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Planeta Criança



Poesia & Contos Infantis

 

 

 


BLACK / Juliana Dantas
BLACK / Juliana Dantas

                                                                                                                                                   

                                                                                                                                                  

 

Biblio VT

 

 

 

 

Fui apresentada à morte pela primeira vez aos sete anos.
Antes disso eu achava que tudo era eterno. Até as pessoas que eu amava.
Principalmente aqueles que eu amava.
Ainda me recordo de quando tudo mudou. Uma hora eu era a garotinha saindo do ônibus escolar em frente a minha casa, ansiosa para entrar e sentir o cheiro de bolo de canela que recenderia em tudo. Pelos corredores, pelos cabelos de mamãe, quando ela me abraçasse. Comeríamos juntas, a mesma receita que ela fazia todas as quartas-feiras “apenas um pedaço”, diria tentando ficar brava quando eu roubasse mais um. Papai nos encontraria mais tarde. Ele cheirava a vento, porque sempre chegava trazido pelo frio do crepúsculo.
No entanto, naquele dia, quem me recebeu foram pessoas estranhas. Eles tentavam sorrir enquanto me levavam para dentro e me fazia sentar à mesa da cozinha e contavam que papai e mamãe tinham ido embora para sempre.
Morte. Essa era a palavra.
Acidente de carro, diziam.
Naquele momento, na mente de uma criança que nunca perdeu nada, o conceito era muito estranho.
Acho que chorei. Gritei para que mamãe viesse me buscar, mas nunca mais a vi. Tentava me lembrar, enquanto sentia meu coração se despedaçando pela primeira vez na vida, o que mamãe dizia.
“ O amor é infinito, Nina. Mesmo que ele não esteja com você, mesmo que tudo pareça escuro, dentro do seu coração, sempre vai existir cor. Porque o amor é assim, como um arco-íris. ”
Porém, eu não enxergava mais cor em nada. Tudo era escuro. Frio.

 


 


Sem amor.

Até que você surgiu.

Coloriu tudo com seu amor por mim. Fez o arco-íris voltar ao meu coração.

Fez-me sentir segura e amada de novo. Fez-me desejar o eterno.

E quando a morte me encontrou de novo, fui eu que a busquei. Eu a desejei.

Quis matar seu amor por mim. Quis matar meu amor por você.

Porque, às vezes, certos tipos de amor não foram feitos para colorir, e sim para manchar tudo com sua escuridão.

Demorou muito para eu perceber que na verdade este tipo de sentimento tinha outro nome.

Obsessão.

Quando eu o matei, ainda não sabia disso.

Não sabia que mesmo morto, você ainda estaria em mim.

Que meu coração se tornaria opaco, turvo. Obscuro.

Morto.

 

Essa é a história do lado escuro do coração.

 


Capítulo 1

 

 

Eu amo aquela hora da manhã. Quando o sol ainda é apenas uma pálida ameaça à escuridão e o vento frio agride meu rosto, a música estourando em meus ouvidos enquanto corro cada vez mais rápido.

Gosto de imaginar que estou fugindo, mas nunca consigo saber do quê.

Apenas impulsiono meus pés, a paisagem das ruas de Chicago passando como um borrão. Névoa e gelo.

E a fúria dos meus passos pela calçada molhada.

É meu momento preferido do dia. A bem-vinda solidão da minha corrida matinal pela Michigan Avenue, circulando o Grant Park.

Eu costumava estar sozinha a maior parte do meu trajeto, antes que a cidade começasse a acordar. Porém, há algum tempo, um outro corredor solitário faz o mesmo caminho que eu, em direção contrária.

Na primeira vez que o vi, sua imagem surgindo ao longe, desejei dar meia-volta e não passar por sua figura vestindo um moletom cinza, o capuz cobrindo a cabeça, impedindo que eu visse seu rosto, mas segui em frente, ignorando sua presença quando passou por mim, como um borrão.

Só que nos dias que se seguiram, o mesmo corredor voltou a cruzar meu caminho. Sempre com um moletom lhe cobrindo o rosto. Era como se eu também não existisse para ele.

Um dia percebi, com certo medo, que ele diminuiu o passo ao passar por mim. Virei o rosto, evitando qualquer contato visual que pudesse surgir.

Na manhã seguinte, ele fez o mesmo. Uma curiosidade estranha me fez prender o olhar em sua figura, e não consegui deixar de apreciar a contragosto quando ele acenou com a cabeça quase imperceptivelmente.

De alguma maneira, estranha e bizarra, sentia certa conexão com o corredor solitário. Talvez o fato de nunca ver seu rosto fizesse com que eu me sentisse segura com sua presença constante.

Não era uma ameaça.

Não era alguém que ia parar e tentar iniciar uma conversa tola sobre o tempo ou política, ou, Deus me livre, querer saber mais sobre mim.

De certa forma, imaginava que ele era como eu.

Ele não estava interessado no mundo, assim como eu.

E sem que eu percebesse comecei a ansiar por aqueles momentos roubados. Em que sentiria sua energia ao passar por mim. Nossos passos diminuindo, mas nunca parando. Nossas cabeças meneando em reconhecimento.

Não queria admitir que assim que ele passava, eu olhava para trás, para observá-lo desaparecer com seus passos decididos e uma parte de mim admirava sua figura masculina que o moletom deixava antever.

Eu me perguntava como seria seu rosto.

Porém, essa manhã, outras coisas permeiam minha mente enquanto impulsiono meus pés rápido pela calçada molhada, com ainda algum gelo aqui outro ali, denunciando que o inverno está chegando com vontade.

Há alguns dias fui surpreendida por uma ligação de uma agência de empregos que tinha meu currículo e perguntava se estava interessada em trabalhar na Black Investiments. A princípio achei tratar-se de uma vaga em telemarketing como sempre, mas a voz profissional do outro lado da linha respondera com paciência que era para o cargo de secretária da diretoria. Salário cinco vezes maior do que eu ganhava. Benefícios incríveis. Questionei se não estavam me confundindo, se tinham mesmo dado uma boa checada no meu currículo e a mulher respondera, agora sem muita paciência que eu poderia declinar se quisesse, mas que estavam pedindo que eu fosse a uma entrevista.

Ainda incrédula, eu me apresentei a Black Investiments na manhã seguinte, sentindo-me levemente intimidada por toda opulência. Uma senhora de óculos de aro de tartaruga que emolduravam doces olhos castanhos se apresentou como Maria Garcia, a recrutadora de RH, e me contou sobre a Black Investiments, uma empresa de investimentos privados e holding , fundada por Adolph Black, na década de 80 e que atualmente era dirigida por seu filho Alexander Black, desde a morte do patriarca há pouco mais de um ano. E para minha surpresa, ela comunicou que o cargo que estavam me oferecendo era o de secretária do CEO, Alex Black, como ela o chamava. De novo achei tratar-se de algum engano e lhe disse isso a fazendo rir e confirmar enquanto tirava os óculos e me oferecia um café, que a oferta era bem real.

— Mas não tenho experiência — insisti.

— Você será treinada, não se preocupe. — Ela se sentou à minha frente novamente pedindo que eu falasse sobre mim. Entendi que era para falar sobre minha experiência, o que seria um tanto ridículo, pelo fato de ter muito pouco. Pelo menos o que eu poderia contar, mas ela disse que queria que eu falasse sobre mim. Como pessoa.

— Sabemos sua experiência profissional — ela sorrira de forma encorajadora —, mas queremos saber mais sobre você. Aqui diz que tem 25 anos, nasceu em Baltimore. Quando se mudou para Chicago?

Por um momento, assustei-me, como sempre acontecia quando qualquer pessoa tentava transpor aquela barreira.

Porém, eu tive anos de treinamento em frente ao espelho para parecer minimamente normal em situações assim, em que eu não podia simplesmente me fechar como uma concha e deixar minha mente vagar para algum lugar em que não existia nada.

Nem dor. Nem culpa.

Nem a consciência da pessoa horrível que se escondia por trás da aparência impecável que o mundo via.

— Eu me mudei para Chicago com sete anos, quando... meus pais faleceram. — Tentei imprimir um tom neutro a minha voz, assim, como minha postura. Percebi a expressão de Maria mudando para aquele tom de pena que eu bem conhecia.

— Ah, sinto muito.

— Faz muito tempo. — Sorri como sempre fazia. Como se não me importasse. Talvez eu não me importasse mesmo.

Não mais.

Não quando o que veio depois foi bem pior do que qualquer ausência.

Relanceei o olhar para meu currículo em cima da mesa de Maria, havia uma foto junto, tirada há alguns meses. Meus cabelos castanhos presos em uma trança, meus olhos verdes apáticos parecendo deslocados em meu rosto muito branco.

Aquela era Nina Giordano. A garota bonita que andava pelo mundo sabendo que não deveria estar ali.

Antes que Maria recomeçasse, seu celular tocou e ela atendeu rápido e me lançou um olhar de desculpa.

— Tenho uma reunião agora. Vou pedir para minha secretária te levar até o RH para fazer sua ficha e vão te explicar quando começar.

— Só isso? — estranhei.

Ela sorriu de forma condescendente.

— Estamos apostando em você, Nina.

Quis dizer que apostar em mim era a última coisa que ela deveria fazer, mas me calei.

Aceitei.

Como aceitei tudo o que aquela vida estranha me dava.

Eu não tinha nada a perder.

Porque não tinha nada.

Pedi demissão do meu antigo emprego, o que não foi problema, já que estava lá há apenas poucos meses e não havia grandes perspectivas e me preparei para começar na Black Investiment.

Isso fora há poucos dias. E eu ainda me pergunto por que aceitei aquela mudança. Não é como se eu me importasse com uma suposta carreira ou tivesse ambições.

Então, por quê?

Eu ainda não sei responder.

Volto ao presente, correndo na calçada molhada, quando o vejo surgir ao longe. Por um momento, tenho vontade de parar e dizer algo.

Talvez um bom-dia.

Ou algo ridículo como “Acho que nevou essa noite, não?”.

E talvez perguntar se ele achava que eu iria me dar bem em meu novo emprego que iniciaria hoje.

Este pensamento sem noção passa pela minha mente, mas eu o rechaço. E me sinto tão ridícula que tento dar meia-volta e mudar o caminho pela primeira vez evitando o estranho, mas a calçada molhada faz meus pés derraparem e sem que eu consiga evitar vou ao chão.

— Você está bem?

Abro os olhos para ver o corredor anônimo pairando acima de mim, suas mãos avançando para segurar meu braço, me puxando para cima. Atordoada, me deixo levar, o coração ainda disparado do susto da queda e piscando para sair do choque e voltar à realidade.

E é quando me dou conta que pela primeira vez estou ouvindo sua voz. É grave e aveludada, como um xícara de café forte. Levo o olhar para as mãos que ainda seguram meu pulso. Dedos longos e elegantes, com unhas bem cuidadas. Levanto a cabeça para fitá-lo, ainda esperando de certa forma ver apenas o capuz sobre sua cabeça, mas não há nada cobrindo seu cabelo castanho-claro úmido de suor. Ou a tez levemente bronzeada e os olhos cinzentos. Não deve ser mais velho do que eu. Talvez alguns poucos anos apenas.

Caramba, ele é bonito.

Por um momento bobo, não consigo dizer nada, enquanto o estranho espera uma resposta, ainda me estudando com certa preocupação educada no olhar.

— Se machucou? — insiste.

Eu me dou conta do ridículo da situação e coro como uma adolescente, puxando o braço que ainda se encontrava sob seu domínio, assim como meu olhar capturado pelo dele.

Sinto vergonha como qualquer um sentiria por ter levado um tombo.

E mais. Sinto que por causa disso quebrei várias regras que não gostaria de ter quebrado.

Não quero falar com ele. E muito menos que me toque.

Ou ter seu olhar me sondando, agora não só preocupado como também curioso.

Merda.

Dou um passo atrás. Assustada e irritada.

— Estou — respondo seca e, sem mais, continuo meu caminho, correndo pela calçada e deixando o estranho para trás.

Mas sei que ele ainda está parado observando eu me afastar.

 

Duas horas depois, caminho apressada pela Chicago Riverwalk, ignorando a chuva fina que cobre tudo de cinza, enquanto meus saltos batem no chão molhado, levando alguns respingos indesejáveis para minha meia-calça. Talvez devesse estar preocupada se isso afetaria minha aparência que deveria estar impecável para me apresentar a Black Investiments em poucos minutos.

Mas não estou. Talvez esteja até um pouco satisfeita com aqueles pequenos pingos de chuva e lama que maculam minha aparente perfeição.

Paro em frente ao prédio imponente, onde a Black Investiments ocupa alguns andares. Deixo meu olhar percorrer a estrutura de vidro e aço, me perguntando de novo como vim parar aqui.

Respirando fundo, adentro as portas de vidro tentando demonstrar uma segurança que estou longe de sentir, quando a recepcionista me entrega o crachá provisório e me indica o elevador, sem conseguir disfarçar a curiosidade.

— Olá, sou Hannah Percy. — Uma moça negra, que aparenta ter uns trinta e poucos anos e com um sorriso gentil, me recebe quando saio do elevador no vigésimo andar.

Ela estende a mão de forma amigável e eu a apanho, ainda incerta, meus olhos vagando para todos os lados, para a opulência do ambiente de vidro e mármore.

— Nina Giordano — murmuro lamentando que minha voz tenha saído tão baixa quanto o rosnado de um gatinho assustado.

Bem, acho que hoje sou mesmo um gatinho assustado.

É estranho me sentir assim. O usual é não sentir nada.

— Oh meu Deus, você parece assustada. — A moça sorri ainda mais largo. — Não vamos te comer viva, embora no mundo das finanças às vezes temos que lidar com alguns leões. Relaxa, Nina. E bem-vinda a Black Investiments, venha comigo.

Ela faz um gesto para eu a seguir e percebo que as salas naquele andar ainda estão vazias.

— Você chegou cedo — ela lê meu pensamento —, mas é de propósito. Queria ter a chance de te explicar como tudo funciona por aqui, antes do chefe chegar — explica com uma piscadela.

— Certo.

Hannah passa a meia hora seguinte me levando às salas que compõem o andar da diretoria, e tento me lembrar de todos os nomes dos executivos que ela citou, ressaltando que provavelmente eu os veria muito, já que o diretor executivo passava muitas horas em reuniões com essas pessoas.

— E aqui é sua sala. — Aponta para uma mesa de vidro muito arrumada, com um computador de última linha. Ela passa por mim, ligando o computador e torço para não passar vergonha. — Continua com cara de quem está indo a um sacrifício humano, onde você será a vítima — comenta divertida.

— É que... Eu nunca fiz esse tipo de trabalho antes. Ainda me parece muito esquisito que eu tenha sido contratada.

— Bem, se foi contratada é porque tem potencial.

“Como é que eles podiam saber?”, questiono mentalmente.

Hannah não parece interessada nas minhas dúvidas, pois me passa várias instruções de como usar o sistema da empresa, me faz cadastrar o e-mail corporativo e ainda abre a agenda do CEO.

— Minha nossa, parece mesmo bastante reunião...

— Ficarei com você a maior parte do dia hoje, para que consiga tirar todas as dúvidas.

— É um alívio — balbucio, ainda atordoada.

Porém, Hannah segue em frente fazendo um movimento para que eu a acompanhe e abre as portas duplas que dão para um escritório enorme, uma parede de vidro atrás da mesa imponente faz meu queixo cair com a bela visão do Lago Michigan.

— Essa é a sala do chefe — Hannah diz e antes que continue, seu celular toca e ela espia o visor. — Preciso atender isso, fique à vontade, dê uma olhada em tudo. Volto já!

Ela desaparece do meu campo de visão e hesito por um instante, antes de deixar a curiosidade me tomar e avançar pela sala. O chão é todo de mármore claro, como o resto do andar. Do lado direito há uma estante enorme, lotada de livros e uma lareira no meio de duas poltronas.

Caramba, uma lareira?

Deixo meu olhar seguir para o outro lado, onde há uma mesa de reunião e mais atrás uma porta entreaberta que noto ser de um banheiro.

Caminho até a mesa, onde não há quase nada em cima, meus olhos são atraídos para um porta-retratos e, curiosa, o apanho, contemplando duas menininhas loiras sorrindo na fotografia.

— São minhas sobrinhas.

A voz faz eu me assustar e o porta-retratos escapa das minhas mãos indo ao chão.

E ao levantar a cabeça, quem está na porta, agora vestindo um terno preto bem cortado, é o corredor anônimo.

 

 

Antes

 

 

Descobri o que era solidão naquele dia depois que meus pais se foram. Aprendi que, embora pudesse haver muita gente a nossa volta, ainda poderíamos nos sentir sozinhos.

E outro sentimento se juntou à solidão, a insegurança.

Eu não sabia o que era se sentir insegura até aquele momento. Não havia mais os abraços da minha mãe antes de dormir. As palavras de carinho de papai quando sentisse medo depois de um pesadelo. Ou seus lábios em meu joelho quando eu o ralava ao cair de bicicleta.

Não havia mais ninguém por mim.

Eu tinha parado de chorar porque isso só parecia fazer as pessoas a minha volta me darem mais atenção. E eu não queria atenção. Não queria aqueles sorrisos condescendentes e nem perguntas que faziam meus olhos arderem e meu coração doer tanto que parecia que ia murchar como as flores no canteiro da mamãe.

Eu só queria dormir e não acordar mais. Ou então ir para aquele lugar em que papai e mamãe estavam. “Um lugar melhor, descansando agora.”. Era o que sussurrava a moça que dizia ser assistente social.

Foi essa moça que me disse que eu tinha que arrumar minhas coisas, pois iria fazer uma viagem.

— Para onde? — eu havia perguntado sentindo meu coração afundar de novo. Não sei bem o que estava pensando, mas talvez achasse que poderia ficar na minha casa ainda. Mesmo meus pais não estando mais ali.

A mulher havia me brindado com mais um de seus sorrisos condescendentes ao responder que meu tio iria me buscar para morar com ele.

— Eu não tenho tio — balbuciei, ainda mais assustada ao imaginar que iria morar com um estranho.

Mas a mulher não respondera.

E eu estava naquele fim de tarde sentada nas escadas em frente a minha casa me perguntando se alguém se importaria se eu me levantasse e fugisse quando um carro parou em frente ao jardim.

Um homem alto desceu e veio até mim.

Ele vestia um casaco escuro comprido e se abaixou a minha frente.

Ele não sorriu como os outros. Na verdade, havia lágrimas em seus olhos escuros.

Eu nunca o tinha visto antes.

— Olá, meu nome é David William Burrows. Você deve ser a Nina.

Sacudi a cabeça em afirmativa.

— Eu sinto muito, criança.

Sua voz embargou.

— Você é o meu tio? — perguntei com minha vozinha infantil.

Dessa vez ele sorriu de maneira triste, uma lágrima escapando do seu olho.

— Eu não sou seu tio de sangue, mas sou seu padrinho.

— O que é um padrinho?

— Alguém que promete aos pais cuidar das crianças, caso os pais morram.

— Meus pais morreram...

— Eu sei, Nina. Por isso que estou aqui.

Sua mão tocou meu ombro, apertando levemente, como se temesse me abraçar. Gostei disso, que ele não tenha forçado uma aproximação, como as outras pessoas.

— Eu vou morar com você? — indaguei incerta ainda de querer ir.

Porém, mesmo naquele momento, eu sabia que não tinha opção.

Eu não tinha mais ninguém.

— Sim, Nina. Eu moro numa cidade muito bonita, chamada Chicago. Lá vai ser sua casa agora.

— Eu queria meus pais. — Meus lábios tremeram ao me dar conta que eu não tinha mais essa opção.

O homem que dizia ser meu padrinho se sentou ao meu lado.

Deixou que eu chorasse sem nada dizer.

Em algum momento, senti que ele colocava o braço sobre meus pequenos ombros. Deixei que minha cabeça deitasse em seu peito.

Ele tinha cheiro de canela também. Como mamãe.

Senti um certo conforto.

O mundo já não me pareceu tão solitário naquele momento.

 

 


Capítulo 2

 

 

Por um instante, paraliso no lugar de susto e choque, ainda atordoada à medida que ele avança para dentro da sala.

E algumas coisas passam pela minha mente em questões de segundos.

Primeira é a certeza de que não estou alucinando e aquele homem alto vestindo um terno bem cortado é mesmo o cara que passa correndo por mim todas as manhãs e que hoje tinha me ajudado a levantar quando fui ao chão.

Porém, ainda demora alguns instantes para a ficha cair e eu entender que o homem que agora abaixa a minha frente, pegando o porta-retratos do chão deve ser Alex Black.

O CEO da Black Investiments.

Meu chefe.

Puta que pariu.

Ele recoloca o porta-retratos no lugar e meu estômago vai ao chão quando percebo seu olhar de censura pousado em mim.

Dou dois passos atrás, limpando as palmas subitamente suadas na saia e lamentando meu rosto queimando de vergonha.

Vasculho meu cérebro assoberbado em busca da minha voz que desapareceu em meio a minha estupefação.

— Eu sou Nina Giordano a... secretária. Nova secretária, Senhor Black, é...

— Sim, eu imaginei — ele me interrompe. Sua voz é fria como gelo. Áspera. Quase brusca.

Como se estivesse irritado com algo.

Ou comigo.

Embora continue parado me fitando com um olhar impassível.

— Me desculpe... Não estava bisbilhotando, eu...

Um levantar de sobrancelha levemente irônico é sua única reação.

Claro que ele sabe que eu estava bisbilhotando sim.

Sei que meu rosto está tingido de vermelho enquanto abaixo a cabeça, mortificada. Algo me diz que eu deveria obrigar meus pés a se moverem o mais longe possível da ira de Alex Black, mas em vez disso permaneço no lugar, como se esperando por sua punição.

O que é ridículo.

O que ele poderia fazer comigo?

Mesmo tendo uma parte do meu cérebro fazendo essas conjecturas, uma outra parte permanece estática.

Submissa.

— Acho que ainda não fomos apresentados formalmente. Meu nome é Alex Black — diz por fim.

Levanto o olhar, ainda assustada como um coelho pego em uma armadilha para ver a mão estendida em minha direção. Eu a seguro, ainda incerta. É levemente áspera, e eu não esperava por isso.

Alexander Black não deve ser o tipo de pessoa que faz qualquer trabalho que estrague as mãos.

Pessoas ridiculamente ricas não costumam o ser.

Ele solta minha mão e se afasta, sentando-se em sua cadeira, e com um olhar impaciente faz um gesto para que eu sente a sua frente.

— Por favor.

Engulo o medo e faço o que ele ordenou. Notando que minhas mãos estão trêmulas.

Por que diabos estou com medo desse cara?

Não costumo ser assim. Não costumo temer nada.

Porque não há nada a ser perdido.

Nenhuma consequência é ruim demais para alguém que já perdeu tudo.

Se ele me achar atrevida por estar maculando sua sala perfeita e decidir que vai me demitir quando ainda nem comecei a trabalhar, que se dane. Eu posso conseguir outro trabalho. Talvez não tão bom quanto este, mas não me importo realmente.

Não é como se eu tivesse almejado este emprego.

Na verdade eu ainda sentia como se estivesse em uma correnteza sendo levada sem a menor vontade.

— Então é Nina Giordano... — Liga o notebook, digitando rápido. Imagino se está procurando minha ficha ou algo assim.

Embora já deva saber tudo sobre mim. Ou pelo menos o que está no meu currículo, já que autorizou a minha contratação.

De repente passa pela minha cabeça se ele não deveria ter me entrevistado antes ou algo assim.

— Eu estava viajando quando esteve aqui para sua entrevista. — Ele parece ler minha mente.

Isso explica a situação.

Será que está arrependido de ter confiado no tino da tal Maria Garcia que me contratou? Não ficarei surpresa se assim o for.

E de novo me questiono se vai tocar no assunto de que nos conhecemos. Quer dizer, claro que ele sabe quem eu sou. Ou melhor, sabe que sou a garota que corre pelo parque de manhã e que caiu hoje cedo.

— Maria gostou muito de você — Ele se recosta à cadeira, franzindo o olhar —, mas ainda está em experiência. É um trabalho difícil às vezes, que exigirá muita atenção e alguns desafios. Gosto de ter minhas ordens atendidas e não gosto de indisciplina.

Caramba...

Mais parece uma ameaça ou é impressão minha?

Tento me manter impassível enquanto ele continua.

— Muitas vezes tratará de informações confidenciais, e por isso espero que seja diplomática e discreta.

Sacudo a cabeça em afirmativa, mas na verdade não faço ideia do que está pedindo. Porém, imagino que Alex Black tenha altas expectativas com quem trabalha com ele e que não aceite falhas.

Bem, talvez eu devesse começar a enviar currículos.

Ainda me parece incrível que um executivo igual a ele tenha permitido a contratação de alguém como eu, sem a menor experiência.

Por um momento, tenho vontade de entrar no assunto, mas me calo.

Ele estende uma mão, brincando com as telas de novo, enquanto a outra dedilha sobre a mesa. Dedos longos e bonitos.

Recordo-me deles em meu pulso por cima da minha blusa de manhã quando caí. De novo me pergunto se ele não vai tocar no assunto.

Anseio e rejeito a ideia ao mesmo tempo.

— Mas aqui diz pouca coisa sobre você — continua e sua atenção recai em mim de novo. Interrogativa.

Eu sei o que virá a seguir e me encolho automaticamente.

Merda.

Não quero falar sobre mim.

Por favor, não me obrigue...

— Nina, aí está você. — Hannah retorna à sala e olha de mim para Alex Black. — Desculpe, não sabia que estava aqui, Alex. Acho que já conheceu a Nina, sua nova secretária.

— Acabamos de nos conhecer.

— Estou mostrando a ela como tudo funciona por aqui e sua agenda.

— Isso é ótimo. Em uma hora tenho uma reunião com o pessoal do marketing.

— Sim, estará tudo pronto — Hannah garante.

— Certo. Podem ir. — Ele faz um gesto me dispensando e me apresso a levantar e seguir Hannah, aliviada.

Eu tinha me safado. Por enquanto.

— Nossa, o que aconteceu?

— Nada, fiquei assustada por ele chegar do nada e me pegar lá dentro da sala. E eu estava segurando um porta-retratos. Acho que deve me achar uma enxerida.

Hannah faz um sinal de descaso com a mão.

— Alex é legal, não se preocupe.

O quê?

Ela está de gozação?

— Agora eu vou fazer um tour com você para te apresentar ao pessoal.

Ah não.

Sinto vontade de vomitar, mas visto uma expressão despreocupada enquanto sigo Hannah pelas salas e baias, me perguntando como diabos vou fazer para lembrar o nome de todo mundo.

As pessoas da Black Investiments me encaram entre solícitas, curiosas e sinto até alguns olhares de desdém. Deveria ficar preocupada com estes, mas os amigáveis são os que mais me dão vontade de correr.

Após o tour , nos sentamos novamente na minha mesa e Hannah começa a me explicar o trabalho. Que não consistia só em tarefas administrativas gerais de escritório, como atender telefone, cuidar da agenda do CEO, coordenar conferências e cuidar dos arquivos.

— A agenda do Alex é muito ocupada e você terá um grande volume de trabalho. É de sua responsabilidade colocar o Alex a par de sua programação diária e ficar atenta as pautas das reuniões. Como você deve ter notado, ele tem muitas.

— Sim, percebi.

— Você também terá bastante contato com o conselho administrativo, e terá que lidar com a logística das reuniões de diretoria e sanar dúvidas gerais do conselho quando preciso. O Alex também viaja com frequência e você tem que organizar a logística dessas viagens, como reserva de voos, aluguel de carros e acomodação em hotel, por exemplo. Além de ser de sua responsabilidade os relatórios de despesas. Tudo certo por enquanto?

— Bem, na teoria sim... — É bom saber que Alex estará viajando bastante. Quanto menos eu tiver que ficar perto dele melhor.

— Como viu, tem bastante trabalho e terá que ser bem atenta aos detalhes. Também às vezes precisa fazer hora extra e acompanhar o Alex em viagens.

O quê?

— Espera, eu terei que viajar com o... Sr. Black?

— Eventualmente sim.

Tento não parecer apavorada com essa perspectiva.

De repente o telefone toca e ela faz um sinal para que eu atenda.

— Black Investiments, em que posso ajudar? — Consigo ser firme ao atender e ouvir uma voz feminina dizer que era secretária de Roger Tunner, que gostaria de falar com Alex Black.

Hannah aperta o botão de mute e me pergunta quem é. Quando respondo ela diz que sim, posso passar para Alex, me dizendo como fazer.

— Black — ele atende depois de duas chamadas e engulo em seco, ignorando o arrepio de medo que sinto ao ouvir sua voz fria.

— É... Roger Tunner na linha.

— Pode passar.

Aperto para passar a ligação e respiro aliviada ao desligar.

— Pronto, nada difícil, né? — Hannah ri com seu habitual bom humor. — Mas fique atenta, não é todo mundo que pode passar direto para o Alex. Temos uma lista aqui. Somente os nomes na lista ele vai atender. Ou se for alguém da sua família.

— Certo.

De repente me sinto curiosa para saber mais sobre Alex e sua família.

O que é ridículo.

Eu não preciso saber nada sobre ele. E muito menos sobre sua família.

— Do contrário, anote o recado e lhe passe por e-mail.

— Certo, entendi.

— Bem, agora vamos à prática. — Ela sorri e pede que eu digite um e-mail para Alex, com a pauta da reunião de marketing que ele tinha citado.

— Estou fazendo este trabalho por enquanto, mas aos poucos você conseguirá ser capaz de preparar as pautas e fornecer informações de referências necessárias para o Alex.

— Tudo bem por aqui?

De repente Alex está na nossa frente.

— Sim, já apresentei a Nina a todo mundo. E ela acabou de lhe encaminhar a pauta da reunião com o pessoal do marketing.

— Com dez minutos para começar? — De novo ele levanta a sobrancelha daquele jeito irônico.

Sinto meu estômago apertar, mas Hannah não parece abalada.

— Desculpe-me. Eu me distraí nas explicações para Nina, Alex.

Alex. Só então me dou conta de que ela trata Alex informalmente.

Eu devo fazer o mesmo?

— Eu perguntei a Nina. — Ele fixa o olhar em mim.

— Desculpe, Senhor... Black — balbucio, odiando minha voz vacilando.

Onde está a minha frieza?

A minha indiferença?

Não estou acostumada a me sentir assim faz muito tempo.

Não reconheço essa preocupação com a ideia que alguém terá sobre meu trabalho. Ou sobre mim.

— Hoje passa, pois é seu primeiro dia. — Sua voz é fria e entra em meus ouvidos como granizo arranhando por onde passa.

Deixando um calafrio em seu lugar.

— Estarei no marketing pelas próximas horas — ele diz com uma entonação profissional antes de se afastar.

E de novo quando ele sai da sala noto que estou com a respiração presa.

Preciso parar com isso.

— Não fique com medo. Alex deve estar com mau humor hoje — Hannah diz como se nada demais tivesse acontecido.

— Talvez ele não goste de mim... — sussurro.

— Não seja boba, ele nem te conhece! Alex só é bem exigente, isso é verdade, mas se fizer direito seu trabalho, não há o que temer.

— Ele é... bem jovem para este cargo, não?

— Ele herdou o cargo, né? — Há certa ironia no comentário de Hannah, mas não maldade. — O pai dele fundou a empresa. E quando faleceu há pouco mais de um ano, foi natural a escolha do Alex para assumir o cargo, mas não se engane, o Alex é jovem, tem só 28 anos, mas é muito capaz. Ele é um bom chefe e reconhece os talentos que tem ao seu redor.

E quem disse que eu tinha algum talento? Quero retrucar, mas me calo.

— Você o chama de Alex — comento.

Ela ri.

— Todo mundo é bem informal por aqui. — De repente ela franze os olhos. — Você o chamou de Sr. Black.

— Sim, achei que era o ideal.

— Toda vez que alguém o chama de Sr. Black ele brinca que Sr. Black era o pai dele e que devemos chamá-lo de Alex.

— Ele não me corrigiu.

— Sério? Que estranho.

Mas enquanto as horas passam e vou me familiarizando com o trabalho algo não sai da minha cabeça.

Alex Black não comentou sobre as corridas.

— Você quer almoçar comigo? — Hannah indaga horas depois.

— Não, eu... trouxe um sanduíche.

— Hum, vai me dizer que é uma dessas pessoas supersaudáveis que comem granola com iogurte na hora do almoço?

— Não, só não costumo ter muita fome essa hora — não quis dizer a ela que meu sanduíche era só algo que eu peguei na Delicatessen perto do meu prédio.

— Eu e algumas pessoas do meu setor costumamos sair para almoçar aqui perto. É divertido, se quiser nos acompanhar qualquer dia. Tem um restaurante italiano ótimo.

— Obrigada.

Nem por decreto do próprio Alex Black eu me via socializando daquela maneira.

Hannah não parece se importar e pega sua bolsa, mas antes de sair eu me atento a algo.

— Em qual setor trabalha?

— Eu trabalho no financeiro.

— Estou confusa agora, por que é você quem está me passando o trabalho?

Ela hesita, mordendo os lábios e de repente sinto que tem algo esquisito ali.

— A ex-secretária do Alex não estava disponível.

— Oh, ela saiu da empresa ou algo assim?

— Não, ela foi trocada de setor, agora está no comercial, dois andares abaixo de nós. Acho que você a viu. Uma moça de cabelos loiros encaracolados, Kelly.

Hum, talvez eu me recorde da tal Kelly. Acho que era uma das que me mediram com desdém.

— Até mais. — Hannah acena, se afastando.

Pego meu sanduíche e vou até a copa no fim do corredor, mas ao chegar à porta, hesito ao ver que tem um rapaz lá dentro.

Antes que possa dar meia-volta, ele levanta a cabeça e me vê.

Seu sorriso é simpático.

— Oi, é a nova secretária do Black, não?

— Sim, sou. — Faço um esforço para ser agradável quando a vontade é de ignorá-lo.

Eu sei o que preciso fazer.

Eu já passei por isso antes.

Escola. Trabalho. Compromissos sociais inevitáveis.

Finja que é como eles. Finja que se importa, pelo menos.

Seja educada. Sacuda a cabeça quando eles falam, interessada.

Sorria quando preciso.

Acene.

E não pule quando alguém te tocar.

O problema é que toda vez que estou em um ambiente novo é como se tivesse que reaprender tudo isso.

Como uma atriz em um novo papel.

Respirando fundo entro na copa e pego um copo colocando na máquina de café, me atrapalho por um instante.

— Deixa que eu ajudo. — O rapaz toca meus ombros e eu me encolho automaticamente.

Acho que ele percebe, pois tira as mãos de mim, rápido.

— Desculpa — diz com um sorriso.

Ele parece um desses caras gente boa. Gentil.

Carinhoso. Amigável.

Obrigo meus lábios a sorrir.

— Desculpe, estou um tanto atrapalhada. Primeiro dia.

— Claro que sim. O Black já estalou o chicote?

— Chicote? — balbucio e ele ri com vontade agora.

— Brincadeira. Black é legal, o tanto que um chefe pode ser legal.

Sério?

Ele me entrega o copo.

— É, obrigada.... — Tento me recordar se o vi na hora das apresentações.

— Oliver. Oliver Fisher. Sou um dos corretores. A gente se viu hoje de manhã.

— Desculpa não lembrar. É muita gente e muitos nomes.

— Claro que sim, mas podemos resolver isso.

Por um momento tenho a impressão que ele está flertando comigo.

Não deixo de notar que ele é um cara bonito, com doces olhos castanhos acolhedores.

Só que eu não quero ser acolhida.

E muito menos quero lidar com aquela doçura que vem de Oliver Fisher.

Dou um passo atrás.

— Claro... — respondo evasiva sentando-me para comer e ignorando a indireta de Oliver.

Ele parece entender, pois termina seu café e sai da sala.

Respiro aliviada.

Após comer, vou ao banheiro escovar meus dentes, mas antes de entrar, hesito ao ouvir a voz de duas mulheres conversando. Penso em dar meia-volta e retornar depois quando não houver ninguém, mas o que escuto me paralisa no lugar.

— Você acha que ela vai durar quanto tempo?

— Quem? A nova secretária do Black?

— Sim, quem mais?

— Ela é bonita.

O quê? O que isso tinha a ver?...

— Black não contrata por beleza. Ser bonita não vai adiantar se ela não for eficiente.

— E o que dizer de Kelly?

— Kelly já era secretária do pai dele.

— Ela deve estar puta por a nova secretária ser bonita. Depois do desastre de Kelly achei que Black fosse contratar uma velha vesga.

As duas riem e quando escuto os passos se aproximando, me escondo no corredor, as observando passar por mim.

Respiro aliviada e entro no banheiro. Enquanto escovo os dentes me recordo da conversa estranha.

Então havia mesmo alguma coisa esquisita no fato da tal Kelly não ser mais secretária de Alex Black?

 

A tarde passa rápido com tudo o que eu tenho que assimilar deixando minha mente rodando.

Alex retorna do almoço e não me lança mais do que um olhar que eu acho ser de desdém ou já estou ficando louca. Eu não gosto daquele frio na barriga que sinto cada vez que escuto sua voz ao telefone quando lhe passo uma ligação ou quando ele liga pedindo algo, que pode ser desde algum arquivo, que graças a Deus, Hannah sabe onde conseguir ou pedir que eu realize algum trabalho, como ligar para o escritório de Londres ou marcar mais alguma reunião.

Não gosto do calafrio de sobressalto que sinto cada vez que ele passa na minha sala, indo a mais uma de suas reuniões.

Não gosto de pensar que ele vai me demitir no fim do dia e isso é totalmente novo pra mim.

É algo estranho para mim querer passar uma boa impressão.

Querer que Alex Black me admire. Quer dizer, admire meu trabalho.

Só que é como me sinto, mesmo que seja esquisito. Então, decido que não quero mais fazer papel de boba na frente de Alex Black. E me dedico com afinco e atenção a aprender a fazer meu trabalho.

Realmente não parece algo tão difícil como imaginei a princípio, ou que eu não conseguiria executar. Sou bem concentrada e pego tudo rápido, o que arranca elogios de Hannah ao fim da tarde e me pergunto se Alex Black vai achar o mesmo, mas ele sai para uma reunião fora da empresa e não retorna.

Sinto alívio.

Sinto um certo pesar.

 

Quando chego ao meu prédio, tudo o que quero é um longo banho e dormir, satisfeita por ter sobrevivido àquele dia estranho e sem querer pensar como vai ser o dia seguinte.

E o próximo.

— Ei, bonita.

Paro com a chave na fechadura ao ouvir a porta do apartamento ao lado do meu se abrir e a garota latina com seus cabelos volumosos surgir. Escuto a música alta de dentro do seu apartamento, quando ela estende a mão com alguns envelopes em minha direção.

— Peguei sua correspondência.

— Obrigada. — Eu a apanho abrindo minha porta.

— Fiz um bolo à tarde. Receita da minha avó, não quer entrar e comer um pedaço?

Lá vamos nós.

Lucy não se cansa de tentar fazer amizade comigo?

Já faz um mês que Lucy Ramires se mudou para o apartamento ao lado do meu e quase todas as vezes em que eu passava pelo corredor ela surgia com seus olhinhos ansiosos tentando puxar assunto.

Eu sabia por sua tagarelice insistente, que era assistente social, que tinha se mudado de Nova York, que era divorciada e que tinha deixado dois gatos com o ex-marido.

Lucy também gostava de dançar hip hop com toda altura e assistir séries de comédia na TV. E que seu último hobby era tentar aprender a cozinhar.

— Não, obrigada — recuso.

— Espera! — ela insiste. — Já volto.

Desaparece por um momento, e suspiro pensando seriamente em fechar a porta e ignorá-la.

Mas Lucy só está tentando ser legal.

Não é culpa dela que não estou disponível.

Quando retorna, estende algo embrulhado em papel alumínio.

— Me dê um feedback , por favor! — ela pisca, desaparecendo em seu apartamento.

Ao entrar, tiro os sapatos de salto e jogo o bolo no balcão.

Moro em um pequeno apartamento próximo ao centro, o prédio é antigo e precisa urgente de uma reforma, mas a rua é tranquila e o aluguel não é caro.

Nunca fiz nada para mudar as paredes amarelas, ainda com os quadros da antiga dona, uma senhorinha que teve que deixar o lugar para ir para um asilo.

Eu também tinha herdado seus móveis antiquados, como o sofá cinza horrível, mas não me importava.

Talvez se eu recebesse visitas podia mentir e dizer que acabei de me mudar, quando na verdade moro aqui há três anos desde que saí da faculdade.

Depois de um banho demorado, visto uma velha camiseta e tomo meu tempo fazendo coisas mundanas comuns, como esquentar uma lasanha congelada, limpar a cozinha, levar o lixo ou molhar minha plantas.

Gosto dessas atividades. Faz com que os pensamentos fiquem sob controle. Apenas faço o que tem que ser feito.

No entanto quando termino, escuto apenas o silêncio do apartamento vazio, ao longe o barulho da TV de Lucy e sua risada. O que será que ela está assistindo?

Uma vez ela me convidou para ver um filme com ela. Acho que ela já sabia que eu ia recusar.

Vou para cama e ligo a TV. Não presto atenção no que está passando, mas gosto do barulho enquanto tento pegar no sono. Porém, hoje isso é inútil. Pela primeira vez os acontecimentos do dia me fazem ficar acordada. Primeiro a queda de manhã, o primeiro contato de verdade com o corredor anônimo que descubro agora não ser tão anônimo assim.

Alex Black.

Repito seu nome baixinho.

Não quero me importar com ele. É só meu chefe. Já tive vários.

Só que dentro de mim há uma certeza inquietante que Alex Black está longe de ser como os outros chefes. Ou como qualquer outra pessoa que eu conheci.

Inferno. Cansada de pensar me levanto e vou até a cozinha pegando o embrulho de Lucy.

O cheiro de canela invade minhas narinas.

E detonam uma memória olfativa tão antiga que por um momento sinto meu corpo vacilar pra frente.

Só tenho tempo de dar alguns passos antes de vomitar sobre a pia.

 

 

Antes

 

 

A viagem durou um dia inteiro.

No banco de trás do carro, eu contemplava a paisagem mudando enquanto percorríamos a estrada que parecia não ter fim.

Ainda sentia meu coração pequenininho, como se pudesse caber no meu bolso. Quis mesmo arrancá-lo do meu peito, para que assim eu não sentisse aquele medo.

Eu me perguntava se um dia eu ia deixar de senti-lo.

David – era assim que ele pediu que eu o chamasse. Não tio, ou algo como senhor – sorria pra mim pelo espelho retrovisor. Perguntava se eu queria ir ao banheiro ou comer.

Eu só acenava negativamente.

Dormia e acordava. E ainda estávamos em movimento.

Em certo momento paramos, e ele me puxou para fora do carro. Sua mão grande engolindo a minha.

— Vamos, hora de comer, minha pequena.

Ele sorriu pra mim enquanto eu tentava não bocejar.

— O que vai querer comer?

— Eu não sei. — Dei de ombros, porque realmente não tinha fome.

— Vamos, me diga qual sua comida preferida?

— Bolo de canela — sussurrei lembrando do bolo da minha mãe.

— Então vamos comer bolo de canela.

— Onde estamos, David?

— Estamos ainda há meio caminho de Chicago.

— Você tem uma casa?

Ele riu da minha pergunta infantil.

— Sim, eu tenho uma grande casa.

— Eu queria ter ficado na minha casa. — De novo sinto vontade de chorar.

David deve ter percebido, pois se abaixou até que seus olhos estivessem na mesma altura dos meus.

— Você vai ter uma nova casa agora.

— Não tenho mais o papai e a mamãe.

— Mas terá a mim. Eu prometo que sempre vai ter a mim.

Eu acreditei.

 

 


Capítulo 3

 

 

A chuva que cai naquela manhã é tão forte que não consigo enxergar um palmo à frente do nariz, mesmo assim continuo a correr, como se minha vida dependesse disso. Como se assim pudesse deixar para trás não só as marcas dos meus pés no chão, mas também todo o horror que carrego dentro de mim.

E desta vez, quando ele surge ao longe, faço o mesmo que fiz na outra manhã. Dou meia-volta para correr em direção contrária.

E como naquela manhã, meus pés me traem, porém, desta vez, o estranho está ali, segurando meu pulso e me impedindo de cair.

Mal consigo respirar enquanto nossos olhares se atraem e se prendem.

— Nina? — diz meu nome e algo se quebra em mim. — Nina?

Quando ele repete vejo que os olhos dele não estão mais nos meus e sim olham para onde sua mão segura meu braço.

Não em cima da roupa.

Direto na minha pele.

Manchada de sangue.

Sangue em meu pulso. Sangue em minhas mãos que pinga no chão e é levado pela água da chuva.

Sinto meu coração doer.

Com a respiração falhando abaixo o olhar para meu peito e tem sangue sobre minha blusa também.

Vem direto do meu coração.

Meu coração está sangrando.

 

Acordo com o som do despertador e sento-me na cama, ainda sem ar.

Meu olhar aflito percorre os pulsos limpos, toco meu peito como se ainda fosse encontrar sangue.

Deito-me novamente, obrigando minha respiração voltar ao normal.

Os sonhos não são novos.

O sangue mancha meus pesadelos há tempos.

Quase fazem parte de mim.

Mas o que me intriga e assusta é a presença de Alex Black neles.

Isso é novo.

Isso é diferente.

Quase me faz desejar estar sonhando de novo.

 

Uma hora depois enquanto percorro a mesma calçada e passo pela spirit of music , a estátua solitária em frente ao parque, ele surge saindo da rua adjacente.

Por um momento, sou tomada pela memória do sonho e de novo sinto aquela mesma vontade de dar meia-volta e correr em outra direção.

Porém, obrigo-me a continuar em frente, no mesmo ritmo, sentindo a expectativa pesar em meu estômago.

Ele vai falar comigo?

Mas meus medos – ou desejos – são infundados, pois o corredor, ou melhor, meu chefe, assim como todos os outros dias, passa por mim, com apenas um aceno discreto de cabeça, onde mal vejo seu rosto coberto pelo capuz, seguindo seu caminho, como se não tivesse deixado uma espécie de energia impregnada no ar, como corrente estática que faz com que eu me vire, observando sua figura até desaparecer.

 

Quando chego ao escritório, ainda está cedo, Hannah não está por ali quando me sento à minha mesa aproveitando para checar a agenda de Alex e encaminhar todas as pautas das malditas reuniões para que ele não tenha motivos para me repreender de novo.

Fico imaginando se ele já estará a caminho agora.

O que será que ele faz depois de sua corrida matinal?

Será que mora próximo ao Grant Park?

De repente escuto um barulho vindo da sala de Alex e levanto-me, vou até lá. E ao abrir a porta surpreendo-me ao ver uma moça loira sentada na sua cadeira.

— Olá. — Ela sorri para mim e é quando eu a reconheço.

Aquela é a tal Kelly, a ex-secretária de Alex.

— O que... O que faz aqui? — indago confusa.

Seu sorriso se alarga, cheio de malícia quando se levanta.

Ela é mesmo bonita, vestindo um terninho rosa que faz um belo contraste com sua pele branca e seus cabelos loiros encaracolados na altura dos ombros.

Os sapatos ridiculamente altos são no mesmo tom.

Até sua maquiagem elaborada combina.

De repente me sinto muito insípida com minha saia cinza de lã e minha camisa branca simples e meus cabelos castanhos presos em um rabo de cavalo. Maquiagem eu uso apenas para disfarçar as olheiras e o tom naturalmente pálido da minha pele com algum blush e batom nude na boca. Não gosto de chamar atenção, o contrário da garota a minha frente.

E percebo, um tanto incomodada, que do mesmo jeito que eu a estou estudando, ela também está me medindo.

— Hum, você é bem sem graça na verdade — comenta cruzando os braços a minha frente.

O quê?

Ela acabou mesmo de dizer o que ouvi?

— Você não deveria estar aqui. — Mantenho o tom neutro da voz.

— Por que não? Eu costumava ficar muito aqui.

— Eu sei que foi secretária do Sr. Black.

— Oh, que formalidade, ele não deixa você chamá-lo de Alex?

— Ele é meu chefe.

— Eu sei, mas todos o chamam de Alex. Pelo visto ele não gosta de você.

Sério que aquela garota está ali para me intimidar ou qualquer merda assim?

— Olha, de verdade, acho melhor voltar para seu setor.

Ela ri com deboche, voltando a caminhar pela sala e pega o porta-retratos em cima da mesa, o mesmo que eu havia derrubado ontem.

— Estou apenas matando a saudade... Elas são fofas não? — Ela olha pra mim. — As meninas Black. Elas costumavam me chamar de titia Kelly.

E daí? Quero dizer.

Não estou nem um pouco interessada, só quero que dê o fora dali, mas ela continua.

— Eu fui banida das festas dos Black, sabia? — Agora sua voz já não tem nada de doce. É afiada como caco de vidro.

— Eu não vou pedir de novo, por favor, saia — digo com firmeza.

— Ou o quê? Vai me arrastar pra fora? Está achando o quê? — Ela ri. — Acha que manda em alguma coisa aqui? Aqui só quem manda são os Black. A realeza! Aguentei aquele velho do Sr. Black por três anos. Chato pra cacete! Não sabia nem buscar um café sozinho! Aí o velho morreu e o Alex assumiu. Você sabia que ele passou por todos os setores antes de virar o CEO? O velho Black achava importante, começar de baixo e essas bobagens... Você sabe que o Alex faz aula de tênis todas as quartas em vez de almoçar? — ela muda de assunto e continuo achando aquela conversa sem o menor sentido.

Cruzo os braços, impaciente, enquanto ela prossegue.

— Às vezes eu o acompanhava... Ficava assistindo ele jogar, e depois nos reuníamos, para que pudéssemos organizar seus próximos compromissos sem perder tempo.

Ela sorri com nostalgia.

— Eu gostava... dessas mudanças de ambiente. Ou quando almoçávamos juntos... Ah, e as viagens? — Ela suspira, como se estivesse com o pensamento longe. — Eu detestava viajar com o velho Black, mas com Alex... era tudo tão dinâmico! Alex é um dos homens mais inteligentes e dinâmicos que conheci. Ele não parava de trabalhar nunca. Qualquer um podia achar desgastante acompanhar seu ritmo, mas não eu.

Quero dizer que não, não quero saber, mas sei que ela vai continuar de qualquer jeito.

— E por que está me contando isso?

— Por nada... Talvez só quero que entenda como é injusto que eu tenha sido chutada daqui! — Ela ri, um riso que parece mais um engasgo. — E ainda colocam uma sonsa como você no meu lugar. Nem experiência tem! Aposto que não vai durar nem uma semana! Black vai fritar você!

— Olha, não tenho nada a ver com isso. Eu acabei de chegar aqui e só quero fazer meu trabalho. E acho que se o Sr. Black decidir que não estou à altura do emprego, ele mesmo vai dizer isso, não se preocupe.

— Olha só, a sonsa é debochada! Não parece preocupada com seu emprego, mas deveria.

Não respondo, já começando a ficar impaciente com aquela garota rancorosa.

— Mas quer saber? Talvez eu deva dar uma forcinha...

E sem aviso ela arremessa o porta-retratos no chão, que se espatifa no mármore a seus pés.

E não contente, passa os braços em cima da mesa, fazendo os papéis ali dispostos voarem pela sala.

— Você enlouqueceu? — balbucio, chocada.

Ela dá de ombros enquanto caminha com passos apressados para fora da sala.

— Boa sorte!

Ainda permaneço em choque por alguns instantes, perplexa com a atitude da ex-secretária.

Que merda foi aquilo?

Irritada, apanho o porta-retratos danificado e recoloco na mesa.

E me abaixo, começando a juntar as folhas no chão, ignorando que ainda há cacos de vidro por todo lugar.

— Que diabos aconteceu aqui?

Levanto a cabeça e Alex Black está entrando, o olhar varrendo o ambiente à medida que ele avança pela sala.

— Nem eu sei... — resmungo ainda irritada.

Se ele quer ficar bravo que fique.

Só sei que não quero dizer que quem fez aquela bagunça foi sua ex-secretária que parecia estar cheia de rancor por ter sido trocada.

Imagino que se eu contar, a tal Kelly será chamada e posso imaginar a garota negando na maior cara de pau. E toda a confusão que vai surgir dessa acareação. Por isso, fico em silêncio.

E para minha surpresa, ele ajoelha e começa a recolher os papéis do chão.

— Não precisa...

— Vai ser mais rápido — resmunga e em poucos segundos juntamos toda a bagunça e, ainda quando estamos de joelhos, ele me entrega os papéis, que eu junto à minha pilha e no momento seguinte, ele se levanta, muito mais rápido do que eu, e estende a mão segurando meu braço, me ajudando a levantar.

Essa situação – dele me tirando do chão – me faz lembrar da cena da corrida. E por um momento, acredito que ele está pensando o mesmo. Quando puxo o braço, ele o mantém preso.

— Tem sangue aqui.

O quê?

Sinto meu coração falhando ao abaixar o olhar e solto a respiração ao perceber que está se referindo a um pequeno corte em meu dedo.

— Deve ser do caco de vidro... do porta-retratos...

Tento puxar minha mão, mas ele a mantém presa, deslizando seu próprio dedo pelo filete de sangue.

Assusto-me com o arrepio que aquele toque inesperado causa em mim e desta vez consigo puxar minha mão e, um tanto aturdida, viro-me rápido, colocando os papéis que estavam em minha outra mão em cima da mesa e usando a mão sangrando para passar na testa, que está levemente suada de nervoso.

E quando me volto, de novo ele me surpreende por levantar o braço e tocar minha testa.

— Você sujou de sangue...

Sei que tenho que me afastar, mas permaneço estática, surpresa por de novo ele estar com sua mão em mim.

Sem conseguir evitar, capturo seu olhar e há algum tipo de aflição estranha em sua expressão que não entendo.

— Você sabe quem eu sou?

Ah sim.

Finalmente ele está tocando no assunto.

— Achei que ia ignorar isso. É realmente algo bizarro que tenhamos nos esbarrado nas corridas por todas essas manhãs e agora você seja meu chefe — afirmo dando de ombros, diminuindo a importância ao fato.

Por um momento, há certa confusão em seu olhar, mas antes que ele me solte eu me apresso em colocar alguma distância entre nós.

— Sim, é uma coincidência bizarra. Acho que define bem a situação — ele diz por fim dando a volta na mesa e sentando em sua cadeira.

Seu olhar recai sobre o porta-retratos quebrado.

Merda.

— Foi um acidente. Eu vou comprar outro.

Pergunto-me se ele vai cair nessa de “foi um acidente” e fico surpresa quando ele apenas meneia a cabeça.

— Não se preocupe com isso — diz enquanto se ocupa em ligar seu notebook. — Só não se esqueça de chamar alguém para limpar, por favor.

Ok, eu devo ficar aliviada e dar o fora dali.

— Eu lhe encaminhei as pautas das três reuniões que tem hoje — comunico e dou meia-volta para sair.

— Obrigado, Nina — responde simplesmente a minhas costas e tenho a impressão de que o tom que usou não é tão frio como antes.

Quando chego a minha sala, Oliver está passando por lá.

Ele traz em sua mão um copo de café da Starbucks.

— Ei, bom dia. Só passando para desejar boa sorte. Ouvi dizer que a Kelly andou passando por aqui.

— Como sabe?

— Aqui todo mundo tem olhos pra tudo.

Bufo, irritada de novo ao me lembrar da cena da ex-secretária.

— Eu fiquei surpresa em vê-la na sala do Sr. Black e pedi que saísse, mas ela ficou me intimidando e no fim derrubou todos os papéis da mesa e o porta-retratos. Tenho a impressão que ela odeia o fato de que não é mais a secretária.

— Odeia mesmo. Bem, isso é pra você. — Ele parece lembrar do copo de café na mão o colocando sobre minha mesa.

— Obrigada. — Sorrio.

Eu me surpreendo por estar mesmo contente com aquele gesto.

— Agora preciso ir. Tenha um bom dia.

Ele se afasta, mas quando está na porta se volta.

— Olha, Nina, cuidado com a Kelly. Ela pode fazer sua vida um inferno.

Apenas assinto, quando ele se vai.

Baixo o olhar para meu dedo ainda sangrando. O vermelho me atordoando por um instante.

Lembro-me do sonho.

Obrigo-me a respirar.

— Nina?

Levanto a cabeça, assustada ao ouvir a voz de Alex.

E para minha surpresa, ele está se aproximando da mesa e sem aviso pega meu dedo e coloca um Band-Aid ali com tanta destreza que nem dá tempo de eu me recuperar da surpresa.

— Foi impossível não ouvir sua conversa com Oliver.

Ele senta no canto da mesa, soltando minha mão.

Ah merda.

— Não queria... fazer fofoca.

A resposta parece boba.

— Kelly... — Ele respira fundo, passando os dedos pelo cabelos. Pela primeira vez noto que ele tem uma covinha no queixo. — Ela não aceitou o fato de ser afastada daqui.

— Por que ela foi afastada? — Quase mordo a língua quando a pergunta sai dos meus lábios.

— Ela se apaixonou por mim.

Oh.

Bem, talvez eu tenha sido um tanto lerda por não ter entendido ainda que todo o rancor da ex-secretária na verdade era fruto de um coração partido.

— Só queria esclarecer. Ela não é... uma pessoa ruim. Na verdade ela era uma ótima funcionária. Só... Não poderia mais mantê-la aqui.

— Eu a entendo — eu me vejo murmurando.

— Entende? — Ele franze o olhar e hesito em prosseguir.

Será que ele não sabe que é tão bonito que poderia ser um modelo?

Sim, eu entendo o fascínio da antiga secretária.

Porém, acredito que essa não seja uma resposta adequada.

— Entendo a situação. Realmente, não seria adequado.

— Sim, não seria. Eu cheguei a cogitar demiti-la, mas não achei justo. Ela trabalhou três anos com meu pai antes de trabalhar comigo e realmente não seria justo, com sua boa experiência profissional.

Bem, isso foi legal da parte dele.

— Certo, acho que agora quase entendo seu surto.

— Não, isso não foi justificável — ele diz e há dureza em sua voz. — Eu terei que pedir que ela nunca mais te importune.

— Não sei se...

— Isso sou eu que decido. — Ele parece frio como gelo quando se levanta. — Como disse Oliver, não podemos permitir que ela transforme sua vida em um inferno.

Ele se afasta, me deixando ainda mais atordoada do que antes.

Talvez devesse lhe contar que eu já estou no inferno.

 

 

Antes

 

 

— Está vendo, Nina, essa é Chicago. — A voz de David parecia animada quando adentramos na cidade.

Espiei pela janela, curiosa para ver a nova cidade onde agora seria minha casa. Havia uma grande quantidade de água e muitos prédios altos ao final. Era bonito.

Aos poucos, a carro foi deixando a agitação do centro e as ruas foram ficando mais arborizadas e com prédios residenciais.

David estacionou em frente a um sobrado cinza. Não havia jardim como na minha casa.

Minha casa... Senti meus olhos ardendo de novo.

Mas não queria mais chorar.

Desta vez segurei a mão de David bem firme enquanto ele abria a porta. Dentro, a casa era como as outras. Não havia nada que meus olhos infantis achassem interessante. Porque na verdade nada mais parecia interessante para mim naquele momento.

— Finalmente voltou! — A voz da mulher que apareceu na porta da cozinha não era nada acolhedora.

Ela era bonita. Loira e alta. Usava um avental e fumava um cigarro.

Eu não gostava de cheiro de cigarro. Mamãe dizia que os pulmões de quem fumava eram escuros.

O olhar da mulher foi de David para mim.

— Que diabos?... Quem é essa criança?

— É a filha de Linda e Elly.

— Só pode estar de brincadeira!

Eu me encolhi com o tom de sua voz.

Acho que nunca tinha visto alguém tão bravo antes. E sem pensar me encolhi atrás de David.

— Vou acomodá-la. Ela está cansada e acabou de perder os pais. Depois conversamos.

David me pegou no colo e me levou por uma escada, abrindo uma porta e me colocando no chão.

— Vai dormir aqui por enquanto, até que faça um quarto só pra você.

Olhei em volta e havia uma cama ali e uma estante cheia e livros e alguns jogos de tabuleiros jogados em um canto.

— Aqui é o quarto do meu filho, vamos colocar um colchão para você aqui.

— Você tem um filho?

— Sim, criança. Ele está na escola agora, vai conhecê-lo mais tarde, ele tem quase a sua idade.

— E aquela moça brava?

David riu e sentou-se na cama me puxando até que eu estivesse em seu colo.

— Nora, minha esposa.

— Ela não gosta de mim...

— Não se preocupe, criança. Está segura aqui. Tudo vai ficar bem, prometo. Agora que tal deitar e dormir até a hora do jantar?

Ele me fez deitar e me cobriu, saindo do quarto em seguida.

Adormeci facilmente e quando acordei levei um susto ao ver que tinha um menino ali. Ele estava sentado no chão ao lado da cama olhando pra mim.

— Oi, eu sou Will. — Ele estendeu a mão para mim.

Eu a peguei incerta, me sentando na cama e passando o braço por meus olhos sonolentos.

— Papai falou que você vai morar com a gente porque seus pais morreram.

Sacudi a cabeça em afirmativa.

— Sinto muito. Eu acho que ia ficar triste se meus pais morressem. Minha mãe é brava às vezes, mas mesmo assim... — Ele riu.

— Will, vem jantar! — alguém gritou.

— Acho que temos que descer pra comer.

Eu me levantei e o segui.

Ele era mais alto do que eu. Talvez um pouco mais velho. Seus cabelos eram loiros e precisavam de um corte.

Descemos as escadas e David estava à mesa, assim como a mãe de Will.

Ela fez cara feia ao me ver e não pude deixar de me encolher de medo de novo.

David sorriu.

— Sente-se aqui, Nina — David me chamou para sentar ao seu lado. — Você come carne?

Sacudi a cabeça em afirmativa.

— Muito bem.

David continuou falando carinhosamente comigo, serviu a comida e ainda cortou meu bife. A cada vez que ele me tocava ou falava comigo a mulher parecia ficar mais brava ainda.

— Will, senta direito! — David repreendeu o menino que mudou a postura.

Fiquei um pouco surpresa por David falar assim com Will.

Porque comigo ele sempre era calmo.

— E suas notas estão uma merda. Assim que acabar aqui, vai subir e estudar! — Nora disse. — Seu pai não se importa, mas eu me importo.

Depois que o jantar terminou Will saiu da mesa e David me apresentou ao resto da casa e me instruiu a pôr o pijama e descer para tomar um leite antes de dormir.

— Sei que está triste, mas com o tempo vai se acostumar a viver com a gente. Aqui é sua casa agora, Nina.

Eu vesti meu pijama e desci as escadas, porém, parei ao ouvir as vozes alteradas vindas da cozinha.

— Eu não vou aceitar a filha daquela mulher aqui!

— Você vai sim! Eu tenho a guarda dela!

— É muita cara de pau achar que vou aguentar isso! Na minha casa! Com o meu filho!

— Will vai aceitar também. Serão irmãos.

— Não são irmãos! Não pode me obrigar a tratar aquela menina como minha filha!

— Pois aqui é a casa dela agora! E você terá que aceitar. Nina é minha agora. Minha responsabilidade!

— Era só o que faltava! Sempre soube que continuava apaixonado por ela! Tanto que agora está encantado pela filha dela!

Escutei algo se quebrando e me encolhi, sentando-me na escada, tremendo.

— Nina?

Olhei para cima e Will estava ali.

— Vem dormir.

Eu fiz o que ele pediu, o seguindo para o quarto.

— Fica com a minha cama. Eu durmo no colchão.

Eu me deitei, ainda tremendo. Os olhos ardendo de vontade de chorar.

— Minha mãe está bêbada — ele sussurrou.

E eu não entendi.

— Ela fica assim quando está chateada e briga com meu pai. Acho que não tem nada a ver com você.

A voz dele parecia diferente agora. Como se fosse mais velho.

Como se entendesse muito mais coisa do que eu.

— Estou com medo — sussurrei.

Ele estendeu a mão.

Eu a peguei.

— Não fica. Estou aqui com você.

 

 


Capítulo 4

 

 

Avalio o resultado da pauta na tela do computador e me permito um pequeno sorriso satisfeito ao perceber que estou ficando cada vez melhor naquela função. Com uma última checada, encaminho o e-mail para Alex e suspiro aliviada por ter feito aquela tarefa pela primeira vez sem a ajuda de Hannah, que até poucos dias ainda tomava para si as tarefas mais complicadas que meu cargo exigia.

Eu me perguntava se Alex tinha exigido isso ou algo assim por não confiar totalmente em mim.

Não que ele tivesse alguma reclamação a fazer do meu trabalho.

Contrariando todas as expectativas – inclusive as minhas – estou me saindo muito bem na Black Investiments.

E para meu total assombro, estou gostando disso.

É algo novo para mim, essa satisfação. Essa vontade de aprender para fazer cada vez melhor. Eu nunca tinha sido assim. Quer dizer, talvez eu tenha sido um dia.

Se buscar bem lá no fundo do meu ser, em um lugar onde se guarda as memórias mais escondidas, eu encontre uma outra Nina. Uma Nina que gostava de estudar, de tirar boas notas. De ver o rosto feliz da minha mãe quando soletrava certo uma palavra nova.

Só que aquela Nina tinha morrido e no lugar dela surgiu outra versão. Uma que ainda se esforçava para fazer o certo, mas não porque se sentia feliz, e sim para agradar. Para tentar sentir-se menos incapaz na frente dela .

Este pensamento faz meu estômago embrulhar e empurro a memória indesejada de novo para aquele lugar escondido.

Um lugar que não gosto de visitar. Nunca.

— Ainda aqui, Nina?

Levanto o olhar e Alex está parado na minha frente.

Demora alguns segundos para que eu me recupere do abalo que sua presença me causa.

Chega a ser um tanto constrangedor essa perturbação bizarra que faz com que eu perca o prumo por alguns instantes, afinal, já faz pouco mais de um mês que trabalho para Alex Black.

Eu o vejo surgir todo dia, passando pela minha sala e vestindo um de seus ternos caros. Os cabelos sempre estão bagunçados pelo vento frio de fim de outono e ele acena a cabeça e junta a isso um bom-dia seco que eu respondo baixinho, ainda abalada, e sempre com a certeza que ele nem escutou.

Como era previsto, ele passava bastante tempo entretido em reuniões, na empresa ou fora dela. E para meu desassossego, por enquanto nenhuma viagem fora agendada, como tive esperança. Assim, quando não estava fora, ele estava na sua sala, há poucos passos de distância. Poucas vezes me chamou até sua presença, o que era um alívio, e quando me chamava era objetivo em suas ordens, me dispensando em seguida.

Mas mesmo assim bastava para eu voltar para minha sala com as pernas trêmulas de uma perturbação irracional.

No começo, Hannah estava ainda comigo e chegava a rir de mim, achando minha comoção um tanto exagerada, afinal, Alex era “um cara legal”.

Sinceramente, eu não sei onde ela via isso.

Ok, Alex não é um tirano ou algo assim.

Porém, depois da maneira que ele me tratou no meu primeiro dia, eu pensava exatamente isso.

No entanto, com o passar dos dias, apesar de continuar sendo um tanto frio e distante, além de muito exigente e sempre pronto a me lançar broncas secas quando não tinha sua vontade atendida, o que aconteceu algumas vezes, já que eu era nova na função e era absolutamente normal me equivocar de vez em quando, nunca fora injusto, ou grosso. Na verdade, havia um certo controle em suas ações, e até em sua voz, que chegava a ser perturbador. Mesmo quando ele expunha sua insatisfação, não elevava o tom de voz.

E todos, absolutamente todos, seguiam suas ordens sem pestanejar e devotavam uma confiança intrínseca em sua direção.

O que não deixava de ser incrível, dado que ele herdou a empresa do pai e estava na liderança há pouco mais de um ano. Além de sua pouca idade.

Assim, conforme meu tempo na Black Investiments foi passando, mais de Alex Black eu ia conhecendo. Pelo menos a sua versão como CEO.

— Por que não estaria aqui? — balbucio meio aturdida o que o faz rir.

É um riso curto, rouco, quase descontraído.

E percebo que é a primeira vez que o vejo rir.

E perturba de um jeito diferente.

Não menos irracional.

— Não deveria estar almoçando?

Dou uma olhada no visor do computador e noto que realmente já deveria estar saindo para almoçar.

— Sim, é verdade.

— Estou saindo. Espero que Hannah tenha te mandado a pauta da reunião de hoje?

— Não, eu mesma providenciei e já encaminhei para seu e-mail. — Não posso deixar de sentir uma certa satisfação quando ele levanta a sobrancelha levemente surpreso.

— Ok, eu vejo quando voltar. Bom almoço.

Ele se afasta e eu me levanto, pegando minha bolsa.

Hoje eu não havia trazido meu habitual sanduíche e não gosto de lembrar que acordei atrasada por causa de certos pesadelos que pareciam estar me assombrando mais do que o habitual.

Claro que eu podia não ter ido correr, e tido mais tempo para me arrumar, mas eu não o fiz.

As corridas ainda eram minha parte preferida do dia.

A corrida e a parte em que eu via Alex.

Nós ainda nos comportávamos como se não nos conhecêssemos. Como se não fôssemos chefe e secretária, mas ainda sentia aquela energia quase essencial vinda dele quando passava por mim apenas meneando a cabeça de leve. E eu não conseguia conter meus lábios de subirem em um sorriso clandestino.

E quando ele passava por mim, horas depois já no escritório, com seu terno bem cortado e voz fria de CEO, sentia como se compartilhássemos um pequeno segredo.

Agora, quando entro no elevador, Hannah está ali e sorri ao me ver.

— Oi Nina.

— Oi. — Tento sorrir de volta.

— Está indo almoçar fora? — indaga surpresa.

— Sim, acordei atrasada e não consegui preparar meu sanduíche.

— Por Deus, deveria agradecer, precisa comer alguma coisa que preste de vez em quando, algo quentinho e gostoso. Quer almoçar com a gente?

Ah merda.

Tento buscar uma negativa, mas não encontro nada educado o suficiente.

Em outros tempos não hesitaria em ser evasiva ou até mesmo um tanto grossa. Não me importava com o que os outros pensavam de mim. Eu nunca ficava muito tempo em um trabalho para me preocupar em criar laços.

Eu não desejo criar nenhum laço.

Porém, pela primeira vez, sinto que talvez a minha passagem pela Black Investiments não seja tão breve como nos meus outros empregos.

E isso me assusta um pouco, porque se eu ficar, não poderei fugir de todos por muito tempo.

Será que isso significa que terei que ser mais sociável?

Este pensamento me inunda de terror, mas algo mais acontece em meu íntimo. Sinto um certo anseio. Uma vontade de seguir Hannah, não porque seja algo que se espera de mim, mas porque é algo que desejo saber como é.

— Tudo bem.

Um pequeno passo para fora do elevador com Hannah sorrindo acolhedora pra mim.

Um passo enorme para fora da minha pele.

 

Tento não parecer esquisita demais enquanto Hannah me apresenta as pessoas na mesa do pequeno restaurante italiano. Na verdade, eu já fui apresentada a todos eles, mas nunca me dignara a dar mais do que um apagado bom-dia depois disso.

— Nina, acho que já conheceu todo mundo, mas vou refrescar sua memória. — Ela aponta para um rapaz negro no canto próximo à janela. — Este é Jeremy.

Sim, eu me recordo de Jeremy mais que os outros, porque ele era namorado de Hannah.

— Essa é Sasha.

Uma moça alta de cabelos muito curtos e escuros acena pra mim.

— E eu sou Nikki. — A mais jovem do grupo, uma loira muito bronzeada retira a bolsa para que eu sente na cadeira a seu lado.

— Oi. — Aceno de volta, ainda um tanto constrangida.

Busco em minha mente, o meu modus operandi para situações assim onde eu era obrigada a ser sociável e minimamente normal.

Eu nunca era sociável por vontade própria.

— A comida parece ser boa aqui. — Minha voz adquire um tom simpático e eu me parabenizo por isso.

— Sim, é ótima. E os preços são bons — Nikki comenta.

— Você é sovina — Jeremy a provoca.

— Sou estagiária, chefe! Mas pode me dar um aumento.

— E aí, Nina? Hannah disse que você está se dando muito bem na empresa. — Sasha puxa assunto depois que o garçom anota nossos pedidos.

Fico vermelha, sem saber o que responder.

— Sim, ela é incrível, me surpreendeu, tem certeza mesmo que não tem experiência? — Hannah questiona.

— Sim, nunca trabalhei como secretária, ainda mais de uma empresa dessas.

— Que bizarro o Black contratar alguém sem experiência — Nikki comenta.

— Nikki! — Hannah a repreende por ver que estou sem graça.

— Não, tudo bem, também achei estranho.

— Mas aqui está você, como eu sempre digo, currículo não é tudo. Veja você, Nikki, eu te dei uma chance no setor sendo que ainda está na faculdade — Jeremy diz.

— Mas eu sou estagiária, é diferente, Nina é secretária do CEO, pelo amor de Deus! A Kelly disse...

Ela para quando Hannah lhe cutuca.

— Não faça fofoca, Nikki. — Sasha é tranquila em sua reprimenda, mas Nikki dá de ombros, com a despreocupação típica dos jovens.

— Escapuliu, desculpa! — Ela ri.

Eu tento me lembrar de mim mesma na faculdade. Se um dia fui assim como Nikki.

Despreocupada e inconsequente.

Acho que nunca fui assim.

Nem antes.

Não me foi permitido.

— Olha só quem está por aqui...

Levanto a cabeça e Oliver está passando por nossa mesa. Ele está com um senhor mais velho que acredito ser um outro corretor, acho que se chama Martin.

Oliver continua a passar por minha sala às vezes, e já tinha me trazido alguns cafés, mas eu apenas lhe respondia com um sorriso educado e distante.

Era claro que ele estava flertando comigo, mas nunca passara de qualquer limite nem nunca fora direto em sua paquera.

— Sim, conseguimos tirar a Nina da toca.

— Já era hora. Se soubesse que estava aqui hoje, teria vindo almoçar com vocês. — Seu sorriso é brincalhão, mas guarda certo pesar.

— Você vai se juntar a nós na sexta? — Nikki pergunta.

E Oliver me encara.

— Você vai, Nina?

— Não sei do que estão falando...

— Ah, sinta-se convidada, Nina, toda sexta nós vamos a um bar aqui perto. É animado, happy hour , bebidas e jogar conversa fora. Nesta semana vamos ao The Northman.

— Eu não sei. — Sinto-me constrangida de dizer um não de cara, quando sei que jamais me juntarei a eles.

— Vamos! Lá tem ótimas sidras e é ótimo para flertar! — Nikki pisca, e percebo que ela está ciente que Oliver está dando em cima de mim.

— Eu não posso — respondo por fim.

— Ei, Oliver, vamos? — Martin apressa Oliver que acena, se despedindo, antes de sair ele se vira e me dá um olhar intenso.

— O Oliver está muito a fim de você! — Nikki ri.

— Não, ele é só legal — tento desconversar.

— Não fica tímida, a gente notou! — Hannah rebate. — Eu já tinha percebido que ele vivia inventando desculpas para passar por sua sala.

— E aí, ele tem chance? — Sasha indaga e os quatro me encaram curiosos.

— Vocês estão exagerando — continuo desconversando.

— Por acaso já tem namorado? — Nikki insiste.

— Não, não tenho.

— Então, ele é tão fofo, por que não? — Hannah diz.

— Ele é fofo é? — Jeremy cutuca Hannah e ela se inclina e o beija.

— Não fica com ciúme, amor.

Eles se distraem e eu fico feliz de terem parado de insistir.

Não é um assunto que me sinto à vontade.

Estar ali, comendo com eles, sorrindo quando é preciso e me mostrando atenta à conversa, embora não me sinta à vontade de falar muito, é algo novo para mim.

Só que eles não fazem ideia.

Eles veem só o exterior. A Nina bonita e jovem, que se veste como eles, que se parece com eles, mas não fazem ideia que tem o interior oco. Vazio.

Escuro.

E por um momento, enquanto riem de alguma piada que Jeremy está contando, quando estamos voltando ao prédio da Black, me pergunto como seria ser como eles.

Normal.

Feliz.

Eu não sei dizer.

Mas pela primeira vez em muito tempo, desejo descobrir.

Descobrir como é andar pelo mundo sem estar esperando o dia em que serei punida pelos meus atos.

 

No dia seguinte, estou me perguntando se devo deixar meu sanduíche para ir almoçar de novo com Hannah e seus amigos.

Confesso que ainda é estranho aquela vontade de confraternizar, mesmo me sentindo meio deslocada entre eles. Porém, eu tinha gostado.

Foi algo diferente.

Algo que sentia que podia ser acrescentado aos meus dias.

Mas e o que viria depois?

O que eu faria quando as conversas superficiais na hora do almoço se transformassem em conversas mais profundas? Se quisessem ser meus amigos.

Eu não tinha amigos há muito tempo.

Sou tirada dos meus devaneios quando o telefone toca. É o ramal de Alex.

— Nina, vem até aqui — pede seco, desligando em seguida.

Respiro fundo, dando uma checada na minha aparência, só por precaução. Hoje estou vestindo uma saia escura e uma blusa de lã rosada, por cima de uma camisa simples. A temperatura lá fora está excepcionalmente morna, para o fim de outono, e sinto um pouco de calor ao entrar na sala de Alex, que deve estar com o aquecedor ligado.

Ele está sentado à sua mesa e tirou o paletó e a gravata. Parece levemente decomposto. Diferente.

— Sim? — Caminho até sua mesa, contendo a onda de medo irracional que sempre sinto ao me aproximar dele.

— Preciso de ajuda. Esses números estão me matando. — Passa os dedos pelos cabelos, parecendo irritado.

Fico parada em frente à mesa sem saber o que fazer.

— Acho melhor vir aqui.

O quê?

Continuo confusa e Alex levanta a cabeça impaciente.

— Coloque sua cadeira aqui do meu lado. Preciso que confira isso comigo.

Engulo em seco e apresso-me em pegar a cadeira em frente a sua mesa e dar a volta, a colocando ao lado da de Alex, que arrasta a sua um pouco para o lado.

Sento-me e mordo os lábios incerta com o que ele quer que eu faça.

— Esses números não estão batendo. É o relatório de despesas do setor de comunicação de uma empresa de tecnologia que estamos incorporando, mas por mais que tente, parece uma confusão. Quero que anote o que eu te passar, porque se isso estiver mesmo errado, preciso fazer vários apontamentos e temos uma reunião amanhã.

— Certo.

Pego um bloco de anotação e ele começa a verificar os números.

Mas mesmo enquanto me mantenho atenta, me dou conta que é primeira vez que estamos tão próximos.

E não posso deixar de notar que ele usa um perfume muito bom. Amadeirado. Masculino. Acho que poderia ficar cheirando aquilo o dia inteiro.

Deixo meus olhos percorrerem seu perfil.

Sua pele é levemente bronzeada, mesmo no tempo frio e nublado de Chicago no outono, ele deve ficar muito ao ar livre.

Lembro de Kelly dizendo que ele joga tênis. Meus olhos são atraídos para seu braço. Mesmo por cima da camisa branca de linho, dá para perceber que tem algum músculo ali. Não demais. Black é um cara magro, mas deve ter o corpo torneado de quem pratica esportes. Eu me pergunto se além de correr de manhã e de jogar tênis se faz mais algum exercício. Observo suas mãos sobre o teclado. São mãos bonitas. Acho que nunca tinha parado para reparar em mãos masculinas e como elas podiam ser atraentes.

— Nina?

Ele chama minha atenção e coro ridiculamente ao ser pega distraída.

— Sim, me desculpe.

Ele franze o olhar me estudando.

— Está vermelha?

— Ah, é... o calor.

— Está quente? Pode retirar a blusa.

— Não — respondo rápido, quase me encolhendo com a sugestão. — Não estou com calor.

— Disse que estava.

— Desculpa, vamos continuar — eu o corto, minhas mãos puxando as mangas da blusa sobre meu pulso, nervosamente.

— Certo — ele continua e desta vez presto atenção no trabalho e não na boa aparência do meu chefe.

Não sei quanto tempo passamos ali, e em certo momento sinto meu estômago roncar e me encolho, envergonhada, quando Alex percebe.

— Merda, eu te prendi aqui na hora do seu almoço. — Ele parece só agora se dar conta.

— Não tem problema — apresso-me em dizer.

— São só mais alguns relatórios. Quero mesmo terminar isso, antes da reunião das quinze — cita a reunião que terá com alguns acionistas.

— Claro, sem problema. Eu nem ia almoçar mesmo, eu só como um sanduíche.

— Bem, você pode comê-lo agora.

— Aqui?

— Por que não? Vá buscar seu sanduíche, vou aproveitar para ir ao banheiro.

Ele se levanta, não me dando opção a não ser me levantar e buscar meu sanduíche na bolsa.

Retorno, ainda incerta que seja realmente apropriado comer na frente dele. Alex senta ao meu lado, enquanto desembrulho o sanduíche e me lança um olhar divertido.

— Do que é?

— Atum?

— Parece bom.

— Você quer? — ofereço por educação.

— Se não se importa em dividir comigo.

O quê?

Ele falou sério?

Sim, ele fica me encarando divertido, claramente esperando que eu divida meu simplório sanduíche de atum com ele.

— Eu, eu não sei...

Ele pega o sanduíche da minha mão e sem a menor cerimônia parte em dois pedaços e me passa um.

— Pronto. Resolvido.

— Sim. — Eu me permito um pequeno sorriso sem graça enquanto levo o sanduíche à boca.

Alex termina o dele em poucas mordidas, enquanto com uma mão continua a correr pelos números e faz alguns comentários para eu anotar de vez em quando.

— Pronto, acho que terminamos — diz por fim, uma hora depois.

Respiro aliviada.

— Por favor, compile tudo em um arquivo e coloque junto com a pauta.

— Claro. — Junto o bloco de nota e meu lápis e estou me levantando quando Alex me surpreende segurando meu pulso e me mantendo no lugar.

— Nina, espere.

Por um instante, fico totalmente em choque por ele estar me tocando.

Rastejo meus olhos para onde seus dedos seguram meu pulso como garras de aço.

Meu coração dispara no peito.

Um misto de medo e expectativa.

— Queria apenas conversar algo com você.

Levanto a cabeça, capturando seu olhar.

Ele está muito próximo.

Quase sinto seu hálito em meu rosto.

Mordo os lábios, incerta de como agir.

Talvez deva puxar meu braço, desfazendo seu toque, mas Alex permanece com a mão em mim, como se não se desse conta daquele ato um tanto...

Bizarro?

Impróprio?

Alex não parece achar nada disso e por um momento me pergunto se estou sendo exagerada.

As pessoas se tocam casualmente o tempo todo não?

— Algum problema? — Limpo minha garganta para me expressar.

E mesmo assim minha voz sai trêmula.

E é quando Alex tira a mão do meu braço e se afasta.

Se recosta na cadeira me estudando com os olhos cinzentos franzidos. Ele parece meio... irritado?

— Eu tenho notado que às vezes parece que tem medo de mim.

Ah merda.

Ele tinha notado.

Claro que ele ia notar!

Desvio o olhar, ruborizando.

— Nina, olhe pra mim.

É uma ordem.

Parece bobo perceber isso, mas seu tom é aquele calmo.

Objetivo.

Suavemente autoritário.

Faz com que eu levante a cabeça e sustente seu olhar inquiridor.

— Por que tem medo de mim?

— Eu não sei — sussurro. — É só... talvez pelo senhor ser meu chefe.

— Você me chama de senhor.

— Achei que fosse o apropriado. Nunca me corrigiu.

— Como acha que deve me chamar?

— Senhor Black.

Seus olhos se prendem em meus lábios.

— Repita.

— Senhor Black.

Por um momento, ele apenas mantém a atenção em mim e uma tensão estranha paira no ar.

Eu não consigo entender.

— O senhor está bravo comigo? — expresso minha confusão.

— Por que eu estaria?

Dou de ombros, ainda incerta.

— Eu não sei...

— Por que tenho a impressão que está sempre esperando para ser punida?

Arregalo os olhos, meu estômago se apertando.

Como é que ele sabia?...

Sustento seu olhar enquanto ele espera uma resposta.

E quando eu a profiro, é como se ele já soubesse.

— Talvez eu esteja. — Minha voz vacila e abaixo o olhar para minhas mãos, puxando a blusa sobre elas, como se ele pudesse descobrir o que eu escondia.

E por um momento aterrador, sinto como se Alex Black, dentre todas as pessoas no mundo, tivesse o poder de me enxergar.

— Não, não estou bravo com você — sua resposta sai brusca enquanto ele inala pela narina como se estivesse exasperado e passa os dedos pelos cabelos. — E não precisa me chamar de senhor.

— Mas...

— É uma ordem, Nina. — Ele se inclina sobre o computador de novo, a atenção não mais em mim, e é claro que está me dispensando.

Levanto-me e desta vez ele não me impede de ir.

Quase lamento.

Quando sento a minha mesa, e reviso de novo toda aquela conversa estranha, percebo que ele não corrigiu a parte de que não deveria ter medo dele.

Porém, mesmo que dissesse, eu saberia que era mentira.

Eu temeria Alex Black por que começo a perceber que ele está perigosamente perto de me entender.

Eu só não sei como é que ele consegue isso, se nem eu mesma me entendo.

 

 

 

Antes

 

 

Eu comecei na minha escola nova alguns dias depois.

Com meu uniforme e minha mochila cheia de materiais novos que David tinha me comprado eu segui Will para o ônibus escolar.

Will tinha muitos amigos no ônibus e me senti um pouco insegura ao me sentar sozinha, lutando contra o medo de estar indo para um lugar desconhecido e com pessoas desconhecidas.

Porém, ao chegar na escola, Will segurou minha mão e disse que ia me levar para a secretaria.

Lá ele me apresentou a uma senhora baixinha roliça que sorriu para mim e disse que Will podia ficar sossegado, pois ia me guiar até minha nova sala.

— Eu cuidarei da sua irmã, querido.

— Ela não é minha irmã...

— Ah sim, mas agora ela vai ser, não é? Já que seu pai tem a guarda dela.

Will deu de ombros e se afastou para sua aula.

Queria poder ir com ele, mas sabia que, sendo três anos mais velho, estaríamos em salas diferentes.

O primeiro dia de aula foi horrível como eu achei que seria, com todas aquelas crianças estranhas e uma professora, a Senhora Kellerman, uma senhora alta e com ares não muito simpáticos.

Quando saí para o intervalo, observava com pesar as outras crianças que corriam animadas em turmas.

Claro que todos eram amigos. Lamentei pela primeira vez ter deixado meus amiguinhos na minha outra escola.

Ia sentir falta deles como tudo o que deixei para trás.

Desanimada, sentei sozinha no jardim e ao abrir a lancheira que a mãe de Will tinha me jogado sem muita paciência de manhã, notei que estava vazia.

E agora, o que eu ia comer?

Comecei a chorar e de repente Will apareceu.

— Ei, Nina o que foi?

— Acho que sua mãe se esqueceu de pôr meu lanche — sussurrei.

Ele sentou ao meu lado e abriu sua própria lancheira.

Havia um sanduíche lá.

Ele o passou para mim.

— Pode comer o meu.

— Mas e você?

— Eu não estou com fome.

Eu peguei o lanche e o parti no meio.

— Podemos dividir.

Ele sorriu.

— Podemos sim.

Comemos em silêncio e três meninos que pareciam ter a idade de Will apareceram na nossa frente.

— Ei Will, quem é essa? — um deles perguntou.

— É a namorada dele ! — outro caçoou me fazendo ficar vermelha.

— Ela é minha irmã! — Will rosnou.

— Você não tem irmã! — o outro comentou desconfiado.

— Então é namorada dele mesmo! — o outro continuou rindo.

— Will tem namorada... — eles cantavam em pouco tempo e de repente Wil estava em pé socando os garotos.

Fiquei assustada, mas permaneci no lugar, enquanto a briga aumentava com a chegada de outros alunos.

Até os bedéis se aproximarem acabando com a confusão.

A mãe de Will teve que buscá-lo na escola naquele dia e ela não parecia muito feliz por ter sido chamada na diretoria.

A mim, ela lançou apenas um olhar furioso quando chegamos em casa.

David estava lá.

Ele tinha me dito que possuía uma loja de carros e que passava os dias trabalhando e claro que eu achei normal. Meu pai também passava os dias fora trabalhando, era o que os pais faziam.

Mas quando ele se despediu de mim de manhã eu tinha sentido um pesar, porque não queria ficar com a esposa dele que parecia não gostar de mim.

Mas pelo menos tinha Will.

Agora, quando chegamos, Nora estava furiosa explicando que Will tinha se metido em uma briga por minha causa.

— A diretora disse que Will gritou com os amigos que Nina era sua irmã! — Ela se virou para Will. — Nunca mais repita isso! Vocês não são irmãos! Essa menina não é nada sua! Ela é só uma intrusa aqui. Alguém que está roubando seu pai de você!

— Cale a boca, Nora! — David pediu bravo. — Nina não é irmã de sangue de Will mas agora é da nossa família!

— Isso é uma afronta!

— Acostume-se com isso. — David passou por Nora e pegou minha mão me levando para fora de casa.

— Não queria que Will fosse punido... — sussurrei e David sorriu.

— Não foi culpa sua. Que tal darmos uma volta, só eu e você? Vamos tomar sorvete? Ou comer um bolo de canela?

Olhei para trás. Will estava na janela, observando enquanto David me puxava em direção ao carro.

— Mas e Will?

— Will tem tarefa para fazer. Não se preocupe com ele.

David me colocou no carro e se ocupou em me prender com o cinto de segurança no banco de trás.

— Não posso ir na frente?

Ele riu.

— Daqui a alguns anos, quando for adulta.

— Vai demorar muito?

— O quê?

— Para ser adulta?

— O tempo passa rápido, quando menos esperar será uma moça.

— Como minha mãe?

Ele acariciou meu rosto, com um olhar de dor.

— Sim, como sua mãe. Ela era a mulher mais linda do mundo.

— Acha que serei como ela, David? — indaguei com saudade.

— Sim, minha pequena, você vai ser a mulher mais linda do mundo.

 


Capítulo 5

 

 

— Nina, vem até aqui.

Como sempre que escuto seu chamado, estremeço num misto de medo e anseio, quando me levanto e caminho até sua sala.

Alex está sentado como no outro dia, os olhos fixos na tela do computador.

Avanço em sua direção, ainda incerta. Ele levanta a cabeça, percebendo minha hesitação. Ele sempre sabe, claro.

De alguma maneira estranha e fascinante, Alex Black conhece os medos mais profundos em meu íntimo.

Ele me conhece.

Seu olhar chega até mim, inquiridor.

— Sente-se aqui. — Sua voz é baixa e aveludada.

Mas não menos imperiosa.

Arrasto minha cadeira para seu lado. Desta vez, já ansiando pelo cheiro amadeirado que invade minhas narinas quando me sento perto. E como no outro dia, deixo meu olhar vagar por sua figura perfeita, dando-me conta de que era isso que eu estava esperando. Ansiando.

Desejando.

A oportunidade de estar assim, perto o suficiente para dividirmos o mesmo ar. Nossas energias se misturando. Fixo meus olhos em seus dedos sobre o teclado, esquecendo de que não deveria olhar para ele daquele jeito, ansiando que aquelas mãos estejam em mim.

Como seria senti-las em minha pele?

— Nina?

Capturo seu olhar, sem tempo de guardar o desejo que está estampado em meu rosto. Meu peito sobe e desce a cada respiração, meu sangue se eletriza nas veias, banham meu rosto de um rubor culposo.

Por um momento nenhum dos dois fala nada e noto o exato segundo em que ele percebe.

Que ele sente.

Me sente.

— Está com medo? — Ah, aquela voz.

Sacudo a cabeça em afirmativa, exalando o ar com força quando ele tira a mão do teclado e a move em minha direção, estremeço ao sentir seu toque em meu pescoço. Ele pode ouvir as batidas erráticas do meu coração que parece que vai saltar do peito a qualquer momento.

Desejo que ele o pegue antes que vá ao chão.

— Se tem medo, por que está aqui? — Sua mão desce por minha blusa, leve como pluma, mal me toca.

Mal respiro.

— Por que deixa que eu te toque assim?

Fecho os olhos, saboreando sua voz de veludo que acaricia meus sentidos.

Quando ele desliza a mão para baixo da minha saia, arfo como se um choque de mil volts me atingisse.

Como se aquele toque tivesse o poder de vida e morte.

Eu abraço a morte.

Não seria a primeira vez.

 

Acordo assustada, com o despertador tocando ao lado da cama e sento-me, respirando por arquejos, ainda em choque com o teor do sonho.

Que diabos era aquilo agora?

Jogo as cobertas para o lado e me levanto, atordoada. Ainda posso sentir o desejo percorrendo minha pele, fazendo meu sangue borbulhar de forma ilícita.

Sonhos estranhos não são novidade para mim, mas sonhos eróticos com meu chefe é algo inédito.

Muito inapropriado.

E totalmente assustador.

 

E naquela manhã, enquanto corro, sinto uma ansiedade diferente quando vejo Black surgir no meu campo de visão. É como se girassem um botão dentro de mim, ligando todos meus sentidos e de repente sou inundada por uma energia nova e estimulante que faz minha pele esquentar e meu corpo vibrar numa frequência até então desconhecida.

Porém, como todos os dias, ele apenas passa por mim, com um menear discreto de cabeça. E só percebo que esperava algo diferente, quando ele já está muito longe, percorrendo seu caminho sem olhar uma única vez para trás.

Talvez se ele se voltasse, saberia que diferentemente dos outros dias, eu continuo parada, a respiração saindo por arquejos cansados, como se tivesse levado com ele toda a energia necessária para eu continuar em frente.

 

— Oi, Nina.

Oliver surge na minha sala naquela manhã e me entrega um café com um meneio tímido.

— Obrigada.

Arrisco um sorriso, querendo ser simpática, mas não dar a entender que estou mais do que agradecida.

É quase triste ver como os olhos de Oliver brilham de uma esperança tola.

Eu deveria dizer a ele que estava perdendo tempo comigo.

Oliver parecia um cara legal. Daqueles que uma boa garota podia se apaixonar.

Mas eu não sou uma boa garota.

— E então, está gostando do trabalho?

— Sim, estou. — E desta vez o meu sorriso é genuíno assim como minha resposta.

Por um momento me surpreendo por isso.

Eu não costumo gostar das coisas.

Eu apenas as aceito.

— Que bom. — E acho que ele entende meu sorriso como um convite, pois senta na quina da minha mesa. — E espero que a Kelly não tenha te importunado mais.

— Não, eu não a vi mais.

E é verdade. Depois da cena bizarra que Kelly tinha protagonizado na sala de Alex, ela tinha desaparecido feito fumaça. O que é um alívio.

— Fiquei sabendo que o Alex deu uma dura nela — Oliver diz abaixando a voz como se estivesse fazendo uma fofoca.

— Sério? — Não posso conter minha curiosidade.

— Sim, eu não sei detalhes, mas o que contaram foi que ele chegou no setor e a chamou na sala de reunião e que depois Kelly estava chorando no banheiro feminino.

— Você... você sabe o motivo de ela ter sido transferida? — indago incerta se as pessoas na empresa sabem da paixão inapropriada de Kelly por Alex.

— Todo mundo sabe! Ela caiu na bobagem de se apaixonar por Alex. E ainda achou que podia se declarar pra ele. — Oliver ri. — Sei lá o que se passou na cabeça dela, como se isso fosse apropriado.

— Oh... — Não sei como me sentir sobre aquilo.

Sinto uma certa empatia por Kelly.

Imagino ser alvo de todos os cochichos e fofocas pelo corredor. Todos sabendo que ela mantinha uma paixão não tão secreta assim pelo CEO da empresa.

Talvez se eu fosse ela, não teria permanecido por perto.

De repente consigo ver a mim mesma no lugar de Kelly.

Alex me chamando em sua sala e dizendo que teria que me trocar de setor, porque eu tinha me apaixonado por ele.

Espera, isso é ridículo, rechaço este pensamento bobo.

Não vou me apaixonar por Alex.

A memória incômoda do sonho passa por minha cabeça, para me atormentar, mas eu a afasto.

Eu não vou me apaixonar por Alex porque eu não tenho um coração para dá-lo a quem quer que seja.

Este pensamento me dá um certo alento e tranquiliza meus temores.

Talvez eu esteja um pouco atraída, mas não passa disso. Uma atração que irei esmagar e matar como se livra de um inseto indesejado.

— Sinceramente, ela tem é que ficar feliz por não ter sido demitida.

Percebo que me perdi em pensamentos e que Oliver continua a falar sobre Kelly.

— Acho que sim — concordo.

Ele se levanta.

— Bem, vamos ao trabalho. E aí, decidiu se vai com a gente na sexta?

— Eu ainda não sei — desconverso.

Oliver parece decepcionado e chega a abrir a boca para talvez tentar me convencer a ir, mas meu telefone toca naquele momento e ele apenas acena e se afasta, para que eu atenda.

— Black Investiments?

— Me passe para o Alex. — A voz feminina é impaciente do outro lado da linha.

— Ele ainda não chegou, quer deixar um recado?

— Droga! — a mulher resmunga, posso escutar o barulho da chuva através da ligação. — Peça para ele me ligar.

Ela diz como se eu devesse saber quem ela é.

— Qual o seu nome, por favor?

A mulher bufa.

— Aria.

— Ele tem o seu número?

Ela ri, não um riso de humor, e sim de ironia.

— Escuta, você é nova aí, né?

— Sim, senhora. — Tento não soar irritada.

— Eu sou a irmã dele. Devia saber.

E sem mais ela desliga.

— Oi Nina. — Alex entra na sala ainda vestindo um sobretudo creme e com os cabelos levemente despenteados.

Sinto meu coração disparado no peito, imediatamente lembrando da merda do sonho que eu deveria esquecer.

— Algum problema nesta ligação? — Ele franze o olhar e acho que minha expressão deveria ser de desagrado ao desligar.

— Não, claro que não — eu me apresso em responder. — Era uma ligação para você. Aria.

— Ah, sim, ela tentou ligar no meu celular, mas estava no trânsito. Eu vou ligar pra ela.

Ele se afasta para sua sala, mas de repente se volta.

— Esteja preparada em meia hora, vamos sair.

— O quê? — Eu o encaro de volta confusa.

— Você vai comigo à reunião de hoje.

E me deixando ainda abismada entra em sua sala, fechando a porta atrás de si.

 

Ainda estou um tanto confusa quando acompanho Alex pelo corredor meia hora depois, entramos no elevador e obrigo-me a parar de ser absurda.

Eu sabia que uma hora teria que acompanhar Alex em alguma atividade fora da empresa. Devia estar preparada para isso, porque não havia nada demais.

— Tudo bem? — Alex pergunta, ante o meu silêncio e aceno rápido, fazendo minha melhor expressão despreocupada.

— Sim, apenas, um tanto surpresa.

— Me desculpe, eu deveria ter te avisado ontem.

Sim, deveria, quero repreendê-lo, o que seria ridículo.

— Tudo bem, só... talvez não esteja preparada. Nem sei o que vou fazer lá.

— Não se preocupe, quero apenas sua companhia.

O quê?

Antes que possa sequer tentar entender o que está dizendo, o elevador para no térreo e seguimos pelo saguão até sairmos do prédio e paramos ao ver que uma chuva fina está caindo.

E para minha surpresa, Alex me leva para perto, enquanto coloca o casaco em cima de nossas cabeças e me puxa em direção a um carro parado a uns dois metros de distância, abrindo a porta para que eu me acomode no banco traseiro e ele senta ao meu lado.

— Vamos, Ben.

Só então noto a presença do motorista, um senhor negro de uns sessenta anos e bigode espesso, enquanto o carro desliza pelas ruas apinhadas da Riverwalk.

— Nós chegaremos em cima da hora — Alex diz um tanto contrariado, checando seu celular.

Como fui eu que cuidei da pauta, sei que a reunião de hoje é em um conglomerado de mídia chamado Network Company, com sede em Chicago, proprietária de sete canais de televisão, uma estação de rádio e três jornais.

— Você pode ser mais claro sobre os motivos de eu estar o acompanhando? — Crio coragem para perguntar, mesmo Alex estando compenetrado em seu celular.

Ele me encara com um arremedo de sorriso.

— Você passou no teste.

— Que teste?

— Creio que está apta a passarmos para o próximo nível.

— Ainda não entendi...

— Acho que já tinha ficado claro que você teria que me acompanhar em algumas reuniões fora da empresa.

— Ah sim, mas... eu ainda não entendo porque hoje. E porque só fiquei sabendo disso agora. Desculpa, mas não sei se serei de grande ajuda se não estiver preparada.

— Nina, eu jamais te jogaria em uma situação que não estivesse preparada — ele diz muito sério. — Por hoje, você apenas me acompanhará e escutará. Quero que comece a se sentir à vontade nesses ambientes.

Sim, parece razoável a explicação, mas continuo um tanto insegura quando saltamos em frente ao prédio de vidro e aço da Network Company e seguimos para dentro.

Alex é recebido por alguns executivos em uma sala de reunião espaçosa e me apresenta como sua secretária.

Todos os homens dão pouca atenção a mim, o que acho um alívio, quando sento ao lado de Alex e eles começam a falar de números e resultados.

É difícil de acompanhar tudo, mas fico atenta. Desejando mesmo aprender mais sobre o mundo das incorporações financeiras.

Alex crava os homens de pergunta e eles se desdobram para responder até que a reunião finda em pouco mais de duas horas.

Nós nos levantamos e Alex segura meu braço enquanto seguimos para o elevador.

Quando entramos no carro, ele se vira pra mim.

— Tudo bem? — indaga me estudando.

Dou de ombros.

— Foi interessante.

— O que você entendeu?

— Bem, entendi que eles querem muito que você invista na empresa.

— Sim, eles estão com problema de liquidez.

— E acha que é um bom negócio?

— A Black possui a carteira de ações de 25 companhias. E meu pai era um ferrenho defensor do chamado value investing , investir em empresas com base no valor intrínseco delas, e não apenas nas cotações das ações. Por isso faço questão de saber onde estou pisando. É um negócio a longo prazo.

— E qual seu veredicto?

— A Network é líder de mercado e gera resultados consistentes. Só precisa de uma boa direção e uma injeção de capital. Vai ser um ótimo negócio.

Ele continua a falar das vantagens e desvantagens e é realmente incrível de escutar. Alex é um cara inteligente e perspicaz e não é por acaso que todos o respeitam, mesmo com pouca idade.

— O que foi? — Ele para de falar de repente e eu coro, percebendo que estava o encarando.

— Nada, é que... Você parece saber o que está fazendo.

— E por que não saberia? Eu não assumi a Black só porque meu pai era o maior acionista. Eu fui preparado pra isso.

— Acho que foi muito bem preparado — concordo e ele sorri com certa presunção.

Não deveria ser atraente, mas é.

Desvio o olhar para a rua, está chovendo de novo e estamos parados em um engarrafamento.

Franzo o olhar ao perceber que não estamos próximos a Black.

— Onde estamos indo?

— Almoçar.

Eu o encaro, de novo muito surpresa e ele sorri.

— Acho que te devo um almoço decente depois de ter dividido seu sanduíche comigo.

Ai caramba.

Tento conter a onda de medo e anseio que me toma.

É só um almoço.

Perfeitamente normal.

— Mas acho que foi uma má ideia, já que o trânsito está péssimo. Se importa de saltarmos e seguirmos a pé? Estamos próximos.

Ele não espera minha resposta e já abre a porta, saltando e esperando que eu faça o mesmo.

— Mas está chovendo...

— Eu te protejo. — Abre um sorriso e o espaço em seu casaco de novo.

E eu ainda estarei um tanto surpresa comigo mesma algum tempo depois não só por ter sorrido de volta, mas também por ter saltado e me aninhado embaixo do seu casaco sem a menor hesitação.

Corremos pela rua molhada, desta vez unidos pela proteção do casaco fino de Alex e rindo como crianças enquanto desviamos dos carros que buzinam até que finalmente estamos embaixo de um toldo.

Alex tira o casaco de cima de mim, seu rosto corado da corrida e um sorriso divertido nos lábios.

Percebo que estou sem fôlego. Não da corrida, mas sim porque ele está sorrindo pra mim.

E o mais bizarro disso tudo é que estou sorrindo pra ele de volta.

Entramos no restaurante, Eleven City Diner, noto que é mais uma lanchonete americana.

Nós nos sentamos em uma mesa e eu expresso minha surpresa.

— Não achei que comeria em um lugar assim.

— E onde eu comeria?

— Não sei. Um lugar fino. Francês, talvez.

— Isso seria mais a cara das minhas irmãs — comenta abrindo o menu e mordo a língua de vontade de perguntar sobre a família dele.

— O que você recomenda? — Pego o menu também.

— Panquecas.

Eu o encaro achando que está brincando.

— É sério. É o que eu vou pedir.

A garçonete se aproxima e ele pede as panquecas e acabo pedindo o mesmo.

— Você vai gostar. Eles fazem as melhores panquecas.

— Não seria mais apropriado para o café da manhã?

— A vida é muito curta para seguirmos essas regras, Nina. — Ele mexe de novo no celular e de novo fico encarando e pensando que ele parece muito diferente aqui. Muito mais com um cara normal, do que com o CEO da empresa.

Com meu chefe.

— O que foi? Minha boca está suja?

Coro de novo ao ser pega em flagrante.

— Nada. É só... diferente.

— O quê?

— Estar aqui com você.

Seu sorriso se desfaz um pouco e uma sombra passa por seus olhos.

Como se ele só tivesse se dado conta agora de que talvez não fosse tão apropriado assim que estivéssemos ali.

Ou eu estou delirando.

— Trabalhamos juntos, Nina. — Sua voz adquire aquele tom um tanto frio que começo a conhecer muito bem. Aquela que é calma e aveludada, mas está cheia de autoridade. — Então passaremos muito tempo juntos. Preciso que esteja a minha disposição.

Por um momento, tenho a impressão bizarra de que ele não está falando apenas de trabalho, mas afasto este pensamento insano quando a garçonete se aproxima com nosso pedido.

As panquecas são enormes e acho que não conseguirei comer nem a metade.

— Parece bastante calórico — comento estudando meu prato quando a garçonete se afasta.

— Você corre bastante para queimar essas calorias.

Levanto o olhar e ele está me encarando com um meio sorriso.

— Bem, acho que tem razão.

Levo o garfo à panqueca começando a comer e ele tem razão, é muito boa.

— É uma delícia — coloco o xarope de bordo por cima e aprecio até a generosa quantidade de chantilly que cobre as frutas —, mas acho que se comesse isso todo dia só correr de manhã não seria o suficiente.

Black devora as dele sem piedade.

— Você está em forma, não precisa temer algum açúcar.

Sinto um pouco incomodada quando ele faz esse comentário. Como se ele já tivesse reparado em meu corpo e não consigo encará-lo.

Talvez incômodo não seja a palavra certa.

— Você come muito essas coisas? Por que parece em forma também — comento. E espero que não tenha parecido inapropriado.

— Eu luto box. E jogo tênis uma vez por semana.

Quando ele comenta do jogo de tênis eu me lembro dos comentários de Kelly.

— Kelly me disse que ela te acompanhava nos jogos às vezes.

Black torce a boca, um tanto desconfortável com meu comentário.

— Me desculpe falar disso. Nem sei por que comentei, quer dizer, quando ela me contou fiquei me perguntando se eu teria que fazer o mesmo.

Ele me encara por um momento. Como se tivesse pensando no que responder.

— Eu errei com a Kelly.

— Como assim?

— Deveria ter percebido que o que eu achava que era profissional, para ela era algo mais.

De repente sou eu que estou desconfortável, enquanto desvio o olhar.

Será que ele pensa o mesmo de mim?

Talvez não ainda.

Talvez se pudesse ler minha mente estaria correndo comigo como fez com a Kelly.

Infelizmente ele não saberia que estava a salvo comigo.

Amor não é uma palavra que faz parte do meu vocabulário. Provavelmente eu nem saberia reconhecer se aparecesse na minha frente.

De repente seu celular vibra e ele o pega, fazendo uma careta de irritação.

— Aria... — ele bufa digitando rápido. — Eu me esqueci que tenho que encontrar com ela daqui a pouco.

— Sua irmã, não é?

— Sim.

— Ela é a mãe das garotas no porta-retratos?

— Sim, Isabella e Arianna. — Ele sorri. — Elas são incríveis. Pena que a mãe é um pé no saco às vezes — comenta, mas não parece que fala de verdade. Tem carinho em sua voz.

— Ela é sua única irmã?

— Não, tenho mais uma irmã, mais nova, Charlotte. Ela está... fora do país. — Não parece à vontade de falar sobre isso ou é impressão minha?

— Então acho que já podemos ir? — Dou a conserva por encerrada e Alex concorda.

— Sim, vou pedir a conta. Aria está vindo me encontrar e Deus me livre deixá-la esperando.

Alex paga a conta e nos levantamos indo para fora. Ainda está chovendo e agora mais forte.

Ele pega o celular, lendo algo.

— Ben não conseguiu estacionar aqui, está na rua de trás.

— Tudo bem, eu posso ir até lá.

— Vai se molhar... Espera. — Ele volta para o restaurante e quando retorna está segurando uma capa de chuva. — Pronto, consegui pra você.

— Onde arranjou isso? Não precisa...

— Vai vestir, é uma ordem, Nina.

E sem cerimônia, coloca a capa sobre meus ombros e a mim não resta alternativa a não ser aceitar sua ajuda para vesti-la, como uma criança.

— Pronto, está protegida agora. — E ele começa a fechar os botões, até que eu esteja com a capa fechada.

Alex ajeita a gola da capa, parecendo satisfeito.

— Pronto, protegida de uma avalanche.

Ele mantém a mão na gola, sorrindo pra mim.

Dura apenas alguns segundos, mas é o suficiente para algo pesado apertar meu estômago.

Parece bom e horrível ao mesmo tempo.

Dou um passo atrás, perturbada.

Alex para de sorrir e por um momento sinto como se quisesse me dizer algo.

Sinto como se soubesse o que ele quer dizer.

— Ei, vai demorar muito?

Nós dois olhamos para o lado e um carro está parado no meio-fio com uma moça loira dirigindo.

Ela não parece feliz.

— Aria — Alex diz e se vira pra mim. — Nos vemos amanhã!

E ele se afasta em direção ao carro.

Sei que tenho que ir, mas continuo no mesmo lugar, espiando Alex entrar no carro, a moça que dirigia se afasta para o banco do passageiro para que Alex assuma o banco do motorista.

Ela o abraça, sorrindo por cima do seu ombro.

Suas mãos acariciam seus cabelos, enquanto Alex dá partida.

E por um momento, antes de perdê-los de vista, me passa pela cabeça a impressão de que não parecia uma abraço de irmão.

 

Na manhã seguinte, a chuva ainda cai de leve quando corro na calçada margeando o Grant Park. Meus pés imprimem velocidade e meu coração vibra de doce expectativa, mas quando ele surge não é na direção contrária como sempre, e sim sai da rua adjacente e se junta a mim, correndo ao meu lado.

Por um momento quase tropeço em meus próprios pés, com a mudança de rotina. Espero que fale algo, que explique por que está correndo comigo, mas ele mantém o ritmo e eu me obrigo a fazer o mesmo.

Corremos em silêncio pela avenida, e vamos além, passamos pelo Soldier Field, chegamos ao Planetarium e retornamos, desta vez às margens do Lago Michigan, que se abre à nossa direita, com suas águas azuis e os prédios ao fundo, com a mais bela vista que se tem notícia.

Quando chegamos ao Grant Park de novo, Alex acena e segue pela Baldo St, e acho que avistei um meio sorriso em seu rosto através do capuz.

E não posso deixar de sorrir também.

E enquanto faço o caminho para casa, arrastando meus pés cansados, me dou conta de que nunca sorri tanto em um intervalo de tão pouco tempo.

 

 

Antes

 

 

— Nina vem até aqui! — A voz de David me alcançou enquanto eu assistia desenho na sala.

Olhei para Will que estava em silêncio, fazendo seu dever, que parecia não terminar nunca, já que sua mãe, além de supervisionar as lições de casa que a professora passava a ele, também lhe dava mais tarefas. Ela dizia com voz severa que Will tinha que estudar para ser melhor que os outros. Não sei se Will gostava disso, ele parecia um pouco entediado enquanto fazia as intermináveis lições, mas nunca desobedecia a mãe dele.

Quanto a mim, Nora não se importava.

Era sempre David que sentava comigo após o jantar e me ajudava em meu dever. Eu gostava desses momentos. David parecia orgulhoso de mim, de como eu lia cada vez melhor, ou aprendia uma conta nova em matemática.

Mas Nora odiava. Eu não entendia por quê. Ela ficava nos olhando de longe, fumando um cigarro atrás do outro enquanto assistia alguma novela na TV. Will ficava ao seu lado, em silêncio.

David nunca ajudava Will, ou perguntava se ele queria.

E hoje era um desses dias.

Eu me levantei, quando David me chamou de novo, ignorando o olhar enviesado de Nora e subi as escadas.

— Aqui! — ele chamou na última porta do corredor.

Avancei em frente e paralisei na porta ao ver que David estava dentro de um quarto todo rosa.

Arregalei os olhos, admirando as paredes rosa-claro, a cama branca de madeira, assim como uma cômoda da mesma cor.

Tinha até um tapete pink no chão, igual nos filmes da Barbie que eu assistia com mamãe.

— Seu quarto ficou pronto. Gostou?

David me chamou para dentro e ainda estava boquiaberta enquanto ele aguardava minha resposta.

— É tão bonito...

— Sei que não é seu antigo quarto, mas fiz de tudo para que fosse bonito. Você merece.

Eu me esforcei para sorrir, porque David parecia querer isso.

E David era muito legal comigo. Ele se esforçava para me fazer sorrir.

Embora nem sempre fosse possível, porque ainda sentia muita falta dos meus pais.

Ele se abaixou até que seus olhos estivessem da mesma altura dos meus.

— Quero que seja feliz aqui, Nina. Que sinta que aqui é sua casa, está bem?

Sacudi a cabeça em afirmativa.

— Obrigada, David. — Ele me abraçou e sentir seus braços a minha volta fez um pouquinho do meu coração se aquecer de novo.

Ainda não era como papai e mamãe, mas sentia que David queria preencher aquele vazio.

Naquela noite, enquanto escovava os dentes, pronta para ir para meu quarto novo, Will entrou no banheiro também, pegando sua escova.

— Seu quarto ficou bonito — ele comentou.

— Ficou sim. Agora vai ter sua cama de volta.

Ele riu, colocando pasta em sua escova.

— Eu não me importava de dormir no chão. Acho que até me acostumei.

Will escovou seus dentes e eu fiquei ali, o observando, me dando conta de repente que eu preferia dormir com ele ao meu lado.

— O que foi? — ele indagou, cuspindo na pia.

— Quem vai segurar minha mão quando eu chorar?

Ele sorriu.

— Talvez esteja na hora de parar de chorar — piscou lavando a boca.

Arrastei meus pés até meu quarto novinho em folha e me deitei sob as cobertas ainda cheirando como nas lojas.

Fechei os olhos com força, tentando não chorar.

Achei que Will tinha razão e já estava no hora de parar.

Mas então escutei um barulho da porta do quarto abrindo e se fechando e abri os olhos para ver Will segurando um edredom e travesseiro. Ele fez uma cama no chão ao meu lado e se deitou.

Estendeu a mão.

Eu a segurei.

 


Capítulo 6

 

 

Sento-me a minha cadeira para trabalhar naquela manhã com uma ansiedade diferente pesando no meu estômago.

Uma ansiedade que me acompanha desde que Alex quebrou a rotina de nossos encontros matinais correndo ao meu lado.

Eu dizia a mim mesma que era uma bobagem. Que era até natural, dado que agora somos colegas de trabalho, que ele me acompanhe e não mais apenas passe por mim como um mero desconhecido.

Ele não é mais um mero desconhecido.

No entanto, não consegui deixar de pensar nisso o tempo todo, enquanto tomava banho e abria meu closet , procurando algo para vestir e sentindo-me decepcionada por achar minhas roupas tão simples.

Eu nunca tinha me preocupado com o que vestia.

Não que eu fosse desleixada ou algo assim. Acredito que eu tinha o nível de vaidade equilibrado – nem desmazelada demais para chamar a atenção de forma negativa e nem tanto para parecer atraente de propósito.

O que não era fácil.

Eu sabia que era bonita. Do mesmo jeito que sabia que beleza era uma maldição.

Talvez, se meu rosto fosse tão horrível como meu coração, o mundo me deixasse em paz com minha escuridão. Porém, há muito tempo eu percebi que não adianta me esconder. O melhor era tentar me encaixar. Ser o mais normal possível e tentar ser apenas mais uma na multidão, alguém que ninguém daria uma segunda olhada.

Como Alex fazia quando passava por mim de manhã.

Mas isso foi antes.

Agora, ele me notou.

E sinto como se algo tivesse mudado na maneira que o mundo girava à minha volta.

— Bom dia, Nina. — Volto ao presente quando Alex entra na sala.

— Bom dia — respondo, tentando soar desinteressada.

Normal.

Ele acena, enquanto passa por minha mesa, um pequeno sorriso no rosto antes de desaparecer em sua sala.

Percebo que estou sorrindo sozinha muito tempo depois de ele ter entrado em sua sala.

A manhã transcorre normal, cheia de trabalho e Oliver aparece na hora do almoço.

— Ei, Nina, quer almoçar comigo?

O não está na ponta da língua, mas Oliver parece um cachorrinho perdido enquanto espera minha resposta.

Por que não?

Oliver é um cara legal e me lembro de que eu tinha dito a mim mesma que ia tentar ser mais sociável.

— Claro que sim.

O sorriso de Oliver é de surpresa. Pego meu casaco e o acompanho para fora. Ele me leva no mesmo restaurante que havia ido no outro dia com Hannah e seus colegas.

— Você parece diferente hoje — Oliver se recosta na cadeira me observando depois que fazemos nosso pedido.

Eu me remexo incomodada.

— Diferente como?

Diferente nunca é bom.

— Eu não sei. Um pouco mais relaxada, talvez. — Algo em meu rosto deve ter denunciado meu desconforto, porque Oliver se inclina pra frente, um tanto preocupado. — Só estou dizendo que você me parece meio tensa sempre. Distante.

— Eu não sou uma pessoa... sociável — sussurro.

— Achei que fosse tímida. Dessas pessoas reservadas que não se sentem à vontade em ocasiões sociais e essas coisas.

— É, talvez seja uma boa colocação.

Melhor que ele pense que é tão simples assim.

Nossos pratos chegam e enquanto comemos, Oliver retoma o assunto.

— Então eu tenho razão, é uma menina tímida.

É uma afirmação, por isso apenas dou de ombros com um sorriso, bem tímido.

Seu olhar se estreita em interesse.

— Mas deve ser diferente com seus amigos.

Mordo os lábios, pensando no que responder.

Talvez dizer que não tenho amigos seja algo esquisito para ele assimilar.

Então, finjo estar mastigando para não responder, e Oliver continua.

— Ou namorado.

Aí está.

O que ele vinha querendo saber.

Eu não deveria estar surpresa.

— Não tenho namorado — respondo.

Oliver nem tenta disfarçar a satisfação.

— Pela maneira que tentava me dar um fora sem querer ser direta imaginei que fosse por já ter alguém.

De novo não respondo. Sinto que Oliver fica um pouco frustrado.

— Mas uma garota como você não tem um monte de marmanjo correndo atrás?

— Uma garota como eu?

— Você deve saber que é linda, Nina.

— Na maior parte do tempo eu gostaria de não ser — confesso.

— Como assim? Espera, é uma dessas mulheres que não querem ser julgadas pela aparência? Sim, eu acho que posso entender. Mas você não é só bonita. É doce, gentil... Você é uma boa garota.

— Eu não sou. — Eu me encolho com seus elogios.

Oliver não faz ideia.

Ninguém faz ideia.

— É sim, você é uma garota legal.

— Está errado. Não sou uma pessoa legal.

Oliver ri, como se eu estivesse fazendo piada.

— Eu não te conheço direito, mas eu acho que é sim.

— Tem razão... Você não me conhece — murmuro e tento sorrir, deixando-o pensar que estou mesmo fazendo algum charme ou algo assim.

Oliver não me conhece mesmo.

Se conhecesse, ele sairia correndo.

 

Quando volto à empresa, um clima tenso está no ar.

Escuto a voz alterada de Alex vindo de sua sala e quedo-me surpresa. Eu nunca ouvi Alex gritar.

Nunca o ouvi furioso. Não daquele jeito.

Será que tem alguém na sala com ele?

De repente o telefone toca e vejo que é ele.

Atendo, ainda incerta.

— Sim?

— Vem até aqui!

Apresso em atendê-lo, entrando em sua sala.

Ele está sozinho e chego à conclusão que gritava com alguém ao telefone, então. Seus olhos se prendem em mim enquanto se levanta, andando de um lado para o outro, os dedos castigando os cabelos.

Alex está furioso, inalando forte pelas narinas e os punhos fechados enquanto faz um sinal para eu me aproximar e se recosta em frente à mesa.

— Algum problema? — indago me perguntando automaticamente se fiz algo errado.

Antes que ele fale, seu celular vibra em cima da mesa e de onde estou noto o nome piscando.

Charlotte.

— Puta que pariu — Black rosna e atende. — Que merda você quer?

Ele escuta o que falam do outro lado do telefone, mas seus olhos estão fixos em mim. Faço um movimento para me afastar e ele estende a mão e segura meu pulso, obrigando-me a me sentar.

Não me resta alternativa a não ser ficar ali, encolhida, enquanto ele continua ao telefone.

Parece estar pouco a pouco se acalmando.

Ou está controlando sua fúria.

Observo fascinada quando seu olhar suaviza. Assim como sua respiração.

— A culpa é sua — ele finalmente responde à pessoa na linha num tom frio como o gelo.

Charlotte, me recordo agora.

É sua outra irmã.

A que ele disse que estava fora do país.

— Foram suas atitudes que nos levaram a isso — ele completa.

De repente tenho pena da tal Charlotte, tamanha é a raiva gelada que Black imprime naquelas palavras.

— Sinceramente, eu não quero saber. Você foder com a sua vida é problema seu. Agora por causa do que fez, a Black ser prejudicada, já não posso admitir.

Ele fica em silêncio de novo.

— Olha, já chega, ok? A Aria nem deveria ter te ligado... Eu sei, Aria está tão puta quanto eu. Queria o quê? Você nos deixou para trás para lidar com sua bagunça! Então, dá licença que eu preciso desligar, tenho uma empresa que acabou de perder um bom negócio por sua culpa.

Ele desliga e me encara.

— Desculpe. Preciso que marque uma reunião com a direção.

Ele fala em tom neutro e profissional como se não tivesse acabado de ter uma discussão com sua irmã na minha frente.

— Sim. — Abro meu bloco de anotação e escrevo rápido enquanto ele continua, explicando o que quer. — Qual será a pauta?

— Nós perdemos a Network — comunica com mal contida fúria e de repente eu entendo em parte porque ele está bravo.

Só não sei o que isso tem a ver com a irmã dele.

— Bem, é uma pena não? — comento, sem saber o que dizer. — Era um negócio importante, acredito.

— Sim, era.

— Acho que nunca te vi assim, tão nervoso — eu me vejo dizendo baixinho e ele me encara.

— Eu te assustei?

— Um pouco. Achei que eu tinha feito algo errado.

Ele ri.

— Eu nunca gritaria com você se tivesse feito algo errado. Não sou este tipo de chefe.

— Eu sei, mas... As pessoas às vezes são boas, até que são provocadas.

— Então se eu gritasse com você, acha que seria sua culpa?

— Sempre é — sussurro tentando abafar uma onda de lembranças dolorosas que invadem minha mente sem a menor permissão.

— Não é assim que eu lido com as coisas.

— E como você lida?

— Como chefe? Eu prefiro ser justo. Você já deve saber que exijo competência. Exijo atenção e lealdade. Acho que todos aqui são bem pagos para fazer um bom trabalho.

— E se não fizerem?

— Sempre posso achar quem faz melhor.

Bem, não é de todo injusto, penso.

— Mas na minha vida... — ele continua, me surpreendendo. — Eu posso ser um pouco mais... duro. — Sua voz adquire um tom suave, aveludada.

De novo aquele contraste.

Onde ele esboça autoridade com suavidade.

— Mas acho que não precisa se preocupar com isso. — Ele se afasta de súbito, voltando a sentar em sua cadeira, com a mesa entre nós.

Compreendo o que ele quer dizer.

Que eu tenho que me preocupar apenas com o Alex Black CEO, o que é meu chefe. E não com o Alex Black fora das paredes da Black Investiments.

Não sei por que isso me deixa um pouco decepcionada.

Deveria me deixar aliviada.

Porque eu admiro Alex. Admiro sua postura profissional. E isso é muito mais do que eu poderia dizer de qualquer pessoa com quem eu tenha trabalhado. E percebo que eu gosto de me sentir assim. Gosto de saber que estamos trabalhando em sintonia.

E isso deve bastar.

Não só porque Alex é meu chefe, mas porque eu não sou o tipo de pessoa que deseja sentir algo mais por outra.

— E você está se saindo muito bem, Nina. — Ele sorri e parece ser um elogio genuíno.

Surpreendo-me quando meu rosto cora não de vergonha, e sim de satisfação.

— Verifique se consegue marcar a reunião para ainda hoje, ok?

— Sim, claro. — Eu me levanto, pronta para sair, mas de repente me volto. — Eu sinto... Pela perda do negócio. Você parece bastante... chateado.

Ele ri com certa ironia.

— Chateado acho que não é bem a palavra. Furioso acho que combina mais.

— Sempre fica assim? Quer dizer, quando perde um negócio?

— O problema não foi perder o negócio, e sim os motivos. — Sua boca se retorce e me recordo das palavras iradas que proferiu para sua irmã ao telefone.

Ele a estava culpando pela perda deste negócio.

Não posso evitar de ser tomada pela curiosidade, mas Alex já está com a atenção em seu computador e é a deixa para eu sair.

 

Ao fim daquele dia de trabalho, em vez de ir para casa, aproveito que a noite está fresca e caminho até uma loja de departamento próxima.

O meu salário na Black foi o suficiente não só para pagar todas as minhas contas como sobrou, afinal, é muito mais do que eu já ganhei na vida. Então decido que eu posso comprar algumas roupas novas. Digo a mim mesma que preciso me vestir de acordo com uma secretária executiva. Acredito que acompanharei Alex em muitas reuniões fora da empresa e preciso estar arrumada.

Algum tempo depois, estou saindo do provador, segurando todas as roupas que me serviram quando dou de cara com Kelly.

Ela segura um vestido, que creio que vai experimentar, e nós duas paralisamos, surpresas.

— Oi Kelly — Imprimo um tom cordial a minha voz. Mesmo ela tendo feito aquela cena ridícula no meu segundo dia na empresa, não ganho nada a tratando mal.

— Olha se não é a secretária do ano! — Ela sorri com sarcasmo e percebo que ainda tem raiva de mim.

Lá vamos nós.

Suspiro, pronta para me afastar, mas ela segura meu braço, quando passo por ela.

— Eu os vi ontem. Correndo na chuva. Alex te protegendo com o casaco dele... Foi quase romântico de ser ver.

— Kelly, sinceramente... — Tento me afastar, mas ela parece querer destilar mais asneiras.

— Ele tem este poder, não é? — Suaviza a voz com um sorriso. — De nos fazer sentir protegida. Necessária. Querida.

Hesito com suas palavras.

— Ele já te elogiou? Disse que formam uma boa dupla? — Sua voz se quebra e ela solta um riso que mais parece um engasgo. — Ele lhe parece maravilhoso?

Seu olhar endurece quando continua.

— Eu vou te dar um conselho. — Ela aproxima o rosto do meu.— Se eu fosse você, ficaria longe dele — sibila, soltando meu braço por fim.

Ela se afasta, mas se volta, antes de entrar no provador.

— Alex não é o que parece ser. Ele não é uma boa pessoa.

Afasto-me rápido, atordoada com o novo ataque de Kelly, enquanto entro na fila do caixa.

Quando chego em casa, Lucy abre a porta quando eu passo e me entrega um envelope.

— Correspondência! — Sorri.

Eu o pego.

— Obrigada.

Seu olhar vai para minhas sacolas.

— Olha, roupas novas?

Sacudo a cabeça em afirmativa enquanto abro minha porta.

— Se soubesse que ia fazer compras, eu ia pedir para te acompanhar. Tenho péssimo gosto, sempre preciso de ajuda de uma amiga. Da próxima vez me chama!

Ela pisca, acenando antes de fechar a porta.

Eu entro no meu apartamento, jogando as sacolas no sofá e me perguntando se seria tão ruim assim se um dia aceitasse os avanços de Lucy.

Há um mês esse pensamento me encheria de horror.

Agora, só sinto um certo pesar.

Pois eu sei que, por mais que ultimamente eu esteja tentando ser uma pessoa normal, no fundo continuo sendo a mesma pessoa horrível de sempre.

 

E na manhã seguinte, quando Black surge de novo, correndo ao meu lado, as palavras de Kelly voltam a minha mente.

“Alex não é uma boa pessoa.”

Será que ela tem razão?

E por que isso em vez de me assustar me faz sentir alívio? Como se fôssemos feitos do mesmo barro. Do mesmo material ruim?

Quem é Alex Black de verdade?

 

— Olha o moço do café. — Oliver entra na minha sala e coloca um copo em minha mesa.

— Você deveria parar com isso.

— Por quê? Adoro ter uma desculpa para te dar bom-dia.

— Não precisa gastar dinheiro comprando café pra mim, para me dar bom-dia. — Ignoro o tom de flerte.

— E aí, vai sair com a gente hoje? — insiste. — Vai ser divertido.

— Talvez não seja possível, estou um pouco cansada...

Ele pega meu celular em cima da mesa.

— O que está fazendo?

— Colocando aqui meu telefone. Caso você mude de ideia. Me liga.

Ele devolve o celular e de repente escutamos um barulho vindo da sala de Alex e percebo que ele já está por ali.

— E como está o humor do Black? — Oliver abaixa o tom.

— Como assim?

— Parece que a reunião de diretoria ontem foi tensa, com a perda das ações da Network. Black ficou bem puto.

— É, eu sei. Ele ficou bravo mesmo.

— É a segunda vez que o White passa a perna nele.

— White?

Antes que Oliver possa responder, meu telefone toca e vejo que é o ramal de Alex.

— Vou deixar você trabalhar. Te chamaria para almoçar, mas tenho uma reunião de trabalho hoje no almoço. Espero te ver hoje à noite.

Ele se afasta e atendo o telefone. Alex pede que eu vá até sua sala.

— Bom dia.

Ele levanta a cabeça enquanto avanço pela sala e franze o olhar, me medindo.

— Você está diferente...

Ai caramba. Ruborizo, lançando um olhar para meu vestido vermelho. É um modelo clássico, justo, mas sem ser colado ao corpo, de mangas compridas e com decote canoa que deixa minhas clavículas à mostra. De repente me pergunto se exagerei. Vermelho é uma cor forte. E passei um batom no mesmo tom para combinar, em vez do habitual nude.

— Este vestido é novo. — Dou de ombros, apertando o bloco de notas em frente ao corpo.

— Ficou muito bem em você. — Ele volta a atenção para o computador, começando a falar de trabalho.

Como se não tivesse bagunçado meu raciocínio com seu elogio.

E enquanto destila ordens de trabalho, uma parte da minha mente está revivendo o momento em que ele me olhou.

E percebo que foi exatamente por isso que me vesti assim.

Para ser apreciada.

Elogiada.

Ele me dispensa depois de um tempo e tenho bastantes tarefas a serem cumpridas fazendo com que eu consiga voltar a minha mente para o trabalho em vez de como me sinto com Alex Black.

É um alívio que passo o dia ocupada, assim não preciso racionalizar em cima daquelas minhas atitudes preocupantes.

— Nina, como vai o relatório? — Alex passa pela minha sala pronto para ir embora, e eu percebo que chegamos no fim do expediente e não estou nem na metade do relatório que ele pediu.

— Desculpa, não consegui terminar ainda, mas ficarei até mais tarde e finalizarei ainda hoje.

— Preciso disso para analisar no fim de semana. — Ele parece um pouco contrariado olhando o relógio.

— Eu sinto muito, não sabia que era tão urgente...

— Certo. Vamos ser práticos.

Ele se inclina e pega um bloco de nota, rabiscando alguns números.

— Você vai terminar hoje — ele diz com seriedade. — E vai levar no meu apartamento.

O quê?

— Este é o endereço e o código para entrar. Porque talvez não esteja em casa quando chegar. Apenas deixe o relatório lá assim que terminar.

E sem mais ele se vai, me deixando aturdida com seu endereço na mão.

 

 

Antes

 

 

— Posso ir brincar com Will e seus amigos? — supliquei à Nora naquela tarde, entediada de ficar sozinha em casa, quando Will estava na rua andando de bicicleta com as crianças da rua.

Eu ficava na janela, espiando ele se divertir, ansiando estar lá fora, aproveitando o verão e fazendo amigos.

Parecia muito divertido, mas Nora nunca me deixava sair.

Ela não gostava que eu ficasse perto de Will, sempre arranjava algo para ele fazer quando estava na minha companhia.

Ela parou o que estava fazendo, a vassoura na mão enquanto varria o chão da sala, e me encarou irritada.

— Eu já disse que não!

— Por favor, eu vou ser boazinha. Só quero brincar, não tem nada pra fazer aqui dentro.

— Ah não tem nada para fazer? — Ela estendeu a vassoura pra mim. — Então vai varrer os quartos.

Peguei a vassoura confusa.

Ela queria que eu limpasse a casa? Eu nunca tinha feito isso!

— Mas eu não sei fazer...

— Por isso mesmo, vai aprender. E não me olhe com essa cara! Já tem oito anos, está na hora de começar a aprender a fazer serviços domésticos. Já deu pra perceber que não somos ricos e David não tem dinheiro para pagar empregada. Acha que eu gosto de passar meus dias limpando? Eu também não gosto, minha cara, mas é o que me resta! Então acho que é bom começar a pagar de alguma maneira as regalias que tem aqui.

— Regalias? — Eu nem sabia o que era aquilo.

— Sim, tem comida na mesa, roupa pra vestir, escola! E ainda esses presentes que David te dá! Como aquele quarto ridículo! Ele deve estar cheio de dívida para poder pagar, mas, claro, tudo para a queridinha dele!

Eu me encolhi, com vontade de chorar, enquanto subia as escadas. Por que Nora era sempre tão cruel comigo?

Nos primeiros dias que ela me tratava mal, eu achava que era porque era inesperada minha presença. Com os passar dos dias comecei a ansiar que ela me tratasse melhor. Que fosse carinhosa comigo como às vezes era com Will. Que me abraçasse como David fazia sempre. Que sorrisse pra mim.

Comecei a ansiar que ela fosse como a minha mãe.

Engoli a vontade de chorar e comecei a fazer o que ela queria, quem sabe assim, se eu fosse boazinha ela gostasse de mim?

Porém, estava varrendo ao lado da cômoda de Nora, quando avistei os perfumes. Curiosa, peguei um dos frascos. Era doce, parecia rosas. Tinha cheiro de Nora. Será que se eu usasse um pouquinho ela iria ficar brava? Melhor não, pensei. Mas antes que o recolocasse no lugar, Nora entrou no quarto, me flagrando.

— Que diabos está fazendo?

O frasco escorregou da minha mão, indo ao chão.

O cheiro de rosas se espalhando quando o vidro se espatifou, derramando o perfume.

— Desculpa, Nora... — murmurei amedrontada, mas ela avançou em minha direção, furiosa.

— Sua menina malcriada! — Segurou meu braço, me sacudindo.

Lágrimas escorriam por meu rosto.

— Olha o que você fez!

— Eu não queria, caiu da minha mão...

— Não tinha nada que mexer nas minhas coisas! Agora vai apanhar por isso.

E ela pegou a vassoura e bateu no meu traseiro.

Eu gritei, chorando alto, mas Nora não parecia se importar, quando me soltou.

— Isso é para aprender! É o que acontece com criança ruim!

— Desculpa, Nora. Eu vou ser uma menina boazinha...

— Não, você não é boa. É uma criatura má. Uma pessoa horrível! Sabe de uma coisa, sai da minha frente, já estou de saco cheio de olhar pra sua cara!

Saí correndo e desci as escadas chorando.

David estava entrando em casa e sem pensar corri para ele e o abracei pela cintura, enterrando o rosto em sua camisa.

— O que foi? O que aconteceu?

Ele me fez encará-lo.

— A Nora está brava comigo. Ela me bateu, mas foi um acidente, eu não queria quebrar o perfume dela...

David fechou a cara, respirando fundo, mas sentou comigo no sofá, me abraçando até que eu me acalmasse.

— Não fique assim, Nora não vai mais te bater. Eu vou proteger você, está bem? Fique tranquila que ninguém mais vai te fazer chorar. Eu estou aqui...

Eu o abracei forte e acreditei que ele iria me proteger.

 


Capítulo 7

 

 

Quando termino o relatório, ainda estou atordoada com o pedido de Alex de que eu vá até a sua casa entregá-lo.

A noite já caiu quando saio do prédio da Black. Espio o endereço que Alex escreveu no papel. Não é longe. Chegarei mais rápido se pegar um táxi, mas decido ir andando, para quem sabe assim espairecer a mente e acalmar meu coração que está aos saltos desde que ele rabiscou o endereço exigindo que eu fosse entregar um relatório que não sai da minha cabeça que poderia muito bem ser enviado por e-mail.

Porém, não quero pensar sobre isso. Não quero ver qualquer motivo obscuro para esse pedido. Apenas fiz o meu trabalho e irei cumpri-lo até o fim, obedecendo a ordem de levar até Alex.

O vento corta o meu rosto quando atravesso a ponte em direção a River North. Com o céu escuro, sou surpreendida quando a chuva começa a cair. Apresso o passo, maldizendo o fato de ter preferido vir caminhando em vez de pegar um táxi, porém, já estou próxima e continuo andando, ignorando a chuva que ensopa minhas roupas e meus cabelos. Quando finalmente chego ao endereço, um prédio residencial elegante, respiro fundo e caminho até o enorme hall . Explico ao porteiro uniformizado que estou ali para ir até o apartamento de Alex Black.

O homem acena dizendo que já tinha sido avisado da minha presença e indica o elevador particular, não deixando de lançar um olhar de curiosidade a minha figura descomposta.

Tento me acalmar dizendo a mim mesma que provavelmente Alex não está em casa enquanto o elevador sobe silenciosamente até o 31° andar. É o andar da cobertura, e assim que as portas do elevador se abrem, salto com meus pés afundando no tapete gelo do requintado hall de entrada e digito o número que Alex me deixou.

Com um click a porta se abre e eu a empurro, deixando meus olhos abismados percorrerem o ambiente.

Uau.

Eu já esperava que, pelo endereço e por Alex ser quem é, seu apartamento fosse luxuoso, mas mesmo assim não posso deixar de admirar o ambiente a minha frente. O piso é de madeira escura, as paredes brancas e ao fundo janelas do chão ao teto, com uma vista espetacular da cidade.

A minha direita avisto uma sala com sofás cinza, móveis de madeira clara e uma lareira de pedra. Mais à frente há uma escada flutuante que leva a um segundo andar.

Nossa, são dois andares?

Seguro a pasta com o relatório contra o peito como um escudo, sem saber se devo deixá-la em cima de um aparador e ir embora, afinal, estou maculando o chão com a água que respinga das minhas roupas, ou se devo seguir em frente.

Porém, não há sinal de vida no apartamento e talvez eu possa apenas achar um banheiro e me secar antes de descer e pedir um táxi para ir pra casa.

Um tremor de frio sacode minha espinha e decido seguir em frente. Avanço para a esquerda, onde há uma cozinha em conceito aberto, com uma ilha enorme de mármore branco e armários claros. Mais à frente há uma sala de jantar formal com uma lareira de porcelana. Portas de correr de grandes dimensões se abrem para um amplo terraço.

Continuo meu caminho por um corredor cheio de pinturas abstratas na parede e de repente noto que há uma música vinda de algum lugar mais à frente.

Diminuo os passos, incerta se devo continuar. E se Alex estiver em casa? Mas se ele estivesse poderia ter vindo ao meu encontro quando abri a porta? E se há outra pessoa na casa? Uma empregada, talvez.

De repente um pensamento passa pela minha cabeça. E se ele não morar sozinho?

A curiosidade vence e precipito-me em direção à música, como um chamado. O som vai ficando mais alto conforme me aproximo e reconheço a música. É um grunge antigo. Reconheço porque costumava ouvir quando era adolescente. De repente tenho uma visão de mim mesma com os cabelos rosas e um cigarro na boca. Não são boas lembranças, mas qualquer pensamento do presente ou do passado desaparecem da minha mente quando chego ao fim do corredor e uma porta de vidro se abre para uma sala espaçosa que parece ser de treinamento, com tatame no chão, alguns aparelhos de musculação de um lado e ao fundo, batendo contra um saco de pancadas, está Alex.

Paro meus passos, fascinada, ouvindo o som da música rivalizar com os socos agressivos. Ele usa luva de box e seu rosto compenetrado está suado, assim como o peito nu, quando desço o olhar por seu corpo, vestindo apenas uma calça de moletom cinza que se equilibra precariamente nos quadris estreitos.

Os pés descalços gingando na luta.

Aproveito que ele ainda não me viu e subo o olhar, passando pelos gomos de sua barriga, até o peito largo brilhante de suor e com um bronzeado leve que não combina com o clima frio de Chicago naquela época do ano.

Os braços que se movimentam são fortes, com músculos suaves que ondulam a cada soco. Caramba, ele é absurdamente sexy.

Eu poderia ficar ali por horas, admirando seus pés dançando em volta do saco de pancada, o olhar compenetrado, o suor brilhando em sua pele fazendo os cabelos colarem na testa. Ele está me sufocando com sua perfeição.

Eu morreria de bom grado com meu último fôlego levado pela beleza estonteante de Alex Black. Percebo, assustada e fascinada, que um desejo culposo faz minhas faces queimarem e meu corpo estremecer de um jeito inesperado e assustador.

E a música termina e outra começa. Uma batida diferente. Sexy.

De repente ele para, abraçando o saco de pancadas, o peito subindo e descendo a cada respiração ofegante, quando levanta a cabeça e o olhar encontra o meu do outro lado da sala.

E por um momento, apenas me encara, a respiração ainda falhada da luta e um olhar que não entendo, mas que tem o poder de fazer meu estômago se apertar.

Como se uma corrente de energia flutuasse de Alex até mim e me atingisse com mil volts de potência, sinto todas as minhas células até então adormecidas acordarem para a vida.

— Você está aqui... — E um pequeno sorriso distende seus lábios bonitos e meu coração dispara, querendo entrar na festa que meu corpo está fazendo para Alex Black.

Isso não é bom – uma parte consciente do meu cérebro está gritando. Está se debatendo para livrar-se daquele fascínio.

Eu não quero desejar Alex Black.

Eu não quero desejar ninguém.

Por que coisas ruins acontecem quando eu desejo.

Quando eu me permito...

De repente um latido me assusta e solto um grito, dando um pulo para trás, a bolsa e a pasta que seguro contra o peito escapando de minhas mãos, enquanto encaro assustada um cachorro branco e cinza vindo em minha direção.

— Jacob!

Escuto a voz de Alex, imperiosa, e acredito que este deva ser o nome do cachorro, porque ele para olhando em direção a Alex que agora está caminhando até mim com um olhar preocupado, enquanto se livra das luvas.

— Nina?

De súbito, uma vontade louca de correr me acomete, mas estou petrificada de medo, sem conseguir mover meus pés, mesmo sabendo que tenho que colocar a maior distância possível entre mim e Alex Black.

Entre mim e o desejo.

E quando ele chega perto o suficiente, percebo que estou tremendo.

Á água ainda pinga dos meus cabelos e de minhas roupas, gelando minha pele.

— Você está gelada. — Alex toca meus ombros.

Tremo mais ainda.

Suas mãos estão quentes, seu olhar preocupado, assustado.

Por favor, me deixa ir – uma vozinha conhecida sussurra dentro de mim.

Porém, há outra voz sobrepujando a essa, mais firme, traiçoeira.

Uma voz de que sabe do perigo e mesmo assim quer ir em frente.

Uma voz que agora está sussurrando: “Deixe. É isso o que você quer desde que ele passou por você correndo na rua. O que a faz acordar todos os dias de manhã e fazer o mesmo caminho.”.

— Nina? — Alex volta a chamar meu nome fazendo com que eu pisque e abandone os pensamentos sombrios, voltando à realidade.

Estou ensopada da chuva, congelando de frio e talvez um pouco em choque do susto do latido do cão.

— Oh meu Deus, me desculpe — sussurro tentando me desvencilhar das mãos de Alex, querendo colocar alguma distância entre nós. — Eu achei que não estava em casa, estava chovendo, eu vim andando e... — As palavras saem atropeladas sem que eu me contenha.

— Você veio andando?

— Não estava chovendo, me desculpe...

— Caramba, Nina, precisamos aquecer você, antes que tenha uma hipotermia.

E de súbito, estou sendo levada de volta pelo corredor, vejo como um borrão a cozinha passando por mim, a vista espetacular e então estamos entrando em um quarto espaçoso que noto muito de relance que também tem uma parede de vidro, as luzes da cidade ficando para trás quando Alex continua em frente, as mãos em meu braço, até que estejamos em um banheiro.

Ele para e sem aviso se afasta alguns passos e liga uma torneira.

Continuo tremendo de frio e ainda atordoada demais para me mexer e muito remotamente escuto alguém sussurrar “me desculpe, me desculpe”.

— Pare de pedir desculpas.

A voz de Alex tem um tom brusco, impaciente, e descubro que a voz é minha.

Alex se volta para mim com uma toalha que passa por meu rosto, meus cabelos.

— Este vestido precisa sair — ele murmura, ainda em tom um tanto ríspido, e só uma parte do meu cérebro está funcionando quando ele se coloca a minhas costas e começa a abrir o zíper do meu vestido.

E é quando sinto seus dedos quentes em contato com a minha pele que acordo do transe e me afasto, assustada, segurando o vestido aberto em frente ao corpo.

— Me desculpe — é a vez de Alex dizer, com as palmas das mãos para cima —, mas precisa tirar este vestido e entrar na banheira. Para se aquecer. Consegue fazer isso sozinha?

Sacudo a cabeça em afirmativa e ele ainda hesita por alguns segundos, como se duvidando da minha capacidade de me despir e sai do banheiro.

Solto a respiração lentamente e faço o que ele sugeriu, tirando o vestido. O sutiã segue o mesmo caminho, assim como a meia fina preta e a calcinha branca que uso ao entrar na banheira e afundar na água quente, abraçando meus joelhos contra o corpo.

O tremor ainda persiste por um longo tempo.

Estou extenuada.

Como se não estivesse acostumada àquele excesso de estímulo. De sentimento. Sinto-me drenada de forças.

— Nina.

Escuto Alex do outro lado da porta, mas minha capacidade de falar desapareceu, assim como a vontade de lutar contra ele.

Porque no fundo, eu sei que não é este meu desejo.

— Nina?

Não me surpreendo quando escuto sua voz próxima.

Apenas levanto a cabeça, deixando meus olhos cansados, perdidos, se prenderem em sua figura.

Não sei o que esperava, talvez que me desse uma bronca, ou que perguntasse se eu estava viva, naquele seu tom frio de desmando, mas em vez disso, ele se aproxima e senta na ponta da banheira. Estende a mão para mim com um copo com algo âmbar dentro.

— Algo me diz que precisa disso.

De algum lugar do meu cérebro eu sei que deveria estar me rebelando contra aquela cena estranha.

Estou nua, em um banheiro à meia luz, sentada dentro de uma banheira com água que não chega até meus seios.

E Alex Black está sentado há menos de um metro de distância.

Mas seus olhos não estão em meu corpo. Estão em meu rosto. Sondando.

Procurando algo que não faço ideia do que possa ser, mas que faz com que eu permaneça ali, inerte, dócil.

Estendo a mão para pegar o copo que ele me oferece. Quando sua atenção cai do meu rosto, acompanhando o movimento do meu braço, até levar o copo a minha boca, eu percebo que ele viu.

O choque em seu olhar diz muito.

E enquanto sinto o líquido queimar minha garganta, constato que não me importo.

Em silêncio, entrego o copo a ele, sua atenção volta ao meu rosto. Eu sustento seu olhar, mesmo quando uma lágrima cai pela minha bochecha se juntando à água da banheira.

Alex se movimenta apenas para colocar o copo no chão e estende a mão para segurar meu pulso.

As marcas que atravessam minha pele, incertas, feias.

Dolorosas.

Agora sob seu escrutínio.

Seu rosto é uma máscara de impassibilidade enquanto deixo que passe os dedos pelos cortes. Os mais antigos, apenas cicatrizes agora. Os mais recentes, ainda vermelhos, sensíveis.

— Por que faz isso? — indaga por fim, o olhar voltando aos meus.

— Eu preciso.

Minha voz é só um sussurro.

Como explicar a ele o que nem eu mesma entendo.

Ele continua sua inspeção e agora sinto seus dedos deslizando por meus cortes e de repente a noção de que ele está me tocando me devora por dentro.

Sinto aquele toque como uma carícia. Estremeço, uma sensação aguda, líquida, latejante, faz uma onda de calor varrer meu íntimo e se instalar em um pulsar eletrizante entre minhas pernas.

Entreabro os lábios, secos, pousando os olhos nos dedos de Alex deslizando pelas marcas horríveis em meu braço.

Dói.

É delicioso.

— Você gosta?

Encaro seus olhos e perco o ar ao ver que estão inflamados de algo que nem ouso nomear.

Mas que enche o ar de estática.

— Da dor? — ele completa.

Aquela voz.

Baixa. Aveludada.

Que exige resposta.

E como hipnotizada, sacudo a cabeça em afirmativa.

E assim, em um instante, Alex Black está desnudando minha alma sem nem ao menos fazer esforço.

Eu deveria estar fugindo correndo, mas permaneço ali, encarando perigo com os olhos ansiosos.

Pronta para algo que eu nem sei o que é.

Mas que está escrito em seu olhar que ele quer me dar.

Ah, por favor.

Inclino-me para frente, quase imperceptivelmente, levada por aquela onda de energia que me puxa em sua direção.

Porém, de repente, o clima muda.

Esfria.

Noto o exato instante que os olhos cinzentos, até então agitados como uma tempestade prestes a desabar, se acalmam.

Recuam.

Seus dedos em meu braço se retraem, deslizam por minha pele agora com pesar, se despedindo, tocam minha mão apertando brevemente, antes de colocá-la sobre a borda da banheira.

Meu coração desacelera.

Quase parando de bater.

Sem que consiga ao menos conter a reação automática, meus olhos se enchem de lágrimas de decepção.

De vergonha.

Pisco, virando o rosto, encolhendo os joelhos, deito a cabeça sobre eles, a cabeça virada para a parede, me abraçando sob a água agora quase fria.

Como minha alma.

— Não deveria fazer isso com você mesma, Nina.

Eu não consigo vê-lo agora, mas sua voz é gentil.

— Não seja gentil comigo.

— Por que não?

— Porque não mereço.

— Por que diz isso?

— Você não me conhece...

— E se eu quiser conhecer?

Levanto a cabeça, o encarando do outro lado do banheiro.

Distante com as mãos nos bolsos do moletom. O torso ainda nu.

O olhar cheio de algo que me confunde.

Não é desejo.

É algo muito mais assustador que por um momento quase posso alcançar.

Quase posso entender.

Como uma lembrança escondida.

Mas antes que possa esboçar qualquer reação, uma porta bate em algum lugar do apartamento, seguida de um latido.

— Alex? — Uma voz de mulher chega até nós.

O semblante de Alex se fecha.

— Merda.

E de repente ele está fora do banheiro.

Ainda continuo ali, atordoada demais para me mexer, porém escuto mais latidos, passos e a voz feminina seguida da de Alex em algum lugar do apartamento e dou-me conta de que chegou alguém.

Tenho que sair dali.

Respirando fundo, obrigo-me a me mover e saio da banheira.

Pego uma toalha e me enxugo, e sem alternativa apanho o vestido pensando em como posso colocá-lo todo molhado daquele jeito.

— Nina? — A voz de Alex chega até mim do outro lado da porta. — Tem uma roupa aqui para que possa vestir para ir embora.

Ir embora.

Sim, óbvio que ele está me dispensando.

Escuto a porta do quarto se fechar e saio do banheiro, encontrando um vestido preto em cima da cama.

De quem é aquela roupa?

Da mulher que chegou?

E quem diabos está ali?

De súbito uma desconfiança fria faz meu estômago se apertar.

Claro. Como eu fui boba.

Coloco o vestido, e noto que minha bolsa está ali também. Pego minha meia e lingerie, assim como o vestido molhado, e enfio dentro dela, apressando-me em sair do quarto.

Sigo pelo corredor e ao entrar na cozinha a primeira visão que tenho da mulher é seu cabelo ruivo, ondulado.

Ela usa um casaco verde, fechado e quando se vira, admiro como é bonita, o casaco contrastando com o verde intenso dos seus olhos.

— Olá, não nos conhecemos.

A moça sorri se aproximando e estendendo a mão.

Eu a pego, ainda incerta.

— Victoria, essa é Nina, minha secretária.

— Muito prazer, Nina. Fiquei sabendo que tomou uma chuva.

— Sim...

Ela me mede, divertida.

— Este vestido ficou melhor em você do que em mim.

— Oh, eu... — balbucio, sem saber o que dizer, e encaro Alex atordoada.

Ele está muito sério.

— Nina, essa é Victória, minha... — ele hesita.

Victoria solta um risinho.

— Namorada? — ela completa e pisca para Alex.

Bem, eu já devia saber.

Mesmo assim, não deixa de ser chocante.

— Nina já está de saída — Alex anuncia.

Dou um passo atrás, apertando minha bolsa.

— Sim, é... muito prazer... Victoria. Eu lhe trarei o vestido assim que possível.

— Não se preocupe com isso. — Ela faz um movimento de descaso com a mão. — As roupas que eu deixo aqui não são minhas preferidas.

O movimento faz com que o casaco se abra um pouco e noto que ela usa uma espécie de colar preto. Com algumas tiras de couro que desaparecem em direção ao seu seio.

— Eu... Preciso ir — murmuro e com um último olhar para Alex que continua impassível do outro lado do balcão, apresso-me para a saída.

Só voltando a respirar quando estou no elevador, bem longe de Alex Black e sua namorada bonita.

Como eu pude ser tão ingênua em não saber que um homem como Alex teria uma namorada?

Saio para a rua, ignorando o boa-noite do porteiro simpático. Encosto-me na parede do prédio, respirando fundo, irritada comigo mesma enquanto revejo com detalhes os acontecimentos da noite desde que encontrei Alex treinando boxe.

Meu desejo. Meu choque.

Alex descobrindo um dos meus segredos mais obscuros, chegando perigosamente perto da Nina que eu escondia do mundo.

E o momento em que eu vi em seus olhos o reflexo do mesmo desejo proibido que havia nos meus, mas ele tinha recuado.

Como se percebesse quem somos.

O quão errado estaria se ultrapassássemos aquela barreira.

Então lá estava Victória. A moça bonita vestida para seduzir. Ou ser seduzida.

De repente algo me ocorre.

Alex deveria saber que Victoria chegaria em algum momento. Muito provavelmente já sabia quando rabiscou seu endereço e pediu que eu viesse até sua casa. Mesmo sem uma real necessidade. Ele queria que eu visse Victoria.

E então tudo fica claro.

Ele sabia.

Ele sabia muito antes de me tocar naquela banheira. Ele sabia o que eu vinha tentando esconder de mim mesma.

Óbvio que um homem como Alex saberia.

Eu era uma Kelly. Sendo colocada em meu lugar. O lugar de secretária e nada mais.

A mensagem fora clara.

Engulo a vontade de chorar. Eu deveria estar feliz. Deveria estar aliviada.

Nada de bom poderia vir daqueles sentimentos que Alex me causava.

Nenhum desejo fica impune.

 

 

Antes

 

 

— David, eu amei a roda gigante! — Eu pulava feliz enquanto saíamos do píer.

A tarde estava findando e David me comprou um enorme algodão doce.

Todo fim de semana ele me levava para algum passeio incrível. Só nós dois. Eu sempre sentia falta de Will e perguntava a David se ele não podia vir com a gente, mas dizia que Nora não permitiria.

— Will está crescendo, ele tem os amigos dele — David dizia.

Sim, Will era três anos mais velho do que eu, agora ele tinha quase 12 anos, e eu tinha nove. Às vezes eu ainda achava estranho que tanto tempo tinha se passado desde que eu viera morar com David e Nora. Parecia que eu não tivera outra vida antes. Não que não sentisse falta dos meus pais, mas a imagem deles ia se perdendo cada vez mais na minha memória.

Todavia, o tempo passou, eu ia todos os dias pra escola. Comecei a fazer alguns amigos, principalmente com a ajuda de Will, que continuava me protegendo, como um irmão mais velho. Todos me tratavam como se fosse uma irmãzinha. E eu gostava disso.

Porém, se passávamos algum tempo juntos na escola, em casa Nora continuava o afastando de mim. Ele ainda ia dormir do lado da minha cama todas as noites. Escapulia para meu quarto depois que todos iam dormir e deitava no chão ao meu lado, mesmo eu não chorando mais.

Às vezes ele que chorava, quando sua mãe fazia algo que o magoava.

E era minha vez de segurar sua mão até que ele dormisse.

Nora continuava me tratando mal, mesmo que eu fizesse tudo para agradá-la. Eu ajudava a limpar a casa, fazia meus deveres e era uma boa menina, mas nada disso fazia com que ela gostasse de mim.

Eu tinha esperança que isso um dia mudasse.

— Ele vai ficar como aqueles meninos grandes chatos? — indaguei quando entramos no carro e David riu.

— Que meninos grandes?

— Os meninos que não são adultos, mas também não são mais meninos — tentei explicar.

Eu não gostava deles. Eram sempre grosseiros e agressivos.

— Quem pode saber? Mas em breve Will será um adolescente sim.

Fiquei triste. Por que Will ia ficar grande antes de mim. E talvez ele ficasse chato e não gostasse mais de mim.

Quando chegamos, já estava escuro e Nora fumava na varanda.

— Já era hora! — resmungou. — Nina, está toda suja!

Eu corei, porque estava realmente suja de algodão doce.

— Vá tomar um banho, Nina — David pediu.

Eu me afastei, mas ainda ouvi David falando com Nora.

— Não precisa falar assim com a menina!

— Você a mima muito!

— E qual o problema?

— Poderia dar mais atenção ao Will! Seu filho está crescendo e precisa de um pai e você só sabe ficar babando por essa menina!

— Cale sua boca! — Eu parei nas escadas ao ouvir o tom bravo de David.

— Ah, eu sei muito bem! Ela vira sua cabeça como a mãe dela virava!

— Não fale bobagens! Está com ciúme de uma criança?

— Claro que sim. — Nora começou a chorar. — Por que faz isso? Sabe que eu te amo tanto... Por que...

Eu continuei a subir as escadas sem entender aquela conversa.

 

Tomei meu banho e encontrei Will na mesa do jantar. Ele sorriu pra mim.

— Amanhã o Will tem futebol, você vai assistir? — Nora indagou a David.

— Eu vou passar o dia com Nina. Vamos ao zoológico.

Nora bateu a concha que estava pegando a sopa na mesa.

Eu me assustei.

— Nora! — David repreendeu.

Ela respirou fundo e se sentou. Comemos em silêncio.

Mas depois, do meu quarto, escutei ela gritando com Will.

Eu me preparei para dormir e como sempre, algum tempo depois ele se deitou na cama improvisada ao meu lado.

Hoje ele estava chorando.

— Por que sua mãe estava brava?

— Porque eu disse que não queria que meu pai fosse ao futebol.

— Por que não? Eu vou falar para o David ir. Não quero ir ao zoológico.

Ele me fitou na escuridão.

— Não precisa.

— Você tem raiva de mim?

— Por quê?

— Pelas coisas que sua mãe fala. Que o David gosta mais de mim do que de você. Não é verdade. Ele é seu pai. Acho que ele só é legal comigo porque eu não tenho pai e mãe. Ele só fica comigo pra me deixar feliz, mas não quero que isso faça você infeliz.

Ele segurou minha mão.

— Eu sei que meu pai gosta de você, mas não tem problema. Eu posso dividir meu pai com você, está bem? Não liga para o que minha mãe fala.

— Então você é mesmo meu amigo?

Ele sorriu.

— Claro que sim. Sou seu amigo pra sempre.

— Mesmo quando for grande?

— Eu disse pra sempre.

Antes que eu pudesse responder de repente a porta do quarto se abriu e David acendeu a luz.

— O que está fazendo aqui? — gritou para Will.

— Pai...

— Vá já para o seu quarto! Não devia estar dormindo aqui! — David gritou furioso.

Eu me encolhi, amedrontada.

No entanto a raiva de David era para Will, que me lançou um olhar de desculpa, e pegando suas cobertas do chão arrastou os pés descalços para seu próprio quarto.

David me fitou quando ele se foi.

— Devia ter me falado, Nina.

— Mas ele só me fazia companhia, David. Will é meu amigo.

— Eu sou seu único amigo, entendeu? Se precisar de qualquer coisa deve pedir a mim e não a Will! Agora vá dormir.

Ele apagou a luz e saiu do quarto.

Na manhã seguinte, David foi ao futebol com Will.

Eu não fiquei chateada, embora não tenha entendido direito o que aconteceu.

Nora ficou me encarando na mesa de café da manhã, fumando um cigarro atrás do outro.

— Fiquei sabendo que David brigou com Will ontem por sua causa.

— Eu não queria que eles brigassem...

— Mas é isso que você faz. Causa discórdia por onde passa. Até entre pai e filho! David estava com ciúme de você e Will.— Ela soltou uma risada amarga. — Você é bonita demais para seu próprio bem, menina. Assim como a sua mãe. Já está ferrando os homens nesta idade imagina quando crescer.

Ela parou dando uma baforada e depois continuou.

— David só casou comigo porque eu estava grávida, sabia? Senão teria continuado a correr atrás de sua mãe...

— Minha mãe?

— Acho que sempre teve raiva de Will por ele ser o motivo de não poder continuar correndo atrás dela ... E agora ele tem você. Aposto que queria que você fosse filha dele. E eu achando que nunca mais teria que dividir David...

Ela apagou o cigarro no cinzeiro se levantando.

— Coma logo e lave toda a louça. — Ela tirou o avental. — Eu vou sair. Acho que preciso de novos ares...

 

 


Capítulo 8

 

 

Quando meu celular toca, olho no visor o nome de Oliver.

— Oi — atendo mesmo sabendo que deveria ignorá-lo.

— Última chance para vir nos encontrar.

Fecho os olhos, suspirando.

— Oliver...

— Só boa bebida, diversão e companhia. Vamos Nina, é sexta à noite.

O não está na ponta da língua, mas acabo dizendo algo diferente.

— Tudo bem, eu vou encontrar vocês.

 

Eu vejo tudo vermelho quando entro no The Northman, que àquela hora está lotado de pessoas curtindo o happy hour . Estou consciente dos olhares masculinos que recebo enquanto peço licença para passar, procurando Oliver e os outros no caminho.

Porém, paro por um instante, respirando fundo e tentando acalmar as batidas furiosas do meu coração. Tentando aplacar a vontade que sinto de deixar aquele lado ruim, que a todo custo mantenho escondido, vir à tona.

Só que o tempo inteiro Alex e a cena em seu banheiro estão em meu pensamento, escurecendo tudo.

Eu deveria esquecer. Deveria fingir que nem tinha existido, como aposto que ele iria fazer, mas não consigo deixar de sentir um estranho pesar por algo que apenas vislumbrei em seus olhos naqueles instantes fugidios.

Foi como se pudesse tocar algo extraordinário e então alguém puxou a escada debaixo de mim, e eu caí.

Com a cara no chão.

E foi o próprio Alex quem fez isso.

A merda é que ele não fazia ideia com quem estava lidando.

— Nina! — Em um instante, Oliver e seu sorriso feliz está na minha frente.

Ele até mesmo toca meus ombros e beija meu rosto.

Sinto hálito de bebida e percebo que ele já deve estar um pouco alcoolizado para ter aquela liberdade.

— Oi. — Tento sorrir de volta.

Oliver me encaminha até a mesa onde estão alguns funcionários da Black.

— Acho que já conhecem a Nina! — Oliver me introduz no grupo e aceno para geral.

Algumas pessoas, como Hannah, seu namorado Jeremy, Nikki e Sasha, eu já conheço. Os outros não consigo me recordar o nome, mas todos parecem felizes e ruidosos enquanto abrem espaço pra mim.

Alguém coloca uma sidra na minha frente.

Eu bebo. É doce e bom. E eu elogio como deveriam esperar.

Tento prestar atenção nas conversas que são muitas. Algumas pessoas estão com suas bebidas em pé em volta da mesa.

Bebo um pouco mais.

Em algum tempo, os pensamentos em Alex começam a desanuviar, como fumaça que desaparece no ar, deixando apenas aquele cheiro acre de algo que queimou.

— Ei, tudo bem?

Eu me viro e Oliver está do meu lado.

Percebo vagamente que ele estava o tempo todo do meu lado. Que toca meus cabelos de vez em quando, que acaricia minha mão.

Está demarcando território.

Ele está dizendo a todos que estou fora do alcance deles.

Por um instante, desejo levantar e correr.

Mas algo me faz ficar e sorrir.

Estou meio bêbada agora também e quem se importa?

— Sim, tudo ótimo — cochicho de volta.

Ele toca meu rosto com a costas da mão. Seus olhos são brilhantes.

Ansiosos.

Ele se inclina, até que seus lábios estejam em meu ouvido.

— Quer sair daqui?

Fecho os olhos.

Vermelho. De novo.

— Sim — respondo.

E Oliver está sorrindo como se tivesse ganhado na loteria quando se levanta e me puxa pela mão, se despedindo.

Algumas pessoas fazem piadas maliciosas. Alguns me encaram com desdém.

Hannah parece um tanto preocupada.

Ignoro todo mundo quando sigo Oliver para fora.

Oliver diz que seu carro está estacionado a algumas quadras, mas quando viramos a esquina, ele para e me puxa para perto. Sua boca cobre a minha em um beijo ansioso, quase desajeitado em seu desejo.

Deixo que me beije. Eu o beijo de volta como eu sei que ele espera que eu faça.

Quando chegamos ao seu carro, ele parte para cima de mim de novo com beijos afoitos. Em meus lábios, meu rosto, meu pescoço.

Abro os olhos e espio a chuva que começa a cair de novo através do vidro.

— Você é tão linda... quero muito você, Nina, sabe disso, não é? — Oliver diz em dado momento, quando se afasta respirando fundo, como se tivesse tentando se segurar.

Claro que sim. Ele é um bom rapaz. Talvez esteja se perguntando como é que vai fazer para me convencer a ir até seu apartamento.

Ou se terá sorte e eu o convide para o meu.

Aposto que ele já está pensando em qual lugar tomaremos café como dois amantes felizes. Onde vai me levar no segundo encontro e como será que sua mãe agiria ao me conhecer.

Ele toca minha mão, seu rosto um tanto frustrado ante meu silêncio.

— Ei, não quero te forçar a nada, eu só... É difícil me controlar com você assim, tão perto. — Aperta meus dedos com um risinho culpado. — Deve saber que é demais, e estou sonhando com isso desde o dia em que te conheci.

De repente sinto vontade de vomitar com aquelas palavras doces.

Não deveriam ser pra mim, mas ele acha que precisa disso para me ter.

Eles sempre têm um jeito de camuflar o que realmente querem de verdade. Às vezes, são palavras doces, mas sempre querem o mesmo.

— O que você quer, Oliver? — sussurro na escuridão do carro.

— Eu quero você, mas...

Estendo a mão e toco a frente da sua calça.

Ele está excitado.

Dá um sobressalto quando eu o acaricio.

— Nina, meu Deus, não precisa fazer isso.

Sinto o quanto ele quer e o quanto ele quer fazer a coisa certa.

Mas continuo, abro sua calça e o toco, devagar a princípio, e imprimindo velocidade. Sua respiração está falha e ele geme.

Relanceio de novo o olhar para a chuva fora do carro. Os gemidos de Oliver ficam mais roucos e ele goza rápido como eu sabia que ia ser.

Tiro minha mão.

Oliver está me encarando embasbacado enquanto tenta fazer a respiração voltar ao normal.

— Uau, nossa... Isso foi... Inesperado.

— Mas era o que você queria não era? — respondo sem entonação na voz enquanto abro minha bolsa e pego um lenço de papel, limpando minha mão dos resquícios do gozo de Oliver.

— Claro que sim mas talvez não assim... Não quero que pense que te usei, eu... A gente pode ir pra minha casa, tomar um vinho e ver o que...

— Não — respondo rápido.

Oliver parece confuso e até mesmo um pouco magoado.

— Eu fiz alguma coisa? Por favor, me diga, eu... — ele fala como um cachorrinho perdido.

Ele deveria parar de agir assim. Como uma garotinha seduzida. Quando era ele quem queria me seduzir desde o começo. Como se não tivesse imaginado essa cena mil vezes em sua mente, com até mesmo mais sacanagem.

Era o que todos queriam.

— Eu só queria ir pra casa, pode ser? Acho que bebi um pouco demais.

Ele assente e liga o carro.

Percorremos as ruas em silêncio, depois de Oliver colocar meu endereço no GPS. Tarde demais me arrependo de ter dado meu endereço.

Tenho medo que Oliver venha atrás de mim.

Mas agora já foi.

Ele estaciona em frente ao meu prédio e me encara ansioso.

— O que acha de irmos jantar amanhã?

— Oliver... Eu não sou garota pra você — sussurro, porque eu gosto de Oliver.

Ele é realmente um cara legal.

E eu não sou o que acha que sou.

Ele toca meu rosto.

— Por que diz isso? Não me importo.

Não respondo, apenas lhe dou boa-noite e saio do carro.

 

Estou levemente trôpega quando entro em casa.

Vou para o banheiro e lavo meu rosto. Encaro minha imagem no espelho.

Meus olhos verdes estão enormes, assustados.

Culpados.

Tiro o vestido de Victoria, e o que tinha sumido da minha cabeça com as horas passadas com Oliver volta com força total, fazendo meu estômago se apertar.

Sinto-me suja. Abro a torneira de novo e lavo minha mão com força, como se o gozo de Oliver ainda estivesse ali, lembrando da garota horrível que eu sou.

Mas eu só queria que ele me deixasse em paz.

Eu só fiz o que ele queria.

Tremendo, abro o armário e pego a gilete.

Sento no chão e estendo o braço. Gemo de dor quando o sangue aparece através do corte.

A dor física é bem-vinda.

Faz meu coração doer menos.

 

Ignoro as chamadas de Oliver o fim de semana inteiro e na segunda-feira de manhã, eu não vou correr.

 

Quando chego ao escritório, sou quase como a Nina de quando chegou ali.

Controlada. Distante.

A Nina que não se importava com nada.

Ou pelo menos é o que eu tento me convencer quando sento na minha mesa e verifico a agenda do dia de Alex lhe passando um e-mail.

Não quero que ele tenha qualquer motivo para me chamar até sua sala, mas sei que estou sendo boba. Óbvio que uma hora eu terei que encará-lo.

A sacola com o vestido de Victoria, limpo e passado, está aqui e me pergunto que horas seria mais interessante devolvê-lo a Alex.

Talvez eu deva fazer isso agora, deixar o vestido lá antes que ele chegue.

Com isso em mente, levanto-me e abro sua porta e me surpreendo ao ver que ele já está sentado a sua mesa.

Ele me encara. Por um momento, sou atingida por aquele olhar como se estivéssemos de novo na noite na sua casa. Quando ele viu as marcas que carrego. Quando esteve mais perto de descobrir quem sou de verdade do que qualquer outra pessoa.

E me dispensou para ficar com sua namorada.

Este pensamento faz meu corpo enrijecer de raiva que achei que nem estava mais sentindo e caminho em frente, depositando a sacola em sua mesa.

— O vestido que sua namorada me emprestou. Muito obrigada.

E viro-me para sair dali, mas Alex me chama.

— Nina.

Hesito.

— Por favor, sente-se, precisamos conversar.

Ah merda.

Movo-me devagar, fazendo o que ele pediu, na defensiva.

Alex está sério, quase grave.

De repente atino que as consequências do que aconteceu sexta-feira podem ser maiores que eu imagino.

E se Alex está ali para dizer que, assim como fez com Kelly, vai me trocar de departamento?

Ou quem sabe não tenha o mesmo escrúpulo e me demita?

Afinal, duvido que Kelly tenha entrado nua em sua banheira.

Ou que tenha marcas de automutilação pelo corpo.

— Por que não foi correr hoje? — Alex me surpreende com sua pergunta.

É isso que ele quer saber depois de tudo?

Dou de ombros.

— Preciso de um motivo, Senhor Black?

Seu olhar escurece e seus punhos se apertam com força em cima da mesa.

Ele está bravo?

— Não quero que me chame de Senhor Black.

— Acho que seria mais adequado. Formal.

— Uma merda que seria! — Ele bate com o punho na mesa, a narina inflamada.

Sinto uma certa satisfação com sua raiva.

Por que Alex é sempre tão controlado. Mesmo quando está quebrando corações.

O de Kelly pelo menos.

Eu não tinha um coração para ser quebrado.

— Por acaso, teve a ver com o que aconteceu no meu apartamento? — pergunta baixo, quase um rosnado.

Como se tentasse se controlar.

Sustento seu olhar, serena.

Quase plácida.

— O que aconteceu? — indago com certo desdém na voz.

Ele respira fundo, ainda está bravo comigo.

Como se esperasse outra coisa.

Talvez que eu fosse como sua ex-secretária. Que teria se declarado quando questionada. Bem, ele teria que esperar uma eternidade.

— Você sabe o que aconteceu — rebate por fim e percebo uma nota de vulnerabilidade em sua voz.

Não gosto disso.

Não gosto do jeito que isso causa certo tremor em meu peito.

— Eu sei que foi inadequado. — Mantenho a voz fria, embora por dentro esteja fraquejando. — Não será culpa sua se me demitir.

Quando digo essas palavras, percebo que as rejeito.

Que não quero ser demitida.

Inferno. Que merda estou fazendo?

De repente, eu me levanto, pronta para fugir. Talvez deva ir até minha mesa, arrumar minhas coisas e partir sem olhar para trás.

Esquecer Alex e as mensagens dúbias que vinha dele.

Mas antes que dê dois passos, Alex está dando a volta na mesa e segurando meu braço.

— Espera, Nina.

Ele me faz voltar.

E quando capturo seu olhar sou atingida em cheio pelo anseio que vejo nos dele. E de súbito, percebo que talvez estivesse um pouco equivocada em minhas considerações. Talvez Alex não esteja querendo me afastar.

Ou esteja.

Mas não é algo que ele quer de verdade.

Seu olhar agora diz outra coisa. Diz algo que enche meu coração escuro de cor.

O que diabos ele quer de mim?

— O que você quer Alex? — sussurro.

Não o entendo. O que se passa em sua cabeça?

É como se houvesse uma outra versão de Alex escondido dentro de si mesmo.

É isso? Ele está fazendo um personagem pra mim?

O silêncio se arrastava até que ele solte meu pulso.

— Eu não quero ser apenas seu chefe.

O quê?

Meu coração para de bater.

— Quero ser seu amigo, Nina.

Oh.

De repente, sinto uma enorme vontade de chorar.

Porque concluo que há um lado meu que quer o que Alex está oferecendo. Que deseja mais do que tudo ter algo que nunca teve. Ou melhor, eu já tive um dia, mas perdi. E doeu tanto que nunca mais eu me permiti sentir o mesmo.

Mas também há aquele lado mais sombrio, que deseja muito mais de Alex.

Que intui, de alguma maneira estranha e errada, que com ele seria diferente de tudo.

Que ele aceitaria quem eu realmente sou.

Que entenderia.

Mas me vejo dando um passo atrás.

— Disse essas coisas a Kelly? — ataco.

Sua expressão se fecha.

— Não percebe os efeitos que tem nas pessoas? O efeito que suas palavras têm?

Ele sabe o efeito que tem em mim.

Ele tem que saber.

E o que ele fará com isso?

Espero as palavras que me escorraçariam de sua sala.

Eu seria mais uma Kelly.

— Eu não disse o mesmo para Kelly. Não disse isso pra ninguém, Nina.

E por um momento louco, eu quero acreditar.

Mas antes que qualquer palavra possa ser dita a porta se abre e nós nos viramos para ver sua irmã entrando.

— Olá!

— Aria, o que faz aqui? — Alex dá um passo atrás.

Eu faço o mesmo, corando sem saber por quê.

— Tenho que ter motivos para vir falar com você?

Ária caminha até nós, usando uma calça branca e uma blusa bege de seda e colares tilintando em seu peito. Não posso deixar de perceber como ela tem um corpo incrível, mesmo para uma mulher que teve dois filhos.

Seu olhar se prende em mim, me medindo.

Algo desagradável tolda suas feições quando me encara.

— Essa deve ser a nova secretária. A nova Kelly.

— O nome dela é Nina — Alex corrige.

Aria faz um sinal de descaso com a mão.

— Que seja. Pode buscar um café pra mim?

Oi?

— Aria, não seja ridícula. A Nina não precisa buscar nada pra você.

Alex dá a volta em sua mesa se sentando e me lançando um olhar de desculpa.

— Não, tudo bem. Claro que eu posso. — Eu me apresso em sair da sala.

— Então que merda está fazendo aqui a essa hora?

Ainda escuto Alex dizer.

— Eu encontrei o Jack White ontem em um jantar beneficente e...

Não escuto o resto.

Corro para a sala de café e pego o café para Aria, contendo a vontade de cuspir dentro.

Estou retornando à sala quando vejo Oliver despontar no corredor, mas ignoro e continuo em frente.

— Ei, Nina... — Ele vem atrás.

— Oi Oliver, desculpa, estou ocupada, preciso levar este café para Aria Black.

— Aria Duran — corrige. — Ela é casada. Seu sobrenome de casada é Duran.

— Certo, que seja. — Continuo em frente, mas Oliver não desiste.

— Sobre sexta, queria conversar, será que podemos almoçar...

— Oliver, estou mesmo ocupada, depois conversamos, ok?

Quase corro para a sala e bato de leve na porta, adentrando.

Aria está sentada em frente à mesa de Alex e eles param de falar quando eu entro.

Coloco o café na mesa.

— Obrigada, mocinha. — Aria me dispensa com a mão.

Saio sem lançar nenhum olhar a Alex.

 

Aria sai da sala de Alex uma hora depois e para na minha mesa.

— Então, está gostando do trabalho?

— Sim, senhora.

— Que bom. — Ela sorri, mas o sorriso não chega aos olhos. — Alex é bom chefe?

— Sim — respondo por monossílabo de propósito sem saber onde ela está querendo chegar.

— Acho que sabe o que aconteceu com sua antecessora?

— Sim.

— Espero que sirva de aviso.

— Sim, senhora.

Ela parece querer falar mais, mas por fim se afasta.

Que merda foi aquilo?

Assim que ela se vai, fico com receio que Alex me chame em sua sala para continuar aquela conversa, mas graças a Deus ele tem uma reunião com um jornalista que chega em seguida e eu o encaminho a sua sala.

Na hora do almoço, pego minha bolsa pronta para correr antes que Oliver me intercepte e encontro Hannah no elevador.

— Oi Nina, fugindo de alguém?

— Não...

Mas ela percebe que é mentira.

— Acho que é de Oliver?

— Bem, sim.

— Hum, podemos almoçar juntas e conversar.

Saímos do elevador e tiro da bolsa meu sanduíche.

— Na verdade, eu vou só comer um sanduíche.

Ela pisca e tira um sanduíche de sua bolsa também.

— Então vamos comer juntas.

Não tenho alternativa a não ser seguir Hannah e sentamos nas escadas da Riverwalk para comer.

— Então, me falaram que a Aria esteve hoje na empresa? — comenta.

— Sim, esteve. Acho que ela não foi com a minha cara.

— Ah, Ária é uma irmã ciumenta. Kelly a odiava.

— Sério?

Então Ária era mesmo o tipo de irmã possessiva?

— Aliás, Kelly acha que a culpa é dela de sua troca de setor. Ária que alertou Alex para os sentimentos de Kelly e quando ele a confrontou ela confessou. E o resto você já sabe.

Será que Aria faria o mesmo comigo, penso?

— Eu conheci a namorada do Alex.

Hannah para o sanduíche a meio caminho da boca me encarando.

— Que namorada?

— Victoria. Eu a vi sexta-feira.

— Pelo o que eu sei Alex não tem namorada.

— Bem, ele tem. Ela é ruiva e linda e estava em seu apartamento na sexta-feira.

— Você esteve na casa do Alex?

Tento não corar.

— Eu fui levar uns relatórios urgentes. E ela estava lá. — Omito o resto, óbvio.

— Hum, que curioso. De repente é uma namorada nova, né? Na verdade Alex é bem discreto em relação a relacionamentos. Nunca o vi com uma namorada séria, pelo menos. Acho que foi isso que fez a Kelly ter ideias! Mas me conta, você e Oliver?

Ah saco, claro que ia entrar no assunto e decido dar algo a ela para aplacar sua curiosidade.

— Bem, ele estava flertando comigo há tempos.

— E vocês transaram?

Ruborizo e Hannah ri.

— Oh, desculpa, mas pode contar! Adoro detalhes sórdidos. Quando se namora o mesmo cara há cinco anos a gente não tem muita novidade.

— Na verdade não, mas ele queria. Enfim, nós ficamos, mas eu pedi pra ele me levar embora.

— E por isso estava fugindo? Achei que poderia rolar algo mais, ele está louco por você, certamente.

— Eu não sou a garota certa para Oliver.

— Bem, eu saquei mesmo que você é meio... distante — ela diz com cuidado e embrulho o resto do meu sanduíche, perdendo a fome.

Hannah percebe meu desconto.

— Desculpa, não quero ser invasiva, mas saiba que se quiser conversar, estou à disposição.

— Obrigada.

 

Estou saindo do banheiro feminino quando Oliver me intercepta e percebo que ele estava ali me esperando.

Seu olhar é ansioso quando se aproxima.

— Oi.

— Oi, Oliver.

— Está fugindo de mim? — Ele está ansioso, amedrontado.

— Não — minto, temendo uma cena.

Ele sorri, tocando meu rosto.

— Eu fiquei com medo, achei que ficou estranha naquela noite e...

Afasto sua mão.

— Oliver, não aqui. — Olho para os lados, preocupada.

Então ele segura minha mão e me puxa abrindo a porta corta-incêndio e me levando para as escadas e depois de descer alguns degraus, ele me encosta na parede e me beija com força.

Eu deixo. Se ele tiver o que quer, rápido vai me deixar ir.

— Eu pensei em você o tempo inteiro... — sussurra beijando meu pescoço, a mão descendo para meu seio, apertando.

Sinto que ele está excitado e que devo pará-lo, mas já estou escorregando para aquele lugar dentro de mim onde não sinto nada. Fecho os olhos e espero que seja rápido.

Oliver continua a murmurar em meu ouvido. O quanto me quer, o quanto eu o deixo louco. Com minha aquiescência, começa a ficar mais ousado, sua respiração está pesada e a mão escorrega para minha coxa, embaixo da minha saia.

De repente, escuto a porta corta-incêndio se abrir. Abro os olhos e Alex está parado a alguns degraus acima, os olhos presos em mim e Oliver.

 

 

Antes

 

 

Foi quando saí do ônibus escolar, correndo para casa que eu vi Nora saindo daquele carro estranho.

Parei no jardim, escondendo-me atrás de um arbusto, curiosa.

Era um carro preto bonito. Grande. Daqueles que víamos na TV dirigido por gente rica.

Nora estava bonita, diferente. Seus cabelos presos em um coque e ela usava um vestido preto de inverno e botas de cano alto.

Ela deu alguns passos para longe do carro até que a porta do motorista se abriu e um homem saiu de lá. Ele tinha os cabelos grisalhos e era bem mais velho que David. Usava um terno elegante preto e óculos de sol. Ele alcançou Nora, segurando seu braço e ela se voltou.

Parecia chateada, enquanto abaixava a cabeça e tentava se soltar das mãos do homem. Ele tocou seu rosto enquanto lhe sussurrava algo. Parecia que estava enxugando uma lágrima que caía em sua bochecha.

E então Nora finalmente parou de tentar se afastar e o homem abaixou a cabeça a beijando delicadamente nos lábios.

Tomei um susto e corri para dentro de casa, meu coração aos pulos.

Quem era aquele homem estranho que beijava Nora como se fosse um marido?

Será que eu deveria perguntar a David?

 

 


Capítulo 9

 

 

É um daqueles momentos em que temos a impressão de ver tudo de cima, como uma telespectadora passiva de uma situação que foge ao nosso controle.

Contemplo a mim mesma, impassível, sustentando o olhar de Alex, que nubla de algo escuro e viscoso enquanto Oliver continua a me apertar, o rosto enterrado em meu pescoço, inconsciente que estamos sendo observados.

Eu não o afasto.

Eu não o paro.

Apenas espero, como alguém que vê o céu fechar e não faz nada para fugir da chuva. Aguardo a tempestade que se forma nos olhos de Alex desabar sobre mim.

Acho que tudo dura apenas alguns segundos, até que observo Alex se virar e sair por onde entrou, a porta batendo em um estrondo.

Oliver finalmente percebe a interrupção e para de me beijar, olhando na direção em que Alex desapareceu, assustado.

— Meu Deus, alguém nos viu. — Ele dá um passo atrás, passando a mão pelos cabelos, atordoado.

Ajeito minha saia calmamente enquanto pouco a pouco começo a me dar conta da gravidade da situação.

Alex havia me flagrado sendo agarrada por Oliver em um corredor.

Como uma prostituta barata.

De repente sinto uma vertigem, e a bile sobe a minha garganta.

Viro-me sem dar tempo de Oliver protestar e acho que ele nem teria condições de fazer isso dado ao fato de que ainda está preocupado com o possível flagrante, e corro para cima, em direção ao banheiro.

Entro na primeira porta que encontro e enterro o rosto na privada, vomitando todo o sanduíche que comi no almoço.

Minhas pernas ainda estão trêmulas enquanto lavo o rosto, espio minha imagem no espelho. O cabelo antes preso na nuca com esmero está soltando. Os olhos estão fundos e sem vida.

Meu rosto pálido como a morte.

É o rosto de uma pessoa horrível.

Provavelmente é o que Alex pensa agora.

Bem, talvez já esteja na hora de saber quem era a verdadeira Nina.

 

Estou recomposta quando caminho até minha sala e meu coração até bate calmamente agora. Eu só preciso vestir a mesma máscara de sempre.

Aquela que me acompanha há anos.

Sei que talvez eu esteja caminhando pela última vez pelos corredores da Black depois do que Alex viu, mas digo a mim mesma que não me importo.

— Nina, vem até aqui.

O chamado de Alex chega até mim pela porta de sua sala entreaberta.

Sinto um sobressalto de apreensão e pesar, mas continuo em frente.

Alex está em pé, de costas, contemplando a cidade através do vidro.

— Sente-se. — Sua voz é como um açoite.

Não dá margem a negativas e faço o que pediu, me sentando e esperando.

A tensão que eu vinha tentando não sentir começa a se alastrar por minha pele gelada e meu peito se aperta de um pesar que não quero sentir.

Alex está bravo comigo.

Está decepcionado comigo.

Pisco para afugentar a vontade de chorar.

Eu não deveria estar sentindo nada. Não deveria lamentar. Muito menos deveria estar sentindo culpa, mas enquanto ele se vira e senta em sua cadeira, fixa o olhar impassível em mim, tenho que me conter para não ajoelhar à sua frente e pedir perdão.

Ele permanece em silêncio por um tempo que parece infinito e quando finalmente fala, não é exatamente o que eu estava esperando.

— Está apaixonada por Oliver?

O quê?

Pisco atordoada com a questão.

— Está?

Alex insiste, a voz adquire um tom mais duro.

— Não — sussurro minha negativa, olhando para minhas mãos no colo, porque olhar para Alex e ficar tentando adivinhar o que ele está pensando é demais pra mim.

— Vocês estão namorando?

— Não...

— O que você faz, em sua vida particular, não deveria ser da minha conta — explica de forma um tanto irritada —, mas eu gostaria que fosse sincera comigo, dada às circunstâncias.

— Não, não estamos namorando. — Finalmente o encaro. Sei que meu rosto está vazio. — Oliver estava flertando comigo. Na sexta-feira, alguns funcionários da Black foram a um bar e Oliver estava lá...

Deixo no ar o que Alex pode imaginar.

— Você quer me falar sobre isso?

Eu franzo o olhar confusa.

— Por que eu iria querer falar de Oliver com você? — Parece a proposta mais absurda do universo.

— Eu disse que queria ser seu amigo, Nina. — Sua voz adquire um tom quente, quase acolhedor.

Assim como seu olhar fixo em meu rosto.

Ele está implorando para que eu fale.

Por algum motivo que foge a minha compreensão, Alex realmente quer saber e isso me confunde.

— Eu não tenho amigos.

Um pequeno sorriso se quebra em seu rosto bonito. Faz algo dentro de mim há muito adormecido remexer.

Como um déjà-vu .

Como uma lembrança muito antiga que não consigo acessar nos arquivos da memória.

— Mais um motivo para deixar eu ser.

— Está mesmo falando sério?

— Por que duvida?

— Eu achei que fosse me punir.

Algo na minha escolha de palavras faz o sorriso morrer em seu rosto.

— Por que acha isso?

Dou de ombros.

— Talvez seja o que eu mereça.

De repente algo muda em sua expressão, e ele inclina para frente, inquiridor.

— Por quê? — insiste.

— Porque eu sequer gosto de ficar com Oliver — confesso.

E surpreendo-me de me sentir bem confessando aquilo a Alex.

— Então por que fica?

— É o que ele quer. Ele acha que gosta de mim. Vê algo bom em mim.

— Eu entendo o que ele vê em você.

— Ele está enganado. Não há nada de bom em mim.

Alex franze o olhar, atordoado com minha última frase.

Tenho medo que pergunte por que, mas ele recua.

— Talvez Oliver esteja apaixonado por você.

— Espero que não.

— Não é o que você quer? Não sente que pode corresponder aos sentimentos dele?

— Não me sinto à vontade de falar sobre isso. — Começo a me sentir sufocada com aquela conversa estranha.

Eu achei que Alex estaria bravo comigo, que estaria pronto a me demitir.

Não que estivesse me questionando sobre meus sentimentos por Oliver.

— Tem razão. — Ele passa os dedos pelos cabelos. — Não me deve satisfação.

— Mas... O que vai acontecer? Eu sei que estava errada em deixar que o Oliver...

— Realmente os corredores da empresa não são o melhor lugar para encontros amorosos, mas acredito que não deva ser o primeiro e nem o último. Trabalho há bastante tempo aqui para já ter ouvido muitos rumores. — Há um certo humor em seu tom.

— Então não está... furioso comigo?

— Eu estou bravo porque disse que estava com um homem sendo que nem queria estar.

— Oh... — Mordo os lábios, incerta.

— Nina, sinceramente, eu acho que deveria botar um ponto final nesses seus... encontros com Oliver, se não é o que quer.

— Por que... Por que está sendo gentil comigo? — murmuro.

Ele parece incerto, então dá de ombros.

— Estou fazendo a mesma coisa que faria por uma das minhas irmãs.

— Eu não sou sua irmã.

— Não, não é...

De repente, ele para quando escutamos uma suave batida na porta.

Eu me viro e Martin está ali.

— Alex, tínhamos uma reunião agora...

— Ah sim, entre.

Eu me levanto, sem Alex precisar pedir e me afasto rapidamente, fechando a porta atrás de mim.

Recosto-me nela, ainda atordoada, relembrando de novo o tom bizarro da conversa que acabei de ter com Alex.

— Nina?

Abro os olhos quando escuto Oliver e ele está ali na minha frente, o olhar preocupado me sondando.

— Podemos falar agora? Martin disse que estaria com Alex...

Eu não quero falar com Oliver, mas as palavras de Alex me voltam à mente. Sim, ele tem razão, eu devo pôr um ponto final na minha história com Oliver.

— Podemos conversar quando sairmos?

— Mas...

— Por favor, Oliver, aqui não é o lugar.

— Alguém nos viu mesmo, você sabe?...

— Eu não sei, só ouvi a porta bater — minto.

— Certo, tem razão, aqui não é o lugar. Nos falamos depois.

Ele sai da sala e respiro aliviada.

Já está no fim do expediente quando Martin sai da sala de Alex e em seguida o próprio pede que eu vá até lá.

Estou um tanto receosa que ele queira continuar aquela conversa de teor particular, mas Alex apenas faz algumas considerações de trabalho.

— Tudo pronto para minha viagem de amanhã à tarde para Nova York?

Alex tinha uma conferência na cidade e passaria dois dias por lá.

— Sim, passagens compradas e hotel reservado.

— Preciso que faça algumas alterações.

— Sim? — Abro minha agenda para anotar.

— Preciso que reserve mais uma passagem.

— Em nome de quem?

— Do seu.

Levanto o olhar, confusa.

— O quê?

— Sim, você vai me acompanhar.

Abro a boca várias vezes, assombrada, mas Alex faz um sinal me dispensando.

Eu me levanto, ainda atordoada.

— Mas... Por que eu tenho que ir?

— Nina, você sabia desde que foi contratada que teria que me acompanhar em algumas viagens. Essa é só a primeira delas — explica em tom que não aceita argumento.

E sei que ele tem razão.

Eu fui mesmo avisada.

— Certo — murmuro, saindo da sala e fazendo o que ele pediu, comprando mais uma passagem e ligo para o hotel para reservar mais um quarto, porém sou informada que está lotado, por causa da conferência.

— Mas eu já tenho uma suíte reservada para o Sr. Black.

— Sim, estamos vendo aqui. A suíte tem dois quartos — o funcionário explica.

— Ok, vou ver com o Sr. Black.

Desligo irritada e vou até a sala de Alex.

— Algum problema?

— Não há vaga no hotel.

— Achei que tivesse reservado uma suíte para mim. Tem dois quartos.

— Sim, mas...

— Então não teremos problema.

Quero argumentar, mas sei que estou sendo ridícula.

Então saio da sala e pego minha bolsa e meu casaco para ir embora.

Quando estou saindo do prédio, Oliver está me aguardando. Ele vem ansioso até mim, os cabelos ao vento. Sua mão cinge meu rosto e ele se abaixa para me beijar, mas viro o rosto.

— O que foi?

Dou um passo atrás, me livrando de suas mãos.

— Acho que não devemos mais fazer isso.

— Nina? Por que... Se foi pelo o que aconteceu hoje, eu assumo toda a culpa, e a culpa foi minha mesmo e...

— Não, a culpa foi minha...

— Não...

— É o que eu faço, Oliver — digo sem inflexão. — Eu levo os homens a fazerem coisas ruins. Você estará melhor sem mim, acredite.

— Mas...

— Tchau, Oliver.

Dou meia-volta e me afasto. Aperto o casaco contra o peito e sigo em frente, sem olhar para Oliver, sabendo que ele está parado me observando ir embora.

Ele deve estar triste. Chocado. Talvez pensando em como pode me convencer do contrário. Não me importo.

Oliver não faz ideia do que se livrou.

Nada de bom acontece quando alguém se apaixona por mim.

 

Na manhã seguinte, volto a correr.

O tempo está frio, mas gosto da sensação, enquanto impulsiono meus pés, me perguntando se verei Alex.

A pergunta é respondida quando ele surge do meu lado, do mesmo jeito como no outro dia, correndo junto comigo.

Não olho para o lado, mais sentindo do que o vendo.

Por um instante, deixo a suave familiaridade do seu gesto, de sua presença, dominar meus sentimentos. É bom de um jeito quase errado. Eu não deveria gostar tanto assim de sua companhia.

Parece tão certo tê-lo ali, do meu lado, como estivéssemos assim há anos.

Como se eu tivesse esperando por ele há anos.

De repente eu paro, sem ar com a sensação que este pensamento me traz. Alex para também, respirando com dificuldade enquanto me deixo ir ao chão, aos pés da estátua, lutando para respirar.

— Ei, tudo bem?

Ele se abaixa a minha frente, retirando seu capuz, o olhar preocupado sondando meu rosto.

Sacudo a cabeça em afirmativa, tentando acalmar as batidas perdidas do meu coração.

— Por que parou? Está se sentindo mal?

— Só... Perdi o ar. Já estou melhorando. — Faço um movimento para me levantar e ele é mais rápido se erguendo antes e estendendo a mão para mim. Eu aceito, e sinto uma sensação eletrizante quando nossas peles se tocam, e ele me puxa. Seu olhar muito próximo quando estou de pé.

— Respira — pede, divertido, e percebo constrangida que não estava mesmo respirando, tamanho o desconcerto que ele causa em mim.

Aspiro e seu cheiro invade minha narina.

Suor e algum resquício de um perfume amadeirado, talvez seu desodorante. É uma combinação deliciosa.

Máscula.

Me deixa tonta.

De repente estou muito ciente dele. De seu corpo suado perto. Sua mão ainda segurando a minha é quente. Grande.

Seu olhar cinzento é como uma tempestade prestes a desabar.

— Melhor?

Ele fala quebrando meu fascínio e sacudo a cabeça em afirmativa, dando um passo atrás e rompendo nosso contato.

— Acho que já chega de corrida hoje.

Não é uma sugestão.

— Sim, vou caminhar até minha casa.

— Eu te acompanho.

Quero dizer que não é preciso, mas Alex já segura meu braço e me vira.

— Como sabe que é nessa direção?

— Não é?

— É sim — resmungo e ele ri.

Andamos lado a lado em silêncio por um momento.

— Eu terminei com Oliver — eu me vejo dizendo até mesmo para minha surpresa.

— Como se sente sobre isso?

— Não sei. Aliviada acho.

— Está vendo como é fácil? — comenta divertido me fazendo encará-lo.

— O que é fácil?

— Nós dois. Conversar. Você me tratar como um amigo.

— Eu não costumo... ter amigos, eu te disse.

— Por quê?

Olho pra frente de novo, sem saber como responder.

— Por que não me fala sobre você?

— Por quê? — Eu o encaro na defensiva.

— É o que os amigos fazem. Eles conhecem um sobre o outro.

— Por que você não começa então?

Ele ri.

Eu gosto do som.

— Bem, eu sou o CEO da Black há um ano, desde que meu pai morreu, mas sempre trabalhei na empresa, comecei como estagiário ainda na faculdade. Eu tenho duas irmãs. Aria e Charlotte. Aria tem um ano a menos que eu e ela é casada há seis anos, seu marido se chama Max. E eles têm duas lindas filhas.

— As garotinhas no retrato.

— Sim, Arianna tem cinco anos e Isabella tem quatro.

Sinto o carinho em sua voz.

— Você parece gostar muito delas.

— Sim, elas são preciosas.

— Aria não parece gostar de mim.

— Aria às vezes é um pé no saco.

— Mas é sua irmã preferida? — Eu me recordo do abraço que vi no carro. Como por um instante não me pareceu fraternal.

Ele ri suavemente.

— Não fale isso para Charlotte.

— Você estava brigando com ela ao telefone aquele dia — não consigo deixar de comentar, mesmo sabendo que estou sendo invasiva.

A expressão de Alex se fecha.

— Charlotte está na Europa no momento. E deixou alguns problemas pendentes que acabou respingando sobre nós.

Suas palavras são um enigma, mas ele não parece disposto a falar mais sobre o assunto. Surpreendo-me por estar curiosa.

De repente sinto-me muito interessada em tudo o que está ligado a Alex.

Até mesmo sua família.

— Ela é sua irmã mais nova?

— Sim, Charlotte tem 22 anos, mas às vezes age como se tivesse quinze ainda.

— Você é tipo um irmão mais velho chato?

Ele ri.

Deus, eu poderia passar a vida ouvindo aquele som.

— E você, tem irmãos? — Ele me surpreende mudando o foco para mim de novo.

Percebo que está me relaxando para me manipular.

Deveria estar brava, mas não estou.

Porém, isso não quer dizer que estou pronta para falar da minha vida com Alex.

— Não respondeu — insiste.

— Olha, eu talvez... talvez... esteja disposta a... deixar que seja meu amigo — confesso, mesmo estando com meu coração disparado de medo dessa nova faceta de nosso relacionamento —, mas tem que prometer que não vai perguntar sobre meu passado. Ou minha família.

Alex pondera.

Sinto que ele quer discordar e não entendo seu interesse.

Ele deve saber pelo menos que meus pais estão mortos, porque eu disse isso no dia da minha entrevista.

Talvez por isso ele esteja curioso.

Isso e as marcas no seu braço – uma vozinha insidiosa sussurra dentro de mim.

Eu queria esquecer o que Alex tinha visto, mas ele viu.

E não tem como voltar atrás.

— Tudo bem. — Estende a mão e pega a minha, entrelaçando os dedos nos meus.

De novo sinto aquela eletricidade. Desta vez, a sensação ultrapassa a barreira da minha mão e sobe por meu braço, atingindo meu coração.

Eu o encaro confusa e ele sorri.

— É como amigos fazem.

E caminhamos assim, até que avisto meu prédio do outro lado da rua.

— Eu fico por aqui.

Alex solta minha mão.

Minha pele lamenta.

— Nos encontramos no escritório ao meio-dia, ok? E de lá vamos juntos para o aeroporto.

— Tudo bem.

Atravesso a rua e entro no prédio.

Quando entro em meu apartamento, corro até a janela que dá pra rua e afasto a cortina.

Alex ainda está lá embaixo. Seu capuz sobre os cabelos, olhando para cima. Como se soubesse que eu ia fazer exatamente isso.

Fecho a cortina, indo para o chuveiro.

E tento afastar a sensação de que não é a primeira vez que vejo Alex exatamente daquele mesmo jeito.

Do outro lado da minha rua, espiando minha janela.

Esperando por mim.

 

 

Antes

 

 

— Quem era o homem que te trouxe em casa hoje? — Ouvia a voz de David questionando Nora no começo da noite escondida na escada.

Eu havia lhe contado assim que ele chegou do trabalho o que tinha visto. Na minha curiosidade, eu pensava que David deveria saber quem era, mesmo achando esquisito que ele tenha beijado Nora na boca como marido.

— Do que está falando? — Nora rebateu.

— Nina me contou que viu você saindo de um carro preto hoje e que o homem a beijou.

— O quê? Aquela menina fofoqueira e mentirosa! — Nora gritou e eu me encolhi subitamente arrependida de ter contado a David.

Nora com certeza estava brava comigo e iria me punir.

— Ainda não me respondeu — David insistiu, ignorando a fúria da mulher dirigida a mim.

— Acreditou mesmo nela? — Nora estava ultrajada.

— Por que ela mentiria? — A voz de David está fria como gelo.

— Porque ela está aqui para causar discórdia!

— Não fale bobagem! Nina não ia mentir! E quero que me diga a verdade, porra! — David bateu em algo que parecia ser a mesa e eu me assustei.

— Quer saber, sim, ela disse a verdade! Satisfeito?

— Quem era?

— Acho que sabe muito bem.

— E o que ele estava fazendo aqui? Achei que nem tivesse mais contato com ele!

— Ele vem me procurando há algum tempo. Eu sempre ignorei. Sabe que eu te amo David, eu nunca... — A voz dela se alquebrou. — Você que me obriga a isso...

— A esposa dele sabe?

— Eles se divorciaram.

— E o que isso significa? Ele ainda está apaixonado por você? Depois de tanto tempo?

— Bem, por que acha absurdo? Você ainda é apaixonado por uma mulher que está morta!

— Cale a boca!

— Não vou me calar mais! Eu cansei! Cansei de mendigar por seu afeto! Até seu filho tem que implorar por atenção, por amor! Amor que você só tem pela filha dela!

— E por isso resolveu me trair?

— Como você se importasse! — gritou. — Está aqui, frio como gelo, só com o orgulho ferido! Você não se importa comigo, nunca se importou...

— Não é verdade, Nora. — A voz de David parecia cansada.

— Ele não significa nada. Nunca significou — ela falou com sua voz abafada. Acho que estava abraçada a David.

— Então por que estava com ele?

— Ele insistiu! Ele vive insistindo. Eu disse a ele que te amava, que nunca ia te deixar...

— É isso que ele quer. Que você me deixe?

— Sim, mas eu amo você, não quero ir embora. Não posso! Somos uma família! Por favor, David, diz que me ama também, diz que me quer aqui...

— Claro que sim...

— Então se livre dessa menina. Se livre dela por mim. E eu prometo que nunca deixarei você.

 

 


Capítulo 10

 

 

— Tudo bem?

Alex me estuda quando sentamos lado a lado na poltrona do avião que nos levará a Nova York e sacudo a cabeça em afirmativa, desviando o olhar, porque Alex está muito perto e ao que parece nosso acordo mútuo feito de manhã quando ele me acompanhou até meu apartamento, de que a partir de agora seríamos amigos, não tinha servido muito para resolver aquela questão da atração proibida que eu sentia por ele.

De certa forma parece ter piorado. Porque Alex agora me trata com mais cordialidade do que seria necessário a uma mera funcionária.

Como combinado, ele me encontrara na empresa, vestindo um terno cinza-escuro de lã xadrez e por baixo uma blusa preta de gola rolê que contrastava lindamente com seus cabelos cor de trigo.

Havia sorrido pra mim, não daquele jeito polido e distante que sorria a maior parte do tempo, seguido de um menear de cabeça distraído, mas sim ele havia realmente sorrido pra mim e usado uma entonação de criança animada com um passeio ao zoológico quando me perguntou se eu estava pronta para ir.

— Sim, estou. — Eu havia me levantado pegando minha bolsa enquanto Alex se ocupava em puxar minha pequena mala de rodinha sem ao menos eu pedir enquanto íamos para o elevador.

Eu usava uma tailleur de calça e blazer escuro elegante e tinha dado graças a Deus pela ideia de fazer compras que tive há poucos dias, enquanto acompanhava Alex até o carro que já nos esperava sob os olhares curiosos.

Alex estava ocupado com algo em seu celular por todo o caminho e aproveitei para fazer o mesmo, um tanto apreensiva sobre o que me esperava nessa viagem.

Quando chegamos ao aeroporto, fomos direto para o embarque com certa pressa, já que estávamos em cima da hora para embarcar e agora, sentada lado a lado na primeira classe e tendo a atenção de Alex toda em mim, eu me pergunto se foi uma boa ideia aceitar aquela oferta de amizade.

— Parece tensa.

— Estou um pouco nervosa, é a primeira vez que faço isso.

— Isso?

— Viagem a trabalho. Deve saber que não tenho experiência nessas coisas. — E nem estou falando só de trabalho, mas não sei se ele percebe.

— Você está se saindo muito bem, se eu a trouxe é porque sei que está preparada.

— E o que espera de mim?

— Espero que me acompanhe em alguns dos compromissos.

— Quais deles?

Obviamente estou ciente da agenda de Alex.

Ele será um dos executivos a falar em uma conferência no fim da tarde e depois tem um jantar marcado com alguns empresários.

— Estará comigo na conferência, mas no jantar você estará livre.

— Não precisarei te acompanhar?

— Não. Só terá homens e nem sempre as conversas são sobre negócios.

— Como assim? É algo... sujo?

Ele ri.

— Nem tanto. Apenas é mais informal. Falamos sobre jogar golfe, viagens, onde gastar dinheiro. Na verdade é bem entediante. Prefiro que faça o que quiser.

— E o que eu farei?

— Já conhece a cidade?

Sacudo a cabeça negativamente.

— Pode sair para jantar, ver um show na Broadway.

— Sozinha?

— Eu iria com você, mas...

— Não, claro que eu posso ir sozinha...

— Amanhã cedo temos várias reuniões e você estará comigo, e a tarde eu tinha marcado uma entrevista, mas quero que desmarque.

— Por quê?

— Quero passar a tarde livre com você.

Ai caramba.

Desvio o olhar para o céu abaixo de nós, tentando conter as batidas bobas do meu coração.

É ridículo.

Alex havia dito que queria ser meu amigo e embora eu não entendesse por que, eu havia aceitado a oferta – também sem saber o porquê.

Eu não me sentia à vontade para deixar ninguém se aproximar o bastante para me conhecer de verdade.

De fato, essa perspectiva me apavorava.

Porém, desde que comecei a trabalhar com Alex algo havia mudado.

Mesmo profissionalmente eu nunca me senti engajada em nada. Em nem um dos meus antigos empregos esquecíveis, que eu havia deixado para trás assim que as pessoas começavam a ser intrometidas o suficiente para quererem saber mais do que eu estava disposta a contar, ou seja, nada, mas como secretária de Alex, eu havia me deparado com um anseio diferente.

Eu me vi gostando do meu trabalho, sentindo-me motivada de um jeito que nunca senti antes.

E era bizarro demais pensar que tinha algo a ver com este cara ao meu lado. Alex era meu chefe e devíamos ter apenas uma relação profissional.

Todavia, ele acenava com algo mais do que relação chefe-secretária e eu devia estar correndo e me escondendo como sempre fiz. Em vez disso, estou pisando em águas desconhecidas pela primeira vez na vida, para ir a seu encontro.

Posso fechar os olhos e dizer a mim mesma que talvez eu tenha ficado tempo demais presa na minha própria escuridão. Que talvez já esteja na hora de olhar para além da minha própria dor. Da minha própria culpa.

Que talvez esteja na hora de deixar um pouco de luz entrar.

Deixar Alex entrar?

E o que fazer com aquela eletricidade que sinto toda vez que ele me toca, com aquele frio no estômago toda vez que ele me encara atentamente?

Com aquele desejo proibido que ameaça transbordar em meu íntimo toda vez que estou perto dele?

E pior, com aquela decepção por ele pedir apenas minha amizade quando, mesmo contrariando todas as expectativas, eu estava pronta para mais?

Nenhum desejo fica impune. Eu sabia disso.

Deveria ficar feliz por Alex não ser mais um daqueles homens que havia me desejado.

Eu gostava de Alex, mais do que conseguia admitir, mais do que conseguia entender.

E não deveria trazê-lo para minha escuridão.

Mas ele poderia me tirar dela?

— Nina?

Alex sacode meu ombro e percebo que devo ter adormecido, pois o avião já está aterrissando.

— Chegamos — anuncia.

 

Estamos no táxi, a caminho do hotel, quando meu telefone vibra. Eu o pesco dentro da bolsa e leio uma mensagem de Oliver.

“Nina, por favor, precisamos conversar. Posso te ligar?”

 

Fecho a mensagem, mesmo sabendo que há outras, cada vez mais desesperadas.

— Ele parece não ter aceitado muito bem.

Levanto o olhar e percebo que Alex viu a mensagem de Oliver. E todas as outras não lidas.

Guardo o celular na bolsa.

— Ele vai aceitar — murmuro, porém um certo medo me pesa o estômago.

Algo mais com que eu não estou acostumada.

Eu não me importava antes.

Nunca me importei. Não depois de...

— O que está pensando? — Alex franze o olhar, como se notando que tenho pensamentos ruins.

— Eu estava pensando se Oliver é um daqueles... — Minha voz desaparece em meio às lembranças nada agradáveis.

— Daqueles?...

Pouso meu olhar em Alex.

— Um daqueles homens.

Ele continua me encarando, esperando que eu explique.

Um daqueles homens. Homens que se apaixonam por mim a ponto de não me deixar ir.

— Homens que querem mais de mim do que eu posso dar — opto por uma meia resposta.

— Ele está te importunando? — Alex questiona com frieza.

— Não. — Não ainda, penso. — Por favor, não quero falar de Oliver.

— Ok, mas eu fiquei curioso. Houve muitos... homens? — Alex indaga em tom descontraído. Como se fosse uma pergunta boba, banal.

Mas algo estranho brilha em seu olhar.

Não consigo entender.

— Essa é mais uma de suas perguntas que amigos fazem um ao outro? — Tento soar boba também. Até consigo abrir um sorriso.

Ele retribui.

Seu sorriso atinge direto meu ventre.

Aperto minhas coxas uma na outra, maldizendo aquelas reações que Alex causa em mim com apenas um olhar, um sorriso.

— Essas são as regras.

— Regras? — Levanto a sobrancelha.

— Eu só fiz uma pergunta boba. Não precisa responder se não quiser. Só acredito que uma mulher como você deva ter muitos homens correndo atrás.

Ele fala isso rindo.

Ele não sabe, claro.

Ele não sabe como isso me atinge. Como engulo a bile que sobe na minha garganta, como aperto meus pulsos fechados, desejando sentir alguma dor física para aplacar aquela dor em meu peito.

Em minha alma.

— Não quero homens correndo atrás de mim — murmuro.

— Mas aposto que tem. — Alex se recosta, os olhos franzidos, me contemplando. Como se me admirasse. — Você é muito bonita, Nina.

— Você me acha bonita? — De repente estou corando como uma colegial, tentando conter aquela onda ridícula de contentamento que sinto por um elogio tão simples e que, com certeza, não significa nada de mais.

— Ninguém nunca te disse isso?

— Disseram sim. Muito mais do que eu gostaria.

— Não parece algo que aprecie.

— Por que deveria apreciar?

— A maioria das mulheres apreciam. Gostam de se sentirem bonitas, desejadas.

— Sua namorada gosta?

A pergunta sai da minha boca sem pensar.

Alex se cala por um momento, desviando o olhar, mas continua sorrindo, como se eu tivesse contado uma piada.

— Falei algo engraçado? — desafio, para minha surpresa, e percebo que quero que ele fale dela pra mim.

De Victoria.

A moça bonita que dorme em sua cama. Que tinha os olhares de desejos de Alex.

O toque de Alex.

O sexo de Alex.

— Victoria não é minha namorada.

Abro a boca para expressar minha confusão, mas o carro para em frente ao hotel naquele momento e saltamos.

— Senhor Black, estávamos aguardando o senhor. — Um homem jovem solícito se aproxima de nós quando entramos no saguão. — Sou Owen Shaw, mediador da Economist.

Economist era a revista que tinha organizado a conferência.

Alex o cumprimenta e me apresenta.

— Desculpe, Sr. Black, mas a conferência já começou, acredito que o trânsito tenha o atrasado.

Alex olha a hora no celular e solta uma imprecação.

— Sim, nos atrasamos. — Ele se vira para mim. — Nina, por favor, faço nosso check-in e leve nossas malas ao quarto e depois me encontre na conferência. Pode cuidar disso?

— Claro, por isso estou aqui.

Alex segue o homem e vou para a recepção, tratando de fazer nosso check-in . De repente sinto como se alguém estivesse me observando e relanceio o olhar ao redor, para ver um homem moreno sentado ao bar mais à frente, com um copo de whisky na mão.

Ele tem o olhar fixo em mim e um sorriso de deboche no rosto bonito.

— Senhorita, aqui estão os cartões do quarto — a recepcionista chama minha atenção e eu pego os cartões, desviando o olhar do homem e pegando as duas malas de rodinhas, minha e de Alex, sigo pelo saguão até o elevador.

Um funcionário do hotel indaga se quero ajuda com as malas e eu declino, afinal, são duas malas pequenas.

Entro no elevador e olho para o visor, sem saber como funciona já que aperto os botões e nada acontece.

— Permita-me. — Uma mão morena surge do nada e retira um dos cartões que seguro, enfiando no visor e o elevador finalmente fecha as portas se movimentando.

Levanto o olhar, para agradecer ao que eu acredito ser o funcionário do hotel, e me surpreendo ao ver que na verdade, é o mesmo homem que estava me encarando do bar.

E de perto é ainda mais impressionante. Ele tem olhos verdes intensos, cabelos pretos penteados de forma displicente, como se passasse muito os dedos por ele, e uma barba por fazer sombreia o maxilar forte.

— Obrigada — sussurro quando me estende o cartão de volta.

— À disposição, senhorita... — ele claramente quer saber meu nome.

Desvio o olhar, incomodada com aquela aproximação.

Não é algo novo, um homem achar que pode se aproximar de mim e jogar algum flerte. É apenas entediante e inconveniente.

— Não vai me dizer seu nome? — Ele sorri.

Tem duas covinhas em seu rosto.

Aposto que ele faz muito isso. Junta seu charme ao rosto bonito para conquistar mulheres.

Mas em mim, não faz nem cócegas.

— Eu sou Jack White. — Ele estende a mão.

Franzo o olhar.

Jack White?

Onde foi que ouvi aquele nome antes?

— Hum, parece que já ouviu falar de mim? Alguma coisa infame, presumo?

— Por que eu já teria ouvido falar do senhor?

A porta do elevador se abre e eu me preparo para sair, porém o homem é rápido e pega as duas malas antes de mim e sai na frente.

Suspiro, irritada, mas o sigo pelo corredor.

Provavelmente ele sabe a suíte, por ver o nome no cartão, pois para em frente à porta exata.

— Obrigada, mais uma vez. — Eu o dispenso com frieza.

— Respondendo sua pergunta, acredito que já ouviu falar de mim, pois está aqui com Alex Black.

— Como sabe?

— Eu os vi chegando. Então, vai sanar minha curiosidade e dizer o que o Alex fala de mim?

— Ele não fala nada, porque nunca ouvi falar do senhor.

O homem ri com vontade.

Não parece com humor.

— O que é você? É nova não? Decerto saberia de todos os podres...

— O que sou eu? — repito com certo despeito.

— Já que não quer dizer quem...

Suspiro vencida.

— Nina Giordano. Sou a secretária do Alex.

— Ah... E eu achando que podia ser o brinquedinho novo. — Ele toca meu cabelo.

Dou um passo atrás.

— Se me der licença, Senhor White.

— Claro... Tenho mesmo que ir para a enfadonha conferência. Preferia ir beber um drinque com uma garota interessante como você. Quem sabe mais tarde?

— Só nos seus sonhos — murmuro abrindo a porta e entrando, não com certo receio que a audácia de Jack White o faça forçar uma entrada no meu quarto assim como fez no elevador.

Respiro aliviada, quando fecho a porta na sua cara, e escuto sua risada debochada do outro lado enquanto se afasta.

Ainda me perguntando quem seria aquele cara, deixo meu olhar vagar em volta da suíte elegante. Há uma sala decorada em tons neutros de creme e duas portas, uma de cada lado. Caminho para um deles, levando a mala de Alex e a deixo lá, indo pegar a minha e levando para o outro quarto. Tenho vontade de tomar um banho, ou até mesmo retocar a maquiagem, mas Alex me espera na sala de conferência, então desço rápido.

Ao entrar na sala, Alex está no pequeno palco, junto com o homem que nos abordou na entrada do hotel e os dois falam sobre finanças. Algumas pessoas fazem perguntas. Que são prontamente respondidas.

Sento-me ao fundo, tentando não chamar atenção, mas percebo que Alex me viu, pois ele acena brevemente com a cabeça para mim.

É neste momento que uma cabeça morena se vira em minha direção. E reconheço Jack White que pisca pra mim, de forma efusiva, como se tivesse reconhecido algum amigo.

Como Alex alertou, tudo parece um tanto enfadonho e começo a sentir fome enquanto a tarde cai, torcendo para que acabe logo e eu possa ir jantar. Estou distraída com este pensamento, quando escuto a voz de Jack White se sobressair as outras.

— Fiquei sabendo que perdeu a Network Company — ele diz em tom de escárnio. — Deve ter sido difícil lidar com isso?

A postura até então relaxada de Alex muda da água para o vinho quando ele aterrissa o olhar em Jack White.

— Deve estar mesmo bem informado, White, já que foi você que conseguiu o negócio de uma forma um tanto escusa, devo dizer.

As pessoas no recinto começam a cochichar e é então que eu me recordo onde ouvi o nome de Jack White.

Foi Oliver quem o citou, quando a Black perdeu as ações da Network.

“É a segunda vez que White passa a perna nele.”, foram suas palavras.

Agora eu entendo.

— Escusa? — Jack ri. — Está me acusando do que, Black? O garotinho do papai não aprendeu que o mundo dos negócios é assim? Um dia se perde, um dia se ganha. É questão de quem é mais esperto.

Caramba, o que era aquilo?

A animosidade na voz de Jack White é bem clara, assim como a tensão no rosto de Alex.

As pessoas olham de um para o outro como se estivessem em um ringue de box.

— Sr. White, por favor — o homem que media a conferência se intromete, preocupado com a exaltação dos ânimos.

— Não, deixe — Alex o interrompe. — Parece que White está um tanto entediado ultimamente se me seguiu de Chicago até aqui apenas para me provocar como um menino que perdeu seu brinquedo e ainda não se recuperou. Supere, White. Próxima pergunta?

Não consigo ver o rosto de White, mas alguma coisa na fala de Alex faz White se calar e em seguida ele se levanta e passa por onde estou sentada e sai da sala. Sua expressão não é mais de deboche como eu me lembro, e sim fria como o gelo.

As perguntas prosseguem e quando a conferência termina, Alex vem em minha direção e eu me levanto, aliviada que tenha finalmente terminado.

— Vamos?

Alguns homens estão se aproximando, provavelmente querendo falar com Alex, mas ele os ignora e segura meu braço me guiando para fora da sala.

Ainda parece tenso e imagino que tenha a ver com a estranha discussão com Jack White.

— Tudo bem? — indago com cuidado.

— Podia estar melhor — resmunga sem muito humor e quando estamos passando pela saguão, Jack está ali.

Com uma postura despreocupada e as mãos nos bolsos do terno escuro.

Alex o ignora quando passamos em direção ao elevador, mas Jack parece que tem outras ideias.

— É assim que trata um velho amigo, Alex?

— Vai se foder, White. — Alex ataca o botão do elevador e eu arregalo os olhos surpresa com seu ataque.

Jack ri.

— Com uma secretária desta para dividir a suíte e ainda com este mau humor?...

Alex se vira, e sem pensar, seguro seu braço.

— Alex! — sussurro, amedrontada com sua fúria.

Alex estava prestes a atacar Jack White e pelo sorriso no rosto do outro homem era exatamente isso que ele queria.

— Cai fora, Jack! — Alex esbraveja.

— Estou apenas querendo ser amigável, mas parece que não está mesmo de bom humor. Entendo que deva ser por causa dos negócios perdidos, não é? Infelizmente não poderia te ajudar, já que esse é só o começo! — Ele sorri, mas há escárnio em seu rosto. — Até mais, Black... — E ele se vira para mim. — Nina... foi um prazer.

Entramos no elevador e Alex me encara ainda irritado.

— Ele te chamou pelo nome?

Fico vermelha e nem sei por quê.

— Ele me ajudou com o elevador, quando cheguei. Nos apresentamos.

— Só isso?

— O que mais seria?

Alex solta um palavrão baixinho enquanto passa as mãos pelos cabelos e percebo que está tentando se acalmar.

É realmente estranho vê-lo assim.

Alex não se descontrola nunca.

Mas provavelmente há algo em Jack White que causa esta reação nele.

Chegamos à suíte e eu tento sanar minha curiosidade.

— O Jack White.. Sr. White... deu a entender quando me acompanhou até aqui que...

— Ele te acompanhou até aqui?

— Eu fechei a porta na cara dele — rebato rápido —, enfim, ele deu a entender que eu já tinha ouvido falar dele, o que não entendi na hora, mas depois me lembrei que Oliver comentou algo, sobre o negócio da Network. Algo sobre ser a segunda vez que White te passava a perna.

— Sim, é exatamente isso... Jack é um investidor e ele conseguiu nos trapacear duas vezes neste ano.

— Ele pareceu que estava na conferência apenas para te provocar.

— É o que ele faz — Alex responde tirando o paletó e afrouxando a gravata. — Merda, preciso de um drinque.

— Então... É algo pessoal? — arrisco, mesmo sabendo que posso estar sendo invasiva.

— Infelizmente — ele resmunga. — Vou tomar um banho. Preciso ir nessa droga de jantar.

— Tudo bem.

Ele se afasta e vou para meu próprio quarto.

Tomo um banho rápido e coloco um vestido preto de manga comprida, para descer para jantar.

Enquanto tomava banho pensei em pedir alguma indicação a Alex de algum restaurante, mas decidi que poderia muito bem comer no hotel mesmo, que parecia ter um ótimo restaurante.

Quando saio do quarto, escuto o celular de Alex tocando e o pesco dentro do bolso de seu paletó. O nome do visor chama minha atenção.

Aria.

A irmã nojenta, penso.

E parece que ela quer mesmo falar com Alex porque o celular não para de tocar.

Então caminho até a porta do quarto de Alex e bato.

— Alex, tem uma ligação para você acho que é urgente... é sua irmã.

— Entre — ele pede e eu abro a porta.

Paro incerta quando o vejo sair do chuveiro, embaixo do vapor quente, usando apenas uma toalha sobre os quadris.

Ele avança até mim e pega o telefone da minha mão, atendendo.

— Fale...

Eu me viro para sair, fechando a porta atrás de mim.

Volto para meu banheiro e faço uma maquiagem e prendo o cabelo.

Ao sair, Alex ainda está em seu quarto e posso ouvir sua voz abafada atrás da porta.

Será que ainda está com Aria?

Será que ainda está despido? Sinto minha boca seca ao lembrar, mas afasto a imagem. Essa atração por Alex é tão descabida quanto a vontade dele de ser meu amigo.

Nada faz sentido.

Meu estômago ronca e decido ir comer, digitando apenas um recado no celular, avisando que estou no restaurante do hotel, caso ele queria falar comigo antes de ir a seu jantar de negócios.

Estou entrando no restaurante, um tanto acanhada por estar sozinha e por não ter costume de frequentar aqueles lugares sofisticados, quando uma mão toca meu braço.

— Nina Giordano.

Afasto o braço, respirando rápido, assustada, e levanto a cabeça para ver o sorriso debochado de Jack White.

— E nos encontramos de novo. — Parece não se abalar com meu olhar de censura por ele ter me tocado.

Parecia que pouca coisa abalava aquele cara.

Bem, Alex Black o abalou.

E ao que parece havia alguma rixa entre eles.

— Posso te acompanhar? — ele insiste ante o meu silêncio.

— Não. — Avanço em frente em direção ao maître . — Mesa para um, por favor.

— Para dois, Maurice — Jack diz.

Reviro os olhos, pronta para rebater sua ousadia, mas o maître fala antes.

— Senhor White, o restaurante está cheio. Se puderem aguardar no bar...

— Claro, eu e minha amiga esperaremos no bar tomando um drinque.

Continuo parada no lugar, um tanto petrificada com sua arrogância.

Ele ri.

— Nina, apenas um drinque. Prometo não morder.

— Não, obrigada. — Continuo séria, caminho em direção ao bar. — Não preciso de companhia.

Ele franze o olhar quando paro em frente ao balcão e me sento, pegando o cardápio de bebidas.

Jack senta ao meu lado.

— Qual o problema? Alex a alertou sobre mim? O que foi que ele disse? Vamos, me divirta.

— Não disse nada. Talvez não seja assim tão importante pra ele, Sr. White, ao que parece o senhor se preocupa mais com o Alex do que ele com você.

— Eu duvido. Aposto que ele desfere soquinhos naqueles sacos de pancada na casa dele quando perde um negócio pra mim.

Então Jack White conhecia a casa de Alex?

— Por que parece que isso é pessoal? — arrisco.

Jack White parecia mais disposto a falar do que Alex e confesso que estou curiosa quanto àquela desavença.

— Hum, então Alex não lhe contou nada? Me diga, é nova na Black?

— Sim, eu sou.

— Agora entendo. Eu conhecia a outra secretária, como era mesmo o nome? Uma moça loira bonitinha e atrevida.

— Kelly.

— Isso! Essa mesma. Vivia na casa dos Black, querendo chamar a atenção. O velho a adorava. O Alex nem tanto.

Como é que ele sabe essas coisas sobre Alex?

— Vejo a curiosidade no seu olhar. Vamos, apenas um drinque. Teremos que esperar mesmo. — Ele faz sinal para o barman. — Whisky pra mim, um vinho branco para a moça.

Suspiro, pensando em me levantar e ir embora. Esquecer o jantar.

As lembranças de Oliver e seus avanços ainda estão frescas na minha memória e me fazem temer os avanços de Jack White.

Em outros tempos eu talvez tivesse cedido ao convite de Jack White. Talvez não me importasse suficientemente como a noite iria acabar. Talvez até desejasse que acabasse com suas mãos em mim. Ele era um cara bonito, afinal. Daqueles que levavam as mulheres para cama com facilidade. Que achavam que não deviam nada a elas a não ser algumas horas de sua atenção.

— Ah, acha que estou flertando com você? — Ele adivinha meus pensamentos e isso parece diverti-lo.

— Não está?

— Você quer que eu esteja?

— Não.

Ele me encara com curiosidade agora.

— Alex não costuma brincar com as funcionárias da Black, mas há algo em você... Algo em como ele te cercou no elevador...

— O que quer dizer?

— Diga-me você? Alex já te levou para conhecer sua coleção de chicote?

— O quê? — Arregalo os olhos atordoada e antes que Jack consiga responder, me surpreendo ao ver Alex vindo em nossa direção.

Em poucas passadas, ele nos alcança e segura meu braço, me afastando de Jack.

— Que porra está fazendo? — A pergunta não é pra mim, e sim para Jack que dá de ombros, enfiando a mão nos bolsos, enquanto se levanta também.

— O que estaria fazendo?

— Fique longe dela.

Jack levanta uma sobrancelha olhando de mim para Alex de forma divertida.

— Hum, então eu tinha razão e essa dai é sua nova...

— Não continue. — Ele dá um passo em direção a Jack, soltando meu braço, agora os dois estão cara a cara, muito perto, a tensão pode ser cortada com uma faca.

Não consigo me mover, assistindo aquele embate.

— Está nervoso, Alex? Hum... Então se eu mexer com a Nina, será mais divertido do que se eu mexer com a Black, pelo visto...

Alex empurra Jack.

— Cala a boca.

O maître se assusta e começa a vir na nossa direção.

Jack está rindo, não preocupado com o ataque de Alex que continua a investir sobre ele, o rosto furioso, o corpo tenso.

— Fique longe da Nina, fique longe de mim e fique longe da minha família! Se quiser brincar de menino vingativo faça comigo, mas se mexer com...

— Com o quê? Com alguém importante? — ele relanceia o olhar pra mim.

— Senhor, por favor.

O maître nos alcança, mas nem um dos dois presta atenção nele.

— Apenas nunca mais chegue perto dela. Porque eu venho aguentando você este tempo inteiro querendo me atingir, pelo simples motivo de que quem você quer atingir está fora do seu alcance...

O rosto de Jack finalmente se fecha em fúria.

— Ela estará ao meu alcance mais dia menos dia.

— Nunca. Então supere isso e nos deixe em paz.

— Nunca. — Ele olha pra mim. — E parece que eu descobri algo muito interessante aqui para finalmente fazer o frio Alex Black perder o prumo... Talvez eu me divirta tirando alguma coisa de você enquanto não devolve o que é meu...

E então, antes que Jack continue, Alex desfere um soco em sua boca, o fazendo ir para trás.

Solto um grito abafado.

— Senhores!

Desta vez são dois seguranças que estão nos cercando e um deles toca Alex e outro Jack.

— Me solte! — Alex rosna se livrando das mãos do segurança. — Eu já acabei aqui. — E sem olhar de novo para Jack, ele segura meu braço e sai me puxando pelo saguão.

Só paramos quando entramos no elevador e Alex está respirando com dificuldade, quando a porta se fecha e ele dá um soco no metal.

— Inferno!

— Alex... o que... — balbucio assustada.

Ele se vira para mim. Há fogo e fúria em seu olhar.

— Que merda estava fazendo com ele?

— O quê?...

Sem aviso, Alex avança para cima de mim, até que eu esteja encostada na parede do elevador, cercada.

— Aquele... O que ele fez? — Ele toca meu rosto, meu cabelo, como se certificando que estou inteira? — O que ele propôs? Se ele ousar... se ele...

Sua voz se quebra, mas sinto seu desespero em cada sílaba, em cada toque de suas mãos ansiosas em mim.

Mexe com algo antigo e perdido em meu âmago.

Me perco em seu olhar, que mais do que nunca hoje parece antever tempestades.

— Alex?...

— Merda...

E sem aviso, ele abaixa a cabeça e seus lábios estão sobre os meus.

Alex Black está me beijando.

 

 

Antes

 

 

— Por que você está chorando? — Will me perguntou naquela noite quando entrou no quarto e fez sua cama no chão ao meu lado.

De nada adiantou a ordem de David para que ele não dormisse em meu quarto. Will apenas esperava todo mundo ir dormir para vir ficar ao meu lado.

Eu me virei para ele, enxugando meu rosto e tentando conter os soluços.

— Eu acho que vou ter que ir embora.

— Como assim? Embora para onde? — Will me fitou, confuso.

— Sua mãe pediu que o David me mandasse embora — expliquei por entre soluços.

— Meu pai não vai fazer isso — ele negou. — Não precisa chorar.

— Mas sua mãe pediu. Ela não gosta de mim.

Will tocou minha mão, ele não negou o que eu dizia.

Ele sabia.

Todo mundo sabia.

— Nora não gosta de mim por causa da minha mãe. Eu não entendo. Eu perguntei para o David um dia e ele disse que não era para eu me preocupar com isso, mas eu só queria entender...

— Minha mãe guarda mágoas de coisas que aconteceram antes de eu e você nascermos — Will diz baixinho, com uma sabedoria que eu ainda não conseguia acompanhar.

E de uns tempos para cá achava que Will entendia certas coisas que eu ainda não compreendia direito.

— O que é mágoa?

— É quando as pessoas não conseguem deixar os sentimentos ruins para trás. Elas não esquecem. Elas guardam esses sentimentos dentro delas que as levam a fazerem coisas que machucam.

— Por que as pessoas guardam coisas ruins dentro de si por tanto tempo, Will?

— Eu não sei. Talvez quando a gente for adulto, entenda.

— Eu não quero ser adulta.

Ele riu baixinho.

— Eu quero. Quero ser adulto e não ter que dar satisfação a ninguém. Eu vou ser poderoso e farei o que eu quiser. — Ele se ajeitou para dormir.

— Quando for adulto, eu posso morar com você?

Ele estendeu o braço e segurou minha mão.

— Claro que sim. Eu vou te proteger de tudo. Ninguém vai magoar você. Eu prometo.

 

 

 


Capítulo 11

 

 

Estaria mentindo se dissesse que não sonhei com aquele momento em meus devaneios mais íntimos. Em como seria sentir o gosto da boca de Alex sobre a minha.

Suas mãos segurando meu rosto, se embrenhando em meu cabelo, puxando enquanto um rosnado rouco acompanha aquele ataque súbito. Os lábios famintos se chocando contra os meus. Experimentando, devorando, abrindo caminho. É como se um choque de mil volts me paralisasse no lugar enquanto uma corrente elétrica transpassa minha espinha e explode em partículas coloridas do mais puro e intenso prazer que percorrem minhas veias, transformando meu sangue em fogo e minha pele em brasa.

Solto um soluço surpreso e cerro minhas pálpebras, enfraquecida, sentindo o coração de Alex bater no mesmo ritmo desesperado que o meu enquanto nossos corpos se movem em busca de atrito, meus dedos se crispam em sua camisa com força, o mantendo perto e meus quadris se insinuam para os seus, uma pulsação exigente começando a latejar entre minhas pernas.

Oh Deus, sim.

É isso.

É isso que eu queria desde que ele passou correndo por mim deixando um rastro de sua energia sublime para trás.

É assim que eu o quero, a língua buscando a minha, as mãos marcando meu pescoço, sua ereção contra meu ventre.

Eu quero Alex.

Quero sua atenção.

Seu desejo.

Sua mente.

Eu quero tudo.

Eu estive esperando por isso há muito tempo.

De repente a porta do elevador se abre e Alex se afasta de mim como se alguém o tivesse puxado para trás.

Ele me encara ofegante e horrorizado.

Eu o encaro sem fôlego e confusa.

A névoa do desejo vai clareando e caio na real.

E percebo que Alex também caiu ao meu lado.

A culpa em seu olhar toma o lugar do desejo. Quando ele passa os dedos pelos cabelos, trêmulo e decomposto.

Arrependido.

Sinto meu coração indo ao chão.

Eu fiz de novo.

Perco o ar.

A porta se movimenta para fechar de novo e Alex sai do transe e a segura.

— Vamos — ordena quase ríspido, para que eu saia.

Passo por ele sentindo o peso dos meus pecados como bolas de chumbo amarradas aos meus pés.

Alex abre a porta da suíte e entramos.

Ele está calado e taciturno.

Sinto meus olhos queimando.

— Me desculpe — sussurro com a voz fraca.

Alex se vira pra mim, aturdido.

Meus lábios tremem.

— Me desculpe, eu não queria fazer isso com você... — repito.

Não com Alex.

— Por que diabos está me pedindo desculpas? — indaga confuso.

Uma lágrima escapa dos meus olhos, eu a afasto rápido.

Quero romper em soluços, mas quero ser forte.

— Por ter me beijado. Por ter feito você perder o controle.

— Acha que a culpa é sua?

— A culpa é sempre minha.

Eu me viro e vou para o banheiro.

Vejo tudo escuro.

Fecho a porta e retiro o vestido. Começo a abrir os armários. Estou tremendo inteira.

Inferno, não tem nada ali!

Solto um rugido estrangulado, frustrado, enquanto enfio as unhas em meus braços. A dor me faz gemer e minhas pernas enfraquecem. Assim como as batidas do meu coração.

O sangue me acalma.

Volto a respirar.

Estou cansada.

Exausta.

Abro as torneiras da banheira e tiro minha roupa, entrando na água quente e abraçando meus joelhos.

Não deveria estranhar quando Alex entra no banheiro.

Não levanto a cabeça, mas escuto seus passos.

Sua mão toca a minha e ele puxa meu braço.

Sei o que está vendo.

— Por que faz isso? — Sua voz é suave. Triste. Quando repete a mesma pergunta que fez antes.

Levanto a cabeça o encarando.

Um déjà-vu da noite em seu apartamento passando por mim.

Hoje ele está usando um terno bem cortado.

O CEO Alex Black.

Nunca me pareceu tão inatingível.

— Por que, Nina? — insiste e não consigo responder.

Não quero que ele saiba o alcance da minha escuridão.

Ele se levanta e acho que vai embora. Finalmente vai me deixar.

Como todo mundo faz.

Talvez seja melhor assim. Só um deles ficou.

E foi pior do que se tivesse partido.

Mas Alex volta com algo em sua mão.

Um copo de whisky que ele me oferece e eu o pego enquanto puxa meu outro braço e passa algo sobre minhas feridas recentes. O cheiro de anticéptico enche o ar.

Alex limpa tudo, coloca um Band-Aid e finalmente solta meu braço, mas permanece ali, me observando, enquanto tomo o líquido âmbar que queima minha garganta. O ardor é bem-vindo.

Quando seu olhar aterrissa em meu rosto de novo, há uma certa fúria controlada.

— Quem te machucou?

— Sou eu que me machuco.

— Mas alguém te machucou antes.

Continuo em silêncio, sacudindo a cabeça levemente.

Sei que Alex quer insistir. Há frustração em seu rosto bonito.

Espero ele se cansar e sair, mesmo desejando que não vá.

Que fique.

Já não consigo ter forças para negar a mim mesma que preciso de sua presença.

E isso não é nada bom.

Nem pra mim.

Nem pra ele.

Passo o copo vazio para ele, sinto minhas bochechas coradas e sei que é do álcool. Alex pega a garrafa no chão e o enche de novo e desta vez, ele mesmo o toma.

— Jack te importunou? — indaga de repente.

Fico surpresa com a mudança de assunto e ao mesmo tempo aliviada.

Falar sobre Jack White é melhor do que falar de mim mesma.

— Quando me abordou no elevador disse te conhecer, perguntou se eu era o novo brinquedinho... Quem é ele de verdade? Parecia que queria te provocar, que... havia alguma rixa entre vocês, muito maior do que negócios.

— Jack foi noivo da minha irmã. Charlotte — Alex começa a dizer.

— Sua irmã que está na Europa.

Recordo-me das palavras deles durante a briga. Algo sobre Jack não superar algo que perdeu e que acusa Alex ter lhe tomado.

— Sim. Charlotte abandonou Jack no altar, há um ano.

Ah, isso é inesperado.

— Na verdade, ela não apareceu na cerimônia. Foi... traumático para todos, para dizer o mínimo. Jack e eu fomos amigos de faculdade. Éramos bons amigos. Agora... — Alex parece contrariado — ele declarou guerra.

— Por isso que ele anda estragando seu negócio.

— Sim. Ele insiste em saber onde Charlotte está.

— E ela não quer ser encontrada? — deduzo.

— Não. Jack não se conforma. Não esquece. Ele quer encontrá-la de qualquer jeito.

— Ele culpa você.

— Ele culpa todos nós. Porque mesmo não sabendo o que levou Charlotte a isso, nós a apoiamos. E o que podíamos fazer? Ela não quer vê-lo. E eu temo que Jack vá destruir o mundo até que a encontre nele.

Então era este o mistério de Jack White.

Um coração partido?

— E por que ela o deixou?

— Eu não sei. — Ele esvazia o copo e percebo que isso o frustra também.

Mas está respeitando a vontade da irmã.

Jack não está.

— Por que as pessoas se tornam nocivas umas às outras por amor? — sussurro. Eu já devia saber disso mais do que ninguém.

Mas Alex levanta o olhar e vasculha meu rosto.

Sei que ele não pode ver nada.

Ninguém vê.

— Desculpe por te beijar — ele me surpreende.

Mordo os lábios, sentindo meu coração se agitar à menção do beijo. Minha mente se volta para aquele momento. E sei que Alex está pensando no mesmo. O ar se enche de uma doce tensão. Sinto de novo a suave onda do desejo se alastrar por meus membros. Pulsar entre minhas pernas.

Pela primeira vez desde que Alex entrou no banheiro me dou conta que estou nua. Estou sob a água que mal cobre meus seios e sei que ele pode ver o que quiser.

É estranho como sinto quase como algo natural que ele me veja assim.

Porém, agora, lembrando-me de sua língua contra a minha. Sua mão puxando meu cabelo. Sua ereção contra mim. Tudo toma um significado mais sensual.

Alex estende a mão e toca meus lábios, que se entreabrem. Sei que o desejo está estampado em meus olhos.

Está evidente em meus mamilos eretos.

Na maneira que tenciono minhas coxas.

— Você é tão bonita...

— Por que me beijou? — murmuro sentindo sua mão acariciar meu rosto.

Alex é uma incógnita.

Ele nunca demonstrou sentir um desejo real por mim até então.

Ele era meu chefe. Dizia querer ser meu amigo.

E hoje, tínhamos ultrapassado esses limites.

— Eu não deveria ter te beijado.

— Por causa de Victória. — A moça ruiva me vem à mente.

— Eu disse, ela não é minha namorada.

Sua mão pousa em meu pescoço. Ele sente minha pulsação.

— Mas você faz sexo com ela.

— Eu posso te contar um segredo.

Não é uma pergunta.

Sua mão migra para minha nuca. Eu me arrepio inteira e o ar torna-se rarefeito.

Não consigo desviar o olhar dos seus, começando a ofegar.

Sacudo a cabeça em expectativa.

Sim, eu quero saber.

Quero saber tudo.

— Mas terá que me contar um seu em troca.

Sua mão afasta-se e ele senta ereto, me estudando.

Esperando minha resposta.

Eu não quero contar nenhum segredo a Alex, mesmo querendo saber os dele.

Porém, eu deveria saber que Alex exerce certo domínio sobre minhas vontades, pois me vejo sacudindo a cabeça em afirmativa.

Mesmo sabendo que isso pode ser o começo do fim.

Alex se levanta, quebrando nosso contato visual.

— Vista-se. Vamos sair.

 

Coloco o mesmo vestido e ao observar minha imagem no espelho, noto meus olhos fundos inchados de chorar e a palidez do meu rosto. Com um suspiro, pego a nécessaire e aplico um pouco de maquiagem, prendendo meus cabelos em um coque na nuca.

Calço os sapatos de salto e saio do quarto, ainda um pouco receosa sobre o que Alex pretendia.

Ele me encara com um meio sorriso enquanto caminho em sua direção um tanto tímida e há uma apreciação puramente masculina em seu olhar agora que acho que nunca tinha notado antes.

Será que estava sempre ali? E eu nunca tinha prestado atenção o suficiente? Ou ele a escondia de mim?

O que tinha mudado para que ele a deixasse à mostra agora?

Bem, algumas coisas tinham acontecido, decerto.

O beijo.

Nossa estranha conversa no banheiro.

Um segredo que ele queria me contar. Que segredos Alex poderia ter?

Não posso negar que me sinto ansiosa pelo que ele tem a dizer. Assim como estou curiosa para saber qualquer coisa que esteja relacionada a Alex. Simplesmente não posso evitar.

Isso é novo e me assusta de uma maneira que em outros tempos teria me feito fugir.

Me esconder.

Agora eu me vejo abrindo um meio sorriso que é uma cópia do de Alex quando me aproximo até que esteja na sua frente e ele segura minha mão.

Ansiosa como uma garota indo a seu primeiro baile.

Só que eu nunca fui a um baile.

De repente o resquício de uma lembrança antiga se arrasta por meus pensamentos e eu a afasto com força, mas somente aquele vislumbre indesejado encobre um pouco a alegria quase inocente que sinto naquele momento.

Recolho meu sorriso.

Desfaço o contato de nossas mãos.

Dou um passo atrás, me retraindo. A alegria dentro de mim se desfaz como fumaça.

— Onde vamos?

— Jantar — responde, simplesmente, abrindo a porta e fazendo sinal para eu passar.

Não tenta segurar minha mão.

Descemos e ele apenas coloca a mão sutilmente em minhas costas me guiando em direção ao restaurante do hotel. Quero dizer que não sinto mais fome, embora estivesse há umas boas horas sem comer, mas não falo nada. Quero acompanhá-lo. Quero saber seus segredos.

Só ainda não estou certa se quero contar os meus.

O maître parece um tanto perturbado quando nos vê entrando, mas certamente ele sabe quem Alex é, pois nos leva até uma mesa discreta sem a menor menção à confusão anterior.

O garçom se aproxima e nos traz o menu .

Observo as opções sofisticadas sem o menor interesse.

— Algum problema, Nina? — Alex indaga depois de pedir seu filé.

— Não estou... com fome.

— Mas vai comer. — Sua voz é autoritária e me dá vontade de revirar os olhos com desprezo.

O que ele ia fazer? Me obrigar a comer?

— Nina? — insiste que eu peça.

Sussurro o nome da primeira salada que encontro, entregando o menu ao garçom.

— E ela vai querer também um filé, como o meu.

Desta vez eu rolo mesmo os olhos, mas em vez de irritá-lo isso o faz rir.

— Sei que não comeu desde que saímos de Chicago. Deve estar faminta.

— Eu não costumo... comer muito.

— Devia comer. Vai me dizer que continua comendo aquele sanduíche sem graça no almoço?

— Meu sanduíche não é sem graça.

— Não é uma refeição decente. Quando voltarmos me certificarei que esteja comendo direito.

Arregalo os olhos entre indignada e aturdida.

Isso queria dizer que eu continuaria sendo sua secretária? Depois dos acontecimentos nada profissionais da noite, eu já estava pronta a ser demitida ou transferida. Como Kelly.

O garçom se aproxima trazendo um jarro com água e uma garrafa de vinho tinto.

Observo Alex fazendo toda aquela coisa pomposa de verificar o vinho, rolando a taça entre os dedos e apreciando o bouquet . Sempre vi isso em filmes e achava ridículo, mas não em Alex. Ele parece apenas mais sexy do que nunca enquanto pega sua taça e ingere um gole, com um olhar de satisfação até que o garçom é autorizado a servir nossas taças e se afasta.

Tomo um gole generoso, ciente que Alex está observando todos os meus gestos.

Levamos um tempo assim, apenas nos encarando enquanto ingerimos a bebida, perdidos no silêncio que parece sussurrar incentivos proibidos em nossos ouvidos.

Ou pelo menos é assim pra mim. Não tenho certeza se é assim para Alex.

Mas aquele olhar permanece ali. Ele não os recolheu.

Não o escondeu de mim.

Ele está me vendo.

Realmente me vendo.

Ou melhor, ele vê a Nina Giordano, a garota bonita que está sentada a sua frente. Apenas meu exterior perfeito.

A sujeira que permeia meu íntimo, ele não faz nem ideia.

Ou talvez faça, já que viu as marcas em meus braços.

— Por que estamos aqui? — questiono por fim, um tanto cansada daquela tensão.

— Primeiro a comida.

Suspiro, um tanto impaciente.

A comida não tarda a aparecer e me vejo apreciando o filé com molho béarnaise que Alex pediu pra mim.

— Eu sabia que ia gostar — diz com presunção e levanto o olhar para encontrá-lo sorrindo.

— Está realmente bom. — Dou o braço a torcer. — Mas da próxima vez, deixe que eu peça minha própria comida. Não preciso que faça isso por mim.

— Deveria ter.

— Ter o quê?

— Alguém que peça para você.

— Por quê?

— Porque, Nina Giordano, você não parece ter a menor ideia do que precisa.

Abro a boca, surpresa e atordoada com sua afirmação.

Alex continua me fitando enquanto mastiga seu suculento filé. Está sério agora. Quase desafiador enquanto sustenta meu olhar.

É neste momento que eu percebo que estava errada.

Alex Black está começando a vislumbrar o que há dentro de mim.

De repente seu celular vibra e ele o retira do bolso do paletó e sua expressão se transforma em uma carranca.

— Só pode estar de brincadeira! — ele digita algo no celular muito irritado.

— Algum problema?

— Sempre é problema! — resmunga e afasta a cadeira se levantando enquanto coloca o celular na orelha.

— Alex? — Continuo no lugar, aturdida.

— Você ficou louca? Por que não me contou quando me ligou? Já estava aqui, não é? — ele diz para seja lá quem for do outro lado. — Estou no restaurante do hotel, mas já estou saindo daqui. — Ele olha pra mim e faz um sinal para que me levante, enquanto desliga o celular.

Apresso em fazer o que pediu e Alex segura meu braço, me guiando para fora do restaurante. E estamos passando pelo saguão quando vislumbro Aria surgir de dentro de um elevador, olhando em volta.

Então era com a irmã que Alex estava falando? O que ela está fazendo aqui?

— Inferno — Alex sibila ao meu lado continuando a me guiar para fora do saguão.

Ainda olho para trás e percebo que Aria está vindo em nossa direção e ao seu lado há uma senhora loira que tenta segurá-la.

Aria solta o braço e a mulher resmunga algo e se afasta, indo sentar em uma das poltronas.

— Alex, espera! — ela grita quando estamos quase chegando nas portas de vidro.

Alex finalmente se volta e Aria se coloca na sua frente ofegante.

— Estava fugindo de mim?

— Estava sim.

— Por quê? Isso é ridículo! — Ela olha para o lado e só então parece me reconhecer. — Ah, é com ela que está? Achei que estivesse com aquela mocinha ruiva que flagrei em seu apartamento outra noite...

Alex se vira pra mim.

— Nina, por favor, me espere ali. — Ele aponta para os sofás e eu me afasto como pediu, mas ainda escuto um pedaço da discussão.

— Aria, que merda está fazendo aqui?

— Eu pedi que mamãe me acompanhasse quando fiquei sabendo que Jack veio atrás de você e...

Deixo meu olhar recair na mulher elegante sentada nas poltronas para onde estou indo agora. Então aquela senhora era a mãe de Alex?

— Que porra está pensando? — Alex dardeja.

— Ele estava furioso quando eu não quis conversar com ele quando nos encontramos naquela festa! E eu sabia que ele ia tentar te encurralar aqui e...

— E você achou uma boa ideia me seguir até aqui?

Paro de escutar o que estão dizendo e me sento há duas poltronas da mulher.

Ela me estuda com curiosidade. Mantenho a cabeça baixa, sem saber como agir.

— Você é a secretária de Alex, presumo? — ela chama minha atenção e eu a encaro.

— Sim, senhora.

— Nina, é esse seu nome, não? Tenho ouvido falar de você. Eu sou Helena, Nina. — Ela sorri de forma simpática e olha em direção a Aria e Alex que discutem de forma exaltada. — Ah, nada como uma discussão entre irmãos cabeças-duras! — Suspira e se levanta. — Acho melhor eu acabar logo com isso.

Ela vai em direção a Alex e Aria e em poucas palavras eles calam e a mulher segura o braço de Aria a levando para fora do hotel.

Alex vem em minha direção, ainda alterado.

— Tudo bem? — questiono incerta me levantando.

— Agora sim — resmunga e para minha surpresa segura minha mão e sai me puxando para fora do saguão.

— Onde vamos?

Um táxi está estacionado e o porteiro abre a porta para que entremos.

— Eu disse que queria te contar um segredo.

Não consigo ver sua face dentro do carro escuro, mas estremeço quando seus dedos acariciam os meus.

— Sua irmã...

— Não quero falar sobre ela. Não quero falar sobre minha fodida família. Não hoje. Não aqui com você.

Permanecemos em silêncio por todo o percurso pelas ruas da cidade até que, quando para o carro, estamos em frente a um local que parece ser um clube noturno.

Saltamos e Alex segura minha mão me guiando para a porta que o segurança abre para nós.

Seguimos por um corredor escuro e ao longe escuto uma batida hipnótica. Quando o corredor termina, pisco meus olhos para se acostumarem à pouca luz e realmente estamos num clube noturno. Mas é... diferente. Posso sentir a atmosfera opressiva e sedutora.

Alex me guia até uma mesa.

O local que estamos é em um canto e há apenas um sofá em forma de U de veludo. Mordo os lábios enquanto sento-me e Alex se acomoda ao meu lado. Perto demais para minha paz.

Uma moça vestida de couro preto se aproxima. Deixo Alex pedir nossas bebidas e meus olhos são atraídos por algo no pescoço do traje sensual dela.

Eu lembro que já vi algo parecido. No pescoço de Victória.

E de repente algo que Jack White disse volta a minha mente.

“Alex já te mostrou sua coleção de chicote?”

Contemplo o ambiente em volta.

Paredes pintadas de uma cor escura, luzes de várias cores profundas, cantos cheios de sombra, mal dá para distinguir as pessoas a nossa volta. Olhando com mais atenção, distingo em todo lugar, contra as paredes, alguns equipamentos estranhos.

Parece uma sala de tortura.

Encaro Alex, uma pergunta muda no olhar.

— Eu disse que Victoria não era minha namorada — ele começa a dizer. — Eu a conheci em um clube como este.

— Um clube como este?

— Um clube onde as pessoas têm gostos... diferentes.

Ele faz uma pausa me encarando intensamente.

— Eu e Victoria temos uma espécie de... acordo consensual. Ela gosta de ser punida. E eu gosto de punir.

Então eu entendo.

A menção ao chicote.

Jack sabia.

Sinto dificuldade de respirar, enquanto Alex continua me encarando. Como se me desafiasse.

— É este seu segredo? — murmuro.

— É assim que eu faço sexo. É tudo um jogo, Nina.

— Por que está me contando isso?

Ele se inclina até que seus olhos tempestuosos estejam muito próximos do meu. Seu hálito quente banhando meu rosto.

— Por que estou cansado de dizer a mim mesmo que não quero você e preciso que me impeça de tomar o que eu quero tomar de você desde a primeira vez que a vi ajoelhada na minha frente. Porque eu não posso, nunca, te machucar. E a cada vez que eu olho em seus olhos, é como se estivesse esperando exatamente isso de mim. E eu estou em um inferno desde então.

 

 

Antes

 

— Por que está triste? — David perguntou naquela tarde quando passeamos pelo píer.

Ele comprou um sorvete para mim, sorriu e tentou me fazer sorrir, mas eu não queria sorrir hoje.

Eu sentia uma dor na boca do meu estômago. Medo.

Medo do que Nora disse ontem à noite.

Medo de que, apesar das palavras encorajadoras de Will, David fizesse o que ela queria e me levasse embora.

— Estou com medo — sussurrei e David parou e me encarou.

— Medo do que, Nina?

— Eu ouvi Nora pedindo que se livrasse de mim. — Minha voz se embargou. — Eu não quero ir embora, David, quero ficar com você. Com Will. — E até com a Nora, queria acrescentar. Apesar de ela não gostar de mim, eu ainda tinha esperança que um dia isso mudasse.

Eu queria que ela gostasse de mim.

— Ei, não chora. — Ele tocou meu rosto e enxugou as lágrimas que molhavam minha bochecha enquanto se abaixava até que seus olhos estivessem na mesma altura que os meus.

— Você vai me mandar embora?

— Não, claro que não! — Havia convicção em sua voz. Até certa ferocidade. — Escuta bem, Nina. Eu te prometo. Ninguém nunca vai me fazer te mandar embora. Você sempre estará comigo. Para sempre. Ninguém vai nos separar, entendeu?

Sacudi a cabeça em afirmativa. Tentando sentir alívio com a promessa de David.

— Agora pare de chorar. Vamos pra casa. Tudo vai ficar bem, eu prometo a você.

Ele apertou minha mão e continuamos andando em direção ao carro.

Apertei sua mão de volta, querendo que ele nunca soltasse. Que mantivesse sua promessa, mas não sabia por que ainda sentia a dor na boca do estômago.

 


Capítulo 12

 

 

Perco o fôlego por alguns momentos, presa nas palavras de Alex, que flutuam entre nós e entram em meus ouvidos, sendo decodificadas em slow motion por meu cérebro assoberbado com todas aquelas informações que foram despejadas sobre mim.

Suas palavras se repetem em minha mente, como num looping .

Infinitas vezes.

“Estou cansado de dizer a mim mesmo que não quero você e preciso que me impeça de tomar o que eu quero tomar de você desde a primeira vez que a vi ajoelhada na minha frente. Porque eu não posso, nunca, te machucar. E a cada vez que eu olho em seus olhos, é como se estivesse esperando exatamente isso de mim.”

Então, pouco a pouco, começam a fazer algum sentido.

E sinto-me à beira de um precipício quando me dou conta do que significa.

Alex acabou de dizer que me quer?

“Desde a primeira vez que a vi ajoelhada.”

Puxo na memória quando foi que isso ocorreu e me vem à mente o meu segundo dia na Black, quando ele entrou na sala e eu estava ajoelhada no chão catando a bagunça que Kelly espalhou com sua fúria ciumenta.

Oh. Meu. Deus.

“Ela gosta de ser punida. E eu gosto de punir.”

Ainda não consigo entender bem todas as implicações daquela sentença e uma imagem se forma em minha mente. Victoria com seus trajes de couro ajoelhada na frente de Alex, que desfere um golpe em sua pele com um... chicote?

Um daqueles que Jack insinuou que ele tinha uma coleção.

E então, a imagem muda.

Já não é Victoria ali.

Sou eu.

Algo estala dentro de mim. Como se ouvisse o golpe. Sentisse o efeito.

A dor.

O prazer.

Um misto de medo e ansiedade se enroscam dentro de mim, me deixando tonta, faz meu coração disparar no peito.

Alex continua com os olhos fixos em mim, quentes, intensos.

Quase desesperados.

Sustento aquele olhar, tentando, mais do que nunca, juntar as peças daquele enigma que é Alex Black.

— Está com medo? — ele finalmente questiona baixo, quase um rosnado.

Há uma certa raiva em sua voz. Um desafio.

Um resquício de pesar.

“ Eu estou com medo? ”, indago-me.

“Deveria.”, uma voz sensata sussurra dentro de mim.

A voz da Nina Giordano que anseia por ser normal.

Não há nada de normal no que Alex acabou de me confessar, não porque não seja comum pessoas gostarem de fazer sexo de maneiras diferentes, realizar fantasias ou seja lá o que for.

Eu não sou tão idiota assim que não saiba disso.

Mas quem está me dizendo é Alex Black.

Meu chefe.

E ele não só acabou de confessar que gosta de punir sua amante – consensualmente – como sugeriu que quer fazer o mesmo comigo.

“E a cada vez que eu olho em seus olhos, é como se estivesse esperando exatamente isso de mim.”

É isso.

Como eu intuí, Alex não é tão indiferente ao que acontece em meu íntimo. As questões inconfessáveis que não sei explicar nem a mim mesma.

A suave ameaça velada de sua voz que me controlava sem eu nem mesmo perceber.

A vontade de me submeter seja lá ao que ele pedir. Ordenar.

Eu ando pelo mundo há tempos sem me encaixar em lugar nenhum. Sem ninguém me ver, porque eu não tinha a menor vontade de ser vista.

Eu estava bem, escondida sob os escombros do meu passado.

Punindo a mim mesma em meu mundinho escuro.

Agora, a verdade finalmente se descortina em minha mente: a necessidade que eu sinto de ser punida abraça a vontade de Alex de punir.

Essa percepção bate em mim e rouba meu ar de novo, um vislumbre do que poderia ser.

Do que eu e Alex poderíamos ser.

Eu poderia ser como Victoria.

Poderia?

Quase tenho medo da alegria que sinto com este pequeno desejo proibido, mas então as últimas palavras de Alex invadem meu desvario.

“Preciso que me impeça de tomar o que eu quero tomar de você.

Eu não posso, nunca, te machucar.”

O que ele quer dizer?

— O que quis dizer com não poder me machucar? — expresso minha confusão.

Alex ri. Um riso sem o menor humor me fitando com assombro.

— É sobre isso que quer falar? Não é óbvio?

— Você pode ser tudo, menos óbvio. Eu nunca... entendo você. Disse que queria ser meu amigo. E eu não entendi por quê.

— Eu fui sincero — insiste quase com fervor. Como se fosse importante que eu acreditasse. — E por isso que não posso te submeter a isso.

— Mas você quer. — Não é uma pergunta.

O fervor em seu olhar é resposta suficiente.

Faz minha pulsação acelerar.

Me faz desejar quebrar todas as barreiras que Alex está tentando erguer entre nós.

Isso é novo.

Eu nunca quis ninguém assim. Não de verdade. Não para lutar.

Eu apenas... aceitava.

E esperava acabar. Desejava que acabasse.

Só que pela primeira vez algo me parece realmente desejável.

Possível.

Ele ergue a mão e toca meu rosto. Estremeço.

— Eu disse a você que seríamos amigos, eu não queria desejar você.

Não estou preparada para o golpe que aquela confissão me causa. Eu já tinha ouvido aquilo antes. Já tinha doído antes.

Mas com Alex tem um efeito mais devastador.

— Por que me trouxe aqui?

— Para que entendesse quem eu sou.

— Um segredo.

— Não é bem um segredo. É apenas algo que mantenho com discrição. Não interessa a ninguém.

— Mas contou a mim.

— Eu contei a você para que confiasse em mim.

E contasse um segredo a ele, recordo-me.

E simples assim, ele está jogando o fato de que há poucos minutos acabou de confessar o que quer fazer comigo para debaixo do tapete.

E voltou os holofotes para mim.

De alguma maneira sinto que está me manipulando, está puxando as cordas para que eu diga o que ele quer saber e só não entendo por que isso lhe interessa.

De repente sinto-me sufocada.

— Podemos ir embora?

Alex quer dizer não. Ele quer insistir.

Quer que eu cumpra minha parte no trato. Porém, ele se levanta e me leva junto. Segura meu braço enquanto saímos. O segurança diz que vai pedir um táxi. A rua está fria e estremeço, maldizendo não ter colocado um casaco por cima do vestido. Alex tira seu paletó e põe sobre meus ombros.

— Vista, vai congelar.

A cena me lembra o dia em que ele colocou a capa de chuva em mim. Parece que foi há tanto tempo e não há poucos dias.

— Obrigada — sussurro.

O cheiro impregnado no tecido é puro Alex e golpeia meus sentidos.

Deixa-me ouriçada e confortável ao mesmo tempo.

É assim que Alex me faz sentir.

Como se pudesse me proteger do mundo em um momento e em outro me jogar nas chamas.

Um táxi para no meio-fio e Alex abre a porta para que eu entre e se acomoda ao meu lado, dando o endereço do hotel.

Seguimos em silêncio por alguns minutos e quase lamento o fim daquela noite.

Não quero que termine.

Alex jogou uma bomba em meu colo e agora seguiríamos como se nada tivesse acontecido?

Recordo do que senti quando estava na sua banheira quando estive na sua casa. De como vislumbrei algo que não sabia o que era, mas que sentia que poderia ser incrível.

Porém, Alex não pensa do mesmo jeito. E outra percepção daquele dia volta a minha mente.

— Você pediu que eu fosse até sua casa. Levar aquele documento, quando nem precisava. Victoria estaria lá. Você sabia. Você queria que eu visse, não é?

— Sim — ele não nega.

Lembro-me de achar que ele sabia como eu me sentia, da atração que eu não conseguia negar.

Agora me pergunto se foi só isso?

Ele queria que eu de alguma maneira percebesse o tipo de relacionamento que ele tinha com Victoria e que eu saísse correndo?

— Você teme machucar?

— Claro que sim.

— Não sabe que ninguém pode me machucar mais do que eu mesma? — murmuro.

Sua mão procura a minha e ele entrelaça os dedos nos meus.

— Você queria um segredo — sussurro, apertando seus dedos. — Toda vez que um homem me deseja... Que ele toca em mim de alguma forma... E eu o toco... Eu sinto vontade de me machucar — confesso. — Eu me machuco.

— Por quê?

— Porque eu mereço ser punida.

Fixo meu olhar em sua figura difusa pela pouca luz do carro, desejando ver seus olhos. Desejando que ele possa ver os meus.

Quero que entenda que talvez ele seja o que eu preciso.

Mas Alex não fala nada.

Ele não aceita o que estou oferecendo. Talvez este desejo que ele sinta não seja o suficiente para aceitar toda a bagunça que eu sou.

Sinto vontade de chorar.

O carro para e saltamos em frente ao hotel.

Alex não segura minha mão enquanto avançamos pelo saguão até o elevador. Subimos em um silêncio quase opressor. Lembro-me de sua boca sobre a minha exatamente ali. Cerro as pálpebras deixando que a lembrança de seu gosto, de seu toque, invada meus sentidos.

O desejo vibra em minha pele, em meu peito.

O elevador chega ao andar e abro os olhos para encontrar os de Alex fixos em mim. E o desejo que vejo em seu olhar faz eco com o meu.

Saímos do elevador em direção ao quarto e meu coração está batendo de forma diferente. No ritmo de um prelúdio estranho.

O começo.

O fim.

Tudo em uma noite só.

Alex abre a porta do quarto e eu entro, mas ao olhar para trás, ele continua no mesmo lugar .

Longe de mim. Como se temesse ir em frente.

A mão nos bolsos. Posso sentir sua tensão. Seu maxilar está travado.

— Estou tão cansado de dizer a mim mesmo que não quero você — ele repete as mesmas palavras que me surpreenderam no clube.

Perco o ar.

No entanto uma estranha calma toma conta de mim quando caminho para dentro do quarto e retiro o paletó, o jogando em um sofá e viro-me, retirando o vestido no processo, que cai aos meus pés me deixando apenas de lingerie preta.

— Talvez eu também esteja cansada de dizer a mim mesma que não quero você — confesso por fim.

Algo brilha nos olhos de Alex.

Fome.

— Isso não é uma boa ideia, Nina.

— Por que eu sou sua secretária? — arrisco, o que sei que é uma resposta, mas não é a única.

Ele caminha até mim, segura meu braço, deixando minhas marcas visíveis.

Nunca me pareceram tão feias.

Tão vergonhosas.

Uma evidência do que eu sou.

Sei que deveria pedir que Alex fique longe de mim, mas o desejo que sinto pelo que ele pode me dar suplanta qualquer resquício de preservação.

A dele ou a minha.

— Não quero ser mais um dos homens que obrigam você a fazer isso.

— Mas não é o que você faz? Impinge dor?

— Apenas para o prazer, Nina...

Sua voz sai carregada de sensualidade, esbarra na minha pele como brasa. Queimando.

Uma pulsação ansiosa começa a latejar em meu clitóris.

O ar tornando-se rarefeito.

As mãos de Alex estão subindo por meu braço, leve como pluma, seu olhar intenso encontra o meu.

As mãos quentes tocam minha garganta, se infiltram em meus cabelos, soltando o coque e os fios caem soltos por minhas costas.

Eu mal respiro. Meu coração batendo com fúria contra as costelas é só o que eu escuto, enquanto sinto sua cabeça se inclinando para perto, sustento seu olhar, incapaz de fugir.

Entreabro os lábios e sinto seu hálito em minha língua.

Whisky e Alex.

Ele leva uma mão até meu peito.

— Seu coração está batendo forte.

— Não posso evitar.

— Está com medo?

— Tenho medo de você parar...

— Não tem medo que eu te machuque?

— Vai me machucar? — sussurro, fechando os olhos, quando sinto seus lábios roçando minha têmpora, deslizando por minhas pálpebras fechadas, minha bochecha.

Respiro por arquejos, esperando seu beijo.

Sua mão em meu peito se infiltra dentro do meu sutiã sem aviso. Um desejo agudo, líquido e fumegante arde profundamente no meu ventre.

— Não — sua resposta sai contra meus lábios.

Respiro Alex.

— Por quê?

— Eu não quero.

— Todos me machucam de uma maneira ou outra. — Abro os olhos.

— Até você mesma. — Ele acaricia meu rosto com ternura.

— Nenhum desejo fica impune.

— Essa noite... — Ele me vira e desfaz o fecho do meu sutiã, o retirando. — Só essa noite... — Suas mãos cingem meus seios, me arrepiando. — Não haverá punição.... — Seus lábios estão em minha garganta. — Para nem um de nós...

Fecho os olhos, meu estômago sendo sugado quando uma mão de Alex desliza para baixo.

— Apenas vou tocar você... — Seus dedos escorregam para dentro da minha calcinha e soluço. — Sentir como é ter você... — Ele me acaricia lentamente, sentindo meu desejo.

Estou úmida por ele, pulsando por ele.

— E depois? — Consigo dizer, mesmo já sentindo que estou deslizando para uma bem-vinda inconsciência, os dedos de Alex me torturando com destreza.

— E depois nada.

— Serei apenas sua secretária?

— Você é minha amiga, Nina.

Quero gritar que não é o que eu quero, mas Alex escolhe aquele momento, para me virar e mergulhar a língua em minha boca, devorando meus lábios em um beijo que fala de desejos inconfessáveis.

É doce.

É quase como se ele não quisesse mesmo me machucar, quando eu sei que no fundo, é o que ele precisa.

E é o que eu preciso também.

Sem pensar mordo seu lábio e ele geme apartando a boca da minha e me encarando com os olhos semicerrados e a respiração rápida. Posso sentir sua ereção nas minhas costas, roçando em mim.

— Não seja gentil comigo — repito o que lhe disse em seu apartamento.

Noto o desejo cru em seu olhar.

A vontade que ele refreia, porque acha que eu mereço.

Mas eu não mereço.

Ele volta a me beijar desta vez com mais urgência.

Derreto lentamente, gemendo contra seus lábios e mal vejo quando Alex me coloca sobre a cama, apenas sinto os lençóis frios contra minhas costas e abro os olhos, para vê-lo pairando sobre mim, enquanto retira suas roupas.

Oh Deus. Isso.

Eu quero esse cara.

Tanto que chega a doer.

Mas não é uma dor como as outras.

Como das outras vezes em que eu ousei desejar. Ousei querer.

Era uma dor que tinha a ver com sua perfeição que ia se desnudando a minha frente. O peito largo, bronzeado, a barriga perfeita, o caminho de pelos que desaparecem dentro da cueca boxer que não demora a ser abaixada para que eu contemple Alex nu em toda sua glória máscula.

Sua ereção se ergue exigente enquanto ele puxa minha calcinha para baixo devagar, apreciando o que vai sendo revelado.

Agora não há mais segredo entre nossos corpos e nos contemplamos com avidez.

Ajoelhado na minha frente, Alex apenas me devora com o olhar. Faço o mesmo com ele e meus olhos são atraídos para algo escrito em sua costela. Uma tatuagem que nunca tinha reparado.

Ergo-me um pouco e toco o escrito.

— Esses desejos violentos. Tem fins violentos.

Leio em voz alta.

— O que significa?

— Uma tragédia. — Sua voz é sombria enquanto deixa meus dedos percorrerem sua pele e o encaro.

— Isso não vai acabar bem, não é?

— Não vai nem começar antes que eu permita que acabe mal.

— Vai parar? — expresso meu medo.

— Fomos longe demais para que eu pare agora...

Por um instante enxergo a hesitação em seu olhar.

Estaria mentindo se dissesse que sei o que estou fazendo.

Eu já estive com homens antes. Homens que eu quis, homens que eu atraí mesmo sabendo que eles se perderiam em mim.

Na minha escuridão.

Mas eu os consumia mesmo assim, incapaz de parar. Tendo apenas a culpa e a dor como companhia depois, punindo a mim mesma por meus delitos.

E houve os homens que não quis, mas me quiseram a ponto de não importar minha vontade. Para estes, eu aprendi a ser indiferente. Em deixar minha mente escorregar para aquele lugar onde não existia nada. Apenas dava o que eles queriam para que me deixassem ir.

A culpa vinha depois do mesmo jeito.

E agora havia Alex.

E me sinto açoitada pela culpa, mesmo antes de ele ceder, mas não consigo parar. Há algo em Alex que eu almejo mais que tudo.

Como se algo dentro de mim, ansiasse por algo que só tem dentro dele.

Talvez tenha a ver com o fato de ele confessar como lida com seus desejos.

Com violência.

Mesmo agora ele hesitando. Algo estranho brilha em seu olhar que paira sobre os meus.

Algo suave.

Quase terno.

Faz meu peito se apertar. Uma parte de mim, uma parte que eu nem sabia que existia ainda, quer que ele não pare. Que deixe aquele sentimento que eu apenas vislumbro em seu olhar, transbordar.

Mas há a outra parte. A Nina má. A Nina que sabe que não pode ter nada de bom. Que corrompe tudo o que toca. Que precisa ser punida.

E Alex disse que é disso que ele gosta. É assim que ele sente prazer.

Eu quero saber como é isso.

Não quero a gentileza de Alex.

Quero sua parte ruim.

Sua violência.

— Se essa noite é tudo o que teremos. Apenas me mostre... Mostre-me sua violência, Alex — imploro.

O brilho em seu olhar se transforma em fogo com minhas palavras.

— Por favor... — sussurro, me deitando.

Oferecendo-me. Submetendo-me.

Alex pega sua gravata.

— Coloque os pulsos para trás.

Ah. Meu. Deus.

Faço o que ele pediu.

E sinto meus pulsos sendo presos na cama de coluna. Percebo seu olhar escurecer quando acaricia meus machucados.

— Eu vou te mostrar, Nina, mas terá que me prometer que depois... Não vai se machucar.

Ele fixa o olhar em mim.

Não sei como prometer. Não sei como vou me sentir depois.

Se vou sentir aquela culpa que é mais forte do que eu como das outras vezes. É o que eu faço.

É o que eu sou.

— Prometa, Nina. — Ele acaricia meu rosto.

Sua voz rouca de desejo.

Baixa e autoritária.

Dominadora.

Fecho os olhos e assinto, sem conseguir falar.

Espero não estar mentindo, mas só quero que ele continue.

Então, ele pega sua camisa e passa sobre meus olhos, me vendando.

— Respira — ordena e percebo que estava segurando a respiração. — Você é linda assim...

Escuto-o se mexer. Respirar. Meus sentidos aguçados por estar privada da visão.

É angustiante.

Mas não quero parar.

Seus dedos tocam meus lábios, se insinuam para dentro da minha boca.

— Chupe, Nina. — Ele enfia o dedo na minha boca.

Eu sinto seu gosto.

— Toda vez que morde esses lábios eu desejo saber como seria sentir meu pau entre eles.

Ah caramba.

Suas palavras fazem um estrago em meu ventre e me mexo, ansiosa, apertando as coxas uma na outra, sinto minha umidade escorrendo entre elas.

Nunca estive tão excitada na minha vida.

Alex retira o dedos da minha boca e sem aviso coloca dentro de mim.

Arqueio as costas com um grito abafado, enquanto ele bombeia mais um dedo, num vai e vem alucinante que faz meu ventre se contrair em bem-vindos espasmos de prazer.

— Você quer isso? — indaga em meu ouvido.

— Sim... — ele está me segurando à beira de um precipício e mexo os quadris de encontro a seus dedos. — por favor...

— Isso não é bom, Nina?

— Sim...

— Você confia em mim?

Confio?

— Responde — ordena.

— Sim...

— Por que está aqui, Nina?

— Porque eu quero ser punida por você.

— Por quê?

— Porque eu preciso...

Meu coração bate desordenado e minha mente está embaralhada. Estou saturada de prazer e da presença de Alex.

É bom como nunca foi.

Alex está me consumindo e não quero que pare.

Lá no fundo, eu sei que o obriguei a isso. Eu sou uma pessoa horrível e é por este motivo que eu tenho que me punir depois.

De repente, ele tira os dedos de dentro de mim os enterra em meus quadris, me virando e desferindo um tapa em meu traseiro.

Arde e eu arfo de susto.

— Ele se inclina e beija a base da minha espinha, sobe com a língua serpenteado por minhas costas e morde meu ombro, enquanto puxa meu cabelo.

— É isso o que você quer? — indaga com a voz dura, porém baixa.

Ah sim, por favor.

Ele ergue o tecido que cobre meus olhos.

— Abra os olhos.

Faço o que pediu.

Ele está pairando acima de mim. Sua mão entra em meu campo de visão e ele mostra um cinto.

Puta que pariu...

— O que você quer que eu faça?

Engulo em seco, tentando achar minhas palavras. Meus lábios estão secos.

— Eu quero... quero... quero que me bata.

— Com isso?

— Sim... — imploro.

O medo e o anseio se digladiam dentro de mim.

Ele volta a cobrir meu rosto.

— Eu vou para o inferno por isso.

Tenho a impressão de ouvi-lo dizer e sinto um golpe em minhas costas. Não é sua mão.

Acho que é seu cinto.

Dói.

Mas eu quero mais.

— Sim... — soluço, ansiando por qualquer coisa que ele quisesse me dar.

— Sim o quê? — Ele defere de novo, desta vez em minha bunda e eu busco por uma resposta em minha mente enevoada, até que ela se clareia.

— Sim, senhor...

— Porra — ele grunhe erguendo meus quadris e eu tenho que me segurar em meus cotovelos, sentindo o golpe de novo, desta vez entre minhas pernas.

Eu grito, sentindo a dor se alastrar por minha pele, quando ele defere outro golpe em minha bunda.

Alex enfia a mão em meio a minhas pernas e me acaricia ali, o polegar circula meu clitóris e ele dá um beliscão. Gemidos de prazer e dor escapam dos meus lábios e sinto seus lábios onde ele bateu, nas minhas costas, na minha bunda, enquanto seus dedos castigam meu clitóris de forma deliciosa.

É um tormento erótico e estou apenas um pouco ciente do que está acontecendo agora, meu corpo tomado por sensações, suado e entregue.

De súbito, Alex está me virando de novo e cobre meu corpo com o dele, os lábios voltando a devorar os meus com força.

Seu peso é bem-vindo.

Retribuo seus beijos com vontade, com fome. Minhas mãos puxando minhas amarras, desejando tocá-lo, como ele me toca, serpenteando meu corpo para sentir melhor o dele. Sinto uma urgência premente entre minhas pernas e de repente ele está retirando a restrição dos meus olhos e pisco, na suave claridade do abajur que está ligado ao lado da cama, para encontrar Alex ajoelhado entre meus joelhos, colocando um preservativo.

E então, ele está pairando sobre mim, o olhar fixo em meu rosto, enquanto abaixa o corpo. Eu o sinto me penetrando devagar e abro a boca, sem ar, um grito mudo em minha garganta, enquanto Alex me preenche sem tirar os olhos dos meus.

Por um momento, permanecemos assim, apenas apreciando a união de nossos corpos. Eu o sinto inteiro dentro de mim e é melhor do que qualquer fantasia.

É sublime.

Ele toca meu rosto e enxuga uma lágrima que escapa dos meus olhos.

— Nina... — Sua voz mexe em algo escondido dentro de mim.

Faz meu peito apertar.

Então ele se move, devagar, com cuidado.

Sinto a dor entre minhas pernas.

Onde ele me bateu.

E isso se mistura com o prazer que ele arranca de mim.

Ele está arrancando tudo de mim.

Está levando tudo. Cada gemido. Cada suspiro. Cada pontada de prazer que vibra em meu sexo.

É tudo para ele.

Seu olhar não desgruda do meu, enquanto arremete de novo e de novo.

Meu corpo se adequando ao dele, se movendo com o dele. Ergo minhas pernas para abraçá-lo e ele ir ainda mais fundo. Nós dois gememos juntos.

Aumenta o ritmo. Arquejo, soluçando e fechando os olhos, perdida de novo naquele anseio. É demais. É tudo.

Sinto como se meu peito fosse explodir.

Alex grunhe, entregando-se também ao seu prazer, escuto sua respiração forte em meu ouvido, seus dedos desfazem as amarras em meu pulso e eu passo meus braços por suas costas, enterrando as unhas em sua pele, gemendo cada vez mais alto enquanto Alex mete cada vez mais fundo, mas rápido. E somos uma confusão de suor, gemidos e odores quando é demais para aguentar as sensações sendo construídas em meu ventre e estremeço em um orgasmo intenso, gozando forte, agarrada a Alex que também tenciona em cima de mim, os dedos em garras em meus quadris enquanto geme meu nome contra meus lábios.

Meu nome em sua boca enquanto ele goza é o som mais lindo do mundo e eu desejo ouvi-lo para sempre.

 

Não sei quanto tempo demora a voltar à realidade. Exausta e lânguida.

Alex se move para o lado e estamos deitados olhando o teto enquanto nossas respirações voltam ao normal.

Sinto os resquícios de prazer ainda fazendo minha pele vibrar.

Sinto a dor onde Alex me bateu.

Sinto uma paz em meu peito que nunca senti antes.

Sinto meu coração apertado por atinar que não vai acontecer de novo.

 

Alex se move ao meu lado e sai da cama.

Não sei o que fazer, ainda com minha mente enevoada.

Porém, Alex retorna rápido e acredito que foi se livrar do preservativo, mas minhas esperanças duram pouco quando ele apenas me cobre com o lençol e pega suas roupas espalhadas pela cama – e seu cinto.

Seu olhar está fugindo do meu. E uma lança de dor se abate em mim quando percebo que ele está bravo comigo.

O que eu esperava?

Fui eu que forcei aquela situação quando ele disse que desejava ser apenas meu amigo.

Quando trabalhávamos juntos.

Seguro o lençol entre os dedos até minhas juntas ficarem brancas.

Alex está colocando a calça.

Estou caindo na escuridão de novo.

Ele para e finalmente olha pra mim. Senta ao lado da cama e coloca uma mecha do meu cabelo atrás da minha orelha.

— Você entende que isso não pode mais acontecer, não é?

Sacudo a cabeça em afirmativa.

— Eu queria... — Ele respira fundo. — Inferno, eu preciso de uma bebida.

Ele se levanta.

— Durma.

Ele sai do quarto fechando a porta atrás de si.

Ainda continuo ali alguns instantes, tentando segurar as lágrimas.

Até que é demais para suportar e jogando os lençóis para o lado, corro para o banheiro.

Estou no banheiro de Alex, e fuço em sua nécessaire até achar o barbeador.

Sento no canto da banheira e deixo a lâmina correr em minha pele até o sangue aparecer.

Dói.

Dói mais do que saber que nunca mais ficarei com Alex.

 

Volto para minha cama um tempo depois mais calma.

Um tanto entorpecida.

Deito-me sob os lençóis e lembro que prometi a Alex que não ia fazer o que acabei de fazer.

Mas ele não está aqui para saber.

Eles nunca ficam para ver.

No fim, Alex não é diferente. Ele tomou o que quis. O que eu ofereci.

Apenas uma amostra do que poderia ser. Acenou com algo que eu nem sabia que queria. Que precisava. E partiu.

Me deixou sozinha.

Eu deveria estar acostumada.

Eles vão embora, dizem que vão voltar.

Que vão nos encontrar.

Mas nunca encontram.

 

 

Antes

 

 

Quando chegamos em casa naquela tarde tinha um carro grande parado à porta.

Um homem de uniforme carregava duas malas para fora da casa e Nora saiu em seguida.

— Onde a Nora vai, David? — perguntei.

Mas David não pareceu surpreso.

Ela parou na sua frente. Seus olhos estavam inchados, como se tivesse chorado.

— Não deveria ser assim — David disse.

— E seria como? Você fez a sua escolha. Nunca esqueça disso! Escolheu ficar com essa menina e nos deixar ir. Eu e seu filho!

O quê?

De repente eu entendi.

Nora estava indo embora.

E Will também?

David passou por ela e entrou na casa sem dizer nada.

Will estava na porta e num gesto inédito, eu o vi abraçar Will.

Senti meu coração falhar. Will não podia ir embora!

Olhei pra Nora, que enxugava uma lágrima enquanto acendia um cigarro.

— Nora, por que você vai embora?

— Ainda pergunta? É tudo culpa sua! É sempre culpa sua! Uma cria ruim de uma mulher ruim!

— Nora... — Meu queixo tremeu. — Por favor, não vá embora... Não leva Wil.

— Vou embora sim. E vou levar meu filho! Antes que você faça com ele o mesmo que fez com o pai. Já basta o David! Meu filho não perderei também!

— Então... me leva junto? — Solucei abraçando sua cintura. Não conseguia ficar ali sem Will. — Eu vou ser boazinha, por favor...

Ela segurou meus braços o soltando dela.

— Vamos embora, Will! — gritou se afastando para o carro.

Corri para Will e o abracei.

— Will, não vai...

Ele me abraçou de volta. Estava chorando também quando me encarou.

— Eu vou voltar.

— Mas se eu não estiver aqui?...

— Eu vou te encontrar. Eu sempre vou te encontrar.

— Já chega disso! — Nora puxou Will, o levando para o carro.

Eu ainda tentei segurá-lo, chorando, mas David me puxou para trás, me impedindo de ir atrás.

Eu gritava enquanto Nora empurrava Will para dentro do carro e entrava atrás.

Meu coração se partindo em mil pedaços.

David me abraçou, me consolando.

— Tudo bem, criança. Vai ficar tudo bem.

— Não vai!

Eu me desvencilhei dele e corri para meu quarto, trancando a porta.

Deitei encolhida na minha cama, chorando.

Ouvia David batendo e pedindo para eu abrir, mas eu não me mexi.

Chorei até não haver mais lágrimas então vi um papel saindo debaixo do meu travesseiro.

Eu o peguei e abri.

Era um bilhete com a letra de Will.

 

Nina

 

Eu tenho que ir embora com a minha mãe.

Eu a odeio por me obrigar, mas eu prometo que nunca vou te esquecer. Nós somos amigos para sempre.

Eu prometo que quando for grande, eu vou voltar. Eu vou te encontrar.

 

Com amor

Will

 

Abracei o bilhete, sentindo a dor no meu coração diminuir um pouco.

David bateu na porta de novo.

— Nina, abre essa porta agora. — Sua voz estava brava.

Eu arrastei meus pés até a porta e abri.

— Nunca mais faça isso! — Sua voz estava furiosa e nunca o tinha visto assim.

Eu me encolhi, assustada, mas ele pareceu se arrepender e segurando minha mão me levou até a cama e nos sentamos.

— Sei que está triste pelo que aconteceu. Eu também estou, mas vamos ficar bem, ok? Eu não te prometi que ninguém ia te levar embora? Estou cumprindo minha promessa. Eu nunca vou embora.

Eu funguei e deitei a cabeça no peito de David. Ele era tudo o que eu tinha agora. A única pessoa que me amava de verdade, porque Will tinha ido embora.

E meus pais tinham morrido há tanto tempo.

— Agora olhe pra mim — ele segurou meu queixo — nunca mais tranque sua porta pra mim, ou me desobedeça. Eu não quero ficar bravo ou gritar com você. Não me obrigue a isso.

Sacudi a cabeça em afirmativa.

— Não vou te deixar bravo, David, prometo.

— Boa menina. Agora somos só nós dois. Só eu e você, Nina. Tudo vai ficar bem. Ninguém vai nos separar. Nunca.

 

 

 


Epílogo

 

Alex

 

Eu não sei porque achei que ela ainda estaria como eu a deixei quando volto para o quarto horas depois, mas a bagunça dos lençóis recendendo a sexo é o único vestígio de sua presença.

E do que aconteceu ali naquela noite.

Sinto o gosto acre na boca ao me lembrar. Seu cheiro ainda está na minha pele, assim como o gosto da sua boca. Mesmo eu tendo ingerido uma boa dose de álcool para esquecer, mas sabia que estava me enganando.

Eu não vou esquecer.

Nem o prazer e nem minha transgressão.

Achava que estava fazendo um bom trabalho em resistir. Em manter meus olhos – e meus desejos – longe dela, mas hoje, eu sucumbi.

Resta saber como vou conviver com isso agora. Como nós dois vamos conviver. Afastá-la é impossível.

Deixar acontecer de novo seria o caminho para uma tragédia.

Tiro minha roupa e entro no chuveiro, deixando a água morna acalmar meus músculos cansados e levar a presença de Nina da minha pele.

Da minha memória ia ser mais difícil.

Coloco uma calça de pijama e é quando volto para escovar os dentes que eu noto os indícios.

A lâmina está sobre a pia. Ainda há sangue ali.

Meu peito gela.

— Nina... — sussurro, as garras da raiva apertando meu peito.

Ela havia prometido, mas eu a deixei sozinha.

— Inferno.

Saio do banheiro e vou até seu quarto.

Abro a porta devagar e entro, caminhado até sua cama.

Ela está ressonando, toda enroscada sob os lençóis. Meus olhos recaem sobre os machucados recentes em seu braço. A culpa faz meu corpo quase envergar.

Ela se agita no sono, como se estivesse sonhando com algo ruim.

Sento ao seu lado e pego sua mão, acaricio os machucados que me assombram desde que vislumbrei pela primeira vez naquela noite em meu banheiro. Hoje ela havia me contado parte dos motivos para impingir isso a si mesma. Eu tenho certeza que havia muito mais.

Segredos escondidos dentro dela que tenho medo de descobrir.

Ela se acalma no sono. Eu a cubro direito, mas não solto sua mão quando deito ao seu lado no chão.

Como fazia há tanto tempo.

Eu te encontrei Nina.

Eu disse que ia te encontrar.

 

 

 


“Esses prazeres violentos

Tem finais violentos”

 

Romeu e Julieta - Shakespeare

 

 

 

 

 

“Coloque em mim uma venda, segure minha mão e não me peça para pensar. Você pode fazer isso por mim?”

 

Me chame pelo seu nome - André Aciman

 


Ato II – Violência

 

Prólogo

 

 

Alex

 

 

— Pare de chorar, pelo amor de Deus, quer que eu fique mais brava do que eu já estou?

A reprimenda sai em meio à fumaça que escapa de seu cigarro, deixando o rosto da minha mãe difuso, estranho. Desde que me conheço por gente, é assim que ela se parece pra mim.

Indefinida. Imprecisa em meio a seus arroubos de carinho possessivo. Ou a boca cuspindo repreensão num ricto amargo em um momento para no outro sorrir e despejar amor.

Eu a amava na mesma proporção que a odiava.

Hoje, só sinto ódio, por estar me levando embora.

Viro meu rosto para o vidro do carro que percorre as ruas de Chicago, o sol de fim de tarde caindo no horizonte, trazendo a escuridão.

Um soluço escapa do meu peito de novo, sem que eu consiga conter.

— Vai parar? — reclama mais um vez ao meu lado.

Meus ombros sacodem e limpo o rosto, tentando conter as lágrimas, mas não consigo. Eu quero gritar.

Quero abrir a porta do carro e pular, correr de volta para a casa do meu pai.

Para Nina.

Eu prometi que não a deixaria sozinha, mas não fui capaz de cumprir minha promessa.

— Olha pra mim — minha mãe pede com a voz autoritária, que eu conhecia muito bem. Que queria dizer que eu iria me arrepender se não a obedecesse.

Eu encaro seus olhos vermelhos. Ela já tinha chorado, mas agora há apenas raiva em seu rosto bonito.

— Você vai parar de chorar, entendeu? Seu pai não merece que fique triste.

— Mas a Nina...

— Cala a boca! Não diz o nome daquela menina! Ela é uma criatura ruim! Roubou seu pai de nós!

— Não é verdade. — Começo a sentir a raiva esquentando meu peito.

Não gosto de me sentir assim. Não gosto de sentir raiva.

Eu sei o que a raiva faz com as pessoas. O que faz com a minha mãe.

Então toda vez que sinto que vou deixar aquele sentimento me dominar, luto para me controlar.

Para não ser igual a ela.

— Não é verdade? — Ela ri sem o menor humor. — O que você sabe? Não me venha defendê-la! É tudo culpa dela...

Começo a tremer, tamanha é a onda de violência que começa a se formar dentro de mim. Fecho meus punhos com força, respirando pesado.

— É igual seu pai, um fraco, encantado por aquela... putinha...

Desta vez, eu não me controlo.

Deixo a violência, que estava contendo, tomar conta dos meus braços e avanço para cima da minha mãe, lhe agredindo com socos e pontapés.

Por um momento, ela não reage, surpresa por meu ataque, mas em poucos segundos, está lutando comigo.

— Você ficou maluco? — grita, conseguindo segurar meus braços pequenos enquanto eu ainda luto. — Pare com isso! — Sua mão atinge meu rosto com força, e vou para trás, finalmente parando meu ataque.

Nós nos encaramos como dois adversários em um ringue. Seus olhos surpresos e furiosos.

— Nunca mais ouse erguer a mão para mim, seu moleque! — Sibila, o dedo em riste no meu rosto. — Está vendo? O que ela fez? Você bater na própria mãe para defendê-la! Peça desculpas, agora!

— Desculpe... — murmuro, tentando controlar a fúria que ainda percorre meus membros.

— A melhor coisa que eu fiz foi tirar você daquela casa! — Ela abre sua bolsa e pega a nécessaire. Passa pó no rosto, ajeita os cabelos. — Só Deus sabe o que ia acontecer! David está cego! Ele não é mais o mesmo, não está vendo o que aquela menina fez com a nossa família. No entanto ele fez sua escolha. — Ela se volta pra mim. — Sempre se lembre disso. Seu pai escolheu ela. E nos deixou ir. — Sua voz embarga.

Eu sei que ela está sofrendo também por irmos embora.

Eu não entendo essa lógica da minha mãe, embora faça algum sentido. Meu pai gostava muito de Nina, mas ela era só uma criança que não tinha pai e nem mãe. Sozinha no mundo e precisava ser protegida.

Eu quis protegê-la desde a primeira vez que a vi. Aquela menina franzina dormindo na minha cama, descoberta e tremendo.

Papai já tinha me dito que ela iria morar com a gente. Eu fiquei feliz, sempre quis ter um irmão ou irmã. Fiquei ansioso por conhecê-la. Lembro de ter subido para meu quarto e ficar olhando ela dormir, imaginando que agora eu não estava mais sozinho.

E ela não estaria sozinha também.

Mas minha mãe não gostava de Nina. Mamãe não gostava de nenhuma mulher que fizesse meu pai tirar os olhos dela.

Ciúme, tinha dito meu pai uma vez quando eu perguntei por que ela agia assim. Eu não tinha entendido direito. Nina era uma menina, por que ela tinha ciúme?

Conforme ia crescendo e escutando seus gritos, percebi que tinha algo a ver com a mãe de Nina. Meu pai fora apaixonado pela mãe de Nina ou algo assim.

Mas a mãe de Nina morreu.

Só que minha mãe não gostava de Nina por esse motivo. Uma vez, conversei com o meu professor sobre isso, e ele me falou sobre a mágoa. Era isso o que minha mãe sentia.

Eu não conseguia entender direito, mas odiava. Porém, eu não gostava de ver minha mãe chorar. Ela chorava dormindo, às vezes ouvia e ia até seu quarto, eu a cobria e beijava seu rosto, dizia que a amava. Prometia a mim mesmo ter paciência com ela, porque era assim que tínhamos que agir com as mães.

— Sei que está bravo agora, mas um dia vai me agradecer. Vai entender. — Ela toca meu rosto. — Eu sou sua mãe e agora só tenho você. Entende isso? E você só tem a mim, porque seu pai não quer a gente.

— Mas nós ainda vamos visitá-los, não é? — Eu me apeguei a essa esperança. Eu tinha amigos com pais divorciados. Sabia como era. Eu ainda veria meu pai de vez em quando.

E veria Nina.

— Veremos. — Pega outro cigarro, acendendo. — Agora enxugue o rosto. — Ela me dá um lenço. — E arrume sua roupa. Vai conhecer um homem incrível.

— Que homem?

Ela sorri animada.

— Christopher Black.

O carro para em frente a maior casa que eu já vi na vida. Tem até um chafariz na frente e minha mãe segura minha mão quando saltamos.

— Seja educado, hein?

Um homem sai da casa. Ele aparenta ter uns cinquenta anos, com distintos cabelos brancos.

Ele vem até nós.

— Finalmente estão aqui!

Minha mãe larga minha mão e se aproxima do homem, que beija seu rosto.

— Christopher, querido. Estou feliz de estar aqui.

Feliz?

Ela segura o braço do homem se voltando pra mim.

— E este é meu filho...

O homem se aproxima de mim e estende a mão.

Eu a seguro, ele tem um aperto firme e seu olhar é acolhedor.

— Bem-vindo, garoto. Qual o seu nome?

— William, como meu pai. David William é o nome do meu pai. — Há um tom de desafio em minha voz.

Não gostei muito como aquele homem beijou minha mãe.

— O nome dele é William Alexander. — Minha mãe me lança um olhar de reprimenda. — E acho que a partir de agora, devemos chamá-lo de Alexander! Sim, nada para lembrar aquele...

— Nora, querida. — O homem toca sua mão, como se para acalmá-la e ela sorri.

— Sim, tem razão. Nada mais de tristeza! É uma nova vida agora.

— Sim. — O homem sorri e se vira mim. — Então Alexander... Alex, vai gostar de morar aqui.

Ele dá tapinhas nas minhas costas, fazendo com que eu ande para frente e subimos os degraus da varanda, entrando em um hall enorme.

— Gosta de jogar tênis?

— Eu nunca joguei, senhor...

— Me chame de pai.

— Mas eu já tenho um pai...

— Ei! — minha mãe me repreende.

Porém Christopher faz um sinal de descaso com a mão.

— Deixe o garoto! Ele vai se acostumar, uma hora... — Ele se vira para mim. — Sei que tem um pai, mas como vou me casar com a sua mãe, serei seu padrasto.

— Casar?

— Sim, querido, não é maravilhoso? — Mamãe sorri e tenta aparentar felicidade.

Mas eu a conheço. Ela não está feliz.

Parece desesperada.

— E vamos morar aqui agora?

— Sim, já mandei preparar um quarto para você! Vai adorar. Temos uma piscina e as meninas vão gostar de ter com quem brincar. Aí estão elas.

Duas meninas entram na sala. Uma é bem menor que eu e está pulando animada, os cabelos loiros presos em uma trança.

A outra é mais alta do que eu um pouco, parece estar entrando na adolescência, com longos cabelos loiros que joga para o lado e me encara com desdém.

— Você é meu novo irmão? — a menina menor indaga com a animação.

Eu nem sei o que responder.

O pai segura sua mão.

— Sim, Charlotte. Este é seu novo irmão, Alex.

— Ei Alex, você gosta de brincar no pula-pula? A Aria diz que é muito grande pra brincar comigo...

— É, eu...

— Calma, Charlotte! — O homem ri e aponta para a menina atrás dele. — E essa é Aria. Ela é só um ano mais nova que você.

Mais nova? Ela aparenta ser mais velha e também parece não estar feliz.

— Oi Aria, você é muito bonita! Já é uma moça — minha mãe a elogia e ela dá de ombros.

— Puxei a minha mãe, sabe?

— Aria, não seja mal-educada — o pai chama sua atenção.

Ela rola os olhos e sai da sala, não se preocupando em ser bem-educada.

Charlotte a segue, correndo.

— Me desculpe por isso. O divórcio ainda é recente. Ela queria ficar com Helena, mas, enfim. Eu tenho a guarda e é assim que vai ser.

— Tudo bem, é normal. — Mamãe sorri.

Uma senhora uniformizada se aproxima.

— Essa é minha governanta, a Senhora Green. Ela os levará até o quarto. Vou chamar minhas filhas e nos encontraremos para o jantar.

— Bem-vinda, senhora — a mulher nos cumprimenta —, estou muito feliz de termos mais crianças aqui. Eu tenho um filho da mesma idade que você. O nome dele é Sebastian. Vão poder brincar juntos.

— O Sr. Black disse que ia nos levar ao quarto do meu filho? — minha mãe a corta e a mulher não parece se abalar e pede para acompanhá-la escada acima.

— Eu não quero mudar meu nome — cochicho para minha mãe.

Ela aperta minha mão.

— Vai fazer o que eu mandar! Não quero que você seja chamado por um nome que lembre seu pai! E assim que conseguir o divórcio, vamos tirar este nome da sua certidão. Você será um Black agora. Alex Black.

 


Capítulo 1

 

 

Nina

 

Era um daqueles raros momentos em que temos certeza que estamos sonhando.

E no sonho, eu ainda estou na casa de David e Nora, deitada na minha cama, quando sinto alguém segurando minha mão.

Eu não preciso abrir os olhos para saber que é Will que está ali. Para me sentir segura como há muito não me sentia.

Quero abrir os olhos e perguntar por que ele foi embora e não voltou. Por que não tentou me encontrar como prometeu? Ele não sabia que depois que se foi, tudo se encheu de escuridão?

Quero empurrá-lo, agredi-lo até que arranque sangue de sua pele assim como arranco da minha, para que sinta a mesma dor.

Para que sangre do mesmo jeito que eu sangro.

E também quero permanecer para sempre de olhos fechados, apenas sentindo sua mão segurando a minha, alimentando a ilusão de que tudo vai ficar bem.

Porém, em algum lugar do meu subconsciente, eu sei que não sou mais aquela Nina criança. Assim como não é Will que está ali.

Se abrir os olhos saberei que era tudo um sonho.

Que estou sozinha.

 

— Nina...

Debato-me no sono, quando escuto a voz me chamando. Não quero acordar, quero ficar ali com Will.

— Nina, acorde. — A voz persiste e algo naquele tom faz com que o sonho se desvaneça e abro os olhos, assustada, me sentando na cama e lutando para respirar. Meu coração disparado como se tivesse corrido uma maratona.

Viro a cabeça em direção à voz, meus olhos ainda nublados de sono demoram alguns instantes para focalizar na figura masculina que me observa.

Alex Black.

É ele que está ali, sentado em uma poltrona a uns dois metros de distância da cama, usando um dos seus indefectíveis ternos pretos.

Distante.

Frio.

Controlado.

Por um momento, apenas sustento seu olhar impassível, deixando as memórias da última noite voltarem a minha mente como cenas de um filme.

Caramba, um filme para adultos, penso com certa ironia, não conseguindo evitar o rubor em meu rosto, assim como o calor que se espalha por minha pele, a simples lembranças de Alex em cima de mim.

Dentro de mim.

Mas junto a essas memórias vêm outras.

Sua resistência. Minha insistência.

Sua violência.

Era assim que Alex gostava, tinha confessado naquele clube.

E a partir daquele momento, foi como se uma chave virasse em mim. Uma chave que abriu as portas das possibilidades.

E eu entendi o que se passava comigo desde a primeira vez que Alex cravou em mim aquele olhar dominador, falou comigo com sua voz controlada.

O meu medo. O meu desejo.

Era tudo uma coisa só.

Compreendi que a minha vontade de ser punida ia de encontro à de Alex de punir. Como se nos completássemos de uma maneira estranha, porém indelével.

E aquelas poucas horas em que passei entre seus braços, sentindo seu desejo, seus beijos e sua punição, foram os momentos mais intensos da minha vida. Eu senti que tinha um coração que, embora escuro, ainda batia e podia acelerar e derreter com um simples toque de Alex Black.

Só que Alex me deixou sozinha.

Eu não deveria ter me surpreendido. Alex se arrependeu.

Em algum nível eu podia compreender. Nosso vínculo de chefe e secretária já seria barreira suficiente para que deixássemos nossos desejos dominarem a situação.

Mas eu sabia que não era só isso.

E agora cá está ele, sentado no meu quarto, com seu “uniforme” de CEO poderoso.

Nunca me pareceu tão inatingível.

Mas o que aconteceu ontem à noite não pode ser apagado. Não da minha memória.

Seguro o lençol contra o corpo, sem saber como agir e me pergunto o que ele está fazendo aqui. Relanceio os olhos para a janela e já está claro lá fora.

— Você prometeu que não ia se cortar.

São as primeiras palavras de Alex. E saem carregadas de uma fúria controlada.

Ele está com raiva?

Bem, eu também tenho minha parcela de sentimento ruim agora.

— Por que fez isso? — insiste quando não respondo.

Limpo a garganta, tentando achar uma resposta que o satisfaça.

Queria ser sincera e dizer que a dor que eu impingia a mim mesma ajudava a amenizar a dor de saber que nunca mais vamos ficar juntos.

Mas sei que não é essa a resposta que Alex quer. Ele quer que eu seja madura o suficiente para entender que o que aconteceu foi um lance de uma noite, como diziam. Provavelmente ele já deve ter passado por isso muitas vezes. Eu mesma já passei por isso, só que eu era o Alex, dizendo que nunca mais ia acontecer.

Ele não quer ouvir uma secretária choramingando por atenção.

E não posso negar a mim mesma que tenho medo que ele se livre de mim agora como se livrou de Kelly. Mesmo sabendo que seria o melhor a fazer.

Mas começo a descobrir que talvez tenha um lado sadomasoquista, pois desejo ficar ao seu lado, mesmo sofrendo por nunca mais ter suas mãos em mim.

Por isso, poupo Alex da verdade.

Eu vou ser quem ele quer que eu seja.

— É o que eu faço, eu te disse — digo baixinho. — Apenas... é inevitável. Não tem nada a ver com você.

Não sei se ele acredita.

Sua expressão é a de um jogador de poker .

Ele se levanta e coloca as mãos nos bolsos enquanto se aproxima da cama.

Meu coração traiçoeiro dispara.

— Eu sinto muito por te deixar sozinha ontem à noite. Eu não deveria.

Sua voz agora está cheia de culpa misturada à raiva.

Mas percebo que a raiva não é direcionada a mim.

E sim a si mesmo.

Não sei o que falar, por isso permaneço em silêncio.

— Eu te disse que não deveria ter acontecido.

— Não foi culpa sua. Eu insisti. Me desculpe. — Um nó se forma em minha garganta e luto para manter a serenidade enquanto o encaro de volta.

— Nós dois queríamos. Talvez não haja culpados, apenas... foi inevitável. Mas é tarde para voltar atrás. Porém, trabalhamos juntos e preciso saber se conseguiremos passar por cima disso.

Sacudo a cabeça em afirmativa, abaixando o olhar para que ele não veja o alívio por ainda me querer por perto. Mesmo que seja apenas para ser sua secretária.

— Você ainda quer trabalhar comigo? Eu posso conseguir que seja transferida e...

“ Como Kelly. ”, penso.

Respiro fundo e levanto o olhar, juntando toda a impassibilidade que consigo reunir.

— Alex, se você não consegue lidar com isso e quiser me transferir, é uma prerrogativa sua.

— Então a decisão é minha?

— E de quem mais? Você é o CEO.

— Eu quero que continue trabalhando comigo, Nina.

— Por que se esforça?

— Porque... — Ele passa a mão pelos cabelos, desviando o rosto, como se lutasse contra algo. Há angústia em seu olhar, quando ele o fixa em mim novamente.

— Vista-se, vamos embora.

Só isso?

Ele se preparou como se fosse me dizer algo muito importante e diz apenas para eu me vestir para partirmos?

— Não tinha compromisso?

— Cancelei todos. Assim que estiver pronta, vamos voltar a Chicago.

Ele sai do quarto e ainda permaneço paralisada. Sem saber o que pensar.

Alex havia mantido a palavra de que nada mais ia acontecer.

Mas pelo menos não estava me chutando como uma Kelly.

 

Alex não está na suíte quando saio do quarto, já arrumada. Há uma mesa de café da manhã com um bilhete.

“Por favor, coma.”

Penso em ignorar o café, pois não estou com fome, mas faço o que Alex ordenou e me sento para comer.

Sirvo café preto e pego um muffin. É quando mastigo que sinto o gosto.

Canela.

Sem que consiga evitar, corro para o banheiro, me debruçando sobre a privada e despejando o que havia no meu estômago.

Quando levanto a cabeça Alex está ali, segurando uma toalha molhada que ele passa em minha boca com um olhar preocupado.

— O que foi isso?

— O que parece? — resmungo aceitando a sua ajuda para me levantar indo lavar a boca.

— Tinha algo que não gostava no café? Ou foi algo que te fez mal que comeu ontem? — insiste.

— A canela — sussurro.

— Canela?

— Eu odeio canela — digo simplesmente saindo do banheiro. — Podemos ir?

Alex me encara confuso, como se fosse dizer algo, mas apenas meneou a cabeça concordando e saímos do quarto.

 

Entramos no táxi e seguimos em silêncio até que estejamos no avião.

É quando ele se vira pra mim.

— Você nunca me disse se tem família.

Eu o encaro, sem entender o porquê daquela pergunta saída do nada.

— Deve ter visto minha ficha. Eu sou órfã. Meus pais morreram quando eu tinha sete anos.

— Sinto muito, deve ter sido difícil ficar sozinha.

— Eu não fiquei sozinha... — sussurro.

Alex continua esperando que eu continue, mas me calo.

— Ficou com quem?

— Não importa. Estou sozinha agora.

Isso o faz se calar.

Ponho o fone de ouvido, antes que ele insista na conversa. Falar sobre o passado definitivamente é algo que eu não vou fazer.

Nunca.

 

O motorista nos apanha no aeroporto e Alex o instrui a me deixar na minha casa. Ainda estamos em um silêncio tenso e agora eu só quero ficar sozinha. Manter a falsa serenidade ao lado de Alex está custando todo meu autocontrole.

Finalmente chegamos em frente ao meu prédio e enquanto o motorista pega minha mala do porta-malas, eu me preparo para sair do carro, mas Alex segura meu pulso.

— Nina, espera.

Eu o encaro.

— Por favor, não faça mais isso. — Acaricia meu pulso e sei que está falando dos cortes.

Quero cuspir que ele não tem direito a me pedir nada, mas algo em seu olhar me faz sacudir a cabeça afirmativamente, mesmo sem saber se poderei cumprir.

Saio do carro e agradeço ao motorista que entrega minha mala e subo para meu apartamento.

Assim que estou abrindo a porta, Lucy abre a porta dela, sorrindo pra mim.

— Oi vizinha, como está?

Eu fecho a porta na cara dela, a ignorando.

Minha cota de educação foi toda gasta com Alex.

 

Naquela noite, eu consigo cumprir a promessa feita a Alex.

Mas quando acordo na manhã seguinte, cansada depois que meu subconsciente decidiu brincar comigo, me brindando com sonhos repletos de fragmentos de memórias que eu preferia esquecer, eu não vou correr.

 

Eu me arrumo para ir trabalhar, sentindo um misto de ansiedade e terror.

Como vamos manter nosso relacionamento chefe-secretária agora, apesar de minhas promessas – e a de Alex – de que era tudo o que seríamos?

Essa pergunta me assombra quando chego a minha sala naquela manhã. Alex ainda não chegou e sinto alívio, pois terei algum tempo para controlar a ansiedade.

Estou indo até a sala de café quando Oliver surge no meu caminho.

— Ei, Nina. — Seu sorriso é hesitante e por um momento a vontade é de ignorá-lo, mas ele parece ansioso em falar comigo.

— Oi, Oliver.

— Tudo bem? Você parece... cansada.

Bem, depois de uma noite maldormida, eu deveria estar um caco mesmo.

— Sonhos ruins — sussurro sem expressão.

— Será que pode me dar um minuto? — Ele toca de leve meu braço. Seu olhar é ansioso.

— Oliver... Não temos nada pra conversar.

— Por favor? Sinto que algo ficou estranho e eu sei que talvez só queira ser minha amiga, mas...

Desvio o olhar me perguntando como posso fazê-lo entender que o melhor que aconteceu com ele foi levar um fora de mim, quando vejo Alex vindo pelo corredor.

Seu olhar vai de mim para Oliver. Não consigo ver o que se passa em sua mente, mas sem pensar, volto minha atenção a Oliver.

— Tudo bem, mas não aqui.

Caminho até a porta corta-fogo e a abro, descendo as escadas de incêndio, sabendo que Oliver está atrás de mim.

Eu queria dizer que não sabia exatamente o que se passava na cabeça de Oliver quando eu o fiz seguir-me até ali, depois do que tinha acontecido da última vez.

Eu queria dizer que me surpreendi quando sua mão tocou meu rosto, ainda de forma hesitante, os olhos confusos, porém esperançosos.

Eu queria dizer que não antevi a porta se abrindo e Alex surgindo, olhando de mim para Oliver com mal contida fúria.

Desta vez Oliver segue meu olhar e empalidece quando vê Alex, tirando a mão do meu rosto e dando um passo atrás.

— Alex!

— Oliver, volte para sua sala — Alex ordena.

— Nada estava acontecendo — Oliver gagueja.

— Agora.

Oliver hesita me encarando amedrontado e tento tranquilizá-lo.

— Pode ir, Oliver.

Ele finalmente se afasta, descendo as escadas.

Continuo no mesmo lugar e Alex vem em minha direção.

— Que merda está fazendo?

— O que quer dizer?

— Você o trouxe aqui. Eu vi em seu olhar. Você planejou isso.

— Sim. — Eu não nego.

— Por quê?

— Porque é o que eu faço.

— Por que fez isso? Ia transar com ele aqui?

— E se transasse?

— Queria que eu visse você com ele aqui. Sabia que eu ia ficar bravo. Estava esperando o quê? Que eu desse uma surra em Oliver?

— Não era bem nele — sussurro e vejo a fúria nos olhos de Alex se transformar em puro fogo quando ele mergulha o olhar no meu.

Sustento aquele olhar, meu coração parando em expectativa por um momento.

— Porra Nina. — Ele bate na parede a minha volta, antes de segurar meu rosto e encostar a testa na minha.

Por um momento permanecemos assim, respirando um ao outro. Fecho os olhos me alimentando daquele toque. Quero tanto que ele me beije que quase posso sentir seu gosto em minha língua.

— Já chega disso... — Alex dá um passo atrás.

Luto contra a vontade de deixar meus desejos tomarem as rédeas da situação.

Seria fácil e perfeito.

Há algo nos olhos de Alex, um fogo queimando no fundo de sua íris que contradiz com o que diz.

Suas palavras me afastam, mas seus olhos contam outra história.

E por um instante deixo que os meus façam o mesmo.

Porém, Alex desvia o olhar para baixo e segura meu pulso, levantando minha camisa devagar, onde há apenas marcas passadas.

— Você se cortou?

Sacudo a cabeça em negativa.

— Eu não quero mais que faça isso. Você vai me dizer se sentir vontade? Vai deixar que eu seja seu amigo e te ajude?

— Você sabe como pode me ajudar — arrisco num fio de voz, meus olhos suplicantes.

Vejo o fogo queimar por um momento em seu olhar com minha sugestão.

— Nós já conversamos sobre isso, Nina. Você entende, não é?

Sinto vontade de chorar, um nó apertando meu peito.

Queria tanto dizer a Alex que não, não vou mais me cortar. Que eu posso aceitar o que ele está me oferecendo. Que podemos ser amigos.

Mas não consigo, apenas sacudo a cabeça em afirmativa, sem conseguir dizer algo que seria uma mentira.

— Vamos voltar ao trabalho.

Ele faz um movimento pedindo para eu subir na sua frente e é o que eu faço, piscando para afugentar as lágrimas traiçoeiras e sentindo a cada passo que dou para nossa sala, onde seremos apenas chefe e secretária, que não posso fazer aquilo.

Eu sei que prometi a ele que seria como antes. Que esqueceria nosso interlúdio naquele hotel.

Mas não posso.

Está marcado em mim.

Eu provei o gosto da violência de Alex e quero mais.

É este tipo de pessoa que eu sou.

Eu caminho sobre as brasas do inferno apenas para sentir as chamas me queimando.

Se Alex fosse outra pessoa, eu não hesitaria em ir até o fim, mesmo sabendo que pagaria depois, mas há algo nele, talvez a doçura que entrevi em seu olhar quando segurou minha mão e disse que queria ser meu amigo, talvez o resquício de algo perdido dentro de mim, algo que pode ser bom, que faz com que eu queira preservá-lo da minha escuridão.

Quando chegamos ao escritório eu o vejo desaparecer dentro de sua sala e sei o que tenho que fazer.

Chegou a hora de ir embora.

 

 

 

 

Antes

 

Alex

 

 

Como todas as manhãs, eu a observei de longe. Desde o momento em que ela colocou os pés para fora de seu prédio, ajeitando os fones no ouvido, sua corrida ganhando ritmo, alcançando em pouco tempo a calçada do Park Central, alheia não só a minha presença como a de todo o resto. Àquela hora da manhã, Chicago ainda dormia enquanto apenas a névoa cobria tudo de cinza, imprimindo um tom sombrio. Não sei por que, conforme a seguia dia após dia, comecei a achar que combinava com ela.

Nina Giordano.

Quando a reencontrei, foi estranho conectar aquela moça bonita à Nina da minha infância.

Nas minhas memórias ela ainda era aquela garotinha franzina, de olhos verdes tristes e mãos pequenas. De alguma maneira, foi assim que ela permaneceu guardada nas minhas lembranças infantis. Congelada no tempo, quando eu mesmo já não era aquele garoto. Certamente, se ela fosse apenas uma mulher passando na rua eu não a reconheceria.

Mantinha a distância segura agora, ainda temendo um confronto que viria em breve. Ela se lembrará de mim?

Teria algum ressentimento daquele menino que foi embora, a deixando para trás e não cumpriu a promessa de encontrá-la?

Eu a encontrei agora, Nina.

É tarde demais?

Muito tempo havia se passado. Os primeiros dias na casa dos Black pareciam fazer parte de um sonho estranho quando me recordava agora. Quarto novo, daqueles que qualquer garoto sonha, com videogame de última geração e televisão gigante. Uma escola nova de garotos ricos, esportes novos, e a presença constante de duas meninas que teria que tratar como irmãs.

Era irônico pensar que tive uma infância solitária, sonhando com irmãos e em pouco tempo tinha ganhado uma irmã que me foi tirada sem que eu pudesse fazer nada e em troca ganhei mais duas.

Não foi difícil me apegar a Charlotte e Aria, mesmo essa última tendo levado um tempo maior para ser conquistada. Como não foi difícil me acostumar a viver como um Black, até o nome eu me vi assumindo depois de um tempo de confusão. E havia Christopher Black. No começo, eu tinha aquele ciúme típico de garotos que veem os pais se divorciarem e são obrigados a conviver com o novo namorado da mãe. Eu cresci esperando o dia em que minha mãe começasse a agir com Christopher do mesmo jeito que agia com meu pai. Agressiva quando não tinha o carinho que julgava merecedora. Rancorosa quando ele voltava os olhos para outro lado, mas até o dia em que morreu, Christopher não olhou para outra mulher além da minha mãe. Ele a mimava e a adorava. E acredito que isso a fez feliz de certa forma. Ela parecia mais animada e realizada, com todas aquelas roupas novas, carros reluzentes, tratamentos de beleza de última geração que a deixaram ainda mais deslumbrante. Viagens para lugares exóticos, amigos ricos e fúteis que enchiam a casa dos Black de vida e movimento.

Uma vida bem diferente daquela que vivíamos na nossa pequena casa de subúrbio.

Porém, embora eu tenha me acostumado àquela vida, assim como passei a gostar de Christopher e deixar que ele fosse um pai para mim como era para Aria e Charlotte, à noite, quando ia dormir, eu pensava no meu pai.

E pensava em Nina.

Sentia saudade deles. E de tempos em tempos perguntava a minha mãe quando poderia visitá-los. Ela sempre desconversava, ocupada entre um compromisso social e outro com seus novos amigos.

Até que um dia ela se irritou e gritou que meu pai não queria me ver, para eu parar de perguntar.

Eu gritei de volta que ela era uma mentirosa e recebi um tapa em troca.

Depois, ela me obrigou a pedir desculpas e, como sempre, me fez sentir culpa por ter sido agressivo com ela. Por não dar valor a tudo o que estava me proporcionando se casando com Christopher. Eu entendia que em sua cabeça, estava fazendo o melhor e que eu deveria estar feliz. No entanto havia uma parte de mim que nunca poderia perdoá-la, por ter me afastado de Nina e do meu pai.

Ela deve ter percebido o ressentimento se formando em meus olhos, em meus punhos cerrados que eu tentava controlar, pois soltou um suspiro cansado.

— Olha, eu não queria te contar. Achei que iria esquecer com tudo isso que estamos vivendo, mas já é grande o suficiente para saber a verdade. Eu assinei o divórcio há algumas semanas. E seu pai abriu mão do direito de ver você. Christopher vai te adotar.

Abri a boca para dizer de novo que eu não acreditava, mas ela levantou a mão, me calando.

— E nem fale que sou mentirosa! Pode ir perguntar para o Christopher, ele tem toda a documentação do processo. — Sua voz se suavizou. — Eu sinto muito, mas te avisei. Faça como eu, e esqueça que David existe. Seu pai agora é o Christopher.

— E a Nina?

À menção de Nina, ela agarrou meu braço, cravando as unhas na minha pele e baixando a cabeça até que seus olhos estivessem na altura dos meus.

— Nunca mais cite essa menina! Ela é a culpada de tudo! Deve esquecer que ela existe também!

Ela me soltou e enxuguei as lágrimas que teimavam em cair. Naquele momento, eu ainda não acreditava que era verdade. Que meu pai iria me deixar assim, pra sempre. Sem se importar.

Alguns dias depois, convenci Aria e Sebastian a irem comigo de bicicleta até minha antiga casa. Sentia meu coração batendo forte no peito, sabendo que iria ver Nina e meu pai.

Mas quando chegamos lá, a casa estava vazia.

Ainda me lembro da desolação. Do sentimento de ter sido deixado para trás. E pela primeira vez eu entendi o que minha mãe sentia. Meu pai realmente não se importava comigo. Talvez eu tivesse me enganado todo aquele tempo, dizendo que era normal que ele desse carinho e atenção a Nina, só porque ela era uma órfã. Possivelmente ele nunca se importou comigo o suficiente.

Voltei para casa, sentindo um buraco no peito.

Uma conversa com Nina voltando a minha mente, a pergunta inocente dela sobre não entender por que os adultos guardavam mágoas.

Agora eu entendia Nina. Eu entendia.

Talvez eu tenha ficado com raiva de Nina também naquele dia, ainda mais quando voltei pra casa e Aria contou a minha mãe onde tínhamos ido e minha mãe ficou furiosa e revelou que meu pai tinha vendido a casa por causa do processo de divórcio e ela não fazia ideia para onde ele tinha ido e nem queria saber.

— Esquece, Alex. Daqui para frente temos uma nova vida. Nem David e nem aquela garota maldita fazem parte dela. Acho que agora você entendeu.

Assim os dias passaram, os meses. Anos.

Como minha mãe desejou, eu deixei Will para trás.

Eu me transformei em Alex Black, o filho mais velho do empresário milionário Christopher Black.

Porém, de tempos em tempos eu me lembrava dela. Lembrava-me da garota que eu tinha amado como uma irmã. Como alguém que tinha sido colocada na minha vida para eu proteger e me proteger, que segurei a mão enquanto chorava, que segurou a minha mão quando foi minha vez de chorar.

Eu tinha aprendido a amar e proteger Charlotte e Aria, mas nem uma delas segurou minha mão quando chorei.

Nem uma delas substituiu Nina.

Enquanto crescia, e a memória de Nina voltava a minha mente e eu sentia um pesar no peito, um vazio, como se em algum lugar do mundo ela precisasse de mim, dizia a mim mesmo que não passava de uma fixação infantil.

Porém, há um ano algo tinha mudado.

Algo que fez a memória de Nina voltar a minha mente com cada vez mais frequência, até que fosse impossível ignorar ou tentar esquecer.

Ela estava ali. Nos meus sonhos. Nos meus pensamentos.

Como se me chamasse.

Fazendo-me lembrar que eu nunca tinha cumprido minha promessa.

E agora aqui estava ela, correndo na minha frente, ignorante de minha presença. Entrei no parque, ela sumiu da minha visão e eu me recordei do dia em que pedi que a encontrasse. Não deveria ser difícil. Eu tinha um nome e dinheiro.

Porém, quando o detetive contratado voltou com o relatório de quem era Nina Giordano hoje, pouca coisa ficou clara.

Havia pouca informação sobre Nina.

Ela tinha 25 anos. Suas informações de trabalho eram incertas. Apenas nos últimos anos havia registros de ter passado por muitas empresas, em cargos medíocres e nunca ficado mais do que alguns poucos meses em cada um. Havia entrado em uma faculdade, mas não terminado. Morava no mesmo endereço há aproximadamente três anos. Ela era solteira. O detetive a seguiu durante algumas semanas, e fez perguntas ao porteiro e a colegas de trabalho.

Ninguém sabia dizer nada sobre Nina. Ela saía para correr todas as manhãs. Ia para o trabalho. Não tinha se encontrado com nenhum amigo, ou tido algum encontro. Passava suas noites em casa sozinha.

— Aqui o relatório, com a foto que ela usa em seu currículo. Aí tem o endereço de sua casa e do trabalho. Se quiser, posso continuar investigando, ir mais a fundo.

— Não. — Eu havia pegado o relatório. — Basta, por enquanto.

Assim que o homem saiu da minha sala eu abri e a vi.

Então aquela moça bonita era Nina. Seus cabelos estavam presos em uma trança e os olhos verdes eram como eu me lembrava. Porém, não conseguia associar aquela garota a Nina da minha infância.

Por alguns dias, apenas andei com aqueles relatórios, sem saber o que fazer. Acreditei, quando pedi que a encontrasse, que assim que soubesse onde estava, eu a procuraria.

Agora, já não sabia se era uma boa ideia.

Eu não sei dizer o que esperava quando pedi que a encontrasse. Que tipo de pessoa Nina seria agora. Talvez que ela fosse como Aria, casada e com algum filho até. Ou que fosse uma profissional de sucesso, dessas que deixam os relacionamentos para depois.

Ou quem sabe fosse uma moça alegre e inconsequente como Charlotte, até mesmo um pouco fútil vivendo a vida como se tivesse todo o tempo do mundo pela frente.

Mas ela não era nada disso.

Nina era uma incógnita.

E algo ali começou a me incomodar.

Fui até seu endereço muitas vezes e ensaiei bater a sua porta. Mas o que eu poderia dizer? Sou eu, Will?

Eu não era mais Will.

Talvez ela nem se lembrasse de mim. Talvez tenha se esquecido até da promessa que eu fiz um dia.

A vida segue para todos nós.

Em uma manhã, enquanto corria, me vi indo até seu prédio e me surpreendi ao vê-la saindo. Não sei dizer ao certo o que me fez ir atrás dela, como um stalker qualquer. Apenas sentia meu coração batendo de um jeito estranho e errático. Eu sentia uma alegria quase infantil de vê-la de novo. Sentia receio, porque aquela agora era uma estranha.

Sentia uma ansiedade premente de ir até ela, tocar seu braço e me apresentar, não Will, mas o homem que eu sou hoje. Que gostaria de conhecer a mulher que ela se tornou. E ao mesmo tempo temendo que ela não quisesse falar comigo, que houvesse algum ressentimento.

Talvez fosse o melhor a fazer. Acabaria logo com aquilo.

Dei a volta no parque e corri em sua direção, ansiando e temendo pelo momento em que estaria próximo suficiente para pará-la.

Porém, me vi passando reto. Assim, como ela o fez.

O mesmo se repetiu nos próximos dias e a cada novo amanhecer eu me perguntava se hoje era o dia.

Mas algo me segurava.

Eu me perguntava o que ela achava do estranho que passava por ela toda manhã. Se era tão indiferente como aparentava. Comecei a acenar, esperando talvez um sorriso, um “bom dia”.

Mas ela continuava a passar batido, como se eu fosse invisível.

E o que eu ia fazer? Iria deixar pra lá, que ela seguisse com sua vida e eu seguiria a minha? Talvez fosse o certo a fazer. No entanto havia algo que sempre me puxava da cama de manhã, ansioso para vê-la de novo.

Se não ia me apresentar a ela o que eu faria? Então, uma ideia começou a se formar. Pesquisei os arquivos de Nina, seus últimos trabalhos. E se eu a trouxesse para a Black? Sim, parecia ser uma ideia razoável. O salário dela era ridículo, e o prédio que morava não parecia ser dos mais confortáveis. Talvez ela não saísse tanto porque não tinha dinheiro, talvez tivesse problemas financeiros para sair e farrear com amigos. Era uma boa explicação.

E o incidente com Kelly me deu a desculpa perfeita. Eu a contrataria e, então, teria tempo de conhecer aquela nova Nina. E ela iria me conhecer. Forjaríamos um novo vínculo, uma nova amizade, como dois adultos e então eu poderia dizer quem eu sou.

Saí do parque e retornei pelo caminho, sabendo que ela passaria por mim como todas as vezes. Porém, assim que me avistou ela errou os passos e foi ao chão.

Eu me aproximei, preocupado, e toquei seu pulso.

— Você está bem?

Ela piscou, ainda assustada do tombo repentino, quando a puxei para cima.

Quando ela fixou os olhos confusos em mim, percebi que era a primeira vez que a via de perto. E o choque que sua beleza causou em mim foi uma surpresa.

E ainda estava atordoado, quando ela puxou o braço, dando um passo para trás, o rosto corando e uma expressão de desconforto toldando os traços bonitos.

— Estou — sussurrou com uma voz que não lembrava em nada a Nina criança. Era a voz de uma mulher.

E então, ela voltou a correr.

Fiquei ali, o olhar fixo na sua figura que se afastava, sem conseguir me mexer.

E percebi duas coisas.

Eu havia alimentado alguma esperança tola de que ela iria me reconhecer. E o fato de ela não ter a menor ideia de quem eu era fazia meu peito doer.

Assim como sua beleza surpreendente fez meu coração acelerar de uma forma que eu não esperava.

E dali a algumas horas ela estaria se apresentando na Black, para ocupar o cargo de minha secretária.

Já não sabia se era uma boa ideia.

Mal podia esperar por isso.

 


Capítulo 2

 

 

Alex

 

Rebato a bola com fúria, a raquete vibrando em minha mão, com a força do impacto, e observo meu adversário desviar rápido quando ela passa como um borrão, o fazendo xingar quando percebe que perdeu a jogada.

— Cacete, Black, queria me matar? — Sebastian volta os olhos indignados pra mim.

Solto um riso baixo, limpando o suor da minha testa e caminhando até o meio da quadra.

Sebastian me encontra lá e batemos as mãos.

— Aceite que perdeu, Doutor Green.

Sebastian é meu companheiro de tênis há alguns anos, e sempre que possível marcamos uma partida, sempre às quartas, na hora do almoço, próximo do escritório de advocacia que ele é sócio.

— Você está mais agressivo hoje ou é impressão minha? — Sebastian me estuda de forma perspicaz enquanto caminhamos para o vestiário.

A pergunta não me pega desprevenido. Este é Sebastian. Ele tem um dom para ler as pessoas, por isso talvez tenha se saído tão bem na profissão que escolheu.

Arranco minha camisa e me sento no banco frio, passando os dedos pelos cabelos molhados.

Eu não havia contado a ninguém sobre Nina. Sobre minha nova secretária ser a mesma garota que foi acolhida em minha casa há tantos anos e que eu julgara esquecida.

Parecera um plano interessante quando decidi contratá-la para trabalhar comigo. Seria um bom meio para conhecê-la. Saber quem era Nina Giordano hoje. E então eu poderia contar quem sou e que, de alguma maneira, conseguiríamos ao menos recuperar um pouco da proximidade que tínhamos quando criança.

Porém, nada saiu como eu planejei.

E agora estou vivendo em um inferno particular.

— Ainda é o pau no cu do Jack? — Sebastian insiste. — Fiquei sabendo da última. Ele não vai deixar pra lá, não é?

— Jack vem me irritando há tempos e sinceramente começo a me arrepender de ter tomado partido.

— Era sua irmã, de que outra maneira poderia agir?

— Poderia obrigá-la a voltar e lidar com as consequências dos seus atos, mas não é Charlotte o meu problema no momento.

Ele se senta ao meu lado, esperando que eu continue.

Somos amigos desde que eu me mudei para a casa dos Black. Ele morava com a mãe na dependência de empregados e foi meu pai quem pagou sua faculdade.

Eu sei que posso confiar em Sebastian, mas ainda hesito por alguns instantes em contar sobre Nina.

— Você lembra quando me acompanhou junto com a Aria até minha antiga casa?

Ele franze o olhar, tentando acionar a lembrança.

— Vagamente. Lembro que era bem longe e Aria reclamava muito de estar cansada, mas você insistiu... E a casa estava vazia quando chegamos. Acho que Aria te delatou para sua mãe e ela brigou contigo. Quando eu perguntei se queria falar sobre isso, porque achei que estava chateado, você disse que não. E nunca mais tocou no assunto mesmo.

— Lembra que eu te falei sobre uma garota chamada Nina?

— Nina? Acho que era sua irmãzinha de criação ou algo assim?

— Os pais dela morreram quando tinha sete anos e ela veio morar com a gente. Meu pai era padrinho dela. Nós ficamos muito próximos, eu a protegia como uma irmã, mas minha mãe não gostava dela, alguma coisa a ver com a mãe da Nina, por quem meu pai foi apaixonado acho. Pra falar a verdade nunca entendi direito essa história. Só que meus pais começaram a brigar e minha mãe decidiu ir embora. Naquela época não achei que perderíamos contato, mas depois do divórcio, meu pai vendeu a casa e nunca mais eu soube dele... Ou de Nina.

— Por isso a casa estava vazia.

— Sim. Eu fiquei chateado, claro. Era meu pai. E eu gostava de Nina como uma irmã, mas a vida seguiu e há algum tempo eu decidi reencontrá-la.

Prefiro deixar os detalhes dos motivos que fizeram com que eu decidisse isso de fora.

— E a reencontrou?

— Sim, há alguns meses. Eu contratei um detetive e enfim... — Poupo Sebastian dos detalhes. — Eu a contratei para ser minha secretária.

— E aí? Como foi isso?

— Ela não sabe quem eu sou — confesso e agora ele está assombrado.

— Como é?

— Eu a segui por um tempo...

— Alex, que merda andou fazendo?

— Eu sei, parece coisa de algum maluco obcecado, mas eu não sabia como ela me receberia. Eu disse que ia voltar e encontrá-la e a deixei para trás.

— E daí? Eram crianças.

— Eu só sei que por um tempo hesitei em me apresentar.

— E ela não te reconheceu?

— Eu não tenho mais o mesmo nome. E não somos mais crianças, eu mesmo não a teria reconhecido se passasse por ela na rua.

— E como ela é?

— Linda.

Agora ele levanta a sobrancelha e acho que estou corando como um colegial.

— É este o problema? Está com tesão na sua irmãzinha?

— Porra, cala a boca, ela não é minha irmã.

— Mas era assim que você ainda pensava nela.

— Sim, tem razão. É este o problema.

— Este e o fato de que não contou a ela ainda quem é de verdade, presumo?

— Não.

— Por que não? Está meio confuso pra mim.

— Eu não sei. Apenas... Tem algo com ela, que não consigo entender. Ela parece... traumatizada com alguma coisa.

— Como assim?

Como explicar a Sebastian o que nem eu mesmo entendo?

— Ela não tem amigos. Nunca parou em um emprego por muito tempo, sua vida é um completo mistério e ela age como se estivesse distante emocionalmente de tudo, ou como se tentasse.

— O que acha que a deixou assim?

— Eu não faço ideia. Quando eu a observava de longe, intuí que algo estava errado. Me pareceu uma boa ideia trazê-la para a Black. Eu poderia ajudá-la.

— Ajudá-la como?

— Primeiro eu queria conhecê-la e depois dizer quem eu sou.

— Está protegendo ela ou a seu rabo cheio de culpa?

Eu solto uma risada sem humor.

— Os dois, acho. Eu tive medo de que ela guardasse mágoas.

— Acha que depois de todo este tempo ela iria ter raiva de você?

— Talvez sim. As coisas não eram fáceis para Nina naquela época.

— E acha que ficaram piores em algum momento?

— Eu tenho certeza, só não sei como e nem quando.

— Então, ela virou sua secretária e nem sabe quem você é de verdade?

— Sim, achei que fosse simples, mas...

— Está atraído por ela.

— Sim.

— Quanto?

— Muito.

— Ela sabe?...

Eu sei do que ele está falando.

— Eu contei a ela há poucos dias.

— Espera... Contou a ela que gosta de um sexo pervertido, mas não contou que era seu irmão?

— Já falei que não somos irmãos.

— Entendeu o que eu quis dizer.

— É tão complicado. Eu sei que deveria contar, mas ainda não sei se é o certo. Eu descobri coisas sobre ela... — Hesito em contar a Sebastian. — Enfim, a situação é mais complicada do que eu previ. Nina é mais complicada do que eu previ.

— Você é mais complicado do que eu achei que fosse — rebate com ironia e não posso discordar.

— Mesmo sabendo que tinha essa atração inesperada, eu mantive meus planos. Eu tentei me aproximar, disse a ela que seríamos amigos. E achei que estávamos indo a algum lugar, que em breve ela confiaria em mim o suficiente para que eu pudesse dizer que eu era Will, sem que ela me mandasse à merda, mas...

— Mas...

— Nós transamos.

— Hum... Então ela sente o mesmo por você? E agora?

— Eu disse que seria só uma vez, perguntei se ela entendia que nada mais poderia acontecer, mas agora eu não sei se será possível.

— E o que vai fazer?

— Ainda não sei. Talvez eu deva contar a ela e esperar que entenda por que não pode rolar mais nada.

— Mas você ainda teme contar. Por quê?

— Porque eu tenho medo que ela vá embora.

— Bem, não duvido que seja isso que aconteça.

— Eu não quero que ela se afaste. Não posso deixar. Sinto que não deveria tê-la deixado naquele dia, há tantos anos. Que deveria ter cumprido minha promessa e voltado. Alguma coisa aconteceu que a transformou nessa mulher que é hoje. E eu preciso não só descobrir o que foi, mas como ajudá-la de alguma maneira.

— E acredito que isso não inclua fazerem sexo.

— Não — digo com firmeza.

Sebastian não precisa saber de todas as nuances de meu envolvimento com Nina. É particular.

Não precisa saber que desde que nossos olhares se encontraram eu sentia que de alguma maneira ela estava implorando para ser punida.

Como se soubesse o que se passava em minha mente. Mesmo quando eu sabia que estava errado.

Aquela era Nina, a menininha que eu segurei a mão para dormir.

Não era qualquer mulher que eu pudesse submeter a meus desejos, mesmo ela achando que era o que precisava.

A culpa por tê-la machucado, quando transamos em Nova York, ainda queimava em mim.

A culpa e o prazer.

Eles andavam entrelaçados em mim. Eu não podia negar que tinha gostado, que não tinha fantasiado algo assim há algum tempo nos meus sonhos mais proibidos.

Que não tinha desejado repetir a cena desde então.

E isso definitivamente era um problema.

Vê-la com Oliver hoje de manhã me fez sentir ciúme. E também preocupação pelos motivos que ela estava atraindo Oliver de novo.

Eu não entendia Nina.

Ela era uma incógnita. Um livro fechado que eu queria ler inteiro.

E quando percebi que na verdade não era Oliver que ela queria atrair, e sim a mim, eu senti raiva.

Senti desejo de puni-la, como ela mesma tinha insinuado.

Seria tão fácil deixar acontecer de novo. Por um momento ansiei deixar de lutar, fazer o que ela mesma estava suplicando com seu olhar.

Mas não podia.

— E o que vai fazer? — Sebastian interrompe meus pensamentos.

— Eu não sei. Preciso de um tempo.

— Eu lhe aconselharia a contar a verdade a ela.

— E se eu a perder de novo? — confesso o medo que o menino que fui um dia ainda guarda no peito.

— É um risco que talvez tenha que correr, amigo. — Ele se levanta, livrando-se do short na minha frente.

— Porra, cara, tira isso da minha frente! — Faço uma careta o fazendo rir alto enquanto se encaminha para o chuveiro.

— Precisa se conformar que meu pau é maior que o seu, amigo.

É a minha vez de rir enquanto me livro da minha roupa para fazer o mesmo.

— É o que está dizendo.

E estamos rindo juntos enquanto nos encaminhamos para o chuveiro e eu esqueço momentaneamente meus problemas com Nina.

 

Quando saio do clube, pego meu celular e há algumas mensagens.

Uma é de Victoria. Ela pergunta se pode ir para minha casa hoje. Eu a ignoro por enquanto.

A outra é de Aria. Essa eu não posso ignorar, porque sei que é pior.

 

Aria ainda mora com o marido e as filhas na casa da família Black. Assim como Charlotte também morou até o dia fatídico do seu casamento que nunca aconteceu. Porém, diferentemente de Aria, que mesmo depois que se casou com Max Duran permaneceu na casa do pai, Jack havia construído uma casa especialmente pra Charlotte.

Uma casa agora que estava vazia.

Os gritos infantis me alcançam assim que entro na casa e não posso deixar de sorrir quando Arianna e Isabella pulam em cima de mim, animadas.

— Tio Alex! — Arianna agarra minha cintura enquanto Isabella tenta pular nas minhas costas.

— Vamos derrubar ele — Isabella, a mais audaciosa grita, e eu decido fazê-las feliz caindo no chão com um suspiro fingido.

— Vocês duas venceram, são muito fortes!

— Trouxe presente pra gente? — Arianna monta na minha cintura e eu me mexo rápido para que Isabella não tenha a mesma ideia e atinja minhas partes baixas como fez uma vez.

— Meninas, saiam de cima do tio Alex! — Aria surge e as meninas obedecem a mãe, me liberando.

— Louise está esperando vocês para fazerem aula de piano — ela diz séria.

A rotina de Arianna e Isabella era repleta de aulas de balé, piano e sei lá mais o que Aria inventasse. E de nada adiantava dizer que sobrecarregava as crianças. Aria não escuta ninguém a não ser a si mesma.

— Eu não quero! — Isabella bate os pés no chão.

— Eu quero ficar com o tio Alex! — Arianna insiste.

— Acho melhor obedecer a mamãe — eu peço.

Elas acabam concordando e saem da sala.

— Posso saber o que queria falar comigo de tão urgente? — Encaro Aria.

— Nora ligou e disse que decidiu esticar a viagem e está com Charlotte agora.

Minha mãe estava fazendo um cruzeiro com amigos pelo Mediterrâneo há algumas semanas. Ela não parecia feliz desde que meu pai morreu, tínhamos insistido para que ela viajasse.

Porque definitivamente eu não era a melhor companhia desde que Christopher morreu. Principalmente para minha mãe.

Não queria dizer que mantê-la longe enquanto eu estreitava meus laços com Nina também era meu objetivo.

Eu não sei o que Nora diria quando soubesse que eu tinha reencontrado Nina. E em algum momento teria que enfrentá-la, mas não ainda.

Na verdade, eu odiava confronto com Nora. Nada de bom podia sair dali e eu sabia disso há tempos.

— E por que isso era urgente?

— Isso não é problema. O problema é que o cretino do Jack ligou para ela e ficou insistindo que tinha que contar onde Charlotte estava.

— E ela contou?

— Ela disse que queria contar! Que por isso foi ver Charlotte, para fazê-la voltar pra casa e encontrar o Jack, antes que ele destrua a todos nós.

— Pelo amor Deus, isso aqui não é uma novela da tarde! Para de ser exagerada.

— Exagerada? Ele está ficando cada vez pior. Você disse que ele ia esquecer e nos deixar em paz, mas está piorando. Virou uma obsessão e ele quer se vingar de nós pelo que a Charlotte fez!

— Olha, sinceramente, estou de saco cheio dessa confusão do Jack e da Charlotte, eu tenho coisas muito mais importantes para me preocupar.

Ela estreita o olhar curiosa.

— O quê? Está com algum problema? É na Black?

— Não.

— É pessoal? Tem que me contar, posso ajudar? — Ela segura minha mão.

— Aria, não é nada que possa me ajudar, ok? — Desfaço o contato e olho o relógio. — Preciso voltar ao trabalho.

— Não esqueceu da festa beneficente que eu e Max estamos organizando, não é?

Max, o marido de Aria, é um ex-jogador de tênis, que tinha inclusive jogado em Roland Garros. Hoje, ele vive ainda de sua fama como esportista, o que quer dizer que não faz nada de útil. Ele não é uma das minhas pessoas preferidas no mundo, embora, antes de se casar com Aria, fôssemos amigos.

— Não, não me esqueci — resmungo e me despeço.

Queria encontrar Nina antes que ela fosse embora.

Aria toca meu braço.

— Você está estranho.

Suspiro, cansado.

— Não é nada.

Mas eu sei que Aria percebe. Ela também me conhece muito bem. Infelizmente.

— Certo, não quer falar, mas uma hora eu vou descobrir! — Ela sorri. — Que tal jantarmos hoje? Podíamos ir naquele bar de jazz incrível e...

— Tenho um compromisso.

— Com a tal mocinha ruiva?

— Não é da sua conta. Por que não chama seu marido para ir com você?

Seu rosto se fecha.

— Como se Max fosse querer ir comigo.

— Estão com problemas? — De novo, quero completar.

Ela faz um sinal de descaso com a mão, mas vejo que há algo mais.

Porém, hoje não tenho tempo para os problemas de Aria.

— Tudo bem, eu vou ver se minha mãe quer ir comigo, preciso espairecer.

— Isso, chame Helena.

Aria era bem apegada à mãe.

— Não vou atrapalhar as meninas, porque sei que não gosta, mas diga que domingo eu virei almoçar com elas, ok?

— Direi.

 

Volto para a empresa e decido que chamarei Nina para jantar. Sei que estou rindo na cara do perigo, mas preciso estabelecer as bases do nosso relacionamento. Voltar ao plano original. Amigos apenas.

Sei que Sebastian tem razão, e talvez contar a verdade seja o correto a fazer, mas sinto que ainda não estou preparado.

Sinto que Nina ainda não está preparada também e temo que a verdade apenas a afaste de vez.

Porém, quando chego ao escritório, a mesa de Nina está vazia.

Vou para minha sala e quando me sento à mesa, há um envelope com meu nome sobre ela.

Eu o pego e abro.

É uma carta.

A carta de demissão de Nina.

 

Antes

 

Alex

 

A ansiedade que senti enquanto entrei no prédio da Black naquela manhã me fez lembrar o jeito que me senti no primeiro dia de aula da escola de meninos ricos a qual fui mandado depois que me mudei para a casa dos Black.

Ainda me recordava de sentir minhas mãos suando quando saía do carro junto com Aria e Sebastian, meus olhos um tanto assustados para a horda de crianças saindo dos carros com motoristas, todos com seus uniformes azuis impecáveis, as meninas com saia e camisa branca, os meninos com seus ternos azuis e gravatas vermelhas.

Aria havia caminhado na frente, me ignorando como ela fazia a maior parte do tempo, encontrando um grupo de amigas ruidosas e muito parecidas com ela.

— Relaxa, cara .

Sebastian bateu o ombro no meu enquanto ajeitava a mochila nas costas.

— Eu queria ter continuado na minha outra escola.

— Aqui o ensino é da hora . Vai conseguir entrar em uma boa faculdade.

Sebastian tinha minha idade, mas às vezes parecia mais velho, pois sempre estava falando em entrar em uma faculdade, ou ter um carro ou algo adulto do tipo. Aria sempre ria e desdenhava “até parece que um filho de empregada como você vai ter um carro!”.

Ele não parecia se importar com seu desdém.

— Olha só, o pé de chinelo arranjou um namorado? — Um garoto passou por nós rindo, batendo na cabeça de Sebastian, que bufou irritado, mas não fez nada para conter a onda de piadas idiotas dos garotos que continuaram em frente.

— Vai deixar eles falarem assim? — Eu me ofendi mais que Sebastian, provavelmente.

A situação toda me lembrava o primeiro dia da escola com Nina.

— Você se acostuma.

— Eles mereciam uma surra.

Sebastian riu.

— Cara , eu estudo aqui porque o Sr. Black faz caridade. E todo mundo sabe disso. Sabe quantos garotos negros têm nessa escola? Ou pobres? Se eu ousar dar um sopro nesses ricos de merda eu estou fora em três segundos. Minha mãe ficaria arrasada. Eu não posso perder a oportunidade de estudar aqui. Por isso aguento.

— Não é justo.

— É assim que as coisas são.

— Provavelmente eles vão me zoar também. Não sou um deles. Sou como você.

— Não é como eu. É um Black agora. Não precisa ter medo, eles nunca vão mexer com você.

— Mas se mexerem com você, eu posso revidar então.

— Cara , você é maluco ou o quê?

— Deixa eles virem.

Eu deixei o medo do lado de fora das portas do colégio.

E alguns dias depois, eles vieram.

E levaram o troco que mereciam por mexer com Sebastian.

Eu fui suspenso, mas não mais do que alguns dias, afinal, como Sebastian disse, eu era um Black agora.

Foi a primeira vez que senti aquele poder.

Não só do nome Black, mas da violência em meus punhos.

Talvez Christopher tenha se preocupado com minha fúria mal contida ser direcionada para o lugar errado e me matriculou em uma aula de boxe.

Deixei a memória desvanecer na minha mente enquanto caminhava para minha sala sabendo que ela devia estar lá. Eu já tinha me certificado na recepção.

Hoje de manhã, quando eu a ajudei a se levantar, ela havia me ignorado. Seu olhar pousou nos meus cheios de vergonha e receio, antes de se transformar em gelo.

Nem um pingo de reconhecimento.

Seguiu em frente sem olhar para trás, sem fazer ideia que ia me encontrar de novo em poucas horas.

Sentia-me ansioso e temeroso ao mesmo tempo para, finalmente, conhecer quem Nina é agora. Que tipo de pessoa ela era por trás do rosto bonito.

Um rosto que não tinha saído da minha cabeça desde que pousei os olhos nela de perto. Isso não era nada bom e me fazia sentir vulnerável. Sem controle algum do que estava vindo a seguir.

E eu não gostava de não ter controle no jogo que eu mesmo tinha inventado.

Passei por sua sala e estava vazia, mas havia uma bolsa pousada na cadeira, denunciando sua presença.

Ela estava ali, meu coração disparou de forma ridícula e avancei para minha sala para encontrá-la lá dentro. Ela vestia uma saia cinza de lã e uma camisa branca de mangas compridas. Parecia elegante e insípida. Mas não menos interessante. Seu corpo era magro e com curvas suaves. Óbvio que eu já tinha reparado em suas leggings de corrida. Era algo natural.

Agora, eu a olhava de outra maneira. Uma maneira puramente masculina e apreciativa, do jeito que a saia justa moldava seus quadris, do suave volume da blusa sobre seus seios, querendo imaginar como ela seria sem as roupas.

A ideia fez meu pau se agitar e eu me irritei.

Inferno, que merda estava fazendo?

— São minhas sobrinhas. — Resolvi denunciar minha presença.

De repente ela se virou, assustada ao me ver e deixou o porta-retratos que tinha na mão cair no chão.

Os olhos eram como eu me lembrava.

Verdes e límpidos.

Percebi quando ela me reconheceu, não como Will, mas sim como o homem que atravessava seu caminho nas corridas de manhã.

Isso me deixou de novo frustrado sem que conseguisse evitar.

Assim, como não consegui evitar o fio de atração que me puxou em sua direção. De manhã, suada e sem maquiagem ela já era estonteante.

Agora, mesmo estando com uma aparência discreta e profissional ela me parecia incrível.

E ela era minha secretária.

Quão fodido eu estava?

Eu me aproximei e apanhei o porta-retratos do chão, o colocando sobre a mesa.

— Eu sou Nina Giordano a... secretária. Nova secretária, Senhor Black, é... — ela gaguejou, mais amedrontada do que eu supus que estaria.

Ela estava com medo de mim?

Sim, ela estava.

Depois de sua postura fria ao praticamente fugir de mim de manhã, esperava que ela fosse profissional e distante. Surpresa por seu novo chefe ser o mesmo homem que atravessava seu caminho, ou até mesmo desconfiada que aquela coincidência era bem estranha.

Mas não esperei que ela estivesse com medo.

E, com um laivo de culpa, percebi que em algum nível do meu fodido subconsciente, isso me excitava.

Alimentava o monstro que guardava dentro de mim. Trancado a sete chaves.

E ter essa noção me fez ter ainda mais raiva de mim mesmo.

— Sim, eu imaginei. — Minha voz saiu mais brusca do que eu queria, mas não consegui evitar.

Queria tomar o controle da situação de novo.

Ela balbuciou desculpas, algo sobre estar bisbilhotando e isso nem tinha me passado pela cabeça, enquanto abaixava os olhos, muito vermelha.

Sua postura é quase...

Submissa?

Provavelmente meu cérebro estava me pregando peças.

Estendi a mão e me apresentei formalmente, de novo tentando voltar ao controle. Aquela ainda era uma situação profissional. Embora, Nina estivesse ali porque assim eu engendrei, ela não fazia ideia.

E decidi que não ia fazer. Não por enquanto.

Sua mão estava suada, comprovando a teoria do medo. Será que ela sentia, em algum nível, o que eu lutava para ocultar do mundo?

Ou será que era apenas um medo normal de uma situação nova, pela qual todos nós passamos alguma vez na vida?

Será que ela teria o mesmo medo se soubesse que sou Will?

Dei a volta na mesa e a instiguei a se sentar na minha frente. Abri o notebook, apenas para ter algo para fazer com as mãos.

Eu sei de cór sua ficha. Assim como sei de cór o relatório do detetive.

Eu tinha esperança que Nina dissesse mais sobre ela quando foi entrevistada por Maria, mas ela fora reticente. Ainda me lembrava de minha diretora de RH cética quanto a sua contratação. Eu não era o tipo de executivo que contratava funcionários sem que esses tivessem total capacidade de exercer suas funções. Nunca indiquei ninguém por ser da família, ou amigos. Maria havia estranhado quando pedi que ligasse para Nina e oferecesse o cargo de minha secretária. Fui claro e não lhe dei satisfação, apenas dizendo que era para entrevistá-la e contratá-la de qualquer jeito – sem revelar que tinha sido uma indicação minha.

Eu realmente não estava na cidade quando Nina compareceu a Black pela primeira vez, o que agora eu lhe esclareci, quando ela me encarou ainda com um olhar confuso. Ela sabia que era estranha sua contratação, mas não entendia por quê.

Expliquei a ela sobre o que esperava de uma secretária, algo que faria qualquer profissional que fosse contratada para a função. Sabia que estava sendo frio e até mesmo assustador, mas não conseguia evitar. Achei que o tempo inteiro esperava o momento em que ela ia arregalar o olhar em reconhecimento.

Mas isso não aconteceu.

Decidi puxar as cordas um pouco.

— Aqui diz pouca coisa sobre você.

No mesmo instante, ela se retraiu. E antes que pudesse insistir, Hannah entrou na sala nos interrompendo e a levou embora.

Acompanhei o movimento dos seus quadris enquanto ela se afastava, suspeitando que estivesse aliviada por ter se livrado do meu escrutínio.

 

Mas não é para sempre, Nina.

Não vai se livrar de mim.

Não sei quem é você hoje, mas preciso saber. Quero que me conte sua história. Quero lhe contar a minha.

Eu te darei tempo. Farei com que confie em mim, como confiou um dia, quando éramos apenas duas crianças.

Eu te encontrei e agora desejo mais do que tudo descobrir o que está escondendo em seu olhar assustado.

Eu te prometi que seria seu amigo para sempre. E é isso que vou ser.

Apenas tenho que aprender a ignorar o monstro espreitando por baixo da minha pele.

 


Capítulo 3

 

 

Nina

 

E assim, acabou.

Decido ir embora caminhando, ignorando o vento frio que corta meu rosto, o desconforto físico é bem-vindo, faz com que eu entorpeça minha mente a cada passo que dou, deixando a Black Investiments para trás.

Eu sabia que este dia chegaria. Apenas não achei que fosse tão cedo e pelo motivo que foi. Porém, toda vez que deixei um trabalho para trás, a cada vez que um ciclo se fechava, nunca lamentei. Nunca senti pesar.

Apenas seguia em frente com certo alívio. Um lugar novo, rostos novos. Um novo recomeço para a velha Nina tentar mais uma vez passar incólume pela vida das pessoas a sua volta. Perguntando-se se desta vez ela iria embora deixando algum estrago para trás ou não.

Nos últimos tempos, eu tive sucesso. Andei por entre as pessoas quase como se usasse uma capa de invisibilidade. Não deixei marcas. A não ser aquelas que impingia a mim mesma.

Até que ele passou correndo por mim, deixou sua energia no ar, mudando tudo, sem que eu me desse conta do perigo. Eu devia ter fugido ao primeiro sinal, mas tinha algo diferente em Alex. Algo que eu desejava descobrir o que era, que apenas degustei naquele quarto de hotel e que me deixou sedenta por mais.

E pela primeira vez em muito tempo, quis quebrar todas as minhas regras. Eu, que nem sabia mais o que era querer. Desejar.

Porque o desejo nunca fica impune. Devia tatuar isso na minha pele como Alex tatuou a dele.

Esses prazeres violentos têm fins violentos.

“É uma tragédia.”, ele havia dito.

Ele disse que não ia permitir que acabasse em tragédia, porque não ia nem mesmo começar. Bem, Alex, estou facilitando para você.

Só preciso agora sufocar aquela dorzinha que está apertando meu peito toda vez que me dou conta de que nunca mais vou ver Alex de novo.

Em breve ele será apenas uma memória apagada em minha mente. E eu já não lamentarei que nunca mais vá segurar minha mão e dizer com um anseio que não consigo entender que quer ser meu amigo.

— Oi Nina — Lucy está chegando no prédio, carregada de sacolas que parecem estar pesadas, ao mesmo tempo que sorri pra mim, ofegante. — Pode me ajudar?

Por um momento, não entendo o pedido, mas ela sacode os braços, com uma careta.

— Meus braços vão cair!

Apresso-me em retirar algumas sacolas do seu pulso enquanto seguimos para o elevador.

— Obrigada — agradece respirando aliviada quando aperto o nosso andar. — Os motoristas do Uber deveriam subir com a gente não acha? Eu não ligaria de pagar um pouco mais pra não ter que carregar peso. E aí, como você está?

Mordo os lábios me perguntando como não ser mal-educada de novo como fui da última vez fechando a porta na sua cara.

Lucy não tinha culpa dos meus problemas.

— Pedi demissão do meu emprego — solto sem nem mesmo perceber o que estava fazendo.

Lucy está surpresa e seu rosto é quase cômico em confusão por um instante, enquanto eu mesma estou perplexa e querendo pegar as palavras de volta.

— Sério? Realmente não parece feliz com isso — diz enquanto o elevador para em nosso andar e prosseguimos pelo corredor. — Pode segurar pra mim?

Ela me passa suas sacolas para pegar as chaves no bolso e percebo que isso é uma armadilha quando ela entra, sem fazer menção de pegar as sacolas de volta, para que eu seja obrigada a entrar atrás dela.

Por um momento, sinto como se Lucy fosse uma daquelas bruxas de contos de fadas que atraem crianças para seu covil.

Para não as deixar mais sair.

E como previ, ela fecha a porta atrás de mim, antes de vir me ajudar com as sacolas.

— Pronto, conseguimos! — Sorri quando coloca todas as sacolas na bancada. — Então, que tal tomar um vinho e eu preparo burritos incríveis enquanto me conta sobre seu emprego?

E ela já está abrindo a geladeira e pegando duas taças em tempo recorde, certamente com medo que eu corra.

E por um momento é isso mesmo que penso em fazer.

Mas estou tão cansada.

Cansada da tensão dos últimos dias com Alex.

Cansada de carregar o peso que é conviver comigo mesma e minhas escolhas – sejam elas intencionais ou não.

Cansada de viver sozinha e no escuro.

E decido não pensar no que estou fazendo, abrindo uma brecha para Lucy, quando pego a taça que ela oferece, o líquido vermelho dançando no cristal.

Tão convidativo como o sorriso acolhedor de Lucy.

— Um vinho e uma conversa sempre ajudam. — Bate a taça na minha e bebe um gole.

Faço o mesmo.

— E aí? Como era seu trabalho? O que você faz? — Ela começa a retirar as compras da sacola.

Hesito, mas agora acho que terei que lhe dar algo, para quem sabe me deixe em paz, quando eu me cansar de brincar de garota normal.

— Eu era secretária.

— Que bacana! Trabalhava lá há bastante tempo?

— Há pouco mais de um mês.

— E já pediu pra sair?

— Eu não costumo ficar muito tempo nos meus trabalhos...

— Algum motivo pra isso? É uma dessas pessoas que são aventureiras e não curtem ficar muito tempo num lugar só? — brinca guardando seus mantimentos na geladeira.

Não consigo responder e acho que Lucy percebe meu desconforto, porém não insiste.

— E por que teve que sair deste trabalho? Não estava gostando?

— Ao contrário, eu estava gostando demais. — sussurro tomando um longo gole, sem encará-la. — Acho que eu deveria ir...

— Não, fica. Eu vou fazer burritos, lembra? — E ela começa a tirar os ingredientes dos armários, assim com panelas surgem e fogos são ligados em tempo recorde.

— Não precisa se incomodar... — Tento de novo me safar.

— Vai ser rápido! Eu ia mesmo preparar pra mim... E não precisa falar do seu trabalho se não quiser — acrescenta com um sorriso. — Já saquei que não curte falar sobre você mesma e respeito isso, ok? Só... me faça companhia. Acho que preciso.

E assim percebo que Lucy de alguma maneira sabe exatamente pelo que estou passando, ou pelo menos desconfia.

Não é ela que precisa de companhia.

Sou eu.

— Senta aí. — Ela percebe minha hesitação, apontando para a banqueta em frente à ilha. — Eu prometo que vai amar meus burritos. Receita da minha avó. Sabe que ela veio para os Estados Unidos com minha mãe pequenininha? Foi depois que meu avô morreu. Ela juntou toda a grana que tinha e veio tentar a vida aqui, era uma mulher incrível.

— Era?

— Sim, ela morreu faz uns anos. Mas minha mãe ainda mora no mesmo apartamento no Queens. Mamãe nunca se casou sabe?

— E seu pai? — Eu me vejo perguntando enquanto ela pica os temperos.

— Era um idiota com quem mamãe namorou na adolescência. Ele era de uma gangue e acabou morrendo alguns anos depois. Minha mãe gostava muito dele, acho que sofre até hoje, nunca mais quis ficar com ninguém. É triste.

— Sinto muito — digo o que acho que todos dizem quando escutam uma história triste.

— Não sinta, eu mal o conheci. Mas é a vida, né? Quem não tem histórias tristes? — Ela joga a cebola na panela e os feijões.

O cheiro transforma a cozinha em um típico lar mexicano e consigo ver a pequena Lucy na cozinha de um apartamento no Queens com sua avó.

Quem não tem histórias tristes?

A pergunta se volta para mim.

Mas não quero pensar na minha história.

Não é só tristeza.

É uma tragédia.

Isso me faz lembrar de Alex. Que queria me poupar de uma tragédia.

Mal sabe ele que eu já vivo em uma que se repete em looping na minha cabeça há anos.

— A gente tem que aprender a viver com nossas histórias — ela diz de costas pra mim enquanto mexe a panela. — Passado é passado. Não dá pra mudar então pra que deixar que tome conta do nosso presente?

E quando o passado parece que foi ontem? Quero perguntar.

Quando está tão entranhado em nossa pele que parece um câncer? Alimentando-se de nossa miséria?

— Quase pronto! — Ela se volta. — Vou só fazer as tortillas, já tenho massa pronta! — Pisca abrindo geladeira. — Minha avó deve estar se revirando no túmulo! Mas minha mãe é ainda mais preguiçosa que eu. Depois que vovó morreu que tivemos que nos virar pra aprender a cozinhar, mas eu estava na faculdade, então só comia porcaria. Engordei dez quilos acredita?

— Não parece gorda agora. — Lucy era voluptuosa com grandes seios.

— Comparando a você, sou sim, mas estou feliz com meu corpo, cada um tem o seu, né? E os rapazes gostam — ela sacode os seios e não consigo deixar de rir —, meu ex pelo menos adorava.

Ela dá de ombros enquanto coloca a massa na frigideira.

— Você já foi casada, Nina?

— Não, nunca fui — respondo rápido.

— Meu casamento durou dois anos só. Me casei achando que era o amor da minha vida.

— E por que acabou?

— Foi um equívoco essa coisa de amor pra vida inteira. Steve era advogado. Trabalhamos juntos em alguns casos. Era um pouco mais velho do que eu e tínhamos uma química de pegar fogo se é que me entende. — Pisca, enquanto faz os burritos.

— Ainda tem contato com ele?

Ela coloca um prato com burrito na minha frente.

— Coma, antes que esfrie! Precisa colocar mais carne nesses quadris, era o que vovó dizia!

— Obrigada. — Começo a comer e está realmente bom.

— Bom, não é? — Ela senta na minha frente e começa a comer também.

— Sim, muito bom.

— Steve era um cara legal — continua o assunto depois que comemos em silêncio por um tempo. — Não era como alguns homens que lido no meu trabalho.

— Como assim? — indago curiosa.

— Eu trabalho ajudando mulheres em relacionamentos abusivos. Mulheres e adolescentes que sofreram abuso — responde olhando dentro dos meus olhos. — Reconheço os sinais, Nina.

Por um momento, não consigo falar.

A comida ganhando um outro gosto em minha boca.

Luto para escorregar para aquele lugar dentro de mim. Onde não há lembranças, enquanto tomo o vinho para fazer a comida descer.

— Mais vinho? — Lucy ignora meu desconforto servindo mais vinho na minha taça, sorrindo despreocupada, como se não tivesse olhado sério dentro dos meus olhos e dito que sabia.

Ela não disse com todas as letras.

Mas não era preciso.

Ela reconhece os sinais.

Só que eu não quero que ninguém veja.

— Eu preciso ir.

Desta vez me levanto e pego minha bolsa antes que Lucy tente me impedir.

— Tudo bem — ela concorda com um sorriso de entendimento abrindo a porta para mim.

Ela sabe do que estou fugindo.

— Obrigada pelo jantar. Estava muito bom — obrigo-me a dizer. Lucy realmente foi muito legal comigo hoje.

— As portas estão sempre abertas. Se quiser conversar — diz com um sorriso esperançoso.

Passo por ela e estou abrindo a porta do meu apartamento quando ela me chama.

— Ei, Nina, quase ia me esquecendo.

— Sim?

— Um homem veio procurá-la hoje.

Paraliso, com a mão na porta.

— Ele disse se chamar David.

 

Antes

 

Nina

 

A tarde estava caindo mais rápido do que eu previra e apressei o passo, começando a me arrepender de ter ido caminhando depois da escola.

Não era a primeira vez. Mesmo a escola ficando a uns quarenta minutos de caminhada até em casa e eu ter que passar por uma estrada relativamente vazia. Porém, eu gostava daqueles momentos de solidão, depois de horas de convívio social forçado.

Pensar que em um ano eu estaria fora do High School para sempre me deixava feliz.

Feliz não.

Aliviada.

Felicidade não era um sentimento que eu saberia reconhecer, pensei, com amargura. Quer dizer, não que eu estivesse reclamando.

Às vezes, era melhor não sentir nada. Mesmo os sentimentos bons, nunca duravam o suficiente.

Quando foi a última vez que eu me senti feliz?

Não me lembrava.

Ou melhor, talvez, se mergulhasse fundo na minha memória, eu acharia alguma lembrança boa o suficiente para me fazer sorrir e sentir o peito se aquecendo em nostalgia. Porém, mesmo essas lembranças, eram uma armadilha. Porque eu sempre voltava para o presente, onde não havia nada.

E sofria um pouco mais, porque felicidade não era pra mim.

Eu não a merecia.

Enfiei a mão no bolso do meu short jeans e peguei um cigarro, acendendo e observando a fumaça dançando na minha frente, antes de desaparecer no ar.

Um carro parou ao meu lado e me virei, para ver minha imagem refletida no vidro. O cabelo rosa se sobressaindo em meu rosto pálido.

O vidro abaixou e o motorista se inclinou para o banco do passageiro, e notei que era um cara jovem, talvez não muito mais velho do que eu, usando óculos escuros e um cabelo que precisava de um corte.

— Ei, está perdida?

Para sempre, quis responder, mas sabia que não era isso que ele estava perguntando.

— Não.

Ele levantou os óculos e sorriu.

Era um cara bonito, vestido com uma camiseta de banda de rock e camisa de flanela por cima.

— Quer uma carona?

Hesitei por um instante.

Todas aquelas questões básicas sobre o perigo de se pegar carona com estranhos rondando minha mente.

— Vai me fazer apagar o cigarro?

— Não. — Ele estendeu a mão e destrancou a porta.

Tirei a minha mochila das costas e joguei no banco de trás, me acomodando no banco de passageiro, e ele voltou a colocar os óculos, dando partida.

Estava tocando um grunge antigo no rádio.

Sobre alguém que vivia na escuridão.

— Eu sou Tyler — ele se apresentou e entendi que ficou esperando que eu me apresentasse também.

— Nina. — Meu nome saiu entre a fumaça.

— Está indo para onde, Nina? — perguntou lançando um olhar curioso para mim.

Não conseguia ver seus olhos, mas notei que passou um tempo maior nas minhas pernas nuas.

— Nenhum lugar em particular.

— Está fugindo? — indagou divertido.

— Não tem como fugir quando o inferno está dentro da nossa cabeça — sussurrei, o olhar perdido na paisagem do crepúsculo lá fora.

— Você não parece feliz, Nina.

— Você é feliz? — Contemplei seu perfil.

— Parece uma pergunta bastante filosófica.

— Não respondeu.

— Às vezes sim, às vezes a vida é uma merda.

— A minha vida é uma merda sempre.

— Quantos anos tem? Parece muito nova para ser tão pessimista.

— Dezessete.

— Bem, é uma idade de merda, mas vai passar, acredite.

— Vai? — sussurrei, querendo acreditar nele.

— Claro. Adolescência é uma bosta. Pais dando ordem, escola...

— Quantos anos você tem?

— Vinte e um.

— E o que você faz?

— Eu tenho uma banda.

— Legal — respondi, não muito animada.

Talvez outras garotas estivessem pulando de alegria pela sorte de ter os olhos de um cara que tem uma banda interessados nela.

Eu não dava a mínima.

O melhor de Tyler neste momento é que ele não me conhecia.

— Não tem que voltar pra casa?

— Ninguém se importa.

— Pai, mãe?

— Meus pais morreram.

— Oh... Sinto muito.

— Faz tempo. Não importa mais. Me diga Tyler, onde está indo agora?

— Estou indo tocar. Uma festa. Quer ir?

— Ok...

Minha resposta não deve ter soado tão animada quanto ele achava que deveria ser, pois estreitou o olhar.

— Você não parece animada. Só... Se não quiser ir, eu te deixo na sua casa, ou onde quiser.

— Está querendo retirar seu convite? Por quê?

O carro parou em um engarrafamento e ele tirou os óculos, me fitando.

— Tem algo em você... Parece uma garota rebelde com seu cabelo rosa e cigarro na boca, mas ao mesmo tempo, algo não se encaixa. Me dá a impressão que está escondendo quem realmente é.

— Não sou uma boa garota, Tyler. Se isso te preocupa.

Então não precisa fingir que me deu carona porque é um bom garoto. Acho que nós dois sabemos o que você quer, quis completar.

— E quem é você, Nina?

— Não queira saber.

— Quer mesmo ir comigo?

— Eu queria me sentir leve por algumas horas, acha que é possível?

— Talvez sim...

— Tem bebida lá?

— Quer me deixar encrencado por dar bebida alcoólica para uma menor de idade?

— Você se encrencou quando abriu a porta pra mim.

Ele não fazia ideia do quanto estava encrencado.

— Bem, acho que tem razão e já que é assim... — Ele abriu o porta-luvas e tirou um cigarro de maconha. — Acho que isso vai ajudar a ficar leve. Tudo bem? — questionou ainda um tanto hesitante.

— Sim, tudo bem.

— Tem certeza que não deixarei ninguém nervoso por não te levar pra casa?

— Não tem — respondi pegando o cigarro da sua mão. — Não mais.

 

 


Capítulo 4

 

 

Nina

 

Estou sufocando.

Seguro a respiração o máximo que posso embaixo da água até meu pulmão doer em busca de ar e só então emerjo, ofegante e trêmula, deixando meu corpo se alimentar do oxigênio e voltar lentamente à vida.

Abraço meus joelhos, sob a água agora gelada.

Há quanto tempo estou aqui, mergulhada na banheira? Chafurdada em pesadelo?

Não lembro.

As palavras de Lucy voltam a minha mente de novo e de novo e eu só quero voltar no tempo e não as ouvir.

Que merda ele está fazendo aqui?

O que teve não foi suficiente?

Será que vai voltar? Claro que vai.

 

O passado sempre volta para me assombrar, não importa o quanto eu tente esquecer. Fingir que nunca aconteceu.

É como uma espécie de punição.

Mesmo que eles não voltem fisicamente, eles nunca saem da minha mente. É como viver em um pesadelo constante, noite após noite. Dia após dia.

Meses. Anos.

Não há misericórdia para mim.

Uma lágrima quente cai por meu rosto e eu a enxugo rápido, meus olhos recaindo nas marcas em meu braço.

Desde que fechei a porta, deixando Lucy e sua curiosidade para trás, eu tinha me enfiado ali, tentando com que a água acalmasse meus demônios.

Tentava manter a promessa que eu fiz a Alex, mas a dor não ia embora.

Saio da banheira, a água pingando do meu corpo nu e pego a gilete. Fecho os olhos e me preparo para a bem-vinda dor.

 

Quando acordo, levo um susto ao perceber que adormeci sob o chão frio do banheiro. Sento-me, enregelada e deixo o olhar cair em meus braços. Eu tive o bom senso de fazer um curativo, ao menos isso, embora não me recorde. Senão a essa hora seria somente um corpo frio sem sangue sob o azulejo.

Não era uma má ideia.

Mas eu sei que nem a morte me quer.

Eu já tentei, e fui chutada de volta.

Acho que até o inferno era bom demais para pessoas como eu.

Entro no chuveiro e deixo a água quente acariciar meus membros cansados, mas nem o vapor quente faz o frio passar.

Pelo menos a minha mente está mais calma, quando saio do banho e penteio meus cabelos em frente ao espelho, minha imagem distorcida pelo vapor. Lembro o que me fez sofrer ontem. Lembro da inusitada visita que Lucy disse que eu tive. Só que agora não tenho mais medo. Sinto apenas uma estranha calma. Uma sensação de inevitabilidade.

Se ele voltar, eu direi, como da última vez, que deve seguir seu caminho. Talvez ele insista, talvez chore, talvez peça perdão, implore.

Mas no fundo sabe que nada vai adiantar.

Eu segui em frente. Sozinha.

Ele deve saber dos seus motivos.

Dos seus pecados.

Assim como eu sei dos meus.

 

Quando corro pela Avenida Michigan naquela manhã, digo a mim mesma que não estou aqui para encontrá-lo.

Mas sei que estou mentindo.

Impulsiono meus pés cada vez mais rápido, ignorando a chuva fina. Não estou mais com frio. Estou queimando.

O Grant Park se abre à minha esquerda e sinto a ansiedade tomar conta do meu coração, que bate rápido pelo esforço da corrida e porque sabe que vai encontrá-lo.

Porém, o parque fica para trás e sinto o chão sendo tirado dos meus pés quando minhas esperanças começam a se desvanecer, como os pingos de chuva que desaparecem no ar levados pelo vento.

Imagino se ele viu minha carta de demissão.

Se já sabe que não vou mais voltar.

Se acredita que encontrar comigo, mesmo que de forma casual em uma corrida matinal, não é mais do seu interesse.

E quando foi?

Passamos um pelo outro manhã após manhã e ele nunca sequer olhou pra mim. E o que antes era bem-vindo, agora dói em meu peito.

Sem que perceba estou dando a volta no planetário, o azul profundo do Lago Michigan a minha direita e a arquibancada de concreto a minha esquerda. E então eu escuto.

Os passos atrás de mim.

A energia.

Não preciso olhar para saber quem é.

Não preciso da alegria desesperada que fez meu coração apertar.

— Nina — ele me chama.

Eu não paro.

Percebo que estou chorando e é porque ele está ali. Tão perto.

Tão necessário.

E eu não quero isso.

Não quero precisar de ninguém.

Em poucos segundos, Alex está me puxando, obrigando-me a parar e encará-lo.

— Ei, Nina pare — ofega, pousando o olhar inquiridor em mim.

Há frustração e raiva em seu rosto.

— Por que pediu demissão? — questiona sem preâmbulos.

— Não é óbvio?

— Nada em você é óbvio!

Desvio o olhar para o lago, tento conter a onda de emoção que varre meu íntimo, tomando conta de tudo, como um tsunami.

Já não consigo mergulhar naquele lugar calmo e plácido onde não há sentimento algum.

Estou à deriva, nadando em meio à tempestade.

— Por que não conversou comigo? É por causa do que aconteceu em Nova York? Você disse que...

— Eu menti — grito, soltando meu braço que continuava segurando.

— Mentiu?

— Sim, satisfeito? E você sabia! Sabia o tempo inteiro, você sempre sabe!

— Por que não me disse? Por que não falou que...

— Falou o quê? Deixou bem claro o que queria. Ou o que não queria.

— Não faz ideia do que eu quero...

— Então me diga!

— Eu disse que teríamos que ser amigos. Quero que confie em mim, que...

— Vai à merda, Alex...

Dou meia-volta pra fugir, mas ele me segura de novo.

— Nina, por favor... Não me deixe de fora... — Sua voz está carregada de angústia. — Se não quiser mais trabalhar pra mim, tudo bem, mas não se afaste.

— Por quê? Quem você pensa que é? Por que tem que ser tudo nos seus termos? Eu não estou interessada em sua amizade, ok? Nem em você e nem em ninguém! Eu não preciso disso! Me deixa em paz!

Sem que eu consiga evitar, ele puxa minha blusa para cima, até que os machucados recentes estejam à vista.

— Para continuar fazendo isso com você mesma?

Eu puxo o braço.

— Isso não é problema seu!

— Por que não confia em mim?

— Porque eu não posso confiar em ninguém! — grito. — Não quero ter amigos, não quero sentir nada e você me obriga a sentir e eu estou tão cansada de lutar...

— Por favor, deixa eu te ajudar...

— Eu achei que poderia me ajudar, mas você não quer...

Eu vejo a luta em seu olhar quando ele entende o que eu quero dizer.

E me solta.

Desvio o olhar para o lago.

Alex toca meu rosto. Fecho os olhos, decorando a sensação do seu toque.

— Por favor...

Quando abro os olhos e pouso nos dele de novo, perco um pouquinho mais de mim no processo.

— O que você quer, Alex? Acha que já não foi o suficiente?

— Não, ainda não é suficiente... — E então ele está abaixando a cabeça e seus lábios colidem com os meus.

Duros, frios, implacáveis.

E sem que eu consiga evitar, estou o beijando de volta, devorando sua fúria. Minhas mãos agarrando seu moletom com força, com medo que ele seja fruto da minha imaginação.

Que seu gosto maravilhoso na minha boca seja apenas minha lembrança pregando-me uma peça.

Que seu coração batendo no mesmo ritmo desesperado que o meu seja só uma ilusão e que a qualquer momento acordarei sozinha no chão do meu banheiro.

Mas é real.

As mãos de Alex se apossando de mim é real.

Seus braços me envolvendo e me levando para a arquibancada de cimento, fazendo com que eu sente em seu colo, enquanto nos beijamos como se o mundo fosse acabar é real.

O desejo que me devora por dentro e que inunda meu corpo de calor é real.

O beijo vai se acalmando. A fúria dando lugar à docilidade. E ficamos assim, perdidos em beijos profundos e suaves ao mesmo tempo.

Até que sinto uma languidez tomar conta dos meus membros, Alex solta meus lábios com um suspiro. Afundo o rosto na curva do seu pescoço, os dedos crispados em seu cabelo, os braços de Alex ainda me envolvem, mas não quero encará-lo, e nem quero recomeçar uma discussão ou ouvir de novo ele destilar os mesmos motivos de sempre de que não podemos fazer o que estamos fazendo, porque ele quer apenas ser meu amigo.

Se é que ele quer alguma coisa comigo depois dessa briga.

Talvez seja melhor assim.

Talvez ele me solte e finalmente me deixe ir.

Só preciso obrigar meus pés a irem para longe dele, quando tudo o que quero fazer é ir em sua direção.

— Nina? — ele me chama baixinho.

Não consigo abrir os olhos, me sentindo mais fraca agora.

— Nina? — Alex toca meu rosto, obrigando-me a encará-lo. — Você está queimando.

Por um momento não entendo o que quer dizer, meus olhos lacrimejando.

— O quê?...

— Está se sentindo bem?

— Não, acho que não. — Dou-me conta por fim. E fecho os olhos, voltando a deitar a cabeça em seu ombro.

Talvez eu morra.

Seria doce morrer assim.

 

As horas seguintes são como um borrão. Lembro-me vagamente de Alex me levar até a avenida e entrarmos em um carro.

Um táxi? Não sei direito.

Acho que eu dormi em algum momento, pois acordei com Alex me sacudindo, enquanto saíamos do carro e entrávamos em um prédio. Ele me mantém perto, encosto minha cabeça em seu peito, apreciando seus braços a minha volta.

Noto um tanto confusa que estamos em seu apartamento. Sei que devo protestar, mas não consigo.

Quando abro os olhos de novo, estou em um quarto semiescuro e Alex está tirando minha roupa, como se eu fosse uma boneca de pano.

Ele veste algo em mim que tem seu cheiro, assim como a cama em que me deita e pede que eu descanse.

Suspiro, me ajeitando sob as cobertas, fraca demais para pensar.

Ao abrir os olhos de novo, Alex está deitado no chão ao meu lado.

Por que ele não está na cama?

Sinto como um déjà-vu .

Ele segura minha mão e algo estala dentro de mim.

Uma lembrança escondida.

Mas não consigo acessá-la, ela se perde em meio à fumaça que faz minha cabeça rodar e caio no sono de novo. Com o toque da mão de Alex sobre a minha.

 

Antes

 

Alex

 

Eu a observei terminar de comer seu sanduíche enquanto continuávamos a trabalhar.

Será que se lembrava que eu dividi meu sanduíche com ela uma vez?

Duvido muito.

Eu fui bem ingênuo por achar que seria fácil.

O mês se passou, com Nina trabalhando a poucos metros de mim, enchendo minha vida de sua presença. Onde quer que eu olhasse ela parecia estar. Ouvia sua voz do outro lado da porta com Hannah, a via na minha frente, com seu olhar temeroso enquanto lhe passava algum trabalho, espreitava por trás da porta, quando conversava com Oliver, que estava claramente apaixonado por ela.

E quem poderia culpá-lo?

Nina era sedutora sem nem mesmo perceber, sem fazer o menor esforço. Na verdade, ela parecia se esquivar de qualquer atenção, seja de Hannah, que já tinha comentado comigo que Nina não tinha feito amizade com ninguém na empresa e sempre almoçava sozinha, ou até do flerte de Oliver que não desistia de querer chamar sua atenção, mesmo Nina se mantendo distante.

Quanto a mim, eu ainda era apenas Alex Black para ela. Não tinha dado um passo sequer em sua direção, mais do que o que era permitido como seu chefe.

E tudo por causa da cena que sucedeu em seu segundo dia na empresa, quando cheguei em minha sala e a encontrei ajoelhada sobre a bagunça de papéis espalhados.

E por um momento, sem que eu conseguisse evitar, minha mente a imaginou em outra situação. Meu corpo reagiu quase instintivamente, fantasiando como ela ficaria perfeita sendo submetida por mim. O monstro salivando por se aproximar e pedir que ela ficasse em posição, esperando por minhas ordens, por minhas mãos.

Toda essa epifania durou apenas alguns sombrios segundos, mas bastou para a culpa corroer minhas veias.

Eu não podia – não queria – imaginar Nina em qualquer posição sexual que fosse, ainda mais naquela .

Irritado, eu respirei fundo e me aproximei para ajudá-la, me perguntando o que diabos tinha acontecido ali, apenas para chafurdar um pouco mais em minha miséria quando a toquei para ajudar a se levantar e limpei o sangue que sujava sua testa.

Percebendo, com prazer e aversão, que Nina não parecia indiferente àquela energia que pairava no ar quando estávamos próximos.

E essa constatação apenas me fazia sentir mais medo.

Se fosse algo unilateral, talvez eu pudesse lidar.

Mas como ignorar que ela poderia sentir o mesmo?

E foi com desespero que lhe perguntei se sabia quem eu era, querendo que ela dissesse que sim, que sabia que eu era Will. Quem sabe assim, voltaríamos ao começo. Ao que tinha que ser.

Mas ela apenas tocou no assunto de que nos esbarrávamos nas corridas.

Depois descobri que foi Kelly quem veio atormentá-la, ainda com ressentimento por tudo o que aconteceu.

Eu me sentia culpado por Kelly, até mesmo com pena.

Mas depois que ela mexeu com Nina, meu compadecimento se transformou em raiva e não hesitei em chamar sua atenção. Uma coisa era ficar ressentida comigo, outra era atormentar alguém que não tinha nada a ver com o que aconteceu. E lhe disse isso, deixando claro que se não estivesse satisfeita que saísse da empresa.

Ela preferiu ficar e prometeu não importunar Nina.

Eu esperava que mantivesse a palavra. Eu era um cara justo, mas não iria deixar que machucasse Nina.

Assim, os dias passaram, e não ousei chegar mais perto de Nina do que o necessário, desejando que a atração que sentia, assim como as fantasias nem um pouco apropriadas, se desvanecesse.

No entanto, só aumentavam.

A cada vez que ela abaixava o olhar, submissa.

A cada vez que abria sua boca para me chamar de Senhor Black.

Eu tinha que acabar com aquilo.

Irritado, cheguei à conclusão que talvez eu estivesse agindo de maneira errada. Talvez devesse me aproximar dela. Tentar ser seu amigo, como era meu plano original. Assim, ela se tornaria alguém próxima. Se tornaria novamente a Nina da minha infância.

Mas primeiro tinha que acabar com aquela sensação de que ela tinha medo de mim.

Quando terminamos o trabalho, segurei seu braço e pedi que ficasse, que queria conversar com ela.

— Eu tenho notado que às vezes parece que tem medo de mim.

Ela ruborizou, desviando o olhar.

— Nina, olhe pra mim. Por que tem medo de mim? — insisti.

— Eu não sei. É só... talvez pelo senhor ser meu chefe.

— Você me chama de senhor. — Eu me irritei.

— Achei que fosse o apropriado. Nunca me corrigiu.

— Como acha que deve me chamar?

— Senhor Black.

Automaticamente senti o desejo apertar meu baixo ventre. Deixei meu olhar cair em seus lábios. Nina tinha uma boca linda, em forma de coração.

Perfeita para acolher meu pau.

— Repita.

— Senhor Black...

Cerrei os punhos, inalando pelas narinas.

O desejo e a repulsa travando uma sangrenta batalha dentro de mim.

— O senhor está bravo comigo? — indagou baixinho.

Não Nina, estou bravo comigo mesmo.

— Por que eu estaria?

— Eu não sei...

Ela parecia vulnerável.

Culpada.

Culpada do quê?

Como se... Esperasse que eu estivesse bravo.

Como se esperasse sua punição.

Essa percepção me assombrou por um instante.

— Por que tenho a impressão que está sempre esperando para ser punida?

Ela me encarou com os olhos arregalados.

— Talvez eu esteja — murmurou e algo se quebrou dentro de mim.

Que porra estava acontecendo ali?

Eu a dispensei, não sem antes exigir que não me chamasse mais de senhor.

 

Por dias, aquela cena me assombrou.

O monstro dentro de mim sussurrando que seria muito fácil. Eu podia ordenar que ela se inclinasse sobre minha mesa e levantar sua saia. Deixar as marcas de minha mão em sua pele.

Pedir que me chamasse de Senhor enquanto eu derramasse em cima dela meu prazer e minha violência.

Estava escrito nos olhos de Nina que ela apreciaria.

Que ela queria.

Porém, algo em sua voz naquele dia, em seus gestos nervosos, abriu uma brecha para uma Nina que eu não estava preparado para conhecer.

Para uma Nina que escondia segredos que eu temia descobrir quais eram.

E enquanto eu me aproximava dela, tentando refazer de forma delicada os laços que nos prenderam um dia, a levando comigo para uma reunião depois para comer comigo, eu me perguntava se ela iria confiar em mim o bastante para me dizer.

E se eu estava preparado para ouvir que talvez tivesse chegado tarde demais para protegê-la seja lá do que a machucou no passado.

Um namorado abusivo talvez? Algum quadro de depressão?

Por algum motivo eu não conseguia ir longe em minhas conjecturas, como se temesse que algo aterrador se revelasse aos meus olhos.

Eu queria estar enganado. Queria estar exagerando. Talvez Nina fosse apenas uma garota tímida, reservada. Talvez meu tesão proibido por ela estivesse me fazendo ter aquelas fantasias sobre Nina querer ser punida.

Talvez minha mente estivesse pregando uma peça, inclusive quando eu tinha certeza que ela me olhava com o mesmo desejo.

Irritado, decidi que não iríamos por este caminho.

Não sei muito bem por que pedi que ela fosse na minha casa, quando não havia a menor necessidade. Quando sabia que Victoria chegaria em algum momento.

Apenas me sentia ansioso e irritado ao mesmo tempo. E frustrado.

Eu não deveria me sentir assim por Nina.

Eu não queria estar fazendo aquelas conjecturas sobre a estranheza de seu comportamento.

Inferno, eu não queria nem estar mentindo para ela.

Talvez quando ela chegasse, deveria pedir que sentasse e lhe contaria toda a verdade.

Mas que verdade?

Que eu pedi que ela viesse aqui na minha casa porque queria que visse Victoria. Que sentisse o cheiro da devassidão que me rodeava e parasse de lançar em minha direção olhares que exigiam que eu a tocasse – e a punisse – porque ela não sabia do que eu era capaz.

Ela não era como Victoria. Não podia ser.

Porque se eu olhasse bem fundo em seus olhos eu ainda veria aquela menina que chorou e que eu segurei a mão.

Ou talvez dizer que eu a atraí até ali, porque o monstro estava ansioso para tê-la sob seu domínio. Ele sabia que podia. Que seria fácil. Era só desligar o botão da minha consciência.

Porém, eu sabia que a única verdade que eu podia despejar em cima dela era que eu era Will e que mesmo agora, um homem feito, sentia-me com o estômago doendo de medo de ela virar as costas e sumir da minha vida de novo.

No fundo, eu sabia que eu merecia, mas era egoísta demais para deixá-la ir.

Então, que ela venha.

Eu ainda não sabia qual desfecho teria aquela noite, mas nunca imaginei que acabaria com meus olhos presos nas marcas de autopunição de Nina.

 


Capítulo 5

 

 

Nina

 

Acordo sentindo a boca seca e desorientada. O quarto semiescuro é estranho, mas minha mente desanuvia aos poucos, enquanto me sento na cama, jogando as cobertas para o lado, e meus olhos encontram Chicago amanhecendo através das grandes janelas de vidro do chão ao teto.

É deslumbrante e tira meu fôlego por alguns instantes, as recordações voltando quando me dou conta de que estou na casa de Alex, depois que discutimos.

E nos beijamos.

Quanto tempo estou aqui? Tenho alguns fragmentos de lembranças de Alex pedindo que eu tomasse água e comprimidos e de acordar algumas vezes para encontrar seu olhar preocupado.

Levanto-me um pouco tonta e caminho para fora do quarto, escuto uma música ao longe e vou nessa direção, até que chego à cozinha.

Alex está sentado na bancada com um notebook aberto, ainda tem o cabelo bagunçado como se tivesse acordado há pouco tempo e não usa camisa.

Sinto-me um tanto tímida, com o estranho da situação, olhando pra mim mesma, vestindo apenas a camisa de um pijama masculino.

Pijama dele, presumo.

Alex levanta o olhar e me vê na porta da cozinha.

— Oi. Como está se sentindo? — pergunta com cautela, como se estudando minha reação.

— Oi... Eu não sei ainda...

Ele se levanta e vem na minha direção. Noto, um pouco atordoada que ele usa a calça do pijama que faz conjunto com a blusa que estou usando, enquanto toca minha testa.

— Não está tão quente.

Sua mão desliza por meu rosto por um momento e minha pele celebra aquele toque antes que ele se afaste, indo mexer em algo que parece uma cafeteira.

— Sente-se, precisa comer.

Faço o que ele pediu.

— O que aconteceu? Eu adoeci? Por que me trouxe pra cá?

Ele coloca uma caneca de café na minha frente.

— Sim, estava com febre. Por isso te trouxe para cá.

— Não precisava. — Envolvo a caneca entre os dedos, tomando um gole. — Podia ter me levado para minha casa.

— E quem ia cuidar de você?

— Eu cuido de mim há muito tempo — respondo enquanto ele retira várias coisas do armário, colocando sobre a bancada.

Queijo, pães, geleia... Parece um café da manhã de hotel.

— Todos precisamos ter alguém para cuidar de nós de vez em quando. Ninguém é uma ilha, Nina.

— Eu sou — sussurro enfiando o rosto na caneca e evitando o olhar sagaz de Alex que aponta para a mesa.

— Coma.

— Não tenho fome.

— Acho melhor comer. Não consegui fazer você comer nada ontem.

— Eu não me lembro de muita coisa...

— Estava meio incoerente e dormiu a maior parte do tempo. Por favor, coma — insiste e pego um croissant, passando geleia, para que pare de insistir.

Ele volta a seu lugar na bancada, a minha frente.

— Não deveria estar trabalhando? — arrisco perguntar.

— Eu deveria estar correndo, pelo horário. — Sorri, piscando e tomando um gole de café e voltando a atenção para o computador.

Deus, ele tem um sorriso lindo.

Me dá frio na barriga.

Lembrar da corrida faz meu estômago se apertar não mais de forma boa, e sim de mal-estar.

— Eu não queria ter brigado com você — murmuro.

O olhar de Alex rasteja de volta ao meu.

— Eu também não queria brigar com você, mas fiquei furioso com seu pedido de demissão.

Tento achar as palavras certas para expressar o que tenho a dizer, sem soar algo como: “Não posso ficar ao seu lado sem querer que me beije, ou me toque, ou me bata com força.”.

— É o melhor a fazer. A situação deixou de ser apropriada. Eu sei que tinha dito que ia superar, mas sabe tão bem quanto eu que não é assim.

— Eu sei que está dizendo algo coerente, mas mesmo assim não quero que vá.

— Não pode me impedir.

— Não, não posso, mas posso te convencer.

— Alex...

Sua mão atravessa o balcão e toca a minha.

— Apenas me dê uma chance?

— Para quê?

— Para... — Ele respira fundo, como se tivesse escolhendo o que dizer.

Às vezes, como neste momento, tenho a impressão que Alex quer me dizer alguma coisa. Como se tivesse algo nas entrelinhas.

Tenho a impressão que deveria entender.

Mas eu não entendo Alex. Ele é uma incógnita para mim.

— Eu preciso ir pra minha casa — decido quando ele não completa a frase.

Não que eu queira ir.

Percebo que quero ficar assim, com os dedos de Alex entrelaçados nos meus pelo maior tempo possível.

E isso me assusta de um jeito que faz com que eu solte sua mão, mas Alex me puxa de volta e desta vez levanta a manga do pijama para deixar minhas marcas à mostra.

— Quando começou a fazer isso?

— Alex, por favor... — Tento puxar minha mão de novo, angustiada, e desta vez ele me deixa ir. Escondo os braços embaixo da bancada como se assim pudesse esconder a bagunça que eu sou.

— Eu andei pesquisando sabe? — comenta, como se estivesse falando que pesquisou uma receita de bolo ou algo assim.

Há raiva em sua voz.

Desafio.

Faz meu peito doer.

— As pessoas se automutilam para esconder a dor emocional, pode ter a ver com alguma coisa que aconteceu que não consegue lidar. Ou muitas coisas.

— Pare — imploro.

Ele me encara de forma incisiva.

— Você já falou sobre isso com alguém? Já fez algum tratamento psicológico, um terapeuta...

Desvio o rosto, tentando manter minha respiração calma, meu olhar se perdendo na paisagem através da janela, a mente vagando para o vazio, deixando de escutar Alex e seus questionamentos.

Não posso lidar com isso. Não quero.

E de repente, ele está perto, sinto sua energia atrás de mim, seus lábios roçam meu cabelo.

— Volte — sussurra.

Fecho os olhos, incapaz de ignorar sua presença, a energia morna que transborda da sua pele se alastrando pela minha, a sensação me trazendo de volta.

— Me desculpe, não quero deixá-la mal.

Abro os olhos, pegando a xícara com o café agora quase frio e levando aos lábios.

— Não quero falar sobre isso. Por favor, não me obrigue.

Será que Alex entende que, se insistir, estará abrindo um caminho em minha mente para um lugar que não quero visitar?

Ele se afasta de novo, pegando o bule servindo mais café em nossas xícaras e volta ao seu lugar no balcão.

— Apenas... gostaria que falasse com alguém se não quer falar comigo.

Sacudo a cabeça em negativa, meus olhos presos no café.

Sinto a frustração de Alex como se fosse algo físico.

— Tudo bem. Não vou insistir. Tudo bem? — Há certa fúria em sua voz e me pergunto se está falando a verdade.

É por isso que eu escondo, porque as perguntas que não posso responder sempre surgem.

— Nina? — insiste.

Eu o encaro.

— Promete? — Há uma vulnerabilidade que odeio em minha voz.

— Prometo, melhor assim?

Sacudo a cabeça em afirmativa.

E pouco a pouco, a tensão começa a se dissipar em meu corpo.

De repente o celular de Alex que está sobre o balcão vibra e antes que ele aperte para desligar, vejo o nome Victoria piscar na tela.

— O que Victoria significa pra você? — Não consigo evitar de perguntar.

— Se importa se eu não responder?

— Por quê?

— Você tem suas questões e eu tenho as minhas, Nina.

Ah, essa doeu.

Ele está usando a mesma carta que eu usei.

Tenho assuntos sobre os quais não quero falar. E Alex tem os dele.

Mas isso só faz com que eu me sinta mais curiosa sobre a mulher que divide seus desejos.

— É justo... — murmuro por fim dando de ombros e me levanto levando a xícara até a pia. — Acho que está na hora de eu ir embora.

— Não acho que esteja bem ainda — Alex refuta.

— Eu vou ficar bem. E além do mais você precisa ir para a Black e eu preciso procurar um emprego.

— Sobre isso... Vamos fazer assim. Você ficará aqui hoje. Até ficar restabelecida.

— Eu não acho...

— Por favor. Prometo que não farei perguntas, apenas fique, e então decida.

— Decidir o quê?

— Se quer ficar comigo.

— Ficar com você?

— Na Black. Se ainda quiser pedir demissão, não posso impedi-la.

Antes que eu consiga responder escuto um latido e o cachorro de Alex entra na cozinha.

Ele se aproxima de mim, curioso, me cheirando.

Alex ri.

— Jacob gosta de você.

Toco o focinho do cachorro, que esfrega a cabeça em minha mão, apreciando minha carícia e isso me deixa corajosa o suficiente para me abaixar e ampliar os afagos, sorrindo quando o cão rosna satisfeito, me lambendo.

— Gosta de cachorros? — Alex indaga curioso enquanto pega um saco de ração no armário.

— Eu gosto de animais. — Abraço Jacob, rindo quando ele lambe minha orelha. — Jacob me lembra um cachorro que...

Paro a linha da lembrança, engolindo as palavras.

— Que... — Alex insiste, despejando a ração em um pote. — Você teve um cachorro?

Eu me levanto.

— Não era meu.

Jacob não parece feliz de ser privado dos afagos e pula em mim, ansioso e eu solto uma risada, voltando a acariciar seu focinho, até que ele se afasta, quando Alex o chama para comer.

— Deveria rir mais. — Alex diz. — Poucas vezes a vejo sorrir.

Abaixo o olhar, sem saber o que responder e me dou conta de que Alex tem razão.

Eu acho que nem lembro a última vez que eu ri com vontade.

Recordo-me de nós dois correndo na chuva, aquele dia eu tinha rido com ele.

— Eu queria tomar um banho, acho que vou me sentir melhor — mudo o assunto para coisas práticas.

— Tudo bem.

— Onde estão minhas roupas?

— Ainda na lavadora, só as coloquei hoje de manhã, mas pode ficar com meu pijama — comenta divertido.

Saio da cozinha e entro no banheiro da suíte de Alex.

Ao sair do chuveiro, noto que há uma nécessaire com escova de dente e outros apetrechos de higiene, parecendo novos.

Será que Alex recebe muitas visitas?

Femininas, com certeza, penso.

As garotas com quem ele transa ou sei lá mais o que faz. Por isso deve ter aquelas coisas ali?

Bem, não adianta eu fazer essas conjecturas e no fim nem é da minha conta.

Escovo os dentes e penteio os cabelos, recolocando a blusa de pijama, lembrando que não tenho uma calcinha limpa.

Alex escolhe aquele momento para entrar no quarto, batendo de leve na porta.

— Nina? Posso entrar?

— Sim...

Ele entra e me mede.

— Tudo bem? Achou o que precisava?

— Sim, espero não ter usado a escova de dente de ninguém.

Ele ri.

— Não, era nova.

— Eu... acabei de lembrar que não tenho uma calcinha limpa.

Por favor, que ele não diga que tem um estoque de calcinha também, porque seria um tanto bizarro.

Ele vai até um closet enorme e abre uma gaveta tirando uma cueca boxe.

— Pode usar isso.

— Isso é esquisito.

— Apenas sendo prático. Ou pode ficar sem também.

Ah merda. Ele não falou com malícia ou segundas intenções, mas meu rosto esquenta com a sugestão, assim como outras partes do meu corpo que realmente não acham uma má ideia.

E percebo que Alex entende que a sugestão foi recebida por mim como uma má intenção, quando seu olhar brilha perigosamente, como se tivesse imaginando o mesmo que eu.

Limpo a garganta e pego a cueca de sua mão, saindo do closet .

— Ok, vamos ser práticos!

Desapareço dentro do banheiro, tentando não pensar que estou vestindo a cueca de Alex e que me parece algo meio pervertido, mas sei que este é um pensamento bobo.

— E então? Temos um acordo? — questiona quando retorno à cozinha.

— Acordo?

— Sobre ficar aqui hoje.

Dou de ombros em resposta, ainda incerta, mas não pronta ainda para deixar Alex para trás.

— O que vou ficar fazendo aqui o dia inteiro? — questiono.

— Deveria descansar, ainda está se restabelecendo.

— Ainda me sinto um pouco tonta, mas não doente.

— Isso é bom, mas é melhor não fazer nenhum esforço para se restabelecer mais rápido.

— E o que você vai fazer?

— Estou trabalhando.

— Não quero te atrapalhar.

— Não atrapalha.

— Eu posso te ajudar em alguma coisa?

— Está voltando a suas atividades? — Levanta a sobrancelha divertido.

— Só não quero ficar sem fazer nada.

— Se insiste... — Ele passa o notebook para meu lado. — Pode voltar as suas atividades aproveitando para desmarcar meus compromissos do dia. Eu vou fazer alguns telefonemas no meu escritório.

Ele desaparece porta afora e não posso evitar de acompanhá-lo com o olhar ávido, suas costas largas, a calça de pijama caindo nos quadris estreitos.

Será que ele não deveria vestir uma roupa? Bem, eu também não estou muito apresentável. E ele não viu problema algum nisso.

Passo algum tempo absorta no trabalho, fazendo o que Alex pediu.

Quando ele volta à cozinha, continua com a mesma calça do pijama, para meu deleite e tortura.

— Com fome?

— Um pouco...

— Posso esquentar uma lasanha. — Ele abre a geladeira retirando uma lasanha congelada.

— Se quiser, eu cozinho.

— Você cozinha?

— Todo mundo cozinha, Alex.

Ele ri, colocando a lasanha no forno.

— Nem todos. Minhas irmãs não cozinham.

— Suas irmãs são ricas e têm empregados, o resto da humanidade tem que se virar.

— Tenho que concordar com você. E aí, conseguiu cancelar tudo?

— Sim, mas tenho algumas solicitações, se pudesse verificar.

Ele se coloca ao meu lado e ficamos absortos em resolver questões de trabalho até que o forno apita, avisando que a lasanha está pronta e Alex se afasta, pedindo que eu pegue os pratos no armário.

Sentamo-nos para comer e de repente, Alex levanta a cabeça e sorri pra mim.

— Está vendo como não é difícil?

— O quê? — Descanso o olhar em seu rosto.

— Nós dois.

Abaixo o garfo o encarando. Incerta se gosto ou repudio o “nós dois”.

— O que é isso aqui?

— O quê?

— Nós dois — repito. — Não estou acostumada com homens querendo ser meus amigos.

— Nunca teve um amigo?

Abaixo o olhar para o prato, mexendo na comida, sem querer responder.

Eu tive?

Já não sei. Às vezes, minhas lembranças parecem mais saídas de um sonho.

— Nina? — Alex insiste.

— Não acha confuso?

— O que é confuso?

— É que... tem essa coisa entre nós...

— Essa coisa?

— Você sabe o que quero dizer — rebato baixinho, o encarando. É minha vez de ser incisiva, mesmo sabendo que estou pisando em terreno minado.

Alex sustenta meu olhar e por um momento uma doce tensão paira entre nós.

Até que ele desiste primeiro e se levanta levando o prato até a pia.

A frustração que sinto ameaça romper a fina camada de cordialidade que reveste meu relacionamento com Alex.

Pulo do banco, pousando o olhar em suas costas, enquanto me aproximo, parando há poucos centímetros dele.

— Você consegue ignorar? — murmuro levantando a mão e deixando meus dedos deslizarem por suas costas, os músculos suaves ondulam, a pele morna ouriçando com meu toque.

Alex não se move. Respiro seu calor enquanto deixo minhas mãos correrem livremente até seu peito. Sinto seu coração batendo rápido, sua respiração acelerar, assim como a minha.

Estamos em sintonia agora.

Sei que ele sente meu hálito cálido em sua pele, quando fico na ponta dos pés e toco sua nuca com meus lábios, deixando meu corpo finalmente roçar no dele, até que esteja ancorada em suas costas como um náufrago que achou terra firme.

Sinto-o estremecer, quando deito minha cabeça em seu ombro, aspirado lentamente, fechando os olhos, até que sua mão toca a minha que está em cima do seu coração e ele entrelaça os dedos nos meus e se vira, ficando de frente pra mim.

Abro os olhos para me perder no calor que irradia dos dele, tão perto que posso vislumbrar os pequenos pontos dourados em sua íris.

E como numa dança, ele dá um passo para frente e eu dou para trás, até que esteja próxima ao balcão de novo e Alex me levanta pela cintura até que esteja sentada na banqueta. Começo a ofegar quando sua mão enquadra meu rosto, me mantendo próxima, nossas respirações se misturando, numa doce expectativa.

— Não, Nina — ele diz por fim contra meus lábios. — Eu não posso ignorar... isso.

E insinua os quadris entre os meus.

Solto um gemido baixo, cerrando as pálpebras, ao sentir sua ereção roçando em mim. Uma onda de calor atinge meu ventre e pulsa entre minhas pernas, derretendo minhas defesas.

— Sabe o quanto eu tento?

Mordisca meu lábio inferior, machucando, antes de passar a língua.

— É só o que eu tenho feito...

Ele se esfrega em mim de novo e seguro a respiração, meu clitóris latejando.

— Por favor... — sussurro, perdida, roçando nele de volta e o fazendo gemer e abro os olhos, enevoados de desejo, e projeto a língua para encontrar a dele, a acariciando, nossos olhos bem abertos. Seu pau cada vez mais duro contra mim, até que, com um grunhido, Alex, infiltra os dedos em meus cabelos e finalmente me beija.

Porém, o beijo dura apenas alguns segundos, antes de ouvirmos o latido de Jacob seguido de uma porta se abrindo em algum lugar.

Alex afasta os lábios dos meus, respirando pesado.

— Mas que...

— Alex? — Uma voz feminina se faz ouvir e Alex me solta, dando vários passos atrás enquanto passa os dedos pelo cabelo.

— Desculpe — ele sussurra e no instante seguinte Victoria surge na cozinha, olhando de mim para Alex com curiosidade.

 

Antes

 

Alex

 

Victoria me encarou divertida quando Nina saiu da cozinha naquela noite.

— O que foi isso? Ela é mesmo sua secretária?

Percebi um tom de desconfiança em sua voz, mas ainda estava aturdido demais para ficar bravo ou para pensar em alguma desculpa que desse a entender que Victoria tinha visto demais.

Eu mal conseguia enxergar Victoria naquele momento, que ainda comentava alguma coisa enquanto se mexia na cozinha.

As marcas dos braços de Nina eram só o que eu via.

Quando tinha a chamado ali para me entregar o relatório, com certeza não era o que estava esperando.

Eu não esperava descobrir que ela tinha marcas de mutilação pelo corpo.

Cortes feios. Cicatrizes grotescas.

Marcas que ela tinha feito em si mesma.

O choque ainda percorria meu sangue e fazia meu peito se apertar de puro horror e em vez de melhorar, agora que ela tinha ido embora e saído das minhas vistas, só parecia piorar porque eu revivia a cena em minha mente como um looping .

— Alex? — Victoria me chamou e pisquei para localizá-la na minha frente e percebi que ela devia estar chamando minha atenção há algum tempo.

— Que diabos deu em você? Algum problema com sua secretária? Alguma coisa de trabalho? O que ela veio mesmo fazer aqui? Trazer um relatório?

De repente, me senti irritado com suas indagações.

— Não é da sua conta — cortei com frieza. — Esqueceu por que você está aqui?

Seus olhos brilharam perigosamente e ela deu um sorrisinho antes de abaixar o olhar.

— Me desculpe, senhor.

Quantas vezes já fizemos isso? Quantas vezes encaramos os personagens que mantemos escondidos do mundo exterior, deixando-os vir à tona e dominar nossa persona por algumas horas, apenas para nosso prazer?

Em qualquer outro dia, o monstro abriria um sorriso voraz, ansiando por toda a submissão que Victoria quisesse me dar, com a fome de dor brilhando em seus olhos como agora quando ela olha para mim e tira o casaco. O espartilho de couro preto sob o corpo deslumbrante, a coleira no pescoço sussurrava que ela estava ali para servir. Para ser dominada.

E qualquer outro dia, eu já não saberia se era o monstro ou se era eu que estava ansiando para vê-la a minha mercê, quando ela ajoelhou e abriu minha calça, me acariciando antes de colocá-lo em sua boca.

O prazer fez meu pau endurecer e segurei seus cabelos, fechando os olhos, inalando forte por um momento. Victoria subiu a mão por meu peito e eu a segurei, abrindo os olhos, mas as marcas em seus braços me fizeram soltar um engasgo mudo. Abaixei a cabeça, atordoado e Nina estava ali, lambendo meu pau, os olhos verdes brilhando submissos em minha direção.

Deixei meus dedos deslizarem por seu rosto perfeito.

— Você vai me punir, senhor? Por favor?...

E por um momento, aquilo se tornou meu desejo mais profundo.

O monstro nunca se sentiu tão feliz.

— Quero que deixe marcas em mim... — sussurrou e meus olhos se voltaram para os cortes em seus braços.

E de repente, eu voltei à realidade, piscando, Victoria entrando no meu campo de visão quando sorria e voltava a abaixar a cabeça para meu pau.

Soltei o braço sem nenhuma marca com se queimasse e empurrei Victoria.

Ela se desequilibrou um pouco, me encarando aturdida.

— Senhor... — murmurou confusa. — Alex?

— Me desculpe... Você precisa ir embora.

— Mas...

— Agora! Não quero vê-la aqui quando voltar — ordenei antes de sair da cozinha e andar como um cego pelo corredor até chegar ao banheiro da suíte, e me inclinar sobre o vaso, vomitando todo meu horror.

 


Capítulo 6

 

 

Alex

 

Por um momento, sinto-me atordoado, como quando somos acordados abruptamente em meio a um sonho bom.

Victoria está olhando de mim para Nina com um olhar curioso e não demora para ela entender o que está acontecendo.

Victoria não é idiota.

— Atrapalho? — Levanta a sobrancelha, com ironia.

Eu devia saber que ela iria aparecer ali, depois de dias em que não respondo suas mensagens. A culpa é inteiramente minha.

Volto meu olhar para Nina e ela está pálida e envergonhada.

Sinto-me horrível porque sei que pela segunda vez Victoria está nos interrompendo e desta vez não foi porque eu assim quis.

— Oi Nina, como vai? — Victoria sorri, embora não haja humor em sua expressão. — Não sabia que estavam... trabalhando aqui. — Ela volta a atenção para mim, esperando uma explicação.

— Sim, estamos trabalhando em casa hoje. Nina adoeceu e decidi que poderíamos fazer home office .

É uma explicação ridícula, embora seja parte da verdade e certamente Victoria sabe disso. Seus olhos percorrem os trajes de Nina com sarcasmo.

— Estou vendo. Desculpa atrapalhar o... trabalho. Mas se respondesse minhas mensagens, eu não estaria aqui.

Certo. Já chega. Está na hora de resolver aquela questão com Victoria de uma vez por todas.

— Eu... Acho melhor ir embora — Nina balbucia, se afastando, mas seguro seu braço.

— Não. Vou apenas conversar com Victoria e depois continuamos, ok? — Noto seu olhar até então cabisbaixo se arregalar e percebo que ela está tentando entender o que eu quis dizer com o continuar.

Continuar o trabalho?

Ou o que estávamos fazendo antes de Victoria chegar?

Inferno, nem eu mesmo sei.

Eu não deveria ter deixado chegar àquele ponto.

Eu tinha dito a mim mesmo que nunca mais ia rolar nada entre nós. Por todos os motivos que já estavam bem claros. Nina queria que eu fizesse com ela o que fazia com Victoria e fiz com tantas outras antes. Quando não poderíamos nem mesmo ter um relacionamento considerado normal.

Inferno, ela nem sabe quem sou de verdade e há tanta coisa abaixo da superfície que tenta esconder sob sua pele marcada que me assombra de uma maneira que não sei explicar. Tampouco posso ignorar.

E, embora tudo o que eu deseje desde que pus os olhos nela seja fodê-la de novo de todas as maneiras, não dá para esquecer que aquela é Nina, a garotinha que eu considerei minha irmã.

Porém, por mais que eu tente manter tudo platônico, não consigo parar de desejá-la.

E saber que ela se sente da mesma maneira, apenas piora tudo.

Eu a beijei ontem, quando discutimos.

Eu a beijei agora – e um pouco mais do que isso – e sabe Deus onde estaríamos se Victoria não tivesse aparecido.

Solto seu braço e não respondo, porque nem eu sei mais de nada.

Uma coisa de cada vez.

Agora preciso parar de correr em círculos com Victoria.

Nina finalmente se afasta e Victoria me encara, já não mais sorrindo.

— Você está fodendo sua secretária? — Ela está espantada. Sabe muito bem que eu nunca me envolvo com nenhuma funcionária da Black.

O não está na ponta da língua, mas seria uma mentira. Embora as coisas não sejam do jeito que ela está pensando.

E é exatamente isso que eu lhe digo.

— É mais complicado do que isso.

— Bem... — Caminha até mim. Hoje ela não usa um dos trajes com que costuma aparecer ali para nossos encontros. É até estranho vê-la assim. Vestindo um terninho preto profissional e os cabelos exuberantes presos em um coque. — E quando é que você me colocaria a par dessa complicação?

— Victoria, não haja como se tivéssemos algum compromisso e isso fosse uma traição.

— Eu achei que eu fosse um pouco mais do que isso e que pelo menos teria a educação de me contar que está envolvido com outra pessoa. Eu estou te ligando há dias e você simplesmente me ignorando!

— Me desculpe. Eu sei que deveria ter respondido suas mensagens, mas eu estava enfiado em problemas e...

— Não estava a fim de sexo comigo — completa.

Abro a boca pra refutar, mas ela continua:

— Tudo bem, eu sou grandinha o suficiente pra entender isso, Alex. Mas achei que fosse um cara decente! Um cara que quando não quisesse mais manter nosso acordo, me diria com todas as palavras e não simplesmente me ignorasse quando tem outra submissa pra...

— Nina não é minha submissa — eu a interrompo, irritado.

— Ah não? É o quê? Agora tem casinhos no escritório? Achei que não era disso. Não foi por isso que dispensou a outra mocinha, como é mesmo o nome dela? Kelly?

— Não, eu não tenho casos no escritório.

— Mas está tendo um agora.

— Eu já falei que não é nada disso... É... complicado.

— Complicado como? Meu Deus, está apaixonado por essa garota? Ah... É isso, não é? Por isso está abrindo mão do seu código de honra! Por isso está todo encanado, porque está apaixonado por sua secretária! Era isso que ela estava fazendo aqui naquele dia? Bem que eu senti alguma coisa esquisita no ar, mas achei que estava viajando, já que você nunca se envolve com funcionárias. Por isso... mandou-me embora, não é? Era ela? Era ela que estava na sua cabeça! Tudo faz sentido agora...

— Não é nada disso — insisto, embora as palavras de Victoria façam um assustador sentido.

— É exatamente isso e sabe muito bem — refuta com um sorriso vencido. — Tem razão quando disse que não está me traindo. Não tínhamos este tipo de relacionamento, mas eu só queria que tivesse sido sincero comigo. Éramos amigos antes de tudo, não?

— Sinto muito. Eu teria te dito se eu ao menos entendesse. Falei sério e a situação não é só uma questão de chefe e secretária. Temos um passado em comum.

— Como assim?

— Eu e Nina nos conhecemos quando criança, mas ela não sabe disso.

— Não lembra?

— Ela foi morar comigo e com meu pai verdadeiro, quando os pais dela morreram, ela tinha sete anos e eu dez. E uns dois anos depois eu e minha mãe fomos embora. E nunca mais a vi.

— E a encontrou agora e ela não faz ideia de quem você é?

— Sim. Eu mudei o nome e não somos mais crianças.

— Então ela é como se fosse sua irmã?

— Sim. Não estava nos meus planos me envolver com ela.

— Mas se envolveu.

— Estou tentando resolver isso.

— O que quer dizer?

— Que eu não posso ficar com ela.

— Por que ela não sabe do que você gosta? — Ela toca meu peito.

Eu seguro sua mão.

— Olha, Vic, isso não é problema seu. — Tento cortar o assunto sem parecer um cretino.

Victoria era mesmo uma amiga antes de partirmos para aquele acordo, mas não quer dizer que quero dividir com ela minha situação com Nina.

— É, tem razão — ela dá um passo atrás —, mas sinceramente, Alex? Não acho que vai conseguir fugir disso. Algumas coisas... foram feitas para serem vividas. Mesmo que pareçam erradas. No fim, não fugimos dos nossos desejos.

— Mesmo quando sabemos que pode terminar mal?

— O que sabemos do futuro? Vocês estão aqui agora. Talvez seja exatamente onde têm que estar.

Ela passa por mim e pega a bolsa que deixou na bancada.

— Me desculpe por não ter sido sincero antes.

— Tudo bem. Foi bom enquanto durou, não é? — Ela sorri dando de ombros. — Talvez Paul esteja disponível. — Pisca e com um último aceno ela se vai.

 

Nina

 

Assim, que Alex me dispensou, saí quase correndo da cozinha e pensei mesmo em ir embora.

Meu coração estava apertado de um jeito que nunca esteve antes. Eu não reconhecia aquele sentimento. Aquela raiva da moça ruiva.

A raiva de Alex.

E no fim, raiva de mim mesma por reconhecer que eu estava com ciúme pela primeira vez na minha vida.

Desnorteada, vaguei pela casa, até subir a escada flutuante na sala, ficando surpresa ao chegar em uma espécie de terraço, com uma área com piscina e um deque.

Caminhei até o muro, contemplando o céu nublado e o Lago Michigan ao longe.

Então era assim? Aquele sentimento de posse, a sensação de ameaça representada pela presença de Victoria era nada mais do que ciúme.

Mas quem sou eu para ter ciúme de Alex? Eu sou apenas sua secretária – ou melhor, nem isso eu sei se sou mais, se levar em conta que pedi demissão.

Fizemos sexo uma vez. E ele me disse que nunca seríamos mais do que amigos.

Porém, ele tinha me beijado quando discutimos. Tinha me beijado hoje.

Toco meus lábios, meu corpo esquentando ao lembrar da sensação de tê-lo perto, seu gosto, seu toque...

Nunca foi tão perfeito. Tão certo.

Será que ele não sentia?

Sento-me com as costas no muro, fechando os olhos e lutando contra a vontade de chorar.

Talvez Alex sentisse sim. Havia aquela coisa entre nós, como eu tinha dito, aquela atração. Era tão nítida que quase podíamos tocar. Como uma entidade viva.

Como se estivesse ali antes mesmo de existirmos.

Mas eu sou uma pessoa quebrada. Meu coração é escuro como breu.

Se ele souber quem eu realmente sou, ainda olhará para mim com desejo?

Se ele souber que me desejar é uma maldição?

Eu devia me levantar e ir embora, como tentei fazer quando pedi demissão. Deixar Alex em paz. Ele tinha Victoria, a moça que além de perfeita e sexy, ainda gostava de seus jogos de violência e prazer.

E eu tinha dito a ele que queria o mesmo. Queria que ele me mostrasse como a necessidade que eu tinha de sentir dor podia se transformar em desejo.

Sua rejeição não deveria doer tanto.

Um coração quebrado podia se partir?

— Nina?

Abro os olhos e Alex está vindo em minha direção.

Ele se aproxima e senta ao meu lado, por um momento, não falamos nada. E só de o ter perto, seu ombro contra o meu, já sinto um alívio tão grande que chega a ser assustador.

Ele estende a mão e toca a minha, entrelaçando os dedos.

“São como amigos fazem”, ele disse um dia.

Queria tanto que bastasse.

— Me desculpe — diz por fim.

— Por quê?

— Por Victoria ter aparecido.

— Talvez eu que deva pedir desculpas. Ela parecia brava.

— Sim, ela estava, mas não por você. Eu deveria ter tido uma conversa com ela antes.

— Ela foi embora? — pergunto baixinho o que talvez seja meio óbvio já que Alex está ali.

— Sim. Nós... terminamos, por assim dizer.

Eu o encaro.

Com medo de perguntar por quê.

Meu coração batendo ridiculamente no peito quando percebo as implicações.

As possibilidades.

— Por que terminou com ela? — indago num fio de voz.

Não querendo sonhar, mas não conseguindo conter a pequena esperança em meu coraçãozinho cinzento.

— Por você.

Seu olhar é tão intenso ao dizer isso. Eu me perco naquela intensidade, mas há tanta coisa ali.

Há fogo.

Há receio.

Há esperança.

É exatamente um espelho do que há nos meus.

Mas também há algo mais que não consigo identificar.

Algo que Alex não quer que eu veja.

Assim como eu também escondo meus segredos.

— O que isso quer dizer?

Ele encosta a cabeça no muro, fechando os olhos e respirando fundo, como se tentasse organizar os pensamentos.

— Eu não sei. — Abre os olhos, pousando em nossas mãos unidas. — Só sei que não consigo ficar longe de você. Que não era para ser assim, nada disso eu planejei. Nada do que eu sinto... Eu nem sei o que é isso. Me assusta pra cacete e ao mesmo tempo parece... certo.

— Ajudaria se eu te dissesse que sinto o mesmo?

Ele me encara e de repente eu sinto meus olhos marejados. Porque quero que ele pelo menos entenda um pouquinho como me sinto. Mesmo que não possa dizer, nunca, quem eu sou de verdade. Não para ele. Não quando pela primeira vez, vislumbro algo que me faz querer estar viva.

— Eu nunca senti isso antes... Eu nunca sinto nada, Alex. Às vezes tem algum desejo físico, mas... nunca acaba bem. É como se eu fosse amaldiçoada.

— Não fala assim...

— Mas é verdade. Por isso que quando eu descobri o que você é... O que você faz com Victoria, o que fez comigo... Percebi que talvez seja isso. Eu queria que você fizesse a dor ir embora. Por aqueles instantes... foi assim.

— Eu não posso fazer isso, Nina. Não quero te machucar e nem fazer você acreditar que isso é a chave para suas dores. Eu nem sei de onde elas vêm!

Afasto o olhar, quando percebo o que quer saber.

Ele quer que eu fale.

E isso eu não posso.

Só de pensar em falar já sinto como se uma faca cortasse minha garganta.

— Não importa — sussurro — então só me ajude a fazê-la parar.

— Não é assim que funciona.

— Então como funciona? Me diz como isso — eu aponto para nós — pode funcionar se é assim que você é?

— Eu não preciso ser assim com você.

— Mas você quer... eu sinto. Eu vejo em seu olhar. E se é o mesmo que eu quero, por que não podemos?

— Eu quero te ajudar, Nina, mas não assim.

— Vai dizer de novo que quer ser meu amigo? Quando sabe que é impossível? Os homens nunca querem ser só meus amigos, eu já estou acostumada com isso, Alex.

Seu olhar endurece.

— Quem te machucou?

Eu ofego.

— Não.

— Nina...

Eu me levanto e coloco a mão sobre os ouvidos.

— Pare...

Como fez lá embaixo, ele se coloca atrás de mim. Retira as mãos e as coloca entre as dele.

— Já teve uma lembrança tão horrível que prefere esquecer? Que guarda em um lugar escondido de sua memória?

Ele não responde. Apenas aperta minhas mãos.

— Eu nunca... nunca... posso visitar este lugar, Alex. Eu não posso sequer... lembrar. As palavras seriam como veneno na minha boca. Por favor... Nunca me obrigue a voltar pra lá.

Sinto a hesitação de Alex as minhas costas. Ele não diz nada, apenas me embala contra seu peito, até que minha respiração volte ao normal. Até que a dor de tocar na superfície das minhas lembranças se acalme.

— Não tem nada a ver com você — sussurro —, então apenas deixe onde elas estão. Enterradas em algum lugar dentro de mim. O passado está morto.

Ele me vira. Há de novo uma angústia que não entendo em seu olhar.

— É o que você quer?

— Sim... Eu quero só... aceitar isso. — Levanto nossas mãos unidas. — Como amigos fazem, não é?

— Não quero só ser seu amigo.

— E o que você quer?

— Eu quero te levar para a minha cama e foder você de todas as maneiras que venho sonhando há tempos.

Ah minha nossa. Suas palavras atingem em cheio meu ventre e um suave pulsar se instala entre minhas pernas, enquanto meu coração dispara de forma alarmante no peito.

— Se eu pedir para me machucar, você faria?

— Você tem razão, Nina. Tem uma parte de mim que quer fazer exatamente isso, mas estou em uma luta contra ela agora.

— E quem vai vencer?

— Eu não sei. Por hoje? Eu quero apenas estar dentro de você de novo.

Perco o fôlego, quando ele encosta a testa na minha e seguro seu olhar.

— Eu já te mostrei minha violência. Agora eu vou mostrar meu amor.

 

Antes

 

Nina

 

Não conseguia me lembrar com o que estava sonhando quando acordei, mas era algo que deixava meu coração pesado.

Eu podia apostar que eram aqueles tipos de sonhos. Sonhos que na verdade nada mais eram do que meu subconsciente me enganando e deixando escapar aquelas memórias que eu mantinha bem escondida.

Quando eu estava consciente eu fazia um bom trabalho – na maioria das vezes pelo menos – de mantê-las trancafiadas.

E as drogas de Tyler ajudavam bastante também. Eram boas amigas para que eu esquecesse por alguns instantes a merda de pessoa que eu era. Faziam eu ver cor onde só existia escuridão.

Porém, elas perdiam o efeito em algum momento.

Tyler se mexeu do meu lado, mas não acordou quando levantei. Peguei minha camiseta no chão e a vesti, saindo do quarto e indo para o banheiro. Ainda estava escuro lá fora, e não fazia ideia que horas eram, embora ainda ouvisse uma música baixa vindo do andar de baixo da casa onde Tyler morava com outros dois estudantes e membros da sua banda. Quando Tyler me contou que tinha uma banda, ao nos encontrarmos pela primeira vez há quase um ano, eu não sei bem o que esperava, mas a verdade é que a banda era mais um projeto paralelo que ele e os amigos levavam enquanto estudavam arquitetura na Universidade de Chicago.

Tyler e seus amigos, Greg e Mark, eram bem populares e a casa estava sempre cheia de festa e música. Ainda me recordo a primeira vez que Tyler me trouxe ali, no fim daquela mesma noite em que me deu carona. Primeiro eu estava nervosa com a perspectiva de ir a uma festa, mas relaxei quando Tyler me deu maconha. E ficou muito mais fácil cumprimentar as pessoas que Tyler me apresentava quando chegamos na casa de fraternidade em que a banda ia tocar e pegar o copo de cerveja que colocaram na minha mão, enquanto Tyler pedia que eu ficasse à vontade durante o tempo em que ele se apresentava.

Tyler tocava guitarra e por algumas horas eu fiquei ali, curtindo a música, bebendo uma cerveja após a outra, fumando maconha e não pensando muito no que estava fazendo quando me deram um comprimido que eu nem fazia ideia do que era. Mas curti a sensação.

Tyler voltou para minha companhia algum tempo depois e não me recordo o que foi que conversamos até que ele estivesse com a língua na minha garganta, me prensando em alguma parede. Também não sei muito bem como fomos parar na sua casa e na sua cama. Lembrava que foi divertido deixar que as sensações tomassem meu corpo, sem pensar que estava fazendo algo errado ou sujo.

Era quase como me sentir normal.

Só que quando as drogas saiam do meu sistema a verdade batia como uma foice na minha cabeça. E algumas vezes, como hoje, eu me cortava ali mesmo, no banheiro de Tyler, até me sentir bem de novo.

Tyler sabia o que eu fazia, mas ele não se importava. Era isso que eu gostava em Tyler. Ele não fazia perguntas ou me julgava.

Eu nem podia dizer que éramos namorados. Não é como se ele tivesse me levado para conhecer sua mãe ou me dado um anel de compromisso regado a promessas de amor.

A gente apenas deixava os dias passarem, curtindo o momento. Eu ia nas festas que ele frequentava, confraternizava com seus amigos, me embebedando com eles até que ficávamos sozinhos e nestes momentos eu nunca estava sóbria.

Era mais fácil assim.

Naquele dia, depois que saí do banheiro, estava tremendo inteira de frio e horror.

A música ainda tocava lá embaixo e decidi descer para ver se conseguia algum cigarro ou algo mais forte que me fizesse apagar.

Estava descendo as escadas e avistei Greg e Mark na sala. Mark estava com um bongo, uma espécie de purificador usado para fumar erva enquanto Greg dedilhava em seu baixo, distraído.

— A Nina ainda está aí? — Greg indagou e eu parei ao ouvir meu nome.

— Claro que sim — Mark respondeu depois de passar o bongo para Greg e se recostar. — Acha que o Tyler deveria sair com aquela garota?

Greg lançou um olhar enviesado para o amigo.

— Como assim, por ela ser nova? Ele me disse que ela fez 18, mês passado.

— Não... É que ela é... esquisita, você não acha?

— Ela é meio calada, meio depressiva, né? Mas ela fica legal quando está chapada.

Os dois riram.

— O Tyler se deu muito bem, ela é uma gostosa. — Mark ri.

— Não mexe com ela porque o Tyler vai ficar bravo.

— Ele nunca se importou com isso.

— Com Nina ele se importa. Eu acho que está apaixonado por ela.

— Não viaja. Ela é só uma boceta fácil. Quando ele se cansar, já era — Mark ri fazendo gestos obscenos.

Senti a bile na garganta.

— Tyler talvez esteja só se divertindo, mas Nina pode estar apaixonada por ele. Já faz um tempo que ela não desgruda.

— Ela pode ser gostosa, mas é bem estranha...

— Estranha como?

— Eu não sei... É como se... Ela tivesse a morte no olhar.

Subi correndo para o quarto e me enfiei na cama de Tyler, tremendo mais que antes.

Tyler acordou, me encarando atordoado.

— O que foi?

— Nada... — sussurrei.

— Está gelada. — Ele colocou a mão em mim. — Tudo bem? Está chapada ainda?

— Acho que sim... Não sei... tem mais alguma coisa aí? — implorei e ele riu.

— Não tenho nada, gata, mas posso te distrair de forma melhor.

Ele veio pra cima de mim e eu não me importei.

Deixei que ele despisse minha camiseta e tomasse meu corpo trêmulo.

Meu olhar vagou para as sombras da rua que dançavam no teto escuro, enquanto Tyler se mexia dentro de mim.

Minha mente já estava viajando para longe quando notei de relance que meu pulso ainda sangrava.

Acho que Tyler nem notou.

 


Capítulo 7

 

 

Nina

 

Meus olhos bem abertos estão presos nas sombras do crepúsculo que dançam no teto, enquanto Alex se move suavemente em cima de mim.

Eu o sinto em cada fibra do meu ser, mas ao mesmo tempo, estou lutando para me manter ali.

Sentindo.

Enquanto meu corpo se adequa ao dele, meus quadris se movendo em direção aos seus, sinto minha mente escorregando para a escuridão sem que consiga impedir.

Estou caindo, imergindo.

Estou perdendo a luta que vinha sendo travada em meu íntimo desde que Alex proferiu aquelas palavras no terraço.

Seus lábios, intensos e famintos, selaram aquela promessa em seguida, transformando o medo que ardia na boca do meu estômago em fogo líquido, que se alastrou como labaredas, lambendo minha pele e fazendo uma fogueira em meu ventre.

Eu me agarrei àquelas chamas, dancei em volta delas, deixando minha língua se comunicar com a dele, com a mesma voracidade, nossas mãos deslizando ressentidas por cima das roupas, enquanto o desejo crescia e se instalava numa confusão de toques, gemidos e sussurros.

Deixei que Alex me levasse para seu quarto, para sua cama. Que tirasse minha roupa e contemplasse meu corpo com um desejo tão intenso que era quase como se estivesse me tocando com suas mãos e lábios, enquanto tirava as próprias roupas com pressa.

Havia pressa em suas mãos que abriram um preservativo. Havia pressa no pulsar úmido entre minhas coxas, que esfreguei uma contra a outra, enquanto eu me mantinha dócil e à espera sobre os lençóis, meus olhos percorrendo a perfeição do corpo de Alex, meu clitóris latejando com mais força o contemplando se acariciar ao colocar a camisinha, os olhos presos nos meus, enquanto vinha para cima de mim, agora sem mais pressa.

E finalmente havia aquela suavidade que eu apenas vislumbrei quando estivemos assim da primeira vez e que me assustou da mesma maneira que agora voltava a me assombrar.

Então o medo se espalhou como erva daninha pela minha mente, envolvendo cada terminação nervosa que antes estava concentrada no prazer que Alex me fazia sentir.

Agora está ameaçando me levar.

Enterro as unhas em suas costas, seus músculos ondulando sob meus dedos e tento ficar ali, sentindo as arremetidas dentro do meu corpo, o coração batendo no mesmo ritmo que o meu, os lábios marcando meu pescoço, meus ombros.

Não quero fugir do que Alex faz comigo.

Tem alguma coisa nele que quer que eu fique ali, na superfície, mesmo com o oceano transbordando de fúria.

Não sei de onde nasce aquela certeza intrínseca de que ele não vai deixar eu me afogar, mesmo uma pequena parte de mim, aquela que sabe que não se pode confiar, não se deve confiar – nem nos outros e muito menos em mim mesma – sussurrando assustada que estou a caminho de uma tragédia.

Eu já tinha admitido que aquele lado de Alex, que sabia e queria me punir seria bem-vindo. Eu estava ansiosa por ele.

Implorando por ele.

Desesperada para testar aquela teoria kamikaze que se formara em minha mente de que era aquilo que eu precisava para me manter respirando. Para lidar com a matéria escura que habitava em minha alma.

Alex tinha um lado escuro que eu desejava que abraçasse o meu.

Porém, isso é diferente.

Não é o seu lado escuro que ele está me oferecendo.

— Nina? — ele me chama e percebo que talvez já estivesse fazendo isso há algum tempo. — Volte. — insiste e eu pisco o encarando.

Percebo que é aquela suavidade que noto em seu olhar agora que me aterroriza. É mais assustadora que qualquer violência.

— Está com medo? — sussurra, os lábios tocando os meus, enquanto continua a se mover.

— Apavorada.

— Do que tem medo? Eu não vou machucar você.

— Acho que é este o problema. Eu não sei... fazer isso — confesso.

— O quê?

Quero lhe dizer que eu saberia lidar com sua violência, mas que não sei se consigo lidar com...

Amor.

Eu nem consigo pronunciar a palavra.

Não quero.

O amor só me trouxe dor.

— Do que tem medo, Nina? — insiste, seu olhar vasculhando meu rosto, enquanto os quadris se chocam contra os meus.

Solto um gemido ao senti-lo tão profundamente dentro de mim.

— De você?

Ele me encara confuso e toco seu rosto.

— Deste sentimento que vejo em seus olhos.

— Eu não posso fugir disso, Nina. Eu... — Tapo sua boca com meus dedos. Impedindo-o de continuar.

— Eu não posso... lidar com isso...

Ele segura meu pulso e beija meus dedos, beija minhas feias marcas.

— E o que você quer? Eu farei o que você quiser...

Sacudo a cabeça em negativa, incapaz de falar, ansiando mais do que nunca um bem-vindo esquecimento.

— Apenas... Me mantenha aqui — suplico me movendo com ele, implorando com meu corpo que ele não me deixe cair.

Alex me beija, os olhos abertos, intensificando as investidas, me segurando perto, o desejo se enroscando avassalador dentro de mim.

— Sente isso? — sussurra contra meus lábios e sacudo a cabeça em afirmativa enquanto ele enterra o rosto em meu pescoço, perdido em seu próprio prazer e, mesmo assim, mesmo com Alex arrancando suspiros da minha garganta, meu corpo se desmanchando em volta dele, gozando com o dele, fecho os olhos, e lamento ser este ser quebrado e imperfeito que não consegue enxergar além da escuridão.

Mesmo com meu coração falhando, permito que Alex deite sobre meu peito, deixo que meus dedos acariciem seu cabelo suado, no silêncio da noite que caiu sobre o quarto, enquanto nossas respirações voltam ao normal.

Alex disse que não ia permitir que acabasse em tragédia.

Mas eu sabia que estávamos nos encaminhando para uma.

 

Alex

 

Eu a observo dormir. Desta vez, não estou no chão, estou ao seu lado na cama, o dia amanhece lá fora e passei a noite entre a vigília e o sono, acordando a cada murmúrio da boca de Nina durante o sono.

Eu me perguntava se estava sonhando.

Se tinha pesadelos.

Se eles estavam relacionadas a lembranças de um tempo que ela não queria dividir comigo.

Doía saber que em algum momento de sua curta vida, ela tinha sofrido o bastante para querer esquecer. Talvez tivesse a ver com as marcas em seus braços, ao fato de ela se machucar. Aquelas marcas agora fazem parte dos meus pesadelos. Eu as vejo quando estou com os olhos fechados. Eu as vejo quando mergulho nos olhos de Nina. Por vezes arredio, fugidio, como se temesse os meus.

E às vezes brilhantes como o sol, de uma esperança quase triste, como se tivesse encontrado em mim algo que a completasse.

Claro que eu sabia o que ela pensava. Ela queria muito mais do que eu podia dar. Ela achava que precisava disso.

E me assustava seus motivos escondidos.

Porém, eu já vivi o suficiente para saber que algumas vezes, a maneira que as pessoas lidavam com o sexo, tinha a ver com situações do passado mal resolvidas. Até mesmo traumas. Eu já tinha lidado com inúmeros homens e mulheres naquele mundo, mesmo não sendo o que se pode chamar de Dom nato. Não levava tão a sério aquele estilo de vida, como Paul Red, por exemplo, o cara que tinha me apresentado aquele mundo.

Eu era só um estudante de vinte e poucos anos, que gostava de sexo como qualquer pessoa. Já tinha namorado sério umas duas vezes, já tivera minha cota de encontros casuais e festas de faculdade regadas à bebida, algumas drogas leves e experimentos sexuais como qualquer universitário.

Eu tinha todo o dinheiro que alguém pudesse querer. Um futuro garantido na empresa de Christopher Black, privilégios que muitas pessoas apenas sonham ter.

E mesmo assim, algo parecia estar faltando.

Era como um vazio que nem toda bebida, droga, ou dinheiro do mundo podia preencher.

E muito menos o sexo.

Eu não podia dizer a ninguém que havia uma fúria dentro de mim que eu não compreendia. Eu só sabia que quando eu a deixava vencer, coisas ruins aconteciam.

Eu tinha aprendido a controlá-la.

Afinal, um Black não podia sair por aí se envolvendo em brigas e passando a noite na cadeia, como aconteceu algumas vezes na minha adolescência.

Christopher sempre me livrou dessas encrencas. Mais uma coisa que o dinheiro podia comprar. E eu me sentia horrível depois, ainda mais quando tinha que ser confrontado por ela .

Eu tinha achado que sair de casa e ir morar no campus, fazer faculdade e ter minha própria vida, melhoraria tudo.

Mas era apenas na aparência.

Por dentro, eu me sentia um animal enjaulado.

Então, eu conheci Paul.

E um mundo se abriu.

Eu percebi que podia lidar com aquela violência dentro de mim de maneira mais prazerosa. Que existiam pessoas que apreciavam isso. Que tinham prazer com este lado sombrio do sexo.

E eu estava satisfeito comigo mesmo até agora.

Até hoje eu não tinha parado para pensar que pudesse haver alguma coisa escura entranhada no coração daquelas garotas que pediam por meu açoite. Eu sempre respeitei aquelas mulheres, e qualquer situação que elas se colocavam era consentida. Cheguei a sentir afeto e admiração por algumas, como Victoria, que eu conhecia há uns bons anos, mas nunca quis entrar em suas mentes.

Nunca desejei conhecer seus medos mais profundos, o que as fazia buscar a dor.

Como Nina.

Eu me pergunto se eu nunca a tivesse encontrado, se em algum momento de sua vida, ela encontraria algum homem como eu e Paul. Que entenderia seus desejos, que a traria para este mundo.

Talvez, se ela fosse apenas uma garota que eu encontrasse, sem o passado entre nós, faria o que ela pedisse sem pensar duas vezes.

Mas aquela era Nina. A menina que chorava antes de dormir segurando minha mão. Que tinha perdido os pais com apenas sete anos, e que fora maltratada por minha mãe – sim, eu não queria ver assim quando era criança, mas não podia fingir que minha mãe não a maltratou, pelo menos com sua frieza e ciúme.

E também era a garota que eu tinha prometido ser amigo para sempre, que prometi encontrá-la e que talvez tivesse passado tempo demais para cumprir com essa promessa.

Algo havia acontecido. Algo que ela não queria falar.

Não queria sequer pensar.

“Não tem nada a ver com você.”, ela tinha dito.

Será? Será que se eu contasse que sou Will, Nina me diria que eu era de alguma maneira culpado por aquelas marcas em seus braços?

Ela confiaria em mim para ajudá-la e quem sabe me perdoar, ou fugiria?

Eu me levanto da cama e me arrumo para ir correr, ainda com aquelas questões me atormentando.

Quando volto ao quarto. Nina está sentada na cama. Nua. Com os cabelos bagunçados e os olhos pesados de sono.

Parece hesitante. Parece tão triste que faz meu coração se apertar como se ela mesma estivesse o esmagando em suas mãos.

— Vai correr? — Nota pelas minhas roupas de corrida.

— Sim.

— Posso ir com você?

Não sei por que fico surpreso com a questão, já que Nina corre todas as manhãs.

— Claro que sim. Vou buscar suas roupas na lavanderia.

Saio do quarto e quando volto, ela está no banheiro escovando os dentes. Deixo as roupas e vou para a cozinha. Ligo a cafeteira e tomo um iogurte, deixando um copo para ela.

Nina aparece na cozinha arrumada para a corrida depois de alguns minutos e aponto para o copo.

— Pra você.

— Eu não quero.

— Não pode correr sem ter nada no estômago.

— É o que eu faço toda manhã.

— Não me admira que tenha passado mal aquele dia.

Eu pego o copo.

— Por favor, beba.

Ela rola os olhos e pega o copo da minha mão, o tomando.

Isso me diverte.

Saímos para a rua e eu chamo um táxi.

Ela me encara com os olhos franzidos.

— Você corre muito longe da sua casa.

Não quero dizer a ela que eu corria na esteira na minha academia particular antes de começar a segui-la como um fodido stalker .

— A paisagem do parque e do Lago Michigan é muito mais interessante.

Isso parece satisfazê-la, pois não faz mais nenhuma pergunta.

Quando chegamos a Michigan Ave, em frente ao Millenium Park e sua escultura Cloud Gate, descemos e começamos nosso percurso. Eu me recordo de todas as vezes que a segui de longe, de quando entrava no parque para surpreendê-la mais à frente. De quando comecei a correr ao seu lado e estendemos nosso percurso até o Planetarium, como agora. Relanceio o olhar para sua figura concentrada quando passamos exatamente pelo mesmo lugar que discutimos e nos beijamos e ela olha para mim também, denunciando que está pensando na mesma coisa.

E percebo que há uma pergunta muda em seu olhar antes mesmo que ela abra a boca e as pronuncie.

— Para onde estamos indo?

E eu sei que ela não está se referindo ao nosso percurso de corrida, e sim a nós dois.

Sim, para onde estamos indo?

Eu disse ontem que queria convencê-la a voltar a trabalhar na Black.

Mas é isso que eu quero?

Conseguirei tratar Nina como mais uma secretária, ou até mesmo apenas uma amiga? Quando aquela química irresistível me puxa em sua direção sem que eu tenha o menor controle?

E como se para provar aquela teoria, meu cérebro comanda meus olhos para que desçam até sua boca. Ela arfa, não do esforço físico e sim daquele mesmo desejo que agora começa a queimar em mim também. E sem que um de nós fale qualquer coisa, nossos passos vão diminuindo e não sei quem dá o primeiro passo, mas em algum momento, meus braços então a puxando para perto, minha boca está devorando a sua num beijo que fala tudo o que não podemos dizer em voz alta.

E como no outro dia, eu a levo para a arquibancada e a sento no meu colo, deixando que nossos lábios se comuniquem sem palavras.

Mas mesmo quando estamos respirando um ao outro, suas mãos em meus cabelos, meus dedos achando o caminho para seus seios por cima do moletom, enquanto nossos quadris se buscam e se ressentem das roupas que nos separa, ainda assim, nossas mentes estão despertas hoje. Há questionamentos demais para que consigamos escondê-los com desejo.

Agora ela quebra o beijo e mergulha o olhar cheio de perguntas nos meus.

E vejo claramente a pergunta martelando em sua mente.

Para onde estamos indo?

Eu não faço a mínima ideia.

Só sei que quero ir com ela.

E enquanto seguro sua mão e caminhamos de volta até a avenida, ela não se opõe quando entramos no táxi e dou o meu endereço ao motorista.

Ao entrarmos no meu apartamento, ela solta minha mão.

— Por que me trouxe aqui?

— Quer ir pra sua casa?

Ela hesita.

— Não ainda...

— Então fica.

Para sempre. Quero completar, enquanto estendo a mão e ela a segura com uma segurança em meu toque que não sei se mereço.

Não quando ainda estou escondendo quem sou.

Mas enquanto chegamos ao banheiro, despimos nossas roupas e entramos sob a água quente do chuveiro e ela deixa que eu limpe seu corpo, como se tivéssemos feito isso milhares de vezes antes, percebo que não posso mais fingir que não estou apaixonado por ela.

Não posso fingir que não desejo que este resquício de confiança que está me concedendo agora, me dando acesso ao seu corpo, se estenda a sua mente.

A seu coração.

Que ela confie em mim para dizer por que às vezes sua mente vagava para um lugar onde eu não conseguia alcançá-la, como ontem quando estava dentro dela.

Quero que seja capaz de me perdoar quando souber quem eu sou.

Quero cumprir minha promessa de ser seu amigo para sempre.

Mesmo sabendo que há uma grande probabilidade de tudo isso não acabar bem.

Eu disse a ela que não ia deixar acabar em tragédia.

Mas a verdade é que não sei como vai acabar.

 

Quando saímos do chuveiro eu a enxugo e a visto com um roupão.

Quero saber o que se passa em sua mente, enquanto obviamente nós dois estamos perdidos em pensamentos, enquanto eu me enxugo e ela se coloca em frente ao espelho tentando desfazer os nós dos cabelos.

— Deixa que eu faço isso. — Pego a escova de suas mãos e passo por seu cabelo, nossos olhares se encontram através do espelho.

— Você faz isso com elas?

— Elas?

— Victoria e as outras mulheres... que traz aqui.

Hesito em responder, sem entender por que ela quer saber de como é meu relacionamento com Victoria ou qualquer outra mulher.

— Você disse que Victoria não era sua namorada, mas... como funcionava? Ela era tipo... uma escrava sexual?

Eu solto uma risada.

— O que você sabe sobre isso?

Ela se volta pra mim.

— Não muito. Por isso estou te perguntando.

— Não, ela não era minha escrava, embora alguns tipos de relacionamentos neste meio se baseiam nisso. Em submissão de um e o controle do outro.

— Você gosta disso? Da submissão?

— Nina...

— Por favor? Me explica? Eu só queria entender.

Hesito por um momento, mas sinto que não vai desistir. E de repente se instala em mim um medo de que ela vá a outro lugar para sanar sua curiosidade.

Ou um outro alguém.

— Você transava com ela na sua cama? — insiste.

— Não. Eu tenho um quarto específico para isso.

— Se eu pedir pra você me mostrar, me mostraria?

O monstro adormecido dentro de mim, abre os olhos, espreitando. Aspirando o cheiro da curiosidade de Nina.

— Por favor. Apenas uma vez — suplica, seu olhar subjugando o meu.

E quando seguro sua mão, fazendo o que pediu, me pergunto quem está dominando quem.

 

Antes

 

Alex

 

Quando deixei Nina na sua casa naquela manhã, eu sentia que finalmente eu estava retomando o controle da situação.

Pela primeira vez, parecia que estávamos dando passos seguros para o que eu acreditava ser uma relação de amizade. Assim como tivemos um dia e que foi brutalmente cortada.

Eu segurei sua mão e falei das minhas irmãs e se Nina se negou a falar qualquer coisa sobre ela, tinha certeza que ainda haveria tempo. Talvez na viagem que iríamos fazer hoje para Nova York as coisas mudassem definitivamente. Talvez até eu pudesse me adiantar e finalmente contar a verdade? Ainda não tinha certeza se era o certo a fazer tão cedo.

Eu devia me sentir feliz pelas coisas estarem naquele ponto, ainda mais depois do que aconteceu ontem com Oliver Fisher. Ainda era difícil não ficar irritado quando me lembrava.

Acho que nunca estive tão furioso na minha vida como naquele momento. A cena de Nina com Oliver nas escadarias do prédio se repetia na minha mente e eu tentava me segurar para não sair da minha sala e levar Oliver para algum beco e socar sua cara até que estivesse irreconhecível.

Ainda parecia surreal que eu tivesse aberto aquela porta e visto o que vi. Acho que até aquele momento, eu não tinha entendido o quanto Nina estava mexendo com a minha cabeça e não de forma saudável.

Eu sabia que me sentia atraído por ela. Sabia que talvez ela sentisse o mesmo e estava disposto a passar por cima daquilo para que pudéssemos ser amigos, para seguir meu plano original sem complicar tudo deixando aquela atração dominar a situação, por que eu sabia que já seria difícil eu me revelar a Nina assim, se houvesse algo mais no meio ia ficar bem pior.

Só que eu não contava em pegar Nina com Oliver. Era óbvio que ele estava caído por Nina, qualquer idiota via isso, mas ela sempre parecia fingir que não entendia seus avanços desajeitados. Quando a vi com ele, achei que tivesse sido ingênuo.

Voltei para minha sala com mil demônios sobre meus ombros, com vontade de quebrar alguma coisa. Tentei colocar tudo em perspectiva e até me dar conta que estava sendo ridículo. Nina era uma moça jovem e solteira. Ela poderia sair com que bem entendesse.

Talvez até estivesse apaixonada por Oliver e eu não poderia fazer nada se assim fosse. Eu só teria que ignorar aquela dor estranha no meu peito, o ciúme de Oliver que podia colocar suas mãos nela porque não havia nenhum passado entre eles os impedindo.

Então, decidi que ia ser racional. Eu podia usar aquele episódio para conquistar a confiança de Nina, tentar ser seu amigo, quem sabe seu confidente. Custou-me muito chamá-la na minha sala e perguntar se estava apaixonada por Oliver e fiquei surpreso por ela confessar que não e ainda se sentir culpada.

Lá estava de novo. A culpa.

Parecia que carregava aquela palavra como um mantra e eu me perguntava desde quando.

Todavia, não podia negar que fiquei aliviado. Ela não estava apaixonada por Oliver. Eu não deveria ter ficado feliz, mas fiquei.

Mesmo sabendo que isso não mudava nada entre nós.

Agora, enquanto voltava caminhando para minha casa, sentia-me ansioso para nossa viagem.

Eu dizia a mim mesmo que era apenas por causa daquele frágil laço de confiança que havia se criado entre nós naquela manhã. Estava ansioso para saber até onde iríamos.

Eu queria tanto olhar em seus olhos e dizer quem eu era. Queria ter certeza que ela não me odiaria por isso.

Não podia esquecer das marcas em seus braços e que havia algo tremendamente errado com Nina que eu não sabia o que era.

E ela precisava de um amigo. Ela precisa de Will.

E não de um cara que ia transar com ela e mostrar-lhe seu lado obscuro.

Eu queria ser cor e luz para Nina.

Só não sabia como.

Quando estava chegando ao meu prédio, meu celular tocou e vi o nome da minha mãe brilhando no visor.

Eu desliguei sem atender.

 

 


Capítulo 8

 

 

Nina

 

Havia duas Ninas dentro de mim.

A Nina que ansiava ser normal. Que queria sentir-se merecedora de estar no mundo. Essa Nina, queria estar com Alex. Queria aceitar o que ele tinha lhe oferecido naquele terraço, queria ter encarado seus olhos enquanto faziam amor e aceitado que tudo era possível. E por um momento, eu cheguei a acreditar. Era tentador me deixar levar pelo que eu via nos olhos de Alex. Ele achava que eu era uma boa pessoa. Queria me preservar do seu lado ruim, quando não fazia ideia de que a outra Nina, a Nina que tinha um coração cheio de sombras, ansiava justamente este lado.

Porque era o que eu merecia.

Eu tinha percebido que, enquanto Alex estava dentro de mim, eu lutava contra ele. Contra aquele Alex que me disse que ia me mostrar o amor.

Amor era um carro desgovernado rumo ao precipício.

Eu deveria estar correndo em direção contrária.

E mesmo assim, ainda estou aqui.

Com a mão de Alex segurando a minha, abrindo a porta de um lado seu que ele quer manter longe de mim enquanto estuda minha reação como se eu fosse sair correndo.

Ah Alex, se soubesse...

Eu posso lidar com isso.

Estou ansiando por isso.

Não faço ideia para onde estou indo, acho que nunca soube. Eu tinha me transformado naquele carro desgovernado, mas o precipício nunca chegava. Como uma viagem infinita indo para lugar nenhum.

Porém, enquanto entro naquele quarto com Alex, que cheira a devassidão, sinto-me segura de uma maneira estranha e confortante.

Como o diabo chegando em casa.

No inferno.

Deixo meus olhos curiosos percorrerem o ambiente.

Podia ser um quarto qualquer, com decoração austera e minimalista, cortinas blackout , piso de madeira escura e uma com lençóis pretos de cetim. Porém, alguns objetos espalhados pelo ambiente deixava claro que era mais do que um simples quarto de dormir. Algumas coisas eu nunca tinha visto na vida, e outras se pareciam com o que eu tinha visto naquele clube.

Correntes e algemas saindo do teto. Uma mesa de couro acolchoado. Um estranho banco de madeira com um degrau. Uma prateleira repleta de objetos que ao chegar perto reconheci como apetrechos eróticos de todos os tipos. Açoites. Chicotes. Cordas. Mais algemas. Plugs. Máscaras. Vendas. Grampos. E outros que não sabia nem nomear.

— Está assustada? — Alex pergunta atrás de mim.

Ele não tinha me tocado desde que entramos no quarto.

Eu me viro para encará-lo.

Ele parece... hesitante. Sua postura é relaxada com as mãos nos bolsos do roupão, mas sei que é só uma impressão.

Ele está tenso.

— Como chama aquilo? — Aponto para o banco bizarro em um canto.

— Cavalete para punições.

— Oh... Parece um daqueles de igreja, sabe? Para confissões?

— Você é religiosa?

Sacudo a cabeça em negativa.

— Não. Você é?

— Não.

— Acredita em algo? — Eu me sinto subitamente curiosa, enquanto deixo meus pés vagarem pelo quarto.

— Eu não sei. Às vezes sim, mas não creio que deva deixar meu destino ser regido por algo que não conheço. Invisível. Prefiro eu mesmo fazer meu destino. E você?

— Eu rezava com a minha mãe — sussurro e nem sei por que estou fazendo aquilo.

É muito difícil viajar até aquele tempo. Onde minha mãe existia.

— Ela dizia que eu tinha que ser uma boa menina e que Deus me manteria em segurança. — Meus dedos correm pela madeira do banco. — Acho que não fiz um bom trabalho.

Levanto o olhar e Alex continua no mesmo lugar, me encarando.

— Como chama este quarto?

— Sala de jogos.

— Então tudo isso... — Caminho até o armário e toco um açoite. É macio. — É um jogo?

— Sim.

— Então não é perigoso. — Pego um chicote.

— Depende.

Eu o encaro em desafio.

— Do quê?

Ele caminha até mim e tira o chicote da minha mão.

— De quem está jogando este jogo.

— Me conta como é... Quando traz Victoria aqui. O que acontece? Você a amarra? A obriga a se ajoelhar? A espanca? Ela te chama de senhor?

Ele ri se aproximando.

— Você está muito curiosa.

— Sim, estou. — Arrisco um sorriso. — É só me contar.

Seu olhar captura o meu e sinto um fogo acendendo em meu ventre.

— Eu peço que ela se ajoelhe — finalmente diz. — Temos regras aqui. Regras que ela sabe que tem que ser cumpridas, se não quiser ser punida. Eu sou o senhor e ela tem que fazer o que eu mando neste quarto. As regras são minhas e ela precisa confiar em mim.

Pego uma corda.

— Me explica isso.

— Bondage . É a prática de amarrar ou restringir de alguma forma os movimentos do parceiro.

— Qual sua parte preferida? Amarrar? Bater? Impingir dor?

Ele parece irritado com minhas perguntas, mas não faz nenhum movimento para me tirar dali.

— Acha que sou um sádico?

— Responda você. Por que faz isso?

— Por que você quer fazer isso?

— Porque eu sinto que tenho que ser punida. E acho que de alguma maneira, desde quando te conheci, algum instinto em mim, reconheceu que você gosta de punir.

— Eu não sei se gostar é uma palavra adequada.

— Não?

— Eu não sei explicar. É apenas... eu sempre senti que havia um lado ruim em mim. Um lado que me trazia muitos problemas.

— Que tipo de problemas?

— Era como se eu estivesse sempre me controlando para não explodir. Para não me tornar violento.

— Então você usa o sexo como escape?

— De alguma maneira sim. Dominação tem a ver com punição, mas também com controle. Eu sei que eu posso espancar uma mulher durante o sexo, mas sei que tenho que me controlar para isso. Porque está confiando em mim. Confiando que saberei o limite. E descobri que trabalhar este controle faz com que algo na minha mente sinta satisfação. Sinta que eu posso me controlar. Como se controlando alguém eu pudesse me controlar. Controlar meu lado ruim.

— Eu queria saber controlar meu lado ruim — sussurro me virando para a prateleira e pegando um chicote de novo.

— Por que acha que tem um lado ruim?

— Porque eu tenho.

— Eu não acredito. — Alex se encosta em mim, sinto seu calor nas minhas costas e suas palavras em meus cabelos.

Fecho os olhos, querendo ter coragem de contar.

— Mas está aqui.

— Por isso se corta? — Sua mão toca meu braço, acariciando devagar.

— A dor física faz com que minha mente fique em paz. Pelo menos por um tempo... — Pego sua mão que está no meu braço e viro a palma para cima, colocando o chicote sobre ela. — Por favor, faça a dor ir embora.

— Nina... Eu não quero machucar você. — Sua voz sai abafada contra minha nuca e eu me viro, deixando meus olhos se perderem nos seus.

Há fogo e medo nos dele.

Há fogo e desespero nos meus.

— Eu confio em você.

Dou um passo atrás e deixo o roupão cair no chão e sem tirar os olhos dos dele me ajoelho a seus pés.

Eu o vejo cerrar o punho em volta do chicote de equitação e inalar forte pelas narinas.

— Por favor, senhor... — sussurro, implorando não só com minhas palavras, mas com meu olhar, antes de abaixar a cabeça.

Por favor, me preencha com algo que não seja dor.

Parece paradoxal que eu esteja pedindo para ele me punir quando não quero sentir dor, mas nada parece fazer mais sentido do que Alex segurando um chicote na minha frente.

A Nina cheia de pecados está prostrada diante dele, querendo achar algum prazer naquela viagem dolorosa que é sua vida.

— Levante-se.

Eu faço o que ele pediu, estou tremendo em expectativa.

— Apenas uma vez — ele finalmente murmura e eu quase respiro aliviada.

Ah sim.

É isso o que eu quero.

Minha mente deslizando por uma doce inconsciência levada pelas palavras de Alex, mas não é aquela fuga de quando estávamos na cama ontem.

É diferente.

É como entrar em um estado de espírito onde nada mais existe.

Porém, Alex ainda está ali. Ele é o único que está ali.

Ele se coloca a minhas costas e os lábios tocam minha orelha.

— Tudo bem?

— Sim...

— Sim o quê?

— Sim, senhor.

Sua mão toca minha barriga.

— Precisamos de uma palavra de segurança para você.

— O quê?

— Isso é um jogo, amor. E há um limite. Para mim e para você. Confia em mim?

— Sim.

— Então se quiser parar... Sua palavra de segurança é... vamos ver... quer escolher?

Engulo em seco e então sem nem mesmo saber por que eu murmuro.

— Canela.

Os dedos de Alex em minha barriga param por um momento, hesitando. Mas em seguida, ele sobe os dedos por meu cabelo e sinto que está o amarrando para cima.

— Vamos tirar isso do caminho.

Em seguida sinto seus lábios depositando um beijo cálido em minha nuca.

— Eu vou amarrar você. — Ele começa a me rodear. — Eu vou punir você... — Para nas minhas costas. — E depois vou foder você com toda a força que preciso — sussurra em meu ouvido.

Sinto um latejar úmido se instalar em meio a minhas pernas.

— Mas preciso que me diga por que precisa ser punida.

Pisco, desorientada quando ele se coloca na minha frente.

Ele está tão nu quanto eu agora.

Eu poderia ficar admirando Alex por horas, tamanha sua perfeição.

Mas sustento seu olhar, enquanto ele espera minha resposta.

Ele acha que vou recuar.

Tem um lado dele que quer que eu recue. Mas também sei que ele quer que eu fique. Que esses dois lados estão travando uma batalha dentro dele.

— Por que tenho que te punir, Nina? — insiste.

Porque eu sei que nossa história vai acabar mal e mesmo assim eu continuo aqui. Porque sou egoísta demais para ir embora, como fiz das outras vezes. Antes que destruísse mais uma vida. Quero dizer, mas me calo.

Talvez eu deva levar mesmo como um jogo, embora saiba que pra mim é muito mais.

Então umedeço os lábios e o encaro.

— Eu fui uma garota má, senhor.

Alex continua impassível e me pergunto o que se passa em sua mente.

— Levanta seus braços — ordena e eu faço o que pediu.

Alex prende meus pulsos nas algemas que descem por correntes do teto.

Por um momento, meu coração dispara no peito, quando Alex sai do meu campo de visão e quando retorna, coloca uma venda sobre meus olhos.

— Qual é a palavra de segurança? — pergunta no meu ouvido.

— Canela — sussurro, e ele desliza os lábios por meu rosto e deposita um beijo leve em meus lábios.

— Você fica bem assim.

Sua mão desce por meu seio, apenas roçando em meu mamilo e prendo a respiração, o desejo aumentando em meu ventre quando desce mais a mão, até que esteja entre minhas pernas.

Solto um gemido quase assustado quando enfia um dedo em mim.

— Você está tão molhada... isso te excita? — Sua voz está em meus lábios, sinto seu hálito quente em minha língua.

— Sim...

— Sim, o quê?... — Ele desliza outro dedo e eu arfo.

— Sim, senhor.

Sinto algo deslizando por meu seio. Como um... Chicote?

— Isso é um chicote de equitação — ele diz.

Ah, minha nossa. Meu coração dispara no peito. Um misto de expectativa e medo.

Em um instante, ele tira os dedos de mim e quase soluço de frustração, mas não tenho tempo de pensar, porque em seguida o chicote risca o ar e cai em meu seio.

Dói.

É delicioso.

Em seguida sinto os lábios de Alex sobre meu mamilo, onde o chicote estalou, sua língua dura e úmida rodeando minha carne, como se para aplacar a dor.

— Doeu?

— Sim...

— Quer que eu pare?

— Não... eu quero mais — murmuro sem ar e sem que eu possa prever, sinto o golpe na minha barriga e arquejo.

E então seus lábios estão ali também, beijando meu ventre, desta vez ele usa os dentes para arranhar minha pele, e suspiro, quando os arrepios tomam meu corpo.

Quando sinto o chicote de novo, é nas minhas costas, eu já sei o que esperar e seguro a respiração, quando a boca desliza de forma delicada onde me bateu para em seguida deixar a língua tremular sobre minha espinha, numa agonia doce e intensa.

E então ele golpeia minha coxa e as batidas do meu coração dobram quando ele beija ali.

Eu já estou toda trêmula e ansiosa de excitação, quando sem aviso, o chicote desce entre minhas pernas.

Solto um grito de dor e prazer, o sangue zunindo em meus ouvidos quando ele me bate de novo. E de novo. E meu clitóris está latejando de dor e excitação quando finalmente sinto sua boca, ali, primeiro com um chupão que me faz perder o ar e depois com a língua acariciando e me provocando sem perdão.

Ah, Deus... Gemo e me contorço, puxando as correntes, minhas pernas trêmulas e tensas enquanto sinto o orgasmo se aproximando.

Puta merda, em segundos estou gozando forte na boca de Alex, meu corpo estremecendo e gemidos altos escapando de minha garganta.

Acho que saio do ar por alguns instantes, porque quando volto à realidade, Alex está me soltando, as mãos massageando meus pulsos, enquanto ele me leva para a cama no meio do quarto e retira a venda.

Pisco desorientada para vê-lo lindo e nu a minha volta, colocando um preservativo e sinto uma lança aguda de desejo pulsar entre minhas coxas de novo.

— Fique de quatro — ordena com a voz ríspida de desejo que é como um açoite em meu íntimo.

Ainda sinto-me trêmula e fraca do orgasmo, mas faço o que pediu e Alex vem para cima da cama, puxando meus quadris de encontro aos seus e ele pincela minha entrada com sua ereção, antes de entrar em mim, arrancando um gemido dos meus lábios, quando bate com força em minha bunda, tirando e arremetendo de novo.

— Vamos ver quão forte você vai gozar assim...

Seus dedos viajam por minhas costas e ele puxa meu cabelo, enquanto mete fundo em mim repetidas vezes, fazendo um prazer quente se instaurar em meu ventre de novo e não demora para que eu goze, me desmanchando embaixo dele. E ainda estou arfando e zonza de prazer quando ele sai de mim e me vira, me penetrando assim, os olhos presos nos meus.

Por um momento, não faz nenhum movimento, nossos corpos unidos e nossas respirações se misturando.

— Fique comigo — sussurra, se movendo, devagar desta vez, e percebo que está pedindo para que não deixe minha mente vagar para outro lugar como da outra vez. — Está comigo? — repete beijando meus lábios e arrancando um pedaço do meu coração com as mãos.

Sacudo a cabeça em afirmativa, incapaz de falar e sinto o prazer voltar a pulsar, forte e avassalador, como se Alex fosse uma fonte inesgotável de vida. E nem pisco enquanto ele intensifica os movimentos, metendo rápido, os quadris batendo forte em mim, a testa encostada na minha e os olhos presos nos meus, até que gozamos juntos, forte e ruidosamente, nossos corpos tencionando em ondas de pura eletricidade antes de cairmos exaustos e ofegantes.

Alex levanta a cabeça, algum tempo depois, retirando os cabelos suados do meu rosto, enquanto se afasta para o lado.

— Tudo bem?

— Sim... — murmuro, ainda meio sem ar depois de tanto prazer.

O olhar de Alex viaja por meu corpo e está sério, como se estivesse bravo.

Franzo o olhar, confusa.

— Por que está bravo?

— Porque eu falei que não ia mais acontecer. — Seus dedos deslizam por minha barriga e vejo que há um vergão vermelho.

Ele se afasta depois de repetir a mesma coisa que disse na primeira vez que ficamos juntos.

Não quero me sentir mal, mas é o que Alex faz comigo quando tenta me afastar daquele lado dele.

Porque não sei se apenas sua parte suave serve pra mim.

Já quase posso sentir a onda de dor se aproximando, prevendo que Alex vai se levantar e me deixar ali. Ou me mandar ir embora.

Uma hora ele vai se cansar de alguém como eu. Não vai nem precisar que eu fuja.

— Vai me deixar sozinha? — indago com medo que se repita a mesma coisa que aconteceu naquele quarto de hotel. Já sinto o peso no meu estômago. As sombras se aproximando com nuvens escuras que precede o vendaval.

Mas Alex de repente segura minha mão na sua, entrelaçando nossos dedos.

— Nunca mais.

Eu me viro para encará-lo, uma sensação de déjà-vu me tomando, mas não sei de onde vem.

— Vamos limpar você — ele diz de repente e sai da cama, me pegando no colo e me levando de novo para seu quarto e então para o banheiro, me colocando na banheira e ligando a torneira, sentando atrás de mim.

A água quente nos envolve e relaxo em seus braços.

Como algo que ele diz ser errado pode ser tão certo?

Eu nunca antes achei que alguma coisa podia ser certa na minha vida. Tudo parecia errado e fora do lugar. Como se eu não pertencesse àquele mundo.

Mas com Alex, eu sinto que posso ter encontrado um lugar.

— Fica comigo — arrisco pedir. — Eu posso confiar em você se você confiar em mim. Posso ser o que você precisa, se você for o que eu preciso também.

Ele não diz nada por um momento, antes de se inclinar e beijar minha nuca.

— Eu quero ficar com você como nunca quis nada antes, mas eu preciso te dizer algo... — ele hesita e não sei se quero ouvir o que tem a dizer.

Mas antes que Alex diga qualquer coisa, escutamos um barulho e de repente a porta se abre e levo um susto quando a irmã de Alex, Aria, surge no banheiro, nos flagrando.

 

Antes

 

Alex

 

O whisky desceu queimando na minha garganta, mas não me importei, apenas deixei o copo no balcão e pedi que o garçom me servisse outro.

Que merda eu tinha feito naquela noite?

De todos os pecados dos quais eu me envergonhava, e não eram poucos, aquele foi sem dúvida o pior.

Eu tinha perdido a batalha contra minha atração por Nina.

Quão idiota eu fui por achar que estava no controle da situação? O monstro estava rindo agora, satisfeito e ansioso por mais.

Mas não teria mais.

Eu me certificaria disso.

Porém, como esquecer que foi Nina quem pediu por aquilo? Eu achei que ela correria sem olhar para trás quando a levei naquele clube, eu queria mesmo que ela fugisse quando eu lhe confessasse meus desejos mais sombrios, mas em vez disso ela veio até mim como se nada mais importasse.

E em vez de eu repeli-la, eu apenas a trouxe para mais perto. Havia deixado minhas marcas em sua pele branca, marcas de prazer e dor que agora faziam um tenebroso par com as marcas em seu braço.

Nina confessou que queria aquela dor. Que precisava dela. Ela a buscou em mim naquela noite.

E encontrou.

Agora, eu me sentia mergulhado em um mar de arrependimento e remorso.

E como seriam as coisas a partir de agora? Vamos fingir que nada aconteceu?

“Você pode continuar. Você gostou de cada minuto que esteve dentro dela. Cada gemido – de dor e prazer – que saiu de seus lábios. Você quer de novo e sabe disso.”

Ignorei o monstro sussurrando dentro de mim e tomei mais um gole de whisky me sentindo um fraco imbecil por ter fugido como um moleque e a deixado sozinha no quarto.

Mas eu não podia encará-la. E não podia encarar a mim mesmo agora.

— Problemas no paraíso?

Soltei um palavrão baixo ao ouvir a voz de Jack ao meu lado.

Ele se sentou sem nem pedir permissão e pediu uma bebida.

— Jack, não estou a fim de aguentar suas merdas agora, ok?

Ele riu.

— Parece que tem bastante merda na sua cabeça para aguentar as minhas mesmo... qual o problema? Ainda chateado por que perdeu um negócio pra mim? Opa, um não, dois! — Ele riu com vontade.

Eu ignorei.

Jack estava disposto a me provocar e só ia parar se eu ignorasse, embora não fosse de seu feitio desistir.

Jack era assim, quando ele queria algo, ele não descansava até conseguir.

Ele quis fazer fortuna vindo do nada e fez.

Ele quis Charlotte e a teve.

Agora ele a queria de volta e moveria montanhas para conseguir encontrá-la.

O problema é que Charlotte não queria ser encontrada e eu já estava de saco cheio de ficar no meio daquele fogo cerrado.

— Por que não desiste? — Eu o encaro. — Já faz quase um ano, Jack. Charlotte não quer falar com você. E vai continuar com essa guerrinha contra mim até quando?

— Até você me dizer onde ela está.

— Sinceramente, Jack, está sendo infantil.

— Infantil é sua irmã! E isso é só o começo!

— Deveria deixar minha irmã em paz. Eu não sei que merda você fez pra ela desistir do casamento, mas...

— Espera, o que eu fiz? Foi o que ela disse? Que foi algo que eu fiz?

— Ela não me disse nada. — E era verdade. Os motivos de Charlotte ainda eram uma incógnita para mim e minha família.

Embora eu achasse que no fundo Jack devia saber. Charlotte parecia apaixonada por Jack, tinha aceitado casar com ele. Por que ela fugiria no dia do casamento?

— Mas certamente toda sua família acha que foi algo que eu fiz! É típico de vocês! — Ele fez cara de nojo.

— Você deve saber por que ela foi embora, Jack.

— Não, eu não sei. E não vou sossegar até Charlotte voltar e dizer na minha cara porque me deixou!

Ele se levantou, jogando algumas notas no balcão.

— Deixaria ela em paz se tivesse essas resposta?

— Eu não sei. Já quis tanto alcançar algo, como se sua vida dependesse disso, mas não fizesse a menor ideia em que lugar do mundo isso está? Conhece a sensação de vazio correndo seu peito?

Eu me lembrei de Nina. De quando a perdi a primeira vez.

De como me senti sozinho e vazio quando voltei naquela casa e não havia nada.

Mas eu era só uma criança. E embora eu nunca a tenha esquecido, o tempo passou e a vida seguiu seu rumo.

Eu não tinha aquela obsessão que Jack tinha por Charlotte.

Então sacudo a cabeça negativamente.

— Espero que nunca passe por isso — ele diz amargo —, ou melhor, tomara que passe e lembrará o que estou sentindo agora.

Ele sai do bar sem olhar para trás e de novo a imagem de Nina veio em minha mente.

Se ela desaparece agora, o que eu sentiria?

Meu peito se aperta apenas com este pensamento.

Talvez, se Nina sumisse da minha vida agora, as coisas fossem diferentes. Talvez Jack tenha razão e eu entenda um pouquinho de sua dor.

Porém, Nina não vai embora.

Eu posso ter feito merda essa noite, mas não vou fazer de novo.

Eu vou domar o monstro e mantê-la ao meu lado.

 


Capítulo 9

 

 

Nina

 

— Aria, que merda está fazendo aqui?

Alex se recupera do susto antes de mim, enquanto a irmã dele, para falar a verdade, parece estar mais perplexa do que nós.

Sei que meu rosto está tingido de mil tons de vermelho, enquanto o rosto de Aria se transforma em uma máscara de indignação.

— E eu achei que estivesse doente, mas percebo que está muito bem...

— Sai daqui! — Alex esbraveja ignorando a ironia da irmã, se levantando e saindo da banheira.

Eu só consigo tremer de vergonha e abraçar meu próprio corpo querendo ir embora pelo ralo, pois Aria cruza os braços, sem dar o menor sinal de sair do banheiro e franze a testa estudando meu rosto.

— Essa não é sua secretária? — Volta a atenção para Alex que está colocando uma toalha em volta da cintura.

— Eu já falei pra sair daqui! — Aponta para a porta, mas Aria o encara com nojo.

— Não acredito que está trepando com sua secretária!

— Já chega! — Ele pega o braço da irmã e praticamente a arrasta para fora do banheiro.

Minha nossa, o que foi aquilo?

Eu me levanto, louca para colocar minha roupa e vazar daquele apartamento, ainda em choque pelo flagra da irmã de Alex. E se ela tivesse chegado alguns minutos antes e nos pegado na sala de jogos?

Será que ela sabe da existência da sala de jogos, me pergunto.

Ela parecia ter bastante intimidade com Alex, se entrava na casa dele – e no banheiro dele – sem ser convidada.

Talvez o estilo de vida do irmão fosse de conhecimento dela.

Estou pegando a toalha, quando escuto a voz de Alex e paraliso. Eles ainda estão no quarto, percebo.

— Que merda pensa que está fazendo?

— Que merda eu estou fazendo? É você que está transando com sua funcionária, que nojo, Alex!

— Isso não é da sua conta! Nem deveria estar aqui!

— Eu liguei na Black para te chamar para almoçar e me informaram que você não foi trabalhar ontem e nem hoje e que tinha avisado que estava indisposto. Eu fiquei preocupada, achei que estivesse doente ou sei lá...

— Não podia ter ligado?

— Eu liguei! E mandei mensagem, aparentemente seu celular está desligado e agora vejo por quê! Para ninguém te atrapalhar enquanto fode com a secretária! Pelo amor de Deus, Alex, achei que não fosse desses!

— Eu já falei que isso não é da sua conta, que inferno! Agora dê o fora daqui.

— Eu não posso! Vim trazer comida para você e as meninas estão aí comigo.

— O quê?

— O quê? — sussurro, agarrando a toalha em frente ao corpo como se uma das sobrinhas de Alex pudesse entrar correndo no banheiro.

— Você ficou louca? Por que trouxe as meninas?

— Elas queriam te ver! Por isso te liguei e quando me disseram que estava doente, eu pedi que a Elen fizesse seu prato preferido. — Sua voz parece estar risonha. — Risoto de alho-poró. Você ama, não é? Sempre que ficava doente pedia para ela fazer e...

— Você não deveria estar aqui e muito menos com as meninas!

— Qual o problema? Devia me agradecer e não brigar comigo. Eu vim porque estava preocupada e olha como me trata! E tem que pelo menos dar um oi para as meninas. Elas estão lá na sala brincando com o Jacob e muito animadas de almoçar com o tio Alex. Não tenho culpa se estava em um interlúdio sexual com sua secretária! É só mandar ela embora e a gente almoça em paz, certo?

— Aria... — Alex tenta interrompê-la, mas ela continua.

— Eu vou pôr a mesa e acalmar as meninas, ok? Se livre da secretária e nos encontre na sala de jantar.

Escuto passos se afastando e em seguida Alex entra no banheiro.

— Me desculpe por isso. Não fazia ideia que Aria iria aparecer aqui.

— Tudo bem. Eu... Vou embora.

— Não. Você fica.

— Mas eu ouvi ela dizendo que suas sobrinhas estão aí! — exclamo aflita.

— Então deve ter ouvido que Aria trouxe comida. Vamos almoçar e depois eu te levo, certo?

— Não acho uma boa ideia...

— É uma boa ideia. Vou buscar suas roupas.

E sem que eu consiga rebater, Alex sai do banheiro e volta segurando minhas roupas de corrida.

— Vista-se, eu vou fazer o mesmo e vamos encontrar com Aria e as garotas. Vai ser legal conhecer minha sobrinhas. — Sorri como se estivesse falando de uma ocasião social supernormal antes de sair do quarto.

Com um suspiro derrotado, eu me visto e penteio o cabelo, estudando meu rosto pálido no espelho antes de sair do banheiro e encontrar Alex no quarto vestido com um jeans e camiseta informal.

Ok, ele fica muito bem assim também, admiro.

Ele sorri para me acalmar, enquanto segura minha mão.

— Está agindo como se fosse a uma tortura. São só duas garotinhas. Na maioria das vezes são muito fofas.

— E sua irmã que me odeia — murmuro enquanto Alex me leva pelo corredor.

— Aria só ladra, mas não morde. — Aperta meus dedos e chegamos à sala.

Duas garotinhas loiras esta no chão com Jacob e levantam a cabeça quando entramos.

— Tio Alex! — Elas correm para Alex, que as segura no ar, dando dois beijos em seus rostinhos corados.

Jacob se aproxima de mim e afago seus pelos enquanto Alex coloca as meninas no chão.

— Mamãe disse que estava doente! — A mais velha olha desconfiada para Alex. — Não parece doente, tio Alex!

— Vai tomar injeção? — a outra indaga ainda segurando na mão de Alex com um olhar assustado, o fazendo rir.

— Não estou doente e muito menos vou tomar injeção. Quero que conheçam alguém.

Finalmente elas parecem me ver, prendendo os olhinhos curiosos em mim.

— Quem é ela? — a menor pergunta.

— Essa é a Nina. — Ele aponta para a mais nova. — Nina, essa é Isabella. E essa é Arianna. — Bagunça o cabelo da menina mais alta.

— Oi Nina. — As duas acenam entre tímidas e desconfiadas, ainda grudadas na cintura de Alex.

— Ela é sua namorada? — Arianna pergunta.

— Não! — respondo rápido antes de Alex sequer abrir a boca.

— Ela é a secretária do tio Alex — Aria responde atrás de mim. — Como a Kelly era, vocês lembram da Kelly?

Ok, ela diz isso enquanto passa por mim, os olhos cravados nos meus com um aviso muito claro.

Sinceramente, qual o problema dessa mulher?

— Nunca mais a tia Kelly foi lá em casa — Arianna comenta.

— E nunca mais vai mesmo. Ela não é mais secretária do tio Alex — Aria responde, ainda me encarando. — Ela se envolveu com o que não devia. E é assim que o titio age. Ele se livra de quem não sabe seu lugar.

— Aria, que porra... — Alex se volta pra ela que lhe encara com uma carranca.

— Alex!

— O titio falou uma palavra feia — Isabella coloca a mão na boca rindo, seguida de Arianna.

— O titio anda fazendo muitas coisas feias — Aria dardeja. — E vão lavar as mãos para comer.

As meninas correm para fazer o que a mãe mandou e Aria me encara.

— Você pode ir embora.

— Nina não vai embora. — Alex segura minha mão enquanto me puxa em direção à cozinha. — Ela vai almoçar com a gente e vê se para de falar merda, senão mando você ir embora.

— Ah, não se atreveria! — Aria nos segue indignada.

— Só espere pra ver!

— Vai mesmo falar assim comigo?

Eu solto minha mão da de Alex, querendo fugir daqueles tiros trocados entre eles.

— Vou lavar minha mão também, eu brinquei com Jacob.

E antes que Alex tente me impedir, praticamente corro da cozinha. Escuto as risadas das meninas e vou na mesma direção acreditando se tratar de um lavabo e encontro Arianna tentando levantar Isabella para que esta alcance a torneira.

— Ei, meninas, vão cair. — Eu me aproximo.

— A gente não alcança! — Isabella choraminga quando a irmã a coloca no chão, ofegando.

— Tudo bem, eu ajudo.

Ergo Isabella e ela abre a torneira, lavando as mãos e faço o mesmo com Arianna em seguida.

E depois também lavo minhas mãos e elas ficam ali me observando, com os olhinhos curiosos. Enquanto cochicham entre si e soltam risinhos.

— O que foi? — pergunto, será que elas também me odeiam como a mãe delas?

— A Isabella perguntou se você vai casar com o tio Alex.

Ai meu Deus, meu rosto cora violentamente.

— Não, vocês ouviram, eu sou a secretária. Sabem o que é? Trabalho com o tio de vocês — esclareço enquanto minha mente viaja para o momento em que Alex estava me tomando com força na sua sala de jogos, corando como se as duas crianças tivessem o poder de ler minha mente.

Elas não tinham como saber que eu estava.... o quê?

Mentindo?

Não é mentira que eu sou a secretária de Alex.

“ E depois de hoje? O que eu sou? ”, questiono-me mentalmente.

Não faço ideia.

— A gente ia ser dama de honra da tia Charlotte, mas ela fugiu — Isabella diz recebendo um beliscão da irmã.

— Bella, a tia Charlotte não fugiu!

— Fugiu sim, eu ouvi o papai dizer. E o tio Jack está muito bravo com ela. Eu tenho saudade do tio Jack, ele era tão legal...

— Meninas, a comida está esfriando! — Aria grita da cozinha.

— Sim, vamos? — Apressei as duas que saem correndo na minha frente.

Arrasto meus pés atrás delas nem um pouco ansiosa por aquele almoço com a irmã de Alex que claramente não vai com a minha cara.

Quando chego à sala de jantar, Aria está servindo as meninas e Alex vem até mim, com um olhar preocupado.

— Tudo bem?

— Eu ainda acho que podia ir embora... — sussurro baixinho para que só ele escute.

— Não vai não.

E ele me puxa para sentar ao seu lado.

Aria apenas rola os olhos, enquanto mantém a atenção nas meninas, pedindo que sentem direito e as incentivando a comer, enquanto eu e Alex nos servimos.

O risoto está mesmo um primor e percebo que estou com fome quando começo a comer.

— Bom, não é? — Alex sorri.

— Sim, é ótimo.

— Nossa governanta cozinha muito bem.

— E ela gosta de mimar o Alex — Aria comenta.

— Elen mima a todos nós. Deveria ter saído da nossa casa faz tempo. O filho dela é um advogado renomado hoje em dia e insiste que se aposente, mas ela se recusa. Gosta de cuidar da minha família — Alex diz.

— Sebastian devia insistir mais. Eu não deixaria a minha mãe cozinhando até morrer para os outros!

— Elen faz por prazer. Ela não se sentiria bem aposentada. Temos que respeitar.

Aria apenas dá de ombro com desdém e de novo volta a atenção para as meninas que como qualquer criança brincam com a comida.

Aria parece uma mãe enérgica. O jeito que ela cuida das meninas acende uma memória antiga na minha mente que eu afasto, sem a menor vontade de encarar aquelas lembranças.

Não gosto de lembrar dela .

Alex segura minha mão livre por cima da mesa e eu viro o rosto para encontrar seus olhos com uma pergunta muda. Ele percebeu que algo me incomodou.

Sorrio para acalmá-lo, voltando a comer, mas percebo que o olhar de Alex continua em mim.

— Vocês poderiam parar de me irritar? — Aria reclama quando Arianna puxa o cabelo de Isabella que está batendo o garfo na mesa.

— Não estou com fome, podemos ir brincar? — Arianna indaga.

— Não!

— Aria, deixe elas. Vão pedir pra comer quando estiverem com fome — Alex diz e sorri para as meninas. — Podem ir. Que tal fazer um desenho pra mim? Sabem onde estão os materiais.

As duas gritam animadas e pulam da cadeira, correndo para fora da sala de jantar e Aria encara Alex irritada.

— Não devia me desautorizar na frente delas.

— Você exagera. São apenas crianças, deixe que sejam crianças!

— Eu sou a mãe e tenho que dar educação. Acha que é fácil?

— Relaxe e coma. — Alex faz um sinal de descaso com a mão e depois volta a segurar meus dedos.

Sinto os olhos de Aria queimando em nossas mãos unidas, mas Alex não faz o menor sinal de soltar.

Nós terminamos de comer em silêncio e eu respiro aliviada quando Aria se levanta.

— Você me ajuda a colocar os pratos na lava-louça, Alex?

— Não precisa de ajuda pra isso.

— Eu quero conversar com você. É particular. — Ela me fuzila com o olhar. — Assunto de família.

— Eu vou fazer companhia para as meninas. — Apresso-me a sair da sala de jantar e Alex não me impede.

As meninas estão sentadas no chão rodeadas de lápis de cor e papéis de desenho.

— Olha, Nina, meu desenho. — Isabella me mostra um monte de rabisco.

— Está horrível, Bella! — Arianna ri da irmã. — Isso não parece em nada com uma princesa!

Arianna começa a chorar e se levanta para puxar o cabelo da irmã.

Eu consigo segurar seu braço a tempo.

— Não machuque sua irmã.

— Ela falou que meu desenho é feio — choraminga.

— Não é não. Vem aqui, que vou te ajudar.

Sento com ela no chão e começo a desenhar, segurando sua mão enquanto um desenho perfeito de princesa vai surgindo.

Arianna para de desenhar e vem para o nosso lado, impressionada.

— Nossa, é perfeito!

— Eu que fiz! — Isabella ri satisfeita.

— Fez nada, é a Nina que está fazendo. Eu quero também!

Concluo o desenho de Isabella e seguro a mão de Arianna, desenhando para ela uma princesa também.

Quando termino, Alex entra na sala e as meninas correm para ele, mostrando o desenho.

— Olha tio, o que a Nina fez!

Alex admira os desenhos.

— É mesmo muito bom. Por que não vai mostrar para a mãe de vocês?

As duas saem correndo e Alex se aproxima enquanto me levanto.

— Você desenha muito bem. Parece profissional.

— Eu fiz faculdade de arte, mas não terminei. Talvez tenha lido no meu currículo? — Eu me ocupo em juntar a bagunça do chão.

— Ah sim, tinha me esquecido. Por que saiu da faculdade?

Mordo os lábios incomodada com a questão.

— Não deu certo... — desconverso, com medo de Alex insistir.

— Por que escolheu fazer arte? Era algo que sempre quis fazer?

Ele pega os lápis da minha mão, se virando para guardar em uma prateleira, e minha mente viaja até alguns anos atrás.

Uma outra Nina mais jovem desenhando uma intricada caveira para uma tatuagem.

— Não lembro. — Dou de ombros evasiva e Aria entra na sala com as meninas, nos interrompendo.

— Alex, você pode nos levar pra casa? — Aria indaga. — Ainda tenho uma reunião com o pessoal do buffet da festa beneficente hoje à tarde.

— Não veio de carro?

— Não, vim de táxi.

— Pode pegar um táxi de volta — Alex responde seco.

— Alex, você pode levá-las — eu me intrometo. — Eu vou pegar um táxi e ir embora também.

— Então te levo e deixo Aria e as crianças no caminho. Vou pegar as chaves.

Ele se afasta, ignorando a expressão de desagrado de Aria.

Sinto-me sem jeito quando deixada só com ela, já que as meninas estão distraídas com o cachorro.

— Acha que se deu muito bem, não é? — ela diz mordaz.

— Não entendi? — Eu me faço de desentendida.

— Alex nunca saiu com uma funcionária da Black. Deve saber disso.

Não falo nada e ela continua:

— Não sei o que foi que você fez, mas fez bem-feito. Deve ser sua cara de coitadinha.

Cara de coitadinha?

— Alex tem um fraco pelas mocinhas indefesas.

Ah é?

De novo me pergunto se ela sabe sobre as preferências sexuais de Alex.

Antes que ela continue, Alex retorna.

Saímos todos juntos descendo no elevador e seguindo pela garagem até o carro de Alex.

Alex abre a porta da frente para mim, enquanto Aria coloca as meninas atrás e ela não parece feliz em ter que ir atrás com as filhas.

Alex dirige em silêncio até que estejamos em uma área nobre da cidade e estaciona em frente a uma mansão em estilo vitoriana.

Ele sai do carro e ajuda Aria a tirar as meninas, as beijando e se despedindo, antes que elas corram para dentro da casa. Através da porta aberta posso ver uma senhora negra recebendo as meninas e acenando para Alex, enquanto lança um olhar curioso para dentro do carro.

Volto a atenção para Aria e Alex e não escuto o que dizem, mas parecem estar discutindo. Em dado momento, Aria lança um olhar fulminante em minha direção e sai batendo o pé para dentro da casa.

Que diabos era tudo aquilo?

Alex volta para o carro e dá ré, saindo do jardim da mansão.

— Por que sua irmã me detesta? — arrisco perguntar.

— Aria detesta a si mesma — ele comenta de forma enigmática e não diz mais nada.

Alguns minutos depois, Alex para o carro em frente ao meu prédio e saltamos. Ele me acompanha até a porta do edifício e espero que não peça pra subir comigo. Não estou preparada para isso.

De certa forma, agora que me dou conta que estamos prestes a nos separar, sinto-me apreensiva.

Alex segura minhas mãos.

— Vai voltar a Black?

— Acha que devo voltar?

— Sim, eu quero que volte.

— E isso? — Deixo meu olhar cair para nossas mãos unidas.

— Eu não sei, sinceramente. Mas apenas... volte ao trabalho. Vamos dar um jeito em tudo.

— Acha mesmo que tem jeito? — Não consigo disfarçar a ironia e em resposta Alex se abaixa e deixa os lábios tocarem os meus em um beijo lento e persuasivo que faz minha cabeça rodar e meu corpo esquentar devagar.

— Um passo de cada vez, ok? Eu vou dar um jeito nisso. Só... Não posso abrir mão de você agora que te encontrei.

Ele me dá um último beijo rápido e solta minhas mãos, sem me explicar essa última frase e se afasta, entrando em seu carro.

— Bonito!

Viro a cabeça e Lucy está se aproximando.

Coro sem jeito ao perceber que ela deve ter visto Alex me beijando.

— Namorado? — indaga surpresa quando entramos no prédio.

— Não... — resmungo quando entramos no elevador.

— Não achei que tivesse alguém... assim?

Bem, até eu estou surpresa por que ela não estaria?

— É... complicado.

— Complicado como? — Parece ter mais que curiosidade em sua sobrancelha levantada.

Detecto um pouco de preocupação.

Imagino o que Lucy diria se soubesse que tipo de coisas estava deixando Alex fazer comigo mais cedo. Não é algo que a maioria das pessoas entendam.

Provavelmente ela estaria chamando a polícia.

— Ele é meu chefe — confesso enquanto saímos do elevador.

— Ah... Por isso saiu do emprego.

— É, eu disse que é complicado.

— Mas estão juntos.

— Não sei ainda se estamos juntos. É...

— Complicado? — Ela ri e eu não posso deixar de rir também.

— É. E ele quer que eu volte a trabalhar.

— Acha que vai dar certo?

— Ele diz que vai dar um jeito, mas eu não sei como isso pode dar certo.

— E pelo jeito não quer abrir mão do bonitão, não é? Eu posso entender.

Paramos em frente às nossas respectivas portas.

— Olha, Nina, sei que não é da minha conta, mas não deixe ele te persuadir a fazer nada que não queira, ok? — ela diz com preocupação. — Por ele ser seu chefe, pode ter algum poder sobre você. E ele não tem. Nenhum homem tem.

Suas palavras fazem algo ruim se revirar dentro de mim.

Não por Alex. Alex tem poder sobre mim sim. É algo que eu nem sei explicar. Porque há uma parte de mim que quer dar o poder a ele. Principalmente quando estamos dentro daquele quarto. É algo que eu anseio.

Mas sei que Lucy está falando de outro tipo de poder. Um poder muito mais sinistro e assustador.

Um poder que eu conheço muito bem.

— Sabe do que estou falando não é, Nina? — Lucy insiste. — Não deixe um padrão se repetir.

Não respondo.

Apenas me viro para abrir minha porta.

— Quem era aquele cara que veio te procurar?

Eu paro com a chave na fechadura.

— Alguém do passado...

— Alguém que te machucou?

Eu encaro Lucy.

— Não, alguém que eu machuquei.

 

Antes

 

Nina

 

A casa que Tyler dividia com os amigos ficava em Hyde Park, muito próxima ao campus da Universidade de Chicago e às vezes quando eu saía de lá gostava de dar uma volta ao redor dos bonitos prédios do campus considerado não à toa um dos mais bonitos do mundo. Eu curtia me sentar em um dos bancos e ficar observando os estudantes e professores, ocupados em suas vidas tão normais. Desejava ser como eles. Eu me perguntava se era possível. Eu estava terminando o High School e não sabia ainda o que ia fazer da vida, porque no fundo nem me importava. Eu só deixava os dias correrem como um borrão, como se eu fosse uma folha levada pelo vento para qualquer direção.

Todavia, ficar ali, naquele campus, fazia eu sentir saudade de algo que eu ainda nem tinha vivido. Como se houvesse uma outra Nina em outra dimensão. Uma Nina que não perdera os pais aos sete anos e que tinha vivido uma vida normal e feliz e que estaria ingressando em um faculdade agora.

Mas isso era tudo ilusão. Não havia outra dimensão assim como não havia perdão. Então, eu acabava me levantando, acendendo um cigarro e indo pra casa. Como se alguém se importasse com isso.

Ninguém se importava.

Só que naquela noite, quando caminhei pelos campus, não foi para observar os estudantes e lamentar por uma vida que nunca seria minha.

Eu sabia para onde ir.

Não queria ir pra casa. E também não poderia voltar para a casa de Tyler.

Eu nunca mais poderia voltar lá.

Enfim, Tyler tinha saído da minha vida e antes do que eu previra.

Eu sabia que ele estava terminando a faculdade e que talvez sua vida seguisse um outro rumo. Ele comentava que os pais eram pessoas endinheiradas que moravam em uma pequena cidade a algumas horas de Chicago. Que o pai queria que ele assumisse os negócios da família, mas ele queria continuar com a banda.

Problemas tão ridículos que ele achava que eram demais para sua vida pequena burguesa. Eu escutava e não falava nada, porque não tinha o que falar. O que eu sabia da vida? De seguir futuros traçados ou se rebelar e seguir outro rumo?

Eu não tinha opção de uma coisa ou outra. Mas às vezes eu achava que Tyler queria que eu dissesse algo. Chegava a pensar que ele desejava que eu dissesse se iria continuar com ele depois daquela fase.

Ele devia saber a resposta. Eu sempre soube que Tyler era passageiro. Todo mundo vai embora e me deixava para trás, eu já estava acostumada.

Mas não esperava que fosse naquela noite e do jeito que foi.

Eu estava na sala de sua casa. Tyler ainda não havia chegado e Mark me deixou entrar dizendo que em breve a casa estaria cheia para mais uma de suas festas.

Eu não curtia muito ficar na casa quando Tyler não estava, mas sabia que ele ia chegar a qualquer momento, então fiquei por ali. Aceitei a erva que Mark me deu enquanto ele puxava assunto comigo. Eu tentava ser sociável, me recordando da noite em que eu o ouvi me chamando de esquisita.

— Acho que vou fechar meu braço — ele disse em determinado momento, mostrando algumas tatuagens.

— O que quer fazer? — indaguei apreciando os desenhos.

— Eu não sei, talvez uma caveira e uma rosa? Muito clichê. — Ele riu.

Mark era um cara gordinho, com o cabelo ensebado e sorriso fácil. Era legal na maioria das vezes e antes de ele me chamar de esquisita eu gostava mais dele do que Greg, um cara alto e loiro que se achava um presente de Deus para o público feminino e trocava de companhia como quem troca de roupa.

Felizmente, Greg parecia não se importar muito comigo e hoje mesmo ele tinha chegado com uma loira e subido direto para o quarto.

— Eu posso desenhar algo. — Peguei uma folha e caneta que estava por ali e comecei a desenhar.

Quando terminei mostrei para Mark.

— Uau! Ficou muito bom. — Ele me encarou surpreso. — Você desenha bem! Já estudou desenho?

— Não, aprendi sozinha. — Dei de ombros, apagando o cigarro.

— Você é surpreendente, né? — ele comentou me encarando por sobre a fumaça e algo em seu olhar me deixou incomodada.

Lembrei dele me chamando de gostosa e boceta fácil.

A porta se abriu neste momento e alguns caras entraram, segurando vários pacotes com cerveja e salgadinho.

A atenção de Mark foi para eles e eu resolvi subir e esperar Tyler no quarto dele quando ligaram o som.

Eu devia ter cochilado, porque acordei em algum momento com Mark entrando no quarto e fechando a porta.

— Mark? O que está fazendo aqui?

Eu me sentei na cama, tirando o cabelo do rosto. O rosa estava apenas nas pontas agora.

— Achei que a gente podia conversar mais. Se conhecer melhor, sabe? — Ele se aproximou e percebi que estava bem bêbado já.

— Cadê o Tyler?

— Está lá embaixo. Parece que ele subiu aqui e viu que estava dormindo e não quis te acordar.

Coloquei os pés pra fora da cama.

— Vou descer...

— Ei, fica. — Mark segurou meus ombros e enfiou uma mão entre meus cabelos. O olhar pesado fixo em meu rosto — Cara , você é muito gata...

— Mark... — Tentei me soltar, mas ele era bem mais forte.

— Ei, por que está fugindo? Sabe que sou a fim de você faz tempo, né? Acho que o Tyler está cansado de você... Estava se divertindo com aquela garota que o Greg trouxe quando subi aqui.

Bem, não era como se Tyler fosse o cara mais fiel do mundo e na verdade eu nem me importava.

— Mark, me solta... — pedi calmamente, parando de tentar me livrar.

— O quê? Você estava me provocando mais cedo! Com essa sainha curta enquanto desenhava! Eu sei que você quer o mesmo.

— Não, não quero.

— Vamos, só uma chupadinha... E eu deixo você ir. — Ele abriu a calça.

Eu hesitei por apenas alguns instantes.

Eu sabia que se fizesse o que ele queria, ele me deixaria ir mais rápido.

Eu sabia como aquelas coisas funcionavam.

Eu já tinha passado por isso.

 

Quando Tyler abriu a porta e me flagrou fazendo um boquete em seu amigo, ele ficou furioso.

Mark me empurrou e tentava se explicar a Tyler enquanto fechava as calças.

Eu me encolhi na cama, encarando os olhos furiosos e decepcionados de Tyler e me sentindo um lixo.

— Que porra está acontecendo aqui?

— Ei, cara , calma. Ela que me provocou...

— E isso te dava o direito de pegar o que é meu? — Tyler virou um soco no rosto do amigo.

A briga alertou as pessoas na festa e rapidamente estavam tirando Tyler de cima de Mark.

Mark chorava e dizia que Tyler tinha quebrado seu nariz.

— Vai ficar bravo com um amigo por causa de uma putinha fácil?

Greg o arrastou para fora, não sem antes me lançar um olhar de nojo.

Quando Tyler me encarou abaixei o olhar. Ele tinha razão de estar bravo comigo.

— Que merda aconteceu aqui?

— Sinto muito... Eu não queria que ficasse bravo... — Eu me encolhi. Sabia que ele ia me bater.

Mas Tyler não fez isso.

Ele apenas pegou minha mochila e jogou no meu colo.

— Melhor ir embora. Desaparece da minha frente!

Ele saiu do quarto, batendo a porta e eu enxuguei uma lágrima, só percebendo agora que estava chorando.

Coloquei minha mochila nas costas e saí da casa de Tyler pela última vez, sem ousar olhar para os lados.

Depois, eu fui parar no campus, sem saber para onde ir.

Eu ia sentir falta de Tyler. Quando que eu ia aprender a não me apegar às pessoas? Eu sabia que elas iam e vinham, na maior parte do tempo eu conseguia apenas existir, mas às vezes, como se alguma força maior quisesse me lembrar dos meus pecados, alguém aparecia para que eu esquecesse que muros foram erguidos ao meu redor para me proteger e que eles nunca deveriam ruir e, mesmo assim, eu sentia pequenas rachaduras por toda parte, abalando minhas estruturas.

Quando me levantei do banco e tropecei naquele homem, eu devia estar bem ciente disso, mas ele me impediu de cair, indagando se eu estava bem com uma voz preocupada.

Levantei o olhar. Era um homem de meia-idade, bonito e distinto e cheirava a charuto caro.

Algo nele me lembrou alguém.

Naquele momento eu não sabia quem, mas algo fez com que eu não fugisse. Nem quando ele sorriu e perguntou se podia me pagar um café na cafeteria do campus, se apresentando e dizendo que era professor na universidade.

Eu deveria ter fugido.

Mas eu fiquei.

Quando eu percebi quem ele me lembrava, era tarde pra fugir.

Eu não queria fugir.

 


Capítulo 10

 

 

Nina

 

Durmo uma noite sem sonhos e acordo com uma ansiedade diferente dominando meus nervos.

Qual caminho meu relacionamento com Alex vai seguir a partir de agora?

Ele disse para darmos um passo de cada vez e parecia ter certeza de que tudo ia dar certo.

Mas o que ia dar certo? Para Alex provavelmente era apenas uma questão de adequar nosso relacionamento pessoal ou sei lá como chamava nosso relacionamento profissional.

Ele não faz ideia que pra mim é um passo gigante para um lugar que nunca estive.

Pessoas como eu podiam se permitir ao menos tentar ser feliz?

Eu nem sabia como fazer isso.

A verdade é que enquanto me arrumo para correr, tento conter aquela onda inédita de esperança que está crescendo dentro de mim sem que eu consiga conter.

A Nina realista sabe que o que Alex acena como possível é totalmente fora de cogitação. Só que está nascendo outra Nina dentro de mim. Uma Nina que suspira ao lembrar do último beijo de Alex. De como ele segurou minha mão e disse que ia dar um jeito em tudo.

De como ele tinha cedido ontem ao me levar para sua sala de jogos, finalmente compartilhando comigo seu lado sombrio.

Quando eu me recordo disso sinto o medo arrefecer. Porque no fim, Alex não é perfeito. Ele também tem um lado ruim. Um lado que eu não temo, porque combina com o meu.

Porém, Alex havia dito que seria apenas uma vez. Que não queria me machucar. Então o que eu posso esperar dele?

Se Alex quiser apenas meu lado bom?

Eu não tenho um lado bom.

Este pensamento faz minha ansiedade se transformar em apreensão e quando saio do prédio paraliso surpresa ao ver Alex do outro lado da rua. Ele veste seu abrigo cinza, com o capuz sobre a cabeça que o deixaria quase irreconhecível, mas eu o reconheço agora.

Eu o reconheceria em qualquer lugar no meio de uma multidão.

Por um momento, não sei como agir, meu coração disparando no peito de forma boba e suicida. Aquele fio de esperança voltando a domar meus instintos de preservação.

Então, eu corro.

Não preciso olhar para trás para saber que ele está logo atrás de mim, até me alcançar. Não quero pensar que isso é uma metáfora do que me espera pela frente: não adianta fugir, Alex estará sempre correndo atrás de mim.

Por alguns quilômetros permanecemos assim, com Alex correndo em meu encalço até que chegamos a Michigan Ave e ele se coloca ao meu lado.

Levanto a cabeça para encontrar seu olhar preso em mim e não consigo desviar, o fôlego que já estava curto, ficando rarefeito. Até que tropeço em meus próprios pés e Alex estende a mão me segurando.

Eu o encaro ainda atordoada para vê-lo rindo e no instante seguinte, Alex está me beijando.

— Bom dia. — Ele sorri quando finalmente solta meus lábios e não sei como foi que viemos parar ali, com Alex me prensando contra a estátua. Minha cabeça está girando e meu cérebro, assim como todos os membros do meu corpo, viraram gelatina.

E sem ao menos pensar no que estou fazendo, sorrio de volta. Agarrando seu moletom, fico na ponta dos pés e o beijo de novo, engolindo o riso de Alex.

Depois do que parecem horas, mas sei que foi apenas alguns minutos, finalmente nos largamos e Alex segura minha mão enquanto voltamos pelo mesmo caminho, agora andando devagar.

Caramba, eu posso facilmente me acostumar com isso.

— Teve uma boa noite? — pergunta em certo ponto.

E percebo que há uma curiosidade específica em sua pergunta.

Mordo os lábios, incomodada com seu tom de cobrança, embora uma parte de mim entenda a preocupação.

— Sim, eu tive. Sem nenhum... acidente. — Desvio o olhar.

Ele aperta meus dedos, antes de levá-los aos lábios e beijá-los.

— Eu fico feliz com isso.

Quando chegamos em frente ao meu prédio, Alex me beija de novo, desta vez com mais vontade, o que faz meus dedos crisparem com força em seu moletom, quando suas mãos descem apertando meus quadris de encontro a sua ereção.

Ah minha nossa... me esfrego nele instintivamente ao sentir meu clitóris latejando com a fricção.

Mas Alex me empurra suavemente, com um gemido.

— Não é uma boa ideia. — Sorri ao tirar minhas mãos dele.

Suspiro, vencida.

— Sim, tem razão.

Aceno e me viro para entrar, antes que tenha a ideia absurda de pedir para ele subir comigo para uma rapidinha qualquer.

— Nos vemos no escritório? — Alex ainda indaga as minhas costas e antes de entrar eu me viro.

— Sim, senhor. — Não consigo deixar de provocar e os olhos de Alex brilham perigosamente e nem sei se é de desejo ou de fúria.

Nem me importo.

 

Quando chego a Black naquela manhã, estou um pouco apreensiva, com um frio na barriga. Porque de verdade, eu me pergunto como eu e Alex podemos dar certo juntos agora em um ambiente que temos que ser extremamente profissionais, sendo que eu não paro de pensar no que tínhamos começado na calçada do meu prédio, o desejo não diminuindo nem um pouco, nem depois que tomei banho e me arrumei, fazendo todo o caminho para o trabalho. Só fazia aumentar, ainda mais sabendo que ia vê-lo em breve de novo.

“ Senhor Black. ”, penso com a apreensão e o desejo pesando em meu estômago.

— Oi Nina.

Estou ligando meu computador quando Hannah entra na sala.

— Oi Hannah.

— Tudo bem com você? Dois dias sem vir trabalhar, fiquei preocupada.

— Ah, eu tive uma febre. — Não consigo deixar de corar ao lembrar que Alex também não foi trabalhar e me pergunto se as pessoas podem desconfiar de alguma coisa.

Não, é impossível. Eu acho.

— Febre? Como assim? Uma gripe?

— Eu não sei, apenas fiquei febril, mas já estou melhor.

— Sabe que o Alex também não passou bem, não é? Ele também não veio trabalhar esses dias.

— Ah jura? Não sabia — respondo na maior cara de pau, porém, fingindo que estou ocupada em iniciar o sistema e não sei se Hannah acredita.

— Enfim, fico tranquila que melhorou... — ela interrompe a fala quando Alex entra.

Prendo a respiração quase sem querer.

— Ei, oi Alex — Hannah o cumprimenta. — Está melhor?

— Sim, estou. — Seu olhar vaga de Hannah para mim.

— Parece que Nina também está melhor — Hannah comenta. — Será que é uma virose que está circulando pela empresa?

Alex dá de ombros, voltando a atenção para Hannah.

— Pode ser. — Ele acena e entra na sua sala e eu solto a respiração.

— Quer almoçar comigo e Jeremy hoje? — Hannah indaga alheia ao meu nervosismo.

O não está na ponta da língua, mas eu o engulo.

— Tudo bem — eu me vejo respondendo.

Ainda não me sinto à vontade em confraternizar, mas Hannah é uma pessoa legal e preciso mesmo de distração se quero parar de pensar em Alex e no que faríamos com aquela atração que sentíamos.

— Legal! — Hannah sorri. — Nos encontramos às 13 horas no saguão?

— Sim, combinado.

Ela sai da sala e mordo os lábios, o olhar vagando para a porta da sala de Alex, me perguntando se devia ir até lá.

Mas por que eu iria?

— Para com isso, Nina, seja profissional — resmungo para mim mesma e começo a tarefa do dia de responder e-mails e passar recados para Alex e ajustar sua agenda do dia. Tenho várias reuniões que foram desmarcadas para remarcar e tomo um tempo fazendo isso até que o ramal toca e vejo que é da sala de Alex.

— Sim? — Atendo rápido com o coração aos pulos, o que é ridículo.

— Venha até minha sala.

— Ok.

Pego a agenda e me levanto, respirando fundo ao adentrar na sala de Alex.

Quando meu olhar se encontra com o dele, Alex está sorrindo divertido.

— Está nervosa?

— Um pouco...

— Por quê? Achei que tinha superado este medo que tinha de mim, Nina Giordano. — Ele acena para a cadeira em frente a sua mesa. — Sente-se aqui.

Eu faço o que pediu.

— Não é nervoso por causa disso. É... isso entre nós. — Abaixo a voz e Alex suspira ficando sério.

— Eu sei, mas só vai ficar difícil se deixarmos que fique. — Agora sua voz é profissional. — As coisas continuam como sempre foram aqui. Estamos trabalhando e é isso que vamos fazer.

Ah, só isso? Não posso deixar de lamentar.

Acho que uma pequena parte inconsequente dentro de mim estava esperando que Alex fosse estender nosso... caso ou sei lá como chamava para o escritório. Não posso dizer que não fantasiei com Alex me fodendo contra sua mesa.

Ah caramba, estou corando e desvio o olhar para minhas mãos, esperando que Alex não perceba minhas ideias nada profissionais.

De onde estou tirando isso, pelo amor de Deus?

Até poucos dias eu estava quase conformada que qualquer coisa entre mim e Alex nunca daria certo, e agora estou fantasiando com ele me pegando na sua sala?

— Você entende que precisamos ser discretos, não é? — Alex indaga com autoridade e eu aceno a cabeça, concordando e me obrigando a controlar os pensamentos impuros.

— Sim, claro que sim — respondo com firmeza.

Quero perguntar então como vai ficar as coisas fora dali, mas acho que este não é o momento.

— Certo, então, por favor, fique tranquila e aja normalmente. Tudo vai dar certo — ele diz agora com a voz mais amigável.

— Tudo bem — suspiro e abro minha agenda. — Eu já remarquei algumas reuniões que foram desmarcadas nesses dois últimos dias e te mandei a agenda de hoje. Você tem um reunião agora às dez. A pauta já está no seu e-mail. Sua reunião com... — olho minha anotação na agenda — Walter, Green e associados foi remarcada hoje para às 15 também.

— Ótimo.

— E está pendente sua viagem para Washington. Você ficou de verificar a data disponível.

Eu me pergunto se ele vai pedir que eu vá junto nesta viagem.

— Tudo bem, vou verificar, obrigado. Pode ir. — Alex me dispensa.

Sinto-me um tanto decepcionada por ele estar sendo tão profissional e sei que é ridículo, mas é como me sinto.

Droga, preciso aprender a lidar com aquilo, senão realmente não dará certo.

Eu me levanto, esmagando minha apreensão e quando estou saindo Alex me chama.

— Podemos almoçar juntos hoje.

Eu me viro, meu coração ameaçando sair pela boca quando noto o sorriso no rosto de Alex. Não é um sorriso profissional. É caloroso.

É amoroso.

Ele está dizendo discretamente como as coisas são.

Que podemos manter a pose de secretária e chefe, mas que há muito mais por baixo da superfície e que nós dois sabemos disso.

E acho que deve bastar.

Abro um pequeno sorriso, mas me lembro que prometi almoçar com Hannah.

— Eu vou almoçar com a Hannah e o noivo dela.

Alex franze o olhar, e percebo que não está satisfeito e já estou abrindo a boca para dizer que vou desmarcar quando ele concorda.

— Ok. Tudo bem.

Volto para minha mesa e o dia transcorre normalmente até que dá a hora que marquei com Hannah e pego minha bolsa, descendo para o saguão.

Ela está lá com Jeremy e seguimos para o restaurante. Hannah não para de falar dos preparativos de seu casamento que deve acontecer dali a seis meses.

— Eu não quero uma grande festa, amor — Jeremy reclama quando Hannah diz que sua mãe acrescentou mais cinquenta convidados em uma lista que já tinha cem.

— Cento e cinquenta pessoas não é uma grande festa! Sabe que o casamento da Charlotte Black contou com mais de seiscentos convidados.

— Charlotte Black é milionária! Você está louca se acha que vamos bancar uma coisa dessas! E aposto que ela nem conhecia toda essa gente!

— Isso tem razão, e pensar que no fim nem teve casamento — Hannah cochicha entre divertida e lamentosa.

— Todo mundo sabe sobre isso? — indago curiosa.

— Claro que sim, foi um escândalo! Jack White ficou louco!

— Fiquei sabendo que ele e o Alex saíram na mão e tudo — Jeremy fofoca.

— Por que ele ia brigar com o Alex se foi a irmã que fugiu? — questiono.

— Porque o Alex encobriu a Charlotte. Sempre foi assim, todo mundo sabe que a Charlotte era a princesinha da família, e superprotegida. E Alex sempre fez o que ela quis — Hannah comenta. — Eles são muito unidos.

— E Aria? Ela parece ser bem íntima de Alex também.

— Ah sim, a bruxa loira. — Jeremy ri.

— Jeremy! — Hannah o repreende. — Ele fala assim porque é como a Kelly se refere a Aria. Já te falei da Kelly, né? Ela odeia a Aria. E cá pra nós — Hannah abaixa a voz. — A Kelly diz que tem certeza que Aria é apaixonada pelo Alex.

— Mas eles são irmãos! — exclamo confusa, mas imediatamente vem a minha mente a cena quando Alex entrou no carro de Aria depois daquele almoço e como pensei que o abraço dela não parecia fraternal.

— Não são irmãos de sangue — Hannah continua.

— Como assim?

— Não sabia? Alex é filho da segunda esposa do Senhor Black. Ele não é irmão de sangue de Ária e Charlotte — esclarece e agora estou mesmo boquiaberta.

— Eu não fazia ideia...

— Pois é. Por isso a Kelly acha que Aria tem uma paixão secreta pelo irmão! O que eu acho um absurdo, já que são criados como irmãos! Credo!

— E Aria é casada — Jeremy endossa.

— Sim... — concordo, mas minha mente está lembrando de todas as vezes que Aria parecia estar brava comigo. Principalmente quando me flagrou com Alex. Em como parecia... ciúme.

Será que Kelly tinha razão?

Era meio perturbador de pensar que fosse assim.

E se fosse verdade, Alex sabia?

— Vamos pedir a conta? — Jeremy diz me tirando de meus devaneios.

— Sim — concordo.

Enquanto estamos aguardando, Jeremy abraça Hannah e eles trocam um beijo. Fico observando como são amorosos um com o outro.

Como será que eles lidam com isso no ambiente de trabalho?

— Como vocês fazem? — eu me vejo perguntando e eles me encaram confusos.

— O quê?

— Ah, desculpa perguntar. Só fiquei curiosa. Porque trabalham juntos e estão noivos.

— Ah, a gente tira de letra. Na empresa a gente não faz isso obviamente. — Hannah ri. — Agimos como qualquer colega de trabalho, sem nenhuma distinção.

— No começo foi um pouco confuso, claro, quando passamos de colegas para amantes, mas com o tempo e muito disciplina a gente se acostuma — Jeremy endossa.

— Por que está perguntando? — Hannah sorri com malícia. — Está pensando em ter um affair com algum colega, Nina?

— Talvez já esteja... Oliver, não é? — Jeremy pisca.

— Ah não, eu e Oliver não estamos juntos.

— Então algum outro colega? — Hannah insiste e eu enrubesço.

— Não, claro que não. Vamos? — Eu me levanto querendo dar o assunto por encerrado antes que meu rosto vermelho me denuncie.

Saímos do restaurante e estamos chegando ao prédio da empresa quando Oliver aparece na minha frente.

— Nina, tudo bem com você? Fiquei sabendo que estava doente...

— Estou bem agora, obrigada. — Tento passar por ele e ir em frente, mas ele segura meu braço.

— Podemos conversar?

Hannah e Jeremy estão à frente e param me esperando.

— Por favor — Oliver insiste.

Suspiro, vencida, melhor trocar algumas palavras com Oliver ali na rua logo, porque eu sabia que ele ia ficar insistindo.

Faço um sinal para Hannah e Jeremy irem em frente e encaro Oliver.

— O que quer?

— Eu fiquei tão preocupado com você... O que aconteceu? Podia ter me ligado. Você tem quem cuide de você?

— Estava tudo bem. Foi só uma febre.

— Mesmo assim! Sei que não estamos juntos, mas somos amigos, quero que saiba que pode me ligar sempre que precisar... Me preocupo com você, parece tão vulnerável...

Suspiro, incomodada com a preocupação que vejo em seu olhar.

Oliver está apaixonado por mim, percebo.

E sombriamente me recordo do que acontece com quem se apaixona por mim.

— Não preciso que se preocupe comigo — digo friamente.

— Não consigo não me preocupar! — Ele toca meu rosto. — Droga, sei que já me disse que não podemos ficar juntos, mas se me desse uma chance...

— Eu te disse... Tem que esquecer isso...

— Esquecer? Nina, você me provocou! — Ele se aproxima mais e eu não consigo me mexer, a culpa começando a me corroer. — Me fez pensar que podíamos ficar juntos...

— Oliver!

Nós dois nos viramos ao ouvir a voz de Alex.

Ele está se aproximando com cara de poucos amigos e Oliver tira a mão do meu rosto.

— Ei, Alex... — Oliver fica vermelho. — Eu só estava conversando com a Nina...

— Não precisa pôr a mão nela — Alex rebate com frieza. — Acho que ela já te disse para deixá-la em paz, não?

Oliver abre a boca, ainda mais vermelho, sem saber o que responder, mas Alex já está segurando meu braço e me levando para dentro do prédio.

Seguimos em silêncio pelo saguão até que entramos no elevador. Alex solta meu braço e percebo que ele está furioso.

Sinto-me culpada. Eu não afastei Oliver. Sabe Deus o que Alex estava pensando.

Se ele está bravo é minha culpa, penso com um peso no meu estômago.

Saímos do elevador e seguimos para sua sala. Alex, fecha a porta atrás de nós.

— Oliver estava te importunando? Por que deixou ele colocar a mão em você? Sabe o que me custou não quebrar os dedos dele ali mesmo na rua?

— Sinto muito... a culpa é minha... eu devia tê-lo afastado, ele...

Alex passa por mim e bate na mesa. Estremeço.

— Por que está dizendo que a culpa é sua? Você já deu o fora nele, não foi o que disse? — Alex esbraveja.

— Sim, mas... É o que eu faço... Eu o obrigo a me perseguir a... — Fazer coisas ruins, quero dizer, mas não é assim. Oliver não fez nada ruim.

Foi eu que fiz.

Ele apenas queria tomar o que achava que eu estava oferecendo.

— Que merda está dizendo?

— Eu masturbei Oliver no carro uma noite — sussurro me aproximando de Alex. Seus olhos escurecem de assombro e ira, mas eu continuo: — eu fiz porque era o que ele queria. Porque eu o provoquei. E ele me agarrou aquele dia nas escadas por minha culpa. Eu não sei por que eu faço isso, mas...

— Por que está dizendo essas merdas? Está me provocando? Está querendo que eu fique com ciúme, que eu fique bravo com você?

— Eu sei que está bravo comigo. E você deve ficar. Porque eu sou ruim — sussurro — Por favor, faça o que tem que fazer...

— O que eu tenho que fazer?

— Me punir...

— Nina, que merda...

— Eu sei que é o que quer... E se não fizer isso agora, eu vou fazer depois... — murmuro, quase sem ar.

— Inferno! — Alex agarra meus cabelos e me beija com força.

Nós dois gememos, quando sua boca colide com a minha, faminta e punitiva.

Não me importo. É tudo o que eu quero.

Aquele desejo insidioso subindo por minha pele, varrendo toda e qualquer confusão da minha mente.

Minha cabeça está girando quando Alex desgruda a boca da minha, seu olhar é feroz quando me vira bruscamente.

— Ponha a mão na mesa! — Sua voz está controlada quando diz isso e meu ventre se contrai quando faço o que mandou.

Alex levanta minha saia.

Sinto um suave latejar em meu clitóris que umedece minha calcinha quando Alex desfere o primeiro tapa.

Mal consigo respirar quando o segundo vem. Dolorido e necessário.

A dor é sempre bem-vinda. Faz minha mente apagar e se concentrar nas sensações contra minha pele.

Só que agora é mais básico e profundo porque junto com a dor vem o prazer da presença de Alex. A ameaça é mesclada com a promessa lascívia de suas mãos que podem tanto punir quanto dar prazer.

Perco a noção de quantas vezes Alex me bate, até que sinto sua respiração quente em meu ouvido.

— Por que me obrigou a te bater quando eu disse que nunca mais ia fazer isso? — Sua voz está carregada de fúria e frustração.

Mas também tem desejo.

— Porque eu mereci...

Sua mão agora acaricia onde está dolorido e então, ele a infiltra dentro da minha calcinha e um dedo me corrompe.

Ele grunhe ao me sentir molhada e quente.

— Eu deveria te dar uma outra surra por me deixar com tesão por isso... — ele morde meu pescoço e abaixa minha calcinha até o joelho, posso sentir sua ereção através da calça o que faz o pulsar entre minhas pernas aumentar. — Você sente tesão com isso também? — rosna no meu ouvido enquanto abaixa a calça.

— Sim...

— Sim, o quê?

— Sim, senhor...

Ele rosna e me segurando pelo cabelo mete fundo dentro de mim.

Grito, me segurando na mesa.

— Porra... — Alex geme rouco enquanto investe rápido e com força, me fazendo derreter e ferver embaixo dele.

Não demora para que eu sinta meu ventre se contraindo, antecipando um orgasmo intenso. Os dedos de Alex na minha cintura, enquanto a outra mão ainda puxa meu cabelo, quando gozo forte, meu rosto comprimido contra a mesa. Ainda estou estremecendo de prazer, quando Alex fica tenso e sai de dentro de mim, gozando na minha bunda.

Demoro para voltar a terra, como se tivesse flutuando em algum lugar no espaço. Vagamente sinto Alex me soltando e se afastando.

Eu nem consigo me mexer, mas em algum momento Alex volta e sinto que ele está me limpando e depois me puxa devagar para que eu fique em pé e sobe minha calcinha, abaixando minha saia.

Noto que ele está vestido já, embora ainda meio descomposto e com os cabelos molhados de suor.

Ele joga o papel toalha no lixo e sem falar nada me puxa e senta na sua cadeira, me embalando em seu colo.

Ainda ficamos ali por longos minutos, enquanto nossa respiração e a realidade vai voltando aos eixos.

Ah caramba, o que foi aquilo?

Refaço nosso interlúdio na minha mente e não posso deixar de sentir ainda arrepios de prazer e também um certo remorso ao me recordar das palavras de Alex.

Eu o tinha obrigado.

Que merda, por que eu fazia isso?

E por que no caso de Alex eu sentia culpa, mas também não conseguia parar? Por que ele me punia depois que eu fosse má?

Depois de um tempo, o ramal de Alex toca e ele me afasta para atender. Eu tento me levantar, mas ele me mantém presa.

— Sim?

Ele escuta sei lá o que a pessoa do outro lado está dizendo.

— Sim, estou a caminho.

Ele desliga.

— Estou atrasado para a reunião das 15h.

— Ah droga! — Agora quando eu me levanto ele me deixa ir.

— Nina — ele me chama, antes que eu consiga sair da sala —, precisamos conversar sobre... isso aqui e outras coisas, mas não é o momento.

— Eu sei.

— Eu só... Inferno, deixa pra lá.

Eu saio da sala e vou ao banheiro, rezando para não encontrar ninguém no caminho. Meus cabelos estão uma bagunça e eu os arrumo da melhor maneira possível, enquanto também tento organizar meus pensamentos.

O que Alex quer conversar comigo?

Será que vai dizer que não vai dar certo? Que vai ser impossível manter nossa postura profissional?

Será que vai me demitir?

Bem, se ainda fôssemos continuar com... aquilo. Eu não me importava de procurar um outro emprego.

Eu prefiro ficar com Alex, acho que posso admitir a mim mesma.

Quando volto à sala, Alex já saiu para a reunião.

Alex não retorna até a hora de eu ir embora e estou me perguntando se devo esperá-lo, quando o telefone toca.

— Nina, é o Alex.

— Sim?

— Surgiu um imprevisto e terei que antecipar minha ida a Washington.

— Certo, para quando?

— Hoje à noite. Consegue ver passagem para mim e hotel?

— Claro...

— Vou desligar para que faça isso, ainda estou em reunião na Walter e Green. Me passe todas as informações por e-mail.

E ele desliga.

Suspiro, um pouco decepcionada que Alex vai viajar – e sem me levar junto, mas me apresso em fazer o que pediu.

Depois que organizo toda a viagem, lhe passo um e-mail e uma mensagem dizendo que está tudo pronto.

Estou saindo da Black quando Alex me liga.

— Eu acabei de lhe passar um e-mail. Seu voo está marcado para as 22h, foi o único horário que consegui — informo parando em frente ao canal.

— Tudo bem, está ótimo. Nina, eu... — ele suspira do outro lado da linha, parece cansado. — Eu sinto muito que surgiu isso. É importante, é sobre autorizações que precisamos para concluir algumas obras e precisamos do congresso. Estou indo com meu advogado.

— Tudo bem. Quando volta? Quer dizer, para que eu posso fazer as reservas no hotel e o voo de volta.

— Ainda não sei, mas eu te informo assim que souber.

— Ok. Boa viagem.

— Nina, aquela nossa conversa está pendente, mas nós a teremos assim que eu voltar, tudo bem?

— Devo ficar preocupada? — pergunto baixinho.

Ele ri do outro lado da linha. O som enche meu coração de cor.

Ah merda.

— Com o que acha que deve ficar preocupada?

— Eu não sei. Demissão, pra começar?

— Não, eu não vou te demitir.

— Então é pior? — ouso perguntar, agora realmente preocupada.

— Se está insinuando que pretendo me livrar de você, não poderia estar mais enganada.

— Não? — Agora tento conter a onda ridícula de esperança que aquece meu corpo.

— Eu te disse. Agora que te encontrei não vai a lugar algum.

Fecho os olhos, meu pequeno coração escuro e quebrado ousando achar que pode ser consertado com aquelas palavras.

— Como pode ter tanta certeza que não vai querer correr?

— Impossível. Como posso correr e deixar meu coração com você? Se for pra correr, vamos correr juntos, Nina.

Ah caramba, paro de respirar por um instante, o ar me faltando.

— Eu vou pensar em você. Por favor, pense em mim. E não se machuque, pode me prometer?

Mordo os lábios com força, pois não quero mentir.

— Eu prometo que vou tentar, pode ser?

— Por enquanto sim.

Quando ele desliga, fico olhando o dia frio minguando no lago em Riverwalk, me perguntando se Alex sabe que tem os caquinhos do meu coração quebrado entre suas mãos também.

 

Antes

 

Nina

 

Elliot Burns era seu nome.

Professor Elliot Burns.

Ao me recordar daqueles dias depois que nos encontramos a primeira vez, quando Tyler saiu da minha vida, a única coisa que me lembrava era de Professor Burns arrancando toda a história de mim enquanto me pagava um café.

Por muitos dias depois, enquanto trocávamos mensagens e ele insistia que eu tinha que me candidatar à faculdade, eu me perguntava por que tinha lhe confidenciado o que aconteceu com Tyler e Mark.

Eu não tinha amigos, ou pelo menos aquele tipo de amigo a quem confidenciamos histórias íntimas.

Naquela época, talvez ainda existisse alguma coisa a ser salva em mim, alguma parte humana e com emoção, que ansiava em encontrar conforto em outro ser humano, mesmo sabendo que no fim estava fadada ao fracasso.

Talvez por isso eu deixei que o Professor Burns me convencesse a me candidatar ao curso de Arte e ainda garantiu que com meu histórico – eu havia lhe contado que era órfã – havia grandes chances de conseguir uma bolsa.

Porém, fiquei realmente surpresa quando consegui entrar na universidade e com uma bolsa integral. Graças a indicação de Burns.

Também foi ele que conseguiu vaga no dormitório da universidade e um emprego de meio período na biblioteca.

Nos meus primeiros dias tudo era novo e estranho. Meus cabelos já não eram rosa e eu já não usava nenhuma droga para deixar meus dias mais fáceis. Porém, agora eu tinha tarefas que tomavam meu tempo, e estava determinada a aproveitar a chance de estudar em uma boa faculdade.

Eu cheguei a acreditar naquela máxima que o tempo podia curar todas as feridas. Que talvez o esquecimento viesse para mim e quem sabe o perdão e eu pudesse , enfim, viver. Eu ainda não me sentia à vontade em fazer amigos ou Deus me livre namorar de novo. Eu queria distância dos homens e de sexo.

Eu não queria mais me sentir suja.

Burns me esperava todas as tardes, após a minha aula e antes que eu entrasse no meu trabalho na biblioteca. Nós nos sentávamos na cafeteria e ele me incentivava a falar sobre como fora meu dia e o que eu esperava do futuro.

Foi uns três meses depois de começar as aulas e estávamos na cafeteria vendo a neve cair que ele me surpreendeu com um presente.

Eu fiquei com vergonha e ao mesmo tempo reconfortada. Há muito tempo ninguém me dava um presente.

— Obrigada, Elliot. — Há algum tempo ele tinha insistido que eu não precisava tratá-lo com formalidade quanto estivéssemos sozinhos.

Era um suéter de lã rosa.

— Notei que mesmo quando não estava frio, sempre usava um desses.

Mordi os lábios, abaixando o olhar.

— Ei — Elliot tocou minha mão por cima da mesa e eu o fitei —, eu sei que você já passou muitas coisas. Algumas que nem me contou. E não vou pressioná-la, mas somos amigos. Quero que saiba que pode confiar em mim.

— Eu não me sinto à vontade... para ter amigos — confessei.

Elliot sorriu, apertando meus dedos.

— Então serei seu único amigo.

Foi então que eu percebi quem Elliot me lembrava e porque talvez eu tenha confiado tanto nele.

Ele me lembrava David.

Por um momento, me senti como em um sonho e puxei minha mão, estremecendo de frio, mesmo o vento lá de fora não nos atingindo dentro da cafeteria.

Se Elliot notou meu desconforto, não falou nada. Apenas pediu mais um chocolate quente.

— Vai passar o Natal com sua família adotiva?

Dei de ombros, desviando o olhar.

— É só uma pessoa, não uma família. Não mais. — Minha voz sumiu, alguém entrou na cafeteria e alguns sinos de Natal pendurados na porta tilintavam me trazendo uma memória antiga. — E você?

Elliot morava em uma casa ali perto do campus na semana, mas nos fins de semana ia para sua casa em uma cidade a aproximadamente uma hora de Chicago, para ficar com sua esposa e um filho adolescente.

— Sim, viajarei hoje à noite. Fico triste de deixá-la sozinha.

— Eu vou ficar bem.

Ele segurou minha mão de novo.

— Mas ainda temos essa noite.

Não achei nada demais naquele momento, que ele segurasse minha mão.

Ou talvez eu já soubesse de suas intenções e nem tenha me importado.

Acho que as sombras dentro de mim até ansiavam por algo assim.

 


Capítulo 11

 

 

Nina

 

No dia seguinte, é esquisito correr e saber que Alex não irá aparecer em nenhum momento. Como é que eu tinha me apegado tão rápido e fácil? Não quero sentir aquele frio no estômago que acompanha o medo de que mais uma vez eu esteja a caminho de algo que não vai acabar bem.

É difícil acreditar que minha história com Alex terá outro desfecho depois de uma vida inteira de tragédias.

Mas eu quero acreditar.

E isso de alguma maneira me surpreende. Eu tinha me condicionado a não sentir nada. A não esperar nada. Eu me afastei do mundo a cada vez que levava um tombo, a cada vez que alguma coisa ruim acontecia.

Eu estava indo bem naquele caminho até Alex aparecer.

E agora eu só queria que daquela vez tudo acabasse de outra maneira. Ou melhor, que não acabasse.

No primeiro dia de sua viagem, trocamos algumas mensagens e e-mails, mas todos sobre trabalho e eu tento me conformar com aquela formalidade, porque ali na Black eu sou mesmo apenas a secretária. Embora não possa deixar de me lembrar do que aconteceu da última vez que estive com Alex na sua sala e toda vez que essas memórias voltavam a minha cabeça, eu sentia um arrepio na espinha e me perguntava se iria acontecer de novo.

Ainda estamos em uma espécie de limbo naquele relacionamento, se é que podemos chamar assim e eu me pergunto para onde estamos indo.

Hannah me chama para almoçar com ela e Jeremy, e eu até arrisco a lhe dar algumas opiniões sobre sua festa de casamento, sem ser por educação como geralmente faço.

E percebo que gosto da companhia de Hannah. Ela é divertida e não força que eu fale sobre mim mesma, como se percebesse que era o gatilho para eu sair correndo.

Quando chego em casa à noite, Lucy abre sua porta sorridente perguntando se quero mais tarde assistir um filme com ela.

Lucy é diferente de Hannah. Lucy sabe .

Ou ela desconfia e sei que diferentemente de Hannah, Lucy não vai deixar pra lá.

Eu declino o convite da forma mais educada que consigo, antes de entrar no meu apartamento, tomar um banho e comer um prato congelado.

É quando estou indo dormir que meu celular toca e o nome de Alex brilha no visor. Sinto meu coração batendo descompassado de forma boba quando atendo.

— Ei, tudo bem?

— Sim, estava indo dormir agora.

— Já? Ainda está cedo, Nina.

— Como acha que consigo acordar tão cedo pra correr?

— Eu durmo tarde.

— Ouvi dizer que homens precisam de menos horas de sono do que as mulheres.

Ele ri do outro lado da linha.

Suspiro, adorando o som.

Desejando que ele esteja ali comigo.

Queria ter coragem pra dizer isso a ele.

Queria ter coragem pra dizer tantas coisas...

Às vezes sinto como Alex estivesse esperando que eu falasse.

— Você está bem? — ele pergunta e sei pelo tom de sua voz que não é uma simples pergunta hipotética.

Eu sei do que ele está falando.

E pelo menos hoje eu posso dizer a verdade.

— Sim, estou.

— Por favor, se... sentir vontade de se machucar, você pode me ligar ok?

— Alex... — eu rechaço aquela ideia.

— Por favor, Nina. Eu sei que talvez não seja a pessoa mais adequada para te ajudar, mas eu posso ao menos tentar.

— Eu te disse como pode me ajudar. — De novo arrisco entrar no assunto que ele resiste em entender e quase posso sentir sua frustração do outro lado da linha.

— Não vou discutir isso com você agora. — Sua voz é firme e sei que ele tem um ponto.

Tenho medo que ele diga que realmente nunca vai ser do jeito que eu acho que devemos ser. Não entendo por que Alex resiste.

Será que não sou interessante para aquele tipo de vida como Victoria é? Este sentimento me deixa mal.

— Tudo bem — sussurro com a voz apagada.

— Nina, está chateada?

— É que... eu não entendo você. O que vai acontecer se... — Hesito em continuar porque não é como se tivéssemos estabelecido algo para o futuro.

— Acontecer o quê? — Alex insiste.

— Se ficarmos juntos? — digo baixinho, meu rosto enrubescendo por medo de estar sendo precipitada. Mesmo Alex tendo falado que não ia deixar eu me afastar. — Você é o que é e se quiser continuar com... isso? Vai procurar uma mulher como Victoria? Ou outra qualquer? E o que acontecerá comigo?

Sinto-me um tanto ridícula por ter confessado aquele medo, mas acredito que preciso dizer para que Alex entenda.

— Isso não me define, Nina — ele diz com certa ferocidade na voz.

Como se quisesse convencer a si mesmo.

Eu não acredito.

Eu sou o que sou e Alex é o que é.

É assim que as coisas são.

— Não?

— Não! Eu... não quero ter este tipo de conversa com você por telefone, mas não quero que fique pensando que eu ia preferir estar com outra mulher, como Victoria, em vez de você. Não é assim.

— Mas você pode estar comigo, do jeito que ficava com Victoria... Por que não? Se eu estou consentindo?

— Você sabe por quê.

Sua voz está um tanto triste agora e fecho os olhos quando entendo.

Eu sou quebrada.

Não estou fazendo aquele jogo apenas por prazer, porque acho divertido fingir que sou submissa a um homem e gosto de levar uns tapas durante o sexo.

Eu não gosto de pensar nisso. Nos motivos que me fazem ansiar por aquela punição, mas eles existem.

E não são bonitos.

Talvez eu devesse me sentir bem com aquela atitude de Alex, mas só me faz sentir mal. Faz-me sentir inadequada para ele.

Talvez eu tenha me enganado quando achei que eu e Alex podíamos ser perfeitos juntos, ou melhor, imperfeitos juntos.

Nada vai acontecer se ele não acreditar que seja possível.

— Nina, fale comigo — Alex pede um tanto aflito do outro lado da linha.

— Tudo bem, acho que tem razão e não devemos falar sobre isso. — Por enquanto, quero acrescentar, mas acho que está implícito. — Sobre o que quer falar, então?

— Que tal me falar sobre você.

Ai, Alex.

Suspiro, incomodada.

— Não gosto de falar sobre mim.

— Não precisa falar nada sério. Vamos jogar conversa fora.

— Jogar conversa fora?

— Sim. Vamos falar sobre coisas bobas. Fale-me qual sua cor preferida.

Eu rio.

— Eu gosto de vermelho.

— Eu também gosto. Você ficou maravilhosa com aquele vestido vermelho, aliás.

Meu rosto esquenta de prazer com o elogio.

— E qual seu filme preferido?

— Eu não sei. Não assisto muitos filmes.

— Deveria assistir. Eu prometo te levar no cinema assim que possível. Faz tempo que não faço essas coisas mundanas.

— Mundanas?

— Sim, ir ao cinema. Ou simplesmente sentar um bar e ver o pôr do sol. Ver um jogo de basquete. Ver um show de música. Que tipo de música você gosta?

— Eu não sei.

— Como assim não sabe? Vai dizer que não escuta música?

— Eu gostava de rock quando era adolescente. Eu andava com uma banda... — Quero engolir as palavras assim que elas saem, porque sei que Alex pode aproveitar o gancho e é exatamente o que ele faz.

— Andava com uma banda? Você era tipo uma grupie? — Não sei se seu tom é de ciúme ou de preocupação.

— Não, quer dizer... — Respiro fundo sabendo que o que vou dizer, é algo que acho que quase nunca comento. — Eu meio que namorava um cara da banda.

— Meio que namorava?

— A gente ficou junto por um tempo, mas não acho que era um namorado tradicional... quer dizer ele tinha uma banda. — Dou risada para diminuir o que vivi com Tyler. — Então ele não era o tipo de cara que tinha uma namorada.

— Você era apaixonada por ele?

— Não.

— Então por que ficava com ele?

— Porque eu não estava pensando muito bem no que estava fazendo. — confesso — era uma época em que eu queria apenas... viver o momento.

— Rebeldia adolescente?

Quero dizer que era mais que isso, mas deixo Alex pensar que era apenas uma rebeldia normal da idade. O que não deixa de ser em parte.

— Acho que sim. Eu pintei meus cabelos de rosa, comecei a fumar e usar outros tipos de drogas, embora nunca fui uma viciada ou algo do tipo, era apenas para... esquecer sabe? — Eu não digo que gostava de me sentir livre depois de... Paro a linha de raciocínio quando Alex continua.

— Por que terminaram?

Mordo os lábios, tentando não voltar àquele dia em que Tyler me jogou para fora de sua casa.

— Não lembro. E você, que tipo de música gosta? — Mudo de assunto deliberadamente e Alex obviamente percebe, mas não insiste.

— Gosto de rock também. E jazz. Já assistiu a um show de jazz? Aria queria que eu fosse com ela um dia desses...

Quando ele toca no nome da irmã, me recordo de Hannah contando que Alex era adotivo e decido entrar no assunto.

— É verdade que você e Aria são irmãos adotivos?

— Quem te contou isso? — Alex parece surpreso por eu saber.

— Me desculpe, era segredo? Foi a Hannah. — Não revelo o que Hannah comentou que Kelly achava que Aria era apaixonada por ele.

Embora eu tenha a mesma desconfiança agora, sinceramente.

— Sim, eu fui adotado por Christopher Black quando minha mãe se casou com ele. E você? O que aconteceu quando seus pais morreram? — Alex muda de assunto de novo e sinto meu estômago pesando com sua pergunta.

— Eu fui morar com um padrinho — murmuro tentando conter as batidas do meu coração. — Por favor, podemos mudar de assunto?

Alex deve ter percebido meu desconforto.

— Sim, desculpa perguntar. Sei que não gosta de falar sobre essa fase da sua vida, pelo o que percebo — indaga com cuidado.

— Não, eu não gosto.

— Então Tyler foi seu único namorado na adolescência?

— Sinceramente, Alex, se vai pedir que eu faça relatórios dos meus relacionamentos talvez eu peça para você fazer um também.

Ele ri.

— Tem a noite inteira pra ouvir?

— Meu Deus! — Tento não ficar com ciúme da longa lista de ex-amantes que Alex deve ter.

— Eu estou brincando, não foram tantas assim.

— Todas foram... sua submissa ou sei lá como chama?

— Não.

— Quando foi que começou a... fazer isso?

— Eu tinha por volta de 22 anos.

— E como foi?

Ele hesita.

— Por favor, pode me contar?

Ele suspira pesadamente.

— Eu sempre fui uma espécie de problema para minha família. Me metia em confusão, em brigas... Era como se houvesse um instinto violento dentro de mim. Então eu conheci Paul Red. Na verdade, eu o conheci através de Jack. Ele era professor de Jack na faculdade. Era um cara jovem ainda, de uns trinta anos e Jack o adorava. Ele era uma espécie de guru ou algo assim. Eu não fazia ideia de onde estava me metendo quando aceitei o convite de ir até uma festa na sua casa com Jack. E então descobrimos o estilo de vida de Paul. Ele era um dominador. Quando eu vi aquilo... foi como se uma espécie de porta se abrisse na minha mente. Eu quis experimentar. Claro que já tinha feito alguma perversão com namoradas, mas nunca naquele nível. Jack no começo quis entrar também, mas é indisciplinado demais para este tipo de coisa. Ele não gosta de receber ordem ou seguir qualquer regra e pulou fora fácil. Mas eu continuei. E desde então, sinto que este meu lado... ruim, parece dominado.

— Por que acha que é assim? Por que acha que tem este lado ruim? — murmuro.

— Eu não sei — ele responde, mas sei que talvez saiba.

E do mesmo jeito que eu sei.

Alex sabe e não vai me dizer.

Ele tem os seus segredos e eu tenho os meus.

Eu bocejo.

— Está com sono. Vai dormir.

— Queria continuar conversando com você... — Eu me ajeito sobre os travesseiros.

— Prometo que em breve estarei aí para segurar sua mão antes de dormir.

Sorrio e fecho os olhos, embalada pela promessa de Alex e mal escuto quando ele fala boa-noite e desliga.

 

No dia seguinte, estou esperando Hannah na porta do prédio para ir almoçar quando Oliver surge, ele hesita antes de vir até mim.

— Oi, tudo bem?

Caramba, Oliver não desiste?

— Sim, estou.

— Podemos almoçar juntos?

— Estou indo com Hannah.

— Outro dia então?

— Oliver, por favor, sabe que isso não vai dar certo, ok?

— Eu só queria ser seu amigo.

Ah sim. Eu sei muito bem.

— Não, você não quer. E eu sinto muito que tenha feito você pensar diferente. Eu realmente me sinto péssima — sussurro, culpada pelo sofrimento que vejo em seu rosto —, mas tem que entender que não vai rolar mais nada...

— Ei, Nina, vamos? — Hannah surge do meu lado e Oliver ainda hesita antes de acenar e se afastar.

Volto a respirar normalmente, sentindo-me extenuada.

— Oliver está te importunando?

— Não, ele só... Não é culpa dele.

— Nina, você já deu o fora nele, agora ele tem que entender e te deixar em paz. A culpa não é sua se ele reluta em entender, ok?

Aceno, querendo concordar com ela, mas é difícil.

 

Naquele começo de noite, quando chego em casa, Lucy de novo está me esperando.

— Olá, que tal irmos a um bar hoje? Noite das garotas!

— Lucy... — Como continuar declinando seus convites? Sinto-me mal porque Lucy é muito legal.

— Certo, vou te dar um tempo pra pensar. Só vou sair depois das dez mesmo. Tome banho, relaxe e depois me diz se está a fim, certo? Eu prometo não fazer perguntas chatas. É apenas diversão. — Pisca e entra em seu apartamento.

Alex me liga assim que saio do chuveiro e eu atendo, feliz de ouvir sua voz e por ele ter me ligado cedo hoje.

— Oi.

— Oi, parece animada — ele diz.

— Estou. Gosto de conversar com você.

— Hum, sinto-me lisonjeado. Então somos amigos agora, finalmente?

— Achei que fôssemos mais do que isso... — arrisco.

— Somos o quê? Amigos com benefícios? — Ele ri e eu não consigo deixar de rir também.

— Acho que por enquanto posso dizer que sou sua secretária — desconverso, com medo de rotular o que temos.

Somos amantes?

Somos namorados?

Como ele definia Victoria?

Quero perguntar, mas não quero falar sobre Victoria, sinceramente.

— O que vai fazer hoje?

— Nada... Minha vizinha me chamou para ir a um bar com ela, mas não quero ir.

— Ela é sua amiga? Fale-me dela.

— Não sei se somos amigas... eu te disse que não sou boa com isso.

— Achei que fosse só com os homens.

— Pessoas em geral.

— Por quê? Não gosta de pessoas?

— Não é isso... Eu apenas não quero deixá-las se aproximar de mim. Não por elas, mas por mim mesma. Porque quando deixamos as pessoas se aproximarem, elas querem que confiemos nossa história, e eu não tenho uma história que quero contar.

— Por quê? — ele insiste.

— Não é bonita.

— Ninguém é perfeito, Nina.

— Eu não sou... alguém que os outros queiram ter por perto... — sussurro.

— Por que diz isso?

Ah Alex, se soubesse...

Apenas sacudo a cabeça, sem querer falar.

— Então, fale-me de sua vizinha — Alex muda de assunto. — Qual o nome dela? O que ela faz?

— Lucy, e ela é assistente social. — Conto a ele o que sei sobre Lucy. — Ela é legal, mas não sei como ainda olha na minha cara, pois já fui muito mal-educada com ela.

— Devia aceitar seu convite pra sair hoje.

— Acha mesmo?

— Sim. Por que não?

— Eu não sei...

— Precisa parar de se esconder, Nina.

Fecho os olhos, incerta, mas sei que Alex tem razão.

Desde que o conheci, vinha lutando contra aquele anseio cada vez mais forte de sair das sombras que me escondiam do mundo.

Será que era possível?

Eu tenho medo, mas há algo em Alex que faz com que eu queira tentar.

— Certo. Vou aceitar sair com Lucy.

— Ótimo, agora preciso desligar.

Escuto um barulho de trânsito onde Alex está.

— Está em um carro?

— Sim.

— Sabe quando volta?

— Antes do que imagina, mas ainda preciso confirmar, eu te aviso.

 

Lucy fica muito feliz quando eu lhe digo que vou sair com ela e algumas horas depois estamos entrando em um bar barulhento. Tem uma banda tocando rock e Lucy pega duas cervejas e me leva para um canto onde não tem tanto barulho.

— Você está bonita — ela elogia.

Olho pra mim mesma, vestindo jeans e um suéter escuro com um scarpin preto. Passei uma maquiagem mais pesada que não costumo passar e talvez isso esteja fazendo a diferença para Lucy.

— Achei que podia caprichar um pouco... — sussurro sem graça.

— Você é muito bonita. Caprichada assim acho que todos os homens do bar estão te olhando.

Enrubesço, incomodada.

— Não é minha intenção...

— Ah claro. E aí, como vão as coisas com o chefe bonitão?

Quero lhe lembrar que ela disse que não ia fazer perguntas, mas deixo pra lá.

— Estão... indo bem? — falo incerta e Lucy ri.

— Não parece ter certeza.

— Bem, ele ainda é meu chefe! E parece que estamos juntos, mas não sei... Ele viajou e disse que quando voltar vamos ter uma conversa.

— Parece sério! O que acha que ele vai dizer? Vai te pedir em casamento? — Ela ri, mas eu só sinto dor de estômago ao imaginar o que Alex quer conversar comigo.

— Duvido muito.

Casamento e Alex. Lucy estava louca?

Na verdade eu nunca tinha nem pensado naquela possibilidade com quem quer que fosse, quer dizer...

Paro o rumo dos meus pensamentos e esvazio a garrafa de cerveja.

— Tem razão, casamento é roubada às vezes. Ainda mais se as pessoas não se conhecem bem. Veja o meu caso! Mas é jovem e tem que se divertir. Este caso com o seu chefe é só diversão?

Eu quero dizer que é, mas pela minha expressão Lucy sabe a resposta.

— Está apaixonada por ele?

Respiro fundo, com dificuldade de responder.

Estou?

Não respondo, quando o garçom deixa outra garrafa para mim, apenas tomo um gole.

— Já esteve apaixonada antes, Nina? — Lucy muda a pergunta.

— Não sei.

— Mas já esteve em relacionamentos antes?

— Sim, mas eram... Não era algo bom.

— E com Alex?

— Com Alex é diferente.

— Como?

— Eu não sei explicar. Às vezes eu acho que já nos conhecemos, mas é impossível... Só que eu tenho essa sensação estranha de que a gente... se encaixa, sabe? — Não quero dizer a ela que achava que Alex tinha um lado sombrio também. Lucy não entenderia. — Talvez eu esteja só me iludindo. No fim, não vai acabar bem mesmo. Nunca acaba.

— Porque teve experiências ruins, não quer dizer que agora será igual.

— Será? — Deus, eu queria tanto que Lucy tivesse razão.

— Olha, trocaram a banda, vamos para perto do palco. — Ela me chama e caminhamos até onde outras pessoas estão aglomeradas. Isso me faz ter um déjà-vu de quando andava com Tyler e sua banda.

De repente escuto os acordes de uma música e uma voz conhecida.

Ainda acho que estou em um déjà-vu quando levanto a cabeça e vejo Tyler tocando.

Seu olhar fixa em mim e ele me reconhece.

Por um momento, sinto-me paralisada e sem ar.

A música continua e Tyler não desvia o olhar e sei que assim que acabar ele vai querer falar comigo.

Mas eu não quero falar com ele.

— Lucy, preciso ir...

— O quê?

— Sério... Eu só... Pode ficar e aproveita, eu pego um táxi.

Antes que ela possa me impedir, dou meia-volta e vou pedindo licença para as pessoas até estar na rua.

Tento me acalmar e achar um táxi, mas antes que consiga fugir, Tyler surge na minha frente.

— Nina, ei...

— O que quer?

— Uau, quanto tempo... Por que fugiu? A gente pode ainda falar um oi não?

— Depois do que você fez?

Ele ri, mas sem humor.

— Está puta comigo por eu ter entregado aquele seu professor safado?

— Não era da sua conta!

— Eu não tenho o menor remorso!

— Olha, me deixa em paz, ok? — Tento me afastar, mas ele segura meu braço.

— Ei, não vai assim. O que aconteceu com você? Soube que saiu da faculdade e nem concluiu o curso...

— Não é da sua conta.

— Ainda está com raiva de mim.

— Não. Apenas não tem por que conversarmos.

— Sei que não acredita, mas eu não fiz por mal. Muito pelo contrário.

— Quer que eu acredite em você?

— Sei que acabamos mal, quando eu a vi com Mark...

— Não quero falar sobre isso...

— Mas... eu me arrependi depois. Tentei entrar em contato com você, mas Martha disse que não queria falar comigo e eu respeitei. E quando te encontrei na faculdade, e a vi com aquele cara...

— Não tem mais importância agora...

— Eu só queria ter a chance de conversarmos e...

Sacudo a cabeça em negativa, dando um passo para trás e abraçando o próprio corpo.

— Eu fiquei mal pra cacete quando me traiu com Mark! Eu gostava de você! E quando a vi com ele...

— Eu sei que sou uma pessoa horrível... Eu sinto muito...

Um táxi para e uma moça desce e eu aproveito para segurar a porta para eu entrar.

— Nina, não vai...

Neste momento Lucy sai do bar e caminha até mim preocupada.

— Nina, o que foi? Onde vai?

— Embora...

— Eu vou com você...

— Não, quero ficar sozinha.

Entro no táxi e peço para o motorista seguir, ignorando Tyler e Lucy.

Sinto-me como se um túnel frio estivesse me tragando enquanto o táxi dá a volta na cidade, mas sou trazida de volta à realidade quando meu celular vibra e vejo que é uma mensagem de Alex.

“Acabei de chegar em Chicago. Quando voltar para casa, pode me avisar?”

Sussurro ao motorista que mudei o local para onde vou.

Sentindo-me como alguém se afogando que de repente jogam um bote salva-vidas.

 

Antes

 

Nina

 

Assim que Elliot terminou e saiu de cima de mim, eu sabia que ele ia dormir, como sempre fazia, então saí da cama, vesti minha camisa e fui para o banheiro.

O olhar no espelho era de uma garota bonita e horrível quando abri o armário e peguei a gilete.

Era isso o que eu merecia. Dor e punição.

No início do meu último ano de faculdade eu praticamente morava com Elliot. Nosso relacionamento evoluiu naturalmente dos meus primeiros meses na faculdade. De amigo, mentor e protetor, até que ele confessou que estava apaixonado por mim. Por um momento, senti-me horrível. Elliot Burns era casado e tinha um filho quase da minha idade. Eu lhe disse isso e enquanto pedia desculpas e fugia para meu dormitório, com a intenção de nunca mais vê-lo, mas eu deveria saber que Elliot não ia desistir.

Ele me perseguiu por um tempo, me fazendo ceder depois de alguns dias.

Eu sabia que estava fazendo algo errado.

Mas simplesmente não conseguia parar. Elliot dizia que eu era tudo para ele, que iria cuidar de mim e me proteger e eu tinha percebido que ainda havia algo daquela garota órfã dentro de mim que precisava de alguém para lhe proteger.

Era irônico que eu havia me transformado em alguém totalmente diferente em algum ponto da minha adolescência, feliz por finalmente me sentir livre e dona do meu nariz. Tinha pintado meus cabelos, começado a fumar e transava com quem eu quisesse, mesmo que muitas vezes não era bem o que eu queria. Isso me dava a falsa ideia de ser livre.

Mas eu nunca fui.

A pior prisão é aquela que está dentro da nossa mente e aprisiona nossos pensamentos.

Depois de Tyler, eu estava perdida. O que Mark fez provou a mim mesma que não havia redenção. Eu podia tentar fugir, mas o mal estava dentro de mim.

No fim, ela tinha razão.

Porém, com Elliot eu achava que era diferente.

Ou queria acreditar que era. Ele sabia dos meus cortes, conversou comigo sobre eles, sobre como um dia eu iria parar de me sentir mal e não necessitar mais sentir dor.

— Quando vai passar? — Eu havia perguntado, com a cabeça deitada em seu colo em sua biblioteca.

— Você ainda é uma criança, mas verá que um dia tudo fica para trás.

Um dia, uma colega havia confessado em uma aula que tinha se automutilado quando adolescente, mas que hoje estava curada.

Não sei por que a segui depois da aula e lhe perguntei como ela tinha conseguido e ela me disse que havia feito anos de tratamento psicológico.

Ok, aquilo já havia passado pela minha cabeça. Martha havia perguntado repetidas vezes se eu queria ir a um psicólogo, mas eu não queria permitir que alguém entrasse na minha cabeça.

Eu não queria que descobrissem o que eu tinha feito.

O monstro que eu era.

Naquela tarde, eu havia perguntado a Elliot o que ele achava e ele acariciou meu cabelo.

— Não acho que seja necessário.

— Caroline, a garota com quem conversei, ela disse que ficou melhor.

— Olhe pra mim? — Elliot havia segurado meu queixo. — Você vai superar e eu estou aqui para te ajudar. Eu sou seu protetor, lembra? Não é bom quando está comigo?

Sacudi a cabeça em afirmativa, sentindo-me mal por ter duvidado de Elliot. Ele era tudo o que eu tinha naquele momento.

Não me chamava de esquisita quando eu não queria socializar com outros estudantes e fazer amizades.

— Não precisa de mais ninguém.

Algo em seu olhar me fez estremecer e rompi o contato de suas mãos, como se estivesse em outro lugar. Com outra pessoa.

Até seu rosto agora, que me encarava em confusão, era diferente.

— Nina...

— David?

Sacudi a cabeça ao ouvir a voz de Elliot se infiltrando a minha mente e me fazendo voltar à realidade.

— Me desculpe...

Elliot aproximou-se, tocando meu ombro, preocupado.

— Por um momento... Você me lembrou alguém...

— Quem é David?

— Meu padrinho.

— Ah, o homem com quem foi morar quando seus pais morreram?

Sacudi a cabeça em afirmativa.

— Quer falar sobre isso?

— Não... — Sacudi a cabeça. — Não posso falar... Por favor...

Elliot me abraçou e me levou pra cama.

Foi a primeira vez que eu me cortei depois de transar com ele.

 

 


Capítulo 12

 

 

Nina

 

Quando chego ao apartamento de Alex, o porteiro apenas me cumprimenta enquanto subo e me dou conta de que provavelmente Alex deixou minha entrada autorizada.

Forço a respiração se normalizar, analisando minha imagem no espelho do elevador. Ajeito meus cabelos que estavam bagunçados pelo vento. Meu rosto ainda está maquiado e talvez Alex nem perceba que por dentro estou uma bagunça.

Meus pés afundam no tapete do corredor e toco a campainha, incerta de estar ali. Eu devia ter avisado que estava vindo.

Antes que prossiga com minhas conjecturas, Alex abre a porta, me encarando surpreso.

— Nina, por que não avisou que estava vindo?

Por um momento, sinto-me mais confusa do que ele, pois Alex está usando um smoking impecável.

— Eu... Está indo há algum lugar?

Ele olha pra si mesmo e então solta um riso nervoso.

— Parece que sim. Mas o que você está fazendo aí na porta ainda? — Ele me puxa pra dentro, fechando a porta atrás de mim.

— Ainda não me respondeu, por que está vestido assim?

— Foi por isso que eu voltei mais cedo do que devia. Aria me lembrou, não muito educada devo dizer, que tem essa maldita festa beneficente e que eu prometi comparecer.

Oh. Então a irmã possessiva tinha chamado e ele veio correndo?

Não sei por que isso me deixa com ciúme.

De repente me sinto ridícula por ter vindo correndo atrás dele.

— Se tivesse me ligado eu te avisaria deste compromisso idiota. Meu plano era nos encontrarmos amanhã.

Amanhã seria sábado, então obviamente não nos veríamos no escritório.

— Agora eu me sinto idiota por ter vindo sem avisar. Eu vou embora... — balbucio, tentando dar meia-volta, mas sem aviso, Alex está me puxando e colidindo os lábios com os meus.

Por um momento esqueço de todo o resto, festejando seu beijo, seu gosto, seus braços me embalando e relaxo meu corpo contra o seu, suspirando e o beijando de volta com saudade.

— Estou feliz que esteja aqui. — Ele sorri quando o beijo termina e eu abro os olhos, ainda enlevada, voltando à realidade.

Eu me recordo porque estou aqui. Porque queria que Alex me levasse para aquele quarto escuro e me fizesse esquecer.

Mas parece que isso não é possível agora.

— Eu acho que tenho mesmo que ir embora.

— Não. Agora que está aqui eu quero mandar essa festa para o inferno e ficar com você. Infelizmente não é possível, mas posso levá-la comigo.

— O quê? — balbucio, aturdida.

— Vamos comigo. — Alex parece animado agora.

— Não está falando sério! Olhe pra você! Essa festa parece fina e não posso ir assim! — Aponto para mim mesma.

Alex ri e me puxa pela mão pelo corredor.

— Podemos dar um jeito nisso.

Entramos em um quarto que nunca tinha entrado. A decoração é toda branca e parece feminino.

Alex abre um closet e arregalo os olhos ao ver alguns vestidos de festa pendurado em cabides.

— O que é isso?

— São de Charlotte. Ela ficou aqui um tempo antes de... Enfim. Ela pedia que os estilistas mandassem os vestidos para cá. Charlotte era uma espécie de celebridade local, uma influencer de moda como chamam. — Alex retira um vestido vermelho longo do cabide. — Tire a roupa.

— Não posso usar isso.

— Claro que pode. Vocês têm praticamente o mesmo corpo. Certeza que vai servir.

— Sua irmã não ia gostar...

— Ela nem usou isso. E Charlotte está bem longe agora para se importar!

— Alex, sério que acha boa ideia eu ir em uma festa da Aria?

— Eu acho uma boa ideia você está comigo. — Ele sorri.

E não posso deixar de concordar.

Eu quero estar com ele.

E se eu não for àquela festa, provavelmente terei que voltar pra casa e só vê-lo amanhã.

E hoje eu não quero ficar sozinha.

— Está bem — concordo e Alex me ajuda a tirar a roupa e colocar o vestido de Charlotte.

Contemplo minha imagem no espelho e o vestido é mesmo deslumbrante, vermelho de manga comprida, decotado nas costas e com saia ampla.

Alex para atrás de mim.

— Você está linda — elogia, beijando meu pescoço e agora, contemplando nossa imagem junta no espelho, por um momento ouso sonhar que somos um par perfeito. — Pronta?

— Não tenho certeza.

E na verdade minha resposta é muito mais ampla e não diz respeito apenas a ir a essa festa.

Acho que Alex entende.

Ele sorri e me puxa pela mão.

— Lembre-se que estamos juntos.

Deixo que ele me leve, com a sensação de medo se acomodando na boca do estômago.

O motorista de Alex já está nos aguardando quando saímos e Alex me explica que a festa é em uma mansão localizada em um famoso e exclusivo clube.

— O marido de Aria, Max Duran, é jogador de tênis aposentado. Ele competia profissionalmente e chegou a ficar em terceiro lugar em Roland Garros. Hoje ele usa seu nome e fama para fazer caridade e essas coisas...

Será que o marido de Aria sabia que a esposa parecia obcecada pelo irmão adotivo? Bem, talvez eu estivesse exagerando e me deixando contaminar pela fofoca de Kelly.

Quando chegamos ao local, Alex me ajuda a sair e passamos por um jardim iluminado e entramos em um salão com lindos lustres e pessoas ricamente vestidas. Parece um outro mundo e tento me lembrar como se respira.

— Está tudo bem. — Alex aperta minha mão. — Não vamos ficar muito, prometo. Apenas circular e Aria ficar feliz por eu ter vindo e vamos embora.

— Ei, Alex, achei que não viria mais. — Um homem negro bonito se aproxima e Alex parece feliz em vê-lo.

— Oi Sebastian, cheguei hoje à noite de Washington. — Ele se vira pra mim. — Este é Sebastian Green. Ele é advogado. Esteve comigo em Washington, mas voltou hoje cedo. Nós crescemos juntos. Sebastian, esta é Nina Giordano.

— Muito prazer, Nina. Ouvi falar de você. — Ele pisca tomando um gole de champanhe.

Olho pra Alex e ele parece sem graça.

— Falou de mim? — indago incerta sobre o que penso sobre isso.

— Olha só quem chegou. — Um homem alto muito bonito se aproxima. Ele tem os cabelos pretos com gel e uma beleza clássica. Deve ter uns trinta e poucos anos.

— Max — Alex o cumprimenta, mas o olhar de Max está em mim.

— E quem é essa beldade?

— Nina Giordano — Alex responde. — Nina, este é Max Duran, meu cunhado.

— Muito prazer.

— Sua irmã não me contou que ia trazer uma convidada...

— Decidimos de última hora.

— Ela estava pirando achando que não viria, aliás.

— Pois estou aqui. Então ela pode parar de pirar.

— Ela tem outro motivo para estar pirando. Jack está na festa.

— O quê?

— Somos amigos. Eu tinha que convidá-lo.

— Porra, Max! Sabe que ele vai querer causar confusão.

— Sinceramente, Jack é uma vítima aqui. Charlotte que fugiu e o deixou para trás sem explicação nenhuma, como a menina mimada que sempre foi e vocês ficam acobertando...

— Nós vamos circular, nos vemos por aí — Alex o interrompe e me puxa para outro salão e tem vários casais dançando.

— Você está bravo — comento.

— Max não devia ter convidado Jack. Agora quero mais do que nunca dar o fora daqui, antes que vire uma confusão. Mas antes... — E só percebo sua intenção quando ele está me puxando para o meio do salão e levando meu corpo para perto, começando a me levar no ritmo da música que toca.

— Sério que vamos dançar?

Ele sorri.

— É um baile. Por que não? Nunca dançou em um baile?

Sacudo a cabeça em negativa.

— Não teve um baile de escola?

Abaixo o olhar me recordando do baile da escola que deveria ter ido quando tinha 14 anos. Meu vestido rosa de tule. O misto de alegria e terror que eu sentia ao pular a janela e Alan me segurar, me beijando antes de corrermos para que não fosse pega.

Mas eu fui.

— Onde você está? — Alex indaga e volto ao presente, para encontrá-lo perto, seu olhar me sondando.

Me buscando.

— Aqui com você.

— Não. Às vezes, aqui... — Ele toca minha testa com a sua. — Você vai para outro lugar. Para onde você vai?

— Não gostaria de saber...

— Eu quero saber tudo sobre você.

Sinto vontade de chorar. Porque temo que, se Alex souber quem eu realmente sou, vá fugir correndo, embora sempre diga o contrário.

— Alex! — Nos viramos para ver Aria se aproximando com seu marido ao lado.

— Oi Aria. Estou ocupado agora.

— Eu preciso falar com você. Agora! Sabe que Jack está aqui, né? Quer discutir isso na frente da sua secretária? Que, aliás, não lembro de ter convidado.

— Nina é minha acompanhante hoje — Alex responde calmamente —, mas tudo bem, vamos logo acabar com isso. — Ele se vira pra mim.

— Eu já volto, está bem?

— Pode deixar que eu lhe faço companhia — Max responde. — Não vou deixar sua acompanhante se perder.

— Obrigado, Max. — Alex se afasta e fico um pouco sem graça quando Max estende a mão.

— Me daria a honra de uma dança?

Hesito, mas Max parece apenas querer ser cordial, por isso deixo que ele me leve de volta à pista.

— Então é a secretária do Alex?

— Sim, sou.

Ele assovia.

— Por essa não esperava. Alex nunca sai com funcionárias. Inclusive a última se deu mal por causa disso.

— Ele não saiu com Kelly.

— Ah sim, mas ela queria. Aria acabou logo de cortar as asas dela.

— Aria parece ser superprotetora com Alex — não consigo deixar de comentar.

— Essa família é superprotetora uns com os outros. — Ele ri. — Veja Charlotte. Aprontou uma boa e eles a tratam como a vítima. Pobre Jack, não sabe do que se livrou...

De repente não gosto da maldade que sinto em sua voz em relação à irmã de Alex, mesmo sem conhecê-la.

— Talvez ela tenha motivos para fugir?

— Sim, ela tem com certeza, mas não acho que foi culpa do Jack.

— Você parece muito amigo do Jack White.

— Sim, nos conhecemos há muitos anos.

— Posso interromper?

De repente o assunto da nossa conversa está ali, como se tivesse ouvido seu nome.

Jack White está sorrindo daquele jeito sarcástico, os cabelos uma bagunça sexy e muito bonito em um terno bem cortado preto.

— Ei, Jack. — Max sorri e sem que eu possa ao menos atinar o que está acontecendo, estou passando dos braços de Max para Jack que me rodopia na pista de forma dramática.

— Olá. — Ele sorri pra mim. — Está deslumbrante hoje, Nina Giordano.

— Acho que não deveríamos estar dançando — consigo dizer por fim.

— Está preocupada que o Alex quebre minha cara? Ele vai achar um motivo para me bater de qualquer jeito...

— Por que está aqui? Sabe que não é bem-vindo...

— Essa família não vai levar a melhor sobre mim, cara Nina!

— Por que tem tanta raiva deles? Era para ser sua família agora...

— Eles não deixam qualquer um ultrapassar os portões dourados, então fique avisada.

— Acha que eu quero entrar para a família?

Ele levanta a sobrancelha.

— Está aqui com Alex. O cara que nunca se envolveu com uma funcionária, ainda mais trazê-la para uma festa com a família presente. Aposto que Aria está furiosa.

— Por que ela ficaria? — Tento tirar algo de Jack. Se alguém pode contar os podres escondidos do Black é Jack White.

— Ah, você já notou... — ele sorri com malícia —, mas é um assunto que ninguém fala, embora esteja ali para quem quiser ver. Como um elefante branco na sala.

— Eu não entendo.

— Entende sim, mas vou dizer uma coisa. Se Aria é uma megera, se prepare para a megera mor.

— Megera mor?

— Sim, a Senhora Black.

— A mãe de Alex?...

— A própria. Saiba que se conseguir passar por Aria, será muito mais difícil passar pela Madame Black. Ela nem é a mãe de Charlotte, mas nunca foi com a minha cara.

— Por que ela não iria com a sua cara?

— Eu tenho os pés sujos de barro, usando suas próprias palavras.

Eu não entendo seu comentário e Jack ri com vontade, embora sem muito humor.

— Não venho de uma família rica como os Black ou os Duran.

— Mas você é rico.

— Eu fiz minha própria riqueza. E mesmo assim parece não adiantar muito quando se trata de gente esnobe. Como se ela mesma não tivesse vindo da sarjeta.

— Como assim?

— Ah não sabe? Talvez possamos nos encontrar para um jantar? Ficaria feliz em lhe contar todos os podres da família Black que está salivando para saber.

Eu não posso negar que é tentador ficar sabendo de todos os segredos da família, mas jamais me colocaria em algum lugar sozinha com Jack White.

Jack só tinha uma ideia fixa e era destruir os Black.

Então me desvencilho dos seus braços.

— Não, obrigada.

Caminho quase correndo por entre os casais, até que me vejo no jardim, a música ficou para trás e respiro o ar puro.

Onde Alex se meteu com sua irmã?

— Tem medo do quê? — Jack surge ao meu lado. — Que Alex fique com ciúme? Não nego que seria divertido.

Eu o encaro.

— Por que faz isso? Por que não a deixa em paz? Talvez ela não queira mais você...

O olhar de Jack escurece.

— Eu não posso deixá-la em paz e ter paz. Eu quero que ela me encare nos olhos e me diga por que foi embora. Eu não vou desistir enquanto não a tiver perto como tenho você agora.

— E se não conseguir?

— Eu vou conseguir. Charlotte não pode fugir pra sempre. — Sua voz parece vulnerável de repente. — Sei que Alex me pinta como um vilão, mas não sou o vilão dessa história. A cada dia que eu não sei onde ela está é como um dia a menos da minha vida.

— Isso não é uma obsessão?

— Isso é amor, Nina.

— Para algumas pessoas é a mesma coisa — sussurro.

— Nina!

Nós nos viramos para ver Alex se aproximando furioso.

Jack sorri ao meu lado, passando os braços por meus ombros.

— Ei, Alex, estava fazendo companhia para sua garota...

Antes que Jack consiga terminar, Alex me puxa para perto dele e empurra Jack.

— Que merda pensa que estava fazendo?

— Ei, eu não falei que ele ia achar um motivo para me bater? — Jack ri com deboche, já não lembrando em nada o homem vulnerável que estava conversando comigo. — É o que o Alex gosta de fazer, você sabe...

Alex investe contra Jack, mas eu me coloco na frente, assustada.

— Alex, pare!

Alex cerra os punhos, inalando forte pelas narinas.

— Por favor, Alex, olha pra mim... — imploro.

Ele me encara e parece tentar se conter, enquanto Jack continua rindo.

— Acho que essa festa já deu pra mim! — Ele passa por nós, mas se vira antes de entrar na casa. — Nina, se quiser, aquele jantar que falamos está de pé!

Alex me encara irritado.

— Do que este merda está falando? Por que veio para cá com ele, Nina? Sabe que Jack está com raiva de mim...

— Eu... sinto muito. — Eu me encolho quando percebo a raiva de Alex dirigida a mim. — Eu não pensei. Ele dançou comigo e eu senti que queria mesmo provocar e vim pra cá, mas ele veio atrás.

— Deveria ter entrado, Jack não é de confiança neste momento.

— Nós só conversamos...

— Eu os interrompi. Jack está enfurecido e é capaz de tudo!

— Desculpe — sussurro sentindo que Alex tinha razão.

Jack queria mesmo provocá-lo e embora ele não tivesse demonstrado nenhum interesse em mim, podia tentar algo apenas para atingir Alex.

E eu deixaria?

Eu queria dizer que não, mas não confio em mim mesma.

— Vamos embora. — Alex me puxa e percebo que ele ainda está irado quando entramos na limusine.

Sinto-me cada vez pior enquanto seguimos e ele ainda está quieto quando entramos em seu apartamento e sua expressão fica ainda mais carregada quando olha algo no celular.

— Eu preciso dar uma ligação urgente — diz, se afastando, um tanto distraído.

A noite tinha começado como uma espécie de conto de fadas com direito a vestido deslumbrante e baile.

Mas eu deveria saber que finais felizes não eram pra mim.

Caminho pelo apartamento sem rumo e encontro Alex sentado em seu quarto, no escuro. Sua mente parece estar longe.

— Alex... — sussurro na escuridão, me aproximando. — Está bravo comigo, não é?

— Nina...

— Eu sei que está e a culpa é minha. Eu sabia do que Jack era capaz e mesmo assim deixei ele se aproximar. Eu sou assim, Alex. Uma pessoa horrível.

— Que merda está falando?...

Eu me ajoelho na sua frente.

— Por favor, faça a dor parar...

— Nina, pare com isso. — Alex me encara assombrado.

Mas estou além da razão.

Estendo a mão e abro sua calça.

— Nina, não precisa fazer isso... — Sinto sua voz carregada de desejo agora e afasto sua mão, finalmente o tocando e sentindo que ele está ficando excitado, embora diga outra coisa.

Sinto minha própria excitação dominando meu corpo e mente e abaixo a cabeça o tomando na minha boca.

Alex geme e é o som mais incrível do mundo. Melhor que qualquer droga.

Eu provo com gosto, seu olhar capturando o meu, e seus dedos segurando meu cabelo.

Sim...

Eu quero que ele perca o controle.

Quero que ele faça o que estou implorando.

O que preciso.

O que ele precisa.

Mas em vez de ditar os movimentos dos meus lábios, Alex puxa minha cabeça para trás.

— O que você quer?

Ah, aquela voz...

— Quero que você me machuque...

— Porra, Nina.

Ele me puxa para cima e me joga na cama de bruços. Fico observando, ofegante, ele se ajoelhar e subir o vestido, minha calcinha desaparece em segundos e ainda estou sem reação, paralisada e excitada quando Alex, abruptamente, me vira e deita em cima de mim prendendo os olhos nos meus.

— Não posso. — Sua voz está carregada de tristeza.

Uma lágrima cai do meus olhos e ele acompanha o caminho em minha bochecha, até meus lábios.

— Por favor...

Ele beija meu pescoço, desce e seus lábios deslizam pela minha barriga antes de ele abrir meus joelhos.

— Eu só posso te dar prazer, Nina, é o que vai ter que bastar...

E ele mergulha o rosto entre minhas pernas, a língua acariciando meu clitóris até que eu sinto o ventre tremulando de um prazer quente e intenso que faz minhas mãos voarem para seu cabelos, enquanto meu corpo se contorce e gemidos de deleite escapam da minha garganta.

Fecho os olhos, perdida naquela onda cada vez mais alta que vai tomando tudo e ameaçando me engolfar, mas permaneço ali, dominada pelo toque de Alex em mim, querendo cada vez mais, até que gozo forte na sua boca, um grito de libertação enchendo o quarto, enquanto levito alto, antes de cair de volta na realidade.

Alex está tirando meu vestido, o jogando no chão e depois ele tira as próprias roupas e se deita ao meu lado, me abraçando.

Só então, percebo que estou chorando. Soluçando.

— Por que não quer me levar para aquele quarto e me punir quando é o que eu mereço? — questiono quando finalmente consigo parar de chorar.

— Eu nunca mais vou levar você lá, Nina.

Eu o encaro sem entender.

— Por quê?

— Porque há algo aí na sua cabeça que não está certo e eu morro um pouco por dentro quando você vai embora para lá e não me leva junto.

— Não é um lugar bonito.

— Qualquer lugar é bonito se você estiver lá.

— Não. Eu sou horrível.

— Por isso acha que devo machucá-la?

— Sim.

— Por isso se machuca?

— Sim...

— Eu sei que não quer me contar quem fez isso com você, mas não pode mais continuar assim.

— E se a culpa foi minha?

— Então terá que se perdoar.

— Você se perdoa?

Ele franze o olhar.

— Acha que eu devo ser perdoado por algo?

— Eu acho que somos iguais, de alguma maneira. Como se... fosse certo estarmos aqui. Como se, sem nem mesmo saber, eu estivesse esperando por você. Achei que era porque você gosta de machucar as pessoas, mas se não é o que quer fazer comigo, talvez não sejamos perfeitos juntos como pensei.

— Você está errada, Nina. Nós somos perfeitos juntos. Só precisamos achar uma maneira de consertar... — ele para.

— De me consertar? Acha que posso ser consertada?

— Eu quero que pare de se punir.

— E se não conseguir? E se for tarde demais?

— Eu vou estar aqui. De uma maneira ou de outra. Eu te encontrei e não vou embora. Nunca mais.

Ele beija minha testa e me abraça.

— Agora durma.

 

Sei que estou sonhando porque no sonho meus braços estão limpos.

Contemplo a mim mesma, confusa e aliviada e quando levanto a cabeça, Alex está ali.

Ele dorme no chão ao lado da minha cama.

— Por que está aí no chão?

Ele sorri e estende a mão, segurando a minha.

— Eu sinto muito... — ele diz.

— Por quê?

— Já quis voltar no tempo?

— Todos os dias.

— Se eu pudesse voltar no tempo, sabe o que faria diferente?

— O quê?

De repente já não é Alex que está ali.

É Will.

— Eu nunca teria deixado você.

Acordo assustada.

E sento-me, tentando respirar.

Alex está dormindo ao meu lado, um sono tão pesado que ele nem acorda.

Não consigo me lembrar direito do sonho, mas sei que era com Will.

Os piores sonhos eram com Will.

Porque eu nunca me permitia pensar nele quando estava acordada. Há muito tempo, desde o dia em que percebi que ele nunca iria voltar. Nunca iria cumprir sua promessa.

Eu estava por minha própria conta.

Saio da cama e caminho descalça até uma cadeira onde está minha bolsa.

Eu a apanho e vou para o banheiro. Sento-me no chão e abro.

O bilhete está guardado em um bolso fechado com um zíper. Ele sempre está ali. Como um lembrete que um dia eu tive alguém que cuidou de mim.

Eu nem sei por que ainda o guardo, se já não acredito na promessa. Ela se perdeu no tempo, assim como minha inocência.

Como a Nina que acreditava ser boa.

Mas lá está, a letra infantil de Will.

Quantas vezes naqueles anos desejei que ele voltasse para segurar minha mão quando eu chorei?

Com um buraco reaberto no peito, pego o barbeador de Alex e deixo a dor que ele não quis me dar atravessar minha pele.

 

Antes

 

Nina

 

Agora encarava meus olhos no espelho, perguntando até quando faria aquilo?

Elliot era casado e não deveria estar comigo. Ele iria me deixar, como todos faziam. Talvez eu devesse partir antes que lhe causasse mais mal.

Coloquei minhas roupas e estava saindo da casa, quando avistei Tyler.

Ele estava exatamente no jardim da casa de Elliot como se estivesse me esperando sair.

— Tyler? O que está fazendo aqui?

— Então é verdade? Está trepando com o Professor Burns?

Tyler já havia terminado seu curso, e depois que rompemos nunca mais nos vimos.

Ele tentou entrar em contato, mas eu o evitei. Não tínhamos nada para falar.

Empalideci por ele saber sobre meu caso com Elliot.

— Como...

— Achou que ninguém soubesse do seu segredinho sujo? Eu fui até seu dormitório e uma colega disse que a via direto com o Burns pra cima e pra baixo. Eu sabia que esta é a casa dele, ele me deu aula por dois anos de geometria. Dá aula pra você também, não é? O que foi que ele fez pra te convencer a trepar com ele? Ou foi você que implorou?

Engoli a vontade de vomitar com as palavras de Tyler.

— Não é assim...

— E é como? Burns tem cinquenta anos, pelo amor de Deus! E pelo o que eu sei é casado! Que velho filha da puta!

— Tyler, não sei o que veio fazer aqui e porque acha que pode se intrometer nisso... mas Elliot não é um velho safado! Ele me ajudou muito! Me ajudou a conseguir a bolsa pra estudar aqui e...

— Claro, e você se sentiu tão grata que decidiu dormir com ele?

— Isso não é da sua conta... — Tentei me afastar, mas Tyler segurou meu braço.

— Sério, que merda está fazendo?

— Por que se importa, Tyler?

Ele respirou fundo me soltando e passando a mão pelos cabelos.

— Eu voltei pra minha cidade, mas lá não deu certo. Arranjei um trabalho aqui na cidade e estou com uma banda diferente, mas agora é só por diversão... E fiquei pensando em você. O que tinha lhe acontecido. Greg comentou que te viu aqui no campus. Ele trabalha aqui perto.

— Não deveria ter vindo atrás de mim. Não temos nada pra falar.

— Por favor, apenas... vamos conversar. Sobre aquela noite e...

— Não! Me deixa em paz, Tyler!

Saí quase correndo e só parei quando estava no meu dormitório, ainda com receio que ele viesse atrás de mim.

Naquela mesma tarde, eu fui chamada à reitoria. Tyler tinha denunciado Elliot. E parece que a garota que morava no quarto em frente ao meu também tinha concordado testemunhar.

Eu tentei negar, mas parecia que eles já estavam cientes de que Elliot Burns dormia com uma aluna, pois ele mesmo tinha confessado quando interrogado.

— Sua bolsa será retirada — haviam me informado —, já que lhe foi concedida a pedido do Professor Burns.

— E o que acontecerá com o Professor Burns?

— Ele foi demitido.

 

Saí da sala sentindo que o mundo estava de novo desabando sobre minha cabeça.

Elliot estava me esperando no campus e comecei a chorar assim que ele se aproximou.

— Eu sinto muito.

— Está tudo bem. — Ele tocou meu rosto. — Eu vou arranjar outra escola, mas poderemos ficar juntos.

— Elliot, você é casado!

— Eu deixarei Geraldine.

— Não! — Dei um passo atrás. — Não faça isso por mim.

— Eu faria tudo por você. Somos tudo um pelo outro!

Sacudi a cabeça em negativa, não querendo ouvir aquelas palavras de novo.

E de repente eu entendi por que estava ali. Porque estava com Elliot e essa percepção fez com que eu sentisse vontade de vomitar.

— Acabou, Elliot. Eu vou sair da faculdade. Perdi a bolsa e nem terei como pagar mesmo o resto do curso.

— Eu vou te ajudar, eu...

Eu me desvencilhei dos seus braços e corri.

Elliot me ligou a noite inteira e eu me neguei a atender, apenas ignorando suas mensagens cada vez mais desesperadas.

Assim como me neguei a falar com Tyler.

Quando estava amanhecendo, eu já estava fora do dormitório e da faculdade.

Usei minhas economias com meu trabalho na biblioteca para alugar aquele apartamento e arranjei um emprego.

Mudei meu número de telefone e coloquei um ponto final em toda e qualquer tentativa de ser alguém normal.

Eu aprendi a lição.

Tyler, Elliot.

David.

Eu era uma pessoa tóxica para quem se aproximasse de mim.

No fim, nada acaba bem.

Will tinha sorte de ter ido embora.

 


Capítulo 13

 

 

Alex

 

Eu sou despertado por um peso quente que se enrosca em mim como chamas lambendo minha pele. Por um momento, não sei ao certo se estou mesmo acordado ou ainda dormindo, envolvo em algum sonho, quando consigo abrir as pálpebras e vislumbrar os cabelos de Nina sobre meu peito.

E são seus lábios que sinto roçando minha pele, seu corpo se insinuando acima do meu, descendo como uma cobra que serpenteia deixando o veneno por onde passa.

O prazer emerge quando sinto seus dedos em meu pau e arfo, ainda perdido naquele ataque sensual.

— Nina?... — balbucio aturdido, e ela levanta a cabeça, o olhar pesado encontrando os meus, ainda sonolentos e confusos, mas dura apenas alguns segundos, pois, com determinação, ela abaixa a cabeça de novo e desta vez sinto seus lábios em minha barriga e descendo...

Um gemido rouco escapa da minha garganta e ainda consigo reunir minhas forças para puxar seus cabelos, a fazendo me encarar de novo.

— O que está fazendo?...

Ela morde os lábios, e o que vejo em seus olhos deixa meu coração aos pedaços.

Há dor.

Há lágrimas.

Há determinação quando avança por cima de mim de novo, os lábios encontrando os meus. Tem gosto de amor e lágrimas.

Eu a beijo de volta por um instante, me deliciando com seu corpo nu se esfregando no meu, querendo esquecer o que vi em seus olhos, mas não consigo.

— Nina... que está acontecendo?...

Ela sacode a cabeça, beijando meu rosto, mordendo meu pescoço, ignorando minhas palavras.

— Por favor... — Minhas mãos enquadram seu rosto, meus dedos em seu lábios, tentando pará-la.

Em resposta ela se senta em cima de mim, enquanto captura meu dedo para dentro dos lábios entreabertos, pegando minha outra mão e levando até seu seio.

— Porra, Nina — consigo grunhir perdido de tesão e confusão, quando ela desce o corpo, até que esteja roçando sua boceta úmida e quente em cima do meu pau que se contorce de um desejo cru e urgente para estar dentro dela. — Fale comigo — ainda peço, suplico.

— Só não pare... por favor... — sussurra — eu preciso disso... preciso de você...

— Merda...

Eu me levanto e ataco seus lábios, a beijando com vontade, com fome. Minhas mãos voando para sua cintura a erguendo até que esteja descendo sobre mim, nossos sexos se encaixando à perfeição, enquanto gememos juntos.

— Sim... sim... — Ela me empurra de volta na cama, até que esteja cavalgando sobre mim, os cabelos jogados para trás, os seios pulando livres na minha frente e é a imagem mais sexy do mundo.

Eu amo essa mulher.

Pego sua mão que está no meu peito e levo até meus lábios e é então que eu vejo.

Sangue.

Tem sangue escorrendo de sua pele.

Por um momento, sinto-me tonto de atordoamento. O horror se misturando ao prazer que me faz sentir.

Ela se contrai em volta de mim e solto um grunhido, a puxando para perto, abraçando forte aquela menina quebrada, que quero mais do que tudo juntar os pedaços e guardá-la protegida junto ao meu peito para que ninguém nunca mais a machuque.

Inclusive eu.

Depois que gozamos, ela vai se acalmando, tanto os tremores de prazer como as lágrimas de dor.

Eu a acaricio devagar, ainda a prendendo perto, sem saber o que dizer.

Sem querer dizer nada, porque me sinto, neste momento, tão quebrado quanto ela.

Em algum momento, Nina finalmente adormece. O dia está clareando lá fora quando me levanto. Pego um Band-Aid e volto ao quarto, colocando em seus machucados.

Vou ao banheiro e como previ, há uma confusão no chão de pedaços de papel sujo de sangue e um barbeador largado. Com o estômago embrulhado, junto os papéis para jogá-los no lixo, mas um deles me chama a atenção. É um papel diferente, não fino como papel higiênico e está dobrado. Quando abro, desabo no chão ainda sujo do sangue de Nina ao reconhecer a letra infantil e a mensagem escrita ali no momento mais triste da minha vida até então.

É o bilhete de Will.

Meu bilhete.

A promessa que uma criança fez um dia achando que a cumpriria.

Nina o guardou. Por todos aqueles anos, ela não esqueceu.

Ela esperou.

Ainda espera, talvez.

Ela havia se cortado enquanto estava com ele.

Sinto o nó na minha garganta rompendo em lágrimas amargas e deixo-me soluçar ali, no chão frio, rodeado de sangue, lembranças e culpa.

 

Nina ainda dorme quando saio do banheiro, de banho tomado e com pelo menos minha aparência externa recomposta.

Estou pronto para correr e penso em acordá-la para ir comigo, mas ela deve estar cansada, pois ainda ressoa profundamente.

Além do mais, estou com medo de falar com Nina.

Medo do que terei que encarar quando ela acordar, porque já passou da hora de eu lhe dizer a verdade.

De encarar minha própria culpa e quem sabe tentarmos sair daquele espiral de arrependimentos e remorsos que é a nossa vida.

Pego uma caneta e bloco de anotação ao lado da cama e lhe rabisco um bilhete.

Uma promessa mais fácil de se cumprir do que aquela que fiz há tantos anos. A cobrindo direito, deixo o bilhete no travesseiro ao lado e saio do quarto.

Corro até o cansaço físico sobrepujar a onda de medo que assola meu peito, pois sei que quando voltar para casa e encarar Nina de novo, nada mais será o mesmo.

E estou caminhando de volta, o peso do mundo nas minhas costas, quando meu celular toca.

Penso em não atender, mas é o nome de Aria que está brilhando no visor.

Engraçado o que a culpa faz conosco. O que aconteceu entre mim e Aria tinha sido há tantos anos, mas provavelmente eu nunca me esquecerei da culpa que carrego por aquele episódio.

E é a culpa que me faz ir toda vez que ela pede.

A culpa me faz atender agora.

— Oi Aria.

— Estou indo para sua casa.

— Não.

— Por que não? Eu preciso falar com você e é urgente!

Paro, respirando fundo. Eu sei que se não resolver seja lá o que Aria quer, ela vai mesmo aparecer no meu apartamento colocando a porta abaixo se achar necessário. E não quero Aria no meu apartamento hoje.

— Tudo bem. Estou pegando um táxi e indo até sua casa.

Em poucos minutos, estou chegando à mansão dos Black.

Ainda é cedo, então apenas Aria desce as escadas para me receber.

— O que você quer?

— Nossa, precisa falar comigo assim? E queria falar com você ontem à noite, te mandei mensagem, e você apenas me ligou para dizer que não queria falar comigo naquela hora. Aposto que estava ocupado trepando com a sua secretária...

— Cala a boca — rosno chegando perto o suficiente para que ela veja minha raiva.

Seus olhos arregalam assustados e ela dá um passo atrás, fazendo com que eu me arrependa no mesmo momento.

— Desculpa. — Passo os dedos pelo cabelo, exausto. — Só me diga o que quer, porque não tenho o dia inteiro.

— Claro, aposto que a tal Nina está te esperando...

— Olha, Aria, vamos deixar algo bem claro. Nina não é só minha secretária, já deve ter percebido isso. Ela é importante.

— Importante? Como assim?

— Você entendeu.

— Está falando sério? A secretária?

— Para de diminuir a Nina, isso é ridículo. Até para você. Sim, eu sei que nunca me envolvi com ninguém da Black, mas aconteceu. E não vou abrir mão dela por isso.

— Mas... ela é sua funcionária! Acha isso ético?

— Foda-se. Se ela tiver que sair da Black, assim que vai ser. Mas a Nina está comigo agora, acostume-se com isso. Eu a encontrei e ela não vai a lugar algum.

— Encontrou? O que está dizendo?

— Nada... Forma de dizer...

Mas Aria está me encarando como se lembrasse de algo e antes que eu possa tirar qualquer desconfiança de sua cabeça ela balbucia.

— Nina... eu já ouvi esse nome... Nina não é o nome da garota que seu pai adotou? Aquela que fomos procurar naquela casa...

— Sim, é — confesso.

— Oh meu Deus. Agora tudo faz sentido...

— Aria...

— Como... Ela apareceu atrás de você?

— Não. Eu a encontrei.

— Por isso a contratou?

— Sim.

— Nossa... Sua mãe sabe disso?

— Não, e ela não vai saber até que eu decida contar.

— Mas... Alex, sua mãe está vindo para Chicago. Ela vai chegar entre hoje e amanhã. Não vai conseguir esconder isso dela e...

— Por que eu não sei disso?

— Porque ela me disse que vem tentando te ligar há dias e você a ignora. Aliás, disse que você está estranho com ela desde que papai morreu.

Abaixo o olhar. Aria não sabe do que Christopher me contou no leito de morte. Dos motivos que eu tenho para estar com raiva da minha mãe.

Muito menos Nora sabe.

Eu não quis dizer a ela que já sabia o que fez. Porque eu tinha medo de confrontá-la.

Eu tinha medo do que eu mesmo seria capaz de fazer movido por aquela fúria. Então eu a tinha empacotado e guardado no fundo da minha mente, como se não existisse.

Mas sabia que uma hora eu teria que desembrulhá-la.

— Por que não disse nada para nós? Por que esconder? Parece que tem algo errado aqui... Meu Deus, e vocês estão trepando! Achei que ela fosse como sua irmã!

— Parecer que somos irmãos não foi empecilho para nós — digo com sarcasmo a fazendo empalidecer e no mesmo momento me arrependo. — Desculpe, não devia... Merda, estou uma pilha de nervos e saber que terei que falar com a minha mãe só me deixa mais irritado!

— Devia saber que isso iria explodir — ela diz com frieza —, mas então, está apaixonado por essa garota?

— Sim, estou — confesso e Aria apenas assente, abaixando o olhar e se encaminhando até o bar em um canto da sala.

— Deus, acho que preciso de uma bebida.

— São nove horas da manhã, Aria. — Eu me preocupo.

— Cuide da sua vida, que, aliás, parece que vai ficar bem complicada! — resmunga.

— Tem razão. Eu preciso ir.

— Boa sorte — ela grita sobre meus ombros, mas não me parece um desejo verdadeiro.

 

Eu deveria ir pra casa, mas algo me faz dar um outro endereço ao taxista.

Alguns minutos depois estou caminhando entre as lápides do cemitério Graceland. Ainda não sei o que vim fazer aqui, quando paro em frente ao túmulo que só descobri que existia há um ano.

Há algumas flores mortas por ali, denunciando que alguém ainda visita o túmulo de vez em quando.

Quem?

Eu só vim até aqui uma vez antes.

Limpo a lápide suja de poeira e granizo da noite fria até que o nome apareça.

David William.

Meu pai.

Morto há exatamente nove anos.

Mas que eu só soubera de sua morte há um ano, quando perdi dois pais no mesmo dia.

 

Antes

 

Alex

 

Um ano antes

 

— Alex...

Levantei a cabeça da poltrona, abrindo os olhos, percebendo que tinha adormecido.

— Alex... — A voz debilitada do meu pai chamou meu nome de novo e eu me levantei, indo até o lado da cama de hospital.

Era triste ver Christopher Black naquele estado, respirando parcamente com tubos e oxigênio no nariz e o rosto pálido contra os lençóis.

Minha família inteira estava no hospital desde que ele sofreu um ataque cardíaco, há alguns dias. Ele resistiu, mas o médico havia nos alertado que seria por pouco tempo.

Desde então estávamos esperando, nos revezando para ficar ao seu lado e chamar os outros caso a hora chegasse.

— Eu preciso te contar...

— Pai, não precisa falar — disse quando percebi que ele estava inquieto. Sua consciência ia e voltava nas últimas horas.

— Eu preciso dizer, antes de ir. É sobre seu pai.

Queria lhe dizer que ele era meu pai.

Ele foi meu pai por todos aqueles anos desde que David me virara as costas. Christopher me dera seu nome, uma carreira de sucesso, e uma família.

Eu lhe devia muito e tentava todos os dias não me lembrar que em algum lugar do mundo exista um homem que me deixou ir embora e nunca me procurou para saber se eu estava vivo.

Porém, Christopher segurou minha mão, com mais força do que seria previsto por alguém à beira da morte.

— Eu preciso dizer. Seu pai morreu...

Por um momento não consegui entender. Achei que Christopher estava delirando.

— O quê?...

— David... Seu pai... ele morreu, há oito anos.

— Mas... Não é possível.

— Sua mãe... sua mãe sabe. Ela não queria que soubesse.

— Não pode ser verdade. Ela me contaria...

— Ela nunca quis que olhasse para trás. Por isso escondeu sobre sua morte. Ela disse que te diria se um dia perguntasse sobre seu pai, mas você nunca perguntou...

Meu Deus... Será que eu tinha vivido uma mentira por todos aqueles anos?

— Me perdoe... Eu queria que ela te contasse, mas ela me fez jurar. Eu sempre fiz o que Nora queria. Sempre... — ele suspirou. — Ela era tão bonita... a mulher mais bonita do mundo. Ela me fez muito feliz quando voltou pra mim... mas era só seu corpo que estava ali do meu lado. Seu coração nunca foi meu, nunca... Ela deu a David no dia em que o conheceu e ele o levou para seu túmulo...

— Como meu pai morreu? — interrompi os devaneios de Christopher.

— Em um acidente de carro... A menina estava junto.

De repente senti a visão turva.

— Nina? — disse o nome dela depois de tantos anos tentando não pensar nela.

— Sim. David capotou o carro na estrada, caíram... precipício...

— Nina... morreu? — Eu mal conseguia respirar.

— Não. Ela sobreviveu.

Alívio e pesar se misturaram dentro de mim.

Meu pai tinha morrido. Nina estava viva.

Em algum lugar...

O que teria acontecido com ela em todos estes anos?

— Minha mãe sabia? Se minha mãe sabia por que não me disse? Por que não trouxe Nina para ficar com a gente? Ela não tinha ninguém...

— Eu não sei... Nora é uma mulher extraordinária, mas seu coração não é meu... — Christopher começou a delirar novamente. — Eu queria que fosse meu. Queria que você fosse meu... mas tudo é de outro...

Meu Deus, meu pai tinha morrido. Oito anos.

Oito anos e eu não fazia ideia.

Mas minha mãe sabia.

Quando Christopher morreu naquela mesma noite, foi como se eu tivesse perdido dois pais no mesmo dia.

Não conseguia mais encarar minha mãe nos olhos, nos dias confusos de luto que se seguiu. O monstro em mim queria sangue. O mesmo monstro que ela havia dito que havia dentro de mim, em uma tarde longínqua há dez anos.

O tempo passou assim como a dor pela morte de Christopher arrefeceu. A raiva pelo o que minha mãe tinha feito foi enterrada dentro de mim, assim como a dor pela perda de um pai que eu não via há anos.

Mas um sentimento cresceu dentro de mim e foi impossível ignorá-lo.

Eu queria ver Nina de novo.

Eu queria encontrá-la e cumprir minha promessa.

Nada era mais importante do que isso agora.

 


Capítulo 14

 


Nina

 

Acordo confusa quando a luz do dia atravessa o quarto. Por um momento meu olhar se prende em meu braço dolorido. Tento me lembrar se eu que coloquei aquele curativo ali, mas as memórias da noite anterior estão embaralhadas na minha cabeça.

Eu me recordo de Tyler no bar. E me recordo de fugir dele e vir atrás de Alex querendo mais do que nunca que ele me levasse para aquele lugar onde o prazer e a dor andavam lado a lado.

Mas ele estava lindo em seu smoking e naquele momento eu não percebi que Alex me parecera mais distante do que nunca.

Alex me levou junto com ele, não para sua sala de jogos sexuais, mas para aquela festa fina, cheia de gente elegante. A festa da sua irmã Aria.

Aquela irmã que era apaixonada por ele, todo mundo aparentemente sabia, se levar em conta a meia fofoca de Jack, mas todo mundo ignorava.

E tinha Jack White. Um homem que tentava recuperar um amor perdido.

Eu tinha acreditado no amor de Jack. Não sei por que, mas algo em sua expressão fez eco com algo dentro de mim. Eu não entendi.

Talvez eu tenha pensado em Will.

Não era o mesmo tipo de amor, mas ainda havia um lado em mim que daria tudo para ver Will de novo nem que fosse pela última vez.

Havíamos voltado para o apartamento de Alex e eu tinha lhe implorado de novo pela sua violência, mas daquela vez, ele só me deu seu prazer.

Bastou por um momento, mas depois a dor sobrepujou tudo quando voltei a sonhar com Will. Eu não gostava de sonhar com Will, me deixava vulnerável. Era como regredir e voltar a ser a criança carente que eu fui. A criança que achou que o teria pra sempre, que seríamos amigos para sempre como ele tinha prometido, mas que fora deixada para trás.

E então, eu sucumbi à dor. Só que nem os cortes foram capazes de amenizar o líquido escuro que corria pelas minhas veias e naquele momento, eu soube que queria voltar para aquela cama e me enroscar em Alex. Queria que ele me fizesse esquecer.

As memórias do que fizemos não estavam nítidas, como se eu não estivesse sóbria e de certa forma não estava.

Mas eu lembrava do prazer. Lembrava que pela primeira vez, eu deixei que Alex levasse a dor embora apenas com seu corpo, com seu toque.

Não foi suave. Não foi nem bonito.

Mas foi o mais perto de que chegamos de fazer amor.

Mesmo que tenha sido um amor desesperado.

Eu tinha sonhado com isso?

Estendo o braço à procura de Alex, mas a cama está vazia ao meu lado e minha mão encontra um bilhete.

Eu me sento, o abrindo.

 

Nina

 

Fui correr. Não quis te acordar, queria que descansasse.

Eu voltarei em uma hora. Não vá embora.

Porque se for, eu vou atrás de você.

Eu vou te encontrar.

 

Com amor,

Alex

 

Por um momento, sinto um estalo na minha cabeça, seguida de um arrepio na espinha.

“Eu vou te encontrar”.

De repente percebo o que me perturbou.

Alex usou as mesmas palavras de Will.

Algo estala na minha mente de novo enquanto tento esquecer aquela coincidência.

Mas estou inquieta quando me levanto e tomo uma ducha rápida e escovo os dentes, colocando minhas roupas e indo procurar algo para comer.

 

Jacob late pra mim ao me ver e eu sorrio, acariciando seu focinho e me perguntando se faz tempo que Alex saiu.

Ele pediu que eu o esperasse e é o que vou fazer.

Eu não vou a lugar algum, penso com um sorriso meio bobo, pegando uma xícara de café.

Porém, quando levanto a cabeça, a xícara escorrega da minha mão quando vejo uma mulher parada na minha frente.

Por um momento, acho que estou em meio a algum sonho.

Mas eu nunca sonho com ela .

Nora faz parte dos meus pesadelos.

Mas...

Oh Deus... O que ela estaria fazendo ali, me encarando como se também estivesse vendo um fantasma?

— Você... — Sua voz ainda é a mesma que eu me lembrava.

Dura.

Quase cruel em sua frieza.

Começo a hiperventilar, enquanto meu cérebro assoberbado tenta achar uma saída coerente para aquilo.

Sim, é Nora que está ali.

Seu cabelo ainda é loiro, embora esteja arrumado de forma elegante. Há algumas rugas a mais em volta dos seus olhos tão iguais aos de Will.

Tão iguais aos de...

Meus joelhos bambeiam e eu me seguro na cadeira a minha frente.

— Nora?... — balbucio e tenho a impressão que a voz que sai da minha garganta é a mesma daquela menina de sete anos que implorou para que ela a levasse junto. — Eu não entendo... O que você está fazendo aqui?

— Aqui é casa do meu filho!

— Will? — Começo a sentir como se estivesse entrando em um túnel escuro, um zunido soa em meu ouvido.

— O nome dele é Alex agora.

Oh. Meu. Deus...

Não.

Não...

De repente é como se uma cortina se abrisse a minha frente.

Alex passando por mim correndo todos os dias.

Alex me contratando para ser sua secretária. Mesmo eu não tendo nenhuma experiência.

“Você sabe quem eu sou?”, ele tinha indagado naquele segundo dia.

Ele não estava perguntando sobre as corridas.

Ele perguntou se eu sabia que ele era Will...

Como é que eu não tinha percebido?

Alex insistindo em ser meu amigo. Dizendo que eu era como uma de suas irmãs. Sua reluta em aceitar a atração entre nós.

Ele sabia... o tempo inteiro...

Sabia e não me disse.

Luto para respirar quando a realidade entra em mim pouco a pouco.

Alex é Will.

Will...

Por um momento, a menina dentro de mim chora de uma alegria infantil por ter finalmente o encontrado...

Ou ele me encontrou?

Sim, no fim, ele havia cumprido o que prometeu.

Ele me encontrou.

Mas eu não sou mais aquela menina que ele deixou para trás.

Alex me encontrou tarde demais.

De repente, as lembranças trancadas dentro de mim ameaçam romper os muros que eu tinha construído para mantê-las escondidas.

Lembranças que Alex tinha me encorajado a dividir com ele.

Mas eu não podia.

Nunca.

Alex é Will...

— Vai fingir que não está me escutando?

Volto à realidade com a voz de Nora me sacudindo.

Ela está furiosa.

Exatamente como eu me lembrava...

— O que pensa que está fazendo aqui? Com meu filho? Acha que pode voltar à vida dele? Eu não vou deixar! Não vai destruir a vida de Alex como destruiu a de David, entendeu? — grita. — Suma daqui! Volte para o buraco de onde saiu, porque eu perdi David para você, mas não vou deixar que o mesmo aconteça com meu único filho!

— Você não sabia... você...

— Acha que se soubesse que tinha vindo atrás do meu filho eu teria deixado?

— Foi Alex... Will, quem me encontrou...

— Acha que acredito? Você é uma mentirosazinha! Uma putinha como a sua mãe que só serve para destruir a vida dos outros! Mas não vai destruir a do meu filho! Será que não fui clara quando nos encontramos da última vez? Você é amaldiçoada! Tudo o que toca, destrói!

Sem pensar, eu saio da cozinha, pego minha bolsa e corro do apartamento de Alex, enquanto Nora ainda grita.

Estou tremendo quando saio à rua, caminhando sem rumo.

Alex é Will.

Will...

Ele não podia me encontrar.

Eu destruo vidas... destruí David... Não quero destruir Alex também.

Estou cega pelas lágrimas quando um carro para ao meu lado.

O vidro abaixa e ele pergunta se estou bem.

Eu nunca mais estarei bem.

Quando ele destrava a porta e pede que eu entre, faço o que pediu.

Só quero fugir dali.

 

Alex

 

 

Quando chego em meu apartamento, sinto a vibração estranha.

Um arrepio sobe por minha espinha.

— Nina? — eu a chamo, temendo que ela tenha ido embora.

Mas de repente sinto o cheiro de cigarro no ar e antes mesmo que vire a cabeça e veja quem está sentada em uma poltrona, sei quem está ali.

O medo se instala como uma bola de fogo na boca no meu estômago,

— Ela foi embora — Nora diz por entre a fumaça.

A raiva ameaça me devorar por dentro, mas eu me controlo. Preciso saber exatamente o que aconteceu ali.

— Onde ela está?

— Eu não sei. Ela ficou muito surpresa quando me viu aqui. Me diga Alex, por que fiquei com a impressão que ela não sabia quem você era?

— Porque ela não sabia.

— Ah... Entendo agora. Ela ficou bem abalada quando me viu. Como se eu fosse um fantasma. Mas claro que eu fiquei tão surpresa quanto ela por encontrá-la aqui, como explica isso, Alex?

— E como conseguiu entrar aqui? Você não tem o código.

— Aria me deu. Ela me ligou, eu estava saindo do aeroporto. Ela disse que eu devia vir pra cá imediatamente que ia ter uma surpresa.

A raiva golpeia meus sentidos.

Claro. Eu devia saber que Aria não tinha ficado tão calma assim com minha revelação, mas tenho coisas mais importantes para me preocupar agora do que com o ciúme que Aria não tinha o menor direito de sentir.

Nora apaga o cigarro e se levanta.

— Como pode trazer essa menina para a Black?

— Como sabe disso?

— Depois que ela foi embora eu liguei para Aria. E pedi que ela me contasse o que sabia. Aria só ficou sabendo hoje quem era essa garota e me contou que você a contratou como secretária. Achou que eu não ia descobrir?

— Claro que iria descobrir.

— Quando? Que conveniente eu ter ido viajar, não? Pôde colocar aquela ordinariazinha na nossa família de novo sem eu saber. Porque sabia que eu nunca ia permitir!

— Você não tem que permitir nada!

— Alex, achei que fosse um homem maduro e sensato agora! Não entendeu que seu pai nos abandonou por causa dela? Que ela envolveu seu pai e acabou com a vida dele...

— Ah sim, quando íamos chegar a este ponto?

— Que ponto? — ela percebe que falou demais.

— Que meu pai morreu.

— Como sabe?...

— Christopher me contou antes de morrer. Que ele morreu em um acidente de carro e que você sabia. Faz nove anos agora e você nunca me contou!

— Eu quis te proteger! Você já nem lembrava de David, Christopher te adotou...

— Mas era meu pai! Eu tinha o direito de saber! E você foi cruel escondendo isso de mim!

— Como se importasse! Você viu que David foi embora e nunca quis saber de você! Ele não era mais seu pai! Acha que não sei que está bravo por causa da vagabunda?

— Nina não é vagabunda!

— É sim! Certeza que a culpa do seu pai ter morrido é dela!

— Você está delirando! Este seu ódio pela Nina não tem o menor sentido!

— Eu sei o que estou dizendo! Mas parece que você é tão cego quanto seu pai! Aria me contou que está dormindo com aquela menina. Como pode Alex? Eu não vou permitir mais que ela fique perto de você entendeu? Já chega! Acabou essa história!

— O que você falou para Nina ir embora?

— Só falei a verdade! Que ela é uma maldição assim como a mãe dela! Estragou a vida de David, o enfeitiçou para sempre! E vai destruir a sua vida também! Mas não vou deixar! Ela foi embora e você não vai atrás dela, eu o proíbo entendeu?

Eu me aproximo dela, ignorando seus gritos.

— Eu estou apaixonado pela Nina, eu não vou deixar ela ir embora. Eu a encontrei e você vai ter que engolir isso. Nina está na minha vida agora e é assim que vai ser.

— Cale-se! — ela me interrompe e o tapa chega com força em meu rosto em seguida. — Eu sou sua mãe e vai me ouvir!

Cerro os punhos, o monstro querendo revidar.

Mas dou um passo atrás, inalando pela narina, tentando me acalmar.

— Você é minha mãe, mas a Nina é a mulher que eu amo. Eu vou sair daqui e espero pelo seu bem que eu a encontre. Porque você não vai querer saber o monstro que vou me tornar se perder ela de novo por sua culpa. Isso não vai acontecer de novo.

Eu pego as chaves do carro.

— E quando eu voltar quero você longe daqui.

Saio do apartamento com mil demônios sobre meus ombros e dirijo até o prédio de Nina, rezando para que ela esteja bem. Eu sei como as palavras da minha mãe podem ser cruéis.

E agora Nina sabe que sou Will.

E descobriu da pior forma possível. Eu maldigo todas as vezes em que tive a oportunidade de contar e mantive o segredo com medo que ela ficasse com raiva e se afastasse e agora é tarde demais.

Estaciono em frente ao seu prédio e antes que eu entre uma moça morena vem até mim muito nervosa.

— Ei, você é o tal chefe da Nina, não é? Ela está com você?

— Não... quem é você?

— Sou Lucy, somos vizinhas. Ela foi a um show comigo ontem, mas encontrou um ex-namorado e...

— Espera... Ex-namorado? — Aquilo está muito confuso e de repente me recordo que Nina chegou meio estranha ontem no meu apartamento.

— Sim, ele era da banda que estava tocando. Ela saiu correndo e quando consegui alcançá-la na rua eles estavam discutindo. Nina entrou em um táxi e sumiu! Eu tentei falar com este cara, ele chama Tyler. E ele só me disse que namoraram na adolescência, mas terminaram mal e ele queria conversar com ela.

Eu me lembro de Nina comentando sobre um namorado de uma banda naquele telefonema...

— Eu fiquei preocupada, mas ela não respondia as ligações.

— Ela estava comigo, mas foi embora hoje cedo e eu preciso falar com ela, sabe se está em casa?

— Aí que está! Eu saí hoje cedo pra aula de yoga e quando estava voltando vi a Nina entrando em um carro estranho.

— O quê?

— Por um momento achei que podia ser você... ela me contou que estavam saindo e que era complicado... Enfim, ela carregava uma mala...

Meu peito gela.

— Uma mala?

— Sim, eu corri atrás e consegui bater no vidro, mas só percebi que havia um homem dirigindo. Não deu pra ver quem era. Achei que podia ser você ou o cara que veio procurá-la um dia desses.

— Espera, que cara?

— Um homem mais velho. Foi esquisito.... Quando eu falei pra Nina que um homem tinha a procurado, e que o nome dele era Elliot, ela ficou estranha e balbuciou... David.

— Mas é impossível. David... David é o padrinho de Nina e ele morreu há anos. Quem é este Elliot?

— Eu fiquei perguntando se ela sabia quem era e porque ele era tão mais velho e ficou perguntando dela... Ela apenas continuou estranha balbuciando “David” e fechou a porta na minha cara. Mas Nina sempre fazia isso. Ela era bem... antissocial. Estava me custando muito fazer amizade com ela... Olha, não sei em que pé estava o relacionamento de vocês, mas eu me preocupo com a Nina. Eu trabalho com mulheres que sofreram abuso e a Nina tem todas as características de quem passou por isso. Com quem você acha que ela foi embora?

— Eu não sei... Mas eu vou encontrá-la.

Eu me despeço de Lucy e entro no carro.

Nina tinha fugido de mim, afinal, assim como eu temia.

Mas eu vou encontrá-la.

Nem que eu tenha que revirar o mundo do avesso.

Eu vou te encontrar, Nina.

 


Epílogo

 

 

Nove anos antes

 

Senti a dor em cada ponto do meu corpo quando acordei.

Por um momento, não sabia bem onde estava, mas meus olhos confusos passearam pelo ambiente e concluí que estava em um quarto de hospital.

E de repente tudo o que aconteceu para eu estar ali voltou a minha mente e ofeguei, quando a dor no meu peito se tornou pior que a dor no meu corpo.

David estava morto.

Mas eu estava viva.

Não era para ser assim.

— Vejo que acordou.

Achei que estava delirando quando ouvi a voz de Nora.

Todavia ela se colocou no meu campo de visão e eu soube que não, não era um delírio causado pelos remédios que deviam ter colocado no meu soro.

Por um momento, senti alívio.

Se Nora estava ali, Will também estaria?

Ele viera me buscar finalmente?

De repente meu coração que estava destroçado ameaçou bater novo.

Will...

— Está feliz? — a voz de Nora dardejou fúria e fiquei confusa com sua raiva. — Eu sabia que David teria um fim assim quando escolheu ficar com você! Seu sangue é amaldiçoado! Só coisas ruins podem vir de você e sua mãe! Você acabou com a vida de David.

— Nora... — minha boca estava seca, mas tentei falar. — Eu sinto muito...

— Sente mesmo? — Ela começou a chorar. — Eu o amava. Amava com todas as minhas forças. Amava mais que a mim mesma. Sabe o quanto me doeu ver ele escolher você? Em vez de a mim? Sua esposa? A mulher que lhe deu um filho? Um filho que ele deixou ir...

— Will... Will está aqui?

— Não! Will está bem longe! Ele nem lembra que você existe, graças a Deus ele tem outra vida agora! Esquece até o que o pai fez com ele, mas saiba que ele sofreu muito pela rejeição do pai. Se ainda tem algum sentimento neste seu coração escuro saiba que fez Will sofrer por ter roubado o pai dele!

— Eu não queria...

— Não se faça de sonsa comigo! Sei muito bem quem você é? Sei muito bem do que é capaz... de como envolveu David... vejo que está muito bonita... Assim como sua mãe. Ela tinha a mesma beleza que só servia pra destruir os homens e levá-los a fazer coisas horríveis!

Eu começo a chorar, porque Nora tem razão.

Eu levei David a fazer coisas horríveis e no final, a culpa é minha.

Ele se foi e a culpa é minha.

— Só vou te dizer uma coisa. Pediram que eu viesse aqui para saber se iria ficar com a sua guarda, mas não me importa para onde você vai. Eu não quero você. E nem pense em tentar procurar Will, nunca vai encontrá-lo! E acho bom ficar longe dele, se não quer destruí-lo como tudo o que você toca. — Ela se abaixou e colocou a boca perto do meu ouvido — David me mandava cartas. Ele me contou como você o envolveu. Me contou que você aceitou se casar com ele... Eu sei muito bem do que você é capaz e que não tem nada de inocente em você! Você nem deveria estar viva! Destruiu David e vai pagar por isso.

Oh. Meu. Deus.

— Espero que tenha uma vida bem infeliz, Nina. Para pagar tudo o que me fez.

Quando ela se foi, lutei para respirar, quando tudo o que mais queria era morrer também.

Enfiei as unhas na pele do meu braço, até sair sangue.

Desejei que meu coração parasse de bater.

Mas quando saí daquele hospital, ele ainda batia.

Mesmo não havendo mais nenhuma cor.

Apenas escuridão.

 

 

 


“Esses prazeres violentos

Tem finais violentos”

 

Romeu e Julieta - Shakespeare

 

 

 

 

 

“Estamos divididos entre o arrependimento, que é o preço que pagamos pelas coisas que não fazemos, e o remorso, que é o preço que pagamos por fazê-las.”

 

Variações Enigmas – André Aciman

 


Ato III – Remorsos e Arrependimentos

 

Prólogo

 

 

Antes

 

— Aos Black! — Alguém ergueu um brinde ao casal que estava em destaque no jardim ornamental naquele fim de tarde, rodeados de convidados que vieram festejar os cinco anos de casamento do distinto homem grisalho que sorria para a bonita esposa, minha mãe.

Ela sorriu de volta enquanto todos ergueram suas taças em congratulações e me perguntei se mais alguém além de mim notou que o sorriso não chegava aos olhos.

Nora Black ainda era uma das mulheres mais lindas que já vi, sobretudo agora, com seu elegante vestido de grife e cabelos e pele tratados pelo que mais caro o dinheiro podia comprar.

— Eu prefiro fazer um brinde a minha linda esposa, Nora. Que enche meus dias de alegria. — Christopher beijou o rosto da minha mãe e os amigos aplaudiram, animados com a felicidade do casal que cortava o bolo branco.

Charlotte pulou em volta deles, pedindo que ajudasse a cortar e Christopher lhe sorriu, deixando que ela fizesse as honras, não notando que minha mãe não gostou muito da interferência da caçula dos Black.

Mamãe dizia que Charlotte era muito mimada, mas não fazia muito para impedir que Christopher — ou qualquer um de nós — agisse diferente com a menina.

Ao lado deles, sem disfarçar muito a má vontade, estava Aria.

Com o passar dos anos ela tinha aceitado a presença da minha mãe como a nova esposa do seu pai, mas isso não a impedia de dardejar indiretas ou sempre colocar o nome de Helena, a mãe dela, no meio das conversas. Provavelmente Aria nunca aceitaria de verdade que os pais não estavam mais juntos, embora Helena ainda fosse muito presente na vida das filhas.

Quanto a mim, observava a cena a minha frente como se não fizesse parte dela, embora o lugar que me cabia naquela família estivesse cada vez mais solidificado.

Já fazia quase seis anos que cheguei à casa dos Black e me tornei um deles e mesmo assim, em alguns momentos, sentia que não pertencia àquela casa. Como se eu tivesse que estar em outro lugar.

Não que eu não curtisse a minha vida como era. Seria ingrato se não reconhecesse que viver como um Black tinha suas vantagens.

— E aí cara ? Não vai lá cortar o bolo também? — Sebastian apareceu ao meu lado.

Ele estava vestido como um dos convidados, porque eu o convidei. Eu pouco me importava se Sebastian era filho da governanta. Ele era um dos meus melhores amigos. Christopher também não se importava, embora Aria e minha mãe fossem um tanto esnobes.

— A bebida é boa. — Ele ergueu uma taça de espumante.

— Eu prefiro cerveja.

— Podemos conseguir uma. — Bateu no meu ombro e nos viramos em direção à cozinha. — E ir para a piscina?

— Ei, aonde vão? — Aria nos alcançou assim que entramos na cozinha cheia de garçons.

Sebastian abriu a geladeira e tirou uma cerveja jogando para mim.

— Vai querer uma? — indagou a Aria que fez cara de nojo.

— Credo, não! Estão fugindo? Vocês sempre fazem isso, é muita falta de educação!

— Quem liga? — Ri, abrindo a cerveja.

— Sebastian, o que faz aqui? — Ellen, a mãe de Sebastian, entrou na cozinha e nos lançou um olhar de censura. — Não deveriam estar aqui!

— Relaxa, mãe, só viemos pegar uma cerveja.

— Não têm idade pra tomar cerveja, crianças — reclamou como sempre fazia, mas nunca nos impediu de nada. — Já que está aqui, me ajuda a levar estes pratos lá pra fora, Sebastian.

Sebastian bufou, mas nunca desobedecia a mãe e a seguiu.

— E você, deveria voltar à festa. Sua mãe estava perguntando onde estava. — Aria se dirigiu a mim.

— Quem liga? Não sou puxa-saco igual você. — Peguei um gelo na bandeja na mesa e joguei dentro de sua blusa que deveria custar mais do que o salário do mês inteiro daqueles garçons.

Aria gritou e eu ri, fugindo quando ela veio atrás de mim, brava pela brincadeira.

— Seu imbecil, este vestido é caro! — ainda gritava quando estávamos no corredor.

— Tem um monte desses!

— Tira isso de mim, está gelado! — implorou e eu me voltei, colocando a cerveja no balcão e me aproximando atrás dela, enfiando a mão dentro do vestido para alcançar o gelo.

Aria estremeceu e virou a cabeça em minha direção, nossos olhares se encontrando agora e o clima de brincadeira deu lugar à outra coisa.

Meus dedos ainda deslizaram por sua pele, antes que eu tirasse a mão de dentro de seu vestido e colocasse o gelo dentro da lata de cerveja.

— Idiota — murmurou.

E sem pensar duas vezes, segurei sua nuca e a beijei.

Aria deixou por um segundo, antes de se afastar, olhando para os lados.

— Alex, não faz isso aqui!

Eu ri e a puxei para um armário de roupa, a beijando de novo antes que conseguisse me repreender.

Não era a primeira vez que nos beijávamos. A coisa toda tinha começado há alguns meses. Aria era muito bonita e eu era só um adolescente cheio de hormônio. E, às vezes, sentia que estávamos fazendo algo errado quando pensava que para todos os efeitos éramos irmãos, mas e daí? Não era como se fôssemos irmãos de sangue. E a verdade é que Aria nunca perdia a chance de dizer que não éramos parentes. Acho que isso ajudou não pensar nela como uma irmã, quando começou a crescer e ficar interessante. Claro que passei um tempo ignorando aquilo. Eu a respeitava e respeitava o teto de Christopher. Certamente se ele ou minha mãe descobrisse o que vínhamos fazendo iriam ficam furiosos, para dizer o mínimo. Por isso mesmo que nunca pensei em levar a sério a atração que sentia por Aria.

Ela já teve vários namorados assim como eu tive muitas namoradas. Mas um dia, justamente em uma brincadeira tarde da noite quando assistíamos a um filme juntos e Charlotte havia adormecido, eu a beijei e para minha surpresa ela retribuiu. Combinamos que nunca mais ia acontecer, mas a verdade é que de tempos em tempos acabávamos juntos de novo. E a vontade de não ficar só nos beijos vinha crescendo também, mas eu não ousava dar aquele passo. Por enquanto o que eu e Ária fazíamos era apenas brincadeira sem maiores consequências. Se déssemos um passo à frente, o que aconteceria?

Não era como se pudéssemos ter algum compromisso. Ou podia?

— Precisamos voltar... — Aria sussurrou depois de um tempo.

— Tem razão — concordei, antes que passássemos do limite.

Mas antes de sair do armário Aria segurou minha mão.

— Vá ao meu quarto hoje à noite.

Senti a empolgação e o receio me dominar.

Os olhos de Aria brilhavam na semiescuridão.

— Não acho que seria...

— Por que não? — Ela se encostou em mim. — Estou apaixonada por você, Alex...

Puta merda, eu não soube o que pensar.

Não podia negar que era prazeroso ouvir de uma garota como Aria que estava apaixonada por mim.

Mas eu sentia o mesmo por ela? Eu nunca tinha parado para pensar nisso. Eu tinha afeto por Aria como alguém da minha família e tesão pela garota com quem ficava.

E no fundo, ainda havia o medo de deixar a situação sair do controle. Em poucos meses eu iria para a faculdade e Aria ainda era a filha de Christopher Black.

Porém, quando ela beijou meu rosto e sussurrou que ia me esperar no seu quarto depois que todos dormissem, eu me vi concordando.

Danem-se as consequências.

 

Naquela noite, depois que a casa estava silenciosa, saí do quarto e caminhei pelo corredor, torcendo para não encontrar ninguém da família pelo caminho. Porém, ao passar pelo quarto de Charlotte ouvi o barulho da TV. Já passava da meia-noite e ela deveria estar dormindo.

Abri a porta e espiei para dentro. Ela estava deitada na cama assistindo aquele filme de vampiro pelo qual estava apaixonada.

Havia pôsteres pelo quarto e ela colecionava tudo o que aparecia.

— Já passa da hora de dormir, não?

Ela deu de ombros.

— Sou uma vampira agora.

— Duvido que vá ser engraçadinha assim quando seu pai descobrir que está acordada vendo esse vampiro brilhoso.

— Não fala assim do Edward! — Jogou uma almofada em mim.

— Amanhã você tem aula cedo, devia ir dormir. — Eu me aproximei para devolver a almofada.

— Vai me dedurar?

Claro que ela sabia que eu não ia dedurá-la.

Eu tinha um fraco por Charlotte e fazia tudo o que ela queria. Mesmo quando era desobedecer as regras da casa.

— Não desta vez.

— Você é o melhor irmão do mundo! — Ela riu, se ajeitando na cama para continuar vendo o filme.

Saí do quarto, sorrindo agora por outro motivo.

O quarto de Ária ficava no fim do corredor e além de Charlotte ninguém mais na casa parecia estar acordado àquela hora. O quarto estava escuro quando entrei e fechei a porta atrás de mim antes de acender a luz.

E me assustei quando vi Sebastian saindo de cima de Aria, ambos me encarando assustados.

E por um momento, achei que estava alucinando.

Aria puxou o lençol para se cobrir e Sebastian pulou da cama, procurando a cueca que estava jogada no chão.

— Porra, Alex, cara... — ele balbuciava enquanto Aria continuava em silêncio me encarando.

Eu nunca vou esquecer o olhar de desafio, o queixo erguido, como se não tivesse fazendo nada de errado.

— Que merda está acontecendo aqui? — consegui dizer depois de alguns segundos de silêncio tenso.

— Cara , me desculpe, eu... — Sebastian continuava se vestindo e balbuciando desculpas, mas meus olhos estavam em Aria.

— Não vai falar? — insisti, a raiva começando a me consumir a cada momento que passava e eu entendia o que estava acontecendo.

Ou melhor, tentava entender.

Que porra, Aria estava transando com Sebastian quando me convidou para vir a seu quarto?

— Há quanto tempo isso vem acontecendo? — indaguei com uma frieza que não sei de onde saiu.

— Cara , nunca aconteceu antes — Sebastian tentava explicar. — Foi do nada, eu... me desculpe, nunca quis desrespeitar sua irmã...

— Irmã? Ela não é minha irmã! De fato, talvez eu tenha chegado antes da hora? Porque Aria me chamou para transar com ela.

Sebastian arregalou os olhos finalmente entendendo.

— Espera... vocês dois... vocês...

Compreendi naquele momento que Sebastian não fazia ideia do que vinha rolando entre mim e Aria.

Mas ela sabia.

E eu só queria entender que merda ela estava pensando.

— Sai daqui, Sebastian.

— Mas...

— Tenho que falar com a Aria.

Sebastian queria insistir, olhou pra Aria.

— Que porra está acontecendo? Por que não me disse que estava transando com o Alex? Sabe que somos amigos, eu nunca...

Aria rolou os olhos.

— Estão parecendo duas mocinhas virgens traídas. — Ela estendeu a mão e vestiu uma camisola saindo da cama. — E acho que os dois deveriam me deixar em paz se não sabem ser adultos o suficiente...

— Eu não estou entendendo nada... — Sebastian se virou pra mim. — Cara , eu juro que não sabia...

— Eu sei que não sabia. Por favor, saia.

Ele finalmente saiu e eu encarei Aria.

— O que está fazendo? Por que me chamou para transar com você quando ia transar com Sebastian? Acha que sou algum idiota?

Ela riu.

— Meu Deus, está mesmo bravo?

— Estava se divertindo comigo? Era isso?

— Como se não estivesse se divertindo comigo também! Me poupe.

— Você disse que estava apaixonada por mim.

— E você acreditou? Acha que sou garota de me apaixonar por um cara como você?

— E Sebastian? Gosta dele?

— Claro que não! Ele é filho da empregada, pelo amor de Deus! E você, embora use o sobrenome Black, não é nada!

A fúria começou a crescer dentro de mim com as palavras de Aria.

— Não está falando sério! Não achei que fosse tão esnobe! Não parecia se importar com isso enquanto se esfregava em mim ou quando estava naquela cama com Sebastian.

— Foi apenas diversão e agora já chega! A gente deveria ter colocado um ponto final nisso faz tempo! Nunca vai acontecer nada entre nós! Ou vai dizer que está apaixonado por mim?

— Eu pensei até que podia estar, mas agora vendo quem você é, quero distância. Deus me livre me apaixonar por uma vaca como você!

Ela levantou a mão para me bater, mas eu a segurei e a empurrei.

Tudo demorou apenas alguns segundos, e Aria gritou quando foi para trás e caiu sobre o braço.

— Merda! — Eu me abaixei arrependido e preocupado de tê-la machucado. — Se machucou?... Que droga, Aria, eu não queria...

— Tira a mão de mim... — Ela chorava quando a porta abriu e minha mãe entrou.

— O que está acontecendo aqui?...

— Aria caiu... — sussurrei ainda assustado.

— Você me empurrou! — Aria gritou.

Tirei minhas mãos dela, me afastando quando minha mãe a ajudava a ficar em pé perguntando se estava tudo bem.

— Acho que machuquei meu braço — Aria choramingava.

— Vou levar você a um Pronto-socorro — minha mãe disse e me encarou. — E você volte para seu quarto agora!

— Não, eu posso ajudar...

— Fique longe dela! — Sibilou e eu senti o baque de suas palavras. Minha mãe sabia.

Ela tinha entendido o que estava acontecendo entre mim e Aria, ou pelo menos desconfiava de uma parte.

Voltei para meu quarto, andei de um lado para o outro como um tigre enjaulado, a cena de Aria caindo se repetia na minha cabeça. E se eu tivesse a machucado de verdade?

Em algum momento não aguentei mais e saí do quarto. Encontrei Sebastian sentado no jardim e ainda tinha raiva de pensar que ele transara com Aria e até um pouco de ciúme, mas eu sabia que Sebastian não tinha culpa.

Sebastian não sabia sobre mim e Aria.

— Cara , me desculpe — ele disse quando me sentei ao seu lado. — Eu juro que não sabia que existia alguma coisa com a Aria.

— Ela não disse?

— Não. Foi tudo muito rápido. Eu fui tomar água na cozinha e ela estava lá. Nós começamos a conversar. Ela parecia diferente. De repente, estávamos nos beijando e ela disse que era para irmos para seu quarto. Se eu soubesse de vocês... Droga, se ela tivesse me contado! Por que ela não me falou?

— Não faço ideia. Achei que conhecia a Aria, mas não conheço. Provavelmente ela estava brincando com nós dois.

— O lance entre vocês... era sério?

— Não. A gente nem tinha transado, apenas... rolou alguns beijos e hoje ela disse que íamos transar.

— Não entendo por que ela me levou para o quarto dela então.

Sim, por quê?

Eu não entendia Aria e seus impulsos. Até hoje ela nunca tinha demonstrado nenhum interesse por Sebastian. Muito pelo contrário, ela não perdia a chance de destratá-lo por ser filho da governanta.

Então o que aconteceu hoje?

Eu devia estar preocupado com isso, mas a verdade é que os motivos de Aria já não me interessavam.

Estava preocupado de tê-la machucado.

— Vou dormir. — Sebastian se levantou. — Estamos bem?

Acenei que sim.

— Boa noite.

Algum tempo depois, o carro da minha mãe estacionou em frente a casa e eu a vi ajudando Aria a entrar.

Aria estava com o braço engessado.

Assim que elas desapareceram, entrei em casa e Aria estava na cozinha tomando água.

— Me desculpe. — Eu me aproximei. — Você está bem? Eu não queria machucar você...

— Tudo bem. Eu te provoquei...

— Por que... Por quê? — Não tive que terminar a questão para ela entender.

— Eu não sei. Acho que tudo isso é errado. Nós dois. Sebastian... Podemos esquecer?

— Sim, acho que é o melhor que fazemos.

— Então é o que faremos. A partir de agora somos só irmãos. Vamos esquecer essa noite.

— Você pode me perdoar?

Ela ficou me encarando e desejei saber o que se passava em sua mente.

— Você vai se perdoar?

Sim, era uma boa pergunta. Eu nunca deveria ter me envolvido com Aria e aquela era a consequência.

Eu me aproximei e beijei sua testa, e a acompanhei até seu quarto, lhe dando boa-noite. Quando me virei, minha mãe estava me esperando com um olhar de censura.

— Como pôde fazer isso com Aria?

— Eu não fiz de propósito... Ela... Ela contou o que aconteceu?

— Sim, e espero que fique longe dela! Aria já se arrependeu e espero que você passe a vida fazendo o mesmo. Eu não vou contar isso ao Christopher e espero que essa história seja enterrada.

— Eu não queria machucá-la...

— Mas machucou! Você foi um monstro, Alex.

Ela me deu as costas entrando no próprio quarto e me deixando sozinho com o monstro que acabei de descobrir que habitava dentro de mim.

 

 

Capítulo 1

 

Alex

 

Faz uma semana que Nina sumiu, evaporou no ar como a névoa que cobre a manhã.

Impulsiono meus pés para frente, na calçada em que corri tantas vezes antes, na esperança que ela vá se materializar a qualquer momento, correndo na minha direção. Quanto mais eu corro, o parque ficando para trás e chegando ao Lago Michigan, mais a angústia domina meu peito.

Todas as manhãs desde que Nina foi embora, retornei àquele percurso, esperando que de alguma maneira ela fizesse o mesmo e eu voltaria a encontrá-la.

Mas Nina não deu sinal de vida. Diminuo o ritmo, minha respiração cansada assim como meus membros, não só da corrida, mas da espera e do tormento de não saber onde encontrá-la.

Dou a volta no Planetário, ignorando o frio que corta meu rosto quando de repente avisto a figura feminina mais à frente. Por um momento, penso que estou sonhando, mas a mulher continua correndo, o rabo de cavalo castanho dançando a cada passo que dá.

Sem pensar, sem ao menos respirar, avanço rápido e seguro seu braço, a virando.

— Nina?...

Mas o rosto que encontra o meu é estranho.

A mulher morena me encara de volta, sobressaltada e solto seu braço balbuciando desculpas, enquanto ela continua seu percurso, um tanto assustada ainda, lançando-me olhares temerosos até desaparecer de vista.

 

Quando entro na Black uma hora mais tarde, de novo sinto aquela ansiedade dominando meus passos ao me aproximar da mesa de Nina, como se ela pudesse estar lá.

No entanto, encontro apenas Hannah que tinha voltado a fazer alguns trabalhos para mim na ausência de Nina.

— Bom dia, Alex. — Ela sorri.

— Bom dia, Hannah. Algum recado?

— Está tudo no seu e-mail. Mas Andrew Waldorf, da Waldorf & Co, ligou da Inglaterra já algumas vezes. Acho melhor retornar logo.

— Ah sim, estamos negociando com eles. Retornarei ainda agora de manhã.

Sacudo a cabeça em afirmativa e entro na minha sala.

Eu tinha dito muito pouco a Hannah em relação ao sumiço de Nina. E só abri o assunto com ela porque tive esperança que Nina pudesse ter feito contato com Hannah, já que elas costumavam ter alguma relação ali na empresa.

Eu lhe expliquei que Nina havia viajado e não disse onde foi ou quando iria voltar, e que fiquei preocupado, pois não sabia se ela pretendia retornar a Black. Hannah ficou surpresa e disse que não sabia de nada. Por um momento, não consegui disfarçar minha angústia e acho que talvez Hannah tenha desconfiado que minha preocupação com o paradeiro de Nina era maior do que o adequado a um chefe, mas não me importei. Eu lhe pedi que, caso Nina entrasse em contato, me informasse.

Todavia, Nina não entrou em contato com Hannah e nem com ninguém da empresa. Pedi que Hannah sondasse Oliver, mesmo desconfiando que Nina não falaria com ele, mas Oliver também não teve nenhum contato com Nina.

Ela tinha sumido do mapa.

Mas eu ia encontrá-la. Nem que fosse a última coisa que eu fizesse na vida.

Sento-me à minha mesa e vejo os recados no meu celular. Há chamadas da minha mãe e de Aria. Eu as ignoro como venho fazendo há uma semana.

Aria até tentou ir à minha casa, mas deu com a cara na porta. Eu troquei a senha e de nada adiantou ela bater. Fingi que não ouvi. A minha raiva ainda era recente demais para que ao menos tentasse entender porque contara a minha mãe sobre a presença de Nina na minha casa.

E também não queria falar com Nora. Ela era menos insistente em comparação a Aria, mas me ligou algumas vezes. Ouvi os seus recados austeros e surpreendentemente calmos, como se soubesse que mais dia menos dia eu iria entrar em contato e perdoá-la. Não que houvesse pedido desculpas, ela achava que tinha razão em ter afastado Nina.

Era incrível que depois de tantos anos minha mãe ainda odiasse Nina com aquela força. E eu que cheguei a pensar que, com o passar do tempo e o casamento com Christopher, aquele amargor tivesse arrefecido.

Pelo jeito, estava enganado.

 

Abro o arquivo que o detetive me trouxera na época que pedi para achar Nina, na esperança de encontrar algo ali que pudesse me levar a seu paradeiro e encontro uma informação que me passou quase despercebida. Depois da morte de David, Nina fora morar em um lar adotivo com uma mulher chamada Martha Stevenson.

Como Nina já não morava com essa mulher desde que fora para a universidade, não dei atenção àquela informação, mas agora me vejo anotando o endereço e avisando Hannah que não tenho hora para voltar, antes de ir atrás da tal Martha.

Martha Stevenson mora em um sobrado bem-cuidado no subúrbio, não muito diferente daquele em que eu vivi com meus pais quando criança.

Bato à sua porta, perguntando-me se ela estará em casa, dado que é um dia de semana, e pelo relatório do detetive, Martha é enfermeira.

Porém, uma mulher negra de uns cinquenta e poucos anos abre a porta me encarando curiosa.

— Pois não?

— Martha Stevenson?

— Sim, por quê?

— Sou Alex Black, eu sou... chefe de Nina... Nina Giordano.

A mulher franze o olhar ainda mais confusa.

— Nina?

— Sim, ela morou com você quando adolescente não?

— Sim, mas não vejo Nina faz muitos anos, desde que foi para a faculdade. Não mantivemos contato. Algum problema? Você disse que é chefe dela?

Sinto minha esperança indo para o ralo, embora soubesse que a probabilidade de Nina ter voltado ao lar de Martha Stevenson fosse remota.

— Nina está com algum problema? Achei que ela tivesse tomado jeito depois de ir pra faculdade...

— Eu temo que sim, se pudermos conversar...

A mulher finalmente pede que eu entre e me leva até sua cozinha, me oferecendo um café. Um cachorro muito parecido com Jacob está deitado em um tapete aos pés da porta.

— Então, o que aconteceu com Nina?

— Ela sumiu.

— Como assim?

Conto a ela a versão resumida, explicando que Nina trabalha para mim e que desapareceu há uma semana, me deixando preocupado.

— E por que achou que ela estaria aqui ou que eu soubesse? Nina nunca mais entrou em contato. Eu ainda tentei algumas vezes, para saber como ela estava, mas quando percebi que não tinha o menor interesse em ter alguma relação comigo, deixei pra lá. Ela não foi a primeira criança de quem cuidei e com quem perdi contato.

— Eu tinha esperança de que você pelo menos pudesse me contar algo para me ajudar a encontrá-la.

— Parece muito interessado, Senhor Black.

— Sim, tem razão. Confesso que eu e Nina estávamos... envolvidos. E... houve um mal-entendido... Olha, deve saber que Nina tem muito problemas.

— Bem, quando ela veio morar comigo era uma menina triste e arisca. Nunca aceitou minha aproximação e muito menos me contou qualquer coisa que tenha acontecido com ela para ficar assim, embora perder os pais tão criança e depois o padrinho naquele acidente deva ser o suficiente para deixar marcas.

— Acha que foi só isso? Acha ser o suficiente para ela ter ficado psicologicamente abalada até os dias de hoje a por não querer ter amigos, relacionamentos normais e se cortar?

— Ah eu sabia que ela se cortava. Quis que procurasse um psicólogo, mas ela se negou, disse que estava tudo sob controle. Era difícil pra mim, obrigar Nina a fazer qualquer coisa. Ela já era uma adolescente. Depois de algum tempo aqui, pintou o cabelo de rosa, começou a fumar, beber e namorar um cara de uma banda...

— Ela me contou algo sobre um namorado dessa época. Tyler.

— Sim, esse mesmo, às vezes eu via quando vinha buscar Nina. Era só um desses roqueiros rebeldes...

— Nina voltou a encontrar esse cara esses dias, em um show. Uma vizinha contou que os dois discutiram, mas que Nina não quis continuar falando com ele, embora esse cara insistisse. E essa mesma pessoa disse que viu Nina entrando no carro de um homem antes de desaparecer, mas não conseguiu ver quem era. Porém, um tal de Elliot a procurou poucos dias antes. Sabe quem é Elliot?

— Não faço ideia. Sinto muito.

Sacudo a cabeça afirmativamente e agradeço pelo café me levantando.

Martha me leva até a porta.

— Talvez ela tenha ido com o ex-namorado? Já tentou encontrá-lo?

— Eu tinha descartado essa possibilidade, já que Nina não quis falar com ele, mas acho que tentarei encontrá-lo. Talvez ele tenha alguma pista.

 

Naquele começo de noite, entro com Lucy no mesmo bar que ela esteve com Nina há algumas noites. Eu havia ligado para a vizinha e pedido que ela me levasse ao mesmo local, para falar com o tal Tyler.

Ainda custo a acreditar que ele saiba onde Nina possa estar, mas o tempo está passando e não ter ideia do seu paradeiro é angustiante.

— Ele é o cara com a guitarra. — Lucy aponta para o palco onde uma banda de rock se apresenta. — Nina não pareceu feliz em vê-lo aquele dia. Fico me perguntando se ela iria a algum lugar com ele.

— Não sei. Também não acho que Nina esteja com ele, mas esse cara pode ter alguma pista.

— Olha, talvez Nina não queira ser encontrada — Lucy fala com cuidado.

— Acha que ela está em segurança? Acha que devo ficar tranquilo e achar que está bem em algum lugar com sabe Deus quem?

— Não, eu não acho. Nina tem muitos problemas e eu também fico preocupada. Quem é este cara que a levou? Será aquele Elliot? E que tipo de relacionamento Nina teve com ele?

— É isso que me pergunto.

A banda finalmente termina e Tyler desce do palco.

Eu e Lucy nos aproximamos.

— Ei, lembra de mim? — Lucy chama sua atenção e o rapaz franze o olhar, confuso. — Eu estava com Nina outro dia.

Ele finalmente a reconhece e sua atenção vai de Lucy para mim, intrigado.

— Sim, me lembro agora. — Ele coça o cabelo, meio contrariado.

— Escuta, podemos conversar? — Lucy sugere e Tyler não parece muito animado.

— Olha, se é sobre a Nina...

— Sim, é sobre a Nina — eu me intrometo.

Tyler me encara contrariado.

— Quem diabos é você?

— Nina sumiu e precisamos saber se tem alguma ideia de onde ela possa estar — Lucy esclarece.

— Como assim sumiu?

— Podemos sair daqui um momento? — Lucy insiste.

— Sim, claro.

Tyler nos leva até outro ambiente, com música mais calma e sentamos em uma mesa afastada.

— Como assim a Nina sumiu?

— Ela entrou em um carro com um homem há uma semana e não deu mais notícias.

— E esse cara pode ser um namorado, ou sei lá, professor! — Tyler ri sem o menor humor. — Vai saber o que se passa na cabeça dela? Eu parei de tentar entender a Nina há muito tempo.

— Vocês discutiram poucos dias antes dela ir embora — Lucy comenta.

— Não tenho nada a ver com isso. Eu tentei falar com ela, mas você viu. Ela fugiu. E Nina me odeia. Desde que eu entreguei aquele professor filho da puta.

— Espera, que professor? — Troco um olhar com Lucy.

Tenho certeza que ela pensa o mesmo que eu. Elliot.

— Quem é você? — Tyler indaga de novo.

— Namorado da Nina — decido logo dizer, embora não seja bem a verdade.

Tyler analisa minha resposta por um momento e acredito que não esperava por isso. Bem, dane-se.

— Imagino que por isso esteja puto. Já que aparentemente ela ainda gosta de trair.

— O que está dizendo? — Tento não ficar bravo. Agredir o ex-namorado de Nina não vai ajudar nada no momento.

— Olha, eu fiquei com Nina um tempo. Ela era... bem louca sabe?

— Louca como? — Lucy questiona.

— Nos conhecemos quando eu lhe dei carona e ela sempre me pareceu, sei lá, infeliz. Perdida. De alguma maneira nos conectamos. Eu não era o que se pode chamar de um cara legal.

— Você abusou dela? — Lucy indaga na lata.

— Não! Não era assim. A gente era jovem, gostávamos de ficar chapados. Nina curtia também.

— Ela já usava drogas antes de te conhecer?

— Eu não sei. Mas ela sempre curtiu qualquer coisa que fazíamos. Nunca a obriguei a nada... Ela parecia... apreciar sabe? Fugir da realidade. Eu sabia que tinha uns troços estranhos na cabeça dela, ela se cortava e...

— Ela já se cortava quando a conheceu? — eu o interrompo.

— Sim. Eu não dava muito atenção a isso. Não era incomum. Até tinha uma namorada antes que curtia as mesmas coisas. Cutting. Era meio gótica, esses lances. Achava que esse era o lance da Nina. Na verdade a fazia mais interessante.

— Você disse que ela te traia? — Lucy pergunta.

Ele se mexe na cadeira, incomodado.

— Não sei se ela me traiu o tempo inteiro, mas um dia eu entrei no quarto e ela estava com a boca no pau do meu melhor amigo.

Engulo a bile em minha garganta, ao imaginar Nina nessa situação.

Perdida, drogada e pelo visto se envolvendo em situações sexuais sem pensar nas consequências.

Eu me recordo dela naquela escada com Oliver e do que ela me contou que tinha feito e acredito que o que Tyler está me contando é verdade.

E dói saber que Nina tem esse comportamento destrutivo há mais tempo do que eu imaginava.

— E vocês terminaram — Lucy deduz.

— Sim, eu a coloquei pra fora, estava... furioso.

— Passou pela sua cabeça que a culpa podia ser do seu amigo? — Lucy dardeja. — Achou bem fácil culpá-la, não?

— Ei, não aponte pra mim!

— Ou vai dizer que você era fiel a ela? — Lucy lhe lança um olhar de ironia e desta vez Tyler cora. — Foi o que imaginei.

— E o que quis dizer com professor? — continuo.

— Fiquei um tempo ser ver Nina. E um amigo me contou uns anos depois que ela estava na universidade de Chicago. Eu decidi ir procurá-la, queria... não sei, conversar. Saber como ela estava. E descobri que estava dormindo com um professor. Nós nos encontramos, discutimos porque eu achei nojento! O cara era casado e tinha um filho quase da idade dela! Mas Nina parecia convencida que não estava fazendo nada errado, aí eu fiquei muito puto e o denunciei. Fiquei sabendo depois que Nina saiu da faculdade e que este cara foi demitido.

— Como era o nome dele? — indago, mas já sei a resposta.

— Professor Elliott Burns.

 

Na tarde seguinte, estaciono o carro em frente a uma casa bonita nos arredores de Chicago. Eu me pergunto se Nina está ali por trás daquelas cortinas. Se foi com aquele homem que ela fugiu. Mas sei que, se Nina está com o tal professor, eles não estão ali, porque aquela é a residência em que Elliot Burns vive com a esposa, Geraldine Burns, segundo consegui apurar.

— Acha que ela está aí? — Lucy pergunta ao meu lado.

Ela tinha insistido em vir junto e não me opus. Lucy parecia uma pessoa genuinamente boa e estava mesmo preocupada com Nina. E neste momento eu apreciaria qualquer ajuda que eu pudesse ter.

— Não sei, mas vamos descobrir.

Saímos do carro e batemos na porta. Uma mulher magra de meia-idade, com os cabelos presos em um austero coque, nos atende.

— Pois não?

— O Professor Burns está?

— Quem são vocês? — Ela olha de mim para Lucy atentamente.

Percebo que seus olhos são críticos quando se prende na moça.

— Eu sou Lucy Garcia. E este é Alex Black.

— Podemos falar com o Professor Burns? — insisto.

A mulher pondera por um momento.

— Meu marido está ocupado. Ele está dando uma aula particular.

— Nós aguardamos ele terminar. — Lucy sorri. — Podemos entrar?

— Desculpa, mas não sei quem são vocês e o que querem com meu marido...

— Eu sou assistente social. — Lucy adquire um tom profissional mostrando sua carteira.

— Assistente social?

— Sim, senhora. E preciso falar com seu marido. Se pudermos entrar e esperar, eu agradeceria.

A mulher parece ligeiramente abalada, mas faz um sinal para a acompanharmos.

Lucy pisca para mim e percebo que foi uma boa ideia trazê-la.

Geraldine Burns nos leva até uma sala de estar e pede para aguardarmos porque vai avisar Elliot de nossa presença.

Quando ela se afasta Lucy ri.

— Ela ficou assustada. Será que sabe que o marido é um safado que pega alunas?

— Acha que ela sabe? — Sinto-me um tanto nauseado.

Aliás, é só o que sinto desde minha conversa com Tyler ontem à noite sobre o passado de Nina.

E agora mais do que nunca sei que preciso encontrá-la.

— Ela pareceu assustada quando eu disse que era assistente social. E Tyler disse que ele foi demitido quando o caso com Nina foi exposto.

— E ela continua com um marido assim? — indago indignado.

— Você não sabe como certos homens agem. E como algumas mulheres acreditam que precisam deles...

Neste momento, escutamos uma porta se abrindo e olhamos em direção ao hall de entrada onde um homem de cabelos grisalhos e óculos abre a porta de saída para uma adolescente loira.

— Desculpa não terminarmos a aula hoje, Molly — ele diz.

— Tudo bem, professor, nos encontramos na próxima semana. — Ela sorri e então Elliot coloca a mão sobre os ombros da menina. Mais tempo do que seria adequado, reparo que a menina arfa e morde os lábios, antes de sair.

— Nojento — Lucy sussurra.

Então o homem se vira em nossa direção, avançando sobre a sala muito sério. Sua esposa surge ao seu lado.

Lucy faz um sinal pedindo que deixe a fala com ela.

— Minha esposa disse que queriam falar comigo? Quem são vocês?

— Eu sou Lucy Garcia, assistente social. Este e Alex Black.

O homem estende a mão para mim e Lucy de forma educada.

— Por favor, sentem-se. Em que posso ajudá-los?

Ele parece tranquilo. Ao contrário de Geraldine, que torce as mãos com os olhos inquietos.

— Seja lá o que for, Elliott não fez nada!

Elliott coloca a mão nos joelhos da esposa.

— Geraldine, se acalme. Por favor, nos deixe a sós.

A mulher levanta, sem nem mesmo questionar e sai da sala.

— Desculpem minha mulher. Passamos por uma situação embaraçosa há alguns anos...

— Ah sim, quando perdeu seu emprego na universidade — Lucy diz e Elliott franze a testa, mas continua calmo.

— Sim, foi um mal-entendido.

— Você não dormia com Nina Giordano? Uma aluna?

O homem olha para baixo, como pensando no que dizer.

— Por que estão aqui? É por causa de Nina? Essa história já aconteceu há anos...

— Sim, por causa da Nina. Acho que o senhor não se lembra de mim, mas esteve no prédio da Nina há alguns dias a procurando.

O homem finalmente parece se lembrar de Lucy.

— Oh, sim, agora me lembro. Era vizinha de Nina.

— Sim. Então acredito que a história com Nina não seja tão antiga assim.

— Escuta, por que estão aqui? Eu não entendo...

— Nina desapareceu — Lucy explica. — Ela entrou em um carro estranho com um homem há uma semana e não deu mais notícia.

— Espera... Acha que era eu?

— É uma hipótese.

— Não, não fui eu.

Tento não me sentir irritado com a negativa do professor. Realmente estava com esperança de que ele soubesse o paradeiro de Nina.

— Eu... procurei Nina aquele dia, mas fazia anos que não nos víamos. Queria apenas... conversar — continua.

— Então você realmente teve um caso com ela? — Lucy insiste.

— Não foi como imaginam. Nina era uma garota... complicada. Eu quis ajudá-la. No começo era apenas isso. Consegui uma bolsa para ela, lhe dava conselhos. Mas... as coisas fugiram do controle.

— Você trepou com sua aluna vinte anos mais nova.

— Não me pinte como um velho sedutor. — Elliott se irrita. — Nina me envolveu. Ela insistiu.

Lucy rola os olhos.

— Acredita mesmo nisso?

— Nina era uma garota muito envolvente. E carente de atenção. Achei que estava apenas a ajudando, mas ela queria mais e infelizmente não pude resistir. Sei que foi errado e por causa disso perdi meu emprego. Hoje apenas dou aulas particulares.

— E seduz adolescentes — Lucy sibila.

Elliott se levanta.

— Escuta, não sei onde está Nina. Eu não falo com ela há anos. Então se puderem, por favor, se retirarem...

Eu e Lucy nos entreolhamos e sei que ela também acredita que Elliott não tem ideia de onde Nina esteja.

— Obrigada pela sua atenção... professor! — Lucy acena e saímos da casa.

— Que filho da puta! — ela murmura quando entramos no carro.

— Por que um cara desses consegue envolver... — eu tento expressar minha confusão. — Como Nina se envolveu com ele?

— Elliot Burns é um típico predador sexual. Eles têm uma espécie de radar, conseguem identificar a vítima mais vulnerável. Predadores sexuais têm talento para distinguir alguém que necessita de algo. Eles identificam e exploram essa necessidade. E o cérebro das vítimas não está preparado para entender ou reagir ao que está acontecendo.

Seguro o volante com força. Cada vez que descubro mais os segredos escondidos no passado de Nina mais assustador se torna.

— Nina deve ter caído do céu para ele. Tyler era só um menino que não pensava e não se importava com as consequências. Mas Elliott Burns agiu meticulosamente para envolvê-la. Deve ser o modus operandi dele. Nina não tinha a menor chance.

Absorvo aquelas palavras, me recordando de como Nina agia. De como ela parecia submissa aos avanços de Oliver. Como se sentia culpada pelos desejos que ela despertava nele. Como achou que merecia ser punida por isso.

Como buscou isso em mim.

Sinto nojo de mim mesmo por ter cedido, nem que seja por alguns momentos.

— Sinto muito por não termos encontrado nenhuma pista — Lucy diz quando estaciono em frente ao seu prédio. — Com quem Nina poderia ter ido?

— Não faço ideia. Eu achei que ela iria voltar. Que apenas precisava de um tempo. Mas agora acredito que algo mais sombrio pode estar por trás disso. Eu vou pedir uma investigação, talvez um detetive particular consiga achar seu rastro.

— Sim, é uma maneira.

— Acha que Nina está com algum homem como... o Professor Elliott? — expresso meu medo.

— Não sei, mas Nina é suscetível a esse tipo de homem. Com certeza há algo dentro dela que acredita que é isso que ela merece.

— O que quer dizer? Quando foi que Nina ficou assim?

— Isso teremos que perguntar a ela. Só a Nina sabe.

Lucy sai do carro e eu fico ali, remoendo aquela incógnita.

Quando foi que Nina se tornou aquela pessoa quebrada que é hoje?

Eu tenho medo de descobrir.

 

***

Naquela noite, entro no clube noturno muito diferente do que costumava entrar antes.

Red é um exclusivo clube de BDSM nos arredores de Chicago, e um dos sócios, e o homem que empresta o nome ao lugar é Paul Red, meu antigo professor da faculdade e o homem que tinha me introduzido naquele mundo. Diferentemente de mim, que curtia apenas alguns dos lados daquele estilo de vida, Paul era um dominador nato e eu sabia que ele estaria no clube naquela noite. O outro sócio do lugar era Liam Hunter, um bilionário investidor de Wall Street. Hunter também era sócio do clube em que eu levei Nina quando estivemos em Nova York.

Tinha sido um tiro no pé. Fiz Nina me acompanhar até aquele lugar na esperança de que fugisse correndo das coisas que almejava fazer com ela, mas no fim Nina me surpreendeu ao desejar aquele meu lado, como quis muito mais do que eu estava disposto a dar.

E agora eu a perdi.

— Alex Black, a que devo a honra?

Paul aproxima-se, sentando ao meu lado.

Paul Red é um cara alto, com mais de 1,90 de altura, de compleição forte, que virava a cabeça da maioria das alunas da faculdade de Chicago. Não que ele se aproveitasse disso, me recordo. Paul tinha um código de conduta muito sério quando se tratava de sua vida sexual. Era isso que o fazia lendário naquele mundo.

Ele se aconchegou no banco de couro ao meu lado, passando os dedos por seus cabelos escuros e me encarando com seus olhos azuis inquiridores.

— Victoria me disse que estava com problemas? — indaga quando não falo nada.

— Foi isso que ela disse? — Eu não falara com Victoria desde que ela deixara minha casa, quando pus um ponto final em nossa história.

— Não com todas as palavras, mas me disse que tinham terminado porque estava apaixonado por sua secretária que também era sua irmã. Se isso não é problema eu não sei o que é.

Respiro fundo, tomando um longo gole de whisky e começo a contar tudo a Paul. Não sei quanto tempo demoro ou o quanto bebemos, mas Paul escuta tudo atentamente e ao término me encara com os olhos franzidos.

— Por que está me contando isso?

— Por que é meu amigo?

— Porque você está se sentindo culpado por tê-la levado para este mundo. Porque aparentemente ela tinha muitos problemas.

— Sim, tem razão, eu sinto culpa. Eu sabia desde o começo, que havia problemas sérios em relação às atitudes de Nina. Ao fato de ela querer sentir dor, mas mesmo assim eu não resisti.

— Isso não faz de você um vilão. Faz de você humano.

— Mesmo assim. Ela foi embora e eu não faço ideia como encontrá-la. E nem faço ideia de como ajudá-la se conseguir tê-la de volta.

— Mas você quer que ela seja sua submissa.

— Não sei se conseguiria voltar a ser o que era antes. Antes era tudo... sexo. Diversão e prazer. Com Nina é diferente. E o fato dela ter gostado não tem a ver com prazer, tem a ver com um lado escuro dentro dela que não sei o que é.

— E tem medo de saber.

— Sim, eu tenho.

— Aparentemente ela fugiu porque tem medo que você descubra também.

Isso lança um novo prisma ao desaparecimento de Nina.

Eu achava que ela tinha ido embora porque estava com raiva de mim, por eu ter escondido que era Will.

Mas e se não foi só isso?

— Não sei o que fazer, só sei que preciso encontrá-la.

— Você é rico e determinado. Vai encontrá-la. A questão é: ela quer ser encontrada? Ela quer voltar com você?

— Não posso perdê-la de novo. Não agora. Eu só quero ficar com ela e ajudar a superar sabe Deus o que a aflige.

— Então sabe o que fazer.

— Não é tão fácil.

— Bem, um passo de cada vez.

— Acha que o que fazemos... é errado? Já teve alguma submissa que tinha... problemas?

— Meu caro amigo, todos nós temos esqueletos no armário, todos nós temos problemas e no fim, tudo é genital, já dizia Freud. Só que algumas pessoas têm maneiras prazerosas de resolver as coisas. Então eu entro em cena.

Ele sorri e se recosta, tomando seu bloody mary, sua bebida preferida.

Paul sempre me pareceu invencível para mim. O cara que dominava tudo a sua volta. Um professor renomado, um dominador.

Eu me pergunto quais são os esqueletos que ele guarda no armário.

— Acha que vai fazer isso pra sempre?

— O que quer dizer?

— Nunca se apaixonou?

O sorriso morre em seu rosto e acho que vejo a sombra de algo indesejável em seus olhos.

— Amor é uma armadilha. Eu amo minhas submissas, as respeito e tudo o que faço é para o prazer delas. Isso é o que entendo de amor. Este outro tipo, essa paixão sem controle, isso não é pra mim.

Termino minha bebida e me levanto.

— Preciso ir.

— Espero que consiga encontrar sua garota — Paul sorri —, mas se quiser se divertir, tenho outras garotas que estão loucas para conhecer o quarto de jogos de Alex Black.

Abro um sorriso, me despedindo e deixando Paul e suas insinuações para trás.

 

Estou entrando no carro quando pego o celular e vejo várias mensagens de Aria. Na última delas, diz que Isabella está com febre. Suspiro, me perguntando se Aria seria capaz de usar as filhas para que eu me aproxime dela de novo.

Bem, eu sei a resposta, mas mesmo assim ligo o carro e me dirijo à mansão Black. Ver as meninas vai me ajudar a acalmar meus nervos. E preciso colocar um ponto final nessa briga com Ária.

No final das contas ainda somos família.

Alguns minutos depois, Max me recebe.

— Ei, o filho pródigo retornou!

— Isabella está bem? Aria deixou uma mensagem dizendo que ela estava com febre.

— Uma febre normal de criança. Elas tomaram vacina hoje e deve ser reação, mas sabe como Aria é exagerada. E ela tinha razão, você veio mesmo.

— O que quer dizer?

— Ela está tentando falar com você há dias e você dando gelo. Ela disse que só viria se fosse pelas meninas, e tinha razão.

— Sim, Aria sabe por que estou bravo.

— Eu sei. Que confusão essa com a tal Nina, hein?

— Vou subir e ver a Isabella.

— Sim, Aria está no quarto das crianças. E sua mãe, não vai falar com ela?

— Não faço questão no momento — respondo por cima do ombro.

Entro no quarto das meninas e Aria está sentada em uma poltrona mexendo no celular e Arianna e Isabella estão sentadas no chão brincando com bonecas na companhia de Brittany, a babá.

— Tio Alex! — As meninas correm em minha direção e eu as acolho, pensando que realmente senti muita falta delas essa semana.

— Ei, fiquei sabendo que está doente? — Acaricio o rosto de Isabella, evitando fazer contato visual com Aria.

— Já melhorei, tio Alex! Trouxe doce pra mim? — indaga com os olhinhos ansiosos e eu solto uma risada. Sempre que estavam doente eu costumava burlar o sistema de nada de açúcar de Aria.

— Vou ficar devendo, acho que sua mãe não ia gostar.

— Mas estou com fome!

— Então a Brittany vai levar vocês para tomar leite! — Aria faz sinal para a babá. — Finalmente deu o ar da graça. — Aria me encara depois que a babá leva as meninas.

— Sabe por que estou bravo com você.

— Me desculpe — diz a contragosto.

Levanto a sobrancelha.

— Quer que eu acredite que está arrependida? Sabe a confusão que criou?

— Não era minha intenção.

— Era sim. E sabe disso.

— Ok, era! Estava maluco se envolvendo com aquela secretária.

— Porra, ela tem nome! E é Nina! E sabe que ela é muito mais do que minha secretária.

— Sim, ela era sua irmã...

— Não éramos irmãos de sangue, que absurdo!

— Que seja. — Ela desvia o olhar. — Não tenho culpa se ela sumiu!

— Tem sim. Foi depois da discussão com minha mãe que ela foi embora.

— Porque descobriu que você mentia pra ela! E a culpa é minha? Vai se ferrar, Alex!

É a minha vez de desviar o olhar porque sei que Aria tem razão.

Eu devia ter contado a verdade a Nina há muito tempo.

— Sim, eu sei que errei, mas eu espero encontrá-la e resolver tudo.

— Acha que ela quer ser encontrada?

— Eu vou encontrar.

— E o que vai acontecer? Sua mãe odeia aquela garota, acha que vai permitir que fique com ela?

— Minha mãe não tem que permitir nada. É minha vida.

— Você adora encher a boca pra falar que não liga para a opinião da Nora, mas sabe que não é assim.

— Minha mãe mentiu pra mim todo este tempo.

— O que quer dizer?

— Ela não contou? Que meu pai morreu há mais de dez anos? Que sabia que Nina não tinha ninguém e que se recusou a cuidar dela?

— Sério isso?

— Sim, foi seu pai quem me contou no leito de morte. Então Nora não tem direito de me cobrar nada! Estou de saco cheio de seu amargor.

Aria parece abalada.

— Eu não sabia...

— Nina passou por coisas horríveis na vida, coisas que nem sei o que são, mas que a deixaram cheia de traumas e, sim, o fato de Nora ter se recusado a trazê-la para nossa vida pode ter contribuído com isso.

— O que... O que aconteceu com a Nina?

— Não vou falar sobre isso com você. — Olho a hora no relógio. — Está ficando tarde, preciso ir.

— Tudo bem. Vá se despedir das meninas.

Ela me acompanha até a cozinha onde Arianna e Isabella estão tomando leite.

— Meninas, se despeçam do tio Alex.

Elas me abraçam.

— Tio, quando vai trazer a Nina aqui de novo? — Arianna pergunta.

— Sim, ela está tão bonita! Quero cortar meu cabelo igual o dela! — Isabella diz.

— Cortar o cabelo?

— Sim, o cabelo da tia Nina está aqui oh... — Isabella coloca a mão na testa.

— Chama franja — a irmã a corrige.

— Nina não tem franja... — comento.

— Tem sim! A gente viu hoje — Arianna insiste.

— O quê? — Seguro os ombros da menina. — Você viu Nina hoje?

— Sim, a gente viu, né Brittany? — Isabella sorri pra babá.

Encaro a babá em busca de resposta.

— Ah, acho que elas estão falando da moça que vimos quando estávamos saindo da clínica onde as levei para tomar vacina.

Sinto o chão fugir aos meus pés e me obrigo a manter a calma.

Nina está aqui na cidade. Em algum lugar.

Tinha cortado o cabelo...

— Sim, a gente viu a Nina! — Arianna diz. — E ela estava com o tio Jack!

 

 


Capítulo 2

 

Nina

 

Uma semana antes

 

O Lago Michigan se abre em sua magnitude enquanto o carro percorre a avenida e ainda não consigo clarear meus pensamentos o suficiente para saber o que vou fazer agora. Sei que em algum momento, Jack pediu meu endereço e eu lhe passei.

Ele não fez mais nenhuma pergunta, mesmo meu estado emocional perturbado sendo claro. Também não perguntei a mim mesma o que estava pensando ao entrar em seu carro. Naquele momento, o único desejo que me guiava era o de fuga. Colocar o maior espaço possível entre mim e Alex.

Will.

Fecho os olhos, perdendo um pouco o fôlego, quando me recordo da verdade terrível que se descortinara a minha frente.

Todo aquele tempo Alex era Will.

Ainda parece incrível que eu não tenha ao menos desconfiado.

Claro que somos muito diferentes agora. Alex... Will... é um homem agora. Muito diferente do menino magro de sorriso infantil. E ele não se chamava mais Will.

Agora ele é Alex Black.

Mas... Como?

As perguntas se embaralham na minha mente, me deixando com vontade de gritar. Como ele tinha se transformado em um membro da família Black?

Por que havia demorado todos aqueles anos para me contatar? E por que mentiu para mim? Por que não me contou quando me encontrou que era Will?

E o que eu teria feito se tivesse me contado?

Eu teria fugido, como estou fazendo agora, me dou conta.

— Nina?

Volto ao presente com Jack chamando meu nome e percebo que o carro parou e que estamos em frente ao meu prédio.

— É aqui que mora?

Sacudo a cabeça em afirmativa, mas não me movo para sair do carro.

— Sei que é uma pergunta idiota a se fazer, mas... você está bem?

Sacudo a cabeça em negativa, enxugando uma lágrima silenciosa que cai por meu rosto.

— Quer me contar o que aconteceu? Você e Alex... Tiveram uma briga ou algo assim?

Apenas sacudo a cabeça em negativa de novo.

— Tem alguma coisa que eu possa fazer por você?

— Não — finalmente consigo falar. — Obrigada por me trazer eu... Eu não posso ficar aqui. — Dou-me conta de repente. Sei que Alex vai me procurar assim que chegar ao seu apartamento e não me encontrar.

Não faço ideia do que sua mãe vai lhe dizer, mas sei que é questão de tempo até que ele esteja aqui.

— Não quero que Alex me encontre — sussurro quase que para mim mesma.

— Faça uma mala que eu a escondo.

As palavras práticas de Jack me fazem virar a cabeça em sua direção e percebo que é a primeira vez que eu realmente olho para ele desde que entrei em seu carro.

— O quê?...

— Acabou de dizer que não quer encontrar o Alex e não faço ideia do que aconteceu, mas imagino que deve ter sido algo grave para estar assim. Se não quer encontrá-lo, eu posso te ajudar.

Por um instante, hesito entre o alívio da proposta de Jack e a constatação de que eu nem o conheço e não tem motivo para ele estar me ajudando.

Porém, neste momento, aprecio a resolução prática de Jack.

Prefiro ir com ele sabe Deus para onde a ficar ali e encarar Alex.

Encarar Will.

— Então, vai aceitar minha ajuda? — insiste naquele seu tom impaciente.

Sacudo a cabeça concordando e Jack destrava a porta.

— Quer que eu suba para ajudá-la?

— Não, eu serei rápida.

Saio do carro e, ainda sem pensar muito no que estou fazendo, apresso-me até meu apartamento e pego uma mala, jogando roupas dentro sem ao menos ver quais são. Até que em poucos minutos estou entrando novamente no carro de Jack.

— Nina!

Por um momento, acho que ouvi chamarem meu nome. Talvez seja Lucy, mas não olho para trás quando Jack acelera.

 

Jack dirige por um tempo, mas mal percebo os arredores, até que ele estaciona em frente a um jardim com uma casa moderna ao fundo.

Saio do carro e percebo que o sol abriu um pouco, enquanto aprecio a construção.

— Você mora aqui?

Jack tira a mala da minha mão, andando na minha frente.

— Deveria morar.

Não entendo suas palavras quando ele abre a porta e adentramos em um hall iluminado. A casa tem muitas paredes de vidro e móveis modernos, porém é aconchegante, tudo em tons pastéis, com detalhes em rosa-claro e algum dourado.

Não parece a casa de um homem, na verdade.

Mas também não parece que é habitada, percebo, embora esteja impecavelmente limpa, enquanto subimos uma escada de mármore e Jack abre a porta de um quarto.

— Você pode ficar aqui.

Ele coloca minha mala sobre a cama.

— Vou te mostrar a casa.

Ele me leva pelos cômodos e a casa é realmente espetacular.

O quarto principal tem um closet que parece saído de uma revista de moda. Há um estúdio fotográfico ligado a um escritório e de novo noto que tudo parece muito feminino.

— Você disse que não mora aqui? — indago quando descemos as escadas e entramos na cozinha enorme.

— Não.

— Não entendo... Mas a casa é sua?

— Sim.

Ele abre a geladeira e tira uma garrafa de água.

— Vou ter que sair e fazer compra. Não tem nada aqui. Ficará bem sozinha?

De novo, Jack parece muito prático e sacudo a cabeça em afirmativa enquanto ele pega as chaves do carro e sai.

Sei que menti pra ele, porque não sei se voltarei a me sentir bem de novo.

Mas quando foi que eu me senti bem antes? Indago-me quando me arrasto para o quarto.

Abro minha mala e coloco as poucas roupas no closet .

Deixo meu olhar vagar pela janela. Há um lindo jardim no fundo. Uma piscina e um gazebo.

De novo me pergunto o que é aquela casa.

Especular sobre aquilo faz com que eu afaste os pensamentos sombrios que rondam minha mente.

Alex... Will...

Só de pensar nele sinto dificuldade de respirar.

Deito-me sobre a cama e me encolho em posição fetal, lutando contra as lágrimas, mas é inútil.

Meu celular vibra em algum momento e eu o desligo. É Alex.

Will...

Nem sei como chamá-lo mais.

Porém, não importa agora.

Estou longe do seu alcance.

 

Não sei quanto tempo passa, mas Jack me chama em algum momento. Tenho vontade de ignorá-lo. Porém, acredito que Jack não seja a típica pessoa que aceite ser ignorada e decido descer.

Eu e o encontro na cozinha, vestindo um avental todo sujo de massa de tomate.

— Não sou o melhor cozinheiro do mundo, mas acho que dá pra comer.

Ele está abrindo um vinho branco e há dois pratos com massa com molho de tomate na bancada. Um suave cheiro de manjericão permeia o ambiente.

— Eu agradeço, mas não precisava se dar ao trabalho. Não tenho o menor apetite — murmuro e dou meia-volta disposta a me esconder no quarto de novo.

— Ei, aonde vai? — Jack me chama.

— Me desculpe, eu não quero comer.

— Vai fazer essa desfeita? Sabe quantas horas passei fazendo essa merda de molho? Que aquela estúpida do YouTube disse que era fácil? Vai comer sim. Já é tarde e mesmo que não tenha vontade precisa colocar alguma coisa no estômago. Venha.

Sem alternativa eu me sento e começo a comer, embora realmente não esteja com fome. Porém, aceito o vinho que ele me serve. Talvez eu deva mesmo ficar bêbada para esquecer.

— Melhor? — Jack pergunta quando terminamos a refeição.

Dou de ombros, porque não sei o que me faria sentir melhor no momento.

— Agora pode... ficar sozinha e chorar ou sei lá o que estava fazendo antes. — Ele retira os pratos da mesa. — Em respeito a sua deprê nem vou exigir que lave a louça como seria justo.

Eu me levanto, aliviada que ele não queira minha companhia ali, mas antes que eu saia da cozinha ele me chama.

— Nina? Sei que não está com vontade de falar. E vou respeitar isso. Mas se quiser falar. Estou aqui.

Embora suas palavras tenham até um toque de gentileza educada com meu dissabor, Jack não parece realmente se importar. E ele não finge o contrário.

Não é como se ele estivesse preocupado de verdade comigo. E embora ainda não entenda suas motivações para me ajudar, aprecio isso.

Aprecio que não se importe de verdade comigo.

— Por que está me ajudando?

— Pareceu que precisava de ajuda. — Ele dá de ombros, começando a lavar a louça.

Volto para o quarto e deito-me de novo. Obrigo-me a respirar. Obrigo-me a esvaziar minha mente até que o cansaço daquele dia terrível cobre seu preço e eu mergulhe em um sono sem sonho, ajudada pelo vinho de Jack.

Quando acordo a noite caiu.

A realidade em que vivo agora não demora a colidir comigo e a dor volta a se alastrar.

Eu me apaixonei por Alex. Mas ele era Will.

Eu tinha chegado a acreditar, mesmo contra todas as probabilidades de que em algum momento, eu e Alex poderíamos dar certo.

Quis sua violência. Ansiei por seu amor, mesmo quando lutava contra.

Quando o tempo inteiro nada foi possível. Ele era Will.

Will que foi embora me deixando para trás. Que foi levado por Nora, a mulher que me odiava e que no fundo tinha toda razão.

Eu era mesmo amaldiçoada. Nada de bom poderia surgir entre mim e Alex. Se ele soubesse de verdade quem eu era, o que tinha me tornado, não ia me querer. Talvez eu devesse sair daquele esconderijo com Jack e encontrar Alex. Contar a ele a verdade.

Mas não posso.

Só de pensar em ao menos voltar àquele tempo... já sinto tudo a minha volta escurecendo.

Os anos passaram. Eu me escondi do mundo, tentei passar incólume, tentei não causar mais mal, só que o mal sempre me encontrava.

E eu tinha encontrado Will. Nora tem razão. Eu devo me afastar dele.

Até este momento, em que sou obrigada a entender que Alex é proibido pra mim, eu não tinha me dado conta do quanto eu o queria. De como ele tinha colorido meu mundo sem nem ao menos eu me dar conta.

E eu que achava que meu coração estava morto. Devia saber que era Will. Talvez, alguma parte de mim tenha o reconhecido e deixado aquele amor infantil se transformar em paixão.

Agora como vou dizer ao meu coração que amar Alex não é possível?

Como seguir em frente, sendo aquela Nina vazia de sentimentos de antes?

Levanto-me da cama sentindo-me dolorida como se tivesse sido atropelada. Escuto uma música baixa vindo de algum lugar.

Tropeço até o banheiro e ligo a água da banheira. Tiro toda minha roupa e abro o armário em cima da pia. Como imaginei, há sais de banho, amenidades de higiene, com se estivesse em um hotel, mas nada disso importa, meus olhos são atraídos para a lâmina do barbeador.

Luto contra aquela vontade quase irresistível de fazer a dor em meu íntimo passar.

Sinto-me ser ar. Como se respirar fosse difícil.

Fecho o armário com força e entro na banheira. Recordo-me de quando entrei na banheira com Alex. De como foi a sensação de tê-lo perto, seus braços a minha volta, como se eu pertencesse àquele lugar.

Onde está Alex agora?

Será que a mãe dele já disse aquelas coisas horrorosas sobre mim? Será que ele me odeia agora, ou está me procurando?

Seja lá qual opção verdadeira, meu coração se quebra do mesmo jeito.

Escurece de novo.

De culpa por tudo o que não pude evitar.

De remorso de tudo o que eu fiz.

— Nina? Nina?

Escuto a voz de Jack no quarto.

— Aqui... — murmuro fracamente.

De novo me pergunto por que estou aqui. Por que Jack está me ajudando. Ele nem sequer gosta de Alex. Culpa Alex por Charlotte ter ido embora.

Então por quê?

De repente eu entendo.

E na verdade, não me importo. Melhor acabar logo com aquilo.

— Nina? — Ele bate na porta do banheiro e espia para dentro. — Tudo bem? — Sua voz está cheia daquela impaciência que lhe é característica.

Sem pensar muito no que estou fazendo, me levanto, a água pingando do meu corpo quando saio da banheira.

Jack arregala os olhos, surpreso.

— Que porra está fazendo?...

Eu paro na sua frente. Nua.

— Não foi pra isso que me trouxe aqui? Pra transar comigo?

— O quê?... Que diabos! — Ele pega uma toalha e coloca a minha volta, dando um passo atrás.

— Achou que eu te trouxe aqui porque queria te foder? Acha que é isso que quero?

Dou de ombros, agarrando a toalha em frente ao corpo.

— Vocês sempre querem algo de mim.

— Pois não quero trepar com você. — Sua voz é dura e me atinge de uma forma inesperada.

Sinto-me suja.

— Desculpe-me.

É minha vez de dar um passo atrás.

Jack fica me encarando como se ainda estivesse tentando entender o que estava acontecendo.

— Não peça desculpas. Vista-se!

Ele sai do banheiro e eu não penso duas vezes antes de abrir o armário e pegar a lâmina.

Sento no chão tremendo e começo a soluçar.

— Nina? — Sem que eu espere, Jack volta ao quarto, talvez alertado por meus soluços.

— Que merda está fazendo? — Em um segundo ele está ajoelhado ao meu lado, e tira a lâmina da minha mão.

— Desculpa... eu preciso fazer isso...

Ele toca meu braço, notando pela primeira vez as minhas marcas.

— Há quanto tempo faz isso?

Sacudo a cabeça, incapaz de falar.

Quero que saia e me deixe sozinha com minha dor.

— Me deixe sozinha.

— Não.

— Por favor...

— Para você se cortar?

— Não pode impedir...

Jack me encara diferente agora. Como se tivesse me vendo pela primeira vez.

— O que Black fez quando viu isso?

— Ele não conseguiu me impedir.

— Porque ele era um babaca apaixonado por você. Mas não sou Alex Black. Não vou sair daqui. Então, enquanto continuar neste chão vou continuar com você. Não vou deixar que se machuque sem fazer nada.

Eu me encosto na banheira e Jack faz o mesmo, mantendo a promessa de não me deixar.

Sinto raiva ao mesmo tempo que sinto alívio.

— Alex não tem culpa — eu me vejo dizendo. — Isso acontece há muito tempo.

— Mas ele viu e disse que não te impediu. — Há reprovação na voz de Jack.

— Ele fez curativos. Ele cuidou das minhas feridas. Foi muito mais do que outros fizeram.

— O amor nos deixa fraco.

Eu o encaro.

— E se fosse a Charlotte?

— Eu cortaria meus próprios pulsos antes de deixá-la cortar os dela.

Ficamos sentados ali por tanto tempo até que o silêncio se torne algo confortável.

Jack parece um cara determinado. Ele realmente não desiste.

Permanece ali, ao meu lado, sem dizer nada, enquanto tenho algumas crises de choro ao me recordar de como estou perdida agora.

De como estraguei tudo de uma maneira que nem sabia que era possível.

De como sinto falta de Alex.

É esquisito sentir tudo aquilo. Passei tanto tempo sem sentir nada, fugindo de qualquer sentimento real que agora é como se transbordasse.

O cansaço me atinge em algum momento e eu me levanto, indo para cama. Jack apenas me observa, sem me tocar em nenhum momento. Apenas seus olhos me vigiam quando apaga a luz e fecha a porta atrás de si.

 

Acordo tarde na manhã seguinte e ainda não me sinto melhor.

Mas era de se esperar. Penso em Alex.

Pergunto-me onde ele estará agora. Sinto sua falta.

Desço para a cozinha e Jack está trabalhando em seu laptop.

Ele usa óculos de leitura e aponta para a cafeteira.

— Tem café. Se quiser comer, pode preparar o que quiser. Não sou seu empregado para ficar preparando comida pra você.

Eu abro um sorriso com essas palavras e por incrível que parece me sinto melhor.

O jeito ríspido de Jack é quase bem-vindo agora.

Sirvo-me de café. E sento a sua frente.

— Desculpe-me por ontem.

Ele me encara tirando os óculos.

— Talvez eu que tenha que te pedir desculpas.

— Pelo quê?

— Você tinha razão. Eu realmente queria algo de você.

— Eu não entendo.

— Quando disse que queria desaparecer, que não queria encontrar Alex. Eu soube que ia te ajudar a se esconder. Soube que era o momento de Alex pagar pelo o que me fez, escondendo Charlotte. Eu ia te esconder aqui e te usar como moeda de troca.

— Como assim?

— Iria obrigar Alex a me dizer onde está Charlotte para que só assim eu dissesse onde você está.

— Oh... Entendo agora.

Bem, eu estava imaginando mesmo que as intenções de Jack eram escusas. Só não imaginei que era isso que ele queria.

Usar-me para atingir Alex e encontrar Charlotte.

— Ainda vai fazer isso?

Ele passa os dedos pelos cabelos. Parece cansado de repente.

— Eu não sabia... Eu ainda não sei na verdade o que diabos aconteceu com você e Alex e acho que tem a ver com... — Ele aponta para meu braço. — Tem muito mais coisas aí do que uma briga, não é?

Sacudo a cabeça em afirmativa.

— Eu não quero prejudicá-la, Nina. Acredite em mim, mas eu não aguento mais. Preciso saber onde ela está.

Mordo os lábios, tentando enxergar além da minha própria dor. E percebo que talvez seja a primeira vez que faço isso em muito tempo.

— Eu entendo. Então apenas me dê um tempo? Eu sei que terei que encontrar Alex uma hora...

— Por que não agora?

— Porque quando eu encontrar com o Alex, vou ter que dizer coisas que nunca disse antes. E não estou preparada ainda.

Jack pensa por um momento e, por fim, acena com a cabeça.

— OK. Você terá o seu tempo.

— Obrigada.

 

 

Antes

 

— Gostou da nossa casa nova, Nina? — David perguntou naquela noite enquanto jantávamos.

Eu mexia a comida de um lado para o outro, sem vontade de comer.

David não era o melhor cozinheiro do mundo e por mais que Nora não gostasse de mim, ela cozinhava bem. Mas eu não queria dizer a David que não gostava da sua comida, porque ele era muito legal comigo.

— Gostei sim — respondi, embora sentisse falta da nossa antiga casa. Aqui era outro bairro e eu tive que mudar de escola. Meu quarto não era tão bonito como o que eu tinha na casa antiga e David havia me dito que assim que possível iria fazer um igual pra mim. Embora no fundo eu não me importasse.

Eu só queria que as coisas fossem como antes.

Sentia falta de Will e me perguntava por que ele nunca voltou nem para uma visita.

Será que ele tinha me esquecido?

E agora como é que ele ia me encontrar se havíamos nos mudado?

— Você parece triste — David comentou. — Olhe pra mim.

Eu o obedeci.

— Vai se acostumar com essa casa. Vamos ser felizes aqui, vai ver.

— Mas... E se Will quiser nos visitar?

David respirou fundo, como se tivesse contrariado.

— Nora não vai deixar que ele venha nos visitar.

— Por que não? Ele não é seu filho?

— Não deve se preocupar com isso. São coisas de adultos. Coma sua comida.

— Não estou com fome, David...

— Tudo bem.

— Posso ir dormir?

— Pode sim.

Eu me levantei e saí da cozinha, mas ainda vi David abrir o armário e pegar uma daquelas bebidas amargas que ele andava tomando muito depois que Nora foi embora.

Eu não gostava de quando David ficava às vezes quando bebia aquilo.

Bêbado, era como eu tinha visto em um filme. Mas David não ficava engraçado como eu tinha visto o personagem no filme. Ele ficava bravo, mal-humorado, e falava coisas que eu não entendia, quando não me dava bronca por nada. Ficava bem parecido com Nora quando estava brava comigo.

Eu me lembrava de Will justificando uma vez que Nora estava brava porque estava bêbada.

Eu aprendi a ficar longe de David quando estava assim.

Mesmo porque, sempre no dia seguinte, ele parecia triste e arrependido. Preparava café da manhã para mim e pedia desculpas. Fazia até bolo de canela e voltava a ser o David legal de sempre.

Eu achava que ele sentia falta de Nora e Will embora não admitisse.

Então, quando o vi abrindo aquela garrafa, corri para meu quarto.

Eu me deitei sob as cobertas e peguei a carta de Will debaixo do travesseiro. Eu a li de novo como sempre fazia e rezei para que ele me encontrasse.

 


Capítulo 3

 

 

Nina

 

Sei que estou sonhando porque só em sonhos Alex poderia estar comigo.

Sinto suas mãos no meu rosto, enquanto sua voz sussurra em meu ouvido.

— Eu vou te encontrar... Eu prometo que vou te encontrar...

Meu coração se aperta até quase parar de bater enquanto estendo a mão para tocá-lo, ansiando para que esteja ali, ao meu alcance.

— Will... — murmuro no escuro, mas encontro só o vazio e sua voz vinda de muito longe agora.

— Não sou mais Will...

— Acorda!

Abro os olhos quando escuto a voz áspera de Jack em algum lugar do quarto e em seguida, as cortinas sendo abertas.

Pisco, meus olhos tentando se acostumar com a claridade da manhã embora ao pegar o celular na cabeceira noto que ainda é muito cedo.

Na verdade, é exatamente a hora que eu costumava acordar antes. Para correr. Mas aquela semana na casa de Jack não foi como as outras.

E algo que tinha mudado é que eu não acordava mais cedo para correr, porque Jack me mantinha acordada até tarde. Naquela primeira manhã em que estabelecemos nosso acordo, de que ele me daria o tempo que eu necessitava para poder encarar Alex de novo, eu tinha lhe perguntado o que faria naquela casa enorme e ele disse que, como eu tinha experiência como assistente do Alex, poderia ajudá-lo também com o trabalho.

— Você não tem que ir ao seu escritório? — Eu não me sentia à vontade em sair daquela casa e estar em um lugar em que Alex pudesse me encontrar facilmente, embora tivesse certeza de que ele nunca imaginaria que estava na companhia de Jack.

— Posso trabalhar de onde eu quiser. E não vou deixá-la sozinha.

Aí eu entendi que Jack achava que eu podia me machucar se não estivesse de olho em mim.

Bem, ele tinha razão.

— Tudo bem, eu posso ajudar no que quiser.

Assim, estabelecemos uma rotina onde Jack me mantinha ocupada a maior parte do tempo. Não era um trabalho muito diferente do que eu fazia para Alex então não foi difícil me acostumar.

E eu agradecia por aquela distração. Manter-me ocupada ajudava a não pensar no beco sem saída em que eu me encontrava.

Ajudava a não pensar em Alex e que em algum momento, a paciência de Jack iria se esgotar e eu teria que estar frente a frente com Alex de novo.

E agora sabendo que ele era Will. Que existia um passado entre nós.

Um passado que Alex não fazia ideia do quão horrível era.

Um passado que iria nos separar para sempre.

— Vamos, levante! — Jack repete, quando ainda me sinto tonta de sono. Todas as noites, trabalhávamos até tarde e eu desconfiava que Jack fizesse isso para ter certeza de que, quando eu fosse para o quarto, não teria forças para nada a não ser desmaiar de exaustão.

Até agora, ele tinha conseguido seu intento.

— Por que tão cedo? — resmungo.

— Se arrume. Vamos sair.

Sem mais explicações, ele sai do quarto como um furacão.

Este é Jack. Ele só fala o que se passar em sua cabeça quando acha necessário. Na maioria das vezes acha que devo adivinhar suas intenções como se eu tivesse dentro de sua mente, que funcionava a mil por hora.

E eu também sei que é melhor fazer o que ele pediu, antes que volte ao quarto e grite algo do tipo “você tem algum problema de audição?”.

Tomo uma ducha rápida para despertar, me visto com um jeans e suéter, pegando um casaco, já que a temperatura caiu muito essa semana e desço para encontrar Jack.

— Pronta? — Ele já está com as chaves do carro nas mãos.

— Sim, estou, embora não faça ideia do que pretende... — murmuro enquanto o acompanho para fora.

Quando estamos dentro do carro e ele sai da propriedade ganhando a estrada em direção ao centro da cidade, uma desconfiança me faz gelar.

— Você não vai... me levar para o Alex, vai? — indago sem conseguir esconder o medo na minha voz.

— Não. — Ele relanceia o olhar especulativo em minha direção. — A não ser que já esteja preparada...

— Não... Não ainda — estremeço.

— Tudo bem, mas sabe que não poderá se esconder para sempre.

— Charlotte está escondida há um ano. — Na mesma hora me arrependo do que disse, mas é tarde.

Percebo a tensão nas mãos de Jack que seguram o volante.

— Pois o tempo dela escondida está se esgotando.

Não falamos mais nada até que ele estaciona em frente a um prédio que parece uma fábrica ou algo assim.

Ou seria um hospital. Não tenho como saber.

Na recepção um senhor negro acena para Jack.

— Ei, Jack, chegou cedo hoje.

Jack sorri.

— Não queria perder o café da manhã, Ronny!

— Trouxe ajuda hoje? — O homem olha de Jack para mim curioso.

— Essa é minha amiga Nina Giordano. Espero mesmo que ela ajude bastante. Está precisando pensar em algo mais do que seu próprio umbigo! — resmunga e eu devia ficar brava com aquela insinuação, mas já conheço Jack o bastante para saber que ele fala o que vai em sua mente.

E acho que no fundo ele tem razão.

Qualquer distração é bem-vinda.

— Que lugar é este? — indago quando seguimos em frente.

Ele abre a porta e faz um sinal para eu passar.

Entramos em um grande salão com várias mesas onde já tem algumas crianças sentadas. Outras estão fazendo fila com bandejas na mão que são servidas por homens e mulheres sorridentes.

— É uma Fundação que cuida de crianças carentes. Essas moram aqui. São órfãs.

— Ei Jack! — Uma menina de uns sete anos pula de sua mesa e abraça Jack.

— Ei, Anita! — Ele a abraça de volta e tem muito carinho em seu olhar quando beija seus cabelos.

— Olha, meu dente caiu!

— Estou vendo!

De repente, outras crianças começam a se aproximar e cumprimentam Jack efusivamente, ele sabe o nome de todas elas e não parece aquele Jack sem paciência e ríspido que se mostra a maior parte do tempo.

— Ei, não te conheço. — Uma moça com ascendência hispânica passa por mim com um carrinho cheio e pães. — Veio ajudar?

— É, não sei... — Aponto para Jack que ainda está distraído com as crianças. — Eu vim com Jack... eu... trabalho com ele.

— Ah sim, Jack vai ficar ocupado com as crianças um bom tempo ainda! Ele as adora. Então por que não me ajuda a distribuir esses pães?

— É, ok... — Aceito a incumbência ainda meio sem jeito e me coloco ao seu lado, distribuindo o pão para crianças que não param de chegar. Também há muitos adolescentes.

— Meu nome é Sally, a propósito. — A moça sorri pra mim.

— Nina — murmuro, sem jeito.

— Disse que trabalha com Jack.

— É... isso. — Sou evasiva de propósito, afinal, nem é tão verdade assim que trabalho com Jack.

Continuo a ajudar e Jack em algum momento está carregando caixas para repor os alimentos, e o tempo todo eu o vejo zanzando por entre as mesas, conversando com as crianças.

— Jack vem sempre aqui? — Não consigo conter minha curiosidade.

Sally ri.

— Você não sabe? Jack quem criou essa fundação. Ele que a mantém.

Volto a contemplar Jack, estupefata.

Quantas facetas aquele cara tem?

O café da manhã acaba depois de algumas horas e as crianças se dispersam.

— E então, a Nina foi eficiente, Sally? — Jack se aproxima.

— Ela foi ótima! Tem que trazê-la mais vezes! Sempre precisamos de ajuda! — A moça sorri e se afasta, ajudando a limpar o lugar.

— Sally me disse que você que é o dono deste lugar?

— Eu o mantenho, mas pertence às crianças. — Ele faz um sinal para eu acompanhá-lo. — Vem, vou te levar para conhecer tudo.

— Elas moram aqui?

— Algumas não têm para onde ir e ficam aqui, o tempo que for preciso. Outras por um tempo, e outras vêm para comer, estudar e fazer tratamentos médicos ou dentários. E até mesmo psicológicos. Algumas dessas crianças não tinham quem as acolhesse.

Ele me leva por entre as salas, há mesmo vários consultórios, dormitórios para as crianças, e salas de estudo.

Uma delas chama minha atenção, por ser uma sala de desenho.

— É uma aula de arte? — indago curiosa, olhando os desenhos infantis pendurados na parede.

— Sim, acho importante eles terem acesso a artes. E também à música. Mantém alguns deles fora das ruas. Principalmente adolescentes.

Ele me leva a outro andar e entramos em uma espécie de creche, onde tem até alguns berços. Há algumas crianças menores ali.

— Oi Jack — uma enfermeira de meia-idade o cumprimenta.

— Oi, Rose.

— Aqui é o berçário e a creche. Algumas mães podem deixar as crianças aqui quando vão trabalhar e algumas dessas são órfãs e moram aqui.

Ele pega um bebê de uns seis meses em um berço.

— Ei, amigo, como você cresceu! — Ele brinca com a criança que sorri pra ele. — Este é o Aaron. A mãe dele o deixou aqui há dois meses. É uma viciada em drogas. Ele estava desnutrido, malcuidado.

— Mas está cada vez mais lindo. — A enfermeira brinca ao passar por nós e dar uma mamadeira para Jack, que senta em uma cadeira e começa a amamentar a criança.

Fico observando como ele faz isso com a maior desenvoltura.

— Você leva jeito — contemplo a cena, abismada, e ele sorri.

— Eu amo crianças.

— Estou percebendo.

— Você não gosta?

— Não sei. Na verdade, nunca convivi com crianças.

— Não quer ter filhos?

Mordo os lábios, incomodada com a pergunta.

Eu sequer achava que queria viver até pouco tempo, como é que posso pensar em algo tão surreal como ter filhos?

— Nunca pensei nisso. Na verdade... — hesito, mas continuo — meus pais morreram quando eu tinha sete anos. Eu não sei... Se isso é pra mim.

— Sinto muito — Jack diz e pela primeira vez parece realmente sentir.

— Eu poderia ter ido para um lugar desses...

Teria sido melhor, me pergunto?

Se David não existisse? Se não tivesse cuidado de mim?

Tudo poderia ser tão diferente...

Mas também não existiria Will.

Talvez tivesse sido melhor assim.

— E para onde você foi?

— Alguém cuidou de mim... — murmuro, as lembranças daquele dia em que David me encontrou se insinuando em minha mente.

Eu achei que ele fosse minha salvação. Acreditei que fosse me amar.

E ele amou.

De repente, sinto a bile subindo para minha garganta e me levanto, correndo até o banheiro e vomitando.

Desejo que todas as lembranças escorram pelo ralo assim como meu vômito. Mas sei que é impossível. Elas estão ali, rondando, como moscas em volta de um cadáver.

À espera de atacarem.

Quando saio do banheiro, Jack está a minha espera.

— Tudo bem?

— Desculpe-me.

— Não peça desculpas. Você tem essa mania de pedir desculpas pra tudo. — Ele parece contrariado.

Não digo nada, quando voltamos a caminhar.

— Parece que trazê-la aqui lhe trouxe más lembranças?

— Não é este lugar. É só... me recordar que também já fui uma criança órfã, como essas, mas acho que elas têm sorte de ter alguém como você que tenta ao menos... lhes dar um lugar para ficar.

— Cresci em um lugar como este.

— Como assim?

— Eu também sou órfão. Mas ao contrário de você eu nem me lembro dos meus pais, não sei quando fui deixado em um orfanato, se estão vivos ou morreram.

Eu me compadeço da dor que parece ter em sua voz. Deve ser difícil. Eu pelo menos tive alguns anos de felicidade com meus pais antes de tudo virar pesadelo.

— Sinto muito.

— É horrível não saber de onde vim. Por isso quero muito ter filhos.

Paramos em frente a uma porta.

— Charlotte pensava como você, sobre ter filhos?

— Sim, ela sabia. Eu tinha... tanto planos. — Ele parece com o pensamento longe. — A casa em que você está. É a casa que eu construí para ela. Para nós.

— Você já pensou que... Ela tem os motivos dela para não querer ficar com você? — Eu sinto a tristeza de Jack, mas me coloco no lugar de Charlotte embora nem a conheça.

Jack parece amar Charlotte mais que tudo.

Ela devia ter motivos fortes para deixá-lo para trás.

Assim como eu tenho para deixar Alex. Mesmo o amando demais.

— Ela vai ter que dizer isso na minha cara. — Sua expressão endurece.

— E você a deixaria ir?

Jack não responde.

— Acha que é isso que eu preciso? Dizer na cara de Alex?

— Você precisa primeiro saber dizer as coisas para você mesma.

Então ele abre a porta e eu vejo escrito no letreiro.

Andrea Martinez. Psicóloga.

— Eu conversei com a Andrea sobre você.

— Não... — Dou um passo atrás.

— Sabe que precisa disso, Nina.

— Eu não quero...

— Apenas tente. Sei que há algum motivo escondido para não querer lidar com Alex e acho que tem a ver com essas marcas em seus braços, mas terá que encontrá-lo. E talvez conversar com um terapeuta a ajude.

Fecho os olhos com força.

Aquela semana sem Alex foi um martírio. Eu sentia saudade dele. Sonhava com ele à noite. Sonhos que se misturavam com sonhos de Will. Mas só de pensar em ter que encará-lo sentia calafrios. Reencontrar Alex seria reencontrar Will.

E seria o reencontro da Nina que sou hoje com uma Nina que eu mantinha bem escondida dentro de mim.

A Nina do David.

— Eu a aguardo no carro.

Ele se afasta e eu fico olhando para a porta entreaberta, com se lá dentro estivesse um cirurgião aguardando para abrir minha mente e retirar à força todos os meus segredos.

Os mais sujos.

Os mais obscuros.

Não consigo respirar.

Dou meia-volta e corro, descendo as escadas e, passando pelo carro de Jack, continuo em frente. As lembranças invadindo minha mente sem que eu consiga detê-las.

 

 

Antes

 

— Nina, a sua vez!

Amanda, uma menina com aparelho nos dentes piscou para mim do outro lado da roda e eu sorri de volta, com meu estômago dando voltas de ansiedade.

Havia pelo menos uns dez meninos e meninas na roda para o aniversário de 12 anos de Amanda. Eu me lembrava que tive vontade de fazer uma festa como aquela com todos meus amigos da escola quando completei 12 anos há três meses, mas não tive coragem de pedir a David. Sabia que ia dar trabalho e gastar muito dinheiro e não queria sobrecarregá-lo.

Pelo menos a festa da Amanda estava sendo divertida.

Ainda bem que David me deixou vir. Ele não costumava permitir que eu saísse muito de casa. Dizia que era perigoso, mas como aquela festa era na casa da Amanda, uma das minhas melhores amigas, a própria mãe dela havia ligado para David para pedir permissão para eu vir. Ele tinha dado seu aval, mas disse que me buscaria as dez. Por isso que eu tinha insistido com Amanda que aquela brincadeira, que a gente vinha ansiando há semanas, fosse feita logo antes que eu tivesse que ir embora.

— Vai, roda logo! — Bob, um menino ruivo ao meu lado, me cutucou para rodar logo a garrafa e todos incentivaram.

Lancei um olhar um tanto vermelha para o garoto loiro ao lado de Amanda, Daniel, e rodei a garrafa, torcendo para que parasse nele, meu coração aos pulos.

Daniel era o menino que eu gostava e as minhas amigas sabiam, claro. Aliás, todas nós estávamos ansiosas de tentar dar um primeiro beijo naquela noite e torcendo para que fosse no menino que gostávamos.

Meu coração ameaçou sair pela boca quando parou em frente a Daniel e eu enrubesci quando Amanda piscou animada.

— Beija, beija!

Todos gritaram e Daniel se inclinou para frente. Eu fechei os olhos e em seguida senti os lábios dele sobre os meus.

Foi rápido, mas estava mais vermelha que pimentão quando ele se afastou.

Eu tinha dado meu primeiro beijo!

Será que Daniel falaria comigo sobre isso na aula segunda-feira?

Será que havia alguma chance de ele pedir para namorar comigo?

A brincadeira prosseguiu até que a mãe da Amanda chamou meu nome.

— Nina, seu tio está aqui!

— Ah não! — Amanda fez uma careta.

— Eu preciso ir!

Eu me despedi e subi, acompanhando a mãe de Amanda até a porta.

David estava em frente ao carro me esperando.

— Obrigada por vir, querida.

Eu gostava da mãe de Amanda, Susan, e ela sempre me tratava muito bem quando eu estava ali.

Eu tinha até inveja de Amanda por isso. Por ter uma mãe.

— Ei, espera, Nina.

Amanda surgiu esbaforida e colocou um bilhete na minha mão.

— É o telefone do Daniel! Ele pediu para te dar! Acho que ele quer que vá tomar sorvete com ele amanhã!

Eu mal podia acreditar!

Apertei o bilhete e nos abraçamos, antes de eu correr para o carro.

— Se divertiu? — David indagou quando entrei no carro ainda sorrindo feliz.

— Sim, eu adorei!

Mas David não parecia feliz.

Na verdade, eu achava que ele tinha bebido, pois estava de mau humor.

Estávamos entrando em casa quando o bilhete de Daniel caiu da minha mão.

— O que é isso? — David indagou.

— Não é nada...

Mas ele tirou o bilhete da minha mão.

— Quem é Daniel?

— Um garoto... da escola. Ele estava na festa.

— E por que ele lhe deu este bilhete?

— Ele... Amanda acha que ele vai me convidar pra... tomar sorvete...

— Nem pensar! Eu te proíbo entendeu? Não vai sair com esses garotos!

Eu me encolhi, chateada com a proibição de David.

— Mas eu gosto dele, David...

— O quê? — Ele segurou meus ombros com força. — O que você fez com esse garoto?

— Nada... nós só... ele me beijou.

— O quê?... Deixou um garoto te beijar? Você é uma criança, Nina!

— Não sou mais criança, eu tenho 12 anos! — gritei corajosamente.

— Pior ainda! Não vou deixar nenhum garoto se aproximar de você! Entendeu? Esquece esse merdinha do bilhete! — Ele rasgou o bilhete na minha frente.

— Por que faz isso? — Comecei a chorar. — Nunca me deixa fazer nada! — Uma revolta que eu nem sabia que estava cultivando começou a crescer dentro de mim. — Ele é legal! É meu amigo!

— Eu sou seu único amigo!

— Não pode me proibir! Eu gosto dele e se quiser namorar ele eu vou! — gritei chorando.

O tapa veio sem que eu conseguisse antever.

Pega de surpresa eu caí para trás, o sofá amparando minha queda.

Levei a mão no rosto, tremendo de dor e medo.

David se aproximou de novo. Eu me encolhi.

— Nina, me desculpe... Meu Deus... — balbuciou, me abraçando.

Solucei em sua camisa, enquanto ele sussurrava desculpas.

Ele me fez encará-lo, enxugando meu rosto.

— Tem razão, está crescendo... E está ficando tão bonita... Eu não queria te bater, mas você me obrigou. Me deixou nervoso respondendo daquele jeito pra mim quando só quero te proteger.

— Me desculpe.

— Eu só tenho você... Tenho medo que... Me prometa que vai deixar que eu a proteja.

— Eu prometo, David.

— Eu vou cuidar de você entendeu? Somos só nós dois. Esses garotos... Não deve deixar que eles toquem em você. Entendeu? Não deve provocá-los.

Sacudi a cabeça em afirmativa, embora não entendesse.

Mas David era tudo o que eu tinha.

Eu não queria que ele ficasse bravo comigo.

— Promete que vai ser uma boa garota. E nunca mais vou bater em você.

— Prometo.

— Agora vá dormir.

Eu fui para o quarto e chorei até dormir.

Na manhã seguinte, David estava feliz. Fez café da manhã para mim com bolo de canela.

Eu lamentei em silêncio não poder ligar para Daniel, mas não ia desobedecer David. Eu tinha prometido ser uma boa garota.

Embora bem lá no fundo, sentisse vontade de não ser.

 


Capítulo 4

 

Nina

 

Não demora para um carro parar ao meu lado e a voz de Jack me alcançar através do vidro com aquele toque de impaciência que lhe era peculiar.

— Entre!

Faço o que pediu, porque não tenho opção. Para onde eu vou andando sozinha? Voltar para meu apartamento onde Alex pode me encontrar?

Sinto-me subitamente cansada quando Jack dá partida sem falar nada. Talvez eu devesse mesmo voltar para casa. Deixar que Alex me encontrasse e eu finalmente lhe contasse que o que nos separa é muito mais do que o fato de ele ser Will.

— Desculpe-me — murmuro sem conseguir me conter.

Jack me lança um olhar irônico.

— Não tem que pedir desculpas pra mim. — Ele para o carro e cruza os braços me encarando. — O que diabos aconteceu? E não venha me dizer que isso é só uma briga com o Black que não vou acreditar. Por acaso você descobriu o quartinho de brinquedo sacana do seu namorado e fugiu correndo?

Não consigo conter uma risada que mais se parece com um engasgo.

— Não, eu não saí correndo. Na verdade, eu implorei a Alex para entrar lá.

Seria engraçado ver a expressão de surpresa de Jack se ainda achasse alguma coisa engraçada em tudo aquilo.

— Que porra?...

— Alex me levou em um desses clubes quando estávamos em Nova York.

— Ah... Então você... Espera, não que isso seja da minha conta, mas você curte esses lances também?

— Tem razão, não é da sua conta. — Desvio o olhar.

Não me sinto à vontade de falar de qualquer coisa que eu faça com Alex para Jack.

As memórias do que vivi com Alex são preciosas demais. Talvez as únicas memórias preciosas que tenho na vida.

— Então se não foi isso que a fez fugir...

— Alex mentiu pra mim.

— Mentiu sobre o quê?

— Nós já nos conhecemos... Mas eu não sabia.

— Não entendi.

— Deixa pra lá. Melhor nem tentar entender.

— Então você ficou brava com ele por causa disso, da mentira?

— Acho que fiquei na hora... mas não é por isso que eu não quero vê-lo. Existem coisas... Coisas que aconteceram... Que Alex não faz ideia. Coisas que aconteceram comigo que... é impossível que Alex goste de mim depois que descubra — confesso com dificuldade.

— Talvez deva deixar que ele tome essa decisão?

— Eu não quero ter que dizer a ele.

— O que aconteceu?

Sacudo a cabeça em negativa, deixando meu olhar vagar além do carro, enquanto forço minha mente a mergulhar no vazio.

Onde não tem lembranças.

Nem dor.

Nem culpa.

Apenas escuridão.

Mas está cada vez mais difícil ficar lá agora.

— Certo. Acho que precisa de uma distração — Jack liga o carro de novo.

Não pergunto o que ele quer dizer. Jack é uma caixa de surpresa, mas até agora as coisas que ele fez para “me distrair” tinham sido bem-vindas.

Porém, não entendo quando ele me guia pelas portas de vidro de um elegante salão de cabeleireiro.

— O que estamos fazendo aqui?

— Charlotte sempre diz que nada anima mais do que fazer as unhas, cuidar do cabelo e essas frescuras femininas que vocês gostam tanto.

Abro a boca, sem saber o que dizer.

— Olá, podemos ajudar? — Uma moça se aproxima solícita.

— Olá, sou Jack White e essa é minha amiga Nina Giordano. Ela precisa de um corte de cabelo.

— Eu não preciso... — começo a dizer.

— E talvez fazer as unhas? — Ele pisca.

Ele se senta em uma das cadeiras brancas de espera e pega o celular.

— Pode levar o tempo que quiser!

A moça sorri para mim apontando para uma das cadeiras de cabeleireiro e eu ainda penso em dizer que Jack é louco, mas com um suspiro vencido, eu a acompanho.

E algumas horas depois, volto a encontrar Jack com um novo corte de cabelo e unhas feitas.

— Ficou mesmo muito bom. — Ele sorri abrindo a porta para mim. — E aí, sente-se melhor?

— Eu não sei... — murmuro incerta e Jack rola os olhos quando entramos no carro.

— O que devo fazer com você então? Talvez te levar para fazer compras?

— Pelo amor de Deus, não! — respondo horrorizada o fazendo rir. — Deixa eu adivinhar esse é mais um conselho de Charlotte.

— Charlotte era uma menina rica e mimada, e sim ela gosta de gastar dinheiro com essas coisas fúteis. Sorte que eu sou rico.

Ele dá partida e eu estudo seu perfil bonito.

— Você fala dela como se estivesse aqui.

Seu sorriso se desfaz.

— Queria que eu falasse como, como se tivesse morrido?

— Não foi isso que eu quis dizer.

— Eu falo dela assim porque é como se ela estivesse perto. Como se bastasse dirigir por alguns minutos para encontrá-la. Como se ela nunca tivesse ido a lugar algum.

Alguns minutos depois ele estaciona o carro em frente a um prédio à beira do Lago Michigan.

— Onde estamos?

— No meu escritório. Preciso assinar alguns documentos. E depois vamos embora.

Seguimos para dentro do prédio e ele me apresenta para várias pessoas no caminho. Os funcionários de Jack parecem muito com ele, práticos e sem formalidade. Diferentemente da Black, onde se parece mais com um ambiente corporativo, ali todo mundo parece jovem e veste jeans e me cumprimentam com sorrisos efusivos.

Sinto-me um tanto tímida e retraída e quando estamos saindo do prédio, Jack me encara com reprovação.

— Você é sempre meio grossa assim?

— Meio grossa?

— Todo mundo foi simpático e você parecia que estava em uma tortura.

— Não era minha intenção eu... Só não sei como ser... sociável — confesso.

— Por que diabos não quer ser sociável?

Antes que eu consiga responder ouvimos risos infantis e a atenção de Jack já não está mais em mim.

— Olha só quem está aqui.

Eu sigo seu olhar e levo um susto ao ver as duas filhas de Aria correndo em nossa direção.

— Tio Jack, que saudade! — Elas pulam em cima dele, que as recebe com entusiasmo.

— Vocês estão enormes!

— A gente sentiu sua falta, tio Jack — Arianna diz e então Isabella vira a cabeça e me vê.

— Nina!

Oh Deus, o que eu posso fazer?

Fico ali paralisada enquanto elas pulam em mim como fizeram com Jack.

— Não sabia que conheciam a Nina — Jack comenta.

— A Nina é namorada do tio Alex! — Isabella diz.

Eu não sei o que fazer. Estou amedrontada. Certamente as sobrinhas de Alex vão contar a ele que me viram com Jack.

— Meninas, precisamos ir — uma moça com uniforme de babá as chama e elas se despedem, seguindo a babá.

Entramos no carro e seguimos em silêncio, até chegar à casa de Jack.

— O que foi? Está pálida. — Ele me estuda quando entramos.

— Elas vão contar a Alex — expresso meu medo.

— Duvido. Max me disse que Aria está brava, porque Alex não quer falar com ela.

— Max?

— O marido da Aria.

— Você é amigo do marido da Aria?

— Sim, há anos. Éramos todos amigos. Eu, Max, Alex... Embora Max seja mais velho que nós.

— Ele não parece tão mais velho.

— Ele tem 36 anos hoje acho.

— Então você sabe sobre Alex?... — indago baixinho.

— Se você quiser saber sim. Eu perguntei a Max o que andava rolando no reino dos Black. Max diz que Alex está puto com Aria por ela ter contado a mãe dele sobre você. Ele culpa Aria e Nora por você ter fugido. Ele está tentando te encontrar.

Fecho os olhos, imaginando Alex a minha procura. Sentindo meu coração se dilacerando no peito.

Quando abro os olhos, Jack continua me encarando.

— Espera... Então você sabe?... — Eu me dou conta das implicações do que Jack está me dizendo.

Jack desvia o olhar para o chão, como se pensando no que dizer, mas quando me encara de novo, vejo determinação em sua expressão.

— Sim. Max me contou que você é afilhada do pai de Alex e que Alex sabia disso o tempo todo, mas não te contou. Que vocês não se viam desde que a mãe dele casou com o velho Black e que perderam contato. Que Alex a contratou sabendo disso, mas que escondeu a identidade de você e que mesmo assim se envolveram. Aria descobriu e contou a mãe dele que aparentemente contou tudo a você que fugiu.

— Há quanto tempo sabe disso?

— Desde a manhã seguinte em que estava aqui, basicamente.

— Por que não me disse? Por que ficou fazendo aquelas perguntas no carro...

— Não parece que você queria que eu soubesse. Eu respeitei isso. E hoje eu quis ver se você mesma ia me contar.

— Não sei o que dizer... Eu... Preciso ficar sozinha.

Eu me afasto de Jack e me tranco no quarto.

Sinto dificuldade de respirar quando me deito na cama.

Jack sabia o tempo inteiro o que estava acontecendo. Isso me faz sentir um pouco traída. Ou talvez traída não seja a palavra certa.

Eu achava que Jack era seguro, porque ele não sabia nada sobre mim. Nada sobre as questões que rondavam meu relacionamento com Alex.

Eu poderia lhe dizer apenas o que eu queria.

Porém, ele está a par o tempo todo. Isso me deixa amedrontada. De novo aquela Nina esquiva sente o estômago se apertar de medo de ter alguém próximo o suficiente que possa descobrir seus segredos escondidos.

Talvez eu já tenha passado tempo demais com Jack e preciso tomar alguma decisão.

Alex está procurando por mim.

Quanto tempo mais ele vai procurar? E por que ele não me procurou antes? Quando eu ainda não era feita daquela massa escura e pegajosa?

Quando ele vai entender que é tarde demais para nós?

 

Eu devo ter adormecido porque quando acordo, a noite já caiu. Olho a hora no relógio da mesa de cabeceira e passa da meia-noite.

Sinto meu estômago roncando e desço para a cozinha, mas ao passar pela sala Jack está lá, sentado no escuro.

— Jack?...

Ele me encara, por um momento, acho que não está me vendo.

— Ei, acordada?

— Eu... estava com fome.

Ele se levanta e percebo que ainda está com a mesma roupa que usou o dia inteiro.

— Vou fazer um lanche para você.

— Não precisa.

— Estou com fome também. — Ele ignora minha negativa abrindo a geladeira e preparando um sanduíche para nós.

Sentamos na bancada para comer e depois de algum tempo ele quebra o silêncio.

— Desculpe-me por não ter dito que sabia — diz de repente.

Capturo seu olhar e noto algo em sua expressão que não sei definir.

Algo diferente.

— Tudo bem... Na verdade... Tem muito mais coisas nessa história.

— Eu sei.

— Eu... não estou brava com você. Na verdade estou agradecida por ter me dado abrigo. Eu não costumo... Deixar as pessoas se aproximarem assim.

— Por que não? Você sempre parece esquiva com todos.

— Eu tenho medo de... fazer amizade e as pessoas quererem saber mais do que estou disposta a lhes mostrar — confesso.

— Precisa crescer e deixar o passado para trás, Nina.

Suas palavras me atingem como um tapa.

— Acha que é fácil? Não tem como deixar para trás algo que carregamos dentro da gente.

— E o que você carrega?

— Culpa.

— Pelo quê?

Sacudo a cabeça em negativa, desviando o olhar.

Meus olhos ardem. Meu peito arde.

Levanto-me, ansiando fugir daquela conversa que me faz mal.

— Amanhã vamos viajar — Jack revela antes que eu saia da cozinha.

Eu me viro, surpresa.

— Como assim?

— Você tem um passaporte?

— Tenho...

— Está com você ou teremos que pegar em seu apartamento?

— Está comigo. Mas... Viajar pra onde? Por quê?

— A trabalho. Apenas esteja acordada as seis.

Jack não dá maiores explicações como lhe é peculiar, fazendo um sinal para eu ir.

 

Na manhã seguinte, ainda estou confusa quando Jack me espera próximo a um carro com motorista.

Ele pega a mala da minha mão e joga no porta-malas me dando um bom-dia seco.

— Aonde vamos? — questiono quando entramos no carro.

— Mônaco.

— Você... tem negócios lá?

— Sim, negócios inacabados.

Ele mergulha a atenção no celular e noto que parece tenso e seu olhar não encontra o meu.

Chegamos ao aeroporto e seguimos para embarcar em um avião particular.

— Descanse, temos um longo voo pela frente — Jack pede quando estamos acomodados.

Ele ainda parece distraído e mordo os lábios, observando o avião decolar, confusa sobre aquela súbita viagem.

Porém, a noite maldormida cobra seu preço e acabo adormecendo.

Acordo algum tempo depois e Jack está me fitando de forma estranha.

— Estamos chegando.

O comandante pede para colocarmos o cinto, pois vamos pousar e a tarde está findando lá fora quando taxiamos.

— Você vai me dizer que tipo de negócios é esse? Não sei como poderei ser útil sem saber...

Nós nos levantamos para desembarcar e Jack segura meu braço.

— Nina.

Eu me viro para encará-lo.

— Sinto muito por isso.

— O que quer dizer?

Ele me guia para fora do avião e é quando estamos descendo as escadas que eu o vejo.

O homem de costas há alguns metros, o sol de fim de tarde incidindo em seu cabelo claro.

Ele se vira e seu olhar se prende em mim.

Saudoso.

Frustrado.

Raivoso.

Jack continua me guiando escada abaixo e eu me deixo levar, meu coração batendo sem sentido no peito.

— Alex... O que ele está fazendo aqui?

— Charlotte está aqui nessa cidade — Jack diz ao meu lado, mas meus olhos continuam fixos em Alex, como se ele fosse desaparecer a qualquer momento. — Eu sei que pode me odiar por isso, mas eu preciso encontrá-la, Nina. Porém, você também precisa encontrar o Black.

Arrasto meu olhar da figura de Alex para Jack impassível ao meu lado.

— Eu não sei se estou pronta pra isso.

— Você precisa encará-lo, nem que seja uma última vez. Eu sei o que é isso, ser deixado para trás sem explicação. E por mais que eu diga que adoraria ver Alex passar pelo mesmo, no fundo, eu não desejo isso nem para o meu pior inimigo. Toda história precisa de um ponto final.

— É isso que veio fazer aqui, está pronto para o ponto final?

Ele me solta, colocando os óculos escuros.

— Estou pronto para lutar. E você, Nina?

Ele acena e se afasta entrando em um carro há poucos metros.

Eu fico ali, parada, enquanto Alex vem na minha direção.

Sabendo que eu devia estar pronta para o nosso ponto final.

Mas quanto mais Alex se aproxima, mais eu vejo em seus traços o menino que segurou minha mão quando eu chorei.

Que disse que ia me encontrar.

E encontrou.

Ele para na minha frente.

— Eu disse que ia te encontrar, Nina.

 

Alex

 

Observar Nina sair daquele avião com Jack é como voltar à tona depois de se afogar em águas escuras.

Até aquele momento eu mal tinha me dado conta do quanto era difícil respirar sem ela por perto.

Como foi que ela se tornou tão essencial quanto o ar?

Ela tinha sido importante para mim quando éramos crianças. Parte de mim nunca deixou de lamentar sua ausência, embora a vida tenha acontecido para nós dois, os dias preenchidos por trabalho, família, paixões...

E então, o mundo girou e se posicionou de tal maneira que eu pude perceber que precisava encontrá-la. Precisava cumprir a promessa que fiz e que tinha deixado o tempo levar para algum lugar perdido dentro de mim.

E de repente, ela se tornou o centro de tudo.

De uma paixão que eu não esperava. De um amor que guardei somente para ela, sem nem mesmo saber.

E quando se foi, levou tudo embora. E só me restava procurar por ela porque só assim conseguiria respirar de novo, como estava fazendo agora, ingerindo longas golfadas de ar, enquanto sinto meu mundo sendo preenchido de sua presença.

E mesmo quando ela se vira trocando algumas palavras com Jack, antes dele se afastar e entrar no carro, onde o motorista vai levá-lo para encontrar Charlotte, sinto sua apreensão, quase como se pudesse ler seus pensamentos. Ela está aqui, mas sua mente está se afastando, se esgueirando para aquele lugar escuro que habitava antes de eu encontrá-la.

Nina não sabe que não adianta mais se esconder. Eu a encontrei.

Encontrei sua forma física e vou desbravar seu íntimo para resgatar sua alma também.

Seu olhar surpreso é uma pista de que Jack não havia lhe contado sobre nossa conversa ontem e de como finalmente, eu tinha cedido, sem nem pestanejar, em revelar onde estava Charlotte, contanto que ele me devolvesse Nina.

Depois que as filhas de Aria disseram que a encontraram com Jack, eu liguei para ele, que obviamente não atendeu, então corri até seu apartamento, que não ficava muito longe do meu e o porteiro disse que ele não pisava em casa há uma semana.

Porém, se Isabella e Arianna tinham visto Jack e Nina ali na cidade, queria dizer que eles não foram longe.

Eu estava enfurecido, queria matar Jack com minhas próprias mãos e deveria ter desconfiado que o desaparecimento de Nina pudesse ter dedo dele.

Jack me odiava por ter escondido o paradeiro de Charlotte. Eu me recordei de suas palavras quando nos encontramos naquele bar em Nova York. De como ele disse que gostaria que eu sentisse o mesmo, e eu até tinha me questionado de como agiria se Nina desaparecesse.

Naquele momento eu não podia entender que seria mil vezes pior do que supus.

E foi então que entendi Jack pela primeira vez.

E entendi o seu jogo, ele estava usando Nina para que eu fosse obrigado a revelar o paradeiro de Charlotte.

Eu amava Charlotte, a tinha protegido até hoje, mesmo sem saber seus motivos, mesmo Jack sendo meu amigo.

Mas não hesitei em pegar meu telefone e deixar um recado para Jack com poucas palavras.

“Eu te levarei onde está Charlotte.”

Não precisou nem de cinco minutos para Jack me ligar e dizer que ia me encontrar.

Pedi que fosse até o Red.

Jack não demorou a aparecer e estava sorrindo como um lobo que era. Ele sabia que tinha vencido uma longa batalha.

— Onde está Nina? — indaguei sem delongas. — Ela está bem?

— Calma, Black. Não sequestrei sua garota e nem a estou mantendo em cárcere privado num porão a pão e água...

— Para de ser engraçadinho, não tenho humor para aguentar suas ironias agora, White.

Calmamente ele pediu um whisky.

— O que foi? Riu da minha cara durante o ano inteiro junto com a sua irmã e agora não posso me divertir com seu infortúnio por algumas horas?

— Eu não ri da sua cara — esclareci quando vi que ele não estava com pressa agora que sabia que tinha um trunfo nas mãos.

— Como é, Black? Sentir que perdeu o que lhe é mais importante? Não fazer ideia de onde Nina está...

— Vai se foder!

Jack riu, recebendo o copo de whisky e acenando para Paul que estava em uma mesa do outro lado do bar nos fitando com apreensão.

— Paul está preocupado que você quebre minha cara, ele não sabe que você gosta é de bater em mulheres?

Eu não pensei, quando me levantei, o empurrando.

— Ei, se acalme, senão vou embora daqui e nunca vai saber onde Nina está.

— Algum problema aqui? — Paul estava do nosso lado em questão de segundos. — Se vão cair na porrada, que seja longe do meu clube. Ou me convidem para o ringue porque adoraria quebrar o nariz bonito de vocês.

Eu e Jack éramos altos, mas Paul era pelo menos uns 15 cm maior. E mais forte.

— Não se preocupe, Paul. Estamos aqui para dar o dedinho e ficar de bem — Jack voltou a sentar, pegando seu copo de whisky.

Respirei fundo e acenei para Paul, alertando que estava tudo bem.

Jack estava me provocando, porque era este seu modus operandi .

Ele não iria embora. Ele sabia que estava a poucos minutos de saber onde Charlotte estava. E era a única coisa que lhe interessava.

Encontrar a mulher que o tinha abandonado.

Bem, tínhamos isso em comum e era melhor manter o foco.

— Acho melhor parar de piada, Jack. Nós dois sabemos que está aqui porque eu disse que ia lhe dizer onde Charlotte está. Não foi por isso que levou Nina?

— Eu não levei, Nina, não do jeito que está dizendo!

— Eu espero mesmo que não tenha colocado um dedo nela.

— Por quê? Acha que ela não ia gostar?

— Charlotte não ia gostar com certeza.

— Sua irmã não tem o direito de ditar nada, não quando me deixou no altar!

— Mas mesmo assim ainda a quer. Então vamos logo com isso. Charlotte não está no país.

— Imaginei. E onde ela está? — Não havia mais o menor traço de escárnio na voz de Jack agora. Apenas determinação.

— Primeiro você vai me levar até Nina.

— Não tão fácil assim! Ela está bem — ele responde rápido. — Quer dizer, se bem é alguém que se mutila do jeito que ela faz.

Empalideci quando Jack citou que sabia dos cortes de Nina.

— Sim, eu sei — ele continuou — Eu vi. Ela tentou se cortar na primeira noite em que estava comigo, mas eu a impedi. Aliás, não sei que merda aconteceu com ela, mas não está a fim de te encontrar, Black. Então, é melhor que tenha um plano, pois aquela garota tem um caminhão de problemas emocionais que não consigo nem imaginar!

— Eu sei... quer dizer... Estou tentando descobrir. — Deixei toda a minha frustração transparecer na minha voz. — Ela te contou sobre nosso passado?

— Na verdade quem abriu a boca foi o Max. Sabe que Nina não é de falar muito. Ela me disse muito pouco nesse tempo que está comigo.

— Eu não entendo porque ela foi com você.

— Não fique com ciúme, Black. Eu não fiz nada com ela e nem quero. Não sou esse tipo de cara, embora seja levado a crer que ela deve ter encontrado muitos na vida dela... Isso me leva a você. Por que diabos escondeu dela quem era de verdade? Que espécie de plano bizarro era esse de colocá-la para trabalhar com você e depois a levar para cama? Quer dizer, para aquela sua salinha de sacanagem, mesmo com todos os problemas óbvios que ela tem?

Respirei fundo, eu mesmo precisava de uma bebida naquele momento.

A culpa que eu vinha tentando conter voltou com força a colidir como um tapa na minha cara. Remorso me corroendo.

Então, eu contei tudo a Jack. Desde o começo.

Contei sobre Will e Nina.

Sobre Nora e David, ou o que eu sabia. E sobre o que Christopher Black tinha me revelado e o que me fez ir atrás de Nina depois de tantos anos.

De como eu temi que ela fugisse quando soubesse quem eu era. Do meu plano de me aproximar dela e depois contar que eu era Will, a trazendo para a Black.

E lhe confidenciei meu maior pecado, quando eu me apaixonei, mesmo quando o que desejava a princípio era que ela fosse apenas minha irmã perdida.

E terminei com todos as nuances escuras que Nina tinha me revelado. As marcas na sua pele, sua busca por punição. Suas emoções trancadas a sete chaves de um mundo que ela acreditava que não deveria habitar, porque algo havia acontecido para que pensasse assim.

Algo tão terrível que eu precisava desvendar, mesmo com medo do que pudesse ser.

— Então eu tinha razão, ela encontrou bastante cara escroto na vida dela — Jack comentou quando contei que encontrei seu ex-namorado e seu professor.

— Sim, mas todos disseram que Nina já era assim.

Jack capturou meu olhar e o medo na minha voz.

— Então você acha que começou quando?

Eu não consegui externar em voz alta.

Porque ainda tinha esperança que estivesse enganado.

E Jack entendeu, porque apenas terminou sua bebida me fitando com impaciência.

— Acho que já falamos demais. E ainda não me disse o mais importante.

— Eu fretei um voo essa madrugada para Mônaco.

— Mônaco? É onde Charlotte está?

— Neste momento sim. Ela andou viajando para alguns lugares, mas é lá que está no momento. Você me encontrará lá com a Nina. — Eu sabia que Jack não ia me levar até Nina até que tivesse certeza que saberia onde encontrar Charlotte.

— Certo. Eu estarei lá — Jack se levantou.

— Ela... ela está bem? — ainda indaguei, levando tudo de mim para não seguir Jack naquele instante, mas sei que tinha que ser cauteloso naquele momento.

— Está tão bem quanto alguém como ela pode estar.

E Jack foi embora, levando consigo a esperança de que em breve eu veria Nina de novo.

E aqui estamos nós.

Quando caminho em sua direção, sentindo todo meu corpo e alma voltando à vida, me pergunto como foi que passei todos aqueles anos sem sua presença quando ela tinha ficado com meu coração.

Assim como eu fiquei com o dela.

Noto a desesperança em seu olhar quando estou próximo o bastante para perder o fôlego com sua beleza triste.

Ela ainda não entende que não vou desistir, embora já esteja dizendo adeus.

Não desta vez, Nina.

Não desta vez.

Nem nunca mais.

 

 

Capítulo 5

 

Nina

 

— Eu disse que ia te encontrar, Nina.

Suas palavras ainda reverberam em minha mente confusa enquanto outro carro idêntico àquele que levou Jack para ao nosso lado e Alex abre a porta, me encarando em um desafio claro para que eu entre.

Hesito por apenas um instante, até me dar conta que é inútil lutar. Alex orquestrou aquele encontro e está com todas as cartas na mão. A mim, só resta acompanhá-lo naquela dança.

E não foi sempre assim? Penso com certa ironia quando com dois passos me acomodo no banco de trás do carro.

Alex sempre esteve um passo à frente de mim.

Ele senta ao meu lado e o carro avança para fora da pista, mas meus olhos não estão curiosos para saber onde estamos ou aonde vamos, minha atenção está toda em Alex, assim com a dele está toda em mim.

Parece que estou vendo Alex pela primeira vez.

Sinto-me sem ar.

Sem forças.

Sem palavras.

Acho que pela primeira vez, desde que o passado me fora finalmente revelado, tenho a percepção de que o cara com quem passei as últimas semanas era Will.

Porém, ele ainda é Alex Black.

Ainda é o corredor misterioso que passava por mim todas as manhãs, enchendo o ar a minha volta com sua energia e me despertando uma curiosidade estranha que eu não estava acostumada a sentir, perdida em meu mundo solitário.

Ainda é o CEO da Black Investiment, o meu chefe. O executivo brilhante que me amedrontou naquele primeiro dia, e que me fazia ter atitudes submissas sem eu nem mesmo perceber que havia um lado meu que apreciava seu lado dominador.

O homem por quem me vi irremediavelmente atraída. Que disse que queria ser meu amigo.

Uma irmã, ele tinha dito, quando segurou minha mão naquela manhã nublada que agora parecia em outra vida.

Assim como o Will das minhas lembranças pertencia a outra vida.

Outra Nina.

A Nina do Will tinha o coração infantil quebrado pela perda dos pais, porém, ainda encontrou alguma esperança quando ele lhe estendeu a mão.

Só que aquela Nina não existe mais. Quando Will se foi, aquela Nina que ainda tinha algo de bom dentro de si foi minguando como uma flor que precisa do sol para viver, mas foi deixada em um quarto escuro para murchar até que estivesse despedaçada no chão.

Foi essa Nina que Alex Black encontrou. Despedaçada.

E mesmo assim, algo em Alex fez nascer em mim um desejo quase ilícito por aquela violência que ele relutava em me oferecer.

Lutei por ela.

Lutei por ele.

Pedi que me machucasse, mesmo já estando arrebentada.

Com hematomas por todo lado. Na minha pele.

Dentro de mim.

Mas a dor que Alex me causava era bem-vinda, porque era isso que eu merecia.

Eu sou uma pessoa ruim.

E agora, é exatamente isso que faz com que eu contemple seu rosto bonito, conseguindo ver os resquícios de Will em seus traços másculos, que antes se escondiam de mim, e lamente que ele não seja apenas Alex Black.

Alex Black era um estranho. Um homem bonito e dominador de quem eu desejava a paixão e violência na mesma proporção. Um homem que apesar da minha escuridão, ainda assim me quis e me fez acreditar que nos completávamos.

Seu desejo de violência abraçava meu desejo de punição.

Só que aquele Alex não existe.

Por todos aqueles anos, eu havia desejado, mesmo inconscientemente, que Will me encontrasse, como se a menina que um dia fui ainda existisse dentro de mim, escondida em algum lugar, apenas esperando para ser resgatada por aquele garoto que voltaria e lhe estenderia a mão, como fez incontáveis noites antes.

E agora que ele está aqui, há uma parte de mim que lamenta, porque por mais que eu deseje ainda ser a Nina do Will, eu não sou mais aquela menina.

Passei todos aqueles dias na companhia de Jack, sabendo que o encontro com Alex seria inevitável.

E temendo este momento.

Deixei-me alimentar pelo medo de que, desta vez, Alex não desapareceria como fez há tantos anos quando éramos crianças. E eu teria que dizer a ele que o pequeno interlúdio que vivemos, não passou disso, um momento perdido no tempo, que chegou ao fim. Sentia meu estômago se apertando só de pensar que Alex não aceitaria um simples adeus. Que em algum momento eu seria obrigada a lhe contar o que fiz e que Alex descobrisse enfim todas as nuances da minha escuridão.

Agora, enquanto sustento seu olhar, sei que tenho que lhe dizer muitas coisas, mesmo sabendo que não é o que Alex quer ouvir. Porém, outras percepções se alastram por minha mente de repente. Percepções que, perdida em meu medo deste temido reencontro, eu não me dera conta até então.

Se eu não sou a mesma Nina, Alex também não é mais aquele menino.

E a pergunta que de repente começa a martelar dentro de mim é: por quê?

Por que ele nunca quis me encontrar? Por que só agora?

Por que mentiu e escondeu quem era de verdade?

Por que tive que ouvir a verdade de sua mãe?

Quem era aquele homem afinal?

E talvez, por causa de todas essas dúvidas, que eu continue aqui em vez de abrir a boca e dizer o famigerado adeus que sei que terei que dizer em algum momento.

Seja qual for a maneira que vamos conduzir aquele último ato de nossa história, o fim será sempre o mesmo.

Com Alex e eu seguindo caminhos diferentes.

Não sei quanto tempo passo perdida em minhas conjecturas, talvez tenha passado apenas segundos, mas Alex ainda me encara como se também estivesse perdido em seus próprios porquês.

— Então você cortou mesmo o cabelo — ele diz por fim e não é o que eu esperava ouvir.

Porém, o simples comentário sobre meu corte de cabelo empresta um tom mais neutro aquele encontro cheio de tensão.

— Aposto que foram suas sobrinhas que contaram, não é? — Chego à conclusão que provavelmente foi assim que Alex descobriu que eu estava com Jack.

— Sim, elas contaram. Eu fiquei... bem surpreso em saber que estava com Jack, mas já devia imaginar que ele usaria você para que eu lhe dissesse onde estava Charlotte. Eu poderia estar puto com Jack, mas no fim acho que estou agradecido. Porque ele me trouxe você. Sabe como fiquei preocupado sem saber onde estava? Por ter fugido sem nem ao menos me deixar explicar? — Há raiva em sua voz. — Como temi nunca mais te encontrar?

Há uma parte de mim que quer balbuciar desculpas por deixá-lo bravo.

Mas percebo que também estou com raiva.

E eu não tinha me dado conta daquele fato até agora.

— Você passou todos esses anos sem tentar me encontrar, acho que não faria diferença pra você! — Deixo a fúria que vinha guardando sem nem ao menos perceber tomar conta de cada palavra que atiro contra ele. — Por quê?... Por que não me contou que era Will? Todo esse tempo... Meu Deus... — Desvio o olhar para fora do carro, percebendo vagamente que estamos passando por uma avenida que margeia uma praia.

— Nina... — Sua mão encontra a minha, sobre o banco, a apertando.

Por alguns segundos, saboreio aquele toque, deixo que minha pele exulte com a sua, mas é demais para mim, porque não adianta mais ansiar pelo toque de Alex quando em breve ele será apenas uma lembrança.

— Não! — Arranco minha mão da sua e avanço para a porta, a forçando. — Pare o carro... me deixe sair daqui...

— Nina... — Alex agora está implorando, mas já não me toca.

— Por favor... — insisto, forçando a porta sem sucesso.

Como se vindo de muito longe, escuto Alex pedir para o motorista parar e assim que o carro estaciona e a porta é destravada, eu a abro, arremessando meu corpo para fora, tropeçando na ânsia de fugir, em direção à areia da praia, onde caio finalmente de joelhos, as lágrimas me cegando.

Os braços de Alex me alcançam em seguida, me embalando, enquanto deixo os soluços dolorosos rasgarem meu peito.

Permito que ele me ampare, porque não há outro lugar no mundo em que eu queria mais estar do que ali, chorando com ele naquela versão distorcida das crianças que fomos um dia, que se permitiam chorar enquanto seguramos a mão um do outro.

Agora, ele me segura inteira.

Em meio a minha dor, percebo que não estou chorando de raiva de Alex.

Sim, ainda sinto raiva por ter mentido. Porém, a minha raiva é por ele ter chegado tarde demais.

É um choro de lamento.

— Eu sinto muito. — As palavras de Alex são trazidas pelo vento que açoita meus cabelos, minha pele.

Eu me desvencilhei de seus braços, sentindo uma estranha calma depois de ter desabado. Contemplando o mar revolto, o crepúsculo que se aproxima, trazendo a escuridão.

Estamos ambos ajoelhados sobre a areia.

Desfeitos.

Despedaçados.

— Todo este tempo... Você nunca voltou. Nunca me encontrou...

— Eu voltei depois de alguns meses. A casa estava vazia. Minha mãe me disse que meu pai abriu mão da minha guarda. E vocês... sumiram.

As lembranças daqueles dias depois que Will se foi inundam meu corpo. De como eu achei que ele ainda ia voltar mesmo que fosse para me visitar...

Mas ele nunca voltou.

— Eu tinha só 13 anos, Nina. E minha mãe estava disposta a cortar qualquer laço.

Claro. Isso eu posso acreditar, penso com amargor, me lembrando de mim mesma chorando e me agarrando a Nora e pedindo para que ela me levasse junto.

— E a vida seguiu. Minha mãe se casou com Christopher Black... Talvez fosse muito pequena para se lembrar que meu nome era Alexander William. Minha mãe tirou o nome William, porque lembrava meu pai e eu me tornei Alex Black, depois que Christopher me adotou. E, deve imaginar que ele era um cara rico e que minha vida mudou muito. Com o tempo, tudo foi ficando para trás, apenas uma lembrança... Acreditei que sua vida tinha seguido da mesma maneira e que para você eu também era apenas uma lembrança.

Fecho os olhos, com vontade de gritar, a dor me devorando por dentro.

Ah Alex, sim, a vida seguiu.

De uma maneira trágica como diz sua tatuagem...

E ainda não acabou.

— E por que agora? — questiono o encarando. — Se a sua vida seguiu por que depois de todo esse tempo quis me encontrar?

— Eu não sabia que David... meu pai, havia morrido até o dia em que Christopher morreu.

A menção da morte de David me faz encolher, meu estômago revirando.

— Como assim?... Mas... Sua mãe sabia!

— Minha mãe não me contou — Sua voz adquire um tom duro conforme ele prossegue. — Christopher me contou em seu leito de morte que Nora escondeu que meu pai morreu em um acidente há nove anos, que você estava junto...

Desvio o olhar com dificuldade de respirar.

— Eu sinto muito... — Alex continua. — Se eu soubesse... Droga, eu deveria saber! Mas só sei desse fato há um ano. E então... não conseguia parar de pensar em você. No que teria lhe acontecido... E contratei um detetive.

— Então você me encontrou há um ano... As corridas...

— Mais ou menos isso. Eu fui até sua casa, mas não tive coragem de me aproximar de você.

— Por quê?

— Porque eu não sabia quem você era agora. Eu temia... temi que me odiasse por ter te deixado e não cumprido minha promessa. Não havia quase nenhuma informação concreta sobre você e eu queria... queria te conhecer. Conhecer essa Nina que se transformou.

— O emprego da Black...

— Sim, eu tive a ideia de te contratar.

— E ia mentir pra mim até quando, Alex? Em algum momento pensou em me contar a verdade?

— Sim, o tempo inteiro. Eu até achei que poderia me reconhecer... mas você não me reconheceu. Cheguei a achar que nem se lembrasse mais daquele menino... que talvez tivesse me esquecido.

— Eu nunca te esqueci... Embora achasse que você tivesse me esquecido. E acho que esqueceu, não é? Sua vida como Alex, toda essa riqueza, suas novas irmãs, o adulto que se tornou. Este cara poderoso... O homem que domina as mulheres... Não tem nada a ver com Will.

— Eu ainda sou Will — Ele toca meu rosto, implora com o olhar para que eu o reconheça afinal. — Eu nunca te esqueci. Só achei que nossas vidas tinham seguido caminhos diferentes. Não sabe como lamentei não ter mantido minha promessa.

— Você disse que queria que fôssemos amigos.

— Sim, era o que eu pretendia, mas não esperava me sentir atraído pela mulher que se tornou e quanto mais eu lutava mais intenso ficava. Eu te mostrei Victoria. Te levei naquele clube em Nova York. Eu queria que se afastasse de mim, mas você só fazia se aproximar mais. Eu me sentia culpado por estar te machucando, por sentir prazer em levar você ao limite... o que pra mim até aquele momento era natural... mas era você e... — ele toca meu braço, os dedos se imiscuindo para baixo da minha blusa até tocar os cortes em minha pele — pensar que algo tinha acontecido com você nesse tempo em que eu não a encontrei... algo terrível que a tinha transformado...

Puxo meu braço, me afastando.

— Não, não se afaste de mim... Por favor — Suas mãos buscam as minhas. — Dói de um jeito que nem sei explicar quando faz isso, quando se afasta de mim, quando vejo essa sombra toldar seu olhar.

Sacudo a cabeça, o nó fechando minha garganta, enquanto Alex continua a se aproximar. Sua testa toca a minha. Respiro tua presença.

Queria tanto que fosse possível.

Esquecer quem eu sou.

Quem ele é.

E sermos apenas a Nina e o Alex de agora.

Duas pessoas atraídas irremediavelmente pela outra e sem nenhum passado as assombrando.

Mas é impossível.

Respiro fundo e sacudo a cabeça, retirando minhas mãos de dentro das suas.

— Não posso... Não...

Alex recua. Finjo não enxergar a dor que meu afastamento lhe causa.

Ignoro a própria dor dentro de mim.

— Eu sei que te magoei ao não lhe contar a verdade. Sei que foi uma atitude horrível, mas acredite que eu queria te contar, só fui egoísta demais me concentrando no meu medo. Medo de perder você, como perdi quando minha mãe lhe contou... Eu estou muito arrependido de não ter te contado. Eu lamento todos os dias não ter sido sincero desde o início. Lamento ter te magoado. Lamento ter feito você fugir... E lamento mais que tudo que só tenha te encontrado agora, depois de tudo o que passou. Este é meu arrependimento maior.

Desvio o olhar.

— Você não tem ideia do que eu passei...

— Eu quero que me conte. — Ele segura minhas mão de novo.

Sacudo a cabeça, tentando puxar minhas mãos, mas Alex a mantém refém.

— Nina, eu sei que não é bonito, ok?

— Isso é um eufemismo, Alex!

— Que seja! Acha que me importo?

— Não sabe o que está dizendo...

— Eu conheci seu ex-namorado Tyler.

— O quê?

— Eu precisava tentar te achar! Lucy disse que viu você entrando em um carro com um homem. Tyler foi a primeira pista e ele me levou até seu professor.

— Elliot! Você encontrou Elliott...

— Sim, encontrei. Tyler me contou o que aconteceu.

Sinto-me envergonhada por Alex conhecer aquele passado de erros. Por ele ter uma ideia das coisas que eu fiz e que não tenho o menor orgulho, muito pelo contrário.

— Então você sabe...

— Tyler me deu uma ideia como era o relação de vocês.

— Ele tem contou como terminou?

— Sim.

— Eu te disse, Alex... eu sou uma pessoa horrível — murmuro.

— Não. Tyler era um garoto estúpido e drogado! E Elliot é um velho nojento que se aproveitou de você... E nem teve a decência de assumir a culpa.

Sacudo a cabeça, Alex não entende.

Ele nunca vai entender...

— A culpa não é dele. Eu sou... eu faço essas coisas ruins... você mesmo foi levado a fazer comigo. Eu insisti quando não queria.

— Meu Deus, Nina, por que acredita nisso?

— Porque é verdade!

— Isso é absurdo.

— Você tinha razão em querer ficar longe de mim e eu sinto muito que o tenha envolvido...

— O que quer dizer?

— Que é o ponto final, Alex.

— Não é.

— É o melhor que fazemos, antes que tudo se transforme em tragédia.

— Acha que vou deixar você ir? Eu não te encontrei para deixá-la ir embora agora...

— Mas vai ter que deixar. De fato, eu já fui. Isso entre nós... nunca deveria ter acontecido. Você mesmo percebeu que era errado! Então apenas... siga sua vida como estava seguindo.

— Não posso seguir sem você.

— Seguiu até agora.

— O que você quer? Que eu seja seu amigo? Seu irmão? Eu vou ser o que quiser! Só... fique comigo.

— Não acho que seja possível. — Eu me afasto, levantando-me e enxugando o rosto, enquanto retiro a areia da minha calça.

O sol se foi e a noite caiu quando Alex me conduz de volta ao carro, onde o motorista aguarda pacientemente.

— O que vai acontecer agora? — Encaro Alex dentro da semiescuridão do carro.

— Eu não posso te obrigar a ficar se não quer.

— Não é questão de querer.

— É questão do que então?

Desvio o olhar.

Sei que poderia lhe dizer.

Libertar os segredos que guardo na sala escura que é meu coração e deixar que Alex faça o que quiser com eles.

Mas não posso.

É como se vivesse permanentemente engasgada. Eu morro pouco a pouco com isso entalado em mim há anos.

— Para onde vamos?

O carro para em frente a um prédio elegante e saltamos.

— Aqui é o Hotel de Paris Monte Carlo.

Alex me guia para o que parece ser um restaurante. Não tenho a menor fome, mas o acompanho até uma mesa afastada.

— O que vai acontecer agora?

— Agora nós vamos jantar.

— Você entendeu o que eu quis dizer.

— Eu não sei, Nina. Não sei. Apenas... Ficaremos aqui esta noite e amanhã vamos voltar a Chicago, ok?

Entendo então que aquele é mesmo o fim.

Sacudo a cabeça em afirmativa, querendo me sentir mais aliviada por Alex estar cedendo tão facilmente.

Mas só sinto uma desolação que tento esmagar dentro de mim como me acostumei a fazer com qualquer emoção por todos aqueles anos.

Embora não esteja com o menor apetite, obrigo-me a comer, enquanto um silêncio triste paira no ar.

Em alguns momentos, Alex pega o celular e responde mensagens com irritação. Pergunto-me se é Charlotte. Deixo meus pensamentos se enxerem de curiosidade sobre a irmã fugitiva de Alex, afinal, nessa altura dos acontecimentos Jack deve estar com ela.

— Sua irmã... Jack disse que ela está aqui? — insiro o assunto, enquanto Alex pede a conta.

— Sim, ela está.

— Ela... ela sabia que você diria a Jack onde ela estava?

— Agora ela sabe.

— Era ela que estava te mandando as mensagens?

— Sim, ela está furiosa.

— Então Jack já a encontrou...

— Sim — Alex passa a mão pelos cabelos, parecendo subitamente cansado —, mas sinceramente estou me lixando para os problemas de Jack e Charlotte no momento.

Pergunto-me se Jack está feliz agora por finalmente ter encontrado Charlotte. Ou se está encarando o ponto final que foi adiado por um ano inteiro, assim como estou encarando meu próprio ponto final com Alex.

Saímos do restaurante e Alex me guia por um saguão impecável até os elevadores. Quando as portas se fecham, tenho uma sensação de déjà-vu . Eu e Alex em um elevador se parece demais com a primeira vez em que ele me beijou, quando estava bravo depois de me flagrar no bar do hotel com Jack.

Fecho os olhos, deixando as lembranças inundarem meu corpo, recordando-me do gosto da sua boca. Da textura do seu toque.

Do modo ríspido que me afastou, arrependido.

Se eu tivesse tido forças para interromper o fluxo de acontecimentos que ocorreram naquela noite, terminando com nós dois na cama, tudo seria diferente agora?

Alex poderia ter me contado que era Will e oferecido apenas sua amizade?

Teria sido menos doloroso abrir mão dele?

Duvido muito. Eu já estava envolvida.

Estou envolvida há tanto tempo que nem lembro.

O tempo apenas transformou o meu amor infantil por Will em paixão por Alex.

E é paixão que eu sinto agora. A eletricidade quase palpável que emana do corpo dele e colide com o meu, que esquenta, anseia.

Deseja.

A porta do elevador se abre e obrigo-me a sair do meu devaneio. Sentir-me atraída por Alex agora não vai ajudar em nada. Apenas piora tudo.

Alex abre a porta do quarto e como era de se esperar tudo é sofisticado e caro. Móveis em tons pastéis na sala da suíte e uma varanda com vista para a cidade iluminada.

— Fique com o quarto — ele diz atrás de mim, apontando para uma porta à direita. — Sua mala já está aqui.

Sacudo a cabeça em afirmativa, ansiando por um banho.

E ansiando sair de sua presença perturbadora.

Sem olhar em sua direção, entro no quarto e abro minha mala, retirando uma camiseta e vou para o banheiro.

Contemplo minha imagem abatida no espelho, meus olhos verdes fundos de chorar. Meus cabelos embaraçados pelo vento.

Tento esquecer que Alex está ali, perto, em algum lugar, enquanto entro no chuveiro e deixo a tensão do dia se esvair e no lugar dela, ficar apenas um doce torpor, quando visto a camiseta e escovo meus dentes.

Pego o pente e tento desembaraçar meu cabelo molhado. Quando levanto o olhar, através do espelho avisto Alex na porta do banheiro.

Ele tomou banho também, o que me faz pensar que deve ter outro banheiro na suíte. E está usando apenas uma calça de pijama.

Parece insano pensar que seria mais fácil se ele não fosse tão bonito. Que Will tivesse se transformado em um cara feio e desajeitado, não aquele homem espetacular que entra no banheiro e sem dizer nada tira a escova da minha mão e começa a desembaraçar meu cabelo com todo carinho.

Contemplo nossa imagem no espelho.

Parece perfeito.

Certo.

Nossos olhares se encontram e se prendem e sei que Alex pensa o mesmo.

Então, de repente me dou conta do porquê ele estava ali, à espreita.

— Você achou que eu ia me machucar?

Ele não responde e a resposta é óbvia.

— Eu não sei o que leva você a fazer isso...

— Às vezes a dor física é infinitamente mais fácil de aguentar do que a dor que vem de dentro de mim.

— Não está doendo hoje? — Ele coloca a escova na pia, mas permanece atrás de mim.

— Nenhum machucado vai doer mais do que saber que em pouco tempo você vai partir de novo.

— Eu não vou partir, não entende? — Enterra o rosto em meus cabelos, aspirando.

Contaminando-me.

Cerro as pálpebras, sufocando de um amor que se revela mais forte do que eu pensei que fosse e se recusa a se esconder como eu faço com todos os sentimentos que não posso lidar.

— Você já partiu... — sussurro por fim, me afastando.

Vou para o quarto e deito sob os lençóis frios, enterrando o rosto no travesseiro para que Alex não escute meus soluços.

Quando sinto a mão segurando a minha, os dedos se entrelaçando nos meus, não fico surpresa.

Mesmo assim, abro os olhos e ele está ali, deitado ao lado da cama. Segurando minha mão enquanto choro como fazia há tanto tempo.

— Você fez isso naquela noite — murmuro — naquele hotel, quando transamos... Eu achei que fosse um sonho.

— Não, não era.

— Ainda parece um sonho que esteja aqui agora...

— Eu sempre vou estar.

— Queria que pudesse ficar — confesso o desejo mais bem guardado do meu coração.

— Ficarei o quanto você quiser. O que você quer, Nina? Me diga o que você quer e eu farei. Qualquer coisa.

— Venha aqui... — O pedido sai quase como um lamento, porque sei que vai ser mais difícil depois se deixar que Alex volte para dentro de mim.

Mas não consigo evitar meu coração de exultar, quando ele atende meu pedido deitando ao meu lado, sua mão ainda entrelaçada a minha.

— Você pode ficar comigo essa noite e mesmo assim me deixar ir amanhã? — sussurro e com um gemido Alex infiltra os dedos em meu cabelo, me levando para perto, para que eu sinta o gosto familiar do seu hálito em minha língua.

— Sim... — concorda contra meus lábios, me beijando.

Eu sei que ele está mentindo. Mas já fui longe demais para me importar.

 

 

Antes

 

— Olha isso aqui, Nina! — Amanda se jogou na cama ao meu lado, praticamente enfiando o celular na minha cara, me fazendo rir e desviar a atenção do meu caderno de desenho.

A imagem era de um garoto alto e de cabelos que precisavam de um corte, mas que certamente não incomodava a garota que o estava beijando.

— Quem é essa? — indaguei curiosa, porque o garoto eu já sabia quem era. Era Tim Harris da minha aula de inglês e ex-namorado de Amanda.

— Samantha Chase! Que vadia. — Amanda revirou os olhos.

— Por que está xingando ela, achei que não gostasse mais dele.

— Eu não gosto mesmo. Ele é um babaca e eu te falei, ele nem sabe beijar direito!

Nós duas rimos, porque Amanda contava tudo pra mim. Todos seus flertes e beijos e até mais recentemente os avanços de Josh, seu atual namorado.

Amanda voltou a atenção para o celular.

— Achei que tinha vindo aqui para fazer sua tarefa de matemática — reclamei voltando a atenção para meu desenho.

— Sabe que é a mentira que inventei pra minha mãe! — Nós duas rimos de novo. — Eu tiro de letra quando chegar em casa. E o que está fazendo?

— Preciso terminar este desenho para a aula de arte amanhã.

Amanda revirou os olhos.

— Credo, odeio arte! Não sei que graça você vê nisso... Olha só! Josh acabou de me mandar uma mensagem... Hum, está perguntando se você já tem par para o baile.

Suspirei, largando o caderno e me virando para deitar olhando o teto.

— David não vai me deixar ir...

— Fala sério! É um baile de escola! Nosso primeiro baile! Sabe que o Josh está perguntando porque o Alan quer te convidar, né?

Mordi os lábios, animada.

— Acha que ele vai me convidar?

Alan era um garoto dois anos mais velho com quem eu vinha flertando há algumas semanas. Ele era lindo e popular e fazíamos aula extra de arte juntos.

— Claro que vai! O David tem que te deixar ir! Não vou se você não for!

— Para com isso! — Eu a empurrei. — Você vai de qualquer jeito...

Ela riu.

— Mas não vai ter graça se você não for.

— Aposto que vai! Josh vai fazer você nem se lembrar de mim!

Amanda suspirou.

— Ah Josh é tão incrível! Sabe que ele pediu para a gente... — ela abaixou o tom de voz — você sabe... ir até o fim no dia do baile.

Arregalei os olhos.

— Sério? Você teria coragem?

— Por que não? Eu estou apaixonada! E temos quase 15! A maioria das meninas da nossa idade já não é virgem!

— Eu não sei se teria coragem, se estou preparada...

— Vai estar quando o Alan colocar as mãos em você! Já ouvi falar que Alan não é habilidoso só com desenho! — Amanda me cutucou rindo com malícia e eu fiquei vermelha imaginando.

Eu já tinha beijado alguns garotos, mas nunca ido além disso.

Mesmo porque David fazia marcação cerrada comigo e estava ficando cada vez pior. Eu tinha achado que ele ia me dar mais liberdade enquanto ia ficando mais velha, mas parecia ficar cada vez pior.

Ele ficava bravo comigo quando eu chegava atrasada, ou quando ousava sair sem que ele desse permissão. Se eu falasse que ia ao baile com um garoto então ele iria surtar.

Estremeci de medo. Não gostava de deixar David bravo. Eu sempre me sentia culpada quando ele brigava comigo. David era tudo o que eu tinha e não queria decepcioná-lo de jeito nenhum.

— Eu não sei, provavelmente ele vai desistir de mim quando eu não puder ir ao baile com ele, vai convidar outra...

— Não! Você tem que ir! Não quer ficar com o Alan?

— Eu quero, mas...

— Então dá um jeito! Convence o David! É só um baile!

Eu me sentei, querendo achar uma saída...

— E se eu fosse escondido?

— Acha que David não vai deixar mesmo?

Antes que eu conseguisse responder, ouvi o barulho do carro de David estacionando.

— David, chegou, precisa ir!

David tinha proibido que eu recebesse qualquer amiga em casa.

Ainda mais Amanda, que ele dizia ser uma má companhia.

Amanda juntou suas coisas e abriu a janela, a pulando facilmente, para que David não a visse.

— Posso responder ao Josh que você vai com Alan?

Sorri, tentando não me sentir culpada pelo que ia fazer.

— Sim, eu vou!

 

 

Capítulo 6

 

Nina

 

O desejo explode como fogos de artifícios sob nossas peles em forma de gemidos, toques e desespero, enquanto roupas são tiradas do caminho para que nossas peles possam, enfim, se reconectar como velhas amantes.

Acho que até aquele momento nenhum de nós tinha se dado conta do quanto precisávamos estar assim, com Alex dentro de mim, nossos lábios se unindo, o presente e o passado se misturando com saliva e lágrimas.

Alex havia parado apenas para dizer que precisava buscar um preservativo, mas eu lhe disse que não precisava, pois eu tomava pílula.

Tento não lembrar porque eu tomava pílula desde os 14 anos.

Então, fecho meus olhos com força e me concentro em Alex.

Respiramos juntos, nossos corpos unidos na união mais profunda, os corações batendo no mesmo ritmo.

— Nina — Alex me chama e abro os olhos para encontrar os dele brilhando como uma chama no meio de um oceano —, fica comigo...

Leva alguns segundos para entender que seu pedido não é só sobre agora, sobre me manter presente enquanto ele se move devagar dentro de mim, arrancando gemidos da minha garganta. Mas também sobre tudo.

Sobre o futuro incerto.

Sobre esquecer um passado que está presente agora nos traços em seu rosto que ainda guarda os resquícios do menino que ele foi.

Essa constatação faz eu perder o fôlego por alguns instantes e toco seu rosto.

— Will... — Deixo seu antigo nome escapar com um suspiro doloroso e fascinado.

Seus lábios tocam os meus com infinita ternura e talvez já saiba a resposta de sua pergunta enquanto mergulha o olhar no meu no silêncio do quarto, intensificando suas investidas e me fazendo enterrar as unhas em seus ombros, e me desmanchar de prazer embaixo dele, enquanto ele geme em seu próprio gozo, me apertando forte.

Depois, seus dedos retiram alguns fios de cabelos perdidos no meu rosto com extremo carinho.

— Foi rápido demais?

Um riso que mais parece um soluço escapa da minha boca, o fazendo sorrir.

— Foi perfeito.

Ele acaricia meus lábios inchados de seus beijos.

— Queria vê-la sorrindo mais.

— Eu também — sussurro, já sentindo a minha tristeza habitual querendo tomar o lugar daquela alegria fugidia que havia se alastrado em mim por estar assim com Alex.

Não quero lembrar que provavelmente é a última vez.

Que não temos futuro. Nunca tivemos.

Então me concentro nele. Em seu olhar amoroso. Saudoso, enquanto sai de dentro de mim e deita ao meu lado.

— Você me chamou de Will.

— Como você quer que eu te chame?

— Do que você quiser.

— Acho que vai ser esquisito te chamar de Will. E você agora é Alex.

— Sim, este é meu nome agora, mas ainda sou a mesma pessoa. Você sente isso?

Sacudo a cabeça em afirmativa.

— Não sei como não percebi. Ou talvez eu tenha percebido sem nem ter me tocado...

— O que teria acontecido se eu tivesse te procurado antes, como Will?

Não respondo e acho que ele entende que provavelmente seus medos não eram infundados.

Eu teria mesmo fugido.

Como estou fazendo agora, embora ainda esteja na sua cama, com resquícios do seu gozo dentro de mim.

Com sua mão voltando a segurar a minha.

— O que está pensando? — Alex indaga.

— Me diga você...

— Eu estou feliz.

— Sério?

— Sim, parece bobo e até... sem noção me sentir assim, quando tudo o que você faz é dizer adeus a cada minuto, mas...

— Não estou dizendo adeus agora...

— É, não está. Talvez por isso esteja feliz, afinal. Você está aqui. Ao meu alcance e só quero que essa noite seja sem fim.

— Acho que desejo o mesmo.

— Quer dormir?

— Não. Dormir vai fazer a noite acabar.

— O que quer fazer? Quer transar de novo?

A gente ri.

E é tão bom.

Enche meu coração de algo doce. Esperança perigosa, mas que eu não consigo deixar de sentir.

Contemplo nossas mãos unidas, seus dedos brincando com os meus. Parece tão natural. Tão certo.

Por um momento tudo o que desejo é fingir que está tudo bem.

Que Alex está aqui comigo e que ele é Will. E que este fato não é um conto de horror, e sim um conto de fadas.

Que existe um destino que nos reuniu para que estivéssemos exatamente assim, com nossas mãos unidas de novo.

Porque é possível.

— Conte-me o que aconteceu essa semana, quando estava com Jack.

Eu me surpreendo com essa pergunta. Alex não parece estar questionando meu tempo com Jack com raiva, mas certamente há algo escondido em sua indagação.

— Quando saí da sua casa, apenas queria...

— Que eu não a encontrasse.

— Sim, era isso. E Jack estava lá. E me levou para a casa que ele construiu para a Charlotte.

— Ah... Então era lá que estava!

— Achei que soubesse...

— Acha que se eu soubesse onde estava não teria ido te encontrar?

— Achei que talvez Jack tivesse lhe contado quando se encontraram...

— Não, ele não ia falar tão fácil assim. Ele precisava ter certeza que eu o traria até Charlotte.

— É, faz sentido.

— Nunca estive nessa casa. Sabia do que a Charlotte me contava, Jack fazia um suspense sobre isso. Nos últimos meses ele proibiu Charlotte de ir até lá, queria que fosse uma surpresa...

— É uma linda casa... Não conheço sua irmã, mas acredito que ela gostaria de lá.

— Talvez ela nunca veja essa casa.

— Sim, é possível.

— Então você ficou lá escondida...

— Jack tinha a intenção de contar que sabia onde eu estava muito antes, mas eu lhe pedi que esperasse.

— Esperasse o quê?

— Que eu estivesse preparada para te encontrar de novo.

— E ele concordou fácil assim?

— Com certeza não deve ter sido fácil pra ele, mas no fim chegamos a esse acordo.

— Acordo que ele quebrou quando a trouxe para cá.

— Você já tinha descoberto, não é? — Eu me vejo defendendo Jack. — Parece estranho lhe dizer isso, mas Jack foi... diferente do que eu imaginava.

— Diferente como?

— Toda vez que nos encontramos antes ele estava sempre cheio de raiva, de rancor e atacando...

— Ele nem sempre foi assim. Charlotte e sua fuga o transformaram nessa pessoa.

— Ele me levou até aquela instituição para crianças carentes.

— Sério? — Alex parece genuinamente surpreso.

— Foi... surpreendente. Não imaginava que Jack tivesse esse lado.

— Jack é mesmo surpreendente... — Ele estende a mão e toca minha franja recente. — E esse cabelo novo?

— Ideia de Jack, eu estava... — hesito em dizer que tinha ficado perturbada quando Jack me levou até a sala da psicóloga.

— Estava... — Alex incentiva.

— Não muito bem. E ele disse que um corte me faria bem, porque Charlotte dizia isso.

— Sim, parece bem algo que Charlotte diria.

— Enfim, eu também ajudei Jack em seu trabalho, como fazia com você. Assim, foi suportável... passar o tempo.

Seus dedos tocam meu braço, sobre meus cortes.

Uma sombra nubla seu olhar.

— Jack sabe sobre isso. Ele me disse que te impediu...

— Sim.

— Eu tenho certo ciúme...

— Nada aconteceu.

— Eu sei. Jack é apaixonado demais por Charlotte.

— Então por quê?...

— Porque ele ficou com você essa semana, porque parece que ele alcançou algo dentro de você que não consigo...

— Jack é diferente... ele... era um desconhecido, digamos assim. Alguém que não me conhecia. Alguém de quem eu não precisava me esconder ou... fugir. Ele apenas estava presente, com sua impaciência, suas ordens às vezes ríspidas, sem... sem se preocupar muito com meus sentimentos. Ele era um cara prático e estava ali, e era só isso que eu precisava. E depois... depois eu o conheci melhor e acho que ele talvez se pareça comigo de certa forma.

— Por ele ser órfão?

Sacudo a cabeça em afirmativa.

— Então acha que conhece Jack agora?

— Não... Mas também sinto que não conheço você.

— Você sabe tudo sobre mim...

— Não. Eu achei que conhecia o Alex Black. Mas... agora não sei mais de nada.

— O que quer saber? Pergunte o que quiser, eu lhe contarei.

Hesito, incerta.

Eu quero mesmo saber?

Sim, eu quero, dou-me conta.

— Você já se apaixonou? — pergunto baixinho.

— Eu achei que sim. Algumas vezes. Você amava Tyler? — devolve a pergunta sem que eu possa antever.

Mas aquela pergunta é fácil de responder.

— Não.

Eu nunca tive essa ilusão com Tyler. Ele era apena só um cara que tinha drogas fáceis e que eu achei que podia ao menos fingir que era uma adolescente normal vivendo a liberdade.

— Amava Elliott?

— Achei que amava — sussurro, sentindo algo se remexer perto demais de feridas que não deveriam ser cutucadas. — Podemos não falar sobre isso?

— Sim, podemos.

Então decido falar sobre algo que tinha martelado na minha mente há algum tempo.

— Você amou Aria?

Alex parece surpreso com a pergunta, seu olhar desvia do meu por um momento, como se ele estivesse com o pensamento longe. Em um lugar não muito agradável.

— Achei que amava — responde por fim, confirmando minhas suspeitas de que o relacionamento dele com Aria foi mais do que fraternal. Pelo menos em algum momento.

— O que aconteceu?

— Aria era só minha irmã, até que um dia eu me vi atraído por ela.

— E ela por você — completo.

— Sim. Éramos adolescentes, faz mais de dez anos isso. Nós nos beijávamos escondidos e o que eu posso dizer, eu era um garoto cheio de hormônios e Aria era linda e parecia sentir o mesmo. Querer o mesmo. — Sua voz adquire um tom duro. — Porém, no dia em que combinamos de transar, quando fui ao seu quarto ela estava com Sebastian.

— Oh...

— Eu fiquei muito bravo. Nós discutimos e... — ele para, como se não quisesse continuar — enfim, acabou aí.

Parece que tem mais coisa naquela história, mas do mesmo jeito que não quero que Alex me force a contar o que é doloroso para mim, não quero que ele se sinta coagido a dizer o que não quer.

Disso eu entendo muito bem.

Então está explicada a raiva de Aria, porque ela estava sempre seguindo Alex, mesmo anos se passando e ela estando casada.

Ela ainda amava Alex.

Será que Alex sabe disso?

E por que ela tinha transando com Sebastian e estragado tudo com Alex? Será que serei como Aria em um futuro não muito distante?

Sofrendo para sempre por alguém que não consegue ter?

— Não quero falar de Aria — Alex se aproxima e me abraça, talvez antecipando que vou lhe perguntar se ele tem noção que Aria ainda o ama e se ele sabe por que ela estragou tudo no passado.

Porém, também não quero falar da irmã de Alex.

Fecho os olhos, bocejando enquanto sinto seus lábios em meus cabelos, seus braços a minha volta.

Como se nunca mais fosse soltar.

Sinto o sono se aproximando e por mais que tente ficar acordada, adormeço lamentando que talvez esta seja a última vez que Alex me segura assim.

Que Will me segura assim.

 

Alex

 

Eu quase não dormi naquela noite, velando o sono tranquilo de Nina.

Ainda parece incrível que ela esteja aqui, em meus braços, depois de uma semana de inferno.

Porém, não me sinto tranquilo.

Ainda tem algo sombrio rondando a nossa volta, como um incêndio que queimou tudo, mas deixou para trás a fumaça escura.

Nina está aqui agora, mas sinto como se fosse quase uma aparição, um espectro que vai desaparecer a qualquer momento.

Só que não posso deixar Nina partir de novo, mesmo sabendo que não cabe a mim obrigá-la.

Ela é adulta e capaz de decidir seu próprio destino.

“Mas o que dizer de suas péssimas decisões com caras como o Professor Elliot Burns ou Tyler”, uma voz esbraveja dentro de mim.

Nina era apenas uma adolescente quando se envolveu com Tyler. Era de se esperar que ela fizesse algumas escolhas equivocadas tão nova.

Muitos de nós temos alguns erros vergonhosos jogados embaixo do tapete.

E ela também era apenas uma universitária quando se envolveu com aquele professor que, como disse Lucy, era um predador. Alguém que se aproveitou dela. De sua fragilidade emocional.

Todavia, a Nina depois daqueles dois homens tinha se tornado a Nina que eu conheci agora.

Fechada para o mundo.

Com feridas causadas por suas próprias mãos no afã de abafar uma dor interna que ela não conseguia lidar. Envolvendo-se com homens como Oliver, a quem ela fez coisas sem ter a menor vontade porque achava que tinha que fazer. Como se ela tivesse provocado.

E depois precisasse ser punida.

Uma punição que ela buscou em mim.

Então por mais que queira deixar Nina decidir se quer ir embora, conferindo-lhe a liberdade como direito, pois não quero ser um daqueles caras que a faz sentir que precisa ficar porque eu quero ou que ela se sinta culpada — como já externou algumas vezes — por situações que foram minhas escolhas e não porque ela arquitetou, tornando-se assim culpada e digna de ser punida, hesito em acreditar que ela ficará bem sozinha.

Eu ainda não sei a extensão das feridas emocionais de Nina, mas é certo que ela precisa pelo menos tentar se curar antes que eu possa permitir que ela siga sozinha se assim quiser.

Mesmo que isso quebre meu coração em mil pedaços.

Quando o dia amanhece, ainda me encontro sem saber como agir agora.

Como fazer Nina ficar, nem que seja para ajudá-la a se curar, mesmo que eu não faça ideia de como, já que ela se fechou em segredos.

Saio da cama e tomo um banho me vestindo e quando estou pensando em acordar Nina, alguém bate na porta do quarto.

— Alex, eu sei que está aí!

Solto um palavrão baixo, abrindo a porta antes que Charlotte a ponha abaixo.

— Pode fazer menos escândalo?

Ela passa por mim, como um furacão, entrando na sala da suíte sem ser convidada.

Seu cabelo loiro sempre impecável hoje está preso em um coque desleixado e ela não usa maquiagem, que vindo de Charlotte é algo muito raro.

Está usando uma calça jeans e um top branco simples, mas a bolsa que carrega é sua amada Birkin, a quem Jack um dia apelidou de bebê.

— Como pôde dizer ao Jack onde eu estava? — esbraveja, jogando sua bebê no sofá e me encarando enfurecida.

— Não podia se esconder pra sempre, Charlotte.

— Eu ia me encontrar com o Jack quando eu estivesse pronta e...

— Faz um ano que você diz isso, sinceramente, estou de saco cheio dessa sua fuga sem sentido.

— Não é sem sentido!

— Você largou o Jack no altar. No dia do casamento, acha que há algum sentido nisso? E ainda fugiu para não o encarar e lhe dar explicação!

— Isso é problema meu! Eu só queria que você mantivesse meu paradeiro em segredo! Era pedir muito?

— Sinceramente, era! E mesmo assim eu fiz, por você, porque era minha irmã e porque nunca vi você como naquela tarde em que me disse que se casar seria um erro e que precisava de um tempo. Ajudei você a se esconder, mantive seu paradeiro em segredo, mesmo perdendo um amigo. Acreditei que se queria isso é porque tinha um motivo forte. Acreditei que o Jack tinha feito algo imperdoável. Só que se nega a dizer o que aconteceu então fica difícil continuar te apoiando.

— Lindo seu discurso, mas acha que Jack não me contou que informou onde eu estava em troca dele te devolver a tal de Nina?

— Sim, foi exatamente isso que aconteceu.

— Então Aria tem razão? Essa Nina é mesmo uma garota que virou sua cabeça?

— Não sei que merda Aria te contou...

— Ela me contou uma história bizarra sobre irmã de criação por quem você estava apaixonado e fazendo um monte de merda e acho que acredito nela agora!

— Aria que só fala merda!

— Jack me contou a mesma história.

— Jack disse que eu estava fazendo merda?

— Não. Disse que só quando você passou pelo mesmo que ele que entendeu. É isso?

— Basicamente isso sim. Mas não deve perder seu tempo se preocupando comigo e Nina quando tem que resolver sua história com Jack. Então conversaram ontem? Você disse finalmente por que foi embora?

Ela anda até a janela, noto seus ombros tensos.

— Jack está furioso comigo...

— Achou que ele estaria feliz?

Ela se vira pra mim de novo.

— Eu não quero lidar com o Jack... — Há desespero em sua voz. — Eu fugi porque não queria lidar antes e não quero lidar agora!

— Isso é problema seu!

— Como pode ser tão frio assim?

— Está indignada? Eu fiz demais por você, Charlotte! Agora chega! Está sozinha para resolver suas questões com Jack como bem entender. Quer continuar sendo imatura e fugir de novo? Faça isso, mas não me envolva no meio! Está por conta própria agora.

Seus olhos marejam e por um momento, sinto culpa.

Charlotte sabe como me dobrar. Como dobrar a todos nós.

O único que ela não dobra é Jack. E acredito que foi por isso que ela fugiu sem querer encarar sabe Deus o que aconteceu.

Porém, agora eu tenho problemas bem maiores pelos quais estou lutando e não posso mais ficar entre Charlotte e Jack.

— Então está indo embora?

— Sim, vou voltar a Chicago com Nina.

— E você e essa Nina...

— Não sei. Mas não é problema seu. — Minha voz está mais dura do que pretendi, mas Charlotte precisa saber que estou falando sério desta vez.

Ela sacode a cabeça, enxugando uma lágrima fortuita. Noto que tem olheiras embaixo dos seus olhos muito azuis.

— Sei que tem algo aí que não quer dividir, mas acho que precisa contar ao Jack, mesmo que isso seja o fim definitivo, ele merece saber.

Ela sacode a cabeça em negativa.

Charlotte sempre foi linda e mimada. Uma garota que teve tudo. Nunca passou pela minha cabeça que houvesse alguma coisa que a atormenta a ponto de desistir de um casamento com um homem que eu achava que ela amava.

E que não restava dúvida que a amava mais que tudo.

Tanto que revirou o mundo até poder encontrá-la.

Queria ficar e ajudar, mas em um ano ela apenas se escondeu, então acho que não posso fazer mais nada.

Que Jack tenha mais sucesso do que eu em arrancar a verdade de Charlotte.

Se é que tinha alguma coisa mais ali do que capricho.

— Eu não sei o que fazer. Sabe que não vai ser fácil me livrar do Jack agora...

— É isso mesmo que quer? Se livrar do Jack?

Ela dá de ombros, com aquela expressão emburrada que eu conheço bem. Quando ela queria algo, mas fingia não querer, como quando Christopher se negou a construir uma casa de árvore aos sete anos, porque ela teve notas ruins na escola. “Eu não quero essa casa estúpida, mesmo.”, ela tinha resmungado, com os lábios tremendo e chorou durante três dias até que eu consegui convencer Christopher a manter a promessa.

— Aria disse que sua mãe está muito brava com essa história. — Ela muda de assunto.

— Sim, e também não me importo — minto.

— E não sei se Aria te contou que Nora não estava viajando com amigos quando me encontrou em Londres.

— Como assim?

— Ela tentou me enrolar com isso, mas eu vi uns papéis no quarto dela, quer dizer, no quarto em que ficou hospedada na casa de Tess.

Tess era a amiga de Charlotte, e era na casa dela que Charlotte tinha ficado durante todo esse ano.

— Que tipo de papéis.

— Eu não entendi muito bem e ela não quis me explicar, mas eram exames médicos.

— Exames médicos?

— Sim, e ela acabou confessando que estava em Londres para ver um especialista.

— Minha mãe está doente?

— Eu não sei, mas ela não teria viajado a Londres e mentido para ver um especialista se não tivesse ao menos a suspeita de algo sério não?

— Sim, acho que tem razão, mas ela não me falou nada.

— Bem, Aria falou que vocês não têm se dado muito bem ultimamente.

— Sim. — Desde a morte de Christopher quando descobri a verdade sobre meu pai que eu vinha me afastando de Nora cada vez mais.

— Eu vou embora. — Charlotte pega a bolsa, o que quer dizer que já está de partida, para meu alívio.

Abro a porta e antes que ela se vá, eu a abraço.

— Vai dar tudo certo — encorajo.

— As coisas pararam de dar certo pra mim há muito tempo e ninguém nem sequer percebeu.

E com essas palavras enigmáticas, ela se vai.

Fecho a porta e me encosto nela, lembrando do que disse sobre Nora.

Será mesmo que ela está doente?

— Alex? — Nina aparece na porta do quarto da suíte, está vestindo apenas uma camiseta e os cabelos desgrenhados.

Perco o fôlego com sua beleza por um instante.

Desejo vê-la acordar assim pra sempre.

Deus, como posso deixá-la ir?

Avanço em sua direção e enquadro seu rosto, ela ergue os olhos verdes pesados de sono.

— Não sei se deixarei você ir.

— Não sei se consigo ir... — sussurra baixinho.

— Não quebre meu coração de novo...

— Não sabe que é isso que eu faço? — Ela abre um sorriso triste. Quase irônico, quando se desprende de minhas mãos.

Eu a deixo ir.

Sentindo que de certa forma, não importa se meu coração vai se quebrar no processo de curar o coração de Nina.

E ali, observando ela se afastar, faço outra promessa. Enquanto viver, eu farei qualquer sacrifício para consertar aquela menina quebrada e livrá-la da escuridão.

 

Antes

 

Amanda segurou minha mão quando saímos juntas do restaurante, os garotos atrás de nós, rindo de alguma piada particular.

— Estou tão feliz! — Ela apertou meus dedos, lançando um olhar para trás. — Nosso primeiro baile pode acreditar?

— Eu acho que estou meio nervosa... — sussurrei, embora sentisse também a mesma excitação ansiosa da minha amiga.

— Não vai me dizer que está com medo por causa de David?

— Ele vai ficar furioso se descobrir...

— David é um babaca!

— Não fale assim... Ele só se preocupa. Como todos os pais.

— Ele nem é seu pai! E está certa de ter vindo. Você está linda e vamos arrasar!

Olhei para mim mesma, usando um vestido com uma saia ampla de tule que Amanda pedira para a mãe dela me comprar.

Não queria lembrar que disse a David que ia dormir cedo para pular a janela, onde Alan me encontrou e me levou para seu carro.

Aquela era a noite mais excitante da minha vida. Sentia como se tudo fosse possível. Alan sorrindo para mim, segurando minha mão no carro o tempo todo até que chegamos ao restaurante para jantar com Amanda e Josh antes de irmos para o ginásio da escola, onde seria o baile.

— Ei, gata, vamos? — Josh chamou Amanda indo em direção ao próprio carro.

— A gente se vê na escola! — Amanda me abraçou. — O Alan está louco por você! Não me admira se vocês atrasarem!

— Amanda!

— Acho que eu e Josh vamos nos atrasar também! Tomar um atalho, quem sabe... Aproveita! — Ela piscou e se afastou.

Entrei no carro com Alan, sentindo um frio na barriga se intensificar quando ele segurou minha mão e sorriu.

— O que a Amanda disse?

Mordi os lábios, timidamente.

— Ela disse que ela e Josh vão... tomar um atalho algo assim.

Josh apertou minha mão e levou aos lábios.

— Eu adoraria fazer o mesmo com você... Está com pressa?

Senti meu coração disparado no peito, um misto de medo e ansiedade.

Quando eu teria uma oportunidade como essa de novo?

Sem pensar muito no que estava fazendo sacudi a cabeça em negativa.

 

— Alan, acho que precisamos parar... — Tentei empurrar Alan que estava em cima de mim no banco traseiro do seu carro.

Havíamos mesmo tomado um atalho e Alan parou o carro em um local a esmo, não demorando para que estivéssemos nos beijando. No começo, eu não tive a menor vontade de parar. Nunca tinha ficado com um garoto assim, e estava curiosa para saber como era. Porém, Alan nos levou para o banco de trás e deitou em cima de mim, enfiando a mão embaixo do meu vestido. E de repente senti que talvez não estivesse preparada para tanto.

— Mas a gente nem começou... — ele murmurou, beijando meu pescoço, a mão descendo para minha calcinha.

O medo suplantou a vontade de que ele continuasse e eu o empurrei com mais força.

Alan me encarou confuso.

— Está falando sério? Quer mesmo parar?

— Sim, por favor...

Ele xingou e se afastou.

Eu me sentei ao seu lado, arrumando o vestido.

— Achei que estava a fim, Nina.

— Eu estava mas... Eu nunca fiz isso. Não sei se quero fazer agora.

— Ah entendi... — ele sorriu, já não parecendo nervoso, enquanto se aproximava de novo — mas não precisamos ir até o fim... Não hoje.

Fechei os olhos, me deixando levar um pouco de novo quando ele me beijou.

— E a gente não ia para o baile?

— A gente vai... mas antes podemos nos divertir um pouco...

E eu não coloquei resistência dessa vez, mesmo não tendo muita certeza de que deveria mesmo deixar que ele enfiasse a mão dentro da minha calcinha ou que pedisse que eu acariciasse do mesmo jeito.

 

Nós chegamos muito atrasados ao baile e eu não via a hora de encontrar Amanda e contar a ela o que tinha acontecido.

Porém, quando chegamos em frente ao prédio da escola, tomei um susto ao ver David me esperando.

Soltei a mão de Alan imediatamente, gelando por dentro enquanto David se aproximava furioso.

— David, eu sinto muito, eu...

Sem falar nada ele segurou meu braço e saiu me arrastando pelo estacionamento.

Alan se recuperou do susto segundos depois e foi atrás de nós.

— Ei, deixa ela...

David virou apenas para lançar um olhar ameaçador a Alan.

— Você fique longe dela!

— Nina, quem é esse cara? — Alan ainda perguntava enquanto David me jogava dentro do carro e dava a volta para sentar no banco do motorista.

— É o David, meu... padrinho... — sussurrei, as lágrimas me cegando. — desculpa, Alan, desculpa...

David saiu cantando pneu e eu chorei o caminho inteiro, pensando na noite que tinha começado tão emocionante e terminado daquele jeito.

Quando chegamos em casa, David só esperou fechar a porta para me dar um tapa no rosto.

Eu me encolhi chorando, sentindo-me horrível por ter deixado David bravo comigo.

— Eu não consigo acreditar que fugiu, Nina!

— Me desculpe, eu... eu só queria ir ao baile, eu não queria que ficasse bravo...

— Não queria que eu ficasse bravo e foge com um garoto? Há quanto tempo tem visto esse menino? Responde!

Meus lábios tremeram, enquanto dava um passo atrás com medo de que ele me batesse de novo.

— Ele era meu par para o baile...

— Sua amiga Amanda... Ela disse que vocês saíram juntos do restaurante para ir ao baile, mas eu fiquei mais de uma hora esperando...

Enrubesci, desviando o olhar e Davi segurou meu braço.

— Olhe pra mim.

Obedeci.

— O que foi que aconteceu?

— Nada...

— Eu sei que está mentindo!

— Ele parou o carro em um lugar e a gente se beijou.

— O que mais?

Sacudi a cabeça em negativa e o aperto de David piorou.

— Você vai me contar tudo o que aconteceu, ou vou ter que arrancar de você?

— David, por favor...

— Você me decepciona muito, Nina! Sabe como fiquei preocupado quando não a vi no quarto? Tive que ligar para a mãe da Amanda e pedir que me contasse onde estavam! Achei que podia ter sido sequestrada ou coisa pior! — Ele tocou meu rosto com um olhar desesperado. — Quem vai proteger você se não me conta nem aonde vai? Se mente para mim? Para sair com esses garotos que só querem uma coisa de você?

— Sinto muito, eu não queria preocupar você...

— Então nunca mais faça o que fez hoje! — Sua voz está quase suave agora, quando levanta meu queixo e me faz encará-lo. — Me conte o que aconteceu. Sem mentir. Sabe que pode confiar qualquer coisa a mim, não é?

— Nos beijamos e ele queria... queria que fôssemos até o fim, mas eu não estava pronta então ele... — Estremeço de vergonha. — colocou a mão na minha calcinha e eu... eu o toquei do mesmo jeito...

O tapa forte no meu rosto me pegou desprevenida e eu caí para trás, sem ar.

No instante seguinte, David estava me erguendo, me abraçando, e pedindo desculpa, enquanto eu não conseguia parar de tremer.

— Eu não quero fazer isso, Nina... Mas só de pensar naquele garoto tocando em você... Nunca mais ninguém vai te tocar, entendeu? — Ele me abraçou forte. Seus dedos marcando minha pele, enquanto balbuciava desculpas. — Eu sinto muito, não queria te bater, mas você me obrigou... Se não tivesse me desobedecido... Eu fico fora de mim...

— Sinto muito, David, eu nunca mais vou fazer isso...

— Sim, nunca mais. — Ele me fez encará-lo. — Você é bonita demais, Nina — Seus dedos acariciaram minha bochecha, abaixei o rosto um pouco incomodada com a intensidade do seu olhar. — Não deve deixar que aquele garoto ponha as mãos em você. Não pode provocá-lo... Homens são monstros quando provocados...

De repente, senti como se os braços de David a minha volta fosse uma prisão. Não quis estar ali. E ao mesmo tempo senti culpa, porque os braços de David eram o único lugar seguro do mundo.

Sem David, para onde eu iria?

Eu não tinha ninguém.

E ele tinha razão. Eu provoquei Alan. Eu quis ficar com ele daquele jeito. E por isso David estava bravo comigo.

Eu era uma pessoa ruim e se David tinha me batido era porque eu mereci.

David finalmente me soltou e eu fui tomar banho. Mas nem depois de toda a água e sabão do mundo eu me senti limpa.

Quando passei pelo corredor, David estava ao pé da escada, segurando uma garrafa de whisky quase vazia.

Senti pena, por ele precisar tanto beber daquele jeito.

Eu me perguntei se a culpa dele estar assim hoje era minha.

Seu olhar me acompanhou de uma forma que, naquele momento, eu não entendi porque me incomodava. Ou talvez eu entendesse, mas não queria nomear.

Entrei no meu quarto e me deitei.

Em algum momento da noite, quando David abriu minha porta e perguntou se podia entrar para conversar, eu apenas aceitei que sim.

 


Capítulo 7

 

Nina

 

Sinto-me entorpecida durante toda a manhã, enquanto Alex me leva para tomar café no restaurante do hotel e depois quando vamos para o aeroporto, esperar até que possamos pegar um voo, desta vez comercial, para Chicago.

Assim como eu, Alex também está quieto, guardando seus próprios pensamentos, embora suas mãos estivessem sempre em mim, em pequenos toques, gestos de carinho e cuidado, seu olhar me acompanhando com se temesse que eu desaparecesse com o vento. E o tempo todo tento lembrar que o fim está próximo, porque não há como aquela história dar certo.

Alex não faz ideia de que estávamos fadados ao fracasso desde o nosso primeiro encontro.

Será que ele sente que há uma tristeza no ar, que cada gesto parece uma despedida?

E quanto mais o voo se aproxima da fria e chuvosa Chicago, mais sinto meu coração escurecer de novo, quando nem tinha me dado conta de que apenas naquela noite ao seu lado, Alex havia pincelado cores vivas em toda sua superfície.

— O que vai fazer? — Escuto sua voz ao meu lado em algum momento.

A pergunta de Alex me pega de surpresa, mas é algo que eu devia ter questionado a mim mesma.

O que vou fazer agora?

— Eu não sei. — Contemplo nossas mãos unidas. Estávamos assim o tempo inteiro? Nem tinha percebido. Como se fosse natural como respirar. — Está tudo mudando... Se desintegrando. Sinto que nada mais será o mesmo agora. Não sei para onde ir ou o que fazer... O que quero ser. — Termino a frase quase num sussurro, como se não tivesse direito de ansiar por nada.

Sinto-me esquisita de estar fazendo aquele tipo de questionamento.

A Nina de antes apenas existia. Tentava passar despercebida pelo mundo, carregando o fardo de uma culpa que ficava cada vez mais pesada de carregar.

Eu tinha me conformado de que essa era a vida reservada a mim. Uma sucessão de dias escuros.

Então, aquele cara passou correndo por mim e eu nem sabia quem ele era, mas já sentia, mesmo sem perceber, que algo estava mudando irreversivelmente.

Agora, ele está aqui, segurando minha mão, dizendo com todo seu corpo que eu serei bem-vinda. Que não estou mais sozinha.

E uma parte de mim quer aceitar aquele convite, quer deixar sua mão segurar a minha pra sempre.

Mas há um passado entre nós que não pode ser apagado. Está marcado em cada corte na minha pele, em cada batida dolorida do meu coração, em cada lembrança que eu enterrei junto com...

— Você pode ser o quiser — Alex diz suavemente.

— Eu defini quem eu sou há muito tempo.

— Então quem é você?

Desvio o olhar para a janela. Chicago surgindo por entre as nuvens. Como posso dizer a Alex quem eu realmente sou?

Sou como uma casa suja que já foi limpa um dia, mas que agora é impossível remover todas as camadas de sujeira para ver o que restou embaixo.

— Você merece ser o que quiser, Nina.

Volto meu rosto em sua direção, sinto vontade de chorar com a fé que brilha em seus olhos. Fé em mim. Fé em nós.

— Acha possível? — murmuro baixinho, com medo de expressar aquele desejo escondido até para mim mesma. Para a parte de mim que sabe que estou tentando alcançar o impossível.

— Nunca quis ser alguém diferente? Nunca teve sonhos, aspirações?

Sacudi a cabeça em negativa.

Antes que Alex possa dizer qualquer coisa a voz da comissária avisa que estaremos pousando em breve e encerramos nossa conversa.

 

Entramos no carro dirigido pelo motorista de Alex que veio nos buscar e não sei se me sinto aliviada ou decepcionada quando Alex lhe passa o endereço da minha casa.

Então simples assim, nosso tempo está se esgotando.

Sei que não há como ter outro desfecho, mas sinto que há uma parte de mim começando uma pequena rebelião em meu íntimo.

Quando o carro para em frente ao meu prédio, está anoitecendo.

Não o impeço de subir comigo, até anseio por aqueles últimos momentos roubados em sua presença.

Em frente a minha porta eu me viro e antes que me despeça, a porta do apartamento de Lucy se abre e ela surge sorridente.

— Ei, olha a fugitiva voltou ao lar!

— Oi Lucy — Alex a cumprimenta com um aceno. — Sim, eu lhe disse que ia trazê-la de volta.

— Disse mesmo... — Ela se vira para mim, me estudando com um olhar preocupado, embora sua postura e palavras sejam brincalhonas. — Tudo bem com você?

— Sim, quer dizer... — Dou de ombros. Óbvio que não está tudo bem.

— Pelo menos está viva! É algo para se comemorar! Ei, estou indo para uma festa do meu trabalho na Green Street, por que não se juntam a mim? Que tal?

Alex olha para mim como se indagando se quero ir.

Bem, eu não faço ideia se quero ir e Alex percebe minha confusão, e decide responder por mim.

— Acho que seria ótimo.

— Legal! — Lucy volta para dentro do seu apartamento. — Nos encontramos daqui uma hora?

— Perfeito. Meu motorista nos leva.

— Gostei disso, posso beber até cair então, já que tenho carona.

Ainda escutamos sua risada até que a porta esteja fechada.

Alex me fita com um meio sorriso.

— Se não quiser, tudo bem.

— Não, eu... Não sou muito de sair e ir para bar e confraternizar, mas... — suspiro, e ele entende.

Aceitar ir com Alex e Lucy naquele bar é esticar mais o tempo que temos juntos.

Abro minha porta e Alex entra atrás de mim, seus olhos correndo por minha casa mal-ajeitada.

Deixo meu olhar vagar em volta também, não a reconhecendo como minha. Nada do que tem ali me pertence de verdade, nunca criei uma relação afetiva com meus móveis, objetos, plantas.

Era só um lugar para eu dormir, um teto sobre minha cabeça.

Agora, eu a vejo com outros olhos. Parece desolador.

— Mora há muito tempo aqui?

— Uns três anos, desde que larguei a faculdade.

— Não deveria ter largado a faculdade faltando apenas tão pouco para terminar.

Mordo os lábios, sentindo-me embaraçada por perceber que agora ele sabe todos meus motivos.

— Você sabe o que aconteceu...

Alex não parece muito feliz ao me encarar de volta.

— Sim, eu sei.

Fico com medo que Alex queira falar sobre Elliot e decido fugir do assunto.

— Vou trocar de roupa e... me arrumar pra sair.

— Ok, eu te espero aqui.

Saio da sala e no meu quarto tiro a roupa e decido tomar um banho rápido e depois coloco um vestido preto de manga comprida e saltos. Prendo meu cabelo e faço uma maquiagem mais pesada do que de costume.

Aprecio minha imagem no espelho, me sentindo bonita.

E pela primeira vez em muito tempo, não acho que seja uma coisa horrível.

Alex me acha bonita e eu gosto disso. E quero que hoje, pelo menos por aquelas últimas horas, ele veja essa Nina.

Quero que tente se lembrar assim de mim.

Uma amostra do que eu poderia ter sido se não tivesse sido roubada de mim mesma.

Quando saio do quarto me surpreendo ao encontrar Lucy ali conversando com Alex.

— Finalmente, pronta! — Lucy sorri se levantando e Alex faz o mesmo. — E aí vamos?

Ela pega o casaco e abre a porta, saindo na frente.

Alex vem até mim e segura minha mão.

— Você está bonita.

Sinto corar de satisfação.

— O que estava conversando com a Lucy? — questiono enquanto colocamos nossos casacos.

— Lucy me ajudou a te procurar.

— Oh... — Aquilo era surpreendente.

— Ela me levou até Tyler e também foi comigo até o Professor Burns. Lucy é uma ótima pessoa — acrescenta quando saímos do apartamento.

— Sim, acho que ela é.

— Ela disse que tenta ser sua amiga, mas que você parece meio... arredia.

Abaixo o olhar, sem graça, quando entramos no elevador.

— Eu falei... Não sou muito sociável.

— Por quê?

— Porque eu tenho medo.

— Do quê?

— Você não entenderia... — murmuro ansiosa.

Sem aviso, Alex toca minha nuca e me puxa para perto, beijando meus lábios até que eu sinta minhas pernas bambas.

— Não há nada que eu queira mais do que te entender, mas por ora, vamos apenas nos divertir, ok? Vamos esquecer o passado, o futuro, apenas... ser duas pessoas em um encontro.

— Um encontro?

Ele sorri.

Tão lindo que faz meu coração doer enquanto puxa minha mão para fora do elevador.

— Acho que nunca tivemos um.

 

Lucy tagarela o tempo inteiro sobre seus colegas de trabalho até que chegamos ao bar, que está apinhado de gente, há música alta, gente bonita tomando cerveja e mesas de bilhar.

Sinto-me um pouco tonta, mas segura enquanto Alex mantém minha mão presa entre a dele e Lucy vai nos apresentando seus amigos.

A timidez habitual me faz ficar quieta e apenas acenar e sorrir para não acharem que sou esquisita, mas Alex parece curtir tudo aquilo e não demora para uma cerveja estar na minha mão e Alex entrar em uma conversa sobre baseball.

Lucy me puxa para um canto.

— E aí, me conta onde diabos estava metida...

— Alex não contou?

— Ele me disse que estava na casa de um tal de Jack White... que foi noivo da irmã dele e que queria se vingar ou sei lá, achei tudo parecendo história de novela!

Explico a Lucy sobre Jack e Charlotte ou pelo menos o que eu sei e como tinha ido parar na casa de Jack.

— Eu fiquei tão preocupada quando a vi entrando naquele carro! Pensei que era algum desses homens safados com quem se envolveu... Opa! Desculpa — Ela aperta meu braço, quando vê a expressão incomodada em meu rosto. — Só... Bem, Alex deve ter te falado que tentamos seguir seu rastro. Espero que não fique brava por isso, a gente só gosta muito de você e se preocupa.

Abaixo o olhar, para sua mão segurando meu braço, seu olhar realmente apreensivo e caloroso.

Alex tem razão. Lucy é mesmo uma ótima pessoa.

Na minha ânsia de me afastar de tudo e de todos, tinha a afastado com unhas e dentes, mas talvez eu pudesse abrir uma exceção para sua amizade.

Será que eu seria capaz de tanto? Sinto meu estômago revirando de medo, mas tem algo mais ali. Uma expectativa.

Eu quero ser amiga de Lucy.

Quero ao menos tentar.

De repente, sinto-me observada e levanto a cabeça, Alex está há uns dois metros de distância, mas seu olhar captura o meu e ele pisca pra mim, fazendo mil borboletas sobrevoarem em meu estômago.

Ele disse que estávamos em um encontro. Deus, há quanto tempo eu não faço isso?

Eu tinha saído com Oliver, mas nem se compara a estar na mesma situação com Alex.

— Este cara está muito apaixonado por você.

Volto a atenção para Lucy e seu sorriso cheio de malícia.

— Seria mais fácil se não estivesse...

— Por quê?

— Porque isso aqui... hoje... é uma despedida.

— Mas você gosta dele não gosta?

— Mais do que eu queria gostar, mas...

— Mas o quê?

Dou de ombros, tomando minha cerveja.

Como posso explicar a Lucy algo que eu não digo em voz alta nem a mim mesma?

— Me desculpe, te deixei triste... esquece minhas perguntas! Vamos nos divertir.

Ela me puxa para uma das mesas de bilhar.

— Não sei jogar...

— Para, é fácil — ela me explica as regras básicas e me dá um taco. — Vai tenta!

Eu me posiciono e a primeira tacada é uma vergonha.

Lucy gargalha e junto com sua risada escuto a risada de Alex atrás de mim.

— Você não devia rir de mim...

Ele coloca a cerveja em um balcão e pega meu taco.

— Então vou te ensinar a não passar vergonha.

— Ei, não é justo! — Lucy reclama quando Alex se posiciona atrás de mim e me instrui como acertar a tacada direito agora.

Como um milagre consigo encaçapar duas bolas e comemoro.

Alex comemora junto e me beija.

— Roubando assim é fácil! — Lucy resmunga, fazendo sua jogada e Alex faz todas as tacadas junto comigo e em pouco tempo ganhamos de Lucy.

— Ok, vocês venceram! Eu pago uma rodada de cerveja!

E é quando estamos brindando, batendo nossas garrafas e eu digo que quero jogar de novo, desta vez sem a ajuda de Alex, que percebo que estou rindo. Que estou me divertindo.

Estou presa naquele momento presente, sem pensar no passado ou no futuro, apenas rindo e desejando que a noite não acabe.

Que Alex continue a rir comigo, seus dedos acariciando meu braço, seus lábios em meus cabelos, sua voz me encorajando a vencer Lucy.

Talvez seja o álcool agindo no meu sistema, me deixando leve como nunca fui antes.

Ou talvez seja Alex.

Só sei que sinto um tipo de felicidade que nunca senti.

Ou não me lembro.

 

Em algum momento, Alex segura minha mão e nos despedimos de Lucy, que preferiu ficar com seus amigos.

Entramos no carro e Alex segura minha mão, seus olhos brilhando na semiescuridão. Sinto um arrepio de antecipação. Minha mente está rodando e ainda sinto com se estivesse drogada daquela felicidade inédita para mim.

— Quer que eu te leve para sua casa? — ele indaga e aceno em negativa sem nem pensar no que estou fazendo.

Ou talvez eu saiba.

Viver o presente. É tudo o que eu almejo neste momento.

Alex sorri sem dizer nada e me vejo sorrindo de volta.

 

Quando chegamos ao seu prédio, estou levemente trôpega e Alex ri, ao me segurar no elevador.

— Você está bêbada?

— Acho que sim.

— Devo me sentir culpado por estar pensando em foder com você mesmo assim?

Suas palavras cruas fazem uma onda de calor inundar o meio das minhas coxas e sinto-me mais fraca ainda.

— Não... porque eu também quero.

Alex toca meus lábios.

Seu olhar intenso capturando o meu.

— O que você quer...

— Eu... — Engulo em seco, minha respiração falhando, enquanto sinto-me deslizando para aquele lugar onde só há Alex e o pulsar do desejo que ele desperta dentro de mim.

— Diga... quero ouvir você...

É uma ordem. E faz meu clitóris pulsar em expectativa.

— Que me foda com força.

Alex geme e me beija, a língua enroscando na minha e fazendo um estrago em meu autocontrole.

Eu me agarro a sua nuca e deixo meu quadril ondular contra o dele quando suas mãos me agarram ali e esfrega sua ereção em mim.

Ah sim.

É isso o que eu quero.

Mal sinto quando saímos do elevador e Alex só para de me beijar para digitar o código para entrarmos em seu apartamento. E quando estamos dentro, finalmente, ele bate a porta e volta a me beijar enquanto deslizamos pelo hall até a cozinha iluminada apenas pela luz da cidade.

— Droga, não posso esperar... — grunhe quando me coloca sobre o balcão, as mãos se infiltrando embaixo do meu vestido para tirar minha calcinha, os dentes mordendo meu pescoço.

— Sim... Por favor... — sussurro de volta, perdida em meu próprio anseio.

Sinto-me tonta de embriaguez e desejo. Alex abaixa meu vestido, a língua cingindo meu mamilo, fazendo uma lança aguda e áspera de prazer latejar onde me toca, me fodendo com seus dedos.

Começo a respirar por arquejos, puxando seus cabelos, para que nossos lábios se encontrem e Alex engole meus gemidos quando gozo em sua mão, trepidando no balcão, meu corpo sacudido em sensações.

Mas Alex ainda tem pressa e abre sua calça, puxando meus joelhos e me penetrando facilmente. Sinto o desejo voltar com força quando ele se move dentro de mim num ritmo alucinante, o rosto enfiado em meu pescoço, gemendo em minha pele, até que nós dois estejamos gozando juntos desta vez.

Depois ele me beija devagar e me pegando no colo me leva para o quarto. Tira minha roupa e as dele e deita em cima de mim, levando um tempo infinito apenas enchendo minha boca de beijos longos e intensos, e não demora para que eu esteja arfante e molhada e Alex duro se imiscuindo entre minhas pernas de novo.

Desta vez é devagar e perfeito. Alex se move dentro de mim sem pressa, ainda me beijando com doçura infinita, arrancando gemidos cálidos da minha garganta e um prazer morno do meu corpo.

— Você percebe como é fácil? — sussurra contra meus lábios e abro os olhos para encontrá-lo sorrindo pra mim, enquanto ainda se move entre meus quadris.

— Fácil?

— Sim... Eu e você... assim... você está aqui, sente isso?

Sacudo a cabeça em afirmativa entendendo o que ele quer dizer e sinto meus olhos marejando.

Porque sim, eu estou aqui.

E não há outro lugar do mundo que eu queira estar.

 

— Você ainda está aqui.

São as primeiras palavras de Alex quando acordo na manhã seguinte, ainda enroscada nele.

Minha cabeça dói, provavelmente pelo excesso de álcool, mas também porque sei que a magia da última noite não pode durar.

Não na luz do dia, sem a escuridão da noite a encobrir nossos pecados.

O sorriso de Alex se desfaz e percebo que algo em minha expressão deve ter deixado claro meus pensamentos.

— Eu não imaginei, não é?

Entendo o que ele está falando.

— Você estava aqui... realmente aqui... E foi certo. E não entendo porque não pode ser assim para sempre.

Eu me desvencilho dos seus braços e sento na beira da cama, lutando para respirar.

Lutando para não me agarrar a ele e pedir que fique comigo, que me faça ser de novo aquela Nina que ele deixou para trás.

Mas sei que estou sonhando com o impossível.

Alex se aproxima por trás de mim e sinto seu nariz esfregando meu ombro.

— Eu sinto muito... — murmuro.

— Eu amo você, não sabe?

Fecho os olhos, o nó fazendo minha garganta arder.

— Não faz isso...

— Não faz o quê? Não te amar? Não implorar?

Não consigo mais falar, apenas sacudo a cabeça em negativa.

Alex se move rápido, sem que eu preveja e segura minhas mãos.

Minhas pálpebras se movem, com meus olhos molhados demorando alguns segundos para ver que Alex está ajoelhado no chão na minha frente.

— Case comigo?

 

Antes

 

— Ei, Nina, espera...

Pensei em fingir que não ouvi a voz de Amanda me chamando, enquanto caminhava para fora da escola no fim do dia, apressada, mas sabia que não ia adiantar.

Parei, me virando e ela sorriu incerta.

— O que está fazendo aqui? Não estava de detenção como eu! — Ela ri.

Era típico de Amanda ter que ficar de castigo depois da aula.

— Eu estava em uma aula de arte complementar — respondi, com o intuito de dar a conversa por encerrada, porque já estava anoitecendo e não queria chegar em casa depois de David.

E me virei para continuar meu caminho, mas Amanda segurou meu braço.

— Espera, Nina, está tudo bem com você? Faz um tempinho que a gente não conversa...

— Sim, está — respondi no automático.

Tempinho era um eufemismo. Eu não conversava com Amanda desde o dia do baile, há mais de um ano.

No começo, ela tentou falar comigo, ficando chateada quando passei a evitá-la e começando a virar o rosto pra mim com ressentimento depois disso, arranjando outras amigas.

Eu senti falta de nossa amizade, mas também senti alívio.

Eu não era mais como Amanda, pelo menos já não me sentia assim há tempos. Agora, eu contemplava seu rosto maquiado e roupas chamativas, sua risada alegre e voz jovial como se isso fosse algo de outro planeta.

Eu não me sentia mais como a jovem de 15 anos que eu era.

Com certeza Amanda não veria a menor graça em andar com essa Nina que eu era hoje.

— Está bem mesmo? Você anda... diferente este último ano. Isolada, não fica com ninguém na escola, não sai pra lugar nenhum... Está acontecendo alguma coisa?

Apenas sacudi a cabeça em negativa, sei que não havia nenhuma expressão no meu rosto.

Eu tinha me tornado mestre em esconder meus sentimentos naquele último ano.

— Eu sei que a gente se afastou, mas... Não sei se ficou chateada com o que aconteceu naquele dia do baile ou o que foi, acho que a gente devia ter conversado, eu fiquei chateada com você. Desculpa. Será que a gente pode, sei lá, sair, talvez ir ao cinema, ou você pode ir lá em casa, aposto que agora que já tem quase 16 o David não pega tanto no seu pé...

A menção de David me fez olhar o relógio, lembrando que não queria me atrasar.

— Desculpe, Amanda. Eu preciso ir...

A escola ficava a poucos quarteirões de casa e eu praticamente corri o caminho inteiro, mas mesmo assim, quando cheguei, o carro de David estacionado na garagem fez meu estômago revirar.

Entrei apressada, jogando meus livros no sofá, e indo para a cozinha, preparar o jantar, torcendo para que David não houvesse percebido que eu demorei a chegar. Eu não queria que ele me proibisse de fazer aquelas aulas.

— Nina, onde estava?

Sua voz chegou até mim no fim do corredor e eu me virei, assustada.

Por que eu não tinha prestado atenção na hora?

Será que eu não podia lembrar que David ficava bravo quando eu me atrasava? E quando David ficava bravo comigo, o dia estava estragado.

— Eu estava na aula de arte.

— Está atrasada, deveria ter chegado há meia hora...

— Eu sei, eu perdi a noção do tempo...

Ele caminhou em minha direção, irritado.

— Por que perdeu a noção do tempo? Onde estava?

— Eu falei, na aula...

— Quer que eu acredite? Onde realmente estava? Por que fica mentindo pra mim? — Seus dedos apertaram meu braço com força.

— Não estou mentindo...

Tentei não chorar, mas sabia que a batalha estava perdida.

— Ei, não chore. — David segurou meu rosto. — Odeio te ver chorar... Odeio perder a paciência, mas você me obriga! Eu fico bravo por sua culpa! Sabe que eu morreria se algo acontecesse a você, não sabe?

Sacudi a cabeça em afirmativa, me odiando por deixar David furioso.

— Eu sou duro com você para sua proteção. O mundo lá fora é perverso, Nina. Aqui, eu a protejo. Sabe que eu faço isso porque eu a amo. Ninguém te ama como eu. Somos só nós dois, lembra? E você me ama também, não é?

Concordei com a cabeça.

— Diga.

Limpei a garganta.

— Eu te amo, David.

Ele sorriu, me abraçando.

— Então prove.

 


Capítulo 8

 

 

Alex

 

Eu não tinha noção de que aquela ideia estava ali, fervilhando em meu íntimo, até que ela salta em forma de palavras pela minha boca e flutua entre nós como uma entidade viva.

Não sei qual reação esperava de Nina, mas nunca que ela começasse a chorar, suas mãos se desprendendo da minha como se meu toque a queimasse enquanto seu corpo enverga para frente, como se minhas palavras a atingissem como um tiro.

Por alguns instantes, sinto-me tão perdido em perplexidade diante de seu tormento, que me afasto alguns passos, observando Nina abraçar o próprio corpo, seus soluços cortando o ar são como açoite em minha pele.

— Nina... — Aproximo-me devagar de novo, com medo de tocá-la, minha preocupação virando terror quando percebo que Nina está se machucando, as unhas fincadas na própria pele do seu pulso cheio de cicatrizes. — Nina, pare... — Avanço sobre ela, meus gritos de assombro se mesclando com os dela quando tenta se lançar para fora dos meus braços.

Nós nos debatemos no chão por alguns instantes, até que ela finalmente pare de lutar contra mim, seu corpo exausto se rendendo, enquanto mantenho suas costas contra meu peito, as mãos presas nas minhas.

— Nina, por favor, pare — sussurro em seu ouvido — Estou aqui... Will... Está tudo bem... tudo bem... — Minhas palavras agora têm o intuito de não só acalmar Nina naquele surto sem aviso como a mim mesmo.

— Eu sinto muito... — Seus soluços desesperados se transformam num choro baixo e sofrido que corta meu coração de um jeito que nunca achei ser possível.

Não sei quanto tempo ficamos ali no chão, até que reste somente o silêncio triste a preencher ar. Levo seu corpo adormecido de exaustão até a cama e ajoelho ao seu lado, segurando sua mão.

Estou assustado.

Estou quebrado.

Estou tentando entender o quão perturbador foi a reação de Nina quando eu a pedi para casar comigo.

Eu sei que foi um pedido temerário, mas segui meus instintos quando a vi se afastando, construindo aqueles muros em volta dela, que eu estava disposto a derrubar de qualquer maneira.

Queria que entendesse o quão comprometido eu estava com ela.

Eu seria capaz de deixar Nina ir se ela não sentisse nada, mas ela sente. Estamos na mesma sintonia, como se houvesse um tempo correndo apenas para nós dois. Sei que em algum lugar de sua mente ela percebe isso.

Só que mesmo assim insiste em fugir.

Compreendo que Nina tenha muitos problemas rondando sua mente, feridas que precisam de tempo para ser curadas, e mesmo que eu não tenha noção de tudo o que lhe aconteceu em seu passado para que ela tenha se transformado no que é hoje, ainda assim acho que seja possível.

Que nós somos possíveis.

Porém, talvez eu tenha sido um tanto ingênuo ou propositalmente cego em não perceber que as feridas de Nina eram muito mais feias do que eu imaginei.

Falta algo.

Uma peça.

Um período de tempo da vida de Nina que ainda é um mistério para mim, algo que ela guarda em sua memória.

Algo que ela acessa toda vez que se machuca. Toda vez que se sente compelida a fugir do mundo. Que a faz sentir culpa. Que a fez ter um surto hoje enquanto eu a pedia em casamento.

Estou com o estômago embrulhado quando me levanto e me arrasto até meu celular.

Preciso de ajuda, porque começo a perceber que Nina e seus fantasmas estão fora do meu alcance.

Digito uma mensagem e então outra mensagem surge.

Diferentemente do que fiz nos últimos dias, desta vez eu respondo.

 

Ela chega rápido, talvez temendo que eu mude de ideia.

Eu não lhe disse que Nina estava em casa, e nem porque depois de uma semana sem lhe dirigir a palavra, estava permitindo que viesse me encontrar.

Quando abro a porta ela sorri, entrando com ares de dona, seus saltos batendo no chão, enquanto tira os óculos escuros.

— Onde está aquele cachorro da Charlotte, que não me recebeu com suas patas sujas como sempre?

— Ele está na casa de Sebastian, porque eu tive que viajar.

— Bem, já estava na hora de parar de criancice, não? — Despeja com sua voz imperiosa, se virando para mim. Uma voz que me fez tremer de medo tantas vezes antes. Uma voz temida e amada na mesma proporção.

— Você sabe muito bem que quem errou foi você, mãe.

— Ah, por favor, achei que tinha percebido que eu estava certa afinal, já que permitiu que eu viesse! Que tal sairmos para tomar um brunch e conversaremos direito?

— Não, eu pedi que viesse porque preciso te fazer algumas perguntas.

Seus olhos se contraem quando me aproximo.

Noto, pela primeira vez que ela já não parece tão jovem como antes. Há rugas novas em volta de seus olhos maquiados, assim como olheiras que ela certamente tenta disfarçar.

As palavras de Charlotte voltam a minha mente, sobre Nora ter ido fazer exames na Europa.

Por um momento, sinto-me compelido a lhe perguntar por isso, uma preocupação que não quero sentir martelando em minha mente.

Porém, há alguém dormindo há poucos metros de mim que precisa mais da minha preocupação agora, alguém que talvez não estivesse naquela situação se Nora não tivesse me levado embora, a deixando para trás há tantos anos.

— Que perguntas? Por favor, que não seja sobre aquela garota maldita! Ela fez muito bem indo embora.

— Ela está comigo.

— O quê?

— Ela está dormindo agora. Depois de ter um surto quando eu a pedi em casamento.

O queixo de Nora cai. E acho que pela primeira vez vejo minha mãe sem palavras.

— Você a pediu em casamento? — Sua voz está cheia de horror.

— Sim, pedi.

— Ficou louco? Eu não vou permitir isso, entendeu? Por que diabos foi atrás dela? Meu Deus, será que eu não tenho um minuto de paz! — Ela anda de um lado para o outro, sacudindo as mãos no ar. — Será que não percebe que essa menina vai acabar com sua vida como acabou com a vida de David?

— Por que fala isso? Meu pai morreu em um acidente, Nina era apenas uma criança...

— Criança? Por favor, ela podia ter 16 anos, mas era uma cobra, assim como a mãe dela! Eu sabia... sabia que ela ia destruir David, mas ele não quis me ouvir... estava enfeitiçado...

Eu sempre ouvi minha mãe falando daquele jeito. Sempre achei um exagero, uma sandice criada por sua mente ciumenta e rancorosa por meu pai não a amar como ela queria. Algo que tinha ficado claro pra mim desde que eu era muito pequeno.

Eles sempre discutindo por isso. O ciúme da minha mãe. O descaso do meu pai que piorou depois que Nina chegou.

Nina, a menina órfã que meu pai tomou sob sua proteção e que Nora odiava.

A menina que meu pai preferiu quando Nora lhe colocou um ultimato.

Algo estala na minha cabeça, mas não quero concluir aquele raciocínio. Começo a sentir um zunido no meu ouvido.

Limpo minha garganta para tentar organizar meus pensamentos.

— Por que sempre diz isso? Nina era uma criança. Por que tinha tanto ciúme?

— Porque seu pai estava apaixonado por ela assim como esteve pela mãe dela! — Nora grita, e é como se eu voltasse a ser criança a escutando gritar do mesmo jeito que gritou tantas vezes na minha infância, torturada pelo amor que meu pai dedicava a Nina.

Ainda há o mesmo rancor. O mesmo ciúme.

Que eu achava descabido...

Até agora.

Mas não pode ser verdade.

Nina era uma criança.

Meu pai não podia estar apaixonado por uma criança.

Era... doentio e assombroso...

— Você era novo demais para entender, mas eu via! O jeito que ela virou a cabeça dele! Como o roubou de mim! — Veneno goteja de sua voz e cerro meus punhos, para não colocar as mãos no ouvido como uma criança se negando a ouvir uma história de terror. — Ele estava enfeitiçado por aquela vadiazinha! Aquela menina de sangue ruim! Ela roubou David de mim e ele está morto por causa daquela criança amaldiçoada, como a mãe! Ela devia ter morrido em vez de David...

— Cala a boca! — O grito sai das profundezas do meu ser. O monstro que ela sempre me acusou de ser escapulindo da jaula em que eu o guardava, adquirindo o controle. — Cale a boca, antes que eu...

Nora dá um passo atrás assustada.

— Vai me agredir? Meu Deus, Alex, o que essa menina fez com você?

A culpa faz meu sangue gelar. O terror e nojo nos olhos da minha mãe me cegam por um momento.

Tudo o que ela me fazia sentir, o amor e ódio, estão em ebulição dentro de mim.

Inalo pelas narinas, tentando me controlar.

Tentando colocar tudo em perspectiva.

Tentando não me transformar no que ela sempre me acusou de ser.

Volto minha mente para Nina.

Para meu pai.

Para a imagem hedionda que meu cérebro está se esforçando para bloquear.

Ainda não consigo entender todas as nuances daquela história que começa a soar como uma tragédia sem precedentes.

— Alex, filho, tem que me escutar! Olha o que está se transformando! Tem que se livrar dessa garota... Antes que seja tarde... Ela envolveu você, como David, você até a pediu em casamento! Sabia que seu pai fez o mesmo?

— O quê?

— Ela não contou? David me escreveu um dia, contando que ia se casar com Nina.

— Você está louca... — Aquilo já é um absurdo sem tamanho, mas Nora parece convicta de suas palavras e do quanto elas me atingem.

— Pergunte a ela! Pergunte por que estavam indo embora da cidade quando o carro capotou... Como estavam fugindo para que David pudesse se casar com ela, longe dos olhos curiosos dos vizinhos que com certeza já tinham percebido a sujeira que viviam naquela casa...

— Chega... — sibilo. — Vai embora...

— Alex...

— Agora... — Eu me seguro no balcão, temendo que se minhas mãos estiverem livres eu a empurre para fora da minha casa junto com suas mentiras odiosas.

Algo na minha postura deve ter lhe alertado para meu estado de espírito, pois Nora pega a bolsa.

— Espero que tenha entendido agora. Eu vou esperar você voltar e pedir desculpas para mim. Livre-se dessa garota!

Apenas escuto os saltos batendo no chão e o barulho da porta se fechando.

Minha cabeça está girando... Tentando colocar algum sentido no que Nora contou. Eu não quero acreditar.

É monstruoso demais.

Mas o que mais faria sentido?

— Alex?

Levanto o olhar e Nina está ali, na porta da cozinha.

Respiro fundo várias vezes, obrigando-me a acalmar minha confusão e fúria, antes de encará-la. Não quero assustá-la, mas quando pouso meu olhar em sua figura descomposta, o rosto ainda com resquício de lágrimas, os cabelos despenteados e vestindo apenas uma camiseta minha, sinto que não posso esperar mais.

— É verdade que meu pai pediu para se casar com você?

Seu rosto empalidece ainda mais e por um momento temo que ela surte outra vez, mas de alguma maneira, Nina parece calma agora.

Ela me recorda aquela Nina impassível dos primeiros dias na Black, a Nina que não parecia ter sentimento algum, ou os escondia muito bem.

Então ela sacode a cabeça em afirmativa.

— Sim... é verdade.

— Meu Deus... — Meus joelhos bambeiam e pela primeira vez na vida sinto uma espécie de vertigem de desmaio, o ar me faltando.

Meu cérebro tentando achar uma saída daquele beco escuro aterrorizante em que eu tinha me metido, mas só quero sentar no chão e gritar, meus pensamentos colapsados.

Mantenho minha vista presa em minhas mãos agarradas no balcão.

— Eu disse que eu era uma pessoa ruim. — Sua voz está estranhamente calma. — Eu lhe disse que não podíamos ficar juntos. Por isso eu fui embora quando soube quem era... Quando percebi que você ia me odiar quando descobrisse o quão suja eu sou... — sua voz se quebra e eu finalmente viro o rosto em sua direção. Ela enxuga uma lágrima solitária —, sinto muito.

Ela me dá as costas e eu fico ali, sem forças. Sem ar.

Ainda tentando compreender...

Pela minha cabeça, se passa memórias perdidas da minha infância. Meu pai sempre com Nina... O ciúme da minha mãe... O ciúme do meu próprio pai quando descobriu que eu estava dormindo no chão do quarto de Nina... Tudo agora adquire outro prisma.

E então isso se junta às memórias de Nina. A Nina que encontrei correndo naquela avenida.

A garota solitária que andava pelo mundo como se não devesse estar ali. Solitária, perdida, sem amigos, sem amor.

Seu olhar submisso que me temia e desejava...

Sua ânsia por violência, por uma punição que ela se julgava merecedora...

Os cortes em sua pele.

Tyler e suas drogas. Elliott e sua manipulação.

Oliver...

E eu mesmo. No alto de minha figura de dominador, com um cinto na mão, lhe impingindo dor e prazer.

Meu Deus, quem era Nina afinal? A verdadeira Nina que habitava dentro daqueles olhos bonitos e da pele machucada?

E o que de verdade aconteceu desde que eu fui embora até a morte do meu pai?

Meu pai...

Sinto a bile na garganta e corro para o banheiro, vomitando pela segunda vez, todo meu horror.

Algum tempo depois, sinto-me mais calmo, ou pelo menos tentando me acalmar.

A campainha toca e sinto alívio por ter chamado Lucy.

Abro a porta para ela que me encara com um olhar de entendimento.

— Onde está Nina? Ela está bem?

— Por favor, fique com ela.

Lucy passa por mim, sem nem pedir permissão chamando o nome de Nina.

Desejo ir atrás, desejo saber se ela está bem, mas sei que não está.

Talvez ela não esteja bem desde os dez anos de idade.

Quando eu a deixei para trás e não voltei.

Eu tinha chegado tarde afinal.

Lucy volta à sala algum tempo depois.

— Que merda aconteceu aqui? Você está horrível e Nina também.

— Como ela está?

— Está se vestindo, eu disse que vou levá-la embora.

— O que ela te falou?

— Ela só pede que eu a leve embora.

— Faça ela falar. Por favor. Sei que vai ser difícil, mas faça ela falar do meu pai... De David.

— O que aconteceu?

— Eu não tenho como saber com certeza... eu já não entendo nada...

Sinto como se toda a minha vida fosse a cena de um filme e que alguém acabava de quebrar a quarta parede, desnudando a realidade.

— Sei que eu sou a última pessoa com quem ela quer conversar agora. — Dói falar isso, mas é a verdade. — E preciso saber que ela está com alguém que a fará falar. Ela precisa...

Lucy me interrompe, segurando minha mão.

— Tudo bem, Alex. Eu tomarei conta da Nina. Acho que eu já posso desconfiar do que está falando. Eu vou ajudá-la. Nina precisa de ajuda profissional. Eu prometo que não vou deixá-la sozinha.

— Obrigado, Lucy.

Caminho até o quarto e Nina está vestida agora.

Ela me encara com um olhar triste.

Há um conformismo em sua expressão que faz minha voz vacilar.

— Lucy vai te levar embora. Prometa que não vai ficar sozinha. Por favor.

Ela sacode a cabeça em afirmativa.

Toma toda minha força não ir até ela e sacudi-la pedindo que me conte toda a verdade. Uma verdade que nem sei se estou preparado para ouvir.

Mas agora entendo que ela precisa de espaço e de ajuda de alguém de fora daquela história que a faça falar.

Nina está sufocando há tempo demais, guardando seus segredos há tempo demais.

E as consequências foram terríveis.

Ela passa por mim e por um momento, eu desejo tocá-la. Dizer que a amo. Que não importa nada do que aconteceu. Ela ainda é minha Nina.

Ainda é minha amiga para sempre, como prometi quando éramos crianças, mas tenho medo de tocar aquela Nina tão cheia de cicatrizes por dentro e por fora.

Tenho medo de ter sido mais um a lhe infligir a mesma coisa que outros já fizeram e isso está me matando.

Então a deixo ir, levando meu coração com ela.

Escuto a porta se fechar na sala e me pergunto se vai permitir que eu a encontre de novo.

Se ela tem noção que eu iria ao inferno buscá-la quantas vezes fosse preciso.

 

Antes

 

 

Não lembro em que momento comecei a me rebelar contra aquela prisão. David se tornava cada vez mais possessivo e dominador. E embora eu sentisse culpa pelos meus pensamentos, cada vez mais eu era incapaz de controlá-los.

A primeira vez que eu transei com um garoto da escola, não foi planejado. Ele foi colocado como meu par para fazer um experimento de química. Ficou olhando meus peitos o tempo todo, fazendo piadinha de duplo sentido e insinuações típicas de garotos. Em algum momento, eu o encarei e perguntei se ele queria me encontrar no terreno atrás da escola, na próxima aula.

— Para cabular? — Ele riu.

— Não é o que você quer? — desafiei.

Havia certa frieza em minha voz.

Assim como havia agressividade em minhas mãos enquanto ele me beijava prensada no muro da escola. Não o impedi de transar comigo ali.

Apreciei suas mãos em mim, seus beijos tinham gosto de liberdade.

 

E depois da primeira vez, era como um vício. Perdi a conta de quantas vezes me deixei levar. Nas salas vazias, naquele mesmo muro, ou nas caronas para casa.

Depois, quando David me batia, por qualquer motivo, por desconfiar que eu não me comportava como uma boa menina, eu sabia que ele tinha razão.

Eu precisava mesmo ser punida.

Um dia, um garoto chamado Nate me deu carona. Eu já tinha uma fama na escola naquela época. Não me importava. Nós transamos e depois estava nevando. Ele insistiu em me levar em casa. Ponderei se seria seguro e achei que sim, porque David deveria estar no trabalho naquela hora.

Porém, quando chegamos em casa, David apareceu furioso, ele tinha sido dispensado mais cedo por causa da nevasca.

Aos gritos, ele me tirou de dentro do carro. Quando Nate saiu, querendo enfrentar David, mesmo eu gritando para ele ir embora David o socou. Jogou o garoto no chão, tomado de fúria, e só parou quando os vizinhos, alertados por meus gritos apareceram e seguraram David. A polícia foi chamada, assim como a ambulância para levar Nate que estava irreconhecível.

David foi preso. Passou a noite na cadeia e foi liberado sob fiança no dia seguinte.

Aquela foi a pior noite da minha vida.

Eu pensava em David preso pra sempre. Por minha culpa.

Para onde eu iria?

Eu me senti horrível. Como podia ter feito aquilo com David?

Quando ele voltou, eu chorei e pedi desculpas.

— Por que faz isso comigo, Nina? Não sabe o quanto eu te amo? — David indagou com um olhar cheio de angústia.

— Eu não sei... me desculpa. Eu estou arrependida. Não quero que vá preso... que me deixe.

Ele segurou meu rosto e havia determinação em seu olhar.

— Nós vamos ficar juntos para sempre, ninguém vai nos separar dessa vez. — Eu não entendi porque ele falava isso, mas apenas assenti, aliviada que estava me perdoando. — Nós vamos nos casar.

 

Naquela tarde, uma mulher de meia-idade apareceu na nossa porta.

— Olá, você deve ser Nina.

— Sim...

— Meu nome é Fiona Marshall, eu sou a mãe do Nate. Posso entrar? — pediu, mas já estava dentro de casa antes que eu permitisse.

— Nate está bem?

— Bem? Seu pai quebrou as costelas do meu filho, acha que ele está bem?

— David não é meu pai.

— O quê?

— David é meu padrinho. Meus pais morreram quando eu tinha sete anos. David me criou desde então.

— E eu posso falar com David?

Eu a guiei até a cozinha.

— A senhora quer um chá?

— Sim, por que não? — Ela tirou as luvas que usava por causa do frio.

Eu lhe servi uma xícara de chá e fui chamar David.

— O que essa mulher está fazendo aqui? — ele indagou contrariado.

— Eu não sei...

David entrou na cozinha, onde Fiona estava sentada bebericando seu chá e ela olhou de mim para David com um olhar estranho.

— Eu sou David. Em que posso ajudá-la?

— Queria entender por que bateu no meu filho. Sabe que ele está no hospital muito machucado?

— Eu sinto muito, não foi minha intenção...

— Não foi? Imagina se fosse! Por que foi tão agressivo? Porque ele deu carona para sua... bem, achava que fosse filha, mas ela me disse que é apenas o padrinho...

— Sim sou responsável por Nina, e por isso eu a protejo. Seu filho ultrapassou o limite com ela e não ia permitir.

— Meu filho é um adolescente! E sua filha também, qual o problema? Ele me disse que ela consentiu...

— Escuta aqui, acho melhor a senhora ir embora — David a interrompeu.

— Estamos apenas conversando e eu queria entender. Meu marido quer processá-lo, por isso vim até aqui. Para entender os seus motivos.

— Não lhe devo satisfação, senhora.

— Então talvez eu deva conversar com Nina e...

David segurou meu ombro de forma possessiva, o apertando, me alertando para não falar.

— Nina, não vai falar nada.

A mulher estreitou o olhar.

— Oh... Estou vendo o que está acontecendo... — A mulher se levantou, chocada. — O senhor é nojento! Ela é só uma menina e eu vou denunciá-lo por essa...

— Cale a boca! Você não sabe de nada!

— Estou vendo muito bem! Está abusando dessa menina!

Eu me encolhi, morta de vergonha e com muito medo do olhar da mulher.

Será que David poderia ir preso de novo?

— Não. Mas se quer saber, sim, eu e Nina temos um relacionamento. Não estou abusando dela. Ela tem 16 anos e idade suficiente para entender.

A mulher me encarou.

— É verdade?

— Diga a ela, Nina.

Sacudi a cabeça em afirmativa, amedrontada.

Não queria que ela mandasse David para a cadeia.

— Sim.

O rosto da mulher se revirou de nojo e eu me encolhi, sentindo-me mal.

Ela pegou sua bolsa e partiu sem olhar para trás.

 

Uma semana depois estávamos indo embora da cidade.

David me prometendo uma vida diferente.

Com ele.

Para sempre.

Mas algumas horas depois ele estaria morto.

E de certa forma, eu também.

 


Capítulo 9

 

 

Nina

 

Eu conheço a dor.

Sei como é ser consumida por uma desolação tão profunda até que tudo se turve de escuridão.

Acreditei que meu coração tinha morrido no dia em que acordei naquele hospital há quase dez anos. Que aquela dor era o pior que eu poderia sentir.

Só que eu estava enganada.

O que sinto agora, ao deixar Alex, sabendo mais do que nunca a criatura sem conserto que sou, é mil vezes pior.

Deveria saber que esperança era algo perigoso para alguém como eu. E mesmo assim, desejei o impossível. Desejei ter um coração para dar a ele, como ele me deu o seu.

E para quê? Do que serve eu amar Alex e Alex me amar se a culpa que carrego é maior que qualquer anseio de voltar a ser feliz?

— Nina?

Escuto a voz de Lucy me chamando e percebo que chegamos em frente ao nosso prédio.

Salto do carro e caminho ao seu lado, como um autômato, e só percebo que Lucy pegou a chave do meu apartamento abrindo a porta pra mim e me guiando para dentro, quando ela fecha a porta atrás de nós.

— Obrigada por me trazer... acho que quer ir para sua casa — balbucio perdida.

— Eu sei, só que precisa que eu fique aqui com você por ora. — Ela sorri despreocupada, mas há determinação no jeito como ela segura meu braço e me guia até o banheiro.

Quero me rebelar, mas não tenho forças suficientes.

Sinto-me esgotada.

Cansada de fugir. Cansada de forçar minha mente e esquecer algo que é impossível.

Cansada de fingir que não me importo quando tudo o que eu quero fazer é gritar, como fiz na casa de Alex.

— Estou tão cansada... — A confissão escapa dos meus lábios e Lucy me faz sentar sobre o vaso enquanto abre a torneira da banheira.

— Eu sei. Por que não tira a roupa e toma um banho quente? Aposto que vai ajudar.

Tiro minha roupa, não me importando que Lucy esteja ali ainda e que minhas marcas estejam visíveis.

Eu não me importo.

Cansei de fingir que sou normal, de fingir que não sou alguém que carrega o mal dentro de si.

Lucy permanece ali, sentada ao meu lado na banheira, enquanto deixo a água quente me envolver.

— Há quanto tempo se corta desse jeito?

A pergunta surge em algum momento e eu dou de ombros.

— Nem lembro.

— Ajuda a afastar a dor, não é?

Sacudo a cabeça, concordando.

— Mas não é de verdade. Não é desse tipo de solução que você precisa.

— E o que você acha que eu preciso?

— No momento, precisa me contar o que aconteceu.

— Hoje na casa de Alex?

— Pode começar por aí.

— Alex me pediu em casamento.

Ela sobe a sobrancelha, surpresa e até um pouco divertida.

— Sério?

— Sim.

— E você...

— Eu surtei, acho... — Relembrar o que aconteceu na casa de Alex faz meu peito doer.

— Por quê?

— Eu não sei... — Solto um suspiro pesado. — Alex não entende que não temos como ficar juntos.

— Por que não? Ele parece tão apaixonado por você e... você não estaria mal assim se não gostasse dele também.

— É impossível...

— Mas você gostaria que fosse possível? Por isso está triste?

— Acho que sim...

— Eu vou te dizer o que eu acho. Eu acho que você precisa se livrar do peso de seja lá o que a sufoca e a faz ficar presa na ideia de que não pode ser feliz. Não poder ser normal, ter amigos, um trabalho bacana. Ser amada. De viver.

— Eu não consigo... é tarde demais...

— É possível sim, nunca é tarde demais. Você está respirando, está viva. Existe uma cura, não é fácil e nem indolor, mas você pode. Só que a mudança tem que começar por você. Talvez já tenha começado e tenha medo de dar o próximo passo. O fato de ter aberto seu coração a Alex, de querer ficar com ele, não seria um motivo para querer se livrar do que a mantém refém?

— Não tem como eu me livrar das minhas lembranças.

— O que aconteceu com você para pensar assim?

O nó se fecha em minha garganta, como se cordas invisíveis me sufocassem, me impedindo de falar.

— Você não quer falar?

Sacudo a cabeça em negativa.

— Tudo bem... então eu vou falar o que eu acho e apenas acene, ok? Você acha que é por causa do seu relacionamento com Tyler?

Minha cabeça sacode de um lado para o outro.

— Por causa do seu professor da faculdade?

Eu nego novamente.

— Por causa de David?

Uma lágrima rola por meu rosto quando sacudo a cabeça em afirmativa.

— O que David fez com você?

O nó se aperta mais e sinto dificuldade de respirar.

— Você precisa falar, Nina. Precisa dizer, já sufocou por tempo demais, ponha para fora o que está entalado dentro de você... para poder respirar.

— Não é o que David fez comigo... E sim o que eu fiz com ele.

— Você acha que a culpa é sua?

Sacudo a cabeça em afirmativa.

— A culpa não é sua, Nina.

— Você não sabe...

— Olha, eu trabalho com pessoas que sofreram abuso há tanto tempo que já ouvi todo tipo de história. Você não é a primeira a se sentir culpada. E infelizmente não vai ser a última. Precisa entender isso...

Escuto as palavras de Lucy, mas elas apenas tocam a superfície da minha angústia.

Lucy não sabe. Ela não estava lá. Ninguém sabe.

Porém, mesmo quando nego as tentativas de Lucy de me fazer sentir melhor, há uma parte de mim que quer mergulhar nas minhas memórias mais escondidas e rever os acontecimentos pelo prisma de Lucy.

Será possível?

Mas eu não quero voltar lá. Quero que as lembranças se mantenham soterradas dentro de mim, mesmo que a cada dia que passe eu me sinta sufocando cada vez mais.

Até quando vou aguentar respirar daquele jeito, como se um bola de sujeira densa e viscosa escorresse sem parar pela minha garganta?

— Estou tão cansada... — murmuro de novo, deitando minha cabeça no joelho e repetindo o que fiz tantas vezes antes, amarro uma pedra nas minhas memórias e as jogo na água escura da minha mente, até que elas imerjam e desapareçam e reste só aquela falsa calmaria que me faria continuar em frente.

Fingindo que elas não estavam ali, escondidas em alguma parte esperando para vir à tona.

— Está tudo bem ficar cansada. Está tudo bem chorar. Sofrer faz parte de estar viva, significa que você ainda tem emoções, mesmo que sejam ruins. Porque tudo tem outro lado, para cada emoção ruim, uma boa surge.

— Eu tenho impressão que tudo é ruim.

— Porque você se concentra nisso. Se permita ver o outro lado. Alex não foi algo bom? Você não foi feliz em alguns momentos com ele?

— Sim... — Pensar em Alex faz meu coração afundar mais um pouco.

— Então por que outros tipos de felicidade não podem surgir? Precisa acreditar que pode deixar o passado para trás. Todos nós temos coisas ruins que desejamos esquecer, alguns piores que os outros, mas a maneira que lidamos com isso é o que faz a diferença. Você se culpa há tempo demais. Precisa se perdoar.

— Por que está me ajudando?

— Não precisa estar sozinha. Embora só você possa tomar a decisão de sair de onde se escondeu, existem pessoas que podem te ajudar. E quero te ajudar.

 

Ainda me sinto ligeiramente aérea quando saio da banheira algum tempo depois e Lucy diz que devemos ir almoçar.

— Eu não tenho fome.

— Mas vai me acompanhar pelo menos.

Lucy me leva para comer pizza num lugar chamado Giordano’s Pizza quando eu digo que nunca comi a famosa Stuffed Pizza de Chicago.

— Pelo amor de Deus, temos que consertar isso aí! — Ela ri.

Embora não estivesse com muita fome, acabo comendo enquanto Lucy me pergunta sobre o que aconteceu na semana em que fiquei com Jack White.

— E como foi isso? Ele é um cara legal? Quando Alex me ligou pra dizer que as sobrinhas falaram que estava com este cara, ele parecia bem puto da vida. Entendi que este cara não era muito legal, fiquei preocupada.

— Ele é um cara legal. Não parece a princípio, mas no fundo é sim. Ele me ajudou a passar aquela semana sem surtar.

— Devo entender que pelo fato de você ter ficado à vontade, ele não tentou nada mais...

— Não. — Não digo a Lucy o que eu tinha feito quando cheguei à casa de Jack, achando que ele era mais um que queria alguma coisa de mim.

— Quem bom, fico feliz. Ainda posso ter esperança que existem caras bacanas nesse mundo.

— Acho que me identifiquei com ele em algum ponto, ele também é órfão.

— Sério?

— Sim, e ele tem uma fundação que dá abrigo a crianças.

— Que bacana. Gostaria de conhecer.

— Eu gostaria de voltar lá também.

— A gente podia ir depois de comer, que tal?

— Sim, acho que pode ser...

 

Levo Lucy até a fundação de Jack e ficou surpresa quando o homem na recepção me reconhece.

— Nina, que bom que voltou! — Sinto-me um pouco tímida com aquele cumprimento entusiasmado e com vontade de passar batido, mas de repente me recordo de Jack dizendo que sou grossa com as pessoas.

— Oi... Ronny. — Consigo lembrar o nome do homem e até sorrio. — Essa é Lucy.

— Oi Ronny — Lucy toma à frente. — Muito prazer, a Nina falou deste local incrível e eu sou assistente social, fiquei muito interessada em conhecer. Tudo bem se a gente entrar?

— Claro que sim. Jack disse que Nina tem acesso fácil!

Lucy ri e avançamos em frente.

Tento mostrar a ela e falar o que Jack havia me explicado quando estive ali a primeira vez.

— Muito legal Jack White manter um lugar assim para as crianças — Lucy comenta quando entramos no refeitório que está cheio de crianças e adolescente almoçando.

— Oi Nina.

Para minha surpresa, Sally, a garota que ajudava no refeitório acena pra mim.

— Veio ajudar?

Lucy se adianta, animada.

— Oi, sou Lucy, amiga da Nina, e quero ajudar sim.

— Ótimo.

Lucy vai para trás do balcão, mas de repente tenho outras ideias.

— Eu vou até a sala de arte, ok? — Aviso e Lucy sorri.

— Ok!

Caminho pelos corredores até a sala de arte e hoje tem algumas crianças ali, desenhando em volta das mesas.

Um rapaz asiático usando óculos me cumprimenta.

— Olá, acho que não te conheço?

— Eu sou Nina, sou... amiga do Jack.

— Muito prazer, Nina, sou Lee. Ensino desenho aqui na fundação.

— Eu estudei arte — eu me vejo dizendo e Lee sorri.

— Que legal, que tal me ajudar então? Essa turma ainda tem alguns iniciantes, mas a arte ajuda muito essas crianças. Veja aquela menina de cabelos curtos ali atrás. — Aponta para uma menina morena de uns 12 anos que desenha concentrada. — Ela chegou aqui há uns seis meses e tinha dificuldade de se expressar sem ser por agressividade. Ela foi tirada da guarda do padrasto que abusava dela sexualmente. — As palavras de Lee me atingem como um soco no estômago. — E as aulas de arte a ajudaram a se expressar. Claro, além de toda a ajuda psicológica. Vem conhecê-la.

Ele me leva por entre as mesas até a menina.

— Oi Maya.

A menina levanta o olhar, um tanto exasperada por ter sido interrompida.

— Essa é a Nina, ela é professora de arte também — Lee exagera, mas não tenho tempo de contradizê-lo. — Por que não mostra a Nina a técnica que está usando?

Ele me encoraja a sentar o lado da menina e eu espio seu desenho, muito bem feito, da Mulher-Maravilha.

— Você desenha muito bem — elogio.

— Obrigada. Eu quero desenhar quadrinhos, sabe? Quando eu crescer.

— Acho que leva jeito, mas acho que pode melhorar aqui... — Pego o lápis de sua mão e ensino a melhorar o rosto da personagem. — Entendeu?

— Nossa, fica bem melhor! — Ela sorri e me vejo sorrindo de volta.

O que Lee me contou sobre ela me volta à mente.

Maya parece uma menina como outra qualquer de 12 anos, mas provavelmente é só na superfície. Por dentro, ela deve ter visto coisas que nenhuma menina de 12 anos deveria ver. Porém, parece bem agora. Ela sorri. E tem sonhos.

E de repente me vejo no lugar de Maya.

Se alguém tivesse me tirado daquele lugar onde estava, eu teria sido como ela? Capaz de sorrir e sonhar com um futuro?

Mas eu não tinha quem me levasse embora.

Nora havia partido com Will.

E eu só tinha David.

Sinto-me culpada por aqueles pensamentos, como se fosse ingrata com quem me acolheu e me amou quando não tinha mais ninguém.

David me amou e cuidou de mim. E mesmo quando aquele amor se tornou nebuloso, e os limites perderam a nitidez, ainda assim, era só ele que eu tinha.

Eu não via nenhuma alternativa como Maya estava tendo agora.

Nenhum futuro.

Mesmo depois que ele partiu, a liberdade apenas se tornou um fardo pesado para carregar. A culpa se tornou parte de mim.

Não havia ainda nenhum futuro possível. Nenhuma alternativa.

“Mas agora você tem.”, uma voz sussurrou dentro de mim.

Eu me levanto, deixando Maya desenhando e caminho para fora da sala. Percorro os corredores cheio de crianças e jovens, me dando conta pela primeira vez que todos têm uma história e que muitos deles podem ter uma história como a minha.

“Só você pode tomar a decisão de sair de onde se escondeu.”, as palavras de Lucy reverberam em minha mente e paro em frente à sala em que Jack havia me levado quando estive ali antes.

Dessa vez, em vez de correr em direção contrária, estico minha mão e toco a maçaneta a abrindo.

Uma mulher de uns quarenta e poucos anos com cabelos castanhos encaracolados me encara curiosa por trás de uma mesa de trabalho.

— Ei, olá.

Dou um passo para dentro, mas ainda não sei o que fazer. De repente não tenho certeza se consigo estar ali.

— Eu posso ajudar?

— Eu não sei...

A mulher tira os óculos e se levanta, dando a volta na mesa.

— Eu sou Andrea Martinez. Por que não começa se apresentando?

— Nina... Eu sou Nina Giordano.

Os olhos dela se abrem em reconhecimento.

— Ah, a amiga do Jack. Ele me falou sobre você. Fico feliz que tenha vindo me ver finalmente Nina, por que não se senta?

Ainda hesito por um instante.

Mas acabo me sentando no sofá marrom que a terapeuta me indica.

Ela se senta em um sofá a minha frente.

Aperto uma mão na outra, sem saber o que fazer.

— Como devemos começar? — murmuro incerta.

Ela sorri.

— Comece quando quiser. Por que não me fala sobre você?

Ainda hesito, incerta.

Sinto que as palavras estão ali, subindo, tentando se desprender da pedra em que eu as amarrei para que emerjam.

— Está se sentindo desconfortável?

— Eu nunca... nunca falei sobre isso...

— Isso o quê?

Escuto os sons do prédio como vindo de muito longe. A vida que continua a correr do lado de fora, apesar da minha bagunça interna.

O olhar encorajador da psicóloga.

As palavras de Lucy reverberando em mim.

Maya.

Todas as outras crianças.

David...

E Alex.

Alex se movendo em cima de mim, parecendo tão perfeito.

Tão fácil.

Tão diferente de...

Então, elas estão ali. Flutuando junto comigo, em um oceano escuro, mas com a luz do sol acima de nós.

E eu as deixo saírem de dentro de mim...

— Ainda me recordo de quando tudo mudou. Uma hora eu era a garotinha saindo do ônibus escolar em frente a minha casa, ansiosa para entrar e sentir o cheiro de bolo de canela que recenderia em tudo...

 

Não me recordo quanto tempo eu falo. Quanto tempo levo para deixar que as recordações tomem vida através das minhas palavras.

A morte dos meus pais.

Nora... Will...

David...

E novamente a morte.

 

A terapeuta me deixa falar, sem me interromper, e acho que em algum momento, eu espero seu julgamento.

Talvez seu olhar de pena.

Ou até mesmo alguma solução mirabolante, mas ela apenas estendeu um lenço para mim, para que eu limpasse as lágrimas que jorraram junto com as minhas palavras.

— Sente-se melhor agora, por ter falado? — Sua voz é quase carinhosa.

Sinto-me esvaziada.

Oca.

E ao mesmo tempo cheia de lembranças que eu preferia que continuassem enterradas, mas que a partir de agora estão mais vivas do que nunca.

Só que elas não me sufocam mais. Não estão mais dentro de mim.

Estão ali, empilhadas no chão da sala, uma a uma, para que não só meus olhos a analisem como a mulher a minha frente.

Há um tanto de vergonha em mim, mas também há alívio.

Há um resquício de esperança.

 

Naquela noite, voltamos para casa e Lucy me chama para ver um filme com ela. Ainda estou meio entorpecida de tudo, mas aceito o convite de Lucy como uma bem-vinda distração.

O filme é uma daquelas comédias românticas que mais se parece com um conto de fadas, com casais se apaixonando e vivendo felizes para sempre depois de alguns obstáculos.

Eu penso em Alex.

Penso se um dia vai haver um final diferente para nós, em vez de uma tragédia anunciada.

Eu não sei dizer.

 

Acordo na manhã seguinte, no sofá de Lucy e percebo que devo ter adormecido ali, pois Lucy colocou uma coberta em cima de mim.

Eu me levanto, tomando cuidado de não fazer barulho e vou para meu apartamento.

Ainda está muito cedo e sinto vontade de correr, o que não faço há alguns dias. Sem pensar muito, visto um moletom e saio para a rua, ignorando o nevoeiro, fazendo meu caminho habitual. O vento frio é bem-vindo em meu rosto, o esforço da corrida deixando minha respiração difícil e meu corpo energizado.

Porém, sinto que a energia muda de repente e não preciso olhar para trás para saber que Alex está ali, correndo há poucos passos atrás de mim.

Meu coração muda de ritmo no mesmo instante, bate mais acelerado, mais vivo. Lembro-me da primeira vez que vi passar por mim correndo. Sua figura misteriosa, porém atraente aos meus olhos. Talvez, em algum nível, eu já soubesse quem ele era.

Talvez meu corpo entendesse que precisava daquela energia que vinha dele.

Continuo correndo, ouvindo seus passos cada vez mais próximos, o Lago Michigan surgindo quando dou a volta, descendo as arquibancadas de cimento, onde Alex um dia tinha me beijado.

Sei que ele ainda está ali. Que se eu permitir ele sempre vai estar.

E percebo que não posso mais fugir.

Paro meus passos, me voltando e ele faz o mesmo. Há uns dois metros de distância.

Sem fazer menção de se aproximar. Seu capuz cai revelando o rosto suado e o olhar cauteloso, com se não soubesse o que esperar.

Contemplo sua figura uma última vez antes que tudo mude com o que eu estou prestes a falar.

— Nina?...

— David abusou de mim.

 

 

 

 

Capítulo 10

 

 

Nina

 

Não sei se faz minutos ou horas desde que eu falei .

As palavras horríveis saíram da minha boca como vômito depois de uma intoxicação.

Não só porque eu disse a Alex.

Mas porque, pela primeira consegui falar o que realmente aconteceu, como se uma venda fosse tirada dos meus olhos.

— David abusou de mim — repito agora, o olhar perdido no azul profundo do Lago Michigan a nossa frente.

Estamos sentados na arquibancada de cimento, lado a lado.

— Como?... Desde quando?... — A angústia em sua pergunta me faz ter vontade de encará-lo. Mas não consigo. Não ainda.

Eu tinha me arrastado para as arquibancadas, desviando a atenção para o lago, sabendo que aquilo era apenas uma amostra do que eu teria que falar.

Alex ficou ali, petrificado, em choque talvez.

Não sei.

Passou pela minha cabeça de repente que ele podia duvidar. Que podia me odiar. Que podia finalmente virar as costas e me deixar sozinha com meus pecados.

Mas ele sentou ao meu lado.

— Eu tinha 14 anos — A imagem de mim mesma naquela idade volta a minha mente. O dia em que David entrou no meu quarto a primeira vez. — Depois que vocês foram embora, David foi mudando. Acho que ele nunca superou, começou a beber e a ficar violento comigo, possessivo. Quando eu tinha 14 anos gostava de um garoto na escola e queria ir ao baile com ele. David não deixava eu sair então fui escondida. Esse garoto queria transar comigo, mas embora eu estivesse curiosa e até mesmo ansiosa para isso, não me sentia preparada, então a gente não foi até o fim. Antes mesmo que eu chegasse ao baile, David descobriu e foi me buscar. Ele me bateu e... — Respiro fundo, lutando para continuar falando. Eu já contei essas mesmas coisas ontem para a terapeuta e agora deveria ser mais fácil. Mas parecia pior. Porque era para Alex. — Ele fez eu me sentir suja e culpada por ter ficado com esse garoto. David dizia que eu não podia provocar porque eles seriam ruins comigo e que ele iria me proteger... — Faço uma pausa, meu peito sufocando com as lembranças. — Mas naquela mesma noite, David entrou no meu quarto.

Fecho os olhos, como se assim pudesse bloquear as memórias. Mas é impossível, as lágrimas vêm junto com minhas próximas lembranças.

— Ele costumava dizer que era uma prova de amor... Que se eu o amava de verdade eu devia fazer. Eu não consigo... lembrar com exatidão daqueles momentos. Sempre que me lembro é como se estivesse fora do meu corpo, vendo tudo de cima, como uma telespectadora. Depois, ele pedia desculpas. Dizia que me amava. Que só ele me amava. Que tudo ia ficar bem se continuássemos juntos. Eu me apegava a essas palavras. Me apegava ao amor que era o único que eu conhecia e tentava acreditar que era certo. Só que no fundo, sabia que não era.

— Você não contou a ninguém?... — Alex indaga ao meu lado. Sua voz está cheia de fúria silenciosa. Quero olhar dentro dos seus olhos e saber exatamente o que ele está pensando, mas não tenho coragem.

Ainda sinto a vergonha rastejando em mim... nas minhas palavras.

— Como podia contar uma situação que no fundo nem eu entendia? Eu achava que a culpa era minha. Era o que ele me fazia acreditar. Que ele só fazia aquelas coisas comigo porque era obrigado...

A mão de Alex encontra a minha, que estava pousada entre nós e seus dedos apertam os meus.

Finalmente eu deixo meu olhar capturar o seu.

Sua expressão é fúria. Frustração. Dor.

— Meu Deus... Você era uma criança... Como pode achar que a culpa era sua?

Dou de ombros, porque ainda não estou certa de que não seja.

É difícil mudar convicções que nos acompanham por anos.

A culpa está encravada em mim como tatuagem.

— Lembro da sua mãe dizendo o quanto eu era bonita, e o quanto David gostava de mim e tinha abandonado vocês... Ela dizia que eu era uma criatura ruim, amaldiçoada... Que ia destruir David...

— Não, isso tudo é... uma mentira.

— Mas eu acreditei. E tudo o que aconteceu depois só me fez acreditar ainda mais que ela tinha razão. Eu era ruim.

— Não pode acreditar nisso...

— Você não sabe de tudo... David me mantinha presa sob suas asas. Eu tentava obedecer, porque não queria que ficasse violento, o que sempre acontecia porque ele tinha ciúme. Se eu chegasse tarde da escola, ele achava que eu estava com alguém... Ele me batia e depois ficava muito mal. Ele fazia bolo de canela, porque era meu preferido. — Sinto a vontade de vomitar só de pensar em todas as vezes em que acordava com a versão feliz de David e seu bolo de canela. — Com o tempo, comecei a me sentir sufocada. Eu queria ser como as outras meninas. Queria sair, rir, me divertir. Queria conhecer garotos. Queria sentir que o que estava fazendo era porque eu queria e não um tipo de obrigação que me fazia sentir horrível depois. Esses pensamentos me faziam sentir mais culpa. E depois de um tempo, comecei a burlar as regras de David.

“Comecei a aceitar os avanços dos garotos. Não porque gostava deles ou até mesmo os desejava. Era como um ato de rebelião contra a prisão que eu me encontrava. Eu só queria... me sentir normal. Por aqueles ínfimos momentos em que estava com eles, era como nada mais existisse. Eu esquecia que estava presa a David.”

— Você não pensou em... ir embora?

— Para onde eu iria? Eu sabia que eu vivia uma situação horrível, mas ainda era David. Ele ainda era a única pessoa que eu tinha e não concebia deixá-lo. Então quando ele descobriu um dos garotos, ficou furioso e bateu nesse menino. David acabou sendo preso por agressão. E fiquei péssima, porque sabia que a culpa era minha. Tanto pelo garoto ter ido parar no hospital com as costelas quebradas quanto por David ter ido preso. Quando David voltou eu pedi perdão, o que mais eu podia fazer? Implorei na verdade para que ele me deixasse provar que estava arrependida. Acho que eu tinha medo de que ele me deixasse. Foi quando ele disse que devíamos nos casar. Eu não me lembro o que respondi, ou se respondi. Mas David tinha total controle sobre tudo. Ele dizia que íamos ficar juntos para sempre, que só esperaria eu fazer 18 anos e que nos casaríamos. Então a mãe do garoto foi na minha casa. Ela queria saber quem eu era e porque David tinha batido no filho dela. E ela sacou, não sei como, talvez por ele ser tão possessivo. Ela disse que ia denunciar David à polícia e David pediu que eu lhe dissesse que estava ali porque queria. E eu disse. Ainda lembro do olhar de nojo dela... Acho que foi quando consegui vislumbrar meu relacionamento com David pelos olhos dela. E percebi quão sujo era. Errado.

“Quando ela saiu, David disse que tínhamos que ir embora. Que ela podia mesmo o denunciar e que se ele fosse preso, nunca mais nos veríamos.”

— Foi quando teve o acidente?

Sacudo a cabeça em afirmativa, incapaz de falar.

— Sinto muito...

— Por que está pedindo desculpas?

— Porque David era seu pai...

— Não! Este cara... Este homem que você está descrevendo não pode ser meu pai, não podemos ter o mesmo sangue! Como ele pôde ter feito isso com você? Acho que já desconfiava que tinha alguma coisa errada e que podia envolver David, mas... Acho que eu ainda tinha esperança que estivesse enganado... — Sua mão solta a minha e ele se inclina para frente, segurando a cabeça entre as mãos.

Contemplo Alex em sua dor e há uma parte de mim que quer dizer que a culpa não foi de David. Que Nora tem razão e que talvez eu seja mesmo essa criatura que leva escuridão para onde vai.

Porém, já não tenho mais essa certeza. A verdade ainda é nebulosa dentro de mim, como envolta em tons de cinza agora e não mais escuro total.

Passei todos esses anos tentando apagar David da minha memória. Tentando esquecer o quão suja eu me sentia... Passei anos contemplando o passado com os olhos da menina de 14 anos que eu era.

E o fato de nunca falar e até mesmo pensar com clareza sobre o que aconteceu, fazia com que cada vez mais a real situação se tornasse mais imprecisa.

As palavras da terapeuta depois do meu desabafo voltam a minha mente. Ela havia perguntado se eu me sentia melhor depois de falar.

Não sei se melhor é uma palavra que se aplicava. Mas sentia uma espécie de alívio.

— É um bom começo.

— Mas isso não muda nada. Não muda o que aconteceu... O que eu me tornei...

— Nina, não há uma lista de soluções objetivas para seus problemas. A análise leva tempo. Assim como a cura. Mas o que você fez hoje, entrando aqui e me contando, já é um passo enorme. Falar é o primeiro passo. Agora nós duas vamos analisar o que aconteceu e você vai se abrir para outros lados dessa história. A primeira coisa que tem que entender é que a culpa não foi sua. — Ela se inclinara para frente, os olhos presos nos meus. — Foi abuso. Você era a vítima e não tinha como ter discernimento do que estava fazendo. Era frágil, uma criança. David abusou da confiança que você depositou nele, como único adulto presente e a fez acreditar que tinha que fazer o que ele pedia como prova de um amor totalmente deturbado. Mas foi errado. Ele é a pessoa que tem culpa.

Deixei suas palavras adentrarem em meu íntimo, era como se um edifício de memórias muito bem construído e sólido dentro de mim de repente começasse a estremecer, os alicerces perdendo a força, porque o que eu acreditava que os mantinha em pé, já não fazia sentido.

— Sei que é difícil entender com clareza agora, mas precisa começar abrir sua mente para a verdadeira situação pela qual passou. Infelizmente você não foi a primeira e nem a última, Nina. E é assim que eles agem. Eles a fazem sentir culpa, quando na verdade você não tem culpa de nada.

Agora, depois de horas daquela primeira sessão, a cada minuto que passa, mais sinto fragmentos desse prédio ruir.

E cada pedaço de concreto que desaba no chão, é como se um peso fosse tirado de cima de mim.

Não sei quanto tempo vai durar aquele processo, talvez a vida inteira. Mas agora eu quero que aconteça. Quero me livrar do máximo possível que eu consegui, até restar só os escombros, ou quem sabe um terreno vazio e pronto para ser construído uma nova Nina no lugar.

O corpo de Alex estremece em soluços e sinto sua desolação como se fosse a minha. Quando seu olhar captura o meu de novo está cheio de dor e confusão.

— Você deveria me odiar...

Não sei onde a mente dele está agora, mas imagino que no mesmo lugar confuso em que a minha se encontra.

— Por quê?

Nunca imaginei que houvesse motivos para odiar Alex. Meu ódio era direcionado para mim mesma.

— Eu deveria ter voltado. Deveria ter revirado a cidade a sua procura quando encontrei a casa vazia. Se soubesse como me arrependo agora de todos esses anos... de ter deixado você sozinha.

— Mas você me encontrou agora...

— E o que eu fiz? Fui tão nojento quanto ele.

Reconheço o asco na voz de Alex e de certa forma me surpreendo porque nunca tinha pensando no que fazíamos naqueles termos.

Ele cerra os punhos, inalando pela narina, o fúria o dominando.

— Eu sempre achei que tinha alguma coisa errada comigo. Minha mãe dizia... que havia um monstro em mim. E acho que agora eu sei. É ele. Talvez eu tenha esse gene horrível que faz ser tão asqueroso quanto ele.

— Alex... — Seguro sua mão, a dor projetando em mim quando ele desabafa.

— Agora entendo porque foi embora... No final, eu fui tão abusivo quanto ele. Eu a desejei e a machuquei.

— Não... Não tem nada a ver o que aconteceu entre nós com o que aconteceu com David ou... qualquer um dos outros homens. Eu quis que me machucasse porque eu me sentia culpada, porque me sentia suja e merecedora de punição. Sempre foi assim, e não entendo todas as nuances desses desejos ou como lidar com eles agora que sinto que talvez eu não seja culpada pelo o que David fez... Ou Elliott ou...

— Você não é culpada! Eles abusaram de você!

— Mas você não abusou de mim, Alex. Cada segundo que eu passei com você foi porque eu quis. E talvez eu já soubesse que era Will. Que nunca me machucaria de verdade, não como outros me machucaram. Mesmo agora, quando tudo o que acreditei começa a não fazer sentido, você ainda faz. Você é a única coisa que faz sentido pra mim.

— Eu tenho medo de ser um monstro. — Seu olhar é pura tristeza agora e ele se parece tanto com Will das minhas lembranças. O mesmo olhar desolado quando Nora o repreendia, quando ele chorava antes de dormir.

— Você não é um monstro. Nora mentiu pra você — dizer aquelas palavras faz me lembrar de mim mesma e de como Nora me fazia sentir.

E agora só me recordo do ódio em seu olhar.

— Não sei como me livrar disso — Alex sussurra e aperto seus dedos.

— Acha que podemos tentar... juntos? — expresso o desejo mais profundo do meu coração mesmo sabendo que talvez eu nunca seja totalmente curada de novo.

Não faço ideia do futuro. Do que vai acontecer daqui para frente, mas sei que estou cansada de viver naquele lugar escuro.

Cansada de sentir um remorso que nem deveria sentir. Ou talvez deva, mas ainda assim, eu quero viver.

Quero respirar. Quero aprender a sorrir.

Quero amar aquele cara na minha frente, mesmo que agora ele esteja tão afundado em remorsos e arrependimentos como eu.

— Não há nada que eu mais queira do que ficar com você, Nina. Eu só tenho medo de ser como os outros.

— Eu fui embora não porque te odiasse ou achasse que era como os outros, mas porque não queria que soubesse o alcance da minha escuridão. E que me odiasse por isso...

— Nada. Nunca. Me faria odiá-la.

Sua mão toca meus cabelos e eu me deixo levar para perto dele.

Uma chuva fina começa a cair e sem pensar muito me inclino sobre Alex, buscando seu calor e o cercando com o meu.

E de novo somos duas crianças perdidas buscando consolo uma na outra.

Então, deixo minhas memórias mais sombrias fluírem.

 

***

Naquela tarde eu entro na Fundação com Alex ao meu lado. Faz algumas horas apenas que estávamos revirando nosso mundo do avesso em frente ao lago e é surreal que ele ainda esteja aqui.

É como se eu estivesse em um novo mundo agora e ainda assim é o mesmo de sempre. Como se tudo fosse mais fácil e ao mesmo tempo mais difícil. Como acordar depois de um furacão que passou e destruiu tudo, mas percebemos que apesar do desastre, ainda estamos vivos. O coração ainda bate. E aceitamos que teremos que superar a tragédia e buscar forças para reconstruir tudo, tijolo por tijolo, numa calmaria triste.

Então, nos levantamos depois e seguimos, nos atendo em atitudes práticas. Alex me levou para casa para trocar as roupas molhadas por secas e depois, sem ele precisar pedir, eu o acompanhei até sua casa. Jacob estava lá, Alex me disse que Sebastian o trouxe ontem à noite.

Enquanto ele tomava um banho, brinquei com Jacob. Sorri um pouco. Era esquisito sorrir, mas também um bálsamo.

Eu lhe disse que queria ir à Fundação, sentia necessidade de ajudar aquelas crianças que, diferentemente de mim, ainda tinham uma chance de ter uma vida. Alex me acompanhou sem questionar.

Achei que ele ia querer ficar longe de mim, pelo menos por um tempo para absorver tudo, assim como eu achei que ia querer o mesmo, mas, como num acordo silencioso, prosseguimos juntos.

— Eu sempre ajudei Jack financeiramente, mas acho que nunca senti que podia ajudar vindo aqui — Alex diz quando estamos ajudando Sally no almoço das crianças.

— Olhar para elas me faz sentir esperança. Como se elas ainda tivessem uma chance que eu não tive. Passei tanto tempo perdida dentro do meus próprios traumas, sem me dar conta que tanta gente pode sofrer pela mesma coisa, ou até pior... Parece estranho falar isso, mas de alguma maneira, sempre tive a impressão que eu estava sozinha, que era a única a passar por tudo isso.

— Eu sei. — Alex aperta minha mão.

— Eu falei que iria conversar com a terapeuta, você vem comigo?

Alex parece incerto.

Mas sei que seja o que for que eu tenha que falar, quero falar para ele também.

E acho que Alex também tem muito a falar sobre seus próprios demônios.

— Tem certeza?

Eu sorrio tristemente.

— Quem mais vai segurar minha mão?

E enquanto caminhamos juntos, penso que sempre achei que não tinha sorte.

Mas eu tenho sorte de ter Alex. Temos sorte de ter um ao outro.

Alex não me odeia.

Ele ouviu tudo, o meu segredo mais obscuro, e ainda está aqui. Segurando minha mão.

 

Já está escuro quando Alex dirige pela cidade, depois de sairmos da Fundação.

— Quer que eu a leve para sua casa?

Sacudo a cabeça em negativa. Alex está quieto, parece ainda incerto e de certa forma eu o entendo.

Alex vive em um novo mundo agora. Um mundo em que ele está descobrindo que a monstruosidade que sempre acreditou que existia dentro dele, não é nada perto da monstruosidade real do que aconteceu comigo.

Do mundo em que eu vivi até agora e que Alex tomou conhecimento hoje.

Chegamos em seu apartamento e Jacob nos cumprimenta fazendo festa. Alex parece ausente quando diz que precisa retornar uma ligação, depois de olhar um recado no celular.

Pergunto-me se é Aria. Ou sua mãe.

Fico ali brincando com Jacob até que percebo que já passou muito tempo. Eu me levanto, caminho pelos corredores silenciosos à procura de Alex.

Eu o encontro em frente daquela porta que uma vez eu implorei para ele abrir. O lugar onde deixava sua violência dominar os sentidos e virar prazer.

Alex parece atormentado ali, perdido.

Eu me aproximo e enterro a cabeça em suas costas largas, meus braços o envolvendo.

— Eu não sei como lidar com isso agora... — Sua voz vacila.

— Tem um monte de coisa que não sabemos lidar agora...

— O que acha que devo fazer?

Parece estranho Alex perguntar aquilo pra mim, quando é algo que ele faz bem antes de nos reencontrarmos.

Eu sei que as motivações para eu querer aquele lado de Alex eram nebulosas, e sabia que eu só estava engatinhando no caminho de autodescoberta e que chegaria a hora de lidar com aquela questão, mas não podia negar que ainda exercia uma atração sobre mim.

Talvez porque fosse Alex. E qualquer coisa que viesse dele era bem-vinda.

Mas como eu lhe disse, não precisamos lidar com essa questão agora.

Alex se vira e me leva para perto, a intensidade em seu olhar faz meu mundo derreter.

— Eu não quero nunca machucar você.

— Você não conseguiria...

Ele parece angustiado quando toca meus braços, meu rosto...

— Só de pensar em alguém te fazendo sofrer... É como se eu estivesse em agonia.

— Então me faça esquecer...

Alex me beija e me leva para cama.

Tirando minha roupa e tocando cada centímetro da minha pele, o lado bonito, o lado feio, e deixando sua marca em mim, que apaga qualquer outras que estavam ali antes.

A partir de agora eu quero lembrar só disso.

Do toque de Alex. Do gosto de Alex.

Do coração de Alex batendo no mesmo ritmo que o meu quando mergulha em mim, seu olhar preso no meu.

E desta vez ele não precisa pedir que eu fique.

Eu estou aqui inteira.

De corpo, alma e coração.

Um coração onde a escuridão começa a desvanecer, finalmente.

— Estou aqui. — Sorrio entre lágrimas, que Alex capta com seus lábios, até tocá-los nos meus.

— Eu amo você, Nina...

Fecho os olhos e deixo suas palavras acariciarem minha alma ferida e ainda sinto Alex me beijando devagar enquanto sussurra.

— Diga...

É a ordem mais doce do mundo e eu obedeço num murmúrio que vem do fundo do meu peito.

— Eu amo você, Alex...

 


Capítulo 11

 

 

Nina

 

— Aonde você vai? — Abro os olhos na manhã seguinte ao ver Alex sair da cama, posso ver que mal amanheceu lá fora.

— Eu vou correr.

— Eu quero ir com você, mas não tenho roupas aqui.

Ele sorri.

— Vamos até sua casa então.

Nós nos levantamos e enquanto coloco as mesmas roupas que vestia no dia anterior, questiono-me como será a partir de agora neste novo mundo onde todas as verdades estão expostas à luz do dia.

Sinto meu peito se apertar. Lembranças do passado. Medo do futuro. Minha respiração fica difícil.

— Nina?

Alex me chama em algum lugar do apartamento e volto ao presente, lutando para acalmar as batidas do meu coração.

Ainda há tanta sombra dentro de mim e tenho que encarar que elas ainda vão continuar ali por um bom tempo. Talvez algumas delas fiquem para sempre.

Mas pelo menos vejo uma luz entrando por uma pequena fresta. Iluminando o suficiente para me guiar por outros caminhos.

Não posso mudar o passado. Não tenho como prever o futuro, mas posso viver o presente.

Alex me espera na porta, estende a mão e eu a seguro.

 

Quando entro em meu apartamento, é como se estivesse entrando na casa de outra pessoa.

— Nina? — Alex me chama antes que eu vá para o quarto me trocar.

— Sim?

— Por que não faz uma mala para passar uns dias comigo?

Mordo os lábios, incerta, porém sabendo que é o que eu quero fazer.

— Tudo bem.

— Talvez um mala bem grande? — Há um sorriso hesitante em seu rosto que me faz sorrir também.

— Ok.

Faço minha mala e descemos para colocá-la no carro. A ideia é ir correr e depois pegar o carro do Alex ali e voltar pra casa.

— Você vai para a Black hoje?

— Eu deveria. Mas a Black pode sobreviver sem mim alguns dias — responde distraído enquanto descemos no elevador e então me fita. — E você?

— Eu? Não acha que posso voltar a Black agora, não é? — Eu gostava do meu trabalho na Black, mas não seria nem um pouco apropriado trabalhar com Alex. A gente já teve uma amostra de que a atração que sentíamos tornava o fato de sermos profissionais bem difícil.

— É, acho que não — ele concorda quando saímos para o saguão.

De repente me dou conta de que terei também que decidir o que fazer da vida. Voltar àqueles empregos sem sentido já não parece interessante pra mim. Não que me importasse antes, mas agora tenho vontade de fazer alguma coisa que eu realmente goste.

— Você pode fazer o que quiser. — Alex aperta minha mão quando chegamos em frente ao carro, como se lesse meus pensamentos.

Ele abre o porta-malas e joga minha mala lá e então seu celular toca, e parece contrariado ao ver o nome na chamada.

— Quem é?

— Aria.

— Não deveria atender?

— Não...

— Eu acho que deveria atender. — Não sei por que digo isso, mas Aria é irmã de Alex, mesmo tendo aquele passado entre eles. Ainda são família.

Uma família que não gosta de mim, penso, estremecendo ao me lembrar não só de Aria, mas também de Nora.

E ainda assim, a família de Alex.

Se eu pensava em ficar com ele, como poderia me colocar entre eles?

Minha alegria se arrefece um pouco enquanto vejo Alex decidir atender.

Eu me afasto um pouco, para lhe dar privacidade e para que ele não veja que estou perturbada.

— Sinto muito, parece que tenho uma emergência familiar. — Alex abre a porta do carro pra mim e eu entro, confusa.

Ele senta no banco do motorista.

— O que aconteceu? — indago enquanto ele dá partida.

— Aria diz que é algo com a minha mãe. Sobre sua saúde. — Alex está um tanto aflito. — Ou pode ser alguma artimanha da Aria.

— Ela costuma fazer isso?

— Costuma me manipular quando quer algo, e eu sempre sei que é isso e mesmo assim eu vou.

— Por quê?

— Porque eu sinto culpa. — Ele parece falar para si mesmo.

— Pelo o que aconteceu com vocês?

— Sim.

Não sei o que dizer.

Aquele assunto é entre Alex e Aria.

A vida dela seguiu, ela se casou e tem duas filhas, mas não parece ter superado Alex.

Como é que alguém supera Alex, me pergunto?

— Posso te deixar em casa — sugere.

— Não, eu vou com você. — Decido sem nem mesmo pensar.

Estremeço de receio de ir até a casa dos Black. A casa de Nora.

Talvez ainda tenha um resquício daquela Nina criança dentro de mim, que queria ter a aprovação de Nora.

Sei que é praticamente impossível, mas há um impulso em mim de tentar.

Ela é a mãe de Alex afinal.

Alex estaciona em frente a uma bonita mansão e quando saímos do carro ele entrelaça a mão na minha e me puxa para dentro.

As meninas nos encontram primeiro, vindo gritando em nossa direção, abraçando Alex que as recebe com um sorriso como sempre.

— Ei, não deveriam estar na escola? — Alex diz, mas elas já estão agora me abraçando como fizeram com Alex, animadas.

— Sim, elas já estão saindo — Aria surge descendo as escadas. Seu olhar vai de mim para Alex e não disfarça sua censura. — Brittany está esperando no carro, meninas — ela diz às filhas que acenam e se afastam para encontrar a babá.

— Por que a trouxe? Que matar a sua mãe de vez? — Aria questiona quando as meninas saíram.

— Que merda está falando? Disse que tinha um assunto urgente sobre a saúde da minha mãe...

— Sim, venha comigo. — Ela nos leva até uma sala elegante e lá pega alguns papéis em cima de uma escrivaninha entregando a Alex, enquanto mantém o olhar de desdém em mim. — Se não estivesse tão preocupado em correr atrás dessa garota, poderia ter percebido que Nora está muito doente!

Olho para Alex, que lê os papéis empalidecendo.

— O que é isso?

— É o que está vendo! Charlotte me contou sobre os papéis que viu com Nora e eu a confrontei. Mas sabe como é sua mãe, sempre fazendo pose! Provavelmente ela deve estar guardando essa informação para quando quiser usar para se beneficiar de alguma maneira.

— Para de fazer insinuações ridículas! — Alex a interrompe. — Segundo esses papéis minha mãe tem um tipo avançado de câncer!

Coloco a mão na boca, entendendo a apreensão de Alex.

— Pois é! E você aí, com essa... garota e sem se importar com Nora! Brigou com ela por causa dessa...

— Pare de ofender a Nina, agora! — Alex dá um passo em direção a Aria.

— Alex, pare. — Seguro seu braço, tentando acalmá-lo.

Aria ri.

— Bem que Nora tinha razão então! Está disposto a brigar com todo mundo da família por causa dela...

— Você não sabe as merdas que está falando e eu já estou de saco cheio!

— O que está acontecendo aqui?

Nós três nos viramos para a porta da sala onde Nora surge.

Ela ainda é a mesma mulher bem vestida da outra vez que a vi e seu olhar cheio de raiva se prende em mim enquanto avança.

— Como teve coragem de trazer essa vadiazinha aqui?

Alex respira fundo. Aperto minhas mãos em volta do seu braço, tentando fazer com que ele não perca a calma, enquanto eu mesma estremeço com a raiva que Nora me ataca.

— Eu não falei para ele trazê-la aqui! — Aria diz. — Mas tive que ligar e contar que você tem câncer!

Nora finalmente vira a atenção para Aria.

— Não era da sua conta...

— Ele é seu filho e tem que saber! Mesmo estando fora de controle ultimamente e sabemos muito bem por culpa de quem!

Nora se vira para nós de novo.

— Não quero essa garota na minha casa!

— Nina está comigo e vai ficar. Melhor se acostumar. — Há mais calma na voz de Alex agora, embora ele ainda trema de tensão.

Ele dá alguns passos em direção à mãe.

— Estou aqui para saber sobre seu estado de saúde. Por que escondeu que está doente?

— E agora você se importa? Achei que só se importasse com essa daí! Uma menina que seduziu seu próprio pai e agora está virando sua cabeça também...

Meu rosto enrubesce de vergonha e Aria crava os olhos arregalados em mim.

— Como é?

Começo a tremer e sinto dificuldade de respirar.

— Você me decepciona, Alex, como pode, depois de tudo o que fiz por você, depois de tudo o que ela aprontou, separando seu pai de nós e...

— Você que me decepciona! Eu não sei o que o meu pai te falou, mas não tem ideia do que Nina passou! Do que ele fez com ela...

— Ah é isso que ela disse? — Nora solta uma risada. — Ela inventa essas mentiras e você acredita...

— Gente, alguém me explica... — Aria indaga confusa, mas Nora e Alex continuam a discutir.

— Você é inacreditável... — ele esbraveja. — David abusou da Nina!

— Essa putinha seduziu David!

— Cale a boca!

A discussão emudece e leva alguns segundos para eu perceber que o grito veio da minha própria garganta.

Respiro por arquejos, enquanto a fúria cresce dentro de mim com a força de um vulcão prestes a entrar em erupção.

— Cale a sua maldita boca. — A ira rasteja em mim voz enquanto avanço em sua direção. — Como pode defendê-lo?

Nora arfa indignada.

Sei que Alex está perto, está falando alguma coisa, mas não o escuto.

— Como ousa? Como ousa inventar essas mentiras para meu filho, sua...

Antes que ela termine minha mão levanta como se por vontade própria e estapeio Nora.

Seu rosto vira com a força do meu ataque.

Eu enxergo tudo vermelho.

O ar parece suspenso na sala por alguns segundos, acho que escuto Aria gritar e no minuto seguinte, Alex segura meus ombros e percebo que estou agredindo Nora ainda, com socos e pontapés, enquanto grito.

— Nina, pare! — Alex me puxa, mas estou fora de mim e continuo a me debater.

Aria está segurando Nora, a levando para longe de mim.

— Você me deixou com um monstro! — Meus gritos agridem meu próprio ouvido, mas não consigo parar. — David era um monstro e você me deixou sozinha com ele! O que faz de você pior do que ele!

Os soluços rompem meu peito, enquanto vou enfraquecendo contra Alex.

Nora está me encarando descomposta, o rosto manchado por minhas mãos.

— Eu só queria que me amasse... queria que fosse minha mãe, que me protegesse, mas você foi embora... e me deixou com ele... com um homem que abusou de mim... que me obrigou a fazer sexo com ele repetidas vezes, quando eu tinha só 14 anos! Me transformou em um monte de lixo! E você o defende por causa de um ciúme que não tem o menor sentido... Você deveria ter me protegido... Mas preferiu ir embora e me deixar com um abusador!

Nora ainda sacode a cabeça em negativa.

— Sim, David era um abusador! E acho que você sabia, mas preferiu fingir que não sabia! Preferiu abandonar uma criança com esse homem em nome de um amor doentio e nojento! É tão nojenta quanto ele! Você é um monstro!

— Eu amei David e você o roubou de mim! Ele transferiu o amor que tinha pela sua mãe para você!

— Eu era uma criança! Acha que eu entendia esse tipo de amor doentio de David? Esse amor doentio que você sente por ele? Acha que tenho culpa que se tornou uma mulher amarga e horrível que diz para o próprio filho que ele é um monstro? Alex não tem culpa se David não a amou! Eu não tenho culpa também...

Caio contra Alex, que me abraça.

— Shi, chega... chega... — Alex sussurra pra mim. — Acabou.

Deixo que ele me leve embora da casa dos Black, completamente exaurida.

Mas não arrependida.

 

 

Alex

 

Observo Nina ressonando, depois de chorar até dormir.

Ainda me sinto assustado com seu ataque a Nora, mas de alguma forma, acho que ela precisava daquilo.

Eu mesmo não tinha que me controlar em frente aos arroubos da minha mãe?

E Nina tinha razão em estar com raiva.

Eu também estava com raiva.

Na verdade eu ainda estou com raiva.

Raiva de Nora. Raiva de David.

Raiva de mim mesmo.

Até agora, ainda tenho que lutar para não ficar repassando as confissões de Nina na minha mente como um looping assustador. De certa maneira, acho que eu já intuía, só não queria acreditar. Era monstruoso demais.

Dolorido demais.

Pensar que meu próprio pai, que devia amá-la e protegê-la, fora capaz de deturpar aquela relação a um ponto hediondo.

Nunca fui próximo a David, mesmo antes de Nina surgir, ele sempre foi um homem distante comigo. As brigas constantes entre minha mãe e ele me faziam ficar longe deles. Nora sempre foi a figura dominante.

Porém, eu o amei como um filho ama o pai, tentei entender que era seu jeito taciturno que o fazia não ser dado a arroubos de carinho. Então Nina surgiu e ele claramente se tornou um pai para ela muito melhor do que era pra mim. Por amar Nina também, não me importei. Concluí que ela precisava daquele amor mais do que eu, mesmo porque minha mãe não era capaz de dar nenhuma atenção a ela.

Quando fomos embora, acreditei que Nina estaria protegida com ele. Que ela até mesmo estaria melhor sem a raiva da minha mãe a lhe oprimir.

Agora, o arrependimento me corrói por dentro. Se eu tivesse voltado. Se eu tivesse ao menos percebido... Mas como, se eu também era uma criança?

Porém, os anos passaram e eu a deixei esquecida na minha memória. Segui minha vida. Me tornei um homem com tendências sexuais violentas. E esse traço do que me tornei chegou até Nina. Quando tudo o que ela menos precisava era de mais um homem a usá-la.

Ela tinha dito que eu não fui como os outros. Eu queria acreditar, mas ainda tinha minhas dúvidas.

Tinha dúvidas se o gene ruim de David não estava em mim, afinal.

Não quero tirar mais nada dela. Não quero que se sinta coagida, ou usada.

Abusada.

Se ela dissesse que queria que eu fosse apenas seu amigo, eu o seria.

Mas ela está aqui, na minha cama.

Porque é onde quer estar e enquanto ela quiser, é onde estará.

E eu vou lutar contra qualquer monstro — os meus e os dela, principalmente — para mantê-la segura.

 

A campainha toca em algum momento e me levanto, sabendo que só pode ser alguém da minha família para ter passado direto pela portaria.

E ao abrir a porta me deparo com Aria.

— Oi... Posso entrar? — Ela parece abatida e nervosa.

Embora não esteja com paciência para Aria no momento, eu deixo que entre.

Ela se senta no sofá, noto que suas mãos estão trêmulas.

— O que você quer, Aria? Sinceramente, se veio falar da Nina...

— Sinto muito pela Nina — ela me interrompe. — Pelo o que ela passou. Eu não fazia ideia.

Estudo seu rosto, para saber se está falando sério.

— Realmente se importa?

— Não sou essa pessoa horrível, Alex...

— Mas odeia a Nina.

— Não odeio a Nina, nem a conheço, eu... — ela olha para as próprias mãos por um momento e então volta a me encarar — eu tenho inveja dela.

Um baque de reconhecimento passa por mim.

Ou talvez eu sempre soube, todo aquele tempo, embora preferisse fingir que não.

O que aconteceu comigo e Aria foi há muito tempo. Um momento perdido na minha adolescência, que depois da desilusão eu tinha jogado para o fundo da minha memória. E a culpa que sentia era por tê-la agredido. Pelo o que minha mãe me acusou depois.

— Aria... Por que está aqui me dizendo isso?

— Eu sei que é errado ter este tipo de sentimento por você. Acha que eu não tentei me livrar disso?

— Por que está dizendo isso agora? Éramos adolescentes, e sim eu gostava de você e achei que gostava de mim, mas você transou com meu melhor amigo!

— Sinto muito...

— Não tem importância agora... — eu a interrompo, mas ela continua.

— Eu tenho inveja da Nina por ela poder amar você, por mais que tenham sido irmãos em algum momento, não há nenhum laço de sangue entre vocês...

— Do que está falando?

Ela me encara com os olhos atormentados.

— Nós somos irmãos, Alex...

— Aria...

— Aquele dia em que estávamos no armário... Quando eu disse que estava apaixonada por você, eu falei sério. Quando saímos de lá, Nora me abordou. Ela nos viu juntos. Estava... transtornada. Ela me levou até a biblioteca e disse que você era filho do meu pai.

— Não... isso não é verdade.

— Eu também queria que não fosse. Nora contou que era secretária do meu pai. Que eles tiveram um caso, que papai sempre foi apaixonado por ela, e que se casou com a minha mãe quando ela se casou com David. Ela mentiu para David para se casar com ele, porque ele queria deixá-la. Para ficar com outra mulher, acho que deveria ser a mãe de Nina, não é? Nora mentiu, mas ela achava que David sempre desconfiou, chegou a perguntar sobre isso, mas ela insistia que você era dele, porque não queria perdê-lo. Porém, Nina foi morar com vocês e ela ficou com raiva, por David trazer a filha da mulher que ele amou para dentro de casa e Nora resolveu lhe dar um ultimato. Meu pai nessa época tinha se divorciado da minha mãe e voltou a procurá-la.

Sento ao lado de Aria, perplexo, escutando aquela história que começa a fazer um assustador sentido.

O jeito que David nunca pareceu me amar de verdade.

O amor doentio da minha mãe...

— Seu pai... Seu pai sabia? — Não fazia sentido Christopher saber e não me contar naquela nossa última conversa.

— Não, ele nunca soube e Nora pediu que eu nunca contasse. Eu nem entendia... mas ela me manipulou. Disse que você amava o pai, e não queria te decepcionar. — Ela ri sem humor. — Eu também quis te proteger e talvez a mim mesma... Não concebia ver seu olhar por mim mudar... Preferia que me odiasse por ser uma vadia do que me tratar como irmã de verdade. Eu sentia nojo de ser sua irmã de verdade...

— Você deveria ter me contado!

— Eu sei... Agora eu sei. Eu carrego esse segredo há mais de dez anos. E nem sei porque. Hoje, quando Nina atacou Nora, dizendo todas aquelas coisas, comecei a ver a situação por outro prisma. Nora era uma manipuladora. Sempre foi... Ela joga com as pessoas. E de repente percebi que estava me tornando uma pessoa como ela. Amarga. Ruim... Por causa de um amor que é impossível.

Eu a envolvo em um abraço, enquanto ela chora.

Minha cabeça rodando, tentando achar um sentido naquela história macabra. Aria é minha irmã de sangue.

Agora suas atitudes naquela noite fazem sentido.

E ela guardou esse segredo, porque Nora pediu.

Mais uma vez Nora, manipulando a todos.

De repente outra percepção me toma.

Eu não sou filho de David. Não tenho seu sangue, seus genes.

Não sou como ele.

Eu sou um Black.

Um alívio agridoce me domina.

Aria se afasta depois de um tempo.

— Sinto muito...

— Não mais do que eu. — Ela se levanta.

— O que vai acontecer agora? Com Nora?

— Ela plantou o que colheu — digo com ressentimento. — Não posso deixar que ela continue a me dominar. Eu e Nina estamos juntos agora e não importa a opinião de Nora.

Aria sacode a cabeça com um sorriso triste.

— Acho que é o melhor que você faz. Eu quero que você seja feliz, Alex. Acredita em mim?

Sacudo a cabeça em afirmativa.

— Quero que seja feliz, também, Aria.

— Acho que eu também quero.

 

Ela se vai.

Volto para o quarto e me deito ao lado de Nina.

Ela abre os olhos.

— O que foi? — Ela percebe minha perturbação.

Eu lhe conto tudo sobre David, Nora e Aria.

Deixo um choro de alívio e perda me dominar e Nina encosta a testa na minha, segurando minha mão em silêncio.

Ela não precisa dizer nada.

Saber que isso nunca vai mudar, que ela sempre estará ali, segurando minha mão e eu segurando a dela, faz tudo valer a pena.

O futuro é uma incógnita, mas agora que eu a encontrei, nunca mais a deixarei ir.

 

 


Capítulo 12

 

 

Nina

 

— Nina, pode vir aqui? — A voz de Maya me chama no fundo da sala e eu me levanto da cadeira, onde estava ajudando um garotinho de cinco anos a desenhar um barco.

— Está ficando muito bom, Harry. — Sorrio para a criança, me levantando e indo ver qual a dúvida de Maya.

Hoje ela desenha um Wolverine e a técnica dela está cada vez melhor.

— Uau, Maya, que demais! — elogio.

Ela sorri de volta confiante em seu talento e eu adoro ver isso, como ela está desabrochando e tendo confiança não só nas pessoas da Fundação que estão ali para ajudá-la, como nela mesma.

— Continue assim. Está ótimo.

Meu celular vibra no bolso e sorrio ao ver que é uma mensagem de Alex perguntando se já estou saindo. Respondo que estou saindo da Fundação e que caminharei até a Black para encontrá-lo.

Eu me despeço de Lee que está na porta da sala bem distraído com Lucy.

Lucy está fazendo trabalho voluntário na Fundação algumas vezes por semana, ao contrário de mim que fui contratada como professora da turma de Arte há três meses.

— Já estou indo — aviso, pegando minha bolsa e casaco.

— Estava aqui convidando o Lee para jogar bilhar com a gente no fim de semana. — Lucy pisca e seguro a risada, porque ela está tão a fim de Lee e o rapaz é muito tímido e não parece perceber. Mas certamente Lucy vai conquistá-lo sem ele nem mesmo perceber.

— Você estará lá Nina? — Lee se volta pra mim.

— Sim, eu e Alex estaremos lá. Até mais!

Na recepção, me despeço de Ronny que pede que eu coloque a touca porque está bem frio.

— Vai mesmo andando? — É Jack que está entrando no prédio, o cabelo despenteado pelo vento e me encarando com censura. — Está muito frio.

— Gosto do frio. — Sorrio para ele, enquanto visto o casaco.

— Deveria ter um carro, o seu namorado podia lhe dar um carro de presente.

— Não quero um carro. Seria um desperdício.

— Eu posso te dar um se seu namorado é sovina.

Puxo o capuz para minha cabeça, enquanto Jack abre a porta para mim.

— Estou bem assim.

Ele estuda meu rosto por um momento.

— Está mesmo bem?

Hesito por um instante, analisando aqueles últimos meses.

Se eu estava bem o tempo todo? Não.

Ainda tinha dias bons. Dias ruins.

Mas, cada vez mais eu aprendia a lidar com os dias ruins e esperar pelos bons.

— Agora? Estou. E você?

Ele também hesita, uma sombra toldando seu olhar.

— Acho que vamos ficar. Mande lembranças ao Black.

Saio do prédio, puxando o capuz do casaco e enfrentando o frio de Chicago.

Gosto de sentir o vento no meu rosto. O Crepúsculo está caindo e apresso o passo, não querendo deixar Alex esperando.

Este é meu momento preferido do dia quando deixo a Fundação cansada de um dia de trabalho, às vezes um tanto sensibilizada por causa de alguma questão com as crianças que nem sempre era fácil de lidar, às vezes abalada por minhas próprias questões tratadas na terapia ou apenas um dia difícil emocionalmente, e vou ao encontro de Alex.

Estamos juntos efetivamente há três meses, mas parece anos.

Quando chego em frente a Black, olho de um lado para o outro e nem sinal de Alex, lhe mando uma mensagem e ele diz que uma questão o manteve preso no escritório, mas que descerá para me encontrar em vinte minutos.

Estou digitando uma resposta quando alguém chama meu nome.

— Nina?

Levando a cabeça para ver Oliver.

Ele parece hesitante ao se aproximar.

— Nossa, quanto tempo, tudo bem com você?

— Sim, tudo bem — respondo no automático.

— Eu fiquei sabendo... De você e Black. — Há um certo tom de censura na sua voz, que me irrita um pouco. Assim como seu olhar ainda cheio de interesse que ele não consegue disfarçar. — Foi por isso que saiu da empresa?

— Também. — Sou evasiva.

Oliver não tem nada a ver comigo e Alex.

— Você parece bem... Está bonita.

Engulo a bile na minha garganta, lembranças de como eu tinha me comportado com Oliver voltando a minha mente.

Como eu achei que devia ficar com ele. Com achei que devia isso a ele.

Como pude ter sido tão idiota?

Este pensamento me deixa mais calma e forço minha respiração a sair normalmente.

— Obrigada. Agora se me der licença, vou entrar e esperar o Alex.

Estou me afastando, mas Oliver segura meu braço.

— Ei, Nina, me desculpe, eu... Será que a gente pode ser amigo, não sei...

— Não, não podemos.

Minha resposta direta o pega de surpresa.

Eu me afasto de sua mão.

— E, por favor, não toque em mim, não te dei permissão.

— Nossa, calma.

— Olha, Oliver, você acha que eu te devo alguma coisa porque gosta de mim, mas isso é um problema seu. Eu não tenho esses sentimentos por você e nem quero ser sua amiga quando você obviamente quer mais.

— Por causa do Alex...

— Não por causa do Alex, mas porque eu não quero. E é isso. Então, se me der licença.

Caminho para longe dele como se tivesse vencido um jogo decisivo.

Ainda sinto meu estômago embrulhado, ainda há um resquício de culpa pelo que vi no seu olhar.

Mas não é problema meu. Não sou responsável pelos sentimentos de Oliver.

Antes de entrar no prédio, vejo Hannah saindo.

Seu rosto se ilumina ao me ver.

— Oi, Nina, que saudade.

Ela se aproxima e me abraça e por um momento me sinto sem jeito pelo seu gesto efusivo, mas me obrigo a não afastá-la.

Eu já dei passos gigantescos para fora do meu casulo, mas ainda é estranho às vezes aceitar certos gestos.

Assim como Oliver, não vejo Hannah desde que deixei a Black.

— Você está ótima! — Ela me analisa. — E devo dizer que não fiquei surpresa quando Alex contou que estavam juntos?

— Não? — enrubesço. Imagino o escândalo que deve ter sido na Black que o CEO estivesse romanticamente envolvido com a secretária.

— Estava meio óbvio depois que você sumiu que Alex estava louco por você, claro que nem falei nada, porque não era da minha conta, mas torci para que voltasse e resolvessem os problemas de vocês. E quando ele me contou que estavam juntos e que realmente não ia voltar pra Black, fiquei feliz por vocês. Fazem um casal bonito.

— Imagino que deve ter sido a fofoca do ano... — comento constrangida ainda.

Alex não havia me contado nada sobre isso, apenas avisou que havia contado há algumas pessoas próximas dele na empresa nosso status de relacionamento.

— Alex foi bem discreto, mas sabe como é, né? As notícias correm e todo mundo ficou sabendo e foi surpreendente porque o Alex nunca se envolveu com nenhuma secretária. Depois o assunto morreu. Sabe quem ficou brava? A Kelly.

— Ah meu Deus. — Nem lembrava mais da ex-secretária de Alex.

— Ela ficou tão brava. Mas acho que serviu para perceber que o fato do Alex não ter correspondido aos sentimentos dela não era só porque ela era a secretária, mas porque não tinha que ser mesmo. E ela acabou pedindo demissão, acho que já faz uns dois meses que saiu da Black.

— Bom pra ela.

— Sim, é o que eu disse ao Jeremy. Tem que seguir em frente! E você ia gostar da nova secretária do Alex. Sonya é ótima.

Alex havia me contado que sua nova secretária era uma senhora de cinquenta anos, casada e avó. Não queria parecer a namorada ciumenta, mas fiquei aliviada, porque Alex era bonito demais para sua própria segurança.

— Alex me disse que está trabalhando na Fundação para crianças do Jack White?

— Sim, estou. Dou aula de arte.

— Que interessante. Nem sabia que era formada em arte.

— Não sou, larguei a faculdade antes de me formar.

— Ah, mas nunca é tarde pra terminar. Ah, preciso ir. Daqui a algumas semanas será meu chá de cozinha, vou te convidar!

— Estarei lá.

Ela me abraça de novo em despedida e desta vez eu não me sinto tão constrangida.

Ela se afasta e decido esperar Alex na River Walk, pois ele avisou que já está descendo.

Alguns minutos depois ele caminha em minha direção e está começando a cair alguns pingos de chuva.

Sinto meu coração se expandindo quando sorri pra mim antes de chegar perto o suficiente para me beijar.

— Desculpa te fazer esperar.

— Não tem problema, ainda temos tempo.

— Está começando a chover, deveríamos pegar um táxi...

— O cinema é na rua de trás, Alex!

— Tudo bem, vamos então.

E como ele fez um dia, levanta seu casaco sobre nossa cabeça e corremos pela rua, rindo e fugindo dos pingos frios até que chegamos ao cinema.

— Hoje é minha vez de escolher — ele diz olhando a programação.

— Tudo bem.

Como tinha prometido um dia, Alex está enchendo nossos dias de programas culturais como cinema, shows e até mesmo em um jogo de basquete ele tinha me levado.

Eu nunca tive vontade de fazer aquelas coisas, de simplesmente me distrair com um filme, ou uma partida de algum jogo interessante.

Agora, eu percebo quanto tempo perdi.

E é bom fazer aqueles programas com Alex, como um casal normal.

Acho que é isso, somos mesmo um casal normal, ou pelo menos tentamos ser.

 

Quando o filme termina, Alex e eu vamos jantar e ele me conta como foi seu dia na Black e eu conto como foi meu dia na Fundação.

Às vezes Alex tirava um tempo para ajudar lá também.

— Cansada? — Ele acaricia meu cabelo quando deito a cabeça em seu ombro no elevador.

— Um pouco.

Entramos em casa e ainda é um tanto surreal que agora eu more ali com Alex.

Eu havia me mudado em definitivo há um mês, sendo que antes disso já passava todas as noites com Alex e não opus resistência quando ele sugeriu que eu me mudasse de vez.

Como poderia dizer não? Eu amava dormir e acordar ao lado de Alex e também não tinha nenhum sentimento por meu apartamento.

— Sinto falta do Jacob — comentei quando entramos e o cachorro não pulou em nós como costumava fazer. A verdade é que Jacob era o cachorro da irmã do Alex e depois que voltou à cidade, Charlotte o tinha levado embora.

— Vou arranjar outro cachorro pra você. — Ele ri se aproximando e me abraçando. — Ou prefere um gato?

— Podemos ter os dois?

— O que você quiser. — Ele me beija e qualquer pensamento foge da minha mente.

Porém, se afasta antes que eu me empolgue.

— Tenho que ir ao hospital.

Eu assinto.

— Tudo bem.

Alex me beija de leve uma última vez, antes de se afastar e volta a sorrir.

— Pode me esperar sem roupa.

Sorrio com a sugestão.

— Na sala de jogos?

— Vou deixar você escolher.

No fim, havíamos voltado a sala de jogos de Alex depois de algum tempo de terapia para entender.

— Não necessariamente a sexualidade que os praticantes de BDSM têm é doentia. Na verdade, pode ser uma opção de vida, por gosto por essa prática, e não por causa de algum trauma. Não que não tenha havido algum problema na vida do praticante. Geralmente houve um problema sim, mas acabou formando um adulto que gosta de certas coisas. Entende? — a terapeuta havia explicado. — A diferença entre esse adulto que escolheu ser praticante de BDSM e aquele que é explorado é a possibilidade de escolha. Justamente isso. Se a prática faz a pessoa ter prazer, é saudável. Se a pessoa sente culpa ou desconforto fazendo isso, então precisa ser analisado, porque temos um problema.

Então, eu e Alex havíamos decidido ir devagar, testar nossos limites e ver até onde nos sentimos à vontade com nossos próprios desejos. A questão era ver se eu me sentiria mal depois, como costumava acontecer.

Mas eu não me senti.

Eu me senti segura, porque era Alex ali comigo.

Alex se afasta e pega as chaves do carro e então eu me aproximo, obedecendo uma vontade que tinha começado a se manifestar há alguns dias.

— Posso ir com você?

Alex fica surpreso com meu pedido.

— Tem certeza? Não precisa fazer isso.

— Eu quero fazer — eu lhe garanto.

 

O Chicago Mercy é um dos hospitais mais conceituados do país e é onde Nora Black está internada há algumas semanas, desde que seu estado de saúde piorou.

Depois da nossa discussão e das revelações de Aria, Alex havia se afastado da mãe de vez e se recusava a falar com ela.

Porém, quando sua situação de saúde tornou-se precária, Alex sofreu um baque e percebi o quanto estava sofrendo.

— Acho que você tem que ficar com a sua mãe — eu havia lhe dito enquanto o via se debater em dúvida. Eu entendia que era difícil para ele perdoar Nora depois e tudo, mas ela ainda era a mãe dele e em breve não estaria mais ali. — Não por ela, sinceramente, mas por você. Se a deixar ir sem falar com ela, se não ficar perto nesses últimos momentos, pode se arrepender depois.

Alex havia concordado e desde então passava algumas horas na companhia de Nora no hospital toda a noite.

Eu nunca ia junto. A briga com Nora ainda me dava pesadelos e embora eu tentasse esquecer tudo o que ela me fez, era difícil.

Porém, o estado de Nora estava cada vez mais debilitante e Alex disse que ela estava sofrendo muito. Isso o fazia sofrer também, por mais que ele dissesse que não. Então, decido que quero estar com ele. Que ele precisa de mim para segurar sua mão enquanto a mãe se vai.

Agora, acompanho Alex pelos corredores até o quarto de Nora, mas ao chegar lá, sinto que não deveria estar ali. Não estou preparada.

— Posso te esperar na cafeteria? Acho que preciso tomar um café para esquentar.

Alex concorda, e sei que ele entende.

O hospital àquela hora está quase vazio. Caminho até a cafeteria e pego um café, me sentando em uma das mesas.

Deixo meu olhar vagar em volta para algumas pinturas abstratas na parede. Meu olhar de artista apreciando as cores e pinceladas.

— São da minha mulher.

Um médico senta na minha mesa, segurando um copo de café.

É um homem bonito de uns trinta e poucos anos.

— Não entendi?...

Ele sorri.

Nossa, ele é bem bonito mesmo.

— Esses quadros foram minha mulher quem pintou.

— Ah, entendi agora. Sim, ela tem muito talento, doutor...

— Thomas Hardy. — Ele toma o resto do café. — Gosto de vir aqui na folga dos plantões. É como se pudesse vê-la.

— Não deve ser fácil ficar aqui à noite, acredito. — Eu me solidarizo com ele.

— Não é, mas é a profissão que escolhi. Minha esposa também era médica, mas largou para cuidar das nossas filhas. Temos duas e mais uma a caminho — diz orgulhoso —, mas pra ela foi fácil, nunca curtiu muito ser médica. Ela queria mesmo pintar.

— Eu sou professora de arte — eu me vejo dizendo.

— Interessante.

— Trabalho com crianças órfãs em uma Fundação.

— Que louvável. Me diga qual é que vou falar para Liz dar uma olhada. Ela vai gostar de ajudar.

— Nós sempre precisamos de ajuda.

Eu lhe digo onde fica a Fundação e ele pede meu telefone.

— Vou pedir para minha esposa te contatar...

— Nina, Nina Giordano.

Ele sorri.

— É o nome da minha filha mais velha.

Sorrio de volta.

— Você está aqui a essa hora... Alguém próximo doente?

— Sim, a mãe do meu namorado. Câncer.

— Câncer é uma merda. Minha filha teve leucemia.

— Sinto muito.

— Mas ela sobreviveu. É uma lutadora. — Ele sorri. — A mãe da minha esposa morreu de câncer há cerca de um ano. Foi rápido e inesperado. Minha esposa ficou devastada, porque as duas não se falavam, sabe, problemas de família, Bárbara era uma mulher terrível e manipuladora. Pelo menos Liz pôde ficar com ela nos últimos momentos e a perdoou por tudo. Não pela Bárbara que era uma víbora, sinceramente, mas por ela mesma.

— É o que eu disse, ao meu namorado. A mãe dele também não é... fácil.

Algo deve ter transparecido na minha voz, pois o médico estreita o olhar.

— Mas você não a perdoa.

Dou de ombros, desviando o olhar.

— É difícil.

Ele se levanta, terminando seu café.

— Um conselho. Perdoe. Por você também. Eu também tive que perdoar Bárbara e a vida seguiu. Nós que sobrevivemos que temos que lidar com isso, para não ficarmos como quem se foi, cheio de amargor.

Ele se afasta e eu fico pensando no que disse.

Eu me levanto depois de terminar meu café e vou até o quarto de Nora.

Ela está desacordada e eu fico meio perturbada de estar ali, como se fosse uma intrusa. Alex está ao seu lado, ajeita o travesseiro da mãe, toca sua mão quando ela acorda e parece estar sentindo dor.

Nora não parece mais aquela mulher bonita que um dia foi. Seu rosto está pálido e a pele desgastada. Todos os cabelos tinham ido embora e está muito magra. Alex havia me explicado que o câncer começou no pâncreas e que se espelhou.

— Eu vou conversar com o médico — diz abatido e sai do quarto.

Eu me aproximo e sento na cadeira onde ele estava.

Nora abre os olhos e focaliza em mim, por um momento acho que ela não está me reconhecendo.

— Você está cada dia mais parecida com Linda.

Eu me surpreendo com sua voz vacilante. Ela está falando da minha mãe.

— Era ela bonita, mas eu também era. Trabalhávamos juntas. Nos tornamos amigas, até que David surgiu. Eu o amei no primeiro instante, mas ele só tinha olhos para Linda. Depois que ela o rejeitou, David finalmente virou seus olhos para mim. Eu achei que ele era meu. Estava tão apaixonada... Mas aí ele terminou comigo. E eu descobri que eles estavam juntos. Linda e David. Sua mãe aceitou namorar com ele, mesmo sabendo que eu o amava. Ah, a raiva que eu senti... Como ela podia ter feito isso comigo? Eu me envolvi com o Christopher por despeito. E quando descobri que estava grávida, disse a David que o filho era dele. Linda saiu de cena, ela se sentia tão boa por ter liberado o caminho para mim! Mas eu sabia que ela não passava de uma vadia. Seu pai era meu amigo. Eu praticamente o joguei em cima de Linda para que ela se afastasse de vez e acabou que deu certo. Linda e Elly se apaixonaram e foram embora da cidade. David ficou arrasado, mas eu prometi a mim mesma que ia fazê-lo se apaixonar por mim. Eu achei que ele era meu, mas aí você apareceu.

O você sai cheio da velha repulsa que ela sente por mim.

Queria que não doesse tanto ainda.

— Sei os absurdos que disse ao meu filho, mas David era um homem bom. Se ele fez o que fez foi porque se sentiu compelido por este amor que devotava a Linda e depois transferiu a você... Sim, eu sei que era só uma criança. Eu tenho pensado muito nisso, se tenho alguma culpa. Se deveria ter insistido mais para David se livrar de você... Se não devesse ter ido embora e lutado por ele e assim ele nunca teria se sentido tentado...

Fecho os olhos, a dor projetando em meu peito. Nora não se arrepende. A mágoa está tão incrustada dentro dela que é mais forte que o câncer que a consome.

Mas eu não quero ser assim.

Abro os olhos e focalizo em seu rosto alquebrado.

— Não posso fazer nada para te convencer sobre a verdadeira realidade do que aconteceu. Do quanto eu sofri com David, e talvez ele só fosse um homem fraco e amargo e você também não passe de uma mulher fraca e amarga. Por isso eu te perdoo. Você não me destruiu, Nora. E nem David. Eu te perdoo porque não quero viver como você. Consumida pela mágoa, até morrer assim... Eu quero viver. Quero seguir em frente. Quero esquecer ou pelo menos conviver com as lembranças ruins sem que elas me consumam até virar um câncer.

Eu me levanto, enxugando meu rosto.

— Espero que parta em paz. Porque é o que eu sinto agora.

 

Nora morreu um mês depois.

Alex não está chorando, mesmo assim, seguro sua mão em todo o caminho no cemitério, enquanto o caixão de Nora é baixado, na presença de poucos amigos e familiares dos Black. Alex está triste, mas sei que há certo alívio em seu peito. Ele já estava se despedindo dela há tempos, já tinha chorado tudo o que tinha para chorar, e agora é seguir em frente.

Ele fez o que julgou certo até o último momento, se mantendo ao lado da mãe, que partiu em uma manhã fria de inverno levando consigo sua mágoa de amor não correspondido.

Aria está ali ao lado de Charlotte e as duas abraçam Alex.

Assim com Sebastian e Jack e outros amigos que vieram prestar suas condolências.

Depois que todos se vão, só ficamos eu e Alex, olhando o túmulo fresco sob a chuva fina.

— Tudo bem? — Acaricio seu braço por cima do casaco escuro e ele assente.

— Vai ficar...

Nós nos viramos e caminhamos por entre as lápides.

— Podemos ir ao túmulo do David? — peço.

Alex havia me dito que David estava enterrado naquele cemitério e isso tinha me deixado perturbada, porém agora sinto vontade de vê-lo pela última vez.

Alex me guia por entre os túmulos até o de David.

Não sei bem o que sinto quando estou ali.

As memórias do David que foi bom pra mim naqueles primeiros anos se mesclam ao David possessivo e louco dos últimos.

Deixo todas elas saírem. As lembranças boas e as ruins, sentindo um certo alívio quando as ruins já não machucam tanto.

— Eu te perdoo, David — murmuro porque sinto que é algo que tenho que fazer.

Por mim.

Por Alex.

Pela vida que ainda temos pela frente.

Alex aperta meus dedos.

— E você se perdoa?

Eu descanso meus olhos nos dele e então deixo a última lembrança de David se libertar.

 

Estamos na estrada há algum tempo. E cada hora que nos afastamos de Chicago mais desespero eu sentia. Paramos em um posto para abastecer e David perguntou se estava bem, se queria alguma coisa.

“Se eu quero alguma coisa? Será que se eu pedir para me deixar ir, ele deixará? Ele não sente que isso está errado?”

Apenas acenei em negativa, sentindo-me sem saída.

Quando voltamos para o carro, pedi para dirigir quando vi que David estava bebendo.

Eu ainda não tinha carteira, mas estava tomando aulas há algumas semanas.

— Eu estou bem.

— Por favor — implorei.

David acabou concordando.

Eu não sei se já sabia o que ia fazer quando entramos no carro.

Mas cada quilômetro percorrido na estrada escorregadia pela neve, mais a sensação de inevitabilidade ia se instalando em mim...

— David? — eu o chamei.

Ele estava com os olhos fechados, recostado no banco.

— Sim?

— Por que somos assim? — Minha voz vacilou.

— O que está dizendo?

— Não sente que somos errados? Que este amor... é errado?

— Não, Nina, não diga isso!

— Minha mãe um dia me disse que o amor era como o arco-íris...

— O que está dizendo... — Senti o desespero em sua voz.

Mas o desespero dentro de mim já estava sem controle mesmo antes que eu pisasse fundo no acelerador.

— Não podemos viver assim.

— Nina, desacelera...

Sacudi a cabeça em negativa.

— Eu te amo, David... Você é a única pessoa que me restou, mas não posso mais viver assim... Preciso matar seu amor por mim. E meu amor por você... Porque, este tipo de amor não foi feito para colorir, e sim para manchar tudo com escuridão.

Os gritos de David rivalizavam com os gritos dentro de mim quando atravessei a estrada para encontrar o abismo.

Ficamos suspensos no ar como em câmera lenta, e por um ínfimo de segundo senti paz, por saber que finalmente encontraria meu pai e minha mãe em algum lugar.

Mas eu ainda estava viva quando acordei um tempo depois, o carro capotado, David gemendo cheio de sangue ao meu lado.

Eu me desesperei por vê-lo daquele jeito, chamando meu nome em agonia.

— David... Sinto muito... — eu repetia enquanto conseguia me mover e puxá-lo para fora do carro. Deitei sua cabeça em meu colo e chorei observando seus últimos momentos de vida.

Desejando ter morrido junto com ele e não ter que ficar naquele mundo onde teria que conviver para sempre com a culpa.

 

Volto ao presente, com Alex me abraçando, e luto para respirar.

Eu havia confessado meu pecado mais profundo a Alex naquele dia no lago, e mesmo assim ele tinha me perdoado.

— Eu o matei, Alex. Eu matei o David...

— Você queria morrer também... — Havia angústia em sua voz. — Meu Deus, Nina.

— Eu sobrevivi, para conviver pra sempre com este remorso.

Alex me abraçou e chorou comigo.

E quando ele me encarou de novo, havia determinação feroz em sua voz.

— Me escuta. Você fez o que tinha que fazer. David era um abusador. — Sua voz vacilou, talvez por ter se dado conta naquele momento que estava falando do seu pai, ou pelo menos o que achava ser até então. — Você apenas queria se ver livre... Não foi sua culpa, foi um ato de defesa. De desespero.

— Você não me odeia?

— Não....

— Acha que pode haver perdão para mim?

— Eu não tenho que te perdoar. Quem tem que se perdoar é você...

— Mas como eu esqueço?...

— Você está viva e merece ser feliz. Não importa o que tenha feito. Eu vou estar sempre ao seu lado. Nós vamos superar qualquer coisa. Eu prometo.

 

Agora, olhando para o túmulo de David, com Alex ao meu lado, e o futuro a nossa frente, eu desejo mais do que nunca me perdoar.

E espero que um dia isso seja possível.

Sei que ainda é cedo. É um processo lento e doloroso, mas eu decidi que posso ao menos tentar. Porque quero seguir em frente e ser feliz como Alex disse que eu merecia.

E quero fazê-lo feliz também.

— Vamos pra casa? — Alex segura minha mão e beija meu rosto.

Suspiro, me despedindo de David para sempre agora. Desejando que ele tenha paz seja lá onde esteja, antes de descansar os olhos no homem que vai segurar a minha mão para sempre, sentindo o amor se expandindo em meu peito cheio de cores.

Finalmente.

— Sim, vamos.

Eu estou pronta para o arco-íris.

 

 


Epílogo

 

 

O sol está surgindo no horizonte com seus primeiros raios e eu suspiro fechando os olhos e deixando o calor banhar meu rosto enquanto corro.

— Ei, mantenha o ritmo. — Alex passa por mim, me dando um tapa na bunda.

— Estou apreciando o verão, finalmente!

— Achei que amasse o frio! — Ele diminui os passos para que eu o acompanhe.

Estamos passando pelo Lago Michigan agora, que parece ainda mais azul com os raios de sol sobre a água.

— Eu gosto de todas as estações.

De repente ele para e sem aviso me puxa para perto me beijando.

— Ei, o que foi isso? — murmuro, sem fôlego, mas com meus dedos já crispados em sua camisa.

Quando capturo seu olhar percebo que há uma sombra ali.

Eu e Alex estamos juntos há mais de um ano agora e eu reconheço todos seus humores.

Ele parece preocupado e ansioso com alguma coisa.

— O que foi?

— Queria te perguntar uma coisa.

Subo a sobrancelha, curiosa.

— O quê?

— Quando eu te fiz essa pergunta antes você... surtou.

Então eu entendo e dou um passo atrás, meu coração vacilando no peito.

— Eu tenho certo medo...

Ah Deus, sinto pena de Alex quando ele parece tão perdido e sorrio com lágrimas nos meus olhos.

— Vai em frente — encorajo.

Porque eu já respondi sua pergunta antes mesmo que ele tenha feito.

Ele sorri agora, o olhar cheio daquele amor que tira meu fôlego e me faz sentar na arquibancada de cimento, quando se ajoelha.

— Nina, quer casar comigo?

— Sim... — Soluço e ele me puxa, abraçando meu corpo trêmulo.

— Sério mesmo? — Ele me encara ainda meio surpreso.

— Acho que eu já sinto que estamos casados há tempos.

— Mas agora vai ser sério. Cerimônia e tudo o mais. Acho que podemos comprar uma casa e finalmente ter o seu cachorro e... — de novo seu olhar se torna incerto — crianças?

Sinto que meu estômago se aperta.

Alex acena com um futuro que há um tempo eu nem julgava que seria possível, mas este ano com ele foi mudando tudo.

Eu continuo na terapia e ainda tenho dias difíceis.

Porém, os dias bons estão cada vez melhores.

Como este agora.

Mas... Filhos?

— Eu estou apavorada agora... — confesso a Alex.

Que tipo de mãe eu seria?

Que exemplo eu tive?

Bem, eu tinha uma boa mãe antes de ela partir.

— Não estou falando que vou te engravidar amanhã, Nina Giordano. — Ele sorri do meu pavor. — Eu amaria ter filhos com você, mas se decidir que não quer, não faz diferença pra mim.

— Sério?

— Claro que sim. Nós já temos tanto...

Eu sorrio, comovida.

— Acho que ainda preciso de tempo, mas não vamos descartar a ideia...

Ele me beija devagar, seus dedos acariciando meus braços nus.

Mais uma mudança, não há mais cicatrizes novas, apenas as velhas.

E eu mostro meus braços para o mundo agora.

Assim como quero mostrar meu amor por Alex.

— Vamos nos casar logo — peço, interrompendo o beijo.

Alex ri e me puxa pela mão, agora não mais correndo.

— Não temos pressa. Temos a vida inteira.

 

 

                                                                  Juliana Dantas

 

 

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