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Planeta Criança



Poesia & Contos Infantis

 

 

 


BONECOS DE LUZ / Romeu Correia
BONECOS DE LUZ / Romeu Correia

                                                                                                                                                   

                                                                                                                                                  

 

 

Biblioteca Virtual do Poeta Sem Limites

 

 

BONECOS DE LUZ

 

 

Homenagem a Charlie Chaplin

 

                         EU COMEÇO ESTA HISTÓRIA

... por um gigante que conheci chamado Biganga. Tinha uma cabeçorra grenhuda, de grande barba, assente sobre um tronco espadaúdo que atemorizava. Era quase sempre ao sol-posto que ele atravessava os campos abandonados da aldeia. Macambúzio, o seu vulto surgia enorme, de passo bamboleante, semeando o espanto e a curiosidade no rapazio. Os mais afoitos saudavam-no; mas outros havia que, mal o topavam, fugiam dali, amedrontados.

Isto acontecia no Inverno, quando os dias eram pequenos e tristes, porque com a volta do Estio o gigante desaparecia da nossa beira vagueando pelas feiras e arraiais, a impingir a sua mercadoria: sinas, oráculos, o livro dos sonhos, as anedotas do Bocage... Trazia também um fornecimento de ervas milagreiras para mil e uma mazelas, que receitava prodigamente. Vagabundo-espantalho para meninos travessos (Se não estiveres quieto, eu chamo o Biganga!... - Come a sopa depressa ou vem aí o velho das sinas!...), as mães dos catraios muito cedo descobriram um outro préstimo do gigante: ser asseado e habilidoso na esfola de coelhos e na depena de toda a sorte de criação...

Nesse tempo eu era um garotelho que vivia na olaria do Paulino. Vivia... é força de expressão, pois todas as horas do dia passava-as cá fora sob o céu da aldeia, calcorreando os caminhos que iam dar à satisfação dos meus desejos. Gozava a plena liberdade dos campos como qualquer passarito, atrevido e saltarico, que da quietude do ninho pulasse para a vida. O sol e a fruta madura foram as riquezas que conheci por essa ocasião. E não era para desprezar a camaradagem de outros fedelhos, pois a um coração solitário falta-lhe sempre qualquer coisa para a alegria.

Ora numa das manhãs em que eu gandaiava pelas terras, passei pela pedreira velha e ouvi um espantoso ronco saído de uma das grutas. Aquele som buliu-me na imaginação como de rosnadela de bicho esfomeado, que se acoitasse ali... E seguiu-se um silêncio tão prolongado que acreditei ser já a manha do monstro para me deitar as garras...

Nisto, oiço uma sonora gargalhada que o eco repercute na distância.

«Olá! Afinal há gajo metido nisto! » - disse de mim para mim. E, travando os pés sobre a greda do caminho, volvi os olhos para a retaguarda...

Fora da bocarra da gruta - quem vejo eu a espreguiçar-se, fanfarrão? - o Biganga, o tal vagabundo que vendia sinas.

- Era vossemecê que ressonava?

- Porquê? Queres dormir comigo? - Mas é mesmo no fundo desse buraco que vossemecê passa as noites?...

Que sim; que dormia ali ou onde calhasse, que nunca fora de esquisitices.

Passada a minha surpresa, perguntei-lhe então se me conhecia...

- De ginjeira! Andaste na pedincha com a Ermelinda! ... Dito isto ele desceu uma manápula sobre a minha cabeça, tentando sossegar-me:

- Porque tiveste medo, palerma? Olha que eu sou muito teu amigo! ...

« Meu amigo?!» - pensei. «Que interesse tem ele em ser meu amigo!?» E libertando-me dos seus dedos grossos, retorqui-lhe:

- Aposto que não sabe onde eu durmo agora? ... E o gigante, trocista, apontou para o céu: - Apostas a Lua, não? Dei uma corridinha, e desatei a rir. Muito ri eu da ideia do meu parceiro. E senti então ganas de tratá-lo por tu:

- Ah! Ah! Ah! A Lua!... Estás cuma febre!... Contrariando a minha impertinência, o vendedor de sinas agarrou-me pelos calções. E os seus braços enormes ergueram-me à altura da barba grenhuda.

Berrei, esperneei, surpreendido pela inesperada proeza:

- Larga-me, Biganga! Estás-me a aleijar! Cada vez mais divertido, ele sacudia-me por cima da sua cabeçorra, magoando-me com as tenazes dos dedos,

- Pardalito vadio! Olha que eu cum sopro atiro-te pra Lisboa! ...

Por debaixo dos meus braços, aquelas mãozorras terríveis mexiam e remexiam, varando-me de comichão...

- Deixa-me! - gaguejava eu. E torcia-me todo: - Ai qu'eu rebento!

Era delirante a sua brincadeira: quanto mais eu gemia, maiores eram as diabruras dos seus dedos.

- Tens cócegas? Tens cócegas, Pardalito?

- Tenho, pois! - berrei-lhe, desorientado. Nisto, uma tripa deu sinal dentro de mim... «Ai! » E gritei-lhe ainda num derradeiro aviso:

- Pára!... Pára, Bigangazinho!... Era tarde para se travar o desastre: dei logo fé da mornidão que escorria pelas minhas pernas abaixo.

- Ah, malandro, que te mijaste! - rosnou o homenzinho, atirando-me para o chão.

Amedrontado, receei alguma veneta do gigante. E de dedos na boca, estive alerta e de pé leve para o que desse e viesse...

- Isto faz-se?... Isto faz-se, seu porcalhão? - protestava ele, limpando a barba a um trapo que tirara do alforge.

Não sei bem porquê ganhei logo confiança de que a sua irritação ficara por ali. Sorri-lhe sem vergonha, passando a ponta da língua pela serrilha dos meus dentes aguçados e ciciei-lhe:

- Desculpe. Mas o vendedor de sinas caminhava já para o povoado. A sua passada longa e bamboleante valia por três das minhas; e eu, para manter a distância que nos separava, corria na sua dianteira...

Em dado momento, indaguei, curioso:

- Que mania é essa que tu tens de viver sozinho num buraco? És filho dalgum lagarto?...

- Estou assim muito bem! - resmungou o gigante.

- Mas quem te lava as cuecas?

- Não preciso! Sabendo que nesta resposta o figurão encobria a outra verdade, fiz-lhe uma surriada dos diabos:

- O Biganga não tem cuecas! Não tem cuecas!... (Batia palmas e marchava.) Não tem cuecas!...

A minha figura, empertigada, fê-lo sorrir: - E tu usas disso, meu fidalgo?...

- Uso, pois! - menti-lhe heroicamente. - Então não havera de usar?! ...

Aumentava o nosso afastamento, pois eu queria estar fora do seu alcance...

- Tenho cuecas! - gritava-lhe agora. - Tenho camisola de lã! ...

Mas o vozeirão do trocista completou o resto do vestuário que eu nunca sentira sobre o pêlo:

- ... Tens meias... Tens botas... E as suas gargalhadas desafiavam o eco da manhã:

- Ali! Ah! Ah! Sem atinar com um palavrão que o chocasse, corri ligeiro para as bandas da olaria.

Mas as goelas do maldito é que me perseguiam ainda:

- ... Tens um fatinho à maruja! ... «Ele disse... um fatinho à maruja, não foi?!» Esta do vendedor de sinas é que me magoou... «Mas como teria adivinhado o gajo que eu sonhara sempre com essa fatiota? ... »

Assim era de mais: o Biganga estava a abusar; e gritei-lhe, furioso:

- Vai rapar a barba, meu piolhoso! Cata essas pulgas! ...

Todavia, ele não se calou ainda desta, porque me chegou aos ouvidos a sua resposta:

- Tapa a minhoca!... Olha que a constipas! ... Parei, e dei fé... «Realmente estes calções estão uma vergonha! ... » Meti, rápido, a fralda da camisa para dentro e prossegui na correria.

De passo para passo, sentia agora que o vendedor de sinas era uma pessoa como qualquer outra... (Não tenhas medo de mim, palerma! Eu sou muito teu amigo!...) Ele tinha alegrias e tristezas - e muita ânsia de acamaradar com o primeiro miúdo que aparecesse...

Volvi então um olhar à retaguarda: lá ia o papão dos meninos finos no longe da estrada...

A nossa distância era agora tão grande que um berro dos meus, por mais guinchado, nunca chegaria aos ouvidos do gigante.

E resolvi ofendê-lo na próxima vez que o encontrasse.

 

                     TENS MÃE, PEQUENO?

Oh., como a Primavera era minha amiga! Tão minha amiga que eu sentia pena de não poder beijá-la, agradecido!

Que alvoroço no peito quando no céu surgiam as primeiras andorinhas! A garotada estarrecia-se a olhá-las; e elas, velozes, aos ziguezagues, pareciam dizer:

«Vem aí a Primavera!» Nenhum de nós, por mais traquina, puxava contra elas o elástico da fisga ou trepava ao beiral do telhado para lhes surripiar os ovos. As andorinhas eram sempre bem-vindas, anunciadores do sol, da fruta madura - que faziam a nossa alegria e liberdade. Era como se a própria Natureza se transformasse na mãe que nunca conheci e me dissesse:

«Meu filho, cá estou outra vez ao pé de ti! Eu trago-te os dias grandes, a água quente do rio, a vida alegre e feliz com pouca roupa!...»

Depois chegava o Verão, que era ainda mais meu amigo! Mas este mauzão dava-me um pequeno desgosto: roubava-me o Biganga. Era o tempo das feiras e dos arraiais, por isso ele desarvorava da terra para impingir a sua mercadoria...

Quando me cruzava com outros catraios havia palavreado e bulha pela certa:

- ó Pardalito vadio: andas à cata de quem? E os mariolas faziam coro:

- ...Anda à procura do pai já que não sabe da mãe! Quando lhes ouvia esta resposta, eu ficava furioso: palavrões, cuspo e pedrada para riba deles, que era um regalo!... andas à cata de quem?

«Sei lá de quem eu andava à procura! Talvez do sol... de comida... Sei lá! »

Livre de uns... apareciam-me outros; e até havia senhoras caridosas que só escorropichavam moedas depois desta pergunta:

- Tens mãe, pequeno?

- Tenho, pois! - era a minha resposta. «Nunca a conhecera... Mas ter, tinha... - não é verdade?»

Pois se os pássaros e os bichos mais estranhos se acasalam, se as próprias andorinhas vinham do cabo do mundo em busca de calor para chocar os ovos - porque andavam sempre, os malteses, com aquela de eu ser filho das ervas?!

« Parvos!» Ao sair da casca achei-me envolvido nesta vida atribulada, embora só mais tarde disso tivesse tino...

Mas eu quero primeiro contar uma grande peripécia! Por esse tempo, quando me perguntavam:

- Qu'é da tua mãe, rapazinho? Eu respondia: - Está em casa... Em casa havia uma mulher que não me era nada - a Ermelinda. Ela e a outra foram as primeiras pessoas que me recordo de ter visto... íamos os três, de manhãzinha, para a cidade: eu, a nossa mãe e a outra... Colocávamo-nos a uma esquina e, a quem passava, a Ermelinda lamuriava:

- Uma esmolinha a esta pobre viúva que não tem quem o ganhe!

Nos locais afreguesados, a Rosete (a outra chamava-se Rosete) era colocada sobre um degrau de escada. Durante horas e horas cada um de nós desempenhava a sua obrigação. Eu tentava puxar pelas roupas aos transeuntes e a princesa somente mostrar-se e sorrir...

A que eu supunha minha irmã possuía a mais linda cabeça que havia sob a luz do Sol. Os olhos, a boca, os cabelos e - porque não? - o próprio peito provocavam um brilho esquisito nos olhos dos homens...

Mas é preciso dizê-lo, e depressa: a linda Rosete acabava na cintura; daí para baixo caíam-lhe duas perninhas-de-aranha, moles e achouriçadas que, por comodidade, se enrolavam sob as saias.

- Uma esmolinha a esta pobre viúva que não tem quem o ganhe...

A um simples sinal da nossa mãezinha, eu chamava a atenção dos distraídos e dos forretas - chorando... Oh, mas que podiam os meus atrevimentos e as minhas lágrimas com um simples sorriso da Rosete? Ela era o deslumbramento e o espanto de quantos passavam pela rua! Eu comparava-a às flores mais ricas, ao azul do céu, à Lua e às estrelas que luzem nas noites calmas e perfumadas!

Ao fim da tarde, regressávamos à nossa barraca, na Quinta da Alegria. Era ali que os pobres viviam em cubículos de madeira e zinco. Lembro-me de que o primeiro mistério gerado sob aquele telhado fora a ausência durante a noite da minha irmã...

Rosete desaparecia ao regressar da cidade, mas quando eu abria os olhos, de madrugada, já estava sentada no enxergão.

Ora eu tinha um boneco de pasta, escondido, havia um ror de tempo, para lhe ofertar, quando calhasse ficarmos sós. E, numa manhã em que isso se proporcionou (a Ermelinda fora chamada não sei onde), aconteceu o primeiro grande espanto da minha vida! ...

Aproximei-me dela e, receando alguma surpresa, perguntei-lhe:

- Rosete, qu'é da mãe? Dedos nos cabelos, a, menina meneou a cabeça loira e não me deu resposta. Eu insisti: Qu'é da mãe, Rosete? E só então ela palrou:

- Não ‘tá cá... Pulei para o chão e desenterrei o boneco. Sacudi-lhe a terra, limpando-o a um pano...

Sem nenhum entusiasmo, ela encarou-me com os olhos claros e só então estendeu as mãos para a minha oferta.

Olhou-me mais uma vez e, de súbito, como quem conclui um trabalho imperfeito, arrancou de um só puxão as pernas do boneco, obrigando-o a sentar-se assim, mutilado.

Ofendido pelo desacato, rompi a chorar, insultando-a de tudo que me veio à boca.

Punhos cerrados sobre a enxerga, a minha irmã foi ganhando uma expressão feroz. Semicerrou os olhos e, toda vermelha de rancor, rosnou por fim como um bicho assanhado:

- Reeee... leeee... Tentei evadir-me daquele inferno, mas caí sobre o caixote que servia de mesa. Alcancei, por fim, a porta: mas a

Ermelinda trancara-a por fora!

- Reeee... leeee... E, qual não foi o meu pavor, quando ela (que nunca fora capaz de andar sozinha... ) se apoiou nos braços - e avançou para mim!

Berrei, barafustei, cerrando os olhos para não ver aquilo. Mas fui logo filado pela malvada que, arrastando-me para debaixo das cobras das suas perninhas, me crivou a cara de unhadas.

 

                       CORAÇÃO SOZINHO

Abrira-se um abismo entre mim e elas. As duas eram cada vez mais amigas: trocavam segredinhos, riam-se, mastigavam os melhores petiscos...

Mas numa noite em que fomos entregar a Rosete a uma velha que morava perto (e foi a primeira restituição da minha irmã adiante de mim), a Ermelinda, no regresso, deu-me a novidade:

- Sabes que amanhã deixas de pedir comigo?

- Deixo... ?! - exclamei sem entender.

- Estás muito crescido... - esclareceu. - Agora já não convences ninguém.

Surpreendido - mas longe de avaliar o significado dessas palavras - retorqui-lhe:

- E ela?

- A Rosete continua. De madrugada, lá estava a princesa colocada sobre um caixote. Parecia agitada, subindo com frenesim uma das mãos ao ouvido...

Não demorei a surpreender a razão do seu alvoroço: a Rosete exibia um relógio de pulso e não se cansava de escutar o tiquetaque da máquina.

- Quem te deu isso?!...

- Ganhei eu... - foi a sua resposta.

- Ganhaste!? - E tive um ataque de riso: - Ah! Ah! Ah!

O rosto avermelhou-se-lhe:

- Ganhei, pois! - E apontou para o local onde a Ermelinda estendia roupa: - Ela paga à mina mãe... Tu nã sabias? Paga dinero!...

Saí da barraca e esbarrei com a outra, que me perguntou:

- já pensaste no que eu te disse ontem?

- Mas vossemecê vai deixar de pedir nas ruas?! Então a dona da barraca perdeu a paciência e começou aos berros:

- Irra! Já te disse que cresceste! Estás um tamanhão, que só me escangalhas o negócio! ...

E voltou para a selha das lavagens, donde retirou roupa que bateu, bateu, furiosamente, sobre a tábua.

Sem forças para chorar (eu que nas horas da pedincha chorava quando era preciso...) repeti a pergunta que não me saía da cabeça:

- E a Rosete sempre continua consigo?... Desta vez ela arremessou com uma bola de roupa para dentro da selha. A água, chapinhada com violência, subiu acima de nós, e ambos ficámos cobertos de espuma de sabão.

- Que chatice! Andaste comigo enquanto me serviste... Que obrigação tenho agora de sustentar-te?!

Dias depois apareceu lá em casa um outro filho. Era um fedelho magrizela, de orelhas de morcego, que tossicava...

Quando vinha a noite e a Ermelinda regressava, eu anichava-me perto da braseira. Nada dizíamos um ao outro, mas no momento da refeição ela não deixava de repartir comigo...

Quanto tempo andámos neste viver, que nem era carne nem peixe?

Um dia... - melhor: uma noite de Verão, quente e abafadiça, destas em que a gentinha do bairro da lata traz cá para fora a enxerga à cata de fresco - eu resolvi ir ao encontro dos ralos e das cigarras que enchiam a noite de música.

E só quando as minhas pernas me aconselharam a parar, dei conta de que chegara a outra povoação. Diante de mim havia casas, árvores e um cheiro a pão cozido que me reconfortava das unhadas da Rosete.

Divaguei pela aldeia adormecida, e já no meu coração subia um alvoroço de alegria. Eu ia dormir ali em qualquer sítio. Talvez mesmo naquele palheiro que me convidava a dois passos...

Mas, ao estirar-me sobre as palhas fofas, abandonado e esquecido de mil agravos, enxerguei uma alva claridade a subir no céu...

Seria já o novo dia?

 

                       O SENHOR INVERNO

... esse atrevido que rouba a verdura das árvores e mingua a luz do dia, fazendo descer o frio, o vento e a chuva

- dava-me um presente: o regresso do Biganga. Às primeiras chuvadas, cá o tínhamos de volta, encapotado e roufenho.

Dessa vez, ao ver-me, ele soltou um grito, prazenteiro:

- Viva, Pardalito! Como vai a vida? De nariz no ar, fiz-me distraído, volvendo os olhos para o lindo cavalo de crinas reluzentes que bebia no tanque do chafariz.

- Eh, rapazinho! Estou a falar contigo!

- Comigo? - retorqui-lhe, num sorriso velhaco. E a sua voz chegava-me agora cheia de ternura:

- Estás mais magrito... Esfreguei um pé sobre o outro, e sorri-lhe, com simpatia. Por fim, arrisquei esta frase:

- Estamos no Inverno... Agora não há fruta...

O vendedor de sinas esteve um pedaço calado na minha frente, cofiou a barba, compôs o alforge e, erguendo a carantonha para a negridão do céu, disse:

- Olha para aquilo! Não tarda que a gaja caia aí! ...

- Que gaja? - indaguei, intrigado.

- A trovoada. - E o braço dele apontou para o sul, onde as nuvens se acastelavam da cor do chumbo.

Aguentar: estamos no tempo dela! ... Curioso, perguntei-lhe a razão por que andava por aquele sítio. - Que fizera durante o dia? - E o gigante gemeu de tristeza:

- Nada... Não me conformei; e tentei espreitar para o alforge: - Estás a mentir! julgas que eu não sei que tens aí dentro uma pele de coelho! ?

Contrariando a minha impertinência, o Biganga quis agarrar-me pelos calções...

Cortei-lhe as voltas, lembrando-lhe o último desastre:

- Atira-me ao ar, atira-me... depois, queixa-te! ... Uma sonora gargalhada saiu do peito largo do gigante. Que essa lhe tinha ficado de emenda! Agora trazia uma rolha no bolso para o que desse e viesse!... - E abriu-me os braços:

- Vamos fazer as pazes? - juras que não me fazes partida?

- ó Pardalito, pela minha saúde! Um clarão de fogo varou o céu de lés a lés. O ar ficou branco e a terra e as coisas emudeceram - ouvindo-se pouco depois um medonho trovão rosnar sob os nossos pés.

- Ai, Bigangazinho! - gemi, correndo de olhos fechados para os braços dele.

- Que tens?... - indagou o meu companheiro.

- É cá uma coisa! ... Mas como a escuridão do capote me tapasse a boca e o nariz, furei em busca de ar...

Notando o meu desassossego, o vendedor de sinas inquiriu:

- Estás com medo de mim?

- Não.

- Então porque tremes?

- É da trovoada. Nova faísca cortou o espaço num ziguezague de lume. Escondi outra vez a cabeça sob o capote - e foi terrível a demora do trovão.

- A gaja está mais perto! - queixou-se o meu companheiro.

Comigo ao colo, correu a abrigar-se na árvore mais próxima. Mas gritou, arrependido:

- Não! Aqui debaixo, não! E abalámos para um muro que havia na banda de lá do caminho.

- Porque fugiste da árvore? - perguntei-lhe, intrigado. E da boca do gigante saiu a mais espantosa das sentenças:

- As corrias das árvores chamam as faíscas!... «Ah!» - pasmei da resposta. «Com que então elas fazem disso?!» E foi tamanha a minha decepção que jurei não trepar a mais nenhuma pernada.

Mas os braços musculosos que me seguravam tremiam agora como varas verdes... «Que é isto?» E no receio de que o meu companheiro estivesse com medo da trovoada, subiu-me um choro das entranhas... Tão convulso e desesperado que o gigante, apercebendo-se, quis ainda remediar:

- Que vem a ser isso, Pardalito? Então protestei contra aquela vergonhosa fraqueza: - Estás também com medo da gaja, hem?! ...

- Eu... ?! - objectou ele, numa lamúria. - Não digas isso, rapazinho! ...

Mas já não havia palavras que me convencessem do contrário:

- Estás, sim! Tremes cheiinho de medufa!... És tão grande e tão sabichão... e, afinal, bates o queixo como qualquer miúdo!...

Ele ia articular outra desculpa, mas um novo trovão fê-lo encolher-se. (E agora ouvi nitidamente um gemido sair da boca do desgraçado.)

- Cagarola! - berrei-lhe, fora de mim. E intimei-o: Eu não quero que tu tenhas medo da trovoada!

- Mas eu não tenho... - gaguejou ele.- É só uma questão de respeito...

Mentiroso! Estás chefinho de medufa; Embaraçado, o infeliz tentou ainda recorrer a engenhosa desculpa. - Bem, uma trovoada era sempre uma trovoada... Aquilo caía lá de cima, à maluca, não trazia letreiro... E, se acertava, lá ia um desgraçadinho para o Inferno! Não era bem medo o que ele sentia, mas um respeito dos diabos.

Perdendo a paciência, pus-lhe a faca aos peitos:

- Biganga! Faz com que a gaja acabe! Vamos: não te encolhas!

Trémulo e comprometido, o gigante pôs-se a rezar uma oração milagreira:

Santa Bárbara bendita Que no céu estais escrita Com vosso livro na mão Pedi a Nosso Senhor Que nos livre do trovão...

Banhado em lágrimas mas cheio de curiosidade, libertei a minha cabeça da negrura do capote e dei fé... Mas outro raio caiu lá de cima! A tarde pardacenta ficou branca, horrorosamente branca - e o trovão ribombou, como se ferros medonhos rabejassem nas profundezas da terra. Desta vez o vendedor de sinas deu um pulo, ganiu e ficou a tremelicar o queixo peludo.

- Acaba com a trovoada! - clamorava eu, decepcionado por tão grande cobardia. - Não tremas, Biganga! Faz qualquer coisa para isto acabar! Reza mais!...

... Espalhai-o para bem longe Onde não haja pão nem vinho Nem flor de rosmaninho Nem oiçais cantar o galo Nem repenicar o sino.

Terminada a oração, deitou-me uns olhos que me fizeram lembrar os de um cachorro. E talvez por depositar nele ainda a derradeira esperança, vociferei-lhe o último dos ameaços:

- Se a gaja não se calar... eu juro que nunca mais te falo!...

E esperei que do céu caísse nova faísca.

 

             O VELHO MANHOSO E A FILHA CASADOIRA

Após a madrugada dormida no palheiro, os donos da casa fizeram vista grossa à minha presença. Eu acordara numa olaria, onde viviam pai e filha, mas estes eram tão bulhentos um com o outro, que não achei de mais o meu aparecimento lhes trazer algum alívio...

A Miquelina era magra como uma tábua, usava um carrapito no alto da cabeça e por tudo e por nada berrava até ficar vermelha, Na ausência do pai, parecia outra, serena e de boas maneiras; mas, durante a noite, quando todos dormiam, algumas vezes ela despertava aos gritos, correndo pela olaria em fralda de camisa...

O pai, que se chamava Paulino, nascera nos dias pequenos; tinha o nariz vermelhusco e olhos de pisco. Ainda de luto pela mulher, as suas roupas sangravam da sujidade do barro. Caminhava aos pulinhos e, para parecer um roberto, nem lhe faltava o chapéu de abas ratadas, que nunca tirava da cabeça. Bebedolas inveterado, era raro não surpreendê-lo borracho; mas só depois de a filha lhe tirar a prova dos noves (obrigando-o a armar um pino no chão raso da oficina) é que se sabia ao certo o seu estado...

Quando o tanque de pedra da olaria mostrava o fundo velho Paulino metia a pá e a picareta no carro de mão ia à pedreira (onde dormia o Biganga) arrancar um pedaço de greda. Trazia-a para a oficina, vazava-lhe dois baldes de água -e era daqui em diante que o velhadas fazia do barro mole e pegadiço as bilhas, os tachos, os são-pedros e os santo-antónios, toda essa caterva de loiças que a filha vendia nas feiras. Claro que não bastavam as mãos do oleiro para tudo surgir belo e maravilhoso diante dos nossos olhos. Havia que contar com o auxílio das ferramentas uma, de tão reinadia, lembrava um pedal de amolador, e, por último, a bocarra de lume onde o barro era cozido à laia de pão.

Mas ali havia momentos em que o velhadas do Paulino encobria o que quer que fosse da filha; e esta, mordida pela desconfiança, anunciava ir à vila   ... quando, afinal, ficava à espreita numa casa da vizinhança ...

Até que o escândalo estoirou - e de que maneira! Furiosa, a Miquelina surgiu no pátio, atirando com o xaile para cima da cancela. Ao lobrigar a exaltação da rapariga, o oleiro ficou pegadinho à terra e assarapantado...

- Qu'é dela?! - foi o primeiro berro da magrizela. Ah, velhadas de um raio! Sacou do chapéu e, arremessando-o ao chão, tentou gritar mais alto que a filha. - Estás maluca, Miquelina?! Qu'intrigas te meteram na cabeça!? Entras pela casa dentro e desatas nessa bramação?!

Mas a rapariga vinha decidida a tudo: arredou-o da frente e apontou para o sótão:

A Carriça está lá em cima!!! Que Carriça...?! - fez o pai, apavorado, com aquele nome.

- Não negue, seu porcalhão! O que eu vejo, não há ninguém que o desminta!...

O Paulino ainda tentou agarrá-la pela saia, mas a filha esgueirara-se pela escada do sótão. Incapaz de travar o desastre que se avizinhava, o oleiro arrojou-se para o chão, fingindo ter um ataque. Esperneou, aos gritinhos, o corpo tão encaracolado que fazia lembrar um bicho reles a dar as últimas.

Mas já a Miquelina metia ombros no alçapão. Tantos empurrões deu na porta, que logo nos apercebemos de alguém estar a contrariá-la na banda de dentro...

- Pai! Diga a essa curta que me deixe entrar!... Dito isto, a filha do oleiro arrojou-se com redobrada violência contra as madeiras. A cada ímpeto logrado, o tecto da oficina estremecia e largava lixos. Parecia incrível que uma magrizela como a Miquelina tivesse tanta sanha dentro de si.

De súbito, toda a resistência ruiu, e logo a filha do oleiro se esgueirou como uma cobra pela greta do alçapão.

Ao ver a rapariga conquistar o andar superior, o Paulino, que esperneava no chão, endireitou-se rápido e aparvalhado...

Mas foi medonho o que se seguiu: berros, correrias e quedas estrondosas de dois corpos engalfinhados. Eu e o velhote tínhamos os olhos no andar superior e íamos adivinhando o andamento da zaragata pelos molhos de cebolas e de alhos que se desprendiam do tecto!

- Foge, Carriça! - implorava o oleiro. - Essa cabra mata-te!

Mais um grito lancinante e - que vemos nós?! - a pobre da viúva, rota, os peitos de fora, atirou-se pela escada abaixo. Vinha desgrenhada e a alvura das carnes contrastava com a roupa negra que lhe restava.

A magrizela foi-lhe no encalço, arremessando-lhe do alto com os tamancos e alguns farrapos que ficaram pelo caminho.

A Carriça ainda se agachou para recolher o calçado e

os trapos; mas logo desarvorou pátio fora, levada por dois pés enormes e ligeiros, a fralda da camisa muito curta para tapar tanta carne ao léu.

 

                     A NOSSA HISTÓRIA VAI TER MAIS GENTE

Aquela guerreia trouxe-me uma vantagem: deixei de estar a mais na olaria...

De falas cortadas com o pai, todos os desejos da Miquelina eram agora realizados por meu intermédio. O velhadas, mais desgraçadinho do que nunca, passou a desabafar comigo a toda a hora, condoendo-me tanto que resolvi amenizar-lhe o sofrimento, levando-lhe os recadinhos para a Carriça...

E assim, agradando a ambos, embora os enganasse por sua vez, tornei-me muito querido e estimado na olaria.

Ora numa das manhãs em que eu e o Paulino fomos à greda, cruzou connosco uma camioneta que chegava de longe por entre o alvoroço dos catraios. Era um citrolata ferrugento, de rodas zaranzas e um motor que bufava como qualquer pessoa malcriada...

Olhei para o meu companheiro e indaguei:

- Temos circo, Tio Paulino? Abandonando os varais do carro, o velho pareceu-me apreensivo pelo que acabava de ver. Movia as gengivas descarnadas como se moesse a própria dúvida:

- Outra vez estes gajos...?! Eu saltitava à sua volta, com perguntas:

- Onde estão os palhaços? Trazem bichos? Mas vossemecê ia os conhece, não é verdade?

De súbito, o oleiro cuspiu e, dando meia volta, empurrou o carro adiante de si. Magro e apressado, o homenzinho parecia um pardal aflito por voar...

Chegámos ao pátio da olaria e já fervilhava um grupo de curiosos, inacreditável para um fim de tarde. A camioneta entrara abusivamente no recinto e os dois homens que a tripulavam faziam a alegria daquela gente.

Ao surpreender a filha agarrada por um dos homens, o Paulino ficou fulo e, atravessando o pátio, encafuou-se na oficina. Lá dentro, soltou uivos e escaqueirou quanta loiça apanhou adiante de si...

Em dada altura pareceu-me ouvir gritar pelo meu nome:

- Zé Pardal!

O berro viera lá de dentro, e era a voz do velhadas...

- Chamou-me, Tio Paulino? Que sim! Queria que a cabra da filha corresse com a tropa fandanga para fora do pátio!

-Bem, se vossernecê quer... que eu vá dizer isso à Miquelina...

E fui. Não tinha ainda acabado de segredar o recado, quando a magrizela me joga um empurrão e desarvora ao encontro do pai...

Corro atrás dela e ainda oiço o princípio da bulha:

- Seu velho indecente! Vossemecê transforma a cama da minha santa mãe num curral de porcos... e eu não posso receber os meus amigos?!

- Fora com essa corja! - vociferou o Paulino, quebrando mais um tacho. - Vou queixar-me ao regedor! Eles a fabricarem bonecos no lençol e eu a berrar aqui-d'el Rei.

Muito direita, a Miquelina fincou os pés no chão, tão pernalta que parecia uma forquilha, e enfrentou o oleiro, ameaçadora:

- Se abre a goela eu... fujo com esse homem!... Aparvalhado, o velhadas gemeu:

- Foges... ?! - E o pobre ergueu as mãos à cabeça, aflito: - Oh, desgraçada, mas esse tipo é casado! ...

- Pois ... Foi!... - retorquiu ela, gingando-se, sabida.

- Agora ele é tão livre como eu! - E cuspiu, desprezível:

- A mulher dele raspou-se com outro! ...

Falho de forças, o Paulino amparou-se à pia da greda e lamuriou:

- Eras capaz de abandonar o pobre do teu pai por um gabiru que mal conheces?!

Então a Miquelina soltou uma gargalhada nervosa que encheu a olaria e sentenciou:

- Sou uma mulher como as outras! Quero ter filhos! Preciso dum homem, ouviu?!

- Galdéria! - ganiu o velho, babando-se pelos queixos abaixo.

Mas quem calava agora a Miquelina?:

- Tenho peitos, tenho tudo que as outras têm; não sou nenhuma mula amaldiçoada! ...

Nesta altura, o Paulino encarou-me e fez-me sinal para que eu saísse dali...

 

                 BONECOS DE LUZ?!

Cá fora, o tripulante da camioneta que brincara com a Miquelina continua a divertir toda a gente com os seus gestos e ditos. É gorducho, veste de caqui e usa um palhinhas na cabeça, em que dá piparotes com a ponta dos dedos como remate das peripécias que narra...

O outro que o acompanha é um cara triste, vestido de ganga e muito cabeludo, que não parou ainda de abrir buracos e de cravar estacas no chão. Não fala, não sorri às graçolas do bucha, como receando a sua vigilância...

E o primeiro berro do gordo não tarda: -O Lopes, daqui a nada é noite! Avia-te com isso!...

O trabalhador não tugiu nem mugiu; apressou a tarefa, retirando dois prumos da camioneta, que espetou junto do curral dos porcos. Em seguida, desenrolou um lençol que, esticado pelas pontas, foi preso às duas varas...

Eu estava tão intrigado que nem dei fé da aproximação da Miquelina. E quando a surpreendi, já era outra vez a paródia, uma tal confiança com o gorducho, que até o palhinhas dele passara para a sua cabeça. E, aos gritinhos, cortando-lhe as voltas, a filha do Paulino fazia um alarido dos diabos:

- Não és capaz, Nicolau! Só to dou se me agarrares! Ele bem se esforçava, bem fustigava as perninhas curtas, mas o seu corpo redondo não podia ser mais veloz. De tão cómica, aquela perseguição fazia-me lembrar a de um cevado atrás de uma galinha...

O Lopes terminou a faina e pôs-se a olhar para os dois brincalhões; e, quando o gordo lhe passou rente, avisou-o:

- Estou à sua espera, Sr. Nicolau. Este parou, ofegante, e, acanhando-se ante a calma desconcertante do trabalhador, gritou para a esgrouviada da Miquelina:

- Basta de reinação! Passa para cá o palhinhas, não ouves?!

Ela atirou-lho e - coisa espantosa! - o chapéu caiu precisamente na cabeça do gorducho! ...

Nesta altura destaparam a carroçaria do citrolata e surgiu um monte de cadeirinhas de pau. E logo o cara triste as distribuiu pelo rapazio para que as colocassem em fila no espaço vedado pelas cordas.

Mas a minha atenção seria em breve desviada para a carga mais sensacional da camioneta!

Coberto por um oleado, aquilo veio para o chão com a ajuda de todos nós. (Todos nós... menos o Nicolau, pois as suas mãos só saíam dos bolsos para contar anedotas ou gesticular ordens...) Depois, a misteriosa carga foi levada para debaixo do telheiro, que era o terreno mais elevado do pátio. E aos quatro pés de ferro saídos do oleado, o Lopes fê-los assentar no chão, metendo-lhes pedacinhos de madeira por debaixo...

E foi neste momento que alguém ali perto exclamou: - A máquina dos bonecos de luz! Intrigado com este nome - bonecos de luz?! – procurei saber que coisa era essa que a engenhoca fabricava. E as respostas chegaram-me ainda mais confusas:

- A máquina atira ali pró lençol tudo quanto a gente vê na vida! ...

- Atira pró lençol?! - exclamei, pasmado. - Mas como é que isso acontece?!

- Acendem uma luz dentro da gaja, corre uma fita... e a gente vê logo no lençol os bonecos de luz!...

Sem entender patavina, resolvi não fazer mais perguntas. Quando a tal fabricação começasse... então eu veria de que se tratava.

E moído de entusiasmo e de comichão - esperei.. .

Quando anoiteceu, o Nicolau sacou de uma ripa e afugentou toda aquela gente para fora do recinto. Levado na enxurrada, eu fartei-me de berrar que pertencia à casa...

Mas só a intervenção da Miquelina - «Esse não, Nicolau! Esse miúdo vive cá na oficina! » - conseguiu que o estúpido do gordo me arredasse para o lado.

Agradecido, peguei-me à saia da minha protectora e perguntei-lhe pelo pai. Mas este meu cuidado só provocou desprezo e irritação da sua parte:

- Quero lá saber dele! A esta hora está caído de bêbado nalguma venda!...

Lá fora gerara-se uma tempestade de gritos e de apupos. Eram os miúdos escorraçados e o mulherio curioso que àquela hora voltava do campo. Não poupavam também a Miquelina... E uma pedrada arremessada de longe acertou no telhado, da oficina, rolando com alarido pelas telhas abaixo.

Então a filha do Paulino abeirou-se do muro e ameaçou os atrevidos de que mandava chamar o regedor.

Armado com a ripa, o Nicolau foi lá fora ver se caçava o malandro... Andou pelo meio da malta, berrou, insultou meio mundo, chegando a ameaçar de que recolhia a máquina no carro e abalaria. - Súcia de bestas! - vociferou. - Pérolas a porcos era o que ele lhes oferecia naquela noite! Não ia correr bocados de fitas colados ao acaso... Nada disso! Desta vez iam ver uma fita inteira! A melhor fita do mundo Um espectáculo que nas grandes cidades seria pago a peso de oiro! - E, voltando ao recinto, fez lume no isqueiro e incendiou um bico de carbureto. Ergueu a luz no braço curto, pedindo que lhe trouxessem uma mesinha.

A Miquelina obedeceu ligeira e - pronto! - uma mesa foi colocada junto da cancela do pátio.

Então a assistência foi avisada do preço de cada entrada. Mas davam-se facilidades aos fedelhos: dois podiam avançar com um bilhete. .. E corridas as primeiras partes, cada entrada baixava para metade do preço...

Após alguma regatice, as cadeirinhas do recinto foram ocupadas pelos mais endinheirados da aldeia; depois, anuíram os rabugentos, gente que rosnava por tudo e por nada, alguns trazendo um banco ou toro de madeira para melhor se amesendarem. E por fim furaram os malteses maltrapilhas, mexidos como ratos, que baixavam logo os rabos vadios sobre a terra do pátio.

O Nicolau bateu com a ripa no tampo da mesa e soltou o último aviso aos que ainda rondavam o muro:

- Isto vai começar, meus senhores! Ainda estão a tempo de ver a coisa mais engraçada desta vida! - Mas emendou logo: - Engraçada... é como quem diz... Porque este actor tanto faz rir como chorar!... -E, elevando a vez, à laia de charabaneco de feira, anunciou: - É entrar, meus senhores! É entrar!... Venham ver uma fita inteirinha do Charló, o melhor actor do mundo!

 

                    Ó LOPES, DÁ À MANIVELA!

Quando o Nicolau soprou a luz do gasómetro, o recinto parecia um matagal de cabeças volvidas para o lençol. Respirava-se um ar morno. E o canto das cigarras brotava dos mil buraquinhos da terra.

Buscando maior comodidade, eu anichei-me junto das pernas magras da Miquelina. Coçava-me, cuspia para o lado; e por fim perguntei-lhe:

- Porque não começam isto, Miquelina? Mas ela não estava para graças: --Parvo! A máquina não vai logo à primeira! De repente, chispou um relâmpago sob o alpendre e que as mãos rápidas do Lopes logo abafaram de sombras enormes. E quando todas as cabeças se volviam para o sítio da engenhoca, foi então que um jorro de luz, saído pelo olho da gaja, atravessou o recinto, iluminando o lençol...

Que coisa fantástica tínhamos diante dos nossos olhos! Letras brancas, certinhas, surgiam sobre o quadrado de pano que se tornara preto... Depois, zás!, uma casa, com porias e janelas, um bocado J@@, céu por cima do telhado ...

«Espantoso! Tudo, tudo, como a gente vê ao natural!  

... Olha! Olha! Um automóvel atravessou a rua e parou à porta da casa!...»

- Miquelina! Como é que o carro foi parar ali ao lençol?!

Zás!: um jardim, cheio de árvores...

(«As folhas das árvores mexem, Miquelina?! ») Surge agora uma mulher com um filho ao colo... A mulher anda aflita de um lado Para o outro... e tanto caminhou que foi dar à casa fina onde estava o automóvel à porta... («E querem saber o que aquela malvada fez?»): Escondeu a criança dentro do carro e... e fugiu!!!

Nisto, aparecem dois tipos mal-encarados que, após certos olhares desconfiados, resolvem pular para o automóvel e fugir nele!...

- Miquelina! Miquelina! O miúdo está dentro do carro!!! Os gajos vão fazer mal ao miúdo?!

Levei uma palmada:

- És chato! Deixa-me ver a fita! Não fales! ... «Merda! Se eu não falo rebento! »

... O automóvel atravessou uma rua e os dois ladrões foram surpreendidos pelo choro do menino... Trémulo pelo cagaço, um dos cobardolas puxa por um pistolão e revista o carro...

Assustado, trepo para o regaço da filha do Paulino. Subo ainda um braço ao pescoço dela... e fecho os meus olhos sobre o seu peito.

De súbito, fiz uma descoberta: «A Miquelina é magrizela... mas tem aqui umas maminhas bem grandes! ... »

Fui sacudido:

- Larga-me! Vai pró chão! Olha pra ali!... Olhei... Um dos malvados estava agora com a criança ao colo... E fazia gracinhas e toda a sorte de momices para distraí-la... Depois, como o outro pulha lhe desse uma cotovelada, colocou sorrateiramente o anjinho num caixote de lixo - e piraram-se no automóvel...

Mas do fundo da rua, aproxima-se uni homenzinho, de bengala e de chapéu de coco, que caminha como os Patos... E quando este janota passa por debaixo de uma janela, arrumam-lhe lá de cima com uma porção de lixo...

Uma gargalhada encheu o recinto. Todas as cabeças se movem de satisfação pelo inesperado da partida; e há ainda os que exclamam:

É o Charló! Cá está o gajo...

O homenzinho sacode o pó da fatiota e, qual não é o seu espanto, topa com uma criança a palrar no meio do lixo!!!

Mas o tipo não se atrapalha: pega no miúdo e, armado em ama, embala-o e faz-lhe gracinhas ... («Que piada que o tipo tem! Olha o bigodinho dele! ... E que grossas que são as suas sobrancelhas!...») Por fim, termina a paródia e resolve colocar o fedelho no mesmo sítio... Mas... («Que azar!») - aparece o Polícia!!!

Atrapalhado, o homenzinho jaz uma pirueta... e agarra de novo na criança!...

Desaparece o Polícia e ele logo se agacha para abandonar o fedelho...

Zás! - outra vez o chui, que ficara desconfiado com o vagabundo...

O homenzinho então pega no pimpolho e abala com ele... Mas ao topar mais adiante um carrinho com um bebé encalua aí o pimpolho... Surge uma velha-gaiteira que, ao dar com duas crianças em vez de uma, berra ó da guarda! e bate com um chapéu-de-chuva nos costados do Charló... Este pula, aflito, levando uma grande coça - mas, ainda por maior azar, volta o Polícia!!!

Este resolve prender o homenzinho... Mas o nosso amigo é mais esperto do que o chui... Pega de novo no menino e foge...

«Eh, rapazes, eu nunca vi um matulão a correr assim!...»

- Miquelina! Miquelina! (Ela ainda não parara de rir. «Mas agora já não há razão para tanta galhofa?!») Vais ver que o Charló não abandona mais o miúdo! Ele fica com o menino, tenho a certeza! ...

A filha do oleiro sentiu-se molestada, e jogou-me outro empurrão:

- Chato! Olha que eu ponho-te fora do muro!... «É o pões! E eu pulava outra vez cá para dentro que era uma lindeza!...» ... Aquilo é que o homenzinho corria com o miúdo ao colo! («O Charló comparado com o langão do Biganga!...») Correu, correu e, por fim, encajuou-se por uma rua estreita, escondendo-se numa casa, onde ele vivia sozinho, num sótão...

Zás! - outra vez o jardim! («Olha, olha... lá está a mãe do miúdo!») A tipa parecia agora cheiinha de remorsos: os olhos cheios de lágrimas, aflita, sem poder estar quieta... Por fim, ela volta à rua do automóvel...

Saiem de casa uns senhores muito bem vestidos. Dão também pela falta do carro e... gritam, gritam, que foram roubados!!!

A mãe do miúdo, coitadinha, ao ouvir dizer aquilo, entorta a vista - e desmaia.

Algumas mulheres do recinto não puderam ficar caladas:

Malvada! Que nunca mais tenhas descanso! ...

O comadre, esta é da raça da Gertrudes Rambóia! ... Para fazê-los estão as gajas sempre prontas! ... Riram-se os homens, e houve mesmo os que não perderam a ocasião para meter a sua brejeirice...

Mas o Nicolau, que ainda guardava a cancela, não gostando dos ditos, fez chinfrim com a ripa sobre a mesa. - Que não queria indecências ali! Aquilo era só para os olhos... As bocas que se calassem! - E rosnou ainda:

- Quando se apanham às escuras são piores que os cães! ...

Um camponês ergueu-se, ofendido:

- Ó pançudo, vai à chamar cão ao teu pai! ... Mas como o corpanzil deste enchesse de sombras os bowcos de luz, estrugiu um berreiro por todo o pátio para que o maltês se agachasse depressa. ... Agora o miúdo era um rapazinho que já andava e corria... Todas as manhãs pulava da cama e ia aquecer o café para o Charló... Este estava cada vez mais engraçado: sentando-se no colchão, metia a cabeça num buraco da colcha, amarrava uma corda à cintura e fazia assim uma camisa à moda...

Quando tocava a lavagens, o do bigodinho obrigava o meia-leca a mostrar-lhe as mãos e as orelhas... Depois, iam à vida: o Charló prendia uma caixa com vidros às costas e descia para a rua... O garoto nesta altura separava-se dele e punha-se a apanhar quantas pedrinhas topava pelo caminho...

Mais adiante fez a primeira malandrice: meteu uma pedra na fisga, apontou para uma janela e, zás!, vidro partido!!!

- Ai o sacaninha! - exclamou a Miquelina. Assustei-me: - Se aparece o Polícia, o miúdo vai parar à gaiola! ... »

Quando a dona da casa apareceu a gritar que lhe tinham partido um vidro, aproximou-se o vagabundo... que se ofereceu para colocar uma vidraça nova!...

Estrugiram gargalhadas pelo recinto e novas alusões a um ou outro aldrabão da terra que de igual modo governava a vida...

Mas a fisga do garoto não tinha descanso: topando janela a brilhar, jogava-lhe logo pedrada rija...

E após os estilhaços ... aparecia sempre o Charló a oferecer o seu trabalhinho! ...

Ora aconteceu certa vez estar o mestre vidraceiro a pôr massa numa janela e, como era grande atrevido, alambazar-se com a dona da casa...

A gaja tem cócegas! - berrou um maltês da frente. E tantos beliscões deu nos braços dela, tantos beijinhos pregou nas bochechas da tipa... que apareceu o marido! E O MARIDO ERA O POLICIA!!!

A gentinha do pátio pulou de gozo. Gargalhadas, saltos, encontrões no parceiro do lado. Alguns, querendo mesmo compartilhar na fuga do vidraceiro, ergueram-se (e lá ficaram os bonecos de luz cortados por sombras cabeçudas!... o que provocou vendaval de gritos e apupos.... Perseguido pelo chui, o vagabundo metia-se por todas as ruas que lhe apareciam pela frente...     («Olha! Olha! O garoto pegou-se a ele?!») E o Charló às chulipas ao fedelho para que este se afaste, pois não quer misturas à frente da Polícia!...

Zás! - Agora tínhamos outra vez diante de nós a mãe do garoto! Vestia à rica e estava num palácio cheio de espelhos.

Noutra sala, conversavam vários homens: tudo gente bem penteada, com casacos de abas-de-grilo e de colarinhos de goma...

Uma tremura percorreu o corpo da Miquelina que, numa ânsia de desabafo, quis informar-me:

- Este é que é o pai do garoto!

- Qual deles, Miquelina?

- Aquele, ali... o que tem um risco a meio do cabelo... Era um senhor elegante, de cara barbeada e triste. Parecia preocupado, alheio a essa gente fina que o rodeava... «Estaria o homem a pensar no filho? Ou saberia ele já que a antiga mulher estava dentro do palácio?...»

... A mulher afastou-se para uma varanda, donde se avistavam as flores do jardim. E logo o marido a seguiu..

Olharam-se e, por fim, cumprimentaram-se como dois estranhos...

«Tenho a certeza que vão falar no filho!...» E como a Miquelina botasse pergunta a alguém de muitas letras que havia próximo, tive a satisfação de ver que acertara... ... Com os olhos no parapeito da varanda, o marido parecia ainda mais arrependido do que ela!...

Foi então que o meu queixo tremeu, e um calor abrasou-me o peito... Senti lume nas orelhas e, por mais que mordesse os lábios, as lágrimas rolavam-me pela cara abaixo...

Apercebendo-se do meu pranto, a filha do Paulino perguntou-me:

- Estás a chorar? ...

- É daquilo... - e apontei para o lençol. E ela, que também chorava, tentou consolar-me: - Eles não estão a sério! Aquilo é tudo a fingir! ...

- Qual a fingir! É a sério!... - E teimei: - Eu sei que aquilo é a sério! ...

«Se não fosse verdade não me tinha acontecido o mesmo! MAS ONDE PARA O MEU PAI E A MINHA MÃE?!»

Zás! - Outra vez a rua estreita do vidraceiro. O miúdo, sendo um meia-leca, é danado para jogar à pancada... E é que não se fica a qualquer graúdo! ... Bumba! Ei-lo que se pega com outro que faz dois dele!   ...

Logo o Charló desce à rua e aparta a guerreia... Mas o matulão que levou na tromba vai à esquina jazer queixinhas ao irmão mais velho - que, por azar, é um calmeirão dos diabos!!!

«Estás lindo! Ai agora... »

... O brutamontes que usa também chapéu de coco e tem músculos abatatados sobre os ombros, põe o vidraceiro a distância e obriga de novo os garotos a andar à porrada...

Vai começar, portanto, um combate de boxe...

A vontade de rir fazia-me esquecer que o menino fora abandonado pela mãe... «Que azar! Agora o vidraceiro vai levar poucas nos queixos! ... »

Pronto. Lá se engalinhou o irmão mais velho com o fraquezas do Charló! Oh, mas o nosso amigo corta-lhe as voltas e os murros do brutamontes perdem-se no ar...

De repente, os bonecos de luz desapareceram do lençol! Fora tudo num relâmpago - e as mãos do Lopes mais uma vez sombrearam o recinto como morcegos em debandada.

 

Todas as cabeças se volveram, Surpreendidas, para o alpendre, onde a engenhoca parara. «Que foi? Então o resto Ia porrada?» E alguns malteses ergueram o rabo do chão c foram dar fé...

Mas o Nicolau estremeceu a assistência com um berro de capataz:

- O Lopes, que é isso?!

- Estamos encravados!... - gaguejou o maquinista.

- Com mil raios! - retorquiu o gordo, abrindo passagem até ao alpendre.

Os dois homens então meteram as manápulas nas entranhas (Ia máquina e, por momentos, só se ouviu o tilintai ele ferramentas na fúria do conserto...

Os que ainda estavam sentados ergueram-se também. E o recinto parecia agora que continha dois dobros de gente...

Meus senhores! - exclamou, por fim, o do palhinhas. - Eu tenho muita pena... mas a máquina está casmurra e não, dá mais um passo! ...

«E o resto?! » - foi a pergunta geral.

- Partiu-se um carreto! - e o gordo acenou com um objecto na ponta dos dedos. - Partiu-se isto! ...   Olhem para a minha mão! ...

- Aldrabão! - rugiram alguns que desconfiaram. E o povo cresceu para o alpendre, por entre assobios e apupos.

Amedrontado, o Nicolau recuou para a traseira da máquina; pôs adiante de si o cara triste cio Lopes, abanando-se, encalorado, com o palhinhas...

Mas teve um assomo de coragem e veio para a frente, de punho erguido:

- Corja de estúpidos! Para trás, não ouvem?! - E abriu os braços, como qualquer pobre de Cristo: - Eu não, faço milagres! ... Se os fizesse não vinha para aqui aturá-los! ... Para trás, já disse! ...

 

                 Só FALTAVA A COMADRE LUA!

Na tarde seguinte, o Nicolau acamaradou com quantos lhe perguntavam pelo conserto da engenhoca ou lhe dirigiam simples graçolas. A pouco e pouco, o pátio da olaria regurgitou de camponeses. Alguns voltavam com os bancos e os troncos de árvores em que se tinham sentado na véspera.

Veio a noite e, quando todos encaravam o Lopes para que desse à manivela, o gordo coçou as banhas do peito e disse que havia ainda um caso a resolver... Pulou para cima da carroçaria da camioneta e, visto e ouvido por todos, começou:

- Meus senhores! A máquina está na afinação e nós estamos todos muito bem dispostos! Mas para que o espectáculo desta noite seja de borla... eu preciso de saber primeiro quem esteve cá ontem! ...

No mesmo instante, dentro e fora do recinto, os presentes puseram um braço no ar. - Eu! Eu! E eu também! ...

Enfim, tinham lá estado todos na véspera...

- Tanta gente! - exclamou, com cara de mariola, o Nicolau. E soltou uma gargalhada velhaca: - Mas vossemecês são dois dobros de ontem?!

Apanhados de surpresa, os camponeses baixaram o nariz e silenciaram. Eles bem sabiam a força do homem que lhes falava...

- Metade desta malta quer intrujar-me! já reparaste nisto, ó Miquelina?

Contagiados pela boa disposição, o riso do gordo tornou-se o riso de todo o pátio. E por momentos ali só houve galhofa e movimento de reinação. Até que o Nicolau voltou a palrar:

- Ainda a fita está dentro da latinha e eu já oiço as vossas gargalhadas!...

Nisto, um berro atravessou o pátio: - Começa lá isso, ó gordinho! Deixa-te de tretas! ... - Claro que vamos começar com a fita... Eu não estou aqui para outra coisa! E concluiu, brejeiro: - Mas para que vossemecês não se riam uns dos outros... eu acho melhor pagarem todos outra vez!!!

O dia fora pequeno para a Miquelina andar pegada ao gorducho, o que fez o velho Paulino não tocar no barro, pois, ao encarar, de madrugada, o lençol içado sobre o curral, desarvorou para a estrada.

Restava-me a companhia. do cara triste do Lopes, a quem me colei na mira de assistir ao conserto da engenhoca... Mas o homenzinho contrariou-me, consumindo as horas de sol à cata de grilos. Uma palha por entre os dedos, ele esteve horas e horas com o nariz rente aos buraquinhos do chão.

Em dada altura, intrometi-me:

- Então, vossemecê, não vai consertar aquilo?

- Aquilo... ? - fez ele, com estranheza.

- Não vai consertar a máquina?...

- Ah! - exclamou o Lopes, desinteressado, sem desviar os olhos dos grilos.

«Querem ver que este melro está feito com o barrigudo?!»- rosnei de mim para mim. «Ai que isto dos bonecos de luz cheira-me a grande aldrabice!...»

Desalentado com esta história, saí ela beira do mecânico e divaguei pela aldeia. - Queria encontrar o Paulino... Mas qual Paulino nem meio Paulino! Procurei, fartei-me de procurar - e nada. O velhadas levara sumiço. « Estaria, o grande brejeiro, no quente, enroscado na Carriça?...»

Mas o Nicolau acabou por ser mais teimoso que o povo da aldeia.

- É entrar, meus senhores, é entrar! Hoje a máquina está uma maravilha! Venham ver o maior actor do mundo! Uma fita inteirinha que custa rios de dinheiro em qualquer cidade! ...

«Corre a fita toda? Então os bonecos começam outra vez pelo princípio?!» E logo este espanto fez avançar para a cancela quem não tinha assistido na véspera. E atrás destes vieram os mais abonados e curiosos. Uma mulher ao topar o marido a esgueirar-se para o pátio fez chinfrim, pegando-se ao braço dele: se tu vais, eu também quero ir, pois não tenho dois olhos como tu? ...

Tumultuoso, apressado, o rapazio acotovelou a barriga do Nicolau, que em dada altura pregueou a boca à laia de cocheiro:

- Aíííí... chóóóó! Pra trás, suas bestas! Estão com a mosca ou quê?!...

O dinheiro crescia dentro da caixa de bolachas, colocada sobre a mesa. E em breve, o recinto da olaria regurgitava de homens, mulheres e crianças. Havia famílias inteiras sentadas no chão térreo. As mães repartiam nacos de pão pelas bocas mais próximas, para que entretivessem o estômago enquanto os olhos gozavam a mais deslumbrante função do mundo. Tilintavam foices contra o ferro das enxadas, e este contra ancinhos e roçadouras, pois viera gente do sol a sol direitinha ao divertimento.

Junto ao muro do pátio havia o curral dos porcos e as capoeiras do velho Paulino. O contacto da multidão punha os animais estranhos e inquietos. Cacarejavam as galinhas, enquanto os galos, pimpões, garganteavam o seu canto estridente. Tudo ali convidava ao dito e ao riso nessa noite abafadiça e tão cheia de surpresas. E foi durante uma bulha de suínos que o Nicolau soprou a chama de carbureto e ordenou ao Lopes que desse à manivela,

Quando os bonecos de luz voltaram ao lençol, observámos que tudo aparecia e acontecia como na véspera... « Que coisa fantástica! Olha! Olha! Querem ver que a mulher vai pôr hoje outra vez o filho no automóvel?!»

Dirigiu-se com a criança ao colo para o sítio onde sabíamos estar o carro...

Baixei os olhos para o chão e cocei um dedo do pé... Dali a bocado, quando olhei para o lençol, já o automóvel corria pelas ruas com os dois ladrões dentro!...

Fui adivinhando o que acontecia - mas sempre na esperança de que a história não se passasse da mesma maneira... ... Agora a criança era um rapazinho que andava e corria ... Todas as manhãs pulava da cama e ia aquecer o café para o Charló...

Mas isto dos nossos olhos saberem o que se vai passar rio lençol, dava-nos ânsias de prevenir o parceiro do lado. Por todo o recinto, quem conhecia metade da fita não estava quieto nem calado... Rompiam assobios e palavrões, quando cabeçorra altaneira ensombrava o lençol. E o que fora ontem pacato e comedido, hoje era verdadeira balbúrdia.

Batendo com a ripa sobre a mesa, o Nicolau tentou impor o respeito:

- Súcia de gralhas! Isto é prós olhos e não prà boca, seus burros! ...

Agora por metade do preço o gorducho empurrava para dentro do muro toda a sorte de bicho-careta. O bafo da noite obrigara os homens a despir o casaco. Um ou outro fedelho esgueirava-se da beira da mãe e ia agachar-se atrás das capoeiras... ... E tantos beliscões deu o Charló nos braços dela... tantos beifinhos pregou nas bochechas da tipa... que apareceu o marido - E O MARIDO ERA O POLICIA!!!

No alvoroço das gargalhadas, houve gente pisada, gritos de dor e socos para a esquerda e para a direita... ... O vidraceiro perseguido pelo Polícia metia-se por qualquer rua que lhe aparecesse pela frente...

Tornou-se impossível obrigar aquela malta a abaixar os rabos no chão,. O que se passava no lençol fazia esquecer os berros e as violências dos espezinhados. ... O garoto surgiu e pegou-se ao Charló... mas este

jogava-lhe chulipas para que o meia-leca se afastasse, pois não queria misturas diante dos olhos do Polícia...

Mas em dado momento, os bonecos de luz começaram a perder nitidez! Tudo que antes fora igual à realidade aparecia agora desmaiado no lençol, como se espreitássemos por um vidro sujo...

«Qu'a, raio de névoa!» Cocei um olho; depois, o outro mas fiquei na mesma...

... A mãe do garoto, vestia à rica, estava num palácio cheio de espelhos...

O antigo marido foi para o pé dela... «Querem ver que a máquina escangalha-se outra vez?!» A brancura do lençol surdia através dos bonecos e tudo desmaiava: a mãe do garoto, o pai e as flores do jardim...

Mas ao mesmo tempo que essa coisa desagradável acontecia, uma claridade crescia fora do recinto, banhando tudo e todos.

O Nicolau não tardou a dar com aquilo e berrou, surpreendido:

- O Lopes, afina essa luz! Estás a dormir ou quê?! Nesta altura, o outro parou a manivela... ... E logo o Charló e os dois miúdos que andavam à pancada ficaram parados, sumidos...

Abrindo uma tampa da máquina, o mecânico espreitou lá para dentro... Depois, veio cá fora deitar uma olhadela para o céu...

O gordo tomou aquilo por gracejo, e explodiu: -Parvo! Que tem que ver o ar da noite com o desarranjo da máquina?!

- Qual desarranjo! - exclamou o cara triste. - A máquina está boa! O luar é que bate em cheio no lençol e apaga a projecção! ...

Ao ouvir isto, ninguém ficou sentado no recinto: todos se ergueram de nariz no ar...

A Lua, redonda e enorme, surgira no céu mesmo por cima do telhado da olaria. Nem uma nuvem havia lá no alto a contrariar a vaidade da cara bolachuda...

- Pode lá ser! - vacilou ainda o Nicolau. - Então a Lua é que... ?!

Aqui, o Lopes teve um ar de riso:

- Claro que é a Lua, seu Nicolau! Então, vossemecê, não vê que se pôs uma noite... que parece   dia?!

A multidão embasbacara. Algumas caras, de tão aparvalhadas, pareciam anjinhos de boca aberta...

Pela minha saúde que nunca assistira     a nada igual! E não pude evitar este desabafo: «Que o Lopes seja um pau-mandado do Nicolau...   mete-se pelos olhos dentro! Ora a corria da Lua... !»

 

                QUAL É A COISA QUAL É ELA?

Julgam que aquela gentinha queria sair do recinto? Que estavam muito bem ali ao fresco! Que esperariam o tempo preciso até a comadre Lua deixar o lençol em paz! ...

Perante esta teimosia, o Nicolau pôs-se aos berros: - Cambada! Isto não é hospedaria! Saiam! ... Não ouvem?! E se a Lua se sentasse lá em cima? ... Ficavam aqui toda a noite? ...

- Qual sentar-se! - retorquiu um espertalhião. - A fé dele! ... Para isso era preciso que a Lua tivesse cu! ...

Ao ouvir esta resposta, o gorducho quis ver a cara do alarve. - Que mostrasse ao menos o focinho ou o tarrianho (Ias orelhas! - Mas percebendo que tinha diante de Si um osso duro de roer, recorreu à graçola:

- Súcia de vivaços. Quem lhes disse que a comadre Lua não dorme sobre as nuvens? Basta ela ser mulher para roncar a qualquer hora! ...

As camponesas não gostaram da comparação. - Parvo era quem assim falava, visto haver mulheres mais trabalhadeiras que muitos homens! ...

Aproveitando a maré do regateio, o nosso homem Segredou fosse o que fosse ao ouvido da Miquelina, que logo desapareceu do recinto...

E quando tudo faria crer que as linguareiras o tivessem calado de vez -ei-lo que trepa para a carroçaria e, do alto, lhes grita com redobrado entusiasmo. - Se o mulherio estava disposto a bater-se de língua, ele não as cortava! E não as cortava porque as conhecia de ginjeira! - E, sempre mais afoito e reinadio, deu começo a uma longa adivinha:

- No princípio do mundo não havia noite. Tanto o Sol como a Lua estavam sempre à vista. Viviam como marido e mulher, pois fora essa a vontade de Deus Nosso Senhor...

Aldrabão! ... Nascia todos os anos uma estrelinha! ... ALDRABÃO! Interrompido, o fala-barato olhou de esguelha para o grupo que assim gritava, e prosseguiu:

- ... Ora aconteceu certa vez passar pelo céu um astro que ninguém conhecia! Era um astro tão bonito que ela ficou logo...

- ... aluada! - concluiu o maltês das graças. Mas já outro intrometido lhe bradava: - Diz lá o nome desse astro, ó gordinho?

- O nome hão-de vossemecês dizê-lo no final... - esclareceu o Nicolau - pois são assim todas as adivinhas! ...

E prosseguiu: - Deus Nosso Senhor quando soube da traição teve um grande desgosto. Chegou mesmo a pensar que o melhor seria acabar com o mundo! Mas como a malvada não parasse de chorar, então, o Criador botou esta sentença:

- ... «já que és mulher e pecadora, terás como castigo ser apartada do teu luminoso marido e viverás eternamente às escuras. Passarás o resto da tua vida longe das estrelinhas, tuas filhas, que te piscarão o olho à distância».

Uma maçã arremessada de longe rasou o ombro do fala-barato. Este calou-se, receoso de que outra mão fosse mais certeira. Mas o burburinho que logo cresceu era mais de protesto pela história interrompida do que de galhofa pelo espanto da «pedrada». E os curiosos não descansavam enquanto não sabiam o nome do amante da Lua...

Opunham-se as mulheres, pois queriam que o gordo as esclarecesse primeiro:

- Afinal de contas só a desgraçadinha foi castigada? O malandro do amante ficou a rir-se, não?

- O atrevido ainda apanhou maior talhada! - esclareceu o dono dos bonecos de luz. E não teve pejo de imitar a voz grossa de Nosso Senhor: - «Tu és a vergonha do mundo que eu criei! Por isso, desaparecerás do céu e... nunca mais ninguém te verá, embora a tua presença seja para sempre sentida e odiada ... »

Terminando bruscamente, deixou a interrogação da adivinha a fervilhar nas cachimónias: - Qual é a coisa qual é ela que ninguém vê ... mas que todos sentem?...

Logo as mulheres tentaram entre si descobrir o nome do astro. E, como alguns homens se intrometessem, elas desforravam-se nos catraios que as assediavam:

- Alheta! Aqui só petiscam mulheres! Mas não tardou que um velhote se erguesse, muito feliz:

- Eu sei! Eu sei! Alastrara de mais a brejeirice para que um pobre diabo como o Tio Chico Galinha viesse agora dizer que acertara com a adivinha...

- Eu sei! - insistiu o velhote. E gritou para o gordo do palanque: - É o Vento!.. .

- O Vento?! - exclamaram,         decepcionados,   quantos estavam a maralhar na solução. - Pode lá ser o Vento! ...

O velhote teimava, maravilhado:

Eu tenho a certeza que é o Vento! Ele é que sopra sem nunca se mostrar!...

Mas a Miquelina acabava de entrar no recinto, seguida do Anselmo Padeiro, que desempenhava as funções de regedor tia aldeia...

O (gordo pulou, rápido, para o chão e foi ao encontro deles. ‘Já o recém-chegado barafustava para quantos via em redor:

Que pouca vergonha vem a ser esta?! Acamparam no Z, quintal do Patilino e agora não querem sair!?

Afinal o fala-barato embebedara-os com a adivinha enquanto o ferrabrás não, chemva! Safardana! - E de todos os cantos choveram protestos:

- Queremos o resto da fita!

- O gordinho é um ladrão!

- Já tínhamos saído se não tivesse aparecido a corria da Lua! ...

Ao ouvir esta última, o regedor cofiou as guias do bigode e levantou o nariz para as estrelas. - A cona da tua! Mas, reagindo contra a sensação de ter bêbados pela frente, o padeiro apressou a sua autoridade:

- Cada um levanta o rabinho do chão e toca a andar!

- Daqui ninguém arreda! - Não me façam zangar... Não me façam zangar porque é pior! ...

As mulheres eram ainda mais teimosas e vingativas:

- Não saiam! Não saiam sem dar uma coça no barrigana! Foi nesta altura que o Anselmo, Padeiro se mostrou um bom velhaco, ameaçando a tropa fandanga ali reunida:

- Ali, não obedecem ao vosso regedor?! Pois daqui em diante acabam-se os fiados lá na padaria! ...

E - dizendo «boas-noites» - ele foi o primeiro a abandonar o pátio.

 

                       QUATRO AO LUAR

Ficámos os quatro a palrar no recinto. (Ficámos os quatro... é força de expressão, pois tanto eu corno o sisudo do Lopes só ouvíamos os outros dois! ) Mas pela satisfação da Miquelina e os calores do gordo, que ainda não parara de abanar-se com o palhinhas, percebi que nos havíamos livrado de boa.

Pachorrento, o mecânico foi pouco depois enrolar a fita, metendo-a numa lata redorida que colocou dentro da camioneta.

Intrigado com tanta coisa fantástica, tive esta curiosidade junto do homenzinho:

- Amanhã, vossemecê volta a tirar a fita daí, não é isso?

- Amanhã? - rosnou ele, numa careta. E subiu os ombros magros: - Eu sei lá onde estarei amanhã! ...

Amuado e desgostoso, abeirei-me da magrizela, puxando-lhe pela manga da blusa...

Mas o fala-barato, por lhe ter interrompido a conversa, jogou-me uma ripada no rabo:

- Eh, catraio, daqui pra fora!

Arreganhei os dentes e disse de mim para mim: «Se tu me voltas a arrear... eu seja cão se não comes uma pedrada! »

Mas, para maior azar, não tardaram as mãos cia Miquelina:

- Chato! Que mania de te agarrares!... Escorraçado por todos, senti ganas de procurar o velhadas do Paulino... «Vou? Não vou?...» Mas valeria a pena ir à cata do oleiro? Àquela hora da noite, estando metido no quente com a Carriça - de modo nenhum acudiria ao meu chamamento!

Um migalho depois, a magrizela passava-me já a palma da mão pela cabeça, convidando-me:

- Sobe para o sótão, anda! Desconfiado, murmurei:

- Eu gosto de estar a ver isto!

- Sobe... eu já vou lá ter contigo! Mais uma festinha pelo meu pescoço foi quanto bastou para que eu me sorrisse...

Subia a escada de madeira, quando tive um pressentimento: «Ná! Aqui há coisa! ... Ela joga-me um empurrão e... agora põe-se com meiguices?!»

Lá fora, era agora o Lopes quem falava:

- Seu Nicolau, ajude-me a meter a máquina dentro do carro!

- Burro! - foi a resposta do outro. - Não vês com quem estou a falar? ...

Houve depois um silêncio que enervava, acabando por se ouvir a voz meiga do Nicolau:

- Miquelinazinha: porque não vens comigo?

- Mas eu não posso! - retorquiu a filha do oleiro. Bem sabes que o meu pai sem mim é um desgraçado! ...

Então o fala-barato puxou pela sua sabedoria: - O teu pai precisou de ti antes de tu nasceres?...

Faz-se nova pausa, que termina com queixumes dela:

- A tua vida, Nicolau, é tão cheia de correrias! ...

- Nunca me enrasquei a ganhá-la! - esclareceu ele, fanfarrão. - Eu até já fui ferro-velho! E, amanhã, se for preciso monto uma barraca de tiro ou uma tasca de comes-e-bebes! Mas se a coisa der para o torto... agarro-me ao contrabando! Nunca me enrasco! Sou um homem de negócios, cheio de iniciativa! ...

Ela teve outra desculpa: - Eu adorava ter o cantinho da minha casa, percebes? Mas abandonar o velhote para andar neste desassossego...

Neste instante, ouvi o gorjeio de um pássaro! «Pássaro?! Qual história! São beijos!...» (Espreitei.) «Beijinhos do malandro do Nicolau!»

- Meu amor! - gemia o traste. - Eu tenho cá uma fèzada que na tua companhia o meu negócio dá um salto! ...

- Querido...   aquela máquina mete-me medo! ...     Ela encrava-se com tanta facilidade... Nunca corre a fita até ao fim! ...

E foi neste momento que o gordo se tornou misterioso: - Quem te disse que aquilo pode chegar ao fim? ...

- Não pode?! - exclamou a Miquelina, abismada. Mas tu prometes sempre corrê-la de fio a pavio!

- Ora! O Lopes sabe muito bem o que faz! ...

- Tens assim tanta confiança nesse homem?

O gordo soltou uma gargalhada a plenos pulmões:

- Tenho-o nas mãos, minha rica! Esse desgraçado é meu enquanto eu precisar dos seus dois braços! ...

- Credo! Um homem não é um cão a quem se põe uma coleira! Teu, como?!

- O Lopes é meu porque eu sei quem ele é, entendes? Entrou-me uma noite pela barraca dentro, a ganir e a mijar-se de medo... É um pobre ladrãozito de feira! ...

Na ânsia de tudo ouvir (quando dei por mim) eu estava fora da porta da oficina...

- Ah, grande velhaco!!!

O gordo correu, de ripa no ar, pronto a sovar-me. Mas a magrizela, metendo-se de permeio, empurrou-me para o sótão.

Lá em cima, sentei-me, aturdido por tão medonho susto.

«O estupor do homem parece mesmo um porco em pé! ... »

Molenga, abri a boca num bocejo. Percorria-me o corpo um formigueiro e os olhos fechavam-se-me, teimosos...

Ali, no sótão, afinal, nem tudo era escuridão: pela fresta do telhado, a Lua projectava um quadrado luminoso nas tábuas do chão...

Curioso! Era como se o próprio lençol viesse lá de fora e ficasse ali a meus pés para que a função recomeçasse...

E se a vaidosa da Lua, tão caprichosa em acabar com os bonecos, pusesse agora diante dos meus olhos o Garoto, o Charló e o... Polícia? ...

 

                   O DA GUARDA! QUEM ME ACODE!?

Ao ouvir estes gritos, pulei da enxerga e, ao espreitar cá para baixo, vejo o oleiro cercado de mulheres que em vão tentavam acalmá-lo.

Era o que eu pensara: a Miquelina fugira com o gorducho dos bonecos de luz. Mas havia ainda outro motivo que tanto acirrava o Paulino: a fugitiva levara consigo, além da troixa da roupa, dinheiro, cinco galinhas e um porco.

Tentei misturar-me para lhes desabafar a conversa escutada na véspera; mas por mais que pulasse no bico dos pés não me ligaram nenhuma...

Solitário e inútil, vim cá para fora à cata de sol. «Era bem feito que eu fosse atrás dos figurões e lhes pregasse um susto! Lá isso, era! ... Mas qual o rumo seguido pela camioneta? ... »

A minha permanência na olaria não podia ser muito duradora. Livre da filha, o Paulino meteria, em breve, a Carriça das portas adentro e faria tudo para se regalar longe da minha aborrecida presença...

Mas nisso eu enganara-me: o velhadas deu para a tristeza, para soltar «ais», e, quando num belo dia a viúva apareceu, rosnou-lhe mais ou menos assim:

- Sai da minha frente, mulher dum raio! Desaparece, não ouves?! Não te quero debaixo destes tectos! ...

A Carriça ficou para morrer e, furiosa, agarrou-se à fralda da camisa do oleiro:

- Paulino! Olha para mim, cigano danado! Qu'intrigas te meteram nessa cachimónia?!

- Arreda! - barafustou o velho, sentindo-se agarrado. Arreda da minha beira! E tantos jeitos deu ao corpo, safanões e mais safanões, que arremessou a viúva contra a pia da greda.

Pressentindo que se avizinhava uma grande desgraça, corri para a porta da oficina, pronto a gritar por socorro.

Oh, mas daqui em diante é que eu ia saber de que força era o manhoso do Paulino!

Mal viu a Carriça em pantanas, o velhadas pôs-se a tremelicar, a fazer caretas - parecendo mesmo um macaco, o raio do homem!

Mas quando a amante deu sinal de si, erguendo-se da terra da oficina, ei-lo que rompe numa choraminga de fedelho:

- Eu morro de desgosto! Volta pra casa, Miquelina! Por causa desta mulher eu fiquei sem a minha rica filha! ...

Cheia de surpresa, a Carriça gemeu:

- Por minha causa...?! De súbito, o oleiro muda de atitude: ergue as mãos e enche a própria cara de bofetadas à medida que se cobre de insultos:

- Toma, malandro! Toma, pai malvado! Apanha, bêbado relaxado!

Perante esta loucura, a viúva tentou ainda amansá-lo:

- Pára, filho! Paulininho! Ai que te matas, querido!

Prosseguindo naquela sanha desaustinada, o velho, em dado momento, pára... Pára e, descendo as mãos à braguilha das calças, saca das partes vergonhosas!... E ei-lo agora a palrar para o que tinha ali, descaradamente, à mostra:

- Só me dás desgostos, peçonha maldita do meu corpo! Eu seja ceguinho se tocar em mais mulheres! ... Acabaram-se as mulheres, já disse!!!

E, ante o nosso pavor, vimo-lo agarrar numa faca, pôr aquilo a jeito como se se tratasse de pescoço de galinha e, zás!, meter a lâmina na carne...

Cerrei-os olhos para não ver o resto! Após os gritos da Carriça, que fugira espavorida, só um leve rumor da vizinhança que se aproximava...

Abri, então, os olhos e o meu espanto redobrou: tinha diante de mim o cara de fuinha do Paulino, que (são e salvo! ) me acenava num risinho manhoso:

- Ela foi-se, Zé Pardal? ...

 

                 QUE QUERERÁ O BIGANGA?

Após as primeiras trovoadas veio um frio de rachar: nem se sentiam os dedos nem a ponta do nariz. Sentenciou o Paulino (que nisto de calcular o tempo era como o vendedor de sinas) que, se chovesse, a coisa aliviaria. E logo o Céu fez a vontade ao oleiro, chuva e ventania, tão rijas e sopradas, que pareciam querer arrancar a aldeia pela raiz. Escorreu tanta água, tanta, que a gentinha do sítio se via obrigada a meter canelos num riacho para atravessar o caminho. Os velhos e os fedelhos só às cavalitas venciam aquele lamaçal desgraçado. A tormenta chegava a meter medo, mas ao mesmo tempo convidava à reinação, pois andar às costas seja de quem for é brincadeira gostosa e divertida: Arre, burro! Ninguém recusava um braço de ajuda ou uns costados para transportar este saco, aquele barril ou ainda alguma alminha aflita. Até os casmurros de falas cortadas metiam conversa mal tinham nas unhas a vassoira ou o caneco para baldeação. Parecia que toda a terra fora voltada do avesso e que dali em diante a vida seria diferente para quantos respiravam sob o mesmo céu. E, quando as águas se escoassem pelas gretas do mundo e a aldeia serenasse, os homens jamais viveriam assanhados e divididos como até então...

Marralhava eu nisto quando ouvi uma voz conhecida:

- Cá andamos, Pardalito! Adivinhei logo quem era: «já cá tardava o cagarola das trovoadas! ...»

A retirar cestos de verga da oficina do Crispim, que se inundara, eu continuei na minha tarefa sem lhe ligar importância.

Mas o vozeirão do gigante voltou a besoirar-me nos ouvidos:

- Olha que eu preciso de falar contigo! Teimoso como um jumento, eu tinha os meus olhos volvidos para a banda contrária, embora estivesse danadinho por mirá-lo...

Mas qual não foi o meu espanto ao topar o vendedor de sinas com uma velha às costas! Que figura tão cómica! A mulherzinha usava uma touca na cabeça, roupas garridas, cinturinha estreita e botas de atacar... Cavalgava sobre os costados do gigante, rabiteza e como que orgulhosa por viajar de alto...

- Aguenta-te aí um bocado, ó Pardalito! Eu quero dizer-te uma coisa! ...

- Que coisa? - indaguei, apressado. - Agora não posso! ...

Então o gigante deu um solavanco ao corpo para melhor acomodar a leveza da velha, e lamentou-se:

- Eu tenho andado à tua procura... Mas a velha cortou-lhe a frase com berros terríveis. Queria voltar para o palácio! Farta de cortesias estava ela!

- Logo no carão barbudo do vencedor de sinas houve um assomo de revolta, e de novo a mulherzinha foi sacudida sobre os costados...

Parei na minha faina; e, embora ardesse de desejo por saber do que se tratava, simulei o maior desinteresse:

- Afinal, qu'é preciso? As pernas altarronas cio Biganga libertaram-se do chão alagado, trepando para cima de um poial, e só então ele tentou explicar-se. - Que precisava da minha ajuda na noite de Natal. Mas só nessa ocasião é que eu deveria procurá-lo... - E, debruçando-se sobre a minha pequenez, atirou-me a pergunta final:

- Posso contar contigo, não é verdade? Retorquindo-lhe que gostaria de saber primeiro de que se tratava, ele volveu que depois me diria. Mas no mesmo instante, rodou a cabeça e teve palavras misteriosas ao ouvido da velha:

- Este é o tal miúdo... É jeitozinho, não é, Afenina Margarida?

Assestando as lunetas que trazia presas a um fio, a velha esgalgou o pescoço sobre o corpanzil do gigante e meneou a cabecinha durante a observação:

- Escapa... Mas não me parece de boa cepa! ... Logo o Biganga tentou demovê-la. - Que não! Conhecia-me muito bem! Eu era urna jóia! - E cheio de confiança tocou-me com a manápula:

Somos velhos amigos...     Não é verdade, Pardalito? Só agora me fora possível enxergar uni pormenor divertidíssimo: a velha trazia um cabazinho enfiado no braço; no cabaz espreitavam folhas de hortaliça e um ramo de flores... «Que gozo,» - pensei. «À falta dum burro a velha veio às compras escarranchada no gigante! ... »

Desatei a rir, a rir e a apontar para aquela cena tão divertida - e logo à nossa volta se formou um coro ele gargalhadas.

Ora a velha é que não gostou da galhofa. Barafustou contra o anel de povo que a cercava. Cuspiu sobre as carantonhas mais próximas. E, sem a menor consideração pelo homem que tinha por debaixo, tocou com os calcanhares na barriga do gigante para que ele girasse dali.

 

                       OUTRA DO MANUOSO DO PAULINO

Daqui em diante passei um mau bocado na companhia do Oleiro. Eram dias inteiros a carpir saudades (e a filha sem que um petisquinbo me recompensasse do enfado. Tudo corria ali pelo pior: vinho e pão, sempre mais vinho que pão, era o que o malvado me oferecia para comer. E, a, cravar os dentes na bucha dura, lembrava-me sempre dos meus últimos dias junto da mãe Ermelinda...

Certa vez fui acordado a altas horas (Ia noite. Abri os olhos e dei com o Paulino na minha frente, de candeia acesa....

- Acorda, Zé Pardal! - gritou-me, aos afanões. Acorda,

Sentei-me no chão, receoso que fosse outra partida da chuva...

- Qu'é preciso?!

O oleiro poisou a luz sobre a arca; e mão me recordo de ter escutado voz

- Queres Saber uma grande verdade, Zé Pardal?

- Quero.

- Eu estou farto de viver’ ...

«Farto de viver... ?! » - e esforçava-me por atingir o que queria o velhaco dizer com aquela, quando dei fé de uma corda cluc lhe corria pelas mãos...

- Tio Paulino! Donde estava, ele arremessou unia ponta por cima da trave que escorava o telhado...

- Qué isso?! ... deu um ilô corredio e, zás!, meteu o pescoço! - Saia daí, não ouve?! Multo calmo, tão calmo que me esfriou o corpo, o oleiro pediu-me, indicando um canto escuro do sótão:

- Meti filho, alcança-me dali o caixote!

- Não! - retorqui-lhe. - Tire o pescoço daí, ri à o ouve?!

Indiferente aos meus rogos, o desgraçado fez ainda pior: Puxou pela outra extremidade da corda - e cresceu um palmo para o tecto... Em seguida deu outro puxão, e este tão furioso que a sua língua lhe apareceu encaracolada fora clã boca...

Não esperei mais: atirei-me pela escada abaixo e fugi para o pátio:

- O da guarda! Acudam! Acudam ao Tio Paulino! ... Nisto, foi como se alguém me agarrasse pelas orelhas e me gritasse esta verdade: - Pára, burro! Não grites., Então tu não vês   que aquilo é grossa manha do velhadas?!

Parei... Parei e - se não fosse o frio (Ia noite - teria ficado, ali, a matutar na engenhosa manobra daquele filho da mãe! ...

Trémulo de curiosidade, trepei de novo a escada do sótão. Galgado o último degrau, espreitei pelo alçapão. « Qu'é do Paulino?!» A corda, essa, sim, estava dependurada na trave...

Olho para trás - e dou com o malandro a espreitar o pátio pela fresta do telhado! ...

 

                           SABES QUE DIA É AMANHÃ?

Respondi-lhe:

- Amanhã... é dia de Natal, não é? Que sim - retorquiu o vendedor de sinas - amanhã era o dia mais bonito do ano.

- Mais bonito porquê? - resmunguei, a espevitar discussão. - Olha, o mais bonito!... Estás cuma febre! ...

Que eu não devia teimar - volveu ele, às boas. - O dia de Natal era considerado por toda a gente o mais belo dia do ano.

À falta de melhor, saiu-me esta pela boca fora: - Tem juízo! O melhor dia do ano não pode ser no Inverno! Vale mais um dia de calor que todos estes meses de frio!

Por esta é que o Biganga não esperava: meteu unhas na barba e, coçando-se, olhou-me de esguelha. Fez ainda um trejeito à boca e tentou uma explicação. - Bolas! Não era qualquer miúdo que entendia destas coisas logo à primeira! Mas estava escrito que o dia de Natal era um dia de muito respeito. - E a mão bruta do gigante desceu sobre a minha cabeça como se tentasse forçar o meu entendimento:

É a grande festa da família! Há rancho melhorado em todas as casas, lojas abertas até a noite! mas são os miúdos põem a bota na chaminé e recebem brinquedos do Menino Jesus!

Não concordei com esta última afirmação e protestei:

- Vai impingir essa às crianças! Brinquedos na bota... E galhofei: - Ali! Ali! Ali! Aqui o Biganga mudou de cor:

- És parvinho ou quê?! Isso não se diz! - E a sua voz grossa ganhou um ar de trovão: - Ai o menino... que não sabe ter respeito por estas coisas! ...

- É mentira! - e cresci no bico dos pés. - Mentira porque eu sei que é mentira!...

Embatucado pela minha impertinência, o vendedor de sinas baixou os olhos e mirou os meus pés descalços.

Bem... gaguejou ele, desculpando-se. - Para estas coisas acontecerem não bastava a boa vontade do Menino Jesus... Primeiro era preciso que cada rapazinho tivesse um par de botas... Não admirava, portanto, que a garotada descalça de pé e perna não apanhasse nada.

Indignado, cresci para o gigante com outra pergunta:

Mesmo que eu tivesse as botas... qu'é do sítio... ? !

- ... No sítio?... - murmurou ele, sem entender o alcance da minha objecção.

- Qu’é da chaminé para pôr as botas! Concluí sem me fazer esperado.

- Ali! E foi tamanho o desânimo que se apoderou do vendedor de sitias que as suas pernas altarronas se vergaram até o corpo encontrar apoio sobre um poial. Unia Vez sentado, com os cotovelos sobre os joelhos e a cabeçorra entre mãos, fixou-me com os olhos de cachorro, de cachorro manso, que me lembraram o gigante da tarde de trovoada!

- Que raio de conversa! - bradei-lhe. - Muda de história, Biganga! Afinal o que vem a ser a tal coisa que me queres dizer?

Ali! A tal coisa...! - resmungou o gigante, sacudido pela reviravolta ria conversa. - É verdade: eu tenho um recado para ti duma senhora...

- Duma senhora? - inquiri, intrigado. - É a tal velhota que andou as tuas cavalitas?

Que não - esclareceu-me. - Essa morava no mesmo palácio, mas não passava ele governanta! Ora a que dava as ordens chamava-se Dona Fausta, era podre de rica e nunca saía dos salões!

Desconfiado, cocei um pé sobre o outro e quis saber então o que queriam de mim. - Afinal o que desejava essa

senhora tão rica de um fedelho como eu?... - E logo o mistério se desfez com duas palavras:

- A Dona Fausta quer cear contigo.

- Cear comigo? - exclamei, admirado. - Estás maluco ou quê?!

- Estou a falar a sério, Pardalito. Muito a sério... Todos os anos essa bondosa senhora faz a meia-noite com dois pobres à mesa.

- Dois pobres?

- Um velho e uma criança.

- Que giro! - fiz numa alegria trocista. E não perdi tempo: - E a comida é boa?

O vendedor ele sinas abanou a cabeçorra e repetiu, com um sorriso:

- Se a comida é boa! ... Não há mesa mais linda e rica! É a melhor ceia de Natal deste mundo! ...

Radiante, eu mordi os dedos e (lei um estalinho com a língua. E, apressado, puxei-lhe pela aba do capote:

- E arranjam-se lá umas botas para eu pôr na chaminé?

O gigante esclareceu:

A esta hora já elas têm lá tudo preparado. - E segredou-me: - É uma noite passada em família, entendes, sais de lá carregadinho que nem uni ouriço!...

Um contentamento fervilhou-me pelo corpo: bati palmas e dancei. E, trepando para as costas do gigante,

Vamos pró palácio, Biganga! Vamos pró palácio! Arre, burro!

 

                         NOITE DE NATAL

Nessa noite gelada e sem estrelas, eu fui sob o capote do vendedor de sinas bater ao portão do palácio. Tiritávamos de frio e vimo-nos obrigados a esperar um bom pedaço até que nos atendessem.

- Se calhar não está cá ninguém! - disse, aborrecido.

- Aqui há sempre gente! - rosnou o gigante. Pouco depois surgia o vulto de uma velha no cimo da escadaria de pedra, empunhando um esguio candeeiro de petróleo.

- Quem está aí?

- Somos nós, Menina Margarida - esclareceu o meu companheiro.

A governanta veio com a luz pela escada abaixo, como se fosse um enorme pirilampo, atravessou o jardim e, junto de nós, meteu a chave ao portão.

- Este ano vens a lindas horas! - resmungou ela para o Biganga. - Estou farta de gastar lenha! ...

Não entendi a resposta do meu companheiro, mas foi frase azeda, pois a velha retorquiu-lhe com violência:

- Que abuso! Os caldeirões de água aquecem e arrefecem! Isto tem de levar uma volta! ...

Galgada a escadaria de pedra, o vendedor de sinas conduziu os seus passos para uma porta ao fundo do varandim. E logo, muito sabido, a abriu e entrou. Eu fiz pé atrás e olhei para a governanta, desconfiado. Mas ela jogou-me um empurrão:

- Entra, rapazinho! Era uma cozinha tão grande e tão alta que apetecia dar um berro para experimentar o eco. Filas e filas de panelas e panelões viam-se pela parede. Armários, potes, uma mesa larga e ajoujada de tachos, terrinas e pratos. Mas a minha atenção foi para a chaminé, tendo um comprido fogão de niquelados, onde assentavam dois bojudos caldeirões sobre as bocas do lume.

Enquanto a Menina Margarida poisava a luz sobre a mesa, serrazinando ainda contra o Biganga, eu dei uma volta pela cozinha. Mas ao descobrir outra porta, esgueirei-me...

Estava agora num lindo corredor, onde havia castiçais com velas acesas. Sob os pés senti uma fofa passadeira, muito macia, que parecia feita de toucinho.

Mas não julguem que me foi permitido calcorrear por muito tempo aquela maravilha. Longe disso! Dois gritos da governanta fizeram-me recuar, como se me apanhassem a surripiar em vinha alheia:

- Atrevido! Não julgues que vais à presença da senhora com esse cascabulho nos pés!

Voltei para a cozinha. E a velha redobrou de insultos contra o meu companheiro, porque ele devia ter aprendido os hábitos da casa nos anos anteriores... julguei nesta altura descobrir a ponta da meada: «Afinal o Biganga é useiro e vezeiro em vir aqui pelo Natal!» E, como o meu miolo continuasse a cogitar, suspeitei então de uma coisa muito mais séria: «Ora se o melro vem a todas as ceias... e a tal senhora rica come com dois pobres à mesa... é porque este gajo atrela sempre um rapaz!...»

Fixei o carão do vendedor de sinas para topar a intrujice que lhe bailasse nos olhos, mas já uma selha fora colocada no meio da cozinha e um caldeiro vazado lá dentro. O vapor da água subiu ao tecto, e todos nós tossimos, envolvidos pela fumarada branca.

- Vamos! - ordenou a velha embirrenta. - Primeiro, o rapaz! - E, para mim: - Despe-te, menino! Avia-te! Estamos atrasados para a ceia!

«Um banho?!» - murmurei, aflito.- «É o tomas!» Mas já as grossas manápulas do Biganga arrancavam as duas peças de roupa que me cobriam o corpo. Nu em pêlo, encolhi-me, de mãos entre pernas. Berrei, joguei murros, pontapés, e tão depressa estava dentro da selha como fora dela. Por fim aconteceu uma coisa desastrosa: a governanta escorregou na pedra de sabão que lhe saltara a caiu desamparada no sobrado. E, enquanto o gigante corria em seu auxílio, eu esgueirei-me para o corredor. Corri mais uma vez sobre a passadeira macia, dei voltas a uma sala com um piano e, ao topar muitas velas acesas num compartimento contíguo, furei por ali dentro...

Mas parei: eu estava numa capela com uma Nossa Senhora num altar. E, por entre as luzinhas e as flores, uma velhota, de joelhos, rezava.

Como estava, fiquei. O meu corpo nu, nuzinho em pêlo, surgira ali perante o olhar de espanto da solitária senhora. Por momentos, encarou-me, inquieta; depois, abriu-se num sorriso, fez o sinal da cruz, e murmurou, cheia de doçura:

- Deus seja louvado! Um menino nu! ... Desci as minhas mãos em concha a tapar o que não se deve mostrar, e desculpei-me como pude:

- A água assim não vale! Aquilo queima... fico sem pele! ...

Mas ela não me ouvia, tão fascinada estava pela minha presença. E o nosso enlevo quebrou-se quando a Menina Margarida veio buscar-me, por uma orelha, dali para fora.

Que momento horroroso, aquele! Eram quatro mãos que me forçavam a entrar para a selha, quatro tenazes que me tolhiam todas as forças. Um inferno de espuma crescia-me no cabelo e escorria-me para os olhos. Abria a boca e só comia sabão. E, como se eu fosse uma peça de roupa, esfregaram-me e sacudiram-me (Que porcalhão! Olhem pra este cascabulho!...), provocando-me cócegas e riso.

Estava exausto quando me libertei da selha. Envolveram-me depois num lençol de linho e recebi palmadinhas pelo corpo. Mas seria mentiroso se agora dissesse o contrário: que surpreendente bem-estar me invadiu! ...

Entretanto, a minha atenção fora desviada: diante de mim estava uma cadeira com roupa lavada. Entreolhei os presentes como se lhes perguntasse: «Aquilo é tudo para Mim? »

E foi o próprio vendedor de sinas quem me incitou:

- Veste-te depressa! Aproximei-me e... - que vejo eu? - roupa que dava, à vontadinha, para dois fedelhos. Não resisti a pegar numa peça de roupa branca, agitando-a para que o meu companheiro desse conta.

- Cuecas! Cuecas, Biganga!

O gigante sorriu, contrafeito, e, pegando na selha, foi vazá-la na pia dos despejos. Voltou ao meio da cozinha e besoirou-me ao ouvido:

- Tem juízo, Zé Pardal! Se fazes outro berreiro vamos os dois para o olho da rua!

Mas a governanta não parava no seu ar atarefado:

- Veste-te, rapazinho! Não temos tempo a perder! ... Obedeci-lhe, ligeiro. E, ao enxugar os pés no lençol, subi o olhar para o vendedor de sinas e inquiri:

- Qu'é delas?! ...

O Biganga foi à chaminé buscar o outro caldeiro de água quente, não fazendo caso da minha objecção. Ora a mulherzinha é que franziu a venta, intrigada, e quis logo saber de que se tratava:

- Que foi? Pouco afoito, continuei a esfregar os pés descalços sem ousar articular palavra.

- Desembucha, menino! - guinchou a velha. - Que se passa? . Olhei outra vez para o Biganga, para que me auxiliasse. E foi nesta altura que o meu companheiro tartamudeou uma vaga explicação. - Bem... como estávamos na noite de Natal, todas as crianças queriam possuir um par de botas para pôr na chaminé...

Aqui, a velha abespinhou-se e invectivou o meu parceiro:

- E quem te mandou enzonar esta criança de que nós tínhamos cá outro par de botas?!

O gigante mordeu o beiço, meneou a cabeçorra e acrescentou:

- Como é costume todos os anos... Mas a governanta cortou-me a esperança, gritando bem alto a sua indignação:

- As do ano passado foram as últimas, meu rico! Acabaram-se as botas na chaminé!

Sempre tão mole, o vendedor de sinas cresceu para a velha e teve um enorme gesto de braço:

- Vossemecê aqui não manda nada! Sou eu que lho digo!

Pasmava eu da inesperada tesura do Biganga, quando a rabiteza da velha espichou nova veneta:

- Isso julgas tu, meu sebentão! Hei-de correr-te com a sorte! A ti e a toda essa seita de vagabundos que arrebanhas lá por fora!

Como o vendedor de sinas parecia outro! Abriu a boca e gargalhou, trocista:

- Ah! Ah! Ah! Sempre queria ver isso! ... Nisto, senti passos na minha retaguarda. Voltei-me, num sobressalto: e vi a tal senhora que eu surpreendera a rezar na capela! Vinha apoiada a uma bengalinha e, de pé, era muito mais alta do que eu supunha...

- Que gritos são estes, Margarida? - inquiriu. E tentou acalmá-la: - Oh, mulher andas desaustinada! Nem nos poupas nesta noite!

Em vez de esfriar de língua, a outra manteve-se no mesmo tom:

- A senhora fala bem! Isto é tudo muito bonito... mas quem grama estes trabalhos é a negra!... um espanto, a dona da casa amparou-se melhor à bengalinha, abanou a cabeça grisalha, e teve este reparo:

- Tu assim o queres, Margarida. - Eu? - fez a governanta.

- Tu, sim. - E deitou-lhe em cara: - Porque não consentes que te auxiliem durante estes dias?

Mas a mulherzinha parecia agora uma gata assanhada: - No dia em que a senhora se atrever a chamar outra mulher... eu saio por aquela porta! - E acentuou: - É ela a entrar e eu a sair! ...

A senhora rica empalideceu e tentou aproximar-se de uma cadeira, onde fez menção de se sentar.

Logo o gigante correu, mesureiro, a auxiliá-la. E depois de ela estar acomodada, ainda lhe ajeitou um pé e foi cerrar a greta de uma porta por onde ventava...

- Deus te pague, Biganga! - agradeceu a senhora, pausadamente.

Da violência da discussão, a governanta ficara com os olhos esbugalhados, trémula, embora tentasse disfarçar... Um momento depois, renovando o fôlego, lastimou-se:

- Uma vida inteira de sacrifícios e só apanhamos dissabores!

Os lábios da dona do palácio moveram-se com doçura:

- Falas sem razão, mulher! És tratada nesta casa como uma irmã!

Mas o vendedor de sinas meteu uma colherada:

- E eu que o diga! ... A que a velha governanta reagiu, como se tivesse recebido uma alfinetada:

- Que sabes tu da nossa vida, meu desgraçado?! Tu que só vens a esta casa por interesse e... atrelado à pior vadiagem?!

Esta insinuação pôs a cozinha num alvoroço. Atingido pela ofensa, o meu companheiro reagiu com exagerada exaltação:

- Veja como fala, Menina Margarida! Trave-me essa língua!

Ora a mulherzinha é que não estava para obedecer naquela altura, e muito menos a um vagabundo como o vendedor de sinas. E apontou, descaradamente, para mim:

- Se esse maltês é um patife da laia do outro... tu verás! juro-te que me queixo no posto da Polícia! ...

O gigante cravou os olhos em mim como se receasse pelos meus ouvidos... - Que lhe fez o outro miúdo?... - inquiriu ele. E berrou-lhe, sem temor: - Diga aqui à frente da senhora!... Largou-lhe fogo à casa, não?

- Não largou fogo... - esclareceu ela - ... mas fugiu com o par de botas e com as roupas que lhe emprestou.

- Que roupas?! - vociferou o meu companheiro. - Vá, diga, que roupas foram! ...

E a resposta da velha saiu esganiçada pela cólera:

- Não te faças de novas! Foram dois lençóis e um cobertor de papa! Lençóis de bainha aberta, que tinham ido à água apenas uma vez!.. .

Não esperava por esta revelação o gigante, pois olhou, envergonhado, para a dona do palácio...

Neste momento, eu coçava uma perna: «Bem... lá isso das roupas da cama é outra coisa! Agora só me interessa a farpela que tenho no corpo, e essa já ninguém ma despe!»

 

                   UMAS BOTAS PARA O MENINO JESUS

Momentos depois, a senhora rica estreitou-me contra o peito. Cerrei os olhos, entregue ao afago das suas mãozinhas, e logo senti a boca dela sobre os meus cabelos... pus o rosto à feição e não tardaram os beijinhos: pela testa, pelas orelhas, pelo pescoço...

Curioso! Era unia boca seca, muito seca e fria, que andava a, passear pela minha pele, ao mesmo tempo que do fundo das goelas se fazia ouvir o ronrom da respiração. E tão demoradas foram as suas carícias que o ir faltou-me - e logo os meus braços sentiram ânsia de abrir caminho para fora dali.

Entretanto, como os dois desordeiros fizessem menção de voltar à bulha, a senhora rica, tomou uma atitude:

- Margarida! Acalma esses nervos ou retira-te para o teu quarto! - Olhou-a com firmeza e, ante a hesitação ela governanta, acentuou: - Deus dar-me-à forças para servir à mesa!

A reacção da outra não se fez esperar: atravessou-se adiante da patroa e perguntou-lhe com voz esganiçada:

- Alguma vez eu me neguei a servir nesta casa, minha senhora? Nos quarenta anos que estou ao seu serviço neguei-me alguma vez? De dia ou de noite? A senhora teve razão de queixa durante o tempo em que o Senhor Comandante, que Deus tem, esteve paralítico?

Com a ponteira da bengala a bater no sobrado, a Dona Fausta não demoveu a rigidez da sua atitude:

Não desvies a conversa, Margarida! O teu caso é outro! ...

- Outro?! - exclamou a governanta. E as suas frases eram agora atiradas à cara da patroa num choro convulso:

- Parece impossível que a senhora esteja a duvidar de mim diante de dois malteses desta laia! Eu que abandonei tudo na vida para que a senhora não ficasse sozinha! ...

Ante a crescente comoção da mulherzinha, a dona do palácio empertigou-se, disposta a sair dali sem mais resposta.

Mas quem dizia que a governanta fechava a boca e arredava pé?:

- ... Troquei o cantinho da minha casa pela prisão destas paredes! Mirro o meu Jaime em trinta anos de namoro! Sou tinia ingrata! Casamos hoje, casamos amanhã... e o pobre a comprar loiça, a comprar mobília... Ali, que remorsos eu sinto, meti Deus’

E como esta lamúria prometesse não ter fim, a bondosa senhora puxou-me por um braço e dirigimo-nos ao quarto.

Subiu a torcida do candeeiro de petróleo, que morrinhava sob um quebra-luz azul, e a chamazinha cresceu, iluminando todo o compartimento.

«Quarto, aquilo? C’um raio: até parece uma loja de mobília da cidade! ... »

O compartimento era Um ninho recheado como tini ovo. A início, havia unia alta cama de madeira negra, toda aos torcidos. E eram igualmente aos torcidos os outros que estavam sob aquele tecto.

Desviei a atenção para a Dona Fausta, porque parecia querer-me dizer qualquer coisa.

- Eu tenho ali ... (e a minha amiga - apontou para o armário) uma botas do pai, baixei a voz, indagando:

E são novas? Como receasse ouvidos   próximos, a senhora observou em redor e repetiu baixinho:

- São, pois! Fatigada, pôs a bengala de lado e amesendou-se na quina elo leito, fazendo-me uni pedido:

- Olha, filho, puxa a minha perna doente para junto da Outra, sim?

Agachei-me sobre o tapete e, corri algum esforço, pus-lhe os dois pés a par. - Se estavam bem assim? - perguntei-lhe.

Que sim - volveu-me. - Que viesse para cima, pois queria dar-me outro beijinho.

Uma alegria, tinia ânsia de pular e de ser repreendido, tomou-me todo. Quase não acreditava ser a dona daquilo, a senhora aleijadinha que tinha diante de mim. E, acenando-lhe adeus, trepei para o leito, gatinhando, atrevido, sobre a colcha de seda. Dona Fausta sorriu-se e tentou fazer-me uma cócega com a ponta da bengala.

Esquivei-me, rolando numa cambalhota para longe do seu alcance:

- Ali, lindas! E tanto gatinhei, tantos solavancos dei ao corpo, que fiquei maravilhado com unia outra descoberta: a cama dava de si, vinha abaixo e acima, como qualquer pernada ele árvore...

Resolvido a não perder a grande oportunidade, indaguei:

- Vossemecê, acha que as tais botas me servem? Mas a sua generosidade era tanta que nem reparou no tamanho do pé que eu lhe coloquei diante de si...

- Filho: abre-me aquele armário. Saltei da cama e obedeci-lhe, com alvoroço. Havia quatro prateleiras cheias de caixas, caixinhas e objectos vários. Alguns eram tão raros e esquisitos que assustavam pela posição que mantinham...

- Na última prateleira! - indicou-me. - Aí, em baixo! «já lá vamos!» - pensava eu. «Primeiro quero ver estas engenhocas catitas!....»

De repente, a outra voz que havíamos esquecido voltou. Voltou na máxima indignação. Que berro medonho encheu o quarto:

- Ao que a senhora Chegou! O armário aberto uma cegada destas aqui dentro!

Dona Fausta tentou ainda reagir, desviando O assunto com esta pergunta sem interesse:

- O Biganga já se lavou? Mas a víbora estava decidida a tudo: avançou e, jogando-me um empurrão, fechou o armário.

Ora a dona do palácio tinha também o cabelinho na venta: teimosa, atravessou o quarto e abriu outra vez de par em par as portas do móvel. Em seguida, meteu as mãos no interior, trouxe cá para fora um par de botas, enormes...

- São para ti, meu filho! - esclareceu. E ante a minha hesitação, soltou um grito: - Pega! Coloca-as na chaminé esta noite!

- Qual chaminé?! - vociferou a governanta. - Mas essas... são as botas que O Sr. Comandante levava à caça.

- Esta criança veio à minha casa passar o Natal, não quero vê-la triste!

Desorientada, a velha tentou ainda agarrar-me:

- Anda vai, rapazinho! «É o vais!» - rosnei, fugindo para o corredor. Mas esbarrei com o Biganga, que vinha da cozinha. Calçava alpargatas novas e vestia de cotin como os soldados. Parcela outro o gigante de una figa! Os cabelos molhados assentes na cabeçorra tiravam-lhe todo o ar avelhentado distante que sempre lhe notara. Sem o capotão e o alforge, Lavado e aperaltado, o vendedor de sinas era afinal um homem muito mais novo!

Topou as minhas botas e arregalou os olhos, cheio de cobiça:

- Que boas palheiras! - E quis misturas: - Mostra-me cá isso! ...

- Não! – afastei-as, do alcance das suas manápulas. Ele tentou ainda convencer-me, com falinhas mansas:

- Pardalito! Deixa-me só apalpá-las! ...

- Apalpas o tanas...

Tudo quanto a minha fantasia erguera desse vagabundo papa-léguas secara. O avantesma milagreiro, que encobria o Sol à Sua passagem, era agora um reles mulherengo, linguareiro, que só estava bem junto das saias das mulheres...

Pensava eu nisto quando fui assaltado por um desejo dos diabos: calçar aquelas botas e correr sobre a passadeira macia. E, se assim pensei, mais depressa o fiz: enfiei um pé, o outro pé e vá de experimentá-las sobre o chão de tolícinho.

Mas ao passar por um espelho, pasmei da minha figura! As botifarras obrigavam-me a andar como os patos: cuá-cuá-cuá-ctiá... De pés para o lado, eu era tal qual o vagabundo dos bonecos de luz., que consertava nas janelas os vidros partidos pelo Garoto, sempre a contas com o Polícia. E, radiante com a parecença ,acenei para o espelho:

- Viva, seu Charló! Só me restava agora a paparoca para que a noite fosse em cheio! Bem empaturrado, iria pôr as panelas na chaminé e esperar que me metessem lá dentro qualquer prenda... «Mas meter o quê? Sim, o quê?! »

Verdadeiramente, eu tinha um desejo, uni estranho desejo, que certamente não haveria Menino Jesus capaz de realizar:

«Gostaria de crescer... Crescer, assim de repente, para que estas botas me servissem! Depois, mais espigado e senhor de mim, desejaria dar um salto fantástico, de muitas léguas, como acontece nos bonecos de luz...

«Zás! - e aparecer de surpresa ao lado da Miquelina, do Lopes e do patife do Nicolau!»

 

                              E ESTA...?!

E nem de propósito! Eu a sonhar com o impossível, e esta história a obrigar-me a isso...

Zás! - e pronto: agora sou um rapaz de quinze anos.

Tenho pêlos no buço, olhos mais entendedores e, quando calha, faço de homem que é uni regalo! Uso, calças compridas e, tão folgadas como estas, conservo ainda nos pés as botifarras do marido da Dona Fausta.

Quem diria que ao fim de alguns anos o atrevido que assaltara o pátio da olaria vinha a ser meu patrão. É verdade! Tenho-o à perna há uni ror de tempo, mas não, julguem que estou junto dele pela sua linda cara...

Quanto ao Lopes cadastrado continua a dar à manivela e a obedecer aos caprichos do gordo. Os nossos espectáculos são cheios de peripécias e aventuras. Barracão jeitoso ou casa abandonada que nos tente assaltamo-lo logo, fazendo correr as nossas fitas até o bolso ela gentinha do lugarejo ter moedas para escorropichar.

A Miquelina mantém-se ligada ao Nicolau. Continuam a viver um com o outro, mas acabaram-se os beijinhos repenicados como o gorjeio dos pássaros... Agora tudo neles são rancores, safanões dele, esquivas dela, pois a rapariga consegue sempre evitar a pancadaria daquele cevado. Estas tristes cenas ocorrem-me outras, as da olaria, entre ela e o bebedolas elo pai. Quer dizer, a Miquelina safou-se do Paulino e caiu num inferno igual. E já que falei no velhadas do oleiro, não quero demorar-me com outra notícia. Lembram-se da estúpida mania que ele tinha de brincar aos enforcados, não é verdade? Pois foi por via disso que o infeliz acabou... Tantas vezes alvoroçou a vizinhança com o «suicídio» que, certa manhã, deram com ele enrodilhado na corda e de cabeça afogada na pia da greda!

Ao tomar conhecimento desta desgraça, mão pude evitar um reparo ante a comoção da filha:

- Estás a chorar, Miquelina? Ela limpou as lágrimas e desfez-se numa lamúria. - Que lhe custara a morte do velhote. O pai fora toda a vida um bebedolas, um guloso por Mulheres, mas fora também o autor dos seus dias!...

Quando indaguei se sentia remorsos de ter fugido de casa, ela atirou-me com esta resposta torcida, que me pareceu um vivo disparate:

- Olha, Zé Pardal, eu nunca me arrependi dos meus passos! Nem mesmo quando eles me levam à maior (Ias asneiras! ...

Mas atando os fios da nossa história é preciso não esquecer o primeiro figurão que conhecemos: o Biganga. Depois da bulhenta ceia de Natal, ainda fomos comparsas em mais duas consoadas no palácio da viúva do comandante. E se da primeira vez aconteceu aquilo que já sabemos, das outras deu-se a inesperada e abrasadora simpatia da governanta por mim, que tantos ciúmes provocou no gigante. Mas que me poderiam interessar mimos e promessas de velha quando pela minha cabeça germinava um grande e deslumbrante sonho?

Veio o Verão e, quando o vendedor de sinas preparou o alforge, coloquei-me à sua beira. E à sua beira percorri as primeiras léguas. Depois, olhámo-nos como dois estranhos e fui só eu a falar - «Adeus, Biganga! Governa-te à vontade! » -, e parti saudoso da Miquelina e dos bonecos de luz.

 

                     UM TELHADO AZUL

Esta manhã descobrimos um casarão em ruínas, sobranceiro ao povoado branco de uma vila. E logo o Nicolau arredou as tábuas que faziam de porta, e entrou. Do telhado pouco restava: abatera, deixando o chão coberto de entulho e um buraco por onde se via o azul do céu. Eram as velhas paredes de uma igreja. Em redor havia os campos ondulantes de trigo e renques de oliveiras. Nuvens brancas, muito brancas e redondas, ocultavam a espaços o Sol forte de Verão. O ar rescendia a terra crua, a flores bravias e, adiante do nosso nariz, tínhamos o voo colorido das borboletas.

- Que dizes a isto? - indagou o gorducho para a Miquelina.

Ela andava de trombas mas resmungou-lhe que sim era um recinto jeitoso, embora tivesse muito entulho...

- O entulho tira-se! - exclamou o patrão. E, cuspindo nas mãos, deu as suas ordens: - Tragam as pás para fora do carro e vamos a isto!

Fomos buscar as ferramentas e, entregando uma à Miquelina, logo começámos a aplanar o terreno. Era um trabalho árduo escavar aquele chão endurecido pela água de muitos invernos. Havia também uma cobertura de ervas daninhas a dificultar a tarefa, pois as raízes das urtigas e dos malmequeres saíam melhor a puxão que a golpes de pá. Praguejava o gorducho a cada esmorecimento nosso, o que nos obrigava a um vaivém constante de braços. E ao rapazio que das redondezas viera ao chamariz da camioneta e da bonecada dos cartazes, não -o poupou também, obrigando-o a fazer comunhão na tarefa.

Eu, o Lopes e a Miquelina éramos, portanto, uns animaizinhos que o barrigudo amestrara para sua utilidade e capricho. Chegados a uma povoação e escolhido o local, logo ele nos punha a mourejar para nessa mesma noite atirarmos para o lençol os bonecos de luz.

Vivíamos aperrados àquela fera, resignados e sem esperança de melhores dias, quando, em dada ocasião, comecei a dar fé de resmungos e piadas saídos da boca do Lopes... De todos nós só o Nicolau não os ouvia, pois se isso viesse a suceder seria o cabo dos trabalhos, visto ser ele o alvejado. Quem tem trapos ou garrafas que queira vender? Era uma alusão ao tempo em que o nosso homem andava de porta em porta, com a gancheta a vasculhar nos caixotes de lixo. Quem tem trapos ou garrafas...?

O Nicolau começara a engordar quando adquiriu um burro; depois, tivera a sorte de lhe cair nas mãos o pobre do Lopes, a contas com a Polícia; por fim, alargara os seus haveres: uma camioneta, a máquina dos bonecos de luz e mais quatro braços: os da Miquelina e os meus...

Mas nunca como nesta manhã os ditos foram tão afoitos. Era só questão do gordo se afastar da nossa beira, e logo a graçola saía da boca do mecânico... A própria Miquelina, que ainda vivia com o outro de casa e pucarinho, toda ela tremelicava de gozo. E quando demos por nós estávamos os três irmanados no mesmo asco ao sacripanta do Nicolau...

Farto de rir com os pregões de ferro-velho, eu tive este desabafo para a minha amiga:

- Afinal o Lopes não é tão casmurro como parecia! ... Ela afagou-me os cabelos, terminando com uma cócega que me fez soltar um grito e volver-lhe as costas. E quando os meus olhos de novo subiram para a sua figura, dei com ela, de pá abandonada sobre a terra, a desfolhar um malmequer. Puxava devagar as pétalas e, no momento em que a flor lhe ia revelar se alguém gostava de si ou não... a avarenta amarfanhou tudo nas mãos, para que ninguém conhecesse o resultado.

 

                 ONDE APARECEM CIGANOS

Por fim cravámos no chão as duas varas altas e nelas esticámos o quadrado do lençol. Trouxemos também para o recinto algumas cadeirinhas que, armadas com uni puxão, foram dispostas em fila. A um buraco que havia na parede junto da entrada, deu-lhe o Nicolau o nome apressado de bilheteira. Tudo estaria a postos para o espectáculo dessa noite, pois a gentinha do sítio prometia ser rendosa e fácil de contentar. O saco das nossas fitas fora enriquecido, nos últimos dias, com novos pedaços cheios de índios, tiros e cavalgadas...

Mas o rapazio, que nos ajudara na limpeza e no transporte dos assentos, mostrou-se, de súbito, alarmado, apontando para a courela. E, além de nós, ficou igualmente contagiado o Lopes, que estava sobre a camioneta a forçar a saída da máquina...

Seis ciganas, garridas e andrajosas, corriam furiosas para

o local. Avançavam num arreganho de vingança, levantando atrás de si Lima nuvem ele poeira. Saia trapeira a (lar que dar, elas faziam paragens bruscas, mas logo retomando a marcha açuladas pelos guinchos da velhorra corcunda que fechava o cortejo.

O Nicolau retirou o palhinhas da cabeça e, apreensivo, foi limpando o suor. Mas não se atemorizou, o valentaço, pronto para o que desse e viesse. E o primeiro choque foi de palavras - palavras gritadas, em que cada frase vinha reforçada por um esbracejar espalhafatoso. Gente medonha, a ciganagem, pois falavam aos solavancos, aos guinchos, como se rogassem pragas a todo o instante.

Não entendi à primeira a razão daquela bulha, mas tratava-se de coisa torcida, pois o patrão, enfurecendo-se, cresceu no bico dos pés e soltou um berro autoritário:

- Daqui ninguém me arranca! Para trás, já disse! ... E como as ciganas o envolvessem numa roda ameaçadora, ele sacou da ripa, esclarecendo bem alto:

- Eu seja cão... se não racho vossemecês de meio a meio! Estas paredes são minhas! Minhas, estão a ouvir ou quê?!

Mas aquela gente não era menos teimosa que o Nicolau. Pois, voltando-lhe costas, correu para a igreja, disposta a espatifar tudo quando tínhamos lá. (Ora a razão era a seguinte: a ciganagem chamava seu ao que restava daquelas paredes. A nossa porta estava trancada! - barafustavam elas, apontando as tábuas que o Nicolau arredara da frente. Esta casa é nossa, muito nossa, seus ladrões! E por entre ameaças e pragas, lembravam as navalhas dos homens que em breve chegariam em seu auxílio para escorraçar de vez os ladrões do telhado dos nossos ricos filhos!...)

Chegando primeiro ao buracão, da entrada, o gordo abriu os braços e avançou a barriga:

- Para trás, já disse! Eu racho uma! . Acreditámos por momentos que o mulherio não levaria a melhor com o patrão. Mas a velhorra corcunda faz uma coisa espantosa: arremessou-se para o chão e, possessa de guinchos e de rezas, instigou as outras a engalfinharem-se no Nicolau...

Agarrado pelas ciganas, o patrão agachou-se e gatinhou para fora delas - perdendo o casaco. Unhas fincadas no caqui, as mulheres rasgaram-no às tiras, ante o pavor do nosso homem que, branco como a cal, veio proteger-se junto de nós.

Mas quem fazia calar a boca desdentada da velha? De rojo, erguia e descia os braços, pedindo pedradas e olhos fora aos safardanas que lhe assaltaram a casa. E foi quanto bastou para que aquela gente aguerrida, que eram seis, se transformasse numa chusma. Contagiado pela avó marreca, o rapazio juntou-se à sanha das mães na mira de nos afugentar.

Sem esperança de fuga, vi a Miquelina sacar de um pau e jogar cacetadas sobre os costados ao seu alcance. E logo o Lopes, cheio de valentia, alinhou à sua beira para distribuir murros e pontapés. Abriram-se as primeiras cabeças.

O choro dos fedelhos confundia-se com os gritos da velhota, cada vez mais terríveis e açuladores.

Fugindo das pedradas, corro a ocultar-me na banda de lá da camioneta. Mas alguém chegara primeiro: o Nicolau, que metera a cabeça atrás de um pneu... Enfureceu-se da minha presença, e tentou pôr-me ao largo:

- Desanda da minha beira, estafermo! - E, como eu não lhe obedecesse, deu-me uma pèzada.

Descobertos pela miudagem, fomos alvo de uma saraivada de pedras. E não tivemos outra defesa: pulámos na frente deles, ora eu, ora ele-, tão cómicos e aflitos que parecíamos dois macacos no circo. Agora mesmo que quiséssemos fugir (e eu queria... ) era impossível: havia ciganagem por todos os lados. E foi no meio do desespero que me chispou a ideia - a única! - de atirar-me para debaixo da camioneta e agarrar-me ao que encontrasse.

Estava anichado entre rodas quando senti um estremecimento por cima de mim, seguido da explosão do motor e de muita fumarada. Gritei, esperneei - e caí sobre a terra da courela.

O Lopes e a Miquelina, salvando o pêlo, haviam posto o carro em andamento para longe das garras daqueles selvagens ...

 

                           QUEM DEITA MALMEQUERES...

Sumia-se a camioneta no pó da courela e, ali à minha volta, a ciganagem ria a bom rir... E foi então que percebi que a chacota não era por mim, mas pelo Nicolau, que, esfarrapado e de nádegas ao léu, corria na cola do Lopes e Li Miquelina.

Quando o ultrapassei na corrida, ele berrou-me, aflito: - Não fujas, Zé Pardal! Leva-me contigo, malvado! «Estás cuma febre!» Enquanto não alcançasse os fugitivos eu não daria descanso às pernas. E isto do carro sumir-se por detrás da seara, alvoroçava-me, pois receava ser tarde já para os agarrar...

Mas o meu temor mão tinha justificação. Contornando um pedaço de seara, descobri logo a negrura do citrolata.

Subo ao estribo, espreito para a cabina do motorista – e nada. «Qu'é do Lopes?» Olho em redor e só vejo trigo e solidão.

Desesperado com o mistério, ponho as mãos na boca e solto uni berro:

- Clóóó... Miqueliiiii ... na! E, nessa manhã, até o coscuvilheiro do eco resolveu meter-se comigo:

-... QUELI... QUELI... NA... NA... «Querem ver que o estupor do carro fugiu sem ninguém dentro?! » - fui assaltado por esta ideia, pois no meio da balbúrdia não tinha agora a certeza se a caranguejola correra sozinha ou manobrada pelo Lopes.

Estava eu nesta dúvida quando senti um rumor por entre o trigo. «Aí qu'é uma cobra! ... » - foi o meu receio. Agacho-me, poiso as mãos na terra e, sorrateiramente, gatinho por entre as espigas...

De súbito, os meus ouvidos deram fé de uma gargalhada, tão fina e nervosa, que mudou logo as minhas suspeitas.

«Que é aquilo?!» A Miquelina, caída de costas, completamente abandonada, era beijada pelo Lopes, com tamanha sofreguidão que nem pareciam beijos.

Esperei que a fúria passasse. E quando os braços da magana filaram o mecânico pelo pescoço e ambos rolaram na seara - nessa altura é que os desavergonhados, topando-me, soltaram o grito de espanto:

- Tu... Zé Pardal?! Sem forças para nada, senti ganas de chorar. Nunca os meus olhos viram tão demoradamente uma coisa daquelas. Mas ainda lhes gaguejei este aviso:

- Ele... ele vem aí! ... julgam que os paspalhões saíram das palhas? Qual história! Pegaram-se de novo, mas ainda mais egoístas e gananciosos...

Chegou então a minha vez de achar aquilo de mais: ergui-me do trigo e berrei-lhes, nervoso:

- Deixem-se disso, não ouvem?! Despertando da embriaguez, a Miquelina foi a primeira a levantar-se, sacudindo as saias. Depois o Lopes, este mais assarapantado e cheio de cuidados pelas palhinhas pegadas à roupa dela...

Mas foram os gritos do outro (que finalmente chegara) o melhor empurrão para nos atirar para fora do esconderijo.

Ferido e quase nu, estava diante de nós o Nicolau. Berrava de dores, berrava de medo - berrava ainda por mim. A ciganagem arrancara-lhe as calças e abrira-lhe farpões na camisola e nas ceroilas.

- Onde estavam metidos? - foi o que ele quis saber primeiro.

E os atrevidos, que tanto arrojo haviam tido, estavam agora ali sem palavras, parvos e assustadiços.

«Bem, tenho que salvar estes malandros! » - e a aldrabice saiu-me, corajosa:

- Estávamos no trigo, Seu Nicolau! Como as ciganas vieram atrás de nós...

- Cagarolas! - ronquejou o estúpido, que andava mais cego que eu. E, crescendo no bico dos pés, soltou um grito de valentaço: - Se eu tivesse um homem ao meu lado... tinha posto as gajas a ganir pela courela fora! ...

Mais senhor de mim, recorri à lisonja:

- Ora! Ainda muito fez vossemecê!... Só por lhe dizer aquilo, o cevado atirou-me um pontapé; mas (que sorte!) a sua perna curta, mal subiu, vergou-o logo de dores.

Receoso de nova investida, abriguei-me junto do Lopes e da magana. E, cheio de asco àquela besta, resmunguei-lhe:

- Qu'é lá isso?! Então eu defendi-o e... vossemecê joga-me uma pèzada?!

Nem de propósito: um   golpe de brisa trouxe-nos o rumor da algazarra das ciganas - e um novo cagaço atirou-nos para dentro da camioneta, prontos a fugir dali. Mas não fomos além da primeira explosão do motor, pois a inutilidade da fuga metia-se pelos olhos dentro...

A ciganagem ficara lá por cima, satisfeita com a nossa debandada da igreja. Cantavam, faziam surriada, indo dali a migalho rasgar o nosso rico lençol em pedaços.

Sobre o estrado do carro presenciámos o vandalismo. O patrão, não podendo conter-se, soltou um rugido e incitou-nos a «dar uma ensinadela nas vacarronas», mas depressa embezerrou com esta saída do Lopes:

- Vá vossemecê à frente... que nós seguimos na sua

traseira... Vá, corra! ...

O Nicolau embatocou e deu a batalha como perdida.. Depois, tomado de fúria, começou a bater com os pés sobre as tábuas do carro (Aqui-d'el-rei que as lei-idas lhe ardiam como brasas vivas.,... ) e, às palmadas ao peito e à barriga, exigiu, em alta grita, que a cara-metade lhe trouxesse o frasco das balsaminas e lhe desse uma fricção.

Mas aconteceu o inacreditável: a Miquelina, quieta e sisuda, deixava o suíno do Nicolau sem tratamento.

Ele voltou à carga com renovada fúria, crivando-a de insultos, em que até se mostrou arrependido de ter gasto dinheiro com o seu sustento...

Olho para a retaguarda -e que vejo eu?: a Miquelina a querer avançar, mas a mão cabeluda do Lopes a segurá-la pelo cós da saia...

E quando o desgraçado se atirou para a carroçaria, a espernear de dor, nessa ocasião disse para os meus botões: «O gajo é safado, é certo, mas abandoná-lo aqui como um bicho reles, é malvadez!»

Saquei do frasco das balsaminas e convidei o Nicolau:

Patrão, dispa esses trapos e venha comigo ali para a seara! Quem lhe vai esfregar esse corpinho sou eu! ...

 

           SE EU FOSSE MULHER NÃO GOSTAVA DO LOPES!

Cheguei a esta conclusão depois do cogitar dias a fio no que poderia a Miquelina encontrar de atraente no mecânico. Porque isto além de desastroso para o Nicolau fora-o igualmente para mim, pois os beijos sôfregos que iam agora para a boca do Lopes eram mimos e atenções que ela depois não tinha para me dar...

No homenzinho não havia ponta por onde se lhe pegasse: era um fraca figura que o fato de ganga (sempre pegado ao corpo) ainda tornava mais sisudo e melancólico. Os olhos brilhavam-lhe na cara encovada, sob as sobrancelhas negras e espessas, que dir-se-iam as próprias raízes escurecendo-lhe o rosto. Por mais que a navalha lhe raspasse o queixo havia sempre novos pêlos, negros e luzidios, prontos a surdir. Despida a ganga e a camisola para fora do corpo é que o nosso espanto atingia o rubro: «ih, cum raio! Que macaco, peludo é este Lopes duma figa!»

As suas mãos talvez fossem a parte mais bela do seu corpo: pequenas, de unhas longas e cuidadas, tão pacientes à cata de grilos como engenhosas a remendar o citrolata; desde a primeira hora aquelas mãos me deslumbravam. Depois delas, esmiuçando bem, havia qualquer coisa no brilho dos seus olhos,   que me atraía... Mas quanto ao resto da figura, eu não enxergava nada que justificasse a perdição da magana. E,   desorientado e cheiinho de ciúme, ataquei-a de frente:

- Miquelina, porque gostas do Lopes? Ela vacilou, chegando mesmo a tentar um disfarce para me fugir à resposta. Mas eu vivia essa obsessão e, a meio da evasiva, insisti:

- Porque é, Miquelina? Mordendo as pontas dos dedos, os seus olhos procuraram o longe do caminho:

- Gosto... porque preciso dele! ... Pasmei da conclusão a que ela chegara. Era a primeira vez que alguém me desabafava semelhante sentença.

E não pude calar a voz do meu desespero:

- Não há direito que tenhas feito isso ao Nicolau! ... - Porquê? Agora é que te chegou a amizade por ele?

- Não... mas... Embatoquei com a resposta da magana. Era que eu agora ali não sabia, ao certo, o que queria...

Arrancando uma espiga do chão, ela levou-a à boca e mordeu-a, sorrindo. E quando os nossos olhos se encontraram, teve este desabafo que me deixou ainda mais confuso:

- Não acreditas que eu seja a mulher mais feliz do mundo?

- Só por gostares do Lopes? ... Manteve-se silenciosa; mas, lentamente, as suas mãos desciam agora sobre o peito, onde se demoraram num afago, indo de novo pelo tronco abaixo até se fixarem no ventre...

Não podendo, suportar o brilho do seu olhar, agachei-me para colher um malmequer...

- Por quem estás a deitar isso? - quis ela saber.

- Sei lá! - retorqui-lhe, sorrindo. E quando me voltei de novo para ela - a Miquelina dançava agora sozinha, como qualquer parvinha feliz.

Quanto ao cevado do Nicolau, continuava brutal e ignorante. Berrava, exigia, o parvo, como se o nosso mundo permanecesse ao sabor dos seus caprichos. Por vezes, os amantes sentiam-se humilhados e tinham um ímpeto de revolta. Mas o patrão levava aquilo para a casmurrice e, concluída a grosseria, acabava sempre por passar adiante.

Mas certa noite em que atirávamos para o lençol os bonecos de luz, o mecânico chamou-me para junto de si e teve esta frase que não posso esquecer:

- Ouve, Zé Pardal: não seria asneira tu aprenderes a mexer nisto...

- Eu?!

- Tu sim. Não perdias nada com isso, acredita. Encarei-o, tive uma resposta que o deixou desorientado:

- Para que preciso eu aprender isso... se és tu que trabalhas com ela?!

O homenzinho engoliu em seco, desviou o olhar para o lençol que tinha adiante de si, e ciciou qualquer frase mastigada...

- Que disseste? - inquiri, intrigado. - Disseste o quê?...

E o bicho do meu ouvido estremeceu com esta revelação:

- Estou farto, Zé Pardal! Um dia eu abalo para sempre!

A primeira ideia que me atravessou a cabeça foi esta:

«Já sei: ele e a Miquelina. estão dispostos a bater a asa! ...»

Assombrado, ainda gaguejei de emoção:

- Vossemecês ... querem?! ... Mas um grito do Nicolau pelo meu nome, chamando-me, feriu-me como uma pedrada.

 

                 O NICOLAU NÃO PÁRA DE ENGORDAR!

Ter uma sala de espectáculos onde pudesse, livre de sustos e rixas, correr sossegadamente os bonecos de luz, passou a ser a última obsessão do Nicolau. Ele queixava-se de estar mais gordo, menos andarilho e muito receoso de maus encontros com a ciganagem. Mas a negra da sorte não descansou enquanto não lhe fez entrega de uma pechincha de se lhe tirar o chapéu!

Tínhamos agora um espaçoso barracão de madeira, coberto de zinco e situado em vila populosa. O antigo dono utilizara-o como palheiro e dormida de campónios, que a esta região acorrem pela altura das mondas. Mas o pobre homem morrera, e a viúva, uma antiga amizade da Miquelina, entregara-nos a chave a troco de uns magros escudos por semana.

Sem dúvida que caíra do céu este telhado! Estávamos em terra tão extensa e cheia de surpresas que dos seus montes se via o mar. Vê-se o mar, Afiquelina? Sim, o mar, onde os homens da borda-d'água pescam e navegam, até aos longos campos verdes de distância. Era um sítio que reunia as melhores condições para o negócio das fitas, pois em Outubro armavam aqui uma feira, uma feira com pim-pam-pum e cavalinhos, que nos arrastaria a curiosidade do mundo. íamos, portanto, viver algumas semanas, quem sabe se meses, amarrados ao mesmo chão, enquanto o desinteresse do povo não nos obrigasse a procurar outra terra.

Mas que gentinha aquela! Antes de começar cada espectáculo, tinha o Nicolau de vir cá fora impor sossego aos que não cabiam entre as quatro paredes. E noites houve, de tamanho entusiasmo, que as nossas fitas fizeram por duas vezes bonecos de luz no lençol!

Junto do Lopes, que dava à manivela, eu tinha agora a farronca de ser o seu ajudante. Mas só quando o braço dele se sentia derreado nas voltas e reviravoltas é que eu metia a colherada, substituindo-o...

Convencido de que soara a hora da fortuna, o patrãozinho trancava portas e janelas do barracão e não perdoava cobre a quem passava rente à   sua barriga. Mas surgira um contratempo na maré alta da fortuna: o pessoal farto de assistir aos mesmos bonecos,   adivinhava já os passos dos actores, os seus sucessos e percalços, troçando por fim de tudo que lhes aparecia no lençol...

As nossas histórias eram poucas - poucas e curtas para tão demorada permanência ali.

Logo o Nicolau procurou quem lhe escrevesse uma carta para a cidade, pedindo fitas, mas fitas inteiras, para regalo daqueles olhos cheios de engodo pela novidade da função.

Daqui em diante passou também o comboio a trabalhar connosco, pois era a sua máquina fumegante que nos trazia a encomenda da cidade. Todas as quintas-feiras à tarde, eu atravessava a vila e ia à estação recebê-la. Pelo caminho, quem conhecia a minha tarefa indagava sobre a natureza da próxima história. E se os homens me assediavam com perguntas, o rapazio ia mais longe, pois chegava a colocar as mãos sobre o saco, dando-lhe palmadinhas de deslumbramento, por vezes tão abusivas que me obrigava a escorraçá-lo a pontapé.

Estava a nossa vida a decorrer desta maneira quando o Nicolau fora chamado à Câmara da vila. Ao ficarmos os três no barracão, não tive dificuldade em perceber que os meus companheiros ansiavam por me ver pelas costas... E quando o Lopes, chefinho de manha, me lembrou a ventania da véspera, que abanara o zinco e as madeiras do armazém, eu, percebendo-o, retorqui-lhe que éramos capazes de ter os cartazes rotos! ...

Dito isto, dirigi-me para a rua; mas, quando eles me faziam empoleirado no escadote a repregar os cartões, corri então a um buraco, que havia por entre tábuas e donde se podia espreitar o interior do barracão...

Os dois velhacos experimentavam chaves no baú do Nicolau e, abrindo-o, surripiavam o dinheiro e peças de roupa. «Ah, ladrões, que desta vez me pagam todas juntas! »

E, lançando-me numa correria desenfreada, entrei pelo barracão, sem lhes dar tempo a ocultarem fosse o que fosse!

Entrei e... eles ficaram diante de mim, presos ao chão, com o rapinanço a sair-lhes pelos dedos. Sorri, devagarinho, gozando a saborosa atrapalhação daqueles patifes.

- Com que então querem dar o fora... e não me diziam nada, hem?!

Um «não» saiu da boca da tipa, que veio para mim a implorar. - Qual fugir nem meio fugir! Que eu estava redondamente enganado! Mas fugir para quê?!

- Queres, sim! Queres fugir com ele! - berrei-lhe, apontando o amante.

- Comigo?! - fez o mecânico, com cara de anjinho. E suspirou, magoado. - Se nós alguma vez pensámos nisso, rapazinho!

- Aldrabões! - vociferei-lhes fora de mim. - Então porque estão a roubar o patrão?!

Os safardanas engoliram em seco e voltaram à boa disposição...

- Estávamos a brincar contigo! - esclareceu ele. - Que feitio o teu, Zé Pardal! Podíamos lá perder a tua companhia!

Azedei o olhar e gritei-lhes:

- Daqui em diante, tudo que vossemecês me disserem eu não acredito! Não acredito, já disse!

- Pois fazes   mal. . . - retorquiu, pesaroso, o mecânico.

- E nós que estávamos a fazer conta de vivermos os três! ...

Aqui o Lopes desorientou-me, pois viver ao lado de alguém fora sempre um fraco que não me largara...

Novo riso brotava da cara dos maganos. E logo a Miquelina me encheu de perguntas.

- Porque és tão desconfiado, rapazinho?

- Eu?!

- Tu, pois! Ganhas alguma coisa com essa mania? Casmurro, tentei ainda reagir, gaguejando uma resposta que não era peixe nem carne:

- Eu sei que não ganho nada... Mas se é este o meu feitio, que hei-de fazer?

Ela acariciou-me, deu-me um beliscão na orelha, o que me forçou a sorrir...

E foi nesta altura que o sabido do Lopes me mostrou uma nota de vinte escudos.

- Queres ganhá-la?

- Quero, pois!

- Assobia uma modinha...

- É preciso assobiar?! Mas para que é isso agora!? - já vais ver ... Assobia Zé Pardal! . . . «Bem, se tu me pedes... lá vai... » Fiz boca pequena e o meu gorjeio encheu o barracão ...

E qual não foi o meu espanto, ao dar com os dois maganos, abraçados e a dançarem - a dançarem à custa da minha música! ...

 

             O SACO DAS FITAS

Nesta quadra, os campos enchem-se de cor e frenesim. É uma vida nova que brota do sossego da terra. As cepas carregadinhas de uva sumarenta são revolvidas por bandos de mãos insaciáveis. Rolam cantigas sob a mornidão do sol, cantigas que perguntam brejeirices...

Que dias de folguedo, estes de Setembro! Dois dedos de conversa aqui, rapinanço acolá - era sol-posto quando cheguei à estação do caminho de ferro. Apareço ao Manuel Pouca-Terra, que exclama:

- Lindas horas, Zé Pardal! Sorriu-me, e volvo-lhe costas para receber sobre os ombros o saco das fitas. «Chiba! Ou isto hoje está mais pesado ou... as uvas caíram-me na fraqueza! ... » Mesmo assim caminho, e atravesso uma meada de ruas. Mas acabo por poisar a mercadoria sobre um poial. «Há que ganhar fôlego para regressar! A esta hora o Nicolau está pior que um urso! ... »

Cogitava eu nisto quando fui tentado a abrir o saco para me certificar d& quantidade de partes. Eram dez. Dez latinhas redondas, contendo metros e metros da mesma história. E qual não foi o meu espanto, ao ver, nos retratos dos cartazes - «Não adivinham quem poderia ser? » - o vagabundo do chapéu de coco, o vidraceiro, que caminha como os patos...

O homenzinho estava presente em todos os retratos. Em alguns tinha como parceiro um gigante barbudo e mal-encarado... Aqui, espreitava cheio de tristeza à janela de uma taberna... Ali, divertia-se a uma mesa com dois pãezinhos espetados num par de garfos... Via-se que toda a aventura se desenrolava sobre o gelo, pois eram grossas peles os abafos daquela gente...

Mas faltava ali alguém que para sempre ficara ligado à minha recordação do vidraceiro: o Garoto. Qual o destino do miúdo abandonado pela mãe e protegido pelo, vagabundo? Por mais que procurasse naqueles cartazes, nada d'O Garoto do Charló... Ou teria o rapazinho crescido tanto, tanto que... ?!

Pus a carga de novo sobre os ombros e calcorreei por uma azinhaga longe dos que trilhavam o vaivém do lagar. A tarde caía, cheia de sombras e de eco.

Ouvia já as primeiras cigarras quando cheguei ao barracão.

 

                   QUE SE PASSA?

Tudo escuro e sem vivalma. Arrasto o saco das fitas e chamo pelo nome dela:

- óóóóó... Miqueliiii ... na! Nada. Berro de novo:

- óóóóó... Lóóóó ... pés! Vou caminhando na escuridão. «Se não está cá ninguém... não devo ter medo, não é verdade? »

De súbito, tropeço numa coisa mole - e oiço um ronco! ...

Grito. Tento fugir. Mas sou agarrado por alguém que me joga bofetões...

E é a voz do Nicolau que me entra, raivosa, pelos ouvidos:

- Cacei-te, ladrão! Que vens cá fazer? Fala, não ouves? Fala!...

Assarapantado, tento desculpar a minha demora. - Que o comboio viera atrasado! Fora o cabo dos trabalhos para receber a encomenda! - E tudo isto eu expliquei aos gemidos, para que o patife me largasse.

Mas a besta não dava descanso às mãos:

- Mentes! Ou vomitas o sítio onde eles se meteram ou... esgano-te, meu bandido!

E quando a tenaz dos seus dedos me trepou ao pescoço, então é que foi um caso sério:

- Largue-me! Aí qu'eu morro! Solte-me já, não ouve?! Barafustei, às cegas, numa ânsia de vida ou de morte. Por fim, acerto-lhe um pontapé nas partes e, arrumando-o para o lado, corro para a saída.

Mas o grunhido da sua voz persegue-me:

- Não me abandones, Zé Pardal! Volta para trás! ... Fica comigo que não terás nada a perder! ...

Aquilo buliu-me no bicho do ouvido: Fica comigo... que não terás nada a perder!...

- Mas eu nunca pensei abalar! - retorqui-lhe, num berro.

De súbito, há uma ideia que me atravessa a cabeça como se fora um raio: «Ai que os maganos bateram a asa!!! » E, sufocado, começo a choramingar, pedindo-lhe que me sacie depressa a curiosidade:

- Fale! Diga o que sabe, Seu Nicolau! Eles... eles fugiram?!

E o patrão, recostando-se à ombreira da porta, gemeu:

- Fugiram.

- Um com o outro? Que sim - acrescentou. - Mas não abalaram com as mãos a abanar: tinham-lhe roubado a camioneta, dinheiro e roupas. - Dito isto, o patrãozinho, traído pelos nervos, amoleceu como um trapo.

- Que é isso, Seu Nicolau? - condoí-me. - Eles não merecem as lágrimas de vossemecê! ...

- Incapaz de conter a minha raiva, joguei pontapés em quantas pedras havia diante de mim. «Que azar! Eu sou muito infeliz! » E não me cansava de clamar:

- Malandros! Não me disseram nada! Não me disseram nada!...

Acreditando que eu compartilhava a sua dor, o Nicolau. tentou acarinhar-me:

- Deixa que eles não perdem pela demora!

- Mas vossemecê queixou-se já à Polícia? - inquiri. Admirado pela minha pergunta, o gordo encarou-me; esteve um momento confuso e acabou por fungar um suspiro:

- Eu queixava-me, Zé Pardal... Lá isso, queixava-me... Mas é perigoso! Quando uma mulher nos troca por outro... os de fora gozam, gritam, apontam para a nossa testa ... e isso é sempre mau para quem tem negócios!...

Fez-se um silêncio entre nós; depois, ele voltou com esta pergunta:

- Tu nunca viste nada?

- Vi o quê?...

- Nunca deste fé de que os tipos se entendiam?...

- Eu?!

- Tu, pois! Andavas sempre no meio deles! ... Não gostei da insinuação, e retorqui-lhe, casmurro:

- É boa! E vossemecê não vivia com ela?! Que era muito diferente - esclareceu. - Eles ocultavam-lhe tudo. Ora, comigo... Comigo, podiam até fazer pane- linha...

- Qu'é lá isso, Seu Nicolau?! - barafustei. - Bem sabe que não sirvo de capa a ninguém! ...

Após esta mentira fui invadido por uma tão profunda tristeza que as lágrimas não tardaram nos meus olhos... «Não há direito! E eu que tinha tanta amizade à Miquelina! Ela era como minha irmã ou... minha mãe, sei lá ... »

- Tu choras, Zé Pardal?

- Choro, pois! Fiquei sem eles... fiquei outra vez sozinho!...

Era quase noite e, pelo largo, iam passando ranchos de camponeses no regresso de mais um dia de vindima. Alguns paravam junto do barracão e, estranhando a falta de luz, indagavam se não havia bonecos. E a resposta do Nicolau saiu curta e monocórdica:

- Sábado... Hoje, não... Sábado... Em dada altura, fiz-lhe a pergunta: -Sem o Lopes, como vai vossernecê continuar com os bonecos de luz?

Ele puxou do pacote do tabaco e, antes de servir-se, exigiu que eu retirasse um cigarre. Achei graça à sua inesperada delicadeza e sorri-me. Mas não era tudo, pois o patrão, nessa noite, ainda passou o polegar pelo isqueiro e dividiu comigo o seu lume.

 

                       EU E O NICOLAU

- Que é isso?

- Aguardente. E o patrão pôs também a garrafa diante dos meus queixos.

- Bebe, troixa. Bebe que esqueces logo o desgosto! Segurei a vasilha e passei a manga do casaco pelo gargalo. Sorvi um trago...

- Que tal?

- Arde! - exclamei, numa careta. - Fiquei com as tripas em brasa!

Apossando-se da garrafa, colocou-a de novo à boca e, fanfarrão, bebeu, bebeu, como se fora água.

- Chiba! - rosnei, pasmado. - Quase que despejou isso tudo! ...

- Áááááá... - fez ele numa baforada, como se deixasse sair a labareda que lhe consumia as entranhas.

Pela porta do barracão, aberta de par em par, não entrava a menor claridade. À distância o casario da vila era um colar de luzinhas perdidas na imensidão do campo. Nem vivalma e nós os dois ali.

Acendi o bico de carboreto. Mas ao dependurar o gasómetro tive a impressão de que ele me falara...

- Vossemecê disse alguma coisa? A tosse impedia-o de explicar-se e pigarreou, cuspindo fora. Por fim, atirou-me a tal pergunta:

- No sábado posso contar contigo, não é verdade?

- Já lhe disse que sim! - retorqui-lhe. - Por mim, a máquina não deixa de trabalhar!

Doía-me a barriga. A aguardente assentara-me mal sobre as uvas. Puxei a camisa para fora das calças e dei fricções sobre o umbigo.

O Nicolau continuava à roda de uma dúvida:

- Se não souberes mexer na máquina... o meu negócio val pela água abaixo! ...

Irritei-me de tanta desconfiança. E saiu-me esta exclamação para o acalmar de vez:

- Pela minha saúde! O Lopes daquilo sabia às carradas! ... Mas o gordo enfureceu-se ao ouvir o nome do outro. E rugiu, transfigurado:

- Não me fales nesse bandido! - E com as mãos enclavinhadas no gargalo da garrafa como se fora um pescoço:

Se o caço... se o apanho a jeito, mato-o!...

O cuspo a sair-lhe pelos cantos da boca, as banhas do corpanzil a tremelicarem-lhe, tudo me parecia tão cómico que desatei a rir:

-Ah! Ah! Ah! Vossemecê não tem pernas para o agarrar! ...

- Tu ris-te?! Ria-me da sua cara, da sua figura; podia lá esquecer-me de certa perseguição que ele fizera à Miquelina no quintal da olaria!...

«Mas quem dizia agora que eu parava de rir?» E, na galhofa, apontei mais uma vez para o corpinho mal feito do patrão:

- Vossemecê se escorregar... vai a rolar até ao mar! ...

A besta tremeu da cabeça aos pés e, possesso, deu um saltinho de bicho assanhado:

- Cala-te! Calei-me. E fiquei sério e um nada assustado... Dali a momentos era ele que se aproximava de mim. Sacou do maço de cigarros e pô-lo ao meu alcance:

- Tira outro. E chega-lhe lume. Estás um homem! ... Embora a cabeça me pesasse e as tripas não parassem de cantar, acendi um novo cigarro.

Mas ele ansiava pela minha opinião sobre uma ideia que o torturava:

Tu achas que o Lopes é melhor do que eu? Em que sentido? - Como homem! Ele é mais feio e... fala pior, não achas?

Sentindo-me na mó de cima, recostei-me à parede e soltei uma longa fumaça para a luz. E tive esta frase corajosa que não me obrigava a tomar partido:

- Bem, eu como não sei apreciar homens... Como eu esperava, a minha resposta não o satisfez; mas o estúpido insistiu:

- Aposto que nunca viste o Lopes nu! ... - Não senhor!

- Pois eu já vi! Vi uma vez e ia morrendo de susto! Que medo Zé Pardal! Tem tantos cabelos, tantos... É um autêntico macaco! ...

Para afirmar isto, o patrão fez uma cara tão engraçada que eu não me contive e rompi às gargalhadas! ...

Supondo que eu zombava da figura do mecânico, o Nicolau compartilhou da galhofa...

Ora eu é que não queria estar enganá-lo por muito tempo, e apressei-me a esclarecê-lo:

- Não rio do Lopes- Eu estou a rir da tal corrida que vossemecê fez atrás da Miquelina! ...

O que eu fui dizer! Enfurecido, o bruto ergueu a garrafa e tentou arremessá-la sobre a minha cabeça. Mas, ao ganhar balanço, estilhaçou o frasco contra o gasómetro ...

E ficámos outra vez às escuras.

 

               EU, O NICOLAU E O OUTRO

Dali a nada ouvi um estrondo e um grito. Fora o patrão que tentara mover-se - e caíra.

Resolvi então sentar-me sobre o saco das fitas e esperar... E enquanto esperava, tive o pressentimento de que a minha vida ali no barracão terminara. Parecia até que estava na olaria diante do manhoso do Paulino ou ainda quando a mãe Ermelinda me trocara pelo orelhas-de-morcego... A continuar ali, sob os berros e os apetites do Nicolau, eu passaria a ser alguém muito diferente do rapaz despreocupado e espertalhão que sempre teimara ser...

- Zé Pardal!

- Qu'é preciso? - Vamos fazer as pazes? «Fazer as pazes para quê, se daqui a nada voltamos à mesma?!» E como eu não lhe respondesse, ele acreditou na minha evasão (Zé.... ó Zé!... Estás aí, Zé Pardal?!), seguindo-se o estrondo do seu corpo a derrubar mais cadeiras.

Exclamei, inquieto: - Que é isso? Que anda vossemecê a fazer?

E a voz do Nicolau vinha agora embargada pela comoção:

- Fiquei só no mundo... Os malvados deixaram-me de tanga 1

Mas como as tripas me cantarolassem na barriga a anunciar desastre, tentei acabar cem a escuridão:

- Catano! Acenda o isqueiro! Quando a claridade chispou dos seus dedos, vi então onde ele estava: estiraçado sobre um monte de cadeiras.

Mas quem me garantia agora que o corpanzil do Nicolau vinha para cima com os meus puxões>

Vossemecê endireita-se ou quê? Respondeu-me com soluços e cobardia: -Não me abandones, Zé Pardal! Olha que eu volto outra vez para os caixotes de lixo!

«Que caixotes de lixo? Ah! Já sei! ... » E lembrei-me do pregão do Lopes: Quem tem trapos ou garrajas que queira vender? ...

Baldados os esforços para o pôr de pé, resolvi largá-lo de vez. Mas logo senti ser isso impossível, pois uma das suas mãos estava ferozmente fincada no meu casaco.

- Largue-me, não ouve?! Estou à rasca das tripas! Olhe qu'eu... faço uma desgraça...

E mal lhe fiz este aviso, eis que nos desequilibrámos e, bumba!, lá fomos os dois para o chão. O isqueiro apagou-se. E agora em vez de ser agarrado por uma só mão estava pelas duas...

- Não és meu amigo?

- Sou... mas largue-me primeiro! ...

- Porque não dizes que eu sou mais bonito que o bandido do Lopes?

Berrei-lhe, fora de mim: - Aqui não há mais bonito nem mais feio!

- Então?

- ... A coisa é outra! Vossemecê é que não teve sementes para ela! E a Miquelina quer um menino custe o que custar! ...

O bafo da aguardente, a lamúria daquele homem, tudo me recordava ali o outro tempo e a minha outra desgraça! Curioso! Era sempre após uma aventura amorosa da magana que eu ficava a contas com um manhoso.

E ele a dar-lhe: - Diz-me a verdade: tu sabes mexer na máquina? -Já lhe disse que sim!

- Juras?

- Juro! Mas largue-me! ...

- Tu não me foges, pois não, Zé Pardal? De súbito, tive uma ideia:

- Se vossemecê me soltar... eu fabrico à sua frente os bonecos de luz!...

Dito isto, senti logo os dedos do patrão abandonarem a minha carne. E de novo a chama do isqueiro iluminou a cara bolachuda do Nicolau. Os olhos brilhavam-lhe de cobiça...

Agora era só questão de eu subir para o estrado e destapar a máquina, pois o Lopes deixara-a afinada e pronta a funcionar.

- Ilumine-me aqui o saco das fitas. Radiante, o patrão obedeceu, cantando loas ao futuro: - Nós os dois sozinhos! Que negócio da China’ Tu já reparaste o que significa eu ter só uma boca a meu cargo?...

Deixei-o falar, enquanto retirava um rolo de fita entre os dez que o saco continha. Pedi-lhe ainda para erguer a chama do isqueiro e enfiei o rolo às avessas no eixo da caixa de cima. Puxando pela ponta da fita fi-la engrenar nos dentes do carreto. Fechei a portinhola, prendi o começo da bicha na roda de baixo, onde ela iria enrolar-se depois de corrida...

Nesta ocasião lembrei-me das mãos do Lopes, que terminavam sempre este primeiro trabalho, sombreando o lençol com os dedos longos e rápidos... E não pude conter um sorriso ao tentar imitar a proeza.

O Nicolau exultava de planos: -Estou resolvido a dar-te sociedade! Vamos fazer fortuna! A castanha vai rebentar na boca daqueles dois ladrões!

Concentrado na minha tarefa, mordi os cantos da boca e soltei um «schiu!», autoritário. E saboreando o sossego que a obediência do outro tornara possível, exclamei, por fim:

- Ora vamos lá ver se eu me entendo com isto! ... Enervado, o coração num alvoroço, contei baixinho: «Um... dois... três... »

Destapei a lente e dei ‘à manivela... Um jorro de luz atravessou as trevas do barracão e encheu o lençol de vida!

Dois homens encontravam-se cercados por uma tempestade de neve numa cabana solitária...

Deslumbrado, o patrão soltou um uivo de vitória. E a sua mão gorda afagou-me o pescoço. Depois, dançou, bateu palmas, com gargalhadas à mistura e tosse infernal. ... O vento, enfurecido, cobria a cabana de neve. Lá dentro, um gigante barbudo mastigava em seco e deitava olhos esfomeados para o Charló... Este, muito atrapalhado, retirou uma bota cozida da panela e pô-la num prato...

Eu ia dando à manivela, atirando para o lençol a aflição daqueles dois homens, esfomeados e perdidos no meio da neve.

- Vales quanto pesas, Zé Pardal! - clamava o Nicolau, delirante. - Não preciso de mais ninguém!

O patrão sabia finalmente que eu era homem para trabalhar com a máquina dos bonecos de luz! As minhas mãos estavam à altura das mãos do Lopes!

- És pau para toda a obra, rapazinho! Eu seja cão se desta vez não chegar a capitalista! ...

Farto de o ouvir, inquiri:

- E para que quer vossemecê ter assim tanto dinheiro? ...

- Para quê? - retorquiu ele, galhofeiro. - Olha: para fazer isto...!

E o malcriadão desatou a armar manguitos, uns atrás dos outros, numa sede de vingança. ... Partida a bota em dois quinhões, o Charló engolia agora os atacadores como se fossem macarrões, chupando em seguida os pregos à laia de ossinhos de galinha...

Eram muito divertidas as cenas que se desenrolavam no lençol, e o barrigudo gritava:

- Prepara uma bota, Zé Pardal! No Inverno vamos comê-la que é um regalo!

Não gostei da graça e abandonei o meu posto, rosnando-lhe:

- Essa é boa! Porque há-de ser a minha bota e não a sua?!

Devorado pela tosse, o alarve ficou roxo por momentos. Depois, recuperado o fôlego, foi baixando as nádegas sobre o saco das fitas e aí se amesendou, com os olhos em mim...

E foi então que lhe ouvi a frase certeira: - O estupor do rapaz é tal e qual o Charló! ...

 

                               AS MINHAS PARECENÇAS

Pouco depois o Nicolau adormeceu. E adormeceu onde estava sobre o saco das fitas. E enquanto a luz da máquina durasse, teríamos o lençol iluminado pela imagem do Charló e do Gigante, pois resolvido como estava a sair dali tanto se me dava que a fita ficasse metida na máquina ou fora dela...

Escancarei a porta do barracão e vim para o largo deitar contas à vida. E se há momentos em que tenho primores de clareza, a nenhum me igualo caso me agache em busca de alívio...

Esta história tem medrado com o aparecimento de alguns figurões. Abalam uns, surgem outros, e a minha aventura continua. Eu próprio não garanto que tenha sido sempre a mesma pessoa... Há pouco bem ouviram o Nicolau dizer aquela da minha semelhança com o Outro... Coisa espantosa, essa! É certo que a fuga da Miquelina lhe deu volta ao miolo; mas desta vez creio que os seus olhos foram fiéis à figura que tinham diante de si...

Este é, portanto, um episódio bem curioso e que por si só justificava a narração desta história. Mas não tivesse o safardana aquele desabafo, jamais a minha boca se abriria sobre a questão das minhas parecenças... E se digo «parecenças»... é porque a coisa não era nova em mim... Mas eu tento explicar melhor:

Quando, no pátio da olaria, dei conta do deslumbramento dos bonecos de luz, toda a minha atenção se volveu para o pequeno companheiro do vidraceiro - o Garoto. E logo os meus olhos ficaram rasos de água ao descobrir no menino abandonado uma vida que bem podia ter sido a minha (A mãe a pô-lo dentro do automóvel, os ladrões que fogem com o carro... - lembram-se da fita, não é verdade?) Mas o mais curioso foi daí em diante, porque me julgando igualzinho ao fedelho me vi na necessidade do arrimo de um Charló... Por isso, acamaradei com o vendedor de sinas e, quando este me desiludiu, voltei-me logo para quem estava mais perto - a Miquelina e o Lopes.

Mais tarde esta convicção desvaneceu-se quando, no palácio, enfiei nos pés as botifarras do marido da Dona Fausta...

Porque daí em diante eu passei a ser então o homenzinho que caminha como os patos!

Volto ao barracão e dou mais uma vez com os olhos no lençol: lá estavam as figuras do Charló e do Gigante cercados pela neve.

Com o saco das fitas como almofada, o Nicolau dorme. Dorme como um cevado, que é o que ele tem sido desde que o conheço. E ressona, e assobia, tão violento e cheio de fôlego, que lembra o chiar do vento em pleno Inverno.

Por mais que queira permanecer ali, não posso. Abalarei de manhã. Lá fora tudo grita para que me afaste daquela besta, Espreguiço-me, sonolento. «E se eu me deitasse em qualquer sítio?»

Desço um braço e tacteio em busca de um colchão... Encontro-o! E, pesadão, arrumo-me logo para cima, indiferente a que seja meu ou... do Nicolau.

Mas adormeço...

 

                     ESTAREI A SONHAR?!

Era uma algazarra confusa e estonteante que me envolvia. Abri os olhos e vi o zinco do telhado a voar, ficando o céu estrelado por cima de mim. Corri na direcção da porta, mas tudo o que possuíamos ali - as cadeiras, a máquina, colchões e roupas - seguia o caminho misterioso das alturas. E como se isso não fosse de estarrecer, também o corpo pesadão e adormecido do Nicolau seguia para o sítio das estrelas...

Foi então que, ao achar-me no largo, surpreendi as mil luzes da Feira! O povo formigava pelas meadas de ruas que as lonas das barracas condicionavam. Havia circo, fantoches, tiro ao alvo, pim-pam-pum e o giro estonteante dos cavalinhos. E cada um dos feirantes berrava ganancioso pela freguesia: é entrar, meus senhores, é entrar; venham ver a coisa mais bela do mundo! Estoiravam dedais de pólvora, zuniam as palhetas dos fantoches, pregões de mulheres e lamúrias de mendigos.

O pessoal das vindimas, tudo gente conhecida, passeava também, sem o menor espanto pela minha figura... Irritava-me tamanha indiferença, pois sabia que os bonecos de luz davam há muito a conhecer quem eu era...

Além de caminhar como os patos e trajar de calças enormes e casaquinho justo, eu tornara-me ainda mais parecido com o Outro... Usava chapéu de coco, bigodinho, e escarafunchava no chão com a ponta da bengala... Quem esbarrasse comigo tinha a obrigação de exclamar:

- Que é isto?! Mas qual história! Passavam por mim como cães por vinha vindimada...

Nisto, estoira um berreiro por entre a multidão. Há correrias, gente pisada, lonas rotas e gasómetros que rolam. Era como se um vendaval abrisse caminho, furiosamente.

Um grito chega-me aos ouvidos: - Agarra que é ladrão! Aproximo-me (e quem vejo eu?): - o Lopes. O Lopes, roto e empastado de lama, perseguido por um homem fardado. Sou envolvido pela onda de povo e grito-lhe: ó Lopes que é isso?! Mas o desgraçado (que pelo visto não me conheceu) joga-me um encontrão e desaparece. E é ao refazer-me do susto que pasmo com outra descoberta: o tal homem fardado não era mais nem menos que o Policia das fitas! ...

Meto a mão num bolso e toco num objecto estranho... Uma carteira!

«Ai que o malandro impingiu-me o roubo! ... »

E AGORA O LADRÃO PASSEI A SER EU!!! Aflito, tento disfarçar a minha figura de vagabundo, mas é precisamente daqui em diante que todas as caras me sorriem. Fustigo o passo, saltito, e noto a multidão parada a observar-me...

Que silêncio de espanto reinava à minha volta! Mas um grito precipita de novo a confusão e a balbúrdia. Um grito rouco, feroz: - Está ali o ladrão!

Volto-me, e tenho diante de mim o bando da ciganagem, açulado pela velhorra marreca. Fora ela quem soltara o berro de guerra e não havia agora cigana e ciganito que não viesse na minha cola. Fujo, corto voltas, piso loiça, atirando, em pantanas os atrevidos que me tolhem o passo. Mas furo por uma barraca e logo me acho envolvido pelas lonas gigantes de um circo! Atravesso a claridade da pista e esbarro com um cavalheiro que exibe cartas... O homem tomba redondo e... dos forros da sua casaca voam pombos, pombos, pombos!

Gritos. Gargalhadas. Palmas. (E eu vou gatinhando por debaixo da primeira lona que encontro.) Mas diante de mim tenho agora uma mulher nua, que logo se tapa com as mãos e os gritos.

Esgueiro-me por onde calha e atinjo de novo o bulício da Feira. Os meus olhos são arrastados para o giro colorido e estonteante dos cavalinhos. A música merulha no bicho dos meus ouvidos...«Ah, se estes cavalinhos me levassem daqui! Se eles me salvassem!...»

O chão treme sob os meus pés. Sinto-me tonto, agoniado... Caminho de braços no ar- mas sou ferozmente agarrado por duas manápulas!!!

Grito, apavorado (e quem vejo eu diante de mim?): o calmeirão do BIGANGA! ...

- Há que anos te procuro, Pardalito! ih, como estás crescido! Venham de lá esses ossos! ...

Não refeito do susto, os dentes batem-me como castanholas. E, mal me precatei, já o gigante me havia erguido às alturas da sua cabeçorra.

- Tens cócegas, ladrão? - Tenho, pois!

- Que saudades! Que saudades eu tinha da tua fronha, meu patife!

As tenazes dos seus dedos mexiam e remexiam sob os meus braços, varando-me de comichão. E sem tempo para avisar o homem que eu tinha por debaixo, abri-me como qualquer vasilha a que salta a rolha...

Furioso, o vendedor de sinas atirou-me para longe, indo eu cair sobre a lona de uma barraca. Escorreguei por ela abaixo e, ao tocar no chão, sorri-me, contente. E, descarado, pedi-lhe para que me arremessasse outra vez, pois aquela viagem fora deveras gostosa!

Ora o gigante é que não esteve para isso. Enxugou a cara a um pano e advertiu-me:

- Deixa-te de garotices porque já és um homem! Mesmo eu andava à tua procura por uma razão muito séria!...

Resmunguei-lhe:

- Se é algum recado do palácio... fica sabendo que eu não volto lá mais!...

O vendedor de sinas encarou-me e exclamou:

- Como adivinhaste, Zé Pardal?!

- O quê? - Que eu trazia um recado do palácio? ...

- Ora! Só me procuras para isso! ... Fixou-me por momentos e, como era seu costume, cofiou a barba, apreensivo:

Sabes que a Dona Fausta está a morrer? Ah, sim? A bondosa senhora está a apagar-se e, antes de abalar para o outro mundo, quer que tu sejas um dos seus herdeiros!

Pasmei e, esfregando as mãos de contente, adverti, que seria melhor irmos buscar já o dinheirinho, pois quem morre não diz que sim nem que não...

Logo a sua manápula susteve o meu entusiasmo. - Que eu tivesse calma. Muita calma! Uma herança não podia ser recebida assim por qualquer filho das ervas!...

Irritei-me com esta alusão. E retorqui-lhe, azedo: -Então porque me procuraste?

O Biganga subiu um dedo ao nariz, pedindo-me silêncio. - Queria pensar melhor no meu caso. - Por fim, quis saber se eu me lembrava de alguém que estivesse pelos ajustes de perfilhar-me...

Que não - foi a minha resposta - pois até à data nunca tentara semelhante coisa.

Coçou a grenha, o meu parceiro, salivando para o chão.

- Estás quilhado, Zé Pardal! Se ao menos eu te pudesse valer! ...

Diante de nós havia uma multidão que gozava as mil delícias da Feira. Pareciam formigas malucas, entrando e saindo das barracas...

Possuído de uma ideia salvadora, o vendedor de sinas levou as mãos à boca e apregoou:

- Há por aí alguém que queira perfilhar o Zé Pardal?

Ninguém. - Cambada! - rosnou o gigante. De súbito, a minha cara sorriu... Eu tinha uma ideia que me parecia bem feliz! ...

Acenei então para que o Bíganga se agachasse. Mas como ele não anuísse, gritei-lhe:

- Agacha-te! Que mal há nisso?... E mal o apanhei baixinho diante de mim escarranchei-me sobre as suas costas.

Surpreendido, ele tentou alijar-me; mas já os meus calcanhares lhe tocavam na barriga, fustigando-o:

- Corre, Biganga! Vamos à cata dos maganos! Arre, burro! ...

Então as pernas do gigante puseram-se em marcha e em meia dúzia de passadas ficámos longe da feira e da vila. Caminhando de dia e de noite, chegámos por fim a uma farta seara de trigo...

- Pára Biganga! Pulei para o chão e, quando me orientava no rumo a seguir, ouvi esta pergunta do meu companheiro:

- Não topo vivalma! Quem procuras tu afinal! ... - Caluda! Segue-me e deixa-te de sentenças! ... Mais adiante, descobrimos a camioneta do Nicolau. Aproximámo-nos, sorrateiramente, correndo ambos em dada altura para melhor surpreendermos os patifes...

Mas o carro estava vazio. Não desanimei e, agachando-me sobre a terra, encabecei pelo trigo dentro. Tinha gatinhado um bom pedaço de seara, quando me chegaram aos ouvidos as gargalhadas da magana...

Deitados sobre as palhas, o Lopes e a Miquelina beijavam-se furiosamente. Mas, ao pressentirem-me, soergueram-se, assustados:

- Tu, Zé Pardal?! Esqueci-me do que lhes tinha para dizer, mas fiz-lhes um aceno com a palma da mão, dando-lhes a entender que ia chamar alguém. O vendedor de sinas apareceu logo e disse-lhes que eu, o Zé Pardal, queria pedir-lhes um grande favor...

- Que favor? - exclamou o mecânico admirado.

- Ora oiçam: ele é muito pobre, mas há alguém que lhe quer deixar uma herança...

Indiferente à explicação do gigante, a Miquelina dava marradinhas no Lopes. Depois, a magana passou a esfregar o seu nariz no dele...

E o Biganga concluiu: -... Mas esta herança só lhe vai parar às mãos desde que alguém o perfilhe! ...

Na mais provocante indiferença pelo que acabavam de ouvir, os amantes uniram as bocas e ambos rolaram, cheios de cio, sobre as palhas.

Bati nas costas do mecânico para que me não abandonasse naquele aperto. ó Lopes, pela tua rica saúde! Se me fizeres este jeito eu dou-te metade do dinheiro! E ainda lhe puxei pelas roupas e pelas orelhas...

Em dada altura, a Miquelina fez uma trégua na pouca-vergonha e incitou o amigo:

- Ó querido, tu consentes que ele te peça uma coisa daquelas?!

O Lopes subiu os ombros e sorriu-se: -Que queres, filha!?... -E, volvendo-se para mim, sentenciou: - Palerma! Não viste ainda que estás a mais na nossa felicidade? Temos tudo quanto desejamos, Zé Pardal! ...

Ouvindo isto, só me restava abandonar a seara. Encarei o Biganga e disse, muito desanimado:

- Não há nada a fazer!

- Parece-me bem que não! - foi a resposta do meu companheiro.

De súbito, lembrei-me que ainda havia uma esperança: «E se voltássemos ao barracão?»

 

                     QUEM PROCURAS, PARDALITO?

- indagou o gigante. já vais ver... Empurro a porta e penetro na escuridão do armazém; mas noto que o vendedor de sinas não ousa seguir-me...

- Estás com medo, Biganga? Que não era bem medo o que ele sentia - explicou. Mas um profundo respeito pelas trevas...

O polegar do Nicolau feriu lume no isqueiro e o seu rosto bolachudo, banhado pela claridade, fez-me esta pergunta:

- Quem é aquele gabiru. que ficou ali à porta?

- É o meu amigo Biganga, que vende sinas. Ao ter os passos iluminados o gigante aproximou-se e, muito familiar, não quis perder tempo:

- Bem, vamos depressa ao assunto porque o Inverno está a chegar e eu não posso demorar-me!

E dali a pouco já o safardana do Nicolau estava a par da minha dificuldade: conseguir um pai.

- Um pai?! - resmungou o patrão. - Se já nasceste... para que precisas disso a uma hora destas?!

Que eu tinha uma herança para receber - explicou o gigante. - Uma herança que só seria minha depois de perfilhado.

Ouvindo isto, o dono dos bonecos de luz ficou sério e indagou, interessado:

- E será coisa que mereça o papel selado e as solas gastas nas voltas? ...

O meu companheiro respondeu-lhe que não sabia ao certo, pois, mal recebera a novidade no palácio, correra vilas e aldeias à minha procura. Mas talvez a Alenina Margarida pudesse dizer alguma coisa...

- Quem é essa bisca? - A Menina Margarida... - esclareci -é a governanta da tal senhora rica que está a dar as últimas...

Era certo que o casmurro do Nicolau quando se interessava por uma coisa ia direito ao fim, mesmo que esbarrasse ,numa parede. E foi o que iria suceder, pois a sua voz entrou logo a dar ordens:

- Tragam essa mulher à minha presença! Embasbacámos deste seu inesperado desejo, tendo o meu companheiro resmungado as dificuldades. - Ir buscar a Menina Margarida? Mas a mulherzinha estava em cascos de rolha, encafuada num palácio!

- Quero falar com essa tal governanta, já disse! Diante de mim, o Biganga, fazendo expressão de cachorro, parecia dizer-me na sua: Bem, tenho que me meter a caminho, não há outro remédio, não é verdade?

E foi: abalou nesse mesmo instante ao som dos ralos e das cigarras e só nos apareceu em pleno Inverno.

Pés atascados de lima, encharcado, o vendedor de sinas entrou pelo barracão dentro com a velha escarranchada sobre as costas. A Menina Margarida trazia o cesto das compras enfiado no braço e bramava contra o homem que tinha por debaixo, a quem apelidava de «patife»...

Ela viu-me - e ficou embevecida: - Nunca mais apareceste, meu maroto! E não dando tempo a que qualquer de nós lhe perguntasse pela minha herança, a víbora começou a palrar sobre a única coisa que, de momento, lhe interessava: o casamento. - Que ia finalmente viver com o seu rapaz, a quem namorava havia trinta anos!... Perder a companhia da sua senhora, quando a hora da pobrezinha soasse, seria um grande desgosto; mas não se mortificara ela, anos e anos entre as paredes do palácio, aturando a paralisia do Sr. Comandante e, por último, as manias e desmazelos da Dona Fausta?...

Saturado da lengalenga que lhe zunia por cima dos ouvidos, o gigante deu um solavanco, atirando com a velha às alturas.

Mas, na descida do corpo, quis ser o Nicolau a agarrá-la, o que logo fez, metendo-se na frente do Biganga... A mulherzinha caiu-lhe nos braços e o patrão teve este espanto: - que levezinha! Parece feita de papel! ... Chegou a minha vez de experimentar a brincadeira; e, para ter essa oportunidade, pedi ao barrigudo:

- Atire vossemecê com ela ao ar para eu a apanhar na queda!

E, zás!, lá foi a velhota às alturas. Soltava gritinhos de gozo, a mulherzinha, ao mesmo tempo que ocultava as pernas magras nas suas sete saias.

Prosseguíamos neste jogo quando a velha me berrou nas alturas:

- Pardalito vadio! ... Que vais tu fazer a mil contos?... Ao ouvir semelhante quantia, o Nicolau teve uma tontura. E como era a sua vez de segurar a Menina Margarida, esta, que vinha para baixo, só parou na dureza do chão!

«Matámos a governanta ou quê?!»

 

               E NÃO ACORDO TÃO CEDO!

De novo o Sol resplandecia nas alturas e o povo fervilhava na alegria da feira. Eu, o Nicolau, o Biganga e a Menina Margarida, fomos os quatro tomar lugar no carrocel.

Feita uma longa viagem, os cavalinhos paravam diante da igreja em ruínas... Reconhecendo o local, encarei o meu patrão, ansioso por lhe ler no rosto o susto que tal lugar lhe merecia. Mas, qual não foi o meu espanto, ao deparar, ali à nossa beira, com o Polícia das fitas, perfilado e em continência, diante do Nicolau:

- Podem entrar à vontade porque desta vez a ciganagem não vos estorva!...

Entrámos pelo buraco da parede, e logo nos sentimos maravilhados: tínhamos sobre as nossas cabeças o tecto doirado da capela do palácio. A Menina Margarida, que ali em casa era alguém, exigiu a imediata limpeza dos nossos pés no capacho e que, se seguíssemos pelo corredor, encontraríamos o quarto da senhora...

Uma luz azul envolvia o compartimento. A Dona Fausta jazia sobre o leito, de pálpebras cerradas, e toda vestida de negro.

O tom cadavérico da figura parecia dizer-nos que a pobre senhora não pertencia já a este mundo...

- Querem ver que a velha não esperou por nós?! barafustou o Nicolau. -já é ter azar na porca da vida! ...

- Não pode ser! - ciciou o vendedor de sinas, persignando-se.

Cheio de curiosidade, eu trepei para a cama e gatinhei até à cabeceira do leito. Apurei o ouvido e tentei certificar-me se a minha amiguinha respirava...

De súbito, sinto, uma palmada nas nádegas e sobre o peito ossudo da falecida! ...

E é a sua voz a que eu oiço, distante e cansada:

- Filho: - eu não quis morrer sem te fazer feliz!... Está viva! Vivinha, a Dona Fausta! - E, numa alegria infantil, rolei numa cambalhota a todo o comprimento. do leito. E como não me tivesse esquecido do colchão que imitava a pernada da árvores, forcei-o aos solavancos para gozar um momento de baloiço...

Mas eis que chega a víbora e solta um berro medonho:

- Louvado seja Deus! Nem à hora da morte a senhora tem cuidado com a colcha!...

Anima-se o rosto da bondosa senhora e um dedinho seu pede para que eu me aproxime...

Fui. A dona do palácio estava intrigada: quem era aquele gordo, atrevido, que mantinha o chapéu na cabeça ali no quarto? ...

Informei-a:

- É o meu patrão. E o vendedor de sinas esclareceu o resto. - Que o Nicolau estava pelo ajuste de perfilhar-me... - Concluindo, com a gabarolice do costume:

- Como a senhora vê, eu não me poupei para desencantar o Zé Pardal!

Soerguendo-se, a Dona Fausta observou demoradamente o meu patrão, fazendo-lhe esta solene pergunta:

- Pelo visto o cavalheiro estima muito o Pardalito, não é verdade?

- Oh, minha senhora - retorquiu o Nicolau, num salamaleque - ele não é tratado como um filho, mas como um príncipe! ...

E o malandro, concluída esta frase, abraçou-me, encharcando-me a cara de cuspo.

Então o Biganga indagou à Menina Margarida por que razão não estava ali um Doutor de Leis...

Ouvindo a pergunta a dona do palácio exclamou que talvez não fosse preciso, pois entre pessoas de bem o papel selado não devia meter o bedelho! E, voltando-se para o

Nicolau, inquiriu:

- O senhor dá-me a sua palavra de honra que é um homem sério?

- Seriíssimo! - gritou o meu patrão, perfilando-se. Comovida, a bondosa senhora pediu então para que eu fosse abrir o armário...

Obedeci - e pasmei! As prateleiras estavam pejadas de sacos com dinheiro!

- Retira o oiro que puderes, meu filho! Tremiam-me os dedos contra a dureza das moedas. Fui arrecadando os sacos mais volumosos, mas ao chegar ao quinto cambaleei, exausto.

Mas alguém me socorreu... Era o Nicolau! Sorria-se, o safardana... E à medida que me aliviava o peso, fazia festinhas na preciosa mercadoria...

Obrigado, Seu Nicolau. De quê? Por esta ajuda... Tu mandas, meu filho!

Chegava de novo aos meus ouvidos o som da charanga da Feira. Lenta de início, subiu de intensidade no momento em que as paredes azuis do quarto ganhavam movimento...

O leito da Dona Fausta, o corpanzil do Biganga, a Menina Margarida, tudo corria à nossa volta como se eu e o Nicolau fôssemos o próprio eixo do carrocel.

Apertei os sacos contra o peito e gritei: - Que é isto, Seu Nicolau?! Para onde vamos!?

- Fecha os olhos! - berrou-me o patrão. - Não sejas apressado, rapazinho!

E não tive outro remédio senão confiar mais uma vez naquela besta.

 

               POSSO ABRIR OS OLHOS?

E como ele não me desse saída, berrei-lhe de novo:

- já posso, Seu Nicolau?

- Abre. Estávamos agora no pátio da olaria. Relinchava um cavalo e o velhadas do Paulino tentava atrelá-lo à carroça...

Pasmado por ter um morto-vivo diante de mim, a língua enrolou-se-me e fui incapaz de dizer: viva, Tio Paulino!

A cautela, o Nicolau besoirou-me ao ouvido: - Nada de falas sobre a filha! O velho desconhece a história dos meus chavelhos ... e agora uma coisa dessas não vinha nada a propósito! ...

Mexido, risonho, estava o mesmo boneco de trapos, o manhoso do oleiro. E falando pelos cotovelos, não tardou a indagar pela sorte da magana:

- Que tal a Miquelina? Ela ainda sonha de noite com homens? Vossemecês acasalam bem?

- Somos muito felizes! - cortou o Nicolau, sem mais bisbilhotice.

O velhadas entreabriu a boca desdentada e coçou-se, saudoso:

- Há que anos eu não ponho os olhos nessa cabra! ... Uma vez o cavalo atrelado, os dois manhosos silenciaram como que acanhados...

- Lindo animal! - disse, por fim, o Nicolau.

O bicho parecia até que entendia as pessoas: e relinchou de seguida, vaidoso pelo elogio.

Sacando o chapéu da cabeça, o Paulino deu-lhe voltas, atirando-o ao ar um ror de vezes. Tinha o que quer que fosse para dizer; o que não tardou:

- Sabes que não morri descansado?

- Ah, sim? - rosnou o gordo. - É verdade! Tenho cá um desgosto atravessado que me tem custado os olhos da cara! ...

Afagando o cavalo e sem parar de namorar a carroça, o Nicolau pregueou a cara, intrigado:

- Desabafe lá isso, Tio Paulino! Caramba! Estamos em família!

Percebendo que o outro o punha à vontade, o oleiro arregalou os olhinhos de pisco e entreabriu a boca nua de dentes:

- Gostava tanto de ver os meus netos!

- Que netos? - fez o patrão, espantado.

- Os filhos que vossemecês tiveram! ...

- Qual filhos! - vociferou o Nicolau: - Está enganado! Não tivemos nada disso!

Foi quanto bastou para o fuinha do Paulino arrebitar as orelhas e soltar um guincho de vitória que se prolongou na mais escarnecida chacota...

Apanhado em falso, o gordo encarou o oleiro, soltando um berro:

- Que há?! Mas já o velhadas, com cara de mafarrico, colara sobre a sua testa dois dedos abertos em haste, mofando com voz de corneta:

- Tá-tá-tari... Tá-tá-tarí... Então o Nicolau não esteve para cerimónias: esfregou um pé na terra e, alongando o cachaço, correu sobre o manhoso do velhadas, derrubando-o com uma forte marrada! ...

Ao acontecer isto, eu e Nicolau metemos o oiro dentro do carro - e abalámos.

Era uma noite parada e sem ruídos de insectos. Noite e solidão à nossa volta. Dir-se-ia que as rodas da carroça deslizavam sobre o tapete macio da Dona Fausta...

De quando em quando os meus pés tocavam nos sacos do dinheiro, que seguiam acamados no fundo do carro. A meu lado, fustigando o animal, o Nicolau sorria-me, cheio de meiguice. E as suas mãos não tardaram a acariciar-me, demoradas e macias...

- Dorme, meu filho.

Cansado da longa jornada, recostei-me no peito carnudo do meu protector.

Quanto tempo estive assim? - Horas? Dias?... De súbito, acordei! A carroça havia finalmente parado...

- Que há?

- Põe os olhos naquilo. Havíamos chegado ao largo da Feira, e adiante do meu nariz estava o barracão dos bonecos de luz...

- Chiba! - exclamei, maravilhado. - Que luxo! As paredes eram agora pintadas de cinzento e a cobertura de zinco dera lugar a vistosa telha vermelha...

O Nicolau convidou-me a descer da carroça para que eu visse a sala dentro, pois estava ainda mais bonita...

Entrei.

O tecto e as paredes haviam sido estucados e as cadeirinhas substituídas por assentos fixados ao chão.

- Como foi tudo isto possível?!

O meu espanto fê-lo sorrir. Depois, aliviou o palhinhas da cabeça e, preocupado, tentou desviar a conversa por momentos...

Mas voltou ao assunto:

- Não te zangas, pois não? ...

- Eu? De quê? Gaguejou:

- É cá uma coisa! ... Esta sua evasiva, intrigou-me; e tive um pressentimento: «Querem ver que ele gastou o meu dinheiro?!»

Lendo o susto na minha cara, o Nicolau apressou-se:

- Foram só três saquinhos de moedas... Que rico empate de capital! Tudo isto foi arrematado em segunda mão! ...

Aflito, corri à carroça para me certificar do número de sacos que restavam...

Mas o safardana segurara-me pelo casaco, puxando-me para junto do seu baú. Abriu-o e convidou-me com o maior descaramento:

- Põe aqui o resto do nosso dinheiro. E como houvesse espanto e hesitação da minha parte, berrou-me:

- Estás com medo de quê?! Coloca aí os sacos, não ouves!? - E espalmando a mão sobre o peito, inquiriu: Conheces algum mais teu amigo do que eu?...

- Claro que não... Mas largue-me! ...

- Patetinha! Não vês que estamos unidos para a vida e para a morte?...

- Estamos...?!

- És meu sócio e meu filho. Concluída esta afirmação, abraçou-me como se eu fosse uma mulher, enchendo-me a cara de beijos...

E deu-se, nesta ocasião, uma coisa espantosa: os sacos que restavam na carroça voaram por cima das nossas cabeças indo poisar no fundo do baú!!!

Sem opor a menor resistência à fuga do dinheiro, pressenti que algo de estranho se alojara no meu corpo... Era como que uma alma nova o que me estremecia agora de orgulho e me engrossava a voz:

- Seu Nicolau: vossemecê acha bem que um filho seu ande mal vestido e que faça trabalho de escravo? Se somos sócios... eu quero para já uma farpela janota e uns sapatos engraxados!...

O meu companheiro pesou esta exigência e acabou por anuir:

- Tens razão, Zé Pardal! Eu fiz as obras, mas esqueci-me dum mecânico para os bonecos de luz!...

Não podendo ocultar a surpreendente visão que tivera momentos antes, julguei oportuno revelá-la:

- Espere. Há bocado, quem andava por aí a fugir do Polícia das fitas era o Lopes...

Foi como se lhe falasse no diabo; o gordo enfureceu-se:

- Não quero ouvir o nome desse malandro! Já te esqueceste do que me fez esse filho da mãe?!

Que não me esquecera - retorqui-lhe. - Lembrava-me muito bem que esse mariola desinquietara a Miquelina e surripiara os seus haveres... Mas... aquele Lopes, que há momentos fugia diante do tal Polícia, não era bem o Lopes que lhe fizera a patifaria! ...

O Nicolau ficou abismado ao ouvir isto; e repetiu, fora de si:

- Que parvoíce é essa?! O Lopes não é o Lopes ... ?! Reuni então cuspo para tentar convencê-lo da minha descoberta... Mas como me ocorresse um exemplo, logo o citei:

- Oiça, Seu Nicolau: este infeliz que anda lá por fora esbaforido a fugir do Polícia, é um Lopes-que-ainda-não-nos-conhece!...

Nunca dissera tamanha fantasia a quem quer que fosse!

O meu sócio abriu a boca até às orelhas e só quando o espanto assentou... é que articulou palavra:

- Tens a certeza do que estás a dizer?

- Pela minha saúde! Desconfiado, fez-me olhos de carneiro mal morto. - Que uma coisa daquelas só acontecia nas fitas! Só nas fitas seria possível voltarmos atrás na vida de um homem!... E poisou a sua mão no meu ombro, tentando amedrontar-me:

- Se isso é aldrabice... eu racho-te de meio a meio! ... Resolvido a não prolongar por mais tempo a dúvida daquele estúpido, corri à porta e berrei para a escuridão do campo:

- óóóó... Lóóóó... pes!... Nem vivalma. Renovei o fôlego e gritei de novo:

- óóóó... Lóóóó... pés!... Esfarrapado e sujo de lama - ei-lo que o homenzinho surge na nossa frente...

Então o Nicolau avançou para o recém-chegado e perguntou-lhe cara a cara:

- Olha bem para mim! Sabes quem eu sou?

- Não senhor - ganiu o infeliz. - Tens a certeza?

- Já lhe disse que nunca o vi mais gordo! - rosnou o cara triste, mudando de tom.

Ante a falta de humildade do Lopes, vi jeito do meu sócio não se conter...   Mas amaciou na pergunta seguinte:

- Qual é o teu ofício?

- Electricista.

- Sabes trabalhar com aquela máquina?

O homenzinho caminhou para o estrado e foi observar a engenhoca . . .

De súbito, tive um estremecimento: Nos pés do Lopes estavam agora as botas do marido da dona Fausta que o obrigavam a caminhar como os aptos... ... eu vestia um belo fato de fazenda, camisa, gravata e... calçava sapatos de polimento...

E para maior espanto, zás!, salta-me um charuto aceso para a boca!...

Deslumbrado, bato palmas, sopro fumaças e exclamo: - Ponha os olhos nisto, Seu Nicolau! Olhe bem para esta elegância!...

- Com a breca! - volveu o meu ex-patrão, abismado. De polegares nas cavas do colete, gozei sem perda de tempo esta vidinha regalada... Fiz mesmo pequenas elevações de calcanhares só para ouvir o ranger do cabedal... E, como a vaidade me empurrasse para diante, aventurei-me a uma experiência singular... «Não adivinham?» Reparem bem: ir à porta da rua e gritar por socorro!...

E se pensei, melhor o fiz:

- óóóó... da guaaaar... da! Foi quanto bastou para me surdir, apressado e exausto, o Polícia das fitas... que, ao topar-me de farpela rica e de tranca na boca, se perfilou em continência:

- O Sr. Zé Pardal quer que eu prenda alguém? Não me contive ao ver a carinha obediente do «chui», esoltei uma provocante gargalhada...

Mas estoira um alvoroço no fundo do barracão!

E vejo, com surpresa, o Lopes a fugir para a rua...

E logo o Polícia lhe vai no encalço, berrando a plenos pulmões:

- Agarra! Agarra que é ladrão! ...

Aparvalhado, ponho os olhos no meu sócio, e vejo-o fulo. Parecia uma fera, o Nicolau, pois arremessou o palhinhas para o lado, cobrindo-me de insultos:

- Burro! Estúpido! Porque fizeste uma destas?! Retorqui-lhe, gaguinho de todo: - Queria ver se o Polícia já nã o me fazia mal...

- O minha besta, tínhamos cá o ladrão do Lopes e agora ficamos sem ele!...

E o Nicolau, sacando da ripa, bateu-me sem cerimónia:

- Toma! Toma! Anda, vai trabalhar com a máquina! ... Vai, meu burro!...

Acordei. Eu estava no chão e diante de mim havia um vulto que me dava pontapés. Era o Nicolau.

Ergui-me. Pelas frinchas das tábuas enxerguei uma claridade que descia do céu...

«E se eu fosse lá para fora?» Uma vassoira de vento arrastava quanto lixo havia pelo largo. Noite friorenta, aquela. Nem parecia Setembro. O sol ainda não rompera por detrás do casario da vila. Mas os galos, teimosos, anunciavam a madrugada.

Ergui a gola do casaco e encafuei as mãos nos bolsos, afastando-me da vizinhança do barracão. Eu voltara outra vez ao princípio: sem destino e com os caminhos livres para passear...

Tudo isto era triste, confuso, mas ao mesmo tempo incutia-me coragem, uma estranha coragem, para enfrentar os meus azares de vagabundo. E só de me lembrar da minha figura solitária a caminhar como os patos, sorri-me; sorri-me com mágoa mas ao mesmo tempo deslumbrado     ...

Era de que eu agora ali, na estrada, não era bem o

Zé Pardal, mas o Outro que, saindo, do lençol, caminhava em busca de mais aventuras.

 

                                                                                Romeu Correia  

 

                      

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