Biblioteca Virtual do Poeta Sem Limites
BONECAS ACORRENTADAS
— Chegaremos ao Aeroporto de Schiphol, Amsterdam, dentro de alguns minutos. — Melíflua, sem sotaque, a voz da aeromoça holandesa poderia ter sido precisamente duplicada em uma dúzia de companhias de aviação européias. — Por gentileza, amarrem os cintos e apaguem os cigarros. Esperamos que tenham apreciado este vôo e estamos certos de que gostarão da estada em Amsterdam.
Eu trocara algumas palavras com a aeromoça durante a travessia. Uma moça encantadora, mas dada a certo otimismo sem motivo nas suas opiniões sobre a vida em geral. E eu divergia dela em dois pontos: não apreciara a viagem nem esperava desfrutar vôo nenhum desde aquele dia há dois anos quando os motores de um DC-8 haviam falhado segundos após a decolagem e me levaram a descobrir duas coisas: que um jato com os motores cortados possui as características de um bloco de concreto e que a cirurgia plástica pode ser muito demorada, muito dolorosa, muito cara e nem sempre bem sucedida. Tampouco esperava desfrutar da estada, muito embora Amsterdam seja, com toda probabilidade, a cidade mais bela do mundo e povoada pelos habitantes mais cordiais que podemos encontrar em qualquer parte do planeta: acontece apenas que a natureza de minhas viagens oficiais ao exterior impede o desfrute de qualquer coisa.
Enquanto o grande DC-8 da KLM — eu não sou supersticioso e qualquer avião pode cair — mergulhava entre as nuvens, olhei em volta para o congestionado interior. O grosso dos passageiros, observei, parecia compartilhar de minha crença na loucura inerente ao vôo: os que não estavam usando as unhas para abrir buracos nos acolchoados da KLM inclinavam-se para trás com excessiva indiferença ou batiam papo com a alegre animação daqueles bravos espíritos que se dirigem para o destino final com uma piada nos lábios sorridentes, o tipo do condenado que acenaria alegremente para a multidão estupefacta no momento em que a carroça se aproximasse da guilhotina. Em suma, um corte bastante representativo da humanidade. Evidentemente, indivíduos cumpridores da lei. Definitivamente, sem nada de criminoso. Geralmente: sem coisa alguma que os caracterizasse.
Ou talvez isto seja injusto — esta história de dizer que nada os caracterizava. Ao enquadrar o indivíduo nessa descrição bastante depreciativa, deve-se forçosamente dispor de termos de referência comparativos para justificá-la: infelizmente para o resto dos passageiros, havia duas pessoas a bordo daquele avião que teriam tornado todos os demais figuras sem expressão.
Fitei-as, três poltronas atrás de mim, do outro lado do corredor. Isto dificilmente poderia ser considerado como um gesto de minha parte para despertar a atenção, uma vez que a maioria dos homens quase nada mais fizera do que olhar para elas desde a partida do Aeroporto de Heathrow: tê-las ignorado teria sido um método quase garantido de atrair a atenção.
Apenas duas moças, sentadas juntas. Podem-se encontrar duas moças sentadas juntas em quase qualquer lugar desta terra, mas seria preciso consumir os melhores anos de nossa vida para encontrar uma dupla como aquela. Uma, com o cabelo tão preto como a asa do corvo, a outra, uma loura platinada, ambas usando, embora economicamente, minivestidos, a morena toda de branco, a loura toda de preto, e ambas com corpos — tanto quanto se podia ver, e podia-se ver um bocado — que demonstravam claramente os imensos progressos feitos por algumas seletas representantes do sexo feminino desde os dias da Vênus de Milo. Acima de tudo, eram fascinante-mente belas, embora não daquele tipo de expressão informe, insossa e vazia que vence concursos de Miss Mundo: curiosamente parecidas, possuíam aquela estrutura óssea delicadamente formada, as feições nítidas e inegável qualidade de inteligência que as conservaria ainda belas vinte anos depois de as murchas Misses Mundo de ontem terem há muito tempo desistido da desigual concorrência.
A loura sorriu-me, um sorriso simultaneamente atrevido e provocador, mas cordial. Retribuí-lhe com a minha expressão impassível e, uma vez que o cirurgião plástico em treinamento que me havia operado não tinha obtido absoluto sucesso em me dar dois lados de rosto iguais, a minha expressão impassível é visivelmente carente de encorajamento. Mas, ainda assim, ela sorriu-me. A morena deu uma cotovelada na companheira, que desviou os olhos, notou a expressão de reprovação da amiga, fez uma careta e deixou de sorrir. Eu também desviei a vista.
Estávamos a menos de duzentos metros do fim da pista. Procurando afastar da mente a quase certeza de que o trem de pouso ia desmoronar-se tão logo tocasse no asfalto, reclinei-me, fechei os olhos e pensei nas duas moças. Fossem quais fossem as minhas deficiências, refleti, ninguém poderia alegar que eu escolhia minhas assistentes sem levar em conta alguns dos aspectos mais estéticos da vida. Maggie, a morena, contava vinte e sete anos e estava comigo havia cinco anos: era inteligente e apenas aquém de brilhante, metódica, esforçada, discreta, digna de confiança e quase nunca cometia um erro — em nosso negócio, aliás, não existe pessoa que nunca os cometa. Mais importante, Maggie e eu nos gostávamos e isto ocorria havia anos, qualificação esta quase essencial nos casos em que uma momentânea perda de fé e interdependência mútua poderia revestir-se de conseqüências de natureza desagradável e permanente: mas, tanto quanto eu sabia, não nos gostávamos demais, o que poderia ter sido igualmente desastroso.
Belinda, loura, vinte e dois anos, parisiense, meia francesa meia inglesa, na sua primeira missão operacional, era uma quantidade quase totalmente desconhecida para mim. Não um enigma, apenas desconhecida como pessoa: quando a Sûreté empresta um de seus agentes, como me havia emprestado Belinda, o dossiê que o acompanha é tão completo que nenhum fato relevante na formação ou passado da pessoa é omitido. Numa base pessoal, tudo que eu pudera depreender era que ela era notavelmente carente naquele aspecto — se não numa admiração sem restrições — que os jovens devem manifestar para com os mais velhos e superiores profissionais, que no caso era eu mesmo. Mas tinha um ar de tranqüila competência e fertilidade de recursos que mais do que compensava quaisquer restrições que ela pudesse ter a respeito de seu empregador.
Nenhuma das duas conhecia a Holanda, o que constituía uma das principais razões para me acompanharem: à parte isto, mulheres jovens e lindas em nossa profissão nada bela são mais raras do que casacos de pele no Congo e, por isso mesmo, menos passíveis de atrair a atenção dos desconfiados e dos perversos.
O DC-8 tocou a pista, o trem de pouso permaneceu inteiro, abri os olhos e comecei a pensar em assuntos de interesse mais imediato. Duelos, Jimmy Duelos esperava-me no Aeroporto de Schiphol e tinha algo importante e urgente para transmitir-me. Importante demais para comunicar mesmo em mensagem cifrada, através dos canais normais: urgente demais para esperar mesmo pelos serviços do correio diplomático de nossa embaixada em Haia. Não me preocupava o conteúdo provável da mensagem, que conheceria dentro de cinco minutos. E sabia que seria o que eu queria. As fontes de informação de Duelos eram impecáveis, a informação em si sempre precisa e cem por cento exata. Jimmy Duelos nunca cometia erros — não, pelo menos, desta natureza.
O DC-8 começava a parar e eu já podia ver o tubo de desembarque projetando-se de um dos lados do edifício principal, pronto para alinhar-se com a porta do avião. Soltei o cinto, levantei-me, lancei um olhar para Maggie e Belinda sem a menor expressão ou reconhecimento e dirigi-me para a porta, com o avião ainda em movimento, numa manobra desaprovada pelas autoridades das companhias aéreas e, sem dúvida alguma, neste caso, por outros passageiros, cujas expressões indicaram claramente que me consideravam um rústico cabeçudo e sem modos que não podia esperar até tomar seu lugar na fila com o resto desta sofredora humanidade. Ignorei-os. Há muito tempo me resignara na certeza de que a popularidade nunca seria meu destino.
A aeromoça sorriu-me, porém, embora isto não constituísse tributo algum à minha aparência ou popularidade. Pessoas sorriem quando estão impressionadas, apreensivas, ou ambas as coisas. Todas as vezes em que viajo de avião, exceto quando de férias — o que ocorre mais ou menos uma vez cada cinco anos — entrego à aeromoça um pequeno envelope fechado, endereçado ao comandante. O comandante, geralmente tão ansioso como qualquer outro homem para impressionar uma moça bonita, geralmente lhe mostra o conteúdo, que é um bocado de fol-de-rol a respeito de absoluta prioridade em todas as circunstâncias e, invariavelmente, totalmente desnecessário, exceto o fato de garantir um impecável e imediato almoço, jantar e serviço de bar. Absolutamente necessário, contudo, era outro privilégio de que eu e meus colegas desfrutávamos — imunidade do tipo diplomático à vistoria na Alfândega, privilégio este muito útil porquanto minha bagagem geralmente continha um par de pistolas muito eficientes, um jogo de pequenas mas muito bem projetadas ferramentas de arrombador e alguns nefandos instrumentos geralmente olhados com reprovação pelas autoridades de imigração dos países mais desenvolvidos. Eu nunca uso uma arma no interior de um avião, pois além da possibilidade de um homem adormecido revelar a um companheiro de assento um coldre sob a axila, causando assim um bocado de consternação desnecessária, somente um louco dispararia uma arma no interior da cabina pressurizada de um aparelho moderno. Isto, aliás, explica o espantoso sucesso dos seqüestradores de aviões: os resultados de uma implosão tendem a ser muito permanentes.
Abriu-se a porta e penetrei no tubo corrugado de desembarque. Dois ou três empregados do aeroporto afastaram-se polidamente quando passei. Dirigi-me para a extremidade do tubo que saía no térreo do terminal e nas duas plataformas rolantes que traziam e levavam passageiros para o recinto da imigração.
O homem estava de pé na extremidade da plataforma rolante de saída e de costas para ela. Era de meia estatura, magro e não tinha quase expressão física. O cabelo era preto, o rosto moreno e cortado de rugas, olhos pretos e frios e um talho fino no lugar onde devia ter estado a boca: não exatamente o tipo de pessoa que eu gostaria que visitasse minha filha. Estava, porém, respeitavelmente trajado de preto e de sobretudo da mesma cor e — embora isto não fosse critério de respeitabilidade — conduzia uma grande e obviamente nova maleta de aviação.
Candidatos inexistentes a filhas inexistentes, contudo, não me interessavam. Eu me movera o suficiente para levantar a vista na direção da plataforma de saída, a que terminava no térreo da terminal, onde me encontrava. Havia quatro pessoas na escada. Na primeira delas, reconheci imediatamente o homem alto, magro, vestido de cinzento, com um fio de bigode e todos os sinais exteriores de um bem sucedido guarda-livros. Jimmy Duelos. Pensei logo que ele devia considerar a sua informação realmente vital e urgente para dar-se a todo este trabalho de encontrar-me. O segundo pensamento foi que devia ter falsificado um passe policial para chegar até esse ponto da terminal. Isto fazia sentido, pois ele era um emérito falsário. O terceiro pensamento foi que seria cortês e cordial fazer-lhe um aceno e endereçar-lhe um sorriso, o que fiz. Ele acenou também e sorriu.
O sorriso durou um segundo inteiro e, logo em seguida, petrificou-se numa expressão de puro choque. Observei, nesse momento, quase subconscientemente, que a direção de sua linha de visão mudara imperceptivelmente.
Virei-me rapidamente. O homem moreno de terno e casaco escuro não dava mais as costas para a plataforma rolante. Dera uma volta de 189 graus e voltava-se naquele momento para ela. A maleta aérea não mais lhe pendia da mão. De fato, era mantida curiosamente alta sob o braço.
Sem saber ainda o que havia de errado, reagi instintivamente e saltei sobre ele. Ou, pelo menos, comecei a saltar. Custou-me, porém, um segundo inteiro para reagir e o homem passou imediatamente — e quero dizer, mesmo, imediatamente — a demonstrar, tanto para sua como minha total convicção, que um segundo era tudo de que precisava para realizar qualquer violenta manobra. Ele estava preparado, o que não me acontecia, e provou que era muito, muito violento. Eu mal começara a mover-me quando ele girou num rápido e perigoso quarto de círculo e atingiu-me no plexo solar com a quina da maleta aérea.
As maletas aéreas são geralmente macias e moles. Esta, não. Nunca fui atingido por um bate-estacas, nem tenho desejo de o ser, mas agora faço uma boa idéia do que o indivíduo sente. O efeito físico foi praticamente o mesmo. Desmoronei como se uma mão gigante me tivesse puxado os pés por trás e fiquei imóvel. Não perdi absolutamente a consciência, porém. Podia ver, podia ouvir e, até certo ponto, compreender o que ocorria em volta. Podia mesmo contorcer-me, que era tudo o que eu tinha vontade de fazer naquele momento. Ouvi falar de choques mentais embotadores e aquela era a primeira vez em que experimentava um choque físico totalmente embotador.
Pareceu-me que as coisas aconteciam na mais ridícula das câmaras lentas. Duelos olhou em volta quase alucinado, mas não havia maneira de deixar a plataforma rolante. Recuar era impossível, pois três homens lhe bloqueavam o caminho e, aparentemente, não tomavam conhecimento algum do que acontecia — somente mais tarde, muito mais tarde, compreendi que deviam ser cúmplices do homem de sobretudo preto, colocados ali para que Duelos não tivesse alternativa senão seguir em frente para a morte. Em retrospecto, acho que foi a mais fria execução numa vida inteira a ouvir casos de pessoas que haviam encontrado seu fim numa maneira não planejada pelo seu Criador.
Podia mover os olhos, e movi-os. Olhei para a maleta aérea e vi, sob uma das abas, o cilindro de um silenciador. Era o bate-estacas que me havia provocado uma paralisia temporária — eu esperava que fosse temporária — e pela força com que me havia atingido perguntei-me se não havia vergado a arma. Fitei o homem que empunhava a arma, a mão direita oculta sob a aba da maleta. Não havia nem prazer nem expectativa na face morena, apenas a calma certeza do profissional que sabia quão competente era. Em alguma parte, uma voz desencarnada anunciou a chegada do Vôo 132 procedente de Londres — o avião em que havíamos viajado. Vagamente e sem motivo, pensei que nunca esqueceria o número daquele vôo. Mas teria sido o mesmo fim, qualquer que tivesse sido o vôo, pois Duelos fora condenado a morrer antes de falar-me.
Levantei os olhos para ele e vi o rosto de um homem sentenciado à morte. A expressão era de desespero, mas um desespero calmo e controlado enquanto enfiava a mão nas dobras do casaco. Os três homens às suas costas pularam da plataforma móvel e somente muito mais tarde compreendi o motivo disso. A arma de Duelos apareceu. Nesse momento, ouvi um ruído abafado e um buraco apareceu no meio da lapela esquerda de seu paletó. Ele agitou-se convulsivamente, inclinou-se para a frente e caiu sobre o rosto: a plataforma transportou-o à área do terminal e o cadáver rolou contra mim.
Nunca saberei com certeza se minha total inação nos poucos segundos antes da morte de Duelos foi conseqüência de uma autêntica paralisia física ou se fui conservado inerte pela inevitabilidade da maneira como ele morreu. Não é um pensamento que me obceque, pois eu estava desarmado e não poderia ter feito coisa alguma. Estou apenas um pouco curioso, pois não há dúvida de que ao contato com o cadáver recobrei-me imediatamente.
Não foi, porém, uma recuperação miraculosa. Ondas de náuseas envolveram-me e, à medida que o choque inicial do golpe passava, o estômago começou realmente a doer. A testa me doía, e não era pouco, pois eu devia ter batido com a cabeça no chão ao cair. Voltou-me, porém, certo grau de controle muscular e levantei-me com cuidado, cautelosamente, em virtude da náusea e da tonteira. Tive certeza de que, a qualquer momento, podia fazer um retorno involuntário ao solo. A área do terminal girava de maneira alarmante e descobri que não podia ver lá muito bem. Cheguei à conclusão de que o golpe na cabeça devia ter-me atingido a visão, um fato bem estranho, pois ela parecera funcionar muito bem enquanto eu me encontrava caído ao solo. Notei que as pálpebras estavam ficando pegajosas. Uma mão exploradora revelou o motivo: sangue. O que me pareceu, erroneamente, durante um curto momento, ser muito sangue, escorria de um corte no início do couro cabeludo. Boas-vindas a Amsterdam, pensei, e puxei o lenço: duas enxugadelas e minha visão ficou cem por cento novamente.
Do começo ao fim não devem ter transcorrido mais de dez segundos, mas já havia uma multidão em volta como sempre acontece nesses casos: a morte súbita, a morte violenta, é para o homem o que um pote de mel é para a abelha — a verificação imediata da existência de ambos produz a saída de seres, em números espetaculares, de áreas que, segundos antes, pareciam destituídas de vida.
Ignorei-os, como ignorei Duelos. Coisa alguma podia fazer por ele nem ele por mim, pois uma busca em suas roupas não teria revelado coisa alguma; como todos os bons agentes, Duelos nunca punha coisa alguma de valor em papel ou em fita gravada. A informação é sempre arquivada numa memória altamente treinada.
O homem moreno e letal, levando sua arma letal, teria fugido já e foi puramente rotina e, penso agora, um instinto profundo de verificar o inverificável, que me fez lançar os olhos para a área da imigração e confirmar que ele havia realmente desaparecido.
Mas o desaparecimento não fora completo. Ele percorrera dois terços do caminho em direção à imigração, andando indiferentemente ao longo da plataforma de acesso, balançando casualmente a maleta e, ao que tudo indicava, inconsciente da agitação que se formara às suas costas. Fitei-o durante um momento, sem compreender, mas apenas durante um momento: era assim que fugia um profissional. O batedor de carteiras profissional que alivia a carteira do cavalheiro de cartola em Ascot não mergulha loucamente na multidão, seguido pelos gritos de "Pega o ladrão!" e a certeza da prisão imediata. É muito mais provável que pergunte à vítima qual seu palpite para a corrida seguinte. Com uma indiferença casual e total normalidade é que os diplomados com distinção no crime se desincumbem de suas missões. E foi assim que fez o homem moreno. Tanto quanto o interessava, eu era a única testemunha de seu crime, pois tardiamente compreendi, pela primeira vez, o papel que os três outros indivíduos haviam desempenhado na morte de Duelos — estavam ainda no meio da multidão que cercava o cadáver, embora não houvesse coisa alguma que eu ou outra pessoa pudesse provar contra eles. E tanto quanto sabia o homem moreno, ele havia-me deixado em um estado no qual não lhe poderia fazer coisa alguma ainda durante muito tempo.
Segui-o.
A perseguição nem chegou a beirar o espetacular. Eu estava fraco, atordoado e o estômago doía-me tanto que não consegui manter-me devidamente espigado e a combinação de corrida vacilante pela plataforma móvel com uma inclinação de trinta graus deve ter-me dado a aparência de um nonagenário atacado de lumbago, perseguindo só Deus sabe o quê.
Eu estava a meio caminho da plataforma rolante e via o homem moreno quase no fim da mesma quando o instinto ou o som de minhas passadas fê-lo girar-se com a mesma velocidade felina com que me paralisara segundos antes. Tornou-se imediatamente claro que ele não sentia dificuldade alguma de distinguir-me de qualquer nonagenário que pudesse ter conhecido, pois a mão esquerda imediatamente levantou a maleta aérea enquanto a direita deslizava por debaixo da aba. Percebi que o que acontecera a Duelos iria acontecer-me — a plataforma rolante me depositaria, ou o que restasse de mim, ignominiosa-mente, no chão, numa maneira ignominiosa de morrer.
Perguntei-me durante um curto momento que loucura me levava, desarmado, a perseguir um matador profissional portando uma pistola equipada com silenciador. Eu estava a ponto de lançar-me sobre a plataforma quando vi o silenciador hesitar e o homem moreno virar levemente os olhos para a esquerda. Ignorando a possibilidade de levar um tiro na nuca, voltei-me também para acompanhar-lhe o olhar.
O grupo em volta de Duelos perdera temporariamente o interesse por ele e o transferira para nós. Em vista do que devem ter considerado meu andar desconjuntado pela plataforma, teria sido estranho se não o fizessem. No curto momento em que lhes observei as faces, vi expressões que variavam do espanto à confusão. Não havia traços de compreensão. Não, naquele grupo de pessoas. Mas notei compreensão de sobra e fria intenção nas faces dos três homens que haviam seguido Duelos até a morte. Seguiam agora vivamente a plataforma às minhas costas, sem dúvida alguma decididos a seguir-me também até a morte.
Ouvi uma exclamação abafada atrás de mim e voltei-me novamente. A plataforma rolante chegara ao fim e isto evidentemente surpreendera o homem moreno, que vacilava naquele momento, procurando recuperar o equilíbrio. Como eu teria mesmo esperado dele, recuperou-o com grande rapidez, deu-me as costas e começou a correr. Matar um homem em frente de uma dúzia de testemunhas é muito diferente de matar em frente de uma testemunha isolada, embora eu tivesse a obscura certeza de que ele o teria feito se considerasse isso essencial, e o diabo que levasse as testemunhas. Deixei a verificação para depois. Comecei a correr novamente, desta vez com mais intenção e parecendo mais um vivo setuagenário.
O homem moreno, ganhando sempre distância, correu pelo setor de imigração, provocando óbvia confusão e consternação nos funcionários. Ninguém espera que um indivíduo corra pela área de imigração. Deve parar, mostrar o passaporte e explicar-se. É para isso que existe imigração. Ao chegar minha vez de percorrer o mesmo caminho, a partida apressada do homem moreno, juntamente com minha corrida vacilante, haviam evidentemente alertado as autoridades de que havia algo de errado. Dois deles tentaram deter-me. Corri de raspão por eles — "raspão" não foi a palavra que usaram na queixa subseqüente — e passei pela porta de saída que o homem moreno acabara de usar.
Ou, pelo menos, tentei passar por ela. A maldita porta, porém, estava bloqueada por alguém que tentava entrar. Uma moça, foi tudo que tive tempo ou inclinação de notar, apenas uma moça. Desviei-me para a direita e ela desviou-se para a esquerda, virei-me para minha esquerda e ela para sua direita. Exato. Pode-se ver isso em praticamente todos os minutos, em qualquer calçada, quando duas pessoas excessivamente polidas, querendo mutuamente conceder-se o direito de passagem, desviam-se com uma eficácia tão desastrada que conseguem apenas bloquear-se reciprocamente. Dadas as circunstâncias apropriadas, nos casos em que duas almas supersensíveis se encontram, o embaraçoso fandango pode continuar quase indefinidamente.
Eu admiro tanto um pas de deux bem executado como qualquer outro homem, mas não estava inclinado a ser detido indefinidamente. Após outra tentativa de desvio abortado, berrei:
— Saia do meu caminho — e assegurei-me de que ela o faria, agarrando-a pelo ombro e empurrando-a violentamente para um lado. Pensei ouvir um som abafado de choque e uma exclamação de dor. Ignorei-a, porém. Eu voltaria mais tarde e pediria desculpas.
Voltei mais cedo do que esperava. A moça não me tomara mais do que alguns segundos, mas esses segundos foram mais do que suficientes para o homem moreno. Ao chegar à calçada, inevitavelmente congestionada, não havia mais sinal algum dele. Teria sido, aliás, difícil identificar um chefe pele-vermelha vestido a caráter no meio daquelas centenas de transeuntes. Teria sido inútil alertar a polícia de segurança do aeroporto. Pela ocasião em que eu tivesse provado minhas boas intenções, ele estaria a meio caminho de Amsterdam. Mesmo que eu pudesse obter ação imediata, teriam sido remotas as possibilidades de prender o homem moreno: aqueles homens eram profissionais altamente treinados e indivíduos desse tipo mantêm sempre escancaradas suas rotas de fuga. A cabeça me doía violentamente, embora, comparada com o estado do estômago, eu achasse que seria um erro queixar-me dela. Sentia-me horrivelmente mal e um olhar para o rosto pálido e manchado de sangue num espelho em coisa alguma contribuiu para me pôr melhor.
Voltei para a cena de minha exibição de ballet, onde dois brutamontes uniformizados, de armas no coldre, seguraram-me pelos braços, sem intenção de soltar-me.
— Vocês pegaram o homem errado — disse eu cansadamente. — Assim, tirem essas malditas mãos de cima de mim e deixem-me respirar. — Eles hesitaram, entreolharam-se, soltaram-me e afastaram-se. Afastaram-se, isto é, uns cinco centímetros. Olhei para a moça, que estava sendo consolada suavemente por alguém que devia ser funcionário muito importante do aeroporto, pois não usava uniforme. Fitei-a novamente porque os olhos me doíam também, além da cabeça, e era mais fácil olhar para ela do que para o homem ao seu lado.
Ela estava vestida de escuro e usava também um casaco escuro, deixando entrever uma blusa branca com gola rolée. Devia estar em meados da casa dos vinte e seu cabelo escuro, olhos castanhos, feições quase gregas e cor de azeitona indicavam claramente que não era nativa daquelas paragens. Colocada ao lado de Maggie e Belinda, teríamos de gastar os melhores anos de nossa vida, além da maioria dos anos de declínio, para encontrar um trio semelhante, embora, reconhecidamente, a moça não exibisse seu melhor aspecto naquele momento: tinha o rosto lívido e enxugava com um grande lenço branco, provavelmente emprestado pelo companheiro, o sangue que escorria de um corte que já começava a inflamar-se na têmpora esquerda.
— Meu Deus! — disse eu. Dei a impressão e senti-me realmente contrito, pois não sou dado a selvagemente estragar obras de arte. — Fui eu que fiz isso?
— Naturalmente que não. — A voz dela era baixa e rouca, mas talvez isto acontecesse porque eu a havia derrubado. — Eu me cortei fazendo a barba esta manhã.
— Sinto imensamente tudo isso. Eu estava perseguindo um homem, que havia acabado de assassinar outro, e você atrapalhou meu caminho. Acho que ele fugiu.
— Meu nome é Schroeder. Trabalho aqui. — O homem ao lado da moça, um indivíduo de expressão dura e sabida, talvez de uns cinqüenta anos, aparentemente sofria da estranha autodepreciação que aflige, ninguém sabe por que, tantos homens que chegaram a posições de grande responsabilidade. — Nós fomos informados do assassinato. Lamentável, profundamente lamentável, que isto aconteça no Aeroporto de Schiphol.
— Com a justa reputação dos senhores — concordei. — Espero que o morto esteja sentindo-se profundamente envergonhado.
— Esse tipo de conversa de nada adianta — disse Schroeder secamente. — Conhecia-o?
— Como diabo podia conhecer? Eu acabo de descer de um avião. Pergunte à aeromoça, ao comandante, à uma dezena de pessoas que se encontravam no avião. Vôo 132 da KLM, procedente de Londres, chegada às 15:55. — Lancei um olhar ao relógio. — Meu Deus! Há apenas seis minutos.
— O senhor não respondeu à minha pergunta. — Schroeder não apenas parecia esperto, mas era esperto.
— Eu nem mesmo o reconheceria se o visse agora.
— Humm. Ocorreu-lhe por acaso, Sr... ah...
— Sherman.
— Ocorreu-lhe por acaso, Sr. Sherman, que membros comuns do público não saem em perseguição de assassinos armados?
— Talvez eu seja anormal.
— Ou talvez o senhor esteja também armado? Abri e puxei para fora as abas do paletó.
— O senhor... por acaso... reconheceu o assassino?
— Não. Mas nunca o esquecerei — voltei-me para a moça. — Posso fazer-lhe uma pergunta, Srta...
— Srta. Lemay — disse Schroeder seco.
— A senhorita reconheceu o assassino? Deve tê-lo visto bem. Homens em fuga geralmente atraem a atenção.
— Por que deveria reconhecê-lo?
Não tentei ser tão esperto como Schroeder. Disse apenas:
— Gostaria de dar uma olhada no morto? Talvez possa reconhecê-lo.
Ela estremeceu e sacudiu negativamente a cabeça.
Ainda sem parecer inteligente, continuei:
— Ia encontrar-se com alguém?
— Não o estou entendendo.
— A senhorita estava na porta de saída da imigração.
Ela balançou mais uma vez a cabeça, negativamente. Se uma moça bela pode parecer lívida como um cadáver, ela parecia lívida.
— Então, por que estava aqui? Veio ver a paisagem? Eu pensaria que o departamento de imigração em Schiphol é o lugar mais sem atrativos de Amsterdam.
— Basta — Schroeder falou bruscamente. — As suas perguntas não têm sentido e a jovem está evidentemente aflita. — Olhou-me com expressão dura para lembrar-me de que eu era o responsável pela aflição da moça. — O interrogatório cabe à polícia.
— Eu sou policial. — Entreguei-lhe meu passaporte e cartão de identidade. Nesse momento, Maggie e Belinda emergiram da porta da saída. Lançaram um olhar rápido na minha direção, diminuíram o passo e fitaram-me com uma mistura de preocupação e consternação, o que foi apropriado, considerando-se o estado em que eu me encontrava. Fiz uma carranca para elas como um homem ferido e autoconsciente faz com quem o encara. Elas, apressadamente, adotaram uma expressão impassível e continuaram em seu caminho. Voltei a atenção para Schroeder, que me olhava agora com um ar muito diferente.
— Major Paul Sherman, Bureau de Londres da Interpol. Sou forçado a dizer que isto faz uma considerável diferença. Explica também por que o senhor se conduziu como um policial e fez um interrogatório como um policial. Mas terei, naturalmente, de verificar suas credenciais.
— Verifique o que quiser, com quem quiser — disse eu, supondo que a gramática inglesa do Sr. Schroeder não lhe indicaria meus erros de sintaxe. — Sugiro que comece com o coronel Van de Graaf, na Polícia Central.
— Conhece o coronel?
— É apenas um nome que acabo de inventar. O senhor me encontrará no bar. — Comecei a afastar-me, mas parei, pois os dois robustos policiais iniciaram um gesto de querer seguir-me. Olhei para Schroeder. — Eu não tenho a menor intenção de pagar bebidas para eles.
— Está bem — disse Schroeder aos dois policiais. — O Major Sherman não fugirá.
— Não, enquanto o senhor tiver em suas mãos meu passaporte e o cartão de identidade — concordei. Olhei para a moça. — Sinto muito, Srta. Lemay. Tudo isto deve ter constituído um grande choque para a senhorita e é culpa minha. Quer tomar uma bebida comigo? A senhorita dá a impressão de que precisa.
Ela enxugou o rosto mais um pouco e fitou-me com uma expressão que demoliu todos os pensamentos de amizade à primeira vista.
— Eu nem mesmo atravessaria uma rua com o senhor — respondeu ela numa voz sem expressão. A maneira como falou indicava que, com prazer, iria comigo até o meio de uma rua movimentada e me deixaria ali, isto é, se eu fosse cego.
— Boas-vindas a Amsterdam — disse eu lugubremente e arrastei-me na direção do bar mais próximo.
Geralmente não me hospedo em hotéis de luxo pela excelente razão de que não posso com a despesa. Quando viajo ao exterior, contudo, tenho uma conta de despesas praticamente ilimitada, a respeito da qual perguntas raramente são feitas e nunca respondidas. E como essas viagens tendem a ser bastante exaustivas, não vejo motivo para negar-me alguns momentos de paz e relaxação nos hotéis mais confortáveis e luxuosos possíveis.
O Hotel Rembrandt é indubitavelmente dessa classe. É um edifício magnífico, embora um tanto rebuscado, situado à beira de um dos canais da velha cidade: seus terraços esplendidamente trabalhados ficam a cavaleiro do próprio canal, de modo que um sonâmbulo distraído pode ter pelo menos a certeza de que não quebrará o pescoço se despencar do terraço — isto é, a menos que tenha o azar de cair na capota de uma das lanchas envidraçadas de turistas que passam em frente a intervalos muito freqüentes. Uma vista soberba dos mesmos barcos pode ser apreciada do restaurante no térreo, que se gaba, com alguma justiça, de ser o melhor da Holanda.
O meu táxi Mercedes amarelo parou à porta principal e, enquanto eu esperava que o porteiro pagasse a corrida e tirasse a mala, minha atenção foi despertada pelo som da Valsa dos Patinadores, tocada da forma mais desentoada, estridente e sem expressão que eu jamais ouvira. O som vinha de um realejo mecânico grande, alto, bastante decorado e obviamente muito antigo, estacionado em frente, numa posição escolhida para bloquear o volume máximo de tráfego naquela rua estreita. Ao lado da capota do realejo, uma capota que parecia ter sido feita com os restos de um número incontável de barracas de praia desbotadas, uma fileira de bonecas, belamente esculpidas e, para meu olho de amador, refinadamente vestidas com grande variedade de trajos holandeses tradicionais, subiam e desciam nas extremidades de molas recobertas de borracha. A força motriz do movimento parecia vir exclusivamente das vibrações inerentes à operação da própria peça de museu.
O proprietário, ou operador, desta máquina de tortura era um homem muito velho e curvo, com umas poucas ralas mechas de cabelo coladas ao crânio. Parecia bastante velho para ter construído o próprio órgão no seu fastígio, mas não, evidentemente, no seu fastígio como músico. Tinha na mão uma longa vara, à qual estava presa uma lata, que ele chocalhava continuamente e era também continuamente ignorada pelos transeuntes. Em vista disso, pensei na minha elástica verba de representação, atravessei a rua e depositei algumas moedas na lata. Eu não posso realmente dizer que ele me tenha lançado um sorriso de reconhecimento, mas , de fato, abriu a boca desdentada e, num gesto de gratidão, engrenou uma primeira e começou uma horrenda "As Alegres Comadres". Recuei apressado, segui o porteiro e minha mala pelos degraus do vestíbulo, virei-me no último degrau e notei que o velho me olhava de maneira muito esquisita. Para não ser superado em cortesia, retribuí com a mesma expressão e entrei no hotel.
O gerente-assistente, do outro lado da mesa de recepção, era um indivíduo alto, moreno, de bigode fino, impecável no seu fraque, com um sorriso onde havia todo o calor e cortesia de um crocodilo esfaimado, o tipo de sorriso que sabemos que desaparece no momento em que damos as costas, mas que volta imediatamente, mais autêntico do que nunca, por maior que seja a rapidez com que nos voltemos.
— Bem-vindo a Amsterdam, Sr. Sherman — disse ele. — Fazemos votos para que aprecie sua estada.
Não pareceu haver nenhuma resposta imediata a dar a essa manifestação de fátuo otimismo, de modo que me conservei silencioso e concentrei-me em preencher a ficha de registro. Ele recebeu-a como se eu lhe estivesse entregando o próprio Diamante Cullinan e inclinou a cabeça na direção de um mensageiro, que se aproximou com a minha pasta, inclinado para um lado num ângulo de uns vinte graus.
— Rapaz! Quarto 616 para o Sr. Sherman.
Estendi a mão e tomei a pasta da mão do "rapaz" nada relutante. Ele poderia ter sido — quase — irmão mais moço do velho do realejo.
— Muito obrigado. — Dei uma moeda ao mensageiro. — Mas acho que eu mesmo posso levá-la.
— Mas a pasta parece muito pesada, Sr. Sherman — Os protestos de solicitude do gerente-assistente eram ainda mais sinceros do que as calorosas boas-vindas. A pasta estava, de fato, muito pesada, carregada com todas aquelas armas, munição e instrumentos de metal para abrir grande variedade de coisas. Mas eu não queria que nenhum sabido, de idéias sabidas e chaves ainda mais sabidas, lhe inspecionasse o conteúdo quando eu estivesse ausente. Uma vez no apartamento de um hotel, há muitos lugares onde pequenos objetos podem ser escondidos com risco remoto de serem descobertos. E, para começar, a busca raramente é feita com muito afinco se a pasta é deixada bem fechada...
Agradeci ao gerente-assistente pelo interesse, entrei no elevador próximo e apertei o botão do sexto andar. No momento em que o elevador iniciava a subida, espiei por uma das janelas em forma de vigia, abertas na porta. O gerente-assistente, guardado agora o sorriso, falava veementemente ao telefone.
Desci no sexto andar. Numa recâmara situada diretamente em frente à porta do elevador, havia uma pequena mesa com telefone e, atrás dela, sentado numa cadeira, um jovem enfarpelado numa libré cheia de dourados. Era um jovem sem atrativos, com aquela vago ar de indolência e insolência impossível de imputar e que apenas deixaria a pessoa que dele se fosse queixar sentir-se um pouco ridícula. Tais jovens são geralmente praticantes altamente especializados da arte da inocência ferida.
— Seiscentos e dezesseis? — perguntei.
Ele curvou um polegar previsivelmente lânguido.
— Segunda porta ao longo do corredor. — Nada de "senhor", nenhuma tentativa nem mesmo de erguer-se da cadeira. Abafei a tentação de quebrar-lhe a cabeça com a própria mesa e prometi-me o pequeno mas refinado prazer de cuidar dele antes de deixar o hotel.
— Você é o garçom do andar? — perguntei.
— Sim, senhor — respondeu ele, levantando-se. Senti uma pontada de desapontamento.
— Arranje-me um pouco de café.
Não tive queixas do 616. Não era um quarto, mas um luxuoso apartamento. Consistia de uma saleta de recepção, uma cozinha minúscula mas jeitosa, uma sala de estar, quarto e banheiro. As portas da sala de estar e do quarto davam para um mesmo terraço. Dirigi-me para lá.
Com exceção de uma monstruosidade enorme, dolorosa e iluminada a neon de um anúncio de um cigarro em si mesmo perfeitamente inocente, o fulgor das luzes coloridas que subia das ruas úmidas e dos telhados de Amsterdam pertencia como que a um conto de fadas. Meus empregadores, porém, não me pagavam — nem me concediam uma esplêndida verba de representação — apenas para eu ter o privilégio de matutar sobre os telhados de uma cidade, por mais belos que fossem. O mundo em que eu vivia ficava tão longe do mundo das fadas como a mais distante galáxia nos limites observáveis do universo. Voltei a atenção para assuntos mais imediatos.
Olhei para baixo na direção da origem do nada silencioso clangor do tráfego que saturava o ar em volta. A larga artéria diretamente embaixo — e a cerca de vinte e sete metros — parecia estar inextricavelmente congestionada com barulhentos bondes, veículos uivantes e centenas e centenas de motocicletas e bicicletas, cujos motoristas, sem exceção, pareciam dispostos a cometer suicídio imediato. Pareceu-me inconcebível que esses gladiadores de duas rodas pudessem razoavelmente ter esperança de comprar uma apólice de seguro que cobrisse uma expectativa de vida de mais de cinco minutos. Eles, porém, pareciam considerar a morte iminente com o descuidado desafio que nunca deixa de surpreender os recém-chegados a Amsterdam. Num segundo pensamento, tive a esperança de que, se alguém fosse cair ou ser empurrado do terraço, não fosse eu.
Ergui a vista. O meu andar era evidentemente — como eu havia especificado — o mais alto do hotel. Acima da parede de tijolos que separava meu terraço do terraço do apartamento vizinho havia uma espécie de grifo barroco de pedra trabalhada, repousando numa plataforma de tijolo. Acima dele, talvez umas trinta polegadas acima, corria o beirai de concreto do telhado. Entrei.
Tirei da pasta certas coisas que eu julgaria profundamente embaraçosas se fossem descobertas por alguém. Coloquei uma pistola de uso subaxilar num coldre de feltro, e que mal é vista quando se escolhe o alfaiate certo, o que eu fazia, e enfiei um pente extra num bolso traseiro da calça. Nunca tive de disparar mais de um tiro com aquela arma, o que tornava dispensável o segundo pente, mas nunca se sabe e as coisas pioram dia a dia. Desamarrei em seguida o jogo embrulhado em lona de ferramentas de arrombador. Esse cinto, igualmente, com a ajuda de um alfaiate compreensivo, é invisível em volta da cintura. Desta sofisticada pletora extraí uma humilde mas essencial chave de parafuso. Usando-a, desaparafusei as costas do pequeno refrigerador portátil da cozinha — é surpreendente como há espaço vazio mesmo atrás de um pequeno refrigerador — e guardei ali tudo o que achei aconselhável guardar. Abri em seguida a porta que dava para o corredor. O garçom do andar continuava no seu posto.
— Onde está meu café? — perguntei. Não foi exatamente um berro de irritação, mas chegou bem perto disso.
Desta vez fi-lo levantar-se
— Vem pelo elevador. Depois eu levo.
— É melhor trazê-lo logo. — Fechei a porta. Algumas pessoas nunca aprendem as virtudes da simplicidade, os perigos do exagero. As suas inúteis tentativas de falar inglês explicado eram tão inexpressivas como sem propósito.
Tirei um molho de chaves bastante estranhas do bolso e experimentei-as uma após a outra na outra porta. A terceira girou e eu teria ficado atônito se não tivessem servido. Enfiei as chaves no bolso, dirigi-me para o banheiro, e acabara de abrir o chuveiro ao máximo quando soou a campainha, seguida do som de uma porta se abrindo. Fechei o chuveiro, gritei para o garçom que colocasse o café sobre a mesa, e abri a água novamente. Esperava que a combinação de café e chuveiro convencesse a quem precisasse ser persuadido de que havia ali um hóspede respeitável, preparando-se para uma noite descansada, mas eu não apostaria nisso. Ainda assim, pode-se tentar.
Ouvi a porta externa fechar-se. Deixei, porém, o chuveiro em funcionamento para o caso de o garçom ter o ouvido colado à porta. Ele, aliás, tinha um ar de homem que passaria um bocado de tempo encostado em portas ou espiando por buracos de fechaduras. Aproximei-me da porta e agachei-me. Ele não estava olhando por aquele buraco. Abri a porta uma fração de centímetros, afastando a mão, e ninguém caiu na soleira, o que significava que ou ninguém tinha restrições a meu respeito ou tinha tantas que não ia correr o risco de ser surpreendido. Uma grande ajuda, de qualquer maneira. Fechei e passei a chave na porta, coloquei no bolso a volumosa chave do hotel, derramei o café na pia da cozinha, fechei o chuveiro e saí pela porta do terraço. Era preciso deixá-la escancarada, mantida em posição por uma pesada cadeira. Por óbvias razões, poucas portas de terraço de hotel têm maçanetas do lado de fora.
Olhei rapidamente para a rua embaixo e para as janelas do edifício em frente. Em seguida, inclinei-me sobre a balaustrada de concreto para a direita e para a esquerda, procurando verificar se os ocupantes dos apartamentos vizinhos olhavam na minha direção. Não. Subi na balaustrada, estendi a mão para o grifo ornamental, tão grotescamente esculpido que possuía um bom número de excelentes apoios para as mãos, segurei o beirai de concreto e suspendi-me. Não digo que goste de fazer isso, mas não via que outra coisa eu poderia fazer.
O telhado, plano como um lençol de relva, estava, tanto quanto, pude observar, absolutamente deserto. Ergui-me, e atravessei para o outro lado, evitando antenas de televisão, entradas de ventiladores e essas curiosas estufas em miniatura que, em Amsterdam, servem como clarabóias, alcancei o outro lado e olhei cautelosamente para baixo. Vi uma viela muito estreita e escura e, naquele momento pelo menos, destituída de vida. A alguns metros à esquerda localizei a escada de incêndio e desci para o segundo andar. A porta de emergência estava fechada, como costuma acontecer com quase todas elas, pelo lado de dentro, e a própria fechadura era do tipo de dupla ação, mas não estava à altura da sofisticada carga de ferramentas que eu conduzia comigo.
Encontrei deserto o corredor. Desci para o térreo pela escada principal, pois é difícil fazer uma saída cautelosa de um elevador que abre no meio da área de recepção. Não precisava ter-me preocupado. Não vi sinais do gerente-assistente. A sala estava congestionada com uma nova fornada de viajantes de avião a sitiar a recepção. Entrei na multidão, bati polidamente nuns dois ombros, estendi o braço pela abertura, depositei a chave na mesa, dirigi-me sem pressa para o bar e, atravessando-o com igual tranqüilidade, saí por uma entrada lateral.
Chuvas fortes haviam caído durante a tarde e as ruas estavam ainda úmidas. Não havia necessidade de vestir a capa. Pendurei-a no braço, e iniciei minha marcha, sem chapéu, olhando ora para aqui ora para ali, deixando que o vento me açoitasse à vontade para dar a impressão de um turista, saindo pela primeira vez para saborear os espetáculos e os sons da Amsterdam noturna.
Percorrendo preguiçosamente a Herengracht e admirando devidamente as fachadas das casas dos príncipes-mercadores do século XVII, tive a certeza, pela primeira vez, de uma estranha sensação de comichão na nuca. Nenhum volume de treinamento ou experiência desenvolverá jamais essa sensação. Talvez tenha algo a ver com a percepção extra-sensorial. Ou a pessoa nasce com ela ou não. Eu nascera.
Estava sendo seguido.
Os habitantes de Amsterdam, tão notavelmente hospitaleiros em tudo mais, revelam uma estranha negligência quando se trata de fornecer bancos aos visitantes cansados — ou a seus cansados cidadãos, por falar nisso — ao longo das margens dos canais. Se o indivíduo deseja examinar sentimental e descansada-mente à noite as lustrosas águas escuras dos canais, a melhor coisa a fazer é encostar-se numa árvore. Encostei-me, portanto, numa árvore conveniente e acendi um cigarro.
Permaneci ali durante vários minutos, em comunhão com a natureza, que era a impressão que eu esperava dar, erguendo ocasionalmente o cigarro mas, fora disso, imóvel. Ninguém disparou pistolas com silenciadores na minha direção e ninguém se aproximou com um porrete antes de baixar-me reverentemente ao canal. O homem moreno havia-me posto em mira em Schiphol e não puxara o gatilho. Ninguém queria liquidar-me, ainda. Era uma migalha de consolo, pelo menos.
Espiguei-me, espreguicei-me e bocejei, olhando preguiçosamente em volta como um homem acordando de um devaneio romântico. Ele estava ali, disso não havia dúvida, não de costas contra a árvore como eu, mas de lado, ficando a árvore entre ele e mim. Mas era uma árvore muito magrela e eu lhe vi perfeitamente a parte fronteira e elevações posteriores.
Continuei a andar, virei para a direita e entrei na Leidestraat, movendo-me sem pressa, fazendo algumas inocentes observações de vitrinas. Em certo ponto, entrei numa soleira e vi algumas peças pictórias de uma natureza artística tão altamente intrínseca que, na Inglaterra, poriam imediatamente o dono na cadeia. Ainda mais interessante, a vitrina formava um espelho quase perfeito. Ele estava agora a uns vinte metros, olhando atentamente para a vitrina fechada do que deveria ter sido uma casa de frutas. Usava terno e suéter cinzento e isto era tudo o que se poderia dizer a respeito dele: a anonimidade cinzenta e sem expressão.
Na esquina seguinte virei novamente para a direita e passei pelo mercado de flores, situado às margens do canal Singel. A meio caminho, parei numa barraca, examinei-lhe o conteúdo e comprei um cravo. A uns trinta metros de distância, o homem de cinzento inspecionava também uma barraca, mas era um sovina ou não possuía uma verba de representação como a minha, pois nada comprou. Simplesmente ficou por ali, observando.
Uns trinta metros nos separavam e, quando virei novamente para a direita e entrei na Vijzelstraat, passei a andar em passos muito rápidos até chegar à entrada de um restaurante indonésio. Entrei, fechando a porta atrás de mim. O porteiro, evidentemente um velho soldado aposentado, cumprimentou-me com bastante civilidade, mas não fez esforço algum para levantar-se do tamborete.
Olhei pela porta e, dentro de segundos, o homem de cinzento passou. Notei que era mais velho do que eu pensava, bem entrado nos sessenta e, preciso admitir, para um homem de sua idade demonstrava uma notável agilidade. Ele parecia infeliz.
Vesti a capa e murmurei uma desculpa para o porteiro. Ele sorriu e disse "boa noite" na saída com tanta civilidade quanto dissera na entrada. A casa estava provavelmente cheia, de qualquer maneira. Saí, parei na soleira, tirei um chapéu dobrado de um bolso e um par de óculos de aro de metal de outro e coloquei-os. Sherman, esperava eu, transformado.
Ele estava agora a uns trinta metros de distância, andando em passos muito rápidos, parando aqui e ali para examinar as soleiras das portas. Arrisquei-me, lancei-me em alta velocidade até o outro lado da rua e cheguei intacto, embora impopular. Conservando-me um pouco atrás, segui-o pela outra calçada por uns cem metros até que ele parou. Hesitou, bruscamente começou a refazer os passos, quase correndo agora, embora desta vez parasse para entrar em todos os locais abertos. Entrou no restaurante que eu havia brevemente visitado e saiu em dez segundos. Penetrou numa entrada lateral do Hotel Carlton e saiu pela principal, numa excursão que não pode tê-lo tornado muito popular, uma vez que esse hotel não gosta muito de que velhos mal vestidos com suéteres de gola rolée lhes usem o foyer como atalhos. Entrou em outro restaurante indonésio no fim do quarteirão e reapareceu com a expressão mortificada de uma pessoa que fora expulsa. Mergulhou numa cabina telefônica e saiu mais mortificado do que nunca. Em seguida, tomou posição no abrigo central de bondes situado na Muntplein. Eu entrei na fila.
Passou arrastando-se o primeiro bonde, uma composição de três carros, com o número "16" e a tabuleta de "Estação Central". O homem de cinzento subiu no primeiro carro. Entrei no segundo e tomei um assento na frente, onde podia mantê-lo sob vigilância, colocando-me simultaneamente de modo a apresentar uma vista de mim mesmo tão escassa quanto possível, caso ele começasse a interessar-se pelos demais passageiros. Mas não precisava ter-me preocupado: era absoluta a falta de interesse dele. Pela expressão em contínua mudança e jogo fisionômico, as mãos que se abriam e fechavam, havia ali claramente um homem com problemas outros, e mais importantes, o menor dos quais não seria o grau de compreensão simpática que poderia esperar dos seus empregadores.
Saltou na Dam. A Dam, a principal praça de Amsterdam, transborda de marcos históricos, como o Palácio Real e a Nova Igreja, esta tão velha que é preciso escorá-la continuamente para que não desmorone de todo, mas, naquela noite, não mereceu nem um único olhar do homem de cinzento. Ele tomou em passos rápidos uma rua ao lado do Hotel Krasnapolsky, virou para a esquerda na direção das docas ao longo do canal Oudezijds Voorburgwal, tomou mais uma vez a direita e mergulhou num labirinto de ruas secundárias que evidentemente penetravam sempre mais a fundo na seção de armazéns da cidade, que é uma das poucas áreas não relacionadas entre as atrações turísticas de Amsterdam. Ele era o homem mais fácil de seguir que eu conhecera na vida. Não olhava nem para a direita nem para a esquerda e muito menos para trás. Eu poderia estar montado num elefante a dez metros atrás e ele nem teria notado. Parei e observei-o caminhar por uma rua estreita, mal iluminada e singularmente feia, marginada exclusivamente de cada lado por armazéns, altos prédios de cinco andares e tetos de duas águas, inclinados uns sobre os outros, tudo banhado num ar de ameaça claustrofóbica, tristes prenúncios e sombria vigilância, de que não gostei absolutamente.
Tendo o homem de cinzento passado a correr, concluí que essa excessiva demonstração de zelo podia significar apenas o fim da jornada. Certo. A meio caminho da rua, subiu um lance de degraus com um corrimão ao lado, tirou uma chave, abriu uma porta e desapareceu no interior de um armazém. Segui-o sem pressa, mas não vagarosamente demais, e olhei sem curiosidade para o letreiro sobre a porta: "Morgenstern e Muggenthaler". Nunca ouvira falar da firma, mas provavelmente aquele nome eu não esqueceria com facilidade. Continuei meu caminho sem interromper a marcha.
O quarto do hotel não era grande coisa, tive de reconhecer, mas, para começar, o hotel também não era. Da mesma forma que a fachada do hotel era pequena, esquálida, com a pintura descascando, sem coisa alguma que a distinguisse, assim era também o interior do quarto. As únicas peças de mobília que continha, incluindo uma cama de solteiro e um sofá, que podia ser obviamente convertido em cama, haviam perdido tristemente a corrida contra os anos desde os dias, há muito passados, de seu melhor aspecto, se é que o tiveram. O tapete estava puído, mas não tão puído como as cortinas e a colcha da cama. O pequeno banheiro contíguo dispunha de tanto espaço como uma cabina telefônica. O quarto, porém, era salvo do desastre completo por um par de figuras redentoras que teriam emprestado certa aura de desejabilidade até à mais nua das celas de prisão. Maggie e Belinda, empoleiradas lado a lado na beira da cama, olharam-me sem entusiasmo algum quando me derreei cansadamente no sofá.
— As duas pobrezinhas — disse eu. — Sozinhas e sem ninguém na perversa Amsterdam. Tudo bem?
— Não. — Havia uma nota positiva na voz de Belinda.
— Não? — Deixei que transparecesse minha surpresa. Com um gesto, ela indicou o quarto.
— Bem, olhe só para isso.
Olhei para aquilo.
— E então?
— Você moraria num lugar destes?
— Bem, para ser franco, não. Mas hotéis de luxo são para dirigentes, como eu. Para uma dupla de esforçadas datilógrafas, estas acomodações são perfeitamente satisfatórias. Para uma dupla de moças que não são as esforçadas datilógrafas que fingem ser, isto aqui fornece um grau tão completo de anonimato como se poderia desejar. — Interrompi-me. — Pelo menos, espero. Suponho que ambas estão em segurança. Reconheceram alguém no avião?
— Não. — Falaram ao mesmo tempo, com um aceno idêntico de cabeça.
— Reconheceram alguém em Schiphol?
— Não.
— Alguém mostrou interesse especial por vocês em Schiphol?
— Não.
— Há microfones ocultos neste quarto?
— Não.
— Saíram?
— Saímos.
— Foram seguidas?
— Não.
— Alguma busca no quarto, na ausência de vocês?
— Não.
— Você parece divertida, Belinda — disse-lhe eu. Ela não estava exatamente rindo, mas demonstrava ter uma pequena dificuldade com os músculos faciais. — Conte. Preciso alegrar-me um pouco.
— Bem. — Ela tornou-se subitamente pensativa, talvez lembrando que mal me conhecia. — Nada. Sinto muito.
— Sente muito a respeito de quê, Belinda? — perguntei eu num tom de tio e de encorajamento que produziu o estranho efeito de fazê-la rir contrafeita.
— Bem, todas essas precauções de histórias de espionagem para duas moças como nós. Eu não vejo a necessidade...
— Fique quieta, Belinda! — Era a minha Maggie, viva como sempre na defesa do seu velho, embora somente Deus saiba por quê. Eu tivera meus sucessos profissionais que, considerados em si, formavam uma lista bastante impressionante, mas uma lista que, comparada com a cota de fracassos, desmaiava numa insignificância que era melhor esquecer. — O Major Sherman — continuou Maggie severamente — sempre sabe o que faz.
— O Major Sherman — disse-lhe eu com franqueza — daria os seus molares para acreditar nisso. — Fitei-a especulativamente. — Eu não estou mudando de assunto, mas que tal um pouco da velha comiseração pelo mestre ferido?
— Nós conhecemos nosso lugar — disse Maggie afetada-mente. Levantou-se, examinou-me a testa e sentou-se de novo.
— Sabe, isto parece um pedaço pequeno demais de esparadrapo para o que deu a impressão de ser um bocado de sangue.
— As classes dirigentes sangram facilmente. É algo nas suas peles sensíveis. Ouviu falar no que aconteceu?
Maggie inclinou a cabeça.
— Aquele horrível crime. Ouvimos dizer que você tentou...
— Intervir. Tentei, como você disse tão acertadamente.
— Olhei para Belinda. — Você deve ter achado terrivelmente impressionante, na primeira vez que sai com seu novo chefe, vê-lo derrubado por um cachação no momento em que pisa em um país estrangeiro.
Ela olhou involuntariamente para Maggie e corou — louras platinadas desse tipo coram com grande facilidade — e disse em tom defensivo:
— Bem, ele foi rápido demais para você.
— Foi tudo isso — concordei. — Foi também rápido demais para Jimmy Duelos.
— Jimmy Duclos? — Elas tinham o talento de falar sincronizadas.
— O morto. Um de nossos melhores agentes e meu amigo há muitos anos. Acho que ele tinha informações urgentes e vitais que desejava transmitir-me pessoalmente em Schiphol. Eu era a única pessoa na Inglaterra que sabia que ele estaria ali. Mas, alguém, nesta cidade, sabia. Meu encontro com Duelos foi combinado através de dois canais sem ligação alguma, mas alguém sabia não apenas que eu vinha, mas também o vôo e ocasião exatos e, assim, apareceu convenientemente para liquidar Duelos antes que ele pudesse falar-me. Concorda, Belinda, que eu não estava mudando de assunto? Concorda que se alguém sabia tanto a meu respeito e de um de meus colegas pode estar igualmente bem informado sobre outros?
Elas se entreolharam durante alguns momentos. Em seguida, Belinda perguntou em voz baixa:
— Ele era um dos nossos?
— Você é surda? — perguntei, irritado.
— é que nós... Maggie e eu, isto é...
— Precisamente.
Elas pareceram aceitar com grande calma a ameaça implícita às suas vidas, mas haviam sido treinadas para fazer um trabalho e ali estavam para fazê-lo, e não cair em desmaios de donzelas.
— Sinto muito a respeito de seu amigo — disse Maggie. Inclinei a cabeça.
— E eu sinto muito se fui tola — disse Belinda. Falara convicta, cheia de arrependimento, mas isto não duraria. Ela não era daquele tipo. Fitou-me com extraordinários olhos verdes sob sobrancelhas escuras e disse em voz lenta:
— Eles, neste caso, estão na sua pista, não?
— Exatamente, minha pequena — respondi com um ar de aprovação. — Preocupada com o chefe. Na minha pista. Se não estão, metade do pessoal do Hotel Rembrandt está atrás do homem errado. Até as entradas laterais estão vigiadas. Fui seguido ao sair hoje à noite.
— Mas ele não o seguiu por muito tempo. — A lealdade de Maggie podia ser positivamente embaraçosa.
— Ele era incompetente e dava muito na vista. O mesmo aconteceu com os outros lá no hotel. Por outro lado, podem estar deliberadamente procurando causar uma reação. Se isto é a intenção deles, vão ter um sucesso danado.
— Provocação? — Maggie parecia triste e resignada. Maggie conhecia-me.
— Interminável. Caminhar, correr e tropeçar em tudo. Com ambos os olhos fechados.
— Isto não me parece uma maneira muito inteligente ou científica de investigar — opinou Belinda, em dúvida. O arrependimento dela estava desaparecendo depressa.
— Jimmy era inteligente. O mais inteligente dos nossos. E científico. Ele está no necrotério da cidade.
Belinda fitou-me com uma expressão estranha.
— Vai colocar o pescoço sob o cepo?
— Sobre o cepo, querida — disse Maggie em tom ausente.
— E não comece a dizer ao seu novo chefe o que ele pode ou não. — Mas ela não punha o coração nessas palavras, pois havia preocupação em seus olhos.
— É suicídio — insistiu Belinda.
— E daí? Atravessar as ruas de Amsterdam é suicídio... ou parece. Milhares de pessoas o fazem todos os dias. — Não disse que tinha motivos para acreditar que minha prematura morte não encabeçava a linha de cruéis prioridades, não porque quisesse melhorar minha imagem heróica, mas porque conduziria apenas a mais explicações, que eu não queria dar no momento.
— Você não nos trouxe aqui sem haver motivo — disse Maggie.
— Exatamente. Mas pisar em calos é trabalho meu. Fiquem escondidas. Hoje à noite, têm liberdade. Amanhã, também, exceto que eu quero que Belinda dê um passeio comigo amanhã à noite. Depois disso, caso se comportem bem, eu levarei vocês a um cabaré bastante avançado.
— E eu venho de Paris só para ir a um cabaré avançado?
— Belinda estava-se divertindo novamente. — Por quê?
— Eu lhe digo por quê. Eu lhes contarei umas coisas sobre cabarés que vocês não sabem. Direi por que estão aqui
— continuei alegremente. — Contarei tudo. — Por "tudo", eu queria dizer tudo que achava que elas precisavam saber, não tudo que havia a dizer. As diferenças eram consideráveis. Belinda olhou-me com um ar de antecipação. Maggie, com um cepticismo cansadamente afetuoso. Mas Maggie conhecia-me bem. — Mas, em primeiro lugar, um pouco de uísque.
— Eu não tenho uísque, Major — Maggie às vezes adotava um ar muito puritano.
— Nem mesmo au fait com os princípios básicos da inteligência. Você precisa ler os livros indicados. — Inclinei a cabeça na direção de Belinda. — O telefone. Peça um pouco. Até mesmo as classes dirigentes precisam descansar, às vezes.
Belinda levantou-se, alisou o vestido escuro e fitou-me com uma espécie de perplexa antipatia. Em voz bem lenta, disse:
— Na ocasião em que você falou a respeito do seu amigo no necrotério, eu observei e nada disse. Ele ainda está lá e você está... qual é a palavra... sendo irreverente. Relaxar-se, foi o que você disse. Como é que consegue fazer isto?
— Com prática. E um sifão de soda.
Foi uma noite clássica aquela no Hotel Rembrandt, com o realejo a executar um excerto da Quinta Sinfonia de Beethoven que teria posto o velho compositor de joelhos, dando graças eternas por sua quase total surdez. Mesmo a cinqüenta metros, a distância de onde eu observava prudentemente em meio de uma suave garoa, o efeito era apavorante. E constituía um extraordinário tributo à tolerância do povo de Amsterdam, cidade de melômanos e sede do mundialmente famoso Concertgebouw, que não atraíssem o velho músico para uma taverna conveniente e, na sua ausência, lançassem o realejo no canal mais próximo. O ancião continuava a chocalhar a lata presa à vara, numa ação puramente reflexa, pois não havia pessoa alguma por ali naquela noite, nem mesmo o porteiro, que ou fora obrigado pela chuva a recolher-se ou era amante da música.
Desci à rua lateral pela entrada do bar. Não havia figuras ocultas nas soleiras próximas ou na entrada do próprio bar, nem eu esperava encontrá-las. Abri caminho pela viela até à escada de incêndio, subi ao teto, cruzei-o e localizei o trecho do beirai imediatamente acima de meu terraço.
Espiei pela borda. Não vi coisa alguma, mas senti um cheiro de fumaça de cigarro, embora não de cigarro feito por uma das mais reputadas companhias de fumos, que não incluem "dólares" de maconha entre seus produtos vendáveis. Inclinei-me mais, quase a ponto de cair, e vi coisas, não muito, mas o suficiente: duas biqueiras e, durante um momento, uma ponta brilhante, descrevendo um arco, evidentemente no momento em que um braço baixava.
Recuei em cautela e silêncio, levantei-me, dirigi-me novamente para a escada de incêndio, desci ao sexto andar, entrei pela porta de emergência, fechei-a novamente, fui tranqüilamente até à porta do Quarto 616 e escutei. Nada. Abri a porta sem ruído com a chave falsa que havia experimentado antes e entrei, fechando-a com tanta rapidez quanto possível. De outra maneira, correntes invisíveis podem atrair a fumaça do cigarro e a atenção de um fumante alerta. Não que os viciados sejam caracterizados por sua alerteza.
Aquele não constituiu exceção. De maneira muito previsível, era o garçom do andar. Sentado confortavelmente numa espreguiçadeira, punha os pés sobre o parapeito do terraço, fumando um cigarro com a mão esquerda. A direita, descansando frouxamente sobre o joelhos, segurava uma arma.
Normalmente, é muito difícil acercarmo-nos de alguém, por mais silencioso que sejamos, vindo de trás, sem que alguma forma de sexto sentido avise a vítima da aproximação. Muitas drogas, porém, produzem uma influência depressiva sobre tal instinto e o garçom fumava uma delas.
Coloquei-me atrás dele, com a arma junto do seu ouvido, e ele continuou ainda sem perceber que eu estava ali. Toquei-lhe o ombro direito. Ele girou num movimento convulsivo e gritou de dor, pois, com o movimento, o cano da minha arma havia-se enfiado em seu olho direito. Levantando ele ambas as mãos para o olho momentaneamente atingido, tomei-lhe a arma sem resistência, enfiei-a no bolso, segurei-lhe o ombro e sacudi-o violentamente, O garçom, catapultado para trás, completou uma cambalhota e aterrou pesadamente de costas e sobre a nuca. Durante talvez dez segundos ficou ali, inteiramente atordoado. Em seguida, ergueu-se sobre um braço. Emitia um curioso som sibilante. Os lábios exangues desapareceram e revelaram dentes manchados de fumo num rosnado vulpino, e seus olhos estavam sombrios de ódio. Não vi muita possibilidade de termos uma agradável conversação.
— Nós somos da pesada, não? — murmurou ele. Esses viciados são grandes apreciadores do cinema violento e o diálogo deles não tem falhas.
— Da pesada? — mostrei-me surpreso. — Oh, meu Deus, não. Mais tarde seremos, se você não falar. — Talvez eu freqüentasse o mesmo cinema que ele. Apanhei o cigarro que queimava no tapete, cheirei-o com nojo, e esmaguei-o num cinzeiro. O garçom levantou-se inseguro, ainda abalado e trêmulo, mas não acreditei em coisa alguma disso. Ao falar novamente, já não rosnava. Ele decidira jogar a partida friamente, na calma que precede a tempestade, segundo um roteiro velho e gasto. Talvez fosse melhor que começássemos a freqüentar a ópera.
— Do que é que o senhor gostaria de falar? — perguntou.
— Para começar, o que estava fazendo no meu quarto. E quem o enviou aqui.
Ele sorriu cansadamente.
— A lei já tentou obrigar-me a falar. Eu conheço a lei. O senhor não pode obrigar-me. Tenho meus direitos. A lei diz isso.
— Aqui, a lei fica do lado de fora de minha porta. Do lado de cá, estamos fora da lei. Você sabe disso. Em uma das grandes cidades civilizadas do mundo, você e eu estamos vivendo em nossa própria pequena selva. Mas, aqui também há uma lei. Matar ou ser morto.
Talvez fosse culpa minha meter coisas na cabeça dele. Ele mergulhou baixo e determinado para tomar-me a arma, mas não suficientemente baixo para atingir-me com a cabeça abaixo do joelho. O joelho é que doeu um bocado e, por isso, devia tê-lo deixado frio, mas ele era duro, agarrou a única perna que eu havia deixado em contato com o chão, e caímos juntos. Minha arma subiu voando e rolamos pelo chão um bocado de tempo, golpeando-nos cheios de entusiasmo. Ele era também um rapaz forte, tão forte quanto duro, mas lutava sob duas desvantagens: um treinamento rigoroso com a maconha havia-lhe embotado o gume afiado da aptidão física e, embora ele tivesse um instinto altamente desenvolvido para a luta desleal, nunca a treinara realmente. Aos poucos, erguemo-nos e eu prendi com minha esquerda seu pulso direito mais ou menos entre as omoplatas.
Empurrei o pulso mais para cima, ele gritou como em agonia, o que bem poderia ter sido o caso, pois o ombro começava a emitir um ruído curioso de coisa quebrada. Mas eu não podia ter certeza, empurrei um pouco mais a mão para cima e acabei com todas as dúvidas. Empurrei-o para o balcão à frente e forcei-o a debruçar-se sobre a balaustrada até tirar os pés do chão. Ele segurou-se à balaustrada com a mão livre, como se sua vida dependesse disso, o que realmente acontecia.
— Você é viciado ou vendedor? — perguntei.
Ele soltou uma obscenidade em holandês, mas eu conheço holandês, inclusive todas as palavras que não devia conhecer. Tapei-lhe a boca com a mão direita, pois o ruído que ele ia fazer poderia ser ouvido mesmo acima do barulho do tráfego e eu não queria alarmar desnecessariamente os cidadão de Amsterdam. Afrouxei a pressão e tirei a mão.
— Bem?
— Vendedor. — A voz saiu como um grasnido soluçante. — Vendo-o.
— Quem o mandou aqui?
— Não! Não! Não!
— A decisão é sua. Quando apanharem o que sobrar de você lá na calçada, pensarão que foi apenas outro queimador de maconha que ficou alto demais e fez uma viagem ao céu.
— Isso é assassinato! — Soluçava ainda, mas a voz era agora apenas um murmúrio rouco. Talvez a vista o tivesse deixado tonto. — O senhor não...
— Não? Vocês mataram um amigo meu esta tarde. Exterminar vermes pode ser um prazer. Uma queda de trinta metros... e nem um único sinal de violência. Exceto todos os seus ossos quebrados. Trinta metros. Olhe!
Levantei-o um pouco sobre a balaustrada para lhe dar uma melhor visão e tive de usar ambas as mãos para puxá-lo de volta.
— Vai falar?
Ele emitiu um som rouco, puxei-o da balaustrada e empurrei-o para o centro do quarto.
— Quem o mandou aqui?
Eu disse que ele era duro, mas era muito mais do que isso. Devia estar apavorado e sofrendo fortes dores, e não duvido de que sentia ambas as coisas, mas isto não o impediu de girar convulsivamente para a direita num círculo completo e escapar de minhas mãos. O inesperado da coisa apanhou-me desprevenido. Atacou-me novamente com uma faca que, de súbito, lhe surgiu na mão esquerda e que foi impulsionada num arco perverso na direção de um ponto imediatamente abaixo do meu esterno. Normalmente, ele teria feito um bom trabalho de trinchamento, mas as circunstâncias eram anormais: ele perdera o senso de oportunidade e as reações. Agarrei e fechei ambas as mãos em torno do punho armado, lancei-me para trás, enfiei uma perna sob as dele, puxei-lhe o braço para baixo e enviei-o como uma pedra de catapulta por sobre minha cabeça. O som surdo de sua aterragem sacudiu o quarto e, com toda probabilidade, mais alguns contíguos.
Girei e levantei-me num único movimento, mas não havia mais necessidade de pressa. Deitado no chão no lado oposto do quarto, ele descansava a cabeça sobre o parapeito da balaustrada. Levantei-o pela lapela e a cabeça caiu para trás quase até tocar nas omoplatas. Soltei-o novamente no chão. Era uma pena que ele estivesse morto porque, provavelmente, sabia de coisas cujo conhecimento teria sido muito valioso para mim. Mas este foi o único motivo por que senti pena.
Revirei-lhe os bolsos, cheios de um bom número de artigos interessantes, mas apenas dois me interessaram: um maço cheio de "dólares" de maconha de fabricação caseira e uns dois pedaços de papel. Num dos papéis estavam datilografadas as letras e os números MOO 144 e, no outro, dois números: 910020 e 2797. Nenhum dos dois me dizia coisa alguma, mas, na presunção razoável de que o garçom não os estaria levando no bolso a menos que tivessem alguma significação para ele, coloquei-os num lugar seguro que fora cortado pelo prestativo alfaiate, um pequeno bolso na parte interna da perna direita, a uns quinze centímetros acima do tornozelo.
Apaguei os poucos sinais de luta, apanhei a arma do homem, dirigi-me para o terraço, inclinei-me sobre a balaustrada e lancei a arma para cima e para a esquerda. Ela passou pelo beirai e caiu sem um som sobre o telhado a uns quatro metros de distância. Voltei para o quarto, coloquei os "dólares" de maconha no sanitário, dei descarga, lavei o cinzeiro, e abri todas as portas e janelas para deixar evaporar logo o cheiro enjoativo. Arrastei-o pela pequena sala de recepção e abri a porta para o corredor.
Vazio. Escutei atentamente, nada ouvi, nem um único som de passos aproximando-se. Fui até o elevador, apertei o botão, esperei que o carro chegasse, abri um pouco a porta, inseri um fósforo entre a maçaneta e a porta para que ela não pudesse fechar e completar o circuito elétrico e voltei correndo para o quarto. Puxei o garçom, até o elevador, abri a porta, lancei-o sem cerimônia dentro no chão, tirei o fósforo e deixei a porta girar. O elevador continuou onde estava: evidentemente ninguém estava apertando o botão daquele elevador especial, naquele momento especial.
Fechei a porta externa de meu apartamento com a chave falsa e voltei à escada de incêndio, agora uma velha e segura amiga. Cheguei à rua sem ser observado e dei a volta até a entrada principal. O velho do realejo tocava Verdi agora e Verdi perdia por quilômetros. Dava-me as costas no momento em que coloquei um guilder na lata. Voltou-se para agradecer-me, entreabriu os lábios num sorriso desdentado, viu quem era e a mandíbula lhe caiu momentaneamente. A surpresa era completa, pois ninguém lhe havia informado que Sherman estava ao largo. Enderecei-lhe um sorriso bondoso e entrei no foyer.
Dois empregados uniformizados, atrás do balcão, faziam companhia ao gerente, nessa ocasião de costas para mim. Em voz alta, pedi:
— Seis-um-seis, por favor.
O gerente girou rapidamente, com as sobrancelhas erguidas, mas não o suficiente. Abriu em seguida a boca no caloroso sorriso de crocodilo.
— Sr. Sherman. Eu não sabiá que o senhor havia saído.
— Oh, sim, saí. Um exercício antes do jantar. Um velho costume inglês, como o senhor sabe.
— Naturalmente, naturalmente. — Sorriu-me com ar superior como se houvesse alguma coisa vagamente repreensível a respeito do velho costume inglês. Logo depois, uma expressão levemente confusa lhe substituiu o sorriso. Não podia haver falsidade maior. — Eu não me lembro de tê-lo visto sair.
— Bem — disse eu sensatamente — o senhor não pode atender a todos os seus hóspedes, durante todo o tempo, certo? — Retribuí-lhe o mesmo falso sorriso, apanhei a chave e dirigi-me ao conjunto de elevadores. Estava a meio caminho quando parei com o grito agudo que soou no foyer e produziu um silêncio imediato, que durou apenas o suficiente para que a mulher que gritara tomasse fôlego e recomeçasse. A origem de toda a confusão era uma mulher de meia-idade, extravagantemente vestida, caricatura de turista americana, em pé, em frente ao elevador, com a boca aberta num "O" e os olhos que pareciam dois pires. Ao seu lado, um tipo robusto de terno de listrinhas procurava acalmá-la, mas ele mesmo não parecia lá muito feliz e dava a impressão de que não se teria importado de soltar também uns gritinhos.
O gerente-assistente passou por mim e segui-o mais devagar. Ao chegar ao elevador, vi-o de joelhos, curvado sobre a forma estirada do falecido garçom.
— Meu Deus — disse eu. — Acha que ele está doente?
— Doente? Doente? — O gerente-assistente olhou-me furioso. — Olhe para o jeito do pescoço dele. O homem está morto.
— Deus do céu, acho que o senhor tem razão. — Curvei-me e examinei o garçom. — Eu não vi este homem em algum lugar antes?
— Ele era o garçom do seu andar — disse o gerente, o que não é uma observação fácil de fazer de dentes cerrados.
— Bem que ele não me parecia estranho. Na primavera da vida... — Sacudi, triste, a cabeça. — Onde fica o restaurante?
— Onde fica o... onde fica o...
— Não tem importância — disse eu, tranqüilizando-o. — O senhor está nervoso. Eu mesmo o encontrarei.
O restaurante do Hotel Rembrandt talvez não seja, como dizem os seus proprietários, o melhor da Holanda, mas eu não gostaria de levá-los à barra de um tribunal sob a acusação de falsas afirmativas. Do caviar aos morangos fora de estação — tolamente me perguntei se devia pôr na conta esta despesa como entretenimento ou suborno — a comida era soberba. Durante um momento, mas não com um sentimento de culpa, pensei em Maggie e Belinda. Mas as coisas tinham que ser assim. O sofá vermelho de veludo onde eu me sentava era o máximo em conforto às refeições. Reclinei-me, ergui o cálice de conhaque e disse:
— Amsterdam!
— Amsterdam! — ecoou o coronel Van de Graaf. O coronel, subchefe da polícia metropolitana, viera fazer-me companhia, sem ser convidado, cinco minutos antes. Ocupava uma grande cadeira que parecia pequena demais para ele. Homem muito largo, mas apenas de estatura mediana, possuía cabelos cinzentos cor de aço, um rosto profundamente marcado e moreno, e um ar inegável de autoridade e de competência quase desanimadora. Secamente, ele continuou: — É um prazer vê-lo divertindo-se, major Sherman, após um dia tão cheio.
— Devem-se colher os botões da roseira enquanto se pode, coronel... A vida é curta demais. Que dia cheio?
— Não conseguimos descobrir muita coisa sobre aquele homem, Jimmy Duelos, que foi baleado e assassinado hoje no aeroporto. — O coronel De Graaf era um homem paciente e que não caía facilmente numa esparrela. — Sabemos apenas que veio da Inglaterra há três semanas, hospedou-se no Hotel Schiller durante uma noite e desapareceu em seguida. Parece-, major Sherman, que ele esperava seu avião. Isto foi apenas coincidência?
— Ele estava à minha espera. — De Graaf forçosamente descobriria isso mais cedo ou mais tarde. — Um dos meus agentes. Acho que ele deve ter conseguido um passe policial falso em alguma parte... quero dizer, para passar pela imigração.
— O senhor me surpreende. — Suspirou alto e não pareceu em absoluto surpreso. — Meu amigo, as coisas se tornam muito difíceis para nós se não somos informados a respeito delas. Eu devia ter sido informado sobre Duelos. Desde que temos instruções da Interpol de Paris para dar-lhe toda a ajuda possível, não acha que seria melhor se trabalhássemos juntos? Podemos ajudá-lo... e o senhor ajudar-nos. — Bebericou um pouco de conhaque e fitou-me de frente com os olhos cinzentos. — É de presumir que seu agente tivesse informações... e agora as perdemos.
— Talvez. Bem, vamos começar com o senhor ajudando-me. Poderá verificar se nos seus arquivos há alguma coisa sobre uma Srta. Astrid Lemay? Trabalha num cabaré, mas não fala como holandesa nem parece holandesa e é possível que o senhor tenha algo a seu respeito.
— A moça que o senhor derrubou no aeroporto? Como é que sabe que ela trabalha num cabaré?
— Ela me disse — respondi, sem corar.
Ele ergueu as sobrancelhas.
— Os funcionários do aeroporto não me falaram dessa observação.
— Os funcionários do aeroporto são um grupo de velhas.
— Ah! — A exclamação poderia ter significado qualquer coisa — Posso obter a informação. Mais alguma coisa?
— Nada.
— Nós não falamos ainda a respeito de outro pequeno fato.
— Conte-me.
— O garçom do sexto andar... um tipo desagradável sobre o qual temos algumas informações... não era um de seus agentes?
— Coronel!
— Não pensei absolutamente que fosse. Sabe que ele teve o pescoço quebrado?
— Deve ter sofrido uma grande queda — comentei, cheio de simpatia.
De Graaf esvaziou o conhaque e levantou-se.
— Nós não o conhecemos, major Sherman, mas o senhor trabalha há bastante tempo na Interpol e ganhou uma reputação européia grande demais para que não saibamos de seus métodos. Poderia lembrar-lhe que o que vale em Istambul, Marselha e Palermo — para mencionar apenas algumas cidades — não vale aqui em Amsterdam?
— Meu Deus! — disse-lhe eu. — O senhor está bem informado.
— Aqui em Amsterdam, estamos todos sujeitos à lei. — Talvez ele não me tivesse ouvido. — Eu, inclusive. O senhor não constitui exceção.
— Nem espero ser — retruquei virtuosamente. — Bem, então, cooperação. A finalidade de minha visita. Quando poderei ter uma conversa com o senhor?
— Em meu gabinete, às dez horas. — Sem entusiasmo algum olhou em volta do restaurante. — Aqui dificilmente será o tempo e o local.
Ergui uma sobrancelha.
— O Hotel Rembrandt — disse sombriamente De Graaf — é um posto de escuta de_ renome internacional.
— O senhor me deixa atônito — respondi.
De Graaf partiu. Perguntei-me por que, que diabo, pensava ele que eu havia resolvido ficar no Hotel Rembrandt.
O gabinete do coronel De Graaf não se parecia em coisa alguma com o Hotel Rembrandt. A sala era bastante grande, mas nua, com pouca mobília, funcional, equipada principalmente com arquivos, uma mesa de aço cinzento e cadeiras cinzentas tão duras como aço. Mas, pelo menos, a decoração tinha o efeito de levar o indivíduo a concentrar-se no assunto em pauta. De Graaf e eu, após dez minutos de discussão preliminar, estávamo-nos concentrando, embora eu pensasse que isso era mais fácil para ele do que para mim. Eu havia ficado acordado até tarde na noite anterior e nunca estou na minha melhor forma às dez da manhã de um dia frio e ventoso.
— Todos os tóxicos — concordou De Graaf. — Naturalmente, estamos interessados em todos eles — ópio, maconha, anfetamina, LSD, STP, cocaína, acetato de amila. Basta dizer o nome e estamos interessados. Todos eles destroem ou levam à destruição. Mas, neste caso, estamo-nos limitando ao realmente mau — à heroína. De acordo?
— De acordo. — A voz incisiva e profunda veio da porta. Virei-me e vi-o na soleira, um homem alto num terno bem cortado, olhos frios e penetrantes, rosto agradável que podia deixar de ser agradável num instante, e aparência muito profissional. Não havia dúvida quanto a sua profissão. Era um policial e não daqueles que se pudesse ignorar.
Ele fechou a porta e aproximou-se de mim com passos leves e flexíveis de um homem muito mais moço do que os seus quarenta e tantos, o que ele tinha, pelo menos. Estendeu a mão e disse:
— Van Gelder. Ouvi muitas histórias a seu respeito, major Sherman.
Meditei durante um momento mas cuidadosamente sobre essas palavras e resolvi abster-me de comentários. Sorri e apertei-lhe a mão.
— Inspetor Van Gelder — disse De Graaf. — Chefe de nosso Departamento de Narcóticos. Trabalhará com você, Sherman. Ele lhe dará a melhor cooperação possível.
— Espero sinceramente que possamos trabalhar bem juntos — Van Gelder sorriu e sentou-se. — Diga-me, que progresso há do seu lado? Pensa que pode destruir a quadrilha de abastecimento na Inglaterra?
— Pensei que podia. Trata-se de um canal de distribuição altamente organizado, altamente integrado, quase sem intermediários... e foi por isso que pudemos identificar uma dúzia de seus vendedores e cerca de meia dúzia dos principais distribuidores.
— O senhor poderia acabar com a organização, mas não quer. Deixa-a em paz, então?
— O que mais poderemos fazer, inspetor? Se destruirmos a organização, a quadrilha seguinte de distribuição se esconderá tanto que nunca a encontraremos. Da forma como estão as coisas, podemos prendê-los quando quisermos. O que queremos realmente saber é como entre a maldita droga... e quem a está fornecendo.
— E o senhor pensa — obviamente, pois, de outra forma, não estaria aqui — que o abastecimento é feito daqui? Ou destas imediações?
— Não destas imediações. Aqui. E eu não penso. Sei. Oitenta por cento dos indivíduos que temos sob vigilância — refiro-me aos distribuidores e vendedores — têm ligações com este país. Para ser exato, com Amsterdam... praticamente todos eles. Têm parentes ou amigos aqui. Têm contatos comerciais aqui, fazem pessoalmente os negócios ou vêm aqui nos feriados. Passamos cinco anos preparando esse dossiê.
De Graaf sorriu.
— Sobre esse local chamado "aqui".
— Amsterdam, sim.
— Há cópias desse dossiê? — perguntou Van Gelder.
— Uma.
— Com o senhor?
— Sim.
— Com o senhor?
— No único lugar seguro — e bati com os dedos na cabeça.
— Um lugar tão seguro como se poderia desejar — disse De Graaf em tom de aprovação, mas acrescentou pensativo: — Enquanto, naturalmente, não se encontrar com pessoas talvez inclinadas a tratá-lo da maneira como o senhor as trata.
— Não estou entendendo, coronel.
— Estou falando em charadas — disse De Graaf em tom afável. — Muito bem, concordo. No momento, o dedo aponta para a Holanda. Para não entrar em detalhes, como o senhor não entra, para Amsterdam. Nós também conhecemos nossa infeliz reputação. Gostaríamos que fosse falsa. Mas não é. Sabemos que o material chega em grosso. Sabemos que sai a retalho... mas não temos idéia de onde ou como.
— A casa é sua — disse eu suavemente.
— É o quê?
— A sua província. Amsterdam. O senhor administra a lei em Amsterdam.
— O senhor faz muitos amigos durante um ano? — inquiriu Van Gelder polidamente.
— Eu não estou neste negócio para fazer amigos.
— O senhor está neste negócio para destruir pessoas que destroem pessoas — disse De Graaf calmamente. — Temos informações a seu respeito. Um esplêndido dossiê. Gostaria de vê-lo?
— A história antiga me entedia.
— O que seria de esperar. — De Graaf suspirou. — Ouça, Sherman, as melhores forças policiais do mundo coisa alguma podem fazer contra um muro de concreto. E é isto o que temos feito... mas não que eu alegue que somos os melhores. Precisamos apenas de uma pista... uma única pista solitária... Tem alguma idéia, algum plano?
— Cheguei apenas ontem. — Meti a mão dentro da perna direita da calça e entreguei ao coronel os dois pedaços de papel que encontrara nos bolsos do garçom do andar. — Essas cifras. Esses nomes. Significam alguma coisa para o senhor?
De Graaf examinou-os brevemente, colocou-os durante um momento diante de uma forte lâmpada de mesa e depositou-os na mesa.
— Não.
— Poderia descobrir? Se tiverem alguma significação?
— Eu disponho de um quadro de pessoal muito capaz. Por falar nisso, onde os conseguiu?
— Foram-me dados por uma pessoa.
— Quer dizer, tirou-os da pessoa.
— Há alguma diferença?
— Poderia haver uma grande diferença. — De Graaf inclinou-se para a frente com o rosto e a voz muito sérios. — Escute, major Sherman, nós ouvimos falar de sua técnica de fazer as pessoas perderem o equilíbrio e continuarem a cair. Estamos informados de sua propensão a extravasar os limites da lei...
— Coronel De Graaf!
— Um bom argumento. Para começar, o senhor provavelmente nunca anda dentro da lei. Conhecemos essa política deliberada — reconhecidamente tão eficaz quanto suicida — de provocação interminável, esperando por algo, por alguém que ceda. Mas, por favor, major Sherman, por favor, não tente provocar gente demais em Amsterdam. Nós temos canais demais.
— Não provocarei pessoa alguma — prometi. — Terei todo o cuidado.
— Tenho certeza de que sim. — De Graaf suspirou. — E, agora, acho que Van Gelder tem algumas coisas para mostrar-lhe.
Tinha. Levou-me no seu próprio Opel preto, da Chefatura, na Marnixstraat, até o necrotério da cidade e, quando saí, desejei não ter ido.
O necrotério carecia do encanto de velho mundo, do romance e da beleza nostálgica de Amsterdam. Era como o necrotério de qualquer grande cidade: frio — muito frio — clínico, desumano e repulsivo. O bloco central possuía no centro duas fileiras de lajes brancas que pareciam de mármore e quase com certeza não eram e, dos lados, grandes portas de metal. O principal atendente, resplendente em um avental imaculadamente engomado, era um tipo alegre, rosado, cordial, que parecia correr o risco perpétuo de explodir em imensas gargalhadas, uma característica muito estranha, realmente, para encontrar num atendente, até que recordamos que mais de um punhado de carrascos ingleses no passado eram considerados os mais alegres companheiros de taverna que se poderiam encontrar.
A uma palavra de Van Gelder, ele levou-nos a uma das grandes portas de metal, abriu-a e puxou uma maça de metal, que correu suavemente sobre roletes de aço. Na maça, uma figura envolvida em um lençol branco.
— O canal em que ele foi encontrado 6 chamado de Croquiskade — disse Van Gelder. Parecia absolutamente indiferente.
— Não, o que o senhor poderia chamar de Park Lane de Amsterdam... Fica perto das docas. Hans Gerber. Dezenove anos. Não lhe mostrarei o rosto dele... ficou tempo demais na água. Os bombeiros encontraram-no ao içar um carro. Ele poderia ter passado ali mais um ano ou dois. Alguém torceu alguns velhos canos de chumbo em volta da cintura dele. — Levantou uma ponta do lençol para mostrar um braço flácido e magro. Parecia que alguém o havia pisado em toda extensão com botas ferradas. Curiosas linhas cor de púrpura ligavam muitas das picadas e o braço estava profundamente descolorido. Van Gelder cobriu-o sem uma palavra e afastou-se. O atendente empurrou a maça novamente para dentro, levou-nos a outra porta, repetiu o espetáculo de puxar outro cadáver, sorrindo radiante como um duque inglês falido ao mostrar ao público seu histórico castelo.
— Não lhe mostrarei também esse rosto — disse Van Gelder. — Não é agradável olhar para a face de um rapaz de vinte e três anos que parece ter setenta. — Virou-se para o atendente. — Onde encontraram este?
— No Oosterhook. — O atendente estava radiante. — Numa alvarenga de carvão.
Van Gelder inclinou a cabeça.
— Exato. Com uma garrafa — vazia — de gim ao lado. O gim todo estava dentro dele. O senhor bem sabe que esplêndida combinação fazem gim e heroína. — Puxou o lençol para mostrar um braço semelhante ao que eu acabara de ver. — Suicídio... ou assassinato?
— Depende.
— De quê?
— Se ele mesmo comprou o gim. Isso tornaria o caso suicídio... ou morte acidental. Alguém poderia ter colocado a garrafa cheia na mão dele. Isso seria assassinato. Tivemos um caso deste no mês passado no porto de Londres. Nunca saberemos.
A uma inclinação de Van Gelder, o atendente levou-nos cheio de alegria a uma laje no centro da sala. Desta vez Van. Gelder puxou o lençol da parte superior. A moça era muito jovem, muito bela e tinha cabelos dourados.
— Bela, não? — perguntou Van Gelder. — Nem uma única marca no rosto. Julia Rosemeyer, da Alemanha Oriental. Isto é tudo que sabemos dela, tudo o que jamais saberemos. Dezesseis anos, segundo pensa o médico.
— O que foi que lhe aconteceu?
— Caiu de seis andares sobre uma calçada de concreto. Pensei um pouco no ex-garçom, como ele teria parecido bem naquela laje, e perguntei:
— Empurrada?
— Queda. Testemunhas. Estavam todos altos. Ela esteve falando a noite toda em tomar um avião para a Inglaterra. Tinha alguma obsessão a respeito de conhecer a Rainha. Subitamente, dirigiu-se trôpega para o parapeito do terraço, disse que ia voar para ver a Rainha... bem, voou. Felizmente, ninguém passava por baixo na ocasião. Quer ver mais?
— Eu gostaria de tomar uma bebida no próximo bar, se não se incomodar.
— Não. — Ele sorriu, mas não havia humor no sorriso. — Vamos à lareira de Van Gelder. Não fica longe. Eu tenho meus motivos.
— Motivos?
— O senhor verá.
Disse adeus e agradeceu ao feliz e sorridente atendente, que dava a impressão de querer dizer "Voltem logo", mas não disse. O céu estava escuro desde o início da manhã e grandes e pesadas gotas esparsas de chuva começavam a cair. A leste, o horizonte apresentava-se lívido e púrpura, e muito mais do que vagamente ameaçador e sombrio. Raramente um céu refletiu mais exatamente meu estado de espírito do que aquele.
A lareira de Van Gelder podia superar a maioria dos bares ingleses que conheço. Era um oásis de esfuziante alegria em contraste com a chuva que se despencava lá fora e que em ondas descia pelas janelas. Era quente, acolhedora, confortável, caseira, guarnecida da pesada mobília holandesa, com poltronas profundamente acolchoadas, pelas quais tenho uma forte preferência: não marcam tanto como a variedade pouco acolchoada. Havia um tapete avermelhado e as paredes tinham várias tonalidades de diferentes cores pastel. A lareira era tudo que uma lareira devia ser e notei satisfeito que Van Gelder estudava pensativo um armário bem fornecido de bebidas.
— Bem — disse eu — você levou-me àquele horrível necrotério para provar um argumento. Tenho certeza de que provou. Qual era?
— Argumentos, não um único. O primeiro, convencê-lo de que enfrentamos aqui um problema ainda mais grave do que vocês têm em sua casa. Há outra meia-dúzia de viciados em tóxicos naquele necrotério, e quantos morreram de morte natural ninguém sabe. Não é sempre tão mau assim. Essas mortes parecem ocorrer em ondas, mas, ainda assim, representam uma perda intolerável de vidas, principalmente de jovens, por falar nisso. E para cada um deles ali, quantas centenas de viciados irrecuperáveis vagueiam pelas ruas?
— Quer dizer com isso que o senhor tem ainda mais incentivos do que eu para querer destruir essa gente... e que atacamos um inimigo comum, uma fonte central de abastecimento?
— Todos os países têm apenas um rei.
— E o segundo argumento?
— Reforçar a advertência do coronel De Graaf. Esses indivíduos são absolutamente implacáveis. Provoque-os demais, aproxime-se demais... bem, há ainda algumas lajes de sobra no necrotério.
— Que tal aquela bebida? — perguntei.
Um telefone tocou no corredor. Van Gelder murmurou uma desculpa e foi atendê-lo. No exato momento em que a porta se fechava sobre ele, uma segunda porta abriu-se e entrou uma moça. Era alta, esguia, no princípio da casa dos vinte e vestia um robe de muitas tonalidades, com um dragão aplicado, que lhe chegava quase aos tornozelos. Era muito bela, tinha cabelo alourado, rosto oval e enormes olhos cor de violeta que pareciam simultaneamente alegres e penetrantes. Era tão impressionante sua aparência geral que passou muito tempo antes que eu me lembrasse daquilo que se chama de boas maneiras e lutasse para levantar-me, o que não foi fácil, das profundidades da cavernosa poltrona.
— Alô — disse-lhe. — Sou Paul Sherman. — Não parecia muita coisa, mas foi tudo que consegui lembrar para dizer.
Quase como se estivesse embaraçada, a moça sugou durante um momento a ponta do polegar e sorriu, revelando dentes perfeitos.
— Eu sou Trudi. Não falo bom inglês. — Não falava mesmo, mas possuía a mais bela das vozes para falar mau inglês que eu ouvira há muito tempo. Aproximei-me com a mão estendida, mas ela nenhum movimento fez para apertá-la. Em vez disso, levou a mão à boca e soltou um risinho tímido. Eu não estou acostumado a ver moças plenamente desenvolvidas rirem timidamente para mim e fiquei mais do que aliviado ao ouvir o som do aparelho sendo colocado no gancho e a voz de Van Gelder ao entrar.
— Apenas um relatório de rotina sobre o caso do aeroporto. Nada ainda como ponto de partida...
Viu a moça, parou de falar, sorriu e, aproximando-se, pôs um braço em volta dela.
— Vejo que já se conhecem.
— Bem — disse eu — não, inteiramente... — e parei também porque Trudi ergueu-se na ponta dos pés e murmurou alguma coisa no ouvido dele, olhando-me pelo canto do olho. Van Gelder sorriu, inclinou a cabeça e Trudi saiu rapidamente. O espanto deve ter aparecido no meu rosto, pois Van Gelder sorriu, embora não fosse um sorriso muito alegre.
— Ela voltará logo, major. É tímida, no início, com estranhos. Apenas no início.
Como ele prometera, Trudi voltou quase em seguida. Trazia uma boneca muito grande, tão maravilhosamente bem feita que, à primeira vista, podia ser tomada por uma criança real. Tinha quase noventa e cinco centímetros de comprimento. Os cabelos, quase da cor dos de Trudi, eram cobertos por um chapéu branco de holandesa. Usava um vestido rodado de seda listrada, descendo até os tornozelos, e um corpinho belamente bordado. Trudi abraçou-a com tanta força como se fosse uma criança verdadeira. Van Gelder, mais uma vez, enlaçou-a com o braço.
— Esta é minha filha Trudi. Um amigo meu, Trudi. O major Sherman, da Inglaterra.
Desta vez ela se aproximou com hesitação, estendeu a mão, fez um pequeno movimento como se iniciasse uma mesura, e sorriu.
— Muito prazer, major Sherman.
Para não ficar atrás em cortesia, sorri e inclinei levemente a cabeça.
— Srta. Van Gelder, o prazer é meu.
— O inglês não é um dos pontos fortes de Trudi — disse Van Gelder em tom de desculpa. — Por favor, sente-se, major, sente-se.
Apanhou uma garrafa de uísque numa mesa lateral, serviu dois copos, entregou-me um deles e afundou-se em sua poltrona com um suspiro. Levantou em seguida os olhos para a filha, que me encarava de uma maneira que me fez sentir um pouco mais do que vagamente contrafeito.
— Não vai sentar-se, querida?
Ela voltou-se para Van Gelder, sorriu alegremente, inclinou a cabeça e entregou-lhe a grande boneca. Ele recebeu-a com uma boa vontade tão grande que, obviamente, estava acostumado a isso.
— Sim, papai — disse e, sem um aviso, mas ao mesmo tempo como se fosse a coisa mais natural do mundo, sentou-se nos meus joelhos, pôs um braço em volta de meu pescoço e sorriu-me. Sorri imediatamente, também, embora naquele momento isso constituísse uma façanha hercúlea.
Trudi fitou-me solenemente e disse:
— Eu gosto de você.
— Eu também gosto de você, Trudi. — Apertei-lhe o ombro para mostrar como gostava dela. Ela sorriu-me, pôs a cabeça no meu ombro e fechou os olhos. Olhei durante um momento para a parte superior daquela cabeça loura e, em seguida, lancei um olhar interrogador a Van Gelder. Ele sorriu, num sorriso cheio de tristeza.
— Se por acaso não o firo dizendo isto, major Sherman, Trudi ama todas as pessoas.
— A todas as moças, em certa idade, acontece isso.
— O senhor é um homem de uma capacidade de entendimento realmente extraordinária.
Eu não achava que fosse precisa qualquer grande capacidade de entendimento para fazer a observação que acabara de lançar, fiquei calado, sorri apenas e voltei-me para Trudi. Muito suavemente, perguntei:
— Trudi?
Ela conservou-se calada. Apenas se moveu um pouco e sorriu novamente, um sorriso curiosamente contente que, por algum obscuro motivo, fez-me sentir mais do que embusteiro, fechou ainda mais os olhos e colou-se a mim.
Tentei novamente.
— Trudi, eu tenho certeza de que você possui belos olhos. Posso vê-los?
Ela pensou no pedido durante um momento, sorriu mais uma vez, espigou-se, afastou-se colocando as mãos nos meus ombros e abriu muito os olhos, como o faria uma criança ao ouvir semelhante pedido.
Não havia dúvida de que os enormes olhos violeta eram belos. Mas eram também mais alguma coisa. Eram vidrados, vazios e não pareciam refletir a luz. Reluziam, lançando fagulhas que se teriam falsamente destacado numa fotografia, mas eram fagulhas superficiais e, por trás delas, havia uma estranha opacidade.
Ainda meigamente, tirei-lhe a mão direita do meu ombro e subi a manga do robe até a altura do cotovelo. O que teria sido um belo antebraço estava chocantemente desfigurado por picadas deixadas por um número incontável de agulhas hipodérmicas. Trudi, de lábios trêmulos, fitou-me desalentada como se temesse uma censura, baixou com um movimento rápido a manga do vestido, mergulhou o rosto em meu pescoço e começou a chorar. Chorava como se tivesse o coração partido. Acariciei-a, tranqüilizando-a, como se acaricia uma pessoa que parece resolvida a estrangular-nos e estendi a vista para Van Gelder.
— Agora conheço seus motivos — disse eu. — Por ter insistido em que eu viesse aqui.
— Sinto muito. Agora o senhor sabe.
— Vai provar o terceiro argumento?
— Vou. Somente Deus sabe que eu não queria ter de fazê-lo. Mas o senhor compreenderá que, por questão de lealdade para com meus colegas, preciso fazê-los conhecer esses fatos.
— De Graaf sabe?
— Todos os policiais graduados de Amsterdam sabem — respondeu ele com simplicidade. — Trudi!
A única reação de Trudi foi colar-se ainda mais a mim. Eu começava a sofrer de falta de ar.
— Trudi! — Van Gelder mostrou-se mais insistente desta vez. — A sua sesta vespertina. Você sabe o que o médico disse. Cama!
— Não — soluçou ela. — Cama, não.
Van Gelder suspirou e elevou a voz:
— Herta!
Quase como se estivesse esperando por uma deixa — o que provavelmente estivera fazendo, à escuta do outro lado da porta — entrou na sala a mais grotesca das criaturas. No que interessa à saúde, ela era um desafio para acabar com todos os desafios. Era uma mulher enorme, imensamente gorda, bamboleante — descrever-lhe o método de locomoção como andar teria sido uma grande inexatidão — e usava exatamente os mesmos tipos de roupas da boneca de Trudi. Compridas trancas louras amarradas com uma fita de cor viva pendiam-lhe sobre o busto maciço. O rosto era velho — ela deveria ter no mínimo mais de setenta anos — profundamente cortado de rugas e com a textura e aparência de couro pardo rachado. O contraste entre as roupas alegremente coloridas, as trancas amarelas e a enorme e velha bruxa que as usava parecia tão bizarro, horrível, grotesco que bordejava o obsceno, muito embora o contraste não parecesse provocar tal reação em Van Gelder ou em Trudi.
Trudi levantou imediatamente para ela os olhos, desaparecidas as lágrimas com a mesma rapidez com que haviam chegado, inclinou documente a cabeça, desprendeu-se dos meus braços e pescoço e ergueu-se. Dirigiu-se à cadeira de Van Gelder, apanhou a boneca, beijou-o, veio para junto de mim, beijou-me com tanta calma como uma criança dizendo boa noite e quase deslizou para fora da sala, levando a reboque a bamboleante Herta. Exalei um longo suspiro e, com esforço, evitei de enxugar a testa.
— Você podia ter-me avisado — queixei-me. — A respeito de Trudi e Herta. Quem é ela, por falar nisso... Herta, quero dizer. Enfermeira?
— Uma antiga empregada, do campo. — Van Gelder tomou um grande gole de uísque, como se precisasse dele urgentemente e eu fiz o mesmo, pois precisava ainda mais. Afinal de contas, ele estava acostumado àquela situação. — A velha governanta de meus pais — da ilha de Huyler, no Zuider Zee. Como você deve ter observado, elas são um pouco — como diriam vocês? — conservadoras nos trajos. Ela está conosco há apenas alguns meses... mas, bem, você pode ver como ela é com Trudi.
— E Trudi?
— Trudi tem oito anos de idade. Teve oito anos de idade nestes últimos quinze anos e terá sempre oito anos. Não é minha filha... como você poderia pensar. Mas eu não poderia ter amado mais uma filha. Filha adotiva de meu irmão. Ele e eu trabalhamos em Curaçao até o ano passado. Eu, em narcóticos, e ele como chefe de segurança de uma companhia holandesa de petróleo. A esposa dele morreu há alguns anos... Em seguida, ele e minha esposa foram mortos num desastre de automóvel no ano passado. Alguém precisava tomar conta de Trudi. Fiz isso. Eu não a queria... e agora não posso viver sem ela. Ela nunca crescerá, Sr. Sherman.
Durante todo o tempo seus subordinados, com toda probabilidade, pensavam que ele era apenas o feliz superior, sem outro pensamento ou preocupação do que pôr atrás das grades tantos malfeitores quanto possível. Comentários simpáticos e comiseração nunca foram meu forte e, assim, eu disse:
— Esse vício... quando começou?
— Só Deus sabe. Há anos. Anos antes de meu irmão descobrir.
— Algumas daquelas picadas de injeção são recentes.
— Ela está fazendo um tratamento de privação. Injeções demais, parece.
— Parece, sim.
— Herta observa-a como um falcão. Todas as manhãs, leva-a ao Vondel Park... ela adora dar comida às aves. Durante as tardes, Trudi dorme. Mas, às vezes, durante a noite, Herta fica cansada... e eu freqüentemente saio à noite.
— Mandou vigiá-la?
— Dezenas de vezes. Não sei como fazem isso.
— Eles estão tentando atingi-lo através dela?
— Para fazer pressão sobre mim. O que mais? Ela não tem dinheiro para pagar as doses. São uns imbecis e não compreendem que terei primeiro de- vê-la morrer lentamente diante de meus olhos antes de entrar em acordo com eles. E assim, continuam a tentar.
— O senhor podia pôr uma guarda em volta dela durante vinte e quatro horas por dia.
— Isso tornaria o caso oficial. Um pedido oficial dessa natureza é levado automaticamente às autoridades de Saúde. E então?
— Um asilo. — Inclinei a cabeça. — Para os mentalmente retardados. Ela nunca mais sairia.
— Ela nunca mais sairia.
Eu não sabia o que dizer, salvo adeus. E foi o que fiz e saí.
Passei a tarde no meu quarto no hotel, examinando as cuidadosamente documentadas pastas e histórias de casos, classificados em nomenclatura cruzada, que o gabinete do coronel De Graaf me fornecera. Abrangiam todos os casos conhecidos de vício em drogas e processos movidos contra traficantes, bem sucedidos ou não, em Amsterdam, nos últimos dois anos. Constituíam interessante leitura, isto é, se o interesse da pessoa se orientava para a morte, a degradação, o suicídio, os lares desfeitos e as carreiras arruinadas. Mas neles coisa alguma havia pra mim. Passei uma hora inútil procurando rearrumar e combinar os vários índices cruzados, mas nenhuma configuração significativa emergiu. Desisti. Mentes altamente treinadas, como as de De Graaf e Van Gelder, devem ter gasto muitas e muitas horas no mesmo inútil passatempo e, se não haviam conseguido estabelecer qualquer configuração, não havia esperança para mim.
Logo no início da noite desci ao foyer e entreguei a chave. 0 sorriso do gerente-assistente por trás do balcão de recepção carecia um pouco daquela expressão de tigre de dentes de sabre, mostrava-se respeitoso e mesmo apologético. Ele evidentemente fora instruído a tentar um novo ângulo comigo.
— Boa noite, boa noite, Sr. Sherman — disse numa maneira cativante, de que gostei ainda menos do que de seus modos habituais. — Receio ter parecido um pouco brusco ontem à noite, mas, o senhor sabe...
— Nem fale nisso, meu querido amigo, nem fale nisso. — Eu não ia deixar que nenhum velho gerente de hotel me passasse a perna em cordialidade. — Foi perfeitamente compreensível nas circunstâncias. Aquilo tudo deve ter sido um grande choque para o senhor. — Pelas portas do foyer olhei para a chuva que caía. — Os catálogos de turismo não falam nisso.
Ele abriu-se num sorriso, como se não tivesse ouvido a mesma tola observação mil vezes antes e disse com um sorriso astucioso:
— Uma noite difícil para seu exercício físico inglês, Sr. Sherman.
— Não dá pé, mesmo. Para mim hoje a noite será o Zaandam.
— Zaandam. — Fez uma careta. — Meus pêsames, Sr. Sherman. — Ele evidentemente sabia muito mais a respeito do Zaandam do que eu e isto não surpreendia, porque eu acabava de tirar o nome de um mapa.
Saí para a rua. A despeito da chuva, o realejo continuava ainda a moer, esganiçado, no auge de sua forma. Naquela noite Puccini estava no ar e levava uma tremenda surra. Dirigi-me até lá e fiquei por perto durante algum tempo, não tanto ouvindo a música, pois aquilo não merecia tal nome, mas olhando sem aparentemente ver um punhado de adolescentes emaciados e mal vestidos — um espetáculo realmente raro em Amsterdam, onde ninguém aprecia muito a magreza — de cotovelos no realejo e parecendo extasiados. Uma voz às minhas costas interrompeu-me os pensamentos.
— Mynheer gosta de música? — Voltei-me. O velho sorria-me com certa hesitação.
— Adoro música.
— Eu também, eu também. — Examinei-o atentamente, pois, sendo a natureza o que é, ele devia estar à beira da cova e não poderia haver perdão para aquelas palavras. Sorri para ele, um melômano para o outro.
— Pensarei no senhor hoje à noite. Vou à ópera.
— Mynheer é muito bondoso.
Depositei duas moedas na lata que havia misteriosamente aparecido sob meu nariz.
— Mynheer é bondoso demais.
Tendo sobre ele as suspeitas que eu tinha, pensei o mesmo, mas sorri caridosamente e, tornando a atravessar a rua, inclinei cabeça para o porteiro. Com um passe maçônico conhecido somente dos porteiros, ele tirou um táxi do nada.
— Aeroporto de Schiphol — disse eu, entrando.
Partimos. Mas não partimos sozinhos. No primeiro sinal, a vinte metros do hotel, olhei pela janela traseira tingida. Um táxi Mercedes de listras amarelas estava a dois carros atrás de nós, um táxi que reconheci como freqüentador da fila formada não muito distante do hotel. Mas poderia ter sido coincidência. As luzes mudaram para verde e entramos na Vijzelstraat. O mesmo fez o Mercedes de listras amarelas.
Bati no ombro do motorista.
— Pare aqui, por favor. Quero comprar cigarros. — Desci. 0 Mercedes imediatamente atrás de nós parou também. Ninguém entrou, ninguém saiu. Entrei no foyer de um hotel, comprei cigarros de que não precisava e saí mais uma vez. O Mercedes continuava no mesmo lugar. Retomamos a marcha e, após alguns momentos, disse ao chofer: — Vire à direita pela Prinsengracht.
Ele protestou:
— Mas esse não é o caminho para Schiphol.
— É o caminho que eu quero seguir. Vire à direita. Ele virou e o Mercedes também.
— Pare. — Ele parou. O Mercedes parou. Coincidência é coincidência, mas aquilo era ridículo. Saltei, dirigi-me ao Mercedes e abri a porta. O motorista era um tipo baixote, de terno azul-lustroso e aspecto ordinário. — Boa noite. Está livre?
— Não. — Ele olhou-me de cima a baixo, tentando primeiro um ar de calmo descuido e, em seguida, de insolente indiferença, mas não se desincumbiu bem de nenhum dos dois papéis.
— Então, por que parou?
— Há alguma lei que proíba a gente de fumar um cigarro?
— Nenhuma. Apenas, o senhor não está fumando. Conhece a Chefatura de Polícia em Marnixstraat? — A súbita falta de entusiasmo da expressão do motorista indicou que ele a conhecia bem demais. — Sugiro que vá até lá e procure pelo coronel De Graaf ou o inspetor Van Gelder e diga-lhes que tem uma queixa contra Paul Sherman, Quarto 616, Hotel Excelsior.
— Queixa? — perguntou ele cautelosamente. — Que queixa?
— Diga-lhes que ele tirou as chaves do seu carro e lançou-as no canal. — Tirei as chaves, lancei-as no canal, elas fizeram um ruído muito satisfatório ao caírem na água enquanto desapareciam para sempre nas profundezas do Prinsengracht. — Não me siga — disse eu e fechei a porta de uma maneira apropriada à nossa curta entrevista. Os Mercedes, porém, são carros bem construídos e a porta não caiu.
De volta ao meu próprio táxi, esperei até chegarmos à rua principal e mandei parar.
— Resolvi andar — disse e paguei o que devia.
— O quê! Até Schiphol?
Enderecei-lhe a espécie de sorriso tolerante que se poderia esperar de um andarilho de longa distância, cujas habilidades haviam sido postas em dúvida, esperei até que ele se afastasse, tomei um bonde número 16 e saltei no Dam. Belinda de casaco escuro e xale da mesma cor sobre os cabelos louros, esperava-me no abrigo dos bondes. Parecia molhada e friorenta.
— Que demora! — disse ela em tom acusador.
— Nunca critique o chefe, nem mesmo por implicação. As classes dirigentes sempre têm coisas a fazer.
Atravessamos a praça, refazendo os passos que o homem de cinzento e eu havíamos dado na noite anterior, descemos a viela junto ao Krasnapolsky e tomamos a Oudezijds Voorburgwal, margeada de árvores, uma área que constitui um dos pontos altos culturais de Amsterdam. Belinda, porém, não parecia estar no estado de espírito para apreciar coisas de cultura. Garota volúvel, ela parecia caladona e remota naquela noite e o silêncio dificilmente é boa companhia. Alguma coisa a preocupava e, se eu estava começando a tornar-me juiz de Belinda, meu palpite era que saberia antes cedo do que tarde. Certo.
Bruscamente, ela falou:
— Nós realmente não existimos para você, não?
— Quem é que não existe?
— Eu, Maggie, todos os que trabalham para você. Nós somos apenas números.
— Bem, você sabe como são as coisas — respondi com calma. — O comandante do navio nunca se mistura socialmente com a tripulação.
— É isso mesmo o que quero dizer. É isso o que eu digo... nós não existimos realmente para você. Somos apenas títeres a serem manipulados para que o mestre-titereiro possa atingir certos fins. Qualquer outro títere serviria igualmente bem. Humildemente respondi:
— Nós estamos aqui para fazer trabalhos muito sujos e desagradáveis e atingir aquele fim é o que interessa. Personalidades não têm vez. Você se esquece de que sou seu chefe, Belinda. Eu, realmente, não acho que você deva falar-me nesse tom de voz.
— Eu falo do jeito que quiser. — Não apenas volúvel, mas corajosa. Maggie nunca teria sonhado em me falar naquele tom. Ela pensou um pouco na última observação que fizera e disse calmamente: — Desculpe. Eu não devia ter falado assim. Mas, você precisa tratar-nos desta... desta maneira desligada e remota e nunca entrar em contato conosco? Nós somos gente... mas não para você. Você passaria por mim na manhã seguinte e não me reconheceria. Você nem nos nota.
— Oh, noto, sim. Veja o seu caso, por exemplo. — Com todo cuidado, evitei olhá-la enquanto continuávamos a andar, embora soubesse que ela me observava atentamente. — Moça nova em Narcóticos. Experiência limitada. Deuxième Bureau, Paris. Vestida de capa de marinheiro, xale de marinheiro, azul com florezinhas, meias brancas de crochê até os joelhos, sapatos pretos confortáveis de salto baixo, com fivelas, um metro e sessenta de altura, um corpo, para citar um famoso autor americano, de fazer um bispo abrir um buraco no vitral da igreja, rosto muito belo, cabelo louro-platinado que parece seda tecida quando o sol brilha sobre ele, sobrancelhas pretas, olhos verdes, inteligentes e, melhor de tudo, começando a preocupar-se com o chefe, especialmente com sua falta de humanidade. Oh, esqueci. Verniz das unhas rachado, mão esquerda, e um sorriso devastador, realçado — se, quero dizer, isto for possível — por um canino superior esquerdo ligeiramente torto.
— Puxa! — Durante momentos ela não encontrou palavras, o que me levou a começar a pensar que isto não estava de acordo com ela. Lançou um olhar à unha em questão, o verniz estava rachado, voltou-se para mim com um sorriso tão devastador como eu havia dito. — Talvez você o faça realmente.
— Fazer o quê?
— Preocupar-se conosco.
— Naturalmente que me preocupo. — Ela começava a tomar-me por Sir Galahad e isto podia ser mau. — Todos os meus agentes, Grau 1, jovens, moças, de boa aparência, são como filhas para mim.
Houve uma longa pausa e, em seguida, ela murmurou alguma coisa, muito sotto você, mas que me pareceu muito parecido com:
— Sim, papai.
— O que foi que você disse? — perguntei, desconfiado.
— Nada. Nada, absolutamente.
Entramos na rua que abrigava as propriedades de Morgenstern e Muggenthaler. Esta minha segunda visita ao local mais do que confirmou a impressão formada na noite anterior. A rua parecia mais sombria do que nunca, mais escura, mais ameaçadora, as lajes e calçadas mais rachadas do que antes e as sarjetas mais cheias de lixo. As próprias casas de telhados de duas águas pareciam mais inclinadas umas contra as outras. Amanhã, a estas mesmas horas, elas se estariam tocando.
Belinda parou de súbito e agarrou-me o braço direito. Lancei-lhe um olhar. Ela tinha os olhos levantados, bem abertos e segui-lhe a vista até onde as casas marchavam e diminuíam à distância, com as suas vigas de içamento claramente silhuetadas contra o céu noturno. Eu sabia que ela sentia o mal que ali havia. Eu sentia, também.
— Este deve ser o lugar — sussurrou. — Eu sei que deve ser.
— É o lugar mesmo — respondi em voz natural. — O que é que há de errado?
Ela soltou-me vivamente o braço como se eu tivesse dito alguma coisa ofensiva, mas eu o segurei novamente, coloquei-o sob o meu e apertei-o firmemente na mão. Ela não tentou tirá-lo.
— É... é tão fantasmagórico] O que são aquelas coisas horríveis saindo das cumeeiras?
— Vigas de içamento. Nos velhos dias, as casas aqui eram taxadas pela largura da fachada e, assim, os econômicos holandeses faziam-nas incomumente estreitas. Infelizmente, fizeram as escadas ainda mais estreitas. Daí, as vigas projetadas para içar coisas volumosas — piano de cauda, caixões de defunto, esses tipos de coisas.
— Pare! — Ela ergueu os ombros e tremeu involuntariamente. — Este lugar é horrível. Aquelas vigas... parecem forcas. Este é um lugar para onde pessoas vêm morrer.
— Bobagem, minha querida moça — disse eu corajosamente. Eu sentia como se dedos com pontas de estiletes de gelo tocassem a Marcha Fúnebre de Chopin para cima e para baixo em minha espinha e deu-me subitamente uma saudade muito grande da velha e nostálgica música do realejo em frente ao Rembrandt. Com toda probabilidade, fazia-me tanto bem segurar a mão dela como ela a minha. — Você não deve entregar-se a essas fantasias gaulesas.
— Eu não estou imaginando coisas — disse ela, sombria, e tremeu novamente. — Houve necessidade de vir a este horrível lugar? — Tremia violentamente agora, violenta e continuamente e, embora fizesse frio, não fazia aquele frio todo.
— Você se lembraria do caminho por onde viemos? — perguntei. Ela, confusa, inclinou a cabeça e eu continuei: — Volte para o hotel e dentro de pouco estarei com você.
— Para o hotel? — ela estava ainda confusa.
— Nada me acontecerá. Agora, vá.
Ela soltou-me a mão e, antes de eu poder compreender o que acontecia, segurou-me pela lapela e deu-me um olhar claramente destinado a reduzir-me a pó naquele mesmo instante. Se tremia agora, era de raiva: eu nunca pensara que uma moça tão bonita pudesse tornar-se tão furiosa. "Volúvel" não era palavra para Belinda, apenas um sinônimo desbotado e inócuo da palavra que eu realmente queria. Olhei para as mãos que me puxavam a lapela. Os nós dos dedos estavam brancos. Ela estava realmente tentando sacudir-me.
— Nunca mais me diga uma coisa dessas. — Ela estava furiosa, quanto a isso não havia dúvida.
Houve uma curta mas viva luta entre o meu profundo instinto de disciplina e o desejo de tomá-la nos braços. A disciplina venceu, mas por pouco. Humildemente, disse:
— Nunca mais lhe direi uma coisas dessas.
— Muito bem. — Soltou minhas tristemente amassadas lapelas e tomou-me a mão. — Bem, vamos. — O orgulho nunca me deixará dizer que ela me arrastou, mas, para o observador imparcial, deve ter parecido.muito com isso.
Cinqüenta passos adiante, parei.
— Aqui estamos.
Belinda leu a tabuleta: "Morgenstern e Muggenthaler."
— Igual ao primeiro filme do programa do Palladium esta semana. — Subi os degraus e comecei a trabalhar na fechadura. — Vigie a rua.
— E depois o que é que eu faço?
— Vigie minhas costas.
Um escoteiro principiante determinado e um grampo de cabelo dobrado não teriam tido dificuldade com a fechadura. Entramos e fechei a porta. A minha lanterna era pequena, mas emitia luz forte e não nos mostrou muita coisa no térreo. Estava empilhado até o teto com caixotes de madeira vazios, papel, papelão, fardos de palha, enchimento e máquina de enfardar. Uma estação de recebimento, nada mais.
Subimos a estreita escada de madeira em espiral até o andar seguinte. A meio caminho, olhei para baixo e notei que Belinda, também, lançava apreensiva os olhos para trás, dirigindo a lanterna em círculos rápidos numa dúzia de diferentes direções.
O andar seguinte fora reservado inteiramente a enormes quantidades de artigos de estanho holandeses, moinhos de vento, cães, cachimbos e uma dúzia de outros artigos ligados ao comércio de lembranças turísticas. Havia dezenas de milhares desses artigos em prateleiras ao longo das paredes ou estantes paralelas no sentido da largura do armazém. Embora eu não pudesse examiná-los todos, pareceram-me perfeitamente inocentes. O que não pareceu tão inocente, contudo, foi um cômodo de uns três por quatro metros que se projetava de um dos cantos do armazém ou, mais precisamente, a porta de entrada do mesmo, embora, obviamente, eu não o fosse abrir naquela noite. Chamei Belinda e iluminei a porta. Ela examinou-a, fitou-me séria e eu vi a perplexidade estampada no feixe de luz.
— Uma fechadura de tempo — disse ela. — Por que alguém instalaria uma fechadura de tempo numa simples porta de escritório?
— Não é uma simples porta de escritório — observei. — É de aço. Pelo mesmo motivo, pode apostar que essas paredes simples de madeira são forradas de aço e que aquela velha e rústica janela para a rua tem por trás uma grade de aço embutida em concreto. Num armazém de diamantes, pode-se entender isso. Mas aqui? Ora, não há coisa alguma a esconder aqui.
— Parece que nós viemos ao lugar certo — disse Belinda. — Você, por acaso, duvidou de mim?
— Não, senhor. — Muito séria. — O que é que é este lugar, por falar nisso?
— Obviamente é... um armazém de atacadista de artigos de turismo. As fábricas, as indústrias de artesanato ou o que quer que seja enviam suas mercadorias em grosso para serem estocadas e o armazém fornece-as às lojas. Simples, não? Inocente, não?
— Mas não muito higiênico.
— O que foi que você disse?
— Cheira horrivelmente.
— A maconha cheira mal para algumas pessoas.
— Maconha!
— Você e sua inocência. Vamos.
Tomei a frente até o terceiro andar e esperei por ela.
— Vigiando ainda as costas do patrão? — perguntei.
— Vigiando ainda as costas do patrão — respondeu ela mecanicamente. A furiosa Belinda de minutos antes havia desaparecido. Eu não a censurava. Havia algo inexplicavelmente sinistro e malévolo no velho edifício. O cheiro enjoativo da maconha era ainda mais forte, embora não parecesse haver coisa alguma naquele andar mesmo remotamente ligado a ela. Três lados do andar haviam sido reservados totalmente a relógios de pêndulo, todos eles, felizmente, parados. Cobriam a faixa inteira de forma, desenho, tamanho, e variavam em qualidade do pequeno, barato, vivamente pintado para o comércio turístico, quase todos feitos de pinho verde, a relógios de metal muito grandes, artisticamente construídos e refinadamente projetados, que eram obviamente muito antigos e caros, ou cópias modernas dos mesmos, que não podiam ter sido absolutamente muito mais baratas.
O quarto andar constituiu, para dizer o mínimo, uma grande surpresa. Era reservado, entre todas as coisas, a fileiras sobre fileiras de Bíblias. Por um momento, perguntei-me o que Bíblias faziam numa casa de lembranças, mas apenas durante um momento. Havia um número grande demais de coisas que eu não compreendia.
Apanhei uma delas e examinei-a. Gravada em ouro na parte inferior da capa de couro havia as palavras The Gabriel Bible... Abri-a e li a inscrição impressa: "Com os Cumprimentos da Primeira Igreja Reformada da Sociedade Huguenote Americana".
— Há uma delas em nosso quarto no hotel — disse Belinda.
— Eu não ficaria surpreso se houvesse uma delas na maioria dos quartos de hotel na cidade. A questão é a seguinte: o que estão fazendo aqui? Por que não estão no armazém de um editor ou papeleiro, onde se poderia esperar encontrá-las? Estranho, não?
Ela estremeceu.
— Tudo aqui é estranho. Dei-lhe uma palmadinha nas costas.
— Você vai apanhar um resfriado, é isso. Eu lhe avisei antes a respeito dessas minissaias. Vamos ao andar seguinte.
O pavimento seguinte fora inteiramente reservado à mais espantosa coleção possível de bonecas. Em conjunto, devia haver milhares. Variavam em tamanho de miniaturas a modelos ainda maiores do que a de Trudi: todas, sem exceção, eram finamente modeladas e estavam elegantemente vestidas numa grande variedade de trajos típicos holandeses. As maiores estavam em pé ou apoiadas em suportes de metal. As menores pendiam de barbantes amarrados nas ripas. O feixe de minha lanterna finalmente focalizou um grupo de bonecas, todas vestidas com o mesmo tipo de trajo.
Belinda esquecera tudo a respeito da importância de me vigiar as costas e voltara ao agarramento de braço.
— É... é tão sobrenatural! Elas estão tão vivas, tão vigilantes! — Observou as bonecas iluminadas pela minha lanterna. — Há alguma coisa especial nessas aí?
— Não há necessidade de falar em voz baixa. Elas podem olhar para você, mas garanto que não podem ouvi-la. Essas bonecas aí? Nada de realmente especial, exceto que vêm da ilha de Huyler, no Zuider Zee. A governanta de Van Gelder, uma encantadora velha feiticeira que perdeu a vassoura, veste-se assim.
— Assim?
— É difícil de imaginar — reconheci. — E Trudi tem uma grande boneca vestida exatamente da mesma maneira.
— A menina doente?
— A menina doente.
— Há algo terrivelmente doentio neste lugar. — Soltou-me o braço e voltou a vigiar-me as costas. Segundos depois, ouvi-a inalar fortemente e voltei-me. Ela estava de costas para mim, a não mais de um metro. Enquanto eu olhava, ela começou a recuar lenta e silenciosamente, com os olhos evidentemente pousados em algo focalizado pelo feixe de sua lanterna, enquanto a mão livre tenteava atrás. Segurei-a e ela achegou-se a mim, ainda sem virar a cabeça.
Falou num urgente sussurro:
— Há alguém aqui. Alguém nos observando.
Olhei durante um instante na direção do feixe, não vi coisa alguma, mas a lanterna dela não era tão forte, comparada com a que eu usava. Desviei a vista, apertei-lhe a mão para chamar-lhe a atenção e quando ela se voltou, olhei-a interrogativamente.
— Há alguém ali. — Ainda o mesmo sussurro insistente e os verdes olhos escancarados. — Vi-os. Vi-os.
— Quem?
— Os olhos. Vi-os!
Nunca duvidei do que ela disse. Ela podia ser uma garota imaginosa, mas fora treinada e altamente treinada para não ser imaginosa em questões de observação. Baixei a minha lanterna, não com tanto cuidado como poderia ter feito, pois o feixe atingiu-lhe os olhos de passagem, cegando-a momentaneamente. No momento em que ela ergueu a mão numa ação reflexa, pousei o feixe sobre o local por ela indicado. Não vi olhos, mas vi duas bonecas juntas, balançando-se tão suavemente que o movimento era quase imperceptível. Quase, mas não inteiramente... e não havia corrente ou lufada de ar soprando naquele quarto andar.
Apertei-lhe a mão e disse-lhe:
— Ora, Belinda...
— Não me venha com esse "Ora Belinda!" — Eu não podia ter certeza se aquilo era um silvo ou um sussurro trêmulo. — Eu os vi. Olhos fixos, horríveis. Juro que os vi. Juro.
— Sim, sim, naturalmente, Belinda...
Ela postou-se à minha frente, a frustração nos olhos sérios, como se desconfiasse de que eu estava tentando fazer-lhe a vontade, o que eu estava mesmo.
— Eu acredito em você, Belinda. Naturalmente que acredito. — Eu não mudara o tom de voz.
— Então, por que não faz alguma coisa?
— É exatamente o que vou fazer. Vou cair fora daqui. —. Fiz o último exame com a lanterna, como se coisa alguma tivesse acontecido, voltei-me e segurei-lhe o braço de forma protetora. — Nada para nós aqui... e estamos aqui há muito tempo. Acho que o que resta de nossos nervos precisa de uma bebida.
Fitou-me e o rosto refletiu uma combinação mutável de raiva, frustração e incredulidade e, suspeitei, mais do que um pouco de alívio. Mas a raiva era dominante: a maioria das pessoas sente raiva quando pensa que não se acredita nelas e que se lhes faz a vontade.
— Mas eu lhe digo...
— Ah... ah! — Toquei os lábios com o indicador. — Não me diga coisa alguma. O chefe, lembre-se, sempre sabe mais...
Ela era jovem demais para descontrolar-se e cair com um ataque de apoplexia, mas as emoções precipitadoras da crise eram as mesmas. Olhou-me furiosa, resolvendo aparentemente que não havia palavras à altura da situação, e desceu as escadas com o ultraje em cada rígida linha de suas costas. Segui-a e minhas costas tampouco estavam normais, pois corria por elas um estranho calafrio que não parou senão quando fechei com segurança a porta do armazém.
Subimos rapidamente a rua, mantendo-nos a uns noventa centímetros um do outro. Era Belinda quem mantinha a distância, proclamando iniludivelmente sua atitude que essa história de segurar mão e braço estava terminada naquela noite e, com toda probabilidade, para sempre. Limpei a garganta.
— Aquele que luta e foge vive para lutar outro dia. Ela fervia tanto de raiva que não compreendeu.
— Por favor, não fale comigo — disse secamente. Não falei mais ou, pelo menos, até chegarmos à primeira taverna no quarteirão dos marinheiros, um lugar insalubre que tinha o nome de "O Gato de Nove Caudas". A Marinha Britânica, onde se usara o açoite que tinha esse nome, devia ter parado ali certa vez. Segurei-lhe o braço e levei-a para dentro. Ela não estava interessada, mas resolveu não brigar por isso.
Era um bar esfumaçado e abafado e nada mais se podia dizer a seu respeito. Diversos marinheiros, ressentidos com a intrusão de um casal no que, provavelmente, consideravam sua propriedade pessoal, fecharam a cara quando entramos. Eu, porém, estava num espírito careteiro muito pior do que eles e, após a primeira injuriosa recepção, deixaram-nos em paz. Conduzi Belinda para uma pequena mesa, uma mesa antiga e autêntica de madeira, cuja superfície original não via sabão e água desde tempos imemoriais.
— Eu vou tomar um uísque — disse-lhe. — E você?
— Uísque — respondeu ela, ofendida.
— Mas você não bebe uísque.
— Vou beber esta noite.
Ela teve, em parte, razão. Bebeu metade do copo de uísque puro num gesto de desafio e passou a gaguejar, tossir e sufocar tão violentamente que comecei a pensar que eu talvez me tivesse enganado sobre a possibilidade de ela apresentar sintomas de um ataque de apoplexia. Dei-lhe obsequiosas palmadas nas costas.
— Tire a mão de cima de mim — espirrou ela. Tirei.
— Acho que não posso trabalhar mais com o senhor, major Sherman — disse, após conseguir pôr em funcionamento a laringe.
— Lamento muito ouvir isso.
— Não posso trabalhar com pessoas que não confiam em mim, que não acreditam em mim. O senhor não apenas nos trata como títeres, mas também como crianças.
— Eu não a considera uma criança — disse eu em voz calma. E não considerava.
— "Eu acredito em você, Belinda" — imitou-me ela amargamente. "Naturalmente que acredito, Belinda". O senhor não acredita absolutamente em Belinda.
— Eu realmente acredito, Belinda — respondi. — Acredito que gosto de Belinda, afinal de contas. Foi por isso que tirei Belinda dali.
Ela fitou-me.
— Se acredita... então...
— Havia alguém ali, escondido atrás da prateleira das bonecas. Vi duas bonecas moverem-se ligeiramente. Alguém estava atrás da prateleira, observando-nos, esperando para ver, tenho certeza, o que, se alguma coisa encontraríamos. Não tinha intenção assassina, do contrário nos teria baleado pelas costas quando descemos as escadas. Mas, se tivesse reagido como você queria, eu teria sido forçado a ir atrás dele e ele me teria derrubado com um tiro do lugar onde estava escondido sem que eu sequer chegasse a vê-lo. E, depois, teria atirado em você, pois não poderia admitir testemunhas. E você é realmente moça demais para morrer. Ou, talvez eu pudesse ter brincado de cabra-cega com ele com uma possibilidade igual de apanhá-lo... se você não estivesse lá. Mas você estava e não tinha arma, nenhuma experiência do tipo de jogos sujos em que participamos e, para ele, você valia tanto como uma refém. Assim, tirei Belinda de lá. Bem, não foi um bom discurso?
— Eu não sei nada do discurso. — Volúvel como sempre, havia lágrimas em seus olhos. — Só sei que foi a coisa mais linda que alguém já disse a meu respeito.
— Tolice! — Acabei meu uísque, bebi o dela e levei-a para o hotel. Na entrada para o foyer, durante um momento abrigando-nos da chuva que caía agora torrencialmente, ela disse:
— Sinto muito. Que tola fui! E sinto muito também por você.
— Por mim?
— Compreendo agora por que prefere que títeres, e não gente, trabalhe para você. Ninguém chora por dentro quando um títere morre.
Conservei-me calado. Eu estava começando a perder o domínio sobre a pequena e a velha relação velho mestre-aluna não era mais inteiramente o que costumava ser.
— Outra coisa... — disse ela, parecendo quase feliz. Preparei-me.
— Nunca mais terei medo de você.
— Você tinha medo? De mim?
— Sim, tinha. Realmente. Mas é como o homem disse...
— Que homem?
— Shylock, não? Lembra-se? Corta-me, e eu sangro...
— Oh, cale a boca!
Ela calou. Simplesmente atirou-me de novo aquele sorriso devastador, beijou-me sem qualquer grande pressa, sorriu mais o mesmo sorriso e entrou. Observei as portas movediças de vidro até elas pararem. Um pouco mais disso, pensei, e a disciplina irá para o inferno.
Andei uns duzentos ou trezentos metros até pôr uma boa distância entre mim e o hotel das moças, chamei um táxi e voltei ao Hotel Rembrandt. Durante algum tempo sob o toldo do foyer, fiquei observando o realejo no outro lado da rua. O velho não apenas era infatigável, mas, aparentemente, também impermeável e a chuva coisa alguma significava para ele. Salvo um terremoto, nada poderia tê-lo impedido de apresentar a função noturna. Como um velho artista que julga que o espetáculo deve continuar a qualquer preço, ele talvez julgasse que tinha um dever para com o público, e um público incrivelmente ele tinha, uma meia-dúzia de jovens de roupas puídas que davam todas as indicações de estarem inteiramente ensopados, formando um grupo de acólitos, perdidos em contemplação mística das agonias mortais de Strauss, a quem cabia naquela noite ser torturado no pelourinho. Entrei no hotel.
O gerente-assistente viu-me no momento em que eu pendurava a capa. A sua surpresa pareceu autêntica.
— De volta tão cedo? Do Zaandam?
— Táxi rápido — expliquei e dirigi-me ao bar, onde pedi um jonge Genever e uma Pils. Bebi enquanto pensava na relação entre homens rápidos com armas rápidas, traficantes e moças doentes, olhos ocultos por trás de bonecas, pessoas e táxis que me seguiam aonde quer que eu fosse, policiais alvos de suborno, gerentes venais, porteiros e esganiçados realejos. A soma dava em nada. Eu não estava sendo, julguei, suficientemente provocador e, aos poucos, chegava à relutante conclusão de que não havia outra coisa a fazer senão uma segunda visita ao armazém mais tarde naquela mesma noite — sem, naturalmente, deixar que Belinda soubesse — quando, por acaso, levantei os olhos para o espelho à minha frente. Não fui movido pelo instinto ou alguma coisa parecida, mas apenas porque minhas narinas haviam sido quase inconscientemente feridas por um perfume que eu acabara de identificar como sândalo. Como gosto muito de sândalo, quis ver quem o estava usando. Pura e velha abelhudice.
A moça sentava-se numa mesa imediatamente atrás de mim, com uma bebida e um jornal na mão. Eu poderia ter imaginado que seus olhos desceram para o jornal logo que levantei a vista para o espelho, mas não é meu costume imaginar coisas assim. Ela estivera-me observando. Parecia jovem, usava uma capa verde e possuía cabeleira loura que, segundo a moda, tinha toda a aparência de ter sido aparada por um insano podador de cercas. Amsterdam parecia cheia de louras que, de uma maneira ou de outra, eu era obrigado a levar em consideração.
— O mesmo, novamente — disse ao garçom do bar. Coloquei as bebidas numa mesa próxima ao balcão, deixei-as ali, dirigi-me lentamente para o foyer, passei pela moça como uma pessoa perdida em profundos pensamentos, nem mesmo lhe lançando um olhar, cruzei a porta principal e ganhei a rua. Strauss havia sucumbido, mas não o ancião que, para demonstrar a imparcialidade de seu gosto, estava fazendo agora uma demonstração fantasmagórica de "The bonnie, bonnie banks of Loch Lomond". Se tentasse aquilo na Sauchiehall Street, em Glasgow, ele e seu realejo seriam apenas uma recordação longínqua dentro de cinco minutos. Os jovens acólitos haviam desaparecido, o que poderia ter significado que eram ou antiescoceses ou pró-escoceses. Para dizer a verdade, a ausência deles, como eu descobriria mais tarde, não significava absolutamente coisa alguma: a prova estava ali à minha frente, não a vi e, porque não a vi, muitas pessoas iriam morrer.
O velho viu-me e manifestou sua surpresa.
— Mynheer disse que...
— Ia à opera. E fui. — Sacudi triste a cabeça. — A prima-dona, tentando um mi agudo. Ataque cardíaco. — Dei-lhe uma palmadinha no ombro. — Não entre em pânico. Vou apenas até aquela cabina telefônica.
Liguei para o hotel das moças. A telefonista atendeu imediatamente e, depois de uma longa espera, ligou com o quarto das meninas. Belinda parecia rabugenta.
— Alô. Quem é?
— Sherman. Quero que venha aqui imediatamente.
— Agora? — A voz dela era um lamento. — Mas eu estou no meio do banho.
— Lamentavelmente, eu não posso estar em dois lugares ao mesmo tempo. Você está bastante limpa para fazer o trabalho sujo de que eu preciso. E Maggie.
— Mas Maggie está dormindo.
— Então, é melhor acordá-la, não? A menos que queira trazê-la nas costas. — Silêncio ferido. — Esteja aqui no meu hotel dentro de dez minutos. Fique do lado de fora, a mais ou menos vinte metros.
— Mas está caindo o maior toro! — Ela se lamentava ainda.
— Meninas do trottoir não se importam se ficam molhadas. Dentro de pouco tempo, uma moça vai sair daqui do hotel. Tem sua altura, sua idade, seu corpo, seu cabelo...
— Deve haver milhares de moças em Amsterdam que...
— Ah... Mas esta é bela. Não tão bela como você, naturalmente, mas bela. Está usando uma capa verde... combinando com a sombrinha verde, cheira a sândalo, e na têmpora esquerda dela existe um ferimento muito bem camuflado que eu fiz ontem à tarde.
— Um bem camuflado... Você não nos disse coisa alguma a respeito de estuprar moças.
— Eu não posso lembrar-me de todos os detalhes irrelevantes. Siga-a. Quando ela chegar ao destino, uma de vocês deve ficar escondida enquanto a outra me faz um relatório. Eu estarei no Old Bell, que fica na esquina mais distante da Rembrandtplein.
— O que é que você vai fazer lá?
— É um bar. O que é que você pensa que eu vou fazer num bar?
A moça da capa verde continuava sentada à mesma mesa. Inicialmente, fui até a recepção, pedi um bloco de notas e levei-o para a mesa onde deixara a bebida. A moça de verde não estava a mais de um metro e oitenta de distância, em ângulo reto e, assim, devia ter uma visão excelente do que eu fazia enquanto permanecia relativamente livre de observação.
Tirei a carteira do bolso, extraí a nota do jantar da noite anterior, alisei-a na mesa diante de mim e comecei a tomar notas no bloco. Momentos depois, lancei desgostoso a caneta na mesa, fiz uma bola do papel e lancei-o numa cesta convenientemente próxima. Iniciei outra folha e aparentemente cheguei à mesma solução insatisfatória. Fiz isso várias outras vezes, esfreguei em seguida os olhos e descansei a cabeça entre as mãos durante quase cinco minutos, como um homem, devo ter parecido, mergulhado na mais profunda concentração. O fato era que eu não tinha lá muita pressa. Dez minutos, dissera a Belinda, mas se ela conseguisse sair do banho, vestir-se e vir até aqui com Maggie, eu conhecia ainda menos as mulheres do que pensava.
Novamente voltei a escrever, amassar e jogar fora e, ao fim desse período, vinte minutos haviam passado. Terminei a bebida, levantei-me, dei boa noite ao garçom e afastei-me. Cheguei a ir até às grossas cortinas que separam o bar do foyer e esperei, espiando cuidadosamente. A moça de verde levantou-se, dirigiu-se ao bar, pediu outra bebida e, casualmente, sentou-se na cadeira que eu acabara de deixar, de costas para mim. Olhou em volta, também casualmente, para certificar-se de que não era observada e, com igual displicência, meteu a mão na cesta de papel e tirou a folha amassada que estava por cima. Alisou-a sobre a mesa enquanto eu me aproximava sem ruído de sua cadeira. Vi-lhe o rosto agora e percebi que se havia transformado numa máscara imóvel. Eu podia mesmo ler a mensagem que ela havia alisado sobre a mesa. Dizia:
SOMENTE MOCINHAS ABELHUDAS
PROCURAM VER O QUE EXISTE
DENTRO DE CESTAS DE PAPEL
— Todas as outras folhas contêm a mesma mensagem secreta — disse eu. — Boa noite, Srta. Lemay.
Ela voltou-se e levantou os olhos para mim. Havia-se camuflado muito bem para ocultar o corado moreno da face, mas nem todo ruge e pó do mundo poderiam ter ocultado o rubor que se espalhou do seu pescoço até a testa.
— Puxa! — continuei. — Mas que rosado encantador!
— Sinto muito. Não falo inglês.
Com grande suavidade, toquei no ferimento e disse bondosamente.
— Amnésia por concussão. Isso passa. Como vai a cabeça, Srta. Lemay?
— Sinto muito. Eu...
— Não fale inglês. A senhorita disse que não falava. Mas entende perfeitamente, não? Especialmente a palavra escrita. Puxa, para um coroa como eu, é revigorante ver que as moças modernas podem ainda corar de uma maneira tão encantadora. A senhorita o faz muito bonitinho, sabe?
Ela levantou-se confusa, amassando e torcendo as folhas de papel. Ela podia estar do lado dos perversos — e quem, senão aqueles do lado dos perversos, tentaria bloquear meu caminho na perseguição no aeroporto — mas não pude evitar uma pontada de pena. Havia algo abandonado e inerme nela. Ela poderia ser uma atriz consumada, mas as atrizes consumadas estariam ganhando uma fortuna no palco ou na tela. Nesse momento, sem explicação alguma, pensei em Belinda. Duas no mesmo dia eram demais. Eu estava ficando de miolo mole. Inclinei a cabeça na direção das folhas de papel.
— Pode ficar com ela, se quiser — disse eu.
— Elas? — Ela olhou para o papel. — Eu não quero...
— Ah! A amnésia está passando.
— Por favor, eu...
— A sua peruca escorregou, Srta. Lemay!
Automaticamente, ela levantou as mãos e tocou no cabelo. Deixou-as cair lentamente para os lados e mordeu os lábios de irritação. Havia alguma coisa muito próxima do desespero naqueles olhos castanhos. Mais uma vez, tive a sensação desagradável de que não me sentia muito orgulhoso de mim mesmo.
— Por favor, deixe-me em paz — disse ela. Dei um passo para deixá-la passar. Durante um momento, ela fitou-me e eu poderia jurar que havia uma expressão de súplica naqueles olhos. O rosto começou a contrair-se ligeiramente como se ela estivesse prestes a prorromper em lágrimas. Mas ela sacudiu a cabeça e afastou-se rapidamente. Segui-a mais devagar, via-a descer correndo os degraus e tomar a direção do canal. Vinte segundos depois, Maggie e Belinda passaram na mesma direção. A despeito dos guarda-chuvas que levavam, pareciam muito molhadas e profundamente infelizes. Afinal de contas, elas podiam ter chegado mesmo em dez minutos.
Voltei ao bar que, para começar, eu não tivera a intenção de deixar, embora tivesse sido preciso convencer a moça disso. O garçom, um tipo cordial, sorriu radiante.
— Boa noite novamente, senhor. Pensei que tinha ido dormir.
— Eu quis dormir. Mas as minhas papilas gustativas disseram: "Não, outro jonge Genever."
— É preciso sempre escutar o que dizem as papilas gustativas, senhor — disse gravemente o garçom. Entregou-me um pequeno cálice. — Prost, senhor? — Ergui o cálice e voltei aos pensamentos. Pensei em ingenuidade e se havia jovens que podiam corar de acordo com a encomenda. Acho que ouvi dizer que certas atrizes podiam, mas não tinha certeza e, em vista disso, pedi outro Genever para refrescar a memória.
O copo seguinte que ergui era de um tipo inteiramente diferente, muito mais pesado e continha muito mais líquido escuro. Era, de fato, um copo de cerveja Guiness, o que pode parecer coisa estranha de encontrar num bar da Europa. Mas não neste, não no Old Bell, um bar mais inglês do que a maioria dos hotéis ingleses poderia esperar ser. Especializava-se em cerveja inglesa e — como demonstrava meu copo — na irlandesa forte.
O bar era bem freqüentado, mas consegui uma mesa só para mim, de frente para a porta, não porque eu tenha qualquer aversão, do tipo Oeste Selvagem, de dar as costas para a porta, mas porque queria ver Maggie ou Belinda, qualquer que fosse, no momento em que chegasse. No caso, foi Maggie. Veio até minha mesa e sentou-se. Era uma Maggie muito desarrumada e, a despeito do xale e do guarda-chuva, seu cabelo da cor da asa do corvo estava colado ao rosto.
— Você está bem? — perguntei, solícito.
— Se você acha estar bem parecer um pinto na chuva, sim. — Não era do jeito de Maggie ser tão irascível assim. Ela devia estar realmente muito molhada.
— E Belinda?
— Vai também sobreviver. Mas eu acho que ela se preocupa demais com você. — Esperou intencionalmente até que eu terminasse um longo e satisfatório gole da Guiness. — Ela tem esperança de que você não esteja exagerando.
—i Belinda é uma moça muito cheia de consideração. — Belinda sabia bem demais o que eu andava fazendo.
— Belinda é jovem — disse Maggie.
— Sim, Maggie.
— E vulnerável.
— Sim, Maggie.
— Eu não quero que ela seja magoada, Paul. — Isto me fez espigar-me na cadeira, mentalmente, pelo menos. Ela nunca me chamava de "Paul" a menos que estivéssemos sozinhos e, mesmo nessas ocasiões, quando estava suficientemente perdida em pensamentos ou emoções para esquecer o que considerava a conduta apropriada. Eu não sabia o que devia entender pela sua última observação e fiquei matutando o que diabo as duas andavam conversando. Comecei a desejar tê-las deixado em casa e ter trazido, em vez disso, uma dupla de Dobermann Pinschers. Pelo menos, um Dobermann teria acabado sem dificuldade com aquele nosso amigo escondido na Morgenstern e Muggenthaler.
— Eu disse... — começou Maggie.
— Eu ouvi o que você disse — bebi um pouco mais de cerveja. — Você é uma moça muito boa, Maggie.
Ela inclinou a cabeça, não para sugerir concordância com o que eu dissera, mas para demonstrar que, por alguma obscura razão, julgava a resposta satisfatória e bebeu um pouco de xerez que eu pedira para ela. Rapidamente, voltei a patinar em gelo grosso.
— Muito bem. Onde está a nossa amiga que vocês estiveram seguindo?
— Na igreja.
— O quê! — berrei dentro da minha caneca.
— Cantando hinos.
— E Belinda?
— Na igreja, também.
— Cantando hinos, também?
— Não sei. Eu não entrei.
— Talvez Belinda não devesse ter entrado, também.
— Que lugar mais seguro do que numa igreja?
— Certo. Certo. — Procurei relaxar-me, mas senti-me inquieto.
— Uma de nós duas tinha que ficar. — Naturalmente.
— Belinda disse que você talvez quisesse saber o nome da igreja.
— Por que deveria eu... — Olhei fixamente para Maggie. —A Primeira Igreja Reformada da Sociedade Huguenote Americana? — Maggie inclinou a cabeça. Empurrei para trás a cadeira e levantei-me. — Agora, conte. Vamos.
— O quê? E deixar toda essa bela Guiness que lhe faz tanto bem?
— É na saúde de Belinda que estou pensando, não na minha.
De saída, ocorreu-me subitamente que o nome da igreja não significara coisa alguma para Maggie. Não significara porque Belinda não lhe dissera coisa alguma ao voltar para o hotel e não dissera porque Maggie estava dormindo. E eu queria saber o que diabo as duas andavam conversando. Não haviam falado de coisa alguma. Ou tudo isto era muito curioso ou eu não era muito inteligente. Ou ambas as coisas.
Como sempre, chovia, e quando passávamos pela Rembrandtplein junto ao Hotel Schiller, Maggie teve um oportuno calafrio.
— Olhe — disse ela. — Um táxi. De fato, um bocado de táxis.
— Eu não diria que não existe um único táxi em Amsterdam que não esteja a soldo dos perversos — disse eu, convicto. — Mas não apostaria um níquel nisso. Não é longe.
Nem era... de táxi. A pé era realmente um bocado longe. Mas eu não tinha a intenção de cobrir toda a distância a pé. Puxei Maggie pelo Thorbeckeplein, virei à esquerda, à direita, à esquerda novamente até chegarmos a Amstel. Maggie falou:
— O senhor parece conhecer bem o caminho, não, major Sherman?
— Já estive aqui antes.
— Quando?
— Não me lembro. No ano passado.
— Quando, no ano passado? — Maggie conhecia, ou pensava que conhecia, todos os meus movimentos nos últimos cinco anos e podia sentir-se ofendida facilmente. Ela não gostava do que chamava de irregularidades.
— Penso que foi na primavera.
— Há dois meses, talvez?
— Mais ou menos isso.
— Você passou dois meses em Miami na última primavera — disse ela em tom de acusação. — É isso o que dizem os registros.
— Você não pode imaginar como eu confundo as datas.
— Não, não posso. Pensei que você havia dito que não conhecia o coronel De Graaf nem Van Gelder.
— Não conhecia.
— Mas...
— Eu não quis incomodá-los. — Parei numa cabina telefônica. — Preciso fazer umas duas chamadas. Espere aqui.
— Não espero, não! — Atmosfera pesada essa de Amsterdam. Ela estava ficando tão má como Belinda. Mas ela tinha um argumento — a chuva descia agora em torrentes. Abri a porta e deixei que ela entrasse primeiro na cabina. Chamei uma companhia de táxi cujo número eu sabia e comecei a discar outro número.
— Eu não sabia que você falava holandês — disse Maggie.
— Nem tampouco nossos amigos. É por isso que podemos conseguir um chofer de táxi honesto.
— Você não confia realmente em ninguém, não? — disse Maggie em tom de admiração.
— Eu confio em você, Maggie.
— Não, não confia. Você simplesmente não quer sobrecarregar minha bela cabeça com problemas desnecessários.
— Consegui a chamada — queixei-me. De Graaf atendeu. Após as trocas de amabilidades habituais, perguntei: — Aqueles pedaços de papel? Alguma sorte? Obrigado, coronel De Graaf, chamarei depois. — Desliguei.
— Que pedaços de papel? — perguntou Maggie.
— Uns pedaços de papel que dei a ele.
— Onde os conseguiu?
— Um cara me deu na noite passada.
Maggie endereçou-me o seu antiquado olhar de resignação, mas continuou calada. Após alguns minutos, aproximou-se um táxi. Dei ao motorista um endereço na cidade velha e, quando chegamos lá, levei Maggie por uma rua estreita até um dos canais na área das docas. Parei numa esquina.
— É ali?
— É ali.
"Ali" era uma pequena igreja cinzenta, a uns cinqüenta metros da margem do canal. Era um edifício antigo, em ruínas, inclinado para trás, que parecia ser mantido na quase vertical apenas pela fé, pois, para meu olhar destreinado, corria o risco iminente de aluir no canal. Possuía uma baixa torre quadrada de pedra pelo menos uns cinco graus fora da perpendicular, coroada por um minúsculo campanário que se inclinava perigosamente na direção oposta. Era mais do que oportuno que a Primeira Igreja Reformada da Sociedade Huguenote Americana lançasse uma campanha de levantamento de fundos.
O fato de que alguns edifícios adjacentes haviam corrido perigo ainda maior de desmoronamento era evidenciado por uma grande área já demolida no lado da igreja que dava para o canal. Um guindaste gigantesco, com a maior lança que eu já vira, perdida no meio da escuridão em cima, erguia-se no centro da zona limpa, onde os trabalhos de reconstrução já haviam alcançado a fase de término das fundações reforçadas.
Caminhamos lentamente pelo lado do canal em direção à igreja. Ouvimos claramente o som de música de órgão e de mulheres cantando. Parecia tudo muito agradável e seguro, caseiro e nostálgico, com aquela música evolando-se sobre as águas escuras.
— Parece que o culto ainda não acabou — disse eu. — Você entra...
Interrompi-me e estendi as duas mãos para a loura de capa verde que passava justamente naquele momento.
— Hei! — disse eu.
A loura sabia de tudo o que devia fazer se abordada por um estranho numa rua deserta. Lançou um olhar para mim e começou a correr. Não foi muito longe. Escorregou nas lajes úmidas, endireitou-se, mas deu apenas mais dois ou três passos antes que eu a alcançasse. Lutou um pouco para escapar, relaxou-se e lançou os braços em volta do meu pescoço. Maggie aproximou-se, afivelando novamente no rosto aquele velho ar puritano.
— Uma velha amiga, major Sherman?
— Desde esta manhã. Esta é Trudi. Trudi van Gelder.
— Oh! — Maggie colocou uma mão tranqüilizadora no braço de Trudi, que a ignorou, apertou mais os braços em volta do meu pescoço e fitou-me, cheia de admiração, de uma distância de uns doze centímetros.
— Eu gosto de você — anunciou Trudi. — Você é bon-zinho.
— Sim, eu sei. Você já me disse isso. Oh, diabo!
— Vai fazer o quê? — perguntou Maggie.
— O que devo fazer. Preciso fazer com que ela vá para casa. Preciso levá-la para casa. Se a pusermos num táxi ela saltará no primeiro sinal. Aposto cem contra um que a velha bruxa, que devia estar tomando conta dela, caiu no sono e, a esta altura, o pai está passando um pente fino na cidade. Para ele, seria mais barato amarrar uma bola de ferro e uma corrente na perna dela.
Abri os braços de Trudi com certa dificuldade e levantei-lhe a manga esquerda. Examinei-lhe em primeiro lugar o braço e, em seguida, olhei para Maggie, cujos olhos se arregalaram, entreabrindo ao mesmo tempo os lábios ao ver os feios desenhos deixados pelas agulhas hipodérmicas. Baixei a manga e Trudi — em vez de prorromper em lágrimas como da última vez — simplesmente soltou uma risadinha como se tudo aquilo fosse muito divertido. Inspecionei em seguida o outro antebraço. Baixei também a segunda manga.
— Nenhuma picada nova — disse eu.
— Você quer dizer, não há marca nova que se possa ver — retrucou Maggie.
— O que é que você espera que eu faça? Que a mande fazer strip tease nas margens do canal, debaixo desta chuva gelada e ao som da música de órgão? Espere um minuto.
— Por quê?
— Eu quero pensar — respondi.
Fiquei ali matutando enquanto Maggie permanecia com uma expressão de obediente expectativa no rosto e Trudi me agarrava o braço com ar de proprietária e me fitava ternamente. Finalmente, eu disse:
— Você foi vista por alguém lá dentro?
— Tanto quanto eu sei, não.
— Mas Belinda foi, naturalmente?
— Claro. Mas não que desse para ser reconhecida novamente. Todo mundo lá dentro tinha a cabeça coberta. Belinda estava usando xale, o capuz da capa e sentou-se na parte sombria... Eu vi da porta de entrada.
— Tire-a de lá. Espere até terminar o culto e, em seguida, siga Astrid. E procure gravar a face do maior número possível de pessoas que estão lá dentro.
Maggie fez um ar de dúvida.
— Acho que isso vai ser difícil.
— Por quê?
— Ora, todas elas se parecem.
— Elas todas... o que é que elas são, chinesas?
— A maioria é composta de freiras, com Bíblias na mão e aqueles rosários na cintura. Não se pode ver-lhes o cabelo, usam aqueles hábitos pretos com aquelas palas brancas...
— Maggie — disse eu, controlando-me com dificuldade — eu sei com o que freiras se parecem.
— Sim, mas há outra coisa. São quase todas jovens e de boa aparência... algumas de muito boa aparência...
— Ninguém precisa ter um rosto igual a um ônibus amassado para ser freira. Telefone para seu hotel e deixe o número do local onde você terminar. Vamos, Trudi. Para casa.
Ela seguiu-me com grande docilidade, a pé no início e de táxi depois. Segurou-me a mão durante todo o tempo e disse um bocado de brilhantes absurdos de maneira muito viva, como uma criança que sai para um inesperado e empolgante passeio. Ao chegar à casa de Van Gelder, pedi ao chofer do táxi para esperar.
Trudi foi devidamente repreendida por Van Gelder e Herta com a veemência e a seriedade que sempre disfarçam um profundo alívio. Em seguida, foi levada para fora da sala, provavelmente para dormir. Van Gelder serviu duas bebidas com a rapidez de um homem que delas precisa urgentemente e pediu-me que me sentasse. Declinei.
— Eu tenho um táxi esperando lá fora. Onde posso encontrar o coronel De Graaf a estas horas da noite? Eu quero pedir um carro emprestado a ele, preferivelmente um carro veloz.
Van Gelder sorriu.
— Nenhuma pergunta de minha parte, meu amigo. O senhor encontrará o coronel no gabinete... Sei que ele está fazendo serão esta noite. — Ergueu o copo. — Mil agradecimentos. Eu estava muito preocupado.
— Deu algum alarma policial de busca?
— Um alarma não oficial. — Van Gelder sorriu mais uma vez, mas ironicamente. — O senhor sabe por quê. Alguns amigos fiéis... mas há novecentas mil pessoas em Amsterdam.
— Tem alguma idéia do motivo por que ela estava tão longe de casa?
— Pelo menos não há mistério a esse respeito. Herta leva-a lá com freqüência... à igreja, quero dizer. Todo o pessoal de Huyler residente em Amsterdam freqüenta aquela igreja. É uma igreja huguenote... Há também outra em Huyler, bem, não tanto uma igreja, mas uma espécie de local comercial, usado nos domingos como templo. Herta leva-a lá também... As duas vão com freqüência à ilha. As igrejas e o Vondel Park... são as únicas saídas da menina.
Herta entrou gingando na sala e Van Gelder olhou-a preocupado. Herta, com o que poderia talvez passar por uma expressão de satisfação na face coriácea, sacudiu a cabeça e saiu rebolando novamente.
— Bem, graças a Deus por isso — Van Gelder esvaziou o copo. — Nada de picadas.
— Não desta vez. — Esvaziei também o copo, disse adeus e saí.
Despedi o táxi na Marnixstraat. Van Gelder havia telefonado avisando de minha vinda. O coronel De Graaf esperava-me. Se estava ocupado, nenhum sinal dava do fato. Empenhava-se na sua ocupação usual de transbordar da cadeira em que se sentava. A escrivaninha à sua frente estava nua, ele tinha os dedos cruzados sob o queixo e, quando entrei, baixou os olhos de uma descansada contemplação do infinito.
— Posso supor que fez algum progresso? — cumprimentou-me ele.
— Erroneamente, receio.
— O quê? Nenhum espetáculo de largas estradas conduzindo à solução final?
— Apenas becos sem saída.
— Ouvi algo a respeito de um carro, acho que de parte do Inspetor.
— Sim, por favor.
— Posso saber para o que quer esse veículo?
— Para percorrer os becos sem saída. Mas não foi isso realmente o que lhe vim pedir.
— Eu dificilmente pensaria que sim.
— Estou pensando num mandado de busca.
— Para quê?
— Para dar uma busca — respondi pacientemente. — Acompanhado de um oficial ou oficiais superiores, naturalmente, para tornar as coisas legais.
— Quem? Onde?
— Morgenstern e Muggenthaler. Um armazém de artigos turísticos. Na zona das docas... Eu sei o endereço.
— Ouvi falar neles. — De Graaf inclinou a cabeça. — Nada tenho contra eles. O senhor tem?
— Não.
— O que então o torna curioso a respeito deles?
— Juro que não sei. Quero descobrir por que estou tão curioso. Estive no local ontem à noite...
— Mas eles certamente fecham à noite...
Agitei algumas gazuas em frente aos olhos dele.
— O senhor sabe perfeitamente que é crime a posse de tais instrumentos — disse De Graaf severamente.
Recoloquei as gazuas no bolso.
— Que instrumentos?
— Uma alucinação passageira — disse De Graaf amavelmente.
— Eu tenho curiosidade de saber por que há uma fechadura de tempo na porta de aço que conduz ao escritório. Estou curioso a respeito do grande estoque de Bíblias que há lá. — Não mencionei o cheiro de maconha e o tipo que se escondia Por trás das bonecas. — Mas o que realmente me interessa é a lista dos fornecedores deles.
— Podemos arranjar um mandado de busca sob qualquer pretexto — disse De Graaf. — Eu mesmo o acompanharei. Sem dúvida alguma, o senhor explicará em maiores detalhes pela manhã o seu interesse. Agora, a respeito deste carro. Van Gelder deu-me uma excelente sugestão. Um carro policial com motor especial, completo com tudo, de radiotransmissor-receptor a algemas, mas, para todos os fins aparentes, um táxi, estará aqui dentro de dois minutos. Guiar um táxi, como o senhor sabe, cria certos problemas.
— Eu tentarei não ganhar muito dinheiro de quebra. Mais alguma coisa para mim?
— Também em dois minutos. O seu carro está trazendo algumas informações do Arquivo Geral.
Dois minutos depois uma pasta foi colocada sobre a mesa de De Graaf. Ele folheou alguns papéis.
— Astrid Lemay. Nome real, o que é, talvez, estranho. Pai holandês, mãe grega. Ele foi vice-cônsul em Atenas, hoje falecido. Paradeiro da mãe, desconhecido. Vinte e quatro anos. Nada contra ela... nem muita coisa a favor, tampouco. Sou forçado a dizer que a formação dela é um tanto vaga. Trabalha como recepcionista no cabaré Balinova, e mora num pequeno apartamento próximo. Tem um parente conhecido, o irmão George, de vinte anos. Ah! Isto pode interessá-lo. George aparentemente passou seis meses como hóspede de Sua Majestade.
— Drogas?
— Assalto e tentativa de roubo, um trabalho bastante amador, ao que parece. Cometeu o erro de assaltar um detetive. Suspeito de ser viciado... provavelmente tentando obter dinheiro para comprar mais drogas. Isto é tudo o que temos. — Examinou outra folha de papel. — Este número MOOO 144 que o senhor me deu é o sinal de chamada de rádio de um navio costeiro belga, o Marianne, que deve atracar amanhã, procedente de Bordéus. Meu quadro de pessoal é bastante eficiente, não?
— Sim. Quando chega?
— Ao meio-dia. Devemos dar uma busca nele também?
— O senhor não encontraria coisa alguma. Mas, por favor, não se aproxime dele. Alguma idéia sobre os outros dois números?
— Nada, receio, no tocante a 910020. Ou sobre 797. — Interrompeu-se meditativo. — Ou poderia ser 797 duas vezes... digamos, 797797?
— Poderia ser qualquer coisa.
De Graaf tirou um catálogo telefônico da gaveta, examinou-o, guardou-o e levantou um telefone.
— Um número telefônico — disse. — 797797. Descubra quem está listado sob esse número. Imediatamente, por favor.
Permanecemos em silêncio até ouvir a chamada. De Graaf escutou durante um instante e recolocou o aparelho no gancho.
— O cabaré Balinova — disse.
— O eficiente quadro de pessoal tem um chefe dotado de clarividência.
— E aonde essa clarividência o conduz?
— Ao cabaré Balinova. — Levantei-me. — Eu tenho um rosto facilmente identificável, não acha, coronel?
— Não é um rosto que se esqueça. E com essas cicatrizes brancas... Acho que seu cirurgião plástico não tentou realmente.
— Ele tentou, mesmo. Tentou esconder sua ignorância quase total de cirurgia plástica. Há alguma tintura parda aqui na Chefatura?
— Tintura parda? — Pestanejou na minha direção e, em seguida, abriu-se num sorriso. — Oh, não, major Sherman! Disfarce! Nestes dias? Sherlock Holmes está morto há muitos anos.
— Se eu tivesse a metade do cérebro de Sherlock — disse-lhe sombriamente — eu não precisaria de disfarce algum.
O táxi amarelo e vermelho que me deram parecia, visto de fora, um Opel absolutamente normal, mas, aparentemente, haviam conseguido colocar nele um segundo motor. Fizeram também um bocado de serviços extras. Possuía uma poderosa sirena, poderosos holofotes policiais e um painel na traseira que descia e iluminava um sinal de "Pare". Sob o assento dianteiro havia cordas, estojo de primeiros socorros e bombas de gás lacrimogêneo. Nas portas, algemas com as respectivas chaves. Somente Deus sabe o que havia na mala. Nem me importava. Tudo o que eu queria era um carro rápido e tinha-o.
Parei numa área proibida de estacionamento, do lado de fora do cabaré Balinova, exatamente em frente de um policial uniformizado e de revólver no coldre. Ele inclinou a cabeça quase imperceptivelmente e afastou-se em passos lentos. Conhecia um táxi da Polícia quando o via e não tinha desejo algum de explicar a uma populaça indignada por que um táxi podia safar-se com uma infração que, automaticamente, lhe teria rendido uma multa.
Saltei, fechei a porta e cruzei a calçada em direção à entrada do cabaré, que possuía em cima uma tabuleta pisca-pisca de gás neon com o nome "Balinova" e a silhueta de duas dançarinas de hula-hula, embora eu não conseguisse compreender a ligação entre o Havaí e a Indonésia. Talvez a intenção fosse mostrar dançarinas balinesas, mas, se era assim, elas usavam os tipos errados de traje... ou não usavam. Duas grandes vitrinas de cada lado da porta haviam sido reservadas a uma espécie de exposição de arte, que dava uma delicada indicação da natureza dos deleites culturais e atividades mais eruditamente esotéricas que seriam encontrados lá dentro. A moça ali mostrada, com brincos, penduricalhos, balangandãs e nada mais, parecia quase indecentemente supervestida. De maior interesse ainda, contudo, foi o semblante cor de café que me fitou do vidro. Se eu não soubesse quem eu era, eu não me teria reconhecido a mim mesmo. Entrei.
O Balinova, segundo a melhor tradição consagrada pelo tempo, era pequeno, abafadiço, esfumaçado e tresandava a um incenso indescritível, o principal ingrediente do qual parecia ser borracha queimada, e que se destinava, provavelmente, a induzir nos fregueses o correto estado de espírito para o desfrute máximo do espetáculo. E tinha, de fato, o efeito de produzir paralisia olfativa em questão de segundos. Mesmo sem ajuda das nuvens flutuantes de fumaça, o local era deliberadamente mal iluminado, exceto pelo holofote colorido sobre o palco que, mais uma vez segundo o padrão, não era absolutamente um palco, mas uma pequena pista circular de dança situada no centro da sala.
A platéia era quase exclusivamente masculina, cobrindo toda a faixa de idade desde adolescentes de olhos arregalados a elegantes octogenários de olhos brilhantes, cuja acuidade visual parecia ter permanecido a mesma a despeito da passagem dos anos. Quase todos estavam bem vestidos, pois os cabarés de melhor classe de Amsterdam — os que conseguem ainda atender devotadamente aos paladares refinados dos velhos connoisseurs de certas artes plásticas — não se destinam àqueles que vivem de pensões por desemprego. Em uma palavra, não são baratos e o Balinova era muito, muitíssimo caro, uma das muito poucas boates de alta classe. Havia algumas mulheres, mas apenas algumas. Para minha completa falta de surpresa, Maggie e Belinda encontravam-se sentadas numa mesa perto da porta tendo à frente as mesmas bebidas de cor doentia. Ambas haviam afivelado no rosto expressões remotas, embora a de Maggie fosse inquestionavelmente a mais remota das duas.
No momento, meu disfarce parecia absolutamente supérfluo. Ninguém me olhou quando entrei e era claro que ninguém queria olhar-me, fato compreensível, talvez, nas circunstâncias, uma vez que a platéia estava quase quebrando seus copos na ansiedade de não perder coisa alguma das nuanças estéticas ou significados simbólicos do original e mentalmente estimulante ballet que era executado diante de seus olhos extasiados, em que uma bem feita moça, em um banho de espuma, ao acompanhamento de batidas discordantes e gemidos asmáticos de uma torturante banda que não teria sido tolerada numa fábrica de caldeiras, tentava estirar-se para alcançar uma toalha de banho habilmente plantada a mais ou menos um metro de distância. O ar estava eletrizado de tensão enquanto a audiência procurava calcular o número muito limitado de alternativas abertas à infeliz moça. Sentei-me ao lado de Belinda e dei-lhe o que, à luz de minha nova compleição, deve ter sido um sorriso alucinante. Belinda afastou-se uns rápidos quinze centímetros de mim e ergueu o nariz uns cinco centímetros no ar.
— Hei — disse eu. Ambas voltaram-se para fitar-me e eu fiz um movimento de cabeça na direção do palco. — Por que uma de vocês não vai ajudá-la?
Houve uma longa pausa. Maggie, em seguida, perguntou com grande autocontrole:
— O que diabo lhe aconteceu?
— Estou disfarçado. Fale baixo.
— Mas... eu telefonei para o hotel há apenas dois ou três minutos — disse Belinda.
— E não fale sussurrando, também. O coronel De Graaf informou-me a respeito deste local. Ela veio diretamente para aqui?
Ambas inclinaram a cabeça.
— E não saiu novamente?
— Não pela porta principal — respondeu Maggie.
— Tentou gravar a face das freiras que saíam? Como eu lhe disse?
— Tentamos — retrucou Maggie.
— Notou algo de estranho, peculiar, fora do comum a respeito delas?
— Não, nada. Exceto — acrescentou vivamente Belinda — que parecem haver freiras muito bonitas em Amsterdam.
— Maggie já me disse isso. É tudo? Entreolharam-se, hesitantes, e Maggie disse:
— Houve uma coisa curiosa. Parece que vimos muito mais gente entrar na igreja do que sair.
— Havia um bocado mais de gente naquela igreja do que a que saiu — disse Belinda. — Eu estava lá, como você sabe.
— Eu sei — disse-lhe polidamente. — O que é que você quer dizer com "um bocado"?
— Bem — disse Belinda defensivamente — algumas.
— Ah! Agora estamos reduzidos a algumas. Vocês duas naturalmente verificaram se a igreja ficou vazia, não? Desta vez coube a Maggie adotar o ar defensivo.
— Você nos disse para seguir Astrid Lemay. Nós não podíamos esperar.
— Ocorreu por acaso a vocês que algumas pessoas possam ter ficado para fazer devoções particulares? Ou, quem sabe, vocês talvez não saibam contar muito bem?
Belinda contraiu os lábios irritada, mas Maggie pôs uma mão sobre ela.
— Isto não é justo, major Sherman. — E isto era Maggie falando. — Podemos cometer erros, mas isto não é justo.
Quando Maggie falava nesse tom de voz, eu escutava.
— Desculpe, Maggie. Desculpe, Belinda. Quando covardes como eu ficam preocupados, vingam-se de pessoas que não podem reagir. — Imediatamente ambas me endereçaram aquele sorriso que normalmente me faria subir pelas paredes, mas que julguei curiosamente comovente naquele momento, talvez porque a tintura mexera com o meu sistema nervoso. — Somente Deus sabe que cometo mais erros do que vocês.
Eu cometia e estava cometendo um dos piores. Eu devia ter escutado com mais atenção o que as meninas diziam.
— E agora? — perguntou Maggie.
— Sim, o que é que vamos fazer agora? — indagou Belinda.
Eu havia sido evidentemente perdoado.
— Circular pelos cabarés por aqui. Sabemos bem que não há falta deles. Veja se conseguem reconhecer alguém — artista, pessoal de serviço, talvez uma pessoa da platéia — que se pareça com alguém que viram hoje à noite na igreja.
Belinda fitou-me incrédula.
— Freiras num cabaré?
— Por que não? Bispos vão a festas ao ar livre, não? — Não é a mesma coisa...
— Entretenimento é entretenimento em todo o mundo — disse eu pontificalmente. — Especialmente, prestem atenção às que usam vestidos de mangas compridas ou mitenes.
— Por que essas? — perguntou Belinda.
— Use a cabeça. Verifiquem, se encontrarem alguém, se podem descobrir onde mora. Voltem ao hotel à uma da manhã. Eu as procurarei lá.
— E o que é que você vai fazer? — perguntou Maggie. Olhei indolentemente em volta.
— Eu ainda preciso fazer uma porção de pesquisas por aqui.
— Aposto que precisa — disse Belinda.
Maggie abriu a boca para falar, mas Belinda foi poupada do inevitável sermão pelos "ohs", "aahs" e respiração entrecortada de absoluta admiração, livremente manifestada, que ecoou pelo clube. A platéia estava quase em pé. A infeliz artista havia resolvido o terrível dilema graças ao simples mas engenhoso e altamente eficaz expediente de virar a banheira de lata e usá-la, como uma tartaruga, para ocultar seus virginais rubores e cobrir a pequena distância até a salvação da toalha. Ergueu-se, envolvida nela. Madame Melba dando o adeus final no Covent Garden. A extática platéia assoviou, pediu mais e ninguém mais do que os octogenários, mas em vão: esgotado seu repertório, ela sacudiu graciosamente a cabeça e saiu, rápida, do palco, seguida de nuvens de bolhas de sabão.
— Puxa vida! — disse eu, cheio de admiração. — Aposto que nenhuma de vocês duas teria pensado naquilo.
— Vamos, Belinda — cortou Maggie. — Isto não é lugar para nós.
Levantaram-se da mesa e saíram. Passando por mim, Belinda fez um movimento das sobrancelhas que pareceu suspeitosamente uma piscadela, sorriu docemente, disse: "Eu gosto de você assim", e deixou-me ponderando desconfiado sobre o significado daquela observação. Acompanhei-as com os olhos até à entrada para ver se alguém as seguia. Na verdade, foram seguidas, em primeiro lugar, por um tipo muito gordo e pesadamente construído, de bochechas enormes e um ar de benevolência, mas isso dificilmente teria importância, desde que ele foi imediatamente seguido por vários outros. O ponto alto da noite passara, grandes momentos como aquele apenas de raro em raro aconteciam e os mesmos cumes raramente seriam escalados de novo — salvo três vezes por noite, sete noites por semana — e eles iam para campinas mais verdes, onde a bebida podia ser comprada pela quarta parte do preço.
O clube ficou meio vazio, as nuvens de fumaça rarearam e, conseqüentemente, melhorou a visibilidade. Olhei em volta, mas, nesta momentânea pausa, nada vi de interessante. Os garçons circulavam. Pedi um uísque e me trouxeram uma bebida em que uma rigorosa análise química poderia encontrar raros traços da bebida. Um velho passou um rodo na minúscula pista de dança com os movimentos deliberados e estilizados de um sacerdote realizando ritos sagrados. A banda, misericordiosamente silenciosa, emborcava com entusiasmo cerveja presenteada por algum cliente completamente surdo. Por fim, vi a pessoa que eu fora até ali para ver. Apenas, pareceu que eu não a veria por muito tempo.
Na porta interna no fim da sala, Astrid Lemay punha um abrigo em torno dos ombros enquanto outra moça sussurrava alguma coisa ao seu ouvido. Pelas expressões tensas e movimentos apressados, parecia ser uma mensagem de certa urgência. Astrid inclinou várias vezes a cabeça e, em seguida, praticamente correu pela minúscula pista de dança e ganhou a entrada principal. Algo mais preguiçosamente, segui-a.
Diminuí a distância e estava a apenas alguns passos quando ela virou para a Rembrandtplein. Parou. Parei, olhei para o que ela olhava e escutei o que ela escutava.
O realejo estava estacionado na rua, do lado de fora de um café de cadeiras na calçada. Mesmo àquela hora da noite, o local estava quase cheio e os sofredores fregueses tinham o ar de pessoas prestes a pagar grandes somas de dinheiro para ir para outro lugar. Aquele realejo parecia ser uma cópia do que estacionava em frente ao Rembrandt, com a mesma bizarra combinação de cores, capota multicolorida e bonecos identicamente vestidos, dançando nas extremidades de molas elásticas, embora a máquina fosse claramente inferior, mecânica e musicalmente, à do Rembrandt. Ela, também, era operada por um velho, embora este exibisse uma barba grisalha de uns trinta centímetros que nem havia sido lavada nem penteada desde que ele deixara de barbear-se, usava um chapéu de cowboy e um casaco do Exército Britânico que o envolvia até o tornozelos. Entre o clangor, gemidos e ganidos emitidos pelo realejo, penso que identifiquei excertos de La Bohème, embora somente o céu saiba que Puccini nunca fez a moribunda Mimi sofrer de maneira que teria sofrido se estivesse na Rembrandtplein naquela noite.
O velho contava com uma platéia bem próxima e aparentemente atenta de uma única pessoa. Reconheci-o como um membro do grupo que vira em volta do realejo do Rembrandt. As roupas estavam puídas, mas limpas, e tinha os cabelos finos caídos sobre os ombros dolorosamente magros, cujas omoplatas se projetavam como varas do paletó. Mesmo à distância de uns seis metros, notei como era avançado o seu grau de magreza. Vi-lhe apenas parte das feições, que mostravam um rosto cadavericamente encovado, da cor de pergaminho velho.
Encostava-se numa das extremidades do realejo, mas não por amor algum à Mimi. Encostava-se porque, se não o fizesse sobre alguma coisa, certamente cairia ao chão. Era evidentemente um jovem muito doente cujo colapso total poderia ocorrer a qualquer momento. Às vezes, o corpo contraía-se em espasmos incontroláveis. Mais raramente, emitia sons soluçantes ou guturais. Evidentemente, o velho do casacão não o considerava muito útil ao negócio, mas ele continuava, cacarejando queixas e fazendo movimentos sem propósito com os braços, parecendo-se muito com uma galinha demente. Continuava também a lançar olhares sobre o ombro, apreensivos, em volta da praça, como se estivesse receoso de alguma coisa ou de alguém.
Astrid dirigiu-se rapidamente para o realejo, seguida de perto por mim. Sorriu com ar de desculpa para o velho barbado, pôs um braço em volta dos ombros do rapaz e puxou-o. Momentaneamente, ele tentou espigar-se e vi que era um jovem muito alto, pelo menos uns doze centímetros mais alto do que ela. A altura servia apenas para acentuar a figura esquelética. Tinha os olhos fixos e vidrados e a face de um homem que morria de inanição, as bochechas tão incrivelmente encovadas que se julgaria que não possuía dentes. Astrid tentou em parte puxá-lo e em parte carregá-lo, mas embora sua magreza tivesse alcançado um ponto em que ele dificilmente poderia pesar mais do que a moça, se é que tanto, a ginga incontrolável dele fê-la vacilar na calçada.
Aproximei-me deles sem palavra, coloquei o braço em volta dele — era como se abraçasse um esqueleto — e aliviei-a do peso. Ela fitou-me com olhos castanhos, onde se liam a ansiedade e o medo. Acho que minha cor de sépia tampouco lhe inspirou muita confiança.
— Por favor! — A voz era suplicante. — Deixe-me. Eu posso dar um jeito.
— A senhorita não pode. Ele está muito doente, Srta. Lemay.
Ela olhou-me fixamente.
— Sr. Sherman!
— Não tenho certeza se estou gostando disto — disse eu, meditativo. — Há uma ou duas horas, a senhorita nunca me havia visto, nem mesmo sabia meu nome. Mas agora que fiquei moreno e atraente... Hei!
George, cujas pernas de borracha haviam-se tornado subitamente de geléia, quase me escapou das mãos. Percebi que nós dois não íamos tão cedo parar de valsar ao longo da Rembrandtplein e curvei-me para colocá-lo no ombro, numa manobra de bombeiro. Ela, em pânico, segurou-me o braço.
— Não! Não faça isso! Não faça isso!
— Por que não? — perguntei sensatamente. — É mais fácil assim.
— Não, não! — Se a Polícia os vir, ele será preso. Endireitei-me, coloquei novamente o braço em volta dele e procurei conservá-lo tão na vertical quanto possível.
— O caçador e a presa — disse eu. — Ambos, você e Van Gelder.
— Não entendi.
— E, naturalmente, o mano George é...
— Como é que o senhor conhece o nome dele? — sussurrou ela.
— Meu negócio é saber de coisas — disse eu com ar importante. — Como eu estava dizendo, o mano George tem ainda a desvantagem adicional de não ser exatamente desconhecido da Polícia. Ter um ex-presidiário como irmão pode ser uma grande desvantagem.
Ela não respondeu. Duvido de ter visto uma pessoa que parecesse quase tão completamente infeliz e derrotada.
— Onde é que ele mora? — perguntei.
— Comigo, naturalmente. — A pergunta pareceu surpreendê-la. — Não fica longe.
Não era, não mais de cinqüenta metros por uma rua lateral — se é que uma viela tão estreita e escura podia ser chamada de rua — além do Balinova. Os degraus para o apartamento de Astrid eram os mais estreitos e tortos que eu já vira e, com George no ombro, tive dificuldade em subi-los. Astrid abriu a porta do apartamento, um pouco maior do que uma coelheira, consistindo, tanto quanto pude ver, de uma diminuta sala de estar e um quarto igualmente minúsculo. Fui até o quarto, deitei George na estreita cama e passei a mão pela testa.
— Eu já subi melhores escadas do que esses seus malditos degraus — disse-lhe com toda a convicção.
— Sinto muito. A pensão de moças é mais barata, mas com o George... Não pagam muito no Balinova.
Era claro à vista dos dois pequenos cômodos, limpos mas esquálidos como a roupa de George, que pagavam muito pouco.
— Pessoas no seu caso têm sorte quando conseguem alguma coisa — disse-lhe.
— Não entendi.
— Não me venha tanto com essa história de "não entendi". Você sabe perfeitamente bem do que estou falando. Não sabe, Srta. Lemay... ou posso chamá-la de Astrid?
— Como é que sabe o meu nome? — Assim, de momento, não podia recordar-me de ter visto uma moça torcer as mãos, mas era isso o que ela fazia naquele momento. — Como... como é que sabe dessas coisas a meu respeito?
— Ora, deixe disso — respondi asperamente. — Dê algum crédito ao seu namorado.
— Namorado? Eu não tenho namorado.
— Ex-namorado, então. Ou prefere o "falecido namorado?"
— Jimmy? — sussurrou ela.
— Jimmy Duelos — respondi, inclinando a cabeça. — Ele pode ter-se apaixonado por você — fatalmente — mas já me havia dito alguma coisa sobre você. Eu tenho mesmo uma fotografia sua.
Ela pareceu confusa.
— Mas... mas no aeroporto...
— O que é que você esperava de mim... que a abraçasse? Jimmy foi morto no aeroporto porque estava na pista de alguma coisa. O que era essa coisa?
— Sinto muito. Não posso ajudá-lo.
— Não pode? Ou não quer? Ela conservou-se calada.
— Você o amava, Astrid? Jimmy?
Ela me olhou, embotada, com os olhos brilhando. Inclinou lentamente a cabeça.
— E não me dirá coisa alguma? — Silêncio. Suspirei e tentei outro ângulo. — Jimmy Duelos disse-lhe o que ele era?
Ela sacudiu negativamente a cabeça.
— Mas desconfiou? Ela inclinou a cabeça.
— E contou a alguém o que desconfiou? Isto doeu.
— Não! Não! Não disse a ninguém. Juro por Deus que não disse a ninguém — Ela o amara, não havia dúvida, e não estava mentindo.
— Ele falou em mim alguma vez?
— Não.
— Mas você sabe quem eu sou?
Ela simplesmente olhou-me e duas grandes lágrimas escorreram-lhe pelo rosto.
— Você sabe perfeitamente bem que eu dirijo o departamento de narcóticos da Interpol em Londres.
Mais silêncio. Agarrei-a pelos ombros e sacudia-a furioso.
— Bem, sabe ou não?
Ela inclinou a cabeça. Uma grande pequena para silêncios.
— Então, se Jimmy não lhe disse, quem disse?
— Oh, Deus! Por favor, deixe-me em paz! — Uma porção de lágrimas seguiam agora as duas primeiras. Era o dia dela de chorar e o meu de suspirar. Suspirei, portanto, e mudei novamente de ângulo. Pela porta, olhei o rapaz estirado na cama.
— Acho — disse — que George não é o ganha-pão da família.
— George não pode trabalhar. — Disse isso como se estivesse enunciando uma lei simples da natureza. — Não trabalha há mais de ano. Mas o que é que ele tem a ver com isso?
— George tem tudo a ver. — Entrei no quarto, curvei-me sobre ele, examinei-o com atenção, ergui uma pálpebra e deixei-a cair novamente. — O que é que você faz quando ele está neste estado?
— Não há coisa alguma a fazer.
Subi a manga do braço cadavérico. Marcas, de várias cores e descoloridas, de inumeráveis picadas. Era um espetáculo revoltante. O braço de Trudi nada era em comparação com aquilo.
— Não há coisa alguma que se possa fazer por ele — disse eu. — Você sabe disso, não?
— Sei. — Ela percebeu minha expressão especulativa, deixou de enxugar o rosto com um lenço de renda mais ou menos do tamanho de um selo postal, e sorriu amargamente. — Quer que eu enrole a minha manga?
— Eu não gosto de insultar moças boazinhas. O que quero é fazer-lhe algumas perguntas simples, que você pode responder. Há quanto tempo George está assim?
— Três anos.
— Há quanto tempo trabalha no Balinova?
— Três anos.
— Gosta do emprego?
— Gostar? — A moça se traía toda vez que abria a boca. — O senhor sabe o que significa trabalhar num cabaré... num cabaré como aquele? Velhos horrendos, sujos, solitários, olhando-nos com ar debochado...
— Jimmy Duelos não era horrível, nem velho nem sujo. Ela ficou surpresa.
— Não. Não, naturalmente que não. Jimmy...
— Jimmy Duelos morreu, Astrid. Jimmy está morto porque se apaixonou por uma recepcionista de cabaré que está sendo chantageada.
— Ninguém me está chantageando.
— Não? Então, quem está aplicando pressão em você para ficar calada e trabalhar num emprego que evidentemente abomina? E por que estão aplicando pressão sobre você? Por causa de George? O que foi que ele fez ou dizem que ele fez? Eu sei que ele esteve na prisão e, assim, não pode ser isso. O que é, Astrid, que a levou a espionar-me? O que é que você sabe a respeito da morte de Jimmy Duelos? Eu sei como ele morreu. Mas quem o matou e por quê?
— Eu não sabia que ele seria morto! — Ela sentou-se no sofá-cama cobrindo o rosto com as mãos, os ombros subindo e descendo. — Eu não sabia que ele seria morto.
— Muito bem, Astrid. — Desisti porque não estava conseguindo coisa alguma, salvo desenvolver um crescente desgosto comigo mesmo. Ela provavelmente amara Duelos, ele morrera havia apenas um dia e ali estava eu revolvendo feridas sangrentas. — Eu conheci um número grande demais de pessoas que viviam com medo da morte para sequer tentar fazê-la falar. Mas pense nisto, Astrid, pelo amor de Deus e por amor a você mesma, pense nisto. É a sua vida e é tudo o que resta para preocupá-la agora. Não há mais vida em George.
— Não há nada que eu possa fazer, nada que possa dizer. — Ela conservava o rosto nas mãos. — Por favor, vá embora.
Não achei que houvesse mais alguma coisa que eu pudesse fazer ou dizer e, assim, fiz o que ela me pedia e retirei-me.
Apenas de calças e camiseta olhei-me no pequeno espelho do pequeno banheiro. Todos os traços da tinta pareciam ter sido removidos do rosto, pescoço e mãos, o que era mais do que eu podia dizer da grande e outrora branca toalha que tinha nas mãos. Úmida e manchada para sempre, tinha agora uma cor escura de chocolate.
Passei para o quarto que mal acomodava a cama e o sofá-cama. A cama era ocupada por Maggie e Belinda, ambas sentadas, mas encantadoras em camisolas muito atraentes que pareciam consistir principalmente de orifícios. Eu, porém, tinha problemas mais urgentes no momento do que pensar na maneira como fabricantes de camisola economizavam no pano.
— Você acabou com a nossa toalha — queixou-se Belinda.
— Diga ao pessoal do hotel que vocês estiveram tirando a maquilagem — respondi, estendendo a mão para a camisa, que apresentava uma profunda cor avermelhada na parte interna do colarinho. Mas não se podia fazer coisa alguma a esse respeito. — Então a maioria das moças dos cabarés mora nesta Pensão Paris?
Maggie inclinou a cabeça.
— Assim disse Mary.
— Mary?
— Aquela moça inglesa boazinha que trabalha no Trianon.
— Não há moças inglesas boazinhas trabalhando no Trianon, apenas meninas inglesas levadas. Ela era uma das moças da igreja? — Maggie sacudiu a cabeça. — Bem, isto pelo menos confirma o que Astrid disse.
— Astrid? — perguntou Belinda. — Falou com ela?
— Passei o dia com ela. Não muito proveitosamente, receio. Ela não se mostrou muito comunicativa. — Contei-lhes brevemente como ela fora pouco comunicativa e continuei: — Bem, já é tempo de vocês fazerem alguma coisa em vez de andar pelos cabarés. — Elas se entreolharam e me fitaram friamente.
— Maggie, dê uma volta pelo Vondel Park amanhã. Veja se Trudi aparece por lá... você a conhece. Não deixe que ela a veja... ela a conhece. Verifique o que ela faz, se encontra alguém, fala com alguém. O parque é grande, mas não deve haver muita dificuldade em localizá-la se ela estiver lá... Será acompanhada por uma velha criatura de mais ou menos um menos um metro e meio de cintura. Belinda, fique de olho na pensão amanhã à noite. Se reconhecer alguma moça que esteve na igreja, siga-a e veja o que ela faz. — Vesti o paletó muito úmido.
— Boa noite.
— Isso é tudo? Vai-se embora? — Maggie pareceu levemente surpresa.
— Puxa, que pressa! — disse Belinda.
— Amanhã à noite — prometi — eu botarei vocês na cama e lhes contarei a história dos três ursinhos. Hoje à noite preciso fazer outras coisas.
Deixei o carro da Polícia em cima de um sinal de "Estacionamento Proibido" pintado na rua e caminhei os últimos cem metros até o hotel. O realejo fora para onde quer que realejos se escondam nas caladas da noite e o foyer estava deserto, exceto pelo gerente-assistente, cochilando numa cadeira por trás do balcão da recepção. Estendi a mão, tranqüilamente tirei a chave do gancho e subi os dois primeiros andares pela escadas antes de tomar o elevador para não tirar o gerente-assistente do que parecia ser um sono pesado — e, sem dúvida, bem merecido.
Tirei as roupas úmidas — o que significou todas elas — tomei um banho de chuveiro, vesti uma roupa seca, desci pelo elevador e bati ruidosamente com a chave no balcão. O gerente-assistente pestanejou, acordou, olhou-me, ao relógio e à chave, nessa ordem.
— Sr. Sherman. Eu... eu não o vi entrar.
— Entrei há horas. O senhor estava dormindo. Esta inocência infantil...
Ele não me escutava. Pela segunda vez, olhou vagamente para o relógio.
— O que foi que o senhor andou fazendo, Sr. Sherman?
— Eu sou sonâmbulo.
— São duas e meia da manhã!
— Eu não faço sonambulismo durante o dia — disse-lhe sensatamente. Virei-me e espiei pelo vestíbulo. — O quê? Nenhum porteiro, nenhum mensageiro, nenhum chofer de táxi, nenhum realejo, nem uma cauda ou uma sombra à vista? Negligência. Desídia. O senhor será chamado a explicar esse relaxamento.
— Não entendi.
— O preço do almirantado é a eterna vigilância.
— Não compreendo.
— Eu mesmo não tenho certeza de que compreendo. Há barbearias abertas a esta hora da noite?
— Há... O que foi que o senhor disse?
— Não tem importância. Tenho certeza de que encontrarei uma delas em algum lugar.
Saí. A vinte metros do hotel mergulhei numa soleira, alegremente disposto a dar uma porretada em quem parecesse inclinado a seguir-me. Mas, após dois ou três minutos tornou-se claro que não havia ninguém. Apanhei o carro e dirigi-me para a área das docas, estacionando-o a alguma distância e a duas ruas da Primeira Igreja Reformada da Sociedade Huguenote Americana. Desci até à margem do canal.
O canal, margeado pelos inevitáveis olmos e tílias, estava escuro, pardo e silencioso e não refletia absolutamente a luz das ruas mal iluminadas de cada lado. Nenhum edifício dos dois lados mostrava também uma solitária luz. A igreja parecia mais arruinada e insegura do que nunca e envolvida naquele estranho ar de silêncio, apartamento e vigilância que muitas igrejas parecem possuir à noite. O enorme guindaste, armado com a maciça lança, silhuetava-se ameaçadoramente contra os céus. Era total a ausência da menor indicação de vida. Faltava apenas um cemitério.
Cruzei a rua, subi os degraus e experimentei a porta da igreja. Aberta. Não havia motivo para estar fechada, mas achei vagamente surpreendente que não estivesse. As dobradiças deviam estar bem oleadas porque a porta abriu e fechou-se sem um som.
Acendi a lanterna e fiz um rápido círculo de 360°. Estava sozinho. Fiz uma inspeção metódica. O interior era pequeno, menor mesmo do que se poderia ter imaginado de fora, escurecido e antigo, tão antigo que notei que os bancos de carvalho haviam sido lavrados a enxó. Levantei o feixe da lanterna mas não havia balcão, apenas uma meia-dúzia de empoeirados vitrais que, mesmo num dia ensolarado, teriam deixado passar apenas uma quantidade mínima de luz. A porta de entrada era a única externa da igreja. A outra abria-se num canto na parte dos fundos, a meio caminho entre o púlpito e um antigo órgão operado a fole.
Dirigi-me a ela, coloquei a mão na maçaneta e desliguei a lanterna. A porta rangeu, mas não alto. Dei um passo cauteloso e sem ruído, e foi bom que o tivesse feito porque não pisei em outro assoalho, mas no primeiro degrau de uma escada para baixo. Desci os degraus, dezoito num círculo completo, movendo-me com cuidado, a mão à frente para encontrar a porta que sentia que devia haver ali. Mas não havia. Acendi a lanterna.
A sala onde me encontrava tinha mais ou menos o tamanho da igreja em cima. Fiz outro rápido círculo com a lanterna. Não havia janelas mas apenas duas lâmpadas nuas. Localizei o interruptor e apertei-o. A sala era mais escura do que a própria igreja. O assoalho áspero de madeira estava imundo de sujo acumulado durante anos incontáveis. Havia algumas mesas e cadeiras no centro e duas paredes laterais com meias-cabinas, muito estreitas e altas. Parecia um café medieval.
Senti as narinas tremerem involuntariamente com um cheiro bem lembrado e antipatizado. Poderia ter vindo de qualquer parte, mas imaginei que emanava das fileiras de cabinas à minha direita. Guardei a lanterna, tirei a pistola do coldre sob a axila, enfiei a mão no bolso à procura do silenciador e atarraxei-o. Atravessei o aposento com pés de gato e o nariz me disse que eu estava indo na direção certa. A primeira cabina estava vazia. O mesmo acontecia à segunda. Ouvi então o som de uma respiração. Movi-me para a frente com milimétrico cuidado e meu olho esquerdo e o cano da pistola deram no mesmo instante a volta em torno da quina da terceira cabina.
As precauções haviam sido desnecessárias. Não havia perigo ali. Duas coisas repousavam na estreita mesa: um cinzeiro com um cigarro queimado até o fim e os braços e a cabeça de um homem derreado para a frente, dormindo a sono solto. Não lhe quis ver o rosto. Eram inconfundíveis a forma esqueléticas e as roupas puídas de George. Na última vez em que o vira, teria jurado que ele não se poderia mexer da cama nas vinte e quatro horas seguintes — ou teria jurado se ele fosse Pessoa normal. Os viciados em forma avançada, porém, estão tão longe da normalidade quanto uma pessoa pode chegar e são capazes de façanhas impressionantes de recuperação, embora curtas. Deixei-o onde se encontrava. No momento, ele não apresentava problema.
Havia uma porta na extremidade da sala entre duas fileiras de cabinas. Abri-a com muito menor cuidado do que antes, entrei, localizei o interruptor e apertei-o.
Era um aposento largo, mas muito curto, correndo por toda a largura da igreja, mas de não mais de três metros. Ambas as paredes estavam forradas de estantes até o teto, cheias de Bíblias. Não constituiu surpresa descobrir que eram réplicas das que eu havia examinado no armazém de Morgenstern e Muggenthaler, as que a Primeira Igreja Reformada distribuía com tanta liberalidade nos hotéis de Amsterdam. Não parecia haver coisa alguma a ganhar examinando-as outra vez e, assim, enfiei a pistola no cinto e fui inspecioná-las de qualquer maneira. Apanhei diversas ao acaso numa prateleira e folheei-as. Eram tão inocentes como as Bíblias podem ser, o que é o máximo de inocência. Enfiei a mão na segunda fileira e o mesmo exame superficial produziu idênticos resultados. Empurrei parte da segunda fileira para um lado e apanhei um volume da terceira.
Este exemplar poderia ou não ter sido inocente, dependendo da maneira como se interpretava seu estado selvagemente mutilado, mas, como Bíblia, era um completo fracasso porque o buraco que fora habilmente aberto no centro estendia-se por quase toda a largura do livro. O buraco tinha mais ou menos o tamanho e a forma de um grande figo. Examinei várias outras Bíblias da mesma fileira: todas possuíam o mesmo centro oco, obviamente feito à máquina. Pondo de lado um dos exemplares mutilados, coloquei os outros onde os havia achado e dirigi-me para a porta oposta àquela pela qual eu entrara na estreita sala. Abri-a e apertei o botão da luz.
A Primeira Igreja Reformada, forçoso era admitir, fizera o seu eminentemente bem sucedido máximo para cumprir com as exortações do clero da avant-garde, de que à Igreja cabia o dever de manter-se a par e participar da era tecnológica em que vivemos. Concebivelmente, podia-se ter esperado que ela levasse a cabo essa orientação um pouco menos literalmente, mas o fato é que exortações inespecíficas, quando traduzidas na prática, estão sempre sujeitas a certo volume de desorientação na execução, o que parecia ter ocorrido no caso: aquela sala, que ocupava quase metade da área do porão da igreja, era, de fato, uma oficina soberbamente equipada.
Para meu olho destreinado possuía tudo — tornos, brocas, prensas, cadinhos, moldes, uma fornalha, uma grande máquina de estampar, e bancos aos quais estava aparafusado certo número de máquinas menores, cuja finalidade constituía um mistério para mim. Um dos lados do assoalho estava coberto pelo que pareciam ser aparas de latão e cobre, pois a maior parte tinha a forma de espirais. Num depósito de canto vi uma grande e mal arrumada pilha de canos de chumbo, todos evidentemente antigos, e alguns rolos de cobertura de chumbo, usada em telhados. Em conjunto, um lugar altamente funcional e evidentemente dedicado à manufatura: quanto aos produtos finais, qualquer palpite servia, pois certamente não havia exemplares em volta.
Eu estava a meio caminho da sala, andando vagarosamente, quando me pareceu ter ouvido uma levíssima sugestão de som na área da porta por onde acabara de passar. Mais uma vez, senti aquela comichão na nuca. Alguém a examinava, e não com intenção amiga, de uma distância de apenas alguns metros.
Continuei a andar indiferente, o que não é fácil de fazer quando há boas possibilidades de que o passo seguinte possa ser cortado por uma bala calibre 38 ou algo igualmente letal na base do crânio, pois voltar-me armado apenas com uma Bíblia oca na mão esquerda — a pistola continuava no cinto — parecia uma maneira segura de precipitar alguma pressão involuntária num dedo nervoso. Eu me havia comportado como um débil mental, agindo com uma idiotice pela qual eu passaria uma descompostura em qualquer outra pessoa, e parecia mesmo que pagaria o preço dos débeis mentais. A porta principal aberta, a porta que dava para o porão, o acesso livre a todos aqueles que quisessem investigar indicavam apenas uma coisa: a presença de um homem tranqüilo com uma arma, cujo trabalho consistia não em impedir a entrada, mas a partida, da forma mais permanente. Perguntei-me onde estivera ele escondido, talvez no púlpito, talvez em alguma porta lateral saindo da escada, cuja existência eu não havia tido o cuidado de investigar.
Cheguei ao fim da sala, olhei ligeiramente para a esquerda por trás de um torno, emiti um leve murmúrio de surpresa e agachei-me por trás da máquina. Não fiquei nessa posição por mais de dois segundos, pois não parecia haver vantagem em adiar o que eu sabia que seria inevitável: ao levantar a cabeça rapidamente sobre o torno, o cano da pistola silenciosa já estava alinhado com meu olho direito.
Ele estava a não mais de cinco metros, avançando sobre mocassins silenciosos de sola de borracha, uma figura murcha com um focinho de roedor, branco como papel e olhos pretos brilhantes. O que ele apontava na direção geral do torno à minha frente era pior do que qualquer revólver 38, era algo de coagular o sangue, uma espingarda calibre 12, de canos duplos, cerrados, provavelmente a arma de curto alcance mais letal e eficiente já inventada.
Vi-o e apertei o gatilho no mesmo momento, pois, se havia alguma coisa certa, era que eu nunca teria uma segunda oportunidade.
Uma rosa vermelha floriu no centro da testa do homem enrugado. Deu um passo para trás, no passo reflexo de homem já morto, e desmoronou-se no chão quase tão silenciosamente como estivera avançando para mim, a espingarda ainda na mão. Virei os olhos para a porta, mas se havia alguns reforços à mão o fato estava sendo prudentemente escondido. Endireitei-me e atravessei rapidamente a sala onde estavam armazenadas as Bíblias, mas não havia ninguém ali nem nas cabinas da sala contígua, onde George continuava inconsciente, estirado na mesa.
Puxei-o sem muita delicadeza, coloquei-o no ombro, levei-o para a igreja em cima e lancei-o sem cerimônia atrás do púlpito, onde ficaria oculto de alguém que pudesse olhar casualmente pela porta principal, embora eu não pudesse imaginar porque alguém se daria ao trabalho de olhar naquela hora da noite. Abri a porta principal, olhei para fora, embora nada casualmente. A rua do canal estava deserta em ambas as direções.
Três minutos depois estacionei o táxi não muito longe da igreja. Entrei, encontrei George, arrastei-o pelos degraus, atravessei a rua e enfiei-o no assento traseiro. Ele imediatamente caiu do assento no piso e, como estava provavelmente mais seguro nessa posição, deixei-o ali, verifiquei rapidamente se alguém tomava interesse pelo que eu fazia e voltei ao interior da igreja.
Os bolsos do morto coisa alguma revelaram senão "dólares" de maconha de fabricação caseira, o que combinava bem com o fato de que ele obviamente estivera drogado até os olhos quando viera atrás de mim com a espingarda. Apanhei a espingarda com a mão esquerda, agarrei o morto pela gola do paletó — qualquer outra maneira de tirá-lo dali teria resultado num terno manchado de sangue e este era o único usável que eu possuía — e arrastei-o pelo porão e pelas escadas, fechando as portas e apagando as luzes enquanto caminhava.
Mais uma vez, fiz um reconhecimento cuidadoso da porta principal da igreja e da rua deserta. Arrastei o homem para o outro lado da rua e, sob a pequena cobertura proporcionada pelo táxi, arriei-o no canal tão silenciosamente como ele me teria sem dúvida atirado se tivesse sido um pouco mais hábil com a espingarda, que também atirei no canal ao seu lado. Voltei ao táxi e estava prestes a sentar-me no assento do motorista quando foi aberta a porta da casa contígua à igreja, aparecendo um homem, que olhou incerto em volta e dirigiu-se para onde eu me encontrava.
Era um tipo alto e corpulento, vestido no que me pareceu uma espécie de volumosa camisola com um roupão de banho por cima. Possuía uma cabeça bem impressionante, uma esplêndida cabeleira branca, bigode branco, feições sadias e rosadas e, naquele momento, um ar de benevolência ligeiramente confusa.
— Posso ajudá-lo em alguma coisa? — Possuía uma voz sonora e modulada de pessoa obviamente acostumada a ouvi-la muito. — Há algum problema?
— Por que haveria problema?
— Pensei ter ouvido um ruído vindo da igreja.
— A igreja? — Era minha vez de parecer confuso.
— Sim. Minha igreja. Ali. — Apontou para ela, na possibilidade de que eu não soubesse reconhecer uma igreja. — Eu sou o pastor. Goodbody. Dr. Thaddeus Goodbody. Pensei que algum intruso talvez estivesse rondando por aí...
— Eu não, Reverendo. Não entro numa igreja há anos. Ele inclinou a cabeça como se não estivesse absolutamente surpreso.
— Nós vivemos numa idade sem Deus. Isto é uma hora estranha para estar fora, jovem.
— Não, para um chofer de táxi trabalhando no turno da noite.
Ele fitou-me como quem não se convencera e espiou para o assento traseiro.
— Deus misericordioso. Há um corpo no chão do carro.
— Não há corpo nenhum no chão. Há um marinheiro bêbado e eu o estou levando ao navio. Ele caiu no chão há alguns segundos e parei para recolocá-lo no assento. Eu pensei — acrescentei virtuosamente — que seria a coisa cristã a fazer. Com um cadáver, eu não me importaria.
Meu apelo profissional de nada valeu. Num tom presumivelmente reservado para repreender os relapsos de seu rebanho, ele disse:
— Insisto em ver pessoalmente.
Firmemente, deu um passo à frente e firmemente eu o empurrei para trás.
— Não me faça perder minha licença. Por favor.
— Eu sabia! Eu sabia! Há algo de errado. Assim, eu posso fazer você perder sua licença?
— Sim. Se eu o lançar no canal, perderei minha licença. Se, isto é — acrescentei pensando no caso — o senhor conseguir voltar à tona.
— O quê! O canal! Eu? um homem de Deus? O senhor está-me ameaçando com violência?
— Estou.
O Dr. Goodbody recuou diversos passos rápidos.
— Eu lhe tirarei a licença. Eu o denunciarei...
A noite estava terminando e eu queria dormir um pouco antes da manhã. Subi no carro e afastei-me. Ele sacudiu o punho na minha direção de um modo que não dizia muito de seu conceito de amor fraternal e parecia pronunciar alguma veemente arenga, mas não pude ouvi-la. Perguntei-me se ele daria queixa à Polícia e achei que as possibilidades eram contra isso.
Eu estava ficando cansado de carregar George pelas escadas. É verdade que ele praticamente não pesava coisa alguma, mas com a falta de sono e de jantar, eu estava muito abaixo de minha melhor forma e, além disso, andava farto de viciados. Encontrei aberta a porta do pequeno apartamento de Astrid, o que seria de esperar se George tivesse sido a última pessoa a usá-la. Abri-a, acendi as luzes, passei pela moça adormecida e depositei-o na sua própria cama sem muita delicadeza. Acho que deve ter sido o ruído do colchão e não a brilhante luz que a acordou. De qualquer modo, ela sentou-se no sofá-cama e estava esfregando os olhos quando voltei ao quarto dela. Olhei-a no que esperei que fosse uma maneira indagadora e nada disse.
— Ele estava dormindo e eu fui dormir — disse ela defensivamente. — Ele deve ter-se levantado e saído novamente. — Quando tratei essa obra prima de dedução com o silêncio que merecia, ela continuou quase em desespero: — Eu não o ouvi sair. Não o ouvi. Onde o encontrou?
— Você nunca desconfiaria, tenho certeza. Numa garagem, sobre um realejo, tentando tirar a coberta. Não estava fazendo muito progresso.
Como fizera mais cedo naquela mesma noite, ela mergulhou a face nas mãos. Desta vez não chorava, embora eu receasse que seria apenas questão de tempo.
— O que é que há de tão perturbador sobre isso? — perguntei. — Ele tem muito interesse por realejos, não, Astrid? Eu gostaria de saber por quê. É curioso. Ele é, talvez, um tipo musical?
— Não. Sim. Desde criança...
— Oh, cale a boca. Se ele fosse um tipo musical, preferiria escutar uma broca pneumática. Há um motivo muito simples por que ele gosta tanto desses realejos. Muito simples... e você e eu sabemos o que é.
Ela fitou-me sem surpresa. Os olhos pareciam doentios de medo. Cansadamente, sentei-me à beira da cama e segurei-lhe ambas as mãos.
— Astrid?
— Sim?
— Você é uma mentirosa quase tão perfeita como eu. Você não foi procurar George porque você sabia muito bem onde ele se encontrava e sabe muito bem onde eu o encontrei, num local onde ele estava em perfeita segurança, num lugar onde a Polícia nunca o encontraria porque nunca pensaria em procurar ali pessoa alguma. — Suspirei. — Uma "puxada" não é uma picada, mas acho que é melhor do que nada.
Ela olhou-me com uma expressão apavorada e voltou a enterrar o rosto nas mãos. Os ombros sacudiram-se como eu sabia que se sacudiriam. Até que ponto eram obscuros os motivos que eu tinha, se é que tinha alguns, não sei, mas não podia ficar sentado ali sem estender pelo menos uma mão tentativamente confortador a. E,quando o fiz, ela fitou-me com olhos entorpecidos e lacrimosos, estendeu as mãos e soluçou amargamente no meu ombro. Eu estava ficando acostumado com esse tratamento em Amsterdam, mas ainda longe de conformado com ele e, assim, tentei afastar-lhe suavemente os braços, mas isto serviu apenas para que ela os apertasse mais. No momento, ela precisava agarrar-se a alguma coisa e eu, por acaso, estava ali. Aos poucos, os soluços diminuíram e ela ali ficou, com o rosto impotente e cheio de desespero, estriado de lágrimas.
— Não é tarde demais, Astrid — disse-lhe eu.
— Isso não é verdade. Você sabe tão bem como eu que foi tarde desde o início.
— Para George, sim. Mas você não compreende que estou tentando ajudá-la?
— De que modo me pode ajudar?
— Destruindo as pessoas que destruíram seu irmão. Destruindo as pessoas que a estão destruindo. Mas eu preciso de ajuda. No fim, todos nós precisaremos — você, eu, todo mundo. Ajude-me.. e eu a ajudarei. Eu lhe prometo, Astrid.
Eu não diria que o desespero em seu rosto foi substituído por alguma outra expressão, mas, pelo menos, pareceu tornar-se um pouco menos completo quando ela inclinou a cabeça uma ou duas vezes, sorriu fracamente e disse:
— Você parece muito competente em destruir pessoas.
— Você pode ter de ser, também — disse, e dei-lhe uma pequena arma, um Lilliput, cuja eficácia apoucava seu pequeno calibre 21.
Saí dez minutos depois. Ao chegar à rua, vi dois homens pobremente vestidos, sentados na soleira de uma porta quase em frente, conversando vivamente, mas não em voz alta e, assim, transferi a arma para o bolso e dirigi-me para o local onde eles se encontravam. A uns três metros, desviei-me, pois o cheiro acre de rum era tão forte que dava margem a pensar que eles não haviam estado tanto bebendo-o, como haviam emergido de um barril do melhor Demerara. Eu estava começando a ver fantasmas em cada trêmula sombra e precisava mesmo era de sono. Apanhei o táxi, voltei ao hotel e caí na cama.
Estranhamente o sol brilhava quando meu despertador portátil soou na manhã seguinte — ou na mesma manhã. Tomei um banho de chuveiro, barbeei-me, vesti-me, desci e tomei o desjejum no restaurante com tal efeito restaurador que consegui sorrir e dar um delicado bom dia ao gerente-assistente, ao porteiro, ao operador do realejo, nessa ordem. Do lado de fora do hotel, fiquei um ou dois minutos olhando vivamente em volta, com o ar de quem espera o aparecimento de sua sombra, mas parece que o desencorajamento era geral e pude seguir desacompanhado até o local onde deixara o táxi da Polícia na noite anterior. Mesmo que na claridade do dia eu tivesse deixado de procurar sombras, abri o capo apesar de tudo e descobri que ninguém havia colocado ali nenhuma máquina infernal durante a noite, dei partida e cheguei à Chefatura de Marnixstraat às dez horas exatamente, na hora prometida.
O coronel De Graaf, munido de um mandado de busca, esperava-me na rua. O mesmo acontecia com o inspetor Van Gelder. Ambos me cumprimentaram com a cortês discrição de pessoas que pensam que desperdiçam o tempo, mas são delicadas demais para dizê-lo, e conduziram-me a um carro da Polícia com chofer, muito mais luxuoso do que o que me haviam emprestado.
— Considera ainda desejável nossa visita a Morgenstern e Muggenthaler? — perguntou De Graaf. — E necessária?
— Agora mais do que nunca.
— Aconteceu alguma coisa? Para fazê-lo sentir-se assim?
— Não — menti. Bati na cabeça. — Eu sou psíquico às vezes.
De Graaf e Van Gelder entreolharam-se durante um momento.
— Psíquico? — perguntou De Graaf, atento.
— Tenho premonições.
Houve outra troca de olhares, indicando a opinião de ambos a respeito de policiais que operavam nessa base científica. Em seguida, De Graaf mudou circunspectamente de assunto, dizendo:
— Tenho oito policiais à paisana lá embaixo num caminhão comum coberto. Mas o senhor disse que não quer que seja dada realmente uma busca?
— Quero a busca, sim, ou melhor, quero dar a impressão de uma busca. O que quero, realmente, são as faturas com a lista dos fornecedores de artigos ao armazém.
— Espero que saiba o que está fazendo — disse Van Gelder. Ele parecia grave.
— O senhor tem esperança — respondi. — Como é que acha que eu me sinto?
Nenhum dos dois disse como achavam que eu me sentia e, como parecia que a conversação tomava uma direção desaconselhável, permanecemos calados até chegarmos ao nosso destino. Paramos do lado de fora do armazém, atrás de um caminhão coberto comum, descemos, o que fez também um homem de terno escuro, que saiu da boléia do veículo à espera e aproximou-se. A roupa civil não lhe servia muito como disfarce: eu poderia tê-lo identificado como um policial a cinqüenta metros.
— Estamos prontos, senhor — disse ele a De Graaf.
— Traga seu pessoal.
— Sim, senhor. — O policial apontou para cima. — O que acha daquilo, senhor?
Seguimos a direção do braço. Soprava um vento forte naquela manhã, nada de mais, mas o suficiente para dar um errático movimento de pêndulo a um objeto alegremente colorido, suspenso da vida de içamento na parte superior do armazém: balançava num arco de mais ou menos um metro e vinte e era, naquele ambiente, uma das coisas mais horrendas que eu já vira.
Indubitavelmente, era uma boneca, uma grande boneca por falar nisso, de mais de noventa centímetros e vestida, inevitavelmente, no usual, imaculado e bem cortado trajo típico holandês, com a longa saia de listras enfunada faceiramente ao vento, formalmente, fios ou cordas são usados nas roldanas das vigas de içamento, mas, neste caso, alguém resolvera usar uma corrente: a boneca estava presa à corrente, pelo que podia ser visto, mesmo naquela altura, por um gancho de feio aspecto, um gancho um pouco menor do que o pescoço que envolvia, tão menor que obviamente fora colocado à força em posição, pois o pescoço estava esmagado de um lado, de modo que a cabeça inclinava-se em um ângulo grotesco, quase tocando no ombro direito. Era, afinal de contas, apenas uma boneca mutilada, mas o efeito era horripilante a ponto de tornar-se obsceno. E, evidentemente, eu não era o único que assim pensava.
— Que espetáculo macabro! — De Graaf parecia chocado e dava essa impressão. — Para que serve aquilo, em nome de Deus? O que... o que se pretende com aquilo, qual a finalidade oculta? Que mente doentia poderia perpetrar uma torpeza... como aquela?
Van Gelder sacudiu a cabeça.
— Há mentes doentias em toda parte e Amsterdam tem uma boa cota delas. Uma namorada que dá o fora, uma sogra odiada...
— Sim, sim, estas são numerosas. Mas isto... isto é anormalidade a ponto de chegar à insanidade. Expressar sentimento dessa maneira horrível. — Olhou-me estranhamente, como se novos pensamentos lhe ocorressem a respeito da falta de finalidade desta visita. — Major Sherman, não lhe parece muito estranho...
— Sinto-me como o senhor. O tipo responsável por isso tem direito inalienável à primeira vaga no asilo de psicopatas. Mas não foi por isso que vim aqui.
— Naturalmente que não, naturalmente que não — De Graaf lançou um último e longo olhar à boneca pendente como se tivesse dificuldade em desviar a vista, fez um gesto abrupto com a cabeça e tomou a frente em direção ao armazém. Uma espécie de porteiro levou-nos ao segundo andar e, em seguida, ao escritório no canto, diferente da última vez em que o vira, pois desta vez a porta de fechadura de tempo estava hospitaleiramente aberta.
O escritório, em vivo contraste com o próprio armazém, era espaçoso, com poucos móveis, moderno, confortável, possuía belos tapetes e cortinas de diferentes tons de verde, e era equipado com uma cara e moderna mobília escandinava, mais apropriada a uma sala de estar luxuosa do que a um escritório da zona das docas. Dois homens, sentados em confortáveis cadeiras de braços, por trás de escrivaninhas com tampo de couro, levantaram-se cordialmente e nos levaram, a De Graaf, Van Gelder e a mim, para outras cadeiras de braços igualmente confortáveis enquanto permaneciam de pé. Fiquei satisfeito por terem assim procedido, pois podia examiná-los melhor e ambos eram, de certa maneira, muito parecidos e bem mereciam atenção. Mas não esperei mais de alguns minutos para desfrutar do calor da recepção cordial de ambos. Voltei-me para De Graaf:
— Esqueci uma coisa muito importante. É imperativo que eu visite imediatamente um amigo. — E era, realmente. Não tenho com freqüência esse sentimento de frio e chumbo no estômago, mas quando aparece, torno-me ansioso para tomar medidas corretivas com a menor demora possível.
De Graaf pareceu surpreso:
— Um assunto tão importante assim não poderia ter sido esquecido.
— Eu tenho outros assuntos que me preocupam. Isto acaba de ocorrer-me. — O que era verdade.
— Um telefonema, talvez...
— Não, não. Tem que ser pessoal.
— O senhor poderia dizer-me a natureza...
— Coronel De Graaf! — Ele inclinou a cabeça, compreendendo logo que eu, com toda probabilidade, não divulgaria segredos de Estado na presença dos proprietários de um armazém sobre o qual eu, obviamente, nutria sérias reservas. — Se eu pudesse tomar emprestado seu carro e motorista...
— Certamente — disse ele, sem nenhum entusiasmo.
— E se o senhor pudesse esperar aqui até que eu voltasse antes...
— O senhor pede demais, Sr. Sherman.
— Eu sei. Mas demorarei apenas dez minutos.
Foi mesmo questão de minutos. Mandei o motorista parar no primeiro café por onde passamos, entrei e usei o telefone público. Ouvi o som da discagem e senti os ombros caírem de alívio quando o aparelho no outro lado, passada a chamada pela telefonista do hotel, atendeu quase imediatamente. Falei:
— Maggie?
— Bom dia, major Sherman. — Sempre polida e meticulosa, tal era Maggie, e nunca me senti tão feliz em ouvi-la.
— Que bom que consegui alcançá-la! Eu estava com receio de que você e Belinda já tivessem saído... Ela não saiu, saiu? — Eu receava muitas outras coisas, mas esta não era a oportunidade de falar.
— Ela ainda está aqui — disse Maggie placidamente.
— Eu quero que vocês duas deixem esse hotel imediatamente. Quando eu digo imediatamente, quero dizer dez minutos. Cinco, se possível.
— Deixar? Quer dizer...
— Quero dizer, fazer as malas, pagar e nunca mais aproximar-se dele. Vão para outro hotel. Qualquer hotel... Não, sua idiota, o meu, não. Um hotel conveniente. Tomem tantos táxis quantos quiserem, mas certifiquem-se de que não foram seguidas. Telefone o número para o gabinete do coronel De Graaf, na Marnixstraat. Inverta o número.
— Inverter o número? — Maggie parecia chocada. —-Quer dizer que não confia também na Polícia?
— Eu não sei o que você quer dizer com esse "também", mas não confio em ninguém, ponto final. Uma vez registrada no hotel, vá procurar Astrid Lemay. Ela deverá estar em casa... você tem o endereço... ou no Balinova. Diga-lhe para ir com vocês para o hotel e que fique lá até que eu diga a ela que pode mudar-se.
— Mas o irmão...
— George pode ficar onde está. Ele não corre perigo. — Não consegui lembrar-me mais tarde se essa declaração foi o sexto ou o sétimo grande erro que cometi em Amsterdam. — Ela, sim. Se ela objetar, diga-lhe que vai, com ordem minha, dar queixa na Polícia contra George.
— Mas por que deveríamos ir à Polícia...
— Nenhum motivo. Mas ela não deve saber disso. Ela está tão apavorada que à mera menção da palavra "Polícia"...
— Isto é uma enorme crueldade — interrompeu Maggie severamente.
— Tolice! — berrei e bati com o fone no gancho.
Um minuto depois eu estava de volta ao armazém e, desta vez, tive tempo para uma inspeção mais cuidadosa dos dois proprietários. Ambos eram quase caricaturas da concepção estrangeira do morador típico de Amsterdam. Eram muito altos, muito gordos, rosados e de grandes bochechas que, na primeira curta apresentação, enrugaram-se em linhas de boa vontade e jovialidade, expressão esta agora visivelmente ausente em ambos. Evidentemente, De Graaf impacientara-se até mesmo com a minha curta ausência e começara a busca sem mim. Não o censurei e, em troca, ele teve o tato de não perguntar como eu me havia saído. Muggenthaler e Morgenstern continuavam quase nas idênticas posições em que eu os havia deixado, entreolhando-se consternados, confusos e sem entender coisa alguma. Muggenthaler, com um papel na mão, deixou-o cair para o lado num gesto de descrença total.
— Um mandado de busca. — A nota subjacente de emoção, sofrimento e tragédia teria tirado lágrimas de uma estátua. Tivesse ele metade da estatura, seria um ator nato para desempenhar o papel de Hamlet. — Um mandado de busca em Morgenstern e Muggenthaler! Durante cento e cinqüenta anos nossas duas famílias têm sido de comerciantes respeitados, não, honrados na cidade de Amsterdam. E agora, isto! — Estendeu a mão para trás e afundou numa cadeira no que pareceu uma espécie de estupor, caindo-lhe da mão o mandado. — Um mandado de busca!
— Um mandado de busca! — entoou Morgenstern. Ele, também, julgara necessário procurar uma cadeira de braço. — Um mandado de busca, Ernest. Um dia negro para Morgenstern e Muggenthaler! Meu Deus! Que vergonha! Que ignomínia! Um mandado de busca!
Muggenthaler fez um gesto de desespero com a mão frouxa.
— Continuem, procurem o que quiserem.
— Não quer saber o que estamos buscando? — perguntou De Graaf polidamente.
— Por que deveria querer? — Muggenthaler tentou mostrar uma momentânea indignação, mas estava abalado demais. — Em cento e cinqüenta anos...
— Ora, ora, cavalheiros — disse De Graaf, tranqüilizando-os — não levem isso tão a sério. Compreendo o choque que os senhores devem estar sentindo e, na minha opinião, trata-se. de uni rebate falso. Mas um pedido oficial foi feito e devemos dar-lhe cumprimento oficial. Temos informações de que os senhores obtiveram ilicitamente diamantes...
— Diamantes! — Muggenthaler encarou incrédulo o sócio. — Ouviu isso, Jan? Diamantes? — Sacudiu a cabeça e disse a De Graaf: — Se os encontrar, reserve alguns para mim, sim?
De Graaf ficou indiferente ao sarcasmo imbecil.
— E, mais importante, maquinaria de lapidação.
— Estamos empilhados até o teto com maquinaria de lapidação — disse sombriamente Morgenstern. — Procurem.
— E os arquivos das faturas?
— Qualquer coisa, qualquer coisa — respondeu Muggenthaler cansadamente.
— Muito obrigado pela cooperação. — De Graaf inclinou a cabeça para Van Gelder, que se ergueu e deixou a sala. De Graaf continuou em tom confidencial: — Peço desculpas, antecipadamente, pelo que é, tenho certeza, uma completa perda de tempo. Francamente, estou mais interessado naquela coisa horrível pendurada de uma corrente de sua viga de içamento. Uma boneca.
— Uma o quê? — indagou Muggenthaler. — Uma boneca. Das grandes.
— Uma boneca acorrentada. — Muggenthaler pareceu simultaneamente atônito e horrorizado, o que não é coisa fácil de conseguir-se. — Em frente de nosso armazém! Jan!
Não seria absolutamente exato dizermos que subimos correndo as escadas, porque Morgenstern e Muggenthaler não eram construídos de acordo com as proporções certas, mas, a despeito de tudo, fizemos excelente tempo. No terceiro andar, encontramos Van Gelder e sua gente trabalhando. A uma palavra de De Graaf, Van Gelder reuniu-se a nós. Eu nutria a esperança de que os homens não se esgotassem procurando, porque sabia que não encontrariam coisa alguma. Nunca descobririam o cheiro de maconha que havia impregnado aquele andar na noite anterior, embora eu não julgasse que o cheiro doentiamente doce de algum preparado para purificar o ar, à base de flores e que o substituía, constituísse na realidade um melhoramento. Mas a ocasião não parecia em absoluto ser apropriada para mencionar o fato a alguém.
A boneca, de costas para nós e com a cabeça morena repousando sobre o ombro direito, balançava ainda suavemente na brisa. Muggenthaler, apoiado por Morgenstern e, obviamente, não se sentindo muito feliz em sua precária posição, estendeu a mão com cautela, segurou a corrente imediatamente acima do gancho e puxou-a o bastante, não sem grande dificuldade, para tirar a boneca. Segurou-a nos braços, olhou-a fixamente durante longos momentos, sacudiu a cabeça e virou-se para Morgenstern.
— Jan, a pessoa que fez esta perversidade, que perpetrou esta mórbida pilhéria... deixa de trabalhar aqui hoje mesmo.
— Agora mesmo — corrigiu Morgenstern. Contorceu a face de repugnância, não para a boneca, mas para o que lhe haviam feito. — É uma boneca tão linda!
Morgenstern não exagerava absolutamente. Era realmente uma bela boneca e não apenas ou, na verdade, principalmente devido ao trajo muito bem cortado e modelado. A despeito de o pescoço ter sido quebrado e cruelmente perfurado pelo gancho, a face em si era fascinantemente bela, um trabalho de grande habilidade artística, no qual o cabelo preto, os olhos castanhos e a cor da pele combinavam-se sutilmente. As feições delicadas haviam sido tão refinadamente esculpidas que era difícil acreditar que ali havia o rosto de uma boneca, e não de um ser humano, com existência e personalidade próprias. Nem tampouco era eu a única pessoa a assim pensar.
De Graaf tomou a boneca de Muggenthaler e examinou-a atentamente.
— Belo! — murmurou. — Que beleza! E como é real, viva! Isto vive. — Lançou um olhar a Muggenthaler. — Tem idéia de quem fez esta boneca?
— Nunca vi uma delas antes. Não é uma das nossas, tenho certeza, mas o capataz é a pessoa a quem precisamos perguntar. Mas sei que não é nossa.
— E este refinado colorido — disse De Graaf, meditativo. — Tão certo para o rosto, tão perfeito! Nenhum homem poderia ter criado isto da própria imaginação. Não há dúvida de que o autor deve ter trabalhado com um modelo vivo, com alguém que conheceu. Não diria isso também, inspetor?
— Não poderia ter sido feita de outra maneira — concordou Van Gelder sem reservas.
— Eu tenho quase a impressão — continuou De Graaf — de que vi este rosto antes. Alguns dos senhores conheceu uma moça assim?
Sacudimos nossas cabeças devagar e ninguém mais vagarosamente do que eu. A velha sensação plúmbea voltara ao estômago, embora desta vez o chumbo estivesse envolvido numa grossa camada de gelo. Não era apenas que a boneca exibisse uma alarmante semelhança com Astrid Lemay: era tão viva, era Astrid Lemay!
Quinze minutos após ter uma exaustiva busca resultado num previsível fracasso, De Graaf despediu-se de Muggenthaler e Morgenstern nos degraus do armazém, enquanto Van Gelder e eu ficávamos de lado. Muggenthaler voltara à sua maneira radiante enquanto Morgenstern, ao seu lado, sorria com condescendente satisfação. De Graaf apertou-lhes calorosamente as mãos.
— Mais uma vez, mil desculpas. — De Graaf quase exagerava. — Nossa informação foi mais ou menos tão exata como costuma ser, nestes casos. O registro desta visita será apagado de nossos livros. — Abriu-se num sorriso. — As faturas serão devolvidas logo que certas partes interessadas verificarem que não conseguirão encontrar os vários fornecedores ilícitos de diamantes que esperavam. Bom dia, senhores.
Van Gelder e eu nos despedimos por nossa vez. Apertei a mão de Morgenstern com um calor especial e refleti que era bom que lhe faltasse o dom de ler os pensamentos e que tivesse a boa sorte de chegar a este mundo sem a capacidade inata de sentir quando a morte e o perigo o rondavam. Isto porque Morgenstern fora o homem que estivera no cabaré Balinova na última noite e que havia sido o primeiro a sair depois de Maggie e Belinda terem ganho a rua.
Voltamos a Marnixstraat em parcial silêncio. Com isto, quero dizer que De Graaf e Van Gelder falaram livremente, mas que eu, não. Eles pareciam muito mais interessados no curioso incidente da boneca quebrada do que no motivo ostensivo de nossa visita ao armazém, o que, com toda probabilidade, demonstrava com grande prazer o que pensavam da razão ostensiva. E como não quis interrompê-los para dizer que eles observavam as prioridades certas, conservei-me silencioso. De volta ao gabinete, De Graaf perguntou:
— Café? Temos uma moça aqui que faz o melhor café de Amsterdam.
— Um prazer que terá que ser adiado. Lamento, mas estou com muita pressa.
— Tem alguns planos? Um curso de ação, talvez?
— Nem uma coisa nem outra. Quero deitar-me numa cama e pensar.
— Então, por que...
— Por que, para começar, vim até aqui? Dois pequenos pedidos. Descubra, por favor, se chegou algum recado telefônico para mim.
— Recado?
— Da pessoa que tive de ir visitar quando estivemos no armazém. — Eu me encontrava numa situação tal que já não sabia lá muito bem se estava dizendo a verdade ou uma mentira.
De Graaf inclinou a cabeça, apanhou o telefone, falou durante alguns momentos, escreveu uma longa linha de letras e números e estendeu-me o papel. As letras não formavam sentido: os números, invertidos, seriam o número de telefone das moças. Coloquei o papel no bolso.
— Muito obrigado. Terei que decifrar isto.
— E o segundo pequeno pedido?
— Podia emprestar-me um binóculo?
— Um binóculo?
— Eu gostaria de fazer algumas observações sobre os hábitos das aves — expliquei.
— Naturalmente — disse Van Gelder, sombrio. — O senhor deve recordar-se, major Sherman, de que se espera que cooperemos ativamente.
— Bem?
— O senhor não está sendo, se me permite, muito comunicativo.
— Eu me comunicarei com o senhor quando tiver alguma coisa que valha a pena comunicar. Não se esqueça de que o senhor está trabalhando nisto há mais de um ano. Eu estou aqui há menos de dois dias. Como disse, preciso deitar-me e pensar.
Não fui deitar-me nem pensar. Dirigi-me a uma cabina telefônica que julguei estar a uma distância conveniente da Chefatura de Polícia, e disquei o número que De Graaf me havia dado.
Do outro lado da linha uma voz respondeu:
— Hotel Touring.
Eu o conhecia, mas nunca havia entrado nele: não era o tipo de hotel de acordo com a minha verba de representação, mas era o tipo que eu teria escolhido para as duas moças.
— Meu nome é Sherman — disse. — Paul Sherman. Acho que duas moças se hospedaram aí hoje pela manhã. Poderia falar com elas, por favor?
— Sinto muito, mas não estão, no momento. — Não havia motivo de preocupação. Se não estivessem fora, localizando ou tentando localizar Astrid Lemay, estariam cumprindo a missão que eu lhes dera nas primeiras horas da manhã. A voz na outra extremidade previu minha pergunta seguinte: — Deixaram um recado para o senhor. Devo dizer que não conseguiram localizar a amiga mútua e que agora estão procurando outras. Receio que o recado seja um pouco vago, senhor.
Agradeci-lhe e desliguei. "Ajude-me", eu dissera a Astrid, "e eu a ajudarei". Estava parecendo que eu a estava mesmo ajudando, ajudando-a a ser lançada no canal mais próximo ou num caixão de defunto. Tomei o táxi da Polícia e fiz um bocado de inimigos na breve jornada até a área muito modesta que bordejava a Rembrandtplein.
A porta do apartamento de Astrid estava fechada mas eu ainda possuía o estojo de ferramentas ilegais em volta da cintura. No lado de dentro, o apartamento parecia o mesmo que eu vira antes, arrumado, limpo e esquálido. Não havia sinais de violência nem de partida apressada. Examinei as poucas gavetas e armários que havia e pareceram-me muito poucas as roupas. Mas, como Astrid havia observado, eles eram muito pobres e isto provavelmente não significava coisa alguma. Procurei em toda parte no pequeno apartamento alguma espécie de mensagem que poderia ter sido deixada, mas se fora não consegui encontrá-la. E não acreditava que tivesse sido. Fechei a porta e dirigi-me até o cabaré Balinova.
Para um cabaré, aquela hora era matutina demais e as portas se encontravam fechadas, como seria de esperar. Eram fortes e não foram abaladas pelos murros e pontapés que lhes dei, o que, por sorte, foi mais do que eu poderia dizer, pois alguém, cujo sono eu devia ter tão irritadamente perturbado, fez girar uma chave e abriu uma fresta. Enfiei o pé na abertura e abri-a mais um pouco, o suficiente para ver a cabeça e os ombros de uma loura desbotada que, modestamente, segurava um agasalho alto em volta da garganta. Considerando-se que a última vez em que a vira ela estivera com uma camada transparente de bolhas de sabão, pensei que aquilo era exagerar um pouco.
— Eu gostaria de falar com o gerente, por favor.
— Nós só abrimos às seis horas.
— Eu não quero reserva nem emprego. Quero conversar com o gerente. Agora.
— Ele não está aqui.
— Então, é assim. Espero que seu próximo emprego seja tão bom como este.
— Não estou compreendendo. — Não era de espantar que a iluminação tivesse sido tão mortiça na noite passada no Balinova. À luz do dia, aquele rosto cor de ocre teria esvaziado o local da mesma forma que o aviso de que um dos fregueses estava com a peste bubônica. — O que é que o senhor quer dizer com isso sobre meu emprego?
Baixei a voz, o que se precisa fazer quando se fala com solene gravidade:
— Simplesmente que não terá mais emprego se o gerente descobrir que vim aqui tratar de um assunto da mais alta urgência e que você se recusou a deixar-me entrar.
Ela olhou-me hesitante e disse:
— Espere aqui. — Tentou fechar a porta, mas eu era muito mais forte do que ela e, após um momento, desistiu e afastou-se. Voltou dentro de trinta segundos acompanhada por um homem ainda em trajo de noite.
Não gostei absolutamente dele. Como a maioria das pessoas, não gosto de serpentes e eram elas que esse homem me lembrava irresistivelmente. Era muito alto, muito magro e movia-se com sinuosa graça. Efeminadamente elegante e rebuscado, tinha a cor doentia das criaturas da noite. Possuía rosto de alabastro, feições macias, lábios inexistentes; o cabelo preto, partido no meio, colava-se ao crânio. O trajo de rigor fora elegantemente cortado, mas ele não possuía um alfaiate tão bom como eu: o volume sob a axila esquerda era claramente visível. Segurava uma cigarreira de jade numa mão magra, branca, perfeitamente manicurada e, no rosto, tinha uma expressão, com toda probabilidade, permanente de divertimento tranqüilamente desdenhoso. O olhar dele era desculpa suficiente para esmurrá-lo. Ele soprou uma fina coluna de fumaça do cigarro para cima.
— O que quer dizer tudo isto, meu querido amigo? — Parecia francês ou italiano, mas não era. Era inglês. — Como sabe, a casa está fechada.
— Está aberta agora — observei. — O senhor é o gerente?
— O representante do gerente. Se quiser voltar mais tarde... — soprou um pouco mais da detestável fumaça —... muito mais tarde, então, veremos...
— Eu sou um advogado inglês e tenho negócios urgentes. — Entreguei-lhe um cartão que dizia que eu era um advogado inglês. — É essencial que eu fale imediatamente com o gerente. Há muito dinheiro em jogo.
Se fosse possível dizer que uma expressão como a dele podia suavizar-se, então isto ocorreu, embora seja preciso olho vivo para notar a diferença.
— Não prometo nada, Sr. Harrison. — Tal era o nome constante do cartão. — Será preciso convencer o Sr. Durrell a recebê-lo.
Afastou-se como um dançarino de ballet em dia de folga e voltou em questão de momentos. Fez-me uma inclinação de cabeça e afastou-se para o lado para que eu o precedesse pelo comprido e mal iluminado corredor, um arranjo de que não gostei, mas tive que tolerar. Ao fim do corredor, uma porta abria para uma sala brilhantemente iluminada. Parecia que eu devia entrar sem bater e foi justamente o que fiz. Notei, de passagem, que a porta era do tipo que o gerente das caixas fortes — se existir tal indivíduo — do Banco da Inglaterra rejeitaria como sendo excessiva para as especificações.
O interior da sala parecia-se extremamente com a própria caixa forte. Dois grandes cofres, bastante altos para neles caber um homem em pé, encaixavam-se em uma das paredes. A outra parede era reservada a uma bateria de arquivos de metal do tipo de guarda-bagagem, comumente encontrados nas estações de estradas de ferro. As duas outras paredes talvez não tivessem janelas, mas isso era impossível de verificar, pois estavam inteiramente cobertas por cortinas carmesim e violeta.
O homem sentado por trás da grande escrivaninha de mogno não se parecia em absoluto com um gerente de banco pelo menos com um banqueiro inglês, que tipicamente tem um ar de gente amante do ar livre devido à queda pelo golfe e às curtas horas passadas atrás da mesa. O homem era pálido, tinha talvez uns quarenta quilos de excesso de peso, graxento, rosto oleoso e olhos amarelados, injetados de sangue. Usava um terno azul bem cortado de alpaca e grande número de anéis em ambas as mãos. O sorriso de boas-vindas não combinava absolutamente com ele.
— Sr. Harrison? — Não tentou levantar-se. Provavelmente a experiência havia-o convencido de que o esforço não valia a pena. — Prazer em conhecê-lo. Meu nome é Durrell.
Talvez fosse, mas não era o nome de nascença. Pensei que fosse armênio, mas não podia ter certeza. Mas cumprimentei-o com civilidade como se seu nome fosse mesmo Durrell.
— O senhor tem negócios a discutir comigo? — perguntou radiante. O Sr. Durrell era vivo e sabia que advogados não fazem a viagem da distante Inglaterra sem assuntos de grande importância, invariavelmente financeiros, para discutir.
— Bem, na verdade, não com o senhor. Com um de seus empregados.
O sorriso de boas-vindas foi posto na geladeira.
— Com um de meus empregados?
— Sim.
— Então por que veio incomodar-me?
— Porque não pude encontrá-la no endereço residencial. Fui informado de que ela trabalha aqui.
— Ela?
— Chama-se Astrid Lemay.
— Ora, muito bem. — Ficou subitamente mais razoável, como se quisesse ajudar. — Astrid Lemay? Trabalhando aqui? — Contraiu pensativo as sobrancelhas. — Nós temos muitas moças aqui, naturalmente... Mas, esse nome? — Sacudiu a cabeça.
— Mas foram amigos dela que me disseram — protestei.
— Deve ter havido algum engano. Marcel?
A desprezível criatura sorriu seu sorriso desdenhoso.
— Não temos ninguém com esse nome aqui.
— Trabalhou por acaso aqui?
Marcel encolheu os ombros, tirou uma pasta de um arquivo ;e colocou-a sobre a escrivaninha, fazendo-me um sinal.
— Temos aqui retratos de todas as moças que trabalham jiqui, ou trabalharam no ano passado. Examine o senhor mesmo.
Não me dei ao trabalho de olhar. Respondi:
— Então, fui mal informado. Desculpe-me tê-lo incomodado.
— Sugiro que tente outros cabarés. — Durrel, como o magnata típico, já tomava notas numa folha de papel, indicando que a entrevista terminara. — Bom dia, Sr. Harrison.
Marcel já se dirigia à porta. Segui-o. Ao atravessar a soleira, voltei-me e sorri com ar de desculpas.
— Sinto realmente...
— Bom dia. — Ele nem se preocupou em levantar a cabeça. Prolonguei o sorriso incerto e, em seguida, cortesmente fechei a porta às minhas costas. Parecia uma boa e sólida porta, à prova de som.
Marcel, já no corredor, endereçou-me mais uma vez seu amável sorriso e, nem mesmo condescendendo a falar, indicou desdenhosamente que eu devia precedê-lo. Inclinei a cabeça jje, enquanto passava por ele, esmurrei-o no estômago com uma considerável satisfação e muita forma e, embora julgasse aquilo suficiente, atingi-o novamente, desta vez no lado do pescoço. Saquei minha arma, atarraxei o silenciador, segurei o caído Marcel pela gola do paletó e puxei-o para a porta do gabinete, que abri de arma na mão.
Durrell levantou a vista. Os seus olhos se arregalaram tanto quanto olhos podem quando estão quase sepultados sob camadas de gordura. O rosto tornou-se muito imóvel, como ocorre quando seus donos querem esconder pensamentos ou intenções.
—. Não faça isso — disse eu. — Não faça nenhuma das coisas sabidas habituais. Não estenda a mão para um botão, não aperte alarmas no chão e, por favor, não seja tão ingênuo a ponto de puxar a arma que provavelmente guarda na gaveta superior direita, desde que você é destro.
Ele não fez nenhuma dessas coisas sabidas habituais.
— Recue a cadeira uns sessenta centímetros.
Ele recuou sessenta centímetros. Deixei Marcel cair no chão, estendi a mão para trás, puxei a porta, virei a chave complicada na fechadura e coloquei-a no bolso.
— Levante-se — disse-lhe.
Durrell levantou-se. Ele mal passava de um metro e cinqüenta. Fisicamente, parecia uma rã. Inclinei a cabeça para o maior dos dois cofres.
— Abra-o.
— Ah, então é isso. — Ele era bom com o rosto, mas não tão bom com a voz. Não conseguiu evitar que uma pequena nota de alívio se insinuasse nas palavras. — Assalto à mão armada, Sr. Harrison?
— Venha até aqui — ordenei. Ele veio. — Sabe quem eu sou?
— Quem é o senhor? — Uma expressão de perplexidade.
— O senhor acaba de dizer-me...
— Que meu nome é Harrison. Quem sou eu? — Não compreendo.
Ele guinchou de dor e levou um dedo ao corte já sangrento deixado pelo silenciador do meu revólver.
— Quem sou eu?
— Sherman. — Havia ódio nos olhos e na voz grossa.
— Interpol.
— Abra aquela porta.
— Impossível. Eu tenho apenas metade da combinação. Marcel tem...
O segundo guincho foi mais alto e o corte no outro lado relativamente maior.
— Abra aquela porta.
Ele mexeu na combinação e abriu a porta. O cofre tinha mais ou menos 40 polegadas quadradas, de tamanho suficiente para guardar um bom número de guilders, mas, se todas as histórias sobre o Balinova eram verdadeiras, histórias sussurradas sombriamente a respeito de salas de jogo, espetáculos muito mais interessantes no porão e venda movimentada a retalho de itens geralmente não encontrados em lojas retalhistas, então o tamanho mal era adequado.
Indiquei Marcel com um movimento de cabeça.
— O garoto aqui. Empurre-o lá para dentro.
— Lá para dentro? — Ele pareceu horrorizado.
— Eu não quero que ele interrompa nossa discussão. — Discussão?
— Abra a porta.
— Ele vai ficar sufocado. Dez minutos e...
— Na próxima vez em que eu pedir, farei isto depois de meter uma bala na sua rótula para que você nunca mais ande sem bengala. Acredita?
Ele acreditou. A menos que se seja um completo idiota, e Durrell não era, pode-se sempre saber quando um homem fala sério. Ele arrastou Marcel para o lado de dentro do cofre, com toda probabilidade o trabalho mais árduo que fizera em anos, porque teve de curvar-se e empurrar um bocado antes de acomodá-lo no pequeno assoalho de modo a poder fechar a porta. A porta foi fechada.
Revistei-o. Não tinha armas ofensivas. A gaveta superior direita continha, como esperado, uma grande automática de tipo desconhecido para mim, o que não era estranho, desde que não sou muito bom com armas, exceto quando faço pontaria e atiro.
— Astrid Lemay — disse eu. — Trabalha aqui.
— Trabalha aqui.
— Onde está ela?
— Não sei. Juro por Deus que não sei. — A última frase foi quase um grito, pois eu havia levantado novamente a arma.
— Poderia descobrir?
— Como é que poderia?
— A sua ignorância e discrição fazem-lhe crédito — disse eu. — Mas baseiam-se no medo. Medo de alguém, de alguma coisa. Mas você começará a saber de mais coisas e a falar quando aprender a temer ainda mais outra coisa. Abra aquele cofre.
Ele abriu-o. Marcel estava ainda inconsciente.
— Entre.
— Não. — A única palavra saiu-lhe da garganta como um grito rouco. — Eu lhe- digo, é a prova de ar, hermeticamente fechado. Nós dois ali... morreríamos em questão de minutos.
— Você morrerá em segundos se não entrar.
Ele entrou. Tremia agora. Quem quer que ele fosse, não era um dos cabeças: quem quer que dirigisse a quadrilha das drogas era um homem — ou homens — de uma dureza e implacabilidade absolutas e aquele homem não possuía nenhuma dessas características.
Passei os cinco minutos seguintes examinando sem proveito as gavetas e arquivos. Tudo o que eu examinava parecia ligado de uma maneira ou outra a algum negócio legítimo, o que fazia sentido, pois Durrell, com toda probabilidade, não guardaria documentos de natureza mais incriminadora num local onde o faxineiro podia vê-los. Cinco minutos depois, abri o cofre.
Durrell estivera enganado sobre o volume de ar respirável naquele cofre. Calculara com otimismo. Estava semidesmaiado, com os joelhos sobre as costas de Marcel e, por sorte, este ainda estava inconsciente. Pelo menos assim pensei. Não me dei ao trabalho de verificar. Agarrei Durrell pelo ombro e puxei-o. Foi parecido como puxar um alce de um pântano, mas ele saiu por fim e rolou pelo assoalho. Ficou ali estirado durante algum tempo e, em seguida, pôs-se estonteado de joelhos. Esperei pacientemente até que o acesso de tosse caísse para um mero estertor e sua pele passasse por todas as cores do espectro, do azul-violeta para o que teria sido um sadio rosado se eu não tivesse sabido que sua cor normal parecia mais com a cor de um jornal velho. Cutuquei-o para indicar que ele devia levantar-se, o que conseguiu fazer após algumas tentativas.
— Astrid Lemay? — perguntei.
— Ela esteve aqui esta manhã. — A voz saiu como um sussurro áspero, mas ainda assim compreensível. — Disse que haviam surgido problemas urgentes de família. Tinha que sair do país.
— Sozinha?
— Não, com o irmão.
— Ele esteve aqui?
— Não.
— Para onde ela disse que ia?
— Atenas. Ela é de lá.
— Veio aqui para dizer-lhe somente isso?
— Ela tinha dois meses de salário em atraso. Precisava deles para a viagem.
Disse-lhe para. voltar ao cofre. Tive uma pequena dificuldade, mas ele por fim chegou à conclusão de que o cofre lhe oferecia melhor oportunidade do que uma bala e entrou. Eu não queria aterrorizá-lo mais. Queria apenas que ele não ouvisse o que eu ia dizer.
Falei com o aeroporto de Schiphol numa linha direta e finalmente consegui ligação com a pessoa que queria.
— Inspetor Van Gelder, Chefatura de Polícia aqui — disse. — Um vôo para Atenas esta manhã. Provavelmente, KLM. Quero verificar se duas pessoas chamadas Astrid Lemay e George Lemay embarcaram. As descrições das mesmas são as seguintes... O quê?
A voz no outro lado disse que estavam a bordo. Houvera alguma dificuldade, aparentemente, sobre o embarque de George desde que seu estado era tal que as autoridades médicas e policiais do aeroporto ficaram em dúvida sobre o acerto da viagem, mas haviam prevalecido as súplicas da moça. Agradeci ao meu informante e desliguei.
Abri a porta do cofre. Não ficara fechado mais do que uns dois minutos desta vez e eu não esperava encontrá-los em estado muito ruim. Não estavam. Durrell tinha uma cor meramente castanho-avermelhada. Marcel não apenas recobrara a consciência, mas o fizera a ponto de tentar sacar a arma sob a axila, que descuidadamente eu esquecera de remover. Enquanto lhe tomava a arma antes que ele pudesse ferir-se com ela, pensei que Marcel devia possuir notáveis poderes de recuperação. Eu me lembraria disso com profundo aborrecimento dentro de uns dois dias muito inauspiciosos para mim.
Deixei-os sentados no chão e, como não parecia haver coisa alguma de útil a dizer, nenhum de nós disse. Girei a chave na fechadura, abri a porta, fechei-a atrás de mim, sorri agradavelmente para a loura desbotada e lancei a chave pela grade da sarjeta em frente ao Balinova. Mesmo que não houvesse uma chave sobressalente, havia ainda telefones e campainhas de alarma em funcionamento dentro da sala e um maçarico de oxiacetileno poderia abrir a porta dentro de duas ou três horas. Mas isto não parecia lá muito importante, de qualquer maneira.
Voltei ao apartamento de Astrid e fiz o que devia ter feito em primeiro lugar — perguntei a alguns dos vizinhos imediatos se a haviam visto naquela manhã. Duas pessoas haviam e as histórias combinavam. Astrid, George e duas ou três malas haviam saído duas horas antes de taxi.
Astrid fugira e eu me senti um pouco triste e vazio, não porque ela dissera que me ajudaria e roera a corda, mas porque havia fechado a última rota de fuga que lhe restava.
Os seus patrões não a haviam assassinado por dois motivos. Sabiam que eu podia vinculá-los à morte dela e isto seria chegar perto demais das bases. E não teriam que fazê-lo porque ela fora embora e não mais constituía perigo para eles: o medo, se bastante grande, pode selar lábios com tanta eficácia como a morte.
Eu gostava dela e gostaria de tê-la visto feliz novamente. Não podia censurá-la. Para ela, todas as portas haviam sido fechadas.
A paisagem vista do cimo do altaneiro Havengebrouw, o arranha-céu da área do porto, é sem dúvida alguma a melhor de Amsterdam. Mas eu não estava interessado na paisagem naquela manhã, mas tão-somente nas facilidades oferecidas por essa posição vantajosa. O sol brilhava, mas havia muito vento e bastante frio naquela altitude e mesmo ao nível do mar o vento era suficientemente forte para encrespar as águas azul-acinzentadas e transformá-las em desenhos mutáveis, irregulares, de cavalos brancos.
Turistas, na maior parte de capuzes, binóculos e câmaras, congestionavam a plataforma de observação e, embora eu não levasse máquina fotográfica, acho que não parecia diferente dos demais. Diferente era apenas minha finalidade ali.
Inclinei-me sobre os cotovelos e olhei para o mar. De Graaf havia-me tornado orgulhoso do binóculo, tão bom como o melhor que já tivera nas mãos e, com a visibilidade quase perfeita daquele dia, a nitidez era tudo o que eu poderia ter desejado.
Focalizei as lentes num navio costeiro de mais ou menos mil toneladas que descrevia naquele momento a curva de entrada no porto. Logo que o fixei nas lentes, vi grandes manchas de ferrugem no casco e o pavilhão da Bélgica. E a ocasião, pouco depois do meio-dia, era apropriada. Segui-lhe o curso e pareceu-me que ele abria um círculo mais amplo do que os dois barcos que o haviam precedido e aproximava-se muito das bóias que balizavam o canal. Mas talvez aí estivessem as águas mais profundas.
Segui-o até aproximar-se do ancoradouro e li o nome arranhado no casco enferrujado, Marianne. O comandante era certamente um fanático da pontualidade, mas se era também fanático da lei constituía outra questão.
Dirigi-me até o Havenrestaurant e almocei. Não sentia fome, mas as horas de refeições em Amsterdam, segundo minha experiência desde a chegada, tendiam a ser irregulares e raras. A comida do Havenrestaurant é elogiada e não tenho dúvida de que merece a reputação que tem. Mas não me lembro do que almocei naquele dia.
Cheguei à uma e meia ao Hotel Touring. Não esperava realmente que Maggie e Belinda tivessem voltado, e não haviam mesmo. Disse ao recepcionista que esperaria na sala de estar, mas não gostava muito desses locais enfeitados, em especial quando precisava estudar documentos como os que havíamos retirado da Morgenstern e Muggenthaler. Esperei, assim, até a recepção ficar deserta durante um momento, tomei o elevador até o quarto andar e entrei no quarto das moças. Era ligeiramente melhor do que o outro e o sofá, que experimentei logo, um pouco mais macio, não havia nele espaço suficiente para Maggie e Belinda darem cambalhotas de alegria, à parte o fato de que a primeira cambalhota, em qualquer direção, as teria lançado contra uma sólida parede.
Deitado no sofá durante uma hora, examinei as faturas do armazém. Verifiquei que era uma lista sem nada de excitante e muito inocente. Mas havia um nome entre todos os demais que aparecia com surpreendente freqüência e, como seus produtos combinavam com a linha de minhas crescentes suspeitas, tomei uma nota do nome e localização no mapa.
Uma chave girou na fechadura e Maggie e Belinda entraram. A primeira reação de ambas ao me verem foi de alívio, seguida logo depois de um ar inegável de aborrecimento. Humildemente, eu disse:
— Alguma coisa de novo?
— Você nos preocupou — respondeu Maggie em tom frio. — O rapaz da recepção disse que nos esperava na sala de estar e você não estava lá.
— Nós esperamos meia hora. — Belinda mostrava-se quase amarga a respeito do caso. — Pensamos que você havia ido embora.
— Eu estava cansado. Agora que me desculpei, como foi a manhã de vocês?
— Bem... — Maggie não parecia apaziguada — não tivemos sorte com Astrid...
— Eu sei. O moço da recepção deu-me o recado de vocês, podemos deixar de preocupar-nos com ela. Foi embora.
— Embora? — perguntaram.
— Deixou o país.
— Deixou o país? — Atenas.
— Atenas?
— Ouçam aqui — disse eu. — Vamos deixar esse ato i|le teatro de variedades para depois. Ela e George partiram de Schiphol esta manhã.
— Por quê? — perguntou Belinda.
— Medo. Os homens maus a imprensavam de um lado e os bons do outro. Assim, ela escapuliu.
— Como é que você sabe que ela foi embora? — indagou Maggie.
— Uma pessoa no Balinova informou-me. — Não entrei em detalhes, e, se tinham algumas ilusões sobre o chefe bon-zinho que possuíam, queria que as conservassem. — E conferi com o aeroporto.
— Hummm. — Maggie não se deixou impressionar pelo meu trabalho vespertino, parecia acreditar que Astrid fora 'embora por culpa minha e, como sempre, tinha razão. — Bem, Belinda ou eu em primeiro lugar?
— Isto, em primeiro lugar. — Entreguei-lhe um papel com o número 910020 escrito em cima. — O que é que isso significa?
Maggie examinou-o, virou-o de cabeça para baixo e retribuiu o olhar.
— Nada — disse.
— Deixe-me vê-lo — disse Belinda com ar inteligente. — Eu sou boa em anagramas e palavras cruzadas. — Era mesmo. Quase imediatamente, disse: — Inverta-o. 020019. Duas da manhã do dia 19, isto é, amanhã de manhã.
— Nada mal — respondi indulgentemente. Custara-me meia hora para descobrir isso.
— O que é que vai acontecer nessa ocasião? — perguntou Maggie, desconfiada.
— Quem quer que tenha escrito esse número, esqueceu-se de explicar — respondi evasivamente, pois estava cansado de dizer mentiras diretas. — Bem, Maggie, você.
— Bem. — Sentou-se, alisou o vestido de algodão verde-laranja, que parecia ter encolhido muito com as repetidas lavagens. — Botei este vestido novo para ir ao parque porque Trudi não o havia visto antes. Estava ventando muito, coloquei um xale na cabeça e...
— E óculos escuros.
— Certo — Maggie não era moça de perder facilmente o rebolado. — Andei ao léu durante uma meia hora, evitando soldados aposentados e carrinhos de criança a maior parte do tempo. Vi-a então — ou, melhor, vi a enorme, gorda... velha...
— Bruxa?
— Bruxa. Vestida como você disse que estaria. Vi depois Trudi. Vestido de algodão branco de mangas compridas, não podia ficar quieta, corria como um cordeirinho. — Fez uma pausa e disse, pensativa: — Ela é realmente uma bela moça.
— Você tem uma alma generosa, Maggie. Maggie percebeu a insinuação.
— Finalmente, sentaram-se num banco. Sentei-me em outro a uns trinta metros, espiando sobre a borda superior de uma revista. Uma revista holandesa.
— Um belo toque — disse eu com aprovação.
— Em seguida, Trudi começou a fazer trancas no cabelo da boneca.
— Que boneca?
— A boneca que levava — respondeu Maggie, paciente. — Se continuar a interromper-me, será difícil lembrar todos os detalhes. Enquanto fazia isso, um homem aproximou-se e sentou-se ao lado dela. Um homem alto de terno escuro, com colarinho de padre, bigode branco, cabelo branco maravilhoso. Parecia um homem muito bom.
— Tenho certeza de que é — respondi mecanicamente. Eu podia bem imaginar o Reverendo Thaddeus Goodbody como homem de encanto completo, exceto, talvez, às três e meia da manhã.
— Trudi parecia gostar muito dele. Após um minuto ou dois, ela passou o braço pelo pescoço dele e murmurou-lhe alguma coisa no ouvido. Ele fez uma grande exibição de estar chocado, mas podia-se ver que não estava realmente, pois enfiou a mão no bolso e colocou algo na mão dela. Dinheiro, acho. — Eu estava a ponto de perguntar se estava certa de que não era uma seringa hipodérmica, mas Maggie era boa demais para isso. — Ela levantou-se em seguida, ainda levando a boneca, e correu para a carrocinha de sorvete. Comprou uma casquinha de sorvete... e veio na minha direção.
— Você afastou-se?
— Levantei mais a revista — disse Maggie com dignidade. — Não precisava ter-me preocupado. Passou por mim em direção a outro caminhão coberto, parado a uns vinte metros de distância.
— Para admirar as bonecas?
— Como é que soube? — Maggie parecia desapontada.
— Parece que um em cada dois caminhões cobertos em Amsterdam vende bonecas.
— Foi isso o que ela fez. Segurou-as com a mão, acariciou-as. O velho encarregado tentou parecer zangado, mas quem pode ficar zangado com uma moça como aquela? Ela deu a volta em torno do caminhão e voltou ao banco. E continuou a oferecer a casquinha de sorvete à boneca.
— E não pareceu aborrecida quando a boneca não quis. O que é que faziam, entrementes, a velha e o pastor?
— Conversavam. Pareciam ter muitas coisas a conversar. Trudi voltou, conversaram um pouco mais, o pastor deu uma palmadinha nas costas de Trudi, levantaram-se, ele tirou o chapéu para a velha moça, como você a chama, e foram todos embora.
— Uma cena idílica. Foram embora juntos?
— Não. O pastor afastou-se sozinho.
— Tentou seguir algum deles?
— Não.
— Boa moça. Foi seguida?
— Acho que não.
— Acha que não?
— Havia uma multidão saindo na mesma ocasião em que eu. Cinqüenta, sessenta pessoas. Não sei. Seria tolo dizer que tenho certeza de que ninguém pôs os olhos em mim. Mas ninguém me seguiu até aqui.
— Belinda?
— Há um café quase em frente à Pensão Paris. Um bocado de moças entraram e saíram, mas eu precisei chegar à quarta xícara antes de reconhecer uma das que estiveram na igreja na noite passada. Uma moça alta, de cabelo ruivo, muito vistosa, acho que você a chamaria assim...
— Como é que você sabe o que eu a chamaria? Ela estava vestida de freira na noite passada?
— Sim.
—. Neste caso você não poderia ter visto que ela tinha cabelo ruivo.
—. Ela tinha uma verruga na bochecha esquerda.
— E sobrancelhas pretas? — interrompeu Maggie.
— Ela mesma — concordou Belinda. Desisti. Acreditava. Quando uma moça bonita examina outra moça bonita, seus olhos se transformam em telescópios de longo alcance. — Segui-a até a Kalverstraat — continuou Belinda. — Entrou numa grande loja. Parecia andar sem destino pelo térreo, mas não estava, realmente, porque se dirigiu logo a um balcão intitulado: "LEMBRANÇAS: APENAS EXPORTAÇÃO". A moça examinou casualmente as lembranças, mas eu sabia que ela estava mais interessada em bonecas do que em qualquer outra coisa.
— Bem, bem, bem — disse eu. — Bonecas, outra vez. Como é que você sabe que ela estava interessada?
— Simplesmente soube — disse Belinda no tom de uma pessoa que tenta descrever as várias cores a um cego de nascença.
— Depois de algum tempo, começou a examinar com muita atenção um grupo especial de bonecas. Depois de hesitar durante algum tempo, escolheu, mas eu sabia que ela não estava hesitante. — Mantive um prudente silêncio. — Falou à vendedora, que escreveu alguma coisa num papel.
— O tempo...
— O tempo necessário para escrever um endereço comum.
— Continuou suavemente como se não me tivesse ouvido. — Pagou e saiu.
— Seguiu-a?
— Não. Sou também uma boa moça?
— Sim.
— E não fui seguida.
— Ou observada? Na loja, quero dizer. Dando um exemplo, por altos e gordos homens de meia-idade.
Belinda soltou uma risadinha.
— Muito grandes...
— Muito bem, um bocado de altos e gordos homens de meia-idade passaram um bocado de tempo observando-a. E um bocado de magriços, também. Não me surpreendo. — Parei pensativo. — Minhas queridas gêmeas, adoro-as.
Elas trocaram olhares.
— Bem — disse Belinda — isso é gentil.
— Profissionalmente falando, queridas moças, profissionalmente falando. Devo reconhecer que ambas apresentaram excelentes relatórios. Belinda, viu a boneca que a moça escolheu?
— Eu sou paga para ver as coisas — respondeu, empertigada.
Fitei-a especulativamente, mas deixei passar.
— Exato. Era uma boneca fantasiada, de Huyler. Como a que vimos no armazém.
— Como é que sabe?
— Eu poderia dizer que sou psíquico. Poderia falar em "gênio." Mas o fato é que tive acesso a certas informações que vocês não tiveram.
— Bem, compartilhe-as conosco. — Belinda, naturalmente.
— Não.
— Por que não?
— Porque há homens em Amsterdam que poderiam capturá-las, colocá-las num tranqüilo quarto escuro e obrigá-las a falar.
Fez-se uma longa pausa, quebrada por Belinda:
— E você não falaria?
— Eu poderia, para dizer a verdade — reconheci. — Mas, para começar, não seria tão fácil assim colocar-me naquele tranqüilo quarto escuro. — Apanhei a pilha de faturas. — Alguma de vocês ouviu falar em Kasteel Linden? Não? Nem eu. Parece, contudo, que abastece nossos amigos Morgenstern e Muggenthaler com um grande número de relógios de pêndulo.
— Por que relógio de pêndulo? — perguntou Maggie.
— Não sei. — Menti abertamente. — Pode haver alguma ligação. Pedi a Astrid para tentar localizar a origem de certo tipo de relógio... Ela tinha, vocês compreendem, um bocado de ligações com o submundo, que ela não apreciava. Mas foi embora agora. Examinarei o assunto amanhã.
— Nós faremos isso hoje — disse Belinda. — Poderíamos ir ao local onde fica esse Kasteel...
— Faça isso e voltará no próximo avião para a Inglaterra. Alternativamente, não quero tirar vocês do fundo do fosso que cerca esse tal castelo. Certo?
— Sim, senhor — responderam humildemente e em uníssono. Estava-se tornando irritante e crescentemente claro que elas não consideravam minha mordida tão ruim como meu latido.
Reuni os papéis e ergui-me.
— O resto do dia é de vocês. Vê-las-ei amanhã pela manhã.
Estranhamente, não pareceram felizes por terem o resto do dia de folga. Perguntou Maggie:
— E você?
— Vou fazer uma viagem de carro pelo interior. Para clarear as idéias. Depois, cama e, em seguida, talvez uma viagem de barco à noite.
— Um desses românticos cruzeiros noturnos pelos canais? — Belinda tentou falar descuidadamente, mas não conseguiu. Ela e Maggie pareciam saber de algo que me escapava. — Você precisará de alguém que lhe vigie as costas, não? Eu irei.
— Noutra vez. Mas não passeiem pelos canais. Não se aproximem deles. Não se aproximem de boates. E, acima de tudo, não se aproximem das docas ou daquele armazém.
— E não saia hoje à noite tampouco. — Olhei fixamente para Maggie. Nunca, em cinco anos, falara ela tão veementemente, tão ferozmente mesmo. E, por certo, nunca me dissera o que fazer. Agarrou-me o braço, outra coisa também nunca vista antes. — Por favor.
— Maggie!
— Você precisa mesmo fazer essa viagem de barco hoje à noite?
— Ora, Maggie...
— Às duas da manhã?
— O que é que há de errado, Maggie? Não é do seu jeito...
— Não sei. Sim, eu sei. Alguém parece estar andando sobre minha cova com botas de travas metálicas.
— Diga-lhe para olhar onde pisa. Belinda deu um passo em minha direção.
— Maggie tem razão. Você não deve sair hoje à noite. — Tinha o rosto contraído de preocupação.
— Você também, Belinda?
— Por favor.
Havia uma estranha tensão no quarto que eu não podia nem sequer começar a compreender. Havia súplica nos rostos, um curioso quase desespero nos olhos, como se eu tivesse acabado de anunciar que ia saltar de um penhasco.
— O que Maggie quer dizer — continuou Belinda — é que não nos deixe.
Maggie concordou com uma inclinação de cabeça.
— Não saia hoje à noite. Fique conosco.
— Oh, diacho! — disse eu. — Não próxima vez que precisar de ajuda no exterior eu trarei uma dupla de garotas crescidas. — Fiz um movimento para passar por elas em direção à porta. Maggie, porém, barrou-me o caminho, estendeu o braço e beijou-me. Segundos depois, Belinda fez o mesmo.
— Isto é muito mau para a disciplina — disse eu, Sherman, sem saber o que dizer. — Muito mau, realmente.
Abri a porta e voltei-me para ver se elas concordavam comigo. Nada disseram e ficaram ali com um ar curiosamente abandonado. Irritado, sacudi a cabeça e deixei-as.
De volta ao Rembrandt, comprei papel pardo e barbante. No quarto, usei-os para embrulhar um jogo completo das roupas, agora mais ou menos recuperadas do ensopamento da noite anterior, escrevi um nome e um endereço fictício no embrulho e levei-o à recepção. O gerente-assistente estava no posto.
— Onde é que fica a agência dos correios mais próxima? — perguntei.
— Meu querido Sr. Sherman... — O cumprimento meticulosamente cordial era automático, mas, desta vez, ele deixou de sorrir —- nós podemos fazer isso para o senhor.
— Muito obrigado, mas eu mesmo quero fazer o registro.
— Ah, compreendo. — Não compreendia absolutamente que o que eu não queria eram sobrancelhas erguidas nem testas enrugadas com o espetáculo de Sherman saindo com um grande embrulho de papel pardo sob o braço. Ele me deu o endereço que eu não queria.
Coloquei o embrulho na mala do carro de polícia e atravessei a cidade e os subúrbios até penetrar no campo em direção ao norte. De modo geral, eu sabia que corria ao longo das águas do Zuider Zee, embora não pudesse vê-las em virtude do alto dique de contenção à direita. Não havia também muita coisa a ver à esquerda: o campo holandês não foi feito para lançar o turista em arroubos extáticos.
Logo depois, cheguei a uma placa, onde li "Huyler, 5 km". A umas poucas centenas de metros mais adiante, virei à esquerda, saí da estrada e parei na minúscula praça de uma minúscula aldeia de cartão postal. A praça tinha uma agência de correio e, do lado de fora, um telefone público. Fechei a mala e as portas do carro e deixei-o ali.
Voltei à estrada principal, atravessei-a e subi o dique inclinado coberto de relva até ver o Zuider Zee. Uma brisa fresca tirava reflexos azuis e brancos das águas sob o sol de fim de tarde, muito embora, paisagisticamente, não se pudessem cantar muitas loas àquele trecho de água, pois a terra em volta era tão baixa que parecia, quando aparecia absolutamente, não mais do que um banco de areia plano no horizonte. O único aspecto diferente era uma ilha a nordeste, a mais ou menos quilômetro e meio da praia.
Ficava ali a ilha de Huyler e nem mesmo era mais uma ilha. Fora, mas alguns engenheiros haviam construído uma passagem elevada dela até o continente para dar aos ilhéus um pouco mais dos benefícios da civilização e do comércio turístico. Ao longo desse caminho elevado fora construída uma estrada de asfalto.
Tampouco merecia a própria ilha sequer a descrição de diferente. Era tão baixa e plana que parecia que uma onda de qualquer tamanho podia varrê-la de ponta a ponta, muito embora a planura fosse quebrada por casas de fazenda isoladas, diversos grandes estábulos holandeses e, na praia oeste da ilha, de frente para o continente, uma aldeia aconchegada em torno de um pequeno porto. E, naturalmente, tinha seus canais. Isto era tudo a ser visto. Voltei à estrada, caminhei até chegar a uma parada de ônibus e tomei o primeiro de volta a Amsterdam.
Resolvi jantar cedo, pois não esperava muita oportunidade de fazê-lo mais tarde e desconfiava de que o que quer que p destino me reservasse naquela noite, era melhor não enfrentá-lo de estômago cheio. Fui em seguida dormir, porque tampouco esperava dormir tarde naquela noite.
O despertador portátil acordou-me à meia-noite e meia. Não me senti especialmente descansado. Vesti com cuidado um terno escuro, uma camisa de marinheiro de jérsei e gola rolée, sapatos escuros de tênis de sola de borracha e paletó escuro de lona. Embrulhei a pistola num saco de oleado de fecho éclair e coloquei-a no coldre sob a axila. Pus dois pentes num saco semelhante e enfiei-o num bolso, também fechado por zipper do paletó. Olhei saudosamente para a garrafa de uísque na mesinha de cabeceira e resolvi esquecer o trago. Saí.
Saí, como se fosse agora uma segunda natureza comigo, pela escada de incêndio. A rua embaixo, como sempre, estava deserta e eu sabia que ninguém me seguira ao deixar o hotel. Não era necessário que me seguissem, porque os que me queriam mal sabiam aonde eu ia e onde podiam esperar encontrar-me. Eu sabia que eles sabiam. O que esperava era que não soubessem que eu sabia.
Resolvi andar porque não tinha mais carro e porque me tornara alérgico aos táxis de Amsterdam. As ruas' estavam vazias, pelo menos as que escolhi. A cidade parecia muito tranqüila e pacífica.
Cheguei à área das docas, orientei-me, e andei até colocar-me sob a sombra escura de um armazém. O mostrador luminoso do relógio informou-me que faltavam vinte minutos para as duas. O vento aumentara e o ar tornara-se muito mais frio, mas não chovia, embora indícios de chuva estivessem no ar. Aspirei os fortes odores nostálgicos do mar, de alcatrão, cordas e todas as outras coisas que dão às docas o mesmo odor em todo o mundo. Nuvens escuras esfarrapadas corriam por um céu apenas ligeiramente menos escuro, revelando ocasionalmente um vislumbre de uma meia-lua pálida e alta e, freqüentemente, ocultando-a. Mas, mesmo quando a lua estava oculta, a escuridão nunca era completa, pois havia sempre trechos em rápida mutação de céu estrelado.
Nos intervalos mais brilhantes, olhava até o outro lado do porto, que se estendia à frente, apagando-se à distância e desaparecendo finalmente. Havia literalmente centenas de alvarengas neste porto, que era um dos maiores desse tipo de embarcações no mundo, variando em tamanho de minúsculas de sete metros às maciças barcas do Reno, todas elas se atravacando numa confusão aparentemente inextricável. A confusão, eu sabia, era mais aparente do que real. Muito juntas estavam, mas embora fosse preciso realizar as manobras mais complicadas, todas tinham realmente acesso a um corredor marítimo estreito que poderia cruzar com duas ou três faixas de terra progressivamente mais largas até alcançar águas desimpedidas mais adiante. As alvarengas estavam ligadas à terra por uma série de longas e largas pranchas de desembarque flutuantes, das quais, por outro lado, se projetavam — pranchas mais estreitas, presas a elas em ângulos retos.
A lua escondeu-se por trás de uma nuvem. Saí das sombras e tomei uma das principais pranchas centrais sem produzir o menor som com os sapatos de sola de borracha na madeira úmida. Mas mesmo que estivesse andando com botas de travas metálicas, duvido de que alguém — com exceção dos que nutrissem más intenções a meu respeito — pudesse prestar-me atenção, porque embora as alvarengas fossem quase certamente habitadas por suas tripulações e, em muitos casos, pelas tripulações e suas famílias, somente uma ou outra luz de cabina era vista entre as centenas de embarcações ali ancoradas. À parte o sussurro do vento, os estalidos e rangidos suaves quando o vento balançava suavemente as alvarengas em suas amarras, o silêncio era total. O porto das alvarengas era uma cidade em si e a cidade dormia.
Eu havia percorrido um terço do comprimento da prancha principal quando a lua saiu. Parei e olhei em volta.
Mais ou menos a uns cinqüenta metros atrás de mim, dois homens caminhavam intencional e silenciosamente na minha direção. Eram apenas sombras, silhuetas, mas vi que as silhuetas dos braços direitos eram mais compridas do que as do esquerdo. Traziam alguma coisa na mão direita. Não fiquei surpreso ao ver os tais objetos, como não me surpreendi ao vê-los.
Olhei rapidamente para a direita. Dois outros avançavam ininterruptamente da terra sobre uma prancha paralela, à direita. Estavam à mesma altura dos dois da minha própria prancha.
Olhei para a esquerda. Dois outros, mais duas escuras silhuetas móveis. Admirei-lhes a coordenação.
Virei-me e continuei a andar na direção do porto. Enquanto o fazia, tirei a pistola do coldre, removi a cobertura à prova d'água, fechei-a novamente e recoloquei-a no bolso. A lua escondeu-se atrás de uma nuvem. Comecei a correr e ao fazê-lo lancei um olhar sobre o ombro. Os três pares de homens faziam o mesmo. Corri mais uns cinco metros e olhei novamente sobre o ombro. Os dois na minha prancha haviam parado e apontavam as armas para mim, ou pareciam fazê-lo, pois era difícil ver à luz das estrelas, mas, um momento depois, convenci-me quando estreitas chamas vermelhas surgiram na escuridão, embora não le ouvisse som de tiros, o que era perfeitamente compreensível, pois nenhum homem no seu juízo perfeito ia perturbar centenas de rudes barqueiros holandeses, alemães e belgas se possivelmente pudessem evitá-lo. Parecia, contudo, não terem objeções a perturbar-me. A lua saiu novamente e recomecei a correr.
A bala que me atingiu fez mais estragos nas roupas do que em mim, embora a viva e quente dor no lado externo da parte superior do braço direito me fizesse levantá-lo involuntariamente. Isto era mais do que suficiente. Voltei-me e saltei da prancha principal sobre a proa de uma alvarenga ancorada numa pequena prancha em ângulo reto e corri silenciosamente pelo tombadilho até colocar-me sob o abrigo da casa do leme, na popa. Uma vez abrigado, olhei cautelosamente pelo canto.
Os dois homens na prancha central haviam parado e faziam urgentes movimentos circulares para os amigos, à direita, indicando que eu devia ser flanqueado e, com toda probabilidade, baleado nas costas. Eles entretinham idéias muito limitadas, pensei, sobre o que constituía lealdade e espírito esportivo. Mas não havia dúvida quanto à eficiência. Era claro que se iam pegar-me — e eu lhes considerava boas as possibilidades — seria por esse movimento de cerco ou flanqueamento. Seria, claro, uma boa coisa se pudesse tirar-lhes essa idéia da cabeça com tanta rapidez quanto possível. Ignorei temporariamente os dois homens na prancha central, supondo, corretamente esperava, que permanecessem onde estavam, aguardando que os outros me surpreendessem, e voltei-me para enfrentar a prancha esquerda.
Cinco segundos depois eles apareceram, não correndo, mas caminhando devagar e olhando para as sombras lançadas pela lua em torno das causas do leme e cabinas das alvarengas, o que era muito temerário ou apenas tolo, porque eu me encontrava nas mais profundas sombras que pudera encontrar, ao passo que eles, em contraste, estavam quase brutalmente expostos à luz da meia-lua. Vi-os muito antes de eles me verem. Duvido muito que jamais me tenham visto. Um deles, com certeza, não viu, pois nunca mais viu coisa alguma: deve ter morrido antes de tocar na prancha e deslizar com uma curiosa ausência de ruído, não mais do que um espadanar sibilante, para as águas do porto. Mirei para o segundo tiro, mas o segundo homem reagiu com grande rapidez e lançou-se para trás e para fora de minha linha de visão antes que eu pudesse apertar novamente o gatilho. Ocorreu-me, sem motivo algum, que meu espírito esportivo era ainda inferior ao deles, mas eu não estava querendo bancar o pato naquela noite.
Voltei-me e, dando um passo à frente, espiei pelo canto da casa do leme. Os dois na prancha central não se haviam movido. Talvez não soubessem o que acontecera. Estavam longe demais para um tiro certeiro de pistola à noite, mas apontei cuidadosamente e experimentei outra vez. Mas o pato estava longe demais. Ouvi um homem soltar uma exclamação e segurar a perna, mas pela alacridade com que seguiu o companheiro e saltou da prancha para o abrigo de uma alvarenga, não podia estar muito ferido. A lua ocultou-se mais uma vez, atrás de uma nuvem muito pequena, embora a única, no minuto seguinte, mais ou menos, e eles sabiam onde eu me encontrava. Disparei ao longo da alvarenga, voltei à prancha principal e comecei a correr ainda mais para dentro do porto.
Não havia dado dez passos quando aquela maldita lua reapareceu. Lancei-me ao chão, de rosto para a praia. À minha esquerda, a prancha estava vazia, o que não era de surpreender desde que a confiança dos dois homens restantes devia ter sido profundamente abalada. Lancei um olhar à direita. Os dois estavam muito mais perto do que os dois que haviam, com tanta prudência, abandonado a prancha central e, pelo fato de ainda caminharem de modo deliberado e confiante, era claro que não sabiam ainda que um deles estava no fundo do porto. Aprenderam com a mesma rapidez, contudo, a virtude da prudência como os três outros, porque desapareceram logo da prancha quando disparei dois rápidos e exploratórios tiros na direção idéies, ambos os quais evidentemente perdidos. Os dois homens que haviam estado na prancha central faziam uma cautelosa tentativa de voltar a ela, mas estavam longe demais para me preocupar ou para que eu os preocupasse.
Durante mais cinco minutos continuou esse mortal jogo de cabra-cega de correr, abrigar-se, disparar um tiro, correr novamente, enquanto, durante todo o tempo, eles fechavam inexoravelmente o cerco sobre mim. Mostravam-se muito prudentes agora, arriscando-se ao mínimo e usando inteligentemente a superioridade numérica. Um ou dois deles prendiam-me a atenção enquanto os outros corriam rapidamente do abrigo de uma alvarenga para outra. Eu estava calma e friamente consciente de que, se não fizesse algo diferente, e logo, somente um fim poderia haver para esse jogo, e que o fim chegaria antes de muito tempo.
Entre todas as coisas desaconselháveis de fazer, usei várias das curtas ocasiões que passava abrigado por trás de cabinas e casas de leme para pensar em Belinda e Maggie. Acontecera isso, pensei, porque não apenas tinham sabido como haviam Se comportado de maneira tão estranha na última vez que as vira. Haviam desconfiado, ou haviam sabido por algum processo intuitivo peculiarmente feminino, que algo parecido iria acontecer-me, qual seria o meu fim, e haviam receado dizer-me? Não fazia diferença, pensei, que tivessem tido razão, mas a fé delas na infalibilidade do chefe devia ter sido profundamente abalada. Senti-me em desespero e acho que devo ter dado essa impressão. Havia esperado encontrar um homem com uma arma rápida ou uma faca ainda mais rápida à espera e penso que poderia ter dado conta dele e, com sorte, até mesmo de dois deles, mas não havia esperado isto. O que fora que eu dissera a Belinda do lado de fora do armazém? "Aquele que luta e foge vive 'para lutar novamente". Mas agora eu não tinha mais para onde fugir, pois me encontrava a apenas uns vinte metros do fim da prancha principal. Era uma sensação macabra ser caçado até a morte como um animal selvagem ou um cão raivoso enquanto centenas de pessoas dormiam a uma centena de metros de mim e tudo o que eu precisaria fazer para salvar-me era desatarraxar o silenciador e disparar dois tiros para o ar e, em segundos, todo o porto das alvarengas seria um tumulto salvador. Mas não podia forçar-me a fazer isso, pois o que eu precisava fazer teria que ser feito naquela noite e eu sabia que era a última oportunidade que teria. Minha vida em Amsterdam depois daquela noite não valeria um níquel furado. Não podia forçar-me a fazer isso se houvesse a menor oportunidade imaginável. Não achava que houvesse, não o que um homem mentalmente são chamaria de oportunidade. Mas não acho que nessa ocasião eu estivesse mentalmente são.
Olhei para o relógio. Seis para as duas. Ainda de outra maneira, o tempo havia-se quase esgotado. Olhei para o céu. Uma pequena nuvem deslizava para a lua e este seria o minuto que escolheriam para o próximo ataque e, quase certamente, minha última tentativa de fuga. Olhei para o tombadilho da alvarenga. Carregava sucata e apanhei um pedaço de metal. Mais uma vez examinei a direção daquela pequena nuvem escura, que parecia ter diminuído ainda mais. O seu centro não ia passar diretamente pelo disco da lua, mas teria que servir.
Possuía ainda cinco balas no segundo pente e disparei-as em rápida sucessão na direção onde sabia, ou imaginava, que meus perseguidores haviam-se abrigado. Esperava que isto pudesse detê-los por alguns segundos, mas não penso que realmente acreditasse nisso. Rapidamente, enfiei a pistola dentro do saco à prova d'água, fechei-o e, para maior segurança, guardei-o não no coldre, mas no bolso fechado a zipper do paletó de lona, corri ao longo da alvarenga durante alguns metros, subi na amurada e lancei-me na prancha principal. Corri desesperadamente e ao fazê-lo compreendi que a maldita nuvem havia errado inteiramente a lua.
De súbito, senti-me muito calmo. Não havia mais opções. Corri porque não havia coisa alguma mais a fazer, em louco ziguezague para desnortear a pontaria de meus perseguidores. Meia dúzia de vezes em menos de três segundos ouvi sons abafados — estavam tão perto assim de mim agora — e duas vezes senti mãos, que não podia ver, puxando-me ferozmente as roupas. Subitamente, lancei a cabeça para trás, estendi ambos os braços altos no ar, lancei a peça de metal na água e estirei-me pesadamente sobre a prancha antes mesmo de ouvir o espadanar da queda. Lutei estonteado durante um curto momento para levantar-me, apertei a garganta e caí para trás no canal. Tomei unia respiração tão profunda quanto possível e prendi-a até sênior o impacto na água.
A água estava fria, mas não gelada, era opaca e não muito profunda. Toquei a lama do fundo e mantive os pés ali. Comecei a exalar, aos poucos, com todo o cuidado, conservando minhas reservas de ar, que com toda probabilidade não eram muitas porque não me entregava com muita freqüência a esse tipo de passatempo. A menos que eu tivesse calculado mal o interesse dos meus perseguidores em liquidar-me — e não tinha —, os dois da prancha central deveriam estar olhando esperançosamente para o ponto onde eu desaparecera cinco minutos antes. Esperava que tirassem todas as conclusões erradas da lenta torrente de bolhas que subiam e que as tirassem logo, pois não podia continuar por muito mais tempo esse tipo de espetáculo.
Depois do que pareceram cinco minutos, mas, com toda probabilidade, não foram mais de trinta segundos, deixei de exalar e enviar bolhas à superfície pela razão muito boa de não ter mais ar nos pulmões. Eles começavam a doer um pouco. Eu quase podia ouvir o coração — não havia dúvida que podia senti-lo — batendo no peito vazio. Os ouvidos me doíam. Soltei-me da lama e nadei para a direita esperando em Deus ter-me orientado corretamente. Toquei com a mão na quilha da alvarenga, puxei-me rapidamente para o outro lado e nadei para a superfície.
Acho que não poderia ter ficado embaixo mesmo por mais alguns segundos sem ter engolido água. Ao chegar à superfície, precisei de considerável controle para não encher os pulmões com um guincho que teria sido ouvido a meio caminho do outro lado do porto, mas, em certas circunstâncias, quando a vida depende disso, pode-se convocar uma grande dose de força de vontade e eu consegui aspirar grandes e silenciosos haustos de ar.
De início, não vi coisa alguma, mas isto devido à película oleosa da superfície, que momentaneamente me grudara as pestanas. Limpei-as, mas não havia ainda muita coisa a ver, apenas o casco escuro da alvarenga, atrás da qual me escondia, e outra paralela a uns três metros de distância. Ouvi vozes, vozes baixas e murmurantes. Nadei silenciosamente para a popa da alvarenga segurei-me no leme e olhei com cautela pelo canto. Dois homens um deles com uma lanterna, olhavam atentamente para o locai onde eu desaparecera recentemente: as águas estavam satisfatoriamente escuras e paradas.
Os dois se endireitaram. Um deles encolheu os ombros e fez um gesto com as palmas das duas mãos para cima. O segundo inclinou a cabeça concordando e esfregou suavemente a perna. O primeiro homem ergueu os braços e cruzou-os duas vezes sobre a cabeça, primeiro para a esquerda e, em seguida, para a direita. Nesse momento, ouvi o staccato e a tosse de um motor diesel marítimo pegar bem perto de mim. Era evidente que nenhum dos dois homens gostou muito do novo fato, pois o que fizera o sinal imediatamente segurou o braço do companheiro e puxou-o. Este saiu manquejando com tanta rapidez quanto podia.
Icei-me para a alvarenga, o que parece um exercício muito simples, mas, quando um casco liso se ergue a um metro e vinte sobre a água, esse exercício pode transformar-se numa quase impossibilidade. E foi assim comigo. Consegui-o por fim, com a ajuda de uma corda pendente da popa. Despenquei-me molemente sobre a amurada e fiquei lá durante meio minuto inteiro, respirando fundo como uma baleia encalhada antes que uma mistura de começo de recuperação e uma sensação crescente de urgência me fizesse levantar e dirigi-me para a proa da alvarenga e para a prancha principal.
Os dois homens que haviam estado recentemente determinados a promover minha destruição e se sentiam, sem dúvida, cheios daquele calor produzido pela satisfação de um trabalho bem feito, eram apenas duas sombras vagamente vistas e em desaparecimento nas sombras ainda mais densas dos armazéns da praia. Subi na prancha, agachei-me durante um momento até localizar a origem do diesel, inclinei-me e corri rapidamente ao longo da prancha até chegar ao local onde a alvarenga estava ancorada a uma prancha lateral. Caí inicialmente sobre as mãos e os joelhos e, em seguida, sobre joelhos e cotovelos antes de olhar pela borda.
A alvarenga media pelo menos vinte metros de comprimento, era proporcionalmente larga e tão totalmente carente em graça de linhas como se poderia imaginar. Os três quartos do comprimento à frente eram reservados inteiramente a velhos porões abertos; atrás ficava a casa do leme e, imediatamente na direção da popa e ligadas à casa do leme, as acomodações da tripulação. Luzes amarelas brilhavam através de janelas fechadas por cortinas. Um homem alto de quepe escuro inclinava-se numa janela da casa do leme e falava com um membro da tripulação, que estava prestes a subir para a prancha lateral e soltar as amarras.
A popa da barca estava colada à prancha principal onde eu me encontrava estirado. Esperei até que o tripulante subisse sobre a prancha lateral e se dirigisse para a frente a fim de soltar os cabos, deslizei sem um som para a popa e agachei-me por trás da cabina até ouvir os sons de cordas sendo lançadas a bordo e a batida oca de pés sobre a madeira quando o homem saltou para bordo. Dirigi-me lentamente para a popa até chegar a uma escada de ferro presa à extremidade dianteira da cabina, subi e esgueirei-me de bruços para a frente até ficar a fio comprido sobre o telhado da casa do leme. As luzes de navegação foram acesas mas isto não era motivo de preocupação: estavam colocadas de tal maneira de cada lado do teto que produziam o confortável efeito de lançar o local onde me encontrava em sombras relativamente ainda mais profundas.
A nota do motor aprofundou-se e a prancha lateral afastou-se lentamente por trás. Desconsolado, perguntei-me se não havia saltado da frigideira para o fogo.
Eu estava quase certo de que iria para o mar naquela noite e a pessoa que o fizesse nas condições que eu esperava devia ter-se preparado também para a possibilidade de encharcar-se. Se eu tivesse tido um mínimo de espírito de previsão, devia ter vindo preparado com uma roupa de borracha de mergulhador. O pensamento, porém, nunca me ocorreu e não me restou alternativa senão ficar estirado ali e pagar o preço da negligência.
Senti-me como se estivesse sendo rapidamente congelado até a morte. O vento noturno ao largo do Zuider Zee era frio bastante para congelar até mesmo um homem bem agasalhado, se forçado a permanecer imóvel. E eu não estava bem agasalhado. Estava ensopado até os ossos pela água salgada, e o vento gélido teve o efeito de fazer-me sentir como se me estivesse transformando num bloco de gelo — com a diferença de que um bloco de gelo é inerte, enquanto eu tremia continuamente como um homem atacado de febre maligna. O único consolo é que não teria a mínima importância se chovesse. Eu não poderia, em hipótese alguma, molhar-me mais ainda.
Com dedos dormentes e gelados que não queriam permanecer parados abri os zippers dos bolsos, tirei a pistola e o pente extra dos estojos à prova de água, carreguei a arma e coloquei-a dentro do paletó. Ociosamente, pensei no que aconteceria se, durante uma emergência, o dedo do gatilho ficasse duro de frio. Coloquei, em vista disso, a mão direita dentro do paletó ensopado. O único efeito foi sentir a mão mais fria do que nunca. Puxei-a novamente para fora.
As luzes de Amsterdam desapareciam ao longe e estávamos navegando bem dentro do Zuider Zee. Notei que a barca parecia seguir a mesma ampla curva do curso do Marianne quando entrara no porto às doze horas do dia anterior. Passou muito perto, realmente, de uma parelha de bóias e, olhando para a proa, pareceu-me que estava num curso de colisão com uma ter-ceira, colocada a cerca de quatrocentos metros à frente. Mas não duvidei nem por um minuto de que o comandante do barco sabia exatamente o que fazia.
O ruído do motor caiu à medida que diminuíram as revoluções. Dois homens saíram da cabina para o tombadilho — os primeiros membros da tripulação a aparecer do lado de fora desde que havíamos deixado o porto das alvarengas. Procurei nivelar-me ainda mais no teto da casa do leme, mas eles não vieram para o meu lado. Tomaram a direção da proa. Contorci-me para observá-los melhor.
Um deles levava uma barra de metal com uma corda amarrada nas duas extremidades. De cada lado da proa, soltaram aos poucos a corda até que a barra devia ter-se aproximado bastante do nível da água. Virei-me e olhei para a frente. A barca, movendo-se com grande lentidão agora, estava a não mais de vinte metros de distância da bóia luminosa e num curso que a colocaria a uns três metros e meio dela. Ouvindo uma seca ordem da casa do leme, olhei novamente para a proa e observei que os dois homens começavam a deixar a linha correr pelos dedos, fazendo um deles a contagem. Era fácil perceber o motivo disso. Embora eu não pudesse vê-los na escuridão, a corda devia ter nós a intervalos regulares a fim de permitir aos dois manter a barra de ferro em ângulo reto com a passagem do barco pela água.
A barca estava exatamente alinhada com a bóia quando um dos homens chamou em voz baixa e, sem demora, lentamente mas sem interrupção, começaram a recolher as linhas para bordo. Eu sabia p que ia acontecer mas, apesar de tudo, olhei com a maior atenção. À medida que os dois continuavam a puxar, uma bóia cilíndrica de uns sessenta centímetros pulou da água. Foi seguida por um arpéu de quatro farpas, uma das quais estava enganchada em torno da barra de metal. Presa ao arpéu havia uma corda. A bóia, arpéu e barra de metal foram puxados para bordo. Os dois começaram então a recolher a corda do arpéu até que, finalmente, um objeto emergiu da água e foi trazido para bordo. O objeto era uma caixa de metal cinzenta, de mais ou menos dezoito por vinte polegadas. Imediatamente, levaram-na para a cabina, mas, antes mesmo de isto ser feito, a barca partiu a toda velocidade. A bóia começou a recuar rapidamente por trás da popa. A operação fora realizada com uma facilidade e segurança sugestivas de grande familiaridade com a técnica empregada.
Passou-se o tempo, um tempo muito frio para mim, de tremores e agonias. Pensei que me seria impossível tornar-me ainda mais gelado e molhado, mas estava enganado, pois, mais ou menos às quatro da manhã, o céu escureceu, começou a chover e nunca fui atingido por chuva mais fria. Mas, por esta altura, o que restava em mim de calor corporal conseguira secar parcialmente algumas camadas internas de roupa. Da cintura para baixo, porém — o paletó de lona proporcionava uma proteção razoável — verifiquei que fora tudo uma absoluta perda de tempo. Tinha a esperança de que, quando chegasse a ocasião e tivesse de saltar na água mais uma vez eu não tivesse chegado àquele estado de entorpecimento em que a única coisa que poderia fazer seria afundar.
As primeiras luzes da falsa aurora apareceram no céu e, vagamente, distingui os esboços esmaecidos de terra a sul e leste. Escureceu em seguida e, durante algum tempo, nada mais vi. Logo depois, a verdadeira aurora começou a espalhar-se, pálida, vinda do leste, e vi terra mais uma vez. Gradualmente, cheguei à conclusão de que estávamos muito perto da praia ao norte de Huyler e mais ou menos prestes a fazer uma curva para sudoeste e, em seguida, para o sul em direção ao pequeno porto da ilha.
Nunca pensara que essas malditas barcas navegassem tão lentamente. No que interessava à costa de Huyler, parecia que estava parada na água. A último coisa que eu queria era aproximar-me da praia de Huyler em dia claro e provocar comentários de parte de inevitáveis observadores sobre o motivo por que um membro da tripulação seria tão excêntrico a ponto de preferir o frio telhado da casa do leme ao calor da parte interna. Pensei no calor lá dentro e afastei o pensamento.
O sol apareceu sobre a praia distante do Zuider Zee, mas não me fez bem algum. Era um desses sóis peculiares que não servem absolutamente para secar roupa. Após algum tempo, satisfeito, notei que era um sol matutino que prometia, mas apenas para enganar, pois foi imediatamente encoberto por um manto de nuvens negras. Logo depois, despencou-se uma gelada e oblíqua chuva, paralisando a pouca circulação que ainda me restava. O único motivo de satisfação foi que a nuvem teve o efeito de ensombrecer novamente a atmosfera. A chuva, por outro lado, poderia persuadir os curiosos do porto a ficar em casa.
Aproximávamo-nos do fim da jornada. A chuva, misericordiosamente, aumentara nesse momento, a ponto de começar a ferir-me o rosto e as mãos, e silvava ao cair espumante no mar: a visibilidade se reduzira a uns duzentos metros apenas e, embora eu visse a extremidade das balizas de navegação, na direção das quais a barca descrevia uma curva, não avistava ainda o porto mais além.
Embrulhei a arma na proteção à prova d'água e enfiei-a no coldre. Teria sido mais seguro, como eu fizera antes, colocá-la no bolso fechado a zipper ão paletó, mas não ia levar o paletó comigo. Pelo menos, não muito longe. Eu estava tão entorpecido e enfraquecido com a experiência da longa noite que a limitação dos movimentos daquele incômodo paletó poderia fazer toda a diferença entre alcançar a praia ou não. Outra coisa que eu negligentemente esquecera de levar era um salva-vidas ou um cinto inflável.
Despi em contorções o paletó e coloquei-o em forma de bola sob o braço. O vento pareceu de súbito muito mais gelado do que nunca, mas passara o tempo de preocupar-me com isso. Arrastei-me ao longo do telhado da casa do leme, deslizei silenciosamente pela escada, rastejei por baixo do nível das janelas, agora com as cortinas puxadas, lancei um olhar rápido à frente — precaução desnecessária, pois ninguém em seu juízo perfeito teria vindo ao tombadilho naquele momento, a menos que obrigado — lancei o paletó pela amurada, dirigi-me para o lado da popa, baixei-me todo o comprimento dos braços, verifiquei se estava bem longe das hélices, e lancei-me à água.
Estava mais quente o mar do que o telhado da casa do leme, o que foi ótimo porque me sentia quase apavoradamente fraco. Fora minha intenção permanecer na água até que a barca entrasse no porto ou, pelo menos, nas condições predominantes, -até que a embarcação tivesse desaparecido na escuridão da chuva, mas se jamais houve tempo de dispensar os refinamentos do plano foi certamente aquele. O meu interesse básico, o único do momento, era a sobrevivência. Atrás da popa, que velozmente se afastava, comecei a nadar com toda a rapidez que consegui mobilizar.
Era um trecho de não mais de dez minutos de duração, que qualquer garoto de seis anos em boa forma poderia ter percorrido sem dificuldade, mas eu estava muito abaixo do meu padrão naquela manhã e, embora não possa alegar que estive por um fio, não faria o mesmo uma segunda vez. Ao ver claramente o paredão do porto, desviei-me das balizas de navegação, deixando-as à direita e, finalmente, cheguei à praia.
Pisei espadanando a areia e, como se tivesse recebido um sinal, a chuva parou subitamente. Com a maior cautela, subi uma pequena elevação de terra à frente, a parte superior da qual ficava no mesmo nível do paredão do porto, estirei-me ao comprido no chão molhado e, cautelosamente, ergui a cabeça.
Vi imediatamente à direita os dois pequenos portos retangulares de Huyler, conduzindo o externo por uma estreita passagem para o inferno. Além do porto interno estendia-se a bela aldeia de cartão postal de Huyler que, com exceção de uma rua comprida e duas curtas retas, margeando o próprio porto interno, era um encantador labirinto de vielas tortuosas e um aglomerado maluco de casas quase todas pintadas de verde e branco, montadas sobre palafitas como proteção contra as inundações. As palafitas eram ligadas por paredes para servir de porões. O acesso às casas se fazia por degraus de madeira.
Dirigi a atenção para o porto externo. A barca estava ancorada ao longo do parapeito interno e começara já ativamente o desembarque da carga. Dois pequenos guindastes ergueram uma sucessão de engradados e sacos dos porões abertos, mas que não me interessaram. Eram com certeza carga legítima. Interessava, sim, a pequena caixa de metal que fora resgatada do mar e que, eu tinha igual certeza, continha a mais ilegítima das cargas. Deixei, portanto, de me importar com a carga legítima e concentrei a atenção na cabina. Rezei para que não fosse tarde demais, embora dificilmente pudesse ver como isto poderia acontecer.
Não era, mas foi por pouco. Menos de trinta segundos depois que comecei a vigiar a cabina, dois homens dela emergiram, carregando um deles um saco sobre o ombro. Embora o conteúdo do saco tivesse sido pesadamente acolchoado, notava-se nele uma inegável angularidade. Pouca dúvida havia de que era a caixa que me interessava.
Os dois desceram para terra. Observei-os durante alguns momentos para formar uma idéia geral da direção que tomaram, deslizei do montículo enlameado — outro item a colocar na minha conta de despesas: minhas roupas haviam sofrido horrivelmente naquela noite — e comecei a segui-los.
Não houve dificuldade. Não apenas claramente de nada suspeitavam, mas essas vielas estreitas e loucamente tortuosas tornavam Huyler um paraíso para a arte do "acampamento". Finalmente, os dois pararam em frente de um prédio longo e baixo, situado no limite norte da aldeia. O térreo — ou porão, o que deveria ser nessa aldeia — era de concreto. O andar superior, alcançado por um conjunto de degraus de madeira semelhantes àqueles onde eu me escondia e observava de uma distância segura de quarenta metros, possuía janelas altas e estreitas, de barras tão juntas que um gato teria dificuldade em entrar. A pesada porta era protegida por duas barras de metal no sentido da largura e fechada por dois grossos cadeados. Subiram os degraus, o que estava com as mãos livres abriu os cadeados, empurrou a porta e entraram. Reapareceram dentro de vinte segundos, fecharam a porta e afastaram-se. Não conduziam carga nenhuma desta vez.
Senti uma momentânea tristeza por ter deixado no hotel, devido ao peso, o meu cinto de arrombador, mas ninguém vai nadar com um peso considerável de metal em volta da cintura. A tristeza foi apenas temporária. À parte o fato de que cinqüenta janelas diferentes davam para a entrada do fortemente protegido edifício e de que alguém completamente estranho seria instantaneamente reconhecido como tal por qualquer um dos aldeões de Huyler, era cedo demais para mostrar as cartas: as piabas podiam ser excelentes para comer, mas era atrás de baleias que eu andava e precisava da isca naquela caixa para pescá-la.
Dispensei um guia de ruas para sair de Huyler, O porto situava-se a oeste, de modo- que o término do caminho elevado forçosamente ficaria a leste. Percorri algumas vielas coleantes e estreitas, embora não no estado de espírito de alguém atraído pelo esquisito encanto de velho mundo que leva dezenas de milhares de turistas à aldeia todos os verões, e cheguei a uma pequena ponte arqueada sobre um canal estreito. As três primeiras pessoas que eu vira até então na aldeia, três matronas envergando tradicionais vestidos rodados, passaram por mim quando atravessei a ponte. Lançaram-me um olhar sem curiosidade e, sem maior interesse, olharam para o outro lado como se fosse a coisa mais natural do mundo encontrar nas ruas de Huyler, de manhã bem cedo, um homem que evidentemente acabara de sair do mar.
Alguns metros depois do canal estendia-se um parque de estacionamento surpreendentemente grande — embora, no momento, contivesse apenas dois carros e meia dúzia de bicicletas, nenhuma das quais possuía cadeado, corrente ou qualquer dispositivo de segurança. O roubo, tudo indicava, aparentemente não constituía problema na ilha de Huyler, fato este que dificilmente me surpreendeu: quando os cidadãos honestos de Huyler escolhiam a carreira do crime, atiravam-se a ela de maneira realmente grandiosa. Não havia vida humana no parque naquela hora nem eu esperava encontrar empregados. Sentindo-me mais culpado do que por qualquer outro ato que praticara desde a chegada ao Aeroporto de Shiphol, escolhi a mais robusta das bicicletas, empurrei-a até o portão fechado, passei-a para o outro lado, segui-a e comecei a pedalar. Não ouvi gritos de "Pega, ladrão!" ou coisa semelhante.
Havia anos que eu não andava de bicicleta e, apesar de não me encontrar num estado apropriado para recapturar aquele primeiro, belo e descuidado enlevo, readquiri rapidamente o jeito e, embora não apreciasse muito a viagem, era pelo menos melhor do que andar e teve o efeito de pôr novamente em movimento alguns dos meus glóbulos vermelhos.
Estacionei a bicicleta na praça da minúscula aldeia onde deixara o taxi da Polícia — ele ainda estava no mesmo lugar — olhei de início atentamente para a cabina telefônica e, em seguida, para o meu relógio. Achei que era ainda cedo demais, abri o carro e parti.
A uns oitocentos metros, já na estrada para Amsterdam, cheguei a um velho estábulo holandês bem afastado da casa de fazenda. Parei o carro na estrada numa posição que colocava o estábulo entre mim e uma pessoa que por acaso olhasse da casa de fazenda, abri a mala do carro, tirei o embrulho de papel pardo, dirigi-me até o estábulo, encontrei-o aberto, entrei e vesti roupa completamente seca. O ato não teve o efeito de transformar-me num homem inteiramente novo, pois ainda me era impossível deixar de tremer, mas pelo menos eu não estava mais submerso no pegajoso e gélido sofrimento em que vivera nas últimas horas.
Reiniciei a marcha. Após mais uns oitocentos metros cheguei a um prédio à beira da estrada, mais ou menos do tamanho de um pequeno bangalô, cuja tabuleta desafiadoramente proclamava ser um motel. Motel ou não, estava aberto e eu não queria outra coisa. A gorda proprietária perguntou-me se queria o desjejum. Sugeri que tinha necessidades outras e mais urgentes. Há, na Holanda, o encantador costume de encher o nosso cálice de jonge Genever até à borda. A proprietária observou espantada e com grande apreensão a minha mão trêmula tentando levar o líquido à boca. Não derramei mais da metade. Notei, porém, que ela estava pensando em chamar a Polícia ou um médico para tratar de um alcoólatra afetado de delirium tremens ou um viciado em tóxicos que perdera a agulha hipodérmica, qualquer que fosse o caso, mas era uma corajosa mulher e forneceu-me uma segunda jonge Genever no momento em que lhe pedi. Desta vez não perdi mais do que um quarto e, no terceiro, não apenas praticamente não derramei gota alguma, mas senti claramente o resto dos meus dormentes glóbulos vermelhos porem-se de pé e iniciarem um vivo exercício. Com o quarto jonge Genever, minha mão ficou firme como uma rocha.
Pedi emprestado um barbeador elétrico e tomei um desjejum pantagruélico de ovos, carne, presunto, queijos, quatro tipos diferentes de pão e meio galão, ou quase, de café. A comida era soberba. Motel modesto podia ser, mas será importante algum dia. Pedi permissão para usar o telefone.
Liguei em questão de segundos para o Hotel Touring e isto representou muito menos tempo do que custou à telefonista conseguir uma resposta do quarto de Maggie e Belinda. Finalmente, numa voz muito sonolenta, disse Maggie:
— Alô. Quem é? — Imaginei-a ali, de pé, espreguiçando-se e bocejando.
— Andou fazendo farra ontem à noite, hem? — perguntei severamente.
— O quê? — Ela não estava comigo ainda.
— Dormindo a sono solto no meio do dia. — Eram quase oito horas da manhã. — Nada mais, senão uma dupla de preguiçosas de minissaia.
— É... é você?
— Quem mais senão o amo e senhor? — Os jonge Genevers começavam a produzir efeitos retardados.
— Belinda! Ele voltou! — Uma pausa. — Amo e senhor, ele disse.
— Como estou contente! — A voz de Belinda. — Estou tão contente. Nós...
— Vocês não estão nem a metade tão contentes como eu. Podem voltar para a cama. Procurem acordar amanhã antes da chegada do leiteiro.
— Nós não saímos do quarto. — Ela parecia muito controlada. — Conversamos, preocupamo-nos, mal pregamos uma pestana e pensamos...
— Sinto muito. Maggie? Vista-se. Esqueça-se do banho de espuma e do café da manhã. Arranje...
— Nada de café? Aposto que você tomou o seu. — Belinda estava exercendo uma influência perniciosa sobre aquela garota.
— Tomei.
— E passou a noite num hotel de luxo?
— A classe dirigente tem seus privilégios. Arranje um táxi, desça depois que sair da cidade, telefone pedindo um taxi local, e venha na direção de Huyler.
— O lugar onde fabricam as bonecas?
— Exato. Você me encontrará vindo do sul num taxi amarelo e vermelho. — Dei-lhe o número da placa.. — Mande seu motorista parar. Venha logo que puder.
Desliguei, paguei e reiniciei a viagem. Achava-me contente por estar vivo. Feliz em estar vivo. Parecia ter sido aquela uma espécie de noite que, tudo indicava, não teria uma manhã, mas ali estava eu, e estava satisfeito. As moças estavam contentes. Eu estava aquecido, seco e alimentado, o jonge Genever corria alegremente atrás dos glóbulos vermelhos num jogo de carrossel, todos os fios coloridos se entrelaçavam num belo padrão e, ao fim do dia, tudo estaria terminado. Nunca me senti tão feliz na vida.
Nunca mais me sentiria assim tão feliz.
Aproximando-me dos subúrbios, parei ao notar sinais que partiam de um taxi amarelo. Parei e cruzei para o outro lado da estrada no exato momento em que Maggie descia. Vestia saia e jaqueta azul-marinho e blusa branca e, se passara uma noite insone, não mostrava indício algum disso. Parecia linda, mas ela sempre parecia linda e havia algo de especial nela naquela manhã.
— Bem, bem, bem — disse. — Que fantasma de aparência sadia. Posso beijá-lo?
— Certamente que não — respondi com dignidade. — As relações entre empregador e empregada são...
— Cale a boca, Paul. — Beijou-me sem permissão. — O que é que você quer que eu faça?
— Vá até Huyler. Há muitos lugares na área do portão onde você pode tomar o desjejum. Há um lugar que quero que você mantenha sob vigilância atenta, mas não constante. — Descrevi o prédio fechado com barras de ferro e a localização. — Procure apenas ver quem entra e sai do edifício e o que acontece lá. E lembre-se, você é uma turista. Permaneça num grupo ou tão perto de um grupo quanto puder, durante todo o tempo. Belinda ainda está no quarto?
— Sim. — Maggie sorriu. — Belinda recebeu um telefonema enquanto eu me vestia. Boas notícias, acho.
— Quem é que Belinda conhece em Amsterdam? — perguntei secamente. — Quem chamou?
— Astrid Lemay.
— O que, em nome de Deus, está você dizendo? Astrid Lemay fugiu do país. Tenho prova disso.
— Claro que fugiu. — Maggie estava-se divertindo. — Fugiu porque você lhe deu uma missão muito importante para realizar e ela não podia desempenhá-la porque estava sendo seguida por toda parte. Assim, fugiu, desceu em Paris, conseguiu a devolução do preço da passagem para Atenas, e voltou diretamente para aqui. Ela e George estão num lugar fora de Amsterdam, em companhia de amigos em quem podem confiar Mandou dizer-lhe que seguiu a pista que você lhe deu. Mandou dizer que foi ao Kasteel Linden e que...
— Oh, meu Deus! — exclamei. — Oh, meu Deus! — Olhei para Maggie, de pé ali, o sorriso desvanecendo-se lentamente dos lábios. Durante um breve momento, senti desejo de surrá-la selvagemente pela ignorância, estupidez, rosto sorridente, conversa vazia sobre boas notícias e, em seguida, mais vergonha de mim mesmo do que em qualquer outra ocasião da vida, pois a culpa era minha, não dela, e eu teria preferido cortar a minha mão antes de magoá-la. Em vez disso, porém, passei o braço em volta dela e disse:
— Maggie, preciso ir. Ela sorriu-me, hesitante.
— Sinto muito. Não compreendo. — Maggie?
— Sim, Paul?
— Como é que você pensa que Astrid Lemay descobriu o número do telefone do seu hotel?
— Oh, meu Deus! — disse ela, pois agora entendera. Corri para meu carro sem olhar para trás, dei partida e acelerei, mudando as marchas como um homem possuído pelo demônio; o que acho que me acontecia. Acionei o comutador que acendia a luz policial azul intermitente, liguei a sirena, coloquei os fones no ouvido e comecei a mexer desesperadamente nos botões do rádio. Ninguém me ensinara como operar a aparelhagem e dificilmente aquela era a ocasião de aprender. O carro estava cheio de ruídos, o uivo agudo do motor "envenenado", o clamor da sirena, a estática e os estalidos nos fones e, o que me pareceu mais alto que tudo, o som de minhas imprecações ásperas, secas e inúteis enquanto tentava pôr o maldito rádio a funcionar. Subitamente, porém, os estalos cessaram e ouvi uma voz calma e confiante.
— Central de Polícia — berrei. — Coronel De Graaf. O diabo leve quem eu sou. Apresse-se, homem, apresse-se. — Houve um longo e enfurecedor silêncio enquanto eu abria um caminho sinuoso pelo tráfego pesado de inícios da manhã. Finalmente, ouvi uma voz nos fones:
— O Coronel De Graaf não chegou ainda ao gabinete.
— Então, ligue para a casa dele! — gritei. Finalmente, conseguiram localizá-lo em casa. — Coronel De Graaf? Sim, sim, sim. Isso não tem importância. Aquela boneca que vimos ontem. Conheci antes uma moça parecida com a boneca. Astrid Lemay. — De Graaf começou a fazer perguntas, mas interrompi-o. — Por amor de Deus, esqueça isso. O armazém... Penso que ela está em perigo mortal. Estamos lidando com um criminoso maníaco. Pelo amor de Deus, ande depressa!
Lancei para os lados os fones e concentrei-me em dirigir e amaldiçoar-me. Se querem um candidato para ser engabelado, pensei selvagemente, então Sherman é o próprio. Mas, ao mesmo tempo, sabia que estava sendo pelo menos um pouco injusto comigo mesmo: eu enfrentava uma organização criminosa brilhantemente dirigida, isto era certo, mas uma organização que continha no seu seio um elemento psicopata imprevisível, que tornava quase impossível uma previsão normal. Certo, Astrid havia vendido Duelos, mas fora Duelos ou George, e George era o irmão. Haviam-na enviado para espionar-me, pois ela mesma não poderia saber que eu estava hospedado no Rem-brandt, mas, em vez de procurar conquistar minha ajuda e simpatia, havia-se acovardado no último momento, eu a localizara, e aí começou o problema, isto é, quando ela começou a tornar-se um passivo em vez de um ativo. Passou a encontrar-se comigo — ou eu a encontrar-me com ela — sem o conhecimento ostensivo deles. É possível que eu tivesse sido visto arrastando George para longe do realejo na Rembrandtplein, na igreja, ou por aqueles dois bêbados que vi do lado de fora do apartamento dela, e que não eram bêbados, absolutamente.
Por fim, resolveram que era melhor tirá-la do caminho, mas não de um modo que me levasse a pensar que algum mal lhe havia acontecido, porque com toda probabilidade pensavam, e com razão, que se eu achasse que a haviam aprisionado ou que ela se encontrava de algum outro modo em perigo, eu teria abandonado toda esperança de atingir meu objetivo final e feito o que, sabiam agora, era a última coisa que eu queria fazer — ir à Polícia e contar o que sabia. Provavelmente, eles suspeitavam de que fosse muita coisa. Isto, de igual modo, era a última coisa que queriam que eu fizesse, pois, muito embora indo à Polícia eu estivesse frustrando meus próprios objetivos finais, poderia de tal maneira prejudicar-lhes a organização que talvez levassem meses, ou talvez anos, para reconstruí-la. E assim Durrell e Marcel haviam desempenhado o papel que lhes coubera na manhã anterior no Balinova, enquanto eu exagerava o meu até o fim. Convencera-me, além de qualquer dúvida, que Astrid e George haviam partido para Atenas. Certamente que haviam. Haviam partido sem dúvida alguma, mas foram forçados a deixar o avião em Paris e a voltar a Amsterdam. Ao falar com Belinda, ela o fizera com uma arma apontada para a cabeça.
E agora, naturalmente, Astrid para nada mais lhes servia. Astrid passara para o inimigo e havia um único fim para pessoas como ela. Agora, de certo, não precisavam temer mais reação alguma de minha parte, pois eu havia morrido às duas da manhã no porto das alvarengas. Eu possuía a chave de tudo agora, porque sabia por que eles haviam esperado. Mas sabia igualmente que a chave chegara tarde demais para salvar Astrid.
Não me choquei com coisa alguma nem matei ninguém durante a corrida através de Amsterdam, mas isto apenas porque os cidadãos locais são indivíduos de reações muito rápidas. Encontrava-me na velha cidade, aproximando-me do armazém a alta velocidade pela rua de mão única que levava ao local, quando vi a barreira da Polícia, um carro parado no sentido da largura da rua, com um homem armado de cada lado. Parei com um chiado dos pneumáticos. Saltei. Um policial aproximou-se.
— Polícia — disse ele no caso de eu ser algum vendedor de apólices de seguro ou de outra coisa. — Por favor, volte.
— Vocês não reconhecem um dos seus próprios carros? — rosnei. — Saia do meu maldito caminho.
— Ninguém pode entrar nesta rua.
— Deixe passar. — De Graaf apareceu do outro lado, e, se eu não tivesse sabido pela expressão do pessoal do carro da Polícia, o seu rosto me teria contado tudo. — Não é um espetáculo muito agradável de ver, major Sherman.
Passei por ele sem falar, dobrei a esquina e olhei para cima. Daquela distância, uma figura semelhante a uma boneca balançava-se preguiçosamente da viga de içamento na cumeeira da Morgenstern e Muggenthaler. Parecia pouco maior do que a boneca verdadeira que eu vira na manhã anterior, mas aquela eu observara diretamente de baixo e esta devia ser maior, muito maior. Vestia mesmo um trajo típico igual ao da boneca que balouçara de um lado para o outro tão pouco tempo antes. Não precisava aproximar-se muito mais para saber que o rosto da boneca de ontem era uma perfeita reprodução da face que estava ali agora. Desviei a vista e virei a esquina, seguido por De Graaf.
— Por que não a desce? — perguntei. Ouvi minha voz como se viesse de uma grande distância, anormalmente fria, calma e inteiramente sem expressão.
— É trabalho para um médico. Ele está agora lá em cima.
— Naturalmente. — Após uma pausa, disse: — Ela não pode ter estado lá há muito tempo. Estava viva há menos de uma hora. Claro que o armazém estava aberto muito antes...
— Hoje é sábado. Não abrem aos sábados.
— Naturalmente — repeti em tom mecânico. Ocorrera-me outro pensamento, um pensamento que me provocou um medo ainda mais profundo e um calafrio. Astrid, com uma arma apontada para a cabeça, telefonara para o Touring. Mas telefonara com uma mensagem para mim, uma mensagem sem sentido, que não poderia nem deveria produzir resultado algum, pois eu repousava no fundo do porto. Poderia ter finalidade apenas se me fosse transmitida. Seria enviada apenas se soubessem que eu ainda estava vivo. E como podiam saber que eu ainda estava vivo? Quem lhes poderia ter transmitido a informação de que eu ainda vivia? Ninguém me vira — exceto as três velhas em Huyler. E por que deveriam elas preocupar-se...
Havia mais. Por que deveriam eles telefonar-me e pôr seus planos em perigo matando Astrid, após terem tido tanto trabalho para me convencerem de que ela estava viva e com saúde? Inesperadamente, com toda a certeza, eu soube da resposta. Haviam esquecido algo. Eu também esquecera algo. Haviam esquecido o que Maggie esquecera, isto é, que Astrid não sabia do número telefônico do novo hotel onde elas se hospedavam e eu, por minha parte, esquecera que nem Maggie nem Belinda haviam-na conhecido ou falado com ela. Voltei a dobrar a esquina. Sob a cumeeira do armazém a corrente e o gancho ainda balançavam um pouco, mas o corpo desaparecera.
Voltei-me para De Graaf:
— Chame o médico. — Ele apareceu dois minutos depois, um jovem, pensei, recém-saído da escola de medicina. Achei que estava muito pálido.
— Ela está morta há horas, não? — perguntei asperamente.
Ele inclinou a cabeça.
— Quatro, cinco horas. Não posso ter certeza.
— Muito obrigado. — Voltei a dobrar a esquina, acompanhado de De Graaf. Na sua face li dezenas de perguntas, mas não senti vontade de respondê-las.
— Matei-a — disse eu. — É possível que tenha morto alguém mais.
— Não compreendo — disse De Graaf.
— Acho que enviei Maggie à morte.
— Maggie?
— Desculpe. Não lhe contei. Eu tinha duas moças comigo, ambas da Interpol. Maggie era uma delas. A outra encontra-se no Touring Hotel. — Dei-lhe o nome e o telefone de Belinda. — Entre em contato com ela, sim, por favor? Diga-lhe para fechar a porta e permanecer onde está até que eu a procure e que deve ignorar todo e qualquer recado telefônico ou escrito que não contenha a palavra "Birmingham". O senhor poderá fazer isso pessoalmente, por favor?
— Naturalmente.
Inclinei a cabeça na direção do carro de De Graaf.
— Poderia falar pelo radiotelefone com Huyler? Ele sacudiu negativamente a cabeça.
— Então, a Chefatura de Polícia. — Enquanto De Graaf falava com o motorista, um sombrio Van Gelder apareceu na esquina. Conduzia uma maleta de mão.
— De Astrid Lemay? — perguntei. Ele confirmou com a cabeça. — Deixe-me vê-la, por favor.
Ele acenou negativamente e com firmeza.
— Não posso. Num caso de assassinato...
— Entregue a maleta a ele — disse De Graaf.
— Obrigado — disse eu a De Graaf. — Um metro e sessenta e dois, cabelo preto longo, olhos azuis, muito bonita, camisa e jaqueta de marinheiro, blusa e bolsa brancas. Ela deverá estar na área...
— Um momento. — De Graaf inclinou-se para o motorista e disse em seguida. — As linhas para Huyler parecem ter sido cortadas. A morte parece segui-lo, major Sherman.
— Eu lhe telefonarei mais tarde, ainda esta manhã — respondi e dirigi-me para meu carro.
— Irei com o senhor — disse Van Gelder.
— O senhor está muito ocupado aqui. No lugar aonde vou, não quero policiais comigo.
Van Gelder baixou a cabeça.
— O que significa que vai agir fora da lei.
— Eu já estou fora da lei. Astrid Lemay está morta. Jimmy Duelos está morto. Maggie pode estar morta. Eu quero conversar com certas pessoas que matam outras pessoas.
— Penso que deveria entregar-nos sua arma — disse Van Gelder em voz ponderada.
— O que é que o senhor espera que eu tenha nas mãos quando conversar com eles? Uma Bíblia? Para rezar pela alma deles? Será preciso matar-me primeiro, Van Gelder, antes de tomar-me a arma.
— O senhor tem informações e as oculta de nós — disse De Graaf.
— Exato.
— Isto não é cortês, nem prudente, nem legal. Entrei no carro.
— Quanto à prudência, o senhor pode julgar depois. A cortesia e a legalidade não me interessam mais.
Dei partida ao motor e, quando o fiz, Van Gelder fez um movimento na minha direção. Ouvi De Graaf dizer:
— Deixe-o, inspetor, deixe-o.
Não fiz muitos amigos na volta a Huyler, mas não estava mesmo no estado de espírito de fazê-los. Em circunstâncias normais, guiando de maneira louca e completamente irresponsável, eu devia ter-me envolvido em pelo menos meia dúzia de acidentes, todos eles sérios, mas descobri que a luz relampejante e a sirena da Polícia possuíam o efeito quase mágico de limpar o caminho. À distância de uns oitocentos metros, veículos que se aproximavam ou iam na minha direção diminuíam a marcha ou paravam bem fora do leito da estrada. Fui perseguido durante algum tempo por um carro policial, que devia saber melhor, mas o motorista carecia de minha urgência e motivação e, clara e sensatamente, chegou à conclusão de que não havia motivo para matar-se simplesmente para ganhar o salário semanal. Seria dado, eu sabia, um imediato alerta pelo rádio, mas eu não temia barreiras na estrada ou quaisquer formas de obstáculos: uma vez o número da placa fosse recebido na Chefatura, eu seria deixado em paz.
Eu teria preferido completar a viagem em outro carro ou de ônibus, pois uma característica que falta visivelmente a um taxi amarelo e vermelho é a discrição, mas a pressa era mais importante. Fiz uma acomodação, percorrendo o trecho final da passagem elevada numa velocidade relativamente conservadora: o espetáculo de um taxi amarelo e vermelho aproximando-se da aldeia a uma velocidade de cento e sessenta quilômetros horários provocaria alguma especulação mesmo entre os renomadamente indiferentes holandeses.
Parei o carro no parque, que se enchia rapidamente, tirei o paletó, o coldre a tiracolo e a gravata, levantei o colarinho, subi as mangas e saí do veículo com o paletó pendurado displicentemente no braço esquerdo. Sob o paletó levava a pistola com o silenciador em posição.
O notoriamente instável clima holandês mudara espetacularmente para melhor. Quando deixara Amsterdam, o céu já havia começado a clarear e naquele momento havia apenas tufos de algodão num céu de outra maneira sem nuvens e um sol já quente levantava vapores das casas e campos vizinhos. Caminhei sem pressa, mas não devagar demais, para o prédio que pedira a Maggie que observasse. A porta estava aberta de par em par e a intervalos vi pessoas, todas elas mulheres em seus trajos típicos, andando pelo interior. Vez por outra saía um e dirigia-se à aldeia e, de vez em quando, um homem com uma caixa de papelão que punha num carrinho de mão e empurrava também na direção da aldeia. Ali era a sede de uma indústria caseira de algum tipo. Que tipo de indústria, era impossível julgar do exterior. Que parecia inteiramente inocente era evidenciado pelo fato de que turistas que passavam por ali eram ocasionalmente convidados com sorrisos a entrar e olhar. Todos os que vi entrar saíram e, assim, claramente, aquele era o menos sinistro dos lugares. Ao norte do prédio, estendia-se um trecho quase ininterrupto de campos de feno. À distância, vi um grupo de mulheres idosas, vestidas em trajos típicos, lançando feno ao ar para secá-lo no sol matutino. Os homens de Huyler, refleti, parece que levavam a vida que pediram a Deus: nenhum deles parecia fazer coisa alguma.
Não vi sinais de Maggie. Voltei lentamente à aldeia, comprei óculos coloridos — óculos muito escuros, em vez de servir para ocultar, costumam atrair a atenção e, com toda probabilidade, esse é o motivo por que tantos os usam — e um chapéu de palha mole, com o qual não queria ser visto nem morto fora de Huyler. Dificilmente aquilo podia ser considerado um disfarce perfeito, pois coisa alguma, salvo tinturas, podiam ocultar as cicatrizes brancas que eu levava no rosto, mas pelo menos proporcionava-me certo grau de anonimato e eu achava que não parecia absolutamente diferente das dezenas de turistas que vagueavam pela aldeia.
Huyler era uma aldeia muito pequena, mas quando se começa a procurar alguém cujo paradeiro se desconhece, e quando esse alguém pode estar andando por ali na mesma ocasião, a menor das aldeias pode tornar-se embaraçosamente grande. Com a maior rapidez possível que não atraísse atenção, percorri todas as vielas de Huyler sem encontrar o menor traço de Maggie.
Eu estava bem adiantado no caminho do desespero, ouvindo uma voz íntima que me dizia com embotadora certeza que chegara tarde demais. Sentia-me ainda mais frustrado por ter de conduzir a busca adotando, pelo menos, um mínimo de ar despreocupado. Iniciei uma visita a todas as lojas e cafés, muito embora, se Maggie estivesse ainda viva e com saúde, eu dificilmente pudesse esperar encontrá-la num deles, em vista da missão que lhe confiara. Mas não podia ignorar possibilidade alguma.
As lojas e cafés situados em volta do porto interno redundaram em fiasco completo. E entrei em todas elas. Iniciei, então, uma série de círculos concêntricos cada vez maiores, tanto quanto se pode aplicar um termo geométrico ao labirinto de vielas, abertas ao acaso, que se chamava Huyler. E foi no mais externo desses círculos, que a encontrei, viva, com saúde e sem um arranhão. Meu alívio não pode ter sido maior do que a minha sensação de completa idiotia.
Encontrei-a onde devia ter pensado encontrá-la imediatamente se estivesse usando a cabeça, como ela usara. Eu lhe dissera que mantivesse o prédio sob observação, mas, ao mesmo tempo, ficasse em companhia de alguém. Ela fazia justamente isso. Encontrava-se no interior de uma grande e congestionada loja de lembranças, examinando alguns artigos à venda, mas sem vê-los na realidade. Olhava fixamente, em vez disso, para o grande edifício a menos de trinta metros, com tanta atenção, de fato, que nem me notou. Dei um passo para dentro da loja com a intenção de falar-lhe quando, de súbito, vi algo que me fez ficar absolutamente imóvel e olhar com tanta rigidez como Maggie, embora não na mesma direção.
Trudi e Herta desciam a rua. Trudi, usando um vestido cor-de-rosa sem mangas e longas luvas de algodão branco, saltitava na sua costumeira maneira infantil, com o cabelo louro balançando de um lado para o outro e um sorriso infantil nos lábios. Herta, usando os habituais trajos grotescos, gingava de um lado para o outro com uma grande bolsa de couro na mão.
Entrei rapidamente na loja, mas não na direção de Maggie. De maneira alguma queria que aquelas duas me vissem conversando com Maggie. Em vez disso, tomei uma posição estratégica por trás de uma estante giratória de cartões postais e esperei que ambas passassem.
Não passaram. Passaram pela porta principal, é certo, mas pararam, pois Trudi deteve-se subitamente, espiou pela vitrina junto da qual se encontrava Maggie e puxou Herta pelos braços. Segundos depois, convenceu a evidentemente relutante Herta a entrar na loja, soltou o braço da ama, que permaneceu por ali fervendo como um vulcão prestes a explodir, deu um passo à frente e puxou Maggie pelo braço.
— Eu conheço você — disse Trudi, satisfeitíssima. — Eu conheço você!
Maggie virou-se e sorriu:
— Eu conheço você, também. Alô, Trudi.
— Esta aqui é Herta. — Trudi voltou-se para Herta que evidentemente não aprovava coisa alguma do que acontecia. — Herta, esta é a minha amiga, Maggie.
Herta respondeu à apresentação com uma carranca.
— O major Sherman é meu amigo — disse Trudi.
— Eu sei — disse Maggie com um sorriso.
— Você é minha amiga, Maggie?
— Claro que sou, Trudi. Trudi pareceu muito contente.
— Eu tenho muitas outras amigas. Gostaria de conhecê-las? — Praticamente puxou Maggie até a porta e apontou. Apontou para o norte e eu sabia que somente podia apontar para as colhedoras de feno que trabalhavam na extremidade distante do campo. — Olhe. Lá estão elas.
— Tenho certeza de que são excelentes amigas — disse Maggie em tom polido.
Um caçador de cartões postais aproximou-se vagarosamente como a indicar que eu devia ir em frente e deixá-lo examinar a mostra. Não tenho certeza sobre o tipo de olhar que lhe dirigi, mas foi suficiente para fazê-lo afastar-se em passos apressados.
— São boas amigas — dizia Trudi. — Quando Herta e eu estamos aqui, nós sempre lhes levamos comida e café pela manhã. — Impulsivamente, disse: — Venha conhecê-las, Maggie. — Tendo Maggie hesitado, disse ansiosa: — Você é minha amiga, não?
— Claro, mas...
— Elas são amigas muito boazinhas — suplicou Trudi. — São tão felizes! Tocam música. Se formos muito boas, elas talvez dancem a dança do feno para nós.
— A dança do feno?
— Sim, Maggie. A dança do feno. Por favor, Maggie. Vocês, todas, são minhas amigas. Por favor, venha. Faça isso por mim. Maggie?
— Oh, muito bem. — Maggie riu, hesitante. — Apenas por você, Trudi. Mas não posso demorar-me muito.
— Eu gosto de você, Maggie — disse Trudi, apertando-lhe o braço. — Gosto realmente de você.
Saíram as três. Esperei um discreto período e, em seguida, deixei cautelosamente a loja. Estavam já a uns cinqüenta metros, além do edifício que eu pedira a Maggie que vigiasse, e já nos campos de feno. As colhedoras encontravam-se a pelo menos seiscentos metros de distância, construindo o primeiro monte de feno do dia perto de uma estrutura muito parecida, mesmo àquela distância, com um estábulo holandês bastante antigo e decrépito. Ouvi a conversa das três naquela parte do campo já cortada e toda a algaravia parecia vir de Trudi, que voltara ao seu costume de saltitar como um cordeiro na primavera. Trudi nunca andava: cabriolava sempre.
Segui-as, mas não cabriolando. Uma cerca viva corria ao longo da borda do campo e, prudentemente, conservei-a entre mim e Herta e as duas moças, a cerca de uns trinta ou quarenta metros atrás. Não duvido de que meu método de locomoção deve ter parecido quase tão estranho como o de Trudi porque a cerca tinha menos de um metro e meio de altura e eu passei a maior parte dos seiscentos metros curvado da cintura para baixo como um septuagenário sofrendo um ataque de lumbago.
Finalmente, as três chegaram ao velho estábulo e sentaram-se no lado que dava para o oeste, à sombra, pois o sol estava cada vez mais forte. Com o estábulo entre elas e as colhedoras de feno, corri rapidamente pelo espaço interveniente do outro lado e entrei por uma porta lateral. Não me enganara a respeito do prédio. Devia ter pelo menos cem anos e parecia realmente uma ruína. As tábuas do assoalho cediam ao peso, as paredes de madeira formavam protuberâncias em praticamente todos os lugares e algumas das frestas originais para entrada do ar entre as pranchas horizontais haviam-se alargado a ponto de se poder quase passar a cabeça por elas.
Havia um sótão, cujo assoalho parecia em risco iminente de desmoronar-se, apodrecido, lascado e roído por bichos. Até mesmo um corretor imobiliário inglês teria tido dificuldade em vendê-lo, alegando antigüidade. Não parecia capaz de agüentar o peso de um rato de tamanho normal, e muito menos o meu, mas a parte térrea do estábulo de pouco servia como posto de observação e, além disso, eu não queria espiar por aquelas frestas na parede e encontrar alguém espiando a cinco centímetros de distância. Assim, relutantemente, galguei o arruinado lance de degraus de madeira que conduzia à parte superior.
O sótão, cuja parede leste estava ainda cheia pela metade do feno do ano anterior, era tão perigoso quanto parecia, mas pisei com cuidado e aproximei-me do lado oeste. Esta parede possuía uma coleção ainda melhor de frestas entre as pranchas. Por fim, localizei a ideal, de pelo menos quinze centímetros de largura, abrindo-se para um excelente panorama. Vi as cabeças de Maggie, Trudi e Herta diretamente abaixo de mim: observei as velhas, mais ou menos uma dúzia, que diligente e habilmente estavam construindo um monte de feno, e as pontas de seus forcados brilhando ao sol; distingui parte da própria aldeia, incluindo a maior parte do parque de estacionamento. Eu experimentava uma sensação de inquietude, cujo motivo não podia compreender: a cena de colheita de feno que tinha lugar no campo era tão idílica como o indivíduo de temperamento mais bucólico poderia desejar. Acho que a estranha sensação era produzida pela menos provável das origens, isto é, as próprias colhedoras, pois nem mesmo ali, no meio nativo, aqueles mantos flutuantes de renda e aqueles vestidos elegantemente bordados e chapéus brancos como a neve pareciam inteiramente naturais. Havia algo muito mais do que teatral a respeito delas, uma aura de irrealidade. Senti quase como se estivesse presenciando uma peça montada especialmente para mim.
Passou-se mais ou menos uma hora, durante a qual as velhas trabalharam sem parar, enquanto as três em baixo trocavam apenas palavras banais. O dia era cálido, silencioso e pacífico, cortado apenas pelo silvo dos forcados no ar e o distante murmúrio das abelhas, que parece tornar desnecessária qualquer conversação. Perguntei-me se ousaria acender um cigarro e achei que sim. Procurei no bolso fósforo e cigarros, coloquei o paletó no chão, tendo por cima a pistola armada com o silenciador, acendi o cigarro, tendo todo o cuidado para que a fumaça não escapasse pelas frestas.
Finalmente, Herta consultou um relógio de pulso do tamanho de um despertador de cozinha, disse algo a Trudi, que se levantou, estendeu a mão e ajudou Maggie a levantar-se. Juntas, caminharam na direção das colhedoras, presumivelmente para chamá-las para participar do lanche da manhã, pois Herta já estava estendendo uma toalha axadrezada no chão, arrumando xícaras e desembrulhando a comida dos guardanapos.
Ouvi uma voz atrás de mim.
— Não tente apanhar a arma. Se o fizer, nunca chegará a tocá-la.
Acreditei na voz e não tentei.
— Vire-se, bem lentamente.
Virei-me bem devagar. Era aquele tipo de voz.
— Afaste-se três passos da arma. Para a esquerda. Não vi ninguém. Mas ouvia-a perfeitamente. Dei três passos à esquerda.
O feno moveu-se no outro lado do sótão e duas figuras apareceram: o Reverendo Thaddeus Goodbody e Marcel, o almofadinha reptiliano que eu esmurrara e empurrara para dentro do cofre no Balinova. Goodbody não portava arma, mas não precisava dela: o bacamarte que Marcel trazia na mão era maior do que duas pistolas comuns e, a julgar pelo brilho nos olhos pretos, imóveis e sem vida, ele procurava atentamente o mais remoto fio de pretexto para usá-lo. Tampouco me encorajava o fato de ter aquela arma um silenciador; isto significava que não se importariam com quantos tiros tivessem de disparar porque ninguém ouviria coisa alguma.
— Está danado de quente aqui — queixou-se Goodbody. — E dá comichão. Sorriu daquela maneira que fazia criancinhas quererem dar-lhe a mão. — A sua profissão o traz aos lugares mais inesperados, sou obrigado a dizer, meu querido Sherman.
— Minha profissão?
— Na última vez em que o vi, você fingia, se me lembro corretamente, ser chofer de táxi.
— Ah, aquela vez. Aposto, que, afinal de contas, não me denunciou à Polícia.
— Pensei mais no assunto — concedeu Goodbody generosamente. Aproximou-se do local onde se encontrava minha arma, apanhou-a com desgosto e jogou-a no monte de feno. — Armas grosseiras, desagradáveis.
— Sim, de fato — concordei. — O senhor prefere agora introduzir um toque de refinamento nos seus assassinatos.
— Como vou demonstrar antes de muito tempo. — Goodbody não se preocupou em baixar a voz, nem precisava, pois as matronas de Huyler estavam ocupadas com o café matinal e mesmo com as bocas cheias pareciam ser capazes de falar. Goodbody dirigiu-se até o monte de feno, puxou uma maleta de lona e dela tirou um pedaço de corda. — Fique alerta, meu caro Marcel. Se o Sr. Sherman fizer o menor movimento, por mais inocente que seja, atire. Não para matar. Na coxa.
Marcel passou a língua pelos lábios. Tive a esperança de que ele não considerasse o movimento de minha camisa, ocasionado pelos batimentos acelerados do meu coração, como daqueles que podiam ser motivo de suspeitas. Goodbody aproximou-se discretamente por trás, amarrou firmemente a corda em volta de meu punho direito, passou-a sobre um caibro em cima e, depois do que pareceu um período desnecessariamente longo de ajustamento, amarrou-me o punho esquerdo. As mãos ficaram ao nível dos ouvidos. Goodbody apanhou outro pedaço de corda.
— Pelo meu amigo Marcel aqui — disse ele em tom de conversação — soube que o senhor tem certas habilidades com as mãos. Ocorreu-me que podia ser analogamente dotado no tocante aos pés. — Curvou-se e amarrou-me os tornozelos com um entusiasmo que era um mau augúrio para a circulação dos meus pés. — Ocorreu-me ainda que o senhor pode ter algum comentário a fazer sobre a cena que está prestes a presenciar. Preferiríamos, no entanto, dispensar o comentário. — Enfiou um lenço longe de limpo em minha boca e amarrou-a com outro. — Satisfatório, Marcel, não acha?
Os olhos de Marcel faiscaram.
— Eu tenho uma mensagem para Sherman de parte do Sr. Durrell.
— Ora, ora, meu querido amigo, não se precipite. Mais tarde, mais tarde. No momento, queremos que o nosso amigo esteja de plena posse de suas faculdades, visão perfeita, audição intacta, e mente a mais aguda possível, para apreciar todas as nuanças artísticas do entretenimento que organizamos especialmente para ele.
— Naturalmente, Sr. Goodbody — disse Marcel, obediente. Voltara ao repulsivo hábito de passar a língua pelos lábios.
— Mas depois...
— Depois — respondeu Goodbody com generosidade — pode entregar tantas mensagens quantas quiser. Mas lembre-se... Quero-o vivo quando o estábulo se incendiar hoje à noite. É uma pena que não possamos presenciar o espetáculo de perto!
— Parecia mesmo triste. — O senhor e aquela encantadora moça ali embaixo... quando encontrarem os restos calcinados entre as cinzas... bem, tenho certeza de que a Polícia tirará suas próprias conclusões a respeito de descuidados sonhos de amor. Fumar em estábulos, como o senhor acaba de fazer, é um costume muito imprudente. Muito imprudente. Adeus, Sr. Sherman, e não estou dizendo au revoir. Acho que devo observar mais de perto a dança do feno. Um costume antigo tão encantador! Acho que concordará.
Saiu, deixando Marcel a lamber os lábios. Eu não gostei muito de ser deixado a sós com Marcel, mas aquilo pouca importância tinha para mim no momento. Torci-me e olhei pela frente nas pranchas.
As velhas haviam terminado o café e levantaram-se pesadamente. Trudi e Maggie encontravam-se diretamente sob o local onde eu me encontrava.
— Os bolos não estavam bons, Maggie? — perguntou Trudi. — E o café?
— Ótimo, Trudi, ótimo. Mas estou aqui há muito tempo. Preciso fazer algumas compras. Preciso ir agora. — Maggie parou por um momento e levantou a vista. — O que é isso?
Dois acordeões haviam começado a tocar baixo e suavemente. Não vi nenhum dos músicos. O som parecia vir do lado oposto do monte de feno que as velhas acabavam de levantar.
Trudi levantou-se de um salto, batendo palmas, excitada. Estendeu a mão e ajudou Maggie a levantar-se.
— É a dança do feno! — exclamou como uma criança que ganha um presente de aniversário. — A dança do feno! Vão dançá-la para você! Você é amiga delas, também.
As matronas, todas de meia-idade ou mais velhas, exibindo rostos curiosa e quase alarmantemente carentes de expressão, começaram a mover-se como uma espécie de pesada exatidão. Levando os forcados aos ombros como fuzis, formaram uma linha reta e começaram a bater pesadamente os pés, balançando as trancas amarradas de fitas à medida que a música aumentava de volume. Piruetavam gravemente e voltavam em seguida às marchas rítmicas, para a frente e para trás. Notei que a linha reta curvava-se gradualmente na forma de uma meia-lua.
— Nunca vi uma dança como essa antes — disse Maggie, perplexa. Eu nunca vira tampouco e sabia com doentia e apavorante certeza que nunca mais quereria vê-la. Não, segundo parecia, que eu jamais fosse ter oportunidade de vê-la novamente.
Trudi ecoou meus pensamentos, mas suas sinistras implicações não foram percebidas por Maggie.
— E você nunca mais verá uma dança como essa, Maggie — disse ela. — Elas estão apenas começando. Oh, Maggie, elas devem gostar de você... Veja, querem que você as acompanhe!
— Eu?
— Sim, Maggie. Elas gostam de você. Às vezes elas me chamam. Hoje, você.
— Preciso ir embora, Trudi.
— Por favor, Maggie. Só por um momento. Você não tem que fazer coisa alguma. Fica só de pé de frente para elas. Por favor, Maggie. Elas ficarão magoadas se você não fizer isso.
Maggie riu em tom de protesto e resignação:
— Oh, muito bem.
Segundos depois, uma Maggie relutante e muito embaraçada tomou a posição central no semicírculo enquanto as matronas avançavam e recuavam em sua direção. Aos poucos, a configuração e o ritmo da dança mudaram e se aceleraram enquanto as dançarinas fechavam um círculo completo em torno de Maggie. O círculo contraía--se e expandia-se, curvando gravemente as mulheres a cabeça ao se aproximarem ao máximo e sacudindo-as e às trancas para trás ao recuarem batendo os pés.
Goodbody apareceu em minha linha de visão com um sorriso suavemente divertido e bondoso, como se participasse vicariamente do prazer da velha e encantadora dança que se desenrolava diante de seus olhos. Parou ao lado de Trudi e colocou uma mão no ombro da moça. Ela sorriu deliciada para ele.
Senti vontade de vomitar. Queria desviar a vista, mas fazê-lo teria sido abandonar Maggie e eu nunca a abandonaria. Somente Deus sabia que não podia ajudá-la agora. Havia embaraço no rosto dela agora, perplexidade, e mais de que uma sombra de inquietação. Ansiosamente, olhou para Trudi através de uma fresta entre duas matronas. Trudi endereçou-lhe um grande sorriso e acenou num gesto de encorajamento.
Subitamente, mudou a música do acordeão. O que fora uma cadência coreográfica suavemente alegre, embora com uma nota militar no fundo, aumentou rapidamente de volume ao mudar para outra coisa de natureza completamente diferente, algo áspero, primitivo, selvagem, violento. As matronas, tendo expandido o círculo ao máximo, começaram a fechá-lo novamente. De minha elevação vi ainda Maggie, olhos arregalados agora, e medo na face. Inclinou-se para um dos lados e procurou Trudi, quase em desespero. Mas não havia salvação em Trudi: o sorriso desaparecera, as mãos enfiadas nas luvas de algodão estavam crispadas, e ela lambia vagarosa e obscenamente os lábios. Voltei-me para olhar Marcel, que observava também. Ele, porém, ainda me apontava a arma e olhava-me com tanta atenção como seguia a cena externa. Eu nada podia fazer.
As matronas voltaram batendo os pés. Os rostos de lua cheia haviam perdido a expressão alvar e mostravam-se agora impiedosos, implacáveis. O medo cada vez maior no olhar de Maggie transformou-se em pavor e seus olhos se escancararam à medida que a música se tornava mais forte e discordante. Abruptamente, com precisão militar, os forcados levados no ombro foram baixados em arco até apontarem diretamente para Maggie. Ela gritou, gritou novamente, mas o som mal foi ouvido sob o crescendo quase insanamente dissonante dos acordeões. Maggie caiu e, misericordiosamente, tudo que vi foram as costas das matronas quando os farcos subiram e desceram, convulsivamente, trespassando algo que se encontrava agora imóvel no chão. Durante alguns momentos não suportei olhar. Fui obrigado a desviar a vista. E havia Trudi. Suas mãos abriam-se e fechavam-se e na face, como que magnetizada e em transe, vi uma expressão horrenda e animalesca; ao seu lado, o Reverendo Goodbody, a face tão benevolente e suave como sempre, numa expressão desmentida pelos olhos imóveis. Mentes perversas, mentes malvadas, que há muito tempo haviam deixado muito atrás as fronteiras da sanidade.
Forcei-me a olhar mais uma vez à medida que a música diminuía aos poucos, perdendo sua qualidade primeva e atávica. Os gestos frenéticos das matronas haviam caído de ritmo, o apunhalamento cessara e, enquanto eu observava, uma delas voltou-se para o lado e ergueu no ar o forcado cheio de feno. Durante um momento, vislumbrei uma figura caída, vestida com uma blusa branca, que não era mais branca, sobre uma touceira cortada de feno. Em seguida, uma garfada de feno do forcado ocultou-a. Seguiu-se outra garfada, mais outra, e mais outra, e enquanto os dois acordeões, baixos, suaves, abafados agora, falavam nostalgicamente de Viena, construíram um monte sobre Maggie. O Dr. Goodbody e Trudi, ela mais uma vez sorridente e alegremente palradora, afastaram-se de braços dados em direção à aldeia.
Marcel deixou a fresta nas pranchas e disse:
— O Dr. Goodbody dirige tão bem essas coisas, não acha? O jeito, a sensibilidade, a oportunidade, o local, a atmosfera... muito bem executado, muito bem executado.
O sotaque bem modulado de Oxford-Cambridge que emanava daquela cabeça de serpente não era menos repelente do que o contexto em que ele usava as palavras: como os demais, era inteiramente louco.
Aproximou-se de mim prudentemente por trás, desfez o nó do lenço amarrado em torno da minha cabeça e puxou o bolo nojento de algodão que me haviam enfiado na boca. Não pensei que estivesse sendo motivado por considerações humanitárias. Não estava. Descuidadamente disse:
— Quando você gritar, eu quero ouvir. Não acredito que as senhoras lá fora prestem muita atenção.
Eu tinha certeza de que não. Respondi:
— Estou surpreso que o Dr. Goodbody tivesse sido forçado a ir embora. — Minha voz não parecia com qualquer outra que eu usara antes: estava rouca e grossa e era com dificuldade que eu formava as palavras, como se a laringe estivesse ferida.
Marcel sorriu.
— O Dr. Goodbody tem assuntos urgentes em Amsterdam. Coisas importantes.
— E coisas importantes para transportar daqui até Amsterdam.
— Indubitavelmente. — Sorriu mais uma vez e eu quase pude ver o capelo da cobra dilatando-se. — Classicamente, meu querido Sherman, quando uma pessoa está no seu caso, derrotado, e vai morrer, é costume que uma pessoa em minha situação explique, em carinhosos detalhes, em que a vítima errou. Mas, à parte o fato de sua lista de cincadas ser tão grande que seria tedioso enumerá-las, eu simplesmente não me quero dar a esse trabalho. Assim, prossigamos, sim?
— Prossigamos com o quê? — Lá vem agora, pensei, mas não me importava muito. Não parecia importar muito mais.
— A mensagem do Sr. Durrell, naturalmente.
A dor cortou como um machete de carniceiro a minha cabeça e um lado do rosto quando ele me atingiu com o cano da arma. Pensei que a mandíbula quebrara, mas não tinha certeza. A língua, porém, informou-me que pelo menos dois dentes eu perdera, sem possibilidade de conserto.
— O Sr. Durrell — disse Marcel, feliz — pediu-me para dizer-lhe que não gosta de ser surrado com uma pistola. — Passou ao lado direito de rosto e, embora eu visse, soubesse o que estava a caminho e tentasse lançar a cabeça para trás, não pude evitar o golpe. Não doeu tanto como o outro, mas eu sabia que estava gravemente ferido devido à temporária perda de visão que se seguiu à brilhante luz branca que pareceu explodir à frente dos meus olhos. A face estava em chamas, a cabeça esfacelava-se, mas a mente permanecia estranhamente clara. Um pouco mais desse espancamento sistemático, sabia, e até mesmo um cirurgião plástico sacudiria tristemente a cabeça. Mas o que realmente importava era que, com um pouco mais do mesmo tratamento, eu perderia a consciência, talvez durante horas. Parecia haver uma única esperança: tornar o espancamento assistemático.
Cuspi um dente e disse:
— Bicha.
Isto, por algum motivo, atingiu-o. Para começar, o verniz de urbanidade civilizada não poderia ter sido mais espesso do que a casca de uma cebola, e ela não despelou simplesmente, desapareceu de uma vez e o que sobrou foi um selvagem, descerebrado e alucinado, que me atacou com a fúria desumana, insensata, estúpida dos mentalmente desequilibrados, o que ele quase certamente era. Os golpes choveram de todas as direções, na cabeça e ombros, golpes da arma e golpes dos punhos. Quando tentei defender-me como podia com os antebraços, ele mudou o ataque insano para o corpo. Gemi, meus olhos viraram para cima, as pernas transformaram-se em geléia e desmoronei naquela posição. Fiquei pendendo frouxamente das cordas que me prendiam os pulsos.
Dois ou três minutos mais de agonia passaram antes que ele se recuperasse o suficiente para compreender que perdia seu tempo. Do ponto de vista de Marcel, não havia proveito em infligir castigo a uma pessoa que não podia sentir-lhe os efeitos. Emitiu um estranho ruído que, com toda probabilidade, indicava desapontamento mais do que qualquer outra coisa e ficou ali, respirando com o esforço. O que pretendia fazer em seguida eu não podia desconfiar, pois não ousava abrir os olhos.
Ouvi-o afastar-se um pouco e arrisquei um olhar pelo canto do olho. Passada a loucura momentânea, Marcel, que com toda certeza era tão oportunista como sadista, apanhou meu paletó e estava revistando-o, esperançoso, mas sem sucesso, pois carteiras transportadas no bolso interno do peito invariavelmente caem quando o paletó é conduzido no braço e eu, por questão de prudência, havia transferido a carteira com o dinheiro, passaporte e a licença de motorista para o bolso traseiro da calça. Marcel não demorou a chegar à conclusão certa, pois quase sem demora ouvi passos e senti a carteira ser retirada.
Estava ao meu lado agora. Não podia vê-lo, mas sabia. Balancei-me impotente na ponta da corda que me prendia ao caibro. As pernas arrastavam-se atrás de mim com a parte superior da biqueira descansando no chão. Abri uma fresta nos olhos.
Vi-lhe os pés a não mais de um metro de onde eu estava. Levantei a vista numa fração de segundo. Marcel, com um ar de concentração e agradável surpresa, absorvia-se na tarefa de transferir a importância considerável de dinheiro que se encontrava na minha carteira para seu próprio bolso. Segurava a carteira com a mão esquerda enquanto a arma pendia pela guarda do gatilho, enganchada no dedo médio da mesma mão. Tão absorvido estava que não viu minhas mãos subirem para conseguir melhor empunhadura nas cordas que me prendiam.
Dobrei e abri convulsivamente o corpo para a frente e para cima com todo o ódio, fúria, e dor que em mim haviam e acho que Marcel nem mesmo viu os pés que subiam qual uma foice. Não emitiu som algum, apenas dobrou-se e abriu-se para a frente e, por sua vez, tão convulsivamente como eu fizera, caiu contra mim e deslizou lentamente para o chão. Permaneceu ali, com a cabeça rolando de um lado para o outro, se num reflexo inconsciente ou consciente de um corpo de outra maneira entorpecido num paroxismo de dor, eu não podia saber, mas não estava disposto a arriscar-me. Espiguei-me, dei um passo tão grande quanto as cordas permitiam e ataquei-o novamente. Fiquei vagamente surpreso ao ver-lhe a cabeça ainda presa aos ombros. Não era um espetáculo agradável, mas eu não estava tratando com gente agradável.
A pistola continuava enganchada no dedo médio da mão esquerda. Puxei-a com a biqueira do sapato. Tentei segurá-la entre os pés, mas o coeficiente de atrito entre o metal e o couro era baixo demais e a arma deslizou. Tirei os sapatos, arrastando os calcanhares no chão e, num processo muito mais demorado, as meias, usando a mesma técnica. Arranhei um bocado a pele e colecionei minha cota de farpas de madeira, mas não senti conscientemente o ferimento. A dor na face tornava insignificante e quase inexistente qualquer outra pequena irritação.
Os pés nus deram-me excelente posição para segurar a pistola. Mantendo-os bem juntos, aproximei-me, juntei as extremidades da corda e icei-me até alcançar o caibro. Isto me deu um metro e quarenta de corda frouxa para trabalhar, o que era mais do que suficiente. Pendurado pela mão esquerda, estendi a direita para baixo enquanto dobrava as pernas. Logo recolhi a arma.
Baixei-me até o solo, mantive esticada a corda que me prendia o pulso esquerdo e coloquei a boca da arma contra ela. O primeiro tiro cortou-a com tanta perfeição como se fosse uma faca. Desamarrei todos os nós que me prendiam, arranquei a parte da frente da camisa imaculadamente branca de Marcel para enxugar o rosto sangrento e a boca, recuperei minha carteira e dinheiro e saí. Não sabia se Marcel estava vivo ou morto. Parecia-me muito morto, mas eu não estava suficientemente interessado em investigar.
Às primeiras horas da tarde cheguei a Amsterdam e o sol que presenciara a morte de Maggie naquela manhã havia-se simbolicamente escondido. Nuvens pesadas rolavam sobre a cidade, vindas do Zuider Zee. Eu poderia ter chegado à cidade uma hora antes, mas o médico no ambulatório suburbano onde eu parará para tratar do meu rosto fizera perguntas demais e ficara muito aborrecido com minha insistência em que esparadrapo — uma grande quantidade, isto reconhecia — era tudo de que eu precisava no momento e que os pontos e faixas de gaze branca podiam esperar até mais tarde. Coberto de esparadrapo, com contusões generalizadas e um olho meio fechado, eu devia parecer o único sobrevivente de um desastre de trem expresso, mas, pelo menos, não dava para assustar criancinhas e levá-las correndo e chorando para junto das mães.
Estacionei o taxi da polícia não muito distante de uma garagem de aluguel, onde consegui convencer o proprietário a entregar-me um pequeno Opel preto. Ele não estava muito interessado, uma vez que meu rosto era suficiente para despertar, em qualquer pessoa, sérias dúvidas sobre minha capacidade como motorista, mas por fim alugou-me o carro. Começavam a cair as primeiras gotas de chuva no momento em que parei junto ao carro da polícia, apanhei a bolsa de Astrid e dois pares de algemas, por precaução, e segui meu caminho.
Estacionei o carro no que se estava transformando agora numa rua lateral muito conhecida e tomei a direção do canal. Enfiei a cabeça pela esquina e, com igual rapidez, puxei-a para trás. Na vez seguinte, arrisquei apenas um olho.
Vi um Mercedes preto estacionado junto à porta da igreja da Sociedade dos Huguenotes Americanos. A grande mala estava aberta e dois homens colocavam nela uma caixa obviamente muito pesada. Duas ou três caixas semelhantes já estavam no fundo da mala. Identifiquei imediatamente um dos homens como o Reverendo Goodbody. No segundo, magro, de estatura média, cabelo preto e rosto moreno, vestido de terno preto, reconheci também o indivíduo moreno e violento que havia abatido Jimmy Duelos no Aeroporto de Schiphol. Durante um momento ou dois esqueci a dor na face. Não fiquei positivamente feliz em revê-lo, mas tampouco absolutamente triste, porque ele nunca estivera muito longe de meus pensamentos. A roda, julguei, estava completando o círculo.
Saíram ambos vacilantes da igreja, conduzindo mais uma caixa, colocaram-na na mala e fecharam-na. Voltei ao Opel e ao trazê-lo ao o canal, Goodbody e o homem moreno já se encontravam a uns cem metros de distância no Mercedes. Segui-os a uma discreta distância.
A chuva caía violenta no momento em que o Mercedes preto virou para o oeste e sul, atravessando a cidade. Embora ainda estivéssemos no meio da tarde, os céus já estavam agourentamente cobertos como se a noite, ainda longe algumas horas, começasse a cair. Não me importei em absoluto. Na verdade, isso facilitava a tarefa de segui-los. Na Holanda, é obrigatório acender os faróis em chuva forte e nessas condições um carro se parece muito com a escura massa informe de qualquer outro.
Deixamos os últimos subúrbios e entramos no campo. Não houve qualquer louca excitação de perseguição ou caça na viagem. Goodbody, embora guiando um carro poderoso, rodava numa velocidade bastante moderada, o que não era de surpreender, em vista, talvez, do peso considerável que transportava na mala. Observando com atenção as placas rodoviárias, logo depois não tive dúvida sobre nosso destino. Nunca tivera, realmente.
Achei que seria mais prudente chegar ao destino mútuo antes de Goodbody e do homem moreno. Apertei o acelerador até colocar-me a menos de vinte metros do Mercedes. Não me preocupava a possibilidade de ser reconhecido por Goodbody no espelho retrovisor, pois ele lançava uma nuvem tão grande de borrifos de água que tudo o "que ele poderia ver seguindo-o seria um par de faróis amortecidos. Esperei até chegarmos ao que parecia um trecho reto de estrada, saí de minha mão, acelerei e ultrapassei. Ao emparelharmos, Goodbody lançou um olhar breve e sem curiosidade para quem o ultrapassava e, em seguida, sem interesse, desviou a vista. O rosto dele pareceu-me apenas uma pálida mancha e a chuva caía tão forte e eram de tal modo cegantes os borrifos lançados por ambos os carros que julguei impossível que ele me tivesse reconhecido. Tomei a frente e voltei para a mão sem diminuir a velocidade.
Três quilômetros adiante cheguei a um desvio à direita e a uma placa com a indicação: "Kasteel Linden. 1 km." Tomei a estrada e passei um minuto depois por um imponente arco de pedra onde vi gravadas em dourado as palavras "Kasteel Linden." Continuei por cerca de duzentos metros, saí da estrada e parei o Opel num denso bosque.
Ia encharcar-me novamente, mas não parecia que me sobrassem muitas opções. Deixei o carro e corri por um campo esparsamente arborizado até chegar a uma espécie de espesso cinturão de pinheiros que, tudo indicava, seria como uma espécie de pára-vento para a habitação. Abri caminho com grande prudência entre os pinheiros e vi uma habitação à direita: o Kasteel Linden. Indiferente à chuva que me açoitava as costas desprotegidas, espichei-me na proteção da relva alta e de alguns arbustos e estudei o local.
Imediatamente diante de mim estendia-se uma passagem de automóveis circular, coberta de cascalho, conduzindo à direita até o arco de pedra por onde eu acabava de passar. No outro lado do cascalho erguia-se o próprio Kasteel Linden, um edifício retangular de quatro andares, com janelas nos dois primeiros, seteiras no terceiro, sendo o último encimado por torretas e ameias, na melhor tradição medieval. Protegia o castelo um fosso de uns cinco metros de largura e, de acordo com o guia turístico, de quase a mesma profundidade. Faltava apenas uma ponte levadiça, embora as roldanas para a mesma ainda fossem vistas firmemente presas à espessa alvenaria das paredes. Em seu lugar, um lance de cerca de vinte degraus largos e baixos de pedra cruzavam em parte o fosso e conduziam a uma maciça porta fechada de duas folhas, aparentemente feita de carvalho. À esquerda, a cerca de uns trinta metros do castelo, erguia-se um edifício retangular de um único pavimento, de tijolo, e de construção obviamente muito recente.
O Mercedes preto apareceu no portão, percorreu chiando o caminho de cascalho e parou perto do edifício retangular. Enquanto Goodbody permanecia no interior do carro, o homem moreno desceu e deu uma volta completa em torno do castelo. Goodbody nunca me pareceu o tipo de homem capaz de arriscar-se. Desceu e os dois transportaram o conteúdo da mala do carro para o edifício. A porta estivera fechada, mas obviamente Goodbody possuía a chave certa e não uma gazua. Transportada a última caixa, a porta fechou-se sobre eles.
Levantei-me com cautela e dei a volta por trás das moitas até chegar ao lado do edifício. Com igual cuidado, aproximei-me do Mercedes e olhei para dentro. Nada havia ali, porém, digno de nota, pelo menos não o que eu procurava. Com precauções ainda maiores, dirigi-me nas pontas dos pés até uma janela lateral e espiei para dentro.
O interior era evidentemente uma combinação de oficina, loja e salão de exposição. As paredes estavam cobertas de relógios de pêndulos antigos — ou reproduções — de todos os tamanhos, formas e desenhos concebíveis. Mais relógios e um grande sortimento de peças de outros espalhavam-se sobre quatro grandes bancadas e estavam no processo de manufatura, remontagem ou reconstrução. Ao fim da sala, empilhavam-se várias caixas de madeira semelhantes às que Goodbody e o homem moreno haviam transportado para dentro. Pareciam estar cheias de palha. Prateleiras em cima continham grande variedade de outros relógios, tendo todos eles ao lado seus pêndulos, correntes e pesos.
Goodbody e o moreno trabalhavam junto às prateleiras. Enquanto eu os observava, enfiaram a mão dentro de uma das caixas vazias e começaram a tirar uma série de pesos de pêndulos. Goodbody interrompeu-se, puxou um pedaço de papel do bolso e começou a estudá-lo. Após algum tempo, apontou para algum item no papel e disse alguma coisa ao companheiro, que inclinou a cabeça e continuou a trabalhar. Goodbody, ainda estudando o papel, cruzou uma porta lateral e desapareceu. O moreno, lendo outro pedaço de papel, começou a arrumar pares de pesos idênticos, um ao lado do outro.
Comecei a perguntar-me onde se encontrava Goodbody e logo descobri. Ouvi-lhe a voz diretamente atrás de mim.
— Estou satisfeito porque não me decepcionou, Sr. Sherman.
Voltei-me lentamente. Como era de prever, sorria o seu santo sorriso e, como igualmente previsível, empunhava uma grande pistola.
— Ninguém é indestrutível, naturalmente — disse, radiante — mas o senhor realmente tem uma certa resiliência, é preciso confessar. É difícil subestimar policiais, mas eu devo ter sido muito negligente no seu caso. Duas vezes neste dia pensei que me havia livrado de sua presença, a qual, devo admitir, estava-se tornando um tanto embaraçosa. Não obstante, tenho certeza de que na terceira vez terei mais sorte. O senhor devia ter assassinado Marcel, como sabe.
— E hão assassinei?
— Ora, ora, o senhor precisa aprender a disfarçar os sentimentos e não deixar que transpareça a decepção. Ele recuperou-se durante um curto momento, mas o suficiente para chamar a atenção das boas senhoras que trabalhavam no campo. Mas receio que tenha sofrido fratura do crânio e esteja com hemorragia cerebral. Talvez não se salve. — Fitou-me pensativo. — Mas parece que ele deu boa conta de si mesmo.
— Uma luta de vida ou morte — concordei. — Será preciso ficarmos na chuva?
— Claro que não. — Sob a mira da arma entrei no edifício. O moreno voltou-se e olhou-me sem demonstrar grande surpresa. Perguntei-me quanto tempo havia passado desde que fora recebida a mensagem enviada de Huyler.
— Jacques — disse Goodbody. — Este é o Sr. Sherman... Major Sherman. Acho que ele está ligado à Interpol ou a alguma outra organização inútil.
— Nós nos conhecemos — respondeu Jacques, sorrindo.
— Naturalmente. Como sou esquecido! — Goodbody apontou a arma para mim enquanto Jacques me desarmava.
— Apenas uma — comunicou. Com a mira da arma arrancou um pouco do esparadrapo e sorriu novamente. — Aposto que dói, hem?
— Contenha-se, Jacques, contenha-se — advertiu-o Goodbody. Ele tinha um lado bom na natureza: se tivesse sido canibal, provavelmente poria a pessoa sem sentidos com um golpe na cabeça antes de cozinhá-la viva. — Aponte para ele sua própria arma, sim? — Guardou a sua. — Confesso que nunca suportei essas armas. Grosseiras, barulhentas, falta-lhes uma certa delicadeza.
— Tal como pendurar uma moça de uma corrente? — perguntei. — Ou espetar outra com forcados até matá-la?
— Ora, vamos, não nos entristeçamos. — Suspirou. — Até mesmo os melhores entre vocês policiais são tão canhestros, tão evidentes. Devo confessar que esperei muito mais. O senhor, meu caro amigo, tem uma reputação que não justificou em absoluto. Comete cincadas. Perturba pessoas, imaginando, todo satisfeito, que desse modo provoca reações. Deixa-se ver em todos os lugares onde não deve. Duas vezes foi ao apartamento da Srta. Lemay, sem tomar precauções. Surrupia de bolsos pedaços de papel que foram deixados ali para que os encontrasse, e não havia necessidade — acrescentou em tom de censura — de, no processo, matar o garçom. Entra em Huyler à luz do dia. E todas as pessoas de Huyler, meu querido Sherman, são membros do meu rebanho. Deixou mesmo seu cartão de visita no porão de minha igreja na noite de anteontem — sangue. Não que eu guarde má vontade contra o senhor por aquilo, meu caro amigo... Eu estava, de fato, pensando em livrar-me de Henri, que se tornara um grande fardo para mim, e o senhor solucionou o problema de maneira bastante elegante. E o que pensa de nossa excepcional organização aqui?... Todos estes são reproduções para venda...
— Meu Deus! — disse eu. — Não é de espantar que as igrejas estejam vazias.
— Ah! Mas é preciso saborear esses momentos, não? Veja estes pesos aqui. Nós os medimos, pesamos e voltamos em ocasiões apropriadas com pesos de substituição — como os que trouxemos hoje à noite. Não que os nossos pesos sejam exatamente os mesmos. Têm algo dentro deles. Em seguida, são postos em engradados, inspecionados pela Alfândega, fechados em caixas, e enviados, com aprovação oficial do governo, a certos... amigos... no exterior. Um dos meus melhores planos, digo sempre.
Jacques limpou respeitosamente a garganta.
— O senhor disse que estava com pressa, Sr. Goodbody.
— Sempre o pragmatista, Jacques, sempre o pragmatista. Mas você tem razão, claro. Inicialmente, cuidaremos de nosso ah... do ás dos investigadores e, depois, dos negócios. Veja se a costa está desimpedida.
Com o desgosto estampado na face, Goodbody sacou novamente da pistola enquanto Jacques fazia um tranqüilo reconhecimento. Voltou dentro de momentos e inclinou a cabeça. Fizeram-me precedê-los pela porta, percorrer a estrada de cascalho e subir os degraus sobre o fosso até a maciça porta de carvalho. Goodbody tirou do bolso uma chave do tamanho certo, abriu a porta e entramos. Subimos uma escadaria, atravessamos uva corredor e entramos numa sala.
Era realmente uma grande sala, literalmente decorada com guirlandas feitas de centenas de relógios. Nunca vira tantos relógios juntos num único lugar e, decerto, nunca uma coleção tão valiosa. Todos eles, sem exceção, eram relógios de pêndulo, alguns de enorme tamanho e todos de grande antigüidade. Somente uns poucos pareciam estar em funcionamento, mas, mesmo assim, o ruído coletivo quase ultrapassara o ponto de tolerância. Eu não poderia ter trabalhado naquela sala durante dez minutos.
— Uma das melhores coleções do mundo — disse Goodbody com um orgulho de proprietário — se não a melhor. E como vê... ou ouve... todos funcionam.
Ouvi-lhe as palavras, mas elas não fizeram eco. Eu olhava fixamente para o chão, para o homem estirado ali com o longo cabelo preto descendo até a nuca e magras omoplatas que pareciam querer furar o paletó puído. Ao seu lado havia alguns pedaços de fios elétricos simples, capeados de borracha. Junto à cabeça dele vi um par de fones com isolamento de borracha.
Não era preciso ser médico para saber que George Lemay estava morto.
— Um acidente — disse, melancólico, Goodbody — um autêntico acidente. Nós não queríamos que as coisas se passassem assim. Receio que o sistema nervoso do pobre-diabo tenha sido muito debilitado pelas privações sofridas durante tantos anos.
— Você o matou — disse-lhe eu.
— Tecnicamente, de certa maneira, sim.
— Por quê?
— Porque a moralista irmã dele, que erroneamente acreditou durante anos que tínhamos provas das culpa do irmão num assassinato, finalmente convenceu-o a ir à Polícia. Assim, fomos obrigados a tirá-lo temporariamente da paisagem — mas não, naturalmente, de um modo que o aborrecesse, Sr. Sherman. Receio que o senhor deva considerar-se parcialmente culpado pela morte do pobre rapaz. E pela morte da irmã. E pela morte de sua bela ajudante — Maggie, acho que era esse o nome. — Fez uma pausa e recuou rapidamente, estendendo o braço armado. — Não se lance contra minha arma. Não gostou do espetáculo, não? Nem também, tenho certeza, Maggie. E nem, receio, gostará também sua amiga Belinda, que morrerá esta noite. Ah! Isto doeu fundo. Compreendo. Gostaria de matar-me, Sr. Sherman? — Sorria ainda, mas os olhos fixos e rasos eram os olhos de um louco.
— Sim — respondi numa voz inexpressiva. — Gostaria de matá-lo.
— Nós enviamos a ela um pequeno bilhete. — Goodbody divertia-se imensamente. — Palavra-código, "Birmingham", acho... Ela deve encontrar-se no armazém de nossos bons amigos Morgenstern e Muggenthaler, que ficarão agora acima de qualquer suspeita para sempre. Quem, senão um louco, pensaria em perpetrar dois crimes tão horrendos em seu próprio edifício? Tão conveniente, não acha? Outra boneca acorrentada. Como todas as milhares de bonecas do mundo... acorrentadas, dançando de acordo com a nossa música.
— O senhor sabe, é claro, — disse eu — que é completamente louco?
— Amarre-o — disse Goodbody em voz áspera. A urbanidade rachara finalmente. A verdade deve ter doído.
Jacques amarrou-me os punhos com o grosso fio capeado de borracha. Fez o mesmo com os tornozelos, empurrou-me para outro lado da sala e ligou-me os punhos com outro pedaço de fio a uma argola na parede.
— Ponha os relógios em funcionamento! — ordenou Goodbody. Obedientemente, Jacques deu a volta na sala pondo os pêndulos em movimento. Significativamente, não se preocupou com os relógios menores.
— Todos funcionam e todos tocam em carrilhão, alguns muito alto — disse Goodbody, satisfeito. Recuperara a calma e mostrava-se cortês e untuoso como sempre. — Esses fones amplificarão os sons cerca de dez vezes. O amplificador e o microfone ficam ali, ambos, como pode ver, fora de seu alcance. Os fones são inquebráveis. Em quinze minutos o senhor estará louco e, em trinta, inconsciente. A coma resultante dura de oito a dez horas. Acordará ainda louco. Mas não de todo. Já estão começando a bater e repicar alto, não?
— Foi assim que George morreu, naturalmente. E o senhor observará tudo isto acontecer. Através da parte superior daquela porta de vidro, onde não será tão barulhento.
— Lamentavelmente, não em absoluto. Jacques e eu temos alguns negócios a tratar. Mas voltaremos a tempo de presenciar a parte mais interessante, não, Jacques?
— Sim, Sr. Goodbody — respondeu Jacques, ainda operosamente acionando os pêndulos.
— Se eu desaparecer...
— Ah, mas não desaparecerá. Minha intenção era que desaparecesse ontem à noite no porto, mas isso seria grosseiro, uma medida de pânico, carecendo da marca característica do meu profissionalismo. Eu tive uma idéia muito melhor, não, Jacques?
— Sim, Sr. Goodbody, realmente. — Jacques precisava agora quase gritar para ser ouvido.
— O importante é que não vai desaparecer, Sr. Sherman. Oh, Deus, não! O senhor será, em vez disso, encontrado minutos depois de afogar-se.
— Afogar-me?
— Precisamente. Ah, pensa que as autoridades suspeitarão imediatamente de uma tramóia. Farão uma autópsia. E a primeira coisa que verão serão antebraços cheios de picadas... Eu tenho um sistema que pode fazer picadas aplicadas duas horas antes parecerem que têm dois meses. Continuarão e descobrirão que o senhor está cheio de drogas... como estará mesmo. Injetadas quando estiver inconsciente, cerca de duas horas antes de o lançarmos, no seu carro, dentro de um canal. Em seguida chamaremos a Polícia. Não acreditarão. Sherman, o intrépido investigador de narcóticos da Interpol? Procurarão na sua bagagem. Seringas hipodérmicas, agulhas, heroínas e,nos bolsos, vestígios de maconha. Triste, triste. Quem teria pensado? Simplesmente mais um que caçava com os mastins e corria com as lebres.
— Eu direi pelo menos isso a seu respeito — interrompi. — O senhor é um louco inteligente.
Ele sorriu, o que com toda probabilidade significava que não podia ouvir-me acima do ruído crescente dos relógios. Pôs os fones de borracha sobre a minha cabeça e prendeu-os com, praticamente, metros de fita colante na cabeça para que eu não os pudesse tirar. Momentaneamente a sala ficou quase silenciosa, pois os fones atuavam como isoladores temporários. Goodbody atravessou a sala em direção ao amplificador, sorriu-me novamente e girou um botão.
Senti como se tivesse recebido algum violento golpe físico ou um grande choque elétrico. Meu corpo arqueou-se e contorceu-se em sacudidelas convulsas. Eu sabia que o pouco que se podia ver do rosto sob o esparadrapo e a fita colante devia estar contraído de dor. Pois eu sofria, uma agonia uma dezena de vezes mais dilacerante e insuportável do que o melhor — ou o pior — que Marcel pudera infligir-me. Meus ouvidos e minha cabeça ressoavam com essa insanamente aguda cacofonia fantasmagórica de som. Perfurava-me a cabeça com espetos incandescentes e parecia dilacerar-me o cérebro. Não pude entender por que meus tímpanos não se despedaçavam. Sempre ouvira dizer que uma explosão bastante alta, bem perto dos ouvidos, pode ensurdecer permanentemente um indivíduo. Mas isto não funcionava no meu caso. Como não havia obviamente funcionado no caso de George. No meu tormento, recordei-me vagamente de que Goodbody atribuíra a morte de George à debilitada condição física.
Rolei de um lado para o outro numa reação física instintiva e animal de escapar daquilo que nos fere, mas não podia rolar muito. Jacques usara um pedaço relativamente curto de fio encapado para prender-me à argola e eu não podia rolar mais do que alguns centímetros em ambas as direções. Ao fim do rolamento, consegui focalizar os olhos o suficiente para ver Goodbody e Jacques, ambos agora fora da sala, espiando-me com interesse através da porta com a parte superior de vidro: após alguns segundos, Jacques ergueu o punho esquerdo e bateu no relógio. Goodbody inclinou a cabeça em relutante concordância e afastaram-se apressadamente. Pensei em meu cegante mar de dor que ambos se apressavam para voltar logo e presenciar o grande final.
Quinze minutos para a inconsciência, dissera Goodbody. Eu não acreditei nem em uma única palavra. Ninguém poderia suportar aquilo por dois ou três minutos sem ficar liquidado física e mentalmente. Contorci-me violentamente de um lado para o outro e tentei esmagar os fones contra o chão ou arrancá-los. Goodbody, porém, tivera razão, os fones eram inquebráveis e a fita colante fora tão hábil e fortemente aplicada que meus esforços para tirá-los resultaram apenas na abertura dos ferimentos no rosto.
Os pêndulos balançavam, os relógios tiquetaqueavam e os carrilhões repicavam quase continuamente. Não havia alívio, nenhuma pausa, nem a mais curta das tréguas nesse assalto assassino ao sistema nervoso, responsável por essas incontroláveis convulsões epilépticas. Era um choque elétrico contínuo, justamente abaixo do nível letal. Naquele momento, eu podia dar crédito aos casos que ouvira de doentes que haviam recebido tratamento de choques e que, finalmente, terminaram na mesa de operação para reduzir fraturas de membros, provocadas por contrações musculares involuntárias.
Senti a mente sendo destruída e durante um curto momento tentei ajudar o processo. O nada, tudo pelo nada. Fracassara, fracassara inteiramente. Tudo em que tocara acabara na destruição e na morte. Maggie morrera, Duelos morrera, e, também, George, o irmão. Somente sobrara Belinda e ela ia morrer naquela noite. Um grande final.
Senti, então. Senti que não podia deixar Belinda morrer. Foi isso o que me salvou. Sabia que não podia deixá-la morrer. O orgulho não mais me interessava, tampouco o fracasso ou a vitória total de Goodbody e de seus perversos aliados. Podiam inundar o mundo com os seus malditos narcóticos. Mas eu não podia deixar Belinda morrer.
De alguma maneira, consegui erguer-me até colocar as costas contra a parede. À parte as freqüentes convulsões, eu vibrava em cada membro do corpo, não apenas tremendo como um homem atacado de malária, o que teria facilmente suportado, mas como um homem amarrado a uma gigantesca broca pneumática. Não podia focalizar a vista por mais de um ou dois segundos, mas fiz o máximo para olhar em volta, indistintamente embora, procurando alguma coisa que oferecesse a menor esperança de salvação. Não havia coisa alguma. Nesse momento, sem aviso, o som em minha cabeça abruptamente subiu num dilacerante crescendo — era provavelmente o grande relógio junto ao microfone que batia as horas — e tombei de lado como se tivesse sido atingido na têmpora por uma bala de grosso calibre. No momento em que toquei o solo, bati também com a cabeça em alguma projeção no rodapé da sala.
Meus poderes de focalização haviam desaparecido inteiramente, mas podia distinguir, ainda que vagamente, objetos a não mais do que alguns centímetros de distância e este estava a não mais de três. Para se ter uma idéia de minha mente, já quase incapacitada naquele momento, precisei de vários segundos para compreender o que era, mas quando consegui, forcei-me a adotar uma posição sentada novamente. O objeto era uma tomada elétrica de parede.
Com as mãos amarradas atrás das costas, levei toda uma eternidade para localizar e segurar as duas extremidades do fio elétrico que me prendia. Toquei-lhe as extremidades com as pontas dos dedos: o fio condutor, propriamente, estava exposto em ambos os casos. Desesperadamente, tentei forçar as extremidades a entrar na tomada — nunca me ocorreu que podia ser uma tomada inutilizada, embora isto não fosse improvável numa casa tão antiga como aquela — mas as minhas mãos tremiam tanto que não pude focalizar os orifícios. Senti a consciência abandonando-me. Sentia a maldita tomada, sentia o soquete com a ponta dos dedos, mas não podia alinhar as extremidades dos fios com os orifícios. Não via mais coisa alguma, pouco tato possuía, a dor ultrapassava a capacidade de tolerância humana, e penso que gritava mudamente de dor quando, subitamente, a sala iluminou-se num brilhante relâmpago azul-esbranquiçado e tombei de lado sobre o assoalho.
Quanto tempo permaneci ali inconsciente, nunca soube. Deve ter sido, pelo menos, minutos. A primeira coisa que percebi foi o incrível e glorioso silêncio, não um silêncio total, pois ainda ouvia os carrilhões, embora abafados: eu provocara um curto-circuito e os fones atuavam novamente como isoladores. Procurei sentar-me até ficar numa posição semi-reclinada. Senti o sangue gotejar pelo queixo e descobriria mais tarde que mordera de um lado a outro o lábio inferior. O rosto estava banhado em suor e o corpo todo dava a impressão de que estivera num pelourinho. Não me importei em absoluto. Estava consciente apenas de uma coisa: da total felicidade do silêncio. Aqueles rapazes da Sociedade de Combate ao Ruído sabiam do que estavam falando.
Os efeitos deste selvagem castigo passaram mais rapidamente do que eu teria esperado, mas não de todo. Aquela dor na cabeça e nos tímpanos e o sofrimento geral do corpo ficariam comigo ainda durante muito tempo. Isto eu sabia. Mas os efeitos não estavam desaparecendo com tanta rapidez como eu pensava, pois levou-me um minuto inteiro para compreender que se Goodbody e Jacques voltassem naquele momento e me encontrassem sentado contra a parede com o que era, indubitavelmente, uma expressão idiota de felicidade no rosto, não tomariam quaisquer meias-medidas na próxima vez. Lancei rapidamente os olhos para a porta com a parte superior de vidro, mas não havia ainda ali sobrancelhas erguidas.
Estirei-me novamente no chão e voltei a rolar de um lado para o outro. Passaram-se pouco mais de dez segundos e, no terceiro ou quarto rolamento na direção da porta vi Goodbody e Jacques na vigia. Acelerei o espetáculo, rolei mais violentamente do que nunca, arqueei o corpo e lancei-me tão convulsivamente para a frente e para trás que comecei a sofrer quase tanto como quando estivera experimentando a coisa real. Em todas as ocasiões em que rolava em direção à porta, deixava que me vissem o rosto contorcido, os olhos arregalados ou profundamente cerrados em agonia. Acho que o rosto banhado de suor e o sangue que brotava dos lábios e de um ou dois ferimentos reabertos da luta com Marcel devem ter contribuído para formar um espetáculo bastante convincente. Goodbody e Jacques sorriam, mostrando todos os dentes, embora a expressão de Jacques não se aproximasse nem de longe da benigna santidade de Goodbody.
Dei um salto especialmente impressionante que me tirou todo o corpo do chão e, como quase desloquei o ombro ao aterrar, resolvi que era suficiente — duvido mesmo de que Goodbody soubesse de fato qual era o recorde máximo naquela pista — e deixei que meus movimentos e contorções se tornassem mais fracos, mais fracos até que, finalmente, com uma última sacudidela convulsa, permaneci imóvel.
Goodbody e Jacques entraram. Goodbody atravessou a sala e desligou o amplificador, sorriu graciosamente e ligou-o mais uma vez: esquecera que sua intenção era não apenas tornar-me inconsciente, mas também insano. Jacques, contudo, disse-lhe alguma coisa e Goodbody, relutante, inclinou a cabeça e desligou o amplificador mais uma vez — talvez Jacques, motivado não por compaixão mas pelo pensamento de que seria trabalho mais difícil para eles se eu morresse antes de injetarem as drogas, tenha feito tal observação — enquanto ele mesmo passava a fazer o circuito da sala, detendo o movimento dos pêndulos dos maiores relógios. Aproximaram-se ambos para examinar-me. Jacques deu-me um pontapé experimental nas costelas, mas eu havia passado por coisas demais para reagir àquilo.
— Ora, ora, meu querido amigo — ouvi Goodbody dizer numa voz longínqua e cheia de censura — eu aprovo seus sentimentos, mas nenhuma marca, nenhuma marca. A Polícia não gostaria disso.
— Mas olhe só para o rosto dele — protestou Jacques.
— Exatamente — concordou Goodbody em tom amigável.
— De qualquer maneira, solte-lhe os punhos. Eu não quero quê apareçam marcas indicadoras neles quando os bombeiros o içarem do canal. Tire os fones e guarde-os. — Jacques fez ambas as coisas no espaço de dez segundos. Ao tirar os fones, pareceu-me que o rosto ia ser arrancado também. Jacques não foi muito delicado na questão das fitas colantes.
— Quanto a ele — Goodbody indicou George Lemay com um movimento da cabeça — dê fim ao corpo. Você sabe como. Mandarei Marcel para ajudá-lo a trazer Sherman. — Houve silêncio durante alguns momentos. Eu sabia que ele me olhava.
— Ah, meu Deus! A vida é apenas uma sombra passageira.
Pronunciadas essas palavras, deixou a sala. Saiu cantarolando tanto quanto uma pessoa pode cantarolar com sentimento. Goodbody estava dando uma exibição tão sentida de "Fica comigo, meu Senhor", como eu jamais ouvira. Ele tinha o senso da ocasião, lá isso tinha o Reverendo Goodbody.
Jacques dirigiu-se a uma caixa num dos cantos da sala, tirou uma meia-dúzia de pesos e passou um fio encapado em borracha pelos orifícios de cada um e amarrou-o em volta da cintura de George. Pouca dúvida deixava sobre o que pretendia fazer. Puxou George para fora da sala e para o corredor. Ouvi o som dos calcanhares do morto arrastando-se pelo chão enquanto Jacques arrastava-o para a parte da frente do castelo. Ergui-me, flexionei experimentalmente as mãos e segui-o.
Ao aproximar-me da porta, ouvi o som de um Mercedes dando partida e afastando-se. Olhei em volta. Jacques, tendo George estirado no chão ao lado, abriu a janela e fez uma espécie de continência. Somente poderia ter sido para Goodbody, que se afastava.
Deixou a janela para ministrar os últimos ritos a George. Mas, em vez disso, ficou ali imóvel, com o rosto paralisado num choque total. Eu estava a apenas meio metro dele e vi pela sua chocada falta de expressão que ele sabia pela minha expressão que chegara ao fim de sua criminosa carreira. Freneticamente, tentou tirar a arma de sob a axila, mas, pelo que pode ter sido a primeira vez e certamente foi a última na vida, Jacques foi lento demais. Aquele momento de imóvel incredulidade foi o seu fim. Atingi-o exatamente sob as costelas no momento em que a arma apareceu e, quando ele se dobrou em dois, arranquei-a de uma mão que quase não resistiu. Selvagemente atingi-o na têmpora. Jacques, já inconsciente mas ainda em pé, recuou um passo involuntário, o parapeito da janela prendeu-o por trás das pernas e ele começou a cair para fora e para trás num movimento curiosamente lento. Fiquei simplesmente ali, vendo-o e quando ouvi o som da água, e somente então, debrucei-me na janela e olhei. As águas perturbadas do fosso lançavam ondas contra a margem e os muros do castelo. Do centro subia uma torrente de bolhas. Olhei para a esquerda e vi o Mercedes de Goodbody fazendo a curva no arco de entrada para o castelo. Desta vez, pensei, ele deve estar bem adiantado no quarto verso do "Fica comigo".
Afastei-me da janela e desci as escadas. Saí, deixando a porta aberta. Parei durante um instante nos degraus sobre o fosso e olhei para baixo. As bolhas que vinham do fundo diminuíram gradualmente de número e, finalmente, cessaram por completo.
Sentado no Opel, olhei para a arma, que tomara de Jacques. Se havia descoberto alguma coisa a respeito daquela arma era que parecia que as pessoas poderiam tomá-la de mim todas as vezes que quisessem. Era um pensamento desanimador mas que levava à inescapável conclusão de que eu precisava era de outra arma, uma segunda arma. Abri a bolsa de Astrid, que tirei de baixo do assento, e extraí a pistola liliputiana que lhe dera. Levantei alguns centímetros a barra da calça enfiei a pequena pistola, com o cano para baixo, dentro da meia e da parte superior do sapato. Ia fechar a bolsa quando vi dois pares de algemas. Hesitei, pois à vista do que havia acontecido até então, a possibilidade era de que, se as levasse comigo, elas terminariam nos meus pulsos. Mas, como parecia tarde demais agora para deixar de aceitar os riscos que correra desde a chegada a Amsterdam, coloquei ambas no bolso esquerdo do paletó e as chaves em duplicata no direito.
Ao chegar ao velho quarteirão de Amsterdam, após ter deixado atrás a minha quota usual de motoristas a sacudir os punhos e telefonar à Polícia, começavam a cair as primeiras sombras da noite. A chuva cessara, embora o vento ganhasse força, agitando e fazendo vórtices nas águas dos canais.
Virei e entrei na rua onde se situava o armazém. Estava deserta e não vi carros, nem pedestres. Isto é, estava deserto o nível da rua: no primeiro andar do prédio de Morgenstern e Muggenthaler, um tipo corpulento em mangas de camisa inclinava-se sobre os cotovelos no parapeito de uma janela aberta e, pela maneira como movia constantemente a cabeça de um lado para outro, era claro que saborear o frio ar noturno de Amsterdam não era sua principal finalidade para ali estar. Passei pelo armazém e dirigi-me até as vizinhanças do Dam, onde chamei De Graaf de uma cabina telefônica.
— Onde andou você? — indagou De Graaf. — O que andou fazendo?
— Nada que possa interessá-lo. — Isto deve ter sido a declaração mais inacreditável que fiz na vida. — Estou pronto para falar agora.
— Fale.
— Não aqui. Não agora. E não ao telefone. Poderiam o senhor e Van Gelder vir agora ao armazém de Morgenstern e Muggenthaler?
— Falará nessa ocasião?
— Prometo-lhe.
— Estamos a caminho — disse De Graaf sombriamente.
— Um momento. Venha num caminhão simples e estacione na rua um pouco adiante do prédio. Eles puseram um guarda numa das janelas.
— Eles?
— É sobre isso que lhe vou falar.
— E o guarda?
— Eu o distrairei. Pensarei em alguma manobra diversionista.
Entrei numa loja de ferragens c comprei uma bola de barbante e a maior chave Stilson que havia em estoque. Quatro minutos depois, estacionei o Opel a menos de cem metros do armazém, mas não na mesma rua.
Subi a viela de serviço, estreita e muito mal iluminada que corria entre a rua em que se situava o armazém e outra paralela. O primeiro armazém que encontrei à esquerda possuía uma raquítica escada de incêndio de madeira, que teria sido a primeira coisa a queimar num fogaréu, mas era a primeira e a última. Continuei a andar pelo menos uns cinqüenta metros além do edifício que imaginei ser o de Morgenstern e Muggenthaler e não encontrei nenhuma outra escada. Lençóis com nós deviam valer um dinheirão naquela parte de Amsterdam.
Voltei à primeira e única escada e subi até o teto. Desenvolvi uma antipatia imediata por esse telhado, como também por todos os demais que tive de cruzar até chegar ao que queria. Todas as vigas mestres faziam ângulos retos com a rua, os telhados eram profundamente oblíquos e traiçoeiramente escorregadios devido à chuva e, para agravar as dificuldades, os arquitetos do passado, com o que erroneamente consideraram uma intenção louvável de criar diversidade de estilos na linha das coberturas, haviam habilmente feito as coisas de modo que não havia dois telhados que tivessem exatamente o mesmo desenho ou altura. De início, movi-me cautelosamente, mas a cautela não me levou a parte alguma e, logo depois, descobri o único método prático de passar de uma viga mestra a outra: descer correndo um dos lados inclinados e deixar que o impulso me levasse tanto quanto possível ao outro lado antes de cair a fio comprido e arrastar-me os últimos centímetros sobre as mãos e os joelhos. Finalmente, cheguei ao que pensava ser o telhado que queria, aproximei-me sorrateiramente do nível da rua, debrucei-me na cumeeira e espiei.
Acertei na primeira vez, o que mudou as coisas para mim. O sentinela de mangas de camisa, colocado a uns seis metros abaixo de mim, mantinha ainda a vigília. Prendi com cuidado uma das extremidades da bola de barbante ao cabo da Stilson, estendi o braço e o barbante de modo que a chave ultrapassasse a viga de içamento, desci a chave uns quatro metros e meio antes de balançá-la em um suave movimento de pêndulo, que aumentava a cada movimento de minha mão. Aumentei-o com tanta rapidez quanto possível, pois a apenas uns poucos metros abaixo de mim uma luz forte brilhava através da fresta de duas portas de carregamento no andar superior, e eu não tinha meios de saber durante quanto tempo elas permaneceriam abertas.
A Stilson, que deve ter pesado pelo menos dois quilos, ba-louçava agora num arco de quase 90°. Baixei mais três centímetros e -perguntei-me quanto tempo passaria até que o guarda ficasse perplexo com o som suave de um objeto cortando o ar, mas, no momento, sua atenção estava felizmente distraída. Um caminhão azul acabava de entrar na rua e a sua chegada ajudou-me de duas maneiras: o vigia inclinou-se mais para examinar o veículo e, ao mesmo tempo, o som do veículo abafou qualquer indicação de perigo de parte da Stilson que balançava em cima.
O caminhão parou a uns trinta metros e parou o motor. A Stilson estava no limite exterior do balanço. Ao começar a descer, deixei que o barbante escorresse mais algumas dezenas de centímetros pelos dedos. O guarda, percebendo súbita mas tardiamente que havia algo de anormal, torceu a cabeça justamente em tempo de receber todo o peso da Stilson na têmpora. Desmoronou-se como se uma ponte lhe tivesse caído em cima e lentamente caiu para trás e para longe da vista.
A porta do caminhão abriu-se e vi De Graaf descer. Fez-me um gesto. Respondi com dois gestos afirmativos da mão direita, verifiquei se a pequena arma estava ainda firmemente presa dentro da meia e do sapato e, em seguida, mudei de posição até ficar suspenso pelas mãos. Tirei a arma do coldre da axila, segurei-a nos dentes, inclinei-me para trás, apenas uma vez e, depois, para a frente, atingi com a perna esquerda o parapeito da porta de carga e, com a direita, abri-a com um pontapé ao mesmo tempo que estendia as mãos para segurar o umbral. Empunhei a arma com a mão direita.
Estavam ali quatro pessoas: Belinda, Goodbody e os dois sócios. Belinda, muito pálida, lutava, sem emitir som algum, já vestida no rodado trajo típico e corpinho bordado de Huyler, presa nos braços pelos rosados e jovialmente bondosos Morgenstern e Muggenthaler, cujos radiantes sorrisos de tios começaram naquele momento a petrificar-se em uma câmara lenta quase grotesca. Goodbody, que estivera de costas para mim, ajustando a touca de holandesa de Belinda de acordo com seu gosto estético, voltou-se com grande lentidão. Escancarou devagar a boca, arregalou os olhos e empalideceu até que sua face ficou quase do tom do cabelo cor de neve.
Dei dois passos à frente no sótão e estendi um braço para Belinda. Ela fitou-me durante alguns incrédulos segundos, soltou-se com um repelão das mãos moles de Morgenstern e Muggenthaler, e veio correndo para mim. O coração dela batia como o de uma ave aprisionada, mas, fora disso, não parecia sofrer os efeitos do que deveria ter sido a mais horripilante das experiências.
Fitei os três e sorri tanto quanto podia sem ferir muito o rosto e disse:
— Agora vocês sabem com o que a morte se parece.
Sabiam, perfeitamente. Com os rostos imobilizados, ergueram as mãos para cima tanto quanto podiam. Mantive-os assim, sem dizer palavra, até que De Graaf e Van Gelder subiram ruidosamente as escadas e entraram no sótão. Durante esse tempo, coisa alguma aconteceu. Juro que nenhum deles nem mesmo pestanejou. Belinda começara a tremer sem controle, numa reação retardada, mas conseguiu sorrir lividamente para mim e eu soube que ela se recuperaria: a Interpol de Paris não a tirara simplesmente de um chapéu.
De Graaf e Van Gelder, ambos de armas na mão, olharam para o quadro.
— O que, em nome de Deus, você pensa que está fazendo, Sherman? Por que estão esses três homens...
— Suponhamos que eu explique? — propus, razoavelmente.
— Isto vai precisar de muita explicação — disse De Graaf sombriamente. — Três conhecidos e respeitados cidadãos de Amsterdam...
— Por favor, não me faça rir. — disse eu. — O rosto me dói quando rio.
— Isso também — disse De Graaf. — Como, em nome de Deus...
— Cortei-me quando me barbeava. — Estas haviam sido as palavras de Astrid, mas eu não estava em maré de invenção. — Posso falar?
De Graaf suspirou e inclinou afirmativamente a cabeça.
— À minha maneira? Ele acenou novamente. Disse a Belinda:
— Sabe que Maggie está morta?
— Sei que está morta. — A voz dela era um sussurro trêmulo e ela não estava tão recuperada como eu havia pensado.
— Ele acabou de dizer-me, e sorriu.
— É a compaixão cristã dele. Ele não pode evitá-lo. Bem
— disse aos policiais — olhem bem para esses cavalheiros. Olhem para Goodbody. O assassino psicopata mais sadista que conheci, ou de quem ouvi falar. O homem que pendurou Astrid Lemay no gancho. O homem que deixou Maggie ser trespassada por forcados até morrer num campo de feno de Huyler. O homem...
— Você disse forcados? — perguntou De Graaf. Podia-se ver que a mente dele não aceitava isso.
— Mais tarde. O homem que levou George Lemay à loucura que o matou. O homem que tentou matar-me da mesma maneira, o homem que tentou matar-me três vezes hoje. O homem que põe garrafas de gim nas mãos de viciados. O homem que lança gente em canais com canos de chumbo amarrados na cintura, só Deus sabe depois de quantos sofrimentos e torturas. Além de ser o homem que é o agente da degradação, da demência e da morte de milhares de seres humanos enlouquecidos em todo o mundo. Nas próprias palavras dele, o mestre-titereiro que pendura milhares de bonecas, enganchadas na extremidade de correntes, e as obriga a dançar segundo sua música. A dança da morte.
— Não é possível — disse Van Gelder, que parecia atordoado. — Não pode ser. O Dr. Goodbody? O pastor...
— Ele chama-se Ignatius Catanelli e esse nome está nos seus arquivos. Ex-membro da cosa nostra da Costa Leste dos Estados Unidos. Mas nem mesmo a Máfia pôde engoli-lo. Pelos princípios deles, nunca matem sem propósito, mas apenas por sólidas razões comerciais. Catanelli, porém, matava porque ama a morte. Quando era pequeno, provavelmente arrancava asas de moscas. Mas, quando cresceu, as moscas não eram suficientes. Foi obrigado a sair dos Estados Unidos, pois a Máfia oferecia apenas uma alternativa.
— Isto.. isto é fantástico. — Fantástico ou não, as cores não haviam voltado ainda ao rosto de Goodbody. — Isto é um ultraje. Isto é...
— Cale a boca — disse-lhe eu. — Nós temos suas impressões digitais e o índice cefálico. Sou obrigado a dizer que ele possui aqui, para usar um termo da gíria americana, uma "transa" em excelente funcionamento. Navios costeiros a caminho do porto desovam heroína ao largo, em recipientes selados, junto a uma certa bóia. A heroína é pescada por uma barca e levada a Huyler, onde acaba numa fábrica que existe lá. Essa indústria caseira fabrica bonecas, que são transferidas para este armazém. Não há coisa mais natural, exceto que uma ou outra boneca, especialmente marcada, contém heroína?
— Absurdo, absurdo — disse Goodbody. — O senhor não pode provar nada disso.
— Como tenciono matá-lo dentro de um ou dois minutos, não preciso provar coisa alguma. Ah, sim, ele tinha organização, tinha amigos, o nosso Catanelli. Possuía tudo, de tocadores de realejos e dançarinas de strip tease trabalhando para ele, numa combinação de chantagem, dinheiro, e vício. A ameaça final de morte fazia com que todos mantivessem o silêncio da cova.
— Trabalhando para ele? — De Graaf estava ainda a uma légua atrás de mim. — De que maneira?
— Vendendo e embarcando. Parte da heroína — uma quantidade relativamente pequena — era deixada aqui nas bonecas: algumas iam para as lojas, outras para o caminhão de bonecas no Vondel Park — e outros caminhões, tanto quanto sei. As meninas de Goodbody iam às lojas e compravam essas bonecas — secretamente marcadas — em lojas perfeitamente legais e mandavam-nas a pequenos fornecedores de heroína ou viciados no exterior. As do Vandel Park eram vendidas bem baratas aos homens dos realejos — eram eles os elementos de ligação com os viciados que estavam num estado tão adiantado que não podiam aparecer em lugares respeitáveis — se, isto é, um antro vil como o Balinova pode ser considerado como um local respeitável.
— Como então, em nome de Deus, nós nunca descobrimos coisa alguma a esse respeito? — indagou De Graaf.
— Eu lhe digo dentro de um momento. Ainda a respeito da distribuição. Uma parte ainda maior do material saía daqui em caixotes de Bíblias — as Bíblias que nosso santo amigo distribuía tão generosamente e gratuitamente em toda a Amsterdam. Algumas das Bíblias possuíam centros ocos. As doces jovens que o nosso Goodbody, na inefável bondade de seu coração cristão, estava tentando reabilitar e salvar de um destino pior do que a morte, apareciam nos seus serviços religiosos com Bíblias nas doces e pequeninas mãos crispadas — algumas delas, Deus nos perdoe, encantadoramente vestidas de freiras — e saíam com Bíblias diferentes nas pequeninas mãos crispadas e vendiam a maldita droga a varejo nos cabarés. O resto do material — o grosso do material — era enviado a Kasteel Linden. Ou será que esqueci alguma coisa, Goodbody?
Pela expressão de seu rosto, era evidente que eu não havia esquecido muita coisa de importância e ele não me respondeu. Ergui levemente a -arma e disse:
— Acho que é agora, Goodbody.
— Ninguém vai fazer justiça aqui com suas próprias mãos — disse De Graaf secamente.
— Você pode ver que ele está tentando escapar — respondi sensatamente. Goodbody estava imóvel: ele não podia em hipótese alguma erguer os braços nem um outro milímetro mais.
Então, pela segunda vez naquele dia, ouvi uma voz atrás de mim:
— Largue essa arma, Sr. Sherman.
Virei-me devagar e deixei cair a arma. Qualquer pessoa podia tomar-me uma arma. Desta vez foi Trudi, saindo das sombras a apenas um metro e meio de distância, com uma Luger notavelmente firme na mão.
— Trudi! — Em chocada incompreensão, De Graaf fitou a jovem loura, que sorria alegremente. — O quê, em nome de Deus... — Interrompeu a frase e gritou de dor quando o cano da arma de Van Gelder atingiu-lhe violentamente o pulso. A arma de De Graaf caiu com ruído no chão e, quando se voltou para o homem que o havia atacado, nos seus olhos havia apenas estupefação. Goodbody, Morgenstern e Muggenthaler baixaram as mãos, tirando os dois últimos as armas do bolso. Tão numerosos eram os metros de tecidos necessários para vestir-lhes os corpos enormes que eles, ao contrário de mim, não precisavam da engenhosidade de alfaiates especializados para esconder a silhueta das armas.
Goodbody tirou um lenço, enxugou a testa, que parecia precisar urgentemente de uma enxugadela, e disse garrulamente a Trudi:
— Você demorou a aparecer, não?
— Oh, eu adorei tudo isso! — Soltou um risinho, um som feliz e descuidado que teria coagulado o sangue de um linguado congelado. — Adorei cada momento de tudo isso.
— Um par tocante, não? — perguntei a Van Gelder. — Ela e o santo amigo aqui presente. Essa confiante inocência infantil...
— Cale-se — disse friamente Van Gelder. Aproximou-se, revistou-me em busca de armas e nada encontrou. — Sente-se no chão. Mantenha as mãos onde posso vê-las. Você, também, De Graaf.
Fizemos o que nos mandavam. Sentei-me de pernas cruzadas, os antebraços nas coxas, as mãos pendentes junto aos tornozelos. De Graaf olhou-me fixamente com um rosto que era um espelho da mais absoluta incompreensão.
— Eu ia chegar a esse ponto — disse-lhe em tom de desculpa. — Eu estava a ponto de dizer por que o senhor fez tão pouco progresso na localização da fonte das drogas. O seu fiel ajudante, o inspetor Van Gelder, providenciou para que progresso algum fosse feito.
— Van Gelder? — Mesmo com toda a evidência física em contrário, De Graaf não podia conceber ainda a traição de um servidor graduado da Polícia. — Como é que pode ser isto? Não pode ser.
— Não é um pirulito o que ele está apontando para você — disse eu maciamente. — Van Gelder é o chefe, o cérebro. Ele é o Frankenstein. Goodbody é apenas o monstro que escapou. Certo, Van Gelder?
— Certo! — O olhar letal que Van Gelder dirigiu a Goodbody — não augurava nada de bom para o futuro do reverendo, embora eu não acreditasse, de qualquer maneira, que ele tivesse um futuro.
Olhei para Trudi sem afeição alguma.
— E quanto a sua pequena Chapeuzinho Vermelho, Van Gelder, essa sua pequenina e doce amante...
— Amante? — De Graaf perdera de tal modo o domínio de si mesmo que nem mais atordoado parecia.
— O senhor me ouviu. Mas acho que Van Gelder perdeu completamente o amor por ela, não, Van Gelder? Ela tornou-se, digamos, uma alma psicopaticamente fraterna demais do Reverendo aqui. — Voltei-me para De Graaf: — O nosso pequeno botão de rosa não é viciado. Goodbody sabe fazer parecerem reais essas marcas no braço dela. Ele mesmo me contou. Ela não tem a idade mental de oito anos, mas, sim, é mais velha do que o próprio pecado. E duplamente má.
— Não sei! — De Graaf parecia cansado. — Não compreendo...
— Ela servia a três finalidades úteis — expliquei. — Tendo Van Gelder uma filha assim, quem jamais duvidaria de que ele era um figadal inimigo das drogas e de todos os perversos que lucravam com elas? Ela era a perfeita intermediária entre Van Gelder e Goodbody — eles nunca entravam em contato, nem mesmo pelo telefone. E, mais importante ainda, ela era um elo vital na linha de abastecimento. Levava a boneca para Huyler, trocava-a por outra cheia de heroína, levava-a ao caminhão de bonecas no Vondel Park, e trocava-a novamente. O caminhão, naturalmente, trazia a boneca para aqui quando vinha buscar novos suprimentos. Ela é muito cativante, a nossa Trudi. Mas não devia ter usado beladona para dar aos olhos aquela expressão vidrada de viciada. Não percebi na ocasião, mas dêem-me tempo e uma porretada na cabeça e, no fim, eu entendo qualquer coisa. Não era a expressão correta. Nesse momento, compreendi. Trudi soltou um risinho e lambeu os lábios.
— Posso atirar nele agora? Na perna. Alto?
— Você é um pedacinho encantador — disse eu — mas devia estabelecer corretamente suas prioridades. Por que não olha em volta de você?
Ela olhou em volta. Todos olharam em volta. Eu não. Olhei diretamente para Belinda e inclinei a cabeça quase imperceptivelmente na direção de Trudi, que se encontrava entre ela e a porta de carga aberta. Belinda, por sua vez, olhou rapidamente para Trudi e vi que ela entendera.
— Seus idiotas — disse eu desdenhosamente. — Como é que vocês pensam que consegui minhas informações? Foram-me fornecidas! E quem as forneceu foram duas pessoas que, apavoradas até a morte, venderam-nas em troca do perdão. Morgenstern e Muggenthaler.
Havia alguns caracteres bastante desumanos entre os presentes, quanto a isso não há dúvida, mas eram todos humanos em suas reações. Olharam todos pesarosos para Morgenstern e Muggenthaler, que permaneceram ali, arregalando os olhos, incrédulos e de boca aberta. Foi assim que morreram, pois estavam armados, a arma que eu tinha agora nas mãos era muito pequena e eu não podia dar-me ao luxo de feri-los apenas. No mesmo instante, Belinda lançou-se contra a desprecavida Trudi, que vacilou para trás, tropeçou na borda do parapeito de carga e saiu de nossa vista.
O seu agudo e doloroso grito não havia terminado ainda quando De Graaf ergueu desesperadamente as mãos para a arma de Van Gelder. Não tive tempo, porém, de saber como ele se saiu, porque me levantei sobre a biqueira dos sapatos, ainda agachado, e lancei-me num mergulho baixo na direção de Goodbody, que lutava para sacar da arma. Goodbody caiu para trás com um ruído que foi um elogio para a solidez do assoalho do armazém, pois permaneceu firme. Um segundo depois, coloquei-me por trás dele e obriguei-o a soltar estranhos grasnados com a garganta, pois o meu braço enlaçava-lhe o pescoço como se eu quisesse fazer com que as partes dianteira e traseira do mesmo se encontrassem.
Estirado no chão, De Graaf sangrava de um ferimento na testa. Gemia um pouco. Van Gelder segurava uma esperneante Belinda a sua frente e usava-a como escudo, da mesma forma que eu usava Goodbody. Van Gelder sorriu. Nossas pistolas se apontavam reciprocamente.
— Eu conheço os Shermans deste mundo — disse ele em tom calmo, de conversação. — Eles nunca se arriscam a ferir uma pessoa inocente, especialmente uma moça tão encantadora como essa. Quanto a Goodbody, não me importo se ele ficar tão furado como uma peneira. Compreendeu o meu argumento?
Olhei para a face direita de Goodbody, que era a única parte que eu podia ver. A cor variava de púrpura a malva e se isto acontecia porque eu o estrangulava lentamente ou se era sua reação ao pronto e indiferente abandono pelo antigo sócio, era difícil de dizer. Por que o olhei, tampouco sei, pois o meu último pensamento no mundo seria comparar os respectivos valores de Belinda e Goodbody como reféns: enquanto conservasse Belinda como refém, Van Gelder estava tão seguro como se estivesse numa igreja.
— Compreendi.
— Agora, outro argumento — continuou Van Gelder. — Você está com uma arma de brinquedo. Eu tenho um Colt policial. — Inclinei a cabeça. — E tenho meu salvo-conduto. — Começou a dirigir-se para o início da escada, conservando Belinda entre nós. — Há um caminhão azul da Polícia no começo da rua. Meu caminhão. Vou tomá-lo. A caminho, vou quebrar os telefones do escritório. Se, ao chegar ao caminhão, não o vir naquela porta de carga, não precisarei mais dela. Compreendeu?
— Compreendi. E se a matar sem propósito você nunca mais poderá dormir descansado novamente. Você sabe disso.
— Sei disso — respondeu e desapareceu, descendo as escadas de costas e arrastando Belinda. Nem os olhei. De Graaf sentou-se e levou um lenço à testa ferida. Aparentemente, portanto, ainda podia cuidar de si mesmo. Afrouxei o braço que estrangulava Goodbody, estendi outra mão e tomei-lhe a arma e, ainda sentado atrás dele, tirei as algemas e prendi-lhe os pulsos, um deles ao pulso do falecido Morgenstern e o outro ao pulso do falecido Muggenthaler. Levantei-me, passei pela frente do Goodbody e ajudei o abalado De Graaf a sentar-se numa cadeira. Olhei novamente para Goodbody, que me fitava com um rosto em que vi esculpido o ricto do pavor. Ao abrir a boca, sua voz normalmente profunda e pontificai pareceu quase um grito insano.
— Você não me vai deixar assim!
Examinei os dois corpulentos comerciantes a quem ele estava acorrentado.
— Você poderá sempre pôr cada um deles debaixo de um braço e fugir.
— Em nome de Deus, Sherman...
— Você pôs Astrid num gancho. Eu disse a ela que a ajudaria, e você a pendurou num gancho. Ordenou que trespassassem Maggie com forcados até ela morrer. Minha Maggie. Você ia pendurar Belinda num gancho. Minha Belinda. Você é um homem que ama a morte. Experimente-a de perto, para variar. — Dirigi-me para a porta de carga, verifiquei-a e fitei-o mais uma vez: — E se eu não encontrar Belinda viva, não voltarei.
Goodbody gemeu como um animal ferido e olhou horrorizado e tremendo de novo para os dois cadáveres que o aprisionavam. Fui até a porta de carga e olhei para baixo.
Trudi jazia de braços e pernas abertas na calçada embaixo. Não lhe dirigi um segundo olhar. No outro lado da rua, Van Gelder conduzia Belinda para o caminhão da Polícia. À porta do caminhão voltou-se, levantou a vista, inclinou a cabeça, e abriu a porta.
Deixei a porta de carga, dirigi-me para o ainda atordoado De Graaf, ajudei-o a levantar-se e a chegar até ao início da escada. Parei ali e lancei um olhar a Goodbody. Os olhos brilhavam numa face alucinada pelo medo e ele emitia profundos e ásperos sons com a garganta. Parecia um homem perdido para sempre num escuro e interminável pesadelo, um homem perseguido por demônios e que sabia que jamais escaparia.
A noite quase chegara às ruas de Amsterdam. A garoa era fraca, mas penetrantemente fria, impulsionada por um vento forte. Nos intervalos entre as nuvens de tempestade, tremeluziam palidamente as primeiras estrelas. A lua não saíra ainda.
Eu esperava por trás do volante do Opel, estacionado junto a uma cabina telefônica. Logo depois, abriu-se a porta da cabina e De Graaf, ainda enxugando com um lenço o sangue que lhe corria do rosto, saiu e entrou no carro. Levantei interrogativamente os olhos para ele.
— A área será completamente cercada dentro de dez minutos. E quando digo cercada, quero dizer à prova de fugas. Garantido. — Limpou um pouco mais de sangue. — Mas, como o senhor pode ter tanta certeza...
— Ele estará lá. — Dei partida ao motor e afastamo-nos. — Em primeiro lugar, Van Gelder calculará que aquele é o último lugar em Amsterdam onde alguém jamais pensará em procurá-lo. Em segundo, Goodbody, esta manhã, transferiu de Huyler o último suprimento de heroína. Em uma das grandes bonecas, com certeza. A boneca não estava no carro dele no castelo. Neste caso, deve ter sido deixada na igreja. Ele não teve tempo de deixá-la em qualquer outro lugar. Além disso, há provavelmente outra fortuna em drogas na igreja. Van Gelder não é igual a Goodbody ou Trudi. Ele não está metido nisto em busca de sensações... mas de dinheiro. E não vai desistir dessa grana toda.
— Grana?
— Desculpe, dinheiro. Talvez milhões de dólares em drogas.
— Van Gelder. — De Graaf sacudiu devagar a cabeça
— Não posso acreditar. Um homem como ele! Com uma folha de serviços policiais magnífica.
— Reserve sua pena para as vítimas dele — disse-lhe eu asperamente. Não era minha intenção falar assim a um homem ferido, mas eu, também, estava ferido. Duvidava de que o estado de minha cabeça fosse mesmo um nada melhor do que a de De Graaf. — Van Gelder é o pior de todos eles. Pode-se pelo menos dizer no tocante a Goodbody e Trudi que tinham mentes tão doentes, deformadas, enfermas que não eram mais responsáveis por seus atos. Van Gelder, porém, não está doente dessa maneira. Faz isso com a maior frieza, por dinheiro. Ele sabia de tudo. Sabia o que acontecia e como se comportava seu amigo psicopata Goodbody. E tolerou tudo. Se pudesse ter mantido a organização funcionando para sempre, teria tolerado para sempre as letais aberrações de Goodbody. — Fitei-o especulativamente.
— Sabia que a esposa dele e o irmão morreram num acidente de automóvel em Curaçao?
De Graaf esperou um pouco antes de responder.
— Não foi um acidente trágico?
— Não, não foi. Nunca provaremos isso, mas aposto minha aposentadoria que foi causada por uma combinação do fato de o irmão, que era um oficial de segurança treinado, ter descoberto coisas demais a respeito dele e o desejo de Van Gelder de livrar-se de uma esposa que interferia entre ele e Trudi, antes que as qualidades mais louváveis de Trudi subissem à tona. O meu argumento é que ele é um calculista frio como gelo, implacável, e destituído por completo do que se poderiam chamar sentimentos humanos normais.
— O senhor não sobreviverá para receber sua aposentadoria — disse De Graaf sombriamente.
— Talvez não. Mas tive razão a respeito de uma coisa. — Viramos para a rua do canal onde se erguia a igreja de Goodbody e ali, diretamente à frente, vimos um caminhão azul da Polícia. Não paramos, continuamos a marcha, paramos à porta da igreja e descemos. Um sargento uniformizado desceu os degraus para cumprimentar-nos. Quaisquer reações que tenha tido ao ver os dois mulambos humanos a sua frente, ele as escondeu muito bem.
— Vazia, senhor — disse. — Estivemos até no campanário.
De Graaf voltou-se e olhou para o caminhão azul.
— Se o sargento Gropius diz que não há ninguém aqui, então não há. — Após uma pausa, disse em voz lenta: — Van Gelder é um homem brilhante. Sabemos disso agora. Não está na igreja. Não está na casa de Goodbody. Meus homens fecharam ambas as margens do canal e a rua. Assim, não está aqui. Está em algum outro lugar.
— Está em algum outro lugar, mas aqui — respondi. — Se não o encontrarmos agora, por quanto tempo conservará a área cercada?
— Até revistarmos pela primeira e segunda vez todas as casas da rua. Duas horas, talvez três.
— E, em seguida, ele poderá ir embora?
— Poderá, se estiver aqui.
— Ele está aqui — respondi com certeza. — Estamos na tarde de sábado. Os operários de construção civil trabalham nos domingos?
— Não.
— Então isso lhe dá trinta e seis horas. Hoje à noite, mesmo amanhã à noite, ele desce e vai embora.
— Minha cabeça. — Mais uma vez De Graaf enxugou o sangue do ferimento. — A coronha da arma de Van Gelder era um bocado dura. Receio...
— Ele não está aqui embaixo — disse eu, pacientemente. — Dar busca nas casas é uma perda de tempo. E estou absolutamente certo de que ele não está no fundo do canal, prendendo a respiração durante este tempo todo. Assim, onde é que ele pode estar?
Olhei especulativamente para o céu escuro e varrido pelos ventos. De Graaf seguiu-me o olhar. A silhueta escura do imenso guindaste parecia quase alcançar as nuvens. A ponta de sua maciça lança horizontal perdia-se na escuridão. O grande guindaste sempre me parecera envolvido por uma atmosfera sobrenatural e ameaçadora. Naquela noite — com toda probabilidade, devido ao que me ia na mente — parecia apavorante, horrendo, sinistro.
— Naturalmente — sussurrou De Graaf. — Naturalmente.
— Bem — disse eu. — É melhor eu ir indo.
— Loucura! Loucura! Olhe só para seu rosto. O senhor não está bem.— Estou suficientemente bem.
— Então, subo com o senhor — disse De Graaf, determinado.
— Não.
— Eu tenho policiais aptos, jovens...
— O senhor não tem o direito moral de pedir a qualquer um de seus subordinados, aptos e jovens ou não, que façam isso. Não discuta. Recuso. Além disso, o caso não é de assalto frontal. Tem que ter sigilo, manobras sorrateiras... ou nada.
— Ele forçosamente o verá. — Querendo ou não, De Graaf estava aceitando meu ponto de vista.
— Não, forçosamente. Do ponto de vista dele, tudo embaixo é escuridão.
— Podemos esperar — insistiu ele. — Ele terá que descer. Em alguma ocasião, antes de domingo pela manhã, ele terá de descer.
— Van Gelder não se delicia com a morte. Isto sabemos. Mas é totalmente indiferente a ela. Isto também sabemos. Vidas... vidas de outras pessoas... nada lhe significam.
— E daí?
— Van Gelder não está aqui embaixo. Nem Belinda. Ela está lá em cima, com ele... e quando ele descer, trará seu escudo vivo. Não me demorarei.
Não tentou deter-me mais. Deixei-o à porta da igreja, dirigi-me ao canteiro de obras, alcancei a estrutura do guindaste e comecei a subir a série interminável de degraus colocados em diagonal dentro da estrutura em treliça da peça. Foi uma longa subida e daquelas de que, nas condições físicas em que me encontrava, eu bem podia ter desistido, mas coisa alguma havia de especialmente exaustiva e perigosa nela. Apenas uma longa e cansativa subida: a parte perigosa estava ainda à frente. A mais ou menos três quartas partes da subida parei para tomar fôlego e olhei para baixo.
Não senti uma impressão especial de altura, tal era a escuridão. As mortiças luzes dos postes ao longo do canal eram meras cabeças de alfinete e o próprio canal uma fita embaçada. A situação toda parecia muito remota, completamente irreal. Não consegui distinguir as formas de nenhuma das casas isoladas. Discerni apenas o cata-vento na ponta da agulha da igreja e isso mesmo a uns trinta metros abaixo de mim.
Ergui os olhos. A cabina de controle do guindaste estava ainda a uns quinze metros acima. Era uma escuridão vagamente retangular contra a escuridão ainda mais profunda dos céus. Reiniciei a subida.
Três metros apenas me separavam do alçapão situado no chão da cabina quando a lua brilhou através de uma fresta nas nuvens. Era uma meia-lua apenas, mas o brilho contrastante banhou o guindaste amarelo e a lança maciça numa inundação estranhamente extravagante de luz, iluminando cada travessão e longarina da estrutura. Iluminou-me também e teve o peculiar efeito de fazer-me sentir como um piloto de avião quando colhido no feixe de um holofote. Senti-me como se estivesse preso a uma parede. Levantei novamente os olhos e vi a cabeça de cada rebite do alçapão. Ocorreu-me o pensamento de que, se eu podia ver tão bem acima, um indivíduo que se encontrasse do lado de dentro poderia ver igualmente bem abaixo e, uma vez que quanto mais tempo permanecesse nessa posição exposta aumentariam as possibilidades de ser descoberto, tirei a arma do coldre e subi silenciosamente os últimos degraus da escada. Encontrava-me a um metro e vinte do alçapão quando ele se abriu um pouco e o cano longo e feio de uma arma projetou-se pela fresta. Sei que devo ter sentido a mortificação e a sensação doentia que acompanham o desespero e a certeza da derrota final, mas eu passara por coisas demais naquele dia, esgotara todas as emoções e aceitei o inevitável com um fatalismo que até a mim surpreendeu. Não era uma questão de submissão voluntária, pois se tivesse uma meia possibilidade, eu teria resolvido a questão a bala com ele. Mas não tinha possibilidade alguma e simplesmente aceitava o fato.
— Isto aqui é uma espingarda antidistúrbio de vinte e quatro chumbos — disse Van Gelder. A voz tinha um som metalicamente cavernoso e subtons sepulcrais que, em absoluto, pareciam despropositados para a ocasião. — Sabe o que isso significa?
— Sei.
— Entregue-me a arma, com a coronha para cima. Entreguei a arma com a graciosidade e a prática que vêm de uma longa experiência.
— Agora, aquela pequena pistola na meia.
Entreguei-lhe a pequena pistola. O alçapão abriu-se e vi-o claramente à luz da lua que se filtrava pelas janelas da cabina.
— Entre — disse ele. — Há bastante lugar.
Subi com dificuldade para a cabina. Como ele dissera, havia bastante lugar. Com algum aperto a cabina poderia ter acomodado doze pessoas. Calmo e tranqüilo como sempre, Van Gelder tinha uma espingarda pendurada no ombro e na mão uma pistola automática de aparência muito desagradável. Sentada num canto, pálida e exausta, Belinda tinha ao lado uma grande boneca de Huyler. Tentou sorrir, mas seu coração não estava no sorriso. Tinha um ar inerme e abandonado que quase fez com que eu me lançasse contra a garganta de Van Gelder, estivesse ele armado ou não. A sanidade mental e uma rápida estimativa da distância envolvida, porém, aconselharam-me a baixar suavemente a porta do alçapão e levantar-me de modo igualmente prudente. Olhei para a arma.
— Acho que arranjou isso no carro da Polícia.
— Certo.
— Eu devia ter verificado isso.
— Devia mesmo. — Van Gelder suspirou. — Eu sabia que o senhor viria, mas andou muito por nada. Vire-se.
Virei-me. O golpe que me atingiu a nuca não foi desfechado com o vigor e orgulho da perícia demonstrada por Marcel, mas ainda assim teve forças suficientes para atordoar-me durante um minuto e pôr-me de joelhos. Vagamente percebi que algo frio e metálico envolvia meu pulso esquerdo. Quando comecei a tomar interesse ativo no que acontecia, descobri que estava sentado quase ombro a ombro com Belinda, algemado ao pulso direito dela e com a corrente passada através do pega-dor de metal existente na porta do alçapão. Alisei levemente a nuca. Graças aos esforços combinados de Marcel e Goodbody e, agora, de Van Gelder, ela tivera momentos difíceis naquele dia e doía naquele momento abominavelmente, mais ou menos tanto como uma cabeça pode doer.
— Desculpe, a respeito da cabeça — disse Van Gelder. — Mas eu preferiria pôr algemas num tigre acordado. Bem, a lua está quase oculta. Um minuto mais e irei embora. Três minutos depois estarei em terra firme.
Fitei-o incrédulo.
— Vai descer?
— Que mais posso fazer? Não exatamente da maneira como você imagina. Eu vi o cordão de policiais ocupando posições — mas ninguém parece ter percebido o fato de que a ponta do guindaste estende-se sobre o canal a pelo menos dezoito metros além do cordão de isolamento. Já baixei o gancho até o nível do chão.
A cabeça me doía demais para que eu pudesse fazer um comentário apropriado. Nas circunstâncias, provavelmente não havia comentários a fazer. Van Gelder pôs a espingarda num ombro e a boneca no outro. Em seguida, disse em voz baixa:
— Ah, a lua desapareceu.
Desaparecera. Van Gelder parecia apenas uma sombra vagamente entrevista ao passar pela porta na frente da cabina, próxima ao painel de controle, e sair.
— Adeus, Van Gelder — disse-lhe. Ele não respondeu. A porta fechou-se e ficamos sozinhos. Ela agarrou-me a mão algemada.
— Eu sabia que você viria — sussurrou e, com um jeito de falar da antiga Belinda. — Mas demorou um bocado, não?
— É como eu lhe disse... as classes dirigentes sempre têm coisas a fazer.
— E você precisava dizer adeus a um homem como aquele?
— Pensei que seria melhor... Nunca mais o verei. Não, vivo. — Meti com dificuldade a mão no bolso direito. — Quem haveria de pensar? Van Gelder, o seu próprio carrasco.
— Não entendi.
— Foi idéia dele emprestar-me um táxi da Polícia... de modo que eu pudesse ser instantaneamente reconhecido e facilmente seguido a todo lugar que fosse. Havia algemas no táxi... Usei-as para prender Goodbody. E chaves. Estas.
Abri as algemas, levantei-me e dirigi-me para a parte anterior da cabina. A lua escondia-se atrás de uma nuvem, é fato, mas Van Gelder superestimara a densidade da nuvem. Não havia mais de que um brilho difuso no céu, mas era o suficiente para ver Van Gelder, a uns doze metros de distância agora, com a aba do paletó e a saia da boneca a balançar ao vento forte, enquanto se arrastava como um gigantesco caranguejo pela estrutura em treliça da lança.
A minha caneta-lanterna era uma das poucas coisas que não me haviam tomado naquele dia. Usei-a para localizar um interruptor de circuito situado na parte de cima da cabina e puxei a alavanca. Luzes brilharam no painel de controle. Estudei-o durante um curto momento. Senti a presença de Belinda ao meu lado.
— O que é que você vai fazer? — voltara a sussurrar.
— Preciso explicar?
— Não! Não! Você não pode fazer isso! — Não acho que ela soubesse exatamente o que eu tencionava fazer, mas pelo que deve ter parecido a finalidade irrevogável na minha voz, claramente desconfiou que os resultados de qualquer medida que eu tomasse seriam de natureza muito permanente. Olhei novamente para Van Gelder, nesse momento a três quartas partes da distância em direção à ponta da lança, voltei-me para Belinda e coloquei as mãos nos ombros dela.
— Ouça aqui. Sabe que nunca poderemos provar coisa alguma contra Van Gelder? Sabe que ele pode ter destruído mil vidas? E sabe que ele está transportando heroína suficiente para destruir mais mil?
— Você poderia virar a lança! Assim ele desceria dentro do cordão de isolamento.
— Nunca prenderão Van Gelder com vida. Sei disso, você sabe, todos nós sabemos. E ele tem uma espingarda antidistúrbio. Quantos homens bons você quer que morram, Belinda?
Ela permaneceu calada e deu-me as costas. Olhei novamente para fora. Van Gelder alcançara a ponta da lança e não estava perdendo tempo, pois imediatamente girou para baixo, colocou as mãos e pernas em torno do cabo e começou a deslizar, movendo-se com uma pressa quase precipitada, para a qual, aliás, havia ampla justificação — o banco de nuvens estava-se esgarçando rapidamente e a luminosidade aumentava a cada momento nos céus.
Olhei para trás. Belinda estava sentada no assoalho, com o rosto entre as mãos, tomando duplas providências para não ver o que ia acontecer. Olhei mais uma vez para o cabo e desta vez não tive dificuldade em vê-lo claramente, pois a lua saíra inteiramente de trás da nuvem.
Ele estava agora a meio caminho, começando a balançar de um lado para outro à medida que o vento o colhia, aumentando a cada momento o arco do pêndulo. Estendi a mão para uma roda e girei-a para a esquerda.
O cabo começou a subir, subindo Van Gelder com ele. O espanto deve tê-lo paralisado momentaneamente. Em seguida, compreendeu logo o que acontecia e começou a deslizar para baixo numa velocidade muito maior, pelo menos a três vezes mais do que aquela em que o cabo subia.
Vi o gigantesco gancho na ponta do cabo, a uns doze metros abaixo de Van Gelder. Centrei a roda novamente e, mais uma vez, Van Gelder agarrou-se imóvel ao cabo. Eu sabia que teria que fazer o que ia fazer, mas queria que tudo terminasse com tanta rapidez quanto humanamente possível. Virei a roda para a direita, o cabo começou a descer a alta velocidade e, em seguida, centrei-a novamente. Senti uma brusca sacudidela quando o cabo parou bruscamente. A empunhadura de Van Gelder soltou-se e, naquele momento, fechei os olhos. Abri-os, esperando encontrar uma cabina vazia e nenhum traço de Van Gelder, mas ele estava ainda lá, não mais preso ao cabo: estava estendido, de rosto para baixo, empalado no gigantesco gancho, balançando-se de um lado para outro em um imenso arco, a quinze metros sobre as casas de Amsterdam. Voltei-me, aproximei-me de Belinda, ajoelhei-me e tirei-lhe as mãos do rosto. Ela ergueu os olhos para mim. Eu esperava encontrar nojo naquele rosto, mas não havia nojo algum, apenas tristeza, cansaço e mais uma vez aquela.expressão de boa-mocinha-perdida na face.
— Terminou? — sussurrou ela.
— Terminou.
— E Maggie está morta. — Eu continuei calado. — Por que Maggie teve de morrer, e não eu?
— Não sei, Belinda.
— Maggie era competente, não?
— Era, sim.
— E, eu? — Permaneci calado. — Não precisa dizer-me — continuou ela, embotadamente. — Eu o devia ter empurrado pelas escadas do armazém, provocando um desastre com o caminhão, lançando-o no canal, desequilibrando-o nos degraus do guindaste, ou... ou... — Em tom pensativo disse: — Ele não apontou a arma para mim nem uma única vez.
— Ele não precisava, fazer isso, Belinda.
— Você sabia?
— Sim.
— Categoria, Grau 1, policial feminina — disse ela amargamente. — Primeira missão em narcóticos...
— Última missão em narcóticos.
— Eu sei — disse ela, sorrindo ligeiramente. — Fui despedida.
— Assim é que eu gosto — disse eu em tom de aprovação. Ajudei-a a levantar-se. — Você conhece os regulamentos, ou pelo menos o que lhe diz respeito. — Ela fitou-me durante um longo momento e, pela primeira vez naquela noite, um autêntico pequeno sorriso surgiu-lhe nos lábios.
— Esse mesmo — disse eu. — Mulheres casadas não podem continuar no serviço. — Ela mergulhou o rosto no meu ombro, o que, pelo menos, poupou-lhe o castigo de ter de olhar para meu rosto tristemente desfigurado.
Por cima da cabeça loura olhei para o mundo adiante e embaixo. O grande gancho e sua macabra carga continuavam a balançar-se loucamente agora e na extremidade de um dos arcos a boneca e a espingarda caíram dos ombros de Van Gelder. Caíram nas lajes no lado distante de uma rua deserta do canal, a espingarda anti-distúrbio e a bela boneca de Huyler, sobre as quais a sombra do cabo, do gancho e do seu fardo, como o pêndulo de um relógio gigantesco, balançava em arcos sempre maiores pelos céus noturnos de Amsterdam.
Alistair Maclean
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