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Planeta Criança



Poesia & Contos Infantis

 

 

 


BIZÂNCIO - P.3 / Stephen Lawhead
BIZÂNCIO - P.3 / Stephen Lawhead

                                                                                                                                                   

                                                                                                                                                  

 

 

Biblioteca Virtual do Poeta Sem Limites

 

 

BIZÂNCIO

Terceira Parte

 

                   A sombra da morte paira na tua face, minha amada,

                   Mas o Senhor da Graça ergue-se perante ti,

                   E há paz na sua mente.

                   Dorme, oh, dorme, na calma de todas as calmas,

                   Dorme, oh, dorme, no amor de todos os amores,

                   Dorme, minha amada, no Senhor da Vida.

 

- Um milhar de pragas sobre o seu corpo apodrecido... - murmurou Harald, lançando a picareta contra a pedra, com toda a força - ... e que Odin lhe arranque a cabeça traiçoeira sobre os ombros sem préstimo!

- E o dê como alimento para os cães do inferno! - acrescentou Hnefi, cuspindo para a poeira para dar mais ênfase à frase. Levantou a picareta e fê-la descer como se estivesse a chacinar um inimigo.

Harald levantou novamente a sua picareta, pronto para a descer contra as pedras.

- Dou a minha palavra de rei... - entoou, num tom agoirento - em como matarei o traidor que nos atirou para esta escravatura. Que Odin me ouça, porque eu, Harald Berro-de-Touro, faço esta jura!

Estava a falar de Nikos, é claro, e a jura, embora sentida e infinitamente sincera, já não era nova. Desde a nossa chegada a Amida, onde havíamos sido vendidos no mercado sarraceno de escravos, que todos tínhamos escutado a mesma promessa inúmeras vezes embora com pequenas variações. Naquela terra, os dinamarqueses eram considerados como demasiado bárbaros e selvagens para poderem ser utilizados fosse no que fosse, excepto nas mais brutais tarefas. Fora desse modo que Harald, bem com os tristes restos da sua outrora terrível hoste de Lobos do Mar, acabara por ser adquirido pelo superintendente do califa e fora posto imediatamente a trabalhar nas minas de prata.

Ser um escravo era uma humilhação intolerável para Harald, que teria preferido morrer mil vezes a ver-se naquela situação, excepto quando se lembrava que a morte o impediria de levar a fim a sua vingança. Por isso mesmo, a única finalidade da sua vida passara a ser a vingança sobre o homem que o forçara a uma tal ignomínia. O Touro Rugidor da Escandinávia pretendia agora, acima de tudo, manter-se vivo na companhia dos poucos homens que lhe restavam com a esperança de poder voltar a Trebizonda, reclamar as suas embarcações e navegar para Constantinopla para arrancar a alma de Nikos ao respectivo corpo da maneira mais brutalmente dolorosa que lhe fosse possível descobrir.

O jarl Harald estava perfeitamente convicto de que fora Nikos quem nos entregara ao inimigo, uma convicção que os outros dinamarqueses cativos apoiavam com o zelo fanático dos verdadeiros crentes. É claro que a minha opinião não era diferente da deles, mas não conseguia perceber quais haviam sido os motivos do komes. Tinham morrido centenas de pessoas de ambos os lados em prol dos negros desígnios de Nikos. Contudo, que tinha ele a ganhar? Tratava-se de uma pergunta que fazia constantemente a mim mesmo. Qual era a finalidade oculta que pretendia concretizar?

Depois da malfadada batalha, os nossos captores tinham atravessado num passo implacável toda uma área desértica de colinas áridas e ravinas cheias de rochas, onde as povoações eram raras e a terra se mostrava desolada e pouco amigável. Descansámos pouco e comemos ainda menos, e os nossos captores só nos tinham permitido a comida e o sono suficientes para nos mantermos de pé. Como perdemos muito pouco tempo a comer ou a descansar, tivemos oportunidades mais do que suficientes para especularmos sobre as nossas provações e sobre as possibilidades de fuga, e não deixámos de o fazer enquanto caminhávamos. No fim, todas essas nossas contemplações de nada serviram: nem fugimos, nem descobrimos a natureza do destino que nos aguardava.

Doze ou treze dias depois da emboscada chegámos finalmente a Amida, uma povoação com edifícios baixos, de barro caiado. Estávamos esfomeados e com os pés feridos mas fomos imediatamente conduzidos para uma praça aberta onde o vento levantava a poeira e a que davam o nome de mercado. Foi apenas muito mais tarde que as nossas mentes entontecidas pela fome compreenderam a natureza do destino que nos estava reservado, quando nos conduziram, na companhia de um grupo de cerca de trinta cativos gregos, para as serras infestadas de espinheiros que ficavam a norte de Amida: íamos trabalhar para as minas de prata do califa.

As minas não se encontravam longe de Amida que, na minha opinião, se situava para sul e para leste de Trebizonda, muito para lá das fronteiras do Império e bem no interior das terras sarracenas. Alguns dos gregos que estavam connosco já tinham ouvido falar mas minas do califa. Ouvi-os a conversar a esse respeito e o que disseram não serviu para me animar.

- Estão a enviar-nos para a morte - disse um escravo, um jovem magro, com cabelos negros muito encaracolados. - Vamos trabalhar até cairmos para o lado.

- Podemos tentar fugir... - sugeriu o cativo que se encontrava ao seu lado, um homem mais velho. - Há quem o consiga...

- Ninguém foge das minas do califa - afirmou um terceiro, abanando a cabeça lentamente. - Todos os que o tentam são imediatamente decapitados, e o guarda responsável é estripado com a sua própria espada. Podes ter a certeza de que os guardas se certificam de que ninguém foge.

Comuniquei a Harald o que os gregos estavam a dizer, mas limitou-se a grunhir e responder:

- Pode ser assim... mas não faço conta de continuar como escravo durante muito tempo.

As minas ocupavam todo um vale apertado e cheio de recortes aberto na base de altas serranias áridas. O vale só dispunha de uma única estrada, vigiada por postos de guarda situados de cada lado ao longo de todo o seu comprimento, e havia três ou quatro árabes em cada uma dessas posições. Na entrada do vale fora erguida uma grande muralha de pedra com um enorme portão de madeira por onde tinham de passar todos os que quisessem entrar ou sair.

Uma vez para lá do portão deparámos com uma verdadeira cidade de pequenas habitações caiadas construídas com barro compactado, onde viviam os guardas e os capatazes das minas, muitos dos quais, a julgar pelos grupos de mulheres e crianças que vimos nas ruas serpenteantes e estreitas, também ali tinham as suas famílias. Harald reparou nisso e riu-se.

- São escravos, tal como nós! - comentou, dizendo aos seus homens para prestarem atenção ao facto e para não o esquecerem.

Todavia, os escravos éramos nós e alojaram-nos em compridas cabanas no exterior das entradas dos vários poços da mina, que eram muitas, talvez várias dezenas, espalhadas entre as dobras do fundo do vale bem como nas vertentes e fendas das próprias serras. Essas cabanas pouco mais eram do que um telhado e uma parede traseira, com muito poucas separações. Mantinham-se abertas à frente, tal como os currais para os porcos. Não havia portas para impedir a passagem do vento e os homens dormiam com as pernas e os pés de fora. Porém, como nos encontrávamos bem Para sul, o clima era suave e raramente chovia.

O primeiro dia foi ocupado com a colocação dos grilhões. Todos os escravos usavam correntes de ferro nas pernas, mantidas no seu lugar por anilhas de ferro em volta dos tornozelos. Alguns dos Lobos do Mar eram tão grandes que as anilhas normais não lhes serviam e tiveram de fazer anilhas novas. Como precaução extra, por causa das dimensões e ferocidade dos dinamarqueses, o superintendente decidiu unir cada Lobo do Mar a outro por intermédio de uma corrente relativamente curta, para que não pudessem mover-se depressa nem com facilidade. Esta salvaguarda não impressionou Harald, que manipulou habilidosamente as coisas de modo a emparelhar os homens que lutavam melhor quando se encontravam juntos.

- Nunca se sabe... - explicou. - Pode vir a ser útil.

Como eu não era um guerreiro, fiquei ligado a Gunnar, que se ofereceu para tomar conta de mim.

Na manhã seguinte, já agrilhoados e ligados uns aos outros, entregaram-nos as ferramentas, que eram picaretas com cabos, curtos usadas para picar e lascar as pedras, bem como pequenos maços para as quebrar, e fomos conduzidos para o poço onde iríamos trabalhar na companhia de uma dúzia de escravos gregos, quase todos pescadores, cuja embarcação fora empurrada para fora do seu curso por uma tempestade. Havia quatro guardas - dois para cada grupo de cerca de quinze escravos -, e cada poço tinha também um superintendente, o que queria dizer que trabalhávamos sob a vigilância de cinco árabes de olhos bem atentos. Todos os guardas estavam armados, alguns apenas com bordões de madeira e outros com espadas curvas e curtas, mas todos tinham chicotes, que utilizavam com a habilidade nascida de uma longa prática.

O poço era um túnel que penetrava directamente na serra e que se abria numa grande sala cavernosa, de onde partiam várias dúzias de túneis mais pequenos que irradiavam em todas as direcções. O trabalho era árduo mas simples. Cada par de escravos ocupava-se de um dos túneis estreitos e servia-se das picaretas e maços para extrair o metal precioso das duras pedras. Também nos deram pequenas candeias para que pudéssemos ver o que estávamos a fazer. Eram rudimentares, feitas de barro cozido, possuíam uma mecha feita com crinas de cavalo e estavam cheias com azeite. As candeias eram acesas numa tocha sempre a arder no centro da caverna, ao lado do recipiente com o azeite utilizado para as encher.

Depois de vinte dias daquele trabalho, as minhas mãos endureceram e as bolhas deixaram de sangrar. Após quarenta dias já não esmagava os meus dedos contra as pedras ao tentar manejar a desajeitada picareta. Por vezes podíamos trabalhar perto de outros dinamarqueses e conversávamos com eles. Contudo, durante a maior parte do tempo éramos mantidos separados, excepto durante as refeições - pouco mais do que um pão achatado e uma rala sopa de couves - e também à noite, quando nos conduziam às cabanas para dormirmos.

Trabalhávamos todos os dias, sem descanso, salvo nos dias santos mais importantes para os árabes, mas mesmo assim essas folgas não nos eram destinadas mas sim aos guardas, o que nos permitia gozar um dia de paz. Porém, embora fossem poucos, eram sempre recebidos com uma profunda, embora patética, gratidão. E assim se passavam os dias...

O único alívio - se é que podia chamar-lhe alívio - provinha do facto dos Lobos do Mar até gostarem de procurar a prata. Na verdade, teriam escavado alegremente toda Bizâncio em busca de uma tal riqueza se soubessem onde a encontrar. Por isso mesmo, lançavam-se ao trabalho com um entusiasmo astuto que só era excedido pelo engenho com que escondiam a prata que extraíam.

Claro que não a escondiam toda, uma vez que o jarl Harald se certificara que entregavam uma boa parte do resultado do seu trabalho aos nossos amos sarracenos. Criar a desconfiança nos capatazes não seria nada bom, dissera. "É melhor mantê-los felizes..." aconselhara Harald, "para que nos deixem em paz."

Desse modo, o superintendente recebia uma razoável porção da prata que os dinamarqueses escavavam e parecia satisfeito com os seus novos escravos. Satisfeito... e completamente ignorante das verdadeiras riquezas que conseguiam extrair. Não estarei a exagerar se disser que os Lobos do Mar guardavam metade da prata que entregavam. A que guardavam, escondiam-na para o dia em que pudessem escapar e era quando a escondiam que revelavam um génio capaz de rivalizar com a eficiência com que a encontravam.

Os guardas que nos acompanhavam eram sempre os mesmos, mas os que nos vigiavam durante o dia eram substituídos durante a noite, pelo que acabámos por conhecer muito bem todos os seus hábitos e disposições. Era durante a mudança da guarda, quando surgia o turno da noite, que Harald aproveitava a oportunidade para transmitir os seus pensamentos do dia.

Em geral, a comunicação era feita sobre a forma de murmúrios transmitidos de pessoa para pessoa ao longo da fila, embora por vezes - quando os guardas se revelavam mais indulgentes - Harald nos reunisse para nos exortar e para louvar pessoalmente os nossos esforços. Era importante que nos portássemos bem, insistia, pois desse modo acabaríamos por conseguir mais rapidamente a nossa liberdade. E não devíamos esquecermos, declarava, que ele, Harald Berro-de-Touro, estava a preparar um plano de fuga.

Tínhamos a possibilidade de falar dessas coisas uns com os outros porque ninguém mais entendia o dinamarquês. A maioria dos guardas conhecia um pouco de grego e havia alguns que o falavam com fluência. Com a Passagem do tempo também comecei a aprender uma ou outra palavra em árabe, mas ninguém entendia o que os Lobos do Mar diziam uns aos outros, o que Harald considerava como sendo muito bom pois significava que não seríamos traídos nem pelos escravos gregros, nem pelos próprios guardas. Seria isso, afirmava, o que tornaria a nossa fuga mais fácil quando o momento chegasse.

Quando não planeávamos a fuga passávamos o tempo a imaginar engenhosas torturas para o komes Nikos, pelo que esse traidor morreu mil vezes e cada uma dessas mortes foi hediondamente mais dolorosa e demorada do que as anteriores. Foram os pensamentos de vingança que fizeram com que muitos homens resistissem aos infindáveis dias de trabalho na mina, um trabalho que nos entorpecia a mente e nos destruía os corpos.

Gradualmente, a estação foi passando e as terras desérticas floresceram brevemente - com pequenas manchas de flores escarlates e douradas a pintalgarem as áridas vertentes das serras -, mas o Sol entrou quase imediatamente na casa do Verão e o calor começou a oprimir-nos sem piedade. Como não era capaz de acompanhar nem o ardor nem a avidez dos Lobos do Mar, o meu trabalho começou a correr mal. A medida que o Verão foi avançando, os túneis da mina tornaram-se cada vez mais quentes e abafados. A poeira asfixiava-me e a escuridão enfraquecia-me a visão. Os meus joelhos, cotovelos, braços e pernas batiam constantemente contra as rochas e as candeias de azeite queimavam-me os cabelos, pelo que acabei por concluir que o brilho baço da prata era uma magra compensação pela perda da minha liberdade e pela lenta morte pela fome.

Gunnar aguentava as dificuldades muito mais facilmente do que eu, mantinha uma disposição constante e encorajava-me quando o meu espírito fraquejava. Para me desviar a atenção da infelicidade que sentia, acabou por me convencer a falar a respeito do Cristo, coisa que inicialmente fiz com alguma relutância. Contudo, a pouco e pouco, concluí que manter um rancor tão virulento também era um aborrecimento. Claro que ainda sentia um lugar muito duro e frio na minha alma, e que os meus ressentimentos para com Deus tinham aumentado e não diminuído. Contudo, as discussões teológicas deram-nos algo com que ocupar as nossas mentes, e creio que isso é sempre uma grande ajuda para a sobrevivência.

Nos períodos em que nos mantínhamos calados, ou seja, quando os guardas se encontravam por perto, Gunnar pensava em tudo aquilo que eu lhe dissera. Depois, às refeições, ou quando chegávamos ao veio em que estávamos a trabalhar - longe dos olhos e dos ouvidos dos guardas - fazia-me as perguntas que lhe tinham ocorrido. Foi desse modo que avançámos lentamente e que Gunnar começou a conseguir alguma capacidade de argumentação lógica. Tinha uma mentalidade prática, embora não muito ágil ou rápida, mas que era sólida e pouco contaminada por filosofias irrelevantes. Assim, a maior parte do que eu lhe dizia era novo e fresco, e as poucas superstições que defendia foram facilmente postas de lado. Em resumo, revelou uma genuína facilidade para o tema em discussão.

Embora eu já não acreditasse... ou antes, ainda acreditava, mas como alguém rejeitado por Deus, alguém que fora expulso da família da fé, acabei por descobrir que conseguia pronunciar as palavras de fé e explicá-las, mas sem que elas me tocassem. Talvez fosse estranho estar tão zangado com Deus e continuar a mostrar-me ansioso por participar num discurso racional sobre ele e sobre a maravilha dos seus ensinamentos, mas as coisas são mesmo assim. Também era curioso que o interesse de Gunnar pela fé fosse aumentando à medida que o meu se desvanecia.

O Verão foi passando e o veio de minério em que o nosso grupo estava a trabalhar começou a minguar. Oito de nós foram levados para um poço próximo, e postos a trabalhar com os cinquenta ou mais escravos que já aí se encontravam. Era um poço maior do que aquele que tivemos de abandonar, com mais passagens, túneis e corredores. Havia búlgaros entre os escravos, bem como gregos, vários negros etíopes e alguns outros. O Gunnar e eu nunca tínhamos visto um negro mas acabámos por nos habituar a eles e concluímos que, no fim de contas, eram uma bela raça. Talvez a escravatura faça os homens olhar para essas coisas de uma maneira diferente mas, excepto quanto ao tom escuro das suas peles, as semelhanças que tinham connosco eram muito maiores do que as diferenças.

Contudo, raramente os víamos porque o superintendente do poço era um homem duro e cruel que os obrigava a levantarem-se antes da madrugada para iniciarem o trabalho e já lá se encontravam quando nós chegávamos. Também eram obrigados a trabalhar até depois do escurecer, pelo que saíamos da mina antes deles.

Gunnar, alguns dias depois de começarmos a trabalhar no novo poço, descobriu um veio particularmente produtivo que se encontrava no fim de um longo túnel que não havia sido trabalhado recentemente. Para lá chegarmos tínhamos de rastejar sobre as mãos e os joelhos, segurando nas candeias e empurrando as ferramentas à nossa frente.

Um dia, quando chegámos ao fim do túnel, Gunnar levantou-se.

- Olha, Aeddan... - disse, erguendo a candeia - não há tecto.

Pus-me de pé a seu lado, olhei para cima e verifiquei que, na verdade, o túnel se abria numa larga fenda cujo cimo, se existia, se encontrava algures lá muito no alto, perdido numa escuridão que as nossas fracas luzes não conseguiam penetrar.

- Creio que há aqui muita prata - comentou. - Vamos conseguir uma...

- Escuta! - sussurrei-lhe.

- O que é?

- Shh! Cala-te!

Escutámos durante algum tempo, mantendo as candeias bem erguidas no meio do silêncio.

- Não há nada... - começou Gunnar.

- Lá está, outra vez! - insisti. - Escuta!

O fraco eco do som que eu acabara de escutar estava novamente a apagar-se e não se repetiu. - Ouviste? - perguntei.

- Era água a pingar - declarou Gunnar.

- Não, não era água... - repliquei. - Era alguém a cantar... e pareceu-me ser em irlandês.

- Estás a ouvir coisas... - respondeu, pousando a candeia numa saliência que alguém escavara. - Era água a pingar. Vamos, tratemos de arranjar alguma prata ou hoje não nos darão nada para comer.

Trabalhámos durante todo o dia. Nunca mais voltei a ouvir aquele som embora escutasse com atenção, e também não o ouvi no dia seguinte, quando voltámos ao túnel. Todavia, três dias mais tarde o superintendente mandou-nos para um novo túnel, perto do ponto onde alguns outros estavam a trabalhar. Ali, os veios estavam tão entrelaçados uns nos outros que existiam muitas salas e corredores de comunicação por onde o som se deslocava com facilidade de um lado para o outro, embora de uma maneira confusa. Tínhamos acabado de encontrar um bom lugar e começado a trabalhar quando voltei a ouvir o canto. Gunnar admitiu que também ouvira qualquer coisa mas que não lhe parecera que se tratasse de um canto.

- Pareceu-me alguém a chorar - explicou.

Fiquei tão agitado que derrubei as candeias e entornei quase todo o azeite.

- Agora temos de ir enchê-las outra vez... - suspirei, porque ia ser obrigado a rastejar durante muito tempo até ao túnel principal.

- Nesse caso, é melhor que nos despachemos - recordou-me Gunnar - ou teremos de apalpar o caminho na escuridão.

Deixámos ficar as ferramentas e voltámos para trás, até à galeria principal e à cuba do azeite. Quando lá chegámos vimos dois outros escravos junto do recipiente e aguardámos pela nossa vez. Aconteceu que o superintendente do poço apareceu naquele momento e começou a gritar connosco, zangado. Suponho que a visão de quatro escravos ociosos o ofendeu. Talvez pensasse que estávamos a tentar fugir ao trabalho, porque correu para nós enquanto desenrolava o chicote.

A primeira chicotada apanhou-me em volta da garganta antes de me conseguir desviar e fui atirado para o chão. O guarda, sob cujos olhos menos desconfiados tínhamos estado a encher as candeias, correu para a frente e começou a bater nos outros com o seu bordão de madeira. O primeiro golpe acertou em Gunnar, que caiu a meu lado agarrado à cabeça. Os outros dois escravos, numa desajeitada tentativa para se protegerem, empurraram o guarda para um lado, viram que se tinham livrado dele com facilidade e aproveitaram para lhe dar alguns bons pontapés. Contudo, esta acção deixou o superintendente lívido. Começou a praguejar e a gritar como um louco, e a golpear-nos selvaticamente com o chicote. Os outros dois escravos, ao verificarem o furor que tinham causado, escapuliram-se e desapareceram rapidamente na escuridão enquanto Gunnar e eu rolávamos pelo chão contorcendo-nos sob o chicote. Ouvi pessoas a gritar e vi que um certo número dos escravos que se encontravam mais perto tinham aparecido para ver o que se passava. Consegui apoiar-me nas mãos e nos joelhos, com Gunnar a meu lado, e tentámos escapar-nos para longe do chicote e do árabe enlouquecido que o manejava.

Infelizmente, essa acção foi vista como uma tentativa para escaparmos ao castigo. O superintendente, numa raiva louca, renovou o seu frenético ataque. Senti o chicote a cortar-me os ombros, uma vez, duas vezes, três vezes. A dor iluminou-me a visão com bolas de fogo escarlates. Continuei a rolar no chão, misturado com Gunnar, a quem estava preso por uma corrente fixa no tornozelo. Não conseguíamos mover-nos suficientemente depressa para evitarmos o chicote.

Os golpes do chicote continuaram a cortar-me as carnes. Os olhos encheram-se-me de lágrimas e não conseguia ver. Comecei a gritar, pedindo o fim das chicotadas. Sei que gritei em grego e em dinamarquês. Gritei em todas as línguas que conheci e implorei por piedade.

Milagre dos milagres... os meus gritos foram atendidos!

Inesperadamente, ouvi um grito que me soou a "Célé Dé!" Os golpes do chicote cessaram imediatamente. De repente, a meio de um golpe, o chicote ficou tenso e o braço do superintendente imobilizou-se. Ouviu-se um estranho estalo e pareceu-me, apesar da minha visão muito confusa, que o árabe furioso parecia erguer-se do chão e ficar suspenso em pleno ar.

Pairou por cima de mim por instantes, com o rosto surpreendido a tornar-se redondo e avermelhado. Ofegou por ar mas não conseguiu respirar. De súbito, o superintendente voou para um lado e deixei de o ver. No preciso instante em que o árabe desapareceu tornou-se visível um outro rosto a pairar por cima de mim... e era um rosto que se parecia com alguém que eu conhecia.

Contorci-me com dores e abri a boca para aspirar o ar, numa tentativa para não desmaiar. Nesse momento houve um nome que me subiu aos lábios... e pronunciei-o:

- Dugal?

 

- Dugal! - Rolei para cima dos joelhos e estiquei-me para ele. - Dugal, sou eu, o Aidan! Sou o Aidan! Não me reconheces, homem?!

Dugal fitou-me como se estivesse a olhar para um monstro saído das entranhas da Terra.

- Aidan! - exclamou, aproximando-se mais. - Claro, sabia que eras tu! Ouvi gritar e soube que tinha de ser o Aidan... Mas tu, tu... - As palavras fugirem-lhe.

- Sou eu mesmo, descansa! - repliquei. Experimentei pôr-me de pé mas as pernas não me aguentaram e voltei a cair. As lágrimas subiram-me aos olhos e chorei como uma criança ao voltar a ver o meu mais querido amigo.

Dugal soltou um grito de triunfo tão tremendo que toda a mina reverberou com o som. Num só gesto, levantou-se e envolveu-me num abraço feroz. Contudo, o toque das suas mãos na carne viva dos meus ombros fez-me soltar um grito de dor e largou-me imediatamente.

- Dana! - gritou. - Que Cristo tenha piedade, irmão, que estás tu aqui a fazer?

- Dugal, nem acredito que sejas tu! - declarei, limpando as lágrimas. - Tinha a certeza de que morreras na batalha... Vi-te cair!

- Ah, caí, sim, mas o golpe não foi fatal. - Sorriu-se para mim com um tal calor que senti o meu coração a aquecer.

Gunnar, ainda estendido no chão, levantou-se e ficou de pé a meu lado. Não poderia ter feito outra coisa porque continuávamos acorrentados um ao outro, e olhou para Dugal com uma expressão de admiração e de algum espanto.

- Este é o Dugal... - expliquei-lhe. - É o meu irmão monge do Eire. - Recordo-me dele! - retorquiu Dugal.

- Que Deus te abençoe, Aidan - murmurou Dugal, segurando-me nas mãos com força. - E eu que pensara que te tinha perdido para sempre! Oh, é uma maravilha voltar a ver-te!

- E a ti, Dugal. - Puxei-o para mim, sentindo a solidez da carne e dos ossos por baixo do meu abraço, como que para ter a certeza de que não se tratava de um fantasma. - Ah, mo croi, tenho tanta coisa para te contar que nem sequer sou capaz de pensar, tal é a vontade de te dizer tudo de uma só vez!

Mergulhámos no silêncio, apenas a olhar um para o outro. A barba e : o cabelo de Dugal, tal como os meus, estavam agora compridos e desgrenhados. Nunca antes o vira sem uma tonsura e os cabelos compridos tornavam-no mais parecido com um Lobo do Mar do que com um monge. As roupas pouco mais eram do que farrapos sujos. Para além disso, estava sujo de pó de pedra da cabeça aos pés mas tê-lo-ia reconhecido como ao meu próprio reflexo mesmo que o visse coberto de lama e com uma barba até aos joelhos.

Ouviu-se um grito vindo de alguns dos escravos que nos observavam. Gunnar deu-me uma cotovelada no flanco e disse:

- Creio que os nossos problemas ainda não terminaram... Surgiram mais cinco ou seis guardas, que se precipitaram para o poço da mina. O guarda com o bordão indicava-lhes o caminho. Apontou para nós e para o superintendente ainda caído no chão, no local para onde Dugal o atirara. Os guardas agarraram-nos pelos braços antes de nos podermos mover e arrastaram-nos para fora do poço, para a brilhante luz do Sol. Havia muito tempo que os meus olhos não tinham de suportar a luz do Sol do meio-dia e precisei de alguns momentos até conseguir ver qualquer coisa.

Tropecei sobre as rochas e caí, arrastando Gunnar comigo. Rolámos e contorcemo-nos, voltámos a pôr-nos de pé mas apenas para voltarmos a cair enquanto os guardas nos puxavam ao longo da vertente. Doridos, magoados e cortados numa centena de sítios, fomos finalmente levados para um grande bloco de rocha que se sobrepunha a um enorme montão de pedras partidas extraídas da mina. Em vários pontos dessa rocha viam-se espigões de ferro bem cravados, equipados com anéis e correntes também de ferro. Fomos os três acorrentados à rocha e deixados a cozer e a suar ao sol.

Tínhamos o Sol directamente por cima das nossas cabeças e não havia nem sequer vestígios de uma sombra onde nos pudéssemos refugiar. Sentámo-nos, semicerrámos os olhos contra a luz que nos cegava, e ali ficámos, a suar, com as peles pálidas e esfomeadas de sol a ganharem rapidamente um tom vermelho vivo.

- Lamento muito - disse Dugal alguns instantes depois. - Fui eu quem provocou esta infelicidade. Não estaríamos aqui neste momento se não tivesse agarrado aquele guarda...

- Pode ser que sim... - admiti - mas ele ter-me-ia morto se não o tivesses feito. O homem estava louco. Para além disso, também não nos teríamos encontrado.

- É verdade! - concordou Dugal. - É uma grande verdade.

- Que achas que irão fazer connosco? - perguntei.

- Só Deus sabe... - replicou Dugal. - Pela minha parte, não me preocupo com o que possa acontecer. De qualquer modo, o Martírio Vermelho já está à minha espera. - Fez uma pausa, talvez para afastar aquele pensamento da sua cabeça. - Ora, Aidan, estamos nas mãos de Deus. Aconteça o que acontecer, podemos sempre contar com a sua protecção.

Ouvia aquelas palavras e a ira veio ao de cima dentro de mim. Contudo, como não quis contradizê-lo, respondi:

- Diz-me, Dugal, como vieste aqui parar? Conta-me tudo, quero ouvir a tua história!

- Quem me dera ter muito para contar. Na verdade, as coisas até nos correram bem... pelo menos durante a maior parte do tempo. - Abriu um dos olhos, numa fenda estreita, e espreitou-me. - És tu, Aidan, quem deve ter histórias merecedoras de serem ouvidas. Diz-me o que se passou contigo!

- Assim farei, irmão, com toda a satisfação... mas depois de ti. O que se passou quando os Lobos do Mar atacaram a povoação e me levaram?

Virando a mente para o passado, começou a contar-me tudo o que lhe sucedera desde que o vira pela última vez. Descreveu-me o ataque nocturno e as suas consequências, afirmando:

- Só perdemos dois dos nossos. O Brocmal e o Faolan foram mortos. O Faolan morreu logo, e o Brocmal ainda aguentou um ou dois dias. Enterrámo-los em Nantes e continuámos o nosso caminho, trazendo connosco três irmãos da abadia para completarem o grupo. Perdoa-me, Aidan, mas ficámos convencidos que te tinham levado como escravo.

- Na realidade, foi o que fizeram.

- Quis ir à tua procura mas o bispo Cadoc afirmou que estavas nas mãos de Deus e que nunca mais te conseguiríamos encontrar.

- O Cadoc! Ainda está vivo? Onde?

- Está vivo, sim, e está aqui - disse-me Dugal. - Estamos todos aqui... os que restaram...

Não pude deixar de fazer a pergunta, embora receasse a resposta. - Quantos? Quantos estão aqui?

- Apenas quatro. O Cadoc, o Brynach, o Ddewi e eu.

- E os outros?

- Estão mortos... todos eles!

O coração caiu-me aos pés enquanto os rostos dos meus irmãos passavam mais uma vez perante os olhos da minha mente. Vi-os tal como os vira em vida, sorridentes e a rirem-se, gritando saudações de amizade e de boa vontade uns aos outros. Vi-os e lamentei a perda das suas vidas. Tinham desaparecido, todos eles: Maél, Fintán, Clynnog, Brocmal, Conal, Faolan, Ciáran e Gwilym...

- Um meu amigo de Constantinopla disse-me que vocês estiveram na cidade...

- Sim, estivemos lá... - confirmou Dugal, com tristeza - e devíamos lá ter ficado. Os monges foram bons para nós e estávamos a aprender muita coisa com eles... e também a ensiná-los.

- Que se passou?

- Não estou a par de tudo... - retorquiu. - O bispo Dugal fez um pedido para ver o Imperador a fim de o presentear com o livro e também para fazer um apelo qualquer, que os Britânicos já tinham preparado, relacionado com outras preocupações. Não te sei dizer quais eram essas preocupações, mas o Brynach sabe.

- E viram o Imperador?

- Não... - Dugal abanou a cabeça lentamente - nunca chegámos a vê-lo. Cadoc e Brynach foram informados por funcionários do palácio que o nosso pedido levaria tempo até ser reconhecido. Como podíamos ficar junto dos monges de Cristo Pantocrater, instalámo-nos para esperar. Passado algum tempo surgiu um homem da corte para falar com Cadoc. Pediu para ver as dádivas que tínhamos levado e revelou-se muito prestável. O bispo mostrou-lhe o livro e lamentou a perda da cumtach de prata. O homem afirmou que o nosso apelo seria encarado mais favoravelmente se a dádiva fosse restaurada, e que iria tentar ajudar-nos a consegui-lo...

- E fê-lo? - interroguei-me, sentindo o inconfundível odor da traição.

- É verdade - confirmou Dugal prontamente e sem rancor. - preparou tudo para seguirmos para Trebizonda onde, disse, os melhores artífices do Império nos ajudariam a fazer uma nova capa para o livro abençoado.

- E quem vos iria ajudar em Trebizonda? - inquiri, cada vez mais excitado. - Como é que esse homem se chamava?

- Não me parece que tenha ouvido o nome... - replicou Dugal, encolhendo os ombros. - Chamavam-lhe qualquer coisa como magis... - Fez uma pausa, em busca da palavra.

- Magister? - sugeri. - Magister Sergius?

- Esse mesmo! - gritou Dugal. As recordações de acontecimentos infelizes introduziram-se-lhe na mente e concluiu, solene: - Chegámos à vista de Trebizonda mas nunca alcançámos a cidade. Os piratas Sarracenos atacaram o nosso navio ao largo da costa. Os que não foram mortos imediatamente... bom, vieram parar a esta mina. - Olhou para mim e voltou a exibir um pouco do seu antigo espírito: - Nunca pensei encontrar-te aqui, Dana. É uma maravilha!

- E o outro homem, aquele que vos preparou a viagem, chamava-se Nikos?

- Aye! - confirmou Dugal, num tom de espanto. - Como é que sabes?

- O facto de o saber é muito menos estranho do que podes imaginar - repliquei, com amargura. - Esses homens também estavam a ajudar-nos, mas agora compreendo que se ajudavam a si mesmos desde o princípio...

- Estás a dizer que nos traíram? - A incredulidade de Dugal era genuína. Essa possibilidade nunca lhe ocorrera. - Deves estar enganado, Aidan! Não consigo imaginar por que razão haveria alguém de trair um punhado de pobres monges...

- Nem eu, Dugal - admiti, começando a contar-lhe como havíamos sido atacados pelos árabes que nos tinham montado uma emboscada na estrada. - Foi Nikos quem nos conduziu até lá, e foi o único que escapou. Na verdade, fugiu antes do início da matança...

O enorme monge abanou a cabeça num gesto de resignação surpreendida.

- Se soubesse que o livro iria provocar a morte de tanta gente... tê-lo-ia atirado ao mar com as minhas próprias mãos. E pensar que o protegi contra todos os perigos...

Precisei de alguns instantes para compreender o que Dugal estava a dizer.

- Queres dizer que... o livro ainda existe?

- É verdade... - confirmou, lançando uma olhadela maldosa para os lados de Gunnar. - Ainda existe, apesar de tudo o que passámos... e não foi graças a algumas pessoas de que me recordo...

- Tens a certeza? Como é que sabes que é verdade?

- Sim, o livro existe. É Cadoc quem o tem e conserva-o escondido.

- Não queres dizer que o livro está aqui, pois não?

- É isso mesmo o que te estou a dizer.

- Aqui?! - insisti. - Neste buraco do inferno?

- Onde querias que estivesse? - inquiriu. - Nada receies, está a salvo e assim irá continuar. Ninguém sabe que o temos.

Nesse momento, Gunnar gemeu, acordou e tentou levantar-se.

- Heya!- exclamou, debatendo-se com as correntes.

- Paz! - disse, acalmando-o. - Fica quieto. Os guardas foram-se embora. Vê se descansas.

Pestanejou, olhou em volta e apercebeu-se da provação em que nos encontrávamos. Viu Dugal, fez uma careta e deixou-se cair contra a rocha sem pronunciar uma palavra.

Dugal semicerrou os olhos.

- Como podes falar com esse... - hesitou e concluiu a frase: - Com esse bárbaro assassino?

- Escuta, Dugal... - disse-lhe, num tom grave - o Gunnar é meu amigo. Já me salvou a vida não uma nem duas vezes, mas sim muitas, e até com prejuízos para ele próprio. Sim, é um bárbaro... mas também é um crente e esse facto conta a seu favor. Confio nele como confio em ti.

Dugal franziu a testa e desviou os olhos.

- Não há dúvida de que estás a ver as coisas de uma maneira diferente... - comentou. Ficou silencioso durante um bocado e vi que tinha os lábios a moverem-se. Instantes depois, acrescentou: - Ainda não me disseste como vieste aqui parar, irmão.

- Ah, é uma história muito comprida e maçadora, Dugal - declarei, com o desespero a abrir-se na minha frente como um precipício negro e profundo. - Tens a certeza de que a queres ouvir?

- Será que o Sol continua a subir no céu? - retorquiu. - Ora vamos, irmão, neste momento estamos juntos... mas quem sabe como irá terminar este dia?

- Muito bem... - concordei, com um suspiro.

Comecei a narrar-lhe a minha estada entre os dinamarqueses e como acabara por ser um escravo, primeiro de Gunnar e depois do rei Harald. A seguir descrevi-lhe o grandioso plano do rei dos Lobos do Mar para saquear Constantinopla, o nosso encontro com o Imperador e o modo como o jarl Harald entregara a cumtach de prata a Basil como penhor durante uma disputa legal, após o que os navios dos viquingues tinham passado a fazer parte da frota imperial.

Falei durante muito tempo, fazendo pausas aqui e a acolá para transmitir a Gunnar tudo o que estava a dizer, e este limitava-se a grunhir a sua concordância. Oh, era uma maravilha voltar a conversar na minha própria língua. Falei mais naquele curto espaço de tempo do que em muitos dias. Informei Dugal com brevidade sobre a minha curta estada na cidade, bem como sobre o acordo de Harald com o Imperador, e concluí, dizendo:

- Fomos enviados para Trebizonda para servirmos de escolta ao eparch Nicephorus, que negociou a paz com os sarracenos.

Noutras circunstâncias teríamos continuado a conversar interminavelmente, mas o calor do Sol tornou-se opressivo e as nossas línguas aderiram ao céu da boca por falta de água. Gunnar, com a cabeça terrivelmente dorida por causa do golpe que levara, aconselhou-nos a preservarmos as poucas forças que nos restavam, pelo que fechámos os olhos, recostámo-nos contra a rocha e aguardámos.

O dia terminou num clarão branco que se transformou gradualmente num amarelo-profundo quando o Sol se escondeu por trás da linha irregular das serranias. As sombras foram crescendo e acabaram por nos cobrir, e a noite abrigou-nos lentamente por baixo das suas pregas negras. Dormi de uma maneira intermitente, acordando de vez em quando para olhar para a imensa cúpula celeste salpicada de estrelas. Pareceu-me que todos os olhos do céu nos espreitavam, impiedosos, frios e silenciosos. Não havia ali nenhuma luz alegre para nos banhar ou acalmar, mas apenas clarões duros e sem misericórdia, que nos julgavam de uma maneira inflexível e troçavam dos nossos sofrimentos.

Recordei os tempos em que rezara por baixo daquelas mesmas luzes, imaginando-as como anjos ansiosos por levarem as minhas orações até ao trono dos céus. Contudo, as coisas já não eram assim. A dor nos meus ombros e nas carnes lívidas nada era quando comparada com os tormentos da alma. Se isso tivesse servido para alguma coisa, teria desabafado a minha agonia perante o Senhor das Almas. Ah! Mais valia implorares às estrelas, Aidan, e rogares piedade ao vento. De qualquer modo, a resposta seria sempre a mesma.

Já chegara à conclusão que as desgraças nunca vinham sós. Mostram-se sempre insatisfeitas e multiplicam-se sem cessar. Se por acaso imaginei, nem que fosse pelo tempo de um único batimento do coração, que as minhas tribulações iriam em breve terminar... então a desilusão iria ser muito grande, porque os tormentos estavam apenas a começar.

Foram buscar-nos de madrugada.

 

Os seis guardas e o superintendente do poço que Dugal maltratara chegaram logo ao nascer do Sol de outro dia escaldante. O superintendente, com um dos lados do rosto ferido e descolorido, olhou-nos com uma expressão de troça maliciosa. Pronunciou um longo discurso que não entendemos e fez um sinal aos guardas que o acompanhavam. Estes deram um salto para a frente, retiraram-nos as correntes e amarraram-nos separadamente com as mãos cruzadas e atadas pelos pulsos. A seguir passaram os seus bordões através dos nossos braços, com um guarda de cada lado e levaram-nos dali, meio arrastados, meio transportados.

Fomos conduzidos para uma grande construção à beira das habitações dos guardas. No pátio completamente vazio, no exterior do edifício caiado, erguia-se um grosso poste de madeira com um anel de ferro fixado no seu topo. Os guardas deixaram Dugal e Gunnar caídos num monte, atiraram-me contra o poste, agarraram numa longa corda de couro, amarraram-me as mãos numa das suas extremidades e passaram a outra pelo anel de ferro. O poste servia para chicotear os prisioneiros e era muito mais alto do que um homem, pelo que, quando a corda foi puxada com força, fiquei inteiramente esticado, com todo o peso do corpo apoiado apenas nas pontas dos pés.

Enquanto isso se passava, notei que o superintendente-chefe da mina saía do edifício para me observar, com os braços cruzados sobre o peito. Foi sob o seu olhar que me despiram até ficar nu, após o que os guardas começaram a bater-me com os seus bordões de madeira, inicialmente devagar, alternando os golpes, fazendo turnos para me atingirem, primeiro um e depois os outros, acertando-me onde lhes apetecia. Oh, mas trabalharam bem! Muito em breve não havia um único local do meu corpo que não tivesse sido espancado, excepto a cabeça. Suponho que não queriam ver-me sem sentidos, pelo que evitavam atingir-me a cabeça para não ficar inconsciente e para lá dos sofrimentos da tortura. Também não me quebraram a pele, uma vez que a perda de sangue acabaria por produzir o mesmo efeito e era claro que pretendiam prolongar a agonia durante tanto tempo quanto fosse possível.

Comecei imediatamente a sentir a frustração das vítimas logo depois da dolorosa mordedura dos primeiros golpes. A futilidade subjugou-me, tão poderosa como uma dor, enquanto experimentava a mais desventurada das impotências. A alma contraiu-se-me de horror ante a minha própria fraqueza. As lágrimas subiram-me aos olhos e envergonhei-me de mim mesmo por estar a chorar. Mordi os lábios para me impedir de o fazer, mas desejava, com toda a força do meu espírito, que aquela provação chegasse ao fim.

Contudo, em breve se tornou aparente, à medida que o espancamento prosseguia, que os meus verdugos se tinham limitado a aquecer para a sua tarefa. Os golpes tornaram-se mais fortes e mais judiciosamente aplicados e passei a ser atingido, uma e outra vez, nos locais onde era certo que sentiria mais dores, ou seja, nos antebraços, nas canelas, cotovelos, joelhos e costelas. Ao mesmo tempo, a corda foi puxada ainda com mais força e fui inteiramente erguido do chão de modo a não me poder apoiar nem sequer num único dedo dos pés.

A cada um dos golpes, o meu corpo sacudia-se e oscilava sem controlo... apenas para voltar a ser atingido quando ainda estava a balouçar. Os guardas riam-se, ouvia as suas vozes a ressoarem no pátio... e toda a pena que sentia por mim mesmo desvaneceu-se completamente, consumida numa súbita vaga de raiva, tão escaldante como um ferro aquecido ao rubro-branco.

Nunca na vida sentira uma ira tão forte. Se essa ira fosse uma chama, então toda a mina teriam sido reduzida a cinzas, bem como todas as casas e todos os seus habitantes, homens, mulheres e crianças. Cravei os dentes nos lábios até o sangue me escorrer pelo queixo e pelo peito, e mesmo assim não gritei. Ouvia o Dugal a rezar por mim em voz alta, muito ao longe, como se se encontrasse a uma grande distância, apelando a Deus em meu nome. Contudo, tratava-se apenas de um acto sem significado, nascido do desespero, pelo que desprezei as suas inúteis orações.

Finalmente, quando me desceram do poste, já todos os meus ferimentos se haviam espalhado e fundido numa única contusão maciça que fazia com que a agonia pulsasse através de mim cada vez que aspirava o ar num estertor. Estava cego pela dor e não conseguia ver bem. Contudo, permanecia consciente. Havia uma pequena parte de mim que se mantinha acordada. Percebia que os meus membros continuavam intactos e que não tinha nenhum osso partido, e sabia que Dugal estava agora a passar pela mesma tortura que eu acabara de sofrer.

Para além disso, também sabia que era um homem mudado, isto porque a raiva louca que me consumira - e também ao meu coração -, era agora tão fria e dura como uma brasa extinta.

Quando concluíram a tortura de Dugal, logo seguida pela de Gunnar, amarraram-nos as mãos atrás das costas e prenderam-nas aos nossos tornozelos, e foi nessa posição que fomos forçados a permanecer ajoelhados, ao Sol, durante a parte mais quente do dia. A minha consciência começou a desvanecer-se. Por vezes sabia onde estava e o que me acontecera, mas outras vezes pensava estar sozinho, num pequeno bote, em pleno mar. Até conseguia sentir as vagas a ondularem por baixo de mim, empurrando o meu pequeno barco para o alto para logo o fazerem descer outra vez.

Pareceu-me, enquanto jazia no fundo desse barco, que uma nuvem solitária se atravessara em frente do Sol. A sombra cobriu-me, abri os olhos e verifiquei que tinha uma forma e uma solidez pouco usuais. Com a curiosidade desperta, voltei a olhar e verifiquei que a nuvem possuía um rosto de um homem e que os seus turbilhões brancos eram as dobras de um turbante. Nesse rosto viam-se dois olhos negros que me olhavam com profunda apreensão e preocupação. Fiquei intrigado, porque não via razões para que os que me haviam torturado se preocupassem com a minha provação.

Ouvi uma voz semelhante ao zumbido de um insecto e compreendi que quem falava era o homem cujo rosto pairava por cima de mim. Parecia dirigir-se-me mas não compreendi o que me estava a dizer. A seguir, o homem levantou a cabeça e falou com outra pessoa qualquer. Sim, falou com outra pessoa qualquer com o rosto contorcido de ira enquanto desviava os olhos de mim. Alguém gritou, o homem gritou em resposta e desapareceu da minha vista. Não tive forças para levantar a cabeça e ver para onde ele fora. Porém, depois de ter desaparecido, ocorreu-me que se tratava de um rosto meu conhecido. Já anteriormente vira aquele homem. Tinha um nome, um nome que eu sabia mas que não conseguia pronunciar. Quem era o homem?

Aquela questão ficou a remoer-me durante todo o dia. Continuei a recordar o rosto e a pensar nele até o Sol começar a baixar no céu empoeirado e os guardas regressarem para mais um espancamento. Tal como da primeira vez, penduraram-nos no poste e iniciaram o seu trabalho com os bordões. A única diferença estava no facto de agora baterem em carnes já feridas e magoadas, que tinham tido muito tempo para inchar, por isso mesmo, o segundo espancamento foi ainda mais doloroso do que o primeiro.

Todavia, aquele lugar duro que agora existia dentro de mim recusou-se a ceder. Nem sequer gritei. Também não tive de aguentar todo o peso do castigo porque, depois da tortura começar mais a sério, as dores tornaram-se demasiado fortes e mergulhei num abençoado esquecimento. Quando dei por isso, estavam a despejar água em cima de mim para me reanimarem. Acordei para uma agonia pulsante, com todos os músculos e ossos a arderem de dor. Quando a primeira onda de dor abrandou um pouco, verifiquei que o céu estava escuro e que recebíamos as atenções de um homem pequeno com um grande turbante negro. Deu-nos água a beber, segurando-nos as cabeças para que não nos afogássemos quando o líquido penetrou nas nossas gargantas. Depois de aliviada a sede, examinou-nos os membros e esfregou um bálsamo calmante nos locais onde a pele inchara tanto que rebentara.

Tudo isto foi feito sob o silencioso escrutínio do superintendente-chefe, que permanecia em frente da sua casa observando o que faziam por nós. Satisfeito por ver que não tínhamos ossos partidos, o homenzinho virou-se para o seu superior, fez uma profunda vénia e foi-se embora a resmungar.

Os guardas voltaram a amarrar-nos de mãos e pés e deixaram-nos entregue às nossas angústias para o resto da noite. As dores no meu corpo macerado mantiveram-me acordado durante toda a noite e jazi de lado sobre a terra - demasiado magoado para me mexer, mas demasiado dorido para ficar quieto - pensando que a morte seria uma mercê, mas que de certeza também me seria negada.

Também pensei que o castigo que tínhamos de aguentar era excessivo, fosse qual fosse o crime cometido. É verdade que havíamos posto as mãos num guarda, não o nego, mas sermos sujeitos a uma punição tão selvática era um absurdo que não conseguia compreender. Não fazia sentido mas, conforme concluí, a maior parte das coisas que aconteciam neste mundo também não faziam sentido. Acreditar que faziam... bom, isso sim, era um absurdo.

Na madrugada do dia seguinte fui despertado pelo som de uma trompa. Ao mesmo tempo, vindo de algures nas vertentes da serra chegou-nos o ressoar abafado - semelhante ao de uma sineta -, de alguém a bater num pedaço de ferro, e pouco depois já toda a aldeia da mina estava em movimento. As pessoas saíam das suas casas para se reunirem num dos lados da empoeirada praça, no exterior da habitação do superintendente-chefe. Ouvi alguém a gemer a meu lado, virei a cabeça e vi Gunnar acordado, a olhar para a multidão.

- Ao que parece, a nossa tortura de hoje vai ter muitas testemunhas... - comentei.

- Não estão aqui por causa da tortura - replicou Gunnar. - Vieram assistir à nossa morte.

Tinha razão, é claro. Pouco depois, também os outros escravos começaram a aparecer. Ocuparam os seus lugares do outro lado da praça, em frente aos habitantes da aldeia, e dispuseram-se em fileiras atrás dos guardas que os tinham levado até ali. Tentei avistar Cadoc e os outros monges, bem como Harald e os Lobos do Mar, mas não consegui distinguir nenhum deles no meio da multidão.

O superintendente-chefe só apareceu quando já toda a gente ocupara os seus lugares e vinha acompanhado pelo subalterno com olhos porcinos que dirigira as torturas do dia anterior. Esse homem avançou com os braços levantados até todos se calarem e a seguir cedeu o lugar ao superintendente-chefe, que avançou para fazer um pequeno discurso. Quando o concluiu, bateu as palmas e saíram três homens do meio da multidão de espectadores. Dois deles transportavam um bloco de madeira e o terceiro trazia consigo uma espada encurvada com o dobro do tamanho de uma arma normal. A lâmina da grande espada fora polida de tal modo que brilhava sob a luz da madrugada.

- Pelo menos, não teremos de sofrer mais um dia de espancamentos - comentou Gunnar. - Não me parece que os conseguisse aguentar.

Emitiu um som como se tivesse esgotado o que lhe restava do seu bom temperamento. Na verdade, esgotara o seu tempo de vida... mas não iríamos ter uma morte rápida e indolor.

O bloco foi instalado perto de nós e os guardas conduziram dois cavalos para a praça. Não entendi o que isso significava, mas Gunnar sabia...

- Já ouvi falar nisto... - disse. Explicou-me que a vítima era amarrada aos dois cavalos, que a seguir a puxavam em direcções opostas, esticando o corpo do condenado entre eles. Quando os ossos da espinha já estavam suficientemente separados, a espada era utilizada para cortar o pobre desgraçado ao meio.

- Por vezes, os mais azarentos não morrem imediatamente - acrescentou Gunnar.

Dugal ainda não se mexera. Pensei em acordá-lo mas reconsiderei e deixei-o dormir. Ele que goze a pouca paz que ainda lhe resta, pensei. Pelo menos, entrara na glória bem descansado.

Aconteceu que o seu descanso terminou quase imediatamente. Os cavalos foram colocados de cada lado do bloco e logo quatro guardas avançaram para onde nos encontrávamos, agarraram em Dugal e sacudiram-no violentamente, para que acordasse. Ofegou de dor sob aquele tratamento brutal e a sua cabeça descaiu para a frente, sem forças.

Foi nesse momento que decidi o que fazer. Recorri às poucas forças que ainda me restavam e esforcei-me até me conseguir pôr de joelhos. Senti negras vagas de dor a caírem sobre mim quando levantei a cabeça. Assentei um pé no chão, cerrei os dentes e levantei-me, cambaleando e oscilando como um bebé. A agonia daquele acto tão simples levou-me as lágrimas aos olhos e fez-me ouvir um tremendo rugido na cabeça mas, de algum modo, consegui dar um passo em frente.

- Levem-me! - disse, numa voz que não passou de um ofegar áspero.

Os guardas viraram-se para me olharem. Houve um deles que disse qualquer coisa que não compreendi, mas os outros regressaram à sua tarefa e arrastaram Dugal com eles.

- Deixem-no em paz! - gritei, quase caindo com o esforço. - Levem-me a mim em vez dele!

Houve um segundo grito que respondeu ao meu. No outro lado do pátio, o superintendente-chefe chamou os guardas e apontou para mim com o bordão. Os quatro guardas largaram Dugal imediatamente e avançaram na minha direcção. Virei-me para Gunnar:

- Adeus, Gunnar Maço-de-Guerra... - sussurrei-lhe, com o resto das minhas forças. - Gostei muito de te conhecer.

- Não digas adeus, Aeddan - respondeu, debatendo-se para se pôr de joelhos. - Espera por mim no outro mundo, para irmos os dois ao encontro do teu deus.

Acenei, lançando um último olhar sobre os meus amigos espancados. Logo a seguir os guardas prenderam-me os braços e arrastaram-me para o bloco de madeira. Passámos junto ao local onde o Dugal ainda jazia e verifiquei que voltara a perder a consciência.

- Adeus, Dugal, meu irmão - disse-lhe, embora soubesse que não me podia ouvir. - Foste sempre um verdadeiro amigo para mim.

Quando chegámos ao bloco fui atirado para o chão e os guardas começaram a amarrar-me as mãos. Já quase haviam terminado esse trabalho quando se verificou uma agitação do outro lado do pátio, onde os escravos se encontravam reunidos. Ouvi gritar. Para minha surpresa, reconheci tanto a voz como as palavras.

- Parem! - gritou a voz. - Deixem-me ocupar o seu lugar! Avistei, pelos cantos dos olhos, a figura de um velho que se arrastava para a frente tão depressa lho permitia o seu corpo arruinado. Passados alguns instantes compreendi que se tratava do bispo Cadoc. Os seus trajes e o manto haviam desaparecido, bem como a cambutta encimada por uma águia, mas a voz mantinha-se tão forte e poderosa como sempre. Um dos guardas correu para o deter mas o superintendente-chefe fez-lhe um gesto ordenando-lhe que o deixasse passar.

- Matem-me a mim! - disse Cadoc rapidamente, ofegante do esforço de atravessar o pátio. Verifiquei que devia estar doente porque tinha os olhos enevoados e a sua respiração era arquejante. Aproximou-se mais, fazendo gestos para o superintendente para o ajudar a entender as suas palavras. - Tomarei o lugar dele. Tomo o lugar de todos eles. Fiquem comigo e deixem-nos ir - declarou, oferecendo-se.

- Por favor, bispo Cadoc, é melhor assim... - implorei. - Estou satisfeito e pronto para morrer. Deus esqueceu-me e já nada mais me resta. Deixe que tudo termine aqui...

O superintendente-chefe olhou de um para o outro e tomou uma decisão. Suponho que deve ter pensado que conseguiria extrair mais trabalho de mim do que do Cadoc, uma vez que resmungou uma ordem e os guardas agarraram o bispo, tiraram-me a corda e começaram a amarrá-lo.

- Cadoc! - comecei - não está certo que...

- Escuta-me, Aidan... - interrompeu-me, com gentileza. - Não temos muito tempo... - Tentei protestar junto do superintendente mas Cadoc deteve-me, dizendo: - Estou a morrer, Aidan. Já pouco falta para me ir...

- Bispo Cadoc... - murmurei, mergulhado numa agonia.

- Paz, irmão - continuou, acalmando-me. - Cheguei ao fim da vida e estou pronto para me juntar ao meu Rei. Tu, Aidan, tens de viver. Há muito para fazer e a tua vida ainda agora começou.

Logo que lhe amarraram as mãos, atiraram-no para o chão com violência e trataram de lhe amarrar os pés. Cadoc parecia nem sequer dar pela brutalidade com que estava a ser tratado.

- Foste bem escolhido, irmão. Nunca duvides disso... e Deus nunca se esquece daqueles que invocam o Seu nome. Agarra-te a Ele, Aidan, pois é a tua rocha e a tua força.

Os guardas levantaram-no e pousaram-no em cima do bloco, de barriga para baixo, com as pernas e os braços caídos de cada lado. A seguir passaram-lhe uma corda pelas apertadas tiras de couro que lhe amarravam os pulsos, e outra por entre os tornozelos, cordas que, por sua vez, foram atadas aos arreios dos cavalos.

- Nunca te esqueças... - declarou, virando o rosto para mim pela última vez - que a tua vida teve um preço. Lembra-te disso sempre que as dúvidas te invadirem. Adeus, Aidan.

Virou a cabeça, fechou os olhos... e escutei o murmúrio familiar da Oração do Senhor.

O superintendente pronunciou uma ordem e o guarda do poço, com o chicote na mão, avançou para o bloco e empurrou-me para o lado. Não consegui aguentar-me, caí no chão e rolei, num tormento, sobre as costas magoadas. Outro guarda, um sarraceno alto e musculoso, tomou o seu lugar ao lado do bloco, estendeu a mão e recebeu a espada encurvada.

A um aceno do superintendente-chefe, o guarda do poço soltou um grito para os cavalos. O seu chicote desenrolou-se no mesmo instante e o estalido ressoou pelo pátio. Os cavalos arrancaram e o corpo do pobre Cadoc esticou-se como se fosse um farrapo. O chicote voltou a ouvir-se quando o guarda incitou os cavalos a fazerem o seu trabalho.

Ouviu-se um hediondo estalo proveniente do corpo de Cadoc quando os seus ossos e tendões acabaram por ceder. Ao ouvi-lo, o sarraceno musculoso levantou a espada acima da cabeça para logo a fazer descer num único movimento rápido. Contudo, o golpe foi mal apontado porque a lâmina mordeu os flancos do bom bispo um pouco acima da anca, provocando um corte terrível que jorrou sangue e entranhas.

Cadoc gritou. O chicote estalou mais uma vez e os cavalos puxaram com mais força.

- Kyrie! - gritou o bispo, com a sua voz a exprimir não dor mas sim vitória. - Kyrie eleison!

Fui incapaz de desviar os olhos e vi, com horror, que a lâmina encurvada voltava a golpear. Contudo, dessa vez, atingiu o bispo Cadoc na curva das costas. Os ossos separaram-se com um estalo e os cavalos cambalearam para a frente. Vi um jorro de sangue vermelho a brilhar sob o Sol quando o corpo do bispo se partiu ao meio.

Cadoc soltou um último grito quando a metade anterior do seu tronco, agora livre, foi arrastada para a frente.

- Kyrie!- ofegou, enquanto o sopro da vida se lhe escapava dos pulmões.

Os espectadores árabes soltaram um berro - uma palavra que me soou a Bismillah - que repetiram uma e outra vez. Os escravos, alinhados do outro lado, em frente da multidão que aplaudia, mergulharam num silêncio sombrio quando as duas metades do cadáver do bispo foram desamarradas dos cavalos e arrastadas para um lado, deixando atrás de si uma mancha escura sobre a poeira. A boca encheu-se-me do amargo da bílis e senti o estômago a contrair-se mas nada havia nas minhas entranhas para ser deitado fora, pelo que tudo se limitou a uma náusea.

Oscilando, senti que me prendiam as mãos e que as amarravam rapidamente com uma forte tira de couro. O horror invadiu-me e entorpeceu-me. Levantei os olhos, deparei com o sorriso trocista e triunfante do guarda... e apercebi-me da verdade: o sacrifício de Cadoc fora inútil e eu ia ser o próximo a morrer.

O superintendente-chefe não tinha qualquer intenção de revelar misericórdia. Matara um velho que já deixara de ser útil como escravo e agora ia matar-nos a nós. O gesto do bispo, tão grandioso e desprendido, a expressão máxima da compaixão, era agora visto como o acto de um velho idiota. Era essa a verdade, tão brutal como o Sol sarraceno que ardia sobre a praça branca e empoeirada, queimando tudo sob a sua mirada ardente.

A minha mente contorceu-se de medo. Ia morrer como o Cadoc, cortado ao meio como um pedaço de carne, com as entranhas espalhadas sobre o chão empoeirado.

- Bastardo! - berrei para o superintendente-chefe, com a raiva a invadir-me com uma intensidade igual à do Sol ao rubro-branco que pairava sobre as nossas cabeças. - Que Satanás vos leve a todos!

O presunçoso árabe riu-se e fez sinal aos seus homens para me amarrarem os pés. Empurraram-me para o chão e seguraram-me as pernas. Tentei pontapeá-los mas as pernas estavam doridas e rígidas da tortura a que fora submetido, e mal conseguia dobrá-las... Quando dei por isso já estava a ser levantado e colocado sobre o bloco de madeira manchado de sangue.

Ouvi Gunnar a gritar qualquer coisa, creio que para me instilar coragem, mas não consegui entender o que dizia. Tudo o que escutava era o som do meu próprio coração a martelar loucamente nos meus ouvidos. Senti as cordas a serem passadas entre os pulsos e tornozelos, e a serem amarradas. Só era capaz de pensar que aquele não era o meu destino e que a minha morte fora ordenada de um modo completamente diferente. Ter de abandonar a vida de uma maneira tão miserável era uma monumental injustiça.

Os meus braços e pernas distenderam-se. Mais alguns instantes até os cavalos serem incitados... e a lâmina maléfica iria cortar-me os flancos.

As imagens invadiram-me a mente numa cascata louca e sem qualquer significado. Tive um relance das verdes colinas do Eire e dos rostos dos meus irmãos monges a encaminharem-se para a capela. Vi Dugal a atravessar um pasto com grande passadas, rindo-se, carregado com um borrego. Vi o eparch Nicephorus a descascar uma laranja com os seus compridos dedos. Vi Ulf, o filho de Gunnar, a correr com a cana-de-pesca ao longo do trilho para o lago, e Ylva a dar de comer aos gansos com a comida guardada no avental. Vi Harald Berro-de-Touro de pé por baixo da bela proa de dragão do seu navio e vi as colinas púrpuras de Bizâncio enevoadas pela distância. Por fim, vi a minha mão a trabalhar sobre uma folha de pergaminho, na secretária no scriptorium, com a pena a estremecer sob a luz da vela.

O estalar do chicote do guarda fez-me voltar a mim mais uma vez e à súbita e violenta dor nos ombros e nas costas. Senti os tendões a esticarem-se e as cordas a gemerem quando os cavalos puxaram com mais força.

Ouvi o chicote a estalar novamente e senti fogo líquido a correr-me pelas veias. Instantaneamente, foi como se todos os meus músculos e ossos se tivessem incendiado. Gritei, mas a voz soou-me estranha aos ouvidos, pois pareceu-se com o balido áspero de um corno de veado a ser soprado. O som voltou a repetir-se e pensei: Que estranho, estar a produzir um ruído tão pouco digno no momento da morte.

Houve uma outra voz que se introduziu na minha consciência - não consegui perceber de quem era, mas talvez fosse de Gunnar ou de Harald -, e que a gritava com todas as suas forças. Contudo, as palavras eram estranhas e não entendia o que diziam. Nesse instante desceu sobre mim uma espessa nuvem negra e respirei fundo uma e outra vez, ansiosamente, sabendo perfeitamente que nunca mais viria a fazê-lo.

Senti a lâmina da espada a atingir-me as costas. Por estranho que possa parecer, não doeu. Na verdade até foi um alívio porque as cordas perderam toda a sua terrível tensão.

Ah! pensei, é assim que tudo acaba. A dor desaparece e morremos. Neste momento, talvez até já esteja morto. Mas, se assim é, porque razão continuo a ouvir os gritos?

 

Senti o corpo a ser levantado do bloco e descido até ao chão. O nevoeiro dos meus olhos clareou e vi que estava agora sentado no chão ensopado em sangue com as costas encostadas ao bloco, e que havia ali um estranho, de pé, a pairar sobre mim. Tinha uma pele acastanhada e vestia um longo traje azul, uma capa da mesma cor e um turbante branco.

A mente estava nublada e não conseguia entender nada do que se passava à minha volta. Ouvi alguém a falar rapidamente e olhei em volta. Avistei um homem montado num belo cavalo branco, de lança na mão, com um rosto duro e zangado. Estava acompanhado por quatro guerreiros a cavalo com turbantes azuis, empunhando lanças e compridos escudos pintados de azul.

Veio-me à memória que se tratava do mesmo homem que vira no dia anterior. Aparentemente, regressara e não estava nada satisfeito com o que encontrara. Permanecia montado no cavalo e repreendia o superintendente-chefe em voz alta. A discussão era em árabe e não percebia nada do que diziam, mas o superintendente gritava e agitava os punhos para o estranho a cavalo.

O homem do turbante branco, com um rosto carregado e os olhos semicerrados, virou-se na sela e fez um gesto para o guerreiro que se encontrava a meu lado. O guerreiro começou imediatamente a desamarrar-me os pulsos e os tornozelos. Foi rapidamente ajudado por outro e os dois homens puseram-me de pé. Contudo, não consegui aguentar-me nas pernas e viram-se forçados a segurar-me.

Lívido de raiva, o superintendente-chefe começou a avançar para os dois guerreiros que me apoiavam. Deu um passo e notei o brilho da lâmina que trazia na mão. Se desse mais alguns passos iria alcançar-nos... e eu nada podia fazer para evitar o ataque. Na verdade, não dispunha de forças ou de vontade, nem sequer para gritar um aviso aos meus protectores.

Então, de repente, aconteceu uma coisa curiosa: quando o superintendente ergueu o braço para desferir o golpe... surgiu uma aguçada ponta de metal no centro do seu peito. O homem estremeceu, deu um passo ou dois para a frente e a seguir parou para olhar para baixo quando a brilhante flor de sangue vermelho se começou a espalhar em torno da ponta saliente. A faca caiu-lhe das mãos e o homem agarrou-se à coisa que tinha no peito, raspando-a com os dedos.

O superintendente-chefe deu mais um passo e caiu de joelhos. Olhou para mim, soltou um grito abafado e precipitou-se na poeira com a cara para a frente. Tinha o longo cabo de uma lança a erguer-se, na vertical, no meio das costas. Os escravos começaram a gritar em uníssono, entusiasmados com o facto do seu atormentador ter sido abatido.

O homem do turbante branco deslocou o cavalo para o local onde o superintendente jazia e recuperou a lança sem sequer se erguer na sela. De arma em punho, proferiu um aviso para os guardas que nos observavam e fez sinal aos dois guerreiros que me seguravam para o seguirem. Carregaram-me até um cavalo e colocaram-me sobre o seu dorso. Não consegui manter-me direito e deixei-me cair sobre o pescoço do animal, a que me agarrei com o que restava das minhas forças... e em breve cavalgávamos pelas estreitas ruas da aldeia mineira, na direcção do portão, com um guerreiro a conduzir o cavalo e outro a meu lado, conservando-me na sela. Era uma fuga quase tão dolorosa como os espancamentos que sofrera e obrigava-me a soltar um grito a cada safanão do animal.

Não sei quanto tempo cavalgámos porque, pouco depois de atravessado o portão, perdi a consciência do que se passava à minha volta e não me recordo de nada até ao momento em que acordei já sob o lusco-fusco do crepúsculo. O estranho do turbante branco estava ajoelhado a meu lado e comprimia um trapo molhado contra a minha testa. Quando verificou que estava acordado, levou-me uma taça aos lábios e deu-me água a beber.

- Alá seja louvado! - exclamou - Acordaste para o mundo dos vivos!

Olhei para o rosto do homem enquanto falava e recordei-me de onde o vira anteriormente: fora com o emir, em Trebizonda.

- Conheço-te... - disse-lhe, numa voz que soou como um sussurro áspero aos meus próprios ouvidos.

- Também te conheço. Chamo-me Faysal... - replicou - e tenho andado à tua procura.

- Porquê? - perguntei.

- Só lorde Sadiq poderá responder a essa pergunta - respondeu.

- Os meus amigos... - murmurei, recordando-me repentinamente de Gunnar e Dugal. Tentei levantar-me mas a dor explodiu entre os meus olhos e caí para trás, ofegando com o esforço. Sentia os ombros como se tivessem sido perfurados por ferros em brasa.

- Nada sei a respeito dos teus amigos - respondeu Faysal com secura. - Diz-me, o eparch Nicephorus morreu?

Não consegui falar e confirmei com um aceno.

- Vamos levar-te ao emir, que está em Ja'fariya, a vários dias de distância a cavalo.

Consegui recuperar o suficiente para protestar:

- Por favor... - ofeguei - não posso deixar os meus amigos... Faysal pareceu não me ouvir. Levantou-se e declarou:

- Agora, descansa e recupera as forças.

Durante a noite a minha condição piorou, embora tivesse dormido durante o resto do dia. Já não conseguia levantar a cabeça e muito menos pôr-me de pé, e até a própria respiração me magoava. Todo o meu corpo pulsava com dores, mas muito em especial os ombros e o interior do peito. Acordei sob a luz de uma fogueira e descobri Faysal sentado a meu lado, com os olhos carregados de preocupação.

- Bebe isto - disse - oferecendo-me uma taça. - Também te trouxe comida.

Levantei a mão e estendi-a para a taça... e as dores rasgaram-me desde o cotovelo até ao pescoço. As lágrimas subiram-me aos olhos e tive de me recostar, gemendo e ofegando.

- Por favor... - pediu Faysal, começando a desapertar-me as roupas. Embora trabalhasse com toda a suavidade, até os mais pequenos movimentos me obrigavam a gritar. Lançou-me uma olhadela rápida e sentou-se sobre os calcanhares.

- Isso está feio... - declarou. - Os ossos do braço saíram do sítio. Posso ajudar-te, se mo permitires... mas aviso-te que vais ter muitas dores...

Como não conseguia imaginar nada mais doloroso do que já tivera de suportar, dei-lhe o meu assentimento silencioso. Faysal afastou-se e ouvi vozes baixas e urgentes durante alguns instantes ante de voltar a mergulhar na inconsciência. Regressou algum tempo depois, despertou-me e disse:

- O melhor é tratar disso o mais depressa possível. Ajoelhou-se na minha frente e fez sinal a dois dos homens que o acompanhavam para o ajudarem. Levantaram-me e colocaram-me numa

posição sentada. Um dos homens passou os braços em volta da minha cintura e o outro segurou-me pelo peito.

- Aperta isto entredentes - ordenou Faysal, enfiando-me um trapo bem dobrado dentro da boca. Quando se sentiu satisfeito com as precauções tomadas, Faysal segurou-me no braço com as duas mãos e levantou-o lentamente até ficar alinhado com o ombro. Estremeci e mordi o trapo, mas não gritei.

Devagar, muito devagar, Faysal obrigou o braço a rodar sobre si mesmo. A dor explodiu em brilhantes bolas de fogo. Senti que mo apertava com mais força e fechei os olhos...

Sem o menor aviso, puxou-me o braço para fora, com toda a força. Ao mesmo tempo, o homem que me segurava pelo peito puxou-me para trás... e ouvi um estalo quando os ossos cederam. Pensei que iria desmaiar com a dor... mas Faysal largou-me e a dor cessou.

- Pronto... - disse, tirando-me o trapo de entredentes - o osso já voltou ao seu lugar.

A seguir atravessou-me o braço sobre o peito e amarrou-o nessa posição com uma longa tira de pano rasgada de uma das capas. Depois de ligado, deixei-me cair para trás a suar e a tremer de exaustão. Faysal cobriu-me com uma capa e dormi até de madrugada, altura em que me levaram água e um pouco de pão embebido em mel. Consegui engolir um bocado e senti-me com um pouco mais de forças.

Todavia, não era capaz de me pôr de pé. Todos os meus membros haviam sido espancados e todas as articulações haviam sido cruelmente torcidas. Tinha as carnes cobertas por nódoas com uma cor negro-azulada e não havia um bocado de pele que não se encontrasse descolorido. Para além disso, a pele rebentara em vários sítios, por causa do inchaço. Faysal não gostou do aspecto dos meus ferimentos e disse-mo.

- Receio por ti, meu amigo... - declarou. - Não me atrevo a permanecer aqui mais tempo.

Como não me encontrava em condições de montar um cavalo, os árabes construíram uma espécie de funda feita com uma grande peça de tecido resistente pendurada entre dois cavalos e amarrada às selas. Foi aí que me colocaram, como um bebé enrolado num berço, e partimos.

Era claro que Faysal estava ansioso por chegar a Ja'fariya porque não parámos durante todo aquele dia e só parámos uma única vez no dia seguinte. Jazi na minha funda, alternando os estados de consciência com os de inconsciência. Aqueles árabes eram cavaleiros tão maravilhosos que raramente sofri o menor solavanco, limitando-me a oscilar suavemente de um lado para o outro ao ritmo do balanceio dos cavalos.

As dores surdas e incessantes nas articulações e músculos - todas as partes do meu corpo haviam sido espancadas ou esticadas - aumentaram ao longo do segundo dia. O ombro direito ainda pulsava, e a dor no peito foi substituída gradualmente por uma sensação de queimadura que me dificultava a respiração. Os períodos de consciência tornaram-se mais curtos e os sonos mais profundos. Por vezes conseguia prestar atenção ao que me rodeava, mas apenas com um esforço extremo, esforço que, com o passar do tempo, me pareceu valer cada vez menos a pena. Durante os breves períodos de lucidez apercebi-me que viajávamos depressa, mas não conseguia dizer em que direcção. Parávamos apenas por curtos momentos durante as horas mais quentes do dia e forçávamos a marcha até a noite ir muito avançada.

Houve uma vez em que acordei, abri os olhos e vi a Lua Cheia pendurada como um rosto brilhante, mesmo por cima de mim, perfeitamente redonda e emitindo uma pálida luz dourada no meio de um céu do mais profundo azul. As estrelas, às centenas de milhares, reluziam como pó de prata espalhado por mãos loucamente generosas. Não sei se ainda jazia na funda ou se estava no chão e senti uma urgente necessidade de o saber... mas voltei à inconsciência sem ter descoberto a resposta para esse mistério.

Passou-se outro dia - ou então, tanto como eu soubesse, talvez fosse o mesmo dia ou toda uma sequência de dias - e acabámos por chegar ao palácio do emir. Não sei por que caminhos havíamos viajado nem quanto tempo durara a jornada: dois dias, quatro, ou talvez muito mais ou muito menos, porque tudo isso estivera para lá do meu alcance.

O que posso afirmar com toda a certeza foi que acordei de repente e descobri que estava a ser transportado ao longo de um corredor apaine-lado e era acompanhado por vozes abafadas. Levaram-me para um quarto que pouco mais era do que uma cela pequena e vazia, onde me colocaram num catre coberto. O Sol penetrava no quarto por uma estreita fenda de ventilação e os grãos de poeira rodopiavam preguiçosamente nesse nítido feixe de luz. Os que me tinham transportado para o quarto desapareceram e fiquei só durante algum tempo.

Sentia a cabeça como se fosse feita de pedra forrada de chumbo. Tentei... mas não consegui levantá-la e o esforço causou-me negras vagas de tonturas. Fechei os olhos - apenas por um momento, ou pelo menos assim o pensei - e quando voltei a abri-los já as minhas roupas me haviam sido despidas e estava agora coberto por um fino pano branco. O braço continuava amarrado ao peito com um pano enrolado e o pouco que podia ver do resto do corpo estava tremendamente inchado e descolorido, enquanto as nódoas negras ganhavam um hediondo tom púrpura. Para além disso, escorria um fluido claro de todos os locais onde o inchaço me rebentara a pele. Tinha a boca seca e ardiam-me os olhos... Na verdade, era como se estivesse a ser assado lentamente a partir do interior.

Ouvi um movimento a meu lado e Faysal apareceu. Agachou-se junto ao catre e espreitou o meu rosto com um ar de dúvida.

- Estás acordado, meu amigo?

Abri a boca para tentar responder mas não emiti nenhum som. Faysal, compreendendo as minhas dificuldades, ergueu-me a cabeça e aproximou uma espécie de malga até junto dos meus lábios. A malga continha água com mel, que bebi e que pareceu soltar-me a língua.

- Onde estou? - perguntei, mas a voz que ouvi não era a minha ou, pelo menos, não a reconheci como minha.

- No palácio de lorde Sadiq - respondeu. - Tens muitas dores? Precisei de um momento para pensar a esse respeito. Sim, concluí, havia uma dor, uma dor contínua, insistente e pulsante em todos os meus membros e músculos, mas já me habituara a ela.

- Não mais do que antes... - respondi, na mesma voz abafada, arquejante e pouco familiar.

- O emir quer que saibas que enviou um mensageiro para trazer um físico de Bagdade. Chegará amanhã, se Alá assim o permitir. Entretanto, faremos tudo o que pudermos para preservar a tua vida. Tens de nos ajudar, comendo e bebendo o que te dermos. Compreendes o que estou a dizer?

Acenei uma confirmação.

Faysal ficou sentado por um momento, com uma expressão de penetrante apreciação. Se eu fosse um cavalo, não me parece que me atribuísse um grande valor.

- Para o emir, é importante que vivas - declarou, como se eu precisasse de ser persuadido. Por fim levantou-se, caminhou para a porta e acrescentou:

- A Kazimain é muito hábil como curandeira e lorde Sadiq ordenou-lhe que se ocupasse de ti até à chegada do físico. Faz o que ela te disser.

Deixou-me mas ouvi-o a falar com alguém, no corredor. Momentos depois as vozes calaram-se e vi uma jovem mulher a entrar no quarto. Trazia uma pequena bandeja de latão com um pão achatado, frutos e pequenas taças também de latão. Ajoelhou-se, pousou a bandeja a meu lado e começou a partir o pão com os seus compridos dedos.

Quando terminou, pegou num bocado de pão, mergulhou-o numa das taças e levou-mo à boca. Abri a boca e a jovem alimentou-me. O pão era macio e o molho era doce. Mastiguei e engoli, e o processo foi-se repetindo até ao fim. A seguir, a jovem deu-me nova bebida e preparou-se para me alimentar com outro pão. De repente, fui dominado pela exaustão. O sono, como uma enorme vaga oceânica, puxou-me para as suas negras profundezas.

- Não posso mais... - murmurei, esforçando-me por manter os olhos abertos.

A jovem pousou o pão, pegou na bandeja de latão e levantou-se.

- Obrigado, Kazimain... - sussurrei, na minha própria língua. Penso que o facto de a ter tratado pelo nome a surpreendeu, porque parou para olhar para mim com curiosidade antes de se virar e desaparecer. Aquela expressão de curiosidade surpreendida ocupou os meus pensamentos dispersos durante um bom bocado. Na realidade ocupou-me durante muito mais tempo do que alguém podia ter imaginado. Foi a última coisa que vi - ou que me recordei de ter visto -, durante muito tempo. Depois, nessa noite, sozinho e já muito tarde, mergulhei num sono febril de que não foram capazes de me acordar.

 

Vagueei sozinho e na escuridão como um espírito perdido e sem consciência, com as nuvens do desconhecimento a arrastarem-me para onde muito bem lhes aprouvesse. Desci ao reino dos mortos, ao domínio das almas perdidas que, numa era anterior, terminaram as suas vidas num submundo e que são agora como sombras numa eternidade sem luz e sem esperança. Foi nesse estado que me mantive, para lá das preocupações, para lá dos sentimentos, para lá de todos os desejos, salvo um único: exercer a minha vingança sobre aquele que me traíra.

Já não receava a morte mas recusava-me a morrer enquanto o homem que fora o causador dos meus sofrimentos continuasse vivo e a respirar. Fosse qual fosse a vida que me restava, iria dedicá-la à minha vingança e à vingança de todos os outros que haviam igualmente sofrido e morrido às suas mãos. Foi uma jura que fiz com todo o meu coração... e se, para a realizar, tivesse de morrer e de sofrer os tormentos eternos de uma vida muito para além do alcance da graça de Deus... pois que assim fosse! Fosse como fosse, iria saborear o frio consolo da vingança antes de me deitar finalmente no meu sepulcro.

Era esse o pensamento que tremeluzia na minha consciência como a chama de uma vela solitária. Sempre que me sentia a deslizar para o outro lado, era essa a chama que me puxava de volta a este mundo e que me segurava com a sua luz fraca e perdida. Tive a sensação de ter passado toda uma existência nesse estado, a pairar entre a vida e a morte. Por vezes ouvia vozes a falarem em línguas obscuras e tinha sonhos estranhos sobre lugares exóticos por baixo de sóis que ardiam ao rubro-branco. Outras vezes tinha visões em que me via a ser tratado por seres vestidos com trajes brancos que me administravam elixires curativos.

Depois, um dia, voltei a mim. A consciência regressou e ouvi alguém a cantar numa voz baixa e encantadora, embora as palavras me fossem desconhecidas. Abri os olhos e vi Kazimain sentada a meu lado, vestida com um traje num tom azul muito pálido e com um saco de seda carmesim nas mãos. O Sol do fim da tarde, com o tom dourado do mel, penetrava pela alta janela em arco que se abria por trás dela. Conseguia avistar telhados lá fora, alguns dos quais eram inclinados e estavam cobertos por telhas vermelhas, enquanto outros eram sobrepujados por enormes cúpulas brancas e brilhantes que se pareciam com ovos. Contudo, na sua maioria eram planos e exibiam toldos das mais variadas cores, esticados sobre cordas. Muitos tinham plantas e até pequenas árvores. Também avistei várias torres, finas como dedos e terminadas em extremidades pontiagudas, que se erguiam sobre as outras construções como se fossem lanças apontadas para o céu.

Kazimain meteu a mão no saco, retirou dele alguns grãos de cevada, virou-se um pouco e colocou-os na pedra branca do parapeito da janela. Ainda estava a afastar a mão quando uma pequena ave cinzenta pousou no parapeito, inclinou a cabeça para a fitar com atrevimento e começou a debicar os grãos.

- É um amigo teu? - perguntei.

Embora a minha voz pouco mais fosse do que o mais fraco dos sussurros, a jovem rodopiou como se me tivesse ouvido gritar, observou-me com uns olhos muito abertos e horrorizados e fugiu do quarto. Ouvi o som dos seus passos a enfraquecer enquanto se afastava a correr.

Virei a minha atenção para o quarto. Era a mesma cela nua que já vira anteriormente, mobilada apenas com o catre de tapetes que me servia de cama, ao lado do qual se encontravam agora duas grandes almofadas pousadas no chão e um suporte de madeira que aguentava o peso de uma grande bandeja de latão com frutos, um jarro e frascos. As paredes tinham um tom rosado e o pavimento era de mármore branco. Excepto no que se referia à janela, não havia ali mais nada para ver.

O meu braço magoado continuava ligado, mas o outro estava livre. Afastei o fino pano que me cobria com movimentos muito pequenos, lentos e dolorosos, para poder dar uma olhadela aos membros magoados. As nódoas negras ainda lá estavam, é claro, e eram às centenas. Continuavam a ter um tom escuro mas haviam perdido a horrível tonalidade púrpura, que fora substituída pela feia cor amarela-esverdeada dos velhos ferimentos. Contudo, o inchaço desaparecera e a dor pulsante também. Para além disso, alguns dos cortes mais pequenos encontravam-se quase cicatrizados, o que me levou a concluir que passara bastante tempo, talvez até muitos dias.

Embora não tivesse qualquer noção do tempo que permanecera inconsciente, a minha mente estava clara. Por outro lado, para além dos ferimentos, o corpo parecia estar bem. Decidi comprová-lo, respirei fundo e coloquei-me numa posição sentada. A tentativa foi um desastre. Surgiram-me instantaneamente enxames de manchas negras em frente dos olhos e a minha cabeça pareceu explodir de dor. Os ouvidos encheram-se-me com um som semelhante ao de água revolta e tive de me apoiar para não voltar a cair na cama.

Instantes depois, o som de vozes e de passos precipitados no exterior alertou-me para a chegada de visitas, pelo que puxei rapidamente a leve cobertura para cima de mim no preciso momento em que apareceu à porta um homem com um turbante branco, uma pele da cor do mogno polido e um nariz semelhante a um bico de falcão. Estava vestido inteiramente de branco e usava um medalhão circular suspenso do pescoço por uma grossa corrente de ouro.

Kazimain espreitava por trás dele, com os seus olhos negros a brilharem de excitação. Vendo que me encontrava sentado, o homem levantou as mãos ao céu, atirou a cabeça para trás e soltou um longo e sentido lamento. Depois, recompondo-se novamente, avançou para a cama e debruçou-se sobre mim. Pousou uma das suas mãos frias na minha testa e examinou-me os olhos com atenção. A seguir baixou-se, pegou-me na mão e comprimiu os dedos sobre a parte inferior do meu pulso.

Passado um instante virou-se e falou com Kazimain, que baixou a cabeça e saiu do quarto. O homem pegou no pano que me cobria, atirou-o para um lado e ajoelhou-se, tocando-me com os dedos aqui e acolá e olhando-me de vez em quando sempre que estremecia com as dores que a sua palpação me causava. A seguir prendeu a minha cabeça entre as mãos, moveu-a para um lado e para o outro, tocou-me no queixo, abriu-me a boca e espreitou para o interior.

Terminadas estas obscuras manobras, sentou-se sobre os calcanhares e proclamou:

- Que Alá, Sábio e Misericordioso, seja louvado! Regressaste para junto de nós! Como te sentes?

Disse-o num grego suave e cantante mas, embora o compreendesse muito bem, precisei de alguns momentos para lhe conseguir responder.

- Quem és tu? - perguntei. Não pretendera ser tão seco mas não me parecia que a minha voz tivesse forças suficiente para algo mais do Que frases curtas.

- Sou Farouk al-Shami Kashan Ahmad ibn Abu - replicou, baixando a cabeça numa vénia muito elegante. - Sou o físico da corte do emir Sadiq e da sua família. Para ti, sou apenas Farouk. - Levantou as mãos e manifestou-se muito satisfeito com a minha recuperação. - Por vontade de Alá, foste mais uma vez chamado à vida. Saudações e bem-vindo, meu amigo, e que a paz de Alá esteja contigo.

- Quanto tempo? - inquiri, engolindo em seco.

- Foi meu prazer servir-te como físico durante estes últimos sete dias. Sete dias! pensei. Era muito tempo para quem se encontrara às portas da morte!

Ainda meditava no significado daquela revelação quando entrou no quarto outro homem, mais volumoso e mais escuro do que Farouk, transportando uma tigela de latão com água fumegante e um rolo de pano de linho, que pousou no chão ao lado do físico.

- Um banho para ti... - explicou sacudindo o linho, que se desenrolou num grande quadrado. - Nada temas, o Malik vai ajudar-te.

Na realidade, tratou-se muito mais de uma provação do que de um simples banho. Malik, que não pronunciou uma única palavra durante todo o processo, colocou-me novamente numa posição sentada e tratou de me esfregar com o pano molhado. Estou certo de que trabalhou tão suavemente quanto pôde, mas até o mais ligeiro toque me magoava. Quando me levantou o braço, as lágrimas subiram-me aos olhos. Mordi o interior das faces para não gritar e mesmo assim não o consegui. Farouk observou o procedimento com um interesse frio, só falando de vez em quando para dar instruções a Malik, que obedecia sem responder. Apercebi-me lentamente de que, para além de me estar a dar banho, Malik movimentava e massajava sistematicamente todas as minhas articulações e membros, e que não pararia enquanto todo o meu corpo não tivesse sido examinado desse modo.

Rangi os dentes e aguentei até Farouk dar ordem a Malik para desistir e para terminar com aquele abuso. Deitei-me de costas, dorido de alto a baixo mas sentindo-me refrescado. A água com que me tinham lavado continha uma infusão de limão - um fruto ácido e amarelo muito considerado no oriente mas desconhecido no ocidente - que transmitira ao líquido uma qualidade adstringente que me refrescou e acalmou.

- De momento, vamos deixar-te em paz... - disse-me Farouk. - Entretanto, informarei o emir Sadiq a respeito do teu esplêndido regresso.

- Preciso de o ver... - declarei, numa voz urgente, embora algo áspera. - Por favor, Farouk, é importante.

- Não tenho qualquer dúvida - replicou o físico.

- Quando poderei vê-lo?

- Em breve! - afirmou. - Talvez dentro de um dia ou dois, quando te sentires melhor. Garanto-te que o emir também está ansioso por comversar contigo.

Apesar do confesso entusiasmo do emir, passaram-me muitos dias antes de o conseguir ver. Contudo, Farouk visitou-me todos os dias, por vezes na companhia de Malik e outras vezes com a Kazimain. Era frequente que a jovem pairasse por perto e era ela quem me levava as refeições diárias. Ocasionalmente, ficava à espera que eu acabasse de comer e acabei por considerar a sua tranquila companhia como sendo muito agradável.

Para mim, alguns dias foram melhores do que outros. Contudo, no geral, sentia que as forças me estavam a regressar. Por outro lado, também sentia aquele lugar duro dentro de mim, lá muito no fundo, onde nunca ninguém o conseguiria alcançar. Era um lugar apertado e contorcido, cerrado como um punho cheio de pedras. Era aí que guardava duas coisas: a vontade de vingança e a determinação de libertar os meus amigos.

A minha recuperação prosseguiu rapidamente, em particular depois de Farouk ter conseguido pôr-me de pé. Tratou-se de outra provação, muito mais difícil do que a do banho e muito mais dolorosa. Na verdade, foi tão dolorosa que desmaiei quando da primeira tentativa e Malik teve de me carregar de volta à cama. De qualquer modo, fui ganhando forças sob os olhos atentos e compassivos de Farouk. O apetite voltou e comecei a comer com mais vigor. Kazimain continuou a aparecer no meu quarto todos os dias - vê-la pela manhã era como ver nascer o Sol - e Faysal também me visitava de vez em quando.

Gradualmente, com muitos exercícios, lentos e dolorosos, a rigidez dos meus membros e as dores nas articulações foram desaparecendo e já me conseguia arrastar nos despojados confins do quarto sem cair nem desmaiar. O ombro ainda me doía mas sentia que estava a sarar. O pano que o amarrava era mudado de poucos em poucos dias, dando a Farouk a oportunidade de examinar o ombro e o braço. Garantiu-me que o braço não se encontrava partido, e que não estaria assim tão bem se não tivesse sido o tratamento rudimentar mas eficiente de Faysal.

- Tiveste muita sorte - insistiu. - Podia ter sido muito pior.

Um dia, depois de ter expresso o meu leve descontentamento por Permanecer fechado naquele quarto durante tanto tempo, Farouk disse-me Que pensava já ser tempo de me mostrar um pouco mais do palácio. Kazi-main apareceu no fim da tarde do dia seguinte, trazendo um embrulho de tecido verde e azul amarrado com uma larga fita de seda vermelha. Pousou-o na cama, a meu lado, e foi-se embora outra vez. Servi-me da mão boa, soltei a fita vermelha e desembrulhei os panos. Estava ali duas peças de roupa, ambas finas e leves. A primeira era um traje comprido e solto, e a segunda uma ampla capa verde igual às usadas por Farouk e Faysal.

Como não havia ninguém por perto, libertei-me do meu manto e enfiei o traje, embora com alguma dificuldade. Ainda tentava ajustar todo o seu volume ao meu corpo quando Farouk apareceu. Atravessou o quarto com grandes passadas, direito a mim, pegou na fita de seda vermelha, colocou-ma em volta da cintura e atou-a com habilidade. De súbito, senti-me perfeitamente bem dentro daquele traje. Farouk deu um passo atrás, levantou as mãos e proclamou:

- Tal como a luz oculta por baixo de uma taça virada volta a brilhar quando a destapam... tenho agora na minha frente a revelação de um novo homem!

- Pois... mas sinto-me como um velho - comentei. - Mal me posso mexer.

- O calor do dia já passou - declarou. - Vim buscar-te para dares um passeio.

Pousou uma das mãos no meu cotovelo, conduziu-me para a porta e ao longo de um comprido corredor que parecia nunca mais acabar e que se perdia na distância. Havia portas do lado direito do corredor e grandes janelas pontiagudas do lado esquerdo. As paredes do chão eram de mármore colorido e os lintéis eram de madeira polida. Verifiquei que o meu quarto era o último, numa das extremidades do corredor.

- Esta é a residência principal do emir - informou-me Farouk. - lorde Sadiq tem um palácio de Verão nas montanhas e uma casa em Bag-dade. Segundo dizem, são duas belas casas. Pode ser que venhas a ter oportunidade de as ver, um dia.

Aquele comentário despertou a minha curiosidade latente.

- Que estou eu aqui a fazer, Farouk?

- Foste trazido para aqui para recuperares a saúde - declarou, com toda a simplicidade.

- Já o disseste. E não há nenhuma outra razão?

- Permanecerás no palácio enquanto lorde Sadiq o desejar - declarou o físico, ajustando ligeiramente a sua resposta. - Não estou a par das finalidades do meu amo.

- Compreendo. E sou um escravo?

- Somos todos escravos, meu amigo - afirmou Farouk com ligeireza. - Limitamo-nos a servir amos diferentes... e é tudo.

Continuámos a andar, comigo a movimentar-me com passos vacilantes e arrastados. Sentia as pernas como se estivesse a puxar blocos de mármore presos aos tornozelos. Por fim, atingimos o fim do corredor e avistei uma larga escadaria que dava acesso às divisões do piso inferior, bem como uma outra, que subia. Do corredor superior soprava uma suave brisa perfumada com o odor das rosas.

- O que há lá em cima? - perguntei.

- O telhado... e o jardim das esposas do emir - respondeu Farouk.

- Gostaria de o ver. Podemos lá ir?

- Com certeza - concordou. - É permitido.

Abordámos os degraus um a um, muito devagar, e subimos para um suave e quente fim de tarde de Verão. O Sol acabara de se pôr e o céu encontrava-se tingido por uma requintada cor dourada sulcada por tons púrpura e rosados que sobressaíam por cima das colinas pintadas de azul-ardósia. O próprio céu era imenso e as estrelas já começavam a brilhar sobre as nossas cabeças. Havia outras grandes habitações por perto, mas a do emir era a maior e destacava-se de todas elas.

O telhado do palácio era uma vasta extensão plana onde centenas e centenas de plantas haviam sido dispostas em vasos de barro de todos os tamanhos e feitios, instalados em volta de um pavilhão central soerguido, feito de finas tiras de madeira montadas em treliça, com o conjunto coberto por um pano com riscas azuis e vermelhas. Havia ali pequenas palmeiras, bem como arbustos frondosos, grandes e pequenos, isto para além das flores, muitas das quais já tinham fechado as suas pétalas para a noite. Contudo, o que mais me chamou a atenção foram as rosas, uma vez que o ar estava pesado com a sua fragrância. Para onde quer que olhasse deparava com enormes maciços de pequenas rosas brancas com um cheiro doce, que pareciam soltar o seu luxuriante perfume em baforadas silenciosas, como se respirassem.

Encontrávamo-nos de pé no alto das escadas quando começou a ouvir-se um estranho lamento cantado, vindo do outro lado da cidade, que me pareceu proveniente de uma das delgadas torres que avistara da minha cama. O som aumentava e diminuía de uma maneira fantasmagórica e foi em breve reforçado por outros cantos semelhantes.

Ocorreu-me, depois de o escutar por alguns instantes, que já anteriormente ouvira aquele cântico, embora não me conseguisse recordar quando ou onde.

- O que é aquilo? - perguntei, virando-me para Farouk.

- Ah! - exclamou, lendo a expressão do meu rosto. - É o muezzin - explicou - que chama os fiéis às orações. Vem. - Deu meia volta e conduziu-me para o pavilhão, onde me fez sentar sobre uma almofada. Logo que me viu instalado, acrescentou:

- Desculpa-me por alguns instantes. Volto já.

Farouk afastou-se alguns passos, virou o rosto para leste, fez três vénias profundas e a seguir ajoelhou-se, pousou as duas mãos no chão e dobrou-se até tocar com o nariz no solo. Observei-o a executar aquele curioso ritual, endireitando-se de vez em quando para agitar a cabeça para cima e para baixo uma ou duas vezes antes de voltar a encostar o rosto ao solo.

Embora não duvidasse da sinceridade do meu físico, as suas acções fizeram-me recordar os movimentos que alguns dos monges da abadia eram capazes de fazer, prostrando-se e ajoelhando-se, para cima e para baixo, para cima e para baixo, enquanto repetiam as mesmas palavras vezes sem conta numa voz aguda e esganiçada até não passarem de uma algarviada sem sentido.

Farouk continuou durante algum tempo, levantou-se, fez uma vénia para leste e regressou ao local onde me encontrava sentado.

- A noite está ficar fria... - anunciou - e não me parece sensato permitir que arrefeças. Vou levar-te de volta ao teu quarto.

Ajudou-me a levantar da almofada e arrastámo-nos para as escadas. Tínhamos acabado de chegar junto delas quando o canto se voltou a ouvir. Dessa vez, contudo, não vinha das torres delgadas como dedos mas sim da rua lá em baixo, e não era entoado por uma única pessoa mas por muitas vozes. Olhei para Farouk, à espera de uma explicação. Limitou-se a sorrir e apontou para o parapeito do telhado.

Aproximei-me da beira do telhado para olhar para baixo e vi uma enorme multidão que enchia as estreitas ruas. Toda aquela gente cantava e gritava em atitudes de rogo, como se implorassem um favor ou o reconhecimento do emir. Observei-as mas não consegui formar uma opinião a respeito das suas acções.

- Que querem eles, Farouk?

- Querem que te ponhas bom, meu amigo - retorquiu.

Soltou uma risadinha ante a expressão de incredulidade que apareceu no meu rosto.

- Quem são? - perguntei. - Que pode aquela gente saber a respeito da minha saúde?

- Toda a cidade sabe que o novo escravo do emir está doente - disse Farouk, abrindo as mãos num gesto amplo. - As pessoas vieram rezar pela tua recuperação.

- E porquê esta noite?

- Esta noite não é diferente de nenhuma das outras desde que aqui chegaste - afirmou.

- Vêm rezar todas as noites!? - interroguei-me. - Por minha causa?

O físico confirmou com um aceno e levou uma das mãos à orelha. E escutou. Passado um instante, disse:

- Pedem a Deus que ajude o escravo do emir a levantar-se. Rogam a Alá, o Sábio e Compassivo, que restaure a tua saúde e te devolva à felicidade e à prosperidade. Imploram aos Santos anjos que pairem sobre ti e te protejam de modo a que o Maligno nunca mais possa destruir o teu corpo e espírito. Pedem a paz e as bênçãos de Deus para ti, para esta noite.

Os cânticos continuaram durante algum tempo, dando origem a uma música curiosa e ululante, numa língua desconhecida. O aguçado crescente da Lua já subira nos céus e emitia o seu brilho no céu nocturno. Senti que a quente suavidade do ar começava a desaparecer e cheirei o perfume doce da noite. As estranhezas daquele lugar rodopiavam à minha volta como correntes num lago de profundezas ocultas e estremeci quando me imaginei a mergulhar naquelas águas exóticas. Oh, todavia, já estava metido nelas até ao pescoço...

Terminadas as orações, as pessoas começaram a afastar-se. Momentos depois já as ruas se encontravam vazias e novamente silenciosas. Olhei para baixo, para a escuridão agora tranquila, com um sentimento de curioso espanto. O facto de todas aquelas pessoas, tão desconhecidas para mim - um mero escravo na casa do emir -, como eu para elas, se terem reunido ali para interceder a meu favor... era muito mais do que o que eu merecia.

Sim, não pude deixar de pensar que nada daquilo teria acontecido em Constantinopla ou em qualquer outro ponto do mundo cristão por mim conhecido. Na verdade, estivera na presença do Imperador, o próprio Vice-Regente de Cristo sobre a Terra, e nem sequer me oferecera uma taça de água fresca, ou uma palavra de amabilidade... e eu era um cristão! Porém, ali, era um estranho numa terra estranha e recebera um contínuo fluxo de orações desde o momento da minha chegada! Tinham rezado por mim durante todo aquele tempo... Tinham rezado por um estranho, que não conheciam e nem sequer tinham visto...

Uma tal preocupação e compaixão, uma fé tão cega, foram coisas Que me espantaram e envergonharam. Nessa noite permaneci acordado durante muito tempo a pensar no que vira, e adormeci a interrogar-me sobre qual poderia ser o significado de tudo aquilo.

 

No dia seguinte voltámos a caminhar no jardim instalado no telhado, onde me deixaram ficar durante mais tempo antes de me arrastar lentamente de volta ao quarto. A exaustão acompanhou os meus últimos passos ao ponto de precisar que Farouk me ajudasse a despir, após o que caí na cama com um gemido sentindo-me como se tivesse trabalhado todo o dia a içar pesadas pedras por cima de uma parede. Recostei-me nas almofadas, Farouk puxou a coberta por cima de mim... e já estava a dormir antes dele ter tempo para sair do quarto.

Regressou na manhã seguinte, logo que acordei. Ao lado da minha cama havia uma bandeja com fruta, pão e uma bebida fumegante numa bandeja apoiada num tripé de madeira. Quando viu que estava acordado, sentou-se e pegou-me na mão, naquela maneira peculiar que já utilizara anteriormente. Ficou a olhar para mim durante muito tempo, pensativo, largou-me a mão e declarou:

- Estás a conseguir uma boa recuperação, meu amigo. Acontece que o emir Sadiq gostaria de te ver, hoje mesmo. Devo dizer-lhe que te sentes suficientemente bem para lhe fazeres companhia?

- Sim, é claro, Farouk! Terei muito prazer em falar com ele sempre que o desejar.

- Então... - prosseguiu o físico, com um sorriso - sugiro que conversem hoje de manhã, enquanto te sentes com forças. A seguir poderás descansar e voltaremos a falar um pouco. Está bem?

- Com certeza! - repliquei. - Farei o que considerares melhor. Devo-te a vida, creio. Se não fosses tu, de certeza que teria morrido.

O físico vestido de branco levantou as mãos num protesto e abanou a cabeça:

- Não, não! Só Alá, o Sábio e Misericordioso, pode curar. Limitei-me a manter-te confortável enquanto essa cura teve lugar. - Fitou-me durante alguns instantes com os seus olhos escuros e suaves. - Pela minha parte, fico contente por saber que te sentes melhor.

- Obrigado, Farouk. Pôs-se de pé e declarou:

- Vou deixar-te e regressarei quando tiver falado com o emir. Seria melhor que comesses tudo o que te trouxe. Tens de começar a recuperar as forças.

Prometi-lhe que o faria e deixou-me sozinho. Kazimain apareceu passado algum tempo, quando estava a acabar de comer um cacho de uvas pretas, a única fruta da bandeja que fui capaz de reconhecer. Sorriu quando me viu, aproximou-se da mesa, ajoelhou-se e escolheu um fruto esférico com uma casca vermelha. Parecia-se um pouco com uma maçã mas tinha um estranho tufo numa ponta e a casca era muito dura. Mostrou-me como o abrir, pronunciando uma palavra enquanto o fazia, mas não consegui perceber o que estava a dizer. Farouk entrou naquele momento com um molho de roupas e explicou:

- Está a dizer-te que esse fruto se chama narra. Os gregos dão-lhe outro nome, mas a palavra escapa-me.

Kazimain cravou os polegares na casca avermelhada e parecida com couro, torceu os pulsos e o fruto abriu-se em dois, revelando um interior com centenas de sementes muito coladas umas às outras, que brilhavam como rubis. Soltou uma pequena secção, fez cair algumas das sementes vermelhas na palma da mão e ofereceu-mas.

Peguei numa daquelas pequenas jóias e meti-a na boca. A baga repleta de sumo rebentou na minha língua com um sabor agridoce.

- Deves comê-las às mãos-cheias - aconselhou-me Farouk - ou irás precisar do dia inteiro.

Contudo, às mãos-cheias, a narra era demasiado adstringente para o meu gosto, pelo que voltei às uvas, comendo-as com um pouco de pão. Quando terminei, Kazimain foi-se embora para que Farouk me pudesse vestir as roupas que trouxera: uma veste e uma capa de seda às riscas azuis e verdes, muito melhores do que as que eu vestira antes, e um cinto de seda vermelha.

- Deves estar devidamente vestido para a audiência - explicou, Mostrando-me como ajeitar a veste e atar o cinto.

- Ah, pareces um homem de elegância e propósito! - declarou, aclamando o resultado. - Vamos, o emir está à espera. Vou levar-te até ele- Se me permitires, pelo caminho também te explicarei como te deves comportar na sua presença.

- Ficaria muito grato... - respondi, embora já tivesse uma boa noção do que se esperava de mim, que aprendera durante a observação das poucas sessões a que estivera presente quando o eparch se reunira com os árabes em Trebizonda.

- É muito fácil... - continuou Farouk, conduzindo-me para fora do quarto. - Explico-te enquanto caminhamos...

Seguimos ao longo do comprido corredor e passámos para lá das escadas que conduziam ao telhado. Contudo, desta vez, não as subimos. Demos uma volta e descemos ao nível inferior, onde entrámos num grande salão.

- Esta é a sala de recepções - explicou Farouk. - Como não se trata de uma audiência formal, o emir vai receber-te nos seus aposentos privados. Nestas circunstâncias, é costume fazer uma vénia depois da saudação. Limita-te a fazer o que me vires fazer - declarou. - Podes invocar as bênçãos de Alá para o emir, ou limitares-te a recordar-lhe que és um seu servo e que estás à sua disposição.

Atravessámos a comprida sala de recepções e Farouk explicou-me várias outras coisas que pensou que eu gostaria de saber a respeito do funcionamento da casa. Ao fundo da sala havia uma porta alta e estreita, que Farouk apontou. Empurrámo-la e entrámos num vestíbulo com uma porta baixa na outra extremidade. Era uma porta de pau-rosa, com a superfície cravejada com pregos de cabeça dourada dispostos num desenho fluido. Em frente dela havia um guarda com um machado encurvado na ponta de um comprido punho. Farouk pronunciou algumas palavras, o guarda virou-se, puxou por uma correia de cabedal e a porta abriu-se. O guerreiro chegou-se para um lado e tocou com a mão no coração quando Farouk passou por ele.

Baixámos as cabeças e passámos sob o baixo lintel da porta.

- Recorda-te... - sussurrou Farouk - que a tua vida está agora nas mãos dele.

Penetrámos numa câmara que se parecia mais com a tenda do emir do que com um palácio: tinha pilares altos e delgados como paus de tenda, que sustentavam um tecto alto, que terminava num bico, no centro. O tecto e as paredes estavam cobertos com panos vermelhos que oscilavam suavemente sob a brisa vinda de quatro vastas janelas que formavam uma ampla alcova onde o emir Sadiq se encontrava sentado com três mulheres e com uma grande bandeja de comida na sua frente. As janelas estavam cobertas com enormes biombos de madeira, perfurados, que deixavam entrar o ar e a luz. Pelas aberturas desses biombos intrincadamente esculpidos podia ver-se o tremeluzir da água de um pequeno lago, e ouvi o som de uma queda de água.

Quando aparecemos, as mulheres levantaram-se e foram-se embora sem uma palavra. Farouk fez uma vénia pela cintura e saudou o emir. Imitei o gesto, mas de uma maneira muito mais rígida.

- Entrem! Entrem! - gritou Sadiq. - Bem-vindos sejam, meus amigos, em nome de Alá e do seu Sagrado Profeta. Que a paz e a serenidade não vos abandonem enquanto forem meus hóspedes. Sentem-se e tomem o pequeno-almoço comigo. Insisto!

Ia protestar, afirmando que já comera, mas Farouk lançou-me uma olhadela de aviso e respondeu pelos dois.

- Partilhar o pão convosco, meu senhor Sadiq, será um profundo prazer.

O emir não se levantou mas abriu os braços num gesto de boas-vindas.

- Por favor, senta-te a meu lado, Aidan - disse, apontando para a almofada à sua direita. - Farouk... - prosseguiu - permite que me interponha entre ti e o teu estimável protegido.

- Não falta muito para que deixe de ser meu protegido - replicou o físico, satisfeito. - Dentro em pouco já irei a caminho da minha casa em Bagdade.

- Não há pressa, meu amigo - declarou Sadiq. - És bem-vindo e podes ficar durante todo o tempo que quiseres.

- Obrigado, meu senhor - retorquiu Farouk, inclinando ligeiramente a cabeça. - Os meus assuntos não são tão urgentes que necessite de me ir embora a correr. Com vossa autorização, ficarei até os meus serviços já não serem necessários.

Sadiq virou-se para mim e anunciou:

- É bom ver que já te consegues pôr de pé. Creio que te sentes melhor, não é verdade?

- E estou-vos muito grato - respondi. - Sem a vossa intervenção, já estaria morto. A minha vida pertence-vos, lorde Sadiq.

- Alá faz alguns homens de ferro, e outros de palha - replicou o emir com ligeireza. - Penso que foste feito do primeiro material. Agora, se me perdoares, já esgotei o pouco que sei de grego. Se concordares, Farouk irá transmitir-te as minhas palavras...

Acedi prontamente e recordei-me que Sadiq também desvalorizara a sua capacidade para falar grego quando das reuniões com o eparch. Observei-o enquanto amontoava comida em pequenas tigelas de latão e pensei que talvez o subtil emir falasse o grego com mais fluência e competência do que fazia crer. Tinha quase a certeza de que o compreendia muito melhor do que dava a entender e perguntei a mim mesmo qual seria o motivo para aquele fingimento.

Pousou a mão no meu braço e proferiu uma longa rajada de palavras na sua estranha fala, capaz de torcer a língua a qualquer um. Farouk mergulhou um quadrado de pão achatado numa taça que continha uma mistura branca e cremosa, escutou por instantes e disse:

- O emir afirma que está sinceramente satisfeito por teres sobrevivido à tua provação. Sabe que deves estar preocupado com a tua posição nesta casa, mas deseja que te sintas à-vontade quanto a isso. Posteriormente, quando te sentires mais forte, haverá muito tempo para dar a esse assunto toda a atenção que o mesmo merece. Contudo, até lá, serás considerado apenas como um hóspede sob o seu tecto.

- Agradeço-lhe - repliquei, falando por intermédio de Farouk. - A sua preocupação é louvável. Mais uma vez, fico em dívida para convosco, lorde Sadiq.

O emir pareceu satisfeito com a resposta ou, pelo menos, com a resposta que Farouk lhe transmitiu, que supus que fosse igual. O Sadiq olhava-me de uma maneira muito directa e reveladora de grande interesse enquanto comia azeitonas e cuspia discretamente os caroços para o punho fechado, acenando para si mesmo de tempos a tempos. Servi-me da comida que se encontrava na taça à minha frente mas sentia-me demasiado consciente do escrutínio do emir para poder saborear o que estava a comer.

- A última vez que nos encontrámos foi na companhia do eparch - declarou, sempre por intermédio de Farouk. - Disseram-me que morreu. Se isso é verdade... lamento muito.

- É verdade - respondi, com a voz a perder a entoação porque senti o ódio a avivar-se dentro de mim. - Fomos emboscados na estrada. O eparch Nicephorus morreu durante esse ataque em que foram chacinadas duzentas ou mais pessoas.

- O que vos aconteceu foi uma coisa vergonhosa - replicou o emir num tom grave. - Como penso que és um homem de confiança, peço-te que acredites quando afirmo que nada tive a ver com essa desprezível emboscada e que, tanto quanto eu saiba, também não se verificou o envolvimento de nenhuma outra tribo sarracena. Estou quase certo disso porque tratei de descobrir a verdade sobre o incidente assim que mo comunicaram. De qualquer modo, a verdade é sempre fugidia e ainda não a conheço toda.

Observou-me enquanto Farouk falava, medindo as minhas reacções. Como não respondi, acrescentou:

- Que nos podes dizer a respeito da emboscada?

- Viajávamos para Sebastea e fomos atacados por Sarracenos - declarei, com toda a franqueza. - Éramos mais de duzentos, incluindo os mercadores e a guarda do eparch. O inimigo caiu sobre nós enquanto dormíamos e só sobreviveram meia dúzia de pessoas.

Sadiq acenou com uma expressão grave e Farouk transmitiu-me a pergunta seguinte:

- O que te leva a pensar que eram sarracenos?

- Usavam trajes árabes - repliquei, obrigando a mente a voltar ao passado, até àquele dia fatídico. - É verdade que falavam uma língua que nunca tinha ouvido, mas não vi motivos para pensar que não fossem o que aparentavam ser.

- Agora, se me permitires a pergunta, por que razão iam a Sebastea?

- O eparch recebera uma carta do governador Honorius afirmando que o califa se preparava para nos trair e que não honraria a paz que havia sido acordada entre o emir Sadiq e o eparch.

Sadiq proferiu uma longa resposta, que Farouk traduziu:

- Essa carta era certamente uma mentira. Por razões que desconheço, o califa está mais do que desejoso de honrar o acordo de paz. Aguarda com antecipação, neste preciso momento, o dia em que ele e o Imperador se encontrarão frente-a-frente para uma troca de laços de boa fé. - Olhou-me com atenção, como se estivesse desejoso que acreditasse nas suas palavras. - Contudo, não é isso o que nos deve preocupar neste momento.

- O eparch Nicephorus não acreditou na carta... - expliquei, logo que as recordações começaram a surgir na minha cabeça - e pensou que se tratava de um estratagema.

- No entanto, decidiu empreender a viagem. Porque motivo achas que o fez, se considerava que a carta era um estratagema?

- Não sei dizer - repliquei. - Talvez pensasse que se tratava de um risco que não podia deixar de correr se a carta fosse verdadeira. Ou então... poderá ter pensado que a jornada a Sebastea seria a melhor maneira de demonstrar a falsidade da carta e de apanhar o traidor. Fosse qual fosse a razão, sei que desconfiava de uma traição, talvez não da parte do califa mas certamente da parte de alguém. O governador era seu amigo e o eparch percebeu, pela leitura da carta, que a mesma fora escrita pela mão de Honorius mas que as informações nela contidas era falsas.

Farouk transmitiu as minhas palavras. O emir ficou a meditar nelas durante algum tempo e perguntou:

- O eparch Nicephorus ter-te-à dito de quem desconfiava que pudesse estar a fomentar essa traição?

- Não, meu senhor, nunca mo disse - respondi - mas tenho razões para acreditar que se tratava do komes Nikos. Talvez se recorde dele, uma vez que era o assistente do eparch...

Os olhos de Sadiq semicerraram-se ao ouvir aquele nome.

- Sim, lembro-me dele. Uma quebra da confiança, vinda de um homem como esse, seria uma coisa muito grave... - declarou, por intermédio de Farouk, mas acrescentou um aviso: - e é também uma acusação muito grave da tua parte.

- Não a faço com ligeireza ou sem justa causa - retorqui. - Durante a emboscada foram chacinadas duzentas ou mais pessoas, e as poucas que sobreviveram estão agora sujeitas à escravatura. Só Nikos conseguiu escapar. Na verdade, fugiu do acampamento a cavalo instantes antes do começo do ataque. Por outro lado, se isso não fosse causa suficiente, posso afirmar que a jornada do eparch não foi a primeira, entre as organizadas por Nikos, a terminar em catástrofe.

O emir interrogou-se a esse respeito pelo que lhe dei uma breve explicação a respeito da peregrinação e narrei-lhe como os meus irmãos monges tinham sofrido tantas infelicidades ao agirem de acordo com os conselhos de Nikos. Quando terminei, Sadiq admitiu:

- Esses factos colocam a questão sob uma luz muito reveladora. Porém, por favor, diz-me: os teus irmãos sacerdotes ainda estão vivos?

- Já só restam três com vida - afirmei. - São escravos na mesma mina de prata a que fomos vendidos.

- O que também é altamente sugestivo - comentou o emir através do seu intérprete. - Começo a distinguir uma única mão nesta desastrosa série de acontecimentos... e creio que identificaste correctamente o proprietário dessa mão. - O seu sorriso foi rápido e astuto. - Também nós temos os nossos espiões, meu amigo - explicou - e o que me contaste confirma muito do que descobri depois de ter sabido da emboscada e da morte do eparch.

Levantou-se e bateu as palmas por duas vezes, rapidamente e com força. Houve um jovem que apareceu instantaneamente, fez uma vénia e aproximou-se. O emir falou com ele por momentos, após o que o jovem repetiu a vénia e se foi embora, sempre com um rosto impassível.

- O emir vai enviar um mensageiro ao califa - explicou-me Farouk.

O emir Sadiq voltou a sentar-se e pegou num jarro de latão que se encontrava assente em cima de um tripé, sobre a chama de uma vela. Serviu três pequenas taças de um líquido fumegante e entregou uma a cada um de nós. Levantou a sua própria taça, atirou a cabeça para trás e bebeu-a num único gole. Fiz o mesmo e descobri que se tratava de uma bebida doce, mas que não deixava de ser refrescante. A seguir, o emir escolheu um pequeno pão com sementes, partiu-o em três e deu uma parte a cada um. Comemos durante algum tempo, escutando a música da água que corria no exterior. Quando o emir voltou a dirigir-se-me, Farouk transmitiu-me as suas palavras deste modo:

- Estou consciente que sofreste muito por causa de assuntos com que nada tiveste a ver - declarou. - De qualquer modo, a paz é a preocupação de todos os homens, tal como a guerra é a maldição dos homens. Ultrapassaste com uma coragem admirável as provações que te atingiram, e mereces todos os nossos louvores.

"Quando tive notícia da emboscada comecei imediatamente em busca de sobreviventes, esperando poder encontrar pelo menos um que me pudesse explicar o que se passara. Terás de me perdoar por não te ter encontrado mais cedo. O califa tem muitos escravos e ninguém sabia a que mestre-de-escravos os sobreviventes, se é que existia algum, haviam sido vendidos. Podes estar certo de que a minha busca foi tão impiedosa como o ardente Sol do meio-dia. Garanto-te que, nos sítios por onde passei... nem sequer restaram sombras!

"Receio que a traição de que falava a carta do governador possa na verdade existir... mas não por parte do califa. É um facto que posso demonstrar de uma maneira muito convincente. Porém, por agora, aceita a minha garantia de que assim é. Por aquilo que me contaste, adicionado ao que já tínhamos descoberto, parece-me provável, se não completamente indiscutível, que o komes Nikos está a actuar em aliança com uma facção arménia no interior das fronteiras árabes. Quanto ao ataque, estou persuadido de que não houve envolvimento de sarracenos. Os homens que vos atacaram eram Arménios.

Suponho que a minha obtusidade e incompreensão eram óbvias. Sadiq, que estudava a minha reacção, acenou lentamente e falou rapidamente para Farouk, que me disse:

- O emir pede-te que aceites esta suposição... pelo menos por enquanto.

- Será como desejar, lorde Sadiq... - respondi - mas por que razão haviam esses tais Arménios de fazer uma coisa dessas? Não consigo entender os benefícios de uma tal traição.

- A resposta ainda não é clara... - admitiu o emir. - Mesmo assim, não tenho dúvidas de que em breve descobriremos as suas finalidades. As acções levadas a cabo na escuridão não podem continuar ocultas à luz do dia. Entretanto, é bom que saibas que estou a tomar medidas para alertar tanto o califa como o Imperador a respeito desta traição. Espero que o meu aviso não chegue demasiado tarde...

"E agora, meu amigo - concluiu amigavelmente - o teu estimado físico avisou-me que não te deveria fatigar excessivamente. Muito em breve, voltaremos a conversar outra vez.

Farouk começou a levantar-se mas permaneci sentado.

- Por favor, lorde Sadiq... - comecei, com firmeza - não fui o único sobrevivente da emboscada. Há outros bons amigos ainda escravizados nas minas.

- O seu destino, tal como o destino de todos os homens, permanece nas mãos de Alá - replicou o emir depois de Farouk lhe comunicar as minhas preocupações. - Contudo, por aquilo que Faysal me disse, creio poder afirmar que não haverá mais mortes e torturas nas minas. O superintendente era um cobarde e um estúpido que sem dúvida merecia o destino que acabou por ter. O novo superintendente não esquecerá tão depressa o exemplo do seu predecessor.

- E quando poderão ser libertados? - inquiri, pedindo desculpa pela rudeza da minha pergunta. Farouk franziu a testa mas transmitiu-a ao emir.

- Quanto à sua libertação... - declarou Sadiq - gostaria que compreendesses que se trata de uma questão muito complicada. Talvez demore algum tempo, mas verei o que poderemos fazer. Sê paciente, meu amigo. As coisas são como Alá as deseja.

A minha audiência com o emir Sadiq terminou ali. Queria fazer-lhe mais perguntas mas Farouk avisou-me com um olhar. Levantou-se rapidamente, implorou as bênçãos do dia para lorde Sadiq e saímos da sala. Uma vez no grande salão, o físico conduziu-me para longe dos aposentos do emir. Quando já nos encontrávamos muito para lá das suas portas, declarou:

- Vamos dar um pequeno passeio lá fora. O Sol ainda não está muito quente e faz-te bem ter um pouco de ar fresco nos pulmões.

- Obrigado, Farouk - repliquei, algo irritado - mas, se não te importas, prefiro regressar ao meu quarto. Estou cansado. - Na verdade, só queria ter uma oportunidade para pensar em tudo o que acabara de ouvir.

- Por favor... - insistiu o físico. - Talvez possa dizer-te algo para teu benefício... - Acenou lentamente quando me viu ceder, segurou-me por um braço e guiou-me. - Vem, vou mostrar-te a jóia do palácio... É um verdadeiro encanto para os ouvidos e para os olhos!

 

Atravessámos o espaçoso salão, passámos por uma alta porta encurvada e entrámos noutro mundo. Verde e sombrio, com abundância de sombras, o jardim do emir era um paraíso de frescura no meio da opressão do calor e da poeira que ficavam para lá dos altos muros. Havia macacos e papagaios a saltitar de um lado para o outro por entre os ramos mais altos das copas folhosas. A água brilhava e cantava no meio das sombras, escorria por entre canais semelhantes a riachos e acumulava-se em lagos cintilantes escondidos por baixo de palmeiras de folhas recortadas e de trepadeiras floridas. O cântico líquido da água a correr brincava ao de leve nos nossos ouvidos, num murmúrio que nos recordava a paz e a tranquilidade. Os trilhos eram muitos e entrelaçados, marcados com pedras achatadas que permitiam vaguear preguiçosamente em volta de um grande lago dominado pelos imponentes cisnes que deslizavam serenamente pela água franzida pela brisa.

Farouk conduziu-nos ao longo de um primeiro trilho, e de um segundo, dando voltas ao acaso até estarmos bem longe do recinto do palácio e de possíveis ouvidos indiscretos. Encaminhou-se para um caramanchão sombrio e instalou-se num banco de pedra, oferecendo-me o lugar a seu lado.

- Conversemos um pouco - sugeriu - antes de prosseguirmos com o nosso passeio.

O pequeno exercício daquela manhã quase me deixara exausto e fiquei grato pelo descanso.

- É um jardim magnífico - comentei, enquanto me instalava no banco baixo.

- O emir é um homem de muitos talentos... - declarou Farouk - e a arquitectura não é o menor entre eles. Este palácio foi construído de acordo com os planos que desenhou com a sua própria mão, incluindo o jardim. As plantas e árvores vindas de todos os cantos do império persa encontraram aqui o seu lar. É uma obra de arte viva.

Olhou em volta, apreciando as qualidades do jardim, muitas das quais estariam, sem qualquer espécie de dúvida, ocultas para os meus olhos inexperientes. Passado um instante, a sua boca começou a formar uma palavra mas hesitou e abandonou-a. Ficámos sentados em silêncio durante um bocado, antes de dizer:

- Na minha opinião, os caminhos da vida raramente seguem a direito. Contorcem-se e descrevem viragens bruscas, quase sempre inesperadamente.

Como aquilo não parecia requerer nenhum comentário da minha parte, não o fiz. O bálsamo do jardim penetrava-me lentamente enquanto permanecia sentado nas suas sombras mosqueadas. Momentos depois, Farouk continuou:

- Vivemos em tempos muito difíceis, meu amigo...

- É verdade - repliquei.

- Tal como o emir sugeriu, e com toda a razão, suportaste muito por uma causa de que nadas sabes. Desejas uma explicação e não há dúvida de que a mereces. - Não me deu uma oportunidade de comentar a afirmação e prosseguiu imediatamente: - Contudo, tens de compreender que lorde Sadiq não pode, de momento, fornecer-te a explicação que desejas. Estou certo que tratará disso logo que tenha a liberdade de o fazer. Até lá... talvez me permitas prestar-te um pequeno serviço?

As suas palavras eram cuidadosamente escolhidas e talvez um pouco tortuosas, mas despertaram-me a curiosidade.

- Sem dúvida! - repliquei, magnânimo. - Continua, por favor!

- Acontece que o nosso grande califa al'Mutamid também é, tal como o emir, um homem de muitos talentos. As suas acções são uma lenda, acredita! Mesmo assim, no fim de contas, continua a ser humano... e acho que tens de concordar que é muito difícil que um homem com as mais variadas ocupações consiga ser excelente em todas elas.

- Um tal homem é muito raro... - admiti, uma vez que Farouk parecia querer certificar-se de que eu entendia o que me estava a dizer. Contudo, continuava a sentir-me intrigado com o facto dele continuar a falar como se debitasse um discurso formal.

- Infelizmente, Al’Mutamid talvez não seja tão raro como o seu povo Pensa...

- Compreendo. Suponho que algumas pessoas poderão ter dificuldades em aceitar essas limitações humanas... - arrisquei-me a afirmar, adoptando o tom de Farouk - e tais homens até poderão confundir a mera menção a uma fraqueza como sendo uma espécie de traição, por exemplo.

- Ou pior! - afirmou Farouk rapidamente. - O teu intelecto, tão directo como uma seta e igualmente veloz, acertou em cheio no cerne da questão!

- Coisas como essas também não são desconhecidas na terra onde nasci - disse-lhe. - Onde os reis governam... é sabido que os homens menos importantes necessitam de cautelas constantes. Um senhor verdadeiramente benevolente seria uma das grandes maravilhas do mundo!

- Precisamente! - exclamou Farouk. - O nosso al'Mutamid é um poeta dotado e a sua caligrafia ultrapassa, de longe, tudo o que se tem visto nos últimos cem anos! Ou talvez até duzentos! Para além disso, as suas discussões sobre temas teológicos são altamente afamadas em todo o lado.

- Fez uma pausa, desejando que o entendesse.

- Como é natural... - admiti - um homem com tantos interesses poderá ter dificuldades para manter o mesmo nível de excelência no que se refere à resolução de assuntos mais mundanos... Por necessidade, algumas das suas iniciativas prosperarão enquanto outras murcharão.

- Infelizmente, as coisas são mesmo assim... - concordou Farouk.

- De qualquer modo, Deus é bom. O nosso califa foi abençoado com um irmão que considerou seu dever suportar aqueles assuntos de estado a que, por necessidade, o nosso atarefado califa não pode dedicar-se pessoalmente.

- Parece-me um esplêndido arranjo - comentei - que permite a esses dois homens dedicarem-se de corpo e alma às realizações para que foram talhados!

- Por Alá! - exclamou Farouk. - Abarcaste a verdade em toda a sua inteireza!

- Mesmo assim, não vejo motivo para preocupações por parte do emir Sadiq, uma vez que esse arranjo lhe permite expor os correspondentes assuntos a cada um dos homens, poupando ralações inúteis ao outro...

- Infelizmente... - retorquiu Farouk - por vezes, a vida não é assim tão simples. Sabes, embora se trate do irmão do califa, Abu Ahmad não está autorizado a deter a autoridade que, de tempos a tempos, tem necessariamente de assumir.

- Ah, sim, compreendo! A posição de Abu pode ser muito delicada...

- O emir Sadiq é o último de uma longa e ilustre linhagem de príncipes sarracenos e está comprometido, desde o seu nascimento, a servir o califa e apenas o califa. A sua lealdade tem de estar isenta, para todo o sempre, da mínima sugestão de suspeita...

- Junto do califa, até a mais insignificante palavra de dúvida quanto à possibilidade de uma lealdade dividida por parte do emir Sadiq... significaria uma morte tão certa como é certo que a noite se segue ao dia...

- E seria assim tão rápida...? - murmurei.

- Ah, sim... - confirmou Farouk - mas não tão rápida que não lhe dessem tempo para testemunhar, com os seus próprios olhos, as sangrentas execuções das mulheres e dos filhos, bem como de todos os membros da sua casa... antes de ser empalado e da sua cabeça ser cortada com uma lâmina sem gume.

- A lealdade é uma virtude sempre escassa... - comentei.

- Como és um estrangeiro... - prosseguiu Farouk - não tens a mínima ideia sobre o que sofremos sob o domínio dos califas loucos dos últimos anos. Podia contar-te histórias capazes de te provocarem pesadelos. Acredita, Al’Mutamid deve poder continuar a escrever a sua poesia... para bem dos interesses de toda a gente!

- Acredito, Farouk.

- Como és um estrangeiro... - repetiu o físico - também não podes saber que teve lugar uma feia rebelião, que abalou o domínio do califa até aos próprios alicerces. Neste preciso momento, Abu Ahmad e os exércitos do califa estão envolvidos numa guerra terrível, em Basrah, no extremo sul. Penso que o príncipe Abu acabará eventualmente por extinguir as chamas da rebelião... mas as forças rebeldes, por enquanto, mostram-se cada vez mais fortes, mais assanhadas e brutais. Os ataques tornam-se progressivamente mais incomodativos. Morreram mais de trinta mil num único incidente. Os rebeldes precipitaram-se para a cidade ao meio-dia e chacinaram as pessoas durante as orações. Nas mosqs, o sangue do fiéis subiu até à altura dos tornozelos. - Farouk fez uma pausa e a tristeza levou-o a abanar a cabeça para um lado e para o outro. - Foi uma tragédia chocante... e apenas uma entre muitas. Esta guerra é como uma doença que tem de seguir o seu curso... e receio que piore antes de melhorar.

Compreendo... - respondi, lentamente. Na verdade, apercebia-me muito bem do que Farouk me estava a dizer. O califa era pouco mais do que um preguiçoso incompetente, que se contentava em passar o seu tempo a escrever poesia e a discutir teologia, deixando o irmão Abu a governar em seu lugar. A rebelião no sul ocupava agora o exército do califa e era por isso que a paz com o Imperador de Bizâncio se tornara tão im-Portante para os Sarracenos. Perguntei a mim mesmo: se os Bizantinos estivessem a par daqueles factos... Basil continuaria satisfeito com o tratado de paz?

- Talvez... - sugeri, virando a minha mente para outro assunto - me possas dizer o que pensas desses arménios. Nada sei a seu respeito e as minhas opiniões podem estar enevoadas por acontecimentos recentes.

- Ah! - replicou Farouk, olhando em volta rapidamente. - Para isso, precisava de reunir os meus pensamentos. - Vamos, vou levar-te de volta ao teu quarto. - Levantou-se e começámos a caminhar por outro trilho. - Não é segredo... - começou, quando já estávamos a andar - que os Arménios vieram ter connosco em busca de refúgio contra as maléficas perseguições praticadas sobre eles por pouco esclarecidos imperadores do Ocidente, refúgio esse que os senhores árabes ficaram muito felizes por garantir uma vez que os Arménios nada mais pediam para além de serem deixados em paz para praticarem a sua religião peculiar. Em troca da tolerância e da segurança que lhes era concedida, juraram que os inimigos do califa seriam os seus inimigos, e que combateriam ombro a ombro com os irmãos sarracenos. De facto, foi assim que procederam desde esses tempos...

"Contudo, em tempos recentes, começaram a ficar... Bom, digamos que descontentes... - os olhos de Farouk examinaram as sombras mais próximas - e sugeriram que já não consideravam a protecção do califa como uma compensação adequada pelos seus esforços...

- Talvez pensem que um tratado de paz entre os Sarracenos e os Bizantinos pode ameaçar a segurança de que gozaram durante tanto tempo...

- Mais uma vez, meu amigo... - declarou Farouk, sorrindo e acenando - captaste a questão com uma admirável brevidade e concisão. Sim, receiam que essa paz renove as hostilidades contra eles.

Senti-me invadido por uma sensação de receio, não obstante todos os sorrisos do físico. Compreendi que, para alguém que desejasse contrariar os planos tanto do Imperador como do califa, o ataque fora um verdadeiro golpe de mestre: a emboscada ao enviado do Imperador, em conjunto com o boato de que os Sarracenos não cumpririam o acordo de paz, podiam acabar de uma vez para sempre com as esperanças de paz entre dois impérios que se guerreavam há muito.

Contudo, se a verdadeira fonte da traição pudesse vir a ser revelada - e era quase certo que Nikos se encontrava profundamente envolvido - então o frágil plano de paz ainda podia ser salvo.

Porém, quem detinha o poder necessário para concretizar esse feito?

O califa, é claro, e talvez também o emir, podiam acabar por expor a traição agora que estavam armados com as informações que lhes fornecera.

De qualquer modo, pensei, com algum alívio, tratava-se de algo com que eu nada tinha a ver.

- Agradeço-te... - disse - por me falares com tanta franqueza a respeito desses assuntos. Porém, e perdoa-me se faço a pergunta com demasiada rudeza... por que foi que me contaste essas coisas?

- Os homens em posições de influência têm frequentemente de tomar decisões importantes - retorquiu, com suavidade. - As melhores decisões são as que têm origem na verdadeira compreensão. Por outro lado, como já te disse, acho que mereces uma explicação aprofundada.

- Mais uma vez, prestaste um valioso serviço ao teu paciente. Contudo, penso que devo concentrar os poucos recursos e capacidades de que disponho para a libertação dos meus amigos e irmãos que continuam nas minas como escravos.

- É uma ambição de grande mérito, sem dúvida - confirmou Farouk - e louvo-te por isso. De qualquer modo... - deixou de andar e virou-se para mim - acho que devo avisar-te que um tal caminho, se o seguires, irá estar repleto de dificuldades. O emir Sadiq já as deixou implícitas, e tem razão. Mesmo assim fez-te uma promessa... e na verdade não consigo imaginar um bem mais valioso do que esse.

- Por favor, não me consideres um ingrato... - repliquei - mas a minha ignorância impede-me de compreender a natureza das dificuldades de que falas.

- O principal obstáculo, segundo creio, encontra-se no modo que Faysal utilizou para te libertar.

- Matou o superintendente...

- Foi o que ouvi dizer. - Retomou a marcha e descobri que estávamos novamente a caminho do palácio. - Como é natural, esses métodos extremos, mesmo que justificados, têm frequentemente tendência para complicar os assuntos muito mais do que é possível imaginar na altura.

Aceitei o que Farouk me disse mas começava a ficar farto de ouvir toda a gente a dizer que vivíamos em tempos difíceis e que precisava de ser paciente. Era sempre eu quem recebia tais conselhos e nunca me encontrava em posição de os dar. Essa era uma coisa que teria de ser alterada antes de me meter ao caminho.

O amável físico devolveu-me ao meu quarto, onde descansei durante as horas mais quentes do dia e só me levantei quando ouvi passos no corredor.

Kazimain entrou no quarto convencida de que eu deveria estar a dormir.

Sobressaltou-se quando levantou os olhos do tabuleiro que tinha nas mãos e me viu de pé ao lado da cama. Curiosamente, corou. As cores subiram-lhe às faces e à garganta e apressou-se a colocar o tabuleiro em cima do baixo tripé de madeira. A seguir virou-se e foi-se embora abruptamente, deixando-me com a clara impressão de que lhe estragara uma surpresa.

Chamei-a, pedindo-lhe para esperar, não obstante saber que não compreendia nada do que eu lhe dizia. Tal como esperava, não me prestou atenção. Fiquei a ouvir as suas passadas até se perderem à distância, dirigi-me à porta e espreitei para o exterior. Posso ter-me enganado, mas creio que lhe vi o rosto - apenas um dos lados da cara - no extremo do corredor, a espreitar na esquina... mas desapareceu logo que saí do quarto.

Sentei-me na cama, comi parte da fruta do tabuleiro e bebi o líquido doce da taça dourada enquanto meditava no possível significado de um comportamento tão estranho. Estava ocupado nessa tarefa quando voltei a ouvir passos no corredor. Dessa vez fiquei sentado, à espera que Kazimain entrasse quando quisesse. Contudo, quem apareceu não foi Kazimain mas sim Faysal, que trazia consigo um jovem delgado com cabelos curtos e encaracolados e grandes olhos tristes. O jovem envergava umas simples calças brancas e uma túnica sem mangas. Estava descalço e tinha o pé direito tatuado com uma estranha marca azul.

Faysal saudou-me com respeito e comentou a minha recuperação. A seguir apresentou-me o jovem de pés descalços, dizendo:

- Este é o Mahmoud. Vai ser o teu professor. - Ao ver o meu olhar interrogativo, explicou: - O nobre Sadiq pensa que és um homem inteligente. Para além disso, o emir considera que acederás mais facilmente à devida posição na sua casa logo que consigas dominar as tuas próprias palavras. Para isso mesmo, decidiu que a partir de agora terás de falar como um homem civilizado.

- O emir é muito amável... - repliquei, sentindo o coração a cair-me aos pés ante a perspectiva de ter de aprender mais uma língua.

- Alegra-te, meu amigo - continuou Faysal. - Mahmoud é um mestre de muitas línguas e em breve te porá a falar como um verdadeiro filho do deserto.

- Mais uma vez... - repliquei, com muito pouco entusiasmo - estou em dívida para com o emir e ficarei ansioso por começar já amanhã.

- O dia ainda não está tão avançado que necessites de adiar uma tal satisfação - contrapôs Faysal. - Esta é a hora mais propícia para um novo começo.

- Como queiras - declarei, acedendo à sugestão de Faysal. Virei-me para o jovem e indiquei-lhe as almofadas dispersas pelo chão. - Por favor.

Mahmoud fez uma pequena vénia pela cintura e sentou-se numa almofada, cruzando as pernas e pousando as mãos nos joelhos.

- É uma honra poder instruir-te, A'dan - disse-me, num grego cantado. - A minha mãe era de Tessalónica, pelo que tenho uma afinidade para as falas desde as minhas mais antigas recordações. Penso que prosperaremos em conjunto. - Esperou que me instalasse numa almofada e declarou: - Vamos começar.

Mahmoud começou por dizer as letras do alfabeto grego, interpondo-as com os seus equivalentes árabes. Faysal observou-nos por momentos e saiu do quarto com um sorriso de satisfação no rosto. Assim começou a minha longa e árdua luta para dominar o que deve ser a mais insidiosa língua do mundo. Maravilhosamente fluida e subtil, é no entanto extremamente difícil de dominar para os que não nasceram nela.

Talvez desesperasse de alguma vez a conseguir aprender mas concluí, desde o primeiro momento, que se falasse o arábico teria muito mais probabilidades de salvar os meus amigos e de me vingar de Nikos. Por isso, foi por causa de Gunnar e Dugal, e também pela vingança, que dediquei todos os meus esforços à aprendizagem. Curiosamente, essa determinação permeou todo o meu ser e produziu um resultado inesperado, isto porque, enquanto lidava com a língua ao longo dos dias seguintes, comecei a sentir-me diferente dentro de mim mesmo. Foi uma sensação que cresceu na minha alma como um furúnculo... e acabou por rebentar repentinamente. Lembro-me do momento preciso em que tal aconteceu. Encontrava-me de pé, no telhado, vendo o Sol a desaparecer e a deixar para trás mais um dia quente e cansativo. Observava os abafados tons vermelhos e cor de alfazema do céu que escurecia a caminho da noite e pensei, de repente: Nunca mais voltarei a ser um escravo.

A ideia chocou-me com o seu tremendo poder. Instantaneamente, como se um vaso há muito selado se tivesse estilhaçado e derramado o seu conteúdo para o chão, os meus pensamentos espalharam-se por todo o lado. Fora uma relutante vítima do destino durante demasiado tempo. Aceitara mansamente - também há demasiado tempo -, tudo aquilo que °s detentores da autoridade se tinham dignado oferecer-me, como se fosse esse o meu destino. Fora como uma marioneta manobrada pelas circunstâncias, uma pena soprada para aqui e para acolá pelo vento, uma folha a flutuar nas vagas dos acontecimentos. Porém, tudo isso ia acabar.

Serei livre, pensei. Posso continuar a ser governado por homens, mas serei o meu próprio amo. Agirei e não serei manobrado. A partir deste sou um novo homem e farei o que quiser.

E que queria eu? Queria ver os meus amigos libertos, é claro, e queria ver Nikos morto... ou posto no lugar que os meus amigos ocupavam naquele momento. Mas... como consegui-lo? A resposta não me surgiu imediatamente. Na verdade, precisei de bastante tempo para descobrir como o concretizar. Porém, finalmente, visionei um esboço das minhas ambições e estas tomaram uma forma muito mais estranha do que poderia ter imaginado na altura.

Entretanto, para poder "falar como um homem civilizado", tal como dissera Faysal, redobrei os meus esforços na aprendizagem da língua. Contudo, sob esse aspecto, não sofri sozinho. O paciente Mahmoud manteve-se sempre a meu lado, acompanhando-me através das minhas inúmeras falhas, confusões, mal-entendidos e erros, sem nunca deixar de louvar os meus fracos progressos e de corrigir os meus lapsos. Sob o seu ponto de vista, não deve ter sido fácil ver-se obrigado a sentar-se junto de mim dia após dia, por vezes sujeito aos amargos desapontamentos provocados pela cabeça dura do aluno. Também não foi fácil para mim e nem sequer me seria possível contar o número de vezes em que quase desisti, ofegando de frustração ante a dificuldade de conseguir dar algum sentido às minhas palavras.

- É para teu próprio bem, Aidan - dizia-me Mahmoud com toda a gentileza, antes de acrescentar: - É a vontade do emir. - Depois, quando me recompunha um pouco, voltávamos ao princípio.

O meu principal e único consolo ao longo dessa interminável provação era a Kazimain. Continuava a levar-me as refeições todas as manhãs e noites porque o emir, como eu ainda não conseguia falar suficientemente bem para me sentar à sua mesa, decidira que devia comer sozinho, no meu quarto. Acabei por concluir que não se tratava de um castigo, uma vez que tratava os filhos da mesma maneira, facto que descobri algum tempo depois de Farouk se ir embora declarando que já me encontrava suficientemente recuperado para ser deixado em paz. Uma noite, quando Kazimain me levou a comida, tentei utilizar as minhas fracas capacidades linguísticas para falar com ela.

- Os dias estão a ficar mais curtos - comentei suavemente.

- Sim - concordou, baixando os olhos. - lorde Sadiq regressará em breve e começarás a tomar as tuas refeições na mesa do emir. Nunca mais voltarás a ver a Kazimain.

- Ah, sim? - respondi, pois era a primeira vez que ouvia falar naquilo.

Acenou, com a cabeça sempre dobrada sobre o trabalho.

- Se o facto de falar o árabe me impedir de te ver... então fingirei que não o sei falar.

Levantou os olhos, horrorizada.

- Não deves fazê-lo! - avisou-me. - lorde Sadiq não iria ficar satisfeito!

- Sim, mas não quero que te vás embora. Gosto de te ver.

Não olhou para mim, pousou o tabuleiro de comida no tripé e virou-se rapidamente, pronta para sair do quarto.

- Espera - disse-lhe. - Fica!

Kazimain hesitou. Depois, inesperadamente, endireitou-se e voltou para trás.

- Sou uma tua serva - declarou. - Estou às tuas ordens. A resposta, se a compreendi correctamente, surpreendeu-me.

- É aborrecido ter de comer as refeições sozinho. Fica e conversa comigo. Será bom para mim poder falar com alguém que não o Mahmoud.

- Muito bem... - concordou - se é isso o que desejas.

- É, sim... - Sentei-me numa almofada ao lado o tabuleiro e fiz-lhe sinal para que me acompanhasse na refeição.

- Não é permitido - declarou - mas sentar-me-ei enquanto comes. - pegou numa almofada, deslocou-a para mais longe e sentou-se. - De que queres falar?

- Fala-me da... - não consegui encontrar palavra que queria e acrescentei: - ... Kazimain. Fala-me dela.

- É uma história que se conta rapidamente - afirmou. - A tua serva Kazimain pertence à família de lorde Sadiq. A minha mãe era irmã do emir, uma das quatro irmãs. Morreu de febre há oito anos.

- Lamento muito - respondi. - E o teu pai?

- O meu pai era um homem muito rico, que possuía muitas oliveiras e três navios. Quando a minha mãe morreu, ficou muito infeliz e perdeu todo o interesse pelos negócios. Uma noite, como não apareceu para a refeição, os servos foram procurá-lo e encontraram-no no quarto. Estava morto... - entoou, sem emoções. - Na cidade dizem que morreu de um coração ferido.

Embora não compreendesse tudo o que me dizia, captei a essência da sua história e achei-a fascinante. Como não tinha palavras para expressar o meu interesse, limitei-me a perguntar:

- Que aconteceu a seguir?

- Como o emir era o mais velho dos irmãos, fui trazida para aqui, de acordo com os nossos costumes. - Fez uma pausa e acrescentou: - Aqui

estou e aqui ficarei... até que lorde Sadiq trate dos apropriados arranjos para o meu casamento.

A última frase foi proferida com uma muito leve sugestão de resignação, que compreendi bastante bem embora não tivesse entendido a palavra utilizada para descrever o casamento.

- E isso não te agrada? - perguntei.

- Agrada-me servir o meu senhor e obedecer à sua vontade - retorquiu calmamente, mas no entanto pressenti que a disposição da jovem se encontrava em agudo conflito com as suas palavras. Logo a seguir, lançou-me um olhar de apreciação tão directo e franco que vi na minha frente uma jovem mulher muito diferente da que conhecera anteriormente. - Falas bem - afirmou.

- Mahmoud é um professor tão excelente... - respondi - que faz com que o seu pobre aluno pareça muito melhor do que é. Estou demasiado consciente de tudo o que não sei e do que ainda tenho de aprender. Não me sentarei na mesa do emir tão depressa como pensas.

Kazimain levantou-se abruptamente.

- Então, voltarei amanhã à noite para que possas conversar comigo... se for essa a tua vontade.

- É esse... o meu desejo - disse-lhe.

Abandonou o quarto sem um som, deixando apenas o mais leve odor a jasmim a pairar no ar. Terminei a minha refeição e deitei-me, olhando para o céu nocturno e sussurrando o seu nome para as estrelas do sul.

 

Foi através de perguntas casuais feitas a Mahmoud que acabei por descobrir que, após toda uma série de adiamentos, lorde Sadiq desistira de esperar pelo muito prometido regresso de Abu e partira para o sul com uma companhia de guerreiros ou, conforme me informaram, com a sua rafiq, uma palavra que significa "companheiros."

Contudo, esses companheiros em particular não haviam sido escolhidos por causa da amizade mas sim devido a outras qualidades, tais como a lealdade, a coragem e a competência no manejo das armas.

Embora o meu jovem professor não soubesse o motivo da partida do emir, calculei que o facto estivesse relacionado com as informações que eu dera a Sadiq a respeito da morte traiçoeira do eparch e da traição ao tratado de paz. Abu continuava a lutar contra a rebelião no sul e fazia sentido que o emir desejasse reunir em conselho com o seu superior antes de tentar reparar a brecha na paz.

Entretanto, continuei a aprender tudo o que podia com Mahmoud, uma pessoa notavelmente inteligente cujos conhecimentos se estendiam muito para além das línguas para incluírem a religião, a ciência e a música. Sabia tocar vários instrumentos, conhecia muitas canções e compunha músicas que executava e cantava. Lia porções inteiras do Qur'an, o livro sagrado do Islão, e discutíamos o que lera.

Todavia, falávamos principalmente de ética, um tema de que Mahmoud era particularmente adepto e que os árabes haviam transformado numa arte sagrada. Para os fiéis árabes, por exemplo, a simples hospitalidade - os vulgares cuidados para com os visitantes que são de certo modo observados pela maioria dos povos - impunha enormes obrigações espirituais tanto para o anfitrião como para o hóspede e a sua transgressão implicava grandes perigos para a alma. A lista de proscrições, proibições, deveres e responsabilidades era infindável e todas as mais pequenas variações haviam sido analisadas em pormenor.

Quando as minhas forças regressaram e o dinamismo aumentou, as lições passaram a ser frequentemente conduzidas fora das muralhas do palácio. Mahmoud levou-me para a cidade, onde vagueámos pelas ruas e conversámos sobre o que víamos, o que me deu uma oportunidade para o interrogar a respeito das coisas que achava mais intrigantes no comportamento dos árabes. Como é óbvio, nunca nos faltavam temas para discussão.

Estranhamente, quanto mais o questionava menos compreendia. Cheguei a suspeitar que as minhas perguntas só serviam para expor o vasto abismo das diferenças entre as mentes ocidentais e orientais, abismo esse que não podia ser visto à distância. A vida que Mahmoud me revelou era estranha sob muitas centenas de aspectos diferentes e comecei a pensar que quaisquer similaridades entre o Oriente e o Ocidente eram puramente acidentais e não a afirmação de uma humanidade comum. Certas semelhanças ou afinidades de pensamento que julgara ter encontrado nas raças orientais eram provavelmente invenções minhas isto porque, depois de um escrutínio mais atento, essas similaridades imaginadas alteravam-se para lá de tudo o que me era possível reconhecer ou desapareciam completamente.

Todavia, levei muito tempo para chegar a essa conclusão, e não defendia esse ponto de vista quando vagueava pela cidade na companhia de Mahmoud. O destino parece ter-me condenado a chegar a conclusões tardias... e agora envergonho-me ao pensar nos sofrimentos que poderia ter evitado se as coisas fossem de outro modo. Contudo, se era um ignorante - oh, e era-o, não tenham dúvidas! - tratava-se pelo menos de uma ignorância inocente. Por favor, nunca se esqueçam disso.

As minhas primeiras impressões de Ja'fariya foram de uma imensa riqueza. O local era mais uma congregação de palácios - cada um deles mais aparatoso do que o anterior - do que uma verdadeira cidade. Fora erguida na margem do rio Tigre pelo califa al Mutawakkil para que pudesse fugir às multidões e à miséria de Samarra, que por sua vez fora construída pelo califa al Mutasin para que pudesse fugir às multidões e à miséria de Bagadade, a alguns dias de distância ao longo do rio. Samarra, à mera distância de um grito para sul da sua luxuosa vizinha, era maior e apenas um pouco menos extravagante. Excepto no que se referia ao facto de não abrigar os califas e os respectivos nobres, funcionava, sobre todos os outros aspectos, como o verdadeiro centro oficial de governo.

Era claro que os califas não se haviam poupado a despesas no que se referia às suas casas de prazer ou às obras que tinham considerado como capazes de lhes dar mais crédito junto dos homens ou de Alá. Por exemplo, a Grande Mesquita de Samarra fora concebida com a intenção expressa de aviltar todas as suas rivais. Por aquilo que Mahmoud me disse, reconheci que concretizara admiravelmente bem a finalidade do seu patrono. Durante um dos nossos passeios, o jovem conduziu-me até à mesquita.

- Repara! - gritou, levantando a mão para o edifício quando nos aproximávamos. - As muralhas que vês na tua frente têm oitocentos passos de comprimento e quinhentos de largura, e assentam em fundações com a espessura de dez homens colocados ombro a ombro. O cimo da muralha é sobrepujado por quarenta torres, e só o pátio interior pode conter cem mil fiéis, enquanto outros cinquenta mil rezam no interior! O minarete é único em todo o mundo. Vem, A'dan, vou mostrar-te!

Atravessámos uma grande porta de madeira instalada numa outra ainda maior, que era apenas um dos batentes de um portão verdadeiramente gigantesco. Deparei com dois homens de turbantes brancos logo no interior da porta, envergando compridos trajes brancos e cintos feitos com faixas vermelhas que lhes davam muitas voltas à cintura, e nos quais tinham enfiado as curiosas espadas finas e curvas dos árabes. Observaram-nos com um ar impassível e deixaram-nos entrar sem proferirem uma palavra.

- Desde que rebentou uma rebelião... - sussurrou Mahmoud enquanto nos afastávamos rapidamente - as mesquitas passaram a estar sempre guardadas.

Conduziu-me para o imenso pátio interior, uma praça vasta e virtualmente vazia no interior de muralhas encimadas por muitas torres que rodeavam apenas o salão das orações e um minarete que, tal como me dissera, era sem dúvida excepcional.

- O califa era extraordinariamente apreciador de antigos artefactos babilónicos - informou-me Mahmoud. Apontou os degraus em espiral no exterior da torre de orações e prosseguiu: - Al Mutasim copiou este desenho da torre a partir das ruínas dos zigurates, muito abundantes no sul. - Mahmoud fitou o alto minarete com uma expressão de admiração e acrescentou, num tom que não deixava dúvidas quanto à loucura do califa: - Costumava subir ao topo da torre montado no dorso de um burro branco... e mantinha toda uma manada desses burros, que só eram utilizados para esse fim...

Virámos as costas ao minarete e caminhámos para o baixo tanque de pedra que se encontrava no centro do pátio. O tanque, embora fosse pouco profundo, era suficientemente grande para poder conter toda a população de Ja'fariya e encontrava-se cheio de água que remoinhava em volta do rebordo de pedra onde as pessoas lavavam as mãos e os pés antes de entrarem no salão de orações.

- O tanque - explicou Mahmoud, mergulhando as mãos na água a correr - é continuamente renovado com água fresca vinda do rio de modo a que esta esteja sempre a correr. As abluções são sagradas para o Islão e as águas paradas são impuras. É por isso mesmo que a água tem de ser renovada.

Havia uma grande plataforma circular perto do tanque, com um espigão de bronze a projectar-se da sua superfície. Embora a sua proeminência sugerisse alguma importância, não percebi para que poderia servir um objecto tão maciço.

- É o Divisor das Horas... - disse Mahmoud quando lhe perguntei o que era aquilo. - Vou mostrar-te.

Subimos para a plataforma e verifiquei que a superfície da mesma era uniformemente plana e estava coberta com um espantoso conjunto de linhas, tanto direitas como curvas, que haviam sido gravadas na pedra.

- A luz do céu bate no marcador... - Mahmoud tocou no espigão de bronze - e a sua sombra cai sobre a linha... - declarou, apontando para uma das muitas linhas. - Como o Sol se move, a sombra também o faz, dividindo as horas do dia. É graças a isto que o muezzin sabe qual é o momento apropriado para subir ao minarete para fazer o apelo à oração.

- Um relógio de sol... - murmurei. Já tinha ouvido falar neles mas nunca vira nenhum, nem sequer em Constantinopla. Os monges cristãos dos climas ensolarados poderiam tirar bom proveito de um tal instrumento para identificarem os momentos apropriados para as orações, espaçando-as regularmente ao longo do dia tanto de Verão como de Inverno. Contudo, reflecti, já não era um monge e não tinha qualquer interesse na resolução dos problemas das abadias e da sua rotina diária.

- Vem, vou levar-te ao salão de orações.

- É permitido? - Ainda considerava que a complicada variedade de proibições e autorizações era completamente confusa, e que tornava impossível adivinhar o que era permitido ou negado.

- Com certeza! - garantiu-me Mahmoud. - Todos os homens são bem-vindos à casa das orações, quer sejam muçulmanos ou cristãos. No fim de contas, o Deus que escuta as nossas orações é o mesmo, não é verdade?

Mahmoud conduziu-me de volta ao tanque, onde lavámos as mãos e os pés, seguindo depois para o salão onde deparámos com mais guardas de turbantes brancos que nos olharam atentamente mas não fizeram qualquer movimento para nos impedir a passagem. Pousámos as nossas sandálias ao lado de muitas outras, sobre esteiras que tinham sido ali colocadas de propósito para esse fim. A entrada para o salão estava fechada não por um portão de madeira mas sim com um pesado pano verde com uma palavra árabe bordada a amarelo.

Mahmoud pegou no rebordo do pano e puxou-o para o lado, fazendo-me sinal para que entrasse. Passei por baixo do pano e descobri-me num espaço escuro e cavernoso, mas onde a escuridão era perfurada por feixes de luz azul vinda de pequenas janelas redondas abertas nas zonas mais altas da construção.

O ar estava frio e parado e podia ouvir um murmúrio de vozes semelhante ao zumbido dos insectos num pomar. O brilho do Sol no exterior era intenso e precisei de alguns momentos antes dos meus olhos se ajustarem e poderem ver convenientemente... e quando isso aconteceu serviu apenas para aumentar a sensação de me encontrar num bosque. Na minha frente estendiam-se filas e mais filas de delgados pilares, quais árvores esguias iluminadas por uma espécie de luz do luar.

Dei alguns passos hesitantes e senti-me como se estivesse a caminhar sobre almofadas. Olhei para baixo e vi que todo o vasto pavimento se encontrava coberto por tapetes - milhares deles - que se estendiam de parede a parede, tão espessos como os musgos no solo de uma floresta.

Em breve comecei a distinguir formas de pessoas ajoelhadas ou de pé, espalhadas por aqui e acolá. Um parapeito baixo, de madeira, semelhante à amurada de um navio, marcava uma espécie de fronteira à esquerda e à direita.

- Entra, entra... - incitou-me Mahmoud baixinho. - Só as mulheres devem ficar por trás do parapeito.

Na verdade, reparei que havia algumas mulheres na área que lhes estava reservada. Usavam xailes por cima das cabeças e ajoelhavam-se, muito encolhidas, como se quisessem desaparecer.

Mahmoud e eu avançámos mais para o interior do salão, na direcção do local onde, numa igreja cristã, se deveria encontrar o altar. Todavia, ali não havia altar nem qualquer outra espécie de mobiliário. A única característica que distinguia aquele sítio do resto do salão era um nicho vazio, o qiblah, conforme me explicou Mamoud.

- Quando ajoelhamos naquela direcção - disse, indicando o nicho - estamos com os nossos rostos virados para Meca, a Cidade Santa.

- E qual é o significado dessa cidade? - perguntei.

- É um local sagrado desde o começo dos tempos, o lugar da Ka'aba, a casa de Deus, construída pelo Profeta Ibrahim - replicou o meu professor. - Para os fiéis, Meca é o centro do mundo. É também o local de nascimento do Profeta Abençoado, que a paz seja com ele, e o local onde foi chamado e consagrado para o seu trabalho. Para além disso, é o ponto de destino da Hajj.

Nunca tinha ouvido aquela palavra e perguntei-lhe o que queria dizer. Mahmoud pensou durante alguns momentos antes de responder:

- A Hajj é uma jornada - declarou. - Porém, ao contrário das restantes jornadas empreendidas pelos homens, é simultaneamente física e espiritual. É uma jornada do corpo para bem da alma.

- Uma peregrinação... - sugeri.

- Talvez... - admitiu, de um modo ambíguo. - Para os fiéis, as coisas são assim: um homem começa imediatamente a preparar-se para a Hajj logo que atinge a maturidade. Esses preparativos podem levar anos, dependendo do homem e do local onde vive. Porém, um dia, põe os seus assuntos em ordem e parte para Meca. Quando chega leva a cabo os rituais sagrados da nossa fé: executa a Grande Hajj e a Pequena Hajj, bebe água do poço de Zamzam, faz sacrifícios na planície de Min, dá sete voltas em torno da Ka'aba, onde entra para beijar a Pedra-Negra Sagrada. Terá de fazer estas e outras coisas, tal como todos os outros fiéis, se quiser estar preparado para se apresentar perante Deus no Dia do Julgamento.

"É por isso - concluiu Mahmoud - que quando rezamos nos viramos para Meca por respeito para com esse lugar sagrado e para nos recordarmos da jornada que um dia teremos de fazer.

Continuámos a conversar sobre essas coisas, para a seguir regressarmos ao calor e ao sol do exterior o que, depois da fresca escuridão da cavernosa mesquita, foi como entrar num forno flamejante. Voltei a precisar de alguns momentos para que os meus olhos se ajustassem à luz... e descobri que alguém me levara as sandálias. Encarei o facto como sendo muito peculiar - um ladrão a praticar a sua nefesta arte à porta de um local de orações! - e comentei-o quando regressámos à rua.

- Porque ficas tão surpreendido? - interrogou-se Mahmoud. - No fim de contas, é assim que o mundo funciona, não é verdade? Os homens bons vão tratar dos seus assuntos com fé e boa vontade, enquanto os maus procuram apenas satisfazer os seus desejos básicos sem terem consideração nem pelos outros, nem por Deus.

- É verdade - concordei. - No entanto, não esperava ser roubado no interior do recinto sagrado.

Mahmoud riu-se da minha estupidez.

- Haverá um lugar melhor para roubar sandálias?

Caminhámos lentamente - e no meu caso, um pouco dolorosamente - de volta ao palácio do emir, parando de vez em quando para descansarmos nas sombras onde quer que as encontrássemos. Uma vez, quando nos encontrámos sentados sob uma árvore ao lado do caminho, um homem saiu de uma casa próxima para nos oferecer água de limão adoçada.

- Estás a ver? - perguntou Mahmoud depois de agradecer ao homem e de se despedir dele com uma bênção. - Há ladrões no templo e anjos nas ruas. Alá é completamente misterioso, não é verdade?

- Inescrutável - concordei amargamente, uma vez que tinha dores nos pés.

Mais tarde, naquela noite, quando Kazimain apareceu com a bandeja da comida, levou também um embrulho envolto em seda azul.

- O que é isto? - perguntei-lhe, quando pousou a bandeja no tripé e o embrulho nas minhas mãos.

- É um presente, Aidan... - replicou, ajoelhando-se ao lado da bandeja. Não sei o que me surpreendeu mais, se o inesperado presente, se o facto de se ter servido do meu nome.

Olhei para o tecido brilhante e fiquei sem saber o que dizer. Kazimain puxou uma das pontas da cobertura de seda.

- Tens de o abrir... - explicou - para veres o que lá está dentro.

- Não compreendo... - admiti, remexendo no tecido macio. Kazimain observou-me por instantes, a sorrir, quase radiante de satisfação. Estava mais bela do que jamais a vira, com os cabelos pretos a brilhar, os profundos olhos castanhos iluminados pela alegria e a suave pele cor de amêndoa corada pela excitação que sentia.

- É um presente - repetiu - e não há nada para compreender. - Dito aquilo, puxou pela ponta da seda para revelar um par de sandálias novas, de bom couro e bem feitas, muito melhores do que as que eu perdera na mesquita.

- Obrigado, Kazimain - murmurei, intrigado. - Como soubeste que me roubaram as sandálias?

Esboçou um sorriso astuto, tirando imenso prazer do meu espanto.

- Foi o Mahmoud quem to disse?

Abanou a cabeça com os lábios a estremecerem de gargalhadas reprimidas.

- Então, como soubeste?

- Estava lá - afirmou, rindo-se.

- Estavas... na mesquita? Não te vi!

- Oh, mas eu vi-te... - replicou, enquanto o seu sorriso ganhava uma qualidade misteriosa, como se estivesse a esconder um segredo. - Estava a rezar.

- E que pediste a Deus com as tuas rezas? - Fiz a pergunta apenas por fazer, sem sequer pensar. Sentia-me tão feliz com as suas gargalhadas e tão encantado com a sua presença quase luminosa que queria mantê-la a falar comigo.

Contudo, o sorriso da jovem desapareceu instantaneamente. Virou o rosto para o outro lado e pensei que a ofendera de alguma maneira.

- Kazimain... - disse-lhe, à pressa - perdoa-me. Não pretendia...

- Estava a rezar... - começou, virando-se para me enfrentar, o que me permitiu ver que tinha as faces e a garganta muito rosadas. Estava a corar! - Estava a rezar - murmurou - implorando a Alá que me mostrasse o homem com quem tenho de casar. - Falou com um tom solene mas os seus olhos ainda conservavam o brilho da excitação.

- E ele mostrou-to?

Kazimain acenou uma confirmação e olhou para baixo, para as mãos pousadas no colo.

- Mostrou... - respondeu, num tom muito mais baixo.

- E quem foi que viste?

- Rezei para que me mostrasse o homem com quem vou casar... - repetiu, ainda com a cabeça baixa. - Quando terminei, olhei para cima...

- levantou os olhos na direcção dos meus - ... e vi-te a ti, Aidan.

Nenhum de nós falou durante o tempo de três batimentos do coração. Os olhos de Kazimain mantinham-se firmemente fixos nos meus e não vi, no seu olhar, uma espécie qualquer de embaraço ou de incerteza. Confiara-me o seu segredo e estava a medir a minha reacção.

- Casa comigo, Kazimain... - As palavras saíram-me da boca antes de perceber o que estava a dizer. Estendi um braço e peguei-lhe na mão.

- Queres ser minha esposa?

- Quero, sim, Aidan... - replicou, numa aquiescência suave. O seu olhar não vacilou. Apertou-me a mão, como que para dar ênfase à resposta.

Ficámos sentados durante alguns momentos, embaraçados, a olhar um para o outro. Fizera-lhe a pergunta, ela respondera... e tudo terminara. Muito provavelmente já me dera a mesma resposta muitas vezes e eu já a poderia ter ouvido... se soubesse como a escutar.

De qualquer modo, nada daquilo me surpreendeu. Era como se a tivesse sido predestinada por uma força muito superior às nossas. Pela minha parte, sei que tive a sensação de que os acontecimentos avançavam rapidamente por uma estrada bem marcada, em direcção a um destino há muito definido. Era como se estivesse apenas a proferir as palavras que o destino me ordenara que dissesse. Pode não ter havido surpresa, mas também não houve medo ou alarme. As circunstâncias pareciam-me simultaneamente perfeitas e naturais... como se tivéssemos falado no assunto milhares de vezes e já soubéssemos o que o outro iria dizer.

- Kazimain... - murmurei, estendendo-me para ela.

Lançou-se imediatamente nos meus braços e senti o calor do seu abraço a encher-me com uma certeza inexprimível. Isto, pensei, é a única verdade que podemos conhecer na vida. No mundo não há certeza maior do que esta: um homem e uma mulher devem juntar-se no amor.

Beijámo-nos e o ardor do seu beijo tirou-me o fôlego. Devolvi-lhe a paixão com todo o fervor que possuía. Uma vida inteira de votos e de disciplina sentidos no fundo do coração preparara-me bem, porque foi com aquele beijo que selei, com toda a minha alma, o destino que se abria na minha frente enquanto abraçava um mistério envolto nas quentes e suaves carnes femininas. Agarrámo-nos àquele momento, sem pensarmos nem nos preocuparmos com o futuro, beijei-a e bebi o forte vinho do desejo.

Soube - no preciso momento em que nos tocámos -, que nunca desejara outra coisa em toda a minha vida. Todos os meus desejos obscuros pouco mais eram do que um copo de água ante o vasto oceano de anseios que sentia a invadirem-me. A minha cabeça rodopiava e os olhos enevoavam-se-me. Ardia por dentro, como se o sangue e os ossos se estivessem a consumir num fogo líquido.

Foi apenas mais tarde, depois dela se ter ido embora, que me apercebi das terríveis implicações do que acabara de fazer. Como era possível? Não tinha qualquer possibilidade de me casar com ela. Mesmo que desejasse fazê-lo - seria que o desejava? - iria o emir permiti-lo? Eu, um escravo com uma situação indeterminada na sua casa, não me encontrava em posição de casar com uma mulher da sua tribo. Para além disso era cristão e ela uma muçulmana. Impossível!

Decidi que teria de desfazer o que fizera. Amanhã, quando voltasse com a bandeja, explicar-lhe-ia que não era possível e que fizera mal em sugerir-lhe algo como um casamento. Fora apenas uma loucura momentânea e não estivera a pensar claramente. Sem dúvida que a jovem sentiria o mesmo e que iria concordar. Tínhamos ambos sido descuidados, talvez até confundidos. No fim de contas, fora apenas um pequeno lapso. Kazimain era inteligente. Kazimain era sensata. Não deixaria de ver até que ponto estávamos errados e como havíamos sido parvos ao pensarmos que seria possível concretizar uma tal união.

- Vai compreender - disse, para mim mesmo. - Tem de compreender.

 

Na manhã seguinte, quando Kazimain voltou a aparecer, fiquei espantado e perturbado ao ver que a decisão que tomara na noite anterior se desfazia e derretia como um torrão de areia varrido por uma onda do mar. Um único olhar para ela e o desejo que sentira durante o nosso beijo reacendeu-se instantaneamente, ainda mais brilhante e quente do que da primeira vez. Por outro lado, o que vi nos olhos negros de Kazimain quando caiu nos meus braços disse-me que ela sentia o mesmo.

Apertei-a a mim e respirei a sua perfumada essência até ao mais fundo dos pulmões, como se quisesse inalá-la para o meu próprio ser. Desejava apenas tê-la e agarrá-la para sempre. A força bruta desse sentimento atingiu-me com uma tal intensidade que me deixou fraco e foi apenas apertando-a ainda com mais força que consegui que os meus membros deixassem de tremer. Caí para trás, sobre a cama, e puxei-a para mim. Jazemos ali durante algum tempo, com os nossos corpos a vibrar de paixão. A jovem pousou a cabeça no meu peito e entrelaçou os braços em volta do meu corpo. Senti o seu peso delicado contra mim e maravilhei-me por poder ter existido durante tanto tempo sem ter conhecido aquele prazer tão simples e sem me deixar arrastar por ele em todos os momentos de todos os dias.

Podíamos ter ficado assim durante todo o dia - na realidade, pela minha parte, até toda a minha vida - mas o som de passos no exterior despertou-nos. Kazimain alisou rapidamente as roupas e adoptámos apressadamente as poses de quem estava muito simplesmente a conversar enquanto eu quebrava o jejum.

Peguei num bocado de pão, parti-o e comecei a comer, engolindo a Primeira dentada no momento em que Faysal entrava no quarto. Os seus olhos saltaram imediatamente para Kazimain, que despejava a água do jarro Para uma das taças.

- Saudações - declarou. - Vim dizer-te que lorde Sadiq está de regresso e que chegará a Ja'fariya dentro de dois dias.

- Saudações, Faysal, é bom ver-te outra vez. Por favor... - pedi-lhe - senta-te, come comigo e conta-me as notícias que nos trazes.

Sorriu ao ouvir-me falar tão bem o arábico.

- Será um prazer - disse, inclinando a cabeça. Instalou-se sobre uma almofada enquanto Kazimain lhe servia um pouco da água de limão adoçada para logo a seguir se endireitar, fazer uma pequena vénia de deferência e sair do quarto levando consigo o meu coração.

Faysal e eu comemos juntos enquanto ele me contava que o emir e Abu Ahmad tinham na verdade passado muitas horas em conselho, tentando decidir o que seria melhor fazer perante a traição do komes Nikos.

- Chegaram a uma decisão? - perguntei.

- Não me cabe a mim dizê-lo - replicou Faysal. - Contudo, penso que o meu senhor Sadiq irá mostrar-se muito ansioso por falar contigo logo que aqui chegar.

Conversámos sobre outras coisas, o calor e a poeira das viagens no deserto, as notáveis capacidades dos camelos para as mesmas e a interminável rebelião no sul. Ao mencionar a campanha de Abu, Faysal abanou a cabeça.

- As notícias não são boas, meu amigo... - afirmou. - A revolta transformou-se rapidamente numa guerra e as forças do califa não foram capazes de a conter tal como esperavam. Já há muitos mortos de ambos os lados mas os rebeldes aumentam de número enquanto as forças de Abu vão enfraquecendo.

Apesar de Faysal não o ter dito, apercebi-me de que, para os árabes, a paz com Bizâncio era agora mais importante do que nunca. A revolta constituía um tremendo peso para o califado e os árabes não podiam combater em duas guerras diferentes e em fronteiras tão distantes uma da outra, pois não teriam qualquer esperança de sobrevivência e muito menos de vitória. Compreendia muito bem as provações que estavam a enfrentar.

Depois de Faysal sair, sentei-me e meditei na curiosa oportunidade que aquela informação me dera. Veio-me à mente que me encontrava numa posição rara e privilegiada. Em toda Bizâncio talvez existisse apenas uma outra pessoa com os conhecimentos de que eu dispunha naquele momento, e essa pessoa era o traidor Nikos. Contudo, talvez nem sequer ele compreendesse perfeitamente até que ponto os árabes necessitavam do tratado de paz. De certeza que em Bizâncio ainda não havia ninguém que soubesse da traição de Nikos e das necessidades dos árabes. Era um conhecimento que me concedia poder. Todavia, teria de regressar a Constantinopla para o exercer... e esse era um pormenor que apresentava as suas próprias dificuldades.

Porém, pondo isso de lado, se conseguisse chegar junto do Imperador para o informar que um ataque aos sarracenos naquele preciso momento lhe devolveria numa única campanha tudo o que o Império fora perdendo ao longo dos anos sob os predadores árabes, Basil, o Macedónio, iria hesitar durante muito tempo? Esmagar um inimigo que atormentava o Império há várias gerações constituiria uma vitória demasiado doce para que alguém lhe pudesse resistir. A recompensa... bom, essa seria eu a defini-la. Porém, seria capaz de o fazer? Era capaz de trair o emir e o seu povo - precisamente aqueles que me tinham salvo a vida - apenas para satisfazer a minha sede de sangue?

Oh, era uma situação de poder... e até o conseguia sentir em mim. Contudo, onde há poder também há perigos logo ao virar da esquina... e não me podia deixar arrastar pela ilusão de que os Sarracenos iriam poupar a vida a alguém que podia destruí-los com uma só palavra. Teria de agir rapidamente para me proteger a mim mesmo.

Algum tempo depois, quando Mahmoud foi ter comigo, disse-lhe que não o queria acompanhar à cidade naquele dia.

- Em vez disso - pedi - quero que me fales dos costumes de casamento observados pelos árabes.

O seu sorriso foi rápido e a resposta não deixou de ser apropriadamente oblíqua. Lançou uma olhadela às minhas sandálias novas e perguntou:

- Esses conhecimentos poderão ter alguma aplicação prática para ti, meu amigo?

- Sou uma pessoa muito curiosa, como já deves saber, Mahmoud - retorqui.

- Então, vou esclarecer-te... - declarou, preparando-se para se sentar.

- Aqui não - intervim rapidamente. - Vamos lá para cima, para o jardim no telhado, e gozemos o dia antes que se torne demasiado quente.

Uma vez no telhado, conduzi-o ao longo dos percursos mais isolados Para que ninguém nos pudesse ouvir. Mahmoud começou a explicar-me Os costumes de casamento da sua raça enquanto caminhávamos sob a sombra das pequenas palmeiras com as folhas em leque e das trepadeiras em flor.

- O facto poderá surpreender-te - disse - mas não existe uma Prática comum que seja observada por todos os povos árabes. Como sabes, somos uma nação de tribos e cada tribo tem os seus ritos particulares no que se refere a esses assuntos.

- Então... tomemos a tribo do emir como exemplo.

- Muito bem - concordou. - O povo da tribo do emir, por exemplo, veio do sudoeste, onde ainda prevalecem costumes mais primitivos. Os ritos do casamento propriamente dito são extremamente simples: um homem e uma mulher prestam os seus votos perante os familiares e a mulher vai viver com o homem, para a casa deste. Aí, a consumação do casamento é celebrada da maneira habitual, a que se segue uma grande celebração. As duas famílias passam a estar unidas para sempre, união essa que é ainda mais aprofundada por uma troca de presentes.

- Que espécie de presentes? - interroguei-me.

- Presentes de toda a espécie - respondeu. - Variam muito, dependendo da riqueza das respectivas tribos: cavalos e camelos no caso dos ricos, para além de ouro e prata, ou então, se os jovens não dispõem de riquezas, podem limitar-se a trocar presentes simbólicos. - Fez uma pausa, olhando-me com um ar crítico. - Talvez te interesse saber que, até hoje, são muitas as tribos do deserto que ainda continuam agarradas à antiga crença de que só o chefe tem o direito de permitir ou recusar o casamento das mulheres da sua família. É por isso que um homem prudente começa sempre por procurar a aprovação do chefe da tribo. Por vezes consegue essa aprovação ainda antes de propor casamento à jovem. Outras vezes, essa autorização é concedida mesmo sem o consentimento da noiva... e as práticas são sempre as mesmas, quer o homem ainda não tenha uma esposa ou já tenha muitas.

- Compreendo...

- Por exemplo, se eu me encontrasse na situação... - prosseguiu, muito oportunamente - de desejar casar com uma mulher da tribo do emir, seria a este que teria de dirigir o pedido... e a satisfação desse pedido seria uma decisão inteiramente do próprio emir.

Já suspeitara que as coisas pudessem ser assim. Esse tipo de costumes não eram desconhecidos nas casas reais do Eire onde, segundo se dizia, certas rainhas de tempos antigos tinham mantido mais do que um marido.

- Sabes... - continuou Mahmoud - cada casamento constitui um laço não apenas entre marido e mulher, mas também entre as famílias e as tribos. O laço assim criado pode ser muito forte e sobreviver até para além da morte, e só pode ser quebrado pelos mais brutais actos de violência ou repúdio. A lei do Islão reconhece esses laços e considera-os simultaneamente santos e sagrados.

Fez uma pausa e olhou-me com curiosidade.

- E já que falamos no assunto - acrescentei - parti do princípio, como é natural, que tanto o marido como a esposa partilham uma única fé no Islão.

- Sim, é natural... - admitiu.

- No caso contrário... - prosseguiu, com toda a delicadeza - a união não seria possível. Alá determinou que é estritamente proibido casar fora da fé... e renunciar ao Islão é algo de impensável!

- Compreendo... - repliquei, e passei todo aquele dia a meditar sobre como poderia vir a conseguir a aprovação do emir. Ainda me encontrava mergulhado em profundos pensamentos quando Kazimain me levou a refeição da noite... e também muito mais do que isso.

- Sentes-te infeliz, meu amor... - disse. Pousou o tabuleiro e ajoelhou-se a seu lado.

- Tenho estado a pensar... - repliquei, inclinando-me para a frente para lhe acariciar a face com a mão. Permitiu que o fizesse por instantes e depois beijou-me a palma antes de se debruçar sobre o seu trabalho.

- É costume dizer-se... - respondeu, servindo a bebida para uma taça de prata - que demasiados pensamentos podem distrair um homem, e que a distracção o pode levar à ruína.

- Espero sinceramente que não... porque tenho estado a pensar no nosso casamento.

- E foi isso que te deixou infeliz? - perguntou, enquanto partia o pão.

- Não me sinto infeliz - insisti - mas falei com o Mahmoud, que me disse que preciso da aprovação do emir para poder casar contigo.

- Assim é... - afirmou, fazendo um pequeno movimento de concordância com o queixo. - Se quiseres casar comigo, terás de ir à presença do emir para lho implorares, de joelhos.

- Por ti, Kazimain, até rastejaria por cima de carvões ardentes... - repliquei - se isso me garantisse a aprovação do emir.

- Que certamente a irá dar - afirmou, sorridente.

- Quem me dera ter a certeza...

- Não foi o próprio lorde Sadiq quem disse que és um hóspede nesta casa? - perguntou. - A hospitalidade decreta que os pedidos de um hóspede não podem ser recusados. Tudo o que pedires te será concedido.

- Tudo? - repeti, interrogando-me. Seria possível que as regras da hospitalidade pudessem ser tão esticadas?

- De qualquer modo - continuou - não sou uma mulher sem recursos, que tenha de depender dos meus familiares para obter um dote. O meu pai era um homem rico...

- Sim, já o disseste.

- ... um homem rico e previdente que se preocupou com o futuro da filha. Possuo terras e riquezas por direito próprio, de que posso dispor como me apetecer. - Sorriu, num doce desafio. - O homem que casar comigo vai obter muito mais do que uma esposa.

- Kazimain, casa comigo - respondi, pegando-lhe na mão e beijando-lhe a palma.

- Já te disse que é o próprio Alá quem o deseja... - retorquiu, num tom perfeitamente impassível.

- Olha que não tenho nada para te oferecer - avisei-a.

- Tens-te a ti mesmo... - declarou - e basta isso para me satisfazer. - Começou a levantar-se e acrescentou: - Agora, tenho de ir...

- Tão depressa? Mas...

- Shhh... - sussurrou, pousando a ponta dos dedos nos meus lábios. - Não podemos ser descobertos. Se alguém desconfiar, poderão prejudicar-nos... - Levantou-se, apressou-se em direcção à porta, espreitou para o corredor e voltou a olhar para mim. - Virei ter contigo esta noite... - Fez uma pausa de provocação e acrescentou: - ... nos teus sonhos. - Beijou a ponta dos dedos, levantou a mão na minha direcção e desapareceu no corredor.

Comi a minha refeição sozinho e fiquei a ver o céu a escurecer em direcção ao crepúsculo enquanto escutava o cântico do muezzin que apelava às orações do fim da tarde. Aquele dia, pensei, correra-me bastante bem. Levantara-me cedo, com a firme intenção de pôr fim à nossa proposta de união... e agora desejava-a mais ardentemente do que nunca.

Amava a Kazimain, juro-o... mas não era o meu amor por ela que despertava ou alimentava os meus desejos. Que Cristo me perdoe mas, quando a tinha ali oferecendo-me a dádiva de si mesma, tudo o que eu via era uma maneira de cumprir a promessa que fizera aos meus amigos. A vingança era tudo o que me interessava. A pobre Kazimain era apenas um meio muito conveniente para poder alcançar essa vingança. O que alimentava a minha paixão era isso e não qualquer espécie de consideração por aquela alma bela e confiante. Confesso-o livremente para que possam compreender a espécie de homem em que me transformara.

Não sentia qualquer espécie de escrúpulos no que se referia aos votos do sacerdócio. Deus esquecera-me, e eu a ele. Essa parte da minha vida estava encerrada. No que me dizia respeito, fora Deus quem morrera em Bizâncio e não eu. Pois que assim fosse.

No dia seguinte preparei-me para o regresso do emir e pratiquei o que pretendia dizer-lhe. A Kazimain e eu só nos vimos uma vez e por pouco tempo. Afirmou que, para evitar suspeitas, arranjara outra pessoa para me levar as refeições. A seguir separámo-nos e passei uma noite inquieta, dando infindáveis voltas ao assunto na minha cabeça.

Lorde Sadiq regressou ao meio-dia, tal como se esperava, e a sua chegada mergulhou toda a casa numa azáfama de excitação. Mantive-me fora das vistas, observando a actividade a partir do jardim do telhado que para mim se tornara numa espécie de refúgio uma vez que, aparentemente, ninguém mais lá ia. Os cavalos da guarda pessoal estrondearam na rua, abrindo o caminho. Dois dos rafiq desmontaram e entraram para anunciar a chegada do senhor da casa, enquanto os restantes se alinhavam no exterior. Entretanto, servos, escravos, esposas e crianças corriam para a rua para lhe dar as boas-vindas. Gritaram-lhe saudações e agitaram quadrados de pano colorido logo que o viram aparecer.

Era fácil de ver, mesmo do meu poleiro no telhado, que o emir não estava bem-disposto. Saltou da sela sem uma palavra, fez uma vénia rígida às esposas e entrou rapidamente no palácio. Aquilo, pensei, era de mau agoiro para os meus planos. Na verdade não sabia o que lhe ia na cabeça para o deixar tão preocupado, mas era muito provável que o meu pedido não fosse recebido com satisfação.

Mesmo assim, não via outra solução. Podia esperar que a disposição do emir melhorasse mas isso dependia do que o preocupava e a espera talvez fosse em vão. Entretanto, corria o risco da minha posição como hóspede daquela casa se modificar de um momento para o outro. As minhas hipóteses eram muito melhores se agisse já, independentemente do resultado.

Preparei-me para o encontro... e soube que tinha chegado o momento logo que ouvi passos precipitados a subirem a escada para o telhado.

- Lorde Sadiq exige a tua presença - declarou o servo que tinha sido enviado à minha procura. - Deves vir imediatamente.

Inclinei a cabeça numa submissão ao pedido.

- Estou pronto - respondi. - Podes conduzir-me até junto dele.

O servo empertigou-se ao ouvir a minha resposta. Não era eu um escravo, tal como ele? Todavia, ensaiara bem as minhas maneiras e nunca mais voltaria a comportar-me como um escravo. Agora, o meu porte seria tão imperioso como o do próprio emir.

Mesmo assim, quando as portas se escancararam para a sala das recepções e tive um relance do emir sentado na sua grande cadeira com o rosto contorcido numa careta maldosa, toda a minha recém-descoberta desfaçatez me abandonou. Faysal encontrava-se por trás dele, com os braços cruzados sobre o peito e com uma expressão muito condizente com a do seu senhor. Aspirei o ar com força, cerrei os dentes e obriguei os pés a arrastarem-se para a frente. O servo apercebeu-se do meu desânimo e sorriu de troça. Esse facto irritou-me. Recorri ao que restava da minha coragem e avancei para o salão de recepções de um emir furioso como se eu fosse o próprio Sacro Imperador Romano.

Contudo, as primeiras palavras que saíram da boca do emir quase destruíram a minha determinação.

- Não me informaste que eras um espião do Imperador - acusou-me. - Devia ter permitido que te matassem. Sempre poupava algum trabalho.

Bateu as palmas com força e três dos seus guerreiros precipitaram-se para a frente, agarraram-me pelos braços e forçaram-me a ajoelhar. Logo de seguida aproximou-se outro guerreiro que empunhava um machado de lâmina curva.

- Então? - exigiu o emir. - Tens alguma coisa a dizer antes de morreres?

 

- Falarei... - respondi, procurando dar alguma força à minha voz - mas não será de joelhos que irei implorar pela minha vida. Exiges uma explicação, lorde Sadiq, e estou pronto a dá-la... mas permite-me que permaneça de pé como um homem.

Estas palavras surpreenderam o emir e creio que também lhe agradaram. Tal como muitos homens de poder e influência, respeitava a coragem e uma linguagem directa. Fez um leve gesto com a mão e os guerreiros puseram-me de pé. Endireitei-me, alisei as roupas e dei um passo em frente. Embora tremesse por dentro, fiz o possível por parecer calmo e despreocupado.

- Muito bem! - atirou-me o emir, impaciente. - Já estás de pé como um homem. Explica-te... se puderes. Estou à espera!

- Explicarei, senhor - retorqui - mas como hóspede desta casa gostaria de começar por fazer um pedido.

O rosto do emir endureceu ao ouvir estas palavras e os olhos semi-cerraram-se-lhe de uma maneira perigosa. Era claro que não gostava de me ver a invocar os deveres de hospitalidade. Fitou-me com um ar assassino e a sua voz era como uma serpente enrolada, pronta a atacar, quando inquiriu:

- E qual é esse pedido?

- Peço a vossa autorização para casar com Kazimain, a vossa parente.

Lorde Sadiq olhou-me como se eu tivesse perdido o juízo. Talvez tivesse, porque na verdade as palavras me saíram da boca sem que eu pretendesse pronunciá-las porque pensara que talvez fosse melhor pedir-lhe a minha liberdade. Contudo, se o tivesse feito nunca mais me teria sido Possível ver Kazimain, nem teria qualquer hipótese, sozinho e sem ajuda, de exercer a minha vingança. Por isso, no último instante, resolvera pedir o prémio maior sabendo perfeitamente que o mesmo me seria negado.

Para além do mais, decidira que mais valia morrer tentando do que nunca chegar a tentar. No fim, se o sangue tivesse de correr, tanto fazia que fosse chacinado como um touro ou como uma ovelha.

- Casar com a Kazimain! - A expressão de espanto transformou completamente as feições do emir. Abanou a cabeça lentamente, como se tivesse sido atingido por um golpe. - Será que posso acreditar nos meus ouvidos? - perguntou, olhando em volta como se esperasse uma resposta. Contudo, soltou um grito ainda antes de eu poder falar: - Não! É impossível! O melhor é matar-te já e livrar o mundo da tua impudência!

- Como hóspede da vossa casa... - retorqui, com toda a compostura que consegui arranjar - devo exigir que honreis as regras da hospitalidade.

- Mas que sabes tu dessas coisas?! - rugiu. - És um escravo nesta casa!

- Senhor, poderei ser um escravo... - admiti - mas continuo a ser um hóspede sob o vosso tecto até ao momento em que a minha posição final venha a ser decidida. - O emir fez uma careta ante a minha referência às suas próprias palavras mas não disse nada. Contudo, a carranca de Faysal transformara-se numa expressão de espanto e admiração. - As palavras foram vossas e não minhas - insisti. - Farouk, o físico, foi suficientemente amável para as traduzir para mim. Se existir alguma dúvida, estou certo que se recordará dessa conversa.

- Sim! Sim! - gritou Sadiq, impaciente. Deu meia volta, afastou-se de mim e atirou-se para a cadeira, onde ficou a olhar-me por instantes. - Então? Não queres falar?

- Terei toda a satisfação em vos dizer o que quereis saber, senhor - repliquei tranquilamente. - Contudo, em primeiro lugar, peço-vos uma resposta ao meu pedido.

- Já te disse qual era! - berrou. - É impossível! Uma mulher da nobreza não pode casar com um escravo. Essa desgraça seria insuportável. Para além disso, temos a questão da fé. És um cristão, ela é uma muçulmana... e ponto final!

- Pela minha parte, estou disposto a abraçar o Islão por ela - disse-lhe, endireitando os ombros. - Porém, se o casamento é impossível, nada mais tenho a dizer.

Poderá parecer estranho afirmá-lo, mas o meu falso desafio fez com que me sentisse realmente mais ousado. Devolvi o olhar de Sadiq com firmeza e com a coragem a crescer dentro de mim a cada batimento do coração.

O emir fitou-me com uma expressão de ódio.

- És um escravo e um traidor - entoou.

- Posso ser um escravo, senhor - respondi - mas não sou um traidor. Se houve alguém que vos sugeriu tal coisa, então ou está enganado ou é um mentiroso.

O emir virou a cabeça para olhar para Faysal, que se limitou a fitá-lo com espanto.

- Nunca tinha deparado com uma tal audácia - declarou Sadiq. - É esta a gratidão que a minha benevolência merece?

- Que espécie de benevolência é essa, que pretende a morte de um hóspede que se abriga sob a protecção do emir? - ripostei, numa acusação... e receei imediatamente que pudesse ter ido longe de mais.

Grunhiu e desdenhou a minha pergunta com um simples gesto da mão. Insisti no meu ataque com um descarado desdém pela minha própria vida.

- Tem em conta, ó Benevolente - declarei, avançando um passo - que o casamento cria fortes laços de sangue. Como é natural, um homem coagido por esses laços não trairá o seu senhor porque estaria trair-se a si mesmo se o fizesse. Quem poderia contemplar tal coisa, se não o mais vil e desprezível dos cobardes?

O emir Sadiq inclinou a cabeça para um lado, lançou-me um olhar rancoroso e prolongado, mas acabou por desviar a cara como se a visão da minha pessoa o fatigasse.

- Não há dúvida que foi um erro ensinar-te a falar... - comentou.

- Porém, como pareces ter descoberto a língua... - acrescentou, simulando desprezo e impaciência - faz-me o favor de continuar.

- A Kazimain e eu desejamos casar - declarei. - Dizes que é impossível, uma vez que sou um escravo e um cristão. No entanto, estou disposto a converter-me... e a autoridade para garantir a minha liberdade encontra-se nas tuas mãos. Usa-a, emir Sadiq. Realiza o impossível... e os homens maravilhar-se-ão com o teu poder!

- Os homens maravilhar-se-ão com a minha estupidez! - resmungou, com desprezo.

- Não - respondi, abanando a cabeça muito devagar. - A tua generosidade e sagacidade tornar-se-ão lendárias, isto porque com um só acto de ousadia libertarás um homem que te é devedor e irás prendê-lo com laços muito mais fortes do que quaisquer grilhões de escravo; laços de lealdade e de sangue.

Lorde Sadiq nada disse durante longos momentos. Limitou-se a ficar sentado, a olhar para mim com uma mirada profunda e pensativa. Permaneci na sua frente, tranquilo, confiante na minha exigência. Incrivelmente, não sentia qualquer medo. Lançara os meus dados e nada mais podia fazer. Agora, era a ele que competia decidir o meu destino.

O emir bateu as palmas e pensei que iria avançar com a execução. Em vez disso, Sadiq gritou:

- Tragam-me a Kazimain!

Aguardámos em silêncio enquanto os servos corriam para irem buscar a jovem mulher. O emir nada disse, mas conservou-se cuidadosamente vigilante como se pensasse que me podia desvanecer em fumo se não mantivesse os olhos postos em mim. Pelo meu lado, suportei a espera perfeitamente à-vontade, bem seguro na minha recém-descoberta confiança.

Kazimain apareceu pouco depois e foi conduzida apressadamente para o salão por dois guerreiros que a colocaram em frente do emir e se retiraram para ir ocupar os seus lugares junto dos outros que se encontravam por trás de nós. Kazimain não olhou para mim e manteve os olhos postos em lorde Sadiq durante todo o tempo. Para seu crédito, não traiu qualquer receio ou alarme e manteve uma expressão impassível. Pensei que a posição do seu queixo revelava um pouco mais do que uma simples sugestão de determinação e o seu olhar manteve-se límpido.

- Kazimain, amei-te como a uma filha... - declarou Sadiq tranquilamente. - Por isso mesmo, aflige-me ouvir as mentiras que este homem tem proferido a teu respeito.

- Mentiras, emir? - perguntou, admirada. - E que mentiras poderão ser essas?

- Afirma que vocês os dois se desejam casar - replicou Sadiq. - Diz que concordaste com isso mas suspeito que se trata apenas de um desajeitado truque, pouco mais do que areia lançada ao vento para me distrair dos seus verdadeiros motivos. Quero saber a verdade.

- Se são essas as mentiras que tanto vos afligem - replicou a jovem com firmeza - então permiti-me que vos tranquilize... - A rápida careta de satisfação que surgiu no rosto do emir desapareceu logo que Kazimain acrescentou: - Aidan não está a mentir. O que ele diz é verdade.

Disse-o tão calmamente que o emir, inicialmente, pareceu não a ouvir. Tentou levantar-se da cadeira, deteve-se a meio do movimento e voltou a deixar-se cair no assento.

- Kazimain... - implorou - sabes o que isso significa?

- Sei quando alguém me pede em casamento - retorquiu tranquilamente - e sei o que disse quando aceitei.

Lorde Sadiq olhou dela para mim e de novo para a jovem, tamborilou na cadeira com as pontas dos dedos.

- E se eu dissesse que afirmaram essas coisas apenas para salvar a miserável vida deste homem?

- Se dissésseis tal coisa, meu senhor - replicou Kazimain sem hesitação - então eu responderia que era o emir quem estaria a mentir. A verdade é esta: foi Alá quem nos juntou e nós, por obediência, desejamos casarmo-nos.

- Mas... trata-se de um escravo, Kazimain! - salientou o emir.

- E quem tem o poder para modificar essa situação... - perguntou a jovem - se não o próprio emir?

- Foi o que ele disse - grunhiu Sadiq, que bateu nos braços da cadeira durante longos momentos. Percebi que se debatia para apreender o conjunto de circunstâncias que tinha pela frente. Era um facto que as coisas haviam dado uma reviravolta muito estranha e já não sabia muito bem o que dizer ou o que fazer.

Foi Faysal quem interveio para lhe dar uma ajuda. O conselheiro do emir avançou e sussurrou-lhe ao ouvido. Sadiq escutou, acenou e disse:

- Antes de poder concordar com o pedido que este homem me fez, preciso de estar seguro, no fundo do coração, de que não se trata de um espião enviado para aqui para ajudar a destruir o nosso povo.

- Quanto a essa questão... - declarei - já me propus dizer-vos tudo o que desejares depois de me concederes o que vos pedi.

- Preciso de muito mais do que isso! - gritou. - Pedes-me ouro e rubis e em troca ofereces-me apenas esterco e pedras!

Tínhamos chegado a um beco sem saída e nenhum se podia mover sem ceder terreno valioso ao outro. Kazimain decidiu quebrar o impasse.

- Meu senhor Sadiq - interveio - um espião não é, por natureza, um intrigante e um dúplice? Que intrigas fomentou este homem? Que du-plicidades descobriste nele?

- Nenhumas - admitiu o emir. - No entanto, o facto de não lhe ter descoberto duplicidades não significa que as mesmas não tenham existido. Um espião tem necessariamente de ser habilidoso a esconder as suas falsidades.

- Nesse caso... - insistiu Kazimain - a ausência de duplicidade passa a ser prova de duplicidade. A inocência confirma a culpa. Sábio emir, se é nisso que a justiça se transformou, então todos os homens estão condenados.

- Deturpas as minhas palavras, mulher! - resmungou o emir. Virou-se para mim e acrescentou: - A acusação foi feita e ainda não foi negada.

Percebi que começava a ceder e decidir ir ao seu encontro, a meio do caminho.

- Se obtiver a vossa aprovação para casar com a vossa parente, o problema deixará de ser importante - afirmei.

- Dizes isso apenas para salvares a vida - contrapôs Sadiq, mas a sua resistência abrandava.

- Digo-o porque é verdade - insisti. - Se me ajudar a salvar a vida... pois muito bem. Se não... então matareis um homem leal e de confiança, que sempre vos tratou com gratidão e honestidade. Nada mais posso dizer.

- Se te conceder a aprovação que desejas - respondeu o emir, com o tom de um mercador de cavalos a tentar extrair o melhor de um mau negócio - tratar-me-ás com honestidade e lealdade? - Abri a boca para confirmar mas levantou um dedo para me fazer parar. - E responderás às perguntas para minha satisfação completa? - Baixou a mão, convidando-me a responder.

- Lorde Sadiq - retorqui - não posso garantir que as minhas respostas vos deixem completamente satisfeito... mas dou-vos a minha palavra em como responderei às vossas perguntas apenas com a verdade.

- E esperas que confie na palavra de um escravo? - inquiriu o emir.

- Tanto... quanto a minha vida depende da vossa palavra... - respondi. - Pela minha parte, já vi o suficiente para saber que sois um homem de honra que não faz juras que não possa cumprir. Seja qual for a vossa promessa, confio nela com a minha vida.

A resposta agradou-lhe de uma maneira extraordinária. O sorriso foi tão imediato e genuíno que a sua ira anterior me pareceu ter sido quase toda fingida. Surpreendera-o, mas o seu maior interesse era saber a verdade e considerara que as ameaças seriam a maneira mais segura e rápida para a conseguir.

Virou-se para Kazimain e voltou a adoptar um ar grave.

- É vergonhoso que uma mulher de uma casa nobre se case com um escravo. - Fez uma pausa, afagando a barba, pensativo. - Como não podemos permitir que uma nossa familiar se sujeite a uma tal desgraça, suponho que teremos de fazer alguma coisa a respeito do homem cujo pedido de casamento aceitaste.

Virou-se para mim e proclamou-.

- Aidan, vieste até mim como escravo, mas a partir deste momento não tratarás nenhum homem por amo. Com Alá, o Sábio e Compassivo, como minha testemunha, devolvo-te a tua liberdade.

- Obrigado, lorde Sadiq - respondi, fazendo-lhe uma vénia de genuína gratidão.

- Estás livre, meu amigo - declarou. - Vai em paz.

Não sei se a última frase foi um truque para me enganar ou confundir ou para me levar a cometer um erro, mas retorqui:

- Fico satisfeito por poder permanecer a vosso lado enquanto o desejares. Considero meu dever e minha alegria servir-vos de todas as maneiras ao meu alcance.

Sadiq ficou radiante de prazer.

- A escolha é tua - retorquiu. Fez sinal a Faysal, que se aproximou, e disse-lhe: - Os alojamentos do meu antigo conselheiro estiveram vazios nestes últimos dois anos. Manda que sejam preparados imediatamente. Para além disso, a prata que era costume pagar pelos seus serviços passará a ser paga ao Aidan.

- Lorde Sadiq - protestei rapidamente - nada mais vos peço do que aquilo que já me foi concedido. Sou um homem de necessidades simples e já é mais do que o suficiente.

- Tu, meu amigo, és um homem que em breve irás adquirir uma esposa e também, em devido tempo e se Alá assim o desejar, muitos filhos. Receio que os teus dias de simplicidade estejam a aproximar-se rapidamente do fim. De qualquer modo, não posso permitir que a minha familiar se case com um homem sem meios para a sustentar devidamente.

- Sinto-me esmagado pela vossa generosidade, meu senhor, mas... O emir levantou a mão num gesto autoritário.

- Confia em mim... - declarou - porque sei do que estou a falar. - Levantou-se e abriu os braços. - Agora, permitam-me que seja o primeiro a louvar o teu próximo casamento e a oferecer-te as minhas felicitações.

Kazimain correu para o tio, lançou-se-lhe nos braços, beijou-o em ambas as faces e também nas mãos. Segui-a, avançando de um modo algo desajeitado - ainda a tentar apreender o que me acabara de acontecer segurei-lhe nas mãos e abracei-o. Kazimain agradeceu-lhe e eu agrade-ci-lhe. A jovem beijou-nos muitas vezes, com as lágrimas a brilharem-lhe nos olhos enquanto proclamava que aquele era o dia mais feliz da sua vida. A seguir, antes que eu conseguisse pronunciar uma única palavra, afastou-se a correr dizendo que tinha de ir contar a toda a gente o que se pas-Sara e desapareceu do salão num ápice.

- Penso que deves ter sido tocado por Deus... - disse o emir, vendo-a afastar-se. - O homem que ganhou o coração de Kazimain obteve um tesouro mais valioso do que muitos reinos. Um dia, vais ter de me contar como conseguiste um feito tão notável...

- Esse é um segredo - respondi - que guardarei com a minha vida. Lorde Sadiq riu-se e ordenou a Faysal que mandasse levar refrescos para os seus aposentos privativos. Pousou a mão no meu ombro e conduziu-me para fora do salão de recepções, dizendo:

- Agora, meu amigo, creio que chegou o momento de dizermos a verdade um ao outro.

 

O emir serviu a fresca água de limão nas taças douradas e entregou-me uma delas. Mandara embora Faysal e os restantes servos para que ninguém nos pudesse ouvir. Recostou-se nas almofadas, olhou-me com astúcia e disse:

- Podes falar livremente porque, pela minha honra, nada de mal te acontecerá. Sei que se te tocasse na ponta do nariz nem que fosse com um único dedo... a Kazimain mandava-me fritar em azeite fervente...

- Sou um vosso servo, lorde Sadiq. Dir-vos-ei tudo o que quiserdes saber.

- Então, começa por me dizer por que estás a fazer tudo isto... - Fez uma pausa mas prosseguiu imediatamente, antes de lhe poder perguntar o que queria dizer. - Os teus sentimentos pela Kazimain são genuínos?

- Aquilo que sinto pela Kazimain - retorqui - é algo que nunca senti por outra mulher.

- Gostas muito de reduzir a verdade à sua forma mais simples... - comentou, com um sorriso. - Bom, deixemo-nos de jogos infantis. Uma vez que pareces ter tanta relutância em falar abertamente, permite-me que seja eu a começar. - Bebericou da taça, observando-me por cima do rebordo. Quando acabou, pousou a taça na bandeja de latão, tocou com as costas da mão na boca e declarou: - Contei a Abu Ahmad tudo o que me disseste a respeito da traição dos Arménios. Embora concordasse que isso complicava muita coisa, decidiu que era necessário comprovar a validade das informações. Por isso mesmo, foram feitos inquéritos por intermédio de todos os meios à disposição do califa...

- Sim...?

- E descobrimos que tudo o que nos tinhas dito era verdade.

- Se tudo o que eu disse era verdade... então é óbvio que tenho de Ser um espião. Não foi isso o que pensaram?

O sorriso de astúcia reapareceu no seu rosto.

- Todavia, também se decidiu que seria necessário um teste adicional - explicou. - No fim de contas, quem poderia saber tanta coisa? Só um espião do Imperador podia dispor de conhecimentos tão aprofundados...

- E um tal espião - perguntei - também manobraria de modo a ser vendido como escravo? E esforçar-se-ia por morrer às mãos do seus torturadores?

- As infelicidades acontecem... - retorquiu Sadiq - mesmo para os espiões do Imperador. Não duvido que tenhas sido apanhado pela traição de Nikos, tal como os outros, o que te impediu de levar as tuas informações de volta ao Imperador. Se não tivesse descoberto o teu paradeiro... de certeza que morrerias.

- E estou muito grato a vossa senhoria - declarei, com toda a sinceridade.

- Ah, sim... e aproveitaste-te muito bem da tua posição - prosseguiu. - Porém, façamos um acordo entre nós: dou-te mil denários em prata e levo-te em segurança até Trebizonda, onde poderás embarcar num navio que te transporte de volta a Bizâncio... ou a qualquer outro lugar para onde desejes ir. - Inclinou-se para a frente. - Tudo isto será teu se me disseres o que quero saber.

- Porque sugeris um tal acordo? - perguntei, desconfiado.

- Para que saibas que não precisas de casar com a Kazimain para obteres a tua liberdade. Diz-me a verdade e deixo-te partir, completamente livre. Concordas?

- Muito bem - acedi. - Concordo. Que desejais saber?

- A verdade. És um espião?

- Sou, sim.

- Eu sabia! - O punho do emir embateu na bandeja de latão, desequilibrando as taças e fazendo derramar a bebida. - Eu sabia! - repetiu, numa afirmação que tinha quase tanto de alívio como de justificação.

- Sou um espião... - voltei a confessar - mas talvez não do género em que estais a pensar.

- Tenho de saber a verdade - insistiu Sadiq. - É da maior importância, acredita. Quem é o teu amo? Qual é a sua finalidade?

- Tudo o que já vos disse é verdadeiro. Era na realidade um escravo de Harald Berro-de-Touro quando este veio para saquear Constantinopla. Aconteceu que consegui prestar um pequeno serviço ao Imperador enquanto lá estivemos...

- E por isso libertou-te e tomou-te ao seu serviço - sugeriu Sadiq.

- Não, meu senhor, não foi assim. Podia tê-lo feito, mas o Imperador não funciona desse modo. Em vez disso, aceitou o monarca dinamarquês como parte da sua força de mercenários e enviou os Lobos do Mar para guardarem o eparch e os navios mercantes durante a viagem até Trebizonda. Também disse que discutiríamos a minha liberdade, aquando do regresso, se eu lhe prestasse um pequeno serviço.

- E qual foi esse serviço?

- Tinha de observar e escutar tudo o que fosse dito e feito em Trebizonda durante as negociações de paz, e informá-lo se descobrisse algo de suspeito a respeito do eparch.

- Do eparch! - exclamou Sadiq, perfeitamente surpreendido. - Tinha dúvidas quanto à lealdade do eparch!?

- Não me disse porquê, mas pareceu-me um homem profundamente preocupado com questões de confiança e lealdade. Penso que desconfiava do eparch, embora desnecessariamente, como veio a provar-se.

- Devia era ter desconfiado do tal Nikos... - murmurou o emir. Olhou-me e continuou: - Então, mandou-te vigiar o eparch. E foi tudo? Não havia mais nada?

- Não, meu senhor, mais nada.

- Não tinhas de vigiar os árabes, por exemplo? Nem sequer um bocadinho?

- Na verdade, nada me disse a respeito dos árabes. Não tinha motivos para pensar que eu viria a estar numa posição que me permitisse obter informações desse quadrante, emir. Não antecipou a minha presente situação. Já agora, posso afirmar que o Imperador está tão ansioso pela paz como o próprio califa. Bizâncio tem tanta necessidade de paz como Samarra... se não mais.

- E então porquê?

- O Imperador Basil pretende incrementar o comércio para poder pagar os seus novos palácios e edifícios públicos. A cidade imperial foi negligenciada durante décadas e a sua renovação, numa escala tão maciça, requer urn infindável fornecimento de riquezas.

- Ya'allah! - exclamou o emir, concordando alegremente com a minha afirmação. - Ah, se os governantes do mundo tivessem menos apetites...

- Agora já conheceis a verdade - declarei. - Observei e escutei o que era dito e feito em Trebizonda... mas para nada. O eparch está morto e o traidor continua livre para prosseguir com as suas traições. A guerras e os ataques irão continuar e...

- Não - afirmou o emir, com sinceridade. - A luta não irá prosseguir. Foi isso o que Abu Ahmad determinou. Respeitaremos a paz que assinámos e alcançámos. - Fez uma pausa. - Foi precisamente por causa disso que me vi obrigado a pôr-te à prova, meu amigo. Tinha de saber a que espécie de homem confiei o futuro do nosso povo.

Não sabia do que estava ele a falar mas pareceu-me importante e vagamente agoirento.

- O vosso futuro, emir?

O meu óbvio espanto levou Sadiq a dar um estalo com a língua.

- Ah, és na verdade um péssimo espião - replicou, com ligeireza.

- Deténs o futuro do povo árabe nas tuas mãos porque conheces as nossas fraquezas... algo de que nem o próprio e vil Nikos suspeita...

- A rebelião? - perguntei. - Oh, sei disso há muito tempo. Se fosse o tipo de espião que imaginastes, teria corrido para o Imperador logo que vos vi sair do palácio.

- É óbvio.

- Mas fiquei.

- Sim, ficaste.

- Mesmo assim, fui considerado um traidor e ameaçado de morte...

- E ter-te-ia morto - declarou Sadiq com firmeza - se me tivesses mentido. - Abriu as mãos e pousou-as sobre a mesa como se quisesse afastar as coisas desagradáveis para longe. - Por favor, vê se compreendes: Há demasiadas coisas em jogo e não podia haver erros.

- E a Kazimain... Ela sabia? Estava a vigiar-me?

- A Kazimain... - começou o emir, hesitante e desviando os olhos.

- Sim, ela sabia.

- Compreendo. - Acenei, distraído. O calor da ira atiçou-se dentro de mim, violento, mas também morreu rapidamente, deixando apenas uma humilhação amarga. Tinha feito o papel de parvo... e ocorreu-me que, anteriormente, já me havia sentido exactamente da mesma maneira. Fora quando descobrira que Gunnar esperara na floresta durante todo o dia para saber se eu iria fugir. Fora o Teste da Vigilância, afirmara. Pois bem, sem o saber, passara mais uma vez por um teste da vigilância e achara-o tão desagradável como o anterior.

Sadiq endireitou as taças e serviu mais bebida. Colocou uma das taças na minha frente, encheu uma para ele e continuou a falar, com a sua voz a ganhar um certo tom de urgência. Contudo, eu pensava: Porque será que a minha lealdade tem de ser sempre posta à prova? Serei tão irresponsável, tão inconstante, que os que estão por cima não conseguem confiar em mim sem o fazer? Que existirá em mim que deixa toda a gente com tantas dúvidas?

- ... Abu concordou - dizia o emir - que é da maior importância. Vamos partir imediatamente, levando apenas...

Ouvi a última frase e levantei os olhos rapidamente.

- Desculpa, meu amigo - disse o emir, interpretando erroneamente a minha expressão abatida - mas receio que o teu casamento tenha de esperar um pouco mais. É claro que regressaremos aqui o mais depressa possível e terei todo o prazer em organizar uma celebração de casamento que deixe todas as outras celebrações a perder de vista. Será a minha dádiva a ambos, mas...

- Por favor... - interrompi-o - mas onde vamos?

- A Bizâncio - respondeu, um pouco surpreendido com a pergunta.

- Não terei acabado de o dizer? Não podemos permitir que a traição desse homem, esse tal Nikos, obstrua a paz entre os nossos dois povos. Tem de ser detido antes que os combates recomecem.

- Ah, sem dúvida, lorde Sadiq! - concordei, excitado com a ideia. De súbito, vira a oportunidade que mais desejava acima de todas as outras coisas: podia vingar-me e não precisaria de trair o emir para o conseguir.

- Porém, ocorre-me que podemos precisar de ajuda.

O emir pareceu surpreendido com a sugestão.

- Que espécie de ajuda estás a sugerir?

- Não sou o único que sabe o que se passou em Trebizonda, nem o único sobrevivente da emboscada na estrada para Sebastea. Se vamos confrontar o komes Nikos com o seu crime, parece-me que quantas mais vozes se erguerem para o condenar, melhor será. Deveis recordar-vos que, quando vi o basileu pela última vez, não passava do escravo de um rei bárbaro. Se queremos que o Imperador acredite no que lhe vou dizer... então precisamos de ajuda.

Sadiq fitou-me com os seus olhos escuros e insondáveis.

- E essa ajuda de que falas... suponho que terá um preço? - perguntou, num tom que parecia desapontado.

- Apenas este, senhor: devereis obter a liberdade para os meus amigos e ajudar-vos-ei a deter Nikos e a restaurar a paz.

Aguardou, à espera que eu dissesse mais qualquer coisa.

- E de que mais irás necessitar?

- É tudo.

- Liberdade para os teus amigos? - interrogou-se Sadiq, observando-me com uma expressão dúbia. - E é tudo? Deves odiar esse tal Nikos mais do que suspeitava.

Senti o estômago a contrair-se num nó de antecipação.

- Poderá ser feito?

- Se Alá o desejar, talvez possa ser conseguido - replicou o emir, afagando o queixo, pensativo. - Vejamos se nos entendemos: se conseguir esse feito, irás comigo a Bizâncio e ajudar-me-ás a restaurar o tratado?

- Farei tudo aquilo que me pedir - garanti.

- Então, rezemos para que o califa esteja com o estado de espírito apropriado - replicou Sadiq, tomando uma decisão. - Se o desejares, informarei Kazimain que o casamento terá de ser adiado por algum tempo.

- Obrigado - respondi - mas fá-lo-ei eu mesmo.

- Como queiras. - Sadiq levantou-se. - Terás de me perdoar - disse, mas há muito para fazer... e bem depressa. - Bateu as palmas e Faysal apareceu como que vindo do nada. - Tenho uma mensagem urgente para o vizir. Requeremos uma audiência com o califa o mais depressa possível. Hoje mesmo! Vai!

Virou-se para mim e ordenou:

- Levanta-te, Aidan. Se o meu novo conselheiro tem de me acompanhar, então terá de estar trajado como a realeza.

O emir conduziu-me para outro quarto, onde as suas próprias roupas se encontravam arrumadas em arcas de sândalo. Escolheu um traje novo e uma capa para mim, e chamou servos para me prepararem para a audiência.

- Façam-no parecer um nobre - ordenou, quando já saía do quarto.

- Este homem irá estar na presença do califa ainda hoje!

Os servos completaram a sua tarefa e Faysal apareceu com um objecto embrulhado em seda vermelha.

- É para ti, Aidan - declarou. - O emir quer que aceites isto. Abriu o pano de seda e revelou uma faca do tipo a que os irlandeses chamam daigear, mas diferente de todas as que eu vira até ali. Era inteiramente feita de prata e ouro, estava maravilhosamente trabalhada com padrões de folhas e gavinhas, e fora cravejada de rubis, esmeraldas e safiras. A lâmina, contudo, era de um metal chamado aço, com um gume muito mais afiado do que a mais afiada das navalhas. Mal consegui afastar os olhos dela durante o tempo suficiente para agradecer a Faysal.

- Todos os nobres Sarracenos usam uma dessas facas - explicou.

- Chama-se Qadi.

- "Julgamento"? - interroguei-me. - Porquê?

- Porque, por vezes... - respondeu Faysal, pegando naquele tesouro e enfiando-mo na devida posição, no cinto - um homem tem de confiar apenas nas suas próprias mãos para conseguir justiça, e quando a qadi fala, a argumentação acaba-se.

Afastou-se, anunciou que as minhas semelhanças com um nobre árabe eram aceitáveis e disse:

- Agora, estás pronto para conhecer o califa. Que Alá te garanta os seus favores quando estiveres sob o seu olhar.

 

O califa de Samarra encontrava-se sentado debaixo de uma figueira no arboretum do palácio. Permanecia debaixo da figueira havia cinco dias, explicaram-nos, à espera da inspiração do anjo Gabriel para conseguir completar um poema que iniciara recentemente.

- Talvez... - sugeriu o vizir Tabataba'i discretamente - os vossos assuntos com o califa possam ser mais auspiciosamente conduzidos num outro dia qualquer...

- Se todos os assuntos fossem conduzidos em jardins, por baixo de figueiras - contrapôs o emir - de certeza que o mundo seria um lugar muito melhor. Ficaremos muito felizes por podermos saudar o califa no seu jardim.

- Será como desejarem... - O vizir de turbante negro fez uma graciosa vénia mas apercebi-me de uma nota de aviso na sua voz. Virou-se e conduziu-nos através do vasto e vazio salão de recepções, com os trajes azuis-escuros a ondularem por trás dele como uma vela, e com os pés, enfiados em chinelas macias, a deslizarem em silêncio sobre o pavimento de mármore verde bem polido.

Atravessámos sala após sala, todas elas enormes, passando por baixo de cúpulas pintadas de azul tão vastas como o próprio céu, algumas das quais eram perfuradas por milhares de pequenos orifícios em forma de estrela, numa imitação de um céu nocturno. Essas cúpulas eram suportadas por altos pilares e por grandiosos arcos com belas formas. As paredes de algumas das salas encontravam-se cobertas por azulejos pintadas em azul e verde, enquanto outras haviam sido pintadas a vermelho ou num quente tom ocre, para além de estarem decoradas com penas de pavão em folha de ouro. Ao longo das paredes viam-se cofres e arcas - bem como cadeiras semelhantes a tronos, pelo menos nalgumas das salas - feitos de madeiras exóticas com embutidos de ouro, prata e pérolas. Por todo o lado se encontravam tapetes e carpetes com os mais intrincados desenhos e cores. Passámos por uma sala cujo tecto se encontrava coberto por um tecido às riscas vermelhas suspenso, mas não esticado, de um pilar central em madeira, de modo a que toda aquela divisão se parecia com uma tenda.

A seguir, o vizir guiou-nos ao longo de um largo corredor de colunas de ónix, de onde saímos para um jardim muralhado com uma fonte no centro. Atravessámos um portão em ferro-forjado e entrámos no arboretum, ou jardim das árvores, onde o seu amo se instalara à espera da inspiração divina.

Sentia-me um pouco tolo e deslocado. As minhas roupas eram muito mais extravagantes do que tudo o que jamais usara, o turbante dava-me a sensação de ter uma cabeça muitas vezes maior e perigosamente instável, o óleo nos bigodes estava sempre a escorrer para os lábios, tornando-os escorregadios e estranhos, o punho da faca cravava-se-me no osso da anca e tinha muito medo de me ferir se me dobrasse demasiado depressa. Bem vistas as coisas, suponho que se tratava de uma necessidade, mas sentir-me-ia muito mais à vontade e confiante se não me tivessem enfeitado tanto.

Todavia, o emir, depois de insistir naquela maldição, fora-se embora e deixara-me entregue às hábeis manipulações dos seus servos.

Em primeiro lugar fora despido e lavado com água perfumada deitada por cima de mim a partir de um jarro comprido e elegante, água que escorrera para um enorme recipiente de latão para onde me tinham mandado entrar. Os cabelos, agora compridos e já sem vestígios de uma tonsura, tinham sido untados com um óleo perfumado, tal como a pele. A seguir haviam feito aparecer, umas atrás das outras, várias túnicas coloridas, que tinham experimentado em mim até se decidirem por uma que condizia com o traje e a capa vermelha que o emir escolhera. Seguira-se um largo cinto preto que dera quatro voltas à minha cintura, bem como um par de botas pretas feita de um couro muito macio. Uma longa faixa de um pano branco-cremoso, cuja ponta foi presa com um alfinete de rubi, transformara-se num turbante. Fora quando já estavam a terminar que Faysal aparecera com a faca qadi. Enfiara a lâmina numa dobra do meu cinto, declarara-me pronto e conduzira-me para o pátio onde Sadiq me esperava.

No pátio encontravam-se dois cavalos num tom branco-leitoso e o emir observava os moços de estrebaria que selavam aqueles maravilhosos anilais. Quando me aproximei, o emir virara-se e o seu rosto simpático iluminou-se com um prazer genuíno.

- Ah, um verdadeiro príncipe da Pérsia! Por favor, não deixes que a Kazimain te veja... porque nunca permitirá que te afastes da sua vista!

- Estarei realmente pronto para me apresentar perante o califa? - perguntara.

- Meu amigo... - entoara Sadiq, muito sério - não poderias ter melhor aspecto mesmo que fosses ao encontro de Alá! Bom, quando foi a última vez que montaste um cavalo?

- Já não me lembro...

- Foi o que pensei - retorquiu, com uma careta. Virou-se abruptamente e chamou um dos moços de estrebaria. - Jalal! Leva o Sharwa e trás a Yaquin. - Olhou-me e confidenciou: - Creio que a acharás mais a teu gosto!

O rapaz saíra do pátio a correr conduzindo um dos cavalos brancos e regressara apenas momentos depois trazendo uma égua cinzenta com cauda, crina e quartos dianteiros pretos. O Sol que batia na pelagem do animal fazia com que esta parecesse de seda.

- Ah, sim... - suspirara o emir, apreciador. - É uma maravilha, esta Yaquin! - Aproximara-se do animal, acariciara-lhe o pescoço macio e chamara-me para que fizesse o mesmo. - Olha, minha bela, este é o meu amigo Aidan... - dissera, murmurando junto à orelha da égua. - É boa pessoa, por favor não o desgraces.

Como que em resposta ao pedido do emir, a égua agitara a cabeça para baixo e para cima e tocara com o focinho no pescoço de Sadiq.

- Isso fica para depois... - dissera o emir, numa leve repreensão. Se te portares bem, ganhas um figo. - Virara-se para mim e explicara: - Também gosta de tâmaras doces.

Observámos os moços de estrebaria a selarem os cavalos. Completaram o seu trabalho de uma maneira hábil e eficiente, manobrando os animais com uma firmeza delicada.

- Maltratar um cavalo é um pecado... - comentara Sadiq, distraído. Era óbvio que gostava dos seus cavalos e que lhes dispensava um grande afecto. - Um grande pecado. Um dos piores.

- Mahmoud disse-me que todos os homens cavalgarão em animais como estes quando chegarem ao paraíso - declarara.

- É verdade - concordara Sadiq. Terminado o seu trabalho, um dos moços de estrebaria conduziu o cavalo branco ao emir e entregou-lhe as rédeas. Lorde Sadiq colocara um pé no estribo e subira para a sela. - Contudo - acrescentara - é melhor rezarmos para que ainda tenhamos tempo para cavalgar nas ruas de Bizâncio.

Iniciáramos a nossa marcha, de um modo lento e imponente, ao longo da larga rua principal de Jáfariya, em direcção ao palácio do califa, atraindo os olhares e as saudações das pessoas por quem passávamos. Quando chegámos ao palácio fôramos saudados pelo vizir e conduzidos através de sala após sala, cada uma mais espantosa do que a anterior, a caminho da nossa audiência com o homem mais poderoso de todo o Império Árabe.

O califa al'Mutamid, por vontade de Alá, Governante dos Abássidas, Protector dos Fiéis, era um homem gordo de ombros redondos, com uma longa e rala barba cinzenta, e com olhos escuros e expressivos. Estava trajado como um dos seus famosos mil pavões, em tons azuis de lápis-lazúli e esmeralda com brilhantes manchas púrpura. Todos as vestes tinham fios de ouro e prata entrelaçados no tecido e exibia uma pena de pavão no topo do volumoso turbante de cetim num brilhante tom cinzento. O largo cinto era do mesmo tecido acetinado e usava uma longa adaga curva - com um punho de ouro cravejado de jóias -, a sair de uma das suas dobras, sobre a barriga em forma de cúpula.

Tal como o vizir nos dissera, o grande califa encontrava-se sentado em almofadas de damasc dispostas sob uma grande e frondosa figueira, e tinha uma pequena mesa para escrita ao alcance das mãos para a eventualidade de ser abençoado pela tão aguardada inspiração. À sua volta jaziam taças com frutos e pães dos mais variados tipos, sem dúvida para o ajudarem a fortificar-se na sua vigília. Duas braseiras soltavam nuvens de perfumado incenso para as leves brisas que se agitavam por baixo da copa da luxuriante figueira.

Se eu fosse um poeta no palácio do califa, tenho a certeza de que o próprio jardim seria mais do que o suficiente para me fornecer a inspiração necessária para muitas grandes obras. Na verdade, parecia ser precisamente o que Deus tivera em mente quando criara o Jardim do Paraíso. Não havia uma folha, um rebento, um ramo ou uma lâmina de relva fora do seu sítio. Cada planta e cada árvore eram um perfeito exemplo da sua espécie e residiam em completa harmonia com as outras plantas e árvores. Porém, em vez de se banhar na serenidade do magnífico ambiente que o rodeava, o califa parecia aborrecido e infeliz, e estava estiraçado sobre as almofadas como se tivesse sido largado de uma grande altura para cair ali.

Quando nos aproximámos, al'Mutamid despertou do seu estupor e sentou-se, pestanejando.

- Taba taba'i! - gritou. - Ah, estás aí! Como te atreves a deixar-me à tua espera desta maneira?

- Acalme-se, excelência - respondeu o vizir com uma paciência exagerada. - O emir Sadiq chegou e deseja trocar umas palavras com Vossa Alteza. - Fez uma vénia e um gesto, dizendo ao emir para avançar. - Agora vou deixar-vos para poderem discutir os vossos assuntos em privado.

- Tabataba'i, por favor, fica... - sugeriu o emir rapidamente. - Se o califa não tiver objecções, então eu, pela minha parte, também não tenho nenhuma.

- Então, ele que fique... - murmurou o califa, num tom irritado. Virou a cabeça e lançou-me uma olhadela crítica. - Quem é este homem? Que quer?

- Que a paz de Alá seja convosco, grande califa. Com a vossa autorização, gostaria de vos apresentar o meu conselheiro. Chama-se Aidan e juntou-se recentemente à minha casa.

- Não é árabe - salientou al'Mutamid.

- Não, majestade - replicou Sadiq com suavidade. - Vem da Êrlandah, uma ilha distante, que fica para ocidente.

- Nunca ouvi falar nesse sítio... - resmungou o califa, para logo de seguida ficar com o rosto enevoado pelas dúvidas. - Já ouvi, Taba-taba'i? Já terei ouvido falar desse sítio?

- De certeza que não, Alteza - respondeu o vizir.

- Ah! - exclamou o califa, triunfante. - Estão a ver? Estão a ver? - Pegou num canto do traje e assoou o nariz. - Os anjos vêm até aqui, sabem? - Fez um gesto vago na direcção do jardim. As mãos do califa eram compridas, com dedos muito magros, o que constituía uma característica estranhamente fora do seu lugar num homem tão gordo.

- Aidan veio ajudar-nos nas nossas relações com o Imperador - continuou o emir, aparentemente nada preocupado com o chocante comportamento do seu superior.

A cabeça do califa rodou novamente para mim.

- Ah, veio? - Observou-me através dos olhos semicerrados. - O Imperador do Ocidente é um cristão - informou-me. - Também és um cristão?

Não soube o que responder, nem se o deveria fazer, mas Sadiq fez-me um sinal de assentimento.

- Sim - repliquei. - Ou antes, era... mas já não sou.

Al’Mutamid acenou com um ar grave.

- Dizem que o Imperador gosta muito de cavalos.

- Creio que é verdade - confirmei. - Vi alguns dos seus cavalos.

- Quantos?

- Majestade?

- Quantos cavalos viste?

- Seis, creio.

- Seis! - rugiu arMutamid, com as suas gargalhadas a sacudirem as folhas dos ramos mais próximos. - Seis! Ouviste, Tabataba'i? O Imperador só tem seis cavalos! Eu tenho seis mil! - Abruptamente, o califa mostrou-se desconfiado. - Onde aprendeste a falar assim?

- Fui ensinado na casa de lorde Sadiq por um excelente professor, um jovem chamado Mahmoud.

- Outro que também não é árabe - comentou al'Mutamid, fatigado. Bocejou, já quase sem interesse pela conversa.

- Não, Alteza... - admitiu Sadiq - Mahmoud é egípcio.

- Ah! - acenou o califa judiciosamente - isso explica muita coisa.

- Oscilou o corpo para um lado e para o outro, soltou um longo e sonoro peido, e perguntou:

- Que queres, Sadiq? Por que vieste aqui?

- Vim implorar-vos a vossa benevolência, majestade - respondeu o emir. - Aidan tem amigos que, não por sua culpa, caíram na escravatura. Penso que devem ser libertados imediatamente e que lhes devemos permitir que regressem às suas terras no Ocidente.

- Se libertarmos todos os escravos... - comentou al'Mutamid, levantando um comprido dedo - não haverá ninguém para fazer o trabalho. Quem passaria a fazer o trabalho, Tabataba'i?

O vizir avançou rapidamente.

- Não me parece que o emir esteja a sugerir a libertação de todos os escravos, pois não, lorde Sadiq?

- De modo nenhum, vizir! - respondeu. - Apenas os conhecidos de Aidan.

- Seis! - gritou al'Mutamid de repente. - Libertemos seis, tantos quantos os cavalos do Imperador!

- Muito bem... - concordou o vizir rapidamente. - Libertaremos um escravo por cada cavalo do Imperador. Escrevo o decreto, majestade?

- Sem esperar pela resposta, Tabataba'i avançou para a mesa e ajoelhou-se. Pegou num quadrado de pergaminho, mergulhou a pena na tinta e começou a escrever.

Contudo, os sobreviventes eram mais do que seis. Avancei e tentei protestar.

- Peço-vos perdão... - comecei, mas calei-me quando Sadiq me avisou com um rápido movimento das mãos. Os olhos do califa viraram-se para mim, na expectativa. - Perdoe-me... - balbuciei - mas só desejava manifestar a minha gratidão pela vossa estimável amizade. Estou seguro que os que forem libertados terão uma dívida eterna para com a vossa compaixão... - Fiz uma pausa. - Quanto aos restantes, sem dúvida que continuarão a ser muito úteis, embora menos gratos...

Sadiq fez uma careta. Era óbvio que a minha insistência ultrapassara o que era apropriado para um homem na minha precária posição. Porém, que me interessavam a mim as cortesias? Esperava apenas que o vizir Taba-taba'i tivesse captado a minha insinuação. Contudo, não deu qualquer sinal de o ter feito.

O califa fungou com ostentação.

- Estou a escrever um poema... - informou-nos alegremente - sobre os deveres do homem para com Deus.

- Um tema muito apropriado, Alteza - respondeu Sadiq - e estou certo que irá ser muito instrutivo. É com a maior das expectativas que ficarei à espera que o termine.

- A oração é um dever... - declarou o califa, fazendo uma pausa - embora não me lembre porquê. - O rosto contraiu-se-lhe num pânico súbito. - Porquê, Tabataba'i?

- Porque a oração revela a devoção da alma ao seu criador - respondeu o vizir com um ar distraído. Por instantes, a sua pena continuou a deslizar sobre o pergaminho. A seguir parou, inspeccionou o que escrevera, encheu as bochechas de ar, soprou o pergaminho e recostou-se. - É necessário o selo real, majestade. Quer que o ponha por si?

O califa fez uma careta e agitou a mão, impaciente, na direcção do vizir. Tabataba'i levantou-se e disse:

- Esperarei por si no pátio, emir Sadiq. Encontrar-me-á lá quando concluir os seus assuntos.

O vizir retirou-se, deixando-nos a apresentar as nossas despedidas ao califa. Lorde Sadiq fez alguns comentários judiciosos de carácter geral e agradável enquanto nos preparávamos para nos escapar dali. Agradecíamos ao califa toda a sua caridade e já nos estávamos a despedir quando o tolo levantou as mãos e irrompeu num súbito cântico.

- Alá é a luz dos céus e da Terra... - berrou o califa, numa voz muito alta e áspera. - A sua luz é o pilar que suporta a candeia no vidro, brilhando como as estrelas e cintilando como uma pérola, alimentada nela abençoada oliveira - nem do leste, nem do oeste - cujo perfume do óleo fornece a luz embora a chama não lhe toque. Luz em cima de luz! Deus guia a sua luz para onde lhe apraz e concede-nos parábolas para instrução do povo. Alá é sábio em todas as coisas e os seus conhecimentos são infinitos!

Dito aquilo, o califa baixou as mãos, caiu novamente sobre as almofadas e fechou os olhos. Sadiq fez uma grande vénia.

- Obrigado por mo ter recordado, majestade - disse. - Que Deus vos dê saúde, califa.

- Fruta... - murmurou o califa, ensonado. - Precisamos de fruta. Estou a ver taças com fruta...

Sadiq lançou uma olhadela na minha direcção e arrastou-me para fora do jardim e pelos salões até chegarmos ao pátio onde os cavalos, depois de terem bebido, se encontravam à nossa espera. Resolvi manifestar-me logo que nos encontrámos longe das orelhas do califa.

- Há mais do que seis sobreviventes! - salientei, acrescentando:

- Que vamos nós fazer a respeito dos restantes?

- Fica em paz... - retorquiu Sadiq placidamente. - Tabataba'i irá ter tudo em ordem.

- Mas... se ele não sabe! - objectei.

- O assunto está a ser tratado... - insistiu Sadiq. - Podias ter arruinado tudo com a tua desajeitada interferência. - Acalmou-se um pouco e acrescentou: - Preocupas-te demasiado. Tem fé, Aidan.

O vizir Tabataba'i aguardava-nos no pátio, com o pergaminho envolto num pano de seda e amarrado com uma fita do mesmo material. Entregou-mo, dizendo:

- Que Alá, o Sábio e Compassivo, apresse o regresso dos teus amigos à liberdade. O que estás a receber neste momento é na verdade uma grande dádiva.

Não queria parecer ingrato mas senti-me compelido a verificar se tudo estava em ordem.

- Agradeço-vos, vizir - disse, começando a desatar o pergaminho. Uma vez desenrolado, segurei-o nas mãos e examinei a graciosa escrita com toda a atenção.

- Este é o selo real de al'Mutamid - explicou Tabataba'i, apontando a insígnia vermelha, em relevo. - Sabes ler arábico?

- Infelizmente, não sei - admiti. Devolvi-lhe o pergaminho e pedi:

- Fazes-me o favor?

- Com certeza - retorquiu, altivo. - Diz o seguinte: "Faz-se saber que o califa al'Mutamid, Defensor dos Fiéis, decretou que o portador desta comunicação deverá obter a libertação imediata de certos escravos dele conhecidos, e que quem quer que tente impedir ou prejudicar a execução deste decreto estará a cometer uma traição e terá consequentemente de suportar a ira do califa." - Concluiu a leitura e enrolou o documento. - Suponho que merece a tua aprovação, não é assim?

- Sim, na verdade é tudo o que eu desejava. Agradeço-te mais uma vez, vizir Tabataba'i...

- Não me agradeças... - retorquiu o vizir, entregando-me o pergaminho. - Agradece antes a al'Mutamid... e agradece também a Alá o facto do califa se encontrar razoavelmente bem-disposto. As coisas podiam ter corrido de uma maneira muito diferente... - Fez uma vénia, tocou na testa em sinal de respeito pelo emir, virou-se e afastou-se.

- O vizir Tabataba' serve o califado e não o califa - informou-me Sadiq quando já nos encontrávamos a cavalo e atravessávamos os portões do palácio. - Ninguém melhor do que ele sabe acalmar as iras reais... - Pareceu-me ver uma nuvem a passar pelo rosto do emir, mas não consegui adivinhar os seus sentimentos. - De qualquer modo, sabia que o vizir nos entregaria um decreto apropriadamente ambíguo.

- Mais uma vez, estou em dívida para com a vossa prudência e inteligência, que retribuirei logo que me seja possível.

- Não há necessidade - declarou, abanando a cabeça. - Só lamento que tivesses de ver o califa na sua enfermidade, mas não havia outra solução. Mesmo assim, tal como disse o vizir, estava num dos seus melhores dias. É sabido que al'Mutamid já se tem despido e defecado em frente dos seus hóspedes, ou mergulhado em fúrias insaciáveis durante as quais manda empalar todos os servos em ferros em brasa. - Virou-se na sela e acrescentou: - Não imagines, nem pelo mais breve dos instantes, que Abu Ahmad partilha os atributos do irmão. Alá seja louvado! A mente de Abu é tão aguçada como a espada que usa no flanco, e é simultaneamente um filósofo e um príncipe. Tem oitenta mil homens sob o seu comando e todos eles com um único pensamento: morrer para maior glória de Deus e de Abu.

- É uma sorte para o povo que o califa tenha um tal irmão... - comentei.

O emir limitou-se a acenar e nada mais disse até já estarmos a desmontar no pátio do seu palácio.

- Esta noite... - declarou, deslizando da sela num único movimento fluído - será a última que passaremos em Ja'fariya. Comerás à minha mesa e mandarei a Kazimain à tua procura quando o momento for apropriado.

- Será como desejais, lorde Sadiq... - repliquei, tentando imitar a sua graça felina.

- Agora, vais ter de me perdoar - afirmou. - Tenho três esposas e determinadas obrigações para com cada uma delas. Como estaremos fora muitos dias, cabe-me fazer o que puder para cumprir os meus deveres maritais... tal como é próprio aos olhos de Alá.

- Com certeza... - repliquei - Seria um pecado não fazer aquilo que, por dever, tem de ser feito.

- Sabia que ias compreender, embora ainda não sejas um homem casado - declarou o emir. Fiquei a vê-lo afastar-se, com muita inveja do seu sentido do dever.

Passei o resto do dia a pensar no que iria dizer a Kazimain enquanto os servos do emir trabalhavam nos preparativos para a nossa jornada. Infelizmente, ainda não sabia o que lhe dizer quando ouvi o som dos passos familiares no corredor. Ver o seu rosto - radiante de felicidade quando entrou no quarto - só tornou essa tarefa ainda mais difícil.

Atravessou o quarto a correr, com duas passadas, e caiu-me nos braços de repente, atirando-me para cima da cama. Beijou-me uma vez, duas vezes, três vezes... e a seguir perdi-lhes a conta e afoguei-me nos seus abraços apertados. Parou para recuperar a respiração, segurou-me o rosto entre as duas mãos e olhou para mim. A luz da sua felicidade era como um raio incandescente que não só iluminava os seus olhos como também todo o quarto.

- Estive à tua espera todo o dia! - exclamou, pousando o queixo no meu peito e fitando-me nos olhos. - Os servos disseram-me que tinham saído para irem falar com o califa.

- É verdade - disse-lhe. - Fui obter a liberdade para os meus amigos. - Que profundos que eram os seus olhos... e que escuros...

- Tiveram êxito? - perguntou.

- Muito mais do que esperava - repliquei, contornando-lhe a curva dos lábios com a ponta de um dedo.

- E não estás satisfeito?

- Ah, mas estou - retorqui. - Muito satisfeito.

- Pois olha que não pareces. Tens um aspecto infeliz... - Voltou a beijar-me e acrescentou: - O banquete desta noite irá alegrar-te. Será apenas com a família do emir, pelo que poderemos sentarmo-nos juntos.

- Kazimain... - murmurei, afagando-lhe a face e sentindo as palavras entaladas na garganta.

A preocupação fê-la franzir as sobrancelhas.

- O que te preocupa...?

- Já deves ter reparado nos preparativos...

- Sim, o emir vai-se embora outra vez. Dizem que vai para Bizâncio.

- Vai, sim - confirmei - e eu vou com ele.

A luz desapareceu-lhe dos olhos como se tivesse sido apagada por um vento frio e a infelicidade envolveu-a como uma mortalha.

- Por que tens de ir?

- Desculpa, meu amor - respondi, estendendo a mão para ela, mas a jovem afastou-se.

- Porquê?

- Foi o preço da liberdade dos meus amigos... - expliquei, acrescentando - e também da minha.

- E concordaste com isso?

- Teria concordado com qualquer coisa. Sim, disse-lhe que iria.

- O emir procedeu mal ao tratar-te de uma maneira tão desumana. - Kazimain deu um salto. - Vou falar com ele imediatamente para o fazer ver que a sua atitude não é correcta.

- Não, Kazimain. - Levantei-me e estendi a mão para ela. - Não. Tem de ser assim. O emir precisa de mim em Bizâncio e essa necessidade é de tal ordem que me teria levado com ele de qualquer maneira. Fiz o melhor acordo que consegui...

- Foi errado obrigar-te a escolher! - insistiu.

- Tenho outras razões... - confessei - que são apenas minhas e também me obrigam a acompanhá-lo.

- Razões que não me incluem - declarou, acusadora.

- Sim - repliquei. - É difícil, eu sei... mas estou satisfeito.

- Pois olha, eu não estou! - atirou-me. Tinha o lábio inferior a tremelicar e lágrimas contidas a brilharem-lhe nos olhos.

Aproximei-me e passei os braços em volta dela. Aninhou a cabeça contra o meu ombro e ficámos assim durante longos momentos, agarrados um ao outro.

- Lamento muito, Kazimain - sussurrei. - Quem me dera que as coisas pudessem ser de outra maneira.

- Se vais, então eu também vou! - declarou, entusiasmando-se imediatamente com a ideia. - Vou contigo! Poderemos estar juntos, mostras-me a cidade e...

- Não, meu amor. - Magoava-me ter de lhe extinguir a chama de uma esperança que se acendera tão rapidamente. - É demasiado perigoso.

- É demasiado perigoso para mim, mas não para ti?

- Nunca faria a viagem se a necessidade a tal não me obrigasse - respondi. - Se fosse possível, ficaria aqui contigo para sempre.

Sacudiu as minhas mãos dos ombros e afastou-se, olhando-me com tristeza. Quando falou, a sua voz era tão suave como um sopro...

- Se fores, sei que nunca mais te voltarei a ver.

- Voltarei - insisti, mas era uma garantia a que a sua tristeza retirava toda a convicção. - Voltarei.

 

O jantar daquela noite pretendia ser um acontecimento festivo, com cantos, danças e música. Lorde Sadiq reclinou-se em almofadões à cabeceira da mesa comprida e baixa. Estava na companhia das esposas, que o foram alimentando com bocados escolhidos entre os vários pratos, travessas e tigelas que os servos da cozinha transportaram para a sala de banquetes numa torrente contínua.

Jantei com Faysal e com vários dos amigos mais íntimos do emir. Na nossa frente sentavam-se as mulheres que, como se tratava de uma refeição festiva, tinham sido convidadas a comer à mesa com os homens em vez de o fazerem nos seus aposentos. As conversas foram ligeiras e educadas, e ouviram-se muitas gargalhadas à nossa volta. Era claro que todos apreciavam aquele banquete de despedida. Contudo, para mim, o festim foi muito mais parecido com uma provação. Tinha Kazimain sentada na minha frente e sabia que a jovem se sentia muito infeliz. Contudo, era forçado a aguentar os seus silêncios de reprovação sem nada poder fazer para a alegrar ou para lhe aliviar o fardo da tristeza, e nem sequer para me justificar.

A comida era requintada e luxuosa, preparada de maneira a deliciar todos os sentidos, mas deu-me pouca ou nenhuma satisfação e foi como se a minha boca estivesse cheia de cinzas. A música, que tocou de um modo baixo e suave durante toda a refeição mas que se tornou muito mais viva logo que a terminámos e nos recostámos para ver as dançarinas, pareceu-me monótona e interminável.

Numa situação normal teria apreciado tanto o jantar como a música, saboreando aquela estranheza de sabores e de sons, mas a minha disposição abatida limitou-se a tornar-me irritável e inquieto. Queria fugir daquela sala e passar os meus últimos momentos a sós com a Kazimain. Queria abraçá-la e amá-la. Queria sentir nos meus braços a suavidade da sua pele, o calor e a submissão da suas carnes. Queria dizer-lhe... Infelizmente, era tanto o que lhe queria dizer que nem sequer conseguia pensar. A minha mente rodopiava, ansiosa, os meus pensamentos remoinhavam como folhas numa tempestade e não permitiam que me sentisse em paz.

Depois, quando a refeição terminou e as últimas dançarinas se foram embora, as mulheres levantaram-se da mesa e desapareceram por uma porta na extremidade mais distante da sala.

Tentei segui-las mas Faysal deteve-me, pousando uma das mãos no meu braço.

- Vão para o harim - informou-me, bem-disposto - onde nenhum homem pode entrar, nem sequer os amorosos de olhos arregalados...

- Mas... preciso de falar com a Kazimain... - insisti.

- Podes falar com ela amanhã - retorquiu, encolhendo os ombros. Amanhã será demasiado tarde, pensei, e resolvi seguir as mulheres.

Atravessaram um pátio iluminado por archotes e desapareceram para lá de uma alta porta. Quando me viu aproximar, o guarda do harim baixou a cabeça num gesto de respeito mas não fez qualquer tentativa para se desviar.

- Quero falar com a Kazimain - disse-lhe.

- Espere aqui, por favor - respondeu, numa voz suave e quase feminina, regressando apenas alguns instante depois para me informar que Kazimain não queria falar comigo.

- Disseste-lhe quem queria falar com ela? - perguntei.

- Disse... - replicou o guarda - mas a princesa Kazimain exprimiu o seu inestimável pesar e desejou uma boa noite ao seu futuro esposo.

- Mas eu... - comecei, apercebendo-me imediatamente que nem sequer sabia o que lhe poderia dizer. Regressei ao salão de banquetes e deixei-me cair nas almofadas.

- Aceita o meu conselho e come qualquer coisa... - incitou-me Faysal. - A jornada vai ser dura e não encontrarás comida como esta ao longo do caminho. Come! Diverte-te!

Todavia, não fui capaz de comer mais e deixei-me ficar sentado, mergulhado numa infelicidade agitada e cheia de remorsos, observando o divertimento dos que se encontravam à minha volta. Finalmente, quando o emir se retirou para os seus aposentos privados e pudemos continuar ali ou irmo-nos embora conforme o desejássemos, abandonei as celebrações e fui para o meu quarto, onde passei uma noite de inquietação e insónias.

A fraca luz da madrugada descobriu-me fatigado e nervoso. Levantei-me imediatamente logo que ouvi passos no corredor e só então compreendi que estivera à espera daquele som durante toda a noite. Contudo, não foi Kazimain quem entrou no quarto, mas sim um servo desconhecido que colocou a bandeja já familiar sobre o tripé de madeira. Perguntou-me se necessitava de mais alguma coisa e foi-se embora. Ignorei a comida, vesti-me e fiquei a olhar pela janela, vendo Ja'fariya a nascer para a vida sob os aquosos raios do Sol. Pensei ir em busca de Kazimain. Embora não me permitissem a entrada no harim, lembrei-me que talvez lhe pudesse enviar um recado para que se encontrasse comigo no pátio.

Acabara de me decidir por esse plano quando voltei a ouvir passos no corredor. Pensei que Kazimain, afinal, sempre resolvera aparecer e virei-me, na expectativa. Todavia, tratava-se apenas de um jovem servo e o coração caiu-me aos pés.

- Por favor, senhor... - disse o rapaz, com uma vénia rápida e quase imperceptível - mandaram-me dizer-lhe que os cavalos estão prontos.

Agradeci-lhe, lancei um último olhar ao meu pequeno quarto, peguei no rolo de pergaminho e enfiei-o com cuidado numa dobra no interior das vestes. Segui ao longo do corredor, desci as escadas e passei para o pátio onde os cavalos já se encontravam selados e à espera.

Por uma questão de rapidez, o emir decidira que viajaríamos com não mais do que dez dos seus rafiq. O emir, Faysal e eu elevávamos o esse número para treze. É o número dos monges que iniciaram aquela fatídica peregrinação, pensei, desanimado, achando que se tratava de uma infeliz coincidência. Podia ter rezado para que esta peregrinação tivesse mais êxito do que a anterior, mas Deus, como eu sabia muito bem, não prestaria atenção a uma única palavra. Por isso, preferi guardar o fôlego para a respiração.

O emir pensara em mim e mandara selar a bela égua cinzenta. Aproximei-me do local onde o moço de estrebaria a segurava pelas rédeas e falei como a égua, tal como vira Sadiq a fazer. Yaquin agitou a cabeça e tocou-me no pescoço com o focinho, dando sinais de se lembrar de mim.

- Ela gosta de ti...

Virei-me rapidamente e exclamei:

- Kazimain! Tinha a esperança de te ver antes de partirmos! Receei que...

- O quê? Que deixasse que o meu quase-esposo se fosse embora sem me despedir dele? - Aproximou-se e verifiquei que se libertara da tristeza e estava agora reconciliada com a necessidade da minha partida. Na verdade, pareceu-me alegre e resoluta... como se tivesse decidido aproveitar o melhor possível a minha ausência.

- Daria tudo para poder ficar contigo... - disse-lhe.

- Eu sei - declarou, com um sorriso. - Vou sentir a tua falta quando estiveres longe... mas a alegria será muito maior quando nos voltarmos a ver.

- Também vou ter saudades tuas, Kazimain. - Ansiava por poder tomá-la nos braços e beijá-la, mas isso era algo que não se podia fazer e que lhe daria má reputação entre os seus. Tive de me contentar em olhá-la e em gravar o seu rosto na memória.

Sentiu-se incomodada sob o meu olhar intenso e baixou os olhos para as mãos, que seguravam um pequeno embrulho envolto em seda.

- É um presente para ti - declarou. Agradeci-lhe e perguntei-lhe o que era, preparando-me para o abrir. - Não! - pediu, pousando a mão sobre a minha. - Não o abras agora! Mais tarde, quando já estiveres longe daqui... abre-o e pensa em mim.

- Está bem - concordei, enfiando o embrulho no cinto. - Kazimain, eu... - Era a minha oportunidade mas descobri que não estava melhor preparado do que antes. As palavras fugiam-me. - Lamento, Kazimain. Gostaria que as coisas fossem de outra maneira... A sério que gostaria...

- Eu sei - respondeu.

Sadiq emergiu do palácio naquele momento. Faysal fez sinal aos rafiq, que montaram nos seus cavalos e avançaram para o portão, e disse-me:

- Monta! Temos de partir!

- Adeus, Kazimain! - murmurei, desajeitado. - Amo-te...

Levou a mão aos lábios, beijou a ponta dos dedos e pousou-as nos meus lábios.

- Vai com Deus, meu amor... - sussurrou. - Rezarei por ti todos os dias até estarmos novamente juntos.

Abruptamente, virou-se e foi-se embora à pressa, desaparecendo por entre as colunas. Faysal voltou a chamar-me, trepei para a sela e seguiu-o. Avançámos pelas ruas de Ja'fariya, ainda vazias e onde o frio ainda se fazia sentir nos locais onde as sombras se mantinham. O emir cavalgava na frente da coluna, logo seguido por Faysal, que guiava as mulas de carga, e por mim.

Ultrapassámos rapidamente os portões da cidade e seguimos ao longo da estrada principal, que se estendia ao lado do Rio Tigre, rio que naquela época do ano pouco mais era do que um riacho intumescido e muito reduzido que corria por entre as margens de pedra. A pedra da região tinha um tom rosa-pálido e essa cor introduzira-se na terra, avermelhando a poeira e o solo. Quanto mais nos afastávamos da cidade mais desoladas se tornavam as serranias que nos rodeavam. Muito em breve deixávamos para trás as pequenas aldeias com as suas choupanas de barro rosado e estalado, bem como os campos de cultura escrupulosamente tratados.

Cavalgámos durante a manhã, fazendo apenas breves pausas para dar de beber aos cavalos. Nunca cavalgara durante um período tão longo e não precisei de muito tempo para começar a sentir uma dor nas pernas. Faysal reparou no meu incómodo.

- Dentro de alguns dias já te irás sentir como se tivesses nascido em cima da sela! - Riu-se ante a minha careta e informou-me: - Não te preocupes, meu amigo. Descansaremos durante as horas mais quentes do dia.

Contudo, naquela altura já o Sol estava tão quente que pensei que o local de descanso não deveria encontrar-se longe. Porém, ao verificar que Sadiq não dava sinais de querer parar, perguntei a Faysal se o emir se teria esquecido do descanso.

- Não se esqueceu, garanto-te! - respondeu, rindo-se. - Vês as árvores? - Semicerrou os olhos para a distância, onde se avistava um maciços escuro e empoeirado a destacar-se contra as rochas rosadas. - Podemos descansar ali.

Na verdade, podíamos ter descansado ali... mas não o fizemos. Atingimos o local e continuámos em frente. Olhei para trás com ansiedade. Faysal voltou a rir-se e apontou para outro maciço de árvores no horizonte. Infelizmente, também deixámos esse grupo de árvores para trás, bem como um terceiro, antes do emir virar a sua montada para a bem-vinda sombra de um bosque de tamareiras.

Saltei da sela no preciso instante em que a égua se deteve e só então compreendi até que ponto estava magoado. Mal me conseguia manter de pé e não era capaz de dar um passo sem estremecer.

- Primeiro, damos de beber aos cavalos... - declarou Faysal, com delicadeza, mas o significado das suas palavras era suficientemente claro. Arrastei-me atrás dele e conduzi a Yaquin para a margem do rio, onde podia beber à vontade. A seguir retirámos as selas às nossas montadas e prendemo-las debaixo das árvores com compridas cordas, para que pudessem pastar o que encontrassem por ali.

Foi só depois disso que nos refrescámos, regressando ao rio um pouco a montante do local onde os cavalos tinham bebido. Ajoelhámos no solo húmido, salpicámos as cabeças e enchemos as bocas de água, para logo a cuspirmos. A água tinha demasiado lodo para poder ser bebida, mas sempre servia para nos molhar as bocas. Satisfizemos a nossa sede com os odres de água transportados pelas mulas e instalámo-nos debaixo das árvores para descansarmos.

Os rafiq conversavam em voz baixa entre eles, e eu recostei-me, meio adormecido, escutando o murmúrio das suas vozes, semelhante ao preguiçoso zumbido de insectos na sombra por baixo das árvores. Não me recordo de ter adormecido. Na verdade, penso que nem sequer fechei os olhos... Estava apenas com as costas apoiadas numa árvore, olhando através da sombra das folhas para o céu azul por cima de nós quando, de repente, vi os céus a abrirem-se para revelarem uma grande cidade dourada.

Tentei gritar para que os outros também pudessem ver aquela maravilha mas a língua colou-se-me ao céu da boca e não consegui emitir um único som. Limitei-me a olhar, mergulhado num espanto emudecido, para a brilhante cidade que descia lentamente do céu. Aquele lugar glorioso cintilava com uma radiância que ultrapassava em muito qualquer luz terrena e foi isso o que fez saber que estava a olhar para a própria Cidade-Celestial.

Como que para confirmar esse meu pressuposto, ouvi um som semelhante ao de um oceano enfurecido, um ressoar profundo com um poder majestoso e ilimitado, uma voz capaz de abalar as fundações da Terra. O gemido do vento inchou até preencher todo o mundo. As minhas entranhas vibravam com aquele som e era como se o solo em que eu jazia se pudesse desfazer por baixo de mim e escorrer como água. Estranhamente, parecia que mais ninguém notava o terrível estrondear, ou os intensos e brilhantes raios de luz que nos rodeavam por todo o lado.

Tentei levantar-me para fugir dali, mas perdera o controlo dos membros e não me conseguia mexer. Só podia olhar, petrificado, vendo os habitantes da Cidade-Celestial, inteiramente vestidos de branco, a descerem para a Terra sob aqueles penetrantes feixes de luz. Eram anjos, que se precipitavam para a Terra para levarem a cabo as mais variadas mercês e intercessões, e o som que eu ouvia era o dos infindáveis movimentos das suas asas a baterem à medida que desciam.

Como era possível que aquele som não fosse ouvido entre os homens? interroguei-me, porque o poderoso rugido do vento permeava todo o mundo e enchia os céus. Na verdade, parecia-me mais substancial do que qualquer mera coisa criada, e também muito mais resistente, como uma espécie de tremenda coluna capaz de suster o tecido do mundo.

Um daqueles servos celestiais voou directamente para mim, caindo do céu como um raio. Era mais alto do que a árvore em que me reclinava, tinha um rosto que brilhava com toda a intensidade do Sol e olhou-me com uma terrível severidade.

- Por quanto tempo? - inquiriu, fazendo estremecer as folhas dos ramos com a força da sua pergunta.

Pareceu esperar uma resposta mas permaneci mudo na sua frente, ainda incapaz de abrir a boca. Como não falei, voltou a perguntar:

- Por quanto tempo, ó homem?

Não compreendi a pergunta. Talvez pressentisse a minha confusão, ou escutasse os pensamentos na minha cabeça, porque olhou para baixo e repetiu:

- Por quanto tempo, ó Homem sem Fé, vais continuar a ofender o céu com a tua arrogância?

Levantou uma das suas mãos radiantes, fez um gesto largo com o braço e vi todo o vasto exército celestial acampado à nossa volta, com os seus cavalos e carros de fogo. Não consegui suportar a visão e tive de fechar os olhos para que não ardessem e transformassem em cinzas no interior do meu crânio.

- Recorda-te - entoou o anjo - que toda a carne é erva.

Abri as pálpebras e voltei a olhar... mas os carros e os seus brilhantes ocupantes haviam desaparecido, bem como o mensageiro celestial que falara comigo.

Já conseguia mover-me e deixara de ter a língua presa. Olhei em volta e fiquei espantado ao ver que tudo continuava precisamente como dantes. Ninguém dava o mais leve sinal de ter visto ou ouvido alguma coisa. Os guerreiros continuavam sentados, a conversar, e os cavalos continuavam a mordiscar as ervas secas. Nada se modificara. Voltei a recostar-me contra a árvore e fechei os olhos. De certeza que o calor e o Sol se tinham combinado para me provocar um sonho acordado.

Foi o que disse para mim mesmo... e acreditei. Quando nos levantámos para continuarmos já me persuadira a mim mesmo de que não vira nem ouvira nada. Tratara-se apenas de um fugidio truque da minha imaginação. Se tivesse acontecido alguma coisa fora do vulgar... então de certeza que os outros também a teriam visto ou ouvido.

Esta tensa certeza permaneceu comigo durante o resto do dia. A pouco e pouco, o incidente foi-se apagando do meu cérebro. Os dias que se seguiram fundiram-se uns nos outros, como bocados de gelo a derreterem-se ao Sol sem nada que os distinguisse entre si. Cavalgámos, descansámos, comemos, dormimos e levantámo-nos para voltarmos a cavalgar. Cada fim de dia trazia consigo o avanço gradual da irregular linha de montanhas que se erguia a norte. Ao fim de cinco dias, virámos as montadas e avançámos para nordeste, na direcção das vertentes das serranias mais próximas.

- As minas são ali... - informou-me Sadiq, apontando uma fenda na parte inferior de um dos penhascos mais baixos. - Temos de atravessar aquela passagem para lá chegarmos.

- A que distância estão? - perguntei, com a antecipação a avivar-se dentro de mim. - Quantos dias?

- Talvez quatro... - respondeu o emir, pensando no assunto por instantes. - Sim, quatro, se tudo correr bem.

- E quanto mais até chegarmos à mina?

- Mais um dia. Os trilhos da montanha são muito maus. Prosseguimos com renovado vigor e cavalgámos com um passo mais rápido, como se quiséssemos chegar mais depressa ao nosso destino. Já passava muito do pôr do Sol quando parámos finalmente para o acampamento da noite. Estava tão cansado e preocupado com as guinadas de dor nas pernas, coxas e costas que pouco comi do guisado que Faysal preparou para o nosso jantar. Retirei-me logo a seguir para tratar das minhas dores envolto num tormento silencioso.

Contudo, o sono revelou-se esquivo. Jazi, fatigado e bem acordado, olhando para as estrelas que descreviam o seu longo e lento círculo na cúpula do céu. Sem o Sol para o inflamar, o ar tornou-se cada vez mais frio, ajeitei a capa à minha volta e fiquei à escuta do suave canto dos insectos ao longo do rio. Por fim acabei por me sentir ensonado e fechei os olhos.

Pareceu-me que as pálpebras ainda mal tinham tocado uma na outra quando ouvi uma voz no meio da escuridão.

- Levanta-te, Aidan - sussurrou a voz. - Segue-me.

Acordei, levantei-me e vi uma figura vestida de branco a afastar-se rapidamente.

- Faysal! - murmurei, não querendo acordar os que dormiam à minha volta. - Espera!

Deteve-se ao ouvir o som da minha voz mas não se virou. Debati-me para me pôr de pé e fui atrás dele a cambalear. Qual seria a ideia de Faysal, a acordar as pessoas a meio da noite?

Ainda não dera mais de dois ou três passos e já Faysal continuava a andar, deixando que o seguisse conforme pudesse.

- Faysal! - chamei, tentando não levantar muito a voz. - Espera! Conduziu-me até uma curta distância ao longo do rio, para um local onde o bosque de tamareiras se tomava mais ralo. Quando lá chegou, parou e esperou por mim. Arrastei-me o melhor que pude sobre o terreno rochoso, com a paciência a transformar-se rapidamente em aborrecimento a cada novo passo doloroso. Quando cheguei junto dele já ia muito irritado por ter sido obrigado a persegui-lo na escuridão.

- Então? - perguntei, com secura. - Que pode haver de tão importante para me despertares do meu sono?

Não deu sinais de me ter ouvido e continuou a olhar para o outro lado do rio.

- Faysal! - insisti, num tom mais alto. - Que se passa contigo? Ouviu as minhas palavras, virou-se... e descobri-me a olhar para o rosto do muito querido - e muito morto -, bispo Cadoc.

 

Cadoc olhou-me por baixo das sobrancelhas descidas.

- Estou desapontado contigo, Aidan... - declarou, acerbo. - Extremamente desapontado... e desgostoso. - O bom bispo tinha o rosto redondo contorcido numa careta e soltou um estalo seco com a língua, como se sentisse vexado. - Tens alguma noção dos problemas que a tua desobediência está a provocar? O abismo está a abrir-se na tua frente, rapaz! Vê se acordas!

- Bispo Cadoc... - respondi, com o aborrecimento a juntar-se à estranheza daquele encontro - como é que veio aqui parar? Assisti à sua morte!

- Sim, foi uma grande dádiva... e repara no que fizeste com ela! - grunhiu, com um rosto amargo e desaprovador. - Achas que posso pôr-me de lado e ver-te a obliterar tudo o que foi realizado em teu nome desde o momento em que nasceste até agora? - Fitou-me com uma expressão indignada. - Então? Que tens a dizer em tua defesa?

Fui incapaz de enquadrar uma resposta apropriada e limitei-me a olhar para a aparição que tinha na minha frente. Era o bispo Cadoc, sem qualquer espécie de dúvidas. Contudo, embora as feições fossem as mesmas, exsudava saúde e vitalidade muito para lá das que eu sabia que possuíra. Na realidade, parecia-me muito mais vivo do que muitos vivos, e os olhos que me olhavam com tanta desaprovação não pareciam porvir de um outro mundo e mostravam-se tão afiados como uma lâmina de dois gumes. O seu simples traje de monge não era branco, como eu imaginara, mas sim de um material reluzente que lhe iluminava ao de leve o rosto e as mãos com um clarão algo semelhante ao do luar, embora diferente, o que fazia com que parecesse encontrar-se sob uma luz reflectida.

Curioso, estendi a mão para lhe tocar, para ver se a sua forma era tão sólida como parecia.

- Não! - exclamou, levantando a mão, num aviso. - Isso não é permitido. - Apontou uma rocha próxima e disse: - Agora, senta-te e ouve o que tenho para te dizer.

- Não sou um... - comecei, mantendo-me teimosamente de pé.

- Senta-te! - ordenou... e eu sentei-me.

O bispo de Cennanus na Rig assentou os punhos nas ancas e fitou-me, furioso.

- O teu orgulho quase empurrou a peregrinação para um falhanço perigoso!

- O meu orgulho!? - exclamei, dando um salto. - Mas... se eu não fiz nada!

- Senta-te e escuta! - ordenou, com firmeza. - A noite irá terminar em breve e terei de regressar.

- Para onde?

Ignorou a minha pergunta e prosseguiu:

- Liberta-te desse teu maldito orgulho, irmão. Torna-te humilde perante Deus, arrepende-te e implora o perdão enquanto ainda é tempo. - Fez uma pausa e as suas feições suavizaram-se. Quem nos visse, poderia pensar que éramos dois monges a conversar ao luar e que um clérigo superior estava a repreender um noviço.

- Olha para ti, a chafurdar na arrogância e na auto-piedade, afogado em dúvidas... e tudo por causa de um pequeno desapontamento e dos pequenos vexames das incertezas. Que sabes tu seja do que for?

- Foi Deus quem me abandonou... - murmurei - e não o oposto.

- Ah, sim... - retorquiu, trocista - o teu precioso sonho! Fizeram-te uma grande dádiva mas deitaste-a fora. Vejo que tratas todas as dádivas do mesmo modo, apenas com desprezo.

- Dádiva! - exclamei. - Eu devia ter morrido em Bizâncio! Que espécie de dádiva era essa?

A aparição rolou os olhos, exasperada.

- Valha-me Deus, não costumavas ser assim tão estúpido! Muitos homens - e refiro-me aos homens perceptivos - dariam o que fosse preciso para saberem quando iriam morrer!

Nem conseguia acreditar no que estava a ouvir e olhei, incrédulo, para a forma suavemente luminosa do bispo.

- Ah, sim, foi uma grande dádiva - resmunguei. - Fui para Bizâncio acreditando que iria morrer e disposto a enfrentar o martírio em nome de Cristo. Na verdade, estava preparado para a morte, mas nada aconteceu... Nada!

- Portanto, ficaste desapontado! - troçou a aparição do bispo, adoptando tom de alguém muito habituado a exortar pupilos pouco inteligentes. Não respondi e devolvi-lhe o olhar, furioso. Cadoc franziu a testa e respirou fundo.

- Se tivesses meditado mais profundamente no significado do teu sonho... - disse.

- E que diferença faz isso agora? Esse assunto está arrumado!

- Para te dizer a verdade, Aidan mac Cainnech... - declarou, com um desagrado solene - estás a começar a irritar-me.

E eu estou louco, pensei. Ali estava eu, a argumentar com a aparição de um morto, no meio da noite. Devo estar a perder o juízo. Primeiro foram os anjos e agora os espíritos dos mortos. O que vira a seguir?

- E foi isso o que me vieste dizer? - inquiri, ácido.

- Não, filho - respondeu, numa voz mais suave. - Vim para te avisar e para te encorajar. - Inclinou-se para mim, ansioso. - Tem cuidado, há grandes perigos a amontoarem-se sobre ti e forças altamente colocadas que procuram a tua destruição. Continua pelo caminho que estás a seguir... e o abismo irá reclamar-te.

- Não há duvida de que está a ser muito encorajador - murmurei.

- Isto foi o aviso! - retorquiu o bispo morto. - Porém, também te digo outra coisa: alegra-te, irmão! A corrida está a chegar ao fim e o prémio aguarda-te. Persevera!

Assim dizendo, começou a afastar-se de mim... e digo "afastar-se" porque, embora nem sequer tivesse mexido um pé, pressenti uma espécie de movimento e começou a desaparecer da minha vista, tornando-se rapidamente mais pequeno como se se deslocasse para muito longe.

- Recorda-te: toda a carne é erva! - gritou, com a sua voz a morrer ao longe. - Mantém os olhos no prémio!

- Espera! - gritei, dando um novo salto.

As suas palavras ainda me chegaram aos ouvidos, já muito fracas e vindas de uma grande distância:

- Toda a carne é erva, irmão Aidan! A corrida está a chegar ao fim! Adeus...

Cadoc desapareceu da minha vista, voltei a mim com um sobressalto e olhei em volta. O acampamento estava tranquilo e silencioso, os homens dormiam. A oeste, muito baixa, a Lua ainda brilhava, mas o rosado da madrugada já manchava o céu oriental. Fiquei ali de pé durante um bocado, tentando compreender o que me acontecera. Fora um sonho, decidi. Que mais poderia ter sido? Contudo, ao contrário dos meus outros sonhos, este fizera com que me levantasse e caminhasse a dormir, coisa que anteriormente nunca me acontecera.

Senti-me tolo, de pé, no escuro, falando comigo mesmo... pelo que rastejei de volta ao meu lugar por baixo da árvore, envolvi-me na capa e tentei voltar a adormecer. A luz do dia acordou os outros pouco tempo depois. Quebrámos o jejum com os restos da refeição da noite anterior, selámos os cavalos e prosseguimos a nossa jornada.

Os estranhos acontecimentos do dia anterior tinham-me deixado com uma disposição pensativa. Cavalgava ao lado de Faysal, tal como antes, mas a minha mente encontrava-se muito longe e estava preocupada com tudo o que eu vira e ouvira. Regressava constantemente às mesmas palavras: toda a carne é erva. Fora o que o anjo me dissera, e o que o bispo Cadoc também me dissera. Achei esse facto curiosamente reconfortante uma vez que, no mínimo, os meus dois visitante espectrais estavam de acordo um com o outro.

As palavras propriamente ditas eram das Sagradas Escrituras. Copiara salmos suficientes para ser capaz de as reconhecer. Era frequente que os profetas comparassem o homem e o seu tempo de vida com as ervas efémeras que verdejavam de madrugada, apenas para serem consumidas pelo fogo do Sol e sopradas pelos ventos do deserto.

Pensei naquilo enquanto cavalgava e perguntei a mim mesmo quanto tempo se passara desde a última vez em que meditara sobre qualquer coisa das Sagradas Escrituras.

Outrora, as Sagradas Escrituras haviam sido toda a minha vida e agora pouco pensava nelas, só o fazendo com grandes intervalos. A melancolia abateu-se sobre mim e interroguei-me sobre de que mais me conseguiria lembrar.

Os meus esforços foram imediatamente recompensados: Todos os homens são como as ervas, e toda as suas glórias são como as flores dos campos. Era uma frase de um dos profetas, penso que de Isaías. A seguir lembrei-me de outra, dos Salmos: Tu, Senhor, varres os homens para o sono da morte. São como as ervas da manhã. Rebentam de novo pela manhã mas à noite já estão secas e ressequidas.

Logo que comecei vieram-me à cabeça outros fragmentos das escrituras. Considerei aquele exercício mental como sendo relativamente divertido, uma vez que, no mínimo, sempre servia para aliviar a monotonia da cavalgada. Secam mais depressa do que as ervas, e tal é o destino daqueles que esquecem o Senhor. Sim, copiara isso uma ou duas vezes mas não conseguia recordar-me da origem da frase embora o meu cérebro se esforçasse. Contudo, a mensagem era suficientemente clara e fez-me perguntar a mim mesmo se me esquecera do Senhor. Não, concluí, fora o Senhor que me esquecera.

Houve um outro versículo que me subiu à superfície da mente, vindo das profundezas da memória: Quem sois vós para recear os homens mortais, que são como as ervas, para vos esquecerdes que foi Deus, o vosso Criador, quem criou os céus e estabeleceu os fundamentos da Terra?

A pergunta atingiu-me de um modo tão directo e com tanta força que me virei na sela para ver se Faysal tinha falado. Todavia, cavalgava com a cabeça dobrada sob o Sol e tinha os olhos fechados. Alguns dos outros também dormitavam sobre as selas e era óbvio que ninguém me prestava atenção.

A pergunta voltou a ressoar na minha cabeça com uma insistência que parecia requerer uma resposta: Quem era eu, para temer os homens mortais e esquecer o meu Pai? Fora o medo que me conduzira ao esquecimento? Talvez... mas parecia-me mais provável que o esquecimento conduzisse ao medo. Para além disso, a questão implicava que era uma loucura recear meros mortais quando só o Criador do Céu e da Terra detinha poder sobre a alma. Era óbvio que, se o medo fosse dinheiro, então Deus era o tesoureiro que exigia o pagamento.

Ah, mas não era o medo que me preocupava: não tinha medo, estava zangado! Entregara-me todo a Deus e este rejeitara a dádiva. Abandonara-me, retirara a mão que me guiava e lançara-me à deriva num mundo que não sabia o que era a piedade ou a justiça.

Como que em resposta a esta observação, houve outro fragmento de Escritura que me chamou a atenção: não te atormentes com os maus nem tenhas inveja dos que cometem o mal porque, tal como as ervas, em breve secarão e morrerão. Esta eu conhecia, era dos salmos. Deste modo, dera a volta e regressara outra vez ao princípio. Porém, que quereria dizer toda esta conversa a respeito de carne, ervas, medo e esquecimento? Qual era o seu significado?

Parámos para descansar quando o Sol escaldante atingiu o alto da sua subida. Bebemos um pouco de água e deitámo-nos por baixo de um espinheiro. As últimas árvores já se encontravam muito para trás de nós e tudo o que dava sombra e abrigo nas serranias ásperas e secas eram arbustos com folhas semelhantes a couro e longos espinhos aguçados. Tentei dormir mas o chão era duro e irregular, e a minha mente regressava constantemente às perguntas que me tinham ocupado durante toda a manhã.

A implicação sugerida pelos fragmentos de Escrituras libertos pelo meu espírito agitado era a de que permitira que o desapontamento se transformasse em amargura e dúvida, e que estas, por sua vez, haviam corroído a minha fé. Talvez fosse verdade... Mas tinha todo o direito a sentir amargura! No fim de contas, Deus abandonara-me. Durante quanto tempo era obrigado a manter-me fiel a um Deus que já não se preocupava comigo?

Fiz o que pude para pôr o assunto para trás das costas mas aquelas perguntas continuaram a mordiscar-me durante todo o dia. Não consegui atingir a paz e resolvi envolver o Faysal na discussão.

- O que consideras como sendo a maior dádiva... - perguntei-lhe, enquanto cavalgávamos pelo íngreme trilho que subia a montanha - conhecer a data da nossa morte ou continuar a ignorá-la?

Depois de ponderar durante algum tempo, respondeu:

- Há grande vantagens em qualquer dessas duas situações...

- Isso não é resposta.

- Permite-me que termine... - ripostou. - Parece-me que o destino do homem é permanecer ignorante da sua morte até ao momento em que esse infeliz acontecimento se precipita sobre ele. Por isso, estou persuadido que Alá ordenou as coisas desse modo para nosso próprio bem...

- Mesmo assim... - insisti - se a escolha fosse tua, qual preferirias? Pensou por instantes e inquiriu:

- Será provável que isso me venha a acontecer?

- Suponho que não, mas...

- Nesse caso, não é necessária uma resposta.

- A tua fuga à pergunta sugere que consideras esse conhecimento como uma maldição e não como uma dádiva.

- Não foi o que eu disse - protestou Faysal. - Deturpas as minhas palavras.

- Pois é... Se ainda não disseste nada... - salientei - como é possível que deturpe as tuas palavras?

Continuámos a conversar durante algum tempo mas acabámos por perder o interesse numa troca de palavras sem qualquer utilidade. Mais tarde, quando os homens preparavam o acampamento para a noite, descobri-me sentado ao lado de Sadiq enquanto este observava o vale que havíamos atravessado naquele dia. O Sol poente inflamava as rochas e tingia as sombras de violeta. Ao longe, para o Sul, o céu crepuscular ganhara um tom rosado.

- Vem aí uma tempestade - afirmou Sadiq, observando o céu do sul.

- Óptimo... Um pouco de chuva será bem-vinda.

- Não há chuva nesta época do ano - replicou o emir. - É vento.

- Uma tempestade de areia? - Senti um sobressalto no coração.

- Sim, uma tempestade de areia. Se Alá o desejar, poderá passar a leste de nós... - Abandonou a sua inspecção ao céu e olhou-me com o mesmo escrutínio severo. - O Faysal disse-me que andas a falar a respeito da morte.

- É verdade - admiti, e expliquei-lhe o tema da nossa discussão. Como pareceu interessado no assunto, perguntei-lhe se consideraria o conhecimento da morte como uma dádiva.

- Claro que sim! - replicou, sem hesitação.

- Então porquê? - perguntei. Fiquei intrigado e confessei que não via qualquer benefício nesse conhecimento.

- É nisso que te enganas. Um homem armado com um tal conhecimento estaria livre para levar a cabo grandes coisas.

- Livre? - Admirei-me com o uso que dera à palavra. - Porque dizes "livre?" Parece-me que um tal conhecimento seria um fardo terrível.

- Sim, para alguns talvez fosse terrível - concordou o emir. - Para outros, seria uma libertação. Se um homem tivesse conhecimento prévio da sua morte... então também conheceria todos os locais onde a morte o poderia reclamar. Desse modo, ficaríamos livres de todo o medo e podíamos fazer o que mais nos agradasse. - A excitação transmitiu entusiasmo às suas palavras. - Imagina só! Um homem podia ser um herói numa batalha, enfrentando todos os perigos e lutando com uma tremenda coragem... porque tinha a certeza de que não iria ser morto!

- E que aconteceria - insisti - quando esse homem chegasse finalmente ao lugar designado pela sua morte?

- Ah! - replicou Sadiq, virando novamente os olhos para o vale. - Quando chegasse a esse lugar também não sentiria medo porque já se teria preparado devidamente para um tal encontro. O medo nasce da incerteza. Quando as certezas são totais, não há medo.

Pensei que aquela linha de raciocínio não era muito convincente, em particular porque eu já vivera com o conhecimento da morte. De acordo com a minha experiência, só servia para tornar as coisas mais difíceis e não mais fáceis.

Ainda meditava no que Sadiq me dissera quando este se levantou abruptamente.

- Ya'Allah!- murmurou, baixinho.

Levantei os olhos, vi que o emir observava o vale e que tinha os olhos postos no ponto em que o trilho começava a sua tortuosa subida até à saliência onde nos encontrávamos. - Que estás a ver? - perguntei-lhe, acompanhando-lhe o olhar. Contudo, Sadiq já se afastava à pressa e respondeu por cima do ombro:

- Estamos a ser seguidos!

 

Não deixei de olhar para o local que Sadiq indicara e apercebi-me de um ligeiro movimento no fundo do vale. Era uma figura solitária, com a cor do deserto, que prosseguia a sua jornada ao longo do trilho. Esforcei os olhos para ver um pouco melhor e distingui, embora com alguma dificuldade, a forma de um cavalo que se arrastava por trás da figura. Muito em breve, as sombras do crepúsculo iriam fazê-las desaparecer da nossa vista.

- Recua! - ordenou-me Sadiq, pelo que me afastei do rebordo da saliência perguntando a mim mesmo como fora que o emir avistara o nosso perseguidor. A figura era quase impossível de ver mesmo depois de me ter mostrado para onde tinha de olhar. A resposta que me surgiu foi a de que o emir avistara o perseguidor porque sabia que ele lá estava e o procurava, coisa que provavelmente já fazia há muito tempo.

Escondemo-nos entre os rochedos caídos de cada lado do trilho e preparámo-nos para esperar. Foi uma espera longa... e o nosso perseguidor não apareceu. Depois de ter deixado passar o tempo que julgou conveniente, Sadiq abandonou o esconderijo e arrastou-se mais uma vez para a saliência, onde se deitou sobre a barriga e olhou para o vale por instantes antes de voltar para junto de nós dizendo-nos que podíamos ficar à vontade.

- O nosso amigo montou acampamento para a noite - explicou. - É muito desagradável viajar sozinho... e acho que temos de o persuadir a juntar-se a nós, em volta desta fogueira. - O emir escolheu quatro do seus rafiq para levarem a bom termo essa tarefa. - Não façam barulho - avisou - para não inspirarem demasiado medo ao nosso hóspede.

Os quatro homens desceram para o vale a pé, deixando os restantes a montarem o acampamento. Enquanto Faysal e os outros tratavam do que era preciso, o tom azul-escuro do crepúsculo aprofundou-se, as estrelas começaram a brilhar no céu e já era inteiramente noite quando o grupo de boas-vindas regressou com o nosso perseguidor solitário.

Surgiram abruptamente da escuridão, emergindo para o círculo de luz da fogueira do acampamento. Comecei por ver os dois guerreiros que conduziam o estranho, com o terceiro logo atrás e o quarto a guiar um cavalo e um burro. Mergulhámos no silêncio quando os vimos aparecer e Sadiq levantou-se.

- Ainda bem que foi possível persuadir-te a juntares-te a nós - declarou, falando para a figura ainda envolta em escuridão.

Espreitei para o negrume para lá da fogueira e distingui uma forma delgada que estava envolta, dos pés à cabeça, num traje claro.

- Avança, meu amigo - insistiu Sadiq. - Senta-te connosco, aquece-te à fogueira e partilha da nossa refeição.

A figura permaneceu em silêncio e não fez qualquer movimento para aceitar o convite de Sadiq. Os guerreiros também não se mexeram e permaneceram rígidos, como se tivesse medo ou se sentissem embaraçados por se encontrarem demasiado perto do estranho.

- Por favor - insistiu o emir, num tom mais firme. - O meu próximo convite pode não ser tanto do teu agrado...

O estranho baixou o capuz e avançou para o círculo de luz.

- Kazimain! - gritei, pondo-me de pé num salto.

- Ah, Kazimain... - suspirou o emir, sacudindo a cabeça, aborrecido. Dirigi-me para ela com a ideia de a abraçar, mas os Filhos de Alá consideram que é um pecado ver um homem e uma mulher a tocar-se, pelo que parei na sua frente, inseguro, consciente de que todos os olhos estavam postos em nós e também do inevitável desagrado de lorde Sadiq.

- Kazimain? - sussurrei, implorando uma explicação.

Fitou-me com os seus olhos negros e desafiadores. Pareceu prestes a dizer qualquer coisa mas pensou melhor, passou por mim e instalou-se junto da fogueira. Sadiq observava a sua parente com uma expressão simultaneamente de orgulho exasperado e de aborrecimento a marcar-lhe o rosto. O aborrecimento venceu.

- Não devias ter vindo - acabou por dizer.

Kazimain não lhe prestou a mínima atenção e estendeu as mãos para o fogo. Não havia dúvidas de que previra aquele encontro e se preparara para o que teria de dizer.

- É caso para pensar que não estás satisfeito por me ver, tio - comentou, com a sua voz doce e suave.

- Foi um acto estúpido. - O emir franziu a testa, mandou os homens embora para irem tratar das suas tarefas e sentou-se, dobrando as pernas por baixo dele. Pousou as mãos nos joelhos e prosseguiu:

- Há homens cruéis nestas montanhas. Podias ter morrido... - fez uma pausa - ou sofrido algo ainda pior do que isso.

Kazimain levantou a cabeça e olhou-o com um desdém quase real.

- Nunca perdi o emir de vista - replicou, com frieza. - O seu braço será tão curto que não me pudesse proteger?

- Mantiveste-te escondida durante todo este tempo? - perguntei.

- O fogo está quente... - retorquiu, estendendo as mãos para as chamas - e é um luxo que não me pude permitir. - Olhou-me de relance, com um leve sorriso de superioridade a tocar-lhe os lábios. Se o emir, soubesse, ter-me-ia enviado de volta a casa.

- O emir vai enviar-te de volta a casa! - declarou Sadiq, com decisão.

Kazimain inclinou a cabeça num gesto elegante.

- Se for essa a tua decisão, não discordarei.

- Não devias ter vindo - repetiu Sadiq. - Nenhuma filha minha teria feito uma coisa destas.

- Não duvido que as tuas filhas por nascer sejam mais bem-com-portadas do que eu - ripostou Kazimain.

- A tua desobediência é vergonhosa e imprópria. - A frustração começava a contrair a voz do emir.

- Perdoa-me, tio - respondeu Kazimain - mas não me parece que me tenhas proibido de viajar. Em que foi que te desobedeci?

- Será que tenho de prever todas as possibilidades? - atirou-lhe Sadiq. Agarrou num pequeno pau, partiu-o e lançou-o para o fogo. - Esta insolência é intolerável. Regressarás imediatamente a Ja'fariya.

- Se é essa a tua ordem... - retorquiu Kazimain, levantando-se e virando-se como se quisesse obedecer sem mais delongas.

- Ya'Allah! - murmurou Sadiq. - Os camelos são menos embirrentos! - Olhou para mim, fez uma careta e disse: - Fica, Kazimain. Ninguém vai partir para lado nenhum a estas horas da noite. Amanhã ainda irás a tempo.

- Será como desejares, senhor... - Kazimain regressou ao seu lugar junto ao fogo, numa verdadeira imagem de mansidão e obediência.

- Amanhã, de madrugada... - declarou Sadiq - serás escoltada de volta a Samarra, pois é aí o teu lugar.

- Compreendo - respondeu a jovem.

Por momento, ficámos os três sentados, envoltos num silêncio incómodo. O assunto estava arrumado e já não havia mais nada a dizer. Sadiq olhou para mim, para Kazimain e de novo para mim. De repente levantou-se e afastou-se, dando ordens a um dos seus homens para se ocupar do cavalo e do burro de Kazimain.

Resolvi não perder um instante porque aquilo era o máximo de privacidade que iríamos conseguir. Inclinei-me para mais perto e sussurrei-lhe:

- Kazimain, por que foi que vieste?

- Precisas de perguntar, meu amor? - retorquiu, olhando para o fogo, não fosse alguém ver que estava a falar comigo e ficasse ofendido.

- Lorde Sadiq tem razão, é perigoso. Podia ter-te acontecido alguma coisa...

- Também estás zangado comigo? - perguntou, com a testa ligeiramente franzida.

- De modo nenhum, meu amor, mas...

- Pensei que ficarias satisfeito ao ver-me...

- - E estou, mais do que me é possível afirmar, mas correste um risco terrível.

Abanou a cabeça e disse:

- É possível... mas pensei que valia a pena, para poder ver-te outra vez...

Finalmente, resolveu virar-se para mim. A luz das chamas a tremeluzir na sua pele fez com que o meu coração se derretesse de saudades. Queria tomá-la nos braços e beijá-la para sempre, mas nem sequer lhe podia tocar na mão. Quase me contorcia de desejo.

- Sabia... - continuou - que nunca mais te voltaria a ver se saísses de Samarra. Por isso, decidi vir contigo.

- E agora vais ter de regressar...

- Sim, foi o que disse lorde Sadiq... - concordou, mas disse-o num tom que me fez desconfiar.

Quatro dias mais tarde chegámos ao enorme portão de madeira do campo de escravos que era a mina do califa. Kazimain continuava connosco porque, na manhã seguinte, depois do emir ter decretado o seu regresso, a jovem salientara com todo o respeito que se o tio se preocupava tanto com a sua segurança então devia permitir-lhe que prosseguisse a jornada porque estaria mais segura junto dele e dos guardas do que se tivesse de voltar para trás sozinha ou com uma escolta de apenas dois ou três homens. O emir replicara dizendo que a enviaria com metade dos seus homens, ao que Kazimain afirmara que a proposta lhe parecia desnecessariamente arriscada porque comprometeria a própria missão do emir.

- Por outro lado - insistira Kazimain - embora nada saiba sobre as vossas finalidades, estou persuadida que há ocasiões em que a presença de uma mulher pode ser consideravelmente valiosa.

Sadiq não estava muito certo a esse respeito mas Faysal concordara com toda a convicção.

- É verdade, meu senhor emir... - afirmara. - O próprio Profeta - que a graça e a paz o acompanhem para sempre - alegrava-se frequentemente com a ajuda da esposa e das familiares, tal como todos sabemos.

No fim, Sadiq deixara-se persuadir - mesmo contra os ditames do bom senso, é preciso afirmá-lo - e permitira que a sobrinha continuasse connosco.

- No entanto, só nos acompanharás até ser possível tomar as medidas apropriadas para te mandar para casa - afirmou. Kazimain, é claro, concordou mansamente, tal como sempre.

Não obstante o Sol continuar muito quente, deixámos o calor das terras baixas para trás e entrámos nas alturas mais frescas das vertentes enquanto avançávamos firmemente em direcção às serranias. De vez em quanto sentíamos uma brisa refrescante nos rostos e dormíamos mais confortavelmente durante a noite. Fomos seguindo o trilho, dia após dia, e chegámos à mina quatro dias depois de termos saído do vale.

É evidente que estava ansioso por libertar os meus amigos e essa sua libertação passou a ocupar todos os meus pensamentos desde o primeiro momento em que tive um relance, ainda muito ao longe, dos madeiros pintados de branco do portão da mina. Agora que me encontrava perante esse mesmo portão - completamente escancarado, como se troçasse da liberdade que era negada aos que lá se encontravam dentro, tinha que me esforçar muito para não saltar da cela e correr para a casa do superintendente-geral para lhe ordenar que lhes retirasse os grilhões e os libertasse.

Contudo, Sadiq foi contra um comportamento tão precipitado.

- Talvez me concedas o prazer de te ajudar... - propôs. - O superintendente pode não querer aceitar o pedido de um antigo escravo, mas não o recusará com tanta facilidade se for eu a fazê-lo.

Escutei as suas palavras e o velho ódio doentio voltou ao de cima dentro de mim. Senti mais uma vez as dores da opressão nos meus ossos e a mordedura do chicote. Sentia frustração da fraqueza, da exaustão do corpo e da alma, e da constante perspectiva da morte. A única coisa que desejava era conseguir que os que tinham praticado aquelas injustiças sofressem o mesmo que eu sofrera.

- Obrigado, lorde Sadiq - respondi, endireitando-me na sela - mas quero ser eu próprio a falar com ele.

- Com certeza - replicou o emir - a escolha é tua. Todavia, estarei pronto para te ajudar se os teus esforços não obtiverem os resultados desejados.

O emir olhou-me, tentando perceber toda a profundidade das minhas intenções. A seguir, tomando o ar de um homem que encarrega alguém de uma missão perigosa, chamou Faysal e três dos seus rafiq para que me acompanhassem.

- Leva o Bara, o Musa e o Nadr contigo - ordenou - e sirvam Aidan como se me estivessem a servir.

Satisfeito com os preparativos, Sadiq desmontou para aguardar o meu regresso e disse:

- Sê sábio, meu amigo, tal como Alá é sábio.

Olhei para Kazimain, que me favoreceu com um sorriso de encorajamento enquanto repunha o véu. A seguir virei-me na sela, agarrei nas rédeas e atravessei mais uma vez por aquele odioso portão, sentindo o lento calor da ira a fervilhar no meu coração. É hoje... pensei, que a vingança começa. Assim seja.

Avançámos através do estreito caminho no meio do amontoado de habitações, até atingirmos a poeira da praça queimada pelo sol, no exterior da casa caiada de branco do superintendente-geral. Conservei-me na sela e fiz sinal a Faysal para chamar o homem, o que ele fez com um grande grito.

Suponho que a notícia da nossa chegada fora transmitida ao superintendente logo que nos tínhamos aproximado do portão, isto porque o homem apareceu à porta da casa para nos olhar por instantes antes de sair. Consegui ver a cabeça coberta pelo turbante branco, imóvel no escuro do interior, enquanto observava os inesperados visitantes.

Faysal voltou a chamar e o superintendente saiu para o exterior, pestanejando sob o Sol.

- Saudações em nome de Alá! - declarou. - Que fazem aqui? Não me dei ao trabalho de desmontar e falei-lhe do alto da sela.

- Vim pela libertação de escravos.

Não me pareceu que me tivesse reconhecido, mas recordava-me bem dele: era o superintendente do poço que Dugal atacara de uma maneira precipitada, numa acção que conduzira à nossa tortura. Encontrava-se agora ao Sol, com os pequenos olhos porcinos a olharem-nos de esguelha, tentando descobrir como tirar vantagens daquela nossa inesperada exigência.

As rugas do seu rosto queimado pelo Sol reordenaram-se e exibiram uma expressão astuta.

- E quem és tu, para falares assim comigo?

- Sou Aidan mac Cainnech... - respondi - conselheiro de J'amal Sadiq, emir de Samarra.

Encolheu-se um pouco ao ouvir o nome, uma vez que as suas recordações sobre o tratamento que os homens do emir haviam dado ao seu antecessor ainda se encontravam frescas.

- O emir não tem qualquer autoridade aqui - declarou. - Quem faz o pedido?

- O califa al'Mutamid, Protector dos Fiéis. O superintendente-geral tornou-se matreiro.

- Presumo que o possas provar?

Peguei no decreto do califa e passei-o a Faysal, que se debruçou na sela e o entregou ao superintendente. O homem soltou a fita de seda e desenrolou o pergaminho. - Presumo que sabes ler? - perguntei.

Franziu o rosto enquanto examinava o documento. Passados instantes, baixou o pergaminho e olhou para mim. Dessa vez pareceu descobrir qualquer coisa de familiar no meu rosto mas era óbvio que não se lembrava onde me tinha visto.

- Desce desse teu arrogante poleiro, meu amigo... - disse - e discutamos este assunto cara a cara.

Olhei-o do alto do cavalo e senti a repulsa dentro de mim. Que Deus me ajudasse... mas eu desprezava aquele homem, que não passava de uma vil criatura.

- Não temos nada a discutir! - ripostei. - Dir-te-ei os nomes dos que têm de ser libertados... e irás libertá-los.

- Num sítio como este, os nomes não têm qualquer significado - declarou, enquanto o seu rosto se fechava como um punho. Era verdade e devia ter-me lembrado disso. O homem pensou que me frustrara e permitiu-se um sorriso pedante.

- Para mim, não faz diferença - respondi, com frieza. - Vais reunir os escravos e escolherei aqueles de que necessito.

- Todos os escravos? - balbuciou, deixando escapar as palavras como água a saltar de um pote prestes a ferver. - Mas... são centenas... e estão espalhados por todas estas serras! Vai ser preciso um dia inteiro para os reunir a todos!

- Nesse caso, sugiro que comeces imediatamente.

- Vou perder a prata de um dia de trabalho! - guinchou o homem. - Voltem amanhã! Voltem de madrugada e poderão vê-los a todos antes de iniciarem o seu trabalho!

- Recusas-te a obedecer a um emissário do califa?

- Estás a ser precipitado... - respondeu o superintendente. - O que me pedes é muito difícil. Há muitas questões a ter em conta. - A sua expressão ofendida suavizou-se. - Não há necessidade de invocar o nome do califa. O assunto é apenas entre nós dois.

- Foi precisamente o que pensei.

- Bom, agora que me compreendes... - prosseguiu, com uma voz untuosa e insinuante - creio que podemos chegar a um acordo justo. - Deu ênfase à frase esfregando a ponta dos dedos da mão direita na palma da esquerda.

- Compreendo-te melhor do que pensas - afirmei, com a voz carregada de ódio. Pousei a mão na adaga cravejada de jóias que usava no cinto e disse-lhe: - Reúne os escravos imediatamente ou perdes a língua!

Virei-me para Faysal e acrescentei:

- Vou esperar na casa do superintendente. Certifica-te de que esta ratazana faz o que lhe é exigido.

- E se recusar? - perguntou o homem, exibindo novamente o seu sorriso arrogante.

- Se ele recusar... - prossegui, dirigindo-me a Faysal - mata-o!

 

O superintendente esbugalhou os olhos, incapaz de decidir se eu estaria a falar a sério. Abriu a boca para protestar mas decidiu poupar o fôlego e afastou-se à pressa para começar a convocar e a reunir os escravos, acompanhado por Faysal e por um dos rafiq. Desmontei, amarrei o cavalo ao poste onde chicoteavam os escravos e entrei na casa do superintendente para aguardar.

O interior era escuro e tinha as janelas, baixas e largas, bem fechadas contra ao Sol. Quando os meus olhos se ajustaram à escuridão vi um quarto cheio de lixo e pó. A fina poeira vermelho-acastanhada omnipresente nas minas era soprada pelo vento e nunca era varrida. Penetrava em todo o lado e acabava por endurecer nos sítios mais pisados.

A casa cheirava a um fumo amargo, cujo odor se mantinha agarrado aos tapetes e às almofadas espalhadas pelo chão.

- Haxixe... - murmurou um dos guerreiros, com desprezo, apontando para a pequena braseira de ferro repleta de cinzas que se encontrava ao lado de uma grande e gordurenta almofada de couro. Portanto, era ali que o superintendente-chefe passava as suas noites, inalando os potentes vapores da planta estupefaciente. Não me agradou a ideia de me sentar naquele antro e permaneci de pé, tal como o rafiq que me acompanhava e que desprezava um homem cuja vida podia ser lida com tanta facilidade no meio daquela confusão desmazelada.

Virei os pensamentos para os meus amigos e perguntei a mim mesmo o que diriam quando vissem que voltara para os libertar. Pensariam que os tinha esquecido, ou a esperança ainda estaria viva nos seus corações? Quando o dia nascera e tinham pegado mais uma vez nas ferramentas do seu tormento, saberiam até que ponto se encontravam próximos da libertação? Pressentiriam a proximidade da liberdade, naquele preciso momento?

Algures, no alto das vertentes, ouviu-se o tilintar de um ferro. Passado algum tempo avistei os primeiros escravos que começaram a descer os trilhos em direcção aos locais de reunião habituais, ao longo dos limites da praça ressequida pelo Sol, em frente da casa do superintendente-chefe. Observei-os à medida que iam chegando, tentando distinguir algum rosto familiar entre as suas fileiras, mas não descobri nenhum. Na minha mente surgiu um pensamento perturbador: e se estivessem mortos? E se me tivesse demorado demasiado e tivessem sucumbido sob o trabalho cruel e sob o chicote? E se não houvesse nenhum sobrevivente para libertar? Era algo em que nunca pensara mas fazia-o naquele momento. Se isso tivesse servido para alguma coisa, teria rezado a Deus para os ajudasse e os mantivesse vivos até àquele dia...

Continuei à espera. Havia cada vez mais escravos a entrar na praça. Viam os cavalos amarrados ao poste - onde já alguns deles haviam sido sacrificados para servirem de exemplo aos outros - e deviam estar a interrogar-se sobre qual seria a nova tortura que os aguardava.

A multidão de escravos reunia-se lentamente. Fiquei parado à entrada, observando-os, e já pensava que não iria encontrar ninguém conhecido quando avistei o jarl Harald. Era mais alto, talvez por uma cabeça, do que todos os outros, o que deveria ter facilitado a sua localização. Todavia, descobri imediatamente por que motivo não o vira mais cedo: Harald estava mudado. A bela juba de cabelos e barbas num tom vermelho flamejante era agora uma massa empoeirada e desgrenhada, os largos ombros encontravam-se dobrados e mantinha-se de pé com o corpo todo torcido para um lado, como se estivesse a poupar um membro aleijado. O outrora orgulhoso lorde tinha o rosto acinzentado, fitava o chão e nunca levantava os olhos.

Foi com um medo terrível que revistei as fileiras e acabei por descobrir, para meu grande horror, que havia ali outros que também deveria ter reconhecido. Identifiquei-os um após outro, e cada um deles pareceu-me mais miserável do que o anterior. Não suportei olhá-los. Virei a cara, tomado por um pânico súbito, e pensei: Foi um erro vir aqui. Devia tê-los deixado entregues ao seu destino. Já não há salvação. A libertação chegou demasiado tarde.

Por fim, o superintendente-chefe regressou e instalou-se, inseguro, no centro da praça. Faysal deixou-o na companhia do guerreiro chamado Nadr e avançou para mim.

- Os escravos estão reunidos - informou-me. Agradeci-lhe e acrescentei:

- Quem me dera poder libertá-los a todos. Achas que a generosidade do califa pode ser esticada a esse ponto?

- Estão à espera - retorquiu Faysal, sem fazer comentários.

- Não terão de esperar muito - declarei, com um aceno. - O cativeiro terminou para alguns, muito poucos, dos mais afortunados.

Saí da casa do superintendente para o brilho do sol e precisei de alguns momentos para conseguir ver bem. O Sol queimava-me através do fino tecido do traje e o meu coração apiedou-se dos homens que ali se encontravam, nus, sob os seus raios ardentes.

As minas, pelo menos, era escuras e mais frescas... e agora era eu quem os escaldava sob a fornalha daquele dia.

Faysal espreitou-me pelo canto dos olhos semicerrados mas afastei as suas preocupações.

- Vamos acabar com isto! - murmurei, voltando a avançar.

Não sabia por onde começar... mas acabei por me dirigir ao local onde Harald se encontrava e apontei para ele. O bárbaro nem sequer levantou os olhos para mim.

- Tragam-no aqui - ordenei ao guarda mais próximo, que agarrou no braço de Harald com violência e o puxou. - Cuidado! - exclamei, com firmeza. - É um rei!

O dinamarquês arrastou-se para a frente, com as correntes a tilintar no chão. Parou na minha frente sem nunca me olhar.

- Regressei... - disse-lhe. - Vim buscar-te.

Ao ouvir estas palavras, Harald levantou a cabeça pela primeira vez. Os olhos pálidos e aquosos fitaram-me, mas sem me reconhecerem. Senti um aperto no coração.

- Jarl Harald... - insisti - sou eu, o Aidan. Não te lembras de mim?

Nos seus olhos baços bruxuleou uma luz como eu nunca vira. Era mais do que um reconhecimento, ou do que compreensão. Estava para lá da esperança vulgar ou da alegria. Aquela luz era a própria vida a reacender-se na alma de um homem. A consciência, do tipo mais profundo e puro, acendeu-se naquela faísca de luz e brilhou no sorriso que se espalhou lentamente pelo rosto de Harald Berro-de-Touro.

- Aidan Voz-de-Deus... - suspirou... e não conseguiu dizer mais nada porque as lágrimas lhe embargaram a voz. Levantou uma das suas trémulas mãos como se quisesse tocar-me no rosto. Agarrei-lha e segurei-a com força.

- Acalma-te, irmão... - disse-lhe. - Vamos sair daqui muito em breve. - Voltei a virar os olhos para a multidão e perguntei: - Quantos dos outros ainda estão vivos?

- Todos... suponho - retorquiu, acenando.

- Onde estão? Não os vejo.

Em vez de responder, o manhoso dinamarquês levou as mãos à boca, aspirou o ar com força e soltou o seu famoso berro. Era, recordei-me, o grito de guerra dos Lobos do Mar, agora muito enfraquecido e algo forçado. Voltou a soltar o mesmo berro e gritou:

- Heya! Aidan regressou. Venham, homens, vamos para casa!

Os ecos do grito de Harald morreram ao longe e silenciaram-se. Observei as fileiras de escravos de olhos mortiços ali reunidos e vi aparecer o que restava da matilha dos Lobos do Mar. O meu espírito contraiu-se ao ver como cambaleavam para a frente, alguns ainda aos pares, outros isolados, mas todos a arrastar os seus grilhões. Num dos lados, um pobre diabo saltitou na minha direcção com uma ansiedade que era ainda mais patética por causa das suas contorções. Os últimos passos foram mal calculados, tropeçou e caiu de frente, na poeira. Baixei-me para o ajudar a levantar-se... e descobri-me a olhar para o rosto desfigurado de Gunnar.

- Aeddan... - murmurou, com as lágrimas a escorrerem-lhe dos olhos. - Aeddan, graças a Deus, chegaste, finalmente! Sabia que voltarias. Sabia que não nos deixarias morrer neste sítio...

Ajudei-o a pôr-se de pé e abracei-o.

- Gunnar - respondi - perdoa-me, irmão. Devia ter vindo mais cedo. Perdoa-me!

- O que queres que te perdoe? - O espanto deu um ar infantil às suas feições. - Voltaste. Sabia que o farias e nunca duvidei...

Olhei para os restantes escravos que se arrastavam lentamente para o local onde nos encontrávamos.

- Onde está o Dugal? - perguntei. - Não o vejo! - O pânico voltou a assaltar-me. Terei chegado demasiado tarde? Dugal, onde estás, irmão?- Onde estão os britânicos?

Nesse instante, ouvi um grito vindo do outro lado da praça. Virei-me e vi, a avançar com dificuldade por entre a multidão, o volume enorme do meu mais querido amigo e irmão. Estava muito mudado... mas mesmo assim reconheci-o tão bem como se estivesse a reconhecer-me a mim mesmo.

- Dugal! - gritei, apressando-me ao seu encontro.

Quando me viu, virou-se um pouco e fez um gesto para alguém que se encontrava atrás dele. Encontrámo-nos no centro da praça, na frente do poste onde nos tínhamos visto pela última vez e onde o bispo Cadoc morrera por mim.

- Dugal! - exclamei, com os meus próprios olhos também a encherem-se de lágrimas. - Estás vivo, Dugal?

- Não muito, Dana... - sussurrou, agarrando-se aos meus ombros - mas ainda aqui estou.

Faysal apareceu a nosso lado naquele momento.

- É melhor que nos despachemos - recordou-me. - Os escravos e os guardas estão a ficar inquietos.

- Os britânicos ainda estão vivos? - perguntei, virando-me para Dugal.

. -- Estão, sim - respondeu, olhando para os escravos que nos observavam com uma agitação que aumentava de momento para momento. Já não se mostravam tão abatidos e apercebia-me, pelas suas expressões, que tinham começado a perceber que naquele dia não iria haver nenhuma execução. Porém, a visão de estranhos a escolherem escravos aparentemente ao acaso confundia-os e excitava-os.

- Brinach! Ddewi! - gritou Dugal, e vi duas figuras de ombros redondos a destacarem-se da multidão. Não os teria reconhecido nem em mil anos porque já não eram os homens que haviam sido.

Brynach tinha os cabelos brancos e caminhava curvado, enquanto o jovem Ddewi havia perdido um olho. As suas barbas e cabelos, tal como as de todos os outros, eram emaranhados nojentos e infestados de piolhos.

Peguei-lhes nas mãos e abracei-os.

- Irmãos... - disse - vim buscá-los.

Brinach sorriu. Tinha os dentes descoloridos e as gengivas feridas.

- Louvado seja Jesus Cristo, Nosso Senhor e Redentor! Os seus propósitos são insondáveis!

Senti o coração a contorcer-se dentro de mim ao ouvir aquelas palavras e tive vontade de lhe gritar: Cristo! Como te atreves a agradecer a esse monstro? Se isso dependesse de Deus, as minas reclamariam os teus ossos apodrecidos! É Aidan, e não Cristo, quem vos está a libertar!

Contudo, engoli a bílis e afirmei:

- Vamos sair deste sítio. Consegues andar?

- Se for necessário, até rastejarei para a liberdade! - retorquiu, com a boca a abrir-se num sorriso. A pele dos lábios rebentou com a violência do mesmo e começou a sangrar. - Vem Ddewi, chegou o dia da nossa libertação. Vamos abandonar o cativeiro. - Com a gentileza de uma mãe para com um filho sofredor, o monge mais velho segurou na mão do mais novo e começou a guiá-lo... e foi então que compreendi que Ddewi perdera muito mais do que apenas um olho.

Alguns dos escravos que se encontravam do outro lado da praça começaram a gritar para mim. Não consegui entender o que queriam e também não quis saber. Agora só pensava em sair dali o mais depressa possível, levando comigo o meu prémio.

- Temos de ir! - insistiu Faysal num tom urgente e com olhos desconfiados. - Esperar mais tempo será o mesmo que tentar o diabo.

Demorei-me apenas o tempo suficiente para me certificar de que nenhum dos meus amigos ficava para trás e contei dezoito Lobos do Mar e três celtas. Virei-me para Faysal e disse-lhe:

- Monta os que não puderem caminhar. - Afastou-se à pressa, berrando ordens para Bara e Nadr.

O superintendente-chefe, que se mantivera de lado à espera, aproveitou aquele momento para se aproximar.

- Levas os meus escravos... - protestou, agitando o punho no ar - e o que é que me dás em troca?

Virei-me para ele e retorqui:

- Leste o decreto! Não há lá nada escrito a respeito de pagamento.

- Não podes levar os meus escravos! - guinchou. - Tens de me pagar!

Ignorei-o e chamei Faysal:

- Está tudo pronto?

- Segue à frente - replicou. - Seguir-te-emos! - Olhou em volta, para os guardas que exibiam expressões sombrias e infelizes. Alguns remexiam-se nos seus lugares como se estivessem a pesar as consequências do apoio ao superintendente.

- Venham por aqui... - chamei. Levantei a mão e comecei a andar... mas ainda não tinha dado dois passos quando fui detido pelo Jarl Harald, que me segurou pela manga e afirmou:

- Não podemos partir já!

- Não podemos partir? - inquiri, olhando-o. - Que queres dizer com isso?

Lançou uma olhadela furtiva para o superintendente, que ainda agitava os braços num protesto e gritava de ultraje por ter sido tratado com tão pouca consideração. Harald aproximou a boca da minha orelha e sussurrou-me uma explicação tensa.

- O quê?! - exclamei, incrédulo. - Não estás a falar a sério...

- Não podíamos adivinhar que regressavas hoje - retorquiu, acenando com solenidade.

- Lamento muito - afirmei, com secura - mas não há tempo!

Harald dobrou os braços sobre o peito e abanou a cabeça com convicção.

- Nay!

Faysal, vendo a minha hesitação, pôs-se a meu lado.

- Temos de ir.

- Ainda há um pequeno assunto para resolver - murmurei, olhando fixamente para o monarca, que se mantinha inflexível.

Faysal tentou protestar mas observou o rosto do dinamarquês e viu a sua expressão determinada.

- Então, resolve-o depressa, meu amigo - resmungou, cedendo. - Receio que o teu decreto possa não ser suficiente para conter este fulano ambicioso durante muito mais tempo.

Olhei para o mestre dos escravos, que fazia gestos urgentes para vários guardas, pedindo-lhes que se lhe juntassem. Só me restava uma possibilidade: agarrar o touro pelos cornos.

- Vem comigo - ordenei a Faysal - e trás dois guerreiros. Encaminhei-me directamente para o superintendente-chefe e enfrentei-o.

- Vamos partir... - anunciei - mas não antes de terem sido retirados os grilhões e de termos recuperado os ossos dos nossos irmãos.

- Ossos! - berrou o homem, incrédulo. - O decreto não diz nada a respeito de ossos!

- Escuta bem o que te digo... - declarei, com uma expressão sombria, no momento em que Faysal e os seus dois rafiq se colocavam atrás de mim. - A tua vida sem préstimo está por um fio... mas ainda te poderás salvar se me deres ouvidos...

O superintendente cedeu, grunhindo e praguejando.

- Fui um escravo nesta mina - comecei. - No dia em que saí daqui, eu e dois dos meus amigos estávamos para ser executados. - Vi a luz do reconhecimento a surgir lentamente no rosto carnudo do homem. - Aqui o Faysal impediu a execução, mas não antes de terem morto um homem que se ofereceu para tomar o meu lugar. Lembras-te?

As feições queimadas pelo Sol do superintendente exibiram uma expressão muito parecida com medo. Sim, já se recordava de tudo.

- Responde-me!

Desviou os olhos para os dois guerreiros, cujas mãos avançavam para os punhos das espadas.

- É possível... - declarou.

- O homem era um sacerdote de Deus - continuei. - Era um homem santo e também meu amigo, pelo que não permitirei que os seus ossos permaneçam neste lugar amaldiçoado. Por isso, vamos levá-los connosco.

- O superintendente abriu a boca mas não levantou objecções. - Agora, diz-me onde enterraram o seu corpo.

- Não enterramos os escravos - informou-me o superintendente, muito seguro de si mesmo. - Atiramos os corpos aos cães.

- Se foi isso o que fizeram... - repliquei, baixando a voz até ao que esperava que fosse um murmúrio ameaçador -- então reza para que o teu deus, seja ele qual for, nos permita descobrir os restos. - Deixei-o a imaginar o pior. - Mostra-me para onde atiraram o corpo.

O superintendente apontou para um dos guardas.

- Aquele sabe... e pode mostrar-te.

- Certifica-te de que lhes retiram os grilhões - disse, virando-me para Faysal. - A seguir leva o superintendente para a casa dele e esperem por mim.

Entrámos em acção - Harald, Brynach, Gunnar, Hnefi, seis outros Lobos do Mar e eu -, logo que os primeiros escravos ficaram livres das correntes que lhes prendiam as pernas. Uma vez fora das vistas da praça, agarrei Harald por um braço.

- Vamos demorar um bocado... mas vocês têm de se apressar. - Expliquei-lhe o que tinha em mente e ordenei-lhe que fizesse o mesmo.

- Compreendeste?

O jarl acenou uma confirmação e afastou-se com os seus homens em direcção à longa vertente da mina. Caminhavam com passos curtos e oscilantes, uma vez que já não estavam habituados a terem as pernas livres das correntes. O guarda observou-os com desconfiança.

- Para onde vão eles? - perguntou.

- Mostra-nos para onde atiraram o corpo do meu amigo - ordenei-lhe.

O guarda apontou para os dinamarqueses que se afastavam e preparou-se para repetir a pergunta.

- Já! - insisti, furioso. - Começo a ficar farto da vossa insolência!

O guarda fechou a boca de repente, virou-se e conduziu-nos na direcção oposta. Caminhámos para um ponto atrás da povoação, onde nos mostrou uma pequena ravina, pouco mais do que uma vala seca coberta pelos arbustos espinhosos do deserto e por cactos contorcidos e mutilados. A julgar pelos bocados de vasos quebrados e pelo mau cheiro, calculei que todo o lixo do povoado fosse despejado para ali.

- Além... - murmurou o guarda - apontando para baixo com um movimento do queixo.

- Vamos começar a procurar - disse-lhe. - Vai buscar-nos um manto.

Quando o guarda se afastou, expliquei a Brynach o que tinha em mente. Louvou a minha ideia, declarando:

- Ah, és um homem às direitas... e que a tua compaixão possa ser recompensada para sempre! - A seguir ergueu a cabeça desgrenhada e entoou: - "E José obrigou os Filhos de Israel a fazerem um juramento e disse: Deus virá certamente em vossa ajuda e deveis levar os meus ossos para fora deste lugar. Por isso, os filhos de José pegaram nos seus ossos e levaram-nos para o Egipto."

- Vou lá abaixo ver o que consigo encontrar - disse-lhe, deixando-o a recitar as Sagradas Escrituras à beira da ravina. Escolhi o caminho com cuidado na íngreme vertente, e mesmo assim os meus últimos passos foram feitos a deslizar. Encontrei um pau partido e comecei a remexer aqui e acolá por entre o lixo, os fragmentos de vasos e o esterco de ovelhas. Havia ali muitos ossos, quase todos de animais mas também humanos.

Então, meio escondidos por baixo de uma pilha de esterco e de lixo ressequido, avistei um bocado de tecido desbotado pelo sol e o meu coração falhou um batimento. Era o tecido grosseiro das vestes de um monge. Afastei o lixo para o lado e surgiu-me um volume revelador. Baixei-me, levantei o bocado de pano e deparei com o descorado crânio do bispo Cadoc. O osso estava branco onde o Sol o atingira, e castanho nas zonas tapadas pela sujidade. Ainda tinha bocados de carne ressequida agarrados à sua parte inferior, seca e escura.

Pus o crânio de lado, esgravatei um pouco mais e descobri o comprido osso de uma perna, bem como uma única costela encurvada. Aqui e acolá, encontrei outros ossos: um braço já sem a mão, um bocado da pélvis e mais algumas costelas.

- Aidan? - perguntou uma voz, no alto da ravina. - Encontraste alguma coisa?

- Sim - respondi, explicando-lhe o que descobrira até àquele momento.

Não sabia muito bem o que devia esperar. Cadoc fora cortado em dois e os bocados tinham sido atirados descuidadamente para ali, para que o corpo fosse devorado pelos cães, pelo que deviam existir pedaços do bom bispo espalhados por toda a ravina.

- Queres que desça? - perguntou Brynach, lá do alto.

- Não, irmão, acho que pouco mais poderemos encontrar.

- O crânio é o mais importante - respondeu Brynach. - E os ossos das pernas. Tens os ossos das pernas?

- Só um...

- Oh, é uma pena... - suspirou Brynach. - Mesmo assim, foi um gesto bonito. Deus deve estar a sorrir.

Avancei um pouco mais ao longo da ravina e descobri o que me pareceu ser uma omoplata. Contudo, não lhe peguei porque estava roída e coberta por marcas de dentes, tanto de cães como também de outras mais pequenas, mais próprias de roedores. O guarda regressou enquanto eu remexia entre as rochas e o lixo e ordenei-lhe que se juntasse a mim levando o manto que lhe pedira. O homem obedeceu, relutante, arrastando atrás de si uma longa capa amarela-clara do tipo das que os árabes usam para se protegerem do Sol e da poeira quando em viagem.

Peguei-lhe, estendi-a sobre as pedras e pousei os ossos sobre o tecido. Brynach desceu um pouco da vertente para me observar. Quando terminei, levantou as mãos ao céu e declamou, num tom alto:

- "Quando eu morrer, enterra-me no lugar onde o homem de Deus está sepultado e coloca os meus ossos ao lado dos seus ossos." - Baixou as mãos e declarou. - Isto é do Livro dos Reis. Graças a ti, Aidan, transportaremos o nosso falecido irmão de regresso ao seu amado solo e dar-lhe-emos um funeral próprio da sua condição.

Não respondi, envergonhado com as verdadeiras finalidades do meu gesto e desejando ter-me lembrado de o levar a cabo sem segundas intenções. Sem dúvida que uma busca diligente teria revelado mais fragmentos de ossadas, mas começava a sentir-me ansioso por me ter mantido afastado dos outros durante tanto tempo. Dobrei o manto sobre as escassas relíquias, amarrei-lhe as pontas e suspendi-o de um ombro. Trepei para fora da ravina e dirigi-me, na companhia de Brynach e do guarda, para o local onde Harald e os seus se deviam encontrar connosco.

Não havia ninguém à vista.

 

- Nunca devia ter deixado que se afastassem sozinhos - murmurei, irritado. Via a brilhante esperança de liberdade, que já estivera tão perto que conseguira ouvir o zumbido das suas asas douradas, a afastar-se cada vez mais. Não havia nada a fazer excepto esperar. Pousei no chão o fardo com os ossos e ficámos parados sob o Sol ardente, agitando a poeira com os pés. O guarda dos escravos, já desconfiado, chegou-se um pouco para um lado, observando todos os nossos movimentos.

- Aqueles homens são dinamarqueses... - comentou Brynach.

- Pois são... - suspirei.

- E são os mesmos que te levaram naquela noite?

- Mais ou menos... mas isso não faz qualquer diferença - retorqui, desejoso de evitar uma comprida explicação.

Brynach limitou-se a responder um aceno pensativo.

- Os árabes que estão contigo... - prosseguiu - também aqui estiveram no dia em que mataram o Cadoc e foram eles que te levaram...

- É verdade. - Olhei para o monge britânico, que tinha uma das mãos na testa para proteger os olhos do Sol. Parecia pouco preocupado com o facto da sua única esperança de liberdade ir diminuindo com cada gota de suor que lhe escorria pelo pescoço.

- Quem são? - perguntou. - E quem és tu, para te terem salvo a vida?

Desviei os olhos. Não queria ofendê-lo mas também não desejava ter de contar uma longa história. O momento não era apropriado.

- Não to posso explicar em poucas palavras - respondi. - Talvez mais tarde, quando houver tempo para isso.

Brynach aceitou a resposta com naturalidade.

- Não há dúvida de que Deus age de maneiras misteriosas e que os devaneios do seu coração estão para lá da nossa compreensão - murmurou - e o que estou a dizer é um facto.

Nesse caso, Deus é de certeza um árabe, pensei. Ou então, talvez seja o irmão mais velho do Imperador de Bizâncio.

Aparentemente, Brynach descobrira que ainda tinha voz e estava ansioso por a utilizar.

- Onde foram os dinamarqueses? - perguntou.

Fui poupado a uma resposta por um som semelhante ao de porcos a serem chacinados, som que parecia vir da vertente da serra, na direcção das minas. Virámo-nos os três para esse lado.

- O que será aquilo? - interrogou-se Brynach.

O som aumentou e vimos aparecer uma coluna de Lobos do Mar que marchavam aos pares. Cada um desses pares carregava um volume pesado, semelhante ao que continha os ossos do bispo mas muito maior e claramente muito mais pesado. Desciam das minas a esforçarem-se sob o peso dos fardos e cantavam enquanto caminhavam.

- Foste obrigado a ouvir aquilo muitas vezes? - inquiriu Brynach.

- Nem por isso...

- Graças a Deus!

- Heya! - gritou Harald, avançando para nós a coxear. A coluna deteve-se e os homens quase se deixaram cair sobre os fardos. - Agora já estamos prontos para partir - declarou, ofegando do esforço - e nem sequer olharemos para trás!

Brynach observou-me enquanto eu respondia na língua de Harald.

- Não fazia ideia de que era tanta, ou nunca teria concordado... - declarei, sem entusiasmo. Já perdera todas as esperanças de poder sair dali sem ser molestado. De certeza que o superintendente-chefe não nos deixaria partir quando visse o que os Lobos do Mar pretendiam levar com eles. Por outro lado, como não podíamos evitar a praça, só nos restava enfrentar a situação. - Se estão prontos... sigam-me.

Brynach e eu pegámos no nosso fardo e a estranha procissão alinhou por trás de nós quando descemos a vertente em direcção ao pátio onde os outros nos aguardavam.

O superintendente, que já dominara o medo provocado pelo decreto do califa, precipitou-se para fora da sua casa quando nos viu chegar.

- O que é isso? O que é isso?! - gritou, agitando os braços.

- Já te disse... - expliquei-lhe, num tom gelado. - Levamos os ossos do bispo Cadoc.

Os olhos semicerrados do homem transformaram-se em meras fendas enquanto contava os fardos pousados no chão.

- Tantos ossos? - guinchou. - Não é possível!

Faysal, Nadr, Bara e Musa ocuparam os seus lugares atrás de mim. Os escravos reunidos na praça observavam a cena, novamente mais agitados.

- Que está ele a dizer? - perguntou Brynach, ansioso.

Porém, em vez de responder, baixei-me e desamarrei o fardo que eu e o Brynach transportávamos. Peguei no crânio, endireitei-me e meti-o em frente da cara do homem.

- Olha bem... e vê o rosto de alguém que morreu pelas tuas mãos - gritei-lhe. - Olha bem, Opressor... e recorda-te! O seu sangue testemunhará contra ti no dia do Julgamento Final! - Vi que o superintendente se encolhia e prossegui com o meu bluff. Estendi a mão para os fardos dos Lobos do Mar e acrescentei: - Bem como o sangue dos que sofreram sob o chicote e morreram às tuas mãos. Todos eles se irão levantar para te condenar perante Alá, o Justo.

O mestre dos escravos tentou protestar mas detive-o antes de conseguir proferir uma palavra.

- Detém-nos agora e de certeza que nunca verás o paraíso!

- Desapareçam daqui! - berrou, já zangado. Chamou alguns dos guardas e continuou: - A presença destes homens ofende-me. Certifiquem-se de que se vão embora imediatamente!

Suponho que adoptou essa posição para preservar o pouco de dignidade que lhe restava, mas não precisava de se ter preocupado com a possibilidade de ali ficarmos muito mais tempo. Ninguém estava mais ansioso por se ir embora do que o homem que se encontrava na sua frente.

Guardei o crânio, refiz os nós do fardo, fiz sinal a Dugal para se aproximar para o levar e dei ordens para que Ddewi e alguns dos outros fossem montados nos cinco cavalos, que também deveriam transportar todos os fardos que aguentasse. A seguir dei meia volta e conduzi o andrajoso bando de viquingues e de monges para fora da praça., tal como o Profeta Moisés a guiar os Escolhidos para fora do Egipto. Apercebendo-se de que nos íamos embora, os escravos começaram a gritar... e lançaram-se atrás de nós - implorando e exigindo serem incluídos no nosso grupo -, quando já nos encontrávamos na rua que conduzia ao portão. O superintendente e os seus guardas foram apanhados de surpresa e tiveram de lutar para não serem esmagados pela multidão.

Apressámo-nos o mais que pudemos e seguimos em direcção ao portão ao longo da estreita rua da povoação, conseguindo lá chegar um pouco à frente da multidão que nos perseguia. Atrás de nós, o superintendente berrava ordens para que o portão fosse imediatamente fechado.

- Faysal! - gritei, tentando fazer-me ouvir por cima da crescente agitação. O árabe aproximou-se rapidamente. - Segue à frente e conserva o portão aberto. Se o fecharem, nunca mais daqui sairemos! Depressa!

Partiu a correr, levando dois guerreiros com ele. Os outros ficaram para trás para protegerem a nossa retirada... se pudessem. Gritei para Harald e Dugal:

- Corram para o portão! Despachem-se!

- Estamos a andar tão depressa quando podemos - respondeu Dugal, passando por mim. Quase arrastava o pobre Brynach, que parecia não gostar muito da situação em que nos encontrávamos.

- Que Deus nos ajude! - exclamou, invocando a ajuda e a intervenção divina.

- Poupa o fôlego! - resmunguei. - Deus não se interessa... e temos de nos salvar a nós mesmos!

Parou de repente e ficou a olhar para mim. Dei-lhe um empurrão para o fazer andar.

- Vai! Vai! Não fiques aí parado, de boca aberta! Corre!

Os dinamarqueses não precisavam de incitamentos. Mantinham-se agarrados aos fardos que arrastavam sobre a poeira. Com as cabeças baixas, suando e grunhindo com o esforço. Mesmo assim incitei-os, gritando e apontando para o portão, onde Faysal fazia gestos frenéticos. Olhei para ele e vi os grandes portões de madeira a fecharem-se lentamente.

A abertura ainda estava a cem ou mais passos de distância do local em que me encontrava. Rodopiei para ver o que se passava com os Lobos do Mar mais atrasados, que se arrastavam para a liberdade. Nunca iríamos conseguir!

- Larguem os vossos fardos! - gritei-lhes. - Corram! Salvem-se! Ninguém me prestou a mínima atenção. Os teimosos dinamarqueses baixaram ainda mais as cabeças e continuaram a esforçar-se. Se não fôssemos capazes de impedir que o portão se fechasse, então aqueles dinamarqueses iriam ficar para trás, isolados. Depois dos portões fechados já não havia esperanças de que se voltassem a abrir, nem para mim, nem para o emir, nem para ninguém.

Corri para o sítio onde Faysal discutia com os guardas.

- Não podemos aguentá-los durante mais tempo! - gritou.

Os grandes madeiros da porta continuavam a fechar-se. Lancei-me para a frente e empurrei um dos enormes batentes com todas as minhas forças...

- Ajudem-me! - gritei.

Bara e Musa foram em meu auxílio e tentámos desesperadamente imobilizar o batente enquanto Faysal renovava os protestos junto do porteiro. Entretanto, o portão, gemendo sob o seu próprio peso, prosseguia o seu avanço inexorável.

Dugal foi o primeiro a atingir a abertura. Levava consigo o fardo dos ossos e apressou-se a passar para o outro lado, arrastando Brynach consigo. Entretanto, Faysal, vendo que desperdiçava esforços junto do porteiro, correu para nós e juntou as suas forças às nossas. Mesmo com a sua ajuda, o nosso esforço era inútil porque os pés escorregavam na poeira do chão. O portão continuou a avançar, talvez um pouco mais lentamente, mas tão impiedoso como sempre.

Não conseguíamos detê-lo.

Alguns dos primeiros Lobos do Mar passaram, de mãos vazias, pela abertura cada vez mais estreita. Estavam livres!

Todavia, bastou um relance por cima do ombro para que o coração me parasse no peito. Harald e os restantes dinamarqueses esforçavam-se heroicamente sob o peso dos fardos mas ainda se encontravam demasiado longe. Para além disso, a multidão dos escravos, lançada numa correria louca apesar das correntes e dos grilhões nas pernas, ganhava terreno sobre eles.

- Larguem os fardos! - gritei. - Corram e salvem-se!

Os Lobos do Mar reagiram, é verdade, mas não largaram os fardos e esforçaram-se ao máximo. Vi um deles cambalear e cair, fazendo cair o seu parceiro e obrigando os outros dois que os seguiam a tropeçarem neles. Os restantes conseguiram evitar o monte de corpos caídos mas o acidente atrasou-os.

Olhei para o portão e verifiquei que a abertura já só tinha a largura de dois homens. Simultaneamente, os primeiros dois escravos enlouquecidos quase alcançavam o último par de dinamarqueses.

- O portão está a fechar-se! - berrei, com todas as minhas forças. - Corram!

Tal como anteriormente, os meus apelos de nada serviram. Ouvi uma voz a meu lado, virei-me e vi Dugal inclinado contra o portão. Deixara o seu fardo do outro lado e voltara para nos dar uma ajuda.

- Dugal! - exclamei. - Vai-te embora, homem! Aproveita a liberdade!

Limitou-se a fazer uma careta e a aplicar toda a sua força na inútil tarefa de deter o portão.

Porque é que ninguém faz o que lhes digo?! interroguei-me.

- Vai, Dugal, salva-te!

A abertura já só deixava espaço para a passagem de um homem. Muito em breve iria fechar-se completamente e o primeiro dos dinamarqueses ainda se encontrava a cinquenta ou mais passos de distância.

- Kyrie eleison!- murmurei, por entredentes cerrados. - Que Deus nos ajude!

Devo confessar que se tratou mais de uma praga do que de uma oração... ou do último fôlego de um homem a afogar-se. Porém, espanto dos espantos... os enormes batentes do portão detiveram-se repentinamente.

Olhei e vi o emir Sadiq a cavalo, logo para lá da abertura, com uma corda presa à sela e amarrada a uma das vigas do portão. O cavalo esforçava-se e a corda estava tensa.

Harald Berro-de-Touro chegou naquele momento com o suor a escorrer dele como se fosse chuva. Atirou o fardo para o chão e gritou para os seus, encorajando-os, e foi como se os empurrasse para a liberdade enquanto o grande portão gemia e estremecia, com os topos dos altos madeiros a vibrarem.

Mantivemos o portão aberto enquanto Harald ajudava os seus a passarem pela abertura. Os primeiros escravos fugitivos já tinham alcançado e ultrapassados os últimos Lobos do Mar. Escusado será dizer que se lançaram de cabeça para o portão, entupindo a passagem e bloqueando a fuga.

Com um rugido, Harald lançou-se para o meio deles e começou a atirar escravos para um lado e para o outro, limpando a estreita passagem enquanto empurrava os seus próprios homens para a liberdade.

- Ya'Allah!- gritou Faysal, com os tendões do pescoço e braços a sobressaírem como cordas. - Não podemos aguentar muito mais tempo!

- Heya! - berrou Harald. - Estamos livres! Depressa!

Olhei e vi Harald e dois outros dinamarqueses com os braços esticados, aguentando o portão para podermos passar. A multidão estava quase em cima de nós.

Virei-me para Faysal e para os outros e disse-lhes:

- Pronto, está feito! Estão todos livres!

Tive de repetir a frase em irlandês para o Dugal, mas ninguém precisou de mais incitamentos. Num instante, estávamos todos a mergulhar para a estreita abertura. Faysal, Bara e Musa passaram pelos Lobos do Mar e saíram. Todavia, precisamente quando Dugal e eu atingíamos a abertura, o portão soltou uma espécie de suspiro áspero e começou a fechar-se. Os dinamarqueses foram incapazes de o aguentar e caíram para trás.

Os grandes madeiros embateram uns nos outros com um tremendo estrondo.

Porém, ainda antes de conseguirmos parar, o enorme portão ressaltou sobre si mesmo e voltou a abrir-se. Empurrei Dugal à minha frente e lancei-me para o outro lado. Caí, batendo com o rosto na poeira. Por trás de mim, as duas partes do portão voltaram a embater uma na outra.

Sadiq, com a montada ainda a puxar a corda, gritou um aviso. Ouvi um estalo semelhante ao de um chicote e virei-me a tempo de ver a corda a serpentear no ar. O cavalo de Sadiq, desequilibrado com o súbito rebentar da corda, caiu para trás. O emir não conseguiu abandonar a sela e foi esmagado contra o solo enquanto o animal rolava sobre ele.

Os meus pés quase não tocaram no chão quando voei para Sadiq. Agarrei nas rédeas do cavalo e puxei-as com toda a força. Foi graças apenas à força de vontade que obriguei o animal, de olhos enlouquecidos e a espernear, a levantar-se de cima do seu cavaleiro. O cavalo conseguiu meter os cascos por baixo do próprio corpo, pôs-se de pé num salto e ficou a agitar a cabeça e a crina.

- Emir! - gritei, lançando as rédeas para um lado. Saltei rapidamente para junto dele mas o emir continuou imóvel.

 

     Negra de pecado é aquela casa,

     E mais negros ainda os que lá estão dentro.

     Eu sou o cisne branco,

     Soberano sobre todos eles.

     Irei em nome de Deus,

     Sob a forma de um veado, sob a forma de um urso,

     Sob a forma de uma serpente, sob a forma de um rei,

     Irei, sob a forma do meu Rei.

   Os três proteger-me-ão e ajudar-me-ão,

   A cada passo que der me ajudarão.

 

O emir jazia como morto, com os olhos meio abertos. O ar fora-lhe expulso dos pulmões e estava inconsciente. Dois dos seus rafiq, que também tinham estado a puxar cordas amarradas ao portão, precipitaram-se para me ajudar.

- Cuidado! Devagar! - disse-lhes, enquanto o virávamos para o colocar de lado. Fomos recompensados por um ofego prolongado e áspero quando o ar encheu os pulmões do emir. Tossiu, gemeu e começou novamente a respirar.

Do outro lado do portão chegaram-nos os lamentos dos miseráveis que não tinham conseguido sair a tempo. Esses gritos transformaram-se em uivos de terror quando os que se encontravam mais perto do portão foram esmagados pela massa de escravos que os empurrava por trás.

Faysal apareceu a correr, para me ajudar. O cavalo de Kazimain galopou para onde o nosso grupo se encontrava debruçado sobre o emir e a jovem deslizou da sela e precipitou-se para junto do seu familiar. Pegou-lhe numa das mãos e começou a esfregar-lha com força, tentando despertá-lo enquanto se debruçava sobre a orelha e lhe murmurava suavemente, com a voz a tremer de ansiedade.

Não consegui entender o que lhe disse mas, instantes depois, o emir mexeu-se e tentou levantar a cabeça. Kazimain ordenou-lhe que descansasse.

- Está feito! - disse-lhe - Estamos todos livres.

- Consegue levantar-se, senhor? - perguntou Faysal.

O emir olhou em redor, como se quisesse verificar quem fora que falara. Recuperou a consciência do que se passava à sua volta e acenou uma confirmação. Faysal e eu ajudámo-lo a pôr-se de pé. Oscilou, como se estivesse tonto, mas protestou quando tentámos segurá-lo.

- - Não é nada, já passa - afirmou, sacudindo a cabeça como que Para a clarear. - Onde está o meu cavalo?

Faysal foi buscar o animal e conduziu-o para junto do emir. Sadiq trepou para a sela no momento em que o maciço portão por trás de nós começou a oscilar, a vibrar... e o meu estômago contraiu-se quando escutei os estalos abafados de corpos humanos a quebrarem-se contra a barreira. No seu desespero, os escravos lançavam-se sobre os resistentes madeiros. Era um som hediondo que esperei nunca mais voltar a ouvir. Todavia, nada podíamos fazer por eles e nem sequer estávamos certos da nossa própria segurança enquanto não nos encontrássemos longe dali.

- Não nos podemos demorar... - murmurou Faysal, olhando por cima do ombro, desconfiado.

- Vai à frente - ordenou-lhe Sadiq. - Eu e os rafiq seguir-te-emos.

Chamou os guerreiros e formou apressadamente uma falange para proteger a nossa fuga. Faysal, entretanto, não perdeu tempo e conduziu-nos para longe do portão da mina. Fomos atrás dele à pressa, arrastando-nos pelo trilho o melhor que podíamos, até chegarmos ao local, fora das vistas do portão, onde os animais de carga e os abastecimentos se encontravam à nossa espera. Fizemos aí uma pequena pausa para nos reunirmos e para melhor organizarmos a partida.

- O superintendente-chefe vai acusar-te de teres provocado o motim dos escravos - disse-me o emir, sentado no cavalo a observar os antigos cativos que se aproximavam a coxear. - Não fazia ideia de que tinhas tantos amigos...

Na verdade, estavam ali algumas dúzias de escravos a mais do que aqueles que eu pretendera libertar, uma vez que todos os que tinham conseguido passar o portão se encaminhavam agora para o local onde nos encontrávamos.

- Lamento muito, lorde Sadiq - comecei - mas eles... Contudo, o emir fez um gesto a dispensar explicações.

- Nada disto teria acontecido se o mestre dos escravos tivesse conseguido manter a ordem. Arranjaremos maneira de lidar com eles... - declarou, lançando uma olhadela para onde os dinamarqueses suavam e ofegavam em volta dos fardos que, arriscando tudo, tinham conseguido trazer com eles do cativeiro.

- Os teus Lobos do Mar parecem ter adquirido algumas posses enquanto trabalhavam para o califa... - comentou Sadiq.

O jarl Harald viu a mirada de apreciação do emir e percebeu o que se encontrava por trás daquele olhar. Dobrou-se para o fardo que se encontrava no chão entre os seus pés e desfez-lhe os nós. Brynach e Dugal, com o seu próprio fardo suspenso entre eles, aproximaram-se, pararam a meu lado, e todos ficámos a ver Harald a desfazer as dobras do pano para revelar uma massa de informes bocados de pedra com um tom pálido, baço e aquoso.

- Prata! - exclamou Brynach. - Que Cristo tenha piedade! Arriscaram as vidas por causa da prata?!

- Para os dinamarqueses, a prata vale mais do que a vida - expliquei. - Arriscam tudo por ela sempre que navegam para longe das suas casas. - Para além disso... - acrescentei, olhando para os fardos - é uma bela quantidade de prata!

Pegando numa das pedras quase incolores, Harald avançou com ousadia para o cavalo do emir e estendeu-a a Sadiq, que lhe pegou, avaliou-lhe o peso e acenou com um ar conhecedor, voltando a devolvê-la ao dinamarquês.

- Parece que o emir aprova... - comentei, para Harald. - Os Lobos do Mar podem conservar o seu tesouro.

Nesse momento, os escravos que se haviam escapulido pela abertura do portão nos últimos minutos de confusão avistaram-nos e correram para nós implorando, aos gritos, que lhes permitíssemos viajar connosco. Guinchavam da maneira mais lamentosa:

- Não nos abandonem! Morreremos no deserto! Tenham piedade! Levem-nos convosco!

Sadiq e Faysal reuniram-se num conselho apressado, após o que Fay-sal regressou para se lhes dirigir:

- Lorde Sadiq deixou-se comover pelos vossos apelos. Em troca da promessa de nos deixarem em paz, iremos conduzi-los em segurança até à estrada para Amir, mas não mais longe do que isso.

É claro que todos concordaram com presteza. Depois de lhes ter sido dada água e alguma coisa para comer, formámos duas longas colunas e iniciámos a jornada de regresso. Sadiq e Kazimain seguiam à frente, seguidos por Ddewi, montado no meu cavalo, com Brynach a caminhar a seu lado porque Ddewi não estava em condições de andar e precisava de alguém para o ajudar a manter-se na sela. Dugal e eu marchávamos logo atrás deles, transportando os ossos do bispo, e a seguir vinham os Lobos do Mar que haviam dividido o seu tesouro por muitos fardos mais pequenos, agora igualmente distribuídos por entre os dezoito sobreviventes. Seguiam-se os animais de carga com os abastecimentos, bem como os restantes escravos, enquanto os rafiq do emir, a cavalo, fechavam a coluna.

Formávamos uma linha muito longa e lenta, que se tornou ainda mais longa e lenta à medida que o dia foi avançando. Acampámos mais cedo do que era costume. O Sol ainda não se pusera e só tínhamos coberto uma curta distância. Contudo, os cativos recentemente libertos não aguentavam mais. Mesmo assim estávamos longe das odiosas minas e o vale já se abria na nossa frente, convidativo.

O emir instalou o seu acampamento um pouco afastado dos outros e foi dormir logo que terminámos a refeição da noite, dizendo que pensava ter apanhado demasiado sol. Pela minha parte, estava ansioso por saber o que se passara com os meus amigos e disse-o a Kazimain, que respondeu:

- Vai, meu amor. Renova as tuas amizades. Devem ter muito para contar uns aos outros. - Virou-se para o local onde o emir, apesar do crepúsculo ainda quente, jazia enrolado na sua capa, ao lado da pequena fogueira, e acrescentou: - Vou ficar junto do emir durante algum tempo.

Dirigi-me para onde os monges haviam montado um acampamento entre algumas grandes rochas lisas e planas, ao lado do trilho. Dugal e Brynach estavam reclinados sobre as rochas, exaustos, e Ddewi, com os ombros dobrados, encontrava-se sentado por baixo deles, de pernas abertas, alimentando placidamente uma minúscula fogueira com raminhos secos e molhos de palha.

Instalei-me no largo rebordo de uma pedra e disse:

- Bom, Dugal, cheguei a pensar que tinhas desistido de esperar por mim...

- Aidan, homem... - respondeu Dugal, num tom de leve censura e levantando um pouco a cabeça - olha bem para ti! Como querias que soubéssemos que eras tu e não o próprio príncipe dos Sarracenos?

- E quem mais vos iria procurar nas minas?

- Oh, ver-te aparecer, tão corajoso e audaz, foi uma doce surpresa... - comentou, apoiando-se sobre um cotovelo - Onde foi que arranjaste essa faca, Dana?

Retirei a lâmina do cinto e estendi-lha.

- Chama-se qadi... - expliquei - e foi o emir quem ma deu. Dugal passou os dedos por cima da arma incrustada de jóias e soltou ruídos de apreciação.

- Estás a ver isto, Bryn? - perguntou, agitando a brilhante lâmina no ar. - Se eu tivesse uma daigear como esta, talvez tivesse conseguido salvar-nos a todos! Ah, não há dúvida de que puseste o superintendente no seu lugar!

Ddewi riu-se. Soltou pouco mais do que uma risadinha suave mas, para mim, tratou-se da primeira indicação de que sabia o que se passava à sua volta. Olhei para Brynach, que me disse:

- Oh, recupera um pouco de consciência de vez em quando. Talvez ainda se possa curar... - Desviou os olhos do jovem monge e virou-os para mim. - Continuo a perguntar a mim mesmo como foi que acabaste no meio destes árabes...

- Ora, isso é fácil de explicar - retorqui. Comecei a contar-lhe a estada em Trebizonda com o eparch, bem como a emboscada a caminho de Sebastea, que resultara na minha escravidão nas minas.

- Foi precisamente o que nos aconteceu... - comentou Brynach.

- O Aidan pensa que não foi por acaso... - informou-o Dugal, passando a descrever, para Brynach, o meu pressuposto de que o cortesão do Imperador estivera pessoalmente envolvido nos desastres que se haviam precipitado sobre nós. - Não pode ser! - protestou Brynach. - Nikos foi nosso amigo e não tinha razões para nos trair ou para nos prejudicar. - Abanou a cabeça devagar. - Estou certo de que tentou apenas ajudar-nos. O livro sagrado não tinha capa e ele...

- O livro! - exclamei. - No meio de toda a confusão, esquecera-me completamente do livro sagrado de Colum Cille e deixara-o ficar para trás.

- Acalma-te, Aidan... - disse Dugal. - Ainda o temos. - Apontou para Ddewi, distraído a brincar com o fogo.

- Ddewi... - interveio Brynach, com suavidade - levanta-te e mostra-nos o livro.

O jovem monge mudo não deu sinais de o ter ouvido mas levantou-se do seu lugar e virou-se para nós. Olhei-o com mais atenção e vi uma forma quadrada por baixo do hábito esfarrapado. Pegou na bainha do hábito com as duas mãos e levantou-o, revelando o saco de couro com a correia passada em volta do pescoço e por cima de um ombro, de modo a manter o livro sobre o peito.

Resisti à tentação de lhe pedir que o tirasse do saco, para o poder abrir e examinar mais uma vez as suas páginas, mas não era aquele o momento nem o local mais apropriados.

- Obrigado, Ddewi - disse Brynach, e o jovem voltou a sentar-se, tão longe de nós quanto lho permitiam os seus pensamentos fragmentados.

- Cadoc entregou-lho quando estávamos na praça, naquele dia... - explicou Brynach. Sabia muito bem a que dia se referia. - O pobre Ddewi nunca mais pronunciou uma palavra desde esse momento. Creio que o pouco juízo que ainda lhe resta se deve ao livro.

- Guarda o livro... - comentou Dugal - e o livro guarda-o a ele.

- Queríamos mandar fazer uma nova capa... - lamentou-se Brynach - mas acho que isso já não irá acontecer.

- Em Constantinopla há artífices da prata mais do que suficientes - declarei. - Em primeiro lugar, por que razão se lembraram de ir a Trebizonda?

- Terei dito que íamos para Trebizonda? - interrogou-se Brynach. -- Não, foi o Dugal quem mo disse - repliquei, recordando-me da nossa breve conversa nas minas. - Afirmou que pretendiam ir para lá para arranjarem uma nova cumtach para o livro.

- Bom... - admitiu Brynach - é verdade que teríamos de aportar em Trebizonda, claro, mas íamos a caminho de Sebastea. Cadoc queria falar com o governador.

Senti um arrepio a percorrer-me a espinha.

- Que foi que disseste? - Obriguei-o a repetir a frase palavra por palavra embora o tivesse ouvido perfeitamente. - Tens a certeza de que Cadoc queria ver o governador?

- Queria, sim - confirmou Brynach. - Ao que parece, os dois conheceram-se quando esse tal Honorius era procurador, na Gália.

- E Nikos interessou-se por vocês... - perguntei - antes ou depois de saber desse desejo?

O astuto britânico ficou a olhar-me por instantes.

- Ah, estou a ver para que lado se viraram os teus pensamentos, meu amigo, mas enganas-te! - respondeu, satisfeito. - Tenho a certeza de que a viagem foi uma ideia de Cadoc e de mais ninguém. Já decidira fazê-la ainda antes de qualquer um de nós ver o Nikos. Como iríamos viajar para Sebastea, o bispo limitou-se a perguntar se haveria alguém que nos pudesse ajudar a restaurar o livro.

- Estavas com eles quando falaram no assunto? - perguntei, num tom que ganhou a força de uma exigência. - Ouviste Cadoc a dizê-lo?

- Estava... e ouvi! - replicou Brynach com firmeza. - É por isso que sei que estás enganado quando pensas o pior a respeito de Nikos, que só procurou ajudar-nos.

Apesar das suas certezas, as minhas desconfianças mantiveram-se. Porém, nada ganharia se continuasse a insistir com Brynach e abandonei a questão, pelo menos momentaneamente. Aparentemente, a explicação parecia lógica: Nikos não enviara os monges para Trebizonda e Cadoc já pensava em passar por lá antes do komes se envolver no assunto. Mesmo assim, aquela ideia não me assentava muito bem...

A conversa virou-se para os rigores que tínhamos pela frente. A noite aprofundou-se à nossa volta e Gunnar surgiu da escuridão para me informar que Harald perguntava por mim. Algo embaraçado, olhou para os britânicos e disse:

- O jarl Harald quer falar contigo, Aeddan... se estiveres disposto a isso.

- Sem dúvida, Gunnar.

- Sei que preferias ficar junto dos teus irmãos... - acrescentou, duvidoso.

- Nay, nay - respondi, levantando-me. - Isso tinha de acontecer, mais cedo ou mais tarde. Vamos lá falar com ele.. - Como os monges recusaram juntar-se-nos, desejei-lhes uma boa noite e acompanhei Gunnar durante a curta distância até ao acampamento dos Lobos do Mar.

Aí chegado, deparei com os homens espalhados pelo chão nos exactos locais onde haviam caído, exaustos pelos esforços do dia. É óbvio que já anteriormente vira os dinamarqueses em circunstâncias semelhantes, mas daquela vez não tinham bebido uma única gota de õl. Olhei com piedade para os seus corpos outrora robustos e agora emagrecidos pela má comida e por um trabalho assassino.

Harald estava encostado a uma rocha, com a cabeça para trás e os olhos fechados. Contudo, quando me aproximei, abriu-os e quis levantar-se.

- Nay, jarl - disse-lhe - fica à vontade. Por favor, continua sentado e descansa.

Porém, não me quis dar ouvidos. Trémulo, pôs-se de pé e abraçou-me como se eu fosse um dos seus karlar. Para além disso também chamou os outros e pediu-lhes que se levantassem, mas só um ou dois o tentaram fazer.

- Ah, Aeddan... - suspirou. Esboçou um sorriso e passou o braço em volta dos meus ombros. Tinha o rosto avermelhado pelo Sol, as feições muito marcadas e uma expressão confusa, bem como uns olhos baços de fadiga, mas a sua voz ainda conservava um pouco da antiga força quando pediu para que todos o escutassem: - Prestem atenção, vocês todos, dinamarqueses! - berrou. - Este é o nosso bom amigo e se estamos livres esta noite foi porque ele não quis deixar-nos entregues à morte no poço da mina!

A afirmação nem sequer provocou um bocejo da parte de qualquer dos Lobos do Mar que pudesse estar acordado para a ouvir. Harald, rei dos Dinamarqueses, virou-se para mim e acrescentou:

- Quem me dera ter um barril de ól para beber à tua saúde! Porém, escuta-me, Aeddan. Eu, Harald Berro-de-Touro, faço aqui um juramento: metade da prata que obtivemos será para ti. Sem a tua intervenção, ainda agora seríamos escravos e a nossa riqueza de nada nos serviria.

- És demasiado generoso, jarl Harald. - A afirmação agradou-lhe Ij e fê-lo sorrir. - Acontece que não posso aceitar nem sequer um único fragmento da vossa prata. - Foi uma frase que lhe agradou ainda mais. - O que fiz, fi-lo por razões pessoais. A vossa liberdade é toda a recompensa que desejo... e já a tenho.

- Falas muito bem - ripostou - mas que espécie de rei seria eu se não te recompensasse? Como não queres a prata, encarrego-te de me dizer qual é o teu maior desejo... e tratarei de o realizar com todas as forças que estiverem sob o meu comando!

Sentámo-nos juntos e só então, pela primeira vez, me senti um igual na sua companhia. Todavia, essa sensação não foi muito duradoura porque não foi preciso esperar muito para que o jarl, demasiado cansado, tivesse um ataque de bocejos e acabasse por cair para o lado e mergulhar no sono. Deixei os Lobos do Mar entregues ao seu sono de chumbo e afastei-me sem ser visto, para ir fazer a minha cama ao lado da fogueira do emir.

Embora tivéssemos planeado prosseguir no dia seguinte, acabámos por ficar a descansar. Os antigos escravos tinham esgotado as forças na fuga e na marcha que se lhe seguira, e eram muito poucos os que se encontravam em condições de retomar a marcha. Também teria sido útil continuarmos a descansar no dia seguinte, mas Faysal avaliou o aumento do número de pessoas em relação às provisões, que se esgotavam rapidamente, e sugeriu que acabaríamos por ter de passar fome se não fizéssemos algum progresso, por pouco que fosse.

- Tal como as coisas estão... - propôs - temos de ir a Amida para refazer as provisões.

Isto significava um atraso que não agradava ao emir, mas não havia outra solução. Por isso, prosseguimos a um passo lento, avançando ao longo do comprido e serpenteante trilho do fundo do vale e descansando com frequência. No dia seguinte encaminhámo-nos para oeste, em direcção à estrada para Amida.

Dois dias mais tarde, quando chegámos à estrada, virámos não para norte, em direcção a Trebizonda, mas sim para sul, para Amida. Apesar do emir já não se preocupar com eles, muitos dos antigos cativos preferiram permanecer por perto para poderem viajar sob a protecção dos rafiq.

Contudo, alguns deles pareceram não sentir esse tipo de receios, mostraram-se ansiosos por chegar à cidade e partiram logo que alcançámos a estrada.

Já nos deslocávamos com um passo muito mais rápido, não obstante os antigos cativos ainda não poderem viajar depressa nem cobrir grandes distâncias. Na verdade constatei, ao longo dos dias que se seguiram, que se verificava uma melhoria geral em todos os recém-libertos, quer fossem dinamarqueses ou britânicos. Moviam-se com mais facilidade e a sua força aumentava de dia para dia. Claro que se tratavam de homens fortes que tinham conseguido sobreviver às minas, mas até o próprio Ddewi parecia algo mais consciente, como se, a pouco e pouco, se começasse a lembrar de quem fora.

Como não podia deixar de ser, via Kazimain todos os dias mas havia sempre tanta gente à nossa volta que tínhamos poucas oportunidades para conversarmos um com o outro. Por outro lado, quando essas oportunidades surgiam, eram sempre demasiado breves. Contentávamo-nos em trocar olhares e algumas apressadas palavras de apreço. Não chegavam para nos satisfazer... mas era o que tínhamos.

Contudo, no princípio da manhã do dia em que iríamos entrar em Amida, Kazimain foi ter comigo. Os homens desfaziam o acampamento, selavam os cavalos e preparavam a comida. Virei-me e sorri quando a vi caminhar apressadamente para o local onde eu conversava com o Dugal. Bastou-me um único relance à posição firme do seu queixo para acabar imediatamente com a minha conversa. Afastei-a um pouco do grupo e disse-lhe:

- Pareces prestes a explodir!

- O emir diz que tenho de ficar em Amida! - declarou, com a voz a tremer. - Quer contratar homens para me escoltarem de volta a Ja'fariya.

A notícia apanhou-me desprevenido. Kazimain agarrou-me num braço com força antes de eu conseguir saber o que lhe dizer, e continuou:

- Não podemos deixar que faça uma coisa dessas, Aidan!

- Receia pela tua segurança... - murmurei, sem convicção.

- E eu receio pela dele! - atirou-me. Reparou no meu espanto, aproximou a cabeça e confidenciou, num tom baixo, para não ser ouvida:

- O emir não está bem.

- Não está bem?! - exclamei, recuando um pouco. Olhei para onde o emir quebrava o jejum com o pão que Faysal lhe dera e afirmei: - Pois olha que parece perfeitamente bem!

Kazimain não prestou atenção ao meu comentário.

- Isso é o que ele quer que pensem! - declarou. - Anda a dormir demasiado, de um modo muito profundo, e não se levanta tão depressa.

- Não é caso para preocupações - sugeri. - Está cansado. Todos nós estamos cansados. Exaustos. Sem dúvida que nos sentiremos melhor depois de um dia de descanso.

- Não estás a ouvir-me! - exclamou Kazimain, com a sua testa macia marcada por profundas rugas. - Por favor, Aidan. Faz qualquer coisa! Não podem deixar-me ficar para trás!

- Está bem. Se é isso o que queres... - prometi - irei falar com ele. Descobri rapidamente que a minha resposta não fora a mais apropriada porque me virou as costas, furiosa, e não quis falar comigo.

Ao fim do dia, quando chegámos a Amida, o emir ordenou que levantassem a sua tenda a alguma distância da povoação e proibiu os Lobos do Mar de abandonarem o acampamento. Harald e os seus homens ficaram desapontados, mas quando Faysal lhe explicou que em toda Amida não havia qualquer espécie de cerveja, e nem sequer vinho, os dinamarqueses aguentaram o desapontamento com um pouco mais de coragem.

- Talvez seja melhor assim... - comentou Gunnar com uma paciência estóica. - Ficarei com mais prata para levar para casa, para a Karin.

Depois disso, os Lobos do Mar trataram de se limpar. Tomaram banho, raparam as barbas desgrenhadas, cortaram os cabelos e trocaram os seus farrapos nojentos por trajes simples fornecidos pelo emir. Quando terminaram já tinham recuperado grande parte da antiga arrogância.

Os britânicos, que não tinham prata com que se preocupassem, também não mostraram grande vontade de ir à cidade.

- Não porei os pés nesse amaldiçoado lugar! - jurou Dugal.

- Não tens bolsa... - salientei - e por isso também não tens nada a temer.

- Ah! - troçou Dugal. - Queres que dê uma nova oportunidade aos mercadores de escravos para me apanharem e me venderem? Nunca!

Dugal talvez estivesse mais próximo da verdade do que imaginava. De qualquer modo, estava preparado para ficar no acampamento com os outros, à espera do regresso do emir, mas Kazimain insistiu que eu fosse.

- Tens de falar com lorde Sadiq! - declarou, num tom urgente. Foi assim que acabei por me descobrir no mercado de escravos de

Amida onde ouvi alguém gritar:

- Aedan!

 

A praça do mercado estava coberta por uma verdadeira enchente de pessoas agitadas, quase todas a gritarem a plenos pulmões para tentarem fazer-se ouvir por cima das outras. Naquele dia não havia escravos à venda, mas sim uma grande fartura de cavalos, burros, ovelhas e cabras, bem como de outros animais que eu já vira, uma ou duas vezes, em Trebizonda. Eram camelos, criaturas barulhentas, felpudas e mal-humoradas, muito apreciadas pelos habitantes das secas zonas do sul. Parecia haver menos compradores do que vendedores e o desespero começou a instalar-se entre estes últimos porque o Sol já estendia as suas sombras através da praça. A maioria dos vendedores eram pastores e agricultores que não estavam nada interessados em iniciar a longa viagem de volta a casa com as bolsas vazias.

O grito voltou a ouvir-se, seco e distinto:

- Aedan!

Imobilizei-me de repente e fiquei à escuta. Se da primeira vez não tivera a certeza de ter ouvido o chamamento, agora ouvira-o bem e comecei a examinar a movimentada praça em busca de quem quer que fosse que me chamara. Não obstante o mercado estar cheio de gente, ninguém me prestava a mínima atenção. Bem vistas as coisas, o barulho que me rodeava era tanto que o grito podia não ter passado de um produto da minha imaginação. Preparava-me para seguir o meu caminho atrás do emir e de Faysal - que andavam em busca de provisões -, quando, no preciso momento em que me virava para os seguir, tive um relance, pelo canto dos olhos, da figura velha e encarquilhada de Amet, o magus que consultara em Trebizonda.

Avançava para mim, levantando as mãos no seu peculiar gesto de saudação, como se receasse que eu fugisse na sua frente antes dele me poder alcançar. Apressei-me a ir ter com ele mas ainda não dera três passos quando um enorme rebanho de cabras se interpôs entre nós dois e me vi repentinamente rodeado pelos balidos dos animais.

Amet parara. Olhava intensamente para mim a uma distância de cinquenta passos, com as mãos ainda levantadas e as palmas viradas para fora. Movia a boca mas as palavras eram engolidas pela barulheira do mercado e pelos berros das cabras.

Coloquei uma das mãos em volta da orelha e gritei:

- Que disseste?

Voltou a repetir qualquer coisa mas não o ouvi melhor do que da primeira vez, excepto quanto a uma única palavra: Sebastea.

- Não te consigo ouvir! - gritei, começando novamente a avançar para ele através do rebanho de cabras, apenas para o ver desaparecer da minha vista por trás de um homem que conduzia três cavalos. O homem e os cavalos passaram na minha frente... e quando dei mais um passo já Amet desaparecera.

Corri para o lugar onde o vira mas o pequeno magus não se encontrava em lado nenhum.

- Amet! - gritei.

A voz chegou-me pela última vez, vinda de muito longe.

- Vai a Sebastea, Aedan, a Sebastea...

Não consegui encontrar Amet em lado nenhum no meio da massa de corpos que se comprimia à minha volta. Voltei a chamá-lo pelo nome mas não tive resposta. Desaparecera tão completamente que fiquei na dúvida sobre se o vira ou não. Fiz uma última inspecção à praça, virei-me e apressei-me a ir ter com Faysal e com o emir, que conversavam com um homem que se mantinha de pé ao lado de uma carroça carregada com sacos de cereal.

Juntei-me a eles, ocupei o meu lugar ao lado de Faysal no momento em que Sadiq fechava o negócio e comprava todo o carregamento de cevada. Faysal começou a explicar ao homem onde devia entregar o cereal e Sadiq virou-se a sua atenção para o outro assunto que tinha em mente: descobrir uma escolta que levasse Kazimain de volta a Samarra.

- O shaykh deste lugar deve conhecer homens em quem se possa confiar - declarou Sadiq.

- Lorde Emir... - disse-lhe - permita-me a ousadia de sugerir...

- Sim? - respondeu o emir, distraído, com os olhos a percorrerem o mercado. - O que é? Fala!

- ... que Kazimain seja autorizada a prosseguir a viagem connosco...

Os olhos do emir viraram-se para mim e a sua boca contorceu-se numa careta.

- Prosseguir connosco... - repetiu, numa voz de chumbo - até Bizâncio?

- Sim - repliquei, mas senti a resistência a crescer dentro dele. Contudo, Faysal interveio antes de Sadiq conseguir aspirar o ar para recusar a minha sugestão.

- Senhor, se me permite, estive a pensar precisamente na mesma coisa...

Os olhos de Sadiq, já com uma expressão maligna, desviaram-se de mim e fitaram Faysal.

- Estão ambos loucos! - Virou-nos as costas de repente. - Não o posso permitir!

- Podia ser de grande utilidade para nós - persisti. - Pode acontecer...

- Não! - ripostou o emir, afastando-se. - Falei... e o assunto está encerrado.

- Senhor... - implorou Faysal - por favor, reconsidere. Kazimain é astuta e cheia de recursos, como todos nós sabemos. Não fazemos ideia sobre a recepção que iremos ter em Bizâncio e...

- Precisamente! - exclamou o emir, enfrentando-nos. - É por isso mesmo que não posso permitir que ela continue connosco nem sequer um momento mais do que o necessário. - Sadiq calou-se abruptamente. Levou a mão à têmpora e fechou os olhos com força, como se se esforçasse por recordar qualquer coisa que esquecera.

Faysal viu o gesto e as suas feições revelaram uma estranha apreensão.

- Emir? - perguntou, baixinho.

- Não é nada... É do Sol - murmurou Sadiq. O seu rosto perdera parte das cores e a voz pareceu-me mais fraca. - Acabemos com isto e voltemos ao acampamento.

Lorde Sadiq tomara uma decisão e não havia maneira de o fazer mudar de opinião. Um dos mercadores que se encontrava na praça apontou o shaykh e Sadiq foi aconselhar-se junto dele sobre onde contratar homens de confiança que pudessem escoltar Kazimain. Os dois homens conversaram, houve dinheiro que mudou de mãos e o assunto ficou resolvido.

Para além de provisões secas de vários tipos, o emir comprou também um rebanho de ovelhas, algumas cabras, três camelos e uma carroça. Nessa mesma tarde, quando os provisões que haviam sido entregues estavam a ser arrumadas na carroça, vi Faysal e Kazimain a falarem em tons abafados e urgentes.

Fui ter com eles e ouvi Faysal a dizer:

- ... vêm buscar-te de manhã. O shaykh deu a vida do seu filho como garantia de segurança e... - Interrompeu-se ao dar pela minha aproximação.

- Lamento muito, Kazimain - disse-lhe. - O emir não se deixou persuadir. No entanto, talvez seja a melhor solução. Sentir-me-ei melhor sabendo que estás em segurança...

- A melhor solução! - protestou. O fogo dos seus olhos escuros esmoreceu tão rapidamente como surgira. - Talvez seja bom recordares que não quero fazer esta viagem para teu prazer, mas sim por causa do emir. Ele não está bem!

Aquelas preocupações confundiam-me. Não duvidava da sua sinceridade, mas não lhes dava crédito.

- Já o disseste - admiti - mas não lhe noto qualquer sinal de doença. Parece comportar-se como de costume. - Encolhi os ombros e olhei para Faysal em busca de uma confirmação. - Não é verdade?

- Não, não é! - declarou Kazimain num tom que indicava que a doença devia ser evidente para todos. Sentindo-se impotente contra uma tão avassaladora ignorância da minha parte, também apelou a Faysal. - Diz-lhe!

- Kazimain pensa que o emir ficou ferido... - explicou Faysal - na mina, quando o cavalo caiu e rolou sobre ele. - Levantou os ombros ao de leve e acrescentou: - Lorde Sadiq nega que não esteja a sentir-se bem.

Não havia maneira de persuadir Kazimain, que também não permitiu que a consolássemos.

Aquela pequena discussão não intencional deixou-me um sabor amargo na boca, pelo que dei uma volta pelo acampamento durante algum tempo, para pensar no que poderia eu fazer, e acabei por me instalar junto dos britânicos na altura em que Dugal e Brynach preparavam uma refeição. Sadiq decidira que cada um dos grupos separados que constituíam a nossa coluna faria melhor em cozinhar os seus próprios alimentos e aliviara os árabes dessa tarefa. Brynach levantou os olhos da panela quando me sentei contra uma rocha:

- Não duvido que já tenha visto uma expressão mais pesarosa do que essa... - comentou, voltando a mexer a comida - mas não me recordo quando...

Ddewi, agachado ali perto a desenhar linhas na poeira com um dedo, levantou a cabeça e riu-se da pequena brincadeira de Brynach. Notando a minha surpresa, este disse:

- Parece estar a melhorar. - Levantou a voz e perguntou: - Não é verdade Ddewi? - Contudo, Ddewi voltara aos seus sonhos e não deu sinais de o ter ouvido ou compreendido. - Tu, irmão Aidan - continuou o britânico - pareces estar pior. Que se passa?

Tentei fugir à pergunta com um encolher de ombros e um sorriso, mas acabei por responder.

- Hoje, vi um homem que não estava lá. Foi um acontecimento curioso, nada mais.

- Ah, sim? - As sobrancelhas de Brynach arquearam-se de interesse, mas continuou a mexer a comida que se encontrava ao lume. - E já o tinhas visto antes?

- O Aidan está sempre a ver coisas - proclamou Dugal, que chegava naquele momento com uma braçada de ramos de arbustos, para a fogueira. - Tem sonhos, visões e outras coisas do mesmo género...

- Dugal, eu não... - comecei, tentando protestar.

- É verdade! - insistiu Dugal.

- O homem que eu vi não era nenhuma visão - declarei. - Tratava-se de um homem que encontrei em Trebizonda. Pensei tê-lo visto hoje, no mercado... e pensei que o ouvi a chamar-me. Todavia, a praça estava cheia e quando lá cheguei já tinha desaparecido. Talvez nem sequer o tenha visto...

Brynach franziu a testa, desaprovando a minha explicação, mas não disse mais nada e regressou aos seus cozinhados. Dugal, que quebrava os ramos em bocados mais pequenos, perguntou:

- E essa Trebizonda, como era?

Ao ouvi-lo mencionar a cidade, houve qualquer coisa que Brynach me dissera que se agitou na minha cabeça. Em vez de responder à pergunta de Dugal, respondi com outra pergunta:

- Disseste-me que iam à procura do governador, não é verdade?

- Sim, Cadoc desejava a sua ajuda - respondeu Brynach.

- Mas não era por causa da cumtach - sugeri. - Podiam ter mandado fazer uma capa nova em Constantinopla...

- É verdade.

- Então... para quê? Que ajuda vos poderia dar o Governador Honorius?

Brynach deixou de mexer a comida. Olhou de Dugal para mim e de novo para a panela, como se tentasse ler um propósito no líquido borbulhante.

- Suponho... - declarou - que agora já não faz diferença.

Fez um gesto para que Dugal ocupasse o seu lugar junto do fogo, aproximou-se e sentou-se no chão, virado para mim.

- Cadoc está morto. - A tristeza da sua voz aprofundou-se e pensei que não se tratava apenas de desgosto pela morte do amado bispo. - Se assim não fosse, ele próprio te teria contado tudo.

Permaneci em silêncio, a tremer de excitação. Mesmo assim, as suas primeiras palavra surpreenderam-me.

- O governador Honorius iria ser o nosso advogado contra Roma.

- Roma! - exclamei, espantado. - Que tem Roma a ver com isto? Por que foi que...

Brynach levantou a mão para impedir mais perguntas.

- Na verdade, até poderíamos dizer que era essa a verdadeira finalidade da peregrinação.

Enquanto falava, formou-se uma imagem na minha mente: homens em volta de uma mesa, monges que partiam pão e conversavam em tranquila camaradagem uns com os outros. A imagem modificou-se e vi-me sentado com Brynach, que me chamava para mais perto. Os que escolho para amigos tratam-me por Bryn, dizia. Posso dizer-te uma coisa?

A recordação atingiu-me com a força de um golpe. Olhei-o e recuei a minha mente até àquela noite.

- Então, era isso o que me querias dizer... - declarei. Brynach devolveu o meu olhar com uma expressão vazia e expliquei: - Na noite do nosso primeiro encontro ias dizer-me qualquer coisa... mas um dos monges intrometeu-se.

- Sim, suponho que pensei nisso... - confirmou, acenando levemente.

- Deviam ter-nos informado - afirmei, num tom que se tornava cada vez mais áspero. - Se a nossa jornada tinha uma finalidade oculta...

Dugal, silencioso como uma pedra, tentava absorver as revelações que estava a ouvir.

- Não era uma finalidade oculta... - protestou Brynach rapidamente. - De modo nenhum...

- Deviam ter-nos informado - insisti. - Explica-me tudo, agora. Brynach voltou a abanar a cabeça lentamente. A tristeza nos seus olhos era intensa e profunda.

- Também te recordas - perguntou, baixinho - que em primeiro lugar deveríamos ir a Ty Gwyn?

Fui mais uma vez assaltado por uma recordação súbita.

- Ty Gwyn... - murmurei. - A tempestade impediu-nos de desembarcar.

- Ah, então ainda te recordas... - confirmou Brynach.

- Também me lembro que nunca nos disseram porque tínhamos de lá ir - comentei, mordaz.

- Durante muitos anos, andei a viajar de abadia em abadia, escutando as queixas de abades e bispos, pormenorizando os seus ressentimentos, por assim dizer, e escrevendo-os. Chamei-lhe... o Livro dos Pecados... - Sorriu com tristeza. - Os pecados de Roma contra nós.

- Mas... nós partimos sem ele!

- Bom... - prosseguiu Brynach, encolhendo os ombros - não podíamos evitá-lo. Logo que terminei o meu pequeno livro vermelho, o bispo Cadoc mandou fazer três cópias: uma encontrava-se em Ty Gwyn, uma em Hy e outra em Nantes, na Gália.

- Foi aí que Cadoc e Honorius se encontraram - declarei, recordando-me da nossa conversa anterior.

- É verdade - confirmou. Depois de termos trabalhado durante tanto tempo no nosso apelo, pensámos que seria bom partilhar os frutos... por assim dizer. As Igrejas da Gália estavam a ser tão rudemente pressionadas como as britânicas e as do Éire, e esperávamos alistar esses irmãos para a nossa causa - Voltou a abanar a cabeça. - Dirigíamo-nos a Nantes quando os Dinamarqueses nos atacaram.

- Mas vocês conseguiram chegar a Nantes - disse-lhe - e devem ter recuperado o vosso Livro Vermelho.

- Recuperámos, sim.

- E levaram-no para Bizâncio, não é verdade? - Brynach respondeu à minha pergunta com um aceno. - Que lhe aconteceu?

- Devíamos colocá-lo nas mãos do Imperador, mas... - retorquiu, com simplicidade. Porém, logo de seguida, fez uma careta e mostrou-se hesitante.

- Perderam-no quando o vosso navio foi atacado... - sugeri, acreditando ter adivinhado o destino do livro.

Brynach levantou os olhos rapidamente.

- De modo nenhum! O livro continua em Bizâncio, o que ainda nos permite alguma esperança. É Nikos, o homem que condenaste tão precipitadamente, quem o tem neste preciso momento!

Fiquei a olhar para o monge mais velho, estupefacto, avassalado pela imensidão da catástrofe, pela inutilidade da maldita confiança do bispo Cadoc e pela monumental traição de Nikos. Senti-me como se o peso do mundo se tivesse deslocado para acabar por assentar sobre o meu peito.

- Nikos! - As minhas mãos contraíram-se em punhos. - Entregaste-o ao Nikos! Em nome de Deus, homem, porquê?

Dugal, ajoelhado sobre a panela borbulhante e com a colher-de-pau na mão, olhava de um de nós para o outro com uma expressão confusa no rosto.

- Paz, irmão - murmurou Brynach, tentando acalmar-me. - Sim, entregámos-lhe o livro para que o guardasse em segurança... e é por isso que sei que estava a tentar ajudar-nos - A fé de Brynach era tão genuína como inadequada. - Nikos ficou muito impressionado com o meu trabalho exaustivo e com o cuidado com os pormenores. "Uma acusação tão meticulosa," disse, "não pode deixar de impressionar o Imperador." Foram estas as suas palavras exactas.

A dor no meu peito cedeu o lugar a uma sensação de vazio. Senti-me como se fosse uma abóbora a rebentar de madura, cortada ao meio e esvaziada com uma única pancada violenta. De qualquer modo, tal como os sedimentos a assentarem no fundo de um lago, as coisas estavam a tornar-se gradualmente mais claras e resolvi insistir naquele assunto.

- E o governador? Qual foi o seu papel nisto tudo?

- Cadoc conhecia-o bem porque os dois haviam sido amigos, na Gália. Cadoc, então um simples sacerdote, baptizara Honorius na fé. Graças a essa bênção singular, Honorius disse que Cadoc poderia contar sempre com a sua ajuda se alguma vez viesse a precisar dela. Ao longo dos anos, Honorius foi subindo até atingir uma posição de considerável influência e ia guiar-nos até ao prémio que procurávamos.

- E esse prémio, o que era? - inquiri, quase com medo.

- Uma dispensa do Imperador... - replicou Brynach, num tom que voltava a ganhar força - para a livre prática da nossa fé.

Para mim, aquilo não fazia qualquer espécie de sentido.

- Perdeste o juízo, irmão? Que quer isso dizer? Nós somos livres - declarei. Por instantes, esqueci-me que já nada tinha a ver com aquelas questões e que já não me ralava, de uma maneira ou de outra. - Não devemos fidelidade a nenhum monarca terreno!

- Não será bem assim, se Roma conseguir o que quer... - contrapôs Brynach, sombrio. - Neste momento já o papa ergue o seu grito de heresia contra nós.

- Heresia! - Nem sequer conseguia imaginar de que estaria Brynach a falar. - É absurdo!

- Sim, mas não deixa de ser verdade - replicou o monge. - O papa quer colocar todos os que se intitulam cristãos sob o seu domínio. Penso que as nossas maneiras diferentes sempre vexaram Roma... e o Papa quer que verguemos os joelhos perante a sua autoridade.

- Ah, por isso, esperavam poder apelar para uma autoridade mais alta... - murmurei, com o desespero novamente a invadir-me.

- Sobre a Terra não existe uma autoridade mais elevada do que a do próprio Imperador - declarou Brynach, num tom mais ardente. - Pode garantir-nos a paz que procuramos. Logo que cheguemos a Sebastea - acrescentou rapidamente - podemos...

As suas palavras, combinadas com a renovação do entusiasmo, encheram-me de alarme.

- A peregrinação terminou! - declarei, com rudeza e com uma voz áspera. - Vamos regressar a Trebizonda e daí viajaremos para Constantinopla. Acabou-se! - conclui. - A peregrinação acabou em desastre há já muito tempo.

Brynach abriu a boca mas voltou a fechá-la sem chegar a falar. Levantou-se e regressou ao seu lugar junto da panela do cozinhado. Pensei que o assunto terminara ali... mas estava muito enganado.

 

A minha mente contorceu-se como uma enguia nas garras de uma águia. Perturbado pela conversa de Brynach, incomodado e zangado, caminhei durante muito tempo vendo a noite a descer no avermelhado céu do deserto enquanto tentava recuperar a paz e a compostura. Contudo, quanto mais caminhava mais agitado me sentia, embora de uma maneira obscura: não sabia por que motivo estava tão ansioso nem conseguia discernir a fonte dos meus agravos. Entretanto, os meus pensamentos rodopiavam e alteravam-se, saltitando para um lado e para o outro sem nunca me darem descanso.

Em certo instante senti-me como se uma súbita visão ardente estivesse prestes a explodir dentro de mim. Esperei, quase a ofegar de antecipação... mas não aconteceu nada. Refiz o caminho de volta ao acampamento e procurei um lugar onde pudesse estar só com os meus pensamentos. Estaria tão incomodado comigo mesmo, interroguei-me, por causa de qualquer coisa que Brynach dissera?

Agitado pelo tumulto das minhas pouco satisfatórias meditações, ouvi um estranho som estrangulado a que não prestei atenção. Momentos depois voltei a ouvi-lo, virei-me e avistei Dugal, de cabeça baixa, que se arrastava para mim com as mãos a cobrirem o rosto. Apesar da escuridão, conseguia perceber que tinha os ombros curvados como que sobre um peso invisível. Acabou por se aproximar do ponto onde me encontrava sentado numa rocha solitária, a pouca distância do acampamento.

- Dugal?

Ergueu imediatamente o rosto. Esperava ver-lhe lágrimas mas os seus olhos estavam secos. Contudo, o tormento que o dominava era bem visível em todas as linhas do seu rosto e a sua voz era rouca.

- Que Cristo tenha piedade! - exclamou. - Tudo isto aconteceu por culpa minha!

- Senta-te - ordenei-lhe, com firmeza. Continuava concentrado nas minhas próprias preocupações e não sentia qualquer inclinação para a gentileza ou para a simpatia. - Diz-me o que te está a incomodar - pedi.

- Foi por minha causa que todos estes males se precipitaram sobre nós... - declarou, com a voz a quebrar-se-lhe de remorsos. - Que Deus tenha piedade da minha alma, porque sou o responsável por todas as nossas aflições.

- Ora! - exclamei, dando um estalo com a língua ante aquelas palavras. - Escuta bem o que estás a dizer! Mesmo que fosses o próprio diabo encarnado, nunca conseguirias provocar tanta confusão!

Na sua vergonha, Dugal baixou a cabeça, ocultou-a com as mãos e murmurou:

- Jonas... Sou um Jonas.

Pus-me de joelhos, inclinei-me para ele e pousei uma das minhas mãos no seu ombro.

- Escuta-me, Dugal - disse-lhe, com secura - a culpa não é tua. Os azares que nos perseguem são obra de um zelota que nem sequer recua perante o assassínio, nem qualquer outro crime, para conseguir atingir o seu propósito maléfico.

- O homem que descreves - foi a sua resposta abafada - sou eu. Esse Jonas sou eu.

- Não sejas estúpido! - protestei, com toda a rudeza. O homem que eu descrevo é o komes Nikos e a iniquidade é só dele.

Todavia, Dugal não queria ser reconfortado.

- Não compreendes! - declarou, num grito que era como uma ferida. - Desde o princípio, ainda antes de sairmos do Éire... - Abanou a cabeça, destroçado pela infelicidade.

- Acaba com isso, Dugal. Olha para mim! - Falei com severidade, tentando apoiá-lo com palavras duras e um propósito firme. - Olha-me de frente, homem, e conta-me o que fizeste.

Dugal levantou a cabeça lentamente, como um homem esmagado pelo peso da culpa. Naquele momento já tinha lágrimas nos olhos, que limpou com as costas da mão.

- Então? Estou à espera!

- Fiz batota para conseguir embarcar no navio... - acabou por dizer.

- Qual navio? - Nem sequer conseguia imaginar de que estaria ele a falar.

- O nosso navio... o Bãn Gwydd - explicou. Uma vez soltas, as palavras saíram-lhe de roldão. - Sabia que nunca viria a ser escolhido, tal como tu, Aidan. Porém, por outro lado, também sabia que não podia deixar-te partir na peregrinação sem mim. Por isso - e Deus é minha testemunha - planeei e conjurei dia e noite, à procura de uma maneira de embarcar no navio. Preparei-me até para uma qualquer acção vil que pudesse aproveitar para te poder acompanhar. Depois... o diabo colocou a oportunidade ao meu alcance e aproveitei-a. - Desesperado, Dugal fitou-me com os seus olhos húmidos. - Que Deus me perdoe, mas fi-lo sem sequer pensar duas vezes...

- Ah, empurraste o Libir para fora do caminho! - exclamei, recordando-me da partida e das rochas escorregadias que conduziam ao pequeno navio.

Foi maravilhoso assistir à mudança no comportamento de Dugal. A dor que fora perfeitamente visível nos seus olhos transformou-se primeiro em surpresa e depois em espanto.

- Sabias?

- Ora, Dugal, sempre o soube!

- Sabias... - repetiu - e nunca murmuraste uma palavra a esse respeito?!

- Claro que sabia! Escuta: Libir era um velho e nunca teria suportado a jornada. Morreria no naufrágio ou, se tal não acontecesse morreria noutra ocasião qualquer. Muito provavelmente, até lhe salvaste a vida!

Dugal ficou a olhar-me, sem querer acreditar no que lhe estava a dizer.

- Pensas que Deus nos iria amaldiçoar e arruinar só porque ocupaste o lugar de um velho a bordo do navio? - perguntei.

- Mas... magoei-o... - replicou, mortiço. - Magoei-o, Aidan. As infe-licidades precipitaram-se sobre nós por causa do meu orgulho pecaminoso.

- Ora, deixa de pensar nisso - disse-lhe. - Neste mundo, as coisas acontecem porque acontecem, mais nada. A nossa única infelicidade é pensarmos que Deus se preocupa. Escuta, Dugal, Ele preocupa-se muito pouco... e interfere ainda menos, para um lado ou para o outro, nos nossos assuntos.

As minhas palavras picaram-no. Vi-o nos seus olhos. Não esperava um tal veneno da minha parte e ficou chocado com o que lhe disse. Passado um instante, murmurou:

- Sentir-me-ia melhor se me confessasse...

- Já te confessaste... - salientei, com a ira a enfraquecer.

- Queres ouvir a minha confissão, Aidan?

- Não! - retorqui. - No entanto, confessa-te, se isso te fizer sentir melhor. O Brynach que o faça. Não quero tomar parte nisso.

Dugal acenou, tristonho e pôs-se de pé. Vi-o aproximar-se de Brynach. Conversaram os dois, após o que o monge mais velho conduziu Dugal para um sítio um pouco mais afastado e os dois homens ajoelharam-se para rezar. Que Deus me ajude, mas não suportei vê-los. Virei-lhes as costas, enrolei a capa em volta dos ombros, deitei-me e tentei adormecer. A noite do deserto era suave e fria, o céu brilhava, mas a minha mente continuou a dar voltas infindáveis, incapaz de chegar a uma conclusão e pouco predisposta para o descanso.

No fim, acabei por desistir e limitei-me a olhar para as estrelas. Também isso não me serviu de nada porque, enquanto observava o brilhante céu opalescente, só via a cadeia de enganos que se estendia para trás, cada vez mais para trás, até Bizâncio. Pensei em Nikos e na sua traição mas, em vez de me deixar arrastar por uma renovação da raiva e do ódio - pois era sempre isso o que acontecia quando o nome dele me passava pela cabeça - analisei-o de um modo desapaixonado, mais como um enigma que precisava de ser resolvido do que como uma serpente que tinha de ser morta.

Por estranho que pareça, a minha mente deixou de saltitar infindavel-mente de pensamento em pensamento e o meu espírito mergulhou numa profunda calma. Comecei a encarar as dificuldades sob uma luz mais fria e clara. Ocorreu-me que o eparch Nicephorus e o bispo Cadoc haviam sido traídos por Nikos. Porquê? Tanto quanto eu soubesse, nenhum deles ouvira sequer falar no outro, mas Nikos dera-se a muito trabalho para os destruir. O que fora que unira os dois homens como objectos da traição de Nikos?

Bom, só podia haver uma resposta: ambos conheciam o governador Honorius. Na verdade, iam ambos a caminho para o visitarem, e tinham sido atacados. Portanto, o Honorius era o centro daquele mistério.

Nesse caso, por que seria que Nikos receava o governador? Fosse qual fosse a resposta, concluí que esta deveria ter uma terrível importância, uma vez que centenas de pessoas já haviam sido mortas para a ocultar... e o esse número referia-se apenas àquelas de que eu tinha conhecimento. Quantas mais teriam sido sacrificadas... e porquê?

Por muito que pensasse, não conseguia passar daquele porquê.

Fitei a brilhante abóbada celeste por cima de mim e virei-me outra vez para a visão que tivera durante a tarde: Amet de pé no centro da praça, chamando-me. Vai a Sebastea, dissera. Sebastea...

Já estava de pé antes de dar por isso e cambaleei através do acampamento adormecido. Ajoelhei-me ao lado de Brynach e agarrei-lhe um ombro. Acordou imediatamente ao meu toque.

- Como sabias que o governador estava em Sebastea? - perguntei, com a voz a tremer de excitação.

- Paz, irmão... - respondeu, tentando levantar-se.

- Responde! Como sabias? - inquiri, já a adivinhar o que me iria dizer.

- Foi Nikos quem no-lo disse - replicou Brynach. - Afirmou que o governador passava sempre o Verão nessa cidade.

Senti as costelas a serem percorridas por um pequeno arrepio gelado. Oh, Nikos era tão astuto como uma víbora... e igualmente venenoso. Tinha conhecimento, ainda antes de pôr os pés em Trebizonda, que o governador não se iria juntar a nós. Enviara os monges não para a casa de Honorius em Trebizonda, mas sim para Sebastea, onde sabia que o governador se encontrava. Depois, quando o eparch concluíra o tratado, Nikos também nos desviara para Sebastea.

Ao que parecia, Nikos estava sempre a enviar gente para Sebastea... mas nenhuma chegava ao seu destino. Porquê?

A minha excitação, tão rapidamente atiçada, morreu de repente. Pensara estar prestes a resolver o enigma, mas quanto mais o sondava mais o mistério se aprofundava e não me encontrava mais perto de uma solução. Regressei ao lugar que escolhera para me deitar, desanimado e desgostoso, para continuar a debater-me com pensamentos infrutíferos.

A palidez da madrugada ainda me encontrou acordado, inquieto e dorido, tanto da cabeça como do coração. Lentamente, o acampamento começou a agitar-se. Continuei deitado, escutando as conversas dos guerreiros enquanto voltavam acender as fogueiras. Assim, já me encontrava perfeitamente alerta quando ouvi os suaves passos de Kazimain a aproximarem-se de mim.

- Aidan... - murmurou, insegura e com uma voz trémula.

- Meu amor... - respondi, virando-me para olhar para ela. Parecia ter dormido tão mal como eu, tinha os cabelos desfeitos e os cantos dos olhos avermelhados. - Kazimain...?

- É lorde Sadiq... - As mãos tremiam-lhe e segurei-lhas. Os dedos estavam gelados. - Não consegui acordá-lo...

Não demorei nem um instante a chegar junto do emir. Entrei na tenda com passos rápidos, ajoelhei-me e pousei a mão num dos lados do seu pescoço, tal como Farouk fizera comigo um incontável número de vezes.

A pele do emir estava quente ao toque e consegui sentir, sob as pontas dos dedos, os rápidos batimentos de um pulso forte. Por seu lado, a respiração era rápida e pouco profunda. Parecia dormir, mas tratava-se de um falso repouso, e para além disso tinha uma fina camada de suor a cobrir-lhe a testa.

Toquei-lhe no ombro e agitei-o suavemente mas com firmeza.

- Lorde Sadiq... - disse-lhe - acorde! - repeti este pedido três vezes mas o emir não soltou um som nem se moveu.

- Estás a ver...? - murmurou Kazimain, espreitando por cima do meu ombro.

- Onde está o Faysal? - perguntei.

- Não comeu nada a noite passada... - prosseguiu Kazimain. - Disse que não tinha fome... e não é natural continuar a dormir durante tanto tempo...

- Kazimain - interrompi-a, fazendo-a calar-se - onde está o Faysal?

- Lá fora... - Esboçou um gesto vago para trás das costas. - Eu não... - Olhou para mim, já muito assustada. - Preferi ir acordar-te...

- Vai acordá-lo e diz-lhe para trazer água.

Acenou e saiu da tenda a recuar. Endireitei a cabeça do emir e comecei a retirar-lhe o turbante. Tanto quando soubesse, não o mudara desde o incidente junto ao portão. Sustive a respiração enquanto a longa tira de pano se ia desenrolando, receoso do que pudesse vir a descobrir.

Desenrolei a última volta, coloquei o pano de lado e examinei a cabeça do emir. Para meu grande alívio, não havia nenhum ferimento visível. Mesmo assim, continuei a procurar, afastando os cabelos desgrenhados para poder ver o escalpe que se encontrava por baixo. Quando Kazimain regressou já eu completara o exame sem descobrir nada de invulgar.

Kazimain ajoelhou a meu lado, ainda preocupada mas um pouco mais composta. Faysal apareceu um instante depois, trazendo um jarro com água. Despejou-a para uma pequena taça, que levou aos lábios do emir. Meti uma das mãos por trás da cabeça de Sadiq e ergui-lha, para que pudesse beber a água. Quando o fiz, o emir gemeu, como se sentisse dores, mas não acordou.

- Espera! - exclamei, para Faysal. - Há aqui qualquer coisa! - Virei-me para Kazimain e pedi: - Ajuda-me a voltá-lo.

Rolámos o emir, levantando-o um pouco para o deitarmos de lado, após o que encontrei rapidamente o ponto onde os meus dedos haviam tocado.

O ferimento era pouco mais do uma nódoa negra na base do crânio. Porém, quando o sondei com os dedos, o que encontrei por baixo da pele não era osso sólido mas sim carne mole.

- Aqui... - disse, guiando os dedos de Kazimain até àquele ponto. - Devagar, muito devagar...

O emir voltou a gemer quando Kazimain tocou no ferimento e a jovem retirou os dedos precipitadamente, como se os tivesse queimado.

- O osso está esmagado - ofegou, com a voz a reduzir-se a um sussurro.

- Faysal... - ordenei - salta imediatamente para o cavalo, vai a Amida e procura um físico.

- Não me parece que haja um físico em Amida - retorquiu, a olhar-me.

- Vai, homem! - insisti. - Depressa!

Faysal inclinou a cabeça numa aceitação da ordem, num gesto que o vira fazer mil vezes mas sempre a lorde Sadiq e a mais ninguém. Abandonou a tenda enquanto Kazimain e eu tentávamos que o emir bebesse um pouco de água. No entanto, só conseguimos molhar-lhe o queixo e um dos lados da face.

- Fica junto dele - disse, para Kazimain. - Vou buscar o Brynach. É um homem muito sabedor, que talvez nos diga o que devemos fazer.

Quando saí da tenda, um dos rafiq foi ao meu encontro e anunciou que a escolta de Kazimain já chegara e estava pronta para a levar. Olhei para onde o guerreiro apontava e vi seis homens a cavalo.

- Diz-lhes que terão de esperar - respondi, correndo à procura de Brynach.

Brynach, Dugal e Ddewi já se tinham levantado e acendido uma fogueira para aquecerem o ar da manhã. Ao saber da situação do emir, Brynach acenou e disse:

- Nada receies por lorde Sadiq. Temos entre nós alguém muito dotado nas artes curativas. - Estendeu a mão para Ddewi, que se encontrava sentado a aquecer uma das mãos na fogueira e cujo rosto exibia uma expressão plácida.

- Não te referes ao... - protestei. Brynach acenou um confirmação.

- Mas... se ele não sabe o que faz... A sua mente... Nem sequer sabe onde está e de certeza que não poderá fazer nada!

- Serás Deus, para saberes o que um homem é capaz de fazer? - Não havia rancor na voz de Brynach. Virou-se e olhou Ddewi com satisfação. - Escondeu-se dentro dele mesmo... e só necessitamos de o trazer novamente para a luz do dia.

- A tua fé é louvável... - declarei, lutando para manter o desprezo longe da minha voz - mas trata-se do emir e receio pela sua vida. Se lhe acontecesse algum mal às mãos de Ddewi...

Alegremente, Brynach pôs de lado a minha objecção.

- É correcto que te preocupes por outro, mas os teus receios revelam falta de fé.

- Não é uma questão de fé - retorqui, com rudeza - mas sim de utilidade. O Ddewi nem sequer se lembra do seu próprio nome. Imagina que lhe confiava a vida do emir e lorde Sadiq morria?

Brynach pousou uma das mãos no meu ombro, num gesto paternal.

- Ó homem de pouca fé, confia em Deus e verás o que ele consegue fazer!

De acordo com a minha experiência, confiar em Deus só servia para que as coisas corressem de mal a pior... e em geral tão depressa que até nos deixavam sem fôlego.

Apesar da confiança cega de Brynach, eu nem sequer teria permitido que Ddewi se sentasse tranquilamente na tenda do emir se Faysal não regressasse ao acampamento com a infeliz notícia de que não existia nenhum físico em Amida.

- Não há ninguém? - grunhi.

- Apenas algumas velhas que fazem companhia aos doentes - retorquiu Faysal, encolhendo os ombros

Dugal viu que o cavalo de Faysal estava suado e juntou-se-nos. Bryn explicou-lhe o que se estava a passar e eu perguntei, virando-me para Faysal:

- E que acontece quando há uma pessoa gravemente doente? - Essa pessoa morre.

- Sem dúvida - interveio Brynach - que tudo isto aconteceu para que a glória de Deus possa ser aumentada...

- Ah, sim, sem dúvida... - resmunguei, azedo.

- Alegra-te, irmão - exortou-me Dugal. - Pode ser a salvação destes dois homens...

Dito aquilo, toda a gente se virou para mim na expectativa, aguardando uma decisão.

- Onde é que podemos encontrar um físico? - perguntei, dirigindo-me a Faysal.

- Em Samarra ou Bagdade - retorquiu.

Porém, por estranho que pareça, a voz que eu ouvi não foi a de Faysal mas sim a de Amet a chamar-me através da praça. Vai a Sebastea...

Oh, Brynach tinha razão, era uma questão de fé, mas não como ele a imaginara. Quem competia pela minha fé não era Deus, nem sequer o Ddewi. A questão era esta: poderia confiar na minha visão? Confiara uma vez... e revelara-se falsa. Se isso voltasse a acontecer, o emir pagaria com a vida.

Samarra ficava a grande distância para trás de nós e Bagdade era ainda mais longe. Não conseguiríamos chegar a nenhuma dessas cidades antes de muitos dias de viagem mesmo que cavalgássemos de noite e de dia. A julgar pelo aspecto do emir, este nunca aguentaria uma tal jornada. Desse modo, a escolha era clara... embora não fosse fácil.

Senti um toque no braço.

- Aidan? - perguntou Faysal - Em que estás a pensar?

- Faysal, escuta. Pode haver outra escolha. Que tal Sebastea? Ficou a pensar no assunto por instantes.

- Está mais perto... - admitiu - e é uma grande cidade.

- Acho que é para lá que devemos ir.

Faysal hesitou. Preparava-me para o incitar quando Kazimain resolveu intervir:

- Temos de fazer o que for mais prático - declarou. - Não sabemos quanto tempo irá aguentar...

- Muito bem - respondeu Faysal - cedo ao teu julgamento. Virei-me para Brynach, que estava debruçado sobre Ddewi e lhe sussurrava ao ouvido, e disse-lhe:

- Leva o Ddewi à tenda. Vou deixar que se ocupe de lorde Sadiq até chegarmos a Sebastea. Contudo, a Kazimain permanecerá junto dele, para se certificar que não lhe faz nenhum mal...

Dugal e Brynach pegaram nos braços do relutante monge e guiaram-no até à tenda, com Brynach a falar baixinho para o seu jovem pupilo durante todo o tempo. Não era uma visão capaz de inspirar uma grande confiança. Vi-os a afastarem-se, com as dúvidas e os receios a aumentarem dentro de mim. Que Deus nos ajude a todos, pensei, mas foi um desejo expresso com um coração frio em que não havia qualquer esperança ou fé.

Dugal escoltou Ddewi até junto do emir e regressou ao local onde eu falava com Faysal numa tentativa para decidir qual o melhor procedimento . a adoptar.

. - Nada receeis, Aidan - disse-me Dugal - porque as coisas acabam sempre por se resolver para os que amam a Deus.

Faysal olhou o grande monge com curiosidade e pediu:

- Por favor, que está ele a dizer?

- Disse para não me preocupar, porque Deus trabalha sempre para o bem - respondi, numa tradução apressada e pouco entusiástica.

- Temos um dito semelhante - replicou Faysal. - Os fiéis dizem "Tudo é tal como Alá o deseja." É a mesma coisa, creio...

Faysal começou a tratar dos preparativos que iriam permitir que Sadiq viajasse, pondo em prática o que outrora já fizera para mim.

- Poderemos partir para Sebastea muito em breve. Informar-te-ei quando tudo estiver pronto - disse-me.

Enquanto Faysal se afadigava, dirigi-me ao jarl Harald e expliquei aos dinamarqueses porque motivo ainda nos encontrávamos no acampamento. Gunnar, Hnefi e alguns dos outros amontoaram-se à nossa volta para ouvirem as novidades. Disse-lhes que lorde Sadiq adoecera durante a noite e que íamos partir para Sebastea em busca de um físico. Harald aceitou a mudança de planos com boa vontade e afirmou que carregaria pessoalmente com o jarl árabe às costas se isso o ajudasse a recuperar rapidamente.

- Temos para com ele uma grande dívida de honra - declarou, falando muito a sério.

Encarreguei os dinamarqueses de levantarem o acampamento e regressei à tenda de Sadiq. Brynach e Ddewi estavam ajoelhados ao lado do emir. Kazimain, de pé por trás deles, virou-se para mim quando me ouviu entrar.

- É notável - afirmou. - Lorde Sadiq já descansa muito melhor...

- Que foi que ele fez?

- Limitou-se a tocar no emir com as mãos e a rezar.

Não duvidei daquelas palavras, mas atribuí-as mais ao seu desejo de ver o familiar curado do que a qualquer coisa que Ddewi pudesse ter feito.

- Se Deus quiser, agora irá adormecer - informou-nos Brynach.

- A dormir já ele estava - retorqui. Não sei dizer porque motivo fiquei ofendido com o monge. Sabia perfeitamente que as suas intenções eram as melhores, mas tanta tranquilidade enervava-me, para além de me irritar com a confiança que sempre exibia sem nunca se interrogar, confiança que fazia com que o ferimento do emir parecesse uma coisa trivial. Claro que as coisas nunca eram assim tão simples.

Brynach fitou-me com curiosidade. Obriguei-me a um tom mais razoável e disse-lhe:

- Preparem-no, já dei ordens para levantar o acampamento.

Saí da tenda e apressei-me até ao local onde a escolta de Kazimain continuava à espera.

- Os nossos planos modificaram-se - disse-lhes, dirigindo-me ao chefe. - A escolta já não é necessária. Agradeçam ao shaykh e digam-lhe que o emir deseja que fiquem com o dinheiro que vos foi pago. Lorde Sadiq pode vir a ter necessidade dos vossos serviços num outro dia.

Para o bem ou para o mal, a decisão estava tomada... e virei a minha cara na direcção de Sebastea.

 

Começámos a viajar principalmente à noite por causa do calor, partindo ao crepúsculo e continuando até ao meio da manhã, quando os ardentes raios do Sol começavam a ficar demasiado quentes. Felizmente, a Lua ajudava-nos, brindando-nos com um dos seus luminosos quartos. Não nos faltava luz e o trilho, já muito batido, brilhava com um pálido clarão fantasmagórico que nos permitia avançar para Sebastea a um passo impiedoso. Foi nessa ocasião que os camelos - animais verdadeiramente desagradáveis sob todos os aspectos -, demonstraram a sua principal e talvez única virtude. Conseguiam deslocar-se rapidamente e sem necessidade de descanso ou de água, isto apesar de transportarem cargas capazes de esmagar um cavalo.

Viajámos rapidamente, avançando sempre para norte por entre os vales apertados e retorcidos, frequentemente à vista das águas lodosas do Tigre. Numa certa noite passámos por um minúsculo e piolhoso povoado instalado junto à margem do rio. Faysal, depois de conversar com alguns dos habitantes do local, regressou para nos informar que se tratava do último povoado árabe que iríamos encontrar. Sebastea, disseram-lhe, ficava a três dias de viagem para o norte e um pouco para leste, enquanto Trebizonda ficava a sete dias de distância para norte e oeste. Contudo, para lá de Sebastea existia uma boa estrada e Faysal garantiu-nos que a viagem seria menos árdua. Por vezes, durante a noite, atravessávamos a muito disputada fronteira e entrávamos em território imperial.

Fizemos o que pudemos para que o emir fosse confortável. Ddewi mantinha-se firmemente ao lado de lorde Sadiq, comendo e dormindo por perto e caminhando ao lado dos cavalos e da funda onde o enfermo era transportado. Kazimain também nunca os largava e garantiu-me que o jovem monge, embora sossegado e metido consigo mesmo, estava constantemente alerta para o seu dever e executava muitas pequenas tarefas que, no seu conjunto, pareciam produzir um efeito benéfico.

Pela sua parte, era pouco frequente que o emir estivesse consciente. Quando isso acontecia parecia incapaz de se erguer, nem sequer para levantar a cabeça. Receámos o pior e prosseguimos no passo mais rápido e implacável de que fomos capazes, mas sem o colocar em perigo.

Foi com uma sensação de grande alívio que, ao fim de três noites, tivemos um relance das muralhas brancas de Sebastea a tremeluzir na madrugada de um dia já enevoado de calor. Avançámos para a cidade e adoptámos a prática do emir de acampar a curta distância, no exterior das muralhas. Enquanto os rafiq e os dinamarqueses preparavam as tendas, Faysal e eu apressámo-nos em busca dos serviços de um físico.

Os árabes eram uma visão comum nas movimentadas ruas de Sebastea que ninguém nos incomodou enquanto nos encaminhávamos para o mercado. Aí chegados, procurei o cambista com o aspecto mais próspero - um mercador de ouro e prata com um toldo às riscas azuis e vermelhas por cima da sua banca -, e perguntei-lhe quem era o mais hábil físico da cidade.

- O homem que procuram é Theodore de Sykeon - replicou o mercador, sem hesitações. Observou-nos, ao Faysal e a mim, com uma mirada atenta, e acrescentou: - Contudo, devo avisá-los de que os seus serviços não podem ser conseguidos por pouco dinheiro. Essa é uma regra comum a todos os homens que atingem o pináculo da perfeição na sua arte, e o excelente Theodore não é uma excepção.

Agradeci ao mercador e inquiri onde poderia encontrar esse tal Theodore, para podermos garantir os seus serviços sem mais delongas. Porém, o mercador não nos quis deixar partir como se fôssemos simples moços de recados.

- Digam-me onde estão instalados e farei com que um dos meus servos o conduza até junto de vós.

Agradeci-lhe a boa vontade mas recusei.

- A necessidade é urgente e não queremos que se verifiquem mais atrasos. Trataremos nós mesmos do assunto.

- Não me interpretem mal... - replicou o mercador com graciosidade - porque o que me incita a agir não é a compaixão mas sim os meus próprios interesses. Se vocês não receiam contratar a melhor assistência para o vosso amigo sofredor, então penso que podem vir a necessitar de outros serviços durante a estada em Sebastea... - Lançou um olhar apreciador para o punho incrustado de jóias da qadi que sobressaía do meu cinto e acrescentou: - Talvez até os serviços de um cambista. Se essa necessidade surgir, espero que não considerem necessário ir em busca de outro que não este vosso humilde servidor, Hadjidakis.

Depois de pronunciadas aquelas palavras, pegou numa pequena campainha de latão, tocou-a e surgiu imediatamente um jovem delgado e descalço.

- Bom... - perguntou Hadjidakis - onde é que estão instalados? Disse-lho e o mercador transmitiu a informação ao jovem, falando numa língua que não compreendi. O jovem acenou uma única vez e desapareceu a correr no meio da multidão do mercado.

- Podem regressar para junto do vosso amigo com toda a confiança porque Theodore de Sykeon irá ter convosco muito em breve. A não ser... - declarou, esperançoso - que possa ser-vos útil em mais alguma coisa?

- Veio-me à mente uma pequena coisa... - disse-lhe. - Temos assuntos a tratar com o governador e disseram-me que se encontra na cidade. É verdade?

- Assim é - retorquiu o homem. - Neste preciso momento, o exarch Honorius ocupa um palácio na rua a seguir ao fórum. Não é difícil de descobrir. Podem perguntar o caminho à primeira pessoa que encontrarem.

Agradeci novamente a Hadjidakis e regressámos ao acampamento, onde chegámos apenas alguns momentos antes do aparecimento do próprio físico.

Era um homem maduro, com ossos pequenos e feições bem marcadas, vestido de um modo simples mas impecável, com um traje de linho branco e uma capa. Usava uma pesada corrente de ouro suspensa do pescoço, e um chapéu azul, de um tecido macio, muito puxado para a nuca. Chegou numa cadeirinha coberta, transportada por quatro escravos etíopes conduzidos pelo servo de Hadjidakis. Depois de se certificar que não havia sido enganado, o físico pagou ao jovem com uma moeda de bronze e ordenou aos escravos que pousassem a cadeirinha.

- Sou Theodore - declarou, com toda a simplicidade, fazendo uma pequena vénia. - Se quiserem ter a amabilidade de me conduzirem até ao enfermo, tratarei de o examinar imediatamente.

Levei o físico à tenda do emir, onde encontrámos Kazimain e Ddewi, como sempre, a seu lado.

- Aqui está o físico... - disse-lhes - que veio tratar de lorde Sadiq. Agora, vamos deixá-lo para que faça o seu exame.

- Não há necessidade - replicou Theodore, afável. - Por favor, fiquem, meus amigos, se o desejarem. Posso ter de vos interrogar sobre os cuidados que lhe prestaram.

A resposta impressionou Kazimain que, quando lhe traduzi as palavras do físico, respondeu que Theodore lhe fazia lembrar Farouk, facto que considerava muito auspicioso. Ddewi favoreceu o recém-chegado com uma mirada apreciadora do seu único olho mas não fez comentários.

Como a tenda estava demasiado cheia de gente, preferi esperar no exterior e disse a Theodore para ir ter comigo quando terminasse. Saí da tenda e encontrei Faysal a pairar junto à entrada.

- Creio que fizemos o melhor que pudemos por lorde Sadiq... - murmurei.

- Reza a Alá para que tenha sido o suficiente.

Conduzi-o para alguns passos de distância da tenda e disse-lhe:

- Faysal, gostaria de ouvir a tua opinião a respeito de uma coisa em que tenho andado a pensar... - A seguir relatei-lhe as minhas desconfianças a respeito do papel do governador na traição de Nikos.

Faysal escutou, acenando de vez em quando.

- Já aprendeste algo a respeito da subtileza, meu amigo... - declarou, apreciador. - Se o governador se encontra no coração deste mistério... então devemos ir visitá-lo para vermos o que poderemos descobrir.

Theodore emergiu da tenda naquele momento, aproximou-se rapidamente de mim e declarou:

- Já conclui o meu exame - afirmou, num tom seco e eficiente. - O emir está a sofrer por causa de um ferimento na cabeça, tal como já sabem. O osso na base do crânio foi esmagado e creio que foi a hemorragia no interior do crânio que o deixou nesta infeliz situação.

- Irá sobreviver?

- O ferimento é grave... - afirmou, num tom algo evasivo - e o facto de ainda continuar vivo deve-se em grande parte ao jovem que cuida dele. - Desviou os olhos de mim para Faysal e novamente para mim. - No entanto, estou intrigado...

- Sim? Então porquê?

- O ferimento não é de modo nenhum recente - declarou - e vejo, pelo vosso acampamento, que têm estado a viajar. Não é verdade?

- Acabámos de chegar de Amida - expliquei-lhe. - Não havia aí ninguém que nos pudesse ajudar, pelo que viemos para o norte em busca dos melhores cuidados para o emir.

Theodore abanou a cabeça, espantado.

- Então, nesse caso, as capacidades daquele jovem são muito mais extraordinárias do que imaginei. Juntos, trataremos de curar lorde Sadiq. - Juntou as palmas das mãos e perguntou: - Suponho que estarão de acordo?

- Será como desejares - replicou Faysal. - Submetemo-nos aos vossos conhecimentos e opiniões.

- Sendo assim, peço que me perdoem, mas tenho de mandar buscar algumas das minhas ferramentas. Hoje à tarde iremos realizar uma operação das mais delicadas. Preciso de tempo para me preparar. - Apressou-se a ir falar com os seus escravos, dois dos quais partiram a correr. A seguir, Theodore regressou à tenda do emir, fez uma vénia na nossa direcção e entrou.

- Vem, Faysal - pedi - acho que devemos ir fazer uma visita ao governador.

Descobrimos o caminho para o fórum com rapidez e facilidade. A colunada que se erguia no coração da cidade era formada por muitos pilares e podia ser vista de vários locais. Aí chegados, a localização da rua que Hadjidakis mencionara também não apresentou dificuldades. A casa do governador era um grande edifício com uma única porta que se abria quase directamente para a rua, excepto quanto aos dois degraus que se erguiam entre duas colunas ornamentadas.

Havia um guarda no exterior, de espada na mão e um escudo pendurado no ombro. Contudo, as pessoas passavam sem sequer o olharem, pelo que deduzi que se tratava de uma característica habitual naquele lugar. Deixei Faysal a vigiar a casa do outro lado da rua e encaminhei-me para o guarda.

- Disseram-me que o governador está em casa... - declarei, depois de saudar o guarda, que me olhou com aborrecimento e alguma desconfiança.

- Não recebe ninguém - retorquiu o guarda, num tom que sugeria já ter pronunciado aquela frase demasiadas vezes para o seu gosto.

- Ah, mas é uma grande infelicidade... - murmurei, com um suspiro. - Viajei uma grande distância para o visitar. Talvez permitas que lhe comuniquem o meu nome...

O guarda nem sequer se deu ao trabalho de responder e fez um gesto com a lança, mandando-me entrar. Era óbvio que a autoridade final não era dele. Todavia, uma vez lá dentro, deparei com outro obstáculo muito mais formidável, na pessoa de um funcionário com um traje e um manto num tom verde-desbotado. Usava uma tira de couro entrançada em volta do pescoço, na qual se encontrava suspensa uma grande caixa de metal, e estava sentado a uma mesa no meio do espaçoso vestíbulo enquanto escrevia qualquer coisa num rolo de pergaminho. Fingiu que não deu pela minha presença quando me aproximei. De cada lado de uma porta, directamente por trás dele, viam-se outros dois guardas com expressões igualmente aborrecidas.

- Por favor... - comecei - disseram-me que o governador se encontra na residência...

O funcionário levantou os olhos do documento que tinha na sua frente e quase bocejou na minha cara.

- O governador não recebe ninguém. Deixa o teu nome e volta amanhã.

- Viajei uma grande distância... - disse-lhe, inclinando-me para a frente numa espécie de confidência - e trata-se de um assunto delicado que envolve uma grande quantidade de dinheiro. - Meti a mão na manga, , fiz aparecer uma das moedas de prata que Faysal me dera e pousei-a na mesa. - Ficaria muito grato se pudessem informar o governador.

Como não obtive resposta, coloquei uma segunda moeda ao lado da primeira. Finalmente, o funcionário pousou a pena. Os seus lábios encurvaram-se num sorriso mas os olhos mantiveram-se frios.

- Talvez vos possa ajudar. Chamo-me Casius e sou o procônsul de Sebastea. Qual é a natureza do assunto que tens a tratar com o exarch Honorius?

Pensei rapidamente e respondi:

- Diz respeito a propriedades pertencentes à minha futura esposa.

- Disseste propriedades?

- Sim, mas trata-se de um assunto delicado e preferia não falar muito a esse respeito, excepto ao próprio governador. Quando poderá ele receber-me?

- Assuntos desse tipo não são arbitrados pelo próprio governador - informou-me Casius com secura. - Sugiro que apresentes a questão ao magister ou, melhor ainda, ao teu apographeus local.

- Ah, sim, de facto até foi o magister quem me sugeriu que viesse aqui. - Uma vez dita a mentira, não foi difícil entusiasmar-me. - Afirmou que, uma vez que Honorius foi amigo do meu pai, era provável que o governador me desejasse aconselhar pessoalmente.

O procônsul - se na verdade o era - hesitou e vi-o a calcular a resposta que deveria dar a seguir.

- Por que não me disseste logo que eras amigo do governador?

- O governador era amigo do meu pai... - corrigi-o. - Teria feito alguma diferença, se o dissesse?

- Vou colocar o teu nome à frente dos outros - afirmou, voltando a pegar na comprida pena de junco. Mergulhou-a no tinteiro e raspou qualquer coisa no pergaminho. - Talvez o exarca aceite receber-te.

- Seria óptimo que o fizesse... - respondi, pousando uma terceira moeda em cima da mesa. - Tenho ouvido boatos a respeito do governador estar doente, sabes? Estou certo que os amigos que Honorius deixou em Trebizonda gostariam de receber boas notícias a respeito da sua saúde.

O homem parou de escrever e bateu nos dentes com a pena.

- E que dizem esses boatos? - perguntou.

- Ora, isto e aquilo... - repliquei casualmente. - Acham estranho que permaneça há tanto tempo em Sebastea, quando tem uma residência tão magnífica em Trebizonda...

Casius tomou uma decisão imediata, empurrou a cadeira para trás e levantou-se.

- Espera aqui. - Caminhou para a porta guardada, abriu-a e desapareceu na sala para lá dela, para regressar apenas alguns instantes depois. - Esse assunto... - perguntou - também diz respeito à tua futura esposa?

- É verdade - menti. - Também lhe diz respeito.

- Vai buscá-la - pediu o procônsul. - Regressa com a mulher e o governador irá receber-te.

Sabia que tinha conseguido uma vitória.

- Muito bem... - respondi - farei como sugeres. - Agradeci ao homem, informei-o que não demoraríamos a aparecer e saí antes que mudasse de opinião.

Já na rua, afastei-me da casa à pressa fazendo sinal a Faysal para me seguir.

- O governador está aqui - disse-lhe, quando acertou o passo pelo meu. Expliquei-lhe como convencera o funcionário a deixar-me vê-lo e acrescentei: - Pensei que Kazimain me poderia ajudar.

- Sem dúvida - concordou - mas irão permitir que fales a sós com ele?

- Logo veremos... - retorqui. - Tenho um plano.

Regressámos rapidamente ao campo, informámos Kazimain das dificuldades e voltámos mais uma vez para a cidade. Aproximámo-nos até cerca de uma centena de passos do palácio, altura em que fiz uma pausa e me virei para Kazimain.

- Estás pronta? - perguntei. - Depois de entrarmos, já não podemos voltar para trás. Se tens dúvidas, manifesta-as agora. Ainda não é tarde para desistirmos do plano.

- Não precisas de ter medo por mim - retorquiu. - Sou perfeitamente capaz de fazer a minha parte.

- Óptimo! - respondi, respirando fundo. - Vamos começar. Kazimain levantou o capuz da sua capa, cobriu a cabeça à maneira das mulheres cristãs e ofereceu-me o braço. Aceitei-o, puxei-a para mais perto de mim e avançámos juntos para a casa do governador.

Tal como anteriormente, fui recebido pelo homem à mesa, que desta vez era outro mas que se mostrava tão apático e aborrecido como o primeiro. Informei-o que o procônsul Casius nos obtivera uma reunião com o governador. O homem olhou primeiro para mim e depois para Kazimain e afirmou, com o interesse a avivar-lhe as feições pesadas:

- Sim, creio que me mencionou esse facto... mas esqueceu-se de precisar os motivos porque querem falar com o exarch.

- É uma questão um pouco delicada, como já expliquei - retorqui. O homem olhou-me com uma indiferença insolente e acrescentei: - Contudo, não me parece que haja algum prejuízo se lhe disser que se trata das propriedades da minha futura esposa. - Indiquei Kazimain, que se encontrava a meu lado. - O irmão recusa-se a entregar-lhe a sua parte.

- E por que razão... - inquiriu o homem, com a apatia a regressar-lhe ao rosto - deverá o exarch preocupar-se com isso?

- Tendo em conta a longa amizade entre as nossas famílias e a injustiça envolvida, foi-nos sugerido que Honorius poderia ser persuadido a conceder-nos o benefício dos seus conselhos.

- Conheces o exarch Honorius?

- Oh, sim! - repliquei, com convicção. - Conheço-o muito bem. É um velho amigo do meu pai e estive muitas vezes na sua casa em Trebizonda. - A última afirmação, pelo menos, era verdadeira.

Mais uma vez, a afirmação produziu o resultado desejado. O homem levantou-se da cadeira e disse:

- Vou ver o que se pode arranjar.

Tal como Casius já fizera antes dele, dirigiu-se à porta e desapareceu na sala que se encontrava do outro lado. Os guardas, depois de olharem Kazimain de cima abaixo, viraram a sua frouxa atenção para o estudo da parede pintada que tinham na frente enquanto nós dois nos preparávamos para uma longa espera.

Passado algum tempo a porta abriu-se e levantei-me, pensando que iríamos ser admitidos. Porém, quem apareceu foi uma mulher idosa, baixa e gorducha, carregada com uma trouxa de roupas. A trouxa era difícil de segurar e a mulher, quando chegou à porta da rua, deixou-a escorregar das mãos.

- A roupa para lavar! - exclamou a mulher, tentando apanhar a roupa.

- Permite-me, mãe... - disse-lhe, dobrando-me rapidamente para lha apanhar. A mulher pegou na roupa, fungou para mim e seguiu o seu caminho.

Voltei a sentar-me para esperar e já começava a pensar que o homem não voltaria quando a porta se abriu e o procônsul se nos dirigiu.

- O exarch irá recebê-los agora.

Avançámos para a porta mas o homem pousou a mão no meu braço, detendo-me. Receei ter sido de algum modo descoberto e senti o coração a dar um salto dentro do peito. Contudo, o procônsul limitou-se a dizer:

- Ultimamente, o exarch Honorius não se tem sentido muito bem e precisa de descanso. Sejam breves e vão directos ao assunto.

- Compreendo...

- Para além disso... - o homem apertou-me o braço com mais força - eu não diria nada a respeito dos boatos em Trebizonda. Trata-se de uma questão que neste momento é muito sensível e que só serviria para complicar desnecessariamente a vossa posição.

- Muito bem... - admiti, relutante - se é esse o vosso conselho.

- É, sim.

- Nesse caso, não falarei no assunto - concordei, após o que o funcionário abriu a porta para nos deixar entrar.

O governador Honorius era um homem volumoso, com uma cabeça cheia de cabelos brancos, ombros largos, mãos grandes e feições generosas. Porém, estava esparramado na sua cadeira como se lhe faltasse vontade para se voltar a levantar e tinha os olhos afundados e rodeados por olheiras. Para além disso, a sua pele exibia aquele tom pálido e pouco saudável que me habituara a associar ao cativeiro. Estava instalado numa grande cadeira, por trás da qual se encontravam dois outros guardas com lanças e espadas curtas. Casius encontrava-se presente, de pé à sua direita, e o outro funcionário entrou atrás de nós, fechou a porta e permaneceu junto dela.

- Obrigado por nos receber, governador - disse-lhe, à pressa, ansioso por ser o primeiro a falar. - Trago as saudações do meu pai, Nice-phorus.

Ao ouvir aquele nome, os olhos de Honorius brilharam de interesse, tal como eu esperara. Estudou-me o rosto mas não revelou qualquer sinal de reconhecimento.

- Receio não estar a reconhecer-te - declarou.

- Perdoe-me, governador, mas eu ainda era um rapazinho quando nos encontrámos pela última vez e já se passaram muitos anos. Não deveria ter-me fiado tanto na sua memória.

Fitou-me com um ar esperançado.

- Ah, sim, penso já estar a reconhecer-te...

O primeiro funcionário, Casius, interveio antes de eu conseguir prosseguir.

- Creio que disseste que se tratava de um caso envolvendo propriedades - anunciou. -Já expliquei esse tipo de assuntos não requer o envolvimento do exarch, não é verdade?

- É verdade... - replicou Honorius com uma voz estranhamente morta.

- Portanto... - começou o segundo funcionário apressadamente - receio que tenham...

- Mais um instante, por favor - declarei, com firmeza. - A propriedade em questão é a herança legítima da minha noiva, para lhe ser entregue durante o noivado e usada como dote...

- Ah, sim, sim... - murmurou o governador, distraído - esses casos podem ser muito...

- O irmão dela... - continuei, pousando a mão no ombro de Kazi-main e apertando-lho - recusa-se a entregar a sua parte e o nosso casamento está desnecessariamente...

De repente, Kazimain começou a chorar. Enterrou o rosto nas mãos e soluçou. - O funcionário que se encontrava mais perto da porta avançou, ameaçador.

- Diz-lhe para se calar - grunhiu - ou terá de sair.

- Por favor, meu amor - pedi, voltando a apertar-lhe o ombro - tens de te controlar...

Kazimain respondeu com um queixume e soluçou num tom ainda mais alto.

- Leva-a daqui para fora! - ordenou Casius.

O segundo homem aproximou-se e tentou agarrá-la. Kazimain desviou-se para um lado, correu para a cadeira e lançou-se aos pés do governador. Passou os braços em volta das pernas de Honorius e chorou, com as lágrimas a escorrerem-lhe pelas faces. O governador olhou para baixo, espantado e surpreendido. Os dois funcionários atiraram-se para a frente e tentaram puxá-la, gritando:

- Acaba com isso! Levanta-te!

- Pronto, pronto! - exclamei, correndo para os ajudar. - Acaba com isso, minha querida. - Fingi que tentava agarrar Kazimain mas meti-me na frente dos outros, primeiro de um lado e depois do outro, baralhando-lhes os esforços.

] - Sai da frente! - gritou o segundo funcionário. Empurrou-me para o lado com rudeza e os dois homens obrigaram Kazimain a levantar-se e começaram a arrastá-la. - Guardas! A porta! - berraram, e os dois guardas precipitaram-se para a abrir.

Avancei rapidamente para o governador e disse-lhe:

- Estamos aqui para o ajudar, Honorius.

- Ajudar-me? - repetiu, parecendo surpreendido. - Sou um prisioneiro...

- Podemos libertá-lo. Viremos buscá-lo esta noite. O velho agarrou-se à minha manga:

- É.demasiado tarde... - murmurou. - Ninguém me pode ajudar. O Imperador... - Os seus dedos cravaram-se-me no braço - Escuta, têm de o avisar...

- Tenho homens comigo e viremos buscá-lo esta noite. Esteja preparado.

O procônsul Casius e um dos guardas regressaram antes de podermos continuar a falar. Recuei abruptamente e disse, em voz alta:

- Por favor, aceite as minhas desculpas, governador, mas a minha noiva está desolada. Se não receber o dote...

- Basta! - Berrou o funcionário. A sua pressa em afastar-me do governador era tanta que quase tropeçou. - Sai! Se soubesse que iriam provocar tanta perturbação, nunca teria permitido que desperdiçassem o tempo do exarch de uma maneira tão vergonhosa!

- Peço o vosso perdão - respondi, afastando-me rapidamente. Já à porta, parei e virei-me mais uma vez para o governador: - Transmitirei os vossos cumprimentos ao meu pai. Vai ficar muito contente por saber que já se está a sentir melhor.

Honorius fitou-me, espantado, com a boca a proferir palavras que não consegui entender. Fui empurrado através do vestíbulo, e daí para a rua. Fizeram-no com tanta pressa que quase choquei com Kazimain, que já se encontrava no exterior, vigiada pelo guarda carrancudo que se encontrava a seu lado. ;, - Não se dêem ao incómodo de voltar aqui! - gritou Casius da porta, zangado. - Se o fizerem, saibam que o exarch já deu ordens para não voltarem a ser recebidos! Nada mais poderá fazer por vocês!

O guarda observou-nos até nos encontrarmos fora de vista. Porém, logo que virámos a esquina, agarrei Kazimain e apertei-a com força.

- Excelente! - exclamei.

Passou os braços em volta do meu pescoço, sorriu, lembrou-se das conveniências e afastou-se de repente.

- Era isto o que querias?

- Foste magnífica!

- Achas que acreditaram em nós?

- Não interessa - retorquiu. - Vimos o governador Honorius, que está vivo. Era tudo o que precisávamos de saber.

Kazimain fitou-me, com os olhos a brilhar.

- Fui magnífica? De verdade?

- Foste, sim, meu amor. - Virei-me, porque a minha mente já se dedicara à tarefa que iríamos ter pela frente. - Despacha-te... - pedi, por cima do ombro - porque temos muito que fazer até ao anoitecer!

 

- Seria melhor... - dizia Theodore - que não houvesse mais ninguém no interior da tenda enquanto efectuamos a cheirourgia.

Olhei para Kazimain, pálida e tensa mas determinada, e declarei:

- Não. Ficaremos aqui.

- Nesse caso, terão de permanecer em silêncio - replicou Theodore - e aviso-vos que o sangue irá correr. Não fiquem assustados com isso porque se trata de uma característica do procedimento.

Transmiti as palavras do físico a Kazimain, que acenou, sem nunca tirar os olhos da forma prostrada do emir. O cabelo do emir foi cortado curto, e a sua nuca foi rapada. Tinham-lhe dado uma poderosa droga soporífica chamada opium, feita da seiva de certas flores muito vulgares no Oriente. Sadiq dormia agora profundamente, virado de cabeça para baixo sobre uma cama de almofadas, com Ddewi à sua cabeceira num dos lados e Theodore do outro. O emir tinha os braços ligados ao corpo com cordas e as pernas amarradas.

Theodore escolheu uma pequena faca, afiada como uma navalha, no meio dos vários instrumentos espalhados sobre a travessa de latão coberta por um pano que se encontrava a seu lado. A seguir acenou para Ddewi, que tomou a cabeça do emir entre as mãos, e disse:

- Vamos começar.

Com golpes rápidos e precisos, Theodore perfurou a pele na base do crânio do emir e abriu uma camada circular de pele que ergueu, colocou fora o caminho e prendeu com uma agulha, tal como um alfaiate poderia fazer com um pedaço de pano. Kazimain juntou as mãos e comprimiu-as contra os lábios.

O sangue correu livremente da ferida enquanto Theodore pousava a faca e observava o resultado do seu trabalho. Aparentemente satisfeito, pegou numa pequena pedra que parecia ser feita de um pó e aplicou-a em vários locais ao longo do corte que fizera, diminuindo consideravelmente a hemorragia, o que provocou uma expressão maravilhada no rosto de Ddewi.

Seleccionando uma outra faca com uma lâmina mais comprida, Theo-dore inclinou-se para a frente e começou a raspar o ferimento com suavidade, pelo que em breve se viu o brilho branco do osso.

- Uma vez que estão aqui... - disse o físico, falando com uma lenta concentração - já agora podem tornar-se úteis. Aproximem-se e segurem-me a candeia um pouco mais alta.

Com um olhar e um aceno, Theodore indicou-me onde me devia colocar e como fazer cair a luz no local pretendido. Segurei na candeia de latão enquanto se dobrava para estudar o seu trabalho, sondando aqui e acolá com a ponta da longa lâmina que segurava ao de leve entre os dedos.

Passados alguns instantes, o físico sussurrou:

- Ah, sim! - Virou-se para Ddewi e disse: - Tinhas razão, meu amigo. Foi um pequeno fragmento de osso que se desalojou e que provocou a hemorragia no interior do crânio.

Theodore voltou a pousar a faca no tabuleiro e pegou num estranho instrumento. Parecia-se com uma tenaz em miniatura mas como pinças alongadas numa extremidade e argolas para enfiar os dedos - o polegar e o indicador -, com que o fazia funcionar. Dobrou-se sobre o seu trabalho e um momento depois escutámos o som húmido de qualquer coisa a descolar-se, após o que o físico colocou o instrumento sob a luz. Entre as extremidades das pinças via-se um bocado de osso irregular, branco-rosado, do tamanho do polegar de um homem.

- Aqui está... - anunciou - a fonte da enfermidade do emir. - Largou o bocado de osso sobre a bandeja de latão, onde tilintou, e declarou: - Já podemos dar início à cura.

Pousou a tenaz, agarrou noutro pano, dobrou-o e colocou-o cuidadosamente sobre a almofada, ao lado da cabeça do emir.

- Agora, vamos virá-lo - pediu Theodore. Ddewi e o físico ajudaram-se mutuamente e colocaram o emir de lado. O sangue escorreu do ferimento para o pano. O homem olhou o fluxo de sangue com satisfação, fazendo comentários para Ddewi a respeito da sua cor e consistência túrgida.

- Podes pousar a candeia - disse-me Theodore - Nada mais poderemos fazer até que o ferimento esteja drenado. Penso que irá levar algum tempo. Refresquem-se, meus amigos, e chamá-los-ei quando o procedimento recomeçar.

- Muito bem - respondi, avançando para onde Kazimain se encontrava, com as mãos ainda comprimidas sobre o queixo.

- Vem comigo, para passearmos um pouco antes da minha partida...

- Vou ficar aqui - declarou, abanando a cabeça.

Deixei-a entregue à sua vigília, saí da tenda e encontrei Faysal logo à entrada.

- Está tudo a correr bem - disse-lhe. - Estão quase a acabar.

- Alá seja louvado! - murmurou, com um audível suspiro de alívio. Olhei para o céu do crepúsculo e continuei:

- Temos de ir antes que fechem os portões. Está tudo pronto?

- Já enviei sete homens para a cidade - replicou. - Os restantes irão connosco. Selei um dos cavalos de carga para o exarch Honorius. Aguardamos as tuas ordens.

O Sol poente exibia um brilhante tom vermelho quando começou a desaparecer abaixo do horizonte. Para leste, a fatia de uma Lua acabada de nascer emitia um brilho braço e já havia duas estrelas a cintilar no céu. Iria ser uma noite quente e clara, com luz suficiente para podermos avançar sem tochas.

- É uma boa noite para uma fuga - declarei, tocando no punho da faca enfiada no cinto. - Vamos, o governador está à espera.

Momentos depois já Faysal, eu, e os três rafiq restantes cavalgávamos para Sebastea, deixando os Lobos do Mar a guardarem o acampamento. O jarl Harald quase implorara para participar no assalto mas eu achara que os dinamarqueses ainda não estavam em condições de combater. Para além disso, o seu aparecimento na cidade poderia provocar suspeitas.

- É apenas uma pequena incursão... - disse-lhe - e no fim de contas precisamos de alguém para proteger o acampamento. Poupem as vossas forças para a batalha que se aproxima.

Avançámos para os portões da cidade conduzindo um cavalo carregado com molhos de palha envoltos em sacos. Como parecíamos mercadores que chegavam à cidade já muito tarde, passámos pelos portões com facilidade sem que os guardas, agachados à sombra da cabana do porteiro em volta da pequena fogueira em que cozinhavam, se dessem ao trabalho de nos olhar.

- Entrar na cidade vai ser fácil... - dissera eu a Faysal quando voltara ao acampamento - mas sair irá ser muito mais difícil.

- Deixa isso comigo - replicara. Faysal encarregara-se da maior parte dos preparativos para o nosso assalto nocturno e fizera-o com uma tal eficiência que me deixara admirado. Contudo, logo a seguir lembrara-me do modo como me salvara da mina e chegara à conclusão que não lhe faltava prática no que se referia a actividades furtivas.

Passámos a porta da cidade e seguimos rapidamente para uma estalagem perto do mercado, que Kazimain e eu havíamos identificado durante a visita matinal. Foi aí que nos encontrámos com os guerreiros que já haviam entrado mais cedo em Sebastea. Quatro deles encontravam-se sentados no exterior da estalagem e os outros três permaneciam na rua, a alguma distância. Quando nos aproximámos, um dos rafiq ergueu os olhos e fez um aceno imperceptível. Faysal desmontou, chamou o homem e ambos conversaram tranquilamente por instantes.

- Sayid descobriu um pequeno portão na muralha norte... - disse Faysal, quando regressou - e pensa que será apropriado para as nossas finalidades.

- Óptimo! - respondi, olhando para a estalagem. - Já agora, podemos comer qualquer coisa. Sempre ajudará para passar o tempo...

Demorámo-nos sobre a nossa refeição, instalados num canto pouco visível da sala principal, até ao momento em que o estalajadeiro fechou as portadas para a noite. A seguir, depois de deixarmos uma moeda de . prata em cima da mesa, Faysal e eu saímos da estalagem e avançámos rápida e silenciosamente para o fórum. Foram várias as prostitutas que nos chamaram quando nos viram passar, oferecendo os seus serviços a partir das sombras das colunas. Não previra uma situação daquelas e preocupei-me com a possibilidade dos seus barulhentos apelos poderem atrair as atenções sobre nós. De qualquer modo, os cidadãos de Sebastea estavam habituados ao barulho que aquelas mulheres faziam e as poucas pessoas que ainda andavam nas ruas não nos prestaram a mínima atenção.

Deslizámos ao longo das vielas escuras e estreitas e chegámos junto à casa do governador. Não vi os guerreiros mas Faysal garantiu-me que se encontravam escondidos por perto, à espera do nosso sinal.

- Podemos instalar-nos ali - disse, apontando-lhe um nicho na parede, onde se encontrava uma porta que ninguém utilizava. Tínhamos planeado manter a casa sob vigilância durante algum tempo para termos a certeza de que toda a gente dormia no seu interior. A residência, como já disse, abria-se directamente para a rua e quando passámos por ela verificámos que a porta se encontrava aberta.

- As coisas estão a correr melhor do que seria de esperar... - murmurei, para Faysal, já a refazer todo o plano na minha cabeça. - Vou entrar sozinho.

- Espera! - avisou-me. - Há aqui qualquer coisa errada! - Vi-rou-se e fez um gesto com os braços... e um instante depois já tínhamos três guerreiros à nossa volta, com as espadas em punho. - Pronto, já podemos entrar - declarou. - Os outros ficarão de vigia cá fora.

Deslizámos silenciosamente para a entrada sombria. Pousei a mão na porta, empurrei-a... e abriu-se com facilidade, permitindo-me o acesso ao vestíbulo. Alguém, muito convenientemente, deixara uma candeia a arder num suporte ao lado da porta, mas não havia ninguém na sala. Parámos por momentos, à escuta, mas não se ouvia um ruído. Lancei uma olhadela a Faysal, que encolheu os ombros, incapaz de perceber porque razão tínhamos encontrado a porta aberta.

Peguei na candeia e iniciei uma revista à casa que, à maneira bizantina, incluía dois pisos, um por cima do outro, ligados por escadas. Não sabia qual dos muitos quartos poderia ser o do governador mas decidi começar a procurar Honorius no piso superior depois de concluir que, se quisesse manter um homem em cativeiro na sua própria casa, o conservaria tão longe quanto possível da porta da rua.

Sabia, pela minha visita anterior, que as escadas não se encontravam por trás da grande porta que se abria para o vestíbulo, pelo que me virei e passei por uma pequena arcada que conduzia a um curto corredor. Uma vez no corredor, avistei dois outros arcos: o da esquerda abria-se para um pequeno pátio e o da direita dava acesso às escadas.

Fiz um sinal para Faysal, indicando-lhe que ia ser o primeiro a subir. Trepei os degraus rapidamente, mantendo a candeia baixa, e parei no cimo, para escutar. A casa estava tão silenciosa que até podia ser um túmulo. Satisfeito por ainda não termos alertado os guardas para a nossa presença, fiz um sinal aos outros para que me seguissem.

A sala no alto das escadas era uma cópia mais pequena do vestíbulo que lhe ficava por baixo, mas com uma porta que dava para os quartos interiores. Tal como lá em baixo, também estava aberta. Avancei, pousei uma das mãos na madeira polida e preparava-me para a empurrar quando Faysal me tocou no braço.

- Permite-me... - murmurou, puxando pela longa faca que usava no cinto.

Faysal deslizou para o interior sem provocar o mínimo som. Ouvi um abafado grunhido de surpresa e a porta escancarou-se.

- Agora já sabemos por que razão não há guardas - disse, tirando-me a candeia das mãos.

Foi sob a sua caprichosa luz que vi Honorius a jazer numa cama ensopada em sangue. Tinha os olhos muito abertos e esbugalhados, a boca escancarada num último grito silencioso e a garganta cortada de orelha a orelha. O quarto cheirava a urina, a fezes e ao odor enjoativo e adocicado do sangue. Estava tudo mortalmente silencioso, excepto quanto ao zumbido das moscas que se acumulavam na escuridão.

Havia uma velha sentada ao lado do corpo. Impassível, olhou para Faysal e para mim, para logo virar os olhos para o governador.

- Está morto - disse a mulher, baixinho, e reconheci que se tratava da lavadeira a quem eu dera uma ajuda naquela mesma manhã. - Trouxe-lhe as roupas...

- Mulher, há quanto tempo estás aqui? - perguntei, agachando-me a seu lado.

- Mataram-no... - respondeu, levantando uma das suas mãos gorduchas e vermelhas, que levou ao rosto. Ouvi um estranho som estrangulado. A mulher soluçava.

Deixei-a e pousei a não sobre a face do cadáver. A pele estava fria ao toque. Via-se perfeitamente, mesmo sob a fraca e oscilante luz da candeia, que o sangue começara a coagular. Os assassinos não haviam deixado nada ao acaso: o governador tinha as mãos amarradas atrás das costas, a sua garganta fora cortada para que não gritasse e haviam-no apunhalado várias vezes no peito, para se certificarem de que ficava bem morto.

- Já morreu há algum tempo - comentou Faysal.

- Disse-lhe que o viria buscar... - respondi, recordando o nosso breve encontro - e afirmou que ninguém o podia salvar e que era demasiado tarde.

Faysal tocou no meu braço e apontou a mulher. Olhei e vi que a sua mão livre apertava um pequeno pacote branco contra o peito. Debrucei-me novamente para ela e perguntei:

- Mãe, que tens aí?

Estendi a mão para o pacote e a mulher ergueu o rosto, já receosa.

- Sou uma mulher honesta! - gritou, subitamente agitada. - Há três anos que trabalho nesta casa! Três anos... e nunca roubei nem uma linha!

- Acredito - disse-lhe - mas que tens tu aí?

- Não sou nenhuma ladra! - insistiu, apertando o pacote com mais força. - Perguntem a quem quiserem! Perguntem ao governador! Dir-vos-á que sou uma mulher honesta!

- Por favor...? - pedi.

- Encontrei-o! - explicou a mulher. - Estava ali... - continuou, apontando uma pilha de roupas perfeitamente dobradas mas pousadas no chão. - Deixou-o ali para que eu o encontrasse! Juro! Não tirei nada, não sou uma ladra!

- Paz, mulher! - disse-lhe, tentando acalmá-la - Ninguém te está a acusar.

- Por vezes tentam enganar-nos... - declarou, ofegante. - Deixam coisas para nós encontrarmos e dizem que as roubámos. Não sou nenhuma ladra! - Agitou um dedo na direcção do pacote que eu já tinha na mão. - Encontrei-o, não o roubei.

Faysal aproximou a candeia e debrucei-me para examinar o pacote.

- É um pergaminho - murmurei, virando-o sob a luz. - Foi atado com uma fita de pano e aqui., aqui está o selo do governador. - Por cima do selo, escritas numa letra muito fina e complicada, viam-se duas palavras: a primeira era basileu, mas não consegui entender a segunda. - Pode ser para o Imperador.

Puxei a fita de pano que rodeava o pacote e preparei-me para quebrar o selo. Faysal aconselhou-me a não o fazer, dizendo:

- Acho que nos devemos ir embora antes que alguém nos descubra. A velha lavadeira estava outra vez a soluçar.

- Trabalhei três anos para esta casa! - gemeu. - Sou uma mulher honesta. Onde é que vou arranjar outra casa?

- Vamos... - insistiu Faysal - já não podemos fazer nada. Enfiei o pacote no cinto e virei-me para a idosa mulher.

- Não precisas de ficar aqui. Podes vir connosco, se quiseres. Fitou-me com os olhos húmidos e olhou para o corpo do governador.

- Lavei as suas roupas - declarou. - Sou uma velha. Vou ficar com ele.

Faysal avançou rapidamente para a porta e fez-me sinal para que o seguisse. Levantei-me lentamente. - O perigo já passou - disse, dirigindo-me à mulher. - Não me parece que os assassinos voltem aqui e de manhã podes ir à procura de ajuda. - A velha não respondeu e virou mais uma vez os olhos para o corpo ensanguentado que jazia a seu lado.

Fugimos dali, descendo as escadas, seguindo ao longo do corredor e atravessando o vestíbulo. Pousei a candeia no seu suporte com mãos trémulas e deslizei para a porta. Pousei a mão no puxador, abri-a ligeiramente e escapuli-me para o exterior.

Sayid apareceu imediatamente, saindo das sombras para me mandar avançar:

- Rápido! - sussurrou. - Vem aí alguém!

Lancei uma olhadela para onde ele apontava e vi um homem a caminhar na nossa direcção, talvez a trinta passos de distância. Enquanto o olhava, o homem deteve-se.

- Já nos viu - disse Faysal! - Depressa! Por aqui!

Faysal virou-se e correu ao longo da rua. Nesse mesmo instante, o homem começou a gritar:

- Socorro! Ladrões! Gatunos!

Corremos para a estalagem onde havíamos deixado os cavalos sob os olhos vigilantes de Nadr, que me passou as rédeas para a mão. Saltei imediatamente para a sela.

- Indiquem-nos o caminho! - pedi. - Iremos atrás de vocês.

A um sinal de Faysal, Sayid esporeou o cavalo. O homem ainda gritava, a pedir ajuda, quando percorremos a rua deserta e voltámos a passar junto dele. Contudo, apesar dos seus gritos, as ruas continuavam vazias e tranquilas. Sebastea dormia sossegadamente, excepto quanto a um ou dois cães que ladraram à nossa passagem.

Chegámos à muralha norte, saímos da rua principal e continuámos ao longo de uma passagem estreita até chegarmos a uma torre de vigilância já não utilizada, por baixo da qual fora construída uma pequena cabana ao lado do portão de madeira. Sayid desmontou em frente da cabana e bateu na porta rudimentar com a mão. Vi um homem magro e com cara de fuinha a meter a cabeça de fora. Espreitou os guerreiros a cavalo e queixou-se:

- Não concordei em deixar passar tanta gente!

- Cala-te - avisou-o Sayid - e abre o portão!

- Não me disseram que eram tantos! - protestou o porteiro, saindo cautelosamente da sua cabana.

- Estás a ser muito bem pago pelo trabalho de um momento - retorquiu Sayid. - Abre o portão.

Relutante, o porteiro puxou pela chave.

- Abrir o portão é, como dizes, o trabalho de um momento... - admitiu - mas não tenho a certeza de conseguir esquecer o que vi esta noite, se é que tal é possível...

- Talvez... - retorquiu Faysal, fazendo tilintar as moedas que tinha na mão - estas te ajudem a concretizar o impossível... - Inclinou-se da sela e estendeu a mão.

O porteiro levantou a mão para as moedas que lhe eram oferecidas, na expectativa... mas Faysal recuou a sua própria mão no último instante.

- Só quando os outros passarem - declarou - e nunca antes!

- Quais outros? - perguntou o guarda, admirado, abrindo muito os olhos. - Não vejo aqui mais ninguém. Oh, já estou a ficar muito esquecido...

O untuoso guarda lançou-se ao trabalho e instantes depois já a porta se abria, a guinchar. Havia uma íngreme estrada a afastar-se da muralha, estrada que o luar tingia com um tom azul-esbranquiçado que se distinguia contra o fundo negro do talude. A porta era estreita e baixa, o que nos forçou a dobrarmo-nos na sela. Uma vez para lá da muralha e dos seus taludes de terra batida, a estrada desviava-se para leste. Contudo, cavalgámos para oeste, avançando um pouco mais devagar por entre campos e terras de pastagem, e só chegámos ao acampamento quando a última luz da Lua que já desaparecia no horizonte contornava as cúpulas e torres das cidade com um tom prateado.

Finalmente, ou pelo menos assim o pensei, iria ter uma resposta para o mistério da traição de Nikos logo que a luz do dia transmutasse a prata nocturna no ouro avermelhado da manhã.

 

- Os assuntos que têm a tratar em Trebizonda vão ter de esperar - declarou Theodore com rudeza. - O emir não pode ser deslocado.

- Disse-nos que iria ficar em condições de viajar.

- Sim, talvez dentro de alguns dias... - admitiu o físico - mas mesmo isso ainda será demasiado cedo. O emir sobreviveu a uma operação muito delicada e agora, se quiserem que o seu ferimento sare como deve de ser, precisa de repouso. Com o tempo, não tenho dúvidas de que recuperará as antigas forças e o bem-estar.

- Infelizmente, não temos tempo! - insisti. - As nossas necessidades são prementes e precisamos de partir imediatamente.

Conversávamos no exterior da tenda do emir enquanto os homens levantavam o acampamento e se preparavam para a partida. Faysal encontrava-se por perto, com o cenho carregado.

- Nesse caso, sugiro que deixem o emir comigo. A minha casa é grande e poderei cuidar dele. Não têm nada a temer porque sei bem quais são as necessidades dos nobres. Lorde Sadiq poderá seguir-vos quando recuperar.

- A sua oferta é tão tentadora como graciosa - repliquei. - Contudo, temos urgência em prosseguir com a nossa jornada da melhor maneira possível. Seria essa a opinião do próprio emir. Na verdade, estou certo que exigiria que o fizéssemos.

- Então, é meu dever informar-vos que o emir não irá sobreviver a uma tal jornada. Se insistirem, acabarão por o matar.

Arquei com aquela terrível responsabilidade e repliquei:

- Estamos muito gratos pelos seus serviços. - Fiz sinal a Faysal para que se nos juntasse, e acrescentei: - Faysal irá recompensá-lo. Vá em paz.

O físico aceitou o pagamento sem mais comentários. Reuniu os instrumentos, acordou os escravos e partiu, deixando a sua assustadora previsão a pairar sobre nós como uma maldição. O homem afastou-se e ordenei imediatamente aos rafiq que preparassem a funda para o transporte do emir. Quando um Sol rosado se ergueu por cima do horizonte oriental já nós avançávamos pela estrada de Trebizonda. Concluíra que a velocidade era o nosso aliado de maior confiança uma vez que, se conseguíssemos manter aquele passo, chegaríamos à cidade antes das notícias sobre a morte do governador. Qualquer mensageiro que enviassem teria de seguir a estrada por onde viajávamos uma vez que qualquer outro caminho demoraria demasiado tempo, e de certeza que avistaríamos esse mesmo mensageiro muito antes de se aproximar de nós. Não me esquecera da última vez que viajara por aquela estrada e mantive batedores muito à nossa frente para não cairmos numa nova emboscada.

Embora lamentasse amargamente toda aquela urgência, continuei em frente com um passo implacável, com o meu frio coração já a pensar em Bizâncio e na confrontação que me aguardava. A minha mão estendia-se constantemente para o documento dobrado que levava debaixo do manto. O quadrado de pergaminho, apressadamente escrevinhado pela própria mão de Honorius, expunha toda a malevolência da traição de Nikos.

Abrira imediatamente o pacote logo que chegara ao acampamento e lera a carta que o mesmo continha no seu interior. Não tinha dúvidas de que fora Honorius quem a escrevera, uma vez que reconhecera tanto a letra como a assinatura, iguais às da carta recebida pelo eparch. Faysal, segurando numa tocha, não deixara escapar a expressão do meu rosto quando a verdade se me tornara clara.

Baixara o documento e olhara para ele, impaciente sob a luz da tocha. Pronunciara as palavras mas a minha mente já ia muito à frente, pensando no que deveria ser feito para impedir o acto terrível que as mesmas descreviam.

- Nikos planeia assassinar o Imperador - declarara.

- E foi por isso que mataram o governador? - perguntara.

- Bem como todos os que se aproximaram dele - respondera, explicando: - Honorius foi feito prisioneiro porque descobriu a conjura e tentou avisar o Imperador. Mantiveram-no vivo enquanto consideraram que o seu cargo lhes podia ser útil.

- Diz isso aí? - interrogara-se Faysal, batendo no pergaminho com um dedo.

- Oh, sim! - replicara - Diz isso e muito mais! - Passara-lhe o documento e segurara na tocha enquanto ele o lia.

A carta, assinada e selada pelo governador, fornecia provas terríveis sobre a traição de Nikos, embora Faysal não pudesse aperceber-se de toda a extensão da conjura. Porém, eu sabia...

Para além disso, ficara com a certeza de que possuía agora todos os diversos fragmentos do mosaico e de que os reunira correctamente. A imagem daí resultante podia não ser agradável, mas era verdadeira.

Aparentemente, quando fazia uma das suas visitas periódicas à região sul, o exarch Honorius ouvira um boato a respeito do Imperador ir ser morto por alguém muito chegado ao trono. Após algumas investigações, concluíra que a conspiração tinha origem numa cidade chamada Tephrike e que era considerada como sendo obra de um arménio denominado Chrysocheirus. Não obstante eu não conhecer a cidade ou o homem, não deixava de reconhecer a palavra que o governador utilizava para os descrever: Paulicianos.

Ao ler aquilo recordara-me que o bispo Arius me dissera que os Paulicianos, depois da sua expulsão de Constantinopla, haviam fugido para leste onde os seus contínuos ataques, bem como a aliança com os árabes, tinham acabado por provocar a ira do Imperador, que ordenara represálias contra o culto. O Imperador era Basil, é claro, e pela descrição feita por Honorius cheguei à conclusão de que Tephrike era a principal fortaleza dos Paulicianos, e que Chrysocheirus fora o seu líder. Para além disso também era de descendência arménia, tal como muitos membros da seita, e parente de um cortesão muito bem colocado no palácio imperial... um homem jovem e ambicioso chamado Nikos.

Assim, o mistério estava finalmente clarificado. A fim de manter as hostilidades entre os Sarracenos e o Império - que beneficiavam o culto - a iniciativa de paz tinha de ser impedida e o imperador fora marcado para morrer por causa do papel que desempenhara na perseguição ao mesmo.

Os meus irmãos monges, muito simplesmente, haviam tido a infelicidade de se enredarem na complicada teia de Nikos. O seu inconsciente desejo de verem Honorius chamara a atenção de Nikos para eles e tinham sido eliminados. Pela sua parte, o eparch também fora eliminado mais ou menos da mesma maneira. Honorius descobrira a conjura e fora feito prisioneiro. Depois, quando a sua utilidade chegara ao fim, havia sido assassinado. Tanto quanto Nikos soubesse, já não havia ninguém vivo que o pudesse confrontar com os seus crimes.

Oh, mas não contara com a resistência do espírito irlandês, com a força determinada dos bárbaros, nem com a tenacidade e os recursos da capacidade de decisão dos árabes.

É verdade que não me preocupava grandemente com o Imperador e confesso-o livremente. As minhas simpatias estavam inteiramente viradas para outro lado. Os pobres e impotentes, tal como o abençoado bispo Cadoc e todas aquelas mulheres e crianças mortas na emboscada, esgotavam a minha pequena reserva de compaixão. O Imperador tinha a sua própria guarda de mercenários farghaneses, tinha navios, soldados e fortalezas. Porém, eram sempre os fracos e os inocentes que sofriam os embates... e quem os protegia?

Apenas Deus, ao que parecia... e de vez em quando demonstrava ser um defensor de muito pouca confiança. Se era possível fazer alguma coisa para ajudar aqueles que desta vez se encontravam no caminho do mal, então era eu, e não Deus, quem suportava esse fardo.

Mesmo assim, todos os meus esforços seriam menos do que nada se a conjura de Nikos tivesse êxito. Havia muito que eu jurara que, se algum dia recuperasse a liberdade, queria ver a cabeça de Nikos pregada na Porta Magnaura e o seu corpo espezinhado no Hipódromo. Incitado pelo meu singular desejo de vingança - que a carta de Honorius voltara a reacender, transformando-a numa bela fogueira ardente - os meus pensamentos voavam para Trebizonda e para os navios de Harald, que continuavam à espera. Ah, como ansiava por me ver em Bizâncio, com as minhas mãos em volta da garganta de Nikos!

Faysal terminara a leitura e baixara o pergaminho com o rosto sombrio sob o clarão flutuante da tocha.

- Não podemos permitir que a conspiração contra o Imperador venha a ter êxito - entoara baixinho. - Temos de a expor, para bem do tratado de paz. O emir não ficaria satisfeito se permitíssemos que alguma coisa se interpusesse no nosso caminho.

- Foi exactamente o que pensei - respondera-lhe. - Nesse caso, estamos de acordo. Seguimos para Bizâncio o mais depressa possível.

Infelizmente, com tantas pessoas a acompanharem-nos a pé, não nos podíamos deslocar à velocidade que eu tanto desejava. Na realidade, cheguei a considerar muito a sério a possibilidade de seguir à frente levando apenas alguns homens como protecção, mas iríamos precisar de todos os homens disponíveis para tripular os navios e não serviria de nada chegar a Trebizonda e não poder partir imediatamente.

Por isso, não tive outra alternativa se não a de avançar o melhor e o mais depressa que as circunstâncias o permitiam, tendo sempre em atenção os padecimentos do emir. Sebastea ainda se encontrava a pouca distância de nós quando parámos para descansar naquele primeiro dia, abrigando-nos do Sol implacável num olival ao lado da estrada. Os rafiq e os dinamarqueses foram buscar água ao poço que alimentava o olival, Kazi-main e Ddewi deram assistência ao emir, e Brynach, Dugal e eu sentámo-nos para conversar.

- Parece... - começou Brynach logo que nos instalámos - que embarcámos numa missão com alguma urgência. - O seu olhar era directo e as maneiras francas, como se se dirigisse a um igual. - Poderemos saber qual é?

- Sem dúvida, irmão, e até ficarei grato pelos conselhos - repliquei, começando a explicar-lhe o complicado caminho que nos levara ao local onde nos encontrávamos naquele momento. O monge mais velho escutou, acenando de vez em quando, pensativo, como se o que eu dizia lhe fornecesse respostas para perguntas que o preocupavam havia muito. Terminei a narrativa com as minhas especulações sobre o que acontecera ao governador.

- Lamentavelmente, Honorius foi morto antes de o conseguirmos salvar e não tenho dúvidas de que esse feito foi executado pela facção de que Nikos faz parte.

- E descobriste a identidade... - perguntou Brynach - dessa facção?

- São arménios, na sua maior parte - disse-lhe - e pertencem a uma seita herética conhecida por Paulicianos.

- Nunca ouvi falar neles... - disse Dugal, esforçando-se por imaginar por que motivo aquela gente lhe poderia desejar mal.

- Nem eu - confirmou Brynach. - No entanto, há muitas seitas... e nem todas são heréticas.

- Talvez não sejam - admiti. - De qualquer modo, foram excluídos da Santa Igreja e expulsos de Constantinopla há vários anos. A sua fé foi anatemizada e os seus chefes declarados inimigos do Imperador. As perseguições obrigaram-nos a manterem-se escondidos.

- Partindo do princípio de que tudo isso é verdade... - disse Brynach, algo duvidoso - por que haviam esses Paulicianos de se preocupar connosco? Não fizemos nada para despertar a sua ira ou interesse.

- Tanto quanto posso ver... - respondi - a sua finalidade é dupla: esperam comprometer a paz entre Bizâncio e os Sarracenos, e também têm a intenção de assassinar o Imperador. O governador Honorius soube desses planos e preparava-se para avisar o Imperador quando foi feito prisioneiro.

- E que tem isso a ver connosco? - interrogou-se Dugal, ainda sem perceber por que motivo pessoas de que nunca ouvira falar e que nunca vira poderiam estar interessadas em prejudicar um punhado de monges irlandeses.

- O eparch e a sua habilidosa negociação do tratado de paz eram uma ameaça para os Paulicianos porque o tratado acabava com a segurança de que gozavam nas terras árabes, de onde podiam desferir ataques com toda a impunidade - expliquei. - Os monges de Kells limitaram-se a ter azar. Cadoc queria falar com o governador e Nikos não lhe podia permitir que se encontrasse com Honorius e regressasse para avisar o Imperador da conjura contra ele.

- Entrámos num ninho de vespas sem sequer darmos por isso... - murmurou Dugal, sacudindo a cabeça ante os loucos caprichos da sorte.

- Foi isso mesmo, irmão.

Brynach, carrancudo ante o peso opressivo que aqueles conhecimentos lhe provocavam, levantou os olhos pesarosos para mim.

- E é por isso que regressamos a Bizâncio à pressa para avisarmos o Imperador - concluiu.

- Sim, para avisar o Imperador... - concordei, acrescentando: - mas também para levar Nikos perante a justiça. Quero confrontá-lo com o seus crimes e vê-lo sofrer a morte que tanto merece.

- E se não puderes chegar junto do Imperador? - inquiriu Dugal. - Estivemos muitos dias à espera de o poder ver... e nunca conseguimos.

- Temos o emir connosco - recordei-lhe. - O Imperador deve estar mais do que ansioso para se encontrar com o homem que lhe pode garantir a paz com os árabes. Se for possível manter o emir com vida, então podem ter a certeza de que o Imperador nos receberá. - Não vi motivos para referir a minha promessa de transmitir informações ao basi-leu, que também deveria estar muito interessado em ouvir o que tinha para lhe dizer.

Mais tarde abandonámos as sombras do olival e continuámos novamente a nossa marcha, com alguns a cavalo mas com a maioria a pé, mantendo-nos em silêncio enquanto as sombras se estendiam na nossa frente. Era uma curiosa karwãn, composta por cavalos e camelos, pelos delgados sarracenos, pelos pesados Lobos do Mar, por cristãos e maometanos, pela velada Kazimain e pelos barbudos monges irlandeses, pelo emir na sua funda oscilante, por Faysal e por mim, que caminhávamos lado a lado à frente daquele improvável grupo de pessoas. Não nos tínhamos reunido por escolha. Na verdade, a nossa improvável aliança devera-se às circunstâncias e ao destino - kismet, como lhe chamam os árabes - mas não era isso o que a tornava menos forte.

Embora o Sol continuasse quente, o ar começava a perder o seu calor. As colinas distantes ganharam um tom púrpura sob a luz do crepúsculo e o frio da noite começou a infiltrar-se na terra. Continuámos a viagem sob a noite estrelada, em silêncio, envoltos nas nossas capas para nos mantermos quentes, para nos libertarmos delas assim que o Sol coloriu o céu oriental com o seu tom vermelho da cor do sangue. Logo que o calor se tornou insustentável, abrigámo-nos nas poucas sombras que conseguimos encontrar e assim encerrámos o ciclo.

Cada dia era um duplicado do dia anterior, salvo quanto ao facto da terra ter começado a modificar-se, com serranias mais íngremes e escarpadas, e vales mais profundos e estreitos. Não obstante poder ver Kazi-main todos os dias, era com muito pouca frequência que falávamos um com o outro e as palavras que trocámos foram apenas sob as precárias condições do emir, uma vez que este preenchia todos os seus pensamentos. No entanto, a jovem aguentava bem as preocupações, suportando-as com uma admirável coragem. Mesmo assim, a jornada tinha o seu preço. A cada dia que se passava maior se tornava a distância entre nós dois. As minhas próprias preocupações impediam-me de a transpor e confesso que me limitei a ficar de lado e a deixar que o abismo se alargasse.

Finalmente, acabámos por chegar ao local que eu mais temia, onde a estrada passava por baixo de altas falésias e o enviado do Imperador havia caído numa emboscada.

Já pouco restava desse iníquo ultraje e da carnificina que se lhe seguira, e suponho que tudo o que pudesse ter valor fora recolhido há muito pelos outros viajantes que tinham passado por aquela estrada. Mesmo assim ainda persistiam alguns sinais: os montes de pedras soltas junto à falésia, sob as quais se encontravam muitos corpos enterrados, mortos durante o sono, alguns ossos branqueados pelo Sol e espalhados ao acaso, limpos por aves e animais, um certo número de lanças quebradas e um ou dois escudos amolgados. Era tudo... e era demasiado pouco para assinalar a magnitude da tragédia.

Os dias continuavam brilhantes mas a minha alma foi dominada por uma escuridão espessa e pesada. Os que se encontravam à minha volta moviam-se sob o incandescente brilho do Sol mas eu continuava a caminhar no meio de um inferno gelado e sombrio. Pensei na emboscada ao longo dos dias seguintes, bem como em tudo o que acontecera antes e no que se passara a seguir. Sonhei com retaliação e justiça... e também com uma outra satisfação diferente: olho por olho, dente por dente, vida por vida.

Foi no meio dessa melancolia do deserto que as palavras do bispo voltaram a surgir na minha cabeça: Toda a carne é erva, irmão Aidan. Todavia, estava tão mergulhado nos meus sonhos de vingança que não conseguia discernir qualquer significado nesse enigma. Comia pouco, dormia ainda menos e não pensava em mais nada ou mais ninguém para além de mim mesmo e da terrível retribuição que estava agora ao meu alcance.

Perante a fome de vingança que me consumia totalmente, tudo o mais era insignificante. Finalmente, quando as muralhas de Trebizonda surgiram na planície por baixo de nós - e para lá delas a limpa extensão do mar azul, que cintilava sob a luz da madrugada - essa minha ânsia , tornou-se quase tão dolorosa e aguçada como uma lâmina espetada nas tripas.

Por outro lado, sentia-me bem armado e pronto para atacar. Era verdade que o regresso a Constantinopla podia significar a minha morte - uma possibilidade de que não me esquecera - mas já não me importava.

Apesar da visão e das apreensões que sentira anteriormente, tudo o que desejava era ver Nikos de joelhos, implorando pela vida na frente da lança que o iria estripar. Para além disso, a minha vida não tinha qualquer valor.

Se tivesse que morrer... pois que assim fosse, mas primeiro tinha de cobrar a dívida de sangue por todos aqueles que haviam sido tão brutalmente chacinados.

 

Como a nossa presença em Trebizonda era impossível de ocultar, tentei fazer com que a mesma fosse breve e sem dar muito nas vistas. Permaneceríamos na cidade apenas o tempo necessário para aprovisionar os navios. Uma vez a bordo partiríamos imediatamente de modo a contrariar quaisquer possíveis interferências por parte do dúplice magister e dos seus lacaios invisíveis. Foi com esse fim em vista que me reuni em conselho com o jarl Harald para discutirmos a melhor maneira de o conseguirmos.

- Ora, já teremos partido antes que alguém se lembre de nos mandar parar... - declarou Harald, confiante. Recuperara a antiga fanfarronice embora ainda não tivesse recuperado completamente todas as suas forças. Os dinamarqueses são uma raça resistente e as dificuldades só parecem torná-los mais fortes. Harald e os seus homens haviam recuperado maravilhosamente bem das privações da escravatura, e naquele momento encontravam-se quase completamente recompostos e tão ansiosos como eu pelo regresso a Constantinopla. - Irei ao porto e tratarei dos preparativos necessários. Quando vos mandar notícias, dirijam-se para lá e partiremos imediatamente.

- E se os navios já não se encontrarem no porto? - perguntei.

Harald nunca exprimira a mínima dúvida a esse respeito. Insistira sempre que os navios estariam à espera do seu regresso e que as tripulações estariam prontas. Apesar de me interrogar a respeito dessa confiança simplista, o jarl ria-se da minha descrença.

- Vais ver! - respondeu, tratando de escolher os homens que o iriam acompanhar, que em breve se perderam no meio da multidão que se dirigia para a cidade e do bulício do princípio da manhã.

Entretanto expliquei os nossos planos a Faysal, que olhava com alguma inquietação para multidão que enchia a estrada e que também perguntou:

- E se os navios já lá não estiverem?

- Harald afirma que os seus homens preferiam morrer à fome do que abandonar o seu soberano.

- Esses Lobos do Mar são assim tão leais?

Instalámo-nos no exterior das portas da cidade e aguardámos, esperando que a confiança de Harald nos seus homens fosse inteiramente justificada. No fim de contas, o monarca estivera ausente durante muito tempo. Porém, um dos dinamarqueses que acompanhara Harald regressou ainda antes do Sol atingir o meio dia.

- Os navios estarão prontos em breve - afirmou. - O jarl Harald diz para irem imediatamente para o porto.

Trebizonda pareceu-me exactamente tal como a havíamos deixado. Nada mudara, o que me surpreendeu um pouco porque tinha a sensação de que se passara toda uma vida desde a última vez que percorrera as estreitas ruas até ao porto. Contudo, desta vez, estava dolorosamente consciente das atenções que atraíamos e receei que os soldados da cidade aparecessem a qualquer momento para nos confrontarem. Todavia, passámos sem sermos incomodados e seguimos directamente para o cais onde os quatro navios se encontravam fundeados.

Quando aí chegámos fomos calorosamente recebidos pelos dinamarqueses que haviam ficado para trás, no total de quarenta e quatro. Gunnar deteve-se, no cais, com lágrimas de felicidade a escorrerem-lhe pelas faces enquanto os amigos lhe davam alegres palmadas nas costas. Claro que também fiquei comovido com a visão de Tolar, Thorkel e dos restantes, cujo aspecto era mais ou menos igual ao que tinham no dia em que os havíamos deixado no cais. O mundo girara através de três estações completas e aqueles homens haviam cumprido as suas obrigações e guardado o navio da cabeça de dragão, sempre na expectativa do iminente regresso do seu soberano, o que constitui um feito exemplar de pura fé quase infantil.

O júbilo dos Lobos do Mar perante o aparecimento do soberano e dos restantes companheiros nada foi quando comparado com o espanto que revelaram ao verem as riquezas que o jarl levara com ele. Todavia, essa alegria em breve foi engolida pela corrida febril para embarcar toda a gente e içar as velas. Vimo-nos obrigados, é claro, a abandonar os cavalos e os camelos. Faysal escolheu três homens que ficariam para trás para tomarem conta dos animais, ordenando-lhes que montassem um acampamento no exterior das muralhas da cidade e aguardassem pelo regresso do emir.

- São assim tão leais, esses rafiq? - perguntei-lhe, virando contra ele a pergunta que me fizera anteriormente.

- Se Alá assim o desejar, esperarão até que as barbas lhes cresçam e toquem no chão - retorquiu.

- E depois?

- Rapam as barbas e esperam mais algum tempo.

Com as suas tripulações brutalmente dizimadas, Harald já não dispunha de Lobos do mar suficientes para a manobra dos quatro navios e foi forçado ao oneroso expediente de contratar marinheiros, quase todos pescadores gregos, que concordaram em ir até Constantinopla, onde poderiam arranjar trabalho noutros navios. Contratou cinquenta e três e até teria levado mais, mas não os conseguiu arranjar fosse a que preço fosse.

Logo que o último barril de água foi guardado junto dos restantes e o último rafiq saltou para bordo, os Lobos do Mar pegaram nos seus compridos remos e afastaram o navio do cais. O vento estava favorável e Harald mandou içar as belas velas às riscas brancas e vermelhas ainda dentro do porto. Embora esta prática pudesse de certeza provocar as censuras do mestre do porto, o jarl não se preocupou com isso porque a única coisa que lhe interessava era sair dali o mais depressa possível. Desse modo, os quatro navios afastaram-se de Trebizonda como gansos selvagens depois de um longo cativeiro e fizeram-no em menos tempo do que o necessário para narrar o facto.

Harald, satisfeito por se ver novamente no comando, ocupou o seu lugar à popa e ordenou ao piloto, Thorkel, que rumasse de modo a manter-nos longe das vistas da costa. Perguntei-lhe se essa precaução invulgar fora tomada por medo aos piratas sarracenos, mas limitou-se a cuspir e a afirmar:

- O Imperador está a dever-me muita prata por todos os nossos sofrimentos. Quanto mais cedo chegar a Miklagard, mais cedo serei pago.

Não consegui deixar de me maravilhar com a audácia daquele homem. Ainda se considerava ao serviço do Imperador mesmo depois de tudo o que acontecera, e não desistira de receber os respectivos salários. Por outro lado, também não se esquecera da dívida de Nikos... uma conta que estava disposto a cobrar em sangue.

A tenda erguida na plataforma por trás do mastro, onde Harald pretendera guardar os seus tesouros, transformou-se num quarto de enfermo para o emir. Fui verificar o seu estado logo que saímos do porto. Faysal e Ddewi haviam suspendido a funda do emir entre o mastro e um dos suportes da plataforma e Sadiq estava coberto apenas com o mais leve dos tecidos. Parecia dormir tranquilamente e poderia tratar-se apenas de um homem num merecido descanso se não fosse a ligadura branca em volta da sua cabeça em vez do habitual turbante.

- O seu estado sofreu poucas alterações - informou-me Kazimain, quando a interroguei. A jovem parecia abatida, tinha os olhos sem brilho, a pele pálida e lábios secos e estalados. A jornada e as consequentes exigências que a mesma impusera no que se referia aos cuidados com o seu parente doente tinham-na esgotado de uma maneira cruel.

- Já acordou?

Não confiou na própria voz e limitou-se a abanar a cabeça.

- O pior já passou... - afirmei, tentando reconfortá-la. - Agora poderá descansar durante algum tempo, pelo menos até chegarmos a Constantinopla.

Ao ouvir aquilo, Ddewi levantou a cabeça e olhou-me com interesse.

- Quanto tempo? - inquiriu. A pergunta, embora simples, surpreendeu-me. Era a primeira vez que o ouvia falar desde que saíra das minas.

- Nunca menos de doze dias - respondi. - Thorkel diz que faremos um bom tempo se o vento se mantiver favorável.

- Doze dias... - murmurou, voltando a olhar para a forma imóvel do emir. - Isso é óptimo.

Kazimain notou a minha expressão de surpresa e sorriu.

- Sim, já fala - declarou. - Não duvido que tenhas andado demasiado ocupado para dares por isso.

- Desculpa, Kazimain. Se pareci preocupado, não foi por...

- Shhh... - retorquiu, acalmando-me. - O que disse não foi para te censurar, meu amor. Sei que tens andado a pensar noutras coisas.

Regressou às suas tarefas e eu encolhi-me na curva da proa para dormir um pouco. Contudo, ainda mal acabara de fechar os olhos quando Harald me acordou.

- Podemos vir a ter problemas... - disse, apontando para uma vela quadrada e vermelha, visível contra as colinas acastanhadas da costa. Também se via outro navio com velas às riscas azuis e brancas que se deslocava para oriente ao longo da costa, seguindo a rota estabelecida.

- Talvez vire quando chegar a águas mais profundas - sugeri.

- Talvez... - admitiu Harald, duvidoso. - No entanto, não devemos afastar os olhos dele. É um navio muito rápido.

O navio vermelho não virou quando atingiu as águas profundas. Prosseguiu em frente, continuando na nossa esteira, contentando-se aparentemente em seguir-nos à distância enquanto as colinas distantes iam diminuindo no horizonte. Harald encarou esse facto como um mau augúrio.

- Está à espera que fiquemos fora das vistas da costa... - declarou - e só avançará nessa altura. Ainda temos algum tempo para nos prepararmos.

Harald fez sinal aos outros navios para se aproximarem, de modo a navegarem mais perto uns dos outros. Ordenou que todas as provisões fossem amarradas e colocadas em segurança, e que as armas se encontrassem à mão. Os Lobos do Mar colocaram os seus escudos ao longo das amuradas, o que servia para as tornar mais altas e para melhor proteger os que iam a bordo. As lanças foram colocadas na vertical, nas fixações de couro dos remos, prontas para serem utilizadas.

Os meus irmãos monges viram todas estas actividades e perguntaram-me qual era o seu significado. Falei-lhes no navio das velas vermelhas e disse-lhes:

- Harald pensa que possam ser piratas.

- É capaz de ter razão - concordou Dugal. - O navio que nos atacou quando íamos a caminho de Trebizonda também tinha velas vermelhas.

- Rezaremos a Deus pela salvação - declarou Bryn com firmeza, enquanto Dugal olhava para as lanças, pensativo.

- Seria mais útil... - aconselhei - se rezassem para que o vento não nos deixe ficar mal.

O navio vermelho aproximou-se cada vez mais, até podermos ver perfeitamente a sua estreita proa a erguer-se sobre a ondulação. Contudo, a seguir, abrandou o avanço de modo a acompanhar o nosso, mantendo-se ao que parecia ser uma distância respeitável. Era óbvio que o seu mestre se mostrava cauteloso.

- Mas que quer ele? - interrogou-se Harald em voz alta, pondo as mãos em volta dos olhos para os proteger do clarão do Sol. - De que estará à espera?

- Talvez... - sugeri - seja um simples mercador que prefere viajar na nossa companhia.

- Ou talvez esteja à espera dos amigos! - replicou o jarl, com desprezo. No fim de contas, somos quatro contra um.

Ao fim do dia o navio vermelho ainda não se aproximara, mas também não alterara a sua rota nem sequer pela espessura de um cabelo. Manteve a distância durante toda a noite e a vela vermelha, quando a manhã chegou, ainda se encontrava no mesmo lugar. Com a madrugada surgiu também uma brisa mais fresca que soprou do sudeste. Pensando aumentar a distância entre nós e o navio vermelho, Harald alterou ligeiramente o rumo de modo a poder tirar vantagem do vento mais forte.

Os navios saltaram imediatamente para a frente e muito em breve já o navio vermelho se tornava mais pequeno.

- Estamos a deixá-lo para trás! - exclamou Dugal. - Deus seja louvado!

Faysal foi da mesma opinião e considerou que se tratava de um sinal auspicioso. Contudo, não pude deixar de notar que nenhum dos Lobos do Mar partilhava aquele ponto de vista optimista e que nem sequer abrandaram a vigilância depois do estranho navio ter desaparecido completa-mente. Como eram mestres nas artes da marinharia e da guerra, deixei que a minha disposição se guiasse pelo seu exemplo e continuei desconfiado.

A manobra de Harald permitiu-nos alguns momentos de paz. A vela vermelha, uma vez desaparecida, não voltou a ser vista durante o resto daquele dia e na noite seguinte. Observámos o horizonte ansiosamente durante todo o dia em busca de sinais do navio vermelho mas não vimos nenhum. Aparentemente, as orações dos monges haviam obtido resultados positivos.

A noite já ia avançada quando a Lua acabou finalmente por nascer e Harald mandou um homem para o alto do mastro para vigiar o horizonte. Dormitei um pouco na proa, meio acordado, sempre à espera do grito de aviso do vigia. Este surgiu de madrugada, quando o Lobo do Mar, no alto do seu poleiro, gritou que a vela vermelha estava novamente à vista. Amon-toámo-nos na amurada e espreitámos para a distância enevoada, à espera de ver aparecer um revelador ponto no horizonte.

Infelizmente, quando apareceu, não se tratava apenas de um navio mas sim de dois. Mais uma vez, o grito de aviso veio do alto do mastro:

- Dois navios! Vejo dois!

Inclinámo-nos na amurada, sustendo a respiração, esforçando-nos por os conseguirmos avistar... e pouco depois já podíamos confirmar a observação do vigia: havia duas velas, uma à frente e outra ligeiramente atrás e à direita da primeira, a emergirem da neblina marítima. Quando o meio-dia se aproximou já se tornara claro que rumavam directamente para nós. Ao fim da tarde, não obstante todos os esforços de Harald, os dois navios haviam ganho algum terreno.

- Estão fartos de esperar - murmurou Gunnar, com o rosto a brilhar sob os últimos raios de luz de um crepúsculo dourado. Ele e Tolar, inseparáveis agora que se haviam reunido, tinham-se colocado junto de mim enquanto eu olhava para a implacável aproximação dos dois navios. - Agora, se puderem, vão alcançar-nos...

- Não conseguiremos escapar? - perguntei.

- Nay! - respondeu Gunnar, abanando a cabeça. - Têm estado a tentar apanhar-nos durante todo o dia. Aqueles pequenos navios são muito rápidos. - Olhou para os navios piratas, já a uma curta distância a oeste da nossa pequena frota. - Contudo, nada temas, Aidan - acrescentou, tranquilizador. - Continuamos a ter a superioridade numérica. Podemos dividi-los com facilidade se tentarem atacar-nos. Abordar quatro navios ao mesmo tempo é uma tarefa difícil... mesmo para os piratas árabes.

Fui forçado a vergar-me à superior sabedoria dos Lobos do Mar e pensei em ir informar Kazimain a respeito da nossa situação mas fiquei surpreendido ao ver Ddewi emergir da tenda para me chamar.

- O emir acordou... - disse, sorrindo de excitação - e quer falar contigo.

- A sério?! - Segui Ddewi até ao interior da tenda e descobri o emir a conversar tranquilamente com Kazimain. Ao que parecia, os dias passados a bordo do navio tinham sido bons para ele, uma vez que pudera dormir em paz sem ser constantemente sacudido pelos cavalos e sem ter de acordar constantemente.

- Saudações, lorde Sadiq! - exclamei, logo que entrei. - Estou muito satisfeito por o ver acordado! O Ddewi disse-me que se sente melhor!

- É verdade - replicou. - Se Alá o permitir, em breve estarei suficientemente forte para pegar na espada e batalhar contra esses piratas.

- Ah, era o que vinha dizer-lhes! - declarei, instalando-me mesmo junto à entrada da tenda. Kazimain e Ddewi chegaram-se para o lado para me darem espaço - Contudo, vejo que já ouviu as novidades.

- As paredes do meu palácio são de pano - respondeu o emir, levantando a mão sem forças para a tenda. - Seria muito mais surpreendente que não as ouvisse. - Fez uma pausa e lambeu os lábios. Ddewi, sempre atento às suas necessidades, apresentou-lhe imediatamente uma taça com água, que o emir recusou com um gesto. Quando voltou a falar, a sua voz era fraca mas o olhar era directo. - Esse ataque... quando irá ser?

- Os dinamarqueses pensam que os piratas não tentarão atacar-nos durante a noite - expliquei. - É mais provável que esperem pelo dia de amanhã.

- Receio que seja cedo demais para mim - murmurou o emir com um pequeno sorriso seco. A pele esticada sobre as suas maçãs-do-rosto era pálida como o pergaminho e muito fina. - Digam a esses piratas que terão de esperar mais um pouco se quiserem enfrentar o Leão de Samarra.

- Descanse, lorde Sadiq, que lhes direi isso mesmo logo que tenha uma oportunidade. De qualquer modo, Harald pensa que a batalha irá ser um desapontamento e está seguro que dois navios de piratas não poderão derrotar quatro embarcações dos Lobos do Mar.

- Diz ao vosso rei Harald que o excesso de confiança pode ser um inimigo pernicioso... - aconselhou o emir. - Os atacantes sabem que estão em inferioridade numérica... mas vão atacar. Não achas que isso, por si só, é razão mais do que suficiente para cuidados redobrados?

Kazimain inclinou-se para a frente e pousou a mão no ombro de Sadiq.

- Tio, não fales mais. Descansa.

- Bom... - declarei, num tom ligeiro - se o vento se aguentar talvez consigamos escapar-lhe. - Levantei-me e prometi voltar em breve para o ver.

- Transmite ao rei Harald o que acabei de te dizer - incitou-me o emir, quando já ia a retirar-me.

- Dir-lho-ei.

Kazimain seguiu-me para fora da tenda e acompanhou-me até à proa, onde podíamos falar mais à vontade e sem sermos ouvidos.

- Está a melhorar - declarou, com uma segurança tranquila que lhe deu um ar de determinação. Fez uma pausa e olhou para o horizonte plano, num tom azul-leitoso. A testa franziu-se-lhe mas não consegui perceber se isso se devia a pensamentos ou preocupações e esperei que voltasse a falar. Momentos depois virou-se para mim e disse: - O que irá acontecer quando chegarmos a Bizâncio?

- Receio bem que venhamos a ter muitos problemas antes de conseguirmos lá chegar... - apontei o duplo conjunto de velas vermelhas que navegavam a oeste, agora já mais perto - para que tenhamos de nos preocupar com o que possa vir a acontecer.

- Sim, mas que queres que aconteça? - insistiu.

- Quero que tudo volte a ser como era - comecei. - Quero... Fui interrompido pelo súbito grito de Harald.

- Arreiem as velas! - berrou. - Aos remos!

De certeza que o rugido fez estremecer o mastro de alto a baixo. De súbito, toda a gente se precipitava para os bancos dos remos. Olhei para o mar e vi o que alarmara Harald: os dois navios tinham mudado de rumo repentinamente e avançavam directamente para nós.

Corri para junto de Harald, que se agarrado à amurada com toda a força, como se esta fosse uma lança.

- A espera terminou - declarou. - Chegou o momento de combater.

 

Saltei para um banco, enfiei o remo na respectiva abertura e recordei-me da última vez que experimentara remar. Fora no Ban Givydd, estávamos a fugir dos Lobos do Mar e nessa altura ainda nunca tinha pegado num remo. Foi com uma tristeza peculiar que percebi que as minhas capacidades como remador não tinham melhorado. Nas minhas mãos, o longo pau era uma maldita coisa desajeitada e difícil de dominar. Descobri que umas vezes mergulhava a pá do remo demasiado fundo, e que das outras vezes mal a fazia tocar na superfície da água, provocando uma nuvem de espuma.

Gunnar, apercebendo-se das minhas dificuldades, ocupou um lugar no banco à frente do meu.

- Olha com atenção, Aidan! - gritou, por cima do ombro. - Faz o que eu fizer e tudo correrá bem!

Acabei com os meus frenéticos movimentos e observei-o a executar algumas remadas. Empurrava o remo para a frente e descia-o ligeiramente antes de voltar a puxá-lo para trás, aguentando a tensão nos ombros e deixando que a pá deslizasse na água. Imitei o seu exemplo e descobri que o remo se tornava menos desajeitado e que era mais fácil remar.

Dugal e Brynach também se instalaram por perto e disse-lhes para seguirem o exemplo de Gunnar, o que fizeram. Ambos se adaptaram rapidamente, mas muito em particular Dugal, cuja força não ficava atrás de qualquer dinamarquês.

- A partir de agora temos de o tratar por Dugal Remada-de-Touro - gritou Hnefi do banco do outro lado de Dugal.

Os que se encontraram por perto riram-se daquela pequena brincadeira, que traduzi para Dugal, acrescentando:

- É um grande louvor, muito em especial por ter saído da boca do Hnefi.

- Diz-lhe que o acompanharei remada a remada... e veremos quem se cansa primeiro! - retorquiu Dugal.

Muito em breve já todas as mãos disponíveis a bordo empunhavam um remo. Infelizmente, foi naquela ocasião que as terríveis perdas sofridas pelos Lobos do Mar se tornaram mais aparentes: de todos os que haviam partido de Bjorvika com Harald só um em cada quatro havia sobrevivido. A jornada havia sido iniciada com mais de cento e setenta homens e só quarenta e quatro continuavam vivos. Assim, apesar da presença dos pescadores gregos, os bancos dos remadores não se encontravam cheios e os navios não conseguiam andar muito depressa mesmo com a ajuda dos rafiq, que não eram marinheiros.

Contudo, não levei muito tempo a compreender que Harald não pretendia escapar aos piratas mas sim virar os navios para o vento na esperança de que os assaltantes não se conseguissem aproximar. Se conseguíssemos aguentá-los à distância durante o tempo suficiente, então havia sempre a possibilidade de apanharmos um vento favorável que nos permitisse escapar ao perigo.

Ao princípio, esta estratégia pareceu resultar maravilhosamente bem. Os nossos navios viraram para um novo rumo, os navios vermelhos tentaram seguir-nos e vi que as suas velas se tornavam brandas. Momentos depois, os navios vermelhos começaram a perder velocidade. Como não possuíam remos, acabaram por ficar parados na água.

Os Lobos do Mar viram aquilo e soltaram exclamações de alegria. Porém, os atacantes reduziram as velas e começaram a navegar de um lado para o outro descrevendo ângulos em relação ao vento, numa táctica que provocou grunhidos por parte dos dinamarqueses.

- Estes piratas sabem de navegação... - comentou Gunnar. - Não nos conseguirão apanhar, mas também não nos perderão de vista. Temos de continuar a remar na esperança de que o vento amaine.

Remámos, vendo os navios vermelhos a descreverem infindáveis ziguezagues para um lado e para o outro na nossa esteira enquanto o Sol descrevia o seu longo arco na cúpula azul e vazia do céu. À medida que o dia se prolongava e os músculos se cansavam, as pragas tomaram o lugar das gargalhadas fáceis. Os gregos começaram a queixar-se de que tinham sido contratados como marinheiros e não como escravos. Quando soube das suas queixas, Harald disse-lhes que podiam remar ou nadar e que a escolha era deles... embora os que remassem pudessem esperar uma recompensa adicional quando chegássemos ao nosso destino.

Os outros lamentavam-se mas eu, pela minha parte, saboreei com prazer a minha longa labuta no duro banco, uma vez que cada remada nos colocava mais perto de Constantinopla e do dia em que ajustaria as contas com Nikos.

Conservei-me sentado no meu banco e imaginei como as coisas iriam correr:

Entraríamos no Porto Theodosius, precipitar-nos-íamos pela porta da cidade e correríamos para o palácio onde, numa explosão de fúria justificada, confrontaríamos o surpreendido Nikos com as suas traições. Depois de ouvirmos a confissão proferida pelos seus miseráveis lábios, o grato Imperador colocá-lo-ia nas nossas mãos para a execução, que seria levada a fim mas não antes de um período particularmente excruciante de torturas especialmente preparadas pelos Lobos do Mar. É claro que o Imperador, que vira a sua vida salva no último instante, nos recompensaria de uma maneira fabulosa e poderíamos abandonar aquele maldito lugar de uma vez para sempre.

Embora fosse muito agradável, o sonho terminou subitamente no momento em que, na manhã seguinte, o vento mudou de quadrante e começou a soprar de sudeste. Os navios vermelhos estavam atentos à mudança e quando os dinamarqueses correram para içar as velas já os nossos atacantes tinham regressado ao rumo normal sem qualquer espécie de esforço.

- Icem as velas! - gritou Harald enquanto Thorkel empurrava o timão para um lado, lançando as nossas embarcações num rumo diferente. Os Lobos do Mar puxaram os remos para o interior e correram para os cabos para içarem as velas. Ouviu-se um gemido e um estalido quando o mastro se viu sujeito ao esforço e a grande vela quadrada se enfunou ao vento. Senti o navio como que a hesitar quando a proa mordeu as ondas, para logo saltar para a frente no momento em que a proa de dragão voltou a erguer-se. Bastara o espaço de três batimentos do coração para que os compridos navios voassem à frente do vento como gaivotas a planarem junto água.

Ah, mas os navios vermelhos eram ainda mais rápidos! Aproximavam-se a cada subida e descida das vagas, estreitando constantemente a distância que nos separava. Muito em breve já conseguíamos distinguir os cascos sobre a água e um pouco depois começámos a avistar figuras a bordo dos navios inimigos. Os Lobos do Mar começaram a contá-las num esforço para avaliarem o número de inimigos, para logo discutirem as estimativas que cada um deles havia feito e recomeçarem as contagens.

Pareceu-me que existiam pelo menos trinta assaltantes a bordo de cada um dos navios vermelhos, enquanto nós tínhamos um total de cento e vinte homens, incluindo gregos, irlandeses, dinamarqueses e sarracenos. Para além disso, possuíamos quatro navios contra os seus dois. Mesmo que nos alcançassem, cada navio atacante teria de abordar dois dos nossos ao mesmo tempo, coisa que, tal como Gunnar dissera, iria ser uma tarefa muito difícil.

Todavia, os atacantes tinham algo de muito diferente em mente, como em breve iríamos descobrir para nosso grande desânimo.

O primeiro ataque surgiu quando, amontoados junto às amuradas, vimos uma nuvem de fumo branco a saltar dos flancos da embarcação mais próxima. Ouvimos uma espécie de zumbido abafado, como se todo um bando de cisnes cortasse os ares por cima das nossas cabeças, logo seguido por um estrondo seco, do outro lado da água. Crak! No mesmo instante, o mastro foi atingido por alguma coisa invisível que o fez estremecer desde a extremidade até à quilha, após o que a sua parte superior irrompeu em brilhantes chamas azuis-avermelhadas. Os Lobos do Mar ficaram de boca aberta ante tão estranha maravilha e interrogaram-se uns aos outros sobre o seu significado. Contudo, os gregos sabiam muito bem o que aquilo era e levantaram as mãos para o ar, horrorizados.

Ganhei consciência de haver alguém a gritar em árabe.

- Baixem-se! - dizia a voz. Virei-me e vi Faysal e a trepar por cima dos bancos vazios dos remadores, num esforço para me alcançar. - Aidan! - gritou. - Diz-lhes que se baixem, todos eles!

Ainda Faysal estava a falar e já os que se encontravam junto à amurada soltavam um novo clamor. Viu-se uma nova nuvem de fumo branco, logo seguida pelo estranho zumbido... e de súbito o mar libertou uma coluna de água que saltou por cima do casco e caiu sobre toda a gente como chuva. Sacudi a água do mar da minha cara, olhei e... espanto dos espantos, vi o próprio mar a arder com chamas azuis e vermelhas.

- É fogo grego - disse-me Faysal. - Os Bizantinos usam-no na guerra contra os nossos navios. É um fogo líquido que queima tudo aquilo em que toca e que só pode ser apagado com areia!

O mar zumbiu e crepitou no local onde as estranhas chamas dançaram antes de se afundarem abruptamente soltando uma espessa nuvem de fumo branco.

- Não temos areia... Que podemos nós fazer? - interroguei-me, porque não via maneira de evitar que os atacantes nos atirassem aquele fogo. Pareciam capazes de o lançar à distância com espantosa facilidade e impunidade.

- Que os crentes rezem a Deus! - declarou Faysal. - Só Alá nos pode salvar!

Contudo, Harald Berro-de-Touro era mais uma vez o mestre e a alma dos seus próprios navios, e lançou-se na sua defesa com um zelo inigualável. Com o seu tremendo berro a sobrepor-se aos gritos dos homens, ordenou à nossa pequena frota que se dividisse, com cada navio a seguir um caminho separado. Esta estratégia forçou os atacantes a limitarem o seu ataque a embarcações individuais e a escolherem os alvos com mais cuidado.

Assim, fomos mandados de volta para os bancos dos remos, num esforço para movermos os navios. Em menos tempo do que o necessário para o narrar, a matilha dos Lobos do Mar espalhou-se em quatro direcções diferentes, pelo que os navios vermelhos se debateram para darem a volta sem perderem a vantagem do vento.

Dois navios viquingues conseguiram colocar-se em segurança por trás dos atacantes, deixando apenas o navio-dragão de Harald e um outro numa situação de perigo. Habilidosamente, Thorkel virou a popa para o atacante, colocando o casco desprotegido fora do alcance dos atacantes e reduzindo assim as dimensões do alvo, manobra cuja eficácia foi amplamente demonstrada no ataque seguinte, isto porque, quando tomámos esse novo rumo, o navio vermelho mais próximo cuspiu mais um míssil flamejante.

Dessa vez, ao avistar o revelador fumo branco, consegui acompanhar o progresso do objecto enquanto este assobiava no céu para ir cair a uma distância de poucos passos da amurada. A tentativa que teve lugar a seguir provocou um jacto de espuma à mesma distância mas junto da outra amurada, o que provocou um clamor sarcástico por parte dos dinamarqueses, que troçavam da falta de perícia dos seus inimigos. Contudo, reparei que não abrandaram o ritmo das remadas, que prosseguiram com uma renovada dedicação.

Vendo que a embarcação de cabeça de dragão lhes escapava, os atacantes viraram a sua atenção para o navio viquingue mais próximo de nós... e fizeram-no com resultados devastadores.

O fumo branco ergueu-se na proa do navio inimigo e ouvi um zumbido no ar, logo seguido por um violento estrondo. As chamas surgiram imediatamente no casco no outro navio da nossa frota, erguendo-se em longas línguas de fogo vermelhas-azuladas que se espalharam velozmente ao longo da amurada, escorrendo para o interior do navio e para a água.

Os Lobos do Mar despiram as túnicas e começaram a bater as chamas com as roupas, o que só serviu para que o fogo se difundisse ainda mais. O navio começou rapidamente a arder, soltando um fumo negro e oleoso.

Harald, de pé no cadaste da popa, ordenou ao piloto que virasse de bordo. Remámos para irmos ajudar os nossos companheiros sem termos em conta a nossa própria segurança.

Dois outros mísseis flamejantes mergulharam inofensivamente no mar, antes de um quarto atingir a vela do navio incendiado, derramando uma brilhante torrente sobre a superfície da vela, torrente que acabou por escorrer, sob a forma de gotas de fogo, sobre os que se encontravam por baixo.

Baixámos as cabeças, dobrámos as costas e propulsionámos o navio-dragão para a frente. Pude ver, pelos cantos dos olhos, que havia uma figura a saltar para cima da amurada e que, num só movimento, lançava um cabo que cobriu a distância entre os dois navios. Olhei e vi o jarl Harald a puxar com todas as suas forças pelo cabo, que terminava num gancho e estava agora firmemente preso ao navio incendiado.

Alguns instantes depois já os remadores que se encontravam no costado mais próximo do navio incendiado puxavam os remos para dentro e punham-se de pé para ajudarem os camaradas da outra embarcação. Estes fugiram às chamas uns atrás dos outros e verificámos que havia vários marinheiros chamuscados mas nenhum gravemente queimado. Logo que os tomámos a todos a bordo, pegámos nos remos e afastámo-nos da embarcação a arder antes que as chamas se pudessem espalhar ao nosso.

Harald ordenou que regressassem todos aos remos e começou a berrar uma cadência veloz. Pensei que iríamos tentar escapar, mantendo o navio em chamas entre nós e os atacantes. Porém, o Rei-dos-Mares era destemido e ousado, pelo que preferiu executar um contra-ataque numa tentativa para alcançar a vitória, se tal fosse possível, demonstrando assim a sua verdadeira têmpera.

Em vez de meter o rabo entre as pernas e fugir, Harald ordenou a Thorkel que fizesse a proa do navio-dragão rodear a embarcação a arder, o que constituía um plano perigoso porque esta estava agora completamente engolfada em chamas. A sua vela quadrada era uma vasta e brilhante cortina de fogo e o fumo rolava, espesso e negro, do casco ardente.

Lentamente, o navio-dragão deu a volta, passando ao longo do navio condenado e tão perto deste que o rugido do incêndio abafou todos os outros sons e pude sentir o calor das chamas no rosto.

Bastaria uma súbita rajada de vento para que o nosso próprio navio fosse apanhado pelas chamas. Encolhi-me e remei o melhor que fui capaz, mantendo sempre um dos olhos na vela por cima de mim e esperando, contra toda a esperança, que o vento não mudasse de repente. Harald Berro-de-Touro não tinha essas preocupações. Amarrou o cabo com o gancho ao cadaste da popa e gritou a Thorkel que se dirigisse aos navios vermelhos.

Amaldiçoando a sua sorte, Thorkel manobrou o timão, puxando-o para aqui e para acolá, esforçando-se por manter o cabo direito e tenso de modo a não perder um único impulso das pás dos remos, uma tarefa agora muito mais difícil uma vez que estávamos a rebocar uma embarcação em chamas.

- Mais depressa! - rugiu Harald, com a voz a troar exortações aos remadores. - Huh! Huh! Huh! Huh! - grunhiu, marcando o ritmo e encorajando-os.

Ajudados pelos marinheiros salvos da outra embarcação, dobrámo-nos sobre os remos enquanto o vigoroso piloto obrigava a proa de dragão a descrever uma viragem pronunciada e avançava directamente para o atacante mais próximo. O navio vermelho mais distante estava a afastar-se mas o que se encontrava no nosso caminho preparava-se para lançar os seus projécteis de fogo.

Ouvimos, por duas vezes, o zumbido dos mísseis que passaram por nós, tão perto que consegui cheirar o seu odor oleoso e acre. Contudo, à terceira vez não tivemos tanta sorte.

Aproximámo-nos do navio vermelho ao ponto de já conseguirmos ver tanto os nossos inimigos como o tubo de bronze instalado na proa que, graças a meios desconhecidos, vomitava o tal fogo grego. A distância ia diminuindo a cada batimento do meu coração, e vi o fumo branco a saltar do tubo brônzeo, logo seguido pelo zumbido do projéctil que voou a direito em direcção ao nosso casco.

O bravo Dugal também o viu e pôs-se de pé num salto, levantando as mãos como se o quisesse agarrar.

- Dugal! - gritei-lhe, com todas as minhas forças - Não!

O projéctil desceu, desceu, precipitando-se do céu com a velocidade de uma pedra a cair. Dugal esticou-se, esforçando-se para o apanhar. O projéctil passou por cima da sua cabeça... e Dugal deu um salto com as mãos erguidas ao alto. Deve ter conseguido tocar no míssil porque este pareceu ressaltar na ponta dos seus dedos para ir embater na parte inferior da vela, que lhe deteve o voo. A coisa deslizou da vela e caiu no fundo do navio.

Verifiquei então que o míssil não era mais do que um recipiente arredondado, de barro, fabricado de propósito para se estilhaçar e para despejar o seu vil líquido. Porém, aquele recipiente não se quebrou. Fora talvez Dugal, ao desviá-lo para a vela, quem impedira que isso acontecesse. Não tenho dúvidas de que nos salvou porque, mal o recipiente pousou nas madeiras do casco com um estrondo oco, Dugal agarrou-o e correu para a proa.

Enquanto Dugal corria, uma porção do fogo grego derramou-se do pote e salpicou o cabo de um remo. As chamas vermelhas-azuladas rebentaram imediatamente no local onde o líquido tocou no remo, incendiando a madeira. O surpreendido Lobo do Mar levantou-se e atirou o remo ao mar antes que pudesse provocar mais danos.

Entretanto, Dugal precipitou-se para a proa com o terrível vaso de barro, fez pontaria e atirou-o de volta ao navio vermelho.

Foi um acto de valor de um verdadeiro herói, que teria sido magnífico se o navio dos nossos inimigos se encontrasse uma centena de passos mais próximo. Como não estava, o vaso limitou-se a mergulhar no mar e a afundar-se no meio de um silvo borbulhante.

De qualquer modo, grandemente inspirados por aquela exibição de coragem, os Lobos do Mar aclamaram-no tão calorosamente como se tivesse conseguido empurrar o navio inimigo para baixo das ondas com um poderoso murro.

Já nos encontrávamos mais perto do navio vermelho mas Harald gritou-nos que remássemos mais depressa, cada vez mais depressa. O meu coração martelava com o esforço, a respiração era ofegante e sentia uma sensação ardente no fundo dos pulmões. Tinha as mãos feridas e havia sangue no punho do remo. Os músculos das minhas costas e ombros eram agora uma massa nodosa e dorida. Todavia, ignorei as dores e manobrei o remo com uma determinação sombria e com o suor a escorrer por todo o corpo.

O navio-dragão cortou as ondas rapidamente, dirigindo-se directamente para os nossos atacantes. Ouvi os gritos dos inimigos, arrisquei-me a olhá-los de relance e vi-os a agitarem-se em volta do tubo de lançamento em bronze, tentando desesperadamente prepará-lo para voltar a cuspir fogo.

O navio-dragão estava cada vez mais perto deles. Os piratas, pensando que iriam ser abalroados, prepararam-se para o impacto enquanto o seu timoneiro virava a embarcação directamente para nós para que o choque fosse apenas de raspão.

Foi nesse momento que Harald demonstrou todo o seu génio porque, no último instante possível, ordenou a Thorkel que virasse de bordo com toda a força. A seguir, erguendo um machado-de-guerra, saltou para o cadaste da popa, deu dois rápidos golpes no cabo que nos ligava ao navio incendiado e cortou-o.

Liberto de repente e sem ninguém para o guiar, o navio em chamas deslizou lateralmente sobre as águas. O piloto inimigo tentou virar mas já era demasiado tarde. O navio vermelho foi embater no meio do casco da embarcação em chamas, cujo mastro soltou um gemido rouco e profundo, oscilou... e caiu como uma árvore abatida para ir atingir a verga do navio vermelho, onde ficou preso, incendiando a vela e largando uma chuva de chamas sobre os inimigos.

A visão fez com que todos os Lobos do Mar se pusessem de pé. Saltaram para cima dos bancos e da amurada, soltando exclamações de alegria ante a derrota do inimigo. Também eu me alegrei... e ainda antes de dar por isso já tinha os pés em cima da amurada e berrava de júbilo, agitando os punhos no ar.

Senti mãos a agarrarem-me, olhei para baixo e vi o rosto de Dugal. Também sorria de alívio mas segurava-me com força para não me deixar cair borda fora. Disse qualquer coisa mas a sua voz foi abafada pelos berros de alegria e não consegui entender uma única palavra.

- Sim! - gritei, em resposta. - É uma bela visão!

Harald permitiu apenas um pequeno momento de celebração aos seus Lobos do Mar, para logo lhes ordenar o regresso aos remos. Remámos para longe dos destroços em chamas, agora inextricavelmente ligados um ao outro e à deriva sobre as ondas. Quando o navio-dragão se afastou lancei uma última olhadela sobre o ombro e vi as velas do navio vermelho completamente incendiadas e a lançarem grandes farrapos a arder sobre as cabeças dos piratas árabes que gritavam de terror. Contudo, os seus gritos desprezíveis eram engolidos pelo fumo que se erguia do casco para se achatar sob a brisa e se espalhar sobre a água.

Harald abandonou os inimigos entregues ao destino que haviam preparado para nós e virou a sua atenção para o segundo navio vermelho.

De pé na popa, a berrar com a sua voz de trovão, o Rei-dos-Mares marcou a cadência enquanto remávamos para nos lançarmos no combate contra o inimigo. "Huh! Huh! Huh!" gritava. Em breve se tornou aparente que os nossos dois outros navios não só tinham conseguido manter-se longe da proa lançadora de fogo dos atacantes como tinham de algum modo conseguido colocar-se em posição por trás do navio vermelho e fora do alcance dos seus mísseis. Estavam agora a preparar-se para o ataque, um de cada lado da embarcação inimiga e mantendo-a entre eles.

O navio vermelho parecia tentar dar a volta para enfrentar os seus atacantes, mas não o conseguia. Os compridos navios dinamarqueses propulsionados a remos conservavam-se facilmente fora do seu alcance. Preocupado com essa dificuldade, o navio vermelho não se apercebeu imediatamente que a embarcação com a cabeça de dragão abria uma esteira nas ondas que apontava directamente para ele.

Thorkel colocou-nos num rumo que nos faria aproximar por trás do navio vermelho para depois nos colocarmos a seu lado, numa táctica muito apreciada pelos Lobos do Mar e que lhes permitia prenderem-se à outra embarcação. Depois dos seus tripulantes serem dominados, seguia-se a abordagem e a pilhagem. Conhecia bem aquela estratégia, uma vez que fora utilizada, com efeitos ruinosos, contra o nosso pequeno Bãn Gwydd.

Se a táctica iria ou não ter êxito contra o navio vermelho é uma questão para eternas especulações, isto porque os piratas notaram a nossa rápida aproximação antes de conseguirmos chegar suficientemente perto. Os árabes lançaram uma olhadela ao navio-dragão que saltava sobre as águas ansioso por os devorar e foi o bastante para mudarem de rumo e fugirem à frente do vento.

Podíamos tê-los perseguido e apanhado mas Harald sabia muito bem que era melhor não esgotar os seus homens, esforçando-os nos remos, para logo depois os envolver numa batalha. Preferiu abandonar a perseguição e fez sinal aos dois outros navios restantes para que o seguissem.

Mudámos de rumo e deixámos para trás os navios que ardiam. Naquela altura já havia homens na água. Forçados a escolher entre uma morte pelo fogo ou um túmulo líquido, tinham preferido este último. Três piratas já meio afogados vieram à superfície à distância de uma lança da nossa amurada, no meu lado do navio. Chamaram-nos em nome de Jesus quando nos aproximámos, mas o resto da sua fala foi completamente incompreensível para mim.

Os dinamarqueses queriam matá-los e na verdade já vários Lobos do Mar haviam retirado as lanças dos suportes e faziam pontaria, mas Faysal conseguiu detê-los. Agarrou no guerreiro mais próximo pelo braço e impediu-o de atirar a lança enquanto me gritava para lhes dizer que não matassem os piratas.

- Salva-os! - pediu-me, num tom urgente. - Não são árabes, são arménios, e estes cativos podem vir a ser-nos úteis em Bizâncio!

Transmiti aquelas palavras a Harald, que concordou a resmungar e ordenou aos seus homens para salvarem os sobreviventes.

Os cativos eram, sob todos os aspectos, muito semelhantes aos assaltantes que nos haviam atacado na estrada para Sebastea. Tal como acontecera com eles, não era capaz de os distinguir dos árabes até ao momento em que abriam a boca para falar.

- Como soubeste que eram arménios? -- perguntei, virando-me para Faysal. - Foi por causa da linguagem?

- Alá é testemunha de que já o sabia antes de falarem - replicou, com um sorriso astuto. - Os sarracenos não possuem o segredo do fogo grego. O método para o seu fabrico é tão cuidadosamente guardado que ainda não conseguimos descobri-lo. O facto destes homens o utilizarem só pode querer dizer que alguém ao serviço do Imperador lhes transmitiu o segredo.

Foi assim que os três ensopados arménios se juntaram a nós, resgatados ao mar, para serem amarrados de mãos e pernas e transportados para Constantinopla como mais uma prova da traição de Nikos.

De pé na popa, Harald Berro-de-Touro gritou:

- Icem a vela! - A seguir ordenou a Thorkel que regressasse ao nosso rumo inicial. Logo que a orgulhosa proa de dragão começou a rodar, o jarl Harald ergueu o machado-de-guerra e soltou o seu grito de vitória:

- Para Miklagard! Morte aos nossos inimigos!

 

Não serás abandonado na terra dos iníquos Não te vergarás nas cortes dos falsos; Erguer-te-ás vitorioso acima de todos eles Tal como as vagas se erguem sobre a costa. Cristo é o teu próprio pastor, Que te protege por todos os lados; Não se esquecerá de te guardar de cima abaixo, Nem permitirá que o mal se arrime a ti.

 

Dez dias depois da batalha naval, um dos dinamarqueses trepou ao mastro e anunciou que Miklagard, a Grande Cidade Dourada, se encontrava à vista. O grito fez com que lorde Sadiq se levantasse da cama com a ajuda de Kazimain e Ddewi, e fosse ver as brilhantes cúpulas e torres de Constantinopla.

Depois da batalha, o emir aparecera várias vezes no convés, embora com brevidade, para caminhar ao longo do navio e respirar um pouco de ar fresco. Nessas ocasiões conversava comigo - e com Harald, por meu intermédio - e dava todos os sinais de estar a conseguir uma recuperação rápida. Embora ainda dormisse durante a maior parte do tempo numa tentativa para readquirir as antigas forças por intermédio do sono, fiquei com a impressão de que estava realmente a recuperar a saúde.

Instalámo-nos junto à amurada e vimos a cidade a emergir da neblina provocada pelo calor, reluzindo no cimo da corcunda das suas altas colinas como uma brilhante pérola branca pousada sobre um fundo empoeirado, cinzento e verde.

- É esta a tão gabada Cidade do Ouro? - perguntou Kazimain. Era obrigada a usar continuamente o véu por se encontrar na presença de tantos estranhos, pelo que eu, embora lhe pudesse ver os olhos, não conseguia discernir os pensamentos que se encontravam por trás das suas perguntas.

- Sim, é esta - repliquei, reflectindo quão diferente me parecia esta chegada quando comparada com a primeira. Nessa altura aproximara-me da cidade com medo e a tremer, assustado até à medula, convicto de que a morte me aguardava no preciso momento em que pusesse os pés no cais. Oh, mas eu, agora, era um homem muito diferente daquele que observara a cidade por cima da amurada. Os olhos que contemplavam Bizâncio naquele momento pertenciam a um Aidan muito mais duro, mais forte e sábio.

- Pensei... - comentou Kazimain - que fosse muito maior.

Lancei uma olhadela para onde o emir conversava tranquilamente com Faysal e afirmei:

- Lorde Sadiq parece estar muito bem! É bom voltar a vê-lo com saúde.

Voltámos a prestar atenção à brilhante brancura da cidade e observámo-la durante algum tempo, em silêncio, com os meus pensamentos a desviarem-se inevitavelmente para os acontecimentos que iriam ter lugar. Passado algum tempo, murmurei:

- Já estamos muito perto, Kazimain. Na verdade, até o sinto; a justiça está ao alcance das minhas mãos!

- És tão confiante, meu amor.

- Basta que nos apresentemos ao Imperador e que revelemos a conjura contra ele para que os nossos inimigos sejam destruídos.

- Só Alá dá forma ao futuro - censurou-me Kazimain, com suavidade, afastando-se. - Só Alá pode dizer o que irá acontecer.

Ah, como estás enganada, meu amor, pensei. O futuro pertence àqueles que se atrevem a agarrá-lo por si mesmos.

Não sabia se Nikos empregava espiões, nem se estes operavam nos portos de Bizâncio, mas considerei que era muito provável que assim fosse. De qualquer modo, o súbito aparecimento de três navios viquingues iria sem dúvida despertar algum interesse mesmo entre os atarefados cidadãos de Constantinopla. Embora não me interessasse avisar os nossos amigos desnecessariamente, não consegui descobrir uma maneira de o evitar. Os navios precisam de entrar nos portos e os homens têm de desembarcar.

Mais uma vez, considerei que a velocidade era a nossa melhor esperança. Se conseguíssemos chegar ao Imperador pouco depois de entrarmos no porto, então poderíamos deferir o golpe ainda antes do inimigo saber que tínhamos desembarcado. Se isso falhasse, ainda iria ser possível, pelo menos, antecipar-nos a uma oposição que teria necessariamente de ser montada à pressa.

Mesmo assim, era um risco. Depois de tudo o que havíamos suportado, não era agradável ter de confiar o nosso destino e fortunas a uma tão grande incerteza. Quando nos aproximámos e a cidade se tornou cada vez maior, com os portos repletos de navios em volta das fortes muralhas e com as afamadas sete colinas a erguerem-se sobre tudo o que víamos, ocorreu-me que devíamos modificar a nossa aproximação.

- Jarl Harald! - gritei-lhe, da amurada - é melhor irmos para o Porto de Hormisdas!

Olhou-me com surpresa mas deu a ordem. O navio girou inesperadamente e emir quis saber a razão para a súbita mudança de rumo.

Expliquei-lhe que, tanto quanto soubesse, os navios de Harald eram as únicas embarcações viquingues ao serviço do Imperador, pelo que a sua entrada no porto imperial não podia deixar de alertar Nikos para o nosso regresso.

- Atrairemos menos atenções se atracarmos entre os navios estrangeiros do Porto de Hormisdas, e a nossa chegada não será notada se utilizarmos a porta dos Bárbaros.

O emir fez uma careta perante o nome da porta mas aceitou a sugestão com bons modos.

- Não duvido que se trate de uma porta igual a qualquer outra - comentou. - A humildade também tem os seus benefícios.

Avançámos lentamente para o porto cheio de navios, preparando-nos para a confrontação. Infelizmente, os acontecimentos ocorridos no coração negro e contorcido de Bizâncio há muito que haviam tornado o nosso pequeno subterfúgio num gesto inútil.

De mais perto, verificámos que o porto se encontrava muito cheio e que havia ali navios, fundeados quase em cima uns dos outros, vindos de todas as partes do mundo.

- Penso que há aqui algo de errado... - disse Harald, perscrutando o amontoado de mastros, quase uma verdadeira floresta, junto ao cais que se encontrava na nossa frente. - O porto está diferente...

Ao princípio não compreendi o que ele queria dizer. O cais pareceu-me exactamente como o recordava. Todavia, Dugal, que se encontrava ao meu lado junto à amurada, confirmou a declaração de Harald quando disse:

- Não sabia que este lugar podia ter um momento de paz...

- O jarl Harald acabou de dizer que há algo de errado, mas eu não... Foi então que percebi: o porto mostrava-se estranhamente tranquilo.

Não havia um único navio de alto mar em movimento. A falta de actividade por parte das embarcações maiores escapara à minha atenção por causa do número habitual de pequenos barcos que continuavam a sulcar as águas atulhadas, transportando passageiros para um lado e para o outro, e eram eles os responsáveis pela aparente agitação do porto. Todos os grandes navios - e eram centenas - permaneciam imóveis. Vi embarcações muito mergulhadas na água, completamente carregadas, mas nenhuma se aproximava do cais para descarregar as suas mercadorias.

Para além disso, o cais parecia invulgarmente cheio de gente. As pessoas amontoavam-se a todo o seu comprimento, reunidas em densos nós, e enxameavam em volta das portas da cidade. Contudo, essas multidões, tal como os navios, permaneciam imóveis e não havia ninguém a transportar qualquer tipo de fardos.

Regressei à amurada, chamei o barqueiro que se encontrava mais perto, esperei que se aproximasse e perguntei-lhe por que motivo nenhum dos navios atracava ou descarregava.

- O porto está fechado - respondeu o barqueiro - tal como as portas da cidade.

Harald juntou-se e quis saber o que dissera o barqueiro. Ao ouvir a minha explicação, pediu:

- Pergunta-lhe quais os motivos para um tal estado de coisa.

Virei-me novamente para o barqueiro, fiz-lhe a pergunta e fiquei horrorizado com a resposta que recebi. O Sol que brilhava no céu pareceu enfraquecer e sentia a mesma frustração impotente que sentira no dia em que o bispo Cadoc fora assassinado.

- Que disse ele? - inquiriu Harald, impaciente. Brynach e Faysal não precisaram de tradução e lançaram uma chuva de perguntas sobre o barqueiro. A seguir, Faysal apressou-se a ir acordar o emir para lhe transmitir a notícia.

Agarrei-me à amurada com as duas mãos e virei-me para Harald, que aguardava a minha resposta.

- Disse... - expliquei, com uma voz que era estranha até para os meus próprios ouvidos - que o Imperador está morto.

Senti-me incapaz de acreditar naquelas palavras e repeti-as:

- O Imperador está morto. Fecharam os portos e as portas da cidade a todos os estrangeiros.. - Olhei para lá de Harald, para a longa linha dos que se amontoavam junto à amurada, e murmurei: - Tenho de ir avisar o emir...

- O emir já ouviu - disse uma voz fatigada por trás de mim. - Chegámos demasiado tarde.

Sadiq aproximou-se da amurada com Faysal. O emir acenou para Faysal, que chamou o barqueiro. Os dois homens falaram durante algum tempo, após o que Faysal se virou e declarou:

- O barqueiro diz que a Porta-Dourada continua aberta.

Depois de mais algumas perguntas e de ser pago com uma moeda de prata, o barqueiro explicou que nas ocasiões importantes, tal como um nascimento imperial, um casamento ou uma morte, as várias entradas da cidade eram encerradas para permitir que os soldados assumissem outros deveres. Contudo, a Porta-Dourada nunca era encerrada, excepto em tempo de guerra, mas iria ser muito difícil de entrar na cidade por causa do amontoado de pessoas.

Transmiti tudo isto a Harald, após o que este mandou os homens para os remos e pouco depois já deslizávamos lentamente ao longo da grande muralha sul da cidade, na direcção do bairro conhecido por Psamathia. Embora não existisse aí um porto apropriado, a água era suficientemente profunda para permitir um ancoradouro seguro. Na realidade já lá se encontravam muitos outros navios com a proa virada para a costa, à esperem de embarcarem mercadorias ou provisões, ou de fazerem reparações antes de iniciarem as suas viagens.

Thorkel descobriu rapidamente um local onde largar o ferro e ordenou que os navios fossem amarrados uns aos outros. Cumprida essa tarefa, tratámos imediatamente de organizar um grupo de desembarque.

Harald achava que devia ser o primeiro a ir a terra. Tinha em mente dirigir-se directamente para o palácio para acertar contas com o novo Imperador, quem quer que ele fosse.

- Tens uma figura que dá nas vistas, jarl Harald. E se alguém te reconhecer? - argumentei. - Não podemos correr o risco de alertar Nikos desnecessariamente. Se conseguir escapar-se... então tudo o que tivemos de suportar terá sido inútil. Não podemos permitir uma coisa dessas.

O jarl Harald não gostou da ideia mas, no fim, acabou por ser persuadido a esperar pelo menos até que pudéssemos saber o que se estava a passar na corte. Decidimos que iria eu e o Brynach, e que levaríamos o Dugal como guarda-costas. Chamámos um pequeno bote e Harald entregou a cada um de nós uma mão-cheia de moedas de prata. Para além disso, deu uma espada a Dugal. O incidente fez-me recordar o dia da partida dos monges de Kells, quando lorde Aengus lhe oferecera uma lâmina, que o bispo Cadoc recusara. Contudo, desta vez, Dugal aceitou a arma.

Faysal combinou o transporte com o barqueiro o emir aproveitou para me chamar.

- Tens de ter muito cuidado, Aidan... - aconselhou-me, afagando a barba, pensativo. - Os nossos inimigos são homens sem alma. - Levantou os seus olhos escuros para os meus e avisou-me: - Não te transformes num deles. - Ficou a olhar para mim por breves momentos e afastou-se, pedindo: - Dá-me notícias quando regressares.

- Com certeza, lorde Sadiq - repliquei, ficando a vê-lo arrastar-se para a tenda, dobrado como um velho.

Faysal dirigiu-se-me apenas instantes depois para me informar que o bote estava pronto. Brynach e Dugal já se encontravam a bordo. Porém, ainda olhei para a tenda montada sobre a plataforma antes de deslizar por cima da amurada para me juntar a eles, e vi Kazimain a observar-me, com o véu caído para um lado. Tinha o rosto franzido por causa do sol que lhe batia nos olhos, mas pareceu-me ver-lhe uma expressão de completa desaprovação e de tristeza. Viu que a observava e essa sua expressão desapareceu imediatamente, engolida por um sorriso. Mesmo assim, perguntei a mim mesmo se o rosto da jovem não teria manifestado os seus verdadeiros sentimentos... Os marinheiros gregos começaram a exigir que lhes pagassem e que os deixassem partir. Deixei Harald e Faysal a lidar com eles e desci para o bote que me aguardava. O barqueiro começou a manobrar o remo e dei algumas instruções a Brynach e Dugal na nossa língua comum, para não poder ser entendido.

- Creio que o melhor será fingirmos que somos mercadores. Se alguém perguntar, diremos que viemos comprar especiarias e azeite.

- Quem olhar para nós... - interveio Brynach, alisando o seu largo manto - não irá pensar que somos monges.

- É uma pequena falsidade... - comentou Brynach. - No entanto, se achas que é necessário, não levantarei objecções.

- Sentir-me-ia mais à-vontade... - disse-lhe. - Como somos mercadores e estivemos a viajar durante muitos dias, a nossa ignorância a respeito dos assuntos de Constantinopla não parecerá suspeita.

Brynach olhou-me com uma expressão dúbia.

- Achas que esse tal Nikos é assim tão poderoso para necessitarmos de recorrer a tais falsidades?

- Há navios a navegar sob o seu comando e altos funcionários que morrem na cama - ripostei, com a ira a vir imediatamente ao de cima.

- Também tu sofreste às suas mãos e viste os teus irmãos sucumbirem, uns atrás dos outros, graças às suas intrigas. Como é possível que visses tudo isso e ainda não acredites?

- Oh, acredito... - retorquiu lentamente - e não tenhas dúvidas a esse respeito. Todavia, também penso que não passa de um homem, certamente mau e talvez odioso... mas é apenas um homem. Tu, Aidan, transforma-lo num demónio com poderes até sobre o ar e a luz...

- Até o ver morto e no túmulo... - respondi, com frieza - considero-o como o próprio Diabo incarnado e tratá-lo-ei como tal.

- É Nosso Senhor Jesus Cristo quem nos sustem e protege - afirmou Brynach com firmeza. - Nada temos a temer.

- Ah, sim, mas já demonstrou ser um fraco protector! - atirei-lhe.

- Olha à tua volta, irmão Brynach. Fomos afligidos pela morte e pelos desastres em cada curva do caminho... e o nosso grande e bom Deus nada fez para nos proteger!

- Ainda estamos vivos - salientou Dugal. A sua fé suave e inconsciente irritava-me.

- Sim, mas quantos são os que já não estão vivos? - A minha ira chamou a atenção do barqueiro, que ergueu as sobrancelhas. Baixei a voz e obriguei-me a um pouco mais de calma. - Pergunto a mim mesmo se os nossos irmãos mortos, ou se os duzentos e muitos que caíram na emboscada, também partilhariam essas tuas opiniões presunçosas.

- Não fazia ideia de que te sentias tão maltratado - replicou Brynach, adoptando um tom calmo e imperturbado.

- Não fales dos meus sentimentos - pedi, com frieza. - Agora, responde-me, se puderes: quantos mais têm de morrer até compreenderes o pouco interesse que Deus nos dispensa?

Dugal, surpreendido com a minha explosão, olhou para mim como se eu fosse um estranho.

Senti-me incapaz de os fazer compreender a completa futilidade da sua fé, pelo que fechei a boca e virei a cara até que o bote embateu contra o baixo cais de pedra e desembarcámos. Paguei ao barqueiro e avancei imediatamente para a porta da cidade, que podíamos ver a erguer-se por cima das pequenas choças que se espalhavam, como uma crosta horrível, sobre a lama e o lodo dos pântanos existentes ao longo do largo e malcheiroso fosso encostado à muralha ocidental de Constantinopla. Eram as habitações, se é que se lhe podia dar esse nome, dos trabalhadores que descarregavam os navios e transportavam as mercadorias de e para os mercados. Como naquele dia o porto estava encerrado, os trabalhadores mantinham-se ociosos e observaram a nossa passagem.

Escolhemos o caminho por entre os montes de refugo e de lama pestilenta e acabámos por chegar à Via Egnaciana, a estrada que se dirigia para a Porta-Dourada para logo se transformar na Mese, que seguia directamente para o fórum e para o palácio. Ao chegarmos à estrada verificámos que a sua larga vastidão empedrada era agora um rio de humanidade - e um rio muito cheio -, que se movia com uma lentidão quase imperceptível mas com um clamor ensurdecedor enquanto avançava para a porta amarela-clara, lá muito à frente.

Não tínhamos outra hipótese se não a de nos juntarmos à multidão que se arrastava pela estrada. Foi o que fizemos, colocando-nos por trás de um grupo de cinco homens que transportava grandes fardos feitos com um pesado tecido para sacos. Seguimo-los durante algum tempo e vimo-los a pousarem os seus pesados fardos de vez em quando, para poderem descansar um pouco antes de voltarem a avançar. Foi durante uma dessas pequenas paragens que falei com eles, oferecendo-me para os ajudar a carregar os fardos.

- A tua oferta é generosa, meu amigo - respondeu o chefe do grupo - mas não temos dinheiro com que recompensar tanta bondade.

- Viemos à cidade para fazermos a nossa fortuna - disse outro, um jovem que exibia uma amostra de bigode. - O chefe do grupo lançou-lhe um olhar desaprovador que ele ignorou completamente enquanto anunciava: - Somos os melhores oleiros de toda Niceia.

- Viajaram muito? - perguntei-lhes.

- Sim, mas pelo que vejo, não tanto como vocês - retorquiu o chefe, com alguma acidez.

- Passámos algum tempo no leste - expliquei-lhe. - Esta estrada está sempre assim tão cheia?

- Devem ser os únicos, em toda Bizâncio, que não sabem o que aconteceu - declarou o chefe dos oleiros, olhando-nos com desconfiança.

- O basileu está morto! - anunciou o jovem, com um prazer que foi incapaz de disfarçar.

- A sério?! - perguntei, tentando parecer apropriadamente surpreendido.

Dugal juntou-se à conversa, perguntando:

- Quando foi que isso aconteceu? - O seu grego não era dos melhores e os homens olharam-no antes de responderem.

- Há seis dias - afirmou outro oleiro, incapaz de resistir durante mais tempo. Apontou o fardo que tinha pousado no chão entre os pés e disse: - Fizemos taças funerárias que vamos vender nos mercados da cidade. - O homem abriu a boca do fardo, meteu a mão lá dentro e retirou o que parecia ser um molho de palha. Afastou a palha e mostrou-nos uma pálida taça azul e branca, bem feita, embora algo pequena e pouco funda. Ofereceu-ma para que a examinasse e vi que o interior havia sido decorado com a imagem de um homem usando uma coroa e segurando uma espada numa das mãos e uma cruz na outra. Por baixo do homem, que parecia estar sentado no alto de uma das cúpulas da cidade, lia-se a palavra Basil.

- É muito bonita - afirmei, passando-a a Brynach para que este a pudesse apreciar.

- As pessoas da cidade irão pagar bem por este belo trabalho - declarou o homem, orgulhoso - e nós fizemos trezentas destas taças para vender.

- E o funeral do Imperador... - murmurei, virando novamente a conversa para o rumo pretendido - irá ser em breve?

- Ora, é já amanhã - replicou o chefe do grupo. A seguir inclinou-se para mim e confidenciou-me o segredo do êxito que esperavam alcançar: - Vamos vender as nossas taças no exterior da Hagia Sophia. - Tirou a taça das mãos de Dugal, pousou um dedo na imagem da cúpula e piscou-me o olho com uma expressão conspiratória: - Sabemos por onde a procissão fúnebre irá passar.

- Desejo que tudo vos corra bem - declarei. - Parece que escolhemos uma má altura para visitarmos Constantinopla.

- Sim, é uma má altura - concordou um dos oleiros - em especial se estivessem à espera de jantar com o Imperador! - Toda a gente se riu ante aquela sugestão ultrajante. - Porém, poderá não ser assim tão má se tiverem alguma coisa para vender. - Em especial... - continuou o segundo oleiro - se ficarem durante o tempo suficiente para darem as boas-vindas ao novo Imperador. - Dito aquilo, fez aparecer uma segunda taça, igual à primeira até ao mais pequeno pormenor - com o mesmo homem, com espada e cruz, em cima da mesma cúpula - excepto quanto à inscrição, que dizia: Leo. - Também fizemos trezentas destas.

- Prepararam as vossas sementes com uma admirável intuição - afirmou Brynach. - Desejo-vos uma farta colheita. - Fez uma pausa e perguntou: - Sabe-se qual foi a causa da morte do Imperador?

- Dizem que se tratou de um acidente de caça... - confidenciou o chefe do oleiros com o entusiasmo dos boateiros - que teve lugar no palácio de Verão, em Apamea.

- Houve um veado que o arrancou do cavalo e o feriu - acrescentou o jovem, cheio de boa vontade. - Conta-se que o Imperador foi arrastado durante trinta quilómetros antes de o conseguirem livrar do animal.

- Não há certezas, Issacius - interveio o mais velho - e repetir boatos é um pecado.

- Os guardas do Imperador estavam com ele e viram tudo o que aconteceu - prosseguiu o oleiro mais novo com um zelo inabalável.

- Ninguém viu o que aconteceu - garantiu outro dos oleiros. - Ouvi dizer que o basileu cavalgava muito à frente e que ninguém soube que se passara algo de errado até verem o cavalo a fugir. Foi por isso que os farghaneses se encontravam demasiado distantes para o ajudarem.

- Perseguiram e encurralaram o veado - continuou o segundo oleiro com uma olhadela sombria para o mais novo - e um dos guardas teve de cortar o cinto do Imperador para o libertar dos cornos do animal.

- Sim, mas o veado escapou-se para a floresta... - O jovem fez uma pausa para gozar o efeito da afirmação seguinte - e o Imperador precisou de nove dias para morrer!

- Repetir boatos pode não trazer nada de bom - censurou-o o chefe dos oleiros. Virou-se para nós a afirmou: - Na verdade, já ouvimos dizer muitas coisas. Uns dizem isto, outros dizem aquilo... e nem todos podem ter razão. Penso que ninguém sabe realmente o que se passou. Portanto, talvez seja melhor falar o menos possível.

- É um sábio conselho - admiti. Conversámos sobre os possíveis preparativos para o funeral e sobre as várias cerimónias imperiais e acabei por me despedir dos oleiros quando pensei que já nada mais tínhamos a aprender junto deles.

Abandonámos aquela procissão forçada e regressámos aos navios. Du-gal ia à frente e eu seguia-o, sem sequer reparar na lama e no mau cheiro uma vez que tinha toda a atenção concentrada no plano que ganhava forma na minha cabeça.

 

- O teu plano possui a elegância da simplicidade - comentou lorde Sadiq, aprovador, quando lho expliquei. - Se lhe adicionarmos o devido esplendor, ficará irresistível.

Foi de acordo com essa ideia que o emir escolheu uma villa no Corno-Dourado, uma casa magnífica, ainda maior do que a do governador em Trebizonda, com dúzias de quartos em dois pisos e um pátio central que se gabava de possuir uma fonte.

Era uma residência opulenta, e até de ostentação, mesmo quando comparada com os padrões de Constantinopla. O emir explicou a sua escolha:

- Só o isco mais atraente consegue impedir que se desconfie da armadilha.

- Lorde Sadiq, o isco desta armadilha sois vós - recordei-lhe. Instalámo-nos na residência e aproveitámos a cobertura da escuridão para introduzirmos na casa mais trinta Lobos do Mar e os três piratas arménios. Na manhã seguinte enviámos Faysal e oito dos rafiq - vestidos com os mais belos trajes novos - ao palácio imperial, para apresentarem a petição de lorde Sadiq ao prefeito imperial, implorando uma audiência com o novo Imperador.

- Não surgiram quaisquer dúvidas... - afirmou Faysal, quando regressou. - O homem conhece bem esta casa e disse-me que são muitos os emissários estrangeiros que a utilizam quando se instalam na cidade.

- Garantiu que mandaria alguém para entrevistar o emir? - perguntei. Faysal respondeu com um aceno. - Quando?

- Amanhã, ou no dia seguinte - replicou. - O prefeito ficou muito perturbado por termos chegado sem nos anunciarmos. Contudo, expliquei-lhe que a inoportuna morte do Imperador fizera que só agora nos tivesse sido possível anunciar a nossa presença na cidade.

- E ele acreditou?

- Não lhe dei razões para não acreditar - afirmou Faysal, com um sorriso.

- E o soldado? - interveio Sadiq. - Tiveste alguma dificuldade para o localizar?

- Nenhuma, meu senhor - respondeu Faysal. - Tudo se passou tal como o Aidan nos disse. Falei com o homem...

- Alguém vos viu? - inquiri, interrompendo-o.

- É difícil de dizer, mas tive o cuidado de ser o mais discreto possível.

- Irá ajudar-nos?

- Afirmou que poderíamos contar com ele para tomar todas as acções necessárias para que seja feita justiça.

- Então, está tudo nas mãos de Alá - comentou Sadiq.

A armadilha fora montada. Não tinha a menor dúvida de que Nikos, que agora ostentava o título do falecido Nicephorus, iria fazer uma visita ao emir. No fim de contas, as visitas aos dignitários estrangeiros era algo que há muito fazia parte das suas funções na corte, permitindo-lhe manter-se perto do trono. Por outro lado, ninguém melhor do que ele se encontrava a par de tudo o que fora feito para destruir o tratado de paz entre Bizâncio e os Sarracenos. Não se podia arriscar a ver esse tratado ganhar uma nova vida num momento tão impróprio.

Assim, quando Nikos soubesse que o emir Sadiq chegara e pedira uma audiência ao novo Imperador, de certeza que se preocuparia em tratar do assunto pessoalmente. Só tínhamos de esperar que o eparch Nikos fosse ter connosco. Quando o fizesse, estaríamos prontos. Ganhei forças para esse encontro e disse a mim mesmo que, muito em breve, tudo estaria terminado.

Comi pouco e dormi mal, com a mente a remoer pensamentos sobre o que faria quando o visse. A minha mão apalpou repetidamente o punho da faca qadi, apenas para me tranquilizar. Não sou um guerreiro e considerei que poderia ser morto, mas já não temia a morte. Nikos, jurei, nunca sairia vivo daquela casa. Se não fosse capaz de concretizar a sua morte... então seriam Harald e os Lobos do Mar a tratar desse assunto.

Todas as possibilidades haviam sido antecipadas, excepto uma: a velocidade com que Nikos accionou a armadilha. A sua chegada foi tão imediata, logo após a entrega da petição por Faysal, que receei que se tivesse apercebido da nossa jogada.

A meio da manhã surgiram dois komes a cavalo, vestidos com os característicos trajes amarelos e azuis, que bateram respeitosamente à porta para informarem Faysal da iminente chegada do eparch.

Quase não tive tempo para alertar lorde Sadiq, para colocar os dinamarqueses em posição e para me enfiar no meu esconderijo antes do aparecimento do próprio eparch. Chegou acompanhado por dez homens da guarda imperial, os farghaneses, cinco dos quais tomaram posições no exterior da casa. Os cinco restantes acompanharam-no ao interior, atentos e prontos para tudo.

O meu coração, já a martelar com a excitação da antecipação, bateu ainda mais depressa logo que tive o primeiro relance do eparch. Os seus cabelos escuros eram agora mais compridos, talvez de acordo com as tendências existentes na corte naquele momento, e estava mais ricamente vestido do que quando o vira pela última vez. Usava umas flutuantes calças pretas, uma comprida túnica preta com volumosas mangas brancas, apertada na cintura delgada por um largo cinto preto com um enorme fecho de prata com a forma de uma lâmina de lança. As suas maneiras eram suavemente superiores, tal como sempre, os olhos mantinham-se vivos e atentos e exibia um sorriso contraído e frio.

Faysal, um servo sempre perfeito, conduziu os três funcionários para o pátio que, à maneira oriental, fora mobilado com uma mesa larga e baixa rodeada por almofadas, instalada por baixo de um toldo às riscas. Levou-os até à mesa, pediu-lhes para se sentarem e afastou-se, dizendo:

- Peço desculpa, mas vou informar o emir da vossa chegada.

Lorde Sadiq apareceu depois de um intervalo apropriadamente decoroso, muito imponente no seu traje com tons branco-cremoso e turquesa. Os três cortesãos levantaram-se em sinal de respeito e receberam uma pequena vénia da parte de Sadiq, que convidou os hóspedes a sentarem-se com ele à mesa e lhes ofereceu fruta, bolos e bebidas doces, sempre sob os olhares vigilantes dos guardas imperiais, instalados junto às portas que davam acesso ao pátio.

- É um prazer voltar a vê-lo, emir Sadiq - declarou Nikos, encetando os procedimentos. - Espero que a vossa jornada tenha sido satisfatória. - Não esperou por uma resposta e acrescentou: - Devo dizer que a vossa chegada, embora agradável, nos apanhou de surpresa.

- Ah, sim? - inquiriu o emir, com uma leve preocupação a cruzar-lhe o rosto. - O eparch Nicephorus e eu concordámos que me deveria deslocar aqui antes da chegada do califa, de modo a garantir alojamentos apropriados para a delegação árabe. Na verdade, o califa al'Mutamid aguarda com ansiedade o momento do seu encontro com o Imperador, na Primavera.

- Acontece que certos acontecimentos recentes ofuscaram um pouco os assuntos da corte. Tal como deve imaginar, o palácio tem andado num torvelinho... - sugeriu Nikos com toda a delicadeza.

Ah, sim, o funeral imperial, é claro! - respondeu Sadiq com um tacto semelhante. - Trataremos de enviar imediatamente as apropriadas dádivas de condolências ao Imperador Leo. Se a nossa pouco auspiciosa chegada perturbou o Imperador, então apresentar-lhe-ei desculpas oficiais.

- Por favor aceite a minha garantia de que não são necessárias desculpas - replicou Nikos com um muito ligeiro sorriso, como que a indicar que o assunto estava arrumado.

Escutei aquelas suas palavras e compreendi por que motivo respondera tão prontamente à nossa petição: o Imperador ainda não sabia da chegada do emir. Se isso dependesse de Nikos... nunca viria a saber.

- Na verdade... - prosseguiu Nikos - sou eu quem tem de vos pedir perdão porque só agora me apercebi da raiz deste problema... - O eparch uniu as palmas das mãos. - É com pesar que o informo de que o eparch Nicephorus já não se encontra entre os vivos.

Sadiq ficou a olhá-lo por instantes.

- Lamento muito ouvir essa notícia - acabou por dizer, com sentimentos perfeitamente genuínos. - Era um bom homem e tinha orgulho em considerá-lo como um amigo.

- Naturalmente, tal como acontece nestas situações - prosseguiu Nikos placidamente - a sua desafortunada morte deixou vários assuntos em suspenso. Eu próprio me tenho debatido com muitos dos fardos que ele suportava com tanta facilidade.

- Foi uma longa doença?

- Não, morreu rapidamente! - replicou Nikos. - De qualquer modo, a idade já não o ajudava, suponho. - Era um mentiroso tão consumado que quase acreditei nele quando fez uma pausa repleta de tristeza e acrescentou: - Pobre Nicephorus, sinto muito a sua falta. Tudo aconteceu pouco depois do nosso regresso de Trebizonda. Sob muitos aspectos, ainda estou a tentar reconciliar-me com essa morte. Deixou uma espécie de vazio nos assuntos imperiais. Agora que o seu Imperador também o seguiu, por assim dizer... - Nova pausa, como se reflectisse nas impossíveis dificuldades da sua posição. Depois, de repente, pareceu afastar para um lado todas aquelas coisas desagradáveis para regressar novamente às obrigações do seu cargo. - Bom, os assuntos do Império têm de prosseguir. Foi por isso que aqui vim, emir Sadiq. Em que posso ajudá-lo?

- Antes de começarmos... - disse Sadiq - penso que devo implorar a vossa indulgência mas esgotei os meus magros conhecimentos do grego. Com a vossa autorização, pedirei ao Faysal para traduzir por mim...

Nikos acenou um consentimento e Faysal, que se mantivera um pouco de lado, ocupou o seu lugar à esquerda do emir. Este artifício era uma ferramenta muito útil para Sadiq, uma vez que lhe dava tempo para preparar as respostas e para estudar as reacções dos seus convidados.

- Como sabe, o tratado é muito importante para o califa e para o povo árabe - afirmou Sadiq por intermédio de Faysal, e era inteiramente verdade. - Não gostaria de pensar que o inoportuno falecimento do eparch Nicep-horus tenha de algum modo posto em perigo as nossas esperanças de paz...

- Permita-me que tranquilize o emir - retorquiu Faysal logo que este acabou a tradução - garantindo-lhe que as perspectivas de paz são tão brilhantes como sempre foram.

- Isso é óptimo - concordou Sadiq, muito sensatamente. - Todos os que tiverem influência neste assunto serão recordados e estou certo que o califa deseja que eu dispense algumas recompensas da maneira que considerar mais apropriada. Posso garantir-lhe que o farei de um modo muito liberal.

Vi e ouvi tudo isto do meu esconderijo, maravilhando-me com a habilidade do emir para conduzir a conversa para o fim em vista.

- Como sempre, a vossa amabilidade é de louvar, lorde Sadiq. A esse respeito, nada me agradaria mais do que servi-lo. Se me permitir, entregarei pessoalmente a vossa dádiva ao Imperador, o que me dará a oportunidade de lhe apresentar esses sentimentos em vosso nome. Creio que o basileu irá apreciar o gesto.

- Muito bem - acedeu o emir depois de Faysal ter completado a tradução. - Gostaria de ver o que preparei para o Imperador?

- Com todo o gosto - respondeu Nikos num tom agradável.

- Está na sala ao lado - explicou Sadiq, levantando-se. - Venha, vou mostrar-lhe.

Senti o coração a contrair-se-me no peito. Encostei as costas contra a coluna, toquei na adaga coberta de jóias que usava no cinto e na carta do governador guardada por baixo da túnica, fechei os olhos e aspirei o ar com força. Coragem, disse para mim mesmo. Tudo terminará em breve.

O emir conduziu os seus hóspedes para um quarto que se abria para o corredor que rodeava o pátio. O quarto estava vazio, excepto quando ao rolo de corda de couro entrançado que se encontrava no chão. Nikos entrou no quarto atrás de Sadiq, olhou em volta rapidamente e perguntou:

- Onde está o presente?

- Está aqui - garantiu-lhe o emir.

- Onde? - Nikos, já desconfiado, afastou-se de Sadiq.

- O presente é o senhor, eparch Nikos - declarou lorde Sadiq. Levantou as mãos e bateu as palmas duas vezes, com força. Ouviu-se um reboliço no pátio quando os confiantes farghaneses foram rapidamente dominados e desarmados por um enxame de vingativos dinamarqueses.

Nikos e os dois komes viraram-se como um só homem para o som e fizeram-no precisamente quando eu entrava no quarto. Os olhos do eparch encontraram os meus e as suas desconfianças transformaram-se rapidamente numa raiva ardente. Pela minha parte, tudo o que senti foi um coração muito frio. As coisas estavam a correr muito mais facilmente do que imaginara.

- Tu! - rosnou Nikos. - Como te atreves? - Os seus olhos saltaram de mim para o emir e de novo para mim. - Sabes quem eu sou?

- Oh, penso que já todos o sabemos muito bem - repliquei, avançando para o interior do quarto. - És um mentiroso e um assassino, uma serpente disfarçada de homem. Porém, é hoje que irá cair sobre ti o castigo que tanto mereces e a que escapaste durante tanto tempo, eparch Nikos.

Harald e seis Lobos do Mar apareceram por trás de mim naquele momento, tal como fora planeado.

- Os guardas descansam em paz - informou-me, e eu transmiti essa informação aos outros enquanto os dinamarqueses se apoderavam de Nikos e dos seus assistentes.

Os komes, assustados com o desastre que se precipitara sobre eles, começaram a gritar e a berrar para que os libertássemos imediatamente.

Pedi a Hnefi e a Gunnar que removessem dali os dois barulhentos komes, que foram transportados, de rostos brancos e a tremer, para fora do quarto.

Nikos, lívido de raiva, fitava-me com ódio.

- Pensei que estavas morto!

- Nesse caso, considera tudo isto como uma vingança vinda do túmulo - retorqui.

- Vingança... por Nicephorus, aquele monte de merda encarquilhado? É absurdo!

- Sim, por Nicephorus - disse-lhe - mas também pelos dinamarqueses da escolta do eparch e por todos os mercadores, mulheres e crianças.

- Estás louco! - retorquiu Nikos, indignado. - Mercadores e crianças? Não faço ideia do que estás a falar!

- Estou a falar na emboscada que organizaste na estrada para Sebastea.

- De que escapei por pouco - corrigiu-me Nikos calmamente.

- Foi isso o que disseste ao Imperador?

- É nisso que o Imperador acredita e não poderás provar o contrário - respondeu, com o tom de troça a regressar-lhe à voz. Tive de me esforçar para me impedir de o agarrar pela garganta, ali mesmo.

- Talvez não... - admiti, tentando manter uma voz calma - mas também tens de responder por outros crimes. - Virei a cabeça e chamei por cima do ombro: - Brynach! Dugal! Ddewi! Cheguem aqui!

Os três monges entraram no quarto apenas um instante depois. Nikos ficou a olhá-los, surpreendido. Era claro que não esperara voltar a encontrá-los, e muito menos na minha companhia. Também me surpreenderam porque tinham conseguido fabricar hábitos de monges semelhantes aos que usavam na abadia. Para além disso haviam rapado as barbas, cortado os cabelos e renovado as tonsuras, pelo que o seu aspecto devia ser muito semelhante ao que exibiam quando Nikos os vira pela última vez.

Suponho que já me habituara à sua presença esfarrapada, porque vê-los com os trajes de monges me espantou e me recordou que outrora também eu pertencera aos Célé Dé.

Nikos recuperou a compostura instantaneamente. Oh, era na verdade um homem muito subtil e seguro de si.

- Quem são estes homens? - inquiriu.

- Tal como os outros que se encontram nesta casa - repliquei - são homens que irão fazer acusações contra ti. Na verdade, há muito tempo que aguardávamos, com grande ansiedade, a chegada deste momento.

- Não fiz nada - insistiu Nikos - e não darei ouvidos às vossas acusações.

- O Imperador irá dar-lhes ouvidos... - declarou Brynach com firmeza - e que Deus tenha piedade da tua alma.

- E de que me acusam? Do mau tempo e dos piratas? - perguntou Nikos, cuspindo as palavras com malícia. - O Imperador irá rir-se de vocês e das vossas ridículas queixas.

- Duvido que o Imperador se ria - garanti. - Na verdade, quando a notícia da tua morte lhe chegar aos ouvidos... talvez deixe correr uma lágrima fugidia antes de nomear outro para o teu lugar.

- Poupa-me às tuas aborrecidas ameaças - troçou Nikos. - Se consegues provar as acusações, então leva-me à presença do Imperador e veremos quem se irá rir... e quem morrerá.

Brynach, alarmado com a minha intenção de matar Nikos, resolveu interceder:

- Irmão, não o podes matar assim, sem mais nem menos. Temos de o levar perante o Imperador para que o Vice-Regente de Deus sobre a Terra seja o seu juiz.

Lorde Sadiq também interveio.

- Não te sujes com essa morte, meu amigo. É preferível que o basileu saiba que espécie de homem tem ao seu serviço. - Olhou para mim com toda a franqueza. - Se não o quiseres fazer por ti, então fá-lo pela paz e por todos aqueles que sofrerão se não a alcançarmos.

Hesitei e Nikos pensou ter visto a sua oportunidade.

- Vamos! - exigiu, dando um imperioso estalo com os dedos. - Leva-me ao Imperador, imediatamente!

O fácil domínio de Nikos sobre a situação devia ter-me enviado um aviso. Oh, mas eu esperara demasiado e aguentara muita coisa para poder satisfazer o desejo de vingança. Estava tão receoso que Nikos me pudesse escapar que me lancei de cabeça para a confrontação, cegamente inconsciente de qual poderia ser o seu resultado.

 

- Estende as mãos - ordenei-lhe. Nikos, a escorrer ódio por todos os poros, estendeu as mãos para a frente muito devagar. Apontei o rolo de corda e chamei os dinamarqueses. - Amarrem-no!

O próprio Harald ajudou a amarrar Nikos com segurança... e não foi nada gentil quando se tratou de fazer os nós. Quando terminou, puxou pela espada de punho de ouro de Nikos e encostou-lha às costelas.

- Creio que desta vez não irás conseguir escapar... - declarou.

Foi assim que partimos para o Grande Palácio: dezoito bárbaros, dez sarracenos e um punhado de monges que conduziam um maligno eparch e três piratas arménios através das ruas de Constantinopla. Talvez fosse uma estranha procissão, mas não tanto como a que levara o quaestor ladrão perante a justiça.

Os guardas imperiais e os dois komes ficaram na villa, amarrados de pés e mãos e vigiados por uma dúzia de desanimados Lobos do Mar, muito infelizes por não poderem acompanhar os camaradas que se dirigiam ao palácio.

Nikos caminhava de cabeça baixa e olhos no chão, sem falar nem se debater. Sabia muito bem quando devia manter a boca fechada. Calculei que devia estar a ganhar tempo e a poupar o fôlego para quando lhe fizesse mais falta. Houve uma vez em que tropeçou e quase caiu, mas Harald estendeu uma das mão e segurou-o. Se o olhar de Nikos fosse uma lâmina... o jarl Harald teria perdido a mão. A seguir, Nikos voltou a pousar os olhos no chão sem proferir uma palavra.

A única vez que falou foi para confirmar o seu nome ao scholarae que se encontrava no portão, que se mostrou compreensivelmente relutante em permitir que o nosso grupo entrasse no recinto do palácio sem a confirmação por parte de uma autoridade mais alta do que a dele, mas é claro que já tínhamos previsto essa dificuldade.

- Somos uma delegação oficial - declarei. - Por favor, chamem o chefe da guarda do palácio.

O soldado ficou a olhar para mim, inseguro.

- Mas eu...

- Está tudo bem... - garanti-lhe. - Esperaremos aqui até que ele nos possa atender.

O soldado afastou-se, lançou-nos um último olhar por cima do ombro e deixou-nos na companhia dos seus companheiros da guarda. Demorou muito mais do que eu imaginara. De facto, demorou tanto tempo que comecei a pensar que a nossa artimanha havia sido descoberta. Paciência, pensei, aguenta que em breve tudo terá terminado.

Esta decisão foi recompensada pouco depois, quando me vi a fitar o rosto do meu amigo Justin.

- Ah! - exclamou, com um aspecto tão solene como a sua voz - regressaste, finalmente! - Os seus olhos saltaram de mim para os outros e abarcaram os bárbaros e os sarracenos num só relance. - Que queres?

Senti uma estranha inquietação nas entranhas. Teria julgado mal aquele meu velho amigo?

- É bom voltar a ver-te, Justin - respondi. -Já me ajudaste uma vez...

- E agora esperas que volte a ajudar-te - comentou, com uma voz dura. Nikos viu a sua oportunidade e anunciou:

- Trouxeram-me aqui contra a minha vontade e exijo que os prendas imediatamente!

Justin virou lentamente o rosto para a origem da perturbação.

- E quem és tu, para fazeres exigências aos homens do Imperador?

- Sou Nikos, eparch de Constantinopla - retorquiu, exasperado. - Obriga-os a libertarem-me imediatamente e farei com que sejas recompensado.

- Ah, sim? - Justin virou-se para mim e perguntou: - Que pretendes fazer com ele?

- Pretendemos levá-lo perante a justiça - retorqui.

- Então receio que vás ficar muito desapontado, meu amigo. - respondeu. - Não há qualquer espécie de justiça neste mundo... e muito menos aqui.

- Ajudaste-me uma vez - recordei-lhe rapidamente. - Por favor, para bem da justiça que outrora tanto te preocupava, volta a ajudar-me.

Justin olhou-me com uma expressão sombria e impenetrável. Todavia, começou a abanar a cabeça lentamente e vi um sorriso a espalhar-se-lhe pelo rosto.

- Há outros portões, sabes? Por que vens sempre bater ao meu? - ARarrou-me pelos braços e abraçou-me como a um irmão. Virou-se para os preocupados scholarii e declarou: - Estes homens têm assuntos importantes a tratar com o Imperador. Vamos fornecer-lhes uma escolta. Sigam-me!

Passámos os portões e fomos admitidos no recinto do palácio. Justin serviu-se da sua autoridade sempre que surgia um novo impedimento na nossa frente, removendo o obstáculo e permitindo-nos que prosseguíssemos. Por fim acabámos por nos ver no grande salão a que davam o nome de Onopodion, que constituía a entrada para o Palácio Daphne, onde o novo basileu se encontrava até que a sua residência favorita, o Octógono, pudesse ser mobilado de novo para o seu uso. Fomos admitidos no salão de mármore com o tecto pintado de azul, onde nos vimos sob o severo escrutínio do magister officiorum - que já não era o que servira Basil, mas sim outro - que se mostrou muito perturbado ao ver o eparch na companhia de tantos estranhos, quase todos bárbaros.

Preparava-se para chamar os guardas farghaneses do Imperador mas Justin avançou e afastou pacientemente os medos do homem, assumindo toda a responsabilidade pelas pessoas ali presentes. Nikos - com a oculta ponta da espada a morder-lhe dolorosamente um flanco - permaneceu silencioso, embora de uma maneira beligerante.

- Explique ao basileu que o eparch requer uma audiência imediata - ordenou Justin - e eu tratarei de alertar os seus guardas.

O magister, talvez aliviado por ver aquele fardo retirado de cima dos ombros, desapareceu por uma pequena porta que se abria numa outra, tão maciça e tão grande como uma das portas da cidade. Ficámos à espera, tal como acontecia com todos os que tinham alguma razão para penetrarem no recinto do palácio.

Sentindo-se em terrenos familiares, Nikos recuperou parte da sua arrogância:

- Que julgam vocês que irá acontecer? - inquiriu, astuto. Levantei os olhos e vi-o a olhar-me com um ódio declarado.

Harald levantou a mão para o calar mas intervim com uma palavra e abanei a cabeça.

- Espero que sejas condenado pelos teus crimes - repliquei. - Depois, espero que morras.

Nikos abanou lentamente a cabeça com um ar de superioridade.

- Então, o teu amigo Justin tem razão: vais ficar desapontado. -- Veremos...

- Permite-me que te diga o que vai acontecer...

A sua insolência aborrecia-me. Virei a cara para outro lado e não respondi.

- Apresentar-te-ás perante o Imperador com as tuas queixas ridículas, que eu negarei na totalidade... - continuou Nikos, tão seguro de si mesmo que se tornava pedante. - Como não têm quaisquer provas convincentes, o Imperador mandará cortar as vossas línguas, por estarem a mentir. A seguir... serão chicoteados e condenados à morte nas minas do Imperador.

O uso daquela palavra fez-me virar repentinamente.

- Sabes muito a respeito das minas, não é verdade, Nikos? - retorqui, aproximando-me dele. - Também sabes alguma coisa a respeito da morte?

- Sei qual é o castigo que o Imperador reserva para os seus mais queridos inimigos.

- O bispo Cadoc era um inimigo? - inquiri. - E os monges do Éire... também eram inimigos do Imperador? - Aproximei-me ainda mais e senti a ira a ferver dentro de mim. - O eparch Nicephorus era um inimigo? Então e as crianças, na estrada para Sebastea? Também eram inimigos? - Dei mais um passo em frente, furioso. - O exarch Honorius era um inimigo, Nikos? E os próprios mercenários do Imperador, o rei Harald e os seus dinamarqueses, que se encontravam ao serviço de Basil, eram inimigos?

Devolveu-me o olhar, perfeitamente descontraído, sem trair medo ou remorsos. Porquê? Seria necessário algo mais forte para o assustar? Meti a mão na túnica e fiz aparecer o quadrado de pergaminho.

- Reconheces o selo? - perguntei. - É o selo de Honorius, que escreveu esta carta antes dos teus conspiradores o matarem.

Nikos olhou calmamente para a carta e reagiu com um simples encolher de ombros.

- Falei com Honorius antes de o matarem. Tentei libertá-lo. Deixou isto para mim. - Agitei a carta na frente do rosto de Nikos. - Se pensas que me faltam provas convincentes... - acrescentei, com a voz carregada de ódio - então estás enganado. Honorius sabia da tua conjura para matar o Imperador Basil. Sabia... e escreveu o que sabia nesta carta.

No rosto de Nikos surgiu uma estranha expressão de satisfação.

- A minha conjura? - perguntou, com uma gargalhada. - É isso o que pensas? É por isso que estou aqui, amarrado como um escravo para as galés?

As gargalhadas de Nikos despertaram o interesse dos outros. Faysal e Brynach traduziram para os companheiros mas Harald colocou-se a meu lado e perguntou:

- Que está ele a dizer-te?

- Não está nada preocupado com o facto do Imperador ir ser informado dos seus crimes.

O jarl semicerrou os olhos, agarrou Nikos pelos cabelos e encostou-lhe a ponta da espada com mais força.

- Por Odin, vou dar-lhe motivos para se preocupar... Virei-me para Nikos e perguntei:

- Negas ter montado uma conjura para matares o Imperador Basil?

- Oh, como és ignorante... - replicou, numa voz contraída por causa da dor no flanco. - Tão correcto, tão rápido a fazer julgamentos! Sabes menos do que nada... e tens a presunção de me querer julgar! Solta-me e vai-te embora daqui... enquanto podes!

- Digas o que disseres, sei que conspiraste com outros para roubarem a vida ao Imperador - disse-lhe, com a ira a transformar-se em raiva - Honorius descobriu a tua traição e foi por isso que o aprisionaste e mataste. Também mandaste matar o bispo Cadoc e os meus irmãos monges apenas porque pretendiam falar com o governador. Não podias correr o risco de os ver regressar para informarem o basileu sobre o que tinham visto.

Harald largou a cabeça do cativo, mas a espada permaneceu firmemente no seu lugar.

- Para informarem o basileu sobre o que tinham visto? - interrogou-se Nikos, que não resistia a mostrar a sua superioridade - O teu grego continua tão mau como de costume. - A gargalhada trocista soou a oco no enorme salão. - Acho que a palavra que querias utilizar era usurpador.

Fiquei a olhar para ele, tentando tirar algum sentido do que me estava a dizer. Harald exigiu saber o que Nikos dissera.

- Afirma que Basil não era legítimo como Imperador - expliquei.

- Não lhe dês ouvidos - aconselhou-me Harald. - Não passa de um mentiroso a praticar a sua arte.

Ignorei Harald e fitei Nikos.

- Que queres dizer?

- Ainda andas às apalpadelas no escuro? - Bom, estou certo que Leo poderá explicar as coisas de um modo que até tu e os teus bárbaros consigam compreender.

- Usurpador. Disseste que Basil era um usurpador. Que querias dizer? - insisti.

Nikos riu-se.

A raiva fervia dentro de mim e obriguei-me a virar-lhe as costas e a afastar-me alguns passos. Harald chamou-me.

- Que está ele a dizer agora?

Faysal e Brynach apressaram-se a ir ao meu encontro.

- Que quer ele dizer com aquilo? - perguntaram, tão confusos como eu pelo que tinham ouvido.

- Calem-se! - gritei. - Deixem-me pensar!

Do tumulto dos meus pensamentos emergiu uma recordação, clara como uma visão: Justin e eu mesmo, sentados em frente de uma refeição. Justin, debruçado sobre a mesa, falava num tom baixo e com aquilo que eu, na altura, considerara como sendo uma delícia maliciosa: "Até os amigos do Imperador dizem que Basil, o Macedónio, deve a sua ascensão não a uma nomeação divina mas sim a um hábil uso da lâmina." Mais uma vez, vi Justin a passar um dedo por cima da garganta, como se estivesse a usar uma faca.

"Qualquer tristeza pelo falecimento de Miguel foi enterrada juntamente com o seu corpo ensanguentado... Era do conhecimento comum que seduziu a mulher de Basil e a levou para a cama, não uma, mas muitas vezes, e que Basil sabia. Na verdade, alguns até afirmam que um dos filhos do nosso Imperador não é dele."

Na altura censurara Justin por estar a repetir boatos maliciosos e infamatórios. Porém, devia tê-lo louvado por estar a dizer a verdade!

Levantei os olhos e vi Justin a observar-me com solenidade. Oh, sim, ele sabia!

- Aidan - disse o emir, que se encontrava a alguns passos de distância, junto de Kazimain - não lhe prestes atenção. Espera pelo Imperador.

Não respondi e dirigi-me a Nikos.

- Estiveste a agir para o Leo.

Nikos não pronunciou uma palavra, mas estas também já não eram necessárias. A sua expressão astuta e trocista confirmava tudo. Viu-o a curvar os lábios ligeiramente e com uma indiferença fácil... e soube que tínhamos arriscado tudo e perdido.

Idiota! gritei, para dentro de mim, abalado pela minha própria estupidez e ignorância.

O terror invadiu-me e ocultou a raiva nas suas sombras. Não podia haver justiça. O Rei dos Reis, Eleito de Cristo e Vice-Regente de Deus sobre a Terra... estava manchado de sangue precisamente pelos crimes que eu pretendia que Nikos pagasse.

Foi nesse momento de revelação que vi a luz da esperança a apagar-se. O mal reinava. Tudo era futilidade e desespero, um desespero gélido. Sentia-me impotente perante poderes demasiado grandes para que os entendesse e demasiado poderosos para que lhes pudesse resistir.

Houve um movimento a meu lado e senti a mão de alguém a pousar no meu ombro.

- Não lhe dês ouvidos - disse Dugal.

Harald também me chamou mas eu não conseguia ouvir nada por causa do uivo do vazio a martelar nas minhas orelhas.

Avancei para onde Nikos permanecia com o seu sorriso trocista e pretensioso estampado no rosto... e puxei a adaga para fora do cinto.

- Liberta-me! - ordenou o eparch, arrogante. Estendeu as mãos para que o pudesse libertar dos nós que o prendiam e comecei cortar as cordas de couro.

Harald estendeu o braço para me impedir de o fazer e alguns dos outros gritaram-me que parasse. Todavia, continuei a cortar as cordas.

- Afinal, talvez sejas mais inteligente do que eu pensava, sacerdote.

- Nikos afastou as mãos uma da outra quando as cordas se soltaram. - Ou deverei dizer sacerdote caído? Olha para eles... - troçou, indicando os monges perfeitamente barbeados. - Servos de Deus, divulgando os Evangelhos, semeando a doutrina. Ora! São como cães que regressam ao seu próprio vomitado! Olha para eles! Os sacos de merda sabem mais a respeito de fé...

Não respondi e olhei-o, impassível.

- Costumava ser como tu - continuou Nikos, esfregando os pulsos.

- Costumava ser um verdadeiro crente mas a seguir, tal como tu, descobri a verdade. - Sorriu, triunfante na sua vitória. - Somos iguais, tu e eu!

- Na verdade... somos muito mais iguais do que pensas... Levantei a faca cravejada de jóias e mergulhei-a no seu coração maligno.

 

Nikos olhou para baixo, para a lâmina que sobressaía no seu peito, mas voltou a levantar os olhos.

- Bárbaro! - cuspiu, tremendo de raiva.

Esboçou o gesto de querer levar as mãos ao punho coberto de jóias para tentar arrancar a lâmina do corpo, mas eu fui o primeiro a agarrar na arma, cravando-lha até ao punho e torcendo-a. Senti o metal a raspar em osso.

A mão de Nikos segurou a minha, num grotesco fingimento de amizade. Voltou a tentar puxar a lâmina para fora do corpo mas impedi-o.

Ouvi os outros a gritar nas minhas costas, numa confusão de vozes sem significado. Escutei o meu nome mas o som não me disse nada. A minha alma fora invadida por uma serenidade gelada. Sentia-me tranquilo e vazio... como se toda a ira e ódio que carregara durante tanto tempo se tivessem extinto com aquele simples acto e já nada mais restasse.

- Que fizeste? - sussurrou Nikos, com a raiva a transformar-se em espanto. Fitou-me com uma expressão profundamente intrigada e com os olhos a brilharem de uma maneira estranha.

- Quem com ferro mata, com ferro morre - repliquei, mas foi como se as palavras tivessem saído da minha boca por vontade própria.

- Louco! - gritou, conseguindo finalmente afastar as minhas mãos. Cambaleou para trás, agarrado à adaga como se este fosse uma serpente com as presas cravadas nele.

Talvez as forças já lhe falhassem, ou a larga lâmina de metal se tivesse entalado num osso, uma vez que agarrou a adaga e tentou arrancá-la, mas sem o conseguir.

Levantou a cabeça, soltou um guincho violento, agarrou mais uma vez na faca com as mãos trémulas e puxou-a. O sangue começou a escapar-se lentamente do ferimento, escorrendo em volta da lâmina, mas a adaga permaneceu presa.

Já frenético, Nikos segurou no punho com as duas mãos, soltou um tremendo grito soluçante e arrancou a lâmina do peito. Na sua túnica negra apareceu imediatamente uma mancha escura que alastrou rapidamente.

- Vão morrer por causa disto - afirmou, com uma voz rouca, no meio do silêncio tenso do salão. - Vão morrer todos.

Quando falou, apareceu-lhe um fio de sangue num dos lados da boca. O eparch levou uma das mãos aos lábios, tocou com as pontas dos dedos no sangue e colocou-as na frente dos olhos enquanto a cor lhe desaparecia das faces.

Nikos tossiu, cuspiu sangue, levantou a adaga e deu um passo para mim. Fiquei parado na sua frente, sem resistir, desejoso de receber a lâmina no meu próprio peito. O meu destino era morrer em Bizâncio... e se era aquela a morte que eu tinha de enfrentar a morte, pois que assim fosse.

O eparch ferido deu mais um passo, ainda a segurar na faca, pronto para golpear. Porém, o passo transformou-se num safanão para a frente quando as suas pernas perderam a força repentinamente. Caiu de joelhos, a lâmina escapou-lhe da mão e tilintou no chão de pedra.

Agarrou-se às minhas pernas e puxou-se para cima, com a boca a movimentar-se para pronunciar uma palavra. Os seus olhos suplicavam mas a palavra nunca chegou a ser pronunciada porque no momento em que a ia proferir subiu-lhe à garganta um grande jacto de sangue que lhe escorreu da boca.

- Olho por olho... - murmurei - e vida por vida.

Soltou um gemido e tentou levantar-se, sempre agarrado às minhas pernas, esforçando-se por se pôr de pé pela última vez. Conseguiu meter um pé sob o corpo, tremendo violentamente, e acabou por ficar numa posição acocorada e instável.

Nikos, dobrado ao meio, levantou a cabeça e olhou furiosamente em volta mas os seus olhos já estavam vidrados e não viam. Tinha gotas de suor a brilharem sobre a pele pálida. Levou as duas mãos ao peito, oscilou e caiu pesadamente para trás. Soltou um gemido profundo e áspero, rolou para um lado e foi atacado por um espasmo de tosse. O sangue irrompeu numa brilhante cascata vermelha e Nikos deixou cair a cabeça sobre as pedras do pavimento.

Não compreendi que se encontrava morto até ao momento em que Harald, debruçando-se sobre ele, o empurrou de modo a ficar deitado de costas. Ouviu-se um som lento e gorgolejante quando o último ar se lhe escapou dos pulmões.

Alguém falou. Olhei para cima e vi Dugal de pé a meu lado. Dei um passo para ele mas as minhas pernas transformaram-se em água. Dugal agarrou-me e segurou-me com força. Vi-lhe a boca a mover-se mas não consegui tirar nenhum sentido das suas palavras.

Sentia um tremendo sopro nos ouvidos e uma grande pressão no interior da cabeça. Fechei os olhos com força e ofeguei por ar, debatendo-me para respirar. O som e a pressão dissiparam-se e a respiração voltou.

- Aidan... Aidan?

Abri os olhos e descobri-me a fitar o rosto de Dugal. Brynach juntara-se-lhe e estavam ambos a observar-me com expressões perturbadas. Dugal segurava-me pelos braços e sacudia-me levemente. Falavam comigo mas não lhes respondi.

Desviei os olhos deles para Nikos, que jazia de costas no chão a fitar o céu pintado de azul-celeste. Continuava a não sentir nada, nem ódio, nem remorsos, nem satisfação, nem qualquer outra emoção salvo o já familiar e mortiço vazio. Sabia o que fizera e tinha perfeita consciência do choque e desânimo de todos os outros. Os scholarii, espantados com o que se passara, baixaram as armas e esboçaram uma tentativa de protecção do corpo, mas a reacção era tardia. Assustado e vendo-se em inferioridade numérica em relação aos bárbaros, um deles começou a gritar e a bater na porta, pedindo ajuda. Justin limitou-se a permanecer de lado, como um simples espectador.

A porta pequena, a que se encontrava no meio da outra muito maior, abriu-se e o magister reapareceu. Lançou um rápido olhar ao corpo estendido no chão e bateu em retirada com as mãos a esvoaçarem de agitação. Ouvimo-lo gritar para a sala que se encontrava do outro lado. A grande porta abriu-se muito devagar e surgiram dois guardas. Tomaram posições ao lado da entrada e agacharam-se, com as lanças prontas. Foram seguidos por mais guardas, que se precipitaram para nós, de armas em punho, com as suas sandálias de couro a martelaram no polido pavimento de pedra. O magister officiorum ficou à entrada, contorcendo as mãos... e vimos o basileu Leo a avançar por trás dele com passadas rápidas e uma terrível dignidade.

Enfrentei-o calmamente. De facto, até fiquei surpreendido com a minha clareza mental e presença de espírito. Parecia que atravessara uma qualquer fronteira desconhecida e voltara a ser eu mesmo agora que me encontrava do outro lado.

Olhei para o novo Imperador e vi um homem alto, de rosto estreito - o comprimento das feições era ainda mais realçado por uma longa barba negra - que usava um traje muito simples, de um pano vulgar, e uma capa do mesmo tecido. O único sinal da sua posição imperial era uma coroa feita com placas de ouro, ligadas entre si para formarem uma estreita faixa. O centro de cada uma dessas placas exibia uma jóia diferente. A faixa de ouro era presa com fios com contas, que pendiam de cada um dos lados da sua cabeça. A testa alta e nobre franziu-se quando parou à entrada para abarcar o quadro que tinha pela frente, com os grandes olhos escuros a examinarem-nos a todos.

Ninguém se moveu, ninguém falou.

O Imperador baixou o olhar para o corpo e fez uma pausa como se estivesse a contemplar um texto obscuro cujo significado lhe escapava. Por fim, levantou novamente os olhos para os vivos e disse:

- Bem, bem...!

- Abençoado basileu - começou o magister, colocando-se ao lado do Imperador - o eparch Nikos foi morto. Ele...

O basileu silenciou o cortesão com um simples gesto da mão. Ignorando o magister, Leo inquiriu:

- Haverá alguém que queira explicar-me o que se passou? - Embora baixa, a sua voz ecoou do espesso silêncio sob a cúpula do Onopodion.

Achei que aquela pergunta era extraordinária. Era claro que podia ver o que ali se passara, e o magister também já lho explicara. Mesmo assim, não fizera nenhum julgamento, não se precipitara a tirar conclusões e aguardava uma explicação.

Inesperadamente, Faysal foi o primeiro a responder. Avançou vários passos, levou as mãos ao peito e fez uma profunda vénia. A seguir endireitou-se e disse:

- Sábio basileu, permita-me que lhe apresente lorde J'Amal Sadiq, emir dos Sarracenos Abássidas, Servo de Alá e emissário do Califa al'Mu-tamid, Defensor dos Fiéis.

Lorde Sadiq deu um passo em frente.

- Que a paz de Alá seja convosco e com o vosso povo, Sábio basileu. - Fez uma pequena vénia de respeito, tocando na testa com a ponta dos dedos. - Talvez, com a indulgência de Vossa Majestade, me seja permitido oferecer-vos uma interpretação dos acontecimentos que eu próprio testemunhei - declarou o emir. O seu domínio do grego, de que tanto se queixava, era não só impecável como eloquente.

- Saudações, emir Sadiq, em Nome de Nosso Senhor Jesus Cristo --retorquiu Leo, dobrando a cabeça num gesto rígido. Estendeu a mão para o corpo do eparch e declarou: - A vossa chegada apanhou-nos desprevenidos, bem como os acontecimentos... - Lançou uma mirada para os lados de Nikos. - De qualquer modo, é com o maior prazer que vos dou as boas-vindas, lorde Sadiq, e aguardamos a vossa explicação com ansiedade. Falai, peço-vos, e lançai alguma luz sobre esta negra ocasião.

- Basileu, foi com uma considerável perturbação que tomei conhecimento, hoje mesmo, de uma maligna traição praticada contra o nosso povo... e o vosso - replicou Sadiq. - Tratou-se de uma acção de devastadora maldade destinada a impedir o tratado de paz negociado em Trebizonda, entre mim e o eparch Nicephorus, em nome do Imperador Basil de Constantinopla e do califa al'Mutamid de Samarra.

Observei Leo atentamente, em busca de algum sinal que indicasse conhecimento ou cumplicidade, mas não vi nem sequer a mais ligeira modificação na sua expressão. Na verdade, o espanto que surgiu naquelas feições alongadas era, creio, completamente genuíno.

- Contai-nos mais, peço-vos, lorde Sadiq - respondeu Leo. Com um gesto, fez sinal aos guardas para ficarem à vontade. As lanças foram erguidas e as espadas embainhadas.

- Só recentemente vim a saber que o tratado de que falo nunca chegou a Constantinopla... - resumiu o emir, falando com uma pose verdadeiramente real - devido ao facto do eparch Nicephorus ter sido assassinado. Na realidade, eu próprio fui atacado a bordo de um navio, numa tentativa para impedir que estas infelizes notícias chegassem aos vossos ouvidos. - Sadiq virou-se e apontou os três arménios. - Não tenho dúvida de que estes cativos que trouxe comigo e que entrego aos vossos cuidados vos fornecerão uma suficiente confirmação da minha história.

Leo olhou lentamente para os piratas e para a hoste de sarracenos, bárbaros e monges.

- São na verdade notícias muito perturbadoras, lorde Sadiq - acabou por comentar, com um tom devidamente comedido.

- Não menos perturbador, ou pelo menos assim o creio, é o facto do homem responsável por todos esses crimes ter sido um cortesão muito chegado ao trono imperial.

Era tudo verdade, claro, mas não deixei de me maravilhar com a habilidade de lorde Sadiq para colorir os duros factos com uma oratória friamente desinteressada. Também Leo parecia impressionado com o modo como o emir elucidava as suas revelações. O basileu declarou ignorar todos aqueles acontecimentos e pediu ao emir que prosseguisse.

- Tenho um prazer especial em poder comunicar a Vossa Majestade a agradável notícia de que o criminoso responsável por essas e outras iníquas transgressões foi apreendido e se condenou pela sua própria boca.

- Impassível, olhou para o corpo que jazia no chão. - O seu julgamento está agora nas mãos do Deus Todo-Poderoso, perante quem todos os homens terão um dia de se apresentar.

Acenando com lentidão, Leo fitou o corpo ensanguentado que se encontrava na sua frente.

- Teria sido melhor... - comentou, com secura - que o criminoso tivesse começado por responder perante um tribunal mais mundano.

- Mil perdões, basileu - replicou lorde Sadiq - mas só posso exprimir o meu mais profundo pesar. A fragilidade humana é um fardo que todos temos de suportar o melhor que podemos, majestade, e por vezes os acontecimentos precipitam-se para além da nossa fraca capacidade para os levarmos a uma conclusão mais aceitável. De qualquer modo, estou perfeitamente seguro de que o assunto foi satisfatoriamente resolvido e de que a justiça, uma prerrogativa do Deus Único e Verdadeiro, foi bem servida.

Sadiq estendeu a mão para o corpo e concluiu:

- O julgamento de Alá é sempre muito rápido. Digamos que, neste caso, foi apenas um pouco mais rápido do que em geral se espera.

O Imperador Leo virou-se e deu uma ordem aos seus guardas, dois dos quais saíram a correr. A seguir voltou-se de novo para nós e declarou:

- Lidaremos com o corpo do criminoso em consonância com os seus crimes. - O Imperador avançou para a porta. - Todavia, se nos permitirdes uma tal imposição, gostaríamos de ouvir mais a respeito dos meios e métodos usados nos assuntos que nos foram expostos.

- Sem dúvida basileu - retorquiu o emir, com ousadia. Para além disso, creio que há também uma pretensão a exigir uma resposta e algumas dívidas a liquidar.

Leo virou-nos as costas para nos indicar o caminho para a sala do trono. O emir Sadiq seguiu-o, acompanhado por Kazimain. O jarl Harald imitou-os, rodeado pelos seus dinamarqueses, logo seguidos por Justin e pelos guardas do portão. Brynach, Ddewi e Dugal, parecendo perdidos e confusos, aproximaram-se de mim com expressões aturdidas.

- Aidan... porquê? - foi tudo o que conseguiram dizer.

Como poderia explicar-lhes aquilo que eu próprio não sabia? Virei-me e segui a procissão, passando pelo corpo com a cabeça a jazer num cada vez mais espesso lago de sangue. Vi, pelo canto dos olhos, que Faysal se dobrava, apanhava qualquer coisa do chão e se aproximava de mim.

- A qadi falou - disse, e verifiquei que já limpara a lâmina da adaga.

- Voltou a enfiá-la no meu cinto, acrescentando: - Tudo é tal como Alá deseja. Alá seja louvado.

 

- Que a paz de Alá vos acompanhe em todos os vossos dias - disse o emir Sadiq. - A verdade é frequentemente mais amarga do que doce, mas reforça os que a compartilham. Saboreai-a, se assim o desejares, para que o vosso julgamento possa ser temperado com discernimento.

Assim falou o emir, relatando tudo o que se passara: a embaixada a Trebizonda, o longo período de negociações que conduzira ao acordo de paz inicial, as odiosas atribulações que se haviam seguido, incluindo o brutal massacre na estrada para Sebastea, o assassínio do governador e a escravidão dos sobreviventes nas minas.

Leo escutou, sentado não no trono dourado mas sim numa cadeira de acampamento do tipo das que os comandantes militares usavam com frequência. A imagem de um general comandando uma batalha era ainda mais posta em destaque pela dupla fileira de guardas Farganeses alinhados por trás dele. A testa imperial voltara a franzir-se enquanto Leo contemplava a história que Sadiq desenrolava na sua frente.

Finalmente, o emir concluiu, dizendo:

- O acordo que propusemos foi conseguido por um preço terrível. Foram poucos os bravos, mas foram ainda menos os que conheciam as razões para os seus tormentos. Um sacrifício assim não deve ser desonrado pelos que detêm o poder e a autoridade. Os Sarracenos estão prontos para renovar o tratado que foi adquirido por um tão elevado preço.

Leo, com uma expressão pensativa no seu comprido rosto, respondeu com um aceno.

- A paz entre os nossos povos é uma nobre e também dispendiosa ambição, lorde Sadiq. Com a vossa aprovação, ordenaremos que o tratado volte a ser redigido. Como é natural, isto irá requerer uma vossa atenta participação.

- A conclusão com êxito de um tratado de paz é da maior importância - declarou Sadiq. - Foi para esse fim que vim a Constantinopla e é para esse fim que me coloco ao vosso serviço.

O basileu Leo virou a sua atenção para os dinamarqueses. O jarl Harad foi convocado e avançou para se colocar perante o Imperador. Fez-me sinal para me juntar a ele e assim fiz.

- Soberano lorde... - comecei - com a vossa autorização, traduzirei as palavras do rei para vosso benefício.

O Imperador inclinou a cabeça num assentimento e disse:

- Damos-te autorização para falares.

Fiz um pequeno aceno para Harald, que começou imediatamente a expor as suas pretensões.

- Mui Nobre Imperador - declarou, com a voz a parecer um pequeno trovão no vasto salão - sou Harald Berro-de-Touro, jarl dos Dinamarqueses da Escandinávia e servo do Imperador Basil, que me tomou ao serviço para fornecer protecção aos seus navios. Fi-lo com uma coragem e uma perícia sem rival, a custo de um navio e de todos os meus homens, excepto sessenta.

- Irá perdoar-nos, lorde Harald.. - replicou Leo quando lhe transmiti as palavras de Harald - se temos de manifestar um completo desconhecimento a respeito desse contrato. Contudo, estamos conscientes de que o nosso predecessor se servia frequentemente desse tipo de acordos. Quanto vos iriam pagar pelos vossos serviços?

- Grande Chefe... - respondeu Harald, falando por meu intermédio - a recompensa acordada era de mil nomismi pelo rei e pelos seus navios, e oito denários por cada homem, por mês, a serem pagos após o fim dos nossos deveres em Trebizonda e do regresso em segurança a Constantinopla.

Contudo, Harald pensara em acrescentar mais uns pormenores, pelo que me deu uma cotovelada e prosseguiu:

- Basileu, com todo o respeito, o jarl Harald requer que também sejam tomados em conta o custo de um bom navio e as vidas de cento e doze homens leais... - Harald ainda se lembrou de mais qualquer coisa:

- ... sem esquecer as provações da escravidão que o rei e os seus homens tiveram de suportar durante o tempo em que estiveram ao serviço do imperador.

A contracção do comprido rosto do Imperador aprofundara-se. Apoiou o queixo no punho e ficou a pensar na resposta que deveria dar, mas sem nunca deixar de observar os corpulentos dinamarqueses. O facto deu-me uma boa oportunidade para o estudar, isto porque ainda não estava certo de que Leo tivesse desempenhado um qualquer papel nas conjuras de Nikos. Creio que uma pequena parte de mim ainda queria acreditar no melhor, pelo que o examinei em busca de um qualquer sinal positivo.

- Lorde Harald... - começou o Imperador com a sua voz profunda - temos consciência dos enormes sacrifícios que vós e os vossos homens tiveram de suportar em nome do Império. Também sabemos que é frequente conceder uma indemnização às viúvas dos soldados mortos ao serviço do Império. Por isso, propomo-nos ampliar essa compensação de modo a vos abranger, para além da indemnização pelo navio. O logothe-te irá ter convosco amanhã para estabelecer um acordo quanto às quantias e para providenciar o pagamento. Confio que esta solução será aceitável...?

- Grande Soberano - replicou Harald logo que lhe traduzi a proposta do Imperador - embora meros tesouros não possam substituir homens de coragem ao serviço do seu senhor nem nos corações dos familiares, considero que a oferta de Vossa Majestade é aceitável e receberei o vosso servo com toda a cortesia.

O magister officiorum, que se encontrava à direita do Imperador, anotou devidamente o acordo na sua placa de cera. Quando terminou, o Imperador Leo levantou-se e declarou que a audiência terminara. Não consegui deixar de reparar que Nikos não voltara a ser mencionado. Talvez o emir Sadiq e Harald estivessem contentes por poderem pôr um ponto final no assunto, mas eu não estava. Para além disso, os monges de Kells e Hy ainda tinham uma pretensão a apresentar.

Atrevi-me a falar quando o Imperador já se preparava para sair.

- Senhor e Imperador... - disse, dando um passo em frente - há ainda uma outra dívida a necessitar de reparação.

Fez uma pausa e olhou para trás, por cima do ombro, para ver quem o chamara.

- Sim? E que dívida é essa?

Apontei Brynach, Dugal e Ddewi, que se encontravam um pouco à parte dos dinamarqueses, e respondi:

- Os meus irmãos monges também sofreram muito às mãos daqueles a quem foi concedida autoridade. Vieram em peregrinação para fazer uma solicitação ao Imperador. Foram treze os que saíram do Éire e só sobrevivem os que se encontram perante vós neste momento.

O Imperador pareceu chocado. Olhou para os monges, fez como se quisesse voltar a sentar-se mas pensou melhor e continuou de pé.

- Compreendemos a vossa provação - murmurou - e não deixamos de nos sentir comovidos. Todavia, estamos persuadidos que as peregrinações são sempre empreendimentos perigosos e que todos os que as empreendem estão conscientes dos custos... Por isso mesmo, resta-nos apenas compartilhar a vossa tristeza perante perda de tantos irmãos, e oferecer-vos as nossas sentidas condolências.

Dito aquilo, Leo voltou a virar-nos as costas. Brynach e os outros encararam a abrupta rejeição do Imperador com surpresa e confusão. Vendo que o Imperador pretendia dar a audiência por terminada, concluí que nada tinha a perder se insistisse no assunto.

- Com todo o respeito, Lorde e basileu - intervim, voltando a falar - não foi a predação natural das ondas do mar ou os perigos do caminho que conduziram aqueles santos homens à morte, mas sim as acções manhosas de um homem depravado e ambicioso que se aproveitou da autoridade que lhe foi concedida pelo trono que agora ocupais.

- Esse homem... - retorquiu Leo rapidamente - tal como fomos recordados com tanto vigor, foi convocado ao Trono do Julgamento Eterno para responder pelos seus crimes que - e não temos dúvidas quanto a isso - eram merecedores do castigo que lhe foi aplicado. Estamos convictos que o modo como morreu, embora ilegal, compensou todos os seus malefícios. Por isso mesmo, contentamo-nos em deixar que as coisas fiquem como estão. - O Imperador olhou-me com firmeza. - Se fores sensato, seguirás o nosso exemplo.

Devolvi-lhe o olhar firme e repliquei:

- Sábio Lorde, rogo-lhe que não me interpreteis mal. Estes homens não pedem qualquer compensação pelas suas perdas, que suportarão para bem da petição que os compeliu a procurarem uma audiência junto do Lorde e Imperador, Eleito de Cristo e Vice-Regente de Deus sobre a Terra, petição essa que ainda não foi ouvida.

- Se assim é... - respondeu Leo com brevidade - deve ser-nos apresentada através dos órgãos de estado existentes para tais propósitos e é claro que a tomaremos em consideração no devido momento.

As maneiras do Imperador confundiam-me e provocavam-me. Pareciam-me extraordinárias, em particular tendo em conta a boa vontade com que resolvera as outras pretensões de um modo tão eficiente. A liquidação das contas com Harald iria custar muito cara ao tesouro imperial... e os monges nem sequer exigiam um único denário. Então, por que resistiria?

Foi então que me ocorreu que, das três dívidas que lhe haviam sido apresentadas, aquela era a única que não era passível de uma restituição. Os árabes ficavam felizes com a restauração do tratado de paz, os dinamarqueses podiam ser comprados com prata... mas os monges só se satisfariam com justiça e essa era uma coisa que Leo não lhes podia oferecer.

E pronto, já tinha a minha resposta. Mesmo assim, resolvi ouvir a verdade da sua própria boca.

- Soberano Lorde... - insisti, sem receio, uma vez que já não podia perder o auto-respeito ou a honra - antes de partir para Trebizonda, o basileu também me tomou ao seu serviço para ser, tal como afirmou, os seus olhos e ouvidos naquela terra estrangeira, e para lhe trazer notícias de tudo o que lá viesse a acontecer. Em resumo, queria-me como espião.

Leo, desejoso de se ir embora, lançou-me uma olhadela distraída.

- Como o basileu está morto e o tratado de paz voltará a ser escrito, não vejo qualquer valor na retoma de uma ocupação cuja finalidade já cessou.

- Com todo o respeito - retorqui rapidamente - tenho informações a respeito de certos assuntos que considero serem dignos de uma cuidadosa consideração.

Vi que a minha afirmação o deixara intrigado. Tinha curiosidade em se informar sobre o que eu sabia mas não podia permitir que outros nos ouvissem. Tomou uma decisão imediata: declarou que a audiência terminara, ordenou aos visitantes que aguardassem no salão exterior e aos guardas para se afastarem para uma distância discreta, tudo para que pudéssemos falar sem sermos ouvidos.

- Consideramos-te um emissário muito obstinado... - comentou, voltando a sentar-se. - Que pretendes com a tua insistência nestas questões?

- Lorde e Imperador - respondi - à luz da recente tragédia que se abateu sobre o Império, não ficaria tranquilo com a minha consciência se não vos dissesse que as suspeitas de Basil a respeito de uma traição não eram infundadas.

- O antigo Imperador era um homem muito desconfiado e temeroso - admitiu Leo, e reparei que nunca se referia a Basil como sendo o seu pai. - Qual dos seus muitos temores te terá confiado?

- Que havia homens a conjurar para o assassinarem - expliquei.

- Não era verdade, é claro, mas poderia ter sido, tendo em conta que Basil fora assassinado.

- E havia? - inquiriu Leo. A pergunta foi feita casualmente, mas a vivacidade com que a fez deu-me a saber que lhe despertara o interesse.

- Sim, Lorde - respondi, com secura. - A conspiração foi descoberta pelo exarch Honorius, e foi por causa desse conhecimento que o governador também foi assassinado. - Tenho comigo esta carta selada...

- toquei no pergaminho por baixo da túnica - que testemunha esse facto e que pretendia servir como um aviso para o Imperador. Infelizmente, chegámos a Constantinopla demasiado tarde para impedirmos a consumação de um acto tão odioso.

- O Imperador morreu num acidente - replicou Leo com frieza. - Disseram-me que seguia demasiado à frente da caçada, o que constitui um risco sempre desaconselhado em quaisquer circunstâncias e de que resultou num desastre que o Império ainda hoje lamenta.

Esperara que se sentisse curioso a respeito do conteúdo da carta, mas o Imperador Leo era demasiado astuto para se deixar apanhar assim. De qualquer modo, ainda tinha mais uma oportunidade e nada a perder, pelo que a aproveitei.

- O eparch Nikos deixou-nos com muitas dúvidas quanto à veracidade dos relatos que falam de veados e de cavalos com o freio nos dentes...

Leo dobrou uma das mãos sobre a outra e olhou-me por cima do punho:

- O eparch... - afirmou, devagar - pode ter desejado criar suspeitas por motivos pessoais. Os seus crimes, tal como sugeres, podem ter exigido respostas, mas já não o podemos interrogar. Temos de nos satisfazer com o fim que o Céu, na sua infinita sabedoria, lhe determinou.

Foi tudo o que disse e compreendi que o assunto estava encerrado. Não só não conseguira nem a mais leve sugestão de procedimento incorrecto por parte do Imperador, e muito menos uma confissão, como conclui que Leo, pura e simplesmente, iria lançar as culpas de todos os males sobre a cabeça de Nikos. Fora eu quem lhe fornecera o melhor dos bodes expiatórios. Morto, Nikos era a exoneração e a absolvição. Fiquei parado, doente do coração e desesperado.

Leo agitou-se, como se quisesse ir-se embora, mas houve algo que o deteve. Olhou-me com uma expressão ácida e perguntou:

- Como ainda não me respondeste, volto a perguntar: o que queres?

- Soberano Lorde - repliquei, quase desesperadamente - vim para Bizâncio como um monge, sem nada mais para me suster para além da minha fé. Agora, até essa pobre posse me foi retirada. Vi os inocentes serem chacinados às centenas, homens, mulheres e crianças cuja única culpa foi o facto de se terem atravessado no caminho de Nikos. Vi o abençoado bispo Cadoc ser despedaçado por cavalos e vi o seu corpo feito em bocados. Eu próprio sofri a escravatura e a tortura, mas isso nada foi quando comparado com a dissolução da minha fé.

Fiz uma pausa e engoli em seco, sabendo perfeitamente que as palavras que ia proferir a seguir poderia provocar a concretização do meu obscuro sonho, o da minha morte em Bizâncio. Prossegui, indiferente para com as consequências.

- Hoje, vim aqui em busca de justiça para os que morreram e também de vingança para mim. Sim, não o nego. Quando conclui que não poderia haver justiça... tomei a meu cargo a vingança, não fosse esta tentar escapar-me.

Leo aceitou a afirmação sem comentários e sem a mais leve indicação de preocupação, de ira ou até de surpresa. Por isso, continuei:

- Antes de morrer, Nikos deu-me a saber que matara Basil e que foi aquele que agora ostenta a coroa quem endossou os seus crimes e conspirou em conjunto com ele. Perguntaste-me o que quero... e eu só quero isto: Nikos estava a dizer a verdade?

Leo permaneceu sentado durante longos momentos, olhando para mim com os seus olhos negros e encovados como se lhe tivesse apresentado um problema capaz de resistir a todas as soluções. Por fim, endireitou-se e falou:

- Vemos que empreendeste muito boas coisas em nome do trono imperial - disse-me - e com terríveis custos para ti mesmo. Seria bom que nos tivesses pedido para te devolvermos a tua prata, pois ter-te-íamos dado mil vezes mais do que a perdida. Contudo, o que na verdade desejas é algo que nem sequer o basileu te pode conceder: a renovação da tua fé. - A expressão de pesar suavizou as suas feições. - Lamento muito - acrescentou, como um homem a falar com outro homem.

Levantou-se da cadeira, desdobrando lentamente a sua comprida forma para se erguer, alto e delgado, na minha frente, muito diferente, sob todos os pontos de vista, daquilo que Basil fora.

Não fiz qualquer movimento e não pronunciei uma palavra. Nada mais havia para dizer. Despojado da minha última esperança, privado de todas as crenças, limitei-me a olhar para ele como uma criatura estúpida e vazia, feita de madeira e osso.

Leo afastou-se, alto e imponente, mas virou-se quando ainda não dera mais do que alguns passos.

- Se o eparch Nikos se excedeu ao tentar perseguir as suas próprias ambições - declarou, dando voz ao que já se transformara na explicação oficial para todos os males - então constato que os seus pecados produziram frutos muito amargos. Pode não ser do teu agrado... mas consideramos que a justiça foi satisfeita.

Hesitou, com os lábios comprimidos numa linha dura enquanto me olhava, quase zangado. Já anteriormente vira expressões como aquela, em geral quando se desenrolava uma guerra íntima no interior das pessoas. Contudo, no caso de Leo, essa guerra terminou rapidamente.

- Pedes a verdade... - disse - e talvez a reconheças quando te digo isto: Nikos não matou o meu pai.

O Basileu Leo fez sinal a um dos guardas para avançar. O soldado pegou-me num braço e conduziu-me para fora da sala sob o olhar do Imperador. Olhei para trás quando cheguei junto à enorme porta mas o basileu já tinha desaparecido.

Sim, pensei, com amargura, ainda consigo reconhecer a verdade quando a ouço.

Saí da sala e verifiquei que Brynach se encontrava à minha espera. Os dinamarqueses tinham-se amontoado no outro lado do salão, mergulhados numa profunda conversa, e suponho que estariam a discutir o que iriam fazer com as suas cada vez maiores riquezas. Sadiq e Faysal estavam juntos, conversando em tons baixos. Kazimain mantinha-se por perto e parecia perdida e abandonada.

- O Imperador quis falar contigo... - sugeriu Brynach, esperançado.

- É verdade - admiti, olhando para o local onde Nikos caíra. O corpo desaparecera e três jovens servos espalhavam serradura no chão, para absorver o sangue. Em breve também ele desapareceria, deixando talvez uma leve mancha rosada sobre a pedra polida, para assinalar o que se passara naquela sala. Dugal e Ddewi observavam os servos e fiz-lhes sinal para se nos juntarem.

- Conta-nos, irmão, que foi que ele te disse? - perguntou Brynach, ansioso por uma palavra que pudesse redimir a peregrinação.

- Disse que a justiça foi satisfeita... - retorquiu, com desprezo - mas não há justiça neste lugar. Há apenas dívidas e cobrança de dívidas...

- Falaste-lhe no livro? - interrogou-se Ddewi. - Disseste-lhe que trouxemos uma dádiva para a biblioteca imperial? - Pousou a mão no saco de couro que usava por baixo da túnica. Aquele gesto tão simples cortou-me até aos ossos. Ddewi carregara aquele fardo de amor sem um lamento... e continuaria a carregá-lo.

- Ddewi... - respondi - o Imperador não é merecedor da tua dádiva. Foram muitos os homens de fé que deram as vidas pela sua segurança... e não quero aviltar um tão grande sacrifício.

Ddewi pareceu desapontado.

- Então, que fazemos com ela?

- Carrega-a de volta - respondi. - Leva-a para casa, Ddewi, onde constituirá um tesouro de inspiração para todos os que a virem.

- E quanto à nossa petição? - Brynach, sempre esperançoso, não se conseguindo conter. - Disseste-lhe por que viemos aqui?

- Não, Bryn, não lhe disse - repliquei, com secura.

- Mas., porquê? - perguntou o britânico, com uma expressão de desânimo e com os olhos a fitarem-me em busca de uma resposta. - Era a nossa última hipótese...

- Nunca foi uma hipótese - afirmei. - Limpa a poeira deste lugar dos teus pés, vai-te embora e não olhes para trás. Vou dizer-te a verdade: faz as pazes com Roma porque não é aqui que irás obter protecção.

Abandonámos o palácio, atravessando o salão de recepção até às portas exteriores. Dugal, que permanecera em silêncio, acertou o passo com o meu.

- Foi Leo que fez aquilo? - perguntou.

- Disse-me que Nikos não matou o pai dele.

- Ora, de certeza que se tratou de uma mentira, Aidan.

- Não, Dugal... - repliquei, do fundo do meu coração de madeira - isso, pelo menos, era a verdade!

As portas abriram-se e saímos para a luz de um dia que se tornara inimaginavelmente brilhante.

 

Harald Berro-de-Touro, numa disposição de jubilosa antecipação, anunciou um festim para celebrar a sua boa sorte. Indómito chefe-de-batalha que era, trajou-se para a guerra e conduziu os seus bravos Lobos do Mar para os terríveis mercados a fim de enfrentarem os astuciosos mercadores de Constantinopla e garantirem as necessárias provisões. Regressaram algum tempo depois, vitoriosos, embora muito feridos no orgulho e nos bolsos, trazendo consigo seis barris de vinho cipriota, fardos de carvão e as carcaças de vários porcos e de três novilhos, já enfiados nos espetos e condimentados, prontos para serem assados.

Sem perderem um momento, deram vida ao carvão e puseram as carnes sobre as chamas. A seguir abriram o primeiro barril, mitigaram a sede com o escuro vinho tinto e aliviaram a fome com bocados de bom pão achatado enquanto esperavam que os porcos ficassem assados. Não estava no feitio de Harald esquecer-se da sua doação de pão, que recolheu ainda quente do forno apesar de não haver entre eles um único homem que falasse o grego. Nem sequer imagino como poderão ter transmitido os seus desejos ao infeliz padeiro.

Os árabes, atraídos pela irresistível boa vontade dos dinamarqueses, juntaram-se às festividades com toda a facilidade. Alguns dos rafiq ajudaram a preparar a comida e mostraram aos anfitriões como misturar a água com vinho para lhe aumentar o sabor e para diminuir os seus efeitos devastadores. Embora Sadiq não bebesse vinho, permitiu que os outros fizessem como entendessem. Para além disso, como que para abençoar a ocasião, o emir mandou Faysal em busca de alguns petiscos adicionais, numa variedade e quantidade capaz de pôr as longas mesas a gemer sob o peso: tâmaras, doces, azeitonas, tanto verdes como pretas, bolos em molho de mel, potes com leite engrossado, adoçado e preparado com amêndoas, bem como vários outros tipos de frutos de mim desconhecidos.

Quando as sombras da tarde se estenderam sobre o pátio e o calor do dia se dissipou nos brilhantes rosas e púrpuras de uma quente noite do Mediterrâneo, os foliões irromperam em cantos e danças para grande delícia de todos, excepto de mim e dos meus irmãos monges. Os meus irmãos lamentavam o falhanço da peregrinação, mas eu chorava uma perda muito maior.

O som dos cantos roucos e das batidas rítmicas dos tambores improvisados que emanava das salas do banquete impediu-me de dar pela aproximação dos outros.

- Irmão Aidan - anunciou Brynach com firmeza - precisamos de falar contigo.

Virei-me e vi-os aos três, de pé e inseguros.

- Então, venham e sentem-se - disse-lhes. - A minha solidão é suficientemente grande para poder ser partilhada.

Aproximaram-se mas ficaram de pé e não se quiseram sentar, como se receassem que a informalidade pudesse comprometer o que tinham para dizer. Brynach manifestou imediatamente as suas preocupações:

- Estivemos a meditar sobre os acontecimentos do dia, e a rezar... - declarou - e pensamos que agiste precipitadamente. Achamos que devias voltar ao Imperador para lhe apresentares a nossa petição. Se lhe dissermos ao que viemos e o que isso significa, irá apiedar-se de nós e conceder-nos a ajuda de que necessitamos tão desesperadamente.

Levantei os olhos para lhe fitar o rosto, honesto e determinado, iluminado pela luz do crepúsculo. As estrelas começavam a brilhar no céu e o delicioso aroma a carne assada flutuava na leve brisa do pátio. Aspirei o ar para lhe responder e inalei aquele aroma até ao fundo dos pulmões.

- Viste e ainda não compreendes... - disse-lhe. - Que mais será preciso para te convencer? Queres que te explique tudo outra vez?

Os três monges olharam uns para os outros. Dugal replicou:

- Sim, irmão... a não ser que nos digas que não podemos compreender.

- Então, ouçam-me... - pedi, levantando-me. - As coisas são assim: quando a ambição e o poder conspiram de mãos dadas, os outros homens têm de se acautelar. Já tinham ouvido dizer isto e agora, graças a muitas experiências amargas, sabem que é verdade. Para além disso, quando os que aplicam a justiça são muito mais culpados do que aqueles que têm de julgar, não há nem esperança, nem redenção. Para quê acreditar que o juiz iníquo irá honrar a verdade, ou irá olhar para lá dos seus interesses para proteger os vossos?

- Se fosse assim... - comentou Brynach - então nada neste mundo seria garantido ou certo.

- Nada é certo - afirmei, categórico. - Só há uma coisa, uma única coisa, que é certa: os inocentes têm de sofrer.

- As tuas palavras espantam-me! - confessou Brynach, não sem compaixão. - Nem parecem tuas... ou do homem que outrora conheci.

- Não sou o homem que já fui! Esse homem morreu há muito. E então? Não merecia melhor destino do que todos os outros que morreram ao longo do caminho!

- Irmão, como podes falar assim? - repreendeu-me o monge mais velho, com delicadeza. Deus guiou-te e protegeu-te através de todas as coisas, até hoje. Acumulou os seus favores sobre ti e tem-te na palma da Sua mão de amor...

Virei o rosto para outro lado.

- Vai falar da protecção de Deus ao Cadoc e aos outros... - murmurei - e não comigo. Já sei muito bem até que ponto Deus se preocupa com os que confiam nele...

A minha amargura chocou-os e ficaram a olhar uns para os outros, desanimados. Passados instantes, Ddewi arranjou coragem para falar:

- Estás a dizer essas coisas porque mataste o Nikos e receias voltar a apresentar-te perante o Imperador?

Então, era aquilo o que pensavam. E por que não? Não sabiam o que eu sabia.

- Escutem-me - disse-lhes, com secura - e prestem atenção! Ponham completamente de parte a ideia de que irão receber favores das mãos do Imperador. Não se deixem enganar, porque não se trata de um homem temente a Deus. Nikos agiu em nome de Leo desde o princípio. O que Nikos fez, fê-lo tanto pelo Leo como pela sua própria ambição insaciável.

- Mas, Aidan... - objectou Dugal - disseste que Leo falou verdade quando disse que Nikos não matou o Imperador...

Senti-me invadido por um grande cansaço. Ainda não entendiam a enormidade do mal que florescia nos lugares santos de Bizâncio. Abanei a cabeça, desesperado.

Pensa, Dugal! Pensem, vocês todos! Pensem no que isso quer dizer. Leo afirmou que Nikos não matara o seu pai... e era verdade. - Dugal e os outros ficaram a olhar-me, confusos e magoados. - Não estão a perceber? - insisti, numa voz que os chicoteava pela sua ignorância. - O Imperador Basil não era o pai de Leo. - Dei-lhes tempo para que a ideia assentasse, antes de prosseguir: - Foi assim: Michael seduziu e levou para a cama muitas das mulheres nobres da sua corte... e uma delas era a esposa de Basil. Este sabia-o e na verdade até encorajou esse facto porque isso lhe dava domínio sobre o Imperador. Quando nasceu um filho dessa união adúltera, tratou de o aproveitar para se promover.

- Leo é filho de Michael? - interrogou-se Brynach, espantado.

- Sim... e em troca de criar o rapaz como se fosse seu, Basil conseguiu a púrpura e foi nomeado co-soberano. Quando a devassidão de Michael deixou de lhe ser útil, Basil mandou assassinar o velho Imperador - alguns até dizem que foi ele próprio quem o matou - e reclamou imediatamente o trono. Os anos passaram e o rapaz sem amor foi crescendo e decidiu vingar a morte do seu verdadeiro pai. Foi para esse fim que Leo utilizou Nikos e que todo este maléfico plano foi posto em prática, ainda muito antes de termos a ideia de vir a Bizâncio.

Vi-os a debaterem-se contra a dureza daquela verdade.

- Devíamos dizer a alguém... - sugeriu Dugal, numa voz fraca. - O Imperador devia responder pelos seus crimes...

Não lhes permiti o luxo das falsas esperanças.

- O Imperador é soberano da igreja e juiz sobre tudo e todos, responsável apenas perante o próprio Deus. Com quem se propõem falar? Com Deus? Digo-vos que Ele já sabe e nada fez.

- Podíamos dizer ao patriarca de Constantinopla... - sugeriu Brynach, mais por desespero do que por esperança.

- Acham que o patriarca... - retorqui, com brutalidade - que deve a nomeação e a continuação da sua sobrevivência ao Imperador, vos iria dar ouvidos? Mesmo que o fizesse, o único que podia provar a verdade das nossas acusações era Nikos... e eu silenciei-o para sempre. - A minha voz tornou-se trocista. - Matei Nikos, mas o seu amo e protector - aquele a cujas ordens Nikos obedeceu e por quem morreu - nem sequer soltou uma única lágrima. Ao que parece, o nosso Sacro Imperador ficou muito satisfeito por poder atirar as culpas, pela confusão e pelo caos que os seus planos provocaram, sobre a cabeça ensanguentada de Nikos. As mortes dos monges, dos dinamarqueses e árabes, os assassínios do eparch e do governador e de sabe-se lá quantos mais dos seus próprios súbditos... serão agora enterradas juntamente com Nikos e com o seu nome.

"Oh, não há dúvida de que prestei um grande serviço ao Imperador. Graças à sua considerável gratidão por esse mesmo serviço, o Sábio Basi-leu permitiu-me conservar a vida...

Os outros, espantados, não tiravam os olhos de mim.

- Aqui não pode haver justiça - concluí, abatido sob a sensação de impotência. - Basil nunca foi um Imperador legítimo. Leo, como filho de Michael, tem direito legítimo ao trono, mas é um intriguista e um assassino.

A água que escorria da fonte tornou-se muito ruidosa no silêncio que se seguiu. Verifiquei que a Lua já nascera e que lançava a sua luz suave sobre as muitas sombras do pátio.

- Agora já compreendo o que Nikos queria dizer... - declarou Bry-nach - quando afirmou que Basil era um usurpador. Olhou para mim e perguntou: - Porém, de que estava ele a falar quando disse que eras um sacerdote caído...?

Não respondi.

- Aidan... - insistiu, com suavidade - ainda és um de nós?

Não consegui suportar a tristeza e a mágoa que lhe vi nos olhos e virei-me para outro lado quando respondi:

- Não... - murmurei, num tom baixo. - Há muito que deixei de ser um sacerdote.

Passados alguns momentos, Brynach declarou:

- Nunca ninguém está longe da mão rápida e segura de Deus. Rezarei por ti, meu irmão.

- Se quiseres - repliquei. Brynach aceitou a minha resposta e não insistiu no assunto. Naquele momento, o pátio foi varrido por uma onda de gargalhadas vinda do salão onde tinha lugar o banquete.

- Deviam ir aproveitar a festa - disse-lhes. - Divirtam-se junto daqueles que se divertem!

- Juntas-te a nós, Dana?- perguntou Dugal.

- Talvez o faça... - admiti - dentro de alguns instantes.

Foram-se embora, deixando-me mais uma vez sozinho. Foi apenas depois de terem partido que ganhei consciência de que Kazimain se encontrava do outro lado do pátio, sob a sombra de uma coluna. Observava-me e esperava. Levantei-me imediatamente mas, antes de poder dirigir-me a ela, a jovem avançou na minha direcção com passos decididos, com o queixo contraído e os lábios dispostos numa linha firme. Não era a primeira vez que lhe via aquela expressão.

- Estavas a falar com os teus... - declarou, levantando o véu - e não quis intrometer-me. - Baixou os olhos e cruzou as mãos em frente do corpo enquanto punha ordem nas palavras que preparara.

- Nunca és uma intrusão, meu amor - respondi, num tom ligeiro.

- Aidan, por favor, o que tenho para te dizer não é fácil... - Fez uma pausa. Quando voltou a falar foi com um tom cheio de determinação. - Não vou casar contigo! - afirmou, com simplicidade.

- O quê...?!

- Não nos casaremos, Aidan.

- Porquê? - perguntei, espantado com o modo abrupto como fizera aquele anúncio, e via-a baixar os olhos para as mãos dobradas. - Por que dizes uma coisa dessas, Kazimain? Nada se modificou entre nós...

Abanou a cabeça muito devagar.

- Pois não, meu amor, mas tu modificaste-te.

Fui incapaz de responder e limitei-me a olhá-la com um entorpecimento gelado e familiar a espalhar-se-me pelo corpo, vindo do fundo do coração.

Levantou a cabeça e fitou-me com uma expressão grave e séria nos olhos escuros.

- Lamento, Aidan.

- Kazimain, diz-me, como foi que me modifiquei?

- Precisas de o perguntar?

- Estou a perguntar - insisti, embora no fundo do coração já soubesse que ela tinha razão. Não entendia muito bem porquê mas sentia-me como um ladrão apanhado em flagrante, ou um mentiroso cuja falsidade fora descoberta.

- Tenho-te observado nestes últimos dias... e para mim é claro que já não és um homem de fé.

- Sim, é verdade, já não sou um cristão... - disse-lhe - pelo que as diferenças entre as nossas crenças não serão um obstáculo ao nosso casamento. Amo-te, Kazimain.

- Não estou a falar de amor - retorquiu, com gentileza - mas de crença. Vejo que já não és um cristão, não porque tenhas renunciado à tua fé em Cristo, e sim porque abandonaste Deus. Esqueceste Deus e já não acreditas em nada. Aidan, uma mulher do Islão não pode casar com um infiel. Fazê-lo... é a morte.

Os seus olhos, quando disse aquilo, exprimiam apenas piedade e nada mais. De qualquer modo senti o último fragmento de terreno sólido a desmoronar-se por baixo dos meus pés.

- Mas, em Samarra...

- Em Samarra, era diferente - retorquiu, firme. - Tu eras diferente. Sabia que estavas desapontado mas quando te vi na mesquita pensei que eras um homem que ainda depunha a sua confiança em Deus. Agora, contudo, sei que não acreditas em nada mais alto do que tu mesmo. - Baixou a cabeça e acrescentou, quase que para si mesma. - Esperei o que não era possível...

- Kazimain, por favor - implorei, agarrando-me desesperadamente à última certeza que ainda possuía. Embora me tivesse atingido com força, não podia desmentir o que acabara de me dizer. No meu coração ainda restava honestidade suficiente para reconhecer a verdade quando a ouvia.

- Já não estamos noivos.

Não posso afirmar que a força da sua resolução me tenha surpreendido. Tratava-se, no fim de contas, da mesma princesa sarracena que desafiara o tio e arriscara tudo para nos seguir através do deserto, sozinha. Sempre se mostrara firme sob todos os aspectos e não exigia menos do homem com quem iria partilhar a sua vida. Era claro que até um cego teria visto que eu não era um seu igual. Outrora talvez o tivesse sido, mas já não o era.

- Ah, se ao menos eu pudesse ter ficado em Samarra... - murmurei, acabando finalmente por acatar a sua decisão. - Teria casado contigo, Kazimain, e seríamos felizes...

Penso que a afirmação a tocou, porque os seus modos para comigo se suavizaram e estendeu a mão para o meu rosto.

- Ter-te-ia seguido até ao fim do mundo... - sussurrou. Depois, como se esta admissão se pudesse virar contra ela, afastou-se, endireitou-se e acrescentou: - Mesmo assim, está tudo terminado entre nós.

Ajustou as roupas em volta do corpo e voltou a colocar o véu.

- Rezarei para que Deus te conceda a paz, Aidan.

Vi-a afastar-se, delgada e imponente, com a cabeça bem levantada. Virou-se quando chegou à colunada, olhou para trás e disse:

- Adeus, meu amor. - Avançou para as sombras e desapareceu, deixando atrás de si apenas um vago perfume a laranjas e a madeira de sândalo que ficou a pairar no ar.

Adeus, Kazimain. Amei-te e ainda te amo. Nunca outra mulher irá possuir o meu coração, que será teu para sempre.

Fiquei só no pátio durante muito tempo, escutando os sons da celebração e observando o lento progresso das estrelas por cima da minha cabeça. No fim, acabei por não me juntar à festa e permaneci no pátio durante toda a noite, infeliz e solitário.

Nunca me sentira tão rejeitado e perdido. Nessa noite chorei a perda da minha fé, e não chorei menos pela perda do meu amor. O único e frágil laço que me ligava ao mundo e a mim mesmo já fora cortado, e a minha alma andava completamente à deriva.

 

No dia seguinte, por volta do meio-dia, quando o Logothete do Tesouro apareceu, deparou com um rei Harald algo tonto, rodeado por um bando de bárbaros desgrenhados e de olhos vermelhos, e também pelos restos quebrados de seis barris de vinho e por uma grande variedade de ossos e de pratos estilhaçados, espalhados por todo o lado. O jarl recuperou maravilhosamente bem logo que o funcionário imperial se apresentou, ofereceu-lhe, com toda a delicadeza, uma perna de porco já fria que o logothete recusou com igual delicadeza, após o que os dois homens se sentaram para acertarem as contas.

Como é natural, pediram-me que me sentasse junto deles a fim de traduzir para Harald. Tal como já acontecera em situações semelhantes, em breve me senti invadido por uma espécie de espanto ao constatar a astuta habilidade do dinamarquês para aproveitar as oportunidades latentes em todas as situações. Embora se encontrasse armado com um muito modesto conjunto de argumentos, sabia utilizá-los com uma perícia impressionante. Uma vezes lisonjeava, outras bajulava, para depois amuar, incitar ou exigir. Era capaz de gritar, fazendo estremecer as copas das árvores com a sua ira, mas nunca perdia as estribeiras. Num determinado momento conseguia iludir tudo e todos com uma convincente exibição de ignorância bem humorada, para logo a seguir executar os mais intrincados cálculos com uma velocidade e uma precisão surpreendentes.

Quando o logothete se foi finalmente embora, era um homem que parecia confuso e desfeito. E como não? Harald triunfara em toda a linha, cedendo algumas pequenas batalhas aqui e acolá... enquanto dominava o campo e ganhava a guerra. Os cofres imperiais foram aliviados de mais de sessenta mil denários de prata, transformando Harald e os poucos Lobos de Mar sobreviventes em homens verdadeiramente ricos.

Mais tarde, nesse mesmo dia, quando o pagamento chegou - metade em denários de prata e metade em solidi de ouro, guardados em cinco fortes arcas chapeadas a ferro - ajudei o jarl Harald a apor a sua marca no rolo de pergaminho que o cortesão lhe apresentou a fim de confirmar que os dinamarqueses haviam sido pagos.

Logo que o funcionário e os seus se foram embora, Harald virou-se para mim e ofereceu-me uma parte daquelas riquezas.

- Aceita, Aidan! - incitou-me. - Se não fosses tu, nenhum de nós estaria vivo para poder gozar a nossa boa sorte. Temos para contigo uma dívida de gratidão que não poderemos pagar com facilidade e alegrar-me-ia muito se aceitasses.

- Nay, jarl Harald - respondi. - As perdas representadas por esse tesouro foram todas vossas. Entrega a minha parte às viúvas e órfãos dos homens que não voltarão para casa.

- Cuidarei delas, descansa - afirmou o monarca - mas há aqui mais do que o suficiente. Por favor, fica com qualquer coisa.

Declinei mais uma vez, mas Harald insistiu e convenceu-me a aceitar uma generosa medida de solidi de ouro para nos facilitar a vida, a mim e aos outros monges, durante o nosso regresso a casa. A sugestão fazia sentido e aceitei as moedas, após o que o Rei dos Mares se afastou afirmando que descobriria outra maneira de me pagar. A seguir anunciou um novo festim... agora para celebrar a sua nova riqueza. As festividades ocuparam-no durante o resto do dia e grande parte da noite. Quando o entusiasmo atingiu o seu máximo, os dinamarqueses começaram a gabar-se sobre o que iriam fazer com as riquezas que levariam para casa. Gunnar e Hnefi entraram em competição, tentando ultrapassar-se um ao outro.

- Quando chegar a casa - afirmou Hnefi, ruidosamente - vou mandar fazer um navio ornamentado a ouro!

- Só um navio? - admirou-se Gunnar. - Pois eu arranjarei toda uma frota, com cada um dos navios maior do que o anterior, com mastros e remos de ouro!

- Acho muito bem... - admitiu Hnefi - mas também vou ter um salão maior do que o de Odin, com uma centena de barris de ól para matar a sede a todos os meus karlar, que irão ser mil!

- Isso pode ser o suficiente para ti - concordou Gunnar, altivo - mas uma barraca tão pequena não me servia de nada, porque eu vou ter dez mil karlar, cada um com o seu próprio barril de cerveja!

Hnefi riu-se, trocista.

- Precisas de um salão muito maior do que o Valhalla, para os abrigares a todos!

- Pois é... - Gunnar sorriu ante a facilidade com que apanhara Hnefi. - O meu salão irá ser precisamente assim, maior do que o Valha-lla, para que cada um dos meus nobres possa ter um lugar à mesa para festejar na minha companhia. Para além disso, terei também um cento de skalds para me cantarem louvores de dia e de noite!

Continuaram a enfrentar-se, com cada um deles a tentar ultrapassar o outro numa ofensiva exibição de ambições expressas por intermédio de gabarolices cada vez mais extravagantes. Os que os rodeavam soltavam gritos de incitamento aos dois contendores, rindo-se e louvando cada novo auge de excessos imaginários.

Fiquei sentado a ouvi-los e a observar os rostos radiantes dos Lobos do Mar, mas sentia-me cansado até aos ossos. Eram tão parecidos com crianças, tão simplistas nos seus prazeres e desejos, tão inconscientes de tudo excepto o momento presente, a que dedicavam toda a sua atenção. Observei aqueles homens e desejei poder regressar a um tal estado de inocência. Depois, cansado com o peso de tudo o que acontecera nos últimos dias, afastei-me dali e rastejei para a cama.

Apesar das festividades terem durado até altas horas da noite, os dinamarqueses acordaram cedo na manhã seguinte e apressaram-se até ao cais de Psamathia, onde os navios se encontravam atracados. Constantinopla retomou a sua habitual vida agitada, as outras portas da cidade voltaram a ser abertas e Harald manobrou os seus três navios em torno das muralhas da cidade, levando-as até ao pequeno porto que servia as grandes residências do Como-Dourado, afirmando que era para poder vigiar melhor o aprovisionamento para a viagem de regresso.

:- Quando partem? - perguntei-lhe. Estávamos de pé no cais, na zona denominada Bairro Veneziano, vendo alguns Lobos do Mar a carregarem sacos de cereais nos navios.

Semicerrou os olhos para o céu, observou o mar e gritou qualquer coisa a Thorkel, que orientava o armazenamento das provisões à medida que estas iam chegando. Harald recebeu uma resposta resmungada, virou-se para mim e declarou:

- Amanhã. Há muito tempo que estamos longe da Escandinávia, muito, muito tempo, e os homens estão ansiosos por regressarem às esposas e à sua gente. O tempo está bom. Partiremos amanhã.

- Compreendo... - respondi, inquieto com a subitaneidade da partida. - Virei aqui para me despedir...

- Isso mesmo! - retorquiu Harald, dando uma palmada no ombro com a sua enorme mão. - Vem despedir-te, Aidan.

Afastou-se mas fiquei a vê-lo a caminhar ao longo do cais, olhando para os navios. De vez em quando chamava alguém a bordo, parava para pousar as mãos numa amurada ou para bater com o punho no flanco de uma das embarcações. Abandonei o cais algum tempo depois, no momento em que Harald e Thorkel agitavam os braços para um homem pequenino, a bordo de um pequeno e elegante navio mercante com velas amarelas.

Mais tarde, quando alguns dos Lobos do Mar regressaram dos seus vários afazeres na cidade, Gunnar e Tolar foram ter comigo transportando um grande saco entre eles.

- O jarl Harald diz que temos de partir amanhã - declarou Gunnar, com simplicidade. - Vou sentir a tua falta, Aeddan.

- Também vou sentir a tua - repliquei - mas tu tens de pensar na Karin e no Ulf, e o Tolar tem a sua família. Vão ficar satisfeitos por voltarem a ver-vos.

- Heya! - concordou Gunnar - e eu também vou ficar satisfeito por os ver. Para dizer a verdade, Aeddan, quando chegar a casa nunca mais voltarei a partir a-viking. - Tolar e eu já discutimos o assunto e concordámos que estamos demasiado velhos para estas aventuras. - Tolar acenou a sua concordância, enfático.

- É uma decisão sábia - admiti.

- Trouxemos-te uma prenda, para recordares a nossa amizade - disse Gunnar. Meteu a mão no saco e retirou dele um pequeno vaso de cerâmica, que colocou nas minhas mãos. Era pouco profundo, mas muito bem feito. O interior fora decorado a azul e branco, com a imagem de um homem com uma coroa, segurando uma espada numa das mãos e uma cruz na outra. Por baixo do homem, que parecia encontrar-se sobre a cúpula de Santa Sofia, via-se a palavra Leo.

- É uma bela taça, Gunnar, mas não a posso aceitar. A Karin ficaria deliciada com uma taça como esta. Deves oferecer-lha.

- Nay, nay! - retorquiu. - Essa é para ti, Aeddan. Temos seis outras, iguais a essa.

Separámo-nos e prometi ir ao navio para me despedir deles. A toda a minha volta, a vida que eu conhecera estava a chegar ao fim. Iam todos seguir o seu caminho, coisa que não podia impedir, nem desejava poder fazer, antes pelo contrário! Sentia-me aliviado com o facto da tribulação ter terminado. Mesmo assim não conseguia descobrir em mim a vontade de me sentar com eles para erguer taças em nome de uma amizade que, tal como tudo o que me rodeava, estava a morrer.

Na manhã seguinte, o jarl Harald apareceu para se despedir de lorde Sadiq e de Faysal.

- Se um dia forem ao norte, à Escandinávia, serão bem recebidos no meu salão - declarou Harald, falando por meu intermédio. - Poderemos sentarmo-nos juntos para festejarmos como reis!

- E se alguma vez voltarem a aventurar-se para o sul - replicou o emir - só terão de citar o meu nome a alguém para serem imediatamente conduzidos ao meu palácio, onde vos receberei como a um nobre amigo!

Abraçaram-se um ao outro e Harald afastou-se. Caminhei ao lado dos dinamarqueses pelas estreitas ruas que conduziam ao cais. Dugal também ia connosco mas manteve-se reservado e nada disse durante o percurso. Depois da nossa conversa no pátio, ele e os outros pouco tinham para me dizer. Não sabia se me evitavam ou se estavam apenas inseguros a respeito da situação e não queriam piorar ainda mais as coisas.

Na sua ansiedade por partirem para casa, os dinamarqueses dirigiram-se para os navios e treparam para bordo no preciso momento em que chegámos ao porto. Houve alguns que se detiveram durante o tempo suficiente para uma palavra de separação e até Hnefi se despediu de mim apressadamente.

Um bom número deles, esforçando-se sob o peso dos tesouros recém-adquiridos, necessitaram da ajuda dos companheiros para subirem para bordo mas os três navios ficaram prontos para a partida num tempo surpreendentemente curto.

O navio de Thorkel foi o primeiro a partir. Gritou-me do seu lugar junto ao leme, dizendo:

- Talvez ainda voltemos a encontrarmo-nos um dia, heya, Aeddan?

- Adeus, Thorkel! Vê se não te enganas na rota!

- Nada receies, tenho um mapa! - replicou com um aceno, virando a sua atenção para a vela.

Gunnar e Tolar aproximaram-se do local onde Dugal e eu os observávamos.

- És uma boa pessoa - disse-me Gunnar.

- Heya! - ecoou Tolar, ecoando o mesmo sentimento.

- Temos uma grande dívida para contigo, Aeddan... - continuou Gunnar, fitando-me com um olhar de tristeza - e sentir-me-ei muito infeliz se não conseguir descobrir maneira de a pagar.

- É verdade! - acrescentou Tolar.

- Não me deves nada - respondi. - Volta para casa, para junto da tua esposa e do teu filho. Quando te lembrares de mim... lembra-te também que prometeste nunca mais sair a-viking. Gostaria de ter a certeza de que gozas as tuas riquezas... em vez de andares a esfolar pobres peregrinos para os saqueares...

Gunnar exibiu uma expressão contrita.

- Isso acabou, por Odin! - exclamou. Tolar acenou a sua concordância e cuspiu para o chão.

- Então, fico satisfeito!

Gunnar apertou-me num enorme abraço capaz de fazer estalar os ossos.

- Adeus, Aeddan... - sussurrou, virando-me as costas rapidamente. Tolar, contra a sua própria natureza, também me abraçou para logo se afastar com um sorriso.

- Não és assim tão mau, creio... - declarou, expressivo.

- Também não és assim tão mau - respondi, vendo-o corar de embaraço. - Vai em paz, Tolar... e não percas o Gunnar de vista.

- Isso não será difícil porque vou comprar a propriedade ao lado da dele para podermos ser ricos agricultores na companhia um do outro - anunciou Tolar, articulando mais palavras de uma só vez do que eu jamais lhe ouvira.

Harald foi o último a despedir-se. Avançou para onde me encontrava, trazendo consigo o homem pequenino com quem eu o vira a falar no dia anterior.

- Este homem é o mestre de um navio veneziano - disse-me, apontando para a embarcação de velas amarelas. - Concordou em levar-te, e aos teus irmãos monges, de volta à Irlândia. Já lhe paguei para o fazer. Prometeu que terão uma viagem fácil e que vos darão boa comida.

Harald indicou o homem e fez um gesto de apresentação com as mãos. O mestre do navio olhou para o grande dinamarquês com um ar inseguro, virou-se para nós e declarou:

- As minhas saudações, meus amigos. Chamo-me Pietro e suponho que me irão acompanhar na viagem de regresso. Pelo menos, foi o que julguei compreender... - Falava um bom latim, com uma pronúncia refinada mas fácil.

- Assim parece - confirmei. - Perdoa-me se te pareci surpreendido, mas não sabia nada a esse respeito...

- Não têm que se preocupar - retorquiu Pietro. - Coloco o meu navio ao vosso serviço. - Olhou novamente para Harald, que nos fitava a ambos com um rosto radiante, e acrescentou: - Agora, vou deixar-vos entregues às vossas despedidas. Venham ter comigo quando estiverem despachados, para fazermos os nossos planos.

O homenzinho, pequeno e elegante, fez uma vénia e afastou-se. Harald sorriu de satisfação.

- Como fui eu quem te trouxe para aqui, acho que tenho a obrigação de te mandar para casa - explicou. - Procurei o melhor navio e aquele é quase tão bom como o meu. Já saiu deste porto muitas vezes e penso que se trata de um bom piloto. Contudo, também o avisei que, se um dia viesse a saber que te tinha maltratado, iria à procura dele e o abriria desde a garganta até à barriga como se fosse um peixe!

- Achas que te compreendeu? - interroguei-me.

- Quem sabe? - ripostou Harald com um sorriso ainda maior. Deu-me uma palmada nas costas e acrescentou: - Vou deixar-te, Aeddan Voz-da-Verdade. Foste um bom escravo e tenho pena de não voltar a ver-te. - E tu foste um esplêndido amo, jarl Harald - disse-lhe. Abraçámo-nos como irmãos, após o que me virou as costas e se apressou em direcção ao seu navio.

Harald trepou para bordo e logo os Lobos do Mar empunharam os remos e afastaram a embarcação do cais. Quando o navio deslizou para o canal ainda avistei Gunnar de pé, junto à cabeça de dragão da proa, acenando. Retribuí o aceno, ouvi a forte voz de Harald a mandar os homens para os remos e Gunnar desapareceu.

Senti uma presença e verifiquei que Dugal, que até ali se mantivera um pouco afastado, se juntara a mim.

- E pronto... - disse, num tom onde pressenti algum alívio.

- É verdade - assenti. - Acabou-se!

Fiquei a olhar até os navios desaparecerem das vistas ao longo do Como-Dourado, e conduzi Dugal para onde o navio veneziano se encontrava atracado, explicando-lhe que Harald tratara de nos conseguir uma viagem de regresso a casa.

- O Lobo do Mar fez isso por nós? - espantou-se Dugal, muito impressionado.

O mestre da embarcação veio ao nosso encontro e fez-nos subir a bordo para nos certificarmos que se tratava, na verdade, e sob todos os aspectos, de um navio esplêndido.

- Há muitos dias que estamos à espera das últimas mercadorias comerciais, panos de seda e pimenta, taças de vidro e de prata - declarou. - Já devíamos ter partido há seis dias mas o funeral do Imperador provocou um pequeno atraso. Se Deus quiser, o navio ficará carregado ao fim da tarde e amanhã por esta hora já estaremos prontos para partir.

- Tão depressa? - perguntei, mas a seguir pensei: E por que não? Já não há aqui nada que nos detenha por mais tempo.

Pietro hesitou.

- A estação já vai adiantada e não devemos encarar o bom tempo como uma dádiva que dura para sempre. Contudo, ainda posso esperar um dia ou dois, se o preferirem...

- Não será necessário - repliquei. Agradeci-lhe a oferta e perguntei a mim mesmo quanto fora que Harald lhe pagara. - Amanhã já estaremos prontos.

- Muito bem - disse Pietro, inclinando a cabeça como se aquiescesse aos meus desejos. - Amanhã de manhã enviarei um homem para ir buscar as vossas coisas.

Regressei à villa e informei Brynach e Ddewi a respeito dos preparativos que Harald fizera a nosso respeito e da partida eminente.

- Tão depressa? - interrogou-se Bryn em voz alta.

- Pietro disse que esperaria até estarmos prontos - expliquei - mas não vi nada que nos prendesse aqui. Não é muito tempo... - admiti - mas não sabia que queriam demorar-se...

- Não... - interveio Brynach rapidamente. - Não, tens razão! Já não há aqui mais nada que nos prenda. - Fez uma pausa, com um ar pensativo. - Estás a pensar em regressar connosco? Pensei que...

- Para onde querias que fosse? - retorqui, acrescentando imediatamente: - Bom, ainda podem passar mais um dia em Bizâncio. Talvez queiram fazer qualquer coisa na cidade, antes de partirmos...

- Sempre tive a esperança de ir rezar à Igreja da Santa Sabedoria - replicou Brynach, provocando acenos de acordo por parte de Dugal e Ddewi. - Gostaria de poder fazê-lo. Os irmãos de Cristo Pantocrator iam levar-nos lá, mas depois... Bom, não interessa.

- Vão! - incitei-os. - Vão, os três. Agora mesmo! Há por aí guias com fartura, ansiosos por vos mostrarem as maravilhas de Constantinopla pelo preço de um pão. - Dei-lhes um dos solidii de ouro de Harald. Protestaram contra aquela extravagância mas, como não tinha nenhuma moeda mais pequena sugeri-lhes que era muito pouco para pagar tudo o que haviam sofrido e disse-lhes que gozassem o dia.

Discutiram o assunto rapidamente entre eles e decidiram fazê-lo sem mais perdas de tempo.

- Não vens connosco, Aidan? - inquiriu Dugal, olhando-me com preocupação.

- Já não há nada que me interesse ver ou fazer nesta cidade - respondi. - Para além disso, só iria ensombrar a vossa alegria. Vai, diz as tuas orações e não tenhas receio... Estarei aqui quando voltares.

Foram-se embora e momentos depois vi aparecer Faysal, que me disse que lorde Sadiq queria falar comigo. Esperara um qualquer tipo de convocação... mas agora que ela chegara descobria que ainda não estava preparado para a enfrentar. Suponho que o meu sentimento de culpa por causa do afastamento entre mim e a Kazimain fazia com que temesse uma confrontação.

Tal como calculara, o emir não estava satisfeito. Depois de umas saudações simples e algo austeras, mandou-me sentar e declarou:

- A Kazimain disse-me que vocês dois não se irão casar. Embora não duvide nem da sua palavra, nem da sua honra, quero ouvir essa notícia dos teus próprios lábios.

- É verdade - repliquei. - Quebrei o meu voto e afastámo-nos. Os lábios do emir contraíram-se numa forte desaprovação.

- Não foi bem isso o que a Kazimain me disse... - informou-me - mas trata-se de uma questão entre um homem e uma mulher e não irei interferir se for essa a vossa decisão. Ofereci-me para te persuadir a mudar de opinião, mas a Kazimain não quis que o fizesse. - Fez uma pausa, tentando ler os meus pensamentos por intermédio da expressão do meu rosto.

Quando voltou a falar, acrescentou:

- Há um lugar para ti na minha corte. Preciso de um homem com as tuas consideráveis capacidades. Fica comigo, Aidan e farei com que ascendas à devida posição. Não precisas de casar com a minha sobrinha para obteres os meus favores uma vez que já ganhaste toda a minha sincera estima, muitas vezes, com o teu comportamento e carácter exemplares.

- Receio que estejais a lisonjear-me demasiado, lorde Sadiq - respondi. - A vossa oferta é tentadora mas não posso aceitá-la.

O emir acenou, em silêncio, aceitando a minha decisão com graciosidade.

- Que irás fazer?

- Vou regressar ao Eire - expliquei. Iria completar a peregrinação até ao fim. Era uma das coisas que, pelo menos, ainda podia fazer.

- Perdoa-me por to dizer, mas não voltarás a sentir-te feliz na tua terra mesmo que regresses mil vezes - avisou-me o emir. - Viste demasiado do mundo e dos seus costumes para te ires esconder num mosteiro.

- Pode ser verdade - admiti - mas não deixa de ser a minha casa. Sadiq observou-me e a sua disposição pareceu suavizar-se.

- Desejo que tudo te corra bem, meu amigo. - Levantou-se, assinalando o fim da conversa. - De qualquer modo, se alguma vez regressares a Samarra, encontrar-me-ás pronto para te receber e para retomar a nossa amizade.

- Fico-vos muito grato, lorde Sadiq. Porém, o meu coração está esfomeado e não ficarei satisfeito enquanto não voltar a ver o Éire.

- Vai em paz, Aidan - declarou o emir, levantando as mãos numa bênção. - Que Alá, Sábio e Poderoso, endireite o teu caminho e te proteja das astúcias de Satanás, e que o senhor das Hostes te garanta a paz nos seus palácios celestiais, para todo o sempre. - Levou a ponta dos dedos primeiro à testa e depois ao coração e acrescentou. - Sala'am, Aidan, e adeus.

Nessa noite comemos juntos pela última vez porque o emir insistiu em organizar uma festa de despedida em que estiveram presentes os rafiq e os monges. As conversas foram ligeiras e agradáveis, e Faysal e eu estivemos muito ocupados a traduzir para toda a gente. Passei todo o tempo da refeição à espera que Kazimain se nos juntasse, mas a noite terminou sem que a visse surgir.

Também não a vi na manhã seguinte quando o homem de Pietro apareceu para levar os fardos com as nossas poucas posses e partimos da villa para o navio que nos aguardava. Embora já nos tivéssemos despedido na noite anterior, Faysal insistiu em acompanhar-nos até ao cais. Afirmou que queria ter a certeza de que não nos perdíamos e de que não nos acontecia nada. Antes de trepar para bordo, ofereci a qadi a Faysal, como presente de despedida. Contudo, recusou a minha oferta, afirmando que se alguma vez regressasse a Bizâncio iria de certeza necessitar de uma boa lâmina. Cruzou as mãos sobre o peito, fez uma vénia e desejou a paz de Alá para a nossa viagem, e permaneceu de pé no cais até nos perder de vista.

Nunca mais voltei a ver nenhum desses meus amigos.

 

Nada direi a respeito da viagem de regresso a casa, excepto que foi exactamente o contrário da jornada que nos levara a Constantinopla. O navio era simultaneamente resistente e rápido, o tempo manteve-se quente e suave, a companhia de Pietro e da sua tripulação foi cordial e até a comida, que os venezianos preparavam com habilidade e exuberância, foi mais do que agradável, pelo que gozámos de confortos que nem sequer imaginávamos que pudessem existir entre os homens do mar.

Embora incitássemos o mestre do pequeno e resistente navio a regressar primeiro ao seu porto de origem para bem da carga que transportava, o homem nem sequer quis ouvir falar nisso e insistiu em levar-nos em segurança até ao nosso destino tal como havia combinado. Quanto mais o tentávamos convencer, mais teimoso se revelava.

- Vocês - declarou - são a minha principal preocupação. Não descansarei enquanto não se encontrarem novamente entre os vossos irmãos monges.

Perguntei mais uma vez a mim mesmo quanto lhe teria Harald pago para nos garantir aquele tipo de tratamento, e que ameaças teria feito para aumentar o incentivo. Contudo, como nada mais podíamos fazer, limitá-mo-nos a ficar sentados e a deixar que os dias fossem passando de um modo muito agradável... até à manhã em que Pietro foi ter connosco e disse:

- Se querem ver a vossa terra... então sigam-me!

Fomos até à proa, onde Pietro apontou uma mancha baixa e azulada que flutuava no horizonte.

- Ali é leme - declarou. - Agora, têm de me dizer onde querem desembarcar.

Reunimos em conselho e concluímos que Brynach, que era quem conhecia melhor a costa irlandesa, era o homem indicado para guiar o navio ao nosso destino. Foi o que fez e ao anoitecer já nos encontrávamos na baía em torno da foz do Rio Boann.

Pietro preferiu não se aproximar daquela costa rochosa durante a noite e largou o ferro na baía para esperarmos pela manhã. Passámos uma noi- te excruciante, à distância de um grito da nossa querida pátria mas impedidos de a alcançar até à manhã seguinte.

Finalmente, quando surgiram as primeiras luzes do dia, subimos o rio lentamente até Inbhir Pátraic, e desembarcámos no seu cais de madeira.

- Vejam só! - gritou Dugal quando os seus pés tocaram nas tábuas. - Acabámos de atravessar três mares e nem sequer molhámos os pés!

Na verdade, e tendo em conta a viagem anterior, fora um feito notável. Todos concordámos que os nossos companheiros venezianos eram belos marinheiros e louvámo-los de uma maneira extravagante, para sua grande delícia. Pietro gostou do aspecto da povoação e decidiu permanecer ali um dia ou dois para fazer comércio. Perguntou-me se estávamos dispostos a servir-lhe de tradutores. - Pagar-vos-ei bem - acrescentou. - Foram uma boa companhia a bordo do navio e gostaria de fazer isso por vocês.

Bryn agradeceu-lhe e disse que, embora a oferta fosse muito tentadora, tínhamos andado por longe durante muito tempo e estávamos ansiosos por regressar à abadia, que ainda se encontrava a dois dias de caminhada para o interior.

- No entanto, no que se refere ao comércio... - acrescentou - creio que irás descobrir que, para as gentes daqui, a prata fala por si mesma.

Despedimo-nos de Pietro e de todos os seus homens, para logo treparmos o íngreme e serpenteante trilho até ao alto da colina, onde fomos recebidos por uma pequena multidão que avistara o navio e se juntara ali na expectativa de notícias e de comércio.

O chefe abriu caminho por entre os outros para nos dar as boas-vindas... e o seu rosto exibiu uma expressão de verdadeiro espanto quando compreendeu quem tinha pela frente.

- Hoo! - exclamou. - Olhem quem aqui está! Regressaram de terras estrangeiras tão vigorosos como no dia em que partiram! - Olhou rapidamente em volta, para depois observar o trilho e o cais, lá em baixo. - Que Miguel me abençoe mas... onde estão os outros? Vão chegar mais tarde?

- Saudações, Ladra - respondeu Brynach. - Sim, já regressámos... mas apenas nós, os quatro. Infelizmente, não virá mais ninguém.

A afirmação provocou uma onda de murmúrios entre a multidão. Ladra olhou para cada um de nós e disse:

- Bom, bom... Seja como for, bem-vindos a casa. Devem ter muito para contar e ouvi-los-emos com todo o gosto!

- Receio que tenham de esperar mais um pouco - retorquiu Brynach. - A nossa primeira obrigação é informar os irmãos da abadia a respeito do nosso regresso. O dia está bom e sentimo-nos em forma e bem descansados. Creio que devemos seguir imediatamente para Kells...

O rosto de Ladra revelou o desânimo do homem e as pessoas à sua volta lamentaram-se. Apontei para o cais por baixo de nós e disse-lhes:

- Está ali um homem com a prata já pronta! Vão deixá-lo à espera no cais até se cansar e ir à procura de um comércio mais fácil em qualquer outro lado?

Houve um pequeno tumulto quando as pessoas se precipitaram ao encontro de Pietro para lhe darem as devidas boas-vindas. A agitação permitiu-nos passar por entre a multidão e seguir o nosso caminho sem sermos incomodados pela hospitalidade, bem intencionada, de toda aquela gente. Pusemos os fardos aos ombros e partimos.

Oh, era uma maravilha voltar a sentir a suavidade da turfa debaixo dos nossos pés e cheirar o ar fresco, húmido e enevoado. Os nossos olhares deparavam com uma abençoada verdura dos mais variados tons a cada volta do caminho, o que constituía um verdadeiro bálsamo para olhos acostumados à aridez seca e descolorida do Oriente. Caminhámos durante todo aquele dia envoltos na maravilha do reconhecimento: cada uma daquelas colinas e daquelas árvores parecia-nos um milagre sempre renovado, destinado a refrescar a alma e a deliciar os sentidos.

Não havia sensação melhor do que a de estar novamente no Eire e ver aquele lugar como se fosse pela primeira vez.

Continuámos a andar até ao meio-dia, descansámos junto ao rio e prosseguimos até ao momento em que a noite obscureceu o trilho. Não levávamos comida mas não considerámos isso como uma provação, uma vez que dormir novamente sob as estrelas do Verão e respirar o ar suave e perfumado daquela terra pacífica era sustento mais do que suficiente.

Levantámo-nos antes da madrugada e prosseguimos ansiosamente o nosso caminho, com tanto vigor e a um ritmo tal que ao entardecer já nos encontrámos à vista de Cenannus na Ríg. Parámos na última serrania para olharmos, através do vale, para as construções rodeadas pelo círculo de pedras, mas estávamos tão dominados por uma confusa mistura de sensações que nem sequer conseguimos falar. A felicidade que sentíamos por termos conseguido regressar em segurança entretecia-se com a tristeza pelos irmãos que não podiam estar ali, ao nosso lado.

Depois, enquanto olhávamos, ouvimos o som claro e nítido dos sinos da abadia a tocarem as vésperas. À terceira batida já Dugal começara a descer a serra, e à quinta já corria. Voámos pela vertente, correndo a velocidade máxima de que éramos capazes. Eu seguia logo atrás de Dugal, enquanto Brynach e Ddewi ficavam um pouco para trás. Atingimos o portão da abadia sem fôlego e muito cansados, mas também muito gratos por o estarmos.

- Chegámos a casa! - gritou Dugal, com o rosto a brilhar do esforço e do júbilo. - Aidan, finalmente, chegámos a casa!

O grito fez com que o porteiro saísse da sua cabana. Lançou-nos uma única olhadela, correu para a sua sineta e começou a tocá-la para anunciar a nossa chegada.

- Deus vos abençoe, irmãos! Bem-vindos! - gritou, tentando fazer-se ouvir por cima da sineta.

- Paulinus! - berrou Dugal, cheio de alegria. - Larga essa sineta, não conseguimos ouvir nada!

O Irmão Paulinus aproximou-se e parou na nossa frente sob a luz do crepúsculo, ansioso, a explodir de perguntas e de boas-vindas. Os monges saíam em correria da capela, precipitando-se para nós e no espaço de três batimentos do coração já nos encontrávamos rodeados por todos os lados pelos nossos bons irmãos, que gritavam boas-vindas e nos davam palmadas nas costas enquanto louvavam Deus e todas as hostes do céu pelo nosso regresso em segurança.

Foi então, mesmo no meio daquela alegria, que senti mais uma vez a vil serpente a levantar a cabeça dentro da minha alma. Infelizmente, não morrera com Nikos e só se mantivera adormecida. Ver todos aqueles queridos irmãos e ouvi-los a louvar Deus por nos ter protegido enquanto mandara tantos outros para a morte fez o com que o meu espírito se contorcesse. Ouvia os gritos de felicidade a ressoarem nos meus ouvidos mas não deixava de sentir o veneno a invadir a minha alma ferida.

A dor era quase insuportável e foi com extrema dificuldade que me consegui manter entre eles, sorrindo, rindo-me e aceitando as suas saudações... quando na realidade tudo o que mais desejava era fugir dali. Vi Dugal de joelhos, pedindo perdão a Libir por o ter empurrado nas rochas e virei a cara para o outro lado quando o amargo da bílis me subiu à garganta.

A seguir vi o abade Fraoch na nossa frente, de braços abertos num gesto de boas-vindas, celebrando a nossa chegada. Por trás dele, sorrindo de prazer por nos ver, encontrava-se Ruadh, o segundo na hierarquia da abadia e o meu muito querido confessor.

- Vejam! - exclamou Fraoch, com a sua voz quebrada a erguer-se num rouco grito de saudação. - Os viajantes estão de volta! A peregrinação foi concluída! Que Nosso Senhor Jesus Cristo seja louvado pela sua constante e firme protecção!

Seguiu-se uma renovada explosão de aclamações que o bom abade permitiu que prosseguissem durante algum tempo antes de levantar as mãos a pedir silêncio.

- Irmãos, é apropriado recebermos os nossos com louvores e agradecimentos a Deus... - declarou. - Contudo, vejo que regressaram apenas quatro dos treze que partiram e seria uma vergonha não perguntar por aqueles cuja ausência exige uma explicação.

Brynach avançou e comunicou a infeliz notícia de que éramos os únicos sobreviventes da peregrinação, explicando que os outros estavam todos mortos e que haviam trocado o Martírio Branco pelo Vermelho. Ouviram-se murmúrios de tristeza e de pena no meio da multidão, em especial pelos monges falecidos que tinham feito parte da nossa comunidade.

A seguir, Bryn fez sinal a Dugal para avançar. O volumoso monge abriu caminho até à frente do amontoado de irmãos, pegou no fardo cuidadosamente embrulhado que transportava às costas e pousou-o no chão em frente dos pés do abade Fraoch.

- O Aidan... - começou, com um aceno na minha direcção - não quis permitir que os restos mortais do nosso abençoado bispo Cadoc permanecessem entre os infiéis, em terras pagãs. Trouxemos as relíquias do bispo para casa, para serem enterradas com todas as honras e respeito.

O abade olhou com tristeza para o fardo dos ossos.

- Ah, bom... - murmurou. - Ah, mo croi, é um grande desgosto para mim e para todos nós. Que Cristo tenha piedade! - Levantou novamente os olhos e disse: - Obrigado, irmão Dugal. Obrigado também para ti, irmão Aidan. Foi muita consideração da vossa parte terem-se dado a esse cuidado. Estamos todos em dívida para convosco...

Ah! pensei, com a ira a subir dentro de mim. Queres que te diga como ele morreu? Queres que te diga como foi que lhe arrancaram a vida com toda a crueldade, para depois lhe atirarem o corpo para o lixo, com a consideração que se dá ao osso que roemos ontem? Queres que te diga que os ossos foram recuperados apenas para que um bando de bárbaros sem deus pudessem salvar os seus tesouros pilhados? Queres que te diga a verdade a respeito da protecção de Deus, constante e firme?

Claro que não lhe disse nada disso e que me limitei a reconhecer os sentimentos do abade com um aceno reverente.

- O sino tocou as vésperas e já tínhamos iniciado as nossas orações - disse o abade. - Regressemos à capela para agradecermos a Deus o regresso dos peregrinos.

Toda a gente começou a falar ao mesmo tempo, bombardeando-nos com perguntas e clamando para se fazer ouvir. Fomos arrastados pela bem-intencionada multidão, que nos levou até à porta da capela... e onde me vi a suportar um período de orações que para mim era muito mais pesado do que cem dias de escravidão nas minas do califa. Por fim, quando aquilo acabou, o abade permitiu-nos que nos retirássemos para as celas que nos tinham preparado.

Proibiu toda a gente de nos fazer mais perguntas naquela noite e mandou-nos dormir.

- Vejo que estão cansados da vossa longa jornada - disse. - Vão descansar e amanhã de manhã ouviremos as vossas histórias.

Fomos poupados a mais relatos sobre as atribulações a que havíamos sobrevivido. Abandonei a igreja, mergulhado no desespero, e dirigi-me para as celas. Dugal acompanhou-me, satisfeito por estar de novo num ambiente familiar e entre os seus amigos.

- Ah, mo croi! - suspirou, satisfeito. - Isto é bom, não achas, Dana?

- Sim - respondi.

- Para te dizer a verdade - afirmou - houve alturas em que julguei que não voltaria a ver este lugar.

- Essa ideia também me ocorreu - retorqui, enquanto pensava: Agora que estamos aqui outra vez, pergunto a mim mesmo o que houvera de tão importante. Que estávamos nós a tentar fazer? Que significado teve?

- Estás triste, Aidan? - perguntou Dugal.

- Não, apenas um pouco cansado - respondi, para evitar mais conversas sobre o assunto. - Não previ que teria de responder a tantas perguntas.

- Estiveste em Bizâncio - comentou, com simplicidade - e eles não. É claro que sentem curiosidade e não os podes censurar por isso.

Havia comida na cela: um pão escuro e um pouco de hidromel à maneira de boas-vindas. Comi sozinho à luz de uma única vela de cera de abelha e fui dormir a pensar no silêncio à minha volta... para ser acordado de madrugada pelo ressoar da sineta que assinalava o começo da rotina diária.

Não escutava aquele som havia muito tempo, mas o coração contraiu-se-me quando o ouvi. Pensei que aquela sineta, desde que eu me fora embora, continuara a tocar para as orações da manhã dia após dia e que nada, absolutamente nada, havia mudado. O mosteiro continuava exactamente como o deixara e o trabalho prosseguira, sempre na mesma, sem nunca mudar, tal como era antes do meu nascimento e como iria ser depois de eu já ser pó num qualquer túmulo desconhecido.

O desespero, que a manhã renovou, caiu sobre mim em verdadeiras ondas negras. Estivera em Bizâncio e para lá dela. Vira maravilhas de riqueza e poder sem igual. Servira potentados árabes e aguentara a vida de um escravo. Amara uma princesa sarracena... e que Cristo tivesse piedade, pois naquele momento estaria casado com ela se tivesse sido um homem melhor! Oh, Kazimain, perdoa a este tonto infeliz e miserável!

Na verdade, partilhara uma vida que era inimaginável para a simples irmandade da abadia e agora ali estava, de novo entre os monges de Kells, e nada se modificara... salvo eu próprio e não para melhor.

Jazi no meu catre de palha sob a luz cinzento-pérola da manhã, olhando para o árido tecto de pedra da minha cela, afogando-me na futilidade que me dominava e que me puxava para as profundidades do desespero. Fechei os olhos com força para suster as lágrimas, que de qualquer modo escorreram por baixo das pálpebras e me rolaram pelas faces.

Como iria enfrentar aquele dia? Como iria enfrentar o inocente interesse que todas as minhas palavras despertariam naqueles que haviam ficado para trás? Como iria enfrentar as perguntas infindáveis e ignorantes, e satisfazer uma curiosidade crédula e igualmente ignorante? Que ia eu fazer?

Permaneci na minha cela até depois do toque das primas e dirigi-me à cabana de Ruadh. Não estava, mas de qualquer modo entrei e sentei-me no chão, à espera que aparecesse. Enquanto esperava, passei os olhos pelo quarto de pedra nua com o estreito orifício de ventilação no alto da parede, o fino colchão de palha estendido no chão, a pouco profunda bacia de água aos pés da cama, o candelabro de ferro, a prateleira de pedra com a pequena cruz de madeira... estava tudo exactamente como recordava e como estivera no dia da minha partida.

Para mim, aquele quarto foi como um salmo de solidão, um hino de desolação e de estéril futilidade. Tive vontade de fugir mas ouvi passos que se aproximavam. Momentos depois, Ruadh entrou.

- Ah, estás aqui, Aidan... - disse, avançando para a cadeira, como que para retomar uma conversa interrompida por uma diversão temporária.

- Não te vi no salão, nem nas orações, e pensei que te iria encontrar aqui.

- Sempre me conheceste melhor do que eu próprio me conheço - retorqui.

- Sim, é verdade - respondeu, sorrindo. Cruzou as mãos sobre o colo e olhou para mim durante algum tempo, sorrindo para si mesmo.

- Bem-vindo a casa, Aidan - acabou por dizer. - É bom voltar a ver-te.

- E é bom vê-lo a si - afirmei.

- Ah, sim? - Ergueu uma sobrancelha interrogativa. - A expressão no teu rosto diz-me algo de diferente. - Fez uma pausa, verificou que eu não o negava e prosseguiu: - Estive a falar com o Brynach. Disse-me que a decisão de trazer o livro de volta a casa foi tua.

- E explicou o que me fez tomar essa decisão?

- Sim - respondeu Ruadh - mas quero ouvi-la da tua boca.

- A peregrinação falhou - expliquei, sentindo toda a minha amargura a voltar ao de cima. - Já nada mais podíamos fazer.

- Afirmou que falaste a sós com o Imperador.

- Sim, falei. Que mais lhe contou o Brynach?

- Disse que lhes salvaste as vidas.

Aquele dia, outrora tão repleto de recordações, parecia agora algo muito remoto. Abanei a cabeça lentamente. Ali, na simplicidade imutável da abadia, a minha antiga vida já começava a desaparecer no vazio.

Olhei para Ruadh - o meu anamcara, o meu bom amigo da alma -, que escutara pacientemente e durante muitos anos todos os meus sonhos e confissões, que me guiara, que me ajudara de mil maneiras diferentes com os seus sábios conselhos. Conhecia-me melhor do que ninguém mas nem sequer ele conseguiria compreender o mais pequeno fragmento de tudo o que me acontecera. Como contar-lhe? Por onde começar?

- Não foi nada... - respondi. - Qualquer outro teria feito o mesmo.

Conversámos mais um bocado, principalmente sobre a abadia e o reassumir das minhas obrigações no scriptorium. Ruadh acompanhou-me ao exterior quando me levantei para sair.

- O regresso leva tempo, Aidan. Não podes esperar regressar como se nada tivesse acontecido.

Ao longo dos dias seguintes evitei falar na peregrinação. Dava respostas vagas e evasivas sempre que me faziam perguntas, pelo que os meus irmãos acabaram por deixar de as fazer. No fim de contas, a vida do mosteiro prosseguia e o que estava feito... feito estava. Retomei as minhas obrigações e a rotina diária. O trabalho que outrora encarara com tanto orgulho e delícia era agora um perfeito tédio e até o próprio raspar da pena me fazia ranger os dentes. Para além disso, as palavras que escrevia não tinham significado. As orações transformaram-se apenas numa maneira de fugir ao scriptorium e embora me ajoelhasse na capela, com os outros, nunca abri o meu coração a Deus.

Como podia eu rezar? Conhecia Deus por aquilo que ele era: um monstruoso traidor de almas que exigia ser honrado, adorado e obedecido, que exigia a vida e o amor, prometendo protecção, cura e santuário. Depois, quando as necessidades eram maiores e ansiávamos pelo seu santuário, tínhamos... nada. Que nos dava ele, em troca de anos e anos de uma devoção submissa? Nada... ou menos do que nada.

Ajoelhava-me todos os dias na capela, ouvindo os meus simples irmãos a murmurarem as suas orações, e pensava: Mentiras! Tudo mentiras! Como é possível que alguém acredite numa única palavra?

Assim, o animal ferido que era o meu coração adoeceu e começou a devorar-se a si mesmo, mergulhado na infelicidade. Afundei-me mais e mais sob o peso de um desgosto maligno. Quando Brynach e Ddewi partiram para regressarem à sua abadia britânica, não os vi nem me despedi deles. Mais tarde, Dugal repreendeu-me por causa disso, mas não me ralei. Estava virado para dentro de mim mesmo, envolto num mundo de pesar, e os dias ia passando sem que eu desse por isso e sem que me preocupasse.

Houve um dia em que me levantei e vi, para meu grande espanto, que o Inverno chegara a Kells e que eu nem sequer dera pela mudança das estações. O cinzento do céu e da terra era o cinzento da minha própria alma envolta em trevas. Parei na frente da minha cela e olhei para lá do pátio enlameado, para a nossa pequena igreja... e estremeci de desgosto. Depois do brilhante esplendor de Hagia Sophia e das torres da Grande Mesquita, a nossa rude estrutura de pedra parecia uma coisa medíocre e malfeita. Olhei em volta, para todas as coisas que outrora considerara sublimes na sua humilde simplicidade, e achei-as rudes, feias, vulgares e repugnantes quando comparadas com a resplandecente realidade de tudo o que vira e fizera em Bizâncio.

Compreendi então, para meu horror, que a brilhante verdade das minhas recordações estava a apagar-se rapidamente, sendo substituída pelo vazio, por um escuro aglomerado de sombras que se agitavam num vazio cada vez maior. Em breve não restaria nada, nem sequer as próprias sombras, e a escuridão estaria completa.

Oh, mas outrora as minhas memórias haviam pulsado com o calor do sangue e da vida. Em desespero, forcei-me a recordar que caminhara ao lado de reis e conversara em línguas que esta terra nunca ouvira. Outrora estivera na proa de um navio dos Lobos do Mar e navegara por oceanos desconhecidos dos marinheiros do Éire. Cavalgara através de terras desertas e jantara alimentos exóticos em tendas de árabes. Vagueara pelas lendárias ruas de Constantinopla e vergara-me perante o trono do Sacro Imperador Romano. Fora escravo, espião e marinheiro. Conselheiro e confidente de lordes, servira árabes, bizantinos e bárbaros. Usara os farrapos dos cativos e os trajos de seda de um príncipe sarraceno. Outrora possuíra uma adaga com o punho cravejado de jóias e tirara uma vida com a minha própria mão. Ah, sim, outrora tivera uma bela mulher nos meus braços e beijara os seus lábios quentes e vibrantes.

Ah, se ao menos tivesse morrido em Bizâncio!

A morte teria sido melhor, muito melhor, do que o doloroso e persistente vazio que era agora a minha vida. Baixei a cabeça e lamentei o desespero da minha situação. Nessa noite, visitei a cabana do meu confessor pela última vez.

 

- Não posso continuar aqui mais tempo - disse-lhe, com a brus-quidão do desespero.

- Ora, surpreendes-me, Aidan. Pensei que já te tinhas ido embora há muito... - replicou Ruadh, fazendo-me sinal para entrar e para me sentar. Instalou-se na cadeira, juntou as mãos e perguntou: - Que esperavas encontrar?

A pergunta, bem como o seu comportamento plácido, apanharam-me de surpresa. Tive de pedir que a repetisse porque não tive a certeza de o ter ouvido bem.

- Refiro-me à tua peregrinação, Aidan... O que esperavas encontrar em Bizâncio?

- Na verdade? - respondi, sentindo-me provocado pela subtil insinuação de que, de algum modo, a culpa da infelicidade que sentia era minha. - Esperava encontrar a minha morte - acrescentei, contando-lhe a visão que tivera em sonhos na noite antes da partida.

- Sim, não há dúvida de que foi um sonho curioso - admitiu Ruadh calmamente. Ficou a pensar por instantes, olhando para a cruz de madeira na prateleira de pedra. - É costume dizer-se que a peregrinação é o Martírio Branco - murmurou. - Dizemos que o peregrino procura não o local da sua morte, mas sim o da ressurreição. É uma afirmação curiosa... a não ser que o peregrino já esteja morto.

Deixou que as palavras provocassem o seu efeito. Depois, virando o olhar para mim, declarou:

- Ouvi, da boca de Bryn e Dugal, quase tudo o que aconteceu. Como é natural, sabiam muito pouco da tua estada entre os Lobos do Mar e os Sarracenos, mas creio que compreendi o suficiente daquilo que me disseram para saber o que se passou contigo. - Inesperadamente, Ruadh sorriu. - Aidan, experimentaste uma vida que os teus irmãos nem sequer conseguem começar a imaginar. Viste mais do que a maioria dos homens vêm em dez vidas. Foste ricamente abençoado.

- Abençoado! - Quase me engasguei com aquela palavra. - Amaldiçoado, queres dizer!

Não prestou atenção ao meu protesto e prosseguiu:

- Por isso, vou perguntar-te outra vez: que esperavas encontrar?

- Esperava que Deus honrasse a sua palavra - repliquei. - Pelo menos isso, mesmo que mais nada. Pensei que podia depender da verdade... mas descobri que não há verdade. Os inocentes são chacinados por todo o lado. Morrem enquanto imploram a Deus que os salve, mas a morte leva-os à mesma. Os guardiões da própria fé são mentirosos inconstantes e a Santa Igreja de Cristo é um ninho de víboras. O Imperador, Vice-Regente de Deus sobre a Terra, é um assassino vil e nada santo.

- A vida é a escola do espírito, Aidan - entoou Ruadh com uma suave insistência. - A aprendizagem é uma necessidade da alma e o sofrimento é o mais persuasivo dos mestres.

- Oh, sim, é uma escola... - concordei, sentindo a pulsante dor da futilidade. - É uma escola terrível em que aprendemos lições muito duras e amargas. Começamos por sermos confiantes e aprendemos que não há ninguém merecedor da nossa confiança. Aprendemos que estamos sós no mundo e que os nossos apelos não são ouvidos. Aprendemos que a morte é a única certeza. Sim, todos nós morremos, a maioria na agonia e no tormento, alguns na infelicidade e são muito poucos, apenas os mais afortunados, os que morrem em paz. Contudo, todos morremos. A morte é a resposta de Deus a todas as nossas orações.

- Não blasfemes, Aidan... - aconselhou-me Ruadh, com firmeza.

- Blasfemar! - exclamei, irado. - Porquê, se o que digo é o verdadeiro coração da verdade de Deus, irmão? Como pode ser uma blasfémia? Pomos a nossa confiança no Senhor Deus e concluímos que somos tolos por acreditarmos. Aguentámos a escravatura, a tortura e a morte e Deus não ergueu um dedo para nos salvar. Vi o nosso abençoado bispo Cadoc ser feito em bocados na frente dos meus próprios olhos e Deus - o Deus que ele amava e serviu durante toda a vida - nem sequer levantou um dedo para lhe aliviar o sofrimento.

Ruadh olhou-me com severidade e com a testa franzida de desaprovação.

- Também não fez nada quando o Seu amado filho morreu na cruz - salientou o meu anamcara. - Estamos mais perto de Cristo quando partilhamos as infelicidades do mundo. Pensas que Jesus veio para te remover o sofrimento? Onde foste buscar essa noção? O Senhor veio não para remover o nosso sofrimento mas para nos mostrar o caminho para lá dele, o caminho que nos pode levar à glória. Veio para nos dizer que podemos ultrapassar o nosso sofrimento. É essa a promessa da cruz.

- Uma promessa que vale tanto como o ar vazio - retorqui. - Foram treze os monges que partiram desta abadia e só quatro regressaram. Pagámos um preço terrível... e para nada! Todos os nossos tormentos de nada serviram e nada realizaram! Não tivemos qualquer proveito. Tanto quanto posso ver, os únicos afortunados foram os bárbaros, que partiram em busca de saques e regressaram a casa muito mais ricos do que podiam ter imaginado. Esses, pelo menos, conseguiram o que queriam.

Ruadh ficou em silêncio durante algum tempo.

- Aidan, perdeste a tua fé? - acabou por perguntar.

- Não perdi a minha fé - grunhi. - Foi-me roubada. Deus abandonou-me!

- Ah, então é por isso que queres partir - comentou. Não tentou dissuadir-me e fiquei-lhe grato por isso. - Tens alguma ideia sobre para onde poderás ir?

- Não. Só sei que aqui já não há lugar para mim.

- Acho que tens razão - concordou o meu anamcara com toda a gentileza. - Penso que deves partir.

Mais uma vez, a sua atitude surpreendeu-me.

- A sério?

- Oh, sim. Muito a sério. Alguém que sofreu o que tu sofreste e que sente o que tu sentes não deverá ficar aqui. - Olhou-me com uma compaixão paternal. - Contudo, o Inverno é uma estação muito dura. Fica pelo menos até à Primavera... ou talvez até à Páscoa.

- E que irei fazer até lá? - perguntei.

- Até lá - replicou - podes aproveitar o tempo para pensares no que gostarias de fazer quando saíres daqui.

- Muito bem - concordei. Parecia-me um plano sensato e não tinha outro. - Ficarei até à Páscoa.

Tomada a decisão, a vida tornou-se-me mais fácil sob certos aspectos. Já não me sentia um Judas. Comecei a aguardar a Primavera e a pensar para onde queria ir e no que queria fazer. No fim, decidi regressar para junto do meu próprio povo. Mesmo que não ficasse lá definitivamente, podia pelo menos permanecer aí até descobrir um lugar melhor. No fim de contas, ainda era um nobre do meu clã. Tinham-se passado muito tempo desde a última vez que visitara a povoação mas de certeza que não me mandariam embora.

Os dias foram escorrendo devagar e a longa e branca maré do Inverno foi passando. A Primavera chegou, a época da Páscoa aproximou-se e comecei a pensar no que iria dizer a Dugal, que ainda nada sabia a respeito da minha decisão de abandonar a abadia. Contudo, e embora me preparasse frequentemente para abordar a questão junto dele, encontrava sempre motivos para me conter quando as oportunidades surgiam.

De qualquer modo, quando a terra aqueceu e deu lugar a uma Primavera suave e agradável, decidi que teria de lho dizer na primeira oportunidade, acontecesse o que acontecesse. Três dias antes da Páscoa fui à sua procura mas não o encontrei em lado nenhum. Um dos irmãos disse-me que pensava que Dugal tinha seguido o seu costume sazonal e fora ajudar os pastores a tomar conta dos borregos no vale seguinte.

Foi aí que encontrei o meu amigo, sentado na vertente, vigiando o rebanho. Saudou-me com calor e sentei-me a seu lado.

- Irmão... - disse-lhe - tenho um peso no coração.

- Então fala - retorquiu - se achares que a partilha desse peso te deixará mais aliviado. - Reparei que não me fitou e que manteve os olhos nas ovelhas que pastavam. Talvez o modo como me comportara para com ele durante todo o Inverno o tivesse feito pressentir a minha partida.

- Dugal, eu... - As palavras ficaram-me entaladas na garganta. Engoli em seco, com força, e prossegui. - Dugal, vou-me embora. Não posso...

Interrompi-me naquele instante porque Dugal se pôs de pé num salto.

- Escuta! - gritou, apontando para o outro lado do vale.

Olhei para onde apontava e via a figura de um homem - um monge, um dos pastores - que descia a vertente a correr o mais depressa que podia. Gritava enquanto corria mas não consegui distinguir as palavras.

- Que está ele a dizer?

- Shhh! - fez Dugal, num tom urgente, pondo a mão em taça em volta da orelha. - Escuta!

O grito voltou a ouvir-se e distingui qualquer coisa.

- Lobos! - exclamei. - Ele viu um lobo!

- Não foi um lobo... - replicou Dugal, já a virar-me as costas - mas sim Lobos do Mar!

Corremos de volta para a abadia tropeçando no restolho de Inverno das terras ainda por arar. Chegámos sem fôlego, para darmos o alarme. No espaço de três batimentos de coração já todo o mosteiro mergulhara numa agitação bem ordenada enquanto os monges corriam para aqui e para acolá num esforço determinado para esconderem os tesouros da abadia: os cálices e o prato usados nos Santíssimos Sacramentos, candelabros, o panejamento do altar, os manuscritos e os livros que para nós eram preciosos, mesmo que as suas capas não tivessem qualquer valor.

Felizmente, o aviso fora suficientemente atempado e quando os atacantes apareceram à vista já nós nos encontrávamos preparados. O abade Fraoch iria ao encontro deles, no portão, e oferecer-lhes-ia o gado e os cereais para que não molestassem os edifícios.

De acordo com esse plano, mandou que me chamassem.

- Creio que consegues falar com eles na sua própria língua... - disse.

- Aye, fala a língua como um verdadeiro Lobo do Mar! - afirmou Dugal, querendo ser útil.

- Tentarei - respondi - embora isso possa não servir de nada. São sempre difíceis de persuadir e não dão ouvidos a ninguém quando estão ansiosos por prata.

- Faz o que puderes - insistiu o abade. - Apoiar-te-emos com as nossas orações.

Ruadh ocupou o seu lugar ao lado do abade e declarou:

- Todos nós rezaremos por ti, Aidan.

Pensei um pouco sobre a melhor maneira de receber os atacantes e concluí que se me afastasse um pouco do portão, sozinho, talvez tivesse mais possibilidades de deter o ataque, uma vez que logo que chegassem à abadia já não era provável que estivessem dispostos a ouvirem o que tinha para lhes dizer. Por isso, enquanto os restantes monges se amontoavam ao portão para verem o que se ia passar, caminhei ao longo do trilho para ir ao encontro dos assaltantes.

Já conseguia distingui-los. Tinham atravessado o rio e subiam a comprida vertente da colina. Era um grupo de pelo menos trinta viquingues com as lâminas em forma de folha das suas longas lanças a brilharem ao sol.

Ouvi um murmúrio suave por trás de mim. Olhei por cima do ombro e verifiquei que os monges da abadia se tinham ajoelhado, de mãos unidas e com as vozes erguidas numa ardente oração, implorando a intervenção de Deus a meu favor.

Quando voltei a virar-me para a frente já os Lobos do Mar se encontravam mais perto. Distingui alguns dos indivíduos da fileira da frente e tentei perceber quem seria o chefe-de-batalha. O gigantesco dinamarquês que sobressaía no meio dos seus companheiros pareceu-me a escolha óbvia, mas logo a seguir reparei que ao lado daquele gigante avançava uma figura cujos movimentos eu reconheceria sempre e em qualquer lado, tanto de dia como de noite.

Mais um instante... e os meus pés voaram ao encontro do grupo enquanto a boca gritava:

- Harald! Gunnar! Sou eu, o Aidan!

Mal dei por isso e já a voz de Harald Berro-de-Touro gritava uma resposta enquanto me sentia arrastado para o familiar ritual de abraços capazes de esmagar ossos que substituía as saudações de boas-vindas entre os Lobos do Mar dinamarqueses.

- Sabia que te encontraríamos se continuássemos a procurar! - declarou Gunnar com orgulho. - Foi o que lhes disse... e aqui estamos!

- Na verdade, disse-nos a mesma coisa tantas vezes que não tivemos um dia de descanso até te encontrarmos! - explicou o jarl Harald. - Andamos à tua procura desde que os gelos começaram a derreter.

Os monges, vendo-me rodeado pelos viquingues, correram em minha defesa... embora nem sequer consiga adivinhar o que poderiam eles ter feito. Dugal encontrava-se entre os primeiros e gritei-lhe:

- Está tudo bem! Diz aos outros que nada têm a temer. O jarl Harald veio visitar-nos!

Dugal conseguiu abrandar um pouco a correria dos monges, que se aproximaram, inseguros, soltando murmúrios baixos e surpreendidos, com as bocas abertas de espanto perante os bárbaros com um aspecto estranho. Peguei nos braços de Harald e Gunnar e conduzi-os para junto do abade Fraoch e de Ruadh, dizendo-lhes:

- Apresento-lhes Harald Berro-de-Touro, rei dos Dinamarqueses da Escandinávia, e o seu karl, Gunnar Maço-de-Guerra.

- Transmite-lhes as nossas melhores saudações e dá-lhe as boas-vindas em nome de Nosso Senhor Jesus Cristo - pediu o abade. - Diz-lhe que ele e os seus homens serão nossos hóspedes de honra.

Disse-o a Harald, resplandecente num manto azul e numas belas calças do vermelho mais profundo. Avançou para os monges com o ouro e a prata a reluzirem na garganta e nos punhos, e com a longa barba vermelha bem penteada e de pontas entrançadas. Usava sete braçadeiras de prata em cada braço, e tinha sete fechos de prata a segurarem-lhe o manto.

Inclinou a cabeça com imponência logo que lhe traduzi as saudações do abade e fez sinal a um dos seus karlar para que se aproximasse. O homem entregou-lhe um volumoso objecto envolto em couro, que Harald aceitou e começou a desembrulhar. Instantes depois, a ardência branca da prata encandeou-nos a todos.

Os monges ofegaram e murmuraram de espanto ante aquela visão e precisei de alguns momentos para compreender o significado do que estava a ver.

Uma cumtach?! - exclamei. Sim, mas que capa para um livro! Era em prata maciça, gravada com a imagem de uma cruz. Tinha um rubi talhado em quadrado em cada um dos braços e um aglomerado de esmeraldas a decorar o centro. - Jarl Harald, francamente! Nunca vi nada igual!

- É para o vosso livro sagrado - declarou o monarca, colocando o tesouro nas mãos do abade Fraoch. Fez uma vénia e explicou: - Perdi a primeira capa a favor do jarl de Miklagard, facto que me deixou muito vexado. Creio que esta servirá para a substituir. Foi feita com parte da prata que trouxemos da mina dos sarracenos. Se não fosse o Aeddan, nenhum de nós estaria vivo para gozar o nosso tesouro.

O abade quase não conseguiu acreditar no que ouviu quando lhe traduzi as palavras do jarl.

- É uma dádiva rara e magnífica, lorde Harald... - replicou Fraoch, impressionado para além do que era possível imaginar - e completamente inesperada. Nem sei como lhe poderemos agradecer devidamente...

O monarca dinamarquês ouviu a resposta e respondeu:

- Não me agradeçam - disse. - O tesouro não é uma dádiva, viemos fazer uma troca e trouxemos isso como pagamento.

- Uma troca? - interrogou-se o abade quando lhe transmiti as palavras. Olhei para Gunnar, que se encontrava ao lado do monarca e quase tremia de excitação contida.

Harald Berro-de-Touro virou-se para mim e declarou:

- O Gunnar nunca mais deixou de falar nesse vosso deus desde que o Aeddan regressou para nos ir buscar ao poço dos escravos. Não conseguia falar noutra coisa e insistiu que tínhamos de construir uma igreja para o Cristo e de começar a venerá-lo na Escandinávia.

"Jurei construir a igreja, mas não temos ninguém para nos ensinar o que devemos fazer. Por isso, creio que terás de vir connosco para que possamos ter algum sossego.

Gunnar agarrou-me antes de eu conseguir pensar numa resposta.

- Vem, irmão! Quero que o Ulf seja um sacerdote e não conheço homem melhor para o ensinar!

Olhei para Gunnar e senti a brilhante felicidade daquele encontro a desvanecer-se ante as suas palavras.

- Quem me dera que tivesses dito tudo menos isso... - respondi.

- Não posso ir convosco. Já não sou um sacerdote.

- Não és um sacerdote? - interrogou-se Gunnar, sempre a sorrir.

- Como é isso possível?

O abade Fraoch interveio antes de me conseguir explicar e pediu-me para convencer os dinamarqueses a ficarem connosco e a observarem a celebração da Páscoa. Harald, sempre pronto para tudo o que fossem festividades, concordou imediatamente e seguimos para o salão onde lhes oferecemos taças de hidromel num gesto de boas-vindas.

O abade decidiu que tinha de mostrar a abadia aos Lobos do Mar e explicou-lhes todos os mais pequenos pormenores da vida monástica, incluindo a Santa Missa que marcaria o princípio das celebrações da Páscoa. Coube-me traduzir todas as explicações do abade. Como Harald afirmou que estava interessado em tudo, a tradução das frases que trocavam entre si deixou-me completamente exausto. Examinámos a capela e o oratório, a torre e o seu sino, as celas dos monges, as instalações para os hóspedes e até os interiores dos armazéns. De todos os lugares que viram, o que mais agradou aos dinamarqueses foi o scriptorium.

- Olhem! - gritou Harald, pegando numa folha de pergaminho recentemente copiada. - É igual ao livro que o Aeddan tinha!

Os Lobos do Mar trataram de examinar o trabalho de todos os monges, fazendo muitos comentários a respeito dos astutos desenhos e das belas cores das folhas em que os escribas trabalhavam. Fraoch insistiu em mostrar-lhes como os pigmentos eram moídos e transformados em tinta, como o ouro era trabalhosamente aplicado, e o modo como as várias peles eram reunidas para formar um livro. Os dinamarqueses soltavam exclamações, tal como crianças, enquanto obtinham os seus primeiros vislumbres de compreensão.

Devido a esta prolongada distracção, foi apenas depois da refeição da noite que tive uma nova oportunidade de conversar a sós com Gunnar.

- É um belo lugar - declarou, aprovador. - Creio que iremos construir um lugar como este na Escandinávia.

- Com certeza... - concordei - mas eu...

- A Karin gostaria de o ter visto... - acrescentou - tal como o Helmuth.

- Foi uma pena que não viessem contigo - repliquei. - Gunnar, eu não posso...

- Morreram enquanto eu andava a-viking - declarou, com um suspiro. - Y'va disse que foi um Inverno muito mau, que a febre os apanhou e que morreram, primeiro o Helmuth e depois a Karin. Também morreram muitos outros. Foi uma coisa muito má.

- Gunnar, lamento muito sabê-lo...

- Heya - suspirou, sacudindo a cabeça com tristeza. Ficámos sentados em silêncio por alguns instantes, mas depois sorriu e declarou: - Porém, agora tenho uma filha. Nasceu na Primavera depois da nossa partida. É muito parecida com a mãe e dei-lhe o nome de Karin... - O sorriso tornou-se tristonho. - Ylva é agora a minha esposa e as coisas não vão mal. Ah, mas sinto a falta da Karin, Aeddan. Era boa para mim e sinto a falta dela. - Fez uma pausa, recordando a boa esposa, e acrescentou: - Ah, mas todos temos de morrer e voltarei a vê-la no céu, heya? O desespero lançou a sua negra capa sobre mim e retorqui:

- Já viste que não é possível confiar neste Deus... e mesmo assim queres construir-lhe uma igreja? Ora, Gunnar, passarão melhor sem ela!

Gunnar fitou-me com uma expressão incrédula.

- Como podes falar desse modo, Aeddan, em particular depois de tudo o que viste?

- É precisamente por causa de tudo o que vi que falo como falo - retorqui. - Deus não se rala connosco. Reza, se isso te fizer sentir melhor, pratica o bem, se isso te agradar... mas Deus permanecerá indiferente de uma maneira ou de outra.

Gunnar ficou calado durante um bocado, olhando para a nossa pequena capela de pedra.

- O povo da Escandinávia reza a muitos deuses, que não o escutam nem se preocupam - acabou por dizer. - Contudo, lembro-me do dia em que me falaste de Jesus, que foi viver com os pescadores e foi pregado numa árvore pelos skalds e pelos romanos, até morrer. Recordo-me de ter pensado: este Deus Pendurado é diferente dos outros. Este Deus também sofre, tal como o seu povo.

"Também recordo que me disseste que era um deus de amor e não de vingança, pelo que quem quer que invoque o Seu nome se poderá juntar a Ele no seu grande salão de festas. Agora, pergunto-te: Odin fará isso para os que o adoram? Será que Thor sofre connosco?

- Essa é a grande glória da nossa fé - murmurei, pensando nas palavras que Ruadh me dissera, mas transformando-as de modo a reflectir os sentimentos de Gunnar. - Cristo sofre connosco e é através desse sofrimento que nos aproxima dele.

- Isso mesmo! - concordou Gunnar, entusiasmado. - És um homem sábio, Aeddan. Sabia que compreenderias. Creio que isso é muito importante.

- E achas que é reconfortante?

- Heya!- declarou. - Lembras-te de quando o superintendente da mina nos ia matar? Lá estávamos nós, com os corpos quebrados, as peles enegrecidas pelo Sol... E o calor que fazia? Lembras-te?

- Claro, não é uma coisa que se esqueça com facilidade!

- Pois olha, eu estava a pensar isso mesmo. Pensava: vou morrer, mas Jesus também morreu e portanto sabe como me sinto. Também pensei: será que me reconhecerá quando eu for ter com ele? Sim! Estará sentado no seu grande salão, ver-me-á a navegar na baía e correrá ao meu encontro na costa. Entrará no mar, puxará o meu barco para a areia e irá receber-me como a um irmão que andou por longe. E porque o fará? Porque também ele sofreu e sabe, Aeddan, ele sabe.

- Radiante, Gunnar concluiu: - Não achas que são boas novas? Concordei que sim e Gunnar ficou tão repleto de alegria perante aquela ideia que não tive coragem para lhe dizer que não podia ir com ele para ser o seu sacerdote. Mais tarde, nessa noite, depois dos nossos visitantes estarem tão confortáveis quanto possível no alojamento para os hóspedes, deitei-me para dormir mas descobri-me a pensar em como era estranho que Gunnar tivesse chegado à fé daquele modo.

Claro, fora eu próprio quem lhe dissera a maior parte do que ele sabia. Porém, passara pelas mesmas dificuldades e sofrera tudo o que eu sofrera ou até mais - eu, pelo menos, não perdera a esposa e os amigos para a febre enquanto fora um escravo em terras estranhas - mas as suas provações tinham criado nele uma afinidade com Cristo, enquanto as minhas haviam provocado apenas uma separação. Pareceu-me tratar-se de algo muito estranho... e mais estranho ainda foi o facto de ter adormecido a interrogar-me não sobre o que haveria de errado com Gunnar, mas sim sobre o que haveria de errado comigo...

A ideia perseguiu-me durante todo o dia seguinte. Era o Dia da Paixão, a comemoração da morte de Cristo, e o princípio das celebrações da Páscoa. Os monges não trabalham nesse dia, pelo que tivemos tempo para entreter os nossos hóspedes. O abade Fraoch, que não era homem para perder uma oportunidade de espalhar a fé, chamou-me e pediu-me para reunir os dinamarqueses para que se lhes pudesse dirigir. Obedeci ao pedido e o abade convidou-os a baptizarem-se.

- Acha que é sensato? - perguntei-lhe, enquanto Harald e os outros discutiam a oferta. - Nada sabem do cristianismo. Não tiveram qualquer instrução.

- Limito-me a abrir a porta... - disse-me o abade - e o Bom Deus que faça entrar quem quiser. - Levantou a mão para onde os Lobos do Mar conferenciavam entre si e acrescentou: - Olha para eles, Aidan. Vieram aqui para conseguirem um sacerdote e para construírem uma igreja. Este é um muito favorável Dia do Senhor! Deixa-os selar a sua fé... agora que o espírito está em movimento. Mais tarde haverá muito tempo para lhes dar instrução!

Harald manifestou-se naquela altura, dizendo:

- Reunimo-nos em conselho sobre este assunto e decidiu-se que Gunnar está disposto a fazê-lo e que deve ser baptizado.

Transmiti a resposta ao abade, que se declarou muito satisfeito e que guiou imediatamente todo o grupo de dinamarqueses e de monges para fora do mosteiro e ao longo do trilho que dava para o rio onde frequentemente nos banhávamos. Aí chegados, Fraoch libertou-se do hábito e entrou na água só com o manto. Tive que me juntar a ele para poder actuar como tradutor de todo o procedimento. Fraoch chamou Gunnar para a água, dizendo:

- Que aquele que se ergue com Cristo também morra com ele. Despindo as roupas, Gunnar entrou no rio e patinhou até onde nos encontrávamos. O abade fez-lhe as três perguntas indispensáveis: renuncias ao mal? Abraças Cristo? Permanecerás um seu servidor fiel até ao fim da tua vida?

Gunnar respondeu a cada uma das perguntas com um sonante Heya, após o que lhe pegámos pelos braços, o mergulhámos na água e o levantámos para uma nova vida de fé. O abade pegou no seu frasco de óleo santo e fez o sinal da cruz na testa de Gunnar, dizendo: "Marco-te com a cruz de Cristo, que de agora em diante será o teu senhor, redentor e amigo. Vai, Gunnar Maço-de-Guerra, e vive para glória de Deus pela luz que há em ti."

Gunnar abraçou-nos, a mim e ao abade, e saiu do rio com uma expressão radiante. Deram-lhe um novo manto branco, para que o usasse, e foi recebido pelos monges da abadia como um irmão em Cristo. Depois, deixando-se arrastar pela maravilha daquele momento, os irmãos cantaram-lhe a bênção do baptismo:

"Despeja sobre ele as tuas graças, ò Eterno; Concede-lhe virtude e incremento, Concede-lhe força e direcção, Concede-lhe fé e a bondade do amor, Para que possa vir a estar na tua presença, feliz para sempre, três vezes para sempre. Amém!"

O ritual impressionou de tal modo os Lobos do Mar que todos eles se libertaram das roupas e se meteram na água para também serem baptizados. Harald exigiu ser o seguinte e o abade concedeu-lhe essa honra depois de chamar Ruadh, Cellach e alguns dos outros para o ajudarem. A cerimónia ocupou-nos durante quase todo o dia, até ao crepúsculo, e quando nos reunimos para as vésperas do Dia da Paixão já o fizemos com trinta novos convertidos. Traduzi-lhes as palavras das orações e dos salmos, e afirmaram ter achado tudo muito agradável e satisfatório.

Durante toda a refeição da noite e ao longo do dia seguinte vi-me forçado a explicar o significado de tudo aquilo, uma vez que os cristão neófitos queriam saber se tinham passado a ser invencíveis mas batalhas e se teriam sempre sorte em todos os seus empreendimentos.

- Não - disse-lhes. - Na verdade, é precisamente ao contrário. Se a minha vida puder servir de exemplo, então irão ser supremamente infelizes e vulneráveis a todos os males existentes sob o céu.

Contudo, penso que aquela afirmação me caiu mal, porque tive dificuldade em adormecer e não parei de me agitar na cama, sem conseguir descansar. Acordei um pouco antes da madrugada, levantei-me, deixei a cela... e descobri que a abadia havia desaparecido durante a noite. À minha volta via apenas uma extensão incaracterística e plana, que se estendia em todas as direcções até ao horizonte, sem colinas, sem rochas, sem árvores. Era um lugar deserto onde os ventos uivavam e tão vazio que me fazia doer os ossos.

Perguntei a mim mesmo: Que terá acontecido à abadia? Para onde terá ido toda a gente?

Enquanto me debatia para entender a enormidade daquele desastre, ouvi por cima de mim o som de uma águia que gritava enquanto voava. Levantei os olhos e vi a grande ave a pairar no céu vazio, solitária, com as asas estendidas e os olhos aguçados em busca de um lugar para pousar.

De súbito, eu estava com a águia, olhando, procurando um local onde descansar. Procurava, procurava, mas nunca encontrava. A ave pairava sobre as terras áridas e selvagens tendo apenas por companhia o zumbido do vento que passava através das extremidades das penas inteiramente esticadas. Senti o cansaço a pesar naquelas largas asas enquanto percorriam o céu vazio, mas a maravilhosa ave continuava a voar sobre a paisagem de nada que a rodeava, sem nunca encontrar onde pudesse repousar.

Então, quando as grandes e fortes asas começavam a fraquejar, tive um relance, muito ao longe, para leste, do vago clarão avermelhado do Sol que se erguia sobre o nevoeiro que envolvia o mundo. O Sol subiu, alto, cada vez mais alto e mais brilhante, reluzindo com o clarão vermelho-ouro da forja do céu.

Os meus olhos ficaram encandeados com o brilho do Sol, não o consegui suportar e tive de os desviar. Contudo, quando voltei a olhar... maravilha das maravilhas! O que se erguia no céu não era o Sol mas sim uma enorme e brilhante cidade disposta sobre sete colinas. Era Constantinopla, sim, mas tal como eu nunca a vira. Estava viva com o brilho das suas maravilhas, torres, cúpulas, basílicas, pontes, arcos triunfais, igrejas e palácios, e tudo aquilo resplandecia e cintilava. Cada uma daquelas colinas brilhava com um esplendor perfeito, irradiando a luz da sua própria beleza, iluminada pelos sóis da fé e da santidade. Bizâncio, a Cidade de Ouro, cintilava como um tesouro de uma magnificência inultrapassável.

A fatigada águia viu a Nova Roma a erguer-se na sua frente e ganhou alento, batendo as asas com uma força renovada. Finalmente, pensei, a valorosa ave está salva porque de certeza que, algures nesta cidade esplendorosa, irá certamente encontrar um local de descanso.

A águia voou, mais perto, cada vez mais perto, com cada batida das suas asas a aproximá-la rapidamente do refúgio da cidade dourada. A orgulhosa ave, com as batidas do coração a acelerarem-se à vista de uma tão extravagante recompensa pela sua perseverância, começou a descer e a abrir as grandes asas enquanto se preparava para pousar na torre mais alta. Porém, quando se aproximou, a cidade modificou-se repentinamente. Oh, afinal não era uma cidade mas sim uma besta gigante e raivosa, com os quartos traseiros de um leão e os quartos dianteiros de um dragão, com uma pele de escamas douradas e garras de vidro, e com uma enorme boca escancarada que tinha espadas em vez de dentes.

A águia contorceu-se no ar e soltou um grito de alarme, batendo as asas numa retirada. Porém, a besta dourada esticou o longo pescoço semelhante a uma serpente e apanhou a fatigada ave em pleno céu quando esta tentava escapar-se. As mandíbulas fecharam-se e a águia desapareceu.

O estrondo seco que as grandes mandíbulas da besta dourada provocaram ao fechar-se acordou-me do meu sonho. Despertei imediatamente, ainda a tempo de ouvir os ecos a desvanecerem-se no ar vazio. Olhei em volta, para o ambiente familiar da abadia, com os membros a tremerem por causa do som que se apagava rapidamente. Porém, afinal, o que me fazia tremer por dentro não era o estrondo das monstruosas mandíbulas. No seu lugar ouvi um eco da terrível admonição do bispo Cadoc: Toda a carne é erva.

Toda a gente tem de morrer, dissera Gunnar. Toda a carne é erva, dissera Cadoc. De que estavas à espera, Aidan?

Pensaste na verdade que Cristo embotaria as pontas das lanças, desviaria o chicote e derreteria os grilhões quando estes te tocassem na pele? Esperavas caminhar sob o Sol e não sentir o calor, ou marchar sem agua e não ter sede? Pensaste que todo o ódio se transformaria num amor fraternal logo que aparecesses? Pensaste que as tempestades e as tormentas se acalmariam por causa da tonsura na tua cabeça?

"Acreditaste que Deus te protegeria para sempre da mágoa e da dor deste mundo pejado de pecados? Pensaste que serias poupado às injustiças e às provações que os outros eram obrigados a suportar, que as doenças não te afligiriam e que viverias para sempre sem ser tocado pelas tribulações da humanidade comum?

"Louco! Cristo sofreu todas essas coisas e muitas mais. Aidan, foste um cego. Contemplaste a verdade, olhaste-a durante muito tempo... mas nem sequer conseguiste compreender o mínimo relance de tudo o que te era mostrado. Sim, é esse o coração do grande mistério: o Deus fez-se homem e suportou o peso dos sofrimentos para que, no último dia, ninguém pudesse dizer: "Quem és tu para julgar o mundo? Que sabes tu de injustiças? Que sabes tu da tortura, da doença, da pobreza? Como te atreves a afirmar-te como um Deus bom e misericordioso? Que sabes tu da morte?"

Ele sabe, Aidan, ele sabe!

Gunnar, bárbaro inculto que era, discernira essa verdade central enquanto eu, não obstante toda a minha aprendizagem de monge, nunca a conseguira atingir. Em Gunnar, essa compreensão acendera a esperança e a fé enquanto a minha falta de compreensão me conduzira ao desespero.

Oh, mas com a chegada da madrugada do Dia da Ressurreição, a Santa Páscoa, a minha visão ganhara uma nova vida. Com a restauração do sonho, também eu ficara restaurado. Vira Bizâncio mais uma vez e soube que era lá que morreria. Contudo, desta vez não havia medo. Acreditava - porque sabia agora que aquilo que lorde Sadiq dissera era verdade - que a certeza afastava o medo e que um homem prevenido com uma tal fé era um homem verdadeiramente livre.

Quando o Sol se ergueu sobre a nossas celebrações do Dia da Ressurreição fiquei a saber o que era uma alma liberta. Durante o Serviço dos Sacramentos traduzi as palavras do abade Fraoch para os dinamarqueses. Quando estes pronunciaram a oração do arrependimento pela primeira vez, também eu me arrependi da minha cegueira, das minhas dúvidas e dos meus medos. Deus não me esquecera, apoiara-me... até no meu desespero. Este pensamento tornou-me humilde e foi com um coração contrito que vi o abade erguer o cálice no altar e pensei: Kyrie eleison! Que o Senhor tenha piedade... Que Cristo tenha piedade!

Depois, quando o bom abade ofereceu o cálice para a renovação das bênçãos eternas de Deus, também eu renovei os meus votos sacerdotais.

 

Aidan mac Cainnech regressou à Escandinávia, terra do seu antigo cativeiro, e adoptou-a como sua. Durante quase cinquenta anos pregou as Boas-Novas às tribos da Dinamarca e fundou quatro igrejas ao longo de um ministério activo e repleto de acontecimentos. Entre todas, a sua favorita continuou a ser a igreja que o jarl Harald e Gunnar construíram para ele em Bjorvika, à vista do mar.

Aidan, no terceiro ano da sua estada entre os dinamarqueses, passou a ter a companhia do seu amigo e irmão, Dugal, que serviu fielmente a seu lado durante vinte e três anos. Os dois monges gastaram muitas das longas noites do Inverno nórdico a recordarem as suas aventuras quando jovens e foi Dugal quem persuadiu Aidan a registar as suas experiências para divertimento e edificação dos outros irmãos e dos amigos irlandeses e britânicos.

Gunnar Sacos-de-Prata e Ylva produziram muitas belas crianças e contribuíram com liberalidade tanto para o tesouro como para o número de alunos da escola de Aidan em Bjorvika. Harald Berro-de-Touro, que regressara de Bizâncio com mais riquezas do que as que conseguiria vir a gastar, morreu num theng por causa das contusões sofridas durante uma luta particularmente excitante.

No ano de Nosso Senhor de 943, o bispo Aidan mac Cainech fez a terceira e última peregrinação a Bizâncio, acompanhado pelo Abade Ulf e pelos seus três filhos, bem como pelo neto de Harald Berro-de-Touro, Olaf Mãos-Abertas, que assumira o comando da resistente frota do seu avô. Quando da sua chegada foram calorosamente recebidos pelo Sacro Imperador Romano, Porphyrogenitus, um homem pio e bom que, em reconhecimento pela longa obediência do venerável sacerdote, o cumulou de honrarias.

Embora já bem avançado nos anos, o bispo Aidan fundou a Caithar Culdich, a Cadeira dos Culdees, ou Célé Dé, na Escola Patriarcal de Constantinopla. Foi aí que passou os seus últimos dias como professor e como conselheiro da corte imperial, e foi aí que o estimado monge morreu no ano de 949, cheio de graça e de sabedoria.

O túmulo de Santo Aidan pode ser visto na Capela dos Santos Padres, à sombra da Hagia Sophia. Para além disso foram-lhe erigidas pedras tumulares adicionais nos terrenos de cada uma das quatro igrejas por ele fundadas no que é agora a Suécia, a Dinamarca e a Noruega. Também é possível encontrar um pequeno memorial de pedra em Kells, e um outro na Ilha de lona, a antiga Hy, onde alguns dos seus ossos foram sepultados para que a Igreja Céltica pudesse celebrar para sempre a memória de Aidan mac Cainnech.

 

                                                                                Stephen Lawhead  

 

                      

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