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Poesia & Contos Infantis

 

 

 


BILE BUDE / Herman Melville
BILE BUDE / Herman Melville

                                                                                                                                                   

                                                                                                                                                  

 

Biblio VT

 

 

 

 

O ano de 1797, o ano desta narrativa, pertence a um período que, na opinião atuai de todos os pensadores, trouxe para a Cristandade uma crise não excedida em sua indeterminada gravidade por qualquer outra de que haja notícia. A proposição inicial feita pelo Espírito da Época proclamava a retificação dos erros hereditários do Velho Mundo. Em França, até certo ponto, foi o objetivo sangrentamente conseguido. E daí? Tornou-se imediatamente a Revolução um malfeitor, ainda mais opressivo do que os reis. Sob Napoleão entronizou monarcas adventícios, e iniciou a prolongada agonia de guerras contínuas cuja final convulsão foi Waterloo. Durante esses anos nem os mais sábios poderiam prever que o resultado de tudo isso seria o que foi desde então para alguns pensadores — um progresso político em quase todos os sentidos para os europeus.
Ora, como algures já se insinuou, foi algo do Espírito Revolucionário que em Spithead animou os marinheiros do couraçado a levantarem-se contra abusos incontestáveis, longamente praticados, e, em Nore, a fazerem exigências exorbitantes e agressivas — somente abafadas quando se enforcaram os cabeças do motim como espetáculo admonitório diante da esquadra fundeada. Entretanto, assim como a Revolução em geral — assim o Grande Motim, se bem considerado monstruoso pelos ingleses daquela época, imprimiu sem dúvida o primeiro impulso latente a importantíssimas reformas que depois se operaram na marinha inglesa.

 


 


I

 

No tempo em que não existiam navios de vapor, então mais freqüentemente do que hoje, um homem que passeasse ao longo das docas de qualquer porto marítimo importante teria, de tempo a tempo, a atenção despertada por um grupo de marujos bronzeados, tripulantes de navios de guerra ou de navios mercantes, gozando, endomingados, a sua licença em terra. Em alguns casos flanqueando e em outros rodeando completamente, como membros de uma guarda pessoal, alguma figura superior de sua própria classe, que entre eles caminhava como Aldebarão entre as estrelas inferiores de sua constelação. Esse notável objeto era o “Guapo Marinheiro" dos tempos menos prosaicos da marinha militar e da mercante. Sem nenhum traço perceptível de jactância, antes com a fácil desafetação da realeza natural, parecia aceitar a espontânea homenagem dos colegas. Ocorre-me um caso algo notável. Em Liverpool, fará hoje meio século, vi à sombra do grande e sujo paredão de Prince's Dock (obstrução há muito removida) um marinheiro comum, tão negro que devia de ser por força um africano da linhagem não adulterada de Sem. Era uma figura simétrica, de estatura muito superior à normal, e as duas pontas de um lenço vivo de seda dançavam sobre o ébano exposto de seu peito; viam-se-lhe nas orelhas enormes argolas de ouro e um gorro escocês com uma fita axadrezada lhe ornava a cabeça bem feita.

Tarde quente de julho. O rosto, lustroso de suor, brilhava de bárbaro bom humor. Distribuindo facécias à direita e à esquerda, que lhe punham à mostra os dentes muito brancos, ele se divertia no centro de um grupo de marinheiros, em tão variado sortimento de tribos e epidermes, que poderiam ser perfeitamente apresentados por Anacársis Cloots à primeira Assembléia Francesa como Representantes da Raça Humana. A cada tributo espontâneo prestado pelos transeuntes à figura central do grupo, que lembrava um pagode preto — o tributo de uma pausa e de um olhar, por vezes de uma exclamação — o variegado séquito inculcava a mesma espécie de orgulho do companheiro que mostravam os sacerdotes assírios, sem dúvida, pelo seu grande Touro esculpido quando os fiéis se prosternavam. Mas tomemos ao caso...

Se, a revezes, lembrava um náutico Murat no estadear a sua pessoa em terra, o Guapo Marinheiro da época de que falamos não tinha nada do frango de botica — era um agradável personagem, quase extinto hoje em dia, mas que ainda se encontra de espaço a espaço, e em forma ainda mais agradável que a original, ao leme dos botes no tempestuoso canal Erie ou, mais provavelmente, fanfarroneando nos botequins do caminho de reboque. Invariavelmente proficiente em seu perigoso mister, era sempre, mais ou menos, esmurrador ou lutador vigoroso. Nele se aliavam a força e a beleza. Propalavam-se as narrativas de suas façanhas. Em terra, era o campeão. A bordo, o porta-voz dos companheiros; em todas as ocasiões apropriadas, sempre o primeiro. Ferrando os joanetes numa tempestade, lá estava ele — escanchado no lais da verga, com os pés na "estribeira" e com as mãos nas escotas como se fossem rédeas, em atitude muito semelhante à do jovem Alexandre sujeitando o fogoso Bucéfalo. Soberba figura, como que atirada contra o céu fulminante pelos cornos de tauro, alegremente abaloada ao longo da verga.

A natureza moral raro destoava da estrutura física. Com efeito, se não se afinassem com a primeira, o donaire e a força, que sempre realçam a perfeição masculina, não poderiam provocar a espécie de homenagem que o Guapo Marinheiro, em certos casos, recebia dos menos bem dotados companheiros.

Um destes centros de atração, pelo menos no aspecto, mas um pouco também por natureza, embora com importantes variações, que serão reveladas no desenrolar da história, era Billy Budd, de olhos azuis, ou Baby Budd — alcunha mais familiar, que posteriormente lhe foi aplicada — com vinte e um anos de idade, gajeiro do mastro do traquete num navio da esquadra ao termo da última década do século dezoito. Pouco antes do tempo em que se desenvolve esta narrativa, entrara ele para o serviço de sua Majestade, recrutado em águas inglesas e transferido de um navio mercante inglês de torna-viagem para um "setenta e quatro" (1), o H.M.S. Indomitable, que, à semelhança do que a miúdo sucedia naqueles tempos apressados, precisara fazer-se ao mar sem a tripulação completa. Caindo sobre Billy à primeira vista no portaló, o oficial do navio de guerra, Tenente Ratcliffe, agarrou-o, antes até que os marinheiros do navio mercante se tivessem formalmente reunido no tombadilho para a competente inspeção. E só ele foi escolhido. Pois ou porque os outros homens alinhados à sua frente fossem muito inferiores a Billy, ou porque escrupuleasse ao ver que o navio mercante também lutava com falta de braços, o certo é que o oficial se contentou com a primeira e espontânea escolha. Para surpresa do pessoal, mas para grande satisfação do tenente, Billy não opôs objeções. Qualquer objeção, aliás, teria sido tão inútil quanto o protesto de um pintassilgo encerrado numa gaiola.

Observando-lhe a aquiescência sem protestos, quase alegre, os outros marinheiros dirigiram um olhar surpreso de silencioso reproche ao companheiro. O capitão do navio era um desses dignos mortais que se encontram em todas as profissões — até nas mais humildes — que toda a gente concorda em chamar "um homem respeitável". E — por estranho que pareça — embora fosse um lavrador de águas revoltas, que a vida inteira lutara com os elementos intratáveis, nada havia que mais apreciasse intimamente a sua alma honrada que a paz e o sossego. Quanto ao resto, orçava pelos cinqüenta anos, propendia à obesidade e possuía um rosto glabro, corado, simpático, cheio, humano, inteligente. Num dia bonito, soprando um bom vento, quando ia tudo em ordem, notava-se-lhe na voz certa musicalidade, que parecia ser a verdadeira e desembaraçada expressão de sua íntima personalidade. Era um homem prudente, consciencioso, e essas virtudes, às vezes, lhe acarretavam extraordinárias inquietudes. Numa viagem, quando os tripulantes se avizinhavam da terra, não havia sono possível para o Capitão Graveling, que levava muito a sério as graves responsabilidades desdenhadas por certos capitães de navios.

Ora, enquanto Billy Budd, no tombadilho, arrumava a trouxa, o tenente do Indomitable — corpulento e rude, sem se desconcertar por não ouvir do Capitão Graveling as frases costumeiras de hospitalidade em circunstância tão desagradável para ele; omissão apenas devida à preocupação de espírito — endereçou-se ao camarote e apropriou-se de um frasco ao armário de bebidas, móvel que os seus olhos experimentados descobriram incontinenti. De fato, era um desses lobos do mar em que os trabalhos e perigos da vida naval durante as intérminas guerras do tempo não haviam conseguido amortecer o instinto natural dos prazeres sensuais. Cumpria sempre, religiosamente, as suas obrigações; mas estas são, às vezes, muito secas, e ele entendia que se devia irrigar-lhes a aridez, sempre que possível, com uma fertilizante decocção de águas fortes. Ao proprietário do camarote não restava outra coisa senão desempenhar a parte do hospedeiro forçado, com quanta graça e alacridade pudesse demonstrar. Como acessórios imprescindíveis do frasco, colocou, silencioso, um copo e um jarro de água diante do hóspede irrefreável. Mas, desculpando-se por não poder acompanhá-lo, quedou a observar pesaroso o desembaraçado oficial, que diluía deliberadamente o seu grogue, bebia-o em três goles e afastava de si o copo vazio, mas não tanto que não pudesse agarrá-lo facilmente, ao mesmo passo que se escarranchava na cadeira e estalava os lábios com visível satisfação, fitando a vista no hospedeiro.

Tomadas essas medidas preambulares, o Capitão rompeu o silêncio; e notava-se-lhe um contristado reproche no tom da voz:

— Tenente, o senhor vai-me tirar o melhor homem, a jóia da tripulação.

— Eu sei, — retorquiu o outro, reaproximando o copo de si antes de enchê-lo de novo. — Eu sei. Sinto muito.

— Mas, perdão, o senhor não compreende, tenente. Ouça. Antes de trazer a bordo o rapaz, o meu tombadilho era um saco de gatos. Foram maus tempos, pode crer, para o Rights. Eu já andava tão aborrecido que nem o cachimbo me dava prazer. Mas veio Billy; e foi o mesmo que um padre católico cair num sururu de irlandeses. Não que ele pregasse moral, dissesse ou fizesse alguma coisa diferente; mas foi como se uma virtude, saindo dele, adoças- se os mais amargos. Os outros afeiçoaram-se-lhe como vespa ao mel; todos, menos o fanfarrão da turma, aquele sujeitão peludo, de suíças vermelhas. De fato, com inveja talvez do recém-chegado e imaginando que um "sujeito tão meigo e tão agradável", como dizia aos companheiros referindo-se a ele, não teria o ânimo de um galo de briga, tudo fez para provocar um cocoré. Billy pacientou e procurou argumentar serenamente; nisso ele é meio parecido comigo, tenente, que abomino tudo o que cheire a rixas, mas nada conseguiu. Assim, um belo dia, no segundo meio quarto, o Suíças- Vermelhas, na presença dos outros, a pretexto de mostrar a Billy onde se começa a cortar um bife de lombo (o sujeito já foi açougueiro) deu-lhe uma cotovelada nas costelas. Rápido como o raio, Billy soltou o braço. Imagino que nunca pensasse em fazer o que fez, mas o fato é que aplicou ao parlapatão uma surra tremenda, que não deve ter levado mais de meio minuto. O outro ficou aparvalhado com a rapidez dos golpes. E creia, tenente, o Suíças-Vermelhas hoje gosta de Billy, a não ser que seja o maior hipócrita que conheço. Aliás, todos gostam dele. Alguns lavam-lhe a roupa, outros lhe remendam as calças velhas; o carpinteiro, nas horas de folga, está-lhe fazendo uma linda comodazinha. Não há quem não faça alguma coisa para Billy Budd; e somos aqui uma família só. Agora, tenente, se o rapaz for embora, eu sei como serão as coisas a bordo do Rights. Levará muito tempo para que eu, depois do jantar, encostado ao cabrestante, possa fumar de novo, sossegado, o meu cachimbo... sim, creio que levará bastante tempo. Ah, tenente, o senhor vai levar a jóia dos meus homens, vai-me levar o mediador de bordo.

E, pronunciando essas palavras, o bom do homem precisou fazer realmente um esforço para conter um soluço que lhe subira à garganta.

— Muito bem, — respondeu o tenente, que o ouvira com divertido interesse e que a bebida já deixara alegrote, — muito bem, benditos sejam os mediadores, mormente os mediadores que sabem lutar! E assim são as setenta e quatro beldades, algumas das quais se podem ver com o nariz enfiado nas canhoneiras daquele navio de guerra que lá está à minha espera! — ajuntou, apontando, pela janela do camarote, para o Indomitable. — Mas coragem! Não fique com uma cara tão triste, homem de Deus! Eu lhe asseguro antecipadamente a aprovação real. Esteja certo de que Sua Majestade ficará encantado ao saber que num tempo em que os seus biscoitos de campanha não são procurados pelos marinheiros com a devida avidez; num tempo em que os capitães de navios lastimam secretamente o empréstimo de um ou dois marinheiros para o serviço militar; Sua Majestade, digo eu, folgará muito em saber que um capitão de navio, pelo menos, entrega prazeiroso ao Rei a flor do seu pessoal: um marinheiro que, com idêntica lealdade, não apresenta objeções. — Mas onde está a minha maravilha? Ah, — exclamou, olhando pela porta do camarote, que ficara aberta, — aí vem ele; e, por Júpiter, puxando a sua cômoda! Apoio com a sua bagagem! Meu amigo, — continuou, aproximando-se de Billy, — você não pode levar esse trambolho para bordo de um navio de guerra. Ponha os seus trastes num saco, rapaz. Sela e botas para o soldado de cavalaria, saco e rede para o marujo do navio de guerra.

Fez-se a transferência da cômoda para o saco. E, depois de ver o recruta no escaler, o tenente seguiu-o e afastou-se do Rights-of-Man.Tal era o nome do navio mercante, embora o capitão e os tripulantes o abreviassem, à marinheira, para Rights. O cabeçudo escocês, seu proprietário, era um convicto admirador de Thomas Paine, cujo livro, em resposta às acusações de Burke contra a Revolução Francesa, linha sido publicado havia algum tempo e correra mundo. No batizar o navio com o título da obra de Paine, o homem de Dundee se mostrara parecido com um armador contemporâneo, Estêvão Girard, de Filadélfia, cujas simpatias pela terra em que nasceu e sua liberal filosofia se revelam nos nomes de Voltaire, Diderot, e assim por diante, dados aos seus navios.

Mas quando o bote deslizava à ré do navio mercante, e o oficial e os remadores — alguns com amargura e outros sorridentes — liam o nome estampado na popa; nesse momento o novo recruta saltou da proa onde o timoneiro o mandara sentar-se, agitou o chapéu para os silenciosos companheiros que tristemente o contemplavam do tombadilho e disse-lhes um adeus cordial. Em seguida, fazendo uma saudação como que dirigida ao próprio navio, gritou:

— E adeus para você também, velho Rights-of-Man!

— Sente-se! — rugiu o tenente, assumindo incontinenti a sua severidade oficial mas reprimindo com dificuldade um sorriso.

O gesto de Billy fora com efeito gravíssima violação do decoro naval. Mas nesse decoro nunca o haviam instruído; e dificilmente se teria mostrado o tenente tão enérgico na repressão não fosse o adeus final ao navio, que considerou como chiste do novo recruta — disfarçada censura ao recrutamento em geral e ao seu em particular. O mais provável, porém, se de fato se tratava de uma sátira, é que não tivesse sido intencional pois Billy (conquanto felizmente dotado de boa saúde, mocidade e um coração generoso) não possuía, de maneira alguma, a veia satírica. Faltavam-lhe igualmente o desejo de usá-la e a sinistra destreza no seu emprego. Frases de duplo sentido e insinuações de qualquer espécie eram de todo alheias à sua natureza.

Em quanto ao seu alistamento forçado — parecia aceitá-lo como se habituara a aceitar as intempéries. A semelhança dos animais, posto não fosse filósofo, era, sem o saber, praticamente fatalista. E até pode ser que tivesse gostado da aventurosa reviravolta do destino, que lhe prometia novas cenas e excitamentos marciais.

A bordo do Indomitable foi o nosso marujo sem demora julgado hábil marinheiro e destacado para o quarto no cesto do traquete a estibordo. Logo se familiarizou com o serviço e viu-se apreciado dos outros pelo despretensioso donaire e pelo ar de jovial displicência. Não havia marinheiro mais alegre à mesa, em acentuado contraste com outros indivíduos, recrutados como ele, mas que, não estando ativamente ocupados, demonstravam às vezes — sobretudo no último meio quarto, quando a aproximação do lusco-fusco induzia ao devaneio — certa propensão para a tristeza que, em alguns, assumia a forma da irascibilidade. Mas não eram tão novos quanto o nosso gajeiro do traquete, e não poucos dentre eles deviam ter conhecido um lar, ao passo que outros talvez tivessem deixado esposas e filhos em circunstâncias incertas, e raríssimos seriam os que não possuíam família algures; enquanto que Billy, como adiante se verá, resumia praticamente em si toda a sua gente.

 

II

Embora o nosso recém-estreado gajeiro fosse bem recebido no resto da gávea e nas cobertas, muito longe se viu de ser o centro de atenções que fora para as tripulações menores de navios mercantes, as únicas com as quais convivera até então.

Era moço; e a despeito de seu organismo quase inteiramente desenvolvido, parecia mais moço ainda, o que se devia a uma lânguida expressão adolescente no rosto imberbe, quase feminino na pureza da tez, mas na qual, mercê da vida marítima, já não se via o lírio, e a rosa dificilmente transparecia na pele crestada.

Para uma criatura tão ignorante das complexidades da vida convencional, a repentina transição da esfera anterior, mais simples, para o mundo maior e mais experiente de um grande vaso de guerra, poderia vexá-lo se fosse vaidoso ou presumido. No meio da sua heteróclita multidão, o Indomitable reunia diversos indivíduos que, embora de categoria inferior, possuiam um temperamento fora do comum: marinheiros mais receptivos ao ar que a permanente disciplina marcial e a continuada presença em combates imprime, de certo modo, até ao homem comum. Como "Guapo Marinheiro", a bordo do "setenta e quatro", Billy Budd lembrava um pouco a rústica beldade arrancada à sua província e levada a competir com as damas altamente nascidas da corte. Ele, no entanto, mal deu pela troca de circunstâncias. Como também mal se advertiu de que a sua presença provocava um sorriso ambíguo em um ou dois rostos mais duros de marinheiros. Como também não reparou no efeito singularmente favorável que produziram a sua pessoa e os seus modos entre os cavalheiros mais inteligentes do galhardo. O que, aliás, não poderia deixar de acontecer. Fundido num molde peculiar aos mais belos espécimes físicos em que a linhagem saxã parece não ter sofrido mistura alguma, normanda ou outra qualquer, transluzia-lhe no rosto o olhar humano de tranqüila bondade que o escultor grego emprestou, em alguns casos, ao seu heróico homem forte. Hércules. Mas isso era também sutilmente modificado pela qualidade penetrante de outros atributos físicos: as orelhas miúdas e bem feitas, o arco dos pés, a curva da boca e das narinas, as próprias mãos endurecidas, que haviam assumido a cor de laranja abaçanada do bico do tucano, mãos que falavam de driças e baldes de alcatrão; mas, acima de tudo, o que quer que fosse na expressão móvel e em todos os gestos e movimentos casuais, sugerindo a existência de uma mãe eminentemente favorecida pelo Amor e pelas Graças e indicando, estranhamente, uma linhagem em direta contradição com a sua sorte. O mistério a esse respeito tornou-se menos misterioso quando Billy, no cabrestante, sofreu um exame formal. Interrogado pelo oficial, um homenzinho vivo, sobre o lugar do seu nascimento, respondeu:

— Não sei, não senhor.

— Não sabe onde nasceu? Quem era seu pai?

— Só Deus sabe, senhor.

Impressionado pela franca simplicidade das respostas, continuou o oficial:

— Sabe alguma coisa a respeito de sua origem?

— Não, senhor. Mas ouvi dizer que fui encontrado numa linda cestinha forrada de seda, pendurada, certa manhã, na aldrava da porta de um senhor em Bristol.

— Encontrado? Bem, — prosseguiu o oficial, atirando a cabeça para trás e examinando da cabeça aos pés o novo recruta; — o encontro, segundo parece, foi excelente. Oxalá se encontrem mais alguns como você, meu rapaz; a esquadra precisa deles.

Sim, Billy Budd era um enjeitado, provavelmente um bastardo, e, evidentemente, de origem não vil. A sua nobre ascendência era tão manifesta quanto a de um cavalo de puro sangue.

Tocante ao resto, com pouca ou nenhuma agudeza de engenho e sem quaisquer laivos da sabedoria da serpente, se bem não fosse uma perfeita rola, possuía a casta e o grau de inteligência que acompanha a retidão não convencional de uma criatura humana sadia — a que ainda não se tenha oferecido a duvidosa maçã do conhecimento. Era ignorante. Não sabia ler, mas sabia cantar e, como o iletrado rouxinol, compunha às vezes 'a própria canção.

Presunção parecia ter pouca ou nenhuma, ou tanto quanto podemos razoadamente atribuir a um cachorro da raça de São Bernardo.

Vivendo de ordinário entre os elementos, considerava a terra pouco mais que uma praia, ou melhor, a porção do globo terráqueo providencialmente reservada aos cabarés, às garotas e aos botequins; em suma, o que os marinheiros denominam um "fiddler's green" (2), de sorte que a sua natureza simples não fora adulterada pelas obliquidades morais comparáveis, em certos casos, a essa coisa manufaturável que se chama respeitabilidade. Mas são os marinheiros, freqüentadores do "fiddler's green'', sem vícios? Não; acontece, porém, que os seus vícios, como freqüentemente é o caso dos habitantes da terra, mais raramente decorrem de um coração perverso, e parecem menos resultantes de uma natureza viciosa que da exuberância de uma vitalidade longamente contida, ou sejam, francas manifestações conformes à lei natural. Pela sua constituição original, associada às influências cooperadoras da vida que levara, Billy, em muitos sentidos, era pouco mais que um bárbaro honesto, muito semelhante talvez ao que deve ter sido Adão antes que a urbana serpente passasse a privar com ele.

E seja aqui objeto de reflexão o fato, que aparentemente corrobora a doutrina da queda do homem — doutrina hoje popularmente ignorada — de que onde certas virtudes primitivas e não adulteradas singularizam alguém no exterior sempre igual da civilização, essas virtudes, aturadamente observadas, não parecem derivar de costumes ou convenções, mas, pelo contrário, parecem desafinar deles como se, na verdade, proviessem excepcionalmente de um período anterior à Cidade de Caim e ao homem citadino. O caráter assinalado por essas qualidades tem, para o paladar não viciado, o ingênuo sabor das frutas do mato, ao passo que o homem integralmente civilizado, ainda que seja um belo exemplar da sua raça, tem para o mesmo paladar moral um ressaibo duvidoso de vinho composto. A qualquer herdeiro transviado dessas qualidades primitivas que se encontre, como Gaspar Hauser, errando ofuscado por uma capital cristã de nossos dias, ainda se aplica a famosa invocação do poeta, feita há quase dois mil anos, ao bom campônio arrancado às suas latitudes e perambulando pela Roma aos Césares:

"Fiel na palavra e no pensamento,

Que te trouxe a ti, Fábio, à cidade”.

 

Embora o nosso Guapo Marinheiro possuísse tanta beleza varonil quanto o que mais a possua, como a formosa mulher num dos pequenos contos de Hawthorne, tinha um defeito. Não era, de fato, um defeito visível, como no caso da mulher, mas uma tendência ocasional a uma falha vocal. Posto que na hora agitada do perigo fosse ele tudo o que um marinheiro deve ser, sob o repentino estímulo de vigorosas comoções, a sua voz, normalmente musical, como se lhe expressasse a própria harmonia interior, propendia a apresentar uma hesitação orgânica — uma como gagueira, ou coisa pior. Nesse particular era Billy uma notável demonstração de que o arqui-intérprete, o invejoso desmancha-prazeres do Éden, ainda participa mais ou menos de toda consignação humana a este planeta da terra. Em todos os casos, de um jeito ou de outro, ele mete inevitavelmente o nariz, como a lembrar-vos - Eu também pus nisso a minha colher.

A confissão de tal senão do Guapo Marinheiro vem mostrar não só que ele não se apresenta como um herói convencional, mas também que a história cujo papel principal lhe cabe não é fantástica.

 

III

Na ocasião do recrutamento arbitrário de Billy para o Indomitable, o navio fizera-se ao mar para juntar-se à esquadra do Mediterrâneo. Pouco tempo depois se efetuava a junção. Como unidade da esquadra o "setenta e quatro" participava de seus movimentos: embora, às vezes, mercê de suas superiores qualidades de navegação, na ausência de fragatas, lhe fossem cometidas missões isoladas de reconhecimento — e, outras, encargos menos breves. Mas pouca relação tem a história com tudo isto, uma vez que se restringe à vida interna de um determinado navio e à carreira de um determinado marinheiro.

Corria o verão de 1797. Em abril desse ano estalara a comoção de Spithead, seguida, em maio, de uma segunda e mais séria explosão na esquadra em Nore. Esta última é conhecida, e não há exagero no epíteto, como o Grande Motim. Foi, em realidade, uma demonstração mais perigosa para a Inglaterra do que os manifestos contemporâneos e os exércitos conquistadores e proselíticos do Diretório francês.

Para o Império, foi o Motim de Nore o que seria uma greve no corpo de bombeiros para a cidade de Londres ameaçada de um incêndio geral. Nessa crise poderia muito bem o Reino Unido ter antecipado a senha famosa que, anos depois, revelaria ao longo da linha naval de batalha o que a Inglaterra esperava dos ingleses: aquele era o momento, quando ao calcês dos mastros dos navios de três cobertas e dos "setenta e quatro" fundeados em nosso próprio ancoradouro — uma esquadra, o braço direito de uma Potência que era então quase a única potência conservadora livre do Velho Mundo, os marinheiros, aos milhares, içaram com vivas as cores britânicas com o emblema da união e a cruz apagados; transmudando, por esse cancelamento, a bandeira da lei estabelecida e da liberdade definida no rubro pavilhão inimigo de revolta desenfreada e sem limites. Um razoável descontentamento nascido de abusos de ordem prática se convertera em combustão irracional como se lhe houvessem chegado brasas acesas, através do Canal, da França em chamas.

Esse acontecimento ironizou, por algum tempo, as estrofes ardentes de Dibdin — que, como compositor, não foi desprezível auxiliar do governo inglês — na conjuntura européia, estrofes que celebravam, entre outras coisas, o patriótico devotamento do marinheiro inglês:

 

 

 

"E quanto à minha vida, ela pertence ao Rei!"

 

Tal episódio na grandiosa história naval da Ilha é naturalmente abreviada pelos seus historiadores; um deles (G. P. R. James) candidamente confessa que de bom grado o deixaria de lado se "a imparcialidade não vedasse a repugnância". E no entanto a sua menção é menos uma narrativa que uma referência, em que mal se relatam alguns pormenores. Nem estes são prontamente encontráveis nas bibliotecas. Como outros acontecimentos que em todas as épocas afligem as nações em toda a parte, incluindo a América, foi de tal natureza o Grande Motim que o orgulho nacional e a conveniência política prazenteiramente o relegariam no segundo plano histórico. Tais sucessos não podem ignorar-se, mas há uma forma prudente de tratá-los historicamente. Se um indivíduo bem constituído se nega a divulgar qualquer coisa errada ou calamitosa em sua família, uma nação em idênticas circunstâncias pode, sem merecer que a censurem, usar de igual discrição.

Se bem depois de parlamentações entre o governo e os chefes do motim, e de concessões feitas pelo primeiro relativas a certos abusos notórios, o primeiro levante — o de Spithead — fosse com dificuldade reprimido ou, pelo menos, momentaneamente pacificado; em Nore, todavia, a imprevista repetição do levante em escala ainda maior, acentuado nas conferências que se seguiram por exigências que as autoridades consideraram não só inadmissíveis, mas agressivamente insolentes, indicava, se não bastasse a fazê-lo o guião vermelho, o espírito que animava os homens. A supressão final, entretanto, realizou-se, mas só foi porventura possível graças à lealdade inabalável dos fuzileiros navais, e ao retorno voluntário à lealdade de seções influentes das tripulações. Até certo ponto

o motim de Nore pode ser considerado como análogo à desorganizante irrupção de uma febre contagiosa num organismo constitucionalmente sadio, e que logo o derruba.

Em todo o caso, entre esses milhares de amotinados se encontravam alguns dos marinheiros que, não muito depois — levados a isso pelo patriotismo, pelo instinto pugnaz, ou por ambos — ajudaram a obter para Nélson a coroa de visconde do Nilo e a coroa das coroas navais em Trafalgar. Para os rebeldes foram essas batalhas, mormente a de Trafalgar, uma absolvição plenária; e uma esplêndida absolvição; pois o heroísmo é o melhor remate de um dramático espetáculo naval. Essas batalhas, sobretudo a de Trafalgar, ainda não foram igualadas nos anais humanos.

 

 

IV

 

Sobre o "Maior dos marinheiros desde o princípio do mundo" —TENNYSON

 

Nisto de escrever, por mais firmes propósitos que façamos de manter nos na estrada real, alguns atalhos exercem um fascínio a que de pronto não nos podemos furtar. Ao aceno do gênio de Nélson, vou embarafustar por um deles. Se o leitor quiser fazer-me companhia ficarei satisfeito. Pelo menos podemos prometer-nos o prazer que, segundo maldosamente se diz, existe no pecar, visto que a divergência é um pecado literário.

Não será provavelmente nova a observação de que os inventos de nosso tempo modificaram a guerra no mar a um grau correspondente à revolução operada em todas as guerras pela introdução da pólvora na Europa enviada pela China. A primeira arma de logo européia, um tosco aparelho, era, como se sabe, desprezada por muitos cavalheiros como instrumento vil, que talvez apenas servisse aos artesãos acovardados, que se temiam de cruzar o ferro com o ferro, em combate leal. Mas como em terra o valor cavalheiresco, embora despojado de seus brasões, não cessou com os cavaleiros, no mar se bem hoje em dia nos recontros marítimos certa espécie de ostentosa galanteria tenha caído de moda pela dificuldade de aplicação em circunstâncias tão mudadas, as qualidades mais nobres de magnates navais do porte de Dom João d'Austria, Dória, Van Tromp, João Bart, a longa lista dos almirantes britânicos e os decaturs americanos de 1812, não se tornaram obsoletas como sucedeu aos seus cascos de madeira.

Não obstante, a alguém que saiba dar ao presente o devido valor sem desdenhar do passado poder-se-á perdoar se o velho e solitário casco que se encontra em Portsmouth, o Victory de Nélson, lá pareça flutuar não só como o monumento decadente de uma fama incorruptível, mas também como poético reproche, suavizado pelo pitoresco, aos Monitors e aos cascos ainda mais poderosos dos couraçados europeus. E isso não só porque tais embarcações são desengraçadas, inevitavelmente desprovidas da simetria e das grandes linhas dos antigos vasos de guerra, mas também por outras razões.

Haverá pessoas, porventura, que, se bem não sejam de todo inacessíveis ao poético reproche a que aludimos, sintam-se inclinadas a rebatê-lo no interesse da nova ordem, a ponto de chegarem ao iconoclasmo, se preciso for. Por exemplo, instigados pela vista da estrela colocada no convés do Victory, mostrando o lugar em que caiu o Grande Marinheiro, esses utilitaristas marciais podem querer argumentar que a elegante exposição de sua pessoa feita por Nélson no curso da batalha foi não somente desnecessária, mas antimilitar e, o que é pior, temerária e vaidosa. Acrescentando que isso, em Trafalgar, foi nada menos que um desafio à morte; e a morte veio; e, não fora essa bravata, o almirante vitorioso poderia quiçá sobreviver à batalha, e assim, em vez de ter sido desdenhada pelo seu imediato sucessor no comando a ordem sagaz que dera ao morrer, ele mesmo, decidida a sorte da batalha, poderia ter levado a porto seguro a esquadra desbaratada, evitando assim a deplorável perda de vidas no naufrágio provocado pela tormenta dos elementos que se seguiu à tormenta marcial.

Bem, se puséssemos de parte o ponto mais controvertível, a saber, a possibilidade de ancorar a esquadra, seria assaz plausível que os bentamitas da guerra insistissem neste.

Mas o podia ter sido é apenas um paludoso terreno de construção. E sem dúvida alguma na previsão do resultado final de uma batalha e nos ansiosos preparativos para ela — marcando com bóias e traçando no papel o caminho fatal, como em Copenhaga — poucos comandantes têm sido tão meticulosamente prudentes quanto esse temerário expositor de sua pessoa em combate.

A prudência pessoal, ainda que não ditada por considerações egoístas, não figura entre as virtudes especiais do militar; ao passo que o excessivo amor da glória, estimulando ao máximo o senso intenso do dever, é a primeira delas. Se o nome de Wellington não é uma trombeta tão eletrizante para o sangue quanto o nome mais simples de Nélson, a razão disso pode inferir-se do que acima fica dito. E sua ode fúnebre ao vencedor de Waterloo, Tennyson não se arrisca a chamar-lhe o maior soldado de todos os tempos, enquanto que na mesma ode, invoca Nélson como "o maior dos marinheiros desde o princípio do mundo".

Em Trafalgar, na iminência de iniciar a luta, Nélson assentou-se e escreveu o seu último testamento. Se, levado pelo pressentimento da mais estupenda de todas as vitórias, que seria coroada pela sua própria e gloriosa morte, uma espécie de motivo religioso o induziu a engalanar-se com as formosas provas de seus próprios feitos rutilantes; se o haver-se ataviado assim para o altar e o sacrifício foi, de fato, vanglória, afetados e bombásticos são todos os versos realmente heróicos dos grandes poemas épicos e dos grandes dramas, visto que nessas estrofes resume o poeta as exaltações de sentimentos a que uma natureza como a de Nélson, quando se apresenta a oportunidade, dá vida em atos.

 

V

 

O motim de Nore fora reprimido. Mas nem todos os abusos tinham sido remediados. Se os fornecedores, por exemplo, já não podiam entregar-se a certas práticas peculiares à sua tribo em toda a parte, tais como fornecer roupas de pano inferior e rações deterioradas ou roubar no peso, nem por isso cessou, por exemplo, o recrutamento. Costume sancionado pelos séculos e judicialmente mantido por um Lorde Chanceler até Mansfield, esse modo de equipar a esquadra, hoje caído em desuso, mas nunca formalmente abolido, não poderia ser derrogado naqueles anos sem compro meter a esquadra indispensável, inteiramente constituída de veleiros, com as velas inúmeras, os milhares de canhões, tudo enfim, manejado apenas por músculos; uma esquadra tanto mais insaciável de homens quanto mais multiplicava os seus navios de todos os gêneros contra as contingências presentes e futuras do Continente convulsionado.

O descontentamento precedeu os dois Motins e mais ou menos secretamente lhes sucedeu. Daí que não fosse desarrazoado o receio de repetições de tumultos, esporádicas ou gerais. Exemplo dessas apreensões: no mesmo ano em que se desenrola esta história, Nélson, que era então o Vice-Almirante Sir Horácio, achava-se com a sua frota ao largo das costas de Espanha quando recebeu ordens do Almirante para transferir a sua quadra do Captain ao Teseus; e pela seguinte razão: havendo o último dos navios recentemente chegado de uma temporada na Inglaterra, onde participara do Grande Motim, temia-se o estado de espírito de seus homens; e julgava-se que um oficial como Nélson era o mais indicado, não para aterrorizar o pessoal e reduzi-lo a uma vil sujeição, mas para levá-lo (rela força de sua simples presença a uma fidelidade, se não tão entusiástica quanto a sua, pelo menos igualmente verdadeira Assim é que, em mais de um tombadilho, reinou de fato a ansiedade. Redobrou-se no mar a vigilância preventiva contra uma possível reincidência. De improviso podia travar-se uma batalha. E quando isso acontecia, os oficiais designados para comandar as baterias julgavam, em certos casos, de bom alvitre permanecerem com a espada na mão atrás dos homens que manejavam os canhões.

Mas a bordo do "setenta e quatro" em que Billy fazia balançar a sua rede, pouquíssima coisa nos modos aos homens e nada no comportamento dos oficiais teria lembrado a um observador comum que o Grande Motim era um sucesso recente. No seu procedimento geral os oficiais superiores de um navio de guerra pautam naturalmente os seus atos pelos do comandante, quando este exerce a ascendéncia que deve exercer.

O Capitão, o Honorable Eduardo Faisfax Vere, para enunciarmos todo o seu nome, era um solteirão de quarenta anos, mais ou menos, marinheiro distinto, mesmo numa época fértil em marujos famosos. Embora aliado à mais alta nobreza, não devera de Indo a promoção a influências decorrentes dessa circunstância. Possuía uma bela folha de serviços, estivera em vários encontros, e sempre se houvera como oficial cuidadoso do bem-estar dos comandados, se bem jamais tolerasse uma infração da disciplina; versadíssimo na ciência de sua profissão e de uma intrepidez que atingia as raias da temeridade, mas nunca imprudente, por atos de bravura praticados ao largo das índias Ocidentais como imediato de Rodney na esplêndida vitória desse almirante contra De Grasse, fora promovido a capitão-de-mar-e-guerra.

Em terra, civilmente trajado, muito pouca gente o tomaria por homem do mar, mesmo porque ele nunca intercalava termos náuticos nas conversações não profissionais e, sempre sisudo, não parecia muito amigo de agudezas. E quando nada lhe exigia a ação suprema, era o menos demonstrativo dos homens. Qualquer civil que lhe observasse a figura, que não se notabilizava pela estatura nem usava insígnias ostentosas, ao sair de seu refúgio e assomar ao convés, e notasse a muda deferência dos oficiais que se retiravam para sotavento, poderia tomá-lo por um hóspede de Sua Majestade, um civil a bordo do navio de guerra, algum altíssimo e discretíssimo enviado, a caminho de um posto importante. Mas, em realidade, esse comedimento no proceder podia provir de certa modéstia desafetada de caráter que ás vezes acompanha as naturezas resolutas, patenteada sempre que ele não era chamado a uma ação decidida, e sinal inequívoco de aristocrática virtude.

Como se dá com outras pessoas ocupadas em vários setores das mais heróicas atividades do mundo, conquanto se mostrasse sumamente prático nas ocasiões precisas, o Capitão Vere traía, a revezes, certa tendência para o devaneio. Sozinho, em pé, a barlavento no tombadilho, firmando-se numa dos ovéns, fitava o olhar ausente nas águas escuras do mar. E quando, nesses momentos, um assunto de pouca monta lhe interrompia o curso das idéias, estampava-se-lhe no rosto uma expressão mais ou menos irascível; mas ele, de pronto, conseguia dominá-la.

Na marinha era popularmente conhecido pela alcunha de Brilhante Vere. O fato de que tal apelação fosse dada a quem, sem embargo de suas vigorosas qualidades, não tinha nada de brilhante, explica-se do seguinte modo: um de seus parentes mais queridos, Lorde Denton, rapaz expansivo, fora o primeiro a encontrar-se com ele e a cumprimentá-lo após o seu regresso do cruzeiro às índias Ocidentais; e na véspera, folheando um exemplar dos poemas de Andrew Marvell, dera, embora não pela primeira vez, com os versos intitulados "Appleton House", nome de uma das mansões de seu antepassado comum, herói das guerras germânicas do século dezessete, poema em que se lêem estas linhas:

 

"Isto por ter sido desde o princípio

Educado num paraíso doméstico,

Debaixo da severa disciplina

De Fairfax e do brilhante Vere".

 

E assim, ao abraçar o primo que acabava de chegar da vitória de Rodney, em que se portara com tanta bizarria, transbordando de justo orgulho familiar pelo marinheiro de sua estirpe, exclamou, exuberante:

— Parabéns, Ed; parabéns, meu brilhante Vere!

Divulgou-se a expressão e, servindo o novo prefixo nas conversações familiares para distinguir o capitão do Indomitable de outro Vere, mais velho, parente afastado, e oficial de idêntica patente na marinha, ligou-se para sempre ao sobrenome.

 

 

 

VI

 

Em vista do papel que o comandante do Indomitable desempenha em cenas que brevemente seguirão, bem é que completemos o bosquejo principiado no capítulo anterior. A parte as suas qual idades como oficial de marinha, era o Capitão Vere uma criatura excepcional. À semelhança de muitos famosos marinheiros ingleses, o longo e árduo serviço, prestado com assinalada dedicação, não lograra absorver e salgar completamente o homem. Demonstrava acentuada inclinação para quanto dissesse respeito à vida intelectual. Amava os livros, e nunca se embarcava sem uma biblioteca recém-sortida, pequena, mas com o que havia de melhor. O ócio a sós, em alguns casos tão enfadonho, que de quando em quando surpreende os comandantes, mesmo durante um cruzeiro de guerra, nunca era tedioso para o Capitão Vere. Sem nada do gosto literário que atenda menos para o fundo que para a forma, as suas inclinações o levavam a preferir os livros a que naturalmente propendem todos os espíritos sérios, de ordem superior, investidos de algum cargo ativo de mando; livros que tratam de homens e eventos reais, de qualquer época — obras de história, biografia e de autores não convencionais, que, libertos da hipocrisia e da invenção, como Montaigne, sinceros e sensatos, filosofam sobre realidades.

Nesse amor à leitura encontrou ele a confirmação de seus próprios e mais íntimos pensamentos — confirmação que debalde buscara na conversação social, de sorte que sobre muitos pontos fundamentais nele se enraigaram convicções positivas que, pressentiu o, conservaria imutáveis enquanto se mantivesse intacto o seu intelecto. Em face da modesta posição que por sorte lhe coubera, essa atitude lhe era propícia. As suas assentadas convicções formavam como que um dique contra as águas invasoras das novas idéias políticas e sociais, que arrastavam na sua avalanche muitos espíritos do tempo, espíritos por natureza não interiores ao seu. Ao passo que outros membros da aristocracia a que ele pertencia por nascimento se exasperavam contra os inovadores principalmente porque as suas teorias eram contrárias às classes privilegiadas, o Capitão Vere se opunha desinteressadamente a eles por lhe parecerem incapazes de construir instituições duradouras e estarem em guerra com a paz do mundo e o bem da humanidade.

Com espíritos menos bem dotados do que o seu e menos sérios, alguns oficiais de sua patente, que lhe era forçoso, às vezes, freqüentar, achavam que lhe faltava sociabilidade e tachavam-no de seco e livresco. E quando se afastavam, era freqüente ouvi-los dizer qualquer coisa neste sentido.

— Vere é um belo rapaz, o brilhante Vere. Apesar dos jornais, Sir Horácio não é marinheiro nem militar muito melhor do que ele. Mas, cá entre nós, você não acha que há nele uns traços esquisitos de pedantismo? Sim, como um fio de seda num cabo de laborar!

Motivo aparente havia para essa espécie de crítica confidenciai; pois não somente a conversa do Capitão nunca assumia um tom jocoso e familiar, mas sempre que se tratava de ilustrar algum ponto relativo aos agitados personagens e eventos do tempo, citava alguma figura ou incidentes históricos com o mesmo ar sereno com que citava os modernos. Parecia não dar tento de que tais alusões remotas, por adequadas que fossem, eram de todo estranhas a homens cujas leituras se limitavam principalmente aos jornais. Mas naturezas como a do Capitão Vere não reparam facilmente nessas coisas. A sinceridade exige deles franquezas, às vezes de longo alcance, como a de uma ave migratória que, ao voar, nunca percebe quando cruza uma fronteira.

 

VII

 

Não é aqui necessário retratar com pormenores os oficiais que constituíam o estado-maior do Capitão Vere, nem é preciso mencionar sequer os oficiais subalternos. Mas entre os sub-oficiais um havia que, por desempenhar papel preponderante na história, pode ser desde já apresentado, buscarei traçar-lhe o retrato, se bem jamais o consiga.

Tratava-se de João Claggart, Mestre-de-armas. Esse título naval pode parecer algo ambíguo aos civis. Primitivamente, sem dúvida, as suas funções consistiam em instruir os homens no manejo das armas, espadas ou facções. Mas há muito tempo, graças aos progressos da artilharia, que tomaram menos freqüentes os combates corpo a corpo e deram Preponderância ao nitro e ao enxofre sobre o aço, essa função cessou; o mestre-de-armas de um grande navio de guerra se converteu numa espécie de Chefe de Polícia, encarregado, entre outras coisas, de manter a ordem nas populosas cobertas inferiores.

Claggart era homem de seus trinta e cinco anos, um tanto magro e alto e, de um modo geral, bem apessoado. Tinha as mãos pequenas e Item feitas, visivelmente desacostumadas do trabalho pesado. O rosto era notável; todos os traços, com exceção do queixo, possuíam a nitidez de contornos de um medalhão grego; mas o queixo, glabro como o de Tecumseh, apresentava em sua feitura o peso estranho e protuberante que lembrava os retratos do Rev. Dr. Tito Oates, histórica testemunha, tartamudo clerical, do tempo de Carlos II, e a fraude da pseudo conspiração papista. O olhar severo, dominador, facilitava-lhe o exercício de suas funções. A testa pertencia ao gênero frenologicamente associado a um intelecto mais do que mediano, e sobre ela se agrupavam anéis sedosos de um cabelo preto retinto, contrastando com a palidez do rosto, uma palidez matizada de fugaces tons ambarinos, semelhantes à tonalidade dos mármores antigos coloridos pelo tempo.

A tez, que destoava singularmente dos rostos escarlates ou intensamente bronzeados dos marinheiros e que em parte resultava do seu afastamento oficial da luz solar, se bem não fosse precisamente desagradável, parecia, no entanto, indicar algum defeito ou anormalidade sangüínea e constitucional. Mas o aspecto e os modos, de uma forma geral, de tal arte sugeriam uma educação e uma carreira incompatíveis com as suas atribuições atuais, que, não estando ativamente empenhado nelas, mais parecia um homem de grande distinção, social e moral, que, por motivos particulares, se conservasse incógnito. Nada se sabia de sua vida pregressa. Podia ser que fosse inglês; mas notava-se-lhe no falar um sotaque especial, a aventar que talvez o não fosse por nascimento, senão por naturalização em sua primeira infância. Entre os velhos murmuradores das cobertas inferiores e do tombadilho corriam perdidos rumores de que o mestre-de-armas era um cavaleiro que se alistara voluntariamente na marinha real com o fito de encobrir alguma trapaça misteriosa, que o levara às barras do tribunal de Sua Majestade. O fato de não se poderem provar não impedia, naturalmente, que fossem secretamente aceitos. Depois de partirem das cobertas inferiores, os rumores dessa ordem sobre qualquer oficial subalterno, durante o período em que se desenvolve esta narrativa, teriam merecido crédito dos velhos e alcatroados sabichões incluídos na tripulação de um navio de guerra. E, com eleito, o fato de um homem com os dotes de Claggart ingressar nu marinha, na sua idade, sem nenhuma experiência náutica anterior, incumbido necessariamente, a princípio, das funções mais subalternas; um homem, aliás, que nunca fazia alusão à sua vida anterior em terra; tudo isso eram circunstâncias que, à míngua de exalas informações sobre os seus verdadeiros antecedentes descortinavam aos invejosos amplíssimo campo para conjecturas desfavoráveis.

Mas os falatórios dos marinheiros a seu respeito pareciam tanto mais plausíveis quanto a marinha inglesa, nessa época, se encontrava de tal forma impossibilitada de escolher com demasiado escrúpulo os seus recrutas, que não somente existiam notoriamente, assim no mar como em terra, turmas de recrutamento, como também se fazia pouco ou nenhum segredo dos plenos poderes outorgados à polícia de Londres para capturar qualquer suspeito fisicamente capaz ou qualquer sujeito duvidoso que estivesse em liberdade e remetê-lo sumariamente para o arsenal ou para a esquadra. De mais a mais, até entre os que se alistavam voluntariamente havia casos em que o motivo que os impelia não tinha nada de patriótico nem sequer do aventuroso desejo de conhecer a vida naval ou buscar aventuras marciais. Devedores insolventes de categorias inferiores, em promiscuidade com cavalheiros de moral duvidosa, encontravam na marinha seguro e cômodo refúgio. Seguiu Iorque, depois de alistados a bordo de um navio de Sua Majestade, viam-se praticamente acobertados num santuário, como o transgressor da Idade Média que se abrigava à sombra do altar, tais Irregularidades sancionadas, que o governo, por óbvias razões, dificilmente se animaria a examinar naquela ocasião — e que, por interessarem apenas às classes menos influentes do gênero humano, foram deixadas totalmente esquecidas — dão foros de verdade a algo cuja autenticidade não garanto e que, por conseguinte, escrupulizo de afirmar; algo que me lembra ter visto impresso, se bem não me recorde do livro; mas isso mesmo me foi pessoalmente comunicado há mais de quarenta anos por um velho marinheiro aposentado, que trazia um tricórnio na cabeça, com o qual travei interessantíssima conversação no terraço de Greenwich, um negro de Baltimore, um homem de Trafalgar. E ele me disse o seguinte: quando um vaso de guerra carecia de braços e a sua partida urgente fosse imperativa, esgotados todos os outros meios de equipá-Io, os homens que faltavam eram suplementados por uma leva tirada diretamente das prisões. Em face de razões que já enumeramos, não é hoje talvez muito fácil provar ou negar diretamente o fato. Mas a ser verdadeiro, seria uma prova eloqüente dos apuros da Inglaterra naquele tempo, diante de tantas guerras que, como bando de Harpias, se erguiam, ululantes, do estrondo e do pó da Bastilha abatida. Essa guerra nos parece mensuravelmente clara a nós, que apenas voltamos os olhos para ela e lemos o que sobre ela se escreveu. Mas para os refletidos avós dos que, entre nós, já atingiram a velhice, o gênio dela apresentava um aspecto semelhante ao do "Fantasma do Cabo" de Canções, ameaça eclipsante, misteriosa e prodigiosa. Nem sequer a América se eximiu de apreensões. No auge das conquistas sem exemplo de Napoleão, havia americanos que tinham combatido em Bunker Hill, antevendo a possibilidade de que o Atlântico não constituísse barreira contra os planos definitivos desse portentoso adventício do caos revolucionário, que parecia realizar o julgamento profetizado no Apocalipse.

Daria, porém, menos crédito às murmurações dos marinheiros sobre Claggart quem refletisse que ninguém, ocupando o seu posto num navio de guerra, pode nutrir esperanças de granjear popularidade no seio da tripulação. Além disso, nos comentários depreciativos sobre qualquer pessoa contra a qual tenham queixa, ou que eles, com razão ou sem ela, desadorem, os marinheiros são muito parecidos com os civis: propendem a exagerá-los ou romanceá-los.

Os tripulantes do Indomitable conheciam tanto a carreira do Mestre-de-armas antes de entrar para a marinha quanto conhece um astrônomo os movimentos de um cometa antes do seu primeiro aparecimento observável no céu. Citei a opinião da marinhagem apenas para mostrar a espécie de impressão moral que o homem produzia sobre naturezas rudes e incultas, cujas concepções sobre a maldade humana eram, por força, acanhadíssimas, limitadas a idéias de vulgar patifaria — um ladrão entre as redes balouçantes durante um quarto noturno, ou os intermediários e tubarões dos portos.

Mas embora, ao ingressar na marinha, fosse Claggart incumbido de funções subalternas e menos honrosas, não as desempenhou por muito tempo; e isso não era falatório, mas um fato.

A capacidade superior que logo demonstrou, a sobriedade constitucional, a insinuante deferência para com os superiores, aliados a um gênio especial de investigação, manifestado numa ocasião singular, e coroadas por certo austero patriotismo, repentinamente o guindaram à posição de Mestre-de-armas.

Desse marítimo Chefe de Polícia eram os cabos de esquadra, como então se chamavam, subordinados imediatos e complacentes; e isto — como também se pode observar em certos departamentos comerciais em terra — a um ponto quase incompatível com a perfeita volição moral. O posto colocou-lhe nas mãos várias correntes de influência subterrânea, capazes, quando habilmente manejadas, de criar um ambiente de misterioso mal-estar, quando não de coisa pior, para qualquer membro da comunidade marítima.

 

VIII

 

A vida no cesto do traquete viera a calhar para Billy Budd. Quando não trabalhavam nas vergas mais altas, os gajeiros, escolhidos entre os mais moços e os mais ativos, formavam um clube aéreo, descansando à vontade nos cutelos menores, convertidos em almofadas, cochando cabos como deuses preguiçosos e divertindo se freqüentemente com o que ocorria lá embaixo, no mundo ativo das cobertas. Não é, portanto de pasmar que um rapaz com as disposições de Billy se sentisse satisfeito em tal sociedade. Não dando ocasião de queixa a ninguém, estava sempre alerta ao primeiro chamado. Assim se portara a bordo do navio mercante. Mas agora demonstrava tamanha pontualidade no serviço que os outros gajeiros debicavam-no amistosamente. A acentuada presteza tinha a sua causa na impressão provocada pelo primeiro castigo formal que presenciara, aplicado no dia seguinte ao do seu recrutamento. Fora infligido a um rapazinho miúdo, um novato, encarregado das velas da ré, que saíra do seu posto quando o navio estava virando de bordo, negligência que dificultara seriamente a manobra, pois esta exige instantânea prontidão no largar e no amarrar. Quando lhe viu as costas nuas, sob o chicote, riscadas de vergões vermelhos; quando, após o castigo, observou a expressão horrível do culpado que, tendo sobre si a camisa de lã que lhe atirara o executor, arrancara do lugar para esconder-se no meio da multidão, Billy ficou horrorizado. Decidiu que nunca, por descuido seu, incorrera em semelhante punição, nem faria ou deixaria de fazer alguma coisa que lhe pudesse acarretar sequer uma censura verbal. Quais não foram, portanto, a sua surpresa e preocupação quando se viu a braços com pequenas dificuldades ocasionais tais como a defeituosa arrumação do saco ou a falta de um objeto qualquer na rede, assuntos que ficavam sob a jurisdição policial dos cabos-de-esquadra das cobertas inferiores, e que lhe valeram uma vaga ameaça de um deles.

Cuidadoso como era em tudo, não atinava com a explicação daquilo. Não conseguia compreendê-lo, e sentia-se por isso mesmo ainda mais aflito. Quando falou no caso aos outros gajeiros, estes se mostraram um tanto incrédulos ou acharam graça na sua manifesta mortificação.

— É o seu saco, Billy? — perguntou um companheiro. — Nesse caso, costure-se dentro dele, meu caro, e ficará sabendo com certeza se alguém costuma visitá-lo.

Ora, havia a bordo um veterano que, já inabilitado pelos anos para os serviços mais pesados, fora recentemente incumbido de fazer o quarto no mastro grande, vigiando as adriças que o circundam perto do convés. Nas horas de folga travara o gajeiro conhecimento com ele, e agora, na sua preocupação, lembrou-se de que ele talvez pudesse dar-lhe um bom conselho. Era um velho danês havia muito anglicanizado no serviço, de poucas palavras, muitas rugas e algumas honrosas cicatrizes. O rosto murcho, marcado pelo tempo, a que as intempéries tinham dado um aspecto de pergaminho antigo, era aqui e ali pintalgado de azul pela fortuita explosão de um cartucho durante um combate. Antigo tripulante do Agamemnon, uns dois anos antes dos fatos que narramos, servira sob as ordens de Nélson, quando este era apenas Sir Horácio, no navio imortal que, desmantelado e quase reduzido à nudez de suas costelas, se vê como um grandioso esqueleto na água-forte de Hayden. Incluído num grupo de abordagem do Agamemnon, recebera um talho enviesado ao longo de uma têmpora e da face correspondente. que lhe deixara uma longa e pálida cicatriz semelhante a um raio de luz matinal que lhe incidisse de través no rosto abacinado. A cicatriz e o encontro em que a recebera, assim como a sua pele pintalgada de azul, tinham-lhe valido dos tripulantes do Indomitable a alcunha de "Aborda-o-na-fumaça".

Ora, a primeira vez que os seus olhinhos de fuinha pousaram em Billy Budd, um feroz contentamento interior lhe pôs em movimento todas as velhas rugas. Dar-se-ia que a sua excêntrica e velha sabedoria, primitiva e não sentimental, visse, ou julgasse ver, algo que em contraste com o ambiente do navio de guerra parecesse estranhamente incongruente no Guapo Marinheiro? Mas depois de estudá-lo às escondidas, em várias ocasiões, modificou-se o equívoco contentamento do velho Merlim. Volvido algum tempo, quando os dois se encontravam, surgia-lhe no rosto um olhar meio zombeteiro, mas que logo se dissipava e era às vezes substituído por uma expressão especulativa de dúvida como se perguntasse a si mesmo o que poderia suceder eventualmente a uma natureza como aquela num mundo cheio de ciladas e contra cujas astúcias a simples coragem despida de experiência e de destreza e sem traço nenhum de fealdade defensiva, pouco pode fazer; e onde a inocência de que ainda é capaz o homem, numa contingência moral, nem sempre aguça as faculdades ou ilumina a vontade.

Mas o caso é que o danês, ao seu jeito de asceta, afeiçoou-se a Billy. Não só em razão de certo interesse filosófico por um tipo daqueles, mas por outro motivo também. Ao mesmo passo que as excentricidades do velho, que às vezes chegavam a convertê-lo num urso, afastavam os mais moços, Billy, que não se deixava intimidar por isso, nunca passava pelo velho tripulante do Agamemnon sem um cumprimento acentuado pelo respeito, que raro deixa do lisonjear os velhos, por mais mal humorados que estejam em certas ocasiões, ou seja qual for a sua posição na vida. O homem possuía uma veia de humor seco, ou coisa que o valha; e fosse por um rasgo de ironia patriarcal ante a juventude e a atlética organização de Billy, fosse por outra razão qualquer, mais Intima, o certo é que, desde a primeira vez que lhe dirigiu a palavra, substituiu Billy por Baby, lendo sido, de falo, o danês o criador do nome pelo qual se tornou o gajeiro eventualmente conhecido a bordo do navio.

Pois bem, indo à procura do enrugado amigo levado pela sua misteriosa dificuldadezinha, Billy encontrou-o de folga, meditabundo, sentado numa caixa de munições na coberta superior, observando, de onde em onde, com um olhar algo cínico, os marinheiros mais chibantes que por lá passeavam. Billy referiu-lhe o motivo da preocupação tornando a perguntar a si mesmo como pudera acontecer tudo aquilo. O marinheiro ouviu com atenção, acompanhando a narrativa do gajeiro com estranhas contrações das rugas e um problemático fuzilar dos olhinhos de furão. Ao concluir a história, perguntou o gajeiro:

— E agora, danês, diga-me o que pensa disso.

Erguendo a aba do chapéu e esfregando deliberadamente a longa cicatriz enviesada no ponto em que ela entrava pela cabeleira rala, respondeu, lacônico, o interpelado:

— Baby Budd, Jimmy Legs (referindo-se ao Mestre-de-armas) tem raiva de você.

— Jimmy Legs! — exclamou Billy, arregalando os olhos azuis; — por quê? Pois se ele sempre me chama o belo e simpático rapaz, segundo me disseram!

— Sim? — tomou, com um risinho, o velho; e ajuntou — Ah, Baby Budd, Jimmy Legs tem uma voz muito doce.

— Não, nem sempre. Mas para mim, tem. Raras vezes passo por elesem lhe ouvir uma palavra amável.

— Porque ele tem raiva de você, Baby Budd.

A reiteração, ligada ao modo por que fora feita (incompreensível para um novato), afligiu Billy quase tanto quanto o mistério cuja explicação buscara. Tentou arrancar do outro alguma coisa menos desagradavelmente oracular. Mas o velho marujo, cuidando talvez que já instruira suficientemente o seu jovem Aquiles, cerrou os lábios, reuniu as rugas e não disse mais nada.

Os anos e as experiências por que passam certos homens mais sagazes subordinados a vida inteira à vontade de superiores, tinham desenvolvido no danês o cauto cinismo que era a sua principal característica.

 

 

IX

 

No dia seguinte, um incidente serviu para confirmar Billy Budd na sua descrença da estranha teoria exposta pelo danês quando soubera do caso.

À tarde ia o navio à popa arrasada, e ele jantava, entretido em animada conversa com os companheiros de mesa, quando lhe sucedeu, em súbita guinada, derramar todo o prato de sopa no chão recém-lavado. Ora, Claggart, o Mestre-de-armas, com a bengala oficial na mão, percorria naquele momento a coberta, em uma de cujas reentrâncias fora instalada a mesa e o fluido gorduroso escorreu até o lugar em que ele passava. Pulando por cima, já se dispunha a continuar o caminho, sem comentários, visto que o assunto não merecia maior atenção, quando viu quem derramara a sopa. Modificou-se-lhe a fisionomia. Deteve-se e quis fazer uma observação mais áspera ao marinheiro; reportou-se, porém, e, apontando para a sopa que continuava a correr, bateu-lhe amistosamente com a bengala nas costas e disse, com a voz baixa e musical, que às vezes lhe era peculiar:

— Muito bonito, meu rapaz! E bonito é como bonito o fez! — E continuou a andar.

O que Billy não notou, porque não viu, foi o sorriso, ou melhor, a careta involuntária, que acompanhou as palavras equívocas de Claggart, repuxando para baixo, aridamente, os cantos finos da boca bem feita. Mas como todos atribuíssem à observação uma Intenção chistosa e se achassem na obrigação de rir porque viera de um superior, “com fingida alegria" assim o fizeram; e Billy, talvez lisonjeado pela manifesta alusão aos seus dotes físicos, jubiloso, imitou-os; e, dirigindo-se aos companheiros de mesa:

— Aí está! Quem foi que disse que Jimmy Legs tem raiva de mim — perguntou.

— E quem foi que disse, beleza? — acudiu um marujo com alguma surpresa. Ao que o gajeiro se sentiu um tanto encalistrado, lembrado de que só uma pessoa, o Aborde-o-na-fumaca, lhe sugerira a enfumaçada idéia de que o Mestre-de-armas lhe fosse de certo modo hostil. Nesse comenos, este último funcionário, prosseguindo em seu caminho, deve ter assumido uma expressão menos cautelosa que o sorriso amargo, que o desfigurava, usurpada quiçá pelo rosto ao coração — pois um tamborzinho, que vinha brincando, distraído, em sentido contrário, chocou-se de leve com ele e ficou estranhamente desconcertado com o seu aspecto. Nem sentiu menor pasmo quando o oficial, dando-lhe impulsivamente uma rija bengalada, exclamou, veemente:

— Olhe por onde anda!

 

X

 

Que acontecera ao Mestre-de-armas? E, fosse o que fosse, como poderia relacionar-se diretamente a Billy Budd, com o «uai, antes do acidente da sopa derramada, nunca tivera ele nenhum contato especial, oficial ou não? Com efeito, que encrenca poderia ler surgido para alguém tão pouco propenso a ofender os outros quanto o mediador do navio mercante, o mesmo que na frase do próprio Claggart era "o belo e simpático rapaz?'' Sim, por que haveria Jimmy Legs, para usarmos a expressão do danês, de ter raiva do Guapo Marinheiro?

Mas o fato é que no íntimo, no recesso de seu coração, como o último encontro fortuito poderá indicar aos mais avisados, a raiva sem dúvida existia.

Ora, se inventássemos alguma coisa relacionada com a existência particular de Claggart — alguma coisa que envolvesse Billy Budd e que este ignorasse completamente, um romântico incidente que tivesse levado Claggart a saber da existência do jovem marinheiro num período anterior ao encontro de ambos a bordo do "setenta e quatro" — tudo isso, que não seria difícil, poderia servir de maneira mais ou menos interessante para explicar qualquer enigma que pareça existir no caso. Mas, em realidade, não havia nada disso. Não obstante, a causa, que teremos forçosamente de aceitar como a única plausível, possui em tão grandes quantidades o principal elemento de um romance de Ann Ratcliffe, o misterioso, como qualquer outro que o engenho da autora dos "Mistérios de Udolfo" poderia conceber. Pois que haverá de mais misterioso de que uma antipatia espontânea e profunda como a que desperta em certas criaturas excepcionais o simples aspecto de outra criatura, por inofensivo que seja — quando não a desperta a mesma inofensividade?

Ora, não há sítio mais propício para as mais irritantes justaposições de personalidades dessemelhantes que o convés de um grande navio inteiramente equipado, em pleno mar. Aí, todos os dias, entre todas as categorias, quase todos os homens entram mais ou menos em contacto uns com os outros. Aí, para evitar a própria vista de um objeto irritante, um homem tem de dar-lhe o empurrão de Jonas ou atirar-se ao mar. Imagine-se agora a influência que tudo isto pode exercer eventualmente sobre uma criatura humana fora do comum, que seja o extremo oposto de um santo?

Mas para a perfeita compreensão de Claggart por parte de um espírito normal, o que ficou dito não basta, pois se quisermos passar de uma natureza normal à dele, temos de cruzar "o mortal espaço intermédio" e isto se faz melhor por um método indireto.

Há muito tempo um condiscípulo, mais velho do que eu, disse-me, referindo-se a alguém que, como ele, já não existe, um homem tão irrepreensivelmente respeitável que dele nunca se dissera nada abertamente, embora à socapa se murmurasse qualquer coisa.

— Sim, X... não é um problema que se resolva com facilidade Você sabe que não sou adepto de nenhuma religião organizada e muito menos de sistemas filosóficos. Pois bem, apesar de tudo isso, creio que penetrar a alma de X..., entrar em seu labirinto e dele sair sem um guia derivado do que se chama o conhecimento do mundo, seria praticamente impossível, pelo menos para mim.

Ora, — respondi, — embora X... seja, para alguns, singular objeto de estudo, é humano, e o conhecimento do mundo implica, certamente um conhecimento da natureza humana e da maior parte de suas variedades.

Sim, mas um conhecimento superficial dela, que serve apenas aos propósitos ordinários. Quando se trata, porém, de coisas mais profundas, não estou muito certo de que conhecer o mundo e conhecer a natureza humana sejam o mesmo ramo de conhecimento, visto que embora possam coexistir no mesmo coração, podem também existir isolados. Pelo contrário, num homem comum, o atrito constante com o mundo lhe embota o fino discernimento espiritual indispensável à compreensão do essencial de certos caracteres excepcionais, maus ou bons. Num caso de certa importância já vi uma menina engambelar como quis um velho advogado. E não se tratava da pieguice de um amor senil. Nada disso. Mas ele entendia mais de leis que do coração da menina. Coke e Blackstone raro projetaram tanta luz sobre escuros sítios espirituais como sobre os profetas hebreus. E que eram eles? Eremitas, quase todos.

Naquela ocasião, tamanha era a minha inexperiência que não enxerguei direito o alcance de tudo aquilo. Pode ser que o enxergue agora. E, de fato, se o dicionário baseado nas Sagradas Escrituras ainda fosse popular, poderíamos com menos dificuldades definir e denominar certos homens fenomenais... Nas atuais circunstâncias, precisamos recorrer a autoridades não sujeitas à acusação de estarem imbuídas do bíblico elemento.

Numa lista de definições inclusa na tradução autêntica de Platão e atribuída a ele, lê-se isto: "Depravação natural: depravação conforme à natureza". Definição que, se bem cheire a calvinismo, não envolve de maneira alguma o dogma de Calvino em relação a lodo o gênero humano. A sua intenção torna-a, evidentemente, aplicável apenas a indivíduos. Não são muitos os exemplos dessa depravação que nos fornecem os patíbulos e as prisões. Se quisermos encontrar casos notáveis — visto que neles não se observa a aliança vulgar da bruteza, pois são invariavelmente dominados pelo intelectualismo — precisamos procurá-los alhures. O ambiente mais favorável é a civilização, especialmente a do gênero austero envolta no manto da respeitabilidade. Ela possui, aliás, certas virtudes negativas, que lhe servem de mudos auxiliares. Nunca permite que o vinho lhe desmanche a reserva. E não será exagero afirmar que não tem vícios nem pecadilhos, pois um orgulho fenomenal os exclui de todas as suas manifestações. Nunca é mercenária nem avara. Em suma, a depravação a que aludimos em nada comparte do sórdido nem do sensual. É séria, mas destituída de acrimônia. E se bem não bajule o gênero humano, nunca o censura

Mas o que nos exemplos mais frisantes assinala uma natureza tão em excepcional é o seguinte: embora o temperamento igual e o pinte discreto do homem pareçam indicar um espírito particularmente sujeito às leis da razão, nos recessos de sua alma desembesta em absoluta revelia a essas leis, e aparentemente pouco se serve da razão a não ser empregá-la como instrumento ambidestro na prática do irracional. Ou seja: para consumar um intento que pela sua desenfreada perversidade pareceria ter algo de loucura, empregará um discernimento frio, sagaz, perfeito.

Esses homens são verdadeiros loucos, e da mais perigosa espécie, pois a sua loucura não é contínua, senão ocasional; despertada por algum objeto especial, é reservada e fria, de sorte que, ainda quando mais ativa, o espírito comum não consegue extremá-la da sanidade e isso pela razão acima referida; seja qual for o seu intuito (que nunca é revelado) o método e o procedimento exterior são sempre perfeitamente racionais.

Ora, Claggart, mais ou menos, era um homem nessas condições, dominado pela obsessão de uma natureza má, não engendrada por uma educação viciosa, livros corruptores ou uma existência de libertino, mas nascida com ele, ingênita; em síntese "uma depravação conforme à natureza".

Será esse o fenômeno, negado ou não reconhecido, que em certos processos criminais confunde os juízes? É por essa causa que têm precisado os nossos júris, de vez em quando, suportar não só as prolongadas controvérsias de advogados muito bem pagos, mas também as pendências ainda mais embaraçosas dos peritos médicos igualmente remunerados? E por que nos limitamos a eles? Por que não convocamos também, sob pena de multa, os peritos clericais? Já que a vocação os obriga a um contacto especial com tantos seres humanos, e às vezes em seus momentos de menor reserva, em entrevistas muito mais confidenciais que as travadas entre médico e paciente, parecem-nos qualificados para conhecer alguma coisa das complexidades compreendidas na questão da responsabilidade moral, tais como por exemplo, se, em determinado caso, o crime proveio de manias do cérebro ou de raivas do coração. Quanto às divergências que pudessem ocorrer entre os peritos clericais no desenvolvimento de uma causa, estas dificilmente poderiam ser maiores que as diretas contradições surgidas entre os estipendiados peritos médicos.

Negras palavras são essas, dirão alguns. Mas por quê? Porque, até certo ponto, lembram a frase das Sagradas Escrituras "mistérios da iniqüidade".

A necessidade que tinha a história de esclarecer a natureza oculta do Mestre-de-armas exigiu este capítulo. Com mais uma ou duas observações ligadas ao incidente da sopa, que serão acrescentadas, a narrativa que se segue terá de justificar, como puder, a sua credibilidade.

 

XI

 

(A Ira Pálida, a Inveja, o Desespero)

 

Que Claggart era bem apessoado e o seu rosto, fora o queixo, bem modelado, já ficou dito. Ele não parecia insensível a esses atributos favoráveis, pois não só denotava asseio como também apuro no vestir. Mas a forma de Billy Budd era heróica; e se não tinha o olhar intelectual de Claggart, o seu rosto, nem por isso deixava de ser alumiado por dentro, como o dele, embora a luz lhe proviesse de outra fonte. A fogueira do coração tornava luminoso o róseo crestado das faces.

Em vista do acentuado contraste entre ambos, é muito provável que, ao aplicar ao marinheiro na última cena referida o provérbio Bonito é quem bonito faz, o Mestre-de-armas tivesse deixado escapar uma vaga e irônica insinuação, não percebida pelos que a ouviram, sobre o primeiro motivo que o impelira contra Billy, a saber, a sua expressiva beleza pessoal.

Ora, a inveja e a antipatia, paixões irreconciliáveis à luz da razão, podem nascer unidas, como Chang e Eng, no mesmo parto. Será, então, a Inveja tamanho monstro? Conquanto muitas criaturas trazidas à barra de um tribunal tenham, na esperança de ver mitigada a sua pena, confessado crimes horríveis, terá alguma, porventura, confessado a inveja? Há nela um elemento universalmente considerado como ainda mais vergonhoso do que um delito de traição. E não somente todos a negam, mas também os melhores dentre os homens propendem à incredulidade quando é seriamente imputada a uma pessoa inteligente. Visto, porém, que ela se aloja no coração, e não no cérebro, nenhum grau de intelecto proporciona garantias contra as suas manifestações. Mas a paixão de Claggart não revestia uma forma vulgar. Nem, quando dirigida contra Billy Budd, podia ela identificar-se com o ciúme apreensivo que desfigurava o rosto de Saul, cujos olhos se fitavam, perturbados, no formoso e jovem Davi. A inveja de Claggart era mais profunda. Se olhava com desdém para os traços bonitos, a saúde alegre e a alegria franca e moça de Billy Budd, era porque tudo isso fazia parte de uma natureza que, como sentia magneticamente, o próprio Claggart, nunca em sua simplicidade, desejara o mal nem experimentara a mordida reacionária da serpente. Para ele, o espírito que existia dentro de Billy, e contemplava o mundo através dos olhos azuis como através de duas janelas, era essa inefabilidade que lhe formava a covinha no rosto rosado, emprestava-lhe flexibilidade às articulações e, dançando-lhe entre os dourados anéis do cabelo, fazia dele, superiormente, o Guapo Marinheiro. Com exceção de uma pessoa, era talvez o Mestre-de-armas o único homem no navio intelectualmente capaz de apreciar o fenômeno moral corporificado em Billy Budd, e esse discernimento só lhe servia de exacerbar a paixão, que, assumindo várias formas, assumia por vezes a de um cínico desdém — o desdém da inocência. Ser apenas inocente! Contudo, de um modo estético, percebia-lhe o encanto, a corajosa desenvoltura, e de bom grado a teria possuído, mas desesperava dela.

Impotente para anular o mal fundamental em si mesmo, embora pudesse prontamente disfarçá-lo, apreendendo o bem, mas incapaz de ser bom, com uma natureza como a sua, sobrecarregada de energia como o são invariavelmente essas naturezas, Claggart não tinha outro remédio senão encolher-se e, como o escorpião, cujo único responsável é o criador, desempenhar até ao fim o papel que lhe coubera.

A paixão, e a paixão em suas manifestações mais intensas, não é coisa que exija um palco palaciano para nele representar a sua parte. Entre a ralé, entre os mendigos e os raspadores do lixo, também se observa a paixão profunda. E as circunstâncias que a provocam, embora vulgares ou mesquinhas, não são medida de sua força. No caso presente o palco é uma coberta lavada e um de seus estímulos externos é a sopa derramada por um tripulante de um navio de guerra.

Quando o Mestre-de-armas viu de onde vinha o fluido gorduroso que deslizava diante de si, deve tê-lo julgado — talvez deliberadamente — não o mero acaso que na verdade era, mas a disfarçada expressão de um sentimento espontâneo da parte de Billy, que mais ou menos correspondesse à sua antipatia. E deve tê-la julgado uma tola manifestação, inteiramente inócua, como o coice inútil de uma vitela, mas que, fosse a vitela um garanhão ferrado, já seria menos inofensivo. Mesmo assim verteu Claggart na vesícula da inveja o vitríolo do desdém. Mas o incidente confirmou-lhe certas informações que lhe transmitira o Guincho, um de seus cabos mais astutos; um homenzinho grisalho, assim apelidado pelos marinheiros em razão da voz estridente e dá cara de furão, que vivia escudrinhando os cantos escuros das cobertas inferiores em busca de intrusos e que satiricamente lhes sugeria um rato numa adega.

Ora, empregado pelo chefe como instrumento implícito no armar pequeninas ciladas para aborrecer o gajeiro do traquete — pois procediam do Mestre-de-armas as mesquinhas perseguições a que já aludimos — e tendo muito naturalmente concluído que o superior não gostava do marinheiro, o cabo resolveu, como fiel lacaio, acirrar a animosidade deturpando certas brincadeiras inocentes do jovial gajeiro e inventando diversos epítetos injuriosos que afirmava ter ouvido de Billy em relação ao Mestre-de-armas. Este nunca suspeitou da veracidade das informações, sobretudo no tocante aos epítetos, pois sabia multo bem quão impopular pode tornar-se um Mestre-de-armas — pelo menos um Mestre-de-armas daquele tempo, zeloso em suas funções — e não ignorava que os marinheiros disparavam contra ele, em secreto, as suas chacotas e motejos, traduzindo no apelido por que era conhecido entre eles Jimmy Legs), em forma cômica, o desrespeito e o desamor que lhe votavam.

Mas em vista da fome de provocação que tem o ódio, não havia necessidade de fornecedores para alimentar a paixão de Claggart. Uma prudência incomum associa-se, de hábito, à mais sutil depravação, que tem de esconder tudo. E no caso de uma injúria apenas suspeitada, a sua própria necessidade de sigilo isola-a deliberadamente de qualquer verificação possível; não sem relutância, a reação se estriba na suspeita como na certeza. E o revide pode ser monstruosamente desproporcionado à suposta ofensa; pois quando deixou de ser a vingança exatora um imoderado agiota? Mas que dizer da consciência de Claggart? Pois se bem as consciências sejam diferentes como as testas, toda inteligência, afora os demônios das Escrituras que "crêem e tremem", tem a sua. Como, porém, a consciência de Claggart fosse apenas o advogado de sua vontade, transmudava ninharias em bichos de sete cabeças, argumentando provavelmente que o gesto de Billy derramando a sopa, associado aos pretensos epítetos, justificava um processo; mais, justificava a animosidade à luz da justiça retributiva. O fariseu é o Guy Fawkes que ronda nas câmaras secretas de certas naturezas como a de Claggart. E de fato não concebem a maldade não correspondida. E possível que as clandestinas perseguições movidas a Billy pelo Mestre-de-armas tivessem sido iniciadas para experimentar a têmpera do rapaz; mas não tinham produzido nele reação alguma que a inimizade pudesse utilizar oficialmente, nem sequer converter em plausível justificação de si mesma; de sorte que a história da sopa, conquanto insignificante, foi bem recebida pela estranha consciência que, segundo dissemos, era o mentor particular de Claggart; e, muito provavelmente o induziu a novos experimentos.

 

 

XII

 

Poucos dias após o último incidente, sucedeu a Billy uma coisa que o deixou ainda mais perplexo do que tudo o que já lhe ocorrera até então.

Era uma noite quente para aquela latitude; e o gajeiro do traquete, cujo quarto terminara, cochilava no convés, para onde subira depois de haver deixado a rede quente — uma entre centenas, e tão próximas que mal podiam balançar. Deixara-se ficar como que à sombra de um anteparo estendido a sotavento dos botalós, um montão de vergas sobressalentes, entre as quais jazia o maior escaler do navio, a lancha. Ao lado de três outros dorminhocos que também tinham subido, instalara-se numa das pontas dos botalós, a mais próxima do mastro do traquete; havendo terminado o seu quarto no cesto da gávea, como tripulante do castelo de proa que era, tinha o direito, consoante o costume, de pôr-se mais ou menos à vontade naquelas vizinhanças.

Pouco depois, sentiu-se despertado da semi-inconsciência por alguém que, devendo ter previamente sondado o sono dos outros, lhe tocou no ombro e, quando o gajeiro levantou a cabeça, murmurou-lhe ao ouvido em.rápido sussurro:

— Chegue até os porta-ovéns a sotavento, Billy; há qualquer coisa no ar... não fale. Depressa. Eu me encontrarei com você.

E desapareceu.

Ora, Billy — como várias outras naturezas essencialmente afáveis — tinha algumas fraquezas inerentes à afabilidade essencial; e entre elas incluía-se uma relutância, uma quase incapacidade de responder com um não categórico a uma proposta repentina e não manifestamente absurda, inamistosa ou iníqua. E tendo o sangue quente, também não possuía a fleuma necessária para rejeitar uma proposta pela inação. Como o sentido do medo, a faculdade de farejar o desonesto e o desnatural raro funcionava nele com muita presteza. De mais a mais naquela ocasião, ainda não se livrara completamente do torpor que acompanha um súbito acordar.

Fosse como fosse, levantou-se com gestos mecânicos e, perguntando, amodorrado, a si mesmo o que poderia haver no ar, endereçou-se ao sítio designado, uma das seis plataformas estreitas que ficam para fora das altas amuradas, protegidas pelas grandes peças do poleame surdo e pelos múltiplos ovéns das enxárcias, e, que num grande vaso de guerra daquele tempo, ostentavam dimensões conformes ao tamanho do amplo casco; em suma, um balcão alcatroado, suspenso sobre o mar, e tão apartado que um marinheiro do Indomitable, velho marujo não-conformista de grave aspecto, fazia dele até durante o dia o seu oratório particular.

Nesse recanto solitário não tardou o estranho em juntar-se a Billy Budd. Ainda não surgira a lua; uma cerração obscurecia a luz das estrelas. O gajeiro não pôde ver distintamente o rosto do outro. Todavia, por qualquer coisa que lhe surpreendeu nos contornos e no porte, imaginou que fosse, e com razão, um marinheiro da ré.

— Escute, Billy! — disse o homem; e no mesmo rápido e cauto sussurro de antes: — você foi recrutado, não foi? Pois eu também. — Fez uma pausa, como se quisesse observar o efeito. Entretanto, como Billy não soubesse o que deduzir de tudo aquilo, não disse nada. E o outro: — Mas não somos os únicos recrutados, Billy. Há uma porção como nós. Você não poderia... ajudar... em caso de necessidade?

— Que é que você quer dizer? — perguntou Billy, já completamente desperto.

— Escute, escute! — continuou o sussurro apressado, cada vez mais rouco, — veja aqui; — e o homem mostrou dois objetos pequenos, que brilhavam levemente à noturna claridade. — Veja, serão seus, Billy, se você...

Nessa altura, Billy interrompeu-o e, na ânsia exasperada de expressar-se, viu-se como que tolhido pelo seu defeito vocal:

— M... M... Maldição, não sei o que você quer d... dizer, ou fazer, mas é melhor v... v... voltar para o seu lugar!

Por um instante, como embatucado, o rapaz não se mexeu; e Billy, erguendo-se em pé, continuou:

— Se você n... não for embora, eu o a... a... atiro dentro d... da água!

Já não havia equívoco possível, e o misterioso emissário abalou, desaparecendo na direção do mastro grande, à sombra dos botalós.

— Alô, que aconteceu?— resmungou um homem do castelo de proa, despertado do cochilo pela voz de Billy, que se alteara. E quando viu surgir o gajeiro e o reconheceu: — Ah, Beleza, é você? Então, deve ter acontecido alguma coisa, pois você ga... ga... gaguejou.

— Oh! — acudiu Billy, dominando agora a inibição; — encontrei um homem ria ré por aqui e mandei que voltasse para o seu lugar.

— E foi só isso o que você fez, gajeiro? — perguntou, áspero, outro companheiro, um velho irascível de rosto e cabelo cor de tijolo, conhecido entre os colegas pela alcunha de Pimenta Vermelha.

— Eu gostaria de casar esses salafrários com a filha do canhoneiro! — ajuntou, significando com isso que gostaria de vê-los disciplinadamente castigados sobre um canhão.

Entretanto, a versão de Billy sobre o caso esclareceu satisfatoriamente os inquisidores a respeito da breve comoção, pois de todas as seções da tripulação de um navio os homens do castelo de proa, quase todos veteranos, intolerantes nos seus preconceitos marítimos, são os que menos toleram intrusões territoriais, sobretudo da parte dos homens da ré, que têm em pouco, por serem quase todos novatos que apenas sobem aos mastros para ferrar ou rizar a vela do mastro grande, e são incapazes de cochar um cabo ou manejar uma bigota, por exemplo.

 

 

 

XIII

 

O incidente deixou Billy Budd seriamente perplexo. Era uma experiência inteiramente nova — a primeira vez na vida em que se vira procurado às escondidas como um intrigante. Antes desse encontro nunca dera tento da existência do marinheiro da ré, pois os rostos de ambos ficavam a respeitável distância, um na frente e em cima, outro embaixo e atrás.

Que significaria aquilo? E seriam realmente guinéus os dois objetos brilhantes que o conspirador lhe mostrara? Onde os teria arranjado o rapaz, se até botões, botões avulsos, eram raros em pleno mar? Quanto mais ruminava o caso tanto mais se sentia confuso, inquieto, desnorteado. Em sua repugnada reação a uma proposta que, posto não houvesse compreendido bem, sabia instintivamente que era má — Billy Budd se houvera como um potro que, saindo de um pasto, respirasse, de golpe, a fétida fumaça de uma fábrica de produtos químicos e tentasse expeli-la aos bafos, das narinas e dos pulmões. Esse estado de espírito tirava-lhe todo e qualquer desejo de novo contacto com o sujeito, ainda que apenas para elucidar o propósito com que ele o procurara. E, no entanto, não lhe faltava certa curiosidade por saber como seria à luz do dia o noturno visitante.

Espreitou-o na tarde seguinte, em seu primeiro meio quarto no convés, quando o lobrigou na parte anterior da primeira coberta, destinada aos fumantes. Reconheceu-o mais pelo porte e pela estatura que pelo rosto redondo e sardento, pelos olhos azuis, mortiços e pálidos, velados por cílios quase brancos. Contudo, não teve absoluta certeza de que fosse aquele mesmo — um rapaz da sua idade, que conversava e ria despreocupado, reclinado num canhão — aparentemente cordial e, segundo parecia, até sem juízo, com mais carnes do que convinha a um marinheiro, ainda que da ré. Em suma, o último homem do mundo que se poderia imaginar carregado de pensamentos, mormente dos perigosos pensamentos em que só pode absorver-se um conspirador empenhado num projeto sério, ou o instrumento de um conspirador assim.

Conquanto Billy não reparasse nisso, o sujeito, com um cauteloso olhar de través, vira-o primeiro e, surpreendendo-lhe o olhar, fez-lhe um aceno familiar, como amistosa saudação que se dirige a um velho conhecido, sem interromper a conversa entabulada no grupo de fumantes. Um ou dois dias depois, acontecendo-lhe passear, de noite, numa das cobertas, deu com Billy, e disse-lhe uma frase amável qualquer; mas o gajeiro, tomado de surpresa pelo inesperado e equívoco da situação, atrapalhadíssimo, não soube como responder e fingiu não ter ouvido.

Billy sentiu-se então ainda mais confuso do que antes. As vás especulações a que era levada lhe pareciam tão perturbadoramente estranhas ao seu espírito, que fez o possível para evitá-las. Nem sequer lhe passou pela cabeça que naquele caso, pelo seu caráter extremamente duvidoso, lhe cumpria, como membro leal da marinha de guerra, comunicar o sucedido aos poderes competentes. E, provavelmente, ainda que essa medida lhe ocorresse, não a teria posto em prática, pois à sua generosidade de novato afigurar-se-ia uma delação. Guardou o segredo para si. Em certa ocasião, porém, não resistiu à tentação de desabafar junto ao velho danês, incitado a isso talvez pela influência de uma noite balsâmica, em que o navio parara no meio de uma calmaria, estando ambos em silêncio durante a maior parte do tempo, sentados no convés, com a cabeça apoiada na amurada. Mas foi apenas um relato anônimo e parcial que Billy apresentou, pois os infundados escrúpulos a que acima aludimos o tolhiam de expor circunstanciadamente o caso a quem quer que fosse. Ouvindo-lhe a versão, o sábio danês pareceu adivinhar o que não lhe tora contado; e depois de breve meditarão, em que as suas rugas como que se reuniram num ponto só dissipando momentaneamente a enigmática expressão que, ás vezes, afivelava ao rosto — respondeu:

— Eu não disse, Baby Budd?

— Disse o quê? — perguntou Billy.

— Ué, que Jimmy Legs tem raiva de você.

— E que relação pode haver, — acudiu Billy, pasmado, — entre Jimmy Legs e o bobo do marinheiro da ré?

— Oh! Foi um marinheiro da ré? A mão do gato, apenas a mão do gato!

E com essa exclamação, que não se poderia dizer se se referia a uma leve brisa que principiara a soprar sobre o mar tranqüilo ou se tinha uma relação mais sutil com o marinheiro da ré, o velho Merlim arrancou, com os dentes pretos, um pedaço do rolo de fumo e não se dignou de responderá pergunta impetuosa e reiterada de Billy, pois era seu hábito cair num silêncio irredutível quando ceticamente interrogado sobre os seus oráculos sentenciosos, nem sempre muito claros, mas que tinham a obscuridade inerente à maioria das manifestações délficas.

 

XIV

 

Uma longa experiência levara, muito provavelmente, aquele velho à marga prudência que nunca se mete em nada e nunca oferece conselhos.

Sim, a despeito da pítica insistência do danês em atribuir ao Mestre-de-armas um papel ativo em todas as estranhas experiências de Billy a bordo do Indomitable, o jovem marinheiro sentia-se inclinado a imputá-las a qualquer pessoa, menos ao homem, que, para empregarmos a sua própria expressão, "tinha sempre uma palavra amável para ele". Isto é de admirar. Mas não muito. Em certas questões, alguns marinheiros conservam a ingenuidade até na idade madura. Mas um jovem marujo com as disposições do nosso atlético gajeiro não passa, em muita coisa, de uma criança grande. Todavia, a completa inocência da criança não é senão a sua completa ignorância, e a inocência decresce mais ou menos à proporção que cresce a inteligência. Mas em Billy Budd a inteligência se desenvolvera som que a ingenuidade, em grande parte, se modificasse. A experiência é, de fato, um mestre; mas os verdes anos de Billy não lhe podiam ter dado muita experiência. Além disso, não possuía ele o intuitivo conhecimento do mau que? em naturezas menos boas ou incompletamente más precede a experiência e, portanto, é compatível, como sucede muitas vezes com a própria juventude.

E que poderia Billy conhecer do homem senão o homem como simples marinheiro? E o marinheiro à antiga, o verdadeiro lobo do mar, o marinheiro que navega desde criança, embora não divirja, na espécie, de um homem da terra, dele difere?, em certos pontos, de maneira extraordinária. O marujo é a franqueza, o homem eia terra é a astúcia. A vida, para o marinheiro, não é um jogo que exija sagacidade; não é um complicado jogo de xadrez em que poucos movimentos são francos e cujos fins se obtêm por vias indiretas, tortuoso, enfadonho e estéril, que mal vale a pobre vela que se queima enquanto dura.

Sim, tomo classe, têm os marinheiros a índole de uma raça juvenil. Os seus próprios erros são erros de moços. F isso ainda é mais verdadeiro em relação aos marinheiros do tempo de Billy, como também é exato que certas Coisas, aplicáveis a todos os marinheiros, se aplicam sobretudo aos mais jovens. Outra coisa: o marinheiro obedece sem discussão às ordens que recebe; a vida no mar lhe é externamente regulamentada; não conhece o comércio promíscuo com o gênero humano em que a liberdade de ação em termos iguais — iguais pelo menos superficialmente — nos ensina que se, em determinadas ocasiões, não nos munirmos de uma desconfiança diretamente proporcional à franqueza das aparências, podemos ser vítimas de uma rasteira. É tão habitual a desconfiança controlada, implícita, não tanto entre homens de negócios, mas entre os que conhecem a própria espécie em suas relações menos superficiais que as do simples comércio, que chegam afinal a empregá-la quase inconscientemente; e alguns muito provavelmente se mostrariam de fato surpreendidos se vissem incluída essa desconfiança entre os seus característicos gerais.

 

 

XV

 

Mas depois do incidentezinho tia sopa, Billy Budd nunca mais sentiu as estranhas preocupações ocasionais que lhe tinham causado a rede ou o saco de roupas. Ao passo que o sorriso que de vez em quando lhe era dirigido e as amáveis palavras que ouvia de passagem se tornaram, se não mais freqüentes, pelo menos mais pronunciados do que antes.

Mas apesar disso havia agora outras demonstrações. Quando o olhar inobservado de Claggart pousava ao acaso na figura de Billy passeando ao longo da coberta superior durante os ócios do segundo meio quarto, num duelo jovialíssimo de chistes com outros companheiros, esse olhar acompanhava o Hiperion Marinho com uma expressão fixa, meditativa e melancólica — ao mesmo tempo que os olhos se lhe toldavam de lágrimas incipientes e febris. Claggart parecia, nesses momentos, a tristeza personificada. A trechos, era a expressão melancólica acentuada por uma suave ansiedade, como se ele pudesse até haver-se afeiçoado a Billy, se a tanto não se opusessem as forças misteriosas do destino. Mas isso era uma evanescência, de que logo se penitenciava o Mestre-de-armas, para assim dizer, substituindo-a por um olhar desapiedado, que lhe contraía e enrugava o rosto, dando lhe o momentâneo aspecto de engelhada casca de noz. Mas, às vezes, avistando de longe o gajeiro que vinha na sua direção, arredava-se um pouquinho, quando o outro se aproximava, para deixá-lo passar, acompanhando-o com a alvinitente sátira dental de um Guise. Todavia, quando o encontro era repentino e imprevisto, os seus olhos despendiam uma luz vermelha, como o clarão da bigorna em forja escura. Estranha luz, rápida e violenta, partida de órbitas que, em repouso, tinham a cor mais próxima do roxo profundo, o mais suave dos tons.

Se um alguns desses caprichos do abismo fossem necessariamente observados pelo seu objeto, seria incapaz de interpretá-los uma natureza daquelas. E a estrutura muscular de Billy não podia comparar-se com a espécie de organização espiritual sensível que em alguns casos transmite instintivamente à inocência ignorante um aviso da proximidade do mal. Achava ele que o Mestre-de-armas se portava, ás vezes, de maneira meio esquisita. Mas só. E o ar sincero ocasional e a palavrinha amável produziam o efeito que se esperava produzissem — pois o jovem marinheiro nunca ouvira falar no "homem demasiado afável".

Tivesse o gajeiro do traquete a consciência de ter feito ou dito qualquer coisa para provocar a má vontade do oficial, e as coisas teriam sido diferentes; a vista se lhe teria clarificado, senão aguçado.

O mesmo lhe sucedia em outro caso ainda. Dois oficiais subalternos, o Armeiro e o Chefe do Porão, com os quais nunca trocara uma palavra, visto que as suas respectivas atribuições não os punham em contacto, principiaram a fitar em Billy — quando, acaso, o encontravam — o olhar especial que dirige um homem quando tem o espírito desfavoravelmente prevenido contra aquele a quem é dirigido. Isso jamais ocorreu a Billy como coisa digna de reparo, ou suspeita — embora não ignorasse que o Armeiro e o Chefe do Porão, os despenseiros do navio, o boticário e outros da mesma classe eram, segundo o costume naval, companheiros de mesa do Mestre-de-armas e tinham ouvidos adequados à sua língua confidencial.

Mas a popularidade geral de que gozava o nosso Guapo Marinheiro pelo zelo viril em todas as conjunturas e pela irresistível afabilidade, que não indicavam nenhuma superioridade mental capaz de excitar um sentimento de inveja; essa boa vontade por parte da maioria dos colegas de bordo levava-o a preocupar-se ainda menos com o mudo conserto de expressões que lhe diziam respeito que com as manifestações que acabamos de mencionar.

Em quanto ao marinheiro da ré, se bem, pelos motivos já expostos, Billy não o visse muito, quando os dois acertavam de encontrar-se, lá vinha invariavelmente o pronto e jovial reconhecimento do rapaz, às vezes acompanhado de uma ou duas palavras amáveis. Fosse qual fosse o equívoco plano original que ele pudesse ter tido em mente, ou de que fosse apenas o intermediário, o certo é que as suas maneiras nessas ocasiões davam a entender que renunciara completamente a ele.

Dir-se-ia que a precocidade de sua perversão (e todo vilão vulgar é precoce) dessa feita o iludira, e que o homem que ele tentara prender no laço como um toleirão lograra-o por via da própria simplicidade.

Mas os espíritos sagazes poderão obtemperar que Billy dificilmente deixaria de ir à procura do marinheiro da ré a fim de perguntar-lhe qual fora o propósito da conferência tão bruscamente encerrada ao pé dos porta-ovéns. Os espíritos sagazes poderão achar também que Billy, muito naturalmente, sondaria alguns dos outros recrutados do navio para verificar se tinham algum fundamento as obscuras sugestões do emissário no sentido de semear discórdias a bordo. Os espíritos sagazes podem pensar assim. Mas algo mais, ou melhor, algo diverso da simples sagacidade é talvez necessário à devida compreensão de um caráter como o de Billy Budd.

Quanto a Claggart, a sua monomania — se é que, de fato, disso se tratava — como que involuntariamente revelada pelas estrelas nas manifestações já referidas continuava a ser, de um modo geral, disfarçada por um proceder reservado e racional; e, como Jogo subterrâneo, ia-se alastrando cada vez mais pelos íntimos regressos de sua alma. Alguma coisa decisiva há de resultar daí.

 

XVI

 

Após a misteriosa entrevista ao pé dos porta-ovéns — que Billy tão rispidamente encerrara — nada especialmente pertinente à história ocorreu até os sucessos que vamos narrar

Já ficou dito que, em razão da falta de fragatas (mais rápidas, sem dúvida, que os navios de guerra maiores) na esquadra inglesa que naquele período patrulhava o Estreito, o Indomitable era de vez em quando empregado não só como substituto disponível dos barcos de reconhecimento, mas, de onde em onde, em serviços mais importantes. Isto se devia não somente às suas qualidades náuticas, pouco comuns num navio de sua categoria, mas também, provavelmente, ao caráter do comandante, que, no consenso geral o adequava a qualquer serviço onde fosse preciso, ante imprevistas dificuldades, tomar iniciativas rápidas em casos que exigissem conhecimentos e habilidade além das qualidades imprescindíveis a um bom marinheiro. Foi numa expedição desse gênero, algo afastado, quando o Indomitable já se encontrava à maior distância prevista da esquadra, que ao termo de um quarto cia tarde, avistou inesperadamente uma embarcação inimiga. Era uma fragata. Esta última — reconhecendo a sua grande inferioridade cm homens e peças de artilharia — invocou os ligeiros calcanhares e caçou todas as velas para fugir. Após uma perseguição encetada contra quase todas as esperanças — e que durou até a metade do primeiro meio quarto, conseguiu brilhantemente escapar.

Não muito depois de haver sido abandonada a empresa, e antes que a excitação provocada pelo incidente se houvesse dissipado, o Mestre-de-armas, subindo de sua esfera cavernosa, surgiu (com o boné na mão) ao pé do mastro grande: esperando, respeitoso, que a sua presença fosse percebida pelo Capitão Vere — que então caminhava solitário a barlavento no castelo de popa — um tanto aborrecido, sem dúvida, pelo malogro do perseguimento. Claggart colocara-se no sítio destinado aos homens de patentes inferiores quando desejavam uma entrevista mais particular com o oficial do quarto ou com o próprio capitão. Não era, porém, muito frequente que um marinheiro ou um oficial subalterno daqueles tempos solicitasse audiência a este último e só em casos excepcionais, segundo o costume, esta lhe seria concedida.

Naquele momento, quando o comandante, absorto em suas reflexões, ia voltar-se, para continuar o passeio, reparou na presença de Claggart e viu-lhe o boné na mão, em atitude diferente. Diga-se de passagem que o conhecimento pessoal que possuía o Capitão Vere do oficial subalterno datava da última vez em que o navio deixara a Inglaterra, quando Claggart, transferido de um navio que se achava em reparos no estaleiro, substituíra, a bordo do Indomitable, o antigo Mestre-de-armas, que ficara em terra por incapacidade física.

Assim que o comandante percebeu quem era a pessoa que com tamanho acatamento esperava ser vista por ele, singular expressão estampou-se-lhe no rosto, semelhante à que irresistivelmente acode à fisionomia de alguém ao encontrar sem querer um conhecido de pouco tempo, mas cujo aspecto provoca, pela primeira vez, uma vaga repulsa. Sobrestando e reassumindo os costumeiros modos oficiais, embora não pudesse disfarçar uma espécie de impaciência que se traía na entonação das primeiras palavras, perguntou:

— E então? Que foi, Mestre-de-armas?

Com o ar de um subalterno modificado pela necessidade de ser o mensageiro de más novas, porém conscienciosamente decidido a usar de absoluta franqueza, sem exagerações, a esse convite, ou melhor, a essa ordem para manifestar-se, Claggart principiou a falar. O que ele disse, numa linguagem de homem culto, foi mais ou menos o seguinte, se bem não empregasse as mesmas palavras: que durante a perseguição e os preparativos para o possível encontro vira o bastante para convencer-se de que pelo menos um marinheiro a bordo era elemento perigoso num navio tripulado não só por homens que haviam tomado parte criminosa nas recentes e sérias desordens, mas também por outros que tinham ingressado no serviço de Sua Majestade sem ser através do alistamento voluntário.

Nesse ponto, com ceda impaciência, interrompeu-o o Capitão Vere:

— Seja explícito, homem: diga homens recrutados.

Claggart fez um gesto de subserviência e continuou. Recentemente ele (Claggart) principiara a suspeitar que uma espécie de movimento instigado pelo tal marinheiro se processava às ocultas, mas não se julgara autorizado a comunicar as suas desconfianças enquanto não as visse positivadas. Mas pelo que pudera observar naquela tarde em relação ao homem a que se referia, a suspeita de que algo clandestino se processava chegara a um ponto menos distante da certeza. Sentia profundamente — acrescentou — a tremenda responsabilidade que assumia ao fazer uma denúncia que traria seríssimas consequências para o principal interessado e aumentaria a natural ansiedade de todo comandante naval depois dos recentes e extraordinários sucessos que — ajuntou compungido — não precisavam ser nomeados.

Ora, às primeiras referências sobre o assunto, tomado de surpresa, o Capitão Vere não pôde ocultar inteiramente a inquietação; mas enquanto Claggart falava, a expressão lhe assumiu um tom de impaciência ao notar qualquer coisa nos modos da testemunha que prestava depoimento. Sem embargo, absteve-se de interrompê-lo. E Claggart, continuando, rematou com isso:

Deus nos livre. Excelência, de que no Indomitable se repita a experiência do...

— Não se incomode com isso! — atalhou, peremptório, o superior, com o rosto instantaneamente contraído pela cólera, adivinhando que o outro ia citar o navio em que o Motim de Nore assumira um caráter singularmente trágico, pondo em perigo, durante algum tempo, a vida do comandante. Naquelas circunstâncias, indignava-o a alusão intencional. Quando os próprios oficiais superiores se mostravam, em todas as ocasiões, sumamente cautelosos no referir-se aos recentes acontecimentos — um oficial subalterno aludir desnecessariamente a eles em presença do capitão era, a seu ver, de uma impudentíssima presunção. De mais, para o seu alertado senso de respeito próprio, o caso, naquelas circunstâncias, assumia o aspecto de uma tentativa para assustá-lo. Acrescente-se a tudo isso a sua surpresa ao verificar que um homem que sempre demonstrara um tacto extraordinário no exercício de suas funções, carecia tanto dele nessa ocasião.

Mas esses pensamentos e outros igualmente dúbios que lhe cruzavam o cérebro foram de golpe substituídos por uma conjectura intuitiva, que, embora ainda obscura, serviu praticamente de influir sobre a acolhida que dispensou ás más notícias. O certo é que, familiarizado com todos os segredos da vida complicada das cobertas (a qual, como todas as outras formas de vida, tem us seus lados misteriosos e dúbios, embora popularmente não confessados), não permitiu o Capitão Vere que o teor geral da denúncia do subordinado o perturbasse indevidamente. Além disso, se se devessem tomar prontas medidas, em face dos recentes acontecimentos, ao primeiro sinal palpável de nova insubordinação — não seria judicioso manter viva a idéia de uma latente aversão dando crédito, como indevida presteza, a um informante, ainda que fosse o seu próprio subordinado encarregado de policiar as atividades da tripulação. Talvez fosse menos acentuado nele esse sentimento se, em outra ocasião, o zelo patriótico oficialmente blasonado por Claggart não o tivesse irritado um pouco, por lhe parecer ultra-sensível e forçado. De mais a mais, qualquer coisa nos modos controlados e algo ostentosos do Mestre-de-armas ao lazer as suas especificações recordaram-lhe estranhamente um músico militar, falsa testemunha, ante um conselho de guerra, de que ele, Capitão Vere, tenente ainda, fizera parte.

A peremptória repreensão dirigida a Claggart em virtude da sua interrompida alusão foi rapidamente seguida de uma pergunta:

— Diz o senhor que há pelo menos um homem perigoso a bordo. Como se chama?

— Willian Budd, gajeiro do traquete, excelência...

— Willian Budd, — repetiu o Capitão Vere com não dissimulado espanto, — o mesmo homem que o nosso Tenente Ratcliffe tirou do navio mercante não faz muito tempo... o rapaz que parece gozar de tanta popularidade no meio da tripulação... Billy, o Guapo Marinheiro, como lhe chamam?

— Esse mesmo, Excelência; mas, a despeito da juventude e da boa aparência, muito sabido. Não é à toa que procura conquistar a boa vontade dos companheiros, visto que, sendo preciso, todos deporão em seu favor. Contou, acaso, o Tenente Ratcliffe a Vossa Excelência o gesto matreiro de zombaria de Budd na proa da lancha, ainda ao pé do navio mercante, quando era trazido para cá? Sob o disfarce desse ar bonachão ele é no íntimo um revoltado contra o recrutamento. Vossa Excelência só lhe notou a cor bonita do rosto. Mas pode existir um laço debaixo das belas e róseas boninas.

Ora, o Guapo Marinheiro, como figura marcante no meio da tripulação, despertara desde o princípio a curiosidade do Capitão. Embora, de um modo geral, não fosse muito expansivo com os oficiais, este dera ao Tenente Ratcliffe os parabéns pelo feliz achado de tão belo espécime do genus homo, que, nu, poderia ter posado para uma estátua do, jovem Adão antes da queda.

Quanto ao adeus de Billy ao navio Rights-of-Man. que o tenente efetivamente lhe contara — porém com deferência — mais como uma boa piada que outra coisa qualquer — embora erroneamente a interpretasse como um rasgo satírico, servira de acentuar a boa impressão que causara ao Capitão Vere o novo recrutado, fazendo-o admirar um espírito que aceitava tão jovial e sensatamente um recrutamento arbitrário. Além do que, o procedimento do gajeiro do traquete, observado pelo Capitão, confirmara-lhe o primeiro augúrio feliz, ao passo que as qualidades do novo recruta como marinheiro pareciam ser tais que ele já pensara em recomendar-lhe a promoção para um posto em que pudesse observá-lo com mais frequência, a saber, a capitania da mezena, substituindo no quarto de estibordo um homem mais velho e que, em parte por essa razão, julgava menos adequado ao posto. Diga-se entre parênteses que, não precisando os homens da mezena de manejar velas tão grandes e tão pesadas quanto os marinheiros inferiores do mastro grande e do mastro do traquete, um jovem, quando capaz, não só parece mais apto ao serviço dela, mas, em realidade. é geralmente escolhido para a sua capitania, sendo os marinheiros às suas ordens poucos e quase sempre adolescentes. Em suma, o Capitão Vere considerara desde o princípio Billy Budd o que na linguagem naval do tempo se chamava uma "Pechincha real", ou seja, um bom emprego de capital para a marinha de Sua Majestade Britânica com pouco ou nenhum ônus.

Após breve pausa — durante a qual as reminiscências acima citadas lhe cruzaram a mente — pesou a importância da última sugestão de Claggart, encerrada na expressão, "laço debaixo da bonina", e quanto mais a pesava tanto menos confiança sentia na boa-fé do informante. De improviso, voltou-se para ele:

— O senhor vem contar-me, Mestre-de-armas, uma história tão obscura? Quanto a Budd, Cite-me um ato ou uma palavra dele que confirmem a acusação geral que lhe faz. Espere, — ajuntou, aproximando-se do interlocutor, — cuidado com o que diz. Em casos como este há um lais de verga para as falsas testemunhas.

— Ah! Excelência! —suspirou Claggart, meneando brandamente a cabeça bem feita como em triste súplica ante tão imerecida severidade de tom. Logo, empertigando-se, em virtuosa auto afirmação referiu com pormenores certas palavras e atos, que, em conjunto, a dar-se-lhes crédito, levavam a presunções mortalmente incriminativas, acrescentando que logo teria provas substanciais do algumas daquelas afirmações.

Com olhos cinzentos, já impacientes e suspeitosos, tentando sondar as profundezas dos calmos olhos violáceos de Claggart, o Capitão Vere tornou a ouvi-lo até o fim; depois, por alguns instantes, quedou-se a matutar. Momentaneamente livre do exame do outro, Claggart, por seu turno, pôs se a estudar-lhe a fisionomia com um olhar difícil de descrever-se: um olhar curioso dos efeitos de sua tática, e que bem pudera ser o do intérprete dos filhos invejosos de Jacó quando apresentaram, enganosamente, ao conturbado patriarca a capa tinta de sangue do jovem José.

Posto que o extraordinário feitio moral do Capitão Vere fizesse dele, num contacto sério com uma pessoa, verdadeira pedra de toque da natureza essencial dessa pessoa, naquele momento, em relação a Claggart, os seus sentimentos compartiam menos da convicção intuitiva que de uma forte suspeita embaraçada por estranhas incertezas. A perplexidade que denotava não lhe provinha tanto do acusado — como Claggart, sem dúvida, supunha — quanto de considerações sobre a melhor maneira de se haver com o acusador. A princípio, naturalmente, pensou em exigir a prova das afirmativas de Claggart que este afiançara ter à mão. Mas disso resultaria a divulgação do caso, que, naquela altura, pensou ele, poderia influir de maneira indesejável na tripulação tio navio. Se Claggart fosse uma falsa testemunha — estaria encerrado o assunto. E por conseguinte, antes de experimentar a acusação quis experimentar primeiro, praticamente, o acusador; e entendeu que poderia fazê-lo com calma e sem alarde.

Essa decisão envolvia uma mudança de cena — uma transferência para um lugar menos exposto à observação do que o amplo castelo de proa. Pois se bem os poucos oficiais que lá se encontravam, observando devidamente a etiqueta naval, se tivessem afastado a sotavento quando o Capitão Vere iniciara o seu passeio a barlavento e, durante o colóquio com Claggart, não se aventurassem por certo a encurtar a distância; e posto que durante a entrevista mal se alteasse a voz do Capitão Vere e a de Claggart se mantivesse argentina e baixa; e o vento no massame e o marulho do mar contribuíssem para tornar-lhes inaudível o diálogo; não obstante, a duração da prática já despertara a atenção de alguns gajeiros nos cestos da gávea, e de outros marinheiros no convés do meio e ainda mais longe.

Decidindo-se, o Capitão Vere pôs imediatamente em prática as medidas necessárias. Voltando-se de súbito para Claggart, perguntou:

— Mestre-de-armas, é esta a porta do quarto de Budd no cesto da gávea?

— Não, Excelência.

E o Capitão, dirigindo-se ao mais próximo aspirante de marinha:

— Sr. Wilkes, diga a Albert que venha cá.

Albert era o cabineiro do Capitão, uma espécie de criado naval, de cuja discrição e fidelidade muito se fiava o amo. Apareceu o rapaz.

— Conheces Budd, o gajeiro do mastro do traquete?

— Conheço, sim, senhor.

— Vai buscá-lo. E a sua hora de folga. Dize-lhe, sem que te ouçam, que o chamam à ré. Vê que não fale com ninguém. Conversa com ele. E só quando estiverdes aqui, antes não, conta-lhe que deve apresentar-se em meu beliche. Compreendes. Vai. Mestre-de-armas, mostre-se agora nas cobertas inferiores, e quando entender que Albert teve tempo de trazer o rapaz, volte para entrar com ele.

 

XVII

 

Ora, quando o gajeiro do mastro do traquete se viu encerrado, por assim dizer, no beliche com o Capitão e Claggart, ficou bastante surpreendido. Mas era uma surpresa desacompanhada de apreensão ou desconfiança. Para uma natureza imatura, essencialmente sincera e humana, as indicações antecipadas de um perigo mais sutil que lhe possa advir de um semelhante chegam tardiamente, quando chegam. A única coisa que lhe tomou forma no espírito foi o seguinte: "Sim, o Capitão, como sempre imaginei, olha com bondade para mim. Quem sabe se não vai nomear-me o seu timoneiro? Eu bem que gostaria disso. E talvez, agora peça informações minhas ao Mestre-de-armas".

— Fecha a porta, sentinela, — ordenou o comandante. —

Fica de guarda e não deixes entrar ninguém. — Em seguida, voltando-se para Claggart: — Agora, Mestre-de-armas, repita diante deste homem o que me disse dele. — E preparou-se para observar, atento, os dois rostos que mutuamente se confrontavam.

Com o passo medido e o calmo semblante controlado do médico de hospício que se abeira de um paciente em que houvesse notado a aproximação de uma crise, Claggart se avizinhou de Billy e, fitando mesmericamente os olhos nos dele, recapitulou com brevidade a acusação.

A princípio, Billy não o compreendeu. Quando o fez, o colorido tostado de suas faces pareceu impregnado de uma lepra branca. Dir-se-ia um homem empalado e amordaçado, ao passo que os olhos do acusador, postos nos olhos azuis e dilatados do acusado, sofriam uma transformação fenomenal, convertendo-se-lhes o rico tom violáceo costumeiro num vermelho turvo e, luzes da inteligência humana, perdiam a sua humana expressão, projetando-se gelidamente para fora como os olhos estranhos de certas criaturas não catalogadas do abismo.

O primeiro olhar mesmérico foi de surpreendida fascinação; o último foi o bote faminto da arraia.

— Fala, homem! — disse o Capitão Vere ao marinheiro transfigurado, mais impressionado pelo seu aspecto que pelo do próprio Claggart. — Fala! defende-te!

Esse apelo provocou apenas em Billy um mudo gesticular e um gorgolejar de pasmo ante a acusação tão subitamente assacada à sua inexperiente imaturidade; isso, e talvez o horror ao acusador, serviram de patentear-lhe a inibição vocal, intensificando-a, a ponto de convertê-la em convulsa mudez; enquanto que a cabeça rígida e todo o corpo lançado para a frente numa ânsia agoniada e vã por obedecer à ordem de falar e defender-se, lhe davam ao rosto a expressão de uma vestal condenada no momento de ser queimada viva, na sua primeira luta contra a sufocação.

Embora até aquele instante ignorasse o Capitão Vere a propensão de Billy para o defeito vocal, adivinhou-o logo, visto que o aspecto do rapaz lhe recordou vividamente o de um brilhante condiscípulo seu, que vira tolhido pela mesma alarmante impotência no momento de erguer-se, impetuoso, para responder a uma pergunta de exame feita pelo professor. Aproximando-se do jovem marinheiro e colocando-lhe no ombro a mão carinhosa, disse:

— Não há pressa, meu rapaz. Não ,te afobes, não te afobes.

Ao contrário do efeito visado, essas palavras ditas em tom paternal, ferindo, sem dúvida, ao vivo o coração de Billy, provocaram-lhe esforços ainda mais violentos para falar — esforços que outra coisa não lograram, momentaneamente, senão confirmar a paralisia, emprestando-lhe ao rosto uma expressão de crucificado. No instante seguinte, como o fuzilar de um canhão disparado à noite — o seu braço direito partiu e Claggart caiu ao chão. Fosse intencionalmente, fosse em resultado da maior estatura do jovem atleta, o caso é que o murro acertara em cheio na testa, um traço tão bonito e tão intelectual do Mestre-de-armas; de sorte que o corpo desabou como prancha pesada que, estando em pé, fosse empurrada. Um ofego ou dois, e imobilizou-se.

— Desgraçado! — disse o Capitão Vere com voz tão baixa que era quase um murmúrio. — Que fizeste! Mas vem, ajuda-me.

Os dois ergueram o homem pelas ilhargas e fizeram-no sentar-se. O corpo magro aquiesceu, flexível, mas inerte. Era como erguer uma cobra morta. Tomaram a deitá-lo. Voltando à posição erecta, o capitão Vere cobriu o rosto com a mão e permaneceu aparentemente insensível como o objeto a seus pés. Estaria, acaso, calculando todas as possíveis conseqüências do fato e pensando no que lhe cumpria fazer não só naquele momento mas também depois? Vagarosamente descobriu o rosto; e o efeito foi idêntico ao da lua que, emergindo de um eclipse, reaparecesse com um aspecto inteiramente diverso do que apresentara ao ocultar-se. O pai que nele existia e até aquele instante se manifestara em relação a Billy, foi substituído pelo disciplinador militar. Em tom oficial ordenou ao gajeiro que se recolhesse a um beliche à ré (mostrando-o com a mão) e lá ficasse até ser chamado. A essa ordem obedeceu Billy em silêncio, mecanicamente. Em seguida, indo à porta do camarote que se abria para o castelo de popa, determinou 0 Capitão Vere à sentinela:

Dize a alguém que mande Albert aqui.

Quando o rapaz surgiu, o amo colocou-se de jeito que ele não visse a forma prostrada.

— Albert, — ordenou, — vai dizer ao cirurgião que desejo vê-Io. Não precisas voltar enquanto não fores chamado.

Ao entrar o cirurgião — um homem sereno, sensato, experiente, que muito pouca coisa lograria surpreender — o Capitão Vere adiantou-se-lhe ao encontro, tolhendo-lhe sem querer a vista de Claggart; em seguida, interrompendo a usual saudação cerimoniosa do outro:

— Não, diga-me o que há com aquele homem, — exclamou, dirigindo-lhe a atenção para o corpo caído.

O cirurgião olhou e, a despeito de todo o seu sangue-frio, estremeceu ante a repentina revelação. Sobre a tez sempre pálida de Claggart, escorria-lhe da boca e dos ouvidos um sangue preto e grosso. Aos olhos profissionais do observador o corpo que via era, sem dúvida, de um homem morto.

— É isso mesmo? — perguntou o Capitão Vere, que o examinava com profunda atenção. — Eu já o supunha. Mas verifique.

Os processos costumeiros de verificação confirmaram o primeiro diagnóstico do facultativo, que, erguendo a vista com não simulada inquietude, dirigiu ao superior um olhar de intensa curiosidade. Mas o Capitão Vere, com uma das mãos na testa, permaneceu imóvel. De súbito, agarrando convulsivamente o braço do cirurgião, exclamou, apontando para o corpo:

— É o julgamento divino de Ananias! Olhe!

Embora conturbado pela excitação que pela primeira vez observava no Capitão do Indomitable, e ainda totalmente ignorante do caso, calou o prudente cirurgião, limitando-se a olhar de novo, interrogativamente, como a indagar dos motivos da tragédia.

Mas, absorto em seus pensamentos, o Capitão Vere tornara à mobilidade. E, voltando a estremecer, exclamou com veemência:

— Morto por um anjo de Deus. E o anjo, todavia, tem de ser enforcado!

A essas exclamações, incoerentes para quem ignorasse os sucessos anteriores, o cirurgião ficou profundamente enleado. Logo, porém, reportando-se, narrou brevemente 0 Capitão Vere, em tom menos áspero, as circunstâncias que haviam provocado o fato.

— Mas, venha; precisamos apressar-nos, — ajuntou; — ajude-me a levá-lo (referia-se ao cadáver) àquele compartimento, — e apontou para um beliche oposto ao que servia de prisão para o gajeiro. Embora novamente perplexo ante um pedido que, por implicar um desejo de segredo, lhe parecia inconcebivelmente estranho, o subordinado não pôde menos de ceder.

— Agora vá, — disse o Capitão Vere, recuperando em parte os modos habituais. — Vá. Convocarei dentro em breve um conselho sumário de guerra. Conte aos tenentes o que aconteceu e ao Sr. Morton também (referia-se ao Capitão dos fuzileiros navais). E diga-lhes que não o repilam a ninguém.

Cheio de inquietudes e apreensões, o cirurgião deixou o beliche. Teria sido vítima o Capitão Vere de alguma súbita alienação mental, ou apenas de uma transitória excitação determinada por tão inesperada e extraordinária ocorrência? Em quanto ao conselho de guerra, pareceu-lhe, pelo menos, impolítico. O que se devia fazer, pensava ele, era conservar Billy Budd recluso, à maneira do costume, e adiar toda e qualquer decisão em caso tão fora do comum até o momento em que o navio se juntasse de novo à esquadra, e submetê-lo à apreciação do Almirante. Recordou a insólita agitação do Capitão Vere e as suas excitadas exclamações, tão em desacordo com os seus modos habituais. Estaria ele transtornado? Mas ainda que estivesse, seria difícil prová-lo. Que lhe cabia fazer? Não se pode conceber situação mais difícil que a de um oficial subordinado a um Capitão que o primeiro supõe, não efetivamente louco, mas pelo menos transtornado. Discutir-lhe a ordem seria insolência. Resistir-lhe, seria amotinar-se. Obedeceu, comunicando aos tenentes e ao Capitão de fuzileiros o que acontecera, sem nada lhes dizer sobre o estado do comandante. Os outros fitaram-no surpresos e preocupados. Como ele, pareciam achar que um assunto desses devia ser entregue ao Almirante.

Quem, no espectro solar, pode traçar a linha onde termina a faixa roxa e principia a faixa alaranjada? Vemos distintamente a diferença de cores, mas como precisar o ponto em que uma penetra visivelmente na outra? O mesmo se dá com a sanidade e a insanidade. Em casos pronunciados a distinção não oferece dificuldades. Mas em outros, que não se presumem tão acentuados, poucos se arriscarão a traçar a linha demarcativa, embora o façam por dinheiro alguns peritos profissionais. Não há nada mencionável que, mediante paga, não se abalançem a fazer certos homens. Em outras palavras, casos há em que é praticamente impossível determinar se um homem é são ou principia a deixar de sê-lo.

Se o Capitão Vere, como supôs profissionalmente o cirurgião, fora, de fato, vítima súbita de alguma aberração, terá de decidir o leitor com as luzes que lhe possa proporcionar a narrativa.

 

XVIII

 

O infeliz sucesso que narramos não poderia ter acontecido em pior ocasião, logo depois das insurreições reprimidas, num período sumamente crítico para a autoridade naval, que exigia de todo comandante britânico duas qualidades que nem sempre se associam — prudência e rigor. Além disso, havia no caso algo crucial.

No jogo de circunstâncias que tinham precedido e acompanhado o acontecimento a bordo do Indomitable, e à luz do código militar pelo qual deveria ser formalmente julgado, a inocência e a culpa, personificadas em Claggart e Budd, trocaram de lugar.

Legalmente, a vítima aparente da tragédia era o homem que buscara vitimar uma criatura sem culpa; e o ato incontestável desta ultima em seu aspecto naval, constituía o mais atroz dos crimes militares. O bem e o mal essenciais envolvidos no caso, quanto mais claramente se apresentassem tanto mais penosa tornavam a responsabilidade de um leal comandante, autorizado a decidir o caso com apoio nessa primitiva base legal.

Não é, portanto, muito de pasmar que o Capitão do Indomitable, embora fosse um homem de decisões rígidas, sentisse que a prudência não era menos necessária do que a presteza. Até que pudesse decidir o curso que haveria de tomar em todos os pormenores, e sobretudo, até que a medida final fosse iminente, entendia, aconselhável, em vista de todas as circunstâncias, evitar quanto possível a publicidade. Nesse ponto, pode ser que ele tenha errado e pode ser que não. O certo, porém, é que, depois, nas conversas confidenciais que se travaram em mais de uma sala e beliche de oficiais. houve quem o censurasse acerbamente, fato atribuído pelos seus amigos e com maior veemência por seu primo, Jack Dentou, à inveja profissional que despertava o Brilhante Vere. Campo imaginativo para comentários invejosos realmente havia. A manutenção do sigilo no caso, a restrição de todo conhecimento dele, por algum tempo, ao lugar em que ocorrera o homicídio — o beliche do castelo de popa; nessas particularidades residia alguma semelhança com as tragédias palacianas ocorridas mais de uma vez na capital fundada por Pedro o Bárbaro, grande sobretudo pelos crimes.

De tal natureza era o caso que o Capitão do Indomitable se teria, de boa mente, abstido de qualquer decisão, além de conservar detido o gajeiro, até que o navio voltasse a juntar-se à esquadra, para então submeter o caso à consideração do Almirante.

Mas um verdadeiro oficial, de certo modo, é como um verdadeiro monge. E este último não guardará com maior abnegação de si próprio os votos de monástica obediência do que o primeiro os seus de lealdade ao dever militar.

Pressentindo que, a menos de tomar sobre ele uma rápida decisão, o gesto do gajeiro, assim que fosse conhecido nas cobertas, tenderia a despertar as cinzas porventura adormecidas do motim de Nore entre os tripulantes — a percepção da urgência do caso anulou no espírito do Capitão Vere todas as outras considerações. Mas conquanto fosse um disciplinador consciencioso, não amava a autoridade por si mesma. Longe, muito longe estava de agarrar todas as oportunidades para monopolizar os riscos da responsabilidade moral, mormente quando lhe era dado transferi-los a um oficial superior ou partilhá-los com outros oficiais de sua patente e até com subordinados. Assim pensando, alegrou-se de poder, sem contrariar o costume, entregar o caso a um tribunal sumário composto de seus próprios oficiais, reservando-se, como à pessoa sobre a qual repousaria a responsabilidade final, o direito de superintendê-lo e de interferir em seus trabalhos, formalmente ou não, sempre que fosse preciso. Em vista disso, convocou-se um conselho sumário de guerra formado, por escolha sua, pelo Primeiro e Segundo Imediatos e pelo Capitão de Fuzileiros.

Associando um oficial de fuzileiros aos tenentes de marinha num caso relativo a um marinheiro, talvez se desviasse o Comandante das normas gerais. Foi, porém, levado a isso por achar que o soldado era um homem sensato, criterioso, capaz de enfrentar um caso difícil, sem precedentes em sua experiência anterior. Ainda assim, contudo, não se sentia despreocupado, pois sabia-o, além disso, extremamente bondoso, amante de lautos jantares, dorminhoco profundo e propenso à obesidade, um homem, enfim, que, se bem se portasse com invariável virilidade numa batalha, talvez não se mostrasse digno de absoluta confiança num dilema de ordem moral, que apresentasse também o seu lado trágico. No tocante ao Primeiro e Segundo Imediatos, sabia o Capitão Vere que, posto fossem honestos e de comprovada bravura nas ocasiões necessárias, possuíam a inteligência quase totalmente limitada ao campo da navegação ativa e às combativas exigências da sua profissão. Reuniu-se o tribunal no mesmo camarote em que ocorrera o desgraçado caso. Esse camarote, que era o do Comandante, ocupava toda a área existente debaixo do tombadilho da popa. A ré, de cada lado, havia um beliche pequeno — um deles convertido temporariamente em prisão e o outro em necrotério — e um compartimento ainda menor, que os separava, formando, na direção da proa, uma área oblonga, cujo comprimento coincidia com a maior largura do navio. Acima dele via-se uma clarabóia de dimensões moderadas, e em cada extremidade do espaço oblongo duas vigias de guilhotinas, facilmente conversíveis em canhoneiras.

Concluídos à pressa os preparativos, Billy Budd foi chamado à presença do tribunal. Surgia necessariamente o Capitão Vere como a única testemunha do caso e, assim, descia de sua posição, embora a mantivesse num detalhe aparentemente trivial, a saber, que depunha a barlavento, fazendo com isso que o tribunal se instalasse a sotavento. Narrou de forma concisa tudo o que motivara a catástrofe, sem nada omitir da acusação de Claggart e referiu a maneira por que o prisioneiro recebera. Ouvindo o depoimento, os três oficiais olharam pasmados para Billy Budd, o último homem que teriam suspeitado, quer do plano revoltoso alegado por Claggart, quer do ato que inegavelmente praticara. Assumindo a precedência jurídica e voltando-se para o prisioneiro, perguntou o Primeiro Imediato:

— O Capitão Vere falou. Foi ou não foi como diz o Capitão Vere?

Em resposta se ouviram as seguintes palavras, não tanto embaraçadas na pronúncia quanto se poderia esperar:

— O Capitão Vere falou verdade. Foi exatamente como disse o Capitão Vere, mas não foi como disse o Mestre-de-armas. Comi do pão do Rei e sou fiel ao Rei.

— Acredito em ti, meu rapaz, — bradou a testemunha, cuja voz indicava uma contida emoção, que só assim se traía.

— Deus o abençoará por isso, Excelência! — tornou Billy, não sem tartamudear, refreando com dificuldade os próprios sentimentos. Mas logo se reportou, ouvindo outra pergunta, que de novo lhe despertou o defeito vocal:

— Não, não havia inimizade entre nós. Eu nunca quis mal ao Mestre-de-armas. Lamento que esteja morto. Eu não queria matá-lo. Se tivesse podido falar, não o teria esmurrado. Mas ele mentiu vergonhosamente na minha frente e na presença do meu Capitão. Eu precisava dizer alguma coisa e só pude dizê-lo com um murro. Valha-me Deus!

Nos modos impulsivos e leais do franco marinheiro viu confirmado o tribunal tudo o que anteriormente o impressionara nas palavras pronunciadas pela testemunha da tragédia e que se seguiram de pronto à veemente negativa de Billy tocante ao plano de rebeldia as palavras do Capitão Vere, "Acredito em ti, meu rapaz".

Perguntaram-lhe em seguida se sabia ou suspeitava de alguma coisa que indicasse uma incipiente desordem (referiam-se a um motim, mas tiveram o cuidado de evitar o termo explícito) esboçada em alguma seção do pessoal do navio.

Tardou a resposta. Isso foi naturalmente imputado pelo tribunal à esma inibição vocal que demorara ou dificultara as respostas anteriores. Em realidade, porém, a razão foi outra; a pergunta recordou de pronto ao espírito de Billy a entrevista com o marinheiro da ré ao pé dos porta-ovéns. Mas a repugnância instintiva em desempenhar um papel que pudesse parecer o de delator dos companheiros — o mesmo senso errôneo e não esclarecido de honra que o impedira de dar parte do fato no momento oportuno, embora como leal marinheiro de um vaso de guerra lhe corresse a obrigação de fazê-lo e a sua omissão, se dela o acusassem e conseguissem prová-la, o teria sujeitado às mais rigorosas penas, aliada à cega impressão de que nada lhe poderia advir de tudo aquilo, prevaleceu-lhe no espírito. Quando respondeu, fê-lo negativamente.

— Mais uma pergunta, — sobreveio o oficial de fuzileiros, que falava pela primeira vez com perturbada gravidade. — Tu nos afirmas que era mentira o que disse contra ti o Mestre-de-armas. Ora, por que haveria ele de mentir se, como declaras, não havia malquerença entre vós?

A essa pergunta, que tocava uma esfera intelectual de todo estranha aos pensamentos de Billy, este se mostrou confuso, o que certos observadores, como se há de imaginar, teriam interpretado como prova involuntária de culpa. Não obstante, tentou responder, mas logo renunciou aos seus fúteis esforços, dirigindo, ao mesmo tempo, um olhar de súplica ao Capitão Vere como se o considerasse o seu melhor advogado e amigo. O Capitão Vere, que estivera sentado por algum tempo, ergueu-se em pé e dirigiu-se ao interrogante:

— A sua pergunta é muito natural. Mas poderá o acusado responder-lhe?... Ou poderá fazê-lo alguém? A não ser, talvez, aquele que jaz lá dentro, — e designou o compartimento em que fora colocado o cadáver. — Mas o homem que lá está não se erguerá a uma ordem nossa. Todavia, o ponto me parece destituído de importância. Muito longe de pesquisar os motivos que possam ter governado o Mestre-de-armas, mas que não digam respeito à provocação do golpe, um conselho de guerra, no caso presente, há de limitar necessariamente a sua atenção às conseqüências do golpe, as quais só podem ser consideradas como obra de um grevista.

Essa declaração, cujo total significado Billy provavelmente não apreendeu, levou-o, sem embargo disso, a fitar os olhos ansiosos e interrogativos no homem que falara, olhos que, na sua muda expressão, pareciam os que um cão de generosa raça pode voltar para o amo, procurando-lhe no rosto a explicação de um gesto anterior, ambíguo para a inteligência canina. Nem deixou a mesma declaração de produzir assinalado efeito nos três oficiais, sobretudo no soldado, que julgaram descobrir nela uma significação inesperada, um pré-julgamento por parte do Capitão, servindo de aumentara perturbação mental já bem manifesta.

Falou mais uma vez o soldado, em tom incerto, dirigindo-se a um tempo aos companheiros e ao Capitão Vere:

— Não se acha presente ninguém, e refiro-me a tripulantes do navio, que possa apresentar algum esclarecimento subsidiário sobre o que ainda continua misterioso neste caso?

— A pergunta é procedente, — acudiu o Capitão Vere; — percebo-lhe a intenção. Sim, há um mistério; mas, para usarmos de uma expressão das Escrituras, é um "mistério de iniqüidade", assunto que só pode ser discutido por teólogos e psicólogos. Que importância pode ter isso para um tribunal militar? De mais a mais, qualquer possível investigação a respeito seria obstada pela eterna mudez daquele que está lá, — e apontou para o beliche-mortuário. — O ato do prisioneiro é a única coisa que nos interessa.

A isto, e particularmente à reiteração final, não sabendo o fuzileiro como responder, absteve-se com tristeza de acrescentar o que quer que fosse. O Primeiro Imediato, que, no princípio, assumira naturalmente a primada sobre os companheiros, instruído por um olhar do Capitão Vere (mais eloqüente do que palavras), reassumiu-a. E, voltando-se para o prisioneiro:

— Budd, — disse ele, em tom de voz pouco seguro, — Budd, se tens alguma coisa para dizerem tua defesa, dize-o agora.

O jovem marinheiro dirigiu novo e rápido olhar ao Capitão Vere; mas, deduzindo do aspecto do outro, dedução que lhe confirmava o próprio instinto, que a sua melhor defesa naquele momento era o silêncio, respondeu:

— Eu já disse tudo, senhor.

O fuzileiro — o mesmo que estivera de sentinela à porta do camarote na ocasião em que nele entrara o gajeiro seguido do Mestre-de-armas — permanecendo ao pé de Billy durante todo o processo, recebeu ordem para conduzi-lo de novo ao compartimento da ré, já anteriormente designado para o marinheiro e para o seu guardião. Tanto que desapareceram ambos, os três oficiais, como que parcialmente libertos de um constrangimento associado à simples presença de Billy — mexeram-se nas cadeiras. Trocaram olhares de conturbada indecisão, sentindo que lhes cumpria decidir sem muita demora, pois o Capitão Vere naquele momento, sentado com as costas voltadas para eles, aparentemente imerso numa de suas crises de distração, olhava por uma vigia de guilhotina, na direção de barlavento, por sobre o monótono espaço em branco do oceano crepuscular. Mas como perdurasse o silêncio do tribunal, apenas interrompido a trechos por breves consultas em tons baixos e graves, pareceu ganhar segurança e ânimo. Virando-se, pôs-se a andar de um lado para outro, galgando, sempre que voltava a barlavento, o convés inclinando pelo balanço do navio; sem o saber, simbolizava assim um espírito decidido a vencer obstáculos opostos até por instintos primitivos, vigorosos como o vento e como o mar. Pouco depois estacou diante dos três. Depois de escrutar-lhes os rostos permaneceu em silêncio menos para reunir as idéias no intuito de expressá-las do que para escolher a melhor maneira de apresentá-las a homens bem intencionados mas intelectualmente imaturos — aos quais precisava demonstrar princípios já axiomáticos para ele. Relacionada ao falar, essa impaciência é talvez uma das razões que impedem certas pessoas de se dirigirem a quaisquer assembléias populares; e como tal deve ser classificada a maioria das legislaturas numa democracia.

Quando falou, qualquer coisa na substância do que disse e no modo de dizê-lo patenteou a influência de estudos não partilhados. que haviam modificado e abrandado o exercício prático de uma carreira ativa. Isto, além de sua fraseologia em determinados momentos, entremostrava as bases da imputação de pedantismo que lhe faziam certos homens do mar de feitio inteiramente prático, capitães que, não obstante, admitiam com franqueza que a Marinha de Sua Majestade não contava com oficiais mais eficientes de sua própria categoria do que o "Brilhante Vere".

O que ele disse foi mais ou menos o seguinte:

— Até aqui fui apenas testemunha, e pouco mais; e nunca pensaria em assumir outro tom, o de coadjutor deste tribunal, se não percebesse nos senhores, nos momentos mais críticos, uma comovida hesitação, motivada, sem dúvida, pelo embate entre o dever militar e o escrúpulo moral, um escrúpulo vitalizado pela compaixão. No que concerne à compaixão, não posso deixar de partilhá-la. Mas, atento ao supremo dever, luto contra tudo o que possa entibiar a minha decisão. Não, senhores, não escondo de mim mesmo que se trata de um caso excepcional. Especulativamente considerado, poderia ser entregue a um júri de casuístas. Mas para nós, que não procedemos como casuístas nem moralistas, é um caso prático, que deve ser praticamente tratado à luz da legislarão militar.

"Mas os escrúpulos dos senhores que parecem agitar-se num ambiente crepuscular! Pois que se adiantem e declarem. Raciocinemos e veremos que eles importam mais ou menos nisto: se, pondo de parte as circunstâncias atenuantes, somos obrigados a considerar a morte do Mestre-de-armas como um ato praticado pelo prisioneiro, chegamos à conclusão de que esse alo constitui um crime de morte cuja pena é a pena de morte. Mas na justiça natural devemos apenas levar em consideração o excesso cometido pelo acusado? Podemos condenar à morte sumária e oprobriosa um homem como nós, inocente aos olhos de Deus e que também sentimos ser inocente? Está certa a minha exposição? Os senhores aquiescem tristemente. Pois bem, eu também sinto isso, toda a força que reside nisso. É a Natureza. Mas dizem acaso os nossos botões que elevemos lealdade à Natureza? Não, devemo-la ao Rei. Embora seja o oceano, que é a inviolada Natureza imemorial, o elemento em que nos movemos e vivemos, reside porventura o nosso dever de oficiais de Sua Majestade numa esfera correspondentemente natural? Não, e tanto não é assim que, ao recebermos as nossas comissões, perdemos a liberdade de ação em todas as situações ponderáveis. Quando se declara a guerra, somos nós os combatentes previamente consultados? Combatemos em obediência a ordens recebidas. Quando somos favoráveis a ela a coincidência é puramente casual. Assim em outros particulares. Nessas condições, estaremos condenando pessoalmente quando condenamos de acordo com o que nos ditam as leis da guerra? Não somos responsáveis por elas nem pelo seu rigor. A responsabilidade que juramos assumir consiste apenas nisto: por mais desapiedadas que sejam essas leis, temos de conformarmo-nos com elas e aplicá-las.

"Mas a natureza excepcional do caso toca-lhes os corações. E toca também o meu. Não permitamos, porém, que corações quentes traiam cabeças que devem ser frias. Em terra, num processo criminal, deixa-se influir um juiz íntegro, fora do tribunal, pelas súplicas lagrimosas de alguma terna parenta do acusado? Pois bem, o coração neste caso é essa patética mulher. O coração é o feminino no homem, e por mais que nos custe, deve ser silenciado".

Fez uma pausa, estudando-os atentamente por um momento; em seguida, prosseguiu:

— Mas algo no aspecto dos senhores parece insistir em que não é apenas o coração que se agita, mas também a consciência, a consciência individual. Neste caso, porém, ocupando a posição que ocupamos, respondam-me os senhores se a consciência individual deve ou não ceder ante a consciência imperial formulada no código único que norteia oficialmente os nossos atos?

Nesse ponto agitaram-se os três homens nas cadeiras, menos convencidos que perturbados pelo curso de um argumento que ainda mais agravava o espontâneo conflito travado no íntimo deles. Percebendo-o, interrompeu-se o orador; logo, mudando repentinamente de tom, prosseguiu:

— Para fortalecermo-nos um pouco, recorramos aos fatos. Em tempo de guerra, em pleno mar, a bordo de um navio de guerra, um marinheiro agride o seu superior e mala-o. À parte os seus efeitos, a agressão em si mesma, de acordo com os Artigos de Guerra, constitui crime capital. Além disso...

— De feito, senhor, — sobreveio, comovido, o oficial de fuzileiros, — de fato. Mas Budd, certamente, não tencionava promover um motim nem praticar um homicídio.

— Está visto que não, está visto que não. E diante de um tribunal menos arbitrário e mais misericordioso do que um conselho de guerra esse argumento seria ponderabilíssimo. No juízo Final servirá para absolvê-lo. E aqui? Procedemos de acordo com o que estabelece a Lei do Motim. Nenhuma criança pode, nos traços, ser mais parecida com o pai do que esta lei se parece, em espírito, com a coisa de que provém: a Guerra. No serviço de Sua Majestade, neste mesmo navio, há ingleses obrigados a lutar pelo Rei a contragosto. Ou contra a própria consciência deles, pelo menos. Embora como seus semelhantes possamos compreender-lhes a situação, como oficiais de marinha que nos importa ela? Muito menos importa ao inimigo, que suprimiria de bom grado, no mesmo golpe, os nossos recrutados e os nossos voluntários. No que concerne aos conscritos navais do inimigo, alguns dos quais talvez partilham do nosso horror ao Diretório francês regicida, dá-se o mesmo de nossa parte. A guerra só toma em consideração a fachada, a aparência. E a Lei do Motim, filha da Guerra, imita o pai. A intenção ou a ausência de intenção de Budd não faz ao caso.

"Mas ao passo que, levado a isso pelas ansiedades que percebo nos senhores e que não posso deixar de respeitar, ao passo que assim estranhamente prolongamos uma decisão que devera ser sumária, o inimigo pode ser avistado e daí resultar um encontro. Temos de resolver; e temos de escolher entre uma coisa e outra: condenar ou absolver".

— Não podemos condenar e, ao mesmo tempo, suavizar a pena? — acudiu o Segundo Imediato, com voz embargada, falando pela primeira vez.

— Tenente, ainda que isso nos fosse legalmente permitido nas atuais circunstâncias, considere as conseqüências de tal clemência. O pessoal (referindo-se à tripulação) possui inteligência natural; quase todos estão familiarizados com os nossos usos e tradições navais: e como a receberiam eles? Ainda que o senhor pudesse explicar-lhes, e não pode em razão de seu cargo, eles, há muito modelados pela disciplina arbitrária, carecem do grau de inteligência necessário à compreensão e à discriminarão. Para o pessoal o ato do gajeiro, embora explanado, será puro e simples homicídio, perpetrado num gesto flagrante de rebeldia. Eles conhecem a pena aplicável nesse caso. Mas ela não se aplica. Por quê? matutarão. O senhor sabe o que são marinheiros. Não se lembrarão do recente motim de Nore? Claro que sim, pois não ignoram o alarma e o pânico que ele infundiu em toda a Inglaterra. Considerarão pusilânime a sentença clemente. Pensarão que recuamos, que os tememos, que tememos exercer um legítimo rigor exigido nesta conjuntura pela necessidade de impedir a eclosão de novos tumultos. Serão vergonhosas para nós tais conjeturas da parte deles, e mortalmente perigosas para a disciplina. Vêem, portanto, os senhores aonde me dirijo, resoluto, obediente ao dever e à lei. Mas eu lhes rogo, meus amigos, que não me interpretem mal. Sinto o que sentem os senhores por esse malfadado rapaz. Pudesse ele conhecer os nossos corações e tenho a certeza de que a sua generosidade natural o levaria a condoer-se de nós, a quem as injunções militares impõem tão pesado dever.

Dizendo isso e cruzando o aposento, voltou ao seu lugar ao pé da vigia, deixando tacitamenle os outros em liberdade para chegarem a uma decisão. No lado oposto do camarote permanecia em silêncio o conturbado tribunal Subordinados leais, simples e práticos, embora intimamente divergissem de alguns princípios expostos pelo Capitão Vere, viam-se destituídos da faculdade e sobretudo da inclinação de contrariar uma pessoa que sabiam ser um homem sincero, um honrem, aliás, não somente superior a eles na hierarquia naval senão também intelectualmente. Mas não é improvável que os argumentos do comandante exercessem neles menor influência do que o apelo final ao seu instinto de oficiais de marinha, antemostrando-lhes as conseqüências práticas para a disciplina (em face dos ânimos incertos da esquadra na ocasião) da clemência no julgar um marinheiro de um navio de guerra que matasse violentamente um superior, desclassificando-lhe o crime e atenuando-lhe a pena.

Muito provavelmente o seu estado de espírito seria mais ou menos parecido com o que no ano de 1842 experimentou o comandante do brigue de guerra americano Somers para decidir (de acordo com os chamados Artigos de Guerra, Artigos estribados na Lei de Motim inglesa) sobre a execução em pleno mar de um marinheiro e dois oficiais subalternos, que pretendiam, amotinados, senhorear o brigue. Decisão que foi executada, embora o tempo fosse de paz e o barco não estivesse a muitos dias de viagem do porto de destino, e justificada depois por um tribunal naval de inquérito, subseqüentemente convocado em terra. O fato é histórico e aqui o citamos sem comentários. É verdade que as circunstâncias a bordo do Somers diferiam das existentes a bordo do Indomitable. Mas a urgência, justificada ou não, era a mesma.

Diz um escritor que pouca gente lê: "Quarenta anos depois de uma batalha é fácil para um não combatente discutir sobre o modo por que ela devera ter sido travada. É coisa muito diversa dirigir a luta pessoalmente e debaixo de fogo no meio da fumaça escurecedora dos canhões. O mesmo se verifica em relação a outras emergências que envolvem considerações igualmente práticas e morais, e quando urge decidir e agir com presteza. Quanto maior o nevoeiro tanto maiores são os perigos que corre o barco, e a sua marcha é acelerada apesar dos riscos de abalroamento. Mal imaginam os confortáveis jogadores de cartas no interior do beliche as responsabilidades do homem que vigia na ponte".

Em suma, Billy Budd foi formalmente condenado a morrer enforcado no lais da verga no primeiro quarto matutino, pois já era noite. A não ser isso, como é costume nesses casos, a sentença seria imediatamente executada. Em tempo de guerra, no acampamento ou na esquadra, a pena de morte decretada por um conselho sumário — no acampamento, às vezes, decretada por um simples aceno do General — remata, sem demora, a sentença inapelável.

 

XIX

Foi o próprio Capitão Vere quem, espontaneamente, comunicou ao prisioneiro a decisão do tribunal, dirigindo-se ao beliche em que ele se achava e ordenando ao fuzileiro encarregado de guardá-lo que se retirasse por alguns instantes.

Além da comunicação da sentença, nunca se soube o que ocorreu nessa entrevista. Mas, em face do feitio moral dos dois homens rapidamente encerrados no beliche, que possuíam algumas das mais raras qualidades da natureza humana — tão raras, de fato, que são quase incríveis para os espíritos comuns, embora cultos — podemos arriscar algumas conjeturas.

Teria sido perfeitamente compatível com o valor do nosso Capitão Vere, nessa ocasião, a sua recusa de ocultar o que quer que fosse do condenado, revelando-lhe francamente a influência que ele mesmo exercera na decisão e explicando-lhe, ao mesmo tempo, os motivos que o tinham induzido a proceder dessa maneira. Da parte de Billy não é improvável que tal confissão fosse recebida com um valor muito semelhante àquele que a ditara, e o levasse a compreender com uma espécie de alegria, o altíssimo conceito em que mostrava tê-lo o Capitão fazendo-o seu confidente nesse caso. E mesmo no tocante à sentença, não poderia deixar de perceber que ela lhe era comunicada como a um homem que não receia morrer. Mas outras coisas ainda poderiam ter acontecido. Ao termo da entrevista, o Capitão Vere podia ter dado largas à paixão que às vezes se oculta sob um exterior estóico ou indiferente. Tinha idade bastante para ser pai de Billy. Permitindo, por instantes, que nele se manifestasse o que ainda conserva de primitivo a nossa formalizada humanidade, o austero devoto do dever militar, podia, afinal ter conchegado Billy do peito, assim como Abraão deve ter abraçado o jovem Isaac no momento de imolá-lo resolutamente em obediência à ordem imperiosa. Mas não é possível desvendar o mistério — raro ou nunca revelado ao mundo quando concorrem circunstâncias semelhantes às que tentamos expor — o contacto de duas das ordens mais nobres da grande Natureza. O segredo é inviolável para o sobrevivente, e o santo esquecimento acaba encobrindo providencialmente tudo.

O primeiro a encontrar-se com o Capitão Vere quando este deixava o compartimento foi o Primeiro Imediato. O rosto que viu, contraído naquele instante pela agonia dos fortes, foi para o oficial, a despeito dos seus cinqüenta anos, impressionante revelação. Que o próprio condenado sofria menos do que o principal responsável pela sua condenação indicou-o pouco depois a exclamação que desferiu na cena que logo será descrita.

A narração de uma série de incidentes que, ligeiros, se sucedem num breve lapso de tempo, demora-se, por vezes, mais sobretudo quando parecem necessários à melhor compreensão de tais incidentes uma explicação ou um comentário. Desde que entrara no camarote aquele que nunca mais o deixaria vivo e aquele que, ao fazê-lo, o deixou para morrer, até a entrevista secreta a que nos referimos, passara-se menos de hora e meia. Não obstante, era um intervalo suficiente para provocar suposições no espírito de muitos tripulantes sobre o que poderia deter no camarote o Mestre-de-armas e o marinheiro, pois já correra a notícia de que ambos tinham sido vistos ao entrar mas nenhum fora visto saindo. A notícia espalhara-se a bordo pelas cobertas e pelos cestos da gávea, pois a população de um grande navio de guerra se parece, num ponto, com uma população de aldeões, que reparam em tudo o que sucede ou deixa de suceder no seu campo de observação. Quando, portanto, numa ocasião em que o tempo corria sereno, todos os marinheiros foram chamados durante o segundo meio quarto, chamado inusitado naquelas circunstâncias e àquela hora, a tripulação já se achava mais ou menos preparada para alguma notícia extraordinária, relativa à prolongada ausência dos dois homens de seus postos habituais.

O mar estava calmo; e a lua, que havia pouco surgira e era quase cheia, prateava o convés branco onde quer que não a interceptassem as sombras nítidas e horizontais das peças do navio e dos homens. De cada laço do castelo de popa alinhara-se a guarda de fuzileiros, com armas embaladas; e o Capitão Vere, em pé, cercado de todos os oficiais, dirigiu a palavra ao pessoal. Fê-lo, porém, sem que os seus modos indicassem outras emoções que as condizentes com a sua posição suprema a bordo do navio. Em termos claros e concisos contou-lhes o que se verificara no camarote que o Mestre-de-armas estava morto; que o homem que o matara já fora julgado por um tribunal sumário e condenado à morte; e que a execução se verificaria no primeiro quarto matutino. A palavra motim não foi sequer mencionada. Ele se absteve também de aproveitar o ensejo para pregar o respeito à disciplina, pensando, talvez, que nas circunstâncias então existentes na Marinha, nada seria mais eloqüente que o resultado de uma infração da mesma.

As palavras do Capitão foram ouvidas pelos marinheiros em pé num silêncio apenas comparável ao de uma congregação sentada de crentes do Inferno ouvindo o sacerdote anunciar o texto calvinista.

Terminada a alocução, ouviu-se um murmúrio confuso, que principiou a elevar-se quase instantaneamente, mas que foi, a um sinal dado, interrompido e suprimido pelos apitos estridentes do Mestre da equipagem e seus imediatos, que diziam:

— Desçam para o quarto.

A fim de prepará-lo para o sepultamento, entregou-se o cadáver de Claggart a certos oficiais subalternos de sua mesa. E como não queremos perturbar a seqüência da narrativa com assuntos correlatos, acrescentaremos apenas que, numa hora adequada, o Mestre-de-armas foi atirado ao mar com todas as honras fúnebres a que lhe dava direito a sua posição naval.

Nisso, como em todas as cerimônias públicas decorrentes de uma tragédia, seguiu-se uma estrita observância dos usos e costumes. Nem teria sido possível o menor desvio dela, quer no tocante a Claggart, quer no tocante a Billy Budd, sem provocar indesejáveis especulações na tripulação do navio, sobretudo entre os marinheiros, que são, de todos os homens, os mais aferrados à tradição.

Pelo mesmo motivo, toda e qualquer comunicação entre o Capitão Vere e o condenado cessaram com a entrevista particular já referida, sendo Billy sujeitado à rotina comum que antecede a execução. Efetuou-se-lhe a transferência, debaixo de guarda, dos aposentos do Capitão sem inusitadas precauções — pelo menos visíveis.

Sendo possível, para que não ocorra à mente dos homens a suspeita sequer de que os oficiais receiam alguma subversão da ordem, é essa a norma tácita num navio militar. E quanto maiores forem os motivos reais de apreensão, tanto mais se empenham os oficiais em disfarçá-la, embora, por isso mesmo, aumentem sem alarde a vigilância.

No caso presente, a sentinela encarregada de guardar o prisioneiro tinha ordens severas para não deixar ninguém comunicar-se com ele, exceto o Capelão. E foram tomadas certas medidas disfarçadas para garantir esse ponto.

 

XX

 

Num "setenta e quatro" dos velhos tempos, a coberta conhecida como a primeira estendia-se logo abaixo do convés, o qual, apesar dos aparelhos de guerra, ficava em sua maior parte exposto às intempéries. Sobre ela geralmente não se armavam redes, pois as dos tripulantes balouçavam na segunda e na terceira cobertas, a última das quais era não só dormitório mas também o sítio em que os marinheiros guardavam os seus sacos de roupa, cercada de ambos os lados pelas cômodas grandes ou pelas despensas móveis dos inúmeros refeitórios.

A estibordo da primeira coberta do Indomitable, estava Billy Budd, algemado, com sentinela à vista, deitado num dos vãos formados pelos intervalos regulares entre os canhões. Todas as peças eram do calibre mais pesado que se conhecia naquele tempo. Montados sobre pesadas carreias de madeira, eram seguros por um conjunto complicado de correias e fortes roldanas laterais destinadas a movê-los. Canhões e carretas, ao lado das varetas e dos morrões, se aninhavam em seleiras mais altas e todos estadeavam a cor preta do costume, ao passo que as pesadas correias de cânhamo, alcatroadas, pareciam usar a libré dos agentes funerários. Em contraste com o tom lutuoso de tudo o que o cercava, os trajos do marinheiro deitado, blusa e calças brancas, mais ou menos manchados, brilhavam vagamente à débil luz do vão como um pouco de neve desbotada, em princípios de abril, retardando-se na boca negra de uma caverna hiante nos flancos da montanha. Ei-lo com efeito, envolto em sua mortalha, nas roupas que lhe servirão para passar à eternidade. Sobre ele, porém, mal servindo para eliminá-Io, duas lanternas de combate oscilam, presas a duas vigas maciças de suporte do convés. Alimentadas com o óleo fornecido pelos empreiteiros de guerras (cujos lucros, honestos ou não, representam em todos os países uma porção antecipada da safra da morte), com salpicos bruxuleantes de luz amarela e suja, mancham o pálido luar, que luta quase em vão por penetrar as canhoneiras abertas de que emerge o canhão. Outras lanternas, dispostas a espaços, servem apenas de aclarar um pouco os vãos mais escuros que brotam como pequenos confessionários ou capelas laterais de uma catedral, da longa, escura e ampla nave entre as duas fileiras cobertas de baterias.

Tal o sítio em que jaz agora o Guapo Marinheiro. Através da pele corada e crestada não se lhe poderia distinguir palidez alguma. Teriam sido precisos dias e dias de afastamento dos ventos e do sol para que se desbotasse aquela flor do mar. Mas o osso da face, ao nível de seu ângulo, já principiava a definir-se delicadamente sob a pele quente. Nos corações ardentes que se reprimem, algumas breves experiências devoram o tecido humano como um fogo secreto devora, no porão de um navio, fardos de algodão.

Mas agora, estendido entre dois canhões, como que preso no torno do destino, a agonia de Billy, resultante do primeiro contacto de um jovem coração generoso com o caráter demoníaco de certos homens, principiava a dissipar-se. Não sobrevivera ao fator calmante da secreta entrevista com o Capitão Vere. Sem um movimento, jaz o gajeiro como em transe, e a sua expressão adolescente lembra o aspecto de uma criança adormecida quando a quente claridade da lareira no quarto silencioso brinca com as covinhas que, a espaços, misteriosamente se formam na face, aparecendo e desaparecendo em silêncio. Pois de vez em quando, no êxtase do homem agrilhoado, uma luz serena e feliz, projetada por alguma reminiscência errante ou por um sonho qualquer se lhe difunde no rosto, e logo se desvanece para de novo surgir pouco depois.

Vendo-o assim e percebendo que o prisioneiro não se advertira da sua presença, o Capelão que fora vê-lo quedou-se a observá-lo durante algum tempo e, em seguida, retirou-se, compreendendo talvez que nem ele, ministro de Cristo, embora estipendiado pelas guerras, poderia oferecer-lhe consolações capazes de proporcionar-lhe uma paz mais perfeita do que aquela. Mas, pouco depois, voltou. E o prisioneiro, que já retornara à realidade das coisas que o cercavam, percebeu-lhe a aproximação e civilmente, quase alegremente, o saudou. Embalde, porém, durante a entrevista, buscou o bom do homem incutir no espírito de Billy Budd a religiosa compreensão da necessidade de sua morte, quando raiasse o dia. Billy, de fato, se referia livremente à própria morte, como a coisa próxima; fazia-o, porém, de certo modo, como fazem, quando se referem à morte em geral, as crianças que entre os seus outros folguedos brincam de enterro, com esquife e carpideiras. Não que fosse, como as crianças, incapaz de conceber a morte. Mas faltava-lhe completamente o medo irracional dela, um medo que se observa muito mais nas comunidades altamente civilizadas do que nas comunidades chamadas bárbaras e que se acham, em todos os sentidos, muito mais próximas da verdadeira Natureza. E, como já se disse em outro passo, Billy era radicalmente um bárbaro; tanto, a despeito dos trajos, quanto os seus compatrícios, os cativos britânicos, troféus vivos jungidos ao carro triunfal de Germânico. Tanto quanto os bárbaros mais recentes, provavelmente jovens, escolhidos entre os primeiros britânicos convertidos ao Cristianismo, pelo menos nominalmente, e que levados a Roma (como hoje os convertidos de ilhas menores do mar podem ser levados a Londres), provocaram do Papa, ante a sua estranha beleza pessoal — tão diversa do modelo italiano, com a pele clara e rosada e os loiros cabelos anelados — esta pergunta:

— Chamam-se anglos? Será por que se parecem tanto com anjos?

Se isso tivesse ocorrido tempos depois poderíamos pensar que o Papa tivesse em mente os serafins de Fra Angélico, alguns dos quais, apanhando maçãs nos jardins das Hespérides, têm a cor de botão de rosa das mais belas raparigas inglesas.

 

XXI

 

Se debalde tentou o Capelão incutir no jovem bárbaro idéias de morte parecidas com as que nos incutem os crânios, mostradores e ossos cruzados dos túmulos antigos, igualmente fúteis, segundo todas as aparências, foram os seus esforços no sentido de inspirar-lhe a idéia da salvação e de um Salvador. Billy ouviu-o, porém, menos por temor ou reverência, talvez, que por certa polidez natural; considerando tudo aquilo, sem dúvida, como quase todos os marujos de sua classe consideram um discurso abstrato ou que fuja ao tom comum do seu diário ramerrão. E esse modo marujo de acolher um discurso clerical não difere muito do modo por que o pioneiro do Cristianismo — cheio de milagres transcendentais — foi recebido, outrora, nas ilhas tropicais por um chefe dito selvagem — um taitiano do tempo do Capitão Cook ou pouco depois. Por natural cortesia, acolheu, mas não gostou. Como um presente colocado na palma da mão estendida, cujos dedos não se fecham.

Mas o Capitão do Indomitable era um homem judicioso que possuía a sensatez do bom coração. Por isso não insistiu no exercício de suas funções. A pedido do Capitão Vere, um tenente o informara de quase tudo o que se sabia a respeito de Billy; e como achava que a inocência é melhor companheira do que a própria religião para quem se apresenta ao tribunal divino, afastou-se com relutância; mas não sem executar, comovido, um ato assaz estranho para um inglês e, naquelas circunstâncias, mais estranho ainda para um sacerdote. Inclinando-se, beijou a face corada do seu semelhante, réu segundo as leis de guerra, e que ele, embora na iminência de transpor os umbrais da eternidade, se sabia incapaz de converter a um dogma, por mais que temesse pelo seu futuro.

Não é de espantar que, reconhecendo a inocência essencial do jovem marinheiro, o digno homem não levantasse um dedo para evitar a sorte daquele mártir da disciplina militar. Fazê-lo não teria sido apenas inútil como clamar no deserto, mas constituiria também uma temerária exorbitância de suas funções — que lhe eram tão rigorosamente prescritas pela lei militar quanto as de qualquer outro oficial de marinha. Para falarmos grosseiramente, o Capelão é o ministro do Príncipe da Paz servindo nas hostes do Deus da Guerra — Marte. Como tal, é tão incongruente quanto um mosquete sobre um altar numa noite de Natal. Por que, então, está lá? Porque indiretamente se subordina ao propósito confirmado pelo canhão; porque, ao mesmo tempo, empresta a sanção da religião dos fracos ao que representa, praticamente, a abrogação de tudo, exceto a força (3).

 

XXII

 

A noite tão luminosa no convés, mas tão diferente nas demais cobertas cavernosas — cujas diferenças de níveis lembram as das galerias que se sucedem numa mina de carvão — a noite luminosa passou. Como o profeta no carro desaparecendo no céu e deixando cair o manto para Eliseu, a noite que se retirava deixou o seu pálido véu para o dia que principiava a raiar. Uma luz suave tímida despontou no Oriente, onde se estendia um velo diáfano de vapor estriado. Lentamente, a luz cresceu. De repente um sino se ouviu à ré, a que respondeu outro, mais forte e mais metálico, na popa. Eram quatro horas da madrugada. Imediatamente se ouviram os apitos de prata conclamando todos os marinheiros para assistirem à punição. Pela escotilha grande principiaram a surgir os que se achavam nas cobertas inferiores, espalhando-se, entre os que já estavam no convés, pelo espaço compreendido entre o mastro grande e o mastro do traquete, inclusive o ocupado pela ampla chalupa e pelos negros botalós amarrados de cada lado — formando a chalupa e os botalós um ponto mais elevado de observação para os grumetes e marinheiros mais novos. Um grupo diferente, que compreendia a turma de gajeiros, debruçara-se no parapeito da galeria, que não é pequena num "setenta e quatro" e observava a multidão lá embaixo. Os circunstantes, homens ou meninos, só falavam em murmúrios e pouquíssimos falavam. O Capitão Vere, que era, como havia pouco, a figura central entre os oficiais reunidos, mantinha-se à entrada do tombadilho da popa e olhava para a frente. Logo abaixo dele, no convés, os fuzileiros, com todo o seu equipamento, enfileiravam-se como na cena da promulgação da sentença.

No mar, nos velhos tempos, o enforcamento de um marinheiro fazia-se geralmente na verga do traquete. No caso presente — por motivos especiais — indicou-se a verga do mastro grande. O prisioneiro foi trazido e colocado debaixo de um lais dessa verga, atendido pelo Capelão, que, nesta cena final, como todos puderam notar, se mostrou pouco ou nada perfunctório. Dirigiu-se rapidamente ao condenado, mas o verdadeiro evangelho estava menos em sua língua do que no seu rosto e na maneira com que lhe falou. Terminado os preparativos finais, a cargo de dois mestres de equipagem, chegou o momento da consumação. Billy, em pé, olhava para a popa. No penúltimo momento, as suas palavras, as suas últimas palavras, perfeitamente articuladas, foram estas:

— Deus abençoe o Capitão Vere!

Estas sílabas tão imprevistas, pronunciadas por um homem que já sentia o cânhamo ignominioso em torno do pescoço, a bênção convencional de um réu dirigida para a ré, para os postos de honra, sílabas emitidas com a clara melodia de um pássaro canoro a ponto de alçar vôo, produziram um efeito fantástico, ainda mais acentuado pela rara beleza do jovem marinheiro, espiritualizada pelas últimas experiências, tão pungentes e profundas.

Sem intervenção da vontade, por assim dizer, como se o pessoal do navio fosse o simples veículo de uma corrente elétrica vocal, a uma voz, de cima e de baixo, ouviu-se o eco sonoro:

— Deus abençoe o Capitão Vere!

E, todavia, naquele instante, somente Billy estaria no coração como estava nos olhos de todos.

Voltando do balanço periódico para sotavento o casco recuperara a posição horizontal, quando se fez o último sinal, o sinal mudo e previamente concertado. Nesse mesmo instante, o vaporoso velo que pairava no Oriente, quase à flor das águas, foi repentinamente iluminado por uma luz suave como a do velo do Cordeiro de Deus vislumbrado em mística visão; e nisso, simultaneamente, observado pela massa compacta de rostos voltados para cima, Billy subiu; e, subindo, recebeu em cheio o rubor da madrugada.

A essas palavras e ao eco espontâneo que volumosamente as refletiu, o Capitão Vere, por força de um estóico domínio de si mesmo ou em razão de momentânea paralisia produzida pelo choque emocional, ficou erecto e rígido, como um mosquete na prateleira de armas do navio.

Na figura manietada, chegada à ponta da verga, para assombro geral, não se percebeu movimento nenhum senão o que produzia o lento balanço do casco, tão majestoso, quando o tempo é sereno, num grande navio carregado de canhões.

 

Digressão

 

Quando, alguns dias depois, conversando sobre a singularidade que acabamos de mencionar, o Comissário de bordo (um sujeito vermelho, rotundo, que possuía mais a acurácia de um contador que a profundeza de um filósofo) disse no refeitório ao Cirurgião:

— E uma espantosa demonstração do poder que existe na força da vontade.

O outro, magro e alto, cuja casuística sensata era acompanhada de modos menos cordiais do que polidos, replicou:

— Perdão, Sr. Comissário. Num enforcamento tão cientificamente executado — e diga-se de passagem que, eu mesmo, obedecendo a ordens especiais, dei instruções sobre o modo por que o de Budd devia ser levado a cabo — qualquer movimento posterior à completa suspensão e originada no corpo suspenso, indicará apenas um espasmo mecânico do sistema muscular. Daí que não se possa atribuir a ausência desse movimento à força da vontade, como o senhor lhe chama, como não se poderia imputá-la a um cavalo de força... com a sua licença.

— Mas o espasmo muscular a que se refere... não será, até certo ponto, mais ou menos invariável nesses casos?

— Sem dúvida nenhuma, Sr. Comissário.

— E como, então, explica o senhor a sua ausência neste determinado caso?

— Sr. Comissário, é evidente que a sua noção de singularidade neste ponto difere da minha. O senhor explica-o pelo que denomina força da vontade, termo, aliás, ainda não incluído no dicionário da ciência. Quanto a mim, com os meus atuais conhecimentos, não tenho a pretensão de explicá-lo de maneira alguma. Embora se admitisse a hipótese de que, ao primeiro toque das driças, os movimentos do coração de Budd, intensificados por uma extraordinária comoção que nesse momento atingisse o auge, cessassem de repente, à semelhança de um relógio a que damos corda sem cuidado e, forçando a corda, partimo-la, embora admitida a hipótese, como explicar-se o fenômeno seguinte?

— Reconhece, então, que a ausência de movimento espasmódico foi fenomenal?

— Foi fenomenal, Sr. Comissário, no sentido de que foi uma aparência, cuja causa não pode ser imediatamente especificada.

— Mas diga-me, caro senhor, — continuou o outro, pertinaz, — a morte do homem foi causada pela corda, ou foi uma espécie de eutanásia?

— A eutanásia, Sr. Comissário, é algo parecido com a sua força da vontade; duvido de sua autenticidade como termo científico... e peço-lhe de novo que me perdoe. É, ao mesmo tempo, imaginativa e metafísica; em suma, é grego. Mas — prosseguiu, mudando subitamente de tom, — há um caso na enfermaria que não quero deixar aos meus assistentes. Queira desculpar-me.

E, erguendo-se da mesa, retirou-se formalmente.

 

XXIII

 

O silêncio no momento da execução, que continuou por um ou dois momentos (acentuado, porém, pelo marulhar da água ao bater contra o casco, ou pelo esvoaçar de uma vela, em virtude da momentânea distração do timoneiro), o acentuado silêncio foi gradualmente perturbado por um som difícil de se traduzir verbalmente. Quem quer que tenha ouvido as ondas torrenciais de um rio que transborda, repentinamente aumentadas por aguaceiros em montanhas tropicais, aguaceiros que não desabam na planície; quem quer que tenha ouvido o murmúrio abafado de sua marcha vertiginosa através de florestas alcantiladas, pode fazer uma idéia desse som. O aparente afastamento do seu ponto de partida devia-se-lhe à imprecisão, visto que vinha de muito perto, dos próprios homens apinhados no convés. Inarticulado, e por isso mesmo dúbio, ainda mais dúbio se tornava porque parecia indicar uma caprichosa reviravolta de idéias e sentimentos, a que estão sujeitas as multidões em terra — e que, no caso presente, talvez significasse uma sombria revogação do grito involuntário dos homens, que ratificara a bênção de Billy. Mas antes que o murmúrio pudesse converter-se em clamor, foi refreado por uma ordem estratégica, tanto mais eficaz quanto mais brusca e inesperada.

— Chame os homens do quarto de estibordo, Mestre-de-equipagem, e faça que voltem ao trabalho.

Estridentes como o grito da gaivota os apitos do Mestre-de-equipagem e dos seus imediatos furaram o ominoso murmúrio e dissiparam-no; cedendo ao mecanismo da disciplina, metade da multidão se afastou. Quanto aos que ficaram a maioria foi encarregada de pequenas tarefas, tais como a orientação de vergas, e assim por diante, quais facilmente descobre, quando preciso, qualquer oficial de serviço.

Ora, todos os movimentos que se seguem a uma sentença de morte pronunciada no mar por um conselho sumário de guerra caracterizam-se por uma presteza que não se confunde com a pressa, mas que não lhe fica muito distante. A rede — que servira de cama para Billy durante a sua vida, já lastrada e preparada para servir-lhe de esquife — os últimos aprestos dos agentes funerários do mar, os sub-oficiais encarregados do velame, completaram-se em menos de um credo. Quando tudo ficou pronto, segundo chamado geral, necessário em razão do movimento estratégico de que já falamos, soou: e dessa feita para assistir ao sepultamento.

Não é preciso referir os pormenores dessa derradeira formalidade. Mas quando a prancha forrada de lona deixou cair no mar a sua carga, segundo e estranho murmúrio humano se ouviu — de mistura com outro som igualmente inarticulado, produzido por certos pássaros maiores que, despertados pela peculiar comoção da água ao mergulho da rede lastreada, aproximaram-se gritando do lugar. Tão próximos chegaram do casco que se ouviu o estalar dos ossos de suas asas descarnadas. Quando o navio passou, deixando para trás o sítio em que fora despejado o cadáver, continuaram voejando em círculos sobre ele, com a sombra móvel das asas estendidas e o réquiem desafinado de seus gritos.

Para marinheiros supersticiosos como os do século passado — tripulantes de navios de guerra, que tinham assistido ao prodígio do repouso na forma suspensa no ar e ora abismada nas profundezas do oceano; para tais marinheiros os movimentos dos pássaros marinhos, embora ditados pelo simples desejo animal da presa, eram prenhes de extraordinários significados. Um movimento incerto principiou a esboçar-se entre eles, vagamente ameaçador, mas tolerado apenas por um momento. Pois de repente se pôs a rufar o tambor conclamando os homens para os seus postos — som familiar que, ouvido pelo menos duas vezes ao dia, vibrou naquele momento em tom manifestamente peremptório. A verdadeira disciplina militar, prolongada por muito tempo, cria no homem normal uma espécie de impulso de docilidade que, ao tom oficial de comando, muito se assemelha, na presteza com que se manifesta, ao efeito de um instinto.

O rufar do tambor dissolveu a multidão, distribuindo a maioria do pessoal pelas baterias das duas cobertas. Lá, como de costume, quedaram os artilheiros junto dos respectivos canhões, rígidos e mudos. Mais tarde, com a espada debaixo do braço, em pé no castelo de popa, o Primeiro Imediato recebeu formalmente os sucessivos relatórios dos Tenentes que comandavam as seções das baterias; após o último relatório, transmitiu-lhes o resumo, com a saudação costumeira, ao Comandante. Tudo isso levou tempo, e tal era, naquelas circunstâncias, o objetivo da ordem para que todos ocupassem os seus postos antes da hora habitual. Que tamanha infração do regulamento fosse autorizada por um oficial como o Capitão Vere (um Marine como o considerava muita gente), era prova de que o estado de espírito de seus homens naquele momento exigia, a seu ver, insólitas determinações.

— Para a humanidade, — costumava dizer, — as formas, as formas medidas, são tudo; e tal é oculta a significação da história de Orfeu, com a sua lira, enfeitiçando os selvagens habitantes das florestas.

E a mesma teoria aplicou certa vez à ruptura de formas, que se processava através do Canal, e suas conseqüências.

Após a chamada extraordinária, tudo continuou como nas horas regulares. A banda no castelo de popa executou uma ária sacra, e o Capelão encetou o costumeiro serviço matutino. Concluído o serviço, voltou a rufar o tambor, ordenando o retorno ao trabalho. Sofreados pela música e pelos ritos religiosos, que serviam à disciplina e aos propósitos da guerra, os homens, com o passo ordenado e habitual, dispersaram-se, indo cada qual para o posto que lhe competia quando não estavam junto dos canhões.

Já era dia. O velo baixo de vapor desvanecera-se, afugentado pelo sol que, pouco antes, o glorificara tanto. E o ar, claro e sereno em derredor, lembrava o bloco branco e liso de mármore ainda guardado no pátio do mercador.

 

XXIV

 

A simetria de forma que se pode obter na ficção pura não se consegue com igual presteza numa narração que, em sua essência, tem muito menos de fábula que de realidade. Dita sem transigências, a verdade mostra sempre as suas ásperas arestas; daí que a conclusão desta narrativa será dificilmente menos acabada que um remate arquitetônico.

O que sucedeu ao Guapo Marinheiro durante o ano do Grande Motim foi fielmente referido. Mas se bem a história termine propriamente com a sua vida, algo a jeito de conclusão se impõe. Três breves capítulos bastarão.

Na rebatização geral, ao tempo do Diretório, das naves que primitivamente constituiam a esquadra da monarquia francesa, o navio de guerra St. Louis foi rebatizado com o nome de Athéiste, que, à semelhança de outros nomes da frota revolucionária, ao mesmo tempo que proclamava a audácia infiel do poder governante, era (embora não propositadamente) o mais adequado que já se deu a um vaso de guerra; muito mais, em realidade, que Devastation ou Eritus (Inferno) e outros semelhantes.

Ao voltar para juntar-se à esquadra inglesa, regressando da missão em que haviam ocorrido os sucessos já mencionados, o Indomitable topou com o Athéiste. Seguiu-se um combate, durante o qual, ao colocar o seu navio ao lado do barco inimigo a fim de abordá-lo, o Capitão Vere foi atingido por uma bala de mosquete disparada da vigia do camarote principal do adversário. Fora de combate, caiu sobre o convés e foi transportado para a enfermaria, onde já se encontravam alguns de seus homens. O Primeiro Imediato assumiu o comando. Sob as suas ordens, capturou-se afinal a embarcação francesa, que, embora muito avariada, foi, por uma boa fortuna extraordinária, conduzida a bom recado a Gibraltar, forte britânico não muito distante da cena da batalha. Lá desceu à terra o Capitão Vere com o resto dos feridos. Viveu ainda alguns dias, mas poucos. Desgraçadamente morreu demasiado cedo para alcançar as batalhas do Nilo e de Trafalgar. O espírito que ainda poderia, a despeito da austeridade filosófica, entregar-se à mais secreta de todas as paixões — a ambição — nunca atingiu a plenitude da fama.

Não muito antes de morrer, sob a influência da droga mágica que, aliviando o corpo, opera misteriosamente sobre o elemento mais sutil do homem, ouviram-no murmurar palavras inexplicáveis para o enfermeiro:

— Billy Budd, Billy Budd.

Que não era esse o acento do remorso se infere do que disse o enfermeiro ao vigoroso oficial de fuzileiros do Indomitable, que, como o membro do conselho sumário de guerra menos inclinado a condenar, sabia muito bem (posto não o revelasse) quem era Billy Budd.

 

XXV

 

Algumas semanas após a execução, entre outros assuntos enfeixados sob o título genérico de Notícias do Mediterrâneo, surgiu em crônica naval do tempo, estampada num semanário autorizado, um relato do caso. Fora escrito, sem dúvida alguma, com boa-fé, se bem o meio, constituído em parte de boatos, através do qual chegaram os fatos ao conhecimento do autor, servisse de desviá-los e falseá-los. Era o seguinte:

"No dia dez do mês próximo passado deplorável ocorrência verificou-se a bordo do H.S.M. Indomitable. Jonn Claggart, o Mestre-de-armas do navio, tendo descoberto que uma espécie de conspiração principiava a alastrar-se por uma seção inferior do pessoal, cujo cabeça era um certo William Budd, ele, Claggart, quando acusava o homem em presença do Comandante foi vingativa e repentinamente ferido em pleno coração pela faca de Budd.

"O ato e o instrumento empregado sugerem que o assassino, embora recrutado sob um nome inglês, não era inglês, mas um desses estrangeiros que adotam nomes ingleses e cujo recrutamento em grande número tem sido exigido pelas atuais necessidades extraordinárias do Serviço.

"A enormidade do crime e a extrema depravação do criminoso são ainda acentuadas pelo caráter da vítima — um homem de meia idade, respeitável e judicioso, que pertencia à classe dos oficiais subalternos, dos quais, como ninguém melhor o sabe que os superiores, tanto depende a eficiência da Marinha de Sua Majestade. As suas funções eram de grande responsabilidade — ao mesmo tempo onerosas e ingratas — e a sua fidelidade a elas ainda maior em razão do seu vigoroso impulso patriótico. Neste caso, como em tantos outros exemplos hodiernos, o caráter da desgraçada vítima refuta vigorosamente, se preciso fosse refutá-lo, o dito impertinente atribuído ao finado dr. Johnson, de que o patriotismo é o último refúgio de um patife.

"O criminoso pagou a pena de seu crime. A presteza da punição foi salutar. Nada de anormal se receia agora a bordo do Indomitable

O item acima apareceu numa publicação, hoje antiqüíssima e inteiramente apagada da lembrança dos homens, para demonstrar quem eram, respectivamente, John Claggart e Billy Budd (4).

 

XXVI

 

Tudo, por uma razão qualquer, é notável entre marinheiros. Qualquer objeto tangível associado a um incidente extraordinário logo se converte em monumento. A verga a que foi suspenso o gajeiro do mastro do traquete permaneceu durante alguns anos na memória dos marinheiros. A seguir, a lembrança a acompanhou do navio ao estaleiro, depois do estaleiro ao navio e perseguiu-a até que a viu finalmente reduzida a um simples botaló. Para eles, um pedaço dela era como um pedaço da Cruz. Embora ignorassem os fatos verdadeiros e achassem que a punição fora inevitável do ponto de vista naval, sentiam instintivamente que Billy pertencia à espécie de homens incapazes assim de rebeldia como de assassínio premeditado. Lembravam-se da imagem fresca e jovem do Guapo Marinheiro, do rosto nunca deformado por um riso escarninho ou por uma fantasia maldosa e mais sutil do coração que lhe batia dentro do peito! A impressão deixada por ele era duplamente acentuada pelo fato de que se fora e, de certo modo, misteriosamente. Nas cobertas do Indomitable a estima geral de sua natureza e da inconsciente simplicidade dela encontraram, um belo dia, tosca expressão em outro gajeiro do mastro do traquete, rapaz de sua própria turma, dotado, como certos marinheiros, de um temperamento poético sem arte. As mãos alcatroadas compuseram uns versos que, depois de circularem pela tripulação do navio durante algum tempo, foram afinal impressos em Portsmouth à guisa de balada. O título que lhe deram foi o próprio nome do marinheiro:

 

 

BILLY AGRILHOADO

 

Bom é o Capelão por vir ao presídio

e ajoelhar-se aqui e rezar

pelos que são iguais a mim, Billy Budd, — mas olhe:

através das grades o luar chega até aqui!

Prateia a adaga do guarda e também este canto!

Mas morrerá quando chegar a alvorada do último dia de Billy!

Amanhã pendente da forca, serei tal e qual

o pingente do brinco que dei a Molly.

Suspenso, estarei eu, não o ato da execução.

Ai, ai, tudo está terminado; e eu devo subir para o martírio de manhã bem cedo.

Não irei com a barriga vazia.

Dar-me-ão um pedaço de rosca antes que me vá.

Seguramente, um companheiro oferecer-me-á a bebida do adeus,

Mas voltará as costas para o laço da forca.

Sabe Deus, quem terá de puxar a corda!

Minha visão está nublada, eu, de certo, estou sonhando!

Donald prometeu acompanhar-me até ao fim.

Assim uma mão amiga apertará a minha antes que me afunde nas águas.

Mas — que importa? — se, nesse instante, já estarei morto...

Eu me lembro do galês Taff, quando ele foi lançado ao mar.

Seu rosto estava vermelho como um cravo entreaberto...

Mas eles me amarrarão na maca, e lançar-me-ão

nas profundezas do mar, dormindo pesadamente.

Sentinela, você está aí?

Apenas ajeite as cadeias dos meus pulsos...

Enrole-me bem nesses panos.

Estou com sono, e as limosas plantas marinhas já enroscam em mim.

 

 

Notas

(1) Antigo navio de guerra assim chamado por ser equipado com setenta e quatro canhões.

(2) Uma concepção humorística dos campos elíseos destinados aos marinheiros e tripulantes de navios, onde o crédito é permanente e há sempre, para cada marujo, uma garota, um copo cheio e uma canção.

(3) Melville observa neste passo: “Irrupção de idéias heréticas difícil de conter".

(4) Uma nota do autor, riscada, lê-se neste ponto do manuscrito original. Diz ela: "Aqui termina uma história verdadeira ocorrida neste nosso mundo incongruente — inocência e fraqueza, depravação espiritual e generosa cortesia".

 

 

 

 

 


Benito Cereno

 

No ano de 1799, comandando um navio de grande tonelagem equipado para a pesca da foca e cargas em geral, o Capitão Amasa Delano, de Duxbury, Massachussets, fundeara com valiosa carregação no porto de Santa Maria — erma ilhota desabitada na extremidade meridional da extensa costa do Chile. Lá abicara a fim de abastecer-se de água.

No segundo dia, pouco depois do alvorecer, enquanto descansava no camarote, o imediato foi informá-lo de que uma vela estranha penetrava a baía. Nessa época não eram ainda os navios tão numerosos quanto hoje naquelas águas. Levantou-se, vestiu-se e subiu ao convés.

Na manhã característica daquelas paragens, tudo permanecia mudo, calmo e cinzento. Se bem ondulasse em longas extensões de ondas, o mar se diria fixo e apresentava uma superfície lisa como a do chumbo esfriado na forma do fundidor. O céu lembrava um manto cor de cinza. Bandos de inquietos pássaros cinzentos, de cambulhada com bandos de inquietos vapores cinzentos, com os quais se misturavam, deslizavam baixo e caprichosamente sobre as águas, como resvalam as andorinhas sobre os prados antes da tempestade. Sombras presentes, que pressagiavam sombras futuras mais densas.

Para espanto do Capitão Delano, o estranho, observado com a ajuda do binóculo, não içara pavilhão algum, embora o fazê-lo ao entrar num porto, por desertas que fossem as suas praias, e ainda que outro navio apenas lá estivesse ancorado, fosse costume geral entre os marujos pacíficos de todas as nações. Em face da completa ausência da lei no lugar, e da solidão que nele campeava, além das histórias que então corriam sobre aqueles mares, a surpresa do Capitão Delano se teria convertido em intranquilidade não fosse ele naturalmente bom e confiante e incapaz, senão diante de estímulos extraordinários e reiterados, de alarmar-se quando o alarme implicasse numa imputação de aleivosia a um semelhante. Quanto a determinar, em vista de tudo o que é capaz a humanidade, se esse característico revela, além de um coração bondoso, uma percepção intelectual mais do que ordinariamente rápida e penetrante, deixaremos que o decidam os sábios.

Fossem, porém, quais fossem as suspeitas que pudessem acudir ao espírito de qualquer marinheiro avistando pela primeira vez o estranho, elas se teriam dissipado à observação de que o navio, ao entrar no porto, se abeirava demasiado da terra, embora existisse ali um recife submarino, pouco adiante de sua proa, o que parecia demonstrar tratar-se de um estranho, não somente para o barco de pesca senão também à ilha; por conseguinte, não poderia ser um flibusteiro afeito àquele oceano. Interessadíssimo, continuou a observá-lo o Capitão Delano — observação, aliás, não muito facilitada pelos vapores que em parte lhe envolviam o casco, através dos quais a distante luz matinal de seu camarote se projetava de maneira assaz equívoca; muito semelhante nisso ao sol — cujo hemisfério superior, a esse tempo, já surdia da fímbria do horizonte e, aparentemente, em companhia do navio estranho, entrava no porto — que, velado pelas mesmas nuvens baixas, luzia como o olho sinistro de uma intrigante de Lima examinando a Plaza através da abertura indiana de sua negra saya-y-manta.

Podia ser apenas uma ilusão provocada pelos vapores, mas quanto mais se observava o estranho, tanto mais singulares pareciam as suas manobras. Logo se tornou difícil conjecturar se pretendia ou não entrar no porto — qual o seu objetivo ou qual o seu movimento seguinte. O vento, que soprara um pouco durante a noite, soprava agora leve e caprichosamente, o que servia de aumentar ainda mais a aparente incerteza de sua marcha.

Suspeitando, afinal, que podia tratar-se de um navio em perigo, o Capitão Delano ordenou que lhe arriassem a baleeira, e, a despeito da prudente oposição do imediato, preparou-se para ir a bordo do navio e conduzi-lo ao surgidouro. Na noite anterior, um grupo de marinheiros fora pescar nuns rochedos apartados, invisíveis do navio de pesca, e, uma ou duas horas antes do alvorejar, regressara com os frutos de bem sucedida expedição. Imaginando que o estranho talvez tivesse parado muito tempo em águas profundas, o bondoso capitão pôs diversas cestas de peixes no escaler e partiu. Como o estranho continuasse a aproximar-se do recife submarino, supô-lo em perigo e apressou os seus homens, a fim de inteirar os que estavam a bordo do risco que corriam. Mas, pouco depois, antes que a baleeira o alcançasse, o vento, embora leve, começando a soprar em outra direção, afastou o navio do escolho e dissipou, em parte, os vapores que o cercavam.

Examinado de mais perto, quando pôde ser visto no fastígio das ondas pardacentas, ainda envolto em farrapos de bruma, surgiu o navio como um mosteiro caiado depois de uma tempestade, empoleirado nalguma escarpa sombria dos Pireneus. Mas não foi apenas uma semelhança fantástica que, momentaneamente, quase levou o Capitão Delano a julgar que tinha diante de si um carregamento de monges. Espiando por sobre a amurada via-se o que de fato parecia, na distância brumosa, um aglomerado de frades negros; ao mesmo passo que, lobrigadas através das vigias abertas, outras figuras móveis e negras se distinguiam, caprichosas e vagas, como dominicanos passeando num claustro.

Mais perto ainda voltou a modificar-se o aspecto e as verdadeiras características do navio se revelaram — um barco mercante espanhol de primeira classe, que transportava, entre outras cargas de valor, escravos negros de um porto colonial a outro. Era um batel muito grande e, para o seu tempo, muito bonito, quais, então, não raro, se encontravam naquele oceano; naus que haviam servido para o transporte dos tesouros de Acapulco, ou fragatas dispensadas da esquadra do rei de Espanha, que, à semelhança de vetustos palácios italianos, ainda conservassem, a despeito do declínio dos amos, vestígios do primeiro esplendor.

À proporção que se avizinhava a baleeira, percebia-se que o tom gredoso da embarcação era causado pelo sujo desleixo que principiava a senhoreá-Ia. Os mastros, as cordas e a maior parte das amuradas pareciam lanuginosos em razão da longa falta de contacto com a raspadeira, o alcatrão e a escova. Dir-se-ia que a quilha fora construída, o cavername ajustado e o barco lançado à água no Vale das Ossadas Secas de Ezequiel.

Apesar dos negócios em que o navio devia ser utilizado, o tipo e a mastreação não pareciam ter sofrido nenhum desvio essencial do primitivo e belicoso modelo à Froissart. Entretanto, não se lhe viam canhões.

Os cestos da gávea eram grandes e rodeados do que fora outrora uma rede octogonal, mas agora em péssimo estado. Suspensos no ar como três aviários desmantelados, via-se num deles, empoleirado num enfrechate, um dorminhoco branco, pássaro estranho, assim chamado em virtude do seu jeito sonambúlico e letárgico e que no mar frequentemente se apanha com a mão. Desconjuntado e enferrujado, o castelo de proa semelhava uma torre antiga, tomada de assalto havia muito tempo e logo desamparada. Perto da popa, duas altas galerias — com os balaústres aqui e ali cobertos de algas secas e inflamáveis — continuavam o camarote principal, vazio, cujos postigos, apesar do tempo bom, se mantinham hermeticamente fechados e calafetados — esses balcões desocupados se debruçavam sobre o mar como sobre o Grande Canal de Veneza. Mas a principal relíquia da passada grandeza era o cadaste enorme, ovalado, com forma de escudo, em que se viam complicadamente esculpidas as armas de Castela e de Leão, cercado de medalhões que representavam grupos mitológicos e simbólicos; o medalhão central, acima dos outros, simbolizava um negro sátiro mascarado, com o pé sobre o pescoço prostrado de uma figura, também mascarada, que se debatia.

Se o navio levava uma figura no talhamar ou um simples beque era impossível precisar, em virtude da lona que lhe encobria essa parte, quer para protegê-la enquanto sofria uma limpeza geral, quer para disfarçar-lhe a decadência. Toscamente pintada ou desenhada com giz, como fantasia de marinheiro, ao longo da parte anterior de uma espécie de pedestal abaixo da lona, lia-se a sentença, "Seguid vuestro jefe" (Segui o vosso chefe); ao passo que, nos paveses da roda da proa, alcatroados, não muito distantes, em majestosas maiúsculas, outrora douradas, lia-se o nome do navio "SAN DOMINICK", cada uma de cujas letras fora corroída pela ferrugem que escorrera dos pregos de cobre; ao passo que, à semelhança de ervas funerárias, negros festões de algas viscosas balouçavam sobre o nome a cada oscilação do casco, lembrando o balançar de um esquife.

E como fosse, por fim, a baleeira fisgada à altura do portaló, a sua quilha, antes de tocar o casco do navio, rangeu asperamente como se batesse num recife submarino de coral. Era uma enorme saliência de crustáceos conglomerados, que aderiam debaixo da água aos flancos da embarcação como verruga — testemunho das brisas caprichosas e das longas calmarias, que haviam retido o navio por aqueles mares.

Subindo a bordo, foi o visitante incontinenti cercado de ruidoso ajuntamento de brancos e negros, estes muito mais numerosos do que aqueles, em proporção inesperada, pasmosa até numa embarcação negreira, como aquela. Entretanto, numa língua só e a uma voz, todos entraram a narrar a mesma história de sofrimentos, em que as negras, quantiosas, se avantajavam aos demais na dolorosa veemência. O escorbuto e uma febre tinham dizimado grande parte da tripulação, mormente os espanhóis. Ao largo do Cabo Horn tinham escapado por um triz de naufragar; depois, por dias e dias, haviam permanecido imóveis, à míngua de vento; as provisões escasseavam; já quase não tinham água; os seus lábios pareciam assados.

Ao passo que o Capitão Delano servia assim de alvo àquelas línguas insofridas, o seu olhar ardente abrangeu todos os rostos e, com eles, os objetos que os cercavam.

Sempre que, pela primeira vez, em pleno mar, pomos o pé num navio grande e populoso, especialmente quando se trata de um navio estranho, com uma tripulação indescritível, como de nativos de Manilha ou da índia Oriental, a nossa impressão difere particularmente da que nos assalta ao penetrarmos uma casa estranha, de estranhos habitantes, numa terra estranha. Assim a casa como o navio — a primeira com as paredes e gelosias, o segundo com as altas amuradas que semelham muralhas — escondem à vista o seu interior até ao derradeiro momento; mas no caso do navio cumpre acrescentar que, ao ser súbita e completamente revelado, o espetáculo vivo que ele encerra, em contraste com o ermo oceano que o circunscreve, apresenta como que o efeito de um encantamento. Parece irreal; e os trajos, rostos e gestos singulares afiguram-se-nos um quadro vivo fantasmagórico que emergisse das profundezas marinhas, prontas para engolir o que acabam de revelar.

Talvez uma influência semelhante à que tentamos descrever exagerasse, no espírito do Capitão Delano, o que, depois de frio exame, pudesse parecer inusitado, mormente as notáveis figuras de quatro negros já grisalhos, cujas cabeças lembravam cimos negros e vacilantes de salgueiros, que, em venerável contraste com o alvoroço que ia no convés, estavam recostados como esfinges, um no turco de estibordo, outro no de bombordo, ao passo que os dois restantes se defrontavam, encarapitados nas amuradas opostas, acima dos porta-ovéns. Cada qual tinha nas mãos pedaços de cabos velhos e, com uma espécie de estóica satisfação descochavam-nos para convertê-los em estopa, já amontoada ao lado de cada um. Acompanhavam o serviço de um canto contínuo, baixo e monótono; rumbindo e ululando como outros tantos encanecidos tocadores de gaita que executassem uma marcha fúnebre.

Erguia-se o galhardo formando ampla popa assobradada, em cuja borda anterior, uns oito pés .acima da multidão, como os fazedores de estopa, estavam sentados em fila, separados por intervalos regulares, seis negros de pernas cruzadas, empunhando machadinhas enferrujadas, que se entretinham em polir com um caco de tijolo e um trapo, como fazem os lavadores de pratos; e viam-se entre eles pilhas de machadinhas, com os fios oxidados voltados para a frente, à espera de operação semelhante. Embora, de vez em quando, os quatro fazedores de estopa se dirigissem, lacônicos, a uma ou mais pessoas da multidão que estava embaixo, os seis polidores de machadinhas não falavam com ninguém nem sequer trocavam uma palavra entre si, absortos na sua tarefa, a não ser nos momentos em que, com a tendência característica dos negros de unirem o trabalho à distração, batiam as machadinhas umas contra as outras, de dois em dois, como címbalos, com bárbaro estardalhaço. Todos os seis, à diferença dos demais, tinham o rude aspecto de africanos legítimos.

Mas o primeiro olhar compreensivo que abrangeu as dez figuras, além de outras menos notáveis, nelas pousou apenas um instante, como se, exasperado pela algazarra, o visitante se voltasse à procura do comandante do navio.

Mas, como se quisesse deixar que a natureza se expressasse pela voz da própria tripulação sofredora, ou se julgasse impotente para reprimi-la naquele momento, o capitão espanhol, homem de porte fidalgo e reservado, moço ainda aos olhos de um estranho, trajado com singular riqueza, mas apresentando sinais evidentes de vigílias, cuidados e inquietudes recentes, mantinha-se passivamente arredado e ora dirigia um triste olhar sem ânimo ao pessoal alvorotado, ora considerava com expressão infeliz o visitante. Ao lado dele, via-se um negro de pequena estatura, em cujo rosto rude, mudamente erguido, a trechos, para o do espanhol, como um cão de pastor, mesclavam-se em doses iguais a tristeza e a afeição.

Abrindo caminho através da multidão, acercou-se o americano do espanhol, transmitiu-lhe as suas simpatias e ofereceu-se para prestar-lhe toda e qualquer assistência que estivesse ao seu alcance. Ao que só respondeu o espanhol, a princípio, com graves e cerimoniosos agradecimentos, pois o humor saturnino da moléstia lhe acentuava o formalismo da raça.

Mas sem perder tempo em simples cumprimentos, voltou o Capitão Delano ao portaló e mandou que içassem o cesto de peixes; e como o vento continuasse brando, de sorte que ainda teriam de esperar algumas horas antes que a embarcação pudesse ancorar, ordenou aos seus homens que voltassem ao navio de pesca e dele trouxessem quanta água coubesse na baleeira, todo o pão fresco de que dispusesse o despenseiro, todas as abóboras que restassem, uma caixa de açúcar e uma dúzia de suas próprias garrafas de sidra.

Poucos minutos depois de se haver afastado a baleeira, para mortificação geral, o vento cessou completamente, e, mudando a maré, esta principiou a carregar o navio, indefeso, na direção do alto-mar. Fiando-se, porém, de que isso não duraria muito tempo, procurou o Capitão Delano animar os estranhos, regozijando-se com o fato de poder conversar fluentemente na própria língua delas com pessoas naquelas condições — graças às suas viagens freqüentes ao longo do litoral espanhol.

Ficando a sós com os tripulantes, não tardou em observar algumas coisas que tendiam a acentuar-lhe as primeiras impressões; mas perdeu-se na piedade a surpresa, assim pelos espanhóis como pelos negros, todos manifestamente abatidos pela carência de água e provisões; ao passo que os aturados padecimentos pareciam ter posto em evidência as menos boas qualidades dos negros, debilitando, ao mesmo tempo, a autoridade dos espanhóis sobre eles. Naquelas circunstâncias, todavia, era precisamente esse estado de coisas que se devera prever. Nos exércitos, nas esquadras, nas cidades ou nas famílias, na própria natureza, nada contribui tanto para afrouxar a boa ordem quanto a miséria. Não obstante, continuava a pensar o Capitão Delano que, tivesse sido Benito Cereno um homem de maior energia e a desordem não teria chegado àquele ponto. Mas a debilidade, constitucional ou motivada pelos sofrimentos, físicos e mentais, do capitão espanhol, era tão evidente que não poderia passar despercebida. Presa de permanente abatimento, como se, longamente iludido pela esperança não quisesse entregar-se a ela nem sequer no momento em que ela cessara de iludi-lo, nem a perspectiva de fundear naquele dia ou, quando muito, naquela noite, com abundância de água para a sua gente e um capitão fraternal, conselheiro e amigo, parecia animá-lo. Dir-se-ia que tivesse o espírito arrasado ou em piores condições ainda. Encerrado entre aquelas paredes de carvalho, acorrentado à monótona rotina do comando, cujo incondiocionalismo o embotava, movia-se lentamente de um lado para outro, como um abade hipocondríaco, parando às vezes de improviso, estremecendo, fitando os olhos em algum ponto, mordendo os lábios, mordendo as unhas, corando, empalidecendo, cofiando a barba, ou apresentando outros sintomas de um espírito alheado ou caprichoso. A mente enferma, alojava-se, como há pouco insinuamos, num organismo igualmente enfermo. Se bem fosse um homem alto, nunca devera ter sido robusto, e os padecimentos nervosos o haviam quase reduzido a um esqueleto. Uma tendência para alguma afecção pulmonar parecia ter-se confirmado recentemente. A voz era a de quem só tivesse metade dos pulmões — rouca e abafada, um murmúrio cavernoso. Não admirava que, no estado em que se achava, o Seu criado particular o seguisse, apreensivo. O negro, às vezes, dava o braço ao amo ou tirava-lhe o lenço do bolso, para entregar-lho, executando estes e outros serviços parecidos com o zelo afetuoso que empresta um quê de filial ou fraterno a gestos de si puramente domésticos; e que deu ao negro a fama de ser o criado mais agradável do mundo, com o qual não precisa o amo de manter-se em posição de rígida superioridade, mas que pode tratar com familiaridade confiante; menos criado que dedicado companheiro.

Observando a ruidosa indocilidade dos negros em geral e o que imaginou ser a, taciturna inépcia dos brancos, não foi sem uma satisfação muito humana que o Capitão Delano reparou na constância e no bom proceder de Babo.

Mas nem o bom proceder de Babo, nem os maus modos dos outros, pareciam arrancar o semilunático Dom Benito à sua turva prostração. Não que fosse precisamente essa a impressão produzida pelo espanhol no espírito do visitante. O seu desassossego particular fora, a princípio, apenas interpretado como um notável característico do desconserto geral do navio. Sem embargo, sentiu-se bastante preocupado o Capitão Delano com o que se lhe afigurou a inamistosa indiferença de Dom Benito. De mais a mais, os modos do espanhol produziam a impressão de um acre e sombrio desdém que ele não parecia dar-se ao trabalho de disfarçar. Mas isso o americano, caridoso, atribuiu às devastadoras conseqüências da moléstia, pois já lhe fora dado observar que certas naturezas especiais, por efeito de um prolongado sofrimento físico, perdem todo e qualquer instinto social de amabilidade; como se, reduzidas a pão e água, considerassem justo que todo aquele que delas se aproximasse fosse indiretamente levado, pelo descaso ou pela afronta, a compartir de sua sorte.

Não tardou, porém, o Capitão Delano em refletir que, embora, a princípio, tivesse sido indulgente no julgar o espanhol, não se mostrara, afinal de contas, suficientemente caridoso. No íntimo, era a reserva de Dom Benito que lhe desagradava; mas o espanhol fazia praça da mesma reserva em relação a todos, exceto ao criado particular. Nem os informes regulamentares que, segundo o costume, lhe eram transmitidos, de tempos a tempos, por algum subordinado, branco, mulato ou negro, ouvia ele com paciência e sem manifestar uma desdenhosa aversão. Os seus modos nessas ocasiões lembravam, guardadas as devidas proporções, os que deveriam ter sido os de seu imperial compatriota, Carlos V, pouco antes de renunciar ao trono para viver como anacoreta.

Essa esplenética aversão ao posto evidenciava-se em quase todas as funções que lhe eram pertinentes. Tão orgulhoso quanto taciturno, não condescendia em nenhuma ordem pessoal. Sempre que se faziam necessárias ordens especiais, delegava-lhes a transmissão ao criado, que, por seu turno, as transmitia à sua última destinação, por intermédio de mensageiros, trêfegos grumetes espanhóis ou meninos escravos que, como pajens ou peixes-pilotos, volteavam continuamente à roda de Dom Benito, ao alcance de sua voz. De sorte que, diante do inválido recolhido que se movia de um lado para outro, apático e mudo, nenhum habitante da terra firme teria imaginado que nele residia um poder ditatorial além do qual, no mar, não havia nenhum recurso humano.

Destarte, considerado em seu retraimento, parecia o espanhol vítima involuntária de uma alienação mental. Em realidade, porém, até certo ponto era possível que essa reserva resultasse de um projeto. A ser assim, nela se patenteava o cúmulo mórbido da prudência, fria mas conscienciosa, mais ou menos adotada por todos os comandantes de navios de grande calado, que, a não ser em graves emergências, oblitera ao mesmo passo as manifestações de autoridade e todos os vestígios de sociabilidade, transformando o homem numa pedra ou melhor, num canhão carregado, que, enquanto não precisa disparar, não tem o que dizer.

Considerada a essa luz, era apenas uma conseqüência natural do hábito perverso incutido pelo aturado exercício desse tremendo domínio de si próprio, a despeito do estado atual do seu navio, a persistência ao espanhol em manter uma atitude que, embora inofensiva, e talvez adequada no princípio da viagem de um navio tão bem aparelhado como o San Dominick, poder ia ser tudo menos judiciosa naquelas circunstâncias. Mas talvez entendesse o espanhol que se dava com os capitães o que se dá com os deuses: a reserva, sejam quais forem as contingências, há de ser o seu lema. Como também não seria impossível que a aparência de sonolenta autoridade fosse tão só uma tentativa para disfarçar uma fraqueza consciente — não uma prudência profunda, senão um superficial artifício. Mas, de qualquer maneira, premeditada ou não, quanto mais a observava o Capitão Delano, tanto menos preocupado se sentia ante qualquer manifestação particular dessa reserva em relação a si mesmo.

Nem se concentravam os seus pensamentos apenas no capitão. Habituado à ordem tranqüila em que vivia, como numa família feliz, a tripulação do navio de pesca, a bulhenta confusão das hostes padecentes do San Dominick lhe chamava repetidamente a atenção. Observavam-se algumas violações graves não somente da disciplina mas do próprio decoro, que o Capitão Delano só podia atribuir, de um modo geral, à ausência de oficiais subordinados, aos quais incumbe, além de tarefas mais importantes, o que se poderia denominar o policiamento de um navio populoso. E verdade que os velhos fazedores de estopa, às vezes, pareciam desempenhar a parte de gendarmes admonitórios em relação aos seus patrícios, os negros; mas embora lograssem, de vez em quando, apaziguar pequenas rixas que, a revezes, surgiam entre os homens, pouco ou nada podiam fazer no sentido de restabelecer a tranqüilidade geral. Estava o San Dominick nas condições de um navio transatlântico de emigrantes, entre cuja multidão de carga viva há, sem dúvida, indivíduos tão pouco desordeiros quanto um fardo ou um engradado; mas ás amistosas admoestações que dirigem aos companheiros mais rudes não são tão eficientes quanto 0 punho inamistoso do imediato. O que faltava ao San Dominick era o que tem o navio de emigrantes: severos oficiais superiores. Mas no convés não se via sequer um quarto imediato.

O visitante quis conhecer os pormenores dos contratempos que haviam determinado essa falta, e suas conseqüências; pois, se bem lhe tivessem fornecido algumas indicações vagas sobre a viagem os lamentos com que a princípio fora saudado, não alcançara ainda perfeita compreensão dos pormenores. O melhor relato lhe seria fornecido, sem dúvida, pelo capitão. De início, porém, o visitante relutou em pedi-lo, não querendo provocar uma repulsa distante. Mas, armando-se de coragem, acercou-se por fim de Dom Benito, reiterando a expressão de seu benévolo interesse e ajuntando que, se ele (o Capitão Delano) conhecesse miudamente os contratempos sofridos pelo navio, talvez se visse em melhor posição para remediá-los. Far-lhe-ia Dom Benito o obséquio de contar-lhe a história toda?

Perturbou-se o capitão; depois, como sonâmbulo subitamente despertado, fitou os olhos distraídos no interlocutor e logo os abaixou para o convés. Durante tanto tempo permaneceu nessa posição, que o Capitão Delano, quase tão desconcertado quanto ele, e involuntariamente quase tão grosseiro, virou-lhe as costas e endereçou-se a um marinheiro espanhol para pedir-lhe a desejada informação. Mal dera, porém, cinco passos, quando Dom Benito, com uma espécie de ânsia, convidou-o a voltar, lamentando a sua momentânea distração e dizendo-se disposto a satisfazê-lo.

Enquanto era referida a maior parte da história, permaneceram os dois capitães na parte posterior do convés principal, lugar privilegiado, longe de todos exceto do criado.

— Faz hoje cento e noventa dias, — principiou o espanhol no seu murmúrio rouco, — que este navio, bem equipado e bem tripulado, com vários passageiros (uns cinqüenta espanhóis ao todo) zarpou de Buenos Aires com destino a Lima, com um carregamento variado, chá do Paraguai e coisas desse gênero, e, — ajuntou, apontando para a frente, — esse lote de negros, agora reduzidos a cento e cinqüenta, como o senhor está vendo, mas que no início eram mais de trezentas almas. Ao largo do Cabo Horn encontramos violentas tempestades. De um momento para outro, à noite, três dos meus melhores oficiais e quinze marinheiros se perderam, com a verga do mastro grande, pois este se quebrou debaixo deles, enquanto tentavam, com moitões, arriar a vela gelada. Para aliviar o casco, os sacos mais pesados de mate foram atirados ao mar, além de quase todos os reservatórios de água amarrados no convés naquela ocasião. E foi essa última necessidade, aliada às prolongadas demoras que depois experimentamos, que eventualmente nos acarretou os maiores sofrimentos. Quando...

 

Seguiu-se um repentino acesso de tosse, provocado sem dúvida pela sua aflição mental. O criado amparou-o e, tirando do bolso um cordial, levou-o aos lábios do amo. Reanimou-se um pouco Dom Benito. Mas não querendo deixá-lo sem amparo enquanto não se tivesse recobrado de todo, o negro continuou a enlaçá-lo com um braço, enquanto mantinha os olhos cravados em seu rosto, como se estivesse à espreita do primeiro sinal de completa restauração, ou recaída, conforme fosse o caso.

 

Continuou o espanhol, mas com voz entrecortada e incerta, como se estivesse a sonhar.

— Oh, meu Deus! a passar pelo que passei, eu teria preferido mil vezes suportar as mais terríveis tormentas; mas...

Voltou-lhe a tosse, ainda mais violenta; quando se acalmou, com os lábios vermelhos e os olhos cerrados, deixou-se cair pesadamente nos braços do criado.

— O seu espírito delira. Ele estava pensando na peste que se seguiu às tormentas, — suspirou, plangente, o criado; — meu pobre, pobre amo! — continuou, fazendo com uma das mãos um gesto de desespero e, com a outra, enxugando-lhe a boca. — Seja paciente, Señor, — prosseguiu, voltando-se de novo para o Capitão Delano, — esses acessos não duram; o patrão, daqui a pouco, tornará em si.

Reanimando-se, Dom Benito prosseguiu; mas como essa parte da história fosse narrada aos pedaços, referir-lhe-emos apenas a substância.

Parece que depois de se haver debatido o navio durante muitos dias entre borrascas ao largo do Cabo, sobreveio o escorbuto, dizimando grande número de brancos e negros. Quando, afinal, conseguiram atingir o Pacífico, estavam tão avariados os mastros e as velas e tão mal as manejavam os marinheiros sobreviventes, quase todos invalidados, que não podendo seguir a sua rota para o norte com as velas caçadas, pois o vento era forte, o navio ingovernável, durante dias e noites seguidos, foi levado para noroeste, onde o vento, de repente, o desamparou, deixando-o em mares desconhecidos, no meio de calmarias sufocantes. A ausência dos reservatórios de água foi, nesse momento, tão fatal à vida quanto fora antes a sua presença ameaça contra ela. Provocada, ou melhor, agravada pela quota escassíssima de água, uma febre maligna sucedeu ao escorbuto e, auxiliada pelo calor excessivo das prolongadas calmarias, trabalhou tanto e tão bem que varreu, como por vagas, famílias inteiras de africanos e números ainda maiores, proporcionalmente, de espanhóis, incluindo, por desgraçada fatalidade, todos os restantes oficiais ctue se encontravam a bordo. Conseqüentemente, ao soprarem os Dons ventos do oeste, que eventualmente sucederam à calmaria, as velas já rasgadas, que haviam de ser apenas arriadas e não ferradas, à medida das necessidades, tinham sido gradualmente reduzidas a farrapos. A fim de obter substitutos para os marinheiros perdidos e suprimentos de água e velas, aproara o capitão, na primeira oportunidade, a Baldivia, o mais meridional dos portos civilizados do Chile e da América do Sul; mas ao aproximar-se da costa, o tempo borrascoso impedira-o até de avistar o porto. E a partir desse período, quase sem tripulação, quase sem velame, quase sem água, entregando, a trechos, os seus mortos ao mar, o San Dominick fizera o papel de peteca, acionado por ventos contrários, iludido pelas correntes e cobrira-se de ervas daninhas durante as calmarias.

— Mas no meio de tantas calamidades, — prosseguiu, roufenho, Dom Benito, virando-se dolorosamente no semi-abraço do criado, — preciso agradecer a esses negros, que embora pareçam indisciplinados a olhos inexperientes, em verdade se houveram com menos indocilidade do que poderia imaginar possível em tais circunstâncias o próprio dono.

A essa altura repetiu-se o delíquio. O espírito voltou a alhear-se; mas ele, tornando em si, continuou, já menos obscuramente:

— Sim, o dono deles tinha razão quando me assegurou que os seus negros não precisariam de grilhões; de sorte que, não somente ficaram no convés, como é costume neste navio, e não foram atirados ao porão como se faz nos navios negreiros, mas também puderam, desde o princípio, andar por onde entendessem, dentro de certos limites.

Ainda uma vez lhe voltou a fraqueza. Dom Benito delirou. Recobrando-se, continuou:

— Mas é a Babo que eu, depois de Deus, devo não só a minha preservação, como também, sobretudo, o mérito de haver pacificado os seus irmãos mais ignorantes, quando, às vezes, se viam tentados a resmungar.

— Ah, patrão, — suspirou o negro, inclinando o rosto, — não fale de mim; Babo não é nada; o que Babo fez foi apenas cumprir o seu dever.

— Fiel rapaz! — exclamou o Capitão Delano. — Dom Benito, invejo-lhe tal amigo; pois não posso qualificá-lo de escravo.

Vendo diante de si o amo e o negro, esse amparando aquele, o Capitão Delano não pôde deixar de pensar na beleza daquelas relações, capazes de apresentar tão formoso espetáculo de fidelidade de um lado e de confiança de outro. Acentuava a cena o contraste dos trajos, que marcavam as respectivas posições. Vestia o espanhol ampla jaqueta chilena de veludo preto; meias e calções brancos, com fivelas de prata ao nível dos joelhos e do peito do pé; chapéu de copa alta, de palha fina; espadim guarnecido de prata pendia-lhe do talim por meio de um laço — acessório quase invariável, mais útil do que ornamental, do vestuário de um fidalgo sul-americano, até hoje. A não ser quando as contorções nervosas ocasionais provocavam a desordem de toda a sua pessoa, notava-se-lhe certo cuidado no vestir em curioso contraste com a tremenda confusão que se lhe via em torno, sobretudo no gueto caótico diante do mastro grande, inteiramente ocupado pelos negros.

O criado envergava apenas calças largas, feitas, aparentemente, de algum joanete, usado, em virtude da grosseria do tecido e da quantidade de remendos; asseadas, prendiam-se à cintura por um cordão, que, rematando-lhe o ar composto e súplice por vezes, dava-lhe o aspecto de um frade mendicante da ordem de São Francisco.

Posto que inadequado ao tempo e ao lugar, pelo menos no parecer do americano, e se bem sobrevivesse estranhamente a todas as suas vicissitudes, o vestuário de Dom Benito talvez não ultrapassasse o estilo do tempo entre os sul-americanos de sua classe. Embora naquela viagem tivesse zarpado de Buenos Aires, afirmava ter nascido no Chile e residir nesse país, entre cujos habitantes não se generalizara o uso do paletó comum e das calças outrora plebéias; mas, com uma feliz modificação, conservavam as suas vestes provinciais, que se podem incluir entre as mais pitorescas do mundo. Não obstante, em face da pálida história da viagem e do rosto, mais pálido ainda, a indumentária do espanhol parecia, de certo modo, tão incongruente que chegava a sugerir a imagem de um cortesão inválido cambaleando pelas ruas de Londres no tempo da peste.

A parte da narrativa que mais lhe excitara o interesse e alguma surpresa, diante das latitudes em apreço, eram as longas calmarias a que se referira o capitão e, sobretudo, o tempo todo em que o navio desgarrara. Sem, naturalmente, comunicar a sua opinião, o americano não pôde menos de atribuir pelo menos parte das demoras a manobras desastradas e à defeituosa navegação. Considerando as mãos pequenas e amareladas de Dom Benito, chegou facilmente à conclusão de que o jovem comandante não dera as suas ordens dos escovéns, mas da janela do camarote; e se assim fora, que haveria de pasmoso na incompetência de um homem que à juventude aliava a enfermidade e a fidalguia?

Afogando, porém, a crítica na compaixão, após haver reiterado as suas simpatias, o Capitão Delano, tendo ouvido a história, não só tratou, primeiro, de assegurar a Dom Benito e à sua gente a satisfação das necessidades físicas mais prementes, senão também prometeu ajudá-lo a encontrar um grande e permanente suprimento de água, assim como velas e cabos; e, embora isso lhe acarretasse sérias dificuldades, designaria três de seus melhores marinheiros para servirem de oficiais subalternos; a fim de que, sem maiores delongas, pudesse o navio aproar a Concepcion, de onde, reequipado, seguiria para Lima, porto de destino.

Tamanha generosidade não deixou de surtir efeito, inclusive no inválido. Iluminou-se-lhe o rosto; ansioso e febril, encontrou o olhar honesto do visitante. Dir-se-ia que a gratidão lhe transbordasse dos olhos.

— Essa excitação faz mal ao patrão, — murmurou o criado, tomando-lhe o braço e chamando-o delicadamente de parte com palavras acariciantes.

Quando Dom Benito voltou, mortificou-se o americano ao notar que a sua esperança, como o súbito esbrasear de suas faces, fora apenas febril e transitória.

Pouco depois, com uma expressão sem alegria, os olhos fitos na popa, o capitão convidou o hóspede a acompanhá-lo, a fim de aproveitarem a menor brisa que pudesse vir a soprar.

Como, durante a narrativa, tivesse o Capitão Delano estremecido uma ou duas vezes ao estardalhar de címbalos que faziam os polidores de machadinhas, perguntando a si mesmo por que seriam toleradas tais interrupções, mormente naquela parte do navio, e aos ouvidos de um inválido; e, como, de mais a mais, fossem as machadinhas pouquíssimo atraentes, e menos ainda os homens que as manejavam, foi com secreta relutância, e até com certo receio secreto, que o Capitão Delano acedeu ao convite do comandante. Tanto mais que, com um inoportuno capricho de cerimônia, que o seu aspecto cadavérico tornava confrangedor, Dom Benito, com zumbaias castelhanas, instou com o hóspede que subisse primeiro a escada que conduzia ao castelo; onde, de cada lado do último degrau, se viam, como porta-escudos e sentinelas, dois membros da sinistra fila. Cauteloso, passou por eles o bom Capitão Delano e, ao deixá-los para trás, como um homem que passa por uma fila de azorragues, sentiu que se lhe contraiam apreensivamente os músculos da barriga da perna.

Quando, porém, voltou os olhos e deu com toda a fila, como um grupo de tocadores de realejo estupidamente absorto em seu trabalho, sem prestar a mínima atenção ao que se passava em derredor, não pôde deixar de sorrir ao lembrar-se dos seus últimos receios.

Nesse momento, junto do comandante, ao olhar para o convés, mais embaixo, presenciou, impressionado, um dos casos de insubordinação a que já aludimos. Três meninos negros e dois espanhóis estavam sentados sobre as machadinhas e se entretinham em raspar um tosco prato de madeira em que fora recentemente cozida a sua triste ração. A súbitas, encolerizando-se ao ouvir qualquer coisa de um dos companheiros brancos, um negrinho tomou da faca, e, embora admoestado pelos fazedores de estopa, golpeou-lhe a cabeça, produzindo um talho, do qual jorrou sangue.

Pasmado, perguntou o Capitão Delano o que significava aquilo. Ao que o pálido Dom Benito respondeu sombrio, que era apenas uma brincadeira do negrinho.

— Mas uma brincadeira muito séria, — acudiu o Capitão Delano. — Se isso acontecesse a bordo do Bachelor's Delight, seria seguido de imediata punição.

Ouvindo essas palavras fitou o espanhol no americano um daqueles olhares repentinos, fixos, meio loucos; logo, recaindo em seu torpor, retrucou:

— Sem dúvida, sem dúvida.

Seria, perguntou a si mesmo o Capitão Delano, aquele homem impotente um dos capitães de papel que conheci, e que, por prudência, fecham os olhos quando não podem exercer a sua autoridade? Não conheço nada mais triste do que um comandante que de comandante tinha pouco mais que o nome.

— Acredito, Dom Benito, — disse ele depois, olhando para o fazedor de estopa que tentara intervir entre os meninos, — que lhe seria de grande vantagem conservar ocupados todos os seus negros, sobretudo os mais moços, por inútil que seja a tarefa e suceda o que suceder ao navio. Pois até com o meu pessoalzinho considero indispensável essa tática. De uma feita mantive toda a tripulação entretida no castelo de popa tecendo esteiras para o meu beliche, quando, havia já três dias, eu tinha por perdido o meu navio, com esteiras, homens e tudo, em razão da violência de uma borrasca, em que não podíamos fazer outra senão desgarrar à sua mercê.

— Sem dúvida, sem dúvida — murmurou Dom Benito.

— Mas, — prosseguiu o Capitão Delano, tornando a olhar para os fazedores de estopa e para os polidores de machadinhas mais próximos, — vejo que conserva alguns, pelo menos, entretidos.

— Sim, — foi a vaga resposta.

— Aqueles velhos lá embaixo, que agitam os punhos de seus púlpitos, — continuou o Capitão Delano apontando para os fazedores de estopa, — parecem desempenhar o ofício de pastores em relação aos outros, ainda que sejam, às vezes, desatendidas as suas repreensões. Isso é voluntário da parte deles, Dom Benito, ou foi o senhor quem os nomeou pastores do seu rebanho de ovelhas pretas?

— Sejam quais forem os ofícios que exercem, sou eu quem os nomeia, — recalcitrou o espanhol, como se o magoasse alguma suposta reflexão satírica.

— E aqueles outros, aqueles sortílegos de Achanti, — insistiu o Capitão Delano, considerando com certa inquietação o aço que brandiam os polidores de machadinhas e que, em determinados pontos, já começavam a brilhar, — não lhe parecem empenhados em curioso ofício, Dom Benito?

— Nas tormentas que encontramos, — retrucou o espanhol, — a parte do nosso carregamento geral que não foi lançada ao mar foi muito danificada pela água salgada. E assim que principiamos a ter bom tempo, mandei subirem várias caixas de facas e machadinhas para serem vistoriadas e limpas.

— Prudente idéia. Dom Benito. Imagino que seja co-proprietário do navio e da carga; mas talvez não o seja dos escravos?

— Sou dono de tudo o que senhor está vendo, — redargüiu, impaciente, Dom Benito, — com exceção da maior parte dos negros, que pertenciam ao meu finado amigo, Alexandra Aranda.

Ao pronunciar esse nome, pungente expressão lhe contraiu o rosto; tremeram-lhe os joelhos e o criado amparou-o.

Cuidando adivinhar a causa de tão insólita comoção, quis o Capitão Delano ver confirmada as suas conjeturas e disse, após uma pausa:

— Posso perguntar-lhe, Dom Benito, já que o senhor, há pouco, falou em passageiros, se o amigo, cuja perda tão profundamente o aflige, acompanhava os seus negros no princípio da viagem?

— Sim.

— Mas morreu da febre?

— Morreu da febre... Oh, se eu pudesse...

Estremecendo outra vez, o espanhol interrompeu-se.

— Perdoe-me, — voltou, em voz baixa, o Capitão Delano, — mas creio que, por uma experiência parecida, sou capaz, Dom Benito, de adivinhar o principal motivo de sua angústia. Tive, outrora, o infortúnio de perder no mar um amigo querido, meu próprio irmão, comissário da carga. Certo do repouso de sua alma, eu lhe teria suportado a partida como um homem; mas aquele olhar sincero, que tantas vezes havia encontrado o meu, aquela sincera mão e aquele coração ardente, tudo, tudo, como migalhas que se jogam aos cães, atirado aos tubarões! Então jurei que nunca teria como companheiro de viagem um ente querido, se não pudesse, à sua revelia, prover-me de todo o necessário para, numa fatalidade, embalsamar-lhe os despojos mortais a fim de sepultá-los em terra. Se os restos do seu amigo ainda estivessem a bordo deste navio, Dom Benito, a simples menção de seu nome não o comoveria de maneira tão estranha.

— A bordo deste navio? — repetiu o espanhol. Depois, com gestos de horror, que pareciam afastar algum espectro, caiu inconsciente nos braços estendidos do criado, que, num silencioso apelo ao Capitão Delano, parecia implorar-lhe que não volvesse a tocar num assunto tão indizivelmenle doloroso para o amo.

O pobre homem agora, cuidou entre si o penalizado americano, é vítima da triste superstição que associa duendes com o corpo sem vida de um homem e fantasmas com uma casa deserta. Como somos diferentes! Enquanto que para mim, em caso semelhante, isso teria sido causa de júbilo, a sua simples sugestão aterroriza o espanhol e fá-lo desmaiar. Pobre Alexandra Aranda! que dirías se visses aqui o teu amigo, que, em viagens anteriores, quando tu, por meses a fio, ficavas em terra, ansiava de certo por ver-te, ainda que de longe, fica hoje transido de horror ò simples idéia de que possas estar ao seu lado.

Nesse momento, com triste e lúgubre repique, cujo som traía uma rachadura, o sino do castelo de proa, tocado por um dos encanecidos fazedores de estopa, anunciou dez horas através da plúmbea calmaria e a atenção do Capitão Delano foi despertada pelo vulto de um negro gigantesco, que emergia da multidão e, pachorrento, se acercava do galhardo. Trazia à roda do pescoço um colar de ferro, do qual pendia uma corrente, três vezes enrolada em seu corpo e cujos últimos anéis eram reunidos por um cadeado a uma faixa larga de ferro, que lhe servia de cintura.

— Atufal caminha como um mudo, — murmurou o criado.

O negro galgou os degraus da popa, e, como um corajoso prisioneiro que se apresentasse para ouvir a sentença, permaneceu com muda firmeza diante de Dom Benito, que já tornara em si.

Assim que dera com ele. Dom Benito estremecera e uma sombra de ressentimento lhe toldara o rosto; e, como se lhe acudisse a lembrança de uma raiva inútil, apertou os lábios lívidos.

Há de ser algum amotinado cabeçudo, pensou o Capitão Delano, examinando, não sem alguma admiração, a estatura colossal do negro.

— Veja, ele espera a sua pergunta, patrão, — disse o criado.

Ouvindo o lembrete, evitando-lhe nervosamente o olhar, como se quisesse evitar, por antecipação, uma resposta rebelde, assim falou Dom Benito, com voz perturbada:

— Atufal, pedirás agora o meu perdão?

O negro permaneceu em silêncio.

— Outra vez, patrão, — murmurou o criado, considerando o compatrício com intensa expressão de censura, — outra vez, patrão; ele acabará cedendo.

— Responde, — ordenou Dom Benito, evitando-lhe ainda o olhar, — dize apenas uma palavra, perdão, e as correntes te serão tiradas.

Ergueu então o negro, vagarosamente, os dois braços e, deixando-os cair sem vida, ao mesmo passo que lhe retiniam os ferros, inclinou a cabeça, como se quisesse dizer:

— Não, estou satisfeito.

— Vai, — ordenou Dom Benito, com secreta e contida comoção.

Deliberadamente, como viera, o negro obedeceu.

— Desculpe-me, Dom Benito, — sobreveio o Capitão Delano, — mas esta cena me surpreende; que significa ela?

— Significa que só esse negro, entre todos os outros, me deu um motivo particular de agravo. Mandei pô-lo a ferros; eu...

Nesse ponto, interrompeu-se, levando a mão à cabeça, como se o acometesse uma vertigem ou uma repentina confusão da memória; ao encontrar, porém, o afetuoso olhar do criado pareceu tranqüilizar-se e prosseguiu:

— Eu não podia mandar açoitar um homem desse tamanho. Mas disse-lhe que precisava pedir-me perdão. De duas em duas horas, por minha ordem, comparece à minha presença.

— E há quanto tempo dura isso?

— Há uns sessenta dias.

— E é obediente em tudo o mais? Respeitoso?

— É.

— Pela minha consciência declaro, — exclamou, impulsivo, o Capitão Delano, — que esse rapaz tem em si um espírito real.

— E pode ser que faça jus a ele, — volveu com amargura Dom Benito; — segundo diz, esse homem foi rei em sua terra.

— Sim, — acudiu o criado, metendo-se na conversa, — nos buracos das orelhas de Atufal viam-se outrora brincos de ouro; mas este pobre Babo, em sua própria terra, era apenas um pobre escravo; Babo foi escravo de negro e agora é escravo de branco.

Um tanto agastado com essas familiaridades, virou-se com curiosidade o Capitão Delano para o criado e, em seguida, olhou interrogativamente para o amo; mas, como se estivessem havia muito habituados a essas pequenas violações do formalismo, nem o patrão nem o escravo pareceram compreendê-lo.

— Diga-me, por obséquio, Dom Benito, qual foi a ofensa de Atufal? — perguntou o Capitão Delano; — se não foi coisa muito séria, siga o meu conselho e, em vista de sua docilidade geral e por um natural respeito à sua hombridade, suspenda-lhe a pena.

— Não, não, o patrão nunca fará isso, — murmurou o criado, como se falasse consigo mesmo, —o orgulhoso Atufal precisa primeiro pedir perdão. O escravo carrega o cadeado, mas é o patrão quem leva a chave.

Com a atenção assim despertada, notou o Capitão Delano pela primeira vez que, presa a um cordãozinho de seda, pendia uma chave do pescoço de Dom Benito. Adivinhando imediatamente, pelas sílabas que murmurara o escravo, o objetivo da chave, sorriu e disse:

— Por conseguinte, Dom Benito, cadeado e chave; com efeito, dois símbolos expressivos.

Mordendo os lábios, Dom Benito transtornou-se.

Embora o reparo do Capitão Delano, cuja extraordinária simplicidade natural o tornava incapaz de sátira ou de ironia, tivesse sido feito como jocosa alusão ao império singularmente manifesto do espanhol sobre o negro, o hipocondríaco, de certo modo, pareceu tomá-lo como perversa reflexão sobre a sua confessada inabilidade para quebrar, pelo menos por uma intimação verbal, a indômita vontade do escravo. Deplorando essa falsa interpretação, mas sem esperanças de corrigi-la, o Capitão Delano mudou de assunto, vendo, porém, o companheiro mais do que nunca distante, como se ainda digerisse lentamente as fezes da suposta afronta, perdeu também, a pouco e pouco, a própria loquosidade, oprimido, malgrado seu, pelo que se lhe afigurava o secreto rancor do espanhol, morbidamente sensível. Mas o bom marinheiro, de um feitio inteiramente oposto, combateu-lhe a exteriorização e o próprio ressentimento, e se ficou silencioso só o fez por contágio.

Nesse momento, ajudado do criado, o espanhol afastou-se do hóspede com alguma descortesia; gesto que, muito razoadamente, poderia atribuir-se a um capricho ocioso ou até ao mau humor, se o patrão e o escravo, detendo-se ao pé da escotilha, não se pusessem a cochichar. Aquilo era desagradável, sobretudo porque a expressão taciturna do espanhol em que às vezes se podia notar uma espécie de majestade valetudinária, parecia ter perdido a dignidade; ao passo que a servil familiaridade do criado já não tinha o encanto original de ingênua fidelidade.

No seu enleio, voltou o visitante o rosto para o outro lado dó navio. Ao fazê-lo, enxergou acidentalmente um jovem marinheiro espanhol com um rolo de corda na mão, que acabava de deixar o convés e se dirigia para o malhete do mastro da mezena. Talvez o homem não tivesse sido observado se, ao subir ao enfrechate, com uma espécie de secreta intenção, não cravasse os olhos no Capitão Delano, de onde, logo depois, os transferiu, como por seqüencia natural, para os dois cochichadores.

Com a atenção assim dirigida, estremeceu levemente o Capitão Delano, pois qualquer coisa nos modos de Dom Benito naquele mesmíssimo-instante lhe deu a impressão de que fora ele, pelo menos em parte, o objeto da apartada conferência que se realizava — conjetura tão pouco agradável para o hóspede quão pouco lisonjeira para o hospedeiro.

As singulares alternativas de cortesia e falta de educação do comandante eram inexplicáveis senão por duas hipóteses — loucura inocente ou iníqua impostura.

Mas se bem pudesse ocorrer naturalmente a primeira hipótese a um observador indiferente e, até certo ponto, não fosse de todo alheia ao espírito do Capitão Delano, o caso é que, principiando a considerar o procedimento do espanhol à luz de um agravo intencional, virtualmente se anulava a idéia de loucura. Mas, se não era louco, que era então? Naquelas circunstâncias, haveria um fidalgo, ou até um honrado campônio, de representar o papel que representava o seu hospedeiro? Aquele homem era um impostor, um aventureiro de origem vil, disfarçado em grão-senhor do mar; mas tão ignorante dos menores rudimentos de cavalheirismo que se traía pela inaudita descortesia daquele momento. Além disso, o estranho formalismo evidenciado em outras ocasiões parecia característico de alguém que desempenhasse um papel superior ao seu verdadeiro nível. Benito Cereno — Dom Benito Cereno — um nome sonoro, cujo apelido, aliás, não era desconhecido naquele tempo dos comissários e capitães de navios que mercanteavam ao longo do litoral espanhol, pois pertencia a uma das famílias de mercadores mais empreendedoras e mais extensas de todas aquelas províncias; vários de seus membros possuíam títulos; uma espécie de Rothschilds castelhanos, com um irmão ou um primo nobre em cada uma das grandes cidades comerciais da América do Sul. O pseudo Dom Benito teria, quando muito, uns vinte e nove ou trinta anos. Ora, que plano mais sedutor para um jovem tratante talentoso e inteligente do que desempenhar a parte do caçula errante de uma família daquelas? Mas o espanhol era um triste inválido. Embora! Sabia-se que a astúcia de certos trapaceiros chegara ao ponto de simular enfermidades mortais. E dizer-se que sob aquele aspecto de fraqueza infantil podiam esconder-se as mais selvagens energias, e que os veludos do espanhol eram apenas o veludoso disfarce de suas garras!

Essas idéias, porém, não resultavam de uma seqüencia de raciocínios; não vinham de dentro, mas de fora; e repentinas, em tropel, como geada; mas desvaneceram-se com a mesma rapidez assim que o meigo sol da bondade natural do Capitão Delano ascendeu ao seu meridiano.

Tornando a olhar para o hospedeiro, cujo perfil, que se destacava acima da escotilha, estava agora voltado para ele, ficou impressionado com os seus traços, de rara delicadeza, acentuada pela magreza que produzira a enfermidade e enobrecida pela barba. Dissiparam-se as suspeitas. Era realmente o filho de um verdadeiro fidalgo Cereno.

Aliviado por esses e outros melhores pensamentos, trauteando alegremente uma canção qualquer, entrou o visitante a passear com displicência de um lado para outro da popa, a fim de não dar a entender a Dom Benito que chegara a suspeitar de incivilidade e, muito menos, de doblez; pois tal suspeita certamente se revelaria ilusória no decorrer dos acontecimentos, se bem, por enquanto, a circunstância que a provocara permanecesse inexplicada. E depois de esclarecido o misteriozinho, haveria de lamentar muitíssimo o haver permitido que Dom Benito se inteirasse das conjecturas pouco generosas a que ele se entregara. Em resumo, era melhor que concedesse, momentaneamente, o benefício da dúvida ao espanhol.

Logo depois, com o rosto pálido, contraído e sombrio, amparado ainda pelo criado, aproximou-se o capitão espanhol, ainda mais contrafeito do que nunca, e com um estranho tom do intriga em seu murmúrio rouco, encetou a seguinte conversação:

— Posso perguntar-lhe, señor, há quanto tempo está fundeado ao lado desta ilha?

— Há um ou dois dias, Dom Benito.

— E qual foi o último porto em que tocou?

— Cantão.

— E lá, señor, se não me falha a memória, trocou as suas peles de foca por fardos de chá e de seda?

— Troquei. Principalmente seda.

— E recebeu a diferença em espécie, talvez?

Com alguma inquietação respondeu o Capitão Delano:

— Sim; alguma prata; mas não muita.

— Ah... muito hem. Posso perguntar-lhe quantos homens tem, señor?

O Capitão Delano estremeceu levemente, mas retrucou:

— Uns vinte e cinco, ao todo.

— E neste momento, señor, estão todos a bordo, imagino eu?

— Todos a bordo, Dom Benito, — redargüiu o Capitão, mais satisfeito.

— E estarão a bordo hoje à noite, señor?

À última pergunta, que se seguia a tantas outras, pertinazes, não pôde o Capitão Delano, malgrado seu, deixar de encarar com extrema seriedade no inquiridor, que, em vez de sustentar-lhe o olhar, abaixou a vista para o convés com todos os sinais da mais pusilânime perplexidade, formando, naquele momento, indigno contraste com o criado, que, ajoelhado a seus pés, ajustava uma fivela solta de sapato e, com o rosto desembaraçado em que se lia uma expressão de humilde curiosidade, olhava francamente para o rosto inclinado do amo.

Com o mesmo ar constrangido de culpa, repetiu o espanhol a pergunta:

— E... e estarão a bordo hoje à noite, señor?

— Sim, pelo que sei, — volveu o Capitão Delano... — mas não, — emendou, dominando-se e confessando a verdade sem rebuços, — alguns falaram em aventurar-se a nova expedição de pesca à meia-noite.

— Suponho que as suas canoas vão... vão mais ou menos armadas, señor?

— Uma ou duas peças de seis libras, para uma emergência, — foi a resposta corajosa e indiferente, — com um estoquezinho de mosquetes, arpões de pesca e facões, naturalmente.

Ao responder, voltou o Capitão Delano a fitar a vista em Dom Benito, mas este desviara os olhos; depois, repentina e desazadamente, mudou de assunto e fez algumas observações mal humoradas sobre a calmaria; em seguida, sem se desculpar, afastou-se outra vez com o criado para a amurada oposta, onde reiniciaram os cochichos.

Nesse momento, e antes que o Capitão Delano pudesse refletir friamente no que acabara de suceder, o jovem marinheiro espanhol, a que já nos referimos, fez menção de descer do enfrechate. No ato de inclinar-se para saltar, a blusa, ou camisa, ampla e solta, de lá grosseira, muito manchada de alcatrão, abriu-se-lhe ao nível do peito e entremostrou uma peça de roupa interior, suja, mas que parecia feita do mais fino linho, debruada, em torno do pescoço, de estreita fita azul, muito descorada e cotiada. Tornaram a fixar-se os olhos do jovem marinheiro nos dois cochichadores, e o Capitão Delano cuidou observar naquilo um oculto significado, como se, nesse instante, houvessem sido trocados sinais mudos, de alguma espécie de maçonaria.

Sem querer, dirigiu novamente o olhar para Dom Benito e, como da primeira vez, não pôde menos de inferir que era a sua pessoa o tema da confabulação. Sobresteve. O ruído que faziam os polidores de machadinhas soou-lhe aos ouvidos. Lançou ainda uma vez, rapidamente, a vista para os dois. Pareciam conspiradores. Tudo isso, associado ao recente interrogatório e ao incidente do jovem marinheiro provocou tão veemente retomo de involuntárias suspeitas, que a extrema ingenuidade do americano não pôde suportá-lo. Assumindo uma expressão alegre e jocosa, acercou-se de ambos, dizendo:

— Ah! Dom Benito, este seu negro parece merecer-lhe grande confiança; será, em realidade, uma espécie de conselheiro privado.

Ouvindo isso, o criado ergueu o rosto com um risinho satisfeito, mas o amo estremeceu, como picado por uma cobra venenosa. Volvido um momento, de que precisou para recobrar o domínio de si próprio, respondeu o espanhol, com frio constrangimento:

— Sim, señor, tenho confiança em Babo.

Mudando o risinho de simples satisfação animal num sorriso inteligente, Babo endereçou ao dono um olhar de gratidão.

O espanhol, porém, permanecia silencioso e reservado, como se, involuntariamente ou acinte, desse a entender que considerava inconveniente a aproximação do visitante; e, não querendo parecer incivil nem mesmo diante da própria incivilidade, o Capitão Delano fez uma observação qualquer e afastou-se, revolvendo cada vez mais no espírito o misterioso procedimento de Dom Benito Cereno.

Descera da popa, mergulhado em seus pensamentos, e passava por uma gaiúta escura, que conduzia à entreponte, quando, ao perceber um movimento, olhou para ver o que se movia; nesse momento produziu-se um lampejo na escura escotilha, e ele viu um dos marinheiros espanhóis, que lá rondava, meter rapidamente a mão no interior da blusa, como se escondesse alguma coisa. Antes que o homem pudesse certificar-se da identidade da pessoa que passava, escapuliu-se. Mas tanto bastou para que o Capitão Delano percebesse que se tratava do mesmo jovem marinheiro que lhe chamara a atenção nas enxárcias.

Que era o que assim relampejara? perguntou a si mesmo o Capitão Delano. Não fora uma lâmpada — nem um fósforo — nem um carvão aceso. Teria sido uma jóia? Mas desde quando tinham jóias os marinheiros — ou roupa interior de seda? Andara, porventura, saqueando a bagagem dos passageiros mortos? Mas ainda que assim fosse, não se atreveria a usar um artigo roubado a bordo do navio. Ah, ah — se foi, realmente, um sinal secreto que vi passar entre este suspeito indivíduo e o seu capitão há pouco; se eu pudesse ao menos ter certeza de que, na minha inquietação, os sentidos não me iludiram, eu...

A essa altura, passando de uma suspeita a outra, entrou-lhe o cérebro a ruminar as estranhas perguntas feitas em relação ao seu navio.

Por curiosa coincidência, à proporção que se lembrava de cada uma delas, os negros feiticeiros de Achanti batiam as machadinhas umas nas outras, como num pressago comentário aos pensamentos do estrangeiro branco. Diante de tantos enigmas e portentos, teria sido quase desnatural que não surgissem uns feios pressentimentos até no menos suspeitoso dos corações.

Observando que o navio, indefeso, de velas encantadas, vogava à mercê da corrente e era arrastado para o alto-mar com rapidez sempre maior; e notando que o navio de pesca desaparecera atrás de um promontório, o robusto homem do mar principiou a tremer, assaltado por pensamentos que apenas ousava confessar a si mesmo. Principiava sobretudo a experimentar um temor fantástico de Dom Benito. No entanto, quando se ergueu, dilatou o peito, sentiu-se de novo vigoroso sobre as pernas e considerou friamente o caso — a que se reduziam todos aqueles fantasmas?

Se o espanhol maquinasse algum plano sinistro, este se havia de referir não tanto a ele (Capitão Delano) quanto ao seu navio (o Bachelor's Delight). Daí que o atual afastamento de um navio do outro, longe de favorecer qualquer projeto nesse sentido, fosse, pelo contrário, infenso a ele. Diante de tais contradições, qualquer suspeita evidentemente se dissiparia. De mais a mais, não seria absurdo pensar que uma embarcação desmantelada — uma embarcação cujos tripulantes haviam sido quase todos dizimados pela doença — uma embarcação cujos ocupantes estavam morrendo de sede — não seria mil vezes absurdo que tal embarcação pudesse converter-se, naquelas circunstâncias, num barco de piratas? Ou que o seu comandante, por si e pelos seus homens, tivesse algum desejo que não o de ser prontamente socorrido e restaurado? Mas, de outro lado, não poderiam as mazelas em geral e a sede em particular simular-se? E não poderia aquela mesma tripulação espanhola, intacta, apesar da afirmativa de que fora dizimada, estar escondida no porão do navio? Com o lastimoso pretexto de pedir um copo de água, demônios em forma de gente haviam penetrado em habitações solitárias e delas só tinham saído depois de cometerem atos tenebrosos. E entre os piratas malaios era comum atraírem navios aos seus portos traiçoeiros, ou iludirem em pleno mar os ocupantes de um barco inimigo com o espetáculo de cobertas ermas ou escassamente ocupadas, debaixo das quais esperavam cem dardos e cem braços amarelos prontos para arremessá-los por trás das esteiras. Não que o Capitão Delano houvesse dado inteiro crédito a essas coisas. Ouvira-as referidas — e agora, como histórias, voltavam-lhe à mente. O objetivo atual do navio era a ancoragem, quando, então, ficaria perto do seu próprio barco. Quando assim se avizinhasse, não poderia o San Dominick, como vulcão adormecido, liberar de súbito as energias ora sopitadas?

Lembrou-se dos modos do espanhol ao fazer a sua narrativa. Notara neles hesitação e subterfúgio. Eram sem dúvida os modos de alguém que inventasse uma fábula com más intenções. Entretanto, se não era verdadeira a história, qual seria a verdade? Que o espanhol se apossara ilegalmente do navio? Mas em muitos de seus pormenores, sobretudo os que se referiam aos episódios mais calamitosos, tais como a perda de marinheiros, o prolongado desgarre conseqüente, os padecimentos causados pelas persistentes calmarias, e os sofrimentos provocados pela sede; em todos eles, assim como em outros, o relato de Dom Benito não só corroborara os gritos lamentosos da multidão indiscriminada, de brancos e negros, mas também — e isso parecia impossível de simular — a expressão e o jogo fisionômico de Iodos os traços humanos que vira o Capitão Delano. Se a história de Dom Benito fosse mentirosa, todas as almas existentes a bordo, até as negrinhas mais novas, seriam cúmplices cuidadosamente treinados: incrível dedução, E, no entanto, se algum motivo existisse para pôr-lhe em dúvida a veracidade, seria a inferência perfeitamente legítima.

Restavam, porém, as perguntas do espanhol. Estas, sem dúvida, ensejavam sérias reflexões. Não pareciam ter sido feitas com o mesmíssimo desígnio com que o ladrão ou o assassino, durante o dia, esquadrinha os muros de uma casai Entretanto, se o animassem maus propósitos, o processo menos aconselhável seria o de pedir abertamente informações à própria vítima, e, destarte, pô-la de sobreaviso. Por conseguinte, era absurdo imaginar que tais perguntas tivessem sido inspiradas por um fito criminoso. De sorte que a mesma atitude, que, naquele caso, despertara suspeitas, servia para dissipá-las. Em suma, não lhe acudiam dúvidas nem apreensões, por mais razoáveis que parecessem, que, com idênticas razões, não pudesse afastar.

Por fim, entrou a rir de seus primeiros pressentimentos e do próprio navio, cujo estranho aspecto os despertara; e riu-se também dos negros estrambóticos, mormente dos velhos amoladores de tesouras, os achantis; e das vetustas tricoteiras entrevadas, os fazedores de estopa; e até quase do sombrio espanhol, espantalho central de toda a cena.

Em quanto ao restante, tudo a que a um exame sério pudesse parecer enigmático, facilmente se explicava pela idéia de que o pobre inválido, de um modo geral, mal sabia o que estava acontecendo, embirrado entre negros vapores ou fazendo perguntas sem sentido e sem objetivo. Naquelas condições, evidentemente, o estado do homem não lhe permitia governar o navio. Retirando-lhe o comando com algum pretexto caridoso, ainda precisaria o Capitão Delano encarregar o seu segundo imediato de conduzir a embarcação a Concepcion. Era um homem direito e bom navegante. E o plano não seria menos conveniente ao San Dominick do que ao próprio Dom Benito, visto que, libertado de todas as aflições, conservando-se no camarote, bem atendido pelo criado, o doente recobraria provavelmente a saúde ao cabo da viagem e, com a saúde, a autoridade.

Tais eram os pensamentos do americano. Tranqüilizadores. Havia uma diferença entre a idéia de Dom Benito preordenar sinistramente o destino do Capitão Delano e a de determinar facilmente o Capitão Delano o destino de Dom Benito. Todavia, não foi sem uma sensação de alívio que o bom homem do mar avistou, nesse momento, ao longe, a baleeira, cuja ausência se prolongara por se ter inesperadamente retardado junto ao barco de pesca e por haver dilatado a viagem de regresso o contínuo afastamento de sua meta.

Os negros bisparam o sinalzinho, que se aproximava. Os seus gritos atraíram a atenção de Dom Benito, que, numa alternativa de cortesia, abeirou-se do Capitão Delano e expressou o seu contentamento pela chegada de provisões, embora necessariamente escassas e temporárias.

Respondeu o Capitão Delano; mas, ao fazê-lo, a sua atenção foi despertada por uma cena que se passava embaixo, no convés: no meio da multidão encarapitada na amurada, que assistia, ansiosa, à aproximação da baleeira, dois negros, aparentemente incomodados por um marinheiro, empurraram-no com violência e protestando o marinheiro, derrubaram-no, a despeito dos grilos imperiosos dos fazedores de estopa.

— Dom Benito, — exclamou, rápido, o Capitão Delano, vê o que está acontecendo lá embaixo? Olhe!

Mas, presa de um acesso de tosse, levando ambas as mãos ao rosto, o espanhol cambaleou e quase caiu. Tê-lo-ia amparado o Capitão Delano, se o criado não fosse mais rápido; e ao passo que sustentava o amo com uma das mãos, com a outra aplicou-lhe o cordial. Reanimando-se Dom Benito, o negro retirou o apoio e afastou-se um pouquinho, mas ficando sempre à distância de um murmúrio. Tamanha discrição revelava o seu gesto que varreu do espírito do visitante qualquer censura que este Ihe pudesse fazer em razão das indecorosas conferências já referidas; mostrando que, se o criado merecia algum reproche, a culpa era muito mais do amo do que dele, visto que tão bem se havia quando entregue ao próprio arbítrio.

Havendo o Capitão Delano relanceado os olhos do espetáculo da desordem para uma cena mais agradável que diante dele se passava, não se absteve de cumprimentar o comandante pela posse de tal criado, que, se bem se mostrasse às vezes um pouco atrevido, havia de ser, de um modo geral, inestimável para um homem nas condições do inválido.

— Diga-me, Dom Benito, — acrescentou, com um sorriso, — eu gostaria de ficar com esse homem... Quanto quer por ele? Cinquenta dobrões?

— O patrão não se desfaria de Babo nem por mil dobrões, — murmurou o negro, que ouvira a oferta e a levara a sério e, com a singular vaidade de um fiel escravo apreciado pelo amo, motejava da vil estimação do estranho. Mas Dom Benito, que ainda não parecia haver-se restaurado de todo, novamente interrompido pela tosse, emitiu apenas uma resposta indistinta.

Logo se lhe tornaram tão acentuados os padecimentos físicos e de tal modo pareceram afetar-lhe o espírito, que o criado o levou delicadamente para baixo.

Ficando só, e desejando matar o tempo até a chegada da baleeira, pensou o americano em aproximar-se de um dos poucos marinheiros espanhóis que via; lembrando-se, porém, do que lhe dissera Dom Benito acerca do mau procedimento deles, conteve-se, como capitão de navio avesso a apoiar a covardia e a deslealdade entre marujos.

Enquanto, em pé, com a vista voltada para o grupo de tripulantes, remoía esses pensamentos, afigurou-se-lhe que um ou dois lhe retribuíam significativamente o olhar. Esfregou os olhos e tornou a mirá-los; mas de novo lhe pareceu ver a mesma coisa. Com nova forma, porém, mais obscura do que as anteriores, voltaram as velhas suspeitas, posto que, na ausência de Dom Benito, menos apavorantes. A despeito das más referências feita aos marinheiros, decidiu imediatamente interpelar um deles. Descendo da popa, abriu caminho entre os negros, ao passo que os seus movimentos arrancavam um grito esdrúxulo aos fazedores de estopa, sob cujo império os outros se afastaram para dar-lhe passagem; mas, como se quisessem conhecer o motivo que o levava a visitar-lhes deliberadamente o gueto, reunidos atrás dele com certa ordem, puseram-se a segui-lo. Com os movimentos assim anunciados e como que escoltado por uma guarda de honra de cafres, o Capitão Delano assumiu de repente uma expressão de bom humor e continuou a caminhar; dirigindo, de quando em quando, uma palavrinha alegre aos negros, enquanto que os seus olhos observavam, curiosos, os rostos brancos, aqui e ali esparsos entre os pretos, como peões brancos de xadrez temerariamente desgarrados entre peças adversárias.

Ainda não decidira qual escolheria para o interrogatório, quando lhe sucedeu observar um marinheiro sentado no convés, entretido em alcatroar a correia de enorme roldana, no meio de um círculo de negros acocorados à sua volta, que lhe assistiam atentamente ao trabalho.

A humilde tarefa do homem parecia em desacordo com um quê de superior que lhe transluzia no porte. Preta de tanto mergulhar na vasilha de alcatrão que um negro segurava para ele, a mão não parecia naturalmente aliada ao rosto, um rosto que teria sido extraordinariamente belo, não fosse a sua expressão selvagem. Se essa expressão selvagem era indício de um caráter criminoso, fora impossível determinar; visto que, assim como o calor e o frio intensos, embora dissemelhantes, produzem sensações idênticas, assim a inocência e a culpa, casualmente associadas ao sofrimento mental, ao deixarem impresso algum sinal visível, usam sempre o mesmo sinete — o da devastação.

A reflexão não ocorreu, no momento, ao Capitão Delano, que era um homem caridoso. Mas outra idéia lhe acudiu. Observando que a singular selvageria se combinava com um olhar sombrio, sempre desviado como se o perturbasse ou vexasse algum segredo, e rememorado o mau conceito em que Dom Benito confessara ter a tripulação, entraram a influenciá-lo insensivelmente certas noções gerais que, dissociando a dor e a vergonha da virtude, invariavelmente as associam com o vício.

Se, de fato, fora perpetrada alguma iniqüidade a bordo do navio, pensou o Capitão Delano, era indubitável que aquele homem nela metera a mão como agora a mete na vasilha de alcatrão. Não quero falar com ele. Prefiro dirigir-me a este outro, este velho marinheiro aqui no cabrestante.

Aproximou-se de um velho lobo do mar catalão, que trazia os calções vermelhos em farrapos e uma carapuça muito suja, faces arruinadas cor de bronze e suíças densas como moitas de espinheiros. Sentado entre dois africanos sonolentos, esse marinheiro, como o jovem companheiro, trabalhava com o cordame, unindo cabos, ao passo que os negros sonolentos executavam a função inferior de segurar-lhe os chicotes.

Quando o Capitão Delano se aproximou, o homem inclinou imediatamente a cabeça mais do que o necessário ao serviço. Dir-se-ia que desejasse parecer inusitadamente absorto em sua tarefa. Interpelado, ergueu a vista, mas com expressão furtiva e desconfiada, que parecia estranhamente deslocada no rosto açoitado pelas intempéries, como o de um urso que, em vez de rosnar e de morder, entrasse a sorrir alvarmente e a deitar lânguidos olhares. Fez-lhe o americano várias perguntas relativas à viagem — perguntas propositadamente referentes a diversas particularidades da narrativa de Dom Benito e não corroboradas pelos gritos impulsivos que o haviam saudado à sua chegada. As respostas, lacônicas, confirmaram tudo o que na história ainda não fora confirmado. Os negros ao pé do cabrestante juntaram-se ao velho marinheiro; mas, à proporção que se tomavam mais e mais loquazes ele megulhava gradativamente num mutismo cada vez mais profundo, até se mostrar taciturno e deixar transparecer, manifestamente, que não queria continuar a ser interrogado; durante todo esse tempo, todavia, notava-se-lhe o que quer que fosse de enleado e tímido no aspecto ursino.

Perdendo a esperança de entabular uma conversação franca com semelhante centauro e depois de procurar debalde à sua volta um semblante mais acolhedor, o Capitão Delano ordenou prazenteiramente aos negros que abrissem caminho; e, assim, entre sorrisos e esgares, voltou à popa, dominado a princípio por estranha sensação, com cuja causa não atinava, mas tendo, de um modo geral, recuperado a confiança em Benito Cereno.

Quão manifestamente, pensou, traía o velho barbudo a consciência de haver faltado ao dever! Quando me viu chegar, receou, sem dúvida, que eu, inteirado do mau procedimento geral da tripulação, o repreendesse, e por isso abaixou a cabeça. E no entanto... no entanto, pensando bem, foi aquele mesmo sujeito, se não me engano, um dos que pareciam olhar, há poucos instantes, com tanta insistência para mim. Ah, estas correntes fazem girar quase tanto a cabeça da gente quanto o próprio navio. Ah! lá está um espetáculo bem mais agradável e como que cheio de sol.

A atenção fora-lhe despertada por uma negrinha que dormitava, lobrigada através das enxárcias, com os membros negligentemente estendidos, ao pé da amurada, como corça à sombra de um penedo no seio da floresta. Procurando-lhe os seios cobertos, o filho, inteiramente nu, tinha o corpinho preto meio erguido acima do convés e caído sobre o corpo materno; as mãos, como duas garras, aferravam-no e a boca e o nariz fuçavam-no em vão para atingir a meta, enquanto que da garganta lhe saía, a revezes, um meio grunhido aborrecido, que se misturava ao ressonar da negra.

O extraordinário vigor da criança acabou despertando a mãe. Ela estremeceu e viu, ao longe, o Capitão Delano. Mas como se não sentisse a menor preocupação pela atitude em que fora surpreendida, ergueu, embevecida, o filho e, com transportes maternais, cobriu-o de beijos.

Aí está a natureza sem disfarces; ternura e amor puros, pensou o Capitão Delano, enternecido.

O incidente levou-o a observar com mais atenção as outras negras. Ficou bem impressionado com os modos delas; como quase todas as mulheres não civilizadas, pareciam possuir, a um tempo, um coração terno e uma robusta constituição; igualmente prontas para morrer pelos filhos ou lutar por eles. Ingênuas como fêmeas de leopardos; amorosas como rolinhas. Ah! pensou o Capitão Delano, são estas, quiçá, algumas das mesmíssimas mulheres que Ledyard encontrou na África e das quais deixou tão formosa descrição.

De certo modo, estas cenas lhe devolveram insensivelmente a confiança e a tranqüilidade. Por fim olhou para ver como ia a sua baleeira; estava ainda bem distante. Voltou-se para verificar se Dom Benito já voltara; mas não o viu.

Para variar e distrair-se com uma cômoda observação do escaler que se aproximava, passou pelas enxárcias do mastro da mezena e subiu à galeria de estibordo — um daqueles balcões venezianos a que já nos referimos, retirados do convés. Ao pisar nos musgos marinhos, meio úmidos e meio secos, que alfombravam o lugar, uma brisa fantástica, inesperada, que veio sem ser anunciada e como veio se foi, perpassou-lhe pelo rosto ao dirigir a vista para a série de postigos pequenos e redondos, todos fechados como olhos de amortalhados, e para a porta do camarote principal, que outrora se abria para a galeria, como para ela outrora se abriam os postigos, mas agora calafetada como a tampa de um sarcófago; ao contemplar um lambrequim, uma soleira e um montante, alcatroados e de um negror purpurino; e ao imaginar o tempo em que o majestoso camarote e a aparatosa galeria ouviam as vozes aos oficiais do Rei de Espanha e as filhas dos vice-reis de Lima se debruçavam talvez no mesmíssimo sítio em que ele se encontrava — à proporção que estas e outras imagens lhe passavam pela mente como a brisa pela calmaria, sentiu que lhe nascia a pouco e pouco no íntimo a vaga inquietude que sente um homem sozinho na planície diante da imobilidade do meio-dia.

Recostou-se na balaustrada esculpida e tornou a alongar os olhos para a baleeira; estes, porém, se detiveram na fita de ervas marinhas que se arrastavam ao longo da linha de flutuação do navio rígidas como a orladura de uma platibanda; e tabuleiros de algas, ovalados ou em forma de crescentes, a flutuarem aqui e ali, separadas pelo que pareciam longas aléias solenes, cruzando os líquidos terraços e inclinando-se como se conduzissem a escondidas grutas. E sobrepairando a tudo isso, lá estava a balaustrada debaixo de seu braço, em parte manchada de piche e em parte tauxiada de musgo, lembrando os destroços carbonizados, de um pavilhão no meio de maravilhoso parque há muito abandonado.

Tentando libertar-se de um feitiço, via-se enfeitiçado de novo. Embora vogasse em pleno mar, tinha a impressão de estar em terra firme, numa remotíssima região, aprisionado num castelo deserto, os olhos, postos em longas e ermas extensões ou em estradas muito vagas, por onde nunca passasse um carro nem um transeunte.

Mas desencantaram-se um pouco os sortilégios quando os seus olhos deram com as cadeias enferrujadas da enxárcia grande. De estilo antigo, com as malhas, argolas e chavetas sólidas e oxidadas, pareciam muito mais apropriadas ás atuais funções do navio do que às suas funções originais.

Naquele momento julgou que alguma coisa se movera nas proximidades das cadeias. Esfregou os olhos e fitou a vista. Na floresta de cabos que as rodeavam avistou, espiando por trás de um ovém como um índio escondido por uma árvore, um marinheiro espanhol com um trançador na mão, fazendo um gesto qualquer na direção do balcão, mas que, num ai, assustado pela aproximação de alguém, sumiu no recesso da floresta de cipós, como um ladrão de caça.

Que significava aquilo? O homem tentara, sem dúvida, comunicar alguma coisa às escondidas de todos e até do seu capitão. Envolveria o segredo algo desfavorável a Dom Benito? Iriam, acaso, concretizar-se os primeiros pressentimentos do Capitão Delano? Ou, no assustadiço estado de espírito em que se encontrava, tomara um movimento ocasional e involuntário do homem, ocupado em consertar o cabo, por um gesto significativo?

Não sem inquietude voltou a procurar com os olhos a baleeira. Mas esta fora momentaneamente ocultada por um contraforte rochoso da ilha. E como se inclinasse, com alguma ansiedade, para a frente, procurando avistar-lhe a proa assim que Iho permitisse o contraforte, a balaustrada deu de si, como se fosse de carvão, e se ele não se tivesse agarrado a um ovém, teria caído ao mar. O estalar da madeira, embora fraco, e o ruído da queda dos fragmentos, embora eco, devia ter sido ouvido. Ergueu os olhos. Com sóbria curiosidade, contemplava-o de cima um dos velhos fazedores de estopa, que escorregara do seu poleiro e se encarapitara num botaló; ao passo que, debaixo do negro velho, invisível para ele, espiando por uma vigia como a raposa pela abertura da sua toca, surgira de novo o marinheiro espanhol. Mas qualquer coisa no seu aspecto sugeriu, de improviso, ao Capitão Delano que a indisposição alegada por Dom Benito para descer ao camarote fora apenas simulada e ele estaria, naquele instante, arquitetando alguma trama, que o marinheiro surpreendera e decidira comunicar ao estrangeiro, levado, talvez, pelo reconhecimento a algum gesto bondoso do americano ao entrar a bordo. Teria sido, porventura, a previsão de uma possível interferência dessa índole que levara Dom Benito, antecipadamente, a acusar os marinheiros e a elogiar os negros, se bem, na verdade, os primeiros parecessem tão dóceis quanto os segundos se mostravam indisciplinados? De mais a mais, por natureza, constituiam os brancos a raça mais astuta. Não era plausível que um homem trabalhado por um desígnio criminoso elogiasse a estupidez incapaz de adivinhar-lhe a perversidade e denegrisse a inteligência de que não poderia ocultar-se? Impossível não seria. Mas se os brancos conhecessem os segredos de Dom Benito, poderia este ter conseguido a cumplicidade dos negros, demasiado broncos? Além disso, quem já ouvira falar de um branco tão malvado que chegasse a renegar a própria espécie, abandonando-se com negros contra ela? Tais enigmas lhe recordavam perplexidades anteriores. Perdido em seus labirintos, o Capitão Delano, que a esse tempo já voltara ao convés, percorria-o agora, inquieto, quando viu uma cara nova; um velho marinheiro estava sentado, com as pernas cruzadas, ao pé da escotilha principal. Tinha a pele toda enregelhada como papo de pelicano, o cabelo branco e o semblante grave e composto. Trazia as mãos cheias de cabos, com os quais fazia um nó. Alguns negros, à sua volta, abaixavam e levantavam, obsequiosos, para ele os fios dos cabos, conforme as exigências da operação.

O Capitão Delano aproximou-se e ficou a observar o nó em silêncio, ao passo que o seu espírito, por uma explicável transição, passou da própria confusão para a do cânhamo. Pois nunca vira nó tão complicado num navio americano nem em outro qualquer. O velho recordava um sacerdote egípcio fazendo nós górdios para o templo de Amon. O nó parecia uma combinação de nós de escota dobrado, nó de encapeladura de três, nó de aboço, nó de guia pelo seio e nó de botija.

Afinal, desistindo de adivinhar-lhe o significado, o Capitão Delano perguntou:

— Que é que você está dizendo aí, meu velho?

— Um nó, — foi a lacônica resposta, sem que o interpelado erguesse sequer os olhos.

— Estou vendo; mas para quê?

— Para que alguém o desate, — murmurou o velho, movimentando os dedos com maior rapidez ainda. O nó estava quase concluído.

Enquanto o Capitão Delano o observava, o velho atirou-lhe o nó, dizendo em inglês mal falado — pela primeira vez ouvido no navio — qualquer coisa como:

— Desate-o, corte-o, depressa.

As palavras foram pronunciadas em voz baixa, mas as longas e lentas frases castelhanas, que as haviam precedido e seguido, quase encobriram as rápidas sílabas inglesas intercaladas.

Por um momento, com um nó na mão e outro na cabeça, mudo ficou o Capitão Delano, ao passo que o velho, sem lhe prestar maior atenção, pareceu entreter-se com outros cabos. Nesse instante ouviu atrás de si um ruído qualquer. Voltou-se e deu com o negro acorrentado, Atufal, tranqüilamente postado a pequena distância. O velho marinheiro ergueu-se resmungando, e, seguido de seus subordinados, afastou-se para a parte anterior do navio, onde se perdeu entre a multidão.

Um negro de certa idade, encueirado como criança de peito, de cabelos agrisalhados e jeito de advogado, aproximou-se ao Capitão Delano. Em aceitável castelhano e piscando os olhos com expressão bem humorada e tolerante, informou-o de que o velho fazedor de nós era meio pancada, mas inofensivo, e a miúdo fazia as suas velhas brincadeiras. Terminou pedindo que lhe entregasse o nó, pois o estrangeiro, naturalmente, não quereria ficar com ele. Num gesto inconsciente, o americano devolveu-lho. Com uma espécie de despedida, o negro o recebeu e, voltando-lhe as costas, pôs-se a escudrinhá-lo como detetive de alfândega à procura de rendas contrabandeadas. Depois, com uma palavra africana equivalente à expressão "Bolas!" atirou-o ao mar.

Tudo isto é muito esquisito, pensou o Capitão Delano com uma espécie enjoativa de emoção; mas, como alguém que começa a sentir enjôo de mar, buscou livrar-se da indisposição não fazendo caso dos sintomas. Ainda uma vez procurou com a vista o seu bote. E verificou, satisfeito, que este já se tornara visível de novo, deixando para trás o contraforte da ilha.

A sensação que então experimentou, depois de diminuir-lhe a intranquilidade, logo principiou, com imprevista eficácia, a dissipá-la. A vista já mais próxima do bote tão conhecido, mostrando-o, não como antes, meio fundido na névoa, senão com os contornos definidos, realçava-lhe a individualidade, como a de um homem; aquele bote, cognominado Rover, embora sulcasse agora estranhos mares, muitas vezes abicara na praia natal do Capitão Delano e, arrastado à soleira de sua porta para ser consertado, lá quedara, familiarmente, como um cão Terra-Nova; a vista do bote familiar evocou-se mil associações confiantes, que, contrastando com as suspeitas anteriores, não só o encheram de prazenteira confiança, mas também o levaram a reprochar a si mesmo, jovialmente, a anterior ausência dela.

— Hom'essa! Eu, Amasa Delano, Joãozinho da Praia, como me chamavam, eu, Amasa; o mesmo que, de bornal em punho, costumava remar ao longo da praia a caminho da escola, instalada no velho casco; eu, Joãozinho da Praia, que usava colher amoras com o primo Nat e os outros; eu, ser assassinado aqui, nos confins da terra, a bordo de um navio fantasma de piratas, por um horrível espanhol? É tola demais a idéia! Quem haveria de querer assassinar Amasa Delano? A sua consciência está tranqüila. Há alguém lá em cima. Que vergonha, Joãozinho da Praia! você não passa mesmo de uma criança; uma criança na segunda infância, meu velho; e receio muito que já esteja começando a caducar e a variar.

Com o coração e o passo leves, endereçou-se à ré, onde encontrou o criado de Dom Benito, que, com expressão afável, em concordância com os atuais sentimentos do americano, inteirou-o de que o amo se recobrara dos efeitos da tosse e lhe ordenara que fosse cumprimentar o seu bom hóspede, Dom Amasa, e dizer que ele (Dom Benito) logo teria a satisfação de procurá-lo.

Está vendo agora? tornou a pensar o Capitão Delano, caminhando pela popa. Como fui burro! Imaginar que esse amável fidalgo, que acaba de apresentar-me os seus amáveis cumprimentos, estivesse, há dez minutos atrás, com um furta-fogo na mão, à procura de um rebolo velho no porão para afiar a machadinha para mim! Bem, bem; sempre ouvi dizer que essas longas calmarias têm um mórbido efeito sobre o espírito, mas até agora não havia acreditado nisso. Ah! (continuou, olhando para o bote); lá está o Rover; bom cão; com um osso branco na boca. E parece que o osso não é pequeno. O quê? Caiu no rebojo. Por algum tempo vogará em sentido oposto. Paciência.

Era quase meio-dia, embora a coloração pardacenta que tudo inundava desse a impressão de que se avizinhava o crepúsculo.

Confirmou a calmaria. Ao longe, liberto da influência da terra, o oceano plúmbeo se diria prostrado, malogrado, sem alma, defunto. Mas a corrente que vinha do litoral, em que se achava o navio, aumentou, empurrando-o silenciosa e inexoravelmente para as águas estáticas do mar alto.

Conhecendo, porém, aquelas latitudes, esperava o Capitão Delano que, a qualquer momento, soprasse um vento fresco e bom e, a despeito das perspectivas presentes, pudesse levar o San Dominick a segura ancoragem antes de cair a noite. A distância perdida não tinha importância, visto que, ao impulso de uma boa brisa, a embarcação velejaria em dez minutos o que desgarrara em sessenta. Nesse em meio, voltando-se um momento para ver a Rover que lutava contra o rebojo e no momento seguinte para ver aproximar-se Dom Benito, continuou a passear pela popa.

Principiou a sentir-se aborrecido com a demora do bote; pouco depois, o desassossego substituiu o aborrecimento; e, por fim, abaixando continuamente os olhos, corno de um camarote à platéia, para a estranha multidão apinhoada lá embaixo e entre ela reconhecendo, aos poucos, o rosto, agora composto e indiferente, do marinheiro espanhol que parecera fazer-lhe sinais dos porta-ovéns, sentiu que lhe voltavam as apreensões.

Ah, pensou, muito grave, isto é como febre intermitente; passa, mas daí não se segue que não volte.

Conquanto se corresse da recaída, não conseguia dominá-la inteiramente; e, apelando para toda a sua bondade natural, chegou insensivelmente a um acordo consigo mesmo.

Sim, é um estranho navio; estranha também é a história e igualmente estranhos são os tripulantes. Mas só. Para furtar o espírito à intranquilidade enquanto não chegava a baleeira, tentou ocupá-lo refletindo, de modo puramente especulativo, em algumas das mínimas singularidades do capitão e da maruja. Quatro pontos curiosos, entre outros, lhe voltaram à lembrança;

Primeiro, o caso do grumete espanhol ferido com uma faca pelo menino escravo; um ato sobre o qual Dom Benito fechara os olhos. Segundo, a tirania que revelara Dom Benito no tratamento de Atufal, o negro; como se uma criança pudesse puxar um touro do Nilo pela argola do nariz. Terceiro, as sevícias infligidas ao marinheiro pelos dois negros; insolência que passara despercebida, sem uma reprimenda sequer. Quarto, a servil submissão ao amo por parte de todos os subalternos do navio, mormente os negros; como se, pela menor inadvertência, temessem despertar-lhe o despótico desagrado.

Todavia, confrontados, esses pontos pareciam algo contraditórios. E que é que tem isso? pensou o Capitão Delano, olhando para o bote, agora bem mais próximo — que é que tem isso? Dom Benito é um comandante sumamente caprichoso. Mas não é o primeiro desse gênero que encontro, posto sobreleve todos os outros. Mas como nação — prosseguiu ele em seus devaneios — esses espanhóis são todos muito esquisitos; até a palavra espanhol é curiosa, tem sabor de conspiração. E, no entanto, estou para dizer que, de um modo geral, os espanhóis são gente tão boa como a que existe em Duxbury, Massachussetts, ah! ótimo! Rover chegou, afinal.

No momento em que a baleeira, com a carga bem-vinda, abordou ao costado do navio, os fazedores de estopa, com gestos veneráveis, tentaram refrear os negros que, à vista de três barris de água no fundo e uma pilha de abóboras na proa se debruçavam na amurada com espasmos desordenados.

Seguido do criado, surgiu então Dom Benito, cujo regresso fora, talvez, apressado pela algazarra. O Capitão Delano pediu-lhe permissão para proceder pessoalmente à distribuição da água, a fim de que todos recebessem porções iguais e ninguém fosse prejudicado por injustas demasias. Mas, embora o oferecimento fosse razoável e até amável, foi recebido com gestos que pareciam denotar impaciência; como se Dom Benito consciente da própria falta de energia, com o despeito inerente à fraqueza, tomasse por afronta qualquer interferência nesse sentido. Tais foram, pelo menos, as deduções do Capitão Delano.

Logo depois eram içados os barris e o Capitão Delano, que se encontrava no portaló, foi acidentalmente empurrado por alguns negros mais afoitos; sem fazer caso de Dom Benito, cedendo ao impulso do momento, ordenou o americano com bondosa autoridade aos negros que se afastassem, fazendo um gesto, entre jocoso e ameaçador, para corroborar as suas palavras. Imediatamente se detiveram os negros, no lugar em que estavam, imobilizando-se na posição em que ouviram a ordem, e assim continuaram por alguns segundos, ao passo que entre os empoleirados fazedores de estopa, como entre postes telegráficos responsivos, corria uma sílaba desconhecida. E enquanto a atenção do visitante era atraída pela cena, ergueram-se a meio, de repente, os polidores de machadinhas e Dom Benito soltou um grito.

Supondo que estivesse a pique de ser trucidado, a um sinal do espanhol, o Capitão Delano teve ímpetos de saltar para o bote, mas sobresteve quando viu os fazedores de estopa caírem no meio da multidão com exclamações veementes, obrigando todos os brancos e todos os negros recuar num pulo, ordenando-lhes, com gestos amistosos e familiares, quase facetos, que deixassem de ser tolos. Simultaneamente voltaram os polidores de machadinhas aos respectivos lugares, pachorrentos, como outros tantos alfaiates; e, incontinenti, como se nada houvesse sucedido, reiniciou-se o trabalho de içar os cascos de água, pondo-se brancos e negros a cantar ao pé da estralheira.

Olhou o Capitão Delano para Dom Benito. Ao ver-lhe o vulto descarnado reerguer-se depois de haver caído nos braços do criado, admirou-se do terror que sentira à repentina suposição de que tal comandante, que, em circunstância tão legítima e vulgar, como aquela, perdia inteiramente o domínio de si mesmo, pudesse, e um vigorosa perversidade, intentar-lhe o assassínio.

Colocados os barris no convés, recebeu o Capitão Delano certo número de potes e xícaras das mãos de um ajudante do despenseiro, que, em nome do capitão, lhe pediu fizesse o que se oferecera para fazer — repartir a água. O americano pôs mãos à obra, distribuindo com republicana imparcialidade o elemento republicano, que procura sempre um nível igual, servindo equitativamente os brancos mais velhos e os negros mais moços; com exceção apenas do pobre Dom Benito, cujo estado de saúde, para não falar em seu cargo, exigia uma porção suplementar. A ele, em primeiro lugar, ofereceu o Capitão Delano um belo jarro do fluido; mas, embora sedento, o espanhol não levou à boca uma só gota senão depois de várias e solenes inclinações e reverências. Uma troca de cortesias que os africanos, que adoram espetáculos, saudaram com palmas.

Depois de reservadas duas das abóboras menos murchas para a mesa do capitão, foram as restantes picadas em pedaços ali mesmo, no meio do júbilo geral. Mas quanto ao pão fresco, ao açúcar e à sidra engarrafada, tê-los-ia o Capitão Delano distribuído apenas entre os brancos, dando a maior parte a Dom Benito, se este não se opusesse; tamanho desinteresse agradou sobremodo ao americano e, destarte, todos, brancos e negros de tudo receberam partes iguais, exceto uma garrafa de sidra, que Babo insistiu em pôr de lado para o amo.

A esta altura cumpre observar que, assim como na primeira visita da baleeira, o americano não permitira aos seus homens que subissem a bordo do navio, assim nesta tampouco o fez, pois não queria aumentar o tumulto que ia pelo convés.

Influenciado pelo peculiar bom humor de que então davam mostras todos os espíritos, e momentaneamente deslembrado de quaisquer pensamentos desagradáveis, o Capitão Delano, que, através de indicações recentes, acreditava poder contar com uma brisa dentro das próximas duas horas, mandou de volta o bote para o navio de pesca, ordenando que todos os braços disponíveis transportassem em jangadas todos os barris às aguadas a fim de enchê-los. Mandou também dizer ao primeiro imediato que se o navio, a despeito de todas as expectativas, não tivesse fundeado ao pôr-do-sol, não se preocupar; pois como seria noite de lua cheia, ele (Capitão Delano) ficaria a bordo, pronto para pilotá-lo assim que soprasse o vento.

Estavam juntos os dois capitães, observando a baleeira que se alongava — e o criado, que lobrigara uma nódoa na manga de veludo do amo, pusera-se a esfregá-la em silêncio — quando o americano lastimou que o San Dominick não tivesse escaleres; nenhum, pelo menos, a não ser o velho casco da chalupa, incapaz de navegar, arqueada como o esqueleto de um camelo no deserto e quase tão branco, que jazia de cabeça para baixo à meia nau, com um dos bordos um tanto levantados, proporcionando uma espécie de caverna subterrânea para grupos de negros, mormente mulheres e crianças; as quais deitadas sobre velhas esteiras ou empoleiradas nos bancos da abóbada escura, pareciam, à distância, formar um círculo social de morcegos abrigados nalguma furna acolhedora, ao passo que, de tempos a tempos, voejavam para fora e para dentro da caverna crianças de ébano, de ambos os sexos, inteiramente nuas, de três ou quatro anos.

— Se o senhor tivesse agora três ou quatro botes. Dom Benito, — disse o Capitão Delano, — creio que, rebocando o navio a poder de remos, os seus negros poderiam melhorar um pouco a situação. Zarpou do porto sem escaleres. Dom Benito?

— Foram arrancados durante as tempestades, señor.

— Que lástima! E perdeu muitos homens também. Botes e homens. Devem ter sido tremendas as tempestades, Dom Benito.

— Indescritíveis, — retrucou o espanhol.

— Diga-me, Dom Benito, — insistiu o companheiro com crescente interesse, — diga-me, essas tempestades o assaltaram logo depois que dobrou o Cabo Horn?

— O Cabo Horn?... Quem falou no Cabo Horn?

— O senhor mesmo, ao descrever-me a viagem, — respondeu o Capitão Delano, pasmado de ver o espanhol engolir, por assim dizer, as próprias palavras, embora parecesse estar sempre engolindo o coração. — O senhor mesmo. Dom Benito, falou no Cabo Horn, — repetiu, enfaticamente.

Virou-se o espanhol, inclinando-se a meio e por um instante se detendo, como um homem prestes a trocar, num mergulho, o elemento aéreo pelo aquoso.

Nesse momento um mensageiro, um grumete branco, passou correndo por eles, no exercício regular de sua função, que consistia em dirigir-se ao castelo de proa para tocar no sino grande do navio a última meia hora que se escoara pelo relógio do beliche.

— Patrão, — disse o criado, interrompendo a limpeza da manga do casaco e dirigindo-se ao espanhol alheado com uma espécie de tímida apreensão, como alguém encarregado de um serviço cuja execução seria aborrecida para a própria pessoa que o impusera, e em cujo benefício era feito, — o senhor me disse que sempre lhe recordasse, onde quer que estivesse e fosse qual fosse a sua ocupação, a hora de barbear-se. Miguel foi tocar o sino para anunciar a meia hora depois de meio-dia. O patrão não quer ir para o camarote?

— Ah... sim, — retrucou o espanhol, estremecendo, como um homem que passa do sonho à realidade; depois, voltando-se para o Capitão Delano, declarou que logo reencetariam a conversação.

— Se o patrão quer continuar conversando com Dom Amasa, — acudiu o criado, — por que não o deixa ficar ao seu lado no camarote? Poderá falar. Dom Amasa ouvirá e, enquanto isso. Babo ficará ensaboando e afiando a navalha.

— Sim, — conveio o Capitão Delano, que se agradara do plano sociável, — sim, Dom Benito; a menos que prefira estar só, irei consigo.

— Pois seja, señor.

Ao encaminharem-se os três à ré, o americano refletiu que era mais um exemplo estranho do temperamento caprichoso de seu hospedeiro essa mania de barbear-se com tão extraordinária pontualidade no meio do dia. Mas figurou-se-lhe provável que a ansiosa fidelidade do criado fosse, até certo ponto, responsável pelo fato, tanto mais que a oportuna interrupção serviria de divertir o amo da crise de melancolia que, evidentemente, principiara a senhoreá-lo.

O lugar denominado camarote era um claro beliche de convés formado pela popa, uma espécie de sótão do amplo beliche inferior. Parte dele fora anteriormente destinada ao alojamento dos oficiais; mas desde que estes haviam morrido, todos os iníquos tinham sido removidos, e o seu interior fora inteiramente convertido em espaçoso e arejado vestíbulo; pois a ausência de bons móveis e a pitoresca desordem de objetos heteróclitos lembravam, de certo modo, o espaçoso e desordenado vestíbulo de algum celibatário fidalgote de província, que pendura o paletó de caça a bolsa de fumo em chifres de gamo e guarda a vara de pesca, as pinças e a bengala no mesmo canto.

A semelhança era acentuada, se não primitivamente sugerida, pelas vistas do mar circundante; visto que, de certo modo, o campo e o oceano são primos irmãos.

O chão do camarote era forrado de esteiras. Em cima, viam-se enfiados em orifícios horizontais ao longo das vigas que sustentavam o teto, quatro ou cinco mosquetes antigos. De um lado havia uma mesa velha com pós em forma de patas, amarrada ao convés, sobre a qual jazia um missal desfigurado pelo uso; e acima do missal, preso ao tabique, brilhava um pequeno e pobre crucifixo. Debaixo da mesa divisavam-se um ou dois facões denteados, um arpão quebrado e meia dúzia de cabos, melancólicos e velhos, que lembravam um monte de cintos de frades mendicantes. Viam-se ainda dois compridos canapés de cana de Málaca, cheias de ângulos, enegrecidos pelo tempo e de aspecto incômodo como cavaletes de inquisidores e uma imensa poltrona disforme, provida de um rude encosto para a cabeça, como cadeira de barbeiro, movido por um parafuso, mais parecendo um grotesco instrumento de tortura. Num canto jazia uma caixa de bandeiras, que expunham panos variamente coloridos, alguns enrolados, outros meio enrolados, outros amarfanhados. Do lado oposto se erguia pesado lavatório de mogno preto, de uma peça, com pedestal e pia, e, sobre ela, uma prateleira gradeada, em que se viam pentes, escovas e outros petrechos de toucador. Perto, balouçava uma rede rasgada, de fibra pintada, com os lençóis em desordem e o travesseiro enrugado como um sobrecenho, como se a pessoa que lá dormira tivesse dormido mal, alternativamente visitada por tristes pensamentos e pesadelos.

A extremidade mais remota do camarote, que se erguia sobre a popa do navio era furaria por três aberturas, janelas ou portinholas, segundo espiassem por elas, social ou anti-socialmente, homens ou canhões. Naquele momento não se via uma coisa nem outra, embora se vissem enormes argameus e outras peças oxidadas de ferro do madeiramento, que falavam de peças de vinte e quatro libras.

Olhando para a rede ao entrar, indagou o Capitão Delano:

— Dorme aqui. Dom Benito?

— Durmo, sim señor, desde que o tempo melhorou.

— Isso parece uma espécie de dormitório, sala de estar, oficina de conserto de velas, capela, sala de armas, e gabinete particular ao mesmo tempo, — ajuntou o Capitão Delano, olhando em derredor.

— De fato, señor; os acontecimentos não me permitiram dar muita ordem às minhas arrumações.

Nesse ponto, com um guardanapo no braço, Babo executava um movimento indicando que se achava às ordens do amo. Dom Benito fez sinal de que estava pronto, e o criado, fazendo-o sentar na poltrona de cana de Málaca e colocando na frente dela, para o hóspede, um dos canapés, iniciou as operações atirando para trás a gola do amo e afrouxando-lhe a gravata.

Há qualquer coisa no negro que o qualifica singularmente para as funções de criado particular. São os negros, em grande maioria, camareiros e cabeleireiros naturais, que manejam com a mesma habilidade a escova, o pente e as castanholas e, aparentemente, as brandem com satisfação quase idêntica. Revelam também um tacto suave no exercício dessas funções e uma vivacidade extraordinária, ondulante e silenciosa, não destituída de graça, singularmente agradável de ver e ainda mais agradável de sentir. E, acima de tudo, possuem o grande dom do bom humor. Não me refiro aqui apenas ao sorriso nem ao riso, que seriam deslocados, mas a certa fluente jovialidade, harmoniosa em todos os olhares e em todos os gestos, como se Deus houvesse afinado o negro todo por algum amável diapasão.

Se a tudo isso acrescentarmos a docilidade resultante do desambicioso contentamento de um espírito acanhado e a capacidade de cega afeição que às vezes caracteriza criaturas incontestavelmente inferiores, compreenderemos perfeitamente por que razão se afeiçoaram aqueles hipocondríacos, Johnson e Byron — e talvez fosse o caso do hipocondríaco Benito Cereno — com exclusão quase total da raça branca, aos seus criados, os negros Barber e Fletcher. Mas se há qualquer coisa no negro que desarma os espíritos cínicos ou morbidamente amargurados, como não se apresentará ele, em seus aspectos mais cativantes, a um espírito bondoso? Quando se sentia tranqüilo no tocante às coisas exteriores, a índole do Capitão Delano não era apenas benévola, era também familiar e bem humorada. Sentado à porta de sua casa, muitas vezes sentira enorme satisfação em observar homens de cor, já libertos, trabalhando ou brincando. Se lhe sucedia, numa viagem, ter um marinheiro negro, procurava invariavelmente conversar e até gracejar com ele. De fato, conto quase todos os homens que possuem um coração bom e jovial, o Capitão Delano gostava de negros, não por filantropia, mas naturalmente, assim como outros gostam de cães da Terra-Nova.

Até então as circunstâncias em que encontrara o San Dominick lhe haviam reprimido essa tendência. Mas no camarote, liberto da inquietação anterior, e, por vários motivos, de humor mais sociável do que em qualquer outro momento do dia, ao ver o criado de cor, com o guardanapo no braço, servindo o amo com tanta delicadeza, no exercício de uma função tão familiar como a de barbeiro, voltou-lhe toda a fraqueza pelos negros.

Entre outras coisas, divertiu-o um estranho exemplo do amor africano às cores vivas e às belas aparências, quando Babo, sem nenhuma cerimônia, tirou da caixa de bandeiras um pano grande de todas as cores e extravagantemente o colocou em torno do pescoço do amo à guisa de toalha.

Os espanhóis têm um modo de barbear-se que difere um pouco do de outras nações. Usam uma bacia, especialmente denominada bacia de barba, escavada de um lado, para que nela possa apoiar-se exatamente o queixo, enquanto o rosto é ensaboado, o que se faz não por meio de um pincel, mas com o próprio sabão mergulhado na água da bacia e esfregado no rosto.

No caso presente, usava-se, à míngua de coisa melhor, água salgada; e as partes ensaboadas eram apenas o lábio superior e a região inferior do pescoço, pois a barba ocupava o restante do rosto.

Como esses preparativos fossem um tanto novos para Capitão Delano, este se quedou a observá-los curiosamente, de sorte que, a princípio, não houve troca nenhuma de palavras, mesmo porque Dom Benito não parecia disposto a conversar.

Retirando a bacia, o negro procurou, entre as navalhas, a mais afiada e, tendo-a encontrado, acentuou-lhe ainda o gume passando-a com habilidade sobre a pele firme, lisa e oleosa da palma da mão; em seguida fez o gesto de quem inicia a operação, mas deteve-se por um instante, erguendo a lâmina com uma das mãos e passando profissionalmente a outra pelo pescoço ensaboado do espanhol. Impressionado ao ver tão próximo o aço brilhante, Dom Benito estremeceu nervosamente; a sua palidez habitual era acentuada pela espuma do sabão, cuja alvura, por sua vez, realçava o negrume contrastante do corpo do negro. Havia em toda a cena um quê de estranho, pelo menos para o Capitão Delano, que, vendo os dois em suas respectivas posições, não pôde afastar a idéia fantástica de que o negro era um carrasco e o branco um homem no cepo. Tratava-se, porém, de uma dessas grotescas fantasias, que a súbitas aparecem e desaparecem, e das quais nem o espírito mais regrado pode livrar-se talvez.

Nesse em meio, a agitação do espanhol afrouxara um pouco a bandeira amarrada ao pescoço, de sorte que uma das fraldas caiu, a modo de cortina, da cadeira ao chão, revelando, no meio de uma profusão de bandas armoriais e campos coloridos, pretos, azuis e amarelos, um castelo em campo vermelho em diagonal com um leão rampante em campo branco.

— O castelo e o leão, — exclamou o Capitão Delano. — Mas é o pavilhão de Espanha, Dom Benito, que o senhor está usando! Ainda bem que sou eu, e não o Rei, quem vê isso, — ajuntou, com um sorriso; e prosseguiu, voltando-se para o negro: — tudo dá no mesmo, imagino eu, contanto que as cores sejam alegres.

A observação jocosa pareceu divertir o criado.

— Pronto, patrão, — disse ele, reajustando a bandeira e apertando delicadamente a cabeça de Dom Benito no espaldar da cadeira; — pronto, patrão.

E o aço rutilou perto do pescoço.

Dom Benito voltou a estremecer.

— Não deve tremer assim, patrão. Veja, Dom Amasa, o patrão sempre treme quando eu vou barbeá-lo. No entanto, sabe que nunca lhe tirei sangue, embora, se continuar tremendo, eu o acabe tirando um dia. Pronto, patrão, — continuou. — E agora, Dom Amasa, faça o favor de continuar a sua conversa sobre a tempestade; o patrão pode escutar e, de vez em quando, responder.

— Ah, sim, as tempestades, — exclamou o Capitão Delano; — mas quanto mais penso na sua viagem, Dom Benito, tanto mais me admiro, não das tempestades, por terríveis que devam ter sido, mas dos desastrosos intervalos que a elas se seguiram. Pois, de acordo com a sua narrativa, o senhor deve ter levado mais de dois meses para vir do Cabo Horn a Santa Maria, uma distância que eu mesmo, com bom vento, já percorri em poucos dias. E verdade que encontrou calmarias, e calmarias muito longas, mas esse atraso de dois meses é muito esquisito. Olhe, Dom Benito, se outra pessoa qualquer me tivesse contado essa história, eu me teria inclinado a desacreditá-la.

Uma expressão involuntária contraiu o rosto do espanhol, semelhante à que, havia pouco, lhe acudira no convés, e fosse o tremor que o sacudiu, fosse um desastrado e súbito balanço do casco apesar da calmaria, fosse uma momentânea insegurança da mão do criado, o fato é que nesse momento a navalha tirou um pouco de sangue, que manchou, em alguns lugares, a cremosa alvura do sabão ao nível do pescoço; o barbeiro negro retirou incontinenti a lâmina e, permanecendo em sua atitude profissional, de costas para o Capitão Delano e de frente para Dom Benito, ergueu a navalha gotejante e disse com uma espécie de tristeza faceta:

— Está vendo, patrão?... O senhor tremeu tanto... Esse é o primeiro sangue de Babo.

Nenhuma espada desembainhada em presença de Jaime I de Inglaterra, nenhum assassínio cometido diante desse tímido rei, teriam dado ao seu rosto uma expressão mais aterrada do que a que se estampou no semblante de Dom Benito.

Pobre sujeito, pensou o Capitão Delano, é tão nervoso que nem suporta a vista de um pouco de sangue; e dizer-se que pude imaginar que esse homem doente, acabado, incapaz de olhar sem tremer para uma gotinha de sangue seu, fosse capaz de premeditar o derramamento de todo o meu! Em verdade, Amasa Delano, você esteve hoje completamente fora de si. Não conte isso a ninguém, quando voltar para casa, meu tolo Amasa. É então esse coitado que tem cara de assassino? Diga antes que tem cara de quem vai ser assassinado, isso sim. Bem, bem, o fato é que a experiência de hoje será sempre uma boa lição.

Entrementes, enquanto esses pensamentos cruzavam a mente do honesto lobo do mar, o criado tirara o guardanapo do braço e dissera a Dom Benito:

— Responda a Dom Amasa, patrão, por favor, enquanto limpo esta porcaria da navalha e torno a afiá-la.

Ao dizer essas palavras voltara o rosto de modo que pudesse ser visto ao mesmo tempo pelo espanhol e pelo americano, e parecia, pela sua expressão, insinuar que desejava, respeitosamente, divertir a atenção do amo do desagradável incidente de há pouco incitando-o a prosseguir na conversação. Como se lhe agradasse aproveitar o alívio oferecido, Dom Benito pôs-se a falar, repetindo o que já dissera ao Capitão Delano, isto é, que não só as calmarias tinham sido de insólita duração, mas também que o navio caíra entre correntes contrárias; e outras coisas acrescentou, algumas das quais não passavam de simples reiteração de afirmações anteriores, para explicar por que fora tão extraordinariamente longo o percurso entre o Cabo Horn e Santa Maria; intercalando, de tempos a tempos, entre as suas frases, elogios ocasionais, menos moderados que os anteriores, ao bom procedimento geral dos negros. Esses pormenores não eram referidos consecutivamente pois o criado, nos momentos oportunos, fazia uso da navalha, e assim, nos intervalos da operação, prosseguiram a história e o panegírico, com uma rouquidão maior do que a habitual.

Para a imaginação de Capitão Delano, que já principiava a sentir-se novamente inquieto, havia o que quer que fosse de tão falso nos modos do espanhol, em aparente correspondência com a recíproca falsidade do silêncio de Babo, que parecia ser o misterioso comentário deles, que súbito lhe ocorreu a idéia de que talvez amo e criado, com algum intuito desconhecido, representavam por gestos e palavras, inclusive os tremores de Dom Benito, uma farsa diante dele. Nem deixava de ter as suas razões aparentes a suspeita de um conluio em face dos sussurrados conciliábulos já referidos. Mas, de outro lado, qual poderia ser o objetivo da farsa do barbeiro representada em sua presença? Por fim, tachando de caprichosa a idéia, insensivelmente sugerida, quiçá, pelo aspecto teatral de Dom Benito com a sua bandeira de Arlequin, afastou-a rapidamente o Capitão.

Feita a barba, armou-se o criado de uma garrafinha de água-de-cheiro e despejou-lhe algumas gotas na cabeça, pondo-se depois a esfregá-la com diligência; e tamanha veemência empregou no exercício que os músculos de seu rosto se contraíram de modo singular.

A operação seguinte foi executada com pentes, tesouras e escovas; Babo volteava continuamente, alisando aqui um anel, cortando acolá um pêlo rebelde das suíças, imprimindo um toque gracioso à mecha da testa, com outros retoques improvisados que denunciavam mão de mestre; ao passo que, como qualquer outro cavalheiro resignado nas mãos do barbeiro. Dom Benito suportava tudo, com muito menor desassossego, pelo menos, do que suportara a navalha; estava, com efeito, tão pálido e teso naquele momento, que o negro lembrava um escultor núbio rematando o busto de um branco.

Quando, afinal, tudo terminou, e a bandeira espanhola foi retirada e jogada na caixa de bandeiras, e o hálito quente do negro soprou os últimos fios perdidos de cabelo que haviam aderido ao pescoço do amo, e lhe reajustou a gola e a gravata, e tirou-lhe da lapela de veludo um fiapinho de lã; feito tudo isso, afastou-se o criado alguns passos e, logo, estacando com uma expressão de íntimo comprazimento, observou por instantes o amo, que, pelo menos no toucar, era uma criatura de suas mãos artísticas.

Brincando, o Capitão Delano cumprimentou-o pela sua obra; e, ao mesmo tempo, deu os parabéns a Dom Benito.

Mas nem a água-de-cheiro, nem a barba feita, nem a fidelidade, nem a sociabilidade lograram desfranzir o cenho do espanhol. Vendo-o mergulhar de novo numa rebarbativa melancolia e continuar sentado, o Capitão Delano julgou indesejável a sua presença naquele momento e afastou-se, a pretexto de verificar se já tinham surgido os primeiros sinais da brisa que ele projetara.

Aproximando-se do mastro grande lá ficou algum tempo pensando na cena, não sem algumas apreensões indefinidas, quando ouviu um ruído perto do camarote, e, voltando-se, viu o negro, que levava a mão ao rosto. Adiantando-se, percebeu o Capitão (Delano que o rosto sangrava. E já se dispunha a indagar da causa daquilo, quando o esclareceu o gemebundo solilóquio do negro.

— Ah, quando ficará o patrão curado da sua doença? Só um coração amargurado (tela moléstia pode levá-lo a tratar Babo desse jeito e a cortá-lo com a navalha porque Babo, sem querer, o arranhou um pouquinho; e isso pela primeira vez depois de tantos dias! Ah! Ah! Anl — gemeu, conservando a mão no rosto.

Será possível? cuidou entre si o Capitão Delano; foi para cevar em particular o seu despeito espanhol contra o pobre negro fiel que Dom Benito me obrigou, com o seu ar taciturno, a sair de perto? Ah! essa escravidão desperta feias paixões no homem. Pobre rapaz!

Já se dispunha a dizer algumas palavras de simpatia ao negro, quando este, com tímida relutância, voltou ao camarote.

Pouco depois surgiram amo e criado, Dom Benito apoiando-se em Babo, como se nada tivesse acontecido.

Apenas uma briga de namorados, afinal de contas, pensou o Capitão Delano.

Acercou-se de Dom Benito e ambos se puseram lentamente a caminhar. Tinham dado alguns passos quando o despenseiro, um mulato alto, aspecto de rajá, trajado à maneira oriental com um turbante em forma de pagode formado por três ou quatro lenços de Madrasta enrolados à volta da cabeça, aproximou-se com um salamaleque e anunciou que o almoço estava servido.

Enquanto se dirigiam para o beliche, foram os dois capitães precedidos pelo mulato, que, virando-se à proporção que se adiantava, com sorrisos e mesuras intermináveis, fê-los entrar, num estadear de elegâncias que acentuava de maneira incisiva a insignificância do que pequeno Babo, que trazia a cabeça descoberta, e, como se tivesse consciência da própria inferioridade, olhava de través para o gracioso despenseiro. Em parte, porém, atribuiu o Capitão Delano a sua invejosa vigilância ao sentimento peculiar que o africano de puro sangue consagra ao africano adulterado. Em quanto ao despenseiro, os seus modos, se não traiam um respeito próprio muito digno, evidenciavam extremo desejo de agradar; o que é duplamente meritório, pois é, ao mesmo tempo, cristão e chesterfildiano.

Observou com interesse o Capitão Delano que, se a tez do mulato era híbrida, a fisionomia era européia, classicamente européia.

— Dom Benito, — murmurou, — gostei de ver este seu introdutor diplomático; o aspecto dele refuta uma feia observação que me fez, de uma feita, um agricultor de Barbada: quando um mulato tem traços europeus, olho nele; é um demônio. Veja, o seu despenseiro tem traços mais regulares que o próprio Rei Jorge de Inglaterra; e, no entanto, é todo mesuras, sorrisos e reverências; um verdadeiro rei — rei dos bons corações e dos rapazes bem educados. E que voz agradável tem ele também!

— De fato, señor.

— Mas diga-me uma coisa: desde que o senhor o conhece, não se tem mostrado sempre direito e bom? — continuou o Capitão Delano, depois de uma pausa, enquanto que o despenseiro, com uma derradeira genuflexão, desaparecia no beliche; — eu gostaria de saber, pela razão que acabo de mencionar.

— Francesco é um bom rapaz, — respondeu sem entusiasmo Dom Benito, como um fleumático apreciador, que não quisesse gabar nem censurar.

— Era o que eu pensava. Pois seria efetivamente estranho, e não muito lisonjeiro para nós, os brancos, que a mistura de um pouco do nosso sangue com o dos africanos, em vez de acentuar as boas qualidades deste último, despejasse vitríolo no caldo preto; melhorando a cor, talvez, mas não a salubridade.

— Sem dúvida, sem dúvida, señor, — volveu Dom Benito olhando para Babo, — mas sem falar nos negros, já tenho ouvido a observação do seu agricultor aplicada aos cruzamentos de espanhóis com índios em nossas províncias. Entretanto, não entendo do assunto, — ajuntou com indiferença.

E entraram no beliche.

O almoço era frugal. Alguns peixes frescos e abóboras do Capitão Delano, biscoitos, carne salgada, a garrafa de cidra reservada e a última garrafa de vinho das Canárias do San Dominick.

Quando entraram, Francesco e mais dois ou três ajudantes de cor azafamavam-se em torno da mesa, dando-lhe os últimos retoques. Avistando o amo, afastou-se Francesco com um sorriso nos lábios, no que foi imitado pelos outros, e o espanhol, não se dignando notá-lo sequer, observou, com enfado, ao americano, que não gostava de rodear-se de criados supérfluos.

Sem mais companheiros, hospedeiro e hóspede sentaram se, como um casal sem filhos, em extremidades opostas da mesa; Dom Benito indicou com um gesto o lugar ao Capitão Delano e, apesar da sua fraqueza, insistiu em que o outro se acomodasse primeiro.

O negro colocou um tapete debaixo dos pés e uma almofada nas costas de Dom Benito e foi colocar-se atrás, não da cadeira do espanhol, mas da cadeira do Capitão Delano, que, a princípio, se sentiu algum tanto surpreso. Mas logo percebeu que, nessa posição, o negro continuava a servir o amo, pois, colocando-se-lhe diante, poderia antecipar-lhe mais prestesmente o menor desejo.

— Este seu criado é de uma inteligência fora do comum, Dom Benito, — murmurou o Capitão Delano, do outro lado da mesa.

— É verdade, señor.

Durante a refeição, volveu o hóspede a certas partes da história de Dom Benito, pedindo novos pormenores aqui e ali. Perguntou por que o escorbuto e a febre haviam causado tamanha devastação entre os brancos e, ao mesmo tempo, destruído menos da metade dos negros. Como se a pergunta voltasse a apresentar toda a cena da peste diante dos olhos do espanhol, recordando-lhe dolorosamente a solidão num beliche onde tivera tantos amigos e oficiais à sua roda, as mãos principiaram-lhe a tremer, o rosto perdeu a cor e ele murmurou umas palavras entrecortadas; logo depois, todavia, a sã memória do passado pareceu substituída por insanos terrores do presente. Os olhos cheios de pavor fitavam-se no vácuo. Pois não se via coisa alguma senão a mão do criado que empurrava na sua direção a garrafa de vinho das Canárias. Afinal, os primeiros goles serviram de reanimá-lo, pelo menos parcialmente. Fez, ao acaso, algumas referências às diferentes constituições das raças, que permitiam a umas resistir melhor a certas enfermidades ao que outras. Essa reflexão não ocorrera ao seu companheiro.

Decidindo-se a dizer alguma coisa a Dom Benito sobre a parte pecuniária do serviço que se encarregara de fazer-lhe — pois precisava prestar contas rigorosas de tudo aos proprietários do seu navio — sobretudo em relação ao velame novo e outras coisas desse gênero, e preferindo, naturalmente, tratar do assunto em particular, o Capitão Delano já principiava a desejar que o criado se retirasse, na suposição de que o amo pudesse dispensar-lhe os serviços por uns poucos minutos. Entretanto, esperou algum tempo, imaginando que, à proporção que prosseguisse a conversação, Dom Benito, sem ser solicitado, compreendesse a propriedade da medida.

Mas tal não se deu. Surpreendendo, afinal, um olhar do hospedeiro, e inclinando levemente o polegar para trás, o Capitão Delano murmurou:

— Perdoe-me, Dom Benito, mas assim não posso tratar livremente do assunto que preciso discutir consigo.

A essas palavras modificou-se a expressão do espanhol; de certo, pensou o americano, porque considera a minha insinuação como um reproche ao criado. Volvido um momento, o comandante do San Dominick, assegurou que a permanência do negro no beliche não representava inconveniente algum, pois desde que perdera os oficiais fizera de Babo (cujas funções primitivas, como então esclareceu, tinham sido as de capitão de escravos) não só criado e companheiro permanente mas também confidente de todas as coisas.

Depois disso, não se poderia dizer mais nada, se bem mal pudesse o Capitão Delano disfarçar um princípio de irritação ao ver desatendido um desejo seu tão insignificante, por um homem, afinal de contas, a que ele tencionava prestar serviços tão consideráveis. Mas isso é apenas conseqüência do seu mau humor, pensou ele; e, enchendo o copo, passou a tratar de negócios.

Acertou-se o preço das velas e de outros objetos. Nesse em meio, porém, observou o americano que, embora o primeiro oferecimento de ajuda houvesse provocado febril animação, agora, reduzido a uma simples transação comercial, provocava apenas indiferença e apatia. Com efeito, dir-se-ia que Dom Benito se dispusesse a ouvir os pormenores mais por polidez que por estimar os enormes benefícios que eles representavam para si e para a sua viagem.

Pouco depois, os seus modos se tornaram mais e mais reservados. Vãos foram todos os esforços para induzi-lo a sustentar uma conversação. Roído pelo seu humor esplenético, limitava-se a repuxar a barba, ao passo que a mão do criado, muda como a da parede, embalde empurrava na sua direção a garrafa de vinho das Canárias.

Concluído o almoço, sentaram-se os dois na viga mestra da popa, almofadada, e o criado colocou um travesseiro nas costas do amo. A prolongada calmaria, a esse tempo, já afetara a atmosfera. Dom Benito suspirou profundamente, como se lhe fosse difícil respirar.

— Por que não vamos ao camarote? — propôs o Capitão Delano; — lá corre mais ar.

Mas o hospedeiro continuou mudo e imóvel.

Nesse em meio ajoelhou-se diante dele o criado com um grande leque de penas. E Francesco, aproximando-se na ponta dos pés, entregou ao negro uma xícara de água aromática, com que este, de tempos a tempos, friccionava a testa do amo, alisando-lhe o cabelo ao longo das têmporas, como faz a ama à criança. Não dizia uma palavra. Apenas fitava os olhos nos olhos do amo, como se quisesse, no meio das aflições de Dom Benito, aliviar-lhe o espírito com o mudo espetáculo de sua fidelidade.

Logo depois o sino do navio deu duas horas; e através das janelas do beliche pôde ver-se uma leve encrespação do mar, na direção desejada.

— Pronto! — exclamou o Capitão Delano, — eu não lhe disse, Dom Benito? Veja!

Erguera-se em pé e falava em tom animadíssimo, destinado sobretudo a despertar o companheiro do torpor em que mergulhara. Mas posto que a cortina vermelha da janela da popa, agitada pela brisa, lhe batesse no rosto sem cor. Dom Benito pareceu acolher com menos entusiasmo ainda a brisa do que a própria calmaria.

Pobre rapaz, pensou o Capitão Delano, a amarga experiência ensinou-lhe que uma ondulação não faz um vento, assim como uma andorinha não faz verão. Mas enganou-se desta vez. E, para provar-lho, hei-de fundear-lhe o navio.

Aludindo discretamente ao estado de fraqueza do hospedeiro, instou-lhe que se deixasse ficar tranquilamente onde estava, visto que ele (Capitão Delano) assumiria com prazer a responsabilidade de utilizar o vento da melhor maneira possível.

Ao voltar para o convés, o Capitão Delano estremeceu ao dar de chofre com Atufal, monumentalmente postado no limiar da porta, como um desses porteiros de mármore preto, esculpidos, que guardam o portal dos túmulos egípcios.

Dessa vez, porém, o estremecimento foi, talvez, puramente físico. A presença de Atufal, singularmente dócil até na obstinação, contrastava com a dos polidores de machadinhas, entregues à paciente execução da sua tarefa; e os dois espetáculos mostravam que toda vez que Dom Benito decidia exercer a sua autoridade, embora frouxa, não havia ninguém, por selvagem ou colossal, que a ela se não submetesse.

Tomando de uma corneta que pendia da amurada, adiantou-se com passos largos o Capitão Delano para a extremidade anterior da popa e deu as ordens necessárias em seu melhor castelhano. Os poucos marinheiros e os muitos negros, todos igualmente satisfeitos e obedientes, dispuseram-se a conduzir o navio ao pouso.

Enquanto dava instruções sobre o modo de içar um cutelo, ouviu de súbito o Capitão Delano uma voz que lhe repetia fielmente as ordens. Voltando-se, deu com Babo, a desempenhar, sob a orientação do piloto, as suas funções originais de capitão de escravos. Mostrou-se valioso o ajutório. Velas esfarrapadas e vergas empenadas logo se viram convenientemente orientadas. E não houve Braços nem driças que não fossem manejados ao som dos cantos alegres dos negros entusiasmados.

Ótimos sujeitos, pensou o Capitão Delano, um bom adestramento faria deles magníficos marinheiros. Pois se até as mulheres trabalham e cantam! Deve de haver entre elas algumas negras de Achantia, que, segundo dizem, dão magníficos soldados. Mas quem estará no leme? Preciso lá de um braço competente.

Foi verificar.

À cana do leme do San Dominick, pesada, estavam ligadas várias polias horizontais. Na ponta de cada polia postara-se um negro e, entre eles, no posto de comando, via-se um marinheiro espanhol, cujo semblante mostrava que ele também compartia da esperança e da confiança gerais na aproximação da brisa.

Era o mesmo homem tímido que o americano surpreendera sobre o cabrestante.

— Ah, és tu, meu amigo, — exclamou o Capitão Delano, — pois agora chega de acanhamentos; olha direito para a frente e conserva o navio nessa direção. Entendes do ofício, sem dúvida? E queres entrar no porto, não queres?

O homem assentiu com um risinho interior, segurando a cana do leme com mão firme. Nisso, sem serem observados pelo americano, os dois negros cravaram olhos perscrutadores no marinheiro.

Vendo que estava tudo em ordem em relação ao leme, dirigiu-se o piloto para o castelo de proa, a fim de verificar como iam as coisas por lá.

Tinha agora o navio ímpeto suficiente para lutar contra a corrente. Ao cair da tarde, a brisa, sem dúvida alguma, refrescaria.

Tendo feito tudo o que era preciso, deu o Capitão Delano as últimas ordens aos marinheiros e voltou à popa a fim de pôr Dom Benito a par da situação, no beliche; talvez o levasse também a procurá-lo a esperança de trocar com ele algumas palavras em particular enquanto o criado estivesse ocupado no convés.

Dois caminhos, um de cada lado, conduziam ao beliche debaixo da popa; um deles, que principiava mais na frente do que o outro, por conseguinte, um corredor mais comprido. Vendo que Babo se demorava no convés, o Capitão Delano entrou pela abertura mais próxima — que era a da passagem descrita em segundo lugar e à cuja entrada continuava Atufal — transpôs rapidamente a distância que o separava do beliche e, no limiar, estacou por um instante, a fim de tomar fôlego. Logo, com as primeiras palavras já engatilhadas, entrou. Ao aproximar-se do espanhol, que permanecia sentado, ouviu outro passo, que se diria acertado pelo seu. Pela porta oposta, com uma bandeja na mão, entrava o criado também.

— Diabos carreguem o fiel sujeitinho, — pensou o Capitão Delano; — que aborrecida coincidência!

E possível que o aborrecimento se convertesse em coisa diferente não fosse a animosa confiança inspirada pela brisa. Mas ainda assim, sentiu uma como picada no coração ao associar no espírito, súbita e vagamente. Babo e Atufal.

— Dom Benito, — disse ele, — trago-lhe um pouco de alegria; a brisa continuará e aumentará. A propósito, o seu relógio humano, Atufal, está lá fora. Por ordem sua, com certeza?

Encolheu-se Dom Benito, como que atingido por algum brando remoque, mas tão habilmente dirigido sob a capa de aparente cortesia que não dava margem a réplicas.

Ele parece um homem esfolado vivo, pensou o Capitão Delano; onde se poderá tocá-lo sem provocar uma contração?

O criado aproximou-se do amo e arrumou-lhe o travesseiro; revocado à ivilidade, o espanhol respondeu, tesamente:

— Tem razão. O escravo está onde está por ordem minha; se, à hora marcada, eu me encontrar no beliche, ele assumirá o seu posto e esperará por mim.

— Perdão, mas isso já é tratar o pobre sujeito como um ex-soberano. Ah, Dom Benito, — acrescentou, sorrindo, o americano, — apesar de toda a liberdade que permite em determinadas coisas, receio que seja, no íntimo, um senhor implacável.

Voltou a estremecer Dom Benito; e, desta feita, cuidou o bom marinheiro, por um verdadeiro repelão da consciência.

A conversação tornou-se forçada. Debalde o Capitão Delano chamou-lhe a atenção para o movimento já perceptível da quilha, que sulcava mansamente as águas; com o olhar apagado, Dom Benito só lhe respondia lacônica e reservadamente.

A pouco e pouco, soprando mais rijo o vento, e sempre na direção do porto, arrastou consigo, rápido, o San Dominick. E quando este costeou um promontório, surgiu, ao longe, o navio de pesca.

Nesse ínterim, voltara ao convés o Capitão Delano e lá permanecera algum tempo. E depois de haver alterado a rota do navio, de jeito que passasse a boa distância do recife, tomou a descer por instantes.

Desta vez alegrarei o meu pobre amigo, pensou ele.

— As coisas vão cada vez melhor. Dom Benito, — exclamou, entrando prazenteiro no beliche: — logo se acabarão as suas preocupações, pelo menos por enquanto. Pois quando, depois de uma longa e triste viagem, cai a âncora no porto, parece que alivia de todo o seu enorme peso o coração do comandante. Vamos indo admiravelmente. Dom Benito. Já se avista o meu navio. Olhe por esta janela aqui; lá está ele. todo guapo! O Bachelor's Delight, meu bom amigo. Ah, como este vento dá coragem à gente! Vamos, o senhor precisa tomar uma xícara de café comigo esta noite. O meu velho despenseiro lhe dará uma xícara tão saborosa como ainda não provou nenhum sultão. E então, Dom Benito, aceita?

O espanhol ergueu febrilmente os olhos e atirou um longo e ansioso olhar ao navio de pesca, ao passo que Babo, com muda inquietação, lhe escabichava o rosto. De repente, voltou-lhe a velha crise de frieza e, deixando-se cair sobre os travesseiros, calou.

— O senhor não responde. Vamos, fui hóspede seu o dia inteiro; quer, então, que a hospitalidade seja sempre unilateral?

— Não posso ir — foi a resposta.

— Por quê? Não se cansará. Os navios ficarão à menor distância possível um do outro, com espaço apenas suficiente para rodarem sobre a âncora. Será pouco mais do que saltar de um convés a outro. Vamos, vamos, o senhor não pode recusar.

— Não posso ir, — repetiu Dom Benito com decisão e repugnância.

Mantendo apenas uma tenuíssima aparência de cortesia, com uma espécie de cadavérica obstinação, mordeu as unhas finas até ferir os dedos e olhou com expressão quase feroz para o hóspede, como que exasperado por uma presença que o tolhia de entregar-se inteiramente aos seus mórbidos acessos. Ao mesmo tempo, o som das águas fendidas chegava cada vez mais gorgolhante e alegre às janelas do beliche, como se lhe censurassem o humor taciturno e lhe dissessem que, por mais taciturno que estivesse e ainda que acabasse ficando louco, pouco se importava a natureza; pois de quem era a culpa, façam-me o favor de dizer?

Mas a depressão chegara ao auge, assim como o vento atingira a sua maior força.

Havia no homem alguma coisa que ultrapassava de tal maneira a simples falta de sociabilidade ou a mera acrimónia, já demonstradas, que até o bom humor indulgente do hóspede não pôde suportá-lo por mais tempo. Inteiramente incapaz de explicar-lhe o procedimento, e entendendo que nem a moléstia associada à excentricidade, por extremas que fossem, constituiam desculpa adequada, e convicto de que nada fizera que pudesse justificá-lo, começou a inflamar-se o orgulho do Capitão Delano. Ele próprio se mostrou reservado. Mas tudo parecia indiferente ao espanhol. Deixando-o, portanto, voltou o Capitão Delano ao convés.

O San Dominick estava agora a menos de duas milhas do navio de pesca. E no intervalo entre ambos corria a baleeira.

Em resumo, graças à habilidade do piloto, não tardaram as duas embarcações em ancorar lado a lado, como bons vizinhos.

Antes de regressar ao seu navio pretendia o Capitão Delano referir a Dom Benito, com todas as minúcias, os serviços que se propunha prestar-lhe. Mas, naquelas condições, não querendo sujeitar-se outra vez a um mau acolhimento, decidiu, depois de ver o San Dominick seguramente ancorado, deixá-lo incontinenti, sem novas alusões à hospitalidade ou a negócios. Adiando indefinidamente o esboço de seus planos ulteriores, regularia o seu futuro procedimento pelas circunstâncias futuras. A baleeira estava pronta para recebê-lo; o hospedeiro, porém, não saíra do beliche. Bem, pensou o Capitão Delano, se ele não tem educação mais um motivo para eu mostrar que tenho alguma. Desceu ao beliche a fim de apresentar as suas cerimoniosas e, porventura, tacitamente repreensivas despedidas. Mas, para sua grande satisfação, principiando a sentir o peso do tratamento com que o hóspede retribuiria decorosamente, o descaso que lhe fora dispensado, amparado pelo criado, Dom Benito pôs-se em pé e, agarrando a mão do Capitão Delano, principiou a tremer, tão agitado que não podia falar. Mas o bom augúrio que da( se poderia inferir não tardou em dissipar-se pois ele se mostrou mais reservado e melancólico do que antes e, desviando os olhos, tornou a sentar-se nas almofadas. Reassumindo, correspondentemente, a sua própria frieza, o Capitão Delano inclinou-se e saiu.

Transpusera metade do estreito corredor, escuro como um túnel, que ligava o beliche à escada, quando um som, semelhante a um dobre de sino a anunciar uma execução no pátio de alguma enxovia, lhe chegou aos ouvidos. Era o eco do sino rachado de bordo, dando horas, que tristemente reverberava naquela abóbada subterrânea. Instantaneamente, por uma fatalidade irresistível, achusmaram-lhe o espírito, respondendo ao presságio, supersticiosas suspeitas. Entreparou. Em imagens muito mais rápidas que estas frases, os mais insignificantes pormenores de todas as suas desconfianças anteriores lhe acudiram à mente.

Até então, a sua credulidade e bondade naturais nunca se haviam negado a fornecer escusas para temores razoáveis. Por que, tão superfluamente cerimonioso em outras ocasiões, mostrara agora o espanhol tamanho desprezo das regras mais elementares da etiqueta a ponto de recusar-se a acompanhar ao convés o hóspede que partia? Impossibilitado pela indisposição? Mas a indisposição não o impedira de fazer esforços mais cansativos naquele dia. Recordou-lhe o último gesto equívoco. Pusera-se em pé, tomara-lhe a mão, fizera menção de pegar no chapéu; depois, num ápice, tudo se eclipsara numa tristeza e num mutismo sinistros. Implicaria isso uma breve e arrependida desistência, no momento supremo, de algum projeto iníquo, que em seguida voltava a abraçar sem piedade? O seu último olhar parecera expressar um calamitoso mas aquiescente adeus definitivo ao Capitão Delano. Por que recusara o convite para visitar o navio de pesca naquela noite? Seria o espanhol menos insensível do que o judeu que não deixou de cear ao pé daquele que na mesma noite pretendia trair? Que significavam tantos enigmas e contradições, durante todo o correr do dia, senão que se destinavam a mistificar a vítima antes de lhe desferir o golpe traiçoeiro e final? Atufal, pretenso rebelde, mas sombra pontualíssima, emboscara-se do lado de fora da porta. Quem, segundo as suas próprias declarações, o colocara lá? Estaria o negro à sua espera?

O espanhol atrás — na frente a sua criatura; correr da sombra para a luz era a única coisa que lhe cabia fazer.

No instante seguinte, com as mandíbulas e as mãos contraídas, passou por Atufal e surgiu, desarmado, à luz do dia. Mas quando viu o seu formoso navio pacificamente ancorado; quando viu a baleeira, cheia de rostos familiares, subindo e descendo pacientemente sobre as ondas ao pé do San Dominick; e quando, ao relancear os olhos pelo convés, enxergou os fazedores de estopa acionando os dedos com a mesma gravidade; e ouviu o baixo e múrmuro assobio e o industrioso zumbido dos polidores de machadinhas, sempre entretidos na sua intérmina tarefa; e, sobretudo, quando reparou no benigno aspecto da natureza, que já se preparava para o repouso noturno; o sol encoberto nas tranquilas planuras do ocidente a brilhar como branda luz da tenda de Abraão; quando os seus olhos e ouvidos encantados perceberam tudo isso e o corpo acorrentado do negro, relaxaram-se as mandíbulas e as mãos contraídas. Tornou a sorrir para os fantasmas que o haviam motejado e sentiu como que a sombra de um remorso por havê-los acolhido ainda que fugazmente, revelando assim uma dúvida implícita e quase ateística da Providência sempre atenta.

Seguiram-se alguns momentos de espera, durante os quais, em obediência às suas ordens, o bote foi engatado ao portaló. Durante esse intervalo, uma espécie de triste satisfação senhoreou o espírito do Capitão Delano ao pensar nos bons serviços que, naquele dia, prestara a um estranho. Ah, pensou ele, depois de uma boa ação a consciência da gente nunca se mostra desagradecida, por mais desagradecido que possa mostrar-se o beneficiado.

Segundos depois, iniciando a descida para o bote, ao locar com o pé o primeiro degrau da escada de bordo, voltou-se-lhe naturalmente o rosto para o convés. Nesse instante ouviu o seu nome cortesmente pronunciado e, com grata surpresa, viu Dom Benito, que se aproximava — caminhando com insólita energia, como se, no momento derradeiro, quisesse pedir desculpas pela sua última desatenção. Num gesto de instintiva amabilidade, o Capitão Delano retirou o pé da escada, voltou-se e foi ao encontro do outro. Diante disso, aumentou a ânsia nervosa do espanhol, mas faleceu-lhe a energia vital; de sorte que, para melhor ampará-lo, o criado, colocando a mão do amo sobre o seu ombro nu e segurando-a delicadamente, formou com o corpo uma espécie de muleta.

Quando se encontraram os dois capitães, voltou o espanhol a agarrar com fervor a mão do americano, ao mesmo passo que fitava nele dois olhos ardentes, mas tão agitado que não podia falar.

Eu o julguei mal, pensou, recriminando-se, o Capitão Delano; a sua frieza aparente iludiu-me; jamais teve ele a intenção de ofender-me.

Mas, como se temesse que o prolongamento da cena pudesse fatigar demasiado o amo, o criado pareceu desejoso de encerrá-la. E assim, desempenhando sempre o papel de muleta, e andando entre os dois capitães, acercou-se com eles do portaló; enquanto que Dom Benito, com aparência de suma contrição, não queria largar a mão do Capitão Delano e segurava-a por cima do corpo do negro.

Pouco depois estacaram diante da amurada, contemplando o bote, cuja tripulação erguia os olhos curiosos. Esperando que Dom Benito lhe soltasse a mão, o Capitão Delano, agora contrafeito, ergueu o pé para transpor o limiar do portaló; mas nem assim quis deixá-lo o espanhol, que lhe dizia, em tom agitado:

— Não posso ir mais longe; aqui preciso despedir-me. Adeus, meu querido, meu muito querido Dom Amasa. Vá... vá! — e, subitamente, desprendendo-lhe a mão, ajuntou, — Vá, e Deus o guarde melhor do que a mim, meu excelente amigo.

Comovido, teria o Capitão Delano, nesse instante, vacilado; mas, surpreendendo o olhar humildemente admonitório do criado, despediu-se, rápido, e desceu ao bote, seguido pelos adeuses contínuos de Dom Benito, que parecia pregado no portaló.

Sentando-se à popa, fez uma derradeira saudação e ordenou que a baleeira se afastasse. A tripulação tinha os remos erguidos. O marinheiro que estava na proa empurrou o bote até colocá-lo a uma distância em que os remos pudessem cair na água em todo o comprimento. Nesse mesmíssimo instante, saltando por cima da amurada, Dom Benito foi cair aos pés do Capitão Delano, gritando para o navio, mas em tons tão frenéticos que ninguém no bote conseguia compreendê-lo. Entretanto, como se fossem menos obtusos, três marinheiros, de três pontos diferentes e distantes do navio, saltaram ao mar, nadando no encalço do seu capitão, como se quisessem libertá-lo.

O espantado oficial da chalupa perguntou, aflito, o que significava aquilo. Dirigindo um olhar desdenhoso ao inexplicável espanhol, respondeu o Capitão Delano que não sabia nem se preocupava em saber; dir-se-ia, porém, que Dom Benito tencionasse dar à sua gente a impressão de que o bote pretendia raptá-lo.

— Mas... remem com força se querem viver! — continuou, desvairado, o americano ouvindo a algazarra no navio, dominada pelo toque de alarma dos polidores de machadinhas; e, agarrando Dom Benito pelo pescoço, ajuntou: — Este pirata conspira a nossa morte!

Nesse momento, parecendo confirmar-lhe as palavras, com um punhal na mão, surgiu Babo sobre a amurada, no ato de saltar, como se quisesse, com desesperada fidelidade, proteger o amo até ao fim; enquanto que os três marinheiros espanhóis, provavelmente desejosos de ajudá-lo, tentavam escalar a proa da baleeira. E toda a hoste de negros, como que inflamada à vista do comandante em perigo, se atirou à amurada em fuliginosa avalanche.

Tudo isso, com o que precedeu e o que se seguiu, ocorreu com tamanha rapidez que o passado, o presente e o futuro pareciam uma coisa só.

Vendo o negro chegar, o Capitão Delano agarrou o espanhol e atirou-o para o lado, recuando instintivamente, mudou de lugar, ergueu os braços e empolgou tão prontamente o criado em sua queda que este com o punhal apontado para o coração do Capitão Delano, parecia ter saltado com a intenção de atingi-lo. Mas a arma foi lançada à distância e o assaltante projetado contra o fundo do bote, que já principiara a sulcar celeremente as ondas.

A mão esquerda do Capitão Delano, a essa altura, agarrava de um lado o semi-inclinado Dom Benito, sem perceber que o enfermo estava quase desmaiando, e o pé direito, de outro lado, imobilizava o negro prostrado; ao mesmo tempo, com o braço direito manejava o remo da popa, a fim de imprimir velocidade maior ao barco, e, olhando para a frente, instigava os seus homens a redobrarem de esforços.

Mas, nesse instante, o oficial da chalupa, que afugentara afinal os marinheiros e, com o rosto voltado para trás, auxiliava o remador da proa, gritou ao Capitão Delano que atentasse para o negro; ao passo que um remeiro português lhe berrara que prestasse atenção no que dizia o espanhol.

O Capitão Delano olhou para os pés e viu que o criado, empunhando com a mão livre outro punhal — um punhal menor, que conseguira esconder nas dobras da roupa — se retorcia como cobra no fundo do bote, e visava o coração do amo, com uma expressão lividamente vingativa, denunciadora do propósito central de sua alma; enquanto que o espanhol, quase asfixiado, buscava debalde fugir-lhe murmurando palavras roucas, incoerentes para todos, menos para o português.

Nesse momento, pelo espírito longamente toldado do Capitão Delano, passou uma centelha reveladora, iluminando com imprevista clareza todo o misterioso procedimento de seu hospedeiro, e todos os enigmáticos sucessos do dia, bem como a viagem anterior do San Dominick. Bateu violentamente na mão de Babo, mas o seu coração bateu-lhe com maior violência ainda. Com piedade infinita retirou a mão que segurava Dom Benito. Ao saltar para o bote, não era o Capitão Delano, mas Dom Benito, que o negro pretendia apunhalar.

Agarraram-se ambas as mãos de Babo. E erguendo a vista para o San Dominick, com olhos finalmente abertos, o Capitão Delano viu os negros, não em desordem, não em tumulto, não como se estivessem aflitíssimos pela sorte de Dom Benito, mas já sem máscara, brandindo machadinhas e facas, em fera revolta de piratas. Como negros darueses delirantes, os seis achantis dançavam na popa. Impedidos pelos inimigos de se atirarem ao mar, os grumetes espanhóis escalavam, açodados, os mastros mais altos, ao passo que os poucos marinheiros espanhóis que ainda não se haviam lançado às águas, menos prestos, eram vistos, irremediavelmente misturados aos negros no convés.

Nesse comenos o Capitão Delano gritou para o seu próprio navio, ordenando que se abrissem as portinholas e se aprestassem os canhões. A esse tempo já fora cortado o cabo do San Dominick: e a ponta, revoluteando, arrancou a lona que recobria a proa do navio, revelando de repente, quando o casco esbranquiçado virou na direção do alto-mar, a morte representada no talhamar em forma de esqueleto humano, gredoso comentário às palavras traçadas com greda por baixo: “Segui o vosso chefe".

A essa vista, cobrindo o rosto, gemeu Dom Benito:

— É ele! Aranda! o meu amigo assassinado e insepulto!

Chegando ao navio de pesca, o Capitão Delano pediu cordas, amarrou o negro, que não ofereceu resistência e fez que o içassem ao convés. Em seguida, quis ajudar o quase desfalecido Dom Benito a alcançar o portaló; mas, bem que extenuado, recusou-se o espanhol a transportar-se ou a deixar que o transportassem enquanto Babo não fosse atirado ao porão, longe de sua vista. E assim que lhe asseguraram que isso fora feito, aquiesceu em subir.

Ordenou-se imediatamente ao bote que voltasse para apanhar os três marinheiros que se tinham atirado ao mar. Ao mesmo tempo, aprestaram-se os canhões, muito embora, havendo o San Dominick deslizado um pouco popa do navio de pesca, só se pudesse utilizar a peça da ré. Com esta foram disparados seis tiros, a fim de imobilizar o navio fugitivo derrubando-lhe os mastros. Mas somente alguns cabos se avariaram. Pouco depois fugia o navio do alcance do canhão, aproando diretamente para fora da baía; os negros se apinhavam em torno do gurupés e ora dirigiam insultos aos brancos, ora erguiam os braços, saudando-os agora negros mouros do oceano — corvos crocitantes escapos do passarinheiro.

O primeiro impulso do americano foi soltar os cabos e perseguir os fugitivos. Mas, pensando melhor, achou que seria mais eficaz a perseguição com a baleeira e os escaleres.

Perguntou a Dom Benito quantas armas de fogo possuíam os negros a bordo do San Dominick e o interpelado respondeu que não tinham nenhuma que pudessem utilizar; porque, no princípio do motim, um passageiro, que depois fora morto, inutilizara em segredo os fechos dos poucos mosquetes existentes. Mas com todas as forças que lhe restavam suplicou Dom Benito ao americano que desistisse da perseguição, fosse com o navio, fosse com a baleeira; pois os negros já se tinham revelado tão facinorosos que, no caso de um assalto, não se poderia esperar senão uma chacina total dos brancos. Considerando, porém, que a advertência provinha de um espírito arrasado pelo sofrimento, o americano não desabriu mão do intento.

Aparelharam-se os botes. Ordenou o Capitão Delano que vinte e cinco homens os tripulassem. E já se dispunha a entrar num deles quando Dom Benito lhe agarrou o braço:

— Como! O senhor me salvou vida e quer agora esperdiçar a sua?

Os próprios oficiais, por motivos ligados aos seus interesses e aos da viagem e às obrigações assumidas com os proprietários do navio, opuseram-se energicamente à ida do comandante. Em face desses argumentos, achou o Capitão Delano que devia ficar e designou o primeiro imediato — um homem atlético e resoluto, que já trabalhara num navio corsário — para chefiar a expedição. E para incutir mais ânimo aos marinheiros, declarou-lhes que o capitão espanhol já dava por perdido o seu navio; que este e o seu carregamento, inclusive alguma prata e algum ouro, valiam mais de mil dobrões. Se conseguissem tomá-lo, receberiam todos um bom quinhão. Os marinheiros responderam com aclamações.

A essa altura os fugitivos haviam quase alcançado o alto-mar. A noite principiava a cair; mas a lua despontava. Depois de vigoroso e prolongado esforço, chegaram os botes a pequena distância do navio. Os marinheiros largaram os remos para descarregar os mosquetes. Não tendo balas para retribuir, os negros desferiram berros. Mas, à segunda descarga, a modo de índios, arremessaram as machadinhas. Uma delas decepou os dedos de um marinheiro. Outra atingiu a proa da baleeira, cortando-lhe o cabo e ficou espetada no alcatrate como o machado de um lenhador. Arrancando-a, fremente, do sítio em que se fincara, o imediato arremessou-a de volta. A luva devolvida foi espetar-se na galeria desmantelada do navio e lá ficou.

Como fosse demasiado calorosa a recepção dos negros, mantiveram-se os brancos à respeitosa distância, a salvo das machadinhas arremessadas; e, tendo em vista a peleja corpo a corpo que logo se travaria, conceberam a idéia de engambelar os negros, induzindo-os a atirar, como projéteis que não atingiam o alvo e caiam dentro da água, todas as armas ofensivas que pudessem utilizar, numa luta corporal. Percebendo, porém, o estratagema, não tardaram os negros em desistir, se bem só o fizessem depois de substituírem muitas machadinhas perdidas por alavancas; substituição que, como era de esperar, se revelou afinal favorável aos assaltantes.

Entrementes, soprando um vento forte, o navio ainda fendia as águas; e os botes, alternadamente, perdiam terreno quando se faziam novas descargas.

O fogo era principalmente dirigido contra a popa, onde, então, se amontoavam quase todos os negros. Mas o objetivo não consistia em os matar ou ferir, senão em prendê-los e, com eles, o navio. Para isso, cumpria abordá-lo e a abordagem seria impraticável enquanto ele singrasse com tamanha rapidez.

Ocorreu uma idéia ao imediato. Vendo os grumetes espanhóis encarapitados ainda no topo dos mastros, gritou-lhes que descessem às vergas e cortassem as velas. O que foi feito. Mais ou menos nessa ocasião, mercê de razões que ainda serão revelarias, dois espanhóis, vestidos de marinheiros, que se expunham ostensiva mente, foram mortos; não por descargas, mas por tiros deliberados de atiradores; ao passo que, durante uma das descargas gerais, como depois se verificou, Atufal, o negro, e o espanhol do leme também foram mortos. Entretanto, perdidas as velas e perdidos os chefes, viram-se os negros incapazes de manejar o navio.

Com os mastros estalando, a embarcação principiou a girar, sob a ação do vento; a proa ofereceu-se lentamente aos olhares dos marinheiros e o seu esqueleto, brilhando aos raios de um luar horizontal, projetava uma sombra gigantesca, estriada de costelas, sobre a água. Um dos braços esticados do fantasma parecia intimar os brancos a vingarem-no.

— Segui o vosso chefe! — gritou o imediato; e, um de cada lado, os botes abordaram o navio. Arpões e facões cruzaram-se com machadinhas e alavancas. Apinhadas sobre a chalupa a meia nau, as negras entoavam um canto plangente, cujo estribilho era o retinir do aço.

Durante algum tempo o ataque se manteve indeciso; os negros precipitavam-se em bloco para rechaçá-lo; os semi-repelidos marinheiros, que ainda não tinham conseguido tomar pé a bordo, lutavam como soldados de cavalaria, com uma perna para dentro e outra para fora da amurada, brandindo os facões como chicotes de carroceiros. Mas em vão. E iam ser vencidos quando, reunindo-se em pelotão como um homem só, bramindo, saltaram sobre o convés, onde, envolvidos, foram novamente separados. Por alguns segundos, ouviu-se um ruído vago, abafado, interior, como o de um peixe-espada que se precipitasse de um lado para outro no meio de cardumes de percas negras. Mas logo, reunindo-se outra vez e ajudados pelos marinheiros espanhóis, voltaram os brancos a dominar, empurrando irresistivelmente os negros para a popa. Erguera-se, porém, uma barricada de cascos e sacos de ambos os lados do mastro grande. Ali se entrincheiraram os negros, e posto desdenhassem a paz ou a trégua, uma folga lhes seria bem-vinda. Mas sem pausa, saltando a barreira, os marinheiros pertinazes voltaram a atacar. Exaustos, lutavam os negros em desespero de causa. Pendia-lhes da boca negra a língua vermelha, como a dos lobos. Mas os pálidos marinheiros tinham os dentes cerrados; não se ouvia uma palavra; e, cinco minutos depois, senhoreavam o navio.

Quase vinte negros tinham sido mortos. Além dos que haviam sido atingidos pelas balas, muitos se achavam feridos; os seus ferimentos — produzidos na maior parte pelos arpões pontiagudos — lembravam os que tinham sofrido os ingleses em Preston Pans, retalhados pelas foices compridas dos escoceses. Os adversários não haviam perdido ninguém, embora diversos estivessem feridos; alguns gravemente, como o imediato. Os negros sobreviventes foram temporariamente amarrados, e o navio, reconduzido ao porto à meia-noite, voltou a fundear.

Passemos por alto os incidentes e aprestos que se seguiram; basta-nos dizer que, depois de dois dias gastos em reaparelhá-los, seguiram juntos os dois barcos para Concepcion, no Chile, e de lá para Lima, no Peru; onde, diante dos tribunais do viso-rei, investigou-se cabalmente o caso.

Posto que, durante a viagem, liberto do seu constrangimento, mostrasse o malfadado espanhol indícios de estar recuperando a saúde e a vontade, pouco antes de chegar a Lima, segundo os seus pressentimentos, teve uma recaída e acabou ficando tão fraco que só pôde descer è terra nos braços dos companheiros. Sabedora de sua história e do seu estado, uma das muitas instituições religiosas da Cidade dos Reis ofereceu-lhe refúgio hospitaleiro, onde ficou sob os cuidados permanentes de um médico e de um padre, oferecendo-se um membro da ordem para servir-lhe de guarda do corpo e do espírito, noite e dia.

Esperamos que os seguintes fragmentos, traduzidos de um dos documentos oficiais espanhóis, projetem alguma luz sobre a narrativa anterior, revelando, em primeiro lugar, o verdadeiro porto de partida e a verdadeira história da viagem do San Dominick, até o momento em que o navio tocou na ilha de Santa Maria.

Mas antes de passarmos aos fragmentos convém prefaciá-los com uma observação.

O documento escolhido, entre muitos outros, para uma tradução parcial, contém o depoimento de Benito Cereno, o primeiro a ser tomado. Algumas de suas declarações foram, a princípio, consideradas duvidosas por motivos doutos e naturais ao mesmo tempo. Sentia-se propenso o tribunal a aceitar a hipótese de que o depoente, com o espírito conturbado pelos últimos sucessos, fantasiasse algumas coisas que nunca poderiam ter acontecido. Mas depoimentos posteriores dos marinheiros sobreviventes, confirmando as declarações do seu capitão em diversas das mais estranhas particularidades, acreditaram o resto. De sorte que a corte, na decisão final, estribou as suas sentenças capitais em depoimentos que, não confirmados, teriam de ser justamente rejeitados.

Eu, Dom José de Abos e Padilla, Tabelião do fisco Real, Oficial do Registro da Província de Sua Majestade, e Notário Público da Santa Cruzada deste Bispado, etc.

Certifico e declaro, nos termos da lei, que, no processo criminal instaurado no dia vinte e quatro do mês de setembro do ano de mil, setecentos e noventa e nove, contra os negros do Senegal que viajavam a bordo do navio San Dominick, foi feito perante mim o seguinte depoimento:

Depoimento da primeira testemunha, Dom Benito Cereno.

No mesmo dia, mês e ano, Sua Excelência, o Doutor João Martinez de Rozas, Conselheiro da Real Audiência deste Reino e versado na lei desta Intendência, ordenou ao capitão do navio San Dominick, Dom Benito Cereno, que se apresentasse; o que este fez em sua liteira, acompanhado pelo monge Infelez, prestando juramento em nome de Deus, Nosso Senhor com o sinal-da-cruz, e prometeu dizer a verdade sobre tudo o que soubesse e lhe fosse perguntado; — e interrogado consoante o teor do ato inicial deste processo, disse que, no dia vinte de maio próximo passado, zarpou com o seu navio do porto de Valparaíso, com destino ao de Calao; carregado com produtos do país além de trinta caixotes de ferragens e cento e sessenta negros, de ambos os sexos, pertencentes em sua maioria a Dom Alexandro Aranda, fidalgo, da cidade de Mendoza; que a tripulação do navio consistia em trinta e seis homens, além das pessoas que viajavam como passageiros; que os negros eram principalmente os seguintes:...

 

(Segue-se, no original, unia lista de uns cinquenta nomes, descrições e idades, extraídos de certos documentos recuperados de Aranda, e também de reminiscências do depoente, da qual transcreveremos apenas alguns trechos).

 

— Um, entre dezoito e dezenove anos, chamado José, que exercia as funções de criado junto do amo, Dom Alexandre, e que fala bem o castelhano, pois o serviu durante quatro ou cinco anos.. Um mulato, chamado Francesco, despenseiro dos oficiais, de boa presença e boa voz, tendo cantado nas igrejas de Valparaíso, natural da província de Buenos Aires, com cerca de trinta e cinco anos de idade. Um negro inteligente, chamado Dago, que fora coveiro durante muitos anos entre os espanhóis, com quarenta e seis anos de idade... Quatro negros velhos, nascidos na África, com idades que variavam entre sessenta e setenta anos, mas fortes, calafates de profissão, cujos nomes são os seguintes: — o primeiro chamava-se Muri, e foi morto (como seu filho, chamado Diamelo); o segundo, Nacta; o terceiro, Yola, morto também; o quarto, Ghofan; e seis negros adultos, cujas idades oscilavam entre trinta e quarenta e cinco anos, todos selvagens, nascidos entre os achantis — Matiluqui, Yan, Feche, Mapenda, Yambaio, Akim; quatro foram mortos;... um negro vigoroso chamado Atufal, que se supõe ter sido chefe na África, e ao qual o proprietário atribuía grande valor... E um negro pequeno do Senegal, que já vivera algum tempo entre espanhóis, com uns trinta anos de idade, e cujo nome era Babo;... que não se recorda dos nomes dos outros, mas que, esperando ainda sejam encontrados os restantes documentos de Dom Alexandro, fará então uma lista de todos e a entregará ao tribunal;... e trinta e nove mulheres e crianças de todas as idades.

 

(Terminado o catálogo, prossegue o depoimento):

...Que todos os negros dormiam no convés, como é habitual nesse navio, e nenhum fora algemado, porque o proprietário, seu amigo Aranda, lhe assegurara que eram todos dóceis... que no sétimo dia depois de haverem deixado o porto, às três horas da madrugada, enquanto dormiam os espanhóis, exceto os dois oficiais que estavam de quarto, o mestre de equipagem, João Robles, e o carpinteiro, João Batista Gayete, além do timoneiro e seu ajudante, os negros revoltaram-se de repente, feriram gravemente o mestre de equipagem e o carpinteiro, e mataram dezoito dos homens que estavam dormindo no convés, alguns com alavancas e machadinhas, e outros atirando-os vivos ao mar, depois de havê-los amarrados; que dos espanhóis que se encontravam no convés, deixaram vivos e amarrados, na opinião do declarante, apenas sete, para manejarem o navio, além de três ou quatro, que se esconderam. Embora, ao revoltarem-se, houvessem os negros senhoreado a escotilha, seis ou sete feridos desceram por ela à enfermaria, sem qualquer objeção da parte deles; que, ao estalar a revolta, o imediato e outra pessoa, de cujo nome não se recorda, tentaram subir pela escotilha, mas, sendo imediatamente feridos, foram obrigados a voltar ao camarote; que o depoente resolveu, ao romper do dia, subir pela escada do convés, onde se achavam o negro Babo, cabeça do motim, e Atufal, seu ajudante; que, dirigindo-lhe a palavra, exortou-os a acabar com aquelas atrocidades, perguntando-lhes, ao mesmo tempo, o que desejavam e o que pretendiam fazer, oferecendo-se para obedecer-lhes às ordens; que, sem embargo disso, em sua presença, atiraram ao mar três homens vivos e atados; que disseram ao depoente que subisse, pois não o matariam; feito o que, perguntou-lhe o negro Babo se havia naqueles mares algum país de negros aonde pudessem ser levados, ao que ele respondeu negativamente; que o negro Babo, ao depois, lhe ordenou que os levasse ao Senegal ou às ilhas vizinhas de São Nicolau; respondendo o depoente que isso era impossível, em razão da grande distância, da necessidade de dobrar o Cabo Horn, do mau estado do navio, da falta de provisões, de velas e de água; mas que o negro Babo lhe respondera que deveria levá-los de qualquer maneira; que estavam dispostos a fazer quanto exigisse o depoente no tocante às provisões de boca; que, depois de longa conferência, vendo-se absolutamente forçado a satisfazê-los, pois ameaçavam matar todos os brancos se não fossem levados ao Senegal, declarou-lhes o depoente que o de que mais precisavam para a viagem era água; que se avizinhariam do litoral para abastecer-se dela e de lá seguiriam o seu curso; que o negro Babo concordou; e que o depoente aproou aos portos intermediários, na esperança de encontrar algum navio espanhol ou estrangeiro que os salvasse; que dez ou onze dias depois avistaram terra e continuaram a navegar ao largo dela nas proximidades de Nasca; que o depoente observou que os negros não se mostraram agitados e rebeldes porque ele não procedera ao abastecimento de água, lendo o negro Babo ordenado, com ameaças, que isso fosse feito, sem falta, no dia seguinte; que o depoente lhe obtemperou que o litoral naquele ponto, como se podia ver perfeitamente, era escarpado e os rios assinalados nos mapas não poderiam ser encontrados, além de expor outros argumentos adequados às circunstâncias; que a melhor solução seria abicar na ilha de Santa Maria, onde poderiam prover-se de água facilmente, por ser uma ilha solitária, como faziam os estrangeiros; que o depoente não tocou em Pisco, que ficava perto, nem em qualquer outro porto da costa porque o negro Babo lhe assegurara diversas vezes que mataria todos os brancos no momento em que avistasse uma cidade, aldeia ou povoação qualquer nas praias a que fossem conduzidos; que tendo resolvido largar para a ilha de Santa Maria, como planejara, com a intenção de encontrar durante a travessia ou perto da própria ilha alguma embarcação que pudesse ajudá-los, ou de fugir numa lancha para a costa vizinha de Arruco, a fim de adotar as medidas necessárias o depoente mudou imediatamente de rumo, aproando para a ilha; que os negros Babo e Atufal mantinham conferências diárias, em que discutiam os pormenores do plano de voltarem ao Senegal, e se deveriam matar todos os espanhóis e, sobretudo, o depoente; que oito dias após deixar a costa de Nasca, estando o depoente de quarto um pouco depois do romper do dia, e em seguida à conferência dos negros, o negro Babo aproximou-se do depoente e disse-lhe que decidira matar o seu amo, Dom Alexandro Aranda, não só porque ele e os companheiros, se o deixassem vivo, não poderiam ter certeza da própria liberdade, mas também para manter sujeitos os marinheiros, mostrando-lhes o destino que esperaria caso tentassem rebelar-se; e que o melhor exemplo disso seria a morte de Dom Alexandro; que o depoente, a princípio, não compreendeu o significado das últimas palavras, percebendo apenas que se cogitava da morte de Dom Alexandro; e além disso o negro Babo propôs ao depoente chamar o imediato Raneds, que estava dormindo no beliche, antes de consumar-se a morte, com receio, secundo entendeu o depoente, de que o imediato, bom navegante, fosse morto com Dom Alexandro e os outros; que o depoente, amigo de infância de Dom Alexandro, pediu e suplicou, mas em vão; pois o negro Babo lhe respondeu que aquilo era inevitável e todos os espanhóis se arriscariam a morrer se tentassem opor-se à vontade dele nesse caso ou em qualquer outro; que, nesse conflito, o depoente chamou o imediato, Raneds, que foi obrigado a afastar-se, e imediatamente o negro Babo ordenou ao achanti Martinqui e ao achanti Lecbe que fossem cometer o assassínio; que os dois desceram com machadinhas ao beliche de Dom Alexandro; que o arrastaram ao convés todo mutilado mas ainda com vida; que já se dispunham a atirá-lo ao mar naquele estado, quando os deteve o negro Babo, ordenando-lhe que acabassem de matá-lo em sua presença o que foi feito; em seguida, por ordem sua, foi o cadáver levado para baixo; que o depoente não o viu nem soube mais dele por três dias;... que Dom Alonso Sidonia, um ancião, que havia muito tempo residia em Valparaíso e fora recentemente nomeado para exercer um cargo civil no Peru, para onde se dirigia, estava dormindo, nessa ocasião, no beliche que defrontava com o de Dom Alexandro; que, despertando com os seus gritos, espavorido, e vendo os negros com as machadinhas ensanguentadas na mão, atirou-se ao mar por uma janela próxima e morreu afogado, sem que o depoente pudesse esboçar um gesto de socorro;... que, pouco depois de terem matado Aranda, trouxeram para o tombadilho seu primo irmão, homem de meia idade, Dom Francisco Masa, de Mendoza, e o jovem Dom Joaquim, Marquês de Aramboalaza, recém-chegado de Espanha, com o seu criado espanhol Ponce, e os três jovens secretários de Aranda, José Mozairi, Lourenço Bargas e Hermenegildo Gandix, todos de Cadiz; que o negro Babo, por motivos que posteriormente serão revelados, conservou vivos Dom Joaquim e Hermenegildo Gandix; mas Dom Francisco Masa, José Mozairi e Lourenço Bargas, além de Ponce, o criado, João Robles, o mestre de equipagem, os imediatos do mestre de equipagem, Manuel Viscaya e Rodrigo Hurta, e mais quatro marinheiros, foram, por ordem do negro Babo, atirados vivos ao mar, embora não opusessem resistência e não pedissem outra coisa senão misericórdia; que o mestre de equipagem, João Robles, que sabia nadar, conservou-se por mais tempo à superfície da água, fazendo atos de contrição, e nas últimas palavras pediu que mandassem rezar missa por intenção de sua alma na igreja de Nossa Senhora do Socorro;... que, durante os três dias seguintes, ignorando o destino que tinham tido os despojos de Dom Alexandro, o depoente perguntou várias vezes ao negro Babo onde estavam, pedindo-lhe que, se ainda se encontrassem a bordo, os preservasse para serem sepultados em terra; que o negro Babo nada respondeu até o quarto dia, quando, ao nascer do sol, e subindo o depoente ao convés, lhe mostrou um esqueleto, que substituira a figura do talhamar do navio — a imagem de Cristóvão Colombo, descobridor do Novo Mundo; que o negro Babo lhe perguntou de quem era aquele esqueleto e se, pela alvura, não seria o de um branco; que o depoente cobriu o rosto e o negro Babo, aproximando-se, falou-lhe nestes termos: "Conserva-te fiel aos negros daqui ao Senegal, ou seguirás em espírito, como agora segues em corpo, o teu chefe", apontando para a proa;... que na mesma manhã o negro Babo levou, sucessivamente, cada um dos espanhóis à proa e perguntou de quem era o esqueleto e se, pela alvura, não seria o de um branco; que todos os espanhóis cobriram o rosto; e que então, para cada um deles, o negro Babo repetiu as palavras ditas em primeiro lugar ao depoente;... que estando eles (os espanhóis) reunidos à ré, o negro Babo dirigiu-lhes a palavra, dizendo que havia agora feito tudo; que o depoente (como navegador dos negros) podia seguir o seu curso, advertindo-o e a todos que iriam pelo mesmo caminho de Dom Alexandro, se os visse (aos espanhóis) falar ou planejar o quer que fosse contra eles (os negros) — ameaça reiterada todo o santo dia; que, antes dos acontecimentos por último referidos, haviam amarrado o cozinheiro para atirá-lo ao mar, pois não se sabe o que lhe ouviram, mas afinal o negro Babo lhe poupou a vida, a pedido do depoente, que, passados alguns dias, não querendo omitir precaução alguma que tendesse a preservar a vida dos brancos remanescentes, o depoente exortou os negros à paz e à tranquilidade e dispôs-se a redigir um documento, assinado por ele depoente, pelos marinheiros que soubessem escrever, e também pelo negro Babo, em seu nome e no de todos os negros, em que o depoente se obrigava a transportá-los ao Senegal e eles se comprometiam a não matar mais ninguém, comprometendo-se ainda formalmente o depoente a entregar-lhes o navio com o carregamento, mostrando-se os negros, nessa ocasião, satisfeitos e tranquilos... Mas no dia seguinte, para evitar com maior segurança a fuga dos marinheiros, ordenou o negro Babo que se destruíssem todos os botes, exceto a chalupa, inavegável, e um escaler em boas condições, que, por necessário ao reboque dos barris de água, mandou guardar no porão.

 

(Seguem-se diversos pormenores da prolongada e difícil navegação, entre os quais uma calamitosa calmaria, de que extraímos o trecho seguinte):

— Que no quinto dia da calmaria, como todos a bordo sentissem muito os efeitos do calor e a falta de água, e cinco tivessem morrido em acessos de loucura, os negros tornaram-se irritáveis e por um gesto casual, que consideraram suspeito — se bem fosse inofensivo — feito pelo imediato Raneds ao depoente no momento em que lhe entregava um oitante, mataram-no; mas disso depois se arrependeram, visto que, afora o depoente, era o imediato o único navegador que restava a bordo.

— Que omitindo outros sucessos, ocorridos todos os dias, e que só serviriam de recordar inutilmente infortúnios e conflitos passados, depois de setenta e três dias de navegação, a contar do momento em que zarparam de Nasca, durante os quais navegaram com escassíssima rações de água, atormentados pelas calmarias já referidas, chegaram por fim à ilha de Santa Maria, no dia dezessete de agosto, cerca das seis horas da tarde, quando fundearam perto do navio americano Bachelor's Delight, ancorado na mesma baía e comandado pelo generoso Capitão Amasa Delano; mas, às seis da manhã, já haviam avistado o porto e os negros se mostraram inquietos assim que Iobrigaram de longe o navio, pois não esperavam encontrar nenhum naquelas paragens; que o negro Babo os acalmou, assegurando-lhes que não havia o que temer; que imediatamente lhes ordenou que cobrissem a figura da proa com uma lona, como se a estivessem consertando, e fizessem um pouco de ordem no convés; que durante algum tempo conferenciaram o negro Babo e o negro Atufal; que o negro Atufal era de opinião que se fizessem ao largo, mas o negro Babo se opôs e decidiu sozinho o que haviam de fazer; que ele, afinal, se chegou ao depoente e lhe ordenou que dissesse e fizesse tudo o que o depoente afirma ter dito e feito ao capitão americano;... que o negro Babo o advertiu de que, à menor alteração, à primeira palavra ou olhar que dessem a mais mínima indicação dos acontecimentos passados ou da situação presente, seria morto incontinenti, com todos os companheiros, e mostrou-lhe um punhal, que trazia escondido, acrescentando qualquer coisa que, ao parecer do depoente, significava que o punhal estaria tão vigilante quanto a sua vista; que o negro Babo, em seguida, anunciou o plano a todos os companheiros, que se mostraram satisfeitíssimos e, para melhor disfarçar a verdade, engenhou inúmeros expedientes, em alguns dos quais associava a preocupação de defesa ao artifício; que a esse gênero pertencia o estratagema dos seis achantis já mencionados, que eram os seus assassinos profissionais; que ele os colocou no bordo da popa, supostamente encarregados de polir umas machadinhas (que se encontravam encaixotadas e faziam parte da carga), mas em realidade incumbidos de usá-las e distribuí-las no momento azado, quando pronunciasse certa palavra, que lhes comunicou; que, entre outras ardilezas, incluía-se a de apresentar Atufal, sua mão direita, como acorrentado, se bem pudesse, num ápice, desvencilhar-se das correntes; que informou o depoente circunstanciadamente da parte que lhe cumpria representar em todos os artifícios, e da espécie de história que devia contar em todas as ocasiões, ameaçando-o sempre de morte instantânea à menor variante; que, prevendo que muitos negros se mostrariam turbulentos, designou os quatro velhos calafates para manterem a maior ordem doméstica possível no convés; que dirigiu repetidamente a palavra aos espanhóis e aos companheiros, inteirando-os do seu intento e artifícios, e da história fantástica que o depoente deveria contar, para que ninguém se desviasse dela uma vírgula sequer; que esses planos foram feitos e aprimorados nas duas ou (rês horas que mediaram entre o momento em que se avistara peta primeira vez o navio de pesca e a chegada do Capitão Amasa Delano a bordo; que isto aconteceu, mais ou menos, às sete e meia da manhã, quando chegou ao seu navio o Capitão Amasa Delano e foi alegremente recebido por todos; que o depoente, na medida de suas forças, desempenhou o papel de capitão e proprietário principal do navio e declarou ao Capitão Amasa Delano, quando interrogado, que vinha de Buenos Aires com destino a Lima, com trezentos negros; que ao largo do cabo Horn e em razão de uma febre subsequente, muitos negros tinham morrido; e que também, em idênticos acidentes, haviam perecido todos os oficiais de bordo e a maior parte da tripulação.

 

(E assim prossegue o depoimento, referindo circunstanciadamente as histórias fictícias ditadas ao declarante por Babo e, através do declarante, impingidas ao Capitão Delano, além de outras coisas, que aqui também se omitem. Concluída a história fictícia, etc., o depoimento continua):

 

 

— Que o generoso Capitão Amasa permaneceu a bordo o dia todo, até deixar o navio ancorado ás seis horas da tarde, e durante todo esse tempo o depoente lhe falou dos seus pretensos infortúnios, segundo as instruções já ciladas, sem ter podido pronunciar uma palavra ou fazer um gesto que o inteirasse da verdade e do estado das coisas; porque, desempenhando o ofício de criado obsequioso com todas as mostras de submissão do escravo humilde, o negro Babo não se arredou um momento sequer do depoente, a fim de poder observar-lhe todos os atos e todas as palavras, pois o negro Babo compreende bem o castelhano; e, além disso, havia sempre outros negros por perto, constantemente à espreita, que também entendiam o castelhano;... que numa ocasião, enquanto o depoente se achava no convés conversando com Amasa Delano, o negro Babo, com um sinal secreto, chamou à parte o depoente, mas de modo que a iniciativa parecesse haver partido do depoente; que, tendo-se afastado com o depoente, o negro Babo lhe propôs obter de Amasa Delano informações completas sobre o seu navio, tripulação e armas; que o depoente perguntou "Para quê?" tendo o negro Babo respondido que ele bem poderia imaginar; que, afligindo-se com a perspectiva do que pudesse suceder ao generoso Capitão Amasa Delano, o depoente, a princípio, recusou-se a fazer as perguntas desejadas e usou de todos os argumentos para persuadir o negro Babo a renunciar ao novo projeto; que o negro Babo lhe mostrou a ponta do punhal; que, obtida a informação, o negro Babo tornou a chamá-lo à parte, dizendo-lhe que naquela mesma noite ele (o depoente) comandaria dois barcos em vez de um, pois como grande parte da tripulação do navio americano devesse ausentar-se, para pescar, os seis achantis, sozinhos, o tomariam com facilidade; que nessa ocasião ele disse outras coisas no mesmo sentido; que de nada valeram os rogos do depoente; que antes da chegada de Amasa Delano a bordo, não se fizera insinuação alguma a respeito da captura do navio americano; que o depoente carecia de meios para impedir a realização do projeto;... — que em algumas coisas a sua memória se apresenta confusa, e ele não pode relembrar nitidamente todos os acontecimentos;... — que assim que o navio deitou âncora às seis horas da tarde, como já ficou dito o capitão americano despediu-se, para voltar à sua embarcação; que, num súbito impulso, que o depoente acredita inspirado por Deus e pelos anjos, feitas as despedidas, ele depoente acompanhou o generoso Capitão Amasa Delano à amurada do navio, onde permaneceu, sob calor de despedir-se, até que viu o capitão americano sentado em seu bote; que no momento em que o bote se afastou, o depoente saltou da amurada para dentro dele, onde caiu, não sabe como, amparado pela mão de Deus; que —

(A isto, no original, segue-se o relato do que ao depois sucedeu durante a fuga, e da retomada do San Dominick e da viagem até à costa, intercalado de muitíssimas expressões de "eterna gratidão" ao "generoso Capitão Amasa Delano". A seguir, continua o depoimento com observações recapitulalórias e nova enumeração parcial dos negros, referindo a parte que cada qual desempenhou nos sucessos passados, a fim de fornecer, por ordem do tribunal, os dados em que este pudesse fundamentar-se para elaborar as sentenças que devia pronunciar. Dessa parte destacamos o trecho seguinte):

 

— Que o depoente acredita que todos os negros, embora a princípio ignorassem o projeto de revolta o aprovaram depois de realizado... Que o negro José, de dezoito anos de idade, criado particular de Dom Alexandro, foi quem forneceu ao negro Babo as informações sobre o estado de coisas no camarote, antes da revolta; que isto se sabe porque, nas noites precedentes, ele costumava sair de sua cama, que ficava debaixo da do amo, e dirigir-se para o convés, onde se reuniam o chefe da revolta e seus associados, e mantinha secretas conversações com o negro Babo, sendo diversas vezes surpreendido pelo imediato; que, numa noite, o imediato mandou-o embora por duas vezes;... que esse mesmo negro José foi quem, sem ordem do negro Babo, como era o caso de Lecbe e Martinqui, apunhalou o amo, Dom Alexandro, depois que este foi arrastado semimorto ao convés;... que o despenseiro mulato Francesco fez parte do primeiro grupo de amotinados, tendo sido, em tudo, criatura e instrumento do negro Babo; que, para agradá-lo, minutos antes de uma refeição no camarote, propôs-lhe envenenar o prato do generoso Capitão Amasa Delano; que isto é sabido e crido porque os negros assim o disseram; mas que o negro Babo, tendo outros projetos, recusou a proposta de Francesco;... que o achanti Lecbe era um dos piores; que no dia em que o navio foi retomado, participou da sua defesa, brandindo uma machadinha em cada mão, com uma das quais feriu, no peito, o primeiro imediato de Amasa Delano, no início da abordagem; o que era sabido de todos; que, em presença do depoente, Lecbe feriu com a machadinha Dom Francisco Masa, quando, por ordem do negro Babo, o carregava para arremessá-lo vivo ao mar, além de participar do assassínio, já referido, de Dom Alexandro Aranda e de outros passageiros; que, em razão da fúria com que lutaram os achantis na refrega com os botes, deles sobreviveram apenas esse Lecbe e Yan; que Yan era tão ruim quanto Lecbe; que Yan foi o homem que, por ordem de Babo, de boa mente preparou o esqueleto de Dom Alexandro, por um processo que os negros depois contaram ao depoente, mas que este, enquanto lhe sobrar um lampejo de razão, nunca divulgará; que Yan e Lecbe foram os que, numa noite de calmaria, pregaram o esqueleto na proa; isto também lhe foi contado pelos negros; que foi o negro Babo quem escreveu a inscrição debaixo dele; que o negro Babo planejou a conspiração desde o princípio até ao fim; que ordenou todos os assassínios e foi a cabeça da revolta; que Atufal, em tudo, foi o seu braço direito; mas Atufal, com suas próprias mãos, não cometeu assassínio algum; nem o negro Babo;... que Atufal foi morto a tiros no encontro com os botes, antes da abordagem;... que as negras de maior idade estavam inteiradas da revolta e se mostraram satisfeitas com a morte de seu amo, Dom Alexandro; que, a não serem impedidas pelos negros, teriam supliciado, em vez de matar simplesmente, os espanhóis assassinados por ordem do negro Babo; que as negras usaram de toda a sua influência no sentido de obter a morte do depoente; que, durante os vários assassínios, cantaram e dançaram — não alegre, mas solenemente; e antes do encontro com os boles, assim como durante a ação, entoaram canções melancólicas mais excitantes que quaisquer outras e que para esse efeito eram entoadas; que tudo isso deve ser crido porque foi dito pelos negros.

— Que dos trinta e seis homens da tripulação, fora os passageiros (que estavam agora todos mortos), pelo que sabia o depoente, apenas seis continuavam vivos, além de quatro grumetes, não incluídos na tripulação;... — que os negros quebraram um braço de um dos grumetes e o feriram com machadinhas.

(Seguem-se várias declarações feitas ao acaso, referentes a diversos períodos de tempo. Delas extraímos estes tópicos):

 

— Que durante a presença do Capitão Amasa Delano a bordo, algumas tentativas foram feitas pelos marinheiros, e uma por Hermenegildo Gandix, para dar-lhe a perceber o verdadeiro estado de corsas; que essas tentativas não surtiram efeito, em razão do medo que os tolhia de serem assassinados e, principalmente, dos artifícios que contradiziam o verdadeiro estado de coisas, como também em razão da generosidade e da bondade de Amasa Delano, incapaz de conceber tamanha maldade;... que Luís Galgo, marinheiro de uns sessenta anos de idade, que anteriormente servira na armada real, foi um dos que tentaram abrir os olhos do Capitão Amasa Delano; mas como suspeitassem da sua intenção, conquanto não a conhecessem, ordenaram-lhe os negros que se afastasse, com um pretexto qualquer, e, conduzindo-o ao porão, assassinaram-no. Isso disseram os negros depois;... que um dos grumetes, alimentando esperanças de evasão em virtude da presença do Capitão Amasa Delano e não se havendo a necessária prudência, disse alguma coisa nesse sentido; que, ouvido e compreendido por um negrinho com quem estava comendo nessa ocasião, este último golpeou-lhe a cabeça com uma faca, produzindo-lhe um ferimento grave, mas do qual já se está recuperando; que pouco antes de ser conduzido o navio ao surgidouro, um dos marinheiros, que se encontrava ao leme, arriscou-se deixando que os negros lhe surpreendessem no rosto uma expressão provocada por alguma causa semelhante à que há pouco aludimos; mas este marinheiro, pelo seu discreto proceder, conseguiu escapar;... que essas declarações são feitas para mostrar ao tribunal que, do princípio ao fim da revolta, fora impossível ao depoente e a seus homens procederem de maneira diversa da que procederam;... — que o terceiro secretário, Hermenegildo Gandix, obrigado a viver entre os marinheiros, usando-lhes as roupas e em tudo se parecendo com eles, foi morto por um tiro de mosquete, disparado dos botes por engano antes da abordagem; pois, tomado de pavor, subira às enxárcias do mastro da mezena e gritara para os botes — "não abordem!" com receio de que, durante a abordagem, os negros o matassem; que assim induzidos a imaginá-lo do lado dos negros, os americanos dispararam dois tiros contra ele, de sorte que, soltando-se ferido das enxárcias, caiu ao mar e afogou-se;... — que o jovem Dom Joaquim. Marquês de Aramboalaza, como Hermenegildo Gandix, o terceiro secretário, foi degradado à condição e à aparência de simples marinheiro; que numa ocasião, como Dom Joaquim protestasse, o negro Babo ordenou ao achanti Lecbe que esquentasse um pouco de alcatrão e Iho despejasse nas mãos;... — que Dom Joaquim foi morto em virtude de outro engano dos americanos, impossível de evitar-se pois, à aproximação dos botes, os negros lhe amarraram uma machadinha na mão e colocaram-no ao pé da amurada; diante disso, vendo-o armado, em atitude suspeita, os americanos fuzilaram-no como marinheiro renegado;... — que na pessoa de Dom Joaquim foi encontrada, escondida, uma jóia destinada ao santuário de Nossa Senhora da Misericórdia em Lima, conforme se verificou pelos documentos que a acompanharam; oferenda votiva, previamente preparada e guardada, para atestar-lhe a gratidão, quando desembarcasse no Peru, seu último destino, pela feliz conclusão da viagem desde a Espanha;... — que a jóia, com os demais pertences do finado Dom Joaquim, se encontra sob a guarda dos irmãos do Hospital de Sacerdotes, onde espera as determinações da colenda corte;... — que, em virtude do estado do depoente e da pressa com que os botes partiram para o ataque, os americanos não foram avisados de que havia, no meio da aparente tripulação, um passageiro e um secretário, disfarçados pelo negro Babo;... — que, além dos negros mortos em combate, alguns foram mortos após a captura e a nova ancoração do navio, quando acorrentados aos arganéus do convés; que essas mortes foram cometidas pelos marinheiros, antes que pudessem ser impedidas. Que, inteirado disso, usou o Capitão Amasa Delano de toda a sua autoridade, chegando a derrubar com um murro Martinez Cola, o qual, tendo encontrado uma navalha no bolso de uma velha jaqueta sua, usada por um dos negros agrilhoados, dispunha-se a golpear com ela o pescoço do escravo; que o nobre Capitão Amasa Delano arrancou também das mãos de Bartolomeu Barlo um punhal escondido durante a chacina dos brancos e com o qual se preparava para apunhalar um negro acorrentado, que, nesse mesmo dia, ajudado por outro o atirara ao solo e saltara sobre ele;... — que o depoente não pôde circunstanciar todos os sucessos ocorridos no longo espaço de tempo em que o navio esteve em poder do negro Babo; mas o que ele depoente referiu é o mais substancial de quanto se lembra neste momento e afirma ser verdade debaixo do juramento que prestou; depoimento que confirma e ratifica, depois de ouvir-lhe a leitura.

Disse ele que tem vinte e nove anos de idade e se acha alquebrado de corpo e de espírito; e que, dispensado pela colenda corte, não voltará à sua casa no Chile, mas recolherá ao mosteiro do Monte Agonia, e assinou com sua honra, e persignou-se, e saiu como chegou, em sua liteira, acompanhado do monge Infelez, para o Hospital de Sacerdotes.

 

BENITO CERENO

 

DOUTOR ROSAS

 

 

Se o depoimento serviu de chave para as complicações precedentes, o casco do San Dominick, como portal de um túmulo escancarado, jaz hoje aberto.

Até aqui, a natureza desta narrativa, além de tornar inevitáveis as confusões do principio, exigiu até certo ponto que muitas coisas, em vez de serem referidas na ordem de sua ocorrência, fossem narradas de maneira retrospectiva, ou irregular; este último é o caso dos trechos que rematarão a história:

Durante a longa e amena viagem a Lima, houve, como já insinuamos, um período em que o enfermo recobrou em parte a saúde, ou, pelo menos até certo ponto, a tranqüilidade. Antes da recaída final, travaram os dois capitães muitas conversas cordiais — cheias de fraternais expansões, em singular contraste com a reserva anterior.

E o espanhol repetiu, muitas e muitas vezes, quão duro lhe fora desempenhar o papel que Babo lhe impusera.

— Ah, meu caro amigo, — disse, de uma feita. Dom Benito, — naquelas mesmas ocasiões em que me julgava tão mal-humorado e tão ingrato, e até, como agora o confessa, chegava a pensar que eu estivesse planejando a sua morte, nessas mesmas ocasiões eu tinha o coração enregelado; não podia fitá-lo, ao pensar nos perigos que, assim a bordo deste navio como do seu, pairavam sobre o meu generoso benfeitor, preparados por mãos alheias. E assim como Deus vive, Dom Amasa, não sei se apenas o desejo de salvar-me poderia ter-me animado a saltar para o bote, não fosse a idéia de que, se o meu melhor amigo voltasse ao seu navio sem saber de nada aquela noite, teria sido surpreendido com todos os seus e nunca mais despertaria neste mundo. Tivesse eu feito a menor insinuação, tivesse dado o menor passo no sentido de estabelecer uma compreensão entre nós, e a morte, a morte explosiva, remataria a cena.

— É verdade, é verdade, — exclamou o Capitão Delano, estremecendo, — o senhor salvou-me a vida, Dom Benito, mais do que eu salvei a sua; e salvou-a sem que eu soubesse e sem que eu o quisesse.

— Não, meu amigo — volveu o espanhol, cortês até em questões de religião, — Deus encantou-lhe a vida, mas o senhor salvou a minha. Pensar em algumas coisas que fez, nos seus sorrisos e tagarelices, nos seus chistes e gestos temerários! Por muito menos ao que isso mataram eles o meu imediato, Raneds; mas o senhor trazia o salvo-conduto do Príncipe do Céu para passar por todas as emboscadas.

— Sim, eu sei que tudo se deve à Providência; mas o meu estado de espírito naquela manhã era mais do que normalmente prazenteiro, e a vista de tanto sofrimento, mais aparente que real, ajuntou compaixão e caridade ao bom humor, entrelaçando-os felizmente. Não fosse isso e, com certeza, como o senhor insinua, algumas de minhas interferências acabariam de maneira desastrosa. De mais a mais, os sentimentos de que lhe falei me permitiram afugentar as momentâneas suspeitas, quando a penetração poderia ter-me custado a vida, sem que eu, com isso, salvasse outra. Só no fim as desconfianças levaram a melhor sobre mim, e o senhor conhece o ponto a que chegaram.

— De fato, — redargüiu tristemente Dom Benito; — o senhor esteve comigo o dia todo; esteve em pé comigo, sentou-se comigo, conversou comigo, olhou para mim, comeu comigo, bebeu comigo; e, no entanto, o seu último gesto foi agarrar como se agarra um monstro não só um homem inocente, mas o mais lastimoso de todos os homens. A tais resultados podem chegar muitas perversas maquinações e engodos e tanto pode errar o melhor dos homens quando julgar o procedimento de alguém sem conhecer as realidades profundas de sua situação. Mas o senhor foi obrigado a isso e abriu os olhos em tempo. Oxalá sucedesse sempre o mesmo, em ambos os sentidos, a todos os homens.

— O senhor generaliza, Dom Benito, e o faz lugubremente. O que passou, passou; por que moralizarmos sobre isso? Esqueça-se de tudo. Veja, aquele sol brilhante lá embaixo, e o mar azul, e o céu azul, já se esqueceram; já viraram a página.

— Porque não têm memória, — redargüiu ele, desalentado. — Porque não são humanos.

— Mas estes ventos alísios que ora lhe ameigam o rosto. Dom Benito, não lhe parecem o toque balsâmico de uma carícia humana? Bons amigos, amigos firmes são os alísios.

— Com a firmeza deles apenas me impelem para o túmulo, señor, — foi a resposta pressaga.

— O senhor está salvo, — exclamou o Capitão Delano, cada vez mais espantado e penalizado; — está salvo: que foi o que lhe projetou essa sombra sobre a fronte?

— O negro.

Seguiu-se um silêncio, durante o qual o homem merencório se assentou, envolvendo-se lenta e inconscientemente em seu manto, como num sudário.

Não conversaram mais naquele dia.

Mas se a melancolia do espanhol terminava, às vezes, em mutismo sobre tópicos como este, outros havia em que ele nunca tocava, apelando para toda a sua antiga reserva. Passemos por alto o pior e, apenas a título de esclarecimento, citemos um ou dois exemplos. O vestuário tão elegante e tão rico, que ele usara no dia cujos sucessos foram narrados, não fora envergado voluntária mente. E a espada, guarnecida de prata, símbolo aparente de um despótico império, não era, de feito, uma espada, mas uma sombra. A bainha, artificialmente enrijecida, não guardava nada.

Quanto ao negro — cujo cérebro, e não o corpo, planejara e dirigira a revolta — a sua frágil estrutura, inadequada ao conteúdo, cedera imediatamente à força muscular superior de seu captor, no bote. Compreendendo que tudo se acabara, não emitiu um único som e ninguém conseguiu a isso obrigá-lo. O seu aspecto parecia dizer, "Visto que não posso fazer nada, nada direi". Posto a ferros no porão, como os outros, foi levado a Lima. Durante a viagem, Dom Benito não o visitou. E nunca mais em nenhuma ocasião, consentiu em olhar para ele. Diante do tribunal, recusou-se a fazê-lo. Instado pelos juizes, desmaiou. E somente no testemunho dos marinheiros se baseou a identificação legal de Babo.

Meses depois, arrastado ao patíbulo pela cauda de uma mula, conheceu o negro o seu fim silencioso. O corpo foi queimado e reduzido a cinzas; mas durante muitos dias, a cabeça, colméia de sutilezas, pregada num poste na Plaza, arrostou, imperturbável, o olhar dos brancos; e por sobre a Plaza olhava para a igreja de São Bartolomeu, debaixo de cujas abóbodas dormiam, e dormem ainda, os ossos recobrados de Aranda; e por sobre a ponte de Rimac olhava para o mosteiro, no Monte Agonia; onde, três meses depois de ter sido dispensado pelo tribunal, Benito Cereno, carregado em ataúde, seguiu, de fato, o seu chefe.

 

 

                                                                  Herman Melville

 

 

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