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Planeta Criança



Poesia & Contos Infantis

 

 

 


BOEMIOS ERRANTES / John Steinbeck
BOEMIOS ERRANTES / John Steinbeck

                                                                                                                                                   

                                                                                                                                                   

 

 

Biblio VT

 

 

 

 

Esta é a história de Danny, de seus amigos e de sua casa. É a história de como esses três se tornaram uma coisa só, de tal maneira que, em Tortilla Fiat, se alguém fala da casa de Danny, não quer se referir a um prédio de madeira compensada, com uma caiação antiga, coberta por uma velha trepadeira não podada. Não, quando se fala da casa de Dan¬ny, fica entendido que significa um grupo composto de ho¬mens, do qual emana delicadeza, alegria, filantropia e, no fim, um arrependimento místico. Pois a casa de Danny não era diferente da Távola Redonda, e os amigos de Danny não eram diferentes dos cavaleiros pertencentes àquela. E esta é a história de como esse grupo se constituiu, como vi¬cejou e cresceu, tornando-se uma organização bela e sábia. Esta história conta as aventuras dos amigos de Danny, o bem que fizeram, seus pensamentos e empreendimentos. No final, esta história conta como o talismã foi perdido e como o grupo se desintegrou.
Em Monterey, velha cidade da costa da Califórnia, esses fatos são muito conhecidos, foram repetidos e, às vezes, enfeitados. Por isso, é bom que esse ciclo seja escrito, para que, no futuro, os estudantes, ao ouvirem as lendas, não possam dizer o que dizem de Artur, de Rolando e de Robin Hood: "Danny não existiu, nem seus amigos, nem sua casa. Danny é um deus da natureza, e seus amigos são símbolos primi¬tivos do vento, do céu, do sol". Esta história tem como ob-jetivo último afastar as zombarias da boca dos estudantes sarcásticos.

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Monterey fica na encosta de uma colina, acima de uma baía azul e à frente de uma densa floresta de enormes pi¬nheiros. As partes mais baixas da cidade são habitadas por americanos, italianos, pescadores e enlatadores de peixes. Mas na colina, onde a floresta e a cidade se misturam, onde as ruas não são asfaltadas e as esquinas não têm lampiões, os velhos habitantes de Monterey estavam preparados para o combate como os antigos bretões o estavam no País de Gales. Chamavam-se "paisanos".
Moravam em velhas casas de madeira, em meio a quin¬tais cobertos de ervas daninhas, tendo os pinheiros da flo¬resta como fundo. Os paisanos estavam isentos de comercia-lismo, livres do complicado sistema dos negócios america¬nos, e, nada tendo que pudesse ser roubado, explorado ou hipotecado, aquele sistema não os atingiu muito fortemente.
O que é um paisano? É uma mistura de sangue espa¬nhol, índio, mexicano e caucasiano de várias procedências. Seus antepassados vivem na Califórnia há mais de cem ou duzentos anos. Fala inglês com sotaque paisano e espanhol da mesma forma. Quando perguntado sobre sua raça, rei¬vindica, indignado, um puro sangue espanhol e levanta a manga da camisa para mostrar que a parte interna do braço é quase branca. Sua tez, da cor de um usado cachimbo de espuma-do-mar, é descrita por ele como bronzeada pelo sol. É um paisano e mora no íngreme distrito acima da cidade de Monterey denominado Tortilla Fiat, embora não tenha nada de plano.
Danny era paisano, cresceu em Tortilla Fiat, e todos gostavam dele, porém não se distinguia especialmente dos barulhentos garotos que viviam ali. Era aparentado de quase todos em Tortilla Fiat, pelo sangue ou por aventuras amorosas. Seu avô era um homem importante, dono de duas pequenas casas em Tortilla Fiat e respeitado por sua ri-queza. Se o jovem Danny preferia dormir na floresta, tra¬balhar em ranchos e tirar sua comida e vinho de um mundo relutante, não era por não ter parentes influentes. Danny era pequeno, moreno e aplicado. Com a idade de vinte e cinco anos, suas pernas tinham ás curvas exatas das ancas de um cavalo.
Ora, quando Danny fez vinte e cinco anos, houve a de-claração de guerra com a Alemanha. Danny e seu amigo
 
Pilon (Pilon, aliás, estava sempre incluído, ao ser acertado um trabalho: uma lambujem) estavam com dois garrafões de vinho quando ouviram falar da guerra. Big Joe Portagee viu o brilho dos recipientes por entre os pinheiros e foi juntar-se a eles.
À medida que o vinho baixava de nível nos garrafões, o patriotismo crescia nos três homens. E quando o vinho acabou, desceram a colina de braços dados, por camaradagem e segurança, e foram para Monterey. Na frente de um posto de recrutamento, deram fortes vivas à América e desafia¬ram a Alemanha a derrotá-los. Berraram ameaças ao Impé¬rio Germânico até o sargento recrutador acordar, vestir a farda e sair para a rua a fim de silenciá-los. Acabou alis¬tando-os.
O sargento colocou-os diante da sua escrivaninha. Pas-saram em tudo, menos no teste de sobriedade, e depois o sargento começou as perguntas por Pilon.
— Em qual das armas deseja se alistar?
— Pouco  me  importa  —  respondeu  Pilon,  alegremente.
— Acho que a infantaria está precisando de gente como você.
E alistou Pilon nela. Virou-se então para Big Joe, e ele foi ficando sóbrio.
— Para onde deseja ir?
— Quero ir para casa — retrucou Big Joe, triste.
O sargento alistou-o também na infantaria. Finalmente, encarou Danny, que estava dormindo em pé.
— Para onde quer ir?
— Hã?
— Para que arma?
— Que quer dizer com "arma"?
— Que sabe fazer?
— Eu? Qualquer coisa.
— Que fazia antes?
— Eu? Sou condutor de mulas.
— Ah, é? Quantas mulas pode guiar?
Danny inclinou-se para a frente, meio em dúvida, mas com ar profissional.
— Quantas tem?
— Umas trinta mil — respondeu o sargento.
— Pode pô-las em fila! — disse ele.
E assim Danny foi para o Texas, onde amansou mulas durante a guerra toda. Pilon foi para o Oregon com a infan¬taria e Big Joe, como mais tarde será esclarecido, foi para a cadeia.
 
Como Danny, de volta da guerra, tornou-se herdeiro e como jurou proteger os deserdados
 
Quando Danny voltou do exército para casa, soube que se tornara herdeiro e proprietário. O viejo, ou seja, o avô, morrera, deixando para Danny duas casinhas em Tortilla Fiat.
Quando Danny soube disso, ficou um pouco abatido pela responsabilidade de ser dono. Antes mesmo de ir olhar sua propriedade, comprou um garrafão de vinho tinto e be¬beu sozinho quase tudo. O peso da responsabilidade então o abandonou, e o que havia de pior em sua natureza veio à tona. Berrou, quebrou algumas cadeiras num bilhar da Al-varado Street e travou duas pequenas mas gloriosas brigas. Ninguém deu muita atenção a Danny. Por fim, suas vaci¬lantes pernas arqueadas o carregaram para o molhe aonde, àquela hora da manhã, os pescadores italianos começavam a chegar, com suas botas de borracha, a caminho do mar.
A antipatia racial sobrepôs-se ao bom senso de Danny. Ameaçou os pescadores.
— Sicilianos filhos da puta! — gritou, acrescentando:
— Escória da prisão. Cachorrada. — Continuou: — Chinga tu madre, píojo.
Meteu o polegar no nariz e fez gestos obscenos abaixo da cintura. Os pescadores apenas riram, acenaram com os remos e disseram:
— Olá, Danny. Quando voltou? Apareça hoje à noite.
Temos vinho novo.
Danny ficou indignado. Berrou:
— Pon un condo a Ia cabeza.
Eles responderam:
 
— Até logo, Danny. Até a noite.
Pularam para seus pequenos barcos e remaram, afas-tando-se. Então ligaram os motores e partiram.
Danny estava ofendido. Voltou para a Alvarado Street, aonde chegou quebrando janelas, e, no segundo quarteirão, um policial o segurou. O grande respeito de Danny pela lei fez com que não reagisse. Se não tivesse acabado de dar baixa do exército após a vitória contra a Alemanha, teria pegado seis meses de cadeia. Esse fato fez com que o juiz lhe desse só trinta dias.
Por isso, durante um mês, Danny ficou sentado em seu catre na cadeia pública de Monterey. Às vezes desenhava coisas obscenas nas paredes e às vezes ficava pensando na sua carreira militar. Ali naquela cela da cadeia pública, o tempo custava a passar para Danny. Vez por outra, metiam um bêbado na sua cela por uma noite, mas o crime quase não existia em Monterey, e Danny ficava só. A princípio, os percevejos o incomodavam um pouco, mas quando estes se acostumaram com ele e ele com suas picadas, passaram a conviver pacificamente.
Começou a fazer uma brincadeira divertida. Pegou um percevejo, esmagou-o contra a parede, fez-lhe um círculo em volta com um lápis e chamou-o "Prefeito Clough". Depois pegou outros e deu a cada um o nome dos
vereadores. Em pouco tempo, tinha uma parede inteira enfeitada com perce¬vejos esmagados, cada um com o nome de um figurão local. Desenhou orelhas e rabos neles e também narigões e bigo¬des. Tito Ralph, o carcereiro, ficou escandalizado. Mas não fez queixa porque Danny não incluiu a justiça que o conde¬nara nem os membros da polícia. Ele tinha um enorme res¬peito pela lei.
Certa noite, quando a prisão estava vazia, Tito Ralph foi até a cela de Danny com duas garrafas de vinho. Uma hora depois, saiu para buscar mais vinho e Danny foi com ele. A prisão era muito triste. Ficaram no Torrelli, onde compraram o vinho, até serem postos para fora. Depois dis¬so, Danny foi para o pinheiral, onde ficou dormindo, en¬quanto Tito Ralph voltou cambaleando para comunicar sua fuga.
Quando o sol ofuscante acordou Danny, por volta do meio-dia; ele resolveu esconder-se o dia inteiro para evitar a perseguição. Correu e abrigou-se numa sebe. Olhou por entre os arbustos como uma raposa caçada. E, de noite, depois que as normas foram cumpridas, saiu e voltou à sua ocupação.
A ocupação de Danny foi absolutamente direta. Diri¬giu-se à porta de trás de um restaurante.
— Tem aí um pão velho para o meu cachorro? — perguntou ao cozinheiro.
E enquanto aquela crédula criatura estava embrulhando o alimento, Danny roubou duas fatias de presunto, quatro ovos, uma costeleta de carneiro e um mata-moscas.
— Um dia lhe pagarei — disse Danny.
— Não precisa pagar por sobras. Se você não as levar,
eu as jogarei fora.
Ouvindo isso, Danny sentiu a consciência mais leve' pelo roubo. Se essa era a filosofia deles, aparentemente ele não era culpado. Voltou ao Torrelli, trocou os quatro ovos, a costeleta de carneiro e o mata-moscas por um copo cheio de bagaceira e voltou para o mato, a fim de preparar seu jantar.
A noite estava escura e úmida. A neblina pendia como farrapos de gaze dos pinheiros escuros que demarcavam os limites de Monterey. Danny baixou a cabeça e correu para o abrigo da floresta. Distinguiu à sua frente uma outra figu¬ra apressada e, quando a distância diminuiu, reconheceu o andar rápido do seu amigo Pilon. Danny era um rapaz ge¬neroso, mas lembrou que havia vendido toda a sua comida, com exceção dos dois pedaços de presunto e do pão ama¬nhecido.
— Não vou tomar conhecimento de Pilon — resolveu.
— Ele anda como se estivesse cheio de peru assado e coisas assim.
Então, de repente, Danny reparou que Pilon havia fechado o casaco carinhosamente sobre o peito.
— Oi, Pilon amigo! — gritou Danny.
Pilon aumentou as passadas. Danny começou a correr.
— Pilon, meu amiguinho! Aonde vai tão depressa?
Pilon resignou-se ao inevitável e esperou. Danny aproximou-se cautelosamente, mas seu tom era entusiástico.
— Procurei-o, mais querido dos amigos angélicos, pois olhe, tenho aqui dois grandes nacos de porco do próprio Deus e um saco de doce pão branco. Partilhe da minha fartura, Pilon, meu tampinha.
Pilon encolheu os ombros.
— Como queira — resmungou brutalmente.
Entraram juntos na mata. Pilon estava confuso. Finalmente, parou e encarou o amigo.
— Danny — perguntou com voz triste —, como soube que eu tinha uma garrafa de conhaque escondida no casaco?
— Conhaque? — gritou Danny. — Você tem conhaque? Talvez seja para uma velha mãe doente — disse, candidamente. — Talvez você a tenha guardado para o Menino Jesus, para quando Ele voltar. Quem sou eu, seu amigo, para avaliar o destino desse conhaque? Nem mesmo estou certo de que você o tenha. Além do mais, não estou com sede. Não beberei seu conhaque. Seja bem-vindo a este enorme porco assado que me pertence, mas, quanto ao seu conhaque, ele é seu.
Pilon respondeu duramente:
— Danny, não me importo de dividir meu conhaque com você, meio a meio. Tenho a obrigação de não deixar que você o beba todo.
Danny deixou o assunto morrer.
— Vou cozinhar este porco aqui na clareira e você
tostará os bolinhos que estão neste saco. Ponha seu conhaque ali, Pilon. Ali é melhor, onde o possamos ver e ver também um ao outro.
Acenderam uma fogueira, grelharam o presunto e co-meram o pão dormido. O conhaque diminuiu rapidamente na garrafa. Depois de comerem, acocoraram-se junto da fo¬gueira e tomaram delicadamente golinhos da garrafa, como abelhas exaustas. A neblina caiu sobre eles, cobrindo seus casacos de umidade. O vento sussurrava tristemente nos pi¬nheiros, acima de suas cabeças.
E pouco depois a solidão abateu-se sobre Danny e Pilon. Danny pensou nos amigos desaparecidos.
— Onde está Arthur Morales? — perguntou Danny, virando as palmas das mãos para cima e estendendo os braçOS — Morto na França — respondeu a si mesmo, virando as palmas das mãos para baixo e deixando os braços caírem, desalentado. — Morto pela pátria. Morto em terra estranha. Estranhos andam perto de seu túmulo e não sabem que Ar¬thur Morales jaz ali. — Tornou a virar as palmas das mãos para cima. — Onde está Pablo, aquele bom sujeito?
— Na cadeia — respondeu Pilon. — Pablo roubou um ganso e o escondeu no mato. O ganso bicou Pablo, que gritou e foi apanhado. Agora ficará na prisão durante seis meses.
Danny suspirou e mudou de assunto, pois percebeu que havia utilizado abusivamente o único conhecido apro¬priado para alimentar a conversa. Mas a solidão continuava dentro dele e pedia passagem.
— Aqui estamos nós — começou.
— . . .de coração partido — acrescentou Pilon, compassadamente.
— Não, isto não é um poema — falou Danny. — Aqui
estamos nós desabrigados. Demos nossas vidas pela nossa
pátria e agora não temos um telhado para nos abrigar.
— Nunca tivemos — completou Pilon, corrigindo-o.
Danny bebeu pensativamente, até que Pilon tocou em
seu braço e pegou a garrafa.
— Isso me faz lembrar — disse Danny — a história
daquele homem que tinha duas pensões de mulheres. . . —
Ficou de boca aberta. — Pilon! — gritou. — Pilon! Meu
patinho gordo, meu garotinho. Eu tinha esquecido! Sou her¬
deiro! Possuo duas casas.
— Casas de mulheres? — perguntou Pilon, esperan-
çoso. — Você é um bêbado mentiroso — prosseguiu.
— Não, Pilon. Estou dizendo a verdade. O viejo mor¬
reu. Sou o herdeiro dele. Eu, seu neto predileto.
— Você é o único neto — disse o realista Pilon. —
Onde ficam as casas?
— Você conhece a casa do viejo em Tortilla Fiat,
Pilon?
— Aqui em Monterey?
— Sim, aqui em Tortilla Fiat.
— Essas casas valem alguma coisa?
Danny recostou-se, exausto de emoção.
— Não sei. Esqueci que era dono delas.
Pilon ficou calado e ensimesmado. Sua tristeza aumen-tou. Atirou um punhado de folhas na fogueira, olhou as chamas crescerem freneticamente e depois morrerem. Du-rante muito tempo fixou o olhar no rosto de Danny, com profunda ansiedade, e depois suspirou ruidosamente mais de uma vez.
— Agora está acabado — disse, tristemente. — Agora
chegaram os grandes tempos. Seus amigos vão lamentar,
mas de nada adiantará.
Danny largou a garrafa e Pilon apanhou-a, colocando-a no colo.
— O que é que está acabado? — perguntou Danny.
— O que é que você quer dizer?
— Não é a primeira vez — continuou Pilon. — Quan¬
do a gente é pobre, pensa: "Se eu tivesse dinheiro, dividiria
tudo com meus amigos". Mas, assim que o dinheiro chega,
a caridade some. O mesmo se dará com você, meu antigo
amigo. Você foi guindado acima dos seus amigos. É um
homem de posses. Vai esquecer seus amigos, que dividiram
tudo com você, inclusive o conhaque.
Essas palavras preocuparam Danny.
— Eu, não! — gritou. — Jamais o esquecerei, Pilon.
— É o que você pensa agora — respondeu Pilon,
friamente. — Mas quando tiver duas casas onde dormir,
então verá. Pilon continuará um pobre paisano, enquanto
você comerá com o prefeito.
Danny ergueu-se dificultosamente e conseguiu manter-se em pé contra uma árvore.
— Pilon, juro, tudo o que é meu é seu. Enquanto eu
tiver uma casa, você terá uma casa. Me dá um gole.
— Preciso ver para crer — respondeu Pilon, com voz
desanimada. — Será uma coisa maravilhosa se acontecer.
Virá gente de todos os cantos para ver. E, além disso, a gar¬
rafa está vazia.
Como Pilon foi atraído pela ambição de posição, desistindo da hospitalidade de Danny
O advogado os deixou no portão da segunda casa, entrou no seu Ford e sacolejou colina abaixo, de volta a Monterey.
Danny e Pilon pararam defronte da cerca sem pintura e olharam com admiração para a propriedade, uma casa baixa, com restos de uma caiação antiga, janelas sem corti¬nas, vazias e opacas. Mas uma grande roseira vermelha co¬bria a varanda, e os gerânios do avô cresciam entre as ervas daninhas do jardim.
— Esta é a melhor das duas — disse Pilon. — E
maior que a outra.
Danny tinha uma chave mestra na mão. Entrou cuida-dosamente na varanda vacilante e abriu a porta. A sala estava exatamente como era quando o viejo morava ali. O calendário de 1906, com a rosa vermelha, a flâmula de seda na parede, com Fighting Bob Evans olhando do convés de um couraçado, o buque de rosas vermelhas de papel, as fieiras de pimenta vermelhas e alhos empoeirados, a estufa impermeável, as estragadas cadeiras de balanço.
Pilon olhou pela porta.
— Três quartos — disse, ofegante —, uma cama e
uma estufa. Ficaremos felizes aqui, Danny.
Danny entrou cautelosamente na casa. Tinha amargas recordações do velho. Pilon passou à frente dele e entrou na cozinha.
— Uma pia com torneira! — gritou. Abriu a torneira.
— Não tem água. Danny, você precisa fazer com que a
companhia ligue a água.
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Pararam e sorriram um para o outro. Pilon reparou que a preocupação com a propriedade se estampava no ros¬to de Danny. Nunca mais na vida aquele rosto estaria livre de preocupações. Nunca mais Danny quebraria janelas, agora que ele possuía janelas que podiam ser quebradas. Pilon tinha razão: ele crescera entre amigos. Seus ombros tinham se erguido para enfrentar a complexidade da vida. Mas um grito de dor escapou-lhe antes de abandonar para sempre sua existência velha e simples.
— Pilo» — disse,  tristemente —,  eu gostaria que
você fosse o dono e eu pudesse morar com você.
Enquanto Danny foi a Monterey tratar de ligar a água, Pilon ficou vagabundeando no quintal cheio de mato. Havia árvores frutíferas, raquíticas e escurecidas pela idade, retor¬cidas e quebradas pelo abandono. Havia alguns galinheiros no meio das ervas daninhas. Uma pilha de arcos de barril enferrujados, um monte de cinzas e um colchão encharcado. Pilon olhou, por cima da cerca, para o galinheiro da sra. Morales e, depois de um momento de reflexão, abriu alguns pequenos buracos na cerca para dar passagem às galinhas. "Elas gostarão de fazer ninhos no mato alto", pensou, bon¬doso. Ficou imaginando como fazer uma armadilha para evitar que os galos também entrassem, incomodassem as galinhas e as mantivessem afastadas dos ninhos. "Vamos viver felizes aqui", tornou a pensar.
Danny voltou indignado de Monterey.
— A tal companhia quer um depósito — informou.
— Depósito?
— É. Querem três dólares antes de tornarem a ligar
a água.
— Três dólares — anunciou Pilon seriamente — são
três garrafões de vinho. E quando ele acabar, pediremos em¬
prestado à sra. Morales, aí ao lado, um balde de água.
— Mas não temos três dólares para o vinho.
— Eu sei — respondeu Pilon. — Talvez possamos
pedir um pouco emprestado à sra. Morales.
A tarde passou.
— Vamos nos instalar amanhã — anunciou Danny.
— Amanhã começaremos a limpar e esfregar. E você, Pilon,
capinará esse mato e o jogará na ravina.
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— Esse mato? — gritou Pilon, horrorizado. — Esse
mato, não.
E explicou-lhe sua teoria sobre as galinhas da sra. Mo¬rales. Danny concordou imediatamente.
— Meu amigo — disse ele —, estou contente por
você ter vindo morar comigo. Agora, enquanto apanho um
pouco de lenha, você irá procurar alguma coisa para o jantar.
Pilon, lembrando-se do conhaque, achou isso injusto.
"Estou começando a depender dele", pensou, com amargura. "Minha liberdade em breve acabará. Logo me tornarei escravo por causa desta casa enganadora." Mas assim mesmo saiu à procura do jantar.
Duas quadras adiante, quase entrando no pinheiral, estava um frango plymouth rock ciscando a estrada. Havia chegado à idade adolescente em que a voz racha e as pernas, o pescoço e o peito ficam pelados. Talvez porque houvesse pensado de maneira caridosa a respeito das galinhas da sra. Morales, aquele frango despertou a simpatia de Pilon. Ca¬minhou devagar para o escuro pinheiral, e o animal correu à sua frente.
Pilon murmurou:
— Pobre bichinho desamparado. Deve estar muito frio
para você nesta madrugada, com o orvalho caindo e o ar
esfriando com o amanhecer. O bom Deus nem sempre é
muito generoso com os bichinhos.
E pensou: "Agora você brinca na rua, franguinho. Um dia, um automóvel o atropelará, e se o matar, será o melhor que pode acontecer. Poderá apenas quebrar sua perna ou sua asa. Então, por toda a sua vida, você se arrastará so¬frendo. A vida é muito dura para você, passarinho".
Mexia-se devagar e com cuidado. De vez em quando, o frango tentava voltar, mas Pilon estava sempre no lugar escolhido por ele. Finalmente, o animal desapareceu no pi-nheiral, e Pilon lançou-se atrás dele.
Para glória de sua alma, deve ser dito que nenhum pio de dor saiu daquela moita. O frango, para quem Pilon havia profetizado uma vida de dor, morreu pacificamente °u, pelo menos, silenciosamente. E isso não foi uma home¬nagem pequena à técnica de Pilon.
Dez minutos depois, saiu do bosque e voltou para a
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casa de Danny. O galeto, depenado e esquartejado, estava distribuído em seus bolsos. Se havia uma norma de conduta mais forte que qualquer outra para Pilon, era esta: nunca, em nenhuma circunstância, leve penas, cabeça ou pés para casa, pois, sem eles, uma galinha não pode ser identificada. Ao anoitecer, acenderam um fogo de agulhas de pi¬nheiro na estufa. As chamas subiram pela chaminé. Danny e Pilon, bem alimentados, aquecidos e contentes, sentaram-se nas cadeiras de balanço e embalaram-se suavemente. Ti¬nham usado um toco de vela durante o jantar, mas agora apenas a luz vinda das brasas da estufa dissipava a escuridão da sala. Para tudo ficar perfeito, a chuva começou a tambo¬rilar no telhado. Apenas algumas pequenas goteiras, e isso em lugares onde, afinal de contas, ninguém queria se sentar.
— É bom isto aqui — comentou Pilon. — Pense nas
noites em que dormimos ao relento. Isto é que é vida.
— É verdade, e é estranho — respondeu Danny. —
Durante anos não tive casa e agora tenho duas. Não posso
dormir em duas casas.
Pilon detestava o desperdício.
— Essa é uma coisa que vem me preocupando. Por
que você não aluga a outra casa? — sugeriu.
Os pés de Danny bateram no chão com estrondo.
— Pilon! — gritou. — Por que não pensei nisso?
— A ideia começou a criar raízes. — Mas quem quererá
alugá-la?
— Eu — disse Pilon. — Pagarei dez dólares por mês
de aluguel.
— Quinze — insistiu Danny. — É uma boa casa. Vale
quinze.
Pilon concordou, resmungando. Mas teria concordado com muito mais, pois sabia a importância de um homem que morava em sua própria casa. E Pilon ansiava por sentir essa importância.
— Então estamos acertados — concluiu Danny. —
Você alugará minha casa. Ah, eu serei um bom locador,
Pilon. Não importunarei você.
Pilon, com exceção daquele ano no exército, nunca possuíra quinze dólares em toda a vida. Mas, pensou, o
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aluguel só seria pago dali a um mês, e nunca se sabe o que pode acontecer num mês.
Ficaram se balançando diante do fogo. Depois de algum tempo, Danny saiu um instante e voltou com maçãs.
— De qualquer maneira, a chuva iria estragá-las —
justificou-se.
Pilon, para não ser sobrepujado, levantou-se e acendeu a vela. Foi ao quarto e, logo depois, voltou com uma bacia e um jarro, dois vasos de vidro vermelho e um punhado de penas de avestruz.
— Não é bom ter muitas coisas quebráveis em volta
— disse. — Quando se quebram, a gente fica triste. É muito
melhor nunca tê-las tido.
Arrancou um pedaço do papel de rosas da parede.
— Um presente para a senora Torrelli — explicou,
enquanto caminhava para a porta e saía.
Voltou logo depois, molhado de chuva, mas triunfante, pois exibia um garrafão de vinho tinto.
Discutiram acaloradamente mais tarde, mas nenhum deles se importou em saber quem venceu, pois estavam can¬sados com a excitação da jornada. O vinho os deixara meio sonolentos, e deitaram-se no chão para
dormir. O fogo apa¬gou-se. A estufa estalou e arrefeceu. A vela bruxuleou e expirou em sua própria gordura, emitindo pequenas fagulhas azuis de protesto. A casa ficou escura, silenciosa e tranquila.
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Como o veneno da posse agiu sobre Pilon e como o mal triunfou temporariamente sobre ele
No dia seguinte, Pilon foi morar na outra casa. Era exatamente igual à de Danny, só que menor. Tinha a mes¬ma roseira no alpendre, o quintal de ervas daninhas, as árvores velhas e infrutíferas, os gerânios vermelhos. . . e o galinheiro da sra. Soto bem ao lado.
Danny tornou-se um homem importante por ter uma casa para alugar, e Pilon subiu na escala social por ter alu¬gado uma casa.
É impossível saber se Danny esperava receber algum aluguel ou se Pilon pretendia pagá-lo. Se esperavam, ficaram ambos decepcionados. Danny nunca cobrou, e Pilon jamais o ofereceu.
Os dois' amigos estavam sempre juntos. Bastava Pilon chegar com um garrafão de vinho ou um pedaço de carne e era certa a visita de Danny. E, se Danny tinha a mesma sorte ou era tão esperto quanto Pilon, este passava uma noite dissoluta com ele. O pobre Pilon teria pago o aluguel se algum dia possuísse um níquel, coisa que nunca aconte¬ceu . . . pelo menos até que ele encontrasse Danny. Pilon era um sujeito honesto. Às vezes ficava preocupado pensando na bondade de Danny e em sua própria pobreza.
Certa noite, conseguiu um dólar, obtido de maneira tão espantosa que tratou imediatamente de esquecê-la, com medo de que a recordação o deixasse maluco. Um homem, de¬fronte do San Carlos Hotel, meteu-lhe um dólar na mão, dizendo: "Corra e traga-me quatro garrafas de ginger-ale. O hotel não tem". Essas coisas acontecem quase por milagre, pensou Pilon. Alguém confiou nele, sem se preocupar ou
 
fazer perguntas. Pegou o dólar e saiu correndo para dá-lo a Danny, mas no caminho comprou um garrafão de vinho e, com isso, atraiu duas garotas rechonchudas para sua casa.
Danny, passando por lá, ouviu o barulho e entrou, ale¬gre. Pilon caiu em seus braços e pôs tudo à disposição dele. E mais tarde, depois de Danny dar conta de uma das moças e de metade do vinho, houve uma briga realmente boa. Danny perdeu um dente e Pilon ficou com a camisa em farrapos. As garotas gritavam e chutavam qualquer dos homens que caíam. Finalmente, Danny levantou-se do chão e deu uma cabeçada na barriga de uma das moças, que saiu porta afora, coaxando como um sapo. A outra roubou duas panelas e seguiu-a.
Por um momento, Danny e Pilon lamentaram a perfí¬dia das mulheres.
— Você não sabe o que essas vagabundas são — disse
Danny, judiciosamente.
— Sei — respondeu Pilon.
— Não sabe.
— Sei.
— Mentiroso.
Houve uma nova briga, mas não tão boa.
Depois disso, Pilon ficou mais contente no que to¬cava ao aluguel não pago. Não havia sido anfitrião do seu locador?
Passaram-se vários meses. Pilon recomeçou a se preo¬cupar com o aluguel. E, com o passar do tempo, a preocupa¬ção tornou-se intolerável. Finalmente, em desespero, traba¬lhou um dia inteiro para Chin Kee, limpando lulas, e ganhou dois dólares. De noite, amarrou o lenço vermelho no pes¬coço, colocou na cabeça o venerando chapéu do pai e come¬çou a subir a colina para pagar os dois dólares a Danny, por conta.
Mas, no caminho, comprou dois garrafões de vinho. "Assim é melhor", pensou. "Se dou a ele erva viva, isso não exprime o quanto eu prezo o meu amigo. Mas um pre¬sente, sim. E direi a ele que os dois garrafões custaram cinco dólares." Aquilo era uma bobagem e Pilon sabia disso, mas perdoou-se. Ninguém em Monterey sabia o preço do vinho melhor que Danny.
 
 
 
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Pilon prosseguiu alegremente. Estava decidido. Seu na¬riz estava firmemente apontado para a casa de Danny. Seus pés moviam-se não rapidamente, mas tranquilamente na di-reção certa. Sob cada braço levava um saco de papel e den¬tro de cada um, um garrafão de vinho.
Era um crepúsculo avermelhado, aquela hora agradável em que a sesta acabou e a noite de prazer e conversa ainda não começou. Os pinheiros recortavam-se, muito escuros, no céu, e todos os objetos no chão estavam ocultos pela escuri¬dão. Mas a céu tinha o brilho embaçado de uma recordação. As gaivotas voavam preguiçosamente para os ninhos, nas ro¬chas marinhas, depois de um dia de visita às fábricas de peixe enlatado de Monterey.
Pilon era amante da beleza e um místico. Ergueu o rosto para o céu e sua alma desprendeu-se, integrando-se nos últi¬mos clarões do sol. Aquele Pilon não tão perfeito assim, que intrigava e brigava, que bebia e
praguejava, avançava lenta¬mente. Mas o Pilon anelante e luminoso elevou-se para as gaivotas, que batiam suas asas sensíveis no anoitecer. Aquele Pilon era belo, e seus pensamentos não eram maculados pelo egoísmo e a cobiça. E valia a pena conhecer seus pensa¬mentos.
"Nosso Senhor está no anoitecer", pensou. "Aqueles pássaros estão cruzando a fronte de Deus. Queridos pássaros, queridas gaivotas, como eu os amo a todos. Suas asas lentas acariciam meu coração como a mão de um dono gentil aca¬ricia a barriga de um cão adormecido, como a mão de Cristo acariciou as cabeças das criancinhas. Queridos pássaros", pen-sou, "voem para Nossa Senhora das Dores, com meu coração-aberto." E depois pronunciou as mais belas palavras que conhecia: "Ave Maria, gratia plena. . ."
Os pés do mau Pilon haviam parado. Na verdade, o mau Pilon tinha, naquele momento, deixado de existir (Ouça isto, anjo anotador!). Não havia, não houve ou jamais have¬ria uma alma mais pura que a de Pilon naquele instante. O buldogue feroz de Galvez aproximou-se das pernas nuas de Pilon, paradas solitárias na escuridão. Farejou e foi embora sem mordê-las.
Uma alma lavada e salva é uma alma duplamente em perigo, pois tudo no mundo conspira contra ela. "Até as
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palhas sob meus joelhos", diz Santo Agostinho, "gritam para me distrair da prece."
A alma de Pilon nem mesmo era à prova de suas próprias recordações. Pois, enquanto olhava os pássa¬ros, lembrou-se de que a sra. Pastano às vezes usava gaivo¬tas em seu iamales', e essa recordação o deixou esfomeado, e a fome fez sua alma desabar do céu. Pilon tornou a andar, mais uma vez uma astuta mistura do bem com o mal. O buldogue mau de Galvez virou-se rosnando e afastou-se, la-mentando agora ter permitido que a perfeita oportunidade das pernas de Pilon se fosse.
Pilon arqueou os braços para aliviar o peso das garrafas.
É um fato confirmado e registrado em muitas histórias que a alma capaz das maiores bondades também o é das maiores maldades. Que há de mais ímpio que um padre apóstata? Quem é mais carnal que uma virgem moderna? Este, porém, pode ser um problema de aparência.
Pilon, recém-voltado do céu, estava, embora não o sou-besse, singularmente receptivo a cada vento amargo, inclina¬do a cada influência má que abarrotava a noite ao seu redor. De fato, seus pés continuavam movendose em direção à casa de Danny, mas não havia nenhuma intenção nem convicção neles. Aguardavam o menor sinal para dar meia-volta. Pilon já estava pensando em como ficaria estupendamente bêbado se pudesse beber dois garrafões de vinho e, mais, em quanto tempo a bebedeira duraria.
Agora estava quase escuro. A estrada poeirenta não era mais visível, nem as valas em ambos os lados. Nenhuma conclusão moral pode ser tirada do fato de que, naquele momento, quando os impulsos de Pilon estavam tão preca-riamente equilibrados quanto uma pena entre a generosida¬de e o egoísmo, naquele exato momento, aconteceu de Pablo Sanchez estar sentado na vala ao lado da estrada, desejando ter um cigarro e um copo de vinho.
Ah, as preces de milhões, como precisam lutar e des¬truir umas às outras no seu caminho para o trono de Deus.
 __
1 Pamonhas de milho. (N. do T.)
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Pablo primeiro ouviu passos, depois viu um vulto bor¬rado e então reconheceu Pilon.
— Oi, amigo!  — gritou entusiasticamente. — Que
grande peso é esse que você carrega?
Pilon imobilizou-se e voltou-se para a vala.
— Pensei que você estivesse na cadeia — disse, aspe¬
ramente. — Ouvi falar a respeito de um ganso.
— Estive, Pilon — disse Pablo alegremente. — Mas
não fui bem recebido. O juiz disse que minha sentença não
seria boa, e a polícia disse que como mais que a ração de
três homens. Por isso — terminou com orgulho —, estou
em livramento condicional.
Pilon foi salvo do egoísmo. De fato, não levou o vinho para a casa de Danny, mas convidou imediatamente Pablo para partilhar dele na casa alugada. Se duas amplas trilhas partem da estrada da vida e só uma pode ser palmilhada, quem pode dizer qual a melhor?
Pilon e Pablo entraram alegremente na casinha. Pilon acendeu uma vela e trouxe dois potes de geléia para servir de copos.
— Saúde! — disse Pablo.
— Salud! — retrucou Pilon.
E, momentos após:
— Salud! — disse Pablo.
— Areia nos seus olhos! — disse Pilon.
Descansaram um momento.
— Su servidor — disse Pilon.
— Abaixo o buraco de rato — disse Pablo.
Dois garrafões é um bocado de vinho, mesmo para dois paisanos. Espiritualmente, o garrafão pode ser graduado assim: logo abaixo do gargalo do primeiro, conversa séria e concentrada. Cinco centímetros mais abaixo, suaves e tristes recordações. Sete centímetros mais, lembranças de velhos e agradáveis amores. Dois centímetros, pensamentos de amo¬res antigos e amargos. Fundo do primeiro garrafão, tristeza geral, esparsa. Abaixo do gargalo do segundo garrafão, desa¬lento pecaminoso e sinistro. Dois dedos abaixo, canto de morte ou ansiedade. Um polegar, qualquer canção que cada um conheça. A gradação pára aqui, pois a trilha se divide e não há certeza. Desse ponto em diante, tudo pode acontecer.
 
Mas voltemos à primeira marca, que trata de conversa séria e concentrada, pois foi aí que Pilon deu seu golpe.
  Pablo — disse ele —, você nunca se cansa de dor¬
mir em valas, molhado e sem lar, sem amigos e solitário?
  Não — disse Pablo.
Pilon amaciou a voz persuasivamente.
  Pois eu pensei, meu amigo. Quando era cachorro de
sarjeta, eu também, estava contente, pois não sabia como é agradável uma casinha, um telhado, um jardim. Ah, Pablo, isso é que é viver!
— É muito bacana — concordou Pablo.
Pilon atacou.
— Olhe, Pablo, você gostaria de alugar metade da
minha casa? Você nunca mais ficará ao relento nas noites
geladas. Ficará livre da areia dura do embarcadouro e dos
caranguejos que se metem em seus sapatos. Que tal morar
aqui comigo?
— De acordo — disse Pablo.
— Olhe, você só pagará quinze dólares por mês!  E
poderá usar a casa toda, menos minha cama. E todo o jar¬
dim. Pense nisso, Pablo! E se alguém lhe escrever uma carta,
terá para onde endereçar.
— Claro — disse Pablo. — É ótimo.
Pilon deu um suspiro de alívio. Ele não tinha percebido quanto a dívida para com Danny pesava em seus ombros. O fato é que ele estava plenamente convencido de que Pablo jamais pagaria aluguel algum que aliviasse sua vitória. Se Danny alguma vez pedisse dinheiro, Pilon podia dizer: "Pa¬garei quando Pablo me pagar".
Passaram para a segunda marca, e Pilon recordou-se de seu tempo feliz de criança.
— Sem preocupações, Pablo. Não conhecia o pecado.
Eu era muito feliz.
— Nunca fomos tão felizes desde então — concordou
Pablo, triste.
 
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Como Jesus Maria Corcoran, um bom homem, tornou-se um veículo involuntário do mal
A vida passava suavemente por Pilon e Pablo. Pela manhã, quando o sol brilhava sobre os pinheiros, quando a baía azul se agitava e reluzia lá embaixo, eles se levantavam preguiçosa e pensativamente da cama.
Era um momento de alegria silenciosa, de manhã en-solarada. Quando o orvalho reluzente molhava as touceiras de malva, cada folha exibia uma jóia que era bela, apesar de não ser valiosa. Não era hora para pressa ou alvoroço. Os pensamentos eram lentos, profundos e preciosos de manhã.
Pablo e Pilon, com suas calças e camisas de algodão, caminhavam como camaradas até a ravina que havia atrás da casa e logo depois voltavam, para sentar-se ao sol na varanda da frente, ouvir a corneta dos peixeiros nas ruas de Monterey e discutir, em tom vago e sonolento, os acon-tecimentos de Tortilla Fiat. Pois havia milhares de coisas importantes em Tortilla Fiat a cada volta que o mundo dava sobre si mesmo.
Estavam em paz, ali na varanda. Só os dedos de seus pés se mexiam nas tábuas quentes, quando as moscas pou¬savam neles.
— Se todo o orvalho fosse diamantes — disse Pablo
—, seríamos muito ricos. Ficaríamos bêbados a vida inteira.
Mas Pilon, sobre quem a maldição do realismo pesava incomodamente, acrescentou:
— Todo mundo teria diamantes às pampas. Não have¬
ria preço para eles, mas o vinho sempre custa dinheiro.
Agora, se chovesse vinho pelo menos durante um dia e
tivéssemos um tanque para encher, aí sim.
 
  Mas vinho bom — interrompeu Pablo. — E não
aquela zurrapa que você trouxe da última vez.
  Não paguei por ele — disse Pilon. — Alguém o
escondeu na grama perto do salão de danças. Que se pode esperar de vinho achado?
Sentaram-se e abanaram as mãos, sem prestar atenção, espantando as moscas.
  Cornelia Ruiz cortou o negro mexicano ontem —
comentou Pilon.
Pablo ergueu os olhos, meio interessado.
— Briga? — perguntou.
— Não, o negro não sabia que Cornelia havia arran¬
jado um novo homem ontem e tentou entrar. Então Cornelia
passou-lhe a faca.
— Ele deveria saber — disse Pablo, honestamente.
— Bem,  ele  estava  na  cidade  quando  ela  levou  o
homem novo.  O negro apenas  tentou entrar pela janela
quando ela trancou a porta.
— O negro é louco — disse Pablo. — Morreu?
— Não. Ela apenas lanhou seus braços. Cornelia não
estava zangada. Só não queria deixar o negro entrar.
— Cornelia não é uma mulher muito constante —
disse Pablo. — Mas, apesar disso, ainda manda rezar missa
por seu pai, morto há dez anos.
— Ele precisa disso — comentou Pilon. — Foi um
homem malvado e nunca pegou cadeia por isso, e ademais
nunca se confessou. Quando o velho Ruiz estava agonizando,
o padre foi dar-lhe conforto e Ruiz se confessou. Cornelia
conta que o padre estava amarelo como cera quando saiu
do quarto dele. Mais tarde, aquele padre disse que não tinha
acreditado em metade do que Ruiz confessou.
Pablo, com um movimento felino, matou uma mosca que pousara em seu joelho.
— Ruiz foi toda a vida um mentiroso — disse. —
Aquela alma precisa de muitas missas. Mas você acha que
uma missa tem valor quando o dinheiro que custa sai do
bolso dos homens que dormem embriagados na casa de
Cornelia?
Não
7~ Uma missa é uma missa — respondeu Pilon. —
interessa, a quem lhe vende um copo de vinho, onde
 
 
 
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você achou o dinheiro. E de onde vem uma missa não inte¬ressa a Deus. Ele apenas gosta delas, como você gosta de vinho. O padre Murphy costumava pescar o tempo todo, e durante meses a hóstia sagrada tinha gosto de cavala, mas nem por isso deixava de ser sagrada. São coisas que os pa¬dres explicam. Não temos que nos preocupar com isso. Estou imaginando onde poderemos arranjar uns ovos para comer. Seria ótimo comer uns ovos agora.
Pablo inclinou o chapéu sobre os olhos para evitar que o sol o incomodasse.
— Charlie Meeler me contou que Danny está com Rosa
Martin, a moça portagee.
Pilon empertigou-se, assustado.
— Talvez ela queira se casar com Danny. Essas por-
tagees querem sempre se casar e adoram dinheiro. Talvez
Danny comece a nos amolar, depois de casado, por causa do
aluguel.  Essa Rosa vai  querer vestidos  novos.  Todas as
mulheres querem isso. Eu as conheço.
Pablo também estava aborrecido.
— Quem sabe se formos falar com Danny. . . — su-
geriu.
— Talvez Danny tenha alguns ovos — disse Pilon.
— As galinhas da sra. Morales são boas poedeiras.
Calçaram os sapatos e partiram devagar para a casa de Danny.
Pilon parou e apanhou uma tampa de garrafa de cerve¬ja. Disse um palavrão e jogou-a fora.
— Um sujeito mau deixou isto aqui para desapontar
as pessoas — falou.
— Vi isso ontem de noite — disse Pablo.
Deu uma olhada num quintal onde as espigas de milho estavam maduras e tomou nota mentalmente da sua ma¬dureza.
Encontraram Danny sentado no alpendre da frente, por trás da roseira, mexendo os dedos para afastar as moscas.
— Ei, amigos — saudou-os, sem muito entusiasmo.
Sentaram-se ao lado dele, tiraram os chapéus e os sapa¬tos. Danny apanhou uma bolsa de fumo e papéis, entregan¬do-os a Pilon. Pilon ficou um tanto chocado, mas não fez nenhum comentário.
 
.  Cornelia Ruiz cortou o negro mexicano — disse.
 Ouvi falar — respondeu Danny.
Pablo comentou acidamente:
 Não há mais virtude nessas mulheres.
 . É um perigo dormir com elas — disse Pilon. —
Soube que há uma moça portagee aqui em Tortilla Fiat que pode dar a um homem algo de que ele não se esquecerá, se se der ao trabalho de estar com ela.
Pablo cacarejou, manifestando sua desaprovação. Abriu os braços.
— Que pode um homem fazer? — perguntou. — Não
se pode confiar em ninguém?
Encararam Danny e não viram qualquer sinal de alarme em seu rosto.
— A moça se chama Rosa — disse Pilon. — Não sei
seu sobrenome.
— Ah, você está falando de Rosa Martin — comentou
Danny, revelando pouco interesse. — Ora, que se pode espe¬
rar de uma portagee?
Pablo e Pilon respiraram, aliviados.
— Como vão as galinhas da sra. Morales? — pergun¬
tou Pilon, como que por acaso.
Danny balançou tristemente a cabeça.
— Morreram todas. A sra. Morales colocou vagens em
jarras e as jarras arrebentaram. Então ela deu as vagens às
galinhas, que morreram todas, sem exceção.
— Onde  estão  essas  galinhas  agora?  — perguntou
Pablo.
Danny fez um gesto negativo com dois dedos.
— Alguém disse à sra. Morales que não comesse essas
galinhas, pois poderia ficar doente, mas nós as raspamos
bem por dentro e as vendemos ao açougueiro.
— Alguém morreu? — perguntou Pablo.
Ninguém. Acho que aquelas galinhas estavam boas.
Talvez você tenha comprado um pouco de vinho
com o dinheiro dessas galinhas. . . — sugeriu Pilon.
Danny sorriu-lhe cinicamente.
~ Foi o que a sra. Morales fez, e eu fui ontem de n°ite à casa dela. É uma mulher de certa maneira interessan¬te e também não muito velha.
 
 
 
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O susto apoderou-se novamente de Pablo e Pilon.
— Meu primo Weelie disse que ela tem cinquenta anos
— comentou Pilon, irritado.
Danny abriu os braços.
— Que é que tem a idade dela? — perguntou filosofi-j
camente. — Ela está viva. Possui sua própria casa e tem
duzentos dólares no banco. — Aí Danny ficou meio atrapaj
lhado. — Eu gostaria de dar um presente à sra. Morales.
Pilon e Pablo ficaram olhando os próprios pés e fizeram f um esforço mental para aparar o que estava para vir. Mas, seu esforço de nada valeu.
— Se eu tivesse um dinheirinho — disse Danny —, |
eu compraria para ela uma bruta caixa de bombons. —(
Olhou significativamente para seus inquilinos, mas nenhum
deles se deu por achado. — Só preciso de um ou dois dóla-1
res — sugeriu. »J
— Chin Kee está secando lulas — informou Pilon.
— Talvez você possa limpar lulas durante meio dia.
Danny comentou intencionalmente:
— Não fica bem, para um homem que possui duas;
casas, limpar lulas. Mas talvez se um aluguelzinho fosse ;
pago...
Pilon levantou-se, zangado.
— Sempre o aluguel — reclamou. — Você quer nos
atirar na rua. . . nas sarjetas, enquanto dorme na sua cama
macia. Vamos, Pablo — continuou Pilon, com raiva —,
vamos arranjar dinheiro pára este sovina, para este judeu.
Saíram pomposamente.
— Onde   vamos   arranjar   dinheiro?   —:   perguntou
Pablo.
— Não sei — respondeu Pilon. — Talvez ele não peça
outra vez. — Mas a exigência desumana calou fundo em sua
paz interior. — Vamos chamá-lo de "judeu velho" quando I
o virmos — continuou. — Fomos amigos durante anos. f
Quando precisou, nós o alimentamos. Quando sentiu frio,]
nós o agasalhamos.
— Quando foi isso? — perguntou Pablo.
— Ora, nós teríamos feito isso, se ele precisasse e nós j
tivéssemos. Essa era a espécie de amigos que seríamos parai
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]e E agora ele joga fora nossa amizade em troca de uma caixa de bombons, para dar a uma velha gorda.
  Bombons não fazem bem à gente — disse Pablo.
Tanta emoção deixara Pilon exausto. Ele se sentou na vala da estrada, apoiou o queixo nas mãos e ficou descon¬solado.
Pablo também se sentou, mas apenas para descansar, pois sua amizade com Danny não era tão antiga e bela como a de Pilon.
O fundo da vala estava cheio de grama seca e de mato rasteiro. Pilon, olhando para baixo, em sua tristeza e seu ressentimento, viu um braço saindo de sob um arbusto. E então, ao lado do braço, um garrafão de vinho pela metade. Agarrou o braço de Pablo e apontou.
Pablo olhou.
— Talvez esteja morto, Pilon.
Pilon havia recuperado o fôlego e a acuidade visual.
— Se está morto, o vinho não vai lhe servir de nada.
Não pode ser enterrado com ele.
O braço mexeu-se, recolheu-se à moita e revelou o rosto sujo e a barba vermelha, desmazelada, de Jesus Maria Corcoran.
— Ei, Pilon, ei, Pablo — disse, com os olhos ene¬
voados. — Quê tomas?
Pilon desceu para junto dele.
— Amigo Jesus Maria! Você não está bem!
Jesus Maria sorriu docemente.
— Só bêbado — murmurou. Pôs-se de joelhos. —
Vamos tomar um gole, amigos. Um golaço. Há muito mais.
Pilon inclinou o garrafão sobre o cotovelo. Engoliu quatro vezes e mais de meio litro saiu do garrafão. Então Pablo tirou-lhe o recipiente das mãos e brincou com ele como um gato com uma pluma. Limpou a boca com a manga. Cheirou o vinho. Tomou três ou quatro golinhos prelimina¬res e deixou algumas gotas escorrerem da boca, para se tor¬turar. Finalmente, disse:
— Madre de Dios, que vino!
Ergueu o garrafão e o vinho tinto desceu alegremente Por sua garganta.
A mão de Pilon estendeu-se muito antes de Pablo poder
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tornar a respirar. Pilon exibiu uma suave e admirável con¬tenção para seu amigo Jesus Maria.
— Descobriu um tesouro na floresta? — perguntou.
— Algum figurão morreu e incluiu você no testamento,
amiguinho?
Jesus Maria era um filantropo, e a bondade vivia com ele. Pigarreou e cuspiu.
— Me dê um gole — disse. — Estou com a garganta
seca. Vou lhe contar como foi. — Bebeu sonhadoramente, J
comotim homem que tem muito mais vinho que tempo para
bebê-lo e que pode derramar um pouco sem remorsos. —
Eu estava dormindo na praia, há duas noites — disse. — Na
praia perto de Seaside. Naquela noite, as ondas mansas carre- J
garam um bote a remos até a praia. Ah, era um lindo bote
a remos, e os remos estavam lá. Embarquei e remei até 1 Monterey. Valia facilmente vinte dólares, mas era um nego- j cio demorado, e só consegui sete.
— Gastou o dinheiro?
— Estou lhe contando como foi — disse Jesus Maria
com dignidade. — Comprei dois garrafões de vinho, trou-
xe-os aqui para a floresta e depois fui conversar com Ara- |
bella Gross. Comprei para ela um par de calcinhas de seda
em Monterey. Ela gosta. . . são muito macias e cor-de-rosa.
E então comprei meio litro de uísque para Arabella, e então, | logo depois, encontramos alguns soldados e ela foi com eles.
— Ah, a ladra de dinheiro de um bom homem! —
gritou Pilon, horrorizado.
— Não — respondeu Jesus Maria, sonhador. — Afi¬
nal de contas, já estava na hora de ela ir embora. E então
vim para cá e dormi.
— Então não tem mais dinheiro?
— Não sei — respondeu Jesus Maria. — Vamos ver.
— Catou no bolso e apresentou três notas de um dólar
amarrotadas e um níquel. — Esta noite — continuou —-
vou comprar para Arabella Gross uma dessas coisinhas que
balançam de um lado para outro.
— Você  quer  dizer  bolsinhas  de  seda,  presas  por
um fio?
— Isso — respondeu Jesus Maria —, mas não tão
pequenas como você pensa.
 
Tossiu para limpar a garganta. Imediatamente, Pilon encheu-se de cuidados.
  £ o ar da noite — falou. — Não faz bem dormir
ao ar livre. Venha, Pablo, vamos levá-lo para nossa casa e curar seu resfriado. A doença dos pulmões começa assim, mas vamos curá-lo.
  De que estão falando? — perguntou Jesus Maria.
 Estou bem.
  É 0 qUe você pensa — disse Pilon. — Rudolfo
Kelling também pensava. E você mesmo foi ao enterro dele no mês passado. Angelina Vasquez também pensava. Morreu na semana passada.
Jesus Maria ficou apavorado.
— Você acha que é o quê?
— É esse negócio de dormir ao ar livre — disse Pilon,
judiciosamente. — Seus pulmões não aguentam.
Pablo enrolou o vinho numa roupa de tal maneira que quem quer que passasse ficaria morto de curiosidade até sa¬ber o que continha.
Pilon caminhou ao lado de Jesus Maria, pegando-o de vez em quando pelo cotovelo para lembrar-lhe que não estava bem. Levaram-no para casa e o deitaram num catre, e, apesar de o dia estar quente, cobriram-no com um acol¬choado velho. Pablo falou, comovido, daqueles pobres coita¬dos que sofreram e ficaram desfigurados pela tuberculose. E então Pilon ergueu a voz com suavidade. Falou com respei¬to da alegria de viver numa casinha. Quando a noite está adiantada, a conversa e o vinho terminados, e lá fora a mortal neblina agarrada ao solo como fantasmas de lesmas gigantescas, então a gente não quer sair para dormir na umidade doentia de uma vala. Não, vai para uma cama quente, suave e fofa, e dorme como uma criancinha.
Nessa altura, Jesus Maria caiu no sono. Pilon e Pablo tiveram que acordá-lo e dar-lhe um gole. Então Pilon falou com emoção das manhãs em que se fica no ninho quente até o sol ficar alto no céu o suficiente para ter alguma utilidade. Ninguém fica tiritando na madrugada, batendo as mãos para evitar que gelem.
Finalmente, Pilon e Pablo aproximaram-se de Jesus Ma¬ria como dois terriers caçadores convergindo sobre a presa.
 
 
 
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Alugaram a Jesus, por quinze dólares mensais, o direito usar sua casa. Ele aceitou alegremente. Houve apertos mãos em profusão. O garrafão saiu do seu invólucro. Piloa tomou uma profunda golada, pois sabia a tarefa difícil qu tinha pela frente. E começou, muito suave e como que acaso, enquanto Jesus Maria estava bebendo diretamente garrafão:
— E agora você só dá três dólares por conta.
Jesus Maria depositou o garrafão e olhou horrorizad
para ele.
— Não — explodiu. —  Prometi a Arabella Gros
comprar-lhe uma daquelas coisinhas. Pagarei o aluguel qua
do chegar a hora.
Pilon compreendeu que tinha cometido um erro.
— Quando você estava caído naquela praia em Sea
de, Deus fez aquele bote flutuar até você. Você pensa
o bom Deus fez isso só para que você pudesse comprar calcil nhãs de seda para uma sarnenta da fábrica de conservas? Não!  Deus fez isso para que você não morresse de frié dormindo no chão. Você acha que Deus está interessado na peitos de Arabella? E, além disso, queremos um depósit de dois dólares — continuou. — Por um dólar você comprar uma daquelas coisas, grande o bastante para conte as tetas de uma vaca.
Apesar disso, Jesus Maria protestou.
— Quero lhe dizer — prosseguiu Pilon — que, se
pagarmos a Danny dois dólares, seremos jogados na rua
por sua culpa. Vai ficar com remorso por dormirmos na
valas.
Diante de tantos ataques, vindos de tantos lugare Jesus Maria Corcoran sucumbiu. Entregou duas das not amassadas a Pilon.
Nesse instante, a sensação de tensão desapareceu, senq| substituída por uma camaradagem profundamente pacífic quente e silenciosa. Pilon ficou relaxado. Pablo levou o aco choado para sua própria cama, e a conversa se ampliou.
— Precisamos levar este dinheiro a Danny.
Acalmado o apetite mais premente, estavam agora
boreando o vinho.
 
  Por que Danny precisa tanto de dois dólares? —
perguntou Jesus Maria.
Pilon assumiu um ar confidencial. Suas mãos juntaram-se formando duas mariposas gémeas, que só os pulsos e braços impediam de voar pela porta.
  Nosso amigo Danny está transando com a sra. Mo-
rales. Ah, não pense que Danny é bobo. A sra. Morales possui duzentos dólares no banco. Danny quer comprar uma grande caixa de bombons para ela.
 Bombons não fazem bem às pessoas — comentou
pabl0, — Fazem os dentes doerem.
— Isso é problema de Danny — disse Jesus Maria. —
Se ele quer fazer os dentes da sra. Morales doerem, isso é lá
com ele. Por que nos importarmos com os dentes da sra.
Morales?
Uma nuvem de ansiedade cobriu o rosto de Pilon.
— Mas — interrompeu secamente — se o nosso amigo
Danny levar os bombons para a sra. Morales, irá comer
alguns também. Portanto, os dentes do nosso amigo poderão
doer.
Pablo sacudiu a cabeça, aflito.
— Seria muito ruim se os amigos de Danny, dos quais
ele depende, contribuíssem para que seus dentes doessem.
— Que faremos, então? —• perguntou Jesus Maria,
embora tanto ele como os outros soubessem exatamente o
que fazer.
Cada um esperou educadamente que o outro fizesse a sugestão inevitável. O silêncio continuou. Pilon e Pablo achavam que a sugestão não devia partir deles, embora, de certa maneira, pudessem ser considerados partes interessa¬das. Jesus Maria ficou calado em consideração aos seus hospedeiros, mas, quando o silêncio daqueles o tornou cons-ciente do que esperavam dele, aproveitou imediatamente a oportunidade.
Um garrafão de vinho é um belo presente para uma senhora — sugeriu, em tom íntimo.
1 ílon e Pablo ficaram atónitos com essa solução.
" Podemos dizer a Danny que será melhor para os seus dentes dar o vinho.
 
 
 
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— Mas talvez Danny não dê atenção à nossa adverte
cia. Se dermos dinheiro a Danny, não saberemos o que fa
com ele. Afinal, poderá comprar bombons, e assim perde*
mos tempo e cuidados.
Tinham feito de Jesus Maria seu fornecedor de fras seu desobstrutor de situações embaraçosas.
— Talvez, se nós mesmos comprarmos o vinho e
dermos a Danny, não haja perigo — sugeriu.
— É isso aí! — gritou Pilon. — Agora, sim.
Jesus Maria sorriu modestamente ao lhe ser creditad a solução. Ele tinha sentido que, cedo ou tarde, aquela lução teria sido apresentada por alguém na sala.
Pablo derramou até a última gota de vinho nos pot de geléia e beberam cansadamente depois desse esforço. Er motivo de orgulho para eles que a ideia tivesse chegado tã logicamente e por uma causa tão filantrópica.
— Agora estou com fome — disse Pablo.
Pilon levantou-se, foi até a porta e olhou para o so|
— Já passa do meio-dia — disse. — Pablo e eu vamc
ao Torrelli apanhar o vinho, enquanto você, Jesus Maria, vai
a Monterey arranjar algo para comermos. Talvez a sra. Bru|
no, no cais, lhe dê um peixe. Talvez você consiga um peda
de pão em alguma parte.
— Eu preferia ir com vocês — disse Jesus Maria, pou|
desconfiava que outra sequência tão lógica e inevitável
meçasse a nascer nas cabeças dos amigos.
— Não, Jesus Maria — responderam com firmeza.
Agora são duas horas, ou quase. Dentro de uma hora, será
três. Então nos encontraremos com você aqui e comeremo
alguma coisa, que  talvez  possa ser  acompanhada de ufl
copinho de vinho.
Jesus Maria partiu para Monterey de muito má vont de, mas Pablo e Pilon desceram alegremente a colina direção da casa de Torrelli.
 
Como São Francisco muda a maré e dá um castigo suave a Pilon, Pablo e Jesus Maria
A tarde chegou tão imperceptivelmente como a idade a um homem feliz. Um pouco de dourado juntou-se à luz do sol. A baía tornou-se mais azul e agitada pelo vento mur¬murante que vinha da praia. Os poucos pescadores que acre¬ditam que o peixe morde o anzol na maré alta abandonaram suas pedras e foram substituídos por outros, convencidos de que o peixe morde na maré baixa.
Às três, o vento mudou de rumo e soprou suavemente, vindo da baía, trazendo toda espécie de excelentes cheiros de algas marinhas. Os consertadores de redes, nas terras devolutas de Monterey, depuseram as agulhas e enrolaram cigarros. Nas ruas da cidade, senhoras gordas, em cujos olhos se lia o enfado e a sensatez que se vê com tanta frequência nos olhos dos porcos, rodavam em carros de motores pode¬rosos para tomar chá e gin-fizz no Hotel Del Monte. Na Alvarado Street, Hugo Machado, o alfaiate, colocou um car¬taz na porta da sua loja: "Volto em cinco minutos", e foi passar o resto do dia em casa. Os pinheiros balançavam lenta e voluptuosamente. As galinhas, em centenas de galinheiros, lamentavam em vozes plácidas sua má sorte.
Pilon e Pablo, sentados sob uma árvore no pátio de lorrelli, bebiam vinho calmamente e deixavam a tarde cres¬cer dentro deles como cresce gradatívaménte o cabelo.
E muito bom que não levemos os dois garrafões de vinho para Danny — disse Pilon. — Ele faz algumas restriÇ°es à bebida.
Pablo concordou.
■     Danny tem uma aparência saudável — disse —,
 
 
 
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mas é exatamente essa espécie de gente que diz todos dias que está morrendo. Veja Rudolfo Kelling. Veja Angelin Vasquez.
O realismo de Pilon aflorou brandamente à superfície!
— Rudolfo caiu na mina em Pacific Grove — obserf vou, em suave repreensão. — Angelina comeu uma lata peixe estragado. Mas — continuou, bondoso — sei o que quer dizer. Há muita gente que morre pelo abuso do vinhal!
Monterey inteira começou a fazer, instintivamente, parativos graduais para a chegada da noite. A sra. Gutierr colocou algumas pimentas-malaguetas no seu molho de en chilada'. Rupert Hogan, o vendedor de bebidas alcoólicasJ acrescentou água ao gim e o separou para ser vendido depois da meia-noite. E adicionou um pouco de pimenta ao uísque do começo da noite. No salão de dança El PaseoJ Bullet Rosendale abriu uma caixa de pretzels e os arranje como grosseira renda castanha nas grandes bandejas de sal|i gadinhos grátis. A Palace Drug Company recolheu seus tol-J dos. Um pequeno grupo de homens que passara a tar defronte do correio, cumprimentando os amigos, caminhou| para a estação, para ver a chegada do Expresso de Monte, que vinha de San Francisco. As gaivotas, saturadas^ voaram das praias da fábrica de conserva de peixes para as«| rochas à beira-mar. Bandos de pelicanos deslizavam obstina-J damente sobre a água na direção de onde quer que pudessemj passar a noite. Nos barcos de pesca de arrastão, os italiar acomodavam suas redes sobre os roletes. A pequena srta,J Alma Alvarez, que tinha noventa anos, levava seu buque diário de gerânios vermelhos para a Virgem que havia parede externa da Igreja de San Carlos. Nas vizinhanças aldeia metodista de Pacific Grove, a WCTU 2 reunia-se par chá e discussão, prestando atenção quando uma senhora crevia o vício e a prostituição de Monterey com energia colorido. Ela achava que uma comissão devia visitar os lc de diversão para ver exatamente como eram terríveis as coni
; Torta de milho. (N. do T.)
2 União Cristã Feminina de Temperança. (N. do T.)
 
dições. Haviam discutido o problema muito ligeiramente e necessitavam de fatos novos.
O sol chegou ao poente, adquirindo um tom alaranjado. Sob o roseiral do pátio de Torrelli, Pablo e Pilon termina¬vam seu primeiro garrafão de vinho. Torrelli saiu da casa e passou pelo pátio sem ver seus velhos fregueses. Estes espe¬raram até que ele estivesse fora de vista, no caminho para Monterey. Depois disso, Pablo e Pilon entraram na casa e, com uma consciente noção de sua arte, persuadiram a sra. Torrelli a dar-lhes
de comer. Acariciaram suas nádegas e a chamaram de "Pata Macia", tomando algumas liberdades educadas com ela, deixando-a finalmente lisonjeada e ligei¬ramente desgrenhada.
Agora já era noite em Monterey, e as luzes se acende¬ram. As janelas brilhavam suavemente. O Monterey Theatre começou a emitir a intervalos, com luzes, "Filhos do infer¬no. .. Filhos do inferno", ininterruptamente. Um grupo pequeno mas fanático de homens que acreditam que o peixe morde de noite ocupou seus lugares nas pedras frias do mar. Uma bruma leve deslizava pelas ruas e pairava na altura das chaminés. Um cheiro gostoso de achas de pinheiro queiman¬do inundava o ar.
Pablo e Pilon voltaram para seu canteiro de roseiras e sentaram-se no chão, mas não estavam tão felizes como antes.
— Faz frio aqui — disse Pilon, e tomou um gole de
vinho para esquentar-se.
— Devíamos ir para nossa casa, que está quente —
disse Pablo.
Mas não há lenha para a estufa.
— Muito bem — disse Pablo —, se você levar o vinho,
nos nos encontraremos na esquina da rua.
Coisa que ele fez, meia hora depois. * ilon esperou pacientemente, pois sabia que havia algu-as C0Isas em que mesmo um amigo não podia ajudar. En¬quanto esperava, Pilon manteve o olhar atento à rua, na ^rã    tomada por Torrelli, pois este era um homem vio-°» para quem as explicações, por mais cuidadosamente
 
 
 
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arquitetadas, ou mais belamente ditas, eram sem valor. Além do mais, Torrelli tinha, como Pilon sabia, a exagerada e to¬talmente quixotesca opinião dos italianos a respeito das rela-1 ções maritais. Mas Pilon vigiou em vão. Nenhum Torrelli § voltou para casa bruscamente. Pouco depois, Pablo juntou-se a ele, e Pilon viu, com admiração e satisfação, que o amigo j carregava uma braçada de achas de pinheiro, tiradas da pilha' de lenha de Torrelli.
Pablo não fez nenhum comentário sobre sua recente) aventura até terem chegado em casa. Então repetiu as pala-;] vras de Danny:
— Aquela Pata Macia é uma mulher fogosa.
Pilon, no escuro, aquiesceu com a cabeça e falou,
tranquila filosofia:
— É muito difícil alguém encontrar tudo num mesmo|
mercado: vinho, comida, amor e lenha. Pablo, meu amigo,!
não devemos esquecer Torrelli. É um homem a ser lembrado.|
Temos de levar-lhe um presentinho um dia destes.
Pilon acendeu um fogo crepitante na estufa de fer fundido. Os dois amigos aproximaram suas cadeiras e man-1 tiveram os púcaros perto do calor, para aquecer o vinho uml bocadinho. Nessa noite, a luz era benta, pois Pablo haviáj comprado uma vela para ser acesa a São Francisco. Alguma! coisa distraíra sua atenção antes de aquele plano sagrado sei consumar. Agora, o pequeno círio de cera queimava linda-»! mente numa concha, projetando as sombras de Pablo e Pilon j contra a parede, fazendo-as dançar.
— Fico imaginando onde Jesus Maria terá ido — CO"H
mentou Pilon.
— Ele prometeu voltar já faz muito tempo — disse|
Pablo. — Não sei se ele é de confiança ou não.
— Talvez alguma coisa o tenha detido, Pablo. Jesus
Maria, com aquela barba ruiva e aquele coração mole, está |
sempre pronto a se meter em encrencas com mulheres.
— Tem cérebro de gafanhoto — disse Pablo. — Canta, j
brinca e pula. Não tem seriedade.
Não precisaram esperar muito tempo. Mal tinham co-; meçado o segundo garrafão de vinho, Jesus Maria cambaleou! para dentro. Agarrava os dois lados da porta para se manter | firme. Sua camisa estava em tiras e o rosto, ensanguentado.
 
Apresentava um olho preto e de mau aspecto, à luz bruxu-leante da vela.
Pablo e Pilon correram para ele.
— O nosso amigo! Está machucado. Caiu de um bar-
 ranco. Foi atropelado por um trem!
Não havia o menor tom de brincadeira, mas Jesus Ma¬ria considerou aquilo a mais mortal forma de brincadeira. Fuzilou-os com o único olho que ainda tinha condições de funcionar.
— As mães de vocês dois eram vacas sem tetas —
afirmou.
Eles recuaram, horrorizados pela vulgaridade do insulto.
— Nosso amigo não está bom da cuca.
— Deve ter quebrado o osso da cabeça.
— Pablo, dê a ele um pouco de vinho.
Jesus Maria sentou-se, taciturno, junto da estufa e aca¬riciou seu copo, enquanto os amigos esperavam paciente¬mente uma explicação da tragédia. Mas Jesus Maria parecia satisfeito em deixar seus amigos ignorando o infortúnio, ape¬sar de Pilon pigarrear inúmeras vezes e Pablo olhar para ele de um jeito compreensivo e caloroso. Jesus Maria continuava de mau humor, olhando para a estufa, para o vinho e para a vela benta, até que a prolongada e descortês reticência le¬vou Pilon a uma reação idêntica. Afinal de contas, ele não sabia que culpa tinha.
— Outra vez aqueles soldados? — perguntou.
— Sim — rosnou Jesus Maria. — Dessa vez chegaram
muito depressa.
Deveriam ser uns vinte para deixar você assim — comentou Pablo, para satisfazer a vaidade do amigo. — Todos sabem que você é uma fera lutando.
Então Jesus Maria ficou um pouco mais feliz.
— Eram quatro — respondeu. — Arabella Gross tam-
em ajudou. Bateu na minha cabeça com uma pedra.
Pilon sentiu crescer dentro de si uma onda de ressenti¬mento moral.
Não quero lhe lembrar — disse severamente — o quanto seus amigos o avisaram sobre aquela ordinária.
na
icou imaginando se tinham mesmo avisado Jesus Ma- achou que sim.
 
 
 
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— Essas branqueias vagabundas têm mau caráter, me
amigo — interveio Pablo. — Mas você lhe deu aquela coisi|
nha que estava procurando?
Jesus Maria meteu a mão no bolso e tirou um sutiã rosaJ de raiom, amarrotado.
— Ainda não chegou a hora — disse ele. — Eu estava|
exatamente chegando ao ponto. E, além disso, nós ainda nãoj
tínhamos ido para o mato.
Pilon fungou e sacudiu a cabeça, mas não sem umaj certa tolerância triste.
— Você andou bebendo uísque.
Jesus Maria confirmou com a cabeça.
— De onde veio esse uísque?
—■ Dos tais soldados — disse Jesus Maria. — Eles guardavam num bueiro. Arabella sabia que o uísque estava! lá e me contou. Mas os tais soldados nos viram com garrafa.
A história ia gradativamente tomando forma. Pilon pr feria assim. Uma história ficava arruinada se fosse contada] toda de uma vez e rapidamente. Uma boa história consistia! em coisas meio ditas, que precisavam ser completadas peláj própria experiência do ouvinte. Apanhou o sutiã rosa colo de Jesus Maria, acariciou-o, e seus olhos tomaram-s pensativos. Mas, logo depois, brilharam com uma cri alegre.
— Já sei! — gritou. — Daremos este troço a DannyJ
para que ele o dê de presente à sra. Morales.
Todos aplaudiram a ideia, menos Jesus, que se sentiu eiti| minoria irremediável. Pablo, com uma delicada compreens da derrota, encheu o copo de Jesus Maria.
Não se passou muito tempo e os três homens come ram a sorrir. Pilon contou uma história muito engraçada bre uma coisa que acontecera com seu pai. O bom humo| voltou ao grupo. Cantaram. Jesus Maria executou um sa teado para provar que não estava muito machucado. O vinc continuou a diminuir no garrafão, mas, antes de acabar, três amigos caíram no sono. Pilon e Pablo cambalearam a cama, e Jesus Maria esticou-se confortavelmente no cr. ao lado da estufa.
O fogo morreu. A casa encheu-se com o ruído profuri
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do ressonar deles. Na sala, apenas uma coisa se mexia: o círio bento lançava sua chama pontuda para cima e para baixo, com incrível velocidade.
Mais tarde, aquela pequena vela deu a Pilon, Pablo e Jesus Maria alguns motivos éticos sobre que meditar. Uma simples haste de cera, atravessada por um fio: tal coisa, pode-se dizer, é responsável por certas leis físicas e não por outras. Sua conduta, podemos pensar, é regulada por certos princípios de calor e combustão. Acende-se o pavio: a cera é atingida e descobre o pavio. A vela queima durante um certo tempo, fenece e pronto. A coisa está acabada. A vela é imediatamente esquecida, e assim, é claro, nunca existiu.
Esqueceram que a vela era benta? Que, num momento de consciência ou talvez de pura exaltação religiosa, fora destinada por Pablo a São Francisco? Esse é o princípio que tira a haste de cera da jurisdição da física.
A vela apontou sua espada de luz para o céu, como um artista que se consome para ficar divino. A vela tornouse cada vez menor. Uma ventania surgiu repentinamente lá fora e penetrou pelas frestas da parede. A vela oscilou para todos os lados. Um calendário brilhante, mostrando o rosto de uma linda garota brotando do miolo de uma grande rosa vermelha, desprendeu-se e flutuou a pequena distância da parede. Aproximou-se da espada de chama. O fogo lambeu a seda e atirou-se para o teto. Um pedaço solto do papel de parede pegou fogo e caiu, aceso, sobre um monte de jornais.
No céu, santos e mártires olharam para baixo, com os rostos imóveis e rancorosos. A vela era benta. Pertencia a São Francisco. São Francisco iria ter, naquela noite, uma grande vela em seu altar.
Se fosse possível avaliar a profundidade do sono, poder-se-ia dizer com justiça que Pablo, cuja ação censurável era a culpada pelo fogo, dormia ainda mais profundamente que seus dois amigos. Mas, desde que não há critério de medição, pode-se apenas dizer que ele dormia profundissimamente.
As chamas subiram pelas paredes e atingiram os peque¬nos orifícios do telhado, deslizando por eles para a noite lá ora. A casa estava dominada pelo fragor do fogo. Jesus Ma-la Vlrou-se, inquieto, e começou, ainda dormindo, a tirar ° casaco- Nesse instante, uma telha de madeira em chamas
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caiu sobre seu rosto. Ele saltou, com um grito, e ficou apar- j valhado com o fogo que se alastrava sobre sua cabeça.
— Pilon! — guinchou. — Pablo!
Correu para a outra peça, arrancou seus amigos dal cama e arrastou-os para fora da casa. Pilon ainda continuava! agarrado ao sutiã cor-de-rosa.
Ficaram parados fora da casa incendiada e olharam;! para dentro, pela porta aberta, coberta por uma cortina de 1 fogo. Puderam ver o garrafão sobre a mesa, com bem uns 1 cinco centímetros de vinho.
Pilon pressentiu o estúpido heroísmo inicial de Jesus Maria.
— Não faça isso! — gritou. — Deve ser consumido
pelo fogo, como castigo por ter sido abandonado.
O soar das sirenas chegou até os ouvidos deles, bem i como o ruído dos caminhões que subiam a colina em segun- § da, vindos do quartel de bombeiros de Monterey. Os veículos I vermelhos, enormes, aproximaram-se, e seus faróis dança-j ram entre os troncos dos pinheiros.
Pilon virou-se rapidamente para Jesus Maria:
— Corra e conte para Danny que a casa dele está pegan-..|
do fogo. Depressa, Jesus Maria!
— Por que não vai você?
— Olhe — respondeu Pilon —, Danny não sabe que<
você é um dos inquilinos. Pode ficar meio zangado com j
Pablo e comigo.
Jesus Maria compreendeu essa lógica e correu para a; casa de Danny. A casa estava às escuras.
— Danny! — gritou Jesus Maria. — Danny, sua casa |
está pegando fogo! — Ninguém respondeu. — Danny! —
berrou ele, outra vez.
Uma janela foi erguida na casa da sra. Morales, ao lado. J Danny falou, irritado:
— Que diabo você quer?
— Sua outra casa está pegando fogo, aquela em que,
moram Pablo e Pilon.
Por um momento, Danny ficou calado. Depois, per- j guntou:
— Os bombeiros estão lá?
— Estão! — gritou Jesus Maria.
 
Nessa altura, o céu estava todo iluminado. Podia-se ouvir o estalar das toras em fogo.
— Bem — disse Danny —, se os bombeiros não pude¬
rem fazer nada, que espera Pilon que eu faça?
Jesus Maria ouviu a janela se fechar com um baque, virou-se e voltou correndo para o incêndio. Não tinha sido uma hora boa para chamar Danny, percebeu, mas quem podia saber? Se Danny não fosse avisado do incêndio, poderia ficar zangado. Jesus Maria, apesar de tudo, ficou contente por ter contado a ele. Agora, a responsabilidade recaía sobre a sra. Morales.
Era uma casa pequena, cheia de correntes de ar e de paredes muito secas. Talvez, desde que a velha Chinatown havia pegado fogo, não tivesse ocorrido um incêndio tão rápido e completo. Os bombeiros deram uma olhada nas paredes incandescentes e passaram a molhar as moitas, as árvores e as casas da vizinhança. Em menos de uma hora, a casa tinha sido totalmente destruída. Só então os bombei¬ros passaram a examinar as cinzas, para exterminar as brasas e as fagulhas.
Pilon, Pablo e Jesus Maria ficaram agarrados uns aos outros, olhando tudo aquilo. Metade da população de Mon¬terey e todos os habitantes de Tortilla Fiat, exceto Danny e a sra. Morales, ficaram olhando alegremente o incêndio. Fi¬nalmente, quando tudo acabou, quando apenas um fio de fumaça se erguia do monte escuro, Pilon afastou-se silen¬ciosamente.
— Aonde vai? — gritou Pablo.
— Vou para o mato, livrar-me do sono — respondeu
ruon. — Acho que você deve fazer o mesmo. Será muito
bom que Danny não nos veja durante algum tempo. — Eles
concordaram gravemente com a cabeça e o acompanharam
ate a floresta de pinheiros. — É uma lição para nós —
continuou Pilon. — Aprendemos a nunca deixar vinho em
casa durante a noite.
A       Da próxima vez — falou Pablo, desanimado —, você o deixará fora de casa e alguém o roubará.
 
 
 
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Como três pecadores, através da penitência, obtêm a paz. Como os amigos de Danny juram camaradagem
Quando o sol iluminou os pinheiros e o solo ficoi.il quente, quando o orvalho noturno começou a secar nas fo,| lhas do gerânio, Danny foi até sua varanda, para aproveitar! o sol e meditar tranquilamente sobre certos acontecimentos;! Tirou os sapatos e mexeu os dedos na beira da varandajiJ aquecida pelo sol. Havia ido, de manhã bem cedo, examinar! o quadrilátero de cinzas negras e canos retorcidos que tinhara| sido sua outra casa. Entregou-se a uma leve raiva forma contra amigos descuidados e lamentou durante algum temp a qualidade transitória da propriedade material que tornai a propriedade espiritual muito mais valiosa. Refletiu sobrei a ruína da sua posição como homem com casa para alugar.l E, tendo satisfeito todo esse conjunto de emoções necessá-| rias e decentes, afastando-o depois para sempre, mergulhou! finalmente em sua verdadeira emoção, a de alívio pelo fatdj de que, afinal, uma de suas responsabilidades havia sidaj eliminada.
"Se a casa ainda estivesse ali, eu estaria ávido pelo a guel", pensou. "Meus amigos esfriaram comigo porque mel devem dinheiro. Agora podemos ser livres e alegres nova-*! mente."
Mas Danny sabia que precisava castigar um pouco o»| amigos, pois do contrário eles o considerariam mole. Assim,'! enquanto ficava sentado na varanda, afastando as moscaSj com a mão, o que constituía mais um aviso do que amea para elas, voltou às coisas que deveria dizer aos amigos, tes de lhes permitir desfrutar novamente de sua afeição. Pre cisava mostrar-lhes que não era homem de se deixar mano
 
Mas estava ansioso para acabar com aquilo e voltar a ser o Danny de quem todos gostavam, o Danny a quem todos chamavam, quando tinham um galão de vinho ou um quilo de carne. Proprietário de duas casas, era considerado rico, e havia perdido muitas coisas boas.
Pilon, Pablo e Jesus Maria Corcoran dormiram duran¬te muito tempo no colchão de agulhas de pinheiro na flo¬resta. Fora uma noite de tremenda agitação e estavam can¬sados. Mas, finalmente, o sol caiu sobre seus rostos com a ardência do meio-dia, as formigas começaram a passear sobre seus corpos, e dois gaios azuis pousaram no chão, bem perto, xingando-os com todas as espécies de nomes ásperos.
Mas o que acabou com seu sono, no entanto, foi um piquenique que se instalou exatamente do outro lado da moita, onde foi aberta uma enorme cesta de comida, da qual partiram odores que deslizaram até Pilon, Pablo e Jesus Maria. Eles acordaram. Sentaram-se. E, então, a gravidade da situação abateu-se sobre eles.
— Como o incêndio começou? — perguntou Pablo,
lamurioso, e ninguém sabia.
— Talvez — falou Jesus Maria — seja melhor irmos
para uma outra cidade durante algum tempo. . . para Wat-
sonville ou Salinas. São cidades muito agradáveis.
Pilon tirou o sutiã do bolso e passou os dedos sobre sua maciez rosada. Ergueu-o contra o sol e olhou através dele.
— Isso só adiará o problema — declarou. — Acho
que será melhor irmos ver Danny e confessar nossa culpa,
como os filhos fazem com os pais. Assim, ele não poderá
dizer nada sem se arrepender. E, além disso, não temos este
presente para a sra. Morales?
Seus amigos concordaram com a cabeça. Os olhos de Pilon perscrutaram o pequenique através da moita espessa, detendo-se especialmente naquela enorme cesta de comida, de onde provinha o cheiro de ovos recheados. O nariz de >Jon franziu-se ligeiramente, como o de um coelho. Sorriu, num delicioso devaneio.
Vou andar um pouco, meus amigos. Daqui a pouco encontrarei vocês na pedreira. Não tragam a cesta, se pu¬derem evitar.
 
 
 
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Ficaram olhando tristemente Pilon levantar-se e partir,! através das árvores, em linha reta para o piquenique e cesta. Pablo e Jesus Maria não se espantaram quando, logol depois, ouviram um cão latir, um galo cantar, risos esga-! niçados, o rosnar de um gato selvagem, um gritinho e uns! pedido de ajuda. Mas o pessoal do piquenique estava espan-f tado e fascinado. Os dois casais abandonaram sua cesta e| correram na direção daqueles barulhos tão variados.
Pablo e Jesus Maria obedeceram Pilon. Não tocaram ff na cesta. Mas, logo depois, suas camisas ficaram manchadas). com os ovos recheados.
Mais ou menos às três horas da tarde, os três peniten- • tes dirigiram-se até a casa de Danny, devagar. Seus braços! estavam cheios de presentes de reconciliação: laranjas, xaa-M çãs, bananas, vidros de azeitonas e de picles, sanduíches dçj presunto, de ovos, garrafas de refrigerante, uma caixinha de| salada de batata e um exemplar do Saturday Evening PosL
Danny viu-os chegar, levantou-se e procurou lembrar^ as coisas que tinha a dizer. Eles se enfileiraram defrontei de Danny e baixaram a cabeça.
— Cachorros — explodiu Danny. E: — Ladrões dej casa de gente decente. — E mais: — Ovas de caramujo.
Chamou as mães deles de vacas e os pais de bodes | velhos.
Pilon abriu o saco que trazia e mostrou os sanduíches! de presunto. E Danny disse que não confiava mais em ami-1 gos, que sua fé havia sido destruída e sua amizade pisoteada,! E aí começou a ter uma certa dificuldade de lembrar, poisj Pablo havia tirado dois ovos recheados de dentro da ca-|| misa. Mas Danny recuou até as antigas gerações deles criticou a honra de suas mulheres e a virilidade de seus ho|| mens.
Pilon retirou do bolso o sutiã rosa e começou a ba|| lançá-lo na ponta dos dedos.
Aí, Danny esqueceu tudo. Sentou-se na varanda cor os amigos, e os embrulhos começaram a ser abertos. Come|] ram até se sentirem mal. Só uma hora mais tarde é que recostaram na varanda, prestando atenção a pequenas cois além da digestão, quando Danny perguntou, por acaso, cor se falasse de um assunto remoto:
 
  Como o incêndio começou?
  Não sabemos — explicou Pilon. — Fomos dormir,
e a coisa começou. Talvez tenhamos inimigos.
— Talvez — disse Pablo, com ar devoto —, talvez haja
o dedo de Deus nisso.
— Quem sabe o que faz o bom Deus agir da forma
como o faz? — acrescentou Jesus Maria.
Quando Pilon estendeu o sutiã e disse que era um pre¬sente para a sra. Morales, Danny ficou reticente. Olhou o sutiã com algum ceticismo. Percebeu que os amigos que¬riam bajular a sra. Morales.
— Isso não é presente que se dê a mulheres — disse,
finalmente. — Quase sempre ficamos amarrados a elas pelas
meias de seda que lhes damos.
Não podia explicar aos amigos o esfriamento das re¬lações com a sra. Morales, desde que passara a ser proprie¬tário de apenas uma casa. Nem podia descrever, em atenção à sra. Morales, sua satisfação por esse esfriamento.
— Guardarei esta coisinha — disse. — Um dia talvez
seja usada por alguém.
Quando escureceu, entraram na casa e acenderam um fogo de agulhas de pinheiro na estufa hermética. Danny, como prova do seu perdão, trouxe um litro de bagaceira e partilhou seu fogo com os amigos.
Adaptaram-se rapidamente à nova vida.
— É uma pena que todas as galinhas da sra. Morales
tenham morrido — comentou Pilon.
Mas mesmo ali havia obstáculos à felicidade.
— Na segunda-feira ela vai comprar outras duas dúzias
— disse Danny.
Pilon sorriu, satisfeito.
— As galinhas da sra. Soto não eram boas — co¬
mentou. — Eu disse a ela que precisava lhes dar conchas de
ostras. Mas ela não me deu atenção.
Beberam o litro de bagaceira, e isso foi o suficiente para provocar o restabelecimento da camaradagem.
E bom ter amigos — disse Danny. — Como o mundo seria solitário se não houvesse amigos para se sen¬tarem juntos e partilharem a bagaceira de alguém.
 
 
 
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— Ou os sanduíches de alguém — acrescentou rap
damente Pilon.
Pablo não sentia muito remorso porque desconfiav da verdadeira situação da política celestial que havia caus o incêndio da casa.
— Amigos como você, Danny, existem poucos no mu
do. Não são muitos os que têm tal conforto.
Antes de Danny sucumbir completamente ao envohi mento dos seus amigos, deu um aviso.
— Quero que todos vocês fiquem longe da minha can
— ordenou. — É para meu uso pessoal.
Embora ninguém tivesse se referido a isso, cada UB dos quatro ficou sabendo que todos iriam morar na casa Danny.
Pilon suspirou de prazer. Estava afastada a preocup ção do aluguel. Estava afastada a responsabilidade de ter di| nheiro. Não seria mais um inquilino, mas um hóspede. Menjj talmente, agradeceu o incêndio da outra casa.
— Seremos todos felizes aqui, Danny — disse ele.
De noite, nós nos sentaremos diante da estufa e nossos ami-| gos virão nos visitar. E, quem sabe, vez por outra teren um copo de vinho para brindar à amizade.
Então Jesus Maria, num arroubo de gratidão, fez uu promessa precipitada. Os causadores disso foram a ceira, a noite, o calor do fogo e todos aqueles ovos rect dos. Ele compreendeu que havia recebido grandes pres tes e quis retribuir.
— Será nossa responsabilidade e dever fazer com
haja sempre alimentação na casa para Danny — sentenciou.J
— Que nosso amigo nunca tenha fome.
Pilon e Pablo ergueram o olhar, assustados, mas a coi-i sa estava dita: algo belo e generoso. Ninguém poderia deS-J truí-lo impunemente. Até Jesus Maria compreendeu, dep de ter falado, a grandeza da sua declaração. Sua única esp rança era que Danny a esquecesse.
— Pois — sussurrou Pilon para si mesmo — se
promessa for cumprida, será pior que o aluguel. Será
cravidão.
— Juramos, Danny! — disse.
 
Ficaram em torno da estufa, com os olhos cheios de
IVrimas, e 0 amor de uns pelos outros era quase insupor¬
tável. ,i       ,   • i J      -
Pablo limpou os olhos umidos com as costas da mao e
repetiu o comentário de Pilon:
  Seremos muito felizes morando aqui — disse.
 
 
 
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Como os amigos de Danny se tornam um instrumento de Deus. Como ajudam o pobre Pirata
Uma grande quantidade de gente via o Pirata todos dias, e muitos riam dele enquanto outros tinham pena. ninguém o conhecia muito bem, e não se metiam com el<j Era um homem enorme, forte, com uma barba formidáve preta e revolta. Usava jeans e uma camisa azul, mas usava chapéu. Na cidade, calçava sapatos. Quando o Pirat se encontrava com um adulto, seu olhar se contraía, o oll secreto de um animal que gostaria de fugir se ousasse vir as costas o tempo suficiente. Por causa dessa expressão, nativos de Monterey sabiam que sua cabeça não tinha desenvolvido como o resto do seu corpo. Eles o chamavac de Pirata por causa da barba. Diariamente era visto empu rando seu carrinho de vendedor ambulante pelas ruas, at) acabar a mercadoria. E, sempre amontoados nos calcanhá res, andavam seus cinco cachorros.
Enrique tinha um certo aspecto de mastim, apesar rabo cabeludo. Pajarito era castanho e encaracolado, e ess eram as únicas coisas que se podiam ver dele. Rudolph um cão sobre o qual os transeuntes diziam: "É um cão an ricano". Fluff era um dogue e Senor Alec Thompson as melhava-se a um terrier. Andavam em grupo atrás do rata, a quem demonstravam significativo respeito, e eraii muito solícitos quanto à sua felicidade. Quando ele se sentav para descansar da tarefa de empurrar a carrocinha, todos te tavam aninhar-se no seu colo para que ele lhes coçasse orelhas.
Algumas pessoas haviam visto o Pirata de manhã ce na Alvarado Street. Uns diziam tê-lo visto cortando a
 
adoria e outros lembravam que ele vendia lenha. Mas nin¬em com exceção de Pilon, sabia tudo o que o Pirata fazia, pjjon'conhecia todo mundo e tudo sobre todo mundo.
O Pirata morava num galinheiro vazio, no quintal de uma casa abandonada de Tortilla Fiat. Deveria considerar uma insolência morar em casa própria. Os cães viviam em volta e em cima dele, e o Pirata gostava disso, pois os cães o mantinham aquecido nas noites mais frias. Se os seus pés gelavam, bastava encostá-los na barriga quente de Senor Alec Thompson. O galinheiro era tão baixo que o Pirata precisava ficar de quatro.
Todas as manhãs, bem cedo, muito antes de clarear, o Pirata se arrastava para fora do seu galinheiro, e os cães o acompanhavam, coçando-se e farejando no ar frio. Então o grupo ia para Monterey, agindo numa viela. As portas de serviço de quatro ou cinco restaurantes davam para essa vie-la. O Pirata entrava na cozinha dos restaurantes, quentes e cheirando a comida. Cozinheiros resmungões colocavam pa-cotes de restos de comida em suas mãos. Não sabiam por que o faziam.
Depois que o Pirata visitava cada porta de serviço e voltava com os braços carregados de embrulhos, tornava a subir a colina, até a Munroe Street, entrava num terreno baldio, e a cachorrada aglomerava-se, excitada, em torno dele. Então abria os pacotes e alimentava os cães. Servia-se de um pedaço de pão ou de carne tirados dos pacotes, mas nunca escolhia o melhor. Os cães sentavam-se ao lado dele, lambendo os beiços agitadamente e mexendo as patas, en¬quanto esperavam a alimentação. Nunca brigavam, o que era uma coisa surpreendente. Os cães do Pirata jamais brigavam uns com os outros mas atacavam qualquer coisa de quatro patas que andasse pelas ruas de Monterey. Era uma coisa InCríV^ acluela matilha de cinco fox-terriers e lulusda-po-merânia que pareciam coelhos.
O sol apareceu quando a refeição chegou ao fim. O Pi¬rata sentou-se no chão e ficou olhando o céu tornar-se azul com a chegada da manhã. Embaixo, no mar, viu as escunas se fazerem ao largo, com o convés carregado de toras. Ouviu oia de sino tocar suavemente em China Point. Os cães sentaram em torno dele e mastigaram os ossos. O Pirata pa-
 
 
 
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recia mais estar ouvindo do que vendo o dia, pois, enqua to seus olhos não se mexiam, havia um ar de atenção ne| Suas mãos enormes estenderam-se para os cães e seus de coçaram suavemente o pêlo eriçado dos animais. Cerca meia hora mais tarde, o Pirata dirigiu-se a um canto do tetr no baldio, retirou a coberta de sacos de sua carrocinhai desenterrou o machado do lugar onde o enterrava todas noites. Depois, empurrou a carrocinha pela floresta, no cin da colina, até encontrar uma árvore morta, cheia de resir Pelo meio-dia, tinha
uma carga de ótimos cavacos. E entãj sempre acompanhado pelos cães, percorria as ruas até vend a carga por vinte e cinco cents.
Era possível ver tudo isso, mas o que ele fazia com vinte e cinco cents ninguém sabia. Nunca os gastava, noite, protegido do perigo por seus cães, ia para os bosqu e escondia o ganho diário junto a centenas de outras me das. Tinha, em algum lugar, muito dinheiro escondido.
Pilon, homem vivo, para o qual nenhum detalhe vida dos amigos escapava, e que ficava duplamente deleit; do ao descobrir os segredos aninhados profundamente cérebro das suas amizades, descobriu o tesouro do Pirata um processo lógico. Pilon raciocinou assim: "Diariament o Pirata ganha vinte e cinco cents.  Se forem duas me das de dez e uma de cinco, vai a uma loja e troca por un de vinte e cinco. Não gasta dinheiro nunca. Portanto, de escondê-lo".
Pilon procurou calcular o montante do tesouro. Dura te anos, o Pirata vinha vivendo dessa maneira. Seis dias semana ele cortava galhos resinosos de pinheiros, e aos mingos ia à igreja. Obtinha suas roupas pedindo-as de em casa e a comida, na entrada de serviço dos restaurant Pilon embaraçou-se com os valores durante um tempo» acabou desistindo. "O Pirata deve ter, pelo menos, uns dólares", raciocinou.
Durante muito tempo Pilon pensou nessas coisas, foi depois daquela promessa louca e entusiástica de aliment Danny que a noção do tesouro do Pirata teve algum sig ficado para Pilon.
Antes de atacar inteiramente o assunto, Pilon obrig sua mente a uma longa e surpreendente preparação. Sen|
 
uita pena do Pirata. "Pobre malformado", pensou. "Deus "o lhe deu todo o cérebro a que tinha direito. O pobre Pi-ata não pode se cuidar. Daí viver na imundície, num velho galinheiro. Só come comida de cachorro. Suas roupas são andrajos. E porque seu cérebro não funciona direito, es¬conde o dinheiro."
Assim, com essa base de piedade assentada, Pilon par¬tiu para sua solução. "Não seria uma coisa meritória", pen¬sou "fazer isso por ele, que não pode fazer por si mesmo? Comprar-lhe roupas quentes, alimentá-lo com comida apro-priada aos seres humanos? Mas", lembrou a si mesmo, "não tenho dinheiro para fazer tais coisas, embora elas estejam comprimindo meu coração. Como podem ser realizadas essas ações caridosas?"
Agora estava chegando a algum lugar. Como o gato que durante horas tocaia um pardal, Pilon estava pronto para o ataque. "Achei!", gritou sua mente. "Vai ser assim: o Pirata tem dinheiro, mas não tem cérebro para usá-lo. Eu tenho cabeça! Oferecerei minha cabeça para ele. Darei gene¬rosamente minha cabeça. Este será meu gesto de caridade por aquele pobre maldotado."
Era uma das ideias mais bem elaboradas de Pilon. Apos-sou-se dele a ansiedade do artista em mostrar sua obra a uma plateia. "Tenho que contar ao Pablo", pensou. Mas ficou imaginando se teria coragem para isso. Será que Pablo era rigorosamente honesto? Não iria querer desviar parte daque¬le dinheiro para si mesmo? Pilon achou melhor não arriscar, pelo menos imediatamente.
E atordoante descobrir que o fundo de uma coisa má e negra é branco como a neve. E é triste descobrir que as partes ocultas dos anjos são leprosas. Honra e glória a Pilon, pois ele percebeu como descobrir e revelar ao mundo o que "á de bom em cada coisa ruim. Nem ele era cego, como tantos santos o são, à ruindade das
coisas boas. É preciso concordar, com tristeza, que Pilon também não tinha a bur-nce, o farisaísmo e a sofreguidão pela recompensa que sem-pre atinge um santo. Para Pilon, bastava fazer o bem e ser recompensado pelo calor da perfeita fraternidade humana.
Nessa mesma noite, fez uma visita ao galinheiro onde irata morava com seus cães. Danny, Pablo e Jesus Maria,
 
 
 
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sentados junto à estufa, viram-no sair sem dizer nada. Po pensaram delicadamente, ou uma aragem amorosa abateu-i sobre Pilon, ou ele sabia onde podia obter um pouco vinho. Em qualquer dos casos, não era da conta deles, que Pilon lhes falasse sobre isso.
A noite estava muito escura, mas Pilon tinha uma vç no bolso, pois talvez fosse uma boa ideia ver a expressa do Pirata quando ele falasse. E Pilon tinha ainda um gra de doce num saco, que Susie Francisco, que trabalhava numjj padaria, lhe havia datlo em troca de uma fórmula para obt o amor de Charlie Guzman. Charlie era carteiro dos Cor e Telégrafos e andava de motocicleta. E Susie tinha um pacete para usar, se ele alguma vez a convidasse para sear. Pilon achou que o Pirata iria gostar do doce.
A noite estava tremendamente escura. Pilon resohi passar por uma rua estreita, orlada de terrenos baldios e jardins abandonados, cheios de ervas daninhas.
O buldogue de Galvez saiu rosnando do quintal, e lon começou a agradá-lo, baixinho:
— Cachorro lindo — disse suavemente, acrescent
do: — Cachorro bom.
As duas coisas eram mentiras evidentes. No entant impressionaram o cão, pois ele voltou para o quintal Galvez.
Pilon chegou finalmente à propriedade abandou onde o Pirata morava. E sabia que agora precisava ser cuic doso, pois os cães do Pirata, se desconfiassem de algui coisa contra seu dono, se transformariam em defensores riosos. Assim que Pilon pisou no quintal, ouviu rosnad profundos e ameçadores, surgidos do galinheiro.
— Pirata — chamou. — É seu bom amigo Pilon
vem conversar com você.
Fez-se silêncio. Os cães cessaram de rosnar.
— Pirata, é só o Pilon.
Uma voz profundamente grosseira respondeu-lhe:
— Vá embora. Agora estou dormindo. Os cachor
estão dormindo. Está escuro, Pilon. Vá para a cama.
— Tenho uma vela no bolso — disse Pilon —
fará uma luz tão brilhante quanto o dia numa casa escul
E também um doce enorme para você.
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Ouviu-se um leve arrastar de pés no galinheiro.
— Então entre — disse o Pirata. — Vou dizer aos ca¬
chorros que está tudo bem.
Enquanto avançava por entre o mato rasteiro, Pilon odia ouvir o Pirata falando suavemente com os cães, explicando-lhes que era apenas Pilon, que não havia perigo. Pilon curvou-se na soleira escura, riscou um fósforo e acendeu a
O Pirata estava sentado no chão imundo, com os cães à sua volta. Enrique rosnou e teve de ser acalmado.
  Este não é tão obediente quanto os outros — disse
o Pirata, ameno.
Seus olhos pareciam os de uma criança divertida. Quan¬do sorriu, seus enormes dentes alvos brilharam à luz da vela.
Pilon deu-lhe o saco.
— É um ótimo doce para você — disse.
O Pirata apanhou o saco e olhou para dentro dele. Então sorriu deliciado e tirou o doce. Os cães arreganha¬ram os dentes, olharam para ele, mexeram-se e lamberam os beiços. O Pirata dividiu o doce em sete pedaços. Deu o pri¬meiro a Pilon, que era seu convidado.
— Agora você, Enrique — disse. — Agora Fluff, ago¬
ra Sefior Alec Thompson.
Finalmente, o Pirata comeu o seu e ergueu os braços para os cães.
— Acabou, estão vendo? — disse-lhes.
Imediatamente os cães se deitaram a seus pés.
Pilon sentou-se no chão e colocou a vela diante de si. t) Pirata o interrogava com os olhos, meio constrangido. Pilon, silencioso, deixou inúmeras perguntas passarem pela cabeça do Pirata. Finalmente, disse:
— Você é uma preocupação para os seus amigos.
Os olhos do Pirata se encheram de assombro.
— Eu? Meus amigos? Que amigos?
Pilon respondeu, com voz macia:
Você tem muitos amigos que pensam em você. Não
vem vê-lo porque é orgulhoso. Acham que pode ficar ofen-
se eles virem que você vive num galinheiro, veste
raPos e come lixo com seus cães. Mas esses seus amigos se
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preocupam, pois têm medo que essa vida desregrada o doente.
O Pirata acompanhava essas palavras com aflita estj pefação, e seu cérebro se esforçava para compreender ess! novidades que estava ouvindo. Nem por um instante ocorreu duvidar delas, uma vez que era Pilon quem as
— Tenho tantos amigos assim? — perguntou, ma
vilhado. — Eu não sabia. E sou uma preocupação para es
amigos. Eu não sabia, Pilon. Se eu soubesse, não os pr
cuparia. — Engoliu, para afastar a emoção da garganta.
Sabe, Pilon, os cães gostam daqui. E eu gosto daqui por i
sa deles. Eu não sabia que era uma preocupação para
meus amigos.
O Pirata ficou com os olhos rasos de lágrimas.
— Apesar disso — insistiu Pilon —, sua maneira
viver constrange seus amigos.
O Pirata olhou para o chão e procurou raciocinar, ma como sempre, quando tinha que enfrentar um problema, cérebro se anuviava e não ajudava, produzindo uma sensa de desamparo. Olhou para os cães, pedindo proteção, por eles tinham voltado a dormir, pois aquilo não era da cofl deles. E então encarou Pilon francamente.
— Você precisa me dizer o que fazer, Pilon. Não
tendo dessas coisas.
Era fácil demais. Pilon estava meio envergonhado fato de tudo ter sido tão fácil. Hesitou. Quase desistiu, então viu que ficaria furioso consigo mesmo se desistisse.
— Seus amigos são pobres — disse. — Gostariam
ajudá-lo, mas não têm dinheiro. Se você tiver dinheiro
condido, mostre-o. Compre algumas roupas. Coma aliment
que não sejam jogados fora por outras pessoas. Tire seu
nheiro do esconderijo, Pirata.
Pilon disse isso encarando o Pirata com firmeza. Vi| nos olhos deste, de saída, a suspeita e depois a obstinaçã Imediatamente, Pilon teve certeza de duas coisas: primei* que o Pirata tinha dinheiro escondido. E, segundo, que ia ser fácil tomá-lo. Esta última parte deixou-o contente. Pirata transformou-se num problema de tática, como ele ; tava.
Agora, o Pirata estava novamente olhando para ele»|
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seus olhos havia astúcia e, além disso, uma ingenuidade
  Não  tenho dinheiro em lugar nenhum — disse
 Mas meu amigo, vejo você todos os dias receber
vinte e cinco cents pela sua lenha, e nunca o vi gastá-los.
Dessa vez o cérebro do Pirata acorreu em seu socorro.
  Eu o dou a uma pobre velha — disse. — Não
tenho dinheiro em lugar nenhum.
E, com isso, encerrou firmemente o assunto.
"Isso deve ser fingimento", pensou Pilon. Assim, aque¬le dom tão desenvolvido nele tinha de ser chamado a agir. Ficou de pé e levantou a vela.
— Pensei  apenas  em  lhe  dizer  como  seus  amigos
estão preocupados — comentou, em tom crítico. — Se você
não procurar ajudar, eles nada poderão fazer por você.
A suavidade voltou ao olhar do Pirata.
— Diga a eles que estou bem de saúde — implorou.
— Diga aos meus amigos que venham me ver. Não sou tão
orgulhoso. Terei prazer em vê-los a qualquer hora. Quer
dizer isso a eles por mim, Pilon?
— Direi — respondeu Pilon, rudemente. — Mas seus
amigos não ficarão satisfeitos se virem que você não fez
nada para aliviar a preocupação deles.
Pilon apagou a vela e saiu para a escuridão. Sabia que o Pirata jamais diria onde estava seu tesouro. Ele teria de ser descoberto pela astúcia, tirado pela força, e então todas as boas coisas seriam dadas ao Pirata. Era o único jeito.
E, então, Pilon instalou-se para vigiar o Pirata. Se-guiu-o até a floresta, quando o homem foi cortar lenha. Passou a noite vigiando o galinheiro. Falou longa e franca¬mente com ele, e nada adiantou. O tesouro estava mais longe de ser descoberto do que nunca. Ou estava enterrado no galinheiro, ou escondido no fundo da floresta, e só era visi¬tado durante a noite.
A longa e infrutífera vigília acabou com a paciência de Ele percebeu que precisava de ajuda e conselho. E quem melhor para isso do que seus camaradas Danny, Pablo e Jesus Maria? Quem poderia ser tão ladrão e tão esperto? vuem poderia se desfazer em bondade com mais facilidade?
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Pilon meteu-os no negócio. Mas, primeiro, prepar como havia se preparado: a pobreza do Pirata, seu de paro e, finalmente. .. a solução. Quando chegou à sok seus amigos estavam numa fúria filantrópica. Eles o ap diram. Seus rostos reluziam de bondade. Pablo imagii que poderia haver mais de cem dólares no tesouro.
Quando o entusiasmo diminuiu a um ponto funcic começaram a fazer planos.
— Precisamos vigiá-lo — disse Pablo.
— Mas eu o vigiei — argumentou Pilon. — Ele
se esgueirar na noite, e então ninguém pode segui-lo mu
de perto, pois seus cães o protegem como demónios,
vai ser tão fácil assim.
— Você usou todos os  argumentos?  — pergunt
Danny.
— Usei. Um por um.
Por fim foi Jesus Maria, aquele homem tão hur quem encontrou a saída.
— Será difícil enquanto ele morar naquele galir
— disse ele. — Mas suponham que ele morasse aqui,
nosco. O seu silêncio será vencido pela nossa bondade
será mais fácil saber quando ele sair de noite.
Os amigos pensaram muito naquela sugestão.
— Às vezes as coisas que ele apanha nos restaur
são quase novas — murmurou Pablo. — Já o vi com
filé do qual só faltava um pedacinho.
— Deve haver bem uns duzentos dólares —
Pilon.
Danny fez uma objeção.
— Mas aqueles cães. . . ele vai querer trazê-los.
— São mansos — disse Pilon. — Obedecem rig
samente ao Pirata. Você pode traçar uma linha num cant
dizer: "Mantenha seus cachorros dentro desta linha". O
rata falará com eles, e os cães obedecerão.
— Vi o Pirata uma vez de manhã e ele tinha qu
meio bolo, e estava apenas um pouquinho molhado de
— disse Pablo.
O problema foi resolvido. A casa decidiu transfor se em comissão, e esta visitou o Pirata.
O galinheiro ficou apinhado quando todos entrar
 
O Pirata procurou disfarçar seu contentamento com um tom
grosseiro.
  O tempo tem estado mau — disse soaavelmente,
acrescentando: — Vocês não vão acreditar, mas achei um carrapato do tamanho de um ovo de pombo no pescoço de Rudolph. — E depois falou de maneira depreciativa de sua casa, como compete a um anfitrião. — Ela é muito pequena
 disse. — Não é um lugar próprio para receber os amigos.
Mas é quente e aconchegante, principalmente para os ca-chorros.
Então Pilon falou. Disse ao Pirata que a preocupação estava matando seus amigos. Mas, se ele quisesse ir morar com eles, então poderiam dormir novamente livres de preo-cupações.
Foi, na verdade, um grande choque para o Pirata. Ele olhou para as próprias mãos. Olhou para os cães, pedindo ajuda, mas os animais não perceberam. Finalmente, enxugou a felicidade dos olhos com as costas da mão, e a mão na enorme barba preta.
— E os cachorros? — perguntou, com voz suave. —
Também querem os cachorros? Vocês gostam de cachorros?
Pilon balançou a cabeça.
— Os cães também. Arrumaremos um canto só para
eles.
O Pirata era muito orgulhoso. Tinha medo de não ter uma conduta à altura.
— Agora vão embora — disse, suplicante. — Vão para
casa. Amanhã eu irei.
Os amigos perceberam como ele se sentia. Saíram aga-chados e o deixaram só.
— Ele vai ser feliz conosco — disse Jesus Maria.
— Pobre homenzinho solitário — acrescentou Danny.
Se eu soubesse, teria feito o convite há muito tempo,
mesmo que ele não tivesse o tesouro.
Uma chama de alegria ardia em todos eles. Adaptaram-se logo à nova relação. Danny, com um pe-aço de giz azul, traçou um semicírculo que isolou um can-0 da sala, e era ali que os cães deveriam ficar quando esti¬vessem dentro de casa. O Pirata também dormiria naquele car»to, com os cães.
 
 
 
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A casa estava começando a ficar apinhada, com cinc homens e cinco cães. Mas, desde o começo, Danny e amigos perceberam que o convite ao Pirata havia sido ins rado por aquele anjo exausto e aflito que guardava seus tinos e os protegia do mal.
Todas as manhãs, muito antes de os amigos acordare o Pirata se levantava do canto e, acompanhado pelos cães fazia a ronda dos restaurantes e dos desembarcadouros, era daqueles por quem todos sentiam simpatia. Seus embr lhos aumentaram. Os outros recebiam seus presentes e utilizavam. Peixe fresco, metades de tortas, bisnagas inteiratff de pão dormido, carne que precisava só de um pouquinho < bicarbonato para perder o esverdeado. Começaram realme te a viver.
E a aceitação dos seus presentes tocou mais profunda^! mente o Pirata que qualquer coisa que os outros tivesse feito em seu benefício. Havia um brilho de adoração em olhos quando os via comer os alimentos que trazia.
De noite, quando se sentavam ao pé do fogo e comerí| tavam os acontecimentos de Tortilla Fiat, com as vozes cansadas de deuses alimentados, os olhos do Pirata passava de boca em boca, e seus próprios lábios moviamse, repetir do, em sussurros, as palavras dos amigos. Os cães se meravam em torno dele, enciumados.
Aqueles eram seus amigos, monologava à noite, quartel a casa estava escura, quando os cães se aconchegavam a ele| fazendo com que todos ficassem aquecidos. Aqueles home gostavam tanto dele que se preocupavam com a sua solidãolf O Pirata constantemente repetia isso para si mesmo, pois] era tão fantástico quanto inacreditável. Sua carrocinha ag ra era guardada no quintal de Danny, e diariamente ele cora tava seus galhos
de pinheiro resinado e os vendia. Mas <| Pirata tinha tanto medo de perder a menor palavra dita seus amigos durante as noites, tanto medo de não pc estar ali para absorver aquela corrente de cálida camarad gem, que não visitava seu tesouro havia vários dias, pa adicionar-lhe algumas moedas.
Seus amigos eram bondosos com ele. Tratavam-no grande delicadeza. Mas havia sempre um olho aberto e fia nele. Quando empurrava sua carrocinha para o interior
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floresta, um dos amigos ia com ele e se sentava num cepo en-canto eje trabalhava. Quando o Pirata ia para a ravina, úl¬tima coisa que fazia à noite, Danny, Pablo. Pilon ou Jesus Maria lhe faziam companhia. E, de noite, precisava ficar mui¬to silencioso para poder se esgueirar sem uma sombra atrás
dele.
Durante uma semana, os amigos apenas o vigiaram. Mas, por fim, a inatividade os cansou. Sabiam que a ação direta estava fora de questão. E por isso, uma noite, surgiu a discussão sobre a vantagem de esconder o próprio dinheiro.
Foi Pilon quem começou.
— Eu tenho um tio, um perfeito avarento, que escon¬
dia o dinheiro no mato. E um dia, quando foi procurá-lo, o
dinheiro havia sumido. Alguém o tinha achado e roubado.
Ele já era velho, naquela época, e como seu dinheiro havia
desaparecido, ele se enforcou.
Pilon notou, com satisfação, o olhar de apreensão que surgiu no rosto do Pirata.
Danny também havia reparado e continuou:
— O velho, meu avô, que era dono desta casa, tam-
bém enterrava dinheiro. Não sei quanto, mas o velho era
considerado um homem rico, por isso deveria haver uns tre¬
zentos ou quatrocentos dólares. Ele cavou um buraco bem
fundo e colocou seu dinheiro ali e depois o fechou, espalhan¬
do agulhas de pinheiro por cima até achar que ninguém
poderia perceber o que tinha sido feito ali. Mas, quando
voltou, o buraco estava aberto e o dinheiro havia desapa¬
recido.
O Pirata acompanhava as palavras com os lábios. Um ar de terror inundou seu rosto. Seus dedos fecharam-se so¬bre os pêlos do pescoço de Senor Alec Thompson. Os ami¬gos entreolharam-se e deixaram o assunto para mais tarde. Começaram a falar da vida amorosa de Cornelia Ruiz.
Durante a noite, o Pirata esgueirou-se para fora da casa, seguido pelos cachorros e por Pilon. Mergulhou na floresta rapidamente, pulando com firmeza por cima de toras e moi¬tas. Pilon esfalfava-se atrás dele. Mas, quando ultrapassou tres quilómetros, Pilon se sentiu sem fôlego, e arranhado Pe as videiras. Parou um instante para descansar. E nesse mstante percebeu que todos os sons à sua frente haviam
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cessado. Esperou, escutou e arrastou-se para a frente, o Pirata havia sumido.
Duas horas mais tarde, Pilon tornou a voltar, deva e cansado. O Pirata estava em casa, profundamente ador eido, no meio dos seus cães. Estes ergueram a cabeça quaí do Pilon entrou, e o rapaz pensou que eles houvessem so| rido para ele mordazmente durante um momento.
Na manhã seguinte, houve uma reunião na ravina, if
— É impossível segui-lo — informou Pilon. —
desaparece. Enxerga no escuro. Conhece cada árvore da
resta. Temos que achar outra maneira.
— Talvez um só não baste — sugeriu Pablo. —
todos nós o seguíssemos, aí um poderia não perder
rastro.
— Falaremos outra vez esta noite — disse Jesus '.
— Só que pior. Uma senhora minha conhecida vai me
um pouco de vinho — acrescentou com modéstia. — Talve
se o Pirata beber um pouco, não consiga desaparecer
facilmente.
E assim foi resolvido.
A amiga de Jesus Maria deu-lhe um garrafão cheio vinho. O que se poderia comparar com o prazer do Pir naquela noite, quando lhe puseram na mão um copo vinho, e ele se sentou com os amigos e saboreou a bebid| ouvindo a conversa? Uma alegria dessas acontecia mui| raramente na vida do Pirata. Ele gostaria de poder aper aquela gente querida contra o peito e dizer-lhes o qu gostava deles. Mas não podia fazer isso, pois iriam que estava bêbado. Gostaria de poder fazer uma coisa fo midável, para demonstrar-lhes seu afeto.
— Na noite passada, falamos de dinheiro enter
— começou Pilon. — Hoje me lembrei de um primo
eu  tenho, um homem esperto.  Mesmo que ninguém
mundo conseguisse esconder dinheiro sem que este fo
descoberto, ele conseguiria. Assim, pegou o dinheiro ej
escondeu. Talvez vocês o tenham visto, aquele pobr
que se arrasta pela doca, esmolando cabeças de peixe fazer sopa. É o meu primo. Alguém roubou seu enterrado.
A preocupação voltou ao rosto do Pirata.
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Uma história foi puxando outra, e, em cada uma, todas formas de infortúnio acompanhavam os passos dos que escondiam seu dinheiro.
  É melhor ter o dinheiro em casa, gastar algum aqui
e ali, dar um pouquinho aos amigos — concluiu Danny.
Tinham estado observando o Pirata atentamente e vi¬ram que, no meio da pior história, a preocupação sumira do rosto dele, sendo substituída por um sorriso de alívio. Agora ele bebericava seu vinho, com os olhos brilhando de alegria.
Os amigos ficaram desesperados. Todos os seus planos tinham falhado. Ficaram desgostosos. Depois de toda a sua bondade e caridade, acontecia aquilo. O Pirata havia, não sabiam como, escapado ao bem que tinham querido incutir nele. Terminaram o vinho e foram dormir tristemente.
Poucas coisas poderiam acontecer de noite sem o conhe-cimento de Pilon. Enquanto o resto do seu corpo dormia, seus ouvidos permaneciam atentos. Ouviu a saída furtiva do Pirata e dos seus cães. Ergueu-se de um pulo para acordar os amigos. E num instante os quatro estavam seguindo o Pirata em sua ida para a floresta. Estava muito escuro quan¬do entraram no pinheiral. Os quatro amigos correram por entre as árvores, tropeçando em arbustos, mas, durante muito tempo, puderam ouvir o Pirata andando à frente deles. Eles o seguiram durante tanto tempo quanto Pilon na noite ante¬rior, e então, subitamente, havia o silêncio e o
sussurro da floresta, tocada pelo vento vago da noite. Esquadrinharam a floresta e as capoeiras, mas o Pirata havia desaparecido outra vez.
Afinal, gelados e desconsolados, reuniram-se e caminha-ram, cansados, de volta a Monterey. A aurora surgiu antes da volta deles. O sol já estava brilhando sobre a baía. A fumaça dos fogos matutinos de Monterey erguiase sobre a cabeça deles.
O Pirata apareceu na varanda para recebê-los, e seu rosto estava feliz. Todos passaram por ele, malhumorados, j entraram na sala. Sobre a mesa, havia uma grande bolsa de lona.
O Pirata entrou atrás deles.
Eu menti para você, Pilon — disse ele. — Eu lhe
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disse que não tinha dinheiro, porque estava com medo. quela época eu não sabia que tinha amigos. Você disse q o dinheiro escondido é roubado com facilidade, e tornei? ficar com medo. Só ontem à noite achei uma solução. Me dinheiro estará em segurança com meus amigos. Ningué poderá roubá-lo se meus amigos o guardarem para mim. Os quatro olharam para ele, horrorizados.
— Leve seu dinheiro de volta para a floresta e escoi)
da-o — disse Danny, brutalmente. — Não queremos toe
conta dele.
— Não — respondeu o Pirata. — Não terei tranqiiil
dade escondendo-o. Mas ficarei feliz sabendo que meus ac
gos o guardam para mim. Vocês não podem acreditar, ma
nestas últimas duas noites alguém me seguiu na floresta par.
roubar meu dinheiro.
Apesar de o golpe ser terrível, Pilon, homem inte gente, procurou fugir dele.
— Antes de nos entregar esse dinheiro, talvez vo
queira ficar com algum — sugeriu docemente.
O Pirata balançou a cabeça.
— Não. Não posso fazer isso. É uma promessa. Ter
quase mil moedas de vinte e cinco cents. Quando tiver
comprarei um castiçal de ouro para São Francisco de Assis
Uma vez tive um ótimo cachorro e ele ficou doente. Entãq
prometi um castiçal de ouro de mil dias se aquele cachor
ficasse bom. E ele ficou — concluiu, abrindo os br
enormes.
— É um destes aqui? — perguntou Pilon.
— Não — respondeu o Pirata. — Foi atropelado
um caminhão logo depois.
Assim, estava acabada toda a esperança de desviar dinheiro. Danny e Pablo ergueram melancolicamente o do saco de moedas de prata, levaram-no para o outro af sento e o colocaram sob o travesseiro da cama de Danny Há um tempo atrás, teriam tido um certo prazer em sat que aquele dinheiro estava sob o travesseiro, mas agora SU derrota era amarga. E não havia nada no mundo que puc sem fazer em relação a isso. Sua oportunidade chegara e fora.
 
O Pirata estava diante deles e tinha lágrimas de felici¬dade nos olhos, pois havia provado seu amor pelos amigos.
  E pensar — disse ele — que fiquei todos aqueles
anos naquele galinheiro, sem conhecer nenhum prazer. Mas ora — acrescentou —, ah, agora estou muito feliz.
 
 
 
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Como os amigos de Danny procuraram um tesouro místico na noite de Santo André. Como Pilon o achou e, mais tarde, como calça de sarja mudou de dono duas vezes
Se tivesse sido um herói, Portagee teria passado tempo mau no exército. O fato de ser Big Joe Portag com uma experiência decente na cadeia de Monterey, nãq só o salvou da desgraça do patriotismo contrariado,
solidificou sua convicção de que, assim como os dias de homem são acertadamente devotados, em tempos iguais, | dormir e a ficar acordado, os anos são gastos, acertadamentfij metade na cadeia e a outra metade fora dela. Durante a guerra, Joe Portagee passou muito mais tempo na cad do que fora dela.
Na vida civil, é-se castigado pelo que se faz. Mas códigos militares acrescentaram um novo princípio a is castigam uma pessoa por coisas que ela não fez. Joe Po tagee nunca havia pensado nisso antes. Não mantinha rifle limpo. Não fazia a barba. E uma vez ou duas, qua de licença, não voltou. Junte-se a esses defeitos a propens que Big Joe tinha para uma discussão amena, quando desig| nado para alguma tarefa.
Normalmente, passava metade do seu tempo na cadeia Em dois anos de exército, passou dezoito meses na prisão| E estava longe de achar satisfatória a vida carcerária exército. Na cadeia de Monterey, estava acostumado à mansa e à camaradagem. No exército, só encontrou trabalho| Em Monterey, uma única acusação era feita contra ele: briaguez com conduta desordeira. As acusações do exércit o desnortearam de tal maneira, que o efeito em sua ment foi, provavelmente, permanente.
Quando a guerra acabou e os soldados foram disf
 
dos Big Joe ain^a tmna uma sentença de seis meses a cum-nrir. A acusação havia sido: "Embriaguez em serviço. Agres¬são a um sargento com uma lata de querosene. Negação de identidade (não podia se lembrar, portanto negava tudo). Roubo de dois latões de feijão cozido, e saída sem licença, montando o cavalo do major".
Se o armistício já não tivesse sido assinado, provavel¬mente teriam fuzilado Big Joe. Voltou para Monterey muito tempo depois de os outros veteranos terem chegado e rece¬bido todas as glórias da vitória.
Quando Big Joe saltou do trem, usava um capote do exército, túnica e calça de sarja azul.
A cidade pouco havia mudado, com exceção da lei seca. Mas esta não havia mudado Torrelli. Joe trocou seu capote por um galão de vinho e saiu à procura dos amigos.
Naquela noite, não encontrou os amigos de verdade, mas não sentiu falta, em Monterey, dos vis e dos falsos, das piranhas e seus cúmplices, sempre prontos a levar um homem para o fundo do poço. Joe, que não tinha muita moral, não sentia repulsa pelo poço. Gostava dele.
Antes que se passasse muito tempo, seu vinho acabou, e ele não tinha dinheiro. E então as piranhas tentaram arran¬car Joe do poço, e ele não quis sair. Lá, estava à vontade.
Quando tentaram expulsá-lo à força, Big Joe, com um justo e terrível ressentimento, quebrou a mobília toda, as janelas, jogou moças seminuas na rua e, então, como numa reflexão tardia, tocou fogo na casa. Não era nada seguro levar Joe à tentação. Ele não tinha nenhuma resistência.
Finalmente, a polícia chegou e prendeu-o. Ele suspirou, feliz. Estava em casa outra vez.
Depois de um rápido julgamento sem jurados, no qual foi condenado a trinta dias, Joe instalou-se confortavelmente na sua tarimba de couro e dormiu pesadamente durante um décimo de sua sentença.
Kg Joe gostava da cadeia de Monterey. Era um ponto de encontro. Se ficasse nela o tempo suficiente, todos os seus amigos entrariam e sairiam dali. O tempo passava rapida¬mente. Ficou meio triste quando teve de sair, mas sua tris¬teza foi amenizada pela certeza de que era muito fácil voltar.
Big Joe gostaria de voltar novamente ao poço, mas não
 
 
 
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tinha dinheiro nem vinho-. Percorreu as ruas à procura dosi velhos amigos, Pilon, Danny e Pablo, mas não conseguiu! encontrá-los. O sargento da polícia disse-lhe que não tinha | notícias deles havia muito tempo.
— Devem ter morrido — comentou Portagee.
Perambulou até se deparar com Torrelli, mas este não]
era amistoso com quem não tinha dinheiro nem propriedades] negociáveis, e deu pouca alegria a Big Joe. Porém, disse-lhej que Danny havia herdado uma casa em Tortilla Fiat e que! todos os seus amigos moravam com ele.
A amizade e o desejo de ver os amigos inundou Joe. De tarde, subiu devagar até Tortilla Fiat para encon-1 trar Danny e Pilon. Estava escurecendo quando chegou à ruâj e, ali, encontrou Pilon, andando depressa, com ar eficienteíl
— Ei, Pilon. Eu vinha ver você.
— Alô, Joe Portagee — cumprimentou Pilon, seca-J
mente. — Onde esteve?
— No exército — respondeu Joe.
A mente de Pilon estava longe dali.
— Tenho que ir andando.
— Irei com você — disse Joe.
Pilon parou e o examinou.
— Não lembra que noite é esta? — perguntou.
— Não. Qual é?
— É a noite de Santo André.
Então Portagee lembrou-se. Aquela era a noite em qu#| todo nativo que não estava na cadeia vagueava incansável*;! mente pela floresta. Era a noite em que todos os tesourofl enterrados emitiam uma leve fosforescência. E a florestal estava cheia de tesouros. Monterey havia sido invadida mui*! tas vezes nos últimos duzentos anos, e a cada vez haviain| sido enterrados objetos de valor.
A noite estava clara. Pilon havia emergido de sua cara-| paca habitual, como fazia de vez em quando. Naquela noite*! era o idealista, o presenteador. Naquela noite estava empe-J nhado numa missão de bondade.
— Você pode vir comigo, Big Joe Portagee, mas
acharmos algum tesouro, eu é que vou resolver o que f
com ele. Se você não estiver de acordo, pode ir sozinh
procurar seu próprio tesouro.
 
Big Joe não era um especialista em orientar seus pró¬prios esforços.
.— Irei com você, Pilon — respondeu. — Não me importo com tesouros.
Escurecera completamente quando penetraram na flo¬resta. Seus pés pisaram no leito de agulhas de pinheiro. Pilon sentiu que a noite estava perfeita. Uma neblina alta cobria o céu e, por trás dela, a lua enchia a floresta de uma luz enevoada. Nada havia que se parecesse com as silhuetas níti¬das que conhecemos da realidade. Os troncos das árvores não eram colunas escuras de madeira, mas sombras suaves e imateriais. As moitas de arbustos eram informes e moven-tes na luz fantástica. Naquela noite, os fantasmas podiam andar livremente, sem medo da incredulidade humana, pois era uma noite enfeitiçada, e quem não percebesse isso seria insensível.
De vez em quando, Pilon e Big Joe passavam por outros caçadores de tesouros, que vagavam incansavelmente, zigue-zagueando entre os pinheiros. Caminhavam de cabeça baixa e moviam-se silenciosamente, sem trocar saudações. Quem poderia dizer qual deles era mesmo um homem vivo? Joe e Pilon sabiam que alguns eram sombras dos velhos que haviam enterrado os tesouros e que, na noite de Santo André, voltavam à terra para ver se sua fortuna não fora mexida. Pilon usava um medalhão do santo pendurado no pescoço, para fora da camisa. Por isso, não tinha medo de espíritos. Big Joe caminhava com os dedos cruzados no sinal-da-cruz. Embora pudessem estar apavorados, sabiam que tinham pro-teção mais que adequada para enfrentar aquela noite sobre¬natural.
O vento levantou-se quando eles começaram a andar e carregou a neblina pela face da lua pálida, como uma suave aquarela cinzenta. A neblina deslizante deu formas moveis à floresta, pois cada árvore se arrastava furtivamente para a frente, e os arbustos moviam-se silenciosamente, como grandes feras escuras. As copas
das árvores conversavam asperamente ao vento, falando de riquezas e pressagiando fortes. Pilon sabia que não era bom ouvir a conversa das arvores. Nada de bom advinha de conhecer o futuro. E, além
 
 
 
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disso, aquele murmúrio era profano. Afastou seus ouvic da conversa das árvores.
Começou a fazer um trajeto em ziguezague através
floresta, e Big Joe caminhava ao seu lado como um
enorme e atento. Homens solitários e silenciosos passav
por eles e se afastavam sem um cumprimento. E os mor
passavam por eles sem fazer barulho e se afastavam sem
cumprimento. ■«.
Na Ponta, a sirena da neblina começou a tocar, muitj abaixo deles, externando sua pena por todos os bons nav afundados no recife de ferro e por todos os outros que dia iriam perecer ali.
Pilon estremeceu e sentiu frio, embora a noite estive quente. Recitou baixinho uma ave-maria.
Passaram por um homem cinzento, que caminhava cabeça baixa e que não os cumprimentou.
Decorreu uma hora, e Pilon e Big Joe continuava perambulando tão incansavelmente quanto os mortos abarrotavam a noite.
De repente, Pilon parou. Sua mão apertou o braço Big Joe.
— Você viu? — sussurrou.
— Onde?
— Bem ali em frente.
— Hummm. . . acho que vi.
Pilon pensou estar vendo uma suave coluna de luz que brilhava saindo do chão, a uns dez metros de dist na frente deles.
— Big Joe — murmurou —, apanhe dois gravetos <*
mais ou menos um metro. Não quero desviar o olhar. PosSJ
perder aquilo. '|
Imobilizou-se como um perdigueiro, enquanto Big J<j| saía correndo à procura dos gravetos. Pilon ouviu-o queb dois pequenos galhos secos de um pinheiro. E ouviu os los, quando Big Joe quebrou os ramos, limpando os ga~ E continuou fixando a pálida haste de luz nebulosa. Era — ténue que, às vezes, parecia desaparecer completamente. I| outras vezes, não tinha nenhuma certeza de vê-la. Não tae: os olhos quando Big Joe lhe colocou os galhos nas mã Pilon cruzou-os em ângulos retos e avançou lenta
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erguendo a cruz diante dele. Quando chegou perto, a luz
esmaeceu. Todavia, ele viu de onde ela surgira, uma depres¬
são bem redonda no meio das agulhas de pinheiros.
Pilon manteve a cruz sobre a depressão e disse:
  Tudo o que há aqui é meu por descoberta. Afastem-
se   maus espíritos. Afastem-se, espíritos dos homens que
enterraram este tesouro, in nomine Patris et Filii et Spiritus
§ancti — exalando a seguir um grande suspiro e sentando-se
no chão.
— Ah, meu amigo Big Joe, achamos — gritou. —
Procurei durante anos e agora achei.
— Vamos cavar — disse Big Joe.
Mas Pilon sacudiu a cabeça, impaciente.
— Enquanto todos os espíritos estão livres? Enquanto
o simples fato de estar aqui é perigoso? Você está louco,
Big Joe. Vamos ficar sentados aqui até amanhecer. Então
marcaremos o lugar e viremos cavar amanhã de noite. Nin¬
guém mais poderá ver a luz, agora que a cobrimos com a
cruz. Amanhã de noite não haverá perigo.
A noite parecia mais amedrontadora, agora que estavam sentados nas agulhas de pinheiro, mas a cruz irradiava um calor de santidade e segurança, como uma pequena fogueira no chão. Como uma fogueira, no entanto, aquecia apenas pela frente. Suas costas estavam à mercê do frio e das coisas más que perambulavam pela floresta.
Pilon levantou-se e traçou um grande círculo em torno do local todo, e estava dentro dele quando o fechou.
— Que nenhuma coisa má cruze esta linha, em nome
do Santíssimo Jesus — entoou.
Voltou a sentar-se. Tanto ele quanto Joe sentiram-se melhor. Podiam ouvir os passos abafados dos exaustos fan-tasmas. Podiam ver as fracas luzes que brilhavam nas for¬mas transparentes, quando eles andavam. Mas seu círculo protetor era inexpugnável. Nenhuma coisa má deste ou de outro mundo poderia atravessar esse círculo.
— Que vai fazer com o dinheiro? — perguntou Big
Joe.
Pilon olhou-o com desconfiança.
T         ■ Você nunca deve ter procurado um tesouro, Big Joe Portagee, pois não perguntaria o que fazer com ele. Não
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ficarei com esse tesouro. Se eu tivesse a intenção de cot vá-lo, então o tesouro iria afundando cada vez mais, um marisco na- areia, e eu nunca o acharia. Não, a coisa é assim. Esítíu cavando esse tesouro para Danny.
Nesse instante, todo o idealismo de Pilon veio à to Contou a Big Joe como Danny era bom para os amigos.
— E não fazemos nada por ele — continuou,
pagamos aluguel. Às vezes ficamos bêbados e quebramos
móveis. Brigamos com Danny quando estamos zangados i
ele, e o xingamos. Ah, nós somos muito ruins, Big Joe.
por isso, todos nós, Pablo, Jesus Maria e o Pirata, conve
samos e fizemos um plano. Todos nós, esta noite, estai
na floresta, procurando tesouros. E o tesouro deve ser
a Danny. Ele é muito bom, Big Joe. Ele é muito amáve e nós somos muito maus. Mas, se levarmos um grande de dinheiro para ele, Danny ficará contente. Foi pelo fato meu coração estar isento de egoísmo que pude achar tesouro.
— Não vai guardar nada? — perguntou Big Joe, ir
dulo. — Nem para um garrafão de vinho?
Nessa noite, Pilon não possuía nenhuma partícula Mau Pilon.
— Nem sequer uma lasquinha de ouro! Nem um
quelzinho azinhavrado! É tudo para Danny, tudo.
Joe ficou desapontado.
— Andei este tempo todo e não vou ganhar nem
copo de vinho por isso — rosnou.
— Quando Danny estiver com o dinheiro —
Pilon, delicadamente —, talvez ele compre um pouco
vinho. Claro, não farei nenhuma sugestão, pois o dinhçif
é dele. Mas acho que ele talvez compre um pouco de vií
E então, se você for bom para ele, poderá ganhar um Big Joe ficou aliviado, pois conhecia Danny há mu
tempo. Achou que era possível que Danny comprasse
grande quantidade de vinho.
A noite passou. A lua sumiu e deixou a floresta nu
escuridão abafada. A sirena de nevoeiro tocava sem
Durante a noite inteira, Pilon manteve-se imaculado. Re
um pouco em intenção de Big Joe, como se supõe
recém-convertidos o façam.
 
  Vale a pena ser gentil e generoso — disse Pilon.
__ Não só essas ações erguem um edifício de alegria no céu, mas há, também, uma recompensa imediata aqui na terra. A eente sente um calor dourado luzir como uma enchilada quente no estômago. O espírito de Deus nos envolve num abrigo macio como pêlo de camelo. Nem sempre fui um homem bom, Big Joe Portagee. Não me envergonho de con-fessar isso.
Big Joe sabia disso muito bem.
  Tenho sido mau — continuou Pilon, em êxtase.
Estava se fruindo intensamente. — Menti e roubei. Tenho sido lascivo. Cometi adultério e invoquei o nome de Deus em vão.
— Eu também — disse Big Joe, feliz.
— E qual foi o resultado, Big Joe Portagee? Tive sen¬
timentos mesquinhos. Sei que deveria ter ido para o inferno.
Mas agora vejo que o pecador não é tão ruim que não possa
ser perdoado. Embora ainda não tenha me confessado, sinto
que a mudança que se efetua em mim está agradando a Deus,
pois Sua graça está sobre mim. Se você também quiser mudar
seus hábitos, Big Joe, se quiser abandonar a embriaguez, as
disputas e aquelas moças da casa de Dora Williams, poderá
sentir-se como eu.
Mas Big Joe caíra no sono. Nunca ficava acordado muito tempo quando não podia se movimentar.
Para Pilon, a graça não foi tão aguda, já que ele não pôde falar a respeito dela com Big Joe, mas ele se sentou e olhou para o local do tesouro, enquanto o céu começava a ficar cinzento e a aurora surgia atrás da neblina. Viu o pinheiral tomar forma e emergir da obscuridade. O vento cessou e os coelhinhos azuis saíram das moitas, pulando nas agulhas dos pinheiros. Pilon estava morto de sono, mas feliz.
Quando clareou, sacudiu Big Joe Portagee com o pé.
— Está na hora de irmos para a casa de Danny. Já é
dia.       Pilon destruiu a cruz, pois não era mais necessária,
e desfez o círculo. — Agora — disse ele —, procuremos não
eixar marcas, e procurar nos lembrar deste lugar apenas Pelas árvores e pelas pedras.
Por que não cavamos agora? — perguntou Big Joe.
 
 
 
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— E todo mundo em Tortilla Fiat viria nos aju
— disse Pilon, ironicamente.
Olharam com atenção os arredores, dizendo:
— Há três árvores juntas à direita e duas à esquerd
A moita de arbustos fica lá e aqui há uma pedra.
Finalmente, afastaram-se do tesouro, memorizando; lugar por onde haviam vindo.
Na casa qe Danny, encontraram amigos cansados.
— Achou alguma coisa? — perguntaram os amigos^
— Não — disse Pilon rapidamente, a fim de evitarj
confissão de Joe.
— Bem, Pablo pensou ter visto a luz, mas ela desap
receu antes que ele chegasse. E o Pirata viu o fantasma
uma velha, que era acompanhada pelo cachorro dele.
O Pirata abriu-se num sorriso.
— A velha me disse que meu cachorro estava fe
agora — disse.
— Olhem Big Joe Portagee, de volta do exército
anunciou Pilon.
— Alô, Joe.
— Lindo, este lugar — disse Portagee, e deixoun
cair, contente, numa cadeira.
— Afaste-se da minha cama — disse Danny, pois sab
que Joe Portagee tinha vindo para ficar.
O jeito como ele se sentou e cruzou as pernas tir um ar de permanência.
O Pirata saiu, pegou a carrocinha e foi para a flores| cortar lenha. Mas os outros cinco ficaram apanhando o que surgiu da neblina e, logo depois, adormeceram.
A tarde já estava pelo meio quando eles acordar Finalmente, espreguiçaram-se, sentaram-se e olharam vag mente para a baía lá embaixo, onde um navio-tanque cas| nho partia lentamente em direção ao mar. O Pirata hav deixado as sacolas na mesa, e os amigos as abriram, retirac a comida que ele havia recolhido.
Big Joe caminhou pela trilha, na direção da canc avariada.
— Até logo — gritou para Pilon.
Pilon olhou-o, aflito, até ver que Big Joe descia a colflj em direção a Monterey e não se dirigia para a floresta
 
oinheiros. Os quatro acomodaram-se e olharam, com ar so-nhador, a noite chegar.
Ao anoitecer, Joe Portagee voltou. Ele e Pilon conver-saram no quintal, longe dos ouvidos dos outros.
  Vamos pedir ferramentas emprestadas à sra. Mora-
jes disse Pilon. — Uma pá e uma picareta que estão perto
do galinheiro dela.
Quando ficou bem escuro, partiram.
— Vamos visitar algumas amiguinhas de Joe Portagee
 informou Pilon.
Penetraram no quintal da sra. Morales e apanharam as ferramentas. E então Big Joe tirou de dentro do matinho da beira da estrada um garrafão de vinho.
— Você vendeu o  tesouro!  — gritou Pilon, feroz-
mente. — É um traidor, cão dos cães!
Big Joe o acalmou com firmeza.
— Eu não disse onde estava o tesouro — falou com
dignidade. — Disse apenas: "Achamos um tesouro, mas é
para Danny. Quando Danny o tiver, pedirei um dólar em¬
prestado e pagarei o vinho".
Pilon ficou assombrado.
— E eles acreditaram e deixaram você trazer o vinho?
— perguntou.
— Bem. . . — Big Joe hesitou. — Deixei uma coisa
como garantia de que ia levar o dólar.
Pilon virou-se como um raio e apertou-lhe a garganta.
— Deixou o quê?
— Só um pequeno cobertor, Pilon — disse Joe Por-
tagee, gemendo. — Só um.
Pilon tentou sacudi-lo, mas Big Joe era tão pesado que í non só conseguiu sacudir a si mesmo.
— Que cobertor? — gritou. — Diga que cobertor
você roubou.
Big Joe debulhou-se em lágrimas.
— Só um dos de Danny. Só um. Ele tinha dois. Peguei
so o mais fininho e menor. Não me bata, Pilon. O outro era
aior. Danny o terá outra vez quando acharmos o tesouro. 1 non fê-lo dar meia-volta e acertou-lhe um pontapé, c°m pontaria e vigor.
 
 
 
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— Porco — disse-lhe —, vaca suja e ladra. Ou vo
traz aquele cobertor de volta ou eu o farei em pedaços.
Big Joe procurou acalmá-lo.
— Pensei que estivéssemos trabalhando para Danny
sussurrou. — Pensei: "Danny vai ficar tão contente,
poderá compfàisxentenas de novos cobertores".
— Cale a boisa — disse Pilon. — Ou você traz aque
mesmo cobertor deyolta ou vai apanhar com uma pedr
 
— Pegou o garrafão, desarrolhou-o e tomou um gole,
acalmar sua sensibilidade atingida. Depois disso, tornou
arrolhar o garrafão e recusou uma gota que fosse a Portagee|
— Por causa desse roubo, você vai cavar tudo. Apanhe
ferramentas e venha comigo.
Big Joe rodopiou como um boneco e obedeceu. Não podia enfrentar a legítima fúria de Pilon.
Durante muito tempo tentaram encontrar o tesouro. Jí era tarde quando Pilon apontou para três árvores enfilei| radas.
— Ali! — disse ele.
Procuraram até encontrar a depressão no chão. Havifl um pouco de luar ajudando, pois naquela noite não havií neblina.
Antes de começarem a cavar, Pilon desenvolveu ut nova teoria sobre a descoberta de tesouros.
— Às vezes o dinheiro está em sacos — disse ele
e estes estão podres. Se você cavar diretamente, poderá per| der alguma coisa. — Traçou um amplo círculo em torno depressão. — Agora, cave uma vala profunda aqui em voltaj e então chegaremos ao tesouro.
— Você não vai cavar? — perguntou Big Joe.
Pilon ficou furioso.
— Eu sou ladrão de cobertores?  — gritou. —
roubei da cama do amigo que me acolheu?
— Ora, não vou cavar tudo sozinho! — disse Big Jc
Pilon apanhou um dos ramos de pinheiro que, na noit
anterior, havia servido para fazer a cruz. Avançou agourent mente para Big Joe Portagee.
— Ladrão — rosnou. — Porco sujo, amigo desle
Pegue essa pá.
A coragem de Big Joe sumiu, e ele abaixou-se,
 
nhando a pá no chão. Se Big Joe Portagee não sentisse a consciência pesada, poderia ter-se recusado. Mas seu medo de Pilon, armado de uma causa justa e um galho de pinheiro, era grande.
Big Joe detestava a ideia de cavar. A ideia da pá em movimento lhe era pouco atraente. A finalidade a ser atin¬gida, tirar terra de um lugar para pôr em outro, era, para alguém com uma visão mais ampla, boba e inútil. Uma vida inteira cavando podia levar praticamente a nada. A reação de Big Joe era um pouco mais simplista ainda. Não gostava de cavar. Havia se alistado para guerrear e só fizera cavar.
Mas Pilon estava vigiando, e a vala aumentou em torno do lugar do tesouro. Não adiantava alegar doença, fome ou fraqueza. Pilon era inexorável e mantinha sobre a cabeça de Joe o crime do cobertor. Apesar de Joe gemer, se lamen¬tar, mostrar as mãos feridas, Pilon manteve-se inflexível e o obrigou a continuar cavando.
Quando deu meia-noite, a vala tinha um metro de pro-fundidade. Os galos de Monterey cantaram. A lua sumiu atrás das árvores. Finalmente, Pilon ordenou um desvio na direção do tesouro. As pazadas de terra ficaram então mais lentas. Big Joe estava exausto. Pouco antes de clarear o dia, a pá chocou-se contra uma coisa dura.
— Ah! — gritou. — Encontramos, Pilon.
O achado era grande e quadrado. Cavaram frenetica¬mente no escuro, sem conseguir ver.
— Cuidado — recomendou Pilon. — Não o estrague.
0 dia clareou antes que eles tivessem desenterrado a
coisa. Pilon sentiu algo metálico e inclinou-se na luz nas¬
cente para ver. Era um bom pedaço quadrado de cimento.
Em cima, havia uma placa redonda, azinhavrada. Pilon leu
0 que estava escrito nela:
"Inspeção geodésica dos Estados Unidos — 1915 — Elevação 200 metros".
Pilon sentou-se à beira do buraco e seus ombros curva-ram-se com a derrota.
— Nenhum  tesouro?  — perguntou  Big Joe, lamu-
riento.
1 uon não respondeu. Portagee examinou a coluna de
 
 
 
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cimento e franziu o cenho, pensando. Virou-se para o triste! Pilon.
— Talvez possamos levar este bom pedaço de met
e vendê-lo.
Pilon saiu do seu abatimento e olhou para cima.
 — Johnny  Pompom encontrou  um — disse, com
calma ^k)s grandes desapontamentos. — Johnny Pompom! levou o pedaço de metal e tentou vendê-lo. Dá um ano dei cadeia, cavar uma coisa dessas — resmungou Pilon. — Ural ano de cadeia e dois mil dólares de multa.
Na sua dor, Pilon só queria estar longe daquele lugar! trágico. Levantou-se, encontrou um trapo onde embrulhou! o garrafão de vinho e começou a descer a colina.
Big Joe corria atrás dele, solícito.
— Aonde vamos? — perguntou.
— Não sei — respondeu Pilon.
O dia estava claro quando chegaram à praia. Mas nem! ali Pilon parou. Continuou andando sobre a areia grossa na1' beira do mar, até Monterey ficar muito para trás, restando^ apenas as dunas de areia de Seaside e as crespas ondas dal baía para verem seu sofrimento. Por fim, sentou-se na areia seca, aquecido pelo sol. Big Joe sentou-se ao seu lado, sen¬tindo que, de certa forma, era responsável pela silenciosa] dor de Pilon.
Pilon tirou o garrafão do embrulho, desarrolhou-o ej tomou um gole enorme. E como a tristeza é a mãe da com-e| paixão, passou o garrafão ao canalha do Joe.
— O homem põe e Deus dispõe — lamentou-se Pilon.j
— Eu estava imaginando como íamos levar as sacas de ourai
para Danny. Já podia ver sua reação. Ele ia ficar surpreso.,!
Ia custar a acreditar. — Arrancou o garrafão da mão de Jocf
Portagee e ingeriu uma quantidade colossal. — Foi tudo urUtj
sonho esfumado na noite.
Agora a praia estava ficando quente. Apesar do seul desapontamento, Pilon sentiu um conforto pérfido derra*| mar-se sobre ele, um impulso traiçoeiro de descobrir coisa positivas na situação.
Big Joe, à sua maneira tranquila, estava bebendo ma que a sua parte do vinho. Pilon tirou-lhe o garrafão, indignai do, e bebeu sem parar.
 
  Mas, afinal de contas -— disse, filosoficamente —,
e achássemos ouro, talvez isso não fosse uma boa coisa para Danny. Ele sempre foi pobre. A riqueza poderia deixá-lo
maluco.
Big Joe balançou a cabeça, solenemente. O vinho baixa¬va cada vez mais no garrafão.
  A felicidade é melhor que a riqueza — disse Pilon.
  ge procurarmos fazer Danny feliz, será melhor do que
lhe dar dinheiro.
Big Joe tornou a balançar a cabeça e tirou os sapatos.
  Fazer Danny feliz. É isso aí.
Pilon virou-se para ele, com ar triste.
— Você não passa de um porco e não tem condições
de viver entre os homens — disse, com doçura. — Você,
que roubou o cobertor de Danny, deve ser colocado num
chiqueiro e alimentado com cascas de batatas.
Estavam começando a ficar sonolentos sob o calor do sol. As ondas miúdas batiam, sussurrantes, na praia inteira. Pilon tirou os sapatos.
— Exatamente — disse Big Joe, e beberam o vinho
até a última gota.
A praia estava oscilando suavemente, subindo e descen¬do como uma grande onda.
— Você não é má pessoa — disse Pilon.
Mas Big Portagee já estava dormindo. Pilon tirou o casaco e cobriu a cabeça com ele. Dentro em pouco, também ele estava dormindo pacificamente.
O sol fez um arco no céu. A maré subiu e depois des¬ceu. Um bando de maçaricos apressados examinou os homens adormecidos. Um cão vadio farejou-os. Duas senhoras idosas, que apanhavam conchas, viram os corpos e apressaram-se a passar, antes que aqueles homens acordassem, encolerizados, e as perseguissem e brutalizassem. Era uma vergonha, con¬cordaram, que a polícia nada fizesse para evitar essas coisas.
— Eles estão bêbados — disse uma delas.
E a outra olhou para a praia por cima do ombro, para °s homens adormecidos, e concordou:
— Animais bêbados.
Quando finalmente o sol começou a se esconder por trás Os Pinheiros da colina de trás de Monterey, Pilon acordou.
 
 
 
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Estava com a boca seca como pedra-ume. Sua cabeça do e ele estava dolorido por causa da areia grossa. Big J roncava.
— Joe — gritou Pilon, mas Portagee estava fora alcance.
Pilon ergueu-se sobre o cotovelo e olhou o mar. " pouco de vinho faria um bem enorme à minha boca res quida", pensou. Virou a garrafa, mas não havia nem ufl     gota para aliviar sua língua seca. Então revirou os bois na esperança de que, enquanto dormia, tivesse acontecid ; algum milagre. Mas não acontecera nada.
Encontrou /  canivete quebrado, pelo qual havia recusado um copo vinho no mínimo vinte vezes, um anzol pregado numa roll um pedaço de arame sujo, um dente de cachorro e inúmer chaves que não entravam em nenhuma fechadura conhecid No conjunto, não havia nada que Torrelli pudesse considet valioso, mesmo num momento de loucura.
Pilon olhou especulativamente para Big Joe. "Pot amigo", pensou. "Quando Joe Portagee acordar, vai se tir tão sedento quanto eu. Ele ficaria contente se eu arra jasse um pouco de vinho para ele." Sacudiu Big Joe vigore mente várias vezes. E quando Portagee apenas resmungo e tornou a roncar, Pilon examinou seus bolsos. Encontr um botão de calça de latão, um pequeno disco de metal qu dizia "Come-se bem no Holandês", cinco ou seis fósfor queimados e um pedacinho de fumo de mascar.
Pilon acocorou-se. Não adiantava. Tinha que ress ali na praia enquanto sua garganta implorava gulosamenfj vinho.
Reparou na calça de sarja que Portagee estava usa e apalpou-a. "Bom tecido", pensou. "Por que esse imt Portagee deve usar roupas tão boas, enquanto seus amig andam de jeans?" Então lembrou-se de que as calças ca mal em Big Joe, que a cintura era apertada, com dois toes da braguilha desabotoados, pescando siri, além de tud "Alguém de tamanho razoável ficaria feliz dentro delas.'
Pilon recordou o crime de Big Joe contra Danny í tornou-se um anjo vingador. Como esse Portagee sinist ousava insultar Danny daquela forma! "Quando ele dar, vou dar-lhe uma surra! Mas", argumentou Pilon,
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til "seu crime foi roubo. Não seria uma boa lição para ele aber como alguém se sente quando é roubado? De que vale m castigo se não se aprender nada?" Era uma posição vito¬riosa para Pilon. Se, com um ato, pudesse vingar Danny, castigar Big Joe, dar uma lição de ética e obter um pouco de vinho, quem, no mundo, poderia criticá-lo?
Empurrou Portagee fortemente, e Big Joe sacudiu a mão como se ele fosse uma mosca. Pilon habilmente tiroulhe a calça, virou-o e caiu fora, pelas dunas de areia.
Torrelli havia saído, mas sua mulher abriu a porta para Pilon, que tinha um ar misterioso mas que acabou por mos¬trar-lhe a calça para exame.
Ela sacudiu a cabeça negativamente.
— Mas, olhe — disse Pilon —, a senhora está vendo
apenas as manchas e a sujeira. Olhe para este ótimo tecido
por dentro. Pense, senora! A senhora tira as manchas e
passa a calça! Torrelli volta. Fica em silêncio. Está zangado.
E então a senhora apresenta esta ótima calça! Veja como
seus olhos brilham!  Veja como fica contente!  Põe a se-
nhora no colo! Veja como lhe sorri, senora! Essa alegria
não é suficiente por um garrafão de vinho tinto?
— O fundilho está ralo — disse ela.
Ele o ergueu contra a luz.
— Pode ver através dele? Não! A rigidez e a aspereza
acabaram. Está em ótimas condições.
— Não — disse a mulher, com firmeza.
— Não seja má com seu marido, senora. Está lhe ne¬
gando a felicidade. Não ficarei espantado se ele procurar
outra mulher, que não seja tão desalmada. Então, por um
litro?
Finalmente, a resistência da mulher foi quebrada e ela lhe deu a garrafa. Pilon liquidou-a imediatamente.
— A senhora procura diminuir o preço do prazer —
admoestou-a. — Deveria ter-me dado meio garrafão.
A sra. Torrelli era dura como pedra. Pilon não conse¬guiu nem uma gota a mais. Sentou-se, pensativo, na cozi¬nha- "Judia, é o que ela é. Roubou-me a calça de Big Joe."
Pilon pensou tristemente no amigo, na praia. Que po¬deria fazer? Se voltasse para a cidade, seria preso. E o que aquela harpia havia feito para merecer a calça? Tinha ten-
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tado comprá-la do amigo de Pilon por um miserável lit de vinho vagabundo. Pilon sentiu-se derreter de raiva
— Já vou embora — disse para a sra. Torrellí.
A calça havia sido pendurada num armário fora
cozinha.
— Adeus — disse a sra. Torrelli, por cima do ombr
Entrou na pequena despensa, para preparar o jantarj
Ao sair, Pilon passou pelo armário e apanhou não
a calça, mas o cobertor de Danny.
Pilon voltou para a praia, para o lugar onde havig. deixado Big Joe. Pôde ver uma fogueira brilhando na areiâj e, quando se aproximou, alguns pequenos vultos escur passavam diante das chamas. Estava muito escuro, e orientou-se pela fogueira. Quando chegou mais perto, viu que era uma escoteira cozinhando salsichas. Aproximou-: cautelosamente.
A princípio, não pôde ver Big Joe, mas finalmente descobriu, meio coberto de areia, mudo de frio e de sust Pilon caminhou em sua direção com firmeza, mostrando-I a calça.
— Tome-a, Big Joe, e fique feliz por tê-la de volta.
Joe tiritava.
— Pilon, quem roubou minha calça?  Estou  aqui
horas e não pude ir embora por causa dessas garotas.
Pilon colocou-se amavelmente entre Big Joe e as ga tas, que corriam em torno da fogueira. Portagee tirou areia fria e úmida das pernas e vestiu a calça. Caminhara!) lado a lado pela praia escura, na direção de Monterey, cuja luzes pendiam como colares superpostos, recortados na coli*| na. As dunas de areia estendiam-se pela praia como mastin cansados, repousando. E as ondas ensaiavam suavemente ataque, sussurrando ligeiramente. A noite estava fria e id ferente, e sua vida quente recolhida, de forma que era cheia de advertências amargas para o homem, de que ele está no mundo e só entre seus pares. Que não tem consolo parte alguma.
Pilon continuava pensando, e Joe Portagee tateava fundo dos seus sentimentos. Finalmente, Pilon virou a beça para o amigo.
 
  Com isso, aprendemos que é loucura confiar numa
mulher — disse.
— Alguma mulher apanhou minha calça? — pergun¬
tou Big Joe, excitadíssimo. — Quem foi? Arranco a alma
dela!
Mas Pilon sacudiu a cabeça tristemente, como um velho Jeová que, descansando no sétimo dia, vê que seu mundo é enfadonho.
— Ela foi castigada — disse Pilon. — Pode-se dizer
mesmo que ela castigou a si mesma, e assim foi melhor. Ela
estava com sua calça. Comprou-a com avareza. E agora não
a tem.
Aquilo estava acima da compreensão de Big Joe. Havia mistérios que era melhor não desvendar. E Pilon queria que aquele fosse assim. Big Joe disse, humildemente:
— Obrigado por me trazer a calça de volta, Pilon.
Mas  Pilon  estava  tão  mergulhado  em  filosofia  que
mesmo os agradecimentos eram sem valor.
— Não foi nada — respondeu. — No total, só a lição
que aprendemos tem algum valor.
Subiram, deixando a praia, e passaram pela grande torre prateada do gasómetro.
Big Joe Portagee sentia-se feliz por estar com Pilon. "Ele é do tipo que cuida dos amigos", pensou. "Mesmo quando eles dormem, fica vigilante para evitar que alguma coisa lhes aconteça." Decidiu que um dia faria alguma coisa boa por Pilon.
 
 
 
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Como Danny foi apanhado por um aspirador! de pó e como os amigos de Danny o resgatara
Dolores Engracia Ramirez morava numa casinha- pr pria, na parte de cima de Tortilla Fiat. Fazia trabalhos mestiços para algumas senhoras de Monterey e era membij das Filhas Nativas do Oeste Dourado. Não era bonita, aque paisana magra, mas havia em seu todo uma certa volupt sidade de movimentos. Havia em sua voz aquele tom gut ral que alguns homens consideravam sugestivo. Seus olho podiam brilhar, por trás de uma névoa, com uma paij contida que aqueles homens, para os quais a carne é o importante, achavam atraente e um convite inequívoco.
Em seus momentos bruscos, não era desejável, ma havia nela uma combinação amorosa frequente o suficie a apelidassem de Doçura Ramirez em Tortilla Fia
para que
agradável vê-la quando o animal que existia
Era
saía à raça. Como se debruçava sobre seu portão da frent Como/sua voz ronronava preguiçosamente! Como suas se-<mexiam suavemente, ora encostando-se na cerca, ora afastando como uma onda de verão na praia e voltando a encostar na cerca! Quem no mundo poderia colocar tant intenção num rouco "Ai, amigo. Aonde vas?"
É verdade que, normalmente, sua voz era aguda, rosto, duro e fino como uma machadinha, seu corpo, de protuberâncias e suas intenções, egoístas. O seu eu suave só aflorava uma ou duas vezes por semana, e nora mente à noite.
Quando Doçura ouviu que Danny havia recebido ut herança, ficou contente por ele. Sonhou em ser sua mult o que também aconteceu com outras mulheres de Tor
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Fiat. De noite, ela se debruçava no portão, esperando que ele
passasse
e caísse em sua armadilha. Mas durante muito tem-
po sua armadilha só apanhou pobres índios e paisanos que não possuíam casas, cujas roupas eram às vezes fugitivas de guarda-roupas melhores.
Doçura não estava satisfeita. Sua casa ficava no alto da colina, acima da de Danny, numa direção raramente to¬mada por ele. Doçura não podia ir procurá-lo. Era uma se-nhora, e seu comportamento, regido por regras muito estritas de conveniências. Agora, se Danny passasse por lá, se pu¬dessem conversar, como velhos amigos que eram, se ele qui¬sesse entrar socialmente para tomar um copo de vinho, se a natureza demonstrasse ser forte e sua resistência feminina muito fraca, não haveria uma ruptura muito grave na con¬veniência. Mas era inconcebível deixar sua rede no portão.
Durante a noite, por meses seguidos, ela esperou em vão e aceitou o que lhe davam os que usavam jeans. Mas havia um número limitado de caminhos em Tortilla Fiat. Era inevitável que Danny, mais cedo ou mais tarde, passasse pelo portão de Dolores Engracia Ramirez. E ele passou.
Desde que se conheciam, nunca houvera para Doçura uma ocasião mais propícia para ele passar por ela. Pois Danny acabara de achar, naquela manhã, um barrilete de pregos de cobre para telhas de madeira, perdido pela Com¬panhia Central de Fornecimento. Danny o considerou refugo porque não havia nenhum funcionário da companhia à vista. Retirou os pregos do barrilete e meteu-os num saco. Depois, apanhou emprestada a carrocinha do Pirata, empurrada por este, e levou o material à Companhia de Fornecimento do Oeste, onde vendeu o cobre por três dólares. Deu o barrilete ao Pirata.
— Pode guardar muitas coisas nele — disse.
O presente deixou o Pirata muito feliz.
Depois, Danny desceu a colina e dirigiu-se diretamente Para a casa de Torrelli, levando os três dólares no bolso.
A voz de Dolores soou tão roucamente doce quanto o zumbido de um zangão.
— Ai, amigo, a'onde vas?
Danny parou. Houve uma revolução nos seus planos.
— Como vai, Doçura?
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— Que diferença faz como eu vou? Nenhum dos me
amigos  está interessado  nisso — respondeu  ela,  brejeirl
Suas ancas adejaram numa ondulação circular e gj ciosa.
— Que quer dizer? — perguntou ele.
— Ora, meu amigo Danny, alguma vez veio me vej
— Pois agora estou aqui para vê-la — disse ele,
lante.
Ela abriu um pouquinho o portão.
— Quer entrar e tomar um pequeno copo de vinl
em sinal de amizade? — Danny entrou na casa. — O qç
você estava fazendo na floresta? — arrulhou a mulher.
Aí ele cometeu um erro. Contou, com ar vitorioso, su transação no alto da colina e mostrou os três dólares.
— Na verdade, o vinho que tenho só dá para enche
dois dedais —- disse ela.
Sentaram-se na cozinha de Doçura e beberam um cop de vinho. Logo depois, Danny fez um assalto à virtude dei; com verdadeira galanteria e vigor. Para seu espanto, chocou se com uma resistência muito acima do seu tamanho e repuH-j tacão. A horrenda fera luxúria havia despertado nele. Ficou! zangado. Só quando estava se retirando foi que o caminhoj ficou claro para ele.
A voz áspera disse:
— Talvez você queira voltar e me ver esta noite, Dan-*|
ny. — Os olhos de Doçura boiaram numa névoa de convit
preguiçoso. — A gente tem vizinhos — sugeriu ela, com|
delicadeza.
Então ele compreendeu.
— Virei — prometeu.
A tarde estava pelo meio. Danny desceu a rua, dirigin^j do-se novamente ao restaurante de Torrelli. E a fera quí havia nele tinha mudado. De um lobo selvagem e rosnadori tornou-se um urso enorme, peludo e sentimental. Pensou "Vou levar vinho para a boa Doçura".
No caminho, encontrou Pablo, que tinha dois chiclete Deu um a Danny e começou a andar ao seu lado.
— Aonde vai?
— A hora não é de amizade — disse Danny, asper
mente. — Em primeiro lugar, vou comprar um pouco de
 
nho para dar a uma senhora. Pode vir comigo e tomar um copo só. Estou cansado de comprar vinho para senhoras e ver meus amigos bebê-lo todo.
Pablo concordou em que era uma prática intolerável. Por ele, não queria o vinho de Danny, mas apenas sua companhia.
Chegaram ao restaurante de Torrelli. Despejaram um copo de vinho do garrafão recém-comprado. Danny confes¬sou que era um comportamento vil dar ao amigo apenas um copinho. Apesar do veemente protesto de Pablo, beberam outro. "As senhoras", pensou Danny, "não bebem muito vinho. Ficam logo tontas. E, além disso, o vinho embota certos sentidos que gostamos de encontrar acesos numa se¬nhora." Beberam mais uns copos. Meio garrafão de vinho era um presente generoso, principalmente porque Danny estava disposto a comprar mais outro presente. Mediram meio garrafão e o beberam até essa marca. Depois, Danny escondeu o garrafão nas moitas de uma vala.
— Queria que você viesse comigo comprar o presente,
Pablo — disse ele.
Pablo sabia o motivo do convite. Metade era pelo de¬sejo da companhia de Pablo e a outra metade, pelo medo de deixar o vinho perto de Pablo. Caminharam com estu¬dada dignidade e firmeza colina abaixo, até Monterey.
O sr. Simon, da Companhia de Investimentos Joalhe-ria e Empréstimos Simon, recebeu-os em sua loja. O nome desta definia os limites extremos do tipo de mercadoria que a companhia vendia. Pois havia saxofones, rádios, rifles, facas, caniços e velhas moedas no balcão. Tudo usado, mas realmente melhor que novos, porque haviam sido muito bem consertados.
— Alguma  coisa em  especial?   —  perguntou  o  sr.
Simon.
— Sim — respondeu Danny.
O proprietário citou vários itens de uma possível lista e então parou no meio de uma palavra, pois viu que Danny estava olhando para um grande aspirador de pó, de alumí-nio. O saco era azul, com apliques amarelos. O fio elétrico era longo, preto e liso. O sr. Simon foi até ele, afagou-o, recuou e admirou-o.
 
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— Algo como um aspirador de pó?  — perguntou.
— Quanto custa?
— Este, catorze dólares.
Não era tanto um preço quanto uma tentativa de desco¬brir quanto Danny possuía. E Danny o queria porque era grande e reluzente. Nenhuma mulher em Tortilla Fiat tinha um. Naquele momento, ele esqueceu que não havia eletri-cidade em Tortilla Fiat. Colocou seus dois dólares no balcão e esperou a explosão. A fúria, a raiva, a tristeza, a pobreza, a ruína, o roubo. Foram invocados a cor do saco, o brilho, o fio muito longo, o valor apenas do metal. E, quando tudo terminou, Danny saiu carregando o aspirador de pó.
Frequentemente, como pasatiempo durante a tarde, Doçura tirava o aspirador de pó e o colocava de encontro à cadeira. Quando seus amigos olhavam, ela o empurrava para a frente e para trás, mostrando como ele rolava com faci¬lidade. E fazia um zumbido com a boca, para imitar o motor.
— Meu amigo é rico — dizia ela. — Acho que muito
breve vou ter fios cheios de eletricidade aqui em casa e,
então, zip, zip e zip! A casa ficará limpa!
Seus amigos tentavam depreciar o presente, dizendo:
— Que pena você não poder usar essa máquina.
E:
— Eu sempre achei que uma vassoura e um pano de
pó, adequadamente usados, são mais eficientes.
Mas a inveja deles nada podia contra o aspirador. Com sua posse, Doçura escalou o píncaro da escala social de Tor¬tilla Fiat. Gente que não lembrava seu nome referia-se a ela como "aquela da máquina de espanar". Muitas vezes, quando seus inimigos passavam pela casa, podiam ver Doçura atra¬vés da janela, empurrando o aspirador para a frente e para trás, ao mesmo tempo em que um barulho alto saía de sua garganta. De fato, depois de espanar a casa diariamente, ela empurrava o aspirador, com a teoria de que, é claro, ele limparia melhor se houvesse eletricidade, mas não se pode ter tudo.
Ela provocou inveja em muitas casas. Seus modos se tornaram dignos, graciosos; e mantinha o queixo levantado, como convém a quem tem uma máquina de espanar. Costumava incluí-la em sua conversa. "Ramon passou esta
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manhã, quando eu estava usando minha máquina de es-panar." "Louise Meater cortou a mão esta manhã, umas três horas depois de eu terminar de usar minha máquina de
espanar."
Mas na sua elevação social, não esqueceu Danny. Sua voz embargava-se de emoção quando ele aparecia. Ela osci¬lava como um pinheiro ao vento. E ele passou várias noites na casa de Doçura.
A princípio, seus amigos ignoraram sua ausência, pois todo homem tem direito a essas transas amorosas. Mas, com o passar das semanas, uma vida doméstica um tanto violenta começou a tornar Danny distraído e pálido, fazendo com que seus amigos se convencessem de que a gratidão de Do¬çura pela máquina de espanar não atendia aos melhores inte¬resses físicos de Danny. Estavam enciumados de uma situa¬ção que prendia sua atenção por tanto tempo.
Pilon, Pablo e Jesus Maria Corcoran, cada um por sua vez, assaltaram o ninho da afeição dele, na sua ausência. Mas Doçura, embora sensível ao elogio, continuava fiel ao ho¬mem que elevara sua posição a um nível tão gratificante. Ela procurou conservar a amizade deles para um tempo fu¬turo de necessidade, pois sabia como a fortuna era capri¬chosa. Mas recusou resolutamente partilhar com os amigos de Danny aquilo que estava dedicado, nos tempos futuros, a Danny.
Por essa razão, os amigos, em desespero, organizaram um grupo, constituído e dedicado à destruição dela.
Talvez Danny, em seu íntimo, começasse a ficar can¬sado do afeto de Doçura e da obrigação de atender às suas exigências. Porém não admitia, nem para si mesmo, que essa mudança estivesse ocorrendo.
Numa tarde, às três horas, Pilon, Pablo e Jesus Maria, acompanhados distraidamente por Big Joe Portagee, volta¬ram triunfantes de três quartos de um dia de extenuantes esforços. A campanha deles consistiu em
executar e levar ao extremo limite a lógica impiedosa de Pilon, a esperteza artística de Pablo e a gentileza e o calor humano de Jesus Maria Corcoran. Big Joe não contribuiu com coisa alguma.
Mas agora, como quatro caçadores, voltavam da perse-guição mais felizes porque sua vitória havia sido muito difí-
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cil. E, em Monterey, um pobre italiano zonzo chegou lenta-§ mente à convicção de que havia sido tapeado.
Pilon carregava um garrafão de vinho escondido num! monte de hera. Entraram alegremente na casa de Danny, e| Pilon colocou o garrafão sobre a mesa.
Danny, acordado de um sono profundo, sorriu em silên-fj cio, levantou-se da cama e apanhou os copos. Encheu-os I de vinho. Os quatro amigos deixaram-se cair nas cadeiras, I pois haviam tido um dia cansativo.
Beberam em silêncio até o fim da tarde, hora em que 1 se fazia um estranho intervalo. Quase todos em Tortilla Fiat paravam naquela hora e examinavam as coisas que haviam I acontecido no dia que acabava de passar, pensando nas pos- 1 sibilidades da noite. Havia muitas coisas a discutir numa tarde.
— Cornelia Ruiz arranjou outro homem esta manhã —
comentou Pilon. — É careca. Chama-se Kilpatrick. Cornelia 1
disse que seu outro homem passou fora de casa três noites f|
da semana passada. Ela não gostou.
— Cornelia é uma mulher que muda de ideia muito
rapidamente — disse Danny.
Pensou, com complacência, na segurança da sua relação, construída sobre a pedra do aspirador de pó.
— O pai de Cornelia era pior — disse Pablo. — Não
podia falar a verdade. Uma vez me pediu um dólar empres¬
tado. Falei a Cornelia sobre isso, e ela não fez nada.
— "Tal pai, tal filha." "Vinho da mesma pipa" —
citou Pilon, virtuosamente.
Danny tornou a encher os copos de vinho e o garra-fão se esvaziou. Ele o olhou com tristeza.
Jesus Maria, o amante da humanidade, disse tranqui-lamente :
— Vi Susie Francisco, Pilon. Ela disse que a receita
funcionou. Saiu três vezes de motocicleta com Charlie Guz-
man. Nas primeiras duas vezes, deu-lhe o filtro amoroso
que o deixou doente. Ela pensou que o filtro não prestasse.
Mas agora Susie diz que você poderá comer bolos quando
quiser.
— Que havia na tal poção? — perguntou Pablo.
Pilon tornou-se reticente.
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  Não posso revelar tudo. Acho que deve ter sido o
veneno do carvalho que fez mal a Charlie Guzman.
O garrafão de vinho acabou depressa. Cada um dos seis amigos tinha consciência de uma sede tão aguda que era insuportável. Pilon dirigiu um olhar abatido aos amigos, que o retribuíram  da  mesma  maneira.  A  conspiração  estava
pronta.
Pilon pigarreou.
  O que você andou fazendo, Danny, para a cidade
inteira estar rindo de você?
Danny ficou preocupado.
— Que quer dizer com isso?
Pilon deu uma gargalhada.
— Muita gente anda dizendo que você comprou uma
máquina de espanar para uma senhora e que a tal máquina
só funcionará se puserem fios na casa. Esses fios custam um
dinheirão. Alguns acham aquele presente muito gozado.
Danny ficou constrangido.
— Aquela senhora gosta da máquina de espanar —
disse, na defensiva.
— Por que não havia de gostar? — concordou Pablo.
— Ela disse a alguém que você prometeu colocar fios na
casa, de maneira a que a máquina possa funcionar.
Danny ficou ainda mais perturbado.
— Ela disse isso?
— Foi o que me contaram.
— Pois não prometi — gritou Danny.
— Se eu não achasse engraçado, ficaria danado por
ver essa gente rindo do meu amigo — comentou Pilon.
— Que vai fazer quando ela perguntar pelos fios? —
indagou Jesus Maria.
— Direi "não" a ela — respondeu Danny.
Pilon riu.
— Gostaria de estar lá. Não é muito fácil dizer "não"
àquela senhora.
Danny percebeu que seus amigos estavam ficando con¬tra ele.
— Que devo fazer? — perguntou, desanimado.
Pilon dedicou uma grave consideração ao assunto e pôs
seu realismo a serviço dele.
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— Se aquela senhora não tivesse a máquina de espa-i
nar, não iria querer os fios -— disse ele.
Todos balançaram a cabeça, concordando.
— Portanto — continuou Pilon —, o que se deve faU
zer é remover a máquina de espanar.
— Ah, ela não vai me deixar levá-la... — argumenJi
tou Danny.
— Então iremos ajudá-lo — retrucou Pilon. — Eul
apanharei a máquina, e, em troca, você dará de presente àf
senhora um garrafão de vinho. Ela nem mesmo saberá parai
onde foi a máquina de espanar.
— Algum vizinho verá você tirá-la.
— Não verá, não — respondeu Pilon. — Você ficarái
aqui, Danny, e eu apanharei a máquina.
Danny suspirou de alívio, pois o problema havia pas-; sado para a responsabilidade dos queridos amigos.
Poucas coisas aconteciam em Tortilla Fiat que Pilon não soubesse. Sua mente anotava cuidadosamente tudo o que seus olhos viam e seus ouvidos escutavam. Sabia que Doçura ia ao armazém todas as tardes, às quatro e meia. Dependia, assim, daquele hábito quase imutável para pôr seu plano em execução.
— É melhor você ficar de fora nesse assunto — disse
a Danny.
Pilon tinha, no quintal, um saco de aniagem preparado. Com uma faca, cortou um galho florido da roseira e o meteu no saco.
Chegando à casa de Doçura, viu que ela estava ausente, como imaginava e esperava. "É de fato a máquina de Dan¬ny", disse a si mesmo.
Foi obra de um instante entrar na casa, colocar o aspi¬rador de pó no saco e arrumar o galho da roseira artistica¬mente na abertura.
Quando acabava de sair do jardim, encontrou Doçura. Pilon tirou o chapéu educadamente.
— Entrei para passar o tempo — disse ele.
— Quer ficar um pouco, Pilon?
— Não. Tenho um compromisso em Monterey. Já está
ficando tarde.
 
  Aonde vai com esse maço de rosas?
Vender a um homem em Monterey. É um maço muito bonito. Veja como é forte.
  Da próxima vez entre, Pilon.
Não ouviu nenhum grito de raiva, enquanto caminhava tranquilamente pela rua abaixo. "Talvez ela não sinta falta dele durante certo tempo", pensou.
Metade do problema estava resolvido, mas a outra me¬tade ainda tinha que ser atacada. "O que é que Danny pode fazer com esta máquina de espanar?", perguntou-se Pilon. "Se ficar com ela, Doçura vai saber que foi ele quem a tirou. Posso jogá-la fora? Não, pois é valiosa. O negócio é tratar de me ver livre dela e ainda tirar proveito."
Agora o problema todo estava resolvido. Pilon se di¬rigiu, colina abaixo, para a casa de Torrelli.
Era um aspirador de pó grande e reluzente. Quando Pilon tornou a subir a colina, levava um garrafão de vinho em cada mão.
Quando entrou na casa de Danny, foi recebido em si¬lêncio pelos amigos. Colocou um garrafão na mesa e o outro no chão.
— Trouxe um presente para você dar à senhora —
disse a Danny. — E, aqui, um pouco de vinho para nós.
Juntaram-se alegremente, pois sua sede era um fogo abrasador. Quando o primeiro garrafão estava quase no fim, Pilon ergueu seu copo contra a luz da vela e olhou dentro dele.
— As coisas que acontecem não têm importância —
disse. — Mas de tudo o que acontece aprende-se uma lição.
Com isto aprendemos que um presente, principalmente a
uma senhora, não deve ter nenhuma característica que re¬
queira um outro presente. Aprendemos também que é pe-
cado dar presentes de muito valor, pois eles podem provocar
a ganância.
O primeiro garrafão acabou. Os amigos olharam para Danny, vendo como ele se sentia. Danny tinha estado muito calado, mas naquele instante percebeu que os amigos o es-preitavam.
— Aquela senhora era animada — disse judiciosamen-
 
 
 
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te. — Aquela senhora tinha uma natureza muito simpática Jj Mas que diabo! — continuou. — Estou cheio!
Apanhou o segundo garrafão e tirou a rolha.
O Pirata, sentado no canto junto com os cães, sorriu para si mesmo e murmurou com admiração:
— Que diabo! Estou cheio!
Aquilo, pensou o Pirata, era uma beleza.
O segundo garrafão nem estava pela metade, e eles! haviam cantado apenas duas canções, quando o jovem Johnny ' Pompom entrou.
— Estive com Torrelli — disse Johnny. — Puxa, Tor-1
relli está uma fera! Está berrando! Está dando murros naf
mesa.
Os amigos olharam para ele com pouco interesse.
— Deve ter acontecido alguma coisa. É possível que
Torrelli tenha merecido.
— Ele recusou muitas vezes um copinho de vinho aos
seus bons fregueses.
— Que houve com Torrelli? — perguntou Pablo.
Johnny Pompom aceitou um copo de vinho.
— Torrelli contou que comprou uma máquina de espa¬
nar de Pilon e que, quando a ligou na tomada elétrica, ela
não funcionou. Então olhou no seu interior e viu que ela
não tinha motor. Disse que vai matar Pilon.
Pilon ficou estarrecido.
— Eu não sabia que aquela máquina tinha esse de¬
feito — comentou. — Mas eu não disse que Torrelli mere¬
cia o que aconteceu com ele? Aquela máquina valia três ou
quatro garrafões de vinho, mas o miserável do Torrelli não
quis dar mais do que dois.
Danny ainda sentiu um calor de gratidão a Pilon. Mer-gulhou os lábios no vinho.
— Esta zurrapa de Torrelli está cada vez pior — disse
ele. — Quando era melhor, parecia lavagem para porcos,
mas ultimamente é tão ruim que nem mesmo Charlie Marsh
quer bebê-la.
Então todos se sentiram meio vingados de Torrelli.
— Acho — disse Danny — que deveremos comprar,J
nosso  vinho  em  algum  outro  lugar,  se  Torrelli  não  se
emendar.
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Como os amigos confortaram um cabo e, em retribuição, receberam uma lição de ética paternal
Jesus Maria Corcoran era uma senda para o humanita-rismo. Procurava aliviar o sofrimento, mitigar a tristeza, partilhar a felicidade. Nem algoz, nem vítima; Jesus Maria existia. Seu coração estava à disposição de quem quer que o quisesse utilizar. Seus haveres e sabedoria estavam às ordens de quem tivesse menos do que possuía Jesus Maria.
Fora ele quem carregara José de Ia Nariz por mais de cinco quilómetros, quando José quebrou a perna. Quando a sra. Palochico perdeu sua cabra de estimação, a boa forne¬cedora de leite e queijo, havia sido Jesus Maria quem seguira o animal até Big Joe Portagee e evitara o assassinato, man¬dando Big Joe devolvê-la. Tinha sido Jesus Maria quem, certa vez, tirara Charlie Marsh de uma vala onde jazia em sua própria sujeira, um feito que requeria não apenas um coração sensível, mas um estômago forte.
Juntamente com sua capacidade de fazer o bem, Jesus Maria tinha o dom de entrar em contato com situações onde a bondade era necessária.
Sua reputação era tal que Pilon disse uma vez:
— Se Jesus Maria tivesse entrado para a Igreja, garan¬to-lhes que Monterey teria um santo nas folhinhas.
De algum bolso profundo de sua alma, Jesus Maria tirava a bondade, que se renovava após essa retirada.
Era um hábito de Jesus Maria ir ao correio diariamen¬te, em primeiro lugar porque podia ver muitas pessoas de suas relações e em segundo lugar porque, na esquina ventosa do correio, podia olhar as pernas de um grande número de moças. É preciso que não se julgue haver, neste último inte-
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resse, nenhuma vulgaridade. Era o mesmo que criticar utg homem que vai a galerias de arte ou a concertos. Jesus ria gostava de olhar as pernas das moças.
Um dia, depois de ficar encostado na parede do corr durante duas horas sem que nada acontecesse, foi teste munha de uma cena penosa. Um policial caminhava peli calçada levando um rapaz de uns dezesseis anos, que carre gava um bebe, envolto num cobertor pardo.
O policial estava dizendo:
— Pouco me importa não entender você. Você nãj
pode ficar sentado na sarjeta o dia inteiro. Vamos descobrit!
quem é você.
E o rapaz, em espanhol, com uma inflexão peculiarj respondeu:
— Mas, senor, eu não fiz nada. Por que me leva?
O policial viu Jesus Maria.
— Ei, paisano! — gritou. — O que é que este cholo1
está dizendo?
Jesus Maria adiantou-se e dirigiu-se ao rapaz:
— Posso ajudá-lo em alguma coisa?
O rapaz explodiu numa torrente de alívio:
— Vim para cá trabalhar. Uns mexicanos disseram quej
haveria  trabalho  aqui   e  não  há  coisa  nenhuma.  Estável
sentado, descansando, quando esse homem chegou e mel
arrastou.
Jesus Maria fez um gesto de cabeça e virou-se para oj policial.
— Esse rapazinho cometeu algum crime?
— Não, mas ficou sentado na sarjeta, na Alvarad©|
Street, por mais de três horas.
— Ele é meu amigo — disse Jesus Maria. — Cuidarei!
dele.
— Está bem. Conserve-o longe da sarjeta.
Jesus Maria e seu novo amigo subiram a colina.
— Vou levá-lo para a casa onde moro. Lá você encoc
trará o que comer. Que criança é essa?
— É minha — respondeu o rapaz. — Sou caporal,
1 Mestiço de europeu e índio. (N. do T.) 98
 
le é meu filho. Está doente. Mas, quando crescer, será
general
  Qual é a doença dele, senor caporal?
  Não sei. Só sei que está doente.
Mostrou o rosto da criança, que parecia mesmo muito
doente.
A simpatia de Jesus Maria cresceu.
  A casa onde eu moro é de propriedade do meu
amigo Danny, e ele é um bom homem, senor caporal. É a quem se deve procurar quando se tem um problema. Olhe, vamos para lá, e Danny nos dará abrigo. Minha amiga, a sra. Palochico, tem uma cabra. Pediremos um pouco de leite para a criança.
O rosto do cabo exibiu pela primeira vez um sorriso de consolo.
— É bom ter amigos — disse ele. — Em Torreón,
tenho muitos amigos que mendigariam para me ajudar. —
Olhou para Jesus Maria com um certo orgulho. — Tenho
amigos ricos, mas, é claro, não sabem o que estou passando.
Jesus Maria empurrou o portão do jardim de Danny, e eles entraram juntos. Danny, Pablo e Big Joe estavam sentados na sala, esperando o milagre diário da alimentação. Jesus Maria empurrou o rapaz para dentro do aposento.
— Apresento-lhes um jovem soldado, um caporal —
explicou. — Ele está com uma criança, e a criança está
doente.
Os amigos ergueram-se barulhentamente. O cabo afas¬tou o cobertor pardo do rosto da criança.
— Está doente mesmo — disse Danny. — Acho que
devemos chamar um médico.
Mas o soldado sacudiu a cabeça.
— Nada de médicos. Não gosto de médicos. Esta crian¬
ça não chora nem come muito. Acho que, se ela repousar,
logo ficará boa.
Nesse instante, Pilon entrou e olhou a criança.
— Esta criança está doente — disse ele.
Pilon assumiu imediatamente o comando. Jesus Maria ioi enviado à casa da sra. Palochico para pedir um pouco de leite de cabra. Big Joe e Pablo trouxeram uma caixa de maÇãs, forraram-na de capim seco e cobriram-na com um
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casaco de pele de ovelha. Danny ofereceu sua cama, ela foi recusada. O cabo ficou na sala, sorrindo gentilmec para aquela boa gente. Finalmente, deitaram a criança sua caixa, mas seus olhos estavam mortiços, e ela recus o leite.
O Pirata entrou, carregando um saco de cavalas, amigos prepararam o peixe e jantaram. A criança não quiÉ nem mesmo comer o peixe. De vez em quando, um amigos levantava-se de um salto e corria para olhar a crianç Quando a refeição terminou, sentaram-se em torno da est fa e prepararam-se para uma noite tranquila.
O cabo tinha se conservado silencioso, sem explic quem era. Os amigos sentiram-se meio ofendidos com is mas acharam que ele falaria no momento oportuno. Pilo para quem o conhecimento era como ouro que se dev extrair, tentou algumas vezes penetrar na reserva do cat
— Não é sempre que vemos um soldado com ut
criança — comentou delicadamente.
O cabo riu, orgulhoso. Pablo acrescentou:
— Essa criança provavelmente foi encontrada no ja
dim do amor. E essa é a melhor espécie de crianças, pois
existem coisas boas nelas.
— Também fomos soldados — disse Danny. — Qua
do morrermos, seremos levados para o túmulo numa carr
de canhão, e um destacamento dará uma salva de tiros.
Esperaram para ver se o cabo iria aproveitar a oport nidade que estavam lhe dando. O cabo exibiu seu apr
— Vocês têm sido bons comigo — disse. — Têm sid
tão bons e simpáticos como meus amigos de Torreón. Es
é o meu filho, filho de minha mulher.
— E onde está sua mulher? — perguntou Pilon.
O sorriso do cabo desapareceu.
— Está no México — respondeu. Então voltou a fie
animado. — Encontrei um homem, e ele me disse uma cois
estranha. Disse que podemos fazer o que quisermos
crianças. Disse: "Você diz com insistência à criança o
quer que ela faça, e, quando ela crescer, fará". Não
canso de dizer a esta criança: "Você será general". Acr
que isso acontecerá?
 
Os amigos balançaram a cabeça, educadamente.
  Pode ser — disse Pilon. — Nunca ouvi falar nisso.
  Eu digo vinte vezes por dia, "Manuel, você um dia
será general. Você terá dragonas enormes e uma faixa. Sua espada será de ouro. Você montará um palomino'. Que vida você terá, Manuel!" O homem disse que ele certamente seria general, se eu continuasse insistindo.
Danny levantou-se e foi até a caixa de maçãs.
  Você será general — disse para a criança. — Quan¬
do você crescer, será um grande general.
Os outros amontoaram-se em volta para ver se a fór¬mula já estava fazendo algum efeito.
O Pirata murmurou:
— Você será general.
E ficou imaginando se aquele mesmo método funciona¬ria num cachorro.
— Esta criança está mesmo doente — disse Danny.
— Precisamos mantê-la agasalhada.
Voltaram para suas cadeiras.
— Sua mulher está no México. . . — insinuou Pilon.
O cabo franziu o cenho, pensou um momento e depois
sorriu, radiante.
— Vou contar-lhes. Não é coisa que se revele a estra¬
nhos, mas  vocês  são  meus  amigos.  Eu  era  soldado  em
Chihuahua. Era diligente, limpo, e mantinha meu rifle azei¬
tado. Por isso fui promovido a caporal. E então casei-me
com uma linda moça. Não sei se foi por causa das divisas
que ela casou comigo. Ela era, porém, muito bela e jovem.
Seus olhos brilhavam, tinha belos dentes brancos, e seu
cabelo era comprido e lustroso. Assim, logo depois a criança
nasceu.
— Isso é bom — disse Danny. — Eu queria ser você.
Não há nada melhor do que ter um filho.
— É verdade — respondeu o cabo —, eu estava con¬
tente. E chegou o batismo. Eu usava um cinturão, embora
0 regulamento do exército não falasse nisso. E quando saí-
mos da igreja, um capitán com dragonas, cinturão e uma
espada prateada viu minha mulher. Logo depois, minha mu-
' Literalmente, "pombinho". Raça de cavalos. (N. do T.)
 
 
 
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lher foi embora. Então procurei o tal capitân e disse: "Deve va minha mulher". Ele respondeu: "Você não tem amor vida, falando assim com seu superior".
O cabo abriu os braços e ergueu os ombros, num geste de impotente resignação.
— Ah, que ladrão! — gritou Jesus Maria.
— Você reuniu os amigos e matou aquele capitân —{
antecipou Pablo.
O cabo ficou embaraçado.
—■ Não. Não havia nada a fazer. Na primeira noite,' alguém atirou em mim pela janela. No segundo dia, uma.á peça de artilharia desprendeu-se por engano e chegou tãoj perto de mim que o deslocamento de ar me derrubou. Assim, fugi dali e trouxe a criança comigo.
Havia ferocidade no rosto dos amigos, e seus olhos estavam injetados. O Pirata, no seu canto, rugiu, e todos os cães rosnaram.
— Ah, se nós estivéssemos lá!  — gritou Pilon. —
Teríamos feito aquele capitân desejar nunca ter nascido. Meu
avô sofreu nas mãos de um padre e amarrou esse padre nu
no mourão de um curral e açulou um bezerro contra ele.
Ah, sempre há um jeito!
— Eu não passava de um caporal — disse o rapaz. —
Tinha que fugir. — Lágrimas de vergonha assomaram-lhe
aos olhos. — Não há saída para um caporal quando um
capitân fica contra ele. Por isso, fugi com Manuel. Em
Fresno, conheci aquele bruxo, e ele me disse que eu poderia
fazer de Manuel o que eu quisesse. Digo vinte vezes por |
dia ao garoto: "Você vai ser general. Terá dragonas e usará
uma espada de ouro".
Ali estava um drama que tornava as experiências de ,| Cornelia Ruiz desinteressantes e fúteis. Era uma situação que exigia a ação dos amigos. Mas o cenário ficava tão longe que a representação era impossível.  Olhavam encantados para o cabo. Era tão jovem para ter uma aventura dessas! |
— Eu gostaria — disse Danny, maldoso — que esti¬
véssemos agora em Torreón. Pilon faria um plano para nos.
É muito ruim não podermos estar lá.
Big Joe Portagee havia ficado acordado, uma homena-
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eem ao fascínio da história do cabo. Foi até a caixa de maçãs
e olhou.
— Você vai ser general — disse, e acrescentou: —
Olhem! Esta criança está se mexendo de maneira esquisita.
Os espasmos já haviam começado. Os pezinhos batiam na cama e depois se levantavam. As mãos procuravam agar¬rar-se desesperadamente, e depois a criança tentou engatinhar
e tremeu.
— Um médico! — gritou Danny. — Precisamos de um
médico.
Contudo, ele e os outros sabiam que não adiantava. A morte próxima se apresenta de maneira a não enganar nin¬guém. Enquanto olhavam, a criança se enrijeceu, e a luta terminou. A boca abriu-se, e a criança morreu. Gentilmente, Danny cobriu a caixa de maçãs com um cobertor. O cabo ficou parado, imóvel, olhando perdidamente para a frente, tão chocado que não podia falar nem pensar.
Jesus Maria colocou a mão no ombro dele e levou-o para uma cadeira.
— Você é muito jovem — disse. — Vai ter muitos
filhos mais.
O cabo gemeu.
— Ele agora está morto. Nunca será general, com o
cinturão e a espada.
Os amigos estavam com os olhos cheios de lágrimas. No canto, todos os cães ganiam desgraçadamente. O Pirata enterrou a cabeçorra na pele do Senor Alec Thompson.
Num tom suave, quase numa bênção, Pilon disse:
— Agora você precisa matar o capitân. Nós o respei¬
tamos por causa do seu nobre plano de vingança. Mas agora
acabou, e você precisa executar sua própria vingança, e nós
o ajudaremos, se pudermos.
O cabo olhou-os tristemente.
— Vingança? — perguntou. — Matar o capitân? Que
quer dizer com isso?
— Ora,   seu  plano  estava  claríssimo  —  respondeu
Pilon. -— Aquela criança cresceria e seria general. No devido
tempo, encontraria aquele capitân e o mataria lentamente.
£ra um bom plano. A longa espera e depois o ataque. Nós,
seus amigos, o respeitamos por isso.
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O cabo ficou olhando, embasbacado, para Pilon.
— Que é isso? — perguntou. —• Não tenho nada com]
aquele capitán. Ele é o capitán.
Os amigos curvaram-se. Pilon gritou:
— E esse plano para fazer do garoto um general? Por'
que isso?
Aí o cabo ficou meio atrapalhado.
— É obrigação do pai fazer o máximo pelo filho. Eu
queria que Manuel tivesse mais coisas do que tive.
— Só isso? — berrou Danny.
— Bem — continuou o cabo —, minha mulher era
muito bonita, e não era nenhuma puta. Era uma ótima mu-
lher, e aquele capitán a levou. Tinha dragonas pequenas,
um cinturão mínimo, e sua espada era apenas prateada. Con¬
siderando — disse o cabo, abrindo os braços — que aquele   J
capitán, com suas dragonazinhas e seu cinturãozinho, con¬
seguiu tomar minha mulher, imaginem o que um general,
com seu cinturãozão e uma espada de ouro, poderia tomar!
Houve um longo silêncio, durante o qual Danny, Pilon,  J Pablo, Jesus Maria, o Pirata e Big Joe Portagee, digeriram o raciocínio. E quando o digeriram, esperaram que Danny falasse.
— É uma pena — disse Danny, por fim — que apenas
alguns pais desejem de coração o bem-estar de seus filhos.
Agora estamos ainda mais tristes do que nunca pelo fato de
esta criança ter morrido, pois, com tal pai, perdeu uma vida
muito feliz.
Todos os amigos acenaram solenemente com a cabeça.
— Que vai fazer agora? — perguntou Jesus Maria, o
descobridor.
— Vou voltar para o México — respondeu o cabo.
— No fundo do meu ser, sou um soldado. Talvez se con¬
servar meu rifle azeitado, eu possa tornar-me oficial um |
dia. Quem sabe?
Os seis amigos o olharam com admiração. Estavam "] orgulhosos de terem conhecido um homem como aquele.
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Como, sob as circunstâncias mais adversas, o amor chegou para Big Joe Portagee
Para Big Joe Portagee, sentir amor era fazer alguma coisa a respeito disso. E esta é a história de um dos seus casos amorosos.
Chovia em Monterey. Dos pinheiros altos, a chuva pingou o dia inteiro. Os habitantes de Tortilla Fiat não saíram de suas casas, mas uma coluna azul de fumaça de pinheiro escapava de cada chaminé, fazendo com que o ar ficasse cheirando a limpeza, frescor e perfume.
Às cinco da tarde, a chuva parou uns instantes, e Big Joe Portagee, que ficara a maior parte do tempo sob uma canoa na praia, saiu e começou a subir a colina, na direção da casa de Danny. Estava gelado e faminto.
Quando chegou nos exatos limites de Tortilla Fiat, o céu se abriu e a chuva desabou. Num instante, Big Joe ficou encharcado. Correu para a casa mais próxima para escapar da chuva, casa essa habitada por Tia Ignacia.
Aquela senhora tinha uns quarenta e cinco anos, era viúva de boa reputação e fazia um certo sucesso. Habitual¬mente, era taciturna e áspera, pois havia em suas veias mais sangue índio do que o considerado decente em Tortilla Fiat.
Quando Big Joe entrou, ela havia acabado de abrir um garrafão de vinho tinto e estava enchendo um copo em home¬nagem ao próprio estômago. Sua tentativa de empurrar o garrafão para baixo de uma cadeira não teve
sucesso. Big Joe estava parado na soleira, pingando água no chão. — Entre e seque-se — disse Tia Ignacia. Big Joe, olhando para o garrafão como um terrier olha
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um besouro, entrou no aposento. A chuva tamborilava telhado. Tia Ignacia atiçou a chama da sua estufa.
— Gostaria de um copo de vinho?
— Claro — respondeu Big Joe.
Antes de haver terminado seu primeiro copo, os olhos! de Big Joe tornaram a cravar-se no garrafão. Bebeu trê copos antes de se permitir dizer uma palavra e antes que af voracidade fugisse dos seus olhos.
Tia Ignacia já dera por perdido seu novo garrafão dei vinho. Ela bebeu com ele, com a única finalidade de conser-Jl var um pouquinho para seu uso. Somente quando o quarto § copo de vinho estava na mão de Big Joe foi que este ficou relaxado e começou a sentir prazer.
— Este vinho não é de Torrelli — disse ele.
— Não, obtive-o de uma amiga italiana.
Encheu outro copo.
Entardeceu. Tia Ignacia acendeu um lampião de quero- | sene e colocou mais lenha no fogo. Uma vez que o vinho deve acabar, que acabe, pensou ela. Seus olhos percorreram o enorme arcabouço de Big Joe Portagee com ar aprovador. Uma emoção repentina aqueceu-lhe o peito.
— Pobre homem, você esteve trabalhando nessa chuva f
— disse ela. — Vamos, tire o casaco para secá-lo.
Big Joe raramente mentia. Sua cabeça não era suficien-temente rápida.
— Estava dormindo na praia, debaixo de uma canoa
— respondeu.
— Mas, meu caro, você está encharcado.
Ela o examinou para ver se ele reagia à sua bondade, mas no rosto de Big Joe nada transpareceu, exceto agradeci- | mento por ter-se abrigado da chuva e bebido vinho. Esten-'-deu o copo para ser enchido novamente. Como não tinha'| comido o dia inteiro, o vinho estava fazendo um profundo .j efeito nele.
Tia Ignacia referiu-se novamente ao problema.
— Não é bom ficar com o casaco molhado. O frio vat|
deixá-lo doente. Vamos, deixe-me ajudá-lo a tirar o casaco.
Big Joe aninhou-se confortavelmente na cadeira.
— Estou bem — falou, teimoso.
Tia Ignacia serviu-se de outro copo de vinho. O fogo
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produziu um som estridente, que contrapôs o conforto ao tamborilar da chuva no telhado.
Big Joe não fez o menor gesto para se mostrar amistoso, galante, nem para perceber a presença da sua anfitriã. Bebia o vinho em grandes goles. Sorria idiotamente para a estufa. Balançava-se levemente na cadeira.
A raiva e o desespero apossaram-se de Tia Ignacia. "Este porco", pensou ela, "este animal grande e sujo. Teria sido melhor para mim se eu protegesse da chuva uma vaca. Outro homem teria, pelo menos, dito uma palavrinha amis¬tosa."
Big Joe estendeu o copo para que ela o enchesse no¬vamente.
Então Tia Ignacia fez um esforço heróico.
— Numa casinha aquecida há felicidade numa noite
como esta — disse ela —, quando a chuva cai e a estufa
queima suavemente, fazendo com que as pessoas se sintam
cordiais. Você não se sente assim?
— Claro — respondeu Big Joe.
— Talvez a luz o esteja incomodando — disse ela,
pudicamente.
— Ela não me incomoda nada — respondeu Big Joe.
— Se quiser economizar querosene, tudo bem.
Ela apagou o lampião, sobre a estufa, e a sala mergu¬lhou na escuridão. Então voltou para sua cadeira e esperou que a galanteria dele acordasse. Podia ouvir o suave balançar da cadeira de Big Joe. Uma luz ténue saía das frinchas da estufa e batia nos cantos reluzentes dos móveis. A sala esta¬va quase luminosa com o calor que se irradiava. Tia Ignacia ouviu a cadeira dele parar de balançar e preparou-se para repeli-lo. Nada aconteceu.
— E pensar — disse ela — que você poderia estar
lá fora, na tempestade, tiritando num telheiro ou deitado
na areia fria, sob uma canoa. Mas não. Você está sentado
numa boa cadeira, bebendo um bom vinho, em companhia
de uma senhora que é sua amiga.
Big Joe não deu resposta. Ela não podia vê-lo nem ouvi-lo. Tia Ignacia esvaziou o copo. Atirou a virtude pela janela.
— Minha amiga Cornelia Ruiz me contou que alguns
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dos seus melhores amigos vão à casa dela, fugindo do fra| e da chuva. Ela os conforta e eles se tornam seus bou amigos.
O som de uma coisa se quebrando partiu do lugar ondj estava Big Joe. Ela percebeu que ele havia deixado cair copo, mas nenhum movimento acompanhou a queda. "Ta vez ele não esteja bem", pensou. "Talvez tenha desmaiado.**
Ergueu-se de um pulo, acendeu um fósforo e chegoun ao pavio do lampião. Depois virou-se para seu convidadoj
Big Joe estava totalmente adormecido. Seus pés este diam-se à sua frente. Tinha a cabeça para trás e a escancarada. Enquanto ela olhava, espantada e chocada, unÉ tremendo ronco ondulante saiu daquela boca. Acontecia quej| simplesmente, Big Joe não conseguia se sentir aquecido éf confortável sem adormecer.
Passou-se um instante antes que Tia Ignacia conseguisse | disciplinar suas amontoadas emoções. Ela possuía grande| quantidade de sangue índio. Não gritou. Não, pelo contra- j rio, tremendo de raiva, caminhou até o cesto de lenha, pegou j uma acha apropriada, sopesou-a, devolveu-a ao cesto e esco-; lheu outra. Depois voltou-se lentamente para Big Joe Por* tagee. A primeira pancada atingiu-o no ombro e o atirou i para fora da cadeira.
— Porco! — berrou Tia Ignacia. — Porcalhão! Parai]
a lama, já!
Joe rolou no chão. A segunda pancada deixou um»| marca nos fundilhos enlameados. Big Joe começou a acord depressa.
— Hem? — disse ele. — Que aconteceu? Que est
acontecendo?
— Vou lhe mostrar! — gritou a mulher.
Correu a abrir a porta e voltou para perto dele. Big Joí cambaleou sob a pancadaria. A acha martelou suas costa$| seus ombros e sua cabeça. Saiu porta afora, protegendo cabeça com as mãos.
— Não — implorou. — Não faça isso. Que aconteceu
A fúria o perseguiu como uma vespa pelo jardim, at
a rua enlameada. A raiva dela era terrível. Ela continuou persegui-lo pela rua, batendo sem parar.
— Ei! — gritou ele. — Não faça isso.
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Big Joe agarrou-a e prendeu-lhe os braços, enquanto a mulher lutava ferozmente para libertar-se e continuar ba¬tendo.
— Ah, seu porcalhão imundo! — gritava a mulher.
 Ah, sua vaca!
Ele não podia deixá-la continuar batendo e por isso manteve-a presa com força. E, naquela posição, o amor che¬gou para Big Joe Portagee. Cantava na sua cabeça. Rugia em seu corpo como uma inundação. Sacudia-o como uma tem¬pestade tropical sacode uma floresta de palmeiras. Ele a conservou apertada mais um instante, até que a raiva dela
diminuísse.
De noite, em Monterey, um policial patrulha as ruas numa motocicleta para evitar que as coisas boas se tornem más. Jake Lake patrulhava naquela hora, com sua capa bri¬lhando meio embaçada, como basalto. Estava triste e indis¬posto. Nas ruas pavimentadas não era tão ruim, mas parte do seu itinerário era nas trilhas lamacentas de Tortilla Fiat, onde a lama amarela espirrava desagradavelmente. Seu faro-lete estava aceso. O motor tossia com o esforço.
Repentinamente, Jake Lake gritou de espanto e desli¬gou o motor.
— Raios! Vamos, que diabo está acontecendo aqui?
Big Joe virou a cabeça.
— Ah, é você, Jake? Diga, Jake, já que você vai nos
levar para a cadeia mesmo, não pode esperar só um minuto?
O policial tornou a ligar o motor.
— Saiam da rua — disse ele. — Alguém pode passar
e cair em cima de vocês.
Seu motor rugiu na lama e o piscar do seu farolete desapareceu na curva. A chuva caía docemente sobre as árvores de Tortilla Fiat.
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Como os amigos de Danny ajudaram o Pirata a manter uma promessa e como, em recompensa por seu mérito, os cães do Pirata tiveram uma visão sagrada
Todas as tardes, o Pirata empurrava sua carr vazia colina acima, para o quintal de Danny. Encostava na cerca e cobria-a com um saco. Depois, enterrava o mar; chado no chão, pois, como todos sabem, o aço fica muitèí mais duro se enterrado. Por fim, entrava na casa, tiraváí, o quarto de dólar da bolsinha pendurada no pescoço e &i entregava a Danny. Então, Danny, o Pirata ou qualquer doS'1 amigos que por acaso estivesse em casa, ia solenemente atél o quarto e parava junto à cama feita no chão. Enquanto! todos olhavam, Danny apanhava debaixo do travesseiro #| bolsa de lona e guardava nela a nova moeda. Essa prátic*|j acontecia havia muito tempo.
O saco de dinheiro se transformara no centro simbólic da amizade, o ponto de confiança em torno do qual a frate nidade girava. Tinham orgulho daquele dinheiro, org de nunca haver mexido nele. Em torno da guarda do nheiro do Pirata, crescera um edifício de respeito próprio não de certa complacência. Era uma coisa ótima para homem merecer confiança. Na cabeça dos amigos, aquel| dinheiro deixara, havia muito tempo, de ser moeda corrent É verdade que, durante um certo tempo, eles sonha com a quantidade de vinho que ele poderia comprar, pouco depois deixaram de pensar nele como moeda corrent O tesouro estava destinado a um castiçal de ouro, e castiçal potencial era propriedade de São Francisco de Era muito pior enganar um santo que tomar liberdades a lei.
Uma noite, através daquele veloz e preciso telégr
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que ninguém entende, chegou a notícia de que um barco euarda-costas soçobrara nos recifes perto de Carmel. Big Joe Portagee estava fora, cuidando de seus negócios, mas Danny, Pablo, Pilon, Jesus Maria e o Pirata com seus cães desceram alegremente do cume. Pois a coisa que mais gostavam de fazer era catar artigos usáveis na praia. Achavam isso a coisa mais excitante do mundo. Embora tivessem chegado um pouco atrasados, trataram de recuperar o tempo perdido. Os amigos passaram a noite percorrendo a praia e juntaram uma boa pilha de salvados, uma lata de três quilos de man¬teiga, várias caixas de alimentos enlatados, um manual de navegação encharcado, duas japonas, um barril de água de um bote salva-vidas e uma metralhadora. Quando amanhe¬ceu, tinham sob os olhos uma pilha agradável.
Aceitaram a desprezível quantia de cinco dólares por tudo, oferecida por um dos espectadores, pois estava fora de questão carregar todas aquelas coisas pesadas pelos nove quilómetros de estradas íngremes até Tortilla Fiat.
Em virtude de não ter cortado sua lenha diária, o Pi¬rata recebeu uma moeda de vinte e cinco cents de Danny, colocando-a na bolsa pendurada no pescoço. Então, cansados mas com grandes esperanças, voltaram diretamente para as colinas de Monterey.
Quando chegaram à casa de Danny era de tarde. O Pirata, ritualmente, abriu a bolsa e deu a moeda a Danny. O grupo inteiro amontoou-se no outro quarto. Danny pro¬curou sob o travesseiro. . . e sua mão voltou vazia. Afastou o travesseiro, o colchão, e depois voltou-se lentamente para os amigos, com os olhos tão ferozes quanto os de um tigre. Encarou-os um a um e só viu horror e indignação que não podiam ser fingidos.
— Bem — disse ele —, bem. — O Pirata começou a chorar. Danny abraçou-o. — Não chore, amiguinho — falou, num tom significativo. — Você terá seu dinheirinho de volta.
Os amigos saíram do quarto em silêncio. Danny foi ao jardim, apanhou um pesado galho de pinheiro, de um metro de comprimento, e sacudiu-o, experimentando-o. Pa¬io foi à cozinha e voltou com um velho abridor de latas estragado. Jesus Maria tirou de baixo da casa um cabo de
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picareta quebrado. O Pirata os olhava, assombrado. Volfc ram todos para dentro da casa e sentaram-se em silêncij O Pirata apontou para o sopé da colina com o poleg
— Ele? — perguntou.
Danny balançou a cabeça lentamente. Seus olhos vam velados e mortais. Seu queixo projetava-se para cima, i quando se sentou na cadeira, seu corpo todo balançou le mente, como uma cascavel preparando-se para atacar.
O Pirata foi até o jardim e desenterrou o machado.
Ficaram  sentados um  tempo  enorme. Não  trocara uma palavra, mas uma onda de fúria gelada varria a sala se arrastava pelo chão. O sentimento, na sala, era o mesm<j| de uma rocha quando o pavio está queimando na direção dinamite.
A  tarde passou.  O sol escondeu-se atrás da colinaj Tortilla Fiat inteira parecia calma e na expectativa.
Ouviram os passos dele na rua, e suas mãos fecharam-s nos pedaços de pau. Joe Portagee  atravessou vacilante varanda e entrou pela porta da sala. Tinha um garrafão vinho na mão. Seus olhos passavam, apreensivos, sobre cad rosto, mas os amigos continuaram imóveis e não o ene raram.
— Olá — disse Big Joe.
— Olá — respondeu Danny.
Ergueu-se e espreguiçou-se devagar. Não olhou pa»É Big Joe. Não caminhou diretamente para ele, mas desviou-sf como se quisesse passar por ele. Quando chegou ao seu lad atacou-o com a velocidade de uma
cobra dando o bote. pau atingiu a base do crânio de Big Joe, que se esparrame no chão, completamente desmaiado.
Pensativamente, Danny  tirou  do bolso uma  tira couro cru e amarrou os polegares de Portagee juntos.
— Agora, água — falou.
Pablo atirou um jarro de água no rosto de Big Jcj que sacudiu a cabeça e esticou o pescoço como uma galinli Depois, abriu os olhos e encarou, atordoado, os amigo Ninguém falou com ele. Danny mediu a distância cuidad samente, como um golfista atirando a bola. O pau arrebente o ombro de Big Joe. Os amigos, então, passaram a parti^ par, de  maneira friamente  metódica.  Jesus  Maria peg
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as pernas. Danny, os ombros e o peito. Big Joe berrava e rolava no chão. Atingiam seu corpo, do pescoço para baixo Cada pancada acertava num lugar novo e deixava m vergão. Os berros eram ensurdecedores. O Pirata ficou parado, desarvorado, segurando o machado.
Finalmente, quando a parte da frente do corpo se tor¬nara uma pisadura só, eles pararam. Pablo ajoelhou-se ao lado da cabeça de Big Joe, com o abridor de latas. Pilon tirou os sapatos de Portagee e tornou a pegar na sua vara.
Então Big Joe berrou de medo.
 Está enterrado junto do portão da frente! — gri-
tou — Pelo amor de Deus, não me matem!
Danny e Pilon saíram pela porta da sala e, instantes depois, voltaram com o saco de lona.
— Quanto você tirou?  — perguntou Danny, numa
voz sem inflexão.
— Só quatro, juro por Deus. Só tirei quatro. Traba-
lharei e trarei o dinheiro de volta.
Danny curvou-se para o chão, pegou-o pelo ombro e colocou-o de rosto para baixo. Então os amigos caíram sobre suas costas com a mesma precisão mortal. Os gritos enfraqueceram, mas a surra só terminou quando Big Joe ficou inconsciente. Então Pilon arrancou-lhe a camisa azul e expôs as costas flácidas, em carne viva. Com o abridor de latas, riscou a pele com tanta destreza que só saiu um pouco de sangue de cada linha. Pablo passoulhe o sal e ajudou-o a esfregá-lo em todo o torso lanhado. Finalmente, Danny atirou um cobertor sobre o homem desmaiado.
— Acho que agora ele vai se tornar honesto — disse
Danny.
— Devemos contar o dinheiro — sugeriu Pilon. —
Há muito não o contamos.
Abriram o garrafão de vinho de Big Joe e encheram os copos, pois estavam cansados do trabalho que haviam lldo, e suas emoções tinham se esgotado.
Então contaram as moedas, em pilhas de dez, e torna¬ram a contá-las agitadamente.
— Pirata — gritou Danny —, aqui há mil e sete! Sua
ora chegou! Chegou sua hora de comprar o castiçal para
^ão Francisco!
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O dia fora cheio demais para o Pirata. Ele cac para o seu canto com os cães, enfiou a cabeça em Flu explodiu em soluços convulsivos. Os cães se mexeram,; quietos, lamberam-lhe as orelhas e empurraram sua com o focinho. Mas Fluff, sensível à honra de ter sido colhido, conservou-se imóvel e ficou fuçando o cabelo pesso da nuca do Pirata.
Danny repôs todo o dinheiro no saco e colocou-o mente debaixo do travesseiro.
Então Big Joe voltou a si e gemeu, pois o sal est fazendo efeito em suas costas. Os paisanos não lhe presta nenhuma atenção até que Jesus Maria, eterna presa da dade humana, desamarrou os polegares de Big Joe e deu-11 um copo de vinho.
— Até os inimigos do nosso Salvador lhe deram
pouco de conforto — desculpou-se.
Essa atitude acabou com o castigo. Os amigos niram-se ternamente em torno de Big Joe. Levaram-no a cama de Danny e lavaram o sal de suas feridas. Pus panos frescos em sua cabeça e mantiveram cheio seu de vinho. Big Joe gemia cada vez que tocavam nele. moral provavelmente estava intacto, mas era fácil profe que nunca mais ele roubaria os moradores da casa de Dat
A histeria do Pirata acabou. Bebeu o vinho, e seu brilhou de prazer ao ouvir Danny fazer planos para ele.
— Se levarmos todo este dinheiro ao banco, na
eles pensarão que o roubamos de um caça-níqueis. Pr
mos levar este dinheiro ao padre Ramon e contar-lhe
Então, ele comprará o castiçal de ouro e o benzerá, esj
Pirata irá à igreja. Talvez o padre Ramon queira dizer
ma coisa sobre ele no sermão de domingo. O Pirata pr
estar lá para ouvir.
Pilon olhou com repugnância para a sujeira dos do Pirata.
— Amanhã — disse, secamente — você deve
as sete moedas extras de vinte e cinco cents e comprar
pas decentes. Para os dias comuns, estas talvez passem,
numa ocasião assim, você não pode entrar na igreja
cendo um rato de esgoto. Não recomenda seus amigos.
O Pirata olhou para ele.
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  Amanhã eu compro — prometeu.
Na manhã seguinte, honrando sua promessa, foi a Monterey. Escolheu cuidadosamente as lojas, barganhou tão astutamente que não deixou entrever que não comprara nada nos últimos dois anos. Voltou exultante para a casa de Danny, exibindo um enorme lenço de seda vermelho e verde, bem como um cinto largo, profusamente marchetado de pedaços de vidro de diversas cores. Seus amigos admiraram
as compras.
  Mas você vai vestir o quê? — perguntou Danny,
desanimado. — Está com dois dedos aparecendo nos sapatos, onde fez os buracos para aliviar os joanetes. Só tem maca¬cões esfarrapados e não tem chapéu.
 Vamos ter que lhe emprestar roupas — disse Jesus
Maria. — Tenho um casaco e um colete. Pilon tem o ótimo chapéu do pai dele. Você, Danny, tem uma camisa e Big Joe, aquela excelente calça azul.
— Mas assim não poderemos ir — protestou Pilon.
— O castiçal não é nosso — respondeu Jesus Maria.
— O padre Ramon provavelmente não vai falar bem de nós.
Naquela tarde, escoltaram o tesouro até a casa do pa¬dre, que. ouviu a história do cão doente e ficou com os olhos úmidos.
— E então, padre — disse o Pirata —, ali estava
aquele belo cãozinho, seu focinho estava seco e seus olhos
pareciam o vidro das garrafas tiradas do mar. Gemia porque
estava ferido por dentro. E então, padre, prometi o castiçal
de ouro de mil dias a São Francisco. Ele é de fato meu
protetor, padre. E então aconteceu o milagre!  Pois o ca¬
chorro sacudiu o rabo três vezes e começou logo a melhorar.
Foi um milagre de São Francisco, padre, não foi?
O padre balançou a cabeça solenemente.
— Foi — disse. — Foi um milagre feito pelo nosso
bom São Francisco. Vou comprar o castiçal para você.
O Pirata ficou muito agradecido, pois não era pouca coisa ter uma prece atendida com um verdadeiro milagre. Se houvesse publicidade daquilo, o status do Pirata cresce¬ria em Tortilla Fiat. Seus amigos já olhavam para ele com outro respeito. O que pensavam de sua inteligência perma¬neceu inalterado, mas sabiam agora que sua reduzida capaci-
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dade fora complementada com todos os poderes do céu toda a força dos santos.
Voltaram para a casa de Danny com os cães nos calcanhares. O Pirata sentia-se como que banhado nut aura dourada de beatitude. Pequenos tremores e febres prazer perseguiam-se no seu corpo. Os amigos estavam co tentes por terem guardado aquele dinheiro, pois até ele receberam um pouco de santidade pelo ato. Pilon estav| aliviado por não ter roubado o dinheiro em primeiro lug Que coisas horríveis não teriam acontecido se ele tives roubado uma moeda pertencente a um santo!  Todos amigos   estavam   tão  dominados   como   se   estivessem igreja.
Os cinco dólares dos salvados queimavam como fog no bolso de Danny, mas agora ele sabia o que fazer coo o dinheiro. Ele e Pilon foram ao mercado e compraram tr quilos de almôndegas, um saco de cebolas, pão e um grand pacote de doces. Pablo e Jesus Maria foram ao restaurant de Torrelli comprar dois garrafões de vinho e não beber nem uma simples gota na volta para casa.
Naquela noite, quando a estufa foi acesa e duas ve brilhavam na mesa, os amigos se banquetearam até não der mais. Foi uma festa em homenagem ao Pirata, que comportou com uma grande dose de dignidade. Porém, sor ria sem parar quando devia estar sério.  Mas não evitar.
Depois de terem comido barbaramente, reclinaram-s e bebericaram o vinho. Chamavam o Pirata de "nosso ac guinho".
Jesus Maria perguntou:
— Como você se sentiu quando isso aconteceu?
você se sentiu quando prometeu o castiçal e o cão come
a melhorar? Teve alguma visão santa?
O Pirata procurou se lembrar.
— Acho que não. . . Talvez tenha tido uma peque
visão. . .  talvez eu tenha visto São Francisco no ar, e
brilhava como o sol. ..
— Você não se lembra? — perguntou Pilon.
— Sim. . . acho que me lembro. . . São Francisco
olhou. . .  e sorriu, como bom santo que é. Então per
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o milagre tinha acontecido. Ele disse: "Seja bom com os cachorrinhos, seu sujo".
.  Ele chamou você assim?
,  Ora, eu estava sujo, e ele não é um santo de dizer
mentiras.
  Não acredito que você se lembre de tudo isso —
falou Pablo.
  Bem. . . talvez não. Mas acho que me lembro.
O Pirata estava bêbado de felicidade, pela honra e
atenção.
  Minha avó viu a Virgem — disse Jesus Maria. —
Estava agonizante, e ouvi quando ela gritou. Ela disse: "Ai. Eu vi a Mãe de Deus. Ai. Minha querida Maria, cheia de
graça".
— A alguns é dado ver essas coisas — disse Danny.
— Meu pai não era grande coisa, mas às vezes via santos,
e às vezes via coisas ruins. Dependia se ele estava bem ou
mal quando as via. Pirata, você alguma vez teve outras
visões?
— Não — disse o Pirata. — Eu teria ficado com medo
se visse outra vez.
A festa manteve-se decente durante muito tempo. Os amigos sabiam que não estavam sós naquela noite. Podiam sentir, através das paredes, das janelas e do telhado, os olhos dos santos olhando lá de cima para eles.
— No domingo seu castiçal deve estar lá — disse
Pilon. — Não podemos ir porque você estará usando nossas
roupas. Não posso garantir que o padre Ramon diga seu
nome, mas talvez ele fale apenas alguma coisa sobre o cas¬
tiçal. Você precisa se lembrar do que ele disser, Pirata, para
nos contar.
Então Pilon tornou-se severo.
— Hoje, meu amiguinho, haverá cães em torno da casa
do padre Ramon. Por hoje, tudo bem, mas você precisa se
embrar de não levá-los para a igreja domingo. Deixe os cachorros em casa.
O Pirata ficou desapontado.
Eles querem ir — gritou. — Como posso deixá-los? unde vou deixá-los?
Pablo ficou escandalizado.
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— Até agora, neste assunto, você se comportou mu
bem, meu pequeno Pirata. Exatamente no fim é que vo
quer cometer um sacrilégio?
— Não — respondeu o Pirata, com humildade.
— Então deixe seus cães aqui, e nós cuidaremos de
Será um sacrilégio levá-los à igreja.
Foi curioso como beberam sobriamente naquela noifi Passaram-se três horas antes que cantassem uma canção in ral. E demorou mais ainda para seus pensamentos ser atraídos por mulheres levianas. E quando suas mentes ent ram na fase da briga, estavam um tanto sonolentos den para lutar. Aquela noite foi um grande ponto positivo suas vidas.
Na manhã de domingo, a preparação foi violenta, nharam o Pirata, examinaram suas orelhas e suas narin Big Joe, enrolado num cobertor, viu o Pirata vestir sua > azul de sarja. Pilon apanhou o chapéu do pai. Persuadir o Pirata a não usar seu cinturão cravejado por fora do co, e mostraram-lhe que poderia deixar o casaco aberto que as pedras reluzissem de vez em quando. No capítulo i sapatos, a coisa deu mais trabalho. Big Joe era o único q« tinha sapatos suficientemente grandes para o Pirata, estavam ainda piores que os do Pirata. A dificuldade COE tia nos orifícios abertos para o conforto dos joanetes, onde apareciam os dedos. Pilon, finalmente, resolveu o sunto com um pouco de fuligem tirada da estufa. Pass cuidadosamente na pele, a fuligem tornou quase invisív os orifícios dos joanetes.
Finalmente, o Pirata ficou pronto. Com o chapéu pai de Pilon inclinado brejeiramente na cabeça, a camisa d Danny, a calça de Big Joe, o enorme lenço em torno pescoço e, de vez em quando, o reluzir das pedras do cint Andou de um lado para outro, a fim de ser examinado amigos, que o inspecionaram com olhar crítico.
— Levante os pés, Pirata.
— Não arraste os calcanhares.
— Pare de segurar o lenço.
— Quem o olhar vai pensar que você não está habit
do a boas roupas.
Finalmente, o Pirata virou-se para os amigos.
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__ Se pelo menos os cachorros pudessem ir comigo — 1 mentou-se. — Eu diria a eles que não entrassem na igreja.
Mas os outros resistiram.
  Não — disse Danny. — Eles poderiam entrar. Nós
ficaremos com eles aqui, para você.
  Eles não vão gostar — disse o Pirata, desgostoso.
 Talvez se sintam sós. — Virou-se para os cães, no canto.
 Vocês precisam ficar aqui — disse-lhes. — Não é bom
para vocês irem à igreja. Fiquem aqui com meus amigos, até
eu voltar.
Depois disso, saiu e fechou a porta. Imediatamente, um clamor violento de latidos e rosnados encheu a casa. Só sua confiança no discernimento dos seus amigos evitou que o Pirata amolecesse.
Ao descer a rua, sentiu-se desprotegido e nu sem seus cães. Era como se um dos seus sentidos tivesse desaparecido. Estava apavorado por se encontrar na rua sozinho. Qualquer um poderia atacá-lo. Mas continuou andando com bravura através da cidade até chegar à Igreja de São Carlos.
Antes de a missa começar, as portas de vaivém foram escancaradas. O Pirata apanhou água benta na bacia de már¬more, benzeu-se, ajoelhou-se defronte da Virgem, entrou na igreja, fez uma genuflexão diante do altar e sentou-se. A igreja, comprida, estava um tanto escura, mas o enorme altar brilhava com as velas. E, defronte das imagens laterais, as velas votivas estavam acesas. Um velho e suave incenso per-fumava a igreja.
Durante algum tempo, o Pirata ficou olhando o altar, mas este era muito afastado, muito sagrado para se pensar demais nele, muito inacessível a um homem pobre. Seus olhos procuravam alguma coisa mais calorosa, uma coisa que não o assustasse. E ali, defronte da imagem de São Fran¬cisco, havia um belo castiçal dourado e, nele, queimava uma vela alta.
do
O Pirata suspirou de excitação. E apesar de os fiéis chegarem, de se fecharem as portas de vaivém, de começar a missa e o Pirata se acomodar, ele não pôde deixar de olhar Para seu santo e para o castiçal. Era belíssimo. Ele, Pirata, 1 podia acreditar ter sido seu doador. Examinou o rosto santo para ver se São Francisco havia gostado do castiçal.
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E continuou a contar mais histórias daquele abençoado
O Pirata deixou de se sentir perturbado. Seus lábios
mexeram-se. "Ah", pensou, "se pelo menos os cães pudessem
T~-__:„„, ^ntíntp« SP niidessem saber de tudo
Ficou convencido de que a imagem sorria ligeiramente vez em quando, o sorriso periódico de alguém que pensa < coisas agradáveis.
Finalmente, começou o sermão.
— Há uma beleza nova na igreja — disse o padre
mon. — Um dos filhos da igreja doou um castiçal de ou
para a glória de São Francisco. — Então contou a históe
do cão, um tanto sem finalidade. Seus olhos percorreram •■
rostos dos paroquianos e viu que surgiam alguns sorrisos. ■
Não é motivo para risos — continuou. — São Francisco ac
tanto os animais, que pediu por eles.
Então o padre Ramon contou a história do lobo de Gubbio, das rolas selvagens e das cotovias. Quando i sermão acabou, o Pirata estava olhando embevecido para i
Subitamente, um ruído de corrida impetuosa propago se da porta. Um latido furioso e arranhaduras fizerarrn ouvir. As portas se abriram brutalmente. Fluff, Rudolp Enrique, Pajarito e Senor Alec Thompson invadiram a ig ja. Ergueram os focinhos e partiram, como um esquadrão combate, na direção do Pirata. Pularam sobre ele, com lati dos leves e ganidos, envolvendo-o.
O padre parou de falar e olhou severamente para lugar do tumulto. O Pirata, desamparado, devolveu-lhe olhar, com ar sofredor. No entanto, foi em vão, pois o do já havia sido cometido.
O Pirata, sem jeito, com gestos de desculpas, levou : cães para fora.
— Isso não se faz — disse para eles. — Estou zanga
com vocês. Ah, tenho vergonha de vocês. — Os cães agach
ram-se no chão e ganiram tristemente. — Sei o que fizer
— continuou o Pirata. — Morderam meus amigos, quebÉ
ram uma janela e vieram. Agora, fiquem aqui e esper
seus cães malvados. Ah, cães sacrílegos!
Deixou-os às voltas com a dor e o arrependimento voltou para a igreja. Os paroquianos, ainda rindo, voltar se para olhá-lo até ele se afundar no banco e procurar se zer despercebido.
— Não se envergonhe — disse o padre Ramon. — J
é pecado ser amado por seus cães, como não é pecado ac
los. Lembre-se de que São Francisco amava os animais.
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ouvir isso."
:am-se.   nu , p«-"—,   — r---isso. Ficariam contentes se pudessem saber de tudo
Quando o sermão acabou, seus ouvidos ainda vibravam com as histórias. Seguiu o ritual mecanicamente, mas não ouviu o serviço. E quando este acabou, correu para a porta. Foi o primeiro a sair da igreja. Os cães, ainda tristes e des¬confiados, amontoaram-se em torno dele.
 Vamos! — gritou. — Tenho umas coisas para dizer
a vocês.
Começou a subir correndo a colina, na direção do pi-nheiral, acompanhado dos cães, que pulavam em torno dele. Finalmente chegou ao abrigo das árvores e continuou andan-do até chegar a uma comprida aléia de pinheiros, cujos ga¬lhos se entrelaçavam, pois os troncos ficavam muito próxi¬mos uns dos outros. Durante um instante pareceu desa¬nimado .
— Gostaria que a coisa tivesse sido daquele jeito —
disse. — Se pelo menos vocês pudessem ter estado lá e ouvi¬
do o padre dizer aquilo... — Colocou uma grande pedra
em cima de outra. — Olhem, esta é a imagem — falou para
os cães. Enfiou um galho pequeno no chão. — E exatamente
aqui está o castiçal, com uma vela.
Começava a escurecer na clareira, e o ar estava perfu-mado com a resina dos pinheiros. As árvores farfalhavam levemente, tocadas pela brisa. O Pirata falou, autoritário:
— Você, Enrique, sente-se aqui. E você, Rudolph, ali.
Quero Fluff aqui, porque é o menor. Pajarito, seu bobão,
tique aqui e não atrapalhe. Senor Alec Thompson, o senhor
«ão pode se deitar.
Dessa forma, colocou-os em duas fileiras: dois cães na "ente e três atrás.
_ '     Quero contar a vocês como foi — disse. — Vocês estão perdoados por terem invadido a igreja. O padre Ramon isse que, desta vez, não houve sacrilégio. Agora, atenção, ienho coisas a dizer.
•Js cães sentaram-se em seus lugares e o olharam aten-
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tamente. Senor Alec Thompson sacudiu o rabo até o virar-se para ele.
— Aqui não é lugar para isso — disse. — São Fr
co pode não se importar, mas não gosto que você bala
rabo enquanto estiver ouvindo. Agora vou lhes falar
São Francisco.
Naquele dia, sua memória estava excepcional, atravessou a folhagem e desenhou formas brilhantes no i atapetado de agulhas de pinheiro. Os cães permane sentados pacientemente, com os olhos pregados nos do Pirata. Ele lhes repetiu tudo o que o padre havia todas as histórias, todos os comentários. Dificilment ouviu uma palavra fora do lugar.
Quando acabou, olhou os cães com ar solene.
— São Francisco fez tudo isso — afirmou.
As árvores contiveram seus murmúrios. A floresta i va silenciosa e encantada.
Subitamente, ouviu-se um leve ruído às costas do ta. Todos os cães ficaram atentos. O Pirata teve medo virar a cabeça. Passou-se um instante.
Então o momento passou. Os cães baixaram os ol As copas das árvores balançaram, voltando à vida, e as mas desenhadas pelo sol mexeram-se, emaranhadas.
O Pirata estava tão feliz que seu coração doía.
— Vocês o viram? — gritou. — Era São Fr
Ah! Como vocês devem ser bons cães para terem uma
Os cães pularam ao ouvir isso. Suas bocas se abr e seus rabos moveram-se alegremente.
 
Como os amigos de Danny correram a ajudar uma senhora em apuros
A senora Teresina Cortez, seus oito filhos e sua velha mãe moravam num agradável chalé, na extremidade da pro¬funda ravina que limita a fronteira sul de Tortilla Fiat. Tere¬sina era uma bela figura de mulher madura, beirando os trinta anos. Sua mãe, velha, seca, desdentada, viúva de uma geração anterior, tinha quase cinquenta. Já ia longe o tempo em que alguém se lembrava de que seu nome era Angélica.
Durante a semana, não faltava trabalho para aquelas mãos de velha, pois era sua obrigação alimentar, castigar, paparicar, vestir e meter na cama sete dos oito filhos. Tere-sina ficava muito ocupada com o oitavo e com certos prepa¬rativos para o nono.
No domingo, porém, a vieja, envolta em cetim negro mais velho ainda que ela, enchapelada com um horrível e durável troço de palha negra, onde havia duas verdadeiras cerejas de gesso esmaltado, atirava as obrigações pela janela e ia decididamente para a igreja, onde se sentava tão imóvel quanto os santos em seus nichos. Uma vez por mês, de tarde, confessava-se. Seria interessante saber que pecados ela con-tessava e onde achava tempo para cometê-los, pois na casa de Teresina havia engatinhadores, rastejadores, tropeçadores, ferradores, matadores de gatos, caidores de árvores. E todos esses protegidos, podia-se garantir, ficavam famintos de duas em duas horas.
Era de estranhar que a velha tivesse uma alma remota e nervos de aço? Outra espécie qualquer sairia do seu corpo dourando como pequenos rojões.
No que se referia à sua cabeça, Teresina era uma mu-
 
 
 
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lher meio confusa.  Seu corpo era uma daquelas perf$ retortas para a destilação de filhos. A primeira criança, cebida quando ela tinha catorze anos, fora um choque Jj Teresina. Um choque tão grande que ela a expeliu de
no parque, embrulhou-a num jornal e a deixou para vigia noturno a encontrasse. Isso era segredo. Mesmo Teresina poderia se meter em encrencas, se o fato fo conhecido.
Quando tinha dezesseis anos, o sr. Alfredo Corte casou com ela, dando-lhe seu nome e as duas origens de família, Alfredo e Ernie. O sr. Cortez deu-lhe seu nomèl boa vontade. Afinal de contas, usava-o apenas tempor mente. Seu nome, antes de chegar a Monterey e depoisl ir embora, era Gugliemo. Foi embora logo que Ernie ceu.  Talvez previsse que ficar casado com Teresina significaria uma vida tranquila.
A regularidade com que se tornava mãe sempre tou Teresina. Acontecia, às vezes, que nem sempre lembrar quem era o pai da criança por nascer. E de vezi quando quase se convencia de que o amor não era necess Na época em que esteve de quarentena, portadora de ria, concebeu da mesma maneira. Todavia, quando uma gunta era complicada demais para sua mente resolver, malmente deixava o assunto nas mãos da Mãe de Deus, i tinha a certeza, possuía mais conhecimentos, interesse e po que ela para essas coisas.
Teresina frequentemente se confessava. Ela era o pêro do padre Ramon. Realmente, ela vira que enqua seus joelhos, suas mãos e seus lábios faziam penitência | um velho pecado, seus olhos modestos e provocantes, lhando   sob  os  cílios  pintados,   lançavam   as   bases mais um.
Durante o tempo que levei contando isto, o nono de Teresina nasceu, e, no momento, ela não estava comf metida. A velha recebeu outro encargo. Alfredo estava; seu terceiro ano na primeira série, Ernie no segundo, e chito entrara na escola pela primeira vez.
Mais ou menos nessa época, na Califórnia, torno moda para as orientadoras irem até as classes e interr as crianças  sobre detalhes íntimos  da  sua  vida famu|
 
M primeira série, Alfredo foi chamado à sala do diretor, pois acharam que ele estava magro.
A orientadora, formada em psicologia educacional, per¬guntou bondosamente:
  Freddie, você come bastante?
.  Claro — respondeu Alfredo.
  Ora muito bem. Diga-me o que come no café da
manhã.
  Tortillas e feijão — informou Alfredo.
A orientadora fez um leve movimento de cabeça para o
diretor.
  E o que come quando vai em casa almoçar?
  Eu não vou para casa.
— Você não come ao meio-dia?
  Claro. Eu trago feijão dentro de uma tortilla.
Um sobressalto real apareceu nos olhos da moça, mas esta se controlou.
— O que você come de noite?
— Tortillas e feijão.
Sua psicologia desapareceu.
— Você fica aí parado, dizendo que só come tortillas
e feijão?
Alfredo ficou espantado.
— Meu Deus — disse ele —, que mais a senhora quer?
No momento devido, o médico da escola ouviu o rela-tório horrorizado da orientadora. Um dia foi até a casa de Teresina para dar uma olhada. Enquanto atravessava o jar-dim, os engatinhadores, rastejadores e tropeçadores estavam executando uma estrepitosa sinfonia. O doutor parou na por-ta aberta da cozinha. Viu com seus próprios olhos a velha ir até o fogão, meter uma enorme concha num caldeirão e es-palhar feijão cozido pelo chão. Imediatamente, cessou a baru-Ineira. Engatinhadores, rastejadores e tropeçadores começa¬ram a trabalhar aplicadamente em silêncio, indo de feijão em reijão e parando só para comê-los. A velha voltou para sua cadeira, garantindo alguns momentos de tranquilidade. Sob a cama, sob as cadeiras, sob o fogão, as crianças rastejavam f°m a aplicação de bichinhos. O médico ficou cerca de duas
oras, pois seu interesse científico havia sido despertado. Foi embora sacudindo a cabeça.
 
 
 
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Continuava sacudindo a cabeça incredulamente enqu to fazia seu relatório.
— Fiz neles todos os testes conhecidos — disse. 1 Dentes, pele, sangue, esqueleto, olhos, coordenação. res, eles estão vivendo do que constitui um veneno le e isso desde que nasceram. Senhores, garanto-lhes que nu vi
em minha vida crianças mais saudáveis! — Ficou emt gado pela emoção. — Aqueles bichinhos — gritou —, nu vi dentes iguais em minha vida. Nunca vi dentes iguais!
Vocês devem estar imaginando como Teresina guia comida para a família. Depois que a debulhadora feijão passava, viam-se, quando ela parava, montes mes de sobras de feijão. Se alguém estender um cobertor; chão e, na tarde ventosa, atirar as sobras no ar sobre verificará que as debulhadoras não são infalíveis. Pois nu tarde de trabalho podem-se recolher dez ou mais quilos feijão.
No outono, a velha e as crianças que já andavam iâ para os campos joeirar as sobras. Os proprietários não f incomodavam, pois ela não atrapalhava. Era um ano aquele em que a velha não recolhesse cento e cinquenta duzentos quilos de feijão.
Quando se tem duzentos quilos de feijão em casa, existe medo de morrer de fome. Outras coisas, petiscos < açúcar, tomates, pimenta, café, peixe ou carne podem gar às vezes milagrosamente, pela interferência da Vir às vezes utilizando-se a esperteza ou a inteligência. Mas feijões estão ali, e está-se a salvo. O feijão é um telhado < abriga o seu estômago. O feijão era um abrigo quente cont o frio económico.
Só uma coisa ameaçava a vida e a felicidade da fa da senora Teresina Cortez: era o fracasso de uma coll de feijão.
Quando o feijão ficava maduro, os maços eram dos e colocados em montes, para secar e ficar prontos as debulhadoras. Era chegada a hora de rezar para qu chuva não caísse. Depois que os pequenos montes de fetyj são colocados em linha, amarelos contra os campos nhos, podem-se ver os fazendeiros examinar o céu, fecha o cenho com temor a cada nuvem que passa. Pois, se cho
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os montes de feijão têm de ser revirados para tornar a secar. Se chover mais, antes que o feijão seque, é preciso tornar a virá-lo. Se cair uma terceira pancada, o feijão mofa e apo-drece, perdendo-se a colheita inteira.
Quando o feijão estava secando, a velha costumava acender uma vela à Virgem.
No ano ao qual estou me referindo, o feijão havia sido empilhado e a vela, acesa. Na casa de Teresina, os sacos de aniagem estavam preparados.
As debulhadoras haviam sido lubrificadas e limpas.
Caiu um aguaceiro.
Pessoal extra correu para os campos e revirou os mon¬tes de feijão. A velha acendeu outra vela.
A chuva continuou.
Então a velha comprou duas velas, com uma moeda de ouro que guardara todos aqueles anos. Os trabalhadores tor-naram a virar o feijão para o sol. Então caiu uma pancada de chuva grossa e fria. Nenhum feijão foi colhido em todo o condado de Monterey. Os torrões encharcados foram revi-rados pelos arados.
Ah, então a aflição entrou na casa da senora Teresina Cortez. O sustento da vida fora quebrado. O pequeno telha¬do fora destruído. O feijão, a eterna verdade, havia desapa¬recido. De noite, as crianças choravam de pavor da fome que se aproximava. Ninguém lhes havia dito, mas elas sabiam. A velha estava sentada na igreja, como sempre, mas seus lábios se arreganharam num rosnado quando olhou para a Virgem. "Você aceitou minhas velas", pensou. "Aceitou, sim. Você é ávida por velas. Ah, sua relaxada!" E sombria¬mente transferiu sua devoção para Santa Clara. Contou a esta a injustiça acontecida. Permitiu-se um pensamento mali¬cioso sobre o nascimento da Virgem. "Sabe, Teresina tam¬bém às vezes não consegue se lembrar", comentou maliciosa¬mente para Santa Clara.
Já foi dito que Jesus Maria Corcoran possuía um gran¬de coração. Tinha também aquele dom de certos filantro¬pos de serem inevitavelmente atraídos para onde seus ins¬tintos se fazem necessários. Quantas vezes havia ele auxiliado
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mocinhas que necessitavam de conforto! Era irresistivelme te arrastado para dores ou tristezas. Havia meses que nãâ visitava a casa de Teresina. Se isso não é atração mística tre a dor e a filantropia, por que haveria ele de ir lá no exato  em que  o  resto  de feijões  antigos  fora posto panela?
Jesus Maria sentou-se na cozinha de Teresina, afastando! gentilmente as crianças das suas pernas. E olhava para Tere-| sina de maneira educada e aflita, enquanto ela contava o de* ] sastre. Olhou, fascinado, quando ela virou pelo avesso o últi¬mo saco de feijão, para mostrar que não sobrara nenhum.' Balançou a cabeça, exprimindo simpatia, quando ela mos¬trou as crianças, que, breve, ficariam esqueléticas e morre-; riam de fome.
Então a velha contou, com amargura, que fora enga-" nada pela Virgem. Mas aí Jesus Maria não se mostrou sim-' pá tico.
— Velha, que sabe você? — perguntou severamente.
— Talvez a Santa Virgem estivesse ocupada em outro lugar.
— Mas acendi quatro velas — esganiçou-se a velha.
Jesus Maria a olhou com frieza.
— Que são quatro velas para Ela? — perguntou. —
Vi uma igreja onde Ela tinha centenas. Ela não é ávida por
velas.
Mas sua mente queimava com os problemas de Teresi¬na. Naquela noite, falou intensa e comoventemente com os amigos, na casa de Danny. Extraiu do seu grande coração um discurso coercitivo, uma súplica apaixonada em favor das criancinhas que não tinham feijão. E seu discurso foi tão convincente que o fogo que se alastrara em seu coração se transmitiu ao dos amigos. Ficaram de pé. Seus olhos bri¬lharam.
— As crianças não devem morrer de fome! — grita¬
ram. — Ficarão a nosso cargo!
— Vivemos na abundância — disse Pilon.
— Devemos dar nossos bens — concordou Danny. —
E, se precisarem de abrigo, poderão morar aqui.
— Começaremos amanhã — exclamou Pablo. — Che¬
ga de preguiça! Ao trabalho! Temos muito que fazer!
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Jesus Maria sentiu a recompensa de um líder com se¬guidores.
Não ficaram na conversa fiada. Recolheram peixes. In-cursionaram nos restos de verduras do Hotel Del Monte. Foi uma batalha gloriosa. Aquela pilhagem fora um crime cometido altruisticamente. . .  havia recompensa maior?
O Pirata aumentou para trinta ccnts o preço dos cava¬cos e passou a ir a três restaurantes todas as manhãs. Big Joe raptava ininterruptamente a cabra da sra. Palochico, levan¬do-a sempre de volta.
Agora os alimentos começavam a se acumular na casa de Teresina. Viam-se caixas de alface na varanda, cavalas estragadas enchiam a vizinhança de fedor. E a chama da caridade continuava a queimar nos amigos.
Quem olhar o livro de reclamações do Departamento de Polícia de Monterey verá que, durante aquele tempo, desencadeou-se uma pequena onda de crimes em Monterey. O carro da polícia corria de um lado para outro. Aqui era uma galinha roubada, ali um campo inteiro de abóboras. A Paladini Company comunicou a perda de duas caixas de cinquenta quilos de filés de haliotes.
A casa de Teresina começou a ficar cheia. A cozinha ficou abarrotada até em cima de alimentos. A varanda dos fundos, atopetada de verduras. Cheiros como os de um frigo¬rífico começaram a se espalhar por Tortilla Fiat. Excitados, os amigos atiravam-se aos furtos, falando e planejando lon¬gamente com Teresina.
A princípio, Teresina ficou louca de alegria ao ver tanta comida e ficou de cabeça virada pela homenagem. Uma se¬mana depois, já não tinha tanta certeza. O mais novo teve cólicas, Ernie apareceu com problemas intestinais e o rosto de Alfredo estava inchado. Os engatinhadores e rastejadores gritavam o tempo todo. Teresina tinha vergonha de dizer aos amigos o que precisava dizer. Levou vários dias criando cora¬gem. E, durante esse tempo, chegaram vinte e cinco quilos de aipo e um engradado de melões. Finalmente, ela foi obri¬gada a falar com eles. Os vizinhos começavam a olhá-la de sobrancelhas erguidas.
Convocou todos os amigos de Danny na cozinha e, mo¬desta e cuidadosamente, informou-lhes sobre o que estava
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havendo, pois os sentimentos deles não podiam ser ferido
— Verduras e frutas não fazem bem às crianças — i
plicou-lhes. — O leite dá prisão de ventre num bebé, dep
que ele é desmamado.
Mostrou as crianças inchadas e irritadas.
— Vejam, estão todas doentes. Não estão se alime
tando como devem.
— Qual é a alimentação apropriada? — pergunto
Pilon.
— Feijão — respondeu ela. — É uma coisa em que i
pode confiar, uma coisa que não desce diretamente.
Os amigos saíram em silêncio. Fingiram estar abatido mas sabiam que o fogo do seu entusiasmo inicial havia vá dias desaparecera.
Fizeram uma reunião na casa de Danny.
Isto não deve ser repetido em certos círculos, pois pena pode ser séria.
Muito depois da meia-noite, quatro vultos escuros, voltos no anonimato, atravessaram a cidade como sombr Quatro  formas  indistintas irromperam  na plataforma Companhia Ocidental de Armazéns. O vigia disse, dep que ouviu ruídos, investigou e nada viu. Não podia como a coisa aconteceu, como o cadeado foi quebrado e porta forçada. Só quatro homens sabiam que o vigia estav profundamente adormecido e jamais contariam isso.
Um pouco mais tarde, as quatro sombras saíram do mazém,  curvadas  sob  cargas  pesadíssimas.  Das  sombras* saíam roncos e respirações ofegantes.
Às três da madrugada, Teresina foi acordada pelo son$| de sua porta de trás sendo aberta.
— Quem está aí? — gritou.
Não houve resposta, porém ela ouviu quatro grande batidas que estremeceram a casa. Acendeu uma vela e até a cozinha, descalça. Na cozinha, empilhadas contra parede, havia quatro sacas de cinquenta quilos de feijão*! rosa.
Teresina saiu correndo e acordou a velha.
— Milagre! — gritou. — Venha ver na cozinha.
A velha olhou, envergonhada, as sacas cheias.
— Ah, que pecadora miserável e suja eu sou — gemeú|
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 ^  Santa Mãe, olha com piedade para esta velha louca.
Enquanto eu viver, terás mensalmente uma vela.
Na casa de Danny, quatro amigos estavam deitados, felizes, em seus cobertores. Que travesseiro melhor alguém de t'er que Uma boa consciência? Dormiram tranquilos a tarde inteira, pois haviam realizado sua tarefa.
E Teresina descobriu, por um método que considerava infalível, que ia ter um filho. Enquanto colocava uma quan-tidade do novo feijão na panela, ficou imaginando preguiço-samente qual dos amigos de Danny seria o  responsável.
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Da boa vida na casa de Danny, de um porco presenteado, do sofrimento de Tall Bob e do amor contrariado do Viejo Ravanno
Relógios de parede ou outros não eram usados habitantes de Tortilla Fiat. De vez em quando, um amigos obtinha um relógio de maneira fora do comum, conservava-o apenas o tempo suficiente para trocá-lo alguma coisa que realmente desejasse. Os relógios tir boa reputação na casa de Danny, mas unicamente meio de troca. Para finalidades práticas, havia o grande re gio dourado do sol. Era melhor que um relógio e mais ro, pois não havia como desviá-lo para Torrelli.
No verão, quando o ponteiro do relógio marcava sete, era uma boa hora para se levantar, mas no inve a mesma hora não servia para nada. Como o sol é mu melhor! Quando ele ilumina o topo dos pinheiros e atiri a varanda da frente, seja verão ou inverno, é a hora para se levantar. É a hora em que nossa mão não tr nem a barriga estremece por estar vazia.
O Pirata e seus cães dormiam na sala, seguros e eidos no seu canto. Pilon, Pablo, Jesus Maria, Danny| Big Joe Portagee dormiam no quarto. Apesar de toda a bondade e generosidade, Danny nunca permitiu que cama fosse ocupada por mais ninguém além dele. Big tentou duas vezes e foi espancado nas solas dos pés uma vara. Assim, até ele aprendeu que a cama de era inviolável.
Os amigos dormiam no chão, e seus leitos eram ir muns. Pablo usava três peles de carneiro costuradas na outra. Jesus Maria dormia pondo os braços dentro mangas de um velho casacão e as pernas dentro das ma
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de outro. Pilon se enrolava numa longa tira de tapete. A maioria das vezes, Big Joe simplesmente se enrodilhava como um cão e dormia vestido. Big Joe, apesar de não ter nenhuma capacidade para conservar o que quer que fosse durante muito tempo, tinha uma tremenda habilidade para negociar, por um pouco de vinho, qualquer coisa que caísse em suas mãos. Assim sendo, eles dormiam às vezes barulhen-tamente, mas sempre confortavelmente. Numa noite fria, Big Joe tentou arranjar um cachorro para cobrir os pés e levou uma boa surra, pois os cães do Pirata não eram
emprestáveis.
As janelas não tinham cortinas, mas uma natureza ge-nerosa havia escurecido os vidros com teias de aranha, poeira e marcas nítidas de pingos de chuva.
— Seria ótimo lavar essa janela com água e sabão —
disse um dia Danny.
A mente aguda de Pilon atirou-se com energia ao pro-blema, mas este era muito fácil para ele. Não exigia uma quantidade decente dos seus poderes.
— Irá entrar mais luz — disse ele. — Não passaremos
tanto tempo lá fora, ao ar livre, se tivermos claridade aqui.
E de noite, quando o ar é nocivo, não teremos necessidade
de luz.
Danny abandonou o campo, pois, se uma pequena su-gestão provocara uma objeção tão clara e rápida ao seu projeto, que lógica esmagadora a insistência não provocaria? A janela permaneceu como estava. E com o passar do tem-po, com mosca após mosca indo alimentar a família da ara¬nha com seu sangue, deixando a carcaça nas teias da janela, "om o pó aderindo ao pó, o quarto adquiriu uma agradável penumbra, que permitia dormir numa luz velada mesmo ao meio-dia.
Os amigos dormiam pacificamente. Mas quando o sol batia na janela, de manhã, e, não podendo entrar, transfor-mava o pó em prata e brilhava na iridescência das varejeiras, os amigos acordavam, espreguiçavam-se e procuravam os sa¬patos. Sabiam que a varanda da frente estava quente, quan¬do o sol batia na janela.
Não acordavam rapidamente, não se precipitavam, nem alteravam seus hábitos com movimentos súbitos. Não, saíam
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do sono tão suavemente quanto uma bolha de sabão! desprendendo do cachimbo. Arrastavam-se até a ravina ; meio adormecidos. Gradualmente, sua vontade solidific se. Acendiam o fogo e preparavam um chá, que tomat nos vidros de geléia, e finalmente se acomodavam ao solj varanda da frente. As varejeiras faziam halos nas suas ças. A vida tomava forma em torno deles, a forma de onti e a de amanhã.
A conversa começava aos poucos, pois cada um dava o pouco sono que ainda possuía. Naquela hora, depois do meio-dia, começava a existir a camaradagem ií lectual. Então, erguiam-se telhados, bisbilhotavam-se examinavam-se motivos, recontavam-se aventuras. Cofi mente, seus pensamentos iam primeiro para Cornelia pois era raro o dia e a noite em que Cornelia não tíi uma aventura curiosa e interessante. E era uma avenfi singular, da qual não se podia tirar nenhuma lição de
O sol brilhava nas agulhas dos pinheiros. A terra rava, seca e boa. A roseira perfumava o mundo com flores. Era uma das melhores épocas para os amigos' Danny. A luta pela existência era remota. Opinavam seus companheiros, não os julgando pela moral, mas interesse. Ninguém que tivesse uma boa coisa para guardava-a para mais tarde. Enormes borboletas casta aproximaram-se da roseira e pousaram nas flores, do lentamente as asas, como se estivessem sugando o pela força das asas.
— Vi Albert Rasmussen — disse Danny. — Ele es)
va saindo da casa de Cornelia. Cornelia só arranja encrenfi
Cada dia uma encrenca.
— É a vida dela — comentou Pablo. — Não sou
atirar pedras, mas às vezes acho Cornelia um tanto ave
Só acontecem duas coisas a Cornelia: amor e briga.
— Ora — disse Pilon —, você queria o quê?
— Ela nunca tem tranquilidade — disse Jesus
penalizado.
— É coisa que ela não quer — respondeu
— Dêem tranquilidade a Cornelia e ela morre. Amor e br Isso é bom, como você diz, Pablo. Amor e briga e
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Co de vinho. Assim, você será sempre jovem e feliz. Que aconteceu ontem com Cornelia?
Danny olhou exultante para Pilon. Era uma coisa fora A comum o fato de Pilon não ter conhecimento de tudo o que acontecera. E agora Danny podia verificar, pelo ar magoado e ressentido do rosto de Pilon, que ele não sabia
daquilo.
  Todos vocês conhecem Cornelia — começou. —
Algumas vezes, os homens presenteiam Cornelia: uma gali-nha um coelho ou um repolho. Apenas coisinhas, e Corne¬lia áma essas coisinhas. Pois bem, ontem Emilio Murietta levou-lhe um bacorinho, um porquinho lindo e rosado. Emi¬lio havia achado o animalzinho na ravina. A porca o atacou quando ele o apanhou, mas Emilio correu muito e chegou à casa de Cornelia com o porquinho.
"Emilio é um bom papo. Disse a Cornelia: 'Não há nada mais agradável de se ter que um porco. Come qual-quer coisa. É um belo animal de estimação. Você vai amar esse bacorinho. Mas, quando o porco cresce, seu caráter muda. Torna-se arisco e mal-humorado, e você não pode continuar mais gostando dele. Então chega um dia em que esse porco a morde e você fica zangada. E então mata o porco e o come'."
Os amigos sacudiram a cabeça solenemente, e Pilon disse:
— De certa forma, Emilio não é bobo. Vejam quantas
alegrias ele deu com esse porco:  afeto, amor, vingança e
comida. Um dia destes vou ter uma conversa com Emilio.
Mas os amigos podiam observar que Pilon estava en-ciumado de um rival lógico.
— Continue com o porco — disse Pablo.
— Bem — falou Danny. — Cornelia aceitou o porqui¬
 e foi carinhosa com Emilio. Disse-lhe que, quando che¬
gasse a hora e ela estivesse zangada com o porco, ele teria
carne para comer. Então Emílio foi embora. Cornelia cons¬
truiu uma caixinha para o porquinho dormir, junto do
fogão.
'Então chegaram umas senhoras para visitá-la, e Cor¬eia deixou-as segurar o porquinho e brincar com ele. Al¬gum tempo depois, Doçura Ramirez pisou no rabo do porco.
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Ah!  Ele grunhiu como um apito de fábrica. A porta frente abriu-se. A porca tinha vindo procurar seu bacorir Todas as mesas e a louça foram destruídas. Todas as ca ras foram quebradas. E a enorme porca mordeu Ramirez, arrancou a saia de Cornelia e, então, quando to aquelas senhoras se trancaram na cozinha, ela foi embora . vando o leitãozinho. Cornelia ficou furiosa. Disse que ii espancar Emilio."
— É isso aí — comentou Pablo. — Assim é a vid nunca é como se planejou. Foi isso o que aconteceu qua Tall Bob Smoke resolveu se matar.
Os   rostos   dos  amigos   viraram-se   interessados Pablo.
-— Vocês  precisavam  ver  Bob   Smoke  —  come Pablo. — Tinha o ar de um vaquero, pernas comprid corpo esguio. Mas não cavalgava muito bem. No rodeo, quentemente beijava o chão. No entanto, Bob gostava ser admirado. Nos desfiles, gostava de levar a bandeit Quando havia uma luta, queria ser o juiz. Nos espetáculo era sempre o primeiro a dizer "Sentem-se!" Sim, que ser um grande homem, olhado e admirado por todos. E uma coisa que vocês talvez não saibam, queria ser por todos.
"Pobre infeliz, nasceu para ser motivo de riso. Alg tinham pena, mas a maioria ria dele. E o riso feria os sen| mentos de Tall Bob Smoke.
"Talvez vocês se lembrem do tempo do desfile em ele carregava a bandeira. Bob montava, empertigado, grande cavalo branco. Exatamente na frente dos juizes, cavalão estúpido desmaiou com o calor. Bob saiu voar pela cabeça do animal, e a bandeira planou no ar COE uma lança e enterrou-se no chão, de cabeça para baixo.
"As coisas eram assim com ele. Sempre que tentai! ser um grande homem, alguma coisa acontecia e todos ria Vocês devem se lembrar de quando ele foi apanhador cachorros e passou uma tarde inteira tentando laçar cão. Todos na cidade correram para ver. Ele atirava o o cão se desviava, o laço escorregava e o cachorro fug Puxa, como todos riam! Bob ficou tão envergonhado pensou: 'Vou me matar, e então todos ficarão tristes.
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se arrepender de ter rido'. E então pensou: 'Mas morrerei. E não saberei se eles ficaram muito tristes'. Assim, fez um olano: 'Esperarei até ouvir alguém se aproximar do meu quarto. Apontarei um revólver para a minha cabeça. Então a pessoa discutirá comigo. E me fará prometer que não me matarei. As pessoas se arrependerão, assim, de terem me levado ao suicídio'. Foi isso o que ele pensou.
"Portanto, voltou para sua casinha, e por onde passava as pessoas perguntavam: 'Pegou o cachorro, Bob?' Quando chegou em casa, estava muito triste. Pegou o revólver, carregou o tambor e então sentou-se, esperando que alguém
viesse.
"Planejou como seria e treinou com o revólver. O ami¬go diria: 'Ei, que está fazendo? Infeliz, não se mate'. Então Bob diria que não queria mais viver porque todos eram
muito maus.
"Pensou naquilo sem parar, mas ninguém apareceu. Esperou também o dia seguinte, e ninguém veio. Mas, na noite seguinte, Charlie Meeler apareceu. Bob ouviu seus passos na varanda e pôs a pistola contra a cabeça. Armou o cão para a coisa parecer mais real. 'Agora ele vai discutir comigo e deixarei que ele me convença', pensou Bob.
"Charlie Meeler abriu a porta. Viu Bob segurando o revólver contra a cabeça. Mas não gritou. Não, Charlie Meeler deu um pulo e agarrou a arma, que disparou e arran¬cou a ponta do nariz de Bob. E então todos riram ainda mais. Saíram artigos no jornal a esse respeito. A cidade inteira ria.
"Vocês precisavam ver o nariz de Bob, com a ponta tortada. Todos riam. Mas era um riso forçado, e eles se sentiam mal ao fazê-lo. E desde então deixam Tall Bob carregar a bandeira em todos os desfiles. E a cidade com-prou-lhe uma rede para apanhar cachorros.
'Mas Bob não era feliz com um nariz daqueles." Pablo calou-se, apanhou um graveto na varanda e ficou batendo na perna um pouquinho.
R Lembro como era o nariz dele —  disse Danny. —
0   não é má pessoa. O Pirata poderá contar-lhe quando
voltar. De vez em quando, o Pirata mete todos os seus
Caes na carroça de Bob, e as pessoas pensam que Bob os
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apanhou, dizendo: "Isso é que é um apanhador de ca ros". Não é tão fácil pegar cachorros quando se tem obrigação.
Jesus Maria estivera meditando, com a cabeça encosf na parede. Comentou:
— É pior que surrar para provocar riso. O velho i
más, o mendigo bobo, foi ridicularizado até no túmulo|
depois todos se arrependeram de ter rido.
— E — disse Jesus Maria — há também um
tipo de riso. Essa história do Tall Bob é engraçada,
quando abrimos a boca para rir, uma espécie de mão ap
o nosso coração. Conheço a história do velho sr. Rava
que se enforcou no ano passado. Também é engraçada,
não é agradável rir-se dela. '■
— Ouvi alguma coisa a esse respeito — disse Pij
—, mas não sei o que se passou. '■■
— Bem — começou Jesus Maria. — Vou contar-]
e vocês verão se vão conseguir rir. Quando era garotk
eu brincava com Petey Ravanno. Petey era um bom ga
vivo, mas sempre encrencado. Tinha dois irmãos e qu
irmãs, além do pai, o velho Pete. A família está toda disf
sa atualmente. Um irmão está em San Quentin, o outrcM
morto por um japonês ao roubar uma carroça carregada |
melancias. E as moças, bem, vocês sabem como as
são: foram embora. Susy está na casa da velha Jenny, 1
Salinas, atualmente.
"Assim, só ficaram Petey e o velho. Petey crés estava sempre metido em complicações. Passou um tefl no reformatório e depois voltou. Ficava bêbado todos/j sábados, sendo invariavelmente preso até segunda-feira., pai era uma pessoa muito amável. Todas as semanas se bebedava com Petey. Quase sempre ficavam presos junl O velho Ravanno sentia-se muito solitário quando não estava perto dele. Gostava do filho. O que Petey fiz o velho fazia, apesar de já ter sessenta anos de idade.
"Vocês se lembram de Gracie Montez?", perg Jesus Maria. "Não era uma moça muito boa. Quando doze anos, a esquadra chegou a Monterey, e Gracie tevej primeiro filho, naquela idade. Sabem, era bonita, viva e a língua afiada. Parecia estar sempre fugindo dos hon
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estes, correndo atrás dela. E, de vez em quando, algum a ava. ]y[as ninguém gozava da sua intimidade. Gracie pare-cia ter sempre alguma coisa boa que se recusava a dar, algu-ma coisa no fundo dos olhos, que dizia: 'Se eu realmente isesse, seria diferente como nenhuma outra mulher que
você tenha conhecido'.
"Sei disso", continuou Jesus Maria, "pois também corri atrás dela. E Petey fez o mesmo. Só que Petey era dife¬rente." Jesus Maria olhou firmemente para os amigos, acen¬tuando esse ponto. "Petey queria tanto o que Gracie tinha que emagreceu, e seus olhos ficaram tão dilatados e aflitos como os dos fumantes de maconha. Petey não conseguia comer, e ficou doente. O Velho Ravanno foi falar com Gra¬cie. Disse-lhe: 'Se você não for boazinha com Petey, ele vai morrer'. Ela só fez rir. Não era uma boa moça. Nesse ins¬tante, sua irmãzinha Tonia entrou na sala. Tonia tinha ca¬torze anos. O velho a olhou é perdeu o fôlego. Tonia era igual a Gracie, no hábito curioso de se manter longe dos ho¬mens. O Velho Ravanno não pôde evitar. Disse: 'Venha comigo, mocinha'. Mas Tonia não era uma mocinha. Ela sabia das coisas. Por isso, riu e fugiu da sala.
"O Velho Ravanno voltou, então, para casa. Petey disse: 'Alguma coisa está acontecendo com o senhor, meu pai1.
" 'Não, Petey', respondeu o velho. 'Apenas estou preo-cupado por causa dessa Gracie, para que você possa ficar bom outra vez.' "
— Todos esses Ravannos têm sangue quente!
— E o que vocês acham que aconteceu? — prosseguiu
Jesus Maria. — Petey foi trabalhar para Chin Kee, limpando
lulas, e mandou presentes para Gracie: grandes frascos de
agua florida, fitas e ligas. Pagou para tirarem uma fotografia
dela, colorida.
Gracie aceitou todos os presentes e fugiu dele, rindo-se. Vocês precisavam ouvir como Gracie ria. Dava vontade e bater nela e acariciá-la ao mesmo tempo. Dava vontade e abri-la ao meio e apanhar aquele troço que havia dentro ela. Sei como é isso. Corri atrás dela e Petey também, como me contou. Mas aquilo deixou Petey doido. Ele não podia ais dormir. E me disse: 'Se Gracie se casar comigo na igre-> nunca mais ousará fugir, pois estará casada e seria pecado
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fugir'. Portanto, pediu-a em casamento. Gracie riu tant tão alto que ele teve vontade de esganá-la.
"Ah! Petey estava maluco. Foi para casa, pegou corda, jogou-a por cima de uma viga, subiu num caixote, i locou a corda no pescoço e então chutou o caixote. Pois 1 o pai de Petey chegou nessa hora. Cortou a corda e cha o médico. Mas levou duas horas para Petey abrir os olhos! quatro dias para poder falar."
Jesus Maria calou-se. Viu, com orgulho, que seus gos estavam atentos à sua história.
— Foi assim que aconteceu — disse.
— Mas Gracie Montez se casou com o tal Petey
vanno — gritou Pilon, excitado. — Eu a conheço. É
boa pessoa. Nunca deixa de ir à missa e se confessa uma
por mês.
— É assim agora — concordou Jesus Maria. —
Velho Ravanno ficou furioso. Correu até a casa de Gracie!
gritou: "Veja como assassinou meu filho com suas loucut
Ele tentou se matar por sua causa, galinha suja".
"Gracie ficou amedrontada, mas também envaidecid porque não são muitas as mulheres capazes de fazer um mem ir tão longe. Foi visitar Petey, que estava de cama, i o pescoço torto. Pouco tempo depois, casaram-se.
"Tudo aconteceu também como Petey pensou que acontecer. Quando a Igreja disse a Gracie para ser uma esposa, ela se tornou uma boa esposa. Nunca mais riu os homens. E nunca mais correu, para ser perseguida eles. Petey continuou limpando lulas, e logo depois Chin Kí deixou-o esvaziar as caixas de lulas. E não levou muito te po para ele ser o administrador do depósito das lulas. Cofl vêem", disse Jesus Maria, "é uma boa história. Poderia contada por um padre, se acabasse aí."
— Ah, sim — disse Pilon, grave. — Há ensinamento
nessa história.
Os amigos sacudiram a cabeça, com ar apreciativo, gostavam de histórias que tivessem significado.
— Conheci uma moça assim no Texas — disse Dar
— Só que ela não mudou. Era chamada de esposa do se
do pelotão. "Sra. Segundo Pelotão."
Pablo ergueu o braço.
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  A história ainda não acabou — disse. — Deixe Je¬
sus Maria contar o resto.
  Sim, há mais. E não acaba bem. O velho tinha mais
de sessenta anos. E Petey e Gracie foram morar em outra casa. O Velho Ravanno ficou só, pois sempre havia morado com Petey. Não sabia o que fazer para passar o tempo. Fica¬va sentado e triste, quando um dia tornou a ver Tonia. Tonia tinha quinze anos, e era ainda mais bonita que Gracie. Me¬tade dos soldados do Presidio acompanharam Tonia como cachorrinhos.
"Agora, o que havia acontecido com Petey estava acon-tecendo com o velho. Seu desejo deixou-o doente. Não podia comer nem dormir. Suas faces ficaram chupadas e seus olhos pareciam os de um fumante de maconha. Levava doces para Tonia, que os arrancava de suas mãos e ria dele. O velho di¬zia: 'Venha cá, queridinha, sou seu amigo'. Ela tornava a rir. "Então o velho contou a Petey. Este também riu. 'Seu velho maluco', disse Petey. 'Você já teve muitas mulheres na vida. Não fique correndo atrás de crianças.' Mas não adian¬tou. O desejo tornou o Velho Ravanno ainda mais doente. Os Ravannos eram fogosos. Ele se escondia nas moitas para vê-la passar. Sentia o coração estourar no peito.
"O velho precisava de dinheiro para comprar presentes e por isso conseguiu um emprego no Posto de Serviço Stan¬dard. Passava o ancinho no cascalho e regava as flores do posto. Punha água nos radiadores e limpava os pára-brisas. Gastava tudo o que ganhava comprando presentes para To¬ma: doces, fitas e roupas. Pagou para que lhe tirassem uma fotografia colorida.
"Ela só fazia rir mais, e o velho estava quase maluco, tntão pensou: 'Se o casamento religioso tornou Gracie uma boa mulher, Tonia também se transformará numa boa mu-lher . Pediu-lhe que se casasse com ele. Então ela riu ainda mais. Levantou a saia só para aborrecê-lo. Ah, aquela Tonia era um demónio."
Ele era um bobo — disse Pilon, complacente. — hos não devem andar correndo atrás de crianças. Devem h      sentados ao sol.
Jesus Maria continuou, irritado:
141
 
— Os Ravannos eram diferentes — disse —, tnw
ardentes.
— Ora, não era uma coisa decente — disse PilonJ
Era uma vergonha para Petey.
Pablo virou-se para ele.
— Deixe Jesus Maria continuar. A história é dele,
lon, e não sua. Outro dia nós o ouviremos.
Jesus Maria olhou, agradecido, para Pablo.
— Como eu estava dizendo, o velho não podia agiiJj
tar mais. Mas não era homem de inventar nada. Não
como Pilon. Não conseguia pensar em nada novo. O Vel
Ravanno pensava assim: 'Gracie se casou com Petey por<
ele se enforcou. Vou me enforcar também, e talvez Tc
queira se casar comigo'. E depois pensou: 'Se alguém não
encontrar logo, morrerei. Alguém tem que me achar'.
"É preciso que saibam", continuou Jesus Maria, "c naquele posto de gasolina havia um depósito de ferramer De manhã cedo, o velho chegava, abria o depósito, limr, o saibro, regava as plantas, tudo antes de o posto abrir. 1
outro empregado chegava às oito horas. Assim, uma mac*' o velho entrou no depósito e amarrou uma corda. Dep esperou até as oito. Viu o homem chegar. Passou a corda pescoço e atirou-se da bancada. E, exatamente quando estai fazendo isso, a porta fechou-se."
Um sorriso enorme iluminou o rosto dos amigos. vezes, pensaram, a vida era engraçadíssima.
— Sua ausência não foi notada imediatamente —
tinuou Jesus Maria. — Pensaram: "Provavelmente, o vc
está bêbado". Só uma hora depois foi que abriram a
do depósito de ferramentas.
Olhou em volta.
O sorriso ainda permanecia no rosto dos amigos, não era o mesmo.
— Como vocês vêem — disse Jesus Maria —, foi
graçado. Mas também perturbador.
— O que foi que Tonia disse? — perguntou Pilon.
Aprendeu uma lição e mudou de comportamento?
— Não. Nada disso. Petey contou-lhe, e ela riu.
também riu. Mas estava envergonhado. Tonia disse: "
142
 
bobo que ele era", e Tonia olhou para Petey daquele seu
jeito.
"Então Petey disse: 'É bom ter uma irmãzinha como
você. Uma noite destas quero passear no mato com você'. Então Tonia tornou a rir e deu uma corridinha, dizendo: 'Você acha que sou tão bonita quanto Gracie?' Aí Petey seguiu-a para dentro de casa." Pilon censurou:
— Não é uma boa história. Traz muitos significados e
lições. Algumas das lições são contraditórias. Não é uma his¬
tória para se guardar na memória. Não prova nada.
— Eu gosto dela — disse Pablo. — Gosto porque não
tem nenhum significado visível e no entanto parece signifi¬
car alguma coisa, não sei explicar.
Já passava do meio-dia, e o ar estava quente.
— Só estou pensando no que o Pirata trará para a
gente comer — disse Danny.
— Há um cardume de cavalas na baía — comentou
Pablo.
Os olhos de Pilon brilharam.
— Acabei de imaginar um plano — disse ele. — Quan¬
do eu era garoto, nós morávamos na beira da estrada de
ferro. Diariamente, quando o trem passava, meus irmãos e
eu jogávamos pedras na máquina, e o foguista atirava carvão
em nós. Às vezes conseguíamos um enorme cesto de carvão,
que levávamos para nossa mãe. Então eu estava pensando
que talvez pudéssemos apanhar pedras no cais. Quando os
botes se aproximarem, gritaremos uns palavrões e atiraremos
as pedras. Os pescadores podem atirar o que de volta? Po¬
dem atirar remos ou redes? Não. Só podem atirar cavalas.
Danny levantou-se, entusiasmado.
— Isso é que é plano! — gritou. — O velho Pilon é
mesmo nosso amigo! Que faríamos sem nosso Pilon? Ve¬
nham, sei onde há um grande monte de pedras.
— Gosto mais de cavala que de qualquer outro peixe
— disse Pablo.
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Como Danny meditou e ficou maluco. Como o Diabo, na figura de Torrelli, assaltou a casa de Danny
Há uma característica imutável em Monterey. Lite mente, todos os dias de manhã, o sol bate nas janelas lado oeste das ruas. E, de tarde, no lado leste das ruas. riamente, o ônibus vermelho sacoleja para lá e para cá ent] Monterey e Pacific Grove. Diariamente, as fábricas de serva disseminam no ar o fedor de peixe sendo prepar Todas as tardes, o vento sopra da baía e balança os pir ros nas colinas. Os pescadores das pedras sentam-se nos chedos segurando as varas, e seus rostos são esculpidos paciência e pelo ceticismo.
Em Tortilla Fiat, acima de Monterey, os hábitos ta bém são imutáveis. Pois há apenas um certo número aventuras que Cornelia Ruiz consegue manter com sua pi cissão de namorados, lentamente renovável. Ela era cor cida por recomeçar com um homem que há muito te havia rejeitado.
Na casa de Danny, as mudanças eram cada vez me res. Os amigos tinham mergulhado numa rotina que ser monótona para qualquer um, menos para um pais acordar de manhã, sentar-se ao sol e especular sobre o quej Pirata traria. O Pirata continuava cortando lenha resii para vender nas ruas de Monterey, mas agora comprava mida com o dinheiro ganho diariamente. Vez por outra, amigos conseguiam vinho, e então havia cantoria e brij
O tempo é mais complexo próximo ao mar do que qualquer outro lugar, pois, além da trajetória do sol e sucessão das estações, as ondas marcam a passagem do t
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nas pedras, e a maré sobe e desce como uma grande
clepsidra.
Danny começou a sentir a batida do tempo. Olhou para os amigos e percebeu que, para eles, todos os dias eram iguais. Quando acordava de noite e passava por cima dos companheiros adormecidos, ficava furioso por eles estarem ali. Pouco a pouco, sentado na varanda da frente, ao sol, Danny começou a sonhar com o tempo em que era livre. Dor¬mia na floresta, durante o verão, e no feno tépido das co¬cheiras quando o inverno chegava. O peso da propriedade não o oprimia. Lembrou que o nome Danny era sinónimo de violência. Ah, que brigas! As corridas pelos bosques, com uma galinha roubada debaixo do braço! Os esconderijos na ravina, quando um marido ultrajado declarava guerra! Dis¬túrbios e violência, bendita violência! Quando Danny pen¬sava nos bons tempos perdidos, podia sentir novamente como era saborosa a comida roubada, e ansiava pela volta daquele tempo. Abandonara-o desde que a herança o erguera socialmente, e não brigava com muita frequência. Às vezes se embebedava, mas não muito perigosamente. O peso da casa continuava sobre seus ombros. A responsabilidade pelos amigos estava sempre presente.
Danny começou a se lamentar na varanda da frente, o que fez os amigos pensarem que estava doente.
— Um chá de hortelã-pimenta vai fazer bem a ele — sugeriu Pilon. — Se você voltar para a cama, Danny, poremos pedras quentes em seus pés.
Danny não queria ser mimado. Queria sua liberdade. Meditou durante um mês, olhando para o chão, espiando, raivoso, os amigos onipresentes, tirando a pontapés os cães amistosos do seu caminho.
No fim desistiu dos seus anseios. Uma noite fugiu. Me¬teu-se pelo pinheiral e desapareceu.
Quando os amigos acordaram, pela manhã, e notaram seu desaparecimento, Pilon disse:
Deve ser uma mulher. Ele está apaixonado. Não passaram disso, pois todo homem tem direito ao or. Os amigos continuaram vivendo da mesma maneira. as> quando se passou uma semana sem sinal de Danny,
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começaram  a  se  preocupar.  Foram  juntos  proauí-1*
floresta. t
— O amor é uma beleza — disse Pilon. — Não
mos culpar nenhum homem por ir atrás de uma mulherj
uma semana é uma semana. Deve ser uma moça
dente, para manter Danny fora por uma semana.
Pablo disse:
— O amor é como o vinho. Muito, tanto de um
de outro, faz um homem ficar doente. Talvez Danny
doente. Talvez essa moça seja muito fogosa.
Jesus Maria também estava preocupado.
— Não é coisa do Danny que conhecemos, ficar
tempo desaparecido. Deve ter acontecido alguma coisa
gradável.
O Pirata levou seus cães para a floresta. Os disseram para os animais:
— Achem Danny. Ele pode estar doente. Talvez i
morto em algum lugar, esse bom Danny, que deixa
dormirem em sua casa.
O Pirata murmurou para eles:
— Ah, cães maus e ingratos, achem nosso amigoí|
Mas os cães abanaram alegremente os rabos, viram f
coelho e saíram latindo atrás dele.
Os paisanos percorreram o bosque o dia inteiro, tando o nome de Danny, olhando lugares que eles me teriam escolhido para dormir, as excelentes depressões as raízes das árvores, os espessos leitos de agulhas cer de moitas. Sabiam onde um homem dormiria, mas contraram sinal de Danny.
— Talvez tenha ficado maluco — sugeriu Pilon.l
Alguma preocupação secreta deve ter virado seu juízo. |
De noite voltaram para a casa de Danny, abrir porta e entraram. Imediatamente ficaram ativos. Um Ia andara agindo. O cobertor de Danny havia sumido. A da toda fora roubada. Faltavam duas panelas.
Pilon virou-se imediatamente para Big Joe Por mas sacudiu logo a cabeça.
— Não, você estava conosco. Não foi você.
— Foi Danny — falou Pablo, agitado. — Está
maluco. Está percorrendo o bosque como um animal.
 
A preocupação e a vigilância instalaram-se na casa de
Danny.
  Temos que acha-lo — diziam os amigos, uns para
os outros. — Vai acontecer alguma desgraça ao nosso amigo, m sua loucura. Precisamos procurá-lo no mundo inteiro até
achá-lo. ii-
Acabaram com a preguiça. Procuraram-no todos os dias
e começaram a ouvir boatos curiosos.
  Sim, Danny esteve aqui ontem de noite. Ah, aquele
bêbado! Ah, aquele ladrão! Derrubou o velho com uma estaca e roubou uma garrafa de bagaceira. Que espécie de amigos são esses que deixam um deles fazer coisas assim?
  Sim, vimos Danny. Seus olhos estavam fechados e
ele cantava: "Venham para o bosque e dançaremos, moci-nhas", mas não quisemos ir. Tivemos medo. Danny não parecia muito pacífico.
No cais, encontraram mais dados sobre o amigo.
— Ele esteve aqui — disse um pescador. — Queria
brigar com todo mundo. Benito quebrou um remo na cabeça
de Danny. Então ele quebrou várias janelas, e um policial
levou-o para a cadeia.
Quentes nas pegadas do amigo temperamental, foram adiante.
— McNear trouxe-o para cá ontem de noite — disse
o sargento. — Ele escapou de alguma forma antes do ama¬
nhecer. Quando o agarrarmos, ele vai pegar seis meses.
Os amigos ficaram cansados da procura. Voltaram para casa e, para seu horror, viram que o novo saco de batatas que Pilon tinha achado, exatamente naquela manhã, havia desaparecido.
— Isso agora é demais! — gritou Pilon. — Danny está
maluco e em perigo. Vai lhe acontecer alguma coisa, se não
0 salvarmos.
—■ Vamos procurá-lo — falou Jesus Maria.
— Olharemos atrás de cada árvore e dentro de cada
abrigo — garantiu Pablo.
—- Debaixo dos barcos, na praia — sugeriu Big Joe.
— Os cachorros ajudarão — disse o Pirata.
Pilon balançou a cabeça.
— Assim não adianta. Cada vez que chegamos a um
 
 
 
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lugar, Danny já foi embora. Precisamos ficar em algum l| onde ele possa aparecer. Temos que agir como homens ligentes e não como bobos.
— Mas onde irá ele?
Tiveram a mesma ideia.
— Torrelli! Cedo ou tarde, Danny irá lá. Precisa
ir até a casa de Torrelli para pegá-lo, para controlá-lof
loucura que se abateu sobre ele.
— Sim — concordaram. — Precisamos salvar Da
Foram juntos visitar Torrelli, e este não os deá
entrar.
— Estão perguntandç se eu vi Danny? — disse,
abrir a porta. — Danny trouxe três cobertores e duas
Ias, e dei-lhe em troca um garrafão de vinho. Sabem o
aquele diabo fez? Insultou minha mulher e me xingou, i
teu em meu filho e deu pontapés no cachorro! Rour.
rede da varanda. — Torrelli ofegava de emoção. — Pers
Danny para pegar minha rede de volta e, quando voltei, j
estava com minha mulher. Sedutor, ladrão, bêbado! Esa|
o seu amigo Danny! De minha parte, farei com que vá
a prisão.
Os olhos dos amigos brilhavam.
— Ah, seu porco italiano! — disse Pilon, calmame
— Você está falando do nosso amigo. Ele não está bems|
Torrelli aferrolhou a porta. Ouviram a lingúeta zar, mas Pilon continuou a falar através da porta.
— Ah, judeus! — disse ele. — Se você fosse um
mais caridoso com seu vizinho, essas coisas não acontecerii
Enlameou nosso amigo com esse sapo frio que é a sua
gua. Procure tratá-lo gentilmente, pois são muitos os
amigos. Arrancaremos seu estômago, se você não for an
com ele.
Torrelli não fez nenhum barulho, dentro da casa arei lhada, mas tremeu de raiva e medo com a ferocidade do te Ficou aliviado quando ouviu os passos dos amigos volt para a estrada.
Naquela noite, depois que  foram dormir, os ouviram passos furtivos na cozinha.  Perceberam que Danny, mas ele fugiu antes de ser apanhado. Vagaram escuridão, gritando desconsoladamente:
148
 
— Venha, Danny, doce amiguinho, precisamos de você
- ...
Não houve resposta, mas jogaram uma pedra que atin-eiu Big Joe no estômago, fazendo-o cair no chão, dobrado em dois. Ah, como os amigos estavam angustiados, e como seus corações estavam pesados!
— Danny está caminhando para a morte — comenta¬
ram com tristeza. — Nosso amiguinho está em dificuldade
e não podemos auxiliá-lo.
Agora ficava difícil manter a casa, pois Danny roubara quase tudo. Uma cadeira foi parar num contrabandista de bebidas. Danny apanhou toda a comida, e uma vez, enquanto o estavam procurando na floresta, ele roubou a estufa. Mas, como era pesada, abandonou-a na ravina. Não havia mais dinheiro, porque Danny tinha roubado a carrocinha do Pira¬ta e a trocara, com Joe Ortiz, por uma garrafa de uísque. Agora a paz havia abandonado a casa de Danny, sendo subs¬tituída pela preocupação e pela tristeza.
— Para onde foi nossa felicidade? — lamentou-se Pa-blo. — Pecamos em algum momento. Isso é o castigo. Deve¬mos nos confessar.
Não conversaram mais sobre o desfile marital de Cor-nelia Ruiz. Perdida a moralidade, perdida a humanidade. Na verdade, a boa vida jazia em ruínas. E, com a desolação, che¬garam os boatos.
— Danny cometeu um estupro parcial na noite passada.
— Danny ordenhou a cabra da sra. Palochico.
— Danny brigou com.uns soldados na noite retrasada.
Tristes como estavam  por essa  queda da  moral de
Danny, os amigos não ficaram nem um pouquinho ciumen¬tos da boa vida que ele estava levando.
— Se ele não está maluco, vai ser castigado — disse
1 ílon. — Não há dúvida. Danny está pecando de uma forma
que, pecado por pecado, bate qualquer recorde que eu saiba.
Ah, as penitências, quando ele se tornar direito outra vez!
^rn poucas semanas, Danny acumulou mais pecados que o
velho Ruiz na vida inteira.
Nessa noite, Danny, sem ser estorvado pelos cães afá-
Ve's, deslizou para dentro da casa tão silenciosamente quan-
0 a sombra movediça de um ramo sob a luz de um lampião
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e roubou atrevidamente os sapatos de Pilon. Este, pela ma-:! nhã, não levou muito tempo para perceber o que havitfl acontecido. Caminhou a passos firmes para a varanda, sen-J tou-se ao sol e olhou para os pés.
— Agora ele está indo longe demais — disse Pilon.^
— Tem pregado peças, e temos sido pacientes. Mas agora 1
está se tornando criminoso. Não é o Danny que conhecemos.
É outro homem, um homem mau. Precisamos capturar esse | homem mau.
Pablo olhou, complacente, para os próprios sapatos.
— Talvez tenha sido também uma peça — sugeriu.
— Não — respondeu Pilon, severamente. — É crime.
Não eram sapatos de boa qualidade, mas roubá-los é crime
contra a amizade. E essa é a pior espécie de crime. Se
Danny rouba os sapatos dos amigos, não se deterá diante
de crime algum.
Os amigos balançaram a cabeça, concordando.
— Sim, precisamos pegá-lo — disse Jesus Maria das
humanidades. — Sabemos que ele está doente. Vamos amar¬
rá-lo na cama e curá-lo de sua enfermidade. Precisamos ten¬
tar varrer a escuridão do seu cérebro.
— Mas agora — disse Pablo —, antes de pegá-lo, de¬
vemos nos lembrar de guardar os sapatos debaixo do traves¬
seiro, quando formos dormir.
A casa ficou sob estado de sítio.  Isso tudo deixou Danny furioso, pois ele estava se divertindo.
Raramente o rosto de Torrelli revelava outras emoções além de suspeita e raiva. Na sua função de vendedor clan¬destino de bebidas e em seus negócios com os habitantes de Tortilla Fiat, aquelas duas emoções frequentemente surgiam no fundo dele e afloravam em seu rosto. Além disso, Tor¬relli nunca visitava ninguém. Sempre ficava em casa; os ou¬tros é que o visitavam. Consequentemente, quando Torrelli, naquela manhã, caminhou pela estrada na direção da casa de Danny, exibindo no rosto um.sorriso feroz, de prazer e pre¬venção, as crianças correram para seus quintais e ficaram espiando pela cerca. Os cães enfiaram o rabo entre as pernas e fugiram, olhando para trás, temerosos. Os homens que o
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encontravam afastavam-se do seu caminho e cerravam os pu¬nhos como que para repelir um bandido.
Naquela manhã a neblina cobria o céu. O sol, depois de travar várias escaramuças infrutíferas, desistiu e reco¬lheu-se atrás das camadas cinzentas. Dos pinheiros pingavam gotas de orvalho. E no rosto das poucas pessoas por ali, o dia se refletia com ar sombrio e tez pálida. Não havia cum¬primentos calorosos. Não havia nada daquele idealismo hu¬mano que suavemente deseja que o dia seja melhor que os
outros dias.
O velho Roca, vendo Torrelli sorrindo, entrou em casa
e disse para a mulher:
— Aquele acaba de matar e comer os filhos. Você
vai ver!
Torrelli estava feliz porque levava no bolso, dobrado, um documento precioso. Seus dedos alisavam o casaco sem parar e faziam pressão até que um ligeiro estalar lhe garantia que o papel ainda estava lá. Enquanto andava pela manhã cinzenta, murmurava para si mesmo:
— Ninho de cobras. Vou varrer aqueles nojentos ami¬gos de Danny. Nunca mais trocarei vinho por mercadorias, e quero as mercadorias roubadas de volta. Cada um daqueles homens, por si, não é tão mau, mas juntos! Madonna, eu os atirarei no meio da rua! Os sapos, os piolhos, as moscas! Quando voltarem a dormir no mato, não se mostrarão tão
orgulhosos.
"Vou fazê-los saber que Torrelli venceu. Pensaram que podiam me roubar, tirar móveis da minha casa e a virtude da minha mulher! Verão que Torrelli, o grande sofredor, pode reagir. Ah, sim, eles verão!"
Assim ele resmungava, enquanto andava e seus dedos faziam o papel estalar no bolso. Das árvores pingavam gotas tristes na areia. As gaivotas faziam círculos no espaço, pian-do tragicamente. Torrelli andava como o Destino cinzento para a casa de Danny.
A casa de Danny estava escura. Os amigos não podiam se sentar no alpendre, ao sol, porque não havia sol. Ninguém pode achar melhor motivo para a falta de luz. Tinham tra¬zido de volta da ravina a estufa roubada e a haviam recolo¬cado no lugar. Agora se aglomeravam em torno dela, e
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Johnny Pompom, que tinha vindo fazer uma visita, conte as novidades.
— Tito Ralph — começou — não é mais carcereiro
xadrez da cidade. Não, hoje de manhã o juiz o mandoi;
embora.
— Gosto de Tito Ralph — disse Pilon. — Quando a|
gente vai para a cadeia, Tito Ralph nos dá um pouco de vi-1
nho. E sabe mais histórias que cem homens juntos. Johnnyf
Pompom, por que ele perdeu o emprego?
— Foi o que eu vim contar. Tito Ralph, como sabem,
frequentemente ia para a cadeia e era um bom prisioneiro.
Sabia como dirigir uma prisão. Depois de certo tempo, sabia
mais sobre a cadeia que ninguém. Então, Daddy Marks, o
velho carcereiro, morreu, e Tito Ralph ficou no lugar dele.
Nunca tinha havido tão bom carcereiro como Tito Ralph.
Ele fazia tudo direito. Mas tinha um pequeno defeito. Quan¬
do bebia vinho, esquecia que era carcereiro. Fugia, e preci¬
savam procurá-lo.
Os amigos balançaram juntos a cabeça.
— Eu sei — disse Pablo. — E também ouvi dizer que
era difícil pegá-lo. Ele se escondia.
— Isso  mesmo — continuou  Johnny  Pompom —,
mas, a não ser por aquilo, foi o melhor carcereiro que eles
tiveram. Bem, é sobre isso que vim falar. Na noite passada,
Danny tinha vinho suficiente para dez e bebeu-o. Então fez
desenhos nas janelas. Estava com muito dinheiro. Comprou
ovos para atirar num chinês. E um desses ovos, ao invés do
chinês, acertou num policial. Assim,  meteram Danny na
cadeia.
"Mas ele estava com muito dinheiro. Mandou Tito Ralph comprar vinho e mais vinho. Havia quatro homens na cela. Todos eles beberam o vinho. E finalmente o defeito de Tito Ralph se manifestou. Portanto, ele fugiu, e todos os ou¬tros com ele. Pegaram Tito Ralph hoje de manhã e lhe disse¬ram que nunca mais poderia ser carcereiro. Tito Ralph ficou tão triste que quebrou uma janela e foi preso outra vez."
— E Danny? — gritou Pilon. — Que aconteceu com
Danny?
— Ah, Danny — falou Johnny Pompom — também
fugiu. Não conseguiram pegá-lo.
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Os amigos suspiraram, desanimados. — Danny está ficando mau — disse Pilon, sério. — Não vai acabar bem. Só fico pensando onde ele arranja o
dinheiro.
Foi nesse instante que o vitorioso Torrelli abriu o por¬tão e irrompeu pela passagem. Os cães do Pirata levanta¬ram-se, nervosos, do seu canto e correram para a porta, ros¬nando. Os amigos se entreolharam e se interrogaram em silêncio. Big Joe pegou o cabo da picareta que tinha sido usada nele ultimamente. O passo pesado e confiante de Tor¬relli soou na varanda. A porta abriu-se, e lá estava Torrelli, sorrindo. Não gritou com eles. Não, aproximou-se tão deli¬cadamente como um gato doméstico. Bateu-lhes nos ombros amigavelmente, como um gato doméstico brinca com uma
barata.
— Ah, meus amigos! — disse gentilmente, diante do
olhar assustado deles. — Meus queridos amigos e clientes.
Meu coração fica dilacerado quando sou portador de más
notícias para aqueles de quem gosto.
Pilon ergueu-se de um pulo.
— É Danny. Está doente, está ferido. Diga-nos.
Torrelli sacudiu a cabeça delicadamente.
— Não, meus pequenos, não é Danny. Meu coração
sangra, mas sou obrigado a lhes dizer que não podem conti¬
nuar morando aqui.
Seus olhos exultaram diante do espanto que suas pala-vras provocaram. Ficaram de queixo caído e olhos turvos de
assombro.
— Isso é loucura! — gritou Pablo. — Por que não
podemos morar mais aqui?
A mão de Torrelli entrou delicadamente no bolso da camisa e seus dedos tiraram o precioso documento, que ele
balançou no ar.
— Imaginem meu sofrimento — continuou Torrelli.
— Danny não possui mais esta casa.
— O quê!? — gritaram. — Que está dizendo? Por
que Danny não é mais dono desta casa? Fale, seu porco
italiano.
Torrelli deu uma risadinha, uma coisa tão horrível que
os paisanos se afastaram dele.
153
 
— Porque — disse — a casa me pertence. Danny me
procurou e me vendeu a casa ontem de noite por vinte e
cinco dólares.
Malignamente, viu os pensamentos se amontoarem no rosto deles.
"É mentira", diziam os rostos. "Danny não faria isso." E depois: "Mas Danny tem feito muitas coisas erradas ulti-mamente. Roubou-nos. Talvez tenha vendido a casa sem nos consultar".
— É mentira — berrou Pilon. — É uma mentira suja
de carcamano.
Torrelli sorriu e agitou o papel.
— A prova está aqui — disse ele. — Aqui está o
documento assinado por Danny. É o que nós, comerciantes,
chamamos de nota de venda.
Pablo atirou-se furiosamente contra ele.
— Você o embebedou. Ele não sabia o que estava
fazendo.
Torrelli desdobrou um pouquinho o papel.
— A lei não se interessa por isso — disse ele. — Por¬
tanto, meus amiguinhos queridos, é meu horrível dever dizer-
lhes que precisam deixar minha casa. Tenho planos para ela.
— O sorriso desapareceu do seu rosto, sendo substituído
pela crueldade. — Se não saírem até o meio-dia, mandarei a
polícia aqui.
Pilon caminhou suavemente até ele. Ah, tenha cuidado, Torrelli, quando Pilon caminhar sorrindo até você! Fuja, esconda-se em um quarto blindado e solde a fechadura.
— Não entendo dessas coisas — disse Pilon, suave-
mente. — Claro, fico triste porque Danny fez uma coisa
dessas.
Torrelli tornou a rir.
— Nunca tive uma casa para vender — continuou Pi¬
lon. — Danny assinou esse papel, não é?
— É — Torrelli o imitou. — Danny assinou este
papel. É.
Pilon tropeçou para a frente, desajeitado.
— E é isso o que prova que você possui a casa?
— É, sim, bobão. Este é o papel que prova isso.
Pilon parecia perturbado.
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— Acho que você devia levá-lo e registrá-lo.
Torrelli riu, desdenhoso. Ah, cuidado, Torrelli! Não
está vendo que essas cobras estão se movendo silenciosa¬mente? Jesus Maria está na frente da porta. Pablo, na en¬trada para a cozinha. Veja os nós dos dedos de Big Joe, lívidos, no cabo da picareta.
— Vocês não entendem nada de negócios, seus mendi¬
gos vagabundos — disse Torrelli. — Quando eu sair daqui,
levarei este documento para baixo e. . .
Aconteceu tão depressa que as últimas palavras foram vomitadas explosivamente. Seus pés voaram no espaço. Ba¬teu no chão com um enorme estrondo, enquanto suas mãos rechonchudas tentavam agarrar o ar convulsivamente.
Ouviu a portinhola da estufa se fechar.
— Ladrões! — berrou. O sangue tingiu seu rosto e
seu pescoço. — Ladrões, ah, ratos e cachorros, dêem-me o
papel!
Pilon, parado diante dele, olhava-o espantado.
— Papel? — perguntou educadamente. — Que papel
é esse do qual fala com tanta paixão?
— Minha nota de venda, minha propriedade. Ah, a
polícia vai saber disto!
— Não me lembro de papel nenhum — disse Pilon.
— Pablo, você sabe desse papel de que ele fala?
— Papel? — perguntou Pablo. — Está falando de
papel de embrulho ou papel de cigarros?
Pilon continuou com a manobra.
— Johnny Pompom?
— Esse cara talvez esteja sonhando — disse Johnny
Pompom.
— Jesus Maria? Sabe desse papel?
— Acho que ele está bêbado — disse Jesus Maria com
voz escandalizada. — A manhã ainda está muito no começo
para alguém se embebedar.
— Joe Portagee?
 
— Eu não estava aqui — afirmou Joe. — Acabei de
chegar.
— Pirata?
— Não tenho nenhum papel. — E, virando-se para os
cães: — Tenho?
155
 
Pilon voltou-se para o apoplético Torrelli:
— Você se enganou, meu amigo. É possível que eu
tenha me enganado sobre esse papel, mas pode ver por si
mesmo que ninguém viu o papel. Vai me culpar por eu
pensar que talvez ele nunca tenha existido? Talvez seja me¬
lhor você se deitar e descansar um pouco.
Torrelli estava atordoado demais para continuar gritan¬do. Virou-se, saiu apoiando-se na porta e apressou-se no caminho de volta, mergulhado na atrocidade da sua derrota.
E então eles olharam para o céu e ficaram contentes. Pois o sol tornara a lutar e desta vez havia aberto um cami¬nho na neblina. Os amigos não voltaram para casa. Senta¬ram-se, satisfeitos, na varanda da frente.
— Vinte e cinco dólares — disse Pilon. — Que terá
ele feito com esse dinheiro?
O sol, uma vez ganha a primeira escaramuça, expulsou vigorosamente a neblina do céu. As tábuas da varanda es-quentaram, e as moscas zumbiam na luz. A exaustão se apos-sara dos amigos.
— É um assunto encerrado — disse Pablo, cansado.
— Danny não devia fazer essas coisas.
— Devemos obter todo o nosso vinho com Torrelli,
para beneficiá-lo — disse Jesus Maria.
Um pássaro pousou na roseira e brincou com a cauda. As galinhas da sra. Morales cacarejaram um hino eventual ao sol. Os cães, no jardim, coçavam-se pensativamente e mordiam os próprios rabos.
Ao ouvirem passos na estrada, os amigos ergueram a cabeça e depois ficaram de pé, com sorrisos de boasvindas. Danny e Tito Ralph estavam passando pelo portão, e cada um deles trazia duas bolsas cheias. Jesus Maria correu para dentro de casa e voltou com os copos. Os amigos repara¬ram que Danny estava meio cansado quando colocou os garrafões na varanda.
— Está muito quente para subir a colina — disse
Danny.
— Tito Ralph — gritou Johnny Pompom —, disse-
ram-me que você estava preso.
— Fugi outra vez — disse Tito Ralph, abatido. — Eu
ainda tinha as chaves.
 
Os copos foram enchidos. Todos deram um grande suspiro, um suspiro de alívio por estar tudo acabado. Pilon bebeu um grande gole.
— Danny — disse ele —, esse porco do Torrelli che¬
gou aqui hoje de manhã inventando coisas. Tinha um papel
que dizia ter sido assinado por você.
Danny ficou assombrado.
— Onde está o papel? — perguntou.
— Bem — respondeu Pilon —, sabíamos que era men¬
tira e por isso queimamos o papel. Você não o assinou,
não é?
— Não — disse Danny, e esvaziou o copo.
— Seria ótimo ter alguma coisa para comer — comen¬
tou Jesus Maria.
Danny sorriu suavemente.
— Eu tinha esquecido. Numa dessas bolsas há três gali¬
nhas e pão.
O alívio e a satisfação de Pilon foram tão grandes, que ele se levantou e fez um pequeno discurso.
— Onde há um amigo como o nosso amigo? — pero¬
rou. — Trouxe-nos para sua casa, a fim de livrar-nos do frio.
Partilha conosco sua boa comida e seu vinho. Viva o homem
bom, o amigo querido.
Danny ficou sem jeito. Olhou para o chão.
— Não foi nada — murmurou. — Não há mérito nisso.
Mas a alegria de Pilon era tão grande, que ele abarcava
o mundo e as coisas más existentes nele.
— Um dia, precisaremos fazer uma coisa boa por Tor¬
relli — disse.
 
 
 
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Da tristeza de Danny. Como, pelo sacrifício, os amigos de Danny deram uma festa. Como Danny foi interpretado
Quando Danny voltou para casa e para os amigos, após seu acesso de loucura, não sentia a consciência afetada, mas estava muito cansado. Os dedos duros da violenta experiên¬cia haviam arpoado sua alma. Começou a viver desatenta¬mente, levantando-se da cama só para se sentar na varanda, sob a roseira. Levantava-se da varanda apenas para comer. Levantava-se da mesa unicamente para ir para a cama. As conversas flutuavam ao redor dele, mas Danny não se impor-tava com elas. Cornelia Ruiz teve uma rápida e soberba sucessão de maridos sem que isso despertasse nenhuma emoção em Danny. Quando Big Joe se deitou na cama de Danny certa noite, este estava tão apático que Pilon e Pablo tiveram que dar uma surra por ele no sujeito. Quando Sammy Rasper, comemorando um ano-novo atrasado com uma espingarda e um garrafão de uísque, matou uma vaca e foi parar na cadeia, nem ao menos conseguiram arrastar Danny para uma discussão sobre a ética do acontecimento, embora as discussões explodissem em torno dele e sua opi¬nião fosse calorosamente exigida.
Passado algum tempo, os amigos começaram a se preo-cupar com Danny.
— Ele mudou — disse Pilon. — Está velho.
Jesus Maria opinou:
— Danny realizou em três semanas todas as boas coisas
de uma vida inteira. Está doente de tanto divertimento.
Foi em vão que os amigos tentaram tirá-lo da caverna da sua apatia. Pelas manhãs, na varanda, contavam-lhe as
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histórias mais engraçadas. Transmitiam-lhe as minúcias da vida amorosa de Tortilla Fiat de forma tão acurada, que teriam interesse numa aula de dissecação. Pilon passava o lugar pelo crivo para saber das novidades e levar para casa tudo o que pudesse interessar Danny. Mas havia velhice e cansaço nos olhos de Danny.
— Você não está bem — insistia Jesus Maria, em vão.
— Há algum amargo segredo em seu coração.
— Não — respondia Danny.
Repararam que ele deixava as moscas andarem sobre seus pés durante um tempo enorme, e, quando ele as afas¬tava, não havia destreza na batida. Gradativamente, a ani¬mação e o riso fácil abandonaram a casa de Danny, que afundou no poço escuro da sua mudez.
Ah, era triste vê-lo, aquele Danny defensor de causas perdidas e de outras espécies; aquele Danny que reagia ao olhar amoroso como um tigre despertado! Agora ele se sen¬tava na varanda da frente, ao sol, com os joelhos metidos nas calças bine jeans comprimidos contra o peito, envoltos pelos braços, com as mãos balançando, pendentes de pulsos finos, e a cabeça caída para a frente como que sob o peso de pensamentos graves e sombrios. Seus olhos não eram mais iluminados pelo desejo, nem havia neles aborrecimento, ale¬gria ou dor.
Pobre Danny, o que a vida lhe fez! Aí está você, sen¬tado como o primeiro homem antes que o mundo crescesse à sua volta. E como o último homem, depois de o mundo desmoronar. Mas olhe, Danny! Você não está só. Seus ami¬gos estão envolvidos nesse seu estado. Olham-no com o rabo dos olhos. Esperam, como cãezinhos ansiosos, o primei¬ro movimento do seu dono. Uma palavra alegre sua, Danny, um olhar jovial, e eles latirão e correrão atrás dos próprios rabos. Sua vida não pertence apenas a você, Danny, pois ela comanda outras vidas. Vê como os seus amigos sofrem? Brote para a vida, Danny, e seus amigos poderão viver no¬vamente!
Com efeito, foi isso o que Pilon disse, embora não com palavras tão bonitas. Pilon deu um copo de vinho a Danny.
— Vamos — disse. — Acabe com isso.
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Danny apanhou o copo e esvaziou-o. Depois, recos¬tou-se e procurou reencontrar seu nirvana emocional.
— Está sentindo alguma dor? — perguntou Pilon.
— Não — disse Danny.
Pilon encheu-lhe outro copo de vinho e ficou obser¬vando o seu rosto enquanto o vinho sumia. Os olhos per¬deram o embaçamento. Lá no fundo, o velho Danny voltou à vida um instante. Matou uma mosca com um tapa que faria justiça a um mestre.
Lentamente, um sorriso espalhou-se no rosto de Pilon. E mais tarde ele reuniu todos os amigos, Pablo, Jesus Maria, Big Joe, o Pirata, Johnny Pompom e Tito Ralph.
Pilon levou-os para a depressão que havia nos fundos da casa.
— Dei a Danny o que restava do vinho, e isso lhe fez
bem. O que Danny precisa é de muito vinho e talvez de
uma festa. Onde podemos arranjar vinho?
Seus cérebros esquadrinharam as possibilidades de Mon-terey como rateiros num celeiro, mas não havia ratos. Os amigos estavam sendo impulsionados pelo altruísmo mais puro que a maioria dos homens possa imaginar. Eles amavam Danny.
Finalmente, Jesus Maria disse:
— Chin Kee está embalando lulas.
Suas mentes examinaram cuidadosamente a coisa, deram voltas e a encararam, arrastaram-se furtivamente para trás e farejaram. Passaram-se vários momentos antes que sua imaginação chocada se acostumasse com a ideia. "Afinal de contas, por que não?", discutiam silenciosamente. "Um dia não fará mal. . . apenas um dia."
Seus rostos demonstraram o desenrolar da batalha e a maneira como estavam derrotando seu medo em benefício da saúde de Danny.
— Faremos isso — disse Pilon. — Amanhã iremos
todos a Monterey limpar lulas e de noite faremos uma festa
para Danny.
Quando Danny acordou, na manhã seguinte, a casa estava vazia. Saiu da cama e percorreu os aposentos silenciosos. Mas Danny não era homem de longas elucubrações. Desistiu daquilo como de um problema e, depois, do próprio
160
 
pensamento. Caminhou para a varanda e sentou-se despreo-cupadamente.
É um pressentimento, Danny? Você está temendo a sorte que está surgindo dentro do seu ser? Não restou ne¬nhum prazer? Não, Danny estava mergulhando em si mesmo como estivera durante uma semana.
Não foi só em Tortilla Fiat. O boato espalhou-se rapi-damente: "Os amigos de Danny estão limpando lulas para Chin Kee". Era uma coisa assombrosa, como a derrubada de um governo ou mesmo o desmoronamento do sistema solar. Falava-se nas ruas, gritava-se por cima das cercas para senhoras que estavam chegando justamente para dizer aqui¬lo: "Todos os amigos de Danny estão lá embaixo limpando lulas".
A manhã estava vibrante com as novidades. Devia ha¬ver uma razão, um segredo. As mães chamavam os filhos e os mandavam depressa para o pátio das lulas de Chin Kee. Jovens casadas esperavam ansiosas, atrás das cortinas, as notícias mais recentes. E elas chegavam:
— Pablo cortou a mão com uma faca de lula.
— Chin Kee expulsou os cães do Pirata a pontapés.
Confusão.
— Os cães voltaram.
— Pilon está repugnante.
Foram feitas pequenas apostas. Nada havia acontecido de tão excitante durante meses. Por uma manhã inteira, nin¬guém falou de Cornelia Ruiz. Só ao meio-dia as notícias ver¬dadeiras transpiraram, mas então chegaram de cambulhada:
— Vão fazer uma grande festa para Danny.
— Todos estão indo.
Do pátio das lulas, começaram a ser dadas as instruções. A sra. Morales espanou seu fonógrafo e escolheu os discos mais barulhentos. Uma fagulha surgiu, e Tortilla Fiat infla¬mou-se. Realmente, sete amigos dando uma festa para Danny! Era como dizer que Danny tinha apenas sete amigos! A sra. Soto foi ao galinheiro com um cutelo. A sra. Palochico des¬pejou um pacote de açúcar na sua panela maior para fazer dulces. Um grupo de moças entrou numa loja de Monterey e comprou todo o estoque de papel crepom colorido. Violões e acordeões ensaiavam aos guinchos por toda Fiat.
161
 
Notícias! Mais notícias do pátio das lulas. Continuavam trabalhando. Estavam firmes. Já possuíam pelo menos ca¬torze dólares. Isso significava pelo menos catorze garrafões de vinho.
Torrelli estava afundado em negócios. Cada um queria comprar um garrafão de vinho para levar à casa de Danny. O próprio Torrelli, envolvido pelo frenesi do movimento, disse para a mulher:
— Acho que vamos à casa de Danny. Levarei uns gar-rafões para os meus amigos.
À medida que a tarde passava, ondas de excitação caíam sobre Tortilla Fiat. Roupas não usadas uma vida inteira eram desembrulhadas e arejadas. Xales que haviam atraído traças durante duzentos anos pendiam dos corrimões das varandas, expelindo um cheiro de naftalina.
E Panny? Estava sentado como um homem meio derre-tido. Mexia-se apenas quando o sol mudava de lugar. Se percebeu que todos os habitantes de Tortilla Fiat passaram pelo seu portão naquela tarde, não deu sinal disso. Pobre Danny! Pelo menos duas dúzias de pares de olhos vigiavam seu portão da frente. Cerca das quatro horas, ele se levan¬tou, espreguiçou-se e saiu caminhando sem pressa na direção de Monterey.
Puxa, mal puderam esperar que ele estivesse fora de vista. Ah, as guirlandas de papel crepom verde, amarelo e vermelho! Ah, as velas raspadas e as raspas atiradas no chão! Ah, os garotos infernais que patinavam calmamente sobre a cera!
Apareceu a comida. Bacias de arroz, panelas de galinha cozida, bolinhos de dar água na boca! E o vinho chegou. Garrafões e mais garrafões. Martinez desencavou ura barri-lete de uísque de batata de um monte de adubo e levou-o para a casa de Danny.
Às cinco e meia os amigos começaram a subir a colina, cansados, sujos de sangue, mas vitoriosos. Era assim que a Velha Guarda deveria parecer quando voltou a Paris depois de Austerlitz. Viram a casa toda colorida. Riram, e seu can¬saço desapareceu. Ficaram tão felizes que seus olhos se en¬cheram de lágrimas.
Mama Chipo entrou no jardim seguida por seus dois
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filhos, que carregavam uma tina de molho. Paulito, um rico patife, acendeu fogo sob um enorme barril de feijão com pimenta. Ouviram-se gritos, cantoria, guinchos das mulheres e o tumulto generalizado das crianças agitadas.
Um carro cheio de policiais apreensivos subiu, vindo de Monterey.
— Ah, é só uma festa. Claro, vamos beber um copo de
vinho. Não vamos matar ninguém.
Onde estava Danny? Solitário como a fumaça numa clara noite fria, vagava por Monterey na noite. Foi até o correio, ao posto de gasolina, aos bilhares da Alvarado Street e ao molhe, onde a água escura jazia entre as pilas-tras. Que é isso, Danny? O que faz você se sentir assim? Danny não sabia. Sentia uma dor no coração, como o adeus a uma mulher querida. Havia nele uma tristeza vaga, como a desesperança do outono. Passou pelos restaurantes onde costumava meter o nariz com interesse, e não sentiu ne¬nhum apetite. Caminhou até o grande estabelecimento de Madame Zuca e não trocou nenhum gesto imoral com as moças nas janelas. Voltou para o molhe. Debruçou-se no corrimão e olhou para a água profunda. Você sabe, Danny, que o vinho
da sua vida está sendo derramado nos vidros de geléia dos deuses? Está vendo o desfilar dos seus dias na água oleosa, entre as pilastras? Danny continuava imóvel, olhando para baixo.
Ficaram preocupados com ele, em sua casa, quando co-meçou a escurecer. Os amigos abandonaram a festa e desce¬ram a colina correndo, na direção de Monterey. Perguntaram:
— Viram Danny?
— Vimos. Andou por aqui faz uma hora. Caminhava
devagar.
Pilon e Pablo procuravam juntos. Seguiram a pista do amigo pela rota que ele tomara e finalmente o viram, na extremidade do molhe escuro. Estava iluminado por um fraco lampião elétrico do cais. Correram ao seu encontro.
Na época, Pablo não mencionou o fato, mas depois, quando Danny era citado, sempre descrevia o que havia visto quando ele e Pilon caminharam pelo molhe ao encontro de Danny.
"Ele estava parado", dizia Pablo, sempre. "Eu mal po-
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dia vê-lo, debruçado no corrimão. Olhei-o e então vi uma outra coisa. A princípio, parecia uma nuvem negra pairando sobre a sua cabeça. Então vi que se tratava de um enorme pássaro negro, tão grande quanto um homem. Pairava no ar como um gavião sobre a toca de um coelho. Benzi-me e rezei duas ave-marias. O pássaro desapareceu quando che¬gamos perto de Danny."
Pilon nada vira. Além disso, Pilon não se recordava de Pablo benzendo-se e rezando ave-marias. Mas nunca inter-rompia a história, pois era um assunto de Pablo.
Caminharam depressa ao encontro de Danny. As tábuas do molhe ressoavam cavamente sob seus pés. Danny não se virou. Pegaram-no pelos braços e fizeram-no dar meia-volta.
— Danny! Que aconteceu?
— Nada. Estou bem.
— Você está doente, Danny?
— Não.
— Então por que está tão triste?
— Não sei — respondeu Danny. — Apenas estou me
sentindo assim. Não tenho vontade de fazer nada.
— Talvez um médico possa ajudá-lo, Danny.
— Já disse que não estou doente.
— Então olhe — gritou Pilon. — Está havendo uma
festa em sua homenagem, na sua casa. Tortilla Fiat inteira
está lá, com música, vinho e galinha! Há talvez vinte ou
trinta garrafões de vinho. E papel crepom colorido pendu¬
rado por todos os lados. Não quer vir?
Danny respirou profundamente. Por um instante, vi-rou-se para a profunda água escura. Talvez estivesse sussur¬rando uma promessa ou um desafio aos deuses.
Tornou a voltar-se para os amigos. Seus olhos estavam febris.
— Raios, vocês têm razão. Quero ir. Depressa. Estou
com sede. Há garotas lá?
— Montes delas. Todas elas.
— Então vamos. Depressa.
Saiu na frente, correndo colina acima. Muito antes de chegarem, já podiam ouvir a suavidade da música por entre os pinheiros, e as notas agudas das vozes alegres e excitadas. Os três esbaforidos chegaram ao fim da corrida. Danny er-
 
gueu a cabeça e uivou como um coió te. Copos de vinho fo¬ram estendidos para ele. Danny tomou um gole de cada um.
Foi uma festa e tanto! Mais tarde, sempre que alguém falava com entusiasmo de uma festa, era certo outro dizer, reverente: "Você foi àquela festa na casa de Danny?" E, a menos que o primeiro interlocutor fosse um recém-chegado, tinha estado lá. Foi uma festa e tanto! Ninguém tentou fazer outra melhor. Tal coisa era impensável. Ao completar dois dias, a festa de Danny excluía a possibilidade de uma com¬paração com qualquer outra jamais havida. Que homem saiu daquela noite sem algumas escoriações e cortes glorio¬sos? Nunca houvera tantas brigas. Não brigas entre dois homens, mas batalhas campais abrangendo montes de ho¬mens, cada um por si.
Ah, o riso das mulheres! Agudo e frágil como vidro repuxado. Ah, os refinados guinchos de protesto da ra-vina. O padre Ramon ficou totalmente abismado e incré¬dulo com as confissões da semana seguinte. A alma feliz de Tortilla Fiat rompeu-se inteira e surgiu no ar, numa unidade enlevada. Dançaram com tanto vigor que o chão cedeu num dos cantos. Os acordeões tocaram tão alto que, mais tarde, ficaram roucos como cavalos esgotados.
E Danny, exatamente pelo fato de essa festa não ter comparação, desafiou qualquer emulação como celebrante. No futuro, deixe que um faroleiro fale, excitado: "Você me viu? Você me viu tirar aquela moça negra para dançar? Você nos viu girando e girando como loucos?", e um olho velho, ajuizado e maligno vai se fixar nele. Uma voz, farta de co¬nhecer o limite das possibilidades, perguntará tranquilamen¬te: "Viu Danny na noite da festa?"
Um dia, um historiador talvez escreva um relato frio e seco da Festa. Talvez se refira ao momento em que Danny desafiou e atacou a festa inteira, homens, mulheres e crian¬ças, com uma perna de mesa. Talvez conclua: "Um organis¬mo agonizante é frequentemente considerado capaz de uma força e de uma resistência extraordinárias". Referindo-se à sobre-humana atividade amorosa de Danny naquela noite, esse mesmo historiador poderá escrever com mão firme: "Quando algum organismo vivo é atacado, toda a sua ativi¬dade parece orientar-se para a reprodução".
 
 
 
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Mas eu digo, e o pessoal de Tortilla Fiat também diria: "Para o inferno com tudo isso. Danny era muito homem para vocês!" Ninguém fez uma verificação real, e, depois, naturalmente, nenhuma senhora admitiria de bom grado ter sido esquecida. Assim, essa famosa proeza de Danny pode ter sido ligeiramente exagerada. Dez por cento podem ser um exagero para qualquer um, no mundo.
Aonde Danny ia, uma loucura magnífica o acompanhava. Afirmava-se apaixonadamente em Tortilla Fiat que Danny, sozinho, bebeu três garrafões de vinho. Todavia, é forçoso lembrar que Danny, hoje, é um deus. Dentro de alguns anos, serão trinta garrafões. Dentro de vinte anos, lembrarão perfei-tamente que as nuvens se inflamaram e escreveram DANNY com letras enormes. Que a lua chorou sangue. Que o lobo do mundo uivou profeticamente das montanhas da via-láctea.
Pouco a pouco, uma parte daqueles cujo estofo era me¬nos vigoroso que o de Danny começou a definhar, ceder, sair do caminho. Os que ficaram, sentindo a lacuna, gritaram mais alto, lutaram mais desonestamente, dançaram mais vio¬lentamente. Em Monterey, os motores dos carros de bom¬beiros ficaram ligados, e os bombeiros, com seus chapéus metálicos vermelhos e suas capas, ficaram sentados silencio¬samente em seus lugares, aguardando.
A noite passou depressa, e Danny ainda esbravejava na festa.
O que aconteceu foi confirmado por muitas testemu¬nhas, tanto homens como mulheres. E embora seu valor como testemunhas seja atacado às vezes diretamente por te¬rem bebido trinta garrafões de vinho e um barrilete de uís-que de batata, essas pessoas têm absoluta certeza dos pontos principais. Foram necessárias algumas semanas para conca-tenar a história, pois uns diziam uma coisa e outros, outra. Mas pouco a pouco o relato ficou claro, adquirindo a forma que tem agora e que terá sempre.
Danny, dizem os moradores de Tortilla Fiat, começou a mudar rapidamente de aspecto. Começou a se tornar enor¬me e horrível. Seus olhos fulguravam como faróis de auto¬móvel. Havia alguma coisa amedrontadora nele. Lá estava ele, parado, na sala de sua casa. Segurava a perna da mesa
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de pinheiro na mão direita, e também ela havia crescido. Danny desafiava o mundo.
— Quem quer brigar? — gritou. — Há alguém no
mundo que não tenha medo?
Todos estavam com medo. Aquela perna de mesa, tão horrenda e viva, tornou-se um pavor para todos eles. Danny a balançava para a frente e para trás. Os acordeões gorgole¬jaram e foram reduzidos ao silêncio. A dança parou. A sala esfriou, e o silêncio parecia rugir no ar como um oceano.
— Ninguém? — tornou Danny a gritar. — Estou só
no mundo? Ninguém quer brigar comigo?
Os homens estremeceram diante daqueles olhos horrí¬veis e observavam, fascinados, a trajetória assustadora da perna de mesa pelo ar. E ninguém aceitou o desafio.
Danny ergueu-se. Disseram que sua cabeça por pouco não tocava o teto.
— Então vou sair e achar Aquele com quem lutarei.
Encontrarei o Inimigo à altura de Danny!
Alcançou a porta com passos largos, cambaleando ligei-ramente. As pessoas, apavoradas, abriram alas para ele. Danny curvou-se para atravessar a porta. Os presentes fica¬ram quietos e procuraram ouvir.
Ouviram-no repetir, fora da casa, seu estrondoso desa¬fio. Ouviram a perna de mesa sibilar como um meteoro na atmosfera. Ouviram seus passos pesados no jardim. E então, nos fundos da casa, na ravina, ouviram uma aceitação do desafio, tão terrível e tão arrepiante que suas espinhas se encolheram como ramos de nastúrcio na geada. Mesmo ago¬ra, quando as pessoas falam do Oponente de Danny, baixam a voz e olham disfarçadamente ao redor. Ouviram Danny atirar-se à luta. Ouviram seu último e penetrante grito de desafio e depois um baque surdo. E finalmente o silêncio.
Os participantes da festa esperaram um tempo enorme, prendendo o fôlego, com receio de que um sopro de ar mais ruidoso dos seus pulmões abafasse outro ruído. Mas escuta¬ram em vão. A noite ficou silenciosa, e a madrugada cinzenta se aproximava.
Pilon quebrou o silêncio.
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— Alguma coisa está errada — disse ele.
E foi Pilon o primeiro a sair correndo pela porta. Ho¬mem corajoso, nenhum pavor podia retê-lo. Partiram atrás dele. Chegaram aos fundos da casa, onde os passos de Danny haviam sido ouvidos, e Danny não estava lá. Foram até a beira da ravina, onde um íngreme caminho em ziguezague levava ao fundo daquele antigo curso d'água no qual nenhu¬ma corrente passava havia muitas gerações. Os acompanhan¬tes viram Pilon enveredar trilha abaixo. Seguiram-no deva¬gar. E encontraram Pilon no fundo da ravina, inclinado sobre um Danny alquebrado e retorcido. Caíra de uma altura de quase quinze metros. Pilon acendeu um fósforo.
— Acho que ele está vivo — berrou. — Procurem um
médico. Chamem o padre Ramon.
Os presentes espalharam-se. Dentro de quinze minutos, tinham acordado quatro médicos, que foram arrastados de suas camas por paisanos histéricos. Não lhes permitiram aquela lenta deliberação pela qual os médicos adoram mos¬trar não serem presas da emoção. Não! Foram apressados, arremetidos, empurrados, suas maletas foram metidas em suas mãos por homens desesperadamente impotentes para dizer o que queriam. O padre Ramon, arrancado da cama, subiu ofegante a colina, sem saber ao certo se era um demó¬nio a exorcizar, um recém-nascido para batizar antes de mor¬rer ou um linchamento a evitar. Nesse ínterim, Pilon, Pablo e Jesus Maria levaram Danny colina acima e o deitaram em sua cama. Colocaram velas ao seu redor. Danny respirava com dificuldade.
Primeiro chegaram os médicos. Olharam desconfiados uns para os outros, procurando estabelecer a precedência. Mas aquele momento de atraso fez nascer olhares ameaça¬dores nos presentes. Apressaram-se a dar uma olhada em Danny. Estavam todos juntos quando o padre Ramon chegou.
Não entrei no quarto com o padre Ramon, pois Pilon, Pablo, Jesus Maria, Big Joe, Johnny Pompom, Tito Ralph, o Pirata e os cães estavam lá. E eles eram a família de Danny. A porta estava e continuava fechada. Pois, afinal de contas, os homens têm orgulho, e algumas coisas não podem ser bisbilhotadas decentemente.
 
Mas na sala, apinhada até o sufoco pela gente de Tor-tilla Fiat, havia tensão e uma espera silenciosa. Padre e mé¬dicos desenvolveram meios sutis de comunicação. Quando o padre Ramon saiu do quarto, seu rosto não havia mudado, mas ao vê-lo as mulheres irromperam num soluço estridente e horrível. Os homens mexiam os pés como cavalos numa baia e depois saíram para a madrugada. E a porta do quarto continuou fechada.
 
 
 
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Como os entristecidos amigos de Danny desafiaram as convenções. Como o contrato talismânico foi queimado. Como cada amigo partiu sozinho
A morte é um assunto pessoal, que provoca tristeza, desespero, zelo e filosofia seca. Os funerais, por outro lado, são acontecimentos sociais. Não se pode imaginar ir a um enterro sem primeiro polir o automóvel. É inimaginável ficar à beira de um túmulo sem usar nosso melhor terno e sapatos pretos, perfeitamente engraxados. Não se imagina mandar flores para um funeral sem um cartão, provando que a coisa foi feita corretamente. Em nenhuma instituição social é mais rígido o cifrado ritual de comportamento do que num enterro. Imaginem a indignação se o sacerdote modi¬fica seu sermão ou tenta uma expressão facial. Considerem o abalo se, nos velórios, forem usadas cadeiras comuns, e não aquelas pequenas e torturantes cadeiras dobráveis, de assento duro. Não, moribundo, um homem pode ser amado, odiado, lamentado, negado. Uma vez morto, porém, torna-se o ornamento principal de uma cerimónia social com¬plicada e formal.
Danny estava morto, morto havia dois dias. E já tinha deixado de ser Danny. Embora os rostos dos presentes esti-vessem decente e enlutadamente cobertos de tristeza, havia agitação nos seus corações. O governo prometera um enterro militar a todos os seus filhos ex-soldados que o desejassem. Dimny era o primeiro de Tortilla Fiat a partir, e Tortilla Fiat estava pronta a testar criticamente a promessa governa-mental. As novidades já tinham sido enviadas ao Presidio, c orpo de Danny fora embalsamado às expensas do go¬verno. Uma carreta acabara de ser pintada e esperava no
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quartel da artilharia, coberta por uma bandeira nova, do¬brada.  A ordem-do-dia para  sexta-feira  já fora expedida:
"Dez às onze da manhã, funeral. Escolta: Esquadrão A, 11.° de Cavalaria, Banda e Pelotão de Tiro do 11.° de Cavalaria".
Não seria aquilo que levava cada mulher de Tortilla Fiat às vitrinas da National Dollar Store, em Monterey? Durante o dia, crianças escuras percorreram as ruas pedindo flores dos jardins para o enterro de Danny. De noite, aquelas mesmas crianças visitaram os mesmos jardins para aumentar seus buques.
Na festa, haviam sido vestidas as melhores roupas. Nos dois dias de intervalo, aquelas roupas foram limpas, lavadas, engomadas, consertadas e passadas. Trabalharam frenetica-mente. A excitação era decentemente intensa.
Na noite do segundo dia, os amigos de Danny reuni¬ram-se em sua casa. O choque e o vinho haviam desapareci¬do. E agora eles estavam tomados de pânico, pois, em toda Tortilla Fiat, eles, os que mais haviam amado Danny, os que mais haviam recebido dele, eles, os paisanos, eram os únicos que não poderiam comparecer ao seu enterro. Entre a névoa das dores de cabeça, estavam conscientes daquela pavorosa tragédia, pois só naquela noite a situação tinha se tornado tão concreta que precisava ser enfrentada. Normal¬mente, suas roupas eram indescritíveis. A festa envelhecera tremendamente suas calças e camisas azuis. Onde havia uma calça sem os joelhos rasgados? Onde estava a camisa não esfarrapada? Se outra pessoa tivesse morrido, poderiam pedir roupas emprestadas. Mas não havia ninguém em Tor¬tilla Fiat que não fosse vestir suas melhores roupas para o enterro. Apenas Cock Riordan não ia, porque estava de quarentena por ter pegado catapora, o que incluía suas roupas. Podiam pedir ou roubar dinheiro para comprar uma boa roupa, mas dinheiro para seis estava absolutamente fora de cogitação.
Podia-se argumentar: eles não amam Danny o bastante para ir ao enterro em andrajos? Alguém iria andrajoso, quando o vizinho estava ricamente vestido? O desrespeito à memória de Danny não seria maior se fossem em andrajos do que se não fossem?
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O desespero que assolava seus corações era indizível. Amaldiçoaram a própria sorte. Pela porta da frente, podiam ver Galvez desfilar. Galvez comprara um terno novo para o enterro e o vestira com vinte e quatro horas de antecedên¬cia. Os amigos ficaram ali, com o queixo apoiado na mão, esmagados por sua má sorte. Discutiram todas as possibi¬lidades.
Pilon, pela primeira vez na vida, chegou ao absurdo.
— Podemos sair esta noite e cada um roubar um terno
— sugeriu.
Sabia que era uma bobagem, pois cada roupa deveria estar estendida numa cadeira ao lado da cama, naquela noi¬te. Seria suicídio roubar um terno.
— O Exército de Salvação às vezes dá roupas — disse
Jesus Maria.
— Estive lá — respondeu Pablo. — Têm atualmente
catorze vestidos, mas nenhum terno.
Para onde se virassem, o destino estava contra eles. Tito Ralph entrou com seu novo lenço verde saindo do bolso do peito, mas levantou uma tal onda de hostilidade que foi obrigado a sair, desculpando-se, da sala.
— Se tivéssemos uma semana, poderíamos limpar lulas
— disse Pilon, heroicamente. — Mas o enterro é amanhã.
Precisamos enfrentar este fato. Claro que podemos muito
bem ir ao enterro.
— Como? — perguntaram os amigos.
— Podemos ir pela calçada, enquanto a banda e os
acompanhantes vão pelo meio da rua. A cerca do cemitério
está toda coberta de capim. Podemos ficar lá, no meio das
moitas, e ver tudo.
Os amigos olharam, agradecidos, para Pilon. Compreen-deram como suas agudas faculdades haviam examinado todas as possibilidades. Mas era apenas a metade, até menos que a metade, ver o funeral. Ser visto nele era a metade mais im-portante. Essa era a melhor parte.
— Com isso, aprendemos uma lição — disse Pilon. —
Devemos adotar como norma ter sempre um bom terno de
reserva. Nunca se sabe o que vai acontecer.
Poderiam ter ficado nisso, mas tinham a sensação de haver fracassado. Vaguearam a noite inteira pela cidade. Que
 
jardim não foi o despojado de suas melhores flores? Que árvore florida permaneceu de pé? Pela manhã, a cova que iria receber o corpo de Danny estava quase oculta por uma montanha das mais finas flores dos melhores jardins de Monterey.
Não é sempre que a natureza faz arranjos com bom gosto. Na verdade, choveu antes de Waterloo. A neve caiu no caminho da caravana Donner '. Mas a sexta-feira amanheceu linda. O sol apareceu como se aquele fosse um dia de pique¬nique. As gaivotas atravessaram uma baía aprazível, na dire-ção da fábrica de sardinhas. Os pescadores das pedras foram para os seus lugares, na maré vazante. A Palace Drug Com-pany baixou os toldos, para proteger da ação química do sol as garrafas térmicas nas janelas. O sr. Machado, o alfaiate, pôs um cartaz na janela: "Volto em dez minutos", e foi para casa, vestir-se para o enterro. Três arrastões chegaram, carre¬gados de sardinhas. Louie Duarte pintava sua canoa e mu¬dou-lhe o nome de Lolita para Os Três Primos. Jake Lake, o tira, apreendeu um carro de passeio que vinha de Del Monte, liberou-o e comprou um charuto.
Era um enigma. Como a vida podia prosseguir sua trajetória estúpida num dia desses? Como Mamie Jackson podia lavar a calçada da sua casa? Como George W. Merk podia escrever sua quarta e mais agressiva carta à
companhia de água? Como Charlie Marsh podia estar tão nojentamente bêbado como de costume? Era um sacrilégio. Era um insulto.
Os amigos de Danny acordaram tristes e levantaram-se do chão. A cama de Danny estava vazia. Era como o cavalo de batalha de um oficial que acompanhasse seu dono até o túmulo. Nem mesmo Big Joe Portagee olhou com cobiça a cama de Danny. O sol brilhante entrava alegremente pela janela, reproduzindo as delicadas sombras das teias de ara¬nha no chão.
— Danny gostaria de um dia como este — disse Pilon. Depois da ida até a ravina, os amigos sentaram-se du¬rante algum tempo na varanda da frente e exaltaram os
' Donner Party (1846-47). Um dos muitos grupos de pioneiros que sofreram reveses na marcha para o oeste. (N. do T.)
 
 
 
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dotes do amigo. Lealmente, lembravam e proclamavam as virtudes de Danny. Lealmente, esqueciam seus erros.
— E forte — disse Pablo. — Ele era forte como uma mula!  Podia erguer um fardo de feno.
Contaram vários episódios de Danny, sua bondade, sua coragem, sua compaixão.
Aproximava-se a hora de irem para a igreja, para ficar do outro lado da rua, nas suas roupas esfarrapadas. Coraram intimamente quando gente mais feliz entrou na igreja, muito bem-vestida, e espalhando prodigamente o cheiro de agua florida. Os amigos podiam ouvir a música e o zumbido agudo do serviço. Da sua vantajosa posição, puderam ver chegar a cavalaria, a banda com seus tambores cobertos para amortecer o som, o destacamento de tiro, a carreta com suas três parelhas de cavalos e um cavalariano ao lado de cada parelha. O bater tristonho das ferraduras no asfalto encheu o coração dos amigos de desespero. Impotentes, viram o caixão ser carregado e posto na carreta, e a bandeira ser estendida sobre ele. O oficial apitou, ergueu o braço e apon¬tou-o para a frente. O esquadrão moveu-se e o destacamento de tiro baixou os rifles. Os tambores rufaram lenta e senti¬mentalmente. A banda tocou a marcha fúnebre. A carreta pôs-se em movimento. As pessoas caminhavam atrás majes¬tosamente, os homens empertigados e graves, as mulheres erguendo delicadamente as saias, para evitar a sujeira dos cavalos. Estavam todos lá, Cornelia Ruiz, a sra. Morales, Galvez, Torrelli e sua gorducha esposa, a sra. Palochico, Tito Ralph, o traidor, Doçura Ramirez, o sr. Machado, todos os que significavam alguma coisa em Tortilla Fiat, e mais os outros.
É de espantar que os amigos não pudessem manter a vergonha e o sofrimento? Durante alguns instantes, andaram furtivamente pela calçada, amparados pelo heroísmo.
Jesus Maria foi o primeiro. Soluçou de vergonha, pois seu pai fora pugilista profissional, rico e respeitado. Jesus Maria baixou a cabeça e se afastou. Os outros cinco amigos o seguiram, e os cinco cães foram pulando atrás deles.
Antes de aparecer o cortejo, os amigos de Danny esta¬vam agachados no capim alto que beirava o cemitério. O serviço foi curto e militar. O caixão foi baixado. Os rifles
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pipocaram. A corneta tocou, e, ao ouvi-la, Enrique, Fluff, Pajarito, Rudolph e Sefior Alec Thompson atiraram a cabeça para trás e uivaram. O Pirata, nesse instante, ficou muito orgulhoso deles!
Tudo acabou muito depressa. Os amigos afastaram-se rapidamente para que as pessoas não os vissem.
De qualquer maneira, tinham que passar pela casa de Torrelli, que estava vazia, na sua volta para casa. Pilon entrou por uma janela e apanhou dois garrafões de vinho. Então retornaram devagar para a casa silenciosa de Danny. Cerimoniosamente, encheram os vidros de geléia e beberam.
— Danny gostava de vinho — disseram. — Danny
ficava feliz quando havia um pouco de vinho.
A tarde passou e a noite chegou. Cada um, à medida que bebericava seu vinho, mergulhava no passado. Às sete horas, um envergonhado Tito Ralph chegou com caixas de charutos que havia ganho num jogo. Os amigos acenderam os charutos, cuspiram e abriram o outro garrafão. Pablo solfejou algumas notas da canção Tuli Pan, para constatar que sua voz fora embora para sempre.
— Cornelia Ruiz está sozinha hoje — disse Pilon,
especula tivamente.
— Talvez fosse bom cantar algumas canções tristes —
disse Jesus Maria.
— Mas Danny não gostava de canções tristes — decla¬
rou Pablo. — Gostava das alegres, sobre mulheres ardentes.
Todos balançaram a cabeça, solenemente.
— É, Danny era um bamba com as mulheres.
Pablo tentou o segundo verso de Tuli Pan e Pilon aju¬
dou um pouco, acompanhado pelos outros quase no fim.
Quando a canção acabou, Pilon deu uma tragada no seu charuto, mas este estava apagado.
— Tito Ralph — disse ele —, por que você não apa¬
nha seu violão para que possamos cantar um pouco melhor?
Acendeu o charuto e atirou fora o fósforo.
O pauzinho aceso foi cair num velho jornal junto da parede. Cada um dispôs-se a se levantar para ir apagar o fósforo. Mas cada um foi agraciado com um pensamento celestial e tornou a se sentar. Encararam-se e sorriram, o sorriso sensato dos desesperados e dos imortais. Como num
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sonho, viram as chamas bruxulear e quase apagar, voltando novamente à vida. Viram o fogo florescer no papel. Os deu¬ses sabem o que fazem. E os homens sorriram quando o papel queimou, passando para a madeira seca da parede.
Assim tinha de ser, ah, amigos ajuizados de Danny! A corda que os mantinha unidos foi cortada. O imã que os atraía perdeu suas virtudes. Um estranho qualquer iria pos¬suir a casa, algum parente triste de Danny. Era melhor que aquele símbolo da sagrada amizade, aquela bela casa de fes¬tas e brigas, de amor e conforto, morresse com Danny, num último e glorioso assalto desesperado aos deuses.
Sentaram-se e sorriram. A chama subiu como uma ser-pente para o teto, atingiu o telhado e crepitou. Só então os amigos abandonaram suas cadeiras e saíram como sonâmbulos pela porta.
Pilon, que aprendia a cada lição, apanhou o que havia sobrado do vinho.
As sirenas soavam, vindas de Monterey. Os carros dos bombeiros subiram a colina ruidosamente, engatados em segunda. Os faróis dançavam entre as árvores. Quando os bombeiros chegaram, a casa era uma grande e rombuda lança de chamas. As mangueiras molharam as árvores e as moitas para evitar que o fogo se espalhasse.
Misturados com a multidão de habitantes de Tortilla Fiat, os amigos de Danny ficaram olhando, extasiados, até que afinal a casa se transformou num monte de cinzas es¬curas e fumegantes. Então o carro dos bombeiros deu a volta e tornou a descer a colina.
Os habitantes de Tortilla Fiat fundiram-se na escuridão. Os amigos de Danny ainda continuaram olhando as ruínas fumegantes. Olharam-se com ar estranho e depois novamente para a casa incendiada. Após um momento, voltaram-se e afastaram-se devagar, cada um para o seu lado.

 

 

                                                                  John Steinbeck

 

 

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