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Planeta Criança



Poesia & Contos Infantis

 

 

 


BONE CROSSED / Patricia Briggs
BONE CROSSED / Patricia Briggs

                                                                                                                                                   

                                                                                                                                                  

 

 

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Olhei fixamente para o meu reflexo no espelho. O meu aspecto não era o mais atraente, mas tinha um cabelo espesso que me roçava os ombros. Minha pele era mais escura nos braços e no rosto do que o resto do corpo, mas pelo menos, graças ao meu pai, que pertencera à tribo Blackfoot, nunca viria a ser pálida.
No queixo, tinha um corte que Samuel dera dois pontos, e no ombro, uma marca roxa (danos não muito graves tendo em conta que enfrentara uma coisa que gostava de comer crianças e deixara um lobisomem desacordado). Visto de alguns ângulos, o fio escuro se parecia com as patas de uma reluzente aranha negra. Tirando o ferimento ligeiro, não tinha nenhum problema no corpo. O karatê e o trabalho de mecânica me mantinham em boa forma.
Minha alma estava bem mais maltratada do que o meu corpo, mas eu não conseguia vê-la no espelho. E tinha a esperança de que mais ninguém conseguisse. Era aquele dano invisível que me fazia ter medo de sair do banheiro e encarar Adam, que estava a minha espera em meu quarto. Apesar de saber com absoluta certeza que Adam não faria nada que eu não quisesse, e eu queria há muito tempo.
Podia pedir-lhe para ir embora. Para me dar mais tempo. Fitei a mulher no espelho, mas a única coisa que fez foi retribuir o olhar.
Eu matara o homem que me estuprara. Iria lhe permitir essa ultima vitória? Permitir que me destruísse como planejara?
– Mercy? – Adam não teve que levantar a voz. Sabia que podia ouvi-lo.
– Cuidado. – disse-lhe, desviando a atenção do espelho e começando a vestir a roupa intima limpa e uma blusa velha. – Tenho uma bengala antiga e sei como usá-la.
– A bengala está em cima da sua cama. – respondeu.

 

 

 


Quando sai do banheiro, Adam também estava deitado na minha cama.

Não era alto, mas não precisava de altura para causar mais impressão do que a que já causava. Maçãs do rosto amplas, boca suave revestindo uma teimosa mandíbula que combinava para dar uma beleza de estrela de cinema. Quando seus olhos se abriram, eles eram de um negro chocolate apenas um pouco mais claro que os meus. Seu corpo era quase tão lindo quanto o seu rosto, embora eu soubesse que ele não pensa sobre si dessa forma. Ele mantinha sua forma porque era o Alfa e seu corpo era uma ferramenta para manter seu bando a salvo. Ele tinha sido um soldado antes da Mudança, e o treinamento militar ainda estava lá na forma como ele se movia e da forma que ele assumia o comando.

– Quando Samuel voltar do hospital, irá passar o resto da noite em minha casa. – Adam disse sem abrir os olhos. Samuel era o meu companheiro de casa, um médico, e um lobo solitário. A casa de Adam era atrás da minha, com cerca de quatro hectares separando-as, um era meu e o resto de Adam. – Temos tempo para conversar.

– Está em péssimo estado. – disse-lhe, não de forma muito verdadeira. De fato, parecia cansado, com círculos escuros abaixo dos olhos, mas nada, excluindo a mutilação, poderia fazer com que tivesse péssimo estado. – Não existem camas em Washington?

Teve que se deslocar para Washington (a capital, estávamos no estado) esse fim de semana para resolver uma pequena confusão que era, de certo modo, por minha culpa. É claro que se ele não tivesse estraçalhado o cadáver de Tim diante das câmeras e a gravação não tivesse ido parar na secretaria de um senador, não teria havido qualquer problema. Portanto, também era, em parte, culpa dele.

A culpa era, sobretudo, de Tim, bem como da pessoa que tinha feito uma copia do DVD e o tinha enviado. Eu tinha cuidado de Tim. Bran, o lobisomem maioral acima de todos os outros lobisomens maiorais, aparentemente estava cuidando de outra pessoa. Se fosse no ano passado, esperaria ouvir falar em um funeral. Esse ano, com os lobisomens começando a se revelar ao mundo, Bran provavelmente seria mais cauteloso. O que quer que isso signifique.

Adam abriu os olhos e se fixou em mim. Na obscuridade do quarto (ele havia acendido apenas o abajur na mesinha de cabeceira), os seus olhos pareciam negros. Havia em seu rosto uma tristeza que não existia antes, e eu sabia que era a causa. Porque não havia sido capaz de me manter em segurança, e pessoas como Adam levam isso muito a sério.

Pessoalmente, acreditava que cabia a mim a garantia da minha segurança. Por vezes, isso poderia significar recorrer a amigos, mas a responsabilidade era minha. Ainda assim, Adam encarava a situação como um fracasso pessoal.

– Então, já se decidiu? – ele perguntou.

Ele queria saber se eu o aceitaria como meu parceiro. A questão pairava no ar há muito tempo, e estava afetando a sua capacidade de manter o bando sob controle. Ironicamente, o que acontecera a Tim resolvera o problema que durante meses tinha me impedido de aceitar Adam. Cheguei à conclusão de que se era capaz de combater a poção magica Fae que Tim me dera para beber, não ia ser o encanto de um Alfa que me transformaria em uma escrava dócil.

Talvez devesse ter lhe agradecido antes de o atingir com o pé de cabra.

Adam não é o Tim, disse a mim mesma. Pensei na fúria de Adam quando arrombara a porta da minha oficina, no seu desespero quando me persuadiu a beber novamente daquela maldita taça Fae. Além de me tirar qualquer capacidade de arbítrio, a taça também tinha o poder de curar, e naquele momento eu precisava desesperadamente de cura. Surtira efeito, mas Adam sentira que havia me traido, acreditava que iria odiá-lo por isso. Mas, ainda assim, fizera-o. Conclui que não havia mentido quando disse que me amava. Quando me escondera por vergonha, atribui isso a poção magia, porque sabia... sabia que não tinha motivo de sentir vergonha, ele me puxara em forma de coiote de debaixo da cama, me repreendera por ser tão tonta e depois me abraçara durante a noite toda. Depois, colocara o seu bando me vigiando para me manter em segurança, independentemente de eu precisar ou não.

Tim estava morto. E tinha sempre sido um perdedor. Diabos me levassem se ia ser vitima de um perdedor, ou de quem quer que fosse.

– Mercy? – Adam permaneceu deitado de costas sobre a minha cama, adotando uma posição de vulnerabilidade.

Em resposta, tirei a blusa e deixei-a cair no chão.

Adam saiu da cama com uma velocidade que nunca tinha visto em nenhum gesto, carregando com ele o edredom. Em um piscar de olhos, estava embrulhada nele... e depois fui firmemente abraçada, os meus seios nus encostados em seu peito. Adam inclinara a cabeça para o lado de modo que meu rosto se comprimisse contra seu queixo e bochecha.

– A minha intenção era por o cobertor entre nós. – disse com firmeza. O seu coração batia muito depressa contra o meu peito, e os braços duros como pedra tremiam. – Não queria dizer que tinha que dormir comigo nesse exato momento. Um simples “sim” teria bastado.

Sabia que estava sexualmente excitado, mesmo uma pessoa comum sem olfato apurado de coiote teria percebido isso. Deslizei as mãos do seu quadril até sua barriga dura, nessa altura, uma transpiração ligeira apareceu em seu queixo sob a minha caricia lenta. Sentia seus músculos do rosto mexerem enquanto cerrava os dentes, sentia o calor que saia de sua pele. Soprei em seu ouvido e ele se afastou de mim com um pulo, como se tivesse lhe dado um choque.

Linhas âmbar iluminaram seus olhos, e seus lábios ficaram mais inchados, mais avermelhados. Deixei o edredom cair em cima da blusa.

– Que merda, Mercy. – não gostava de dizer palavrões na presença de mulheres. Eu considerava sempre um triunfo pessoal quando conseguia levá-lo a fazê-lo. – Ainda não passou sequer uma semana desde que foi estuprada. Não vou dormir com você enquanto não falar primeiro com alguém, um conselheiro, um psicólogo.

– Eu estou ótima. – repliquei, embora na verdade, uma vez que a distância me libertou da segurança que ele me trouxe, senti uma inquietação no estômago.

Adam se virou de modo que ficasse voltado para a janela, de costas para mim.

– Não, não está. Lembre-se, não tem como mentir para um lobo, meu amor. – expirou com muita força para que fosse um suspiro. Esfregou o cabelo bruscamente, tentando se libertar do excesso de energia. Gentilmente, bagunçou seu cabelo em pequenos cachos, embora normalmente o mantinha extremamente curto para ficar com aspecto proporcional e bem cuidado. – Do que eu estou falando? – perguntou, embora não achasse que a pergunta se dirigisse a mim. – Esta é Mercy. Fazer você falar sobre alguma coisa pessoal é como arrancar dentes mesmo nas melhores circunstancias. Fazer você falar com um estranho...

Não me considerava particularmente calada. Aliás, tinha sido acusada de falar demais. Samuel me dissera em mais do que uma ocasião que provavelmente eu viveria mais tempo se aprendesse a ficar calada de vez em quando.

Portanto, sem dizer uma palavra, esperei que Adam decidisse o que queria fazer.

Não fazia frio no quarto, mas ainda assim estava tremendo um pouco, devia ser os nervos. Contudo, se Adam não se apressasse e fizesse alguma coisa, iria acabar no banheiro vomitando. Desde que Tim me provocara uma overdose de suco Fae, passara muito tempo “chamando o Raul” para encarar esse pensamento com o mínimo de tranquilidade.

Adam não estava me observando, mas não precisava fazê-lo. As emoções tem cheiro. Virou-se para se me olhar com a sobrancelha franzida. Notou o meu estado com um olhar compreensivo.

Praguejou e voltou para junto de mim em um passo, envolvendo-me em seus braços. Abraçou-me com força, produzindo sons baixos e tranquilizadores no fundo da garganta. Embalando-me suavemente.

Inalei profundamente o ar preenchido pelo odor de Adam e tentei pensar. Em uma situação normal, isso não teria sido difícil para mim. Mas em uma situação normal eu não estava praticamente nua nos braços do homem mais sexy que conhecia.

Tinha percebido mal o que ele queria.

Para confirmar, clareei a garganta: – Quando disse que precisava da minha resposta hoje... não estava pedindo que tivéssemos relações sexuais?

Seu corpo se agitou involuntariamente enquanto ria, esfregando o queixo contra o meu rosto.

– Então, acha que eu sou o tipo de pessoa que faria uma coisa dessas? Depois do que aconteceu na semana passada?

– Achei que fosse um requisito. – balbuciei, sentindo as bochechas se aquecendo.

– Quando tempo passou no bando do Marrok?

Ele sabia quanto tempo. Estava apenas fazendo com que me sentisse estúpida.

– O acasalamento não era um assunto do qual costumavam falar. – respondi defensivamente. – Só Samuel...

Adam riu novamente, com uma das mãos sobre o meu ombro e a outra acariciando suavemente minha bunda, o que deveria ter provocado cócegas, mas não provocou.

– Aposto que nessa altura ele te disse toda a verdade, só a verdade, nada mais que a verdade.

Apertei-o com mais força, não sei como, mas minhas mãos tinham pousado no fundo de suas costas.

– Provavelmente não. Portanto, a única coisa de que precisava era que eu concordasse?

Grunhiu.

– Não vai ter muita serventia em relação ao bando, não enquanto não for sério. Mas com Samuel fora de cena, achei que conseguiria decidir se estava interessada ou não. Se não estivesse interessada, poderia me reorganizar. Se concordasse ser minha, poderia esperar até que o inferno congelasse.

Suas palavras soavam razoáveis, mas seu cheiro me dizia algo diferente. Dizia que meu tom razoável acalmara suas preocupações e que sua mente agora estava em outro lugar e não na nossa discussão.

Parecia justo. Estar tão próxima dele, sentir seu calor contra o meu, sentir seu batimento cardíaco acelerado por me desejar... Alguém me disse que saber que alguém nos deseja é o mais poderoso afrodisíaco. Isso certamente se aplicava a mim.

– É claro. – disse ainda naquela voz curiosamente calma. – Esperar é bem mais fácil na teoria do que na pratica. Preciso que diga para me afastar, tudo bem?

– Uhum. – pronunciei. Havia nele uma limpeza que varria a sensação de Tim da minha pele de forma bem mais eficaz do que a ducha. Mas apenas quando me tocava.

– Mercy.

Deslizei as mãos por dentro da cintura de seus jeans e cravei-lhe levemente as unhas na pele.

Grunhiu mais um pouco, mas nenhum de nós estava ouvindo. Virou a cabeça e inclinou-a. Esperava algo sério, e recebi uma mordida em meu lábio inferior. A rudeza de seus dentes me fez sentir um formigamento nas pontas dos dedos e uma vibração que me passou pelos joelhos até os dedos dos pés. Coisas poderosas, os dentes de Adam.

Contornei seu corpo com as mãos subitamente tremulas, para agarrar o botão das calças jeans, e Adam levantou a cabeça e deteve minha mão com a dele.

Depois eu ouvi também.

– É um carro alemão. – ele disse.

Suspirei, curvando-me contra ele.

– Sueco. – corrigi. – Um Volvo. Cinzento.

Olhou-me com um ar de surpresa que rapidamente se transformou em compreensão.

– Conhece o carro.

Gemi e tentei me esconder em seu ombro. – Merda, merda. Foram os jornais.

– Quem é, Mercy?

O cascalho se calou e a luz de faróis se projetou contra a minha janela enquanto o carro subia a rampa de entrada.

– Minha mãe. – respondi. – Seu timing é incrível. Eu devia ter percebido que ela ia ler sobre... sobre aquilo. – não queria nomear o que me acontecera, o que eu fizera a Tim, em voz alta. Pelo menos, não enquanto estava praticamente nua com Adam.

– Você não ligou para ela.

Balancei a cabeça. Devia tê-lo feito, eu sabia. Mas tinha sido uma daquelas coisas que eu simplesmente não conseguia encarar.

Agora sorria. – Vá se vestir. Vou atrasá-la enquanto você se prepara para sair.

– É impossível eu algum dia me sentir preparada para isso. – disse.

Ele ficou sério, colocou o seu rosto próximo ao meu e repousou a testa na minha. – Mercy, vai correr tudo bem.

Depois saiu, fechando a porta do meu quarto ao mesmo tempo em que a campainha soava pela primeira vez. Soou duas vezes até Adam abrir a porta, e ele não tinha sido lento.

Peguei algumas peças de roupa e tentei desesperadamente me lembrar se tínhamos lavado a louça do jantar. Era a minha vez. Se fosse a vez de Samuel, não teria que me preocupar. Era uma estupidez. Eu sabia que ela pouco se importava com a louça, mas pensar nisso me permitia não entrar em pânico.

Nunca sequer considerara a possibilidade de ligar para ela. Talvez daqui dez anos eu me sentisse preparada.

Vesti as calças e permaneci descalça enquanto procurava freneticamente um sutiã.

– Ela sabe que você está aqui. – Adam explicou do outro lado da porta, como se estivesse encostado a ela. – Ela vai sair do quarto em poucos minutos.

– Não sei quem você pensa que é. – a voz da minha mãe era grave e rigorosa. – Mas se não sair da minha frente imediatamente, não vai fazer diferença.

Adam era o lobisomem Alfa do bando local. Era duro. Ele poderia ser mal quando precisava, e não teria a menor chance contra a minha mãe.

– Sutiã, sutiã, sutiã. – entoei enquanto retirava um do cesto de roupa suja e o colocava. Apertei-o tão depressa que não ficaria surpresa se ficasse queimada pelo atrito. – Camisa, camisa. – esquadrinhei as gavetas e encontrei e descartei duas blusas. – Camisa limpa, camisa limpa.

– Mercy? – Adam chamou, soando um pouco desesperado, conhecia muito bem essa sensação.

– Mãe, deixe-o em paz! – disse. – Eu estou saindo.

Frustrada, fui observar o quarto. Tinha de ter uma camisa limpa em algum lugar. Ainda há pouco tempo tinha uma, mas desaparecera enquanto procurava um sutiã. Finalmente peguei uma camisa que nas costas tinha escrito 1984: GOVERNO PARA IDIOTAS. Estava limpa, ou pelo menos não fedia muito. A mancha de óleo no ombro parecia permanente.

Respirei fundo e abri a porta. Tive que contornar Adam, que estava encostado a porta.

– Ei, mãe. – disse alegremente. – Estou vendo que conheceu o meu... – o meu o que? Parceiro? Não achava que isso fosse algo que minha mãe precisasse ouvir. – Estou vendo que conheceu Adam.

– Mercedes Athena Thompson. – disparou ela. – É capaz de me explicar porque tive que ficar sabendo o que aconteceu com você pelo jornal?

Tinha evitado que nossos olhares se cruzassem, mas no momento em que pronunciou meus três nomes, não tive alternativa.

Minha mãe tem um metro e meio de altura. E apenas dezessete anos mais velha que eu, o que significa que ainda não fez cinquenta e tem aparência de trinta. Ainda pode usar no cinto as mesmas fivelas que conseguiu competindo nas barrel races{1}. Normalmente é loira, tenho praticamente a certeza de que é sua cor natural, mas o tom muda a cada ano. Esse ano era loiro ruivo. Seus olhos são grandes e azuis e de aspecto inocente, o nariz é ligeiramente arrebitado e a boca carnuda e redonda.

Na presença de estranhos, por vezes faz o papel de loira burra, pestanejando repetidamente e falando em uma voz aspirada que qualquer pessoa que visse filmes antigos reconheceria de Quanto mais quente melhor ou Nunca fui santa. Que eu saiba, a minha mãe nunca trocou um pneu de seu carro.

Se a raiva impetuosa na sua voz não fosse um disfarce para o seu olhar magoado, poderia ter respondido na mesma moeda. Em vez disso, encolhi os ombros.

– Não sei, mãe. Depois do ocorrido... permaneci na forma de coiote durante uns dias. – tive uma visão meio histérica na qual te telefonava e dizia: “A propósito, mãe, adivinha o que me aconteceu hoje...”.

Olhou-me nos olhos e fui invadida pelo pensamento de que havia visto mais do que queria mostrar.

– Está bem?

Comecei a dizer que sim, mas toda uma vida passada com criaturas capazes de cheirar uma mentira provocara em mim um hábito de honestidade.

– De um modo geral. – disse, cedendo. – O fato de ele estar morto ajuda. – senti meu peito apertar, era humilhante. Dera a mim mesma todo o tempo de auto piedade que poderia permitir.

Minha mãe era capaz de mimar seus filhos como o melhor dos pais, mas devia ter confiado mais nela. Sabia bem da importância de ser independente. Sua mão direita estava fechada em um punho com os nós brancos, mas quando falou, sua voz soou animada.

– Tudo bem. – replicou, como se tivéssemos falado de todos os assuntos sobre os quais iria fazer perguntas. Sabia que não era bem assim, mas também sabia que faria mais tarde quando estivéssemos sozinhas.

Desviou seus angelicais olhos azuis na direção de Adam.

– Quem é você e o que faz na casa da minha filha as onze da noite?

– Não tenho dezesseis anos. – intervim em uma voz que mesmo eu consegui notar que era carrancuda. – Se quiser, até posso ter um homem aqui a noite toda.

Tanto minha mãe quanto Adam me ignoraram.

Adam permanecera encostado no batente da porta de acesso ao meu quarto, com uma atitude um pouco mais descontraída do que o habitual. Percebi que estaria tentando passar à minha mãe a impressão de que se sentia em casa: de que era alguém que tinha autoridade para impedi-la de entrar no meu quarto. Ergueu uma sobrancelha e não revelou o menor vestígio do pânico que escutara antes em sua voz.

– Me chamo Adam Hauptman. Vivo do outro lado da cerca traseira de Mercy.

Franziu a sobrancelha.

– O Alfa? O homem divorciado que tem uma filha adolescente?

Adam dirigiu-lhe um de seus sorrisos repentinos, e percebi que minha mãe tinha feito mais uma conquista: ela é bem fofa quando franze a sobrancelha, e Adam não conhecia muitas pessoas ousadas a ponto de lhe fazerem cara feia. Tive uma revelação súbita. Vinha cometendo um erro tático nos últimos anos se de fato queria que ele parasse de flertar comigo. Devia ter sorrido tolamente e piscado os olhos repetidamente. Obviamente, uma mulher rosnando-lhe era de seu agrado. Estava muito ocupado olhando a sobrancelha franzida da minha mãe para reparar na minha.

– Isso mesmo, minha senhora. – Adam desencostou-se da porta e deu dois passos até a sala. – É um prazer conhecê-la finalmente, Margi. Mercy fala muito de você.

Não sabia o que minha mãe teria respondido, sem duvida seria algo educado. Porém, com um estalido, um som como o de ovos se chocando no chão, algo surgiu entre minha mãe e Adam, cerca de trinta centímetros acima do tapete. Era uma coisa de dimensão humana, preta e com som crocante. Caiu no chão, fedendo a carvão, sangue velho e cadáveres apodrecidos.

Fitei a coisa durante muito tempo, com meus olhos incapazes de detectar um padrão consistente com o que meu olfato me indicava. Nem o fato de saber que apenas um número reduzido de coisas podia simplesmente aparecer na minha sala de estar sem usar a porta me permitiu reconhecer o que era. Foi a camisa verde, rasgada e manchada, com a parte traseira de um Grande Dane ainda visíveis, que me forçou a admitir que essa coisa preta e encolhida era Stefan.

Ajoelhei-me ao seu lado e estiquei a mão, retirando-a imediatamente, receosa de lhe causar mais danos. Estava obviamente morto, mas considerando que era um vampiro, isso não era algo tão impossível como poderia ser.

– Stefan? – disse.

Não fui a única a saltar quando agarrou meu pulso. A pele na sua mão estava seca e crepitava desconcertante contra a minha pele.

Stefan era meu amigo desde o primeiro dia em que me mudei para Tri-Cities. Era encantador, divertido e generoso, se considerar quão tolerante posso ter sido em relação as pessoas inocentes que matou para tentar me proteger.

A única coisa que podia fazer era não me afastar e me livrar da sensação da sua pele quebradiça no meu braço. Eca. Eca. Eca. E tinha a horrível impressão de que o fato de estar me segurando estava causando dor, que a qualquer momento sua pele ia estalar e cair.

Seus olhos se abriram, e as íris eram carmesins ao invés de castanhas. A boca se abriu e fechou duas vezes sem que qualquer som fosse produzido. Em seguida, a mão dele apertou a minha a ponto de eu não poder me libertar mesmo que quisesse. Inalou de modo que conseguisse falar, mas não conseguia fazê-lo direito, e ouvi ar sair das costelas em um silvo, onde não era de esperar que pudesse sair.

– Ela sabe. – a voz não se parecia nada com a habitual. Era áspera e seca. Enquanto puxava lentamente a minha mão na direção de seu rosto, com o ar que lhe restava daquela inalação, disse: – Fuja. – e com essas palavras, a pessoa que era minha amiga desapareceu sob a feroz ânsia em seu rosto.

Olhando para seus olhos insanos, entendi que deveria seguir seu conselho, lamentavelmente, não ia conseguir me libertar para isso. Movia-se lentamente, mas tinha-me presa, e eu não era uma mulher-loba ou uma vampira com uma força sobrenatural para me soltar.

Ouvi o distinto ruído seco de uma bala sendo introduzida em algum lugar, e em um soslaio vi minha mãe com uma Glock que metia respeito apontada para Stefan. Era preta e cor-de-rosa, da minha mãe só se podia esperar uma arma estilo Barbie, mas mortal.

– Está tudo bem. – disse-lhe bruscamente. Minha mãe não hesitaria em disparar se achasse que ele ia me fazer mal. Em uma situação normal, não me preocuparia com o fato de alguém disparar contra Stefan, considerando que os vampiros não são particularmente vulneráveis a armas, mas ele estava maltratado. – Ele está do nosso lado. – era difícil soar convincente com ele me puxando, mas dei o meu melhor.

Adam agarrou o pulso de Stefan e segurou-o, portanto em vez de Stefan me puxar para ele, o vampiro começou a levantar lentamente a cabeça para vê-lo. À medida que se aproximava do meu braço, Stefan abriu a boca restos de pele queimada caíram no tapete castanho-claro. Suas presas brancas tinham um aspecto letal, além de estarem muito maiores do que eu me lembrava.

Recuperei a respiração, mas não me lancei para trás gritando chorosa, “Tire de mim! Tire de mim!”, pontos para mim. Em vez disso, inclinei-me sobre Stefan e encostei a cabeça no ombro de Adam. O gesto punha a minha vida em risco, mas o cheiro de lobisomem e Adam ajudaram a disfarçar o cheiro pestilento do que fora feito a Stefan. Se Stefan precisasse de sangue para sobreviver, doaria a ele.

– Está tudo bem, Adam. – disse. – Largue-o.

– Não abaixe a arma. – Adam indicou a minha mãe. – Mercy, se isso não funcionar, ligue para a minha casa e diga ao Darryl para reunir quem estiver lá e vir pra cá.

Em um ato de bravura, atributo que lhe era característico, Adam colou o pulso em frente ao rosto de Stefan. O vampiro não pareceu ter notado, continuando a se erguer agarrado ao meu braço. Não estava respirando, portanto não conseguia sentir o cheiro de Adam, e, de qualquer modo, não acredito que estivesse particularmente concentrado.

Devia ter tentado impedir Adam, tinha alimentado Stefan antes sem quaisquer efeitos negativos de que tivesse conhecimento, e estava segura de que Stefan se preocuparia com o fato de eu viver ou morrer. Eu não tinha certeza o que ele sentia em relação a Adam. Mas lembrei-me de Stefan dizer que “a principio” não haveria nenhum problema, porque só acontecera uma vez, e eu conhecera os membros do rebanho de Stefan, as pessoas que lhe serviam de lanche, almoço e jantar. Todas elas eram completamente dedicadas. Não me interpretem mal, ele era um cara muito bom para um vampiro, mas eu de alguma forma duvidei que aquelas pessoas, a maioria mulheres, poderiam viver juntos devotados a um homem sem qualquer tipo de hipnose vampírica envolvida. E eu já tinha tido a minha dose de compulsão mágica pelo ano inteiro.

De qualquer modo, qualquer protesto que fizesse a Adam seria um exercício em vão. Naquele momento, sentia-se especialmente protetor em relação a mim, e a única coisa que iria provocar seria uma excitação de nervos: os dele, os meus e os da minha mãe.

Adam pressionou o pulso contra a boca de Stefan, e o vampiro deteve o crescente encurtamento da distancia entre meu braço e suas presas. Por momentos, pareceu confuso, depois inalou ar pelo nariz.

Os dentes de Stefan se afundaram no pulso de Adam, sua mão livre foi levantada para agarrar o braço de Adam e seus olhos se fecharam, tudo aconteceu tão rápido que parecia uma sequência de desenhos animados toscamente esboçados.

Adam inspirou de forma audível, mas não consegui notar se era de dor ou de prazer. Depois de Stefan ter se alimentado de mim, ficara em muito mal estado. Não me lembrava muito bem do episódio.

Era algo estranhamente íntimo, Stefan agarrado a mim enquanto bebia do pulso de Adam, e Adam inclinando-se cada vez mais em minha direção enquanto Stefan se alimentava. Íntimo e com platéia. Virei a cabeça e deparei com a minha mãe ainda de arma em punho, firmemente segura, apontada para a cabeça de Stefan. Seu rosto tão calmo como se tivesse visto corpos queimados surgir do nada, ressuscitando em seguida para cravar as presas em quem quer que esteja mais próximo deles o tempo todo, embora soubesse que isso não era verdade. Não tinha certeza se ela alguma vez vira um dos lobisomens em sua forma lupina.

– Mãe. – disse. – O vampiro é Stefan. É um amigo meu.

– Acha que eu devia abaixar a arma? Tem certeza? Ele não parece ser seu amigo.

Olhei para Stefan, que estava com melhor aspecto, embora ainda não fosse capaz de reconhecê-lo sem a ajuda do meu olfato.

– Para dizer a verdade, nem sequer sei muito bem de que serviria. As balas se forem de prata, podem ter efeito nos lobisomens, mas acho que nenhuma bala causa grandes danos aos vampiros.

Irritada, enfiou a Glock no coldre preso ao interior da parte de trás de sua calça jeans.

– Então, o que você faz aos vampiros?

Alguém bateu na porta. Não tinha ouvido ninguém estacionar, mas estivera um pouco distraída.

– Em primeiro lugar, não os deixe entrar em sua casa. – Adam sugeriu.

Minha mãe, que caminhava para a porta deteve o passo. – Existe a probabilidade de ser um vampiro?

– É melhor deixar que eu abra. – disse. Mexi o braço e Stefan o largou, agarrando-se a Adam com mais firmeza. – Está tudo bem, Adam?

– Está muito fraco para se alimentar depressa. – Adam comentou. – Ainda posso aguentar por mais algum tempo. Mas se tirar o celular e colocar na discagem rápida, posso ligar para alguns lobisomens. Duvido que o meu sangue seja o suficiente.

Com a minha mãe observando, me comportei ao tirar o celular da pequena bolsa presa ao cinto. Em vez de gastar tempo percorrendo os contatos, simplesmente apertei o botão quando vi o número da sua casa e entreguei o telefone já chamando. Quem quer que estivesse lá fora, perdia a paciência cada vez mais.

Arrumei minha blusa e lancei os olhos a mim mesma para me certificar que não havia nada que dissesse: “Ei, tem um vampiro dentro de casa”.

Ia ficar com um roxo em meu antebraço, mas ainda não era muito visível. Passei pela minha mãe e abri a porta cerca de quinze centímetros.

A mulher no alpendre não parecia familiar. Tinha aproximadamente minha altura e idade. Seu cabelo escuro fora realçado com um tom mais claro (ou o seu cabelo claro tinha mechas de uma cor mais escura). Usava tanta base que conseguia sentir o cheiro sobre o perfume que um nariz humano possivelmente acharia suave e atrativo. O seu penteado era imaculado, como a pelagem de um cão de raça pura pronto para ser exibido, ou o de uma prostituta muito cara.

Não era o tipo de pessoa que se esperava encontrar a noite à porta de um velho trailer nos confins da parte oriental de Washington.

– Mercy?

Se não tivesse falado, jamais teria reconhecido, porque meu nariz estava empesteado de perfume e ela não se parecia nem um pouco com a garota que estudara comigo na faculdade.

– Amber?

Amber era a melhor amiga da minha colega de quarto na faculdade, Charla. Estudara para ser veterinária, mas tinha ouvido dizer que abandonara os estudos no primeiro ano. Não ouvira noticias dela desde que tinha me formado.

Na ultima ocasião que a vira, Amber usava moicano e tinha um brinco no nariz (que nessa altura era maior), além de uma pequena lagrima tatuada no canto do olho. Ela e Charla tinham sido as melhores amigas na escola secundaria. Embora tivesse sido Charla a decidir que não deviam partilhar um quarto, Amber sempre me culpara por isso. Éramos conhecidas, não propriamente amigas.

Amber riu, com certeza do ar de espanto no meu rosto. Havia algo de quebradiço no som, não que estivesse em posição de ser esquisita. Eu também estava mais rígida. Atrás de mim, estava um vampiro se alimentando de um lobisomem, perguntei-me o que ela estaria escondendo.

– Quanto tempo. – Amber disse após um breve e constrangedor silêncio.

Juntei-me a ela na varanda e fechei a porta atrás de mim, tentando não passar a idéia de que estava impedindo-a de entrar.

– O que te trás aqui?

Cruzei os braços no peito e virei-me para cravar os olhos em meu terreno descuidado onde um VW Rabbit enferrujado repousava sobre três rodas. De onde estávamos, os grafites, a porta faltando e o vidro quebrado não eram visíveis, mas ainda assim tinha um aspecto lastimável. O velho pedaço de lata era uma brincadeira entre eu e Adam, e não ia pedir desculpas por ele.

– Li a seu respeito no jornal. – ela disse.

– Você mora em Tri-Cities?

Balançou a cabeça.

– Em Spokane. Também deu na CNN, não sabia? Os Fae, os lobisomens, a morte... Como que eles podiam resistir? – por momentos, um toque de humor caracterizou sua voz, embora seu rosto permanecesse desconcertantemente inexpressivo.

Que maravilha. O mundo inteiro sabia que eu tinha sido estuprada. Sim, eu também devia achar isso engraçado, se fosse a Lucrezia Borgia{2}. Havia inúmeras razões pelas quais nunca fizera qualquer esforço para manter o contato com Amber.

Ela também não tinha dirigido desde Spokane para descobrir o meu paradeiro depois de dez anos e me contar que tinha lido sobre o ataque.

– Portanto, leu sobre mim e decidiu que talvez fosse divertido me dizer que a historia sobre como matei o homem que me estuprou já tinha corrido por todo o país? Dirigiu duzentos e quarenta quilômetros para isso?

– É obvio que não. – voltou a me encarar, e a desconhecida inconveniente foi substituída pela profissional elegante, que era ainda mais desconhecida. – Escuta. Lembra quando fizemos aquela viagem de um dia a Portland para vermos aquela peça? Depois, fomos a um bar, e você falou do fantasma que estava no banheiro das mulheres.

– Eu estava bêbada. – disse, o que era bem verdade. – Acho que também te disse que tinha sido criada por lobisomens.

– Sim. – replicou com uma súbita atenção empenhada. – Na hora, pensei que estava apenas inventando histórias, mas agora todos nós sabemos que os lobisomens são reais, assim como os Fae. E você anda com um.

Isso teria surgido na noticia do jornal, pensei. Oba oba. Houve tempos em que eu tentava me manter longe do centro das atenções porque era mais seguro. Ainda era mais seguro, mas não tinha sido particularmente bem sucedida na tentativa de levar uma vida secreta durante o ultimo ano.

Indiferente ao meu diálogo interior, Amber continuou a falar. – Portanto, pensei que se agora anda com um, é provável que na hora estivesse dizendo a verdade. E se disse a verdade em relação aos lobisomens, provavelmente estava dizendo a verdade em relação a ver fantasmas.

Qualquer outra pessoa teria esquecido aquilo, mas Amber tinha uma cabeça incrível. Memorizava tudo. Foi depois daquela viagem que deixei de beber. As pessoas que conhecem segredos de outras pessoas não podem se dar ao luxo de fazer coisas que prejudiquem a sua capacidade de controlar as próprias bocas.

– Minha casa está assombrada. – afirmou.

Do canto do olho, vi algo se mexer. Dei um passo em direção de Amber e me virei no tudo ou nada. Continuava sem conseguir ver nada lá fora, mas sem o vento soprando contra mim e o perfume de Amber afetando meu olfato, consegui sentir o cheiro: vampiro.

– E quer que eu faça alguma coisa em relação a isso? – perguntei. – Você precisa chamar um padre. – Amber era católica.

– Ninguém acredita em mim. – replicou rigidamente. – Meu marido acha que estou louca. – seus olhos foram iluminados pela luz da varanda, apenas por instantes, e consegui perceber que suas pupilas estavam dilatadas. Perguntei-me se seria apenas da escuridão da noite ou se estaria sob efeito de alguma coisa.

Comecei a me sentir inquieta, mas estava certa de que era apenas pela estranheza de ver Amber, a rainha do não convencional, vestida como a amante de um homem rico. Havia nela algo débil e indefeso que me fez pensar na palavra presa, ao passo que a Amber que eu conhecera teria pegado um taco de baseball para fazer frente a quem quer que a chateasse. Ela não teria sentido medo de um fantasma.

Como é evidente, a minha inquietação poderia ter sido causada pelo vampiro escondido na sombra ou pelo que estava em minha casa.

– Escuta. – disse. Stefan e aquilo que tinha sido feito a ele era mais importante para mim do que o que acontecera a Amber, ou do que ela pudesse querer de mim. – Nesse momento, não posso sair, estou acompanhada. Porque não me dá seu número e te ligo assim que as coisas se acalmarem?

Abriu a bolsa e entregou-me um cartão. O conteúdo estava impresso sobre o papel de algodão caro, mas era apenas o seu primeiro nome e o numero.

– Obrigada. – pareceu aliviada, com a tensão se dissipando dos ombros. Dirigiu-me um breve sorriso. – Lamento que foi atacada, mas não me surpreende que tenha se vingado. Sempre foi muito boa nisso. – sem esperar por uma resposta, desceu os degraus e entrou no carro, um Miata conversível dos novos modelos, com a capota de lona aberta. Abandonou o caminho de entrada em marcha ré sem voltar a olhar para mim e acelerou.

Desejei que não estivesse usando perfume. Estava preocupada com alguma coisa, sempre fora péssima em mentir. Mas o timing tinha sido muito conveniente: Stefan chega e me diz para fugir, e Amber chega com um lugar para eu fugir.

Eu sabia que Stefan me dissera para fugir, e não era dele. “Ela sabe”, afirmara.

“Ela” era Marsilia, a Senhora dos vampiros de Tri-Cities. Enviara-me a caça de um vampiro que tinha andado em uma matança que pusera em risco o seu ninho. Tinha chegado a conclusão de que eu era a melhor maneira de encontrá-lo uma vez que eu conseguia detectar fantasmas que outras pessoas não vêem, e o covil de vampiros tendem a atrair fantasmas.

Não lhe passara pela cabeça que eu na verdade seria capaz de matá-lo. Quando o fiz, ficou muito chateada. O vampiro que eu matara era especial, mais poderoso do que os restantes porque era dominado por um demônio. O fato de o demônio tê-lo enlouquecido e de ter matado humanos a torto e a direito não a incomodara, exceto a possibilidade de exposição dos vampiros ao mundo humano. Tinha ficado descontrolado quando se tornara mais poderoso do que o seu criador, mas Marsilia acreditava que seria capaz de resolver isso, que poderia tê-lo controlado. Usou-me para encontrá-lo, ela tinha certeza de que ele iria me matar.

E teria tido razão se eu não tivesse amigos.

Desde que me enviara a procura dele, não tinha como retaliar sem correr o risco de perder o controle sobre o seu ninho. Os vampiros levam esse tipo de coisas muito a serio.

Estaria a salvo se não fosse o segundo vampiro.

Andre fora o braço esquerdo de Marsilia assim como Stefan era o direito. Ele também tinha sido responsável por criar o vampiro possuído pelo demônio que matou mais pessoas do que poderia contar com os dedos das mãos. E Andre e Marsilia tinham a intenção de criar mais. Um tinha sido mais do que suficiente para mim. Portanto, matei Andre, sabendo que isso significava a minha morte.

No entanto, Stefan escondera meu crime. Escondera-o com a morte de duas pessoas inocentes cujos únicos crimes consistiam em serem vitimas de Andre. Suas mortes tinham me incomodado por dois meses.

Marsilia sabia. Jamais teria ferido Stefan tão gravemente por outro motivo.

Torturara-o e deixara-o com fome, libertando-o em seguida para que viesse ao meu encontro. Olhei para baixo para as marcas vermelhas que Stefan deixara em meus braços, se ele tivesse me matado, nenhum tipo de culpa recairia sobre ela.

Escutei um barulho e olhei para cima. Darryl e Peter estavam passando ao lado do maltratado Rabbit.

Darryl era alto, atlético, e o numero dois de Adam. Herdara a pele escura do pai africano e os olhos da mãe chinesa. Seus traços perfeitos eram provenientes da feliz combinação de genes muito diferentes, mas a graciosidade da sua passada tinha origem do acidente que o transformara em um lobisomem. Gostava de roupas de qualidade e camisa de algodão puro que vestia, custava mais do que aquilo que eu ganhava em uma semana.

Não sabia que idade ele tinha, mas tinha quase certeza de que não era muito mais velho do que aparentava. Existe algo nos lobisomens mais velhos, um ar de quem não pertence a essa era dos automóveis, dos celulares e das tv’s que Darryl não tinha.

Peter tinha idade suficiente para ter integrado na cavalaria, mas aqui e agora trabalhava como bombeiro. Era bom no que fazia, e tinha meia dúzia de pessoas (humanas) na sua folha de pagamentos. Porém, caminhava a direita e atrás de Darryl, porque Darryl era muito dominante e Peter era um dos poucos submissos no bando de Adam.

Darryl parou ao pé da varanda. A maior parte do tempo não gostava particularmente de mim. Chegara finalmente à conclusão de que era esnobismo, ele era um lobo e eu uma coiote. Ele era um doutor trabalhando em uma equipe de especialistas altamente remunerada, e eu era uma mecânica com sujeira alojada debaixo das unhas.

E o pior de tudo era que, sendo eu parceira de Adam, ele tinha de obedecer as minhas ordens. Por vezes, o chauvinismo que permeia as regras segundo as quais os lobisomens operam funciona ao contrário. Por muito submissa que seja a parceira do Alfa, suas ordens eram apenas atrás das dele.

Ao ver que não dizia nada, limitei-me a abrir a porta e conduzir os dois lobos de Adam até o interior da minha casa.


Capítulo 2

 

Stefan não estava muito receptivo a mudar de doador, então Peter e Darryl se ajoelharam, um de cada lado, e começaram a forçá-lo a se libertar de Adam. Quando me aproximei para ajudar, Adam rosnou.

Se não tivesse rosnado, provavelmente teria deixado os lobos cuidarem do assunto. Afinal de contas, todos eles têm uma incrível super força de lobisomem. Mas se Adam e eu íamos ter uma relação, algo que já estava me deixando nervosa, ia ser com base em um pressuposto de igualdade. Não podia recuar quando Adam rosnou.

Além disso, senti desprezo pela parte covarde de mim que se retraiu perante sua raiva. Mesmo tendo certeza de que tinha sido a parte inteligente.

Peter e Darryl estavam ocupados com as mãos de Stefan, portanto concentrei-me na sua cabeça. Coloquei os dedos em um dos cantos da sua boca, na esperança de que os vampiros tivessem a mesma reação aos pontos de pressão que todos nós. Mas não precisei fazer qualquer tipo de pressão, porque assim que meus dedos tocaram sua boca, ele estremeceu e liberou Adam, com os braços frouxos ao mesmo tempo em que soltava as presas.

– Não. – Stefan disse enquanto eu retirava os dedos da sua boca. – Não. – saiu na forma de um sussurro e dissipou-se sinistramente quando ficou sem ar.

Mexeu a cabeça até repousar contra o meu ombro, de olhos fechados. Agora, seu rosto quase se parecia com seu rosto original, se preenchendo e curando. As partes quebradas da sua pele, das mãos e dos lábios tinham aspecto de ferimentos. O fato de ferimentos gotejantes serem um sinal de melhoria dizia muito sobre o quão ruim estivera.

Se o seu corpo não tivesse se agitado contra mim, como se estivesse tendo um ataque epiléptico, teria ficado mais contente.

– Sabe o que aconteceu com ele? – perguntei a Adam impotente.

– Eu sei. – Peter interveio. Desembainhou descontraidamente um canivete enorme que trazia ao cinto e fez um pequeno corte no pulso.

Afastou-me de debaixo de Stefan e rodou-o até que Stefan estivesse deitado com a cabeça no colo de Peter, firmemente segura pela mão não ferida do lobisomem. Peter colocou o pulso sangrento diante do vampiro, que cerrou os lábios e desviou a cabeça.

Adam, que envolvia a própria mão no pulso para estancar o sangue, inclinou-se para frente. – Stefan. Está tudo bem. Não é a Mercy. Não é a Mercy.

Seus olhos vermelhos se abriram e o vampiro produziu um som que nunca tinha ouvido antes... e desejei poder continuar a dizer o mesmo. Eriçou todos os pelos da minha nuca, agudo e frágil como o assobio de um cão, mas de certo modo mais áspero. Atacou e Peter se agitou se sacudido, cerrando os dentes e sibilando.

Não reparei na ausência da minha mãe, mas ela deve ter saído em algum momento porque tinha o enorme estojo de primeiros socorros de Samuel, que estava no banheiro principal, aberto no sofá. Ajoelhou-se ao lado de Adam, mas ele se colocou de pé.

Os lobisomens Alfa não admitem nenhuma dor em público, e raramente em privado. Seu pulso poderia parecer seriamente maltratado, mas jamais permitiria que minha mãe fizesse qualquer coisa em relação a isso. Também me levantei.

– Mostre. – disse, antes que pudesse dizer alguma coisa que a ofendesse ou vice-versa. – Deixe-me ver.

Puxei o braço com força até conseguir ver os ferimentos.

– Ele vai ficar bem. – disse para a minha mãe com satisfação. – Já formou crosta. Daqui a meia hora só vai ter algumas marcas vermelhas.

Isso era bom.

Minha mãe ergueu a sobrancelha e murmurou: – E pensar que andava sempre preocupada por não ter amigos. Afinal devia dar-me como abençoada.

Olhei-a fixamente e ela sorriu apesar da preocupação no olhar. – Vampiros, Mercy? Pensava que eles eram uma invenção.

Sempre fora boa em me fazer sentir culpada, coisa que Bran nunca conseguira. – Não podia te contar. – expliquei. – Não gostam que os humanos saibam da existência deles. Se tivesse contado, ficaria em perigo. – estreitou os olhos. – Além disso, mãe, na verdade nunca vi um em Portland. – e tivera todo o cuidado para não olhar quando sentia o cheiro. Os vampiros gostam de Portland, muitos dias chuvosos.

– Todos eles têm a capacidade de simplesmente aparecerem onde querem?

Balancei a cabeça, e em seguida reconsiderei. – Eu só conheço dois, Stefan é um deles.

Adam observava Stefan enquanto este se alimentava, parecia preocupado. Não tinha percebido que ele e Stefan eram mais do que conhecidos acidentais.

– Ele vai ficar bem? – minha mãe perguntou.

Adam estava pálido, mas ia se curar sem problemas. Se fosse outro lobo, demoraria mais tempo, mas Adam era um Alfa e seu bando lhe dava mais poder do que aquele que os outros lobos possuíam. Mas se Stefan roesse Peter da mesma forma que tinha roído Adam, Peter precisaria de muito mais tempo para se curar.

Minha mãe olhou para mim e em seu rosto se desenhava duas covinhas. – Eu estava falando do vampiro. Ele está mal, não está?

Vinha tentando não pensar no estado de Stefan e no porque se estar tão ruim, bem como o fato de a culpa ser minha. – Não sei, mãe. – inclinei-me contra ela, apenas um pouco, antes de me endireitar sobre minhas duas pernas. – Não sei muito sobre vampiros. São difíceis de matar, mas nunca vi nenhum nesse estado que tenha sobrevivido. – Daniel, o que ele seria de Stefan? Amigos não seria o termo mais indicado. Talvez apenas de Stefan. Daniel tinha deixado de se alimentar porque acreditava que enlouquecera e matara várias pessoas. Seu aspecto era muito ruim, mas não tão ruim como de Stefan.

– Você se preocupa com ele, também.

Não pareceu surpresa, mas teria ficado se soubesse tanto quanto eu sobre vampiros.

Sabia que Stefan mantinha uma série de pessoas como prisioneiros dos quais poderia se alimentar, embora nenhuma delas parecesse se importar. Perdera a minha visão cor-de-rosa quando ele matara duas pessoas indefesas, pessoas que eu tinha salvado, com o propósito de me proteger. Poderia ter sido o enigmático vampiro de nome Wulfe a torcer seus pescoços, mas Stefan fora o orquestrador daquela conspiração macabra.

Mas doía vê-lo assim.

– Sim. – respondia a minha mãe.

– Já pode soltá-lo. – Adam disse a Darryl. – Ele está se alimentando.

Darryl deixou cair o braço de Stefan e recuou como se temendo uma contaminação. Não havia muito espaço livre na minha sala de estar, mas ele bateu as costas contra o balcão que separava a divisão maior da cozinha e fez uma careta. Adam lhe dirigiu um olhar atento antes de se concentrar no outro lobo.

– Tudo bem, Peter? – Adam perguntou.

Olhei para o lobisomem e reparei que em sua testa começava a acumular suor e que fechara os olhos e os desviara do vampiro, esparramado sobre seu colo e agarrando seu braço. A julgar pela diferença entre a sua reação e a de Adam, talvez tivesse sido melhor encontrar um lobo mais dominante para alimentar Stefan.

Peter não respondeu, e Adam ficou atrás dele para colocar uma mão na pele de seu pescoço. Consegui perceber quase imediatamente o impacto daquele toque enquanto Peter relaxava encostado ao seu Alfa com um sussurro de alívio.

– Desculpa. – Adam disse. – Se houvesse outra pessoa... Bem deve chegar alguém daqui a pouco.

Havia Darryl, que estava de olhos fixos em seus sapatos. O comentário de Adam não fora diretamente dirigido a Darryl, mas esse ficou como se tivesse sido esbofeteado.

Peter balançou a cabeça. – Não tem problema. Mas devo confessar que houve um tempo em que foi ruim. Achava que a história de que os vampiros conseguirem se apoderar da mente de uma pessoa não passava de um mito.

Esse era um dos problemas com os vampiros. A semelhança do que acontecia em relação aos Fae, havia tanta informação errada circulando que era difícil perceber a verdade dos fatos.

– Ele não está em controle de si mesmo. – dei por mim dizendo. – Ele não ia fazer isso de propósito. – não tinha certeza absoluta de que isso fosse verdade, mas soava bem. Uma ocasião se apoderara de mim. Tudo tinha acabado bem, mas preferia que não voltasse a acontecer.

Minha mãe olhou para mim. – Tem suco de laranja ou qualquer coisa com açúcar para os doadores?

Devia ter pensado nisso. Pulei sobre as pernas de Stefan de forma que pudesse ir a cozinha. Depois de meu companheiro de casa ter me declarado completamente conservadora nas escolhas alimentares, passou a ser responsável pelas compras. Não fazia idéia do que tinha enfiado no congelador.

Encontrei uma garrafa na metade de suco de laranja com baixo teor de polpa e enchi dois copos. Dei o primeiro a Adam e segurei o segundo a frente de Peter. – Precisa de ajuda?

Peter sorriu ligeiramente, balançou a cabeça e pegou o copo, esvaziando-o rapidamente e devolvendo-o em seguida.

– Mais?

– Agora não. – disse. – Talvez depois.

Minha mãe e eu nos sentamos no sofá. Adam ocupou uma cadeira e Darryl permaneceu onde estava, sem olhar para o vampiro.

Alguém bateu na porta de forma vigorosa e Darryl disse: – É o Ben.

Não fez qualquer movimento para ir lá, mas de qualquer modo a porta se abriu e Ben enfiou a cabeça no interior. Seu cabelo loiro parecia quase branco, iluminado pela luz da varanda. Lançou um olhar de soslaio para Stefan e, com o seu fantástico sotaque britânico, disse: – Puta merda. Ele está mal mesmo.

Porém, sua atenção se concentrava por inteiro na minha mãe.

– Ela é casada. – avisei-o. – E se chamá-la de algum nome grosseiro, ela lhe dará um tiro com sua bela arma cor-de-rosa e a seguir cuspirei em seu túmulo.

Considerou-me por momentos e começou a abrir a boca.

Adam disse: – Ben. Apresento-lhe a mãe de Mercy, Margi.

Ben empalideceu, fechou a boca e abriu-a de novo. Mas nada saiu. Achei que Ben não estava acostumado a conhecer mães.

– Eu sei. – suspirei. – Ela parece a minha irmã mais nova e mais bonita. Mãe, esse é o Ben. Ben é um lobisomem da Inglaterra e tem por hábito usar linguagem obscena quando Adam não está por perto para ficar de olho. Salvou a minha vida duas vezes. Encostado a parede está Darryl, lobisomem, gênio, doutorado e número dois de Adam. Peter, que é também lobisomem, é o homem simpático que está alimentando Stefan.

E depois disso, o embaraço se instalou. Darryl não falava. Ben, após mais um olhar perplexo dirigido a minha mãe, manteve-se de cabeça virada para baixo e boca fechada. Peter estava obviamente distraído com o vampiro que ele alimentava. Adam fitava Stefan com um semblante preocupado.

Ele também percebera o significado das primeiras palavras de Stefan, porém não podia falar comigo sobre isso diante da minha mãe sem que eu tomasse a iniciativa de fazê-lo. Eu não ia permitir que ela soubesse que Marsilia e seus vampiros andavam atrás de mim. A menos que me visse obrigada a isso.

Minha mãe queria fazer perguntas sobre... sobre o incidente da semana passada. Sobre Tim e como morrera. No entanto, não iria me fazer nenhuma pergunta enquanto não fossem todos embora.

Eu? Eu de bom grado não falaria de nada disso. Perguntei-me durante quanto tempo conseguiria manter todo mundo junto, sendo o embaraço preferível ao pânico violento que uma conversa com Adam ou com minha mãe iria causar.

– Estou exausto. – Peter disse.

Stefan mostrou-se novamente descontente por mudar de doador. Mas ter um lobo adicional funcionou e, com apenas danos menores na minha mesa, pouco tempo depois estava se alimentando de Ben. No entanto, passados breves minutos, Stefan ficou frouxo e sua boca se desprendeu de Ben.

– Está morto? – Peter perguntou, dando um gole em seu segundo copo de suco de laranja.

– Ele? – perguntou Ben, extraindo seu pulso. – Está morto há anos.

Peter grunhiu. – Você sabe o que quero dizer.

Na verdade, era difícil saber. Não estava respirando, mas os vampiros não respiravam, a não ser quando precisavam falar ou se passar por humanos. Seu coração não estava batendo, mas também não significava grande coisa.

– Vamos levá-lo para a minha casa. – Adam interveio. – A... – lançou os olhos a minha mãe. – Meu porão tem um compartimento sem janelas, onde ele estará seguro. – referia-se a jaula onde prendiam lobisomens quando estes tinham problemas de autocontrole. Franziu a sobrancelha. – Não que isso vá impedir quem quer que o tenha despejado no meio da sua sala de estar, Mercy. – sabia perfeitamente quem tinha sido.

Marsilia, pensei, embora talvez tivesse sido o próprio Stefan. Ou talvez outro vampiro qualquer. Quem me explicara que Marsilia e Stefan eram os únicos capazes de se teletransportar tinha sido Andre, que eu matara. Era difícil acreditar plenamente na sua informação.

– Serei cuidadosa. – disse a Adam. – Mas também tem que ser cuidadoso. Há pouco, quando estava lá fora falando com Amber, notei um vampiro vigiando a parte traseira da casa.

– Quem é Amber? – a pergunta de Adam foi apenas um pouco mais rápida do que a da minha mãe.

– Amber? A Amber amiga da Charla na faculdade?

Fiz que sim com a cabeça para a minha mãe.

– Ela leu sobre... aparentemente fui noticia nacional. Ela decidiu vir a minha procura para eu ir ver a casa dela, que está assombrada.

– É mesmo típico da Amber. – minha mãe afirmou. Char e Amber tinham passado vários fins de semana na casa dos meus pais, em Portland, na época em que estava na faculdade. – Sempre foi uma egocêntrica, e não acredito que isso fosse mudar. No entanto, porque ela iria achar que podia ajudar na questão da casa assombrada?

Nunca contara a minha mãe que via fantasmas. Na verdade, até pouco tempo não achava que fosse uma coisa incomum. Quer dizer, as pessoas passam a vida vendo fantasmas, certo? Simplesmente, não falam muito sobre isso. Ter uma filha que se transforma em coiote era suficientemente ruim, portanto todas as outras coisas que pudesse omitir, eu omitia.

E essa tão pouco parecia ser a hora mais indicada para lhe contar isso. Não tinha contado o que passara na semana anterior. Não tinha falado sobre vampiros. Não tinha qualquer intenção de informá-la sobre quaisquer outros segredos que vinha mantendo.

Portanto, encolhi os ombros. – Talvez por eu conviver com lobisomens e Fae.

– O que ela esperava que você fizesse sobre o assunto? – Adam perguntou. Era provável que tivesse ouvido toda a conversa com Amber a distância, os lobisomens tem uma audição muito boa.

– Sei lá. – respondi. – Tenho cara de especialista em afugentar fantasmas? – havia uma grande diferença entre vê-los e afugentá-los. Nem sequer tinha certeza de que isso fosse possível. Pensei no que Amber tinha dito. – Talvez ela só quisesse que eu fosse confirmar que sua casa realmente está assombrada. Talvez só precise de alguém que acredite nela.

Adam ajoelhou-se e ergueu Stefan.

– Vou levá-lo para casa agora. – embora Stefan fosse obviamente mais alto do que ele, a força sobrenatural de Adam era aparente, ele simplesmente tinha o aspecto de alguém capaz de transportar uma enorme quantidade de peso sem esforço.

Deveria ter sido Darryl a levantar Stefan, não Adam. O Alfa não levantava coisas pesadas quando havia subordinados por perto capazes de fazê-lo. Ben e Peter tinham ambos alimentado o vampiro, porém Darryl não tinha desculpa. Devia ter um problema serio em relação aos vampiros.

Adam não pareceu ter reparado que algo de errado se passava com Darryl.

– Vou mandar alguém vir para vigiar sua casa essa noite. – olhou para a minha mãe. – Precisa de algum lugar para ficar? A casa da Mercy... – lançou os olhos em volta. –... não tem lá muito espaço.

– Vou ficar no Red Lion, em Pasco. – respondeu minha mãe. E para mim disse: – Saímos às pressas e não consegui arranjar ninguém que olhasse Hotep. Ele está no carro. – Hotep era o seu doberman pincher, que gostava de mim ainda menos do que eu gostava dele.

Adam assentiu solenemente com a cabeça embora não me lembrasse de ter lhe contado que o cão da minha mãe me odiava.

– Adam. – disse. – Obrigada. Por ter salvado Stefan.

– Não é necessário agradecer. Nós não o salvamos por sua causa.

Ben dirigiu-me uma expressão que bem poderia ter sido um sorriso se não estivesse tão tenso.

– Você não esteve no porão com aquela coisa. – referia-se ao vampiro, que estava possuído pelo demônio, o primeiro vampiro que eu matara. Ele tinha capturado vários lobisomens, assim como Stefan e... brincara com eles. Os demônios gostam de infligir dor.

– Se não fosse pelo Stefan... – Ben encolheu os ombros, como se deixando a memória não verbalizada se dissipar. – Estamos em dívida para com ele.

Adam lançou um olhar de soslaio a Darryl, que abria a porta. Ocorreu-me uma coisa.

– Espera.

Adam parou.

– Se eu falar com a minha mãe... isso conta? – ele me dissera que eu tinha que falar com alguém, e minha mãe não iria embora enquanto eu não lhe contasse tudo. Aparentemente, seria capaz de matar dois coelhos com uma cajadada só.

Colocou Stefan nos braços de Ben e caminhou para mim. Acariciou meu maxilar, mesmo abaixo da orelha, e, como se nossa audiência fascinada não estivesse observando, me beijou, tocando-me apenas com as pontas dos dedos e a boca.

A principio, um calor atravessou meu corpo... seguido de um terrível medo sufocante. Não conseguia respirar, não conseguia me mexer...

Quando voltei a mim, estava sentada no sofá com a cabeça entre os joelhos, Adam cantando em voz baixa. Porém, não estava me tocando, nem ele nem ninguém.

Endireitei as costas e fiquei cara a cara com Adam. Seu rosto estava quieto, mas conseguia ver o lobo nos olhos e cheirar a ferocidade na pele.

– Ataque de pânico. – disse desnecessariamente. – Não os tenho tido com tanta frequência. – menti e, pela expressão em seu rosto, dei-me conta que percebeu. Hoje já era a quarta vez. Ontem, tinha me saído melhor.

– Falar com sua mãe conta. – replicou. – Vamos levar as coisas devagar... e ver como correm. Fala com a sua mãe ou com qualquer outra pessoa que quiser. Mas enquanto um beijo meu te causar um ataque de pânico, é sinal de que tudo está igual.

Não esperou que eu replicasse, limitou-se a sair de casa em passos largos, seguido pelo seu séquito. Darryl esperou até que Ben e Peter saíssem porta fora antes de fechá-la suavemente atrás de todos eles.

– Mercy. – minha mãe disse em um tom de ponderação. – Nunca tinha me dito que seu vizinho lobisomem era assim tão atraente.

– Uhum. – pronunciei. Valorizei o seu esforço, mas agora era chegada a hora e a única coisa que eu queria era despachar o assunto. – Imagina se tivesse o visto estraçalhar o cadáver de Tim.

Ouvi minha mãe suspirar profundamente. – Quem me dera ter visto. Fale sobre Tim.

Foi o que fiz. E ela não disse uma única palavra até eu terminar. Não tinha intenção de lhe contar tudo. Porém, ela não disse nada, não se mexeu, nem olhou para mim. Portanto, falei. Estive a beira de mencionar o nome de Ben, contudo consegui me impedir. Cabia-lhe a ele revelar seus segredos. Mas todo o resto me saiu em parcelas ou hesitações, como que arrancadas de qualquer lugar obscuro e vil. Demorei algum tempo até conseguir tirar tudo.

– Tim te fez lembrar Samuel. – afirmou após eu ter terminado. Retirei a cabeça de seu colo. – Não, não estou louca. – passou-me um maço de lenços de papel da caixa que estava pousada em um dos braços do sofá. – Por isso que você não viu isso chegar. Por isso você não viu o que ele era. Samuel sempre foi um pouco marginal, e fez com que passasse a ter um fraco por marginais.

Samuel? O Samuel alegre, dócil (para um lobisomem), um marginal?

– Não, ele nunca foi um marginal. – peguei uma mão cheia de lenços de papel e limpei o muco e a água salgada da minha face. Meu nariz pinga quando choro.

Acenou com a cabeça. – Claro que foi. Ele gosta de humanos, Mercy, e a maioria dos lobisomens não gosta. – estremeceu em resultado de uma ou outra memória. – Ele ouvia heavy metal e assistia Star Trek.

– Ele era o número dois do Marrok antes de vir para cá como lobo solitário. Não era um marginal.

Limitou-se a olhar para mim.

– Lobo solitário não significa marginal. – retesei-me.

A porta se abriu totalmente e Samuel, que estivera sentado na varanda durante algum tempo, entrou. – Significa sim. Ei, Mergi, porque trouxe aquele cão com você? Tem aparência que dá medo.

Hotep era preto com olhos castanho-avermelhados. Parecia Anúbis. Samuel tinha razão, tinha uma aparência que dava medo.

– Não consegui arranjar ninguém para tomar conta dele. – replicou, levantando-se para receber um abraço. – Como que você está?

Começou a dizer que vinha passando bem... depois olhou para mim. – Temos tido nossos obstáculos, Mercy e eu. Mas até agora, temos conseguido ultrapassá-los.

– A vida é assim mesmo. – minha mãe disse. – Preciso ir embora. Hotep a essa hora já deve estar prestes a explodir, e além disso tenho que dormir. – cravou os olhos em mim. – Posso ficar por uns dias... e Curt me pediu para te dizer que está convidada para passar alguns dias em nossa casa. – Curt era meu padrasto, o dentista.

– Obrigada, mãe. – disse de forma sentida. Por muito horrível que tivesse sido, achava que o fato de ter falando tudo poderia ter ajudado. Mas tinha que fazer com que ela saísse da cidade antes de Marsilia dar seu próximo passo. – Era exatamente o que estava pensando. – respirei fundo. – Mãe, preciso que volte para Portland. Hoje já fui trabalhar. Voltar a minha rotina foi a melhor opção. Acho que, se continuar com a minha rotina normal, acabarei esquecendo o assunto.

Minha mãe semicerrou os olhos e começou a dizer qualquer coisa, mas Samuel levara a mão ao bolso e entregara-lhe um cartão. – Pegue. – disse. – Me liga. Eu a deixo a par de como ela está.

Minha mãe ergueu o queixo. – Como ela está indo?

– Na medida do possível. – respondeu. – Em parte é encenado, mas nem tudo. Ela é dura, tem bons genes. Mercy vai ficar bem, mas acho que ela tem razão. Vai ficar melhor quando as pessoas pararem de agir com compaixão e pena e deixarem de estar sempre de olhos nela. E a melhor forma de fazer isso é voltando ao trabalho, à vida normal, até que as pessoas esqueçam o assunto.

Abençoado seja Samuel.

– Tudo bem. – minha mãe disse. Dirigiu um olhar severo a Samuel. – Bom, não sei o que acontece entre você e minha filha e Adam Hauptman...

– Nem nós. – murmurei.

Samuel exibiu um sorriso largo.

– Em termos de sexo a coisa é clara: Adam vai tê-lo um dia, eu não. Mas o resto ainda está em negociação.

– Samuel Cornick. – disparei incrédula. – Está na presença da minha mãe.

Minha mãe lhe devolveu o sorriso e puxou-o para baixo de modo que pudesse lhe beijar o rosto.

– Bem, me parecia que era assim, mas só queria ter certeza. – moderou a atitude e, depois lançou os olhos em Samuel: – Tome conta dela por mim.

Assentiu solenemente com a cabeça.

– Farei isso. E todo o bando de Adam está empenhado no mesmo. Permita-me que a acompanhe até o seu carro.

Voltou a entrar em casa e ouvi o carro da minha mãe partir. Samuel parecia tão cansado como eu.

– Adam colocou dois lobisomens de vigia no Red Lion, a espera que sua mãe chegue lá. Não vai lhe acontecer nada.

– Como é que correram as coisas na emergência? – perguntei.

Animou-se.

– Um pobre tonto atravessou o país com a mulher grávida para visitar a mãe dele duas semanas antes da data prevista do parto. Cheguei a tempo do parto.

Samuel adorava bebês.

– Garota ou garoto?

– Garoto. Jacob Daniel Arlington, dois quilos e meio.

– Foi à casa de Adam ver Stefan? – perguntei.

Acenou. – Passei pela casa dele antes de vir pra cá. A minha ajuda não serviu de muito. Ajudo, sobretudo, pessoas antes de elas morrerem. Depois disso, não sou lá muito útil.

– Então, o que você acha?

Encolheu os ombros. – Ele está fazendo o que quer que os vampiros façam durante o dia, que não é dormir, mas é qualquer coisa parecida. Presumo que ele vá descansar essa noite e durante o dia de amanhã. Que é o que qualquer pessoa de bom senso te diria para fazer, palavras de Adam. Declarou-me cansado e inútil e depois disse para vir te vigiar no caso de Marsilia decidir tentar mais alguma coisa.

– “Cansado e inútil”. – repeti com falsa simpatia. – E nem isso te livrou de um trabalho.

Em seu rosto, desenhou-se um sorriso amplo.

– Adam parece achar que você declarou ser dele. No entanto, considerando o recorde dele em fazer isso sem te consultar, decidi perguntar eu mesmo.

Levantei as mãos em sinal de rendição indefesa.

– O que posso dizer. Minha mãe acha que ele é atraente. Não tenho alternativa senão aceitá-lo. Além do mais, é terrível ver um homem rastejar... implorar.

Riu. – Acredito. Vai para a cama, Mercy. O dia amanhece cedo. – olhou pelo corredor para o seu quarto, depois se virou voltando o caminho. – Vou contar ao Adam que me disse que ele implorou para ficar contigo.

Ergui uma sobrancelha. – E depois, vou dizer a ele que você o acusou de mentir.

Riu. – Boa noite, Mercy.

Tinha aceitado Adam como meu, escolhido com os meus olhos e coração abertos. Porém, o riso de Samuel ainda me fazia sorrir. Também amava Samuel.

Ele me preocupava. Por vezes, parecia o velho Samuel, engraçado e despreocupado. No entanto, tinha certeza de que durante grande parte do tempo estava encenando, como um ator que foi dado uma deixa “Entra no palco e sorria alegremente”.

Ele viera para cá, para ficar comigo, para tentar melhorar, o que era um bom sinal, como um alcoólatra que vai a sua primeira reunião do AA. Mas não tinha certeza se o fato de ele estar aqui o estava ajudando ou não. Ele era velho. Mais velho do que eu suspeitava quando fora criada no bando de seu pai. E embora os lobisomens não morram de velhice da mesma forma que os humanos, ela pode matá-los de forma igualmente eficaz.

Talvez se eu tivesse sido capaz de amar Samuel de forma diferente. Talvez se Adam não estivesse presente. Se tivesse aceitado Samuel como meu companheiro, como era sua vontade quando se mudou para a minha casa, talvez isso o tivesse orientado.

Franziu a sobrancelha. – Qual é o problema?

Mas não se pode casar com alguém para orientá-lo, mesmo que se sinta amor por esse alguém. E eu não amava Samuel da forma que uma mulher deveria amar o seu companheiro, da forma que amava Adam. Samuel tão pouco me amava dessa forma. Perto disso, mas não exatamente. E, a não ser que se esteja falando do jogo da ferradura ou da granada, perto não conta.

– Sabe que eu te amo. – disse.

Por momentos, seu rosto ficou inexpressivo. Então replicou: – Sim, eu sei. – suas pupilas se contraíram e os olhos cinzentos se iluminaram, adquirindo a cor de um inverno glacial. Depois sorriu, um gesto doce e afetuoso. – Eu também te amo.

Fui para a cama com a distinta sensação de que, dessa vez, perto poderia ser o suficiente para fazer a coisa funcionar.

 

 

Samuel tinha razão, de fato o dia amanhecia muito cedo. Bocejei ao mesmo tempo em que entrava na rua onde ficava a minha oficina, e parei de repente no meio da estrada, já sem quaisquer pensamentos de sono na mente.

Alguém tinha pegado latas de spray e feito uso delas no meu local de trabalho durante a noite.

Interiorizei tudo aquilo e em seguida conduzi lentamente até o estacionamento, parando ao lado da velha caminhonete de Zee. Ele saiu do escritório e caminhou na minha direção enquanto eu saia do carro e fechava a porta, um homem um tanto alto, magro e com cabelo grisalho. Parecia estar na casa dos cinquenta e muitos, sessenta e poucos, mas era bem mais velho do que isso: nunca se deve julgar um Fae pela aparência.

– Uau. – eu disse. – Tenho que tirar o chapéu pela dedicação. Devem ter estado aqui durante horas.

– E ninguém passou por aqui de carro? – Zee disparou. – Ninguém chamou a polizei?

– Hum, provavelmente não. A noite não há muito trânsito por essas bandas. – depois de ler os grafites, percebi que havia temas e idéias que tinham sido feitas de telas que alguém tinha feito em minha garagem.

O Green Paint, tinha quase certeza, era um rapaz cujos padrões de pensamento se assemelhavam aos de Ben, isso se as palavras que usara servissem de indicador.

– Olha... ele soletrou errado prostituta. Será que fez de propósito? Na janela da frente, escreveu de forma certa. Qual terá sido escrito primeiro?

– Liguei para o seu amigo policial, o Tony. – Zee disse, tão furioso que seus dentes batiam enquanto falava. – Estava dormindo, mas vai aparecer daqui à meia hora. – era possível que estivesse zangado por solidariedade para comigo, mas parecia-me que era, sobretudo por causa do estado da oficina. Fora o seu negócio por muito tempo antes de ter comprado dele. Na semana passada, também estive zangada. No entanto, tinha acontecido tanta coisa desde então que esse incidente estava em uma posição muito baixa da minha hierarquia de preocupações.

Tinta Vermelha tinha uma agenda mais apertada do que o Tinta Verde. Aquele apenas pintara duas palavras: “mentirosa” e “assassina”, varias vezes. Adam instalara câmeras de segurança de modo que tivéssemos a certeza absoluta, mas sou capaz de apostar que Tinta Vermelha era a prima de Tim, Courtney. Tim matara seu melhor amigo antes de ter me atacado, e não restavam assim tantas pessoas que pudessem fazer isso por causa da sua morte.

Ouvi um carro se aproximar. Se fosse uma hora depois, hora em que o trânsito começava a se intensificar por causa das pessoas que se dirigiam ao seu emprego, não teria me dado conta. Mas a essa hora da manhã, reinava o silencio, portanto, escutei minha mãe se aproximar.

– Zee. – disse com tom de urgência. – Existe alguma possibilidade de esconder isso... – acenei com as mãos na direção da oficina. –... durante alguns minutos?

Não sabia grande coisa sobre o que ele era capaz de fazer, além de reparar carros e trabalhar com o metal, não costumava usar magia na minha frente. No entanto, uma ocasião vira seu rosto verdadeiro, portanto sabia que seu glamour pessoal era bom. Se ele tinha a capacidade de mascarar o próprio rosto, certamente conseguiria esconder uma porção de tinta verde e vermelha.

Franziu a sobrancelha em sinal de profundo desagrado. Não se pede favores a um Fae, não é só perigoso, como tendem a sentir-se ofendidos. Zee podia me adorar, podia estar em dívida comigo por eu tê-lo salvado de uma situação complicada, mas isso não era garantia de nada.

– Minha mãe está a caminho. – informei. – Os vampiros andam atrás de mim e eu tenho que arranjar uma maneira de ela ir embora, mas não vai fazer isso se souber que estou em perigo. – depois, porque estava desesperada, joguei sujo. – Não depois do que aconteceu com Tim.

Se rosto congelou. A seguir, agarrou meu pulso e me puxou para perto da oficina.

Colocou a mão na parece ao lado da porta. – Se funcionar, não vou poder retirar a mão sem quebrar o feitiço.

Quando minha mãe contornou a esquina os grafites tinham desaparecido.

– Você é o melhor! – disse.

– Faça com que ela vá embora depressa. – pediu com uma careta. – Esse não é meu tipo de magia.

Assenti e comecei a caminhar em direção ao local onde minha mãe estava estacionando o carro quando vi a porta claramente. Uma vez que estivera coberta de tinta vermelha e verde, não tinha reparado. Alguém com uma certa dose de talento artístico pintara um X na porta. Para o caso de não perceber a idéia pretendida, em vez de duas meras linhas, o desenho era formado por dois ossos. Eram cor de marfim com sombreados acinzentados e um pequeno toque de rosa, não pintados por um par de putos arrogantes e irados com spray. A única coisa que faltava para parecer o símbolo de material tóxico era uma caveira.

– É melhor esconder isso. – Zee disse. – A magia não vai fazer.

Encostei-me a porta e cruzei os braços. – Mas porque acha que não está funcionando direito? – perguntei enquanto minha mãe se aproximava, com Hotep na coleira.

– Porque é velho. – respondeu Zee, pegando a deixa que lhe dera. – Porque não foi bem pensado. Porque os motores arrefecidos a ar precisam estar constantemente sendo reparados.

– Eu estava... Ei, mãe.

– Margaret. – Zee disse friamente.

– Sr. Adelbertsmiter. – minha mãe não gostava de Zee. Culpava-o pela minha decisão de ficar em Tri-Cities e reparar carros ao invés de arranjar um emprego como professora, algo muito mais na linha do tipo de trabalho que ela entendia que eu devia seguir. Feitos os cumprimentos, voltou-se para mim. – Pensei em passar por aqui antes de ir para casa. – todavia, não conseguiu se aproximar muito, porque assim que Hotep sentiu meu cheiro, rosnou e abaixou a cabeça agressivamente protegendo minha mãe da coiote má.

– Eu estou bem. – disse, fazendo uma careta ao doberman. Eu até gostava de cães, mas não aquele. – Mande cumprimentos meus ao Curt e às pequenas.

– Não se esqueça de resolver as coisas da maneira que possa aparecer por lá para o casamento da Nan. – Nan era a minha meia-irmã mais nova, e ia se casar dentro de seis semanas. Felizmente, não estava ligada a organização do casamento, portanto só tinha que me sentar e observar.

– Está anotado no meu calendário. – disse. – Zee vai olhar a oficina por mim.

Olhou para ele, depois para mim. – Muito bem, então. – começou a me dar um abraço e lançou um olhar severo a Hotep. – Precisa ensiná-lo a se comportar como fez com Ringo.

– Ringo era um poodle, mãe. Uma briga entre eu e Hotep não ia acabar bem para nenhum de nós. Está tudo bem, a culpa não é dele.

Suspirou. – Tudo bem. Cuide-se.

– Te amo. Dirija com cuidado. – disse.

– Eu dirijo sempre com cuidado. Te amo.

Quando o carro desapareceu, Zee estava suando. Tirou a mão do edifício e a tinta voltou.

– Não fiz isso por você. – grunhiu. – Não queria que ela ficasse mais tempo do que necessário.

Nos afastamos da porta para observar a pintura que agora estava quase cheia por letras vermelhas e garrafais que juntas formavam a palavra “MENTIROSA”. A pintura da cruz de ossos era mais espessa do que a pintura em spray, que embora não conseguisse ver o grosso da cor, conseguia notar os contornos.

– A noite passada, os vampiros largaram Stefan na minha sala de estar. – disse. – Estava em um estado deplorável. Peter, um dos lobos de Adam, acha que quem quer que o tenha feito tinha a esperança de que Stefan me atacasse e ambos saíssemos de cena. Stefan não estava em condições de falar muito, mas conseguiu dizer que Marsilia descobriu que eu tinha matado Andre.

Zee percorreu os ossos com os dedos e balançou a cabeça.

– É impossível que isso seja obra de um vampiro. Mas a verdade, Mercy, é que você tem andado metendo seu narizinho em tantos assuntos que não te pertencem, que quase pode ter sido qualquer pessoa. Vou falar com Tio Mike, mas acredito que sua melhor fonte de informação será Stefan, porque isso não me parece magia Fae. Quão gravemente ferido Stefan está?

– Se ele fosse um lobisomem, acho que teria morrido. Acha que isso é magia? – a mim parecia que sim, mas tinha a esperança de estar errada.

Zee franziu o cenho. – Para um chupador de sangue malvado, ele não é mal. – grande elogio vindo de Zee. – E sim, há magia aqui, mas não uma que esteja familiarizado.

– Samuel acha que Stefan vai ficar bem.

Tony contornou a esquina no seu carro a paisana, que fora discretamente modificado pela Policia: espelhos extras, algumas lanternas adicionais e uma linha de luzes atravessando o vidro traseiro, imperceptível com um vidro muito escuro. Abrandou quando viu os danos. Estacionou ao nosso lado e abriu a porta.

– Está fazendo a decoração de Natal antes do tempo, Mercy? – Tony tinha uma capacidade maior do que a minha de passar despercebido. Hoje parecia um policial hispânico... como uma imagem de marca dos policias hispânicos, alguém bonito e bem arrumado. Quando adotava o papel de traficante de drogas, fazia melhor do que os próprios traficantes. Quando o conhecera pela primeira vez, estava disfarçado de desabrigado. Não havia nele nada de mágico ou sobrenatural, mas o homem era um camaleão.

Lancei novamente os olhos ao edifício. Ele tinha razão. Se não se prestasse atenção as palavras, de certo modo fazia lembrar o natal. A mancha verde tendia a ser curta em altura, mas longa na horizontal. A mancha vermelha era gorda e condensada. De certo modo, parecia uma coroa com bolas vermelhas penduradas.

Até se podia ler o hohoho, se saltasse algumas letras. O nosso pintor verde tinha um vocabulário limitado e ocasionalmente confundia uma mulher profissional do sexo com ferramentas de jardinagem.

– Não são propriamente pensamentos natalinos. – disse a Tony. – Mas as cores são adequadas. Aliás, se o branco não fosse tão sujo, teria aspecto quase festivo, como aquele restaurante mexicano em Pasco, o que tem aquele molho muito picante. – as cores utilizadas faziam com que a pintura original do edifício parecesse sem sabor.

– Seu namorado ainda tem o sistema de vigilância instalado?

– Sim, mas não sei como colocar para funcionar.

– Eu sei. – Zee disse. – Vamos lá dar uma olhada.

Olhei-o de relance. Vampiros, lembra? Nós não queremos que os simpáticos policiais humanos vejam os vampiros.

Dirigiu-me um olhar meigo que claramente queria dizer: Se os vampiros fossem tontos a ponto de serem filmados, o problema é deles. Não pude discutir em voz alta, mas se os vampiros tornassem a sua existência óbvia, quem ficaria em perigo seria Tony.

Bom, pensei enquanto indicava o caminho para o escritório, pelo menos os vampiros tinham a mesma aparência que todas as outras pessoas. Desde que não exibissem suas presas perante as câmeras, ou atirassem um carro pelo ar, era improvável que fossem detectados por aquilo que eram. E se fosse obvio... Tony não era estúpido. Ele sabia muito a respeito de como os Fae e os lobisomens operavam, e eu sabia que ele suspeitava da existência de muitos mais seres terríveis ainda por desvendar.

Enquanto Zee cuidava da questão eletrônica, Tony olhou para mim.

– Como que você está? – exalava um cheiro de preocupação, com um toque de odor de fúria protetora.

– Francamente cansada de responder a essa pergunta. – respondi em tom brando. – E você?

Sorriu. – Ok. Acha que foi a Futuro Sorridente que fez isso?

Se as nossas mentes continuassem a trabalhar de forma tão sincronizada, iria sentir pena do próprio Tony.

– De certo modo. Acho que isso é obra da prima de Tim. – disse. – Ela é membro da Futuro Sorridente, mas não fez isso pela causa deles. É tudo dirigido a mim, não aos Fae.

– Quer apresentar queixa?

Suspirei. – Vou ligar para a minha companhia de seguro. Receio que me forcem a apresentar queixa de modo que seja reembolsada. Não tenho possibilidade de contratar ninguém para voltar a pintar a oficina a menos que use o meu seguro, e não posso parar de trabalhar para eu mesma fazer a pintura. – ainda tinha outras coisas para pagar: os danos de um Fae que queria me comer provocara na casa de Adam, por exemplo. E Zee me dissera que ia exigir o resto do dinheiro que lhe devia pela compra da oficina. Os Fae não conseguem mentir, e ainda não tínhamos tido tempo de resolver isso.

– E a família de Gabriel? – Tony sugeriu. – São vários e podiam trabalhar depois da escola. Seria mais barato do que contratar profissionais e... acho que eles precisam de dinheiro.

Gabriel Sandoval era meu fiel e dedicado empregado, um estudante do ensino médio que aparecia nos fins de semana e fins de tarde para cuidar da papelada, atender telefonemas e fazer tudo aquilo que fosse necessário.

Tive uma visão súbita da oficina cheia de pequenos Sandovals pendurados em escadas e cordas. Tinha-os deixado a vontade no escritório para fazerem a limpeza e quase tive dificuldade em reconhecer o lugar, para um monte de pequenos, eram incrivelmente zelosos.

– Boa idéia. Vou dizer ao Gabriel para telefonar para a mãe dele assim que chegar.

– Pronto. – Zee disse. Ligou o pequeno monitor de segurança e carregou em um botão. O sistema que Adam tinha instalado era eficiente e caro. Funcionava através de sensores de movimento, portanto só tínhamos que observá-lo quando alguma coisa estava se mexendo. O primeiro movimento foi as 22:15, vimos um coelho de tamanho médio pular calmamente ao longo do pavimento. A meia noite, alguém aparecera na porta da oficina. Não eram duas pessoas com sprays, portanto tive certeza absoluta de que se tratava da pessoa que pintara uma cruz de ossos na minha porta.

A imagem dele era estranhamente vaga, irreconhecível. O miserável mantinha o rosto fora do alcance da câmera, impressionante, uma vez que havia uma câmera colocada precisamente em frente a porta para captar o rosto de qualquer pessoa com intenção de forçar a entrada.

A única coisa que a câmera registrara de forma nítida eram as luvas que ele tinha, do tipo antiquadas: brancas com botões no pulso. Havia falhas estranhas nas imagens, saltos em que a câmera desligava porque não havia qualquer movimento para ser seguido. Segundo os temporizadores, demorou quarenta e cinco minutos para pintar os ossos na minha porta, dos quais as câmeras captaram cerca de dez minutos. Parte do restante tempo correspondia à chegada e a partida do pintor.

Não acredito que ele soubesse que havia câmeras, e ainda assim evitou-as. Algumas criaturas sobrenaturais simplesmente não são filmáveis: tradicionalmente, os vampiros estão entre eles. A altura podia bem ser a de Wulfe, que seria a minha primeira opção em qualquer congeminação vampírica. Posto que Wulfe era o vampiro que sabia com toda a certeza que eu matara Andre, era também o meu suspeito número um na lista de potenciais informadores que teriam contado a Marsilia os meus crimes.

A câmera detectou novamente movimento.

– Pare a imagem. – Tony disse.

Duas figuras, ainda indistintas congelaram no limite das luzes do meu estacionamento, e os pequenos números no canto inferior indicavam 2:08. O tempo tinha saltado quase meia hora desde a hora em que o pintor dos ossos estivera.

– O que foi aquilo? – perguntou. – A pessoa na sua porta?

– Não sei. – respondi. Estive a beira de dizer que o seu palpite era tão bom quanto o meu, mas não era. – Talvez alguém estivesse tentando forçar a entrada, mas sem sucesso. – com base no ângulo da câmera era impossível perceber o que estivera fazendo. – De qualquer modo, não interessa, porque obviamente não foi ele que fez os grafites.

Tony cravou os olhos em mim. Os policiais eram quase tão bons quanto os lobisomens em detectar mentiras. Virou-se abruptamente e abriu a porta para examiná-la. Assim como Zee, acompanhou o desenho de cruz de ossos com um dedo leve.

– Quem tem andado chateando além da Futuro Sorridente? Isso parece quase uma coisa feita pela velha Máfia: com classe, mas pensada para pregar um susto de morte em seu alvo.

Suspirei e encolhi os ombros.

– Ninguém queria que eu livrasse o Zee da acusação de homicídio. Mas não é o tipo de coisa que um Fae faria, é muito visível. E um lobisomem que fosse importunado a esse ponto simplesmente atacaria. Conheço pessoas que podem investigar o assunto melhor que a policia.

Franzindo a sobrancelha, Tony produziu um ruído irritado.

– Estamos falando de mais um de seus casos “muito perigoso para vocês, meros policiais humanos”?

Esfreguei os braços, mas não sentia frio, apenas arrepios. Não tinha ilusões. Marsilia podia simplesmente ter me matado, mas estava brincando, então, por mais brincalhão que seja o gato, o rato acaba sempre morto.

E o fim seria quando ela decidisse. A única questão era saber quantas pessoas, quantos dos meus amigos, ela decidiria derrubar junto comigo.

Talvez eu estivesse entrando em pânico prematuramente. Talvez ela se satisfizesse com uma punição. Stefan era dela, não havia qualquer razão para a sensação profunda de que ele não seria o último a sofrer pelos meus pecados. Não conhecia Marsilia ao ponto de fazer esse tipo de previsão.

– Mercy?

– Não sei o que a cruz de ossos significa. – além de más noticias. – Zee disse que estamos lidando com magia, mas provavelmente não magia Fae. – Zee não estava na nossa presença, qualquer pessoa que quisesse saberia que ele era um Fae, que era a razão pela qual a oficina era agora minha em vez de sua. Havia muitos preconceitos contra os Fae. – Ele tem alguns contatos que vão investigar a coisa por mim. Eu também conheço mais algumas pessoas a quem posso fazer perguntas. – Adam tinha uma bruxa ao serviço do bando. Ela era boa, mas iria sair muito caro contratá-la se Tio Mike e Stefan não soubessem do que se tratava. Esse mês estava se transformando em uma verdadeira trapalhada. – No entanto, todas elas vão se manter a milhas de qualquer investigação policial. Conhece alguém do Departamento de Policia de Kennewick que seja especialista em magia?

Tony me encarou por um tempo, acabando por desistir com um suspiro. – Nem pensar, Mercy. Devia ter visto a cara deles quando viram aquele vídeo... – deteve a fala e dirigiu-me um olhar culpado. Era um vídeo meu matando Tim... e de todas as coisas anteriores a isso. Encolheu nervosamente os ombros e desviou o olhar. – Há alguns que sabem umas coisas sobre Fae ou lobisomens, mas... se sabem mais alguma coisa, não falam disso com medo de perderem seus empregos.

Suspirou e entrou novamente na oficina. – Vá em frente. – ele disse a Zee. – Vamos ver a prima de Tim pintando a oficina.

Assim que as duas pessoas encobertas pela escuridão entraram no estacionamento, a imagem de Courtney era inconfundível. Em vez de observar todo o processo, Zee puxou o filme para frente até o par ir embora depois de duas horas, com sacos contendo latas de spray vazias. Parou as imagens quando Courtney estava perto da câmera, onde não havia como se enganar. Ali estava o seu belo rosto oval sereno e zangado. Zee puxou o filme para frente e para trás até termos a visão clara do rosto de quem a acompanhava.

O sistema de segurança não fora instalado há muito tempo, mas Zee adorava engenhocas. Devia ter passado algum tempo brincando com essa.

– Não há duvidas de que é Courtney... não me lembro do último nome dela. – disse a Tony. – Não reconheço o homem. Se isso tivesse alguma ligação com a Futuro Sorridente, teriam vindo mais pessoas.

– É uma questão pessoal. – Tony concordou em um tom sombrio. – Vai ter que me dar essas gravações e apresentar queixa para lhe darmos algum tempo para esfriar os ânimos. Ela não vai parar de te assediar tão cedo a menos que alguém lhe ponha no lugar. É mais seguro para todos se for a policia a fazer isso e não os lobisomens ou os Fae.

Zee ejetou o disco e entregou a Tony.

Tony olhou-o com sobrancelha franzida por um momento. – Não estou preocupado com os pequenos, Mercy. Mas há alguma coisa naqueles ossos e naquele individuo que me cheira a algo estranho. Se aquilo não é uma ameaça de morte, eu sou o Papai Noel. Durante algum tempo, se mantenha perto daquele seu namorado lobisomem.

Soltei um suspiro angustiado.

– Porque acha que Zee está aqui? Suspeito de que pelo menos durante o próximo ano não vou ter um único momento só para mim.

– Sim. – respondeu com um sorriso iluminando os olhos. – É duro quando as pessoas gostam de nós.

Zee produziu um ruído que poderia ter sido uma risada. Disfarçou-o dizendo em um tom carrancudo: – Não que ela facilite a vida a quem quer que fique olho nela. É só uma questão de esperar. Nas próximas semanas, a única coisa que ela vai fazer é se queixar, se queixar e se queixar.


Capítulo 3

 

 

Circulava a notícia de que eu estava de volta na oficina, então meus clientes habituais começaram a aparecer para expressar sua solidariedade e apoio. O grafite só tornou as coisas piores. Pelas nove, estava escondida na oficina, com as enormes portas fechadas, apesar de isso significar que estava quente e asfixiante, e minha conta de luz iria sofrer.

Coloquei Zee para atender os clientes, pobre clientes. Zee não é uma pessoa muito sociável. Há alguns anos, quando vim trabalhar aqui, seu filho de nove anos estava encarregado de atender as pessoas e todas elas se sentiam verdadeiramente gratas por isso.

Passei a maior parte da manhã tentando descobrir os problemas de um Jetta de vinte anos. Não há nada mais divertido do que vasculhar no meio de problemas elétricos intermitentes, desde que se tenha um ano ou dois para desperdiçar. A proprietária saia do emprego às três da manhã e em duas ocasiões, ao tentar ligar o carro, percebera que a bateria estava descarregada apesar de as luzes estarem apagadas.

Não havia nada de errado na bateria. Ou no alternador. Estava de cabeça para baixo, no banco do condutor, com a cara enfiada no painel do Jetta, quando me ocorreu um pensamento súbito. Mexi-me e olhei para o novo e reluzente leitor de CD no carro antigo, que apenas tinha um leitor de cassetes na ultima visita.

Quando Zee entrou, eu estava usando palavras contundentes para descrever técnicos que não sabiam apertar os cordões dos próprios sapatos, mas se sentiam a vontade para mexer em um dos meus carros. Já cuidava desse carro desde que tinha começado a trabalhar como mecânica, e sentia por ele uma afeição especial.

Zee pestanejou algumas vezes para esconder o seu divertimento.

– Podíamos enviar a sua fatura para o local que instalou o sistema de som.

– Eles pagam por isso? – perguntei.

Zee sorriu. – Pagariam se eu levasse. – Zee também tinha um interesse pessoal pelos carros dos nossos clientes.

Fechamos para o almoço e fomos ao nosso carro de tacos favorito para comermos tacos mexicanos autênticos. Ou seja, nada de queijo ou alface americana, mas sim coentros, limão e rabanetes, do meu ponto de vista, uma troca mais do que justa.

O carro estava estacionado em um parque junto a uma padaria mexicana, do outro lado da ponte que atravessa o Rio Columbia, colocando-o em Pasco, mas só um pouquinho. Esse carro em particular era um pequeno trailer cheio de quadros brancos com o menu e seus preços.

A mulher de rosto doce que trabalhava lá mal falava inglês suficiente para atender aos pedidos, o que provavelmente não importava, uma vez que entre seus clientes eram muito poucos os que tinham o inglês como única língua. Disse qualquer coisa e me deu uma palmadinha na mão quando paguei, e quando observei o conteúdo do saco para me certificar de que as embalagens plásticas estavam incluídas, reparei que acrescentara dois dos meus tacos favoritos. O que comprovava que todo mundo, mesmo os que não sabiam ler jornais, tinham conhecimento da minha historia.

Zee dirigiu até o parque em Kennewick ao lado do rio, onde havia mesas de piquenique na margem para comermos. Suspirei enquanto caminhávamos ao longo da orla do rio entre o estacionamento e as mesas.

– Gostaria que não tivesse chegado aos jornais. Quanto tempo vai ser preciso até as pessoas se esquecerem e os olhares de pena acabem?

Zee sorriu de forma lupina. – Já tinha te falado, precisa aprender espanhol. Ela te deu os parabéns por tê-lo matado. E conhece mais alguns homens que podiam tirar proveito dos seus esforços. – escolheu uma mesa e sentou.

Sentei-me em frente a ele e pousei o saco entre nós. – Isso não é verdade. – eu não falo espanhol, mas todos aqueles que vivem em Tri-Cities durante muito tempo pegam algumas palavras, no final, não tinha dito muita coisa, mesmo em espanhol.

– Talvez não a última parte. – Zee concordou, retirando um taco de frango e espremendo uma rodela de limão sobre ele. – Apesar de eu ter visto no rosto dela. Mas a verdade é que disse “Bien Hecho”.

Conhecia a primeira palavra, mas obrigou-me a perguntar o que significava a ultima. Esperei até que a curiosidade forçasse as palavras a sair da minha boca.

– Que significa...? Bom...

– Bem feito. – seus dentes brancos se afundaram no taco.

Estúpida. Era estúpida em permitir que as opiniões das outras pessoas tivessem importância, mas ter alguém que não me via como uma vitima me animou muito. Depois de pôr molho picante no meu taco de carneiro, comi com apetite renovado.

– Acho. – disse a Zee. – Que hoje à noite vou ao dojo depois do trabalho. – já tinha faltado a sessão da manhã de sábado.

– Seria interessante assistir. – Zee comentou, tão próximo quanto podia chegar da mentira. Não tinha a menor vontade de observar um monte de pessoas excitadas em uma poça nociva de suor e fadiga (suas palavras). O mais provável era ter sido eleito meu guarda-costas além do tempo em que estava trabalhando.

 

 

Alguém tinha falado com todos eles. Consegui ver isso pela forma informal como me saudaram quando entrei no dojo. Os músculos do maxilar do Sensei Johanson se contorceram quando me viu, porém nos guiou através dos exercícios e alongamentos iniciais com a sua habitual perfeição cruel.

Quando começamos a trabalhar os socos, os músculos no fundo das minhas costas, que haviam estado tensos durante a semana passada, estavam relaxados e soltos. Após os primeiros dois combates, estava relaxada e incorporei a minha habitual relação de amor-ódio com o meu terceiro oponente, o devastadoramente poderoso cordão marrom que era o arruaceiro do dojo. Era cuidadoso, oh, tão cuidadoso, que o Sensei nunca tinha notado, mas ele gostava de machucar as pessoas... as mulheres. Além do full-contact{3} nas aulas do Sensei, Lee Holland era a outra razão pela qual eu era a única mulher no nível avançado. Lee não era casado, o que me agradava. Nenhuma mulher merecia ter de viver com ele.

Na verdade, gostava de lutar com ele a socos porque nunca me sentia culpada ao deixá-lo com marcas roxas. Também gostava do ar de frustração nos seus olhos quando seus golpes hábeis (sua corda marrom estava justamente acima da minha vermelha) não eram aplicados como deviam.

Hoje havia algo mais nos seus olhos quando observou os pontos no meu queixo, uma inflamação intensa que me assustou de verdade. Estava excitado com a idéia de eu ter sido estuprada. Ou isso ou com a idéia de eu ter matado alguém. Preferia que fosse a segunda, mas, conhecendo Lee, provavelmente seria a primeira.

– Você é fraca. – disse, sussurrando de modo que mais ninguém conseguisse ouvir.

Tinha razão ao que lhe despertara o interesse.

– Matei a ultima pessoa que achava isso. – repliquei, e apliquei-lhe um pontapé frontal com força no peito. Normalmente, ajustava a minha velocidade a algo mais humanamente possível. Mas seus olhos fizeram com que deixasse de me fingir humana. Não tenho força sobrenatural, mas nas artes marciais a rapidez também conta.

Estava me movendo a toda velocidade quando o contornei, aproveitei o fato de estar desequilibrado. As artes marciais praticadas em torneios têm dois oponentes de frente um para o outro, mas o nosso estilo nos encoraja a atacar por trás ou pelos lados, mantendo as armas do inimigo apontadas para o lado errado. Golpeei com força na parte de trás do joelho, forçando-o a cair no chão. Antes que ele pudesse reagir, pulei um metro para trás para lhe dar a possibilidade de se levantar, sendo isso apenas um confronto em um treino e não um combate até a morte.

No nosso dojo, praticávamos alguma luta corpo-a-corpo, mas não muito. O Shi Sei Kai Kan consiste basicamente em derrubar o adversário depressa e passar ao adversário seguinte. Foi desenvolvido para pensar no contexto de guerra, quando um soldado pode se ver na circunstância de enfrentar múltiplos adversários. A luta corpo-a-corpo deixa uma pessoa vulnerável ao ataque de outro oponente. E eu não tinha qualquer desejo de lutar de perto com Lee.

Rugiu com uma raiva carregada de humilhação e se lançou em mim. Bloqueio, bloqueio, giro e desvio, e o impedi de me tocar.

Alguém gritou bruscamente. – Sensei! Olha a luta do Lee.

– Basta, Lee! – berrou o Sensei do lado oposto do dojo, onde estivera treinando com alguém. – Basta!

Lee não pareceu tê-lo ouvido. Se não tivesse sido mais rápida do que ele, já estaria machucada. No andar das coisas, garanti que ele não conseguisse aplicar qualquer golpe. Pelo menos durante algum tempo, até eu ficar arrogante e presunçosa.

Deixei-me enganar pela simulação de um golpe com a sua mão direita e fui atingida no diafragma pela mão esquerda, caindo no chão. Ignorando o máximo que consegui a minha falta de fôlego, rolei e me coloquei de pé aos tropeços. E, enquanto rolava, vira Adam parado na soleira em seu traje de negócios.

E foi o que fiz. Acreditei que foi a presença de Adam que me deu a idéia. Passara algum tempo em seu dojo, na garagem, praticando um pontapé aéreo rotativo. Foi desenvolvido como uma forma de tombar um oponente do seu cavalo, um golpe sacrifical ao qual o soldado de infantaria não esperava sobreviver. Os guerreiros a cavalo eram mais valiosos como arma do que soldados da infantaria, portanto o sacrifício valia a pena. Nos tempos modernos, o pontapé é usado, sobretudo, em demonstrações em combate com outra pessoa hábil no chão é, por norma, muito lento e vistoso para ser útil. Muito lento, a menos que se desse o caso de a pessoa ser um coiote nas horas vagas e possuir uma rapidez sobrenatural.

Lee jamais esperaria que eu tentasse executá-lo.

Meu calcanhar atingiu o maxilar de Lee e ele colapsou no chão quase ao mesmo tempo em que decidi aplicar o golpe. Cai ao seu lado, ainda com dificuldade de respirar por causa da pancada que levara no diafragma.

Mal tinha caído e o Sensei já estava ao lado de Lee, verificando seu estado. Adam colocou a mão em meu abdômen, endireitou minhas pernas para facilitar a respiração. – Bonito. – disse. – Uma pena ter conseguido, se alguém merecia perder a cabeça... – não disse como brincadeira. Se o tivesse dito de forma um pouco mais acalorada, teria ficado preocupada.

– Ele está bem? – tentei perguntar, e ele deve ter compreendido.

– Perdeu a consciência, mas vai ficar bem. Nem sequer vai ficar com marcas no pescoço.

– Acho que você tem razão. – Sensei disse. – Ela conseguiu e colocou o pé de forma perfeita para um golpe de torneio. – segurou Lee enquanto o homenzarrão gemia e começava a se mexer.

Sensei olhou para mim e franziu o cenho. – Foi estupida, Mercy. Qual é a primeira regra de combate?

A essa altura, já conseguia falar. – A melhor defesa é o tênis mais rápido. – respondi.

Acenou afirmativamente com a cabeça. – Isso mesmo. Quando percebeu que ele estava fora do controle, que, estou certo, terá sido pelo menos dois minutos antes de eu notar porque estava ajudando Gibbs com seu pontapé para baixo, devia ter pedido ajuda e depois sair de perto dele. Não faz sentido algum ter deixado isso continuar até alguém se machucar.

Na linha secundária, Gibbs, o outro corda marrom, disse: – Ela lamenta, Sensei. Simplesmente confundiu as direções. Não parava de correr no sentido errado.

Houve uma risada geral e a tensão se dissipou.

O Sensei levantou-se e segui seu gesto. Olhou para Adam. Esse inclinou a cabeça, com o punho na palma da outra mão e olhos escondidos atrás de um par de óculos de sol que não estava usando na hora em que o vi na soleira. A maior parte dos lobisomens que conheço anda de óculos e chapéu que possa obscurecer seus olhos.

– Adam Hauptman. – disse. – Amigo da Mercy. Só estou aqui para assistir, a menos que se oponha.

Sensei era contador na vida cotidiana. Trabalhava para uma firma de seguros, mas aqui era o rei. Seus olhos revelavam calma e confiança enquanto encarava Adam.

– O lobisomem. – disse. Adam era um dos cinco ou seis do seu bando que decidira vir a publico.

– Isso mesmo. – Adam concordou.

– Então, porque não ajudou a Mercy?

– É o seu dojo, Sensei Johanson. – o Sensei ergueu uma sobrancelha e o sorriso repentino de Adam se dissipou. – Além disso, já a vi lutar. Ela é dura e esperta. Se achasse que estava em apuros, teria pedido ajuda.

Lancei os olhos em volta enquanto rolava e fiquei de pé, como nova exceto as belas marcas roxas que ia ficar na barriga. Zee tinha ido embora. Ele não teria ficado com Adam presente para assumir o papel de guarda-costas. Franzira o nariz com o cheiro de corpos suados quando entrara, sorte a sua estarmos atravessando um outono relativamente frio. No pico do verão, se sentia o cheiro do dojo a um quarteirão de distância, pelo menos eu sentia. Para mim, o cheiro era intenso, mas não desagradável, mas, com base nos meus companheiros alunos de karate, sabia que a maioria dos humanos detestava o cheiro quase tanto como Zee.

Acabado o drama, Adam voltou para a linha lateral, soltando a gravata e tirando o casaco por causa do calor. O Sensei nos mandou fazer trezentos pontapés laterais (Lee foi chamado da sua posição de vergonha para participar), primeiro para a esquerda, depois para a direita. Todos nós contamos em japonês, embora suspeitasse de que um falante nativo entrasse, provavelmente sentiria dificuldade em entender o que estávamos dizendo.

Os primeiros cem foram fáceis, com músculos quentes e flexíveis por causa da ginástica anterior, os seguintes... nem tanto. Algum lugar na casa dos 220, me perdi na dor ardente até quase sentir um choque quando paramos e mudamos de lado. Vagando por entre as filas de alunos (essa noite éramos onze), o Sensei foi ajustando a postura das pessoas conforme necessário.

Era possível distinguir aqueles que, entre nós, eram mais avançados, porque nosso pontapé número duzentos se parecia com o primeiro. Os pontapés dos alunos menos diligentes perdiam a altura e qualidade a medida que a exaustão começava a pesar. Ultrapassada a casa dos trezentos, ainda havia alguns alunos em boa forma, mas não era o meu caso.

Após a aula, as pessoas estavam muito ocupadas tentando evitar olhar descaradamente para o lobisomem, tentando ao mesmo tempo vê-lo bem, para prestarem qualquer atenção em mim. Troquei-me no banheiro com toda a calma, por cortesia, de modo que todos eles tivessem tempo para se trocar na antessala em frente ao dojo antes de eu sair.

O Sensei estava a minha espera quando emergi.

– Bom trabalho, Mercy. – disse com uma ênfase que me fez perceber que não estava falando de Lee. Era estranho o fato de me dirigir as mesmas palavras, em uma língua diferente, que a mulher do carro de tacos usara, e com o mesmo propósito.

– Se não tivesse feito isso. – inclinei a cabeça para indicar o dojo. – Naquela noite, teria sido eu a morrer e não quem me atacou. – fiz um gesto formal com ambos os punhos para baixo. – Obrigada pelos seus ensinamentos, Sensei.

Retribuiu o gesto, e ambos ignoramos os nossos olhares lacrimejantes.

Adam me esperava perto da porta principal, examinando cuidadosamente as unhas. Optara por se divertir com a circunstância de todo mundo observando, o que era bom. Ele tinha mau gênio. O suor escurecia sua camisa de algodão egípcio, e estava colada aos contornos de seus ombros e braços, anunciando a todo mundo que tinha um corpo duro.

Respirei fundo para refrear os ânimos e o apresentei. Apenas Lee o olhou nos olhos por mais do que um breve instante, e a principio pensei que Adam ia perder o controle. Dirigiu um sorriso assustador a Lee. Temia o que ele, qualquer um deles fosse dizer, por isso agarrei Adam pelo braço e o puxei porta fora.

Se fosse essa a sua vontade, Adam poderia ter me sacudido, mas ele se alinhou. Não tinha trazido meu carro porque o dojo ficara a uma caminhada curta, pelo campo e a estrada de ferro, da minha oficina. O SUV de Adam tão pouco estava lá.

– Veio em um carro diferente? – perguntei no estacionamento.

– Não, pedi ao Carlos que me deixasse aqui depois do trabalho para poder ir contigo a pé até a oficina. – Carlos era um de seus lobos, um dos três ou quatro que trabalhavam para ele em sua empresa de segurança, mas eu mal o conhecia. – Lembro-me de ter me dito que gostava de acalmar o espírito em uma caminhada.

Dissera isso há vários anos atrás. Ele tinha estado a minha espera na oficina com um aviso... Olhei para baixo, na direção do asfalto, e virei a cabeça para que não visse meu sorriso.

Tinha sido depois de eu tirar meu carro velho do celeiro e tê-lo colocado no meio do terreno para que Adam não tivesse como não vê-lo pelas janelas da sua casa. Andava dando ordens a torto e a direito e, conhecendo os lobos como conhecia, não me atrevera a desafiá-lo declaradamente. Em vez disso, sabendo quão organizado e arrumado era, torturara-o com o velho e maltratado Rabbit.

Passara pela oficina e encontrara o meu carro, mas não a mim. Nunca tinha dito isso, mas estava acreditando que teria me seguido até o dojo, e, em vez de se queixar do lixo móvel, me deu uma bronca sobre perambular sozinha a noite em Tri-Cities. Exasperada, rosnara em resposta. Dissera-lhe que optava pela caminhada não muito longa até a oficina como um relaxamento do espírito pós-exercício físico. Isso acontecera após o seu divorcio, mas não muito tempo. Há anos.

Após todo esse tempo, se lembrava.

– Porque você está toda orgulhosa? – perguntou.

Ele se lembrada do que eu lhe dissera, como se fosse importante para ele... mas eu era capaz de descrever a cor exata da gravata que usara nesse dia, o tom que a preocupação lhe imprimira na voz.

Não queria admitir que me sentia atraída por ele. Não quando era casado, e nem quando ficara solteiro. Fui criada por lobisomens, deixara-os, e não queria dar por mim novamente naquele ambiente claustrofóbico e violento. Sobretudo, não tinha o menor desejo de andar com um lobisomem Alfa.

E, no entanto, aqui estava eu, caminhando com Adam, que era tão Alfa como poderia ser.

– Porque não se intrometeu na minha luta com Lee? – perguntei mudando de assunto. Ele queria ter feito, essa era a razão pela qual colocara os óculos, para que ninguém visse que seus olhos tinham se iluminado, adquirindo a cor dourado do lobo.

Não respondeu de imediato. A rampa de acesso aos carros, através dos quais se chegava mais rapidamente a minha oficina, era inclinada, e o cascalho pequeno tornava um pouco difícil. Estava dolorida, portanto subi correndo. Meus quadris, cansados dos trezentos pontapés, protestaram contra o esforço adicional que estava pedindo, mas correr significava que a subida terminava depressa.

Adam correu a rampa com facilidade, atrás de mim, mesmo calçando sapatos de sola lisa. Havia algo no modo como me seguia que me deixou nervosa, como se eu fosse um veado sendo perseguido. Portanto, parei no topo e estiquei minhas pernas cansadas. Diabos que eu ia fugir de Adam.

– Você o tinha dominado. – Adam disse olhando-me. – É melhor do que você em termos de forma, mas ele nunca lutou pela vida. Não ia gostar da idéia de estar atada e sozinha com ele muito tempo, mas no dojo não tinha a menor chance. – a seguir, sua voz se tornou mais grave e o tom ligeiramente severo. – Se não tivesse sido estúpida, nem sequer tinha sido atingida. Não volte a fazer aquilo.

– Não, Senhor. – disse.

Tinha passado todo o dia tentando não pensar em Adam, uma vez que a cruz de ossos na minha porta tornava claro que Marsilia ainda tinha contas a acertar comigo. Eu sabia, apesar de Zee tentar investigar outras possibilidades, eu sabia que tinham sido os vampiros deixando a marca na oficina. E, assim como Tony disse, parecia uma ameaça de morte. Eu era uma mulher morta, era só uma questão de tempo. A única coisa que me restava fazer era arranjar uma maneira de evitar que outras pessoas morressem junto comigo.

Adam morreria pela sua parceira. Ele tão pouco me deixaria partir facilmente. Christy, a primeira mulher dele, não era a sua parceira, senão ainda estariam casados. Tinha que descobrir uma forma de desfazer o que fizera a noite passada.

Contudo, era difícil acreditar na morte com ele ao meu lado, com a rica luz solar de outono reluzindo seu cabelo escuro e iluminando seus olhos, tornando-o obliquo e realçando os pequenos traços de seu sorriso.

Pegou-me pela mão em um gesto casual do qual não tinha como escapar sem fazer confusão. Sobretudo, considerando que queria escapar. Inclinou a cabeça como se tentasse me analisar. Teria notado o que eu estava pensando? Sua mão era grande e quente. Os calos que tinha tornavam a pele tão áspera quanto a minha.

Desviei o olhar dele, mas me mantive de mão dada enquanto começava a descer o trilho que desembocava na minha oficina. Durante cerca de quatro passos, senti um incomodo, mas depois se adequou ao andar e, subitamente, o ritmo de nossos corpos se sincronizou.

Fechei os olhos, confiando que meu equilíbrio e Adam me manteriam na direção correta. Se eu chorasse, ele ia me perguntar o motivo, e não se consegue mentir a um lobisomem. Precisava distraí-lo.

– Está usando um perfume novo. – disse, constatando que minha voz estava rouca. – Eu gosto.

Riu, um som quente e ressoante que repousou em meu estômago como uma morna fatia de torta de maçã.

– Mais provável que seja o shampoo... – a seguir riu novamente e me fez perder o equilíbrio até esbarrar contra ele. Largou a minha mão e agarrou suavemente meu ombro mais distante com o braço atravessando minhas costas. – Não. Tem razão, tinha esquecido. Quando estava saindo de casa hoje, Jesse borrifou um spray qualquer em cima de mim.

– Jesse tem um gosto excelente. – comentei. – O suficiente para comer.

O braço ao meu redor enrijeceu. Pensei no que acabara de dizer e imediatamente senti meu rosto enrubescer. Em parte, era vergonha... mas em outra, não. Embora, não fosse o deslize freudiano que lhe chamara a atenção.

Adam parou. Uma vez que estava me abraçando, também parei. Fitei-o e acompanhei seu olhar, cravado em minha oficina.

Ooooops. Bom, vinha pensando em uma forma de distraí-lo de modo que não me perguntasse por que estava chateada. Essa não era a forma ideal de fazê-lo.

– Suponho que Zee não tenha lhe contado?

– Quem fez aquilo? – rosnou. – Foram os vampiros?

Como responder aquilo sem dizer uma mentira, que ele farejaria, ou daria inicio a uma guerra.

Se soubesse que Marsilia tinha conhecimento de que eu matara Andre, jamais teria dito a Adam que estava disposta a ser sua parceira. Outro lobo talvez compreendesse que uma guerra com os vampiros não iria me salvar, apenas faria com que mais pessoas morressem. Uma guerra com os vampiros aqui, em Tri-Cities, poderia se disseminar como uma praga por todo o território sob o domínio do Marrok.

Porém, Adam não deixaria a situação ficar por isso. E Samuel se colocaria ao seu lado. Eu jamais seria o grande amor da vida de Samuel, nem ele o meu. No entanto, isso não significava que ele não me amasse, tal como eu o amava. E Samuel meteria o seu pai, o Marrok, ao problema.

Não entre em pânico, faz de conta que está tudo normal, disse a mim mesma.

– Os vampiros fizeram algum trabalho de decoração na porta da minha oficina, mas a maior parte foi responsabilidade da prima de Tim e de um amigo dela. Pode ver no vídeo, se quiser. A mãe e as irmãs de Gabriel vão aparecer no sábado para ajudar a pintar a oficina. A polícia está cuidando do assunto, Adam. – a ultima frase, o disse por que ainda estava rígido. – Tony acha que é Natalino. Se calhar, vou deixá-la como está por uns meses.

Cravou os olhos em mim.

– Ela ainda acredita no primo, Adam. Ela acha que eu inventei tudo para me safar de uma acusação de homicídio. – falei para que ouvisse meu tom de compreensão em relação à situação difícil de Courtney, mesmo sabendo que Adam não aprovaria. No que diz respeito ao certo e errado, Adam via as coisas em preto e branco. Ficaria irritado com a minha atitude, e isso iria distraí-lo. Manter o enfoque em Courtney e longe dos vampiros.

Adam não relaxou, mas começou a andar.

Normalmente, tomo uma ducha na oficina após o treino, porém não queria que Adam visse de forma clara a cruz de ossos na minha porta. Queria que continuasse a pensar em outras coisas que não fossem vampiros até saber que opções eu tinha. Portanto, saltamos para o interior do meu Volkswagen Transporter (meu pobre Rabbit ainda estava sendo reparado por causa dos danos que um Fae havia causado na semana passada).

Talvez me mudasse. Se viajasse para o território de outro vampiro, isso poderia abrandar Marsilia, especialmente se fosse um vampiro que não gostasse dela. Fugir iria irritá-la, mas se ficasse, ela me mataria e Adam não aceitaria isso bem e muitas outras pessoas além de mim iriam morrer.

Podia tentar eliminar Marsilia.

Na verdade, considerei seriamente a possibilidade, o que revelava o quão desesperada eu estava. É verdade, eu matara dois vampiros. O primeiro, eu matara com muita ajuda e uma quantidade generosa de sorte. O segundo, eu matara enquanto ele dormia.

Tinha tantas possibilidades de eliminar Marsilia quanto a Medea de eliminar um puma. Talvez menos.

Enquanto pensava, tagarelei com Adam durante toda a viagem até em casa. Minha casa. A gasolina era cara, e ele não se importaria de percorrer a pé a curta distancia até a sua.

Se quisesse esperar enquanto eu tomava uma ducha, poderia caminhar com ele. Lancei os olhos ao céu e conclui que tinha tempo para tomar uma ducha sem correr o risco de Adam ser o primeiro a falar com Stefan.

Precisava descobrir o que significava o desenho na minha porta, e me certificar de que fugir daria resultado. Era possível que Stefan soubesse, mas não queria fazer nenhuma das perguntas em público. Descobriria uma forma de me encontrar com ele a sós quando chegasse a hora.

– Mercy. – Adam disse, interrompendo meu monologo sobre Karmann Ghias com motores a ar versus motores à água na hora em que virava para a minha rampa de entrada. Parecia simultaneamente deleitado e resignado. Era um tom que escutara muitas vezes.

– Hum?

– Porque os vampiros pintaram um par de ossos na sua porta?

– Não sei. – respondi em uma voz deliberadamente relaxada. – Nem sequer sei se foram os vampiros. A câmera não captou muito bem quem foi. Eu e Zee só achamos que foram os vampiros por causa do Stefan. Ainda assim ele vai verificar com Tio Mike para se certificar de que não foi um Fae.

– Eu não vou deixar que Marsilia te machuque. – disse em um tom baixo que usava quando fazia um juramento de honra.

Os lobos fazem isso, pelo menos alguns dos mais velhos. Não pensava que Adam fosse um deles. Ele era um modelo da década de 1950, preso eternamente a aparecia de alguém que está na casa dos vinte. Quando digo lobisomens mais velhos, refiro-me a muito mais velhos do que da década de 50, pelo menos com duzentos anos de idade.

Não que os homens modernos não tenham honra, o que acontece é que a maior parte deles não pensa dessa forma. Isso lhes dá uma flexibilidade que as gerações anteriores não tinham. Alguns dos lobos mais velhos levam seus juramentos muito, mas muito a sério.

O que eu não teria dado para ser estúpida a ponto de acreditar que Adam podia prometer que Marsilia não iria me matar, e ainda mais acreditar que ele não estava disposto a dar a própria vida para manter a sua palavra.

Não estava resignada ao meu destino ou coisa parecida, mas se havia uma coisa que aprendera ao ser criada por lobisomens tinha sido a necessidade de estar atenta as consequências prováveis e de minimizar os danos. E se Marsilia me queria morta... bom, essa era a consequência mais provável. Realmente provável. A ponto de eu sentir um novo ataque de pânico estúpido. Meu primeiro de hoje, descontando alguma falta de ar em uma ou oura ocasião.

– Ela não é estúpida a ponto de me atacar. – afirmei, abrindo a porta. – Especialmente, depois de saber que te aceitei oficialmente como companheiro. Isso me coloca sob proteção do seu bando. Ela não vai ter grandes chances de me fazer alguma coisa. – deveria ser verdade... mas eu estava acreditando que não seria assim tão fácil. – Quem está em problemas é o Stefan.

Saiu e esperou que eu contornasse a parte frontal do carro, depois perguntou: – Gostaria de sair comigo amanhã... para algum lugar simpático? Jantar e um pouco de dança.

Não era o que eu estava esperando que ele dissesse, não com aqueles olhos frios e avaliadores. Demorei um momento para mudar de assunto, minha morte iminente pelas mãos de Marsilia era um tanto preocupante.

Adam queria sair comigo.

Tocou meu rosto, ele gostava de fazer isso e vinha fazendo cada vez mais nos últimos tempos. Consegui sentir o calor dos seus dedos até a ponta dos pés. Subitamente, a idéia da proximidade da minha morte perdera a força.

– Sim. Seria bom. – levei a mão até a barriga para aliviar a sensação de borboletas que se instalara, sem ter certeza se era pela noção de ter outro encontro com Adam ou a consciência de que teria de acabar com ele antes de lhe trazer a morte, a ele e seu bando. Talvez tivesse que fugir essa noite, isso iria machucá-lo ainda mais agora que eu tinha concordado em sair com ele? Deveria arranjar um motivo que explicasse que o nosso futuro não iria existir?

De repente, ocorreu-me um pensamento. Se o magoasse, se o afastasse de mim com raiva... se importaria quando Marsilia me matasse, ou deixaria que o assunto passasse batido? Uma sensação de opressão, que recentemente se tornara familiar, começou a subir a partir do estômago, aquele ataque de pânico ameaçava a emergir.

– Preciso tomar uma ducha. – eu disse em voz firme. – Mas depois, gostaria de falar com Stefan.

– Sem problema. – replicou, subindo os degraus da minha casa. Abriu a porta e segurou-a para eu poder passar. – Eu fico a espera enquanto toma a ducha. Samuel não está em casa.

Não havia motivo para me sentir como uma presa de Adam, disse a mim mesma com firmeza enquanto passava por ele para entrar na minha casa. Não havia razão para sentir o olhar fixo de Adam em minhas costas. Ele não tinha como ler minha mente para saber que eu estava planejando fugir. No entanto, não me virei quando disse: – Sinta-se em casa, volto já. – e fechei a porta do banheiro, encostando-me a ela.

Primeiro esfreguei as mãos, usando uma escova áspera e Fast Orange{4}, para o que ainda restava da fuligem. Nunca conseguia tirá-la completamente, mas se Adam se sentia incomodado por andar com alguém que tinha sujeira na pele das mãos, nunca diria nada. Quando percebi que não iria conseguir limpá-las melhor, entrei no chuveiro.

Eu poderia mudar de idéia sobre ser companheira de Adam?

Não sou tão sensível a magia do bando quanto os lobisomens. Eles não falam muito sobre isso. Cheios de segredinhos, aqueles lobisomens. Tenho descoberto que existe muito mais por trás disso do que eu imaginava. Sabia que era possível um casal dissolver sua união, embora nunca tivesse conhecido algum.

A minha concordância teria sido reduzida a meras palavras, ou teria desencadeado um processo qualquer na magia do bando? O consentimento, isso eu sabia, era necessário para que muita da magia tivesse lugar. Sou imune a alguma magia. Talvez a união com um parceiro viesse a se revelar uma dessas coisas. Também sabia que a magia do bando operava de forma sutilmente diferente no Alfa comparativamente ao resto do bando. Adam tinha se ligado a mim declarando-me sua parceira perante o bando, e isso tivera um efeito na magia do bando e em Adam. Estava muito segura de que não era assim com a maioria dos lobos, que ambos tinham de concordar, e que o seu acasalamento era uma questão mais privada.

Franzi a sobrancelha. Havia uma cerimônia. Tinha quase certeza disso. Algo acontecia para transformar um par em um casal, e depois havia uma cerimônia qualquer reservada apenas aos lobisomens. Talvez Adam o tivesse feito ao contrário? Talvez acasalar com um Alfa não fosse nada diferente de acasalar com qualquer outro lobo.

Talvez eu fosse enlouquecer. Precisava de informação verdadeira, e não tinha idéia sobre a quem recorrer.

Não podia ser nenhum dos lobos de Adam, colocaria sua autoridade em cheque. Além disso, iriam contar que eu andava fazendo perguntas. Samuel tão pouco parecia uma boa opção, não logo após termos concordado em não tentar uma relação como casal. E Bran também não, pela mesma razão. Eu sabia que ele enviara Samuel para Tri-Cities na tentativa pouco sensata de provocar a nossa união. Não tinha certeza se Samuel lhe dissera que não tinha funcionado. Desejei, não pela primeira vez que meu padrasto, Bryan, ainda estivesse vivo. Mas cometera suicídio há muito tempo.

Voltei o rosto contra o jato quente. Ok, partamos do pressuposto que a questão da união não era permanente. O que eu poderia fazer para Adam me odiar?

Bom, certamente não ia dormir com Samuel. Ou machucar Jesse.

A água atingiu o ferimento do meu queixo, que começava a sarar, e inclinei a cabeça. Forçá-lo a me deixar parecia lógico, mas Adam não era o tipo de pessoa que partia quando as coisas ficavam ruins. E mesmo que conseguisse fazê-lo, ele não ficaria afetado se Marsilia me matasse? Talvez se eu tivesse alguns meses ou um ano para planejar as coisas, conseguiria me safar.

Eu poderia fugir? Com o meu saldo bancário, não passaria de Seattle.

O ameaçador ataque de pânico se esfumaçou e fui acometida pela sensação de alivio. Era a primeira vez que estar lisa tinha me feito feliz.

Podia ser uma mulher morta, mas iria ficar junto de Adam durante o tempo que me restasse.

Embora a mão de Adam estivesse com cortesia sob meu braço enquanto atravessávamos meu terreno em direção a cerca com arame farpado que separava nossas propriedades, havia um sentimento de posse no ar que parecia acompanhá-lo sempre. Minha, dizia.

Se a questão de Marsilia não existisse, sem duvida teria reagido mal aquela possessividade. Naquele estado das coisas, sentia-me triste por não poder simplesmente relaxar na segurança que ele representava... não sem arriscar que ele se machucasse por minha causa.

Senti novamente nós no estomago, e se não fosse capaz de controlar todas as emoções, ia ter aquele estúpido ataque de pânico, sem a proteção do som da água e da porta fechada do banheiro. Precisamente aqui, onde todo mundo podia ver. Ao lado do pobre Rabbit maltratado, com o número do telefone de Adam pintado no teto. Para se divertir ligue...

Parou.

– Mercy? Porque está tão zangada?

No fundo, sabia. Até eu conseguia sentir o cheiro, raiva, medo e... Eu tinha tudo, e não tinha nada.

Era muito. Fechei os olhos e senti o corpo tremer desesperadamente e minha garganta estreitar, recusando-se a permitir a passagem do ar...

Adam me agarrou no momento em que caí e me puxou de encontro a ele, à sombra do velho carro. Ele estava tão quente, e eu estava tão fria. Encostou o nariz em meu pescoço. Não conseguia vê-lo, a falta de ar manchou minha visão com pontos negros.

Ouvi o rosnado agitar o peito de Adam, e sua boca se fechou na minha, eu inalei profundamente pelo nariz. Conseguia respirar novamente e o peso no meu estômago desapareceu, e fiquei tremendo, com sangue, ou melhor, muco descendo pelo rosto.

Sentindo uma vergonha sem limites, me libertei do abraço de Adam sabendo, com humilhante certeza, que ele me soltara. Limpei o rosto na bainha da camisa e encostei-me no Rabbit, de bochecha contra o metal frio.

Fraca. Destroçada. Maldição. Maldita seja eu. Senti a onda se aproximando, do pânico, pronto para me tomar novamente. Desespero e raiva impotente... Estavam todos mortos. Todos mortos e a culpa era minha.

Mas ninguém estava morto. Não ainda.

Todos mortos. Todos os meus filhos, meus amores e a culpa era minha. Coloquei-os em risco e falhei. Morreram por causa do meu fracasso.

Senti o cheiro de Stefan.

Os olhos dourados de Adam se cruzaram com os meus, a cor servia de prova do domínio do lobo. Beijou-me novamente, pressionou uma coisa qualquer contra meus lábios, forçando a entrada dessa mesma coisa por entre meus dentes com o indicador e o polegar sem tirar a boca dele da minha.

Era um pedacinho de carne sangrenta que queimou minha garganta. Aquilo tinha um significado.

– Minha. – ele disse. – Não do Stefan.

A grama seca crepitou debaixo da minha cabeça e os grossos grãos de terra produziram um ruído semelhante a lixa que ecoou atrás de meus olhos. Lambi os lábios e senti o sabor de sangue. Sangue de Adam.

O sangue e a carne do Alfa...

– De hoje em diante. – Adam disse, sua voz me puxando de onde quer que estivesse. – Minha e só minha. Do bando e única amante. – ele também tinha sangue no rosto, bem como nas mãos com as quais tocara meu rosto.

– Eu sou sua e você é meu. – respondi, embora tenha sido uma voz seca que provocou um ruído pronunciando as palavras. Não sei porque respondi, só sei que fiz mecanicamente. Escutara essa cerimônia tantas vezes, a qual ele acrescentara a parte “única amante”.

Na hora em que me lembrei do motivo que não devia fazê-lo, do que significava, já era tarde.

Senti a magia me atravessar, me queimando, seguindo o caminho daquele pedaço de carne, e gritei enquanto tentava me transformar em uma coisa que eu não era. Do bando.

Senti todos através do toque de Adam e do sangue dele. Protegidos e governados por ele. Todos eles eram também meus agora, e eu deles.

Ofegante, lambi os lábios e fixei-me em Adam. Soltou-me, ficando em pé e se afastando de mim dois passos, deixando-me encostada a parte lateral do carro. Arrancara com o dente um pedaço de carne de seu antebraço.

– Ele não pode te ter. – me disse, seus olhos dourados indicando que o lobo ainda falava. – Não agora. Nunca. Não devo a ele isso.

Notei tardiamente o que acontecera. Limpei a boca com o pulso para me dar tempo para pensar. Meu pulso tinha adquirido cor rosa pelo sangue de Adam.

Stefan estava acordado... e, de algum modo que não sei explicar, invadira minha mente. Fora o ataque de pânico dele que eu senti.

Todos mortos... Tive uma intensa sensação de náusea e percebi a quem se referia. Eu conhecera algumas das pessoas, pessoas humanas, que alimentavam Stefan. Ficara sabendo o quão terrivelmente vulneráveis se tornavam se algo acontecesse ao vampiro que delas se alimentava e as protegia.

Lancei os olhos ao Sol se pondo.

– É um pouco cedo para um vampiro estar acordado, não? – perguntei.

Tempo para todo mundo se acalmar. Eu incluída.

A sensação de ligação ao bando estava se desvanecendo, mas nunca desapareceria completamente. Não agora que Adam me tornara membro do bando. Era mais comum fazê-lo em uma reunião com todo o bando, mas a presença deste não era necessária. Apenas uma porção da carne e do sangue do Alfa e uma troca de votos.

Não achava que fosse possível induzir alguém que não fosse lobisomem. Certamente não achava que ele fosse capaz de me tornar membro do bando. Por vezes, a magia tem um efeito estranho em mim, às vezes eu sou basicamente imune a ela. Porém, com base nos resultados que conseguia sentir, dessa vez funcionara com perfeição.

Adam se virou e parou, de costas voltadas para mim, de ombros caídos e mãos cerradas em punhos nos lados. Não respondeu a minha pergunta, mas, em um tom firme, disse: – Desculpa pelo que acabou de acontecer. Entrei em pânico.

Abaixei a testa de encontro aos meus joelhos.

– Tem sido um sintoma muito frequente nos últimos dias.

Ouvi os estalos da grama seca enquanto caminhava novamente em minha direção. – Está rindo? – parecia incrédulo.

Olhei para cima, diretamente para ele. Os últimos raios de luz desenhavam sua silhueta em tons dourados e obscureciam sua expressão. No entanto, conseguia detectar vergonha na posição dos ombros. Tornara-me membro do bando sem me consultar e também sem consultar o bando, embora isso não fosse estritamente necessário, apenas tradicional. Estava a espera que eu gritasse como achava que merecia.

Adam estava habituado a pagar as consequências das suas opções e por vezes opções difíceis. Vinha tomando várias decisões difíceis por mim nos últimos tempos.

Stefan estava tão profundamente dentro da minha cabeça que eu adquirira seu cheiro. E Adam me tornou membro do bando para me salvar. Estava preparado para pagar o preço, e tinha certeza de que haveria um preço definido. Mas não por mim.

– Obrigada, Adam. – disse. – Obrigada por ter feito Tim em pedaços. Obrigada por ter me forçado a beber uma última dose da poção Fae para poder usar ambos os braços. Obrigada por estar presente, e me aturar. – a essa altura, já não estava rindo. – Obrigada por impedir que eu fosse mais uma das ovelhas de Stefan. Entre isso e pertencer ao bando, prefiro mil vezes a segunda opção. Obrigada por tomar decisões difíceis, por ter me dado tempo. – levantei-me e caminhei em sua direção, inclinando-me contra ele e pressionando meu rosto em seu ombro. – Obrigada por me amar.

Envolveu-me em seus braços, apertando-me com uma força que senti dor nos ossos. Às vezes, o amor dói assim.


Capítulo 4

 

Teria adorado ficar ali para sempre, mas depois de alguns minutos senti um suor frio brotar em minha testa e minha garganta começou a estreitar. Recuei antes de me ver obrigada a fazer algo mais violento em relação à aversão ao toque que Tim deixara em mim.

Só depois de me desencostar de Adam que percebi que estávamos rodeados pelo bando.

Ok, quatro lobos não fazem um bando. Porém, não os ouvira chegar e, acredite em mim, quando se tem cinco lobisomens (incluindo Adam) por perto, uma pessoa se sente cercada e vencida por sua força.

Ben estava presente, com uma expressão alegre que simplesmente parecia inadequada a sua face de traços delicados, que por norma era zangada e amarga. Warren, o numero três de Adam, parecia todo um gato com seu creme. Aurielle, parceira de Darryl, tinha uma expressão neutra, mas havia algo na sua postura que me indicava que estava agitada. O quarto lobo era Paul, que eu não conhecia muito bem, mas o que conhecia não me agradava.

Paul, o líder da “Detesto Warren porque ele é homossexual” pertencente ao bando de Adam, parecia ter levado um golpe inesperado. Estava acreditando que dera um motivo para passar a ser a pessoa que mais odiava no bando.

Atrás de mim, Adam colocou as mãos sobre meus ombros.

– Meus filhos. – disse formalmente. – Apresento-lhes Mercedes Athena Thompson, nosso membro mais recente.

Seguiu um clima de grande embaraço.

 

 

Se não tivesse sentido anteriormente, pensaria que Stefan ainda estava inconsciente, ou morto, ou qualquer outra coisa, em virtude do Sol. Estava estendido sobre a cama da jaula, como um cadáver em um carro fúnebre.

Acendi a luz para vê-lo melhor. O fato de ter se alimentado tinha curado grande parte dos ferimentos mais visíveis, embora no rosto ainda permanecessem marcas vermelhas. Parecia ter perdido vinte quilos desde a última vez que o vira, como uma vítima de um campo de concentração que me perturbava a paz de espírito. Tinham lhe dado roupas novas para substituir as vestes imundas, rasgadas e manchadas, as abundantes peças de substituição que todos os outros lobos tinham. O que ele vestia era cinzento e ficara folgado.

Na sala de estar, no andar de cima, Adam presidia aquilo que rapidamente começava a se transformar uma reunião de todo o bando. Parecera aliviado quando sai para ver Stefan, julgo que sua preocupação era que alguém dissesse algo que pudesse ferir os meus sentimentos. Nesse sentido, me subestimava. As pessoas de quem eu gostava tinham a capacidade de ferir os meus sentimentos, mas quase completos estranhos? Estava pouco me lixando para o que eles pensavam.

Os bandos de lobisomens eram ditaduras, mas quando se estava lidando com alguns americanos criados com base na Declaração dos Direitos Humanos, tinha que agir com alguma cautela. Os novos membros eram geralmente anunciados como potenciais e não tanto como elementos efetivos. Uma certa prudência seria especialmente apropriada quando estava fazendo algo tão ousado como integrar um não-lobisomem no bando.

Nunca ouvira falar em alguém que tivesse feito isso. As parceiras não lupinas na verdade não faziam parte do bando. Tinham estatuto, como parceiras dos lobos, mas não pertenciam ao bando. Nem com cinquenta cerimônias de carne e sangue poderiam ser transformadas em membros do bando, a magia simplesmente não permitiria a entrada de um humano. Aparentemente, o fato de eu ser coiote me colocava em uma posição suficientemente próxima dos lobos para que a magia do bando permitisse a minha integração.

Talvez Adam também devesse ter discutido minha inclusão com Marrok.

Diante da casa, iam parando carros, mais membros do bando. Conseguia sentir o peso, a inquietação e a confusão. A fúria.

Esfreguei os braços nervosamente.

– O que está acontecendo? – Stefan perguntou em uma voz baixa e sã que teria me tranquilizado mais se ele tivesse mexido ou aberto os olhos.

– Além da Marsilia? – perguntei.

Nessa hora, olhou para mim, seus lábios curvando fracamente. – É mais do que suficiente, suponho. Mas Marsilia não é a razão pela qual a casa está cheia de lobisomens.

Sentei-me no chão atapetado e inclinei a cabeça de encontro às grades da jaula. A porta estava fechada e trancada, e a chave que por vezes se encontrava na parede do outro lado do corredor, não estava lá. Estaria na posse de Adam. No entanto, não era importante. Tinha certeza que Stefan poderia ir embora quando desejasse, da mesma forma que aparecera na minha sala de estar.

– Certo. – suspirei. – Isso também é culpa sua, suponho.

Sentou-se e inclinou-se para frente. – O que aconteceu?

– Quando saltou para dentro da minha cabeça. – disse. – Adam sentiu-se ofendido. – não expliquei exatamente como tudo tinha se desenrolado. A prudência dizia que Adam não ficaria muito satisfeito comigo se partilhasse questões do bando com um vampiro. – O que ele fez, e acho que vai ter que ser você a perguntar, trouxe o bando pra cá.

Franziu a sobrancelha, claramente intrigado, até que lentamente começou a perceber. – Desculpa, Mercy. Você não devia... Não era a minha intenção. – desviou a cabeça. – Não estou habituado a estar tão sozinho. Estava sonhando, e ali estava você, a única pessoa ligada a mim por um laço de sangue. Acho que também sonhei com isso.

– Ela matou todos mesmo? – sussurrei, recordando algumas das coisas que tinha me dado enquanto estivera dentro da minha cabeça. – Todas as suas... – ovelhas não era lá muito politicamente correto, e eu não queria citá-lo, mesmo sendo verdade que todos os vampiros chamavam de ovelhas os humanos que mantinham cativos para deles se alimentarem. – Todas as suas pessoas?

Tinha conhecido algumas delas, e gostara de uma ou duas. Todavia, por qualquer razão que desconhecia, em vez dos rostos das pessoas que conhecera, era do jovem vampiro Danny que eu me lembrava, seu fantasma balançando em um canto da cozinha de Stefan. Este tão pouco tinha sido capaz de protegê-lo.

Stefan lançou-me um olhar sinistro. – Disciplinando, dizia ela. Mas acho que foi mais vingança do que qualquer outra coisa. E eu consigo me alimentar deles a distância. Ela queria que eu estivesse faminto quando parei aos seus pés.

– Ela queria que você me matasse.

Acenou energicamente a cabeça. – É isso mesmo. E se não estivesse metade do bando do Adam em sua casa, era o que eu teria feito.

Considerei o olhar obstinado em seu rosto. – Acho que ela te subestimou.

– Será? – sorriu, só um pouco e balançou a cabeça.

Encostei a cabeça na parede. – Eu... – ainda estou zangada com você não era a expressão mais apropriada. Era um assassino de inocentes, e aqui estava eu falando com ele, preocupada com ele. Não sabia como completar aquele pensamento, muito menos a frase, portanto passei para um assunto diferente. – Portanto, Marsilia sabe que matei Andre e você e Wulfe encobriram isso?

Fez que não com a cabeça.

– Ela sabe de alguma coisa... não falou muito comigo. Eu fui o único que ela puniu, portanto não acredito que ela sabia de Wulfe. E talvez eu não... – olhou para mim de debaixo de sua franja, que crescera no dia anterior. Tinha ouvido dizer que uma ingestão intensa e continua de sangue podia provocar isso. – Fiquei com a sensação de que estava sendo punido por associação. Eu era o elo entre você e o ninho. Eu era a razão pela qual ela recorreu a você para pedir ajuda e te deu permissão para matar o animal de estimação de Andre. Eu fui a razão pela qual foi bem sucedida. Você é minha culpa.

– Ela é doida.

Balançou a cabeça. – Você não a conhece. Está tentando fazer o que é melhor para os seus.

O ninho de vampiros em Tri-Cities tinha se instalado naquela área antes de as cidades terem se edificado. Marsilia fora enviada para cá como forma de punição por ter andado dormindo com o favorito de outra vampira. Fora uma pessoa influente, portanto viera acompanhada de assistentes, basicamente que eu saiba, por Stefan e Andre (o segundo vampiro que matei) e um personagem verdadeiramente sinistro com nome Wulfe.

Wulfe, que tinha aparência de um garoto de dezesseis anos, tinha sido bruxo ou feiticeiro quando humano, e por vezes se vestia como um camponês medieval. Suponho que pudesse estar fingindo, mas suspeitava que era mais velho que Marsilia, cujo nascimento, a julgar pelas roupas, pertencia a época do Renascimento.

Marsilia fora enviada para cá para morrer, porém isso não aconteceu. Em vez disso, garantira a sobrevivência dos seus. À medida que a civilização começou a crescer, a vida no ninho se tornou mais fácil. Uma vez passado o período de luta pela sobrevivência, Marsilia se acomodara a uma apatia que se prolongou durante décadas, eu chamo isso de mau-humor.

Só recentemente começara a revelar interesse pelas coisas que aconteciam ao seu redor, e, em resultado disso, a hierarquia do ninho estava uma bagunça. Stefan e Andre tinham sido leais seguidores, mas havia outros dois vampiros que não ficaram particularmente satisfeitos ao ver Marsilia ativa e no comando. Conhecera-os: chamavam-se Estelle e Bernard, mas não sabia o suficiente sobre os vampiros para determinar até que ponto esses dois eram uma ameaça.

Na primeira ocasião em que conhecera Marsilia, de certo modo sentira admiração por ela... pelo menos até ter enfeitiçado Samuel. Isso me assustou. Samuel é o segundo lobo mais dominante da América do Norte, e ela e seus vampiros o dominaram... facilmente. Esse medo crescera a cada encontro.

– Não é para te contrariar, Stefan. – disse. – Mas ela é maluca. Ela queria criar mais daquelas... daquelas coisas que o Andre criou.

Seu rosto se fechou. – Não sabe o que está falando. Não faz idéia das coisas de que ela abdicou quando veio para cá, ou daquilo que fez por nós.

– É possível que não, mas eu conheci aquela criatura, e você também. Nada de bom poderia resultar da criação de mais uma. – a possessão demoníaca não é bonita. Inspirei fundo e tentei manter o sangue frio. Mas não fui bem sucedida. – Mas tem razão. Não sei o que a move. Do mesmo modo que não te conheço.

Limitou-se a olhar para mim, inexpressivo.

– Você brinca de humano com perfeição, conduz sua Máquina do Mistério de um lado para outro como o Salsicha. Mas o homem que eu achava que você era jamais teria matado as vítimas de Andre daquela forma.

– Foi Wulfe que os matou. – ele estava apontando um fato, não se defendendo. Isso me deixou furiosa, ele devia sentir a necessidade de se defender.

– Você concordou. Duas pessoas já tinham sido vítimas mais do que suficiente, e vocês dois partiram seus pescoços como se não passassem de galinhas.

Nessa hora, ele ficou furioso. – Eu fiz por você. Não percebe? Ela ia te destruir se tivesse descoberto. Eles não eram nada, eram menos do que nada. Pessoas da rua que acabariam morrendo sozinhas. E ela teria te matado! – estava de pé quando terminou.

– Não eram nada? Como você sabe? Não teve uma conversa apropriada com elas. – também me levantei.

– De qualquer forma, eles tinham que morrer. Sabiam da nossa existência.

– Nesse ponto, estamos em desacordo. – disse-lhe. – Então, e sobre o poder nas mentes humanas que você tanto se gabava?

– Só funciona se o contato conosco for muito curto... Uma dentada, não mais do que isso.

– Eram pessoas que estavam vivas, que respiravam, e que foram assassinadas. Por você.

– Como você sabe que a Mercy esteve na casa de Andre? – a voz calma de Warren, que descia as escadas, nos interrompeu como uma onda de água gelada. Passou por mim e usou a chave para abrir a porta da jaula. – Já faz muito tempo que venho me perguntando isso.

– Como assim? – Stefan perguntou.

– O que quero dizer é que nós soubemos que ela tinha encontrado Andre porque tinha dito ao Ben, pensando que ele não tinha possibilidade de contar a ninguém, uma vez que se mantivera na forma de lobo desde a morte do vampiro possuído pelo demônio. Ben se transformou para que pudesse nos informar, mas ainda assim não pudemos ir a procura dela porque não sabíamos onde Andre estava. Você não tinha como saber o que ela estava fazendo. Como tomou conhecimento de que ela estava matando Andre, mesmo a tempo de encobrir o crime?

Stefan não fez qualquer movimento para sair da jaula. Cruzou os braços e encostou um ombro as grades enquanto considerava a questão de Warren.

– Foi Wulfe, não foi? – perguntei. – Ele sabia o que eu andava fazendo porque uma das casas que eu fui era dele.

– Wulfe. – Warren disse lentamente, vendo que Stefan não respondia. – Ele é o tipo de homem que ficaria indignado se Marsilia ficasse com um demônio possuindo um vampiro? Que desejaria pará-la à custa da destruição de Andre? Que iria ajudar a fazer isso?

Stefan fechou os olhos. – Ele veio até mim. Disse que Mercy estava em problemas e era para ajudá-la. Só mais tarde que me perguntei por que ele teria feito isso.

– Já teve esses pensamentos antes. – Warren afirmou. – Então, o que você decidiu?

– Isso importa?

– É sempre bom conhecermos nossos inimigos. – Warren respondeu em seu arrastado e preguiçoso sotaque do Texas. – Quem são os seus?

Stefan lhe dirigiu um olhar de um urso pego em uma armadilha, todo frustração e ferocidade. – Não sei. – disse com os dentes cerrados.

Warren sorriu friamente, com um olhar severo. – Oh, acho que você sabe. Você não é estúpido, você não é uma criança. Você sabe como as coisas funcionam.

– Wulfe me usou para chegar a você. – eu disse. – Depois, contou a Marsilia o que tinha feito.

Stefan se limitou a olhar para mim.

– Contigo e o Andre fora de cena, restam Wulfe, Bernard e Estelle. – esfreguei as mãos e perguntei-me se o fato de saber o que acontecera traria algum bem a Stefan. Não alteraria as coisas, e saber que ele caíra na armadilha de Wulfe não ia ajudar Stefan agora. Ainda assim, assim como Warren dissera, é bom reconhecermos os nossos inimigos. – E quanto ao Bernard e a Estelle... Marsilia já não confia neles, certo?

Stefan acenou. – Sempre que podem, conspiram contra ela, e ela tem consciência disso. Não foram criação dela, foram dados como presentes por um vampiro a quem é difícil dizer não. Ela tem que cuidar deles, como faria com qualquer presente dessa natureza... mas isso não significa que tenha que confiar neles. O Wulfe... o Wulfe é um mistério até pra ele mesmo, acho. Acreditam que Wulfe arquitetou isso como forma de adquirir mais poder? – desviou o olhar e não falou durante um tempo, claramente pensando no que acabara de dizer.

Finalmente, abraçou as grades da jaula aberta. – O Wulfe já tem poder... Se quisesse mais, era só pedir. No entanto, parece que teve influência na minha queda por uma razão qualquer que conviesse.

– Se Marsilia sabe que você prestou auxilio na vez em que Mercy matou Andre, porque Mercy não está morta? – Warren perguntou.

– Ela devia estar morta. – Stefan replicou feroz. – Porque acham que Marsilia me deixou faminto até eu não ser mais do que uma besta devoradora, e depois me largou na sala de estar da Mercy? Não acham que fiz isso sozinho, acham?

Acenei. – Então, ela achava que podia resolver tudo sem custos para ela ou para o ninho? Se você tivesse me matado, ela podia ter alegado que tinha fugido enquanto estava te punindo. Teria sido uma pena aparecer em minha casa e me matar. Mas ela te subestimou.

– Ela não me subestimou. – Stefan disse. – Ela me conhece. – dirigiu-me um olhar que me fez perceber que meu comentário anterior sobre não conhecê-lo doeu. – Simplesmente, não estava a espera que o lobisomem Alfa estivesse em sua casa para cuidar dos planos.

Eu estive lá, e não acreditei que ele pudesse fazê-lo.

Dirigiu-me um sorriso de desprezo quando viu meu rosto. – Não desperdice seu tempo com noções românticas a meu respeito. Eu sou um vampiro, eu teria te matado.

– Ele é fofo quando fica furioso. – Warren observou secamente.

Stefan virou de costas. – Ela está completamente sozinha, e nem sequer tem consciência disso. – disse em tom angustiado.

Não estava falando de mim.

Tinha sido muito machucado ultimamente, e entendi que merecia um descanso, portanto voltei-me para Warren e perguntei: – Porque não está lá em cima na reunião?

Warren encolheu os ombros, seus olhos velados. – O chefe ficará melhor sem mim para agitar o barco.

– Paul me odeia mais do que te odeia. – disse orgulhosamente.

Lançou a cabeça para trás e riu, era o que pretendia. – Quer apostar? Eu chutei a sua bunda de uma maneira que ele foi a Seattle e voltou. Não morre de amores por mim.

– É um lobo. Eu sou uma coiote. Não há comparação possível.

– Ei. – Warren disse em tom zombeteiro. – Você não apresenta ameaça a masculinidade dele.

– Eu estou poluindo o bando. – repliquei. – Você é só uma aberração.

– Isso porque você o chamou de... Stefan?

Olhei em volta, mas o vampiro tinha desaparecido. Não tivera a oportunidade de lhe perguntar sobre a cruz de ossos na minha porta.

– Merda! – Warren exclamou. – Merda!

 

 

– Ligou para Bran? – perguntei a Adam na noite seguinte, puxando para baixo o meu vestido favorito, azul-esverdeado, até servir de barreira entre o assento de couro do SUV de Adam e minha pele nua.

Não tinha me dito aonde íamos em nosso encontro, mas Jesse me ligara assim que seu pai saiu para me descrever o que ele tinha vestido, portanto sabia que ia precisar de artilharia pesada. Apesar de partilharmos uma cerca, a distancia de carro é significativamente mais longa, e tivera tempo para me enfiar no vestido apropriado antes de ele estacionar à minha porta.

Adam usa ternos. Vai de terno para o trabalho, para as reuniões do bando, para os encontros políticos. Uma vez que seu horário de trabalho é basicamente o mesmo que o meu, isso significa seis dias por semana. Ainda assim, havia uma diferença entre seus habituais ternos de trabalho e aquele que ele usava essa noite. Os primeiros eram feitos para anunciar que estava perante alguém em posição de comando. Esse dizia: “E ele é sexy.” E era.

– Não há necessidade de ligar para Bran. – disse irritado enquanto nos metíamos na autoestrada. – Provavelmente, metade do bando ligou ao Bran assim que chegaram em casa. Ele vai me ligar quando achar que é a hora certa.

Provavelmente, tinha razão. Não tinha feito perguntas, mas seu rosto carrancudo na hora em que Warren e eu subimos do porão a noite passada, depois de todo mundo ter ido embora com exceção de Samuel, tinha dito tudo o que havia para dizer.

Samuel me beijara nos lábios para irritar Adam e me afagara o cabelo. “Aqui está você, lobinha. Ainda com talento natural para causar problemas, estou vendo.”

Aquilo era injusto. Os causadores disso tinham sido Stefan e Adam. Informei Samuel disso, mas só depois de ele ter me acompanhado de volta para casa.

Adam me ligou uma vez, durante a tarde, para se certificar de que eu me lembrava de que íamos ter um encontro. Ligara imediatamente para Jesse dando ordens para que me dissesse o que seu pai vestia. Fiquei lhe devendo cinco dólares, mas valeu a pena ver Adam sorrir quando pulei para o interior de seu SUV.

Mas rapidamente o sorriso desapareceu com um beijo meu. O seu Explorer ainda tinha uma depressão no para-choque da vez em que um dos lobos o atingira, após ter sido arremessado por um Fae zangado. Culpa minha. Portanto, lhe perguntara se ele já tinha uma estimativa dos custos do conserto, e, em resposta, rosnou para mim. Depois disso, perguntei por Bran.

Até o momento, o nosso encontro estava correndo as mil maravilhas.

Voltei a ajeitar o vestido. – Mercy. – Adam disse, com um tom ainda mais rabugento.

– O que? – se desse uma patada em sua direção, a culpa era dele por ter resmungado comigo em primeiro lugar.

– Se não parar de mexer nesse vestido, vou arrancá-lo e não jantaremos.

Olhei para ele. Estava de olho na estrada, e ambas as mãos estavam no volante... mas assim que prestei atenção, percebi o que tinha feito. Eu. Com resquícios de graxa debaixo das unhas e pontos no queixo.

Talvez não tivesse arruinado completamente nosso encontro. Voltei a abaixar o vestido lentamente, resistindo com sucesso ao impulso de levantá-lo ainda mais apenas porque não tinha certeza se seria capaz de lidar com o que poderia acontecer. Pensava que Adam estava brincando, mas... Desviei a cabeça na direção da janela e tentei conter um sorriso.

Levou-nos ao restaurante que acabara de ser inaugurado na zona ocidental de Pasco, que estava em crescimento. Há escassos dois anos era praticamente um deserto, mas agora tinha restaurantes, uma sala de show, uma Lowe’s{5} e... um Wal-Mart super grande (palavras de Jesse).

– Espero que goste de comida tailandesa. – estacionou na zona oeste do estacionamento, no meio do nada. A paranóia tem manifestações curiosas. A mim, provocava ataques de pânico, a ele, o fazia estacionar em locais que lhe possibilitassem uma fuga rápida. Ambos tínhamos paranóias, seria um “felizes para sempre” impossível para nós?

Pulei do carro e disse em um tom adequadamente resoluto: – Tenho certeza que eles têm hambúrgueres.

Fechei a porta enquanto ele exibia uma expressão estupefata. Ouviu-se um estalo das portas travando, e ali estava ele, com os braços em meus quadris... e um sorriso grande.

– Você gosta de comida tailandesa. – disse. – Admita.

Cruzei os braços e ignorei a idiota balbuciante que não parava de guinchar “Estou encurralada por ele, encurralada” dentro da minha cabeça. O fato de ser ainda mais agradável ter Adam bem perto de mim ajudava. E Adam com um sorriso... bom. Tem uma covinha, só uma. E não precisa de mais nada.

– Jesse te contou, não contou? – eu disse em tom resmungão. – Da próxima vez que a vir, vou denunciá-la pela desbocada que é. Vai ver se não vou.

Soltou uma risada... e, em seguida, deixou cair os braços e afastou-se provando que se dera conta do meu habitual pânico. Agarrei-o pelo braço para provar que não estava assustada e o fiz contornar o Explorer em direção ao restaurante.

A comida era excelente. Tal como dissera a Adam, eles de fato tinham hambúrgueres. Embora não houvesse dúvidas de que seriam bons, nenhum de nós os pediu. Podia estar comendo algas marinhas e pó que ainda assim teria gostado.

Falamos sobre carros, e sobre como eu achava que o Explorer dele era um monte de lata e ele pensava que eu estava presa aos anos setenta. Eu apontei que meu Rabbit era um modelo respeitável dos anos oitenta, assim como a minha Transporter, e que as probabilidades de o seu SUV ainda estar vivo dali a trinta anos eram nulas. Especialmente, se seus lobos continuassem a ser arremessados contra ele.

Falamos de filmes e livros. Ele gostava, sobretudo, de biografias. A única biografia de que algum dia tinha gostado tinha sido Carry on, Mr. Bowdi-tch{6}, que lera no sétimo ano. Adam não lia ficção.

Entramos em uma discussão sobre Yeats{7}. Não sobre sua poesia, mas da sua obsessão pelo ocultismo. Adam considerava-a ridícula... Achei engraçado que um lobisomem pensasse isso e me meti com ele até ele notar o que eu estava fazendo.

– Mercy. – disse, e seu telefone tocou.

Bebi um gole de água e me preparei para ouvir a conversa. Mas, afinal, foi muito curta.

– Hauptman. – atendeu.

– É melhor vir aqui, lobo. – disse uma voz desconhecida, desligando em seguida.

Olhou para baixo na direção do número e franziu a sobrancelha. Levantei-me e contornei a mesa para poder ver por cima de seu ombro.

– Foi alguém que ligou do Tio Mike. – informei, tendo memorizado o número.

Adam arremessou algum dinheiro sobre a mesa e saiu pela porta veloz. Com o rosto severo, avançou com o seu Explorer por entre o trânsito acima do limite da velocidade. Tínhamos acabado de sair da interestadual quando algo aconteceu... senti uma onda de raiva e horror, e alguém morreu. Um dos lobos do bando.

Pus a mão na perna de Adam, nela cravando as unhas em virtude da tristeza e da fúria que passou pelo bando. Acelerou fundo e deslizou pelo trânsito da noite como uma enguia. Nenhum de nós pronunciou uma única palavra durante os cinco minutos que levamos para chegar ao Tio Mike.

O estacionamento estava repleto de SUV e caminhonetes, tipo mais comum entre os Fae. Adam não se deu ao trabalho de estacionar, simplesmente seguiu direto para a porta e parou. Não esperou por mim, mas não tinha que fazê-lo. Estava atrás dele quando passou disparado pelo porteiro.

O porteiro nem sequer protestou.

O bar cheirava a cerveja, asinhas de frango fritas e pipoca, odores comuns a qualquer outro bar de Tri-Cities, exceto o fato de também cheirar a Fae. Não sei se organizam dessa ordem, mas normalmente o cheiro que sinto dos Fae corresponde aos quatro elementos propostos pelos filósofos: terra, ar, fogo e água, com uma dose razoável de magia.

Nenhum desses cheiros me incomodava... apenas o do sangue.

A voz de comando do Tio Mike fez com que as pessoas recuassem e a multidão se comprimisse até que Adam e eu ficássemos bloqueados. Foi essa hora que Adam perdeu a cabeça e desatou a arremessar pessoas pelo ar.

Não é propriamente uma coisa prudente para se fazer no Tio Mike. A maior parte dos Fae que conheci não estava a altura de um lobisomem... mas há ogros e outras coisas mais que em nada se distinguem dos demais até ficarem irritados.

Ainda assim, só quando Adam começou a se transformar, rasgando o seu terno cor de carvão, ‘’e que percebi que algo mais acontecia além de ele ter perdido a cabeça.

– Adam! – não serviu de nada, minha voz se perdeu no ruído da multidão. Pus a mão em suas costas para não me perder dele, e foi então que senti.

Magia.

Afastei a mão. Não parecia ser magia Fae. Olhei em volta a procura de alguém que estivesse particularmente concentrado em Adam, mas não consegui detectar ninguém entre a multidão.

No entanto, vi um pequeno saco de lona pendurado em um lugar atrás de nós. Mais ou menos no mesmo lugar onde Adam começara a fazer uso da força física para avançar por entre a multidão. O teto do Tio Mike era cerca de quatro metros do chão. Não tinha como alcançar aquele saco sem uma escada, e não ia tão cedo arranjar uma maneira de encontrar uma escada.

Um homem esguio, quase afeminado, passou por baixo do saco enquanto o observava. Deteve o passo, lançou a cabeça para trás e soltou um rugido. Um som tão poderoso que se sobrepôs a todo ruído do edifício, fazendo balançar a estrutura. Seu glamour, a ilusão que lhe dava aparência humana se estilhaçou, e estou capaz de jurar que dele iria brotar uma mancha de pó reluzente.

Era enorme, uma fantasmagórica massa cinzenta e azul, com uma forma ainda vagamente humana, porém parecia que o seu rosto derretera, deixando apenas algo quase imperceptível no lugar onde deveria estar seu nariz. A boca era muito fácil de localizar, seria difícil reparar em todos aqueles dentes enormes. Olhos prateados, muito pequenos para o rosto imenso, cintilavam por baixo de grandes sobrancelhas azuis. Agitou-se, como se se sacudisse, e o pó reluzente se espalhou novamente, derretendo a medida que tocava em superfícies mais quentes. Expelia neve. No silencio que se seguiu, uma voz rabugenta disse: – Que diabos, é um elfo da neve. – não consegui ver quem falara, mas o som parecia proveniente de um lugar próximo do recém-emergido monstro.

Rugiu novamente e abaixou, levantando uma mulher pelo cabelo. Esta estava mais furiosa do que assustada e, sacando uma arma, cortou o próprio cabelo, caindo e desaparecendo novamente de vista. A coisa, nunca tinha ouvido falar de um elfo das neves, agitou o cabelo que segurava e atirou-o atrás de si.

Olhei novamente para Adam, mas durante os breves momentos em que desviara a atenção dele, desaparecera, deixando atrás de si apenas um rastro de corpos sangrentos, a maior parte dos quais ainda de pé e furiosos. Olhei para o elfo e para o saco acima de sua cabeça.

Ninguém estava de olhos em mim, não com um lobisomem violento e um abominável homem das neves na sala. Despi o vestido e o sutiã, pulei dos sapatos e tirei a calcinha o mais depressa que consegui. Não sou uma mulher-loba, minha transformação em coiote acontece em um piscar de olhos e traz satisfação em vez de dor. O elfo das neves ainda estava debaixo do saco quando dei um salto, parei nos ombros de alguém e procurei Adam.

A multidão estava tão comprimida que parecia estarmos em um concerto do Metallica, e havia uma fileira de cabeças e ombros entre eu e o elfo das neves, que tinha no mínimo três metros de altura, parecendo ter o dobro da dimensão do resto das pessoas.

Viu que eu me aproximava e esticou o braço para me agarrar, porém sou rápida e não conseguiu. Na verdade, provavelmente não conseguiu porque não sabia que eu ia saltar para o seu ombro e lançar-me na direção do pequeno saco, e não tanto em virtude da minha rapidez e destreza. Aquele maldito Fae, que mais parecia uma montanha, também era rápida.

A magia passou por mim furiosamente assim que agarrei o saco pelas presas. Balancei-me por um momento até que a corda que o segurava rompesse. Caí e esperei que as mãos gigantes do elfo das neves me esmagassem, mas foi Tio Mike em pessoa que me agarrou no ar e me jogou em direção a porta.

Assim que agarrei o saco, sabia que estava certa ao pensar que era uma espécie qualquer de feitiço perverso dirigido aos lobos. Não sei como que Tio Mike também tinha conhecimento disso, mas rosnou: – Leve isso daqui. – a seguir, desapareceu por entre a multidão.

Como um poema do Dr. Seuss, debati de todas as maneiras possíveis e imaginarias até sair pela porta. Teria me sentido melhor se não soubesse que alguém que conhecia, porque eu conhecia o grosso do bando de Adam, pelo menos de vista, estava morto. Teria me sentido melhor se não tivesse o gigantesco e enraivecido elfo das neves me seguindo a toda velocidade.

Nunca conhecera ninguém que se chamasse a si mesmo de elfo, portanto supus que a minha visão estivesse sendo condicionada pela versão que Peter Jackson criara das personagens élficas de Tolkien. A coisa que estava me seguindo como um comboio desenfreado não se encaixava minimamente na minha compreensão do termo.

Mais tarde, se sobrevivesse, talvez fosse me divertir com a cara do porteiro, que de repente percebeu o que vinha em sua direção, instantes antes de começar a correr. Ultrapassei-o enquanto ambos saltávamos o curto degrau de acesso ao pavimento, a seguir a porta. Correu comigo um par de passos até se dar conta que o elfo estava atrás de mim e desviar subitamente à direita.

O corredor de acesso a rua abrandou o monstro. Bateu nele com o ombro, levando sua frente toda na parede de entrara à medida que abandonava o edifício. Atirou o pedaço de parede na minha direção, mas pulei pela porta meio aberta uma segunda vez, mesmo antes de aquele atingir o chão. Atravessei a rua a toda velocidade e por um triz não fui atingida por um caminhão que se dirigia para a zona industrial, que ficava logo depois do Tio Mike. Em segurança no lado oposto, lancei os olhos para trás, parando em seguida.

O homem elfo das neves estava de joelhos na zona limite do estacionamento, agitando a cabeça como se estivesse ligeiramente aturdido. Olhou para cima na minha direção. Os olhos prateados permaneciam iguais.

– Está tudo bem com você? – perguntou. – Peço desculpa, peço imensas desculpas. Não me sentia assim desde... desde a minha última batalha. Não a machuquei, não é? – seu olhar se deteve nos pedaços de parede e porta que restavam do míssil que me arremessara.

Os efeitos do pequeno saco eram evidentemente limitados pela distância.

Deixei cair o saco no chão, sacudi o corpo e lhe dirigi um uivo que significava que tudo estava bem. Não tinha certeza se tinha notado a mensagem, mas não tentou atravessar a estrada atrás de mim. Teria voltado a minha forma humana, mas minhas roupas, meu vestido favorito, um par de caros (mesmo em saldo) sapatos italianos e minha roupa de baixo ainda estavam em algum lugar no bar. Não sou pudica, mas o elfo das neves e eu não nos conhecíamos ao ponto de eu ficar nua na sua frente.

Quando as pessoas começaram a sair, ele estava tentando minimizar os danos que provocara. Um dos membros do pessoal do Tio Mike, facilmente distinguível da clientela pelo distinto gibão verde, estava no limite do estacionamento e com as mãos fazendo um gesto com que me afastasse. Pensei que fosse o porteiro, mas teria que voltar e ver o rosto congelado de pavor para ter certeza.

Peguei o saco e me afastei dez metros de distância, até meu rabo bater em um velho armazém.

O estacionamento do Tio Mike foi se esvaziando gradualmente, com os empregados do bar coordenando o trânsito e ajudando o elfo das neves na sua tarefa de limpeza. O carro de Adam permaneceu ali em seu esplendor solitário.

Assim como o Jeep de Mary Jo. O carro que fizera um check-up geral gratuito quando ela ocupara a função de minha guarda-costas. E gosto de Mary Jo. É bombeira, tem um metro e sessenta de músculo sólido e nervos de soldado.

Um dos membros do bando estava morto. No repentino silêncio da noite, conseguia sentir a onda de pesar se disseminar através do bando à medida que seus membros se consciêntizavam da ausência de um dos seus. Eles sabiam quem tinha morrido, mas eu não estava suficientemente familiarizada com a magia do bando para ter certeza. A única referência que tinha era o carro de Mary Jo.

Restavam apenas seis carros no estacionamento quando Tio Mike emergiu do buraco que há algum tempo tinha sido a porta. Deu uma palmada no ombro do elfo das neves antes de saltar por cima do pequeno muro de cimento que delimitava o estacionamento e atravessou a rua em minha direção. Nas mãos dele, estava meu vestido.

Transformei-me, agarrei o vestido e o vesti. Sem sutiã, sem calcinhas, mas pelo menos não estava nua. Chutei o saco em direção ao Tio Mike.

– O que aconteceu?

Curvou-se e pegou o saco. Seu rosto comprimiu-se e emitiu um som grave e irritado... mais parecido com um leão ou um gato grande de qualquer espécie do que qualquer outra coisa que algum dia ouvi.

– Teia de aranha. – disse. – Poderia jogar essa magia nefasta no rio?

Algo pequeno e brilhante, mais ou menos do tamanho de um vagalume (não existem vagalumes em Tri-Cities), pousou no saco, depois, tanto ele como o saco desapareceram.

– Também te afetou? – perguntei.

Não sei que tipo de Fae Tio Mike era. Algo suficientemente poderoso para controlar uma taberna cheia de Fae bêbados sete noites por semana.

– Não. – respondeu. – O que acontece é que foi colocado em meu território, e eu não senti.

Limpou o pó das mãos, e seu rosto readquiriu a sua habitual expressão alegre, porém já vira através daquela fachada algumas vezes, pelo que sua máscara de afável taberneiro não me tranquilizou da mesma forma que da outra vez. Quando se trata de Fae, é importante não esquecer que nunca se deve acreditar no que se vê.

– Coiote esperta. – disse. – Nem sequer confirmei se havia uma causa para as rosnadas deles, simplesmente presumi que estavam tendo um acesso de mau-humor, como acontece com os lobisomens... e quando intervim já era tarde demais.

– O que aconteceu? – perguntei novamente, mas, ao ver que ele não respondeu imediatamente, fiz um gesto impaciente com a minha mão e atravessei a rua correndo, descalça e continuei pelo estacionamento até o bar.

No interior, com exceção da parede em falta atrás de mim, o cenário não era assim tão ruim, uma taberna grande e vazia depois de duas equipes de futebol americano terem se embebedado e divertido a noite toda. Equipes de jogadores verdadeiramente grandes, pensei, olhando para a viga que o elfo das neves destruíra com a cabeça, elefantes talvez.

Adam, novamente em plena forma humana, estava sentado com as costas repousadas no degrau do palco no lado oposto da sala, de braços cruzados ao nível do peito. Alguém lhe arranjara um par de calças jeans. Não que ele estivesse zangado... apenas bem próximo disso.

Ao seu lado, estavam dois dos seus lobos, Paul e um dos seus amiguinhos. Paul parecia doente, e o outro homem, cujo nome me escapava, estava muito quieto.

Não conseguia ver quem era, mas sabia. O carro de Mary Jo no estacionamento me disse. Estavam todos manchados de sangue. Adam nas mãos e Paul na camiseta. O outro homem estava ensopado de cima abaixo.

Os lobos não eram os únicos a sangrar. Parecia que estava sendo feita uma triagem no lado oposto do edifício. Reconheci a mulher que cortara o próprio cabelo para se libertar, porém parecia ser uma das pessoas que prestava auxilio e não uma vitima.

Adam olhou para cima e me viu, seu rosto inexpressivo.

Havia vidros espalhados pelo chão, e eu tinha os pés descalços, mas seria preciso mais do que isso para me deter.

O amigo de Paul estava chorando compulsivamente. – Não era minha intenção. Não era minha intenção. Lamento tanto. – estava embalando o corpo que sobrava, o corpo de Mary Jo, ao mesmo tempo em que se desculpava uma e outra vez.

Não tinha como chegar perto de Adam sem passar por Paul e seu amigo. Parei enquanto ainda estava fora de alcance deles. Não me parecia lá muito boa idéia oferecer a Paul um alvo fácil.

Tio Mike entrara a seguir, mas encaminhara-se para o outro grupo de seres naquela sala muito vazia, e quando veio até nós, trazia a mulher de cabelo cortado. Assim como eu, parou antes de invadir o espaço deles.

– Minhas desculpas, Alfa. – disse. – Meus convidados têm direito a uma noite segura, e alguém quebrou a hospitalidade para lançar um feitiço sobre seus lobos. Permita que reparemos os danos se isso estiver ao nosso alcance. – acenou para Mary Jo.

O rosto de Adam passou de carrancudo para determinado em um piscar de olhos. Levantou-se e tirou Mary Jo dos braços do lobo que a segurava.

– Paul. – disse, ao ver que o homem não a largava.

Paul agarrou as mãos do amigo, afastando-as. O corpo do homem, Stan, pensei, embora pudesse ser Sean, foi como que sacudido, depois desmoronou contra Paul.

Entretanto, a mulher protestava em uma rápida torrente de palavras russas. Não consegui entender o que dizia, mas percebi claramente sua recusa no rosto e na linguagem corporal.

– A quem acha que vão contar? – Tio Mike disparou. – Eles são lobisomens. Se forem falar com a imprensa para revelar que existe um Fae capaz de curar ferimentos mortais, nós podemos ir falar com a imprensa e contar aos humanos interessados a quantidade enorme de horrores que os lobisomens lhes esconderam com o máximo de cuidado.

Ela se virou para encarar os lobos com ferocidade no rosto, e em seguida simplesmente parou de falar quando me viu. Suas pupilas dilataram até os olhos ficarem totalmente negros.

– Você. – ela disse. Depois riu, um cacarejo que me eriçou os pelos da nuca. – Quem mais poderia ser.

Por alguma razão, o fato de ter me visto pareceu por fim aos seus protestos. Caminhou em direção de Mary Jo, que pendia sem energia nos braços de Adam. Como o elfo das neves fizera antes dela, a Fae lançou seu glamour, porém o dela gotejou da cabeça aos pés, formando por momentos uma espécie de poça, como se fosse feito de água e não de magia.

Era alta, mais alta do que Adam, mais alta do que Tio Mike, mas seus braços eram finos como cana, e os dedos que tocaram Mary Jo eram estranhos. Demorei algum tempo a perceber que cada um deles tinha uma falange a mais e uma pequena almofada na parte inferior, como uma lagartixa.

Seu rosto... era feio. A medida que o glamour foi se dissipando, seus olhos encolheram e o nariz cresceu a se pendurou sobre a boca de lábios finos, como o ramo de um velho carvalho.

Do seu corpo, à medida que o glamour desaparecia, uma luz lilás ascendeu-lhe dos pés aos ombros, descendo em seguida pelos braços até as mãos. Seus dedos almofadados viraram a cabeça de Mary Jo e tocaram-na debaixo do queixo, onde alguém (provavelmente o amigo arrependido de Paul) lhe cortara a garganta.

A luz nunca chegou a me tocar... mas podia senti-la. Como a primeira luz da manhã, ou o borrifo do mar salgado na minha face, acariciou-me agradavelmente. Ouvi Adam inspirar fundo, contudo sem tirar os olhos de Mary Jo. Passados breves minutos, do top de Mary Jo, começou a emanar um brilho branco na luz lilás da magia da Fae. O sangue que, na iluminação débil do bar, a fizera parecer escura, desaparecera.

A Fae afastou as mãos.

– Pronto. – disse a Adam. – Curei-lhe o corpo, mas terá que fazê-la recuperar o pulso e a respiração. Só se ainda não tiver partido completamente para o outro lado é que retorna... Não sou nenhuma deusa para andar distribuindo a vida e a morte.

– CPR. – Tio Mike traduziu.

Após Adam se ajoelhar, pousou Mary Jo no chão, inclinou-lhe a cabeça para trás e começou a reanimação.

– E se ela ficar com algum dano cerebral? – perguntei.

A Fae virou-se para mim. – Eu curei o corpo dela. Se lhe devolverem rapidamente oxigênio ao coração e aos pulmões, ela não sofrerá qualquer dano.

O amigo de Paul estava sentado ao lado de Adam, mas Paul se levantou e abriu a boca.

– Não! – eu disse em um tom de urgência. Ao receber minha ordem, seus olhos pestanejaram. Devia simplesmente ter deixado que Paul o fizesse, mas eu agora fazia parte do bando, independentemente da minha vontade, e isso significava salvaguardar o bando. – Não pode agradecer um Fae. – disse. – A menos que queira passar o resto da sua longa via como servo deles.

– Desmancha-prazeres. – a Fae replicou.

– Mary Jo é preciosa para o bando. – disse inclinando a cabeça. – A sua perda teria deixado uma ferida que demoraria meses para sarar. A sua capacidade de curar é um dom raro e maravilhoso.

Mary Jo arquejou e Paul se esqueceu de que estava zangado comigo. Ele não tinha nenhum significado especial para ela e ela não tinha nenhum para ele. Tinha um fraco por um lobo simpático chamado Henry, e Paul era casado com uma humana que eu nunca conheci. Mas Mary Jo pertencia ao bando.

Também teria me virado para ela, mas a Fae prendeu meu olhar. Sua boca e lábios finos se curvaram em um sorriso frio. – Essa é a tal, não é?

– Sim. – Tio Mike concordou cautelosamente. Normalmente, comportava-se como um amigo. A sua cautela me disse duas coisas. Que essa Fae podia me machucar e que Tio Mike, mesmo estando na sua zona de poder, na sua taberna, não se achava capaz de detê-la.

Olhou-me de cima abaixo com o ar de uma cozinheira experiente no mercado, examinando tomates a procura de defeitos. – Parecia-me impossível haver outro coiote imprudente a ponto de escalar um elfo das neves. Não me deve nada por isso, Homem Verde.

Já tinha ouvido Tio Mike ser chamado de Homem Verde. Ainda não sabia ao certo o que significava.

E quando a Fae aproximou aqueles longos dedos e me tocou, minha única preocupação era eu mesma. – Fiz por sua causa, coiote. Tem noção do caos que causou? A Morrigan diz que esse é seu dom. Imprudente, veloz e sortuda, tal como o próprio Coyote. Mas aquele velho Trickster{8} morreu em uma de suas aventuras... Você não terá a capacidade de se recompor com a chegada da aurora.

Não disse nada. Julgava-a apenas mais uma dos Fae de Tri-Cities, habitantes (na maioria) de Fairyland, a reserva Fae na saída de Walla Walla, construída ou para nos manter a salvo dos Fae, ou para manter os Fae a salvo de nós. A cura que aplicara a Mary Jo dera-me um indicio, curar através da magia não é um dom comum nem menor entre os Fae.

A cautela do Tio Mike me indicou que ela era assustadoramente poderosa.

– Voltemos a falar em uma próxima ocasião, Homem verde. – voltou a olhar para mim. – Quem é você, coiotezinha, para provocar tamanha consternação entre os Poderosos? Quebrou as nossas leis, contudo a desobediência as nossas regras nos beneficiou muito. Siebold Adelbertmiter é inocente e todos os problemas foram causados pelos humanos. Você tem de ser punida... e recompensada. – soltou uma risada, como se eu fosse muito divertida. – Considere-se recompensada.

A luz que continuara a redemoinhar em torno dos seus pés se agitou inquietamente e escureceu até se transformar em um circulo de pedra escura com cerca de noventa centímetros de perímetro e quinze de espessura. Solidificou-se debaixo dos meus pés, elevando-a aquela altura como o tapete de Alladin. A borda se curvou para cima e deu forma a um prato, a memória de uma historia antiga me fez notar o resto. Não era um prato, mas cimento.

E desapareceu. Não da maneira que Stefan conseguia desaparecer, mas tão veloz que meus olhos não conseguiram acompanhá-la. Já tinha visto um Fae voar pela matéria solida, pelo que não era uma surpresa testemunhar aquilo. O que foi bom, uma vez que acabara de ter uma surpresa terrível, não precisava de mais nenhuma.

A primeira regra relacionada com os Fae é que não devemos atrair sua atenção, mas ele não nos dizem como agir depois de o fazermos.

– Achava que a Baba Yaga era uma bruxa. – disse ao Tio Mike. – Quem mais andaria voando em um cimento gigante?

– As bruxas não são mortais. – disse. – É claro que ela não é uma bruxa.

Baba Yaga, figura nas historias de uma dezena de países espalhados pela Europa. Na maior parte delas, não é a heroína. Ela come crianças.

Olhei Adam de soslaio, mas ainda estava concentrado em Mary Jo. Ela tremia como alguém a beira da hipotermia, mas parecia ainda estar viva.

– E aquele saco? – perguntei. – E se alguém o pegar no rio?

– Alguns minutos de água corrente irão remover qualquer magia de um feitiço colocado dentro do pano. – Tio Mike explicou.

– Era uma armadilha para os lobisomens. – disse. Sabia disso porque o saco cheirava a vampiro. – Só a montanha móvel que foi afetada... porque ele e mais nenhum dos restantes? E que raios é um elfo das neves?

Nunca tinha ouvido falar em algo semelhante. Ao que sabia, “elfo” era um daqueles termos genéricos criados pelos humanos como forma de se referirem aos Fae.

– O governo. – Tio Mike começou, após uns instantes de silêncio para ponderar o que me contaria (fazer um Fae partilhar informações é mais difícil do que encontrar água no deserto). – Exige que nos registremos e lhe digamos que tipo de Fae somos. Portanto, escolhemos algo que seja apelativo para nós. Alguns escolhem um nome ou um título antigo... outros... inventam, da mesma maneira que os humanos inventam nomes para nós durante séculos. O meu favorito é o abominável “Jack, ligeiro”. Não sei o que é isso, mas temos pelo menos uma dúzia em nossa reserva.

Não consegui conter um sorriso. Nosso governo não sabia que estava com um problema nos braços, e tão cedo este iria se revelar.

– Então, ele inventou a parte do elfo das neves?

– Vai discutir com ele? Sobre o porquê de o saco destinado aos lobos ter funcionado?

– Eu tenho outra forma verdadeira. – pronunciou uma voz suave, com sotaque nórdico, atrás de mim. Não havia assim tantas pessoas capazes de se aproximarem furtivamente de mim, os meus sentidos de coiote me mantém bem alerta em relação ao que me rodeia, mas o certo é que não o ouvira se aproximar.

Era evidentemente o elfo das neves, ou sei lá que diabos era. Tinha uns centímetros a menos que eu, algo que poderia ter resolvido com a mesma facilidade com que Zee poderia ter livrado da sua careca. Supus que alguém cuja forma verdadeira, pelo menos uma delas, tivesse três metros de altura não se importaria de ser baixo.

Olhou-me e fez uma saudação, um daqueles movimentos abruptos e rígidos da cabeça e do pescoço que faz lembrar os praticantes de artes marciais.

– Fico aliviado por você ser rápida. – disse.

Apertei a mão que me estendeu, fria e seca. – Também fico aliviada por ser rápida. – repliquei com a máxima de sinceridade.

Olhou para Tio Mike. – Sabe quem colocou o feitiço? E era destinado aos lobisomens ou a mim?

Adam estava ouvindo a conversa. Não sei ao certo como notei, uma vez que ele parecia completamente absorvido pelos seus lobos maltratados. Mas havia alguma tensão em seus ombros.

Tio Mike balançou a cabeça. – Estava muito preocupado em me livrar dele. Os lobisomens selvagens já são maus o suficiente, mas um elfo das neves selvagem a solta na baixada de Pasco não é coisa que eu queira ver.

Eu sabia. O saco cheirava a vampiro.

O elfo das neves se ajoelhou ao lado de Mary Jo e tocou-a no ombro. Adam afastou-a delicadamente, colocando-a no colo de Paul, e ficando entre ela e o elfo das neves.

– Minha. – ele disse.

O elfo das neves levantou as mãos e sorriu discretamente, mas havia um quê de agressividade em suas palavras. – Não quero lhe fazer mal, Alfa. Não tinha intenção de provocar qualquer problema. Os dias em que vagava pelas montanhas com um bando de lobos em meu encalço já acabou há muito tempo.

Adam balançou a cabeça, mantendo os olhos fixos no inimigo. – Pode ser que isso seja verdade, mas ela é uma das minhas, e eu não sou um de vocês.

– Basta! – Tio Mike cortou. – Uma briga por noite já basta. Vai para casa, Ymir.

O elfo ajoelhado olhou para Tio Mike, e comprimiu os olhos por instantes, após isso exibiu um sorriso brilhante. Reparei que seus dentes eram muito brancos, apesar de um pouco tortos. Ficou de pé, usando apenas os músculos das coxas, como um praticante de artes marciais.

– Foi uma longa noite. – girou lentamente, fixando o olhar não apenas ao Tio Mike, os lobos e eu, mas todas as pessoas que estavam na sala, que, acabara de notar, nos observavam... ou se calhar observavam apenas os elfos. – Claro que está na hora de ir. Até breve.

Ninguém disse nada até ele abandonar o edifício.

– Ora, ora. – Tio Mike disse, soando mais irlandês do que o habitual. – Mas que noite.

 

 

Mary Jo se mexia, mas ainda estava atordoada quando a levamos para fora. Então Adam deu instruções a Paul e ao seu amigo (cujo nome, descobri, era Alec e não Sean ou Stan) no sentido de a levarem para a casa do Alfa. Paul e Alec deitaram Mary Jo no banco traseiro da loba e entraram em seguida.

Paul olhou para os meus pés.

– Não devia andar descalça por aqui. – apontou o chão. A seguir, fechou a porta do carro, rodou a chave na ignição, ligou os faróis e partiu.

– A intenção dele era te agradecer. – Adam comentou. – Eu direi isso também. Eu posso pensar em muitas coisas que preferia fazer ao invés de tentar defender Paul da Baba Yaga.

– Devia ter deixado que ele ficasse em divida com ela. – repliquei. – Teria facilitado minha vida.

Exibiu um sorriso e a seguir esticou o pescoço. – Essa noite poderia ter sido muito, muito ruim.

Eu estava olhando por cima do ombro dele, na direção de seu SUV. – Você concordaria com apenas um pouquinho ruim? Seu seguro não tem exceção para elfos das neves, certo?

A primeira vista, parecia que estava tudo bem, depois pensei que tinha apenas um pneu vazio. Mas agora conseguia ver que o pneu traseiro estava dobrado em um ângulo de quarenta e cinco graus.

Adam tirou o celular. – Isso nem sequer entra na escala de ruim para essa noite. – replicou. Colocou o braço livre ao redor do meu ombro, puxando-me contra ele enquanto a filha atendia ao telefone. Ele estava com o peito nu.

– Ei, Jesse. – disse. – Tivemos uma noite dos diabos e precisamos que venha nos buscar no Tio Mike.


Capítulo 5

 

– Ótimo encontro. – Adam murmurou. Por mais baixo que ele falasse, era inútil. Ambos sabíamos que grande parte do bando estava no interior da sua casa e nos ouvindo enquanto falávamos parados em sua varanda traseira.

– Ninguém pode te acusar de ser entediante. – disse rapidamente.

Riu com os olhos tranquilos. Tinha se lavado no banheiro do Tio Mike e vestira qualquer coisa assim que chegamos em sua casa. Ainda assim, sentia nele o cheiro de sangue.

– Precisa cuidar de Mary Jo. – disse. – E eu preciso ir para a cama. – ela sobreviveria, pensei. Mas sobreviveria melhor comigo em casa e não causando desordem no bando, que estaria forçando-a a lutar pela sobrevivência.

Abraçou-me por não ter dito tudo isso em voz alta. Ergueu-me até eu ficar nas pontas dos pés, enfiados em um par de havaianas de Jesse, e pousou-me logo em seguida.

– Antes de tudo, vai limpar esses pés para que nenhum dos cortes infeccione. Eu vou mandar Ben vigiar a sua casa até Samuel ficar satisfeito com o estado de Mary Jo e voltar para casa.

Adam me acompanhou com o olhar enquanto caminhava em direção a minha casa. Ainda não tinha percorrido metade do trajeto e Ben já estava ao meu lado. Convidei-o para entrar, mas ele balançou a cabeça.

– Eu fico aqui fora. – disse. – O ar da noite me mantém a cabeça desperta.

Lavei os pés e os sequei antes de ir para a cama. Estava dormindo antes que minha cabeça repousasse na almofada. Porém, acordei ainda durante a madrugada, percebendo que alguém estava no meu quarto. Embora tivesse me deixado ouvir atentamente, não conseguia ouvir ninguém, pelo que tive certeza que se tratava de Stefan.

Não fiquei preocupada. Os vampiros, com exceção de Stefan, não teriam conseguido passado o limiar da porta. Se fosse qualquer outra pessoa, teria acordado Samuel.

A atmosfera não me dava qualquer indício, o que era estranho, até Stefan tinha um cheiro. Inquieta, girei até ficar sentada e peguei a bengala, que decidira dormir comigo todas as noites. A maior parte das vezes, me dava um susto enorme quando isso acontecia, bengalas não deviam ter a capacidade de se movimentar sozinhas. No entanto, essa noite a madeira quente debaixo da minha mão me tranquilizou. Fechei a mão ao redor dele.

– Não precisa recorrer à violência, Mercy.

Devo ter saltado porque dei por mim de pé, com a bengala na mão. Foi então que percebi a voz que estava ouvindo.

– Bran?

E, subitamente, consegui sentir seu cheiro, menta e almíscar que me dissera “lobisomem”, em combinação com o cheiro agridoce que o caracterizava.

– Não tem nada mais importante para fazer? – perguntei acendendo a luz. – Assim como governar o mundo ou coisa parecida?

Não saiu de onde estava, encostado a parede, limitando-se a cobrir os olhos com o antebraço no momento em que a luz inundou o quarto.

– Eu estive aqui no fim de semana passado. – disse. – Mas estava dormindo e não deixei que eles te acordassem.

Tinha me esquecido. No meio da bagunça, entre Baba Yaga, Mary Jo, o elfo das neves, e os vampiros, me esqueci do motivo pelo qual ele viria me visitar em pessoa. De repente, suspeitei do braço que cobrira os olhos.

Dizer que os Alfas são protetores em relação aos seus bandos é pouco, e Bran era o Marrok, o lobo mais Alfa entre os Alfas. Nesse momento, podia pertencer ao bando de Adam, mas Bran me criara.

– Já falei de tudo com a minha mãe. – disse defensivamente.

Bran sorriu de orelha a orelha, abaixando o braço para revelar olhos cor de avelã, que pareciam quase verdes sob a luz artificial.

– Não duvido. Meu Samuel e o seu Adam andam te rondando e moendo seu juízo? – a voz era toda de (falsa) compaixão.

Bran é melhor do que qualquer outra pessoa que conheço, incluindo os Fae, para esconder o que é. Tinha aspecto de adolescente, tinha um rasgo no jeans acima do joelho, e alguém brincalhão usara um marcador para desenhar o símbolo da anarquia acima da coxa. Usava o cabelo desgrenhado. Era perfeitamente capaz de andar sempre com um sorriso inocente no rosto, e depois arrancar a cabeça de alguém.

– Está franzindo a sobrancelha. – disse. – Te intriga tanto assim que eu esteja aqui?

Deixei-me cair no meio do chão. É desconfortável para mim, estar muito tempo com Bran no mesmo quarto com a cabeça acima da dele. Em parte, isso se deve ao hábito, e em parte a magia que faz de Bran o líder de todos os lobos.

– Alguém te ligou para falar sobre a minha integração no bando de Adam? – perguntei.

Dessa vez, Bran soltou uma risada, seus ombros tremeram, e percebi o quão cansado estava.

– Ainda bem que te divirto. – disse carrancuda.

Atrás de mim, a porta foi aberta e Samuel disse alegremente: – Isso é uma festa privada ou está aberta para mais pessoas?

Que coisa legal, não? Em uma frase, aliás, em uma palavra “festa”, Samuel disse ao seu pai que não íamos falar sobre Tim ou o motivo pelo qual eu o matara, e que eu ia ficar bem. Samuel era bom nesse tipo de coisas.

– Entre. – disse. – Como está Mery Jo?

Samuel suspirou. – Pai, deixe-me dizer isso agora. Se eu morrer e um Fae se oferecer para me curar, prefiro que lhe diga para que não o faça. – olhou para mim. – Acho que com o tempo ela vai acabar ficando bem. Mas nesse momento, não está no seu melhor. Está atordoada e em choque em um grau que nunca tinha visto em um lobo. Pelo menos, já não está chorando. Adam, finalmente, forçou-a a se transformar, e isso ajudou muito. Está dormindo com Paul, Alec, Honey e mais alguns em um sofá gigantesco que Adam tem na sala de estar, no porão.

Dirigiu um olhar penetrante ao pai e depois se sentou no chão, ao meu lado e isso também era uma mensagem. Não estava entre Bran e eu, não exatamente. Mas podia ter se sentado ao lado de Bran. – Então, o que te trás aqui?

Bran sorriu, tendo recebido a mensagem que Samuel queria transmitir. – Não tem que protegê-la de mim. – disse suavemente. – Todos já vimos que ela é muito boa em se proteger.

Quando se trata de lobisomens, há sempre muito mais acontecendo em uma conversa do que palavras. Por exemplo, Bran acabara de nos dizer que tinha visto o vídeo do sistema de segurança, de mim matando Tim... e também de todo o resto. E que aprovara as minhas ações.

Isso não devia ter me agradado tanto, eu não sou uma criança. No entanto, a opinião de Bran ainda tinha um significado grande.

– E sim. – disse depois de um tempo. – Alguém me telefonou para falar sobre a sua integração no bando de Adam. Vários alguéns. Deixe que te conte as respostas às perguntas que me fizeram, e depois poderá transmiti-las a Adam. Não. Não fazia idéia que fosse possível integrar em um bando alguém que não fosse lobisomem. Especialmente você, sobre quem a magia pode ser imprevisível. Não. Uma vez consumada a união, apenas Adam ou você podem quebrar esses laços. Se quiser que te mostre como, eu faço. – fez uma pausa.

Balancei a cabeça. – Ainda não.

Bran exibiu um olhar divertido sob as sobrancelhas. – Tudo bem. Pergunta. E não, não estou chateado. Adam é o Alfa do seu bando. Não vejo em que medida que isso possa ter prejudicado alguém. – a seguir, mostrou um sorriso amplo, um dos raros sorrisos que possuía quando não estava encenando, apenas genuinamente divertido. – Talvez com exceção do Adam. Pelo menos, ele não tem um Porshe que possa chocar contra uma árvore.

– Isso foi há muito tempo. – repliquei irritada. – Paguei por isso. E depois de praticamente me ter desafiado a roubá-lo, não percebo porque está tão zangado com isso.

– Te dizer para não sair com ele não foi uma forma de te desafiar, Mercy. – Bran disse pacientemente... mas havia alguma coisa na sua voz.

Ele estaria mentindo?

– Foi sim. – Samuel interveio. – E ela tem razão, sabia que estava desafiando-a.

– Portanto, não tinha nenhuma razão para ficar tão chateado por eu ter quebrado seu carro. – eu disse em tom triunfante.

Samuel gargalhou sonoramente. – Você ainda não percebeu, não é Mercy? Ele nunca ficou chateado por causa do carro. Foi o primeiro a aparecer no local do acidente. Pensou que tinha morrido. Todos nós pensamos. Foi um acidente surpreendente.

Comecei a dizer alguma coisa e percebi que não podia. A primeira coisa que vira após me chocar na árvore tinha sido o rosto severo do Marrok. Nunca o tinha visto tão zangado, e, de tempos em tempos, fizera muitas coisas para dar mais raiva.

Samuel me deu uma palmadinha nas costas. – Não é todos os dias que te vejo sem palavras.

– Portanto, colocou Charles para me ensinar a reparar carros e dirigi-los. – Charles era o outro filho de Bran. Detestava dirigir, e até aquele verão achava que ele nem sequer sabia. Devia ter sido mais esperta do que isso. – Charles é capaz de fazer tudo. E tudo o que fazia, fazia muito bem. Essa é apenas uma das razões pelas quais Charles me intimida, a mim e todo mundo.

– Te mantive longe de problemas o verão inteiro. – Bran replicou presunçosamente.

Estava me provocando... mas também falava sério. Uma das coisas mais estranhas em ser adulta consiste em olhar para trás, para algo que se julgava saber, e descobrir que a verdade é completamente diferente daquilo em que sempre acreditara.

Isso me deu coragem para fazer o que fiz a seguir. – Preciso de um conselho. – disse.

– Claro.

Respirei fundo e comecei a relatar o fato de ter aniquilado as esperanças de Marsilia voltar para Itália, saltei o aparecimento de Stefan na minha sala de estar e a visita inesperada de uma antiga Nêmesis da faculdade, e terminei com a quase fatal aventura no Tio Mike e o pequeno saco que cheirava a vampiros e magia. Contei-lhe sobre Mary Jo e do medo que eu tinha de, ao falar a Adam do saco, poder causar uma guerra.

– Eu passo por lá e vejo o que posso fazer para ajudar Mary Jo. – Bran disse após eu ter terminado. – Conheço alguns truques.

Samuel pareceu aliviado. – Ótimo.

– Portanto. – disse a Bran. – A culpa é minha. Optei por ir atrás de Andre. Mas a Marsilia não está me atacando.

– Estava a espera que um vampiro fosse fácil de compreender? – Bran perguntou.

Acredito que estava. – Amber me da uma razão para sair da cidade durante um tempo. Sem mim por perto, é possível que Marsilia deixe todos os outros em paz. – e me daria a chance de pensar sobre minha resposta. Um dia ou dois para desenvolver algo que não conduzisse a mais matança.

– E dê a mim e Adam, a chance de preparar uma resposta apropriada. – Samuel grunhiu.

Comecei a protestar... porém eles tinham o direito de partir para a ofensiva. O direito de saber que eram alvos.

Desde que Mary Jo sobrevivesse, Adam não estaria em guerra com Marsilia. E se Mary Jo não sobrevivesse... Talvez Marsilia fosse louca. Eu testemunhara esse tipo de loucura no bando do Marrok. Onde os lobos mais velhos se dirigiam frequentemente para morrer.

– Se partir, Marsilia poderá interpretar isso como uma vitória. – Bran disse. – Não a conheço o suficiente bem para saber se no final isso te ajudará ou prejudicará. Acho que sair daqui durante uns dias é capaz de não ser má idéia.

Não disse que Marsilia iria deixar de visitar meus amigos, reparei. Estava muito segura que Tio Mike descobriria que os vampiros tinham usado sua taberna para atingir os lobos, e se eu pensava isso, Marsilia o teria feito. Devia estar com muita raiva para se mostrar disposta a enfurecer Tio Mike e encolerizar Adam de modo que chegasse a mim.

Era capaz de apostar que se eu partisse, ela esperaria, porque queria que eu testemunhasse a dor que a forçara a infligir nos meus amigos. Mas não tinha certeza. Ainda assim, mal não faria.

– O problema é que... há alguma coisa estranha na proposta de Amber. Ou se calhar, depois do que aconteceu com Tim... – engoli em seco. – Tenho medo de ir.

Bran me fitou com seus penetrantes olhos amarelos, claramente ponderando alguma coisa.

– O medo é uma coisa boa. – finalmente disse. – Te ensina a não cometer o mesmo erro duas vezes. É combatido pelo conhecimento. De que tem medo?

– Não sei. – o que não correspondia a resposta correta.

– Instinto. – Bran disse. – O que o seu instinto diz?

– Acho que talvez seja outra vez os vampiros. Stefan cai em meu colo para me dar um belo susto... e olha, aqui está uma saída. Da frigideira ao fogo.

Samuel balançava a cabeça. – Marsilia não vai te enviar para Spokane para ficar sem nossa proteção sem antes cuidar de você. Não que não seja uma boa idéia, mas talvez ela te enviasse para Seattle, ela tem alguns aliados lá. Mas em Spokane existe um vampiro, e ele não permite visitantes. Não há bandos, não há Fae, a não ser criaturas impotentes que conseguem se manter longe da vista dele.

Senti os olhos se ampliar. Spokane é uma cidade com quase meio milhão de habitantes.

– Isso é muito território para um único vampiro.

– Não para aquele único vampiro. – Samuel disse ao mesmo tempo em que Bran disse: – Não para Blackwood.

– Bom. – disse lentamente. – O que esse vampiro vai fazer se eu ficar em Spokane durante alguns dias?

– Como ele poderia saber? – Bran disse. – Cheira como coiote. No entanto, um coiote tem cheiro muito parecido com o de um cão ao olfato de alguém que não cace nas florestas, que é algo, posso te garantir, que James Blackwood não faz. E a maioria dos proprietários de cães cheira aos seus animais de estimação. Não gostaria que mudasse para Spokane, mas um par de dias ou semanas não vai te colocar em risco.

– Então, acha uma boa idéia eu ir?

Bran ergueu seu quadril e tirou o celular do bolso de trás.

– Você não os quebra assim? – perguntei. – Matei dois celulares por me sentar encima deles.

Limitou-se a sorrir e falou ao telefone: – Charles, preciso que descubra informações sobre uma tal de Amber... ? – olhou para mim e ergueu uma sobrancelha.

– Desculpa te acordar, Charles, Chamberlain era o nome de solteira dela. – informei ao irmão de Samuel me desculpando. – Não sei qual é seu nome de casada. – Charles ouvia tão claramente quanto eu o ouvia. Para se fazer um telefonema privado tendo lobisomens por perto era necessário um fone.

– Amber Chamberlain. – Charles repetiu. – Isso deve limitar a pesquisa para umas cem pessoas ou coisa parecida.

– Ela vive em Spokane. – disse. – Estudei com ela na faculdade.

– Isso ajuda. – informou. – Eu ligo de volta.

– Se arme com conhecimento. – aconselhou Bran depois de desligar. – Mas não vejo razão para não ir.

– Leve alguma garantia com você.

– É Stefan. – gritei. Antes de pronunciar a ultima palavra, Bran tinha Stefan encostado na parede oposta aquela que se encontrava.

– Pai. – Samuel também estava de pé, com uma mão no ombro do pai. Não tentou retirar as mãos de Bran do pescoço de Stefan. Isso teria sido estúpido. – Pai. Está tudo bem. Esse é Stefan, amigo da Mercy.

Após alguns segundos muito longos, Bran recuou e tirou as mãos da garganta de Stefan. O vampiro não lutou de volta, o que era bom.

Os vampiros são duros, talvez mais duros do que os lobisomens, uma vez que já estão mortos. Stefan tinha sido um dos números dois de Marsilia, poderoso por direito próprio. Em vida, fora um mercenário... na Itália Renascentista.

Mas Bran é Bran.

– Isso foi estúpido. – Samuel disse a Stefan. – Qual é a parte de “nunca se aproxime furtivamente de um lobisomem” você não entende?

O Stefan que eu conhecia teria feito uma reverência graciosa, teria expressado suas desculpas com um toque de humor. Esse Stefan limitou-se a um movimento rígido do pescoço. – Não tenho utilidade aqui. É uma boa idéia tirar Mercy da linha de fogo. Ela é o alvo mais fraco. Enviem-me para mantê-la em segurança em Spokane. – soou quase ávido... perguntei-me o que ele teria andado fazendo desde que saíra da casa de Adam. O que havia ali para ele fazer? Talvez eu não fosse a única tentando tomar medidas para evitar que eu e todas as pessoas de quem gosto fossem mortas.

Ainda assim, não podia deixá-lo escapar depois de ter me chamado...

– Fraca? – perguntei.

Samuel se virou para Stefan com uma rosnada. – Vampiro estúpido. Meu pai já tinha praticamente a convencido de ir, e você arruinou tudo.

Eu ri. Não consegui evitar. Tinha esperança de que minha ida para Spokane mantivesse meus amigos a salvo, ao passo que eles tinham a esperança de que minha ida a Spokane me mantivesse a salvo. Talvez todos tivéssemos razão.

O telefone de Bran tocou, e todos ouvimos Charles dizer que Amber era casada com Corban Wharton, o moderadamente bem-sucedido advogado empresarial com dez anos a mais que ela. Tinham um filho de oito anos com um tipo qualquer de deficiência, aspecto insinuado em diversos artigos de jornal, mas nunca expressamente confirmado. Disse rapidamente um ou dois endereços, números de celular e números de telefone fixo... assim como os números da Segurança Social e relatórios de impostos mais recentes, tanto pessoais como empresariais. Para um lobo velho, Charles domina os computadores como ninguém.

– Obrigado. – Bran disse.

– Posso voltar para a cama agora? – Charles perguntou. Não esperou por uma resposta, simplesmente desligou.

Olhei para Samuel. – Se eu for embora, facilito a sua vida.

Acenou. – Nós conseguimos nos proteger... mas você é muito vulnerável. E se não estiver aqui, se Marsilia não souber onde você está, conseguiremos levá-la a mesa de negociação.

Bran olhou para Stefan. – Um vampiro em Spokane é capaz de atrair muita atenção.

Stefan encolheu os ombros. – Eu tenho meus recursos. Estive nesse quarto durante vinte e cinco minutos e nenhum de vocês me notou. Se eu me alimentar devidamente, ninguém poderá ver o que sou.

– Você sempre cheirou como vampiro para mim. – disse. Vampiro e pipocas. Daquelas gostosas e amanteigadas. Não, não sei por quê. Nunca o vi comer pipoca e não sei se os vampiros conseguem fazê-lo.

Levantou as mãos. – Nesse caso, ninguém sem o olfato da Mercy. Se eu estiver na mesma sala que o Monstro, então talvez aí ele note minha presença. De outro modo, ele nunca saberá que eu estive lá. Já fiz isso antes.

– O Monstro? – Samuel perguntou.

– James Blackwood.

Os vampiros atribuem títulos a alguns dos mais poderosos. Stefan era o Soldado porque fora um mercenário. Wulfe era o Mago... e eu sabia que ele era capaz de fazer alguma magia. Tomei a decisão de me manter afastada de qualquer vampiro a quem os outros vampiros chamem de Monstro.

– E depois há outra coisa. – Stefan disse. – Eu tenho a capacidade de me teletransportar de um lugar para outro... e consigo levar Mercy comigo.

– Que distância? – Bran perguntou com uma súbita concentração de espírito.

Stefan encolheu os ombros... e não voltou a se endireitar, como se isso desse muito trabalho.

– Qualquer distância. No entanto, levar outra pessoa comigo tem um custo. Durante o dia seguinte, fico incapaz de fazer qualquer coisa. – fitou-me. – Eu tenho o endereço. – deve ter escutado Charles. – Consigo chegar lá essa noite e arranjar um lugar seguro nas proximidades para passar o dia.

Bran ergueu a sobrancelha.

– De manhã, vou ligar para Amber. – afirmei. Parecia que estava fugindo, mas Bran parecia achar que era a coisa certa a fazer.

Stefan me fez uma reverência perfeita e desapareceu antes de se erguer.

– Ele costumava esconder a capacidade que tinha para fazer aquilo. – informei-os. O fato de ele já não o esconder me preocupava. Como se não fosse importante o que as pessoas soubessem a seu respeito.

Samuel sorriu. – Decidiu ir para Spokane porque ele precisa fazer alguma coisa, certo? Estava decidida a ficar até ele parecer patético. – cravei os olhos nele e levantou as mãos em gesto de rendição. – Eu não disse que ele não tinha uma razão para se fazer de patético. Você só precisa se lembrar que com aparência triste ou não, ele ainda é um vampiro, e mais do que a sua altura se decidir deixar de ser amigável. Ele perdeu muito por sua causa, Mercy. Pode já não ser seu amigo.

Não tinha pensado sobre isso naqueles termos. Portanto, fiz durante cerca de um décimo de segundo. – Se ele estivesse zangado comigo, teria me matado quando caiu no chão da minha sala, faminto. Aliás, podia ter vindo aqui a qualquer hora da noite para me matar. Você precisa que eu esteja longe daqui, por isso pare de tentar criar problemas.

Samuel carregou o cenho. – Não estou tentando criar problemas. Mas não pode esquecer que ele é um vampiro, e que vampiros não são simpáticos, por muito cavalheiro e galante que Stefan pareça. Eu também gosto dele, mas está tentando se esquecer daquilo que ele é.

Pensei nas duas pessoas mortas cujo único crime foi terem me visto quando espetei a estaca em Andre. – Eu sei o que ele é. – repliquei teimosa.

– Um vampiro. – Bran interveio. – Malévolo, sim. – mostrou um sorriso aberto, um sorriso que lhe deu a aparência de um adolescente que andava no ensino médio. – No entanto, acho que a Senhora dele cometeu um erro quando optou por expulsá-lo.

– Ela o quebrou. – disse. E, olhando Samuel diretamente nos olhos sussurrei: – Protejam-se, você e Adam. Eu vou manter Stefan ocupado a procura de fantasmas.

Se de fato ia à procura de fantasmas, é evidente que seria estúpido levar Stefan. Fantasmas não gostam de vampiros, e não se deixam ver quando há vampiros por perto. Samuel sabia disso e sorri com olhos sérios. – Ficaremos bem.

– Qualquer coisa é só ligar. – Bran disse (a ambos, pensei). – Se quiser ver como Mary Jo está, é bom que vá agora. – beijou minha testa e depois fez o mesmo com Samuel (que teve que se curvar). Não sabia se ele na verdade sabia quem era Mary Jo, ou se apenas parecia saber. Contudo, nunca o tinha visto se encontrar com um lobo que não soubesse pelo menos o nome.

Por falar nisso...

– Ei, Bran?

A meio caminho da porta, se virou.

– Então, e aquela garota que nós te enviamos? Aquela que sofreu a Mudança muito nova e não tinha aprendido a se controlar. Ela está bem?

Sorriu, aparentando um ar muito menos cansado. – Kara? Ela foi bem na ultima lua cheia. Dê mais alguns meses e ela vai estar em pleno controle. – acenando casualmente, encaminhou-se para a escuridão do exterior.

– Vê se descansa. – disse em voz alta. Fechou a porta sem responder.

Ouvimos Bran arrancar sem dúvidas em um Mustang alugado. Depois de ter partido, Samuel disse: – Ainda tem algumas horas. Porque não dorme mais um pouco? Acho que vou pular a cerca do Adam para ver o que meu pai vai fazer pela Mary Jo.

– Porque ele não ligou antes? – perguntei.

Samuel esticou o braço e bagunçou meu cabelo. – Quis ver como você estava.

– Bom. – disse. – Pelo menos, não me perguntou se eu estava bem. Acho que ia fazer alguma coisa para ele se tivesse perguntado.

– Ei, Mercy. – Samuel pronunciou com falsa preocupação. – Você está bem?

Esmurrei-o, acertando apenas porque ele não estava a espera. – Agora estou. – disse enquanto caia no chão e se virava, como se tivesse aplicado força em meu soco, o que não fiz.

 

 

 

Spokane fica cerca de duzentos e quarenta quilômetros a nordeste de Tri-Cities, e sabe-se que está chegando perto quando você começa a ver árvores.

O meu celular tocou e atendi sem encostar o carro. Normalmente respeito a lei, mas estava atrasada.

– Mercy? – era Adam, e não estava satisfeito comigo. Supus que Samuel lhe disse que os vampiros eram responsáveis pelo episodio no bar do Tio Mike. Dissera que podia fazer isso assim que eu estivesse fora da cidade, em segurança.

– Uhum. – contornei um trailer enquanto avançamos com ruídos por uma pequena colina. Ultrapassara-me na descida, mas tinha que reservar o meu prazer de ultrapassar para os locais onde podia, as Transporters não são maquinas potentes. Um desses dias, ia por um motor de Subaru de seis cilindros e ver quais seriam os resultados. – Antes de gritar comigo por não ter te contado sobre os vampiros, é bom que saiba que estou me arriscando a receber uma multa por estar falando contigo enquanto dirijo. Quer mesmo que eu ganhe uma multa por deixar que grite comigo?

Soltou uma risada relutante, então calculei que não estivesse assim tão zangado.

– Ainda está na estrada? Pensava que tinha partido essa manhã.

– Consertei uma caixa de velocidade de um Ford Focus em uma parada próxima a Connel. – expliquei. – Uma senhora simpática e o cão dela ficaram presos depois que o cunhado dela ter arrumado a embreagem. Não tinha apertado alguns parafusos e um deles caiu. Levei mais ou menos uma hora até que encontrasse alguém que tivesse um parafuso e uma porca do tamanho certo. – e tinha as manchas de óleo nos ombros e brita no cabelo para provar. Em meu Rabbit mantinha sempre uma toalha para colocar no chão. Também guardava uma seleção de peças de carro úteis. Ainda ia demorar algum tempo até que meu Rabbit estivesse pronto para andar.

– Como Mary Jo está?

– Está dormindo agora.

– Bran ajudou?

– Bran ajudou. – consegui escutar o sorriso em sua voz. – Tem cuidado com essa caça aos fantasmas... e não deixe que Stefan te morda.

Na frase final havia um pouquinho de agressividade.

– Está com ciúmes? – perguntei. Sim, estava. O trailer me passou na descida.

– Talvez um pouquinho. – confessou.

– Não esteja. Nós vamos ficar bem. Os fantasmas não são tão perigosos como as vampiras loucas. – não consegui evitar a ansiedade que me assomou.

– Terei cuidado.... Mercy?

– Sim?

– Finja que gritei com você. – ronronou, desligando em seguida.

Sorri abertamente ao telefone e fechei-o.

 

 

As indicações que Amber me deu para chegar a sua casa tinham sido claras e fáceis de seguir. A sensação de alívio na sua voz quando liguei naquela manhã me fez querer acreditar que tinha, de fato, um problema com fantasmas e não fazia parte de uma conspiração vampírica qualquer secreta para me atrair para algum lugar onde fosse mais fácil me matar. Apesar das garantias de Bran de que seria improvável Marsilia me mandar para Spokane, ainda me sentia... não era paranóica, na verdade. Cautelosa. Sentia-me cautelosa.

Zee concordara ficar a frente da oficina durante minha ausência.

Provavelmente, teria conseguido pô-lo trabalhando pagando menos do que o habitual, uma vez que ainda se sentia culpado por coisas que não eram culpa sua. Pagar-lhe menos equivaleria a eu poder comer manteiga de amendoim ao invés de macarrão durante o resto do mês, mas eu não achava que ele fosse culpado de nada.

Falara com Tio Mike sobre a cruz de ossos na minha porta. Definitivamente obra dos vampiros, dissera. Os ossos significavam que eu faltara a palavra dada aos vampiros e não estava mais sob sua proteção, e quem quer que me oferecesse qualquer espécie de ajuda provavelmente passaria também a ser alvo dos vampiros. A interpretação global disso era horrível. Significava que as pessoas como Tony e o Sensei Johanson também estavam em risco.

Significava que provavelmente fosse bom eu me ausentar da cidade durante alguns dias e descobrir uma forma de limitar o número de vítimas que Marsilia poderia reivindicar.

De testa franzida diante dos vidros fumê que refletiam o sol, perguntei-me quando teria sido a última vez que limpara as janelas da minha casa. Alguma vez limpara as janelas da minha casa? Samuel talvez o tivesse feito.

Ainda estava pensando sobre isso quando a porta foi aberta. Um rapaz me olhou como bobo de boca aberta, e notei nesse momento de que não tocara a campainha.

– Olá. – disse. – Sua mãe está?

Recuperou rapidamente e dirigiu-me um olhar tímido a partir de um par de olhos verdes turvos sob longas e espessas sobrancelhas. Em seguida, se voltou para tocar a campainha que eu não tocara.

– Meu nome é Mercy. – disse enquanto ele esperava que Amber aparecesse do interior da casa. – Sua mãe e eu andávamos juntos na escola.

Seu olhar desconfiado se intensificou e não pronunciou uma única palavra. Presumi, portanto, que ela não lhe contara nada.

– Mercy, começava a pensar que não vinha. – na voz de Amber havia perturbação, nem uma centelha de satisfação, e isso aconteceu antes de ver o seu aspecto: coberta de óleo ressecado e poeira.

Seu filho e eu voltamos para encará-la.

Ainda mantinha a aparência de um show de cães, porém seus olhos estavam agitados.

– Chad, esta é a minha amiga que vai nos ajudar com o fantasma. – enquanto falava, suas mãos se moviam em uma dança graciosa, e lembrei-me nesse instante de Charles ter dito que o filho dela tinha algum tipo de deficiência: era surdo.

Amber se concentrou em mim, mas suas mãos ainda se moviam, permitindo que o filho entendesse o que estava dizendo.

– Esse é meu filho, Chad. – respirou fundo. – Mercy, desculpa. Um cliente do meu marido vem aqui essa noite. Só me disse há alguns minutos. É um jantar formal...

Fitou-me e sua voz perdeu a intensidade.

– O que? – repliquei, imprimindo severidade a voz em resposta ao insulto. – Não pareço estar a altura de um jantar formal? Peço desculpas. Os pontos no meu queixo demoraram uma semana pra sair.

De repente, soltou uma risada. – Não mudou nada. Se não trouxe nada apropriado, posso te emprestar alguma coisa. O homem que vai aparecer até que está bastante bem ensinado para um homem de negócios impiedoso. Acho que vai gostar dele. Tenho que fazer uma lista e dar um salto rápido na mercearia. – inclinou a cabeça para que seu filho pudesse ver a sua boca. – Chad, se importa de acompanhar a Mercy até o quarto de hóspedes?

Lançou-me mais um olhar desconfiado, mas acenou. Quando voltou ao interior da casa e começou a subir as escadas. Amber disse: – É melhor eu avisá-la, meu marido não gosta de nada dessa historia do fantasma. Ele acha que Chad e eu inventamos. Se pudesse não falar disso ao jantar, na frente do cliente dele, agradeceria.

 

 

Havia um banheiro em frente ao quarto onde eu ia ficar. Peguei minha mala e entrei para me limpar. Antes de tirar a camisa, fechei os olhos e respirei fundo.

Algumas vezes, os fantasmas só são perceptíveis a um dos sentidos. Às vezes, só consigo ouvi-los, às vezes só consigo cheirá-los. Mas o banheiro cheirava a sabonete e shampoo, a água e aqueles estúpidos comprimidos azuis que algumas pessoas que não tinham animais de estimação colocavam nos banheiros.

Não vi nada nem ouvi nada. Mas isso não impediu que os pelos na parte de trás do meu pescoço se arrepiassem na hora em que tirei a camisa e a coloquei no compartimento de plástico da minha mala. Esfreguei as mãos até ficarem praticamente limpas e, com uma escova, retirei a sujeira do cabelo, voltando a trançá-lo. E durante todo esse tempo, senti que alguém me observava.

Talvez fosse apenas o poder da sugestão. Mas, ainda assim, limpei-me o mais depressa que consegui. Nenhuma escrita fantasma surgiu nas paredes, ninguém apareceu no espelho ou mudou algum objeto de lugar.

Abri a porta do banheiro e deparei com Amber a espera, impacientemente, logo na porta. Não notou que me deu um susto.

– Tenho que levar Chad ao treino de softball, e depois fazer algumas compras para o jantar de hoje. Quer vir?

– Porque não? – disse em um encolher de ombros casual. Permanecer naquela casa sozinha era algo particularmente apelativo para mim, mas que bela caçadora de fantasmas eu era. Não tinha acontecido nada e eu já estava inquieta.

Apoderei-me do lugar da frente. Chad franziu a sobrancelha, mas sentou-se no banco traseiro. Não achei que o tivesse impressionado muito. Ninguém disse nada até termos deixado Chad. Ele não parecia feliz em ir. Amber provou ser mais dura do que eu, porque ignorou os olhos de cachorrinho e abandonou Chad ao cuidado indiferente de seu treinador.

– Então, decidiu não se tornar professora de História. – Amber disse enquanto afastava o carro da calçada. Sua voz estava tensa. A tensão vinha do lado dela, pensei, mas pensando bem, ela nunca fora uma companhia relaxante.

– “Decidiu” não é apropriadamente a palavra mais certa. – lhe disse. – Aceitei um emprego como mecânica para me sustentar até que abrisse uma vaga no ensino... e um dia percebi que, mesmo que alguém me oferecesse um trabalho nessa área, preferia ficar em volta das ferramentas. – uma vez que ela tocara no assunto, comentei: – Pensava que ia ser veterinária.

– Sim, mas as coisas foram acontecendo. – fez uma pausa. – Chad foi acontecendo. – isso era sinceridade demais para ela, contudo, se calou. Na mercearia, afastei-me enquanto ela testava os tomates. Para mim todos pareciam ótimos. Comprei uma barra de chocolate, só para ver até que ponto tinha mudado.

Não muito. Na hora em que terminou sua palestra sobre os malefícios do açúcar refinado, estávamos quase em sua casa. Sentia-me muito mais confortável e finalmente falou-me mais sobre o fantasma.

– Corben não acredita que a casa esteja assombrada. – explicou enquanto dirigia pela cidade. Olhou-me e logo a seguir desviou o olhar. – Pra falar a verdade, eu também não vi nem ouvi nada. Só lhe disse que sim para que deixasse Chad em paz. – respirou fundo e me olhou novamente. – Ele acha que Chad é capaz de estar melhor em um internato, um lugar privado para pequenos problemáticos que um amigo dele recomendou.

– Para mim não parece um problemático. – disse. – Os pequenos “problemáticos” não costumam consumir drogas ou bater nos filhos dos vizinhos? – Chad dera indícios de que teria preferido ficar em casa lendo a ir jogar bola.

Amber soltou uma meia risada nervosa. – Corban não tem uma relação muito boa com Chad. Ele não o compreende. É o velho clichê da Disney do pai jogador de futebol americano e do filho rato de biblioteca.

– Corban sabe que não é o pai de Chad?

Pisou no freio com tanta força que, se não tivesse com o cinto de segurança, possivelmente teria trocado um conhecimento mais íntimo com o para-brisa. Permaneceu ali parada no meio da estrada por momentos, alheia as buzinas a nossa volta. Ainda bem que estávamos em uma Mercedes robusta e não no Miata que dirigia quando foi a minha casa.

– Você esqueceu. – eu disse suavemente. – Eu também conhecia Harrison. Costumávamos brincar sobre seus cílios, e desde então nunca mais vi olhos como os dele. – até hoje, Harrison foi o seu único amor verdadeiro durante cerca de três meses, até ela tê-lo abandonado por um futuro aluno de medicina.

Amber arrancou novamente e dirigiu durante algum tempo até o transito acalmar.

– Tinha me esquecido de que o conhecia. – suspirou. – É curioso. Sim, Corban sabe que não é o pai de Chad, mas o Chad não. Isso antes não parecia importante, mas agora não tenho tanta certeza assim. Corban tem andado... diferente ultimamente. – balançou a cabeça. – Ainda assim, foi ele quem sugeriu que te dissesse para vir aqui. Viu o artigo no jornal e disse: “Essa não é a garota que dizia que via fantasmas? Porque não lhe diz para vir aqui para dar uma olhada?”.

Conclui que já tinha sido muito intrometida, por isso fiz uma pergunta menos intrusiva. – O que o fantasma faz?

– Muda objetos de lugar. – respondeu. – Muda a disposição do quarto do Chad uma ou duas vezes por semana. Chad diz que já viu os móveis se mudarem de um lado para o outro. – hesitou. – Também quebra coisas. Duas jarras que o pai do meu marido trouxe da China. O vidro do diploma do meu marido. Às vezes, faz desaparecer coisas. – lançou seus olhos em mim. – Chaves de carros. Sapatos. Uma vez, alguns papéis importantes de Corban apareceram no quarto de Chad, debaixo da cama. Corban ficou muito zangado.

– Com Chad?

Acenou.

Ainda nem sequer o tinha conhecido e já não gostava do seu marido. Mesmo que fosse Chad o responsável por tudo, e não tinha qualquer prova ao contrario, atirá-lo para um internato não me parecia a melhor forma de melhorar as coisas.

Pegamos um Chad carrancudo, que não parecia inclinado a conversar, e Amber parou de falar sobre o fantasma.

 

 

Amber estava ocupada na cozinha. Tentara ajudar, mas acabara por me mandar para o meu quarto porque estava sendo um estorvo. Não gostava da forma como eu descascava maçãs. Trouxe um livro de casa, um livro muito velho, com contos de fadas verdadeiros. Era emprestado e teria que devolvê-lo em breve, portanto estava lendo-o o mais depressa que podia.

Estava tomando notas sobre os kelpies{9} (que se julgava estarem extintos) quando alguém bateu a porta duas vezes e a abriu.

Chad chegou com um bloco de notas e um lápis na mão.

– Ei. – disse.

Virou o bloco de notas e eu li: “Quanto que meu pai está lhe pagando?”.

– Nada. – respondi.

Estreitou os olhos e rasgou a pagina, mostrando a seguinte. Evidentemente, pensara nisso durante um tempo. “Por que está aqui? O que pretende?”

Pousei meu livro e cravei meus olhos nos dele. Era duro, mas não era um Adam ou um Samuel: piscou primeiro.

– Há uma vampira que quer me matar. – disse. Coisa que não devia ter feito, obviamente, mas queria ver o que aconteceria. A curiosidade, Bran me disse mais do que uma vez, pode ser tão fatal para os coiotes como para os gatos.

Chad amassou o papel e nos seus lábios se desenhou uma palavra. Não estava claramente a espera daquela resposta.

Ergui uma sobrancelha. – Desculpa. Vai ter que fazer mais do que isso. Eu não sei ler lábios.

Escreveu furioso. “Mintiroza”

Peguei em seu lápis e escrevi “mentirosa”. Depois, devolvi o bloco e disse: – Quer apostar?

Apertou o bloco contra o peito e foi embora. Gostava dele. Lembrava a mim.

Quinze minutos depois, a mãe dele aparece. – Vermelho ou roxo? – perguntou-me, ainda soando agitada. – Venha comigo.

Desnorteada, segui-a ao longo do corredor e entramos na suíte principal, onde tinha dois vestidos estendidos.

– Só tenho cinco minutos antes de colocar os pãezinhos no forno. – disse. – Vermelho ou roxo?

O roxo tinha consideravelmente mais tecido. – O roxo. – indiquei. – Também tem sapatos que possa me emprestar? Ou quer que eu vá descalça?

Fitou-me com os olhos excitados. – Sapatos eu tenho, mas não tenho meias de nylon.

– Amber. – disse. – Por você, uso saltos. E usarei um vestido. Mas não está me pagando o suficiente para calçar meias de nylon. Minhas pernas estão depiladas e bronzeadas, vai ter que servir.

– Nós podemos te pagar. Quanto quer?

Observei-a, mas não consegui se estava brincando ou não. – Nada de pagamentos. – respondi. – Dessa forma, posso ir embora quando as coisas se tornarem assustadoras.

Não riu. Estava muito segura de que Amber costumava ter algum humor. Talvez. – Escuta. Respira fundo, me arranje os sapatos e vai colocar seus pãezinhos no forno.

De fato, respirou fundo e pareceu ajudar.

Quando voltei ao meu quarto, Chad estava lá novamente com seu bloco. Estava de olhos cravados na bengala estendida sobre minha cama. Não a trouxe comigo, mas ainda assim veio. Desejei poder lhe perguntar o que queria de mim.

Peguei nela e olhei para Chad, esperando que também me olhasse para assim ler meus lábios. – Isso é o que uso para dar cabo de crianças problemáticas.

Apertou o bloco com mais força, então presumi que suas competências na leitura de lábios eram extremamente apuradas. Recoloquei a bengala na cama. – O que você queria?

Virou o bloco de notas e mostrou-me um artigo de jornal que fora cortado e estava preso com fita adesiva a uma pagina de seu bloco. “Namorada do Alfa dos Lobisomens Mata Agressor”, dizia. Tinha uma foto minha, onde aparecia maltratada e com ar atordoado. Não me lembrava de ninguém ter tirado fotos, mas havia largos pedaços dessa noite que estavam obscuros em minha memória.

– Sim. – disse, como se meu estômago não tivesse começado a subitamente doer. – É uma historia antiga.

Virou a pagina e reparei que tinha outra observação dirigida a mim. “Us vampirus não ezistem”.

Calculei que a ortografia não fosse seu forte. Aos dez anos, eu escrevia melhor do que aquilo. – OK, obrigada. É bom saber. Nesse caso, acho que volto amanhã para casa.

Deixou cair as mãos, com o bloco de notas balançando para frente e para trás, com irritação, como a cauda de um gato. Ele sabia reconhecer o sarcasmo, mesmo quando lia nos lábios. – Não se preocupe, garoto. – disse em um tom mais gentil. – Não faço parte da conspiração para te mandar para uma prisão de crianças. Se eu não vir nada, isso não significa que não haja nada para ver. E também vou dizer isso ao seu pai.

Piscou os olhos furiosamente e abraçou o bloco de notas. Levantou o queixo, uma versão menor e menos teimosa da sua mãe, e foi embora.

 

Amber subiu a toda velocidade e acenou ao passar por mim. Ouvi-a bater na porta e abri-la em seguida. – Você também precisa se preparar. – disse ao filho. – Não tem que comer conosco, há um prato no microondas. Mas também não quero que ande se escondendo pelos cantos para não ser visto. Sabe como isso irrita seu pai. Vá, penteie o cabelo e lave as mãos e o rosto.

Tirei minhas roupas e me enfiei no vestido roxo. Encaixava com perfeição, um pouco apertado nos ombros e justo demais nos quadris para o meu gosto, mas quando me vi no espelho, pareceu ótimo. Amber, Char e eu trocávamos muitas vezes de roupa.

Os saltos eram altos ao ponto de causar desconforto, mas desde que permanecêssemos em casa, a princípio não havia problema. Os pés de Char eram menores do que os de Amber ou os meus. Voltei a escovar o cabelo e fiz uma trança francesa. Um toque de batom e delineador e estava pronta para ir.

Desejei que minha companhia para a refeição fosse Adam ao invés de Amber, o imbecil do marido dela e um cliente importante qualquer. Era o suficiente para que também desejasse ter um prato no micro-ondas.


Capítulo 6

 

Nenhum dos dois homens que entraram na casa era bonito. O homem mais baixo era ligeiramente careca, com mãos rechonchudas enfeitadas com três grossos anéis de ouro. O fato, apesar de caro, caia mal. Os olhos eram claros, azul-claros, quase tão claros como os olhos do lobo de Samuel. A semelhança me fez desejar gostar dele. Parou quase timidamente enquanto o outro abraçava Amber.

– Olá, meu doce. – disse o marido de Amber, e, para minha surpresa, havia uma ternura honesta em sua voz. – Obrigada por nos ter preparado o jantar tendo eu avisado tão em cima da hora.

Corban Wharton era apelativo e não tão bonito. O nariz era muito longo para seu rosto largo. Os olhos eram escuros e separados e também sorridentes. Havia nele algo de sólido e tranquilizador. Era o tipo de pessoa que gostaríamos de ver ao nosso lado em um tribunal. Quando olhou para mim, franziu brevemente a sobrancelha, como se tentando saber quem eu era.

– Você deve ser Mercedes Thompson. – disse, estendendo a mão.

Tinha um bom aperto de mão, o aperto de mão de um político, firme e seco.

– Me chame de Mercy. Todo mundo faz.

Assentiu com a cabeça. – Mercy, este é meu amigo e cliente, Jim Blackwood. Jim, apresento-lhe Mercy Thompson, uma amiga da minha mulher que está de visita essa semana.

Jim estava falando com Amber e parou um instante para voltar a concentrar sua atenção em Corban e eu.

Jim Blackwood. James Blackwood. Quantos James Blackwood haveria em Spokane, perguntei-me em um pânico paralisante. Cinco ou seis? Mas eu sabia, apesar da forte água-de-colônia que usava me impedir de sentir o cheiro de vampiro, eu sabia que não ia ter sorte.

Ele iria pensar que meu cheiro era do fato de eu ter cães, Bran me tranquilizara. E mesmo que não pensasse assim, mesmo que percebesse o que eu era, estava apenas de visita. Não podia tomar isso como afronta, certo?

Mas eu sabia que não era bem assim. Os vampiros podiam tomar tudo o que desejassem como afronta.

– Sr. Blackwood. – saudei-o quando desviou os olhos de Amber. Era importante simplificar. Não sabia se os vampiros tinham a capacidade de detectar mentiras como os lobos, mas não ia dizer: “É um prazer conhecê-lo”, ou coisa parecida, quando na verdade desejava estar a cem quilômetros de lá.

Dei o meu melhor para manter um sorriso social à medida que pensamentos estúpidos começavam a se acumular dentro de mim.

Como ele ia comer conosco? Os vampiros não comiam, pelo menos tanto quanto fosse do meu conhecimento. Quais eram as probabilidades de um vampiro aparecer sem que, de algum modo, estivesse ligado a uma conspiração de Marsilia?

– Trate-me por Jim. – disse-me, com um sotaque ligeiramente britânico. – Peço desculpas pela minha intrusão, mas essa tarde tivemos que cuidar de alguns assuntos urgentes e Corban insistiu em me trazer para a casa dele.

Seu rosto redondo se mostrava alegre e seu aperto de mão era ainda mais aperfeiçoado do que o de Corban. Se não tivesse tido aquela pequena conversa com Bran, jamais teria suspeitado do que era.

– Então, vamos comer. – Amber sugeriu, calma e em controle agora que os preparativos tinham terminado. – A comida está pronta para ser servida e não pode esperar. Desculpe, mas fiz uma coisinha simples.

Simples significava bife com pimentões em uma porção de arroz, acompanhado de saladas diversas e pãezinhos frescos seguidos de torta de maçã caseira. Sem eu perceber como, a comida desapareceu do prato do vampiro. Em momento algum, o vi comer ou tocar no prato, mesmo tendo estado alerta com um fascínio mórbido, na esperança de que, vendo-o comer um pedacinho que fosse, pudesse acreditar que ele seria apenas aquilo que aparentava ser.

Permaneci calada enquanto os homens falavam de negócios, sobretudo linguagem contratual e 401(k)s, e senti-me muito satisfeita por passar despercebida. Amber foi dizendo uma frase aqui e ali, o suficiente para manter a conversa. Ouvi Chad passar sorrateiramente pela sala de jantar e entrar na cozinha. Depois de um tempo, saiu novamente.

– Como sempre, uma bela refeição. – o vampiro disse a Amber. – Bonita, charmosa... e uma bela cozinheira. Assim como estou sempre dizendo ao Corban, um dia desses vou roubá-la. – senti um arrepio percorrer minha espinha. Ele não estava mentindo, porém Corban e Amber se limitaram a rir como se fosse uma velha brincadeira. Precisamente nessa hora, olhou para mim. – Tem estado muito calada. Corban disse que estudou com Amber e que é de Kennewick. Que trabalho tem lá?

– Conserto coisas. – murmurei para o meu prato.

– Coisas? – soou intrigado, precisamente o contrario daquilo que eu esperava.

– Carros. Apresento-lhe Mercedes, a mecânica de volkswagens. – Amber interveio com um toque da contundência que fora a sua marca de imagem nos tempos da escola. – Mas aposto que ainda consigo fazê-la passar pelas famílias reais da Europa ou o nome do pastor alemão de Hitler. – James Blackwood sorriu, o Monstro que mantinha o seu território livre de vampiros ou de qualquer outro que pudesse desafiar. Um coiote não seria lá grande desafio.

Amber tagarelou... quase nervosamente. Talvez pensasse que eu me levantasse de um salto e contasse ao valioso cliente de seu marido que tinham me trazido aqui para pegar um fantasma. Se Amber soubesse o que ele era, não teria essa preocupação.

– Com base nas origens dela... Ela é metade Blackfoot... ou será Blackfeet?... seria de esperar que ela tivesse estudado a História dos nativo americanos, mas só estudou coisas européias.

– Não gosto de mergulhar na tragédia. – afirmei, tentando desesperadamente soar desinteressante. – E a História dos nativos americanos resume-se basicamente a isso. Mas agora apenas conserto carros.

– Blondie. – Corban disse. – Era esse o nome do cachorro.

– Alguém me disse que o nome dela foi inspirado na banda Blondie. – acrescentei. Aquela suposição levara a muitas discussões no seio dos entusiastas das trivialidades do nazismo que a conheciam. Tinha esperança de que a conversa voltasse a Hitler. Estava morto e não podia fazer qualquer mal... ao contrario do homem morto que estava na sala.

– Você é nativa americana? – o vampiro perguntou. Será que ele vinha tentando olhar diretamente em meus olhos?

Eu era muito boa em impedir que meus olhos se cruzassem com os de outra pessoa, a menos que fosse de propósito, uma competência útil quando se vive cercada de lobos. Olhei para o seu queixo e disse: – Metade nativa americana. Da parte do meu pai. No entanto, nunca o conheci.

Acenou com a cabeça. – Lamento muito.

– Isso foi há muito tempo. – repliquei. Concluindo que Hitler não iria distraí-lo, calculei que talvez os negócios o fizessem. Com o meu padrasto sempre surtia efeito. – Então, Corban está mantendo sua empresa longe da barra do tribunal?

– Ele é muito bom no que faz. – o vampiro afirmou com um sorriso agradável e possessivo. – Com ele ao meu lado, a Blackwood Industries vai continuar a carburar durante alguns meses.

Corban soltou uma risada. – Oh, acho que no mínimo alguns meses.

– Para fazer dinheiro. – Amber disse, erguendo o copo. – Montes de dinheiro.

Fingi beber o vinho enquanto eles o faziam e notei claramente que a minha idéia de fazer dinheiro era muitas ordens de magnitude abaixo da deles.

 

Finalmente, foi embora. Não foi tão horrível como eu temia. O Monstro tinha sido encantador e, esperava, ficara com a idéia de que eu não era mais do que uma desinteressante mecânica de Volkswagens. Exceto aquele único momento, evitara ser notada.

Quase eufórica por ter escapado por um triz, não me preocupei nem um pouco com fantasmas enquanto trocava de roupa. A seguir, voltei ao andar de baixo para ajudar Amber nas coisas.

Ela também devia ter estado preocupada ou coisa parecida, considerando que estava quase tão eufórica quanto eu. Travamos uma batalha de água na cozinha que terminou empatada quando seu marido espreitou pela porta para ver a que devia todo aquele barulho, e quase levou uma esponja na cara.

A discrição aconselhava que, tendo escapado da detecção uma vez, deveria voltar para casa na manhã seguinte. No entanto, Amber estava um pouco bêbada, então decidi que a conversa poderia esperar até mais tarde. Com a louça lavada e as roupas molhadas e com sabão, deixei Amber e o marido entretidos na cozinha.

Abri a porta do quarto e deparei com Chad no meio da minha cama, os braços cruzados sobre o peito. Da porta, conseguia sentir o cheiro de medo.

Fechei a porta atrás de mim e lancei os olhos pelo quarto.

– Fantasma? – disse devagar para que lesse meus lábios.

Também percorreu o quarto com os olhos, balançando a cabeça em seguida. – Não está aqui? Está em seu quarto?

Assentiu cautelosamente com a cabeça. – Então, que tal irmos até lá?

Com o terror saindo por todos os poros, deslizou para fora da cama e me seguiu até seu quarto, garoto corajoso. Abriu a porta do quarto devagar, e depois a abriu completamente, tendo cuidado de manter os pés no corredor. – Presumo que não costuma ter aquela estante virada ao contrário. – disse.

Fulminou-me com o olhar, mas perdeu algum medo.

Encolhi os ombros. – Ei, meu namorado tem uma filha. – “namorado” era uma palavra tão adequada. – E tive duas irmãs mais novas. Nenhum delas mantém o quarto arrumado. Tinha que perguntar.

Exceto a estante de livros, era difícil dizer que parte da confusão correspondia ao habitat normal de um garoto e que parte tinha sido causada pelo fantasma. No entanto, a estante, um daqueles objetos com metade do tamanho que as pessoas põem no quarto dos filhos, era fácil de colocar na posição original. Contornei Chad e entrei no quarto. A estante ainda era mais leve do que eu pensava.

Quando comecei a recolocar os livros, ajoelhou-se ao meu lado e me ajudou. Lia um pouco de tudo, e não se limitava as coisas que eu pensava que um garoto lia: Jurassic Park, Entrevista com o Vampiro, H.P Lovecraft estavam colocados ao lado dos livros de Harry Potter e dos números um ao quinze da coleção de mangá do Naruto. Precisou cerca de vinte minutos para colocar tudo no seu devido lugar e, quando terminou, já não estava assustado.

Embora, conseguia cheirá-lo. Estava nos observando.

Sacudi as mãos para me ver livre do pó e olhei ao redor. – Costuma manter o quarto assim tão arrumado, garoto?

Assentiu solenemente.

Balancei a cabeça. – Precisa de ajuda. Assim como sua mãe. Minha irmã mais nova guardava almoços fossilizados debaixo da cama para os coelhinhos de pó que criava lá.

Escolhi um jogo entre os vários impecavelmente empilhados. – Quer jogar Batalha Naval? – não ia deixá-lo sozinho com aquela coisa.

Chad armou-se com um bloco de notas e partiu para a guerra. Historicamente, a guerra tem sido frequentemente usada como uma distração dos problemas caseiros.

Ambos nos deitamos no chão de barriga para baixo, frente a frente, e disparamos os nossos mísseis. Adam ligou, e lhe disse que teria que esperar, a batalha devia estar sempre antes do romance. Gargalhou e me desejou boa noite, assim como aquele velho correspondente de guerra.

O barco de dois canos de Chad estava diabolicamente bem escondido, e destruiu minha frota da marinha enquanto o caçava infrutiferamente. – Argh! – gritei de forma sentida. – Afundou o meu porta-aviões.

O rosto de Chad se iluminou em um sorriso e, entretanto, alguém bateu a porta. Presumi que não necessitava ter feito tanto barulho, considerando que Chad não tinha como me ouvir. – Entre. – disse. Lendo meus lábios, Chad ficou subitamente aterrorizado, e estiquei o braço para lhe dar uma palmadinha no ombro.

A porta foi aberta e girei até ficar de barriga para cima, olhando por cima dos meus pés como se tentando ver quem era. A maior parte das pessoas teria precisado olhar, por isso o fiz, mas tinha-o ouvido aproximar-se, e Amber nunca caminhara furiosamente em toda a sua vida. Andar com um passo pesado, sim. Caminhar furiosamente, não. Acreditem, qualquer predador sabe a diferença.

– Não já passou a hora de ir dormir? – Corban disse. Vestia uma calça de treino e uma velha camisa dos Seattle Seahawks. Seu cabelo estava desgrenhado, como se tivesse estado na cama. Conclui que o acordara.

– Não. – repliquei. – Estamos brincando e a espera que o fantasma apareça. Quer nos fazer companhia?

– Não existe fantasma algum. – disse ao filho, em voz alta e linguagem gestual.

Tinha começado a gostar de Corban, me parecera um cara decente. Mas agora estava se comportando como um idiota.

Girei até ficar virada para ele. – Ah, não?

Franziu a sobrancelha. – Os fantasmas não existem. Fico contente por ter vindo nos visitar, mas não aprovo o encorajamento desse absurdo. Se lhes disser que não existe, eles vão acreditar em você. Chad já tem muito com o que lidar, não precisa que todo mundo fique pensando que é louco. – continuara com a linguagem gestual, apesar de estar falando comigo. Não sei se deixou de fora a parte que me dissera que devia dizer ao Chad e Amber que não havia fantasma lá.

– É um comandante naval de primeira. – disse a Corban. – E acho que é muito inteligente para inventar fantasmas.

Também traduziu minha resposta. A seguir, disse: – Ele só quer atenção.

– Ele recebe atenção. – repliquei. – Ele quer parar de se sentir assustado por alguém que não consegue ver e nem ouvir fazendo bagunça em seu quarto. Achava que tinha sido você a sugerir a minha vinda para verificar a existência ou não de um fantasma. Porque fez isso se não acredita?

Escutou-se um enorme estrondo quando o carro encima da cômoda de Chad arrancou disparado, atravessou o quarto para bater na estante de livros, e caiu no chão. Durante os últimos quinze minutos, observara pelo canto do olho o carro se mover para frente e para trás, só um pouquinho, portanto não me assustei. Chad não tinha como ouvi-lo, portanto não se assustou. Mas Corban sim.

Levantei e peguei o carro. – Pode fazer isso outra vez? – perguntei, pousando o carro encima da estante.

Ajoelhei-me ao lado de Chad e olhei-o de modo que conseguisse ver minha boca. – Ele acabou de fazer o carro cair. Vamos todos ver se ele faz novamente.

Silenciado pela queda do carro, Corban sentou-se ao lado de Chad e colocou uma mão em seu ombro, e todos observamos o carro se mexer lentamente, caindo seguidamente na parte de trás da estante.

Depois, a estante tombou para frente, caindo em cima da frota de plástico de Chad. Tive um vislumbre de alguém ali, de mãos levantadas, e a seguir nada, o cheiro agridoce a sangue que vinha sentindo desde a primeira vez que entrara naquele quarto se dissipou.

– Você está bem dormindo aqui?

– Já foi embora. – disse a ambos, e Corban reproduziu o que eu disse em gestos.

Chad acenou afirmativamente com a cabeça e gesticulou com as mãos. No final, Corban exibiu um sorriso grande. – Eu acho que isso é verdade. – olhou para mim. – Ele disse que o fantasma não o matou ainda.

Corban voltou a erguer a estante, recolocando-a em seu lugar original, e olhei para a confusão de livros e peças de jogo no chão.

Esperei ate que Chad olhasse em minha direção. Seguidamente, apontei para o seu destruidor de dois canos, perfeitamente visível, rodeado de inúteis mísseis brancos. – Então, era aí que o tinha escondido, seu malandrinho.

Sorriu de orelha a orelha. Não se tratou de um sorriso completamente convincente, mas ainda assim o suficiente para notar que ele ia ficar bem. Garoto duro.

Deixei-os com seus rituais noturnos e caminhei para o meu quarto, com a idéia de voltar para casa no dia seguinte completamente deixada de lado. Não ia abandonar Chad na companhia de um fantasma. Ainda não fazia a menor idéia de como me livrar dele, mas, talvez pudesse ajudar Chad a conviver com ele. Já estava a meio caminho disso.

Corban bateu em minha porta poucos minutos depois, abrindo-a em seguida. – Não preciso entrar. – comunicou. Fitou-me ameaçadoramente. – Diga-me que não foi você que arquitetou aquilo. Estive procurando cabos e imãs.

Ergui a sobrancelha. – Eu não arquitetei nada. Parabéns, sua casa está assombrada.

Franziu o cenho. – Sou muito bom em detectar mentiras.

– Ainda bem. – disse sinceramente. – Agora estou cansada, preciso ir dormir.

Recuou da soleira e começou a percorrer o corredor. Embora ainda não tivesse dado dois passos e já estava se virando. – Se for um fantasma, Chad está em segurança?

Encolhi os ombros. Para dizer a verdade, o cheiro a sangue me deixou com a pulga atrás da orelha. Segundo minha experiência, os fantasmas tendem a cheirar a eles mesmos. A Sra. Hanna, que às vezes aparecia na oficina, tanto quando estava viva como após sua morte, cheirava a detergente de roupa que usava, ao seu perfume favorito e aos gatos que partilhavam a casa dela. Não me parecia que o sangue fosse um bom sinal.

Ainda assim, disse a verdade conforme sabia. – Nunca algum fantasma me fez mal, e são poucas as historias que conheço em que alguém tinha sido ferido. E, mesmo aí, na maioria dos casos não aconteceu nada além de alguns roxos. A Bruxa Bell matou um homem chamado John Bell no Tenessee, dois séculos atrás, mas provavelmente era outra coisa que não era um fantasma. E o velho John morreu por causa do veneno que a bruxa supostamente teria colocado em seu remédio, algo que mãos normais poderiam igualmente ter feito.

Olhou-me e retribui-lhe o olhar.

– Você namora um lobisomem. – disse.

– É verdade.

– E diz que existem fantasmas.

– E Fae. – disse. – Trabalho com um. Quando se convive com lobisomens e Fae, fantasmas não são uma coisa para se assustar, certo?

Fechei a porta e fui para a cama. Depois de alguns minutos, voltou ao seu quarto.

Normalmente, tenho dificuldades em adormecer em locais que são estranhos, mas era muito tarde (ou muito cedo), e não tinha dormido o suficiente na noite anterior. Dormi como um bebê.

Quando acordei de manhã, tinha duas marcas de mordidas, acompanhadas de uma fantástica marca roxa, no pescoço. Eram um belo acrescento aos pontos no queixo. E meu colar com um cordeiro desaparecera.

Observei a mordida no espelho do banheiro e ouvi Samuel dizer que já não deveria ver Stefan como amigo... e Stefan tornou claro que precisava se alimentar para evitar ser detectado. Sabia que havia consequências resultantes de ser mordida, mas não tinha certeza de quais seriam.

Como é evidente, conhecera outro vampiro a noite passada. Por momentos, desejei que tivesse sido ele. Que Stefan não tivesse me mordido enquanto eu dormia. Depois, pensei na real possibilidade de ter sido mordida por James Blackwood, que amedrontava as coisas que me davam medo. E aí desejei que tivesse sido Stefan.

No entanto, Stefan teria necessitado de um convite para entrar em casa. Será que o tinha convidado e ele de algum modo apagara isso da minha memória? Esperava que tivesse sido assim. Parecia o mal menor.

A porta do banheiro foi aberta, entrara pouco tempo antes de escovar os dentes, portanto não estava trancada. Chad fitou meu pescoço e depois olhou para mim, de olhos escancarados.

E desejei que tivesse sido Stefan, porque ia permanecer aqui para me prestar auxilio... não sei muito bem como.

– Não. – disse a Chad, descontraidamente. – Não menti em relação aos vampiros. – decedi não mencionar que o recebera a noite passada se ele próprio não tivesse pensado isso. Não precisava acrescentar a preocupação com fantasmas à preocupação com vampiros. – Não devia ter te contado. Agradeceria que não contasse aos seus pais.

Os vampiros preferem que ninguém saiba que eles estão por perto. E tomam medidas para se assegurar que aconteça assim.

Olhou-me por instantes. Depois, correu um zíper imaginário ao longo dos lábios, trancou uma fechadura invisível e atirou a chave para trás das costas: algumas coisas são universais.

– Obrigada. – coloquei a tampa na minha escova de dentes e arrumei os meus artigos de higiene pessoal. – Aconteceu mais alguma coisa ontem à noite?

Balançou a cabeça e varreu a testa com o pulso para limpar um suor imaginário. – Ainda bem. Seu fantasma tem muita atividade durante o dia?

Encolheu os ombros, esperou um momento de depois assentiu com a cabeça. – Bem, vou falar com a sua mãe depois vou fazer jogging. – nada de correr pela cidade na forma de coiote, especialmente depois de meus esforços para me manter longe de James Blackwood já terem fracassado tão espetacularmente. Mas acontece que se não corresse a maioria dos dias, começava a ficar rabugenta. – E depois podemos vigiar seu quarto durante algum tempo. O fantasma aparece em mais algum lugar?

Acenou e representou por mímica os atos de comer e cozinhar. – Só na cozinha, ou também na sala de jantar?

Levantou os dois dedos. – Muito bem. – espreitei o relógio. – Nos encontramos aqui as oito em ponto. – voltei ao meu quarto, mas não detectei o cheiro de Stefan ou qualquer coisa fora do normal. Tão pouco havia sequer sinal do meu colar. Sem ele, não tinha qualquer proteção contra vampiros. Não que tivesse me servido de muito na noite passada.

Correr na cidade não é minha atividade favorita. Ainda assim, o Sol estava brilhando, tornando improvável a possibilidade de me cruzar com um vampiro. Corri durante cerca de meia-hora e depois segui o caminho mais curto até a casa de Amber.

Seu carro tinha desaparecido da rampa de entrada. Tinha coisas para fazer, dissera, uma hora no cabeleireiro, recados para fazer e algumas compras. Dissera que Chad e eu nos entreteríamos sozinhos. Ainda assim, contava que esperasse até o meu regresso. Não sei se teria deixado meu filho sozinho em uma casa assombrada. No entanto, parecia tranquilo quando foi se encontrar comigo na porta do banheiro precisamente quando meu relógio marcava oito horas.

Exploramos a casa antiga, começando no piso de baixo e depois subindo. Não que fosse necessário ou importante explorar, mas gosto de casas antigas e não tinha nenhum plano melhor a não ser esperar que o fantasma se manifestasse. Pensando bem, não tinha um plano melhor para fazer depois de se manifestar. Banir fantasmas não era algo que algum dia eu tivesse tentado, e tudo o que lera sobre isso ao longo dos anos (não muito) parecia indicar que fazê-lo da forma errada era pior do que não fazê-lo.

O porão sofrera obras há algum tempo, mas atrás de uma porta antiquada um tanto pequena, havia um compartimento com um chão em terra repleto de grades velhas de leite em madeira e tralha armazenada há muito tempo por alguém. Fosse qual fosse o seu propósito original, era agora o habitat perfeito para viúvas negras.

– Uau. – apontei para o canto mais distante do teto com a lanterna emprestada. – Olha o tamanho daquela aranha. Acho que nunca vi uma tão grande em toda a minha vida.

Chad deu uma palmadinha e olhei o seu circulo de luz, centrado em uma cadeira com encosto estilo escada.

– Sim. – concordei. – Essa é maior. Acho melhor sairmos daqui e procurarmos em outro lugar, pelo menos até termos uma lata de spray mata-insetos. – fechei a porta um pouco mais firmemente do que em uma situação normal. Não me importo com aranhas, e a viúva negra é uma das mais belas espécies... mas mordem se atravessarmos seu caminho. Assim como os vampiros. Esfreguei o pescoço para me certificar de que a gola da minha camisa e meu cabelo ainda cobriam a mordida. Essa tarde, iria as compras. Precisava arrumar um lenço ou uma camisa de gola alta para esconder melhor a marca antes que Amber e Corban vissem. Talvez conseguisse encontrar outro colar com um cordeiro.

O resto do porão estava surpreendentemente limpo, sem tralha, pó ou aranhas. Talvez Amber não tivesse se sentido tão intimidada pelas viúvas negras como eu.

– Não estamos tentando descobrir quem é o fantasma. – disse. – Embora pudéssemos fazer isso se quiséssemos, acredito. Só estou dando uma olhada para ver o que consigo descobrir. Se isso por acaso for uma brincadeira que alguém esteja pregando, não quero ser enganada.

Lançou as mãos para baixo de uma forma que não precisava de qualquer tradução, com os olhos brilhantes de raiva. – Não, não acho que esteja fazendo nada. – disse com firmeza. – Se aquilo que aconteceu ontem a noite foi fingido, não foi obra de um amador qualquer. Talvez alguém tenha uma questão a resolver com o seu pai e esteja te usando para isso. – hesitei. – Mas não acho que tenha sido fingido. – porque alguém implantaria um cheiro de sangue fresco muito tênue para o olfato humano, por exemplo? Ainda assim, senti-me obrigada a ter o máximo de certeza de que ninguém andava pregando peças.

Pensou sobre isso durante algum tempo e depois acenou solenemente com a cabeça, chamando a atenção para coisas de interesse. Um pequeno compartimento vazio atrás de uma porta muito grossa que teria porventura sido uma câmara frigorífica. A velha calha para carvão com uma caixa de velhos cobertores colocada perto do canto. Enfiei a cabeça no túnel de metal e farejei, apenas para confirmar minhas suspeitas: Chad vinha deslizando calha abaixo por diversão.

Seus olhos espreitaram preocupadamente por entre o seu cabelo longo. Não me parecia perigoso, parecia divertido. Mais divertido se mais ninguém soubesse. Tivera alguns lugares semelhantes quando tinha a sua idade, portanto não disse nada.

Mostrei-lhe os velhos fios elétricos de cobre, que já não eram usados, mas continuavam presentes, e as marcas de ladrilho nos blocos de pedra de granito usados para servir de parede ao porão. Verificamos o teto do porão abaixo da cozinha e da sala de estar. Uma vez que não sabia exatamente o que vinha acontecendo na cozinha e na sala de jantar, não sabia o que procurar. Mas parecia evidente que teria sido colocado pouco antes de as aparições terem começado, que foi apenas poucos meses atrás. Tudo naquela parte do porão parecia mais velho do que eu.

Os dois pisos seguintes não eram, nem de longe tão interessantes como o porão, não havia viúvas negras. Alguém os modernizara completamente e não deixara sequer vestígio da escadaria ou elevador para louça e comida de um antigo criado. O trabalho em madeira era bom, mas em pinho em vez de madeira dura, os acabamentos eram razoáveis, nada de extraordinário. A casa fora construída por alguém da classe média-alta, calculei, e não por alguém verdadeiramente rico. Meu trailer tinha sido construído para os verdadeiramente pobres, portanto era boa a julgar esse tipo de coisas.

O fantasma não tinha voltado ao quarto de Chad desde a noite passada, tudo estava impecavelmente arrumado. Tal como Corban dissera, não havia indícios de fios ou cordas ou de qualquer outra coisa que pudesse ter disparado o carro pelo quarto. Calculei que pudesse ter sido feito com magia, não sabia muito sobre magia. Porém, não tinha sentido nada, e normalmente consigo notar se alguém está usando magia perto de mim.

Olhei para Chad. – A menos que encontremos alguma coisa realmente estranha no chão encima do seu quarto, estou convencida de que isso é sério.

No meu quarto, minha escova de cabelo estava no chão, mas não podia jurar que não tinha deixado lá. Sob o olhar penetrante de Chad, fiz a cama e enfiei na mala as roupas que estavam espalhadas pelo chão.

– O verdadeiro problema. – disse enquanto arrumava as coisas e ele se sentava na cama. – É que não sei como fazer com que o fantasma te deixe em paz. Consigo vê-lo melhor do que você, acho... Ontem, não viu mais nada além das coisas mexendo?

Balançou a cabeça.

– Eu vi. Nada nítido, mas consegui vê-lo. No entanto, não sei como fazê-lo desaparecer. Não é um repetidor, um fantasma que se limita a repetir sempre certas ações. Existe inteligência por trás daquilo que faz... – tive que dizer isso duas vezes para que entendesse tudo.

Quando entendeu, seu rosto se torceu e sibilou.

Fiz que sim com a cabeça. – Está zangado. Talvez se descobrirmos porque está zangado possamos...

Escutou-se um grande estrondo. Minha reação deve tê-lo denunciado porque Chad se levantou e tocou meu ombro.

– Foi alguma coisa lá embaixo. – informei.

Encontramo-nos na cozinha. A porta da geladeira estava aberta e a parede em frente se encontrava amassada e manchada com uma substancia liquida e pegajosa que provavelmente seria suco de laranja. Uma embalagem desse produto estava aberta no chão, junto com meia dúzia de garrafas de diversos condimentos. A torneira estava aberta no máximo. A pia estava tampada e começava a se encher de água quente.

Enquanto Chad fechava a torneira, percorri o lugar com os olhos. Quando Chad tocou meu braço, balancei a cabeça.

– Não o vejo.

Soltando um suspiro, comecei a arrumar e limpar. Aparentemente, era algo que começava a fazer com frequência nessa casa. Esfreguei a parede e Chad passou o esfregão no chão. Não havia nada que eu pudesse fazer em relação as marcas na parede, e, olhando para elas, pensei que talvez algumas delas fossem antigas.

Depois de deixarmos tudo o melhor possível, providenciei sanduíches e batatas fritas para o almoço. Fortalecidos, continuamos a nossa exploração subindo até o sótão.

Na verdade, havia dois sótãos. O que estava encima do quarto de Chad era acessível pela escadaria estreita escondida em um armário embutido (talvez o último indício da escada de um criado). Em parte, esperava encontrar pó e caixas com objetos armazenados, porém a única coisa existente no sótão era um escritório moderno com um computador de aspecto profissional colocado sobre uma mesa de cerejeira. Havia clarabóias que permitiam uma sensação de abertura e arejamento que contrabalançava com as paredes preenchidas por estantes com portas de vidro, também de cerejeira, entortadas pelo peso. A única característica mais extravagante era uma almofada rendada na estreita cadeira diante da única janela.

– Disse que havia outro? – perguntei, parada nas escadas porque entrar no compartimento me parecia intrusivo.

Chad indicou o caminho para o outro lado do segundo piso, até encontrarmos no quarto dos seus pais. Perguntei-me porque o escritório personalizado e encantador e a suíte, profissionalmente decorada a ponto de ser igualmente confortável em um grande armazém ou na casa antiga, era impessoal e fria.

Dentro do armário embutido, no teto, havia uma ampla porta retangular. Tivemos que ir buscar uma cadeira e colocá-la debaixo da porta para que eu conseguisse alcançar a tranca, mas a porta afinal era uma escada dobrável. Assim que desviamos a cadeira, a escada caiu até o chão.

De lanternas em punho, como intrépidos exploradores, subimos até o sótão mais em consonância com uma casa como essa do que o primeiro. Estruturalmente, era a imagem espelhada do escritório menos as clarabóias e a maravilhosa vista. A luz se debatia para atravessar a superfície de tinta branca que cobria a única janela, fazendo reluzir as partículas de pó que levantamos com nossa presença.

Três velhas malas se alinhavam contra a parede, ao lado de uma máquina de costura de pedal onde se lia SINGER, inscrito com elaboradas letras douradas sobre a madeira raspada. Aqui havia mais grades, mas pelo menos no sótão alguém tinha arranjado maneira de manter as aranhas longe. Não vi qualquer inseto. Nem sequer muito pó. Deixe a limpeza do sótão ao cargo de Amber.

As malas estavam fechadas com chave. Porém, o ar de desilusão no rosto de Chad me fez sacar meu canivete suíço. Uns toquezinhos, umas agitadas, e a mais estreita das laminas abriu a primeira mala antes de se chegar ao terceiro verso do Atirei o pau no gato. Sei por que cantarolo entredentes quando abro fechaduras, é um mau habito. No entanto, uma vez que não tenho qualquer desejo de me tornar ladra profissional, não me dei ao trabalho de tentar me livrar dele.

Lençóis amarelados com bordados nas extremidades, ou flores, ou qualquer outro motivo apropriadamente feminino, enchiam o primeiro cesto, mas o segundo era mais interessante. Plantas de casas (que retiramos), escrituras, velhos diplomas para pessoas cujos nomes Chad desconhecia, e um punhado de artigos de jornal datados da década de 1920 sobre pessoas com o mesmo nome daquelas que estavam nos diplomas e nas escrituras. Sobretudo, anúncios de mortes, nascimentos e casamentos. Nenhum dos anúncios de mortes era sobre pessoas que tinham morrido violentamente ou muito novas, reparei.

Enquanto Chad estudava atentamente as plantas que espalhara sobre a tampa fechada da primeira mala, parei para ler sobre a vida de Ermalinda Gaye Holfenster McGinnis Curtis Albright, intrigada com o nome excessivo. Morrera aos setenta e quatro anos em 1939. Seu pai fora capitão do lado errado da Guerra Civil, levara sua família para o oeste, fazendo fortuna nos negócios da madeira e dos caminhos de ferro. Ermalinda tivera oito filhos, quatro dos quais tinha sobrevivido e eles mesmos tinham um número apreciável de filhos. Duas vezes viúva, casara com um terceiro homem quinze anos antes da sua morte. Esse era... – lendo nas entrelinhas. –... muito jovem para ela.

– É isso mesmo, garota. – disse com admiração, e a escada se fechou com violência que a vibração no chão dela deixou Chad a procura das suas plantas. Não teria ouvido o ruído seco da fechadura, contudo.

Lancei-me a porta, tarde demais, evidentemente. Quando encostei o nariz, não senti cheiro de ninguém. Não me ocorria nenhuma razão que pudesse levar alguém a nos prender no sótão. Não íamos propriamente ficar aqui encima... a menos que pegasse fogo na casa ou algo semelhante.

Afastei aquele pensamento útil da cabeça e conclui que provavelmente teria sido o nosso fantasma. Tinha lido sobre fantasmas que ateavam fogo a casas. A Borley Rectory de Hans Holzer não teria sido alegadamente incendiada pelos seus fantasmas? Embora, tinha praticamente certeza que dada a altura se provara que Hans Holzer era uma fraude...

– Bom. – disse a Chad. – Aquilo prova que nosso fantasma é vingativo e inteligente. – parecia muito abalado, agarrando as plantas de uma forma que faria qualquer historiador se retrair perante a forma como o papel frágil estava enrugado. – Mais nos vale continuar a explorar, não é verdade?

Ao constatar que permanecia amedrontado, disse: – Mais cedo ou mais tarde, sua mãe vai chegar. Quando ela subir ao quarto, ela pode nos tirar daqui. – depois tive uma idéia. Retirei o celular do boldo da frente, mas quando liguei para o número que salvara como sendo de Amber, ouvi o telefone tocar no quarto. – Sua mãe tem celular? – tinha. Marcou o número e ouvi o celular dizer que no momento não estava disponível, portanto disse onde estávamos e o que tinha acontecido.

– Quando ouvir a mensagem, ela vem nos tirar daqui. – tranquilizei Chad após ter terminado. – Se não vier, ligamos para o seu pai. Quer ver o que está na ultima mala?

A idéia não lhe agradou, mas ainda assim inclinou-se sobre o meu ombro enquanto destrancava a ultima fechadura.

Quando a ultima mala foi aberta, ambos cravamos os olhos no tesouro revelado.

– Uau. – disse. – Pergunto-me se seus pais fazem idéia que isso está aqui em cima. – fiz uma pausa. – Pergunto-me se isso terá algum valor.

A última mala estava completamente cheia de discos antigos, na sua maioria espessos discos de vinil preto com a etiqueta 78 RPM. Havia um método de armazenamento, descobri. Uma das pilhas era totalmente dedicada ao entretenimento de crianças: A história de Hiawatha,diversas canções infantis. E um tesouro, Branca de Neve complementada com um livro de historias na capa do álbum que parecia ter sido feito mais ou menos na mesma época do filme. Chad torceu o nariz ao disco da Branca de Neve, portanto recoloquei na pilha certa.

Meu celular tocou e olhei o número.

– Não é a sua mãe. – disse a Chad. Abri o telefone. – Ei, Adam. Alguma vez ouviu os Mello-Kings?

Fez uma breve pausa e Adam, em um tom grave aceitável, cantou: – Chip, chip, chip went the litttle Bird... e qualquer coisa, qualquer coisa, qualquer coisa went my heart. Presumo que haja uma razão para ter perguntado?

– Chad e eu estamos vendo uma caixa de discos antigos. – expliquei.

– Chad? – sua voz era cuidadosamente neutra.

– O filho de Amber, que tem dez anos. Nesse momento, tenho nas mãos um disco dos Mello-Kings, de 1957. Acho que é capaz de ser o mais recente daqui... Não. Chad acabou de encontrar um álbum dos Beatles... Hum, uma capa. Parece que falta o disco, portanto os Mell-Kings são provavelmente a coisa mais recente daqui.

– Estou vendo. Pouca sorte na caça aos fantasmas?

– Alguma. – olhei severamente para a porta fechada que nos mantinha presos. – E você? Como vão as negociações com a Senhora?

– Warren e Darryl vão se encontrar com dois dos vampiros dela hoje à noite.

– Quais?

– Bernard e Wulfe.

– Diga para terem cuidado. – preveni. – Wulfe é mais do que um vampiro. – apenas me cruzara com Bernard uma vez, e não me impressionara. Ou talvez estivesse apenas me lembrando da reação de Stefan a ele.

– Não queira ensinar o padre a rezar a missa. – Adam replicou calmamente. – Não se preocupe. Viu Stefan?

Levei os dedos ao pescoço. Como responder a isso? “Não sei, é possível que tenha me mordido a noite passada” não me parecia propriamente a melhor coisa a dizer.

– Até agora não. Talvez essa noite ele apareça para conversarmos.

Ouvi a porta abrir lá embaixo. – Preciso desligar. Amber chegou.

– Tudo bem. Ligo para você hoje a noite. – e desligou.

Alguém correu escada acima até o quarto. – Sua mãe está em casa. – informei a Chad, e comecei a recolocar os discos. Eram pesados. Não conseguia sequer imaginar quanto poderia pesar a mala inteira. Talvez os tivesse arrumado depois de a mala estar no sótão. Ou então tinham oito lobisomens para transportar.

– Está trancada. – Amber disse, enquanto balançava a porta. – Acho que existe uma espécie de puxador do seu lado.

Respirava pesadamente enquanto puxava a escada.

Toda a sua atenção se concentrou em Chad e nem sequer se deu ao trabalho de falar enquanto suas mãos dançavam.

– Estamos bem. – interrompi-a. – Tem belos discos aqui. Já mandou avaliar o valor deles?

Virou-se para me olhar, como se tivesse esquecido de que eu estava ali. Suas pupilas estavam... esquisitas. Muito dilatadas, conclui, mesmo para a luz débil do sótão.

– Discos? Acho que Corban os encontrou quando compramos essa casa. Sim, ele mandou avaliá-los. Não são nada de especial. Apenas antigos.

– As compras correram bem?

Fitou-me com os olhos vazios. – Compras?

– Amber, está tudo bem com você?

Pestanejou e depois sorriu. Era um sorriso tão cheio de doçura e leveza que senti um arrepio gélido. Amber era muitas coisas, mas não era doce. Algo de errado estava acontecendo com ela. – Sim. Comprei uma camisa e uns presentes de Natal antecipadas. – descartou o assunto com um aceno. – Como que vocês acabaram presos aqui?

Encolhi os ombros, recolocando os últimos discos e fechando a mala. – A menos que haja alguém entrando em sua casa para pregar algumas peças maldosas, diria que foi o fantasma.

Levantei-me e passei por ela em direção à porta aberta. E nesse momento senti o cheiro de vampiro. Seria possível que Stefan estivesse alojado aqui? Parei para olhar em volta enquanto Chad descia os degraus com grande estrondo, deixando-me com sua mãe, sozinhas com o cheiro de vampiro e sangue fresco.

– O que aconteceu? – Amber perguntou, dando um passo em frente.

Cheirava a suor, sexo e um vampiro que não era Stefan. – Não fez nada além das compras? – perguntei.

– O que? Fui ao cabeleireiro, paguei algumas contas, e foi isso. Está tudo bem contigo?

Estava mentindo. Sabia que tinha sido um lanche para um vampiro. Hoje.

Olhei para a luz do dia que atravessava as janelas e percebi que precisava desesperadamente falar com Stefan.


Capítulo 7

 

 

Esperei até que escurecesse, e a seguir saí sorrateiramente pela porta traseira até o pátio. – Stefan? – chamei em voz baixa para que ninguém na casa me ouvisse.

Não era assim tão estúpida para chamar por ele. Viera para cá com o propósito de manter o olho em mim. Fazia sentido que estivesse em algum lugar por perto. Observando.

Esperei cerca de meia-hora, todavia nem sinal de Stefan. Finalmente, voltei para o interior da casa e encontrei Amber vendo televisão.

– Vou para a cama. – informei-a.

Seu pescoço, reparei, não tinha qualquer marca, mas há outros lugares onde os vampiros podem se alimentar. Meu próprio pescoço ostentava um lenço, um dos muitos que comprara naquela mesma tarde, em uma divertida ida as compras com Chad a uma loja de caridade. A única coisa que encontrara que lembrava um cordeiro era um grampo de cabelo com um desenho de uma ovelha. Não era certamente algo que pudesse invocar a proteção do Filho de Deus.

– Parece cansada. – disse-me com um bocejo. – Eu estou exausta. – colocou a tv no mudo e olhou-me. – Corban contou-me o que aconteceu ontem à noite. Mesmo que não consiga fazer mais nada, terá conseguido convencê-lo que Chad não está inventando coisas ou representando significa muito para mim.

Esfreguei a mordida do vampiro, bem escondida debaixo da seda vermelho-viva. Amber tinha um problema muito maior do que um fantasma, mas nesse capítulo também não sabia como ajudá-la.

– Fico contente. – disse. – Até amanhã.

Quando cheguei ao quarto, não consegui me forçar a dormir. Perguntava-me se Corban saberia o que seu cliente era e se tinha conhecimento de que o vampiro estava se alimentando da sua mulher, ou se estava sendo enganado como Amber. Meditei sobre a estranheza de Corban, que não acreditava em fantasmas, sugerir a Amber que me pedisse para vir ajudá-los. Mas se o vampiro decidira me trazer para cá... não sabia o porque. A menos que fosse uma conspiração secreta qualquer, uma forma de Marsilia se ver livre de mim, de me punir pelos meus pecados sem se preocupar com os lobos. No entanto, não imaginava Marsilia ansiosa por dever um favor a nenhum vampiro, e um vampiro que era tão territorial a ponto de não permitir a proximidade de outros vampiros era um mau candidato a resolução cooperativa de problemas.

Por falar em Blackwood... atraíra Amber até si durante o dia. Nunca ouvi falar de um vampiro que estivesse vivo durante o dia, embora a minha experiência com vampiros fosse manifestamente limitada. Perguntei-me onde Stefan estaria.

– Stefan? – disse, mantendo um tom de voz baixo. – Apareça, apareça de onde estiver. – talvez não pudesse entrar porque não tinha sido convidado. – Stefan? Entre. – porém continuava a não ter resposta.

Meu celular tocou e não consegui evitar as borboletas em meu estômago quando atendi.

– Ei, Adam.

– Achei que ia gostar de saber que Warren e Darryl conseguiram sair vivos do ninho dos vampiros.

Inspirei fundo. – Não vai me dizer que concordou que se encontrassem no território de Marsilia?

Soltou uma risada. – Não, simplesmente pareceu-me que soaria melhor do que dizer que conseguiram sair vivos do Dennys. Pode não ser romântico, mas está aberto toda a noite e fica no meio de um estacionamento bem iluminado, sem lugares para grupos furtivos fazerem emboscadas.

– Conseguiram alguma coisa?

– Não propriamente. – não parecia preocupado. – As negociações levam tempo. Dessa vez, tudo se resumiu a assumir atitudes e fazer ameaças. No entanto, Warren diz que é possível que Marsilia volte atrás de algo mais do que seu pequeno esconderijo. Wulfe deixou escapar algumas pistas nesse sentido. Marsilia sabe que eu não vou ceder em relação a você, mas talvez esteja disposta a negociar a respeito de outros assuntos. Como tem passado?

– A bengala me seguiu. – disse por que sabia que isso o faria rir novamente.

Foi o que aconteceu. E a caricia da sua alegria fez com que meus ossos derretessem.

– Não compre nenhuma ovelha enquanto estiver aí e não haverá problema.

O bastão que me seguira até em casa, e, nesse caso, até Spokane, tinha originalmente o poder de fazer com que as ovelhas de seu detentor tivessem duas crias a cada gravidez. A semelhança do que acontecia com a maior parte dos presentes Fae, mais cedo ou mais tarde se voltaria contra seu proprietário. Não sabia se ainda funcionava assim, e tão pouco sabia o porquê me seguia, mas de certo modo começava a me acostumar com isso.

– Alguma sorte com o fantasma?

Agora que estávamos a salvo, fora do sótão, podia lhe contar o que tinha acontecido sem que ele viesse disparado ao meu encontro para me salvar. Se Blackwood me ignorara, pelo menos assim parecia, certamente não ignoraria o Alfa do Bando Bacia Columbia.

Quando terminei, perguntou: – Porque teria te prendido no sótão?

Encolhi os ombros e me mexi na cama para ficar mais confortável. – Não sei. Provavelmente, limitou-se a aproveitar da oportunidade. Há Faes que fazem esse tipo de maldade.... hobs, brownies e algo parecido. Mas nesse caso, tratava-se de um fantasma. Eu mesma o vi. O que eu não vi foi qualquer sinal de Stefan. Estou um pouco preocupada com ele.

– Ele está aí para garantir que Marsilia não envie alguém atrás de você. – Adam disse.

– Certo. Até agora tudo bem. – toquei a parte dolorida do meu pescoço. Poderia ser isso outra explicação? Poderia ter sido um dos vampiros de Marsilia?

Porém, a sensação de enjôo em meu estômago me disse que não era. Não com Blakwood livre para entrar e sair da casa de Amber. Não com Amber atraída, seduzida a servir de alimento, em plena luz do dia.

– Não se chega a idade de Stefan se não for capaz de cuidar de si mesmo.

– Tem razão. – retorqui. – Mas ele foi abandonado a própria sorte e ficaria mais satisfeita se não andasse tão desaparecido.

– Ele não seria de grande ajuda em uma caça aos fantasmas... Não é verdade que os fantasmas evitam os vampiros?

– Fantasmas e os gatos, segundo Bran diz. – respondi. – Mas minha gata gosta do Stefan.

– Sua gata gosta de qualquer pessoa que consiga convencer a acariciá-la.

Algo no modo como disse, uma caricia na voz, causou-me desconfiança. Fiquei escutando atentamente e ouvi, um suave ronronar.

– Pelo menos, gosta de você. Como que ela te convenceu a voltar a entrar na sua casa?

– Ficou miando na porta traseira. – parecia envergonhado. Nunca tinha visto ou ouvido falar de um gato que se desse com lobisomens ou coiotes até Medea ter anunciado a sua presença na porta da minha oficina. Isso acontecia com os cães, assim como a maioria do gado, mas não com os gatos. Medea adora qualquer pessoa que lhe faça carícias... ou que tenha potencial para lhe fazer carícias. Ao contrário de algumas pessoas que conheço.

– Está competindo entre você e Samuel. – informei-o. – E você, meu senhor, acabou de sucumbir aos caprichos dela.

– Minha mãe alertou-me para essa questão de sucumbir. – disse resignadamente. – Vai ter que me salvar de mim mesmo. Quanto te tiver para me dar caricias, não vou precisar dela.

Pelo telefone, ouvi vagamente a campainha tocar. – É um pouco tarde para visitas. – disse.

Adam gargalhou.

– O que foi?

– É Samuel. Perguntou se Jesse tinha visto sua gata.

Suspirei. – Os homens são tão fáceis. Vai lá confessar seus pecados.

Quando desliguei, fixei o olhar na escuridão da noite, desejando estar em casa. Se estivesse dormindo com Adam ao meu lado, certeza que não ia aparecer um estúpido vampiro para morder meu pescoço. Finalmente, levantei-me, acendi a luz e peguei o livro de fadas para ler. Algumas páginas depois, deixei de me preocupar com vampiros, puxei o edredom para mais perto dos ombros. Amber devia gostar de manter a temperatura do ar condicionado nos níveis equivalentes a preferência dos vampiros, e perdi-me na historia do Touro Rugidor de Bagbury e outros Fae que assombram pontes.

Depois de algum tempo, acordei tremendo, agarrada à bengala que, na última vez que a vira, se encontrava encostada a parede ao lado da porta. A madeira debaixo de meus dedos estava quente, um elemento em contraste em relação ao resto do quarto. O frio era tão intenso que meu nariz estava dormente e da minha boca saia vapor.

Momentos depois de ter acordado, um gemido agúdo e sem tom ecoou pelas paredes da casa, calando-se abruptamente.

Atirei os cobertores para o chão. O raro livro antigo conheceu o mesmo destino, mas estava muito preocupada com Chad para salvá-lo. Saí do quarto correndo e subi os quatro degraus até o quarto do garoto.

A porta não abria.

A maçaneta rodava, portanto não estava trancada. Empurrei a porta com o ombro, mas ela não cedeu. Tentei usar a bengala, que se mantinha mais quente do que seria de esperar, como pé de cabra para forçar a abertura da porta, mas de nada serviu. Não havia nenhum lugar onde enfiar a bengala para servir de alavanca.

– Permita-me. – sussurrou Stefan atrás de mim.

– Onde que tem andado? – perguntei, subitamente severa em resultado do alívio. Com o vampiro aqui, o fantasma iria embora.

– À caça. – respondeu, levando o ombro de encontro à porta. – Parecia ter tudo sob controle.

– É. – disse. – Bom, as aparências enganam.

– Estou vendo.

Ouvi a madeira começar a rachar à medida que cedia relutantemente os primeiros centímetros. Depois, se afastou do vampiro e se chocou contra a parede, fazendo Stefan entrar pelo quarto aos tropeços.

Se meu quarto estava frio, o de Chad estava gelado. Um manto de geada cobria todo o quarto como uma renda irreal. Chad estava parado, como morto, no centro da sua cama, não respirava, porém tinha os olhos abertos e assustados.

Tanto Stefan como eu corremos em direção a cama.

No entanto, o fantasma não tinha ido embora, e a presença de Stefan não o afugentou. Não conseguíamos tirar Chad da cama. O edredom congelado estava colado a ele e a cama, não havia como libertá-lo. Deixei cair a bengala no chão, agarrei o edredom com ambas as mãos e puxei. Estremeceu sob minhas mãos como uma coisa viva, criando uma nevoa devido a geada que derretia em contato com a minha pele.

Stefan colocou as mãos abaixo do queixo de Chad e partiu o edredom ao meio. Veloz como uma cobra que atacasse, levantou Chad e retirou-o da cama.

Peguei a bengala e segui-os para o exterior do quarto até o corredor, desejando que tivesse atualizado minhas competências em CPR desde o ensino médio.

Porém, fora do quarto e em segurança, Chad começou a inspirar ar como um aspirador.

– Você precisa de um padre. – Stefan disse.

Ignorei-o em favor de Chad. – Está tudo bem?

O garoto voltou a si. Seu corpo podia ser magro, mas seu espírito era puro tungstênio{10}. Acenou a cabeça e Stefan o pousou sobre os pés, equilibrando-o um pouco quando Chad balançava.

– Nunca vi nada igual. – admiti. No interior do quarto de Chad, conseguia ver a água escorrer rapidamente pela janela. Olhei para Stefan. – Pensava que os fantasmas te evitavam.

Ele também estava com os olhos fixos no quarto.

– Eu também. Eu... – olhou para mim e parou de falar. Levantou meu queixo e olhou para meu pescoço, para ambos os lados do meu pescoço. E foi então que percebi que fora mordida uma segunda vez. – Quem que tem andado te mastigando, cara mia?

Chad fitou Stefan e a seguir sibilou e usou os dedos para reproduzir um par de presas de vampiro.

– Sim, eu sei. – Stefan disse, usando também linguagem de sinal. – Vampiro. – quem poderia saber? Stefan sabia linguagem de sinais, de certo modo não parecia uma coisa de vampiro.

Chad tinha mais algumas coisas a dizer. Depois de terminar, Stefan balançou a cabeça.

– Essa vampira não está aqui, ela não ia sair de Tri-Cities. Esse é outro vampiro. – olhou para mim, virando o rosto para que Chad não pudesse ver o que dizia. – Como você conseguiu? – perguntou. – Como que vem para uma cidade com meio milhão de habitantes e atrai o único vampiro que existe aqui? O que você fez? Cruzou com ele enquanto fazia jogging a noite?

Ignorei o pânico em meu estômago causado pelo fato de ter sido mordida duas vezes por um idiota com quem estivera uma única vez. Tê-lo chamado de idiota o tornava menos assustador. Ou pelo menos devia. Mas James Blackwood me mordera duas vezes enquanto eu dormia... ou pior, me mordera acordada e me fizera esquecê-lo.

– Apenas sorte, suponho. – disse. Não queria falar sobre o assunto com Chad aqui ao lado. Estaria muito mais seguro se não soubesse que James Blackwood era vampiro.

Chad fez alguns sinais com as mãos.

– Desculpa. – Stefan disse. – Sou Stefan, amigo da Mercy.

Chad franziu a sobrancelha.

– Ele é um dos bons. – expliquei. Lançou-me um olhar que dizia alguma coisa como: “Ótimo, mas o que ele está fazendo na minha casa no meio da noite?”. Fingi não perceber o que queria dizer. Seja como for, também não sabia linguagem de sinal, portanto ele não tinha como ter certeza se eu de fato percebera. Suponho que não fosse justo, mas não queria mentir... e não queria mesmo lhe contar toda a verdade.

– Eles precisam sair daqui. – Stefan disse. – E eu vou te levar de volta para Tri-Cities. – parecia que ia dizer algo mais, porém lançou os olhos para Chad e balançou a cabeça. Provavelmente, algo mais sobre Blackwood.

– Deixe-me vestir alguma coisa. – repliquei. – Penso melhor quando não ando correndo de um lado para outro em camisa e calcinha.

Vesti-me no banheiro, olhando atentamente para a segunda mordida enquanto o fazia. A seguir, tapei-as com meu novo lenço de seda vermelho de segunda mão.

Voltar para casa? Do que adiantaria? Se o fizesse, o que teria conseguido aqui?

Viera para ajudar Amber e desaparecer da vista de Marsilia durante algum tempo. A segunda parte tinha surtido efeito, ou pelo menos não tinha prejudicado a negociação de Adam. Quanto a Amber, não sabia se a tinha ajudado... não ainda.

Fixei-me no meu rosto pálido e carente de sono e me perguntei como ia fazer isso. Blackwood os tinha ao seu cuidado.

Estremeci. Embora não conseguisse detectar nada, nenhum indicio material, nenhum cheiro, nenhum som, conseguia sentir alguma coisa me observando.

– Deixe o garoto em paz. – disse ao meu observador invisível.

E todos os cabelos da minha nuca se arrepiaram.

Esperei que atacasse ou se mostrasse. Todavia, nada mais aconteceu, apenas aquela conexão momentânea, que desapareceu mais lentamente do que aparecera.

Stefan bateu na porta. – Está tudo bem?

– Tudo ótimo. – respondi. Algo acontecera, porém não fazia ideia do que tinha sido. Estava cansada, assustada e furiosa. Comecei a escovar os dentes e abri a porta do banheiro.

Stefan e Chad estavam encostados em lados opostos ao corredor, discutindo qualquer coisa que lhes fazia produzir mil movimentos por minuto com as mãos.

– Stefan.

Lançou as mãos para cima para atrair minha atenção. – Como é possível ele achar que Dragon Ball Z é melhor do que o Scooby-Doo? Essa geração não valoriza nada os clássicos.

Fiquei na ponta dos pés e beijei seu rosto. Mantendo a boca desviada de Chad, disse: – É um bom homem.

Stefan me deu tapinhas na cabeça.

Inspecionei o quarto de Chad, mas parecia que nada tinha acontecido ali, e não restava sequer um vestígio de umidade. Apenas as duas partes do edredom em cada um dos lados da cama de Chad indicavam que alguma coisa acontecera.

– Há alguns vampiros capazes de fazer coisas como essa. – Stefan informou, acenando com a mão para o quarto de Chad. – Fazer com que as coisas se mexam sem tocarem nelas, matarem pessoas sem estarem presentes. Mas nunca tinha ouvido falar em um fantasma com tanto poder. Eles tendem a ser coisas patéticas que tentam fingir que estão vivas.

Não me cheirava a vampiro, apenas a sangue, um cheiro que se dissipava na sequência do desaparecimento da geada. Eu vira o fantasma, não claramente, mas tinha estado ali. Virei-me de modo que Chad não pudesse ler meus lábios. – Acha que Blackwood está se passando por um fantasma?

Stefan balançou a cabeça. – Não, não é o Monstro. Não tem esse legado. Havia um vampiro indiano em Nova Iorque. Ele e os seus podiam ter feito algo semelhante ao que vimos essa noite... com exceção do frio. Mas só os vampiros criados diretamente por ele seriam capazes de fazê-lo, e ele apenas transformava mulheres indianas em vampiros. Foram todos mortos há um século, ou talvez mais, mas de qualquer modo acho que Blackwood o precedeu.

Chad vinha observando a boca de Stefan com todos os inícios de fascínio. Fez alguns gestos, e Stefan gesticulou de volta, dizendo: – Eles estão mortos. Não. Foi outra pessoa que os matou. Sim, tenho certeza de que foi outra pessoa. – lançou seus olhos em mim. – Quer explicar ao garoto que eu estou mais para Spike do que para Buffy? Um vilão e não um super-herói?

Pisquei os olhos repetidamente. – É o meu herói.

Afastou-se de mim vários passos, como se tivesse lhe batido. Isso me fez pensar no que Marsilia teria dito enquanto o torturava. – Stefan?

Voltou-se novamente para nós com um silvo e uma expressão que fez Chad recuar até mim. – Eu sou um vampiro, Mercy.

Não ia deixá-lo escapar com o número do vampiro sombrio e com ódio de si mesmo. Ele merecia mais do que isso.

– Sim, nós percebemos isso. São as presas que denunciam... Traduz isso para Chad, por favor. – esperei enquanto o fazia com as mãos agitadas de raiva e algo relacionado a isso. Chad relaxou encostado a mim.

Stefan continuou a gesticular e, em quase um desafio, disse: – Não sou herói de ninguém, Mercy.

Desviei o rosto até olhar diretamente para Chad. – Acha que isso significa que nunca vou vê-lo em spandex{11}?

Chad desenhou nos lábios a última palavra com um ar intrigado.

Stefan suspirou. Tocou no ombro de Chad, e quando o rapaz olhou para cima, escreveu lentamente a palavra spandex em um quadro imaginário. Chad fez uma cara de repulsa.

– Ei. – disse. – Ver homens bonitos correndo em roupas justas está no topo da lista de coisas que gostaria de fazer antes de morrer.

Stefan cedeu e soltou uma risada. – Você não vai me ver. – disse. – Então, o que fazemos a seguir, Caçadora de Fantasmas?

– Ora, aí está um nome de super-heroína sem graça. – disse.

– Scooby-doo já foi usado. – disse com dignidade. – Qualquer outra coisa soa sem graça em comparação.

– Agora é sério, acho melhor irmos procurar os pais dele. – que esperava que estivessem dormindo pacificamente, apesar do gemido de Chad e das portas batendo contra as paredes, para não mencionar toda a conversa que vínhamos tendo. Agora que pensei nisso, o fato de não terem aparecido era um mau sinal.

– Irmos? Também quer que eu vá? – Stefan ergueu uma sobrancelha.

Não ia dizer a Chad para mentir aos pais. E se tivesse acontecido alguma coisa a Amber e seu marido, queria que Stefan fosse conosco. O quarto deles ficava ao lado oposto da casa e a porta deles era grossa, além disso, não tinham uma audição extremamente apurada como Stefan e eu. Talvez estivessem dormindo. Agarrei minha bengala.

– Sim. Venha conosco, Stefan. Mas, Chad? – certifiquei-me de que conseguia ver meu rosto. – É melhor não contar aos seus pais que Stefan é um vampiro, ok? Pelas mesmas razões que te disse antes. Os vampiros não gostam que as pessoas saibam da sua existência.

Chad parou, olhou Stefan por momentos e depois desviou o olhar.

– Ei. Não, o Stefan não. – disse. – Ele não se importa. Mas há outros que vão se importar. – e provavelmente o pai também não iria acreditar no que dissesse. E talvez viesse contar isso para Blackwood. Quanto a Blackwod, estava bem segura, não ficaria nada satisfeito se Chad soubesse da existência de vampiros.

Seguimos em direção ao quarto de Amber e abrimos a porta. Estava escuro lá dentro e consegui ver duas figuras quietas na cama. Congelei por momentos, mas em seguida percebi que os ouvia respirar. Na mesinha de cabeceira ao lado de Corban, estava um copo vazio que antes continha brandy, conseguia sentir o cheiro de pânico que agora tinha se dispersado. E do lado de Amber, estava uma embalagem de comprimidos.

Chad passou por mim correndo e subiu em direção a cama, enfiando-se nela. Com os pais ali, já não precisava ser corajoso. Os pés frios fizeram o que todo o barulho não conseguira, e Corban se ergueu.

– Chad. – nos viu. – Mercy? Quem é essa pessoa que está contigo, e o que estão fazendo em meu quarto?

– Corban? – Amber girou na cama. Soou um pouco grogue, mas acordou completamente quando reparou em Chad e depois em nós. – Mercy? O que aconteceu?

Contei-lhes, deixando de fora a condição de vampiro de Stefan. Na verdade, não fiz qualquer menção a ele, exceto o fato de ele se incluir no “nós”. Não quiseram saber. Assim que ouviram que Chad passara algum tempo sem respirar, não se interessaram mais em Stefan.

– Nunca vi nada igual. – admiti a eles. – Isso está fora da minha associação. Acho que precisam tirar Chad daqui e levá-lo para um hotel essa noite.

Corban ouvira tudo com um rosto impassível. Saiu da cama e pegou um robe quase em um gesto só. Ouvi-o percorrer o corredor, porém não entrou no quarto de Chad. Permaneceu na porta por momentos e voltou. Sabia o que tinha visto, nada mais do que um edredom rasgado ao meio e senti-me aliviada por ter presenciado a demonstração do carrinho de Chad.

Parou na soleira de seu quarto e nos olhou.

– Em primeiro lugar, fazemos as malas para uns dias. Em segundo lugar, arranjamos um hotel. Em terceiro, vou falar com o cunhado do meu primo, que é um padre jesuíta.

– Eu vou para casa. – informei-o antes que pudesse me dizer para sair e nunca mais voltar. Precisava ajudá-los a fazer alguma coisa em relação a Blackwood, que andava se alimentando de Amber, mas não sabia o que. E, ao que parecia, nunca ninguém fora capaz de fazer alguma coisa em relação a esse vampiro. – Não há nada que eu possa fazer por vocês, e tenho um negocio para gerenciar.

– Obrigada por ter vindo. – Amber disse. Saiu da cama e me abraçou. Sabia que estava grata por ter convencido seu marido de que Chad não estava mentindo. Ocorreu-me que essa deveria ser a menor das suas preocupações.

Por cima do ombro dela, Corban me olhava fixamente como se suspeitasse de que eu tinha de alguma maneira provocado tudo. Também meditei sobre isso. Algo transformara o fantasma deles em algo bem pior, e eu era o alvo ideal onde procurar uma razão.

Deixei-os com seus preparativos, fiz minha própria mala e abracei Amber novamente antes de sair.

Ainda cheirava a vampiro, mas, na verdade, Stefan e eu também cheirávamos.

 

 

Stefan esperou que saíssemos de Spokane, estávamos passando pelo aeroporto quando disse alguma coisa: – Quer que eu dirija?

– Não. – respondi. Podia estar cansada, mas não gostava que mais ninguém dirigisse a minha Transporter. Assim que Zee e eu acabássemos de consertar o Rabbit, meu carro ia voltar para a oficina. Além disso... – Não me parece que vá voltar a dormir durante o próximo milênio. Como que ele me mordeu duas vezes sem que eu tivesse percebido?

– Alguns vampiros têm essa capacidade. – Stefan disse com o mesmo tom de voz tranquilizadora que um médico usa para dizer a alguém que tem uma doença terminal. – Não está entre meus dons, nem entre os de nenhum dos do nosso ninho, exceto talvez o Wulfe.

– Me mordeu duas vezes. Isso é pior do que uma vez, certo? – a minha pergunta se seguiu em silêncio.

Algo se agitou em meu bolso da frente. Contorci-me e a seguir percebi o que tinha acontecido. Retirei o celular que vibrava sem olhar para o número. – Sim? – talvez tivesse soado abrupta, mas estava assustada e Stefan não me respondera.

Fez-se silêncio durante algum tempo até que Adam disse: – O que aconteceu? Seu medo me acordou.

Pestanejei muito depressa, desejando já estar em casa. Em casa com Adam em vez de dirigir no meio da escuridão com um vampiro.

– Desculpa ter te incomodado.

– É um beneficio da união do bando. – Adam disse. – Sou Alfa, portanto sinto as coisas primeiro. Mais ninguém sentiu. O que te assustou?

– O fantasma. – respondi, e depois expirei em um forte suspiro. – E o vampiro.

Convenceu-me a contar a história toda. A seguir, suspirou. – Só você mesmo para ir a Spokane e ser mordida pelo único vampiro em toda a cidade. – não conseguiu me enganar. Apesar de todo o divertimento que sua voz transmitia, também consegui escutar a raiva.

Mas se ele estava fingindo, também poderia fingir. – Isso foi basicamente o que Stefan disse. Não acho que seja justo. Como que eu podia saber que o melhor cliente do marido de Amber era um vampiro?

Adam soltou uma risada desgostosa. – A verdadeira questão é porque nós não suspeitamos de que era isso que ia acontecer. Mas agora está em segurança?

– Estou.

– Então vou esperar até que chegue.

Desligou sem se despedir. – Muito bem, diga-me o que Blackwood pode fazer agora que se alimentou de mim duas vezes.

– Não sei. – Stefan replicou. Depois suspirou. – Se eu trocar sangue com alguém duas vezes, consigo sempre encontrar essa pessoa, independentemente do lugar para onde for. Posso atraí-la... E, se estiver perto, posso forçá-la a vir ao meu encontro. Mas isso acontece em uma troca de sangue efetiva, de você para mim e de mim para você. Finalmente... é possível forçar uma relação senhor-escravo com aqueles com quem se troca sangue. Trata-se de uma precaução, suponho, porque um vampiro acabado de se transformar pode se tornar perigoso. Um simples sugar de sangue é menos arriscado. Mas suas reações nem sempre são as habituais. Pode ser que não sinta nenhum efeito.

Pensei em Amber, que vinha alimentando o vampiro sabe-se lá há quanto tempo, e no marido, que podia estar na mesma condição, e senti-me maldisposta.

– Da frigideira para o fogo. – disse. – Merda. – ok. Pense positivo. Se eu não tivesse ido a Spokane, o vampiro teria Amber e o marido como vitímas, com a diferença de que ninguém ficaria sabendo. – Eu estando inconsciente é possível ele ter forçado uma troca de sangue?

Suspirou e afundou-se no banco. – Não se lembra de ele te morder. Isso não significa que estava inconsciente.

Não estava a espera disso. Não tinha um desde que saíra de Tri-Cities. Mas consegui encostar, pular do carro e alcançar a vala na beira da estrada antes de vomitar. Não era indisposição... Era um terror total e absoluto. O ataque de pânico dos ataques de pânicos. O coração doía, a cabeça doía, e não conseguia parar de chorar.

E de repente parou. Vi-me rodeada e invadida por uma sensação de conforto: o bando. Adam. Lá se foi a ilusão de não incomodar os lobos de Adam, que já estavam descontentes comigo, com os meus problemas. Stefan limpou meu rosto com um lenço de papel e atirou-o para o chão, depois me pegou e me levou até o carro. Não me colocou no banco do motorista.

– Eu consigo dirigir. – disse, mas não tinha força na voz. A magia do bando pusera fim ao ataque de pânico, mas ainda conseguia senti-los a minha espera, preparados. Preparados para me salvar novamente.

Ignorou meu débil protesto e colocou o carro para funcionar. – Existe alguma razão para simplesmente ter se alimentado de mim sem ter feito uma troca de sangue? – perguntei, mais pelo desejo mórbido de saber tudo do que por qualquer esperança real.

– Com uma troca de sangue você também pode chamá-lo. – Stefan disse relutante.

– Com quantas? Só uma?

Encolheu os ombros. – Varia de pessoa para pessoa. Com a sua reação única a magia dos vampiros, podem ser necessárias cem como pode bastar uma.

– Quando diz que posso chamá-lo, isso significa que ele teria que vir ao meu encontro?

– A relação de um vampiro com aqueles de quem se alimenta não é igual, Mercy. – disparou. – Não. Conseguiria te ouvir. Não mais do que isso. Se fizer troca de sangue com toda a comida... – deixou escapar a palavra. –... as vozes dentro da cabeça podem conduzir a loucura, por isso só podemos com nossos próprios rebanhos. Há alguns benefícios. A ovelha se torna mais forte, imune a dor durante um breve período de tempo, como sabe com base nas suas experiências. O vampiro ganha um servo e eventualmente um escravo que lhe dará de comer de livre vontade e cuidará das suas necessidades durante o dia.

– Desculpa. – disse. – Não era minha intenção te deixar zangado. Apenas preciso saber em que situação me encontro.

Esticou o braço e deu um tapinha em meu joelho. – Eu compreendo. Desculpa. – as palavras seguintes foram pronunciadas lentamente. – É uma vergonha para mim ser o que sou. O homem que eu era jamais teria aceitado a vida a custa da de tantos. Mas não sou ele, já não sou esse homem.

Ultrapassou um caminhão (estávamos subindo).

– Se ele alimentou de você apenas por uma questão de conveniência, provavelmente não fez uma troca... A não ser...

– A não ser o que?

– Não acredito que ele tivesse sido capaz de bloquear tão bem a sua memória sem ter havido uma troca. Se fosse humana, sim. Mas você é determinada. – encolheu os ombros. – A maioria dos vampiros mestres se alimenta dos seus, de outros vampiros. Blackwood não tolerará mais vampiros em seu território, e não sei se tem algum descendente. Talvez compense a diferença trocando sangue cada vez que se alimenta.

Meditei sobre o que me disse e depois dormi um pouco. Acordei sobressaltada quando Stefan virou para entrar na autoestrada 395 em Ritzville. Estávamos a pouco mais de cem quilômetros de casa. – Ele não vai conseguir te coagir se você se ligar a outro vampiro. – Stefan disse.

Olhei para ele, mas estava muito atento a estrada, como se estivéssemos percorrendo as montanhas de Montana em vez de deslizarmos ao longo de uma extensão vazia, quase completamente plana e sem curvas.

– Está se oferecendo?

Acenou. – Estou perigosamente carente de alimento. A troca me deixaria satisfeito e não teria que voltar a caçar durante algumas noites.

Pensei durante algum tempo. Não que fosse fazê-lo, mas havia algo mais por trás da sua proposta, quando se trata de vampiros, começava a aprender, normalmente é isso que acontece. Com Stefan, isso não queria necessariamente dizer que estava escondendo para si algum beneficio.

– E com isso ganha um inimigo. – presumi. – James Blackwood, completamente sozinho, protege Spokane de todas as criaturas sobrenaturais, não apenas dos vampiros. Isso significa que ele é obsessivamente possessivo. E duro. Não vai ficar satisfeito se me afastar dele.

Encolheu os ombros. – Provavelmente, não consegue te atrair a Spokane você estando em Tri-Cities. Provavelmente nem sequer vá tentar, se for verdade que troca sangue cada vez que se alimenta. Mas se estiver ligada a mim, isso passaria de probabilidade a certeza. – falou devagar. – Nós já fizemos uma troca de sangue. E posso te garantir que não será horrível.

Se Blackwood me chamar até ele, poderia me transformar em uma de suas ovelhas, Adam convocaria o bando para me salvar. Mary Jo quase pagara o preço derradeiro por causa dos meus problemas. Desde que permanecesse em Tri-Cities, podia ser que nem sequer percebesse a razão pela qual não podia me chamar.

– Adam é meu parceiro. – disse. Não sabia se devia lhe contar que Adam me fizera um membro do bando. – Blackwood tem a capacidade de chegar a Adam por mim?

Balançou a cabeça. – Nem ele, nem eu. Já foi tentado. Nosso antigo Senhor, o criador da Marsilia, gostava de lobos e fez a experiência. Os laços de sangue operam a um nível diferente do bando de lobisomens. Levou a parceira de um Alfa, que era mulher-loba, para o seu rebanho na esperança de controlar o Alfa e todo o seu bando por ela, e fracassou.

– Marsilia gosta de se alimentar de lobisomens. – repliquei. Eu mesma testemunhara.

– Pelo que vi, diria que tê-los como alimento pode se tornar um vicio. – lançou-me os olhos. – Eu nunca fiz. Não até aquela noite. Não pretendo voltar a fazê-lo.

Estava prestes a tomar ou a decisão mais estúpida ou a mais inteligente da minha vida. – É permanente? – perguntei. – Essa ligação entre nós?

Lançou-me um olhar penetrante. Começou a dizer algo, mas parou antes que as palavras saíssem. Finalmente disse: – Essa noite, te contei coisas que outros vampiros não sabem. Coisas proibidas. Se eu fosse verdadeiramente um dos da Marsilia, ou se ela não tivesse quebrado meus laços com o ninho, não teria podido te contar tanta coisa.

Bateu com as palmas das mãos no volante e um gigantesco ônibus com um Honda Accord a reboque nos ultrapassou. – Dirigir aquelas coisas é como dirigir ônibus escolares anêmicos. – Stefan disse. – É estranho pensar que possa ser divertido.

Esperei. Se a resposta fosse “sim, o elo é permanente”, não estaria tão hesitante. Se não fosse permanente, no momento em que Blackwood fosse eliminado, poderia ser removido. Uma ligação temporária com Stefan não era tão assustadora como, por exemplo, a ligação mais permanente entre eu e Adam.

– Marsilia consegue quebrar os laços entre Mestre e ovelha. – disse. – Pode simplesmente apoderar-se deles, ou simplesmente desfazê-los.

– Isso não é lá de grande ajuda. – repliquei. – Tenho a clara impressão de que nos matara mais rápido quando nos ver.

– Existe esse problema. – disse suavemente. – Sim. Mas acho, com base em algumas coisas que ele deixou escapar, que Wulfe também tem a capacidade de fazê-lo. – sua voz ficou muito fria e não característica dele. – E Wulfe está em dívida comigo que mesmo que Marsilia tenha me declarado inimigo do ninho, ele não tem como recusar o meu pedido. – relaxou e balançou a cabeça. – Mas assim que a ligação entre nós terminasse, voltaria a ficar vulnerável em relação ao Blackwood.

Não achava que Wulfe fosse muito melhor do que Marsilia. Mas então, eu não tinha muita escolha, não é? Abandonara Amber até conseguir me reorganizar, mas não podia deixar Amber morrer nas mãos de Blackwood.

Perguntei-me se Zee ainda se sentiria culpado pelo fato de eu ter sido machucada ao tentar ajudá-lo, suficientemente culpado para me permitir usar a sua faca com feitiço Fae e o amuleto que utilizara para caçar vampiros. Talvez inclusive mais uma bengala magicamente virtuosa.

Nunca considerara seriamente a possibilidade de matar Marsilia como forma de me salvar. Em primeiro lugar, já tinha ido ao ninho. Em segundo lugar, ela tinha muitos servos que me matariam em resposta.

Portanto, porque achava que poderia matar Blackwood?

Eu sabia, eu sabia, que James Blackwood que conhecera não tinha o verdadeiro rosto do vampiro. Mas tinha-o conhecido, e não era assim tão assustador. Não tinha servos. E estava usando Amber sem seu conhecimento ou permissão, transformando-a em sua escrava, uma mulher que deixava o filho sozinho em uma casa com um fantasma e uma quase estranha. Não podia ajudar Amber em relação ao fantasma... Talvez tivesse inclusive piorado a situação. Mas podia ajudá-la em relação ao vampiro.

– Tudo bem. – disse. – Prefiro. – quase me engasguei ao pronunciar a palavra seguinte. – Te obedecer do que ouvi-lo.

Olhou-me por breves instantes. – Tudo bem. – concordou.

 

 

Parou em uma área de descanso. Havia uma fila de caminhões estacionados para passar a noite ali, mas o estacionamento destinado aos carros estava vazio. Retirou o cinto de segurança e, passando por entre os bancos dianteiros, passou para a parte de trás. Segui-o lentamente.

Sentou-se no banco traseiro e deu uma palmadinha na almofada ao lado. Quando hesitei, disse: – Não tem que fazer isso. Não vou te forçar.

Se não tivesse Stefan para interferir, Blackwood provavelmente conseguiria me obrigar a fazer o que bem entendesse. Ficaria impossibilitada de ajudar Amber.

Claro que se Marsilia me matasse primeiro, não teria que me preocupar com nada disso. – Estou colocando Adam e o bando em uma situação de maior perigo?

Stefan teve a cortesia de ponderar o que lhe perguntara, embora conseguisse cheirar sua ânsia: o odor dele era semelhante ao do lobo excitado no encalço de algo saboroso. Se eu fugisse, perguntei-me, sentiria compelido a me perseguir assim como um lobisomem faria?

Fitei-o e lembrei a mim mesma que o conhecia há muito tempo. Nunca fizera nada que achasse que poderia me causar mal. Estamos falando de Stefan, não um caçador qualquer.

– Não vejo como. – respondeu. – Adam não vai gostar, disso tenho certeza. Vai ver a reação dele quando te chamar por acidente. No entanto, é um homem pratico. Sabe muito sobre opções desesperadas.

Sentei-me ao seu lado, muito consciente da temperatura fria do corpo dele, mais fria do que o habitual, pensei. Sentia-me satisfeita por saber que isso também iria ajudar ele. Estava verdadeiramente cansada de causar apenas aflição a todos os meus amigos.

Desviou meu cabelo do pescoço e agarrei sua mão. – E quanto ao pulso?

Balançou a cabeça. – É mais doloroso. Tem muitos nervos perto da superfície. – olhou-me. – Não confia em mim?

– Se não confiasse não estaria fazendo isso.

– Ok, vou te segurar durante algum tempo, porque se você se mexer enquanto ainda tiver os dentes em seu pescoço, pode fazer com que corte o lugar errado e pode sangrar até a morte. – não me pressionou, simplesmente permaneceu sentado no banco como se estivesse disposto a ficar ali o resto da vida.

– Como? – perguntei.

– Cruze os braços por cima da barriga e eu os seguro aí.

Verifiquei se haveria o risco de entrar em pânico, mas Tim nunca me prendera daquela forma. Tentei não pensar no modo como me agarrara e fui apenas moderadamente bem sucedida.

– Vai para frente do carro. – Stefan disse. – As chaves estão na ignição. Vai ter que dirigir até em casa porque não posso ficar aqui. Agora tenho que caçar. Eu...

Abracei-me e encostei-me a ele. – Ok. Pode começar.

Colocou o braço lentamente ao redor dos meus ombros, passando pelo meu braço direito. Quando parei, colocou a mão sobre meus braços para que não pudesse me libertar.

– Tudo bem? – perguntou calmamente, como se a necessidade não tivesse iluminando seus olhos, como luzes de Natal no carro escuro.

– Tudo bem. – respondi.

Seus dentes deviam estar afiados como lâminas porque não senti atravessar a pele, apenas senti a umidade quente da sua boca. Só quando começou a sugar meu sangue que começou a doer.

Quem se alimenta em minha mesa?

O rugido na minha cabeça fez com que entrasse em pânico de uma forma que a mordida de Stefan não fizera. No entanto, me mantive muito quieta, como um rato quando percebe a presença de um gato. Se não se mexer, pode ser que não ataque.

A sucção constante da boca de Stefan hesitou por instantes. Depois voltou a se alimentar, dando palmadinhas em meu joelho com a mão livre. Não seria de se esperar que me confortasse, mas a verdade é que me confortou. Ele também ouvira o monstro assustador, e não tinha corrido.

Depois de um tempo, a dor passou a se aprofundar, e o rugido de fúria agora sem palavras que ecoava em minha cabeça foi abafado. Comecei a sentir frio, como se estivesse tirando não apenas sangue, mas todo o calor do meu corpo. A seguir, mexeu a boca e passou a língua nos ferimentos.

– Se olhasse no espelho. – sussurrou. – Não conseguiria ver minhas marcas. Ele queria que visse o que tinha feito.

Estremeci impotentemente e ergueu-me em seu colo. Estava quente, quente demais em contraste com a minha pele fria. Ergueu-se um pouco mais e retirou um canivete do bolso. Com a lâmina, cortou o próprio pulso no sentido do braço, como se deve fazer se quiser ser bem sucedido no suicídio.

– Pensava que no pulso era muito doloroso. – consegui pronunciar por entre meus pensamentos lentos e meu maxilar trêmulo.

– Para você. – disse ele. – Beba, Mercy. E cale a boca. – um sorriso quase imperceptível atravessou seu rosto, e em seguida inclinou a cabeça para trás de modo que não conseguisse ver sua expressão.

Talvez devesse ter me incomodado mais. Talvez se essa tivesse sido uma noite normal, isso tivesse acontecido. Porém, a suscetibilidade inútil me ultrapassara. Cacei como coiote durante grande parte da minha vida e, quando nessa forma, nunca parei para cozinhar a comida. O sabor de sangue não era nada de novo nem de horrível para mim, não quando se tratava do sangue de Stefan, e ele não estava morrendo, ou sofrendo, ou coisa parecida.

Levei os lábios ao pulso dele e fechei a boca sobre o corte. Stefan emitiu um ruído, não soava a dor. Colocou a mão livre em minha cabeça e depois a levantou como se não quisesse me coagir mais do que aquilo. Essa era uma opção minha, tomada de livre vontade. O sangue dele não era como o de coelho ou rato. Era mais amargo e de certo modo mais doce ao mesmo tempo. Era, sobretudo, quente, escaldante, e eu estava fria. Bebi enquanto o corte sob a minha língua fechava lentamente.

E lembrei-me desse sabor. O equivalente a comer McDonalds duas vezes no mesmo dia e repetir. Tive uma memória súbita, apenas a voz de Blackwood em meu ouvido.

Não me lembrava do que dissera ou do que fizera, mas a breve memória do som fez com que me encolhesse no assento, com a testa na coxa de Stefan enquanto chorava. Stefan afastou o rosto e usou a outra mão para me afagar suavemente.

– Mercy. – disse em um tom brando. – Ele não vai voltar a fazer aquilo. A partir de agora, não. É minha. Não vai conseguir confundir sua mente ou te forçar a fazer o que quiser.

Com a minha voz abafada pelo tecido de suas calças jeans, disse: – Isso significa que consegue ler minha mente?

Riu brevemente. – Só enquanto bebe. Esse não é meu dom. Seus segredos estão seguros. – sua risada varreu a voz de Blackwood.

Ergui a cabeça. – Ainda bem que não me lembro do que ele fez. – confessei a Stefan. Mas tive o pensamento de que o meu desejo de ver o corpo de Blackwood ardendo, assim como o de Andre, poderia ter uma razão mais pessoal do que apenas o que ele estava fazendo a Amber.

– Como está se sentindo? – perguntou.

Respirei fundo e me avaliei. – Espetacularmente bem. Como se fosse capaz de correr daqui até Tri-Cities mais rápido do que indo de carro.

Soltou uma risada. – Não acredito que isso possa ser verdade... a menos que tenhamos um pneu furado.

Levantou-se e nunca me pareceu estar tão bem desde... desde que apareceu no chão da minha sala de estar, parecendo-se com algo que fora enterrado cem anos antes. Me levantei também, mas tive de me sentar novamente.

– Equilíbrio. – disse. – É parecido com estar bêbado. Isso vai desaparecer depressa, mas é melhor eu dirigir.

Seria de se esperar que me sentisse terrivelmente mal. Uma vozinha qualquer dentro de mim estava resmungando que eu devia ter falado com meu Alfa antes de fazer algo tão... permanente.

Mas sentia-me ótima, melhor do que ótima e não era só do sangue de vampiro. Sentia-me verdadeiramente em controle da minha vida pela primeira vez desde o ataque de Tim. O que era muito engraçado considerando as circunstâncias.

No entanto, eu tomara a decisão de me subjugar ao poder de Stefan. – Stefan? – observava os refletores passarem a beira da estrada.

– Hm?

– Alguém falou com você sobre uma coisa que alguém pintou na porta da minha oficina? – vinha me esquecendo de lhe perguntar aquilo, embora os acontecimentos subsequentes tivessem tornado mais óbvios que se tratava de alguma espécie de ameaça da parte de Marsilia.

– Ninguém me disse nada. – respondeu. – Mas eu vi. – os faróis de outros carros refletiam o vermelho de seus olhos. Como o flash de uma máquina fotográfica, só que era mais assustador. Fez-me sorrir.

– Foi a Marsilia que mandou fazer aquilo?

– Quase certeza.

Podia ter deixado o assunto por ali. Todavia, tínhamos tempo para matar e eu tinha a voz de Bran na minha cabeça dizendo: A informação é importante, Mercy. Reúna todos os fatos que conseguir.

– O que quer dizer isso, exatamente?

– É a marca de um traidor. – disse. – Significa que um dos nossos nos traiu e que ela e todos os que lhe pertencem são vitimas. É uma declaração de guerra.

Correspondia precisamente ao que estava esperando.

– Existe alguma magia nela? – perguntei. – O que faz?

– Te impede de pintar por cima dela durante muito tempo. – explicou. – E se permanecer lá, vai começar a atrair coisas ruins que não tem qualquer afiliação com os vampiros.

– Bom.

– Pode sempre substituir a porta.

– É. – disse carrancuda. Talvez a companhia de seguros a substituísse quando explicasse que é impossível pintar por cima dos ossos, mas não mantive as expectativas lá muito altas.

Viajamos durante algum tempo em silencio, e repassei os últimos dias, tentando perceber se alguma coisa me escapara ou se deveria ter feito alguma coisa de forma diferente.

– Ei, Stefan? Porque eu não consegui cheirar o Blackwood depois que me mordeu? Essa noite estive um pouco distraída, mas ontem, quando tive a primeira mordida, eu chequei.

– Ele deve ter percebido o que você é depois de ter te provado. – Stefan esticou-se e o carro balançou um pouco com seu movimento. – Não sei se ele queria te levar a acreditar que era humano, ou se limpa sempre dessa forma. Havia coisas no Velho País que nos caçavam pelo cheiro, não somente lobisomens, ou de coisas que eram deixadas para trás: cabelo, saliva ou sangue. Muitos dos vampiros mais velhos removem sempre todo e qualquer indício deles próprios tanto dos seus covis como de seus locais de caça.

Quase tinha esquecido que tinham a capacidade de fazer isso.

A alteração no som do motor do carro quando diminuímos para a velocidade de trânsito de cidade me acordou.

– Quer ir para sua casa ou a do Adam? – perguntou.

Boa pergunta. Embora tivesse certeza de que Adam iria compreender o que eu fizera, não estava propriamente ansiosa por discutir o assunto com ele. E sentia-me muito cansada para conseguir discernir exatamente o que queria omitir, e como ia matar Blackwood. Queria mesmo falar com Zee antes de falar com Adam, e queria também passar uma boa e longa noite de sono antes de fazê-lo.

– Para a minha.

Tinha voltado a adormecer antes de o carro diminuir abruptamente. Olhei para cima e percebi o porquê, uma figura feminina estava no meio da estrada, olhando para baixo como se tivesse perdido alguma coisa. Não estava prestando atenção na gente.

– Conhece? – estávamos na minha rua, há escassas propriedades de distância da minha casa, portanto a pergunta de Stefan era razoável.

– Não.

Paramos a dez metros de distância, e finalmente ela olhou para cima. O ronronar do motor do caro cessou e Stefan olhou de soslaio para trás, depois abriu a porta e saiu.

Problemas.

Despi-me, abri a porta e me transformei enquanto pulava para fora. Um coiote pode não ser grande, mas têm presas e garras surpreendentemente eficazes. Deslizei por baixo do carro e saí pelo para choque frontal, onde Stefan estava, de braços cruzados ao nível do peito.

A garota já não estava sozinha. Três vampiros estavam ao seu lado. Os primeiros dois já vira antes, embora não soubesse seus nomes. O terceiro era Estelle.

No ninho de Marsilia, cinco vampiros tinham atingido uma espécie de nível de poder que fazem com que não dependessem da Senhora do ninho para sobreviver: Stefan; Andre, que eu matara; Wulfe, o super-assustador mago em um corpo de garoto; Bernard, que me fazia lembrar um mercador saído de um romance de Dickens; e Estelle, a Mary Poppins dos mortos-vivos. Nunca a tinha visto sem roupas de governanta, e essa não era exceção.

Como se tivesse estado a espera que aparecesse ao seu lado, Stefan lançou os olhos para baixo, na minha direção, depois disse: – Estelle, que bom te ver.

– Tinha ouvido dizer que ela não tinha te destruído. – Estelle disse em seu tom afetado. – Torturou-o, o fez passar fome, te baniu... e depois te enviou ao encontro da sua cabrinha coiote para matá-la.

Stefan afastou as mãos como se para exibir sua carne viva. Ou melhor, morta-viva.

– Aconteceu como ouviu. – havia na sua voz uma cadência musical, e soou mais italiano do que o habitual.

– No entanto, aqui está você, você e sua cabra.

Rosnei, e ouvi Stefan sorrir na resposta. – Não me parece que ela goste que lhe chamem de cabra.

– Marsilia está louca. Está louca desde que despertou há doze anos, e não melhorou com o tempo. – a voz de Estelle tornou-se mais suave. Deu um passo para frente. – Se ela não estivesse louca, jamais teria te torturado... o preferido dela.

Claramente esperou por uma resposta de Stefan, que não aconteceu.

– Tenho uma proposta para fazer. – disse. – Junte-se a mim e poremos fim à miséria da Marsilia. Sabe bem que ela te pediria para fazer isso se tivesse consciência daquilo que se tornou. Por causa da sua obsessão por voltar à Itália, vai acabar nos destruindo. Essa é a nossa casa... nosso ninho não se submete a nenhum outro. Itália não reserva nada.

– Não. – Stefan replicou. – Não terei um único gesto contra a Senhora.

– Já não é sua Senhora. – Estelle sibilou. Avançou em passos rápidos até eu perceber que estava pressionada conta a perna de Stefan. – Ela te torturou. Eu vi o que ela fez. Você, que por ela guarda amor... Deixou-te faminto e te esfolou. Como pode apoiá-la agora?

Stefan não respondeu.

E fiquei sabendo, com absoluta certeza, que tomara uma decisão certa ao confiar nele para me proteger e não para me transformar em sua escrava. Stefan não se virava contra aqueles que amava. Aconteça o que acontecer.

Estelle lançou suas mãos para cima.

– Idiota. Imbecil. Ela vai cair, seja pela minha mão, seja pela de Bernard. E você sabe que o ninho estará melhor em minhas mãos do que nas daquele tonto do Bernard. Eu tenho contatos. Consigo fazer com que cresçamos e prosperemos a ponto de nem mesmo as cortes da Itália rivalizem com o que construirmos.

Stefan desencostou do carro. Cuspiu no chão com deliberada lentidão.

Ficou tensa, furiosa com o insulto, e Stefan sorriu sombriamente.

– Faça isso. – disse, e, com um movimento súbito de pulso e a magia de um episódio de Highlander, empunhava uma espada. Tinha um aspecto mais eficaz do que belo: mortal.

– Soldado, vai se arrepender disso. – Estelle disse.

– Arrependo-me de muitas coisas. – replicou, com a voz ganhando mais vida, estimulada pela raiva fria. – Te deixar sair viva daqui poderá ser mais uma dessas coisas. Talvez não o deva permitir.

– Soldado. – ela disse. – Lembre-se de quem te traiu. Sabe como chegar a mim, não espere até que seja tarde demais.

Os vampiros desapareceram com uma rapidez sobrenatural, seu chamariz humano correndo atrás deles. Stefan esperou, empunhando a espada, enquanto um carro era ligado e um dos Mercedes pretos do ninho acendia os faróis. Passou por nós com um rugido e desapareceu na noite.

Olhou em volta e depois me perguntou: – Cheira alguma coisa, Mercy?

Testei o ar, mas, com exceção de Stefan, os vampiros tinham sumido... ou estavam no sentido onde soprava o vento. Balancei a cabeça e voltei ao carro. Stefan, cavalheiro como há muito tempo atrás, permaneceu fora até eu estar vestida.

– Aquilo foi interessante. – disse enquanto ele entrava no carro e o ligava.

– É uma imbecil.

– Marsilia?

Balançou a cabeça. – Estelle. Ela não está a altura da Marsilia. O Bernard... Esse é mais duro e mais forte, mesmo sendo mais novo. Juntos talvez consigam alguma coisa, mas será sem mim.

– Não me pareceu que estivessem agindo juntos. – repliquei.

– Irão agir em parceria até terem atingido seus objetivos, depois irão resolver a questão entre eles lutando. Mas são burros se acham que vão sequer chegar a esse ponto. Esqueceram, ou nunca souberam, aquilo que Marsilia pode ser.

 

 

Estacionou no caminho de entrada e ambos saímos do carro.

– Se precisar de mim, se ouvir Blackwood te chamar novamente, simplesmente pense no meu nome como se desejasse que eu estivesse ao seu lado, e eu virei. – estava com ar sombrio. Desejei que tivesse sido por causa do encontro com Estelle e não por preocupação em relação a mim.

– Obrigada.

Passou o polegar pela minha bochecha. – Espere algum tempo antes de me agradecer. Pode ser que mude de idéia.

Dei-lhe um tapinha no braço. – Decisão tomada.

Fez-me uma ligeira reverência e desapareceu.

– Isso é apenas tão legal. – disse para o ar e, subitamente atacada por um cansaço que mal conseguia manter os olhos abertos, entrei e me enfiei na cama.


Capítulo 8

 

 

Adam estava aos pés da minha cama quando acordei na... tarde seguinte. Encontrava-se encostado a parede, lendo um exemplar de O Livro dos Cinco Anéis. Estava descansando nas costas de Medea, que ronronava, agitando o toco da sua cauda, que usa mais como se fosse um cão do que um gato.

– Não devia estar no trabalho? – perguntei-lhe.

Virou uma página e, em um tom de voz ausente, respondeu: – Meu patrão é flexível.

– Não diminui seu salário por fugir das responsabilidades. – meditei. – Como que posso arranjar um patrão como o seu?

Exibiu um sorriso grande. – Mercy, mesmo quando Zee era seu patrão, ele não era. Não faço a menor idéia de como que algum dia encontraria alguém a quem desse ouvidos... a menos que quisesse. – parou de ler e pousou o livro ao seu lado. – Lamento que a sua incursão pelo exorcismo não tenha ocorrido bem.

Considerei o que me disse. – Depende do ponto de vista, suponho. Aprendi algumas coisas... Por exemplo, fazia idéia que Stefan sabe linguagem de sinais? Porque que acha que um vampiro precisaria aprender linguagem de sinais? Que os fantasmas nem sempre são inofensivos. Sempre pensei que a única forma de um fantasma poder matar uma pessoa seria matando-a de susto.

Ficou a espera, passando os dedos pelo alto dos meus dedos dos pés, debaixo dos cobertores. Com a outra mão, acariciava a cabeça de Medea, atrás das suas orelhas. Adam sabe ouvir melhor do que a maioria das pessoas. Portanto, contei-lhe o que não tinha contado antes. – Acho que pode ter sido minha culpa.

– Como assim?

– Até eu ter aparecido, o fantasma não estava fazendo nada de especial... apenas coisas normais de fantasmas. Mover objetos de um lado para o outro. O que é assustador, sem dúvida, mas não perigoso. Depois, eu apareço e as coisas mudam. Chad quase morreu. Os fantasmas simplesmente não fazem isso. Até Stefan disse. Acho que fiz alguma coisa que piorou o cenário.

Apertou-me os dedos dos pés com mais força. – Alguma vez isso te aconteceu?

Balancei a cabeça.

– Então talvez esteja reivindicando muito crédito. Talvez tenha acontecido mesmo sem você ir, e se não estivesse lá com Stefan, o garoto teria morrido.

Não estava segura de que tivesse razão, mas, ainda assim, confessar o meu receio me fez sentir melhor.

– Como está Mary Jo? – perguntei.

Suspirou. – Está ainda um pouco... fora, mas agora Samuel tem certeza de que ela ficará como nova dentro de poucos dias. – relaxou e sorriu ligeiramente. – Ela estará pronta para sair e cuidar do ninho sozinha. Também disse ao Ben que se ele tivesse ficado de bico fechado, teria adorado tirar a roupa dele. Chegamos a conclusão que quando ela parar de flertar com ele é sinal de que voltou a si.

Não conseguia conter a risada. Mulher mais livre do que Mary Jo não existia, o fato de ser mulher-loba não alterara isso nem um pouco. Ben era um misógino do mais alto (ou do mais baixo, dependendo do ponto de vista) calibre, com o bônus extra de uma boca obscena. Os dois eram como chama e dinamite.

– Não houve mais problemas com os vampiros? – perguntei.

– Não.

– Mas as negociações não serviram muito. – disse.

Acenou confortavelmente com a cabeça. – Não se preocupe, Mercy. Nós sabemos tomar conta de nós.

Talvez tenha sido a forma como disse...

– Então, o que fizeram?

– Nesse momento, temos dois convidados conosco. Nenhum deles parece ter a capacidade de Stefan de simplesmente desaparecer.

– E vai mantê-los até...

– Até termos um pedido de desculpas pelos acontecimentos no Tio Mike e a Mary Jo devidamente compensada. E um acordo que defina que nada semelhante volte a ocorrer.

– Acha que vão conseguir isso?

– Bran ligou para Marsilia para transmitir nossa reivindicação.

Senti parte do meu aperto no peito ceder. Se havia coisa com que Marsilia se importava era o ninho. Se Bran se envolvesse em uma batalha, o ninho de Marsilia estaria morto. Não havia em Tri-Cities um número de vampiros suficientes para fazer frente aos lobisomens que o Marrok podia reunir, e Marsilia sabia.

– Portanto, ela vai ter que se concentrar em mim. – repliquei.

Sorrriu. – O acordo é que ela não irá atacar o bando a menos que um de nós a ataque diretamente.

– Ela não sabe que eu pertenço ao bando.

– Depois que recebermos o pedido de desculpas e a promessa por escrito, terei imenso prazer em informá-la disso.

Sentei-me e fui para frente, até ficar de quatro com o rosto a centímetros dele. Beijei-o de leve. Não tirou as mãos da gata. – Gosto do modo que opera, senhor. – disse. – Estaria interessado em provar as panquecas que farei depois de tomar uma ducha?

Inclinou a cabeça e me deu um beijo mais intenso, embora deixando as mãos onde estavam. Quando se afastou, nenhum de nós estava respirando de forma regular.

– Agora pode me explicar porque cheira ao Stefan? – disse, quase gentilmente.

Levantei o braço e cheirei. De fato eu cheirava ao Stefan, mais do que uma viagem no mesmo carro poderia explicar. – Que estranho.

– Porque cheira ao vampiro, Mercy?

– Porque trocamos sangue. – respondi. E a seguir, expliquei o que Stefan me disse sobre as mordidas de vampiro na volta de Spokane. Não conseguia me lembrar de que partes deveriam ser segredo e as que não deviam ser, mas isso não importava. Não ia esconder nada de Adam, não depois de ele ter me tornado membro do bando.

Stefan tinha certeza de que nem ele nem Blackwood teriam a capacidade de afetar os lobos por mim. Porém, eu não tinha um conhecimento suficientemente profundo de magia do bando para ter certeza e creio que ele também não teria. A única coisa que sabia era que Adam teria que concordar com o que eu fizera, embora soubesse que não exultaria de alegria.

Quando terminei, Adam tinha despejado Medea no chão (ato que teria que reparar se quisesse voltar a tocar nela hoje) para ficar caminhando pelo quarto. Assim se manteve durante algum tempo. Parou quando estava do outro lado do compartimento e me dirigiu um olhar insatisfeito. – Stefan é melhor do que Blackwood.

– Foi o que pensei.

– Porque não me falou sobre Blackwood depois da primeira mordida? – perguntou. Soava... magoado.

Não sabia a resposta.

Soltou uma risada breve e pouco alegre. – Estou tentando. Estou tentando de verdade. Mas também tem que ceder um pouco, Mercy. Porque só me contou o que estava acontecendo quando voltou? Quando já era tarde demais para fazer alguma coisa?

– Devia ter te contado antes.

Fitou-me com olhos sombrios e feridos, portanto tentei fazer melhor. – Não estou acostumada a depender das pessoas para apoio, Adam. – comecei devagar, mas as palavras saíram mais rápido à medida que continuava. – E... Já te custei tanta coisa ultimamente. Pensei: uma mordida de vampiro. Eca. Assustador... Mas não me pareceu muito nocivo. Como um mosquito gigante ou... o fantasma. Assustador, mas não nocivo. Já fui mordida antes, você se lembra, e não aconteceu nada de ruim. Se tivesse te contado, teria me obrigado a voltar para casa. E depois a questão do Chad, iria gostar dele, um garoto de dez anos com mais coragem do que a maior parte dos adultos, um garoto que estava sendo aterrorizado por um fantasma. Pensei que pudesse ajudar. Como pensei que podia ficar longe de Marsilia para que ela te ouvisse. Só depois de Stefan ter ficado tão preocupado, e isso foi mesmo antes de termos vindo para casa, depois da segunda mordida, é que percebi que havia algo perigoso nelas.

Encolhi os ombros impotentemente, pestanejando para conter as lágrimas que não iria deixar caírem. – Peço desculpas. Foi estúpido. Eu fui estúpida. Não sou capaz de dar um passo sem piorar tudo. – desviei o rosto.

– Não. – Adam disse. A cama cedeu quando se sentou ao meu lado. – Está tudo bem. – deu-me um toque com o ombro. – Não é estúpida. Tem razão. Teria te obrigado a voltar para casa nem que para isso tivesse que te arrastar com cordas e uma mordaça. E seu pequeno Chad teria morrido.

Encostei-me um pouco ao seu ombro e ele se inclinou um pouco para trás.

– Não costumava se meter em problemas dessa maneira. – uma espécie de divertimento em sua voz. – Exceto algumas ocasiões memoráveis. Talvez seja como aquela mulher Fae, a que estava no Tio Mike. – não pronunciou o nome Baba Yaga. Não o censurei. – Talve tenha absorvido um pouco do Coiote e o caos que te persegue. – Tocou-me levemente no pescoço. – Aquele vampiro vai se arrepender disso.

– Stefan?

Riu, e dessa vez com vontade. – Esse também, provavelmente. Mas em relação a isso não vou ter que fazer nada. Não. Referia-me ao Blackwood.

Adam continuou em minha casa enquanto tomava uma ducha e comeu as panquecas que fiz depois. Samuel entrou enquanto estávamos comendo. Parecia cansado e cheirava a antisséptico e sangue. Sem dizer uma única palavra, virou o que restava na frigideira.

Quando Samuel tinha aquele aspecto, significava que tivera um dia ruim. Alguém tinha morrido ou ficado machucado, e ele não fora capaz de salvar a pessoa.

Pegou nas panquecas e sentou-se a mesa, ao lado de Adam. Após encharcar com xarope, deteve-se. Limitou-se a olhar para a piscina de açúcar líquido como se ali estivesse guardado o segredo do universo.

Balançou a cabeça. – Acho que meus olhos foram maiores que meu apetite. – despejou a comida no triturador de lixo e a ligou como se sua vontade fosse enfiar uma pessoa ali.

– Então, o que aconteceu dessa vez? – perguntei. – “Johnny caiu e partiu o braço” ou “minha mulher esbarrou em uma porta”?

– Uma criança, Ally foi mordida pelo pitbull deles. – grunhiu, desligando o botão para que o triturador se calasse. Em uma voz artificialmente agúda, disse: – Mas o Iggy é um cão tão bom. É verdade que me mordeu duas vezes, mas sempre adorou Ally. Toma conta dela enquanto tomo uma ducha. – caminhou para acalmar os nervos. – Sabe, o problema não está nos pitbulls. Está nos donos. O tipo de pessoa que quer um pitbull deveria ser o último a ter um cão. Ou um filho. Quem que deixa uma criança de dois anos sozinha com um cão que já matou um cachorrinho? Portanto, agora o cão morre, a garota é sujeita a uma cirurgia estética e provavelmente vai ficar com cicatrizes. E a idiota da mãe, que causou tudo, fica impune.

– A mãe dela provavelmente vai ficar se sentindo mal para o resto da vida. – arrisquei. – Não estou falando de tempo passado na prisão, mas será punida.

Samuel cravou os olhos em mim. – Ela anda muito ocupada garantindo que todo mundo saiba que a culpa não foi dela. Quando acabar, as pessoas até vão compartilhar dos sentimentos dela.

– Aconteceu a mesma coisa com os pastores alemães há duas décadas. – Adam interveio. – E depois os dobermanns e os rotweilers. E quem sofre são os pequenos e os cães. Não vai mudar a natureza humana, Samuel. Alguém que já viu tanto como você devia saber quando parar de lutar.

Samuel virou-se para dizer alguma coisa, olhou atentamente meu pescoço e congelou.

– Eu sei. – lhe disse. – Só eu mesmo para ir a Spokane e me deixar ser mordida pelo único vampiro em toda a cidade logo no primeiro dia.

Não riu. – Duas mordidas significam que lhe pertence, Mercy.

Balancei a cabeça. – Não. Duas trocas de sangue significam que lhe pertenço. Por esse motivo, eu e Stefan entramos em um acordo em que ele me mordesse novamente, e agora pertenço ao Stefan e não ao bicho-papão de Spokane.

Encostou o quadril ao balcão, cruzou os braços sobre o peito e olhou para Adam. – Aprovou isso? – parecia incrédulo.

– Desde quando Mercy pediu minha permissão, ou de quem quer que fosse para fazer alguma coisa? Ainda assim, teria lhe dito para fazer o que fez se me perguntasse. Stefan está acima do Blackwood.

Samuel franziu. – Ela agora é o número dois do seu bando. Agora, além da Mercy, Stefan também fica ligado ao seu bando.

– Não. – disse. – Stefan diz que não. Diz que isso já foi tentando e que não funcionou.

– A ovelha de um vampiro obedece ao que lhe é dito. – a voz de Samuel tornou-se grave e severa em virtude da preocupação, portanto não fiquei ofendida por ter sido chamada de ovelha. Embora em outras circunstâncias tivesse ficado, mesmo que fosse verdade. – Quando ele te disser para chamar os lobos, não vai ter alternativa. E se o vampiro, de quem é escrava, te conta uma historia diferente, eu sei de qual duvidar. “Os velhos vampiros são melhores em mentir do que dizer a verdade”. – essa última frase era um ditado dos lobisomens. E era verdade que um vampiro mentiroso podia ser difícil de detectar. Não tinham pulsação e não suavam. Mas ainda assim a mentira tem um atributo que ultrapassa tudo isso.

Encolhi os ombros, procurando transparecer a idéia de que Samuel não estava me causando preocupação. – Hoje à noite, se quiser, pode perguntar ao Stefan como que isso funciona.

– Para ela chamar o bando tem que usar meu poder para fazê-lo. – Adam interveio. – Ela não pode fazer isso a menos que eu permita.

Tentei não demonstrar alívio.

– Ótimo. Durante algum tempo, não me deixe chamar o bando, tudo bem?

– Algum tempo? – Samuel disse. – Stefan disse que podia te libertar depois de um tempo? Talvez quando o Blackwood perde o interesse? Um vampiro nunca perde sua ovelha, exceto para a morte.

Sentiu-se assustado por mim. Consegui sentir isso. Embora isso não me impediu de disparar: – Olha. Eu não tinha opção. – não lhes contei que Wulfe podia cortar a ligação entre eu e Stefan. Fora-me confidenciado, e procurava fazer um esforço para não falar tudo o que alguém me dizia em segredo. Exceto, talvez a Adam.

Fechou os olhos e pareceu ficar indisposto. – Sim. Eu sei.

– Um vampiro não pode ter um Alfa como ovelha. – Adam afirmou. – Talvez possamos fazer uso disse para libertar Mercy quando nos parecer útil. O que nós não queremos fazer é nos armar e aniquilar Stefan para que o... – ergueu-me a sobrancelha ironicamente. – ...bicho-papão de Spokane volte a ficar sob controle. Estou com Mercy. Se tivermos que dar ouvidos a um vampiro, Stefan não é a pior escolha.

– Porque um vampiro não pode controlar um Alfa? – perguntei.

Foi Samuel quem respondeu. – Quase tinha me esquecido disso. É o modo como o bando funciona, Mercy. Se um vampiro não for suficientemente forte para se apoderar de todos os lobos de um bando, todos de uma vez, não têm como se apoderar do Alfa. Isso não significa que não possa acontecer. Há alguns vampiros no Velho País... Não, a maior parte já não existe, acho. Seja como for, não há nenhum aqui que seja capaz de fazê-lo.

– E o Blackwood? – perguntei.

Samuel encolheu os ombros em um gesto de insatisfação. – Eu nunca conheci Blackwood, e também não tenho certeza se meu pai o teria conhecido. Vou perguntar.

– Faça isso. – Adam disse. – Entretanto, isso faz de Stefan uma escolha ainda melhor. Ele não vai assumir o controle das coisas. O que me preocupa mais são os laços estreitos entre Blackwood e sua amiga Amber.

Perdera o apetite. Depois de despejar o conteúdo do prato, coloquei-o na maquina de lavar. Partilhava a opinião de Adam. Matar Blackwood era a única solução que eu vislumbrava. Estava pondo o copo na máquina de lavar quando mudei de idéia e voltei para encher com suco de mirtilo. E seu sabor se adequava ao meu estado de espírito.

– Mercy? – Adam obviamente perguntara algo que não tinha ouvido.

Olhei para ele, e perguntou-me novamente. – Blackwood tem uma relação tanto com Amber quando com o marido dela?

– Isso mesmo. – respondi. – O marido dela é advogado, e Blackwood anda se alimentando de Amber e... – parecia algo que eu devia esconder. Porém sentira o cheiro de sexo nela. – Seja como for, não acredito que Amber saiba de alguma coisa. Ela achava que tinha ido às compras. – seu marido? Não queria que ele fizesse parte disso. – Tenho praticamente certeza de que o marido não sabe que seu cliente anda se alimentando de Amber. Mas não sei o que ele sabe.

– Quando que começaram as aparições? – Samuel estava com aspecto sombrio. – Há quanto tempo que eles tem tido problemas com o fantasma.

Tive que pensar um pouco.

– Há não muito tempo. Alguns meses.

– Mais ou menos na época em que aquele vampiro possuído pelo demônio apareceu. – Adam interveio.

– E...? – eu disse. Esse assunto nunca tinha chegado aos jornais.

Adam se virou para Samuel, em um movimento que qualquer pessoa que tivesse observando perceberia que se tratava de um predador. – O que sabe sobre Blackwood?

A voz e a atitude de Adam eram muito agressivas, mesmo para um Alfa, considerando que estava na cozinha de Samuel. Se fosse em um outro dia, outra hora, Samuel teria deixado passar. No entanto, ele tinha tido um dia ruim... e tinha para mim que a questão dos vampiros não tinha ajudado. Rosnou e esticou o braço para empurrar Adam para trás.

Adam interceptou o golpe, ficando de pé.

Isso não era bom, pensei, sem me mexer. Isso era mesmo muito ruim. Poder, misturado com a intensidade do almíscar e do bando, vibraram pela casa, deixando o ar denso.

Ambos estavam irritados. Eram dominantes, tiranos se eu tivesse permitido. Porém, sua necessidade mais forte e urgente era proteger.

E eu fora ferida recentemente enquanto estava sob proteção deles. Uma vez, com Tim e a segunda com Blackwood, e, em grau menor, com Stefan. Isso os deixara perigosamente agressivos.

Ser lobisomem não era como ser um humano com temperamento ruim, era um equilíbrio: uma alma humana contra as urgências instintivas de um predador. Se a coisa fosse muito esticada, o animal ficava sob controle e o lobo não se importava com quem machucasse.

Samuel era o mais dominante, mas não era o Alfa. Se aquilo viesse a acabar em um confronto físico, nenhum deles sairia ganhando. Em um abrir e fechar de olhos, a pausa do confronto se estenderia durante muito tempo e alguém morreria.

Peguei um copo cheio de suco e atirei encima deles, apagando um incêndio florestal com uma misera porção de suco de mirtilo. Estavam quase nariz contra nariz, portanto acertei em cheio. A fúria em seus olhos quando se viraram para mim teria feito outra pessoa fugir. No entanto, eu sabia mais do que isso.

Dei uma mordida em uma panqueca que estava no prato de Adam e o pedaço que engoli se alojou na minha garganta. Estirei-me sobre a mesa e peguei a xicara de café de Samuel, fazendo descer aquela massa pegajosa.

Não há como fingir que não se está assustado perante lobisomens. Eles sabem. Porém, é possível olhá-los nos olhos, se for suficientemente corajoso. E eles o permitirem.

Os olhos de Adam se fecharam e deu dois passos até as costas tocarem a parede. Samuel acenou-me com a cabeça, mas eu vi mais do que ele desejaria que eu tivesse visto. Estava melhor do que estivera, contudo, não era o lobo feliz que eu conhecera na minha infância. Talvez não fosse tão relaxado como em tempos pensara, mas era melhor do que o que acabara de acontecer.

– Desculpa. – disse ao Adam. – Tive um mau dia no trabalho.

Adam assentiu com um aceno, sem abrir os olhos. – Não devia ter provocado.

Samuel retirou um pano de cozinha da gaveta e molhou-o na pia. Limpou o suco de mirtilo do rosto e esfregou o cabelo com ele, o que fez com que ficasse espetado. Se não visse seu rosto, seria razoável pensar que se tratava de uma criança.

Pegou um segundo pano e molhou-o também. Depois disse: – Olha a cabeça. – e atirou-o para Adam, que o apanhou com uma mão sem olhar. Talvez tivesse causado mais impacto se uma das extremidades molhadas não tivesse batido em seu rosto.

– Obrigado. – disse secamente, enquanto a água escorria de seu rosto. Comi mais um pedaço da panqueca.

Depois de Adam ter se limpado, seus olhos estava escuros e eu comera todas as panquecas e usara o pano de Samuel para limpar a sujeira do chão. Ocorreu-me que Samuel o teria feito, mas não na frente de Adam. Além disso, eu que sujei o chão.

– Então. – ele disse a Samuel sem olhar diretamente. – Sabe alguma coisa sobre Blackwood além de ser um sujeito ruim e por causa dele não ser aconselhável ir para Spokane?

– Não. – Samuel respondeu. – E tão pouco acho que meu pai saiba. – acenou com a mão. – Oh, eu pergunto. Ele deve ter informações... quanto que ele vale, quais sãos os interesses dele em termos de negócios, onde mora e os nomes de todas as pessoas que tem andado subornando para evitar que alguém suspeite daquilo que ele é. Mas não conhece Blackwood. Diria que é seguro afirmar que ele é grande e mau. De outro modo, não seria detentor de Spokane durante os últimos sessenta anos.

– Ele é ativo durante o dia. – eu disse. – Quando levou Amber, estávamos em plena luz do dia.

Ambos cravaram os olhos em mim e, consciente dos seus problemas recentes relacionados com a questão do domínio, abaixei os olhos.

– O que acha? – Adam perguntou, com a voz ainda um pouco ríspida do que o normal. Tinha um temperamento mais quente do que Samuel – Ele sabe o que Mercy é?

– Chamou-a para seu território e tentou reivindicá-la. Diria que isso é uma resposta claramente afirmativa. – Samuel grunhiu.

– Espera um pouco. – disse. – O que um vampiro iria querer de mim?

Samuel ergueu as sobrancelhas.

– Marsilia quer te matar. Stefan quer... – usou um sotaque romeno para as quatro palavras seguintes. –... sugar seu sangue. E Blackwood aparentemente te queria pela mesma razão.

– Acha que ele armou isso tudo só para me fazer ir para Spokane? – perguntei incrédula. – Em primeiro lugar, havia um fantasma. Eu mesma vi. Não se tratou de um truque de vampiro ou de qualquer outro tipo de truque. Era um fantasma. Os fantasmas não gostam de vampiros. – embora esse tivesse permanecido durante mais tempo do que eu esperava.

– Em segundo lugar, por que eu?

– Quando ao fantasma, não sei. – Samuel disse. – Mas a segunda pergunta tem uma série de possíveis respostas.

– A primeira que me ocorre. – Adam ainda estava com os olhos no chão. – É a Marsilia. Suponhamos que tomou imediatamente conhecimento do que aconteceu com Andre. Ela sabe que não pode ir atrás de você, por isso faz uma troca de favores com Blackwood. Ele transforma Amber na sua marionete e, quando surge a oportunidade, a envia para te buscar, ao mesmo tempo que Marsilia despeja Stefan no meio da sua sala de estar. E, uma vez que você não morreu, Amber aparece e te pede para ir a Spokane. Alguns lobos são feridos...

– Mary Jo quase morreu. – disse. – E podia ter sido pior. – pensei no elfo das neves e disse: – Muito pior.

– E isso teria feito alguma diferença para Marsilia? Você, preocupada com seus amigos daqui, e informada de que a cruz de ossos na porta da sua oficina significa que todos os seus amigos estão em risco, agarra a corda que Blackwood te lançou. E segue a isca até Spokane.

Samuel balançou a cabeça.

– Não parece certo. – afirmou. – Os vampiros não cooperam da mesma forma que os lobos. Blackwood não tem a reputação de fazer favores a quem quer que seja.

– Ouça, minha querida. – Adam disse, imitando uma bruxa da Disney. – Gostaria de provar algo doce? A única coisa que tem a fazer é atrair Mercy até Spokane.

– Não. – intervim. – Pode funcionar superficialmente, mas não quando se olha de verdade. Posso perguntar, mas sou capaz de apostar que a relação entre o marido da Amber e Blackwood já dura há anos, e não meses. Portanto, ele os conheceu primeiro. Se Marsilia só ligasse e desse meu nome, seria improvável ele saber que Amber me conhecia. Não nos falávamos desde que eu tinha saído da faculdade.

Tivera meus momentos de paranóia por causa do timing do pedido de Amber. Mas era simplesmente impossível Marsilia ter enviado Amber, e a probabilidade de mais conspirações bizarras acabava ali.

Inspirei fundo. – Acho que Blackwood pensava que eu era humana, pelo menos até ter me mordido pela primeira vez. Bran diz que eu cheiro a coiote, um cheiro parecido com o de um cão a menos que se conheça coiotes, mas não a magia. Stefan disse que Blackwood ficaria sabendo que eu não sou humana depois de me provar.

Agora, ambos os lobisomens estavam de olhos em mim. – O azar de fato acontece. – disse.

– Blackwood não parece ser o tipo de pessoa que faça favores a outro vampiro. – a voz de Samuel parecia quase alegre.

Não o tinha feito. Os vampiros eram malévolos, territoriais, e... Ocorreu-me algo. – E se ele estiver fazendo uma jogada para acrescentar Tri-Cities ao território dele? – perguntei. – Suponhamos que ele leu sobre o ataque que sofri, e viu que eu era namorada de Adam. Talvez tenha conhecimentos e possa ter arranjado alguma maneira de ver o vídeo em que Adam ataca o corpo de Tim, e assim ter ficado sabendo que a nossa relação não é ocasional. Talvez Corban o tenha visto lendo o artigo e mencionado que a mulher dele me conhecia, e aí o vampiro tenha visto uma oportunidade para fazer com que os lobisomens de Tri-Cities cooperassem com ele em uma preparação para atacar o território da Marsilia. Talvez ele não saiba que não pode me usar para se apoderar do bando. Talvez tenha me usado como refém. O fantasma é uma circunstância fortuita. Apenas uma razão conveniente para convencer Amber a me convidar para ir lá.

– Marsilia acabou de perder seus dois braços direitos. – Samuel disse. – Andre e Stefan. – Nesse momento, está em uma situação vulnerável.

– Ela tem mais três vampiros poderosos. – expliquei. – No entanto, Bernard e Estelle não parecem andar muito satisfeitos com Marsilia ultimamente. – relatei-lhes o confronto da noite anterior. – Existe a possibilidade do Wulfe, creio, mas ele é... – encolhi os ombros. – Eu não queria depender da lealdade de Wulfe. Ele não é esse tipo de pessoa.

– Vampiros são predadores. – Adam disse. – Assim como nós. Se Blackwood cheirar a fraqueza, suponho que faça sentido ele tentar conquistar mais território.

– Essa teoria me agrada. – Samuel comentou. – Blackwood não é um jogador de equipe. Isso encaixa. Isso não significa que seja verdade, mas encaixa.

Adam aliviou a tensão esticando o pescoço, e ouvi uma vértebra estalar. Dirigiu-me um ligeiro sorriso. – Esta noite, vou ligar para Marsilia e relatar o que acabamos de conversar. Aposto que iremos encontrar uma Marsilia mais cooperativa. – olhou para Samuel. – Uma vez que está em casa, é melhor eu ir trabalhar. Também vou dizer a Jesse para vir aqui quando terminar a aula, se não se importa. Aurielle vai estar ocupada, Honey tem trabalho para fazer e Mary Jo... ainda não está completamente farejando.

Depois de Adam sair, Samuel foi para a cama. Se alguma coisa acontecesse, levantaria a tempo, mas o fato de ter ido dormir me indicou que pelo menos Samuel não acreditava que pudesse vir a acontecer um ataque durante o dia.

Nenhum deles sequer mencionou o suco de mirtilo que tinha jogado.

 

 

Depois de algumas horas, um carro chegou e Jesse saiu. Acenou ao carro que se afastava, entrou em casa aos saltinhos exalando otimismo, com mechas azuis e pretas no cabelo e...

Tapei o nariz com a mão.

– Que perfume é esse que está usando?

Soltou uma gargalhada. – Desculpa. Vou me lavar. Natalie tinha um frasco novo e insistiu em borrifar para cima em todo mundo.

Com a mão livre, acenei para que se dirigisse ao meu quarto. – Use o meu. Samuel está tentando dormir ao lado do banheiro principal. – e ao ver que ela não saia do lugar, disse: – Anda logo, pelo amor de Pete. Isso é horrível.

Cheirou o próprio braço. – Não acho. Para mim cheira a rosas.

– Aí não tem rosas algumas. – disse. – Cheira a formol.

Exibiu-me um sorriso aberto, depois se dirigiu ao meu banheiro para se livrar do cheiro. – Ora. – disse ao voltar. – Já que estamos presas em casa até os vampiros se acalmarem, e uma vez que hoje fui uma aluna exemplar e fiz o dever de casa na escola, que tal você e eu fazermos uns brownies?

Fizemos brownies, e ela me ajudou a trocar o óleo do carro. Começava a escurecer na hora em que ligamos o compressor de ar para expelir água do minúsculo sistema de irrigação subterrâneo para o inverno. Foi nessa hora que Samuel apareceu na porta, remelento e com cara de poucos amigos, segurando um brownie.

Resmungou algumas coisas sobre garotas tagarelas que fazem muito barulho. Olhei para cima, para o céu escurecido, e ocorreu-me que acordara não por causa do compressor de ar, mas pela hora.

Suas rosnadas fizeram Jesse rir. Fingiu ficar ofendido e se virou para mim. – Acabou?

Ele conseguia ver perfeitamente que eu estava enrolando cordas e mangueiras, portanto revirei os olhos.

– Desrespeito. – ele disse a Jesse, balançando a cabeça tristemente. – É isso que recebo. Talvez se eu te levar para a rua e te der de comer, ela comece a me tratar com o respeito que mereço.

No entanto, Samuel agarrou o compressor antes que eu pudesse começar a levá-lo ao celeiro.

– Aonde vai nos levar? – Jesse perguntou.

– Mexicano. – respondeu de forma decidida.

Jesse resmungou infeliz e sugeriu um novo espaço russo que abrira ali perto. Ambos discutiram restaurantes durante todo o percurso até o celeiro e de volta ao carro.

No fim, acabamos comendo pizza em um lugar no Columbia com um parque infantil, barulho e comida excelente. Quando voltamos, Adam estava a nossa espera, vendo televisão na minha cozinha. Estava com ar cansado.

– Seu patrão te enfureceu? – perguntei por simpatia, dando-lhe um brownie.

Olhou para ele. – Foi você quem fez ou Jesse?

A forma indignada como pronunciou “Pai” o fez exibir um amplo sorriso impertinente. – Só estou brincando. – disse enquanto comia.

– Tenho passado noites acordado. – desabafou. – Entre os vampiros e os figurões de Washington, vou ter que começar a tirar sonecas como um bebê de dois anos.

– Problemas? – Samuel perguntou cuidadosamente.

Problemas por minha causa, ele queria dizer, ou antes, por causa daquele fantástico vídeo que eu nunca tinha visto e onde Adam, meio lobo meio homem, desfazia o cadáver de Tim, O Estuprador em pedaços.

Adam balançou a cabeça. – Não por isso. Basicamente são os mesmos velhos problemas.

– Ligou para Marsilia? – perguntei.

– O que? – Jesse tinha ido buscar um copo de leite para o pai e o pousou com um pouco mais de força.

– Mercy. – Adam rosnou.

– Parte da razão pela qual está aqui tem a ver com o seu pai ter dois vampiros presos na cela da casa dele. – informei-a. – Estamos em negociações com Marsilia para que ela pare de tentar matar todo mundo.

– Só me contam metade das coisas. – Jesse disse.

Adam tapou os olhos de um modo meio zombeteiro meio exasperado, e Samuel começou a rir. – Ei, velhote. Essa é a ponta do iceberg. Mercy vai fazer de você o que quiser. – porém, havia algo em seus olhos que não correspondia a divertimento.

Não me pareceu que mais alguém tivesse reparado no estranho toque de tristeza em sua voz. Samuel não me queria, não de verdade. Não queria ser um Alfa... mas queria o que Adam tinha, Jesse e eu mesma, pensei, uma família: filhos, uma mulher, uma cerca branca ou qualquer que fosse o seu equivalente quando era criança.

Queria um lar, e seu último lar morrera junto com sua última parceira humana, muito tempo antes de eu ter nascido. Olhou para mim e não sei o que meu rosto transmitia, mas a verdade é que mudou a expressão, e por momentos ficou extraordinariamente parecido com seu meio-irmão, Charles, uma das pessoas mais assustadoras que algum dia conheci. Charles só bastava olhar para um lobisomem com raiva que esse se colocaria logo a um canto choramingando.

Mas foi apenas por um instante. Deu-me tapinhas na cabeça e disse algo engraçado a Jesse.

– Então. – eu disse. – Ligou para Marsilia, Adam?

Estava de olho em Samuel, mas respondeu: – Sim, minha senhora. Quem atendeu foi Estelle. Ficou de transmitir minha mensagem à Marsilia e de lhe dizer para me ligar de volta.

– Ela está embarcando em joguinhos superiores. – Samuel observou.

– Deixe-a embarcar. – Adam replicou. – Isso não significa que eu tenha que fazer o mesmo.

– Porque está em vantagem. – eu disse com satisfação. – Tem uma ameaça maior.

– O que? – Jesse perguntou.

– O bicho-papão grande e mau, o vampiro de Spokane. – disse sentando-me na mesa. – Ele vem atrás dela.

Não era certo que fosse assim, mas não tinha que ser desde que conseguíssemos convencer Marsilia disso. Se eu fosse Marsilia, estaria preocupada com Blackwood.

 

 

Adam e Jesse foram para casa, Samuel foi para a cama, e eu também. Quando meu celular tocou, estava no meio de um sonho com caixas de lixo e rãs, não perguntei, não vou contar.

– Mercy. – Adam disse baixinho.

Olhei para os meus pés, onde Medea dormia. Piscou-me os enormes olhos verde-dourados e ronronou.

– Adam.

– Liguei para te dizer que finalmente falei com a Marsilia em pessoa.

Sentei, perdendo subitamente o sono. – E... ?

– Falei sobre Blackwood. Ouviu tudo, me agradeceu pela preocupação e desligou.

– Dificilmente vai entrar em pânico por telefone e jurar amizade eterna. – disse, e Adam soltou uma risada.

– É, também me parece isso. Mas achei por bem cumprir minha parte e vou libertar seus dois vampiros bebês.

– Além disso, agora que Jesse sabe que estão lá, não vai conseguir mantê-la afastada. Obrigado por isso.

– Disponha. Manter reféns é para os garotos maus.

Riu novamente, dessa vez um pouco amargo. – Obviamente não viu os bons em ação.

– Não. – respondi. – Talvez estivesse enganada em relação a quem eram os bons.

Fez uma longa pausa e, em uma voz suave e arrastada, disse: – Talvez tenha razão.

– Você é um cara bom. – expliquei. – Portanto, tem que lidar com todas as regras dos caras bons. Felizmente, tem uma companheira excepcionalmente talentosa e incrivelmente dotada...

– Que se transforma em coiote. – disse com um sorriso na voz.

– Portanto, não tem que se preocupar muito com os caras maus.

E começamos a namorar de uma forma séria, que fez aumentar minha pulsação. Ao telefone, a paixão não me provocava nenhum ataque de pânico.

Acabei desligando. Ambos tínhamos que acordar cedo, porém o telefonema me deixou inquieta e sem o menor sono. Depois de alguns minutos, levantei e olhei atentamente para os pontos no rosto. Eram minúsculos e muito bem alinhados. Todos os pontos estavam separados entre si para não se sentir puxar a qualquer expressão do rosto. Ainda bem que tinham sido feitos por um lobisomem, porque assim podia me transformar sem problemas.

Tirei a roupa e abri a porta do banheiro. E, na forma de coiote, saí pela porta para cães recentemente instalada e segui disparada noite adentro.

Percorri vários quilômetros até alcançar o rio e meu espaço favorito para correr. Só quando parei para beber água do rio que senti o cheiro de vampiro, não era o meu vampiro. Mantive-me a beira do rio e continuei bebendo como se não tivesse detectado nada.

Mas não importava, porque esse vampiro não tinha o menor desejo de permanecer invisível. Se não tivesse sentido seu cheiro, o som distinto de munição de shotgun se elevar era um belo anuncio de suas intenções. Devia ter me seguido desde casa. Ou pelo seu olfato tão apurado quanto o de um lobisomem. Fosse como fosse, sabia quem eu era.

Bernard estava parado na margem, segurando a arma com obvia familiaridade, de cano apontado para mim. Um vampiro com uma shotgun era um pouco como ver Tubarão com um motosserra, uma imagem maravilhosa.

Nesse caso, teria preferido um motosserra. Detesto shotguns. Tenho cicatrizes no rabo de um tiro disparado de perto, mas essa não foi a única vez em que fora alvejada, apenas a pior. Os rancheiros de Montana não gostam de coiotes. Inclusive de coiotes que apenas estão de passagem e jamais atacariam um cordeiro ou perseguiriam uma galinha. Por muito divertido que seja perseguir galinhas...

Agitei a cauda ao vampiro.

– Marsilia não tinha certeza de que ele iria matá-la. – disse. Sempre me soara como um dos Kennedys, com os seus “a” abertos. – Mas estou vendo que ele a enganou. Ela não é tão esperta como julga, e isso provocará sua queda. Preciso que chame seu Senhor para que possa falar com ele.

Demorei algum tempo para me lembrar a que Senhor se referia. E depois, não sabia como fazê-lo. Tinha tantos laços recentes, e não sabia como usar nenhum. E se eu tentasse chamar Stefan e em seu lugar aparecesse Adam?

Demorei muito tempo. Bernard apertou o gatilho. Acho que falhou de propósito, a menos que fosse um atirador muito ruim. No entanto, vários daqueles estúpidos grãos de chumbo me atingiram e gemi agudamente. Ainda não tinha acabado de me queixar e já enfiava outro cartucho na arma.

– Chame-o. – Bernard ordenou.

Muito bem. Não podia ser assim tão difícil, de outro modo Stefan teria me falado mais sobre como fazê-lo. Pelo menos, era essa a minha esperança.

Stefan? Pensei com toda a força que consegui reunir. Stefan!

Se pensasse que correria esse tipo de perigo, jamais teria tentado chamá-lo, porém estava muito segura de que Bernard, assim como Estelle, ia tentar recrutar Stefan para seu lado na guerra civil que Marsilia estava criando no ninho. Ele não tentaria nada logo, e depois do modo como Stefan lidara com Estelle, não estava preocupada em relação a Bernard desde que o elemento surpresa não fosse um fator.

Bernard usava jeans, sapatos de corrida e uma camisa semidesportiva com botões na frente, e ainda assim parecia um homem de negócios do século XIX. Embora o símbolo da marca do seu calçado brilhasse no escuro, não era alguém que se misturasse bem na multidão.

– Lamento que seja tão teimosa. – disse. Mas antes de conseguir levantar a arma para um disparo final, doloroso ou mesmo fatal, Stefan apareceu vindo do nada e tirou a arma de suas mãos. Agarrando-a pelo cano, lançou-a de encontro a uma pedra e em seguida devolveu a Bernard os seus restos não muito úteis.

Sai da água com dificuldade e me sacudi, os molhando, porém nenhum deles reagiu.

– O que você quer? – Stefan perguntou friamente. Caminhei para junto dele e sentei aos seus pés. Olhou para baixo, em minha direção, e antes que Bernard tivesse a chance de responder a pergunta, Stefan acrescentou: – Cheira a sangue. Ele te machucou?

Abri a boca e dirigi um olhar sorridente. Sabia por experiência que as duas chumbadas em meu traseiro não eram profundas, provavelmente nem sequer profundas a ponto de necessitarem de ser extraídas, o pelo tem muitas vantagens. Não me sentia particularmente contente com isso, mas Stefan não tinha a mesma compreensão da linguagem que um lobo. Portanto, comuniquei-lhe que estava bem de uma forma que não tinha como não entender, e o traseiro doeu quando agitei a cauda.

Dirigiu-me um olhar que poderia, em outras circunstâncias, ter significado duvidas.

– Ótimo. – disse, após olhar para Bernard, que estava torcendo a shotgun quebrada.

– Oh. – Bernard pronunciou. – É a minha vez? Já acabou de dar mimo a sua nova escravinha? Marsilia tinha a convicção de que gostava tanto de seu último rebanho que tão cedo teria estômago para substituí-lo.

Stefan estava muito quieto. Tão furioso que inclusive parara de respirar.

Bernard pousou verticalmente a shotgun no chão, com a coronha virada para cima, e agarrou-a com uma mão, inclinando-se sobre ela como se fosse uma daquelas bengalas pequenas que Fred Astaire usava para dançar.

– Devia ter ouvido suas ovelhas gritando por seu nome. – disse. – Oh, esqueci, você ouviu.

Preparou-se para um ataque que nunca aconteceu. Em vez disso, Stefan cruzou os braços e relaxou. Inclusive voltou a respirar, fato pelo qual fiquei grata.

Alguma vez estiveram próximas a alguém que prende a respiração? Se for durante pouco tempo, não causa incomodo, mas acabamos também por prender a respiração junto com esse alguém, desejando que desse modo respire. É um daqueles reflexos automáticos. Felizmente, o único vampiro com que convivo gosta de falar, portanto, respira.

Sentei-me ao seu lado, procurando parecer inofensiva e alegre, mas de olhos atentos, a procura de mais vampiros. Havia um nas árvores, por breves momentos, vi sua silhueta contra o céu. Não havia forma de comunicar o que vira a Stefan principalmente se fosse Adam. Teria percebido o meu o balançar da minha cabeça e a pata sobre seu pé.

O ataque verbal de Bernard não tinha tido o efeito que esperara ou pelo menos para o qual se preparara. Porém, isso não pareceu perturbá-lo. Sorriu, descobrindo suas presas.

– Ela só tinha você. – disse a Stefan. – Wulfe está do nosso lado há meses, assim como Andre. Mas ele tinha medo de você, portanto não nos deixava fazer nada. – havia um mundo de frustração nas duas últimas palavras. Levantou a arma, atirou-a por cima do ombro e começou a caminhar.

Pela primeira vez, pareceu-me aquilo que verdadeiramente era. De certo modo, até ali parecera sempre um figurante de um filme inspirado em um livro de Dickens, alguém cheio de gloria e circunstância e mais nada. Agora, em movimento, parecia um predador, a fachada eduardiana sendo apenas um débil disfarce para esconder o que estava por baixo.

Estelle sempre me causara nervosismo, mas só aquele momento descobri que Bernard era capaz de me fazer sentir medo.

Stefan permaneceu em silêncio enquanto Bernard gritou: – No fim, acabou por se revelar pior do que Marsilia. Trouxe aquela coisa... aquela abominação incontrolável para o nosso ninho. – fez uma pausa e fixou-se em mim. Baixei imediatamente os olhos, mas conseguia sentir sua atenção queimando minha pele. – Foi bom a sua ovelha tê-lo matado, embora Marsilia não tenha conseguido ver isso. A ruína abateria sobre nós... e nos fez o segundo favor de matar Andre.

Parou de falar por momentos, mas manteve-se de olhos cravados em mim, investigando além da pelagem de para me ver. Era desconfortável e assustador. – Nós iríamos deixá-la viver, e se Marsilia for atrás dela, morrerá assim como seu último rebanho. – Bernard esperou até que a mensagem fosse devidamente assimilada. – Marsilia tem servos que trabalham de dia... Merda. Com a cruz de ossos na porta da oficina da sua coiote declarando-a como traidora de todos nós, quanto tempo que acha que ela vai sobreviver? Goblins, cães de caça e necrófagos... muitos aliados de Marsilia caçam de dia.

– Ela é companheira do Alfa. Os lobos vão mantê-la em segurança quando eu não puder.

Bernard soltou uma risada. – Alguns deles a matariam mais rápido do que Marsilia. Uma coiote? Por favor. – sua voz tornou-se mais suave. – Sabe que ela morrerá. Se Marsilia queria matá-la por ter chacinado Andre, como que acha que vai sentir agora que se apoderou da coiote? Ela não te quer, mas nossa Senhora sempre foi ciumenta. E protegeu essa aqui durante anos quando devia ter nos contado que havia uma andarilha vivendo entre nós. Correu o risco por ela. O que teria acontecido se outro vampiro tivesse notado o que ela era? Marsilia sabe que gosta dela, mais do que algum dia gostou das ovelhas que se alimentou. Mercedes acabará morrendo e a culpa será sua.

Stefan estremeceu perante aquelas palavras. Não precisei olhar ao seu rosto para notar, porque senti se agitar contra mim.

– Precisa que Marsilia morra, caso contrário Mercy morrerá. – Bernard disse. – Quem você ama, Soldado? Aquela que te salvou ou aquela que te abandonou? A quem serve?

Esperou, assim como eu.

– Foi uma tola ao te deixar sair vivo. – Bernard murmurou. – Há apenas duas pessoas que conheciam o lugar onde ela mora. Andre está morto. Mas você sabe, não sabe? E você se levanta uma hora antes dela. Pode impedir que isso seja uma batalha sangrenta com muitas perdas. Quem irá morrer? Lily, a nossa musica dotada, com quase toda a certeza. Estelle a odeia, sabe disso. Ela é talentosa e bonita e Estelle não é nenhuma das duas coisas. E Marsilia a ama profundamente. Lily irá morrer. – depois sorriu. – Eu mesmo a mataria, mas sei que também gosta dela. Podia protegê-la de Estelle, Stefan.

E começou a indicar nomes. Vampiros menores, pensei, mas pessoas de quem Stefan gostava.

Quando terminou, olhou para o rosto teimoso de Stefan e balançou a cabeça, exasperado.

– Stefan, pelo amor de Deus. O que você está fazendo? Não pertence a lado algum. Ela não te quer. Nem se tivesse te matado o teria demonstrado de forma tão clara. Estelle é tola. Acha que é capaz de governar quando Marsilia se for. Mas eu sou mais sensato que isso. Nenhum de nós é suficientemente forte para manter o ninho a menos que pudéssemos trabalhar juntos, mas não iremos. Não existem quaisquer laços entre nós, qualquer amor, e só com isso que dois vampiros podem trabalhar juntos durante muito tempo. Mas você seria capaz. Serviria tão fielmente quanto você serviu ao longo de todos esses anos. Precisamos de você se quisermos sobreviver. – voltou a caminhar. – Marsilia fará com que todos nós morramos. Você sabe disso. Ela é louca, só uma mulher louca poderia depositar sua confiança em Wulfe. Ela vai fazer com que os humanos voltem a tentar nos caçar, não apenas esse ninho, mas toda a nossa espécie. E não sobreviveremos. Por favor, Stefan.

Stefan ficou com um joelho e colocou o braço em volta de meus ombros. Inclinou a cabeça e sussurrou-me: – Desculpa. – a seguir, levantou-se. – Sou um velho soldado. – disse para Bernard. – Sirvo apenas a uma pessoa, ainda que tenha me abandonado. – esticou o braço e dessa vez senti-o puxar alguma coisa de mim no momento em que sua espada apareceu em sua mão. – Você me desafia aqui? – perguntou.

Bernard emitiu um ruído frustrado, depois lançou as mãos para cima em um gesto teatral. – Não. Não. Por favor, Stefan. Por favor, não se meta quando a luta começar.

E, dando meia-volta, começou a correr. Não com a mesma velocidade que Stefan desaparecia, mas teria me obrigado a um grande esforço para acompanhar seu ritmo, e eu sou rápida. Foi rápido o suficiente ao ponto de provavelmente não ter ouvido Stefan dizer “não”.

Permaneceu ao meu lado e observou Bernard desaparecer de vista. E esperou um pouco mais. Vi a fêmea escapar das árvores e descobri um outro quando abandonara o seu esconderijo. A esse, Stefan levantou uma mão e viu o gesto retribuído com uma saudação.

– Vai haver um banho de sangue. – disse. – E ele tem razão. Eu podia impedi-lo. Mas não vou.

Subitamente, veio a mente o porquê de Marsilia o ter deixado sair vivo. Se sabia onde ela dormia, e mais ninguém tinha conhecimento do local, se ele se levantava mais cedo do que ela e tinha a capacidade de se deslocar para onde bem entendesse, então Stefan era uma ameaça para ela. Se Bernard sabia isso, ela certamente saberia também.

Stefan estava sentado em uma pedra e uniu as mãos sobre um dos joelhos. – Tinha intenção de encontrar contigo quando caísse à noite. – me disse. – Há coisas que tenho que te contar sobre a ligação entre nós... – dirigiu-me seu sorriso habitual. – Nada de terrível.

Olhou na direção da água.

– Mas ocorreu-me limpar um pouco minha varanda antes. Os jornais começam a se acumular porque agora não vive ninguém lá. – senti um aperto no coração ao perceber onde suas palavras iriam desembocar. – Estava pensando se ia ter que ligar para cancelar o envio do jornal... e depois li o jornal. Sobre o homem que você matou. Por isso, fui me encontrar com Zee e fiquei sabendo da historia toda.

Olhou para mim. – Lamento.

Levantei-me e sacudi-me como se a pelagem estivesse molhada. Stefan sorriu novamente, apenas uma sutileza nos lábios. – Ainda bem que o matou. Quem me dera ter estado lá para ver.

Pensei no local onde ele estivera, torturado por Marsilia, e também desejei vê-lo matá-la.

Suspirei e me aproximei dele, pousando o queixo em seu joelho. Ambos ficamos contemplando a água correndo sob a tira da lua. Havia casas nas redondezas, mas onde estávamos éramos apenas nós e o rio.


Capítulo 9

 

Finalmente, deixei Stefan sozinho. Precisava me levantar cedo para voltar ao trabalho, e talvez fosse bom dormir um pouco. Quando virei a cabeça para trás para um último olhar preocupado, tinha desaparecido. Desejei que não tivesse voltado a sua casa, não me parecia o lugar mais sensato para ir, mas ele faria o que quisesse. Nesse aspecto, era como eu.

As luzes em casa estavam acesas e dupliquei a velocidade da passada assim que as vi. Atravessei a porta para cães e deparei com Warren caminhando pela sala. Medea estava sentada nas costas do sofá e o observava com um olhar irritado.

– Mercy. – Warren disse aliviado. – Se transforme e se vista. Vamos a uma reunião de paz com os vampiros e foi especificamente solicitada a sua presença.

Apressei-me ao meu quarto e voltei a forma humana. Com tanta coisa em que pensar, tinha o quarto cheio de roupa suja e nada mais.

– Estamos falando de um tratado de paz? – perguntei, arremessando calcinhas sujas por cima do ombro.

– Temos esperança que sim. – Warren respondeu, ele me seguira até o interior do quarto. – Quem te alvejou?

– Um vampiro, nada de especial. – disse. – Ele não atirou para matar. Acho até que nenhum dos destroços ficou alojado.

– Não, mas a idéia de se sentar essa noite não vai ser lá muito agradável para você.

– A idéia de me sentar nunca é agradável quando há vampiros por perto. Com exceção de Stefan. O que Marsilia disse?

– Não foi ela que nos ligou, e não conseguimos saber que vampira que o fez. Leu um bilhete e depois deu várias risadinhas.

– Lily? – perguntei, olhando para Warren.

– Foi Samuel que disse. – pegou uma blusa do ombro, para onde devia ter atirado, e deixou-a cair no chão.

– Também ligou para ele?

Encolheu os ombros. – Sim. Marsilia também queria que ele estivesse presente. Não, não sei do que se trata, e Adam também não. No entanto, é improvável que ela nos aniquile quando chegarmos lá. Adam me mandou vir aqui para te levar assim que voltasse. Mas acredito que ele queira você vestida.

– Espertinho. – disse, enfiando-me nas calças jeans. Encontrei um sutiã em um estado decente e coloquei-o. Acabei de encontrando uma camisa lavada e dobrada na gaveta. Perguntei-me quem a teria colocado lá.

Não que eu não seja organizada. Na minha oficina, cada ferramenta está exatamente no lugar a que pertence quando chega a hora de fechar. Por vezes, existe alguma fricção quando Zee está lá porque ele e eu temos uma idéia diferente de onde algumas ferramentas deviam estar.

Um dia, quando tiver tempo, arrumarei o quarto. Ter um companheiro de casa me força a manter o resto da casa razoavelmente arrumada. Mas meu quarto não interessa a ninguém, e isso o coloca em uma posição muito secundária na minha lista de prioridades. Está abaixo, por exemplo, de me manter solúvel, de salvar Amber das garras de Blackwood e de participar na reunião de Marsilia. Contudo, é quase certo que o arrume antes de plantar um jardim.

Vesti uma camisa lavada. Era azul-escura e tinha a inscrição: PEÇAS BOSCH GENUINAMENTE ALEMÃS. Não era propriamente a camisa que teria escolhido para uma visita formal à Rainha dos Vampiros, mas teria que aceitar. Pelo menos, não tinha nenhuma mancha de óleo.

Warren pegou em um monte de calças jeans e desenterrou meu tênis. – Agora só precisa de meias e podemos ir.

Seu celular tocou e atirou-me os tênis para atender. – Sim, chefe. Ela está aqui e quase pronta.

A voz de Adam estava um pouco abafada e falava muito baixo, mas ainda assim, conseguia ouvi-lo. Parecia ansioso?

– Quase, heim?

Na boca de Warren se desenhou um sorriso. – Sim. Minhas desculpas.

– Mercy, ande logo. – Adam disse em voz mais alta. – Há varias coisas das quais Marsilia não fala enquanto você não estiver aqui, considerando que foi uma parte material da agitação recente.

Desligou.

– Estou andando logo. Estou andando logo. – murmurei, enfiando as meias e os sapatos. Desejei ter tido oportunidade de substituir o colar.

– Suas meias não combinam.

Saí pela porta. – Obrigada. Desde quando se tornou interessado em moda?

– Desde que decidiu calçar uma meia verde e outra branca. – respondeu, seguindo-me. – Podemos ir no meu carro.

– Tenho outro par igualzinho. – disse. – Em algum lugar. – apesar de achar que tinha jogado fora o par da meia verde na semana anterior.

 

 

Os portões de ferro forjado que rodeavam o ninho foram abertos, porém o caminho de entrada estava repleto de carros, estavam estacionamos fora do caminho coberto por cascalho. O edifício em tijolo de estilo espanhol era iluminado por lâmpadas alaranjadas, semelhantes as de lanternas, que tremeluziam quase como se fossem de verdade.

Não conhecia o vampiro na porta e, em um modo muito incomum dos vampiros, simplesmente abriu a porta e disse: – Fundo do corredor, descer as escadas até o final.

Não me lembrava da existência de escadas no final do corredor quando visitei esse lugar. Provavelmente, porque a gigantesca pintura de uma Villa Espanhola estava em frente a elas e não encostada a uma parede lateral.

Embora tivéssemos entrado no térreo, a escada em que estávamos tinha dois lances. Minha visão no escuro é quase tão boa como a de um gato, e ainda assim a escada era escura para mim, um humano se sentiria quase completamente as cegas. À medida que descíamos, o cheiro de vampiro obstruía meu olfato.

Havia uma pequena antessala com um único vampiro, mais um que não reconheci. Na verdade, apenas conhecia um pouco dos vampiros de Marsilia de vista. Esse tinha o cabelo cinza-prateado e um rosto de aspecto muito jovem e vestia um tradicional terno fúnebre negro. Estava sentado atrás de uma mesa muito pequena, mas enquanto descíamos os três últimos degraus, se levantou.

Ignorou Warren completamente e disse: – Você é Mercedes Thompson. – não estava propriamente fazendo uma pergunta, mas sua afirmação estava longe de ser convicta. Também tinha um sotaque qualquer que não consegui localizar.

– Sim. – Warren respondeu curtamente.

O vampiro abriu a porta e nos fez uma curta reverência.

A sala em que entramos era enorme para uma casa, parecia mais um pequeno ginásio do que uma sala. Tinha assentos suspensos, bancadas na verdade, paralelamente as paredes mais longas do local. Bancadas cheias de observadores silenciosos. Não tinha consciência de que havia tantos vampiros em Tri-Cities, depois notei que muitas das pessoas eram humanas, ovelhas, como pensei.

E exatamente no centro da sala, estava a enorme cadeira de carvalho estofada com entalhes e realçada com latão sem brilho. Não conseguia vê-los, mas sabia que os espinhos de latão nos braços da cadeira estavam afiados e escurecidos com sangue velho... Parte dele era meu.

Aquela cadeira era um dos tesouros do ninho, magia vampírica e magia antiga combinada. Os vampiros usavam-na para determinar a verdade da pobre criatura que tivesse os espinhos de latão enfiados nas mãos. É assustadoramente apropriado que muita da magia vampírica tenha a ver com sangue.

A presença da cadeira aumentou minhas suspeitas de que isso não se destinava a ser uma negociação de paz entre os vampiros e os lobisomens. A última vez que vira essa cadeira tinha sido em um julgamento. Me deixou nervosa e desejei saber quais tinham sido exatamente as palavras usadas para nos convidar a estar aqui presentes.

Foi fácil distinguir os lobisomens, estavam de pé de frente a duas filas de lugares vazios: Adam, Samuel, Darryl e sua parceira, Aurielle, Mary Jo, Paul e Alec. Perguntei-me quais teriam sido chamados por Marsilia e quais foram escolhidos por Adam.

Darryl foi o primeiro a reparar em nós porque a porta era quase tão silenciosa como a multidão de vampiros. Seus olhos me analisaram da cabeça aos pés e por momentos pareceu chocado. Em seguida, lançou os olhos a multidão, todos os vampiros e respectivos rebanhos estavam impecáveis, alguns com vestido de noite ou com ternos. Julguei ver pelo menos um casaco do Exercito da União. Olhou minha blusa, depois relaxou e dirigiu-me um sorriso sutil.

Pareceu-me que decidira que não havia problema em não ter me arrumado para me reunir com o inimigo. Adam vinha conversando com Samuel de forma bastante empenhada (sobre o jogo de futebol que se aproximava, não discutimos questões importantes em frente aos inimigos), mas olhou para o seu número dois, depois levantou os olhos enquanto caminhávamos em sua direção.

– Mercy. – disse, com a voz ecoando na sala como se estivesse vazia. – Até que enfim. Talvez agora possamos cuidar de coisas importantes.

– Talvez. – Marsilia disse.

Estava atrás de nós. Sabia que não estava ali momentos antes porque Warren deu um salto ao mesmo tempo que eu. Warren era mais prudente do que eu, ninguém parece surpreendê-lo. Nunca. Efeito secundário de ser perseguido pela própria espécie durante a maior parte do seu século e meio de vida.

Virou-se, puxando-me para trás de si, e rosnou algo que em circunstâncias normais não teria feito. Todos os vampiros na sala se levantaram, e a sua expectativa de sangue era palpável.

Marsilia gargalhou, uma risada bonita e ressoante que parou um segundo antes do que eu esperava, tornando-a mais perturbadora do que seu aparecimento súbito. Nas outras ocasiões em que a tinha visto, usava roupas para atrair a atenção para a sua beleza. Dessa vez, vestia um terno de negócios. A única concessão a feminilidade era a saia estreita, em vez de calças, e a cor vinho.

– Sentem-se. – Marsilia ordenou, como se estivesse falando para um poodle, e todos os vampiros na sala se sentaram. Em momento algum, desviou o olhar de mim. – Que simpático da sua parte ter aparecido. – disse-me com seus olhos escuros como um abismo, carregados de poder.

Apenas a proteção de Warren me permitiu responder-lhe em um tom que se aproximava um pouquinho da calma. – Que simpático da sua parte endereçar seus convites antecipadamente para eu poder vir a tempo. – repliquei. Talvez não de forma sensata. Mas a verdade é que ela já me detestava. Conseguia cheirar isso.

Fixou-se em mim por momentos. – Que divertida.

– Que rude. – devolvi, dando um passo para o lado. Se a enervasse a ponto de me atacar, não queria que Warren fosse sofrer o golpe.

Só quando contornei que percebi que a olhava nos olhos. Que estupidez. Nem mesmo Samuel estava a altura do poder de seus olhos. Porém, não podia olhar para baixo, nãos com o poder de Adam crescendo a ponto de me sufocar. Aqui não era um mero coiote, era a parceira do Alfa do Bando da Bacia Columbia, porque ele disse e porque eu disse.

Se olhasse para baixo, estaria reconhecendo a sua superioridade, e não iria fazer isso. Portanto, continuamos a nos olhar, e ela optou por permitir que eu o fizesse.

Abaixou as pálpebras, não a ponto de perder a nossa competição informal, mas para disfarçar sua expressão. – Eu acho. – disse em uma voz tão baixa que apenas eu e Warren ouvimos. – Acho que se tivéssemos nos encontrado em um lugar e um espaço diferente, eu poderia ter gostado de você. – sorriu, descobrindo as presas. – Ou tê-la matado.

– Chega de joguinhos. – ela disse em voz mais alta. – Chame-o por mim.

Congelou. Era por isso que ela queria que eu estivesse aqui. Queria Stefan de volta. Por momentos, a única coisa que consegui foi ver a coisa morta e enegrecida que ela despejara em minha sala. Lembrei-me do tempo que demorara a perceber de quem se tratava.

Tinha-lhe feito isso, e agora o queria de volta. Não se eu pudesse evitar.

Adam não tinha saído do lugar onde estava, anunciando a sala que confiava na minha capacidade de tomar conta de mim mesma. Não tinha certeza se de fato pensava assim, sabia que eu não pensava, mas precisava que eu fosse capaz de lidar com as minhas situações, sozinha.

– Chamar quem? – Adam perguntou.

Sorriu-lhe sem desviar os olhos de mim. – Você não sabe? Sua companheira pertence ao Stefan.

Adam soltou uma gargalhada, um som estranhamente alegre nesse local escuro. Foi um bom pretexto para virar as costas para Marsilia e por fim ao desafio do olhar. Virar as costas não significava que tinha perdido, apenas que o duelo tinha terminado.

Esforcei-me para que o medo doentio que sentia não transparecesse em meu rosto. Esforcei-me para ser o que Adam e Stefan precisavam que eu fosse.

– Como coiote, Mercy é adaptável. – Adam explicou para Marsilia. – Pertence a quem decidir. Pertence ao lugar que quiser, durante o tempo que desejar. – fez com que soasse algo bom. Depois disse: – Pensava que estávamos aqui para impedir uma guerra.

– E estamos. – Marsilia replicou. – Chame Stefan.

Levantei o queixo e olhei por cima do ombro. – Stefan é meu amigo. – disse. – Não vou trazê-lo para a sua própria execução.

– Admirável. – apressou-se a dizer. – Mas a sua preocupação é sem propósito. Posso lhe prometer que ele não sofrerá qualquer dano físico provocado por mim ou pelos meus.

Olhei para Warren de soslaio e ele acenou a cabeça. É verdade que ler os vampiros é uma tarefa difícil, mas ele era melhor do que eu para detectar mentiras, e seu olfato concordava com o meu: ela estava sendo sincera.

– Nem será aprisionado aqui. – disse.

O cheiro do seu ódio dissipara e não consegui identificar qualquer sentimento.

– Não será aprisionado aqui. – concordou. – Testemunhas?

– Testemunhamos. – disseram os vampiros. Todos eles. Exatamente ao mesmo tempo. Como fantoches, só que mais assustadores.

Esperou. Finalmente disse: – Não lhe desejo qualquer mal.

Pensei no que ocorrera essa noite, quando Stefan recusara a proposta de Bernard, embora tivesse certeza de que concordara com a avaliação que Bernard fizera do governo do ninho por parte de Marsilia. No fundo, amava-a mais do que seu ninho, ao seu rebanho de ovelhas ou a sua própria vida.

– Você o prejudicou através da sua existência continua. – eu disse, tão baixo quanto consegui. E ela se retraiu.

Pensei naquele retraimento... e na forma como o deixara viver apesar de ele, de entre todos os vampiros, ser o que tinha mais motivos para querer vê-la morta, e tinha forma de fazer isso. Talvez Stefan não fosse o único que sentia amor.

No entanto, isso não a impedia de torturá-lo.

Fechei os olhos, confiando que Warren e Adam me manteriam em segurança. Só desejei conseguir manter Stefan a salvo. Mas faria o que ele iria querer que eu fizesse.

Stefan, chamei, assim como fizera antes, porque sabia que ele iria querer que eu o fizesse. Certamente, sabia de onde estava chamando e apareceria preparado para se proteger.

Nada aconteceu. Nada de Stefan.

Olhei na direção de Marsilia e encolhi os ombros. – Chamei-o. – expliquei. – Mas ele não tem que vir quando chamo.

Isso não pareceu tê-la incomodado. Limitou-se a acenar a cabeça, um gesto surpreendentemente profissional vindo de uma mulher que certamente encaixava-se melhor em um vestido renascentista de seda e enfeitada com jóias do que no terno moderno que vestia.

– Nesse caso, dou como iniciada essa reunião. – anunciou, caminhando para a velha cadeira do trono, colocada no centro da sala. – Em primeiro lugar, gostaria de chamar Bernard para se sentar na cadeira.

Aproximou-se, relutante e rígido. Reconheci o padrão de seu movimento, parecia com um lobo chamado contra a sua vontade. Sabia que não tinha sido criado por Marsilia, mas ainda assim ela tinha poder sobre ele. Usava as mesmas roupas. As lâmpadas fluorescentes suspensas brilhavam na pequena careca que tinha no topo da cabeça.

Sentou-se a contragosto.

– Caro, deixe-me te ajudar. – Marsilia pegou suas mãos e empalou-as nos espinhos de latão. Resistiu. Consegui notar na severidade do rosto e na tensão dos músculos. Não me pareceu que Marsilia tivesse feito o menor esforço para mantê-lo sob controle.

– Tem sido malvado, não tem? – perguntou. – Desleal.

– Não fui desleal ao ninho. – respondeu com dentes cerrados.

– É verdade. – disse a voz de garoto.

O Mago em pessoa. Não o tinha visto, embora o tivesse procurado. Seu cabelo louro tinha sido cortado rente a cabeça. Ostentava um sorriso vago no rosto enquanto descia a bancada na nossa frente. Usou os assentos como degraus.

Parecia um jovem aluno do ensino médio. Morrera antes de seus traços terem tido a chance de se desenvolver até a maturidade adulta. Tinha um ar afável e juvenil.

Marsilia sorriu quando o viu. Pulou sobre os três últimos assentos e pousou suavemente no chão de madeira. Ela era mais baixa do que ele, mas o beijo que ele lhe deu me fez sentir dor no estômago. Sabia que tinha centenas de anos de idade, mas isso não importava, porque parecia um garoto.

Recuou um passo e estendeu o braço com um dedo esticado, passando-o pela mão de Bernard depois pelo braço da cadeira. Quando o retirou, dele pingava sangue. Lambeu-o lentamente, deixando algumas gotas escorrerem pela palma da mão, passando pelo pulso, até mancharem a manga verde-clara da sua camisa executiva.

Perguntava-me quem seria o destinatário de sua performance. Certamente, os vampiros não se sentiriam incomodados pelo fato de ele lamber sangue, estava certa, mas sobretudo errada. Incomodados talvez não fosse a palavra, mas verificou-se uma agitação generalizada nas bancadas quando os vampiros se inclinaram para frente e alguns deles inclusive lamberam os lábios.

Eca.

– Me traiu, não traiu, Bernard? – Marsilia ainda estava de olhos fixos em Wulfe, e este estendeu a mão. Ela pegou-a e acompanhou o trajeto do sangue ressecado, demorando-se com a língua em seu pulso enquanto Bernard tremia, tentando não responder a pergunta.

– Não trai o ninho. – Bernard disse novamente. E embora Marsilia o tenha atormentado com perguntas durante dez minutos ou mais, não dizia mais do que aquilo.

Stefan apareceu ao meu lado. Estava de olhos na manga branca de sua camisa enquanto apertava descontraidamente o botão do punho e, em seguida, puxou para baixo a manga de seu terno cinzento com riscas quase imperceptíveis. Olhou para mim e Marsilia olhou para ele.

Marsilia acenou a Bernard com a mão. – Levante-se. Wulfe, coloque-o em um lugar bem visível, sim?

Tremendo e com gestos hesitantes, Bernard levantou-se e foi derramando sangue pelo chão claro até as bancadas, onde Wulfe abriu espaço na fila de baixo para ambos. Começou a limpar as mãos de Bernard, como um gato lambendo leite.

Stefan não disse nada, apenas me analisou brevemente com os olhos. A seguir, olhou para Adam, que lhe retribuiu o gesto com o aceno de cabeça em jeito formal, embora tivesse sorrido ligeiramente, e notei que ele e Stefan vestiam a mesma coisa, com a diferença que Adam usava uma camisa azul-escura.

Mary Jo viu a semelhança e seus lábios se abriram em um amplo sorriso. Virou-se para dizer alguma coisa a Paul, pensei, quando um ar de surpresa lhe assomou o rosto e simplesmente tombou. Alec agarrou-a antes que atingisse o chão, como se essa não fosse a primeira vez em que algo assim acontecia. Resquícios da proximidade com a morte, eu desejei, não algo que os vampiros pudessem estar fazendo.

Stefan me deixou para se concentrar em Mary Jo. Tocou-lhe na garganta, ignorando o rosnado silencioso de Alec.

– Relaxe. – Stefan disse ao lobo. – Não lhe farei mal.

– Ela tem feito muito isso. – Adam explicou. O fato de não ter se colocado entre o membro mais vulnerável do grupo e o vampiro era uma mensagem clara.

– Ela está acordando. – Stefan disse mesmo antes de seus olhos abrirem.

E só depois de Mary Jo estar claramente desperta que Stefan olhou para Marsilia.

– Venha para a cadeira, Soldado. – Marsilia disse.

Fixou-se nela durante tanto tempo que tive duvidas se iria fazê-lo. Podia amá-la, mas nesse momento não gostava muito dela, e, eu esperava, tão pouco confiava nela.

Porém, deu uma palmadinha no joelho de Mary Jo e caminhou para onde Marsilia o esperava.

– Espera. – ela disse antes que ele se sentasse. Olhou para as bancadas a nossa frente, onde estavam sentados os vampiros e seu respectivo alimento. – Quer que eu interrogue Estelle primeiro? Ficaria mais satisfeito se o fizesse?

Não conseguia entender a quem se dirigia.

– Tudo bem. – Marsilia disse. – Traga Estelle.

A porta cuja existência não tinha notado foi aberta no lado oposto da sala e Lily, a pianista dotada e vampira louca que nunca saia do ninho e da proteção de Marsilia, entrou segurando Estelle como um noivo segura sua esposa. Lily inclusive vestia uma espumosa massa branca de renda que bem podia ser um vestido de noiva que combinava com o terno escuro de Estelle. Apesar de eu nunca ter visto uma noiva com sangue por todo o rosto e por todo o vestido. Se fosse vampira, acho que apenas vestiria preto e castanho-escuro, para esconder as manchas.

Estelle tropeçava agarrada aos braços de Lily, e seu pescoço parecia ter sido mastigado por um grupo de hienas.

– Lily. – Marsilia reprovou. – O que já disse sobre brincar com a comida?

Os olhos cor de safira de Lily reluziam com uma presença faminta, visível até na sala exageradamente iluminada.

– Desculpe. – disse. Percorreu uma curta distância aos saltos. – Desculpa, Stel. – mostrou os dentes a Stefan em um sorriso aberto e depois deixou cair o corpo frouxo de Estelle na cadeira, como se fosse uma boneca. Endireitou a cabeça de Estelle, que estava inclinada para o lado, e em seguida endireitou o vestido. – Está bem assim?

– Ótimo. Agora, seja uma menina bonita e vai se sentar ao lado de Wulfe, por favor.

Lily estava na casa dos trinta quando fora morta, pensei, porém o desenvolvimento da sua mente parara bem antes. Sorriu exultante e caminhou aos pulos para o banco ao lado de Wulfe. Ela deu-lhe um tapinha no joelho e colocou a cabeça no ombro dele.

Assim como fizera com Bernard, Marsilia enfiou as mãos de Estelle nos espinhos. A vampira debilitada soltou um grito agudo assim que a segunda mão foi perfurada.

Marsilia permitiu aquilo durante algum tempo e depois disse: “Pare” em uma voz semelhante ao disparo de uma calibre 22. Estalou, mas não causou estrondo.

Estelle congelou no meio do grito.

– Você me traiu? – Marsilia perguntou.

Estelle agitou-se. Balançou a cabeça freneticamente. – Não. Não. Não. Nunca.

Marsilia olhou para Wulfe. Ele balançou a cabeça. – Se não a controlar para que se mantenha na cadeira, Senhora, ela não poderá responder de verdade.

– E se não o fizer, a única coisa que ela fará é berrar. – olhou para as bancadas. – É como te disse. Você pode tentar se quiser. Não? – vai se sentar ao lado de Wulfe, Estelle.

Um homem hispânico se levantou de um dos assentos atrás de mim. Tinha uma lágrima tatuada abaixo de um dos olhos e, assim como Wulfe, pulou para o chão, embora sem a graciosidade de Wulfe. O que parecia era que tinha caído lentamente da bancada, chocando suas mãos e joelhos no chão.

– Estelle, Estelle. – gemeu, roçando o corpo em mim enquanto passava. Era humano, uma das suas ovelhas, pensei.

Marsilia ergueu uma sobrancelha e um vampiro seguiu o humano de Estelle ao triplo ou quadruplo da velocidade. Apanhou-o antes de o homem ter percorrido metade do caminho até a cadeira. O vampiro tinha a aparência de um homem idoso. Parecia que tinha morrido de velhice antes de se tornar um vampiro, embora não houvesse nada de velho ou de tremulo na forma como segurava o homem inquieto.

– O que deseja que eu faça, Senhora? – o velho perguntou.

– Desejo que não permita que volte a nos interromper. – Marsilia respondeu. Lancei os olhos a Warren, que franziu a sobrancelha. Era sinal de que estava mentindo. Também me parecia. Isso fazia parte do roteiro. Após um momento de meditação, Marsilia disse: – Mate-o.

Ouviu-se um estalo, e o homem caiu no chão, e todos os vampiros presentes que estava respirando pararam de fazê-lo. Estelle caiu no chão, a um metro de Wulfe. Desviei o olhar e inesperadamente deparei com Marsilia de olhos fixos em mim. Me queria morta, consegui ver em no olhar faminto que ostentava. Mas, por hora, tinha assuntos mais importantes para resolver.

Marsilia gesticulou para a cadeira como forma de convite a Stefan.

– Por favor, aceite minhas desculpas pela demora.

Stefan olhou-a fixamente. Se havia alguma emoção no rosto dele, não fui capaz de interpretá-la.

Tinha dado um passo em frente e ela o deteve novamente. – Não. Espera. Tive uma idéia melhor. – olhou para mim. – Mercedes Thompson. Venha, partilhe conosco sua verdade. Relate-nos as coisas que viu e ouviu.

Cruzei os braços, não em um gesto de recusa categórica, mas também não ia para a cadeira aos saltos e dançando. Esse era o espetáculo de Marsilia, mas não iria permitir que ela dominasse completamente a situação. A mão de Warren se fechou sobre meu ombro, uma demonstração de apoio, pensei. Ou se calhar estava tentando me avisar.

– Fará o que lhe digo porque quer que eu pare de fazer mal aos seus amigos. – disse baixinho. – Os lobos são alvos valiosos... mas há aquele policial delicioso... Tony, não é? E o rapaz que trabalha para você. Tem uma família grande, não é? As crianças são tão frágeis. – olhou para o homem de Estelle, morto quase aos seus pés.

Stefan se fixou nela, depois olhou para mim. E assim que vi os olhos dele, percebi a emoção que estava tentando conter... fúria.

– Tem certeza? – perguntei a Stefan.

Fez que sim com a cabeça. – Venha.

A idéia de fazer aquilo não me agradava, mas ela tinha razão. Eu queria meus amigos em segurança.

Sentei-me na cadeira e cheguei para frente de modo que não tivesse que esticar os braços para alcançar o latão afiado. Baixei ambas as mãos com violência e tentei não estremecer no momento em que os espinhos se afundaram, ou arfar enquanto a magia pulsava em meus ouvidos.

– Que delicia. – Wulfe disse, e estive a beira de tirar as mãos. Ele seria capaz de me provar pelos espinhos ou estaria simplesmente me torturando?

– Enviei Stefan ao seu encontro. – Marsilia afirmou. – Pode descrever ao nosso auditório o aspecto dele?

Olhei para Stefan e ele acenou afirmativamente com a cabeça, portanto descrevi a coisa estranha que tinha caído no chão da minha sala da forma mais fiel possível a minha memória, mantendo um tom de voz impessoal em vez de zangado ou... qualquer outra coisa inadequada.

– Verdade. – Wulfe disse após eu ter terminado.

– Porque estava nesse estado? – Marsilia perguntou.

Stefan acenou novamente, portanto respondi. – Porque tentou salvar minha vida ao encobrir o meu envolvimento no caso em que Andre foi morto? Destruído? Quando um vampiro morre permanentemente, como é que dizem que ele está?

A pele no rosto dela se tornou mais fina até conseguir ver os ossos por baixo. E era ainda mais bonita e mais terrível quando furiosa.

– Morto. – Marsilia respondeu.

– Verdade. – Wulfe confirmou. – Stefan tentou encobrir seu envolvimento na morte de Andre. – olhou em volta. – Eu também ajudei a encobrir. Pareceu-me a coisa certa a fazer na hora... embora mais tarde tenha me arrependido e confessado.

– Tem uma cruz de ossos na porta da sua casa. – Marsilia disse.

– Da minha oficina. – respondi. – E sim.

– Sabia que nenhum vampiro, com exceção de Stefan, pode entrar na sua oficina? É tão sua casa quanto aquele trailer degradado em Finley.

Por que tinha me contado aquilo? Stefan também estava olhando-a.

– Explique a nossa audiência o porquê dos ossos.

– Traição. – disse. – Ou pelo menos assim me disseram. Você me pediu para matar um monstro e eu optei por matar dois.

– Verdade. – Wulfe confirmou.

– Quando que Stefan soube que você era uma andarilha, Mercedes Thompson?

– Quando o conheci. – respondi. – Há quase dez anos.

– Verdade. – Wulfe disse.

Olhou novamente para as bancadas e dirigiu-se a alguém que estava lá. – Lembre-se disso. – virou-se para se fixar em mim, depois lançou os olhos a Stefan ao mesmo tempo em que me perguntava. – Por que matou Andre?

– Porque sabia como criar feiticeiros... possuídos pelo demônio. Tinha-o feito uma vez e você e ele planejavam fazer novamente. Pessoas morreram por causa dos jogos dele... e mais pessoas morreriam por sua causa.

– Verdade. – Wulfe disse.

– Que diferença faz quantas pessoas morrem? – Marsilia perguntou, acenando para o homem morto e falando a todos os presentes. – Tem uma vida curta, e são alimentos.

Falara retoricamente, mas de qualquer modo respondi. – São muitos e seriam capazes de destruir seu ninho em um dia se soubesse da existência dele. Levariam um mês para por fim a sua existência nesse país. E se você estivesse criando monstros como aquela coisa que Andre deu vida, eu iria ajudá-los. – inclinei-me para frente enquanto falava. Minhas mãos estavam pulsando ao ritmo do meu coração e percebi que o ritmo das minhas palavras acompanhava a dor.

– Verdade. – Wulfe disse em tom satisfeito.

Marsilia aproximou a boca da minha orelha. – Aquilo era para o meu soldado. – murmurou em um tom que não ultrapassou o alcance dos meus ouvidos. – Diga isso a ele.

Baixou a boca até ficar encostada ao meu pescoço, porém não vacilei.

– Acredito mesmo que teria gostado de você, Mercedes. Se você não fosse o que é, e eu não fosse o que sou. É ovelha do Stefan?

– Fizemos uma troca de sangue. – respondi.

– Verdade. – Wulfe disse, parecendo se divertir.

– Você pertence a ele.

– É de esperar que pense isso. – concordei.

Bufou de exasperação. – Você dificulta essa coisa simples.

– Você que torna difícil. No entanto, compreendo o que está me perguntando e a resposta é sim.

– Verdade.

– Por que Stefan a tornou dele?

Não queria contar-lhe. Não queria que soubesse que tinha qualquer espécie de ligação a Blackwood, embora provavelmente Adam já tivesse lhe contado. Portanto, ataquei.

– Porque você assassinou o rebanho dele. As pessoas de quem ele gostava. – disse irascível.

– Verdade. – Stefan rosnou.

– Verdade. – Wulfe concordou em um tom leve.

Marsilia, cujo rosto estava virado para mim, parecia obscuramente satisfeita. – Já sei o que preciso saber de você, Mercedes Thompson. Pode sair da cadeira.

Puxei as mãos da cadeira e tentei não me retrair, ou relaxar, enquanto a desconfortável palpitação da magia me abandonava. Antes de sequer ter a oportunidade de me levantar, a mão de Stefan estava debaixo do meu braço, erguendo-me sobre os pés.

Estava de costas para Marsilia e toda a sua atenção parecia estar centrada em mim, embora tivesse a sensação de que todo o seu ser estava concentrado na sua antiga Senhora. Pegou uma das minhas mãos e levou-a a boca, lambendo-a com uma suave caricia. Se não estivéssemos em publico, teria lhe dito o que achava daquele gesto. Acho que percebeu aquilo que meu rosto indicava porque os cantos da sua boca subiram.

Os olhos de Marsilia chisparam, vermelhos.

– Você passou dos limites. – Adam quem disse, mas não parecia ele.

Voltei-me e o vi percorrer o chão da sala em passadas largas sem o menor ruído. Se a cara de Marsilia era assustadora, comparada a dele não era nada.

Stefan, sem se deixar intimidar, pegara minha outra mão e dera o mesmo tratamento, embora de forma uma pouco mais brusca. Não a afastei porque não tinha certeza se ele permitiria, e a luta certamente enfureceria Adam.

– Estou curando suas mãos. – Stefan disse, largando-me e se afastando. – Como é meu privilégio.

Adam parou ao meu lado. Pegou-me nas mãos, que de fato estavam com melhor aspecto, e dirigiu um breve e vigoroso aceno de cabeça a Stefan. Colocou meu braço ao redor dele e depois voltou comigo para junto dos lobos.

Consegui sentir seu batimento cardíaco, na firmeza de seu braço, que estava à beira de perder o controle. Por isso, deixei cair a minha cabeça em seu braço para abafar minha voz. Depois, lhe disse: – Aquilo teve como objetivo atingir Marsilia.

– Quando chegarmos a casa. – Adam disse, não se preocupando em falar baixo. – Vai me permitir esclarecer sobre como uma mesma coisa pode servir mais do que um propósito.

Marsilia esperou até que nos sentássemos junto com o resto dos lobos antes de dar continuidade ao seu programa para a noite. – E agora você. – ela disse a Stefan. – Espero que não tenha reconsiderado a sua cooperação.

Em resposta, Stefan sentou-se na cadeira que parecia um trono, ergueu ambas as mãos sobre os espinhos afiados e os baixou com uma força que, de onde estava, consegui ouvir a cadeira chiar.

– O que deseja saber? – perguntou.

– A sua ovelha nos disse que eu matei seu rebanho anterior. – Marsilia começou. – Como sabe que isso é verdade?

Ergueu o queixo. – Senti cada um deles morrer pelas suas mãos. Um por dia até não restar mais nenhum.

– Verdade. – Wulfe concordou em um tom que ainda não tinha escutado. Fez com que o olhasse. Estava sentado com Estelle estendida aos seus pés, Lily encostada a ele em um dos lados e Bernard rigidamente sentado do outro. O rosto de Wulfe era sombrio e... triste.

– Já não pertence a esse ninho.

– Já não pertenço a esse ninho. – Stefan concordou friamente.

– Verdade. – Wulfe disse.

– Na verdade, nunca foi meu. – Marsilia disse. – Sempre teve seu livre-arbítrio.

– Sempre. – concordou.

– E usou isso para esconder Mercy de mim. Da justiça.

– Escondi-a de ti porque entendi que não representava qualquer risco, nem para você nem para o ninho.

– Verdade. – Wulfe murmurou.

– Escondeu-a porque gosta dela.

– Sim. – Stefan concordou. – E porque não haveria qualquer justiça em sua morte. Ela não tinha matado nenhum dos nossos... e não o faria, porém acontece que você a incumbiu dessa tarefa. – pela primeira vez desde que sentara a cadeira, olhou diretamente para ela. – Pediu-lhe para matar o vampiro que você não conseguia encontrar... e o fez. Duas vezes.

– Verdade.

– Ela matou Andre! – a voz de Marsilia cresceu até se transformar em um rugido, e uma onda de poder se disseminou pela sala. As luzes tremeluziram um pouco, recuperando em seguida a intensidade original.

Stefan sorriu friamente. – Porque não havia outra alternativa. Nós não lhe demos alternativa. Você, eu e Andre.

– Verdade.

– Escolheu-a acima de mim. – Marsilia disse, e seu poder inundou de estranheza a atmosfera. Aproximei-me um passo de Adam e estremeci.

– Você sabia que ela tinha caçado Andre, sabia que ela iria matá-lo, e escondeu de mim o que ela fez. Forçou-me a te torturar e a destruir a sua base de poder. Deve-me satisfações. – sua voz reverberou, fazendo o chão vibrar e as paredes estremecerem. As luminárias suspensas balançaram, criando um jogo de sombras.

– Não mais. – Stefan replicou. – Não lhe pertenço.

– Verdade. – Wulfe disparou pondo-se de pé repentinamente. – É bem verdade, você mesma sentiu.

No lado oposto ao que nos encontrávamos, no topo da bancada, um vampiro se levantou. Tinha traços suaves, olhos espaçados e um nariz arrebitado que lhe dava ar de tudo menos um vampiro. Assim como Wulfe e o humano de Estelle, lançou-se da bancada. Porém, não houve qualquer excitação ou hesitação em seu gesto. Seu percurso parecia um caminho parecia direto e pavimentado. Aterrissou no chão e caminhou na direção de Wulfe.

Vestia um smoking e calçava um par de sapatos em metal preto. Metal com dobradiças no topo e elos de correntes na parte de baixo. Dobrou os dedos e das luvas gotejou sangue, que caiu no chão.

Ninguém se mexeu para limpá-lo.

Virou-se e, em uma voz suave e aspirada, disse: – É verdade. Ele não lhe pertence, Marsilia.

Não fazia a mais pálida idéia de quem era, mas Stefan sim. Congelou, todo o seu ser concentrado no vampiro com os sapatos ensanguentados.

No rosto de Stefan, desenhou-se uma expressão de desorientação, como se todo mundo tivesse perdido a cabeça.

Marsilia sorriu. – Diga-me. Bernard te abordou no sentido de me trair?

– Sim. – Stefan respondeu, inexpressivo.

– Estelle fez o mesmo?

Respirou fundo, pestanejou algumas vezes e relaxou na cadeira. – Bernard, em seu intimo, parecia querer zelar pelos melhores interesses do ninho. – disse.

– Verdade. – Wulfe confirmou.

– Mas Estelle, quando me pediu para me juntar a ela contra você, apenas queria poder.

– Verdade.

Estelle guinchou e tentou ficar de pé, mas não tinha como afastar de Wulfe.

– E o que lhe disse? – perguntou.

– Disse que não faria um único gesto contra você. – Stefan parecia completamente fatigado, mas ainda assim suas palavras foram ouviras por entre o barulho que Estelle fazia.

– Verdade. – Wulfe disse.

Marsilia olhou para o vampiro com luvas, que suspirou e se curvou sobre Estelle. Afagou seu cabelo algumas vezes até ela se calar. Todos ouvimos o estalo quando seu pescoço partiu. Demorou o tempo necessário para separar a cabeça do resto do corpo e desviei o olhar, engolindo em seco.

– Bernard. – Marsilia disse. – acreditamos que seria bom voltar para junto de seu criador até aprender sobre lealdade.

Bernard se levantou. – Foi tudo uma artimanha. – disse em uma voz incrédula. – Tudo uma artimanha. Matou as pessoas de Stefan... sabendo que ele as amava. Torturou-o. Tudo para nos pegar, a mim e Estelle, em nossa pequena rebelião... Uma rebelião que nasceu do Andre.

Marsilia disse: – Sim. Não se esqueça do que fiz da favorita dele, Mercedes, a alavanca de que precisava para mover o mundo. Se ela não tivesse matado Andre, se ele não a tivesse ajudado a encobrir isso, não poderia tê-lo expulsado do ninho. Depois, não poderia tê-lo usado para testemunhar contra você e Estelle. Se tivesse sido criado por mim, te liquidar teria sido muito mais fácil e teria me custado menos.

Bernard olhou para Stefan, que estava sentado como se qualquer movimento lhe causasse dor, com a cabeça ligeiramente inclinada.

– Stefan, de todos nós, seria leal até a morte. Por isso, o torturou, matou seu rebanho, o expulsou... porque sabia que ele ia se recusar a se juntar a nós. Que a lealdade dele era tal que, apesar do que lhe fez, continuaria a ser seu.

– Contava que fosse assim. – Marsilia replicou. – Através da recusa dele a sua rebelião perde a legitimidade. – olhou para o homem que matara Estelle. – Você, claro, não fazia a menor idéia que seus filhos iriam se comportar dessa maneira.

Dirigiu-lhe um breve sorriso, de predador para predadora.

– Não estou na cadeira. – tirou as luvas e atirou-as para o colo de Wulfe. – Nem mesmo por uma ligação tão tênue. – tinha as mãos ensanguentadas, mas não consegui ver se era de uma ferida ou de varias. – Ouvi as suas verdades, e espero apenas que as venha considerar tão humilhantes como eu. Anda, Bernard. Está na hora de irmos.

Bernard se levantou sem protestar, com o choque e a consternação em cada linha do corpo. Seguiu seu criador até a porta, mas virou-se para trás antes de abandonar definitivamente a sala. – Deus me salve. – disse olhando para Marsilia. – De tal lealdade. Arruinou-o por capricho seu. Não é merecedora dele, assim como já tinha dito.

– Deus não livrará nenhum de nós. – Stefan sussurrou. – Todos estamos condenados.

Ele e Bernard olharam-se mutuamente de cada extremidade da sala. Depois, o vampiro mais novo fez uma reverência e seguiu seu criador porta fora. Stefan libertou suas mãos e se levantou.

– Stefan... – Marsilia disse em um tom doce. No entanto, antes de pronunciar a última silaba, ele desapareceu.


Capítulo 10

 

 

Marsilia congelou por momentos, de olhos fixos no lugar onde Stefan estivera. Depois, olhou para mim, um olhar de uma malevolência tão grande que tive de me esforçar para não recuar, apesar de estarmos separadas por metade de uma sala enorme.

Fechou os olhos e recuperou o controle sobre os traços do rosto. – Wulfe. – disse. – Você o tem?

– Tenho sim, Senhora. – respondeu o vampiro. Levantou-se e dirigiu-se a ela, retirando um envelope do bolso de trás.

Marsilia olhou o objeto, mordeu o lábio e depois, em uma voz baixa disse: – Dê a ela.

Wulfe alterou o trajeto de modo que viesse diretamente ao nosso encontro. Entregou-me o envelope que não estava maltratado, considerado o tempo que estivera conservado em seu bolso. O papel era pesado, do mesmo tipo usado em convites de casamento ou diplomas acadêmicos. O nome de Stefan estava graciosamente escrito na parte da frente. Estava selado com cera vermelha que cheirava a vampiro e sangue.

– Entregue isso a Stefan. – Marsilia disse. – Diga-lhe que aí constam informações, não pedidos de desculpas ou explicações.

Peguei o envelope e senti um forte desejo de amassá-lo e atirá-lo no chão.

– Bernard tem razão. – afirmei. – Você usou Stefan. Machucou-o, quebrou-o, de forma que pudesse continuar com seu joguinho. Você não o merece.

Marsilia me ignorou. – Hauptman. – ela disse com calma cortesia. – Agradeço-lhe pelo aviso em relação a Blackwood. Em troca disso, cedo ao seu pedido de trégua. Os documentos assinados serão enviados para a sua casa.

Respirou fundo e desviou a atenção de Adam para se concentrar em mim. – A sentença dessa noite que é que a ação que teve contra nós ao matar Andre não resultou em danos para o ninho. O fato de não ter qualquer intenção de atentar contra o ninho foi confirmado pelo seu depoimento de verdade. – inalou profundamente. – É minha sentença que o ninho não foi lesado e que você não é uma aliada transformada em traidora. Não será algo de qualquer punição e a cruz de ossos será removida. – lançou os olhos ao próprio pulso.

– Posso cuidar disso essa noite. – Wulfe interveio em um tom delicado.

Marsilia assentiu com a cabeça. – Será removida antes do amanhecer. – hesitou e a seguir, em voz baixa, como se as palavras estivessem sendo arrancadas da garganta, disse: – Faço isso por Stefan. Por mim, o seu sangue e seus ossos serviriam de ornamento ao meu jardim, andarilha. Tenha cuidado para não voltar a ter problemas.

Girou sobre si mesma e saiu pela mesma porta que Bernard.

Wulfe olhou para Adam. – Permita-me que vos acompanhe até o exterior do ninho para garantir que nenhum mal seja feito.

Adam semicerrou os olhos. – Está insinuando que não sou capaz de proteger os meus?

Wulfe abaixou os olhos e fez uma reverência pronunciada. – Nem pensar em semelhante coisa. Estou apenas sugerindo que a minha presença os poupará de qualquer transtorno. Como nos pouparia da bagunça que pudesse resultar disso.

– Tudo bem.

Adam seguiu na frente. Deixei os outros lobos passarem por mim e tentei não ficar magoada quando Mary Jo e Aurielle, em um deliberado, evitaram olhar para mim. Não sabia qual a causa... ou antes, qual das causas as incomodava. – o fato de ser coiote, ovelha de um vampiro ou ter feito com que Marsila tivesse o bando como alvo. Na verdade, não era importante, não havia nada que pudesse fazer para resolver qualquer uma dessas situações.

Warren, Samuel e Darryl esperaram até que os outros fossem embora, depois Warren dirigiu-me um curto sorriso e avançou. Darryl parou e olhei para ele. Era hierarquicamente superior a ele, o que significava que eu devia ir atrás do bando para nos proteger de qualquer ataque vindo de trás. Depois, sorriu, uma expressão afável que não sabia dizer se algum dia vira em seu rosto, em todo o caso não era dirigida a mim. E avançou.

– Nem pense nisso. – Samuel disse, divertido. – Eu não sou do bando, portanto posso ir ao seu lado.

– Estou mesmo precisando de uma boa noite de descanso. – disse, ao mesmo tempo em que acertava meu passo com o dele.

– Presumo que isso seja resultado de fraternização com vampiros. – colocou uma mão sobre meu ombro. Uma mão fria.

Estivera tão ocupada em suar de medo que tinha me acostumado tanto a sensação como ao cheiro. Não percebera que Samuel também estava assustado.

A última vez que tinha vindo aqui, Lily tinha-o usado como petisco e Marsilia fizera pior, retirando-lhe a capacidade de livre-arbítrio até Samuel se tornar dela.

Se tivesse acontecido comigo, teria ficado apavorada. Não conseguia imaginar como teria sido para um lobisomem que vivia apenas porque controlava o lobo que com ele convivia. A todo o momento.

Levantei o braço e coloquei minha mão sobre a dele. – Vamos embora daqui. – eu disse. E enquanto atravessava a sala, estive sempre consciente dos dois corpos quietos no chão, assim como dos vampiros e dos respectivos rebanhos, que estavam silenciosamente sentados nas bancadas, obedecendo a ordens que eu não conseguia ouvir. Observaram-nos partir com seus olhos predadores, senti-os atrás de mim até alcançar a porta.

Assim como o fantasma no banheiro, na casa de Amber.

 

Sentei-me no lugar do passageiro do SUV que Adam trouxera. Não sabia se era um carro alugado ou um carro novo, que era o que cheirava. Paul, Darryl e Aurielle ocuparam o banco traseiro. Samuel seguiu em seu próprio carro, um fantástico Mercedes vermelho-cereja.

Mary Jo, que se dirigia para o veiculo de Adam antes de me ver, mudou abruptamente sua direção e entrou na caminhonete de Warren. Alec, que seguia atrás dela como um cachorrinho perdido, fez o mesmo.

– E eu pensava que Bran pudesse ser Bizantino. – disse finalmente, tentando relaxar na segurança dos estofados em couro enquanto Adam atravessava os portões.

– Não peguei tudo. – Darryl disse. Devia estar cansado porque a sua voz soava ainda mais grave do que o habitual, então tive que ouvir com atenção para entender todas as palavras que dizia. – Por alguma razão, tinha que convencer Stefan de que ele estava fora do ninho. Depois, quando os traidores dela o abordaram, ele teve que recusar as propostas deles antes de poder testemunhar que eles as tinham feito?

– Foi o que me pareceu. – Adam disse. – E só com o testemunho dele e o consentimento do criador deles que ela podia cuidar da questão dos traidores.

– Faz sentido. – Paul interveio, quase timidamente. – Pelo modo como o ninho funciona, se Stefan pertencesse à Marsilia, o testemunho dele seria dela. Se aqueles dois tivessem se imposto contra ela, não podia matá-los. Precisaria de uma verificação interna.

Perguntei-me se teria caído na cilada. Pensei na muito conveniente ajuda de Wulfe quando eu matara Andre. Ele sabia que andava a procura de Andre, tinha encontrado a casa dele por acaso antes de ter encontrado Andre. Pensara que o esconderia da sua Senhora por razões pessoais... mas talvez não tivesse sido assim. Talvez Marsilia tivesse planejado tudo.

Minha cabeça doía.

– Talvez nossas suspeitas em relação ao vampiro que supostamente estaria tentando se apoderar do ninho da Marsilia estivessem erradas. – Adam disse.

Pensei no vampiro que tinha sido o criador de Bernard e se levantara para assistir a esse... julgamento.

Não queria ser solidaria, queria odiar Marsilia pelo que tinha feito a Sefan. Porém, familiarizara com o mal e todas as suas maldades, e aquele vampiro, o criador de Bernard, fizera todos os meus alarmes disparar. Não que os vampiros não fossem todos ruins... Subitamente, desejei poder dizer: “Com exeção de Stefan”. Mas não podia. Tinha conhecido seu rebanho, aqueles que Marsilia matara, e sabia que para a maioria deles, exceto os muito poucos que viriam a se tornar vampiros, Stefan significaria a sua morte. Ainda assim, o outro vampiro atingira um ponto muito elevado na minha escala de “saia daqui”. Havia alguma coisa em seu rosto...

– Ainda bem que sou lobisomem. – Darryl comentou. – A única coisa com que tenho que me preocupar é estar atento para ver quando que Warren perde o controle e me desafia.

– O autocontrole de Warren é muito bom. – Adam disse. – Eu não teria muitas esperanças de que isso pudesse acontecer.

– Seria melhor ter o Warren como número dois do que um coiote no bando. – Aurielle comentou com firmeza.

A atmosfera do carro se alterou.

A voz de Adam era suave. – Acha mesmo?

– Rielle. – Darryl advertiu.

– Acho. – sua voz não permitia discussões. Era professora do ensino médio e companheira de Darryl, o que fazia dela... não exatamente a número três do bando. – esse era Warren. Mas número dois e meio, logo abaixo de Darryl. Se ela fosse um homem, não acredito que estivesse posicionada muito mais abaixo da hierarquia.

– Ao contrário dos vampiros, os lobos tendem a ser criaturas diretas. – murmurei, tentando não me sentir magoada. A rejeição, para um coiote criado por lobos, não era novidade alguma. Passara a maior parte da minha idade adulta fugindo dela.

Não teria me passado pela cabeça que a exaustão e a dor fossem uma receita para a epifania, mas ali estava ela. Deixara minha mãe e Portland antes que ela tivesse oportunidade de me dizer para ir. Vivera sozinha, tornara-me independente, porque não conseguia aprender a viver apoiada em mais ninguém.

Encarara a minha resistência a Adam como uma luta pela sobrevivência, pelo direito de controlar minhas próprias ações ao invés de viver uma vida seguindo ordens porque eu queria obedecer. O dever a que Stefan se agarrava com uma teimosia impressionante correspondia à vida que eu rejeitara.

O que não tinha visto era que não tinha me mostrado disposta a me colocar em um lugar onde pudesse ser rejeitada novamente. Minha mãe confiara-me a Bran quando eu era um bebê. Um presente que ele devolvera quando tinha me tornado... inconveniente. Aos dezesseis, voltei a casa da minha mãe, que estava casada com um homem que eu nunca conhecera e tinha duas filhas que não sabiam da minha existência até Bran ter contatado minha mãe para dizer que ia me enviar de volta. Tinham sido completamente amorosos e atenciosos, mas eu era uma pessoa a quem era difícil de mentir.

– Mercy?

– Só um minuto. – disse a Adam. – Estou no meio de uma revelação.

Não era de admirar que não tivesse rastejado aos pés de Adam como faria qualquer pessoa sensata quando cortejada por um homem sensual, adorável e confiável que a amasse. Se Adam algum dia me rejeitasse... Senti um rugido grave se formar em minha garganta.

– Você a ouviu. – Darryl disse entretido. – Vamos ter que esperar pela revelação dela. Temos uma profetisa como parceira de nosso Alfa.

Acenei-lhe irritada. Depois, olhei para cima, na direção de Adam, cujos olhos estavam, e muito, atentos a estrada. – Você me ama? – perguntei-lhe, com os ouvidos pulsando.

Dirigiu-me um olhar curioso. Era lobo, percebia a intensidade quando ouviu. – Sim. Absolutamente.

– É bom que sim. – disse. – Senão vai se arrepender.

Olhei por cima do ombro para Aurielle, mantendo-me fortemente agarrada a minha determinação. Adam era meu.

Meu.

E iria suportar todos os fardos que isso poderia implicar, como iria acontecer com ele. Seria uma partilha igual. Isso significava que ele me protegia dos vampiros... e eu o protegia de todos os problemas que conseguisse.

Fitei Aurielle, olhei a predadora em seus olhos. E depois de breves minutos, ela abaixou os dela.

– Engula e lide com isso. – disse, para em seguida colocar a cabeça no ombro de Adam e dormir.

 

 

Infelizmente, não passou muito tempo até que Adam parasse o carro. Permaneci onde estava, meio acordada, enquanto Aurielle e Paul saíam do carro. Mantivemos-nos no mesmo lugar até ouvirmos o Subaru de Darryl arrancar. A seguir, Adam seguiu para a sua casa.

– Mercy?

– Sim.

– Gostaria que viesse comigo para a minha casa.

Endireitei as costas, esfreguei os olhos e suspirei. – Assim que ficar na horizontal, vou apagar como uma lâmpada. – disse. – Há dias... – tentei lembrar-me, mas estava muito cansada. –... há vários dias que não durmo uma noite direito. – o Sol, reparei, começava a iluminar o céu.

– Tudo bem. – respondeu. – Eu só...

– É, eu também. – estremeci um pouco. Não havia problema algum em sentir o calor da paixão por telefone, mas isso era real. Permaneci acordada durante o resto da viagem até sua casa.

 

 

A casa de um Alfa raramente está vazia, e, com os problemas recentes, Adam também mantinha alguém como sentinela. Quando entramos, fomos saudados por Ben, que nos dirigiu uma saudação brusca e voltou a descer as escadas, em direção ao piso onde havia vários quartos de hospedes.

Adam me acompanhou escada acima com uma mão em minhas costas. Estava nervosa a ponto de me sentir enjoada e dei por mim respirando fundo para lembrar a mim mesma de que era Adam... e que a única coisa que íamos fazer era dormir.

Estavam sendo feitas obras de reparação no banheiro do corredor. A porta tinha sido recolocada e a parede ao lado basicamente precisava apenas de um isolamento com fita, texturização e pintura. No entanto, o carpete branco nas escadas ainda estava manchado com marcas castanhas de sangue ressacado, meu. Tinha me esquecido disso. Devia oferecer para limpar o carpete? Era possível limpar sangue de um carpete branco? E que pessoa idiota coloca um carpete branco em uma casa frequentada por lobisomens?

Impelida pela indignação, entrei em seu quarto e congelei. Olhou para o meu rosto de soslaio e retirou uma blusa de uma gaveta, atirando-a em seguida. – Pode usar o banheiro. – disse. – Tem uma escova de dente nova na gaveta de cima, à direita.

Senti-me mais segura no banheiro. Dobrei minhas roupas sujas e as deixei em uma pequena pilha no chão antes de vestir sua camisa. Não era muito mais alto do que eu, mas tinha os ombros largos, e as mangas ficaram abaixo dos cotovelos. Lavei o rosto em volta dos pontos no queixo, escovei os dentes, e depois simplesmente fiquei ali durante alguns minutos, reunindo coragem.

Quando abri a porta, Adam passou por mim e fechou a porta do banheiro, empurrando-me suavemente para o interior do quarto. Fiquei virada para a cama, que estava com o edredom puxado para baixo.

Devia haver um limite para o pavor que é possível se sentir em uma só noite. Já devia ter ultrapassado o meu limite uma boa quantidade. E o medo de algo que não ia acontecer, Adam jamais me machucaria, devia ser o suficiente para registro.

Mesmo assim, precisei reunir toda a minha coragem para me enfiar na sua cama. No entanto, uma vez lá, em um daqueles estranhos processos psicológicos que todo mundo experimenta, o seu cheiro nos lençóis me fez sentir melhor. Meu estômago acalmou. Bocejei algumas vezes e adormeci ao som da maquina de barbear de Adam.

Acordei rodeada de Adam, seu cheiro, seu calor, sua respiração. Esperei pelo ataque de pânico que não aconteceu. Depois, relaxei. A avaliar pela luz que espreitava pela cortina, já passava do meio da tarde. Conseguia ouvir pessoas andando ao redor da casa. Seus borrifadores estavam ligados, valorosos defensores de seu gramado em uma batalha infinita contra o Sol.

No exterior, a temperatura devia estar nos vinte graus, mas essa casa, assim como a minha desde que Samuel fora viver lá, tinha um ar frio que tornou o calor que me rodeava ainda mais agradável. Os lobisomens não gostam de calor.

Adam também estava acordado. – Então... – disse meio envergonhada, meio excitada, e, só para mencionar, meio assustada. – Gostaria de fazer uma tentativa?

– Uma tentativa? – perguntou, com a voz quebradiça do sono. O som dela me ajudou muito em relação aos “meios” que estava sentindo, virtualmente eliminando o embaraço, reduzindo o assustada e aumentando o excitada.

– Bom, sim. – não conseguia ver seu rosto, mas não precisava. Percebi a sua vontade de participar pressionada contra meu traseiro.

– Mas acontece que tenho sentido coisas diferentes por causa desses ataques de pânico estúpidos. Se eu parar de respirar, pode simplesmente ignorar. Acabarei voltando a respirar, ou então desmaio. Mas se eu vomitar... – deixei ele próprio tirar suas conclusões.

– Bem, isso cortaria o clima. – observou, com o rosto em minha nuca ao mesmo tempo em que colocava o braço em volta do meu corpo por cima dos cobertores.

Dei-lhe uma palmadinha no braço e avisei-o, apenas meio brincando: – Não ria de mim.

– Nunca tal idéia me passaria pela cabeça. Ouvi histórias sobre o que acontece a pessoas que riem de você. Gosto do meu café sem sal, por favor. Escuta uma coisa. – disse com uma voz mais grave. – Porque não brincamos só um pouco e vemos até onde vai a coisa? Prometo não ficar... – sua voz tinha um divertimento que despertava outras sensações. –... consternado se vomitar.

E depois, deslizou para o interior dos cobertores.

Quando me retrai, parou e me perguntou o por que. Percebi que não conseguia dizer nada. Há coisas que não se dizem a alguém que ainda estamos tentando impressionar. Há também outras coisas que não queremos nos lembrar. O pânico se estreitou a garganta.

– Pronto. – disse. – Pronto. – e me beijou ali, no lugar que provocara meu movimento brusco. Foi um toque suave e afetuoso, quase desapaixonado, e passou para um lugar menos... contaminado.

Porém, ele era um bom caçador. Adam não é paciente por natureza, mas seu treino era muito aperfeiçoado. Voltou ao primeiro lugar ruim e tentou novamente.

Retrai de novo... mas lhe falei um pouco do motivo. E como o lobo que era, lavou a ferida da minha alma, ligando-a com o zelo e passou para a seguinte. Explorou minunciosamente, encontrou cada ferida mental, e algumas que não sabia que tinha e substituiu-as por outras coisas melhores. E quando a paixão começou a se intensificar com muita velocidade...

– Então... – murmurou. –... tem cócegas aqui?

Sim. Quem diria? Olhei para a sobra interior do cotovelo como se nunca tivesse visto.

Riu, e ficou parcialmente encima de mim e bufou em minha barriga. Em um reflexo, meus joelhos se sacudiram e bati em sua cabeça com o cotovelo.

– Tudo bem? – afastei-me dele e me sentei, já sem a menor vontade de rir. Bater em Adam enquanto estamos dando uns amassos. Estúpida, desastrada, idiota.

Olhou para o meu rosto, colocou ambos os braços sobre a cabeça e girou até ficar deitado de costas, gemendo de agonia.

– Ei. – disse. E, ao ver que não parava, espetei meu dedo em seu lado. Também conhecia alguns lugares que faziam cócegas. – Para com isso. Não te bati com tanta força. – devia andar tendo aulas com Samuel.

Abriu um olho. – Como sabe?

– Você tem uma cabeça dura. – informei. – Se não machuquei meu cotovelo é porque não machuquei sua cabeça.

– Vem aqui. – disse, abrindo amplamente os braços, de olhos cintilantes de riso e calor.

Fiquei em cima dele. Ambos fechamos os olhos durante um tempo, enquanto ficava a vontade. Passou as mãos pelas minhas costas. – Adoro isso. – admitiu, um pouco ofegante e com os olhos amarelos.

– Adora o que? – virei a cabeça e encostei o ouvido ao peito dele para poder ouvir seu coração.

– Te tocar... – colocou deliberadamente a mão em minha bunda. – Sabe há quanto tempo queria fazer isso?

Cravou os dedos em minha carne. O episódio da noite anterior me deixara tensa, e a sensação foi boa. Fiquei mole, e se soubesse ronronar, teria feito.

– Se alguém nos visse podia pensar que estamos dormindo. – disse.

– Você acha? Só se não reparasse em meu batimento cardíaco... ou no seu.

Tocou exatamente no ponto certo e gemi.

– Igual a Medea. – murmurou. – A única coisa que tenho que fazer e colocar as mãos em você. Pode ficar morrendo de raiva... é só te encostar a mim e fica toda mole e quieta. – encostou a boca em meu ouvido. – É assim que sei que me quer tanto como te quero. – seus braços me abraçaram firmemente, e percebi que não era a única com ferimentos.

– Eu não ronrono como Medea. – disse.

– Tem certeza disso?

E em seguida demonstrou-me o que queria fazer. Se não alcancei o volume de Medea, estive perto. Quando chegou as vias de fato, não existia no inferno em que estive espaço para o medo ou memória.

Existia apenas Adam.

 

Quando acordei pela segunda vez, estava sorrindo. Encontrava-me sozinha na cama, mas isso não importava porque ouvia Adam no piso de baixo, estava falando com Jesse. Ou estavam fazendo o almoço, olhei pelas cortinas para ver a luz, ou se alguém estava sendo cortado em pequenos pedaços.

Em breve iria me preocupar. Mas por agora... os vampiros não iam matar todo mundo que eu conhecia. Nem sequer iam me matar. O Sol estava a pino. E os assuntos entre eu e Adam estavam resolvidos.

No essencial. Tínhamos muitas coisas para conversar. Por exemplo, queríamos viver juntos? Por uma noite tinha sido maravilhoso. No entanto, sua casa não era propriamente privada, qualquer um dos membros do bando podia estar aqui a qualquer dia.

Gostava da minha casa, por muito mau aspecto que tivesse. Gostava de ter meu próprio território. E... em relação a Samuel? Franzi a sobrancelha. Ainda não estava... pleno, e por alguma razão o fato de estar em minha casa estava ajudando-o. Comigo podia ter um bando, mas não ser Alfa e responsável por todos. Não tinha certeza se ia ser muito bom para ele se eu viesse viver na casa de Adam, e sabia também que não seria bom se mudar para cá.

Estão vendo? Já estou me preocupando.

Respirei fundo e coloquei o assunto de lado. Amanhã, iria me preocupar com Samuel, e com Stefan, e com Amber, cujo fantasma era o menor dos problemas. Ia simplesmente desfrutar o dia de hoje. Durante o dia todo seria feliz e estaria livre de preocupações.

Deslizei para fora da cama e percebi que estava completamente nua. O que seria de esperar. Porém, não havia nem sinal de roupa de baixo no chão ou na roupa da cama. Estava de cabeça e ombros enfiados debaixo da cama quando Adam, da porta, disse: – Eu espio com o meu olhinho algo que começa com a letra B.

– Eu vou furar seu olhinho, espião. – ameacei. No entanto, uma vez que estava escondida debaixo da cama, sorri amplamente. Não tenho vergonha de mostrar o corpo, não tendo crescido no meio de lobisomens. Posso fingir que tenho para que as pessoas não fiquem com a idéia errada... mas Adam ficaria com a idéia certa. Agitei o algo em questão e ele deu um tapinha nisso. – Estou sentindo o cheiro do que está cozinhando. – algo com limão e frango. – Está me deixando com fome. Mas não consigo encontrar minha roupa de baixo.

– Podia ir lá para baixo sem ela. – sugeriu, sentando-se na cama a minha direita.

– Sim, sim. – repliquei. – Nem pensar, exterminador. Com Jesse e sabe-se lá quem mais andando pela casa, não vou aparecer sem roupa de baixo.

– Quem ia reparar? – perguntou.

– Eu ia reparar. – respondi, retirando a cabeça debaixo da cama e constatando que minha calcinha azul-clara estava pendurada em seu dedo.

– Estava embaixo da almofada. – disse com um sorriso inocente.

Arranquei da sua mão e as vesti. Depois, segui disparada ao banheiro, onde estava o resto da roupa. Vesti-me, dei um passo no banheiro e tive um flashback.

Estive aqui, desprezível, suja... manchada. Não conseguia encará-los, não conseguia olhá-los no rosto porque todos sabiam...

– Shh, shhh. – Adam disse ao meu ouvido. Já passou. Já passou e está feito.

Abraçou-me, sentado no chão do banheiro comigo em seu colo, enquanto eu tremia e o flashback se dissipava.

Quando me senti capaz de respirar normalmente, endireitei as costas em uma tentativa de salvaguardar a minha dignidade. – Desculpa.

Pensara que a noite passada iria por fim aos flashbacks, aos ataques de pânico, estava curada, certo?

Estiquei o braço e peguei uma toalha de mãos para limpar meu rosto molhado, e percebi que insistia em ficar molhada. Tinha tanta certeza de que agora tudo ia voltar ao normal.

– É preciso mais do que uma semana para superar uma coisa como essa. – Adam me disse, como se fosse capaz de ler minha mente. – Mas posso ajudar, se me deixar.

Olhei para ele e passou o polegar por baixo dos meus olhos. – No entanto, vai ter que se abrir e deixar o bando entrar.

Sorriu, um sorriso triste. – Tem estado ferozmente fechada desde a sua viagem de volta de Spokane. Se me pedissem um palpite, diria que foi desde que deixou que Stefan te mordesse.

Não fazia a menor idéia do que estava falando, e presumo que isso se tenha notado.

– Não é de propósito? – perguntou.

Sem que tivesse percebido, deslizara do seu colo e estava encostada a parede oposta. – Que eu saiba, não.

– Teve um ataque de pânico a caminho de casa. – disse.

Acenei afirmativamente com a cabeça e recordei o calor do bando que tinha colocado fim ao ataque. Notável, espetacular... e enterrado debaixo do resto dos acontecimentos das duas noites anteriores.

Suas pálpebras abaixaram. – Assim está melhor... um pouquinho melhor. – olhou para cima, do chão e se concentrou em mim com luzes amarelas dançando em suas íris. Esticou o braço e me tocou logo abaixo da orelha.

Foi um toque suave, mal tocou minha pele. Devia ter sido acidental.

Riu um pouco, soando um pouco bobo. – Igual a Medea, Mercy. – disse, abaixando a mão e inspirando fundo de uma forma um pouco irregular. – Deixe-me tentar outra vez. – estendeu a mão.

Quando coloquei a minha na dele, fechou os olhos e... senti um fio de vida, calor e saúde correr lentamente da sua mão para a minha. A sensação era equivalente a de um abraço em um dia de verão, risadas e mel.

Abri-me as sensações através dele, deslizando para o interior de algo que sabia apenas ser uma profundeza calorosa que era rodeada de...

Mas o bando não me queria. E no momento em que esse pensamento me atravessou, a transfusão parou, e Adam afastou a mão com um silvo de dor que me fez erguer os joelhos. Estiquei o braço para tocá-lo e depois puxei a mão para não machucá-lo novamente.

– Adam?

– Teimosa. – disse com um olhar avaliador. – No entanto, vi algumas coisas dentro de você. Nós não te amamos, por isso não aceita nada de nós? – a pergunta em sua voz era como que dirigida a si próprio, como se não estivesse certo de sua analise.

Voltei a me sentar, surpresa com a exatidão da sua leitura.

– O lobo reage por instinto... e o coiote também, imagino. – disse-me depois de um tempo. Parecia relaxado, com um dos joelhos levantados e o outro esticado ao meu lado. – A verdade não tem floreios, nem fugas que obedecem a uma lógica própria. O bando não pode te dar nada sem que dê algo em troca, e se não queremos a sua dádiva...

Não disse nada. Não compreendia como funcionava o bando, mas a última parte era verdade. Depois de um tempo, disse: – Às vezes, é inconveniente fazer parte do bando. Quando a magia do bando está em plena atividade, como agora com a Lua perto de seu auge, é impossível escondermos sempre tudo uns dos outros, como fazemos como humanos. Algumas coisas, sim, mas não podemos escolher quais que ficam em segredo. Paul sabe que ainda estou zangado com ele por ter atacado Warren, e isso o faz se retrair, o que me faz sentir ainda zangado porque não o faz por remorso em relação ao fato de ter atacado Warren quando estava ferido, mas por medo da minha raiva.

Olhei fixamente. – Nem tudo é ruim. – continuou. – Fica sabendo quem são, o que é importante para eles, o que os torna diferentes. Que forças têm para dar ao bando.

Hesitou. – Não sei ao certo quanto que vai ver. Se eu quiser, em uma noite de lua cheia e na forma de lobo, consigo ler todo mundo. Faz parte de ser o Alfa. Permite-me usar os indivíduos para construir um bando. A maior parte dos membros capta pedaços, sobretudo coisas que os preocupam ou coisas importantes. – mostrou-me um ligeiro sorriso. – Sabe, não sabia se te trazer ao bando funcionaria. Não podia ter feito com uma companheira humana, mas você é uma desconhecida. – olhou intensamente. – Você sabia que Mary Jo tinha sido ferida.

Balancei a cabeça. – Não. Sabia que alguém tinha sido ferido, mas só depois de ver Mary Jo que percebi que tinha sido ela.

– Ok. – disse, encorajado pela minha resposta. – Nesse caso, o cenário para você não deverá ser ruim. A menos que precise deles, ou que eles precisem de você, o bando será apenas... um escudo nas suas costas, calor na tempestade. Nosso laço como companheiros, quando assentar, provavelmente irá acrescentar alguma estranheza.

– Como assim, “quando assentar”? – perguntei.

Encolheu os ombros. – É difícil de explicar. – dirigiu-me um olhar divertido. – Quando estava aprendendo a ser lobisomem, perguntei ao meu professor qual era a sensação de acasalar. Ele me disse que era diferente de casal para casal, e o fato de eu ser Alfa torna a coisa mais peculiar.

– Então, não sabe? – porque aquilo não era resposta, e Adam não fugia das perguntas. Ou respondia ou dizia que não ia responder.

– Sei, sim. – respondeu. – Sinto nossa união. – fez um gesto com as mãos indicando algo pequeno no espaço entre nós. – Como uma ponte, como uma ponte suspensa que atravessa o Columbia. Tem fundações e cabos e tudo aquilo de que precisa para ser uma ponte, mas ainda não atravessa o rio. – olhou para o meu rosto e sorriu abertamente. – Sei que soa estúpido, mas perguntou. Seja como for, se a única coisa que sentiu quando Mary Jo estava morrendo foi que alguém estava ferido, o fato de ter percebido dos poucos que não te vem com bons olhos no bando é culpa minha. Sentiu através de mim. Sozinha nem sequer tem consciência disso, a menos que se reúnam certas condições. Coisas como a proximidade, o seu grau de abertura ao bando e se a lua estiver cheia. – exibiu um sorriso grande. – Ou o seu grau de rabugice em relação a eles.

– Portanto, se eu não sentir, não importa se eles não me querem?

Dirigiu-me um olhar neutro. – Claro que importa, mas não vai ser enfiado goela a abaixo a cada momento do dia. Sobretudo, espero que conheça aqueles que não querem um coiote no bando. Assim como Warren conhece os lobos que o detestam mais pelo que é do que pelo que faz. – por breves momentos, a tristeza assomou-lhe os olhos pelas provações de Warren, porém continuou a falar. – Do mesmo modo que Darryl conhece os lobos que não gostam de receber ordens de um homem negro apto de boa instrução acadêmica. – sorriu apenas um pouco. – Não está sozinha, a maioria das pessoas é alvo de preconceitos por algum motivo. Mas, depois de um tempo, as antipatias acabam por perder a força. Sabe quem que detestava mais Darryl quando ele se juntou a nós, há muito tempo quando ainda estávamos no Novo México?

Ergui as sobrancelhas de forma inquisidora.

– Aurielle. Achava que ele era esnobe, arrogante e presunçoso.

– E é. – observei. – Mas também é inteligente, rápido e dado a pequenas generosidades quando mais ninguém está vendo.

– Portanto. – disse, acenando com a cabeça. – Nenhum de nós é perfeito, e como bando, aprendemos a pegar essas imperfeições e torná-las apenas uma parte pequena daquilo que somos. Deixe que te recebamos verdadeiramente no nosso abrigo, Mercedes. E os lobos que não gostam de você lidarão com isso, do mesmo modo que lidará com aqueles que não gostam, seja qual for à razão. Penso que, com os progressos que já fez sozinha, o bando pode te ajudar a por fim aos ataques de pânico.

– O Ben é mal-educado. – repliquei, considerando o que me dissera.

– Está vendo, já conhece a maior parte de nós. – Adam disse. – E o Ben te adora. Só não sabe ainda muito bem como lidar com isso. Ele não está habituado a gostar de quem quer que seja... e gostar de uma mulher...

– Eu. – disse friamente.

– Vamos tentar outra vez. – sugeriu, estendendo a mão.

Dessa vez, quando o toquei, a única coisa que senti foi pele e calos, nenhum calor, ou magia.

Inclinou a cabeça e me avaliou severamente. – É difícil fazer frente ao instinto, mesmo usando a razão e a lógica, não é verdade? Posso bater a porta?

– O que?

– Posso ver se posso te tocar primeiro? Talvez isso te permita se abrir ao bando.

Pareceu-me inofensivo. Cautelosamente, acabei assentindo com a cabeça... e senti-o, senti seu espírito ou alguma coisa me tocar. Não foi como quando chamara Stefan. Isso tinha sido tão intimo como falar, não muito. O toque de Adam me fez lembrar mais a presença que por vezes sentia na igreja, mas nesse caso se tratava indubitavelmente de Adam e não Deus.

E por ser Adam deixei-o entrar, aceitando-o em meu coração secreto. Algo se acomodou em seu devido lugar com uma exatidão que retiniu em minha alma. Depois, as comportas se abriram.

 

 

Quando readquiri a consciência, estava novamente no colo de Adam, mas no chão do seu quarto e não no banheiro. Vários membros do bando nos rodeavam e permaneciam de mãos unidas. A dor em minha cabeça era igual a que sentira na única vez em que fiquei bêbada, só que muito pior.

– Vamos ter que trabalhar em suas habilidades de filtragem, Mercy. – Adam disse, com a voz soando severa.

Como se aquilo tivesse sido um sinal, o bando se separou e se tornou novamente um conjunto de indivíduos, embora só depois de ter desaparecido tivesse percebido quem eram. Algo parou e minha dor de cabeça diminuiu. Desconfortável por estar no chão quando todo mundo estava de pé, balancei para a frente e tentei usar as mãos para me levantar.

– Calma aí – Samuel murmurou. Não era um dos que tinha estado no circulo, teria notado ele. Mas passou por entre os lobisomens e ficou em frente deles. Estendeu-me a mão e me puxou até ficar de pé.

– Desculpa. – disse a Adam, sabendo que algo ruim acontecera, sem, no entanto, conseguir perceber exatamente o que tinha sido.

– Não tem que pedir desculpa por nada, Mercy. – Samuel me tranquilizou com uma veemência na voz. – Adam já tem idade suficiente para saber que não deve atrair a companheira para o bando ao mesmo tempo em que sela a sua união. É mais ou menos a mesma coisa que ensinar um bebê a nadar no oceano. Durante um tsunami.

Adam não se levantara quando eu o fiz, e quando olhei para ele, seu rosto estava cinzento por baixo do bronzeado. Tinha os olhos fechados, e estava sentado de um modo que dava idéia de que qualquer movimento seria muito doloroso.

– A culpa não é sua, Mercy. Eu pedi para se abrir para mim.

– O que aconteceu? – perguntei.

Adam abriu os olhos, que estavam mais amarelos do que alguma vez tinha visto.

– Sobrecarga completa. – disse. – Talvez fosse uma boa idéia alguém ligar para Darryl e ao Warren para nos certificarmos de que estão bem. Entraram sem aviso e ajudaram que voltasse a si mesma.

– Não me lembro. – disse cuidadosamente.

– Ainda bem. – Samuel afirmou. – Felizmente para todos nós, a mente tem a capacidade de auto se proteger.

– Passou de completamente fechada a completamente aberta. – Adam disse. – E quando se abriu para mim, nossa união também se instalou. Antes de eu perceber o que tinha acontecido, você... – acenou com as mãos. –... meio que espalhou através do laço do bando.

– Como Napoleão tentando ocupar a Rússia. – Samuel disse. – Era pouco para muita coisa.

Nessa altura, lembrei um pouco do que tinha acontecido. Tinha estado nadando, afogada em memórias e pensamentos que não eram meus. Passaram por cima de mim, ao meu lado e através de mim como um rio de gelo, deixando-me em carne viva à medida que as lascas passavam. Fazia frio e estava escuro, não conseguia respirar. Ouvira Adam chamar meu nome...

– Foi Aurielle que atendeu. – Ben informou do corredor. – Ela disse que está tudo bem com Darryl. Warren não atendia, por isso liguei no celular do seu namoradinho. Diz que vai verificar e depois liga.

– Aposto que não o chamou de namoradinho diretamente. – disse.

– Claro que chamei. – Ben respondeu com a dignidade ferida. – Devia ter ouvido do que ele me chamou.

Kyle, namorado humano de Warren, que era um implacável advogado de divórcios, tinha uma língua que podia ser tão afiada como a sua mente. Apostaria dinheiro no resultado de qualquer confronto verbal entre Kyle e Ben, e não seria Ben.

– Meu pai está bem? – Jesse perguntou. Os lobos se desviaram acanhadamente para deixá-la passar, e percebi que provavelmente a teriam mantido longe dali enquanto o assunto não estava resolvido. A julgar pelos olhos de Adam, tinha o controle seguro por um fio, portanto manter sua vulnerável filha humana afastada tinha sido uma boa idéia. Porém, conhecia Jesse e não queria estar na pele de quem a mantivera longe.

Adam se levantou apressadamente e por pouco não caiu sobre Mary Jo que tinha estendido o braço quando ele balançara.

– Estou bem. – tranquilizou a filha, dando-lhe um abraço rápido.

– Foi Jesse que ligou para Samuel. – Mary Jo informou. – Isso nem sequer passou pela nossa cabeça. Ele nos disse o que fazer.

– Jesse é a maior. – disse com convicção. Em resposta, dirigiu-me um sorriso pouco firme.

– O truque. – Samuel me disse. – É juntar-se ao bando e a Adam, sem se perder neles. É instintivo para os lobisomens, mas acredito que vai ter que trabalhar nisso.

 

 

No fim, fui para casa jantar, quase despercebida por entre a reunião de lobos que se seguiu ao nosso quase desastre. Precisava passar algum tempo sozinha. Adam me viu partir, mas não fez sequer um gesto para me impedir, sabia que iria voltar.

Na geladeira, estava uma lata de atum, picles e maionese, portanto fiz um sanduíche e o que sobrou dei para a gata. Enquanto ela comia com delicada prontidão, liguei para o celular de Kyle.

– Sim?

O som era tão relaxado que afastei o telefone do ouvido para me certificar que tinha mesmo ligado para Kyle. Mas ali estava na tela: CELULAR de KYLE.

– Kyle? Estou ligando para saber como Warren está.

– Desculpa, Mercy. – Kyle riu e ouvi um barulho. – Estamos na banheira. Ele está ótimo. E você, como está? Ben disse que estava bem.

– Estou ótima. E o Warren?

– Estava desmaiado no corredor quando se dirigia para a cozinha com um copo vazio.

– Não estava vazio quando estava na minha mão. – a voz de Warren, com um toque de seu sotaque do sul, parecia animada.

– Ah. – Kyle disse. – Não prestei muita atenção a nada além do Warren. Mas acordou depois de alguns minutos...

– Água fria no rosto tem esse efeito. – Warren observou, ainda em um tom divertido.

– Mas ele estava rígido e dolorido... daí o banho de imersão em água quente.

– Diga que peço desculpas. – pedi a Kyle.

– Nada a desculpar. – Warren disse. – Às vezes, a magia do bando pode ser complicada. É para isso que Adam, Darryl e eu servimos, querida. Já não te sinto no bando. Problemas?

– Provavelmente não. – respondi. – Samuel diz que queimei o circuito temporariamente. Em breve, deve voltar a ficar online.

– Aparentemente, não era necessário eu transmitir nada. – Kyle interveio secamente.

Um carro estacionou na entrada, um Mercedes, pareceu-me. No entanto, não associei o carro a ninguém que conhecesse.

– Ao invés de transmitir alguma coisa, dê um abraço por mim. – disse. – E desfrutem do banho.

Desliguei antes que Kyle pudesse dizer algo escandaloso em resposta e fui à porta para ver quem era.

Corban, marido de Amber, estava subindo os degraus. Pareceu desconcertado quando abri a porta antes que batesse. Também parecia perturbado, com a gravata de lado e a barba por fazer.

– Corban? – disse. Não fazia idéia do porque de estar aqui quando um telefonema teria sido muito mais fácil. – O que acontece?

Recuperou sua hesitação momentânea e subiu o último degrau com um salto. Estendeu a mão e reparei que estava com luvas de piloto de couro, e que segurava algo com um aspecto estranho. Foram as únicas coisas que tive a oportunidade de reparar antes de ele me atingir com uma arma de eletrochoque.

As armas de eletrochoque estão ficando comuns entre os departamentos de polícia, embora nunca tivesse sentido uma na pele. Algum lugar do Youtube está publicado um vídeo feito com um celular que demonstra o que aconteceu a um aluno que infringiu uma ou outra regra da biblioteca da universidade. Foi atingido com uma arma de eletrochoque, e depois atingido novamente por não ter se levantado quando lhe ordenaram que o fizesse.

Doeu. Doeu como... Não sei como. Caí no chão e permaneci lá congelada enquanto Corban me revistava. Vasculhou meus bolsos, deixando cair o celular na varanda. Agarrou-me pelos ombros e joelhos e tentou me pegar no colo.

Sou mais pesada do que aparento, em virtude dos meus músculos, e ele não era nenhum lobisomem, apenas um homem desesperado que sussurrava: – Lamento. Lamento.

Garantiria que sentiria muito, pensei por entre o nevoeiro de dor. “Não me zango, pago na mesma moeda”, era mais uma fé do que um clichê para mim.

As pessoas que eu tinha visto atingidas por uma arma de eletrochoque apenas perdiam os sentidos por alguns segundos. Inclusive o rapaz na livraria tinha sido capaz de emitir sons. Quanto a mim, estava completamente impotente, mas não sabia por quê.

Tentei comunicar ao bando ou com Adam para me ajudarem. Descobri como devia me comunicar, porém a dor se intensificou quando tentei forçar o contato. A cabeça doía tanto que sentia que meus ouvidos deviam estar sangrando.

Ainda era dia, portanto, chamar Stefan não ia ajudar muito.

Na segunda tentativa, me pegou e me levou para o seu carro. O porta-malas se abriu com um bip e me despejou em seu interior. Minha cabeça bateu no chão duas vezes. Quando saísse desse estado, Amber ia ser viúva.

Dedos nervosos prenderam minhas mãos atrás das costas e reconheci o som característico de uma cinta plástica. Usou outra para os meus tornozelos. Abrindo minha boca, enfiou uma meia que sabia pelo amaciante e cheiro que pertencia a Amber, e depois a prendeu com uma fita adesiva.

– É o Chad. – disse, de olhos selvagens. – Ele tem o Chad.

Vi de relance a marca de uma mordida recente em seu pescoço antes de fechar o porta-malas.


Capítulo 11


Devia ter passado pelo menos quinze minutos até que os efeitos desapareceram, e voltei a funcionar. A primeira conclusão que cheguei foi que qualquer que fosse a arma com que me atingira, não se tratava de uma arma de eletrochoque normal. Nem pensar. Sentindo-me trêmula, comecei a pensar e tentei engrenar um plano.

Ainda não podia me transformar, mas conseguiria fazê-lo antes de chegarmos a Spokane. E as cintas plásticas não estavam apertadas a ponto de manter um coiote preso. O carro era recente e consegui ver o puxador que destrancava o porta-malas. Portanto, não estava encurralada.

A consciência disso contribuiu grandemente para por fim ao meu pânico. Independentemente do que acontecesse, não ia ter que encarar Blackwood.

Relaxei no interior do porta-malas e tentei descobrir porque o vampiro me queria tanto, a ponto de arruinar o seu advogado para que este fosse me buscar. Podia ser o caso de não atribuir qualquer importância a Corban, mas tinha ficado com a impressão de que a ligação entre eles vinha de uma longa data. Ele estaria tentando se apoderar de Tri-Cities além de Spokane? Aprisionar-me e me manter refém para forçar os lobos a agir contra Marsilia?

Teria parecido uma possibilidade se tivesse sido... ontem? Porém, com o fim da guerra entre lobos e vampiros em Tri-Cities, me raptar para influenciar Adam parecia uma jogada estúpida nessa hora. E um vampiro que fosse estúpido não tinha como impedir a entrada de qualquer outro elemento na sua cidade. Havia uma possibilidade, ainda que mínima, de não ter ficado sabendo o que aconteceu. Era aquela possibilidade que significava que eu não podia descartar, imediatamente a teoria.

E Marsilia estava sem três dos seus mais poderosos vampiros. Se quisesse fazer uma jogada contra ela, agora era a hora de atacar. Me sequestrar não era um ataque, era, no melhor, um drible. Especialmente, agora que Marsilia declarara trégua com os lobos. Me sequestrar, estava acreditando que, teria como único resultado levar Adam ao encontro de Marsilia para lhe propor uma aliança.

Estão vendo? Era estúpido me levar, se o seu propósito fosse se apoderar do território de Marsilia.

Uma vez que Blackwood não podia ser tão idiota, e eu estava desconfortavelmente deitada no porta-malas do carro de Corban, senti-me inclinada a pensar que tínhamos nos enganado quanto às intenções de Blackwood.

Assim sendo, o que de fato ele queria de mim?

Podia se resumir a uma coisa tão simples como o orgulho. Reivindicara-me como seu alimento, talvez ele reivindicasse qualquer um que viesse a casa de Amber. Depois, Stefan apareceu e me tirou de suas mãos.

A teoria tinha o beneficio de acordo com o principio do beijo. Mantenha simples, idiota. Significa que Blackwood não tinha nada a ver com o fantasma de Chad. É suposto que tinha sido um azar grande eu ter entrado despreocupadamente em seu território de caça quando fui à casa de Amber para procurar um fantasma.

Os vampiros são arrogantes e territoriais. Não só era possível como provável que, tendo se alimentado de mim, acreditasse que eu lhe pertencia. Se Blackwood era possessivo, e o fato de guardar a cidade apenas para si o considerava possessivo, parecia-me inteiramente razoável a possibilidade de ter enviado um servo para me caçar.

Era uma solução simples e limpa, que não dependia de eu ser alguma coisa especial. O ego. Bran gosta de dizer, atrapalha a verdade mais do que qualquer outra coisa.

O problema era que as peças ainda não encaixavam muito bem.

O fato de estar sozinha no porta-malas sem nada melhor para fazer me deu tempo para analisar tudo. Desde o início, a primeira abordagem de Amber me causou incomodo. Depois de refletir, a sensação se intensificou ainda mais. A Amber com quem travara uma guerra de água, que organizava jantares de festa para os clientes do marido, não seria nem tão imprudente nem tão desprovida de tato a ponto de me procurar para ajudá-la com um fantasma, porque tinha lido sobre meu estupro, o estupro de uma quase desconhecida, na verdade, depois de tantos anos, em um jornal.

Não a via há muito tempo. Mas, olhando para trás, havia algo estranho que não correspondia nem a mulher que foi, nem a que cresceu. Poderia ser explicado pelo caráter singular da situação, mas parecia mais provável a possibilidade de ter sido enviada.

O que remetia a questão: Porque Blackwood me queria? O que ele podia ter descoberto a meu respeito antes de querer que eu viajasse até a casa de Amber?

Os jornais anunciavam que eu namorava com um lobisomem. Amber sabia que eu via fantasmas. Inspirei fundo, também sabia que fui criada por uma família adotiva em Montana até meus dezesseis anos. Não era algo que tivesse mantido em segredo, apenas a parte de a minha família adotiva ser constituída por lobisomens, exceto aquela vez em que estava bêbada.

Mas, entre os lobisomens, a história da andarilha, da metamorfa coiote que fora criada por Bran, era bem conhecida. Portanto, suponho que ele não sabia nada a meu respeito até terem surgido os artigos nos jornais. Suponhamos que Amber olhou para o jornal e disse “Meu Deus, eu a conheço. Será que ela não poderia nos ajudar a lidar com o nosso fantasma? Ela disse que conseguia ver fantasmas”.

Blackwood disse para ele mesmo “Hmm. Uma garota cujo namorado é o Alfa de Tri-Cities. Uma garota que tem uma afinidade com fantasmas”. E, sendo muito mais velho do que eu, era possível que seu conhecimento sobre andarilhos fosse superior ao meu. Portanto, somou dois mais dois e pensou: “Ei, será que é aquela andarilha que foi criada por Bran há alguns anos?”. Então, perguntou a Amber se eu era de Montana, e ela respondeu que eu tinha sido criada por uma família adotiva.

Talvez ele quisesse algo de uma andarilha. Aqui passei por um desconfortável momento ao lembrar o que Stefan me contara sobre o Senhor de Milão, que era viciado no sangue de lobisomens. No entanto, Stefan sugara meu sangue e não pareceu muito afetado. Seja como for, suponhamos que Blackwood queria uma andarilha e, portanto, enviou Amber ao meu encontro para me persuadir a ir a Spokane.

A idéia não me agradava tanto como a teoria da não complicação. Mas isso devia, sobretudo, ao fato de que ele não deixaria de me perseguir só por eu fugir desse carro. Significava que ele continuaria a se aproximar até conseguir o que queria, ou ser morto.

Encaixava no que eu sabia. Os andarilhos são raros. Se há outros andarilhos por ai, nunca conheci nenhum. Portanto, se descobrisse o que eu era, e quisesse alguém como eu, seria lógico que viesse atrás de mim. A questão que restava era: o que ele queria com uma andarilha?

O formigamento em meus braços e pernas desapareceu e deixou para trás apenas uma dor persistente. Era hora de fugir... e depois pensei no que Corban dissera: “Ele tem o Chad”.

Corban me sequestrou porque Blackwood estava com Chad. Perguntei-me o que Blackwood faria se Corban voltasse e eu tivesse fugido.

Se calhar se limitava a mandá-lo me procurar novamente. Mas me lembrei da indiferença de Marsilia quando ordenara a morte do homem de Estelle... quando matara todo o rebanho de Stefan. Sentia-se magoada por Stefan ainda estar zangado com ela depois de ter descoberto isso. Talvez ela não entendesse a ligação que Stefan tinha com essas pessoas... porque os humanos eram alimento.

Talvez Blackwood simplesmente matasse Chad.

Não podia arriscar isso.

Abruptamente, a lâmina afiada de terror se instalou em minhas entranhas porque eu estava de fato encurralada. Não podia fugir, não quando isso podia significar a morte de Chad.

Com a boca seca, tentei organizar na cabeça as ferramentas que tinha ao meu dispor. Havia uma bengala Fae, claro. Não estava ali naquele momento, mas acabaria aparecendo. Segundo os Fae, era um artefato poderoso, se os vampiros tivessem medo de ovelhas.

Não conseguia encontrar o bando nem Adam. Samuel dissera que as ligações voltariam. Não me deu a linha do tempo... e eu não me sentia propriamente ansiosa em repetir a experiência, portanto não perguntei. Adam dissera que a distância tornava a ligação mais fraca.

Lembrei-me que uma vez Samuel viajara até o Texas para fugir do pai... e tinha funcionado. Mas Spokane ficava muito mais perto de Tri-Cities do que o Texas de Montana. Então, era possível que se eu atrasasse Blackwood durante um tempo, conseguisse chamar todo o bando para me salvar, outra vez.

E, além de chamar o bando, só o estaria chamando para morrer. Se não se julgasse a altura de Blackwood, coisa que não tinha dito, não podia aceitar a sua opinião. Sabia mais sobre Blackwood do que eu.

Se fosse embora, deixaria um garoto que gostava nas mãos de um monstro. O Monstro.

Talvez não tivesse intenção de me matar. Conseguia me obrigar a acreditar com essa facilidade. Menos fácil de descartar era o já demonstrado desejo de me tornar sua marionete.

Podia sempre partir. Transformei-me e disse a mim mesma que era porque não queria encarar Blackwood estando presa e indefesa. Na forma de coiote, soltei-me e tirei a mordaça, depois voltei a me transformar, me vesti e destranquei o porta-malas.

E assim continuei no porta-malas do carro de Corban até Spokane. Quando o carro diminuiu e deixou o suave asfalto da interestadual para entrar no pare e acelera do trânsito da cidade, endireitei as roupas. Meus dedos tocaram um graveto... a bengala de prata e madeira estava enfiada debaixo da minha bochecha. Acariciei-a porque isso me fazia sentir melhor.

– É bom que se esconda, minha linda. – murmurei, em uma imitação de sotaque de pirata. – Senão será colocada na sala do tesouro e nunca mais verá a luz do dia.

Algo debaixo do meu ouvido retiniu, o carro fez uma curva apertada e perdi a noção de onde estava a bengala. Tinha esperança de que tivesse me ouvido e desaparecido. Não seria uma grande ajuda contra um vampiro, e não queria que sofresse danos enquanto estivesse sob meu cuidado.

– Agora estou falando com objetos inanimados. – eu disse em voz alta. – E acreditando que eles te ouvem. Toma juízo, Mercy.

O carro diminuiu e parou. Ouvi o som estridente de metal roçando o pavimento e em seguida o carro avançou devagar. Parecia que os portões de Blackwood eram um pouco mais elegantes do que os de Marsilia. Os vampiros se preocupavam com coisas desse gênero?

Girei até ficar sobre o traseiro, cruzei as pernas e me curvei para frente até o queixo repousar nos calcanhares. Quando Corban abriu o porta-malas, simplesmente sentei-me com as costas na vertical. Tinha esperança de que isso desviasse a sua atenção do que estava na mala, para que não reparasse na bengala. Se ainda estivesse ali.

– Blackwood está com Chad? – perguntei.

Abriu a boca, mas nenhum som saiu.

– Ouça. – disse, saindo do porta-malas com menos graciosidade do que planejava. Maldita arma de eletrochoque, ou seja, lá o que era. – Não temos muito tempo. Preciso saber qual é a situação. Você me disse que ele estava com Chad. O que ele lhe disse para fazer, exatamente? Disse o motivo que me queria?

– Ele está com Chad. – Corban replicou. Fechou os olhos e seu rosto ruboresceu, como a de um halterofilista após um grande esforço. Sua voz era lenta. – Eu a pegaria quando estivesse sozinha. Ninguém por perto. Nem seu companheiro de casa. Nem seu namorado. Ele me diria quando. Eu a trago para cá. Meu filho vive.

– O que ele quer de mim? – perguntei, ainda absorvendo o fato de Blackwood saber quando estava sozinha. Não podia acreditar na possibilidade de alguém ter me seguido. Mesmo que eu não tivesse detectado, Adam ou Samuel teriam feito.

Balançou a cabeça. – Não sei. – esticou o braço e agarrou meu pulso. – Agora, vou ter que levá-la.

– Tudo bem. – disse, e meu batimento cardíaco duplicou. Mesmo agora, pensei lançando os olhos ao portão e aos muros em pedra de três metros de altura. Mesmo agora, poderia me libertar e fugir. Mas tinha Chad.

– Mercy. – disse, forçando a voz. – Mais uma coisa. Ele queria que eu te falasse de Chad. Para você vir.

Só porque sabia que era uma armadilha não significa que você podia ficar se a isca fosse boa o bastante. Soltando um suspiro rude, conclui que um garoto surdo com a coragem para encarar um fantasma devia me inspirar um décimo de sua bravura.

Com minha direção definida, olhei atentamente a geografia da armadilha que Blackwood armara para mim. Estava escuro, embora conseguisse ver na escuridão.

A casa de Blackwood era menor do que a de Adam, menor ainda do que a da Amber, embora fosse feita em uma pedra de cor quente meticulosamente trabalhada. O terreno abrangia entre dois a três hectares do que em tempos fora um jardim de rosas. Mas nenhum jardineiro pusera o pé ali por muito tempo.

Teria outra casa, pensei. Uma propriamente imponente com um serviço de jardinagem profissional que mantinha o terreno bonito. Lá, receberia seus convidados de negócios.

Esse lugar, com seus jardins negligenciados e cheios de capim, era a sua casa. O que me dizia a respeito dele? Além do fato de privilegiar a qualidade em detrimento da dimensão e a privacidade em detrimento da beleza ou da ordem.

Os muros que delimitavam o terreno eram mais antigos do que a casa, feitos em blocos de pedra colocados a mão sem argamassa. O portão era de ferro forjado com ornamentos. Sua casa não era propriamente pequena, simplesmente parecia menor em virtude do que a rodeava. Não tinha dúvidas de que a casa que estava ali antes era gigantesca e mais adequada à propriedade, e até o vampiro.

Corban parou diante da porta. – Fuja se puder. – disse. – Não está certo... o problema não é seu.

– Blackwood fez com que se tornasse meu problema. – repliquei. Caminhei a sua frente e abri a porta. – Ei, querido, cheguei. – anunciei com a minha voz de jovem estrela dos filmes dos anos cinquenta. Kyle, lembrei, teria reprovado a voz, mas não o guarda-roupa. Minha blusa estava com um dia e meio de uso, os jeans... não me lembrava a quanto tempo estava usando esses jeans. Não muito mais tempo do que a camisa.

O lugar estava vazio. Mas não por muito tempo.

– Mercedes Thompson, minha querida. – o vampiro disse. – Bem-vinda a minha casa, finalmente. – olhou para Corban. – Cumpriu o seu papel. Vá descansar, meu caro.

Corban hesitou. – E o Chad?

O vampiro estava de olhos cravados em mim como se eu fosse algo que o deleitasse... Talvez precisasse de um pequeno lanche. A interrupção de Corban fizera com que uma expressão de irritação assomasse brevemente seu rosto.

– Não completou a missão que te confiei? Se é assim, que mal pode acontecer ao seu filho? Agora, vá descansar.

Deixei que todos os pensamentos relacionados com Corban me abandonassem. Seu destino, o destino de seu filho, o destino de Amber. Tudo isso estava além do meu controle. Apenas podia me concentrar no aqui e no agora.

Se tratava de um truque que Bran nos ensinara em nossa primeira caçada. Não nos preocuparmos com o que tinha sido ou com o que ia ser, apenas no agora. Não o que uma humana provavelmente sentiria sabendo que acabara de matar um coelho que nunca lhe fizera qualquer mal. Que o matara com dentes e garras e o comera cru com satisfação... incluindo partes que seu lado humano preferia não ter sabido que existiam dentro de um coelhinho amigável e  felpudo.

Portanto, esqueci o coelho, os possíveis resultados dessa noite, e me concentrei no aqui e agora. Contive o pânico que queria parar minha respiração e pensei Aqui e Agora.

O vampiro não estava com o terno de negócios. Além da maioria dos vampiros que conhecia, sentia-se mais confortável em roupas de outras eras. Os lobisomens aprendem a acompanhar os tempos para não caírem na tentação de viver no passado.

Consigo identificar os estilos femininos dos cem anos que passaram até cerca de dez anos atrás, e um século antes disso. As roupas dos homens nem tanto, especialmente quando não são roupas formais. A braguilha com botões em suas calças de algodão me disse que eram anteriores aos zíperes. Sua camisa era castanho-escura com uma gola de túnica que lhe permitia tira-la pela cabeça, então não tinha botões.

Conheçam a sua presa, Bran dissera. Observem.

– James Blackwood. – disse. – Sabe, quando Corban nos apresentou, não queria acreditar no que ouvia.

Sorriu, agradado. – Te assustei. – mas depois franziu. – Mas agora não está assustada.

Coelho, pensei com muita vontade. E cometi o erro de olhá-lo nos olhos da mesma forma que olhara aquele coelhinho tantos anos atrás, como olhara Aurielle na noite passada. Mas nem Aurielle nem o coelhinho eram um vampiro.

 

Acordei enfiada em uma cama de casal e, por muito que me esforçasse, não conseguia ver além daquele momento em que o fitara nos olhos. O quarto estava muito escuro e aparentemente não tinha nenhuma janela. A única luz provinha de uma lâmpada noturna ligada a uma tomada, ao lado da porta.

Atirei os cobertores para frente e constatei que tinha me despido até ficar só de calcinha. Tremendo, cai sobre meus joelhos... lembrando-me... lembrando-me de outras coisas.

– Tim está morto. – disse, e o som saiu na forma de um grunhido digno de Adam. E assim que o ouvi tive certeza, percebi que não cheirava a sexo como Amber cheirava. No entanto, cheirava a sangue. Levei a mão ao pescoço e encontrei o primeiro conjunto de marcas de mordida, depois do segundo e um terceiro, apenas um centímetro a esquerda do segundo.

A de Stefan tinha se curado.

Agitei-me um pouco, aliviada por não ter sido pior, depois um pouco mais, sentindo raiva que não escondia propriamente o quanto eu estava com medo. Porém, o alivio e a raiva não me deixariam indefesa de um ataque de pânico.

A porta estava trancada e deixara-me sem nada que pudesse usar para tentar abri-la. O interruptor da luz funcionava, mas não me mostrou nada que não tivesse visto. Uma lata de lixo de plástico que tinham apenas minhas jeans e minha camisa. Tinha uma moeda de vinte e cinco centavos e a carta para Stefan no bolso da calça, mas tinha me levado os dois parafusos que guardara quando tentara reparar a embreagem do carro da mulher na estação a caminho da casa de Amber.

A cama era uma pilha de protetores de colchão recheados com espuma que não tinham nada que pudesse transformar em arma ou ferramenta.

– A presa dele nunca escapa. – uma voz sussurrou ao meu ouvido.

Congelei, ajoelhada ao lado da cama. No quarto, não tinha mais ninguém. – Eu sei. – disse a coisa... ou o homem. – Já as vi tentar.

Virei-me lentamente, mas não vi nada... mas o cheiro de sangue intensificou.

– Era você que estava na casa do garoto? – perguntei.

– Pobre garoto. – a voz disse triste, porém mais sólida agora. – Pobre garoto com o carro amarelo. Quem me dera ter um carro amarelo...

Fantasmas são coisas estranhas. O truque consistia em obter toda a informação possível sem afugentá-lo através de perguntas que entrassem em conflito com o seu entendimento do mundo. O que iria falar parecia muito apropriada a um fantasma.

– Obedece as ordens de Blackwood? – perguntei.

Vi-o. Apenas por instantes. Um garoto com mais de dezesseis anos, mas menos de vinte, vestindo uma camisa de flanela vermelha e calças de lona com botões.

– Não sou o único que tem que fazer o que ele manda. – a voz disse, embora a aparição se limitasse a olhar para mim sem mexer os lábios.

E desapareceu antes que eu tivesse oportunidade de perguntar onde Chad e Corban estavam... ou se Amber estava nessa casa. Devia ter perguntado a Corban. A única coisa que meu olfato me indicava que era o sistema de filtragem do ar que tinha seu sistema HVAC era excelente, e que no filtro tinha sido colocada uma ligeira dose de óleo de canela. Perguntei-me se isso tinha sido feito por minha causa, ou se ele simplesmente gostava do cheiro de canela.

Os objetos do quarto, lata de lixo de plástico e cama, almofada e roupa de cama, eram novos. Como eram a pintura e o tapete.

Vesti a blusa e as jeans, lamentando o fato de ter tirado os aros do sutiã. Talvez tivesse conseguido fazer alguma coisa com eles. Já abri algumas fechaduras de carros e de casas ao longo da minha vida. A ausência dos sapatos não me incomodava muito.

Alguém bateu na porta timidamente. Não tinha ouvido qualquer passo. Talvez fosse um fantasma.

O estalo de uma fechadura e a porta foi aberta. Amber empurrou-a e disse: – Que tola, Mercy. Porque você se trancou aqui? – sua voz era tão suave quanto seu sorriso, mas qualquer coisa de feroz se ocultava atrás do olhar. Algo muito próximo de um lobo.

Vampira? Me perguntei. Conhecera um dos membros do rebanho de Stefan que estava a caminho de se tornar vampiro. Se duvidar, era isso o que estava acontecendo a Amber.

– Não fui eu. – eu disse. – Foi Blackwood. – ela cheirava engraçado, mas a canela me manteve fora disso.

– Tola. – repetiu. – Porque ele faria isso?

Seu cabelo tinha aspecto de não ser penteado desde a última vez que estivera com ela, e sua camisa listrada tinha um botão desabotoado.

– Não sei. – disse.

No entanto, ela já tinha mudado de assunto. – Já preparei o jantar. Nós esperamos a sua companhia para o jantar.

– Nós?

Soltou uma risada, mas nos olhos não havia qualquer indicio de sorriso, apenas uma besta encurralada que se enfurecia em resultado da frustração.

– Bem, Corban, Chad e Jim, evidentemente.

Virou-se para indicar o caminho e reparei que estava mancando. – Se machucou? – perguntei.

– Não, por que pergunta?

– Por nada. – disse em um tom suave, porque reparara em uma coisa. – Não ligue ao que eu disse.

Ela não estava respirando.

Aqui e Agora, aconselhei a mim mesma. Nada de medo, nada de raiva. Apenas observação: conheça seu inimigo. Putrefação. Era esse o cheiro que tinha sentido: o primeiro indício de que a carne estava na geladeira por um longo tempo.

Estava morta e caminhando, mas não era um fantasma. A palavra que me ocorreu foizumbi.

Os vampiros, Stefan me disse uma vez, tem diferentes talentos. Ele e Marsilia conseguiam desaparecer e, reaparecer em outro lugar qualquer. Havia vampiros que conseguiam mover objetos sem os tocar.

Este tinha o poder sobre os mortos. Fantasmas que lhe obedeciam. A presa dele nunca escapa, me dissera. Nem na morte.

Seguindo Amber, subi o longo lance de escadas que desembocava no piso principal da casa. Chegamos a um amplo espaço que há muito tempo fora uma sala de jantar, cozinha e sala de estar. Era de dia... de manhã, a avaliar pela posição do Sol, talvez dez horas ou perto disso. Mas o que estava servido na mesa era o jantar. Um assado, de porco, meu olfato indicou tardiamente, cuidadosamente adornado com cenouras e batatas assadas. Um jarro com água gelada, uma garrafa de vinho e pão caseiro fatiado.

A mesa era suficientemente grande para que a seu redor se sentassem oito pessoas, mas tinha apenas cinco cadeiras. Corban e Chad estavam sentados lado a lado, de costas voltadas para nós e no único lado com dois lugares. As três cadeiras restantes pertenciam, obviamente ao mesmo conjunto, mas uma delas, a que estava em frente a Chad e Corban tinha um encosto e braços almofadados.

Sentei-me ao lado de Chad.

– Mas Mercy, esse é o meu lugar. – Amber disse.

Olhei para o rosto do garoto, manchado de lágrimas, e para o rosto inexpressivo de Corban... Ele, pelo menos, ainda respirava.

– Ei, você sabe que eu gosto de crianças. – repliquei. – Você pode estar com ele sempre.

Blackwood ainda não tinha chegado.

– Jim sabe linguagem de sinal? – perguntei a Amber.

Sua expressão ficou fria. – Não posso responder a nenhuma pergunta sobre Jim. Vai ter que fazer a ele a pergunta. – piscou os olhos algumas vezes e depois sorriu a alguém atrás de mim.

– Não, não sei. – Blackwood disse.

– Não sabe linguagem de sinal? – olhei por cima do ombro, de modo que Chad pudesse ler meus lábios. – Eu também não. É uma daquelas coisas que eu sempre quis aprender.

– A é? – aparentemente eu o divertia.

Sentou-se na cadeira com braços e gesticulou a Amber para que ocupasse a outra.

– Ela está morta. – disse. – Você a matou.

Ficou muito quieto. – Ainda assim, ela me serve.

– A é? Para mim parece mais uma marionete. Aposto que dá mais trabalho e provoca mais problemas agora do que quando era viva.  – pobre Amber. Mas não podia deixá-lo ver minha dor. Foque nessa sala e na sobrevivência. – Por que a mantém por perto se ela está morta? – sem lhe dar tempo para uma resposta, inclinei a cabeça e orei em silêncio de olhos na comida... e pedi ajuda e sabedoria enquanto o fazia. Não obtive uma resposta, mas fiquei com a sensação de que alguém poderia estar escutando, e desejei que não fosse apenas um fantasma.


Quando terminei, o vampiro me olhava fixamente.

– Falta de educação, eu sei. – disse, pegando uma fatia de pão e passando manteiga. Cheirava bem, por isso coloquei no prato em frente de Chad levantando o polegar. – Mas o Chad não pode rezar em voz alta para todos nós. Amber está morta e Corban... – inclinei a cabeça para olhar o pai de Chad, que não tinha se mexido desde que eu entrara na sala, exceto os quase imperceptíveis movimentos do peito pela respiração. – Corban não está em condições de rezar, e você é um vampiro. Deus não vai dar ouvidos a nada do que disser.

Peguei outra fatia de pão e passei manteiga.

Inesperadamente, o vampiro lançou a cabeça para trás e riu, exibindo as presas afiadas e... pontiagudas. Tentei não imaginá-las em meu pescoço.

Porém, a coisa se tornou bem mais sinistra quando Amber riu junto com ele. Uma mão fria me tocou na parte de trás do pescoço e de repente desapareceu, mas não sem antes de alguém sussurrar “cuidado” ao meu ouvido. Detestava quando os fantasmas apareciam de surpresa.

Chad agarrou meu joelho, arregalando os olhos. Teria visto o fantasma? Balancei a cabeça enquanto Blackwood secava os olhos com um guardanapo.

– Você sempre foi uma malandra, não é verdade? – Blackwood disse. – Diga-me uma coisa, Tag chegou a descobrir quem roubava seus cadarços?

Suas palavras entraram em mim como uma faca, e me esforcei ao máximo para não reagir.

Tag era um lobo do bando de Bran. Nunca saiu de Montana, e apenas eu e ele sabíamos do incidente dos cadarços. Ele me encontrou me escondendo da fúria de Bran, não me lembro do que tinha feito, e, ao ver que eu não saia do esconderijo, tirou os cadarços das botas e com eles fez uma coleira e uma guia para me prender como coiote. Depois, me arrastou ao longo da casa de Bran até o escritório.

Pode acreditar que ele sabia quem roubava seus cadarços. E até sair de Portland, lhe dava cadarços todos os Natais, e ele ria.

Não existia a menor possibilidade de os lobos de Bran andarem espiando ao serviço dos vampiros.

Escondi meus pensamentos enchendo a boca de pão. Quando consegui engolir, disse: – Excelente pão, Amber. Foi você quem fez? – nada do que eu pudesse dizer sobre os cadarços me parecia útil. Portanto, mudei para o assunto da comida. Podia-se sempre contar com Amber para falar sobre nutrição. A morte não iria mudar isso.

– Sim. – respondeu. – Cem por cento integral. Jim aceitou-me como cozinheira e dona de casa. Se ao menos eu não tivesse estragado as coisas. – isso mesmo, pobre Jim. Amber o forçara a matá-la, para não ter que arranjar uma nova cozinheira.

– Shh. – Blackwood interveio.

Virei a cabeça e fiquei praticamente cara a cara com Blackwood.

– Então. – eu disse. – Isso não vai funcionar. Até um nariz humano vai sentir o cheiro de carne pobre daqui alguns dias. Não é o que deseja em uma cozinheira. Não que precise de uma cozinheira. – comi um pouco de pão. – Então, há quanto tempo que vem me vigiando? – perguntei.

– Tinha perdido a esperança de algum dia encontrar um andarilho. – explicou. – Imagine a minha alegria quando soube que o Marrok tinha uma sob sua proteção.

– Sim. Bem – repliquei. –, as coisas não teriam funcionado muito bem para o seu lado se eu tivesse ficado. – fantasmas, pensei. Usara fantasmas para me vigiar.

– Não estou preocupado com os lobisomens. – Blackwood disse. – Corban ou Amber disseram qual era o meu ramo de negócios?

– Não. Seu nome nunca foi pronunciado pelos lábios deles desde que você foi embora. – era verdade, mas o vi contrair os lábios. Não gostava disso. Não gostava que seus animais de estimação não lhe prestassem atenção. Era o primeiro sinal de fraqueza que via. Não tinha certeza se viria a me ser útil ou não. Mas usaria tudo o que pudesse.

Conheçam seus inimigos.

– Eu lido com... munições especiais. – disse, olhando para mim por olhos cerrados. – Sobretudo, materiais do governo ultrassecretos. Tenho, por exemplo, sido muito bem sucedido na criação de uma espécie de munição para matar lobisomens. Tenho, entre outras coisas, uma versão em prata das velhas Black Talon. A prata é um metal péssimo para balas, não se expande bem. Em vez de se achatar, abre-se como uma flor. – abriu a mão, reproduzindo a forma de uma estrela-do-mar. – E depois, há aqueles dardos tranquilizantes muito interessantes, concebidos pelo Gerry Wallace. Isso que foi uma surpresa. Nunca teria pensado no DMSO como um sistema de administração para a prata, ou em uma arma tranquilizante como um sistema de administração. Mas a verdade é que o pai dele era veterinário. É por isso que as ferramentas podem ser úteis.

– Você conhecia Gerry Wallace? – perguntei, porque não consegui deixar de perguntar. Dei mais uma mordida como se meu estômago não estivesse apertado, para que não pensasse que a resposta era muito importante.

– Foi ele quem veio se encontrar comigo. – Blackwood explisou. – Mas não me convinha fazer o que ele pedia... O Marrok é um alvo um pouco maior do que aquele que eu queria atingir. – sorriu. – Sou essencialmente uma criatura preguiçosa, era o que costumava dizer a minha criadora. Disse ao Gerry para ir embora, tendo ele em mente a criação de uma super-arma contra lobisomens com base em algum esquema iria com certeza falhar. E até me esqueci da visita dele. Imagine qual foi meu espanto quando o rapaz conseguiu mesmo criar uma coisa interessante. – sorriu cordialmente.

– Precisa observar Bran com mais atenção. – disse. Peguei um jarro com água e virei uma porção no copo. – É mais sutil e isso faz com que aquela questão da onisciência funcione melhor nele. Se contar todo mundo o que sabe, as pessoas não se perguntam sobre coisas que não lhes contam. Bran... – encolhi os ombros. – Simplesmente sabe o que estamos pensando.

– Amber. – o vampiro disse. – Certifique-se de que seu marido e o garoto que não é filho dele comerem o jantar, sim?

– Com certeza.

A mão fria de Chad em meu joelho foi apertada com muita força.

– Diz isso como se fosse uma revelação. – disse a Blackwood. – Também precisa trabalhar suas munições verbais. Corban sempre soube que Chad não é seu filho biológico. Isso para ele não tem importância. Chad continua sendo seu filho.

A haste do copo de água que o vampiro segurava, partiu. Colocou os vidros muito cuidadosamente em seu prato vazio.

– Você não me teme o suficiente. – disse muito cuidadosamente. – Talvez seja hora de informá-la melhor.

– Muito bem. – repliquei. – Obrigada pela refeição, Amber. Cuidem-se vocês, Corban e Chad.

Levantei-me e ergui uma sobrancelha.

Blackwood entendia que era pura estupidez eu não ter medo dele. Mas se tremesse de medo em um bando de lobisomens, isso é verdadeiramente estúpido. Se sentir um determinado grau de medo, até um lobo com bom controle começa a ter problemas. Se esse controle não for forte, bom, digamos apenas que aprendi a ser muito boa em enterrar meu medo.

Provocar Blackwood não era estúpido. Se tivesse me matado na primeira ocasião, bom, pelo menos teria sido uma morte rápida. Mas quanto mais ele deixava a situação se arrastar, mais eu percebia que precisava de mim. Não conseguia sequer imaginar para que, mas precisava de mim para alguma coisa.

Azar o meu ele estar interpretando minha atitude como um desafio. Perguntei-me o que ele achava que me assustaria mais do que Amber, antes de conseguir reunir de forma ordenada os meus pensamentos. Não havia futuro, apenas o vampiro e eu de pé ao lado da mesa.

– Venha. – disse-me, e indicou o caminho de volta ao fundo das escadas.

– Como que você consegue andar durante o dia? – perguntei. – Nunca tinha ouvido falar em um vampiro que tivesse a capacidade de se movimentar durante o dia.

– Somo o que comemos. – disse obscuro. – Minha criadora costumava dizer. Mann ist was mann ibt. Ela não me deixava me alimentar de bêbados ou pessoas que consumissem tabaco. – riu, e não me permiti interpretá-lo com isso. – Amber me faz lembrar um pouco ela... tão preocupada com a nutrição. Nenhuma delas estava errada. Mas minha criadora não compreendia completamente as implicações do que dizia. – riu novamente. – Até eu a ter consumido.

A porta do quarto onde eu tinha acordado estava aberta. Parou e desligou a luz quando passamos. – Não se deve desperdiçar energia.

E depois abriu outra porta que dava acesso a um quarto muito maior. Um quarto de jaulas. Cheirava a esgoto, doença e morte. A maior parte das jaulas estava vazia. Mas havia um homem nu, enroscado no chão de uma das jaulas.

– Está vendo, Mercedes? – perguntou. – Você não é a primeira criatura rara que tenho como convidada. Este é um oakman{12}. Já o tenho há.... Há quanto tempo você me pertence, Donnel Greenleaf?

O Fae agitou-se e levantou a cabeça do chão de cimento. Em tempo, devia ter sido uma figura formidável. Os oakman, do livro antigo que me fora emprestado, não eram altos, não tinham mais do que um metro e sessenta, mas eram sólidos “como uma boa mesa da carvalho”. Esse era pouco mais do que pele e osso.

Em uma voz tão seca como o pico do verão em Tri-Cities disse: – Quatro vintenas de anos e uma dezena e um. Duas estações e dezoito dias mais.

– Os oakman. – Blackwood disse orgulhoso. – Assim como os carvalhos que lhes dão nomes, só se alimentam da luz do Sol.

De fato, somos o que comemos.

– Nunca tentei verificar se conseguia viver da luz. – continuou. – Mas ele impede que eu arda, não é verdade, Donnel Greenleaf?

– É para mim uma honra transportar esse fardo. – disse o Fae em uma voz desesperada, com o rosto voltado para o chão.

– Então, você me sequestrou para poder se transformar em coiote? – perguntei incredulamente.

O vampiro se limitou a sorrir e acompanhou-me até uma jaula muito grande com uma cama. Também tinha um balde do qual emanava o odor a esgoto. O cheiro era idêntico ao de Corban, Chad e Amber.

– Posso mantê-la viva por muito tempo. – o vampiro disse. Agarrou-me pela parte de trás do pescoço e enfiou meu rosto entre as grades da jaula, mantendo-se atrás de mim. – Talvez durante toda a sua vida natural. O que? Nenhum comentário esperto?

Não via a figura vaga parada diante de mim com o dedo sobre os lábios contraídos. Pareceu-me que teria entre sessenta e cem anos quando morreu, assim como a mulher do Papai Noel, era toda redondinha e doce. Silêncio, dizia aquele dedo. Se duvidar: Não deixe que saibam que pode me ver.

Blackwood não a via, embora viesse usando o outro fantasma como garoto de recados. Perguntei-me o que significava aquilo. Ela também cheirava a sangue.

Colocou-me na jaula ao lado daquela aonde vinha mantendo Chad e Corban. Presumivelmente, já não precisava prender Amber.

– Isso poderia ter sido tão agradável para você. – disse.

A mulher e seu dedo que me mandava calar a boca tinham desaparecido, portanto dei rédea solta à língua. – Diga isso a Amber.

Sorriu, expondo as presas. – Ela gostou. Vou dar-lhe uma última oportunidade. Seja cooperativa e a deixo ficar no outro quarto.

Talvez conseguisse sair do outro quarto pelo telhado. Mas não me parecia. A jaula na casa do Marrok tem exatamente o mesmo aspecto dos restantes quartos. As grades foram colocadas dentro das paredes.

Encostei-me ao lado mais distante da minha jaula, que correspondia a parede exterior de cimento. – Diga-me porque não pode simplesmente dar ordens? Me obrigar a cooperar? – como fizera com Corban.

Encolheu os ombros. – Descubra você. – trancou a porta com uma chave e usou a mesma para abrir a porta do oakman.

O Fae choramingou enquanto era arrastado para fora da jaula. – Não posso me alimentar de você todos os dias, Mercy. – Blackwood disse. – Não se quiser mantê-la aqui. O ultimo andarilho que tive morreu há cinquenta anos, mas mantive-o por sessenta e três anos. Cuido daquilo que é meu.

Claro, aposto que Amber iria concordar com isso.

Blackwood se ajoelhou no chão, onde o oakman estava deitado em uma posição fetal. O Fae me olhava fixamente com seus olhos pretos enormes. Não ofereceu resistência quando Blackwood, com olhar destinado a mim, lhe agarrou a perna e mordeu a artéria na virilha para se alimentar.

– O carvalho disse. – afirmou o Fae com sotaque galês. – Que a Mercy iria me libertar na época da colheita.

Fitei-o e ele sorriu antes de o vampiro lhe fazer algo doloroso. Nesse momento, fechou os olhos para suportar a dor. Se compreendesse galês, certamente teria feito algo mais extremo. Como o oakman sabia que eu compreendera, isso não sabia explicar.

Há duas formas de libertar um prisioneiro, a fuga é a primeira. Tinha para mim que ooakman estava apontando a segunda.

Quando terminamos, o oakman estava quase inconsciente e Blackwood parecia uma dezena de anos mais novo. Não era de esperar que aquilo acontecesse a um vampiro, mas a verdade é que não conhecia nenhum vampiro que se alimentasse de Fae. Pegou o oakman, aparentemente sem o menor esforço, e o lançou por cima do ombro.

– Vamos colocá-lo um pouco ao Sol, tudo bem? – Blackwood soava alegre.

A porta de acesso ao quarto se fechou atrás dele e uma voz tremula de mulher disse: – É porque nesse momento você é muito forte para ele, minha querida. Ele de fato tentou fazer de você sua servente... mas seus laços com os lobisomens e com aquele outro vampiro. E como é que conseguiu isso, menina esperta. Bloquearam-no. Não vai durar para sempre. Com o tempo, acabará trocando com você a quantidade de sangue suficiente para que passe a ser dele. Mas demorará alguns meses até que isso aconteça.

O fantasma da Mamãe Noel estava na jaula, de costas voltadas para mim, olhando para a porta que tinha se fechado atrás de Blackwood.

– O que ele quer de mim? – perguntei.

Virou-se e sorriu. – Bem, eu, querida.

Tinha presas.

– Você é vampira. – disse.

– Era. – concordou. – Não é comum, admito. Embora aquele rapaz que conheceu anteriormente também seja. Estamos ligados ao James. John foi o único vampiro que James alguma vez criou. E coro de vergonha ao admitir que James existe por minha culpa.

– Por sua culpa?

– Foi sempre tão simpático, tão atencioso. Um rapaz impecável, eu pensava. Depois,certa noite, um de meus outros filhos mostrou-me a mudhuacha que James tinha capturado, uma das sereias. – aquele ligeiro sotaque londrino ou irlandês, pensei, mas era tão ligeiro que não tinha certeza.

– Bom. – continuou, soando exasperada. – Nós simplesmente não fazemos isso, minha querida. Para começar, os Fae não são criaturas com as quais se deva brincar. E, além disso, as criaturas com quem trocamos sangue podem se tornar vampiros. Quando são criaturas mágicas, os resultados podem ser desagradáveis. – balançou a cabeça. – Bom, quando o confrontei... – olhou para si mesma. – Matou-me. Assombrei-o, segui-o desde a casa até aqui, o que não foi propriamente a idéia mais brilhante que tive em toda a minha vida. Quando pegou aquele outro homem, aquele que era como você... Bom, nessa hora ele me viu. E descobriu que ainda precisava da sua mãe.

Não fazia a mais pálida idéia do porque de estar me contando tanta coisa, a menos que se sentisse sozinha. Quase senti pena dela.

A seguir, lambeu os lábios e disse: – Eu poderia ajudá-la.

Os vampiros são maus. Era quase como se o Marrok em pessoa estivesse sussurrando essa frase em meu ouvido.

Ergui uma sobrancelha. – Se me der de comer, eu digo-lhe o que fazer. – sorriu, escondendo cuidadosamente as presas. – Apenas uma gota ou duas, meu amor. Não passo de um fantasma, não será preciso muito.


Capítulo 12

 

 

– Podia simplesmente sugá-lo de você enquanto está dormindo, minha querida. – o fantasma disse. – Estava apenas tentando tornar o gesto um presente. Se me der como presente, posso ajudá-la. – parecia o tipo de mulher que contrataria para tomar conta de um filho meu, pensei. Doce e adorável, um pouco complacente.

– Não. – rosnei. E senti um disparo de alguma coisa. De alguma coisa que fiz.

Seus olhos se arregalaram e recuou.

– Claro que não, querida. Claro que não, se não quiser.

Ela tentara encobri-lo. Mas eu fiz algo. Já tinha sentido o mesmo na casa de Amber, no banheiro, quando disse para o fantasma deixar Chad em paz. Não era magia que os Fae usavam, ou as bruxas, mas era magia. Conseguia sentir o cheiro.

– Diga-me. – pronunciei, tentando imprimir energia as palavras, imitando a autoridade que Adam tinha mais colada à pele do que as camisas de corte justo que usava. – Como que Blackwood conseguiu assombrar a casa de Amber? Foi você?

Contraiu os lábios, frustrada, seus olhos se iluminaram, adequando-se a vampira que era. Ainda assim, me respondeu. – Não. Foi o garoto, a pequena experiência de James.

No exterior das jaulas e fora do meu alcance estava uma mesa sobre a qual se amontoavam caixotes. Em um canto, encontrava-se uma pilha de baldes de 20L, uns seis ou oito. Caíram com estrondo e rolaram até a fossa no centro do quarto.

– Aquilo é o que você era. – gritou em um tom feroz que soava errado saindo daquele rosto de vó. – Fez de você um vampiro e brincou contigo até enjoar. Depois, te matou e continuou a brincar até seu corpo apodrecer.

Assim como Blackwood fizera com Amber, pensei, com a diferença de que não a tinha conseguido transformar em vampira antes de transformá-la em zumbi. Aqui e agora, disse a mim mesma. Não desperdice energia no que não pode mudar agora.

Os baldes pararam de rolar e todo o quarto ficou em silencio, exceto minha respiração.

Balançou a cabeça bruscamente. – Nunca se apaixone. – disse. – Fará de você uma pessoa fraca.

Não consegui notar se estava falando de si mesma, ou do garoto, ou mesmo de Blackwood. Mas havia outras coisas em que estava mais interessada. Se ao menos conseguisse fazer com que respondesse as minhas perguntas. – Diga-me exatamente porque Blackwood me quer.

– Você é mal-educada, minha querida. Aquele lobo velho não lhe ensinou boas maneiras?

– Diga-me de que maneira Blackwood pensa em me usar.

Sibilou mostrando as presas.

Olhei-a nos olhos, dominando-a como se fosse uma loba. – Diga-me.

Desviou o olhar, endireitou-se e ajeitou a saia como se estivesse nervosa em vez de zangada, mas eu era mais esperta do que isso.

– Ele é o que come. – respondeu finalmente, ao ver que eu não recuava. – Ele mesmo lhe disse. Nunca tinha ouvido falar nisso, como que podia saber o que andava fazendo? Achava que andava se alimentando dele por causa do sabor. Mas ingeria seu poder quando se alimentava do seu sangue. Assim como fará com o seu. Para poder me usar como quiser.

E desapareceu.

Mantive de olhos fixos no lugar onde ela estivera. Blackwood estava se alimentando de mim e iria adquirir o que? Inspirei. Não. A capacidade de fazer o que acabei de fazer, controlar um fantasma.

Se ela tivesse se mantido aqui, teria lhe colocado mais uma dezena de perguntas. No entanto, não era o único fantasma por aqui.

– Ei. – disse suavemente. – Ela já foi embora. Pode aparecer.

Tinha um cheiro um pouco diferente do dela, embora ambos cheirassem basicamente a sangue ressecado. Era uma diferença sutil, mas consegui distingui-la quando me esforcei por isso. Seu cheiro pairava enquanto questionava a velha, e foi por isso que percebi que ainda não tinha ido embora.

Era o que tinha estado na casa de Amber. O que quase matara Chad.

Apareceu progressivamente, sentado no chão de cimento, de costas para mim. Dessa vez, a sua figura era mais solida, e consegui perceber que sua camisa tinha sido costurada a mão, embora não estivesse particularmente bem-feita. Não era desse século, nem do século XX, provavelmente do século XIX.

Retirou um balde da pilha e o fez rolar pelo chão, para longe de nós, até atingir a jaula vazia do oakman. Lançou-me um olhar rápido e carrancudo por cima do ombro. A seguir, de olhos fixos nos baldes que restavam, disse: – Vai me obrigar a lhe contar coisas?

– Fui mal-educada. – admiti, sem realmente responder. Se ele soubesse alguma coisa que pudesse ajudar a tirar Chad, Corban e eu daqui inteiros, faria tudo o que preciso. – No entanto, não me importo de ser mal-educada com alguém que quer me fazer mal. Sabe por que ela quer sangue?

– Com sangue dado de livre vontade ela pode matar pessoas com um simples toque. – respondeu. – Não funciona se ela o roubar, embora ela seja capaz de fazer isso só por despeito. – acenou com a mão e um caixote tombou para o lado, espalhando amendoim sobre a mesa. Cinco ou seis rolaram como um tornado em miniatura. Desinteressou-se e caíram no chão.

– Com um toque? – perguntei.

– Mortais, bruxas, Fae e vampiros: ela consegue matar qualquer um deles. Chamavam-lhe de Vó da Morte quando era viva. – olhou para mim novamente. Não consegui ler sua expressão. – Quando ela era uma vampira, quero dizer. Mesmo os outros vampiros tinham medo dela. Foi assim que ele descobriu o que podia fazer.

– Blackwood?

O fantasma virou o corpo para ficar voltado para mim, com as mãos vasculhando o balde que acabara de brincar.

– Ele me contou. Uma vez, logo antes de ter bebido dela. – ela era a Senhora do ninho dele. – Matou um vampiro com o toque. – os vampiros menores se alimentam do Senhor ou Senhora que governava o ninho e o Senhor ou Senhora se alimentavam deles. À medida que se tornavam mais poderosos, já não necessitavam de se alimentar de quem governava o ninho. – Disse que estava zangado e que tocou em uma mulher, que pura e simplesmente se transformou em pó. Assim como a Senhora dele conseguia fazer. Mas, depois de alguns anos, tinha perdido essa capacidade. Só depois de algumas semanas que voltava a se alimentar da Senhora, por isso contratou uma prostituta com sangue Fae, não lembro qual era a espécie dela, e chupou-a até que ficasse seca. Nele, os poderes Fae duravam mais tempo. Fez experiências e chegou à conclusão de que quanto mais tempo os deixasse viver enquanto se alimentasse deles, maior o período durante o qual conseguia fazer uso do que tinha ganhado deles.

– Ele ainda tem essa capacidade? – perguntei, olhando-o intensamente. – De matar com o toque? – não era de admirar que ninguém o desafiasse para a conquista de seu território.

Balançou a cabeça. – Não. E ela está morta, por isso já não pode usar os talentos dela. Ela ainda consegue matar se ele lhe der de beber. Mas agora não pode usá-la como costumava fazer antes de aquele velho homem índio morrer. Não que ela se importe com a matança, mas não gosta de fazer o que ele quer. Especialmente, exatamente o que ele quer e nada mais. Ele a usa para negócios, e os negócios... – lambeu os lábios como se tentando lembrar-se das palavras exatas que Blackwood usara. –... os negócios são melhor gerenciados com precisão. – sorriu, de olhos bem abertos e inocentes. Eram azuis. – Ela prefere banhos de sangue e é bem capaz de preparar um cenário de matança para que James seja apontado como assassino. Ela fez isso uma vez, antes de ele ter percebido que ainda não estava controlando-a. Ficou muito descontente.

– Blackwood tinha um andarilho. – disse, juntando as peças. – E se alimentava dele para poder controlá-la, a senhora que estava aqui.

– O nome dela é Catherine. Eu me chamo John. – o garoto olhou para o balde e ele se moveu. – Era simpático, Carson Doze Colheres. Falava comigo e me contava histórias. Disse que eu não devia ter me dado ao James, que eu não devia ser o brinquedo de James. Que devia ter me deixado ir para o Grande Espírito. Que teria sido capaz de me ajudar.

Sorriu, e dessa vez detectei um quê de malicia. – Era um índio mau. Quando garoto, não muito mais velho do que eu, matou um homem para pegar seu cavalo e carteira. Isso o impossibilitou de fazer as coisas que supostamente deveria ser capaz. Ele não podia me dizer o que fazer.

A malícia me libertou da pena que vinha sentindo e que me distraiu. E vi o que tinha escapado na primeira ocasião em que o tinha olhado nos olhos. E percebi a razão pela qual esse fantasma era diferente de qualquer outro que algum dia conhecera.

Os fantasmas são restos de pessoas que morreram, do que resta depois da alma partir. São, sobretudo, coleções de memórias as quais é dada uma forma. Se conseguirem interagir, reagir a estímulos externos, tendem a ser fragmentos das pessoas que tinham sido: fragmentos obsessivos, como os fantasmas de cães que guardam as velhas sepulturas de seus donos ou o fantasma que eu vira uma vez a procura de seu cachorro.

No entanto, imediatamente após morrerem, por vezes são diferentes. Já vi isso algumas vezes em funerais, ou na casa de alguém que acabara de morrer. Às vezes, aqueles que acabaram de morrer vigiam os vivos, como se para se certificarem de que está tudo bem com eles. Isso são mais do que restos das pessoas que tinham ido, consigo notar a diferença. Sempre pensei que isso eram as almas deles.

Foi isso que eu vi nos olhos mortos de Amber. Senti um aperto no estômago. Quando se morre, é de esperar que aconteça uma libertação. Não era justo, não estava certo, que Blackwood tivesse descoberto uma forma de manter as pessoas presas após sua morte.

– Blackwood disse para você matar Chad? – perguntei.

Cerrou os punhos. – Ele tem tudo. Tudo. Livros e brinquedos. – levantou o tom de voz à medida que falava. – Ele tem um carro amarelo. Olhe para mim. Olhe para mim! – estava de pé. Fitava-me com olhos insanos, porém quando voltou a falar, sussurrou: – Ele tem tudo e eu estou morto. Morto. Morto. – desapareceu abruptamente, mas os baldes se espalharam em todas as direções. Um foi projetado pelo ar e atingiu as grades da minha jaula, partindo-se em pedaços de plástico alaranjados. Um dos fragmentos me atingiu e fez um corte em meu braço.

Não tinha certeza se aquilo significava um “sim” ou um “não”.

Sozinha, deitei-me na cama e encostei-me à parede de cimento. John O Fantasma sabia mais sobre andarilhos do que eu. Perguntei-me se teria me dito a verdade: havia um código moral que eu tinha de seguir para preservar minhas capacidades, que agora pareciam incluir alguma capacidade para controlar fantasmas. Apesar de, a julgar pelo meu sucesso indiferente, suspeitei de que era algo que tinha que praticar até ser bem feito.

Tentei entender como esse talento poderia me ajudar a tirar todos os prisioneiros em segurança. Ainda estava inquieta pensando quando ouvi pessoas descendo as escadas: visitas.

Levantei-me para recebê-las.

As visitas eram colegas prisioneiros. E um zumbi.

Amber estava tagarelando sobre o próximo jogo de softball que Chad ia ter ao mesmo tempo em que indicava o caminho a Corban, claramente ainda dominado pelo vampiro, e Chad, que a seguia porque não havia mais nada que pudesse fazer. Tinha uma marca roxa no rosto que não existia quando deixara a mesa de jantar.

– Agora tenha uma boa noite de sono. – Amber disse. – Jim também vai para a cama, logo depois de voltar a trancar aquele Fae no lugar a que pertence. Não queremos vocês cansados quando for hora de se levantar. – segurava a porta aberta como se ela pertencesse a outra coisa que não uma jaula. Ela pensava que se tratava de um quarto de hotel?

Ver a zumbi era como ver um daqueles filmes onde pegam as falas que alguém disse de fato e as juntam para que pareça que estiveram falando de outra coisa. Porções de fala de coisas que Amber teria dito saíram da boca da mulher morta com pouco ou nenhuma relação com o que estava fazendo.

Corban entrou aos tropeços e parou no meio da jaula. Chad passou correndo pelo cadáver animado da mãe e parou, de olhos muito abertos e tremendo, ao lado da cama. Não passava de uma criança de dez anos, por muita coragem que tivesse.

Se sobrevivesse a isso, precisaria de anos de terapia. Partindo do pressuposto que encontraria um terapeuta que acreditasse nele. Sua mãe era uma o que? Tome esses comprimidos de Torazina... Ou qualquer outra substância de escolha mais recente para o tratamento de doentes mentais.

– Oops. – Amber disse em um estado de alegria maníaca. – Quase ia me esquecendo. – olhou em volta e balançou a cabeça tristemente. – Foi você que fez isso, Mercy? A Char sempre disse que vocês estavam bem uma para a outra porque eram desorganizadas. – enquanto falava, ia juntando os baldes, embora não tivesse se dado ao trabalho de limpar o partido, e empilhou a maior parte deles no lugar original. Pegou em um e colocou-o no interior da jaula de Chad e Corban antes de tirar o usado que estava no canto. – Vou só levar esse lá para cima para limpar, tudo bem?

Trancou a porta.

– Amber. – disse, imprimindo força a minha voz. – Dê-me a chave. – ela estava morta, certo? Será que também tinha que dar ouvidos a mim?

Hesitou. Percebi. Depois, dirigiu-me um sorriso vivo. – Que má, Mercy. Que má. Vai ser castigada por isso quando contar ao Jim.

Pegou o balde e assobiou ao fechar a porta. Consegui ouvi-la assobiar até chegar ao topo das escadas. Precisava praticar mais, ou talvez houvesse algum truque.

Abaixei a cabeça e esperei que Blackwood trouxesse o oakman. Tinha os braços cruzados, o rosto desviado de Chad. Ignorei-o quando agitou as grades para atrair minha atenção. Quando Blackwood entrasse, não queria que me visse segurando a mão de Chad ou conversando ou fazendo que quer que fosse com ele.

Não achava que houvesse a mais pálida chance de Blackwood deixar Chad viver depois de tudo que tinha visto. Mas não tinha intenção de dar ao vampiro mais razão para lhe fazer mal. E, se abaixasse a guarda, teria dificuldade em manter o medo à distância.

Depois de algum tempo, o oakman entrou no quarto aos tropeços a frente de Blackwood. Não estava com melhor aspecto do que quando Blackwood o deixara em um estado miserável. O Fae parecia ter um pouco mais que 1,60 de altura, embora ficasse mais alto se estivesse reto. Seus braços e pernas eram estranhamente proporcionais de formas sutis: pernas curtas e braços muito longos. O pescoço era muito curto para a cabeça de testa grande e maxilar proeminente que possuía.

Caminhou diretamente para a jaula sem oferecer resistência, como se já tivesse feito muitas vezes e sido sempre derrotado. Blackwood trancou-o. A seguir, olhando para mim, o vampiro atirou a chave ao ar e voltou a pegá-la antes que caísse no chão.

– Amber já não volta aqui com a chave.

Não disse nada e ele soltou uma risada. – Faça bico à vontade, Mercy. Não vai mudar nada.

Fazer bico? Desviei o olhar. Ele ia ver o bico.

Caminhou para a porta.

Engoli a minha raiva e consegui fazer com que não engasgasse. – Como você fez?

As perguntas vagas são mais difíceis de ignorar do que as especificas. Despertam curiosidade e fazem com que a vítima reaja. – Fiz o que? – perguntou.

– Catherine e John. – disse. – Não são fantasmas normais.

Sorriu, agradado por eu ter reparado. – Gostaria de reivindicar qualquer espécie sobrenatural. – replicou, rindo por achar engraçado o que acabara de dizer. Limpou as lágrimas imaginárias de alegria. – Mas, na verdade, é uma opção deles. Catherine está determinada a se vingar de mim. Me culpa por ter posto fim ao seu reinado de terror. John... John me ama. Jamais me deixará.

– Disse para matar Chad? – perguntei friamente, como se a resposta não fizesse mais do que satisfazer uma mera curiosidade.

– Bem, essa é a questão. – encolheu os ombros. – É por isso que preciso de você. Não. Ele arruinou meu jogo. Se tivesse feito como lhe disse, você teria vindo aqui por vontade própria e teria se oferecido a mim para poupar seus amigos. Ele os obrigou a fugir. Precisei de meio dia para encontrá-los. Não queriam vir comigo, e... Bem, você viu a minha pobre Amber.

Não queria saber. Não queria fazer a pergunta seguinte. Mas precisava saber o que tinha feito a Amber.

– O que você comeu que lhe permitiu criar zumbis?

– Oh, ela não é uma zumbi. – disse. – Já vi zumbis com três séculos de idade que tem um ar quase tão fresco como o de um cadáver com um dia de existência. Passam de geração em geração como tesouros que são. Receio que terei de me livrar do corpo de Amber dentro de uma semana, a menos que a coloque no freezer. Mas as bruxas precisam de conhecimento tanto como precisam de poder, e são mais os custos do que as vantagens de tê-las. Não. Isso foi algo que aprendi do Carson. Acredito que Catherine ou John tenham falado de Carson. Curioso que um assassinato o tenha deixado incapaz de fazer o que quer que fosse com seus poderes, quando eu, e terá de acreditar quando lhe digo, fiz coisas muito piores do que um mero homicídio para roubar e não tive qualquer problema em usar o que tirei. Talvez o problema dele tenha sido psicossomático, não parece?

– Você me disse como mantém Catherine e John. – disse. – Como que mantém Amber?

Sorriu a Chad, que estava o mais longe possível de seu pai. Parecia frágil e assustado.

– Ela ficou para proteger o filho. – olhou novamente para mim. – Mais perguntas?

– Por agora, não.

– Muito bem. Oh, tratei de garantir que John não venha vê-la nos próximos momentos. E quanto a Catherine, creio que também será melhor se manter longe. – fechou suavemente a porta atrás de si. As escadas rangeram debaixo de seus pés a medida que subia.

Depois de ir embora, disse: – Oakman, sabe quando o Sol se põe?

O Fae, uma vez mais esparramado no chão de cimento da sua jaula, virou sua cabeça em minha direção. – Sim.

– Pode me avisar?

Fez uma longa pausa. – Sim.

Corban deu um passo vacilante para frente e balançou um pouco, pestanejando rapidamente. Blackwood o libertada.

Respirou fundo e tremulamente, a seguir virou-se urgentemente para Chad e começou a fazer sinais.

– Eu não sei o quanto Chad pegou do que está acontecendo... é muito. É muito. Mas ignorância pode levar ele à morte.

Precisei de um segundo para perceber que estava falando comigo, todo seu corpo estava concentrado no filho. Quando terminou, Chad, que ainda mantinha uma grande distância entre eles, começou a gesticular de volta.

Enquanto observava as mãos do filho, Corban me perguntou: – O que você sabe sobre vampiros? Temos alguma chance de sair daqui?

– A Mercy me concederá a liberdade na época da colheita. – disse o oakman roucamente. Dessa vez, em inglês.

– Farei isso se conseguir. – disse. – Mas não sei se vai acontecer.

– O carvalho me disse. – replicou, como se isso fizesse da frase uma evidência. – Não é uma árvore muito velha, mas estava muito zangada com o vampiro, por isso se esticou. Espero que não tenha... permanentemente. – suas palavras colaram-se umas as outras e parecia que tinham perdido consoantes. Desviou a cabeça de mim e suspirou cansado.

– Os carvalhos são assim tão dignos de confiança? – perguntei.

– Costumava ser. – respondeu. – Uma vez.

Ao ver que não dizia mais nada, contei a Corban a parte mais importante do que sabia sobre o monstro que nos mantinha prisioneiros.

– É possível matar um vampiro perfurando o coração com uma estaca de madeira, decapitando-o, afogando-o em água benta, o que é impraticável a menos que se tenha uma piscina e um padre que a abençoe, expondo-o diretamente a luz solar ou pegando fogo. Disseram que é melhor se combinar dois métodos.

– E o alho?

Balancei a cabeça. – Não. Embora um vampiro que eu conheço tenha me contado que entre uma vítima que cheire a alho e outra que não cheire, a maior parte dos vampiros escolhe a que não cheira. Não que nós tenhamos acesso a alho ou estacas de madeira.

– Isso da luz solar eu sabia. Quem não sabe? No entanto, isso não parece afetar Blackwood.

Assenti com a cabeça ao oakman.

– Aparentemente, ele tem a capacidade de roubar algumas das capacidades que possuem as pessoas que se alimenta. – nem pensar em falar das trocas de sangue com Chad assistindo. – Os oakman como esse senhor aqui, se alimentam da luz do Sol, portanto Blackwood ganhou uma imunidade ao Sol.

– E de sangue. – o oakman disse. – Antigamente, nos faziam sacrifícios de sangue para manter as árvores felizes. – suspirou. – É me alimentando de sangue que ele me mantém vivo, de outro modo essa jaula de ferro frio me mataria.

Era prisioneiro de Blackwood há noventa e três anos. O simples pensamento deitou por terra qualquer otimismo que pudesse ter sobrevivido ao percurso de Tri-Cities até aqui. Contudo, o oakman não tinha um lobisomem como companheiro, nem estava ligado a um vampiro.

– Alguma vez matou um? – o oakman perguntou.

Acenei. – Um com ajuda e outro que estava em desvantagem porque foi durante o dia e estava dormindo.

Não acredito que fosse a resposta que ele estava esperando. – Estou vendo. Acha que consegue matar este?

Virei-me em um gesto contundente olhando para as barras. – Não me parece muito provável. Não temos estaca, não temos uma piscina de água benta, não temos fogo... – e assim que disse isso, reparei que ali havia poucas coisas inflamáveis. A roupa de cama de Chad, nossas roupas... e mais nada.

– Pode me acrescentar a lista de coisas que não servirão para nada. – Corban disse amargamente. – Nem sequer consegui deixar de sequestrá-la.

– Aquela arma de eletrochoque foi mais uma das criações de Blackwood?

– Não é uma arma normal. Blackwood vende a dele a certas agências governamentais que querem interrogar os prisioneiros sem deixar danos visíveis. É muito melhor do que a arma comum. Não é legal no mercado civil, mas... – parecia orgulhoso daquilo. Orgulhoso e cheio de astucia, como se estivesse apresentando o produto em uma reunião com potenciais compradores. Ele se interrompeu e simplesmente disse: – Desculpa.

– A culpa não é sua. – disse. Olhei para Chad, que ainda parecia aterrorizado. – Ei, porque não traduz o que eu digo um pouco?

– OK. – Corban também olhou para Chad. – Deixe-me explicar o que estou fazendo. – agitou as mãos e os dedos com movimentos leves e rápidos e depois disse: – Vai.

– Blackwood é um vampiro. – disse a Chad. – Isso quer dizer que seu pai não pode fazer mais nada a não ser obedecer as ordens de Blackwood. É parte do que um vampiro faz. Eu estou um pouco mais protegida porque consigo ver fantasmas e falar com eles. Essa é a única razão pela qual ele não me faz a mesma coisa... ainda. No entanto, vai perceber quando seu pai estiver sendo controlado. Blackwood não gosta que seu pai fale contigo em linguagem de sinais, porque ele não entende. Então, se seu pai não estiver falando contigo por gestos, isso pode ser um sinal. E seu pai luta contra o controle dele e consegue perceber ao olhar para os ombros dele que...

Calei-me porque Chad começou a gesticular furiosamente, com os dedos em movimentos exagerados. O equivalente de gritar, supus.

Corban não traduziu o que Chad disse, mas gesticulou muito devagar para não ser mal interpretado e pronunciou as palavras em voz alta quando respondeu: – Claro que sou seu pai. Te segurei nos braços no dia em que nasceu e fiquei de vigília no hospital quando quase morreu no dia seguinte. Você é meu. Eu conquistei o direito de ser seu pai. Blackwood te quer sozinho e com medo. Ele é um intimidador e se alimenta da miséria tanto quanto se alimenta de sangue. Não deixe que ele ganhe.

Chad se emocionou, mas antes que conseguisse ver as lágrimas, tinha o rosto escondido contra Corban.

Não era a melhor hora para Amber entrar.

– Está calor lá em cima. – anunciou. – Vou dormir aqui embaixo com vocês.

– Tem a chave? – perguntei. Não que estivesse a espera que Blackwood tivesse se esquecido. Queria, sobretudo, atrair a atenção dela e permitir que Chad, que não tinha notado sua presença, tivesse seu momento com seu pai.

Riu. – Não, tola. Jim não ficou muito satisfeito contigo. Não vou te ajudar a fugir. Eu durmo aqui fora, vai ser muito confortável. Vai ser como acampar.

– Venha aqui. – disse. Não sabia se ia funcionar. Não sabia nada. Mas veio. Não sabia se tinha sido compelida ou se estava apenas correspondendo a meu pedido.

– Do que precisa? – parou perto de mim, ao alcance do braço.

Coloquei o braço entre as grades e estendi a mão. Olhei-a por momentos, mas acabou me dando a sua. – Amber. – disse solenemente, olhando-a nos olhos. – Chad vai ficar em segurança. Prometo.

Acenou com seriedade. – Vou cuidar dele.

– Não. – engoli e em seguida imprimi autoridade a minha voz. – Você está morta, Amber. – sua expressão não se alterou. Estreitei os olhos, imitando Adam o melhor que conseguia. – Acredite em mim.

Primeiro, seu rosto se iluminou com aquele horrível sorriso falso, e depois começou a dizer alguma coisa. Olhou para a minha mão e a seguir para Corban e Chad, que ainda não tinha dado pela sua presença.

– Está morta. – disse mais uma vez.

Colapsou. Não foi uma queda graciosa ou suave. Sua cabeça bateu no chão com um ruído surdo.

– Ele consegue se apoderar dela novamente? – Corban perguntou urgentemente.

Ajoelhei-me e fechei os olhos. – Não. – respondi com mais convicção do que sentia. Quem sabia o que Blackwood era capaz de fazer? No entanto, seu marido precisava acreditar que para ela tudo tinha acabado. Em todo o caso, não seria Amber a habitar seu corpo. Amber tinha desaparecido.

– Obrigado. – me disse, com lágrimas nos olhos. Limpou o rosto e deu tapinhas no ombro de Chad.

– Ei, pequeno. – disse, se afastando para que Chad pudesse ver o corpo de Amber. Depois, falaram entre si durante muito tempo. Corban vestiu o papel de duro e deu ao filho o presente da crença das qualidades de super-homem dos pais pelo menos mais um dia.

Dormimos, todos nós, o mais longe possível do corpo de Amber. Empurraram a cama para junto da minha jaula e ambos dormiram nela. Eu dormi no chão, ao lado deles. Chad enfiou o braço entre as grades e deixou a mão ficar em meu ombro. O chão da jaula podia ser feito de unhas e, ainda assim, teria dormido.

 

 

 

– Mercy?

A voz era estranha, o cimento debaixo da minha bochecha também era. Me mexi e logo me arrependi. Tudo doeu.

– Mercy, é de noite e Blackwood vai aparecer aqui daqui a pouco.

Sentei-me e olhei para o outro lado do quarto, na direção do oakman.

– Boa noite. – não usei seu nome. Alguns Fae podem ser engraçados sobre os nomes, e a forma como Blackwood abusara dele me fez pensar que o oakman era um deles. Não podia lhe agradecer e procurei encontrar um modo de reconhecer o fato de ter realizado meu pedido, mas não consegui.

– Vou tentar uma coisa. – finalmente disse. Fechei os olhos e chamei Stefan. Quando senti que tinha feito o melhor que era capaz, abri os olhos e esfreguei meu pescoço dolorido.

– O que está tentando fazer? – Corban perguntou.

– Não posso lhe dizer. – respondi. – Lamento muito, mas Blackwood não pode saber, e não tenho certeza se funcionou. – mas achava que sim. Nunca conseguira sentir Stefan como sentia Adam. Se Blackwood (ainda) não tinha conseguido se apoderar de mim... isso devia significar que Stefan ainda conseguia me ouvir. Assim esperava.

Também tentei chamar Adam. No entanto, não senti nada dele nem do bando. Provavelmente, era melhor assim. Blackwood dissera que estava preparado para lobisomens, e eu tinha acreditado nele.

Blackwood não apareceu. Todos tentamos não reparar em Amber, e fiquei grata pelo frio que se fazia no local. Os fantasmas também não apareceram. Falamos de vampiros até ter contado tudo que sabia, de modo geral, deixando de fora apenas os nomes.

Stefan também não apareceu.

Após horas de tédio e alguns minutos de embaraço quando alguém teve que usar os baldes que tinham nos deixado, finalmente tentei voltar a dormir. Sonhei com ovelhas. Muitas ovelhas.

 

 

Alguma hora do dia seguinte, me arrependi de não ter comido o que Amber tinha preparado. Mas tinha mais sede do que qualquer coisa. A bengala Fae aparecera mais uma vez e eu lhe dissera para ir embora e manter-se em segurança, falando baixinho para que ninguém reparasse. Quando voltei a olhar para o canto onde estava, tinha desaparecido.

Chad me ensinou e ao oakman a praguejar na linguagem de sinais e trabalhou com determinação até dominarmos a arte de falar com os dedos. Fazia doer meus dedos, mas mantinha-o ocupado.

Ficamos sabendo que Blackwood estava novamente de olhos em nós quando Corban se calou no meio de uma frase. Depois de alguns minutos, virou a cabeça e Blackwood abriu a porta.

O vampiro olhou para mim de forma reprovadora. – Onde que acha que vou arranjar uma nova cozinheira para você? – levou o corpo e voltou algumas horas depois com maçãs, laranjas e garrafas de água, jogando-as descuidadamente pelas grades.

Suas mãos cheiravam a Amber: putrefação e terra. Calculei que a tivesse enterrado em algum lugar.

Levou Corban com ele. Quando o pai de Chad retornou, estava fraco, andava cambaleando e tinha mais uma marca de mordida no pescoço.

– Meu amigo é melhor do que você nisso. – disse em uma voz mal-humorada porque Blackwood tinha parado, com a porta da jaula aberta, para olhar Chad. – Não deixa marcas enormes.

O vampiro fechou a porta com estrondo, trancou-a e enfiou a chave no bolso.

– Sempre que você abre a boca. – ele disse. – Fico espantado pelo Marrok não ter torcido seu pescoço quando era mais nova. – sorriu ligeiramente. – Tudo bem. Uma vez que você é a causa da minha fome, pode dar-lhe de comer.

A causa da sua fome... Quando expulsei Amber de seu corpo morto, isso deve tê-lo magoado. Ainda bem. Agora só precisava fazê-lo criar muito mais zumbis, ou seja, lá que raios lhes chamavam. Depois, também podia destruí-los. Talvez pudesse enfraquecê-lo a ponto de podermos controlá-lo. Mas, como é evidente, as pessoas mais disponíveis para candidatas a zumbis éramos nós.

Abriu a porta da minha jaula e tive de me concentrar com muito esforço no presente para não entrar em pânico. Lutei com ele. Não acredito que ele estivesse a espera disso.

Anos de karatê tinham apurado meus reflexos e era mais rápida do que qualquer humano. Mas estava fraca, uma maçã por dia pode fazer uma pessoa sadia, mas, isoladamente, não é a melhor dieta para um desempenho ideal. Depois de um tempo muito curto para satisfazer o meu ego, Blackwood tinha me imobilizado.

Dessa vez, manteve-me consciente enquanto mordia meu pescoço. Doeu o tempo todo. Ou se tratava de um castigo adicional, ou as mordidas de Stefan estavam criando problemas, não sabia o suficiente para ter certeza. Quando tentou me alimentar, resisti com toda a força que consegui reunir e finalmente agarrou meu maxilar e forçou nosso contato visual.

Acordei no lado oposto da jaula, e Blackwood tinha desaparecido. Chad estava fazendo barulho, tentando atrair minha atenção. Ergui-me sobre as mãos e joelhos. Quando se tornou muito claro que não ia conseguir me levantar mais do que isso, sentei-me em vez de ficar de pé. Chad parou de produzir aqueles sons tristes e desesperados. Reproduzi os sinais que me ensinara começando por “F”, muito devagar e com dedos desajeitados.

– É isso. Acabou a Garota Simpática. Da próxima vez, vou esfolá-lo.

Minhas palavras o fizeram sorrir um pouco. Corban estava sentado no meio da jaula deles olhando para uma marca no cimento.

– Muito bem, oakman. – disse cansada. – É de dia ou de noite?

Antes de me responder, Stefan apareceu na jaula. Pisquei estupidamente, fitando-o. Tinha perdido as esperanças em relação a sua vinda e só quando o vi percebi que estava ali. Estendi a mão e toquei seu braço de leve para me certificar que era real.

Deu um tapinha em minha mão e olhou para cima, como se conseguisse ver o piso de cima pelo teto.

– Ele sabe que estou aqui. Mercy...

– Tem que levar Chad. – eu disse urgente.

– Chad? – Stefan acompanhou o movimento dos meus olhos e retesou. Começou balançar a cabeça.

– Blackwood matou a mãe dele, mas transformou-a em um zumbi para fazer a limpeza da casa. Até eu a ter matado definitivamente. – expliquei-lhe. – Chad tem que ser levado para um lugar seguro.

Fitou o rapaz, que também o observava fixamente. – Se o levar, só daqui duas noites posso voltar. Vou ficar inconsciente, e eu sou a única pessoa que sabe aonde você está. Eu e Marsilia. – pronunciou seu nome como se ainda estivesse zangado com ela. – E ela não vai mexer um dedo para te ajudar.

– Eu consigo sobreviver durante duas noites. – afirmei com convicção.

Stefan cerrou os punhos. – Se eu fizer isso. – disse feroz. – Se eu fizer isso e você sobreviver, vai me perdoar pelos outros.

– Sim. – repliquei. – Leve Chad daqui.

Desapareceu, depois reapareceu parado ao lado de Chad. Começou a fazer sinais para dizer alguma coisa, mas ambos ouvimos Blackwood descer as escadas correndo.

– Para junto de Adam ou Samuel. – acrescentei com urgência.

– Sim. – disse. – Faça o favor de ficar viva.

Esperou até que eu assentisse com a cabeça e em seguida desapareceu junto com Chad.

 

 

Blackwood estava muito mais chateado com a presença de Stefan na sua casa do que com a fuga de Chad. Falou alto e cheio de cólera, e se me batesse novamente, não sei se seria capaz de cumprir a promessa que fizera a Stefan.

Aparentemente, ele chegou a mesma conclusão. Olhou para baixo na minha direção.

– Há formas de manter outros vampiros longe da minha casa. No entanto, são exigentes, e não acredito que seu amigo Corban irá sobreviver a minha sede. – inclinou-se para frente. – Ah, agora está assustada. Ainda bem. – inalou como um provador de vinhos diante de um vintage particularmente bom.

Foi embora.

Enrosquei-me no chão e abracei minha própria miséria, assim como a bengala. O oakman se agitou.

– Mercy, o que você tem em mãos?

Ergui uma mão e acenei debilmente o objeto no ar para que pudesse vê-lo. Não doeu tanto como pensava.

Fez uma breve pausa. Depois, em um tom reverente, o oakman disse: – Como que veio parar aqui?

– A culpa não é minha. – disse. Precisei de algum tempo até me sentar... e percebi que Blackwood tivera um autocontrole bem superior ao que aparentava, uma vez que não tinha nada partido ou quebrado. Eu estava quase toda com marcas negras, mas não ter nada quebrado era bom.

– Como assim? – o oakman perguntou.

– Tentei devolvê-la. – expliquei. – Mas insiste em aparecer. Disse que não era um bom lugar para ela, mas só desaparece por algum tempo. Pouco depois, volta.

– Se me permite. – disse formalmente. – Posso vê-la?

– Claro. – respondi e tentei arremessa-la na direção dele. Era de esperar que conseguisse fazê-lo. A distância entre nossas jaulas de menos de três metros, mas os... ferimentos tornaram a tarefa mais difícil.

Caiu no chão a meio caminho entre nós. No entanto, quando olhei, consternada para o objeto, rolou de volta para mim, parando apenas quando bateu nas grades.

Na terceira tentativa, o oakman o pegou no ar.

– Ah, Lugh{13}, fez um trabalho tão perfeito. – disse acariciando o objeto. Encostou-lhe a bochecha. – Segue-a porque tem um serviço a lhe prestar, Mercy. – sorriu, despertando traços e rugas no rosto cor de madeira escura e tornando roxos e seus olhos negros. – E porque gosta de você.

Comecei a dizer uma coisa, mas um ímpeto de magia me interrompeu.

O sorriso do oakman se dissipou. – Magia brownie. – explicou. – Ele está tentando impedir o outro vampiro de entrar. A brownie era dele antes de mim, e ela conseguiu se libertar essa última primavera. O uso que ele fez do poder dela ainda é quase completo. – olhou para Corban. – A magia que ele usa vai deixá-lo faminto.

Havia uma coisa que eu podia fazer, e isso significava por de lado a promessa que fiz a Stefan. No entanto, não podia permitir que Blackwood matasse Corban sem tentar defendê-lo.

Despi-me e me transformei. As grades da minha jaula estavam muito próximas. Mas, tive esperança, de não serem tão próximas.

Os coiotes são estreitos. Muito estreitos. Onde consigo enfiar a cabeça, consigo enfiar o resto do corpo. Depois de atravessas as grades da minha jaula, sacudi-me para endireitar o pelo e observei a porta se abrir.

Blackwood não estava me vendo, estava de olhos em Corban. Então, apliquei o primeiro golpe.

A rapidez é grande vantagem física que possuo. Sou tão veloz quanto a maior parte dos lobisomens, e, a julgar pelo que tinha visto, também dos vampiros.

Devia estar enfraquecida e um pouco lenta por causa dos danos que Blackwood me causara, bem como pela falta de comida e pelo fato de estar servindo de alimento ao vampiro. Acontece que trocar sangue com um vampiro pode ter outros efeitos. Tinha me esquecido disso. Tornava-me forte.

Desejei, com toda a minha força, pesar noventa quilos em vez de apenas quinze. Desejei ter presas mais compridas e garras mais afiadas, porque a única coisa que consegui provocar foram danos superficiais que ele curou quase na mesma hora que infligi.

Agarrou-me com ambas as mãos e atirou-me contra a parede de cimento. A sensação que tive foi a de que voava em câmera lenta. Tive tempo para me virar e amortecer o impacto com as patas, em vez de bater com o quadril como era sua intenção. Tive capacidade de sair ilesa e, caindo no chão, correr novamente em sua direção para atacar.

No entanto, dessa vez, o elemento surpresa não estava ao meu lado. Se estivesse fugindo dele, não teria como me pegar. Porém, em combate, a vantagem da minha maior velocidade perdia a favor da desvantagem do meu tamanho. Feri-o uma vez, cravando minhas garras em seu ombro, mas o que pretendia era matá-lo, e simplesmente era impossível para um coiote, por muito rápido e forte que fosse, matar um vampiro.

Lancei-me para trás, a procura de uma abertura... e ele caiu para frente, batendo com a cara no chão de cimento. Erguido como uma bandeira de vitória, cravado bem fundo nas costas de Blackwood, estava a bengala.

– Uma vez, fui um lanceiro razoável. – o oakman disse. – E Lugh era ainda melhor. Tudo o que ele fez tinha a capacidade de se transformar em uma lança quando necessário.

Ofegante, olhei-o fixamente, e depois para baixo na direção de Blackwood. Que se contorceu.

Voltei a minha forma humana porque assim conseguia abrir portas com mais facilidade. Depois, corri para a cozinha onde, esperava eu, haveria uma faca suficientemente grande para atravessar ossos.

O bloco de madeira ao lado da bancada, continha uma faca de trinchar e uma enorme faca de chef. Empurrei uma em cada mão e corri escada abaixo.

A porta estava fechada e a maçaneta não girava.

– Deixe-me entrar. – ordenei em uma voz que nem reconheci como minha.

– Não. Não. – disse a voz de John. – Não pode matá-lo. Eu vou ficar sozinho.

Mas a porta se abriu, e isso era a única coisa que me interessava.

Não vi John, todavia Catherine estava ajoelhada ao lado de Blackwood. Olhou-me de soslaio, mas estava prestando mais atenção ao vampiro moribundo (assim eu desejei ardentemente).

– Deixe-me beber, querido. – disse. – Deixe-me beber que cuido dela por você.

Blackwood olhou para mim ao mesmo tempo que tentava colocar os braços por baixo do próprio corpo. – Beba. – disse. Depois sorriu.

Soltando um cacarejo, Catherine inclinou a cabeça.

Ainda estava bebendo quando a faca de trinchar atravessou sua cabeça imaterial e trespassou o pescoço de Blackwood. Um machado teria sido melhor, mas com a força dele ainda persistindo em meus braços, a faca de trinchar fez o serviço. Um segundo golpe arrancou-lhe completamente a cabeça.

Sua cabeça tocou meus dedos dos pés, e afastei-os. Com uma faca em cada mão, não tinha qualquer possibilidade de me sentir vitoriosa ou maldisposta por causa do que tinha feito. Não com uma Catherine muito sólida sorrindo com seu sorriso de vó a apenas dois metros de mim.

Sorridente e com a boca vermelha do sangue de Blackwood, disse: – Morra. – e estendeu...

No ano passado, o Sensei passou seis meses treinando com sai{14}. As facas não permitiam um equilíbrio de manejo tão bom para lutar, mas funcionavam. Com elas, fizera um trabalho de carniceiro, e conseguira-o apenas agarrando-me ferozmente ao aqui e agora. O chão, as paredes, eu mesma, tudo estava ensopado de sangue. E ela não estava morta... ou melhor, já estava morta. As facas mantinham-na longe de mim, mas nenhum dos ferimentos parecia tê-la afetado.

– Atire-me a bengala. – o oakman disse suavemente.

Larguei a faca de chef, agarrei a bengala com a mão livre. Deslizou das costas de Blackwood como se não desejasse estar ali. Por momentos, ocorreu-me que a extremidade seria pontiaguda, mas minha atenção estava centrada em Catherine e não tinha como me certificar.

Atirei-o na direção do oakman e a afastei Catherine da jaula de Corban. Este colapsara no momento em que eu cortara a cabeça de Blackwood em um movimento não muito diferente de Amber. Desejei que não estivesse morto, mas se estivesse, não havia o que pudesse fazer.

Do canto do olho, vi o oakman lamber a bengala coberta de sangue com uma língua que teria pelo menos vinte centímetros de comprimento.

– O sangue da morte é melhor. – disse. E quando arremessou a bengala contra a parede exterior e disse uma palavra...

O estrondo me fez perder o equilíbrio e caí sobre o cadáver de Blackwood. Fui atingida na nuca por alguma coisa.

 

Olhei fixamente para a luz do sol que cobria minha mão. Precisei de algum tempo até notar que o que quer que tivesse me atingido devia ter me feito perder os sentidos. Debaixo da minha mão, estava um monte de cinzas e afastei-me. Enterrada nas cinzas estava uma chave. Era uma chave bonita, daquelas chaves-mestras ornamentadas. Precisei reunir toda a minha força de vontade para recolocar a mão naquilo que fora Blackwood e pegar nela. Sentia dor da cabeça aos pés, porém as manchas negras que o vampiro me infligira após a fuga de Chad tinham praticamente desaparecido. E as outras se extinguiram a medida que as observava.

Não queria pensar muito nisso.

O oakman tinha uma mão fora das grades, mas não tinha conseguido tocar o feixe de luz solar que entrava no local através do buraco que fizera na parede com minha bengala. Seus olhos estavam fechados.

Abri a jaula, porém não se moveu. Tive de arrastá-lo para fora. Não reparei se estava respirando ou não. Ou tentei muito não fazer. E se não estivesse? Pensei. É muito difícil matar um Fae.

– Mercy? – era Corban.

Olhei-o por momentos, tentando pensar no que fazer a seguir.

– Pode destrancar a porta? – sua voz era suave e afável. O tipo de voz que se usaria para falar com uma mulher louca.

Olhei para mim mesma e percebi que estava nua e coberta de sangue da cabeça aos pés. A faca de trinchar estava na minha mão esquerda. Minha mão estava presa a ela como um grampo e tive que fazer um esforço para deixá-la cair no chão.

A chave também destrancou a porta de Corban.

– Chad está com meus amigos. – expliquei. Articulava as palavras de forma pouco clara e reconheci que estava um pouco em choque. A conscientização me ajudou um pouco e a minha voz se tornou mais clara quando disse: – O tipo de amigos que conseguem proteger um garoto de um vampiro que enlouqueceu selvagemente.

– Obrigado. – disse. – Você esteve inconsciente por muito tempo. Como se sente?

Dirigi-lhe um olhar cansado. – Minha cabeça dói.

– Vamos limpá-la.

Conduziu-me escada acima. Só quando estava sozinha em um gigante banheiro dourado e preto que me ocorreu que devia ter pegado minhas roupas. Abri o chuveiro.

– John. – disse. Não me dei ao trabalho de procurá-lo porque conseguia senti-lo. – Nunca mais vai fazer mal a ninguém. – senti o ímpeto de magia que me disse que o que conseguia fazer aos fantasmas funcionara nele. Portanto, acrescentei: – E saia desse banheiro.

Esfreguei-me bem e me embrulhei em uma toalha tão grande que nela caberiam três de mim. Quando saí, Corban estava caminhando no corredor em frente ao banheiro.

– A quem você liga em uma situação dessas? – perguntou. – A coisa está feia. Blackwood desapareceu, Amber está morta, provavelmente enterrada no quintal traseiro. Eu sou advogado, e se fosse meu próprio cliente, iria aconselhar a evitar julgamento, a confessar como culpado e assim cumprir uma pena reduzida, se conseguisse.

Estava assustado.

Finalmente, ocorreu-me que tínhamos sobrevivido. Blackwood, e sua doce vampira fantasma com modos de avó tinham morrido. Ou pelo menos, eu esperava que ela tivesse morrido. Não havia um segundo monte de cinzas na sala.

– Reparou na outra vampira? – perguntei.

Seu rosto ficou inexpressivo. – Outra vampira?

– Esqueça. – disse. – Espero que a luz do Sol a tenha matado.

Levantei-me e encostei em uma mesinha de canto. Marquei o número de celular de Adam.

– Ei. – disse. Estava com voz de quem tinha passado a noite fumando charuto.

– Mercy? – e aí soube que estava a salvo.

Sentei-me no chão.

– Ei. – repeti.

– Chad nos contou onde vocês estão. – disse. – Estamos a cerca de vinte minutos daí.

– Chad contou pra vocês? – Stefan ainda estaria inconsciente, sabia. Simplesmente, não tinha ocorrido que Chad lhes indicasse onde estávamos. Que estupidez a minha. A única coisa de que precisava era de uma folha de papel.

– Chad está bem? – Corban perguntou com urgência.

– Está ótimo. – disse. – E liderando a cavalaria até aqui.

– Parece que não somos necessários. – Adam disse.

Eu necessitava dele.

– Blackwood está morto. – informei a Adam.

– Foi o que me pareceu, considerando que está me ligando.

– Sem a ajuda do oakman, a coisa podia ter sido feia. – disse-lhe. – E acho que o oakman está morto.

– Nesse caso, que seja prestada a devida honra. – Samuel interveio. – Morrer matando um dos espíritos malignos das trevas não é ruim, Mercy. Chad está perguntando pelo pai.

Limpei o rosto e me concentrei.

– Diga ao Chad que ele está bem. Nós dois estamos. – observei as marcas negras desaparecerem das minhas pernas. – Podem... podem parar em uma loja de conveniência e comprar um carrinho de brinquedo amarelo? Tragam com vocês quando vierem.

Fez-se uma breve pausa. – Um carrinho amarelo de brinquedo? – Adam perguntou.

– Isso mesmo. – lembrei-me de outra coisa. – Adam, Corban está preocupado com a possibilidade de a polícia achar que foi ele quem matou Amber... e provavelmente o Blackwood, apesar de não haver corpos.

– Confie em mim. – Adam assegurou. – Vamos cuidar de tudo.

– Tudo bem. – disse. – Obrigada. – e depois pensei um pouco mais. – Os vampiros vão querer acabar com Corban e Chad. Eles sabem demais.

– Você, Stefan e o bando são as únicas pessoas que sabem disso. – disse Adam. – O bando não quer saber e o Stefan não ia traí-los.

– Ei. – disse suavemente, pressionando o fone contra o rosto até quase sentir dor. – Te amo.

– Estarei aí.

 

 

Deixei Corban sentado na sala de estar e desci as escadas relutantemente.

Não queria ter certeza se o oakman estava morto. Não queria confrontar Catherine no caso de estar lá... e pensei que ela teria me matado se tivesse tido oportunidade de fazê-lo. Mas também não queria estar nua quando Adam chegasse.

O oakman tinha desaparecido. Entendi que isso deveria ser um bom sinal. Os Fae, tanto quanto sabia, não se transformavam em pó, nem desapareciam depois de morrer. Portanto, se não estava aqui, isso significava que tinha ido embora.

– Obrigada. – sussurrei, porque não estava presente para me ouvir. A seguir, me vesti e subi as escadas correndo para aguardar nosso resgate na companhia de Corban.

Quando Adam chegou, trazia o carrinho amarelo que lhe pedira. Era uma replica de um Volkswagen Beetle. Observou-me enquanto o retirava da embalagem e seguiu-me escada abaixo. Pousei-o na cama do pequeno quarto onde acordara pela primeira vez.

– É para você. – disse.

Ninguém me respondeu.

– Vai me contar o que foi aquilo? – Adam perguntou enquanto subíamos as escadas.

– Um dia. – respondi. – Quando estivermos contando histórias de fantasmas em um acampamento em volta de uma fogueira e eu quiser te assustar.

Sorriu, apertando o braço ao redor de meus ombros. – Vamos para casa.

Fechei a mão em volta do colar de carneiro que encontrara na mesa, ao lado do telefone, como se alguém o tivesse deixado ali para que eu o encontrasse.


Capítulo 13

 

 

No sábado seguinte, pintamos a oficina. Fiel a sua palavra, Wulfe removera a cruz de ossos. O mínimo que podia ter feito era repintar a porta, no entanto removera os ossos deixando o grafiti que os tapavam. Ocorreu-me que o fizera apenas para me chatear.

As irmãs de Gabriel tinham elegido a cor-de-rosa como a nova cor e ficaram muito desapontadas quando insisti no branco. Então, disse-lhes que podiam pintar a porta de cor-de-rosa.

É uma oficina. Que mal tem?

– É uma oficina. – disse a Adam, que estava de olhos fixos na porta cor-de-rosa fluorescente. – Que mal tem?

Soltou uma risada e balançou a cabeça.

– Fere meus olhos, mesmo no escuro, Mercy. Ei, já sei o que posso te oferecer quando fizer aniversário. – disse. – Um conjunto de ferramentas cor-de-rosa ou roxo. Talvez com padrão de pele de leopardo.

– Está me confundindo com a minha mãe. – repliquei com dignidade. – A porta foi pintada com tinta spray barata, já que nenhuma marca de tintas conceituadas tinha essa cor tão berrante no catalogo. Espera duas semanas e vai ver que essa cor rosa alaranjado horrível desaparece. Nessa hora, posso contratá-las para pintá-la de marrom ou verde.

– A polícia revistou a casa do Blackwood. – Adam informou. – Não encontraram qualquer indicio de Blackwood ou Amber. Oficialmente, acreditam que Amber poderá ter fugido com Blackwood. – suspirou. – Eu sei que isso deixa Amber mal na foto injustamente, mas foi a melhor história que conseguimos inventar para deixar o marido a salvo.

– As pessoas que importam sabem. – disse. Amber não tinha parentes próximos de quem gostasse. Dentro de meses, planejava fazer uma viagem até Mesa, Arizona, onde Char estava vivendo. Iria contar-lhe, porque Char, excluindo as que já sabiam, era a única pessoa de quem Amber gostava. – Ninguém vai se meter em problemas por causa disso, não?

– As pessoas que importam sabem. – respondeu com um ligeiro sorriso. – Oficialmente, Blackwood assustou muita gente que está satisfeita por ele ter morrido. Ninguém vai aprofundar nada.

– Ainda bem. – toquei a parede branca ao lado da porta. Estava com melhor aspecto. Esperava que não fosse afugentar os clientes. As pessoas são engraçadas. Meus clientes olham para a minha oficina mal conservada e sabem que estão poupando dinheiro que eu não invisto em remodelações.

A prima de Tim, Courtney, cobrira as despesas da tinta e da mão-de-obra por eu ter retirado a queixa contra ela.

– Ouvi dizer que você e Zee chegaram a um acordo sobre a oficina.

Acenei. – Tenho que pagar imediatamente. Palavras dele, e como é um Fae, tem mesmo que ser feito. Vai me emprestar o dinheiro para fazê-lo com a mesma taxa de juros do empréstimo original.

Exibiu um sorriso grande e abriu a porta rosa para que eu entrasse antes dele.

– Então, vai pagar a mesma quantia de antes?

– Tio Mike avançou com essa possibilidade e Zee gostou. – “divertiu-se” seria mais apropriado. Todos os Fae tem um humor estranho.

Stefan estava sentado em minha cadeira ao pé da caixa registradora. Passara duas noites imóvel no porão de Adam e depois desaparecera sem dizer uma palavra, nem a Adam nem a mim.

– Ei, Stefan. – disse.

– Vim para te dizer que já não temos uma ligação. – disse ele rigidez. – Blackwood quebrou-a.

– Quando? – perguntei. – Ele não teve tempo. Você respondeu meu chamado e Blackwood morreu pouco tempo depois disso.

– Calculo que tenha sido quando voltou a se alimentar de você. – Stefan disse. – Porque quando Adam me ligou para dizer que tinha desaparecido, não conseguia te encontrar.

– Então, como me encontrou? – perguntei.

– Por Marsilia.

Olhei para o seu rosto, mas não consegui entender o quanto tinha lhe custado perdir ajuda. Ou o que ela exigira em troca.

– Não me contou isso. – Adam disse. – Teria ido contigo.

O vampiro sorriu sinistramente. – Nesse caso, ela não teria dito nada.

– Ela sabia onde Blackwood tinha o covil? – Adam inquiriu.

– Essa era a minha esperança. – Stefan pegou uma caneta e começou a brincar. Eu devia ter sido a última pessoa a usá-la porque seus dedos ficaram manchados com um pouco de óleo. – Mas não. O que ela sabia era que Mercy tinha uma mensagem para mim com um selo de sangue e cera. Com o sangue dela. Conseguiu detectar o local onde estava a mensagem. Uma vez que estava no limite de Spokane, tínhamos certeza de que Mercy ainda a tinha consigo.

Isso reavivou a memória. Retirei a carta maltratada do bolso de trás. Não tinha sido lavada junto com minhas jeans, mas apenas porque Samuel tinha o habito de verificar os bolsos antes de por roupa para lavar. Por causa de alguma coisa relacionada com porcas e parafusos que faziam um barulho irritante na máquina de lavar, tinha achado que a mensagem era dirigida a mim, mas havia a possibilidade de estar sendo paranóica.

Stefan pegou a carta como se estivesse lhe entregando uma embalagem de nitroglicerina. Abriu e leu-a. Quando terminou, amassou-a com o punho e olhou fixamente para o balcão.

– Ela diz. – relatou em uma voz baixa e controlada. – Que meu rebanho está em segurança. Ela e Wulfe o levaram e me convenceram de que todos eles tinham morrido. Era necessário que eu acreditasse que estavam mortos, que Marsilia já não me queria mais no ninho. Ela os tem em segurança. – fez uma pausa. – Quer que eu volte para casa.

– O que você vai fazer? – Adam perguntou.

Tinha quase certeza de que sabia o que ia fazer. Mas tinha a esperança de que a obrigasse a se desdobrar em mil esforços para que isso acontecesse. Podia não ter assassinado o rebanho dele, mas tinha machucado ele. Stefan sentiu isso.

– Vou refletir sobre o assunto. – disse. No entanto, endireitou a folha e a leu novamente.

– Ei, Stefan. – eu disse.

Olhou para cima.

– Você é fantástico sabia? Agradeço por todos os riscos que correu por mim.

Sorriu e dobrou a carta cuidadosamente. – Sim, bem, você também é fantástica. Se algum dia quiser voltar a ser meu jantar... – desapareceu do escritório sem se despedir.

– É melhor ir buscar sua bolsa. – Adam disse. – Não podemos chegar atrasados.

Adam ia me levar para Richland, onde a companhia de opera cômica local ia interpretar O Rei dos Piratas, Gilbert e Sullivan, piratas e não vampiros, me prometeu.

Era uma produção excelente. Ri até ficar rouca e saí cantarolando entredentes os últimos acordes.

– Sim. – disse. – Acho que o rapaz que fez o papel do Rei dos Piratas foi espetacular.

Parou imediatamente.

– O que foi? – perguntei, franzindo ao enorme sorriso que tinha estampado no rosto.

– Eu não disse que tinha gostado do Rei dos Piratas.

– Oh. – fechei os olhos e ele estava ali. Uma presença calorosa e tensa no limiar da minha percepção. Quando abri os olhos, estava a minha frente. – Legal. – disse. – Você voltou.

Beijou-me calmamente. Quanto terminou, estava mais do que pronta para ir para casa. Depressa.

– Você me faz rir. – desse ele seriamente.

 

 

Fui para a minha casa dormir. Samuel ia trabalhar até de madrugada e queria estar presente quando ele chegasse.

Parei antes de entrar porque senti alguma coisa diferente. Respirei fundo, mas não senti o cheiro de vampiro algum. No entanto, havia um carvalho ao lado da janela do meu quarto.

Não estava naquele lugar quando saí essa manhã para ir pintar a oficina. Mas ali estava ele, com um tronco que tinha quase cinco centímetros de diâmetro e ramos alguns centímetros mais altos do que o meu trailer. Não havia qualquer indicio de terra remexida, apenas a arvore. Suas folhas começavam a mudar de cor para o outono.

– De nada. – eu disse. Quando recuei para entrar em casa, tropecei na bengala. – Ah, você está de volta.

Pousei-a na minha cama enquanto tomava uma ducha, e ainda estava lá quando saí. Vesti uma das camisas de flanela de Adam porque as noites de outono eram muito frescas e meu companheiro de casa não queria ligar o aquecimento. E também porque cheirava a Adam.

Quando a campainha soou, vesti jeans e deixei a bengala no mesmo lugar.

Marsilia se encontrava parada na varanda. Vestia jeans de cintura baixa e uma camisa preta decotada. – Minha carta foi aberta esta noite. – disse.

Cruzei os braços sobre o peito e não a convidei para entrar. – Está certo. Dei para Stefan.

Bateu o pé no chão. – Ele a leu?

– Você não chegou a matar as ovelhas dele. – disse em um tom de voz entediado. – Só os machucou e quebrou seus laços entre eles e Stefan para ele pensar que tinham morrido.

– Reprova o que fiz? – ergueu a sobrancelha. – Qualquer outra Senhora os teria matado, teria sido mais fácil. Se estivesse em si, saberia o que teríamos feito. – sorriu. – Ah, estou vendo. Você estava preocupada com as ovelhas dele. Melhor um pouco dolorido, mas vivo, não lhe parece?

– Por que você está aqui? – perguntei.

Seu rosto ficou inexpressivo e achei que talvez não fosse me responder.

– Porque a carta foi lida e Stefan não voltou.

– Você o torturou. – disse. – Quase o forçou a fazer uma coisa que ele jamais faria de livre e espontânea vontade...

– Quem me dera que ele a tivesse matado. – disse sinceramente. – Mas acontece que isso o deixaria magoado. Eu conheço Stefan. Conheço seu controle. Você nunca esteve em perigo.

– Ele não acredita nisso. – repliquei. – Agora, atira-lhe um osso. “Olha, Stefan, na verdade nós não matamos seu rebanho. Torturamos você, machucamos você, te abandonamos... mas foi tudo por uma boa causa. Queríamos que Andre morresse e deixamos que se contorcesse em culpa durante meses porque isso servia o nosso propósito”. E você se pergunta por que ele não retornou para você?

– Ele compreende. – Marsilia disse.

– Compreendo. – as mãos de Stefan desceram por meus ombros e me puxaram alguns centímetros para trás da soleira. – Compreendo o porquê e o como.

Marsilia se fixou nele... e por momentos conseguir ver quão velha, e cansada ela estava.

– Para o bem do ninho. – ela replicou.

Colocou o queixo em minha cabeça. – Eu sei. – abraçou-me acima do peito e me puxou contra si. – Eu vou voltar. Mas não agora. – suspirou em meu cabelo. – Amanhã. Nessa hora, devolva os meus. – e desapareceu.

Marsilia olhou para mim. – Ele é um soldado. – disse. – Compreende a necessidade de se sacrificar pelo bem geral. É isso que os soldados fazem. Não é a tortura que ele não perdoa. Nem o fato de ter mentido para ele em relação às ovelhas. É por eu tê-la colocado em perigo que está zangado. – depois, com toda a calma, disse: – Se eu pudesse matá-la, faria.

E desapareceu, exatamente da mesma maneira que Stefan.

– Igualmente. – disse ao espaço onde Marsilia estivera.

 

 

 


{1} Corrida de cavalo efetuada em rodeios que consiste em percorrer, no mais curto espaço de tempo, um trajeto triangular definido pelo posicionamento de três barris que tem que ser contornados. Conhecido no Brasil como Prova do Tambor.
{2} Lucrécia Bórgia - foi a filha ilegítima de Rodrigo Bórgia, importante personagem italiano do Renascimento, que viria a se tornar o papa Alexandre VI. O irmão de Lucrécia foi o conhecido déspota César Bórgia, o livro O Príncipe de Nicolau Maquiavel baseou-se em sua historia.
{3} É uma mistura de varias artes marciais, associadas as luvas e os golpes do Boxe aos chutes do Karatê.
{4}Sabonete liquido particularmente forte.
{5} Loja de materiais de jardinagem.
{6} Biografia de Nathaniel Bowditch, da autoria de Jean Lee Latham.
{7}Poeta irlandês, dramaturgo, místico e figura publica.
{8} Segundo as lendas nativas americanas, um Trapaceiro (Trickster) é uma figura que assume a forma de diferentes animais, entre eles o coiote, e se caracteriza por agir contra todas as convenções e regras.
{9} Os kelpies são descritos como seres parecidos com fortes cavalos que assombram os rios e lagos da Escócia e Irlanda. Normalmente preto (embora as vezes seja descrito com outras cores), o animal pode ser identificado por sua crina constantemente encharcada, pingando sem parar. Sua pele tem uma textura similar à de uma foca, lisa e macia, mas gelada como um cadáver.As lendas afirmam que o monstro atrai os seres humanos, especialmente crianças, para que montem em suas costas. Uma vez posicionadas, ele gruda as vítimas ao seu corpo e mergulha em grandes porções de água, afogando e devorando seus alvos. Outras versões alegam que o ser é capaz de se transformar em uma bela mulher para atrair homens.
{10} Elemento químico metálico e raro.
{11} Tipo de fibra elástica usada na fabricação de tecidos elásticos.
{12}Fae da mitologia galesa. Literalmente, homem-carvalho
{13} Deus celta
{14} Espada em forma de punhal, originaria de Okinawa e utilizada nas artes marciais.

 

 

                                                   Patricia Briggs         

 

 

 

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