósforo de cozinha. Atira uma fumaça para o ar, olhando o céu, escurecido.
- Olá, Lua! - saúda-a ele, bem-humorado.
Começa então o seu lento passeio em direcção e Beacon Hill. "Tente caminhar uns três quilómetros por dia", dissera-lhe o jovem cirurgião, após a aplicação do seu terceiro by-pass, acrescentando depois, com firmeza: "E acabaram-se os charutos e o brande!"
"Sim, doutor", prometera, com ar submisso, e, ao sair
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do hospital, a primeira coisa que fizera fora comprar uma caixa de Garcia y Vegas e a maior garrafa de Courvoisier que havia na loja, pois acha que com oitenta e três anos se encontra numa posição favorecida, e o melhor é enfrentar o bom Deus com uma disposição bem alegre.
O timing é perfeito: acaba de fumar o charuto precisamente quando chega à porta da casa do professor T. Hiram Farthingale. Este é o dono de todo o grande casarão em pedra castanha, pois tivera o bom senso de se casar com uma mulher rica. Quando ela morreu (e que funeral majestoso foi o seu!) e Hiram se reformou, o edifício, de cinco pisos, começou a ter o aspecto, e o cheiro, de um clube masculino, ligeiramente bafiento. A casa está agora completa, com uma biblioteca desarrumada, um escritório acolhedor, uma adega e uma governanta-cozinheira que faz as melhores costeletas de carneiro grelhadas de Boston.
- Boa noite, Bridget - diz-lhe ODell. - Como está hoje o seu reumatismo?
- A dar sinal, obrigada, mas eu faço por sofrer em silêncio!
- É a melhor maneira - comenta ele, benevolente, dando-lhe uma palmadinha no braço.
Farthingale, envergando uma casaca de veludo, cumprimenta-o à porta do escritório. O Dell repara, com satisfação, que sobre a mesa cilíndrica, entre as duas poltronas de cabedal, está uma caixa de charutos, aberta, e com o respectivo humidificador, além de uma garrafa de cristal lapidado, cheia, e dois balões. Os velhos amigos instalam-se, com um suspiro de satisfação, para desfrutarem da sua habitual conversa dos domingos à noite.
- Há coisa de uma hora, tive uma visita interessante diz o professor, deitando o brande nos copos com uma mão que já treme ligeiramente. - Um enviado especial do FBI.
- Oh?! - exclama o monsenhor. - Não te meteste em sarilhos, pois não?
- Não, Terry - responde o anfitrião, com um sorriso -, mas eles já têm, de vez em quando, vindo consultar-me sobre certas questões legais difíceis de perceber.
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- Espero bem que te paguem pela sabedoria.
- E pagam! A consulta. Não é muito, mas garanto-te que é bem recebido, pois faz bem ao meu ego saber que, na minha idade e no meu estado de decrepitude, as minhas opiniões ainda têm algum préstimo.
- Claro que têm! - afirma ODell, categórico. - Não tens varizes no cérebro, Hiram, isso garanto-te eu! Vamos então ao nosso primeiro charuto? - Acendem-nos vagarosamente, soltando abafadas exclamações de prazer. E qual era hoje o problema do FBI? - quer saber o padre.
- Viste, por acaso, na televisão, a conferência de imprensa de Marilyn Taylor?
- Não, não vi, estava na missa a essa hora, mas ouvi falar nisso quando cheguei a casa. Segundo penso saber, os óvulos da pobrezinha foram roubados da clínica de
fertilização.
- Precisamente.
- Uma coisa terrível. Terrível, em primeiro lugar, por terem sido retirados do seu corpo, e terrível por terem sido roubados. Estou certo de que sabes das críticas
que a Igreja faz aos novos métodos de concepção.
- Sei, mas o FBI pouco se interessa pelo significado que o roubo tem em termos religiosos ou éticos. Eles querem apenas saber se, segundo a lei, o crime pode ser
considerado rapto, pois, se for esse o caso, terão de se envolver nas investigações ao abrigo do Decreto de Lindbergh.
- Compreendo - diz ODell, alternando as fumaças de charuto com os goles de brande. - E que lhes disseste?
- Disse-lhes que ia estudar o assunto, fazer uma pesquisa meticulosa e que lhes daria a minha opinião tão depressa o permita uma profunda reflexão. Estou, no entanto,
certo de que a minha primeira reacção se revelará acertada. O roubo dos óvulos não pode ser considerado rapto, visto que este crime pressupõe o sequestro de uma pessoa e, por muitas voltas que dêmos à imaginação, um óvulo humano não fecundado não pode ser classificado como tal.
O monsenhor deita nova dose de brande nos dois balões.
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- Estás absolutamente convencido disso, Hiram? pergunta. - Admitamos que um óvulo não tenha ainda uma existência ao nível sensorial, mas o potencial está lá!
O professor brinda-o com um sorriso: - Não se pode raptar uma potencialidade, Terry - replica, afavelmente. - Os óvulos não têm vida. O padre olha pensativamente para o outro homem.
- Vamos supor que algum desgraçado decepa um dedo num acidente, numa fábrica. Considerarias que esse dedo ferido tinha vida?
Farthingale medita por um instante.
- Não - acaba por dizer. - Não tem vida própria. É um objecto.
- Então, suponhamos que a vítima do acidente é rapidamente transportada para o hospital, mais o dedo decepado, e que, através dos milagres da microcirurgia, o dedo é colocado de novo no sítio, acabando por tornar-se uma parte do seu corpo, controlada e útil. Admites a possibilidade de isso acontecer?
- Admito.
- Por outras palavras: aquilo que anteriormente era um objecto desprovido de vida volta a fazer parte de um organismo vivo.
O professor dá um gole no seu brande, sabendo para onde se encaminha este raciocínio.
- Mas, enquanto não foi recolocado - argumenta -, o dedo estava insensível, estava morto! Não tinha, de facto, qualquer valor considerável aos olhos da justiça.
- Então, a justiça é realmente estúpida. Esse dedo tinha muito valor para a vítima que o perdeu. Fazia parte do seu corpo, da sua pele, dos seus ossos e tecidos. Supõe agora que, por qualquer estranha circunstância, o dedo era roubado antes de o cirurgião poder colocá-lo no seu lugar. Esse roubo não se assemelharia a um rapto? Admitamos que não era o sequestro de uma pessoa completa, mas seria o roubo de um pedaço de uma pessoa, um pedaço com potencial para viver outra vez.
- Ah, ah! - exclama Farthingale. - Viver outra vez! E aí que a tua analogia perde o significado! Os óvulos da
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Marilyn Taylor nunca tiveram uma existência cônscia. Podem reagir a estímulos, mas não sentem dor nem reagem a um pensamento. - Como é que sabes? - pergunta ODell.
- Sei o quê?
- Que um óvulo não sente dor. Pode muito bem ser uma estrutura sensitiva capaz de reagir, instintivamente, ao meio que o rodeia.
- Isso é um disparate! - grita o professor.
- O potencial esta lá - insiste o monsenhor. - Não percebes isso? Um óvulo de uma mulher pode muito bem vir a ser metade de um Einstein, de um Shakespeare ou de um Rembrandt.
- Ou de um Jack, o Estripador! Não posso admitir que a possibilidade de o óvulo de Marilyn Taylor vir a transformar-se num ser humano o classifique como uma pessoa.
- Uma pessoa em potência - declara ODell -, e negá-lo é negar o incomensurável valor da própria vida!
Abre-se nova garrafa de brande, fumam-se mais charutos e a discussão continua até aos alvores do novo dia. É então que é chamado um táxi para levar de volta ao ambiente casto de São Bartolomeu o atordoado e radiante homem de Deus, não sem que ele antes tenha abraçado e abençoado o seu cambaleante e tolamente sorridente anfitrião.
MANHATTAN, Nova Iorque
Após a oferta televisiva de Marilyn Taylor, ou seja, cem mil dólares, pela devolução dos óvulos, começam a chover os telefonemas no antigo palacete da Rua 63, Este, além das várias cartas que são metidas por baixo da porta da frente. Seja por telefone seja por carta, todos eles afirmam estarem na posse dos óvulos e querem saber quando e como poderão receber a recompensa.
- Isto é só o princípio - comenta o tenente Jeffrey
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McBryde. - Todo e qualquer espertinho de Nova Iorque vai tentar a sua sorte.
- Então, como é que vamos lidar com eles? - pergunta Marilyn.
O detective dá uma olhadela ao seu bloco de notas.
- O doutor Primster fez-me uma descrição muito pormenorizada do frasco de congelação que contém os seus óvulos: tamanho, cor, formato, etiqueta do fabricante e
identificação colocada pela clínica num dos lados do frasco. Se pedirmos aos que telefonam que descrevam o frasco, saberemos rapidamente se se trata de um patifório tentando enganar-nos.
- Você pensa em tudo - diz ela, com admiração.
- Penso, sim - replica ele. Estão sentados na sala de estar, na segunda-feira de manhã, bebendo café simples e mordiscando croissants. Marilyn acha que o agente lhe faz lembrar um Gary Cooper ainda jovem mas muito mais eloquente. E tão autoconfiante que ela gostaria de espicaçá-lo! O chefe dele, o subinspector Hugh K. Gripsholm, pode achar que McBryde se "veste bem", mas, para ela, o tenente veste-se como um aprendiz de cangalheiro. Mas tem uns belos olhos azuis, e isso é uma vantagem! - Vejamos, então - diz ele, consultando as folhas do pequeno bloco de notas. - De acordo com o seu depoimento, as únicas pessoas que sabiam que a senhora ia doar os óvulos eram, além de si, a sua secretária, Harriet Boltz, Eve e Eric Bannon e o pessoal do Instituto de Fertilização Primster. Correcto?
- Sim.
- Hum, hum - murmura ele, fitando-a com ar pensativo. - Acho que vou conversar com Miss Boltz e com os Bannon.
- Para quê?!
- Para saber onde é que eles estavam à hora do assalto.
- Isso é uma estupidez - objecta ela. - Harriet, Eve e Eric não têm absolutamente motivo algum para roubarem os meus óvulos. Estão tão angustiados como eu por causa disto!
- Seja como for, vou verificar. Para o que der e vier.
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A propósito, onde estava a senhora às dez da noite de sábado? Ela lança-lhe um olhar furioso:
- Meu Deus! Não está a pensar que eu iria roubar os meus próprios óvulos, pois não?
- Não seria a primeira vez que uma personalidade famosa simulava um roubo só por causa da publicidade.
- bom, para sua informação, seu matulão, às dez da noite de sábado eu estava em casa, na cama, dormindo sob o resto do efeito da anestesia!
- Podia ter contratado os ladrões. Ela sacode a cabeça, pasmada:
- Você é mesmo um convencido, ai isso é! - exclama enquanto estende o braço, para pegar no maço de cigarros.
- Por favor, não fume na minha presença - diz ele.
- Está provado que o fumo dos outros é igualmente cancerígeno.
Ela bate com a palma da mão em cima da mesa.
- Chega! - exclama, cheia de raiva. - Não tenho de aturar esta merda, nem a si nem a mais ninguém! - Espetando o polegar, indica-lhe a porta. - Ponha-se a andar, engraçadinho, e vou pedir ao seu chefe que me mande outro agente, pois você está despedido a partir deste momento! Agrada-lhe a ideia?
- Imenso! - responde ele, pondo-se de pé e enfiando o bloco de notas no bolso do casaco. - Deu-me uma grande alegria, Miss Taylor, muito obrigado. Tenho coisas mais importantes para fazer do que andar atrás dos seus ridículos óvulos. - E começa a dirigir-se para a porta.
- Espere aí um bocadinho - diz ela, subitamente. Não seja assim tão duro!
- Eu não pedi para ser destacado, eles é que me confiaram este caso. E posso, com a mesma facilidade, arranjar outra missão!
- Oh, cale-se e sente-se! - ordena ela, de mau humor.
- Não fumarei à sua frente. Está satisfeito?
Mas ele continua de pé, fitando-a com uma expressão grave:
- Continuarei no caso se me tratar com o devido respeito.
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Eu sou um oficial de polícia, Miss Taylor, e não um dos patetas dos seus admiradores.
- Está bem, está bem - aceita ela, irritada. - Já disse o que tinha a dizer, agora sente-se e descontraia-se! - De má vontade ele volta a sentar-se à mesa e ela
enche-lhe novamente a chávena de café. - É sempre assim tão susceptível? - pergunta-lhe.
- Só quando acho que alguém quer fazer de mim parvo.
- Quem é que está a fazer de si parvo?
- Talvez você. Afirma que não foi pela publicidade que provocou todo este burburinho. Então, por que o faz? É uma mulher jovem e saudável e, no próximo mês, produzirá outro óvulo! Por que é que está tão desesperada com o roubo destes?
Ela já esperava que alguém lhe fizesse essa pergunta e preparara aquilo que considerava uma resposta comovedora e convincente:
- Veja bem, aqueles óvulos são meus. São fruto do meu corpo! E não quero que dois miseráveis e reles gatunos tentem distribuí-los no mercado negro ou vendê-los como souvenirs. Você é homem e não espero que compreenda, mas qualquer mulher se sentiria como eu: é como se tivesse sido violada! Sujeitei-me a uma operação para me tirarem os óvulos e poder, assim, ajudar a minha melhor amiga, que anseia desesperadamente ter um filho. Acha que vou permitir que algum patife sem escrúpulos estrague tudo? Só de pensar que um estranho imundo anda para aí com os meus óvulos fico fora de mim!
Jeffrey McBryde fita-a por uns instantes com uma expressão estranha e depois bebe o café.
- Admito que não compreendo - diz -, mas isso não é importante. Tudo o que preciso de saber é que foi cometido um roubo e agora gostaria de falar com Harriet Boltz, se ela estiver.
- Sim, está lá em cima. vou dizer-lhe que desça.
- Quero falar com ela a sós. Marilyn Taylor solta um suspiro:
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- Meu Deus você é mesmo teimoso! Está bem, faça como entender.
- É essa a minha intenção - replica o detective.
STATEN ISLAND, Nova Iorque
Nos momentos de grande excitação, Ronald Yates comporta-se como um adulto retardado e é o que está a acontecer no domingo à tarde.
Sai de casa por volta das três horas para comprar o jantar da mãe: dois frangos de churrasco, meio aquilo de salada de macarrão, três sementes de endro em vinagre e uma caixa de bolos de chocolate. Quando volta com o banquete, encontra Mrs. Gertrude Yates resmungando enquanto olha fixamente para o gigantesco ecrã do seu televisor:
- Interromperam um filme maravilhoso - diz ela ao filho -, The Creature Who Ate Osaka, porque aquela tal Marilyn Taylor está a dar uma conferência de imprensa.
Ele pousa a comida no pouco que resta do colo da mãe e sobe as escadas a correr, para se enfiar no seu santuário. Já lá dentro, porta fechada à chave, liga o televisor e, colocando no vídeo uma cassete virgem, começa a gravar a sua transmissão. Observa avidamente a sua deusa do amor e é então que, de boca aberta e expressão apatetada, mais parece um atrasado mental.
Não consegue entender completamente aquela história dos óvulos retirados, fecundação in vitro e transferência de embriões, mas uma coisa ele sabe: tiraram à sua querida algo a que ela dá muito valor, e isso basta para o pôr em completa ebulição.
E mais! Ele sabe quem cometeu o crime: aqueles dois vagabundos que viu entrar e sair do edifício da Rua 70, Este! Eles levaram um pequeno balde branco, que era, provavelmente, o frasco a que Marilyn se referia na televisão. Ronnie enfia a mão no bolso das jeans e tira de lá a carteira de fósforos que um dos tipos lhe deu.
Turks Bar Grill. Atlantic Avenue. Brooklyn.
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O seu primeiro instinto diz-lhe que ligue para a polícia e conte o que viu no sábado à noite, mas, como acontece a todos os homens, o sistema glandular sobrepõe-se ao cerebral. Se ele conseguisse recuperar os óvulos de Marilyn e devolver-lhos pessoalmente, tornar-se-ia, aos seus olhos, um herói! Rejeitaria a recompensa, claro! Estragaria tudo se aceitasse o dinheiro, mas ela convidá-lo-ia certamente para um encontro a sós. Talvez até acedesse a passar um serão maravilhoso com ele no Love Barn, um rinque de patinagem que há em New Brighton.
Decidido a demonstrar a sua fidelidade, puxa para cima as sedosas melenas que lhe caem para a testa e avança de peito aberto para um combate imaginário, sentindo-se como o galã do filme de Marilyn Singood, the Sailor. O robusto herói combatia e derrotava um grupo de piratas libertinos, a fim de livrar a estrela de um destino atroz e de a conduzir, em segurança, de volta à sua mansão ancestral, em Toowomba, onde ela recompensava o seu libertador concedendo-lhe a sua mão em casamento além do segundo maior rebanho de ovelhas da Austrália.
BROOKLYN, Nova Iorque
A mudança faz-se numa ruela escura a um quarteirão do Turks Bar. O frasco é retirado do porta-bagagens do Chevy de Abruzzi, e Kazanian coloca-o cuidadosamente no banco do passageiro da frente do seu Toyota, depois de ter passado para o banco de trás o recipiente com o azoto líquido.
- Está tudo em ordem - assegura aos outros. - Amanhã, levo-o para casa do meu irmão e depois telefono à Taylor!
- Depois conta-nos como se passou - pede-lhe Pincus.
- Claro! Calculo que ela queira fechar o negócio depressa.
- Quanto mais depressa, melhor - diz Dumbo. - Estou completamente falido.
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- Então, junta-te a nós! - exclama Kazanian, jovialmente. - Falo convosco amanhã.
Espera que eles arranquem e depois mete-se no Toyota e regressa ao seu apartamento de rés-do-chão na Bergen Street. Começa a pensar como é que vai verter o azoto líquido do grande reservatório para o frasco que contém os óvulos. Na realidade, deixa-se embrenhar de tal forma no problema que não repara no Volkswagen amachucado que o segue, abrandando quando ele abranda e virando quando ele vira.
Segue pela Nostrand Avenue quando subitamente o VW acelera, coloca-se a seu lado como se fosse ultrapassá-lo e então corta-lhe o caminho tão repentinamente que ele tem de travar, para evitar a colisão. Os dois carros imobilizam-se com um guinchar de pneus e o lado esquerdo do guarda-lamas do Toyota está quase encostado ao VW.
Nick põe a cabeça de fora e grita:
- Que grande parvalhão! Que diabo está você a fazer?! Um garoto louro abre a porta do Volkswagen:
- Eh!, mister! - grita ele. - O seu carro está a arder! As chamas estão a sair, lá atrás, por baixo do depósito da gasolina!
- Oh, meu Deus! - geme Kazanian e sai atabalhoadamente do carro, deixando a porta aberta. Corre para a parte de trás do Toyota, mas não vê chama nenhuma. Nem fumo, sequer. Ajoelha-se e enfia o braço por baixo do carro. Não sente qualquer aquecimento fora do normal. Põe-se de pé, disposto a dar uma ensinadela àquele miúdo louro, mas o Volkswagen afasta-se rapidamente com um chiar de pneus. - Eh! - grita Nicholas, começando a correr. - Seu atrasado mental de merda!
Mas o VW desaparece tão rapidamente que ele não consegue tirar-lhe o número de matrícula. Só consegue vislumbrar um grande autocolante no vidro traseiro e a única coisa que consegue ler é Yum-Yum, sem fazer a mínima ideia do que aquilo possa querer dizer.
Praguejando amargamente volta para o Toyota, achando que o condutor do VW deve ser algum excêntrico que se diverte à grande dizendo às outras pessoas que os seus carros
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estão a arder. Nova Iorque está cheia de tarados deste género.
Prepara-se para ligar a ignição, mas não o faz. Continua muito quieto, estupefacto, olhando para o desocupado assento a seu lado e dando-se conta de que o frasco com os óvulos de Marilyn Taylor desapareceu. Roubado.
- Sacana de ladrão! - berra ele, desesperado.
MANHATTAN, Nova Iorque
Sam Davidson dorme até tarde na segunda-feira de manhã e levanta-se cheio de energia. Tem na carteira mil dólares, que, quanto a ele, são um bom presságio. Além disso, Marilyn Taylor foi muito bem lixada e ele sente-se muito contente com isso.
- Cá se fazem, cá se pagam - diz, em voz alta. Veste-se rapidamente, cheirando a camisa e as peúgas.
Resolve que talvez seja melhor gastar parte da massa em roupas novas e que lhe cheguem para uma semana, pelo menos. Se calhar, também vai mudar-se para um hotel,
melhor, para um sítio qualquer onde as baratas não corram a maratona, todas as noites, no corredor.
Compra os matutinos e encaminha-se vagarosamente para a parte alta da cidade, observando os patetas que correm apressadamente para os seus empregozinhos. Pobres
idiotas! Preferia assaltar um banco a ter de entrar outra vez naquela engrenagem! Para provar que sabe viver, pára no Regency para tomar um pequeno-almoço de trinta dólares e, enquanto espera pelos seus ovos Benedict, lê os artigos dos jornais acerca do roubo dos óvulos da Taylor.
"Não podia ter acontecido numa altura melhor", pensa, pois agora já tem um bom motivo para ganhar tempo com o Champ DuBois. Depois de beber a terceira chávena de café, pagar a conta e deixar uma generosa gorjeta, dirige-se para a cabina telefónica do átrio do hotel.
- Champ, é o Sam Davidson - diz ele, alegremente. - Não se importa que eu lhe chame Champ, pois não?
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- De modo nenhum.
- bom, calculo que já saiba o que aconteceu à Marilyn Taylor...
- Já tive conhecimento.
- Telefonei-lhe a noite passada, para lhe demonstrar a minha solidariedade - diz Sam - e ela está completamente desvairada. O apartamento está cheio de polícias e todos os espertinhos de Nova Iorque lhe telefonam reclamando a recompensa. Por isso, não achei que fosse boa altura para lhe falar no script ou para combinar um encontro consigo. Dê-lhe alguns dias para acalmar e então eu faço a minha jogada.
- Ah, sim! - murmura DuBois. - O assalto também modificou de certa forma os meus planos. Acho que o melhor é você vir aqui o mais depressa possível.
- Bem, talvez mais logo - replica Davidson. - Hoje, tenho um dia cheio, pessoas para contactar, coisas para fazer...
- O mais depressa possível - repete DuBois. - Dentro de meia hora. Está bem para si?
O seu tom de voz não é propriamente ameaçador, apenas calmo e directo, mas é, acima de tudo, muito convincente.
- bom, sim, claro! - responde Sam, pouco à vontade. - Creio que posso cancelar alguns compromissos.
- Faça-o - ordena Champ.
Quando Sam chega ao amplo apartamento encontra o seu proprietário completamente vestido de branco: fato branco, camisa, gravata, meias e sapatos brancos. Até os aros dos óculos escuros são brancos. E branco também é o líquido que ele está a beber, numa taça.
- Chivas com leite - diz-lhe DuBois, erguendo a taça. - Não quer experimentar?
- Não, obrigado - responde Sam. - Ainda é um bocado cedo para mim.
- Nunca é demasiado cedo - comenta DuBois e acomoda, com gestos elegantes, a sua figura delgada numa poltrona de cabedal, sentando-se de lado, de forma a que as suas longas pernas fiquem a balouçar por cima do braço
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da cadeira. - Esta história da Marilyn Taylor é um caso interessante. Um trabalho combinado, é claro! Estou convencido de que a polícia o sabe.
- Ah, sim! - concorda Sam. - O mais certo é estar tudo resolvido dentro de uma semana ou coisa assim.
- Sim, é essa também a minha estimativa. No entanto, pelo que ela disse na conferência de imprensa, se os ladrões não acrescentarem o azoto líquido no frasco roubado, os óvulos morrerão. Então, não terão nada para negociar com ela...
- Sim, eu também li isso.
Os óculos escuros estão voltados na direcção de Davidson, pelo que ele calcula que DuBois esteja a fitá-lo.
- Cem mil dólares é uma recompensa ridícula - prossegue Champ. - Uma mulher com a fortuna dela pode pagar um milhão. Pelo menos! Não acha?
- Bem podia pagar isso - observa Sam, a medo. Caramba, com o dinheiro que ela tem!
- É um desafio interessante.
- O quê?
- Tirar os óvulos aos ladrões antes de eles poderem negociá-los com ela ou antes de serem recuperados pela polícia. Pense só no que isso significaria para si. Estou certo de que ela, por gratidão, acederia a protagonizar a sua nova epopeia!
- Talvez. Mas eu não sou nenhum detective e não saberia por onde começar a procurar os óvulos!
- Isso não deve ser muito difícil. Supondo que os ladrões viram Marilyn na televisão - uma suposição muito provável -, agora já sabem que é preciso ir acrescentando o azoto líquido!
- Até aí percebo eu - diz Sam -, mas qual é a sua ideia?
- A minha ideia, meu caro, é a seguinte: onde é que os ladrões vão arranjar esse azoto líquido? O Macys não o vende, tenho a certeza, nem o Wolworths, nem o K-Mart, nem sequer uma dessas lojecas de ferragens que há para aí.
- Provavelmente, numa loja qualquer que venda equipamento médico e de laboratório - arrisca Sam.
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- Exactamente! Se verificássemos as vendas de azoto líquido nessas lojas, descobriríamos uma pista muito promissora para os amadores que perpetraram este crime fantástico.
- Eh! Espere aí um bocadinho! - protesta Davidson. - Deve haver uma centena de lojas dessas na região de Nova Iorque. Levaria uma eternidade a verificá-las todas!
- Oh, com o pessoal não haveria problemas - replica DuBois, com ar despreocupado. - Eu posso facilmente contratar uma equipa de tipos espertos e despachados para fazerem as investigações. O que preciso de si é que me dê uma lista completa com os nomes e as moradas das lojas onde se pode arranjar o azoto líquido.
- De mim?! - exclama Sam, horrorizado. - Aonde é que eu vou arranjar uma lista dessas?
- Oh, você é um sujeito esperto, Sam. Posso chamar-lhe Sam, não posso? Não creio que vá ter grandes dificuldades para me fornecer as informações que procuro.
- Não - afirma Davidson -, não conte comigo. Não quero envolver-me nisso, é tudo.
- Mas já está envolvido - diz o outro, com suavidade. - Não está a perceber? Você deseja contratar a Marilyn Taylor para o seu novo filme. Consegui-lo-á se recuperar os óvulos dela!
- E o que é que você lucra com isso? - atreve-se Sam a perguntar.
- O resgate - responde Champ, mostrando os dentes. - Um milhão de dólares, segundo espero. E com muito menos riscos do que correria se lhe roubasse as jóias!
- Não estou a perceber - declara Sam, sacudindo a cabeça. - Suponha, suponha só, que eu apanho os óvulos e os entrego à Marilyn. Ela fica tão agradecida que concorda em protagonizar o Private Parts II. Certo. Até aí, tudo bem, mas onde é que entra o milhão de dólares? Ela não vai fazer o meu filme e pagar-lhe, a si, um milhão!
- Acho que vai - afirma DuBois, com toda a delicadeza. - Quando os óvulos forem recuperados dos patifes
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que os roubaram, eu fico na sua posse e torno-me, de facto o ladrão. Você serve de intermediário, ou seja, o contacto entre o assaltante e a vítima. Só você pode garantir a recuperação dos óvulos! Ela paga o resgate de acordo com as minhas instruções: o dinheiro é-lhe confiado a si, que mo entregará a mim. Em troca, os óvulos são-lhe confiados a si, para que os entregue à Marilyn!
- Não vai resultar. Ela não irá nisso.
- Não terá outra alternativa, se quiser reaver os óvulos!
- Isso não me agrada - insiste Sam. - Já fiz algumas falcatruas na minha vida, porque me vi obrigado a isso, mas nunca me arrisquei a ir parar à cadeia. Isto é perigoso de mais, para mim!
- É pena - replica DuBois, de forma indolente -, porque, nesse caso, terei de telefonar à sujeita, a dizer-lhe que lhe paguei a si mil dólares para que você nos apresentasse, perguntando-lhe quando é que isso acontece. Isso deve bastar para deitar por terra quaisquer esperanças que você possa ter acerca da participação dela no seu filme...
Sam Davidson sente que o cerco se aperta.
- Está bem, está bem! - concorda, com um gemido. - Eu farei o seu jogo.
Caminhando pesadamente, regressa ao miserável hotel na Times Square sem qualquer vontade de parar numa loja para comprar um par de meias. A única coisa que tem a fazer é matutar no tresloucado plano em que está envolvido e em como raio é que vai elaborar uma lista das lojas que, em Nova Iorque, vendem azoto líquido.
A sua euforia matinal evaporou-se e é com uma péssima disposição que ele abre a porta do quarto. Mário (o Nariz) Succhi está sentado na cama, por fazer, acompanhado por um dos seus gorilas, que se mantém indolentemente encostado à parede.
- Boas, cabeça de atum! - saúda-o Mário, muito bem-disposto.
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CAIRO, Egipto
O agente da CIA cujo nome de código é Ptolomeu é um novato. Esta é a sua primeira missão em campo e ele receia não ser capaz de a levar a bom termo.
- É canja - assegura-lhe o controlador. - O seu contacto é um tipo chamado Youssef Khalidi. Creio que é curdo ou, talvez, baluchi. Nós chamamos-lhe Joe e já o utilizamos há muitos anos. O mesmo acontece com os ingleses, os franceses, os húngaros e os russos. Que me lembre, foi sempre um drogado, e a maior parte do tempo está a curtir, mas, de vez em quando, lá nos dá um palpite. Costumamos pagar-lhe cinquenta dólares americanos. Nunca mais de cem. Não passa de um informador de terceira categoria.
- Está bem - diz Ptolomeu, nervosamente -, estou a perceber. Onde é que me encontro com ele?
- No Coney Island Café - responde o controlador. Todos os motoristas de táxi sabem onde é.
- Como é que o identifico?
- Estará vestido com uma djalaba verde, às riscas, e terá na mão uma edição da Playboy. Não terá dificuldade em reconhecê-lo. Coma um prato de tâmaras a meias com ele e descubra o que ele tem a dizer, se é que tem. Se achar que é interessante, cinquenta dólares; sensacional, cem. Mas nada mais do que isso. Passe pelo meu hotel quando sair de lá. Vá, toca a andar!
Para Ptolomeu, o Coney Island Café assemelha-se a um cenário para um filme do Humphrey Bogart: cortinas de missangas, um trio de músicos assassinando a música jazz, uma volumosa bailarina de dança do ventre que se movimenta como se tivesse tomado uma overdose de Valium, um cheiro a incenso e haxixe e uma turba de turistas americanos, homens, com calças de polyester e camisas à Harry Truman, absorvendo a cor local.
Não tem dificuldade em descobrir Youssef Khalidi, pois ele é o único tipo que veste uma djalaba e com um número da Penthouse em cima da mesa. Ptolomeu acha que isso já é o bastante.
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- Joe? - pergunta-lhe.
Khalidi levanta os olhos do seu narguilé. Tem barba e usa uns óculos de aros quadrados à B. Franklin.
- Effendi1 - responde, com um sorriso que põe à mostra um dente de ouro -, queira sentar-se, por favor. Estou a beber arrade2. É muito saborosa! Também quer?
- Não, obrigado - apressa-se Ptolomeu a dizer, visto que, desde que chegou ao Cairo, limitara-se, praticamente, a beber mistelas orientais. - Talvez uma garrafa pequena de Perrier. Será possível?
- Claro - diz Khalidi, erguendo a mão e fazendo estalar os dedos. Um criado aproxima-se imediatamente e Joe desata numa algaraviada, falando uma língua que o americano não consegue entender. - Estou a pedir que a garrafa seja aberta à sua frente, effendi. Se não, talvez pusessem água inferior dentro de uma garrafa usada. Percebe? Agora, deseja jantar? Há um cachorro quente à Coney Island. Uma salsicha dentro de um pãozinho. Especialidade da casa!
- Sim?... - diz Ptolomeu, desconfiado. - De que é que ela é feita?
- De carne de cabra velha, tâmaras, nozes, figos. Deliciosa!
- Acho que não vou comer - replica o agente, engolindo em seco.
- Como queira. - A sua garrafa de Perrier é trazida, aberta com todo o cerimonial e despejada para dentro de uma taça de cobre embaciado. Khalidi ergue o seu copo de aguardente: - Possam todos os seus problemas ser pequenos! - diz. - Mas... está a sorrir. Eu disse alguma coisa engraçada?
- O seu brinde. No meu país costuma fazer-se nos casamentos!
- Oh! E porquê?
- bom, faz-se um brinde aos noivos: "Possam todos os
1 Título de dignitários civis ou religiosos, entre os Turcos. (N. da T.)
2 Aguardente obtida a partir do vinho de arroz, cana-de-açúcar, leite de coco e melaços. (N. da T.)
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vossos problemas ser dos pequenos." E isto refere-se aos filhos que eles possam vir a ter.
- Os filhos são problemas no seu país?
- Não necessariamente - responde Ptolomeu, muito sério. - É um jogo de palavras, compreende? O brinde manifesta apenas o desejo que os únicos problemas dos homenageados sejam os bebés.
- Então, os bebés são problema?
- É uma forma de dizer - explica o agente, começando a perder a paciência - mas é com uma intenção humorística. Não é uma blasfémia.
- Mas por que é que os filhos, uma dádiva do céu, podem ser problemas?
O americano desiste:
- Realmente, não tem importância - replica ele, dando um gole na sua Perrier morna -, e desculpe-me se falei nisso. Ouça, tem alguma coisa para nós?
Khalidi afasta para o lado o cachimbo de água e inclina-se para a frente, aproximando-se do agente:
- Uma coisa extremamente importante - declara, em voz baixa, soltando um hálito a malte. - De tal importância que eu não posso contar se não receber quinhentos dólares, americanos! Estou a correr um grande risco pessoal, ao falar nisso!
- Lamento mas o meu limite são cinquenta.
- Porque dou muito valor à minha longa e íntima associação com os meus amigos americanos desorientados, revelarei esta informação, verdadeiramente fantástica, por duzentos dólares.
- Faço-lhe uma proposta - contrapõe o agente. - Você diz-me o que é e, se eu vir que é suficientemente importante, subo a oferta para cem. Está certo?
Joe solta um suspiro:
- Effendi regateia como um negociante de camelos usados. Muito bem, é o seguinte: soube o que aconteceu à; Marilyn Taylor, a vossa famosa e bela estrela de cinema?
- Sim, alguém roubou os óvulos dela. E então?
- O que eu soube - afirma Khalidi, quase num murmúrio - é que o roubo dos ovos foi planeado e executado
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por um bando de terroristas muçulmanos que opera a partir de Beirute e é financiado pelo Irão.
ptolomeu olha atentamente para uma nova executante de dança do ventre que veio para o palco e que rodopia ao ritmo de When the Red, Red Robin Comes Bob, Bob, Bobbin Along, interpretada pelo grupo de jazz. O umbigo da dançarina, pensa ele, parece ser suficientemente fundo e espaçoso para acomodar meia chávena de leite achocolatado com o granulado de cacau, semidoce, da Nestlé.
- Qual é o nome dessa organização terrorista? - pergunta.
- O senhor fala árabe?
- Não.
- Iraniano?
- Não.
- Hebraico?
- Não, só inglês.
- bom, em inglês o bando chamar-se-ia o Braço de Deus.
- O Braço de Deus?
- SÁ. - acrescenta Khalidi. - Os óvulos já foram levados para fora do vosso país, na mala diplomática da embaixada da Bulgária, e chegam amanhã ao Líbano.
- Para que é que o Braço de Deus quer os óvulos? Joe esfrega o polegar no indicador:
- Por dinheiro, claro! Resgate. Eles vão pedir, pelo menos, um milhão de dólares americanos pela devolução dos óvulos. Querem comprar Kalachnikovs aos Russos.
Ptolomeu lembra-se de uma aula a que assistiu em Langley. "Neste ramo", afirmara o instrutor, com ar inflexível, "o mais extravagante é que é o normal."
O agente inspira profundamente:
- Está bem, você ganhou os cem. vou passá-los por baixo da mesa.
- Obrigado, effendi.
- Agora, tenho de ir andando - diz o agente, pondo-se de pé.
- Espere, espere! - pede-lhe Youssef, num tom de voz aflito. - Ainda não pagou a nossa conta! E não dê mais
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do que um dólar de gorjeta ao criado, senão ele não o respeitará.
Ptolomeu regressa de táxi ao hotel do controlador e encontra o seu superior no bar. O outro está a beber qualquer coisa num copo alto e enfeitado com uma sombrinha de papel. Os dois homens dirigem-se para uma mesa de canto e o agente conta-lhe o que Khalidi lhe disse.
- Cum diabo! - exclama o controlador. - Pode ser apenas uma jogada desse pateta, mas é uma coisa tão louca que, se calhar, é verdade! Isso poderia desencadear um conflito internacional! Acho melhor mandar já uma comunicação para Langley, a fim de saber como é que eles querem actuar.
- Não se esqueça de mencionar o meu nome - diz Ptolomeu.
MANHATTAN, Nova Iorque
O tenente Jeffrey McBryde está praticamente convencido de que nem Harriet Boltz, nem Eve, nem Eric Bannon tiveram alguma coisa a ver com o roubo, mas em qualquer investigação policial existe um plano de acção a cumprir, mesmo que se saiba que se está a perder tempo com ninharias infrutíferas. Fala, portanto, com Boltz; depois, mete-se no carro e vai até Scarsdale, para interrogar os Bannon, e, feito isso, sente-se satisfeito por verificar que os três estão perfeitamente "limpos".
Antes de regressar à cidade telefona ao sargento Leonard Rumfry, o seu subalterno mais imediato, e diz-lhe que vá buscar Nicholas Kazanian à clínica de fertilização e que o leve para a esquadra, a fim de registar e dactilografar oficialmente as suas declarações.
- Enquanto espera que as dactilografem - diz McBryde - mostre-lhe os livros com as fotografias dos cadastrados e veja se ele consegue identificar os que o amordaçaram.
- É perda de tempo - observa o sargento. - Este Kazanian está metido no caso até à medula!
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Isso já nós sabemos - insiste o tenente -, mas, se o
apertarmos, talvez consigamos descobrir qualquer coisinha. vou agora para a residência Taylor, mas mantenha o ICazanian entretido até eu aí chegar. - Na Rua 63, Este, é informado de que Marilyn está ocupada nesse momento com uma entrevista que está a dar a um jornal de escândalos de Oslo, e McBryde resolve perder algum do seu tempo com Gary Flomm, o relações públicas da estrela, passando revista às cartas que chegam, de malucos afirmando estarem na posse dos óvulos e reclamando a recompensa.
- Isto serve é para limpar o cu! - vocifera o detective, tomando o peso ao montão de cartas.
- Mas vai vê-las todas, não vai? - pergunta-lhe Flomm. - Uma delas pode ser verdadeira!
- Vamos vê-las todas, eventualmente. Se não aparecer nada de novo! E os telefonemas?
- Continuamos a recebê-los. Eu peço a todos os que telefonam que me descrevam exactamente o frasco de congelação, mas nenhum deles é capaz.
- Já era de prever.
- Mas tenho um trabalhão a atender todas essas estúpidas dessas chamadas! Alguns desses tarados dizem-me cada uma quando os mando passear! Não podiam ser vocês a tomar conta disso?
McBryde abana a cabeça:
- Neste momento não tenho pessoal que chegue. Ouça, eu sei que isto é muito importante para todos vós, mas nós temos quatro ou cinco homicídios por dia, mais um nunca acabar de roubos, violações, arrombamentos, assaltos à mão armada, etc. Já temos que nos baste, logo, se vocês pudessem dar uma ajudinha, por uns dias...
- Calculo! Por uns dias. Eh, tenho de acabar com aquela entrevista! Marilyn prometeu meia hora ao tipo e já lá vai muito mais do que isso.
- Diga a "Sua Majestade" que eu gostaria de falar com ela por uns instantes.
Flomm volta passado um momento e encaminha-o para a sala de estar, no terceiro andar. Marilyn está estendida ao comprido, no sofá, falando através de um requintado telefone-coluna
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branco. Quando vê o detective, apaga o cigarro que estava a fumar e indica-lhe uma cadeira de braços.
- Eu vou sobrevivendo, querido - está ela a dizer -, e estou certa de que tudo se vai resolver. Obrigado por ter telefonado. Foi muito gentil da sua parte! - Desliga
e pisca o olho a McBryde, dizendo: - Era o presidente.
- O Presidente?.
- O presidente da Magnum Pathway Films, seu pateta! Não sou tu cá, tu lá com a Casa Branca, embora já lá tenha ido jantar uma vez. O gaspacho estava morno e o café frio. Como se tem saído, Sherlock?
- Vamos indo. Diga-me, quantas pessoas em Hollywood é que sabiam que vinha a Nova Iorque?
- Toda a gente - responde ela, sem hesitar. - Não fiz segredo disso e veio em todos os jornais e colunas sociais. Porquê?
- Estava só a pensar se não haveria aqui algum dedo da costa ocidental. Tem por lá algum inimigo?
Ela desata a rir. É uma explosão de ruidosa alegria, que lhe sacode o corpo todo, fazendo balouçar os seios e enrugar as faces, levando-a até a levantar os tornozelos do sofá.
- Algum inimigo? - pergunta ela, atabalhoadamente. - Algum? Meu caro, eu tenho mais inimigos do que pulgas tem um cão! Se você me detesta, tem de ir para a bicha!
- Isso não parece preocupá-la.
- E por que razão havia de preocupar-me? Estou metida num meio duro, onde quando se tenta ser simpático se leva uma punhalada nas costas! Diga-me uma coisa, você usa sempre o mesmo fato preto?
- Não é o mesmo fato que trazia quando nos conhecemos, Miss Taylor! O que acontece é que tenho quatro fatos pretos.
- Exactamente iguais?
- Sim.
- Lindo! E aposto que usa cuecas tipo calção e meias até ao joelho.
- Por acaso uso, mas não estou a ver como é que a minha forma de vestir possa ter algum interesse para si, Miss Taylor.
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E há outra coisa - acrescenta ela. - Quer, por amor de Deus, deixar de me chamar Miss Taylor? Custar-lhe-ia muito dizer Marilyn? Olhe que é muito fácil, são só três sílabas: Ma-ri-lyn. Tente lá!
- Marilyn - pronuncia ele, em voz baixa.
- Muito bem - comenta ela, com uma expressão aprovadora -, e, quando chegar a casa, hoje à noite, tente várias vezes, em frente ao espelho. Onde é que mora?
- Na parte ocidental da Rua 71 - responde ele, secamente.
- Sozinho?
- Sim, mas com um gato.
- Oh, oh! - exclama ela. - O meu pai avisou-me sempre em relação aos solteiros que tenham um gato. Provavelmente também tem na cozinha uma prateleira com frasquinhos de especiarias e adora fazer quiche.1
Ele põe-se de pé.
- Tenho de fazer um telefonema e coisas para tratar. Ela brinda-o com um sorriso forçado:
- Você não gosta lá muito de mim, pois não?
- Não, nem por isso.
- E porquê?
- Acho que nunca conheci uma mulher assim tão agressiva.
- Agressiva? Eu? Queridinho, quando eu quero, consigo ser uma gatinha meiga... O meu quarto fica no quinto piso, é só um lanço de escadas, e eu gostaria de ver essas cuecas tipo calção. Se calhar até têm desenhos de coelhinhas...
- Não, obrigado.
- Por que não? Eu sou boa na cama, segundo me disseram!
- Eu sou à moda antiga - diz ele - e acho que o homem é que deve dar o primeiro passo.
- Está bem - replica ela, serenamente -, então dê-o. Silêncio.
- Estou à espera - insiste ela.
1 Espécie de torta aberta, com recheio geralmente salgado. (N. da T.)
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Por fim, ele desata a rir:
- Você é tramada, lá isso é. Uma barracuda!
- Seu filho da mãe de falinhas mansas - diz ela, pondo-se de pé -, foi você que me levou a isso. - Pega-lhe na mão. - Um lanço de escadas para o paraíso!
- bom título para um filme - graceja ele.
- Pornografia hard core, espero! Venha comigo, boneco! - O seu quarto é um verdadeiro boudoir, todo rendas e folhos. A cama, enorme, tem um dossel com quatro colunas e cortinas a toda a volta. Ela puxa para trás o edredão acolchoado e despindo-se rapidamente, enfia-se dentro dos lençóis, de seda e lilases, estendo-lhe os braços nus:
- Venha à mamã!
Observa-o, divertida, enquanto ele, deliberadamente, se despe com muita calma, pendurando o casaco e o colete nas costas de uma cadeira e dobrando cuidadosamente as calças.
- Desculpe não ter nenhum suporte para os seus sapatos - observa ela. Depois, quando ele fica completamente nu, olha-o perplexa e senta-se na cama: - Puxa! - exclama. - Quantas mulheres é que já matou com essa coisa?
- Oh, esteja calada!... - resmunga ele.
Cerca de uma hora depois, ele desliza para fora dos lençóis e, pondo-se de pé a tremer, baixa os olhos para ela.
- Está bem? - pergunta-lhe, com voz ansiosa.
- Numa escala de um a dez - respondeu ela, com ar sonhador - dou-lhe doze.
- Obrigado. Agora, tenho de fazer a tal chamada.
- Use esse que está aí...
- Não - diz ele, começando a vestir-se -, vou ligar lá de baixo. E depois tenho outras coisas para fazer...
- Oh, claro! Agora, que já se satisfez, que já me desflorou e me roubou a virgindade, vai abandonar-me... Mauzão, mauzão, mauzão!
De repente, ele inclina-se para ela e beija-a carinhosamente nos lábios:
- Como é que disse que se chamava? Ela ri-se e dá-lhe um soco no braço:
- Vá lá brincar aos detectives!
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Já na porta, ele volta-se para trás:
- A propósito, detesto quiche. - Volta para a sala de estar, no piso de baixo, e serve-se do telefone-cohma branco para ligar para o sargento Rumfry: - Fala McBryde. O Kazanian ainda aí está?
.- Sim, e está a ler as declarações, para depois as assinar.
- Mostrou-lhe as fotografias?
- Claro que sim.
- E?...
- Indicou dois hispânicos, um com barba outro com bigode, e jura que esses dois tipos são de certeza, de certezinha, os que roubaram os óvulos e o amarraram. Eu não lhe disse que um dos que ele escolheu está a cumprir uma pena na Attica e que o outro foi morto num tiroteio, durante um assalto, há dois anos!
- Que maravilha - comenta McBryde. - Dê-me a morada do Kazanian. - E, apontando-a no seu bloco de notas, despede-se do sargento: - Obrigado. vou já para lá.
BROOKLYN, Nova Iorque
Nicholas Kazanian vive num imundo edifício de tijolo na Bergen Street, e, consultando o painel das campainhas, o tenente McBryde descobre que o otário mora no rés-do-chão da frente. O detective toca à campainha que assinala o "Incarregado". Mal escrito, mas que importa isso?
Finalmente acaba por aparecer um tipo baixo e atarracado com uma T-shirt transpirada e uma ponta de charuto entalada na boca.
- Sim? - pergunta ele. McBryde mostra-lhe o distintivo:
- Quero dar uma vista de olhos ao apartamento Um-A. Nicholas Kazanian.
- Tem um mandado de busca? - exige o encarregado, Passando o charuto apagado de um lado para o outro.
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- Ora! Claro que não tenho - responde o detective e talvez devesse ir buscar um. Dar-me-ia a oportunidade de informar os inspectores de Saúde que você tem os contentores
do lixo aqui à frente sem tampa, que a luz do vestíbulo não acende e que, a avaliar por este andar, vocês estão infestados de baratas e ratos!
O encarregado suspira e abre completamente a porta interior:
- É por aqui.
O apartamento de Kazanian dá a impressão de não ser limpo ou pintado há muitos anos. Há pilhas de boletins de apostas e folhas de papel com palpites dos informadores clandestinos, e a única decoração nas paredes rachadas é uma fotografia emoldurada do Secretariado. O detective conclui que o tipo deve ser um jogador viciado, o que é motivo suficiente para que tenha roubado os óvulos de Marilyn, para obter um resgate.
Dentro da banheira manchada, por detrás de uma cortina de plástico, McBryde descobre um grande recipiente com um rótulo do Instituto de Fertilização Primster colado num dos lados. Destapa-o e, cautelosamente, passa a mão por cima do bocal. Sente o frio e calcula que se trata de azoto líquido, mas não vê sinais do frasco mais pequeno que contém os óvulos.
Volta para a desarrumada sala de estar e senta-se numa cadeira que tem as pernas desconjuntadas. E espera. Tem muito jeito para isso. Entretém-se, a maior parte do tempo, a recordar aqueles lençóis de seda lilases, interrogando-se se aquilo teria sido apenas um passatempo de uma tarde ou se haveria uma continuidade com actividades
nocturnas, e chega à conclusão de que Marilyn lho dirá. Que mulher corajosa!
Só passada quase uma hora é que ouve passos, seguidos do som de uma chave na porta de entrada. Põe-se rapidamente de pé e desaperta o coldre da sua .38, preso ao
quadril.
Nicholas Kazanian entra na sala e, ao vê-lo, detém-se subitamente:
- O que é isto?! - pergunta, com voz empastelada. -
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Quem é você? - McBryde diz-lhe e, para lho provar, mostra-lhe o distintivo. - Não tem o direito de estar aqui
- argumenta Kazanian. - É ilegal.
- Não acho que seja - replica, calmamente, o tenente. - Embora, na verdade, não tenha um mandado, entrei aqui ao abrigo da Secção Catorze-B, Subsecção F-Oito do
Código Penal. Isso permite a entrada nos aposentos privados quando o agente de investigações tem uma justificação putativa para suspeitar de que no local existam
objectos ilícitos eou provas de actividades ilegais!
É tudo uma patacoada, claro, e McBryde vai inventando à medida que fala. Kazanian parece desorientado e, mais uma vez, o detective fica admirado com a facilidade com que se desarma um espertalhão.
- Nick - diz-lhe, amavelmente -, vamos sentar-nos e conversar um bocadinho.
- Sobre o quê? Acabei de sair da esquadra em Manhattan e disse à polícia tudo o que eles queriam saber e assinei as declarações. Até lhes indiquei as fotografias dos dois vadios que fizeram o assalto!
- Que azar o seu! - retruca o tenente. - Um dos tipos que você indicou está na cadeia de Attica e o outro já morreu há dois anos.
- Merda! - exclama Kazanian, sentando-se na cama, amarrotada.
- Quer dizer-me quem eram realmente os dois ladrões?
- propõe-lhe McBryde. Porém, como o outro se mantém calado, acrescenta: - Vai assumir sozinho a culpa, Nick? Isso é uma atitude muito nobre!
- Que culpa?! - riposta Kazanian, indignado. - Eu não fiz nada! As coisas passaram-se como eu disse!
O detective levanta uma mão.
- Por favor! Não me faça perder tempo. Diga-me só por que tem um balde de azoto líquido do Instituto de Fertilização Primster dentro da sua nojenta banheira?
- Ah, isso? Pedi-o emprestado.
- Para quê?
- Hum, é que o meu frigorífico avariou-se e eu pensei que, se pusesse lá dentro o recipiente destapado, a comida
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não se estragava, mas, quando trouxe o azoto líquido da clínica, o frigorífico já estava outra vez a funcionar e então pus o recipiente dentro da banheira até o tornar a levar. McBryde dá duas passadas rápidas e escancara a porta do frigorífico: lá dentro estão duas bananas já negras, um pacote de qualquer coisa esverdeada e quatro embalagens com seis latas de cerveja.
- Claro! Seria uma pena que todas essas coisas boas se estragassem! Onde estão os óvulos, Nick?
- Não sei! Juro que não sei!
- Vá lá! Facilite as coisas! Devolva os óvulos que eu tentarei convencer a Taylor a não apresentar queixa e você safa-se disto com um castigo levezinho. Mas, se continuar a chatear-me, apanha uma das grandes. Você e os seus comparsas!
Silêncio.
- Podemos fazer um acordo? - pergunta, finalmente, Kazanian, com um tom e voz submisso.
- Não prometo nada, mas diga-me onde estão os óvulos que eu tentarei interceder por si.
- Não sei onde é que eles estão, e isso é verdade! O que aconteceu foi...
Então, com a cabeça baixa, Nicholas Kazanian conta-lhe toda a história do roubo, incluindo os nomes dos seus dois companheiros. Diz-lhe como o frasco foi levado da clínica para o porta-bagagens do carro de Abruzzi, como ele o foi depois buscar, tencionando escondê-lo no apartamento do irmão, e como, finalmente, ele lhe foi roubado por um miúdo louro que conduzia um velho Volkswagen "Carocha".
O detective olha-o com toda a atenção:
- É uma história muito comovedora, Nick. Esse miúdo louro, você consegue descrevê-lo?
- Não olhei bem para ele. Só reparei que tinha cabelo louro e que trazia vestido um casaco de cabedal preto.
- Conseguiria identificá-lo se o vissse outra vez?
- Não.
- E o carro?
- Como lhe disse, um Volkswagen amachucado.
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- Conseguiu ver algum bocado da matrícula?
- Não.
- Não há nada de que se lembre?
- Sim! - exclama Kazanian, levantando a cabeça. Tinha um grande autocolante no vidro de trás!
.- Um autocolante? Quer dizer, um decalque?
- Sim, é isso.
.- E o que é que dizia?
- Yum-Yum.
QUEENS, Nova Iorque
Rocco Castellano pousa vagarosamente o telefone e olha com ar pensativo para o seu "braço direito".
- Era Chicago - diz-lhe.
- O Homem? - pergunta Vito Zivic.
- Sim. Um telefonema de cortesia. Só queria que eu soubesse que o Mário Zucchi está cá com dois dos seus gorilas, mas o Homem disse que se tratava de um assunto particular, que não tem nada a ver com a firma.
- Ah, sim? - murmura Vito. - E você acredita nisso?
- Oh, sim! Como acredito que o meu Doberman seja capaz de voar! Que haverá de tão pessoal na visita de Zucchi para ele trazer consigo dois soldados? Não faz sentido.
- Zucchi está muito cansado. O Tony Gordo, aquele meu primo de Las Vegas, contou-me que o Mário pode ser convidado a reformar-se antecipadamente.
- E vai para onde? Para Forest Lawn? com que então o Mário está em baixo de forma, agora aparece em Nova Iorque, onde não tem o direito de estar, e viaja com dois ajudantes? Isso não me agrada mesmo nada! Ouve, Vito, talvez fosse melhor tu averiguares. Telefona ao teu primo de Las Vegas e também ao Dominick Nitti, que está em São Francisco. Ele deve-me um favor. Pergunta-lhes se sabem por que é que o Zucchi está em Nova Iorque.
- Está bem, posso fazer isso.
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- O Homem disse que o Mário está no Bedlington, na Madison Avenue. Talvez lhe telefone e o convide para sair.
- Consta que ele gosta de copos.
- Só bebe coisas começadas por u: uma vodea, um gim, um scotch, um brande, por aí fora...
- Ah, é assim?
- Podes crer! vou enfrascá-lo, a fim de ver o que ele tem para dizer.
STATEN ISLAND, Nova Iorque
Ronald Yates fizera tenções de devolver os óvulos a Marilyn Taylor mal os apanhasse, mas, na segunda-feira, com o frasco branco bem guardado e trancado no seu santuário, começa a sentir-se invadido por temores e fantasias.
Para começar, a polícia vai querer saber como é que ele se apoderou do frasco. Ronnie duvida de que eles acreditem na sua história, de ele o ter tirado do carro de um homem que não conhece e, o mais provável, é os polícias pensarem que ele é um dos ladrões. Pode até vir a ser preso antes de conseguir provar a sua inocência! E a sua prisão deitará por terra qualquer hipótese de vir a conhecer Marilyn!
Mas o mais importante é o que ele sente em relação àquele frasco branco e brilhante e ao seu conteúdo. Ainda lhe custa a crer que lá dentro está uma parte viva do corpo da sua querida, e essa percepção é tão incrível, tão íntima, que Ronnie cora com a intensidade das suas fantasias sexuais. Ele tem uma rosa seca que ela atirou, uma ponta de cigarro que ela deitou fora e umas calcinhas com o seu nome bordado na parte de trás, mas agora... tem os seus óvulos! É o máximo das recordações!
Tira a tampa perfurada do frasco e olha lá para dentro. O azoto líquido não o assusta, pois já o conhece. Há um ano, teve uma verruga dolorosa na planta do pé esquerdo e o médico queimou-a com azoto líquido, razão pela qual
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Ronnie sabe que o produto se vende normalmente nas lojas de produtos e material médicos.
Espreitando agora para dentro do frasco, repara que o nível do gás liquefeito está um pouco abaixo do que devia estar. Segundo os artigos dos jornais, isso quer dizer que está a evaporar-se e que, se ele não mantiver o frasco atestado, há uma parte de Marilyn que morrerá e ele não pode permitir que tal aconteça!
Yates não é totalmente desprovido de esperteza e calcula que seria um disparate ir comprar o azoto líquido perto de casa. O tipo da loja podia conhecê-lo do Yum-Yum Burger Shoppe ou talvez tivesse de identificar-se para que lhe vendessem o produto.
Resolve o problema da identificação procurando o cartão de visita do médico dos pés que o tratou da verruga plantar e, enfiando o casaco de cabedal, sai porta fora. A sua primeira paragem é na agência local do seu banco, para levantar duzentos dólares da sua conta de poupança. Enquanto está lá dentro serve-se da lista das Páginas Amarelas do banco, para ver as moradas das lojas que vendem gases no estado líquido. Escolhe uma que fica na Canal Street, volta para o VW e dirige-se para Manhattan.
MANHATTAN, Nova Iorque
Mário Zucchi aperta com Davidson no seu imundo quarto de hotel na Times Square.
- Sam, Sam - diz-lhe, com uma expressão pesarosa e um abanar de cabeça -, não sei o que vamos fazer de ti. Para começar, sais de Los Angeles sem nos dizeres para onde vais e onde vais ficar instalado. Nós apostámos à grande em ti, Sam, e queremos saber onde tu estás, a qualquer hora do dia e da noite.
- Como é que descobriram que eu estava aqui?
- A tua mulher disse-nos.
- Não lhe fizeram mal, pois não?
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- Ora, Sam! Nós não fazemos mal às mulheres! Ela estava tão fula contigo por teres posto no prego a sua aliança que nos disse tudo.
- Foi por uma boa causa - declara Davison, com ar decidido. - Vim à costa leste, com o script dum filme, para mostrar à Marilyn Taylor. Se ela aceitar, voltarei a ter dinheiro e vocês recebem tudo o que vos devo.
- Ah, sim? - diz Zucchi, olhando-o fixamente. Não lhe roubaste os óvulos, pois não?
- Estás maluco?! - grita Sam. - Por que faria eu uma coisa dessas?
- Talvez para poderes forçá-la a fazer o teu filme.
- Isso é uma estupidez.
- Já estiveste com ela desde que chegaste?
- Não.
- Falaste com ela ao telefone?
- Não.
- E não estás feito com os gajos que lhe roubaram os óvulos?
- Claro que não!
- Então, mais valia voltares para Los Angeles, não?
- Bem, não para já. Ela está muito transtornada por causa dessas coisas todas dos óvulos. vou dar-lhe uns dias para acalmar e depois vou atacá-la com o script.
- Claro... -comenta Mário, continuando a fitá-lo atentamente -, é o que deves fazer. Talvez eu também fique por cá uns dias e vou comer um pequeno bife lá para os lados de Mulberry Street. São como os que a minha mãe costumava fazer! E vou dando notícias, Sam, podes contar com isso.
Zucchi chama o gorila com um estalar de dedos e saem os dois. Quando chegam ao vestíbulo, o Nariz faz um sinal com a mão ao seu outro "soldado", que, apoiado a uma parede de mármore falso, limpa as unhas com um canivete.
- Mantém-te de olho nele, Dino - diz-lhe. - Ele agora está lá em cima, mas, se sair, tu também sais. Não quero dizer que vás mesmo colado a ele, que também não te conhece, mas não quero que descubra que o estão a seguir.
- Aonde é que ele vai, o que é que faz e com quem fala.
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- Isso mesmo. E liga para o Bedlington de duas em duas horas. Se eu não estiver, deixas recado. .- E quando é que posso ir à retrete?
- Quando eu te disser. Perde-o e voltas para Palermo, onde vais vender gelados numa carripana!
Lá em cima, Sam Davidson senta-se na beira da cama enxovalhada e deixa cair a cabeça. Toda a vida tem sido uma pessoa enérgica e não vê o dia em que possa descansar e. deixar de andar de um lado para o outro à procura de migalhas, mas as perspectivas actuais são quase insuportáveis. Sente-se ameaçado por aquele tarado do Champ DuBois e agora também tem a Mafia à perna.
Sam ergue os olhos para o céu: "Que é que eu Te fiz", pergunta num queixume.
Desce até ao vestíbulo e entra numa cabina pública. Num dos lados, e presa com uma corrente, está uma lista das Páginas Amarelas. Davidson folheia-a, mas não encontra títulos referentes a azoto líquido, a gases liquefeitos, ou a materiais médicos ou laboratoriais, pelo que liga para as informações.
- Tenho uma pergunta a fazer sobre as vossas Páginas Amarelas - começa ele a dizer. - Não encontro títulos para...
- Só um momento - chilreia a telefonista -, que faço a ligação.
Ouve então uma voz de homem tão tensa e estrangulada que Sam calcula que sofra de hemorróidas:
- Faz favor de dizer.
- Estou a tentar encontrar lojas em Nova Iorque que vendam azoto líquido - diz Davidson -, mas não existe esse título nas Páginas Amarelas.
- Que lista está a consultar?
- Já lhe disse, as Páginas Amarelas!
O tipo suspira como se Sam fosse o rei dos estúpidos:
- Leia-me o que está escrito na capa da lista que está a consultar.
Sam lê, em voz alta:
- Páginas Amarelas dos Consumidores de Manhattan. Novo suspiro:
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- O azoto líquido não é propriamente um bem de consumo, pois não? Aconselho-o a consultar as Páginas Amarelas Industriais Distrito de Nova Iorque. bom dia.
- Vá levar!... - grita-lhe Sam, mas já é muito tarde. O outro já cortou a ligação.
Tem de calcorrear a grande distância que o separa do Hilton, na 6." Avenida, até conseguir encontrar uma lista das Páginas Amarelas Industriais, mas então lá descobre títulos referentes a gases liquefeitos, congelantes e material médico e de laboratório. Arranca as páginas e mete-as no bolso do casaco.
Seria facílimo voltar ao apartamento de DuBois, enfiar as páginas debaixo das ventas do larápio e tecer um comentário mordaz, como, por exemplo: "Aí tem, Champ! É fácil quando se é esperto!"
Mas, pensando melhor, Sam resolve não dar a entender a DuBois como a coisa foi fácil. Vai entretê-lo mais um bocado, dizendo-lhe que é um serviço duro, mas que está a esforçar-se. Talvez até consiga convencê-lo a entrar com mais algum para as "despesas"! Entra numa papelaria, para comprar um bloco de apontamentos e uma esferográfica, e depois volta para o hotel, a fim de fazer, com a sua própria letra, uma lista dos fornecedores de azoto líquido da região de Nova Iorque.
Enquanto copia os nomes e moradas das páginas arrancadas, Dino, cá em baixo, no vestíbulo, fala ao telefone com Mário Zucchi:
- Ele vai até ao Hotel Hilton e pega numa lista telefónica. Parece que são as Páginas Amarelas. Rasga algumas folhas e mete-as no bolso. Depois, pára numa papelaria e compra um bloco e uma caneta. Agora, está outra vez no quarto.
- Ah, sim? - diz o Nariz. - Isso é interessante. Escuta, Dino, se ele voltar a sair, tenta entrar no quarto dele e ver o que é que está nas folhas da lista telefónica que ele rasgou.
- Quer que eu as saque?
- Não, deixa-as lá ficar. Não quero que ele fique desconfiado. Só quero saber o que está nessas páginas e o que é que ele está a escrever no bloco que comprou.
- Quando é que acaba o meu turno?
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- Depois de fazeres o que eu te mandei. Então, podes descansar e voltar para aqui, que eu pago-te um bife.
- Oh, sim! - exclama Dino. - Um grande bife do lombo com uma grande tigela de pasta fagioli.
- Isso mesmo - assegura-lhe Zucchi.
MANHATTAN, Nova Iorque
Marilyn tem vestidas umas calças compridas, feitas por medida, de flanela cinzenta, e uma camisola de gola alta preta, de caxemira, apertada na cintura por um largo cinto de pele de crocodilo. Harriet Boltz enverga um do seus vestidos práticos, e que mais parecem compridas camisas de homem. Estão as duas na sala de reuniões da Marilyn Taylor Merchandise, Inc., passando em revista os desenhos do estilista para o guarda-roupa do próximo ano da boneca Marilyn Taylor.
- Que achas? - pergunta-lhe Harriet. Marilyn empurra os desenhos para o lado:
- Não prestam para nada. Não chamam a atenção! Despede o tipo! Ouve Harriet, quanto é que nos custaria se contratássemos aquele sujeito novo de Paris? Sabes quem é? Aquele não-sei-quantos que desenhou o tal vestido de noiva preto, sem costas, que deu tanto que falar!
- Louis DArtagnan?
- Esse mesmo. Quanto é que nos custaria se fosse ele a desenhar um guarda-roupa exclusivo para a boneca?
- Custaria um dinheirão!
- Que se lixe, vamos a isso! Manda a Shari a Paris e ela que faça um contrato. Mais alguma coisa?
- Montes! - responde Boltz, pegando numa pasta de documentos. - Mas nada que não possa esperar. Acho que não estás com disposição para a papelada...
- E tens razão. Esta história dos óvulos deitou-me mesmo abaixo.
- Queres uma bebida?
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- Nem pensar! Tenho bebido e comido de mais. É tudo nervos! Hoje de manhã já tinha mais meio quilo. Soubeste alguma coisa do McBryde?
- Absolutamente nada.
- Que filho da mãe! Seria de esperar que, de vez em quando, desse notícias e nos informasse como vão as coisas...
Harriet observa-a com atenção:
- Atiraste-te a ele, não foi?
- Ele é tão pedante, tão bem-educado que tive de verificar se era humano, Harry!
- Se é! Mas, se calhar, foi um disparate ir com ele para a cama. Depois disso, nunca mais tive notícias dele. Deve estar a pensar que eu faço o mesmo com todos!
Harriet solta um suspiro e acende o cigarro de Marilyn com um fósforo:
- Também andas a fumar de mais. Sabes o que eu acho? Acho que estás interessada no tipo.
- No McBryde? Estás maluca de todo? O tipo não vale nada!
- Acabaste de me dizer que era um garanhão!
- Na cama é um garanhão, mas fora dela é um pãozinho sem sal. Se não tornar a vê-lo, não se perde nada!
- Queres que ligue para ele?
- Está bem - concorda Marilyn -, telefona-lhe lá...
MANHATTAN, Nova Iorque
- Acredita nele? - pergunta o sargento Rumfry.
- No Kazanian? Sim, acredito nele - responde McBryde. - Veja, ele e os seus comparsas não são criminosos, mas apenas uns idiotas ansiando por arranjar algum. Tenho a certeza de que não seriam capazes de fazer um golpe dos grandes. E aquela história que ele me contou tem pormenores que um profissional nunca imaginaria:
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um miúdo louro, casaco de cabedal preto, Volkswagen amachucado, decalque no vidro traseiro que diz "Yum_Yum". É estranho, admito, mas não estou a ver o Kazajúan
a inventar um esquema desses. Acho que realmente foi o que aconteceu.
O sargento faz uma expressão carrancuda: - Então, tem de admitir que o miúdo louro tirou os óvulos por mero acaso. Ou então sabia exactamente o que queria e planeou essa treta de "o seu carro está a arder", para deitar a mão ao frasco.
- Exacto - diz o tenente - e acho que a segunda hipótese faz mais sentido. O lourinho sabia que Kazanian tinha os óvulos, sabia o que eles valiam e foi atrás deles.
- E que fazemos nós agora? Quer prender os três larápios?
- E ter de preencher essa papelada toda? - comenta McBryde, com um gemido. - Só se tiver mesmo de ser! Para já só me interessa apanhar os óvulos antes que eles se estraguem. Essa é a nossa primeira prioridade. E que tal você pegar no Kazanian e nos companheiros e anotar os seus depoimentos? Aperte-os bem, pois talvez um deles possa dar-lhe alguma pista do miúdo louro. Entretanto, eu...
O telefone toca na secretária de McBryde, que faz sinal ao outro para que atenda.
- Sargento Rumfry.
- Marilyn Taylor gostaria de falar com o detective McBryde. Ele está?
- Só um momento. vou ver se está. - Rumfry tapa o auscultador com a mão e inclina-se para a frente, aproximando-se mais do tenente: - É a Taylor - anuncia-lhe, em voz baixa. - Quer falar com ela? - McBryde abana a cabeça. - Lamento mas o tenente não está no gabinete diz Rumfry, ao telefone. - Não, não sei quando voltará. Deseja deixar uma mensagem? Certo, dir-lhe-ei que a senhora telefonou. - Desliga. - Era a secretária dela. Qual é o problema? Porque não é ela mesma que telefona?
- Quando se tem o dinheiro que ela tem, paga-se a alguém para fazer as chamadas telefónicas...
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- É como a minha mulher me costuma dizer: "O dinheiro não é tudo, mas mais vale chorar dentro dum Rolls-Royce do que rir em cima duma bicicleta."
- Ela tem razão! Como eu ia dizendo, enquanto você mete um grande cagaço ao Kazanian e compinchas, vou tentar seguir a pista do decalque Yum-Yum.
- Desejo-lhe muita sorte! - O sargento olha-o, intrigado. - Por que é que não quis falar com a Taylor? Ela tem uma data de conhecimentos influentes!
- Falarei com ela... mais tarde. Mas não quero que fique convencida de que estou à sua disposição. Não é ela que me paga o ordenado!
- Talvez esteja a perder alguma coisa com isso - comenta Rumfry, com um sorriso. - Já a viu em biquini? Ela devia usar um decalque Yum-Yum no traseiro. Que gaja!
- Ela não é nenhuma gaja! - riposta McBryde, com ar zangado.
O sorriso do sargento desvanece-se:
- Como queira, chefe.
BOSTON, Massachusetts
Monsenhor Terence Evelyn ODell recosta-se confortavelmente na cadeira de braços de cabedal, observando com prazer os gestos do professor T. Hiram Farthingale, que deita o brande em dois balões. Os dois velhotes já estão servidos de charutos, que são agora fumados com verdadeira delícia.
- Sabes uma coisa, Hiram? - diz ODell, relanceando um olhar de satisfação pelo escritório. - Cada dia que passa, a tua casa mais se assemelha a 221-B de Baker Street!
O professor sorri:
- Qual de nós é o Holmes e qual é o Watson?
- Oh, tu és o detective, disso não há dúvida. Eu limito-me, de bom grado, a ser o cronista.
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- Por falar em detectives - diz Farthingale, aproximando mais do seu convidado a poltrona de costas altas -, hoje recebi outro telefonema do FBI. Está a tornar-se quase um hábito diário! Esta visto que eles estão ansiosos por arranjar uma justificação legal para se meterem na busca aos depravados que roubaram os óvulos da Marilyn Taylor.
- É compreensível. Esse crime continua a merecer uma invulgar dose de atenção por parte da comunicação social e aparentemente, já despertou interesse a nível mundial. E já quase uma causa célebre. E que disseste ao FBI?
- Disse-lhes que a minha pesquisa continuava.
- Por outras palavras - comenta o padre, com uma gargalhada -, empataste-os!
- Exactamente.
- Desconfio, meu querido amigo, que não tens um interesse particular em concluir este assunto, visto que ele nos tem proporcionado tantas horas de agradável cavaqueira.
- Elementar! E não é só uma boa cavaqueira mas também uma profunda cavaqueira.
ODell ergue o seu cálice de brande:
- In vino ventas. Por acaso, tenho passado mais tempo do que devia a reflectir neste enigma do desaparecimento dos óvulos de Miss Taylor.
- É...
- Parece-me que tu ainda não refutaste convenientemente a minha primeira opinião, ou seja, que esses óvulos, congelados ou não, devem ser considerados um organismo humano vivo e, como tal, o seu roubo pode muito bem ser considerado um rapto, aos olhos da lei.
- Creio que estás mais preocupado com a religião do que com a justiça dos leigos, Terry! Também eu tenho pensado muito no assunto e, por muito desleal que seja o teu raciocínio, não posso admitir que esses óvulos tenham uma existência independente e sensitiva.
- Desleal, o meu raciocínio? Essa foi forte, Hiram!
- E não peço desculpas. Deixa-me apresentar uma situação um tudo-nada parecida e, por favor, serve-te de mais brande, que a noite ainda é uma criança! Muito bem,
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não tenho dúvidas de que tu sabes que durante as escavações em antigos túmulos e ruínas os arqueólogos, por vezes, já encontraram sementes que tinham milhares de anos. Essas sementes eram, aparentemente, peças ressequidas e sem vida e que, caídas no esquecimento, assim continuariam durante os futuros milénios. Mas, e isto é um grande mas, descobriu-se que, ocasionalmente, quando eram mergulhadas em água e alimentadas, essas velhas sementes germinavam e tornavam-se vivas e saudáveis. Contudo, se o túmulo no qual haviam sido encontradas não tivesse sido explorado e se elas não tivessem sido regadas e alimentadas, teriam permanecido ressequidas e sem vitalidade. Por outras palavras, parecidas com os óvulos da Marilyn, se me permites falar da dama com tal familiaridade.
- Quer parecer-me, professor, que a tua comparação comprova aquilo aonde eu quero chegar. As sementes, tal como os óvulos desaparecidos, têm o potencial para a vida.
- Mas não estão aptos a uma vida independente. Necessitam de um agente exterior que os active. Só por si, abandonados e não alimentados, continuam a ser objectos sem vida, sem direitos ou valor, à face da lei. Vamos fumar outro charuto?
- Vamos. O que tu estás a fazer, Hiram, é uma distinção entre aquilo que obviamente está vivo e o que está temporariamente inanimado, mas que possui a possibilidade latente de se tornar vivo. Eu asseguro-te que tal distinção não existe e que tanto as sementes dos arqueólogos como os óvulos de Marilyn receberam o dom de Deus, a chama sagrada, o fogo divino. A vida existe, de facto, dentro deles, mas está apenas adormecida até ser despertada para a glória de uma existência sensorial.
- Terry! Isto é poético!
- Admito que o meu discurso se torne um pouco afectado de mais quando a minha língua é lubrificada pelo teu excelente conhaque, mas a minha exposição fastidiosa não deverá obscurecer a verdade daquilo que disse.
Reflectindo, Farthingale inala os vapores do seu brande.
- Eu poderia concordar com a tua tese se os óvulos de Marilyn tivessem sido fecundados, pois, nesse caso, estaríamos
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a falar de embriões prestes a tornarem-se um feto completamente formado e que, finalmente, nascerá. Admitirei, certamente, que existe um potencial humano
num embrião, mas recuso-me a admitir que um óvulo não fecundado tenha aquilo a que tu chamaste a chama sagrada Ou o fogo divino. E posso apresentar uma prova que
nega um conceito desses!
- Oh? E que prova vem a ser essa?
- Uma mulher saudável pode produzir um único óvulo maduro por mês. Se não for fecundado, esse óvulo é expelido para fora do corpo. Se um óvulo de mulher recebeu, como tu dizes, o dom de Deus para a vida, por que motivo permite Ele que milhões e milhões desses óvulos morram, normalmente, todos os dias?
ODell acaba o seu brande de um só gole e deita nova dose no copo. Depois, respira fundo e começa a rebater. O debate torna-se mais violento. Acendem-se novos charutos, deita-se mais conhaque nos copos e os dois contendores atacam-se mútua e entusiasticamente com vozes que se elevam e gestos que se tornam mais exuberantes.
O monsenhor sai de Beacon Hill um pouco depois da meia-noite e volta, no seu caminhar vagaroso, para casa, no Retiro de São Bartolomeu. Enquanto caminha, fuma um último charuto e admira o céu escurecido, cantarolando entre dentes uma canção cujo título já não sabe bem qual é. Por fim, acha que deve ser ou a Beautiful Ohio ou a Under the Bamboo Tree.
QUEENS, Nova Iorque
O restaurante fica no Ozone Park, e, quando Mário Zucchi dá uma olhadela pela lista, solta um assobio:
- Não é propriamente barato, pois não? - comenta. Rocco Castellano sorri.
- Não se assuste com os preços, Mário. Nem com a conta, porque eu sou o dono disto.
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- A sério? - pergunta o Nariz. - Caramba, isso é bestial! Sempre desejei ter uma casa destas. Dá dinheiro?
Rocco encolhe os ombros:
- Não é nenhuma mina, mas vai dando. E é uma boa fachada para outras coisinhas. Que quer beber?
- Chivas. com a soda à parte.
- Eu acho que vou continuar com o Soave. O meu estômago tem-se queixado ultimamente. Deixe-me ver o que é que há de bom. - Levanta-se da mesa e encaminha-se para
o pequeno balcão do bar em mogno. Faz sinal para que o barman se aproxime. - Soave para mim, Paul
- diz-lhe. - Aquele Clássico que comprámos. Quanto mais novo melhor!
- E para o seu convidado, Mister Castellano?
- Chivas, com a soda à parte. Dá-lhe uma dose reforçada e vai servindo mais. Não quero ver o copo dele vazio.
- Entendo, Mister Castellano.
Succhi manda vir um bife do lombo, com quase setencentos gramas de peso, acompanhado por uma dose dupla de spaghetti temperado com azeite e alho. Rocco prefere um estufado à caçador: pedaços grandes de lombo de vaca, uma salsicha picante, camarão e cogumelos, com um molho de vinho tinto, e servido sobre macarronete verde. Os dois homens atiram-se aos aperitivos picantes. São servidos por dois criados atentos, que lhes mantêm os copos cheios, trazem mais pão, trocam os guardanapos por outros limpos e substituem os talheres usados.
- Não há nada disto lá na costa - afirma Mário ao seu anfitrião. - Acredite que vale bem a viagem!
- Obrigado. Vai cá estar muito tempo?
- Uma semana - responde Succhi -, mais coisa menos coisa...
- Negócios?
- Vim atrás de um tipo que nos deve cerca de cinquenta mil. Veio para Nova Iorque, pelo que achei melhor proteger o meu investimento, para o caso de ele estar a pensar dar o salto.
- Encontrou-o?
- Ah, sim! Está enfiado num hotel rasca na Times
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Square e estou de olho nele. - Só voltam a falar quando os pratos ficam completamente limpos com pedaços de pão. A mesa é levantada, os criados trazem o expresso e uma taça de fruta fresca. E outra bebida para Zucchi, a quinta. - Meu Deus! - exclama ele, recostando-se na cadeira e dando uma palmadinha no estômago. - Devo ter engordado um quilo e meio, pelo menos! Boa comida, Rocco. Obrigado!
- O prazer foi meu. Esse caloteiro que você está a vigiar, qual é a actividade dele?
- Filmes. É o tipo que produz os nossos filmes pornográficos. Agora saiu-se com a ideia maluca de fazer um filme legal. E adivinhe quem é que ele quer para o papel principal?
- Não me diga que é a Marilyn Taylor?
- Acertou. Agora, ouça-me só isto... -Tendo ficado exuberante com toda aquela comida bem condimentada e pela bebida abundante, o Nariz conta a Castellano tudo sobre Sam Davidson, sobre o guião para Private Parts, II, e o seu sonho maluco de conseguir que Marilyn Taylor o protagonize. - Cheguei a pensar que ele tinha roubado os óvulos dela para poder obrigá-la a isso, mas o tipo jura que não teve nada a ver com o caso. - Depois conta a Rocco como pusera Dino, um dos seus "soldados", a seguir Davidson, como o desgraçado fora visto a arrancar páginas de uma lista telefónica e como Dino, mais tarde, conseguira ver o que Davidson estivera a copiar. - Sítios que vendem material para os médicos, hospitais, clínicas e laboratórios. A princípio, não percebi. Mas, depois, Zucchi percebeu do que se tratava: esses sítios vendiam azoto líquido e Davidson apercebera-se de que os idiotas que tinham roubado os óvulos teriam de o comprar, se queriam manter em boas condições o seu tesouro.
- Bem pensado - comenta Rocco. - O tipo não é completamente estúpido. Vai a esses sítios para arranjar uma pista para os óvulos e depois vai lá buscá-los.
- Exactamente - diz Mário, com um sorriso e deitando abaixo o seu sexto scotch. - Só que eu vou lá chegar primeiro! Descobri as mesmas páginas que ele arrancou e
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agora tenho a minha própria lista. Liguei hoje à tarde para o Homem e ele vai mandar-me uma equipa de gajos para me ajudarem. com esses tipos, conseguirei ir a mais sítios, e mais depressa que Davidson. Marilyn oferece cem mil pela devolução dos óvulos, mas eu acho que ela acaba por pagar um milhão.
- Pelo menos! - concorda Castellano. - Desejo-lhe boa sorte, pois parece-me uma parada pesada. Escute, Mário, gostei muito de estar aqui consigo, mas tenho de me ir embora. Dentro de meia hora vou ter uma reunião com os tipos de Canarsie. Negócios, compreende?
- Oh, sim, claro! Está certo!
- E vá-me contando como vão as coisas com os óvulos da Marilyn! Acho que você tem aí uma boa hipótese. O meu motorista leva-o para Manhattan na minha limusina.
Rocco espera que Zucchi saia e depois encaminha-se com grandes passadas para o escritório, nas traseiras do restaurante. O seu "braço direito", Vito Zivic, está à sua espera, vendo um combate de boxe na televisão.
- Como é que se saiu? - pergunta-lhe Zivic. Castellano fita-o, com ar pensativo:
- Vito, preciso de todas as Páginas Amarelas da região de Nova Iorque.
MANHATTAN, Nova Iorque
Sam Davidson espera mais um dia e finalmente decide-se a comprar meias novas, roupa interior e uma camisa. Depois, telefona a Champ DuBois.
- Já estava a pensar no que é que lhe tinha acontecido
- comenta DuBois.
- Ouça, o serviço que me deu era lixado! - diz-lhe Sam. - E fartei-me de correr para fazer a lista.
- Mas já a tem?
- Ah, sim, tenho-a! Todos os nomes e moradas dos sítios,
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na região de Nova Iorque, que vendem azoto líquido, mas para a arranjar tive de entrar com algum... .- Quer você dizer que quer mais dinheiro.
- É o que é justo! Para cobrir as minhas despesas. .- Venha até cá, que depois falamos sobre isso. Quando Davidson chega ao apartamento, Champ está
sentado no bar com o asiático encarquilhado, o tipo que cicia e que lhe abriu a porta no dia em que ele lá foi pela primeira vez. O homenzinho continua vestido com a mesma jaqueta de alpaca cinzenta e ambos bebem Perrier-Jouet em taças de cristal.
- Apresento-lhe Mutha - diz DuBois. - Ele não é apenas o meu mordomo e administrador da casa mas também meu contabilista e controlador das operações mais importantes.
- Viva! - saúda-o Davidson, levantando a mão.
- Olá, Mutha - responde Mutha.
- Não fique admirado - comenta o anfitrião. - Ele chama Mutha a toda a gente, não é, Mutha?
- Sssim, Mutha - repete o velhote.
- bom, aqui tem a sua lista - anuncia Sam, entregando-lhe as páginas do bloco. - Guarde-a bem! Tive um trabalhão dos diabos para a conseguir arranjar e gastei, pelo menos, uns quatrocentos dólares!
- Dá-lhe duzentos, Mutha - diz Champ, despreocupadamente.
O mordomo tira do bolso do casaco uma carteira de cabedal, um modelo antiquado, com uma mola de metal, abre-a e tira de lá quatro notas de cinquenta dólares, novas e estaladiças.
- É melhor não as gastar já hoje - diz DuBois. Deixe secar bem a tinta.
- Ah, ah! - diz Sam, com um risinho que até a ele lhe parece falso. Não se admirava nada que aquele tarado fizesse o seu próprio dinheiro, quem sabe, com placas roubadas.
Champ entrega a lista a Mutha:
- Quanto tempo será preciso? - pergunta-lhe. O contabilista dá-lhe uma rápida olhadela:
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- Dois, três dias - responde. - com seis bons ajudantes.
- Dois, no máximo! E arranja sete bons ajudantes. Davidson vai ajudar-nos, correcto, Sam?
- O quê?! - exclama Sam. - Espere aí um bocadinho! O meu serviço era arranjar a lista e foi isso o que eu fiz. O nosso acordo não incluía o meu trabalho de detective!
- Mas estou certo de que você está disposto a oferecer-se como voluntário.
- Não conte comigo, Champ! Eu sou um homem da retaguarda!
- Só por um ou dois dias?
- Nem pensar.
- Mutha... -pronuncia DuBois, muito devagar.
O minúsculo administrador da casa mete a mão no interior da jaqueta, tira de dentro de um coldre preso ao ombro um pequeno revólver de cano achatado e coloca-o, vagarosamente, em cima do balcão do bar. Champ, servindo-se de um longo dedo indicador (cuja unha está cuidadosamente arranjada pela manicura), faz rodopiar a arma até que a boca fique apontada para Davidson.
- Pense bem - sugere-lhe.
Sam ergue lentamente o olhar daquele tubo de aço brilhante, mas não consegue ver através dos óculos escuros que DuBois usa.
- Bem, está bem - diz, com voz rouca. - Creio que não há qualquer problema se vos ajudar durante um ou dois dias...
- Um tipo corajoso - comenta Champ. - Eu sabia que podia contar com a sua colaboração entusiástica. Mutha, por que é que não reúnes as tropas e organizamos essa busca? Sam, você fica aqui até os outros chegarem e depois Mutha indica-lhe uma área específica para você cobrir, certo, Mutha?
- Esstá certo - responde o outro.
- Não quer uma taça de champanhe enquanto espera? oferece-lhe DuBois, muito solícito.
- Não, obrigado. As bolhas fazem-me gases.
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- Então qualquer coisa mais forte, talvez?
- Sim, qualquer coisa mais forte - responde Sam.
MANHATTAN, Nova Iorque
O tenente McBryde dispõe da ajuda do sargento Rumfry e de mais quatro agentes, que só fazem número, para tratar do caso dos óvulos de Marilyn. Não é propriamente uma força-tarefa, mas, como disse o subinspêctor Gripsholm: "O Departamento tem coisas mais importantes para tratar do que ir à procura desses picolés, e, se o comissário não fosse um idiota chapado, eu já teria mandado o processo para o arquivo!"
com uma brigada tão pequena, McBryde tem de fazer ele mesmo muitas das investigações, o que não lhe desagrada, pois detesta estar amarrado a uma secretária e este caso dá-lhe a possibilidade de andar às voltas pela cidade, servindo-se das suas capacidades, pois é para isso que lhe pagam. Como, por exemplo, a pista do decalque Yum-Yum...
Telefona para a Yum Yum Boutique, Yum Yum Hot Dog, Yum Yum Ice Cream Stores, Yum Yum Hardware e Yum Yum Adult Videos. A todos, identificando-se como agente da polícia, pergunta se têm autocolantes ou decalques que possam ser colocados no vidro de um carro, como forma de publicidade. Consegue acertar à sexta chamada: Yum-Yum Burger Shoppes, Inc., com sede na Rua 57, Oeste.
O tenente dirige-se para lá e fala com a chefe de vendas, uma fulana atrevidota que usa duas esferográficas Paper Mate enterradas no cabelo grisalho. Ela mostra-lhe os decalques que distribuem pelas lojas e pelos empregados, para serem colocados em janelas de carros ou em qualquer outro lugar.
- É uma publicidade barata - diz ela -, mas eficaz. Também oferecemos bonés de basebol e T-shirts. O senhor
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ficaria admirado com o número de miúdas novas que querem vestir uma T-Shirt bem justa e esticadinha por cima das maminhas!
- Não me admiraria mesmo nada - replica McBryde.
- Como é que eu nunca ouvi falar nos hamburgers "Yum-Yum"?
- Ainda não estamos em Manhattan. As lojas são muito caras! Mas estamos em Jersey, em Long Island, temos cinco casas em Queens, quatro em Brooklyn e duas em Staten Island. Prove um dos nossos burgers e ficará viciado para toda a vida!
- O que é que lhes põem, haxixe?
- Uma coisa melhor: uma pitada de alho. Mas olhe que é um segredo; por isso, não diga a ninguém!
- Não abrirei a boca - assegura-lhe ele. - Pode dar-me os endereços das vossas casas em Queens, Brooklyn e Staten Island?
- Claro, estamos sempre dispostos a colaborar com a Polícia de Nova Iorque! O que é que se passa?
- Ando à procura de um sujeito louro que tem um dos vossos decalques no vidro traseiro do carro.
- Boa sorte! O que é que ele fez? Matou alguém?
- Não, mas é procurado por venalidade e usurpação do direito de colação.
E, enquanto ela vai buscar o dicionário, o tenente sai, dirigindo-se para Brooklyn, onde passa o resto do dia a visitar os quatro Yum-Yum Burger Shoppes. Em todos eles pergunta ao gerente se tem algum empregado louro que use casaco de cabedal preto e conduza um Volkswagen velho e amachucado, mas nada.
Volta para casa, enfrentando um tráfego intenso e dizendo de si para si que não pode contar com resultados imediatos. Amanhã irá visitar as cinco casas de Queens, e talvez a sua sorte mude...
A altas horas da noite, depois de um jantar desenxabido e assado dentro de um saco de plástico, acha que não pode esperar mais: liga para a residência de Marilyn Taylor, afirmando para si mesmo que a vítima merece um relatório sobre o curso das investigações. Mas a vítima foi ao teatro
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e McBryde desliga apercebendo-se tristemente de que havia sido conquistado. O melhor que tinha a fazer era tornar-se sócio do International Marilyn Taylor Fan Club!
Há mulheres a quem poderia telefonar que viriam tomar uns copos com ele e proporcionar-lhe umas horas de prazer, mas procurar uma substituta, admite, seria uma atitude baixa para com ele mesmo e, principalmente, para com aquela mulher que o enfurece com o seu falar desbocado, as suas pernas compridas e toda aquela luxúria transbordante.
Tenta rir-se de si próprio: ela é famosa, talentosa, podre de rica e infinitamente bela! E ele é um polícia... Pronto, a mulher dedicou-lhe uma sessão da tarde, que não significou nada para ela. Provavelmente, está farta de o fazer! A emoção do desconhecido. Um acidente. Acabou, esqueceu. Não quer dizer nada.
Mas o seu raciocínio não dá resultado.
- Apanhado! - grita para o gato, que o olha com espanto. - Apanhado, apanhado, apanhado!
STATEN ISLAND, Nova Iorque
Ronald Yates volta ao trabalho no Yum-Yum Shoppe em West New Brighton e nem sequer lhe descontam os dias que faltou, pois o gerente reconhece-lhe muito bem a destreza na preparação de hamburgers.
Sente-se feliz durante as horas que passa no emprego, rodeado e impregnado de gordura, pois sabe o que o espera em casa: o seu tesouro, os óvulos de Marilyn! Aquele frasco branco e gelado transformou-se num ícone, um objecto de culto, e, quando o atesta cuidadosamente com o azoto líquido que está no recipiente de três litros comprado na Canal Street (usando para isso uma pequena concha de sopa), sente que está a executar uma cerimónia litúrgica, conservando viva e abençoada uma parte vital da mulher mais bela do mundo.
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O seu trofeu proporciona-lhe igualmente um outro prazer, mais frívolo: o desaparecimento dos óvulos de Marilyn continua a dominar as manchetes e os novos programas de televisão, e, em todo o mundo, só Ronnie Yates sabe o seu paradeiro! ê sentido de posse fá-lo de certa forma sentir-se especial, uma celebridade por direito próprio. É um elo íntimo com a sua adorada e com o mundo maravilhoso em que ela vive.
Os outros empregados do Yum-Yum, e até mesmo sua mãe, fazem comentários ao seu novo comportamento, perguntando-lhe: "Por que é que estás a sorrir?" ou "Pareces mesmo satisfeito! Ganhaste na lotaria?"
Ele gostaria de lhes dizer o que ganhara, para se deliciar com o seu espanto, mas mantém o segredo inviolado e, à noite, sozinho no seu santuário com os óvulos de Marilyn, sente uma alegria espiritual que só pode ser igualada à de um verdadeiro crente na presença de relíquias sagradas.
Tão intenso é o seu êxtase que nem pensa no futuro, por quanto tempo pode continuar na posse dos óvulos e qual acabará eventualmente por ser o destino que lhes dará. Sente-se realizado no momento que passa, tendo concretizado o sonho máximo de qualquer fã devotado: possuir realmente a adorada!
Assim se sentiria um dos cavaleiros do rei Artur que, tendo descoberto o Santo Graal, o apertasse contra o peito e chorasse lágrimas de gratidão e beatitude.
MANHATTAN, Nova Iorque
- A merda daqueles ovos! - grita Mário Zucchi. - Se eu soubesse que iriam dar tanto trabalho, não teria começado!
Um tal acesso de cólera seria mais próprio dos seus fiéis seguidores, reunidos na sua suite do Hotel Bedlington. São eles que têm de calcorrear as ruas, mas o Nariz quer impressioná-los mostrando-lhes quanto se esforçou na elaboração do assalto.
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Na verdade, o simples plano necessitou de apenas algumas horas de gatafunhos, pois, servindo-se das Páginas (mareias, ele elaborou uma lista de todas as fontes de azoto líquido na área de Nova Iorque. Depois, a lista foi dividida por bairros, e neste momento Zucchi tem seis listas mais pequenas, para serem usadas pelos "soldados" que o fíomem de Chicago lhe enviou, para o ajudarem.
- A forma como vão actuar fica por vossa conta - diz Mário ao seu gang. - O que eu quero saber é quem é que comprou o azoto líquido desde que os ovos foram roubados. Falem com o vendedor ou com o patrão. Dêem-lhes uma merda qualquer que vocês achem que dê resultado, como se fossem um detective particular a trabalhar para a Taylor, ou como se fossem de uma companhia de seguros que andasse a investigar o roubo, ou até mesmo, talvez, um repórter que ande a escrever um artigo sobre os ovos. Não me interessa como é que se vão desenrascar, mas tragam-me informações!
- Quer que a gente os aperte? - pergunta um dos rufias de Chicago.
- Se tiverem de os apertar, então apertem-nos! - responde Zucchi. - Ouçam, isto é um negócio de muita massa e eu, pessoalmente, prometo mil ao gajo que me trouxer os nomes e as moradas dos idiotas que roubaram os ovos. Mil. Batidos. Está assente! E, agora, toca a andar!
Os "soldados" saem em fila indiana, levando com eles as listas, e o Nariz fica sozinho com o gorila que andara a seguir Sam Davidson.
- Quer que continue a andar atrás dele? - pergunta Dino.
- Sim, quero ter a certeza de que não nos passa à frente. Onde é que ele está agora?
- Lá em cima, no apartamento da Park Avenue, de que lhe falei. É a segunda vez que lá vai. Descobri com quem é que ele vai falar, mas tive de untar as mãos ao porteiro com uma nota de vinte, para conseguir essa informação!
- Está bem, está bem - diz Zucchi, impacientemente -, já te pago! com quem é que ele vai falar?
- Um preto alto, que se veste à maluca e anda sempre
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de óculos escuros. Chama-se Champ Dubois e o porteiro disse-me que é um "artista" de primeira. Parece que tem duas putas a trabalhar para si e o mordomo anda armado. O porteiro diz que ele está cheio de massa. Anda num Jaguar branco e dá gorjetas chorudas!
- Ah, sim? E o que é que ele faz? É chulo a tempo inteiro?
- O porteiro diz que não, que não se faz assim tanta massa só com duas gajas. Mas uma coisa é certa: o tipo não está limpo!
- Não gosto disso - diz Mário, nervosamente, roendo a unha do polegar. - Quero saber qual é a ligação que há entre ele e o Davidson. Talvez andem os dois atrás dos ovos. Acho que vou ligar para o Rocco Castellano, para ver se ele já ouviu falar desse Champ Dubois. Se não ouviu, talvez consiga descobrir alguma coisa. Tu voltas para o Davidson. Não o percas!
Mas, quando fica sozinho, o Nariz não liga logo para Castellano, e sim para o Homem de Chicago. Relata-lhe os progressos na busca aos óvulos e diz-lhe que todos os mastodontes se encontram em campo tentando descobrir quem é que, nos últimos dias, comprou azoto líquido.
- Muito bem - comenta o Homem, com aprovação.
- Parece-me que tens as coisas bem organizadas.
- Tenho, mas aconteceu agora uma coisa de que acho que devo dar-lhe conhecimento. - E informa Chicago que Sam Davidson tem ido visitar o tal excêntrico da Park Avenue, um ricaço chamado Champ DuBois, que anda num Jaguar branco e mija dinheiro. - Pensei em telefonar ao Castellano e pedir-lhe para ele investigar o tipo.
- Não - corta, rispidamente, o Homem. - Não faças isso! Este assunto é nosso e não quero que o Rocco saiba o que quer que seja a respeito disto. Percebeste?
- Oh, claro! - responde o Nariz, engolindo com dificuldade e tentando lembrar-se exactamente de tudo quanto já contara ao Castellano.
- Sabes, Mário - diz o Homem, num tom de voz mais amigável -, é que, tecnicamente, nós estamos a violar as regras. Nós mandamos na zona a oeste de Chicago, mas
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não temos o direito de operar em Nova Iorque. Se Rocco sabe alguma coisa disto, fica furioso! Eu também ficaria, se ele tentasse fazer algum negócio aqui, em Las Vegas ou em Los Angeles. Por isso, o melhor é mante-lo a leste. Compreendes?
- Compreendo - responde Zucchi, sentindo-se muito infeliz. - Vamos resolver o mais rapidamente possível esta embrulhada e pôr-nos a mexer daqui para fora, não é?
- Exacto - confirma o Homem. - Não queremos começar uma guerra, pois não, Mário?
Assim que pousa o telefone, o Nariz, serve-se de uma dose de uísque e engole-o de uma vez. Depois, volta a encher o copo. E mais outra vez. Só gostaria de saber até quando é que o seu fígado vai aguentar esta caçada aos
ovos!
CAIRO, Egipto
Receando que o seu quarto de hotel possa estar sob escuta, apesar das buscas electrónicas diárias, o controlador reúne os seus agentes em campo perto da grande pirâmide de Queops, em Gize, dizendo-lhes:
- Eles não podem pôr um microfone no deserto!
Os agentes, Ptolomeu, Ramsés e Tut, sentam-se de cocaras na areia, encharcam-se em suor e vigiam cautelosamente os cameleiros que estão à espera dos turistas. Quanto a eles, o controlador bem podia ter escolhido um local mais saudável para uma reunião secreta, um sítio qualquer com ar condicionado ou, pelo menos, com sombra. Mas o controlador nunca transpira.
- Muito bem - diz ele, em tom enérgico -, vamos lá começar com isto. com relação ao roubo dos óvulos da Marilyn Taylor.... Langley considerou-o muitíssimo importante. A missão terá o nome de código Operação Soufflé e passaram a bola para nós até que a situação se altere, para melhor ou para pior. Entretanto, foi já alertada uma
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equipa de comandos, para o caso de virem a ser precisos, e unidades da Sexta Esquadra estarão prontas a actuar. Langley quer toda a gente de alerta neste caso.
- E se o Youssef Khalidi estiver a enganar-nos? - pergunta Ptolomeu.
- Nesse caso, dobraremos as nossas tendas, como fazem os Árabes, e, silenciosamente, retirar-nos-emos, mas, enquanto não chegarmos à conclusão de que o Joe está a mijar fora do penico, daremos a prioridade máxima à Operação Sou filé. Aqui têm as vossas tarefas:
"Ptolomeu, você encarrega-se do Khalidi. Tende descobrir quem é o informador dele e depois trate de ver-se livre do bom do Joe, para podermos contactar directamente com a fonte.
"Ramsés, você faz a ligação com as autoridades locais. Veja se eles já ouviram dizer alguma coisa acerca dos óvulos da Marilyn. Mas faça-o disfarçadamente e não lhes dê a menor indicação de que temos entre mãos uma bronca deste tamanho!
"Tiir, a sua missão é descobrir o máximo que puder sobre o Braço de Deus, a seita terrorista que, alegadamente, roubou os óvulos, para pedir um resgate. Comece por falar com aquele mullah estrábico que vendeu à embaixada um Kirman falso.
- Quanto podemos gastar? - pergunta Tut.
- Até mil dólares americanos. Para além disso, têm de pedir a minha autorização. Há mais perguntas? Não? Óptimo, então vamos lá pôr a rodar esta Operação Soufflé. Langley quer relatórios diários sobre isto!
Nessa noite Ptolomeu encontra-se com Khalidi no Coney Island Café. O agente repara, com espanto, que a água do cachimbo de Youssef contém várias pétalas de rosa e algo mais, que se assemelha a um punhado de pastilhas de mentol. O homem da CIA, cujo estômago acabou de vez com os estúpidos dos arrotos, manda vir uma garrafa de Heineken.
- Joe - começa ele, com um ar muito sério -, sobre aqueles óvulos...
Khalidi comprime um indicador encardido contra uma
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das narinas, curva-se para baixo e exala violentamente pela outra narina. Depois, inspecciona o resultado. Ptolomeu náo olha.
- Ah, sim, effendi! Os óvulos da vossa rainha do cinema! Triste. Muito triste.
.- Você disse-me que eles tinham sido roubados por
uma organização terrorista denominada Braço de Deus.
Joe coloca sobre os lábios o mesmo indicador encardido:
- Mais baixo. As paredes têm olhos.
- Ouvidos - corrige Ptolomeu.
- O quê?
- As paredes têm ouvidos.
- Ah, é assim? - replica Khalidi, baralhado. - Então, o que é que tem olhos?
O homem da CIA encolhe os ombros:
- As batatas. As tempestades. As agulhas. Diga-me uma coisa: onde foi arranjar a informação sobre os óvulos da Marilyn?
- Ah, não - responde Youssef -, não, não, não. Isso seria a minha morte! - E passa o indicador multiusos pela garganta como se a cortasse.
- Quanto? - pergunta Ptolomeu, em voz baixa.
- Quinhentos, americanos.
- Cem.
- Quatrocentos.
- Duzentos.
- Trezentos.
- Duzentos e cinquenta - diz o agente - e é o meu limite.
- Negócio fechado - responde Khalidi. - Fiquei a saber disso por um homem chamado Akmed.
- Akmed o quê? Ou o quê Akmed? Qual é o nome completo dele?
- Só o conheço por Akmed.
Ptolomeu dá uma olhadela à pista de dança, onde uma bailarina de dança do ventre sofrendo de anorexia cambaleia ao som de Let a Smile Be Your Umbrella on a Rainy Day, interpretada pelo conjunto de jazz. "Ela tem um umbigo muito recatado", reflecte o agente. Mal dava para encaixar
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uma das enormes azeitonas da Califórnia, mesmo moída.
- Akmed - repete ele. - Gostava de o conhecer.
- Isso não seria prudente, effendi - comenta Joe. -. Akmed é um homem violento! Se soubesse que eu falei consigo, receio que seria capaz de se vingar de mim na minha avó. Anda com uma cimitarra debaixo da túnica. Muito afiada!
- Onde é que ele vive?
- Aqui, ali, em todo o lado. Muda muitas vezes.
- Interessante... - comenta Ptolomeu, pensativo. Você acha que ele pertence ao Braço de Deus?
- É possível.
- Ele contou-lhe mais alguma coisa acerca dos óvulos da Marilyn?
- Trezentos, americanos!
- Está bem - arrisca o agente. - O que é que ele disse?
- Os óvulos foram levados de Beirute para uma casa segura na região de Bekaa, mas Akmed diz que tencionam levá-los para o Sul do Líbano.
- Para perto da fronteira com Israel?
- Sim.
- Porquê para lá? A OLP está envolvida nisto? Youssef Khalidi olha para ele e baixa os olhos:
- É possível, effendi.
Ptolomeu repete esta conversa ao controlador, no bar do hotel deste último:
- A OLP! - sublinha o agente. Os filmes da Marilyn têm muito sucesso em Telavive. Talvez a OLP esteja a planear um esquema de chantagem.
- Hum! - resmoneia o controlador, com uma expressão carregada. - Não estou a gostar nada disto. Pode ser maior do que pensávamos. Temos de estabelecer contacto com Akmed.
- Tenho estado a pensar nisso - diz Ptolomeu. E se eu seguisse o Khalidi? Talvez isso me levasse a Akmed...
- Acha que será capaz de fazer isso? Esta cidade é um verdadeiro labirinto! Há becos dentro de becos!
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Posso tentar!...
Está bem - concorda o controlador. - Faça isso,
então, mas tenha muito cuidado, se não vamos dar consigo a boiar no Nilo com o coiso enfiado na boca...!
QUEENS, Nova Iorque
Um ruidoso bando de brutamontes espera no bar do restaurante de Rocco Castellano. O patrão e o seu "braço direito" estão reunidos no reservado das traseiras, consultando listas com os nomes e as moradas dos locais onde se pode comprar azoto líquido na região de Nova Iorque.
- O Mário Zucchi pode ir à nossa frente na busca, mas não muito - diz Vito Zivic.
- O que ele está a fazer é ilegal - comenta Castellano, com ar carrancudo. - Segundo o tratado de Hackensack, assinado em mil novecentos e oitenta e seis, ficou acordado que ninguém invadiria o território do outro. Fosse para que tipo de negócios fosse! Nem sequer para passar férias, a menos que avisasse primeiro o patrão! E agora o Homem de Chicago manda o Zucchi, em segredo, a Nova Iorque, na mira de sacar um bom negócio. É indecente! Como é que ele ficaria se eu resolvesse mandar pelos ares um banco em Las Vegas ou, suponhamos, assaltar um camião cheio de armas em Los Angeles?!
- E se o Mário encontra os óvulos de Marilyn antes de nós, Rocco? O que é que acontece?
- Teríamos de ir para a guerra - responde Castellano, com uma expressão sombria. - vou falar com as outras famílias acerca disto, para saber se poderei contar com o apoio delas. Só te digo que, se o Mário encontra esses óvulos antes de nós, vai ser uma luta do caraças! Já participaste nalguma guerra a sério?
- Não, nunca...
- bom, não tem piada nenhuma, mas às vezes temos de fazê-la, para mantermos a paz. Agora, vamos mas é
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mandar aqueles gajos para a rua. Tu vais distribuir as tarefas e diz-lhes que se sirvam dos músculos, se for preciso. O que quero é resultados! - Depois de Zivic
sair, Castellano mantém-se quieto por uns instantes, apenas tamborilando com a ponta dos dedos no tampo da secretária. Depois, levanta o auscultador e liga para o Homem de Chicago: - Eh, companheiro - saúda-o com vivacidade.
- Como vai essa saúde?
- Não podia ir melhor, Rocco, graças a Deus! E tu?
- Não me posso queixar.
- Fico muito contente com isso. Qual é o problema?
- Escuta, pensei em tirar uns dias de férias e ir até Vegas, para estourar algum dinheiro. Só queria informar-te de que eu e o Vito Zivic vamos dar uma volta, para desanuviar.
- Acho correcto e decente que mo digas - comenta o Homem, num tom de voz que revela satisfação. - Mostra que tens respeito! Vais ficar instalado no meu hotel?
- Se estiveres de acordo...
- Ficaria insultado se não o fizesses! vou telefonar para lá dando instruções para que te recebam condignamente. Quantos dias vais lá ficar?
- Oh, mais ou menos uma semana. Preciso de sair de Nova Iorque e respirar um pouco de ar puro.
- Boa ideia! Fica o tempo que quiseres. E já sabes que és nosso convidado! Fazes bem em tirar uns dias. Recarrega as baterias!
- É o que tenciono fazer. A minha organização pode passar uma semana sem mim que não se vai abaixo!
- Estás a fazer uma coisa acertada, Rocco!
Castellano desliga. Filho da mãe!, diz, em voz alta, satisfeito por ter conseguido que Chicago pensasse que ele ia sair da cidade e que Mário Zucchi ficaria à vontade para encontrar os óvulos da Marilyn, sem competição.
Depois, Castellano liga para os chefes das outras famílias e quando eles não estão fala com os seus conselheiros. Marca uma reunião em sua casa, em Forest Hills,
pois, se as coisas se complicarem, ele quer que Nova Iorque se apresente com uma frente unida contra Chicago.
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Não é pelo milhão de dólares, mas sim por uma questão de princípio!
MANHATTAN, Nova Iorque
- Que simpático em ter aparecido - observa Marilyn, com azedume. - Quer uma foto autografada, não é verdade?
O detective McBryde, que passou um dia inteiro frustrado, visitando ingloriamente os cinco Yum-Yum Burger Shoppes de Queens, não está com pachorra para aturar qualquer gracinha daquela prima-dona:
- As investigações prosseguem - replica ele, empertigado - e se eu tivesse de lhe apresentar um relatório de hora a hora ainda demoraria mais tempo. É isso que pretende?
- O que eu quero são os meus óvulos!
- E vai tê-los.
- Jura? - pergunta ela.
- Não, não juro. Nem sequer juraria que o Sol nascerá amanhã! Mas as hipóteses de recuperarmos os óvulos são boas.
- Ninguém se preocupa realmente com os meus óvulos - afirma ela, furiosa. - Daqui a uma semana, já não se fala mais no assunto e os desgraçados dos meus ovulozinhos nunca mais aparecerão!
Ele fita-a, espantado:
- Eu sabia que você tinha uma data de defeitos, mas nunca pensei que a autopiedade fosse um deles! Deixe de sentir assim tanta pena de si mesma e acredite que há muitas mulheres que passaram por tragédias muito maiores nas suas vidas!
- com que então, para si, o roubo dos meus óvulos é uma insignificância, não é?
- Eu não disse isso. Foi cometido um crime e o Departamento está a fazer tudo para o reparar, mas, se você não reouver os seus óvulos, isso não é o fim do mundo.
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- Isso é fácil de dizer, para si. O senhor não passa de um reles homem!
Ele põe-se de pé, com um suspiro:
- Posso ir para casa, agora? Tive um dia difícil e estou cheio de fome.
De repente, ela é toda doçura:
- Quer dizer que ainda não jantou?!
- Exactamente.
- Por que diabo, não me disse? Vamos lá abaixo ver o que há para comer! - Já na cozinha, ela obriga-o a sentar-se à mesa de apoio, laçada de branco, colocando-lhe à frente um prato e os respectivos talheres. Depois, começa a tirar do grande frigorífico: meio frango de churrasco, um pequeno presunto assado, uma caçarola com feijão, uma taça de salada, uma tarte de lima com um quilo de peso e uma garrafa de cerveja fraca, Molsons, pondo tudo na mesa à frente dele. - Vamos lá - encoraja-o -, mate essa fome!
- E você não come nada?
- Eu já comi há séculos! Talvez só uma fatia de tarte, para lhe fazer companhia. Fui eu que a fiz!
- Está a gozar comigo?
- É verdade, estou a brincar. Mas sei cozinhar! Fique sabendo que não sou completamente plástica!
Ele debruça-se para a comida:
- Eu sei... - diz, com voz sumida. Depois, devora o frango, o presunto, o feijão, a salada e a cerveja. Por fim, afasta-se da mesa: - Boa comida. Obrigado.
- Uma fatia de tarte?
- Não, obrigado. Nunca como sobremesa. Ela solta uma gargalhada estridente:
- E se for eu? - pergunta-lhe.
Quando chegam ao quarto cheio de rendas, ele faz questão de tomar primeiro um duche, argumentando:
- Sinto-me fedorento!
- Às vezes, isso até é divertido - replica ela, e ele abana a cabeça, perante tanta depravação.
Quando ele, dez minutos depois, sai da casa de banho, encontra-a nua, preguiçosamente estendida sobre os lençóis de seda, desta vez cor de malva.
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- Servi-me do seu sabonete perfumado - comunica-lhe.
- Está autorizado - responde ela, chegando-se para o pé dele. - Você já viajou muito, McBryde?
- Não - responde ele, com ar sério -, mas já fui duas vezes à Europa. Ela solta um risinho travesso perante tanta inocência:
- Venha à mamã que ela vai levá-lo numa grande viagem! - A viagem só termina mais de uma hora depois e então, saciados, trocam entre si olhares de admiração. Aconteça
o que acontecer aos meus óvulos - diz ela - e quer você os encontre quer não, eu terei de voltar para a costa ocidental. E acabou-se. Percebeu? - Ele diz que sim com a cabeça. - É bom que saiba - continua ela - que não estou preparada para compromissos sérios.
- Não precisa de mo explicar melhor - replica ele.
- Você também não quer um relacionamento forte, pois não?
- Não.
- Então, podemos divertir-nos um bocado sem ninguém ficar magoado.
- Para mim, está óptimo.
- Só há mais uma coisa que queria pedir-lhe.
- O que é?
- Corte essas malditas unhas dos pés! Estou toda arranhada!
- Ouça - diz ele -, é melhor eu ir andando...
- Ainda não! Vamos namorar mais um bocadinho!...
MANHATTAN, Nova Iorque
Sam Davidson começa a pensar se os que acreditam na reincarnação não têm de facto toda a razão para isso. A possibilidade de que, milhares de anos atrás, a sua alma tenha habitado o corpo de um terrível indivíduo que tenha praticado as maiores atrocidades é a única explicação que
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ele encontra para o facto de, no presente, estar a enfrentar um destino tão desumano. Deve ser o castigo pelos crimes cometidos numa existência anterior!
Nunca, nem nos seus pesadelos mais aterradores, ele sequer sonhara que um dia estaria ligado por um contrato a um ladrão profissional. E obrigado, por aquele louco em miniatura, a calcorrear as ruas de Manhattan à procura de alguém que tenha vendido azoto líquido a alguém que roubou os óvulos de Marilyn Taylor! Como produtor de filmes pornográficos, Sam está habituado a trabalhar com guiões pouco plausíveis, mas este, o enredo da sua própria vida, ele jamais aceitaria produzi-lo. Era pura e simplesmente demasiado irreal!
A sua primeira intenção era aceitar, de bom grado, a lista fornecida por Champ, assegurar-lhe que faria o seu melhor e depois passar o dia enfiado nos cinemas de filmes pornográficos, na 8." Avenida, para ver o trabalho da concorrência. Finalmente, regressaria ao apartamento da Park Avenue e diria que não conseguira saber nada. Mas o seu plano foi por água abaixo.
- Pode contar com a minha total colaboração - diz ele ao grandalhão desengonçado.
- Eu sei que posso - replica DuBois, com o seu sorriso de tubarão. - Um dos homens de Mutha pode ir visitar os sítios a que você tem de ir, só para termos a certeza.
- Oh! - exclama Sam.
Ei-lo, portanto, com uma lista de fontes de azoto líquido situadas a sul da Rua 14, até à Battery. Tal como o resto da equipa de Mutha, deverá servir-se da história que todos decoraram: são jornalistas de um semanário de escândalos, The National Rocket, e estão a trabalhar num artigo sobre o roubo dos óvulos de Marilyn, para o que todos eles receberam documentos de identidade falsos.
Surpreendentemente, os dois primeiros fornecedores contactados por Davidson mostram-se dispostos a colaborar, mas as suas vendas mais recentes de azoto líquido haviam sido feitas a hospitais e clínicas. Os três seguintes recusam-se a dar-lhe qualquer informação.
Davidson prossegue a sua marcha pesada em direcção à
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Canal Street, começando a sentir os pés doridos com aquele calcorrear, a que não está habituado. E, atrás dele, apenas a alguns metros de distância, Dino, o gorila destacado por Mário Zucchi, arrasta-se penosamente em sua perseguição, rezando a todos os santinhos para que o seu alvo faça uma pausa, a fim de beber uma cerveja e comer uma pizza!
A loja da Canal Street também tem muito que se lhe diga. Fazendo lembrar o sótão de uma casa velha, vende equipamento e artigos, novos e usados, laboratoriais, cirúrgicos e médicos. É uma salgalhada de cadeiras de rodas, camas de hospitais, andarilhos, bengalas, muletas e uma série de instrumentos em aço inoxidável que Davidson não faz a mínima ideia do que sejam. Está tudo coberto por uma grande camada de pó e enfeitado com letreiros espirituosos escritos à mão: "Compre já as suas ligaduras para as férias!" e "Aproveite os nossos descontos especiais nos supositórios laxantes para as suas férias!"
Aparentemente, a loja só possui um empregado, um tipo muito gordo com umas jeans cheias de nódoas e uma T-shirt que diz: "Um duche por dia faz bem à saúde." A pele do rosto, macilenta e flácida, descai-lhe em dobras melancólicas, o que é compreensível, pensa Sam, quando se passa um dia de trabalho inteirinho no meio de arrastadeiras em "segunda mão".
- Faz favor de dizer - interpela-o ele, num tom baixo e rouco.
- É o proprietário?
- Sou. Thornton G. Kalbacker. Em que posso ajudá-lo?
- Vende azoto líquido?
- Quanto é que quer?
- Não quero comprar - responde Davidson, avançando com a sua encenação: é repórter de The National Rocket e está a preparar um artigo sobre o roubo dos óvulos de Marilyn Taylor. Tudo o que pretende saber é se, recentemente, vendeu, ou não, azoto líquido.
Kalbacker olha-o atentamente:
- Acha que os bandidos precisam de azoto líquido para manterem os óvulos congelados e anda a ver quem é que comprou o produto. Acertei?
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- É um homem esperto, Mister Kalbacker, e acertou plenamente. Vendeu algum, nos últimos dias?
O dono da loja brinda-o com um sorriso espertalhão:
- O que é que eu ganho com isso? - pergunta.
- O seu nome aparecerá em The National Rocket.
- Não é com isso que se mata a fome.
Champ DuBois autorizara os seus "caçadores de óvulos" a pagar cinquenta dólares em troca de uma informação, se fosse necessário, e Davidson acha que ainda pode ficar com algum para si.
- Estou autorizado a pagar, no máximo, vinte dólares por qualquer informação importante que possa fornecer-nos.
- Vinte? Tem de subir isso!
- Se lhe pagar mais, isso sai-me da algibeira - declara Sam, com uma expressão muito triste.
- Não me interessa donde é que ele sai. Quero cinquenta.
- Cinquenta? - geme Davidson, angustiado. - Nem pensar. Quarenta é o máximo.
- Está bem - diz o gordo -, não insisto mais, sejam os quarenta. Mostre lá o dinheiro.
Sam tira a carteira, mas depois fica quieto:
- E se você me está a enganar? Eu pago-lhe e depois você diz-me que ninguém lhe comprou azoto líquido. Isso não vale os quarenta dólares!
Kalbacker encolhe os ombros:
- Não confia em mim? Está bem, desfaz-se o negócio. A decisão é sua.
Sam, com novo gemido, entrega-lhe duas notas de vinte dólares:
- O senhor é muito esperto, Mister Kalbacker.
- Não mais do que você. Se calhar, o seu patrão disse-lhe que pagasse cinquenta por uma boa pista e você estava a fazer-se para ficar com os outros dez. Acertei?
- Já chega de discussões sobre altas finanças - corta Davidson. - Qual é a sua boa pista?
- Aqui há uns dois dias, apareceu-me cá um sujeito que eu nunca tinha visto, nem mais magro nem mais gordo.
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A princípio, pareceu-me um garoto, mas, olhando melhor, via-se que já tinha para aí uns trinta anos, mais coisa menos coisa. Lourinho, com o cabelo levantado
à frente e escorrido atrás. Trazia um casaco de cabedal preto vestido, e eu pensei que era um desses das motas que vinha para me assaltar. Só este ano, já fui assaltado quatro vezes! Mas não. Afinal, ele só queria comprar azoto líquido!
- E disse para o que era?
- Eu perguntei-lhe e ele disse que vinha a mando de um especialista de pés de Staten island. Achei que era aldrabice, pois pode comprar-se o produto em Staten Island, mas ele mostrou-me o cartão do médico e por isso vendi-lhe três litros, dentro de um recipiente para congelação. Que diabo, uma venda é uma venda. Não tenho razão?
- Como é que ele pagou?
- Em dinheiro.
- Perguntou-lhe a morada?
- E para que haveria de o fazer? Ouça, eu vi logo que ele não passaria a ser um cliente habitual e limitei-me a dizer-lhe como deveria lidar com o produto. O azoto líquido é inofensivo desde que se saiba trabalhar com ele, mas, se o recipiente não tiver ventilação, torna-se uma bomba. Ele disse-me que iria ter atenção para que a tampa perfurada estivesse sempre limpa e desobstruída. Depois, pegou no frasco e foi-se embora.
- Um tipo louro com um casaco de cabedal preto? É tudo o que tem para me dizer?
- E trazia uma T-shirt branca e uns jeans. É tudo.
- Merda - diz Sam, desconsolado. - Deve haver um milhão de tipos assim em Nova Iorque.
- É provável.
- Nunca mais o vamos encontrar...
- Talvez o encontrem. Dê-me os outros dez que eu explico-lhe.
Davidson fica fora de si:
- Você é mesmo um ladrão! - exclama, furioso.
- Lá nisso somos iguais. Paga-me os dez? Sam entrega-lhos:
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- Então?
- Eu disse-lhe que ele me tinha mostrado o cartão do médico dos pés e não me lembro do nome do médico, mas lembro-me da cidade em que ele tem o consultório, porque o nome é igual ao meu: Thornton. Aí tem a sua boa pista. Quantos médicos dos pés é que pode haver em Thornton, Staten Island? Não tenho razão?
MANHATTAN, Nova Iorque
- Não pude telefonar antes, Mário - diz Dino, em tom lamentoso. - O tipo entrou numa espelunca, na Canal Street, depois saiu de lá como se levasse fogo no rabo e apanhou um táxi. Disse-me que o seguisse, não foi? Quando consegui arranjar táxi, já ele tinha desaparecido! Mas pensei que, com toda a certeza, ele viesse para o apartamento da Park Avenue e então vim para cá e tinha razão, meu amigo, porque o porteiro disse-me que Davidson tinha acabado de entrar e subido, para falar com o tal Champ DuBois. Estou a falar de um telefone que há à entrada e para isso tive de entrar com cinco dólares para o porteiro!
- Está bem, está bem - diz Zucchi, impaciente -, estou a perceber. Ficas aí, para o caso de Davidson tornar a sair, e então vais atrás dele.
- Saí-me bem, não saí, Mário?
- Sim - responde o Nariz, amargamente -, saíste-te bem.
Desliga e começa a pensar no que Dino lhe contou. É óbvio que Davidson andara a visitar os fornecedores de azoto líquido na parte baixa de Manhattan e que acertara na Canal Street. Depois, correra a contar a boa nova a Champ DuBois.
Mário dá uma olhadela ao seu falso Cartier. É muito tarde para descobrir o que Davidson ficara a saber, mas Zucchi
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jura que a primeira coisa que fará, amanhã de manhã, será ir à lojeca da Canal Street. Toda a gente sabe que enquanto há vida há esperança.
STATEN ISLAND, Nova Iorque
Logo de manhãzinha, Champ DuBois e Mutha entram para o Jaguar branco e iniciam a sua viagem em direcção às estranhas paragens de Staten Island. Visto que nenhum
deles costumava ir para a zona de Manhattan situada a sul da Rua 23, preparam-se para a arriscada jornada levando consigo um termo de litro, com vodea gimlets1 e
dois pequenos copos de cristal.
Sentem-se fascinados com a travessia no ferry e - impressionados com a actividade marítima na Upper Bay. Chegados sãos e salvos a Staten Island, perguntam a um marinheiro
que trabalha no convés qual é o melhor caminho para Thornton. Champ passa-lhe para a mão, com ar displicente, uma nota de dez e recebe instruções detalhadas:
- Não vão muito depressa - aconselha o estivador, dando uma palmadinha no guarda-lama do Jaguar -, senão passam por lá sem darem por isso. É só uma rua com lojas
e algumas casas à volta!
Thornton é exactamente como lhes disseram e, depois de consultarem a lista telefónica e de perguntarem a um amável agente uniformizado, de serviço ao parque de estacionamento,
ficam a saber que o único especialista de pés nas redondezas é o doutor Leopold Gingle, que tem um consultório na rua comercial.
A recepcionista do doutor Gingle é uma negra alta e esbelta que olha de soslaio para a indumentária de Champ DuBois: óculos escuros, fato de treino de algodão branco
e um chapéu de aba larga, tipo sombrero, com uma faixa em pele de cobra.
- Posso ser-lhes útil? - pergunta, esforçando-se por ser amável.
1 Vodea com sumo de lima batido. (N. da T.)
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- Na verdade, pode, irmã - responde Champ. - Temos urgência em falar com o doutorzinho.
- Pode dizer-me qual é o assunto? O doutor está ocupado neste momento com uma doente.
- bom, então, não o incomode, irmã - declara DuBois com um grande sorriso, que lhe faz brilhar os dentes, muito brancos -, que eu vou lá. Mutha, talvez seja melhor tu ficares aqui a fazer companhia à irmã.
- Não sou sua irmã - grita-lhe ela, enquanto ele se encaminha, rapidamente, para o gabinete.
O doutor Gingle está sentado à frente de uma robusta matrona, colocando gesso sobre as ligaduras que lhe envolvem o pé e o tornozelo esquerdos. O médico é um homem de pequena estatura, com um pequeno bigode, umas grandes entradas e cara de poucos amigos, que levanta os olhos furiosamente para DuBois:
- O que significa esta intromissão?!
- Adoro a sua maneira de falar - replica Champ -, adoro, mesmo! Peço desculpa pelo meu comportamento pouco convencional, doutor, e a si também, minha senhora, mas necessito de uma informação que espero, e estou certo, poderá fornecer-me.
- Saia daqui imediatamente ou serei obrigado a chamar a polícia! - ordena-lhe o doutor Gingle, com uma expressão carrancuda.
- Mas que gritaria! - comenta DuBois, com ar admirado. - Parece um estúpido dum noitibó! - E, tirando do bolso do fato de treino uma faca com um longo cabo em madrepérola, carrega num botão. Salta de lá uma lâmina de aço, que, faiscando, se imobiliza com um estalido.
- O facalhão é para dar nas vistas - explica - e só para o impressionar.
A doente olha para ele, boquiaberta:
- Quer drogas - desata a gritar -, você quer roubar drogas!
- Oh, não, minha senhora - replica Champ -, eu não me meto nisso! É só uma informaçãozinha e vou-me logo embora. Doutor, o senhor utiliza azoto líquido para tratar dos pés?
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De vez em quando... - responde o médico, cautelosamente.
- Ah! Chegámos agora à resposta que dá direito ao primeiro prémio! Pense bem, antes de responder. Já alguma vez tratou de um doente, um tipo de aspecto jovem, louro, com o cabelo levantado para cima à frente e liso atrás? Deve ter para aí uns trinta anos, T-shirt branca, jeans e casaco de cabedal preto. Teve algum doente assim?
.- A relação médico-doente é confidencial - responde friamente o médico - e não posso dar essa informação.
DuBois dá um salto para a frente e coloca a ponta da lâmina de aço quase dentro da narina direita de Gingle:
- Ficarias muito engraçado sem metade da cometa, meu - sussurra-lhe, suavemente. - Vê se consegues lembrar-te do tipo louro.
- Talvez... - diz o médico com a voz rouca e os olhos, quase trocados, fixos na ponta da faca - há cerca de um ano. Verruga plantar. Curou-se com azoto líquido...
- Já me serve. O nome e a morada, por favor. Quanto mais depressa os desencantar, mais depressa me vou embora!
com as mãos trémulas, o médico tira, atabalhoadamente, uma ficha dos arquivos e DuBois arranca-lhe das mãos, enfiando-a depois no bolso.
- Muito obrigado pela sua amável colaboração, doutor. Ouça, acho que estou a ficar com um calo na planta do pé direito. Receita-me alguma coisa?
- Não sem o examinar.
- Talvez para uma próxima vez - diz Champ, fechando a navalha de ponta e mola. - Só mais uma coisa: por favor, não fale da minha visita às autoridades, pois acho que não seria uma atitude prudente. E agora queira prosseguir com o seu tratamento e desejo-lhe as melhoras do seu pé, minha senhora - acrescenta, delicadamente. Depois, retira-se, vai ter com Mutha e acena uma despedida à empertigada recepcionista. - Até à vista, irmã!
- Só se eu não puder evitá-lo - riposta ela, vivamente. Dentro do Jaguar ele lê o que está escrito na ficha retirada dos arquivos do doutor Gingle:
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- Ronald Yates. Mutha, pergunta àquele simpático guarda como é que se vai para West New Brighton!
- Mas perdem-se duas vezes e só ao fim da tarde é que conseguem encontrar o bungalow dos Yates. Um palácio
- comenta Champ, dando uma vista de olhos à casa. Faz-me lembrar a mansão dos meus antepassados lá nos confins do Alabama! - Abre o porta-luvas e vasculha o seu interior, tirando depois de lá um complicado distintivo, em ouro e prata, muito sugestivo, que, olhando de perto, revela uma gravação: "INSPECTOR GARTER". - Vamos lá - diz a Mutha. - Tens a arma contigo?
- Ssim, Mutha - responde Mutha.
DuBois dá uma pequena pancada seca na armação empenada da porta de rede. Passado um instante, a porta de dentro é aberta por um tipo louro de jeans e T-shirt branca:
- Sim?...
- Mister Ronald Yates? - pergunta Champ.
- Exactamente. Quem é o senhor?
DuBois exibe por uns segundos o seu distintivo:
- Departamento de Serviços Públicos da Cidade de Nova Iorque. Gabinete das Aguas, Electricidade, Gás e Televisão. Fomos alertados para uma fuga de gás nas redondezas e andamos a verificar todas as casas. Podemos entrar por uns instantes, por favor?
- Não me cheira a nada! - afirma Ronnie.
- É só um minuto -insiste Champ, pacientemente. - É para sua segurança, sir! Não gostaria de ir pelos ares, pois não? - Yates deixa-os entrar. Eles deitam um olhar de relance pela sala de estar, onde Mrs. Gertrude Yates está com os olhos grudados no televisor, e depois seguem para a cozinha, onde DuBois, com ar desconfiado, dá algumas fungadelas: - Talvez sim, e talvez não... Vamos lá acima!
- Mas, no primeiro andar não há aparelhos a gás - argumenta Ronald.
- No entanto, o gás das fugas sobe, está a ver? Oh, sim, concentra-se no andar superior. Só lá é que poderemos dizer se tem uma fuga! - Sobem então todos para o
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primeiro andar, onde DuBois e Mutha examinam todas as divisões e armários até que Champ roda a fechadura de uma porta fechada à chave. - O que é que está aqui dentro?
- Nada. É um quarto de arrumações.
- Abra a porta, por favor.
- É só um monte de tralha! - protesta Ronnie.
- Abra a porta ou seremos forçados a chamar um agente da autoridade! - Yates abre a porta. DuBois escancara-a e deixa-se ficar especado na soleira. Deparam-se-lhe posters de Marilyn Taylor nas paredes, fotografias de Marilyn Taylor, capas de revistas com Marilyn Taylor, recortes de jornais, um retrato emoldurado e videocassetes. - Caramba! - exclama, em voz baixa. Avança para o santuário e descobre os dois recipientes brancos: um pequeno e um grande. - O que é que está dentro deles?
- Limonada - responde Ronnie, corajosamente. DuBois inclina-se para a frente, retira a tampa do frasco
maior e coloca a palma da mão sobre o bocal:
- É azoto líquido! - exclama. E, endireitando-se, olha para Yates, com uma expressão acusadora: - O senhor tem alguma autorização oficial para guardar líquidos voláteis num compartimento fechado, no interior de uma residência?
Ronald baixa a cabeça:
- Não - responde, com voz sumida -, mas é só um bocadinho...
- Uma bomba em potência! - exclama DuBois. Dava para fazer explodir todas as casas da vizinhança! Temos de confiscar estes recipientes e guardá-los numa área protegida da nossa sede até que o senhor obtenha a licença necessária.
- Por favor! - suplica Yates, levantando a cabeça. Não os levem! São meus e para mim têm muito valor!
- Os regulamentos são para serem cumpridos - observa Champ, com rispidez. - Toda a gente sabe disso. Leve-os para o carro imediatamente, inspector!
O mordomo, sem grande dificuldade aparente, pega nos dois frascos de congelação e sai do quarto. DuBois fica
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junto de Yates até que Mutha desça as escadas e saia pela porta da frente. Ronnie sente-se perplexo:
- Como é que eu consigo reavê-los? - pergunta, com voz trémula.
- Dirija-se à Administração-Geral de Serviços e preencha um formulário a pedir autorização oficial.
- Pensei que tinha dito que eram do Departamento de Serviços Públicos!...
- É a mesma coisa - replica DuBois, lançando um último olhar ao santuário. - Admiro o seu bom gosto, sir. Ela é uma mulher a sério!
Yates desce as escadas com ele e vê-o ajudar o outro homem a colocar os recipientes no banco de trás do Jaguar branco. Só então é que Ronnie se apercebe da enormidade da sua perda e vêm-lhe as lágrimas aos olhos. Corre tremulamente para o Jaguar, mas o carro arranca rapidamente e ele fica a vê-lo afastar-se, ao longe.
Continua lá quieto e chorando em silêncio, quando um Plymouth azul e empoeirado encosta e estaciona à frente de sua casa. Sai de lá um homem alto e esguio, envergando
um fato de três peças preto, e que, com grandes passadas, se dirige para ele:
- Mister Ronald Yates?
STATEN ISLAND, Nova Iorque
O tenente Jeffrey McBryde passa grande parte da manhã a explicar ao subinspector Gripsholm o motivo por que está a gastar tanto tempo à procura de um tipo louro com um casaco de cabedal preto e que tem um decalque do Yum-Yum Burger Shoppe aplicado no vidro traseiro do seu velho Volkswagen. Quando acaba a longa dissertação, Gripsholm fica a olhar para ele:
- E agora, malta, chegou a hora dos maluquinhos! goza o subinspector.
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- Pois chegou - replica McBryde, no mesmo tom. Quer que desista?
- Meu Deus, não! Continuamos a receber queixas de toda a gente por causa disto! De toda a gente que fica abaixo da Casa Branca! Até já tivemos perguntas da CIA,
mais os telefonemas diários do FBI, que querem saber o que é que nós sabemos. O que, até ao momento, é nicles!
- Eu não poria as coisas exactamente dessa forma...
- Acha realmente que esse decalque do Yum-Yum vai conduzir a algum resultado?
O tenente encolhe os ombros:
- É tudo o que temos...
- Está bem, então - consente Gripsholm - continue com isso por mais uns tempos, e, se encontrar o lourinho e os óvulos, eu até atiro um foguete!
Posto isso, o detective requisita um Plymouth azul que já devia ter sido trocado por um carro novo, há cinco anos, e, nessa tarde, dirige-se para Staten Island, começando pelo Yum-Yum Burger Shoppe de West Brighton. Segue os mesmos trâmites que utilizara em Brooklyn e Queens: procura o gerente, mostra-lhe o distintivo e pergunta-lhe se há, entre os seus empregados, um sujeito louro, talvez com trinta e poucos anos e que tenha um Volkswagen amachucado, com um decalque do Yum-Yum no vidro traseiro.
Está preparado para mais uma derrota mas o gerente responde-lhe com uma pergunta aflita:
- Não está metido em sarilhos, pois não?
As esperanças de McBryde dão um salto como o de um veado assustado:
- Não, não há problema, mas é provável que ele tenha testemunhado um acidente de viação e preciso de algumas informações. Como é que ele se chama?
- Ronald Yates, mas nós chamamos-lhe Ronnie.
- Ele está de serviço agora?
- Entra logo, às seis. É um óptimo preparador de hamburgers! Consegue fazer dois de cada vez, com uma espátula em cada mão!
- Isso é muito interessante - comenta o tenente
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McBryde. - Não se importa de me dar o endereço dele?
- Quando chega a casa de Yates, repara num tipo louro, de aspecto jovem, e que está especado no relvado pouco cuidado. O detective avança para ele com grandes passadas e pergunta-lhe: - Mister Ronald Yates? - O tipo volta-se, faz que sim com a cabeça e McBryde vê que ele esteve a chorar. Então, resolve apertá-lo com força, enquanto o mesmo está vulnerável: - Onde estão os óvulos de Marilyn Taylor?
- Eles levaram-nos - responde Yates.
- Quem é que os levou?
- Os inspectores do gás.
- Que inspectores do gás?
- Os do Jaguar branco.
O tenente ergue os olhos para o céu. Também ele tem vontade de chorar! Mas, em vez disso, exibe o seu distintivo e identifica-se:
- Tenente Jeffrey McBryde, do Departamento de Polícia de Nova Iorque. Ronnie, vamos lá para dentro, para conversarmos um bocadinho, está bem? - O santuário já havia sido profanado pelos intrusos; por isso, Ronald leva-o para lá. De boca aberta, McBryde observa a decoração e depois olha com pena para o jovem, perguntando-se a si mesmo se em breve também ele não terá um póster de Marilyn Taylor pendurado por cima da cama. - Vamos começar pelo princípio. Como é que conheceu Nicholas Kazanian?
- Quem?!
- Kazanian. O tipo a quem você roubou os óvulos.
- Nem cheguei a saber como é que ele se chamava! Então, Yates explica-lhe que se encontrava à porta da clínica de fertilização na Rua 70, Este, na noite do sábado em que se dera o assalto. Um dos ladrões deu-lhe uma caixa de fósforos, e, assim que ouviu falar do roubo nas notícias, resolveu ir ao Turks Bar, em Brooklyn, para deitar a mão aos óvulos dela. - Até comprei o azoto líquido para poder conservá-los frescos - afirma com toda a convicção.
- Por que motivo não os devolveu a Marilyn? - pergunta o detective, suavemente.
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- Não sei -sussurra Ronnie.- Eles eram como... uma recordação.
- Oh, sim!... - McBryde reflecte se não haverá mais nada além desse motivo. - Então você agora tem o frasco dos óvulos e um recipiente com o azoto líquido. Como é que os inspectores do gás entram nisto? - Yates diz-lhe que eles entraram lá em casa afirmando que havia uma fuga de gás nas redondezas e que tinham de verificar todas as casas. - Mostraram-lhe alguma identificação? - bom, o negro alto exibiu fugazmente um distintivo, mas Ronnie não viu o que lá estava escrito. Aquele disse que era do Departamento de Serviços Públicos ou coisa parecida.
- Se andavam à procura de uma fuga de gás, por que é que levaram os óvulos?
- Porque disseram que era ilegal conservar líquidos voláteis dentro duma residência.
- Você não achou estranho que inspectores do gás da cidade de Nova Iorque andassem num Jaguar? - Ora! A verdade é que Ronald só vira o carro quando já era demasiado tarde. Eles limitaram-se a meter os frascos dentro do Jaguar e foram-se embora. - Bonito! É capaz de descrever os dois homens? - Um era um negro muito magro que trazia um fato de treino branco, óculos escuros e um chapéu de aba larga, tipo sombrero, com uma faixa de pele de cobra, o outro era baixo, muito velho, devia ser asiático, ou coisa assim, e trazia vestido um fato de seda negra, que parecia um pijama, com um dragão bordado nas costas do casaco. - Inspectores do gás típicos - comenta o tenente, com um grave aceno de cabeça. - Não admira que o tenham enganado! O Jaguar era de duas ou de quatro portas?
- De duas.
- Viu a matrícula?
- Só por uns segundos...
- Lembra-se dela? De algum bocado?
- Acho que tinha os algarismos oito, seis e um, mas não me lembro em que ordem...
- Está bem. Eu quero falar mais consigo acerca disto, Ronnie, mas, neste momento, tenho de me servir do seu telefone.
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- Há um no meu quarto.
- Venha comigo, por favor. - McBryde liga para o sargento Rumfry: - Esta é das quentes - diz-lhe, rapidamente. - Comecem a procurar um Jaguar branco, de duas portas, modelo desconhecido, e que, possivelmente, se dirige de Staten Island para Manhattan durante a próxima hora. Dirijam-se ao terminal dos ferries. Os suspeitos são dois homens: um negro alto e magro, e o outro, oriental e baixo. Ambos vestidos como se fossem para um baile de máscaras. Se os apanharem, mantenham-nos quietinhos até eu chegar aí.
- Qual é a acusação?
- Têm os óvulos da Marilyn Taylor.
- Não me lixe! vou já tratar disso!
McBryde e Yates voltam para o santuário. O tenente examina a videoteca de cassetes de Marilyn e começa a pensar se não será melhor comprar um videogravador.
- Ronnie, você vai ter de ir comigo até Manhattan, ditar as suas declarações e assiná-las, mas agora gostaria de ouvir outra vez a sua história, para ter a certeza de que compreendi tudo.
- Não me vai prender, pois não? - pergunta Ronnie, nervosamente.
O detective faz um sorriso triste:
- Porquê? Amor não correspondido do primeiro grau?
BOSTON, Massachusetts
Os dois velhos amigos estão novamente reunidos: confortavelmente instalados nas suas poltronas de cabedal de costas altas, beberricando deliciadamente os seus conhaques, soltando suaves fumaças dos seus óptimos charutos e interrogando-se sobre o que mais lhes pode oferecer a vida para culminar a satisfação daqueles momentos.
- Hoje tive uma visita - declara o professor T. Hiram Farthingale. - Era outra vez o tal jovem inquieto do FBI.
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- Ah, ah! - exclama monsenhor Terence Evelyn ODell. - Começam a estar em pulgas, não?
.- Oh, sim - concorda o professor, permitindo-se um risinho seco. - Estão ansiosos que eu afirme que no caso do roubo dos óvulos da Marilyn se trata de um rapto! Mas eu expliquei-lhes que não poderei fazê-lo enquanto não der por concluída a minha investigação jurídica.
ODell esboça um sorriso:
- Sinto-me honrado por tu considerares os nossos debates uma investigação jurídica. Achas que acabarás por dar uma opinião decisiva?
- Talvez o faça... e talvez não. Não creio que isso seja assim tão importante, visto que o crime está a ser investigado pelo Departamento de Polícia de Nova Iorque.
- Sem resultados aparentes, se acreditarmos no que dizem os jornais e a televisão. Talvez os óvulos nunca mais sejam recuperados e o seu roubo permaneça um mistério por resolver. Tal como o desaparecimento do juiz Crater ou com o que de facto aconteceu em Fali River.
- Serve-te de conhaque. Sinto-me demasiado confortável para me mexer...
- E mais um bocadinho para ti?
- Sim, se fizeres favor!
- Terry, por que é que achas que o roubo dos óvulos de Marilyn desencadeou um interesse mundial e continua a receber uma cobertura tão exaustiva por parte da comunicação social?
O monsenhor mexe-se nervosamente na sua poltrona, receando uma ratoeira jurídica:
- Eu diria que os motivos são óbvios: trata-se de um crime invulgar e infame. E a vítima é uma estrela de cinema de primeira grandeza, merecidamente conhecida por
a mulher mais bela do mundo.
- Bem!... Não será essa uma explicação demasiado condescendente? Permite-me sugerir que a preocupação generalizada não seja tanto pela vítima, mas sim pelo produto
do roubo.
- Os óvulos?!
- Justamente.
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- Hiram, se o que desejavas era espicaçar a minha curiosidade, conseguiste-o de forma admirável! Porque haviam de ser os óvulos o objecto de uma perturbação mundial?
- Pensa no ovo. Humano ou de galinha, isso não interessa. No entanto, desde que o homem começou a andar erecto sobre a Terra, o ovo tem ocupado um cantinho especial da sua consciência. Tem sido um símbolo de regeneração. Tem quase propriedades míticas!
- Oh, Oh! Então, concordas comigo quanto à potencialidade do ovo!
- O que eu estou a dar a entender é que o ovo faz agitar dentro de todos nós algo de primitivo. A nossa veneração do ovo antecede e transcende as organizações religiosa e jurídica. Já vem dos tempos em que as pessoas se vestiam com peles de animais e se acotovelavam à volta de uma fogueira dentro de uma caverna. Essa adoração do ovo antecede a tua igreja e a minha lei, e todos nós arrastamos vestígios dessa velha crença. A nossa raça tem encerrada na memória a santidade do ovo, e a notícia de que os ovos de uma mulher foram roubados, e talvez destruídos, faz erguer esse instinto antediluviano, e nós sentimo-nos chocados e ultrajados por vermos que um ícone tão adorado possa ser roubado daquela maneira.
Monsenhor ODell mantém-se calado por muito tempo e depois solta um enorme suspiro:
- Trata-se de um conceito original e criativo, Hiram, mas como é que o teu elogio rasgado se relaciona com o assunto em agenda, ou seja, foi ou não foi um rapto o roubo dos óvulos da Marilyn?
Farthingale faz uma pausa antes de responder e depois:
- Levou-me a pensar se o roubo não poderia ser classificado como um crime contra a humanidade, uma vez que atinge uma das nossas mais elementares e enraizadas crenças espirituais.
- Um crime contra a humanidade? - repete ODell. Isso pode considerar-se sob a alçada do FBI.
- Teria de verificar, mas duvido. Se o roubo dos óvulos da Marilyn pode ser tido como um crime contra a humanidade,
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então diria que o organismo adequado à investigação desse grave delito penal seriam as Nações Unidas. O monsenhor acena pensativamente com a cabeça:
- Vamos beber mais um conhaque? - sugere. E talvez fumar outro charuto?...
MANHATTAN, Nova Iorque
Thornton G. Kalbacker, enfiado na sua loja pouco atraente, serve-se de um espanador de penas para limpar o pó a uma série de cintas para hérnias, novas e usadas,
que tem em chamativa exposição, perguntando-se a si mesmo se não deveria baixar o preço a um love de pessários, rígidos como madeira, que comprara a um guatemalteco
falido. A porta da entrada abre-se toda para trás e entram dois matulões. Kalbacker toma-os por mafiosos, a avaliar pelo arcabouço e as vestimentas. O mais alto
parece ter sido esculpido com pedra do monte Rushmore, e o chefe não é muito mais baixo, com uma penca que nunca mais acaba.
- Sim, cavalheiros - diz o comerciante, amavelmente -, em que posso ajudá-los?
- Tem azoto líquido? - pergunta o Nariz.
- Claro! Tenho tudo! Quanto é que querem?
- Não quero comprar - responde Mário Zucchi. - Só quero saber quem é que o comprou, na semana passada ou coisa assim.
- Oh, não me lembro disso. Tenho tantos clientes que não consigo fixá-los.
- Pois - diz Zucchi, relanceando o olhar pela loja, sinistra e deserta -, aposto que tem serviço como o caraças. Você é o dono?
- Exactamente. Thornton G. Kalbacker, para o servir.
- bom, Mister Kalbacker, deixe-se de brincadeiras comigo. Ontem à tarde, veio cá um tipo gordo que lhe fez a mesma pergunta e você disse-lhe. Não tenho razão?
- Talvez tenha, mas é claro que ele me recompensou condignamente pela colaboração prestada.
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Zucchi suspira e tira a carteira:
- Estes espertinhos de Nova Iorque são todos iguais! Quanto é que ele lhe pagou?
- Cem.
- Uma ova! - exclama Mário. - Se lhe pagou cinquenta já é para admirar! E o que eu pago.
- Tem de ser cem - repete Kalbacker, teimosamente.
- Não tem de ser nada - riposta o Nariz, fazendo sinal ao mastodonte. - Mostra-lhe, Sally.
Sally olha à sua volta por um instante e depois, escolhendo uma canadiana ajustável em aço inoxidável, torce-a até formar um belo nó corredio.
- Está bem, cinquenta dólares - apressa-se a dizer o dono da loja. - Mais vinte pela canadiana - acrescenta.
Zucchi paga-lhe e Kalbacker conta-lhe a mesma história que contara na véspera a Sam Davidson. O Nariz olha para o seu Cartier de imitação:
- Merda - diz, desconsolado -, eles devem lá estar agora. bom, há mais do que uma maneira de esfolar um gato.
- Eu tenho uns óptimos bisturis para vender - diz o dono da loja, desejando ser prestável. - Praticamente novos!
- Fica para a outra vez. Vamos embora Sally, vamos outra vez para o Bedlington, pois pode ser que o Dino já tenha voltado.
Kalbacker vê-os encaminharem-se pesadamente para a porta, que depois fecham com grande estrondo. Conta os setenta dólares que acaba de ganhar e chega à conclusão
de que faz mais dinheiro a vender informações do que um treinador de atletismo. As informações pelo menos nunca se mexem!
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MANHATTAN, Nova Iorque
Durante a sua bem-sucedida carreira de ladrão, Champ DuBois estabeleceu vários princípios, que lhe permitiram escapar às malhas da justiça. Um deles é que durante
a execução de um assalto a retirada da cena do crime deverá ser sempre por um caminho diferente do utilizado na ida.
É assim que quando Mutha e ele já têm os óvulos de Marilyn bem como o recipiente com o azoto líquido de reserva bem acondicionados no Jaguar branco, DuBois, em vez
de apanhar o ferry, procura outra forma de regressar a Manhattan, e, depois de se informar numa estação de serviço, dirigem-se para a Ponte Verrazano. Esta conduzi-los-á
até Brooklyn e finalmente a Manhattan, através da Ponte Williamsburg.
O tráfego é intenso e a viagem torna-se longa e aborrecida. Mas eles têm o termo com vodea para lhes amenizar a disposição... e sentem-se muito satisfeitos por saberem
que conseguiram realizar aquilo que haviam programado.
- Não há nada mais gratificante do que um trabalho difícil bem executado - comenta DuBois, com profundidade. - Creio que estamos de parabéns, não achas, Mutha?
- Ssim - responde Mutha.
Já é noite alta quando chegam ao apartamento da Park Avenue. O porteiro interrompe a conversa que está a ter com um sujeito baixo e corpulento, para se apressar
a abrir a porta do Jaguar, ajudando depois a transportar para o átrio os dois recipientes.
- Parece ser material bem frio, Mister DuBois - comenta ele.
- Pelo contrário - replica Champ, com um sorriso. É material bem quente! Obrigado pela sua ajuda, Johann. A partir de aqui nós levamo-los. Guarde o carro na garagem,
por favor. Esta noite não vou precisar mais dele. E dá-lhe uma nota de vinte dólares.
- Muito obrigado, sir! Boa noite para si.
- Bem o espero - responde DuBois, entrando com Mutha no elevador.
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Chegados ao apartamento, dão com Sam Davidson, que se rebola na alcatifa da sala de estar com as gémeas Chin. O trio solta alegres risinhos, bebe Astí espumante directamente da garrafa e já está um pouco bêbedo. Segundo as aparências, e a avaliar pelos seus rostos afogueados e roupas em desalinho, o mais certo é terem estado envolvidos num alegre ménage à trois.
DuBois dá ordens às garotas para que se dirijam para os seus quartos, a fim de se prepararem para o seu passeio nocturno, e Mutha vai para trás do balcão do bar preparar vodea gimlets. Enquanto isto, Sam Davidson pôs-se de pé e, especado e a tremer, olha fixa e espantadamente para os dois recipientes brancos.
- Macacos me mordam! - exclama. - Conseguiram!
- Claro que conseguimos - replica Champ, com ar displicente, e, sentando-se pesadamente na sua poltrona preferida, empurra para trás o sombrero. - É o resultado de uma planificação cuidadosa, determinação e uma dose saudável de descaramento. Os óvulos da Marilyn agora são nossos, assim como o azoto líquido necessário para que se conservem em condições de serem trocados por um resgate.
- Belo trabalho - comenta Davidson, com voz sumida, receando o que está para vir.
- O primeiro acto do nosso imaginativo argumento está concluído - declara DuBois, voltando os seus óculos escuros para Sam. - Agora, você contactará a Marilyn, para acertar as condições daquilo que normalmente se chama pagamento.
- Ouça - diz Davidson, com voz rouca -, acha mesmo que eu sou o tipo indicado para tratar disso?
- Acho - responde Champ, friamente. - Acho mesmo. Agora, escute com atenção, que eu vou dizer-lhe exactamente como é que você vai actuar. Mutha, podemos comer alguma coisa enquanto conversamos?
- O que é que deseja? - pergunta Mutha.
- Oh, qualquer coisa exótica, para festejarmos o nosso triunfo! O que é que sugeres?
- Uma sanduíche de caviar com pão especial - propõe Mutha.
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- Para mim, está óptimo! Sam?
- Também alinho - responde Davidson, com ar desesperado.
MANHATTAN, Nova Iorque
Mário Zucchi já está um tudo-nada embriagado quando Dino finalmente telefona, altas horas da noite.
- Onde raio tens estado?! - grita-lhe Mário.
- Acha que a minha vida tem sido fácil? - lamenta-se Dino. - A andar para aí às voltas como um pedinte à caça de esmolas! Até é para admirar não ter sido engavetado por vadiagem. E ainda não comi nada hoje!
- Está bem, está bem - resmunga o Nariz, irritado. - O que é que aconteceu?
Dino conta-lhe que DuBois regressara ao seu apartamento carregado com dois frascos brancos.
- Pareciam termos com pegas - explica Dino -, um grande e um pequeno.
- Isso estraga tudo - anuncia Zucchi. - Eles apanharam os óvulos da Marilyn, e o melhor é eu parar com a busca. Certo, Dino, por hoje é tudo e vê se vais comer alguma coisa. Eu agora trato do resto. - Mário desliga e olha para o telefone com cara de enterro, mas logo de seguida chega à conclusão de que não está completamente arrumado: pelo menos, agora sabe onde estão os óvulos da Marilyn e isso é alguma coisa. Liga para o Homem de Chicago e conta-lhe as novidades todas. - Portanto, agora sei onde estão os óvulos - termina, em tom triunfante.
- Estou a ver - declara o Homem, vagarosamente. O Davidson está feito com esse tal Champ DuBois e são eles os dois que vão extorquir a massa à Taylor. É essa a tua opinião?
- É isso mesmo! E agora o que quer que eu faça? Que force a entrada no apartamento e apanhe o material?
- Faz-se silêncio. Tão prolongado que, a certa altura, Zucchi pergunta: - Ainda aí está?
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- Estou - responde Chicago. - Tenho estado a pensar se não será um trabalho para o Shakespeare...
- Eh, espere aí um bocadinho - corta Zucchi, furioso, encorajado pela bebida. - Eu posso tratar disso! Tenho homens que chegam para assaltar a Estátua da Liberdade! Entramos no apartamento, sacamos os óvulos e pomo-nos na alheta. Se alguém tentar impedir-nos, vai desta para melhor!
- Mário, Mário - suspira o Homem -, tu ainda não compreendeste? Se houver "fogo-de-artifício", isso vai aparecer em todos os jornais e na televisão. Então, o Rocco fica a saber que nós andamos a tratar de negócios no território dele. Não queres uma guerra, pois não?
- Acho que não.
- Claro que não! Por isso, vamos fazer como eu digo. vou mandar-te o Shakespeare amanhã. Tu mostras-lhe onde é o apartamento e deixa-lo fazer o resto.
- Está bem - responde o Nariz -, mas é como se nãc confiasse em mim...
- Faz apenas o que eu te mando e eu confio em ti. Está certo?
- Se tem de ser assim...
- É assim - confirma o Homem de Chicago e desliga.
CAIRO, Egipto
A bailarina de dança do ventre tem um umbigo tão grande como a boca de um palhaço e Ptolomeu não consegue tirar os olhos dela até que, por fim, se apercebe de que ela, com o seu ar distraído e gesticular sacudido, lhe faz lembrar a mãe. Então, com uma leve sensação de mal-estar, volta a concentrar a sua atenção em Youssef Khalidi, que bebe arrack e devora o seu almoço, que consiste num guisado de cabra com molho de passas.
- Ouça, Joe - diz o agente, esforçando-se por não inalar o cheiro da cabra -, nós confirmámos com os ingleses,
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os franceses e os israelitas. Ninguém ouviu falar no Braço de Deus. Tem a certeza de que isso existe?
- Existe, effendi! - responde Khalidi, limpando a boca, engordurada, à manga da túnica. - vou
provar-lho. - E, enfiando a mão por baixo da vestimenta, tira de lá uma pequena cruz de bronze, toscamente trabalhada e baça. - O emblema do Braço de Deus. Todos os membros trazem uma como identificação.
- Como é que a arranjou? Você é membro?
- Não, comprei-a no Woolworths.
- Não percebo. Se toda a gente pode comprar uma, como é que a seita do Braço de Deus pode usá-la como distintivo?
- Os distintivos verdadeiros têm gravados os seus números de inscrição. Por exemplo, a cruz de Akmed tem o número quinhentos e treze.
- Meu Deus! Quer dizer que esse bando de terroristas tem mais de quinhentos membros?
- É possível - diz Khalidi, acabando o que tem no prato e voltando a encher o copo.
- Quais são as últimas novidades sobre Akmed? - pergunta-lhe Ptolomeu. - Onde estão os óvulos da Marilyn?
Youssef olha para ele com ar infeliz e o agente tira algumas notas da carteira e passa-as por baixo da mesa. O outro agarra nelas rapidamente.
- Só duzentos, americanos? - lamenta-se. - Eu estou a arriscar a minha vida e a segurança da minha avó, effendi!
- Não me disse nada de jeito - faz-lhe notar Ptolomeu. - Sem informação, não há gratificação.
Khalidi chega-se mais para a frente e fala em voz mais baixa:
- Só lhe possso dizer isto: Akmed acabou de chegar do Sul do Líbano. Agora, os óvulos estão guardados numa gruta muito perto da fronteira com Israel.
- Uma gruta? E onde? Você consegue descobrir qual é a localização exacta?
- Akmed não diz. É high secret.
- Top secret - corrige o agente.
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- O quê?
- Aquilo que Akmed sabe e não quer dizer chama-se top secret, e não high secret.
- Tem a certeza, effendi?
- Sim, tenho a certeza - responde Ptolomeu, mal-humorado. No palco está agora uma nova dançarina, que saltita ao ritmo de In the Shade of the Old Apple Tree, tocada pelo conjunto de jazz. O seu tronco está coberto por um véu solto de gaze, mas, a avaliar pelo pouco que o agente consegue ver, o seu umbigo, saliente e arredondado, mais parece um fee1 de golfe. - Quando é que vai encontrar-se outra vez com Akmed? - pergunta ele a Khalidi.
- Talvez esta tarde. E talvez não.
- Você acha que se lhe consegue dar a volta?
- Dar a volta?
- Convencê-lo a trabalhar para nós. Continuaria a pertencer ao Braço de Deus, mas seria "nosso", compreende?
- Compreendo, mas não acredito que seja possível. Akmed tem muita fé na causa.
- Ele tem algum ponto fraco? Bebida? Drogas? Mulheres?
- Akmed gosta de rapazes gordos.
- Rapazes gordos?
Khalidi diz que sim, com um aceno de cabeça:
- Rapazes gordos limpos.
- Como é que ele os arranja?
- Effendi!! - exclama Joe, com um sorriso manhoso. Compra-os!
- Então, precisa de dinheiro.
- Sempre. Akmed está sempre preso.
- Teso - corrige Ptolomeu, automaticamente. - Acha que conseguimos dar-lhe a volta com a quantia certa?
- Quanto é que é "certo"?
- Tenho de o conhecer e estudar bem, para ver quanto seria necessário para o comprar.
1 Lugar onde os jogadores de golfe iniciam o jogo antes de cada buraco.
(N. da T.)
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- Não, isso não é possível. Se eu levar o senhor até ele, ele pode matar-me e torturar a minha avó. Não. Se tem de ser feito, deixe-me tratar disso.
O agente fica a olhar para ele:
- Não tenho outro remédio, pois não?
- Tem de confiar em mim, effendi! Eu vou tentar dar a volta a Akmed.
- Mas mantenha a oferta baixa. Nós somos ricos, mas não pense que os Americanos são uma cambada de estúpidos.
- vou fazer o melhor possível - promete Youssef, com ar sincero. - Alá me castigue!
- bom... - resmunga Ptolomeu, o qual, levantando-se, paga o almoço de Joe e sai do Coney Island Café.
Lá fora, o sol da tarde queima como um lança-chamas e o agente, saltitando de um lado para o outro, para se desviar do trânsito, intenso, consegue atravessar a rua e enfia-se num Datsun que ali está estacionado. Senta-se atrás do volante, puxa a aba do panamá para baixo e vigia a porta do café. Só depois de fumar dois Englis Ovais é que Khalidi, finalmente, aparece.
Ptolomeu fica espantado com o que acontece a seguir. Joe levanta o braço, faz estalar os dedos e um BMW preto, com motorista, avança na sua direcção. Ele levanta as saias da vestimenta e entra para o banco de trás. O BMW arranca.
O agente poe o Datsun a trabalhar, faz uma louca inversão de marcha, que por pouco não provocou uma grande confusão, com todas as pragas que lhe foram rogadas em árabe ("A tua irmã fornica com camelos!"), e arranca atrás do BMW. Está convencido de que Youssef se dirigirá para o casbá, mas em vez disso, e após meia hora de
viagem, descobre que se encontra num agradável subúrbio de imponentes vivendas caiadas, que se escondem por detrás de altos muros, cobertos de buganvílias.
O BMW imobiliza-se defronte de um lindo portão de ferro forjado, colocado numa cerca enfeitada, e que delimita um relvado impecável com meio hectare de área, pelo menos. E, no centro, uma casa baixa, de construção irregular, com muitos corredores e recantos, estucada de branco,
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com janelas estreitas e um telhado de telhas vermelhas. Khalidi apeia-se, fala com o motorista por uns instantes e depois volta a fechá-la à chave, com todos
os cuidados. Ptolomeu, que estacionou no ponto onde começa a calçada, a cerca de quarenta e cinco metros de distância, vê que o alvo da sua perseguição se aproxima de uma mulher, sentada numa imponente cadeira de jardim colocada perto da entrada principal da casa.
A mulher, toda vestida de negro, levanta-se com dificuldade e mantém-se de pé tremulamente, com a ajuda de uma bengala. Ptolomeu vê logo que ela já é velha, muito velha mesmo, e calcula que seja a avó. Gesticulando exuberantemente, falam um com o outro durante uns momentos e, subitamente, a velhota começa a agredir Joe com a bengala, batendo-lhe nas pernas e no rabo. Ele encolhe-se todo, tentanto fugir dela e dos seus frenéticos golpes, dá meia volta e corre para dentro de casa. Coxeando, a anciã vai em sua perseguição, agitando a bengala no ar como uma espada.
Ptolomeu aguarda pacientemente, acabando de fumar o seu maço de English Ovais. Nunca tira os olhos da casa de Khalidi, mas a noite chega sem que tenha havido quaisquer chegadas ou partidas. É óbvio que Joe não irá encontrar-se com Akmed nessa tarde. com um suspiro, o agente regressa ao Cairo.
Vai encontrar o controlador e Tit, que, no court iluminado nas traseiras do hotel, e ambos vestidos de branco, se entregam a uma apática partida de ténis. Quando esta acaba, juntam-se a Ptolomeu na mesa, coberta com um guarda-sol, e mandam vir três Singapore Slings1, que lhes parece ser uma bebida apropriada.
Ptolomeu relata-lhe os acontecimentos do dia, incluindo a promessa de Khalidi quanto a tentar dar a volta a Akmed. O controlador escuta-o atentamente e depois faz sinal ao criado para que traga nova rodada.
- Langley está interessadíssimo na Operação Soufflé informa ele -, mas é melhor avançarmos cuidadosamente
1 Gim, sumo de limão, uma colher de açúcar e água gaseificada. (N. da T.)
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com esse tal Akmed até termos a certeza da sua boa-fé. Vamos dizer ao Khalidi que precisamos de algumas informações válidas acerca de Akmed antes de lhe acenarmos com o dinheiro.
- E se exigíssemos que Akmed nos indicasse a localização dos óvulos da Marilyn? - sugere Tu t. - Eu confirmo-a com o meu contacto em Shin Bet e, se for verdade, Akmed recebe um pagamento nosso.
- Sim - consente o controlador -, acho que é capaz de dar resultado. Ptolomeu, você encarrega-se de o dizer ao Joe, o mais depressa possível. Não podemos poupar-nos a esforços neste caso.
Ptolomeu alerta:
- Ele vai perguntar quanto é que nós pagamos...
- Cinco mil dólares americanos - responde o controlador, sem hesitações. - É o máximo! E, para isso, queremos que o Akmed passe a ser nosso, de corpo e alma!
- Não estou muito certo de que Akmed vá nisso.
- Claro que vai - replica, alegremente, o controlador.
- com cinco mil ele compra um rebanho de rapazes gordos limpos.
MANHATTAN, Nova Iorque
Os homens de McBryde concordam todos em que a ideia de mandar o sargento Rumfry para o terminal dos ferries de Staten Island, a fim de interceptar o Jaguar branco, tinha sido brilhante; só que não resultou, pronto. E isso significava que o Jag com os dois falsos inspectores do gás ainda estava na ilha ou regressara a Brooklyn ou a Manhattan, pela Ponte Verrazano.
- Ou foi para Jersey, pela Ponte Goethals... - sugere Rumfry.
Mas o tenente não quer acreditar nisso. Está convencido de que o roubo dos óvulos de Marilyn foi um crime da Big City; fora lá que eles haviam sido roubados e seria lá que
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haviam de ser recuperados. Por isso, pede ajuda ao Departamento Estatal de Viação de Nova Iorque, e, quando recebe a listagem (feita pelo computador) de todos os Jaguars de duas portas que estão registados na área de Nova Iorque, toda a equipa solta um gemido perante a enormidade da tarefa que os espera.
Quando, porém, seleccionam apenas os que têm registos de Manhattan, escolhendo desses aqueles cujas matrículas incluam os algarismos 8, 6 e
1, o trabalho parece mais fácil de executar. Rumfry, com mais dois agentes, dá início à caçada, e dois outros agentes uniformizados começam a verificar os nomes e moradas dos donos de
Jaguars nos registos do computador da Polícia de Nova Iorque, para verem se algum deles tem cadastro.
Entretanto, McBryde reúne-se novamente com o subinspector Gripsholm. O tenente confessa que deixou escapar a pista do decalque Yum-Yum por uma unha negra. Gripsholm
não está nada contente com o fiasco e passa vinte minutos a descarregar toda a tensão que sente sobre o detective. Se McBryde não conseguir apresentar resultados visíveis, e depressa, o subinspector terá de tirá-lo do caso e arranjar sangue novo.
- A decisão é sua - responde McBryde, com dureza -, sir - acrescenta. Depois, continua: - Eu acho que estamos prestes a resolver o caso, mas leva algum tempo. Se acha que alguém será capaz de avançar mais rapidamente, então substitua-me. Eu não vou fazer beicinho nem bater com o pé no chão.
Gripsholm fita-o com uma expressão taciturna:
- Por mim, já o tinha tirado do caso há uma semana, mas essa tal Marilyn Taylor falou com o presidente da Câmara e, através dele, chegou ao comissário. "Sua Majestade" quer que você continue a tratar disto e, se nós o substituirmos, ameaça que se vinga e conta tudo aos jornalistas. Você não anda a empernar com a beldade, ou anda?
- Eu?! - exclama o detective. - Que ideia! Que havia de querer uma vedeta rica e famosa de um tipo que ganha o que eu ganho?
- Não faço a mínima ideia, a menos que ela tenha um
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fraquinho por polícias. Já vi muita coisa estranha! Agora, vá-se mas é embora e descubra-me esse Jaguar. E desta vez veja se chega lá antes que alguém roube os óvulos!
McBryde volta para o seu gabinete e tenta pôr os relatórios em dia. Não é algo que tenha de ser feito ou que ele queira fazer, mas espera que isso o impeça de pensar em Marilyn Taylor e no motivo por que ela o havia defendido, por fim, não aguenta mais e, empurrando para o lado a papelada toda, telefone para casa dela.
Quem atende é Harriet Boltz, a mal-humorada secretária, que começa logo a passar-lhe um raspanete, mas é então que Marilyn entra na conversa, aparentemente através de uma extensão:
- Sai da linha, Harry - ordena ela -, e deixa, que eu trato deste incompetente! Ouça, McBryde, é realmente muito simpático da sua parte telefonar-me tantas vezes para me informar dos seus progressos na recuperação dos meus óvulos.
- Não valia a pena telefonar - diz ele, rapidamente. Não tenho nada a informar.
- Uma ova! - riposta ela, furiosa. - Você anda a fazer alguma coisa, não anda? Pois bem, eu quero saber o quê! Gostaria de voltar a fazer rondas? Se não, o melhor é mexer esse rabo e vir imediatamente para cá! Tenho tido um dia dos diabos e já tive de meter nos eixos uma série de idiotas. Por isso, estou mesmo boa para o endireitar a si também. Quando é que pode vir?
- Talvez daqui a uma hora - responde ele, admitindo que está em falta para com ela.
- Pode ser - replica ela, secamente, - No caminho, compre-me uma embalagem de meio litro de gelado de chocolate Hâagen-Dazs com bocadinhos de chocolate. Estou a precisar de um miminho. - Ele despacha-se rapidamente, demasiado ansioso para pensar no que diabo está a fazer e, pouco mais de uma hora depois, já estão os dois enfiados na maravilhosa cama dela, nus como recém-nascidos. Ele observa-a enquanto ela devora o gelado com total sofreguidão. - Ouça - diz-lhe, entre duas colheradas -, esqueça aqueles disparates todos que eu lhe disse
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ao telefone. A Harriet devia estar a ouvir; por isso tive de dar a sério.
- Não faz mal.
- Mas em parte era verdade! Tive um dia horrível. Estive horas ao telefone e despedi uma série de estúpidos. É o meu passatempo preferido... E queria mesmo saber o que é que você tem andado a fazer!
- É uma grande história.
- Tenho o tempo que quiser.
- Está bem, eu conto-lhe. Mas não me interrompa.
- Sim, chefe - diz ela.
Então, ele relata-lhe a saga de Nicholas Kazanian e do plano engendrado no Turks Bar em Brooklyn. Depois, a busca ao decalque do Yum-Yum Burger Shoppe e a sua descoberta de Ronald Yates e do seu santuário de Marilyn em Staten island. Por fim, os falsos inspectores do gás, do Jaguar de duas portas, que sacaram os óvulos minutos antes de ele lá chegar.
- Uau! - exclama Marilyn, quando ele se cala. - Parece uma mistura do Mahese Falcom com Bugs Bunny ai the Circus! E que vai fazer a seguir?
- Tentar localizar o carro e os dois patifes que roubaram os óvulos. Mas, de qualquer das formas, acho que vai ter notícias deles em breve. A meu ver, são dois profissionais a sério, que estão na mira dum dinheirinho fácil.
Ela mantém-se calada por um momento, pensativa. Depois, pergunta-lhe:
- Diga-me uma coisa, McBryde. Como é que esses dois tarados descobriram o miúdo de Staten Island antes de si?
Ele solta um suspiro:
- Estava com medo de que me fizesse essa pergunta. Porque eu estraguei tudo! Cheguei à conclusão de que eles foram suficientemente espertos para descobrirem que os ladrões originais teriam de comprar mais azoto líquido, para manterem os óvulos em boas condições. Assim, foram a todas as lojas que vendem esse gás liquefeito na região de Nova Iorque. A primeira coisa em que eu devia ter pensado era nisso, mas não o fiz... Lamento!
- com que então, você, afinal, não é perfeito.
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- Nem nunca disse que era.
- Às vezes, comporta-se como se pensasse que é. Mas, quando se tem sorte, não se precisa de ser perfeito. Isso já eu sei há muito tempo. Acha que os meus óvulos ainda estão bons?
- Segundo sei, sim. Os palhaços que os roubaram ao Yates também levaram o azoto líquido de reserva e sabem muito bem que têm de mante-los congelados. Isso tem sido bem destacado em todos os artigos dos jornais e nos comunicados da televisão. Eles vão querer ter alguma coisa para vender...
Ela põe o cartão do gelado, vazio, e a colher no chão e volta-se de lado, para olhar para ele:
- Porque é que nunca se casou? - pergunta-lhe, subitamente.
- Tenho andado muito ocupado. E por que é que você nunca se casou?
- Tenho andado muito ocupada - replica ela, com um suspiro. - Duas pessoas atarefadas, aos primeiros alvores da madrugada, e demasiadamente apaixonadas para darem as boas-noites. Mas quer casar-se, não quer?
- Claro. Um dia...
- E ter filhos, calculo.
- Naturalmente.
- Naturalmente - repete ela. - O ego masculino. Quer um filho, para que ele herde o apelido McBryde. A sua contribuição para a imortalidade.
- Não tem nada a ver com isso. A verdade é que gosto de crianças. Você, não?
- Não. São monstrozinhos malcheirosos.
- O ego feminino. Tem medo de que os filhos interfiram na sua carreira e não admite sequer pensar em abdicar de um pedacinho da sua independência.
- Está absolutamente errado.
- Creio que, gramaticalmente, a palavra mais correcta seria "enganado".
- Eu sei muito de gramática - diz ela, chegando-se para ele.
Enroscam-se um no outro e as mãos entram em actividade.
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- Você tem uns belos particípios pendentes - murmura ela.
- Obrigado - replica ele. - E eu adoro entrar no seu infinitivo!
QUEENS, Nova Iorque
Rocco Castellano e Vito Zivic, sentados no reservado do restaurante, escutam, impávidos e serenos, a história que Morry lhes conta.
- Então, eu fui à tal loja maluca da Canal Street, aquela que vende todo o género de porcarias médicas. Vocês haviam de ver! O dono, um tipo verdadeiramente horrível, queria uma nota de cem para falar. Podia ter dado cabo dele, mas pensei: "Vive e deixa viver", não é? Então, apertei-o só um bocadinho e ficámo-nos pelos cinquenta. Ele disse-me que tem havido um corropio de gente a perguntar pelo tal azoto líquido. Os últimos tipos estiveram lá ontem e ele contou-me a mesma história que lhes tinha contado a eles: um miúdo louro, com um casaco de cabedal preto, tinha comprado um frasco dessa coisa, dois dias depois do roubo dos ovos de Marilyn. O dono acha que o miúdo era de Staten Island. Isso ajuda alguma coisa?
Impaciente, Rocco agita-se na cadeira.
- E esse tipo horrível disse-te como eram os gajos que lá foram ontem?
- Disse, que eu perguntei-lhe! Dois matulões e um deles tinha uma penca como a do Durante.
- Obrigado, Morry, fizeste bom trabalho. Agora, vai até ao bar e pede uma bebida. - Castellano espera que o "soldado" saia e depois volta-se para Vito: - O tipo do nariz grande deve ser o Mário Zucchi. Como vai à nossa frente, ou já tem os ovos ou sabe onde eles estão.
- Então, o que é que nós fazemos, Rocco?
- Primeiro, desistimos da busca. Paga a toda a gente e
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dá-lhes um vale para uma refeição. Depois, temos de descobrir o que anda o Mário a fazer.
- E como é que o vamos fazer? Damos-lhe uma valente sova?
- Não - responde Castellano, com um sorriso. Acho que é um servicinho para a Wanda Gorda. Telefona-lhe e diz-lhe que venha cá.
- Ela está cá fora? Segundo as últimas notícias, tinha apanhado trinta!...
- Eu consegui baixar isso - diz Rocco. - Portanto, ela está em dívida para comigo. Diz-lhe também que o servicinho vai render-lhe cem por dia, com despesas pagas, que ela vem logo a correr!
- A Wanda Gorda não consegue correr, mas eu telefono-lhe - replica Zivic.
Ela aparece no restaurante nessa tarde, às quatro horas, toda vestida de vermelho-berrante. Se lhe amarrassem uma barquinha aos calcanhares, podia entrar numa corrida de balões de ar quente. Rocco vai buscar três cervejas ao bar e encaminha-se com ela para o reservado das traseiras.
- Por onde tens andado, queridinho? - pergunta-lhe ela. - As garotas têm perguntado por ti.
- Por aqui e por ali - replica Castellano, com uma expressão vaga. - Meu Deus, Wanda! Engordaste?
- Talvez uns quilinhos. Sabes o que é que eles dizem? Quanto maior é a almofada, melhor é a tacada! É verdade, queridinho, obrigada por me teres mandado o advogado. Ele foi porreiro!
- Espero que lhe tenhas pago...
- Oh, claro - diz ela, com ar recatado -, ele recebeu o dele! - E bebe directamente da garrafa, limpando a boca à manga: - Vito disse-me que tinhas um serviço para mim. Estou a precisar de massa! Os negócios não me têm corrido lá muito bem, ultimamente. Há muita competição, de amadoras...
- Compreendo. Escuta, Wanda, uma das razões por que te escolhi é porque sei que tu és capaz de ficar caladinha.
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- Eu nunca falo de mais - concorda ela, começando a beber a segunda cerveja.
Rocco conta-lhe tudo acerca do roubo dos óvulos de Marilyn e da presença de Mário Zucchi em Nova Iorque.
Wanda Gorda é suficientemente inteligente para não fazer perguntas desnecessárias.
- O que tu queres saber é se esse tal Zucchi já tem os ovos ou, se não tem, se sabe onde eles estão, não é verdade?
- Isso mesmo - responde Castellano, mostrando-se satisfeito. - É que o tipo não tem o direito de fazer o que está a fazer! Está fora do seu território e não pode actuar em Nova Iorque. Quer dizer, não é correcto nem decente. Se alguém tem de ganhar algum com os ovos, são os tipos daqui! Não tenho razão?
- Cem por cento, queridinho. Por onde é que o tipo pára?
- No Hotel Bedlington, em Manhattan. O hotel tem um bar e o Mário gosta de uns copos; por isso, acho que o encontrarás lá.
- Como é que eu o identifico?
- Tem um nariz que nunca mais acaba. Vais descobri-lo logo! Além disso, bebe Chivas com soda.
- Casado?
- Sim, mulher e dois filhos. Mas esses estão na Califórnia.
- Compreendo. Quando é que queres que eu comece?
- Quanto mais depressa melhor.
- Então, vou aparecer por lá esta noite. Não há uma lembrançazinha, como prova do teu afecto?
- Trezentos, para começar. Está bem?
- És um queridinho, queridinho!
- Se tiveres de alugar um quarto no Bedlington, também está bem. Basta que o tipo fique só meio bêbado, para cantar como um passarinho. Ah, é verdade, Wanda, talvez seja melhor não te vestires de vermelho-vivo. Isso pode assustá-lo! Preto seria melhor.
- Não te preocupes - sossega-o a Wanda Gorda. Eu sei actuar com classe.
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MANHATTAN, Nova Iorque
Gary Flomm entra no gabinete onde Harriet Boltz está a apontar as despesas de Marilyn na agenda a isso destinada.
- Tenho o Sam Davidson ao telefone - começa Flomm a dizer-, e ele...
- Diz-lhe que vá à fava! - interrompe-o bruscamente Boltz. - Ela não vai ler o guião nem fazer o filme dele. E ponto final!
- Não é por causa do guião, Harry! Ele afirma que tem uma pista dos tipos que roubaram os óvulos. E descreveu exactamente o frasco de congelação.
Harriet ergue os olhos para ele:
- Tens a certeza?
- Absoluta! Acho melhor tu falares com ele.
- Está bem, passa-me a chamada para este telefone. Flomm sai do gabinete e, passado um instante, o telefone de Harriet emite um toque. Ela levanta o auscultador:
- Davidson?
- Sim!
- Fala Harriet Boltz. Que conversa vem a ser essa?
- Não é conversa - afirma Sam. - Eu sei quem tem os óvulos.
- Quem é?
- Quero falar pessoalmente com Marilyn.
- Nem pensar. Você diz-me a mim, que eu digo-lhe a ela.
- Ouça, ou eu falo com a Marilyn ou você esquece que telefonei. Depois, o problema é seu!
Harriet morde a unha do polegar.
- Dê-me o seu número. vou falar com ela e depois ligo para si.
- Estou numa cabina e não posso ficar aqui à espera. Volto a ligar daqui a um quarto de hora.
Desliga e Boltz dirige-se para o ginásio, onde Marilyn, envergando um fato de ginástica justo ao corpo, faz exercícios de aeróbica ao som de uma cassete dos Grateful Dead. Harriet encaminha-se com grandes passadas para o leitor de cassetes e desliga-o.
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- Que raio?! - grita Marilyn, indignada.
- Ouve só isto - diz-lhe a secretária, que a informa do telefonema de Sam Davidson. - O Gary disse-me que ele descreveu exactamente o frasco. Marilyn, não achas que foi o próprio Sam quem roubou os óvulos, pois não?
- Não. Ele é um patifório, mas não tem coragem para executar um assalto deste tipo.
- Então, que queres fazer? Falar com ele?
- Acho que é melhor - responde Marilyn, com um suspiro. - Diz-lhe que venha cá. Não vou encontrar-me com esse canalha num beco escuro.
- Talvez fosse melhor chamares o McBryde. Ele pode querer ouvir a conversa que vais ter com o Davidson ou, quem sabe, segui-lo, quando se for embora.
- Não! vou tratar disto sozinha! - riposta Marilyn, com ar decidido. - O McBryde anda às voltas, numa caçada maluca, tentando localizar um Jaguar. Se eu conseguir recuperar os óvulos sozinha, talvez lhe possa ensinar a ser mais humilde.
- E porque haverias tu de querer fazê-lo? - pergunta-lhe Harriet, curiosa.
- Oh, não sei! Às vezes, ele mostra-se tão estupidamente superior que eu não aguento. Gostava de lhe dar uma lição!
- Hum! Sabes o que eu penso? Que estás apanhada pelo tipo.
- Oh, está mas é calada e diz ao Davidson que eu alinho. - Sam aparece, cerca de uma hora depois, trazendo consigo o guião de Private Parts, II, dentro de um saco de papel pardo, e tentando desesperadamente lembrar-se dos ãormenores da história inventada por Champ DuBois. É conduzido para um gabinete, onde Marilyn, sentada numa cadeira giratória de encosto alto e grande como um trono, o olha com ar irritado e feroz: - Muito bem, meu sacana - diz ela. - Que conversa é essa acerca dos meus óvulos?
- Ouça, boneca - responde ele, com uma expressão séria -, você sabe que no nosso ramo, por vezes, temos de ser simpáticos para pessoas que o não são.
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- Canalhas, quer você dizer!
bom, sim, mas canalhas ricos. Tenho de me envolver, muitas vezes, em negócios com esses tipos. Então, a noite passada, estava eu a tomar uns copos com o ricalhaço, no seu apartamento, que é quase tão grande como a Grand Central Station, quando ele começa a exagerar nos copos de uísque de trinta anos e desata a papaguear sobre todos os grandes golpes que deu. É então que eu percebo que o sacana é um senhor ladrão. Quer dizer, não é ele que faz os serviços, mas planifica-os, contrata outros larápios para fazerem o trabalhinho e fica com a maior fatia do bolo.
- Como é que ele se chama?
- Não lhe posso dizer isso.
- Onde é o apartamento dele?
- Também não lho posso dizer. Tenha pena de mim! Só estou a tentar salvar a minha pele, pois, se ele soubesse que eu tinha vindo falar consigo, mandava-me outra vez para a costa, dentro de um saco de sarapilheira. O que estou a tentar dizer-lhe é que o tipo é dos duros!
- Então, qual é o seu negócio com ele?
- Estou a tentar um financiamento para o filme. Que havia de ser? Ele anda sempre à procura de negócios legais para investir. Então, depois de me contar tudo sobre os golpes que já deu, começa a vangloriar-se do maior de todos eles, ou seja, de como é que roubou os seus óvulos aos tipos que os haviam roubado inicialmente. Roubou-os aos ladrões!
Marilyn começa a pensar que, afinal, Davidson pode estar a dizer a verdade. Não toda a verdade, ele é incapaz disso, mas parte dela. O que ele acaba de dizer faz um certo sentido com o que McBryde lhe contou.
- Você viu os meus óvulos? - pergunta-lhe.
- Claro que os vi! Estão dentro do frasco branco que eu descrevi ao Gary Flomm. E o tipo tem uma reserva de azoto líquido para os manter congelados.
- E agora quer receber os cem mil dólares que eu ofereci pela sua devolução, não é?
- Não é bem assim - diz Sam, esforçando-se por parecer
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sincero. - Ele não está interessado nos cem mil, pois acha que consegue um milhão limpinho no mercado negro...
- O quê?! - exclama Marilyn. - Um milhão? De quem? Que mercado negro?
- Ele estudou bem a coisa e diz que há cá muitas mulheres estéreis e ricas que estão ansiosas por arranjar óvulos. Então, eles são fecundados pelo esperma do marido e o embrião é introduzido na mulher, e depois têm o filho que sempre desejaram. Feito com os famosos genes da Marilyn Taylor! Vão pagar um dinheirão por eles!
- Raios o partam! - grita ela. - Esses óvulos são meus e eu quero-os!
- Foi o que eu lhe vim cá dizer - replica Davidson, pacientemente. - Não vai conseguir reavê-los por cem mil quando ele pode ganhar muito mais oferecendo-os a outras pessoas.
- Só há nove óvulos - riposta Marilyn, encaloradamente. - Veio em todos os jornais! E esse estúpido pensa que consegue mais que cem mil por cada um?
Sam encolhe os ombros:
- Ele acha que sim e talvez tenha razão. Qualquer casal rico que não tenha filhos vai pensar que com o seu óvulo vão ter um filho tão belo e talentoso como você!
De repente, ela levanta-se e, irritada, começa a andar às voltas pelo gabinete com os braços cruzados:
- Não posso acreditar nisso! De repente, sinto-me como se fosse uma donzela prestes a ser violada por nove garanhões!
- Ouça, não é por acaso que lhe chamam a mulher mais bela do mundo! Os seus óvulos são os melhores, fora de série, e você já devia saber isso...
Ela continua às voltas, com grandes passadas, consciente da banalidade do elogio, mas incapaz de resistir:
- Um milhão - repete, pensando que, se não tivesse feito a laqueação das trompas, continuaria a produzir um óvulo por mês. Calcula qual seria o rendimento anual. Nada mau. E sem todo o frenesi que implicava a gestão de um império financeiro!
- Eu só queria dizer-lhe isto tudo - continuava Davidson
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-, para que ficasse a saber com o que pode contar. Nunca conseguirá recuperá-los por cem mil dólares! Subitamente, ela pára e volta-se, para olhar para ele:
- E metade? - pergunta, esperançada. - Acha que o patife os devolvia por meio milhão?
Sam faz uma careta:
- Duvido, mas, se quiser, tento. Quer que tente?
- Quero - responde Marilyn, com determinação. Tente!
- Está bem - replica ele, pondo-se de pé. - vou fazer todos os possíveis. A senhora sabe o que eu sinto por si: é como se fosse minha filha.
- Deus me livre! - exclama ela. Quando ele já vai a sair, chama-o: - Eh! Esqueceu-se do seu embrulho!
- Ah, isso - diz ele, desprendidamente - é o guião do Private Parts, II. Talvez tenha um bocadinho para o ler, enquanto o eu vou tentar ajudá-la.
Ela fita-o atentamente, por um instante:
- Ah, ah! Agora, percebo! Você está a servir-se dos óvulos como chantagem para que eu faça o seu miserável filme!
- Não é chantagem - protesta ele. - Digamos que... uma mão lava a outra.
- Eu não lavava a sua nem com luvas de borracha! riposta ela, com azedume.
MANHATTAN, Nova Iorque
Todos os mafiosos de Chicago conhecem o homem a quem se chama Shakespeare, mas são poucos os que sabem o seu verdadeiro nome: Loring Minchley Flotsom. Ele fora o que os críticos haviam denominado um actor prometedor até descobrir as glórias da cola e, depois de certa noite ter dado cabo do solilóquio do Hamlet ("bare bodkin" saiu-lhe "bod barekin"1, a sua carreira foi rapidamente por água
1 Trocadilho intraduzível. (N. da T.)
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abaixo. Mas ele não se ralou muito com isso, substituindo a cocaína pela cola.
Contudo, o sujeito descobriu uma maneira de utilizar os seus talentos teatrais: é capaz de desempenhar uma centena de papéis diferentes e é um génio nos disfarces e nos sotaques. Presentemente, é contratado como testa-de-ferro para burlas com acções e fundos do Estado, fraudes imobiliárias e, ocasionalmente, para trabalhos mais arriscados, como chantagem, falsificações, contrafacções e extorsões mediante ameaças de violência a importantes executivos que se esqueceram de perguntar a idade às ninfetas tão prestavelmente fornecidas pela Mafia.
É um homem alto e esguio, que gosta de usar cabelo comprido e camisas à Lorde Byron e, quando se apresenta na sujfe de Mário Zucchi, no Hotel Bedlington, traz uma dessas camisas vestidas por baixo de um fato de seda preto, com olhos de vidro a servirem de botões. Espetado na lapela, uma raminho de edelweiss.
Mário oferece-lhe uma bebida, mas Shakespeare recusa-a:
- Nunca bebo - diz ele, contraindo o nariz, pálido, num tique característico. - Enferruja a canalização.
- Onde é que está instalado? - pergunta-lhe Mário. Aqui, no hotel?
- Oh, credo! Não! Isto aqui parece-me um pouco reles para a minha dignidade, não acha? Não, estou a dormir com um velho conhecimento de escola, que tem uma casa modesta, um daqueles antigos palacetes, em Gramercy Park.
- Ele pertence ao ramo? - pergunta o Nariz, ansioso.
- É uma ela, meu velho e não, não pertence ao ramo. Mas é da máxima confiança, garanto-lhe! Passa a vida a bordar retratos de presidentes, para forrar banquinhos para os pés. Já vai no Millard Fillmore. Uma senhora encantadora, mas muito tolinha. E com um magnífico embonpoint!1
- Como? - pergunta Zucchi. - O que é isso?
- Mamas! Ora bem, meu velho, o Homem pôs-me ao
1 Boas carnes, gordura, opulência. (N. da T.)
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corrente do vosso planozinho, mas vou precisar de um carro com motorista.
Pode contar com ele. Alugue o tipo de carro que quiser, e, quanto ao motorista, eu cedo-lhe o Dino, um dos meus rapazes. Ele é só músculos, incluindo na cabeça, mas é bom tipo e sabe obedecer.
- Óptimo. Tenciono fazer uma visita de reconhecimento ao apartamento em que estão os óvulos da Marilyn, para depois decidir qual será o meu modus operandi.
- Isso - concorda Mário. - E veja também como é que o vai pôr em prática.
Shakespeare olha para ele:
- Pois - diz e vai-embora.
Isto passa-se ao fim da tarde, e Zucchi, uma vez que Shakespeare não volta lá nem telefona, calcula que ele tenha ido jantar a Gramercy com a sua dama tolinha. Apanha então um táxi e dirige-se para Little Italy, onde janta um grande bife à pizzaiola num restaurante da Mott Street. O vinho da casa, provavelmente feito na cave, é tão cáustico que dava para limpar o bloco de um motor.
Quando regressa à parte alta da cidade, sente-se tão bem-disposto que resolve ir até ao bar do hotel, para tomar mais uma última bebida. O local está praticamente deserto: apenas um jovem casal, que namora num canto com pouca luz, e uma mulher vestida de preto, que está sentada ao balcão. É das entroncadas e Zucchi interroga-se como é que ela teria conseguido empoleirar-se no banco alto do bar.
O Nariz apoia um pé na barra horizontal, de latão polido, e pede um Chivas com soda à parte. A bebida escorrega tão suavemente que ele pede uma segunda e depois, dirigindo-se ao barman, diz-lhe, com ares de grande senhor:
- E pergunte à senhora se ela me permite que lhe ofereça uma bebida.
Ela volta-se, para olhar para ele:
- Obrigada, simpático cavalheiro, mas só se me permitir que eu pague a próxima.
- Porque não? - replica ele, sentando-se no banco ao lado do dela. Olhando para o empregado, que lhes serve as
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bebidas, acrescenta: - Ena, também está a beber Chivas! Tem bom gosto!
- Só gosto do que é de primeira - diz ela. Ele acena com a cabeça, concordando:
- Assim é que deve ser. A vida é curta, não é?
- Curta e divertida! - comenta.
- É a isso que eu brindo! - diz Mário, emborcando o uísque. Cinco minutos depois, já contam um ao outro as respectivas vidas, um nadinha embelezadas. - Eu trabalho em import-export - diz ele -, e você?
- Sou terapeuta física - responde ela.
- A sério?! Faz massagens, é?
- Quando me pedem. E também exercício, aquecimento e outras formas de estimulação, dependendo das necessidade da pessoa que requer o tratamento. Por exemplo, eu aposto que você é um homem que está sob uma boa dose de stress, está muito tenso.
Ele olha para ela, absolutamente espantado:
- Acertou em cheio!
Ela chega-se mais para ele e apalpa-lhe o músculo situado entre o pescoço e o ombro:
- Trapézio tenso, tenso a valer! Você está todo torcido.
- Pois estou. Ouça, eu chamo-me Mário, e você?
- Wanda.
- Vive em Nova Iorque, Wanda?
- Não, sou de Scranton. Vim cá passar uns dias, para fazer umas comprinhas.
- Onde é que está hospedada?
- Aqui mesmo, no hotel.
- Hum, hum - murmura ele. - Eu também. Vamos a mais uma rodada? E esta pago eu.
- Como queira, Mário.
E ali continuam por mais duas horas. Ela acompanha-o em cada bebida, mas isso parece não a afectar, ao passo que ele começa a ter consciência de que já está a ficar toldado. Quando se levantam, para saírem, ele cambaleia um pouco e ela ampara-lhe o braço com uma mão amiga.
- É o stress em que eu ando - comenta ele. - Tensão. Estou tenso. Estou todo torcido!
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- Pobrezinho. Está a precisar de shiatsu.
- Sim? O que é isso?
- Eu já lhe mostro. Qual é o número do seu quarto? Ele tem uma garrafa na suite e continua a beber enquanto ela o despe e começa a massajá-lo com dedos fortes.
- Hum, que bom - murmura ele. - Que bom...
- Então, diga-me lá porque é todo este stress? - pergunta ela, voltando a encher-lhe o copo. - Porque é que o seu grande glúteo está tão retesado?
Ele começa a falar por entre dentes e ela inclina-se, para ouvir, continuando a massajá-lo e a encher-lhe o copo até que ele adormece. Ela, então, despe-se e deita-se a seu lado.
Durante a noite ele não pára quieto e não a deixa dormir, com as cotoveladas que lhe dá.
- Foi tão bom para si como foi para mim? - pergunta ele, ainda aturdido pela bebida.
- Melhor! - garante-lhe ela.
MANHATTAN, Nova Iorque
A caça ao Jaguar branco de duas portas é tão enfadonha e avança com uma lentidão tal que o tenente McBryde resolve convencer Gripsholm a dar-lhe mais homens:
- É a única pista que temos - argumenta ele - e, para conseguirmos alguma coisa, precisamos de mais meios humanos. Continua a ser pressionado, não é verdade?
- Nem me fale nisso - replica, tristemente, o subinspector. - O mais engraçado é que, de repente, a Deusa da Tela deixou de fazer ondas! As críticas furiosas vêm é dos estúpidos dos políticos, que querem aparecer na televisão quando os óvulos forem recuperados! Está bem, dou-lhe mais dois agentes uniformizados. Se isto continuar assim, acabamos por ter uma Patrulha dos Óvulos permanente e nem quero pensar no monte de dinheiro que o Departamento está a gastar com esta fantochada.
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- Talvez a Marilyn dê uma contribuição, se nós recuperarmos os óvulos.
- Ah, sim - volve Gripsholm. - Quando as galinhas tiverem dentes!
Finalmente conseguem obter uma listagem do computador que, por eliminação, reduz a nove o número de duvidosos proprietários de Jaguars em Manhattan. Quatro deles têm cadastro, mas são pequenas infracções, como, por exemplo, insultos a um agente da Polícia de Trânsito, que, depois de passar uma multa, tinha acrescentado: "Um bom dia para si."
McBryde trabalha tanto como os membros da sua equipa: toca à campainha, invade apartamentos e casas enormes, vai atrás dos proprietários até aos seus escritórios e às suas residências de campo para os fíns-de-semana. Após vários dias, o número de suspeitos reduz-se a três.
No entanto, Oliver Hibbard não é mais do que um advogado fiscal que trabalha nos escritórios de um banqueiro e investidor da Wall Street. Tem sessenta e quatro anos e, como diz o sargento Rumfry, a sua barriguinha está de acordo com a idade, custando, pois, a crer que um gorducho daqueles tivesse feito uma excursão a Staten Island para dar a palmada aos óvulos de Marilyn.
E Reggie Schlemmer é um fotógrafo de moda que, durante o interrogatório, pareceu suficientemente excêntrico para fazer o assalto, mas as investigações comprovaram que, no dia em que Ronald Yates ficou sem o seu tesouro, o fotógrafo estava a fotografar soutiens em Madagáscar.
O tenente Jeffrey McBryde, começando a interrogar-se se não andará a perder o seu precioso tempo, resolve ir, ele mesmo, visitar o terceiro suspeito: o tipo que vive num apartamento na Park Avenue.
O nome que consta do registo automóvel é Moses Leroy Washington.
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QUEENS, Nova Iorque
Wanda Gorda está sentada no reservado do restaurante com os pés comodamente apoiados em cima da secretária de Castellano. À sua frente está uma garrafa de cerveja vazia, e ela já está a beber uma segunda.
- Vocês já devem calcular que o Mário ficou com os copos - diz ela, dirigindo-se a Rocco e a Vito Zivic.
- Completamente bêbado! Por isso, não disse coisa com coisa, mas fartou-se de resmungar acerca do tal negócio de um milhão em que está metido.
- Ele falou nos óvulos? - quer saber Rocco.
- Nem uma palavra acerca deles. Só disse que ia ganhar uma data de massa.
- E disse quando? - pergunta Zivic.
- Fiquei com a ideia de que vai ser nos próximos dias, uma semana no máximo. Desculpem não ter conseguido mais, mas, como já vos disse, o tipo estava completamente arrumado. Ah, sim, outra coisa! Falou em Shakespeare, uma ou duas vezes. "Eu e o Shakespeare" e "O Shakespeare agora está a trabalhar para mim." Isto diz-vos alguma coisa?
Rocco olha para Vito:
- Sim, diz, qualquer coisa. O Shakespeare é um vigarista muito esperto que trabalha para os tipos de Chicago. Eles chamam-lhe isso porque ele chegou a ser actor, mas agora droga-se com cocaína e com cola. Se cá está, isso quer dizer que o Homem o mandou, para ajudar o Zucchi a apanhar os óvulos.
- Bem - diz Wanda, acabando de beber a cerveja -, eu fiz o melhor que podia. Acabou-se o meu trabalho?
- Não - responde Castellano -, vais continuar. Mantém-te aconchegadinha ao Mário e vê se consegues descobrir quando é que vai ser o golpe.
- Tu é que mandas, Rocco. Eu aluguei um quarto no Bedlington, para não ter de andar para trás e para diante.
Castelllano reflecte por um instante.
- Vais fazer o seguinte - diz ele, finalmente: - tenta
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descobrir o Shakespeare. É um tipo alto e magricelas, com cabelo comprido e nunca usa gravata. Talvez o vejas a falar com o Mário ou a cirandar lá pelo hotel. Se o vires, telefona-me imediatamente, ou ao Vito, e nós mandamos lá o Morry, para o seguir. Esse Shakespeare é um verdadeiro profissional e até aposto que é ele que está a comandar as operações, e não o Zucchi.
- Certo, queridinho - diz ela, levantando-se. - vou outra vez para Manhattan. O Mário quer que jante com ele hoje.
- Que bom! - comenta Rocco, com um sorrisinho. Agora, arranjaste um bom emprego e podes comer o que quiseres.
- Entendo-te muito bem - responde Wanda Gorda.
MANHATTAN, Nova Iorque
- vou precisar de um carro grande - diz Shakespeare a Dino. - Sólido, mas sem ser ostensivo.
Alugam, portanto, um Cadillac Brougham prateado e dirigem-se a uma loja que aluga guarda-roupas para o teatro, na 10.a Avenida. O gorila fica ao volante do carro, parado em segunda fila, enquanto o actor sobe os gastos degraus de madeira que conduzem ao enorme sótão no segundo andar. Este está atafulhado de arcas e cabides com trajes, perucas, máscaras e barbas postiças.
- Posso ajudá-lo? - pergunta-lhe o monstro do doutor Frankenstein.
Shaskespeare dá uma olhadela à sua volta: um Napoleão, um pirata anão e uma mulher negra com uma máscara de Richard Nixon completam a equipa de empregados.
- Queria uma coisa para um baile de máscaras - pede Shakespeare. - Que não fosse muito vista, sabe?
- Já sei - responde o monstro. - Que tal um Roger Rabbit? Mickey Mouse? Woody Woodpecker?
- Oh, credo, não! Um pouco mais sério do que isso!
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- Posso arranjar-lhe um magnífico Abraham Lincoln, com barba, cartola de seda e um sinal na pele em autocolante.
- Desculpe, mas não serve. Talvez qualquer coisa religiosa.
- E se for Jesus com uma grande cruz de madeira?
- Acho que não.
- Temos um papa sensacional! Temos um Gandhi fabuloso! Temos um S. João Baptista arrepiante! Parece que você não tem cabeça, mas depois leva esta aqui, falsa, numa bandeja de prata!
- Fascinante, mas um pouco bizarro, não acha? Talvez me decida por um padre católico. Batina preta, com o cabeção branco engomado, uma coisa desse género...
- Podemos arranjar - diz o monstro -, mas não faz grande efeito. Ouça, não gostaria de ser um judeu hasidim? Temos o sobretudo preto, o chapéu de pele de aba larga, e os caracóis, que caem para as faces. E ainda por cima não tem de colar os caracóis, porque eles estão presos ao chapéu!
- Magnífico! - exclama Shakespeare. - Posso prová-lo?
- Claro! E nós fornecemos também os óculos de aros pesados, mas com lentes de vidro normal.
- Está cada vez melhor!
Meia hora depois, tendo-se visto ao espelho de três corpos e ficado satisfeito com a transformação verificada, Shakespeare, paga, em dinheiro, o aluguer do fato, assim como o depósito que lhe é exigido.
- Preciso do seu nome e morada - declara o monstro.
- Mário Zucchi. Hotel Bedlington, na Madison Avenue.
Volta para o Cadillac, levando consigo os grandes embrulhos.
- O trabalho começou - comenta com Dino. Regressam ao hotel e, enquanto Dino leva os embrulhos
para a suite, Shakespeare dá uma espreitadela ao bar. Mário está sentado ao balcão com uma mulher corpulenta e, ao ver Shakespeare, faz-lhe sinal com a mão, mas o actor sorri-lhe e afasta-se.
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- Quem era aquele sujeito? - pergunta a Wanda Gorda.
- Um tipo que trabalha para mim, mas que não bebe responde-lhe Zucchi.
- O que é que ele é? Atrasado mental, ou quê? Hum, tenho de ir à casa de banho. Venho já! - Descobre que há uma cabina pública na sobreloja sobranceira ao átrio e, ligando para o restaurante, fala com Vito Zivic. - Escuta, é melhor mandares já para aqui o Morry! Acabo de descobrir o Shakespeare!
BOSTON, Massachusetts
O monsenhor e o professor já estão semiembriagados e completamente divertidos com o facto.
- Terry - diz Farthingale -, da última vez que conversámos creio que classifiquei o roubo dos óvulos da Marilyn como um crime contra a humanidade e que, segundo a minha opinião, o organismo indicado para investigar esse crime seria a ONU.
- E para, consequentemente, julgar os seus perpetradores, se e quando eles forem capturados.
- Exactamente. Mas, neste momento, sou levado a pensar que o roubo dos óvulos da Marilyn só passará para a jurisdição do Tribunal Internacional de Justiça, que é o braço jurídico das Nações Unidas, através de uma petição dos membros da Assembleia Geral, do Conselho de Segurança ou de qualquer outra instituição internacional autorizada a fazê-lo.
- Meu caro Hiram - diz-lhe o monsenhor, com uma expressão bondosa -, importas-te de me dizer, em linguagem de leigos, se fores capaz, o que significam exactamente os teus comentários e aonde queres chegar com o teu argumento?
- Lembrei-me que uma petição ao Tribunal Internacional de Justiça, para que se ocupasse do roubo dos óvulos
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da Marilyn, seria seriamente encarada pelo tribunal, se fosse apresentada pelo Vaticano.
ODell pega na garrafa de cristal com conhaque e deita nova dose em cada um dos copos:
- Pelo Vaticano? - pergunta, com voz rouca.
- Justamente! Porque o roubo é, segundo a nossa opinião, um crime contra toda a humanidade!
- É uma proposta aliciante - observa o monsenhor, com ar pensativo. - Muito aliciante...
- Então, não a rejeitas imediatamente?
- De modo algum! Creio sinceramente que existe um bom motivo para que a Santa Sé possa, compreensivelmente, servir-se do roubo dos óvulos da Marilyn como uma tentativa para despertar a consciência do mundo. Mas deves compreender, meu velho, que o Vaticano não tem, que eu saiba, qualquer capacidade para investigar um crime desta natureza.
- Nem eu pensei que tivesse - replica Farthingale.
- Então, qual seria o organismo que poderia conduzir uma investigação que convencesse o Vaticano a apresentar uma petição ao Tribunal Internacional? - O professor olha para ele com um sorriso misterioso. O monsenhor fica baralhado por uns instantes, mas depois o seu rosto largo descontrai-se, num sorriso de perplexidade: - Oh, Hiram? Mas que velha raposa matreira tu me saíste! estás a sugerir que o Vaticano, através de um emissário, faça um apelo, secreto e muito subtil, à Casa Branca, pedindo para que seja o nosso FBI a tratar do roubo dos óvulos da Marilyn, com a promessa de que, se o caso se resolver, será apresentado pelo Vaticano ao Tribunal Internacional.
- Eu sabia que podia contar com a tua perspicácia! Seria um acto que traria vantagens a todos os organismos envolvidos: ao Vaticano, à Casa Branca, ao FBI e ao Tribunal
Internacional.
ODell acena afirmativamente com a cabeça:
- Ainda tenho alguns amigos em Roma e por certo não faria mal nenhum proceder a algumas sondagens discretas quanto ao interesse que a Cúria Pontifícia possa ter na proposta.
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- Não, não - opõe-se Farthingale, levantando uma das mãos. - É mais uma sugestão do que uma proposta.
- Chama-lhe o que quiseres, mas a verdade é que tresanda a verdadeira genialidade!
- Obrigado - corresponde, humildemente, o professor.
MANHATTAN, Nova Iorque
Mutha está atrás do balcão do bar agitando um shaker com cocktails Blue Devil. As gémeas Chin sentadas no chão de tijoleira do vestíbulo, jogando às cartas. Champ
DuBois está refastelado na sua poltrona preferida, e Sam Davidson, empoleirado num banco do bar, ouve distraidamente a sua louca dissertação.
- Tudo com moderação! - apregoa DuBois. - Eu sou ganancioso, vocês são gananciosos, toda a gente é gananciosa, mas a
ganância desmedida só pode levar à desilusão
e, muito provavelmente, a um desfecho infeliz. compreende?
- Ah, sim - responde Sam. - Claro!
- Nós podíamos muito bem sacar um milhão pelos óvulos da Marilyn, mas a sujeita ofereceu metade e, pelo que ouvi dizer dela, é uma fulana corajosa, que se vinga quando sente que está a ser levada. Sugiro-lhe, portanto, que lhe diga que o seu superior é um homem razoável, ambicioso mas não ganancioso, e que conseguiu convencê-lo
a reduzir o resgate para oitocentos mil. Se ela continuar a espernear, está autorizado a descer para setecentos e cinquenta, mas não para menos do que isso. Compreendeu
mesmo bem? - Sam diz que sim com a cabeça, só gostando de saber quantos anos de prisa é que apanham os cúmplices involuntários de actividades criminosas. - Agora, quanto à forma de pagamento... Aceito um cheque ao portador desde que Marilyn esteja disposta a esperar pelos óvulos até que o cheque seja descontado.
- E a quem é que o cheque seria passado?
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DuBois arreganha os lábios, exibindo os dentes incisivos: .- A si, evidentemente.
- Oh, meu Deus! - exclama Sam. - Isso vai meter-me num sarilho dos grandes! Quando os óvulos forem recuperados, é atrás de mim que vêm os chuis!
- Não tenha medo - diz-lhe Champ. - Marilyn não vai aceitar esse esquema. Ela é demasiado esperta para isso, receando que o cheque seja descontado, mas que os óvulos não sejam devolvidos. Nesse caso, você diz-lhe que a única hipótese é pagar em dinheiro. Mas nada de notas superiores a cem. Todas elas usadas e sem sequência de numeração!
- Ela vai levar algum tempo a arranjar essa massa toda num banco...
- E depois? Eu sou um homem paciente. Quando ela o informar de que o dinheiro está pronto, eu dar-lhe-ei instruções quanto à hora e local da troca. Agora, acho melhor você telefonar-lhe, para marcar um encontro.
Davidson telefona e, depois de ter sido chutado de Gary Flomm para Harriet Boltz e desta para Marilyn, fica a saber que ela o receberá entre o meio-dia e a uma. Transmite o resultado do telefonema a DuBois.
- Magnífico! Estou certo de que está tão ansiosa como eu para conduzir esta negociação a uma conclusão bem sucedida e satisfatória para ambas as partes. Mutha, ouviste bem esta linguagem? Não foi magnânima?
- Ssim, Mutha - responde Mutha.
- Então, ponha-se a andar, Sam! Mutha e eu vamos sair daqui a bocado, para irmos ver uma tentadora exposição de pedras preciosas no Museu de História Natural. Talvez
eles estejam a dar amostras!
- Ah, ah, ah, essa foi das boas, chefe - ri-se Sam.
- Volte para aqui depois do encontro com Marilyn e espere por nós. Estou morto por saber quando é que o capital estará disponível.
Sam deixa o apartamento da Park Avenue e encaminha-se vagarosamente para a residência de Marilyn. Reflectindo na sua missão e no seu provável desfecho, interroga-se
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se um juiz nova-iorquino aceitaria como prova suficiente de loucura o facto de ele ter residência em Hollywood. Mas os seus temores acerca das terríveis previsões que faz são mitigados pelos modos de Marilyn. Esta recebe-o na sala de estar e Átila, a Huna, é toda doçura. Até lhe oferece uma Coca-Cola de dieta.
- E não tem cafeína - diz-lhe.
- Puxa, isso é porreiro - comenta ele. - Não gostaria nada de passar a noite acordado. - Atira então com as condições de Champ DuBois, e, para sua surpresa, Marilyn concorda com tudo. Nem sequer tenta convencê-lo a descer para os setecentos e cinquenta! Pagará os oitocentos mil dólares, em notas, sem fazer perguntas, e informá-lo logo que o dinheiro esteja disponível. Ela está, de facto, tão receptiva que ele começa a sentir-se pouco à vontade:
- Escute, boneca! - diz-lhe, com ar desconfiado. Trata-se de uma data de massa! Você está a tratar disso como se fosse feijões! Deve querer mesmo reaver esses óvulos.
- Oh, Sam - replica ela, levianamente -, é apenas dinheiro! Claro que quero reaver os meus óvulos, mas essa não é a única razão por que estou disposta a pagar.
- Não? E qual é a outra?
- Não sabe? - pergunta-lhe, olhando fixamente para ele com aqueles grandes olhos azul-celestes, que enlouquecem de paixão muitos homens. - É o seu guião, querido. É o Private Parts, II. Li-o, Sam, e é um êxito garantido! É por isso que eu quero colaborar, para lhe agradar e poder fazer o seu filme.
- A sério!? Gosta mesmo dele?
- Gostar? Adoro-o! É claro que quero mais algumas cenas e alguns diálogos mais trabalhados.
- com certeza - diz ele, todo contente. - Terá tudo o que pedir. Pode estar certa de que este guião vai ficar exactamente da maneira que você quer antes de começarmos as filmagens!
- Oh, Sam! - diz-lhe ela, colocando uma mão carinhosa sobre a dele. - Vai ser tão bom trabalhar outra vez consigo! Mas primeiro vamos mas é acabar com esta história dos óvulos e depois avançamos a todo o vapor.
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- Isso mesmo! - exclama ele. - A todo o vapor! Eu vou telefonando até você me dizer quando é que o dinheiro está a postos. Então, recupera os seus óvulos e começamos a tratar do filme.
- Estou morta por isso - afirmou ela. Depois de ele sair, ela deixa-se cair pesadamente no sofá e agita as pernas no ar, num acesso de hilaridade: - Sacaaana! - grita bem alto. Depois, manda chamar Harriet e dá-lhe a boa notícia:
- Ele caiu! O idiota foi no meu jogo! Se tivesse miolos, o tipo até seria perigoso!
- É claro que tu vais encher a pasta com jornais rasgados.
- Não me digas como é que se faz - replica Marilyn.
- Não te esqueças de que desempenhei este mesmo papel em The Guilty Saint! - Vamos agarrá-lo quando ele aparecer aqui com os óvulos e descobrimos quem é que está por detrás disto. Agora, chegou a altura de telefonarmos ao McBryde, para que ele organize a ratoeira. Aquele convencido vai ficar banzado quando souber que resolvi o caso por ele!
Mas quando Boltz liga para McBryde dizem-lhe que o tenente não está no gabinete nem sabem quando voltará.
MANHATTAN, Nova Iorque
Ao princípio da tarde, McBryde estaciona o carro na parte oriental da Park Avenue e observa o prédio de apartamentos do outro lado da avenida. É uma enorme placa de aço inoxidável com uma entrada saliente e coberta por uma espécie de dossel de vidro biselado. Mas as árvores envasadas em cima do passeio são gingos de plástico. McBryde deixa o seu empoeirado Plymouth em segunda fila e atravessa para o outro lado, serpenteando por entre os carros.
O porteiro está fardado como um almirante da Ruritânia e o detective mostra-lhe o distintivo e a identificação:
- Procuro um inquilino chamado Moses Leroy Washington.
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O porteiro abana a cabeça:
- Não mora aqui ninguém com esse nome...
- Tem a certeza?
- Claro que tenho a certeza! Conheço toda a gente do prédio.
- Hum, hum - resmunga McBryde. - Algum dos inquilinos anda num Jaguar branco de duas portas?
O almirante parece hesitar.
- Vamos lá! Colabore! - diz-lhe o detective, com bons modos. - Não quer ir parar à cadeia por obstrução à justiça, pois não?
- Não quero ir parar à cadeia por nada!
- Então?...
- Sim, temos um inquilino que anda num Jaguar branco.
- De duas portas? - Confirmação. - E como é que ele se chama?
- Champ DuBois.
- Muito bem. Ele está em casa, agora?
- Não. Vi-o sair à coisa de umas duas horas.
- Como é que ele é?
- É um preto alto e muito magro. E veste-se duma maneira que dá muito nas vistas.
- Claro que veste - comenta McBryde, bem-disposto.
- Vive sozinho?
- Tem uma espécie de mordomo, que também vive lá.
- Um mordomo?
- Mais ou menos.
- Não será, por acaso, um asiático que usa pijamas de seda pretos?
- As vezes - diz o porteiro, cautelosamente. - Tanto um como outro se veste de maneira extravagante.
- Vive mais alguém no apartamento? O porteiro hesita novamente.
- Vamos lá! - diz-lhe o detective. - Não me está a apetecer nada prendê-lo e dar-lhe uma valente sova, só para arrancar algumas respostas...
- Está a brincar comigo? - pergunta o porteiro, aterrado.
- Pois, estou a brincar. Então, quem é que também vive neste apartamento com o Champ DuBois?
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- Acho que ele tem lá duas miúdas.
- Ai tem, ha? Negras? Brancas? Hispânicas?
- Chinesas.
- Aquilo até parece as Nações Unidas, ha? - graceja o tenente, satisfeito. - Tem um telefone que eu possa usar?
- Tenho, mas não vai haver nenhum problema, pois não?
- E por que é que havia de haver algum problema? É apenas uma visita de cortesia. Onde é que está esse telefone? - Liga para o sargento Rumfry, dá-lhe a morada e diz-lhe que venha o mais depressa possível. - Use a sirene, se tiver de ser, mas venha depressa. E traga dois agentes uniformizados, que isto pode vir a ser concorrido!
- Já vou a caminho - declara Rumfry. McBryde volta novamente para o passeio.
- Se o DuBois aparecer - diz ele ao porteiro -, não se dê ao trabalho de lhe anunciar que um polícia andou a fazer perguntas.
Dirige-se para o Plymouth e senta-se ao volante, sem nunca tirar os olhos da entrada do prédio.
MANHATTAN, Nova Iorque
Dino traz para baixo os embrulhos que estavam na suite de Mário Zucchi, no Hotel Bedlington. Shakespeare já está instalado no banco de trás do Cadillac Brougham e começa a vestir-se enquanto se dirigem para o apartamento da Park Avenue.
- Vamos só a mais uma revisãozinha, meu velho - diz ele a Dino. - Há um porteiro e um ascensorista. Depois, lá em cima, no apartamento, temos o Champ DuBois e o mordomo dele. Mais as duas jovens prostitutas. A mercadoria são dois frascos de plástico brancos, com pegas, um pequeno e outro grande. Certo?
- Isso mesmo - responde o motorista. - Outra coisa: o tipo que eu tenho andado a seguir, o tal Sam Davidson, é capaz de lá estar também. Passa lá muito tempo!
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- Meu Deus! É uma assistência e pêras!
- Leva uma arma? - pergunta-lhe Dino, com voz ansiosa.
- Oh, tenho um brinquedo, uma de calibre vinte e dois
- replica, negligentemente, o actor. - É uma pistola niquelada, das que usam os juizes de partida. Descarregada, evidentemente! Odeio a violência!
- Nunca se sabe... - comenta Dino, soturnamente. Quando chegam, Shakespeare dá-lhe instruções para
que pare, em segunda fila, a seguir à esquina, entre a Madison e a Park Avenue, e, saindo do carro, pespega-se à frente da janela aberta do motorista:
- Que tal estou? - pergunta.
Dino olha com admiração para o chapéu de aba larga de pele para o casacão preto, para os óculos pesados e para os caracóis, que pendem ao lado das bochechas do actor:
- Conseguia enganar-me a mim! - diz, maravilhado.
- Era essa a intenção - volta-lhe Shakespeare. - Agora, porte-se bem e não desligue o motor. Quando eu voltar, é para darmos o fora daqui, o mais rapidamente possível, dentro dos limites das regras de trânsito, evidentemente. Vire para norte, na Madison, ou então vá até à Quinta e volte para sul, conforme estiverem os semáforos. Como já lhe disse, depois, o nosso destino é Gramercy Park.
- E se os chuis me chatearem enquanto estiver parado em segunda fila?
- Diga-lhes que está à espera, para levar ao hospital uma senhora muito grávida. Se isso não der resultado, limite-se a dar uma volta ao quarteirão e volte a parar aqui, em segunda fila. Percebeu as minhas explicações?
- Oh, claro! Esperarei aqui.
- Óptimo! Agora, diga-me "merda".
- Por que haveria eu de lhe dizer isso? Shakespeare suspira:
- Até já - limita-se a dizer.
Contornando a esquina, entra pomposamente na Park Avenue com um caminhar deliberadamente próprio de um magistrado. As mãos estão apertadas uma na outra, atrás
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das costas, e a cabeça inclinada, numa aparente meditação religiosa. Na verdade, só gostava que o crítico de teatro do New York Times ali estivesse a observar a sua actuação. Aproxima-se do porteiro, um homem tão cabeludo e coberto de enfeites quanto ele.
- Peço-lhe desculpa, meu caro senhor - diz-lhe Shakespeare, com um sotaque que é uma amálgama de Jackie Mason, Menashe Skulnick e Mickey Katz. - Posso dar-lhe uma
palavrinha?
O almirante da Ruritânia olha-o fixamente.
- Claro, padre. Qual é o problema?
- O senhor tem aqui, neste belo edifício, talvez, um inquilino chamado Mister Champ DuBois?
O porteiro fica perplexo:
- Bem, sim, padre - diz, vagarosamente -, temos um inquilino com esse nome. Mas, neste momento, não está.
- Ah, sim? Ele disse-me que era capaz de vir atrasado, mas que eu subisse ao seu apartamento e esperasse lá por ele. Deixou recado às irmãs dele para me deixarem entrar.
- Irmãs dele? bom... pois... acho que não há problema. Se não confiarmos num diácono, em quem havemos de confiar, não é verdade? O ascensorista diz-lhe onde é.
- Obrigado, meu caro senhor. Que a beneficente providência lhe conceda as maiores graças a si e aos que lhe são queridos!
- Obrigadinho, reverendo!
O tenente McBryde observou a cena toda, do outro lado da Park Avenue e, ociosamente, pergunta-se a si mesmo qual seria o motivo que levara um membro do hasidismo a entrar naquele prédio tão cintilante.
A porta do apartamento de DuBois é aberta por Sam Davidson, que olha para o visitante pestanejando várias vezes, com certa surpresa.
- Por favor, meu caro senhor - diz-lhe Shakespeare -, tenho um encontro marcado com o senhor Champ DuBois e disseram-me que esperasse aqui por ele.
- Ele não me informou disso, mas acho que está bem -rreplica Sam. - Entre! Não quer dar-me o seu casaco e o chapéu?
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- Não, não - apressa-se a dizer o actor. - É contra a minha religião.
Segue Sam até à sala de estar, onde Louella e Loretta Chin estão apoiadas ao balcão do bar.
- Boa tarde, minhas meninas - cumprimenta-as Shakespeare, com um tom de voz melancólico. Inclinando-se para Davidson, sussurra-lhe: - Por favor, meu caro senhor, posso servir-me das vossas instalações sanitárias?
- O quê? Ah, refere-se à casa de banho! Claro, siga por aquele corredor e depois é à sua direita.
O actor fecha ruidosamente a porta da casa de banho quando lá entra, espera um momento e depois volta a abri-la silenciosamente. Pôe-se à escuta e ouve a conversa do homem com as duas tipas na sala de estar. Encaminha-se rápida e silenciosamente para as traseiras do apartamento. Descobre quase imediatamente os frascos, em cima de um tapete de pele de urso, num pequeno quarto berrantemente decorado com seda carmesim e um quadro com um tigre enfurecido pintado sobre um fundo de veludo negro.
Deixa lá ficar os frascos e continua com a sua exploração. Encontra o que procurava: um grande roupeiro, que, aparentemente, pertence ao quarto principal. Isto, a avaliar pelo quadro a óleo que está pendurado na parede da cabeceira da cama, e que mostra um Hitler nu, com uma das mãos a esconder os órgãos genitais e a outra erguida numa saudação nazi.
- Depravado - murmura Shakespeare.
A porta do roupeiro não tem fechadura mas há uma pesada cadeira de madeira de carvalho que pode facilmente ser inclinada, para se encaixar por baixo do puxador. Será o suficiente, para o tempo necessário. O actor desabotoa o pesado sobretudo e tira a pequena pistola do bolso do seu casaco desportivo, de um horroroso e grosso tweed, que parece precisar de uma raspagem.
Segurando descontraidamente a pistola com a boca virada para baixo, volta para a sala de estar. Davidson e as gémeas Chin levantam os olhos quando ele entra, e Sam é o primeiro a reparar na arma:
- Eh! - diz ele, mais curioso do que assustado -, o que é isso?
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.- Uma arma mortal - responde Shakespeare, abandonando o sotaque ídiche. - Está carregada com balas que furam a chapa dos veículos militares e que podem causar grandes estragos no tecido humano.
- O que é isto? - pergunta Davidson, com ar autoritário.
- Não tenho tempo para lhe explicar, meu velho. Vocês os três vão à minha frente, para o quarto lá de trás. E, por favor, nada de gritos, choros ou lamentos. Há que manter o civismo.
Aponta-lhes a arma e, enquanto eles olham nervosamente por sobre os ombros, encaminha o seu rebanho para o quarto principal. Faz-lhes sinal para que entrem para o roupeiro, fecha a porta e entala a cadeira por baixo do puxador.
- Lá no fundo há uma grande abertura - grita-lhes e terão o ar de que precisam para respirar. Por isso, não há motivo para aflições claustrofóbicas. Adeusinho!
Em seguida, guarda a pistola no bolso, abotoa o sobretudo, agarra nos dois recipientes de plástico e sai do apartamento. Chama o elevador e espera calmamente.
Enquanto isto, o tenente McBryde, encostado ao seu Plymouth, conversa com o sargento Rumfry e com os dois agentes uniformizados que acabam de chegar, num carro-patrulha.
- São dois homens e duas mulheres - diz-lhes. - Um preto alto e magro, um velhote asiático e duas raparigas chinesas. Neutralizamo-los todos enquanto passamos revista ao apartamento, para apanharmos os óvulos de Marilyn.
- Não temos mandado - lembra-lhe Rumfry.
- Que se lixe o mandado - riposta McBryde. - Temos suficientes motivos de suspeita. O chefão, o preto que se chama Champ DuBois, não está lá agora; por isso, vamos esperar que volte. Todos nós sabemos esperar, não sabemos? Ele anda num...
À medida que lhes dá instruções, mantém-se atento à entrada do prédio do outro lado da Park Avenue e, de repente, interrompe o que está a dizer.
- Meu Deus! - exclama, excitado. - Lá vem o Jaguar de duas portas. Vamos apanhá-los!
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Os outros voltam-se, para olharem. Um Jaguar branco acaba de encostar junto à entrada com o dossel de vidro biselado. Champ DuBois é o primeiro a sair, seguido de Mutha, mas, antes de a polícia começar a avançar, sai do prédio um homem envergando as vestes de um chefe hasidim, que traz em cada mão um recipiente de plástico e que, lançando um olhar ao homem que está a sair do Jaguar, desata a correr pela Park Avenue acima.
- Que raio?! - grita McBryde. - Vamos!
Mas o trânsito é muito intenso e não conseguem atravessar para o outro lado. Um dos agentes uniformizados começa a soprar o apito e levanta uma das mãos, mas os alienados condutores ignoram-no. Praguejando, os polícias limitam-se a observar o que se passa no passeio oposto.
O hasidim corre desvairadamente, com os caracóis a flutuar ao sabor do vento, o longo sobretudo a esvoaçar e a bater contra as canelas e os recipientes de plástico, aos solavancos, a bater de encontro aos joelhos. Passado um momento de choque, DuBois e Mutha lançam-se na sua perseguição, com Champ aos gritos:
- Agarra que é ladrão!!
O hasidim desaparece ao virar da esquina e continua a correr. Os seus perseguidores galopam pesadamente no seu encalço. E finalmente o semáforo muda e McBryde, mais os seus homens, atravessa a correr para o outro lado. Mas para apenas darem de caras com DuBois e o mordomo, que, desanimadamente especados no passeio, seguem com os olhos um Cadillac Brougham que, com um chiar de pneus, se dirige para oeste, em direcção à 5." Avenida.
- Prendam-nos - ordena McBryde - e depois vamos lá acima, ao apartamento, e prendemos todos os que lá estiverem. Oh, meu Deus, como é que vou explicar isto ao Gripsholm? Ele vai dar cabo de mim!
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CAIRO, Egipto
A dançarina da dança do ventre, que se bamboleia agora na pista de dança do Coney Island Café, tem um umbigo que, pelos cálculos de Ptolomeu, é suficientemente espaçoso
para acomodar dois camarões médios cozidos e cobertos por uma dose generosa do molho de cocktail da Crosse Blackwell. Contrafeito, volta a dar atenção a Youssef
Khalidi, que chupa os ossos de um guisado de rabo de boi.
- Àkmed recebeu o dinheiro? - pergunta-lhe o agente da CIA, em voz baixa.
Joe confirma com um aceno de cabeça, cuspindo para o chão os bocadinhos de cartilagem.
- E então? O que é que nós recebemos em troca dos nossos cinco mil dólares?
Khalidi recosta-se para trás, limpa a boca à manga da djallaba listrada, dá um gole na sua arrack, tira um dos English Ovais do maço de Ptolomeu e responde-lhe, em voz baixa:
- A oito quilómetros a sudeste de Sídon há uma pequena montanha que se chama, em inglês, Bossa de Camelo. Na encosta sul dessa montanha há uma antiga caverna. Nessa caverna existem ossadas que têm séculos... e também latas vazias de Coca-Cola.
- Sim, sim - interrompe o agente, com pouca paciência -, já estou a ver. E os óvulos da Marilyn estão guardados nessa caverna?
Youssef confirma novamente com um aceno de cabeça:
- Bem lá no fundo da caverna. com guardas.
- Quantos guardas?
- Dez, pelo menos; talvez mais. Também há lá mulheres e crianças. Os membros do Braço de Deus viajam com as famílias.
- Mulheres e crianças? Isso complica as coisas. Vivem todos dentro da caverna?
- Não. Montaram tendas à volta. Só os guardas é que vivem lá dentro.
- Armados, calculo.
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- Ah, sim!
- Armas automáticas?
- Kalachnikovs.
- Céus! E quanto a morteiros e granadas?
- Também têm disso. E metralhadoras.
- Têm lá muita gente - comenta Ptolomeu, franzindo o sobrolho. - Vão morrer alguns dos bons...
- Os novos morrem bons - diz Khalidi, com ar pesaroso.
- Não, não - corrige o agente. - É "os bons morrem novos".
- Tem a certeza?
- Claro!
- Mas por que é que os bons têm de morrer novos?
- Sei lá porquê! - responde, irritado, o homem da CIA. - "Os bons morrem novos" é apenas um ditado.
- Mas eu conheci alguns homens maus que morreram novos. E também alguns bons que viveram muitos anos!...
Ptolomeu enterra a cara nas mãos por uns instantes e depois ergue os olhos, com um suspiro:
- Vamos mudar de assunto, Joe? Quanto tempo é que os óvulos da Marilyn vão ficar dentro dessa caverna na Bossa do Camelo?
Youssef reflecte por um momento:
- Uma semana - afirma depois. - Talvez duas, no máximo. Depois, eles mudam-se outra vez.
O agente põe-se de pé:
- Não temos muito tempo... Tenho de elaborar um relatório imediatamente!
- Não se esqueça de pagar o meu almoço - lembra-lhe Khalid.
Ptolomeu vai encontrar o controlador no bar do hotel jogando aos dados com o barman, para ver quem é que paga a próxima rodada de vodka stínger1. O agente faz-lhe sinal com a mão e o chefe vai sentar-se com ele a uma discreta mesa de canto.
1 Vodca, licor de menta branca, conhaque e gelo. (N. da T.)
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- Acerca da Operação Soufflé...-começa o agente, repetindo-lhe o que soubera por Khalidi.
- Então, o Akmed mordeu a isca - diz o controlador, com satisfação. - Já contava com isso. Mas não me agrada o cenário! Há muita artilharia...
- Um comando? - sugere-lhe Ptolomeu. - Seria uma incursão explosiva!
- Não o creio - contrapõe o controlador, pensativo. Depois, o problema seria como tirar do Líbano os nossos Rambos! Há demasiados bandidos nesses desfiladeiros. Não, acho que a solução são os helicópteros. Um ataque nocturno. Entrada rápida, neutralização dos patifes, captura dos óvulos e descolagem.
- Helicópteros - repete Ptolomeu. - Sim, faz sentido. Mas teríamos de aliar-nos aos Israelitas, nisso.
- Não necessariamente - afirma o controlador. Dispomos de unidades, da Sexta Esquadra, com helicópteros de ataque. Entramos e saímos sem que Shin Bet se dê conta do que está a acontecer. vou mandar uma mensagem urgente para Langley e, se eles nos derem luz verde, avançamos logo. Agora, vamos outra vez para o bar. Hoje, é o meu dia de sorte!
MANHATTAN, Nova Iorque
O subinspector Gripsholm olha durante um bom bocado para McBryde e depois volta-se para a janela com um olhar fixo:
- Olhe, a última vez que chorei foi quando recebi as contas do casamento da minha filha, mas agora estou a fazer um grande esforço para não chorar outra vez.
- Creia que não se sente pior do que eu, sir - lamenta-se o tenente. - Estávamos tão perto! Mais dois minutos e teríamos apanhado os óvulos da Marilyn... Agora, tudo o que temos são os dois idiotas que os roubaram em Staten Island. E de que raio podemos nós acusá-los?...
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- Você conseguiu ver bem o carro dos fugitivos?
- Não. Era um Cadillac, mas isso não serve de nada...
- Voltámos, portanto, à estaca zero!
- Não, propriamente... O tal judeu hasidim que fugiu com os óvulos? Falei com o Sol Applebaum, um dos meus tarefeiros, e ele disse-me que um hasidim jamais tocaria nos óvulos de uma mulher, mas por nada deste mundo! Os tipos são tão rígidos que nem querem ter mulheres a conduzir os autocarros das escolas. Outra coisa: o porteiro diz que o judeu falava com um forte sotaque ídiche, mas Sam Davidson, o tipo que encontrámos dentro do roupeiro, no apartamento, disse que o hasidim só falou com sotaque até puxar da arma. Depois, segundo Davidson, o tipo falava como um maricas tipicamente anglo-saxónico!
- E daí? - pergunta Gripsholm. - O que é que isso adianta?
- O tipo disfarçou-se, vestindo-se como um membro ortodoxo do hasidismo para convencer o porteiro a entrar no apartamento do DuBois! Ninguém iria desconfiar de que um homem da Igreja tivesse qualquer intenção criminosa. E resultou! Passou pelo porteiro nas calmas e entrou no apartamento. O filho da mãe é esperto!
- Como é que ele soube que os óvulos lá estavam?
- Não faço ideia. Descobri-lo-emos quando o encontrarmos.
- E como tenciona conseguir isso?
- O perpetrador trazia um sobretudo preto comprido, um chapéu de aba larga de pele e tinha caracóis falsos. Onde é que se arranja uma vestimenta dessas? Possivelmente numa casa que aluga fatos para peças de teatro e festas de máscaras. Foi por isso que já dei ordens ao sargento Rumfry para ligar para todas essas casas, na área de Nova Iorque, tentando descobrir se alguma delas alugou um traje daqueles, na semana passada, ou coisa assim...
- Desejo-lhe muita sorte - replica o inspector, amargamente. - Creio que é pura perda de tempo.
- É tudo o que temos! - argumenta McBryde. Acho que vale a pena tentarmos...
Volta para o seu gabinete e encontra quatro recados de
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Marilyn: "Importante", "Urgente", "Crucial" e "Prioridade Máxima". com um profundo suspiro, liga para casa dela.
- Por onde diabo tem andado?! - grita ela. - Venha cá, imediatamente!
- Qual é o problema?
- O problema é reaver os meus óvulos, seu idiota! Se não estiver aqui dentro de uma hora, telefono ao presidente da Câmara e faço queixa de si!
- Ai, minha mãe! - geme ele, suplicante. - Por favor, não faça isso!
- Vá passear! - grita ela, com voz cortante. - Mexa-se mas é e venha imediatamente para cá! - Recebe-o na sala de estar. Envergando um provocante fato de treino
de seda verde-limão, faz lembrar um picolé de pistacho. Está a beber um bloody maria com um caule de aipo, mas não lhe oferece nada. - Muito bem, meu matulão - vangloria-se
ela -, resolvi-lhe o caso!
- Ah, sim? E como conseguiu uma coisa dessas? Fala-lhe então no tipo que veio falar com ela, disposto a
devolver-lhe os óvulos por oitocentos mil dólares. ê acordo foi feito e a troca efectuar-se-á quando ela tiver pronto um embrulho cheio de papel de jornal rasgado. McBryde poderá estar presente, para apanhar o tipo e os óvulos ao mesmo tempo!
- Que tal? - pergunta ela, com ar triunfante. Ele olha para ela, impávido e sereno:
- Quantos encontros teve com esse sujeito?
- Dois.
- Ele disse-lhe como se chamava?
- Nem tinha de dizer! Eu conheço-o! É o Sam Davidson, um produtor de filmes pornográficos.
McBryde levanta-se e, colocando as mãos nos quadris, lança-lhe um olhar furioso.
- Ai, ai! - geme ela. - Não gosto nada desse olhar...
- Nunca chamei estúpida a uma mulher - diz ele -, mas vou fazê-lo agora. Sua estúpida! Se tivesse miolos, seria perigosa!
- Eh! Calma aí! - protesta ela. - Essa frase é minha!
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- A última vez que vi o Sam Davidson foi quando o tirei de dentro de um roupeiro, onde ele tinha sido trancado, com mais duas prostitutas chinesas.
- O quê?!
- Pois foi! Foi no apartamento da Park Avenue, do tipo que roubou os seus óvulos ao anterior ladrão. Se me tivesse dito, quando o Davidson veio falar consigo da primeira vez, eu podia tê-lo apanhado e apertado com ele, e o mais certo seria você já ter reavido os seus óvulos. Mas não! Você tinha de assumir o comando das operações, fazer as coisas à sua maneira e lixar tudo! Agora, o Davidson está fora da carroça e é um falso judeu hasidim que tem os seus óvulos! Tudo porque você tinha de provar que era uma detective eficientíssima!
- Ora, vá para o raio que o parta! - diz-lhe, furiosa. - Você não estava a conseguir nada, pois não? Andava era para aí às voltas, atrás de decalques Yum-Yum e de Jaguars brancos!
- Quando é que você vai meter nessa cabecinha minúscula que eu sou um polícia, um profissional treinado para este tipo de trabalho?! Você não passa de uma reles amadora civil e, só porque tem um magnífico par de mamas, já se julga um físico nuclear! Quer deixar de se meter onde não é chamada para que eu faça o meu trabalho?
- Parvalhão! - grita-lhe ela. - Acha que as mamas são o segredo do meu sucesso? Está muito enganado, seu engraçadinho! É preciso muito talento, muito trabalho e saber como sobreviver neste mundo cão!
- Ah, claro! - troça ele. - Agora, vai dizer-me que isto é uma selva...
- Pois claro que é, seu estúpido! E é cem vezes mais difícil para uma mulher do que para um homem. Mas eu também não esperava que um atrasado mental como você entendesse isso... Deixe que lhe diga uma coisa, meu menino: se você continuar a andar para aí às voltas, a perder tempo com as suas pistas malucas, eu continuo a tentar recuperar, sozinha, os meus óvulos. E considera-se você um polícia, um profissional? Meu Deus, se calhar precisa da ajuda de um escuteiro para atravessar a rua!...
- Merda! - gritam os dois, em uníssono.
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QUEENS, Nova Iorque
Ainda não é meio-dia e eles estão sentados numa das mesas do restaurante, enquanto os empregados vão preparando rapidamente as outras mesas para o almoço. Wanda Gorda bebe cerveja enquanto Rocco Castellano, Vito Zivic e Morry se encarregam de um grande bule de café e de um prato com torradas de pão de anis comprado na padaria de Mama Lúcia, que fica na mesma rua.
Morry ri-se tanto que mal consegue acabar de contar a história:
- Então, o Shakespeare desata a correr pela Park Avenue acima, o mais depressa que pode, carregando com os dois frascos e tentando segurar ao mesmo tempo, o chapéu maluco. E atrás dele vêm os dois tipos, um preto alto e um pequenino de olhos em bico (acho que eram os que ficaram sem os ovos), e os dois, aos berros, parecem doidos! E então, do outro lado da Park, lá vem o grupo dos chuis a correr, apitando e sacando das pistolas. Eu estava parado num sítio de onde podia ver tudo o que se estava a passar, e foi de morrer a rir! Só vos digo que foi cá uma destas cenas!
- Esse Shakespeare - comenta Rocco, encantado - é um vadio muito esperto! Conseguiu escapar bem?
- Oh, claro! Entra para o Cadillac em que tinha vindo, e o motorista arranca como se levasse fogo no rabo! Eu vou atrás deles, mas os outros todos deixam-se ficar especados no passeio, completamente fodidos. Desculpe o meu palavreado, Wanda!
- Já ouvi pior - replica ela, arrotando delicadamente.
- Então, eu vou atrás do Cadillac até à Quinta - continua Morry - e, como o trânsito é do caraças, não tenho dificuldade em manter-me atrás deles. Chego-me tanto a eles que até consigo ver o actor a despir a vestimenta ídiche, no banco de trás! Chego a pensar que eles vão entregar os ovos ao Zucchi, no Bedlington, mas não, continuam a descer a Quinta e viram para Este, para Gramercy Park. Param em frente de um prédio pequeno, foleiro, na Rua
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20, Este (apontei a morada), Shakespeare entra para lá, com os ovos, e o Cadillac arranca. Deixo-me lá ficar um bocado, mas o actor não volta a sair. Dou uma nota de cinco ao porteiro do prédio ao lado e ele diz-me que o outro prédio pertence todo a uma gaja meia chanfrada que se chama Gwendolyn Farquhar (também apontei isso). Aguentei-me lá até escurecer e então, quando me pareceu que o Shakespeare ia dormir, vim-me embora.
- Óptimo trabalho, Morry - diz-lhe Castellano, com ar satisfeito -, mas agora é melhor voltares para lá, para o caso de eles resolverem sair com os ovos. Wanda, volta para o Bedlington e mantém-te de olho no Zucchi. Quero todos os flancos cobertos!
Quando eles se vão embora, Zivic volta-se para o chefe:
- Ainda bem que o Shakespeare não levou os ovos para o hotel! É muito mais fácil assaltar uma residência...
- Era precisamente no que eu estava a pensar - comenta Castellano, lendo os garatujes que Morry lhe entregara. - Talvez ainda hoje a gente dê lá um salto, para sondar a coisa, isto é, para ver quantas pessoas lá vivem, se há fechaduras na porta exterior, saídas de emergência, etc.
- Quando é que quer atacar? - pergunta-lhe Vito.
- O mais depressa possível. Antes que eles façam algum acordo com a Marilyn.
- Quando tivermos os ovos, vai mesmo pedir um milhão?
- Isso é o que eu vou pedir, mas contento-me com meio. Já chega de lição ao Homem de Chicago. Já viste a lata dele? A meter o bedelho no nosso território? O tipo tem que aprender a jogar segundo as regras!
MANHATTAN, Nova Iorque
O sargento Rumfry acerta ao décimo oitavo telefonema, quando, de uma casa de aluguer de fatos para teatro, lhe respondem que sim, que alugaram um traje hasidim há
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dias atrás e que, por sinal, havia sido devolvido nessa manhã.
Rumfry e o tenente dirigem-se rapidamente para lá e McBryde fala com o monstro do doutor Frankenstein, enquanto o sargento vai escrevendo no seu bloco de notas.
- Esse tipo que alugou o fato hasidim disse para que é que o queria? Para o teatro, para um baile de máscaras?
- Não - responde o monstro. - Só disse que queria uma coisa do género religioso.
- Ficou com o nome dele e a morada?
- Claro, tenho-os aqui, no recibo. Mário Zucchi. Hotel Bedlington. Fica na Madison.
- Eu sei onde fica. Como era o tipo?
- Alto. Magro. Deve ter sido um garoto giro, mas agora está com aspecto de quem andou na má vida. Mas, mesmo assim, bem-parecido!
- De que idade calcula você?
- Oh, talvez perto dos quarenta.
- Você é um sujeito observador. Ele tinha algum sotaque?
- Tentava imitar a gente da alta. Um pouco teatral.
- Acha que seria um actor profissional?
- Pode ter sido. Mas mau.
- Mais alguma coisa invulgar?
- A roupa dele. Os botões do casaco eram olhos de vidro! Eu reparo nessas coisas!...
- Pois, já calculava que o fizesse.
- E tinha uma margarida na lapela.
- Em resumo, um verdadeiro convencido.
- Isso mesmo.
- Obrigado, monstro. Ajudou-nos imenso.
Quando se dirigem para o Bedlington, Rumfry pergunta-lhe:
- Como é que quer actuar? Entramos lá e deitamos-lhe a mão?
- Não - responde McBryde. - Você fica no carro, e eu vou lá dentro sozinho, dar uma vista de olhos primeiro. É que não faz sentido que um tipo suficientemente esperto para dar um golpe daqueles tenha usado o seu verdadeiro
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nome. Portanto, ou o nome também é falso ou ele usou o de outra pessoa.
- De alguém que esteja no hotel?
- É possível. O que quer dizer que o actor também está no hotel. - O tenente entra vagarosamente no hotel, dá uma olhadela em redor e dirige-se à recepção. Só passado um bocado é que consegue chamar a atenção do empregado, um sujeito apagado, com um bigodinho que mais parece ter sido desenhado sobre o lábio superior com um lápis dos olhos. - Procuro o senhor Mário Zucchi - diz-lhe McBryde. - Ele disse-me que estaria aqui hospedado.
- ê senhor Zucchi está cá registado.
- E está cá, neste momento?
- Não.
- Pode dizer-me quando voltará?
- Não me disse.
- Posso deixar-lhe um recado? - O empregado encolhe os ombros. - Talvez fique por aqui mais um bocado. Pode ser que ele apareça.
McBryde repara no letreiro do bar e dirige-se para lá. Não se vê ninguém, além do barman, que está a ler um boletim de apostas.
- Há algum vencedor? - pergunta-lhe, amavelmente.
- Vencedor? - replica o outro, amargamente. O que é isso?
- Ando à procura do senhor Zucchi. Ele esteve por aqui?
- Hoje, não. Ainda não.
- Talvez tenha ido a uma audição...
- A uma audição? Para quê?
- bom, o homem é actor.
O barman olha para ele, muito sério:
- Acho que não estamos a falar do mesmo tipo. Zucchi, o que está aqui no hotel, é um homem de negócios. Import-export.
- Não é alto, magro e bem-parecido? À volta dos quarenta? com roupas caras?
- Não! Tem cinquenta e cinco, entroncado como um estivador e com roupas de pronto-a-vestir.
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- Desculpe - diz McBryde -, acho que me deram informações erradas. - O tenente volta para o carro, senta-se ao lado de Rumfry e conta-lhe o que soubera no hotel.
- Há qualquer coisa que não bate certo - comenta, irritado. - O barman diz que o Zucchi é um homem de negócios, de importação-exportacão. Essa é a história mais velha que há e serve para encobrir tudo, desde o contrabando de obrigações do Tesouro ao portador até à escravatura branca. Creio que vou ficar por aqui e ver se consigo sacar alguma informação aos paquetes do hotel. Eles sabem tudo! Você volta para a esquadra e procura o Mário Zucchi nos ficheiros. Procure bem e vamos lá a ver se descobrimos o que é o que o senhor Zucchi importa e exporta.
- Podem ser óvulos - diz o sargento.
- Pois podem - concorda McBryde.
MANHATTAN, Nova Iorque
Tal como Shakespeare disse, a sua amiguinha de Gramercy Park é dona de um magnífico embonpoint. Além disso, possui uma deliciosa formação esteatopigíaca, que faz com que, à contraluz, a sua silhueta se assemelhe a um roliço S. E a coroar a sua figura monumental, um toucado de frisados caracóis arruivados.
Shakespeare, fumando um cigarro enfiado numa comprida boquilha de porcelana de Delft, observava-a enquanto os seus dedos ágeis bordam um retrato de Franklin Pierce, bordado que, eventualmente, irá forrar um banquinho para os pés presidenciais, a acrescentar aos treze que já estão feitos. Depois, será a vez de James Buchanan!
- Sabes, Gwen? - diz o actor. - Os homens para quem trabalho são mesmo uma gente terrível.
- Há tantos, neste mundo - replica ela.
- É verdade, mas os meus patrões são particularmente desagradáveis. Do mais baixo que há, todos eles. Nem uma pontinha de cultura! Contudo, pela força das circunstâncias,
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estou destinado a depender deles como meio de subsistência...
- Todos os trabalhos enobrecem - observa ela -, por mais humildes que sejam.
- Pois, garanto-te que os meus patrões são tudo menos humildes. De facto, até ganharam muito bem, mas eu nunca sou totalmente recompensado pelos meus esforços. Sou aquilo que normalmente se chama um assalariado.
- Pensei em fazer vitela para o jantar - interrompe ela, alegremente -, mas a vitela está tão cara que tenciono substituí-la por chouriço de fígado. Achas que dará resultado?
- Vale a pena experimentar - responde ele, corajosamente. - Não quero parecer imodesto, minha querida, mas sou infinitamente mais inteligente do que os saloios para quem trabalho. Mais talentoso. Mais imaginativo. Além disso, corro riscos dos quais eles tiram enormes lucros. Não é uma situação satisfatória!
- Ou fatias de salame - diz ela, pensativa. - Talvez fique bom...
- Possivelmente - concorda Shakespeare. - Por exemplo, aqueles dois frascos de plástico que estão na casa de banho! Consegui obtê-los através de uma cuidadosa planificação e de grande valentia. Eles têm em vista um grande lucro, mas muito grande mesmo, que eu nunca hei-de alcançar. Reconheço que a vida, muitas vezes, é injusta, mas isto parece-me que toca as raias da máxima injustiça! Não está certo!
Ela ergue os olhos para ele:
- Se fosses uma ave, qual gostarias de ser?
- Neste momento, um falcão. E tu?
- Um pisco-de-peito-ruivo.
- Que encanto! - comenta ele e põe-se de pé, subitamente determinado. - Tenho de fazer um telefonema, Gwen. Se não te importas, vou usar o telefone da cozinha.
- Ou talvez um pequeno pica-pau com crista - responde ela, perdida em pensamentos.
Ele procura o número da Marilyn Taylor Merchandise,
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Inc., na lista telefónica e liga. A chamada é passada para um homem chamado Gary Flomm, o relações públicas de Miss Taylor. Usando o seu sotaque à doutor Krankheit, Shakespeare afirma que tem em sua posse os óvulos de Marilyn e, interrogado por Flomm, descreve-lhe minuciosamente o frasco de congelação.
Depois, aguarda pacientemente até que, por fim, ouve a famosa voz:
- Fala Taylor - diz ela, rispidamente. - Deduzo que tenha os meus óvulos. Quanto é que você quer? - O actor explica-lhe que é um assunto que não deseja tratar pelo telefone e sugere-lhe que se encontrem pessoalmente. Muito bem - diz ela, imediatamente. - Quer vir aqui?
- Oh, não! - apressa-se ele a contrapor. - Creio que o Jardim Zoológico, no Central Park, seria óptimo. A aldeia dos macacos, amanhã ao meio-dia. Só nós os dois. Por favor, nada de polícias!
- Lá estarei - concorda ela. - Sem polícias. Como é que vou distingui-lo dos macacos?
- Levarei uma orquídea em miniatura na lapela.
- Deve chegar - diz ela e desliga. Satisfeito, Skakespeare volta para a sala de estar e, dirigindo-se a um aparador, cujo tampo é forrado a mármore, prepara uma bebida para a sua anfitriã. Gostarias de passar uma temporada na Riviera francesa, Gwen? - pergunta-lhe.
- De quanto tempo?
- Para o resto da nossa vida - responde ele, jovialmente.
MANHATTAN, Nova Iorque
Mário Zucchi localiza finalmente o Homem de Chicago no seu country dub, onde ele assiste ao copo-dágua do sobrinho. Mário consegue ouvir os ruídos roufenhos das festividades, acentuados por algo que se assemelha a estampidos de tiros, mas que o Homem lhe garante tratar-se apenas de fogo-de-artifício.
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- Fico feliz ao sabê-lo - afirma o Nariz - e só queria comunicar-lhe que o Shakespeare já tem a mercadoria.
- Magnífico! - exclama, alegremente, Chicago. - Eu sabia que ele nos resolveria o problema.
- Claro - corresponde Zucchi -, mas há uma pequena alteração: eu pensava que o sujeito trazia o material para o meu quarto de hotel, mas ele levou-o para uma casa em Gramercy Park, onde está instalado, com uma tipa qualquer.
- Ah, sim? - Diz o Homem, e a sua voz está fria e velada. - Por que é que ele fez isso?
- Afirma que a mercadoria está mais segura lá e diz que, se nós a guardássemos no hotel, podia ser descoberta por uma criada.
Segue-se um momento de silêncio, e depois:
- Isso não me agrada! Há muito dinheiro envolvido e não quero sequer pensar que o actor possa estar a planear atraiçoar-nos!
- Acha que ele o faria? Depois de tudo o que nós fizemos por ele? Sempre o considerei nosso amigo.
O Homem solta um suspiro:
- Mário, quando é que vais aprender que, quando há muito dinheiro em jogo, acabaram-se os amigos? Sabes exactamente onde é que o Shakespeare está?
- Oh, claro! O Dino esteve lá e apontou a morada.
- Muito bem. Agora, o que eu quero que tu faças é que vás lá. Entras, apanhas a mercadoria e sais. Diz ao actor que estás a cumprir ordens minhas. Leva o material para o teu hotel e esconde-o. Percebeste?
- Percebi. Temos cá muitos "soldados", mas, se calhar, temos de alugar outro carro, para o assalto.
- Então, aluga-o! Quando me telefonares outra vez, quero que me digas que tens a mercadoria na tua posse!
- E quanto ao Shakespeare? Quer que a gente lhe dê um apertãozinho, só para lhe mostrarmos quem é que manda?
- Não, não é preciso - objecta o Homem. - Diz-lhe só que volte para Chicago. Eu tratarei dele.
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MANHATTAN, Nova Iorque
McBryde conta a Gripsholm como é que o traje hasidim o levara até Mário Zucchi, no Hotel Bedlington.
- Mas não condiz com a descrição do tipo que roubou os óvulos do apartamento da Park Avenue e, por isso, investiguei esse tal Zucchi. É um dos patrões da Mafia de Los Angeles, metido em drogas, extorsão, filmes pornográficos, eu sei lá! Então, com a autorização do hotel, pus lá um agente disfarçado de paquete. Ele passou uma busca à suite do Zucchi e aos quartos dos "soldados" que estão lá com ele, e o resultado foi zero. Jura que os óvulos da Marilyn não estão no hotel.
- Então, onde diabo estão eles?
- Acho que o tipo que os roubou, o actor, é que os tem e aposto que trabalha para a Mafia. Então, pus um agente a seguir o Zucchi, dia e noite, calculando que, mais tarde ou mais cedo, ele estabelecerá o contacto. Depois, com um bocadinho de sorte, poderemos seguir o Zucchi até aos óvulos.
- Mas você não tem provas de que esse Zucchi e o actor estejam feitos um com o outro!
- É verdade, não tenho provas, mas não acredito que um mafioso de Los Angeles tenha vindo a Nova Iorque só para assistir ao ballet e ir ao Frik Museum. O Zucchi tem um grande cadastro, incluindo roubos e assaltos dolosos. E já passou um ano numa cadeia federal, por fraude no imposto de rendimentos. Os sujeitos do Gabinete do Crime Organizado disseram-me que a Mafia de Los Angeles é controlada por Chicago. Por isso, esta operação é das grandes. Acho que, agora que eles têm os óvulos, Marilyn Taylor será brevemente contactada. vou para o meu gabinete e tentarei telefonar-lhe. Talvez possamos preparar uma ratoeira quanto ao pagamento.
- Se ninguém roubar os óvulos antes disso - diz Gripsholm, com ar melancólico.
O tenente volta para o seu gabinete e pergunta-se como é que vai conduzir o telefonema, lembrando-se de que a
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última conversa que houvera entre eles fora absolutamente explosiva. Decide que a melhor forma será mostrar-se formal, conciso, frio até, mas, quando ouve a voz dela, a sólida resolução desvanece-se por completo.
- Só queria pedir-lhe desculpa - diz ele, com voz rouca. - Comportei-me como...
- Oh, cale-se lá! - interrompe ela. - Quando a altura for mais apropriada, eu tirarei a minha desforra, mas, neste momento, tenho outro assunto mais importante a resolver! Esteja ao pé da aldeia dos macacos, no Jardim Zoológico, amanhã ao meio-dia.
- O quê? Que diabo está para aí a dizer? E ela diz-lhe.
MANHATTAN, Nova Iorque
Shakespeare pede emprestado a Gwendolyn o seu velho Buick "barrigudo" e dirige-se para o Central Park. Deambula descontraidamente pelo zoo, qual janota bonacheirão no seu chapéu de feltro ligeiramente inclinado para o lado. Mas os seus olhos claros não deixam de estar atentos, em busca de quaisquer indícios da presença da polícia. Não vê nada de anormal e avança calmamente para o ponto de encontro.
Marilyn Taylor apresenta-se com a sua peruca preta, sem chapéu, envergando um vulgaríssimo impermeável e óculos escuros. Especada defronte de uma tribo de irrequietos macacos, só espera que nenhum deles lhe peça um autógrafo, quando, subitamente, sente que alguém lhe levanta as longas tranças.
- Aparece, aparece, quem quer que tu sejas - canta um homem, com voz alegre.
Ela volta-se lentamente e descobre a orquídea em miniatura na lapela de Shakespeare.
- Que aconteceu ao sotaque? - pergunta-lhe.
- Hoje, estou a fazer o do Noel Coward, queridocas responde ele.
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Ela olha-o com atenção:
- Eu conheço-o - diz. - Loring Minchley Flotsom. Vi-o em Los Angeles naquela noite em que você deu cabo do Hamlet.
- Você e mais um milhão de outros - replica ele, com um suspiro. - Pelos vistos.
- Depois, desapareceu. Desistiu do teatro e dedicou-se ao crime, foi?
- Não exactamente - responde ele, e ela tem de admitir que o seu sorriso é cativante. Descarado, mas cativante.
- Decidi apenas alargar o meu raio de acção. Fazer da minha vida uma permanente actuação.
- E agora está a desempenhar o papel de ladrão.
- Justamente.
- Quer ficar aqui ou dar uma volta?
- Vamos ficar aqui. - E dá uma olhadela em redor. Espero que não tenha trazido consigo algum amigo.
- Já devia calcular que não. Quero reaver os meus óvulos e não faria nada que pudesse estragar o negócio. Você tem realmente os óvulos?
- Tenho-os realmente. Pode chamar-me Eggs Diamond!
- Engraçadinho. Quanto é que quer?
- Meio milhão. Em dinheiro.
Silêncio. Ambos observam um jovem chimpanzé que se masturba, tranquilamente sentado em cima de uma rocha.
- Ele não sabe que pode ficar cego? - graceja Shakespeare.
Ela ri-se.
- Você é completamente louco. E meio milhão é, também, uma completa loucura. É muito dinheiro!
- Para mim, não para si...
- Isso é o que toda a gente pensa - diz ela, furiosa -, mas garanto-lhe que, para mim, meio milhão não é uma bagatela!
- Mas quer os seus óvulos.
- Sim, quero os meus óvulos.
- bom - diz ele, com um encolher de ombros -, a jogada é sua, minha querida. Eu acho que, ao regatear,
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uma pessoa está a rebaixar-se de uma forma terrível, não acha? Por isso, seja meio milhão, e a decisão é sua.
- Quanto tempo tenho?
- Para se decidir? Vinte e quatro horas. Eu telefono-lhe amanhã, por volta do meio-dia e, se for sim, marcamos outro encontro, para tratarmos dos pormenores.
- E se for não?
- Nesse caso, receio que os seus óvulos acabem numa vala em New Jersey.
- Não tem compaixão? - grita ela.
- Óptima deixa! - comenta ele. - Você dizia-a no Beer and Busties, não era?
- Talvez - reconhece ela. - Já fiz muitos filmes, desempenhei uma data de papéis e pronunciei um montão de deixas. Por vezes, elas entram na realidade.
- Exactamente o que eu penso, querida senhora. É um dos motivos por que decidi viver como actor.
Ela olha-o com curiosidade:
- Mas sabe quem você é? Ele abana a cabeça:
- Não sei nem me preocupo com isso.
- Creio que ouvi dizer que se drogava e que foi por isso que deu barraca no Hamlet, é verdade?
Ele esboça um sorriso travesso:
- E eu ouvi dizer que você se atirava a toda a gente nos estúdios, incluindo carpinteiros e moços de recados, é verdade?
Ela ri-se:
- Telefone-me amanhã, por causa dos óvulos.
- Telefono, mas, antes de nos irmos embora, gostaria de dizer-lhe quanto admiro o seu talento e lamento não termos trabalhado juntos.
- Estamos a trabalhar. Agora.
- É verdade - concorda ele e, levantando uma mão lânguida, acena-lhe uma despedida.
Ela espera mais cinco minutos, conforme o combinado, olhando para os macacos saltitantes, mas sem os ver. Depois, encaminha-se para a zona dos ursos polares, onde
se encontra com McBryde.
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- Sente-se bem? - pergunta ele, ansioso.
- Acabo de fazer a melhor actuação da minha carreira, mas reconheço que estou um nadinha assustada.
- Porquê? Ele tratou-a mal?
- Oh, não! Mas reconheci-o. Loring Minchley Flotsom. Chegou a ser actor.
- Era bom?
- Podia ter sido, mas dizem as más línguas que ele começou a snifar e, uma noite, deu cabo do solilóquio do Hamlet, o que o arrumou de vez.
- Um toxicodependente? bom, não havia razão para ter medo. Você estava protegida.
- Estava? Como?
- Não reparou naquele casal jovem, com o miúdo, que estava ao pé de vocês? O homem era o agente Sol Applebaum. A mulher era a agente Sally Crumble, que trabalha no gabinete do Gripsholm e ficou toda contente por poder sair de trás da secretária.
- Não me diga que o miúdo também era um polícia disfarçado!
- Não, é filho do sargento Rumfry, e a mãe ficou encantada por passar um dia sem ele lá em casa.
- Ouça lá, McBryde, com todos esses polícias à volta por que é que você não deitou logo a mão ao Flotsom?
- Quer reaver os seus óvulos, não quer? O actor vai levar-nos a eles. Pus dois homens a segui-lo e dois carros em stand by.
- Está bem - diz ela. - O realizador é você! Podemos ir, agora?
- Claro. Posso dar-lhe uma boleia?
Durante o trajecto, ela senta-se de lado, para poder olhar bem para ele.
- Que tal fico com o cabelo preto? - pergunta-lhe.
- Dinamite! - responde ele. - Jezabel.
- Mas não gosta.
- Nem por isso.
- Está bem - corresponde ela, tirando a peruca e os óculos escuros. - E agora?
- Muito melhor. Agora, o colarinho já condiz com os punhos...
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Ela ri-se e dá-lhe um murro no braço:
- Se você descobrir os meus óvulos e prender o Flotsom, o que é que lhe acontece?
- É uma questão complicada. Ele roubou os óvulos, mas a outro ladrão, o Champ DuBois. E ele roubou-os a outro ladrão, Ronald Yates, que os sacou ao ladrão original, Nicholas Kazanian. Acho que podemos acusá-los a todos de receptação de mercadoria roubada, se você quiser apresentar queixa.
- Mas você acha que eu não devia!
- É consigo. Você tem muito poder, como sabe, e pode complicar ou facilitar a vida a esses tipos, como quiser.
Ela pondera por um instante.
- Detestaria ver o Flotsom atrás das grades - acaba por dizer. - Tenho mesmo pena do tipo.
- Era o que eu calculava. Porque não espera até recuperarmos os óvulos e então resolvemos isso?
- Como queira, chefe.
Estacionam defronte do edifício dela e McBryde desliga o motor.
- Podemos falar um bocadinho?
- Sobre o quê?
- Nós os dois. Eu ontem comecei a pedir desculpa, agora deixe-me acabar. Peço desculpa por ter perdido as estribeiras e tê-la insultado, mas sentia-me tão frustrado com este caso que o seu encontro com o Sam Davidson, sem me dizer, foi a gota de água.
- Foi uma estupidez minha - concorda ela. - Você tinha todo o direito de estar furioso. Foi só porque eu estou tão habituada a dirigir tudo e toda a gente que pensei que também seria capaz de resolver isto. Muito bem, agora que já nos desculpámos mutuamente, continuamos amigos?
- Espero que sim.
- Você devia sorrir mais vezes - diz ela. - Todo o seu rosto se ilumina! Mas, habitualmente, anda tristonho. Diga-me uma coisa, McBryde: gosta de ser polícia?
- Claro que gosto. Foi sempre a profissão que tive e a única que quero ter.
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- Mas não ganha lá muito bem, pois não? - vou vivendo.
- Eu tenho uma organização enorme, complicada, e começo a sentir que é demasiado grande para eu gerir. Preciso de alguém em quem possa confiar. Que me diz a mudar-se
para a costa ocidental e aprender o ramo? O meu ramo.
- Obrigado, mas não, obrigado.
- Para começar poderia pagar-lhe o dobro do que ganha agora.
- E qual seria o meu cargo? Garanhão interno? Escute, agradeço a oferta, mas não tem nada a ver com o que eu desejo.
- Ou seja?...
- Ser polícia, um bom polícia. Casar-me, eventualmente.
- E criancinhas a pairar.
- Claro, faz parte disso.
- Quer-me parecer que você tem a sua vida toda planeada.
- Então, o que é isso? Perguntou-me o que é que eu desejava e eu disse-lhe. Não se planeia encontrar alguém com quem se queira casar nem se planeia ter filhos. Espera-se. Agora, já sabe aquilo que eu espero. E que espera você?
- Neste momento? Espero que você deixe este chasso parado em segunda fila e venha lá acima fazer amor.
- Primeiro, tenho de ligar para o escritório.
- Tinha, meu amante diabólico! - diz ela.
BOSTON, Massachusetts
- Creio - afirma monsenhor ODell - que estamos a proceder tão racional e expeditamente quanto o justificam as circunstâncias.
- Concordo plenamente - diz o professor T. Hiram Farthingale.
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Aquecidos pela auto-satisfação, enterram um pouco mais os seus traseiros, eclesiástico e jurídico, nas poltronas de cabedal e, erguendo os balões, aproximam-nos dos respectivos narizes, para inalarem os vapores.
- Recebi uma segunda carta de Roma - comunica ODell - e creio que é um facto encorajador, pois revela um interesse redobrado pelo nosso projecto.
- Excelente - comenta o professor. - Pela parte que me toca, dei a entender aos meus amigos do FBI que existe um plano, que está a ser analisado por altas autoridades e que poderá assegurar-lhes um papel chave na investigação. Claro que eles estão imensamente satisfeitos e prometem uma colaboração sincera. Creio, portanto, que podemos concluir seguramente que o caso está a prosseguir de uma forma excelente. Queres um charuto, Terry?
- Quero sim, obrigado. - Acendem-nos e, beatificamente, soltam longas fumaças. - Olha, meu velho - diz o monsenhor, perdido em pensamentos -, o roubo dos óvulos da Marilyn proporcionou-nos muitas horas de revigorantes debates, mas eu acho que ainda teve outro efeito mais saudável.
- Sim? E qual foi?
- Ora, Hiram! De certa forma, deu-nos novas energias, não foi? Estamos os dois no Outono das nossas vidas, se não for o princípio do Inverno, e, no entanto, este crime ignóbil obrigou-nos a entrar em acção.
- É, de certa forma, pessoalmente gratificante - admite Farthingale. - Estou certo de que tu pensavas, tal como eu, que os nossos dias de acção se tinham perdido no esquecimento e, contudo, nós reagimos a esta terrível afronta aos costumes da civilização como velhos bombeiros. Ouvimos o alarme e lançámo-nos à carga, com os
olhos faiscantes e as narinas dilatadas.
- Não é espantoso, meu velho, que a nossa, não me atrevo a dizer renaissance, e talvez o termo apropriado seja reanimação, tenha sido activada por uma conspiração
criminosa contra uma mulher que nos é completamente estranha?
Segue-se um momento de silêncio.
- Não é exactamente uma pessoa completamente estranha
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- contradiz o professor, hesitantemente. - Devo confessar-te, Terry, que vi todos os filmes da Marilyn. E gostei muito de todos eles, devo acrescentar.
- E eu - declara ODell, sonhadoramente - também devo confessar que tenho, na minha carteira, muitas vezes desdobrada e de novo dobrada, uma fotografia da Marilyn que apareceu num jornal há vários anos. Tem vestido um fato de banho bastante reduzido que foi desenhado por ela.
- Eu conheço bem essa fotografia! - exclama Farthingale, excitado. - Dois Selos e Um Penso Rápido!
- Que maravilha - diz o monsenhor, irradiando alegria.
MANHATTAN, Nova Iorque
- Dois carros devem chegar - diz Mário Zucchi ao seu grupo de soldados. - Eu conduzo um e o Dino o outro.
- Verifica o carregador da sua Beretta de 7.65 mm.
- Tirem as armas para fora, mas nada de tiroteio, se pudermos evitá-lo. A artilharia é só para impressionar. Só lá está o Shakespeare e a garota dele; por isso, não estou a prever grandes problemas.
- E se ele não nos deixar entrar? - pergunta Dino.
- O que é que achas? Deitamos a porta abaixo! O que interessa é entrar depressa, apanhar os ovos e cavarmos rapidamente. Depois, voltamos para aqui e eu telefono para Chicago. Agora, vamos todos tomar um copo! Só temos de lá chegar à meia-noite.
QUEENS, Nova Iorque
- Dois carros devem chegar - diz Rocco Castellano a Vito Zivic. - Tu levas um, com três tipos, e eu levo o outro, com o Morry. - Verifica o mecanismo da sua Luger
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de 9 mm. - Nada de violência, a menos que tenha mesmo de ser. Só lá está o Shakespeare e a mulher dele; portanto, não vai haver confusão.
- Mas, e se houver? - pergunta Zivic. Castellano encolhe os ombros:
- Então, nós resolvemo-la! Estou a pensar chegar à Rua 20, Este, à meia-noite. Entramos rapidamente, pegamos nos ovos e saímos a correr. Depois, voltamos para aqui e festejamos.
- E se o actor nos faz frente?
- Não te preocupes - aconselha Rocco. - Acredita em mim! Vai ser limpinho.
MANHATTAN, Nova Iorque
- Dois carros devem chegar - diz o tenente McBryde ao sargento Rumfry. - Você leva um e eu levo o outro. Carrega o seu revólver de serviço, .38. - Segundo os homens que seguiram o Flotsom, no casarão só está ele e a mulher; por isso, não estou a prever problemas.
- Prendemos os dois? - pergunta Rumfry.
- Claro! Mas não saímos de lá sem o frasco dos óvulos e o recipiente com o azoto líquido de reserva. Isso é muito importante!
- A que horas quer ir?
- À meia-noite. Não deve andar muita gente na rua a essa hora.
MANHATTAN, Nova Iorque
- Eles têm praias de topless na Riviera francesa, querida
- brinca Shakespeare. - Talvez te transformes mesmo num pisco-de-peito-ruivo!
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- Posso levar o meu trabalho? - pergunta Gwendolyn.
- Claro que podes.
- Loring - diz ela, comparando a sua tela bordada com uma gravura a água-forte de Franklin Pierce -, tu estás a fazer qualquer coisa ilegal, não estás?
- De certa forma - responde ele, alegremente -, mas asseguro-te que ninguém sofrerá com as minhas actividades ilícitas.
- Se fores preso, vamos para a cadeia?
- Se formos - diz ele -, insistirei para que nos dêem celas com comunicação. Mas as hipóteses... Oh, maldição! Estão a tocar à porta. Não te mexas, minha querida. Eu vou lá.
Despreocupadamente, abre a porta exterior.
- Viva, Shakespeare! - diz Zucchi, sem sorrir.
- Ena, Mário! Que agradável surpresa! Saíste para tomar o copo da meia-noite, não foi?
- Não exactamente - responde o Nariz. - Chicago quer que eu fique com os óvulos. Por isso, passa-os para cá, que vou-me logo embora.
- Adorava, meu velho, mas não os tenho comigo. Transferi a mercadoria para um local mais seguro, sabes?
- Hum, hum. Está bem. Rapazes, revistem a casa! Zucchi empurra a porta totalmente para trás e entra.
Atrás dele entra, em força, o seu bando de gorilas. Gwendolyn Farquhar ergue os olhos quando a multidão lhe invade a sala de estar.
- Convidados! - exclama, jovialmente. - Que bom! O melhor é eu ir pôr água ao lume, para fazer um bule de chá.
- Não se mace, minha senhora - diz Zucchi, educadamente. - Nós não nos demoramos.
Faz um gesto com a mão e os homens espalham-se pela grande casa, mas ele fica na sala de estar observando Shakespeare. O actor encosta-se despreocupadamente à prateleira do fogão de sala e enfia um cigarro na boquilha de porcelana.
- Estás a ficar um bocado gordo, não estás, Mário? Estás um bocadinho papudo no queixo.
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Mas antes que Zucchi possa responder, Dino entra na sala de estar trazendo nas mãos os dois recipientes de congelação.
- Achei-os - comunica ao patrão. - Estavam na casa de banho.
Mário lança um olhar gelado ao actor:
- Estavas mesmo a pensar atraiçoar-nos, não estavas? O Homem quer que voltes imediatamente para Chicago. Ele é que vai tratar de ti! Dá-me os frascos, Dino. Chama os rapazes e vamos embora.
O bando de Zucchi reúne-se e dirige-se para a saída.
- Que pena não poderem ficar - grita-lhes Gwendolyn. - Apareçam outro dia!
Dino abre a porta e Rocco Castellano dá um passo em frente.
- E nem foi preciso bater - comenta. - Viva, Mário! Podemos juntar-nos ao grupo?
Avança decididamente, seguido pelos seus homens. Zucchi, continuando a segurar os frascos, volta para a sala de estar, rodeado pelo seu gang.
- Então, voltaram - observa Gwendolyn, toda contente. - E trouxeram amigos. Meu Deus, receio não ter cadeiras que cheguem!
Zucchi pousa os frascos no chão:
- Eu vou sair daqui, Rocco. com os óvulos.
- Só por cima do meu cadáver - replica Castellano.
- Isso resolve-se já - diz Mário, sacando da sua Beretta.
Rocco, com um safanão, atira a arma para longe e engalfinha-se em Zucchi. Começa a zaragata. com gritos, palavrões, exclamações de triunfo e gemidos de dor, dão-se socos, torcem-se braços, os homens passam rasteiras uns aos outros e, ruidosamente, estatelam-se no chão. Shakespeare pega no braço de Gwendolyn e tira-a do meio da confusão, encostando-se os dois à parede, observando o espectáculo.
A batalha espalha-se com toda a intensidade pela sala de estar, com cadeiras e mesas viradas ao contrário, candeeiros que caem com grande estrondo e os presidenciais banquinhos para os pés a serem utilizados como mocas. Ó sangue corre, e os homens, ensanguentados, levantam-
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-se cambaleando, para trocarem murros desesperados, recorrendo então às fintas, às caneladas e aos violentos pontapés.
- Quietos! - grita o tenente Jeffrey McBryde, fazendo a sua entrada e empunhando o revólver da Polícia. Querem ficar todos quietos, por amor de Deus?!
Ninguém fica. De certa forma, o rebuliço até se intensifica, e McBryde, Rumfry e os agentes uniformizados avançam com dificuldade para o meio da pancadaria dos mafiosos. Os agentes tentam separar os contendores, usando todos os argumentos para restabelecer a paz. Mas a zaragata continua.
No meio do caos, Shakespeare pega nos dois frascos de plástico e, com Gwendolyn, começa a esgueirar-se em direcção à porta exterior, esquivando-se aos banquinhos, que andam pelos ares, tentando não pisar os corpos caídos no chão e desviando-se, para evitarem os golpes dos bastões dos polícias.
Estão eles a sair silenciosamente, quase em bicos dos pés, quando Mário Zucchi, com o nariz esmurrado e sangrando, detecta a sua retirada.
- Feci - grita ele. - O filho da puta está a roubar os meus ovos!
Então, toda a gente fica quieta. Voltam-se todos, para verem o actor, que, com a companheira, abandona o grande casarão, levando consigo os frascos. Começa imediatamente uma correria frenética em direcção ao vestíbulo, mas são tantos os que tentam chegar à porta exterior que a multidão provoca um engarrafamento. Os homens lutam, vociferam-se horríveis imprecações, deita-se a mão aos que estão à frente e, em contrapartida, é-se agarrado pelos que estão atrás.
Finalmente, ladrões e polícias lá conseguem desembocar na Rua 20 a tempo de verem um barrigudo Buick preto a afastar-se da beira do passeio. Ouvem-se gritos furiosos, berros e uivos, enquanto todos eles se precipitam como loucos para os respectivos carros. Os motores gemem e os pneus chiam quando os carros dos gangsters e dos polícias se lançam em perseguição.
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A caça continua pela 1ª Avenida acima com fortes buzinadelas e lamentos das sirenes. Os carros de Zucchi, de Castellano e de McBryde misturam-se numa grande confusão,
e os seus condutores, arqueados sobre os volantes, não prestam qualquer atenção aos semáforos, acelerando as suas máquinas como se estivessem em Lê Mans.
- View halloo! - canta Shakespeare, alegremente, conduzindo o velho Buick com deliciosa descontracção. A caçada começou e nós somos a raposa matreira. Não é divertido, minha querida.
- Só espero que alguém se tenha lembrado de fechar à chave a porta da frente - replica Gwendolyn, agarrando-se bem quando se desviam, para fugirem aos veículos mais lentos, e derrapam nas curvas.
O actor segue uma rota ziguezagueante, dirigindo-se para norte e virando para oeste sempre que o trânsito se apresenta engarrafado à sua frente. No seu encalço, e estendendo-se numa longa fila, vêm os mafiosos e a força policial de Nova Iorque, todos ultrapassando os limites de velocidade enquanto tentam passar à frente dos outros.
Ninguém sabe quem deu o primeiro tiro, mas depois dele inicia-se um tiroteio rápido, contínuo e misericordiosamente impreciso. Na Rua 25, uma bala fura o vidro da montra da Gimme-Gimme Boutique, decapitando um manequim vestido com pijama de sarapilheira.
O tenente McBryde, que segue no carro da Polícia dianteiro, comunica febrilmente pelo seu rádio, chamando patrulhas de todo o Manhattan e vai transmitindo ao receptor as indicações sobre a sua sucessiva localização. Quando o tiroteio começa, ele saca do seu revólver e atira aos pneus do Cadillac de Zucchi, que segue à sua frente.
A cavalgada prossegue ruidosamente, atravessando a Rua 28 para a 3." Avenida, subindo esta em direcção à Rua
35, virando para oeste, para a Park Avenue, e depois novamente para norte. É na Rua 35 que uma bala perfura a montra do Filthy Shame Bar Grill. Atinge e estilhaça uma garrafa de Pizzle Beer que está a ser bebida por um cliente habitual do bar, o qual fica tão assustado com o incidente que faz imediatamente uma jura em como vai deixar
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de beber bebidas fortes, jura essa que dura, pelo menos, oito minutos.
Shakespeare lidera a corrida até à Madison Avenue e prossegue a sua rota estouvada na direcção norte. Nesta altura, juntaram-se ao cortejo mais três carros da Polícia,
e, como não se regista qualquer abrandamento no tiroteio, os peões refugiam-se nas entradas dos prédios e os carros não envolvidos sobem para os passeios, fugindo, assim, ao turbilhão que se aproxima.
Na Rua 53, um carro ocupado por um par de recém-casados, Mr. e Mrs. Launcelot Becque, do Quebeque, vira para a Madison e vê-se envolvido na tumultuosa procissão.
- É a televisão, amor! - exclama Mr. Becque alegremente, carregando no acelerador. - Estão a filmar um programa e nós vamos ficar nele! Já viste quando os nossos amigos souberem?!
Os carros sobem rapidamente a Madison, mantendo-se o actor à frente dos seus perseguidores através de uma condução tresloucada, que põe em fuga peões que passeiam os seus cães, joggers, vendedores de cocaína pura e um grupo de damas e cavalheiros, elegantemente vestidos, que vêm a sair de um bar mitzvah no Plaza.
O Buick entra no Central Park pela Rua 59 e continua, como um louco, a subir o East Drive, pregando um susto dos diabos ao cavalo e ao condutor de uma caleche, mas inspirando os passageiros, quatro turistas japoneses, que, embriagados com saque, gritam: "Banzai, parvalão!"
Ouvindo os gemidos das sirenas, que se aproximam vindos de todas as direcções, Shakespeare vira à esquerda, em contramão, depois de atravessar a Transversal n.º
1. Depois, vendo as barras vermelhas iluminadas dos carros da Polícia, que cada vez estão mais próximos, salta por cima do passeio e avança para a zona verde. O
Buick serpenteia por entre as árvores, deita abaixo moitas e arbustos, acabando por ir parar no meio de Sheep Meadow. E logo atrás vem a Polícia, os enfurecidos mafiosos e o casal Launcelot Becque.
- Tally-ho! - entoa o actor. - Vamos para o campo!
205
Começa a andar às voltas em Sheep Meadow, formando grandes círculos, e, à medida que se aproximam mais carros da Polícia, a espiral fica mais pequena até que todo o cortejo acaba por formar um círculo apertado. Os guarda-lamas raspam uns nos outros, os pára-choques amolgam-se, os faróis partem-se e, por fim, a corrida chega ao seu estridente final.
Aparecem polícias por todo o lado, agitando as armas
no ar.
- Prendam toda a gente! - grita McBryde, com um rugido.
O MUNDO
News de Nova Iorque: ROUBO DOS OVOS ESTALOU! Post de Nova Iorque: OVOS RECUPERADOS! "bom
trabalho", diz estrela. Newsday de Nova Iorque: ACABOU O MISTÉRIO DOS
OVOS!
Times de Nova Iorque: Óvulos roubados recuperados pela Polícia, em perseguição nocturna que aterrorizou muita gente.
A recuperação dos óvulos de Marilyn Taylor desencadeia imediatamente uma excitação em todo o mundo que ultrapassa o sensacionalismo provocado pelo seu roubo. Os jornais, a televisão e a rádio levam a boa notícia aos quatro cantos do mundo e gera-se, assim, uma grande efusão de alegria e orações de graças.
A actriz, numa conferência televisiva, agradece, chorosa, a todos aqueles que se preocuparam e rezaram. Louva os esforços do Departamento de Polícia de Nova Iorque e destaca o nome do tenente Jeffrey McBryde, o qual, através do seu "brilhante desempenho como detective", acabou por conduzi-los à resolução do crime.
Uma vez mais o seu escritório se vê inundado de telegramas, cartas e telefonemas, mas que, desta vez, são de felicitações.
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Incluem-se nesse dilúvio de mensagens uma nota calorosa do casal presidencial e uma cópia de uma resolução aprovada por ambas as câmaras do Congresso expressando
a sua alegria pela recuperação dos seus óvulos e a sua admiração pela forma corajosa como ela havia suportado a sua perda temporária. Os chefes de Estado de vários
países, incluindo a República Popular da China e a Suazilândia, também enviaram notas de felicitação.
Para celebrar o feliz desfecho do caso, o presidente da Câmara de Nova Iorque proclama o Dia de Marilyn Taylor e é concedido meio dia de folga a todos os trabalhadores municipais. Realiza-se uma cerimónia ao ar livre, na Câmara Municipal, durante a qual Marilyn recebe a chave da cidade e um rolo de pergaminho. O evento é de certa forma perturbado quando são lançados ovos para cima das autoridades municipais ali reunidas, vindo depois a saber-se que os agitadores haviam sido identificados como membros de um grupo esquerdista que reivindica a distribuição gratuita de preservativos nos bancos e a instalação de máquinas para trocar dinheiro no metropolitano.
As celebrações sucedem-se em todo o mundo, incluindo uma que se realiza no estádio de futebol de Glasgow, na Escócia. Gera-se um tumulto e alguns dos intervenientes na celebração são atingidos por miúdos de carneiro, que lhes são atirados. À sua semelhança, também um corso realizado em Dijon, na França, se vê perturbado quando se descobre que os comunistas locais haviam rasgado todos os posters de Marilyn, em tamanho natural, que estavam afixados nos urinóis públicos, substituindo-os por fotografias da senhora Gorbachev.
Essas são, contudo, as infelizes excepções, pois noutros locais a disposição era única e simplesmente de alegria. Por exemplo, em Waco, no Texas, aquele que é conhecido pelo maior churrasco do mundo foi realizado em honra de Marilyn, exigindo a matança de três mil porcos. E, em Cremona, na Itália, a maior pizza do mundo é feita para festejar a recuperação dos óvulos de Marilyn, requerendo essa gigantesca tarte a compra de trinta toneladas de tomate,
207
meia tonelada de mozzarela, quatro quilómetros de pimentos e meia tonelada de fermento.
De Moscovo, o Izvestia informa que se dança nas ruas de Pinsk.
MANHATTAN Nova Iorque
Acompanhado pelo sargento Rumfry e dois agentes uniformizados, McBryde traz os frascos de congelação para o edifício da Rua 63, Este, e exibe-os orgulhosamente a Marilyn Taylor e aos exuberantes membros do seu staff.
- Cá estão eles - diz o tenente. - A razão de todo aquele tiroteio! Já os verifiquei e o recipiente está perfeitamente atestado com azoto líquido.
- Como poderei eu alguma vez agradecer-lhe? - comenta Marilyn.
- Ele arranjará uma maneira - replica Harriet Boltz, e a patroa lança-lhe um olhar furioso.
- Mas o melhor será levarmo-los o mais depressa possível ao doutor Primster - continua McBryde -, pois ele é a única pessoa que pode dizer se os óvulos ainda estão bons. Se estiver de acordo, o sargento Rumfry leva-os já para a clínica de fertilização.
- Faça-o - concorda Marilyn - e diga ao Primster que eu lhe ligarei mais tarde. Venha ao meu gabinete, McBryde! Tenho um assunto para tratar consigo.
Quando ficaram sozinhos, com a porta fechada, ela dá-lhe um abraço apertado e um grande beijo.
- Obrigada, garoto - diz, com voz rouca.
- Eu é que te agradeço pelo belo elogio que fizeste ao Departamento, e a mim, na conferência de imprensa!
- Bem, fizeste um trabalho excelente e eu estou-te agradecida. Até podias ter sido atingido!
- Nada disso - replica ele. - Houve uma data de barulho, mas todos eles tinham péssima pontaria, graças a Deus!
- Onde estão esses patifes, agora?
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- Soltos sob fiança, excepto o casal de noivos do Canadá. Esses foram apanhados no caso por acidente e pensaram que alguém estava a filmar um policial para a televisão, mas, quando souberam que as armas e as balas eram a sério, quase desmaiaram! Já voltaram para o Quebeque e devem estar a dizer aos amigos que o velho Oeste continua bem vivo em Nova Iorque.
- E o que é que vai acontecer aos bandidos?
- Queria falar contigo sobre isso. Temos uma longa série de acusações: perturbação do sossego público, uso de arma de fogo, desrespeito dos limites de velocidade e dos semáforos, ameaça irreflectida à segurança dos peões, recepção de bens roubados. E por aí fora!
Ela olha-o com atenção:
- Mas tu não queres levá-los a tribunal. Ele solta um suspiro:
- Tive uma longa conversa com o inspector Gripsholm e com alguns dos entendidos em leis do Departamento, e todos eles concordaram que nós poderíamos castigar os tipos da Mafia, por acusações menores, mas, quanto a prendê-los, existem certas dúvidas. O actor é o único que, de facto, tinha os óvulos em seu poder e roubou-os a um anterior ladrão. Um advogado esperto conseguiria facilmente safá-lo. E mais, processar todos esses patetas, custaria um dinheirão à cidade. Já gastámos uma pequena fortuna para recuperar os teus óvulos...
- Então, queres mandar em paz esses parvalhões. O tenente acena afirmativamente:
- Vamos deixá-los fazer um acordo com o promotor, assumindo-se como culpados, e reduzir a sentença a uma multa com pena suspensa, mas tudo isso necessita da tua aprovação. Se quiseres entrar a matar e provocar uma grande agitação na comunicação social, então nós temos de alinhar nisso.
Ela reflecte por um instante e acaba por dizer:
- Não. Vamos fazer como tu queres. Já tenho outra vez os meus óvulos, e é isso que importa. Não estou interessada em castigar um bando de idiotas.
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- Já esperava que dissesses isso - comenta o detective. - Não fazes ideia do montão de papelada que me tiras da frente!
- Muito bem, agora acabaram-se os negócios, não é? Que dizes a uma celebração só nossa? Lá em cima.
- Oh, sim!
Chegados ao seu quarto cheio de folhos, ela fica nua num abrir e fechar de olhos e depois observa-o, maravilhada, enquanto ele se despe, lenta e metodicamente, alisando as rugas do seu fato, de três peças, que dobra e pendura cuidadosamente nas costas de uma cadeira.
Duas horas depois, com a cabeça deitada no seu ombro, ela diz-lhe com meiguice:
- Já alguém te disse que tu criavas habituação?
- Tu também vicias com muita facilidade - diz ele, muito sério.
- Então? Que vamos nós fazer acerca disso? - Ele não lhe dá resposta. - Estive a pensar no que tu disseste. Acerca de quereres continuar na Polícia, casar e ter
um filho.
- E?...
- Vê lá a minha ideia: tu ficas com o teu emprego e continuas aqui; eu transfiro a maior parte que puder dos meus negócios para Nova Iorque, mas, mesmo assim, terei de passar grandes temporadas em Los Angeles, e o nosso casamento seria bicosteiro.
- Casamento? - pergunta ele, perplexo. - Estás a pedir a minha mão?
- Exactamente, meu matulão! Que me dizes?
Ele afasta-se delicadamente dela, apoia-se num cotovelo e baixa os olhos para ela:
- Quer parecer-me que ninguém aqui falou em amor.
- A palavra que começa com um A grande?! - Troça ela com uma gargalhada rouca. - Já a pronunciei tantas vezes, em tantos filmes, que ela já perdeu o significado!
- Mas para mim não perdeu. Queres que eu diga primeiro?
- Quero, dá-me a deixa!
- Amo-te - diz ele.
- E eu também te amo - declara ela, tentando aproximar-se mais, mas ele mantém-na afastada:
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- Muito bem, partindo do princípio de que casamos, e filhos?
Ela senta-se na cama e abraça os joelhos:
- Tenho de ser franca contigo, McBryde. Eu não posso ter filhos.
- Porquê?
- Na mesma altura em que doei os óvulos fiz uma esterilização. Laqueei as trompas.
- Oh, meu Deus! Por que fizeste isso?
- Tinha medo.
- De quê? Do parto?
- Ora, sou demasiado prática para ter medo disso!
- Não me digas outra vez que receavas perder a tua independência, que eu não acredito nisso!
- É unicamente por egoísmo! E, se quiseres chamar-lhe também ganância, não me importo. Vê bem, McBryde, neste momento eu tenho o mundo a meus pés. Faço parte dos
sonhos molhados de todos os homens e a maioria das mulheres também gosta de mim. Invejam a minha fortuna e o meu estilo de vida, que é um factor importante da minha imagem pública. E eu tiro partido dessa imagem até ao último centavo que puder arranjar, pois sei que isso não vai durar sempre. vou ficar velha, o público cansar-se-á de mim, aparecerá outra garota qualquer com umas mamas maiores e um sorriso mais bonito que me deitará abaixo. Mas neste momento eu sou a maior e ganho muito dinheiro. Mas o que aconteceria se eu tivesse um filho?
- Agora, sou eu que vou ser franco contigo - diz ele. - Acho que estás completamente errada. Não há nada que diga que um filho iria afectar minimamente a tua carreira!
- Não há nada - concorda ela -, mas existe esse perigo. Eu não me fartei de trabalhar e passar por muitas coisas para agora correr o risco de arruinar tudo dando à luz uma criancinha! Por isso é que fiz a esterilização. Olha lá, se nos casássemos, estarias disposto a adoptar uma?
- Não. Quero um filho meu. Ela inspira profundamente:
- Já calculava que dissesses isso!
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Mantêm-se em silêncio durante um bocado e depois ele levanta-se e começa a vestir-se.
- Creio que não há mais nada a dizer - declara, firmemente.
- Chega aqui um bocadinho - pede ela. - Não me abandones!
Ele senta-se na beira da cama, depois de ter vestido as cuecas tipo calção, e ela, pegando-lhe na mão, encosta os nós dos dedos à sua face.
- Existe uma possibilidade, só uma possibilidade, de se poder anular a laqueação das trompas, mas isso é complicado e não dá garantias...
Ele retira a mão e acaricia-lhe a face com as pontas dos dedos:
- E tu fazias isso, por mim? - pergunta-lhe encantado.
- Não me agrada a ideia de ir outra vez à faca, mas fá-lo-ei, se for essa a única maneira que eu tenho de te agarrar. Quando quero qualquer coisa, ou alguém, luto por isso, custe o que custar!
- Acredito que sim.
- vou falar com o Primster, para saber quais são as probabilidades de êxito que a operação tem e tu ficas em stand by até eu o saber. Não vás para a cama com mais ninguém!
- Não há hipótese - replica ele. - Tu destruíste todas as outras mulheres, a meus olhos. Es a única que eu quero!
- Quem é que escreve os teus diálogos? - pergunta ela. - São escaldantes! Vá, agora despe essas cuecas ridículas e vamos continuar.
BOSTON, Massachusetts,
Monsenhor ODell sai do Retiro de São Bartolomeu, saúda a Lua com um toque de dedos na aba do seu chapéu de feltro e inicia o passeio até Beacon Hill, mas o seu caminhar é arrastado e o semblante melancólico.
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- Boa noite, padre - diz-lhe a governanta, abrindo a porta.
- Boa noite, Bridget. E como vai hoje o seu reumatismo?
- Pior - responde ela, secamente. - Deus dá com uma mão e tira com a outra.
- Pois é - concorda ODell, com um profundo suspiro.
Lá em cima, no escritório, um calado professor Farthingale, envergando um roupão de veludo que já viu dias melhores, saúda o seu convidado estendendo-lhe um balão de conhaque. Sem trocarem uma única palavra, os dois velhos amigos afundam-se desconsoladamente nas poltronas de cabedal e entreolham-se com grande tristeza.
- Claro que eu estou absolutamente encantado com o facto de os óvulos da Marilyn terem sido recuperados diz, finalmente o professor.
- E eu partilho da tua alegria - riposta o monsenhor, lugubremente. - Foi um desfecho jubiloso para um incidente tão infeliz.
- Mas não estaria a ser sincero - prossegue o anfitrião - se não admitisse um certo desapontamento pelo facto de o nosso grandioso projecto não estar destinado a dar frutos.
- Talvez um charuto possa ajudar a aliviar a nossa angústia.
- É uma excelente sugestão!
Fumam, beberricam os seus conhaques e, a pouco e pouco, a disposição melhora.
- Sofrer desilusões não é uma experiência nova para mim - observa Farthingale - e arriscar-me-ia a dizer que tu, ao longo da tua vida, também tivestes grandes esperanças que se goraram...
- Mais do que uma vez - confirma ODell. - A certa altura, cheguei a pensar que pouco me faltava para um cardinalato, mas tal não aconteceu... e sobrevivi!
- E eu uma vez contava com uma nomeação para juiz federal, que nunca se materializou! Mesmo assim, sinto-me satisfeito com o rumo que a minha vida seguiu...
Depois, mantêm-se calados, num silêncio descontraído e confortável, soltando fumaças dos seus charutos, degustando
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o seu conhaque e cogitando no drama que recentemente os mantivera energicamente ocupados.
- Terry - diz o professor, passado um bocado -, durante estas últimas semanas o nosso objectivo foi a eventual recuperação dos óvulos da Marilyn, não foi?
- Foi esse, sem dúvida, o incentivo para todos os nossos esforços.
- Nos quais tu colaboraste plenamente! No entanto, aqueles óvulos foram doados com a intenção de serem úteis a uma amiga da Marilyn, casada, e que seriam fecundados in vitro pelo esperma do marido dessa amiga, vindo o embrião daí resultante a ser implantado no útero dessa mulher.
O monsenhor endireita-se na sua poltrona, apercebendo-se dos primeiros acordes de uma alegre disputa que talvez venha a mante-los proveitosamente entretidos durante muitos e agradáveis serões vindouros, e deita mais conhaque no seu copo.
- Porém - continua o professor -, esse novo método de concepção é expressamente proibido pela tua igreja! Há uma contradição que me confunde: os teus esforços para ajudar a recuperar os óvulos da Marilyn, apesar das acesas críticas de Roma!
ODell confirma com um solene aceno de cabeça:
- À primeira vista, pode parecer uma dicotomia, mas creio que uma observação mais cuidada provará que as minhas acções estavam completamente de acordo com as homilias papais sobre o assunto. O que é importante, Hiram, é analisar, compreender e dar valor aos motivos envolvidos: o de Marilyn, ao doar os óvulos, e o meu, lutando pela sua recuperação.
E então lá continuam eles, revigorados pela discussão. Acendem-se novos charutos, o conhaque escorrega e as suas tagarelices intelectuais prolongam-se até de madrugada. Mesmo assim, o aceso debate não fica concluído, mas meramente adiado para outro serão, em que, mais uma vez, possam provar que nenhum deles sofre de esclerose cerebral e que a logorreia, enquanto arte, ainda não morreu em Boston.
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MANHATTAN, Nova Iorque
- Tenho boas notícias para si - diz o doutor Reginald Primster, com o seu sorriso gelado. - Os seus óvulos parecem estar em excelentes condições.
- Óptimo! Os nove?
- Aparentemente, sim. Tomei a liberdade de avisar o casal Bannon.
- Eu sei - comenta Marilyn -, pois falei com eles. Parecem dois miúdos na noite de Natal! Eric disse-me que tem uma marcação para ir amanhã ao seu Masturbatório e cumprir a sua missão.
Primster arreganha os seus grandes dentes:
- Acho que esse é o método mais eficaz para a obtenção de sémen.
- Ah, ah! Diga-me uma coisa, doutor: quantos dos meus óvulos tenciona implantar?
- Habitualmente, transferimos três embriões, pois, aparentemente, é o número perfeito. A transferência de mais embriões não parece ter qualquer efeito na possibilidade de gravidez, embora possa aumentar a probabilidade de gravidezes múltiplas.
- Não creio que Eve esteja muito ansiosa por ter quíntuplos. Importa-se que eu fume?
- Importo-me sim - responde ele. Marilyn suspira.
- Isto está a ficar de tal maneira que, se calhar, tenho de me esconder num armário para fumar! Agora, diga-me outra coisa: se vai usar só três óvulos, o que acontece aos outros?
Ele encolhe os ombros.
- Isso é consigo. Eles pertencem-lhe.
- Tive uma ideia maluca... Quando aqueles canalhas tentaram estorquir-me um resgate pelos óvulos, queriam cerca de cem mil dólares por cada um. Será que valem assim tanto?
Primster mexe-se na cadeira, pouco à vontade.
- É algo extremamente duvidoso. É certo que já houve
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casos de mulheres que foram pagas para doarem óvulos a outras, mas nunca ouvi falar de montantes que ultrapassassem os mil dólares. Por que pergunta?
- Eu disse-lhe que era uma ideia maluca! O Departamento de Polícia de Nova Iorque gastou muito dinheiro para recuperar os meus óvulos e eu gostaria de os reembolsar. Lembrei-me que talvez pudesse contratar o Sothebys, ou o Christies, para fazer um leilão dos restantes óvulos, e dar essa verba à Polícia de Nova Iorque. Que acha? É uma ideia completamente louca?
O doutor abre a boca, perplexo, e depois brinda-a com um sorriso gelado.
- Após os incríveis acontecimentos das últimas semanas, não estou em condições de afirmar que qualquer atitude que a menina possa ter em relação aos restantes óvulos seja totalmente louca. Seria, sem dúvida, uma nova forma de ajudar a resolver o problema da esterilidade. Assim como os problemas orçamentais da polícia.
- Pois é... - diz Marilyn, pensativa -, e a grande publicidade que isso originaria. Seria um verdadeiro evento para a comunicação social. Poderíamos receber lanços de todas as partes do mundo.
- Lá isso é verdade.
- bom, falarei sobre isso com o meu pessoal das relações públicas mas agora tenho uma coisa mais importante para lhe perguntar: quais são as hipóteses que tenho de anular a laqueação das trompas?
Atónito, Primster fita-a atentamente por uns instantes.
- Já?! Se bem me lembro, tentei dissuadi-la disso, mas a menina mostrou-se inflexível...
- Eu sei, eu sei, e não estou a culpá-lo a si. Diga-me só se isso é possível.
- Possível é, e isso é tudo o que posso dizer-lhe. Nunca pode haver garantias quando se trata de cirurgia e a operação inversa requer uma microcirurgia muito delicada. Pode dizer-me por que motivo deseja agora anulá-la?
- Conheci um sujeito e quero casar com ele. Ele está de acordo, mas quer um filho. Um filho dele, não um adoptado!
216
- E está disposta a submeter-se à operação por causa dele?
- Sim.
Pela primeira vez o sorriso do doutor Primster é quase caloroso.
- Não será necessária a operação - afirma.
- Não? Mas então poderei ter um filho na mesma? O médico acena afirmativamente com a cabeça.
- Como?! - exclama ela, excitada. - Explique-me como! - E ele explicou-lhe.
CAIRO, Egipto
Ptolomeu observou Youssef Khalidi, que se empanturra com um almoço de testículos de carneiro grelhados com figos.
- Fui transferido - diz, sombriamente, o homem da CIA.
- Ah, sim?
- Para Reiquejavique.
- Ah! Na Roménia?
- Islândia.
Khalidi ergue os olhos do prato:
- Costuma fazer frio na Islândia?
- Por vezes. Eles consideram-me o bode expiatório pelo falhanço da Operação Soufflé e foi por isso que me transferiram. Tínhamos unidades da Sexta Esquadra de alerta, helicópteros de combate prontos a descolar e uns cinquenta durões bem preparados e prontos para actuar. E então que eles recuperam os óvulos da Marilyn no Central Park! Estou com sorte por o controlador não me ter dado uma venda para os olhos e um último cigarro! - Youssef acaba o que tem no prato e limpa a boca à manga. Depois, acende o seu narguilé e sopra uma fumaça rançosa por cima da cabeça de Ptolomeu. O agente inclina-se para a frente: - Joe, você gozou comigo à grande! Os óvulos da
217
Marilyn nunca foram levados para fora do país, nunca saíram de Nova Iorque! Não existe nenhuma seita terrorista chamada Braço de Deus, não há nenhum informador chamado Akmed nem nenhuma montanha que se chame Bossa de Camelo! Foi tudo uma grande patranha, não foi? Khalidi confirma com um triste aceno de cabeça. - Por que é que você fez isso? - pergunta-lhe Ptolomeu, indignado. - A minha carreira está arruinada. Sou o motivo de troça de toda a Companhia... e agora tenho de ir para a Islândia, para ficar com os tomates congelados!
- Tudo acontece porque Alá quer.
- Alá não teve nada a ver com isso! Você é que me vigarizou! Calculo que tenha sacado para aí uns dez mil dólares americanos, ao Tio Sam, nestas últimas semanas. Porquê, Joe? Porquê?
- A minha avó - replica Youssef.
- A sua avó?! Que tem ela a ver com isto?
- Precisa de um tratamento ortodôntico.
Ptolomeu recosta-se para trás e olha para a pista de dança. Uma dançarina, lacrimosa, movimenta-se ondulantemente ao ritmo de Oh! How She Could Yacki, Hacki, Wicki, Woo. O seu enorme umbigo enruga-se formando o desenho de um sorriso pateta, e o agente acha que nesse "sorriso" há algo de irónico. Volta-se para Khalidi:
- Que idade tem a sua avó? - pergunta-lhe, calmamente.
- Noventa e dois.
- E quer pôr um aparelho nos dentes? Youssef acena afirmativamente:
- Ela acha que, com os dentes direitos, talvez consiga arranjar um novo marido.
Ptolomeu inspira profundamente e põe-se de pé.
- Não lhe pago o almoço - declara, com firmeza. Khalidi olha para ele como se estivesse prestes a chorar e o agente despede-se com um gesto. - Adeus - diz-lhe e começa a afastar-se.
- Há muito tempo que não o via! - exclama Youssef. Ptolomeu olha para trás.
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- Não - observa -, não é assim! Só se diz isso quando... - Detém-se subitamente. - Pois é, Joe - conclui, com um sorriso débil -, há muito tempo que não o via.
MANHATTAN, Nova Iorque
Nos pisos inferiores do edifício da Rua 63, Este, realiza-se um gigantesco cocktail oferecido pela Marilyn Taylor Merchandise, Inc. Entre os convidados e borlistas,
vêem-se clientes, fornecedores, repórteres, fotógrafos, escritores, starlets, banqueiros, políticos, altas e baixas patentes da Polícia de Nova Iorque, pivots dos
noticiários da televisão, corretores da bolsa, críticos de teatro, modelos, actores, produtores, realizadores, magnatas do ramo imobiliário, estilistas, redactores,
editores, dois chulos, quatro pegas e um congressista. O presidente da Câmara e o governador também fazem uma breve visita, a fim de apresentarem os seus cumprimentos.
Em cada um dos três pisos existe um bar bem fornecido e, no segundo, um enorme buffet, realçado por uma enorme escultura de gelo de Marilyn, nua e na pose de Diana, a Caçadora, com o arco e a flecha.
A Marilyn de carne e osso apresenta-se magnificamente cintilante. Envergando um macacão em lamé dourado e segurando uma taça de champanhe, movimenta-se jovialmente por entre a multidão, soprando beijos aos amigos e, também, aos desconhecidos. São muitos os convidados que tecem comentários ao seu aspecto fabuloso, com aquele brilho especial, que faz com que mais do que uma mulher se interrogue se ela não estará grávida.
Os convites especificavam "das 17 às 22 horas", mas o tempo vai passando, o buffet é reabastecido, as bebidas nunca se esgotam nos bares e ninguém quer ir para casa. A anfitriã não deixa de circular, infatigavelmente, assemelhando-se mais à Freira Voadora do que a Átila, a Huna.
Continua esfuziante quando, um pouco antes da meia-noite, agarra delicadamente no braço do tenente McBryde.
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- Estás a divertir-te, boneco? - pergunta-lhe.
- Bela festa - assegura-lhe ele -, mas devias deixar de fumar.
- Oh, claro! - graceja ela. - E de fornicar, logo a seguir! Vai buscar outra bebida e vamos lá para cima. - Depois, ao ver a expressão dele, acrescenta: - Não é para isso, pateta! Tenho de falar contigo. - Sentam-se na beira da cama, com a porta fechada. - Estás sóbrio? - pergunta ela.
- Claro que estou sóbrio. Só bebi três copos!
- Cinco, que eu contei. Ele riu-se:
- Não te escapa nada, pois não? Mas estou sóbrio.
- Óptimo, porque eu quero fazer um acordo.
- Que tipo de acordo? - pergunta ele, com medo.
- O nosso casamento bicosteiro mantém-se?
- Eu já te expliquei... - começa ele.
- Eu sei o que tu me explicaste, acerca de ter filhos e isso tudo, mas a parte do casamento está assente, não está?
- Ele acena afirmativamente. - Muito bem. Agora, acerca dos filhos... Falei com o doutor Primster e ele disse-me que pode anular a laqueação das minhas trompas. Isso implica uma operação muito complicada, mas eu estou disposta a fazê-la!
McBryde rodeia-lhe os ombros com um braço.
- Ainda te amo mais por isso, mas não quero que o faças.
- Mas sabes que o farei, se é isso que tu queres.
- Mas não quero! - afirma ele, com firmeza. - Não é assim que se inicia um casamento: tu a saíres do altar e a ires para uma mesa de operações!
- Existe outra maneira - replica ela, olhando-o nos olhos. - Foi o Primster que me explicou, mas eu é que já devia ter-me lembrado disso...
- Ah, sim? E qual é?
- O Eric Bannon contribuiu com o esperma dele, o qual vai ser utilizado para fecundar os meus óvulos, e os embriões de quatro células serão transferidos para o útero da Eve. Depois, se tudo correr bem, um desses embriões desenvolver-se-á. Um bebé! Estás a compreender?
- Claro!
- bom - diz Marilyn, falando calma e cautelosamente -, o Primster afirma não haver nenhum motivo pelo qual nós não possamos fazer exactamente o mesmo. Os meus óvulos e o teu esperma. E os embriões serão implantados em mim. Eu serei a verdadeira mamã e tu e verdadeiro papá. Será o nosso filho, teu e meu, percebeste?
McBryde sente-se furioso:
- Queres tu dizer - explode, acaloradamente - que eu tenho de ir para dentro daquela estupidez daquele Masturbatório e fazer o servicinho?!
A mulher mais bela do mundo sorri-lhe com meiguice:
- Eu dou-te uma ajuda - garante-lhe.

 

 

                                                                  Lawrence Sanders

 

 

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