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Planeta Criança



Poesia & Contos Infantis

 

 

 


BETTY / Georges Simenon
BETTY / Georges Simenon

                                                                                                                                                   

                                                                                                                                                   

 

 

Biblio VT

 

 

 

 

  • Não quer comer nada?
    Ela disse que não com um movimento da cabeça. Parecia-lhe que a voz que estava a ouvir não tinha um som natural, como se fosse a de alguém que lhe falasse do outro lado de um vidro.
    - Note que quando falo em comer alguma coisa, isso quer dizer coelho, porque, como poderá ver olhando à sua volta, hoje é dia de coelho. E se não apreciar coelho, tanto pior para si. Quando é dia de bacalhau, só há bacalhau...
    Era estranho ouvir as sílabas sucedendo-se de enfiada, encadeando-se, formando palavras, frases - um pouco como o fio que se transforma a pouco e pouco em renda ou a lã em meia tricotada.
    Esta imagem de uma meia tricotada, ainda por acabar, com as suas três agulhas, fê-la sorrir. Era inesperada ali a evocação de um objecto tão vulgar, diante de um homem que visivelmente se esforçava por parecer delicado e que compunha as suas frases com tanto cuidado. Ele estava vestido de cinzento. Todo ele era cinzento: os olhos, os cabelos, a pele e até a gravata e a camisa. Não se lhe via uma única mancha de cor. E, ao ouvi-lo, ela acabava de pensar numa meia, não cinzenta mas preta, porque tinham sido sempre pretas as meias que vira tricotar, havia muito tempo, na Vendeia, quando ainda não completara os seus catorze anos. E como tinha agora vinte e oito...
  • .
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  • .
    .

  • .

  • - É um hábito que se adquire. Ela ia a perguntar:
    - Que hábito?
    Porque o seu pensamento seguia várias direcções simultâneas. Não conseguia estabelecer a relação entre o hábito a adquirir e a meia de lã, esquecendo-se de que a meia pertencia apenas à sua própria memória e não à do companheiro. A pergunta que não chegara a fazer devia ter transparecido, apesar de tudo, no rosto dela, porque o homem continuava sem desanimar, com uma aplicação tocante:
    - Gostar ou não gostar.
    Gostar de quê? Ela esquecera-se do coelho e do bacalhau. O olhar cruzava-se-lhe uma vez mais com o de um oficial americano sentado num dos bancos do bar. O americano não deixava de a fitar e ela perguntava a si própria onde o teria já visto.
    - A quarta-feira é o dia do cassoulet[, embora fosse mais correcto falar da noite do cassoulet.
    Perante o fino sorriso do seu interlocutor, ela adivinhava que a distinção era subtil e teria gostado de poder seguir o fio do pensamento do outro.
    1. Guisado provençal. (N. do T.)
    - É apreciadora?
    Apreciadora? Era cada vez mais cómica esta conversa da qual ela acabava por nada compreender. Tudo se misturava. Mas tanto pior. E respondeu gravemente:
    - Sim.
    Não sabia do que estavam a falar, ao certo mas fazia questão de não ser indelicada. A verdade é que não conhecia aquele homem demasiado bem vestido, com os olhos de uma penetração fascinante. Mas nem por isso estava menos próxima dele, mais próxima do que alguma vez estivera fosse de quem fosse, porque, em última análise, para além dele, nada mais havia no mundo.
    Parecia inverosímil, mas era assim mesmo. Aquilo duraria o que durasse, uma hora, ou uma noite, ou talvez mais tempo. E esta ideia fazia-a sorrir com um sorriso que, de momento, era sem amargura. Ele era extremamente delicado. No automóvel não tentara acariciá-la e não lhe fizera uma única pergunta.
    Porque ela lembrava-se do automóvel, do couro fresco e flexível dos assentos, da chuva no pára-brisas e nos vidros embaciados onde os seus dedos tinham começado maquinalmente a desenhar algumas linhas. Voltava a ver, na cidade, as luzes que se concentravam em cada gota de água, e, depois, os faróis, já na auto-estrada. Sentia-se capaz de descrever os pormenores mais insignificantes, como se falasse com um juiz ou com um médico, tudo o que depois sucedera...
    Depois do quê? Depois do bar da rua de Ponthieu, pelo menos. Recuar mais do que isso era excessivamente desagradável e ela recusava-se a pensar no assunto. Era preciso não estragar uma coisa tão difícil de obter e mais
    difícil ainda de conservar: aquele estado de equilíbrio justo ou, mais exactamente, de flutuação perfeita, estado que era de momento o seu: flutuação agradável, repousante, quase alegre.
    Não alegre no sentido comum do termo, é claro. Ela não sentia vontade de rir, nem de se pôr a dançar ou a contar histórias. O que havia de exaltante em tudo aquilo era o facto de não saber mais nada, nada do que viria depois, naquela noite, amanhã, nos outros dias, e não lhe dar a mínima importância.
    - Espanta-me que as pessoas que todos os dias devoram animais não perguntem a si próprias...
    Ela ouvia, fitando o rosto do homem que via como que através de uma lente, mas, apesar da sua boa vontade, outros pensamentos continuavam a perpassar-lhe no espírito.
    Antes de saírem da rua de Ponthieu devia ter pedido ao companheiro que esperasse um instante, a fim de poder ir à casa de banho onde a empregada lhe teria, sem dúvida, vendido um par de meias. As empregadas das casas de banho, quase todas elas, tinham meias de mulher para vender.
    Incomodava-a ter uma malha em cada perna. Pela primeira vez na sua vida não mudava de meias havia uma eternidade. Dois dias? Três dias? Não queria lembrar-se com precisão. Também não tomara banho entretanto e isso, dentro em pouco, haveria também de a pôr pouco à vontade. Haveria uma banheira e ele dar-lhe-ia tempo de se servir dela?
    Entrevia rostos, muito perto ou muito longe, cabelos, olhos, narizes, bocas que se moviam, e ouvia vozes que nem
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    sempre vinham dessas bocas. Tentava dar-se conta, sem conseguir grande coisa, do género de lugar onde se encontrava e, sem pensar, voltava a pegar no copo de whisky.
    - À sua saúde!
    Havia uma mulher loura, uma empregada, por detrás do balcão do bar, com seios grandes como esses que, em rapariguinha, ela própria tanto quisera ter um dia. Havia também um negro com um boné branco na cabeça, que surgia, sorridente, no enquadramento ora de uma ora de outra porta, e que toda a gente parecia conhecer. Havia o oficial americano que, encostado ao bar, sempre com o copo na mão, continuava a olhar para ela.
    Havia gente a comer e gente que se contentava com as bebidas; gente em grupo e gente solitária, olhando os outros em silêncio.
    - Nunca pensou que, por isso, estamos cheios de animais?
    Ela tinha consciência da sua própria embriaguez. Estava embriagada havia muito já, mas, de momento, encontrava-se numa fase boa. Não se sentia indisposta, não tinha vontade de vomitar nem de chorar. O seu companheiro estaria bêbado também? Teria já bebido antes de os dois se encontrarem no Ponthieu?
    Ele aparecera assim, de repente, na rua sombria, com o tweed do fato coberto de gotas de chuva. No Ponthieu, igualmente, ele era um habituê, como se via pela maneira que tinha de olhar à volta e de cumprimentar o barman
    com um aceno.
    Ela estava sentada num banco e ele pedira-lhe autorização para se sentar no banco ao lado.
    - Faça favor.
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    As mãos do homem eram longas e brancas, muito secas, e ele brincava, de vez em quando, com elas como se fossem objectos estranhos.
    Tal como ela, ele não sabia de onde viera aquela mulher nem o que bebera antes. Talvez não tivesse notado as malhas das meias dela? Em todo o caso, não podia adivinhar que a sua companheira não tomara banho, que nem sequer se pudera lavar depois de estar com o homem da tarde.
    Já não estavam na rua de Ponthieu. Ela não sabia onde estavam. Reconhecera apenas a avenida de Versailles, onde entrevira de passagem a casa da mãe; depois, tinham-se metido pela auto-estrada e virado, mais tarde, à direita por um caminho enlameado. Ao sair do carro, ela sentira um cheiro a folhas húmidas e saltara por cima de uma poça de água. Alguma água, aliás, tinha ficado dentro do seu sapato esquerdo.
    Estavam num restaurante, uma vez que havia gente a comer. Mas aquilo era também um bar. Havia, abafada, a música de um gira-discos que ninguém parecia ouvir. No entanto, a mulher conservava a impressão de não se encontrar num estabelecimento normal e de toda a gente estar a olhar para ela.
    Todos os presentes, incluindo o oficial americano, pareciam conhecer-se, mesmo e sobretudo quando não estavam a falar uns com os outros - e o patrão ia de uma mesa para a outra, sentava-se por um momento nesta ou naquela, sem, também ele, tirar os olhos dela. Não estava despenteada. Não tinha o nariz sujo. O seu tailleur era mais do que decente. Havia, é certo, o problema das meias, mas não era nada que não acontecesse a qualquer outra mulher.
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    Talvez devesse ter sido apresentada, aceite? Ou talvez tivesse que ser submetida a uma prova?
    - Como vai isso, doutor?
    O patrão, desta feita, mas continuando de pé, dirigia-se ao homem que a trouxera e este pestanejava na direcção dele sem se dar ao trabalho de responder; voltava a olhar para as mãos poisadas na borda da mesa e começava a esfregar cuidadosamente a pele de entre dois dedos.
    - Não me está a ouvir...
    Era para ela que ele estava a falar, uma vez que o patrão se afastara.
    - Garanto-lhe que sim.
    - O que é que estava a dizer?
    - Que à força de comermos animais...
    Ele olhava-a fixamente e ela perguntava a si própria se teria dado a resposta certa. Devia estar com um ar confuso, porque ele se levantou dizendo num murmúrio:
    - Desculpe-me por um instante...
    E dirigia-se agora a grandes passadas direito a uma porta. O patrão aproveitara-se da circunstância para se aproximar, recolher os dois copos vazios.
    - A mesma coisa?
    Também o patrão era alguém que ela tinha a impressão de já ter visto. Era uma mania, naquela noite. Não só no que se referia às pessoas, mas também aos objectos. Tudo aquilo lhe lembrava alguma coisa. Mas quando? Mas onde?
    - É a primeira vez que vem ao Buraco?
    - É.
    Ela ignorava que o lugar onde estava se chamava o Buraco e perguntava a si própria se não seria uma brincadeira,
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    uma armadilha, se não fizera mal em responder a sério.
    - Conhece o doutor há muito tempo?
    - Não.
    - Não deseja comer nada?
    - Não, obrigada. Não tenho fome.
    - Faça como se estivesse em sua casa. Aqui, as pessoas estão em casa.
    Ela sorriu-lhe para lhe agradecer o facto de ele lhe ter falado e, para se controlar, bebeu metade do copo, abriu a mala e pôs um pouco de pó-de-arroz. Tinha o rosto inchado. Preferiu não se ver no pequeno espelho de bolso que, entretanto, lhe mostrava uma mulher muito morena e forte, sentada atrás dela.
    - Quando conhecer isto melhor, já não poderá passar sem cá vir.
    O médico, com uma expressão estranhamente concentrada, retomara o seu lugar diante dela.
    - Peço-lhe desculpa de a ter deixado aqui sozinha. Ela tentava, sem o conseguir, ouvir o que diziam os
    outros, nas suas costas, persuadida de que era dela que estavam a falar. Por sua vez, levantou-se, depois, murmurando:
    - Dá-me licença?
    Ao dirigir-se à casa de banho, deu de caras com o negro que a olhou, rindo com um riso despreocupado e silencioso, como se fosse uma aventura cómica encontrá-la de repente no corredor estreito. No entanto, nada mais se passou: o negro deu-lhe passagem, rindo ainda com mais vontade, e ela foi ter a uma cozinha suja e completamente desarrumada. Uma porta que não
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    fechava bem separava a cozinha da casa de banho, cuja lucarna dava para o campo.
    A mulher começava a impacientar-se sem razão precisa e talvez a sentir também um pouco de medo. Era tempo de beber mais um copo para se aguentar à tona antes que a ansiedade ou a tristeza a submergissem.
    Quando voltou à sala, antes mesmo de se sentar, engoliu o resto do whisky.
    - Estou cheia de sede! - suspirou, em seguida. O médico chamou:
    - Joseph! Sirva uma bebida a esta senhora.
    - A mesma coisa? Ela disse que sim.
    - E para si também, doutor?
    - Pode ser.
    De novo, ela sentia vontade de que as coisas andassem depressa, vontade de se deitar, sozinha ou não, em qualquer sítio, e de fechar os olhos. A música, o burburinho cansavam-na. Estava farta de ver caras, olhos que a fitavam como se ela fosse um fenómeno ou uma intrusa.
    - Por que é que está a coçar-se? Decididamente, a mulher atrasava-se sempre em relação a cada uma das perguntas dele.
    - Eu? - surpreendeu-se ela, após um momento que lhe pareceu muito longo.
    Talvez tivesse, sim, coçado as costas da mão. Não dera por isso. Ora, o homem pegava-lhe nessa mão com uma avidez contida, enquanto o rosto mostrava de súbito um regozijo infantil.
    - É aqui, não é?
    Ele estava a indicar um ponto invisível.
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    - Sim... Suponho que sim...
    - Por baixo da pele?
    De repente, o médico fazia-a sentir-se assustada e, para o não contrariar, ela respondia a tudo que sim.
    - Está a mexer-se, a arrastar-se?
    - O que é que está a arrastar-se?
    - Está a gravitar à superfície ou em profundidade? É muito importante, porque cada um deles tem o seu carácter. Sei de alguns que...
    - De que é que você está a falar?
    - Dos vermes.
    - Que vermes?
    - Então, ignora que tem vermes por baixo da pele, vermes de toda a espécie, vermes minúsculos e vermes enormes, gordos e delgados, agitados e tranquilos? E tem também outros animalejos, infinitamente mais subtis, que eu lhe hei-de mostrar e cujo carácter a ensinarei a conhecer...
    Ela via agora muito perto de si o rosto dele, estreito e incolor, os cabelos cinzentos e alisados, os olhos de um cinzento quase igual e parecia revelar-se-lhe de súbito algo de anormal. Gostaria de libertar da dele a sua mão, esforçou-se por consegui-lo, mas o homem prendia-lha com firmeza.
    - Vai ver como eu apanho esses bicharocos que nos torturam tão diabolicamente...
    com a mão livre, ele tirava agora da algibeira um palito de ouro aguçado.
    - Não tenha medo, eu tenho muita prática.
    Uma voz disse então: í
    - Deixe-a lá em paz, doutor.
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    Mas ele nem por isso desistiu de tentar picar-lhe a pele.
    - Já lhe disse que a deixasse em paz.
    - Estou só a tirar-lhe um vermezinho que a está a magoar e...
    O patrão deu mais um passo na direcção de ambos, poisou, como num gesto amigável, a mão no ombro do médico.
    - Chegue aqui por um momento, se faz favor.
    - vou já. Ela pediu-me...
    - Venha lá.
    - Porquê?
    - Tenho um recado confidencial para si.
    O homem cinzento levantava os olhos, hesitante.
    - Tens medo que eu lhe faça mal? Esqueces-te de que eu...
    O sorriso do médico era amargo, resignado. No entanto, era um homem alto e o patrão baixote, atarracado. Um segundo mais tarde, o médico estava já de pé, com o palito na mão e, humilhado, deixava-se impelir na direcção da porta de trás.
    Betty pôs-se a olhar para as mãos, perturbada, inquieta; esvaziou o copo e, depois, com um encolher de ombros, esvaziou também o do seu companheiro. Continuava sem saber quem ele era. Não sabia nada. Já não sabia nada e começava a sentir-se invadida pelo pânico. O oficial americano, ao balcão, olhava-a sem sorrir, lúgubre.
    - Se faz favor!
    - Sim, minha senhora.
    - Mais uma bebida.
    O homem não lhe perguntou se queria a mesma coisa.
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    Ela estava cheia de pressa. Quanto mais depressa, melhor. As imagens começavam a tornar-se confusas. Havia, por exemplo, uns cabelos ruivos que tanto podiam estar perto dela como ao fundo da sala, e ela não sabia se pertenciam a um homem ou a uma mulher. Tinha que fazer um esforço para focar as pupilas e, então, descobria rostos parados, indiferentes, que talvez pertencessem a figuras de cera.
    Queriam-lhe mal, sem que ela pudesse descortinar o motivo.
    Devia ter cometido um erro qualquer, infringido as regras do estabelecimento. Como poderia ser de outro modo, uma vez que, essas regras não as conhecia sequer? Por que é que não lhas tinham explicado?
    Não era por beber que os ofendia. A prova é que o própriopatrão chamara Joseph para a servir uma primeira vez e havia ali outras pessoas que estavam a beber tanto ou mais do que ela. Uma mulher nova de cabelos deslavados, a um canto, estava lívida, no seu lugar, a cabeça atirada para trás, enquanto o companheiro, que lhe pegava na mão como um apaixonado, parecia não se preocupar com o assunto.
    Que aconteceria se Betty se pusesse a chorar? Sentiu a tentação de o fazer para ver o que se sucederia, para que as coisas mudassem, para que se ocupassem finalmente dela sem se limitarem a observá-la.
    E se lhes contasse tudo o que fizera desde havia três dias? Os rostos assumiriam por fim uma expressão humana? Haveria compaixão ou simplesmente um mínimo de interesse em todos aqueles olhos de peixe?
    A mão tremia-lhe a remexer na mala.
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    - Se faz favor!
    - Sim, minha senhora. A mesma coisa?
    Aquilo provava uma vez mais que não era a bebida o problema.
    - Têm cigarros?
    - Um momento.
    Ouvia-se lá fora um motor, um automóvel que se afastava, que arrancava com dificuldade no piso enlameado. Uma voz disse:
    - Mário vai levá-lo.
    Betty não soube de início que era a ela que aquelas palavras se dirigiam, porque tinham sido ditas nas suas costas. Quase ao mesmo tempo, descobria a mão de uma mulher que lhe estendia um cigarro.
    Voltou-se até meio. A mulher morena e corpulenta, com uma madeixa branca no cabelo, estava junto dela, de pé, e, tocando com os dedos na cadeira que o médico ocupara, perguntava:
    - Dá-me licença?
    Tinha uma voz rouca, um colar de pérolas cinzentas a rodear-lhe o pescoço. Talvez o último whisky tivesse sido além da conta para a mulher sentada, porque as imagens se lhe tornavam cada vez menos precisas, como já acontecera à tarde no quarto, antes mesmo de o homem se ter voltado a vestir. Não o vira sair. Ele podia ter-lhe levado a carteira, as roupas. Podia tê-la estrangulado e ela teria sido incapaz até de o descrever. Sem dúvida, se tivesse sido estrangulada, não poderia descrever o seu assassino. Mas...
    Estava confusa. Os sons sobrepunham-se. O corpo, na cadeira, fora tomado por uma oscilação que ela já não conseguia controlar. Se o balanço se tornasse um bocadinho
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    mais forte, cairia por terra entre os pés das outras pessoas e as pontas de cigarro. Nessa altura é que ficaria suja a valer! - Ele mete-lhe medo? Quem? Porquê? Era como se se tivesse esquecido já do homem de cinzento.
    - É um encanto de rapaz ou até um homem de valor. A mulher trouxera consigo o copo para a mesa dela.
    - À sua!
    - À sua também!
    - Espero que tenha compreendido que ele se droga, não? Quando há bocadinho saiu de ao pé de si foi para se ir injectar e não se tratava da primeira dose da noite. Conhecia-o?
    - Não.
    - Chama-se Bernard. Era médico em Versailles.
    Médico em Versailles. Betty estava ainda a ouvir, captando bem o sentido das palavras. O que lhe escapava era a relação que as palavras podiam ter com a sua pessoa. Por que é que lhe diziam aquilo, gravemente, como se fosse uma coisa importante ou dramática? A outra mulher, sem dúvida, reparara nas malhas das meias dela. Talvez tivesse notado também que ela não estava lá muito asseada por baixo da maquilhagem...
    Tratava-se de uma morena de belos olhos castanhos, como que de esquilo, e a voz dela, baixa, quebrada, assumia um tom tranquilizador.
    Betty tentou descer as pálpebras, concentrar-se um pouco, mas teve que as voltar a abrir quase no mesmo instante, porque sentia tudo a andar à volta.
    - Tenho sede... - suspirou.
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    Estenderam-lhe um copo, o dela ou o de outra pessoa, tanto fazia.
    - Já jantou?
    - Acho que sim.
    - Não tem fome?
    - Não.
    - Não quer apanhar um bocadinho de ar?
    - Não.
    Não podia, porque estava incapaz de andar. Se tentasse pôr-se de pé, tinha a certeza de que cairia. Cairia, apesar de tudo, dentro em breve, bem entendido, mais cedo ou mais tarde, mas preferia que isso não se passasse enquanto ainda se encontrava consciente.
    Que importava o sítio onde acabasse por acordar - no hospital ou noutro lado qualquer? E seria melhor para toda a gente se não voltasse sequer a acordar. Era o que pensava do fundo do coração. Não estava triste. Havia muito que deixara para trás a tristeza.
    - Você seduziu Alan. Desde que aqui entrou que ele não tira os olhos de si, sem se dar conta que já vai no oitavo scotch.
    Betty esforçava-se por sorrir, como uma pessoa bem educada que presta atenção ao que lhe dizem.
    - Estou a ouvir Mário, já de volta.
    Também Betty ouvia o motor de um automóvel, depois o bater de uma porta de carro, e o rumor da chuva por um momento, enquanto a porta da sala esteve aberta. Em que automóvel...? Era um problema, de facto. Se Mário tivesse levado o automóvel do médico...
    - Conseguiste metê-lo na cama?
    - A mulher dele ajudou-me.
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    - E ele não protestou muito?
    - Não, já está a contar os coelhos que lhe entraram no quarto.
    Betty dava-se perfeitamente conta de que os outros dois trocavam um olhar, que se referiam à sua pessoa, que a mulher morena encolhia de leve os ombros como que explicando que não havia nada de grave. Era-lhe indiferente o que os outros dissessem e ela não tentava nem adivinhar o que estariam eles a tramar a seu respeito.
    Repetia, porém, sem motivo:
    - Coelhos...
    E, julgando que se tratava de uma pergunta, explicavam-lhe:
    - Quando fica assim, vê toda a espécie de animais à volta dele, sem falar dos bicharocos que lhe andam por baixo da pele e que ele tenta tirar com aquele palito. Quando ainda exercia a medicina, na fase final, garantia aos clientes que todos os seus males vinham desses animalejos invisíveis de que prometia desembaraçá-los...
    Quem? O quê? Desembaraçar de quê? Era tarde de mais, agora. Um copo a menos, um gole a menos, e Betty teria talvez conservado toda a sua euforia de havia pouco.
    Mas doía-lhe! Em sítio nenhum! Por todo o lado! Estava suja. Miserável. E não havia ninguém, ninguém no mundo inteiro. Assinara. Dera-as. Nem sequer as dera: vendera-as, porque aceitara realmente o cheque. Um documento em boa e devida forma, cujos termos o notário ditara pelo telefone.
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    Eu abaixo-assinada, Elisabeth Etamble...
    Vira-se obrigada a recomeçar a declaração numa folha nova porque, a princípio, escrevera "Betty".
    Eu abaixo-assinada, Elisabeth Etamble, em solteira Fayet, 28 anos, sem profissão, moradora no 22 bis, Avenida de Wagram, Paris, reconheço pela presente...
    Como não reconheceria se era verdade que fora apanhada em flagrante?
    O copo estava outra vez vazio. Sempre vazio Procurou o criado com os olhos, um pouco envergonhada por pedir mais uma bebida diante da mulher desconhecida.
    - Preciso de me embebedar - explicou. Acrescentara por causa do termo demasiado cru que empregara:
    - Desculpe.
    - Eu sei como isso é.
    Não sabia coisíssima nenhuma. Pouco importava.
    - O mesmo, por favor.
    E de repente, pusera-se a explicar cheia de volubilidade, galgando sílabas como se as sílabas fossem os degraus de uma escada:
    - Sabe? Não o conhecia de lado nenhum. Fomos apresentados há bocadinho por amigos, num bar...
    Mas ele não lhe tinha sido apresentado, como também ninguém lhe apresentara o homem daquela tarde nem o da véspera. Por que sentia necessidade, então, de inventar todas aquelas histórias? Por ser uma mulher quem se sentava à sua frente?
    Mulher que, de resto, não acreditava em Betty - era visível. Meneava a cabeça como num sinal de assentimento, mas só por delicadeza, por boa educação.
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    A rapariga lívida adormecera no seu canto, e o companheiro dela, tendo por fim conseguido libertar a mão que lhe dera, tagarelava com o dono do estabelecimento, fumando um cigarro.
    Quanto a Betty, as coisas não seriam tão fáceis. Em primeiro lugar, não havia ninguém que lhe desse a mão. Depois, ia ficar doente. Era uma questão de minutos, disso tinha ela perfeita consciência. O tronco oscilava-lhe cada vez mais, a tal ponto que, embora com um gesto disfarçado, se via forçada a agarrar-se à mesa.
    - Mora nas redondezas? Betty disse que não com um meneio de cabeça, mas tendo o cuidado de não se mexer muito.
    - Em Paris?
    Nem em Paris nem noutro lado. Não morava em lado nenhum. Por que é que aquela mulher insistia? Se não se tivesse sentado à mesa de Betty, o americano provavelmente teria ido ter com ela. Devia ter um automóvel à espera lá fora. E levá-la-ia para um sítio qualquer, um sítio onde haveria uma cama. Talvez também lhe fizesse perguntas, mas, com ele, ela responderia o que lhe passasse pela cabeça e o homem limitar-se-ia a sentir-se um tanto comovido.
    De resto, talvez com o americano, ela não tivesse ficado a sentir-se tão mal, que mais não fosse por uma questão de respeito humano, e também porque, pelo menos, poderia tomar banho.
    Não sabia que horas eram. Havia três dias e três noites que não sabia as horas, que a luz do dia e o escuro tinham deixado de ter sentido. Tudo se confundia.
    Diante dela, a mulher morena falava a meia voz, e o
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    resultado era um som parecido com o das orações no interior de uma igreja.
    - À sua esquerda, aquele homem careca, a fumar charuto, é um lord inglês que tem uma propriedade em Louveciennes e que todas as noites...
    A sua interlocutora devia ter mais vinte anos do que Betty. Parecia ter vivido muito, conhecido todo o género de pessoas, sobretudo gente estranha.
    - Madame! - gritou-lhe ela de súbito.
    Betty não tivera tempo de pensar. Gostaria de ter pedido socorro, de dizer à outra, por exemplo:
    - Segure-me!... Faça qualquer coisa...
    Aquilo tinha que parar! Ela tinha que deixar de pensar naquilo! Que viesse alguém e lhe desse a mão, a obrigasse a dormir, cuidasse dela durante o sono - alguém, um ser humano qualquer, que estivesse ao lado dela quando voltasse a abrir os olhos.
    Teria realmente chegado a dizer alguma coisa? Teria chegado a sair algum som da sua garganta? Tinha a impressão de ter dito:
    - Madame!
    Ora, não estavam a interrogá-la. Não lhe perguntavam coisa nenhuma. Já não havia surpresa nem curiosidade no rosto que se mostrava à sua frente. No entanto, Betty não estava num hospital nem num asilo, onde as pessoas se habituam a ver os doentes soerguerem-se nas suas camas para gritarem por socorro.
    Estava num bar. Havia homens e mulheres a beber. Por muito transtornada que estivesse, esses homens e mulheres existiam, bem como o ruído dos copos, o barulho do gira-discos, as vozes reais...
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    Então, pareceu-lhe que fora cortado o contacto entre ela e os outros, que eles a não ouviam, ou ainda que, por uma razão desconhecida, não queriam ouvi-la.
    Betty estava no meio deles, mas não existia, como também não existia à tarde, ao andar pelas ruas. As pessoas passavam, passavam. Algumas dessas pessoas acotovelavam-na de passagem, empurravam-na por vezes e não havia ninguém que se desse conta de que ela era um ser vivo.
    - Está a perceber?
    Escrevera a carta, todas as palavras que lhe tinham ditado. Assinara. Esforçara-se, escrevendo, por exemplo, Elisabeth em vez de Betty. Metera o cheque na mala e ele devia estar ainda lá. Depois...
    Era de mais. Já não aguentava. A mão procurava o copo na mesa. Desajeitada, fazia-o cair e o copo estilhaçava-se nos ladrilhos vermelhos do chão.
    Recomeçou:
    - Eu... Queria dizer:
    - Desculpe.
    Em vez disso, porém, cerrou os punhos e uivou:
    - Não! Não! Não! E não!
    Acabara. Tudo! Havia limites para tudo. Tinha a noção de que toda a gente estava a olhar para ela, mas não via ninguém em particular, apenas um magma de carnes inexpressivas.
    - A vocês tanto vos faz, não é?
    Tentava rir ao mesmo tempo que rebentava em soluços. Tentava levantar-se e caía por terra, mas, ao contrário do copo, sem se estilhaçar. Havia o pé de uma mesa a
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    dois centímetros do nariz dela, pernas de cadeira a toda a volta do seu corpo, pés e pernas de homens e mulheres.
    Envergonhava-se do seu comportamento e, se tivesse forças para tanto, teria pedido desculpa. Sabia que aquilo não se fazia, que estava bêbada, que não devia ter bebido o último copo.
    A mesa, as cadeiras afastavam-se dela. Estavam a segurá-la pelos ombros. Sentia os pés arrastados no chão e reconhecia as pilhas de pratos sujos da cozinha. Tinha a certeza de que o negro estava ali. Tentava descobri-lo, mas não conseguia.
    Falavam à volta dela e ela nem tentava compreender o que os outros diziam. Gemia baixinho, porque lhe doía a valer.
    - Tens uma faixa de gaze?
    - Deve haver gaze lá em cima, na gaveta da cómoda.
    - O que é que vamos fazer dela?
    - E tu o que é que achas que se faça?
    - vou levá-la.
    - Tu?
    - Por que não?
    - Para o Carlton?
    Betty sentiu uma dor mais intensa na mão quando lhe desinfectaram a ferida causada por um estilhaço de vidro.
    - Achas que não precisa de um médico?
    - Um médico para quê?
    - Tu estás em condições de guiar?
    - Leva-ma só ao carro.
    Betty sentia-se inconsciente. Ignorava que registava tudo, que redescobriria todas aquelas palavras na sua
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    memória, as palavras e o tom das palavras, os ruídos da sala, da cozinha e até o cheiro a coelho que se confundia com o do álcool e o do tabaco.
    Lembrar-se-ia também do sabor da chuva nos lábios, de outros cheiros - o do automóvel, o dos seus cabelos molhados, um cheiro a gado, algures, não sabia onde.
    - Cuidado com a marcha atrás.
    - Sim. Estou a ver.
    - Ainda tens uns dois metros... Vá... Pára! O carro estremeceu com força e a mulher morena acendeu o cigarro só com uma das mãos.
    Chuva. Árvores. Luzes. Ruas.
    Depois, um portão, ladeado por grandes colunas brancas e dois homens de uniforme azul, pressurosos.
    - Ponham a minha amiga, que não está a sentir-se bem, no 53.
    A cabeça pendia-lhe, inerte, enquanto a transportavam, e houve, por fim, um elevador que arrancou molemente.
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    Pestanejou, mas as pálpebras não se abriram o bastante para deixar penetrar as imagens. Ao mesmo tempo, a expressão de zanga apagava-se-lhe dos lábios, e a mão, com um gesto preguiçoso, impreciso, afastou os cabelos que lhe tapavam quase todo o rosto e que lhe faziam comichão nas faces.
    Recusando-se a acordar, fechava-se em si própria, procurando o reconforto do seu próprio calor, do seu próprio cheiro, do movimento do seu sangue nas veias, da passagem ritmada do ar pelas narinas que fremiam a cada inspiração.
    Sem dar por isso adoptara a posição da criança no ventre da mãe, como para se expor menos ao exterior, para formar um todo sem falhas, completo, inatacável.
    Sabia já muitas coisas que não queria saber e deliberadamente procurava repeli-las para o vago, para aquilo a que noutro tempo chamava limbos.
    Em criança, era um jogo agradável, por vezes voluptuoso, a que se entregava sobretudo quando a gripe a amarrava à cama, e quando uma ponta de febre a ajudava a conseguir desprender-se. Agora parecia-lhe que
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    permanecer neste estado de quase inocência era uma exigência, uma necessidade vital.
    Doía-lhe a cabeça, nada por aí além, nada que se comparasse com o que seria de esperar - uma dor surda, cuja intensidade e cuja natureza ela podia fazer variar mergulhando de um lado para o outro no travesseiro.
    Tinha sede. Talvez houvesse água na mesinha-de-cabeceira, mas, para beber, precisaria de sair do seu torpor, de abrir os olhos, de enfrentar a realidade.
    Preferia continuar com sede. Esta vinha acompanhada de um travo que a fazia pensar no seu primeiro parto, essa altura em que tivera tanto medo e em que lhe tinham dado injecções cujo fito era atordoá-la. Também agora todas as suas mucosas estavam de novo mais sensíveis, como que doridas e, por momentos, tinha a impressão de as sentir inchar, de todo o seu corpo estar a tornar-se mais leve, quase a ponto de pairar no espaço.
    Tinham-lhe dado uma injecção, naquela noite, lembrava-se muito bem.
    - Pode deixar-nos, Lucien.
    - Tem a certeza de não precisar de nada? Não quer que chame a criada de quarto?
    A divisão onde se encontrava não era arejada havia dias e cheirava a bafio. Não o cheiro baço da falta de arejamento da cidade, mas o cheiro das divisões fechadas no campo, evocando o aroma do feno húmido. Quando, um pouco antes, o porteiro e o guarda-portão tinham querido acender as luzes, a mulher morena dissera-lhes:
    - Não! Ela não pode ficar com tanta luz. Deixem-me sozinha com ela. Abram só a porta de comunicação para o meu quarto.
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    Os passos dos homens tinham-se afastado. Betty estava estendida numa cama a que fora tirada a coberta. A± mulher afastara-se para se dirigir ao quarto vizinho, onde, pelos barulhos que chegavam, devia estar a pôr-se à vontade. Teria medo de que Betty lhe vomitasse o vestido ou lho rasgasse agarrando-se a ela?
    Betty tentara fazer batota, abrir os olhos por um momento. Não o fizera e talvez, afinal de contas, tivesse sido incapaz de o fazer. A mulher morena voltava, despia-a com mãos experientes, tirava-lhe tudo, a combinação, o soutien, as meias e, depois, após uma breve hesitação, as cuecas apertadas de nylon transparente.
    A mulher fora à casa de banho, pusera a água a correr e, com a habilidade de uma enfermeira, passara em seguida uma luva de banho cheia de sabonete pelo rosto e pelo corpo de Betty, enxaguando-a por fim com um pouco de água morna a que juntara algumas gotas de colónia.
    Não dizia nada, não falava para consigo própria; trauteava apenas de tempos a tempos, como que por distracção, alguns trechos de uma cantilena que o gira-discos estivera a tocar durante uma boa parte da noite.
    - E pronto, minha menina! - suspirou por fim. Agora, vamos tentar descansar e não pensar em mais nada.
    Sem tirar do seu lugar, a outra conseguira abrir a cama e introduzir o corpo entre os lençóis frescos e ligeiramente engomados.
    Dar-se-ia a mulher conta de que Betty estava a registar tudo e que havia depois de se lembrar de tudo aquilo? Que expressão seria a do seu rosto enquanto a olhava
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    por um longo momento à luz de um pequeno candeeiro, única lâmpada acesa na outra extremidade do quarto? Não fora nada que Betty tivesse sonhado. Também não tinham sido um sonho as palavras que lhe voltavam à memória, no preciso tom em que haviam sido proferidas, com os sons, os cheiros, que as tinham acompanhado.
    - E tu o que é que achas?
    - vou levá-la.
    - Tu? ?
    - Por que não? Era Mário, o patrão do Buraco, e a mulher que falavam um com o outro, tratando-se por tu, a familiaridade dos dois, a maneira como se entendiam por meias palavras tinham impressionado Betty.
    - Estás em condições de guiar?
    Mário tinha uma espécie de halo popular, cru, com o seu quê de insolência. Emanava dele uma força tranquila e, quando se aproximava das mesas dos clientes, parecia tomá-los sob a sua protecção. Não aparecera ele no instante preciso em que o médico dos animalejos ia começar a tornar-se desagradável e talvez perigoso?
    Não se irritava, não levantara a voz. Sem brutalidade, firmemente, desembaraçara do médico aquela mulher nova. Dera-se depois ao trabalho de o levar de automóvel a casa.
    - Conseguiste deitá-lo?
    - A mulher dele ajudou-me.
    Não havia ironia na sua voz, ou apenas uma ironia divertida quando acrescentara:
    - Estás a contar os coelhos que lhe invadiram o quarto.
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    Betty parecia semimorta. Pensava ter atingido o fundo do desespero e, todavia, naquele momento, estava a perguntar a si própria se Mário seria amante da mulher morena ou tão-só um amigo.
    Recordava-se de outras imagens, mais precisas, mais ricas em pormenores do que lhe haviam parecido quando, na realidade, as vira - a loura do bar, por exemplo, a dos seios provocantes, com um sinal na face e que passava as mãos pelas ancas como se estivesse com a cinta a subir-lhe. Devia ter uma dessas peles leitosas que ficam com marcas da roupa e, quando se despia, devia mostrar os vincos dos elásticos e dos colchetes das peças de dentro.
    Em certa altura, a luz apagara-se. Continuou a haver uma claridade fraca no quarto, porque a porta de comunicação com o quarto do lado estava aberta e a mulher morena ainda não apagara o seu candeeiro. Andava de um lado para o outro, a fumar. O cheiro do cigarro era muito vivo, parecendo diferente do habitual. Ouvia-se água a correr para dentro de uma banheira.
    Betty estava realmente doente. O coração batia-lhe em pulsações irregulares e, por vezes, parecia-lhe que nunca mais voltaria ao ritmo de outrora. Que aconteceria então? Iria ela morrer? Assim, de um segundo para o outro, sem dar por isso? Não chamava ninguém. Decidira-se a não chamar ninguém, a morrer sozinha se necessário fosse, e sentia-se contente por saber que tinha o corpo enfim lavado. Não completamente. Quase. Uma luva molhada passara-lhe até entre os artelhos.
    Durara muito tempo tudo aquilo? Betty gemia, tinha
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    consciência de estar a gemer, embora se esforçasse por evitá-lo, e esperava estar fraca de mais para que pudessem ouvi-la.
    A outra mulher estava a dormir. O quarto às escuras, Betty já não dava crédito aos seus próprios sentidos. Estaria realmente a ouvir um barulho de chinelas no soalho, a respiração de alguém a aproximar-se? Que mão quente seria a que lhe vinha pegar no pulso? E seria a sua própria voz, afinal, a que ouvia agora?
    - Tenho medo...
    - Schiu!... Não se inquiete, minha filha... Estavam a tomar-lhe o pulso. Dava-se conta de que
    estavam a tomar-lhe o pulso. Não uma vez só, mas duas vezes pelo menos, talvez três vezes, com intervalos de imobilidade e de silêncio, como acontece nos quartos das pessoas muito doentes.
    Não havia o mínimo ruído no hotel, nenhum ruído vinha também lá de fora - a não ser o crepitar da chuva contra as persianas, de vez em quando sacudidas por uma rajada de vento. Betty não se atrevia a pedir luz.
    Um pouco depois brilhou uma luz, não no seu quarto, mas no do lado, onde, por qualquer razão misteriosa, fora acesa uma lâmpada de álcool. Betty reconhecia o cheiro da lâmpada de álcool. O pai dela vendia álcool para queimar. Tinha uma drogaria. Um homem ruivo. Transbordava de vida e ria-se das freguesas, que imitava nas costas delas. Inventava também produtos de limpeza. Fora uma pena os alemães terem-no fuzilado no fim da guerra, nunca se soubera porquê.
    Uma mão puxou os cobertores e Betty sentiu uma agulha penetrar-lhe na anca, um líquido a escorrer lentamente para dentro de si.
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    Era como no seu primeiro parto. Por ocasião do segundo recusara deixar-se injectar. Talvez se tratasse do mesmo produto. Experimentou quase instantaneamente um bem-estar, um torpor que, apesar de tudo, deixava algumas parcelas de vida no seu espírito.
    Estavam a segurar-lhe na mão. Tomavam-lhe de novo o pulso. Devia estar a suar, porque ouvia a água da torneira a correr e, logo a seguir, poisavam-lhe na fronte e nos olhos uma toalha fria.
    Gostaria de ter agradecido, mas, se os lábios conseguiam mover-se-lhe de leve, não tinha a certeza de emitir fosse que som fosse.
    Depois, mais nada. Mais tarde, muito mais tarde, de novo alguma coisa que talvez fosse verdade, que talvez não fosse. Era impossível decidir, porque sonhara muito. Por que é que, se não fosse verdade, se lembraria, porém, apenas desse sonho, ao passo que dos outros lhe ficara tão-só uma recordação penosa e sem a mínima imagem?
    Fora pela manhã. Tinha que ser já de manhã porque Betty ouvira, no corredor, o criado que levava os pequenos-almoços aos diferentes quartos.
    Betty ia jurar que o cheiro do café lhe estava a chegar às narinas e, quando abrira os olhos - se é que realmente os abrira - vira algumas linhas de claridade entre as cortinas. O dia estava a nascer ou tinha já nascido.
    Um som que se esforçava por identificar chegava-lhe da divisão contígua cuja porta permanecia entreaberta, uma respiração presa, impressionante, e Betty levantara-se da cama para ir ver o que era; dera alguns passos, com a cabeça a doer-lhe de repente, e vira, por fim, uma cama onde dois corpos nus faziam amor.
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    Seria possível que não a tivesem ouvido, que não a tivessem visto, que ela tivesse podido voltar a deitar-se sem fazer barulho e que tivesse, quase instantânea mente, adormecido?
    Não conseguia resolver o problema. Noseu espírito, o homem era Mário e tinha o corpo extreme peludo. Fora havia muito tempo, o dia iria já alto?
    Não sentia vontade de se preocupar com o caso e esforçava-se por voltar ao torpor e à inconsciência. Por duas ou três vezes viu o pai, de bata branCa sempre com manchas de tinta, na sua loja-armazém da avenida de Versailles, cheia de barris e garrafões revestidos de paH lha, cheirando a petróleo e a ácido.
    Passara a sua infância com esse cheiro a acompanhá-la, esse cheiro que subia até à parte de habitação, no primeiro piso da casa, e de que o pai trazia a roupa e os cabelos chamejantes sempre impregnados.
    Na escola, quando estava no primeiro ano, a sua vizinha de carteira, que ciciava, pedira para mudar de lugar, dizendo:
    - Ela cheira tão mal!
    A respiração de Betty voltara a um ritmo mais lento, mais regular. Os lábios abriam-se-lhe, mostrando os Dentes pequenos, que a mãe dizia serem dentinhos de rato. A mão deslizara-lhe a pouco e pouco ao longo do ventre e, como quando era rapariguinha, quase Sem dar por isso, começara a acariciar-se, talvez para Se isolar ainda mais do mundo exterior, para deixar subsistir apenas o universo da sua carne quente e das suas Sensações.
    Caíra de novo no sono havia muito tempo, quando um estalido a fez abrir os olhos e, desta feita, não perguntou a si
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    própria se os devia ou não abrir. De pé, entre a porta e a cama, viu a mulher morena, em roupão, que lhe pareceu ainda mais alta do que na véspera.
    Na véspera, teria Betty chegado a vê-la de pé? Vira-a de súbito sentada à sua mesa e, mais tarde, com os olhos fechados estava incapaz de...
    - Fui eu que a acordei?
    - Não sei.
    Vinha ver se não precisaria de nada. Como é que se
    sente?
    - Bem.
    Era verdade. Já não lhe doía a cabeça. Estava cansada, cheia de um cansaço agradável e sentia somente uma espécie de vazio no peito.
    - Acho que estou com fome.
    - O que é que lhe apetece comer?
    Betty sentia vontade de ovos com bacon, talvez porque sempre que estava num hotel comia ovos com bacon ao pequeno-almoço. Em casa, tal ideia não lhe teria passado pela cabeça. Aliás, o marido...
    Por enquanto, não devia pensar nisso.
    - Acha que posso?
    - Por que não? vou chamar o criado.
    - Você já comeu?
    - Há muito tempo?
    - É muito tarde?
    - São quatro horas. -? Da tarde?
    Mas a pergunta era ridícula.
    -- Como é que quer os ovos? Bem passados?
    ?- Sim.
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    - Chá? Café?
    - Café.
    - com leite?
    - Não. Só café.
    A senhora dirigia-se à porta para transmitir o recado ao criado.
    - Quer que eu abra as cortinas?
    A mulher abriu as cortinas, inclinou-se à janela para puxar também as persianas e começou a ver-se, lá de dentro, a chuva que caía nas ramadas das árvores.
    - Deram-me uma injecção, não deram?
    - Deu por isso? Não tenha medo. O meu marido era médico e, durante os vinte e oito anos que passei com ele, servi-lhe muitas vezes de enfermeira.
    - Esta noite pensei a sério que ia morrer.
    Não o dizia para se lamentar, mas porque a ideia lhe passara de repente pela cabeça. Era verdade. Teria podido morrer. Neste momento, já não existiria. Alguém teria que ir procurar-lhe o cartão de identidade na mala, a fim de ver o seu nome e a sua morada. Depois, telefonariam para Guy. E este trataria, apesar de tudo, do enterro ou encarregaria disso o irmão? Que diriam a Charlotte?
    Mas, em vez de morta, via-se deitada num quarto acolhedor, com as paredes pintadas de branco e um busto de Maria Antonieta no rebordo de mármore branco da chaminé do fogão.
    - Não quer tomar um banho antes do pequeno-almoço? Conhecendo Jules como conheço, sei que ele vai demorar pelo menos uns vinte minutos ainda antes de lhe trazer os ovos. Não, não se levante já. Eu ponho-lhe a água a correr.
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    A mulher estava a fumar e tinha uma boquilha muito comprida, que Betty não vira na véspera. O roupão dela era de um veludo avermelhado, cor de salmonete, e estava já pintada e penteada.
    Enquanto a banheira enchia, desapareceu por um instante no seu quarto, voltando com um copo na mão.
    - Dá-me licença? Não a enjoa ver-me beber?
    - Por favor.
    - É a esta hora que começo a precisar de beber. Sou como o pobre Bernard com as injecções dele. Chega uma altura em que não posso deixar de beber.
    Betty perguntava a si própria se a outra estaria a falar assim para a pôr à vontade, para ela não sentir vergonha do que se passara na noite anterior. Perguntou-se também se teria sido um sonho ou não a cena da cama e sentia-se cada vez mais persuadida de que não fora.
    - Tem o banho pronto. Se a incomoda, eu...
    - Não...
    Não fora ela quem a despira e a lavara? Todavia, no momento de sair da cama, Betty sentiu uma certa vergonha, porque tinha a impressão de que lhe emanava do corpo um cheiro a homem.
    A sua companheira, junto à janela, não a olhou nem foi atrás dela para a casa de banho, ficando onde estava a falar-lhe à distância, como, no teatro, os actores falam nos bastidores.
    - A água não está muito quente?
    - Não, está mesmo boa assim.
    - Não sente a cabeça a andar à roda?
    - Um bocadinho.
    Betty estava em menos boa forma do que supusera.
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    Enquanto ficara deitada, não se sentira mal, mas, ao pôr-se de pé, sentiu uma vertigem ao mesmo tempo que uma dor aguda de um dos lados da cabeça.
    - Não precisa de nada?
    - Não, obrigada. Estou envergonhada por lhe dar tanto trabalho...
    - De maneira nenhuma. Estou tão... A outra ia para dizer:
    - Estou tão habituada...
    Mas preferiu deixar a frase a meio. Só um pouco depois prosseguiu:
    - Vivi tanto! E, com o meu marido, vi tanta coisa! Não vai adormecer dentro de água, pois não?
    - Não.
    - Pus-lhe uma escova de dentes nova e pasta para os dentes na prateleira por cima do lavatório. Tenho sempre essas coisas comigo. Porque, embora isto seja um hotel, estou aqui quase como em minha casa. Moro há três anos aqui, no Carlton. Não se preocupe com a roupa de dentro. Disse a Louisette para a lavar e ela traz-lha daqui a nada.
    Estavam a bater à porta.
    - Ponha aqui a mesa, Jules. E já que aqui está mande-me uma garrafa grande de Perrier.
    Betty enfiou-se no roupão de banho, passou os dedos pelos cabelos, entrou descalça no quarto.
    - Espere um bocadinho. vou buscar-lhe um par de chinelos.
    Sentia a cabeça a andar à roda e, agora que tinha os ovos com bacon à frente, perguntava a si própria se seria capaz de os comer.
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    Cá estão eles. Enfie-os nos pés. São muito grandes,
    mas não faz mal.
    - Obrigada. Não sei como a hei-de tratar, e isso põe-me pouco à vontade. Parece-me que já a conheço há muito tempo. Como é que se chama?
    - Laure. Laure Lavancher. O meu marido era professor na Faculdade de Medicina de Lyon. Quando morreu, há quatro anos, tentei ficar a viver sozinha no nosso apartamento e senti que, se continuasse, enlouquecia dentro de pouco tempo. Acabei por vir para aqui na intenção de descansar por duas ou três semanas. E fiquei.
    - A mim, as pessoas tratam-me por Betty.
    - Então, Betty, bom apetite! Esforçou-se por sorrir.
    - Não tenho a certeza de ter apetite. Parecia-me estar com fome agora...
    - Mesmo assim, coma. O meu marido não a deixaria comer nada durante todo o dia, mas sei por experiência que a medicina...
    Betty lutava com a sua repugnância e, mesmo o café, não tinha o gosto esperado.
    - Eu estava muito bêbada, não estava?
    - Estava, sobretudo, doente.
    - Não! Sei que estava a cair de bêbada e que causei um escândalo.
    - Bem se vê que não conhece ainda o Buraco. Se pensa que lá reparam nessas coisas!...
    O criado estava de volta com a garrafa de água com gás e Laure foi buscar uma outra garrafa, de whisky, ao quarto.
    - Daqui a bocadinho também terá direito a um
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    copo, contanto que o pulso não lhe comece a galopar outra vez.
    - Estava muito acelerado?
    - Cento e quarenta e três pulsações.
    A mulher citava o número sorrindo como se, aos olhos dela, não tivesse importância. Dissera como se chamava, simplesmente, sem vaidade, principalmente por delicadeza e para pôr a mulher mais nova à vontade. Dissera-lhe porque estava ali e explicara-lhe tão discretamente quanto possível a necessidade que tinha de beber. Em contrapartida, não perguntara a Betty qual o seu nome de família nem lhe fizera qualquer outra pergunta de natureza pessoal.
    Betty tinha uma estranha intuição. Podia jurar que não era por falta de curiosidade que Laure agia assim, mas porque sabia. Não os pormenores, evidentemente, porque não podia conhecer a sua situação particular. Mas nem por isso deixava de saber. E evitava amimá-la, lamentá-la, falar-lhe no tom de voz de quem ampara outrem.
    - Se o fumo do meu cigarro a faz sentir-se enjoada...
    - Não. Não me incomoda absolutamente nada.
    - Não come mais?
    - Sou incapaz.
    - Não quer que a deixe sozinha um instante, para telefonar, por exemplo, ou para escrever uma carta?
    - Não.
    - Não quer que vão buscar as suas coisas a algum lado?
    Como é que a outra pudera pensar naquilo? Não falara de malas ou bagagens, mas das coisas dela, como se tivesse adivinhado que fora, de facto, um passo definitivo.
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    vou deixá-la por um bocadinho.
    Betty quase gritou: - Não!
    E, no mesmo instante, perguntou a si própria se não iria começar a vomitar.
    - Isso não está melhor? .- Nem por isso.
    - Enjoo?
    - Sim.
    - Se for como eu, um gole de álcool põem-na boa. Já experimentou alguma vez?
    Betty fez um sinal afirmativo.
    - Quer um bocadinho?
    Laure serviu-lhe uma dose num copo, que Betty engoliu de um trago e que lhe ia arrancando o coração. Ficou imóvel, tensa, pronta a disparar direita à casa de banho, enquanto uma sensação de calor se espalhava a pouco e pouco pelo seu peito, começando a descontraí-la.
    - Sente-se melhor?
    Ela soltou um suspiro arrastado.
    - Uf! Pensei que nem sequer teria tempo para chegar à casa de banho.
    - Sabe onde estamos?
    - Em Versailles. No Carlton.
    Laure não lhe perguntou como se informara nem que outras coisas sabia.
    - Não lhe apetece ficar uns dias aqui a descansar?
    - Não há nada que me apeteça.
    Era verdade. Betty não se colocava sequer o menor problema. À sua frente havia apenas o vazio e ela não
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    tinha qualquer razão para estar num lado em vez de noutro.
    - Ouça, Betty. Dá-me licença que lhe chame assim, sem a tratar por madame?
    A mulher mais nova deitou uma olhadela instintiva à aliança que não pensara em tirar.
    - E você trata-me por Laure, como toda a gente. No Buraco, aliás, é o primeiro nome das pessoas que interessa e, a partir de certa hora, todos se tratam por tu.
    Estaria a outra a explicar assim por que motivo Mário e ela se tinham tratado por tu quando levavam Betty para o carro? Tentaria dizer daquele modo que nada havia entre os dois?
    Betty corou por ter pensado nisto, por ter evocado uma vez mais a cena da cama, real ou irreal, e tão viva agora na sua memória.
    - Sou franca consigo como costumo ser com todas as pessoas. Na noite passada percebi que você não sabia para que santo se virar e trouxe-a para aqui porque se via que estava mesmo a precisar de uma cama. Não diga nada. Deixe-me acabar. Durante vinte e oito anos, fui uma mulher feliz, uma honesta burguesa de Lyon para quem a casa e o marido eram tudo o que existia no universo. Se tivesse tido a sorte de ter filhos não estaria aqui.
    Betty ignorava quantos copos teria Laure já bebido. Falava sem exaltação, sem complacência, com uma convicção talvez levemente excessiva, como ela própria costumava fazer depois de dois ou três wiskies.
    - Agora considero que a minha vida acabou e que já não existo. Ou me engano muito a seu respeito, ou você
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    percebe bem o que lhe estou a dizer. Podia ter-me fechado, com toda a dignidade, no meu apartamento e ficar à espera do fim de tudo.
    "Tentei. Bebia ainda mais do que bebo agora e, a certa altura, estive à beira de perder a razão.
    "O que faço actualmente, o que vivo, o que me acontece já não tem importância. Há turistas que chegam e partem, casais que se refugiam por aqui por uns dias, velhos e convalescentes que procuram restabelecer-se e se obrigam a dar todas as tardes um passeiozinho no parque.
    "Já não dou por eles. Alguns, quando voltam a ver-me ao fim de meses, cumprimentam-me com a impressão de me conhecerem ou por suporem que faço parte do pessoal.
    "Raramente desço à sala de jantar e, quando tomo um copo no bar, a tagarelar com Henri, é quase sempre quando lá não está mais ninguém.
    "Fiz com que lhe dessem o quarto ao lado do meu por pensar que talvez você precisasse de cuidados...
    - E precisei - interrompeu-a Betty numa voz tímida. Estava tão impressionada como uma criança diante de
    uma nova professora.
    - Não procuro influenciá-la. Se tem que ir para outro lado qualquer, vá. Se tiver vontade de ficar mais uma noite, ou mais alguns dias, ou mais tempo até, fique sem se preocupar com o assunto, e se preferir outro quarto...
    - Não.
    - Esta noite, como ontem, como todas as noites, vou ao Buraco.
    Uma suspeita ganhava forma em Betty: Laure não estaria a falar daquele modo com ela a fim de a impedir de
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    pensar nos seus próprios problemas? Desde que lhe aplicara a injecção, tornara-se aos olhos dela uma espécie de médico e a verdade é que os médicos recorrem por vezes a expedientes análogos.
    - Era a primeira vez que lá ia?
    - Era.
    - E não houve nada que a impressionasse?
    - No estado em que eu estava, bem vê...
    Não se atrevia a pedir mais álcool apesar de toda a vontade que sentia. O gole que havia pouco engolira deixara de produzir efeito e Betty estava a precisar de uma nova chicotada.
    - Quando Mário fala dos clientes, trata-os muitas vezes de desaparafusados e não anda muito longe da verdade. Quer que lhe conte a história de Mário e do Buraco?
    Betty disse que sim, sempre a pensar no copo que fazia questão de merecer, e Laure pareceu adivinhá-lo.
    - Precisa de mais um bocadinho?
    - Acho que sim.
    - Já?
    - Acha que me faz mal? Laure serviu-a.
    - Sem dúvida reparou que Mário faz o papel de homem habituado aos meios difíceis, o papel de duro, e há muita gente entre os frequentadores habituais da casa que imaginam que ele passou várias vezes pela prisão. É uma ideia que os excita, sobretudo às mulheres.
    "A verdade é que ele foi criado num bar e, mais tarde, motorista de táxi em Toulon. Não lhe deve falar disto, porque senão ele fica zangado comigo. Prefere
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    dizer que andava no mar, com todos os tipos duros da Costa.
    "Tem um ar de fera, quando, na realidade, é uma ternura de homem e até, por estranho que lhe pareça, um tímido.
    "Um dia, em Toulon, há já anos, conheceu, ao levá-la no táxi, uma sul-americana cujo marido, que acabava de morrer com uma embolia em Monte Carlo, era um rico plantador de cacau colombiano.
    "Seria ela louca, como Mário sustentava? O certo é que o contratou como motorista e empregado e que, durante mais de um ano, andaram os dois, de um lado para o outro, de Rolls Royce, de Cannes para Deauville, de Paris para o Biarritz, Veneza e Megève.
    "Não a estou a maçar?
    - Não, pelo contrário!
    Betty via de novo os dois corpos na cama e tinha agora a certeza de que não se tratara de um sonho. Mas não seria um sonho o quarto com os madeiramentos pintados de azul-pálido e o busto de Maria Antonieta no rebordo da chaminé do fogão, enquanto, lá fora, a chuva continuava, monótona, a cair por entre a folhagem cada vez mais sombria?
    O dia baixava. Os candeeiros, com os seus pequenos abajures de seda plissada, punham-se mais brilhantes, e Betty aconchegava o corpo nu no roupão de banho húmido.
    A mulher morena, à frente dela, demasiado alta mesmo quando sentada, sabia-se desgraciosa e não procurava dissimulá-lo. Fumava cigarro atrás de cigarro, molhava de vez em quando os lábios no copo, brincava com um dos seus borzeguins na ponta do pé.
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    Se havia outros clientes no hotel, membros do pessoal de um lado para o outro nos corredores, a verdade é que deles nenhum eco chegava até ali.
    - Quanto ao resto, é claro que há uma parte de lenda e uma parte de realidade e não sou eu quem vai dizer onde acaba uma e começa a outra. A senhora da Colômbia chamava-se Maria Urruti e pertencia, ao que parece, a uma das mais antigas famílias do seu país. Desde que o marido morrera, a família insistia com ela para que regressasse, perseguindo-a por todo o lado com cartas e telegramas, ameaçando-a de lhe cortar os envios de fundos e, um dia, de facto sem mais dinheiro, ela viu-se forçada a pensar na viagem de regresso.
    "Eles vão matar-me!", dizia ela a Mário. "Detestam-me. É, para me matarem" (ela dizia matarem) "ou para me fecharem num asilo que querem obrigar-me a voltar. Tens que vir comigo, Mário, tu que és forte, tens que os impedir de me fazerem mal".
    Partiram, assim, os dois de navio, porque ela tinha medo de andar de avião. A família vive numa cidade chamada Cali, junto à cordilheira dos Andes, do lado do Pacífico, e, para se lá chegar, tem que se desembarcar em Buenaventura.
    Betty olhava a copa das árvores a pouco e pouco afogadas no nevoeiro e, por entre os ramos, fitava uma luz distante que parecia talvez uma estrela. Não pensava em nada. Não estava a ouvir. As palavras penetravam nela sem a ferirem, como água a correr.
    - Mário não teve ocasião de se servir da força. Mal o navio atracou, vários homens de cabelos pretos, parentes de Maria Urruti, subiram a bordo acompanhados por
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    meia dúzia de polícias. Maria foi levada enquanto os outros passageiros eram obrigados a esperar que terminassem as formalidades do desembarque.
    "E foi assim que Mário, alguns minutos mais tarde, se viu sem vintém, sozinho, num cais desconhecido.
    "Diz que passou por todas as profissões possíveis, dando a entender que algumas delas eram altamente ilegais. Se quiser, mostra-lhe até a cicatriz que tem no canto do olho e em que você talvez não tenha reparado ontem.
    "O melhor é fingir que acreditamos no que ele diz. Pelo meu lado, não me admirava que a família dela lhe tivesse dado uma quantia de vulto para se ver livre dele.
    "Depois, Mário deambulou algum tempo pela Venezuela, pelo Panamá, por Cuba. Quando voltou para França teve a ideia de abrir um bar perto do S. H. A. P. E., a contar com uma clientela de oficiais americanos.
    "E foi o Buraco, onde você ontem esteve. Ora, com raras excepções, os americanos não se tornaram clientes da casa, achando talvez o bar demasiado próximo da base ou preferindo a atmosfera de Paris.
    "Para surpresa de Mário, os frequentadores que lhe apareciam eram pessoas de cuja existência ele não suspeitava, gente como a que a Betty viu ontem à noite, os desaparafusados como ele lhes chama, estrangeiros ou franceses, que moram em Versailles e Saint-Germain, ou Marly, Louveciennes e Bougival... Alguns vêm de mais longe ainda, esses que têm casas de campo ou grandes propriedades, muitas vezes uma mulher e filhos, e que..."
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    Deixou a frase a meio, pegou no copo com um gesto que parecia convidar Betty a imitá-la.
    - Desaparafusados, claro! Como eu! Pessoas que já não têm...
    Começou a beber sem terminar o seu discurso e não foi apenas por causa do roupão de banho húmido que Betty sentiu um arrepio.
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    - que é que acha destes cannelloni, Betty?
    A voz de Mário soava alegre, familiar, reconfortante.
    - Estão óptimos - respondia ela com um olhar de gratidão.
    - Confesse que não se está aqui mal.
    - Está-se tão bem que eu tenho a impressão de já ser uma cliente antiga.
    Ao principio da noite, Betty estava intimidada, porque se sentia recém-chegada e julgava que toda a gente, olhando-a, se lembrava da cena da véspera. Esse mal-estar passara muito depressa, sobretudo desde que verificara, graças à companhia de Laure, que lhe servia de certo modo de caução, fora adoptada pelo conjunto dos presentes.
    Um simples pormenor bastava para o demonstrar. Quando um cliente antigo, como acontecia de tempos a tempos, se aproximava e curvava junto a Laure para lhe dizer algumas palavras, não pensava que fosse necessário baixar a voz.
    Em cima da mesa, entre as duas mulheres, havia uma enorme travessa de cannelloni e uma garrafa de chianti.
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    O vinho tinto parecia mais escuro, quase negro, nos copos de bojo, com um pontinho cor-de-rosa e brilhante no meio. Lá fora, um vento frio lançava a chuva contra os rostos e as roupas dos que saíam dos automóveis e, depois, quando alguém queria ir-se embora, tinha dificuldade em desprender o carro da lama do chão.
    A barmaid, com os peitos grandes, estava no seu posto e havia mais gente do que na véspera no bar e menos na sala - talvez por não ser ainda tão tarde.
    Tudo estava de acordo com a recordação de Betty, as paredes vermelhas, enfeitadas com gravuras inglesas de caça a cavalo. Na noite anterior, apesar do estado em que se encontrava, ela reparara em tudo, tinha agora a prova disso, o que não deixava de a surpreender.
    Poderia pensar-se que na véspera se preocupara somente com a sua própria pessoa, o seu drama, a sua repulsa. Além disso, caíra da cadeira completamente embriagada. Tudo vacilava, na sua vida e em torno dela, mas, apesar disso, conseguira interessar-se por pormenores fúteis como o daqueles postais ingleses enfiados na moldura do espelho, por detrás das garrafas do bar. Tinha a certeza que um dos postais representava a baía de Nápoles e outro o templo de Angkor.
    A sala parecia-lhe um pouco maior agora. Descobria que, na realidade, havia duas divisões e que a segunda, onde também se comia, era menos iluminada do que a primeira, por algumas velas somente, enfiadas no bocal de garrafas, espalhadas pelas diversas mesas.
    Seria esse sector reservado aos iniciados, a clientes muito antigos ou aos pares apaixonados? Mas os pares verdadeiramente apaixonados frequentariam o Buraco?
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    - Como vai esse estômago? - perguntava Laure.
    De momento, perfeitamente bem.
    Betty estava a comer com apetite. Os olhos - sentia-o - estavam brilhantes, o rosto cheio de animação e, à mínima provocação, os lábios entreabriam-se-lhe num sorriso levemente hesitante.
    Estava como que convalescente e era agradável. Não ignorava que o seu bem-estar era passageiro, superficial, que nada mudara, que continuava a ser, na realidade, a mesma, com todos os problemas que acumulara e para os quais não podia haver solução.
    Laure dar-se-ia conta do que o seu bom humor tinha de frágil, de fictício? Saberia que, de um momento para o outro, tudo ia sem dúvida recomeçar, como na véspera? O álcool ajudava-a e também o facto de estar a jantar na companhia de alguém que lhe prestava atenção. Mas, do mesmo modo, na noite anterior, sentada diante do médico, experimentara um alívio quase semelhante. E tinham bastado dois ou três copos...
    Não valia a pena começar a ralar-se antecipadamente. Parecia estar em viagem, como quando, num clima novo, numa cidade desconhecida, alguém perde os seus cuidados e a sua personalidade habitual.
    Laure já lhe sabia o nome. Quando tinham descido as duas ao hall do hotel, o empregado da recepção perguntara a Betty:
    - Quer ter a amabilidade de preencher uma ficha? E, ao lê-la, o homem observara:
    - Etamble, como o general?
    - Sim. Sou nora dele. E acrescentara:
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    - Será possível mandar buscar umas malas a Paris?
    - Basta que dê as suas instruções ao porteiro, madame.
    Laure mantivera-se afastada por discrição. Betty explicara ao homem fardado que havia algumas malas, e talvez uma arca, para ir buscar ao 22 bis da avenida de Wagram.
    - Não sabe quantas malas são?
    - Não.
    - Acha que um carro chega para trazer tudo?
    - É provável. Tenho quase a certeza que sim.
    - Talvez pudesse escrever um bilhete para o caso de não me quererem entregar as coisas, madame...
    Betty rabiscara na folha de um bloco:
    É favor entregarem as minhas coisas ao portador deste bilhete. Obrigada.
    Desta vez, assinara "Betty". Não se tratava de um documento oficial. Não acrescentou mais nada. Nada mais tinha a acrescentar.
    - Podemos, então, ir lá hoje ao fim da tarde?
    - Acho que sim. "
    - Está sempre gente?
    - Está sempre gente. Como poderia não estar ninguém no apartamento? A nurse que mais não fosse, quando Anne-Marie tinha apenas dezanove meses?
    Voltou a ver o carro de Laure e reconheceu-a pelo cheiro e pela consistência rugosa dos bancos. O general Etamble morrera em Lyon no ano anterior. Vivera aí durante muitos anos. A mulher era de Lyon e pertencia ao mesmo meio que Laure, de maneira que era possível que as duas mulheres se tivessem conhecido.
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    Laure, porém, não falou do assunto, continuou igual, e podia ficar por muito tempo calada sem que isso se tornasse desagradável; depois de súbito, sem razão aparente, lançava-se na narração de uma longa história.
    - Lembrava-se de John? - perguntava-lhe ela enquanto comiam para impedir o pensamento de Betty de vagabundear.
    E como a outra não compreendera imediatamente:
    - O lord inglês de que lhe falei ontem. Está sentado junto do bar, acompanhado por uma rapariga nova de cabelos deslavados com um casaco de pele de leopardo.
    Era o mesmo homem calvo, grande e forte, um tanto pesado, com o bigode em escova da noite anterior. Conservava-se muito direito no seu banco à maneira de um antigo oficial e olhava para diante sem prestar atenção à companheira, que exibia um vago ar de starlette.
    com o rosto brilhante e as faces vermelhas mantinha
    uma extrema compostura.
    - Vai ficar assim, sem dizer uma palavra, durante duas ou três horas. Não bebe whisky, só cognac. Ninguém sabe e é possível que ele próprio não saiba também aquilo em que está a pensar enquanto o álcool o impregna pouco a pouco.
    "A certa altura vai ver que se levanta e se encaminha para a porta com um passo só de leve hesitante. Reconhece, com toda a precisão, o momento em que já tem a devida conta e nunca ninguém o viu cambalear. A mulher irá atrás dele, hoje a loura, amanhã ou para a semana, outra qualquer, porque nenhuma o acompanha Por muito tempo.
    "O motorista está lá fora à espera no Bentley. Em poucos
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    minutos chega depois à sua propriedade de Louve, ciennes, onde faz criação de granas danais.
    "Soube por Jeanine, aquela barmaide que tem uma mancha com pêlos na face, o que lá se passa a seguir, porque ela o acompanhou quando uma vez que ele estava sem mais ninguém, ou, mais exactamente, uma vez em que a mulher que estava com John se sentiu mal e ficou...
    Laure não pensara no que estava a dizer.
    - Como eu, ontem - interrompeu-a Betty num tom bastante jovial.
    - Não, ela estava muito pior e foi preciso levá-la ao hospital. Se quiser, Jeanine substituiu-a e eu tenho razões para pensar que, na propriedade dele, as coisas se passam sempre do mesmo modo.
    "Para começar, no hall, ele ofereceu-lhe uma bebida, como um homem de sociedade que cumpre um dever de cortesia. Depois, conduziu-a ao quarto onde vestiu um roupão e se instalou numa poltrona.
    "Não disse nem uma palavra a Jeanine, que acabou por se despir, enquanto, aparentemente satisfeito, ele ficava sentado, a olhar para ela, como se estivesse no teatro.
    "Apontou-lhe a cama e ela deitou-se, esperando que acontecesse alguma coisa, não sabia o quê. Parece que, ao fim de algum tempo, no silêncio da sala e de toda a casa, a rapariga começou a ter medo.
    "Continuando instalado na sua poltrona, ele olhava para ela como está agora a olhar para a cara da rapariga que tem à sua frente. Ao alcance da mão, num frasco de cristal, havia aguardente. O único gesto que John fazia era o de encher o copo, envolvendo-o na concha da mão para o aquecer e, bebendo de tempos a tempos, um gole.
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    "jeanine pensou que o melhor era tentar começar uma cOnversa. Mas ao vê-lo crispar-se, com uma expressão de descontentamento, achou melhor ficar calada.
    "As coisas prolongaram-se assim por muito tempo, por mais de uma hora e, por fim ela deu-se conta de que John adormecera, com o copo vazio na mão."
    Laure não se estava a rir. Betty também não.
    - Diz-se que ele casou com uma das mulheres mais bonitas da Inglaterra. Ela continua a viver na casa de Londres ou no domínio de Sussex. Não se divorciaram nem brigaram. Continuam a ser bons amigos e vêem-se de longe em longe. John limitou-se a desimpedir-lhe o caminho, devolvendo-lhe a liberdade no dia em que um ferimento de guerra o tornou impotente. Foi há vinte anos e, desde há vinte anos, todas as noites, ele se senta na sua poltrona, com um copo na mão, diante de uma mulher nua.
    Betty já não se atrevia a olhar para o canto onde estava o inglês e Laure concluía:
    - Um desaparafusado, como diria o nosso amigo Mário.
    No bar, duas mulheres de trinta a quarenta anos, vestindo calças e camisolas, pescavam pepino atrás de pepino de um grande frasco de conserva; Louis, o negro, aparecia a intervalos quase regulares, mostrando o seu rosto hílare, como se tratasse do número de um programa qualquer, e Betty começava a perguntar a si própria se tudo aquilo não seria uma montagem, uma encenação, se as figuras que via à sua volta seriam autênticas.
    - E o que é que aconteceu a Maria? - perguntou de repente.
    Foi a vez de Laure não compreender logo.
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    - Maria?
    Betty costumava fazer perguntas assim. Riam-se disso lá em casa, quando ela era criança, e uma das suas frases infantis tornara-se proverbial no apartamento da avenida de Versailles. Fora antes da guerra, numa altura em que o seu pai ainda era vivo.
    - O que é que fizeram da rã?
    Tinham-lhe lido, num álbum ilustrado, uma história em que entravam uma rã e outros animais. Terminada a história, a vozinha de menina de Betty ouvira-se no silêncio:
    - O que é que fizeram da rã?
    O pai e a mãe tinham olhado um para o outro sem saberem que responder. No livro, a história terminara. Normalmente, não haveria motivo para a filha perguntar pela rã.
    Depois deste episódio, quando Betty abria a boca para fazer uma pergunta, o pai cortava-lhe a palavra, rindo:
    - O que é que fizeram da rã?
    Não fora um pouco o que se passara a propósito da sul-americana?
    - Está a falar de Maria Urruti?
    - Sim. Estou a perguntar-me se a terão metido nalgum sítio fechado.
    - Mário nunca mais teve notícias dela.
    - E ela que idade tinha?
    - Cerca de trinta anos. Quando ele me falou dela, pensei de início numa mulher mais madura, sobretudo porque o marido tinha perto de setenta anos quando morreu em Monte Carlo.
    Também de Betty se poderia dizer, sem necessidade
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    de maior rigor, que tinha cerca de trinta anos. Calou-se, comendo o seu brie, mas sem apetite. Tinha que fazer um eSforço para não se virar para o canto onde estava o inglês e, dando-se conta de que Jeanine ria juntamente com as duas mulheres de calças, imaginava-a na cama, uma cama com colunatas, segundo o que pensava, imóvel e silenciosa sob o olhar igualmente imóvel do homem de copo na mão.
    Em Buenaventura, a família, sem dúvida os irmãos, os cunhados e os primos, de Maria Urruti tinham invadido o navio. Betty via-os como um bloco compacto, sólido. Tinham as autoridades pelo seu lado.
    - Como é que vão por aqui as coisas, minhas filhas?
    - Muito bem, Mário. Ainda estamos a comer.
    - É cedo. Os desaparafusados não são muitos esta
    noite. Devem ter medo da chuva. Lançou uma olhadela a Betty para ver como estava ela e, depois, antes de se afastar, pôs por um instante a mão no ombro de Laure, um gesto quase conjugal.
    - No fundo, gosta dos clientes e, quando eles não aparecem, não se sente bem. Betty sabia, havia alguns minutos, que, para Mário, ela não era uma simples cliente e que, mais cedo ou mais tarde, qualquer coisa teria que acontecer. Laure teria desconfiado? Teria ciúmes? Contentar-se-ia com o que Mário lhe dava?
    Betty começara de novo à procura de qualquer coisa a que se agarrar, tomada de novo por uma espécie de flutuação. Não bebera muito. Decidira deter-se a tempo, não querendo nem ficar indisposta nem dar outro espectáculo.
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    No entanto, tinha algumas saudades da noite anterior, do momento em que, inerte, deixara de ter que se preocupar consigo própria e tudo perdera toda a importância.
    E agora o que é que tinha importância? Mandara buscar as suas coisas. O porteiro do Carlton devia ter mandado lá um motorista, talvez acompanhado de um carregador para as bagagens. Guy estava no salão com a mãe e, sem dúvida, também com o irmão e a cunhada.
    Os dois irmãos, os dois casais, moravam no mesmo prédio, Guy no terceiro andar, Antoine, no quarto. Era Antoine o mais velho. Tinha trinta e oito anos e seguia a carreira militar, como o pai. Um dia, também ele, seria general. Comandante de artilharia, adido junto do Ministério da Defesa, trabalhava num gabinete na rua Saint-Dominique.
    A mulher de Antoine, Marcelle, era igualmente filha de um oficial do exército, irmã de outros oficiais. O casal tinha dois filhos rapazes, Paul e Henri, que andavam já no liceu.
    Porque é que sendo Antoine o mais velho, era em casa de Guy que a família se reunia à noite? Nunca fora tomada qualquer decisão nesse sentido. Ninguém perguntara a razão de as coisas serem assim. Acontecera naturalmente e era tudo.
    Por vezes, Antoine vinha sozinho, com um casaco de trazer por casa, e ia ter com Guy ao escritório. Outras vezes, Marcelle acompanhava o marido e então, Betty tinha que estar também presente.
    Havia um fogo de lenha na lareira, durante o Inverno, e um grande candeeiro de pé, com um abajur em pergaminho
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    estalado. As crianças estavam já deitadas, os dois rapazes no quarto andar, as raparigas no terceiro e por volta das dez horas, Elda, a nurse, uma suíça do Valais, surgia no enquadramento da porta a perguntar:
    - Posso ir deitar-me, madame?
    Porque Betty era madame. Tinha a sua casa, dois filhos, um marido, um cunhado, uma cunhada e, em Lyon, uma sogra que escrevia todas as semanas aos filhos e que, de dois em dois meses aproximadamente, costumava passar alguns dias em Paris.
    Quando o general era vivo ficava com ele num hotel da margem esquerda, onde continuavam os dois com os seus hábitos de sempre. Depois da morte do marido, porém, madame Etamble passara a ficar na avenida de Wagram, no quarto andar, em casa do filho mais velho.
    Embora não gostasse de Betty, não se mostrava desagradável com ela, contentando-se com observá-la atentamente, como alguém que tentasse compreender.
    - Mas porquê ela? - parecia perguntar, lançando, em seguida, uma olhadela fugidia ao filho mais novo.
    Betty fazia a si própria a mesma pergunta. A esposa do general não se enganava. Ninguém se enganava, no fundo. Guy também não, e Betty estava convencida de que ele a amara, de que a amava ainda e de que, provavelmente, estaria a sofrer muito.
    Nada tinha a censurar-lhe. com trinta e cinco anos, o marido tinha já grandes responsabilidades, preocupações sérias, porque, depois de ter sido um dos melhores alunos da Politechnique, ocupava agora um lugar-chave na Union des Mines, no boulevard Malesherbes - um prédio
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    impressionante, com um aspecto de verdadeira fortaleza, onde se jogavam interesses cujas repercussões eram à escala nacional.
    Era bonito, mais bonito do que Antoine - mais fino, como a mãe dele dizia -, louro e de feições regulares; vestia-se com todo o esmero, não de escuro, como esses homens de negócios que receiam não ser levados a sério mas, pelo contrário, muitas das vezes de cores claras, escolhendo tons suaves e tecidos macios e aconchegados. Jogava ténis. O seu automóvel era um modelo sport.
    Tinha um feitio bastante alegre e conseguia pôr Charlotte a rir durante mais de uma hora, sem a cansar e sem se cansar. Era ele que, quando a filha era muito pequenina, a levava todos os dias para a cama - tradição que continuara, mais tarde, com Anne-Marie.
    Laure conheceria a família Etamble?
    Betty imaginava-os a todos no salão, naquela mesma noite, no momento em que o motorista ou o carregador entregasse o bilhete dela.
    Onde lhe teriam metido as coisas? Quem se encarregara de tirar os vestidos dos armários, de lhe juntar a roupa, o calçado, os pequenos objectos pessoais, de esvaziar as gavetas do toucador e da secretariazinha Luís XV?
    Olga, a criada, que sempre a olhara ainda mais severamente do que a sogra e que tinha umas enormes mãos de homem? Elda?
    De que malas se teriam servido? Não tinham, lá em casa, malas dela e malas dele. As malas eram comuns Teriam contornado a questão fazendo descer do sótão o grande baú?
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    Havia três dias, quatro contando com o de hoje, que Betty saíra de casa e todos tinham ficado, sem dúvida, à espera de que ela mandasse buscar as coisas logo a seguir - na manhã do dia seguinte, o mais tardar, até porque ela não levara nada consigo, excepto a roupa que tinha vestida.
    Não teriam sentido algum medo ao ficarem sem notícias dela? Teriam imaginado que Betty se atirara ao Sena ou devorara um tubo inteiro de comprimidos para dormir?
    Se telefonasse para o Carlton, poderia saber se o motorista do hotel já voltara, se lhe tinham entregado a bagagem, o que fora que ele vira, o que lhe tinham os outros dito...
    Talvez a crise da sogra tivesse sido mais grave do que as anteriores? Sofria do coração, era um facto incontestável. Andava em tratamento desde havia muito. Se por vezes exagerava o seu mal-estar para que a lamentassem, nem por isso deixava de ser doente e, quando Antoine viera cá abaixo, sentira-se assustadíssimo ao ver a mãe cujos lábios estavam roxos.
    - Posso perguntar-lhe no que está a pensar? Não sou indiscreta?
    - Na minha sogra. Deve-a ter conhecido...
    - Mora três casas abaixo da minha, no quai de Tilsitt. Porque ainda não lho disse, mas conservei o meu apartamento de Lyon e vou lá, de tempos a tempos, em peregrinação, para não perder o contacto.
    O contacto com quê? com a sua vida antiga, com o seu meio? com a memória do marido? Embora Laure não o precisasse, Betty tinha quase a certeza de estar a interpretá-la bem.
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    - Vi-os muitas vezes noutro tempo, a ela e ao general, em cerimónias e jantares oficiais a que nós éramos obrigados a assistir. Deixando de parte essas obrigações, o meu marido e eu vivíamos num círculo muito pequeno, composto por médicos, dois advogados e um músico que ninguém sabe quem é.
    Haveria também, no salão, recatado, de Laure, um candeeiro de pé com um abajur de pergaminho, um piano e um canapé onde as senhoras se sentavam ao lado umas das outras? Haveria um relógio de parede onde os minutos passavam mais lentamente do que em qualquer outro lado e, lá fora, noite e dia, como a recordação de uma outra vida, a passagem ruidosa dos carros? - Ela agora está em Paris - disse Betty.
    Não tinha vontade de falar daquilo e, todavia, sentiaf-se incapaz de ficar calada. Convencia-se a si própria de que pararia quando o entendesse, de que não iria mais longe do que tencionava.
    - Há três dias - acrescentou. - Quatro, contando com hoje! Tem graça. Conto sempre um dia a menos.
    Aquilo só tinha sentido para ela. Para Laure, não se trataria de uma charada?
    - Casei com um dos filhos do general, o mais novo, Guy.
    Era Laure quem continuava:
    - O que não quis seguir a carreira militar, para grande desespero do general.
    - Sim. O irmão, Antoine, está no Ministério da Defesa.
    - E casou com uma Fleury. Conheci a irmã mais velha da mulher dele. Embora os Fleury não sejam de
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    Lyon, têm lá família, uma família vagamente aparentada com a minha. Quanto à generala, é uma Gouvieux. O pai era dono de uma fábrica de produtos químicos, que os filhos herdaram em conjunto, à excepção de um tal Hector, que é médico e dirige o serviço de oftalmologia no hospital Broussais, onde ficava também o serviço do meu marido. Laure estava a sorrir com uma ponta de ironia.
    - Está a ver! Lá comecei eu a falar como se estivesse numa sala de visitas de Lyon. Também sei que os Etamble têm uma propriedade na floresta de Chassagne, perto de Chalamont, não muito longe de um sítio para onde o meu cunhado costuma ir para a caça aos patos.
    - Já lá estive...
    - Esteve lá muitas vezes?
    - Todos os anos, desde que há seis anos me casei. Toda a família passa lá o mês de Agosto, a generala, o general quando ainda era vivo, os dois irmãos, as mulheres, os filhos...
    Betty não sabia porque é que tinha os olhos marejados de lágrimas. Não era nostalgia. Sempre odiara esse mês de Agosto passado nos pântanos, a casa imensa com os seus torreões inúteis, os quartos com um soalho sempre aos estalidos, as camas de ferro que eram montadas de propósito para as crianças, os colchões húmidos, o parque coberto de uma relva esponjosa.
    Ela sonhava com o mar, com uma praia ao sol, com a água salgada que se apanha no rosto, com o corpo à vontade num fato de banho. Sonhava com esplanadas ao som da música, com mariscos regados de vinho branco,
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    com uma lancha lançada a toda a velocidade e saltando por cima das ondas.
    Durante horas, Guy jogava ténis com o irmão ou, por vezes, com alguns vizinhos. Em certos dias, as mulheres eram convidadas para um desafio a pares, e Betty falhava sempre o serviço à força de querer fazer o melhor possível.
    - Enganámo-nos -- concluiu ela num resumo brusco, que não confundiu, todavia, Laure.
    - Era o que me parecia.
    A sua companheira virava-se agora para Joseph e fazia-lhe sinal. Betty deu por isso. Teria podido dizer que não. Não o fez, porém, porque se tratava para ela da única solução.
    Não era capaz de continuar a falar assim, a frio, como quando, entre parentes que se encontram, se evocam recordações familiares. A imagem que acabava de sugerir era falsa e Laure devia sabê-lo. Não se tratava de uma questão de família. Os outros não contavam. Os outros nada tinham feito.
    - Tenho duas filhas - recomeçou Betty, com um olhar fixo.
    Laure esperava em silêncio que ela prosseguisse.
    - Charlotte apagou, no mês passado, as quatro velas do bolo de anos. Anne-Marie tem dezanove meses e já começa a falar como uma pessoa crescida.
    Joseph chegava com o whisky e a água com gás. Por que é que Laure não a detinha, não a impedia de beber? Ignoraria ela, ela que sabia tanto, que assim tudo iria recomeçar, que aquilo era fatalmente fazer recomeçar tudo?
    Estaria a fazer de propósito, para que Betty entrasse
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    em confidências, por sentir necessidade de conhecer bem os segredos das outras pessoas? Tinha-lhe dito:
    - Mário chama-lhes os desaparafusados. Vai ver!
    E não fora com alguma complacência que contara a história de Maria Urruti?
    Quando, havia pouco, falara da doença de John, Betty tivera a impressão de que a outra o estava a despir em público, que estava a despir também a barmaid dos seios grandes e até a starlette deslavada, todas as mulheres que tinham acompanhado o inglês à sua propriedade de Louveciennes, e a verdade é que Betty tinha agora vergonha de olhar para ele.
    Laure não iria fazer a mesma coisa com ela? Não se poria um dia a contar, tão impassível, tão impessoal como o marido a descrever um caso clínico, a história daquela Etamblezinha?
    Que teriam eles dito acerca dela, na noite passada, ou antes já de manhãzinha, quando Mário fora ter com Laure ao quarto no hotel?
    - Ela está a dormir?
    - Pu-la a descansar com uma injecção.
    - Não sei como é que ela se aguentava! Despiste-a? Laure teria explicado ao companheiro como era o
    corpo de Betty? Teria acrescentado que ela estava suja? Não teriam ido os dois vê-la enquanto ela estivera adormecida?
    - De onde é que achas que ela veio?
    - Bernard pescou-a num bar.
    Talvez Laure tivesse acentuado que o saia-casaco de Betty fora comprado numa das melhores casas de Paris e que a sua roupa de dentro vinha da rua Saint-Honoré.
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    Quem sabe se não lhe teriam andado a vasculhar na mala?
    Mesmo sem más intenções, sem qualquer curiosidade mórbida, era muito natural que lhe tivessem aberto a mala. Tinham-na levantado do chão do Buraco, e recolhido como um animal doente. Ninguém sabia de onde ela vinha, nem sequer o médico que, entretanto, corria atrás do sem-fim de coelhos imaginários que lhe enchiam o quarto.
    Ela estivera a certa altura com cento e quarenta e três pulsações. Teria podido dar-se um acidente e nem Laure nem Mário saberiam a quem recorrer, a não ser à Polícia.
    Teriam visto o cheque? Por um momento, Betty perguntou-se se não seria por causa desse cheque de um milhão que...
    Não queria! Não estava esgotada como na véspera. Dormira. Tinham tratado dela. Tomara um banho. Voltara a ser uma pessoa quase normal, como aquele grupo de quatro pessoas, que acabava de entrar e dava vontade de rir a todos os presentes.
    Betty, contra vontade, sorria também; e, no entanto, eram pessoas normais as que tinham entrado e o pai dela, por exemplo, ao entrar com a família num lugar semelhante, ter-se-ia provavelmente comportado da mesma maneira.
    O homem podia ser qualquer coisa na vida, um industrial, um advogado, um funcionário, um médico de bairro: um homem entre duas idades, à vontade, seguro, não forçosamente tolo.
    Não fora por culpa dele que a mulher engordara, mostrando
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    agora os tons cor-de-rosa de um doce. Aliás, como mãe de família, também ela nada tinha de ridículo.
    Sem dúvida, havia as gémeas, duas raparigas altas de dezassete ou dezoito anos, tão gordas e rosadas como a mãe, vestidas de verde ainda por cima, iguais da cabeça aos pés.
    Os quatro estavam com fome. Vinham de longe e sentiam-se felizes por terem desencantado aquele restaurante em pleno campo.
    Logo que entrara, porém, o pai franzira o sobrolho ao ver Jeanine no bar e fora obrigado a passar obliquamente, encolhendo-se, por detrás das duas mulheres de calças a fim de não ter que as empurrar.
    No instante seguinte dava de caras com o eterno sorriso do negro que aparecia e desaparecia como o boneco de um teatro de fantoches.
    Disse à mulher e às filhas que se sentassem, instalou-se depois, por seu turno, e chamou batendo as palmas:
    - Por favor!
    Joseph avançara sem pressa.
    - Whisky?
    - Não, obrigado.
    O homem virara-se, em seguida, para as mulheres:
    - Não querem um aperitivo?
    Elas disseram que não, conforme era já de prever.
    - Mostre-me a ementa.
    - Não temos ementa, monsieur.
    Intrigado, o homem relanceou as mesas onde havia gente a comer.
    - Mas isto é um restaurante, não é verdade?
    - Claro que é um restaurante.
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    Mário intervinha.
    - Boa noite, monsieur, boa noite, madames. Suponho que não se importarão de comer cannelloni?
    - Que mais há?
    - Depois, tenho queijo, um brie magnífico, salada e arroz à imperadora.
    - Quero dizer como prato principal...
    - Cannelloni. O pé de Laure, por baixo da mesa, pisava o de Betty que se via obrigada a sorrir. O homem olhava à volta com um começo de inquietação - primeiro as paredes, depois o bar, a seguir Jeanine e, por fim, os olhos cruzaram-se-lhe com o olhar imóvel de John.
    - Queres cannelloni?
    - Não me importo.
    O médico vinha a entrar e desviara a atenção de Betty. Estava tão impecavelmente vestido como na véspera, sempre de cinzento, e movia-se um pouco hirto. Logo à entrada parecera reconhecê-la e hesitava um instante; finalmente, decidira-se a avançar.
    - Boa noite, Laure.
    Depois, inclinara-se diante de Betty, beijando-lhe a mão.
    - Espero que me perdoe ter-lhe faltado ontem à noite, se é que deu pela minha falta. Laure já lhe deve ter explicado...
    Depois de se ter inclinado uma vez mais, instalara-se no bar.
    Os quatro recém-chegados tinham-se resignado aos cannelloni e ao chianti que, autoritariamente, lhes fora servido. Ainda pouco à vontade, esforçavam-se
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    por se descontraírem, começando uma conversa em voz alta.
    - A vossa tia não se admirou de vos ver chegar às duas sem aviso?
    - Imagina, papá - respondia uma das raparigas, com uma entoação de teatro de amadores -, que a tia estava no sótão em arrumações. Lembras-te do sótão e de todas aquelas coisas extravagantes que por lá há?
    A rapariga falava para o público e o olhar de John, poisado nela, parecia excitá-la.
    - Subimos sem fazer barulho e, de repente, Laurence soltou o seu famoso mugido. Parecia mesmo que uma vaca tinha subido ao sótão e a tia largou a pilha de livros com as páginas douradas que tinha na mão...
    Guy, se entrasse ali desprevenidamente, não se sentiria pouco à vontade? Antoine, ficaria embaraçado, era mais do que certo. E Marcelle! Antoine e Marcelle não teriam hesitado em dar meia volta e sair. Na véspera, Betty não acabara por pôr-se a chorar?
    Agora não choraria mais. Já não tinha medo. Mas nem por isso deixava de sentir, ao examinar os rostos que a rodeavam, uma vaga angústia.
    Suspeitava que Laure tinha outras histórias para lhe contar e que, dentro de alguns dias, dentro de algumas horas, aquelas figuras anónimas tornar-se-iam tão dramáticas como o médico, como o inglês, como essa Maria Urruti que não conseguia varrer do seu espírito.
    - O que é que fizeram da rã?
    Um dia, alguém perguntaria igualmente, talvez com uma compaixão mesclada de curiosidade:
    - O que é feito de Betty?
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    Porque era a si própria que acabava sempre por voltar. No fundo de tudo, na base de tudo, havia uma Betty, pequenina, que tentava compreender-se e que gostaria que fizessem um esforço para a compreenderem.
    Não era devido a qualquer sentimento de ternura por si própria que se via tão pequena. Era realmente pequenina, miúda, delicada, e nunca passara dos quarenta e três quilos.
    Só quando estava grávida ganhara algum peso mais, mas tão pouco que os médicos, inquietos, sobretudo da segunda vez, tinham pensado em provocar o parto aos sete meses.
    O facto de se sentir mais pequena do que os outros, menos robusta, teria influenciado o seu comportamento? Alguém lhe dissera que sim - um estudante de medicina que, durante algum tempo, se divertira a psicanalisá-la.
    Na altura acreditara. Acreditara também que o amava. Esforçava-se por responder às perguntas dele com toda a sinceridade. Até ao dia em que se dera conta de que as perguntas giravam todas à volta de um único e mesmo tema e que se destinavam apenas a atingir determinado objectivo.
    Não rompera logo com o rapaz. Continuara com o jogo, porque este era não menos excitante para ela. Fora ele quem, na realidade, se cansara primeiro, achando-a talvez com falta de imaginação, por não variar o suficiente nas respostas que lhe dava. Nem sequer se despedira dela. Contentara-se com desaparecer.
    Os quatro viajantes estavam agora a comer. A rapariga deslavada continuava à espera. O negro vinha de tempos a tempos, mostrando a cara na moldura de uma porta entreaberta.
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    Bernard, com um passo cheio de dignidade, dirigia-se para a casa de banho e Mário seguia-o com o olhar. Laure bebia em pequenos goles, espiando a companheira por detrás do copo.
    - A culpa não é deles - suspirava Betty, desencorajada.
    Não estava a falar da mesa das gémeas, mas dos Etamble, da mãe, dos dois filhos, da cunhada, dos filhos desta e de Antoine e das suas próprias filhas. As filhas que já não lhe pertenciam!
    Tinha que voltar àquele tema. Era fatal. Tinha que falar e, para falar como era preciso que falasse, não podia deixar de beber mais.
    Mas ali, não. Não queria voltar a fazer escândalo, voltar a ver todas as caras viradas para ela, como agora se viravam para os quatro visitantes desconhecidos, com os olhos assestados na sua pessoa à maneira da noite anterior.
    Betty esvaziou o copo de um trago e perguntou, ansiosa:
    - Acha muito maçador irmo-nos embora?
    - Está a sentir-se mal?
    Ela não se estava a sentir mal, mas o melhor era não o confessar.
    - Não sei. Acho que preferia voltar.
    Dissera voltar, como se o quarto com os madeiramentos azuis e o busto de Maria Antonieta se tivesse já transformado na sua casa.
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    - As suas malas já chegaram, madame Etamble. Mandei pô-las no quarto.
    - Suponho que não haverá nenhum recado para mim?
    - O motorista não me falou de nada. Só me entregou isto...
    Ao ver, de longe, um envelope, Betty sentira-se por um momento emocionada, como se estivesse à espera de qualquer coisa, quando, na verdade, nada esperava e nada desejava do que eles lhe pudessem mandar. Ficou humilhada com aquela reacção, sobretudo diante do porteiro, que, na véspera, a transportara a cair de bêbada para o quarto e que, talvez por ironia, a tratava agora com um respeito exagerado.
    O envelope, como seria de prever, continha apenas as chaves das malas. Nem um bilhete, mais nada. Porque lhe escreveriam afinal? A direcção vinha com a letra de Elda.
    Quando, pouco depois, Betty abriu a porta do 53 e as duas mulheres viram três grandes malas, mais alguns embrulhos,
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    no meio do quarto, Laure fez menção de se retirar para os aposentos contíguos, murmurando:
    - vou deixá-la por um momento. Até já.
    - Não tem vontade de voltar para o Buraco?
    - Não, mas suponho que quererá tratar das suas coisas à vontade.
    - Aborrecia-a ficar aqui?
    - Pelo contrário. Só não queria incomodá-la. Eu, que nunca cheguei a mudar-me de vez e que, quando o meu marido era vivo, só viajei para o acompanhar a pouquíssimos congressos, sempre adorei fazer e desfazer malas.
    Um grande embrulho mole estava aos pés da cama e Betty rasgou imediatamente o papel azul.
    - O meu vison!
    Não conseguia esconder a sua alegria, porque não tinha a certeza de que lho mandassem. Marcelle, a cunhada, embora fosse mais velha do que ela, ainda não tinha vison e contentava-se com o seu casaco de astrakan. Ao falar de comprar um vison para a mulher, dois anos antes, Guy explicara:
    - Não se trata tanto de uma prenda como de um investimento. Na situação em que estamos, precisarás de um vison mais tarde ou mais cedo. Quanto mais tarde to comprar, mais caro será. E depois, é uma coisa para toda a vida...
    Por conseguinte, Guy poderia considerar aquilo menos uma peça de uso pessoal do que um capital, um bem de família. Apesar disso, devolvera-lho e, não fora a presença de Laure, Betty tê-lo-ia vestido sem mais demora, só pelo prazer de se sentir com ele posto, pela sensação de luxo que o casaco lhe dava.
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    - Vison selvagem?
    -- Foi o que nos garantiram.
    - Eu fiz a asneira de comprar um de criação e, passados poucos anos, o casaco parecia de pele de coelho, posso servi-la?
    Entretanto, Betty começara a fazer cerimónia.
    - Está sempre a convidar-me.
    - Prometo-lhe deixá-la pagar a próxima garrafa, as duas próximas, se quiser. Hei-de dizer-lhe em que casa costumo comprá-las.
    Betty estava a experimentar as chaves, a abrir as malas, depois o armário, as gavetas dos móveis do quarto. Laure voltara já com dois copos no momento em que ela abria a última mala, a mais pequena, de couro azul, que habitualmente reservava para os artigos de toilette.
    Por cima do resto, bem em evidência, havia duas fotografias - a que tinham tirado a Charlotte no seu dia de anos e a de Anne-Marie, junto à grande cama dos pais, no domingo em que dera os primeiros passos.
    Fora Guy, ainda em pijama, que se precipitara indo buscar a máquina para lhe tirar o retrato. Num dos cantos via-se uma ponta do avental listado da nurse, que ficara junto da menina para a amparar se disso fosse caso.
    - As minhas filhas... - murmurou Betty, convidando com um gesto a companheira a ver as fotografias.
    - A mais velha parece-se consigo. Tem os seus olhos. Há-de ser um encanto.
    Laure vigiava-a do canto do olho, à espera talvez de uma crise de lágrimas. Ora, Betty estava calma, mais fria
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    do que na altura em que vira o envelope lá em baixo ou do que no momento, em que, à entrada do quarto, vira as malas. Se aceitava o copo que a outra lhe servira não era porque precisasse de ganhar coragem.
    - À sua saúde e obrigada por tudo o que tem feito por mim!
    Dir-se-ia que reencontrar-se com as suas coisas a fazia sentir-se impelida a comportar-se de um modo mais convencional. É verdade que havia ironia na sua voz, uma ironia que se dirigia, porém, à sua própria pessoa e não a Laure. Voltando a pegar nas fotografias e colocando-as em cima da cama, Betty dizia:
    - Seja como for, já não são minhas filhas e pergunto até a mim própria se, depois do tempo em que as trouxe no ventre, alguma vez foram realmente minhas...
    Assaltada por uma necessidade de acção pegava em pilhas de roupa interior que arrumava nas gavetas; voltava junto das malas; aproximava-se da cómoda ou do armário, sempre a falar, com a voz mais clara, mais aguda, sem se dar ao trabalho de observar o rosto de Laure para se inteirar das reacções desta.
    - Acredita no amor maternal?
    Já estava à espera de que fosse um silêncio a acolher a sua pergunta e, por isso, continuou:
    - Esqueci-me de que você não tem filhos. Por isso, não pode saber. Estou a falar do amor maternal, como aparece descrito nos livros, como nos dizem que é quando andamos na escola, como se ouve nas cantigas. Quando me casei pensava que um dia havia de ter filhos e essa ideia era-me, sem dúvida, agradável. Fazia parte de um conjunto maior: a família, a casa, as férias passadas
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    depois à beira-mar. Mais tarde, quando me anunciaram que estava grávida, senti-me desorientada por aquilo acontecer assim, tão depressa, quando eu própria mal deixara ainda de ser uma rapariguinha.
    "Vivi apenas dois anos sozinha com o meu marido. Já nessa altura não era de mim que se falava, mas da criança que havia de nascer. Ou, quando se tratava de mim, era em função da criança, que assumia sempre o primeiro lugar. Antes mesmo de ter dado à luz, eu já era mãe.
    "Vai pensar que eu tinha ciúmes. É quase verdade. Mas não completamente. Mal começava a viver. E tinha contado com alegrias tão grandes no dia em que tivesse enfim um homem meu!...
    "A minha ideia do casamento era a de que seríamos dois, e eis senão quando íamos passar a ser três.
    "Não pensava assim todos os dias, bem entendido. Por momentos sentia-me comovida, sobretudo quando sentia o bebé a mexer-se dentro de mim. Pouco tempo depois, a minha saúde começou a ser motivo de inquietação, como sempre não em atenção a mim, mas por causa do bebé que estava para nascer e acabaram por me impor um regime severo. Passei, daí em diante, a maior parte do tempo na cama.
    "À noite, o meu marido vinha sentar-se junto de mim por meia hora, três quartos de hora, e depois, já não aguentando mais, já sem nada para me dizer, voltava para o escritório ou ia ter com Antoine e a mulher de Antoine à sala.
    "Trazia-me flores. Toda a gente me trazia flores, todos eram simpáticos para mim, até Olga, a criada que estava já ao serviço de Guy antes de eu entrar para a família e que nunca deixou de me considerar uma intrusa.
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    "Também a minha sogra se mostrava satisfeita comigo.
    "- "Muito bem, minha filha! Acima de tudo, pense no bebé, nas suas responsabilidades e siga as instruções do médico..."
    "Vigiavam-me, disfarçando, certificando-se de que não me atrevia a quebrar as regras do regime. Eu era tão delicadinha, não seria?
    "Não era, aliás, natural que se inquietassem com o futuro Etamble? Desde que Antoine, o mais velho, tivera dois filhos, ninguém duvidava de que Guy teria também um rapaz."
    Betty andava de um lado para o outro, enquanto Laure, para a ajudar, ia pondo os vestidos nas cruzetas. Como não havia bastantes no armário, foi buscar mais algumas ao seu próprio quarto.
    - Levaram-me para a clínica com muita antecedência e fiquei lá quarenta e oito horas à espera. Tinha medo. Estava convencida de que ia ter que pagar. Ainda agora me é impossível explicar o que entendia eu por ter que pagar. Era uma noção confusa de justiça, uma justiça que eu, por outro lado, não reconhecia. Ao dar a vida a um ser, eu teria que pagar de uma maneira ou de outra, com os meus sofrimentos ou com a minha vida, ou ficando impotente para o resto dos meus dias."
    - Estou a perceber.
    Aquilo surpreendeu Betty que franziu o sobrolho.
    - Nunca pensei que outra pessoa, além de mim, pudesse entender isto e nunca o contei a ninguém, com medo de que se rissem de mim. A criança nasceu: era uma menina. A família fingiu sentir-se satisfeita, sobretudo o meu marido, que nunca olhou para mim com tanta ternura como nesse dia.
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    "Na altura, senti-me encantada; mais tarde, compreendi que essa ternura não me era destinada a mim, mas à mãe da filha dele.
    "Porque era a filha dele. Qualquer outra mulher podia ter desempenhado o meu papel e dar-lhe um filho, mais facilmente até do que eu, sem todas as pequenas complicações e inquietações dos últimos meses; e, quem sabe?, talvez tivesse sido, com outra, o rapaz que ele tanto desejava...
    "A nurse, que foram buscar a uma escola suíça, foi para a clínica ao mesmo tempo que eu, pronta a tomar posse da criança.
    "- "Descansa, querida. Está aí Elda para tomar conta do bebé."
    "com uns seios tão pequenos como eram os meus, que pareciam duas maçãs, estava fora de questão amamentar. Os médicos, as enfermeiras, a família, toda a gente entrava e saía na ponta dos pés, depois de ficarem um minuto no quarto.
    "- "Descanse!"
    "E eu ouvia-os a segredarem e a rirem na sala do lado.
    "Não estou à procura de desculpas. Estou a tentar compreender. É possível que o resultado viesse a ser o mesmo ainda que as coisas se tivessem passado de outra maneira. Talvez eu seja um monstro. Nesse caso, juraria que o mesmo acontece com milhares e milhares de mulheres.
    "Nunca ouvi a voz do sangue, a voz da carne. Mostravam-me um serzinho pequeno em que eu não sabia sequer pegar devidamente e, logo a seguir, a nurse levava a menina embora como que para a pôr a salvo.
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    "Na casa da avenida de Wagram, eu ia várias vezes por dia à nursery, sempre cheia de boa vontade. Ou a criança estava a dormir e Elda fazia-me então sinal, colocando um dedo diante da boca, para eu não fazer barulho, ou estava a tomar o biberão e então recomendavam-me que não a distraísse, ou, noutras alturas, estavam a mudar-lhe a fralda e eu não podia fazer outra coisa que não fosse ficar a ver.
    "Estava sempre tudo em ordem, tudo asseado. O mesmo se passava na cozinha e em toda a casa, graças a Olga, que não precisava de mim para dirigir tudo.
    "Tudo isto foi há quatro anos. Charlotte aprendeu a andar, a falar, cresceu. Continua a não ser minha filha.
    "Não sei o que lhe vão dizer agora: que morri ou que estou a fazer uma grande viagem."
    - Não volta a vê-la?
    Betty sacudiu a cabeça com tanta força que os cabelos lhe caíram para a cara.
    - Não querem - respondeu num tom de voz mais baixo.
    Depois, mergulhando numa das malas:
    - Foi o que eu prometi.
    Estava outra vez direita, com um grande envelope amarelo na mão.
    - Não falemos mais disto. Onde está o meu copo?
    - Aqui o tem.
    - Obrigada. Se continuar assim, acabo por a maçar. Foi Elda quem se encarregou de emalar as minhas coisas, reconheço o dedo dela em tudo isto. Julgou dar-me prazer enviando-me os retratos das meninas e, afinal de contas, talvez não se tenha enganado. Pertencem ao meu
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    passado, como este envelope que contém fotografias antigas. Nunca mais tinha pensado nelas e não sei onde é que ela as foi descobrir."
    Betty estava a falar agora com volubilidade e, embora todas as luzes estivessem acesas, o quarto parecia mais escuro. Escuro e húmido.
    - Um dia, quando andava nos meus vinte anos, comprei um belo álbum para pôr lá dentro as minhas fotografias. Na minha ideia, as fotografias seriam uma espécie de história da minha vida.
    "Olhe! Cá está o álbum, ao pé do meu estojo de toilette. Nunca cheguei a pôr lá fotografia nenhuma. Ficou tal e qual como o trouxe da papelaria e, claro, não foi por falta de tempo! Se tivesse tido menos tempo..."
    Betty sacudia de novo a cabeça. A voz mudava-lhe uma vez mais de registo.
    - Quer ver o meu pai? Só o conheci até aos oito anos, porque, depois, a guerra rebentou, os alemães invadiram a França e, quando os abastecimentos se tornaram complicados, mandaram-me para casa de uma tia, na Vendeia. Já nesse tempo as pessoas achavam que eu não era lá muito forte. Na Vendeia havia toda a comida que se quisesse, manteiga, ovos, carne e até pão branco do autêntico.
    "Olhe! Cá está o meu pai. Foi assim que o vi sempre. Sentia-se demasiado orgulhoso da sua bata suja para aceitar tirar o retrato de fato completo, endomingado. Andava sempre com os cabelos ao vento...
    "- "Vê se dás pelo menos uma penteadela a esse cabelo" - suspirava a minha mãe, irritada.
    "- "Porquê? Queres que dê uma imagem falsa de mim?"
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    "Gostava de pregar partidas, ria-se das clientes. À mesa, para me fazer rir a mim, imitava-as e era capaz de reproduzir a voz de todas elas.
    "Não faço ideia do que terá ele feito durante a Ocupação. A minha mãe jurou-me que também não sabia nada. Só muito mais tarde, quando o meu pai foi considerado a título póstumo e estava em jogo uma pensão para nós, ela falou das actividades misteriosas dele.
    "Não me parece que ele tenha pertencido a uma rede de resistência, porque era uma espécie de anarquista, que não acreditava em nada e se ria tanto de Pétain como de De Gaulle, tanto dos alemães como dos americanos e dos russos.
    "A Gestapo nem por isso deixou de prendê-lo algumas semanas antes da libertação de Paris. Não tivemos mais notícias até que, passados dois anos, a minha mãe foi oficialmente notificada de que o tinham fuzilado.
    "Não se sabe sequer ao certo onde. Não foi num campo, nem numa prisão, mas, segundo certos testemunhos, numa estação de comboio onde fizeram descer dos vagões uma fornada de prisioneiros que iam a caminho da Alemanha."
    Mais fria, Betty anunciava agora, mostrando uma fotografia tirada contra o fundo da cortina cinzento-pérola de um fotógrafo:
    - A minha mãe.
    - Não a costuma ver?
    - De vez em quando. Raramente. Quando o meu pai desapareceu, ela continuou com a loja aberta durante alguns meses, depois contratou um químico ao qual, há dois anos, acabou por ceder o negócio, ficando para si com uma parte do primeiro andar.
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    - E não se voltou a casar?
    Betty pareceu surpreendida, chocada. Não seria a mãe urna mulher já velha? Dava-se subitamente conta de que, na realidade, ela enviuvara aos quarenta anos, numa altura em que era bastante mais nova do que Laure.
    - E esta sou eu, com dez ou doze semanas.
    A tradicional fotografia de um bebé de barriga para baixo em cima de uma pele de urso.
    - O único período da minha vida em que fui rechonchuda!
    - Mas você não é magra. Laure não a tinha visto nua?
    - Não muito, não. Não tanto como pareço quando estou vestida.
    Apesar de tudo, um sorriso leve aflorou-lhe aos lábios.
    - Eu outra vez, com quatro anos, quando entrei para a escola pré-primária. E com oito, na véspera da minha ida para La Pommeraye. Foi a minha mãe que lá me levou e, sendo os comboios o que eram ao tempo, aquilo foi quase autêntica expedição.
    Betty passava sem comentários as fotografias das tias, dos tios, do aspecto envelhecido e coladas em rectângulos de cartão.
    - Conhece a Vendeia?
    - Mal. Só Luçon, Sables-dOlonne e também La Roche-sur-Yon, porque passei lá uma noite num hotel que dá para uma praça enorme.
    - Eu aí nunca estive. La Pommeraye fica no outro extremo do departamento, no Bocage, no limite dos Deux-Sèvres. O Sèvre mortês atravessa a aldeia, tão pequena
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    e tão escondida que, durante toda a guerra, só passaram por lá meia dúzia de alemães.
    "O meu tio François, que casou com Rachèle, irmã da minha mãe, é a pessoa mais importante da terra, porque, além de ser dono da única estalagem existente, é também negociante de cereais, negociante de adubos e negociante de gado.
    "Não tenho nenhuma fotografia dele. Imagine um tipo enorme, com grandes bigodes de foca, olhos pequeninos, coruscantes, atrevidos e maus, calças de veludo e, de manhã à noite, do princípio ao fim do ano, umas grevas de couro nas pernas.
    "Lembro-me do cheiro dele, do cheiro da sala da estalagem, do bom cheiro a fechado dos quartos, das camas com colchões de penas onde uma pessoa quase se afogava..."
    Tinha na mão uma fotografia que parecia surpreendê-la e mudava de fio condutor.
    - Não me lembrava de ter uma fotografia de Thérèse. Mostrou-a sem a largar da mão, sem deixar de olhar
    para ela bastante emocionada.
    - A mais pequena, à esquerda, sou eu com onze anos. Está a ver as minhas pernas magras e as minhas tranças repuxadas? A minha tia magoava-me sempre que se punha a entrançar-me o cabelo...
    Na fotografia, um bocadinho desfocada, viam-se duas raparigas muito direitas, diante dos degraus de pedra de uma igreja de aldeia.
    - Quem era essa Thérèse?
    - A criada da estalagem, uma rapariga criada pela assistência pública.
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    "Não tinha, na altura, mais de quinze anos e trazia sempre o mesmo vestido preto, o único que possuía e que lhe vincava bem os seiosinhos espetados. Quando eu tinha dez anos, o peito dela já me impressionava e teria dado tudo para ter uns seios iguais aos dela.
    "Thérèse ocupava-se do serviço na sala quando a minha tia estava ocupada. Era também ela quem arrumava os quartos, descascava as batatas e, muitas vezes, ia ainda buscar as duas vacas ao campo.
    "Nunca se queixava. Também nunca se ria. A minha tia, que a achava dissimulada, não a largava durante o dia todo, gritando na sua voz aguda desta porta ou daquela:
    "- "Thérèse!... Thé-rè-se!..."
    ""Sim, madame", murmurava Thérèse aparecendo de repente ao lado dela, quando a minha tia a julgava longe.
    "Eu teria gostado que fôssemos, amigas, mas ela era crescida de mais para mim e eu contentava-me com andar à volta dela. Tinha ouvido dizer que a rapariga fora uma criança abandonada e estas palavras pareciam-me mágicas e faziam, aos meus olhos, de Thérèse um ser à parte, que chegava a invejar, apesar de todo o meu amor que sentia pelo meu pai..."
    Betty pegava no copo, levava-o para uma poltrona onde se deixava cair, com o envelope amarelo nos joelhos, e por cima deste a pequena fotografia que olhava de tempos a tempos.
    - O que Schwartz me arreliou por causa dela! Schwartz era o estudante de medicina de que já lhe falei. Trabalhava à noite numa cervejaria, a lavar pratos, para pagar os estudos e morava numa espécie de quarto de
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    criada junto da praça dês Ternes. Foi por ele morar no bairro que o conheci.
    E precisou com uma ponta de desafio:
    - Nessa altura já era casada, é claro. Foi até depois de Charlotte nascer. Um ano depois. Nem tanto. Quando estava deitada na cama dele via centenas de telhados e de chaminés que deitavam fumo.
    Laure não disse nada.
    - À força de ser interrogada sobre as coisas que sabe, acabei por lhe falar de Thérèse e ele sustentou que o episódio me marcara mais do que toda a minha restante infância. Fez-me repetir tantas vezes esta história que acabei por me sentir obcecada por ela.
    - O que é que se passou com Thérèse?
    - Deve calcular que, com onze anos, eu sabia tudo o que as rapariguinhas da minha idade sabem ou até mais, uma vez que estava a viver no campo. Já tinha visto os animais. Junto da estalagem havia um touro que cobria todas as vacas da região e nós costumávamos ir vê-lo quando voltávamos da escola.
    "Também já vira como era o corpo dos rapazes. Mas, ao contrário de muitas das minhas companheiras, não tinha querido mexer.
    "Todos os sábados, a minha tia costumava ir de carroça ao mercado de Saint-Mesmin, na vila vizinha, onde vendia galinhas, patos e queijos, porque fazia queijo fresco com o leite das vacas.
    "Lá na aldeia, como é costume no campo, em toda a parte segundo penso, o gado é domínio reservado dos homens, enquanto a criação, a manteiga e o queijo são exclusivamente tarefas da mulher.
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    "Estaríamos em férias? Teria eu faltado à escola por qualquer motivo de que já não consigo lembrar-me?
    "Estou a ver-me, sozinha no pátio, na horta, depois, sempre sozinha, na praça da aldeia, diante da igreja, como se a terra estivesse vazia, sem dúvida por causa de ser dia de mercado em Saint-Mesmin.
    "O padre passou e fez-me um aceno com a mão. Era Verão. Estava calor. Via-se o cascalho no fundo do rio, com a água a repartir-se em finos veios...
    "A certa altura voltei para o café e também lá não havia ninguém. A porta da cave estava entreaberta. Dirigi-me a ela para a fechar. Primeiro, lancei uma olhadela para a penumbra de lá de dentro que sempre me intrigara um bocadinho e, mesmo junto à porta, do outro lado, ocupado vi o meu tio a cobrir Thérèse, que, inclinada para diante, tinha a cabeça contra a parede caiada.
    "Digo "cobrir" porque era a única palavra para aquilo que eu então conhecia, a palavra que todos usavam naquela aldeia.
    "Não me mexi. Não me passou pela cabeça ir-me embora. Via, como que hipnotizada, as coxas delgadas e finas de Thérèse que o meu tio atacava com movimentos brutais.
    "Ele tinha-me visto, sabia que eu estava ali, mas não se interrompeu e, depois de respirar fundo, gritou-me:
    "- "Ouve bem, miúda, se tiveres a triste ideia de contar isto à tua tia, faço-te a mesma coisa!"
    "Continuei sem fugir. Recuei lentamente, deixando escancarada a porta da cave e sem deixar de olhar lá para dentro presa de um fascínio desmedido.
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    "Gostava de ter ficado até ao fim, de ver a cara de Thérèse depois daquilo, de lhe ouvir a voz.
    "Mais do que nunca, a rapariga convertera-se para mim numa figura extraordinária. Não chorava, não se debatia. Os cabelos e o braço dobrado escondiam de mim o seu rosto, mas ainda hoje vejo as meias pretas que acabavam acima do joelho, o vestido também preto repuxado e subido até aos ombros, as calças de dentro no chão, junto aos pés dela.
    "Não me atrevi a ficar à espera do fim, com medo de que o meu tio mudasse de parecer e realizasse logo ali a sua ameaça; acho que tive medo de que ele me magoasse.
    "Evitei-o até à noite e, como já terá adivinhado, não disse palavra de tudo aquilo à minha tia.
    "Dei-me conta mais tarde de que ela desconfiava do que se passava entre o marido e a rapariga, preferindo fingir não estranhar nada.
    "Passei a andar cada vez mais atrás de Thérèse, sem me decidir a perguntar-lhe o que queria. O que me perturbava mais, acho eu, era o facto de ela estar a meio caminho entre a rapariguinha que eu ainda era e as pessoas crescidas.
    "Nunca a considerara uma pessoa grande e ela tinha-me pedido várias vezes para brincar com a boneca que a minha mãe me mandara de Paris.
    "Schwartz disse-me muita coisa acerca dos meus sentimentos por Thérèse, algumas que são provavelmente verdadeiras, outras que acho exageradas.
    "Dizia que eu tinha inveja dela e isso é verdade. Se não o confessava, na altura, a mim própria, dou-me agora conta de que ela me inspirava realmente inveja.
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    "À força de seguir a pista, soube que aquelas cenas se passavam não só com o meu tio, mas que a rapariga aceitava que outros homens lhe fizessem o mesmo, e descobri também que o meu tio sentia ciúmes.
    "Vigiava-a e, quando Thérèse estava sozinha na sala com os clientes, ele aparecia de súbito, vindo de uma arrumação ou da cocheira, para se postar, com um olhar desconfiado, ao balcão.
    "Por mim surpreendi-a em flagrante pelo menos duas vezes. Uma vez, no Inverno, antes da ceia, já depois de caída a noite, ela estava deitada nas ervas da beira da estrada, entre a estalagem e a mercearia onde a tinham mandado comprar não sei o quê.
    "O homem era um criado de quinta das redondezas e eu reconheci-o pelas botas de borracha vermelha, porque ele era a única pessoa que usava na região botas daquela cor.
    "Outra vez, ia eu a passar diante de um quarto ocupado por um caixeiro-viajante. A porta estava fechada; não vi nada, mas ouvi Thérèse dizer:
    ""- Despache-se. Se fico aqui muito tempo, ele vem cá acima..."
    "Pelos sons que me chegavam aos ouvidos, sabia que eles estavam na cama ou na beira da cama.
    "Assim, com quinze anos, Thérèse já não era uma simples garotinha como eu e as minhas colegas de escola, mas uma mulher. Porque, para mim, uma pessoa tornar-se mulher era aquilo. Não pensava que ela pudesse ter prazer nisso e, justamente, de acordo com Schwartz, foi isso o que mais me marcou.
    "Ser mulher, em suma, era sofrer, era ser vítima,
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    e o facto tinha aos meus olhos qualquer coisa de patético. "Não me acha ridícula? Estou a maçá-la?"
    - Pelo contrário.
    Pareceu a Betty que Laure estava com as feições alteradas e deixou-a encher os copos e voltar a sentar-se na sua poltrona antes de continuar:
    - E é tudo, pouco mais ou menos. O meu tio nunca me tocou, a despeito da ameaça que me fizera e embora eu só tenha saído de la Pommeraye aos catorze anos.
    "Como, terminada a guerra, os abastecimentos continuavam problemáticos em Paris e como, na ausência do meu pai, a minha mãe tinha que fazer, decidiu deixar-me ficar na Vendeia ainda por algum tempo mais.
    "Como teria eu reagido se o meu tio me tivesse levado a mim para trás da porta da cave? com certeza que ficava cheia de medo. Não sei se teria gritado, e acho que não ofereceria também resistência de mais, se quer saber a verdade.
    "vou exagerar e talvez fazê-la sentir-se indignada, no caso de ser católica."
    - Não sou católica.
    - Eu também não. Os meus pais não o eram e o meu pai menos do que qualquer outra pessoa. Só a minha tia é que costumava ir à missa e foi ela quem me pôs a fazer a primeira comunhão, às escondidas dos meus pais.
    "Eu tinha doze anos. Foi depois do episódio de Thérèse e da cave. Quando tive que me confessar, não disse nada ao padre acerca do meu tio nem do que tinha visto, mas balbuciei que frequentemente sentia desejos maus.
    "Achava mal, ao mesmo tempo tinha a impressão de
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    que aquilo que se passava com Thérèse era parecido com receber um sacramento.
    "Era também uma punição e, por altura do meu parto, tinha uma vaga consciência de estar a pagar por alguma coisa.
    "No meu espírito, as mulheres eram feitas para aquilo mesmo. Para que os homens as humilhassem e as fizessem sofrer nos seus corpos.
    "Tinha pressa de sofrer no meu corpo, de receber aquela espécie de consagração e apalpava com desespero os meus seios que não havia maneira de crescerem, olhava ao espelho as minhas pernas magras, espetadas como paus, a minha barriga de criança, estreita e alongada."
    Betty voltava a mostrar sem o saber o mesmo sorriso inteiriçado com que se mostrava na fotografia de La Pommeraye. Laure estava com um ar grave. O aquecimento estava ligado e, no entanto, parecia a ambas que o frio penetrava no quarto.
    - Tudo o que a partir de então fiz, fi-lo porque o quis fazer. Era isto, em última análise, o que queria dizer-lhe, por honestidade, porque sempre tive o desejo de ser honesta. Não sou uma vítima. Não sou digna de lástima. Ninguém me fez mal e fui antes eu que fiz mal aos outros.
    "Sem dúvida foi por essa razão que Schwartz me deixou sem me dizer uma palavra, contentando-se com, de um dia para o outro, mudar de quarto e de bairro.
    "Suponho que ele sentia que eu o estava a arrastar só Deus saberá para onde.
    "Quanto a Guy, aos trinta e cinco anos, ficou sem mulher, com duas filhinhas por criar e que, a menos que ele
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    não volte a casar, um dia hão-de ser um embaraço para ele.
    "Olhe! Estou a lembrar-me de uma expressão que diz tudo o que tenho andado a tentar explicar-lhe. Enquanto me afastava lentamente e contra vontade da porta da cave, sabe porque é que me apetecia tanto esperar por Thérèse e falar com ela? Era para lhe pedir:
    "- "Mostra-me a tua ferida."
    "Estas palavras ocorrem-me agora, só agora, ao fim de tantos anos. Também eu queria ter uma ferida. Toda a vida, eu..."
    Fitou Laure nos olhos, maldosamente, e concluiu com uma voz dura:
    - Toda a vida, andei sempre à procura da minha ferida.
    Jurara a si própria não chorar. Mas já não era capaz. As lágrimas escorriam, espessas, das suas pálpebras quentes, pingavam-lhe pelo nariz, deixavam-lhe um gosto salgado na boca. Ao mesmo tempo, Betty ria.
    - Sou uma idiota, não acha? Diga, vá, que sou uma idiota! Estraguei tudo, perdi tudo, sujei tudo. Passei o tempo a sujar-me e agora estou para aqui a contar-lhe histórias tristes e a meter-lhe dó. Durante toda a minha vida, desde os quinze anos, sim, desde os quinze anos, para imitar Thérèse, não passei de uma puta. Uma puta, está a ouvir?
    Levantou-se num impulso súbito, incapaz de continuar parada, e pôs-se a andar de um lado para o outro, no quarto onde Laure não se mexera da sua poltrona.
    - Não foi por o meu marido me ter repudiado nem
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    por os Etamble me terem excluído do clã que comecei a beber. Também não foi por ter vendido as minhas filhas, posso recitar-lhe o texto de cor:
    "Eu, abaixo assinada, Elisabeth Etamble, em solteira fayet...
    "Sim, tive que escrever o meu primeiro nome verdadeiro. Trata-se de um documento oficial. Elisabeth Etamble, em solteira Fayetr reconhece que é uma puta, que sempre teve amantes, antes e depois do casamento, que os ia pescar nos bares como uma profissional, que os introduzia no domicílio conjugal e que foi surpreendida neste a fazer amor a dois passos do quarto das filhas...
    "E para aqui estou eu agora, com um ar comovido, a contar-lhe as minhas recordações de rapariguinha!
    "Veja! Quando digo que as vendi, não estou a mentir..."
    Betty pegou na carteira, remexeu febrilmente o seu conteúdo e acabou por atirar o cheque para os joelhos de Laure.
    - Um milhão, e não passa de um adiantamento, bem entendido, porque seria muito pouco só um milhão...
    "- "Não quero que tenhas que ficar na rua" - disse-me ele.
    "Ele é Guy, está a perceber? O honesto Guy, o bom
    Guy, o filho do general Etamble, que teve a infelicidade
    de se apaixonar por uma rapariga qualquer e de casar
    com ela sem tirar informações, ao contrário do que a
    mãe aconselhara a fazer.
    "Era Guy que ditava e os outros estavam ali ao pé, a
    ouvir, para se certificarem de que ele não se esquecia de
    nada: Antoine, Marcelle em roupão, arrancada à cama
    pelos acontecimentos inesperados, e a generala que agarrava
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    o peito do lado esquerdo com as duas mãos enquanto o médico não vinha.
    "Talvez tivesse morrido com o ataque.
    "- "Mandas-me a tua direcção, logo que a saibas, para o meu advogado entrar em contacto contigo. Arranjarei as coisas de maneira a que nada te falte, aconteça o que acontecer."
    "E foi nisto que se transformou a minha ferida, todas as minhas feridas, as minhas centenas de feridas, as feridas que me infligiram todos os homens atrás de quem andei para me castigar."
    Pegou na garrafa com um gesto rápido, como se receasse que a impedissem; levou-a à boca para beber pelo gargalo, com um gesto deliberadamente acanhado.
    - Há anos que bebo às escondidas, porque não podia viver sem isto, porque sou incapaz de ser como eles, coisa que, aliás, nunca quis. Enquanto estava à espera de Charlotte e depois de Anne-Marie, deixei de beber, porque o médico me disse que podia fazer-lhes mal.
    "Estava decidida a ter filhos de puta, uma vez que o meu marido fazia tanta questão nisso. Mas restava-me o orgulho bastante para não querer trazer a este mundo crianças que fossem doentes ou disformes por culpa minha.
    "Pois bem, quando fui para a clínica, levei uma garrafa comigo, uma garrafa achatada, e escondida no meio das minhas coisas, e, poucas horas a seguir ao parto, já estava a beber um bom trago.
    "Bêbada e puta, é isso o que eu sou!"
    Levou de novo a garrafa à boca, e Laure, que se levantara, esforçava-se por lha arrancar das mãos. Betty debatia-se, subitamente enfurecida, tentando arranhar a outra,
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    magoá-la. com a boca ameaçadora, rosnava por entre dentes, ofegante:
    - Você também, você é igual a eles e eu vou mostrar-lhe...
    Não terminou a frase, rendendo-se de repente e ficando imóvel, com os braços caídos, no meio do quarto, mesmo por baixo do candeeiro do tecto, tão estupefacta que o seu rosto perdera toda a expressão.
    Laure acabava de a esbofetear com um gesto calmo, sem cólera, mas, apesar de tudo, com tanta força que a face lhe ficara marcada.
    - E agora, minha menina, vamos para a cama. Dispa-se.
    O mais estranho é que Betty obedecera. Começou a tirar a roupa com gestos e olhos de sonâmbula. Alguns minutos mais tarde, quando estava já metida entre os lençóis, a voz áspera de Laure disse:
    - Está com o corpo gelado, vou arranjar-lhe uma botija.
    Por fim, para o seu próprio quarto, a companheira teve o cuidado de levar consigo a garrafa de whisky.
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    Betty estava a dormir de um sono uniforme, acinzentado, esgotante como uma marcha no deserto. Não sonhava. Não havia nada, nem sombras nem luzes, nenhuma acção, nenhuma figura, nada a não ser o ritmo embalador, monótono, do seu coração, com algumas falhas de vez em quando.
    Depois, ouvia uma campainha, real ou irreal, não chegava a pôr-se a questão de tal modo se sentia fatigada. O som, vibrante, trespassava-lhe o crânio e ela esperava que aquilo acabasse por passar, como acontecia, por exemplo, com o silvo que anuncia a partida dos navios e dos comboios, mas o som tornava-se cada vez mais agressivo e Betty acabou por descobrir que era o telefone a tocar à cabeceira.
    Não tinha vontade de ouvir nem de falar. Foi apenas para interromper aquela estridência de alarme que levantou o auscultador, deixando-o depois cair na almofada.
    Então, ouviu uma voz distante, deformada, como que vinda de um velho fonógrafo avariado:
    - Madame Etamble!... Madame Etamble!... Está
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    lá?... Está a ouvir-me?... Madame Etamble!... Madame Etamble!...
    Betty acabou por balbuciar:
    - Quem fala?
    - O recepcionista do hotel, madame. Assustou-me. Estou a ligar para aí, com o telefone a tocar, há cinco minutos. Ia mandar alguém ao seu quarto...
    - Porquê?
    Laure, na véspera, fizera-a tomar dois comprimidos para dormir, mas não era por causa do medicamento que se sentia tão dorida. Uma mola saltara a certa altura, numa altura em que ela não estava a prestar atenção, e agora havia um contacto cortado, algures, dentro de si. -"?
    - Uma chamada de Paris. Ela não reagia, não pensava no marido nem em mais ninguém que pudesse telefonar-lhe para ali. O quarto estava escuro, entrava apenas uma réstea de luz pálida por entre as persianas.
    - vou passar-lhe a chamada.
    Betty sentia vontade de se deixar adormecer de novo.
    - Betty?
    Não reconheceu a voz. Voltara já a fechar os olhos e a respiração tornara-se-lhe mais espaçada.
    - Daqui, Florent.
    Betty balbuciou, mal movendo os lábios:
    - Sim.
    - Está a ouvir-me?
    - Sim.
    - Eu estou a ouvi-la muito mal. Sente-se bem?
    - Sim.
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    O outro encontrava-se num mundo cheio de claridade, estava bem desperto, lavado, barbeado, vestido, em plena vida.
    - Estive com Guy esta manhã, bastante cedo. Meteu-lhe um grande susto por o ter deixado sem notícias. Só ontem à noite, graças ao motorista do hotel, ele soube o seu endereço.
    O homem chamava-se Florent Montaigne. Um amigo de Guy, um amigo do casal. Era uma pessoa cheia de confiança em si própria, tanto mais que as coisas lhe corriam pelo melhor nos tribunais.
    - Tem a certeza de estar mesmo bem?
    - Sim.
    - Não está doente? Ouço-a como se estivesse a falar de muito longe. Ainda está deitada.
    - Sim.
    - Posso falar consigo? E acrescentou, hesitante:
    - Está sozinha?
    - Sim.
    - Guy informou-me do que se passou e encarregou-me de entrar em contacto consigo. Na minha opinião, quanto mais cedo, melhor. Está a perceber? Tenciono, caso lhe dê jeito a si, dar um pulo aí a Versailles esta tarde, ao fim da tarde de preferência, e talvez pudéssemos jantar os dois.
    - Hoje não.
    - Então, amanhã de manhã? Amanhã à tarde, não posso, porque tenho que estar no tribunal.
    - Amanhã também não.
    - Então quando?
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    - Não sei bem. Eu depois digo-lhe.
    - Tem a certeza de estar mesmo bem? Não precisa de ajuda?
    - Não. Está tudo bem. Até depois, Florent.
    Betty esforçou-se por estender o braço e poisar de novo o auscultador no seu lugar. A porta de comunicação estava entreaberta e, no quarto vizinho, as cortinas tinham sido afastadas, a luz do dia entrava e a vida começara já. Parecia-lhe, pela primeira vez depois de dias e dias, que voltara a haver sol.
    Laure devia ter ouvido. Ia sem dúvida aparecer e perguntar-lhe se não precisava de nada, e ela não queria vê-la nem falar-lhe.
    Não era por causa da bofetada, de que se lembrava como se lembrava igualmente de tudo o que acontecera na véspera.
    Pelo contrário, a bofetada fizera-lhe bem e, se de tanto fosse capaz, Betty tê-la-ia aplicado a si própria, a fim de pôr cobro ao seu estado de exaltação.
    Até ali passara o tempo a escapar-se. Sabia o que isso queria dizer. Conhecia-se bem. A bofetada, que devia ter levado há muito tempo, precipitara-a de um só golpe na realidade.
    Desaparecera o desfazamento equívoco que ela conseguia introduzir sempre nas suas palavras e nos seus pensamentos; já não tinha febre, nem aquele calor artificial, nem aquela inconsistência...
    Em vez disso, era a verdade em toda a sua crueza, preto no branco, em linhas sóbrias e cruéis.
    E isso era incomunicável, já era de mais ter que pensar no caso. Era perigoso.
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    Fizera batota, desta vez como das outras, instintivamente, porque era assim a sua natureza. Uma necessidade inata de se proteger?
    Arranjava sempre maneira, depois do que lhe acontecia, de tornar as coisas suportáveis, de não as deixar parecer demasiado feias, demasiado desesperadas.
    Não voltaria a falar com Laure, nem com mais ninguém. Já não tinha forças. Estava inerte e vazia. A sua única vontade era ficar imóvel na cama, com os olhos abertos, fixando um canto do espelho onde podia ver um pedacinho de luz do dia e uma das flores estampadas da cortina.
    Não se lembrara de pedir a Florent notícias do marido e das filhas. Pelo seu lado, ele não parecera surpreendido com o que se passara e inquietara-se somente por não ter reconhecido logo a voz dela. É verdade que fora uma Betty diferente a que ele conhecera.
    Florent era casado e a mulher dele, Odette, viva e maliciosa, não deixava de agradar a Guy.
    Às vezes, de longe em longe, os dois casais saíam juntos. No Inverno anterior tinham ido assim ao teatro e, à saída, estavam a preparar-se para ir comer qualquer coisa numa cervejaria da praça Blanche. Quando chegaram ao pé dos automóveis, Florent propôs:
    - Levas a minha mulher? Eu levo a tua...
    Mal o carro arrancou, o advogado, guiando só com uma das mãos, começou com a outra a acariciar Betty. Nunca houvera nada entre eles. Florent não lhe fizera sequer a corte. Não lhe dissera nada. Acariciava-a e continuava sem nada lhe dizer, conduzindo o seu carro por entre os outros carros.
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    Não lhe passara aparentemente pela cabeça que Betty pudesse recusar e, de facto, dócil como o advogado parecera já esperar, estendera, por seu turno, a mão.
    Na véspera, contara a Laure que, aos onze anos, ao contrário de certas amigas suas de La Pommeraye, se recusava a mexer nos rapazes.
    Era verdade. Como tudo o que contara. No entanto, era apenas uma parte ou apenas uma das faces da verdade, a que podia ser comunicada.
    O que a retinha então, a despeito da sua curiosidade, era o medo de se sujar, de ficar porca no sentido material. Só muito mais tarde as palavras "suja" e "porca" tinham assumido outro sentido, convertendo-se numa obsessão, talvez por tanto as ouvir na boca da mãe.
    - Não mexas nisso, Betty. É uma coisa suja!
    - Não ponhas os dedos no nariz. Vais ficar toda porca! Ou quando ela entornava um copo de leite:
    - É mesmo teu! Estás sempre a sujar tudo!
    Era uma rapariga porca. O pai era porco também - a mãe não se cansava de o repetir.
    - Devias mudar de bata, Robert. Essa que trazes está tão suja que se aguentava de pé sozinha!
    E havia as clientes porcas e as clientes asseadas.
    - Madame Rochet é suja como uma porca!
    Em casa de madame Van Horn, pelo contrário, tudo era tão limpo que se poderia comer no chão.
    Betty tinha vontade de se sentir suja para se parecer com o pai. Irritava-se com a mãe por ela o atormentar, por lhe falar como se tivesse direitos sobre ele, quando era ele o chefe da família.
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    - Vens ou não vens? Tencionas passar a noite nessa porcaria das tuas experiências?
    Ele ria-se. Não se zangava. Talvez, quando estava sozinho nas traseiras do armazém, onde montara um laboratório improvisado, imitasse a mulher, como, à mesa, imitava as clientes para divertir Betty.
    Esta última sonhava com ser mais velha, com ser ela a mulher do pai, para o tratar então como ele merecia que o tratassem.
    Esforçava-se agora por voltar a dormir, por deixar de pensar, mas, mesmo quando não pensava, a sensação de irremediável, idêntica, mantinha-se.
    Recuara o desfecho de tudo tanto quanto lhe fora possível. Mas por causa de Bernard, o médico das injecções hipodérmicas, que a apanhara na rua de Ponthieu e a levara ao Buraco em vez de para o hotel mais próximo, conforme ela esperara, e depois por causa do seu encontro, no Buraco, com Laure, que metera na cabeça a ideia de a ajudar, tudo se confundira.
    Por duas ou três vezes, a partir de então, Betty abandonara-se a uma esperança imprecisa. Falara e bebera e tornara a falar de tudo e de nada, girando sempre à volta da verdade, mas tomando o cuidado de não tocar no ponto essencial.
    Era verdade e era falso que ela tivesse querido sentir-se suja por uma espécie de protesto místico. Também gostaria de se sentir limpa. Durante toda a sua vida, tivera a nostalgia da ordem, do asseio, e fora por isso, realmente, que se casara com Guy.
    Nessa altura, trabalhava num escritório, no boulevard Haussman, a dois passos do boulevard Malesherbes e da
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    Union des Mines. Tinham-se encontrado num snack, onde Guy comia qualquer coisa à pressa quando não tinha tempo de ir a casa para o almoço.
    A princípio, não lhe ocorrera que aquilo pudesse ser a sério. Betty sentia-se confusa por Guy não lhe pedir como os outros para ir para a cama com ela, e, no fim justamente por honestidade, quase lho exigira.
    Quando se deu conta de que ele a amava, quando ele falou de casar com ela, sentiu-se tomada de um tal pânico que decidira, num primeiro momento, não voltar a vê-lo.
    - Tenho que te dizer, Guy...
    - Dizer-me o quê? Que não gostas de mim o suficiente?
    - Bem sabes que não é verdade.
    - Então o que é?
    - Prefiro que não cases comigo. É melhor.
    - Porquê, se é que posso saber a razão"? ?.
    - Por tudo. Por minha causa. Por causa da minha vida.
    Tinha a intenção de lhe dizer tudo, tudo o que fizera, tudo o que estivera prestes a fazer.
    - Ouve, Betty. Eu não nasci ontem. O que foste não me diz respeito e também já não te diz respeito a ti. Risca-se tudo, entendido? Gostas de mim.
    - Gosto.
    Era o que ela pensava. Tinha a certeza. Provavelmente, continuava ainda a gostar dele, pois que continuava a torturar-se.
    - Nesse caso, convence-te de que a vida começa agora, como se fôssemos os dois ainda mais novos, e convence-te
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    também de que, no sábado, te vou levar a Lyon para te apresentar à minha mãe.
    Guy imaginava que era fácil. Para ele, era fácil. Nunca olhava para trás. Decidira o lugar que seria o de Betty e instalara-a lá. Portanto, não havia qualquer problema.
    - Eu não sou sequer capaz de governar uma casa.
    - Olga trata disso e, de resto, despedia-se se eu tivesse a infelicidade de casar com uma mulher que se metesse a tratar ela da casa.
    Betty acabara por acreditar e entrara, cheia de boa vontade, de entusiasmo, na pele da sua nova personagem.
    Fora um erro completo. E não apenas por causa do seu passado.
    Era um erro porque Guy e ela não procuravam a mesma coisa. Ele dizia, altivo e protector:
    - És a minha mulher!
    E isso não bastava? A mulher dele! A mãe dos filhos dele! Aquela junto da qual ele voltava todas as tardes para lhe contar os seus aborrecimentos e as suas esperanças.
    - Hoje, pareces-me um bocadinho pálida.
    - É por não ter saído.
    - Fazes mal em ficar tanto tempo metida em casa. Tenho que te levar a uma consulta ao doutor Ménière.
    Era o médico deles. Para Guy, quando alguma coisa começava a correr mal, chamava-se Ménière. E se Betty lhe gritasse, como às vezes sentia vontade de fazer:
    - Vá lá, ocupa-te um bocadinho de mim! Ele ter-lhe-ia respondido, cheio de boa-fé:
    - Mas eu não me ocupo de mais nada!
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    Era verdade que se preocupava com a saúde dela, que lhe comprava vestidos, prendas, que se lembrava muitas vezes de lhe mandar flores.
    - De mim. Não sabes o que quer dizer esta palavra? Ocupar-se dela própria, do fundo dela própria, do ser
    que ela realmente era. Não dela em função dele, mas dela em função dela mesma.
    Era por cobardia, em suma, para conservar o seu sossego pessoal, para manter a sua tranquilidade de espírito, que Guy não a deixara confessar-se-lhe. Tentara várias vezes fazê-lo. Mas ele pusera-lhe sempre um dedo diante dos lábios, sorrindo. - O que é que nós combinámos?
    Era fácil de mais. Ele queria dela a parte agradável; cómoda, a que convinha à sua existência, contentando-se com apagar com um gesto em forma de bênção tudo o que fosse susceptível de complicar as relações entre os dois.
    A partir do momento em que certa coisa não existia para ele, também não devia existir para ela.
    - Não és feliz comigo?
    - Sou.
    - Por que é que não sais mais vezes com Marcelle? Ela é um tanto caseira, mas boa rapariga; torna-se mais interessante quando a conhecemos melhor...
    Um único ser neste mundo se preocupara com ela pelo que ela era: o pai.
    Quando Betty não passava ainda de uma rapariguínha, ele compreendera, ele, o homem bizarro, que ela era um embrião de mulher e como tal a tratara.
    Como era muito nova ainda quando rebentara a guerra,
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    separando-os, não tinham podido ter grandes conversas os dois. Durante a maior parte do tempo, brincavam, gracejavam e, todavia, por um olhar do pai, por uma pressão dos dedos dele, Betty sentia que aquele homem a compreendia e que ela era para ele um ser humano.
    Seria possível - chegava ela a perguntar agora a si própria - que ele a conhecesse o bastante para se inquietar com o seu futuro?
    Schwartz, mais tarde, fora quase o segundo homem da sua vida. Ela tivera essa esperança até ao momento em que se deu conta de não passar para o estudante de uma espécie de cobaia. Também Schwartz a conhecia. Desmontara-a como a uma aparelhagem mecânica. Obrigara-a a olhar para as coisas de frente - essas coisas que ela sempre se negara a ver. Por vezes, interrompia-a, rindo.
    - Cuidado, menina. Lá estás tu outra vez a sublimar! Era a palavra de que ele se servia. No entanto, apesar
    do seu cinismo, Schwartz chegava a ficar comovido.
    - Querias tanto ser uma heroína, minha pobre Betty! Acabo por pensar que é isso que te perde. Visas tão alto, fazes uma ideia tão grande do que poderias e do que deverias ser que vais caindo cada vez mais baixo.
    "Mentes como respiras. Usas a tua vida para te mentir a ti própria, à falta de coragem para te veres ao espelho.
    "Quando te sentes aborrecida ou pouco à vontade na tua pele, em vez de ires ao cinema, como as outras pessoas, em vez de comprares sapatos ou vestidos, começas a inventar mentiras para ti própria."
    Numa ocasião em que, ultra-excitada como muitas
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    vezes lhe acontecia sentir-se com o rapaz, Betty falara muito, ele resmungara meio a brincar, meio a sério:
    - Ainda acabas na morgue ou num hospital psiquiátrico.
    Schwartz tinha-lhe feito mal? E bem? O diagnóstico dele era exacto, uma vez que Betty estava deveras no limiar da morgue ou do hospital.
    Ouviu uns passos cuidadosos. Por delicadeza, Laure não aparecera logo a seguir ao telefonema. Depois, não ouvindo mais nada viera certificar-se de que Betty voltara a adormecer.
    Ela poderia, assim, ter fechado os olhos e fingir estar mergulhada no sono, mas sentia-se cansada de mais para fazer batota.
    - Julguei que estivesse a dormir.
    Betty não mexeu a cabeça, não tentou sorrir. Naquela manhã, não sentia vontade do mais pequeno contacto, da presença de fosse quem fosse. Parecia-lhe que tinha dobrado e deixado para trás esse cabo. Tentara. Bebera. Falara até perder o fôlego. Falsificara mais ou menos profundamente todas as verdades, para si própria ainda mais do que para os outros, e voltava a encontrá-las pela frente, agora ao despertar.
    Não valia a pena tornar ao princípio!
    - Espero que não tenha tido más notícias... Por caridade, mais do que por delicadeza, Betty fez
    com a cabeça um sinal negativo.
    - Não tem fome? Não quer que lhe mande vir o pequeno-almoço?
    Por um segundo, a ideia dos ovos com bacon tentou-a, mas sabia que, caso cedesse, tudo recomeçaria.
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    Depois, viria o whisky, a excitação, a necessidade de falar... Para quê, se não havia saída?
    - E uma chávena de café, também não?
    com o sobrolho carregado, Laure tomava-lhe o pulso, com os olhos postos no relógio. Os lábios moviam-se-lhe de leve. Betty examinava-a como se a visse pela primeira vez e dizia para com os seus botões que Laure nunca devia ter sido bonita. Tinha feições de homem. Só os olhos castanhos, cheios de doçura, quentes, desmentiam a masculinidade da sua aparência.
    Betty seguia a contagem pelos movimentos dos lábios dela:
    - Quarenta e nove... Cinquenta... Cinquenta e um... Cinquenta e dois...
    Laure deteve-se, admirada.
    - Tem muitas vezes estas quebras bruscas?
    Para que havia ela de responder? E responder o quê?
    - Prefere ficar às escuras?
    A boca de Betty entreabriu-se por fim, murmurando:
    - Tanto me faz.
    A atmosfera do quarto devia parecer-lhe deprimente e Laure abriu as cortinas, empurrou as persianas. Em vez das flores estampadas. Betty via agora uma nesga de céu e a copa das árvores no espelho.
    - Mas não passou uma noite muito má, pois não? Não a ouvi mexer-se. Dói-lhe alguma coisa?
    Betty fazia sinal de que não.
    - A cabeça?
    Não tinha pressa de pôr termo àquilo, pressa de ficar sozinha.
    - Importa-se muito que eu chame um médico? Conheço
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    um, aqui em Versailles, que costuma tratar-me e que é uma pessoa extremamente séria. Prometo-lhe que ele não lhe fará perguntas indiscretas.
    Betty repetiu, irritada, como se a estivessem a obrigar a um esforço inútil:
    - A mim é-me indiferente. :
    - Não quer que lhe molhe a cara um bocadinho?
    Devia estar com a pele reluzente. Suava. Sentia o cheiro do suor, mas disse outra vez que não, sempre não, e Laure, inquieta, compreendia que a sua presença naquele quarto se tornara indesejável; passou para o seu lado e pegou no telefone.
    - Está? Blanche? Dê-me por favor o 537... Sim... Eu não desligo...
    Betty ouvia, embora tudo aquilo se passasse num outro mundo que já não tinha nada a ver com ela.
    - Está? Mademoiselle Francine?... O senhor doutor está?... Poderá passar-lhe a chamada para casa? Se não incomodar... Sim?... Doutor?... Daqui fala Laure Lavancher... Não, estou óptima... Não é por minha causa que lhe estou a falar, mas por causa de uma amiga, que tenho aqui comigo e que eu gostava que visse... bom, é difícil explicar-lhe... Ontem à noite dei-lhe dois comprimidos Fenobarbital e, esta manhã, está com cinquenta e três pulsações. Não! Não me parece que tenha uma intolerância especial... Vinte e oito anos... Obrigada. Fico à sua espera... Pode vir ter directamente comigo, ao meu quarto...
    Laure hesitava em voltar para junto de Betty e esta ouvia-a a acender um cigarro, dando depois alguns passos na direcção de uma janela que abriu. Ficou a acabar o
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    cigarro, aspirando ao mesmo tempo o ar fresco lá de fora, e só depois atravessou a porta de comunicação.
    - É uma hora. O médico vem às duas menos um quarto, antes das consultas da tarde. Não quer arranjar-se um bocadinho? Tem a certeza de que não quer tomar nada?
    Betty contentou-se com um leve pestanejar.
    - vou mandar vir qualquer coisa para comer, para mim. Se precisar de alguma coisa, não hesite em chamar-me.
    Laure carregou num botão e ouviu-se o som de uma campainha ao fundo do corredor. Enquanto esperava que o criado aparecesse serviu-se de uma bebida e Betty sentiu-se enjoada ao pensar no whisky amarelo a escorrer para dentro do copo.
    Parecia-lhe sentir o cheiro do álcool e perguntava a si própria como pudera alguma vez beber uma coisa assim.
    Se em vez de Bernard tivesse sido outro homem qualquer a dirigir-lhe a palavra no Ponthieu, estaria provavelmente agora numa cama de hospital, com os outros doentes alinhados nas suas camas ao lado dela, enfermeiras circulando, um médico interno passando a horas certas.
    Não fora isso o que procurara obscuramente durante três dias e três noites? Não o pensara claramente. Tinha tão poucos momentos de verdadeira lucidez que não pensara em nada.
    Tudo o que sabia é que estava a afundar-se e punha nisso uma espécie de frenezim, sentindo que afundar-se de todo acabaria por a aliviar.
    Era um desafio, em suma, uma vingança. Era também
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    um culminar. Era um fim. Sujava-se até ao fundo, até ao máximo, sem voltar atrás possível.
    Tinha que acontecer. Havia meses que o trazia a gestar dentro de si, e desafiava a sorte deliberadamente para precipitar a catástrofe.
    Sem dúvida, houvera Schwartz e a história com Florent, no automóvel, uma história que não tivera sequência porque Florent sentira medo.
    Houvera outros a acontecer-lhe por mais de uma vez, à tarde, entrar em certos bares discretos, não longe de casa, na rua de 1Etoile, por exemplo, ou na rua Brey, frequentados quase exclusivamente por pares sentados na sombra e homens à espera, tagarelando com o barman enquanto esperavam.
    Fora num desses bares que encontrara Philippe, um rapaz desengonçado e secreto, que tocava saxofone num cabaret da rua Marbeuf. Philippe não lhe fazia perguntas como Schwartz. Falava pouco e contentava-se, muitas vezes, com olhá-la, sonhador.
    - Em que é que estás a pensar? - perguntava ele.
    - Em ti.
    - O que é que pensas de mim? Ele respondia com um gesto vago.
    - É muito complicado. Enquanto, depois de fazerem amor, Betty ficava deitada na cama, ele pegava no saxofone e improvisava melodias cheias, ao mesmo tempo, de ironia e de ternura. Betty nada sabia dele, a não ser que era filho de mãe russa e que tinha uma irmã. Habitava num estúdio mobilado, na rua Montenotte, onde Betty se entretivera, por brincadeira, a passajar-lhe as meias.
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    Philippe sabia que ela era casada e que tinha duas filhas, porque Betty lho contara, mas nunca lhe fizera perguntas.
    Por fim, aquilo tornara-se uma necessidade. As horas passadas na avenida Wagram eram um tempo neutro, indiferente, como o tempo que se perde numa sala de espera. Sentia pressa de que a tarde chegasse para ir ter com Philippe. A porteira do prédio cumprimentava-a quando a via passar, referia-se-lhe como àquela "senhora nova tão simpática"... E Betty chegava com as garrafas que comprara na mercearia da praça des Ternes, com bolos e guloseimas.
    Philippe ainda não tinha vinte e quatro anos e era desajeitado, indefeso perante a vida, indiferente ao futuro. Quando Betty se esforçava por incutir-lhe alguma ambição, ele contentava-se com mostrar-lhe um sorriso frouxo.
    - Falas como a minha irmã.
    Dir-se-ia que ignorava que havia milhões de pessoas à sua volta, acotovelando-se, empurrando-se umas às outras, e passava nas ruas como se transportasse consigo, a envolvê-lo, um halo de solidão.
    - O que é que fazias se eu não te viesse ver?
    - Não sei, porque vieste. Talvez fosse à tua procura...
    - Onde?
    - A tua casa, não?
    - E o meu marido?
    Philippe não respondia. Não fazia também perguntas a si próprio.
    - Amanhã?
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    - Amanhã.
    Ora, da última vez, precisamente, Betty não pudera ir à rua Montenotte. A generala chegara a Paris sem avisar, aproveitando no último momento a boleia de uma amiga que tinha o chauffeur próprio. Marcelle tinha consulta marcada no dentista e não podia faltar, tendo calhado, assim, a Betty a obrigação de fazer companhia à sogra.
    Era o dia de folga de Elda, que tinha ido a casa de uma amiga, nos arredores, e voltaria apenas no último comboio para Paris, pouco antes da meia-noite.
    Depois do almoço, ao preparar-se para sair para o escritório, Guy dissera à mulher:
    - Entrego-te a mamã e, logo à noite, vou eu com ela ao teatro.
    Porque a generala viera a Paris movida principalmente pelo desejo de ver uma peça acabada de estrear. A tarde fora interminável e até à altura em que Marcelle voltou do dentista, Betty não conseguira ficar sozinha nem por um segundo a fim de poder telefonar para Philíppe.
    - Duas palavras muito à pressa. Estão pessoas aqui ao lado. Não posso ir aí esta tarde. Telefono-te à noite, por volta das nove.
    Na ausência de Elda, era a criada que tratava das filhas, mas, por causa da generala, Betty via-se obrigada a fazer o papel de mãe vigilante.
    Tinham jantado todos bastante cedo, em casa da Antoine. Depois, Guy e a mãe tinham saído para o teatro. Quando Betty voltou ao terceiro andar, Olga andava pela casa de um lado para o outro.
    - Pode ir lá para cima. Eu já não saio hoje.
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    Dir-se-ia que Olga suspeitava de alguma coisa porque S6 de má vontade se decidira a subir para o seu quarto no sétimo andar.
    - Está? És tu?
    Philippe respondeu-lhe ironicamente, tocando algumas notas no seu saxofone.
    - Estás triste?
    Um glissando de clown musical.
    - Responde, Philippe. Estou com os nervos desfeitos. Se soubesses a tarde que passei!
    - E eu!
    - Sentiste a minha falta? Ouve. Sabes onde eu moro. As miúdas estão a dormir. A nurse está de folga. A criada já se foi deitar e o meu marido está no teatro.
    - E então?
    - Não estás a perceber?
    - Estou.
    - Mas não pareces lá muito entusiasmado. O rapaz hesitava.
    - Há muito tempo que tenho vontade de fazer isto. Hás-de perceber melhor quando cá chegares.
    Em roupão, Betty ficara junto à porta à espera dele, perguntando a si própria porque demoraria o rapaz tanto tempo a vir. Quando ele chegou por fim, pareceu-lhe que estivera em perigo de o perder e ficou durante muito tempo, junto à porta, com os lábios colados aos dele.
    - Vem.
    Conduziu-o até à sala, fazendo-lhe sinal para andar nas pontas dos pés e para falar baixo.
    - Tens medo?
    - Não.
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    - Não estás contente por ver onde eu vivo?
    E apontava-lhe para o piano, para os veludos, para os dourados.
    - Vem para o pé de mim.
    Betty estava febril com um brilho estranho nos olhos. Queria ver Philippe no canapé da família, onde ela própria passava tantas noites ao lado de Marcelle e onde, à tarde, a generala se instalara.
    Era uma vingança. Tivera que insistir para convencer Philippe a aparecer e, se ele não o tivesse feito, Betty sentir-se-ia profundamente decepcionada. A palavra "sujar" não lhe ocorrera então, mas era realmente isso o que tencionava fazer.
    - Parece que estás hesitante. Ou estarás intimidado?
    Levantando-se de um pulo, arrancou o roupão por baixo do qual nada mais trazia vestido e fez menção de dançar, vendo-se pela primeira vez completamente nua no meio do salão dos Etamble.
    - E as crianças? - objectou Philippe.
    - Estão ali, por detrás daquela porta. Há um corredor, uma outra porta à esquerda, que é a do quarto delas. Estão a dormir. Espera!
    Betty entreabriu a porta da rua.
    - Assim, no caso de Marcelle acordar, nós ouvimo-la.
    O rapaz não partilhava do entusiasmo dela, continuava pouco à vontade, como se sentisse que qualquer outro homem, ali, naquela noite, a teria podido pôr no mesmo estado frenético.
    Eram velhas contas que Betty se pusera a ajustar de repente, não tanto com o marido como com a família,
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    com um mundo, um modo de vida, uma maneira de pensar.
    Exagerando o seu impudor, assumia a iniciativa, forçava Philippe a tomá-la, e este via, junto ao seu rosto, brilhantes de triunfo, os dentes pequenos e muito juntos dela.
    - Entra, mamã. vou telefonar para Antoine e dizer-lhe que venha cá abaixo. Deita-te no...
    Nem Betty nem o rapaz tinham ouvido abrir-se a porta do apartamento, nem os passos na passadeira da entrada. A porta envidraçada da sala abria-se agora, por seu turno e os amantes ficaram por instantes imóveis, colhidos de surpresa para pensarem em se desprender um do outro.
    Philippe, que não chegara a despir-se, foi o primeiro a pôr-se de pé e, de cabeça baixa, esperava pela decisão do marido da amante. Quanto a Guy, com o olhar fixo, continuava a amparar
    a mãe, que se sentira mal no teatro, e fazia ao rapaz sinal
    para se ir embora.
    Betty, ainda nua, foi obrigada a ir buscar o roupão ao
    meio da sala, enquanto a sogra protestava diante do canapé onde a queriam sentar:
    - Aí não.
    O filho instalou-a numa poltrona.
    Dá-me depressa as minhas gotas. No meu saco. Vinte
    gotas...
    Guy correu para a cozinha, voltou com um copo de
    água, quase esbarrando no corredor com Betty, a caminho do quarto.
    Ela sabia que tudo acabara e não se sentia infeliz por
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    isso. Tudo o que desejava agora era que as coisas se passassem depressa, e ia-se vestindo com gestos, sacudidos, escolhendo um saia-casaco escuro, uma boina preta.
    Contava nessa altura sair pelas escadas de serviço, evitando ter de dar mais explicações. Mas alguém deve ter previsto essa eventualidade, porque Marcelle bateu à porta do quarto.
    - Guy quer que vás à sala.
    Antoine também lá estava. O peito da generala continuava a agitar-se tempestuosamente.
    Guy tornara-se um estranho, um homem frio e metódico, lembrando a imagem comum que as pessoas têm dos grandes banqueiros. Estava a falar ao telefone, sentado no escritório, cuja porta deixara aberta.
    - Obrigado, maitre Aubernois. Entendido. Uma vez que percebeu o que quero...
    Levantou-se, virou-se para a mulher, sem curiosidade, sem cólera aparente, sem qualquer espécie de emoção.
    - Vem cá.
    - Onde?
    - Aqui. Senta-te. Escreve.
    ... renuncio aos meus direitos maternais e comprometo-me a assinar posteriormente todos os documentos que...
    A cena não se passava na terra, numa grande cidade, num prédio onde havia gente a dormir em paz e sossego, mas num mundo de pesadelo em que os gestos, em câmara lenta, se prolongavam e onde as vozes sem timbre pareciam apenas um eco.
    1. Título que, em França, é dado aos notários e advogados. (N. do T.)
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    - Aqui tens um cheque para as tuas primeiras despesas. Quando me comunicares a tua nova morada, mando-te as coisas e, depois, o meu advogado entra em contacto contigo.
    Até a generala se levantara, como na igreja ou numa ocasião solene. As mãos dela estavam cruzadas no peito. Os lábios agitavam-se-lhe como se quisesse falar, mas não chegou a proferir uma única palavra.
    Os quatro, muito direitos, viam-na passar entre eles e dirigir-se à porta.
    Betty não pedira para beijar uma última vez as filhas. Não dissera nada. Esquecera-se de fechar a porta e um dos quatro, nunca saberia qual, quebrou então a imobilidade do grupo para o fazer em vez dela.
    Não se serviu do elevador e, cá fora, no passeio, começou a andar muito depressa, cosida às paredes.
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    - Entre, doutor.
    Vestido de azul-marinho, com a mala preta na mão, o médico parecia um desses franceses que desfilam atrás de uma bandeira nos Champs-Elysées e tinha também algumas estreitas fitas coloridas a enfeitar-lhe a banda do casaco. Sentia-se que a vida, aos seus olhos, era uma coisa séria, uma série de gestos reflectidos que incluíam o modo correcto de entrar em cena no quarto de um doente.
    - Portanto, a senhora sente-se doente - ia ele dizendo como quem afina um instrumento, ainda de pé, olhando de alto a baixo Betty, que nem sequer pestanejara ao recebê-lo. - Vamos ver isso. Dá-me licença que vá lavar as mãos?
    Sabia o caminho para a casa de banho. Devia conhecer todos os quartos do hotel. Voltou de lá, esfregando suavemente as palmas das mãos; depois, puxou uma cadeira para junto da cama.
    - Sente-se muito mal? - perguntou, pegando na mão de Betty para lhe tomar o pulso.
    Ela fez um sinal negativo.
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    - Não lhe dói nada? Nem tem dores de cabeça? Nã0 sente contracções no peito nem no abdómen?
    Betty contentava-se com responder com gestos e o médico virou-se para Laure que fazia menção de sair do quarto.
    - Deixe-se estar, por favor. A menos que a sua amiga veja algum inconveniente. Ela está agora com sessenta pulsações.
    Não parecia surpreendido pela atitude da paciente e dir-se-ia até que passava o dia a tratar de casos idênticos. Poisando a maleta em cima da cama, tirou de lá de dentro o aparelho de medir a tensão, ao manipular o qual pareceu enfrentar certas dificuldades.
    - Estenda o braço esquerdo... Não faça força... Muito bem... Estou só a medir-lhe a tensão...
    Betty via-o, com ar grave, observando a pequena agulha no mostrador do aparelho, enquanto sentia o sangue a pulsar-lhe na artéria. Agora, o médico recomeçava, duas, três vezes.
    - 9.5. Não sabe se costuma ter a tensão baixa?
    E dirigindo-se a Laure, como se não contasse coM Betty para lhe prestar as informações de que necessitava:
    - O que é que ela tomou esta manhã? O pequeno-almoço?
    - Não. Não quis nada.
    - Nem sequer uma chávena de café?
    - Nem isso.
    O médico dava a impressão de estar a pensar, a seguir um raciocínio habitual, como um cavalo de circo que muda automaticamente de passo em certo lugar da pista,
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    sempre o mesmo. com gestos tão precisos e meticulosos como antes, pegou no estetoscópio, introduzindo as extremidades de cada um dos fios nos ouvidos.
    -- Respire com a boca aberta... bom... Mais... Continue... Agora tussa...
    Betty obedecia, notando que o médico tinha tufos de pêlos no nariz e nas orelhas.
    - Respire outra vez... com menos força... Basta... É capaz de se sentar?
    Ela levantou-se com mais dificuldade do que esperava, cansada, sem a mínima parcela de energia.
    - Não vai demorar muito...
    O médico aplicou-lhe o disco de metal em dois ou três pontos das costas, insistindo num deles, no que ficava mais acima, como se tivesse descoberto alguma coisa fora do normal.
    - Retenha a respiração... bom... Aspire... Já pode voltar a deitar-se...
    Depois, no peito, voltou a um ponto que devia corresponder ao que o interessara nas costas. Quando se punha a ouvir, o olhar tornava-se-lhe imóvel e sem expressão, como o de uma galinha.
    - Vai muitas vezes ao médico?
    - Não muitas.
    Betty falara sem dar por isso, contra vontade, porque prometera a si própria submeter-se ao exame abstendo-se de toda a participação.
    - Já teve alguma doença grave?
    - Escarlatina, aos três anos.
    O médico, com o estetoscópio ao pescoço, como um
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    colar, tocava com a mão nua o alto do torso de Betty, inserindo-lhe os dedos entre as costelas.
    - Dói-lhe?
    - Não.
    - E aqui?
    - Um bocadinho.
    - E aqui?
    - Dói mais.
    - Costuma ter dores neste sítio?
    - Não. Não é num lugar certo. Por todo o peito. Às vezes.
    Afastando a roupa da cama, o médico palpava-lhe o ventre por cima da camisa de noite.
    - Já foi à casa de banho esta manhã?
    - Não.
    - E ontem? ;
    - Não me lembro. Não. Ontem, também não. Sempre com o mesmo ar grave, ele procurava agora
    um novo instrumento, um martelinho niquelado.
    - Não tenha medo.
    Ela já sabia o que ele lhe ia fazer. Não era a primeira vez que a examinavam assim. Depois, tocou-a na sola dos pés com um objecto bicudo, uma espécie de palito metálico que tirara da algibeira do colete e que a fez pensar em Bernard e nos seus coelhos.
    - Sente alguma coisa?
    - Sinto. íf:;
    - E agora? i
    - Também. ; O médico trocou um olhar com Laure, que tratava um
    pouco como se fosse a mãe de Betty, a irmã mais velha,
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    ou uma enfermeira. O seu último gesto, antes de arrumar os instrumentos de que acabara de se servir, foi levantar-lhe as pálpebras.
    - Costuma ter vertigens?
    - Tive nestes últimos dias.
    - A ponto de perder o equilíbrio?
    - Não.
    - Sofreu há pouco tempo algum choque no plano afectivo?
    Betty não respondeu e foi a Laure que coube, por meio de um sinal, indicar que sim.
    - Além disso - continuou Laure -, bebemos muito as duas. Na noite passada, dei-lhe dois Fenobarbital de
    10 centigramas cada. Ela dormiu com um sono tranquilo. Foi o telefone que a acordou e, a partir dessa altura, ficou como a está a ver.
    O médico virou-se para Betty e deu-lhe algumas pancadinhas leves no antebraço.
    - Para já, madame, convença-se de que não tem doença orgânica nenhuma e que as suas perturbações funcionais desaparecerão com um repouso feito como deve ser.
    com os olhos pareceu solicitar conselho a Laure antes de prosseguir.
    - A minha amiga está aqui sozinha, doutor. Está a atravessar um período difícil.
    - Estou a ver! Estou a ver! O melhor, bem entendido, seria uma clínica. Há alguma razão em contrário?
    Sem olhar para ele, Betty disse:
    - Não quero.
    - Repare que eu não insisto nisso. Se tiver coragem
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    para se tratar sozinha e, sobretudo, se souber ser severa o bastante consigo própria, restabelecer-se-á tão bem aqui como noutro lado qualquer. Tem visitas?
    - Não. Ninguém.
    - Acho preferível. Também terá de cortar com as saídas, pelo menos durante quatro ou cinco dias, e, entretanto, dê uns passeios pequenos no parque do hotel. Até amanhã de manhã, fica sem comer nada, ou só, quando muito, logo à noite, um caldo de legumes leve.
    Tirara um bloco do bolso e começara a escrever conscienciosamente tudo o que acabava de dizer. Nada de visitas. Cortar as saídas durante cinco dias. Dieta líquida até... reflectiu para se lembrar do dia da semana... Até sábado de manhã...
    - Não tem medo de injecções?
    Estavam a tratá-la como uma criança ou uma atrasada mental.
    - vou dar-lhe uma antes de me ir embora e logo à noite vai tomar um comprimido destes. Toma um todas as noites durante os próximos três dias. Toma também, duas vezes por dia, ao almoço e ao jantar, uma pequena dose de Reserpina.
    O médico pegou numa seringa esterilizada, tirando-a de uma caixa de metal, forrada de gaze; depois, cortou a ponta de uma ampola; os seus gestos faziam pensar num ritual, no desenrolar de uma cerimónia religiosa...
    - Ponha-se um bocadinho de lado... Assim, está bem...
    Levantou-lhe a camisa com dois dedos, evitando descobrir-lhe o baixo-ventre.
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    Não está a doer-lhe muito?
    Acabara. O médico começara a arrumar as suas coisas.
    - Madame Lavancher telefona-me se, antes de amanhã ao fim da tarde, precisar de mim. Caso contrário, venho cá amanhã, à tardinha, entre as seis e as sete.
    Procurou com os olhos o chapéu que deixara no quarto de Laure e, bruscamente, ao ouvi-lo conversar com a amiga no corredor, Betty arrependeu-se de o ter deixado sair.
    Ele limitara-se aos gestos da profissão, dissera apenas frases que ela já conhecia tão bem que, ao ouvir uma adivinhava a seguinte, mas, de qualquer modo, conseguira, por um instante, mergulhá-la numa atmosfera de sossego.
    Durante um quarto de hora alguém estivera a tratá-la como se ela valesse a pena, como se a sua vida tivesse realmente importância.
    Que estaria ele a dizer a Laure? Mulher de médico, esta lera no rosto do homem as diversas hipóteses que ele fora eliminando umas atrás das outras. Estaria a contar-lhe o que lhe acontecera, ou pelo menos a parte que sabia da história de Betty?
    Porque Laure não sabia tudo. Não sabia nada do que de mais grave se passara. De resto, Laure, apesar de tudo, pertencera ao meio deles. Continuava um bocadinho do mesmo lado que os outros, fizesse o que fizesse - tal como acontecia com o médico.
    Não lhe serviria de nada falar, porque não a compreenderiam.
    - Quer descansar?
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    Sempre o mesmo bater de pálpebras.
    - Posso tranquilizá-la sem reservas. O médico esteve a conversar comigo no corredor. A certa altura, quando a estava a auscultar, bem vi que ficou inquieto. Deve ter receado, com certeza, uma astenia neurocirculatória, o que não é grave, mas bastante aborrecido.
    No fim do exame foi categórico. Você está a sofrer o resultado das emoções que viveu nos últimos dias. Sou eu quem vai ficar a tratar de si e previno-a de que vou ser severa.
    O bom humor de Laure ia longe. Betty, porém, não reagia.
    - Vai ficar, com certeza, amodorrada durante duas ou três horas. É esse o efeito da injecção. vou dar ordens para lhe arranjarem para logo um caldo de legumes. Por agora deixo-a aqui. Até já, Betty!
    Talvez tivesse feito mal em não aceitar a estada numa clínica. Tê-la-iam enviado para uma dessas casas de repouso nos arredores de Paris, que são citadas periodicamente nos jornais por esta ou aquela vedeta lá estar a receber tratamento. Davam-lhe a ideia de uma coisa acinzentada e tristonha. Ali, o quarto também era tristonho, mas Betty tinha a possibilidade de se ir embora sem ter que pedir autorização a ninguém. Quando se sentisse menos cansada ir-se-ia embora.
    Ouviu o telefone a tocar e, depois, no quarto ao lado a voz abalada de Laure:
    - Sim... Sim... Não... Ela está bem... Está deitada, sim... O médico já cá esteve... Depois, explico-te... Agora não... O quê? É melhor duas... Isso, sim... Até já...
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    Era Mário, Betty tinha a certeza, quem estava a falar do outro lado. Mário queria aparecer dentro de uma hora e Laure pedira-lhe para esperar duas, a fim de ter a certeza de que Betty estaria já a dormir.
    Mas ela sabia, sabia perfeitamente, que não adormeceria. O medicamento que lhe tinham injectado entorpecia-lhe o corpo, tornava-lhe as pálpebras pesadas e fazia com que as sentisse agora bastante quentes - mas não adormeceria.
    Continuava a pensar, sobretudo por meio de imagens, e todas essas imagens eram do mesmo cinzento, menos contrastadas do que de manhã, menos ricas em conteúdo dramático.
    Betty seguia-as com fadiga, como se viram as páginas de um livro que tem que ser folheado até ao fim. Parecia-lhe que era importante aquilo, que tinha o dever de o enfrentar.
    As palavras talvez não tivessem na sua cabeça o mesmo sentido que tinham nos outros dias, mas, para ela, eram claras e era isso o principal.
    Betty tinha que enfrentar aquilo em vez de estar sempre a tentar fugir. Ora, enfrentar as coisas não era beber para ficar com uma ilusão de coragem, falando depois com Laure numa voz ofegante antes de desmoronar por completo.
    Sempre pressentira que, no fim, a esperava uma catástrofe, mesmo antes de conhecer Guy. Em criança, olhava para as outras rapariguinhas como se elas possuíssem qualquer coisa que ela não tinha. É verdade que, noutras alturas, se sentia contente, senão orgulhosa, por ser ela própria, porque lhe parecia que era então que ficava mais completa.
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    A questão deixara de se pôr. Fora assim. Não lhes dissera nada ao encaminhar-se para a porta da rua, enquanto eles os quatro, de pé, na sala, a viam ir-se embora. Tivera vergonha? Bem gostaria, retroactivamente, de se convencer de que não tivera vergonha, porque, se tivesse tido vergonha, isso provaria que eles tinham razão e ela não.
    Já não se lembrava se baixara a cabeça ou se os olhara de frente. Devia ter olhado para eles, pois lembrava-se nitidamente do rosto e da expressão de todos.
    Por que é que assinara sem protestar? Por orgulho? Por indiferença?
    No entanto, uma vez na rua, à chuva, pusera-se a correr rente às casas e entrara, esgotada, como se procurasse refúgio, no bar iluminado que ficava na esquina da avenida de Wagram com a praça des Ternes.
    Havia muita gente lá dentro, um balcão de cobre vermelho, bandejas carregadas de copos de cerveja que lhe passavam à altura da cabeça e, à volta das mesas, homens e mulheres a comer.
    - Um whisky.
    - com gelo?
    - Sim. Duplo. í
    - Água com gás? ?
    - É igual.
    Quase arrancou o copo das mãos do barman, com tamanha avidez que algumas das pessoas que a rodeavam a olharam reprovadoramente.
    - Outro. Quando tirava dinheiro da mala, o cheque por pouco
    não caíra na serradura. Betty apanhou-o no ar. Ter-se-ia
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    baixado para o procurar no chão entre as pernas dos outros? Talvez não.
    Bebia, ia-se embora, andando sempre muito depressa, com o rosto cheio de gotas de chuva. Atravessando a rua por entre os automóveis, chegava enfim, com o coração aos pulos, à rua Montenotte e precipitou-se direita ao elevador.
    A porteira abriu a porta envidraçada do seu canto.
    - Ele não está, madame.
    - Não voltou ainda?
    - Quer dizer, voltou há pouco mais ou menos meia hora, mas, dez minutos depois, voltou a descer com a mala na mão e o saxofone. Pediu-me para lhe chamar um táxi. Parecia tão apressado que pensei que fosse para o comboio.
    "- "A sua irmã está doente?"", perguntei-lhe eu. "Porque sei, pelas cartas dela, que a irmã vive em Rouen."
    - E o que é que ele respondeu.
    - Não disse nada. Parecia que estava com medo. Quando quis saber se ia ficar ausente por muito tempo, encolheu os ombros.
    "-"Pode dispor do estúdio como quiser"", foi a única resposta que pude arrancar-lhe.
    "E aí está! Suponho que ele não faz tenção de voltar. Como a renda é paga antecipadamente, eu não tinha o direito de o impedir de sair, tanto mais que o táxi apareceu logo a seguir e que ele me deu uma boa gorjeta."
    Betty não sabia a que horas se passara aquilo, e, a partir de então, durante três dias e três noites perderia a noção do tempo, das horas das refeições, do sono.
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    Chorara ao caminhar na escuridão dos passeios, sem se preocupar com o lado por onde ia e por vezes falava alto consigo própria.
    - Não é justo. Devia ter-lhe dito.
    Descobrira-se de súbito a avenida Mac-Mahon e, depois, escolhendo sempre as ruas menos iluminadas, chegara à porta Maillot.
    Entrara num bar, no mais pequeno e mais escuro que encontrou.
    Pedira um whisky. Não havia. Bebera em vez disso aguardente com água, e uma mulher toda pintada, com um enorme traseiro, equilibrando-se com dificuldade nos sapatos de salto alto e fino, olhou para ela como se estivesse a tentar compreender alguma coisa.
    Estava talvez a ficar embriagada. Já não se dava sequer conta do facto e a sua ideia continuava a ser descobrir Philippe. Metera por um caminho errado. Tinha que voltar atrás. Não lhe ocorria apanhar um táxi e, de resto, o rapaz não começava a trabalhar antes da meia-noite.
    Não devia ser ainda tão tarde. Ele teria sido forçado a ir deixar a mala a algum lado antes de ir ter ao cabaret. Tivera medo de Guy, era natural.
    Betty tinha pressa de o tranquilizar. Agora, era livre. Não lhe imporia a sua presença constante. Ele era jovem de mais para ficar preso a uma mulher. De qualquer modo, poderia vê-la quantas vezes quisesse.
    Continuava a andar, esforçando-se por não perder de vista o Arco do Triunfo. Ignorava quanto dinheiro tinha na mala. Se Philippe precisasse de dinheiro, havia o cheque, que ela estava pronta a entregar-lhe.
    Devia ter parado num sítio qualquer. Um homem pegara-lhe
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    no braço, dizendo-lhe palavras obscenas e ela
    sentira-se tomada de pânico.
    A boíte onde Philippe tocava chamava-se O Táxi. Betty nunca lá fora. Não conseguia dar com ela. Olhava para os letreiros de néon que desfilavam uns atrás dos outros e acabou por ser o porteiro de um outro estabelecimento a indicar-lhe um letreiro menos brilhante, pequeno e de um vermelho carregado, na extremidade da rua.
    No interior sufocava-se. O recinto era mais pequeno do que a sala da avenida Wagram e estava cheio de fumo e de uma música estridente. Cachos de homens junto ao bar e, a um metro deles, uma mulher a despir-se sob a luz dos projectores.
    Os músicos vestiam um smoking azul-claro. Betty procurava Philippe com os olhos e não o via.
    - Philippe não está cá? - perguntou ao barman, pondo-se na ponta dos pés.
    - Qual Philippe? O do saxofone?
    - Sim.
    - Não sei. Não estou a ver. Deve ter arranjado alguém para o substituir.
    Um homem oferecia-lhe uma bebida e punha-lhe a mão nas coxas.
    Ainda não. Ali não. Philippe abandonara o seu quarto e não aparecera no trabalho. O que significava que fizera o mesmo que Schwartz.
    Desaparecido. Volatilizado em Paris. Se Betty quisesse voltar a encontrá-lo teria, nos dias seguintes, de andar de cabaret em cabaret, da Etoile a Montmartre e a Montparnasse, visitando todos os lugares onde há músicos que tocam.
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    - Quando tiveres uma morada... - dissera-lhe o marido.
    A solução mais lógica era entrar num hotel e pedir um quarto antes de mandar vir as coisas. Mas como seria ela capaz de se fechar, sozinha, entre quatro paredes, enfiar-se numa cama e adormecer?
    Mais um bar. No Táxi não tomara nada. Precisava agora de se embriagar o mais depressa possível. Via diferentes tipos de iluminação conforme o local; havia quase sempre um espelho por detrás dos copos e das garrafas, e muitas vezes, ao lado dela, raparigas da noite, observando-a, como se Betty lhe colocasse um problema.
    - Um whisky... Duplo...
    A palavra "suja" voltara-lhe ao espírito, por causa dos sapatos cheios de lama, dos pés molhados.
    Começava a estar suja. A vontade de ir até ao fim aflorava-lhe à consciência. Uma vez que não conseguia ser a mais asseada, não seria preferível ser a mais porca?
    Não sentia vontade de dormir. O que queria, acima de tudo, era não estar sozinha.
    Já não estava sozinha. Havia um homem a pagar-lhe a bebida, a conduzi-la pelo braço até lá fora, pelo passeio de uma rua tranquila, onde brilhava a luz do letreiro de um hotel. Atravessaram uma porta envidraçada. Uma mulher ruiva, sentada diante de uma mesa, viu-os entrar e, erguendo a cabeça, gritou na direcção das escadas:
    - O 3 está livre, Maria?
    - É só mais um instante, madame.
    - Podem subir.
    Um corredor estreito com o tapete velho. Um cheiro
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    desconhecido. Uma porta aberta, mostrando um quarto cuja cama não fora desfeita, mas onde a criada se apressava a mudar as toalhas.
    - Mil francos fora o serviço.
    Betty estava tão embriagada que, logo que a mulher saíra, se atirou despida para cima da cama, quase a adormecer. Mal se lembrava da cara do homem. Este era muito corpulento, tinha os olhos azuis e trazia uma grande aliança de ouro avermelhada no dedo.
    - Despe-te.
    Ela tentou, mas não conseguiu e voltou a mergulhar na sua sonolência. O homem não ficou muito tempo. com uma expressão inquieta, deixara uma nota junto da mala de Betty.
    Esta por fim adormecera, afundava-se no sono a toda a velocidade como um elevador cujo cabo se tivesse quebrado.
    Estavam agora a sacudi-la pelo ombro.
    - A pé, minha filha.
    Não compreendia o que queriam dela nem porque a estavam a abanar com tanta força.
    - Vamos lá! Não te armes em ingénua. A meia hora passou.
    - Quero dormir.
    - Dormes noutro lado. Se não te levantas já, chamo monsieur Charles.
    Este aparecera, em mangas de camisa e pantufas.
    - O que é que estás a dizer, Maria? Então, não queres largar o quarto?
    O homem pô-la de pé; viu-a vacilante, de olhar perdido.
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    - Já estou a ver o que é. Não gosto destas coisas por cá. Além disso, aposto que nem sequer tens os papéis em ordem. Não quero complicações e preciso do quarto.
    Na rua, Betty cambaleava. Havia grandes vazios na sua memória. Comera ovos cozidos e bebera um pouco de café, que lhe soube mal, e fora vomitar logo a seguir numa casa de banho pouco limpa.
    Um homem quase tão bêbado como ela, com um sotaque estrangeiro. Betty já não sabia se era ainda a mesma noite ou já a seguinte.
    Se era já a seguinte, é porque, então, não sabia como acabara a primeira noite.
    Estavam os dois a beber, num sítio qualquer, onde os clientes se amontoavam uns por cima dos outros, e, diante de toda a gente, o homem passava-lhe a mão pelas nádegas e pelos seios, com um ar satisfeito, de proprietário. Houvera alguém que lhe dirigira meia dúzia de palavras e por pouco não rebentava uma cena de violência.
    Lá fora, continuava a chover e ela e o homem começaram a andar de braço dado. Betty falava-lhe de Philippe, esforçando-se por lhe explicar que houvera um mal-entendido, que Philippe se alarmara sem motivo, porque era um rapaz muito novo e, sobretudo, muito delicado.
    - Um pobre rapazinho, estás a ver? Preciso de o encontrar. É urgente, porque ele não se atreve a aparecer. Imagina que Guy se quer vingar. Guy nem sequer olhou para ele e seria até incapaz de o reconhecer se o visse na rua. A verdade, se queres saber a verdade verdadeira, é que Guy sabia já de tudo, estás a perceber? Não é estúpido, é Guy!
    Estava cheia de álcool. No entanto, não tinha a certeza,
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    de se ter enganado. Já antes lhe acontecera pensar aquilo. Guy deixara rapidamente, havia muito tempo, de lhe perguntar como passava ela as tardes.
    Quem sabe se ele não preferia também aquela solução? Quem sabe até como teriam evoluído as coisas, se, quando ele entrara e os surpreendera, a Philippe e a ela, no canapé da sala, não viesse acompanhado pela mãe?
    Não servia de nada estar a fazer conjecturas. Guy nunca dera a menor importância ao seu passado. Gostava dela, à sua maneira, sem complicações - um amor confortável. Não tentava saber o que se passara na cabeça da mulher. Quando muito, perguntava-lhe por vezes, como um homem que conhece de antemão a resposta:
    - Tudo bem? És feliz?
    E a partir do momento em que ela respondia que sim, não aprofundava mais.
    Betty via-se de novo, com o estrangeiro, no meio de uma avenida, com os carros a passarem por eles de um lado e de outro e os condutores e a insultarem-nos, enquanto o companheiro lhe perguntava de súbito, desconfiado:
    - Para onde é que estás a levar-me?
    - Não sei. És tu que me estás a levar a mim!
    - Eu? Para onde é que eu te levava?
    Tinham começado, nessa altura, uma discussão embrulhada.
    - Não sabes de um sítio para onde possamos ir?
    - Não.
    - Não serás por acaso uma ladra?
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    E pusera-se a olhá-la nos olhos, como se a quisesse hipnotizar.
    - bom, vamos tentar no meu hotel. Não sei se te vão deixar entrar.
    Tinham apanhado um táxi e parado a meio do percurso, num bar, para tomarem um último copo. O hotel ficava perto das Galeries Lafayette e tinha uma escada de mármore e uma passadeira vermelha.
    O homem bebera de mais para conseguir o que queria fazer com ela. Mas nem por isso estava menos decidido a tentar reclamando a ajuda da companheira. Desfeita, cheia de vertigens, Betty mergulhava no sono de cinco em cinco minutos e o mesmo acabou por acontecer ao estrangeiro.
    Sentia-se capaz de dormir o dia todo e talvez até a noite seguinte. Devia estar doente. Teve a impressão de que o dia mal nascera quando ele a obrigou a vestir-se e a sair, porque tinha que apanhar um avião.
    Era mais tarde do que pensara. Os passeios das ruas estavam apinhados de gente, num mar de guarda-chuvas.
    Betty vagueava, imaterial, no meio da multidão de carne e osso e, por vezes, estacava bruscamente na beira do passeio a ver passar os carros. Já não pensava em Philippe, nem em Guy, mas apenas, de quando em quando, na declaração, na vergonha de ter assinado um documento mediante o qual vendera as suas duas filhas.
    Aquilo transformava-se numa ideia fixa e ela comentava para consigo o caso, a meia voz, impelindo diante de si a porta de outro bar.
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    - Entra. Não faças barulho. Acho que ela está a dormir.
    Mário batera tão discretamente à porta que Betty nada ouvira. Mas ouvia agora o sussurrar de Laure. Sabia que os dois estavam a beijar-se.
    - vou ver.
    Betty fechou os olhos, sentiu uma presença mesmo ao seu lado, alguém que se debruçava sobre ela e que voltava a afastar-se, tentando não fazer estalar o chão e fechando a porta devagarinho.
    Não era capaz de distinguir as palavras deles; chegava-lhe apenas um murmúrio, como o que se ouve perto de um confessionário. Abriram uma garrafa. Encheram dois copos. O tom da conversa era calmo, uniforme, interrompido, de vez em quando, por um riso abafado de Mário.
    Ele não se sentara, andava de um lado para o outro, e a seguir ouviu-se a cama ranger de leve, como se Laure se estivesse a deitar.
    O dia chegava ao fim. Laure devia ter estado a falar de Betty e esta teve, a certa altura, a impressão de que Mário se aproximara da porta encostada para espreitar pela fresta.
    Em milhares de quartos, naquele momento, havia casais, na penumbra, conversando assim, com um cigarro aceso e um copo na mão.
    Por que é que tudo isso se tornava para ela, estendida na cama, uma coisa tão extraordinária? Mário costumava vir ter com Laure ao quarto dela; era amante de Laure;
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    encontravam-se também todas as noites no Buraco, onde Laure jantava regularmente.
    Conversavam os dois a meia voz, num tom simples e tranquilo - ela deitada, ele sentado numa poltrona e se, de um momento para o outro, sentissem vontade de fazer amor, nada os impediria disso. Mas não era fatal. Não era indispensável.
    Sentiam-se felizes assim, confiantes, de espírito despreocupado.
    Insidiosamente, a inveja despertava em Betty. A sorte não era justa. Não tentava precisar a natureza da injustiça, mas sentia-se frustrada como se lhe tivessem roubado alguma coisa, como se, mais precisamente, Laure lhe tivesse roubado alguma coisa.
    Fora Laure que a escolhera, em última instância, a ela de entre todos os fenómenos, todos os desaparafusados que se agitavam no Buraco. Mal o médico dos bicharocos desaparecera, a outra viera sentar-se à mesa dela, com um copo na mão.
    Betty não a chamara, ignorava ainda um minuto antes até a existência daquela mulher.
    E Laure ignoraria, Laure que fora casada com um médico, que Betty não tinha o direito de beber, que já bebera de mais, que estava física e moralmente esgotada?
    Que fizera dela? Enchera-lhe o copo, pelo menos duas ou três vezes, talvez mais. E levara-a para aquele hotel sem lhe perguntar a opinião.
    É verdade que cuidara dela, mas voltara a dar-lhe de beber logo na manhã seguinte, para puxar por ela, para lhe arrancar confidências, para acrescentar mais uma história à sua colecção.
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    Betty permanecia inerte na penumbra do seu quarto, sem forças, sem coragem, prostrada por não sabia que droga que o médico lhe injectara e, entretanto, ali ao lado, os outros dois conversavam como pessoas que se entendem por meias palavras.
    Em que é que Laure merecera ser feliz? Porque, já antes, fora feliz - feliz durante vinte e oito anos, ao lado do seu marido, conforme se gabara. Não passara muito tempo sozinha, um ano, fora o que ela tinha dito, e depois, logo a seguir, encontrara Mário.
    Porquê ela e não Betty que sempre tentara tanto conseguir? Laure, nada a perturbava. Andava pela sua própria vida de um lado para o outro, serena, contemplando os outros com indulgência.
    Olhava também com indulgência para Betty e era justamente essa indulgência, esse tipo de indulgência, que ela não queria. Queria, sim, aquilo a que os seus esforços lhe davam direito.
    Não havia justiça. Dentro de alguns dias ou de algumas horas, o 53 ficaria vazio e Betty estaria noutro lugar qualquer, pouco importava onde. No quarto ao lado, Laure e Mário continuariam, entretanto, a encontrar-se ao fim de cada dia.
    - O que é que ela te disse mais?
    - Contou-me tantas coisas que já nem sei. Bem vês, é uma infeliz. Vai passar a vida toda a correr atrás de qualquer coisa sem nunca chegar a saber o que é.
    - Tem uns olhos de animal perdido.
    - Talvez, como um cão perdido, ela acabe por encontrar uma boa alma que a adopte.
    Não seriam necessariamente assim as palavras que os
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    outros dois trocavam, mas Betty não tinha a impressão de estar a inventar. Tinha a certeza de que era aquilo a verdade, o essencial, de que as coisas eram assim mesmo. Laure olharia para Mário com um ar satisfeito, tranquilizado, porque, indo-se Betty embora, ele já não correria o risco de se deixar tocar por ela.
    Agora estavam os dois calados e ela sabia porquê.
    Seria Betty capaz de fazer amor, ainda agora, depois do que passara durante três dias e três noites?
    Eram dois, corpo a corpo, misturando as suas salivas, dando-se um ao outro prazer em silêncio, imóveis, e Betty fitava o céu cinzento e as árvores negras no espelho, com as unhas cravadas na carne. Tinha vontade de lhes gritar que parassem, que deixassem de ser tão felizes.
    Assaltou-a a tentação de se vestir e de se ir embora, para que eles, daí a pouco, se sentissem confusos e envergonhados descobrindo o quarto dela vazio.
    Mas não tinha forças. Além disso, mal chegasse ao átrio do hotel o porteiro apressar-se-ia a avisar Laure. Não dera esta última instrução nesse sentido? Fora com ela que o médico falara no corredor, investindo-a assin de uma espécie de autoridade.
    O médico consentira em que Betty não fosse internada; numa clínica contanto que não saísse do quarto, não se enervasse e não recebesse visitas.
    A nesga da porta ficou mais brilhante. Ao lado acabavam de acender a luz da mesinha-de-cabeceira, e Mário dizia:
    - Achas que ela ainda está a dormir?
    - Se estás preocupado, vai lá ver - respondia Laurie, ainda deitada. - Mas, primeiro, dá-me lume.
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    - Acho esquisito.
    - O quê?
    - Ela passar tanto tempo a dormir.
    Os passos dele aproximavam-se, afastavam-se, voltavam a aproximar-se da porta que Mário se decidiu por fim a abrir um pouco mais.
    Ele deslocava-se sem fazer barulho, como à noite se entra num quarto de criança, e esforçava-se por distinguir o rosto de Betty na penumbra. Para a ver melhor, dava um passo em frente, debruçava-se, e descobria-lhe por fim os olhos abertos, o dedo que ela colocara diante dos lábios.
    Betty sorria-lhe, cúmplice, como se nele depositasse toda a sua confiança, e Mário devolvia-lhe o sorriso, pestanejava num sinal de assentimento, recuava tão silenciosamente como viera e voltava a encostar a porta.
    - Então? Está a dormir?
    - Parece que sim.
    Não era bem uma mentira, só um bocadinho de batota.
    - Era o que eu te dizia. Enches-me outra vez o copo, não te importas?
    Betty fechara finalmente os olhos e respirava calmamente.
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    laure não lhe falara da visita de Mário. Não tinha que lhe prestar contas, era evidente. Mas o facto não deixava de ser significativo e Betty não se ralava de ter assim um motivo de queixa, por pequeno que fosse, contra a sua companheira.
    Não gostava das pessoas que se mostram sempre perfeitas. Perfeitas de mais. Desconfiava dessa gente. Depois de se ter lançado sobre ela, Laure começava já a sentir um certo cansaço e a ter vontade de recomeçar a sua existência pessoal, sobretudo a partir do momento em que Betty ficara de cama e o médico a proibira de sair e de beber.
    - Dormiu bem?
    Betty fez batota, por seu turno, ao responder à outra que sim.
    - Não tem fome?
    - Não sei bem.
    - vou mandar vir o seu caldo de legumes. O que é que prefere: mais ou menos luz?
    Era-lhe indiferente. Continuava inerte e descobria nisso um prazer secreto. Laure acendia as luzes, passava de
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    um quarto para o outro. O criado trouxe o caldo e Betty sentou-se na cama.
    Tudo aquilo parecia às duas demasiado lento.
    O tempo arrastava-se naquela noite, como se cada uma das mulheres nutrisse uma intenção reservada.
    Laure, no seu quarto, estava a mudar-se, andando de um lado para o outro. A sua voz não parecia bem a mesma; dir-se-ia que forçava um pouco a nota.
    - Não achou o caldo muito insípido? Espere, deixe-me compor-lhe a almofada. Não prefere que a criada lhe venha fazer a cama? Não tem vontade de se refrescar?
    Todas aquelas palavras e frases para chegar ao seguinte:
    - Não se importa que eu saia por duas ou três horas vá jantar fora? Talvez não seja muito caridoso da minha parte dizê-lo quando você está condenada a ficar na cama, mas tenho de apanhar ar, de mexer-me. Se precisar de alguma coisa, toque a campainha. vou dar as minhas instruções a Louisette. Se for caso disso ela telefona-me e eu ponho-me cá dentro de poucos minutos, Não fica zangada? Nem com a impressão de que eu a estou a abandonar?
    Betty, pelo contrário, sentia-se feliz por a ver afastar-se.
    Esperava com impaciência a altura em que ficaria sozinha e, depois disso, ter acontecido deixado passar mais dez minutos, para ter a certeza de que a amiga não se esquecera de nada que a pudesse fazer voltar atrás, levantou-se, começou por fechar a porta de comunicação, embora sem motivo preciso, talvez simbolicamente, entrou na casa de banho.
    Não se sentia com grandes forças e demorou muito
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    tempo a arranjar-se, a pentear-se, a pôr uma maquilhagem ligeira.
    Depois de escolher uma camisa de noite da gaveta,
    descobriu um despertador junto das roupas e deu-lhe
    corda.
    - Está? Mademoiselle, importa-se de me dizer que
    horas são?
    - Como se sente, madame, melhor? São oito e meia. Mais precisamente, oito e trinta e dois minutos. Não precisa de nada?
    - Não, obrigada.
    Betty fez girar os ponteiros. Pela primeira vez, desde
    que saíra da casa da avenida de Wagram, se preocupava
    com saber as horas, tinha consciência do tempo, e isso
    era já um certo regresso à vida.
    Teria sido capaz, a despeito do que o médico dissera,
    de se vestir e de sair, de chamar um táxi que a levasse ao
    Buraco.
    Ao ver-se ao espelho, sentiu-se tentada a fazê-lo, e pôs-se a imaginar a reacção de Laure ao vê-la entrar - a reacção dela e a de Mário.
    Mas não devia. Não serviria para nada, muito pelo contrário. Apagou as luzes, deixando apenas a da mesinha-de-cabeceira acesa e meteu-se entre os lençóis.
    Não tencionava dormir. Não queria também pôr-se de novo a ruminar as suas recordações deprimentes. Havia algo em preparação, parecia-lhe, algo ainda muito vago e que era imprudente tentar precisar - uma saída possível.
    Ontem, naquele mesmo dia de manhã, à tarde ainda, estava convencida de que não tinha a menor hipótese de
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    saída. Agora, à noite, começara a viver na expectativa, lutando contra o sono que, contra sua vontade, a entorpecia, e depois, de súbito, às nove menos dez, procurou a campainha com a mão.
    Precisava de café. Mais alguns minutos e ter-se-ia afundado no sono. Jules bateu à porta do quarto, inquieto, murmurando:
    - vou já chamar a criada.
    - Não preciso da criada.
    - Madame Lavancher disse-me para...
    - Não me interessa o que ela lhe disse. Quero uma chávena de café.
    - Isso é outra coisa. Jules hesitava apesar de tudo.
    - Suponho que isso posso arranjar-lhe. Tem a certeza" de que não lhe vai fazer mal?
    Um pouco depois, trazia-lhe um café-filtro e Betty" sentava-se na cama. Esperava que o café acabasse de escorrer quando o telefone tocou. Estendeu o braço, admirada por acontecer tão depressa. Uma voz de homem dizia:
    - Madame Etamble? Não a acordei? Peço desculpa" de a incomodar. Está aqui alguém, que diz ser monsieur Etamble e insiste em falar consigo.
    - E o primeiro nome? Pensou que talvez fosse Antoine.
    - Não sei. vou perguntar-lhe.
    - Não vale a pena. Passe-me a chamada.
    - É que o senhor está lá em baixo.
    Num murmúrio, como se receasse ser ouvido por alguém que estivesse perto, acrescentou:
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    - Fez-me muitas perguntas, insistiu para saber se estava sozinha, se tinha visitas...
    Nem por um momento lhe passara pela cabeça que Guy pudesse ter vontade de a ver ou sequer - se fosse, afinal, Antoine quem viera - de mandar o irmão falar com ela. Florent, o advogado de Guy, não a contactara já?
    - Diga-lhe que suba.
    Betty bebeu um gole de café e deixou-se deslizar por entre os lençóis de modo a voltar à sua posição da tarde.
    Jules, rebarbativo, vinha à frente da visita e abria-lhe a porta. Era Guy, com o chapéu, na mão, embaraçado, tentando habituar os olhos à luz fraca.
    - Não te incomodo?
    Ela apontou-lhe uma cadeira com a mão fatigada, a cadeira em que o médico se sentara, junto à sua cama.
    - Senta-te.
    - Quando falou contigo pelo telefone, Florent ficou com a impressão de que não estarias bem. Disse-me que mal conseguiu reconhecer a tua voz. Tive medo de que estivesse doente, de que te tivesse acontecido alguma coisa.
    - Só estou cansada, muito cansada. Isto passa. Betty observava-o dissimuladamente. Era o mesmo
    Guy de sempre, um tanto mais preocupado, desajeitado. Falava como sempre falara, como se tivesse pudor de se servir das frases feitas.
    - Já foste vista por um médico?
    - Sim, esta tarde.
    - O que é que ele te disse?
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    - Que saísse da cama dentro de quatro ou cinco dias.
    - Tens alguém que trate de ti?
    Betty olhou maquinalmente para a porta de comunicação.
    - Uma amiga. Foi jantar e não demora.
    Não sentia a mínima emoção ao ver Guy e nem sequer a espantava verificar a que ponto ele se lhe tornara estranho.
    Custava-lhe a crer que tinha casado com aquele homem, que durante dez anos vivera ao lado dele, dormindo todas as noites os dois na mesma cama, e que tinham duas filhas, feitas com um bocadinho de cada um deles.
    Teria Guy a mesma impressão? Também ele a estava a olhar furtivamente, com o ar de quem não sabe o que há-de dizer.
    Foi ela quem quebrou o silêncio.
    - As miúdas estão boas?
    - Óptimas, embora Charlotte tenha estado constipada e a aborreça ter de ficar em casa.
    - A tua mãe já voltou para Lyon?
    - Ainda não. Está em casa de Antoine. Está melhor, mas não convém que faça para já a viagem de regresso sozinha. A amiga com quem tinha vindo teve que voltar, entretanto. É provável que, dentro de dois ou três dias, Marcelle a vá levar...
    Era quase alucinante. Falavam como se nada se tivesse passado, trocavam as mesmas frases de sempre, embora entre os dois não subsistisse um único laço real.
    Betty não percebia ainda a razão da visita dele e custava-lhe a crer que tivesse sido apenas para ter notícias suas. Para isso, poderia ter mandado lá Florent ou, em
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    rigor, Antoine. Teria podido informar-se simplesmente no escritório do hotel. O que, de resto, já fizera. E então? Para que quisera subir?
    Poisando o chapéu no chão, em cima do tapete, Guy levantara-se, porque nunca fora capaz de ficar sentado por muito tempo, sobretudo durante um encontro importante, e agora tinha que se conter para não andar em grandes passadas de um lado para o outro do quarto, como costumava fazer no escritório.
    - Queria dizer-te uma coisa, acerca daquele documento que assinaste. Quero que saibas que não tenciono servir-me dele para já.
    ... Declaro que fui surpreendida pelo meu marido e pela minha sogra, madame Etamble, viúva, no domicílio conjugal, 22 bis, avenida de Wagram, no...
    Constava tudo da sua declaração: a data, a hora, o nome do seu cúmplice, que Betty hesitara por um instante em revelar. A presença das duas crianças no apartamento era referida, bem como o facto de ela estar, na ocasião, inteiramente nua.
    Reconhecia a Guy motivos para pedir o divórcio e renunciava antecipadamente aos seus direitos de mãe.
    - Pensei muito. Não te escondo que, ao ficar sem notícias tuas durante tanto tempo, acabei por me sentir inquieto.
    - Florent contou-me.
    - Foi principalmente para ter a certeza de que nada te acontecera que lhe pedi para te telefonar hoje de manhã e para marcar uma entrevista contigo. Parece que não quiseste recebê-lo.
    - Estava à espera de me sentir melhor.
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    - Estás com uma depressão nervosa?
    - Não sei. Em todo o caso, não é nada de grave.
    Guy tinha as mãos atrás das costas e continuava a andar de um lado para o outro, como na altura em que lhe ditara a declaração.
    - Acho que, numa situação como a nossa, não devemos ser precipitados, percebes? Ninguém pode saber o que o futuro trará e não somos só nós os dois que estamos em causa. Falámos muito de tudo isto, a mamã e eu...
    Betty franzia a testa, as pupilas estreitavam-se-lhe. Ouvia com mais atenção o que Guy lhe estava agora a dizer.
    - Não sei o que é que vais achar. A solução em que pensei não é necessariamente a melhor. Suponho que te dás conta de que, para já, seria muito difícil voltares lá para casa!
    Betty não conseguiu acreditar no que ouvia.
    - Por outro lado, não é bom que fiques sozinha. Porque estás aqui sozinha, não estás? ?
    - O porteiro não te disse que sim?
    - Disse. De resto, era o que eu pensava. Falei com a minha mãe da possibilidade de tentarmos uma coisa. Tu irias com ela para Lyon. Nada a impede de ficar mais uns dias em Paris, até tu estares melhor. Dois ou três dias mais... Ficarias com ela em Lyon durante algum tempo e se, depois...
    Ele não concluiu a frase. Via-se que estava perturbado, mas cheio de boa vontade.
    - Foste tu quem teve a ideia?
    Para Betty, aquilo era ao mesmo tempo consolador e
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    revoltante. Guy, com o seu corpo de homem alto e bem constituído, andando de um lado para o outro no quarto, dava-lhe a entender que ela poderia em breve voltar para casa, para junto das filhas, um pouco como se tivesse já começado a perdoar-lhe, como se estivesse já a prometer esquecer tudo.
    E fora a generala que pensara naquela solução, que sugerira um período de experiência, que fazia pensar no noviciado imposto às religiosas.
    A sogra recebê-la-ia em casa, ficaria com ela sob a sua custódia. No apartamento do quai de Tilsitt, cheio de recordações do general, observá-la-ia dia após dia, tomando nota dos progressos realizados pela nora graças à boa influência dela.
    Betty não se riu, não se indignou. Por pouco não deixou mesmo escapar uma lágrima.
    Contavas que eu aceitasse?
    - Não sei.
    - Era isso o que querias, tu?
    - Pensei nas crianças, pensei em ti...
    Guy tinha piedade dela. Era uma mão estendida a que ele lhe oferecia, para a salvar.
    - Agradeço-te, Guy. O teu gesto toca-me profundamente. O da tua mãe também, e hás-de dizer-lhe em meu nome.
    - Mas não queres?
    - Acho melhor não aceitar. Não é tanto por mim como por todos vocês. Eu tinha-te prevenido, lembras-te? Nunca quiseste ouvir-me.
    com uma simples frase, ei-la que invertia todas as posições.
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    Era ela quem se fazia magnânima, quem se sacrificava e, enquanto continuava a falar, ia olhando às escondidas para o relógio, pensando no que se estaria a passar no restaurante de Mário.
    Tinha medo que o marido se demorasse e que, por causa disso, tudo fosse por água abaixo.
    - Fizeste bem em vir. É preferível separarmo-nos assim...
    Se Schwartz ali estivesse, teria comentado, sarcástico:
    - Lá estás tu a romancear tudo outra vez!
    Betty não contara com semelhante oportunidade, com este papel que lhe era oferecido, com a escolha que assim lhe proporcionavam.
    - Dentro de poucos dias, telefono para Florent. E agora vai-te embora. Não te esqueças de agradecer por mim à tua mãe. Não quis fazer-te sofrer, acredita, mas peço-te desculpa na mesma.
    Betty deixava-se embalar pelas suas próprias palavras e, de resto, estava a ser em parte sincera. Não se tratava de uma comédia representada com cinismo. Não se sentia minimamente ligada a Guy, mas, se a vida tivesse sido um pouco diferente, teriam talvez sido felizes juntos. Pelo menos ele - ele poderia ter sido feliz. Tê-lo-ia podido ser com qualquer outra mulher, só com ela é que não.
    Betty não tinha remorsos, o que não a impedia de o lamentar.
    - Vai-te embora!
    - Tens a certeza de que já decidiste?
    - Sim, tenho. E agora vai.
    Sentia-se tomada de pânico com a ideia de Mário poder
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    chegar de um momento para o outro. Guy não se dava conta de que representava um mundo deixado para trás e do qual ela se desligara por completo. Já vivia uma outra vida. Tinha a certeza de que uma vida diferente ia começar para si, que já começara, ou quase, embora fosse ainda algo de extremamente frágil, indefinido. O marido pegou no chapéu, murmurando:
    - Não precisas de nada?
    - De nada, obrigada.
    - Boa sorte, Betty.
    - Obrigada. Boa sorte também para ti.
    Guy não sabia se devia estender-lhe a mão. Betty não se atrevia a estender-lha ela. Ao vê-lo dirigir-se lentamente na direcção da porta, repetiu:
    - Obrigada.
    Ele não olhou para trás. Betty ouviu-lhe os passos que se afastavam ao longo do corredor e passou a mão pela testa pegajosa de suor.
    Bebeu o resto do café frio, embora não corresse o risco de voltar a adormecer. A visita de Guy animara-a, tornando-lhe presente como nunca a atmosfera do Buraco, onde em pensamento já se encontrava.
    Sentiu-se tentada, para recriar melhor o ambiente, a sair da cama, a entrar no quarto de Laure e a procurar a garrafa que ela e Mário tinham encetado à tarde, a fim de beber um bom trago.
    Mas não queria cheirar a álcool. Era importante que estivesse exactamente como estava à tarde, quando Mário se aproximara da cama nas pontas dos pés.
    Tocou à campainha. Mesmo o filtro e a chávena do café, em cima da mesa-de-cabeceira, estavam ali a mais.
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    - Leve isto, por favor, Jules.
    - Vai dormir?
    - Acho que sim.
    Esforçava-se por ficar calma, sem o conseguir. Os nervos fremiam-lhe de impaciência e era-lhe difícil continuar deitada.
    Dez horas... Dez e meia... No Buraco, as pessoas estavam a comer, rodeadas pelas paredes vermelhas e pelas gravuras inglesas... Jeanine, no bar, agitava os grandes seios, rindo, e passava as mãos pelas ancas para compor a cinta... O negro mostrava a cara sorridente na moldura de uma porta, depois de outra, como se fosse o génio protector do lugar... Laure acabara de comer e bebia pequenos goles de álcool, observando os rostos à sua volta e apanhando fragmentos das conversas dos outros...
    E o médico, envergonhado, talvez se levantasse para ir à casa de banho injectar-se... John, pelo seu lado, não; estaria já com uma nova companheira que, mais tarde, se deitaria numa cama enquanto ele a olhava, com os olhos salientes, o copo na mão, sentado na poltrona onde acabaria por adormecer...?
    Betty tinha medo de deixar fugir a oportunidade, de perder o lugar, porque, no seu espírito, era já do seu ? lugar que se tratava. Mário era forte, um tanto brutal, um tanto ingénuo. Logo que haviam trocado um primeiro olhar, sentira-se intrigado com ela.
    Tinha ido com Maria Urruti para a proteger da família e a família dela tinha-lha raptado na cara. Agora vinha todos os dias visitar, a um pacífico quarto do Carlton, a viúva de um professor de Medicina de Lyon, conversar
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    com ela e dar-lhe, antes de se ir embora, o prazer de que ela necessitava, como Bernard necessitava da droga.
    Conhecera outras mulheres, mulheres assim e assado, sem dúvida - mas ainda não conhecera uma única mulher como Betty.
    Betty sabia que era, ela só, todas as mulheres ao mesmo tempo. E ele suspeitava já disso. Recebera a mensagem muda de Betty e respondera-lhe.
    Porque é que então ainda não aparecera? Seria Laure que o estava a demorar? Desconfiaria ela de que, quase na sua presença, os dois tinham marcado encontro?
    Nas outras noites, Mário andava de mesa em mesa e acontecia-lhe ter que se meter no carro para levar a casa um cliente, desaparafusado em crise, como o médico dos animalejos.
    Por isso, não lhe seria difícil arranjar uma desculpa. E nem sequer precisava de desculpas. Não era posse de Laure.
    Ignorava, é claro, que, por causa dele, ela acabava de recusar voltar para a casa da avenida de Wagram. com uma passagem por Lyon, é verdade, à experiência.
    E encarregara Guy de agradecer em seu nome à mãe dele!
    Ora, a sogra não fora por bondade que se dispusera a recebê-la. Betty era capaz de reconstituir todas as ideias da generala acerca desse ponto. Agora, que saíra daquela atmosfera que Guy trouxera consigo, já não se sentia inclinada à comoção, mas à revolta.
    Nem isso! Não! No Buraco, não era de revolta que se tratava. Esse estádio fora já ultrapassado. Já não havia possibilidade de voltar atrás.
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    Era uma estação terminal.
    O fim de viagem dos desaparafusados! Última paragem antes do asilo ou da morgue!
    Enganara-se ao pensar que, para ela, a hora do asilo ou da morgue soara Já. Ignorava que lhe restava o Buraco, que lhe restava Mário. Tinha vontade de viver. Estava ansiosa de vida.
    Via as horas com inquietação, não ignorando que seria naquela noite ou nunca mais. Não queria perder a ocasião. Subia-lhe aos lábios uma prece.
    - Meu Deus, fazei com que ele venha! E repetia, com o corpo dorido de impaciência:
    - Fazei com que ele venha depressa! .
    - Esquecera-se até de acrescentar: .
    - Fazei com que eu consiga! Porque se visse, Betty conseguiria. O seu desejo era
    demasiado grande. A sua fome excessiva. Era dilacerante estar numa incerteza assim e não ter sequer o direito de se mexer.
    Era preferível que não tivesse que se levantar para lhe ir abrir a porta - pensava nesse pormenor subitamente. Ele tinha de entrar sozinho, por si próprio, com a impressão de lhe estar a fazer uma surpresa, a oferecer uma dádiva, descobrindo-a deitada, quase às escuras.
    Descalça, apressou-se a ir soltar o fecho da porta que dava para o corredor, esperando que o criado ou a criada se não lembrassem, passando por ali, de a voltar a travar.
    Em vez do candeeiro de mesa-de-cabeceira, que dava demasiada luz, acendeu outra, fraca e distante da cama, no toucador.
    Onze e meia... Ela torcia as mãos de ansiedade...
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    - Meu Deus, suplico-vos, fazei com que... Sentia-se tentada a fazer uma promessa, um voto. Não
    sabia, porém, que oferecer a Deus em troca e tinha medo de que tudo se voltasse contra ela.
    Só precisava de mais aquela oportunidade, a última. Seria de mais atendendo a todos os seus esforços?
    Voltara a fechar os olhos. As ideias atordoavam-lhe o espírito, e gritou de repente, com uma voz que lhe jorrava do mais fundo do peito:
    - Mário!
    Ele lá estava, entre a porta e a cama, avançando nas pontas dos pés como fizera à tarde e colocando, maliciosamente, um dedo diante da boca.
    Compreendera a mensagem. Viera. Sentou-se na borda da cama e, segurando-a pelos ombros, com os braços estendidos, olhou-a longamente antes de se inclinar para colar o seu rosto ao dela.
    - Sempre vieste! - dizia Betty, rindo e chorando ao mesmo tempo.
    E dizia-lhe, enquanto esfregava a cara na dele, como um animal que se esfrega num outro animal:
    - Estás aqui!
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    Havia alguém que fazia rodar o fecho da porta de comunicação entre os dois quartos. Betty tinha esperança de que Mário não ouvisse, porque não se sentia ainda suficientemente segura.
    Laure, do outro lado, não insistiu e, pouco depois, ouviu-se a campainha ao fundo do corredor. Estava a chamar o criado ou a criada de quarto. Ouviram-se passos, um murmúrio.
    - Estás com medo? - perguntou-lhe Mário, com os olhos junto aos seus.
    Ela hesitava, consciente de jogar tudo por tudo e, esforçando-se por sorrir, respondeu:
    - Não.
    Ele apertou-a com mais força contra si e ambos deixaram de ficar à escuta. Só passado muito tempo, ele sussurrou:
    - Ainda tenho que passar pelo Buraco.
    - vou contigo.
    - Não podes. O médico disse...
    - O médico não sabe o que é uma mulher.
    E precipitou-se na direcção da cómoda e do armário.
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    - Queres que ponha um vestido em vez do saia-casaco, para variar? Ainda não me viste com um vestido...
    Ao chegar ao Buraco, precisaria de beber um copo,
    porque sentia a cabeça a andar à roda.
    Mas nem por isso se vestiu menos depressa, arrastando depois Mário atrás de si. Desprezando o elevador, desceram pela escada, mão na mão, como se estivessem nos degraus da mairie ou de uma igreja.
    - Nunca me senti tão contente na minha vida. E tu?
    - Sinto-me feliz.
    Não era inteiramente verdade. Mário devia estar a pensar ainda no quarto 55, lá em cima, e na mulher de quarenta e oito anos que ficara nesse quarto, sozinha.
    - Onde é que moras? - perguntava-lhe Betty.
    - Por cima do bar. Aquilo era uma antiga quinta. O primeiro andar é uma espécie de sótão.
    O porteiro da noite viu-a passar cheio de estupefacção. Estava viva! Escapara! Descobrira uma saída! Começava a tomar posse do carro dele, aspirando-lhe
    o cheiro peculiar.
    - Esta noite não quero whisky, só champagne. Não tenhas medo. Não vou beber muito.
    O automóvel arrancava. O porteiro e o guarda-portão trocaram um olhar de entendidos. O telefone tocou no
    balcão da recepção.
    - Sim, madame Lavancher... Acabam de sair, sim... Não me disseram nada... Como diz?... O quê?... A estas horas?... Mas não pode ser... bom, se faz questão... É para já madame Lavancher...
    Cabisbaixo, o porteiro foi ter com o guarda-portão!
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    - Tens que ir comigo ao 55 buscar as malas.
    - Ela vai-se embora?
    - Parece que sim. Foi aquela putazinha que ela trouxe para cá na outra noite que...
    Não eram precisas mais explicações. O outro sabia tanto como ele, também tinha visto tudo.
    - O melhor será tirares-lhe o carro cá para fora.
    Um recepcionista apareceu, sonolento, saindo do pequeno gabinete onde se deixava dormir durante os turnos da noite.
    - O que foi?
    - Uma saída. O 55.
    - Madame Lavancher?
    - Sim.
    - Tenho que fazer-lhe a conta?
    - Ela não disse nada.
    O recepcionista, embaraçado, via os outros dois entrarem no elevador enquanto procurava maquinalmente o dossier do 55.
    Os homens, para trazerem para baixo as bagagens, tiveram que fazer o trajecto duas vezes, abrindo e fechando as portas do elevador.
    - Não tens um bocado de cordel?
    - Há na camioneta do chefe.
    Tanto pior para o chefe. Explicar-lhe-iam as coisas na manhã seguinte.
    As malas estavam já bem presas no tejadilho do automóvel. Laure descia as escadas, com o passo um tanto rígido.
    - Diga a monsieur Raymond que me mande a conta para Lyon.
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    Monsieur Raymond era o director do hotel.
    - com certeza, madame Lavancher. Esperamos voltar a vê-la breve...
    Laure olhou para o recepcionista sem responder e
    apertou-lhe a mão.
    - Até à vista, François.
    Conhecia todo o pessoal e tratava cada um dos seus membros pelo primeiro nome. O grande átrio estava deserto, iluminado apenas por algumas lâmpadas e via-se, ao fundo, do outro lado de uma porta envidraçada a sala de jantar igualmente às escuras.
    - Até à vista, Charles. Até à vista, Joseph.
    Os homens não sabiam que dizer. Laure entrou no carro, acendeu um cigarro, pôs o motor a funcionar, enquanto o porteiro hesitava ainda antes de se resolver a fechar-lhe a porta.
    - Vai pela estrada nacional número 7?
    Teve a impressão de a ver, na penumbra do interior do automóvel, a sorrir. Fechou a porta. O saibro rangeu sob a pressão dos pneus do carro que, atravessando o portão, se perdeu na noite.
    Só uma semana mais tarde, folheando o Progrès de Lyon, a generala Etamble soube que tinham dado com uma das suas vizinhas morta no seu apartamento. Observou, sem emoção, para a amiga que estava a tomar chá com ela:
    - Sabe que madame Lavancher morreu?
    - A viúva do professor?
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    - Sim. Acharam-na morta, esta manhã, na cama. Foi a criada que a descobriu.
    - Julguei que ela se tinha ido embora de Lyon há muito tempo já. Não estava a viver em Paris?
    - Em Versailles, mas ficou com o apartamento de cá e, de tempos a tempos, passava aqui uns dias.
    - O que é que ela teve?
    - O jornal não diz nada.
    - Mas ainda era nova...
    - Quarenta e nove anos.
    Madame Etamble estava a lembrar-se de qualquer coisa. Guy fora a Versailles para ter uma conversa com a mulher. Esta, se tivesse um mínimo de bom senso, não agarraria com as duas mãos a oportunidade que lhe ofereciam?
    Mas fora melhor assim, melhor para todos, sobretudo para Guy, que era ainda tão novo, mas também para Antoine e para a mulher, que, depois do que se passara, já não se sentiriam à vontade em sua casa, no terceiro andar.
    - Dantes, eu via-a de vez em quando. Era uma mulher muito alta, sempre pálida, mas não julguei que fosse doente.
    Como poderia a generala saber que Laure Lavancher, bem vistas as coisas, morrera em lugar de Betty?
    - Fora ou uma ou a outra. E Betty ganhara.

 

 

                                                                  Georges Simenon

 

 

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