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Planeta Criança



Poesia & Contos Infantis

 

 

 


BORBOLETA / Sharon Sala
BORBOLETA / Sharon Sala

                                                                                                                                                   

                                                                                                                                                  

 

 

Biblioteca Virtual do Poeta Sem Limites

 

 

BORBOLETA

 

A vítima: Chaz Finelli, o fotógrafo de celebridades que conseguiu a foto mais sensacional de sua carreira... para logo após, ser brutalmente assassinado pelos segredos que sua câmera poderia expor.

A testemunha: China Brown, uma jovem cuja sorte já a tinha abandonado muito antes de encontrar-se no lugar errado, na hora errada... muito antes de receber um tiro a sangue frio, depois de haver testemunhado um assassinato.

O policial: Ben English, um policial durão, encarregado de um caso bizarro e, ao mesmo tempo, uma testemunha adorável, que está tornando esse caso muito especial.

China Brown está viva, mas foi por pouco. Ela não quer viver. Perdeu a única coisa que realmente importava: o bebê que carregava no ventre. Atraído por essa mulher frágil e encantadora, Ben English deve convencê-la a ajudar a encontrar o assassino, em um caso escandaloso, no qual os suspeitos circulam pelos mais altos escalões da política, da mídia e da sociedade de Dallas. E, à medida que o assassino se aproxima, ela deve depositar toda a sua confiança em um único homem, pois sua vida e seu coração dependem disso.

 

 

                   Detroit, Michigan 13 de julho de 1980

O suor cobria a testa de China Brown, de seis anos de idade, enquanto ela se mantinha agachada no chão de terra batida, debaixo da varanda da casa de sua mãe. Lá dentro, ela podia ouvir o mur­múrio de vozes e o ruído ocasional de passos, uma vez que sua mãe e seu padrasto, Clyde, entravam nos cômodos e deles saíam natural­mente. Cada vez que ouvia a voz de Clyde, China estremecia. Era apenas uma questão de tempo, para que ele descobrisse que sua xícara de café favorita se quebrara. Ela não fizera isso de propósito, mas ele não acreditaria que fora um acidente. Clyde não gostava dela, assim como ela não gostava dele, e parecia viver a procurar motivos para repreendê-la.

O tempo passou, e China estava prestes a cair no sono, quando ouviu um grito alto e furioso, seguido por passos pesados e apres­sados, que se aproximavam da porta.

— China Mae, entre aqui, agora mesmo! — Clyde ordenou.

China encolheu-se. Certamente, ele havia en­contrado a xícara. Pretendia esconder os cacos, mas ouvira a mãe chegando e, simplesmente, jogara tudo na lata de lixo, antes de disparar para fora da casa. Agora era tarde demais. Eles haviam encontrado a prova de seu erro.

— China... que Deus me ajude, pois vou sur­rá-la se não aparecer agora mesmo!

China prendeu a respiração. Aparecer dian­te de Clyde? De jeito nenhum! Ele a surraria independente de ela aparecer ou não. Por que apressar o inevitável?

Ela ouviu outros passos, mais leves e mais rápidos, seguidos pela voz ansiosa de sua mãe.

— Clyde? O que aconteceu?

Clyde Shubert virou-se, furioso, apontando o dedo em riste, quase tocando o rosto dela.

— Vou lhe contar o que aconteceu. Aquela sua filha idiota quebrou minha xícara de café favorita.

China ouviu a respiração nervosa da mãe e, por um momento, pensou em revelar seu esconderijo. Às vezes, Clyde desabafava a rai­va em sua mãe, também. O medo, porém, foi maior do que o sentimento de culpa, e ela permaneceu imóvel, de olhos fechados e re­zando como nunca rezara antes.

— Tenho certeza de que foi um acidente — Mae sugeriu, tentando aplacar a fúria de Cly­de, pousando a mão no braço dele.

Infelizmente, Clyde não estava disposto a se deixar acalmar. Desvencilhou-se da mão de Mae com um gesto rude, resmungou um palavrão e adiantou-se até os degraus da va­randa. China observou-lhe os movimentos, aterrorizada, vendo a poeira cair por entre as frestas na madeira e, então, piscou desespe­rada, quando alguns ciscos entraram em seus olhos. De repente seu nariz começou a coçar, e ela o apertou entre o polegar e o indicador, na tentativa de conter o espirro.

— China! Entre nesta casa imediatamente! — Clyde berrou.

China apertou o nariz com mais força, à medida que a vontade de espirrar se tomava maior.

— Por favor, Clyde... é só uma xícara.

O som que se seguiu foi tão abrupto quanto à fuga de China de dentro da casa, e ela sabia, sem a menor sombra de dúvida, que sua mãe acabara de ser esbofeteada. A vontade de es­pirrar desapareceu, dando lugar ao forte desejo de explodir em pratos. China não fez nenhuma das duas coisas, mas encolheu-se em posição fetal, desejando com ardor poder desaparecer.

— Hoje, foi uma xícara. Amanhã, será outra coisa qualquer. Você está sempre buscando desculpas para aquela cadelinha. É justamente esse o problema dela! — Clyde continuou berrando.

Apesar de apavorada, Mae manteve a ca­beça erguida. Não era a primeira vez que apa­nhava de Clyde. Certamente, não seria a úl­tima. Muitas vezes, Mae envergonhava-se por ter se deixado chegar àquele ponto, mas sim­plesmente não tinha coragem de partir.

— Não xingue minha filha. Ela não tem pro­blema nenhum. É apenas uma criança.

Clyde resmungou outro palavrão.

— Sim, uma das crianças mais magricelas e feias que já vi. Trate de mantê-la longe de mim, está me ouvindo?

China mordeu o lábio quando ouviu Clyde voltar para dentro da casa, com seus passos pesados. Feia? Ela era feia? Seus olhos se encheram de lágrimas. Não queria ser feia. Sua mente começou a girar em disparada. Seria por isso que não tinha amigos? Talvez os ga­rotos da rua a considerassem feia demais para brincar com eles...

— China, onde está você?

A voz da mãe sobressaltou-a, e ela quase respondeu. Porém, um senso de autopreservação a manteve calada. Alguns momentos de­pois, ela ouviu a mãe entrar na casa.

Assim que teve certeza de estar sozinha, virou-se de bruços e enterrou o rosto nos braços. Feia. China não sabia que era feia. Agora, era fácil entender por que Clyde não gostava dela.

Lágrimas quentes fizeram arderem os seus olhos, enquanto ela permanecia deitada de barriga para baixo, mantendo o rosto escon­dido na curva do braço. Seus ombros sacudiam com os soluços abafados.

O gato amarelo do vizinho apareceu no quintal e foi logo entrando debaixo da varanda, mas pa­rou subitamente, sibilando seu desprazer ao se deparar com China. Em circunstâncias normais, ela teria pulado e saído correndo, mas naquele dia, simplesmente não se importou. Nada mais importava, nem mesmo o risco de ser arranhada pelo velho e temperamental Scruffy.

O gato farejou-lhe os pés descalços, as per­nas, e foi subindo até chegar ao rosto dela. Então, cheirou e lambeu as lágrimas salgadas que escorriam pelas faces da menina.

China assustou-se e ergueu a cabeça depres­sa demais, batendo-a contra a parte inferior do assoalho da varanda. Scruffy voltou a sibilar, também assustado com o movimento brus­co, e desapareceu do outro lado da varanda.

China ficou imóvel, prendendo a respiração, certa de que o ruído da batida de sua cabeça contra a madeira havia revelado seu escon­derijo. Mas como ninguém saiu à sua procura, começou a relaxar.

Aparentemente, Scruffy já a perdoara pelo susto, pois perseguia animado, um gafanhoto que pousara na grama. O gato atacou e, dis­traída, China observou o inseto desaparecer pela garganta de Scruffy. O gato logo se afas­tou, em busca de uma presa maior, deixando China sozinha e mais apavorada a cada mi­nuto que passava. Mais cedo ou mais tarde, o sol sumiria no horizonte, e quando a noite chegasse, ela teria de entrar em casa. Era um fato triste, porém verdadeiro, que ela tinha mais medo da escuridão do que de Clyde.

Voltou a soluçar, mas logo secou as lágrimas e o nariz, e começou a se arrastar, centímetro a centímetro, na direção do quintal. Quando alcançava a saída, uma lagarta caiu de uma folha de grama, e pôs-se a rastejar lentamente para a sombra que havia debaixo da varanda. China hesitou e, então, apoiou o queixo nas mãos e ficou observando, fascinada, os movi­mentos ondulantes do corpo minúsculo, que parecia deslocar-se entre pequenos gravetos e pedrinhas, sem perturbar sequer um grão de areia. Era tão pequena! Se China não hou­vesse ficado face a face com o animalzinho, jamais saberia que ele estava ali.

Enquanto observava, um pensamento ocor­reu-lhe. Se conseguisse se tomar tão pequena e insignificante quanto o insetinho, talvez Cly­de não voltasse a atormentá-la. E se ela era mesmo tão feia quanto ele dissera, ser invi­sível a impediria de ofender as pessoas com sua presença, o que seria, de fato, uma pro­teção. A idéia parecia muito boa, e China che­gou a fechar os olhos e imaginar-se minúscula. Infelizmente, quando voltou a abrir os olhos, continuava sendo a mesma China, e a lagarta já fora embora. Finalmente, saiu debaixo da varanda e começou a espalmar as roupas, a fim de livrar-se da sujeira. Algumas coisas, simplesmente, não tinham de ser.

Tratou de se manter fora das vistas da mãe e do padrasto durante o resto da tarde. Quan­do as sombras no quintal começaram a se alon­gar e o céu foi escurecendo, ela atravessou o gramado e foi se sentar nos degraus da va­randa, adiando tanto quanto podia o confronto com a ira de Clyde. De repente as dobradiças da porta de tela atrás dela rangeram, e ela se virou de um pulo, os olhos arregalados, já se preparando para fugir. Era sua mãe.

— China Mae, onde esteve todo esse tempo? — Mae perguntou.

A menina deu de ombros e baixou os olhos para o chão, incapaz de pensar em uma res­posta convincente.

— Bem, entre e vá se lavar — a mãe falou com voz suave.

— Suas roupas estão imundas. O que esteve fazendo?

— Nada — China respondeu, passando pela mãe rapidamente, com seus passos silenciosos.

Mae estendeu a mão, tentando afagar os cabelos despenteados da filha, mas China foi mais rápida, esquivando-se ao contato.

Quando fechou a porta, Mae lançou um olhar nervoso na direção da sala, antes de se dirigir à cozinha. Clyde prestava atenção ao noticiário, sem se dar conta da presença de China. Só lhe restava rezar para que o bolo de carne e o purê de batata que ela havia preparado o agradassem o bastante, para que ele não começasse outro escândalo por causa da maldita xícara quebrada.

O fato de continuar vivendo com Clyde pe­sava na consciência de Mae. Uma coisa era ela mesma tolerar a violência de Clyde, mas ela se envergonhava de, ao ficar junto dele, colocar a filha em perigo também. No entanto, a idéia de ir embora era ainda mais assustadora. Mae não tinha nenhum talento especial, e tivera de in­terromper os estudos cedo. Por isso, nunca con­tara com boas escolhas, no que dizia respeito a trabalho. As duas precisavam do salário de Clyde para manter um teto decente sobre suas cabeças.

Uma vez no banheiro, China retirou o banquinho de debaixo da pia e subiu nele, a fim de alcançar a torneira. O encanamento velho rangeu, quando a água se movimentou, e China encolheu-se, certa de que Clyde entraria a qual­quer momento, para castigá-la. Em sua pressa de terminar, derrubou água no vestido, sujo de terra. Aflita, ela passou as mãos molhadas sobre o tecido, o que piorou ainda mais a situação. Então, teve de lavar as mãos de novo, para lim­pá-las. Quando entrou na cozinha, suas pernas tremiam e seu estômago dava voltas. Sentou-se em sua cadeira, sem erguer os olhos, mas sabia que Clyde estava lá, observando-a, esperando que ela cometesse outro erro.

— Pensei que houvesse dito a ela para se lavar — ele resmungou.

China abaixou ainda mais a cabeça, enquan­to Mae virava-se, nervosa, batendo com a co­lher na travessa de purê de batata. Ela viu as manchas no rosto e no vestido da filha e, também, a postura rígida dos ombros de Chi­na. Suspirou.

— Ela está bem, assim. Quando terminar o jantar, tomará um banho.

Clyde resmungou algo incompreensível, sa­tisfeito por ter sido considerado com razão.

Mae colocou a última travessa na mesa, sen­tou-se e arriscou um sorriso para Clyde.

— Fiz bolo de carne. Ele revirou os olhos.

— Eu sei. Não sou cego!

Mae franziu o cenho e, então, deu de ombros. Em sua maneira de ver, fizera uma boa ten­tativa de apaziguar o ambiente. Se ele não queria aceitar tal gesto, o problema era dele, não dela. Apanhou o prato de China.

— Mamãe vai fazer o seu prato, querida. Está com fome?

Pela primeira vez China atreveu-se a erguer os olhos. Os aromas que a cercavam eram va­riados e apetitosos, e se ela não tivesse tanta certeza de que Clyde ainda pretendia vingar-se, teria comido com prazer.

Suspirou, antes de fitar a mãe com olhar sombrio e ansioso.

— Não muita — sussurrou.

— Fale alto, idiota! — Clyde berrou, batendo com o cabo da faca na mesa.

China encolheu-se e gemeu baixinho, lan­çando um olhar desesperado para Mae.

— Ouvi perfeitamente o que ela disse — a mãe protestou.

— Sirva-se e, por favor, passe o bolo de carne.

Clyde apanhou a travessa e, com ar de de­safio, despejou metade das fatias em seu pra­to, antes de devolvê-la à mesa com gestos rudes. Então, estendeu o braço por cima do prato de China para pegar o purê de batata, sem dar importância ao fato de que seu cotovelo quase acertou o nariz dela. Ela começou a des­lizar da cadeira, decidida a fugir depressa, mas ele agarrou seu braço e sacudiu-a.

— Sente-se — ordenou, antes de servir uma grande porção de purê no prato dela. — Não vai sair dessa cadeira enquanto não comer tudo o que há no seu prato.

Mae apanhou o prato da filha.

— Clyde, você pôs comida demais. Nem eu conseguiria comer tudo isso.

Clyde esbofeteou Mae com as costas da mão, acertando a lateral do queixo dela com seu anel. O corte começou a sangrar imediatamente.

China emitiu um som assustado quando sua mãe gritou. Então, prendeu a respira­ção, com medo de que Clyde ficasse ainda mais furioso com sua reação. Mais uma vez, pensou na pequena lagarta e desejou poder, simplesmente, desaparecer.

Clyde pronunciou um palavrão, antes de apanhar a travessa de espinafre.

— Tem algo a me dizer, cachorrinha? China sacudiu a cabeça com veemência, os olhos arregalados de medo.

— Foi o que pensei — ele resmungou, antes de colocar uma colherada da verdura no prato dela, enquanto Mae virava-se para estancar o sangue do queixo.

Clyde apanhou o garfo de China e pratica­mente forçou-a a segurá-lo.

— Coma!

China olhou para a Mae, em busca de ajuda, o que o deixou ainda mais zangado.

— Sua mãe não vai ajudar você desta vez — ele advertiu.

— Coma, ou juro que vou sur­rá-la até não poder mais se sentar.

Mae virou-se, furiosa.

— Não vai pôr as mãos em minha filha! Convencida de que se Clyde batesse de novo em sua mãe ele a mataria, China olhou para ele, nervosa.

— Tudo bem, mamãe — falou depressa.

— Vou comer.

Naquele momento, observando a filha, Mae deu-se conta de que a menina de seis anos tinha mais coragem que ela, e sentiu-se pro­fundamente envergonhada.

China olhou para o prato e, depois, para Clyde, antes de apanhar uma garfada de purê. O silêncio tomou conta da cozinha, quando ela levou a comida aos lábios e fechou os olhos.

De repente, a parte posterior de sua cabeça explodiu de dor, pois Clyde a atingira com o punho fechado, empurrando-lhe o rosto para o prato cheio de purê e espinafre. Ela se en­gasgou e derrubou o garfo no chão. Em pânico, pôs-se a retirar purê dos olhos e do nariz, sa­bendo que estar tão perto do inimigo, sem poder enxergar, poderia ser fatal.

— Veja só o que você vez, cadelinha horrorosa! — ele praguejou, e arrancou-a da cadeira.

— Não! — Mae gritou, atirando-se sobre eles, mas não foi capaz de impedir que ele arrastasse China da cozinha.

A menina soluçava certa de que ia morrer.

— Não quebrei sua xícara de propósito! Não quebrei sua xícara de propósito!

Clyde estava tão enfurecido que parecia não ouvi-la. Abriu a porta do banheiro com um murro e enfiou China debaixo do chuveiro.

Mae esmurrava-lhe as costas, implorando para que deixasse sua filhinha em paz, mas ele simplesmente ignorou suas súplicas e abriu a água fria.

Desesperada, China gritou e esperneou, pe­dindo a Clyde para parar, e, ao fazê-lo, chu­tou-o acidentalmente no olho. Com um rugido assustador, ele a agarrou pelo pescoço e virou sua cabeça para os jatos de água gelada.

— Vou lhe ensinar a não mexer no que me pertence — ele berrou.

— Vou lavar essa imundície do seu rosto, nem que seja a última coisa que eu faça!

Os dedos dele apertaram-lhe o pescoço, até o mundo dela começar a girar e sua visão escu­recer perigosamente. A água penetrava-lhe os olhos e o nariz, misturando-se às lágrimas e ao purê de batata. Alternando soluços e tentativas desesperadas de respirar, China teve um vis­lumbre da silhueta de sua mãe empunhando o banquinho acima da própria cabeça.

Então, tudo mergulhou na escuridão.

 

                   Dallas, Texas

                   11 de dezembro, Época Atual.

O bebê chutou o ventre de China, quando ela se abaixou para apa­nhar a sacola. Foi um lembrete assustador de que ela não era a única pessoa prestes a se tornar uma sem-teto. George Wayne, seu se­nhorio, parecia nervoso atrás dela, parado na porta do apartamento, observando-a reunir seus poucos pertences.

— Não é minha culpa — murmurou.

— Re­gras são regras, e você já esta três meses atra­sada com o aluguel.

China virou-se, segurando a sacola em uma das mãos, mantendo a cabeça erguida.

— Se houvesse me contado antes que Tommy não estava lhe dando o dinheiro do aluguel, eu não teria continuado a entregar a quantia a ele. Eu mesma teria pago, pessoalmente.

George Wayne franziu o cenho.

— Isso é o que você diz, mas não tem como provar. Até onde sei vocês dois gastaram todo o dinheiro e, quando tudo acabou, ele deixou você.

China sentiu um aperto no peito. O fato de que Tommy Fairheart, pai da criança que ela carregava no ventre, havia desaparecido dias an­tes, era secundário diante do fato de que ele havia roubado todo o dinheiro que ela possuía, antes de partir. E, ainda, ele ficara com o dinheiro do aluguel dos últimos três meses, em vez de pagar George Wayne, como China acreditara.

Ela lançou um olhar de desprezo para Geor­ge, puxou o casaco até onde ele podia chegar, sobre o ventre protuberante, e ajeitou a alça da sacola no ombro. De cabeça erguida, passou por George com passos longos e ligeiramente desajeitados, rezando para conseguir estar fora das vistas dele quando não conseguisse mais se conter e começasse a chorar.

A caminhada do terceiro andar, onde ficava o apartamento, até a rua era longa. China cobriu o trajeto em tempo recorde. Porém, a atitude de desafio dissipou-se, quando ela abriu a porta da rua e foi atingida em cheio pelo vento gelado do inverno Texano.

Mais uma vez, o bebê chutou, e depois mu­dou de posição. China pousou uma das mãos sobre o ventre e, com a outra, mudou a alça da sacola sobre o ombro para uma posição mais confortável. Seus lábios se contorceram em uma expressão de amargura, ao mesmo tempo que seus olhos se enchiam de lágrimas. Sua voz, porém, soou determinada:

— Não se preocupe bebê. Mamãe vai cuidar de você.

Sem saber ao certo como faria isso, começou a caminhar. Seu plano era encontrar uma igreja. Havia visto várias delas no trajeto per­corrido pelo ônibus que ela pegava todos os dias para ir ao trabalho. Talvez alguém em uma delas pudesse lhe dar abrigo temporário. China tinha um emprego de garçonete, em uma cadeia de churrascarias. O salário não era grande coisa, mas as gorjetas eram ótimas. Só precisava de um lugar onde pudesse ficar até conseguir juntar dinheiro suficiente para alugar outro apartamento.

Nos primeiros trinta minutos, suas esperan­ças eram grandes, mas depois de ter caminhado por quase dois quilômetros, sem avistar nenhum sinal de igreja, ela começou a ficar nervosa. Seus pés estavam tão frios que ela já não sentia os dedos. Embora houvesse se vestido confortavelmente, com calça e blusão de moletom, além de dois pares de meias, a falta de luvas e o vento gelado de encontro à sua pele começavam a exercer efeitos negativos. E, como se isso não fosse o bastante, a neve começou a cair.

Partículas minúsculas, que mais pareciam gelo que neve, feriram-lhe os olhos. Ela os estreitou, até quase fechá-los, e abaixou a ca­beça, a fim de se proteger contra uma cruel lufada de vento, que abriu seu casaco. Com mãos trêmulas, voltou a fechá-lo sobre o ventre, como se tentasse proteger a criança que carregava.

Um caminhão de lixo passou, fazendo grande ruído, quando ela parou em uma esquina, ten­tando se recompor. China disse a si mesma que a dor na parte inferior das costas não era nada. Os edifícios apresentavam fachadas festivas, to­dos decorados para o Natal, mas ela ainda não vira nenhuma igreja. Enquanto esperava que o semáforo abrisse para pedestres, não pôde dei­xar de lamentar o fato de não ter prestado maior atenção ao trajeto do ônibus, em vez de aplicar a maquiagem e pentear os cabelos quando es­tava a caminho do trabalho.

— Tem de haver uma igreja em algum lugar, por aqui — disse para si mesma, dirigindo-se a uma floricultura, do outro lado da rua, para pedir informações.

Quando entrou na Red River Floral e fe­chou a porta atrás de si, os acordes de uma canção natalina enchiam o ambiente. China apoiou-se na porta para descansar, deixando o calor envolvê-la.

— Olá, querida. Em que posso ajudá-la? China focalizou a atenção na mulher que se aproximou. Era alta e corpulenta, e tinha os cabelos mais vermelhos que ela já vira. Foi somente depois de alguns segundos que China se deu conta de que boa parte da estatura da mulher devia-se ao penteado exótico.

— Eu... Sim, espero que sim — respondeu.

— Estou procurando por uma igreja.

A ruiva sorriu.

— Está pensando em se converter, ou...

— Não — China replicou, sorrindo.

— Estou um tanto perdida, e achei que em uma igreja poderia encontrar alguém que possa me ajudar. Vi várias, quando ia para o trabalho, de ônibus, mas agora não consigo encontrar nenhuma.

— Você costuma pegar ônibus?

— Sim, todos os dias.

— Então por que não pegou o ônibus hoje, para encontrar uma das igrejas que viu?

China desviou o olhar. Admitir que não ti­nha um centavo sequer não era algo que ela faria com facilidade, especialmente para uma estranha.

— Perdi o ônibus — mentiu.

— Pode me ajudar?

O sorriso da ruiva adquiriu um certo ar de compaixão.

— Claro! Que tal pegarmos à lista telefônica e darmos uma olhada?

China sorriu.

— Seria ótimo — murmurou com voz suave, e, sem se dar conta do que fazia, afagou o ventre, enquanto seguia a mulher até os fundos da loja.

Quando consultavam as Páginas Amarelas, uma sineta tocou, anunciando a chegada de outro freguês. Dessa vez, porém, tratava-se de um freguês de verdade.

— Com licença — a dona da floricultura disse, adiantando-se para a cliente, deixando China sozinha no balcão, ela examinou as listas, uma a uma, ten­tando compreender onde estava com relação às igrejas mais próximas. Aquela altura, não se encontrava em posição de poder escolher denominações. Tudo o que queria era um pou­co de caridade. Ainda verificava os endereços quando a florista e a freguesa aproximaram-se do balcão.

— Já encontrou o que está procurando? — a ruiva perguntou.

China deu de ombros.

— Não tenho certeza. Alguma destas igrejas fica perto daqui?

A freguesa, uma mulher alta e bem vestida, de trinta e poucos anos, lançou um olhar im­paciente para China.

— Estou com pressa — disse, encarando a florista.

— Sim, sim, desculpe-me — a ruiva replicou, antes de começar a anotar a encomenda.

— Com licença — a mulher falou em tom antipático, empurrando China com o cotovelo para colocar a bolsa sobre o balcão.

Em seguida, lançou um olhar de desprezo para a sacola de China, que se encontrava no chão, entre as duas.

Tal atitude foi mais um golpe no orgulho de China, e, para uma mulher que já recebera diversos golpes contra sua auto-estima, em um só dia, aquele foi à gota d'água.

China apanhou a mala e dirigiu-se para a porta, sem conseguir o endereço que procurava.

— Espere querida! — a ruiva chamou.

— Vou ajudá-la em um minuto.

China parou, virou-se e falou:

— Muito obrigada por ter sido tão gentil. Uma rajada de vendo frio, carregando flocos de neve e partículas de gelo, atingiram-na em cheio, lembrando-a por que fora procurar abri­go na floricultura. Perdera um tempo precioso e não sabia mais agora do que quando entrara na loja. Hesitou, pensando em voltar para lá, mas foi então que se deparou com o próprio reflexo na vitrine da loja. Seus cabelos esta­vam despenteados e embaraçados, suas faces apresentavam-se vermelhas por causa do frio. Sua aparência geral era de uma mendiga. Com a sacola pendurada no ombro, parecia os sem-teto que via com freqüência caminhando pelas ruas. E, naquele momento, ela se deu conta da realidade dura de sua situação.

China não parecia uma sem-teto. Havia se tornado uma.

 

Quando o sol começou a se pôr, China viu-se obrigada a aceitar a verdade sobre o orgulho sempre preceder uma queda. Se não houvesse saído da floricultura antes de obter a informação de que precisava, não estaria naquela enrascada, agora. Depois de tal constatação, a autopiedade conduziu seus pensamentos em outra direção.

Se sua mãe ainda estivesse viva, China ja­mais teria se envolvido com um homem como Tommy Fairheart. Sua mãe sempre tivera o dom de enxergar além das palavras bonitas, sabendo o que as pessoas carregavam no coração. Mae abandonara Clyde Shubert no dia em que ele quase afogara China no chuveiro. China ainda se lembrava da mãe pedindo des­culpas repetidas vezes, enquanto as duas se dirigiam à estação rodoviária. A determinação no rosto de Mae era forte, e sua fé nos homens estava definitivamente acabada. Ela não teria se deixado enganar pelas belas palavras de Tommy, como China fizera.

Seus pensamentos voltaram-se para Tommy. Quando o conhecera, ele havia se mostrado tão terno... No início, não havia nada que ele não fizesse por ela. China não po­deria ter certeza de que teria dado ouvidos à mãe, ao menos não naquela ocasião. Sentia-se pronta para o amor, para começar sua própria vida. Por isso estivera tão disposta a acreditar que a beleza máscula de Tommy era um reflexo de sua alma. Evidentemente, havia se enganado.

O farol para pedestres abriu, mas quando China pisou no asfalto, um carro virou a es­quina em alta velocidade, derrapando perigo­samente na direção dela, uma vez que a pista coberta de neve apresentava-se escorregadia. Ela pulou de volta para a calçada, bem a tem­po de não ser atropelada. Mesmo assim, os pneus atiraram uma mistura de areia, sal e neve sobre suas pernas, molhando sua calça.

— Cretino! — ela gritou.

O volume da barriga crescida limitava seus movimentos, e China gemeu ao se abaixar para tentar limpar a sujeira. Dessa vez, quando fi­nalmente atravessou a rua, o fez com passos apressados, emitindo um suspiro de alívio ao se ver na calçada, do outro lado. Então, voltou a caminhar normalmente. Alguns quarteirões atrás, alguém havia lhe falado de uma igreja da região que nunca fechava, e ela tinha de encontrar o lugar depressa. Suas costas lateja­vam, ela sentia cólicas no ventre e, agora, suas mãos estavam tão geladas quanto seus pés.

As ruas eram bem iluminadas, e os bares pelos quais ela passava pareciam ter um mo­vimento excelente. O som das músicas natalinas parecia estar em todos os lugares, fosse nos carros que passavam pela rua, fosse nos diversos tipos de estabelecimentos comerciais. Várias vezes, China teve de se desviar de gru­pos animados, reunidos diante de portas, para seguir adiante. O cheiro de comida provoca­va-lhe náuseas, mas ela sabia que precisava comer alguma coisa.

Alguns quarteirões à frente, o nível das pessoas começou a cair, assim como a qualidade das lojas e bares. China apressou o passo, à medida que foi passando por luminosos cada vez mais estranhos e portas mais escuras e sombrias. Quando deu por si, estava no bairro de Oakcliff, um lugar conhecido como o lado sul ensolarado. Infelizmente, não havia nada do ensolarado ali, e ela preferiria estar em qualquer outro lugar.

Os letreiros anunciavam dançarinas fazen­do topless, outros nuas, strip-tease, enfim, aquele mais parecia ser o lado negro da região sul. Quando se deparou com dois homens sain­do de um bar, de braços dados, China teve certeza de que não deveria estar ali. Já passara por bairros assim, mas sempre dentro de um carro ou de um ônibus. Nunca antes sua vulnerabilidade estivera tão evidente. E, justamente quando ela dizia a si mesma que nada poderia ser pior do que aquilo, três jo­vens emergiram de um beco escuro. Um deles agarrou-a pelo braço e começou a puxá-la para a escuridão.

— Venha comigo, boneca... Vou lhe mostrar como é fácil ficar quentinha.

— Solte-me! — ela gritou, chutando-lhe as canelas e, ao mesmo tempo, libertando-se e começando a correr.

Ele praguejou de dor e saiu no encalço de China, alcançando-a poucos passos adiante.

China voltou a gritar, desesperada.

A fúria era nítida no semblante do jovem, e ele ergueu uma das mãos para silenciá-la, mas um de seus companheiros falou:

— Solte-a, Ruiz. Ela está grávida.

O sujeito chamado Ruiz soltou uma risada.

— Vou gostar mais ainda — afirmou, segurando-a pelos cabelos.

O outro se aproximou e tomou o braço do amigo em um aperto feroz. Enquanto os dois fitavam-se nos olhos, ficou claro para China que não era apenas a luta física que se de­senrolava entre eles. A atitude dos dois tinha mais a ver com um desafio pelo comando do que com fazer o que era certo.

De repente a pressão em seu couro cabe­ludo cessou. Ruiz a soltara. Estava livre. Sem perder tempo, China abaixou-se para apanhar a sacola que deixara cair no chão, mas o ho­mem que havia intercedido em seu favor foi mais rápido. O olhar que ele lhe lançou a fez recuar um passo.

Miguel Hernandez estudou-a por um longo momento, parecendo ver além das feições judiadas pelo vento gelado. Então, avaliou o casaco, dois números menor que o ventre de China.

Ela prendeu a respiração, apreensiva diante da possibilidade de que seu salvador fosse atacá-la também.

— Onde está o seu homem?

A pergunta foi inesperada, e atingiu o co­ração de China com toda força.

— Não tenho um homem — ela respondeu. O jovem apontou para seu ventre.

— Onde está o homem que pôs esse bebê na sua barriga? O lábio inferior de China começou a tremer.

— Não sei. Ele roubou o meu dinheiro e sumiu, há alguns dias.

Os olhos escuros do jovem exibiram o brilho da fúria.

— O que você está fazendo aqui? Este bairro não é seguro para uma chica como você.

— Estou procurando por uma igreja, e me disseram que há uma que nunca fecha, aqui perto.

— Você não tem onde morar.

Não foi uma pergunta, mas sim uma afir­mação. Mais uma vez o coração de China re­cebeu um golpe duro. Ela tentou falar, mas as palavras simplesmente não atravessaram sua garganta. Descobriu-se a fitar o rapaz nos olhos, sem vê-lo com clareza por causa das lágrimas que embaçavam sua visão.

— Ah, não chore — ele murmurou subita­mente suave.

— Venha. — Conduziu-a de vol­ta à calçada, longe da escuridão do beco e, então, apontou para frente.

— Está vendo? Faltam apenas alguns quarteirões. Já está quase chegando, mãezinha.

Os olhos de China seguiram a direção em que ele apontava, e ela avistou uma cruz ilu­minada, brilhando contra o céu de Dallas. Er­guia-se muito acima dos luminosos de néon debochados, como uma referência para os per­didos. China começou a tremer. O que foi ape­nas uma reação normal à descarga de adre­nalina, mas que a deixou sem fôlego e fraca.

— Estou vendo — murmurou, lançando um olhar nervoso para o seu salvador.

Ele sorriu.

— Quando chegar lá, diga ao padre Doyle que Miguel mandou dizer que você tem de ser bem tratada.

— Seu nome é Miguel?

Ele deu de ombros, como se só então se lembrasse de que, nas ruas, identificar-se não era uma prática das mais sensatas.

China, porém, não se sentiu insultada pela ausência de resposta. Lançou um olhar para os dois jovens que haviam recuado de volta para as sombras do beco e, então, voltou a encará-lo. Algo naqueles olhos escuros lhe dizia que ele não era um caso perdido como os outros. O bom senso advertiu-a para continuar sua jornada, mas ela se sentiu culpada por, simplesmente, afastar-se. Com um gesto hesitante, tocou o braço dele, sentindo-lhe a força através do casaco pesado.

— Obrigada, Miguel. Nem sei como agradecê-lo.

Um músculo moveu-se junto ao maxilar dele, ao mesmo tempo em que seus olhos exibiam um brilho perigoso.

— Pode me agradecer ficando longe das ruas disse, entregando-lhe a sacola e, então, voltando para o beco.

China ouviu uma discussão acalorada, se­guida pelo som de passos se afastando. Com um último olhar nervoso por cima do ombro, retomou sua caminhada, cuidadosa com a calçada coberta de neve escorregadia e com o bebê que levava no ventre.

Percorreu dois quarteirões, mantendo os olhos fixos na cruz acima da igreja. O símbolo humilde prometia calor e segurança e, se ela tivesse sorte, um pouco de comida, também. Por estar tão concentrada em seu destino, esqueceu-se de prestar atenção ao que havia em seu caminho.

Caminhava rapidamente quando colidiu em cheio com uma loira alta e elegante, que vestia um longo casaco de pele. A sacola escorregou de seu ombro e caiu na calçada, enquanto ela se esforçava para recuperar o equilíbrio e evi­tar uma queda. Duas mãos firmes e fortes agarraram seus ombros, amparando-a, impedindo-á de cair.

— Tenha cuidado querida — a loira adver­tiu.

— Não vá se machucar, ou machucar o bebê que está aí dentro.

— Sinto muito. Eu não a vi — China murmurou.

A mulher exibiu um sorriso maroto e, quan­do falou, sua voz carregava um tom de riso.

— Percebi — declarou, enquanto tirava flo­cos de neve do casaco.

China ajeitou o casaco e abaixou-se para apa­nhar a sacola. Ao fazê-lo, ouviu alguém gritar e a mulher ao seu lado começar a praguejar. Sobressaltada com o som de alguém correndo na neve, virou-se assustada. Uma série de luzes começou a piscar e ela gritou. Demorou alguns segundos para se dar conta de que alguém es­tava apenas tirando fotografias.

Para seu horror, a loira retirou uma arma da bolsa e disparou três tiros, em rápida sucessão. O homem com a máquina fotográfica cambaleou e, então, virou-se, tentando fugir. O último tiro atingiu-o no meio das costas. Ele caiu de bruços na neve, que logo se tomou vermelha.

China olhou incrédula, para a loira com a arma e, depois, para o homem caído. Sua men­te repetia desesperada, que ela devia fugir dali, mas seus pés não obedeciam aos seus comandos. Apenas suas mãos se moveram, er­guendo-se até a altura da boca, enquanto ela se esforçava para não gritar. Tinha de haver uma explicação lógica para a cena que ela aca­bara de testemunhar. Certamente, o homem pretendia atacá-las. Sim, fora isso. A loira ha­via apenas se defendido.

Mas quando a mulher se abaixou e apanhou a câmera que o homem levava pendurada no pescoço, China concluiu que o argumento de legítima defesa jamais seria aceito. Fotografias podiam incriminar, mas não matavam ninguém. Hesitante, recuou um passo, mas quando se moveu, a loira ergueu os olhos, com expressão do mais puro ódio. Naquele momento, China soube que o perigo que enfrentara com os três jovens do beco não fora nada perto do que estava diante dela agora.

— Por favor — sussurrou, sem perceber que pousava as mãos sobre o ventre.

— Droga! — a loira resmungou, lançando um último olhar para a barriga de China, antes de apontar a arma.

— Não! — China implorou, recuando mais um pouco.

— Não contarei a ninguém. Não a conheço. Não conheço esse homem. Não vou dizer nada.

— Não posso correr o risco, querida — a loira retrucou.

— Mas não é nada pessoal. — China não sentiu o primeiro tiro, embora fosse derrubada no chão pelo impacto. A segunda bala atingiu-a no ombro, quando ela caía, rasgando-lhe a carne e ricocheteando na calçada, depois de atravessar seu corpo. A dor foi abafada pela aproximação implacável da inconsciência. China ainda teve alguns mo­mentos de lucidez, durante os quais reconhe­ceu o céu negro e viu milhares e milhares de flocos de neve caindo na sua direção, exata­mente como a água do chuveiro, tantos anos antes, quando Clyde tentara afogá-la. Sua ca­beça rolou para a direita, quando uma onda de fraqueza a envolveu. Pelo canto do olho, viu a silhueta da cruz e, naquele momento, soube que ia morrer. Segundos depois, a cruz começou a desaparecer. Uma única lágrima es­correu de seus olhos e, então, tudo mergulhou em um silêncio tão profundo, que ela acreditou poder ouvir o impacto dos flocos de neve caindo sobre seu rosto. Na distância, ouviu o som de passos apressados, mas era tarde demais.

A escuridão estava lá, esperando por ela.

China estava cansada, tão cansada... e sen­tia tanto frio...

Seus olhos se abriram uma vez, duas e, en­tão, fecharam-se.

Um leve suspiro escapou de seus lábios e, então, tudo se acabou.

O ar era quente... sem a força da gravidade. China avançava sem caminhar... flutuando na direção de um som suave e agradável... quando ouviu uma criança chamar por mamãe, gritando para que ela esperasse.

Ela parou e virou-se. Uma garotinha de cabelos negros, que parecia não ter mais de três ou quatro anos, corria na sua direção, rindo alto. China sorriu. Sua filha. Claro. O que estivera pensando? Não podia partir sem ela. As duas deram as mãos, como se houvessem feito isso incontáveis vezes antes, e retomaram sua jornada para o som distante e rítmico. Não pareceu estranho o fato de a criança ao lado dela ser mais velha do que aquela que ela carregava no ventre. Era sua filha, assim mesmo.

Caminharam e conversaram, apontando para um passarinho pousado em uma árvore, parando para inspirar o perfume das flores em um canteiro próximo ao seu caminho. Quanto mais caminhavam, mais alto o som se tornava. Logo, China pôde distinguir o som de vozes e, pouco depois, compreendeu o que diziam.

Seja bem-vinda... seja bem-vinda. Viemos para levá-la para casa.

Invadida por profunda alegria, China abai­xou se e tomou a filha nos braços, subitamente ansiosa para alcançar as vozes. Os cabelos da menina eram macios, acariciando-lhe a face como se fossem fios de seda. Então, as duas estavam em meio à multidão.

— China Mae, estou tão feliz por vê-la, minha filha.

China começou a rir alto. Era sua mãe.

— Viemos para casa, mamãe. Estamos em casa — China declarou.

O murmúrio da multidão recomeçou mais alto desta vez, acompanhado por uma luz que se tornava mais e mais intensa. China observou a luz, fascinada, reconhecendo em silêncio a sua fonte. Sentiu-se encher de amor quando ergueu o rosto na direção da luz. Então, tudo começou a mudar. Sua filha estava em seus braços e, no momento seguinte, não estava mais. Assustada, ela viu a mãe levar a menina embora.

— Espere — China gritou.

— Espere por mim!

Mas a luz bloqueava seu caminho, e ela não podia atravessá-la.

— Não! — China implorou.

— Não me deixe aqui!

Mae parou e virou-se, equilibrando a neta na curva do quadril com naturalidade.

— Não é a sua hora, China Mae. Você deve voltar.

China não teve tempo para protestar. Em um momento estava diante da presença de Deus. Então, sentiu-se cair... cair... de volta à dor e ao frio.

E estava voltando sozinha.

O detetive Bennett English abriu caminho por entre a multidão de curiosos e passou por debaixo da fita amarela que isolava a cena do crime, exibindo o distintivo.

English. Homicídios. O policial assentiu, deixando-o passar, para então concentrar a atenção em alguns observadores mais ansiosos, forçando-os a permanecerem atrás da fita.

Ben estremeceu ao pisar na neve que se derretia, satisfeito por estar usando botas, em vez dos sapatos de costume. Aproximou-se de dois policiais que conversavam ao lado da ambulância. Um deles bebericava café, enquanto o outro usava o cassetete para tirar o gelo que grudara em seus sapatos.

— Vejo que esta é a sua noite de sorte, English! Onde está seu parceiro, Fisher?

— Em casa, com gripe — Ben respondeu, antes de apontar para os corpos.

— O que temos?

Um dos policiais deu de ombros.

— Assassinato — disse e bebeu mais um gole de café.

— Sem testemunhas, o que não e novidade por aqui.

Ben olhou em volta. Era verdade. Aquela parte da cidade não costumava ser freqüentada por cidadãos respeitadores das leis.

— Que noite horrível para morrer! — o outro policial murmurou.

Ben franziu o cenho.

— Existe noite boa para isso? — perguntou, virando-se para o corpo coberto com um cobertor, estendido no meio da rua.

— Sabemos quem são?

— Esse é homem. O médico-legista já está terminando o trabalho. Assim que encerrar, vou verificar a identidade.

Ben assentiu, apontando para o outro corpo na calçada, sobre o qual um grupo de para médicos encontrava-se reunido.

— E aquele? — indagou.

— Mulher, vinte e poucos anos... grávida. Embora já estivesse gelado até os ossos, Bem sentiu o corpo ser percorrido por um calafrio.

— Droga! — resmungou, examinando os pa­ramédicos com maior atenção.

— Então temos três mortos, não dois.

De repente, todos se agitaram em tomo da mulher. Ben aproximou-se.

— O que está acontecendo?

— Ela está viva — um dos paramédicos in­formou-o, ao mesmo tempo em que a colocavam em uma maca.

A postura de Ben mudou. Se ela sobrevi­vesse, seria muito mais fácil obter as respostas de que precisava para resolver aquele caso. Quando passaram por ele, carregando-a para a ambulância, Ben examinou-lhe o rosto.

Mesmo com a neve derretendo sobre suas faces e fazendo os cabelos colarem em sua ca­beça, era bonita. Tinha o nariz pequeno e reto, sobre lábios suavemente entreabertos, e cílios tão espessos e negros que mais pareciam som­bras. Suas faces estavam pálidas e ressecadas pelo vento frio, mas seria impossível não re­conhecer a delicadeza de seus traços, assim como a pequena e perfeita covinha no meio do queixo.

Ben fixou os olhos no ferimento que ela tinha no ombro. Então, baixou-os até o abdome, onde uma grande mancha de sangue cobria o casaco.

— E quanto ao bebê? — perguntou.

O médico sacudiu a cabeça, sem interromper sua atividade.

Ben foi tomado de profunda tristeza, pois imaginou o desespero daquela mulher, caso vivesse, ao acordar em um hospital e des­cobrir que havia sobrevivido, mas que seu bebê morrera. Desviou o olhar, tentando não pensar nisso. Estava deixando os sentimen­tos interferirem em sua objetividade, e isso era algo que ele não poderia permitir que acontecesse.

Quando deu por si, o último paramédico en­trava na ambulância e começava a fechar a porta.

— Para onde vão levá-la? — Ben inquiriu.

— Parkland.

Em questão de segundos, a ambulância de­sapareceu em alta velocidade, levando embora uma mulher que precisava de um milagre.

Ben retirou seu bloco de notas do bolso e voltou para onde estava o outro corpo. O médico-legista estava de partida. Ben alcançou-o quando ele abria a porta do carro.

— Ei, Gregson, tem um minuto?

Bob Gregson virou-se para fitá-lo.

— Boa noite, English. Onde está Fisher?

— Meu parceiro está de molho, com gripe. O que pode me dizer sobre a vítima?

— A causa da morte foram ferimentos múl­tiplos de bala. Só saberemos qual dos tiros foi fatal depois da autópsia, mas não creio que isso vá fazer alguma diferença. Alguém estava decidido a ver o camarada morto e só parou de atirar quando teve certeza de que havia cumprido a tarefa.

— Pode enviar uma cópia da autópsia para o meu escritório?

— Não fique esperando — Gregson resmun­gou, entrando no carro.

— Não creio que va­mos conseguir grandes informações.

Ben compreendeu a frustração do legista, mas saber o máximo possível nas vinte e qua­tro horas seguintes a um homicídio era crucial para a solução do caso. O médico partiu e Ben voltou a se aproximar do corpo.

— Conseguiu determinar a identidade? — perguntou.

Um dos policiais entregou-lhe um saco plás­tico, contendo uma carteira e alguns cartões de visita.

— O nome dele é Charles Finelli.

Ben sentiu o pulso acelerar.

— Espere — disse, abaixando-se e abrindo o zíper do saco negro que envolvia o cadáver, a fim de ver-lhe o rosto.

Emitiu um som de incredulidade.

— Você o conhece? — um dos policiais indagou.

— Conheço sua reputação — Ben respondeu.

— Trabalha como barman, mas à noite não passa de um maluco com uma máquina foto­gráfica. Já foi preso e multado meia dúzia de vezes por invasão de domicílio. Acha que é igual aos paparazzi de Hollywood. Ele carre­gava uma câmera?

Os dois sacudiram a cabeça em negativa.

— Fizeram uma busca na região?

— Já verificamos tudo. Quando chegamos aqui, calculamos que se tratava de uma crise doméstica. Sabe como é... um homem, uma mulher grávida, provavelmente uma discussão que não acabou bem. Mas nenhum dos dois tinha uma arma. Esquadrinhamos a área, procurando desde testemunhas até papéis de chiclete. Se houvesse uma câmera, nós a teríamos encontrado. — Apontou para o céu e para a neve, que continuava a cair.

— Até mesmo as prostitutas tiraram a noite de folga e, segundo os fregueses do bar, ninguém ouviu nada.

Ben assentiu.

— É sempre assim. Ninguém quer se en­volver. E quanto à identidade da mulher?

— Não encontramos bolsa, apenas esta sacola, que estava na calçada, ao lado do corpo. Ainda não tivemos tempo de examiná-la.

Entregaram a sacola de náilon para Ben e dirigiram-se aos seus carros-patrulha. Haviam isolado a cena do crime, passado todas as informações que haviam obtido para a di­visão de homicídios e, agora, o problema já não era mais deles.

Ben guardou a sacola, assim como o saco plástico com os pertences de Charles Finelli, no porta-malas do carro. Levaria tudo para a delegacia, assim que fizesse algumas pergun­tas aos fregueses do bar.

Alguns policiais continuavam trabalhando quando ele entrou no bar. Tratava-se de um estabelecimento sem nenhuma característica excepcional, exceto pelo luminoso acima da porta: um papagaio azul brilhante, em pleno vôo, e as palavras The Blue Parrot em néon laranja, bem abaixo dele.

Parou assim que fechou a porta, ignorando a fumaça, sentindo-se grato pelo calor que o envolveu. O murmúrio baixo de vozes cessou quase imediatamente, e vários fregueses viraram-se para fitá-lo. O julgamento deles foi silencioso e breve. Em seguida, voltaram às suas bebidas, mas o silêncio continuou.

Ben conteve um suspiro. Era evidente que todos já o haviam identificado como policial e, portanto, não merecedor de alguma respos­ta. Aproximou-se do balcão.

— O que vai querer? — o barman perguntou.

— Você tem café?

— Não.

— Então, não quero nada.

O rapaz deu de ombros e começou a se afas­tar, mas Ben exibiu seu distintivo. O barman olhou para a credencial e voltou a encarar Ben, deixando claro que não estava nem um pouco impressionado.

— Duas pessoas foram assassinadas em frente ao seu estabelecimento, há mais ou me­nos vinte minutos — Ben disse.

O homem não hesitou.

— Sim, fiquei sabendo.

— Não ouviu os tiros?

— Acho que não.

— Então quem chamou a polícia? O sujeito deu de ombros.

— Um homem entrou no bar, disse que havia dois corpos na neve. Mostrei a ele onde fica o telefone. Ele fez uma ligação. é tudo o que sei.

— Ele ainda está aqui?

— Não.

— Pode descrevê-lo?

— Não.

Ben teve de se esforçar para resistir ao impulso de agarrá-lo pela camisa e acabar com o tom insolente na voz do barman. Virou-se e ergueu a voz, para que todos os presentes o ouvissem com clareza.

— Alguém viu o que aconteceu lá fora?

Ninguém respondeu.

— Alguém ouviu alguma coisa... tiros... ou um carro arrancando em disparada?

Silêncio total.

— Bem — Ben prosseguiu —, quero agra­decer a cooperação de vocês. Sei que a jovem que acabaram de levar para o hospital vai gostar muito de saber quanto ajudaram a encontrar a pessoa que acabou de matar o bebê que ela carregava no ventre.

Deixou seu cartão em cima do balcão e saiu profundamente decepcionado e revoltado com os fregueses do bar e com a raça humana em geral. Já estava a caminho de seu carro quan­do se deu conta de que a neve parara de cair. As ruas estavam mergulhadas no silêncio, fa­zendo com que seus próprios passos soassem ameaçadores. Quando abria a porta do carro, um gato saiu miando alto de um beco. Ins­tintivamente, Ben virou-se, empunhando a pistola semi-automática, mas não viu nin­guém. Amaldiçoando Red por ter apanhado uma gripe, entrou no carro e partiu.

 

Ben digitou o ponto final no teclado no computador e, então, reclinou-se na cadeira, examinando o relatório que acabara de concluir. O assassinato em Oakcliff não era o pior caso no qual ele já havia trabalhado, mas havia algo ali que o incomodava mais que o habitual. Seus olhos pousaram nas carteiras ao lado do telefone. Avisar os parentes das vítimas era a pior parte de seu trabalho.

O pai de Charles Finelli vivia em Krebs, no Estado de Oklahoma, uma comunidade peque­na, predominantemente italiana, conhecida pela magnífica produção de vinho e excelente comida. Anthony Finelli começara a chorar quando Ben o informara sobre o falecimento de seu único filho. Depois de diversos telefonemas, ele descobrira que China Brown não tinha ninguém para chorar por ela.

Ben apanhou a velha carteira vermelha que havia encontrado na sacola de China e voltou a abri-la, como fizera incontáveis vezes nos últimos noventa minutos. Era mesmo muito velha remendada com fita adesiva. Não havia dinheiro dentro dela, e a foto na carteira de motorista parecia-se com a maioria das fotos de documentos: um sorriso indeciso e sem jei­to. Porém, os cabelos negros que emolduravam o rosto delicado não tinham nada de comum. Mesmo naquela foto rotineira a beleza dela era evidente.

Deixou a carteira de lado, apoiou os cotove­los na mesa e fechou os olhos, mas nem assim conseguiu livrar-se da imagem de China Brown.

Ultimo endereço conhecido: inválido.

Pensou no senhorio com quem falara pouco antes. Grande patife, capaz de despejar uma mulher grávida em meio a uma nevasca. Se­gundo ele, o namorado se chamava Tommy Fairheart e, depois de engravidá-la, fugira, le­vando todo o dinheiro dela.

Ben levantou-se de súbito, apanhou sua caneca de café e foi para a sala de descanso. Desejou com ardor que os dois queimassem no inferno.

O café estava amargo, mas quente, o que bastaria no momento. Bebeu devagar, na es­perança de que o calor o envolvesse. No en­tanto, a imagem do rosto de China Brown, coberto de neve voltou a se imprimir em sua mente. Ben estremeceu, perguntando-se se, algum dia, conseguiria livrar-se da sensação de frio que tomara conta de seu corpo.

Consultou o relógio e descobriu que já era de manhã. Precisava ir para casa, comer alguma coisa, tomar um banho e, ao menos, ten­tar dormir um pouco, mesmo sabendo que en­contraria dificuldade para cair no sono. O clima que cercava aquele caso parecia irreal, e o detetive que existia dentro de Ben era incapaz de desistir de tentar juntar as peças do quebra-cabeça, mesmo que fosse por umas poucas horas de sono.

De repente, depositou a xícara no balcão e voltou à sua mesa de trabalho, apanhou o casaco que deixara nas costas da cadeira e dirigiu-se para a porta. Havia algo que tinha de fazer, antes que pudesse sequer pensar em dormir.

A enfermeira-chefe da UTI do hospital Parkland estava monitorando as batidas irregulares do coração de um paciente quando a porta se abriu de maneira abrupta. Ela se endireitou, observando o homem alto, de cabelos desgrenhados, com expressão chocada.

— Sinto muito, senhor, mas não pode entrar aqui dessa forma. O horário de visita começará daqui à uma hora e... Ele exibiu o distintivo.

— Não me importa quem o senhor é — ela disse

— Nenhum dos pacientes, aqui, encontra-se em condição de ser interrogado.

— Não vim interrogar ninguém — Bem murmurou.

— Só preciso vê-la. A enfermeira franziu o cenho.

—Quem?

— China Brown... a mulher grávida que foi baleada.

A expressão no rosto da enfermeira se al­terou, alarmando Ben.

— Ela está viva... não está? A enfermeira assentiu.

— Mas o bebê não resistiu.

— Sim, eu sei — Ben falou.

— Qual é o estado dela?

Ela consultou o prontuário.

— Crítico — respondeu antes de lançar a Ben um olhar de súplica.

— Por favor, detetive English, o senhor precisa sair.

Ele virou, passando os olhos por todos os leitos, na tentativa de localizá-la.

— Onde ela está? — perguntou.

— Na quarta cama, à direita.

Ben deu um passo impulsivo naquela dire­ção, mas parou quando a enfermeira pousou a mão em seu braço, dizendo:

— Por favor, volte amanhã.

Ele hesitou, mas acabou concordando, ao mesmo tempo que seus ombros vergavam ao peso do cansaço.

— Sim, talvez você tenha razão. Desculpe-me a interrupção. Acontece que não consegui tirá-la da cabeça desde que... — parou de falar ao dar-se conta de que estava prestes a se abrir com uma ilustre desconhecida.

— Foi uma tragédia o que aconteceu com o bebê — ela murmurou.

— Era uma menininha.

Ben assentiu. Já estava a meio caminho da porta quando virou-se. Conhecia a rotina. O bebê teria sido retirado por cesariana e en­viado ao necrotério para autópsia, mesmo su­pondo-se que os tiros haviam sido à causa da morte. Mas, depois...

— Quanto ao bebê...

— Sim?

— A srta. Brown não tem parentes vivos.

A enfermeira manteve-se impassível.

— Não sei o que se faz nesses casos, senhor. Terá de falar com o médico que realizou a cirurgia.

— Como ele se chama?

— Dr. Ross Pope.

— Conversarei com ele pela manhã — Ben decidiu.

— Enquanto isso, por favor, anote que assumirei a responsabilidade pelo corpo, até que a srta. Brown esteja em condições de fazê-lo.

— Sim, senhor. Anotarei seu nome no prontuário.

Ben lançou mais um olhar para a cama onde China Brown se encontrava e, então, estendeu seu cartão à enfermeira.

— Se houver qualquer mudança, por mais simples que seja, quero ser informado. Aqui estão os números de minha casa e do trabalho. Ligue a qualquer hora.

Ela anexou o cartão ao prontuário de China. Ben ainda ficou ali por um momento, olhando para a mulher deitada na quarta cama à direita. Então, saiu da mesma maneira abrupta com que entrara.

A aparência de Bobby Lee Wakefield era ótima, e ele sabia muito bem disso. O terno Armani que vestia servia-lhe com perfeição, realçando o corpo bem delineado e fazendo suas pernas parecerem ainda mais longas. As botas Justin, que haviam lhe custado mil dólares, eram uma afetação, usadas com o terno, mas no Texas nada seria mais apropriado.

Lançou um último olhar para o espelho, passou as mãos pelos cabelos, a fim de ajeitar qualquer fio que pudesse estar fora de lugar e, então, dirigiu-se a sua mesa. Ainsley Been, administrador de sua campanha, chegaria a qualquer momento para acompanhá-lo ao Wyndhamm Anatole, onde a imprensa estaria a sua espera. Tratava-se de um hotel muito elegante, cenário perfeito para o comunicado que estava prestes a fazer. Passou os olhos pelo discurso e deixou-o de lado. Sabia cada palavra de cor. Vinha planejando aquele mo­mento havia anos.

Bobby Lee Wakefield percorrera um longo caminho para chegar onde estava. Nascera em Amarillo, no Texas, filho de um homem cujo trabalho era fazer perfurações em zonas onde se desconhecia a existência de petróleo. As roupas que usara durante todos os seus anos escolares, todas compradas em bazares beneficentes, não o haviam tornado popular entre os colegas, e Bobby lutava nas selvas do Vietnã quando seu pai finalmente encon­trara petróleo e enriquecera. Voltar para uma casa rica e luxuosa fora tão estranho quanto se ver na selva, na qual ele quase morrera. Bastara um olhar para a elegância de seu novo lar para que ele soubesse que seria preciso muito mais do que uma interminável fonte de dinheiro para satisfazer sua família. Seis meses depois de ter voltado para casa, ele se matriculara na Southern Methodist University, e nunca mais olhara para trás. Trabalhou para todos os políticos que o aceitaram em sua equipe, durante os verões, e, quando estava prestes a se formar, já tinha um pé no governo estadual. Quando completou trinta e cinco anos, já estava no seu segundo mandato como deputado, e, aos quarenta e dois, fora eleito senador. Em Dallas, era o dono da cidade. Era divorciado havia anos, rico e atraente, e mais do que popular em Capitol Hill, e estava prestes a anunciar seus planos de concorrer à presidência dos Estados Unidos da América.

Seu pai teria ficado orgulhoso.

No momento em que consultava o relógio, a porta de seu escritório se abriu, batendo na parede com violento estrondo. Não seria preciso erguer os olhos para saber quem havia entrado, mas ele o fez, mesmo assim.

A loira alta e elegante, envolta por seda branca, entrou no escritório, levando consigo uma nuvem de perfume francês caríssimo. Bobby Lee estreitou os olhos e reprimiu um palavrão. Seu pai nunca soubera o que fazer com aquela mulher e, que Deus o ajudasse, ele sabia menos ainda.

— Mamãe, alguma vez pensou em bater an­tes de entrar?

Mona Wakefield soprou-lhe um beijo e apro­ximou-se, puxando os cabelos loiros e longos por cima do ombro e dando-lhe as costas.

— Bobby Lee, querido, eu me recuso a ba­ter nas portas de minha própria casa. Agora, por favor, seja um bom menino e suba o zíper do meu vestido. Quero estar pronta quando Ainsley chegar.

Bobby Lee arregalou os olhos. O decote do vestido deixava as costas inteiras à mostra, mas dando espaço à existência de um zíper.

— Diabos, mamãe! Não vai usar isso na minha entrevista coletiva! Parece uma prostituta de rua!

Mona deu de ombros, fitando-o por cima do ombro com olhar insolente.

— Talvez eu pareça uma garota de programa, daquelas que cobram bem caro, mas nunca uma prostituta de rua. Além disso, quantas mulheres de sessenta e oito anos você conhece, lindas como eu? Vou lhe dizer: nenhuma. Ago­ra, suba o zíper e pare de me dizer o que fazer.

Bobby Lee agarrou-a pelos ombros e forçou-a virar-se para encará-lo.

— Trate de tirar essa roupa indecente agora mesmo e vestir outra coisa, ou eu juro que mandarei Waymon trancá-la em seu quarto. Se quer tanto estar ao meu lado e desfrutar da chamada "glória" de ser a mãe do senador Wakefield, terá de usar roupas apropriadas a sua posição.

Um forte rubor tomou conta das faces de Mona, evidenciando sua fúria, enquanto ela sustentava o olhar do filho com firmeza. Para um observador, os dois pareceriam quase idênticos. Ambos eram altos, com corpos esbeltos e músculos bem trabalhados, e possuíam perfis faciais surpreendemente parecidos: testa alta, nariz reto, queixo firme. Fitaram-se, imóveis, por um longo momento, até que Mona deu de ombros e disse:

— Não gosta deste vestido? Muito bem. Vestirei outro.

Movimentou primeiro um ombro, e depois o outro, permitindo em um desafio mal disfarçado que o vestido deslizasse pelo seu corpo, até formar o que parecia uma poça de seda branca em torno de seus pés. Só depois de se certificar de que o choque havia substituído à ira na expressão de Bobby Lee ela virou-se e saiu do escritório, tão calmamente quanto havia entrado. O fato de estar usando apenas sapatos de saltos altíssimos, calcinha e sutiã totalmente transparentes e cinta-liga de renda branca para prender as meias de seda não pareceu intimidá-la, ou embaraçá-la.

Mau Mona desapareceu, a campainha tocou, ecoando por todo o andar térreo da mansão.

— Jesus Cristo! — Bobby Lee resmungou, e apanhou o vestido que ela deixara no chão.

Ainsley chegara.

Bobby Lee correu até o hall, agarrou a empregada e entregou-lhe o vestido.

— Delia, cuide para que minha mãe vista uma roupa decente, está ouvindo? Não permita que ela desça a escada, enquanto não fizer o que estou dizendo!

Delia assentiu, apanhou o vestido e subiu correndo. Trabalhar naquela casa era uma loucura, mas o salário era bom e ela nunca ficava entediada.

Bobby Lee hesitou e esperou até ter certeza de que o traseiro nu de sua mãe já não era visível no topo da escada, para então exibir um sorriso largo e aproximar-se da porta.

— Ainsley, você parece pronto para enfrentar a batalha — disse com seu melhor e mais afetado sotaque de "bom-garoto-do-Texas".

— A cozinheira preparou um lanche apetitoso, Está servido na biblioteca. Por que não vai até lá e fica à vontade? Vou avisar mamãe que você já chegou.

Ainsley Been sorriu e alisou o colete, antes de se encaminhar à biblioteca. Ser contratado como administrador da campanha de Wakefield fora um tremendo golpe de sorte. Aquela seria a sua primeira campanha para eleições presidenciais, mas se fizesse tudo como deveria, certamente não seria a última.

— Obrigado, Bobby Lee. Acho que vou aceitar o lance, pois não almocei hoje.

Entrou na biblioteca, sem nem sequer desconfiar do clima que reinava na casa do senador.

Menos de uma hora depois, o trio encontrava-se confortavelmente sentado em uma imensa limusine branca, a caminho do hotel, onde a imprensa aguardava sua chegada. Mona estava sentada diante dos dois homens, as pernas longas sensualmente cruzadas, a raiva ainda a colorir suas faces. Olhava fixamente pela janela, recusando-se a encarar o filho. Havia descido a escada vestindo um conjunto de saia e paletó, conforme Bobby Lee exigira, e calçando sapatos pretos de saltos altíssimos. O fato de a saia terminar mais de quatro dedos acima de seus joelhos e de o primeiro botão do paletó localizar-se quase abaixo da linha dos seios já era ruim o bastante. No entanto, foi o tecido que deixou Bobby Lee furioso. Couro preto. Ele ia anunciar sua candidatura à presidência, e sua mãe estaria ao seu lado, vestindo roupas de couro preto. Faltariam apenas o chicote e uma motocicleta Harley-Davidson para completar a imagem.

— Muito bem — Ainsley declarou, assim que o motorista estacionou diante do hotel.

— Chegamos. Tratem de exibir um sorriso es­tonteante e vamos acabar com eles!

Bobby Lee respirou fundo e lançou um olhar de advertência para a mãe. Ela ergueu uma sobrancelha e, então, sorriu.

— Bem, Ainsley, estou aqui apenas para demonstrar o meu apoio. Afinal, esta é a grande noite da vida de meu filho.

O sorriso de Ainsley foi largo e satisfeito.

— Sim, e imagino que esteja se sentindo muito orgulhosa.

Mona olhou para o filho, reconhecendo o brilho nos olhos dele, o músculo que tremia junto ao maxilar. Ofereceu-lhe uma piscadela e foi recompensada pelo prazer de vê-lo esforçar-se para continuar zangado.

— É claro que estou orgulhosa dele. Que mãe não estaria?

Bobby Lee sacudiu a cabeça e, então, curvou os lábios em um sorriso maroto. No final das contas, o que quer que Mona fizesse, faria ao seu modo.

— Obrigado, mamãe.

— De nada, Bobby Lee. Agora, vamos dar a esses repórteres muito assunto para as primeiras páginas. Trate de sorrir e mostrar o seu valor.

— Sim, senhora.

A porta da limusine se abriu. Ainsley olhou para Bobby Lee e ergueu o polegar.

— Você primeiro — disse. Bobby Lee voltou a respirar fundo. Quando saiu do carro, seu sorriso era tão largo quanto seus passos. Entrou no hotel sob uma explosão de flashes e, nem por uma vez, olhou para trás para saber quem o seguia. Estava realizando uma missão que não poderia ser detida por nada, nem por ninguém.

Passavam dez minutos das sete horas da manhã quando Ben voltou a se aproximar da UTI. A enfermeira com quem ele conversara na noite anterior se fora e havia outra no lugar dela. Ben exibiu o distintivo e começou a fazer perguntas sobre o estado de China quando um médico chegou para fazer a ronda dos pacientes. Ben olhou para o crachá preso ao avental branco que o ho­mem magro e de cabelos castanho-claros vestia, e dedicou-lhe toda a atenção. Tratava-se de Ross Pope, o médico que havia operado China.

— Dr. Pope?

— Sim?

Ben estendeu-lhe a mão.

— Sou o detetive Bennett English, do departamento de homicídios. Fui encarregado do caso que envolve China Brown, a mulher que o senhor operou ontem à noite.

Dr. Pope franziu o cenho.

— Espero que tenha vindo até aqui para me dizer que o patife que atirou nela já está sob custódia.

— Não, ainda não, mas isso vai acontecer em breve.

Ross Pope suspirou.

— Em que posso ajudá-lo?

— Preciso que me dê permissão para vê-la. O semblante do médico tomou-se ainda mais grave.

— De jeito nenhum. Ela está em estado de coma induzido. Não há a menor possibilidade de que ela possa ajudá-lo em suas investiga­ções, nem qualquer garantia de que vai se lembrar do que aconteceu quando acordar.

Ben sacudiu a cabeça.

— O senhor não entendeu — disse.

— Não quero falar com ela.

— O senhor é parente? — Pope inquiriu.

— Até onde sabemos, ela não tem nenhum parente vivo.

— Mas, então, se ela não pode falar, por que a necessidade de visitá-la?

Ben hesitou, olhando para a cama, onde mal podia divisar a silhueta dela debaixo dos lençóis.

— China vai sobreviver? — perguntou.

— A menos que surjam complicações ines­peradas, eu diria que sim.

— Quando vai acordar?

— Quando o corpo dela houver se recupe­rado um pouco mais, começaremos a diminuir as doses de medicamentos. Depois disso, vai depender dela. China vai acordar quando estivera pronta.

Ben passou a mão pelos cabelos, desfazendo o penteado. Uma expressão confusa tomou conta de seu rosto e desapareceu, embora ele não se desse conta disso. Tudo o que sabia era que precisava vê-la... tocá-la...

— Escute, não sei explicar — disse —, mas não consigo me livrar da sensação de que pre­ciso estar lá... talvez mais por mim mesmo do que por ela. China Brown não tem mais ninguém. Segundo o que conseguimos apurar, o pai do bebê a abandonou. O senhorio a des­pejou ontem pela manhã. Ao cair da tarde, ela se encontrava muito perto da morte. Per­deu o bebê, mas ainda não sabe disso. Quando acordar... bem... não me parece justo que ela sofra sozinha.

Pope estreitou os olhos para estudá-lo. Após um breve momento de hesitação, virou-se para a enfermeira de plantão.

— Anote no prontuário de China Brown que o detetive English tem permissão para vê-la, sempre que quiser.

— Então, voltou a encarar Ben, tocando-lhe o peito com a ponta do dedo indicador.

— Estou supondo que posso confiar no seu bom senso, e que não vai abusar desse privilégio.

Ben teve de se esforçar para não sorrir como um colegial.

— Sim, senhor, claro!

— Muito bem. Siga-me. Vou examiná-la e, então, o senhor poderá ficar exatamente cinco minutos com ela. Devo adverti-lo para ser cuidadoso com o que disser, pois está provado que pacientes em coma, muitas vezes, houvem tudo o que acontece ao seu redor, mas não têm condições de se comunicar. Não se esque­ça disso. Não quero que nada torne a situação dela pior do que já é.

— Pode confiar em mim — Ben garantiu. Pope quase sorriu.

— Sim... bem... ao que parece, foi o que aca­bei de fazer. Por favor, não me decepcione.

Ben assentiu e seguiu Dr. Pope até a cama de China. Ela parecia muito diferente da mulher ensangüentada e coberta de neve que ele vira na véspera, sendo levada para a ambu­lância. No entanto, não estava tão diferente. Continuava muito miúda, muito silenciosa, muito ferida.

Ele observou cada movimento do médico com interesse, notando o exame detalhado que o dou­tor fez do prontuário dela, assim como a maneira delicada com que examinou-lhe os ferimentos.

Ben teve um vislumbre de grampos metá­licos e estremeceu, pouco ligando para o que a medicina moderna tinha a dizer quanto às vantagens do material metálico sobre as suturas de antigamente. Pareciam grotescos e, na opinião de Ben, deviam provocar dores hor­ríveis. Pela primeira vez, desde que tudo aqui­lo começara, ele se sentiu grato pelo fato de China Brown não saber o que estava acontecendo. Ao menos por enquanto, ela não sen­tiria a dor do trauma sofrido por seu corpo.

Depois de lançar um último olhar de adver­tência, Dr. Pope afastou-se, a fim de examinar os outros pacientes, deixando Ben a sós com China.

Ben respirou fundo e pôs-se a olhar para ela, gravando na mente cada traço daquele rosto, encantando-se com o formato delicado das sobrancelhas escuras e arqueadas que quase se encontravam sobre o nariz perfeito.

Deslizou o polegar por um dos dedos dela, que fez um leve movimento. Ben sentiu o co­ração acelerar. Embora fosse apenas uma rea­ção inconsciente a um estímulo, ele se sobressaltou assim mesmo. Abaixou-se e, com cuidado, afastou uma mecha de cabelos do rosto dela, para então sussurrar-lhe ao ouvido:

— Estou aqui, China Brown. Você está segura... e não está sozinha.

Racionalmente, ele não esperava que algo acontecesse, mas quando ela não reagiu ao som de sua voz, seu ânimo diminuiu. Endireitou-se, mas não se afastou, pousando a mão sobre a dela, buscando conforto na pele macia e quente.

O estado de coma induzido em que ela se encontrava permitia ao seu corpo gravemente ferido recuperar-se. Mas era com a sanidade mental dela que Bennett English mais se preo­cupava. Quando China acordasse, e o Dr. Pope havia garantido que isso aconteceria, ela se lembraria do que havia lhe acontecido? Seria ca­paz de identificar o homem que atirara nela e matara Charles, também conhecido como Chaz, Finelli, ou o trauma e o choque provocados pela perda do bebê e a quase perda da própria vida bloqueariam todas as suas lembranças? Somente o tempo poderia responder a essas perguntas. Infelizmente, o tempo não estava do lado de Ben. A cada hora que passava, a chance de encontrar a pessoa que cometera o crime tomava-se menor.

Foi somente quando alguém tocou seu braço que ele se deu conta de que seu tempo havia se esgotado.

— Desculpe — ele murmurou.

— Eu estava distraído com meus pensamentos.

— Isso acontece com freqüência — a enfer­meira replicou.

— Pode voltar mais tarde, mas agora precisa se retirar.

— Vou voltar — ele garantiu, apertando de leve a mão de China.

Não fazia o menor sentido, mas Ben sentiu o coração mais leve quando saiu com seu carro do estacionamento do hospital para se dirigir à delegacia. Nada havia mudado. Aquela mulher continuava sendo a única testemunha e, por en­quanto, não podia falar. Naquela manhã, porém, parado junto à cama dela, ele havia estabelecido uma ligação que não queria perder.

Meia hora depois, Ben entrava na Commerce Street e parava seu carro no estacionamento da delegacia de polícia de Dallas, cuidando para evitar os pequenos montes de neve que já começavam a derreter. Estava a meio caminho da porta quando seu parceiro, Red Fisher, saiu com passadas largas e acenou para ele.

— Eu o vi chegando, da janela — Red informou-o.

— Achei que economizaríamos tempo se viesse ao seu encontro.

Ben sorriu.

— É bom vê-lo de volta, mas qual é a pressa? Red agitou um pedaço de papel diante do rosto de Ben.

— Eu estava lendo o relatório sobre o as­sassinato em Oakcliff quando isto chegou. Pode me contar os detalhes no caminho.

— Para onde vamos? — Ben perguntou.

— Visitar a namorada de Finelli. Ela tele­fonou esta manhã, para registrar o desapare­cimento dele. Quando lhe deram a notícia, ela ficou histérica.

Ben sentou-se ao volante e fechou a porta, enquanto Red ocupava o banco do passageiro, ainda falando:

— Por causa de algumas coisas que ela gritava sem parar, o capitão achou que poderíamos con­seguir uma pista do assassino, interrogando-a.

— Eu não sabia que ele tinha namorada — Ben falou. Red assentiu.

— Segundo ela, viviam juntos há mais ou menos um ano. Talvez ela saiba o que Finelli estava fazendo naquela parte da cidade ontem à noite.

— Talvez — Ben concordou, antes de con­centrar a atenção no asfalto escorregadio.

Minutos depois, estacionou diante de um con­domínio de vários edifícios de apartamentos. As gangues haviam pichado todas as paredes da vizinhança, assim como as calçadas e até mesmo dois carros nos fundos do estacionamento.

— Meu Deus! — Red exclamou.

— Rita e eu moramos neste condomínio nos dois pri­meiros anos de casados, mas não era assim.

— Há quantos anos foi isso? — Ben indagou.

— Quase quinze. O bairro de Garland mudou muito nesse tempo.

Ben pensou em China Brown, que se trans­formou em vítima, na primeira noite que pas­sou nas ruas.

— Não são necessários quinze anos — resmungou com amargura.

— Muita coisa pode acontecer em questão de segundos.

Red estudou o parceiro com olhar desconfiado. Não era do feitio de Bennett English ser tão emotivo.

— Você está bem? — perguntou.

Ben tentou afastar a raiva que o dominava e sorriu para Red.

— Foi você quem esteve doente — disse.

— É melhor se preocupar com a própria saúde. Agora, vamos visitar a moça. Qual é mesmo o nome dela?

Red consultou suas anotações.

— Jackie Porter, apartamento seiscentos e dez.

Ben revirou os olhos.

— Aposto cinco dólares como o elevador não funciona.

Red sorriu.

— Vou lhe oferecer dez, caso esteja funcionando. Ben soltou uma risada. Era bom ter seu par­ceiro de volta ao trabalho.

Jackie Porter ainda chorava, e parecia so­frer dos efeitos de um colapso nervoso quando a campainha tocou. Ela se levantou de um pulo, assustada, e começou a gritar. Quando finalmente alcançou a porta, estava completamente histérica.

— Quem é? — inquiriu aos berros, antes de assoar o nariz tão alto que não conseguiu ouvir a resposta.

— Quem? — repetiu, colocando-se na ponta dos pés para espiar pelo olho mágico.

— Departamento de polícia de Dallas, srta. Porter. Podemos entrar?

Depois de ver os distintivos, assim como os rostos dos policiais, ela soltou as trancas, con­tendo os soluços. Abriu a porta e afastou-se para que eles entrassem.

— É verdade? Chaz está mesmo morto? Ben assentiu, mantendo a expressão neutra. Ela voltou a chorar e cobriu o rosto com as mãos quando Red fechava a porta. Ben segu­rou-lhe o braço e conduziu-a até o sofá.

— Por favor, sente-se — ele disse.

Jackie Porter deixou-se cair nas almofadas e apanhou um punhado de lenços de papel. Os dois esperaram que ela assoasse o nariz, secasse as lágrimas e tentasse se recompor.

— Srta. Porter, quer que eu apanhe um copo de água? — Red ofereceu.

Ela sacudiu a cabeça.

— Não, já estou bem, mas obrigada assim mesmo — ela balbuciou.

— Seu nome é Jackie, certo? — ele indagou. Ela se endireitou no sofá.

— Meu nome é Jackwilyn Kate Porter. Es­creve-se J-A-C-K-W-I-L-Y-N, mas todos me chamam de Jackie. Minha mãe adorava o se­riado As Panteras e decidiu me dar esse nome por causa daquela atriz, Jaclyn Smith, e tam­bém por Kate Jackson. A diferença foi que ela soletrou diferente, no cartório. As duas eram suas panteras favoritas. Mamãe não gos­tava de loiras.

Ben decidiu não olhar para Red, pois sabia que se o fizesse os dois começariam a rir, o que aquela visita jamais comportaria.

— Bem, Chaz e eu havíamos combinado co­mer um churrasco e, depois, ir ao cinema, on­tem à noite. No último minuto, ele telefonou, dizendo que tinha uma pista quente.

Ben ergueu os olhos.

— Pista quente? Jackie assentiu.

— Sim, bem, você sabe como é. Se uma pessoa famosa estivesse andando pela cidade, Chaz queria estar por perto para tirar fotografias. Ele recebia um bom dinheiro por elas. Sei dis­so porque, às vezes, ele me pedia para depo­sitar o dinheiro. Chaz queria ser famoso, como aqueles fotógrafos que trabalham para os tablóides. — O lábio inferior de Jackie tremeu e as lágrimas voltaram a rolar por suas faces.

— Eu sabia que alguma coisa estava errada quando ele não voltou para casa. Ele sempre telefonava e me avisava que ia se atrasar.

Ben empunhava o bloco de anotações e a caneta quando perguntou:

— Então vocês viviam juntos?

— Há quase um ano — ela confirmou. Ben estudou suas anotações.

— Mas o endereço daqui não é o que en­contramos na carteira dele.

— Sim, eu sei. Chaz manteve seu antigo apar­tamento, mas usava o lugar como uma espécie de escritório. Era lá que ele revelava as foto­grafias e onde guardava as câmeras e arquivos.

— Que tipo de arquivos? — Red perguntou.

— Não sei. Acho que era sobre o trabalho dele.

— Então tem certeza de que ele levou a câmera, ontem à noite?

— Ah, sim, deve ter levado. Ele só me deixava esperando quando ia tirar fotos... e eu com­preendia, claro. Era como ele pretendia subir na vida. Chaz era muito bom no que fazia.

Alguns minutos depois, após terem obtido todas as informações que Jackie Porter tinha para dar, incluindo a chave do apartamento de Finelli e a marca da máquina fotográfica que ele provavelmente carregava consigo quando fora assassinado, Red levantou-se da poltrona e entregou a ela o seu cartão.

— Se lembrar de qualquer coisa que possa nos ajudar a encontrar a pessoa que atirou no Sr. Finelli, por favor, telefone — disse.

— Aqui estão os números do meu pager e da delegacia. Ligue a qualquer hora.

— Obrigada — Jackie agradeceu, seguindo os dois detetives até a porta.

Eles já estavam no meio do corredor quando ela os chamou. Os dois pararam e viraram.

— Quando prenderem o homem que fez isso... poderiam me avisar?

— Faremos isso — Ben garantiu.

Ela exibiu um sorriso fraco e, então, fechou a porta. Os dois ouviram os sons das várias trancas sendo fechadas. Red olhou para as pichações nas paredes e revirou os olhos.

Ben sorriu.

— O que foi? Virou crítico de arte, agora? Ao menos o interior do edifício combina com o exterior do condomínio.

Red riu e balançou a cabeça.

Quando alcançaram o elevador, hesitaram, trocaram um olhar de dúvida e, então, diri­giram-se para a escada. A idéia de dois poli­ciais presos em um elevador quebrado, em um edifício como aquele, era o mesmo que se ofe­recerem como alvos para um atirador aluci­nado, membro de alguma gangue de viciados. Nenhum dos dois respirou com facilidade enquanto não se viram dentro do carro em mo­vimento, afastando-se daquele lugar.

— E então? O que você acha? — Red perguntou, quando Ben parou em um semáforo.

— Não sei — Ben respondeu pensativo.

— Finelli não tinha uma câmera quando foi encontrado morto. Talvez tenha sido apenas um assalto e o ladrão o matou pela câmera. Então China Brown estava no lugar errado, na hora errada.

— Sim, é possível. — Red reclinou-se no banco e ligou o aquecimento.

— Ou, talvez, ele tinha um caso com a srta. Brown. Talvez o bebê que ela esperava fosse de Finelli. Talvez o namorado Brown tenha descoberto, os dois brigaram e ele a abandonou. Talvez Brown tenha procurado por Finelli para pedir ajuda. Ben emitiu um som irritado.

— Diabos, Red, que remédio andou tomando para a gripe? Nunca ouvi tanta bobagem de sua boca, desde que você falou mal dos Slickers, no último campeonato.

Red franziu o cenho.

— Só porque não torço para os Slickers, não quer dizer que sou idiota. Eu estava apenas teorizando. E daí? Tudo é possível.

Ben não se deixou convencer.

— Ela não é o tipo de mulher que trairia o namorado — afirmou convicto.

— Quem? Jackie Porter?

— Não. China Brown.

Red virou-se no banco e olhou para o parceiro, como se o estivesse vendo pela primeira vez.

— Como você pode saber uma coisa dessas? Ben deu de ombros.

— Digamos que é um palpite.

— Você ouviu o que acabou de dizer? Ben entrou na pista expressa e consultou o relógio.

— Está com fome? — perguntou.

— Estou sempre com fome — Red respondeu.

— E você não respondeu à minha pergunta.

— Enquanto você decide onde vamos comer, vou fazer uma parada rápida.

— Onde?

— No hospital Parkland. Quero saber do estado de China.

— China? Já está chamando a testemunha pelo nome de batismo?

— Red, somos parceiros a quase doze anos, certo?

— Sim, mas isso não tem nada a ver com...

— Alguma vez pedi que confiasse em mim, com relação a algo que não estivesse certo?

— Não — Red admitiu.

— Então, dê-me esta chance.

Ben tomou a saída para o hospital e desceu a rua com intenções definidas.

Red atirou as mãos para cima e voltou a se reclinar no banco.

— Está bem — resmungou, antes de acres­centar:

— Você vai pagar?

Ben sorriu.

— Talvez.

— Então, vou querer um filé... filé de frango frito.

— Pensei que Rita continuasse insistindo em uma dieta de baixas calorias para você — Ben comentou.

— Você tem os seus segredos, eu tenho os meus — Red retrucou.

Ben estacionou o carro e saiu.

— Não vou me demorar.

— Ah, não vai, não! — Red protestou, abrin­do sua porta.

— Vou com você. Quero ver essa mulher com meus próprios olhos.

 

Red observou com atenção o rosto do parceiro quando subiam de ele­vador para a UTI. Um músculo junto ao ma­xilar saltava de maneira quase imperceptível, e os olhos de Ben mantinham-se fixos em al­gum ponto indeterminado. O elevador sacudiu de leve quando chegou ao andar desejado. Em seguida, as portas se abriram e, no mesmo instante, Ben passou por elas, apressado. Red sacudiu a cabeça e o seguiu. O comportamento de Ben era quase obsessivo, o que deixava Red nervoso.

Ben, no entanto, não estava nem um pouco preocupado com a opinião de seu parceiro. Só importava apanhar a pessoa responsável pelos assassinatos e garantir que China Brown não corresse nenhum risco. Quando se aproxima­ram da entrada da UTI, seus passos se tornaram mais largos. Ao chegarem lá, Red es­tava praticamente correndo para conseguir acompanhá-lo.

— Ainda bem que não tivemos de ir mais longe — Red resmungou, enquanto esperavam que a enfermeira-chefe terminasse um telefonema.

— Estou sem fôlego. Ben fitou-o por cima do ombro e sorriu.

— Isso se deve a um excesso de filés de frango fritos — declarou.

Red lançou-lhe um olhar irritado.

— Não é nada disso. Acontece que sou baixo demais. Você tem, no mínimo, um metro e oitenta e sete. Eu mal chego a um metro e setenta. Minhas pernas medem, mais ou menos, metade das suas. Sou obrigado a dar dois passos, para cada um dos seus. Não culpe os filés de frango!

Ben examinou-o com olhar crítico.

— Não é o que indica o tamanho da sua barriga!

Red sacudiu a cabeça, mas acabou sorrindo. Era impossível ganhar uma discussão de seu parceiro. Antes que pudesse pensar em uma boa réplica, a enfermeira desligou o telefone.

— Em que posso ajudá-los? — ela perguntou. Ben exibiu o distintivo.

— Detetives English e Fisher. Queremos ver China Brown.

— Sinto muito, mas só permitimos dois vi­sitantes por vez, na UTI, e há alguém com ela, agora.

Ben virou-se depressa, estreitando os olhos na direção da cama de China, tentando en­xergar através do vidro. De onde estava, tudo o que divisou foi a figura de um homem, inclinando-se sobre a cama,

— Quem é ele?

A enfermeira sacudiu a cabeça.

— Ele não me disse o nome.

Um arrepio gelado percorreu o corpo de Ben.

— Aquela mulher é a única testemunha de um assassinato! Como pode permitir que qual­quer um vá até lá?

A enfermeira mostrou-se nervosa.

— Não recebi nenhuma ordem específica com relação a ela ou a qualquer outro paciente — defendeu-se.

Ben inclinou-se para ela, a voz enrouquecida pela aflição.

— Ou tira o sujeito de lá, agora mesmo, ou eu mesmo farei isso.

Ela se levantou de um pulo e entrou na UTI com passos rápidos. Segundos depois, estava junto à cama de China. Ben já fazia uma li­gação de seu celular quando a enfermeira co­meçou a acompanhar o homem na direção da porta. Quando os dois chegaram à saída, Ben já havia requisitado um guarda para China.

— Acalme-se, parceiro — Red disse.

— Pro­vavelmente é o namorado dela. Lembre-se de que o sujeito a abandonou, mas era o pai do bebê que ela esperava. Às vezes, até mesmo patifes como esse têm consciência.

Apesar das teorias de Red, o jovem e magro latino que atravessou a porta ao lado da en­fermeira não parecia um homem arrependido, mas sim um homem amedrontado.

Ben postou-se diante dele, bloqueando-lhe a passagem.

— Detetive Bennett English, Homicídios. Este é meu parceiro, detetive Fisher. Acom­panhe-nos, por favor. Temos algumas pergun­tas a lhe fazer.

O jovem empalideceu.

— Não sei de nada — declarou a queima-roupa.

— É o que vamos ver — Ben murmurou, segurando-lhe o braço com firmeza moderada e conduzindo-o a uma das salas de espera.

Assim que entraram e fecharam à porta, fizeram com que ele se sentasse em uma ca­deira e sentaram-se diante dele, frente a fren­te. As implicações das posições eram claras: o rapaz não iria a lugar nenhum enquanto os policiais não estivessem satisfeitos.

— Qual é o seu nome? — Ben perguntou.

— E como conheceu China Brown?

Os olhos do jovem latino brilharam, mas dessa vez foi à raiva que alimentou sua reação.

— Hahlo Englese? — Red perguntou.

O rapaz desviou os olhos de Ben para en­carar Red, passando a exibir o mais puro desdém.

— Sim, eu falo inglês — respondeu.

— Habla usted español?

Embora fosse apanhado de surpresa pela resposta, Red deu de ombros.

— Bem — o jovem disse —, ao que parece, levo alguma vantagem sobre vocês.

Ben deslizou um dos pés entre as pernas estendidas do rapaz e inclinou o corpo para fren­te. A posição de dominância era inconfundível.

— Se já fez seu show de auto-afirmação quero algumas respostas. Qual é o seu nome e como conheceu China Brown?

De repente, o espírito de luta pareceu abandonar o jovem. Seus ombros vergaram e ele se inclinou para frente, apoiando os cotovelos nos joelhos, fixando os olhos no chão. Quando voltou a erguê-los, Ben surpreendeu-se ao descobrir neles o brilho das lágrimas.

— Miguel. Meu nome é Miguel Hernandez. Não a conheço, de verdade.

— Costuma vir ao hospital para visitar pes­soas que não conhece? — Ben indagou.

— Escute, foi assim: eu e meus amigos es­távamos passeando por Oakcliff, naquela noi­te, quando essa chica apareceu do nada. Ruiz tentou agarrá-la, mas eu vi a barriga... — Desviou os olhos e, então, voltou a encarar Ben com ar de desafio.

— Minha irmã vai ter um bebê. Acho que fiquei com pena da moça.

Por mais estranho que pudesse parecer, Ben começava a acreditar na história.

— Então você bancou o Galahad. E depois? — inquiriu.

Miguel franziu o cenho.

— Não conheço esse tal de Galahad, e não banquei coisa nenhuma. Tudo o que fiz foi dizer a Ruiz que a deixasse em paz, e então disse à mãezinha que ela deveria ir para casa.

Ben pensou na mulher inconsciente na UTI. Pobre China Brown. Não poderia mais ser chamada de mãezinha.

— E depois? — insistiu. Miguel deu de ombros.

— Ela disse que não tinha casa. Perguntei onde estava o homem que pôs o bebê na bar­riga dela. Ela disse que ele roubou seu dinheiro e fugiu.

Agora, de fato, Ben começava a acreditar nele. A história coincidia perfeitamente com as informações que haviam obtido do senhorio do China.

— O que ela estava fazendo naquela região da cidade? — Ben perguntou.

— Procurando por uma igreja que lhe desse abrigo. Estava com frio e com fome. Estava procurando por Deus para protegê-la. — Miguel levantou-se abruptamente. Sua voz tornou-se dura, a expressão, amarga.

— Deus. Não existe Deus. Onde estava Deus quando a mãozinha enfrentou o perigo?

Ben também se levantou e seguiu Miguel até uma janela que dava para o estacionamento.

— Não tenho nenhuma resposta para lhe dar — disse

— Mas quero respostas suas. Por que veio aqui?

Miguel virou-se, furioso.

— Porque eu deveria ter acompanhado a chica. Pensei em fazer isso. A igreja não ficava longe de onde estávamos. Mostrei a ela a cruz sobre o edifício e, então, afastei-me. Se eu tivesse ido com ela, nada disso teria acontecido e o bebê não estaria morto.

Ben suspirou. Sentimento de culpa. O rapaz fora visitar China porque se sentia culpado pelo que acontecera a ela. Passou a mão pelos cabelos e, então, olhou para Red, que deu de ombros, como se quisesse dizer que Ben deveria sair daquela enrascada sozinho. Ben voltou a se virar para Miguel.

— Bem, talvez o que disse seja verdadeiro — murmurou — ou então, Red e eu poderíamos estar investigando três homicídios em vez de dois, se você estivesse com ela.

Miguel sacudiu a cabeça.

— Por quê? — indagou.

— Por que atiraram nela?

— Não sabemos — Ben respondeu com sinceridade.

— Talvez tenha sido algo tão simples quanto a estar no lugar errado, na hora errada.

Miguel voltou a sentar-se, os ombros mais vergados do que nunca.

— Conhece um homem chamado Charles Finelli? — Red perguntou.

Miguel ergueu os olhos.

— Não, não conheço ninguém com esse nome. Era o nome do homem que foi morto?

Red assentiu.

— Ele também era conhecido como Chaz.

— Não significa nada para mim — Miguel garantiu, antes de lançar um olhar cansado e desconfiado, ao mesmo tempo, para os dois detetives.

— Posso ir, agora? Tenho muito o que fazer.

— Tem um endereço? — Ben inquiriu. Miguel deu de ombros. Às vezes fico na casa de minha irmã. — Forneceu o nome e o endereço da irmã.

— Posso ir, agora?

— Sim, claro — Ben respondeu, estenden­do lhe seu cartão.

— Para o caso de você ouvir algo útil nas ruas. Miguel franziu o cenho.

— Não faço acordos com a polícia — protestou, mas guardou o cartão no bolso.

— Farei isso pela mãezinha, está claro?

— Sim, pela mãezinha — Ben concordou. Miguel caminhou até a porta, onde parou, e virou-se. O olhar que lançou a Ben foi duro.

— Prenda-o, detetive. Prenda o homem que fez isso a ela.

— Estamos fazendo o melhor possível — Ben replicou. Miguel sacudiu a cabeça e saiu. Red olhou para Ben e também sacudiu a cabeça.

— Por que estou com a impressão de que o nosso "melhor possível" não é bom o bastante para ele?

— Às vezes, nosso "melhor possível" não é bom o bastante nem para mim — Ben decla­rou.

— Agora, vamos. Há uma mulher que quero lhe apresentar.

China estava no limbo. Por misericórdia do destino, sua mente não registrava nada do que estava lhe acontecendo e, somente de vez em quando, ela tinha um momento de cons­ciência. E, quando isso acontecia, era na forma de uma dor lancinante, seguida pela incapa­cidade de gritar. Seu corpo estava se recuperando, mas se lhe perguntassem, ela teria res­pondido: "Deixem-me morrer!".

Sem a menor consciência das incontáveis horas de cuidados que estava recebendo dos médicos e enfermeiras, ou da persistência de um certo detetive da divisão de homicídios do departamento de polícia de Dallas, ela per­manecia imóvel sob as cobertas, ligada às má­quinas que a mantinham viva.

De certa forma, China Brown estava em uma crisálida. Durante toda a sua vida, sem­pre fora uma vítima. Primeiro, nas mãos do padrasto, Clyde Schubert. Depois, ao longo dos anos escolares, como a garota quieta demais para se defender sozinha. Mais tarde, fora pre­sa fácil para um homem como Tommy Fairheart. Ele lhe contara belas mentiras, a fim de conseguir um lugar onde morar e boa co­mida na mesa. O fato de haver deixado uma parte de si para trás não fazia a menor im­portância para um homem como Tommy, pois ele não tinha a menor noção de quem ele era... ou do que realmente significava sobreviver. China fora um brinquedo nas mãos de um predador como ele.

Até então, todas as pessoas que a haviam tornado vítima eram pessoas que ela conhecia, homens que deveriam cuidar dela, que deve­riam amá-la. Tornar-se vítima de um ato de violência injustificado era o passo seguinte mais lógico. Só restava saber que tipo de mulher emergiria de tal experiência.

No momento em que pôs os pés na UTI, Bem esqueceu-se de que Red estava atrás dele. Adiantou-se na direção de China com propósito firme, dizendo a si mesmo que, quando a alcançasse, ela acordaria. Precisava fitá-la nos olhos, e ela tinha de saber que ele estava ali.

Quando chegou ao lado da cama, parou, respirou fundo e abaixou-se, até que seus lábios estivessem muito próximos do ouvido dela.

— Eu voltei, conforme havia prometido — sussurrou.

— Trouxe um amigo. O nome dele e Red. — Endireitou-se e lançou um olhar duro para o parceiro, como se o advertisse contra qualquer intenção de discutir.

— Red, diga olá a srta. Brown.

— Olá, srta. Brown. Sinto muito pelo que lhe aconteceu.

Ben assentiu, mostrando-se satisfeito com a maneira como Red desempenhara seu papel. Então, tocou o braço de China e, depois, sua testa. A febre cedera, desde sua última visita. Uma enfermeira passou por eles, retomando da cama de um paciente.

— Qual é o estado atual de China Brown? — Ben perguntou a ela.

A enfermeira parou. Àquela altura, toda a equipe da UTI sabia que aqueles dois eram policiais.

— Ela está estável, senhor.

— A condição dela apresentou alguma melhora?

— Ainda não. O estado dela continua sendo considerado crítico, mas ela está resistindo, pelo que devemos nos sentir gratos. Quer saber mais alguma coisa?

— Já solicitei um guarda para vigiar a entrada da UTI. Ninguém pode entrar para vê-la, a menos que tenha a minha permissão.

— Sim, senhor. Anotarei isso no prontuário dela.

— Obrigado — Ben agradeceu e, então, olhou para Red com ar de interrogação.

Red examinou a mulher deitada na cama, antes de encarar o parceiro.

— Ela é bem miúda, não?

Ben pousou a mão sobre a dela.

— Sim, é mesmo pequena.

— E parece muito jovem também — Red acrescentou.

— Segundo a carteira de motorista, tem vinte seis anos.

— Disse que não tem parentes vivos?

— Não que saibamos.

O silêncio envolveu os dois, enquanto permaneceram parados, um de cada lado da cama de China. Finalmente, Red não resistiu e perguntou:

— Por que, Ben? Por que essa fascinação? Ben ergueu os olhos. Começou a pensar em uma porção de desculpas, todas relacionadas ao fato de seu comportamento ser parte do trabalho, mas algo o impediu de continuar. Olhou para China, tão pálida, e lembrou-se dos ferimentos que vira no corpo dela e da perda que ela havia sofrido. Começou a falar, mas as palavras não atravessaram seus lábios. Então, limpou a garganta e sacudiu a cabeça.

— Não sei — murmurou com sinceridade.

— Juro por Deus que não sei.

— Muito justo — Red replicou. Ficaram em silêncio, cada um perdido em seus próprios pensamentos. E, então, algo aconteceu.

China respirou fundo e gemeu. Ben sobressaltou-se e tocou-lhe a face, acariciando-a de leve, enquanto falava:

— Não tenha medo. Estou aqui.

Enquanto os dois a observavam, uma lágrima surgiu debaixo de uma das pálpebras, e deslizou por sua face. Tal visão atingiu Ben como um golpe físico. Ele voltou a se inclinar sobre ela, ao mesmo tempo em que seus olhos ficavam embaçados de lágrimas.

— Chore menina. Chore quanto quiser. Quando tudo isso terminar e toda essa dor não passar de uma lembrança, vou descobrir um meio de fazê-la sorrir. Está me ouvindo, China Brown? É uma promessa que estou fa­zendo a você.

Red desviou o olhar. A situação começava a emocioná-lo, também. Ele limpou a garganta e resmungou:

— Precisamos ir embora. Temos um assas­sino para encontrar.

Ben endireitou-se com expressão fria e zangada.

— E o primeiro lugar que visitaremos será o apartamento de Chaz Finelli. Talvez encontremos algo, lá, que nos dê um ponto de onde começar.

Bobby Lee entrou na sala de jantar e sorriu para a empregada, que despejava café em sua xícara.

— Bom dia, Delia. Diga à cozinheira que hoje quero os meus ovos mexidos. E traga-me biscoitos e salsichas. Estou faminto.

— Sim, senhor senador. Sua mãe vai tomar o desjejum com o senhor, hoje?

Antes que Bobby Lee pudesse responder, Mona apareceu e deu ela mesma a resposta;

— Já estou aqui. Quero morangos frescos torradas. E traga um pouco do chá de ervas de que tanto gosto.

— Sim, senhora — Delia replicou, deixando a sala de jantar apressada, antes que a briga começasse.

Começaria, com toda certeza, pois embora Mona Wakefield estivesse usando um robe de seda longo, era óbvio que não havia absolutamente nada por baixo dele.

Bobby Lee estreitou os olhos, irritado, observando a mãe se sentar. Quando ela se inclinou para frente, a fim de ajeitar a bainha do robe, o decote se abriu, revelando uma boa porção de um seio voluptuoso. Bobby revirou os olhos.

— Pelo amor de Deus, mamãe, amarre esse robe direito, ou vista algo por baixo dele. Será possível que não tem vergonha?

Mona baixou os olhos para o próprio corpo e deu de ombros, ajustando o robe.

Você é tão moralista, Bobby Lee. Se eu não me lembrasse tão bem das dores do parto, poderia jurar que você não é meu filho.

— Ah, se isso fosse verdade! — ele sussurrou consigo mesmo, retomando a leitura da primeira página do Dallas Morning News.

— Eu ouvi — Mona informou-o.

— Pode, por favor, emprestar-me parte do seu jornal?

Bobby Lee retirou alguns cadernos do final e estendeu-os para ela.

— Os classificados? — Mona queixou-se.

Ele resmungou algo incompreensível e deu a ela uma outra seção.

A discussão era tão usual que nenhum dos dois deu maior atenção ao outro. O silêncio reinou na sala de jantar, durante os cinco mi­nutos que Delia demorou para voltar com a comida. Mais alguns insultos foram trocados, entre passar a manteiga e o açúcar um para o outro. Depois disso continuaram a comer e ler o jornal. Mona bebia o último gole de seu chá quando seus olhos pousaram em uma pequena notícia.

— Ora, Bobby Lee, ouça isto.

Ele abaixou o jornal e a fitou com um suspiro.

— Mamãe, você sabe que detesto que leiam para mim.

Ela não estava prestando a menor atenção ao filho, o que não era surpresa. Quando Mona Wakefield dera atenção à família?

Ela limpou a garganta e passou o guardanapo pelos lábios. Então, começou a ler em voz alta, recitando apenas os detalhes importantes da história.

— Assassinato em Oakcliff... dois mortos... sem testemunhas... polícia sem pistas...

Bobby Lee interrompeu-a:

— A polícia nunca tem pistas — resmungou.

— Não é verdade — Mona retrucou.

— Está zangado porque um policial o fez parar, no mês passado, e lhe aplicou uma multa por alta velocidade.

Bobby Lee estreitou os olhos.

— O garoto não sabia qual é o lugar dele. Mona sorriu.

— Pois eu acho que sabia. O fato de ser senador não o transforma em Deus. — O sorriso tornou-se mais largo.

— Isso vem depois, quando você for eleito presidente dos Estados Unidos. Aí, então, você será Deus.

Um sorriso relutante curvou os lábios de Bobby Lee.

— Você é uma bruxa, sabia? Mona ergueu uma sobrancelha.

— Não sei de nada. Agora, deixe-me terminar — disse, passando a ponta do dedo pela página, até se localizar.

— Ah, sim! Aqui está o que estou tentando lhe dizer. O homem que foi assassinado era Chaz Finelli. — Ela fez uma careta.

— Nunca gostei daquele sujeito.

Bobby Lee fitou-a, boquiaberto. A reputação repugnante do homem que tirava fotografias escandalosas dos ricos e famosos de Dallas era bastante conhecida. O fato de sua mãe se referir a ele, usando o apelido, deixava-o nervoso.

— Conhece Finelli?

Ela olhou por cima do ombro.

— Meu chá acabou. Onde está Delia? — Bobby Lee agarrou a mãe pelo braço.

— Mamãe, eu fiz uma pergunta.

— E eu ouvi.

— Então responda — ele berrou, apertando ainda mais os dedos em torno do braço dela.

— Diabos! Acabo de anunciar minha candi­datura à presidência. Não preciso de surpresas indesejáveis no meio do meu caminho. Diga-me, exatamente, como conheceu Finelli.

— Que diferença isso faria, agora? Ele está morto, não está?

Bobby Lee levantou-se e, naquele momento, Mona quase sentiu medo do filho. A voz dele tremia, tamanha era a sua fúria.

— Responda à minha pergunta! Agora!

Mona deu de ombros.

— Não foi nada demais — declarou.

— Fiquei um pouco bêbada na festa de aniversário do prefeito, no ano passado.

A mente de Bobby Lee girava em disparada. Lembrava-se com clareza do incidente. Tivera de fazer muitos favores para impedir que o caso fosse publicado pela imprensa.

— E?...

— Ora, Bobby Lee, uma mulher também tem suas necessidades, sabia? John Woodley e eu estávamos na estufa quando luzes come­çaram a piscar. Pensamos ser parte dos fogos de artifício da festa, até uma semana depois. John avisou-me que havia recebido algumas fotos pelo correio.

Lançou um olhar nervoso para Bobby Lee. Nunca o vira tão quieto, nem tão furioso.

— O que, exatamente, você e John estavam fazendo nessas fotos?

Ela sorriu.

— Bem, não estávamos brincando de bem-me-quer, mal-me-quer, Bobby Lee. Que diabos acha que estávamos fazendo?

— Jesus Cristo! — ele resmungou.

— Você ainda vai provocar a minha morte.

— Ora, acalme-se. John pagou o que ele pediu e recebeu os negativos também.

— Nenhum chantagista que se preze elimina todas as evidências. Em algum lugar, tenho absoluta certeza, há cópias dessas fotografias, e elas vão aparecer justamente quando menos poderiam!

Mona detestava estar errada e, assim como o filho, quando se via diante de um problema, reagia com raiva. Levantou-se, arrastando a cadeira com grande alarde, e atirou o guardanapo no rosto dele.

— Como? Pelo correio-fantasma? Ele está morto, Bobby Lee. Cadáveres não contam histórias.

Bobby Lee empalideceu.

— Preciso telefonar para Ainsley. — Resistindo ao impulso de esmurrá-la, limitou-se a apontar-lhe o dedo em riste.

— Não saia desta casa hoje, está me ouvindo? Se fizerem alguma ligação entre você e esse assassinato, então estará tudo acabado... para nós dois!

Bobby Lee deixou a sala de jantar com passos pesados. Mona foi até a janela que dava para os jardins cobertos de neve. O gelo pendia do telhado, parecendo lanças de cristal. Um casal de cardeais voava de galho em galho, em busca de comida, tão óbvios aos olhos hu­manos quanto poças de sangue na neve. Mona observou-lhes o esforço inútil, sem nenhuma emoção. Quando finalmente desistiram e voa­ram embora, ela se afastou da janela. O mun­do lá fora era duro e, na opinião dela, não importava quanto os pássaros eram lindos. Se não tinham o que precisavam para sobreviver, não mereciam viver.

Uma fina camada de poeira cobria a mo­bília, no apartamento de Finelli, assim como três caixas de pizzas vazias, empilhadas sobre a mesa, com um pedaço mumificado de pizza de pepperoni sobre elas. No chão da cozinha, havia uma pequena tigela de plástico, contendo um punhado de ração para gato res­secada. Ao lado, havia outra vasilha, que pa­recia ser de água, mas que havia se evapo­rado. Só se podia esperar que o gato para quem o banquete fora servido houvesse dei­xado o apartamento. Do contrário, o mau cheiro que sentiam era o gato. Ben e Red hesitavam em descobrir.

— Meu Deus, que cheiro! — Red queixou-se.

— Espero que não seja do gato. Por onde quer começar?

Ben retirou um par de luvas de borracha do bolso do casaco e calçou-as.

— Começarei pelo quarto, e você pela cozi­nha, certo?

— O que estamos procurando? — Red indagou.

— Qualquer coisa que possa levar um ho­mem a ser assassinado.

— Certo. Por acaso tem outro par de luvas? Deixei as minhas no carro.

— Sim, acho que tenho — Ben respondeu, enfiando a mão no bolso.

— Aqui estão. Ao trabalho.

Com isso, separaram-se, à procura de respostas para um crime que, até então, não fazia o menor sentido.

O tempo passou, enquanto eles revistavam cada centímetro do apartamento. Red recusou-se a entrar no banheiro e, por isso, foi Ben quem assumiu a tarefa. Assim que entrou, o cheiro que haviam sentido quase o der­rubou. Depois de uma rápida busca pelos armários e gavetas, ele concluiu que o cheiro vinha da pia.

Estava imunda, coberta de limo e fios de cabelo, além de algo que parecia ser alguma substância química. Aparentemente, tratava-se de algo utilizado na revelação de fotografias, mas para ter certeza Ben raspou uma amostra da superfície da pia. Talvez fosse resíduo de um laboratório de drogas. Se fosse, produzir anfetaminas poderia ser motivo mais que suficiente para alguém querer ver Finelli morto.

Havia uma grande variedade de vidros, na maioria de substâncias químicas, no armário debaixo da pia, e Ben começava a acreditar que o banheiro fora usado por Finelli como câmara escura para a revelação de seus filmes. Examinou cada um deles, lendo rótulo por rótulo, mas não encontrou nada suspeito. No entanto, quando recolocava um dos vidros no lugar, o som provocado pelo choque com a madeira sugeriu a existência de um espaço oco. Ben afastou os vidros e bateu na prateleira mais uma vez. Sim, parecia haver um espaço aberto, ali embaixo.

— Ei, Red! — chamou.

— Tem um minuto? — Red apareceu na porta.

— O que foi?

— Tem uma lanterna?

Red retirou uma pequena lanterna do bolso.

— Assim como os escoteiros, estou sempre preparado.

Sorrindo, Ben apanhou-a e acendeu-a. Aproximou-se um pouco mais do armário, dirigindo o facho de luz à prateleira inferior. No mesmo instante, deu-se conta de que aquela não era a madeira original, de que o armário fora feito. Depressa, retirou todos os vidros e colocou-os na pia. Então, apanhou o canivete que carregava no bolso e cravou-o na extremidade de uma pequena fenda.

— O que encontrou aí? — Red perguntou.

— Não sei — Ben respondeu.

— Talvez não seja nada.

Mesmo assim, continuou a escavar com o canivete. Alguns segundos depois, ouviu-se um estalo e, de repente, a prateleira inteira estava em suas mãos.

No mesmo instante, Red abaixou-se e espiou por cima do ombro de Ben.

— Há algo aí embaixo? — Ben moveu a lanterna.

— Miserável!

— O quê? — Red inquiriu.

— O que há aí dentro?

Ben começou a retirar fotos e envelopes pardos de uma pilha imensa. Red arregalou os olhos.

— Ah, meu Deus! Veja isto! Ei, não é Sonny Harold, do Dallas LoneStars, com a seringa na mão? Pensei que estivesse em liberdade condicional.

— E está... — Ben confirmou. Red apanhou mais uma.

— E esta... a mulher nua, montada no touro mecânico, parece familiar, mas...

— A esposa do prefeito — Ben resmungou.

— E devo dizer que já vi fotos melhores!

— Onde acha que ele conseguiu estas coisas? Red indagou.

— Com a famosa câmera da qual ele nunca se separava e que, agora, desapareceu. Sem dúvida, eu diria que temos, no mínimo, uma centena de razões para o assassinato de Finelli. A pergunta continua sendo: qual desses pervertidos disparou a arma?

 

Aaron Floyd esmurrou a mesa, atirando de volta a lista que lhe fora entregue por Ben e Red.

— Meu Deus! Vocês dois fazem idéia da confusão que isso vai criar?

A voz de Ben soou carregada quando ele respondeu ao capitão:

— Sim, fazemos, mas não dou a mínima para isso. As pessoas que aparecem nessas fotografias causaram seus próprios problemas. Finelli exacerbou-os e acabou morto. Estamos apenas tentando fazer justiça àquele cretino, não que eu ache que ele merecesse, mas China Brown, certamente, merece.

Aaron Floyd passou a mão pelo rosto e, em seguida, pelos cabelos, dando há si mesmo tempo para se acalmar. Respirou fundo e, quando voltou a falar, foi em tom de um pedido de desculpas.

— Não foi isso o que eu quis dizer — mur­murou.

— Ora, é claro que quero o assassino atrás das grades, e se ele estiver nessa lista, vamos encontrá-lo. — Voltou a examinar a lista e sacudiu a cabeça.

— A mulher do prefeito? Larry Dee Jackson? Ariel Simmons? — Revirou os olhos, ao repetir o nome dela.

— Ariel Simmons é uma daquelas pregadoras da TV, meu Deus! Por enquanto, mantenham os interrogatórios bem discretos, até descobrirmos quem tem um bom álibi e quem não tem. Se isso vier a público, teremos a prefeitura de Dallas, a associação dos cantores de música country e até mesmo Deus pedindo nossa cabeça. Não quero ver o departamento de polícia sendo processado, estão me ouvindo?

— Claro. Cuidaremos para não pisar em mais calos do que são necessários — Ben replicou.

— Mas acho que não podemos nos esquecer de que temos uma vítima que está entre a vida e a morte, uma mulher que ainda terá de ouvir: "seu bebê está morto". Quando ela acordar, porque ela vai acordar, o senhor vai querer dizer a ela que ainda não sabemos quem matou sua filhinha porque temos medo de ofender alguém importante?

Antes que Aaron Floyd pudesse responder.

Ben apanhou a lista de suspeitos e saiu da sala. Red deu de ombros, em um silencioso pedido de desculpas.

— Este caso o afetou mais do que o normal, capitão. Ele vai ficar bem.

— É bom que fique, ou porei alguém no lugar dele.

— Isso não será necessário — Red argumentou, saindo da sala depressa, antes que acabasse dizendo o que pensava, também.

Estava tão furioso quanto Ben. Em seu modo de ver as coisas, se aquele bando de idiotas não houvesse se metido em situações tão grotescas, não existiriam fotografias incriminadoras para causar preocupações. Sua mãe costumava dizer que quem se deita com os cães está arriscado a pegar pulgas, e depois que as fotos de Finelli haviam sido encontradas, seria necessário mais do que banhos e talcos para acabar com aquela coceira.

— Ben, espere — Red chamou, apanhando o casaco e seguindo o parceiro.

Ben virou-se, as feições contorcidas de raiva.

— Odeio política! Quem conhece as pessoas certas, ou tem dinheiro suficiente, pode comprar uma saída para tudo.

— O capitão disse que se você não se controlar, ele vai colocar alguém no seu lugar.

— Pois ele que tente! — Ben desafiou.

— Quem dirige? Você ou eu?

— Eu. Ben atirou as chaves do carro para Red, que sacudiu a cabeça, mas continuou a acompanhá-lo.

Vinte e quatro horas depois eles haviam eliminado quinze dos quarenta e cinco nomes da lista. Algumas daquelas pessoas estavam fora da cidade quando o incidente ocorrera, outras tinham álibis inabaláveis. Porém, todas haviam ficado chocadas por descobrirem que ainda existiam fotos de suas indiscrições. No momento, o homem que estavam interrogando não estava nem um pouco satisfeito por ver a fotografia dele mesmo e da adolescente a quem ele dera uma carona fazendo sexo no banco traseiro do carro dele, nus como haviam chegado ao mundo.

— Miserável! — Jody Franklin berrou.

— Paguei uma fortuna àquele patife para ter as fotos e os negativos. Ele me garantiu que es­tava me entregando tudo.

— Evidentemente, ele mentiu — Red concluiu.

— Quando foi a última vez que viu o Sr. Finelli? Jody apanhou um charuto da caixa sobre sua mesa, mordeu a ponta e cuspiu-a. Ben observou-o em silêncio. Jody estava tão furioso que não seria de admirar se o charuto em seus lábios se acendesse sozinho. Aquele tipo de fúria poderia, facilmente, crescer e se tornar algo muito mais... mortal.

— Sr. Franklin?

Jody Franklin lançou um olhar irado para Red.

— Já houvi, da primeira vez — declarou ir­ritado.

— Estou pensando. — Acendeu o cha­ruto, tirou várias baforadas, até ver a extre­midade em brasa. Então, deu a volta na mesa e sentou-se com um gemido e apertou o interfone, chamando a secretária:

— Eileen, por favor, traga minha agenda do ano passado.

Momentos depois uma mulher de baixa estatura, muito bem vestida, entrou no escritório, observando os detetives com curiosidade.

— Alguma data em particular que eu deva procurar senhor?

— Sim. Quando fui à exposição de gado em Fort Worth? Acho que foi na primavera, mas não me lembro a data exata.

Eileen folheou a agenda, deslizando o dedo pelas páginas, até encontrar o que procurava.

— Aqui está. De doze a quinze de maio. O senhor se hospedou no Hilton.

— Obrigado, Eileen. Era só isso.

A secretária saiu. Assim que a porta se fe­chou atrás dela, Franklin foi até a janela, seguido por uma nuvem de fumaça.

— Foi em quinze de maio, minha última noite em Fort Worth. O cretino apareceu no hotel, mostrou-me uma cópia da foto que vocês trou­xeram e disse que se eu não lhe pagasse dez mil dólares, enviaria cópias à minha esposa, mi­nhas filhas e minha mãe. — Virou-se, vermelho de raiva.

— Minha mãe! Ela tem oitenta e qua­tro anos. O simples choque de ver isso a mataria!

— O senhor pagou?

Franklin deu de ombros.

— É claro que paguei. Dinheiro não era pro­blema. Eu teria dado o dobro, sem pensar duas vezes. Recebi os negativos e todas as cópias. — Estreitou os olhos, voltando a fixá-los na foto sobre a mesa.

— Ao menos, foi o que pensei.

— E não voltou a vê-lo, depois disso? — Ben perguntou.

Franklin tirou uma longa baforada do charuto, soprou a fumaça em anéis, antes de responder:

— Não freqüentamos os mesmos círculos so­ciais, detetive.

— Onde estava na última sexta-feira? — Franklin tirou outra baforada, pensativo.

— Ah, sim! Levei minha esposa e minha filha caçula para assistir ao Quebra-Nozes. — Fez uma careta.

— Entediante, com aquelas bailarinas na pontinha das sapatilhas, mas vocês sabem como é... às vezes temos de fazer o que não queremos.

— Teremos de verificar isso — Ben informou-o. Pela primeira vez, desde que os dois haviam entrado em seu escritório, Jody Franklin se mostrou assustado.

— Verifiquem com a administração do tea­tro. Eles vão confirmar nossa presença lá. Pergunte ao prefeito Devlin, nós nos sentamos no lado dele e da esposa. Só não liguem para Mary Sue. Não quero magoá-la.

— Deveria ter pensado nisso antes de fazer sexo com uma garota com idade para ser sua filha — Ben retrucou.

— Diabos, detetive, não precisa ser tão duro! Franklin protestou.

— Não vou mentir e dizer que não gostei de saber que aquele patife estava morto, mas juro por Deus que não tive nada a ver com a morte dele.

— Manteremos contato — Ben limitou-se a dizer.

— Ah, não saia da cidade.

Franklin estava pálido, transpirando muito, quando os dois saíram de seu escritório. Red sorriu quando alcançaram o elevador.

— Isso só prova que ser rico não significa ter inteligência — comentou.

— O que acha? Ele disse a verdade?

Ben deu de ombros.

— Provavelmente. Será muito fácil desco­brirmos. Quanto à parte da inteligência, sem dúvida Jody Franklin poderia ter usado há dele um pouco mais, assim como uma dose de bom senso também.

— E agora? — Red indagou. Ben baixou os olhos para a lista.

— Temos tempo para interrogar mais um ou dois, antes... — Seu telefone celular tocou.

— Espere um instante — ele murmurou, antes de atender:

— Ben English.

— Detetive English, aqui fala Dr. Pope. Pediu para avisá-lo de qualquer alteração nas condições de China Brown, não foi?

O coração de Ben ameaçou parar de bater.

— Sim...

— Como o senhor sabe, estamos diminuin­do gradativamente as doses de sedativos. E, como o senhor também sabe os ferimentos dela estão se curando de maneira mais do que satisfatória.

Ben interrompeu-o:

— O senhor não me telefonou para dizer isso. O que há de errado com ela?

— China Brown está piorando — o médico foi direto ao ponto.

— Seus sinais vitais não estão nada bons.

Ben sentiu o choque, seguido pelo pânico. Não era possível que, depois de tudo aquilo, Deus fosse permitir que ela morresse.

— Isso não faz sentido — disse.

— Se tudo corre tão bem como o senhor diz, por que o estado dela pioraria?

— Imagino que existam diversas explicações, mas minha opinião é de que ela não quer viver.

Ben emitiu um gemido doloroso.

— Estou a caminho.

— O que houve? — Red perguntou.

Ben saltou para dentro do elevador, antes que a porta se abrisse por completo. No mesmo instante, apertou o botão para que a porta se fechasse e, em seguida, o que indicava o andar térreo. Red conseguiu acompanhá-lo, livrando por um tris o casaco de ficar preso na porta.

— Ei, parceiro, diga o que está acontecendo! Foi com imenso esforço que Ben conseguiu pronunciar as palavras:

— Estão perdendo China Brown.

— Isso é péssimo — Red replicou.

— Se a perdermos, perderemos a nossa única testemunha.

— Ela é muito mais do que uma simples testemunha, droga! — Ben explodiu.

Red segurou-lhe o braço.

— É justamente esse o problema, amigo. Ela não é nada disso. O que quer que você acredite estar sentindo é mero produto da sua imaginação. Ela nem sabe da sua existência.

— Cale a boca! Trate de ficar quieto e me levar ao hospital. Então, estará livre para fazer o que bem entender com o resto do seu dia. Não sairei do lado dela enquanto não tiver certeza de que ela vai ficar bem.

O elevador parou. A porta se abriu. Ben saiu para o saguão e começou a correr na direção da porta. Red o alcançou na calçada.

— Ben, espere!

— O que é?

— E se ela não conseguir?

Ben respirou fundo diversas vezes, tentando responder sem fazer papel de tolo. Então, deu-se conta de que fizera tal papel, pelo menos uma centena de vezes, desde que tudo aquilo começara. Seus ombros vergaram e, por um momento, ele desviou o olhar. Então, ergueu a cabeça e encarou Red com expressão controlada.

— Quem dirige, você ou eu?

— Eu dirijo — Red resmungou.

— Quero chegar lá inteiro.

Era como se China estivesse à deriva. Havia um lugar, situado entre a consciência e o esquecimento, onde ela podia se esconder sem esforço. Tudo o que tinha de fazer era se concentrar na escuridão, e tudo mais desaparecia, até mesmo a dor lancinante que penetrava seu sono. Era um lugar seguro, onde a reali­dade não existia. Quando pensava racional­mente, o que era raro, sabia que estava em um hospital. De vez em quando, a lembrança de coisas feias traziam à tona a explicação do motivo pelo qual ela estava lá. E era nesses momentos que ela se sentia vagar para longe, pois era o que ela realmente desejava, cada vez mais. As lembranças traziam dores muito piores do que qualquer ferimento físico.

China teria se deixado levar definitivamente para a escuridão, não fosse por aquela voz que insistia em pedir que ela ficasse. De certa forma, ela relutava em desfazer aquele vín­culo. A ternura na voz dele, assim como a delicadeza de seu toque, eram coisas pelas quais ela havia ansiado um dia. Mas, agora, era tarde demais para se importar, tarde de­mais para qualquer coisa. Nada mais impor­tava, exceto encontrar a paz e, quando China Brown olhara para o cano daquela arma e sentira a bala que arrancara sua filha de den­tro dela, aceitara o fato de que sua paz jamais seria encontrada na terra. Agora, tudo o que desejava era ir para casa.

Ben já estava fora do carro, correndo, quan­do Red pisou no freio. Durante todo o trajeto até o hospital, ele fora incapaz de pensar em qualquer coisa que não fosse o pânico que o invadira. Sua respiração se dava por inspirações curtas e ansiosas quando ele entrou no elevador. E, quando saiu dele, descobriu-se a correr pelos corredores, na direção da UTI.

Ao ouvir o som dos passos dele, a enfermeira virou-se.

— Dr. Pope me telefonou — ele balbuciou ofegante.

— Sim, senhor. Ele está à sua espera, lá dentro.

Ben largou o casaco e as luvas em uma ca­deira e continuou andando, pois sabia que se parasse não seria capaz de voltar a se mexer.

Dr. Pope estava parado junto ao pé da cama de China. Ergueu os olhos quando a porta se abriu e fez um sinal para que Ben se aproximasse.

Meu Deus, não permita que isso aconteça.

Ele cumprimentou o médico com um aceno de cabeça.

— Obrigado por ter ligado.

— Achei que era importante para o senhor. Foi um prazer chamá-lo.

Pope olhou para China e, então, para o pron­tuário dela, antes de se afastar da cama.

— Fale comigo — Ben disse, olhando fixamente para ela.

— Por que isso está acontecendo?

O médico segurou-lhe o braço e puxou-o para um canto, de maneira que suas vozes não pu­dessem ser ouvidas por nenhum dos pacientes.

— A mente humana é tão poderosa quanto misteriosa — começou.

— Sabemos pouquís­simo sobre seu funcionamento complexo, mas basicamente eu diria que ela simplesmente deixou de lutar. Ben sentiu um aperto no peito.

— Está dizendo que ela quer morrer? Pope voltou a olhar para China e, então, deu de ombros.

— O sentido é o mesmo.

Ben olhou para ela, absorvendo a delicadeza perfeita de seu rosto. Aproximou-se da cama, tocando o braço, depois o punho, mal sentindo o pulso fraco que ainda a mantinha viva. Sua voz tremeu e seus olhos exibiram o brilho da súplica, quando ele implorou ao médico que mudasse seu prognóstico.  

— Não deixe que isso aconteça.

— Está fora do meu alcance — Pope replicou com sinceridade.

— Não há nada que possa dar a ela?

— Em termos médicos, fiz tudo o que podia. Agora, só depende dela. — Deu um tapinha de leve na perna de China e voltou a encarar Ben com um sorriso triste.

— Tenho de examinar os outros pacientes. Se precisarem de mim aqui, as enfermeiras me chamarão pelo pager. — De repente, Ben deu-se conta de que os cinco minutos de visita permitidos na UTI não seriam suficientes. Como ele poderia fazer contato com China, se ela estava inca­pacitada de ouvir sua voz?

— Não sairei daqui — declarou. Ross Pope assentiu.

— Foi o que pensei que decidiria. Já dei ordens para que o senhor fique pelo tempo que desejar. Como sempre, terá de manter si­lêncio, pois não podemos perturbar os demais pacientes.

— Está bem. Prometo ficar quieto.

— Bem, então, até logo — o médico despe­diu-se, mas a atenção de Ben já estava toda concentrada na mulher inconsciente, deitada na cama.

— Sou eu — murmurou com suavidade, pas­sando a ponta do dedo pelo rosto dela, desde a testa até o queixo.

— Eu disse que voltaria.

A única resposta que obteve foi o lento, porém estável bipe do monitor ligado ao coração dela.

— Hoje eu vi um tordo pousado em uma árvore, perto do meu apartamento. Em breve, o inverno será coisa do passado. Posso ajudá-la, querida, mas você precisa acordar.

Bip. Bip. Bip.

Ben abaixou a cabeça e fechou os olhos. Deus dê-me as palavras certas para dizer, antes que seja tarde demais. Tomou a mão dela entre as suas e, então, inspirou profundamente.

— China. China Brown. Pode me ouvir? Se puder, aperte minha mão.

Bip. Bip. Bip.

— Sei que é difícil. Você esteve muito, muito mal, mas está melhorando agora. Sei que pode me ouvir. — Apertou de leve os dedos dela.

Isso que você acaba de sentir fui eu, aper­tando sua mão. Tudo o que tem de fazer é mover um dedo, apenas um pouquinho, e sa­berei que está me ouvindo. Bip... Bip...

Houve uma longa pausa antes que os "bipes" retomassem seu ritmo, e o medo que tomou conta de Ben deixou seu corpo fraco e trêmulo. Sentiu que a estava perdendo, e não sabia o que fazer. Sua voz também tremeu quando voltou a falar:

— Médicos e enfermeiras trabalharam mui­to para que você pudesse melhorar. Há poli­ciais trabalhando dia e noite, tentando apa­nhar o homem que a feriu. Você pensa que está sozinha, mas não está. Você não está so­zinha, China. Você tem a mim. Estou aqui. Tudo o que tem de fazer é apertar minha mão.

Apertou os dedos dela novamente, tentando transmitir o calor de seu próprio corpo para o dela.

Bip, Bip. Bip. Bip...

Mais uma vez, o monitor fez uma pausa, antes de retomar o ritmo estável. Ben pôde sentir a vida dela se esvaindo, diante dos olhos dele, e a simples idéia de nunca vê-la sorrir quase o enlouqueceu. Inclinou-se para ela, até que seus lábios quase tocassem o ouvido dela, e voltou a falar, mas dessa vez o fez com voz dura e tensa de medo.

— Diabos, não desista de mim, mulher! Está me ouvindo? Eu não desisti de você. Você me deve, ao menos, a cortesia de fazer o mesmo.

Bip-bip. Bip-bip. Bip-bip.

Ben não sabia se tal irregularidade era um bom ou um mau sinal, porém, havia feito um acordo e empenhado sua palavra.

— Tudo bem — disse.

— Fique zangada. Não há nada que poderia me fazer mais feliz do que ver você abrir os olhos e me mandar para o inferno. Se é disso que você precisa, vá em frente, pode ficar furiosa. Faça qualquer coisa, menos desistir.

Bip-bip. Bip, Bip. Bip.

Ben respirou com um pouco mais de facili­dade. Sentindo a necessidade de tocá-la e, ao mesmo tempo, de que ela sentisse sua presença física, começou a afagar-lhe os cabelos, enquanto tentava pensar em um jeito de atin­gi-la com suas palavras, provocando-lhe algu­ma reação. Quando se endireitou, buscando na mente algo para dizer, viu lágrimas se acu­mulando nos cantos dos olhos dela. O ar dei­xou seus pulmões como se ele houvesse rece­bido um golpe. De repente, Ben compreendeu.

— Ah, querida — murmurou, voltando a apertar a mão dela.

— Você sabe, não é? Sabe que seu bebê morreu.

O monitor apitou de maneira errática algumas vezes. Ben estava tão concentrado nos sons que não percebeu o movimento dos dedos dela de encontro à palma de sua mão.

— Eu sinto muito — ele sussurrou e, sem pensar, inclinou-se e beijou-a na face.

— Eu sinto muito, mesmo.

Bip... Bip... Bip...

O intervalo que separava um som do outro fez Ben pensar em soluços abafados. Foi somente quando voltou a se endireitar que sen­tiu um leve tremor na mão dela. Seus olhos pousaram nos dedos delicados, que repousavam na palma de sua mão.

— China? Está me ouvindo? Se está, mova seus dedos.

No início, ele não viu nada. Então, muito lentamente, um dedo se ergueu seguido pelo outro dedo, ao seu lado.

— Obrigado, meu Deus! — ele murmurou, quando China roçou a ponta de dois dedos contra a palma de sua mão.

— Isso mesmo! — Ben quase gritou.

— Eu sabia que você não se entregaria com tamanha facilidade!

No mesmo instante, o movimento cessou, e a mensagem era tão clara quanto fora o si­lêncio dela, antes.

— Não adianta negar — ele insistiu.

— Ninguém que tenha lutado tanto para continuar vivo se entregaria assim. Mexa seus dedos de novo, China. Por favor, prove que estou certo.

Bip-bip. Bip-bip. Bip-bip.

— Não! Não faça isso! Não faça isso comigo! Se desistir agora, vai deixar que um homem continue livre, apesar do crime que cometeu. E isso o que você quer? É isso, China?

Bip-bip-bip. Bip-bip-bip.

— Não acredito no que está tentando dizer! Não acredito em você! Você amava a criança que carregava no ventre. Agora, ajude-me a encontrar o homem que a matou.

China inspirou profundamente, e Ben pren­deu a respiração, esperando que ela soltasse o ar. Se ela não o fizesse, ele não sabia se seria capaz de continuar vivendo.

Então, ela expirou. Aos ouvidos de Ben, o som foi de um suspiro. Ao mesmo tempo, os dedos dela se curvaram em torno da mão dele, como se tentassem se agarrar à vida. Os olhos de Ben encheram-se de lágrimas.

— Era exatamente o que eu queria saber — ele murmurou.

— Apóie-se em mim quanto quiser até se sentir forte o bastante para se sustentar sozinha. Então, farei a promessa de que, juntos, encontraremos o assassino de seu bebê e faremos justiça.

Bip. Bip. Bip. Bip. E assim o monitor prosseguiu, lento e estável, durante o resto da noite.

Mais tarde uma enfermeira trouxe uma ca­deira e colocou junto à cama de China. Ben sentou-se, sem jamais soltar a mão dela. As horas foram passando, e suas pálpebras tor­naram-se pesadas. Ele apoiou a cabeça no bra­ço, para descansar... apenas por um minuto.

Ben acordou ao amanhecer e, por um mo­mento, permaneceu imóvel, ouvindo os ruídos da troca de turno, assim como os passos que iam e vinham, enquanto as enfermeiras da manhã verificavam as condições de cada pa­ciente, distribuindo palavras gentis juntamen­te com os medicamentos. Demorou um ins­tante para se dar conta de que China Brown não estava mais segurando sua mão. De al­guma maneira, durante a madrugada, ela ha­via enroscado os dedos nos cabelos dele.

Mesmo depois de ter erguido a cabeça para checar o monitor ao lado da cama, Ben ainda podia sentir o calor dos dedos dela em seu couro cabeludo. O som forte e estável do mo­nitor foi bem-vindo. Ben levantou-se e espreguiçou-se, erguendo os braços acima da cabeça e arqueando as costas, antes de pousar a mão no rosto dela.

— Bom dia, querida. Quero que saiba que compreendi sua mensagem. Você vai ficar bem, assim como eu. Vou voltar e, quando voltar, prometo que estarei barbeado. Não quero parecer um louco quando você vir meu rosto pela primeira vez.

Então, inclinou-se e beijou-a mais uma vez, saboreando o calor da pele macia de encontro aos seus lábios. Quando se erguia, hesitou,

Menos de um centímetro separava seu rosto do dela. Assim, Ben moveu-se apenas um pouco e voltou a beijá-la. Dessa vez beijou-a nos lábios. Quando deixou a UTI, Ben sorria.

Bobby Lee atirou o jornal sobre a mesa da sala de jantar, bebeu um longo gole de seu café predileto, reclinou-se na cadeira e olhou em volta, apreciando tudo o que lhe pertencia.

A opulência de sua casa era evidente, mas de extremo bom gosto. O painel de fundo perfeito para um homem que seria rei. Os tons festivos de vermelho e verde do Natal enfeitavam todos os cantos, uma prova da eficiência do caríssimo decorador contratado por Mona. A síndrome do "garoto pobre que venceu na vida" trabalhava a favor de Bobby Lee, e o fato de ser um reco­nhecido herói de guerra ajudava um bocado. Seus olhos se estreitaram quando ele pensou nos anos que passara no Vietnã. Na época, ele não dava a mínima para as chances de voltar vivo para casa, e menos ainda de voltar inteiro. Se alguém houvesse lhe sugerido usar aqueles anos como trampolim para a política, ele teria rido às gargalhadas.

Riu consigo mesmo e sacudiu a cabeça, be­bericando o café. A vida podia ser dura, mas também podia ser bela. No momento, seu mundo estava repleto de beleza e luz.

— Bobby Lee! Onde está você?

O momento de perfeição se desfez, no ins­tante em que a voz estridente de sua mãe ecoou pela mansão. Diabos! Ela jamais seria capaz de aprender? Damas não gritam! Bobby Lee levantou-se de um pulo e marchou até a porta. Mona estava parada no meio do corre­dor, calçando um par de luvas que ia até os cotovelos, preparando-se para gritar de novo, quando ele falou:

— Precisa berrar assim?

— Se quiser ser ouvida... — ela respondeu, aproximando-se com seus passos elegantes, mesmo de cima dos saltos imensos.

Os olhos de Bobby Lee estreitaram-se com desdém quando ele examinou o traje que a mãe usava. Tratava-se de um conjunto de veludo vermelho, muito curto, com falsa pele de raposa circundando o decote. As luvas eram mais longas que a saia, e os seios estavam tão apertados debaixo do zíper do casaco que um espirro provocaria um desastre.

— Aonde você vai?

— Vou sair.

— Não gostei da resposta. Ela revirou os olhos.

— Vou fazer compras, certo?

— Está afirmando ou perguntando. Mona apontou o dedo em riste para o filho e bateu a unha no peito dele a cada palavra que pronunciou:

— Sou sua mãe, não sua filha. Você não tem o direito de me dizer aonde ir ou o que fazer. Fui clara?

Bobby Lee agarrou-lhe o dedo e, lentamente, começou ã virá-lo para trás.

— Você é uma bomba ambulante. Farei o que for preciso para mantê-la longe de encrencas, mesmo que isso signifique trancá-la em seu quarto. Fui claro?

A dor já subia pelo braço de Mona quando ela gritou e libertou-se.

— Está me machucando! Como se atreve? Bobby Lee aproximou-se tanto que pôde sentir o hálito de hortelã da mãe.

— Farei muito pior se você fizer mais alguma bobagem, querida mamãe.

Mona ficou confusa.

— Do que está falando?

Bobby Lee sorriu e, naquele momento, seria impossível para ele saber quanto se parecia com a mãe.

— Você não se acha esperta? Pois trate de descobrir.

Mona girou nos calcanhares, furiosa. Deter­minada a não permitir que ele percebesse quanto suas palavras a haviam perturbado, marchou para a porta com passos firmes. Quando já atravessava a soleira, virou-se e gritou:

— Seu filho da p...! Ele sorriu.

— Você deve saber melhor que ninguém. A porta se fechou atrás dela com grande estrondo, entortando um quadro pendurado na parede. Bobby Lee ficou ali parado por alguns instantes, olhando fixamente para a porta, com ar pensativo. Então, deu de ombros e voltou ao seu café. Tinha uma reunião a presidir e não lhe restava mais tempo para pensar na mulher "hipersexuada" que o dera à luz.

 

Ben English desfrutava de excelen­te estado de espírito quando ele e seu parceiro estacionaram diante dos portões da propriedade de Ariel Simmons, na extre­midade sul de Dallas. Red apontou para os dois anjos maciços que guardavam o portão, como sentinelas.

— A menos que ela tenha uma boa expli­cação para a fotografia dela que encontramos no apartamento de Finelli, vai precisar de mais de dois desses camaradas — comentou.

Ben deu de ombros e tocou a campainha, estrategicamente colocada para que o moto­rista não tivesse de sair do carro.

— Talvez tenha sido apenas uma péssima es­colha de fantasia para uma festa de Halloween.

Red sorriu.

— Roupas de couro preto, um chicote e cor­rentes de ferro, talvez... mas um homem al­gemado não faz parte da fantasia.

Ben assentiu.

— Sim, mas se Finelli não tivesse escrito o nome dela no verso da foto, provavelmente nunca teríamos conseguido identificá-la. Está muito diferente do anjo loiro que aparece na televisão, quatro noites por semana. Os portões se abriram.

— Então, vamos conversar com o anjo e ver o que ela tem a dizer a seu próprio favor — Red determinou.

Ben pôs o carro em movimento. Porém, quando foram recebidos por uma empregada uniformizada e conduzidos à sala de visitas de Ariel Simmons, a imagem que tinham dela tornou a mudar. A sala era toda decorada com cristal e aço, com muitos ângulos acentuados na mobília e esculturas cujas formas não fa­ziam o menor sentido.

— Parceiro — Red murmurou —, o que tem a dizer sobre isso?

Ben ficou ali parado, com as mãos nos bol­sos, olhando em volta. Embora costumasse di­zer que gosto era uma coisa totalmente sub­jetiva, o primeiro termo que lhe ocorreu foi "terra de ninguém".

— Parece o cenário de um filme de ficção científica de quinta categoria — declarou.

— Cavalheiros, em que posso ajudá-los?

A voz da mulher surpreendia por sua clareza e poder. Os dois se viraram e depararam com a mulher alta e esbelta, parada na porta. Os cabelos loiro-platinados eram mais curtos que os de Red. A calça azul-clara, muito justa, acentuava as pernas bem torneadas, enquanto a bainha bordada da camisa larga quase al­cançava seus joelhos. Sapatilhas azuis envol­viam-lhe os pés, e uma grossa corrente dou­rada funcionava como cinto, moldando a ca­misa à cintura delgada. Ben exibiu o distintivo.

— Detetive Bennett English, Homicídios. Este é meu parceiro, detetive Fisher.

Red também mostrou as credenciais.

Enquanto Ariel se aproximava, Ben tentou sobrepor à mulher da foto de Chaz Finelli no rosto dela, mas não foi capaz de estabelecer a ligação. Teriam cometido um erro?

— E então, detetives, a que devo o prazer da visita?

— Talvez prefira sentar-se — Ben sugeriu.

— Nossa conversa poderá demorar um pouco. — Ariel sorriu e passou por eles, movendo-se como uma dançarina atravessando o palco. Quando ela se sentou, Ben teve a impressão, mais uma vez, de que ela estava apenas de­sempenhando seu papel.

— Muito bem, já estou sentada — ela disse.

— Agora, em que posso ajudá-los?

Ben sentou-se no sofá, exatamente de frente para ela e colocou a fotografia sobre a mesa, entre eles.

— Explique isso.

Se não a estivesse observando com tanta atenção, certamente teria perdido o choque que tomou conta das feições dela por uma fra­ção de segundo, antes que a expressão de nojo tomasse seu lugar.

— Esta mulher precisa da ajuda de Deus — Ariel disse, tocando a foto com a palma da mão.

— Diga-me o nome dela, detetive En­glish, e rezarei para que sua alma seja salva.

Red moveu-se, nervoso, ao lado de Ben, e lançou-lhe um olhar de dúvida. Ben, porém, sabia que Ariel estava perturbada.

— Segundo os arquivos de Charles Finelli, o nome dela é Ariel Simmons.

Ariel arregalou os olhos e levou as mãos aos lábios.

— Tende piedade! — gritou.

— Com certeza, os cavalheiros não acreditaram que essa mu­lher lasciva sou eu? Todos conhecem a minha verdade. Deus é amor!

— Na verdade, srta. Simmons, não conhe­cemos a sua verdade, e é justamente por isso que estamos aqui. Agora, poderia nos dizer onde estava por volta de dez horas da noite, no dia onze de dezembro?

— Estava na televisão. Podem verificar — Ariel respondeu, antes de levantar-se abrup­tamente e dirigir-se ao telefone.

Irritada, discou um número e, enquanto es­perava ser atendida, virou-se para os deteti­ves, em uma excelente encenação de uma mu­lher aviltada.

— Escute, Ben — Red sussurrou —, o ca­pitão vai acabar conosco se criarmos proble­mas com os religiosos, neste caso. Talvez não seja mesmo ela na foto. Afinal, a mulher tem cabelos escuros.

Ben não respondeu, pois estava ocupado de­mais em observar cada nuance da expressão de Ariel Simmons.

— Langley, preciso de você — Ariel declarou de repente.

— Trata-se de uma emergência. Uma coisa horrível está acontecendo. Estou prestes a ser caluniada e quero proteção. Sim, venha para cá o mais depressa possível.

Desligou o telefone com um floreio e, então, apontou na direção da porta, exatamente como Scarlett 0'Hara teria feito ao expulsar Rhett Butler de sua vida. A cena foi um tanto exa­gerada para que Ben se dignasse a acreditar.

— Cavalheiros, creio que conhecem o cami­nho da rua.

Ben sacudiu a cabeça.

— Não sairemos daqui enquanto a senhorita não responder a mais algumas perguntas.

— Não tenho de responder nada. Conheço meus direitos e não serei chantageada por um...

Ben avançou para ela, imobilizando-a com seu olhar. Pensava na mulher que havia chegado tão perto da morte na noite anterior, e no bebê que ela havia perdido. Mesmo Char­les Finelli, por mais patife que fosse, não me­recia ser morto daquela maneira, como um rato de esgoto.

— Não se trata de chantagem, senhorita, mas de assassinato — Ben falou.

— Agora, decida: pode conversar conosco aqui ou acompanhar-nos até a delegacia. De um jeito ou de outro, vai conversar conosco, até estarmos satisfeitos com suas respostas ou decidirmos que está mentindo. Se isso acontecer, vai mes­mo precisar do advogado que acabou de chamar quando lermos os seus direitos.

Ariel empalideceu. Seus olhos dançaram en­tre Ben e Red. Ben calculou que ela estivesse estudando o melhor passo a ser dado a seguir, ou melhor, como atuar em sua próxima cena. De repente, os olhos dela se encheram de lá­grimas e ela abaixou a cabeça, como se hu­milhada e envergonhada. Então, caminhou com passos hesitantes até a cadeira e deixou-se cair nela,

— Peço perdão, mas vocês precisam com­preender que estou profundamente chocada. É claro que essa pecadora da fotografia não sou eu. Prego a mensagem de Deus, não de Satanás. Ajudarei no que puder.

— Pessoalmente, a senhorita é muito dife­rente da mulher da televisão — Ben comentou.

— Seus cabelos são curtos e suas roupas não se parecem em nada com os vestidos que usa nos programas.

Ariel exibiu um sorriso trêmulo.

— Ora, meu caro senhor. Se já assistiu aos meus programas, então já ouviu a Palavra. É claro que minha imagem é muito importante, mas faço tantas aparições em público que é difícil manter um penteado perfeito. Por isso, uso perucas. Tenho muitas delas. Quanto aos vestidos... — parou de falar, dando de ombros.

— Tudo faz parte da imagem, certo? — Ben concluiu.

Ela assentiu e suspirou, antes de apanhar um lenço de papel para secar as lágrimas.

— Conhecia Charles Finelli? — Red inquiriu.

Ariel sobressaltou-se com o fato de ser ques­tionada por outra pessoa e, mais uma vez, Ben viu a compostura dela se abalar, mas foi tão rápido que quase não percebeu.

— Desculpe... Como era o nome dele?

— Finelli. Charles Finelli.

— Não, creio que não — Ariel respondeu.

— Mas conheço tanta gente em minha mis­são... Se tiver uma fotografia...

Ben retirou uma foto do bolso e estendeu-a para ela.

— Meu Deus! — Ariel exclamou, largando a fotografia e cobrindo os olhos com as mãos.

Tratava-se de uma foto de Finelli caído na rua, depois de ter sido assassinado.

— Pobre homem! Disse que ele foi assassinado?

— O pobre homem era um chantagista — Ben explicou.

— Segundo os arquivos que mantinha, um chantagista de sucesso. Quanto pagou pelas fotos que ele tirou da senhorita?

Ariel estreitou os olhos e, mais uma vez, sua postura angelical começou a desmoronar.

— Vou repetir que aquela mulher não sou eu, e não dei dinheiro algum a Chaz Finelli.

Ben ficou imóvel. Podia sentir os olhos de Red fixos nele, mas manteve os seus colados nos de Ariel. Inclinou-se para ela, apoiando cada mão em um braço da poltrona que ela ocupava. Aproximou-se tanto que podia sentir-lhe o hálito quente quando ela respirava.

— Mais algumas perguntas e, então, iremos embora — disse.

Ela ergueu os olhos, sustentando o olhar dele com firmeza.

— Pensei que não conhecesse a vítima — ele continuou.

— Exatamente. Não o conheço.

— Mas acabou de chamá-lo de Chaz. Somente as pessoas que o conheciam o chama­vam por esse apelido e, como não lhe forneci essa informação em particular, estou inclinado a concluir que a senhorita está mentindo.

Uma palidez mortal tomou conta do sem­blante de Ariel Simmons, ao mesmo tempo que seus olhos se arregalavam de medo.

— E há mais uma coisa que deve saber — Ben prosseguiu.

— O... O que é?

— Detesto que mintam para mim. A senho­rita matou Charles Finelli?

— Não, e pouco me importa o que gosta ou não gosta — ela explodiu.

— Agora, saiam daqui, antes que eu chame a polícia.

Ben sorriu, mas não foi um sorriso simpá­tico, enquanto agitava a foto de Finelli morto diante do nariz dela.

— Nós somos a polícia, e se eu descobrir que foi a responsável por isso, nem todas as preces vão salvar seu lindo traseiro! Estamos nos entendendo?

— Saia — ela sibilou. Ben endireitou-se.

— Não saia da cidade — disse.

— Não se levante. Conhecemos o caminho da rua.

Uma vez fora da mansão, Red respirou fun­do e coçou a cabeça, olhando para a expressão sombria de Ben.

— Acho que você foi muito bem — elogiou.

— Trate de entrar no carro — Ben resmungou.

Pela primeira vez, em muitos dias, China estava consciente de seus arredores. Sentia dor. Sentia frio. Sentia as mãos das enfermei­ras que cuidavam de suas necessidades. Às vezes, até mesmo compreendia o que elas di­ziam, mas os flashes de consciência não du­ravam muito, dissipando-se assim que nova onda de dor varria seu corpo, ou que o conteúdo de uma seringa penetrava sua corrente sangüínea. Cada vez que se deixava arrastar para a escuridão, uma parte de seu ser resistia. Lembrava-se daquela voz prometendo ajudá-la a encontrar o assassino de sua filha, e tudo o que tinha de fazer era acordar. Se isso não acontecesse, o homem que possuía aquela voz poderia se esquecer de tal promessa e, então, seria o fim de qualquer esperança de justiça. China sabia que jamais encontraria a pessoa responsável pelos disparos, pois es­tavam procurando por um homem.

Lutou, buscando força em tal pensamento, mas o sedativo que lhe aplicaram era muito forte, e a dor que sentia era intensa demais. Assim, deixou-se mergulhar na inconsciên­cia... mais uma vez.

— Onde arranjou isso?

Ben guardou no bolso a foto que acabara de mostrar ao cantor de música Country Larry Dee Jackson.

— Por quê? Pensou que havia comprado to­das as cópias?

Larry Dee passou a mão trêmula pelo rosto e, então, sentou-se na beirada da cama.

— Paguei àquele patife mais por essas fotos do que paguei pelo Renoir pendurado na pa­rede da minha casa, em Nashville.

— Devo concluir que a loira da fotografia não é sua esposa?

Larry gemeu baixinho.

— Não. — Então, agarrou o braço de Ben.

— Precisa manter isso em sigilo. Se minha esposa descobrir, será o fim do meu casamen­to. — Cobriu o rosto com as mãos.

— Não posso perder minha esposa e meus filhos. Eu os amo!

— Deveria ter pensado nisso antes de ficar nu com outra mulher — Ben apontou.

— Ah, meu Deus! — Larry resmungou, levantando-se.

— Preciso de uma bebida.

— Não enquanto não responder a algumas perguntas — Ben declarou.

— Onde estava, por volta de dez horas da noite, no dia onze de dezembro?

— Que dia foi?

— Sexta-feira passada.

— Estava no hotel, descansando. Meu vôo aterrissou por volta de três e meia da tarde, e eu estava exausto.

— Alguém pode provar isso? Larry Dee começou a transpirar.

— Ora, como vou saber? Chamei o serviço de quarto por volta das seis horas. Fiz alguns telefonemas e assisti a um filme, na TV a cabo, em pay-per-view.

— Não recebeu nenhuma visita, à noite? Nem mesmo da moça da foto?

Larry Dee desviou o olhar e deu de ombros.

— Não posso dizer.

— Sabia que no Texas temos pena de morte? — Ben perguntou.

Larry Dee empalideceu e começou a tremer.

— Juro por Deus que não tive nada a ver com o assassinato do sujeito.

— Preciso de mais que sua palavra — Ben retrucou.

— E então? Recebeu alguma visita?

Larry sacudiu a cabeça.

— Sinto muito, mas não costumo revelar esse tipo de coisa.

— Escute Jackson, você teve a chance de bancar o cavalheiro quando ainda podia manter a calça fechada e voltar para casa, para sua esposa. Fez a sua escolha. Agora, trate de enfrentar as conseqüências. Ou me conta já, ou levaremos essa questão para a delegacia.

— Meu Deus! Connie vai me matar!

O comentário despertou o interesse de Ben.

— Essa Connie seria capaz de matar alguém? Larry ficou atônito.

— Ah, não! Meu Deus, não! Foi só maneira de falar.

— Péssima escolha de palavras — Ben comentou.

Larry Dee serviu-se de uma generosa dose de uísque, que bebeu de um só gole, antes de virar-se e encarar os dois detetives.

— Eu estava com Connie Marx.

Red parou de escrever bem no meio de uma palavra e ergueu os olhos.

— Está falando de Connie Marx, âncora do telejornal noturno da WFAL? — indagou incrédulo. O cantor assentiu. Red assobiou baixinho e fez mais algumas anotações, enquanto Ben alterava sua linha de interrogatório.

— A srta. Marx sabia que Charles Finelli o estava chantageando?

— Sim. Na verdade ele chantageou os dois. Embora levasse de mim o dobro do que pediu a ela. Disse que eu tinha muito mais a perder.

— E estava certo? — Ben inquiriu.

— Claro — Larry confirmou com um suspiro. — O que vai fazer?

— Encontrar o assassino, Sr. Jackson.

— Pode manter essa história sob sigilo? Es­tou me referindo à foto.

— Não estamos divulgando os nomes que constam de nossa lista, mas se fosse você, eu tentaria me garantir, contando tudo à mi­nha esposa e rezando para que tudo corresse bem. Acho que tem mais chances de ser per­doado se contar do que se ela ler a história nos jornais.

— Ah, meu Deus! — Larry exclamou, servindo-se de mais uma dose de uísque, enquan­to os detetives deixavam seu quarto.

Assim que Ben e Red se viram no corredor do hotel no qual Jackson estava hospedado, Ben guardou seu bloco de anotações e apanhou a fotografia de Larry com a loira.

— Vamos tentar encontrá-la nos bastidores e, então, encerrar o expediente por hoje. O que acha? — sugeriu.

Red assentiu.

— Sou totalmente a favor. Estou louco para tomar um banho quente e comer um bom filé.

Rita estava preparando torta de maçã quando telefonei, na hora do almoço. Quer jantar conosco? Sempre cabe mais um à mesa. Ben sacudiu a cabeça.

— Não, mas agradeço o convite. Vou passar no hospital e, então, irei direto para casa. Não dormi quase nada na noite passada.

— Está pisando em terreno perigoso com ela, sabia? — Red murmurou.

Ben ia começar a discutir, mas desistiu e balançou a cabeça.

— Sim, eu sei, mas é tarde demais para voltar atrás. Fiz promessas a ela.

Red franziu o cenho.

— O que vai fazer se não conseguir cumprir com suas promessas?

— Uma coisa de cada vez, parceiro. Ela está viva e, por enquanto, isso já é o bastante.

— Srta. Marx, há dois detetives aí fora à sua procura.

Connie Marx ergueu os olhos do script do jornal daquela noite e franziu o cenho. Não conhecia o homem baixo e ruivo, mas reco­nheceu o mais alto: Ben English. Ele fora o principal detetive no caso do seqüestro de Whitman no ano anterior. Ela se levantou e foi cumprimentá-los.

— Detetive English, já faz tempo que não o vejo — disse, estendendo-lhe a mão.

— Como vai, srta. Marx? Este é o detetive Fisher, meu parceiro. Precisamos lhe fazer al­gumas perguntas.

Ela exibiu um sorriso maroto.

— Seu tom de voz parece bem sério. E eu que pensei que seria convidada para o baile dos policiais!

O fato de Ben não retribuir seu sorriso foi um aviso claro de que ela não ia gostar nem um pouco do que estava por vir.

— E então? Qual é o problema?

Ben retirou a fotografia dela com Jackson do bolso.

A expressão dela pareceu congelar, enquan­to ela olhava fixamente para a foto, com ar incrédulo. Quando voltou a encarar o detetive, seus olhos exibiam o brilho da fúria.

— Não sabia que era do tipo voyeur, detetive — declarou.

— Onde conseguiu isso?

— No apartamento de Charles Finelli.

— Aquele patife imundo! — ela resmungou.

— Alguém deveria tê-lo matado antes e poupado muita gente de problemas desagradáveis.

— Então sabe que ele morreu — Ben disse. Connie revirou os olhos, agitando o script diante do rosto dele.

— Sim, eu sei que ele morreu. Afinal, é o que faço para viver.

— Onde estava na noite de onze de dezem­bro, às dez horas?

— Em casa, com gripe.

— Não foi o que Larry Jackson disse.

O choque foi evidente nos olhos dela, mas a raiva logo assumiu controle e ela explodiu:

— Não temos mais nada a conversar e trate de sumir da minha frente! Tenho um jornal a apresentar. Se tiver outras perguntas, pode entrar em contato comigo por intermédio de meu advogado. Entendeu?

Red olhou para Ben.

— Ela não recebeu bem a notícia, não acha? — indagou, observando-a deixar a sala furiosa.

Ben guardou a foto no bolso.

— Tem razão, mas eu não esperava uma reação diferente de Connie. Ela é um verda­deiro leão. Não cede nem um centímetro.

Red assentiu.

— Acha que ela seria capaz de matar alguém? Ben hesitou, tentando imaginar Connie Marx contratando um pistoleiro. Então, deu de ombros.

— Há um mês eu teria dito que não. Agora, depois de ter visto a fotografia, não me arriscaria a fazer qualquer aposta. O que sei é que, provavelmente, se a foto for publicada, ela estará desempregada.

— Você mataria para garantir o seu emprego?

— Nós dois sabemos que as pessoas matam por motivos muito mais insignificantes que esse. Vamos embora.

— Tem certeza de que não quer jantar em minha casa? Rita adoraria recebê-lo.

— Não, mas obrigado mais uma vez.

Red suspirou.

— Diga a China Brown que mandei um abraço.

— Vou dizer. Red...

— O que é?

— Não se preocupe. Tudo está sob controle.

 

A música fazia tremer as paredes do chalé isolado, em Lake Texoma. A loira alta, de per­nas longas, estava sentada diante do espelho, dando os últimos retoques em sua maquilagem. Só mais uma pincelada de blush, um toque de delineador no canto do olho esquerdo. Quando terminou, afastou-se, examinando cada detalhe da figura refletida no espelho. Então, sorriu. Sim, era bonita, mas a maquilagem era uma arte, acentuando o que mais agradava aos olhos.

— Querida, você está o máximo! — murmurou, antes de se levantar e se encaminhar ao armário, dançando, para apanhar o vestido branco, todo bordado com contas.

Quando retirou o vestido do cabide, estre­meceu de êxtase. Ah, como adorava sentir a seda entre os dedos, e entre as pernas. Ves­tiu-o lentamente, puxando-o pelos quadris e enfiando cada braço nas mangas, pouco a pou­co, O simples contato do tecido com sua pele já a deixava excitada.

A letra da famosa música de Rod Stewart, Do Ya Think I'm Sexy?, "Você me acha sexy?", era o seu hino. Ela cantou junto com o CD, enquanto subia o zíper e calçava os sapatos de saltos altíssimos.

Um rápido olhar para o relógio confirmou que, em breve, ele chegaria. Um arrepio percorreu sua espinha quando ela imaginou as mãos fortes deslizando pelo seu corpo. Ah, ado­rava sentir as mãos de um homem sobre si, tanto quanto adorava sentir a seda na pele. A idéia de que havia chegado muito perto de perder tudo isso provocava-lhe vertigens. Não tinha o menor arrependimento pelo que fizera a Chaz Finelli. O idiota nunca sabia quando parar. Além disso, o jogo que ele jogava era perigoso. O que acontecera fora nada mais que um risco implícito da profissão escolhida por ele. A única coisa que ela lamentava era ter tido que atirar na moça inocente, mas não o bastante para perder o sono por isso. O mundo era duro, e ela sabia ser dura, quando necessário. A sobrevivência do mais forte era o seu lema, e para o inferno com quem atravessasse o seu caminho.

A música chegou ao final e, por um aben­çoado momento, ela fechou os olhos, saborean­do tudo o que constituía seu mundo. Os segredos eram perigosos, mas o perigo acrescen­tava mais excitação ao jogo.

De repente o som de pneus rolando sobre o cascalho atingiram seus ouvidos. Ela foi até a janela, embora estivesse muito escuro lá fora, os faróis do carro esporte eram um sinal de que ele havia chegado. Ela ficara sabendo da preferência dele por... como ela poderia dizer? Sexo incomum. Bastara um telefonema para tê-lo na palma da mão. Pela janela, ela o viu sair do carro, passar as mãos pelos cabelos e alisar o casaco, antes de se encaminhar para a porta. Sorriu para si mesma, ao ouvir a campainha tocar. Ah, sujeito idiota! Podia ser rico e per­vertido, mas antes que a noite terminasse, ele a conheceria de uma maneira muito especial.

O capitão Aaron Floyd sentia uma dor de cabeça que parecia ser o início de uma forte gripe quando os detetives English e Fisher bateram em sua porta.

— Entrem — ele disse, fechando os olhos ao som da própria voz.

— Dêem-me uma boa notícia — pediu, abrindo a gaveta e retirando dela um vidro de xarope para tosse.

— China Brown está melhorando — Ben declarou.

— E uma boa notícia, mas não a que estou querendo ouvir — o capitão retrucou, virando o vidro na boca, em vez de usar o pequeno copo plástico que também servia como tampa. Engoliu, estremeceu e voltou a tampar o vidro, antes de guardá-lo novamente na gaveta.

— Ah, eu detesto o inverno e tudo o que ele traz!

Os dois detetives decidiram, sabiamente, não comentar. Assim, limitaram-se a esperar que ele continuasse.

— Muito bem — Floyd prosseguiu.

— Di­gam-me como estamos com essa investigação. Estou recebendo pressões de cima.

— Nossa, capitão! Está dizendo que até Deus está trabalhando nesse caso?

Floyd revirou os olhos e assoou o nariz.

— Cale a boca, Fisher! Não estou me sen­tindo bem para ter de ouvir as suas piadas!

Red sorriu.

Ben inclinou-se para frente, apoiando os cotovelos nos joelhos.

— Fomos o mais discretos possível, sem comprometer nossa investigação. Além desse ponto, não dou a mínima. Entre adultério, drogas e perversões, as pessoas envolvidas pro­curaram problemas.

— Amém — Red ecoou.

— E o que me deixa mais nauseado é o fato de que nenhum deles deu a menor importância ao dinheiro que pa­gou a Finelli. Serem descobertos, isso sim, os deixou enlouquecidos.

Floyd assentiu,

— Concordo, mas quando o prefeito é um dos envolvidos, muita gente fica histérica. E então? O que sabemos?

Ben estendeu ao capitão uma lista de nomes.

— Os que não foram riscados são os únicos que não têm álibis sólidos. Os que têm uma marca vermelha ao lado não têm ninguém que comprove onde estavam. Os outros tinham testemunhas que os viram em determinados lugares durante parte da noite, mas não o tempo todo. Floyd passou os olhos pela lista.

— Ariel Simmons? Ela não estava na televisão naquela noite?

— Era um programa gravado — Red escla­receu.

— O que ela se esqueceu de mencionar, quando a interrogamos.

Floyd passou ao nome seguinte.

— Connie Marx?

— Disse que estava em casa, com gripe — Ben respondeu.

— Acontece que Larry Dee Jackson diz que ela estava no quarto do hotel, com ele. Portanto, um dos dois está mentindo. Talvez ambos.

— E quanto a Bo Milan, dono de uma das maiores construtoras do país?

— Estava em um vôo, a caminho de Las Vegas. Verificamos. É verdade.

— E os outros?

— Mais ou menos a mesma coisa, mas ainda estamos verificando estes dois — Red falou, apontando dois nomes no final da página.

— Um é banqueiro. O outro cirurgião plástico. Nenhum dos dois ofereceu um álibi convincente, convocamos dois detetives para investigá-los.

Floyd ergueu os olhos.

— Muito bem — disse.

— Continuem trabalhando e me avisem assim que descobrirem alguma coisa nova.

— Capitão, quanto ao guarda que pusemos para proteger China Brown...

— Qual é o problema? — Floyd inquiriu.

— Gostaria de manter o esquema de segu­rança, até sabermos por quem estamos procurando. Se a notícia de que temos uma tes­temunha viva se espalhar, a vida dela não valerá mais nada.

— Como conseguiu esconder tal fato da im­prensa, até agora? — Floyd perguntou curioso.

— Com meias verdades. Os jornais noticiaram que duas pessoas foram mortas. Finelli e alguém cujo nome não seria revelado, enquanto os pa­rentes não fossem localizados. Estamos contan­do com a conclusão do assassino de que foi China quem morreu, uma vez que foi ela quem levou os tiros. O fato de ter sido o bebê pode não ocorrer a ele e, enquanto ele pensar que China está morta, ela estará a salvo.

— Certo. Darei toda a cobertura necessária — Floyd concordou.

— Continue com o guarda, mas quando ela tiver alta, então, será outra história. Ela não tinha onde morar, certo? Nosso orçamento não nos permite hospedá-la em um hotel, com guardas para protegê-la vin­te e quatro horas por dia, até conseguirmos prender o bandido.

Ben já havia pensado nisso, também.

— Isso não será problema. Vou levá-la para a minha casa.

Floyd esqueceu-se da dor de cabeça, assim como de todas as outras dores em seu corpo, e levantou-se de um pulo.

— Ah, não vai, não! — berrou.

— Já ultrapassou os limites, nesse caso!

— Não estou planejando raptá-la. Estou apenas oferecendo um lugar seguro, onde ela poderá ficar.

— Isso criaria um conflito de interesses. Não posso permitir uma coisa dessas.

Ben não cedeu.

— Não sou advogado, sou um policial. O que faço no meu tempo livre é só da minha conta, desde que não faça nada ilegal.

— Não estou gostando disso — Floyd resmungou.

— Protesto registrado — Ben replicou.

— Mais alguma coisa?

Floyd lançou-lhe um olhar furioso. Ben en­carou-o, sem comentário. O capitão foi o pri­meiro a desviar os olhos.

— Se atrapalhar nossas investigações, aca­barei com você — avisou.

— Já estão atrapalhadas, capitão. Estou apenas tentando fazer alguma coisa certa. É o mínimo que ela merece.

— Então, trate de apanhar o assassino!

 

Já era meio-dia do dia seguinte quan­do tiveram a primeira novidade no caso, e foi por mero acaso. Um homem chamado Tommy Fairheart fora preso na noite anterior por embriaguez e desordem. Ben calculou as chances de o homem ter o mesmo nome e não ser o sujeito que abandonara China. Então, decidiu ver com os próprios olhos. Interceptou Red quando o parceiro saía do banheiro e, juntos, os dois foram para a cadeia pública.

Pouco depois, Ben encontrava-se do lado de fora da sala de interrogatórios, observando através do espelho falso o homem lá dentro. As roupas eram da moda, mas muito malcuidadas. Os cabelos loiros estavam um pouco mais compridos do que deveriam e, exceto pela linha do queixo, que sugeria fraqueza, Ben teve de admitir que, certamente, as mulheres o consideravam atraente. Apesar de ter pas­sado a noite na prisão, ele não parecia nem um pouco perturbado por sua situação. Sorria e ria, mantendo a imagem do trapaceiro bem­ sucedido, mesmo enquanto Red o interrogava. Ben queria feri-lo, fazê-lo sofrer tanto quanto China estava sofrendo.

Quando Red virou-se e olhou diretamente para o vidro, balançando a cabeça de maneira quase imperceptível, Ben sentiu o coração dis­parar. Aquele fora o sinal combinado para indicar que chegara o momento de Ben aparecer. Red havia deixado Fairheart à vontade. Já era tempo de Ben apanhá-lo.

Quando a porta se abriu, Fairheart virou-se, mas continuou sorrindo. Comparada às en­crencas em que se metera antes, a prisão por embriaguez e desordem não era nada. O fato de estar sendo interrogado não fazia sentido, pois nenhum crime fora cometido contra o pro­prietário do bar. Mesmo assim, estava dispos­to a fazer o jogo dos policiais, desde que sua cooperação o pusesse em liberdade.

O detetive que entrou não retribuiu seu sor­riso nem demonstrou a menor disposição de fazê-lo mais tarde. Tommy deu de ombros, reclinando-se na cadeira, esperando para ver o que viria.

Ben postou-se atrás de Fairheart, que olhou para o espelho, fitando o detetive nos olhos. Houve um momento de silêncio e, após alguns instantes, acabou desviando o olhar.

— O que está acontecendo aqui? — inquiriu, virando-se para Red.

— Meu parceiro não tem mais nada a lhe dizer — Ben informou-o —, mas eu tenho.

— Ah, já entendi — Fairheart disse com um sorriso zombeteiro.

— Começamos o jogo do tira bonzinho contra o tira malvado, e você é Satanás em pessoa, certo?

— Cale a boca, Fairheart — Ben ordenou em voz baixa e ameaçadora.

— Sou eu quem faz as perguntas, entendeu?

Fairheart voltou a dar de ombros, mas já não sorria.

— Então pergunte — disse, equilibrando-se em apenas dois dos quatro pés da cadeira.

— Sente-se direito! — Ben gritou, empur­rando-o para forçá-lo a sentar-se em posição ereta.

— Onde estava às dez horas da noite de onze de dezembro?

Fairheart sentiu um aperto na boca do es­tômago. Diabos! Como haviam descoberto? Ele poderia ter jurado que não havia a menor pos­sibilidade de conectá-lo ao roubo em Dallas Heights.

— Não me lembro — disse.

— Que dia foi?

— Sexta-feira,

— Ah, sim! Acho que fui ao cinema.

— A que filme assistiu?

— Não me lembro.

Ben deu a volta na mesa para encará-lo. En­tão, abaixou-se, apoiando as mãos na superfície.

— Vai ter de arranjar respostas melhores. Tem uma arma?

— Não — Fairheart mentiu, pensando na pistola nove milímetros guardada em seu apartamento.

— O que isso tem a ver com ter bebido um pouco demais? Tudo o que fiz foi quebrar algumas cadeiras.

— De fato, uma coisa não tem nada a ver com a outra — Ben admitiu.

— Isso se relaciona com as duas pessoas assassinadas em Oakcliff, em onze de dezembro. Conhece o bairro, não?

Agora, sim, Ben tinha toda a atenção de Fairheart. Ele seria o primeiro a admitir ser um trapaceiro, mas assassino? Nunca! Tam­bém sabia que muitos homens iam para a prisão por crimes que não haviam cometido.

— Oakcliff é um bairro muito grande. Onde os assassinatos aconteceram? — perguntou.

— O nome Blue Parrot lhe é familiar? Fairheart sacudiu a cabeça.

— Já ouvi falar, mas nunca estive lá. Escute detetive, não tive nada a ver com esses as­sassinatos, e não costumo freqüentar lugares desse tipo. Não faz o meu tipo, se é que en­tende o que estou dizendo.

— Está dizendo que o Blue Parrot é um bar para gays?

— Estou dizendo que, se entrar lá, é melhor ter cuidado com quem vai sair ao seu lado. Entendeu? Lá encontra-se de tudo um pouco.

— Sim, entendi — Ben disse.

— E nós dois sabemos que você gosta de mulheres, não é, Fairheart?

Tommy deu de ombros e sorriu.

— O que há para não gostar nelas? Sou homem de verdade.

— Ah, nós sabemos que tipo de homem você é. É um ladrão mentiroso. Usa as mulheres e, quando elas já não têm mais nada para lhe dar, simplesmente, as abandona, deixando-as sozinhas para resolver a confusão que você criou. Estou certo?

Fairheart deu de ombros, mais uma vez. Ben esmurrou a mesa com as duas mãos. — Responda, seu miserável, ou juro que vou...

Red pousou a mão no ombro de Ben. Naquele momento, foi o suficiente para aplacar a fúria de Ben.

— Bem, não sou do tipo que procura casamento. E daí? — Fairheart desafiou.

— Desde quando isso é crime?

Ben inclinou-se para ele, até seu rosto estar a poucos centímetros do dele.

— Para começar, desde que você roubou o dinheiro de China Brown.   Fairheart suspirou, aliviado.

— É por isso que está me interrogando? Ora, é a palavra dela contra a minha. Além disso, ela se foi. O coração de Ben quase parou de bater. Segundo o senhorio de China, Fairheart desaparecera uma semana antes de ela ser despejada. Como ele poderia saber que ela se fora, a menos que a tivesse encontrado depois dis­so... talvez na rua, em frente ao Blue Parrot.

— O que esta querendo dizer? — Ben inquiriu.

— Que ela não está mais morando no apartamento. É tudo o que sei.

— E sabe por que, não sabe? Ela não está mais morando lá talvez porque tenha saído à sua procura, quando foi despejada. Ela estava grávida de seis meses, esperando um filho seu, e precisava de um lugar onde pudesse ficar. Foi até a região sul da cidade, mas você não queria ser encontrado. Por isso, tiveram uma discussão na rua, em frente ao Blue Parrot, você atirou nela... duas vezes. Então, alguém começou a tirar fotografias do que você havia feito e foi morto, também.

Fairheart foi tomado por súbita náusea.

— Não! Meu Deus, não! Não atirei em China. Aliás, eu nem sabia que ela estava morta. Nunca matei ninguém, detetive. Costumo beber demais e não gosto de me sentir amarrado a uma mu­lher, mas não sou um assassino. Juro por Deus que não sou assassino. Quanto ao fato de o bebê ter morrido, qual é o drama? Ao menos o sistema não vai ficar no meu pé pelos próximos dezoito anos, para que eu pague pensão...

Antes que Red pudesse esboçar qualquer rea­ção, Ben agarrou Fairheart pelo pescoço, arran­cou-o da cadeira e atirou-o contra a parede.

— Socorro! — Fairheart gritou.

— Tire esse homem de cima de mim!

Red agarrou o punho de Ben, antes que ele desferisse o golpe planejado.

— Ben! Ben! Não vá arruinar sua carreira por causa de um joão-ninguém como esse!

Ben praguejou, largou Fairheart e marchou para o outro lado da sala.

— Isso foi brutalidade policial, abuso de au­toridade! — Fairheart declarou.

— Vou pro­cessá-lo por...

Red pousou a mão no peito dele, e o tom de voz baixo e grave que usou foi mais assustador do que qualquer ameaça que ele pudesse fazer.

— Não vai processar ninguém porque não há nenhuma marca de violência em seu corpo. Tra­te de se sentar e ficar bem quietinho. E, en­quanto isso é melhor pensar nos riscos que um bonitão como você enfrentaria atrás das grades.

De repente, Tommy Fairheart foi tomado por uma vontade desesperada de urinar. Já fora pre­so antes, mas nunca cumprira pena, nem jamais pusera os pés em uma prisão de segurança máxima. Se o condenassem por assassinato, ele não sobreviveria lá dentro. E sabia disso.

— Não matei ninguém — repetiu. Ben virou-se e fitou-o nos olhos.

— Então prove — disse.

Fairheart suspirou. Ser enquadrado por in­vasão e roubo seria muito melhor do que ser acusado de assassinato. Com um pouco de sor­te, estaria livre em um ano. Além disso, não seria tão mal ficar preso durante os meses de inverno. Uma cama quente, três refeições por dia e roupas limpas. Ora, suas perspecti­vas começavam a parecer mais atraentes.

— Posso provar onde estava na hora do cri­me — declarou.

Ben enfiou as mãos nos bolsos, a fim de não plantá-las no rosto de Fairheart.

— Continue falando.

— Há uma casa em Highland Park. Pode verificar na divisão de roubos. Eu estive lá por volta de nove e meia, em onze de dezem­bro. Penhorei o que consegui levar na loja de armas e penhores do Frankie, na manhã se­guinte. Eu não poderia estar na região sul, se estava assaltando uma casa em Highland Park, poderia?

Naquele momento, Ben teve certeza de que ele dizia a verdade, e tal constatação o deixou desanimado. Mesmo que conseguissem colocar Fairheart atrás das grades por roubo, continua­vam na estaca zero com relação aos assassina­tos. Bem, se não podia apanhar Fairheart por assassinato, poderia apanhá-lo por dinheiro.

— Estive verificando sua ficha e descobri que você tinha pouco mais de mil e duzentos dólares quando foi preso.

Fairheart deu de ombros.

— E daí?

— E daí, acho que você acaba de ter um ataque de consciência sobre o desfecho dos fa­tos. — Ben olhou para o parceiro.

— Ei Red, não acabei de ouvir Fairheart dizer que pretende dar todo o seu dinheiro para o Estado, em pagamento pelo enterro de seu filho?

Red sorriu.

— Sim, foi exatamente o que você ouviu. — Tommy Fairheart levantou-se de um pulo.

— Ei, detetive, não pode fazer isso comigo. Preciso do dinheiro para pagar a fiança e...

Ben deu um passo na direção dele. Fairheart começou a recuar, mantendo as mãos diante de si, como se fossem um escudo.

— Espere, espere... está bem. Concordo com sua idéia. Afinal, é sempre possível conseguir mais dinheiro — acrescentou, não resistindo ao ímpeto de vangloriar-se.

— Existem muitas mulheres solitárias por aí. China Brown foi uma presa fácil. Nunca bati nela. Aliás, nunca bato nas minhas mulheres. Tratei-a muito bem enquanto fiquei com ela.

— E quando partiu, destruiu a vida dela — Ben lembrou-o, antes de apontar para Red.

— Ligue para a divisão de roubos. Mande al­guém vir cuidar das acusações contra ele e não se esqueça de fazer o bonitão escrever uma carta, declarando suas intenções com re­lação ao dinheiro.

Agora que tudo começava a se acalmar, Fair­heart recuperava seu bom humor,

— Você não me assusta — ele disse, quando Ben abriu a porta.

Ben virou-se.

— Pois deveria estar com medo — murmu­rou.

— Muito medo. Fique longe de China Brown. Se tentar se aproximar dela de novo, vou enterrá-lo debaixo de tantas acusações, diante da justiça do Texas, que nunca mais voltará a ver a luz do dia.

Saiu depressa, temendo descontrolar-se novamente.

Fairheart observou-o desaparecer, furioso. Então, virou-se para Red.

— Isso foi outra ameaça. Você ouviu o que ele disse — protestou, enquanto Red o algemava.

— Não ouvi coisa alguma — Red replicou. Ben caminhou sozinho durante todo o trajeto de volta à divisão de homicídios. Precisava sen­tir uma boa distância entre ele e aquele homem, antes que fizesse algo de que viesse a se arre­pender depois. Porém, quando chegou à sua mesa, o recado que encontrou ao lado do telefone piorou ainda mais seu estado de ânimo. Ligar para o legista.

Discou os números, já esperando o que o médico teria a lhe dizer. Red entrou na sala em tempo de vê-lo desligar o telefone, apanhar o casaco que deixara nas costas da cadeira e guardar o celular no bolso.

— O que aconteceu? — o parceiro perguntou. Ben hesitou.

— O bebê de China Brown... O legista aca­ba de liberar o corpo para o parente mais próximo.

— Pensei que ela não tivesse parentes vivos

— Red murmurou.

— Não tem, mesmo — Ben resmungou, dirigindo-se para a porta.

— Aonde você vai?

— Vou falar com China. Preciso perguntar onde ela quer que o bebê seja enterrado.

— Ela está inconsciente — Red argumentou.

— Além disso, você não pode, simplesmente, entrar na UTI e perguntar uma coisa dessas! Ela não sabe que perdeu o bebê. A notícia poderia matá-la.

— Ela sabe — Ben afirmou. — E ela já está consciente. Só não quis abrir os olhos, ainda. Vou tirar o resto da tarde de folga, está bem? Se o capitão precisar falar comigo, ele tem o número do meu celular.

Antes que Red pudesse dizer qualquer coisa, Ben se foi.

Alguém estava lavando o rosto de China e escovando seus cabelos, e ela queria avisar que havia entrado sabonete em seus olhos, mas não conseguiu reunir força necessária para falar. Naquela manhã ela ouvira um ho­mem, provavelmente um médico, dando or­dens com relação aos cuidados que deveriam ter com ela. Haviam aumentado à dose de an­tibióticos e diminuído os analgésicos. China queria poder dizer que estavam loucos. Se sen­tissem dores em tantos lugares diferentes do corpo, certamente tomariam todos os analgésicos existentes no mercado.

Um ruído alto no corredor a sobressaltou. Foi um reflexo instintivo, pois o som lembrava um tiro.

— Sinto muito, querida — a enfermeira mur­murou com gentileza, afagando a mão de China, na tentativa de acalmá-la.

— Você está em um hospital. Está segura, aqui. Não tenha medo. Há um policial montando guarda na porta da UTI e você está se recuperando muito bem.

China reprimiu um suspiro. Segura? Ora, nunca mais voltaria a se sentir segura. De­sistiu de lutar para se manter acordada e caiu no sono. Algum tempo depois acordou, mas não conseguiu abrir os olhos. A última coisa que vira fora aquela mulher apontando-lhe uma arma e, então, vira a neve caindo sobre seus olhos. Tinha medo de abri-los, medo do que veria. Por isso, ficou deitada, imóvel, ou­vindo às vozes das enfermeiras e os gemidos ocasionais dos demais pacientes.

Começava a adormecer novamente, perdida em um lugar que se situava entre a realidade e a negação, quando ouviu mais outro som: passos determinados se aproximando. China sentiu o coração disparar. Conhecia aqueles passos. Co­nhecia a voz dele. Era o homem das promessas.

A descarga de adrenalina provocada pelo desejo de torcer o pescoço de Tommy Fairheart começava a se dissipar quando Ben saiu do elevador e seguiu pelo corredor que levava à UTI. Geralmente, aguardava o momento da­quelas visitas com ansiedade, mas não naque­la tarde. Ao contrário, sentia-se aflito. Havia tantas coisas que precisava saber, e ela era a única pessoa que poderia ajudá-lo. O senti­mento de culpa tomou conta dele quando a enfermeira-chefe fez um sinal para que ele entrasse. E se Red tivesse razão, e aquela vi­sita piorasse a situação, em vez de melhorá-la? Afastou o pensamento de pronto. Afinal, aque­la mulher era uma batalhadora. Merecia par­ticipar daquelas decisões. Ao que parecia, era justamente o que a mantinha viva.

Então, viu o rosto dela e, no mesmo instante, a tensão abandonou seu corpo. Só mais alguns passos... Finalmente, chegou.

— Olá, China.

Deslizou a mão pelo braço dela, verificando a temperatura da pele macia.

Embora ela continuasse de olhos fechados, havia algo diferente... Talvez fosse a postura de seu corpo, ou a inclinação de sua cabeça sobre o travesseiro. Era como se ela estivesse ouvindo com atenção. Ben deslizou a mão por debaixo da dela, segurando-a com ternura.

— Sou eu. Ben. Faz algumas horas que con­versamos pela última vez, mas tantas coisas acon­teceram... Achei que você gostaria de saber de tudo. Encontramos seu amigo, Tommy Fairheart.

Ela inspirou profundamente. Ben ergueu os olhos bem a tempo de ver um músculo saltar junto ao maxilar de China.

— Bem, talvez ele não seja mais seu amigo, mas nós o encontramos, assim mesmo. No início, achamos que ele havia atirado em você, mas ele tem um álibi muito bom. Por favor, não de­sista, está bem? A investigação continua.

Ela suspirou e, então, pareceu estar à espera do que mais ele tinha a lhe dizer.

— Há mais uma coisa sobre a qual preci­samos conversar.

Hesitou, sem saber ao certo por onde começar. Ela parecia tão pequena e tão fragilizada. A simples idéia de causar-lhe ainda mais so­frimento era medonha. Ao mesmo tempo, tra­tava-se da filhinha dela, e era ela quem deveria tomar a decisão final.

Ben acariciou-lhe a face.

— China, você entende o que eu digo, não? Em questão de segundos, ela assentiu de maneira quase imperceptível. Apesar disso, a existência da comunicação entre eles fez Ben ver o mundo mais bonito. Teve vontade de rir alto e de chorar, ao mesmo tempo. Porém, con­tinuou a acariciar o rosto de China, afastando mechas de cabelos de sua testa.

— Isso é bom, querida. Muito bom. Agora, acha que pode fazer uma coisa por mim?

Ela não se moveu, mas Ben sentiu seu pulso acelerar.

— Pode abrir os olhos? — perguntou.

O coração de China batia com tanta força dentro do peito, que parecia prestes a explodir. O medo que ela sentia era tão grande, que seria impossível encontrar as palavras para dizer a ele que não.

— Por favor — Ben implorou.

— Prometo que tudo vai ficar bem.

Ela suspirou. O homem das promessas... mais uma promessa. China perguntou-se se teria coragem de confiar nele... e em si mesma.

— Preciso que me ajude — Ben murmurou com voz gentil.

— Tenho de enterrar o seu bebê e não sei o que você quer que eu faça.

Um gemido escapou dos lábios dela, seguido por uma torrente de lágrimas. Tanto o som quanto a visão partiram o coração de Ben. Ele não sabia se deveria desculpar-se e sair, ou chorar junto com ela.

— Eu sei querida, seu sei — sussurrou.

— Sinto muito. Quer que eu saia?

Quando os dedos dela se fecharam em torno do punho dele, Ben entendeu o gesto como sendo um não.

— Está bem — disse.

— Estou aqui. Demore o tempo que quiser. Quando estiver pronta, conversaremos.

Ben olhou em volta, à procura de uma cadeira, mas antes que desse um passo, ouviu-a suspirar. Baixou os olhos e descobriu que as pálpebras dela se moviam. Então, abriram-se por uma fração de segundo apenas, como se as luzes fossem fortes demais para aqueles olhos.

— Aqui, China. Estou aqui.

Ela se virou na direção de onde vinha à voz dele e, então, ficou imóvel. Ben sentiu como se houvesse esperado a vida inteira para fitá-la nos olhos.

A mente de China começou a girar em disparada. Luz. Ela quase havia se esquecido de que existia um mundo além da escuridão na qual havia mergulhado. Sombras dançavam à sua frente, fazendo pares com flashes intermitentes de luzes brilhantes. Suas pálpebras pareciam se­cas, e ela teve de piscar repetidas vezes, até li­vrar-se da dor. Sentiu o hálito quente do homem das promessas contra seu rosto e sentiu-lhe as batidas regulares do coração sob os dedos.

— Mamãe — ela disse, mal reconhecendo o som da própria voz.

Ben franziu o cenho. Estaria ela mais con­fusa do que ele havia imaginado? A mãe dela estava morta. Certamente, ela não estava lhe pedindo que chamasse a mãe.

— Sinto muito, China, mas sua mãe não pode vir aqui.

Ela passou a língua pelos lábios, sacudindo a cabeça de leve. Ben sentiu-se ainda mais confuso.

— Não estou entendendo. — admitiu.

— O que está tentando me dizer?

— Bebê... com mamãe.

De repente, tudo ficou claro para Ben.

— Quer que eu enterre seu bebê ao lado de sua mãe?

Imediatamente, o corpo dela relaxou e ela conseguiu assentir em resposta.

— Pode me dizer onde ela está enterrada?

— Rest...

Mais uma vez, Ben não conseguiu compreender.

— Querida, preciso saber onde sua mãe foi enterrada? Algum cemitério de Dallas?

Os olhos de China se abriram um pouco mais e ela o fitou. Ben imobilizou-se, pren­dendo a respiração. Os olhos dela eram de um azul profundo, e refletiam tanta tristeza que ele não encontrou forças para falar. Es­perou, sentindo-se mais vulnerável do que nunca sob aquele olhar.

— Restland.

— Ah, sim! Está falando do cemitério Restland, ao norte de Dallas.

Ela assentiu e, então, fechou os olhos.

— Acho que entendi. Sua mãe está enter­rada lá e você quer que eu enterre sua filha, junto dela.

A resposta de China foi um sussurro:

— Sim.

— Confia em mim para fazer isso por você? Por favor, querida. Prometo providenciar uma cerimônia especial.

Os olhos dela se encheram de lágrimas, vindas diretamente do coração de China. O homem das promessas, sempre lhe prometendo algo. Por que não conhecera um homem assim antes que fosse tarde demais?

— Ah, meu Deus! — Ben murmurou.

— Eu não queria fazer você chorar. Pode me perdoar?

Ela apertou a mão dele e suspirou. Sentia-se cansada, muito cansada. Queria dormir, mas tinha algo a dizer a ele, mas não se lembrava o que era.

Ben percebeu que a resistência dela estava chegando ao fim, mas não se arrependia de nenhum momento daquela visita. Pela primeira vez, desde que a vira deitada na calçada em frente ao bar, sentiu-se otimista de que ela ia se recuperar.

— Vou deixar você dormir, agora — disse.

— Você foi muito bem, hoje. Muito bem. Estou orgulhoso, China. Por favor, lembre-se de que estamos trabalhando com afinco no seu caso, e vamos encontrar o homem que atirou em você. É só uma questão de tempo.

De repente, os olhos de China voltaram a se abrir. Ela se lembrou do que tinha de dizer a ele.

— Não — balbuciou, apertando a mão dele com força.

Sobressaltado com a veemência dela, Ben inclinou-se.

— Não? Não acredita que vamos apanhá-lo?

— Não — China repetiu a voz não mais que um sussurro.

— Não é um homem.

Ben imobilizou-se. O que ela acabara de dizer não fora considerado por ninguém, em momento algum.

— China, está dizendo que a pessoa que atirou em você era uma mulher?

Os olhos de China recusavam-se a perma­necer abertos, embora ela lutasse contra o sono implacável, pois ele tinha de entender que a investigação estava voltada para o foco errado. Sua cabeça caiu par ao lado, ao mesmo que a voz do homem das promessas a chamava muito longe.

Ben estava quase histérico.

— China... querida... só mais alguns segundos. Você é capaz. Sei que é. Por favor, res­ponda. Está dizendo que a pessoa que atirou em você era uma mulher?

Viu China respirar fundo e entreabrir os lábios. Fixou os olhos nela, à espera que a palavra emergisse. Finalmente, ela emitiu um sussurro, tão baixo que ele teve de se inclinar para ouvir.

— Sim.

Ben estreitou os olhos, tentando assimilar o choque.

— Está bem, querida. Ouvi o que você disse e entendi perfeitamente. Agora, descanse. Voltarei amanhã. Prometo.

Ao ouvir a palavra "prometo", China sorriu consigo mesma, embora tal sorriso não alcan­çasse seus lábios.

Ben endireitou-se, satisfeito pela certeza de que sua visita não fizera nenhum mal a China. Acariciou-lhe a face e, então, afas­tou-se. Aquela revelação mudava tudo, e Red e o capitão Floyd tinham de ser informados o quanto antes,

— Senador Wakefield, é melhor ligar a te­levisão e dar uma boa olhada nisso.

Bobby Lee ergueu os olhos para seu assis­tente, Duffy Melton, que acabara de entrar no escritório. Em seguida, apanhou o controle remoto e apertou o botão.

— Qual é o canal? — perguntou.

— Acho que a notícia está sendo dada em todos eles — Duffy disse.

Quando a imagem começou a aparecer na tela, Bobby Lee reconheceu repórteres, perto de uma ambulância, assim como uma dúzia de pessoas proeminente de Dallas, todos reu­nidos em torno do que parecia ser a cena de um crime.

— Qual é a grande novidade? — inquiriu.

— Tashi Yamamoto foi encontrado morto em seu carro, no estacionamento de um banco. Acham que foi assalto. A carteira e as jóias dele desapareceram, e dizem que ele levou um tiro na cabeça.

Bobby Lee franziu o cenho.

— Está falando de Tashi Yamamoto, das indústrias Yamamoto?

Duffy assentiu.

— Ele mesmo. Isso poderá trazer conseqüências sérias para Dallas. A fábrica em­prega aproximadamente mil cidadãos. Se for fechada, teremos toda essa gente desempregada. O que, com a atual economia, não é nada bom.

— Sei quem ele é, mas não o conheci pes­soalmente — Bobby Lee resmungou.

— Não, senhor, mas deve ter ouvido os rumores. Ele raramente vinha ao Texas, mas quando vinha, mantinha-se praticamente isolado. Dizem que tinha certas preferências... Bem, ao que parece, era um pervertido.

Bobby Lee deu de ombros.

— Aprendi a não falar mal dos mortos. Portanto, vamos mudar de assunto. A propósito, onde está o relatório sobre os direitos de pesca de Ellis? Esses agentes federais estão sempre se metendo na vida de gente trabalhadora. Pode encontrá-lo para mim, por favor, Duffy? Prometi a Edward Ellis que faria o possível para que não prejudicassem os negócios de sua indústria de pescados.

— Sim, senhor — Duffy respondeu pronta­mente.

— Voltarei imediatamente.

Assim que Duffy saiu, Bobby Lee tornou-se ainda mais carrancudo, voltando a fixar os olhos na tela da televisão. Detestava surpresas, mas detestava agitações ainda mais. Proferindo um palavrão entre os dentes, apontou o controle remoto para a televisão e desligou. Quando a tela retomou sua cor negra, atirou o controle sobre a mesa e encaminhou-se para o bar, a fim de se servir de uma bebida.

 

A informação que Ben recebeu de China colocou a divisão de homi­cídios em polvorosa. Agora, os quarenta e cinco nomes da lista original tinham de ser olhados de um ângulo. Três dias depois, a investigação causou alvoroço na mais alta sociedade de Dal­las. A imprensa não foi informada de nada, mas, dado o grande número de pessoas en­volvidas, era inevitável que a história acabasse vazando. China Brown fora transferida para um quarto particular, com um guarda em sua porta, vinte e quatro horas por dia. Ninguém entrava ou saía sem ter seu nome em uma lista de autorizados, e a ansiedade de Ben crescia sem parar. Quanto mais tempo demorassem para encontrar o assassino, mais difícil tal tarefa se tornaria. E, se a notícia de que a polícia de Dallas contava com uma testemunha ocular, a vida de China correria grande perigo.

Os homens que haviam sido eliminados an­tes continuavam fora da lista de suspeitos, mas suas esposas não. Antes, as mulheres que apareciam nas fotografias encontradas no apartamento de Finelli haviam sido deixadas em segundo plano nas investigações. Agora, porém, haviam se transformado nas principais suspeitas. Quatro equipes de detetives da divisão de homicídios trabalhavam no caso, vi­sitando um suspeito depois do outro, criando grande confusão em Dallas.

No topo da lista de suspeitos encontravam-se a jornalista Connie Marx, Shelly Milam, esposa do proprietário de uma grande construtora, e a evangélica Ariel Simmons. Os álibis das três eram vagos, e elas não tinham ninguém que confirmasse seu paradeiro na noite do crime.

Ao saber que ela era suspeita de um duplo homicídio, o chefe de Connie Marx a forçara a tirar licença temporária. Ela estava tão fu­riosa com o departamento de polícia de Dallas que chegou a ameaçar contratar um advogado. O fato de Larry Jackson haver afirmado estar com ela na noite do crime de nada adiantara, uma vez que não havia mais ninguém que pudesse confirmar tal história. Aos olhos da polícia, o fato de os dois serem amantes e sus­peitos anulava qualquer verdade que pudesse haver entre eles.

Dois outros detetives tentavam encontrar Shelly Milam, que entrara com um pedido de divórcio logo depois de o marido ter sido interrogado pela primeira vez. Àquela altura, tudo o que sabiam era que ela pegara um avião para o Alabama para ficar com a família, e só voltaria para o Texas na semana seguinte.

Já haviam entrado em contato com a polícia de Selma, no Alabama, informando que a Sra. Milam era procurada para interrogatórios e pedido à ajuda deles para localizá-la.

Como a alegação anterior de Ariel Simmons, de que estava apresentando seu programa na televisão fora comprovadamente falsa, Red e Ben voltaram a casa dela com fervor renovado. A diferença foi que, dessa vez, o advogado de Ariel estava lá.

— Ao que parece, temos companhia — Red declarou, ao estacionar diante da porta da mansão de Ariel Simmons.

O Jaguar preto sugeria muito dinheiro, e a placa sob o pára-choque traseiro, ILUV2SUE, que na gíria americana significa a abreviação de "eu adoro processar", mais parecia um anúncio ambulante do advogado que o possuía.

— Eu diria que mais parece um reforço — Ben retrucou.

— Vamos resolver isso de uma vez por todas. Prometi a China que passaria por lá esta noite, antes de ir para o sítio.

— Vai visitar Mattie? — Red indagou. Ben assentiu e, então, sorriu.

— Sim. Amanhã é meu dia de folga, e ma­mãe está me deixando louco com suas queixas sobre há quanto tempo não apareço por lá. Achei melhor visitá-la e verificar como vão as coisas, já que tenho essa oportunidade.

Ele tocou a campainha.

Segundos depois, um homem abriu a porta. Pelo terno caro e pelo Rolex que tinha no pu­nho, Ben concluiu tratar-se do advogado.

— Detetives English e Fisher. Queremos fa­lar com a srta. Simmons — Ben declarou.

— Por aqui, cavalheiros. E, para sua infor­mação, sou Herb Langley, advogado da srta. Simmons.

— Para a sua informação, ela vai mesmo precisar dos seus serviços — Ben replicou e sentiu-se profundamente satisfeito ao ver Langley corar até a raiz dos cabelos.

Quando entraram na biblioteca, ficou evi­dente que Ariel estava à espera deles. Estava vestida a caráter, desde a peruca longa e loira até o vestido esvoaçante. Quando eles se apro­ximaram, ela ergueu os olhos, sem se levantar da cadeira que ocupava, pousando a mão sobre a Bíblia, como se estivesse no ponto em que haviam interrompido a leitura.

— Por favor, sentem-se — ela murmurou, antes de abaixar a cabeça e fechar os olhos para sussurrar uma breve oração.

Quando voltou a fitá-los, seu rosto parecia iluminado, os olhos grandes e claros estavam cheios de lágrimas. Ela suspirou, fechou a Bíblia e colocou-a de lado, dando aos detetives toda a sua atenção.

— Quando soube que os senhores tinham mais perguntas a me fazer, pedi ao meu ad­vogado, Herbert Langley, que viesse para cá. Espero que compreendam.

Nenhum dos dois detetives se mostrou im­pressionado com a mudança, fosse em seu comportamento, fosse em sua aparência, o que deixou Ariel furiosa, mas ela não demonstrou sua irritação.

— Em que posso ajudá-los, cavalheiros? Ben retirou o bloco de anotações do bolso e foi direito ao ponto:

— Em nossa última visita, a senhorita nos disse que estava apresentando um programa ao vivo na noite em que Finelli foi assassinado. O fato é que descobrimos que o programa exi­bido naquela noite havia sido gravado dias antes.

As mãos de Ariel agitaram-se de maneira estranha, como se estivessem ligadas aos fios comandados por um aprendiz do teatro de fantoches.

— O senhor tem razão, e peço desculpas pelo meu erro. Acontece que, raramente, meus programas não são transmitidos ao vivo, e acho que, por causa do choque provocado por aquela fotografia horrível que me mostraram, simplesmente esqueci desse detalhe. Então, quando verifiquei minha agenda, dei-me conta do que havia feito e contei a Langley, imedia­tamente. Não foi assim, Langley?

— Sim, claro — ele confirmou.

— E, como devem saber, antes que eu tivesse a chance de entrar em contato com o departamento de polícia e informá-los sobre o erro, vocês en­traram em contato com a minha cliente. A acusação de que ela tenha qualquer ligação com a mulher daquela fotografia horrível, ou com os assassinatos, é absurda.

— Muito bem — Ben disse —, mas precisamos de mais que um pedido de desculpas por parte da srta. Simmons. Ainda queremos saber onde ela estava naquela noite.

Ariel sorriu embora sua vontade fosse gri­tar bem alto. Tudo aquilo era culpa de Finelli. Se o patife não houvesse decidido intrometer-se em assuntos que não lhe diziam respeito, nada daquilo estaria acontecendo.

— Eu estava aqui, em minha casa — ela disse, e então as lágrimas voltaram a brilhar em seus olhos, mas dessa vez, rolaram por suas faces também.

— Estava preparando o meu sermão de domingo, e receio que minha única testemunha seja Deus. — Ariel incli­nou-se para frente.

— Aceita a palavra de Deus, detetive English?

— Claro — Ben replicou.

— Diga a ele que sou todo ouvidos.

Um forte rubor tomou conta das faces dela.

— Como se atreve a blasfemar dessa ma­neira? — indagou, indignada, antes de virar-se para o advogado.

— Langley, como posso enfrentar pessoas tão desprovidas de fé?

A paciência de Ben já era curta quando tudo aquilo começara, mas ele acabou explodindo quando ela apelou para o melodrama.

— Escute senhorita, vamos pôr um fim ao drama, certo? Meu credo religioso não está em julgamento, mas a senhorita poderá estar, caso não apresente um álibi melhor do que esse.

Ariel levantou-se de súbito, abandonando de vez a imagem angelical.

— Não tenho mais nada a dizer. Se não vão me prender, tratem de sair de minha casa. E saibam que pretendo ir ao ar para conta que o Mal está tentando me arrastar para as tre­vas. — Agora, ela se encontrava no auge de sua representação, andando de um lado para outro, como fazia no palco.

— Aquela fotogra­fia é falsa. Alguém colocou meu rosto em outro corpo. Langley disse que, hoje em dia, isso é muito fácil de fazer, e não permitirei que me forcem à submissão. Deus é minha força. Acei­to isso como uma provação da minha fé. Deus estará comigo enquanto eu tiver de enfrentar esse horror, e vencerei no final.

Ben levantou-se.

— Sente-se, srta. Simmons. Só terminare­mos quando eu disser que terminamos. Sim, é verdade que é muito fácil falsificar fotogra­fias, mas é igualmente fácil para um especia­lista detectar a falsificação. Até agora, nossos especialistas não encontraram nenhuma discrepância naquela foto. A única anormalidade é o que a foto mostra. Ariel sentou-se, incapaz de disfarçar a fúria.

— Langley, faça alguma coisa — ordenou.

— Vão prendê-la? — o advogado perguntou aos detetives.

— Você deveria me ajudar! — ela protestou com voz estridente.

— Cale a boca, Ariel. Já falou demais — Langley retrucou.

— Muito bem, detetives, já colocamos as cartas na mesa. A srta. Simmons estava em sua casa, preparando um sermão. Ela não pode provar isso, mas vocês podem provar o contrário? Têm alguma testemunha que a viu em Oakcliff, naquela noite? Não, não têm. Do contrário, ela já estaria presa. Portanto, até provar em contrário, minha clien­te é inocente. — Ele se levantou.

— Bem, como minha cliente colaborou com vocês da melhor maneira, e se não vão prendê-la, sugiro que está na hora de partirem.

Os dois se levantaram. Ben lançou a Ariel um olhar calculado e, antes de sair, aplicou seu último golpe:

— Nós vamos embora, mas que se lembre de uma coisa, senhorita. As mentiras sempre voltam para morder nossos traseiros. Portanto, é melhor ter cuidado com onde se senta.

Quando Langley fez menção de acompanhá-los até a porta, Ben parou.

— Não se incomode — disse.

— Conhecemos a saída.

Ariel Simmons já discutia com seu advogado antes mesmo que os detetives passassem pela porta. Quando chegavam ao fim do corredor, ela começava a gritar.

Red sorriu.

— No momento, Langley está fazendo jus cada centavo que ela lhe paga — comentou. Ben sacudiu a cabeça.

— Eu não trabalharia para uma mulher como ela, nem por todo o dinheiro do mundo. Ela está mentindo, Red, mas como vamos pro­var isso?

— Acha que foi ela? — Red perguntou.

— Não sei. Somente China poderá nos ajudar a encontrar essa resposta. Ontem, quando fui visitá-la, ela conversou comigo durante quase cinco minutos, antes de voltar a dormir. Sinto o impulso de pressioná-la a nos dar res­postas, mas então lembro-me de como a vi, naquela noite... muito pálida e imóvel, com a neve caindo sobre seu rosto... — Ele estremeceu.

— Pensei que estivesse morta.

— Ela chegou muito perto — Red concordou.

— Mas é aí que está à diferença. "Perto" não é o mesmo que "lá". Você mesmo disse que ela está melhor, a cada dia. Quando estiver pronta para nos ajudar de maneira mais efe­tiva, você vai saber. No momento, sinta-se gra­to pelos pequenos favores. Ao menos sabemos que o assassino é uma mulher. Agora, só pre­cisamos de um nome.

China estava acordada quando Ben entrou no quarto. O sorriso dele provocou reações em seu coração que ela preferia não encarar. Não fazia sentido gostar de qualquer homem. Eles tinham uma porção de palavras bonitas... en­quanto pudessem ganhar algo com isso.

— Olá — Ben cumprimentou-a, aproximando-se da cama e colocando um pequeno Papai Noel sobre a mesa de cabeceira.

— Isso é para você se sentir melhor — disse.

— É bom encontrá-la acordada. Como está se sentindo?

— Bem — ela respondeu.

Quando Ben tocou-lhe a testa, China disse a si mesma que ele estava apenas verificando se ela tinha febre. Porém, quando a mão dele deslizou até sua face de maneira carinhosa, ela não soube o que pensar.

Embora estivesse radiante pela recuperação dela, Ben descobria-se diante de um dilema inesperado. Antes, podia tocá-la sem pensar. Agora, ela não se mostrava nem um pouco receptiva à idéia e, apesar de compreender o motivo da desconfiança dela, sentia-se magoa­do assim mesmo.

— Isso é bom — disse, tirando o casaco e colocando no pé da cama.

China moveu os dedos dos pés sob o novo peso e decidiu que a sensação era muito agradável.

— Acha que está em condições de dar uma olhada em algumas fotografias?

— Fotografias de quê? — ela perguntou.

— Possíveis suspeitos.

China arregalou os olhos ao vê-lo retirar um maço de fotos do bolso. Queria que a mulher fosse presa, mas a idéia de vê-la novamente a deixava apavorada.

Ben reconheceu o medo naquele olhar e com­preendeu de pronto.

— Está tudo bem, querida. São apenas fotografias.

China mordeu o lábio e estendeu a mão.

— Tem razão. Vou dar uma olhada.

— Bom.

Ben colocou as fotos sobre as cobertas, espalhando-as até que as seis ficassem perfei­tamente visíveis. Imediatamente, China apon­tou para três delas.

— Não é esta, nem esta, nem esta — disse. Ben apanhou-as e voltou a guardá-las.

— E quanto às outras? — perguntou. China apanhou uma de cada vez, examinando-as cuidadosamente. Uma delas era Shelly Milam. Havia uma semelhança, mas ela não tinha certeza. Por duas vezes voltou às outras duas: Ariel Simmons e Connie Marx. Finalmente, sacudiu a cabeça.

— Não tenho certeza, Estas duas têm algo familiar, mas não são exatamente como ela.

Ben sabia que qualquer advogado ganharia a causa com aquela frase. As duas mulheres em questão eram conhecidas pelo público, o que poderia ser justamente a causa da con­fusão de China.

— Não há pressa — Ben murmurou.

— Tente lembrar-se como ela...

China ergueu os olhos.

— Não preciso tentar. O rosto daquela mulher está gravado na minha memória... para sempre.

— Desculpe — Ben murmurou, antes de guardar as fotografias no bolso.

— Valeu à tentativa.

— Não, sou eu quem deve pedir desculpas. O problema é que os cabelos de todas elas são diferentes. Além disso, estava escuro, e a mulher usava um vestido de festa, por baixo de um casaco de pele longo.

Ben voltou a retirar as fotos de Ariel e Connie do bolso e colocou-as sobre as cobertas de China.

— Tente imaginá-las usando uma peruca, igual à mulher que atirou em você. Então, diga-me se acha possível que seja uma delas.

China examinou as fotografias por um longo momento, antes de sacudir a cabeça.

— Simplesmente não posso afirmar.

O ânimo de Ben quase se dissipou, mas ele não deixou que ela percebesse.

— Tudo bem. Não vá pensar que isso pode atrapalhar as investigações. Certo?

— Certo.

— Bem, é melhor eu voltar ao trabalho. Red foi ao dentista. Prometi apanhá-lo antes do meio-dia e, quando nos despedimos, ele fez questão de me lembrar de que hoje é meu dia de pagar o almoço.

China ouviu com atenção, sem fazer nenhum comentário. Ao que parecia, Ben English costumava cumprir as promessas que fazia para qualquer pessoa, não somente para ela.

— Vai ficar bem? — ele perguntou.

— Pre­cisa de alguma coisa?

— Não, obrigada. Não preciso de nada. Exceto de paz.

Ben hesitou. Queria dar-lhe um abraço de despedida, mas teve de se contentar com um sorriso e um aceno.

— Conversaremos em breve.

Ela assentiu, olhou para o Papai Noel, sor­riu e, em seguida, adormeceu.

Lá fora o espírito natalino dominava o am­biente. Enfermeiras trabalhavam com gorros de Papai Noel, e um grupo de crianças de uma escola particular cantava músicas de Natal no corredor.

China acordou justamente quando um garotinho começava um solo, com sua voz clara e limpa, um tenor nato, que um dia atingiria a maturidade. A pureza com que ele entoou os versos que falavam do menino Jesus, recém-nascido, na manjedoura emocionou China. Afinal, a imagem de um bebê... qualquer bebê... era demais para ela.

— Ah, meu Deus! — China sussurrou e co­meçou a chorar.

Dois dias depois, China estava sentada na cama, quando Ben entrou no quarto. No mo­mento em que a porta se abriu, ela se encolheu aflita, e só relaxou depois de tê-lo reconhecido.

— Você me assustou.

— Desculpe — Ben murmurou, aproximan­do-se rapidamente da cama.

— Tem certeza de que pode ficar sentada assim, tão ereta? Não vá tentar...

— Caminhei da cama até o banheiro, hoje. Sem pensar ele acariciou o rosto dela.

— Ah, querida, que notícia maravilhosa! O calor da mão dele de encontro à sua face, que já era familiar, deixou China nervosa. Não era a primeira vez que ele a tocava daquela maneira, mas agora parecia diferente... menos impessoal. Ergueu os olhos para fitá-lo, as­sustada com o poder no olhar dele.

Por um momento, nenhum dos dois se mo­veu. China foi a primeira a desviar o olhar, estremecendo e ocupando-se em alisar os len­çóis. Não estava preparada para aquilo. Tal­vez, nunca voltasse a estar. No momento, qualquer intimidade com um homem, por mais inocente que fosse, estava totalmente fora de questão. Não havia mais nada dentro dela, exceto pela necessidade de se recuperar e pelo desejo de vingança.

Ben reconheceu o medo nos olhos dela. Se Tommy Fairheart surgisse na sua frente, naquele momento, Ben o espancaria até vê-lo inconsciente. Ora, o sujeito merecia arder no inferno pelo que fizera a China Brown. Ben decidiu que uma mudança de assunto tomara-se essencial.

— Seu médico já a examinou, hoje? — ele perguntou.

Para sua surpresa, ela hesitou e, então, co­meçou a tremer.

— China?

— O que é?

— O que Dr. Pope lhe disse?

— Que vai me dar alta dentro de dois ou três dias

Ben franziu o cenho.

— E isso não é bom? Ela deu de ombros.

Ben sentou-se na beirada da cama e pousou a mão sobre as cobertas. As pernas dela tremiam debaixo do cobertor, embora ele soubes­se que não era de frio.

— China, já chegamos longe demais juntos, para você deixar de confiar em mim agora. O que há de errado em ter alta dentro de dois ou três dias?

China mordeu o lábio e ergueu os olhos para fitá-lo.

— Depois de tanto tempo sem sequer um telefonema, sei que perdi meu emprego. Não tenho casa nem dinheiro. Quando receber alta, não terei para onde ir.

Ben gostaria de poder tomá-la nos braços e cobri-la de beijos, até apagar todo o sofrimento de seu rosto. Porém, sabia que isso tomaria as coisas ainda piores do que já estavam.

— Desculpe. Eu deveria ter lhe contado an­tes — disse. — Isso já está resolvido. Vou levá-la para a casa de minha mãe, onde você ficará até termos certeza de que está segura.

— Ah, não! Eu não poderia me impor a... Ben sacudiu a cabeça, interrompendo-a.

— Se conhecesse minha mãe, saberia que é praticamente impossível impor qualquer coi­sa a ela. Mamãe é viúva e, ao que parece, sente-se muito sozinha naquela casa enorme, no campo. Tenho certeza de que vai gostar de ter companhia.

Foi à vez de China sacudir a cabeça, ainda não convencida.

— E se a mulher que atirou em mim for até lá, me procurar?

— Você vai ficar bem. Já providenciei uma pessoa para bancar o guarda-costas para vocês duas. Trata-se de um ex-policial e grande ami­go da família, que vai adorar a oportunidade de ficar perto de minha mãe.

Apesar de tudo, China ficou curiosa.

— Ele está apaixonado por sua mãe? Ben sorriu.

— Provavelmente, mas decidi ficar fora dis­so. Não se preocupe. Trate de se concentrar em sua recuperação. Pedirei à mamãe que te­lefone para você, antes que deixe o hospital. Quem sabe, se conversarem um pouco, não se sintam duas estranhas, quando finalmente se conhecerem pessoalmente.

Ela hesitou e, então, suspirou.

— Fico envergonhada por ter de admitir que não tenho alternativa.

Ben segurou-lhe o queixo, forçando-a a fitá-lo.

— Todos nós temos alternativas, China. Al­gumas são melhores que as outras, mas nenhuma delas está errada. São apenas alternativas, certo?

Ela assentiu e, quando ele retirou a mão de seu queixo, foi como se seu eixo mudasse. A idéia deixou-a zangada, mas somente con­sigo mesma. Ben não significava nada, exceto o meio para um determinado fim. Ele era po­licial e tinha o dever de protegê-la. O fato de estar disposto a dar alguns passos além de suas obrigações era bom para ela. Como sua mãe costumava dizer, a cavalo dado, não se olham os dentes.

— Está bem. Diga a sua mãe que fico muito grata — murmurou, por fim.

— Diga você mesma, quando ela telefonar. — Ben corrigiu-a.

— Agora, é melhor você descansar. Voltarei depois de amanhã.

O coração de China agitou-se. Um dia in­teiro sem vê-lo? Apesar de não querer admitir, ela se importava com Ben, pois ele havia se tomado sua maior segurança.

— Sim, claro — balbuciou, esforçando-se para não chorar.

Ben já se afastava, mas algo na postura si­lenciosa dela o incomodava.

— Há algo que queira me dizer? Está pre­cisando de alguma coisa?

Ela não respondeu.

— China...

Ela ergueu os olhos.

— Pode confiar em mim. Prometo — ele disse.

As lágrimas voltaram a brilhar nos olhos dela. O homem das promessas ainda não a decepcionara.

— Não há nada errado. Tenho chorado mui­to, nos últimos dias, sem nenhuma razão em particular. Dr. Pope disse que é normal, para um organismo em recuperação. Bem, acho que depois de ter perdido o bebê, meus hormônios estão descontrolados.

Ben recebeu as palavras como um golpe fí­sico. Ora, onde estava com a cabeça? Era claro que havia algo errado! China estava sofrendo pela morte da filha!

— Há mais uma coisa que eu não lhe disse.

— Encontrei o túmulo de sua mãe. Amanhã, sua filha estará ao lado dela. China começou a tremer.

— Obrigada — murmurou.

— Eu... — Co­briu o rosto com as mãos.

— Por favor, meu Deus, faça com que tudo isso seja um pesadelo e que eu acorde depressa.

Ben não conteve um gemido de agonia e, segundos depois, estava de volta no lado da cama, tomando-a nos braços.

— Ah, minha querida. Sua dor está partindo o meu coração. Talvez você não precise ser abraçada, mas neste exato momento preciso muito abraçá-la.

China chorou até adormecer, nos braços de Ben.

Ben estava na varanda da casa do sítio onde fora criado, ouvindo os mugidos ocasionais de uma vaca à procura de seu bezerro, e os sons dos carros e caminhões que passavam pela es­trada, a poucos quilômetros dali. A noite fora ótima. Sua mãe ficara muito feliz em recebê-lo, e havia preparado seus pratos prediletos, além de ter lhe mostrado diversos álbuns de fotografias, falando da infância dele, como se tudo hou­vesse acontecido dias antes. Definitivamente, Ben havia demorado demais para visitá-la, e jurou que jamais voltaria a fazer isso.

No dia seguinte, voltaria ao trabalho, o que significava ver China de novo. Embora esti­vesse a menos de uma hora de Dallas, era como se estivesse em outro mundo.

Ben cruzou os braços e apoiou-se na grade da varanda, observando o céu. A noite estava fria, mas estrelada. Na sala, a televisão estava ligada, e ele podia ouvir as risadas da mãe, que assistia a um seriado cômico.

O sentimento de culpa voltou a atacá-lo. Sua mãe ria sozinha todas as noites. Ele deveria estar sentado ao lado dela, partilhando aqueles momentos de alegria. Porém, havia uma solidão tão profunda dentro dele, que nem mesmo o amor materno poderia curar. Naquela noite, Ben se deitaria e dormiria sozinho, como fazia todas as noites. Tinha trinta e cinco anos e ficara noivo apenas uma vez, doze anos antes. Nunca soubera dizer quem havia terminado o noivado, mas tinha certeza de que tomara a decisão mais inteligente. Queria uma família, mas ao lado da mulher certa, não somente porque se sentia solitário. Queria um casamento como o que seus pais haviam partilhado.

Imediatamente, seus pensamentos se voltaram para China. Não sabia absolutamente nada sobre ela, exceto que havia depositado sua confiança em alguém que a decepcionara. Ben não sabia que ela gostava de dançar, ou qual era a sua cor favorita, ou o que ela gos­tava de comer. Ainda assim, sentia-se ligado a ela de uma maneira que jamais sentira an­tes, com relação à mulher nenhuma.

— Bennett, querido, vai acabar congelando aí fora!

Ele se virou. A mãe estava parada na porta, fitando-o com expressão preocupada.

— Tem razão. Está mais frio do que ima­ginei — ele concordou, acompanhando-a para dentro de casa.

Mattie English encarou o filho. Ele tinha olheiras, além de linhas de amargura em torno dos lábios, o que ela jamais notara antes.

— Filho...

— O que é?

— Está tudo bem?

— Estou bem, mamãe. Desculpe se não es­tou sendo a melhor das companhias, mas es­tou com a cabeça cheia de problemas.

Ela enroscou a mão no braço dele e os dois foram para a sala.

— Ponha mais lenha na lareira, por favor.

— Claro — ele disse feliz por ter algo de concreto para fazer.

Fez o que a mãe pediu e, quando virou-se, ela estava no sofá. Mattie deu um tapinha na almofada ao seu lado, pedindo ao filho que se juntasse a ela.

— Sente aqui — disse. Ele se sentou.

— Está preocupado com o trabalho? — Mattie perguntou.

Ben hesitou, mas sabia que de nada adiantaria mentir para ela.

— Sim.

— Andou se metendo em encrencas?

— Não! Não, mamãe, não é nada desse tipo. Sinto muito se a deixei preocupada.

— Nunca vi você assim. Quer falar a respeito? Ele a fitou e sorriu.

— Acho melhor esclarecer tudo de uma vez — decidiu.

— Especialmente porque envolvi você no problema.

Mattie sorriu.

— Desde que não tenha nada a ver com uma padaria caseira, estou à sua disposição.

Ben riu alto. Tratava-se de uma velha piada familiar, nascida quando ele convencera a mãe fazer os pães que seu grupo de escoteiros ven­deria para doar o dinheiro para caridade. A idéia deixara Mattie com um braço na tipóia e o outro, engessado.

— Nada de padaria caseira, eu juro.

— Muito bem. Então, vamos conversar. Ben respirou fundo. Como explicar? Havia apenas uma maneira: começar pelo início.

— Tudo começou há duas semanas, com um assassinato em Oakcliff. Um homem foi as­sassinado a tiros, e uma mulher foi ferida e tida como morta.

Fez uma pausa e olhou para a mãe, cons­ciente de que a conversa poderia se tomar um tanto angustiante, uma vez que ela tivera um aborto e perdera a única criança que con­seguira conceber. O fato de que seus pais o haviam adotado quando ele tinha apenas al­guns dias de vida raramente passava por sua cabeça. Porém, se China fosse mesmo ficar ali, aquilo tudo teria de ser dito. Sua mãe precisava saber o que ela estava enfrentando.

— A mulher estava grávida. O bebê morreu.

— Ah, Ben — Mattie murmurou, inclinando-se e segurando as mãos dele.

— Tudo bem, filho. Não sou tão frágil. Perder seu pai foi à coisa mais difícil que tive de enfrentar, mas eu sobrevivi. Continue.

— Está bem, mas lembre-se de que foi você quem pediu. Ela assentiu.

— É você quem está encarregado desse caso?

— Sim.

—A mulher que perdeu o bebê... Ela vai viver?

— Durante alguns dias, não tivemos tanta certeza, mas ela está bem agora. Na verdade, isso é parte do que está me preocupando. No dia em que levou os tiros, ela havia acabado de ser despejada. Para encurtar a história, o namorado roubou todo o dinheiro dela e fugiu. Agora, ela é a única testemunha de um crime que está se tomando mais complicado a cada dia que passa. Dentro de poucos dias, ela vai receber alta e não terá para onde ir. Preciso mantê-la em segurança. — Fez mais uma pau­sa, antes de acrescentar:

— Preocupo-me mui­to com o que acontece com ela, mamãe, e vou lhe pedir um grande favor.

Mattie adivinhou o que estava por vir.

— Ela é... bem... decente?

— Até onde sabemos, é uma criatura ino­cente. Perdeu totalmente a confiança nos ho­mens, mas, mamãe, ela tão pequena... Acho que "frágil" é a melhor palavra para descre­vê-la. E é linda, embora, por mais estranho que possa parecer, tenho a impressão de que ela não sabe disso.

Mattie conhecia o filho. Nunca o ouvira falar de uma mulher naquele tom. A última coisa que desejava era ver Ben envolvido com uma pessoa sórdida. Sua opinião era que a melhor maneira de supervisionar uma situação era se colocar dentro dela. Ben podia estar encantado, mas ela saberia reservar seu julgamento até ver a moça com seus próprios olhos.

— Traga-a para cá — disse.

— Vai ter de suportar a presença de Dave, aqui, todos os dias — Ben advertiu-a.

Mattie corou.

— Ora, Ben, ele me deixa nervosa. Está sem­pre aparecendo por aqui, tentando me ajudar com isso ou aquilo. Estou acostumada a me cuidar sozinha há anos. Não preciso que nin­guém faça nada por mim.

— Ela é testemunha de um crime, mamãe. Existe a necessidade de um guarda-costas. Dave Lambert é um policial aposentado. Mora perto daqui. Ele se ofereceu para me ajudar. Se China vier para cá, ele vai fazer parte do acordo.

Mattie comentou, já imaginando uma dança­rina de strip-tease que atendia por tal nome artístico. Ben sorriu.

— Não, mamãe. Esse é o verdadeiro nome dela. China Brown. A mãe, Mae, faleceu. Do contrário, você poderia tomar satisfações com ela com relação à escolha do nome para a filha.

Mattie franziu o cenho.

— Eu não quis dizer que há algo errado com um nome assim. É apenas... diferente.

— Assim como ela — Ben disse.

— E en­tão? Tudo bem? Posso dizer a ela que você concordou?

— Eu mesma direi, amanhã. Em que hos­pital ela está?

— Parkland.

— Telefonarei para ela.

O sorriso de Ben tornou-se mais largo.

— Venha cá — ele disse, abrindo os braços e apertando-a contra si, quando ela se aproxi­mou.

— Sei o que está pensando, mas vai ver com seus próprios olhos. Essa é a mulher menos perigosa que você já conheceu. — Então, o sor­riso morreu nos lábios de Ben.

— Enterrei o bebê dela hoje, antes de vir para cá. Não havia mais ninguém, além de mim e de um padre que não conheço. Ajude-a, mamãe, pois eu sim­plesmente não sei como ajudá-la.

Naquele momento, Mattie sentiu uma forte ligação com a mulher que ainda nem conhecia.

— Tudo vai dar certo, filho — ela murmurou com voz suave.

— O tempo cura todas as dores. Talvez eu e ela vamos curar uma à outra. Quem sabe?

 

— Bobby Lee! Bobby Lee! Vamos votar em você! Bobby Lee sorriu para as três mulheres sor­ridentes, do outro lado da rua, quando ele e Ainsley Been saíram do carro. A WFAL, canal sete, apresentaria uma entrevista especial com ele, sobre o recente anúncio de sua candidatura à presidência, e ele já estava atrasado.

— Vou cobrar a promessa! — replicou, ao entrar no edifício da WFAL.

Um produtor nervoso esperava por ele na porta.

— Senador Wakefield, graças a Deus! Vai estar no ar dentro de cinco minutos! — disse, já instalando o microfone em Bobby Lee, en­quanto o conduzia pelo corredor.

— Ora, pensei que estivesse atrasado — Bobby Lee comentou com um sorriso.

— Este é o administrador de minha campanha, Ains­ley Been.

O produtor cumprimentou-o com um rápido aceno de cabeça e, então, apressou os dois homens para dentro do estúdio, onde Ronnie Boyle, o âncora do noticiário noturno, dava as últimas notícias nacionais.

— Sentem-se — o produtor instruiu-os em um sussurro.

Ainsley Been entregou ao produtor uma fo­lha de papel.

— Aqui está uma lista de perguntas às quais o senador responderá.

— Está nos restringindo em nossa entrevista?

Bobby Lee franziu o cenho para Ainsley, an­tes de dar um tapinha amigável no ombro do jovem.

— Ora, é claro que não, garoto! Sou um livro aberto. Diga a Boyle que pode perguntar o que quiser, está me ouvindo?

— Obrigado. Agora, fique deste lado. Va­mos acomodá-lo em seu lugar dentro de al­guns minutos.

Ainsley abriu a boca para protestar, mas Bobby Lee sacudiu a cabeça antes de entrar no estúdio e sentar-se em uma cadeira, como se fosse um rei assumindo seu trono.

De fato, não havia nenhuma bomba no pas­sado de Bobby Lee... exceto, talvez, por sua mãe, mas quase todos no Texas conheciam Mona Wakefield, ou ao menos sabiam de sua existência, e a aceitavam como a personagem colorida que era. O passado de Bobby Lee, realmente, era seu passaporte para o sucesso. Seu desempenho na guerra, nos campos de futebol e sua dedicação ao governo desde a juventude o transformavam no homem ideal para comandar a nação. E, ainda, era rico, descomprometido e atraente o bastante para agitar o coração de todas as mulheres. No en­tanto, ele não poderia se esquecer de que o senador já não era mais, simplesmente, o bom garoto do Texas que vencera na vida. Havia entrado em terreno nacional, e ainda não sa­bia como Mona Wakefield se comportaria.

Em circunstâncias normais, Connie Marx teria feito à entrevista, mas desde sua sus­pensão da emissora, seu colega, Ronnie Boyle, atuava como entrevistador naquele segmento do programa.

— Boa noite, senador — Boyle cumprimen­tou-o, apertando a mão de Bobby Lee, ao se sentar na poltrona diante do entrevistado.

Bobby Lee assentiu e sorriu.

— Câmera dois — alguém avisou.

Boyle assentiu, sem desviar os olhos dos de Bobby Lee.

— Está bem acomodado, senador Wakefield?

— Sim, estou ótimo — Bobby Lee respondeu. Boyle voltou a assentir, antes de ajustar seu microfone e olhar para o papel que tinha sobre as coxas, repassando suas anotações.

Mais uma vez, Ainsley sentiu um calafrio, mas disse a si mesmo que deveria se manter calmo. Afinal, o que poderia dar errado?

Uma voz se fez ouvir em um canto do estúdio:

Ronnie Boyle ergueu os olhos e sorriu dire­tamente para a câmera.

— Estamos de volta. Temos um convidado especial, esta noite. Um dos homens mais importantes do Texas, nosso querido senador Bobby Lee Wakefield. — Boyle dirigiu seu sor­riso para Bobby Lee.

— Senador, o senhor anunciou recentemente sua candidatura à presidência dos Estados Unidos. O que o levou a tomar essa decisão?

Bobby inclinou-se apenas um pouco, dando a impressão de que estaria partilhando uma informação confidencial. A expressão em seu rosto era de simpatia e, ao mesmo tempo, seriedade.

Longe das câmeras, Ainsley suspirou aliviado. Ora, deveria saber que não tinha com o que se preocupar. Quando se tratava da imprensa, Bobby Lee era um verdadeiro profissional.

— Bem, Ronnie... Não se importa se eu o chamar de Ronnie, importa-se? — Bobby Lee perguntou.

— É claro que não — Boyle replicou.

— Afinal, somos todos amigos, aqui.

— Era isso o que eu queria ouvir — Bobby Lee declarou e, então, começou a falar.

Do outro lado da cidade, Mona estava sentada no meio de sua cama, as pernas cruzadas, os olhos fixos na tela da televisão. Ouvia o filho com ar distraído. Sua atenção concentrava-se, principalmente, no que ele vestia e em sua aparência de modo geral. Alguns mi­nutos depois, ela começou a relaxar. Ele pa­recia ótimo e, embora o tal de Boyle ainda não houvesse se dado conta, Bobby Lee estava conduzindo a entrevista exatamente para onde o interessava.

Os minutos foram se passando, enquanto Mona imaginava o futuro e uma ocasião muito mais importante do que uma simples entre­vista em uma emissora local de televisão. Reclinou-se na cabeceira da cama e fechou os olhos, imaginando o filho nos degraus da Casa Branca, tomando posse do cargo de presidente, e ela mesma ao seu lado. Decidiu que vestiria branco... Não. Talvez vermelho fosse melhor, pois daria maior realce em rede nacional. E, também, usaria um chapéu. Ficava bem de chapéu, e fazia muito frio em Washington, no mês de janeiro.

Então, seus pensamentos voltaram a foca­lizar o programa, e ela voltou a olhar para a tela, no momento em que Boyle mudava de assunto, deixando de lado as plataformas na­cionais para se ater à política local.

— Senador, tenho certeza de que foi informado da morte recente de Tashi Yamamoto. Há rumores de que a companhia que ele possuía em Dallas será fechada. Se isso acontecer, muitos de nossos cidadãos ficarão desempregados. O senhor tem alguma informação que possa aliviar as preocupações dessas famílias?

Bobby Lee inclinou a cabeça para um lado, apenas um pouco, assumindo ar pensativo. Sabia que ficava bem, assim. Havia praticado a pose durante anos, a fim de conseguir o efeito desejado.

— Isso foi uma tragédia, sem dúvida — disse.

— Infelizmente, não fui informado diretamente sobre o possível destino da companhia do Sr. Yamamoto, mas aproveito a oportunidade para enviar minhas condolências à família dele e declaro-me solidário com todos aqueles que pos­sam ser afetados pelo fechamento da compa­nhia. — Então, olhou diretamente nos olhos de Boyle, sabendo que isso daria a impressão de que estava falando com os telespectadores.

— Essa é mais uma prova de que a violência em nosso país afeta a todos nós, mesmo que de maneira indireta. Se for eleito presidente, pre­tendo tomar todas as providências para alterar as leis sobre a pena de morte. Muitos criminosos reincidentes são libertados para viver em meio à nossa sociedade.

Boyle lançou um olhar maroto para o produtor, que fazia sinais indicando que o tempo havia terminado. Então, encerrou com habilidade a entrevista. Quando o programa terminou, Bob­by Lee levantou-se e tirou o microfone, deixan­do-o na cadeira que havia ocupado.

— Bom trabalho, Sr. Boyle — disse, apertando a mão do âncora.

Ronnie Boyle assentiu e sorriu.

— O senhor facilitou meu trabalho. Bobby Lee sorriu. Nunca se cansava de ter o ego afagado.

— Conseguimos cobrir vários tópicos impor­tantes, em cinco minutos — Boyle acrescentou.

— Há muitas coisas acontecendo no país.

— Tem razão — o jornalista concordou.

— Especialmente aqui, em Dallas.

Bobby Lee mostrou-se confuso.

— Está se referindo à morte de Yamamoto?

— Isso e o escândalo do caso Finelli.

A expressão de Bobby Lee tornou-se ainda mais confusa.

— Sim, bem, tenho outro compromisso den­tro de poucos minutos. Preciso ir embora.

Boyle acompanhou-o para fora do estúdio.

— Como acha que Dallas vai resolver essa situação complexa? — perguntou, antes de baixar o tom de voz e continuar:

— Refiro-me ao fato de o escândalo envolver pessoas im­portantes, tanto na sociedade quanto na política e nos negócios.

O coração de Bobby Lee começou a bater mais forte. Reunira todas as informações so­bre os interrogatórios da polícia, assim como das fotografias encontradas no apartamento da vítima. Perdera noites de sono, perguntando-se se a mãe apareceria em alguma das fotos e, também, quantas pessoas teria de subornar para garantir que tais fotografias desapare­cessem, se existissem.

— Sim, tem razão, mas prefiro não comen­tar. — Apertou a mão de Boyle com vigor.

— Mais uma vez, obrigado pela excelente entre­vista, filho. — Então, virou-se para Ainsley.

— Peça ao motorista para trazer o carro. Já terminamos aqui.

Afastou-se sem olhar para trás, deixando Ronnie Boyle a se perguntar por que a ati­tude jovial do senador havia desaparecido tão subitamente.

A televisão estava ligada, mas sem som. Um prato de macarrão com frango, já frio, estava na mesa-de-cabeceira de China. A gelatina estava pela metade, e o leite fora consumido. Ela havia comido porque haviam insistido para que o fizesse, não porque sentisse fome. Não tinha apetite para nada, exceto vingança desde que Ben English a desafiara a se recuperar, ela havia concentrado toda a sua energia nisso, por uma única razão. Queria que a mulher que atirara nela pagasse pelo que fizera. Talvez, então, ela conseguisse viver com um pouco de paz.

Enquanto estava ali, deitada, alguém riu alto no corredor. O som feriu seu coração. Parecia obsceno o fato de o mundo continuar girando, quando sua vida havia parado. Era como se estivesse presa no vácuo, sem qualquer meio de escapar. Tudo parecia sem sentido e assustador. Em sua visita, naquele dia Dr. Pope lhe dissera que, se ela continuasse a progredir, receberia alta dentro de dois dias.

A idéia de sair da segurança do pequeno quarto e do guarda postado em sua porta era aterrorizante. E se, no momento em que pisasse fora do hospital, a assassina atirasse nela novamente? Isso poderia acontecer facilmente e, sem dúvida, a mulher tinha motivos de sobra para querer vê-la morta. Afinal, China era a única pessoa capaz de identificá-la.

— Ah, meu Deus, ajude-me a superar isso — sussurrou, virando-se para a parede.

O telefone tocou ao lado da cama, provocan­do-lhe um sobressalto. Quem poderia estar li­gando? Ninguém sabia que ela estava lá. En­tão, pensou em Ben. Não o via fazia dois dias. Talvez ele estivesse ligando para saber como ela estava. Movendo-se com dificuldade, apanhou o fone e colou-o ao ouvido.

— Alô?

Mattie English respirou fundo. A voz suave e frágil não era o que ela esperava ouvir.

— É China Brown quem está falando?

De repente, o rosto da mulher que havia atirado nela apareceu em sua mente. E se fosse ela? Apavorada, China desligou. Então, puxou as cobertas até o queixo, como se o gesto simples pudesse mantê-la sã e salva.

Alguns segundos depois, o telefone voltou a tocar. Os nervos de China, já à flor da pele, cederam ao pânico. Ela abriu a boca para gritar, mas não conseguiu emitir nenhum som. Tudo o que pôde fazer foi continuar deitada, imobilizada pelo medo. No quinto toque, uma enfermeira entrou.

— Querida, seu telefone está tocando. Não consegue alcançá-lo? — Sem esperar pela resposta de China, ela atendeu:

— Quarto da srta. Brown.

China prendeu a respiração quando a enfermeira estendeu-lhe o fone.

— É Mattie English. Diz ser mãe do detetive English. Quer falar com ela?

— Ah, meu Deus — China murmurou, começando a tremer.

Havia se esquecido de que a mãe de Ben telefonaria e desligara! Apanhou o fone.

— Alô?

Mattie começou a falar antes que China pudesse desligar novamente:

— Eu deveria ter me identificado imediatamente. Sei que você passou por uma situação terrível, mas também soube que está se recuperando muito bem.

— Sim, senhora — China replicou.

— Ben me disse que você vai receber alta em breve.

— Sim, senhora.

Algumas das dúvidas de Mattie começaram a se dissipar. Sim, senhora. Ao menos, a garota fora educada para respeitar os mais velhos.

— Estou ligando para reforçar a oferta que Ben fez, para que você fique aqui, comigo, por uns tempos. Ao menos, até que consigam efetuar uma prisão. China hesitou.

— Ele mencionou a possibilidade, mas não que­ro atrapalhar a sua vida, pois sei que não é agradável ter uma estranha dentro de sua casa.

Mattie sorriu consigo mesma e relaxou ain­da mais.

— Ora, querida, não me lembro de jamais ter vivido tão sozinha quanto agora. Será bom ouvir outra voz que não seja a minha dentro desta casa.

Os olhos de China encheram-se de lágrimas. Fazia tanto tempo que não se sentia tão bem recebida em qualquer lugar que não pôde conter a emoção.

— Imagino que Ben tenha lhe contado que não tenho para onde ir.

Quando a voz da moça tornou-se trêmula, a empatia de Mattie transformou-se em profunda simpatia.

— Sim, ele contou. E me contou os motivos, também. Sinto muito pela perda que você sofreu.

As lágrimas rolaram soltas pelas faces de China. Ela só conseguiu assentir em resposta, mesmo sabendo que Mattie não poderia vê-la.

Quando Mattie achou ter ouvido um soluço abafado, suas últimas reservas desapareceram.

— Vá em frente e chore quanto quiser — disse.

— Conheço a dor que você está sentindo.

— Perdi meu único bebê, dois meses antes de ele nascer, e quis morrer. Acho que tentei morrer. — A voz dela tremeu com a lembrança do sofrimento.

— Mas, então, aconteceu a coisa mais incrível.

— O quê? — China conseguiu perguntar apesar de tudo o que estava sentindo.

— Em primeiro lugar, descobri que é impossível morrer, prendendo a respiração.

China não conteve um sorriso.

— E — Mattie continuou — eu havia me dedicado demais à decoração do quarto para destruí-lo simplesmente. Eu queria ser mãe mais do que qualquer coisa. Por isso meu marido e eu adotamos um bebê. Demoramos quase dois anos para encontrá-lo, mas Ben fez a espera ter valido a pena.

— Ben foi adotado?

Mattie sorriu. Embora a voz de China ainda soasse trêmula, o interesse genuíno era evidente.

— Sim. E tudo deu muito certo, especialmente se levarmos em conta quanto meu marido e eu o mimamos, não acha?

China fechou os olhos, tentando imaginar o homem grande que conhecia como um bebê que alguém havia rejeitado. A imagem magoou seu coração.

— Sim, senhora.

— Bem, se vamos mesmo dormir sob o mesmo teto, você precisa saber de uma coisa, agora mesmo. Não atenderei a nenhum outro cha­mado que não seja de Mattie. Nada dessa his­tória de senhora está me ouvindo? China voltou a sorrir.

— Sim, senh... Quero dizer, sim, Mattie.

— Assim está melhor. Agora, não se preo­cupe com mais nada. Trate de se recuperar totalmente. Vamos nos ver em breve.

— Está bem. Obrigada.

— De nada, querida. Ah, eu já ia me es­quecendo! Você tem alguma alergia, ou ver­dadeiro asco por alguma comida?

— Nenhuma alergia, e a única coisa que não gosto, com relação à comida, é não ter o que comer.

A risada de Mattie foi agradável ao ouvido de China, cujo sorriso tornou-se mais largo.

— Bom — Mattie declarou.

— Você tem sen­so de humor. Tenho certeza de que vamos nos dar muito bem. Agora, descanse. Até logo.

China desligou o telefone, ainda sorrindo. Durante sua conversa com Mattie, a enfer­meira havia se retirado, levando consigo a bandeja com a comida quase intocada. China olhou para a tela muda da televisão e, então, virou-se para a janela. A paisagem continuava igual, mas havia algo muito diferente na maneira como ela a via. Fechou os olhos, tentando dormir, mas quanto mais tempo ficava ali, deitada, mais inquieta se tornava. Se ao menos...

A porta se abriu. China ouviu a respiração de alguém e virou-se.

Ben. Era Ben. Mais uma vez, seu homem das promessas não a decepcionara.

— Você veio — ela disse.

A porta se fechou atrás dele e ele se apro­ximou da cama.

— Eu disse que viria. China sorriu.

— Sim, eu sei.

Fitaram-se em silêncio por um longo mo­mento. Ben sentiu como se houvesse passado uma semana inteira sem vê-la, em vez de um dia apenas. Queria tomá-la nos braços, sentir o calor da pele dela de encontro à sua, mas não podia. O que quer que sentisse por ela não tinha nenhuma relação com a realidade.

China permaneceu quieta, sentindo-se pou­co à vontade com seus próprios sentimentos. Continuou olhando para Ben, reconhecendo a ternura naqueles olhos escuros, lembrando-se de como se sentira segura no abrigo daqueles braços fortes.

De repente, ele se moveu, e ela entrou em pânico. Se ele chegasse mais perto, ela seria capaz de fazer alguma tolice, como se atirar nos braços dele.

— Sua mãe telefonou.

Ben parou junto ao pé da cama e tirou o casaco, atirando-o na cadeira.

— E o que você achou?

— Ela é muito simpática.

Ben emitiu um suspiro de alívio.

— Sim, ela é.

China hesitou, antes de acrescentar:

— Ela me contou sobre o aborto.

Ben ficou surpreso, mas não demonstrou, limitando-se a assentir. Quando China lhe di­rigiu mais um olhar de especulação, ele po­deria apostar o salário do mês seguinte que sabia o que ela estava pensando.

— Ela também contou que você foi adotado. E ele teria ganho a aposta.

— Sim, quando eu tinha menos de uma se­mana de vida. Fui dado para adoção assim que nasci. Isso é tudo o que sei.

— Não incomoda você o fato de não saber? Ele sacudiu a cabeça.

— Sendo policial, já vi quase todos os as­pectos sórdidos da vida que as pessoas trazem para si mesmas. Sinto-me grato à minha mãe por ela não ter me abortado e, se a vida dela fora complicada, por ter tido o bom senso de me abandonar, para me proteger. Meus pais adotivos não poderiam ter sido melhores. Eu me considero abençoado.

— Minha mãe me amava muito — China disse.

— Ela deixou o meu padrasto porque ele me tratava muito mal. Ela me protegeu de tudo e de todos, até o dia em que morreu. — Suspirou.

— Isso foi há cinco anos, logo depois do meu aniversário de vinte e um anos, e não passo um só dia sem pensar nela. Quando eu morri... ela estava lá, à minha espera — acrescentou e, então, desviou o olhar, chocada consigo mesma por ter revelado algo tão pessoal.

Por um momento, Ben descobriu-se incapaz de falar. China havia falado da morte em um tom tão casual que o deixara chocado.

— Quando você morreu?

China deu de ombros, mantendo os olhos baixos.

Ben aproximou-se e segurou as mãos dela.

— Não estou zombando de você. Eu apenas não sabia.

China ergueu os olhos marejados de lágrimas.

— Eu sabia o que havia acontecido, mas isso não importava. Minha filha estava comi­go. Eu ouvia vozes me dando as boas-vindas. Então, vi pessoas. Minha mãe estava lá, sor­rindo e me chamando. — Respirou fundo.

— Ah, Ben, ela me fez voltar. Disse que não era a minha hora. Mas ela me mandou de volta sozinha.

Ben gemeu baixinho e tomou-a nos braços, aconchegando-a de encontro ao peito.

— Você não está mais sozinha. Estou aqui, com você. E estarei sempre ao seu lado. Prometo.

Lá estava o homem das promessas, mais uma vez. China fechou os olhos e rendeu-se a ele... só por um momento, o bastante para se lembrar de como se sentia segura naqueles braços.

Ficaram ali, sentados, imóveis. Ben testava os limites de suas emoções, enquanto China inspirava a fragrância de sua colônia pós-barba e absorvia a sensação das mãos quentes em suas costas. Então, ela se moveu.

Ben descobriu-se a fitá-la nos olhos. Em se­guida, seu olhar desceu pelas curvas do nariz delicado, até pousar nos lábios rosados.

Sem se dar conta do que fazia, ele a beijou.

Com gentileza.

Lentamente.

Gravando na mente a forma e a textura da­queles lábios. E mais uma vez. Com urgência. Desesperadamente.

Querendo mais do que ela estava pronta para oferecer. Ben foi o primeiro a se afastar.

— China, eu...

Ela tocou os lábios dele com a ponta de um dedo.

— Por favor, não diga nada.

Ben levantou-se abruptamente e enfiou as mãos nos bolsos, antes de se encaminhar para a janela. Tinha de se distanciar de China, antes que fizesse uma tolice ainda maior. Teria assustado a pobrezinha, a ponto de fazê-la mudar de idéia quanto a ficar com sua mãe? Ah, não, isso não! A assassina continuava livre, e ele precisava ter certeza de que China estava em segurança.

Virou-se, na intenção de oferecer um pedido de desculpas, mas ela estava virada para o outro lado. Embora soubesse que a havia embaraçado, Ben viu algo no rosto dela que o fez arrepiar-se. Fitou-a atentamente, tentando definir o que mudara. Então, seu coração disparou. As faces de China estavam coradas, seus olhos brilhavam, seus lábios apresenta­vam-se levemente curvados em um sorriso.

— Está se sentindo à vontade com a idéia de ficar com minha mãe? — ele perguntou.

Ela ergueu os olhos.

— Você vai estar lá?

— Sempre que puder.

Satisfeita com tal resposta, China cruzou as mãos sobre as coxas.

— Se você vai estar lá, estarei bem. Emocionado pela simplicidade da reação dela, Ben descobriu-se momentaneamente mudo. De repente, deu-se conta de que, se não fosse embora logo, faria mesmo uma grande tolice. Apanhou o casaco e vestiu-o.

— Voltarei amanhã — disse.

— Telefone, caso precise de qualquer coisa.

China assentiu, observando cada detalhe dos movimentos dele. Ben já havia alcançado a porta quando parou e virou-se.

— Por quê? — indagou.

— Por que o quê?

— Depois do que Fairheart fez a você, por que confia em mim?

— Promessas.

Ben fitou-a com ar confuso.

— Promessas? — repetiu.

— Você é um homem inteligente. Encontre a resposta por si mesmo — ela disse. — Pode apagar as luzes, quando sair?

— Ah, sim... Claro — Ben balbuciou e aten­eu o pedido dela, antes de abrir a porta. Então, olhou para ela mais uma vez. China havia se deitado de lado, com os olhos fecha­dos. Por um momento, até que seus olhos se acostumassem à escuridão, ele acreditou ter visto alguém parado junto da cama. Piscou algumas vezes, e a imagem desapareceu.

— Durma bem, querida. Vejo você amanhã.

— Promete? — ela perguntou em um mur­múrio suave.

— Prometo.

Ben ainda sorria quando se pôs a percorrer o corredor. Foi somente quando entrou no ele­vador que se deu conta do que ela tentara lhe dizer. Dia após dia, China o vinha julgando pelas promessas que fazia e por aquelas que cumpria. Um arrepio gelado percorreu sua es­pinha. Por favor, meu Deus, não permita que eu a decepcione.

Naquela noite, apesar dos ruídos incessantes do hospital. China dormiu sem medo nem pesadelos. Dormiu como uma criança, sabendo que a mãe estava ao seu lado.

Acordou na manhã seguinte, quando uma enfermeira entrou no quarto, trazendo remé­dios e um pequeno ramo de flores, que colocou sobre o travesseiro de China.

— Isso é para lhe trazer bons sonhos — disse, antes de lhe entregar os comprimidos e um copo de água.

— Seu café da manha não vai demorar a chegar. Precisa de ajuda para se levantar e ir ao banheiro?

— Não. Acho que posso me arrumar sozinha.

— Está bem. Se precisar de alguma coisa, basta tocar a campainha.

China foi ao banheiro e voltou, incomodada com a leve vertigem que sentia, toda vez que se levantava da cama. Detestava sentir-se fraca e dependente dos outros. Por outro lado, estava viva, o que já era alguma coisa. E o Dr. Pope havia prometido que ela se recupe­raria completamente.

Antes de voltar para a cama, lembrou-se de que Ben havia deixado um cartão, e foi até a gaveta para procurá-lo. Suas pernas tremiam, mas sua determinação era forte. Por isso, ela se acomodou na cama, antes de apanhar o telefone. Naquela noite, em um sonho, China vira o rosto da mulher novamente, com tama­nha clareza que chegara a imaginar o hálito quente da outra atingindo sua pele. Vira a expressão dela se transformar de raiva em total desrespeito pela vida humana e tinha de fazer uma coisa, enquanto a imagem estava fresca em sua memória.

Olhou para o relógio. Faltavam alguns minutos para as sete horas. Talvez fosse melhor tentar o número da casa dele, em primeiro lugar. Discou e esperou, contando os toques.

Ben saía do banho quando o telefone começou a tocar.

— Diabos! — resmungou consigo mesmo, antes de se enrolar na toalha e correr até a ala.

— Alô? — atendeu ofegante.

China hesitou. Ele parecia sem fôlego, ocupado. De repente, ocorreu a ela que a vida pessoal de Ben poderia incluir uma mulher. A partir dessa idéia, sua mente apressou-se em criar a cena de seu telefonema interrompendo o casal em meio ao ato de fazer amor.

— Desculpe... Eu não deveria ter ligado tão cedo. Voltarei a ligar quando...

— China... querida... é você?

— Sim, sou eu, mas é óbvio que liguei em uma hora ruim e posso...

— Eu estava no banho. Só isso — ele falou depressa.

— Algo errado?

Os dedos de China apertaram o fone, en­quanto ela o imaginava nu e molhado. O que não foi difícil.

— Nada errado — respondeu, um tanto aba­lada.

— Acontece que sonhei com a mulher, esta noite, e vi o rosto dela com muita clareza. O seu departamento tem algum artista, daqueles que desenham o rosto das pessoas a partir de uma descrição?

— Sim, e a idéia é muito boa. Na verdade, Red e eu conversamos sobre isso, mas achei que você não estava em condições...

— Quero fazer isso, Ben.

— Se é o quer, é o que faremos. Dê-me al­gumas horas para tomar as providências neces­sárias. Assim que tivermos tudo, iremos até aí.

China começou a relaxar.

— Certo. Ben...

— O que é querida?

— Obrigada.

— Não, querida. Sou eu quem tem de agra­decer. Vejo você mais tarde, está bem?

— Está bem.

Ela desligou e ficou sentada na cama, quie­ta, refletindo sobre o que acabara de fazer. Pela primeira vez, desde o incidente, não se sentia tanto como uma vítima, e tal sensação era boa, muito boa.

 

China estava sentada em uma cadeira de rodas quando Ben e Red chegaram. Outro policial entrou junto deles, carregando equipamento de computador.

Ben aproximou-se dela, desejando poder abraçá-la, mas se contentando com um sorriso.

— Bom dia, China. Este é Matt Avery. As­sim que ele houver instalado o equipamento, vai começar a recriar o rosto da assassina.

China estivera esperando um artista empu­nhando uma prancheta, não um computador.

— Faz isso com um computador? — perguntou. O rapaz olhou para ela e sorriu.

— Espere até ver o que posso fazer com esta coisa — disse.

Ben tirou o casaco e começou a ajudar Avery na instalação do equipamento, enquanto Red rondava a bandeja do café da manhã de China.

— Bom dia, srta. Brown — ele a cumpri­mentou, antes de apontar para a bandeja. — Não comeu a sua torrada.

— Estou satisfeita.

— Importa-se se eu comer? — ele perguntou, apanhando a torrada, assim como uma em­balagem de geléia.

Ben revirou os olhos.

— Pelo amor de Deus, Red! Perdeu a noção de boas maneiras?

Red deu de ombros e continuou comendo.

— Creio que podemos concluir que Rita ain­da o mantém em dieta — Ben acrescentou.

— Sim, mas não está dando resultado — o parceiro retrucou de boca cheia.

— Por que será? — Ben zombou, antes de virar-se para China.

— Como pode ver, não posso levá-lo comigo a qualquer lugar.

China riu e, no mesmo instante, foi invadida por um terrível sentimento de culpa. Como podia rir em um momento como aquele? Bai­xou os olhos para as mãos e, então, fixou-os em um ponto na parede, fazendo grande es­forço para não chorar.

Ben afastou-se de Avery e agachou diante dela.

— Não faça isso — murmurou.

— O quê? — ela perguntou, sem fitá-lo.

— Não entre nesse jogo. É errado.

— Não sei do que está falando.

— Estou falando do sentimento de culpa dos sobreviventes. Já vi isso acontecer muitas vezes. — Ben virou a cadeira, forçando-a a encará-lo.

— O que aconteceu não foi sua culpa. Você não estava nas ruas porque queria, e não puxou o gatilho. O fato de você não ter morrido, quando todos os outros morreram, é um milagre, não algo de que se envergonhar.

O queixo de China tremia, seus olhos exibiam o brilho das lágrimas contidas. A razão lhe dizia que ele estava certo, mas seu coração encontra­va dificuldade em se desfazer da culpa.

— China?

— Sim, eu sei — ela disse.

— Pode me dar alguns lenços, por favor?

Ele lhe estendeu a caixa de lenços de papel que havia sobre a mesa e afastou-se, dando-lhe tempo para secar as lágrimas e se recompor.

Ao ouvirem o som de metal batendo contra a louça, todos se viraram para Red.

— O que foi? — ele resmungou.

— E mingau de aveia. Aveia é muito saudável. Deixem-me em paz.

Dessa vez, quando China riu, foi mais fácil, e quando o último eco daquele som se dissipou boa parte de sua culpa também havia desa­parecido.

— Podemos começar detetive English.

— Está pronta, China? Ela assentiu.

— O programa com o qual Avery trabalha conta com milhares e milhares de combinações de traços faciais. Você vai dizer a ele o que viu, e ele começará com um rosto de estrutura similar. Então, juntos, vocês vão aperfeiçoar cada traço, individualmente, até você estar satisfeita com o conjunto do rosto da criminosa. Compreendeu?

— Acho que sim — China respondeu,

— Caso se sinta cansada ou queira parar por qualquer motivo, basta dizer. A última coisa que queremos é prejudicar a sua saúde.

— Certo.

Ben pousou a mão na nuca de China e, então, permitiu-se o prazer de afagar os cabelos negros e sedosos.

— Relaxe, querida, e faça o melhor que puder. A sensação provocada pela mão dele em sua cabeça era perturbadora, mas quando ele se afastou, China sentiu-se abandonada.

— Srta. Brown? China virou-se.

— Desculpe — disse, encarando Avery.

— O que devo fazer?

Ele sorriu.

— Converse comigo. Verá como isso fun­ciona, à medida que formos progredindo. Va­mos começar pelo formato do rosto e idade aproximada.

Ela franziu o cenho, tentando lembrar-se com exatidão.

— A rua estava quase deserta. Havia di­versos lugares escuros e sombrios, mas está­vamos bem em frente a um bar, e as luzes de Natal eram tantas que pude ver o rosto dela com clareza... duas vezes. Primeiro, quan­do colidimos uma com a outra e, depois, quan­do ela apontou a arma...

Parou de falar e estremeceu.

— Não se apresse — Avery falou.

— Sei que é difícil.

— Estou bem — China garantiu.

— Quanto à idade, eu diria que ela não é exatamente jovem.

— Com isso, quer dizer que é uma mulher de meia-idade? — Avery inquiriu.

— Não. Quero dizer que não tem vinte e poucos anos, nem trinta e poucos. Era uma mulher muito bonita, mas madura. Talvez es­teja na casa dos quarenta, já perto dos cin­qüenta. Seu rosto é ovalado, eu acho, com um queixo de linhas marcantes e nariz reto. São traços bastante comuns.

Ben observava em silêncio, enquanto um rosto começava a tomar forma na tela do computador.

— Hei parceiro, vou até a drogaria — Red informou-o.

— Preciso de antiácidos.

— Trate de não voltar com hálito de chocolate, ou contarei tudo a Rita.

— Meu Deus, um homem não pode tomar um simples lanche, sem causar uma revolução?

Com isso, saiu do quarto.

Dez minutos se passaram, Red voltou e pos­tou-se ao lado de Ben, em silêncio. Logo, meia hora havia se passado. As perguntas de Avery, cuidadosas e persistentes, estavam retirando coisas da memória de China que ela nem imaginava estarem lá.

Uma sobrancelha ligeiramente mais arqueada que a outra.

Lábios que jamais poderiam ser descritos como voluptuosos.

Uma hora depois de terem começado, China estava pálida e trêmula. Quando ela oscilou, parecendo prestes a perder os sentidos, Ben declarou a sessão encerrada.

— Já chega — disse, empurrando a cadeira de rodas na direção da cama.

China, porém, agarrou-lhe o braço.

— Não, espere. Preciso terminar isso e ainda não está exatamente correto. Alguma coisa está faltando.

Fixou os olhos na tela, analisando cada um dos traços da mulher.

— Talvez a testa seja mais alta — Avery sugeriu.

Então, digitou uma série de comandos e, se­gundos depois, o rosto na tela alterou totalmente sua forma.

— Não. Volte ao que era antes — China instruiu-o.

— Não é nada acima do nariz. Trata-se de algo em torno da boca, mas não sei... — De repente, ela arregalou os olhos.

— O lábio superior. É isso! O lábio superior. Tor­ne-o mais longo e acrescente uma pequena fenda. A boca que temos agora toma o rosto dela suave demais.

Os dedos de Avery voaram sobre o teclado, e o pedido de China foi prontamente atendido.

— Sim! — ela gritou.

— Sim! É ela! Essa é a mulher que atirou em mim! — Sua voz começou a tremer.

— Essa é a mulher que matou minha filhinha!

China cobriu o rosto com as mãos e pôs-se a chorar.

— Agora chega — Ben ordenou.

Avery obedeceu. O que quer que ainda pre­cisasse ser feito, poderia ser feito na delegacia. Red ajudou-o a guardar o equipamento, en­quanto Ben empurrava a cadeira de rodas até a cama. Poucos minutos depois, estavam sozinhos. Ela fez menção de se levantar, mas Ben a impediu.

— Deixe-me ajudá-la — disse, tomando-a nos braços e acomodando-a na cama.

China estava exausta pelo esforço, assim como cansada de chorar.

— Eu consegui, não foi, Ben?

Ele ajeitou suas pernas e, então, cobriu-a. Havia um nó em sua garganta, e muita raiva em seu coração. Deus precisaria ter miseri­córdia pela assassina, porque ele jamais teria sentimento tão nobre. Afastou os cabelos do rosto de China e respirou fundo, na tentativa de se acalmar, antes de falar:

— Sim, querida, você conseguiu. Está se sentindo bem? Devo chamar a enfermeira? Está com dores?

Já estendia a mão para a campainha quando ela agarrou seu punho.

— Não. Nada de enfermeira.

— Tem certeza? Ela assentiu.

— Só preciso descansar.

— Então, feche os olhos.

As pálpebras de China tremularam, antes de se fecharem. Ao mesmo tempo, ela suspirou profundamente. Em questão de segundos, es­tava adormecida. Ben observou-a até ter cer­teza de que ela dormia. Então, apagou a luz é inclinou-se para beijá-la no rosto.

— Durma bem, China. Durma bem e não deixe a cuca te pegar.

Ao pousar a mão no trinco da porta, Ben virou-se para se certificar de que ela estava mes­mo bem. Então, saiu sem fazer o menor ruído. No entanto, sua despedida havia penetrado o subconsciente de China, trazendo à tona uma velha, mas doce lembrança de sua infância.

— Mas, mamãe, eu não quero dormir.

— Tem de ir à escola amanhã, China Mae. Agora, feche os olhos e tenha sonhos bem bonitos.

China aconchegou-se debaixo das cobertas e fechou os olhos, mas o sono recusava-se a vir.

— Cante para mim, mamãe. Então conse­guirei dormir.

Mae Shubert sorriu.

— Se eu cantar, promete ficar quieta?

— Sim, mamãe, eu prometo.

O som suave da voz de Mae encheu o quarto. Ela cantou um verso de uma doce cantiga de ninar e, quando chegava na metade do segundo, deu-se conta de que China dormia. Parou de can­tar, inclinou-se sobre a filha e beijou-lhe a testa.

— Durma bem, minha bonequinha chinesa. Durma bem e não deixe a cuca te pegar.

China sorriu em seu sono. Era bom ver a mãe novamente.

Mona Wakefield pagou o motorista do táxi e correu para dentro da galeria, a fim de fugir do frio. O terninho que usava era a última palavra em moda, mas nada apropriado ao clima de de­zembro. O tecido era fino demais para protegê-la das fortes rajadas de vento, e embora ela pudesse ter vestido um de seus muitos casacos, não sentira a menor disposição de esconder o que se esforçara tanto para apresentar: ela mesma. A expressão de orgulho em seu rosto devia-se, em parte, ao fato de ela estar prestes a embarcar em seu passatempo predileto, que era fazer com­pras. E, também, ao fato de ela ter conseguido escapar à vigilância de Bobby Lee. Ajeitou a alça da bolsa no ombro, encontrando uma posição mais confortável, e seguiu pelo corredor do shop­ping center com passos determinados. O aroma de canela e pipoca enchia o ar, lembrando o feriado que estava por vir. Enquanto ia de uma loja para outra, mal continha o prazer propor­cionado pelos olhares surpresos e admirados que sua aparência provocava. Ah, como adorava a fama, mesmo que fosse em segunda mão.

Bobby Lee desligou o telefone com violência e, então, apontou o dedo em riste para Ainsley Been.

— Delia disse que minha mãe não está em casa. Você garantiu que ela estava dormindo.

Ainsley empalideceu.

— Mas foi o que ela me disse que ia fazer, quando passei por lá, para apanhar a pasta que deixei ontem. Além disso, não sou babá. E qual é o grande problema? Talvez ela tenha decidido dar uma volta. Sua mãe é uma mulher adulta. Com certeza, não precisa da sua aprovação para cada passo que dá.

— E você me pergunta qual é o grande pro­blema? — Bobby Lee vociferou, agarrando Ainsley pelo colarinho.

— Se quer mesmo seguir meus passos até os degraus da Casa Branca, é melhor começar a aprender o que faz uma babá. Você não sabe o que Mona é capaz de fazer, o trate de rezar para não descobrir!

Ainsley fitou-o de olhos arregalados, a boca aberta. Nunca vira Bobby Lee reagir daquela maneira.

— Certo, certo — resmungou, libertando-se das mãos enormes que o seguravam. — Verei o que posso descobrir. Enquanto isso trate de se acalmar. Não quer que a imprensa des­cubra que você acha que sua mãe precisa de uma babá, quer?

Escapuliu sem dizer mais nada, agradecen­do à boa sorte de ter recebido apenas novas ordens. Por um momento, chegara a pensar que Bobby Lee o esmurraria.

Bobby Lee aproximou-se da janela, de onde tinha uma bela vista do centro de Dallas. Aquela deveria ser uma ocasião de aproximação. As sessões do senado estavam suspensas, e os negócios da família praticamente não exigiam maiores atenções, embora ele aparecesse nos escritórios de vez em quando, como fazia naquele dia. O petróleo já não rendia tantos lucros como antigamente, mas as indústrias Wakefield haviam se diversificado anos antes: Os Wakefield ainda podiam ser considerados novos ricos, mas ti­nham muito, muito dinheiro novo. Ainda assim, para Bobby Lee, isso não era o bastante. O que ele realmente desejava não era dinheiro, era poder. Gostava de certos jogos, como o de com­prar indústrias a um passo da falência, para então vendê-las com lucros enormes. Nos velhos tempos, antes de se tomar senador, seus colegas o chamavam de tubarão. O fato de ele ter ganho muito dinheiro fora quase acidental diante do prazer que desfrutava por estar no controle. Agora, embarcava em sua maior viagem com destino ao poder, e que Deus ajudasse todos aqueles que se pusessem em seu caminho... in­clusive sua mãe.

Ainda não era meio-dia, e Connie Marx já se servia da segunda dose de uísque. Bebeu de um só gole, fez uma careta e, então, serviu a terceira, antes de retomar sua interminável caminhada entre o bar, na sala de visitas, e o computador que tinha no quarto. A tela ilumi­nada parecia zombar dela, assim como o texto que ela havia digitado dias antes. Tratava-se de uma carta de demissão que ela ainda não enviara, e era justamente esse o seu dilema. A demora poderia resultar no fim de sua carreira. Se pedisse demissão, poderia começar a escrever o livro com que sempre sonhara. Então, mais tarde, quando a situação esfriasse, o que certa­mente aconteceria, ela poderia voltar ao seu tra­balho na televisão, talvez com um bestseller no currículo. Mas, se esperasse e acabasse sendo despedida, talvez nunca mais conseguisse voltar aos telejornais.

— Droga! — praguejou, virando o copo de uísque na boca, antes de atirá-lo na parede o atingir a foto de Larry Dee Jackson bem entre os olhos.

— Tudo por sua culpa, seu patife! Se houvesse mantido a boca fechada, nada dis­so estaria acontecendo.

O telefone tocou. Sobressaltada, ela correu para atender. Fazia dias que não falava com ninguém, inclusive Larry Dee.

— Alô?

— Ei, Connie, sou eu, Ronnie Boyle.

A voz familiar do colega a surpreendeu. Ele nunca telefonara para sua casa, antes. Na ver­dade, os dois não se gostavam. Ao menos, Con­nie tinha certeza de que não gostava dele.

— Ronnie, como vai?

Percebendo o tom cauteloso da voz dela, Ronnie concluiu que teria de ser sutil para atingir seus objetivos.

— Só liguei para saber como você está passando. Sentimos sua falta, sabia?

— É mesmo?

Ele fez uma careta e tentou outra estratégia:

— Escute Connie, quero que saiba que acho que você está sofrendo uma grande injustiça. Ninguém acredita que teve qualquer envolvi­mento com aqueles assassinatos. Quero di­zer... Bem, você relata histórias como essa, mas não às provoca, certo?

— Escute Ronnie, agradeço por você ter ligado, mas estou um tanto ocupada. Obrigada por...

— Espere! Ela suspirou.

— O que é?

— Que tal uma exclusiva? Está mesmo ten­do um caso com Larry Jackson? Ele é notícia, Connie, e nós dois sabemos disso. O público tem o direito...

— Para quem você está trabalhando afinal? Canal sete ou tablóides? Quanto ao público, quero que vão para o inferno, junto com você!

Connie desligou, arrancou a tomada do te­lefone da parede para então jogá-lo do outro lado da sala.

— Maldito Boyle, maldito Larry Dee, e mal­dito Chaz Finelli, que começou toda essa con­fusão! Espero que esteja ardendo no inferno, porque lá é o seu lugar!

Aliei Simmons respirou fundo e saiu do camarim, em direção ao palco e à multidão que esperava por ela. Naquela noite, a congregação tomava conta até mesmo do estacionamento do anfiteatro que ela utilizava para fazer seu programa. A maioria constituía-se de freqüentadores assíduos, pessoas que acreditavam em sua fé. O restante era de curiosos que queriam ver de perto a mulher suspeita de haver cometido um assassinato. Ariel ouvira os rumores. Todos sabiam da existência da fotografia dela, vestindo roupas de couro e brandindo um chicote. E estavam lá, naquela noite, para ver a mulher que pregava a palavra de Deus aos domingos e se divertia com o demônio nas noites de sábado. Maldito Chaz Finelli! Que os mandamentos fossem para o inferno, pois ela atiraria em Chaz Finelli, com prazer, um milhão de vezes, se isso fizesse sua vida voltar a ser o que era antes.

— Irmã Simmons, está pronta?

Ela se virou. Seu produtor a observava. Até ele passara a tratá-la de maneira diferente. A raiva em seu peito começou a ferver. Havia ido longe demais para uma mocinha saída das roças remotas do Mississipi, e não se deixaria deter, agora.

— Sim, estou pronta — respondeu, antes de entrar no palco,

O vestido azul-claro esvoaçava em tomo de seus tornozelos, como nuvens próximas ao chão.

A platéia ficou em silêncio quando Ariel ergueu as mãos para o céu, como se pedisse a Deus que a ouvisse.

— Estou sendo testada! — ela gritou e, antes que qualquer pessoa pudesse reagir, cerrou os punhos e agitou-os na direção da multidão.

— Satã está tentando silenciar a palavra de Deus! Foi ele quem envenenou a polícia, a imprensa e todos vocês que duvidam de mim. Ele está colocando o Mal em meu caminho, o tempo todo, mas tratem de me ouvir! — Sua voz ergueu-se ainda mais. — Não vou me ren­der! Deus é a minha espada! E meu escudo, também. Sou uma ovelha inocente, mas não me deixarei sacrificar em nome de Satã.

Então, caiu de joelhos, os cabelos loiros e longos caindo por sobre seus ombros, tocando o palco, enquanto ela se prostrava diante da multidão,

Todos se levantaram ao mesmo tempo, chorando e gritando. As pessoas começaram a rezar em voz alta, envergonhadas por terem acreditado, mesmo que por um breve minuto, que aquele delicado anjo de Deus pudesse ser culpado de algum pecado, mesmo que do menor deles.

Ariel permaneceu imóvel, o rosto escondido sob os braços. Quando sentiu o chão tremer pelos milhares de pés que batiam no chão, e ouviu as preces aflitas da multidão, ela sorriu.

A música de Rod Stewart fazia tremer as pa­redes do chalé, enquanto a mulher dançava diante do grande espelho, no canto do quarto. A seda vermelha tocando sua pele, assim como os cabelos loiros e longos roçando seu pescoço, era afrodisíaca. A música, porém, era o seu hino. E agora só faltava uma coisa para completar o clima. Ela parou diante do espelho para exa­minar a fotografia que havia pregado a um can­to. Olhos escuros a fitavam, um rosto cor de chocolate. Para ela, pouco importava a cor da pele de um homem, desde que ele tivesse o que era necessário para deixá-la em chamas. E, pelo que ouvira sobre aquele homem em particular, ele era mesmo uma fogueira ambulante, e nem um pouco exigente quanto a quem ou o que o excitava. Ela gostava disso em um homem: a disposição de experimentar.

— Depressa, querido — ela sussurrou, an­tes de tocar o próprio corpo de leve, acariciando os seios, deslizando as mãos por entre as pernas.

A seda leve envolveu-lhe as mãos, quando ela as pressionou de encontro ao seu corpo. Fechou os olhos e atirou a cabeça para trás, vivendo a fantasia das mãos de um homem a tocá-la. Era bom... muito bom. O sangue co­meçou a ferver em suas veias, latejando no ritmo da música. Ela abriu os olhos, obser­vando o próprio rosto no espelho, enquanto proporcionava prazer a si mesma.

De repente, os faróis de um carro iluminaram a parede atrás dela. Ela ficou imóvel, o coração aos saltos, ainda tocando o próprio corpo com intimidade. Um leve suspirou es­capou de seus lábios e, então, ela sorriu.

— Bem na hora — murmurou e foi atender a porta.

Logo após o amanhecer, o corpo nu e sem vida de Lashon Fontana foi encontrado perto de uma caçamba de lixo, em Garland. A im­prensa chegou ao mesmo tempo em que o legista estacionava seu carro.

— Meu Deus! — alguém exclamou.

— Diga-me que não é verdade. Diga-me que aquele não é Fancy Feet Fontana.

Mas era ele mesmo. Um metro e noventa e cinco da mais pura perfeição muscular... orgulho do Dallas Slickers, eleito melhor jogador da liga por três anos seguidos... com uma bala na nuca. Quatro horas depois, encontraram seu carro abandonado em uma loja de conve­niência, com suas roupas dentro. Algumas centenas de trabalhadores haviam chorado a morte de Tashi Yamamoto, somente pelo medo de perder seus empregos. Porém, todo o Es­tado do Texas, assim como toda a nação, cho­rou a morte de Fontana. O departamento de polícia de Garland tinha toda a imprensa acampada em sua porta. Ainda assim, foi so­mente no final daquela tarde que a bomba maior explodiu. Algum funcionário do laboratório criminal de Dallas decidiu, por simples curiosidade, fazer um teste na bala que havia matado Fontana, para ver se combinava com a bala que matara Yamamoto. O resultado foi positivo. Como se não bastasse, feitos os testes nas balas que haviam retirado do corpo de Chaz Finelli, chegaram à mesma conclusão. Então, o comissário de polícia ordenou que fossem feitos testes em todos os assassinatos não resolvidos, com perfis semelhantes, na área que ia de Dallas a Fort Worth. Ao anoitecer, eram seis os resultados positivos.

Ronnie Boyle contou a história no noticiário das dez horas. Até mesmo a morte de Fancy Feet Fontana caiu para segundo plano, diante do fato de que havia um assassino em sério à solta.

Connie Marx estava sentada no sofá da sala, com uma garrafa de uísque entre as pernas e um copo na mão. Lágrimas corriam por suas faces. Um mês antes, aquela notícia teria sido sua. Seria ela quem acompanharia as investigações. Mas, graças a Chaz Finelli, ela se transformara em parte daquele caso sórdido. Serviu-se de mais uma dose de uísque e tomou-a, como quem toma um remédio. A cada minuto que passava, sua raiva e seu senso de injustiça cresciam. Se Chaz Finelli já não estivesse morto, ela teria imenso prazer em matá-lo.

A divisão de homicídios do departamento de polícia de Dallas estava em polvorosa. O go­vernador havia telefonado para o comissário, expressando grande preocupação com as re­centes revelações. Uma reunião tática acabara de ocorrer, durante a qual o capitão Floyd ha­via estabelecido uma força-tarefa para inves­tigar os assassinatos de Finelli e Yamamoto. Ben English foi designado o primeiro homem em comando, e Red Fisher, o segundo. Todos os policiais que já não estavam envolvidos em casos mais sérios, receberam ordem de dar prioridade àqueles. Todas as informações de­veriam ser partilhadas com os departamentos de polícia de Garland e Arlington, uma vez que eles também tinham casos em aberto, ago­ra ligados às investigações em Dallas.

O retrato falado feito por Avery e China, na véspera, estava sendo distribuído para todas as delegacias da região e, também, para a imprensa. Pela manhã, aquele rosto apare­ceria em todos os jornais e em todas as emis­soras de televisão.

Essas eram as boas notícias.

As más eram que, inevitavelmente, alguém perguntaria quem havia feito à identificação.

China já não estava em segurança.

 

Mattie English alternava entre andar de um lado para o outro e olhar pela janela. O sol já se punha, e ela ainda não tivera notícias de Ben, apesar de ter deixado dois recados para que ele lhe telefonasse. Desde que ouvira o noticiário da noite anterior, não conseguira tirar China Brown da cabeça. A pobre moça só podia estar aterrorizada, sabendo que era a única teste­munha de um assassino em série. Também ocorrera a Mattie que, ao permitir que China ficasse em sua casa, ela estaria colocando a própria vida em risco, mas seria incapaz de dizer não. A lembrança do sofrimento que ela reconhecera na voz de China Brown era mais forte do que o medo.

Justamente quando passava pelo telefone, ele tocou. Sobressaltada, ela agarrou o fone.

— Residência dos English.

— Mamãe, sou eu.

— Ben, o que está acontecendo? China está bem? A imprensa conseguiu a identidade dela?

— Ela está bem, mamãe, e graças a Deus ninguém sabe quem ela é. Escute mamãe, acho que devemos repensar nossos planos. Ter China no sítio poderia colocar vocês duas em perigo.

— Nós ficaremos bem — Mattie garantiu.

— Dave estará aqui, lembra-se? Além disso, já faz tempo demais que estou vivendo nas sombras. Talvez um pouco de agitação seja exatamente o que estou precisando.

Ben emitiu um som zombeteiro e ligeira­mente irritado.

— Mamãe, não estamos falando de uma via­gem de férias. Estamos falando de um assas­sino em série. Amo você. Não quero que nada de mal lhe aconteça.

— E quanto à China? O que sente por ela? — Mattie inquiriu.

Houve um momento de completo silêncio e, então, Ben ignorou a pergunta.

— A única maneira de permitir que isso aconteça é vocês ficarem sob vigilância, vinte e quatro horas por dia. Dave ficará aí durante o dia, e eu ficarei à noite.

— E uma distância longa, para percorrer todas as manhãs — ela argumentou, lembrando-o de que o trajeto do sítio até a cidade demorava mais de meia hora.

— Acho que vale a pena — ele disse.

— Pelas duas.

Mattie pressionou os lábios. Estivera certa desde o início. Os sentimentos de Ben por Chi­na iam muito além do dever.

— Então, está tudo acertado — ela declarou.

— Quando pretendem vir para cá?

— Assim que anoitecer. Não quero correr o risco de ser reconhecido por algum jornalista bisbilhoteiro que, ao me ver na companhia de uma mulher convalescente, some dois e dois.

— Estarei esperando — Mattie disse.

— Di­rija com cuidado, Bennie. Eu te amo.

— Também te amo, mamãe.

Ben franziu o cenho ao desligar o telefone. Ora, a mãe não o chamava de Bennie havia anos! Devia estar mesmo muito preocupada. Bem, cabia a ele fazer com que ela não tivesse motivo algum com que se preocupar. Vestiu o casaco, apanhou um punhado de pastas e dei­xou-os sobre a mesa de outro detetive, ao sair.

— Feliz Natal — disse.

— O capitão me deixou encarregado, exclusivamente, do caso Finelli. Se tiver qualquer pergunta sobre minhas anotações, basta gritar.

O detetive revirou os olhos e sorriu.

— Bem alto?

— Espere, ao menos, que eu esteja fora da delegacia — Ben respondeu, também sorrindo.

— Obrigado. Fico lhe devendo esta.

— Não vou deixar você se esquecer disso — o outro declarou.

Mas Ben já se esquecera. Seus pensamentos estavam totalmente concentrados em China e em como tirá-la do hospital Parkland sem que ninguém os visse. Também precisava conversar com o médico dela e providenciar para que tudo o que se relacionasse com a presença de China Brown naquele hospital deixasse de existir. Ou, ao menos, por algum tempo.

China estava vestida, esperando por Ben. Naquela noite deixaria a segurança do hospital, e sentia-se mais do que um pouco assustada com isso. Depois de tanto tempo usando as camisolas do hospital, era estranho vestir suas próprias roupas, mesmo sabendo que elas haviam estado guardadas no armário de seu quarto desde sua transferência da UTI. Fora com muito esforço que conseguira não chorar ao vestir a calça de moletom. Da última vez em que a usara, ela estivera justa sobre seu ventre. Agora, não havia mais bebê algum, apenas uma longa e feia cicatriz. China conseguiu vestir a calça sozinha, mas teve de pe­dir ajuda a uma enfermeira para vestir o sué­ter. Teria de enfrentar vários meses de fisio­terapia antes que seu braço voltasse ao nor­mal, mas o Dr. Pope havia garantido que ela recuperaria todos os movimentos. Enquanto isso, sua falta de firmeza seria uma lembran­ça constante do pesadelo que desejava tanto esquecer.

Foi até a porta e espiou o corredor, na es­perança de deparar com Ben, mas tudo o que conseguiu foi um aceno cortês do guarda pos­tado do lado de fora de sua porta.

— É melhor manter a porta fechada, senhorita — ele falou em voz baixa.

China suspirou e obedeceu. Por quanto tem­po mais teria de viver como uma prisioneira? E se nunca apanhassem a assassina? Teria de viver escondida pelo resto de sua vida? So­brecarregada pela idéia dos tantos problemas que ainda teria de enfrentar, ela voltou para a cama. Sentindo um pouco de dor, virou-se de lado e fechou os olhos, mas o sono não veio. Seus pensamentos giravam em torno do que estava por vir. Não só teria de se esconder, mas também teria de fazê-lo entre desconhecidos. Confiar nas pessoas sempre fora fácil para China... fácil demais. Mas isso fora antes. Agora, todos representavam uma ameaça. Com exceção de Ben English. Até então, ele havia provado ser digno de toda a sua con­fiança, em todos os sentidos. Ben. O homem das promessas,

Juntamente com tal pensamento, ele chegou, carregando uma sacola e atravessando a soleira com passos determinados. Atrás dele vinham dois policiais uniformizados, Dr. Pope e uma en­fermeira, empurrando uma cadeira de rodas.

— Está na hora — Ben anunciou.

China começou a se sentar, mas então gemeu. No mesmo instante, Ben estava ao seu lado.

— Deixe-me ajudá-la, querida — ele disse, passando um braço por trás dos ombros dela e erguendo-a, até que ela ficasse sentada.

— Está bem, assim? Ela assentiu.

Dr. Pope adiantou-se e pousou uma das mãos no joelho de China.

— É uma mulher admirável, srta. Brown. Lamento termos nos conhecido nessas circuns­tâncias, mas posso afirmar com toda certeza que teria sido uma grande perda para mim, se não a tivesse conhecido.

— Obrigada, Dr. Pope, por tudo o que fez por mim.

Ross Pope sorriu, antes de lançar um olhar para Ben.

— Eles estão à sua espera, e você está pron­ta para acompanhá-los. Se tiver qualquer dú­vida, ou problema, sabe como me encontrar. Continue a tomar o analgésico que lhe dei, e vou fazer outra receita. O detetive English me garantiu que vai providenciar o medica­mento. Cuide-se, e que Deus a abençoe.

Em um impulso, China abraçou o médico.

— O senhor salvou minha vida — ela mur­murou.

— Não vou desperdiçá-la.

— Vamos acomodá-la na cadeira de rodas — a enfermeira disse.

— Posso ir andando — China retrucou. A enfermeira sacudiu a cabeça.

— São normas do hospital — informou.

— Está frio lá fora — Ben declarou, estendendo-lhe a sacola.

China abriu-a, e seus olhos se encheram de lágrimas. Era um casaco novo. Ela não havia pensado, nem por uma vez, no estado em que ficara seu casaco velho. Só então ocorreu-lhe que, certamente, fora arruinado pelas balas e pelo sangue.

— Ah, Ben...

Ele retirou o casaco da sacola e segurou-o, para que ela o vestisse.

China enfiou um braço, depois o outro, e sen­tiu-se imediatamente aquecida pela lã azul macia. Quando se levantou, a bainha tocou seus joelhos.

Ben puxou as lapelas e fechou os botões.

— Fico contente que tenha servido — disse, deixando o capuz pendendo sobre as costas dela.

— É da cor dos seus olhos.

Enquanto ainda assimilava o fato de ele ter sido atencioso a ponto de lhe comprar um ca­saco novo, China teria de aceitar, também, o fato de ele ter escolhido uma cor que combi­nasse com seus olhos.

Ela se sentou na cadeira de rodas. Ben apa­nhou sua bolsa, colocou-a sobre as pernas dela, e a enfermeira começou a empurrá-la na direção da porta.

— Espere um minuto — Ben pediu, abrindo a porta e saindo para o corredor, olhando para um lado e para o outro.

— Muito bem. Pode trazê-la.

Tudo parecia passar por China como se fosse um filme projetado em velocidade acelerada. Os policiais postaram-se um de cada lado de China. Ben liderava o pequeno cortejo. Dirigiram-se ao elevador de serviço sem perder tempo. As últimas impressões de China foram o cheiro de anticéptico, o som de alguém rindo e o som de uma televisão alto demais em um quarto qual­quer do corredor. Então, entraram no elevador. Segundos depois, estavam no andar térreo.

Mais uma vez, Ben foi o primeiro a sair e, ao fazê-lo, China deu-se conta de que ele havia retirado à arma do coldre. Tal visão provo­cou-lhe náuseas. O impulso de pular da ca­deira e sair correndo foi muito forte, mas para onde ela iria? Então, a sanidade retornou, e ela fechou os olhos e respirou fundo. Aquelas pessoas não eram suas inimigas. Estavam ali para protegê-la.

— Muito bem — Ben falou.

— Tragam-na.

Mais alguns segundos e estavam em uma ga­ragem coberta, dirigindo-se para um sedã cinza. O vento forte varria a área, e China sentiu-se grata ao calor proporcionado pelo casaco.

— Devagar, querida — Ben murmurou, ao ajudá-la a entrar no carro.

O absurdo daquele momento pareceu irreal. O vento castigava as faces de China. O interior do automóvel exalava odor de couro. O casaco proporcionava uma profunda sensação de con­forto. Os policiais, plantados junto ao carro empunhavam suas armas. Ela não estava re­cebendo alta do hospital. Estava sendo levada para um esconderijo.

Já havia se acomodado no banco do passa­geiro e prendia o cinto de segurança quando Ben sentou-se ao volante. No mesmo instante, o carro pareceu menor. A presença dele ao seu lado pareceu ameaçadora, até China erguer os olhos e surpreendê-lo a fitá-la, como se precisasse se certificar de que ela estava bem. Quando ela exibiu um sorriso hesitante, ele pareceu relaxar.

— Sei que tudo isso é muito difícil para você — Ben falou.

— Mas, no meu trabalho, não existe excesso de zelo.

— Tudo bem. Afinal, está fazendo isso pelo meu bem.

— Isso mesmo. Agora, vamos aos planos. Vou levá-la diretamente à casa de minha mãe. Já é noite e, por isso, não seremos vistos. O sítio fica isolado, de maneira que você poderá ter liberdade de passear por lá, quanto quiser. Só não poderá deixar a propriedade, enquanto não apanharmos a assassina. Até agora, sua identidade foi protegida, mas não podemos correr riscos, entende?

Ela mordeu o lábio e assentiu.

— Está se sentindo bem? — Bem perguntou.

— Se sentir qualquer coisa, pode se deitar no banco de trás, ou...

China pousou a mão no braço dele.

— Estou bem.

— Não vou deixar que nada de mau lhe aconteça, China. Eu prometo.

— Eu sei.

O brilho da confiança nos olhos dela tocou o coração de Ben e, ao mesmo tempo, deixou-o aterrorizado. Assim que ela se reclinou no banco e cruzou as mãos sobre as pernas, ele deu a partida no motor, acenou para os policiais e deixou a garagem do hospital. Menos de uma hora depois, Ben estacionava diante da casa onde passara sua infância. Desligou o motor e olhou para sua passageira. China havia adormecido antes mesmo que deixassem as ruas de Dallas, e Ben passara o tempo jogando um jogo consigo mesmo, fingindo que os dois viviam juntos há anos, que haviam ido à cidade para fazer compras e, no caminho de volta, ela adormecera. Era assustador aceitar o fato de que aquela mulher estava roubando o seu coração.

Enquanto ele a observava, China moveu-se lentamente e, então, abriu os olhos.

— Já chegamos?

— Sim. Seja bem-vinda ao lar.

Ben saiu do carro e foi abrir a porta do lado do passageiro. China, porém, ainda tentava absorver a doçura do convite que acabara de receber. Lar.

Ben lhe dera as boas vindas ao lar.

Como seria ter um lar com aquele homem, e jamais experimentar a incerteza ou a fome novamente, sentir-se segura e amada?

China estremeceu. Amada? De onde surgira tal idéia?

Ben abriu a porta e segurou-lhe o braço.

— Vamos com cuidado querida. Vou levá-la para dentro e, então, virei buscar sua mala.

— Está bem — ela concordou, deslizando para a beirada do banco, a fim de facilitar a própria saída.

Os músculos fragilizados protestaram no instante em que o vento gelado os atingiu. Imediatamente, Ben colocou-se entre ela e o vento. Em seguida, passou um braço em torno dos ombros dela.

— Apóie-se em mim — instruiu-a, caminhando lentamente na direção da casa.

China não ergueu os olhos para fitá-lo nem fez comentário, mas estava plenamente consciente de que era exatamente aquilo o que estava fazendo... em vários sentidos. Sabia que só estava ali porque era valiosa para eles como testemunha. Apoiar-se em Bennett English seria fácil demais, mas ela tinha de se lembrar de que, um dia, tudo aquilo chegaria ao fim. E, quando isso acontecesse, o dever de Ben para com ela também teria terminado.

Assim que puseram os pés na varanda, a porta se abriu. China teve um rápido vislumbre de uma mulher grisalha, vestindo calça jeans e camisa de flanela vermelha, uma guirlanda de Natal pendurada na porta e, então, já estava no hall de entrada.

— Mamãe, esta é China Brown. China, esta é minha mãe, Mattie English.

Em um gesto típico de Mattie, ela estendeu a mão.

— Seja bem-vinda à minha casa. Você parece estar gelada. Vamos tirar esse casaco e sentar junto da lareira.

— Obrigada, senhora — China replicou. Mattie imobilizou-se.

— Nada de "senhora", lembra-se? Trate de me chamar de Mattie. — Olhou para Ben.

— Bem, o que você está esperando? Vá buscar a mala dela e leve para o quarto de hóspedes, que já está pronto para ser usado.

— Sim, senhora — Ben falou, antes de dar uma piscadela para China.

— Juro que ela late, mas não morde.

— Faça o que eu disse! — Mattie ordenou.

— E não deixe a porta aberta, ou vamos ter muito ar frio aqui dentro. — Ajudou China a tirar o casaco, pendurou-o no cabide na parede do hall e segurou a mão da moça.

— Pode caminhar sozinha querida? Vamos bem devagar.

— Estou bem — China disse.

— Apenas um pouco dolorida. A dor que sinto agora é perfeitamente suportável... ao contrário de antes.

Mattie hesitou, examinando-a com atenção. Não era muito alta. Provavelmente, sua es­tatura não chegava a um metro e sessenta e cinco. Os cabelos eram fartos e escuros, e pa­reciam ter sido cortados por ela fazia anos. O rosto exibia uma beleza frágil e delicada, que lhe emprestava um aspecto de fraqueza, mas tal impressão se desfez quando Mattie fitou-a nos olhos. Era através deles que a força da jovem brilhava.

— Você é uma guerreira, não é, garota? — Mattie murmurou.

— Tive de ser — China respondeu, parecendo um pouco nervosa.

— Ao menos, fui até agora. Ben acha que estou correndo perigo.

— Ben é um bom homem e um bom policial. Vai cuidar para que você esteja protegida.

— Sim. Ele prometeu não deixar que nada de mau me aconteça. Ele é um homem que cumpre suas promessas.

Mattie assentiu, satisfeita com as primeiras impressões causadas por sua hóspede.

— Agora, vamos nos sentar perto da lareira. Fiz chocolate quente. Aceita uma xícara?

Um sorriso nostálgico curvou os lábios de China.

— Mamãe costumava fazer chocolate quente para nós duas, nas noites frias.

Mattie voltou a assentir.

— Ao que parece, era uma mulher muito boa e inteligente.

— Ah, sim, senhora!

— Mattie! Nada de senhora! Muito bem, agora apóie os pés no banquinho e feche os olhos. Estarei de volta em um minuto, trazendo o seu chocolate.

China obedeceu, grata pelo fato de não precisar tomar nenhuma decisão.

O calor do fogo e a paz reinante na casa funcionaram como uma cantiga de ninar. Mais uma vez, ela cochilou. Quando acordou, Ben entrava na sala, carregando uma bandeja com as xícaras de chocolate quente. Mattie vinha logo atrás, com um prato de biscoitos.

— O cheiro está maravilhoso — China elogiou, quando Ben estendeu-lhe uma das xícaras.

— Um torrão ou dois? — ele perguntou, mostrando um pote cheio de miniaturas de marshmallow em vez de cubos de açúcar.

Surpresa com a brincadeira, China decidiu entrar no jogo, espiando dentro do pote.

— São um tanto pequenos, não? Ben sorriu.

— Então, permita-me — disse, antes de des­pejar um punhado na xícara dela e dar-lhe uma colher.

— Pode se embebedar, garota!

Mattie sentou-se no sofá, bebericando seu chocolate quente e observando os dois brinca­rem. Perguntou-se se sabiam como estavam sendo óbvios, se sabiam que estavam apaixonados um pelo outro.

Uma hora mais tarde, os olhos de China começaram a se fechar novamente. Ben per­cebeu e levantou-se.

— Chega por hoje, querida — murmurou baixinho, tomando-a nos braços.

China despertou de maneira abrupta. Emba­raçada pelo fato de Ben a estar carregando nos braços diante da mãe, começou a protestar.

— Sou perfeitamente capaz de andar.

— Ora, não seja desmancha-prazeres! — ele se queixou, seguindo pelo corredor, na direção do quarto de hóspedes.

Mattie observou-os, mais uma vez sem co­mentar. Porém, vira o bastante para saber que seu filho estava perdidamente apaixonado. Aquela mulher era parte de um caso, a testemunha de um assassinato, e ele estava apaixonado.

Ben carregou China até o quarto e sentou-a na beirada da cama.

— Suas coisas estão sobre aquela cadeira — informou-a.

— Há uma escova de dente nova na gaveta do banheiro, e toalhas limpas no ar­mário. Não tirei nenhuma para esta noite. Prefere tomar banho agora ou pela manhã?

— Vou me banhar de manhã — China decidiu.

— Não tente tomar banho sozinha — Ben advertiu-a.

— Quando estiver pronta, chame-nos. Mamãe terá prazer em ajudá-la.

Ela assentiu e disse:

— Sua mãe é um amor. Ben sorriu.

— Sim, ela é ótima.

— Acho que ela preferia que eu não estivesse aqui — China disse, mas logo se arrependeu das palavras e acrescentou:

— Não que al­guém possa culpá-la. O sorriso morreu nos lábios de Ben.

— Por que disse isso? China sentiu as faces arderem e desviou o olhar, incapaz de encará-lo.

— Acho que ela prefere... Bem, acho que ela pensa que eu... que nós...

Ben segurou-lhe o queixo, forçando-a a fitá-lo.

— E isso seria ruim? — indagou. Ela sacudiu a cabeça.

— Sim... Não... Bem, do ponto de vista dela, sim. Mas tudo bem... Quero dizer, não a culpo por se preocupar. Você é filho dela. É claro que ela deseja o melhor para você.

— E por que você estaria excluída disso? China deu de ombros.

— Caia na realidade, detetive. Sou uma sem-teto, envolvida em um crime horroroso. E claro que não sou muito inteligente, pois se fosse jamais teria me envolvido com um sujeito como Tommy Fairheart. E nem ao me­nos sou bonita.

Ben fitou-a de olhos arregalados e boca aber­ta por um longo momento. Não sabia a qual afirmativa deveria responder primeiro, mas a mais chocante era a referência que ela fizera à própria aparência.

— Quem disse isso? — inquiriu.

— Disse o quê?

— Que você não é bonita. Foi Fairheart? Se foi ele, posso...

— Ah, não — China interrompeu-o.

— Eu sempre soube disso.

Ben mal podia acreditar no que estava ou­vindo. Ela não estava brincando. Realmente acreditava não ser bonita.

— Quem lhe disse isso? — ele repetiu. China fitou-o, então, surpresa ao se dar con­ta de que ele estava mesmo zangado.

— Clyde.

— E quem é esse tal de Clyde?

— Era meu padrasto, até minha mãe se di­vorciar dele.

Ben pôs-se de pé em um movimento abrupto.

— Ele era cego? Aliás, querida, você tem algum problema de visão? Não sabe que é linda?

Foi à vez de China arregalar os olhos e abrir a boca. A única resposta que foi capaz de dar foi sacudir a cabeça em negativa.

— Pois fique sabendo que você é linda, sim! — Ben afirmou com veemência.

— Agora, dei­te-se e durma, antes que eu diga algo de que nós dois possamos nos arrepender. E lembre-se, se precisar de alguma coisa durante a noite, basta chamar. Meu quarto fica em frente ao seu.

Com isso, saiu do quarto, deixando o ar car­regado com sua ira, lá dentro.

China ficou sentada, imóvel, repassando na mente os últimos momentos de sua conversa com Ben. Vários minutos depois, foi até o ba­nheiro e começou a despir-se. Enquanto o fa­zia, olhou para o espelho, mas viu-se obrigada a desviar os olhos depressa.

Ben mentira. Não havia nada de bonito nela, e seria muito fácil provar isso. Se fosse mesmo bonita, por que os homens a tratariam como tratavam? Desde quando podia se lembrar, sempre fora ridicularizada pelos homens, es­pancada e enganada por eles. Seria preciso muito mais que meras palavras para fazê-la mudar de idéia.

Tirou a camisola da mala e continuou a se despir. O processo de tirar o suéter foi dolo­roso. Completamente nua, inclinou-se para apanhar uma esponja na banheira e voltou a se ver no espelho. Seus olhos se arregalaram diante da cicatriz medonha, situada logo aci­ma de um de seus seios. Então, baixou o olhar para a cicatriz que se iniciava logo acima da cintura e que parecia interminável. Seu ventre recuperara a forma normal, um doloroso lem­brete do que ela havia perdido, mas foi à ci­catriz vermelha que a deixou sem fôlego.

Tomada pelo pânico, China agarrou a ca­misola e vestiu-a depressa. Ignorando a dor provocada pelos movimentos bruscos, recusou-se a olhar para o espelho novamente, enquanto não estava totalmente vestida. Somente de­pois de sentir a camisola roçar-lhe os torno­zelos e de abotoar o último botão, ela se virou. A expressão em seu rosto lembrava a de um veado surpreendido pelos faróis de um automóvel: assustado, mas fatalista.

Finalmente, apanhou a esponja, abriu a torneira e esperou que a água esquentasse. De maneira metódica, lavou o rosto, escovou os den­tes e os cabelos. Então, apagou a luz. Com cui­dado, voltou para a cama e deitou-se debaixo das cobertas. O travesseiro era macio, o colchão e os lençóis limpos exalavam o perfume da pri­mavera, muito diferentes dos que ela usara no hospital. Uma lufada de vento agitou as janelas do outro lado do quarto. China puxou as cober­tas até o queixo e fechou os olhos. Ouviu o mur­múrio de vozes, enquanto mãe e filho conver­savam. Em algum lugar, fora daquelas paredes, uma assassina esperava por uma chance de aca­bar o que havia começado.

No fundo de sua mente, China ouviu a voz da mãe: "Durma bem, minha bonequinha chi­nesa. Durma bem e não deixe a cuca te pegar".

China começou a chorar e, quando as lágri­mas começaram a rolar, ela simplesmente não pôde mais impedi-las. Havia sobrevivido até aquele ponto e, mesmo que conseguisse sobre­viver até o final daquela história horrível, não havia nada em seu futuro, exceto solidão. E, naquele exato momento, a solidão era a coisa mais difícil de suportar.

Betty, a empregada de Ariel Simmons, es­tava entrando no quarto com uma bandeja de chá quando Ariel espirrou várias vezes segui­das e, então, gemeu baixinho ao apanhar len­ços limpos e jogar os outros no cesto.

Rapidamente, Betty deixou a bandeja sobre a mesinha e correu para a cama de Ariel.

— Srta. Simmons, quer que eu chame o mé­dico? A senhorita não me parece nada bem.

Ariel exibiu um sorriso fraco e sacudiu a cabeça.

— Não, querida, logo estarei bem. Uma boa noite de sono vai me ajudar, tenho certeza.

— Mas a senhorita parece febril!

Ariel levou a mão à testa e afundou-se nos travesseiros.

— Acho que estou um pouco, mas esta última semana drenou minhas forças. Satã sempre se aproveita dos nossos momentos de fraqueza, sa­bia? Por favor, deixe o chá perto da cama, onde eu possa alcançar, e dê-me minha Bíblia. Vou ler um pouco, antes de dormir. Este é o melhor remédio que existe, muito mais eficaz do que qualquer comprimido receitado pelo médico.

Os olhos de Betty encheram-se de lágrimas.

— Sim, senhorita. Tem razão. Precisa de mais alguma coisa?

— Não, querida. Pode dormir, agora.

— Sim, senhorita.

Betty saiu do quarto e fechou a porta atrás de si.

Assim que ela se foi, Ariel sentou ereta na cama e consultou o relógio. Faltavam cinco minutos para as dez. A rotina de Betty era inalterável. Ela tomaria três doses de uísque, acreditando que ninguém jamais desconfiara de seu pequeno pecado. Então, às dez e meia, estaria dormindo profundamente. E era com isso que Ariel estava contando.

Atirou o punhado de lenços de papel no cesto e pulou da cama. Sua "doença" desapareceu da mesma maneira milagrosa que tinha aparecido. Sem perder tempo, vestiu roupas escuras e tênis, escondeu os cabelos sob uma meia de seda preta e desceu a escada. O gran­de relógio do hall de entrada anunciava que já eram dez e meia.

Perfeito! Betty, certamente, dormia como uma rocha. Mesmo assim, preferindo ter certeza, Ariel atravessou a cozinha e foi até os aposentos dos empregados. Do lado de fora da porta, podia ouvir os roncos de Betty. Girando nos calcanha­res, voltou ao hall de entrada, desarmou o sis­tema de segurança e saiu pela porta da frente. Como seu carro seria facilmente reconhecido, ela se esgueirou pelas folhagens, até a garagem dos fundos e, sem fazer nenhum ruído, conduziu uma pequena motocicleta preta para a rua. Só quando já estava longe da casa, girou a chave e deu a partida. O ronco poderoso entre suas pernas despertou-lhe o desejo, mas aquele não era o momento apropriado para se entregar ao prazer. Por isso, desapareceu em alta velocidade na noite escura.

Horas depois, do outro lado da cidade, um pequeno incêndio teve início, dentro de um armazém abandonado. Foram necessários poucos minutos para que as labaredas se tornassem imensas e devorassem tudo o que estivesse em seu caminho. Os primeiros cami­nhões dos bombeiros chegaram com suas si­renes ensurdecedoras, abafando o som da saí­da da motocicleta.

Eram três horas da madrugada quando Ariel Simmons entrou sorrateira, em sua casa. Ligou o sistema de segurança, voltou a verificar se Betty continuava dormindo e, en­tão, subiu a escada. Despiu-se e atirou as rou­pas em um saco, juntamente com outras que seriam doadas para caridade. Tomou um ba­nho, a fim de tirar o cheiro de fumaça do corpo, e voltou para a cama.

Sem fazer suas preces, fechou os olhos e caiu no sono rapidamente. Tinha certeza ab­soluta de que nunca mais poderia ser ligada àquela foto novamente. O couro, as correntes, até mesmo a seda negra e os chicotes haviam acabado de se transformar em cinzas.

 

Bom dia, senador. Como quer os seus ovos hoje?

— Bom dia, Delia — Bobby Lee replicou.

— Acho que hoje quero ovos quentes. Ah, e traga-me bacon e torradas também.

— Sim, senhor — Delia falou, ao servir-lhe uma xícara de café.

— Pode se sentar e ler o seu jornal. Voltarei em alguns minutos.

— Obrigado, Delia — Bobby Lee agradeceu, apanhando a xícara.

— Ah, senador, sabe se sua mãe está acordada?

— Creio que não. Vá dizer à cozinheira que prepare meu desjejum. Se mamãe descer an­tes de você voltar, tocarei a sineta.

— Sim, senhor.

Assim que Delia saiu, Bobby Lee bebeu um gole do café e, reclinando-se na cadeira, abriu o jornal. O rosto de uma mulher ocupava o centro da primeira página, logo abaixo da manchete: "Assassina em Série à Solta". O café ficou esquecido no fundo da garganta, pois ele não se lembrou de que tinha de engoli-lo.

Quando Bobby Lee arregalou os olhos e abriu a boca, inspirando o ar ao mesmo tempo, o café seguiu por suas vias nasais. O jornal caiu no chão quando ele agarrou o guardanapo, a fim de salvar a camisa e o paletó de manchas do líquido escaldante que queimava suas narinas.

— Meu Deus! — ele quase gritou, limpando-se com movimentos frenéticos.

Voltou a pegar o jornal, fixando o olhar hor­rorizado no rosto da mulher. Como era pos­sível? Bem em meio ao pânico que o sacudia, a mãe entrou na sala de jantar.

— Ouvi você praguejando da escada. O que o deixou tão irritado, logo de manhã?

— Queimei minha boca com café — ele resmungou.

— Pobrezinho — ela disse, servindo-se de uma xícara de café.

O fato de ela estar completamente vestida, na­quela manhã, deveria ser um alívio. No entanto, as roupas de Mona, ou a ausência delas, eram a menor preocupação de Bobby Lee, no momento. Então, olhou para ela como se a estivesse vendo pela primeira vez: os cabelos longos e loiros cain­do sobre um ombro, os lábios finos demais para serem realmente sexy, os olhos grandes e o queixo saliente. Se fossem analisados os traços, um a um, o rosto dela não tinha nada de extraordinário. O conjunto, porém, era mesmo uma beleza... e parecido demais com a mulher retratada ao jornal, para sua paz de espírito.

Bobby Lee sabia que fora por um mero golpe de sorte que sua mãe ainda não fora envolvida nas investigações do assassinato de Finelli. Pelas próprias palavras dela, a fotografia que ele havia usado para chantageá-la não era clara, tornando sua identidade duvidosa. E fora mais um golpe de sorte o fato de John Woodley ter um álibi inquestionável para a noite dos assassinatos. Porém, o fato de Woodley ter tido o bom senso de manter a boca fechada sobre a mulher que estivera com ele devia-se exclusivamente a um telefonema de Bobby Lee. Mas isso eram outros quinhentos.

Mona lançou-lhe um sorriso radiante, ao sentar-se. Naquele momento, Bobby Lee soube o que fazer. Deixou o jornal sobre a mesa e pousou a mão sobre a dela.

— Mamãe, há uma coisa que quero lhe dizer. Mona surpreendeu-se, mas adorou o gesto terno do filho. Na maior parte do tempo, os dois estavam brigando, mas o amava mais do que a própria vida.

— O que é Bobby Lee?

— Ultimamente, com o estresse provocado pela minha candidatura e tudo mais, confesso que tenho agido como se fosse outra pessoa. Sin­to que tenho sido intransigente com você, estou arrependido e quero compensá-la por isso.

Mona voltou a sorrir.

— Ora, querido, não precisa fazer nada dis­so. Toda mãe compreende esse tipo de situação. Você sabe que é o meu maior orgulho e prazer. Eu faria qualquer coisa por você. Qual­quer coisa.

Era justamente o "qualquer coisa" que o dei­xava nervoso.

— Sei disso, mamãe. E eu, por você — ele disse.

— Tenho uma surpresa.

Mona bateu palmas.

— Ah, Bobby Lee, você sabe que adoro surpresas!

Ele sorriu.

— Sim, mamãe, eu sei.

— O que é Bobby Lee?

— Sei que o Natal será dentro de poucos dias, mas quero lhe dar o seu presente antes da data. O que acha de duas semanas no spa que você escolher? Vai poder receber massa­gens diárias, fazer compras nas melhores lo­jas, jogar tênis ou passar o dia deitado à beira de uma piscina, se quiser.

Mona parecia prestes a explodir de felicida­de. Depois de fazer compras, receber cuidados estéticos era o que ela mais gostava.

— Ah, Bobby Lee, parece perfeito! Só de pensar em fugir deste frio infernal... Ah, não há nada que eu deseje mais.

— Ótimo. Então, está decidido. Quando eu chegar ao escritório, pedirei a Duffy que faça uma reserva. Que tal Los Angeles? Poderá visitar Hollywood, fazer compras na Rodeo Drive...

Mona soltou um gritinho de prazer.

Bobby Lee sorriu e, então, examinou-lhe o rosto com ar casual.

— Sabe o que mais você poderia fazer, en­quanto estiver lá?

— O quê?

— Uma plástica. Se vou ser presidente, que­ro você brilhando ao meu lado.

Mona franziu o cenho, contrariada com a idéia de não parecer perfeita. Bobby Lee, po­rém, estava preparado.

— É uma mulher tão bonita, mamãe. Quero ver suas melhores qualidades realçadas, e não há lugar melhor para fazer isso do que Holly­wood, onde a perfeição é uma profissão. O que acha?

Analisando a questão por aquele ângulo, fa­zia sentido.

— Acho que você é o melhor filho do mundo!

Bobby Lee reclinou-se em sua cadeira, o na­riz escaldado já esquecido. Quando sua mãe voltasse, não se pareceria em nada com a mulher do jornal.

China havia acordado havia algum tempo, quando ouviu o som de pessoas se movimen­tando fora de seu quarto. Embora não conse­guisse distinguir o que diziam, era fácil per­ceber que existia um amor muito grande entre mãe e filho. O tom de voz de Mattie era de provocação, mas carregado de ternura. E a risada de Ben comprovava o clima de cama­radagem que havia entre os dois. O que fez China sentir falta da mãe. As duas riam juntas, daquele mesmo jeito, antes de Mae morrer.

Os passos se afastaram, seguindo na direção da cozinha. Ben logo partiria para Dallas. A idéia de não voltar a vê-lo até a noite fez com que ela se levantasse da cama. Quando se pôs de pé, deu-se conta de que já não se sentia tão dolorida quanto na véspera. Portanto, Dr. Pope estava certo. Seu corpo estava recupe­rando a forma. Ela suspirou. Ah, se fosse tão fácil curar o espírito...

Foi até o banheiro, depois de escolher as roupas que vestiria. Tinha de tomar banho e escovar os cabelos, coisas sobre as quais nunca pensara antes, limitando-se a fazê-las de ma­neira automática. Agora tinha de planejar cada movimento, a fim de não sentir dores.

A água quente acariciou seu corpo, como uma massagem suave, dissipando a tensão dos mús­culos e nervos. Quando saiu do banho, China sentia-se muito melhor. Quando apanhou a toalha, deu-se conta de que o grande espelho estava embaçado pelo vapor. Melhor assim, pensou. Ao menos não teria de encarar o horror em que seu corpo havia se transformado.

Alguns minutos depois, China saiu do ba­nheiro, vestindo sua velha calça jeans e uma camisa. A última vez em que usara o jeans fora na primavera, antes de sua barriga co­meçar a crescer. Agora, a calça estava larga, uma evidência do peso que ela havia perdido durante sua estada no hospital. A camisa já tivera dias melhores, mas os botões de pressão haviam sido decisivos na escolha. Era mais fácil abotoá-los do que vestir um suéter. Le­vando nas mãos as meias e a fivela para pren­der os cabelos, ela saiu do quarto.

Embora sua entrada fosse silenciosa, Ben pareceu pressentir sua chegada antes que ela falasse. Ele ergueu os olhos. China prendeu a respiração.

— Bom dia — ele cumprimentou.

— Dormiu bem?

Mattie virou-se, empunhando uma frigideira de panquecas.

— Bom dia. Espero que esteja com um bom apetite — disse.

— O café da manhã está quase pronto.

— A cama é muito confortável, obrigada. A comida está cheirando muito bem.

— Bom — Ben murmurou, embora percebesse que ela não havia respondido sua pergunta.

Uma cama confortável não significava, necessariamente, uma boa noite de sono. Então, ele notou que ela tinha as meias e uma fivela nas mãos.

— Precisa de ajuda? — perguntou, pondo-se de pé antes que ela pudesse responder.

China hesitou, mas estendeu-lhe seus pertences.

— Sim. Sinto muito ter de pedir, mas...

— Não se desculpe por algo que não acon­teceu por sua culpa — Ben interrompeu-a, zangado.

China sentou-se em uma das cadeiras, en­quanto Ben ajoelhou-se diante dela. Nervosa, lançou um olhar rápido para Mattie, preocu­pada com sua reação ao ver o filho de joelhos diante de uma mulher. Mattie, porém, parecia totalmente absorvida pelos ovos que fritava. China baixou os olhos para Ben, observando a maneira gentil com que ele calçou suas meias e, depois, os sapatos. Quando ele virou, ela notou um redemoinho em seus cabelos. Sem pensar, tocou aquele ponto.

— Aposto que não era fácil pentear-se, quan­do era criança — disse.

O contato da mão de China com seus cabelos fez Ben arrepiar-se. Para seu alívio, a mãe respondeu, poupando-o de fazer papel de tolo.

— Está falando do redemoinho? Vou lhe mos­trar as fotos, depois. Você precisa vê-las! Co­nhece um personagem chamado Pimentinha?

China sorriu.

— Um garotinho loiro, coberto de sardas e de cabelos espetados para cima?

— Esse mesmo! — Mattie confirmou com uma risada.

— Bem, os cabelos de Bennie eram bem parecidos. A diferença era que não ficavam em pé, como os do Pimentinha, mas formavam um enorme cacho.

Ben finalmente recuperou a voz.

— Sim, e deixei Pete Farmer com um olho roxo por me chamar de maricas.

Mattie soltou uma gargalhada.

— Eu me lembro. Naquele verão, seu pai levou-o ao barbeiro e mandou que ele cortasse seus cabelos tão curtos que nem precisávamos pentear!

China voltou a sorrir. Aquela altura, suas reservas haviam desaparecido.

— Amarrei apertado demais? — Ben perguntou.

China movimentou os pés dentro dos tênis e sacudiu a cabeça. Ao fazê-lo, seus cabelos caíram sobre seu rosto.

— Mattie, quando terminar o que está fa­zendo, importa-se de prender meus cabelos em um rabo-de-cavalo? Meu braço ainda não recuperou todos os movimentos e não consigo fazer isso sozinha.

— Eu mesmo faço — Ben ofereceu, apanhan­do a fivela antes que ela tivesse a chance de protestar.

China foi apanhada de surpresa, pois não imaginara que ele se ofereceria para ajudá-la com os cabelos.

— Bem, não é necessário...

— Não me venha com conceitos machistas, mulher! Só porque sou homem acha que não sou capaz de prender um rabo-de-cavalo?

— Não foi isso o que eu quis dizer... Só achei que...

Mattie sorriu.

— Não peça desculpas a esse homem, que­rida. Ele está apenas provocando você. — En­tão, apontou o dedo em riste para Ben.

— Seja bonzinho. Vai assustá-la, antes que eu tenha a chance de me tornar amiga dela.

Ben emitiu um som de desdém.

— Era tudo o que eu precisava! Duas mu­lheres, em vez de uma, para me fazer dançar.

— Ora, Bennie, mas você dança tão bem — Mattie comentou, colocando as travessas na mesa.

— Tem o couro cabeludo sensível? — Ben perguntou.

— Não — China respondeu.

— Bom.

Em seguida, ele enroscou os dedos nos ca­belos dela e começou a penteá-los para trás.

Em vez de ser constrangedor, o ritmo das mãos dele em seus cabelos era revigorante. China fechou os olhos e entregou-se ao prazer.

— Prefere na nuca, ou mais alto? — ele perguntou.

— Na nuca está bem.

Em questão de segundos, Ben havia reali­zado o seu trabalho.

— O café da manhã está servido — Mattie anunciou.

— Espero que goste dos ovos bem passados, pois não posso nem olhar para uma gema mole.

China disfarçou um sorriso. Mattie falava tudo o que lhe vinha à cabeça, mas de certa forma tal atitude combinava com ela.

— Parecem ótimos — China elogiou.

—Você poderá fazer várias escolhas, aqui, mas nunca com relação à comida — Ben declarou. Mattie ergueu uma sobrancelha.

— Você sobreviveu à minha comida todos esses anos — desafiou.

— Sua comida é deliciosa — ele retrucou.

— Agora será que posso comer a sua comida, para poder ir trabalhar?

Mattie colocou um prato diante dele e, en­tão, beijou-lhe a face. Ben sorriu e olhou para China, que parecia não saber se deveria rir ou fingir que não estava lá. Ele piscou. No mesmo instante, a expressão no rosto dela relaxou. Satisfeito por saber que as brincadeiras entre mãe e filho não haviam provocado nenhum sentimento negativo em China, Ben atacou a comida com apetite.

China apanhou o garfo, mas deu-se conta de que Mattie ainda não se sentara. Devolveu o garfo à mesa e cruzou as mãos sobre as pernas, no exato momento em que Mattie virou-se, com um prato de torradas nas mãos.

— Não está com fome? — Mattie inquiriu.

— Estou esperando que se sente — China explicou.

Emocionada pela gentileza da jovem, Mattie apressou-se em colocar as torradas na mesa.

— Sirva-se — disse.

— Bennie, passe a geléia. — Ben revirou os olhos, procurando pelo vidro.

— Só se você parar de me chamar de Bennie. Por um momento, Mattie pareceu surpresa, mas logo sorriu.

— Desculpe se arruinei o seu estilo. China apanhou o pimenteiro e começou a temperar sua comida, para não ter de olhar para Ben. Pelo silêncio que se seguiu, ela po­deria jurar que ele estava lançando um olhar ameaçador para a mãe.

Logo, o clima voltou a ficar leve e o café da manhã foi muito agradável.

Ben estava sentado à sua mesa de trabalho, tentando organizar a pilha de papéis que parecia crescer a cada dia. No entanto, era difícil concentrar-se sabendo que, quando voltasse para casa, China estaria lá. Talvez não esti­vesse, oficialmente, à sua espera, mas estaria lá, assim mesmo.

— Ei, Ben, a esposa de Bo Milam está oficialmente fora da lista de suspeitos? — Red perguntou.

Ben ergueu os olhos para fitá-lo.

— Sim. Segundo China, mesmo de peruca e maquiagem, ela é baixa demais para ser a assassina, lembra-se.

— É verdade — Red murmurou, antes de deixar a pasta na mesa.

— Bom. Afinal, é um rosto a menos para considerarmos. — Espreguiçou-se e levantou-se.

— Vou buscar um café. Você também quer?

— Sim, obrigado — Ben respondeu distraído, antes de estender sua caneca para Red, sem erguer os olhos.

Alguns minutos se passaram, antes que lhe ocorresse que Red não retomara. Finalmente, Ben ergueu os olhos, à procura do parceiro, mas ele não estava lá. Levantou-se e espre­guiçou-se, como Red fizera. Gostava de ser po­licial, mas detestava a parte burocrática de seu trabalho.

De repente, Red entrou correndo. Onde quer que houvesse estado, deixara as duas canecas de café para trás.

— Teve de colher? — Ben perguntou.

— Colher o quê?

— Os grãos de café!

— Ah, sim! Eu havia me esquecido. Diabos! Onde deixei as canecas? — Sacudiu a cabeça, como se tivesse de se lembrar do motivo pelo qual viera correndo.

— Esqueça o café. Encontrei Jones no corredor, e você nunca vai adivinhar o que ele me disse.

— Que Jones? — Ben indagou.

— Mike Jones, do esquadrão antibombas. A imagem do sujeito baixinho e atarracado formou-se na mente de Ben.

— Ah, sim, aquele Jones. E então? Qual é o grande furo?

— Ele foi chamado para comparecer a um incêndio na região dos armazéns, esta manhã. De início, acharam que o fogo havia começado com a explosão de uma bomba, porque alguém disse ter ouvido uma explosão. Depois, deter­minaram que o incêndio foi detonado por subs­tâncias químicas.

— E o que isso tem a ver conosco?

— Jones disse que um amigo dele, do corpo de bombeiros, afirmou que o incêndio foi cri­minoso, mas esse não é o ponto. O que nos interessa é a quem o armazém pertence.

— E o vencedor é... — Ben quase gritou.

— Ariel Simmons. Ben sobressaltou-se.

— Está brincando!

— Jones também disse que encontraram coi­sas muito estranhas, que não foram consumi­das pelo fogo.

— Como, por exemplo?

— Como um par de algemas e correntes, fixas em uma parede que permaneceu de pé, além dos restos do que parecia ter sido uma cama.

— Não seria interessante descobrirmos o que Ariel tem a dizer sobre isso? — Ben sugeriu.

Red já vestia o casaco.

— Eu sabia que era isso o que você diria — declarou.

— Já avisei o capitão Floyd que vamos fazer mais uma visita a ela.

Ariel estava desempenhando o papel de pa­ciente com perfeição. Betty fora ao quarto da patroa duas vezes, desde o café da manhã. Uma vez, levara mel e chá de limão para acal­mar a tosse de Ariel. Na outra, foi levar a correspondência entregue pelo carteiro. Aten­dia todas as ligações para Ariel, mas explicava a todos por que a patroa não podia atender. Assim, se surgissem perguntas, ninguém teria nenhuma dúvida de que Ariel Simmons esti­vara muito doente.

Pouco antes do meio-dia, a campainha tocou. Ariel ouviu os acordes que ecoavam pelo cor­redor do andar térreo. Imediatamente, agitou os cabelos, para que parecessem desgrenhados, e beliscou a ponta do nariz diversas vezes, a fim de obter a aparência vermelha e inchada provocada pelas gripes fortes. Apanhou um punhado de lenços de papel e atirou-se de vol­ta aos travesseiros. Ainda lembrou-se de re­virar os lençóis, para fazer parecer que tivera uma longa noite de insônia. Satisfeita por es­tar perfeitamente de acordo com sua suposta condição, Ariel esperou pela inevitável batida na porta.

— Desculpe srta. Simmons, mas há dois detetives insistindo em vê-la.

— Se eles estão dispostos a arriscar o con­tágio, serão bem-vindos aqui em meu quarto, mas não me sinto bem para descer.

— Sim, senhorita — Betty concordou. — Direi a eles.

Poucos minutos depois, houve outra batida na porta. Ariel sorriu. Como mariposas diante das chamas, eles não resistiam à curiosidade de ver se ela estava mesmo doente.

— Entre — ela convidou com voz rouca, e então semicerrou os olhos antes que a porta se abrisse.

— Detetives, por favor, desculpem-me por não recebê-los de maneira apropriada, mas, como podem ver, não estou nada bem.

Red lançou um olhar para Ben, tentando julgar a expressão do parceiro para saber se estava se sentindo tão constrangido quanto ele. Infelizmente, o rosto de Ben era uma más­cara na qual seria impossível reconhecer qual­quer pensamento ou emoção. Red esperou que ele desse o primeiro passo.

Em silêncio, Ben avaliava a cena à sua fren­te. Era verdade que Ariel Simmons estava na cama, mas exceto por uma xícara de chá vazia e um punhado de lenços de papel no cesto de lixo, não havia nenhum sinal de doença. Não havia xarope para a tosse à vista, nenhum vidro de remédio sobre a mesa-de-cabeceira, nem sinais de enfermidade ou cansaço no rosto dela. Ariel não parecia febril, embora sua in­terpretação do personagem fosse digna de aplausos. Além disso, seus olhos mostravam-se claros, exibindo o brilho do interesse. De­cidiu que ela estava tentando enganá-los e re­cusou-se a comentar o estado de saúde dela.

— Temos mais algumas perguntas para lhe fazer — falou sem preâmbulos.

Ariel franziu o cenho. Estivera esperando, ao menos, um pedido de desculpas dos dois.

— Se é necessário... — replicou.

— Mas, por favor, sejam breves. Não estou me sen­tindo bem.

Ben assentiu.

— A senhorita já disse isso.

As faces de Ariel coraram, mas não de febre. Ela se endireitou na cama.

— Pode perguntar.

— Um de seus armazéns pegou fogo ontem à noite. Os bombeiros encontraram alguns objetos interessantes nos escombros. Objetos re­lacionados com a fotografia que Chaz Finelli tinha da senhorita... objetos que poriam em dúvida a sua alegação de que a foto foi falsificada.

O coração de Ariel bateu mais forte.

— Sinto muito, mas não sei do que o senhor está falando. Não tenho negócios que exijam a existência de um armazém. Deve haver al­gum engano com relação ao proprietário.

— Não, não há nenhum engano — Ben re­trucou.

— A escritura do armazém declara que ele pertence à congregação Simmons.

Ariel sacudiu a cabeça, ainda mantendo a atitude perplexa. A fim de dar um toque ainda mais real ao momento, ela conseguiu espirrar.

— Saúde — Red murmurou.

— Ora, obrigada — Ariel replicou com um sorriso.

— E quanto ao armazém? — Ben persistiu.

Ariel deu de ombros.

— Realmente, não sei do que se trata — respondeu.

— No entanto, a congregação recebe centenas de propriedades em doações, to­dos os anos. É possível que um de meus fiéis tenha doado esse armazém em nome de Deus, mas não tenho conhecimento do fato. Darei a vocês o nome do meu contador, assim como o número do seu telefone. Ele poderá esclarecer a questão melhor do que eu. Não me preocupo com esse tipo de coisas. Prefiro concentrar mi­nha energia na Palavra.

Red anotou o nome e o telefone do contador, mas Ben não estava disposto a desistir tão facilmente.

— Onde estava ontem à noite? — Ariel lançou-lhe um olhar indignado.

— De novo? Ah, não! — gritou.

— Terei de passar o resto de minha vida comprovando mi­nhas palavras para vocês? Não têm outra pessoa a quem atormentar? — Apanhou o telefone ao lado da cama e pediu a Betty que subisse.

— Eu estava de cama, ontem à noite, sofrendo com esta gripe. Betty estava aqui. Perguntem a ela.

Como se seguisse a deixa, Betty bateu na porta e entrou no quarto.

— Pois não, senhorita?

— Estes homens têm algumas perguntas para fazer a você.

Ela se virou para os detetives.

— Sim?

Ben prosseguiu com as perguntas, embora acreditasse que a empregada mentiria facil­mente para acobertar a patroa.

— Betty é o seu nome? Ela assentiu.

— Muito bem, Betty, pode nos dizer a que horas viu a srta. Simmons pela última vez, ontem à noite?

A empregada franziu o cenho, puxando pela memória.

— Eu lhe trouxe chá de limão com mel, para a dor de garganta, pouco antes das dez. Ela estava tão doente quanto está agora. Por isso, deixei-a em paz para que pudesse dormir.

— Você mora no emprego?

— Sim, minha suíte fica próxima à cozinha.

— Do seu quarto é possível ouvir uma pes­soa entrando na casa ou saindo?

— Ah, sim, sem a menor dúvida. Meu quarto fica ao lado da garagem e não ouvi nada.

Ariel lançou um olhar triunfante para os dois detetives.

— Isso é tudo, Betty — ela disse e, então, esperou que a empregada deixasse o quarto, para voltar a fitá-los.

— Antes que vocês per­guntem, sim, o carro estacionado na entrada da casa é meu. Portanto, existe a possibilidade de eu ter saído sem que Betty ouvisse. Acon­tece que meu carro está estacionado lá desde anteontem. Não foi sequer ligado, e, com toda a sua tecnologia moderna, certamente a polí­cia tem mecânico, ou algo parecido, que pode verificar se estou dizendo a verdade ou não. Agora, se fizerem à gentileza de ir embora, preciso descansar.

Ben sabia que ela estava mentindo sobre o incêndio, pois via a verdade nos olhos dela, o que o levava a suspeitar que ela poderia estar mentindo sobre todo o resto da história. Usando uma peruca e maquiagem adequada, ela poderia perfeitamente ser a mulher descrita por China. Eles já sabiam que Ariel usava perucas com freqüência, pois ela mesma admitira isso. Tam­bém sabiam que ela já contara outras mentiras, desde o início das investigações. No momento, porém, Ben não tinha como apanhá-la.

Quando se viravam para sair, ele avistou o Dallas Morning News aberto sobre a cama, o que significava que Ariel vira a foto da pri­meira página. Ele se inclinou e apanhou o jornal, para então atirá-lo sobre as pernas dela, com a manchete virada para cima.

— Interessante semelhança, não acha? Ariel empalideceu.

— Não está falando sério! Essa mulher não se parece nem um pouco comigo.

— Não tenho tanta certeza — Ben falou, antes de se virar para o parceiro.

— O que você acha Red? Essa mulher é parecida com a srta. Simmons?

Red estreitou os olhos, fingindo estudar o rosto dela.

— Bem, com uma peruca e um pouco de maquiagem, acho que passaria.

Ariel sentiu um aperto no estômago, e pela primeira vez, desde que se pusera de cama, sentiu-se realmente doente.

— Saiam — murmurou em um gemido.

— Saiam e deixem-me em paz!

Então, pulou da cama e correu para o ba­nheiro, batendo a porta atrás de si. Os sons que atravessaram a porta não deixavam dú­vidas quanto à veracidade de seu mal estar.

— O que acha parceiro? — Red perguntou.

— Acho que abalamos a moça.

 

Mattie English estava de péssimo humor, e China fez o pos­sível para se manter fora do caminho dela. No momento em que Dave Lambert chegara ao sítio, Mattie havia se transformado. No papel de observadora, China achou óbvio o fato de os dois se gostarem, mas não conhe­cia a história deles e, portanto, não poderia questionar o que os mantinha naquele clima pouco amigável.

No entanto, Dave e China simpatizaram um com o outro instantaneamente. O policial aposentado era um tanto ranzinza, mas foi muito gentil com ela. Bem, afinal eles estavam ape­nas começando a se conhecer.

Mattie era incapaz de se ver na presença dele sem fazer um comentário cáustico. Chi­na decidiu voltar para seu quarto, a fim de evitar as conseqüências do temperamento di­fícil dos dois.

Ao meio-dia, Mattie estava uma pilha de nervos, respondendo em tom rude a tudo o que Dave dizia. Finalmente, China ouviu o confronto, quando Dave perdeu a paciência.

— Que diabos, Mattie! Sei que você não me quer aqui, pois já deixou isso muito claro, de todas as maneiras possíveis. Acontece que não estou aqui por sua causa, mas sim por causa daquela moça que está lá dentro. Fiz uma pro­messa ao seu filho e pretendo cumpri-la, o que dá a você duas alternativas: suportar a minha presença ou calar a boca!

China prendeu a respiração, notando que o silêncio se alongava. Então, ouviu a porta de um dos armários da cozinha bater com vio­lência, ao mesmo tempo em que Mattie pronun­ciava uma única palavra:

— Certo.

— Certo, o quê? — Dave inquiriu.

— Trate de descobrir sozinho — Mattie re­trucou, pondo um ponto final à conversa.

China sorriu. Embora não se sentisse real­mente cansada, decidiu que seria melhor ficar no quarto, em vez de interferir no cessar-fogo dos dois. Uma pequena estante, ao lado da janela, oferecia-lhe uma boa variedade de li­vros. Ela se ajoelhou diante das prateleiras, à procura de um título que despertasse seu interesse. Enquanto procurava, ouviu o som de um carro se aproximando. Ergueu-se e abriu a cortina para espiar pela janela.

Não era o carro de Ben, mas ela não espe­rava mesmo que fosse. Era cedo demais para ele estar chegando em casa. Sem conhecer a rotina de Mattie, China limitou-se a observar, curiosa. O carro parou bem em frente à casa. O sol batia em cheio no lado esquerdo do pára-brisa, de maneira que ela não pôde ver quem saiu do automóvel. Mas, então, o motorista moveu-se na direção da casa, e China conse­guiu distinguir sua aparência.

Tratava-se de uma mulher alta e magra, usando calça preta e um casaco que cobria seus joelhos, com um capuz circundado por pele, que escondia boa parte de seu rosto. Ou­tra parte encontrava-se sob grandes óculos es­curos, e uma bolsa enorme pendia de um dos ombros, parecendo muito pesada. Enquanto China observava, a mulher abaixou a cabeça e começou a correr para a porta de entrada.

Tomada pelo pânico, China girou nos calcanhares e saiu correndo do quarto, gritando por Dave.

O medo na voz de China fez Dave pular da cadeira onde estivera sentado para encontrá-la na escada, de arma em punho.

— O que foi? — perguntou quase aos berros. Ela apontou para a porta.

— Uma mulher alta... correndo para cá... Eu... — Mattie demorou poucos segundos para jun­tar-se a eles.

— O que aconteceu?

— China disse que uma mulher está cor­rendo para cá.

Naquele exato momento, ouviram uma série de batidas rápidas na porta. Em seguida, a porta se abriu, batendo na parede com estron­do, agitando os enfeites da árvore de Natal.

Dave virou-se e apontou a arma.

China gritou.

Mattie também gritou, embora corresse na direção da mulher.

— Não atire! Não atire! Esta é a vendedora da Avon!

Imediatamente, Dave reconheceu sua vizi­nha, Patsy Reynolds.

— Diabos, Patsy! Quase levou um tiro!

A expressão de Patsy era da mais pura confusão.

— Eu bati — ela balbuciou, deixando a bolsa cair no chão. Então, seus olhos se encheram de lágrimas, e ela se virou para Mattie.

— Eu estava com pressa, porque precisava ir ao banheiro.

Uma onda de alívio percorreu o corpo de China, que começou a rir, ao mesmo tempo que Dave pôs-se a praguejar.

— Bem, você sabe onde fica o banheiro — Mattie disse.

Patsy sacudiu a cabeça.

— Não preciso mais ir ao banheiro. Acho que o susto tirou minha vontade.

Tais palavras fizeram China rir ainda mais. Patsy não sabia se deveria sentir-se insultada ou feliz por ninguém ter-se zangado com o fato de ela ter entrado sem ser convidada.

— Sente-se, Patsy. Vai ter de nos desculpar, mas estamos um tanto estressados, e você che­gou em péssima hora.

Patsy Reynolds sentou-se, mas na beirada da cadeira, para o caso de ter de sair correndo daquela casa.

— Vocês devem estar mesmo muito aflitos — disse, olhando para a porta por onde Dave havia desaparecido.

— Ele me apontou uma arma!

Dessa vez, as gargalhadas de China beira­ram a convulsão. Com um aceno desajeitado, ela fugiu para seu quarto.

— Quem é ela? — Patsy perguntou, assim que China saiu da sala.

Mattie revirou os olhos.

— Ah, é uma parente distante, mas faz parte da família, assim mesmo.

Voltando aos negócios, Patsy assentiu e apa­nhou a bolsa.

— Aqui está o último catálogo. O creme para as mãos, aquele de que você gosta, está em promoção. E se comprar dois tubos, ganha o terceiro de graça.

A última coisa que Mattie desejava no mo­mento era examinar produtos Avon, mas con­siderando o que poderia ter acontecido, poucos minutos antes, decidiu que o mínimo que po­deria fazer seria gastar uns poucos dólares em creme para as mãos. Afinal, seria muito mais barato do que comprar flores para o ve­lório da pobre mulher.

Connie Marx estava na janela de seu apar­tamento, situado em Highland Park, contem­plando sua vida. Estava sem beber havia dois dias, desde que aceitara o fato de que fora ela mesma quem provocara tudo o que estava lhe acontecendo agora. Filha de um meeiro do Mississipi, passara a maior parte de sua vida sonhando com o sucesso, e tivera tudo o que desejara... até envolver-se com o marido de outra mulher.

Ao longo de todos aqueles dias de autopiedade, quando ela se afogara em uísque, uma velha lembrança permanecera junto dela. Logo após seu aniversário de seis anos, come­çara a chover. E chovera durante cinco dias e cinco noites, sem parar. O rio que passava logo abaixo de sua casa começara a transbordar e, pouco antes do anoitecer, a casa fora arrastada pela água. Seu pai ficara parado sobre uma colina, com uma expressão que ela nunca vira antes. Então, ele se sentara, es­condendo a cabeça entre os joelhos, e começara a chorar. Dois dias depois, enforcara-se no ce­leiro do irmão, pondo um fim às suas preocu­pações, mas exacerbando as do resto da famí­lia. Desesperada, sua mãe saíra andando, le­vando consigo os cinco filhos. Caminharam durante a noite inteira, e boa parte do dia se­guinte. Então, as crianças começaram a cho­rar, implorando que ela parasse. E ela parou. Infelizmente, não conseguiu levantar-se novamente. Alguém que passava pela estrada avisou a polícia de que uma mulher e cinco crianças pareciam estar enfrentando proble­mas. Pouco antes do pôr-do-sol, dois policiais haviam chegado e colocado às crianças em um carro, e a mãe de Connie em outro. Os filhos nunca mais viram a mãe. Anos depois, Connie descobriu que a mãe havia enlouquecido e morrido durante o sono. A fraqueza de seus pais, que chegara ao ponto de fazê-los sim­plesmente desistir de lutar por si mesmos e pela família, fora um segredo que Connie guardara para si. Orgulhava-se de ser forte e determinada, focalizando sempre o objetivo a ser atingido, nunca sua vida pessoal.

Mas, então, conhecera Larry Dee Jackson, e o superstar sensual, de maneiras suaves a seduzira. Enfraquecida pela paixão, Connie Marx trocara todos os seus sonhos pelo prazer.

Por um certo período, mergulhara em au­topiedade, e até mesmo chegara a contemplar a possibilidade de pôr um fim definitivo em tudo. Porém, isso fora antes do sonho, antes que ela se lembrasse do rosto inchado do pai, pendurado na corda, os olhos saltados, os lá­bios arroxeados e a poça de urina no chão. Connie acordara sobressaltada. Naquele mo­mento, um plano havia nascido.

Agora ela andava de um lado para o outro, na sala de seu apartamento, esperando que o detetive English retornasse sua ligação.

Poucos minutos depois, o telefone tocou. Ela atendeu de pronto.

— Alô?

— Srta. Marx, aqui fala Ben English. Recebi seu recado.

Os dedos de Connie apertaram o fone com força.

— Sim. Preciso que me faça um favor.

Nunca antes um suspeito de assassinato ha­via pedido um favor a Ben e, portanto, ele ficou mais que surpreso.

— Pois não...

— Quero me submeter ao detector de men­tiras, e quero que providencie o teste para mim. Não matei Chaz Finelli e quero provar minha inocência.

Ben ficou aturdido. A veemência na voz dela não era fingida, nem a confiança que ela de­monstrava ter em si mesma.

— Deve saber que esse teste não é aceito como prova em um tribunal — ele disse.

— Sim, eu sei, mas também conheço o peso que ele representa aos olhos do público, e não vou permitir que me arrastem ainda mais no lamaçal que Finelli fez de minha vida. Ele está morto. Eu sinto muito, mas não fui eu quem o matou.

— Quando pode vir?

— Hoje, amanhã, quando você mandar.

— Ainda é uma hora. Vou fazer algumas li­gações e então voltarei a lhe telefonar. Ah, sim, talvez queira que seu advogado esteja presente.

— Não. Só quero que isso termine de uma vez.

Um clique estalou no ouvido de Ben. Fran­zindo o cenho, ele desligou e foi até a sala do capitão. Bateu na porta e abriu-a.

Aaron Floyd falava ao telefone. Acenou para Ben, indicando que ele entrasse e apressou-se em desligar.

— Novidades? — inquiriu.

— Não tenho certeza. Pode ser armação, mas ela me pareceu sincera.

— Quem?

— Connie Marx. Ela quer se submeter ao detector de mentiras... hoje, se for possível.

— O que acha?

— Será feito — Floyd decidiu.

— Ligue para ela e diga que deverá estar aqui às três horas. Tomarei as providências necessárias.

— Sim, senhor — Ben concordou e saiu da sala.

Cinco minutos depois, a ligação fora feita. Ben deixou um recado na mesa do parceiro e, então, fez um rápido telefonema para casa. O tal teste poderia atrasá-lo, e ele queria ter certeza de que Dave Lambert ficaria no sítio até sua chegada.

Mattie atendeu o telefone.

— Olá, mamãe, como vão às coisas por aí?

— Não queira saber!

Os cabelos se arrepiaram na nuca de Ben. O tom de voz da mãe não o agradou nem um pouco.

— Algum problema? Está tudo bem com China?

A mãe emitiu um som pouco feminino.

— Ah, ela está ótima. Infelizmente, não pos­so dizer o mesmo de Patsy Reynolds, e Dave não fala conosco desde a hora do almoço. Tirando isso, vai tudo muito bem.

Ben franziu o cenho.

— O que aconteceu com Dave, e como Patsy Reynolds entrou na história?

— É ela quem me vende os produtos Avon, lembra-se? Dave quase atirou nela hoje. Creio que ela jamais voltará a pôr os pés nesta casa, e acontece que ela vende o melhor creme para as mãos que já experimentei.

Ben quase deixou o fone cair.

— Atirou nela? Por que Dave atiraria na revendedora da Avon?

Mattie suspirou.

— Pensando bem, até que foi engraçado, mas na hora em que tudo aconteceu nin­guém, com exceção de China, viu alguma gra­ça na situação. Bem, China saiu do quarto como um gato escaldado, dizendo que uma mulher estava correndo na direção da casa. Dave sacou a arma no exato momento em que a porta se abriu. Era Patsy, mas ela não tinha intenção de fazer mal a ninguém. Estava apenas com pressa, apenas porque precisava usar o banheiro. Ah, foi uma grande confusão! Então...

— China! Ela está bem? Não ficou assustada?

— Assustada? De jeito nenhum! Ela quase morreu de rir. E quanto mais a cena se ar­rastava, mais ela ria. Dave está envergonhado e zangado, mas parece zangado desde que che­gou aqui. China passou a tarde lendo. Toda vez que vou até o quarto para saber como ela está, ela sorri. Foi um dia e tanto! Espero que amanhã seja melhor.

Enquanto sua mãe contava a história, Ben só pensava em uma coisa: China rira de ver­dade. Ele teria dado tudo para ouvir aquele som. Então, lembrou-se do motivo pelo qual ligara.

— Talvez eu me atrase um pouco. Diga a Dave para não sair daí enquanto eu não chegar.

— Ah, que ótimo! — Mattie resmungou.

— Assim, encerraremos o dia com chave de ouro!

Ben sorriu.

— Diga a ele que vou buzinar duas vezes, antes de estacionar, para não correr o risco de levar um tiro.

— Não estamos nos falando — Mattie declarou. O sorriso morreu nos lábios de Ben, embora ele não estivesse exatamente surpreso.

— É melhor estarem se falando quando eu chegar — disse.

— Nem sempre conseguimos o que quere­mos, querido filho. Trate de vir logo para casa, antes que meu mundo fique totalmente arruinado.

— Sim, senhora — Ben replicou. Mattie desligou.

Ben suspirou, recolocando o fone no gancho. Aquela era a segunda vez que uma mulher desligava o telefone, em menos de meia hora. Só lhe restava esperar que isso não fosse uma amostra do que estava por vir.

Connie Marx deixou a sala de interrogatórios com passos confiantes, à cabeça erguida, os ombros eretos. Ben estava à espera dela no final do corredor.

— Você passou — anunciou.

— Porque sou inocente — ela completou.

— Agora, tratem de me esquecer, ou contra­tarei o melhor advogado do Texas para pro­cessar todo o departamento de polícia de Dal­las. Fui clara?

— Perfeitamente, srta. Marx. Mas não há nada para ser esquecido.

Ela o fitou com ar confuso.

— O que está querendo dizer?

— Não viu o retrato que foi publicado pelos jornais hoje?

— Não leio um jornal há dias. — Ben estendeu-lhe um.

Connie desdobrou-o, leu rapidamente a manchete e, então, examinou o rosto estam­pado logo abaixo. Seus olhos se arregalaram.

— Ela não se parece nem um pouco comigo — disse.

— De fato, não há nenhuma semelhança. Ela respirou fundo.

— Está dizendo que já não me considera uma suspeita no caso?

— Exatamente.

— E concordou que eu fizesse o teste, sa­bendo que não era necessário?

— Eu não sabia que a senhorita não havia lido os jornais. Veja deste ângulo: provou sua inocência aos olhos do mundo ao se oferecer para o teste. Ter passado foi apenas um bônus.

A voz dela começou a tremer.

— Alguém ligou para o meu local de tra­balho para informar que não sou mais uma suspeita?

— Não, senhorita. Não se trata de uma ati­tude que a polícia costume tomar.

Connie empinou o queixo. Restava ainda um obstáculo a vencer.

— Preciso de mais um favor. — Ben hesitou.

— Pode pedir. Só não garanto que poderei atendê-la.

— Quando o caso for resolvido, quero uma exclusiva. — Ben só podia admirá-la.

— Farei o possível — prometeu.

— Já é o bastante — Connie murmurou e começou a se afastar.

— Srta. Marx?

Ela parou e virou-se.

— Para onde deverei ligar, caso cheguemos a uma conclusão sobre o caso?

— Ligue para minha casa. Não voltarei para o canal sete com o rabo entre as pernas. Voltarei em grande estilo, com um furo de reportagem e um bom aumento de salário. Do contrário, fritarei hambúrgueres pelo resto de minha vida.

Ben acenou em despedida. Ela exibiu um sorriso triste e foi embora. Quando já chegava à outra extremidade do corredor, viu a porta do elevador se abrir. Quando Larry Dee Jack­son emergiu, com um sorriso largo e os braços abertos, convidando-a para um abraço, Connie mal acreditou no que via.

— Connie, querida! Li o jornal. Agora todos saberão que você não é a assassina. Procurei por você em todos os lugares. Seu advogado me disse que você tinha vindo para cá. Acabou não é, meu bem? Acabou.

Connie fitou-o por um longo momento, ten­tando entender o que vira naquele homem. Exceto pelo rosto bonito, ele era o sujeito mais superficial que ela já conhecera. Havia dado o nome dela à polícia e, então, a abandonara quando ela se tornara uma suspeita. Agora estava de volta, com aquele sorriso "vamos para a cama" estampado no rosto! De jeito nenhum!

— Ah, sim, acabou — disse.

Então, deu-lhe uma forte bofetada, sentin­do imenso prazer na dor que tomou conta de sua mão. Em seguida, entrou no elevador e desceu sozinha.

Ben assistiu a tudo, parado no final do cor­redor, e até fez uma careta quando ela esbo­feteou o rosto de Jackson. Mesmo assim, não pôde deixar de concluir que o sujeito merecia tal tratamento. Aquele fora um dos poucos incidentes que Jackson não teria a quem su­bornar para abafar a história. Então, Ben pensou em China, em sua mãe e Dave, na confusão que o aguardava em casa. Estava na hora de ir embora.

Por volta das seis horas da tarde, o aroma de algo delicioso no fogão, assim como a culpa por não ter se oferecido para ajudar a preparar o jantar, fez China sair de seu quarto. Quando se aproximava da cozinha, ouviu o murmúrio de vozes e hesitou, mas como eles não pare­cessem zangados, continuou seu caminho. Ao alcançar a porta, ouviu Mattie rir. Foi um riso baixo e íntimo, freqüentemente partilhado por velhos amigos. China sorriu. Ao que parecia, as diferenças haviam sido esquecidas. Ao me­nos por enquanto.

— É tarde demais para oferecer ajuda? — perguntou.

Dave e Mattie viraram-se para ela.

— Entre, querida — Mattie convidou.

— Achei que havíamos deixado você tão assus­tada que nunca mais sairia do quarto.

Calculando que rira demais por um dia, Chi­na limitou-se a sorrir.

— Não me assustei. Só achei prudente me manter fora do fogo cruzado.

Dave sorriu.

— Eu lhe disse que ela era uma moça esperta! — comentou.

Mattie apontou para a mesa.

— Sente-se, querida. Terá tempo de sobra para trabalhar, depois que houver se recuperado por completo. Este foi o seu primeiro dia em casa, depois de tanto tempo no hospital. Deve estar se sentindo um pouco fraca, ainda.

— Já descansei bastante — China garantiu.

— E, já que todos são a favor da honestidade aqui, devo dizer que me sinto terrivelmente culpada por ter invadido suas vidas. Sei que, se não fosse por insistência de Ben, você não seria forçada a aceitar essa situação.

— Ninguém me força a fazer coisa alguma — Mattie declarou.

— Portanto, sente-se. — Dave puxou uma cadeira para China.

— É melhor fazer o que ela diz — murmurou.

— Mattie não sossega enquanto não consegue o que quer.

China sentou-se.

Mattie resmungou alguma coisa, antes de virar-se para o fogão, mas ninguém compreendeu uma palavra sequer.

China olhou para o relógio, e Dave notou sua dúvida.

— Ben telefonou, avisando que chegaria um pouco mais tarde — avisou-a. Ela corou.

— Eu não... Bem, não foi...

Ele riu.

— Sabe o que dizem sobre protestar demais?

— Agora sei por que Mattie tem ímpetos de atacá-lo de vez em quando — ela resmungou.

A risada de Dave transformou-se em sonora gargalhada.

— David Wayne, deixe-a em paz — Mattie ordenou.

Dave conteve o riso, mas seus olhos ainda brilhavam quando ele se sentou.

Um silêncio constrangedor se seguiu, e Chi­na já se perguntava se não deveria ter espe­rado mais um pouco para sair do quarto, quan­do ouviu o som de um carro se aproximando. Então a buzina soou duas vezes.

— Deve ser Ben — Dave disse.

— Vou ver.

O coração de China agitou-se. De repente, a idéia de ouvir a voz profunda e de sentir a ternura do toque dele em sua pele foi mais do que ela poderia suportar. Começava a se levantar, na intenção de fugir para o quarto, quando Mattie virou-se e ordenou:

— Pode arrumar a mesa agora. Os talheres estão na primeira gaveta, à esquerda da pia.

— Sim, senhora — China murmurou, aca­bando de se levantar.

Mattie suspirou, deixou a colher que empunhava sobre o fogão, aproximou-se de China e abraçou-a.

— Querida, desculpe o meu mau humor hoje. Não tem nada a ver com você. Dave e eu temos velhos assuntos pendentes, e você teve o azar de ficar bem no meio.

O calor humano proporcionado pelo abraço de Mattie, assim como a sinceridade em sua voz, foram o bastante para fazer China querer chorar. Porém, ela conseguiu engolir o nó que se formou em sua garganta e exibir um sorriso.

— Foi o que eu pensei — disse.

— E vocês não feriram os meus sentimentos.

Mattie sorriu e beliscou de leve a ponta do nariz de China.

— Ótimo. Da próxima vez que me chamar de "senhora", prometo enfiar uma meia em sua boca.

China riu alto.

E foi esse o primeiro som que Ben ouviu ao entrar em casa. Ele ficou imóvel, sentindo-se fraco e cheio de desejo. E, naquele momento, teve de aceitar o fato de que estava perdidamente apaixonado por China Brown.

— Já era tempo de você aparecer — Dave declarou.

Ben sobressaltou-se. Nem vira Dave parado ali.

— Feche a porta, rapaz — o mais velho aconselhou.

— Está deixando muito ar frio entrar.

— Ah, sim, desculpe — Ben balbuciou, fechando a porta e tirando o casaco e as luvas.

— Como foi o dia hoje?

— Eu diria que foi muito bem, exceto pelo fato de eu quase ter atirado na revendedora da Avon.

Ben sorriu.

— Fiquei sabendo.

Dave franziu o cenho.

— Então, por que perguntou? Só para verificar se eu lhe contaria a verdade?

Ben riu e deu um tapinha amigável no om­bro de Dave.

— A confissão faz bem à alma. Foi você quem me ensinou isso, lembra-se?

Dave também sorriu.

— Sim, mas isso foi porque apanhei você fumando um charuto atrás do estábulo de seu pai. Há uma grande diferença entre fumar escondido e matar sua vizinha.

— Eu soube que ela estava com pressa por­que precisava usar o banheiro.

O sorriso de Dave tomou-se largo.

— Depois que apontei minha arma para ela, duvido que ela conseguiria fazer o que quer que precisasse, antes.

— Eu queria estar aqui — Ben comentou.

— Deve ter sido uma cena e tanto.

— Eu também gostaria que você estivesse aqui. Uma casa cheia de mulheres me deixa nervoso. Agora, vamos para a cozinha, antes que sua mãe venha à nossa procura.

— China está bem? — Ben perguntou. Dave deixou de sorrir.

— Você está mesmo caído por ela, não?

— Aí estão vocês — Mattie declarou, ao en­trar na sala. Abraçou o filho.

— O jantar está pronto. Vamos servi-lo em cinco minutos.

— O cheiro está muito bom — Ben disse —, mas quero cumprimentar China antes de me trocar.

— Ah, ela está... — Mattie começou a falar, mas Ben deixou a sala antes que ela terminasse.

— Ele está apaixonado — Dave concluiu, mas ao ver a expressão preocupada de Mattie, indagou:

— Qual é o problema? Pensei que gostasse dela.

— Gosto do que conheço dela, mas ela está aqui há um dia, apenas. Há anos rezo para que Ben encontre uma boa mulher e estabeleça sua própria vida. Afinal, já passou dos trinta anos. Só não sei o que pensar de uma mulher como ela.

— China parece ser muito decente.

— Há poucos meses ela vivia com outro ho­mem e estava esperando um filho dele, sem ser casada. Quando recebeu os tiros, não tinha onde morar. Agora, é a única pessoa que viu uma assassina em série e sobreviveu para identificá-la, Não é exatamente o tipo de mulher que uma mãe deseja para esposa de seu filho.

Dave fitou Mattie por um momento e, então, sacudiu a cabeça.

— Você se esquece muito fácil — murmurou. Mattie corou e empinou o queixo.

— Não sei do que está falando.

Dave segurou-a pelos ombros e falou em voz baixa:

— Você continuou casada com um homem que não amava por uma questão de dever e obrigação. Enganou a si mesma e a mim, privando-nos de uma vida feliz. Fazia menos de uma semana que seu marido havia morrido, quando fizemos amor, e você nunca me per­doou por isso. Acha mesmo que está em con­dições de julgar aquela moça?

Os olhos de Mattie encheram-se de lágri­mas. Não era fácil encarar a verdade.

— Preciso servir o jantar — ela disse.

— Vá lavar as mãos.

— Acho que já fiquei aqui por tempo demais, por um dia. Vou para casa.

— Se sair por aquela porta, não se atreva a voltar — ela declarou em um sussurro e, então, voltou para a cozinha.

Dave ficou ali parado, por um momento, para então ir lavar as mãos.

 

Ben entrou na cozinha e encontrou China retirando talheres da gaveta.

— Mamãe pôs você para trabalhar? — inquiriu.

A voz profunda a sobressaltou e, ao mesmo tempo, excitou-a. Reagir de maneira normal à presença daquele homem estava se tomando cada vez mais difícil.

— Eu me ofereci para ajudar — ela disse, aproximando-se da mesa com passos lentos e calculados.

Ben observou-a, estreitando os olhos. Ela estava dolorida. Era fácil perceber, pela maneira como se movia.

— Ficou fora da cama por tempo demais, hoje — concluiu, retirando os talheres das mãos dela e arrumando-os sobre a mesa.

— Fiquei no meu quarto quase...

Ben ergueu os olhos e sorriu.

— Sim, já fiquei sabendo que você se refu­giou lá, depois que Dave tentou matar a revendedora da Avon.

China também sorriu.

— Eu não deveria ter rido.

— Pois eu achei a história muito engraçada.

— A culpa foi toda minha. Entrei em pânico e Dave, simplesmente, reagiu a mim. Por minha causa, uma mulher quase foi morta.

Ben sacudiu a cabeça.

— Dave é um policial bom demais para ati­rar em um suspeito desarmado, mesmo que ela estivesse carregada.

— Mas ela não estava armada — China protestou.

— Ela estava carregando a sacola da Avon. — China riu.

— E eu ri.

Ben não conseguia desviar os olhos dela. Desde que a conhecera, China estivera sempre sofrendo, fosse pela dor física, ou fosse pelo luto da perda. Aquele lado bem-humorado era uma surpresa mais do que agradável.

China endireitou uma colher, então trocou os garfos e facas de posição, enquanto tentava explicar.

— Acho que o acesso de riso foi apenas rea­ção ao meu alívio... quando me dei conta de que a mulher não estava aqui para me matar. Foi quando ela disse que precisava usar o ba­nheiro que perdi o controle.

Ben riu, assim como China.

— Tentei parar de rir. Juro que tentei. Mas as coisas foram de mal a pior, e Dave estava furioso, e Mattie gritava: "Não atire, não atire, é a vendedora da Avon" e... Ah, você pre­cisava ter visto — ela concluiu, soltando uma gargalhada. Ben ficou petrificado.

— Meu Deus... — sussurrou.

China imobilizou-se. Algo mudara, e ela não sabia o quê. Quando Ben começou a dar a volta na mesa, ela começou a ficar nervosa.

— O que foi? — China indagou.

— O que eu fiz?

Ele tocou sua face, circundando seus lábios com a ponta dos dedos. Eram macios, muito macios.

— O riso... muda você — ele balbuciou. Subitamente embaraçada, ela tentou afastar-se, mas Ben não permitiu.

— Provavelmente, me faz parecer idiota. Afinal, meus olhos são grandes demais e minha boca... sem comentários!

Sempre cuidadoso com os ferimentos dela, Ben segurou-a pelos ombros e forçou-a a virar-se para encará-lo.

— Olhe para mim, China. — Ela não tinha escolha.

— Seu riso é lindo, assim como você, e me deixa louco de inveja saber que não fui eu quem fez você rir. Não sei como, mas um dia desses, vai aprender a acreditar em si mesma.

Ele se afastou, pois sabia que se ficasse mais alguns segundos tão perto dela, acabaria beijando-a.

O coração de China parecia prestes a saltar do peito, seus pensamentos giravam em dis­parada. Ah, como queria acreditar nele, mas vira o próprio reflexo no espelho, vira os defeitos durante todos aqueles anos.

Então, Mattie marchou pela porta, de cabeça erguida e o brilho da fúria nos olhos. O momento de questioná-lo se perdeu.

— Vou trocar de roupa. Estarei de volta em cinco minutos — Ben anunciou e, com passos rápidos, saiu.

China percebeu o estado de espírito de Mattie. Sentindo-se pouco à vontade, sozinha com a mãe de Ben, sentou-se, na esperança de que o silêncio a tomasse invisível. Para sua surpresa, porém, Mattie virou-se de súbito e sorriu.

— Espero que esteja com fome, querida — disse.

— Acho que exagerei no frango com bo­linhos de batata.

— Ah! É um dos meus pratos prediletos! — China confessou.

— Não como há anos.

Foi à frase perfeita. Mattie começou a con­versar, animada, como se houvessem traba­lhado juntas a vida inteira. Assim, quando a comida se encontrava na mesa e todos haviam tomado seus lugares, o clima era amigável e extremamente agradável.

Pouco mais de uma hora mais tarde, depois de haverem jantado e lavado a louça, Dave foi embora para casa. Mattie foi se sentar na sala, com o controle remoto ao alcance da mão e a sacola de tricô sobre as coxas, deixando Ben e China a sós, na cozinha.

— Quer dar uma volta? — ele convidou. A idéia de sair, mesmo que por uns poucos minutos, era animadora.

— Ah, sim, seria ótimo!

— Pegue seu casaco.

China levantou-se de um pulo, mas gemeu e fez uma careta de dor.

— Vá devagar, querida — Ben advertiu-a.

— Não vou sair sem você.

Ansiosa para fazer algo que pudesse ser con­siderado uma atividade normal, em vez de fi­car se escondendo e sentindo medo, ela foi até o armário do hall de entrada para apanhar o casaco. Ao vê-la, Mattie ergueu os olhos do tricô, curiosa.

— Vamos dar uma volta — China disse. A mais velha assentiu com ar de aprovação.

— Vai lhe fazer bem — afirmou.

— Dormirá melhor, depois de respirar um pouco de ar fresco.

— Não vamos demorar.

— Não tenha pressa. Ben não deixará que nada lhe aconteça.

China voltou à cozinha, onde Ben esperava por ela, sentindo uma nova paz dentro de si. Eram apenas sete palavras, mas que faziam toda a diferença do mundo. Ben não deixará que nada lhe aconteça. A mãe dele estava cer­ta. Ben cuidaria de China, e não só por ser um bom policial, cumprindo o seu dever, mas porque havia prometido fazê-lo.

Ben ajudou-a a vestir o casaco, puxou o ca­puz sobre seus cabelos e prendeu-o com deli­cadeza sob o queixo.

— Não quero que apanhe um resfriado — declarou.

— Sou forte.

Ele ficou parado, fitando-a nos olhos.

— Sim, é muito forte, querida — murmurou.

Fascinada pelas sombras nos olhos dele, Chi­na estremeceu. Então, o momento passou. Ben segurou-lhe um dos braços e conduziu-a pela porta dos fundos. O vento havia cessado. Agora, o ar estava muito frio, mas quase parado. Quan­do saíram, as tábuas do assoalho da varanda rangeram sob seus pés. China respirou fundo e olhou para o céu. Apenas algumas estrelas brilhavam na escuridão, o que indicava que a tempestade prevista estava chegando.

— Está bem aquecida? — Ben indagou. Ela assentiu, mas lembrou-se de que estava escuro e, então, acrescentou um "sim".

— É melhor segurar minha mão — ele su­geriu.

— O terreno é bastante irregular, e a última coisa que quero é ver você cair.

China obedeceu sem pensar nas conseqüên­cias, mas assim que suas mãos se tocaram o clima entre os dois mudou.

— Não vamos nos demorar — Ben repetiu.

— Quando você estiver se sentindo mais fortalecida, poderemos fazer caminhadas mais longas. Por hoje, creio que uma ida ao estábulo será o bastante.

O silêncio que se fez entre eles era estranhamente confortável. Enquanto caminhavam, Chi­na deu-se conta de uma grande sombra escura, que se erguia mais adiante. Certamente, era o estábulo. Ao se aproximarem, ouviram um ca­valo relinchar. Ela se sobressaltou.

— Calma! É Cowboy — Ben informou-a.

— É o meu cavalo. Tem vinte anos de idade e nunca viveu em outro lugar que não fosse este sítio.

China foi tomada por um sentimento de in­justiça. Era estranho que ela não tivesse onde morar, quando o cavalo de Ben tinha seu lu­gar. Tratou de afastar a autopiedade e for­çou-se a sorrir.

— Podemos vê-lo? — perguntou.

— Sem dúvida. Ele sabe que estamos nos aproximando. Se não aparecermos para agra­dá-lo, ficará infeliz por uma semana.

— Ah, mas não trouxemos nada para dar a ele!

— Tenho alguns torrões de açúcar em meu bolso — Ben informou-a.

— Apanhei-os en­quanto você foi buscar o seu casaco.

— Nunca cheguei perto de um cavalo — ela confessou.

Ben parou, fingindo-se surpreso.

— Há quanto tempo vive no Texas, moça?

— Quase vinte anos.

— Alguém cometeu uma falha grave em sua educação, querida. Deixe-me corrigir o erro.

China sorria, quando entraram no estábulo. Embora a construção fosse aberta dos dois la­dos, havia um senso de calor e abrigo lá den­tro. Ela retirou o capuz, ao mesmo tempo em que Ben acendia as luzes. No mesmo instante, um grande alazão, com uma mancha branca no focinho, esticou o pescoço para fora de sua baia. Ben riu.

— Sim, estou vendo você, companheiro. Vie­mos o mais depressa que pudemos.

China mal cabia em si de entusiasmo. Antes que Ben pudesse impedi-la, adiantou-se para o animal. Ben abriu a boca para dizer-lhe que tivesse cuidado, pois Cowboy não gostava de desconhecidos. Porém, algo no silêncio do ani­mal, bem como no de China, lhe disseram que, dessa vez, seria diferente. Ele parou e respirou fundo, saboreando o raro momento de comu­nicação profunda entre os dois.

China estava fascinada. Os olhos castanho-escuros de Cowboy estavam fixos em seu rosto, enquanto suas narinas se dilatavam ligeira­mente, à medida que ele fazia o reconheci­mento do seu cheiro. Então, ele abanou a ca­beça, como se estivesse lhe dizendo olá. China olhou para Ben, à espera de aprovação. Como ele assentisse, ela estendeu a mão. Os lábios macios e aveludados do animal tocaram sua palma, à procura do esperado presente. Ben estendeu um torrão de açúcar para ela, que apresentou-o ao cavalo, sem demora.

Quando Cowboy retirou o torrão de sua mão, sem tocar-lhe a pele, China suspirou maravilhada.

— O focinho dele... é tão macio — ela sussurrou.

— Ele gostou de você — Ben declarou.

— Verdade? — ela indagou em tom infantil.

— Sim. Ele não deixa qualquer um aproximar-se tanto.

— Temos mais açúcar?

Ben entregou-lhe tudo o que levara consigo, observando seu cavalo comer, dócil, na mão dela.

— Agora acabou — China murmurou, quan­do Cowboy comeu o último torrão.

Como se houvesse compreendido as pala­vras, ele balançou a cabeça e surpreendeu-a ao esfregar o focinho em seu rosto e, depois, em seus cabelos.

China emitiu um som que, aos ouvidos de Ben, pareceu sinal de medo, e ele se apressou em se colocar entre os dois.

— Não! — ela pediu.

— Ele não está me ma­chucando. Está me fazendo um carinho, não está?

Ben sentiu um aperto no peito.

— Não posso culpá-lo. É muito fácil amar você. — China virou-se, os olhos arregalados em ex­pressão incrédula.

— Está querendo dizer que sou uma presa fácil, não é? Afinal, veja o que deixei Tommy Fairheart fazer comigo.

— Não, não foi o que eu quis dizer. E não ponha palavras em minha boca. Você não dei­xou aquele patife fazer qualquer coisa com você, querida. Foi uma vítima dele. Ele é um trapaceiro. Procura por mulheres inocentes e sozinhas para seduzi-las. Então, tira delas o que for possível e as abandona. — Ben apro­ximou-se dela, ao mesmo tempo que sua voz se tornava mais suave.

— Não é um erro bus­car a felicidade. Não é um crime apaixonar-se, e eu sinto muito se ele a magoou. Sinto muito mais do que pode imaginar.

China lançou-lhe um olhar rápido, antes de desviar os olhos novamente.

— Talvez seja verdade, mas isso não me faz sentir menos estúpida.

— Ainda o ama?

— De jeito nenhum! Essa parte do nosso re­lacionamento havia terminado meses antes. Muito antes de ele roubar meu dinheiro e desaparecer. Eu simplesmente não sabia como me separar do homem que era o pai de meu bebê.

Ben não poderia negar o alívio que sentiu. Ao menos não teria de lutar contra isso, tam­bém. Pois ele lutaria, já decidira que ela valia qualquer sacrifício.

— Isso é bom — ele murmurou.

— Torna meu trabalho muito mais fácil.

— O que meu ódio por Tommy Fairheart tem a ver com a sua necessidade de me proteger?

Ben aproximou-se mais um pouco.

— Não era a esse trabalho que eu me referia — sussurrou, segurando o rosto dela entre as mãos.

— Estou me referindo ao trabalho de ensiná-la a confiar em mim. Sem confiança, não existe amor. E, querida, quero que você me ame, mais do que já quis qualquer outra coisa em minha vida.

Os olhos de China se arregalaram ainda mais, e seus lábios se entreabriram em surpresa.

Era o que Ben esperava que acontecesse. Ele abaixou a cabeça e beijou-a nos lábios. Sentiu a cabeça dela tombar para trás e aper­tou-a contra si. Sentiu, também, a reação de choque, antes que os lábios dela tremessem de encontro aos seus. Ah, como ela era doce... e assustada. Ao ouvi-la gemer baixinho, Ben afastou-se de pronto.

— Não tenha medo — implorou.

— De mim, não. Eu jamais faria qualquer coisa para ma­goá-la. — Roçou de leve os lábios no pescoço dela.

— Jamais.

Ela ergueu os olhos para fitá-lo e se deparou com a ternura que já esperava encontrar. Também viu uma paixão que não sabia como enfrentar. Suas mãos tremiam quando ela as ergueu para tocar os próprios lábios. Sentiu-se marcada e perguntou-se se a marca dos lábios dele poderiam ser vistas por outras pessoas.

Ben temeu haver estragado tudo, por ter se apressado demais. Onde estava com a cabeça, afinal?

— China, querida...

Ela sacudiu a cabeça, como se tentasse des­pertar de um sonho.

— Jamais? — ela perguntou. Ele suspirou, aflito.

— Jamais, meu amor.

— Promete? Ele assentiu.

— Alguma vez quebrei uma promessa que fiz a você?

— Ainda não.

Naquele momento Ben poderia ter matado Fairheart com as próprias mãos, se tivesse a chance. Teve de se esforçar para conter a raiva que o invadiu, mas não conseguiu evitar que sua voz traísse seus sentimentos.

— China, não me faça pagar pelos erros de outra pessoa.

— Eu...

— Já é tarde. E melhor voltarmos para casa. Amanhã será outro dia.

Caminharam de volta para casa em silêncio. Quando entraram, Ben trancou a porta atrás de si. China observou-o, perguntando-se se te­ria estragado tudo o que poderia existir entre eles. Então, decidiu que sua imaginação estava lhe pregando uma peça, pois não havia nada a ser estragado. Ben a beijara. Só isso.

Não havia necessidade de criar expectativas com relação a um futuro que jamais poderia existir.

— Dê-me seu casaco — ele disse.

— Vou guardá-lo.

Ela obedeceu, mas ficou onde estava, pois não se sentia disposta a terminar a noite assim.

— Obrigada pelo passeio... e por Cowboy... e... — Incapaz de falar do que havia acontecido, encerrou seu agradecimento com um ges­to dos ombros.

O que ainda restava da raiva de Ben se dissipou, quando ele reconheceu o pânico no rosto dela. Sua voz se tomou gentil e seu sor­riso foi repleto de perdão.

— De nada — murmurou.

China já deixava a cozinha quando Ben chamou-a.

— China?

Ela virou sem se dar conta da ansiedade em sua voz.

— Sim?

— Precisa de ajuda para se despir?

— Não, não. Posso me arranjar sozinha.

Ele enfiou as mãos nos bolsos e assentiu.

Quando ela começou a se afastar novamen­te, Ben voltou a chamá-la, pois não era fácil deixá-la partir.

— Sim? — ela se virou, mais uma vez.

— Durma bem... e não deixe a cuca te pegar.

A tensão se desfez lentamente no semblante dela, dando lugar a um sorriso lento e tímido.

— Obrigada. Você também — ela murmurou, antes de deixá-lo sozinho na cozinha.

Não se atreveu a olhar para trás, pois teve medo de constatar que o desejo ainda ardia nos olhos dele.

Muito depois de a casa haver mergulhado no silêncio, e de todos terem ido dormir, China continuava sentada na cadeira junto da janela, fitando a escuridão lá fora. Sua mente não se cansava de repassar cada momento, desde que Ben amarrara o capuz sob seu queixo até o instante em que ele lhe desejara boa noite. Ela também se lembrou várias vezes da sen­sação provocada pelo focinho de Cowboy na palma de sua mão, assim como dos lábios de Ben colados aos seus. Um a entusiasmara, o outro fizera seus joelhos tremerem. O que fa­zer agora? Não podia apaixonar-se. Já corria riscos demais, sem permitir que outro homem tomasse conta de seu coração.

Então, lembrou-se de que Ben jamais a ma­goaria. Ele não era esse tipo de homem. Era um homem que cumpria suas promessas. Tudo o que ela teria de fazer seria aprender a acreditar em si mesma, da mesma forma que acreditava nele.

A mulher abriu o guarda-roupa, a fim de apanhar uma camisola. Deixou que seus dedos acariciassem cetins e sedas, antes de se deci­dir pelo chiffon vermelho. Vestiu-a devagar suspirando de prazer ao sentir o tecido deslizar suavemente pelo seu corpo esbelto. Era um mo­delo solto, desde o decote, uma peça diáfana, que esvoaçava quando ela caminhava. Calçou um par de chinelos vermelhos e, então, vestiu o robe que fazia conjunto com a camisola, amarrando-o sob os seios com um laço perfeito.

Ao passar pelo aparelho de som, ligou-o. No mesmo instante, os acordes pulsantes do rock reverberaram por sua pele. Ela estremeceu a medida que a sensação penetrava seu corpo, até os ossos. Dançando até a penteadeira, com passos longos e sensuais, parou diante do es­pelho, examinado o próprio reflexo com ar crí­tico. Então, apanhou a peruca. Com mãos experientes, colocou-a na cabeça e ajeitou-a em torno das orelhas. O novo corte de cabelo fazia com que ficasse ligeiramente frouxa, e ela pu­xou com força, até sentir a firmeza da posição. Dessa vez, quando voltou a encarar o espelho, gostou do que viu. O problema era que nin­guém a veria assim. Seria perigoso demais continuar com aquele jogo.

Ela franziu o cenho. A música continuava a tocar, mas ela se descobriu incapaz de reagir como normalmente fazia. Só conseguia pensar na mulher retratada na primeira página do Dallas Morning News. Como haviam conse­guido aquele retrato? Ela poderia jurar que não havia viva alma que vira seu rosto. Fora tão cuidadosa, nunca deixando uma testemu­nha para contar sobre seus joguinhos.

Um arrepio percorreu-lhe a espinha, quando ela se lembrou de Chaz Finelli surgindo do nada, e dos flashes da câmera, quando ele a apanhara em seu disfarce. Felizmente, ela carregava sua arma na bolsa. Dera fim a Finelli, bem como à câmera. A polícia jamais a encontraria. Depois de retirar o filme, ela o queimara. Então, atirara a câmera em uma lixeira, do outro lado da ci­dade. Fora uma pena ter de matar aquela mu­lher... a que carregava um bebê no ventre.

Ela deu de ombros. A lei da sobrevivência favorecia os mais fortes. Ela havia se esfor­çado demais para chegar onde estava para jogar tudo fora em nome do sentimentalismo.

Subitamente furiosa, ela foi até o aparelho de som e desligou-o. Então, começou a tirar a roupa e atirá-la para todos os lados. Quando terminou, a mulher no espelho já não era re­conhecível. Ela lavou o rosto até não restar o menor sinal de maquiagem, vestiu a roupa que usara para ir até o chalé, apagou as luzes e saiu. Dentro de uma semana, depois das comemorações do Ano Novo, ela daria início a uma discreta investigação. Tinha dinheiro, poder e amigos de posição. De alguma manei­ra, descobriria como a polícia conseguira aque­le retrato falado. Havia muita coisa em jogo para correr o risco de ser descoberta.

O dia de Natal amanheceu com céu encoberto e cinzento. China puxou as cobertas até o nariz, relutando em se levantar. Esse dia não significava muito para ela, desde a morte de sua mãe, mas ela havia sonhado com os Natais que teria junto de sua filhinha. Compraria brinquedos, lindos vestidos e laços para enfeitar os cabelos da menina. Porém, o sonho se fora, como tudo o mais que ela tanto almejara.

Ouviu uma batida na porta.

— China, já se levantou?

— Não — ela respondeu. Ben abriu a porta.

— Mas está acordada.

— Agora estou.

— Bom. Quero lhe dar o seu presente.

— Ora, mas não comprei nada para você — ela protestou.

— É claro que não. Está se escondendo, lembra-se?

— O que me torna isenta de dar presentes? Ele afagou os cabelos dela e sentou-se na beirada da cama.

— No momento, sim.

Colocou uma caixinha sobre as cobertas.

— Isso não me parece certo — ela disse, embora começasse a se sentar, curiosa.

— Abra — Ben encorajou-a.

— Por favor.

China desfez o laço e retirou o papel. Se­gundos depois, abriu a caixinha e retirou a pequena estatueta.

— Ah, Ben... — murmurou com olhos cheios de lágrimas.

— Eu sei, mas quando o vi, sabia que tinha de ser seu.

— E perfeito. Embora me deixe triste, tam­bém me faz lembrar de onde ela está.

Ben suspirou, aliviado. Fora exatamente àquela idéia que o fizera comprar a estatueta.

China ergueu os braços e passou-os em torno do pescoço dele.

— Obrigada.

— De nada — ele sussurrou, antes de rou­bar-lhe um beijo de Natal.

— Mamãe está as­sando biscoitos. Está se sentindo disposta para se levantar e comer?

— Eu não perderia os biscoitos de Mattie por nada! Dê-me alguns minutos para me vestir.

— Se precisar de ajuda, basta chamar. Ela assentiu. Depois de oferecer-lhe uma piscadela, Ben saiu do quarto, deixando-a sozinha com seu presente. O anjo de por­celana era perfeito em seus detalhes, até as pregas da túnica cor-de-rosa, mas era o bebê que ele carregava que partiu o coração de China.

Ela voltou a apanhá-lo, erguendo-o à luz que vinha da janela. A tristeza tomou conta dela quando leu a pequena inscrição feita na base da estatueta.

Alguém para cuidar de mim.

China deu-se conta, enquanto estudava o presente, de que ele também poderia simbo­lizar seu relacionamento com Ben. De certa forma, ela era o bebê, indefeso para enfrentar tudo o que tinha diante de si, no momento. Ele era o anjo, mantendo-a segura, perto de seu coração. Ben empenhara a própria vida para proteger a dela.

Ao longo do dia, ela manteve aquela idéia bem junto de seu coração.

Ben deixou de lado a pasta na qual estivera trabalhando e reclinou-se na cadeira, obser­vando o parceiro sentado à mesa do outro lado da sala.

— Ei, Red, vai sair com Rita esta noite? Red ergueu os olhos e franziu o cenho.

— Não. Por quê?

— É noite de Ano Novo, pelo amor de Deus! Há esta hora, amanhã, estaremos em outro ano. Acho que isso é motivo para comemoração.

Red pareceu aflito.

— Ela não disse nada. — Ben revirou os olhos.

— E precisa dizer?

— Acha que eu deveria planejar alguma coi­sa? — Red perguntou ansioso.

Ben sorriu.

— Se fosse você, eu faria isso.

Red cruzou os braços e inclinou-se sobre a mesa.

— E então, Don Juan, se está tão afiado, o que planejou para você e sua bonequinha chinesa?

O sorriso morreu nos lábios de Ben.

— Nosso caso é diferente. Ela acabou de sair do hospital, e não estamos namorando. E, mesmo que estivéssemos não podería­mos sair. Ela tem de se manter escondida, lembra-se?

— Tem razão. Mesmo assim, você poderia fazer alguma coisa. Afinal, ela teve um mês difícil.

Voltaram ao trabalho, mas a semente fora plantada na mente de Ben. Pouco depois, ele ligou para casa. Sua mãe atendeu.

— Mamãe, sou eu. Só queria saber como vocês estão.

— Estamos bem. China está dormindo, e eu estou pensando em fazer o mesmo. Dave foi até o estábulo, à procura das ferramen­tas necessárias para consertar uma cerca quebrada.

— Diga a ele para procurar na última porta, à direita.

— Está bem. Vai chegar tarde hoje?

— Não, e é por isso que estou ligando. Já começou a preparar o jantar?

— Ainda não. Não sei por que, mas não consegui entrar nesse espírito. Pensarei em alguma coisa, até a hora do jantar.

— O que acha de eu levar comida chinesa?

— Afinal, é noite de Ano Novo. Achei que de­veríamos comemorar. Diga a Dave que ele está convidado.

Mattie ficou em silêncio.

— O que foi?

— Bem, Dave me convidou para jantar fora hoje. Disse a ele que pensaria no assunto.

Ben sentiu o pulso acelerar. Uma noite in­teira sozinho com China... Ora, o que mais ele poderia querer?

— Ora, mamãe, vá com ele. Não precisamos de babá. Levarei comida chinesa para China e eu. Você e Dave tratem de aproveitar a noite da melhor maneira.

— Ele disse que haverá um baile na pousada Elks, embora eu esteja pensando em recusar o convite, pois não tenho roupa adequada para a ocasião.

— Mamãe, pela última vez, aceite o convite de Dave. Se não quer fazer isso por si mesma, faça por mim. Sei que fica muito sozinha, vi­vendo no sítio. Nada me faria mais feliz do que saber que você tem alguém para alegrar sua vida.

Ben percebeu que Mattie estava embara­çada, mas, para seu alívio, ela finalmente concordou.

— Então, está tudo acertado — ele disse.

— Conte a China o que decidimos, quando ela acordar. E se ela não gosta de comida chinesa, é melhor alguém me telefonar antes que eu saia do trabalho. Assim, poderei comprar outra coisa.

— Está bem, filho — Mattie disse.

— E obrigada.

— Não, mamãe. Sou eu quem tem de agra­decer por você estar convivendo com tudo isso.

— Você já fez isso. E, se vamos ser honestos, devo admitir que estou gostando da confusão de ter alguém em minha casa.

— China está se abrindo com você?

— Não sobre questões pessoais, mas esta­mos nos dando muito bem. Há apenas uma coisa que me incomoda.

— O que é?

Mattie hesitou, mas acabou falando.

— Você sabia que ela se considera feia?

Ben franziu o cenho, lembrando-se do dia em que China admitira que o padrasto, Clyde, costumava dizer que ela era feia.

— Sim. É difícil acreditar, não?

— Ela é simplesmente linda! Aqueles cabe­los pretos, os olhos grandes e azuis... Não con­sigo imaginar o que pode ter acontecido no passado dela para fazê-la pensar assim.

— Seja paciente com ela, mamãe. — Mattie riu.

— E você quem abusa da minha paciência. Às vezes, chego a me esquecer de que ela está aqui.

Ben sorriu.

— Bem, eu faço o que posso. — Mattie soltou uma gargalhada.

— Venha para casa são e salvo.

— Sim, senhora. Estarei aí por volta de seis e meia.

 

Mattie estava se comportando como uma adolescente, atirando um traje após o outro pelo quarto, enquanto tentava encontrar algo para usar no jantar com Dave. Havia arrastado China para seu quarto, sob o pretexto de querer ouvir a opi­nião dela, mas a verdade era que se sentia culpada por ter aceitado o convite para sair, e precisava ter alguém com quem conversar, para manter sua mente distraída do que ela estava prestes a fazer. Ao longo de todos aqueles anos, o sentimento de culpa por ter feito amor com Dave, apenas uma semana depois da morte de seu marido, havia pesado em sua consciência. Racionalmente, ela sabia que isso acontecera por causa de uma necessidade de alívio emocional, uma afirmação de que ela continuava viva, apesar de o marido ter morrido. E, em vez de aceitar a fraqueza pelo que era, havia culpado a si mesma e Dave por algo que não passara de um ato de puro desespero.

— O que acha deste? — Mattie perguntou, erguendo um vestido azul-marinho.

China franziu o cenho,

— Sério demais, Gosto mais do rosa queimado.

Mattie gemeu.

— Não consigo me decidir.

China sorriu.

— Isso é óbvio há mais de quinze minutos. Posso fazer uma sugestão?

— Ah, sim, por favor! — Mattie implorou, erguendo as mãos para o alto.

— Vá tomar banho e arrumar os cabelos. Deixe-me escolher a roupa que vai vestir. Quando terminar, venha e vista o traje que eu tiver deixado sobre a cama. Vai vesti-lo sem criar mais confusão e, então, vai sair e se divertir.

— Ah, não! — Mattie gemeu.

— Meus ca­belos! Eu havia me esquecido. Como vou ar­rumar meus cabelos?

China levantou-se da cadeira e empurrou Mattie para o banheiro.

— Vá — insistiu.

— Está me deixando ner­vosa. Arrume os cabelos como de costume. Faça de conta que vai à igreja, ou algo parecido. Sua aparência não fará a menor diferença para Dave, e você sabe disso. Ele ficaria feliz, mesmo que você fosse exatamente como está agora.

Mattie baixou os olhos para a calça jeans amarrotada e o blusão de moletom, no mesmo estado, e suspirou.

— Você tem razão — admitiu, por fim. Então, começou a se encaminhar para o ba­nheiro, mas parou.

— China, querida...

— Sim?

— Obrigada.

China sorriu.

— Foi um prazer.

Apesar da resposta, Mattie hesitou.

— Sabe, quando eu era jovem, sempre pla­nejei ter uma família grande, com três filhos, ou mais. Quando perdi meu bebê, perdi meu sonho também. Adotar Ben foi a melhor coisa que fizemos em nossa vida, mas quando olho para trás, lamento não ter adotado uma dúzia de crianças. Eu sempre quis ter uma filha. Alguém como você seria perfeito.

Abraçou China rapidamente e, então, fugiu para o banheiro, deixando a mais nova sem palavras.

Alguém como eu? Aproximou-se do espelho. A mulher que a encarava tinha olhos enormes e era magra demais. E, quando pensava na aparência de seu corpo sem as roupas, seu estômago revirava. Ninguém haveria de que­rer alguém como eu.

No entanto, enquanto ela se movimentava pelo quarto, apanhando as roupas que Mattie espalhara, as palavras doces do elogio conti­nuaram a ecoar em sua mente. Embora não acreditasse nelas, fora bom ouvi-las.

Quando Mattie voltou do banheiro, meia hora depois, com rolos térmicos nos cabelos e um roupão enorme, China se fora e o quarto encontrava-se na mais perfeita ordem. Um traje completo estava estendido sobre a cama, e o par de sapatos que combinavam, no chão.

Mattie suspirou. Aquele era o traje mais ousado que ela possuía. Tratava-se de um terninho de veludo preto, com um decote mais que audacioso. Os sapatos eram dourados, mas de saltos quase totalmente baixos, o que os tornava perfeitos para dançar. Até mesmo a pequena bolsa preta sobre a cama era do tamanho exato para levar o estojo de pó compacto, um batom e alguns dólares, para emergências.

Com o coração disparado de ansiedade, ela começou a se vestir. Quando se viu pronta, porém, a ansiedade havia se transformado em entusiasmo. Mirou-se no espelho e, então, fez uma pirueta rápida. Decidiu que, para uma mulher beirando os sessenta anos, estava em excelente forma. Ouviu o som de um carro se aproximando e consultou o relógio. Provavel­mente era Ben. O plano seria sair com Dave, ir até a casa dele, onde ele trocaria de roupas. A noite começaria a partir dali. Mattie apa­nhou a bolsa, lançou um último olhar para o espelho e abriu a porta.

Ao passar pelo quarto de China, percebeu que a porta estava apenas encostada. Como quisesse agradecer a China mais uma vez, es­piou pela fresta. China estava sentada na cadeira junto à janela, as mãos cruzadas sobre as coxas. Quando Mattie começou a falar, ela virou, e só então a mais velha notou as lágri­mas que banhavam suas faces.

— Ah, querida — Mattie murmurou, correndo para ela.

— Posso ajudar em alguma coisa?

— Não. Você está linda.

— Acontece que, agora, isso tudo me parece errado. Estou saindo para uma festa, enquanto você...

— Não estou chorando por mim, mas por você e Dave e todos os anos perdidos.

— Está bem — Mattie aceitou a explicação e então, abriu os braços.

— O que acha?

China sorriu.

— Parece uma mulher apaixonada. Mattie mostrou-se surpresa.

— Não quero parecer tão bem — disse.

— Ao menos, não agora.

— O tempo é precioso. Permita-se ser feliz.

— Voltarei tarde, mas prometo não fazer barulho — Mattie garantiu.

— Amanhã será o dia de folga de Ben e, por isso, todos nós poderemos dormir até mais tarde.

— Cuide-se, querida. Tanto por mim, quanto por si mesma.

— Farei isso — China replicou, emocionada pela demonstração de preocupação da outra.

Mattie deu-lhe um beijo de despedida e, antes de sair do quarto, voltou a acenar.

O quarto pareceu muito vazio depois que ela se foi. China voltou a ocupar seu posto à janela, embora já estivesse escuro lá fora e não houvesse nada para ser visto, exceto pelo brilho ocasional dos faróis de algum carro que passava na estrada além do sítio. O súbito uivo de um coiote provocou-lhe um arrepio na espinha, e ela teve de se forçar a permanecer sentada, apesar da imagem assombrosa que ela não conseguia esquecer. Sua filha, uma criança que jamais conhecera a doçura de viver, jazia sozinha na escuridão, fechada em uma caixa, enterrada fundo no chão. Em seu coração, China sabia que o bebê estava com Deus, mas simplesmente não conseguia livrar-se daquela dor. Talvez, se houvesse tido a chance de dizer adeus...

Ainda sentada junto à janela, ouviu o som de risos na sala e, pouco depois, um carro partindo. Certamente, Mattie e Dave estavam saindo. Chi­na lutou consigo mesma, tentando sair da de­pressão. Ben iria à sua procura a qualquer momento, e ela não queria que ele a visse chorando.

Levantou-se da cadeira e foi lavar o rosto. Então, pensou em escovar os cabelos, mas o esforço ainda era doloroso demais. Por isso, desistiu da idéia. Quando saía do banheiro, deu-se conta de que ela e Ben estavam sozinhos. Estremeceu. Não haveria como negar o fato de que se sentia atraída por ele e, por melhor que ele fosse, ela tinha medo de confiar na própria capacidade de julgamento. Então, ouviu-o chamá-la.

— China? Onde você está?

Ela ergueu a cabeça e saiu do quarto.

— Estou aqui — respondeu. Encontraram-se na porta da cozinha.

— Espere — ele disse.

— Feche os olhos.

— Por quê?

— Tenho uma surpresa.

China sorriu.

— Outra?

— Sim, outra. Agora, feche os olhos e dê-me sua mão.

Ela obedeceu, deixando que ele a conduzisse para a cozinha.

— Muito bem — Ben murmurou.

— Pode abrir os olhos agora.

Ela sentiu o cheiro antes de ver a comida, mas sua alegria foi genuína.

— Ah, Ben, comida chinesa! Eu adoro!

— Ótimo. Eu não sabia do que você gostava e, por isso, trouxe um pouquinho de tudo.

China sorriu ao ver as caixas.

— Não duvido. Quantas caixas trouxe?

— Não contei, mas acho que são treze ou catorze, incluindo a dos biscoitos da sorte.

— Ah, os meus favoritos! Deixe-me vê-los.

— Não é justo. Devem ser comidos por úl­timo. Agora sente-se. Hoje, quem serve sou eu.

China sentou-se e, enquanto observava Ben mexer nas caixas com tamanho prazer, seu estado de espírito foi se alterando. A depressão foi dando lugar a breves momentos de paz. O que já era muito.

— Bem, terá de comer com palitos — Ben anunciou.

— Não sei usá-los.

Ele sorriu.

— Nem eu, mas amanhã um novo ano terá começado, e devemos ter aprendido ao menos uma coisa nova, não acha?

— A idéia é ótima, mas comer com palitos? Não acha que deveríamos pensar em algo mais grandioso?

— Depois do dia que tive, este é o maior desafio que posso enfrentar.

China tentou apanhar um bocado de comida com os palitos. Ao ver os pedaços caírem de volta no prato, franziu o cenho.

— Agora estou entendendo o que você quer dizer — resmungou.

— Quer um garfo?

— Não. Sou perfeitamente capaz de manejar estas coisas.

Com essas palavras, China entregou-se à tarefa.

Ben observou-a por um minuto, admirando lhe a concentração. Quando, de repente, ela emitiu um grito de puro prazer, por ter finalmente conseguido colocar um pedaço de camarão frito na boca, ele se sentiu um pouco mais apaixonado. A refeição prosseguiu nesse clima, com muitas risadas e brincadeiras, e ocasionais grãos de arroz espalhados pela mesa e pelo chão. Foi somente quando China abriu seu biscoito da sorte que a noite mudou.

Ela estava sorrindo ao partir o biscoito em dois. Quando retirou o papel, agitou-o diante do nariz de Ben com ares de provocação.

— O meu será melhor que o seu — declarou. Ben sorriu.

— Veremos. Então, partiu seu biscoito e começou a ler.

— Você vai jantar com a mulher dos seus sonhos.

— Não é o que está escrito — ela protestou.

— É sim. Veja. Leia você mesma.

Ela olhou o papel e voltou a se reclinar na cadeira, incrédula.

— Você deu um jeito para que isso aconte­cesse — acusou-o.

— Não fiz nada, eu juro. Leia o seu. Se eu tivesse arranjado tudo, o seu diria: "Você vai jantar com o homem dos seus sonhos". Certo?

— Acho que sim — ela resmungou e virou o dela para ler.

Seus olhos percorreram as pequenas palavras e, no mesmo instante, China empalide­ceu. O papel caiu de suas mãos quando ela se levantou e, em silêncio, foi para o quarto. Ben abaixou-se, apanhou-o e leu.

Há uma coisa que você deixou inacabada.

Releu a mensagem, ainda incerto quanto ao que havia deixado China tão arrasada. Então foi atrás dela. Encontrou-a no quarto escuro, sentada junto à janela. Aproximou-se. O rosto de China estava escondido nas sombras, mas era fácil perceber que ela estava chorando. As lágrimas tornavam sua voz diferente.

— China, não compreendo.

— Eu sei.

— Então, fale comigo. Não posso ajudá-la a menos que saiba qual é o problema.

— Minha vida está fora de controle.

— Eu sei, mas não será sempre assim.

— Sempre cuidei de mim mesma, e estou me sentindo indefesa e inútil.

— Não, querida. Você não é inútil.

— Você não sabe. Não pode compreender, Não pertenço a lugar nenhum. Não tenho um endereço. Não tenho um emprego. Não existe uma pessoa viva que se lembre de mim. Deixei-me seduzir por um punhado de palavras bonitas. Deixei-me engravidar e, então, deixei que meu bebê morresse. E nem estava lá, quando ele foi enterrado. — China levantou-se de súbito, a voz foi se erguendo:

— Faz idéia de como me sinto?

Ben sentia a dor dela em si mesmo.

— Não, mas você pode me contar. Pode me contar qualquer coisa, pois vou compreender.

— Eu finjo que estou bem, que as coisas estão melhorando, mas preciso ver o meu bebê. Preciso ver o lugar onde ele está. Não sei como ele... como você... — Respirou fundo.

— Con­te-me o que você sabe, e confie em mim, pois o que quer que me conte não será pior do que já imaginei.

Ben sentiu medo, muito medo do que estava prestes a fazer. Mas China tinha razão. Ela, acima de qualquer outra pessoa, tinha o di­reito de saber o que acontecera à sua filha.

— Tem certeza?

Ela assentiu.

— Ela era muito, muito pequena, com pouco mais de um quilo e trezentos, eu acho. O legista disse que ela morreu instantaneamente.

— Como?

— Uma das balas ricocheteou em uma cos­tela e atingiu-a.

China gemeu.

Ben tomou-a nos braços.

— Escolhi um pequeno caixão branco, com um anjo na tampa. Nós a embrulhamos em um cobertor cor-de-rosa.

China suspirou.

— Para mantê-la aquecida — murmurou. Ben teve de se esforçar para não chorar.

— Sim, para mantê-la aquecida, bem aquecida. China encostou o rosto no peito dele e sentiu o pânico começar a ceder.

— Preciso vê-la — disse.

— Os cemitérios são trancados ao anoitecer, e levá-la até lá, à luz do dia, seria um risco grande demais, que eu não gostaria de correr.

— O risco não é seu, é meu — ela persistiu.

Ben ficou tenso. Ela não havia lhe pedido nada, até então. Mas, tinha de ser justamente aquilo? Teria ele a coragem para atendê-la?

— Por favor — China implorou. Ele suspirou.

— Os portões serão abertos ao nascer do sol. Vou levá-la, nessa hora. A maior parte dos habitantes da cidade estará dormindo, de­pois das comemorações da noite de Ano Novo.

— Obrigada — China sussurrou com sinceridade.

— E cedo demais para me agradecer — Ben protestou com voz sombria.

— Não vou ter paz, enquanto isso tudo não terminar.

Ela ergueu os olhos para fitá-lo.

— Agora você sabe como me sinto.

O relógio anunciou meia-noite, o fim de um ano e início de outro. Pouco mais de duas horas mais tarde, Dave levou Mattie para casa. Ben ouviu o carro aproximar-se e, alguns minutos depois, a porta da frente se abrir e fechar. Ouviu a mãe parar no hall de entrada, provavelmente para tirar os sapatos, pois não ouviu mais nada. Mais tarde ouviu as molas da cama rangerem, indicando que ela havia se deitado.

Levantou-se, então, caminhando descalço pela casa, verificando todas as portas e janelas pela última vez, mas sabia que nem todas as precauções que tomasse naquela casa afasta­riam o perigo de levar China à cidade. Ainda assim, não poderia recusar tal pedido. En­quanto ela não fizesse suas despedidas, não se curaria por completo.

Ao passar pelo quarto dela, notou que a porta estava entreaberta. Parou e espiou. China estava deitada de costas, com um braço para fora da cama e o outro debaixo das cobertas. Após um breve instante de hesitação, Ben aproximou-se da cama, ergueu as cobertas e acomodou o braço dela sob o calor do cobertor. Ela suspirou e começou a virar-se, mas gemeu alto em seu sono, pois a dor impedia seus mo­vimentos. Sem acordá-la, Ben pôs uma das mãos sob as costas dela e ajudou-a a virar-se. Ela se acomodou confortavelmente com mais um suspiro muito suave.

Ben endireitou-se, satisfeito por ver que estava tudo bem, e então parou junto ao pé da cama, para observá-la dormir. No escuro, ela parecia uma criança, mas ele sabia que havia uma mulher forte e resistente por bai­xo de todo aquele sofrimento. Agarrou o pé da cama com força, até seus dedos doerem. Então, na escuridão silenciosa da noite, fez uma promessa:

— Prenderei aquela mulher. Ela pagará por tudo o que você perdeu, nem que seja a última coisa que eu faça.

Então, fechou a porta e voltou para seu quarto. O sol não demoraria muito a nascer.

Os portões do cemitério Restland já esta­vam abertos quando Ben parou o carro. Exceto por alguns breves comentários, ele e Chi­na não haviam conversado a caminho da cidade. Agora, ele a fitava pelo canto do olho. Ela estava pálida e quieta demais. Porém, haviam chegado até ali, e era tarde demais para voltar atrás.

— Não estou certo de me lembrar do lugar exato — Ben informou-a.

— Talvez demore­mos alguns minutos para encontrar o túmulo.

— Lembro-me de onde mamãe foi enterrada — China disse.

— Entre pelo segundo portão e vire à direita, na terceira alameda.

Ele seguiu as instruções e, logo, sua memória começou a refrescar. Poucos minutos depois, avistou o túmulo recente e parou.

— Não podemos chegar mais perto com o carro — disse.

China olhou para a terra revolvida, lembrando-se de uma ferida aberta. Levaria tem­po para que a terra se acomodasse novamente, assim como levaria tempo para que a dor da perda se acomodasse em seu coração.

Ben saiu do carro e deu a volta, para ajudar China a sair. O ar estava frio, o céu cinzento. Ele puxou o capuz sobre a cabeça dela e entregou-lhe suas luvas.

— Use-as, querida. São grandes, mas man­terão suas mãos aquecidas.

China estendeu as mãos, como se fosse uma criança, pois sentia-se anestesiada, incapaz de fazer qualquer coisa além do que lhe fora or­denado. A maciez do couro e o calor que permanecia dentro das luvas fizeram parecer que Ben estava segurando as mãos dela. China cruzou os braços e respirou fundo. Ben segurou-lhe o braço para oferecer-lhe apoio.

— Está pronta?

Ela hesitou. Então, ergueu os olhos cheios de lágrimas.

— Preciso fazer isso sozinha.

Foi à vez de Ben hesitar, tomado por uma profunda incerteza. Porém, quando ela come­çou a se afastar, ele ficou onde estava limitando-se a observá-la.        

Para China, tudo parecia irreal. O som da grama sob seus sapatos, o grito de um falcão em algum ponto alto do céu, o cheiro familiar do ar frio, quando está frio demais, as batidas descompassadas de seu próprio coração, latejando em seus ouvidos, e o cheiro almiscarado da terra que fora recentemente revolvida.

Ela parou e fixou os olhos no túmulo. A pe­quena lápide e o nome, Bebê Brown, eram as evidências cruéis de sua perda. A criança nem sequer recebera um nome. Sem perceber o que fazia, ela pousou as mãos sobre o ventre, como fizera tantas vezes antes. Dessa vez, porém, seu ventre estava liso, e a protuberância es­tava na terra aos seus pés. Seus olhos vaga­ram até a lápide imediatamente à direita.

Clara Mae Shubert, uma boa mãe, descanse em paz.

China estremeceu. Descanse em paz. E foi naquele momento que seus olhos se abriram e ela soube o que havia deixado inacabado. Para que sua filhinha descansasse em paz, ela tinha de deixá-la em paz.

Fechou os olhos, lembrando-se do momen­to da morte dela e da viagem que haviam feito juntas. Sua filha não estava na terra. Ela já partira.

Sentindo um doloroso aperto no peito, China ergueu os olhos. Ao fazê-lo, o sol surgiu de trás das nuvens, aquecendo seu rosto como uma carícia. Ela olhou além do horizonte, para a minúscula nesga azul entre as nuvens, e livrou-se do que ainda restava de seu senti­mento de culpa. Não tivera culpa por deixar sua filha para trás. Havia uma razão para que ela fosse mandada de volta: ajudar a en­contrar a pessoa que matara seu bebê.

Virou-se, à procura do homem que a levara até lá. Ele estava parado ao lado do carro e, mesmo na distância, ela reconheceu a preocupação em seu semblante. O desespero deu lugar à lembrança do beijo que haviam partilhado.

O homem das promessas.

China começou a refazer o caminho de volta e, à medida que caminhava, viu que ele se afastava do carro e avançava para ela. Outra parte de seu desespero se dissipou. O que quer que tivesse de fazer, Ben estaria ao seu lado. Não teria de fazer nada sozinha.

Um dia levava a outro, e a outro. Ariel Simmons fazia uma excursão pelo interior, levan­do a Palavra às multidões e lutando contra a crescente depressão. Fizera o possível para se proteger do escândalo provocado pelo assassinato de Chaz Finelli, mas nada dera resul­tado. Muita gente acreditava no velho adágio que dizia que onde há fumaça há fogo, e ela estava sofrendo as conseqüências. Cartas cheias de ódio chegavam todos os dias. Tele­fonemas obscenos eram constantes. Em vez de ficar para trás, sua vergonha viajara com ela. Ariel estava perdendo peso, tomando com­primidos e rezando, como nunca fizera antes. Mas nada parecia dar resultado. Nem todas as preces do mundo poderiam livrar Ariel da culpa pelo que fizera.

Connie Marx praticamente desaparecera. Havia se tornado uma reclusa em seu apar­tamento, vivendo dos investimentos que tinha e esperando o momento certo de aparecer, en­quanto pesquisava tudo o que podia sobre Charles Finelli, bem como sobre as demais vítimas da assassina. Passava o tempo recortando notícias dos jornais e gravando toda a cobertura que a televisão dava ao caso. Quan­do a polícia desvendasse o mistério, o que ela estava certa de que acabaria acontecendo, es­taria preparada.

Mona Wakefield estava ausente da socieda­de de Dallas, preparando-se para um retomo triunfal. Havia se convencido de que o novo penteado e as novas roupas acabariam com todos os problemas de sua vida.

Bobby Lee estava de volta a Washington, circulando em meio aos nomes mais proemi­nentes do governo e deleitando-se com a glória de sua popularidade crescente. Em sua mente, o passado era passado. Havia resolvido todos os problemas pendentes e estava se concen­trando na tarefa à sua frente: a de se tomar presidente.

Mas eles não eram os únicos a desejarem deixar o passado para trás. Desde o dia em que fora ao cemitério, China havia se trans­formado em outra mulher. Seu corpo estava curado, seu coração encontrava-se a caminho da cura. As crises de depressão não haviam se repetido, e ela se tomava mais forte a cada dia que passava.

Um mês se passou, e mais um, e de repente, a primavera chegou.

— Vou até o estábulo — China anunciou, saindo pela porta, antes que alguém tivesse a chance de se oferecer para acompanhá-la.

Dave começou a segui-la, mas Mattie segu­rou-o pelo braço.

— Deixe-a ir — disse.

— Não há a menor possibilidade de alguém se aproximar desta casa sem ser notado. Qualquer um seria visto muito antes de chegar aqui. Além disso, algo me diz que o perigo já passou. Não houve mais nenhum assassinato, e já se foram meses. Pro­vavelmente, a mulher deixou o Estado há muito tempo.

— Ficarei longe — Dave disse —, mas não estou convencido de que o perigo terminou. Em minha experiência, aprendi que um as­sassino em série simplesmente não consegue parar de matar. É justamente um dos padrões que os levam a matar de novo.

Mattie franziu o cenho, observando China afastar-se.

— Passei a amar aquela moça — admitiu.

— Não suportaria se alguma coisa ruim acon­tecesse a ela.

Dave passou um braço em torno de seus ombros.

— Você não é a única a amar China. Seu filho está tão apaixonado que nem se deu conta disso.

Mattie suspirou e fitou Dave nos olhos.

— Obrigada por estar aqui — murmurou. Ele sorriu.

— Nunca pensei que ouviria você dizer essas palavras.

— Trate de encontrar algo para fazer — Mattie desconversou.

— Estou ocupada de­mais para perder tempo, brigando com você.

O som das gargalhadas dele seguiu Mattie pelo corredor.

Enquanto isso, China estava em um mundo só seu. O dia estava ensolarado, embora a brisa fosse bem fresca. Ela havia prendido os cabelos em uma trança, a fim de evitar que o vento os embaraçasse, e enchera os bolsos com os doces favoritos de Cowboy. Pela ma­nhã, vira os botões de lilases nos arbustos, no quintal de Mattie. Agora, parou ali nova­mente, tocando os botões com a ponta dos de­dos. Ao fazê-lo, viu uma pequena lagarta mar­rom subindo pela haste da flor.

O tempo parou. De repente, ela voltou a ser a garotinha de seis anos, escondendo-se de Clyde debaixo da varanda e observando a la­garta marrom percorrer o seu caminho. Na ocasião, sentira-se igual ao animalzinho. Mar­rom e feia, sem fazer nenhuma diferença para o mundo. Tentara tornar-se pequena, tam­bém, na esperança de esconder-se de Clyde. O que não acontecera.

Ainda se sentia pequena e sem valor, uma coisinha sem graça, que não fazia a menor diferença para o mundo, mas algo estava mudando dentro dela. Já não queria se esconder. Era tempo de recomeçar, e ela sentiu o co­ração bater mais forte, como se algo mara­vilhoso estivesse à sua espera, pouco adiante.

Continuou andando, ansiosa para descobrir sua nova vida.

Ao entrar no estábulo, piscou várias vezes, até que seus olhos se adaptassem à iluminação deficiente. No curral que se formava no final do corredor, estava Cowboy. China assobiou e começou a correr. Ele foi encontrá-la em um trote rápido.

— Olá, garotão — ela cumprimentou, subindo na cerca e retirando torrões de açúcar do bolso. O animal esfregou o focinho em suas mãos, e China riu.

— Dê-me um minuto! Estão bem aqui.

Ansioso, Cowboy abocanhou um torrão, e já implorava pelo segundo, antes mesmo de ter engolido o primeiro. China riu alto, observando-o comer, e quando os torrões se acabaram, ela montou no dorso do animal, sem sela ou arreios. Então esticou-se, alinhando a parte superior do corpo com o pescoço dele, Seguran­do-se com as pernas e os braços. Cowboy ficou parado ao sol, aceitando o afeto de China com a mesma disposição com que aceitara o açúcar.

— Você não passa de um grande e velho bebê — China sussurrou-lhe ao ouvido com ternura.

Uma mosca pôs-se a voar em círculos, em torno da cabeça de Cowboy, mas além de agitar a orelha de leve, ele não se moveu.

Ben encontrou-a semi-adormecida, sobre o dorso de seu cavalo, com o sol quente em suas costas. Um nó se formou em sua garganta, en­quanto ele observava os dois. Desde o início, o laço que os unira fora mágico. Era como se o velho cavalo sentisse as feridas dela, tanto fí­sicas quanto emocionais, e lhe oferecesse toda a sua devoção. China retribuíra de coração. Mes­mo sendo tímida em suas demonstrações de afe­to pelas pessoas, havia dado seu amor sem a menor hesitação ao animal velho e gentil.

Em silêncio, Ben aproximou-se do curral e subiu na cerca. Cowboy emitiu um som baixo. Ben sorriu.

— Sim, eu estou vendo, garotão. E não adianta dar desculpas, pois ela o conquistou tanto quanto conquistou a mim.

China ergueu-se ao ouvir a voz dele e sentou-se com expressão sonolenta, os cabelos sol­tos e revoltos em torno de seu rosto, os lábios curvados em um sorriso.

— Quase peguei no sono — disse.

— Percebi — Ben murmurou.

— O que não percebi foi o "quase". Agora, venha cá, querida. Não sei há quanto tempo está aí, mas está tomando sol demais.

China pôs a mão na nuca e constatou que estava mesmo quente demais.

— Nossa! Você tem razão — disse, esten­dendo os braços.

Ben retirou-a de cima do cavalo e segurou-a, até ter certeza de que ela havia encontrado seu equilíbrio sobre a cerca. Então, ela desceu sem ajuda, espalmando as mãos nas roupas, a fim de livrar-se dos pêlos e do feno.

— Chegou cedo. Ben assentiu.

— Tirei metade do dia de folga.

Só então China observou-o com atenção. Ele já havia tirado as roupas que usava para trabalhar e vestia jeans, botas e camisa de brim.

— Está doente?

— Não, apenas cansado e com saudade de você.

As palavras aqueceram o coração de China, e ela sorriu.

— Verdade?

— Sim, verdade — Ben confirmou, antes de tomá-la nos braços.

— Como está se sentindo?

— Bem.

— Sente alguma dor?

— Não, nenhuma. Estou completamente curada.

— Isso é ótimo. Então venha comigo. Tenho uma surpresa.

— Aonde vamos?

— Não muito longe.

Os olhos de China brilhavam de entusiasmo, e ela tentava adivinhar a surpresa quando Ben parou, a pouco mais de nove metros de onde haviam saído.

— É aqui? — ela indagou, olhando em volta para as baias vazias.

— Não. Vamos subir — Ben explicou, apon­tando a escada fixada na parede.

— Ao sótão?

— Exatamente. Você vai na frente. Subirei atrás, para poder segurá-la, se cair.

Se eu cair. China suspirou. Segura. Ela sempre se sentia segura ao lado daquele homem.

— O que há lá em cima? — perguntou.

— Verá quando chegarmos lá.

Reprimindo o riso infantil, ela começou a subir.

 

Quando China alcançou a abertu­ra, uma pomba levantou vôo e de­sapareceu pela janela. Ela parou, olhando em volta com ar cauteloso, examinando atenta­mente o grande espaço aberto, a fim de se certificar de que não teria mais surpresas.

— Você está bem? — Ben perguntou.

— Sim, estou apenas me certificando de que não há mais nada à minha espera — ela disse, antes de subir os últimos degraus.

Lá em cima, o calor era ainda maior. Havia um velho colchão encostado à parede, e restos de uma cortina sobre ele. Uma pilha de sacos de estopa jazia a um canto, e um par de anjinhos pendiam da parede, sobre eles. Uma chocadeira fora encostada na parede, um ver­dadeiro dinossauro, dos tempos em que os pais de Ben realmente chocavam seus pintinhos. Outras velharias, todas ligadas à história do sítio, tomavam conta do espaço. Era como en­trar no sótão da casa de alguém e examinar pedaços de sua vida.

— O que é isso? — China perguntou, quando Ben se aproximou e apanhou o objeto que ela examinava.

— E um ferro de passar. Era com ele que minha avó passava as roupas, antes que a eletricidade chegasse ao campo. Ela o aquecia no fogão a lenha e, então, passava a roupa até que ele esfriasse, quando tinha de esquentá-lo novamente. Se não me engano, havia um par de fundos extras para essa coisa. Assim, enquanto dois permaneciam no fogão, ela usava o terceiro. Então, retirava o frio e fixava o quente.

— Isso me faz pensar que, talvez, os bons tempos não tenham sido tão bons assim — China comentou, antes de virar-se, entusiasmada.

— Você disse que tinha uma surpresa?

Ben sorriu.

— Sim, bem ali. — Tomou-lhe a mão e puxou-a até um canto.

— Terá de fazer silêncio. À velha Katie não gosta muito de estranhos.

Os olhos de China arregalaram-se, apreensivos.

— A velha Katie?

— Psiu! — Ben sussurrou e apontou para um caixote de madeira.

China inclinou-se e, de início, viu apenas um amontoado de jornais e revistas. Então, parte do papel se moveu e um gato pôs a ca­beça para fora. Ben suspendeu o papel, tirando-o de cima do gato, revelando o segredo que havia ali embaixo.

— Ah, Ben...

A reverência na voz dela dizia tudo. No meio do caixote, uma gata malhada amamentava seus filhotes. Quando ela os viu, sibilou.

— Calma, garota — Ben murmurou, segu­rando a mão de China, antes que ela tocasse o animal.

— Não faça isso, querida. Ao menos enquanto ela estiver amamentando.

— Certo — China replicou obediente, re­cuando um passo, embora não conseguisse ti­rar os olhos do caixote e dos quatro gatinhos que mamavam na gata. Ficou ali, parada, por um longo momento, observando a cena com atenção. Então, anunciou:

— Precisamos dar nomes a eles, sabia? Ben sorriu.

— Sim, eu já havia pensado nisso. Por que não escolhe os nomes? A velha Katie não vai se importar.

China continuou olhando, procurando pelas diferenças em seus sinais, mas sem tocá-los parecia-lhe impossível.

— Todos se parecem com ela — disse. Ben riu alto.

— Ah, sim, Katie tem essa tendência de fa­zer todos os seus filhotes parecidos um com o outro.

Ela os estudou por mais alguns momentos e, então, sorriu.

— Já sei. Vamos chamá-los de Eeny, Meeny,

Miney e Moe — Ben riu.

— Mas qual é qual?

— Com esses nomes não fará a menor diferença.

— Vamos querida. É melhor deixarmos Ka­tie em paz, agora.

— Posso voltar? — China perguntou.

— Claro, mas não com muita freqüência, ou ela poderá ficar com medo e se mudar. Então, não saberemos onde eles estão.

— Verdade? Ela seria mesmo capaz de fazer isso?

— Sim, faz parte de seus instintos maternais. É uma maneira de proteger os filhotes.

China encolheu-se, como se houvesse rece­bido um golpe, e teve de respirar fundo para poder continuar falando.

— Compreendo o sentimento. Mantê-los em segurança é só o que importa.

Quando viu a expressão triste no rosto dela, Ben amaldiçoou-se por ter sido tão insensível. Tocou-lhe o braço e o rosto, na esperança de afastar todo aquele pesar.

— China, querida, desculpe-me. Não pensei antes de falar...

Ela colou a ponta do dedo nos lábios dele.

— Não diga nada. Não é necessário.

Ben beijou-lhe a mão. A sensação do encon­tro dos lábios dele com sua pele provocou ver­dadeiras reviravoltas no coração de China, e ela logo começou a sentir algo muito diferente de tristeza. Tentou dizer o nome dele, mas tudo o que conseguiu emitir foi um gemido.

Ben ergueu a cabeça e ficou petrificado. Rezara tanto para que aquele dia chegasse, para ver exatamente aquela expressão no rosto dela. Agora, porém, quando o momento finalmente chegara, teve medo de fazer algo errado.

Pousou a mão dela em seu peito, permitin­do-lhe sentir as batidas rápidas de seu cora­ção. China arregalou os olhos, incrédula. En­tão, tocou-a na face, roçando os lábios dela com a ponta dos dedos, para depois enroscá-los nos cabelos negros e sedosos.

Puxou-a para si e, como ela não oferecesse a menor resistência, deu mais um passo, segurando-lhe a nuca. Quando China passou os braços em torno do pescoço de Ben, ele final­mente a beijou.

Ela suspirou e colou o corpo ao dele, até sentir como se fossem um só.

— Você me deixa louco — Ben sussurrou.

— Estou perdidamente apaixonado.

China fitou-o nos olhos e, ao reconhecer o desejo que ardia dentro dele, e que ardia por ela, sentiu-se poderosa.

— Quero fazer amor com você, China. Pre­ciso ver a alegria em seu rosto, e saber que fui eu quem a fez sentir assim.

Voltou a beijá-la, e ela pensou que fosse der­reter naqueles braços fortes. De repente, deu-se conta de que Ben a tomara nos braços, tirando-a do chão, para carregá-la até onde es­tava o velho colchão, encostado na parede. Com um chute, Ben derrubou-o, para então deitar China e estender-se ao lado dela.

No mesmo instante, ela se virou de frente para ele e puxou-o para si. Fazia muito tempo, uma eternidade, que China não se sentia tão viva. Estava fora de controle, mas isso não tinha a menor importância.

Ben beijou cada centímetro de seu rosto, como se precisasse imprimir na memória o formato dos lábios dela, a textura de sua pele, assim como o pedido silencioso em seus olhos, quando ele deslizou a mão para dentro da cal­ça jeans que ela vestia.

De repente, China rolou para o outro lado e levantou-se. Suas mãos tremiam quando ela agarrou a camisa e fechou-a, escondendo até mesmo o pescoço.

— Eu sinto muito, mas não posso permitir que você veja... É horrível!

Ben levantou-se e, quando falou, o sofrimen­to em sua voz era óbvio demais para que ela pudesse ignorá-lo.

— Bastava dizer não. Eu jamais faria qual­quer coisa para magoá-la — ele murmurou, antes de começar a se afastar.

— Não, espere! — China gritou.

— Não foi nada disso. Não quero que pense que eu não... que você...

Ben virou-se, confuso e magoado.

— Diga China. O que eu fiz de errado? Ela abriu a camisa e baixou os olhos para o chão, pois não queria testemunhar a expres­são de horror no rosto dele.

— Você não fez nada errado. O problema sou eu — disse.

— As cicatrizes são muito feias... horríveis, Como posso...

Ben praguejou, e a dor transformou-se em ira.

— Acha mesmo que sou tão superficial? — ele inquiriu furioso.

— Acha que não conheço as conseqüências do que aconteceu com você?

— Não, você não é superficial. Sou eu. Eu...

— Pare com isso! — Ben resmungou, segu­rando-a pelos ombros e forçando-a a encará-lo.

— Já vi os seus ferimentos. Eu os vi na noite em que levaram você da rua para o hospital. Também os vi na UTI, quando sua barriga estava coberta por grampos. Sentei-me ao lado de sua cama e rezei para que você abrisse os olhos e falasse comigo. Nem por uma vez ocor­reu-me que o que aconteceu com você a tor­nasse menos mulher.

Horrorizada por tais revelações, China teve vontade de fugir. Não poderia continuar a en­cará-lo, sabendo que ele vira uma parte de seu corpo que nem ela mesma conseguia olhar.

— Não tente se afastar de mim — ele ad­vertiu.

— Não faça isso comigo. Pode se es­conder de si mesma China Brown, mas não vai se esconder de mim. Não tenho medo do que há por debaixo de suas roupas. Você é a única que tem problemas com as cicatrizes.

De olhos arregalados, China o viu arrancar a própria camisa com gestos violentos e ati­rá-la no chão.

— E, se é assim, acho melhor mostrar-lhe a minha de uma vez.

Com isso, Ben levantou o braço e virou-se. A cicatriz que cobria suas costelas era grande e feia.

— Carro-bomba. Meu primeiro ano na polícia. Toda vez que olho para esta cicatriz, lembro-me de como fui abençoado por continuar vivo.

China encolheu-se, como se o comentário a houvesse atingido fisicamente. Era evidente que o ferimento fora muito profundo, ou não teria deixado aquela cicatriz enorme.

— Ah... meu... Deus...

Bastou um olhar para a expressão de horror no rosto dela para saber que estava tudo ter­minado. Cansado de travar uma batalha perdida, e cansado de amar sem ser amado, Ben abaixou-se para apanhar a camisa, mas China segurou-lhe a mão.

— Você me deixa envergonhada — ela mur­murou, conduzindo a mão dele até um de seus seios.

— Por favor, ajude-me. Ensine-me a amar a mim mesma, tanto quanto amo você.

Ben foi invadido por uma felicidade intensa, como jamais sentira antes.

— Ensinar? Não posso lhe ensinar coisa al­guma. China. Tudo o que posso fazer é amar você. O resto fica por sua conta.

— Então, faça essa viagem junto comigo, Bennett.

Com essas palavras, China começou a de­sabotoar a camisa, mas Ben interrompeu-a e beijou-a. Em seguida, pediu:

— Deixe-me despi-la.

Ela deixou os braços caírem ao longo do cor­po e olhou para o chão.

— Isso não é justo — ele protestou, erguen­do-lhe o queixo.

— Se tem a coragem neces­sária para confessar o seu amor, então deve seguir adiante. Teste-me, China. Veja a ex­pressão em meu rosto e a verdade em meu coração.

E China obedeceu. Enquanto ele a despia, ela o fitava diretamente nos olhos, Quando terminou, Ben tirou a própria roupa e pos­tou-se diante dela, parecendo totalmente à vontade em sua nudez.

— A beleza está nos olhos de quem vê China Brown. Para mim, você é a mulher mais linda do mundo. Amo você a mais tempo do que imagina. Você me conduziu para dentro de seu coração. Vai me deixar seguir adiante nes­se caminho?

China estendeu a mão. Ben segurou-a, per­mitindo que ela o levasse de volta ao colchão. Então, deitaram-se lado a lado, mas ela logo puxou-o sobre si.

— Faça amor comigo, Ben.

Ele rolou, cobrindo o corpo dela com o seu, beijando-a com ardor. O tempo parou.

A gata abrigada pelo caixote acabara de amamentar os filhotes e, agora, dormia tranqüila, com todos eles aconchegados de encontro aos seus pêlos. A pomba que China assustara voava em círculos acima do estábulo, procurando por um lugar seguro onde pudesse pousar.

Cowboy cochilava à sombra de uma árvore, a um canto do curral, enquanto no sótão Ben fazia amor com a mulher de seus sonhos.

Seus corpos moviam-se no ritmo perfeito, levando-os aos picos do prazer. Teria sido impossível parar, mesmo que eles assim quises­sem. Então, deram-se conta de que aquele pra­zer não poderia durar para sempre.

A primeira foi China, que sentiu o clímax aproximar-se. Arqueou as costas, entregando-se de corpo e alma ao êxtase. Foi uma explosão tão intensa que ela pensou que fosse morrer.

A essa altura, a resistência de Ben já estava por um fio. Ao sentir China entregar-se tão completamente, cedeu ao prazer e deixou-se arrastar, juntamente com ela.

O silêncio que se seguiu foi tão poderoso quanto o ato de amor, em si. Ficaram agar­rados um ao outro, fascinados pelos sentimen­tos que haviam acabado de descobrir, até o ar frio castigar-lhes a pele. Foi com relutância que Ben se ergueu sobre um cotovelo e fitou-a.

Os cabelos negros espalhados no colchão pareciam fios de seda. Embora os olhos azuis ainda refletissem a surpresa do clímax, seu corpo estava lânguido, saciado.

— Você tira meu fôlego.

Ela o fitou, vendo o próprio rosto refletido nos olhos dele. Então, suspirou.

— Foi bom?

Ele gemeu.

— Não. "Bom" não é a palavra correta para descrever o que você fez comigo. Talvez eu nunca mais volte a andar.

— Ótimo! — China exclamou, abraçando-o.

— Assim, ao menos, sempre saberei onde encontrá-lo. Ben voltou a gemer, mas acabou caindo na risada.

— Eu te amo, China Brown. Ainda duvida de mim?

— Não.

Ele beijou-lhe o pescoço.

— Então vou lhe dar algo mais em que pen­sar, pelo resto de nossa vida.

— O quê?

— Um dia desses, quando toda essa confu­são terminar, iremos fazer compras. Compra­rei o maior diamante que encontrar. Então, você e mamãe tomarão as providências neces­sárias para o nosso casamento. Uma vez você disse que não pertencia a lugar nenhum. Bem, isso mudou meu amor. Você pertence a mim.

Fizeram amor mais uma vez no sótão do estábulo, antes de descerem. Enquanto China guardava a promessa de Ben bem junto de seu coração, uma parte dela ainda duvidava de que aquilo pudesse se realizar.

A mulher entrou no chalé, sentindo a frus­tração ameaçar sufocá-la. Tinha de encontrar uma válvula de escape para a raiva que a queimava por dentro, mas não podia mais fa­zer seus joguinhos. Fazia meses que aquele retrato falado fora publicado no Dallas Mor­ning News, mas havia muita coisa em jogo, para arriscar-se. O que lhe deixava uma única opção. Havia uma testemunha, em algum lugar. Alguém que ela ignorava, mas o tempo estava do seu lado. Tudo o que tinha de fazer era esperar. Um dia saberia quem a vira.

Uma nova pista no caso Finelli surgiu na forma de um telefonema para um jornalista do Dallas Morning News. Alguém ofereceu-lhe informações em troca de dinheiro, muito di­nheiro. O jornalista estava muito ocupado, tentando terminar um trabalho cujo prazo es­tava prestes a vencer.

— Nosso jornal não é um tablóide — disse.

— Não costumamos pagar por informações.

— Azar seu — a pessoa do outro lado de­clarou, antes de desligar.

O jornalista recolocou o fone no gancho, mas a curiosidade começara a perturbá-lo. O que aquele homem tentara lhe vender? Foi somen­te à noite, quando estava em seu apartamento, sentado diante da televisão, com uma pizza sobre as coxas e uma lata de cerveja na mão, que ele se deu conta do que, provavelmente, havia recusado.

Randy Boyle, o âncora do jornal das dez ho­ras, exibia um sorriso largo. Embora o jornalista duvidasse que o canal sete tivesse o há­bito de pagar por notícias, sabia que Boyle seria capaz de tudo. Aumentou o volume no controle remoto e bebeu mais um gole de cerveja, quando Boyle começou a falar:

— Hoje, nossa emissora foi informada de que uma das vítimas da assassina em série que assombrou Dallas está viva. Uma mu­lher grávida, que a polícia acredita ter sido apenas uma passante inocente que testemunhou o assassinato de Chaz Finelli, encon­tra-se escondida, sob proteção, esperando o momento de submeter à assassina à justiça. O bebê que ela esperava morreu, mas ela sobreviveu, graças aos esforços sem limites dos médicos e enfermeiras do hospital Parkland. A identidade dela não foi revelada por motivos óbvios.

— Diabos! — o jornalista praguejou, antes de engolir o último pedaço de sua pizza e desligar a televisão.

No sítio dos English, China estava sozinha na sala quando a notícia foi anunciada. Le­vantou-se de um pulo e gritou o nome de Ben. Ele veio correndo, seguido pela mãe.

— O que foi?

— Ouça o que estão dizendo na televisão.

Os três se sentaram, como o jornalista fize­ra, ouvindo Randy Boyle arruinar o mundo que eles haviam construído com tanto cuidado.

Antes mesmo que o noticiário terminasse, Ben estava ao telefone com seu capitão, lu­tando contra a incredulidade.

— Alguém vendeu a informação! — gritou.

— Ela poderia ficar em uma esquina com uma placa pendurada no pescoço, dizendo: "Mate-me".

— Não revelaram o nome dela — Floyd ar­gumentou, embora soubesse que isso não era tão importante.

— Diabos, capitão, se alguém sabia que existe uma testemunha, certamente sabe o nome dela também! Assim que uma quantia tenta­dora for oferecida, essa informação também será de domínio público.

— Talvez você esteja certo — Floyd admitiu —, mas está feito, e não há nada que possamos fazer a respeito, a não ser o que já estamos fazendo.

Ben não estava disposto a aceitar a situação com tamanha facilidade.

— Há algo que eu posso fazer — disse.

— Vou designar a mim mesmo para proteger nos­sa única testemunha, vinte e quatro horas por dia. E não me venha com essa história de que detetives não são guarda-costas. Diga isso ao governador, que está exigindo uma solução desse caso.

— Não me diga o que fazer — Floyd retru­cou, irritado.

— Você se deixou envolver no plano pessoal, e nós dois sabemos disso.

— Ah, sim, meu envolvimento é pessoal! Vou me casar com China Brown, mas não posso fazer isso enquanto a assassina não estiver atrás das grades. E isso nunca acontecerá se não protegermos China.

China tremia tanto que mal conseguia se manter de pé. Tinha de fugir, esconder-se, mas não tinha para onde ir, exceto para os braços de Ben.

Reconhecendo o pânico no semblante dela, ele a abraçou.

— Ou o senhor me dá autoridade para o que quero fazer, ou pode me demitir — ele disse. Floyd praguejou. Sabia que English era lou­co o suficiente para fazer o que estava dizendo. A última coisa de que o capitão precisava era perder um policial tão bom, assim como sua única testemunha.

— Está bem — replicou, por fim.

— Mas será um arranjo temporário, até conseguirmos traçar um plano melhor.

— O plano é encontrar a assassina — Ben declarou.

— Não temos alternativas.

Desligou o telefone, antes que Floyd tivesse tempo de dizer qualquer outra coisa. Então, apertou China contra si.

— Vai dar tudo certo, querida. Eu prometo. Não sairei daqui enquanto tudo não houver terminado.

Ben olhou para Mattie, que assistia a tudo com expressão horrorizada.

— Mamãe, ligue para Dave. Se ele não as­sistiu ao noticiário, conte-lhe o que aconteceu. Vamos ter de nos revezar.

— Ah, meu Deus — China balbuciou.

— Mattie, eu sinto muito. Não deveria ter vindo para cá.

— Não diga bobagens — Mattie repreendeu-a, apanhando o telefone.

— Você faz parte da nossa família, e sempre protegemos nossos entes queridos.

— Mamãe tem razão — Ben confirmou, quando Mattie saiu da sala para fazer a li­gação. Então, sentou-se no sofá, ao lado do China.

— Acho que estivemos nos enganando esse tempo todo, pensando que isso não aconteceria. Tivemos sorte por conseguir esconder, por tanto tempo, que havia uma testemunha. Afinal, de que outra maneira publicaríamos o retrato falado?

China pensou sobre o que Ben acabara de dizer e, à medida que pensava, o pânico foi se dissipando. Ele estava certo. Aquela era uma parte inevitável daquela situação horro­rosa e, talvez, fosse o momento certo. Agora, ela estava bem, muito mais forte do que jamais fora antes. Se pretendia ter uma vida normal, tinha de ajudar a encontrar a assassina.

— Tem razão — disse, surpreendendo a si mesma pelo tom calmo de sua voz.

— Foi o choque de ouvir a notícia na televisão que me assustou, mas acho que, no fundo, estou feliz. Quero que tudo isso acabe, e se for preciso me colocar como isca para o assassino, que assim seja.

Ben empalideceu.

— Não vai fazer isso! Nem pense em uma coisa dessas.

— Mas é a verdade, Ben. Será que você não vê? Ela não vai demorar para descobrir quem eu sou. Ela viu o meu rosto. Tudo o que terá de fazer será sair fazendo perguntas. É só uma questão de tempo, até que alguém some dois mais dois e se lembre da mulher vigiada por policiais, no hospital Parkland. Então vão se lembrar do detetive que quebrou todas as re­gras para estar com ela e... Bem, acho que você já entendeu.

— Meu Deus... — Ben murmurou, apertando-a contra si.

— Você está me assustando, China.

— Estou assustando a mim mesma — ela o corrigiu.

— Mas estou mais zangada do que amedrontada. Ela tirou algo de mim que jamais poderei ter de volta. Quero poder passear em um shopping center, sem medo de receber um tiro nas costas. Quero fazer compras, ir ao cinema, sentar-me no parque... Eu te amo, Ben, mas estou cansada de me esconder. Ela tirou minha vida, mas quero de volta o que me pertence.

— Você está certa, China, e entenda que estarei ao seu lado até o fim. Juro pela minha honra que vou mantê-la a salvo.

China sacudiu a cabeça.

— Não preciso de suas promessas, Ben En­glish, porque já tenho o seu amor.

Ben e China não foram os únicos a ser perturbados pelo noticiário das dez. Longe dali, no centro de Dallas, outro telespectador permanecera imóvel diante da televisão. Depois que a notícia foi dada, a pessoa apontou o controle remoto para o aparelho e desligou-o. Imagens de rostos do passado começaram a desfilar em sua mente, uma a uma.

Alguém sobreviveu. Quem? O jogo envolvia apenas um homem de cada vez e, exceto por Chaz Finelli...

A compreensão surgiu subitamente.

A mulher grávida... aquela que havia implorado pela vida! Ora, mas os jornais haviam dito que duas pessoas haviam sido assassinadas...

O bebê! Claro! Como não pensara nisso antes? Fora o bebê quem morrera não a mulher.

Miserável! Ela vira e ouvira tudo. Meu Deus, meu Deus! Ela pode pôr tudo a perder!

Connie Marx estava sentada diante do com­putador, os dedos voando sobre o teclado, en­quanto ela acrescentava aquela nova informa­ção ao arquivo que havia criado.

Uma testemunha! Durante todo aquele tem­po, a polícia tinha uma testemunha. A raiva fez seu sangue ferver. Então, por que haviam colocado seu nome na lista de suspeitos? Mal formulou a pergunta, deu ela mesma a resposta. Até poderem interrogar a vítima, só sabiam que o assassino era uma mulher. Considerando as pessoas que Connie sabia terem sido interroga­das, provavelmente, tratava-se de uma mulher alta e loira. Fora somente depois do retrato fa­lado que ela fora eliminada da lista.

Connie golpeou uma série de teclas e, quando viu a lista que desejava aparecer na tela, apertou o comando Imprimir. Assim que a impressora encerrou seu trabalho, ela foi até seu arquivo, retirou uma pasta e espalhou seu conteúdo sobre a mesa, examinando item por item. Alguma da­quelas pessoas poderia ser a assassina... Ou não.

A assassina poderia ser alguém que escapou da câmera indiscreta de Finelli. Existia a pos­sibilidade de ela não ter sido envolvida no es­quema de chantagem de Finelli. E se Finelli houvesse surgido acidentalmente na vida dela? Claro! Afinal, as outras vítimas haviam participado de atividades sexuais incomuns, antes de seus corpos serem encontrados. E tais assassinatos haviam sido cometidos em estilo de execução, enquanto o de Finelli mais parecia um ato impulsivo, provocado pela raiva. Mas o que Finelli descobrira que o resto de Dallas não sabia?

Connie abandonou a pasta e foi até a janela, deixando que seus pensamentos corressem soltos. Ah, se pudesse conversar com a teste­munha... Ben English praticamente lhe pro­metera uma exclusiva. Ele saberia quem era a tal mulher.

Estendeu a mão para apanhar o telefone, mas parou.

Não. Já havia arruinado sua vida, e nada daquilo tinha a ver com ela, fazia tempo. Ago­ra, era apenas uma observadora, esperando para contar a verdade.

 

A existência de China havia se tornado notícia. No dia seguinte, to­dos em Dallas conversavam, especulando quem poderia ser a testemunha. Boatos corriam à solta, totalmente infundados, mas po­derosos o bastante para trazer a história à tona, novamente. O retrato falado da assas­sina em série foi publicado de novo nos jornais, e exibido em todos os canais de televisão. O assunto se transformou em uma verdadeira guerra na imprensa, cada um querendo supe­rar o outro em furos de reportagem. Os salões de cabeleireiros estavam ganhando fortunas, pois mulheres que eram loiras havia anos es­tavam decidindo mudar a cor dos cabelos, por medo de serem confundidas com aquela que a polícia procurava.

Charlotte Humbolt, editora da coluna social do Dallas Morning News, examinava fotos das mulheres mais proeminentes da sociedade de Dallas quando se deparou com uma série de retratos de Mona Wakefield, tirados em um evento beneficente. Fez uma careta ao se lem­brar do escândalo que a mulher criara por ter comparecido usando um vestido totalmente transparente. A luz do sol, fora como se ela es­tivesse nua. Toby Walters, presidente do banco Lone Star, ficara tão impressionado com ela que tropeçara, caíra e quebrara uma perna.

Charlotte sorriu e colocou as fotos de lado. Quando estendia para apanhar outras fotografias, algo na foto que ficara por cima das outras chamou-lhe a atenção. Voltou a exa­miná-las e, então, apanhou uma outra, um close de Mona bebendo champanhe. Olhou para a foto por um longo momento, tentando descobrir o que a perturbara tanto. Mais uma vez, afastou o pensamento e recolocou-a na mesa. No mesmo instante, porém, deu-se con­ta do que estivera procurando.

— Acho que enlouqueci — resmungou, em­bora seu coração disparasse no peito, ao mes­mo tempo que ela varria com as mãos tudo o que havia sobre a mesa, deixando apenas a edição daquela manhã.

Colocou a foto de Mona ao lado do retrato falado da assassina e começou a sorrir. A se­melhança era inquestionável. Lembrou-se de todas às vezes em que Bobby Lee Wakefield a esnobara.

Sentou-se por um momento, avaliando se o que estava pensando em fazer seria antiético demais. Então, decidiu que a ética podia ir para o inferno, e apanhou o telefone. Mesmo acreditando que os Wakefield não tinham nada a ver com aqueles crimes, estava certa de que eles mereciam sofrer um pouco o as­sédio da polícia de Dallas.

Começou a discar, mas deu-se conta de que o telefone poderia ser rastreado. Assim, entrou no elevador para ligar de um dos telefones públicos do saguão do edifício. Centenas de pessoas entravam no prédio e saíam todos os dias. Seria impossível estabelecer uma ligação entre o telefonema e ela. E o senador Bobby Lee teria de dançar no ritmo dos policiais, uma idéia que a agradava um bocado.

— Ei, Red! Ligação para você na linha dois! — alguém gritou.

Red Fisher apanhou o telefone, na esperan­ça de que fosse Ben, para avisá-lo de que mu­dara de idéia sobre ficar no sítio, junto de China, e que estava voltando ao trabalho.

— Detetive Fisher, Homicídios.

— Compare o retrato da sua assassina com uma foto de Mona Wakefield.

Um clique, seguido pelo sinal de ocupado, zuniu no ouvido de Red.

— Alô? Alô? Quem fala? — perguntou, mas foi em vão. A pessoa, fosse quem fosse, havia desligado. Embora fosse pouco provável, eles tinham seguido todas as pistas que haviam surgido até então e, com isso, insultado algumas pes­soas bastante importantes. Já haviam irritado o prefeito. O fato de se tratar da mãe de um senador não significava que deveriam ignorar a pista. Red levantou-se e perguntou em voz bem alta:

— Alguém tem uma foto da mãe de Bobby Lee Wakefield?

Alguns comentários indecentes sobre o que seus colegas gostariam de fazer com ela en­cheram a sala, mas ninguém tinha uma foto. Red apanhou o telefone e discou o número de um amigo que trabalhava em um jornal local.

— Mike, é Red. Preciso de um favor.

— Certo, e eu preciso de mil dólares para cobrir minha conta bancária.

— Infelizmente, não posso ajudá-lo. Já lhe disse para parar de apostar em cavalos. Você é tão bom na escolha dos vencedores quanto na escolha de mulheres.

Mike riu do outro lado.

— Está bem. Qual é o favor?

— Pode me enviar uma foto de Mona Wa­kefield por fax?

— A mãe de Bobby Lee?

— Ela mesma. Por favor, mande imediata­mente, se tiver alguma.

— Ah, temos muitas — Mike replicou.

— Quando não há mais nada a dizer sobre ela, Mona apronta mais um escândalo. Não gosto muito da minha última sogra, mas agradeço a Deus por ela não se parecer em nada com Mona. Pode imaginar ter uma mãe com aquela aparência e aquele comportamento?

Red sorriu.

— Mande a foto assim que puder — limi­tou-se a dizer.

— E para já! — Mike declarou e desligou. Poucos minutos depois Red estava diante do aparelho de fax, observando a fotografia que estava sendo impressa. Quando a retirou do aparelho, ficou boquiaberto. Mona era muito, muito parecida com a mulher do retrato falado. As implicações de tal investigação eram estarrecedoras, mas se havia a menor chance...

Foi direto para a sala do capitão.

Aaron Floyd chegara ao ponto no qual não há retorno. Seu telefone não parara de to­car, desde que ele chegara ao seu escritório, pois as pessoas queriam confirmação de que realmente havia uma testemunha. Quando Red bateu em sua porta, ele se sentiu grato pela interrupção... até Red colocar a foto sobre a mesa.

— Essa é Mona Wakefield — Floyd constatou.

— Compare a foto com o retrato falado da assassina — Red instruiu.

— Você enlouqueceu? — Floyd inquiriu irritado.

— Faça o que eu disse — Red insistiu. Floyd apanhou o jornal da gaveta e abriu-o.

Antes mesmo de colocá-lo sobre a mesa, ele já estava de pé, praguejando.

— Quem descobriu isso? — indagou.

— Recebi um telefonema anônimo.

— Miserável!

— Não fique tão zangado.

— Mona foi interrogada?

— Não. Que saibamos, ela não apareceu em nenhuma fotografia de Finelli. Por isso, o nome dela nunca foi sequer cogitado. No en­tanto, se pensarmos bem, se metade das histórias que contam sobre ela são verdadeiras, é um milagre que ela não faça parte dos ar­quivos de Finelli.

— Bem, talvez ela tenha aparecido em al­guma foto. Verifique.

— Sim, senhor.

— Telefone para Ben e conte-lhe o que está acontecendo. Talvez ele queira participar des­sa parte da investigação.

Red sorriu. Aquela era a melhor notícia que ele tivera na semana.

Dave e Mattie concentravam-se em um ani­mado jogo de cartas, enquanto China fazia amizade com Katie, no sótão do estábulo, usando para isso um pedaço de presunto que sobrara do almoço. Ben estava na frente da casa, lavando seu carro. Não que o automóvel estivesse tão sujo, mas era a única coisa que ele poderia fazer sem perder de vista o está­bulo. Não queria que China se sentisse sem liberdade, mas a verdade era que, no momen­to, ela não tinha nenhuma.

Quando fechava a torneira, sua mãe cha­mou-o da porta:

— Ben! Telefone! É Red!

Ele largou a mangueira e correu para atender.

— Olá. O que há de novo?

— Recebemos um telefonema anônimo, há pouco. Pode dar em nada, como pode nos levar a alguma nova descoberta. O capitão pediu que eu telefonasse para você, pois ele acha que vai querer participar do interrogatório.

— Trata-se de uma pista quente ou é só uma maneira que ele encontrou de me fazer voltar ao trabalho?

— Trata-se de uma fotografia de Mona Wakefield. Acredite se quiser, mas ela é quase idêntica à mulher do retrato falado.

A mente de Ben girava em disparada.

— O nome dela não apareceu nos arquivos de Finelli?

— Não.

— Pensando bem, e conhecendo a reputação dela, eu diria que isso é surpreendente, não acha?

Red sorriu.

— É por isso que somos parceiros. Pensei exatamente a mesma coisa. E então? Vai me acompanhar na visita?

— Ah, sim! — Ben respondeu de pronto.

— Mas vou encontrá-lo lá. Fica no meu caminho para a cidade. Preciso de trinta minutos para chegar lá.

— Estarei esperando. Como China está en­frentando tudo isso?

— Melhor do que poderíamos esperar. Ela é forte, Red. Nunca conheci alguém tão de­terminado a fazer uma pessoa pagar pelo que fez de errado.

— Exceto você mesmo?

— Sim, acho que sim. Bem, estou a caminho. Ben já desabotoava a camisa quando desli­gou o telefone.

— O que está acontecendo? — Mattie per­guntou, quando o viu passar quase correndo na direção do quarto.

— Talvez uma mudança de rumo nas in­vestigações. Diga a China que vou...

— Estou aqui — China anunciou.

— Venha até meu quarto — ele disse.

— Explicarei o que está acontecendo enquanto trocou de roupa.

Um arrepio de ansiedade percorreu a espi­nha de China, mas ela se forçou a relaxar e seguiu-o até o quarto. Ben já estava de cueca quando ela entrou.

— É sobre mim? — perguntou.

— É sobre o caso. Um telefonema anônimo nos levou a uma nova suspeita, que não foi interrogada antes.

— Ela se parece com o retrato falado?

Ben perguntou, vestindo uma camisa limpa.

— A mãe do senador Wakefield? Sim, claro.

— Pense bem, querida. Ela se parece com a mulher que atirou em você?

O coração de China acelerou.

— Não consigo me lembrar do rosto dela com exatidão, mas lembro-me de que é alta e loira.

— Trarei uma foto quando voltar. Dave está aqui e...

— Vá — China interrompeu-o.

— Faça o que for preciso para pôr um ponto final nessa história.

Ben apanhou o paletó e tomou China nos braços. Ela colou o corpo ao dele, passou os braços em torno de sua cintura e apoiou o rosto no peito dele. Ben apertou-a contra si.

— A velha Katie deixou que você a alimentasse hoje?

Ela sorriu.

— Sim. Consegui até olhar os filhotes bem de perto, mas não os toquei, como você sugeriu.

— Assim que ela se acostumar com você e eles estiverem um pouco maiores, ela não vai se importar quando você quiser brincar com os filhotes. Agora, dê-me um pouco de açúcar, querida. Prometi encontrar Red na proprie­dade dos Wakefield.

China colocou-se na ponta dos pés para bei­já-lo. Assim que seus lábios se tocaram, foi como se uma labareda se erguesse entre eles.

— Muito bom — Ben murmurou, quando se afastou com relutância.

— Lembre-se de onde paramos, para podermos continuar mais tarde.

Ela assentiu e sorriu.

— Tenha cuidado — disse.

— Estarei bem. E não vou demorar. Prometo.

Com essas palavras, Ben partiu. China ob­servou-o sair da casa, com suas passadas largas. Então ele entrou no carro e, sem perder tempo, deu a partida e se foi, deixando uma nuvem de poeira atrás de si.

— Ele vai ter de lavar o carro outra vez — Mattie resmungou.

China virou-se. Não percebera que a mãe de Ben estava bem atrás dela.

Ao reconhecer o medo no rosto de China, Mattie abraçou-a.

— Não se preocupe com Ben. Venha comigo. Acho que Dave está roubando de novo!

— Eu ouvi isso!— Dave protestou. China suspirou e forçou um sorriso. Porém, pelo resto da tarde, seu coração estava com Ben.

Quando Ben estacionou seu carro diante da mansão Wakefield, Red já estava à sua espera.

— Chegou rápido — Red comentou, assim que Ben saiu do carro para entrar no do parceiro.

— Tive bons motivos. Agora vamos. Tenho um pressentimento sobre essa nova pista.

— Sim, camarada, acho que você continua lendo meus pensamentos.

Poucos minutos depois estavam diante da porta da mansão de três andares, ouvindo os acordes sofisticados da campainha que tocava lá dentro. Uma empregada os atendeu.

— Boa tarde senhores. Em que posso ajudá-los?

Os dois exibiram seus distintivos.

— Precisamos falar com Mona Wakefield. Ela está em casa?

— Sim, senhor, vou...

— Delia?

A empregada virou-se.

— Ah, senador Wakefield, estes dois dete­tives querem conversar com a Sra. Mona, e eu ia chamá-la...

Bobby Lee escondeu a surpresa atrás de um sorriso largo.

— Suba, por favor, e avise mamãe que temos visitas — disse.

— Enquanto isso farei o possível para ajudar os cavalheiros. — Deu um passo para o lado, abrindo mais a porta.

— Entrem, por favor.

Os dois detetives o seguiram até a bibliote­ca. Era óbvio que o senador pretendia repre­sentar seu show do "bom-garoto-americano".

— Imagino que não aceitem uma bebida — ele sugeriu.

— Não, senhor — os dois responderam ao mesmo tempo.

— Não bebemos no trabalho — Ben acrescentou e, antes que Bobby Lee tivesse a chance de reiniciar seu teatro, falou:

— Senador, nós precisamos conversar com sua mãe.

— Sim, claro. Posso perguntar qual é o mo­tivo, enquanto ela não desce?

Ben manteve-se firme em sua determinação.

— Prefiro esperar e falar diretamente com ela, senhor, se não se importar.

Bobby Lee sorriu, mas não estava exata­mente feliz. Gostava das coisas feitas ao seu modo, e esse detetive não estava cooperando.

— Sentem-se, por favor. Tentarei apressá-la — declarou, deixando-os sozinhos.

Red olhou para Ben.

— Que casa, não?

Antes que Ben pudesse responder, ouvi­ram vozes zangadas no corredor, embora não conseguissem distinguir as palavras que eram ditas. Em seguida, Mona Wakefield entrou na biblioteca, seguida de perto pelo fi­lho. Vestia um conjunto azul-claro, cuja saia cobria os joelhos. Os cabelos apresentavam uma tonalidade avermelhada e haviam sido cortados em estilo Channel, emoldurando-lhe o rosto bonito.

O ânimo de Ben se dissipou. Era como se houvesse caído em um mundo totalmente es­tranho. Aquela mulher não se parecia em nada com a foto que Mike enviara a Red. Por um momento ele foi tomado pelo pânico, perguntando-se se haviam recebido a foto errada.

— Sejam bem-vindos — Mona cumprimen­tou-os.

— Por favor, sentem-se. — Virou-se para a empregada, que havia se postado na porta.

— Delia, traga café, sim?

— Não para nós — Ben recusou.

Não queria que o interrogatório se trans­formasse em um evento social.

— Bobagem — ela protestou, fazendo um sinal para que a empregada ignorasse o detetive e a obedecesse.

— Muito bem. Em que posso ajudá-los?

Ben prosseguiu com suas perguntas, embora começasse a duvidar de seu palpite.

— Como sabe, a polícia de Dallas está in­vestigando, há algum tempo, alguns crimes cometidos por uma assassina em série. Assim, investigamos todas as pistas que nos são dadas, independente de quem esteja envolvido.

Ela sorriu.

— Sim, fiquei sabendo. Na verdade, muitos conhecidos meus foram interrogados. — En­tão, ela ergueu as sobrancelhas, parecendo maravilhada.

— Certamente não vieram aqui para me interrogar? — Olhou para o filho e soltou uma risada.

— Bobby Lee, está pre­gando uma peça em sua mãe?

Ele sorriu, mas Ben teve a nítida impressão de que o sorriso foi completamente forçado.

— Não, mamãe, não se trata de uma brin­cadeira, embora pareça.

O semblante de Mona ganhou o brilho da curiosidade e ela concentrou toda a sua aten­ção nos detetives.

— Desculpem. Só pensei que... Por favor, continue.

— Preciso saber onde estava na noite de onze de dezembro.

Ela revirou os olhos.

— Ora, meu filho, como vou me lembrar?

— Verifique sua agenda, mamãe. Se teve algum compromisso social, tenho certeza de que sua secretária anotou tudo.

— Sim, claro! Se me derem licença, voltarei em um minuto.

Mona levantou-se com a graça de uma modelo e deixou a biblioteca, plenamente consciente dos três pares de olhos que a observavam.

Assim que ela saiu, Bobby Lee atacou:

— Quero deixar claro que não me agrada nem um pouco a insinuação de que minha mãe possa estar ligada a um assassinato. Ora, ela nem sabe atirar.

— Sei, sim — Mona corrigiu-o, voltando com a agenda nas mãos.

— Seu pai ensinou-me a atirar em cascavéis, antes de você nascer. — Então, sorriu para Ben e sentou-se.

— Vivíamos em Amarillo, na época. O senhor deve saber que a região é repleta de cobras.

— Não, senhora, não sei. Mas imagino que a senhora saiba — Ben replicou.

— Quanto a onze de dezembro?

Ela folheou a agenda até chegar na data desejada.

— Eu estava em uma pequena festa de Na­tal, no clube de campo. Lembro-me de ter che­gado tarde de propósito. — Sorriu.

— Para fazer uma entrada triunfal!

— A que horas chegou e a que horas saiu da festa? — Ben inquiriu.

— O motorista me deixou lá por volta de oito e meia, e só voltei para casa depois das duas horas. Lembro-me bem, pois Bobby es­tava me esperando acordado. — Sorriu para o filho.

— Estava nevando naquela noite, não estava, Bobby Lee? Você brigou comigo por ter ficado fora até tão tarde, com o tempo tão ruim. Disse que já ia sair à minha pro­cura, quando cheguei. — Voltou a encarar os detetives.

— Ele havia vestido o casaco e calçado às galochas para procurar pela ma­mãe. Ora, esse é o tipo de filho que toda mãe gostaria de ter. Sabem o que ele me deu de presente de Natal? Uma escapada para Hollywood! Disse que eu precisava mu­dar, e tinha razão. Tomei algumas injeções de colágeno para me livrar daquelas rugas detestáveis. Usava o mesmo estilo de cabelo havia vinte anos, mas decidi mudar o corte e a cor. Eu usava cabelos compridos e loiro-platinados, lembram-se? Mas este loiro avermelhado combina muito melhor comigo, não acham?

— Mamãe! Esses cavalheiros não estão interessados em ouvir suas experiências no salão de cabeleireiros! — Bobby Lee interrompeu-a, antes de exibir um sorriso largo para os detetives.

— Desculpem rapazes, mas vocês sabem como são as mulheres quando começam a falar de penteados e maquilagem.

— Tudo bem — Ben murmurou subitamente curioso com relação à data daquela viagem.

— Quando, exatamente, esteve na Califórnia, Sra. Wakefield?

— Pouco antes do Natal, pois Bobby Lee foi passar o dia de Natal comigo, no spa.

— Muito bem — declarou Ben.

— Devo in­formá-la de que vamos verificar o seu álibi para a noite de onze de dezembro.

Mona ofendeu-se com o uso da palavra "áli­bi" e se levantou, deixando claro que sua dis­posição em falar havia chegado ao fim.

— Liguem para o clube de campo e per­guntem a Carl. Ele pode lhe dar a lista de convidados.

Naquele momento, Delia entrou na biblio­teca carregando uma bandeja de café. Mona fez um sinal para que ela se retirasse.

— Desculpe, Delia, mas o café não será necessário, afinal. Leve tudo de volta para a cozinha. — Então, virou-se com olhar ful­minante para os três homens.

— Mais alguma pergunta?

— Por enquanto, não — Ben respondeu.

— Se surgir alguma novidade, entraremos em contato.

Ben e Red só voltaram a falar quando já estavam dentro do carro.

— Muito estranho o fato de Bobby Lee que­rer, de repente, que a mãe passasse por uma grande mudança em sua aparência, não acha? — Red comentou.

Ben assentiu.

— Também estou muito interessado em sa­ber as datas exatas da publicação do retrato falado no Dallas Morning News e da viagem de Mona à Califórnia.

— Parceiro, faz idéia da confusão que vamos armar?

— Pelas expressões deles, já começamos a armar. Importa-se de redigir o relatório? Que­ro voltar para o sítio antes do anoitecer. China não tem dormido bem, ultimamente.

— Pesadelos? — Red indagou.

— Você não reagiria da mesma forma? — Red suspirou.

— Às vezes, esse trabalho me revolta. Partiram sem saber a tempestade que suas perguntas haviam provocado na mansão Wakefield. Bobby Lee forçou-se a ficar do outro lado da mesa, pois sabia que se chegasse muito perto da mãe perderia o controle e a esbofetearia.

— Não podia, simplesmente, responder às perguntas? — inquiriu aos berros.

— Tinha de falar sem parar, tagarelando como a vadia que você é?

Apanhou um peso de papel e atirou-o na parede, derrubando um quadro e espalhando cacos de vidro por todos os lados.

Mona estava arrasada. Passara a vida inteira escondendo suas origens humildes e, agora, ouvia aquela afronta do próprio filho!

— Se sou uma vadia, o que você é, então?

— Desafortunado! — ele gritou.

— Passei minha vida inteira tentando encobrir suas escapadas. Por mais que eu tentasse, você con­tinuava manchando nossa reputação, arras­tando nosso nome para o esgoto, onde você parece ficar tão à vontade.

Mona empalideceu. A dor provocada pelas palavras dele era maior do que ela podia suportar.

— Você não faz idéia dos sacrifícios que fiz por você — declarou em um fio de voz.

— A única coisa que sei é que fez tudo o que estava ao seu alcance para acabar co­nosco e me arrastar para a lama. Agora, te­mos a polícia se metendo em nossas vidas, só porque você não sabe se comportar como uma velha decente deveria. Você pôs tudo a perder... tudo! Acabo de fazer a mais curta campanha presidencial da história. Diabos, minha candidatura terminou antes mesmo de começar!

Mona ergueu a cabeça e empinou o quei­xo, mas seus olhos estavam marejados de lágrimas.

— Não foi só a sua candidatura que terminou — disse, antes de sair da biblioteca.

Bobby Lee praguejou, gritou e praguejou mais um pouco, culpando o pai por ter se ca­sado com uma prostituta e, depois, culpando a si mesmo por não ser órfão. Longos minutos se passaram, antes que ele começasse a se acalmar. E, quando isso aconteceu, ele se deu conta do que fizera. Saiu da biblioteca aflito e subiu a escada correndo, na direção do quar­to da mãe. Ela não estava lá. Correu de um quarto para outro, gritando o nome dela, mas não viu nem sinal de Mona. Quando invadiu a cozinha, fazendo Delia explodir em lágrimas, descobriu que a mãe se fora.

— O que quer dizer com "ela se foi"? — inquiriu.

— Só isso, senhor — Delia respondeu entre soluços.

— Ela pegou as chaves do carro e saiu, sem nem passar pelo quarto dela.

— Ela não disse para onde ia?

— Não, senhor. Ela só me agradeceu por ter cuidado tão bem dela e me disse que, se um dia eu tiver filhos, devo afogá-los.

Bobby Lee empalideceu. A situação era pior do que ele havia imaginado. Girou nos calca­nhares e voltou à biblioteca, de onde telefonou para Ainsley Been.

Ainsley divertia-se com uma prostituta quando o telefone começou a tocar.

— Não pare — disse em um gemido, sabendo que a secretária eletrônica atenderia.

Porém, qualquer possibilidade de desfrutar dos prazeres que a incrível morena prometia morreu quando ele ouviu os gritos de Bobby Lee. Empurrou a prostituta para um lado e correu para o telefone.

— Alô, alô — atendeu ofegante.

— Ainsley, onde diabos você se meteu? Te­mos problemas... grandes problemas. Mona foi interrogada pela polícia, sobre o assassinato de Finelli. Depois, ela se foi.

— O que quer dizer com "ela se foi"?

— Isso mesmo. Tivemos uma pequena discussão, depois que os detetives parti­ram, e ela entendeu tudo errado. Preciso que contrate alguém para encontrá-la. Tra­ga-a de volta antes que a polícia descubra tudo. O que vão pensar se souberem que ela fugiu?

— Bobby Lee, vou lhe fazer uma pergunta, mas não quero que você se ofenda.

— O que é?

— Ela tem algum motivo para temer a polícia?

Bobby Lee emitiu um gemido.

— Não tenho certeza, mas acho que sim. Se essa história chegar nos ouvidos da im­prensa, estarei arruinado.

— Estou a caminho.

 

China estava esperando por Ben quando ele chegou, e saiu corren­do para encontrá-lo lá fora, ao vê-lo estacionar o carro diante da casa.

A visão dela correndo para ele e, depois, atirando-se em seus braços, derreteu seu co­ração. Ela riu alto quando ele rodopiou com ela nos braços. Tal som amoleceu ainda mais seu coração, a ponto de provocar-lhe vontade de chorar. Então, Ben lembrou-se do dia em que desejara ser ele quem a fizera sorrir.

— Esta é uma maneira deliciosa de ser re­cebido, ao voltar para casa — disse, enterrando o rosto nos cabelos dela.

China sorriu.

— Achei que minha recepção tinha seus méritos — zombou, antes de beijá-lo na boca, acabando com o que restava do bom senso de Ben.

Ele gemeu alto.

— Ah, como eu te amo! — confessou, apertando-a contra si.

Não importava o que mais podia haver entre eles, pois China o completava.

— O que aconteceu hoje? — ela perguntou.

— Vamos entrar. Quero lhe mostrar uma coisa.

— Trouxe a foto? E ela? Encontrou a mulher que atirou em mim?

— Não sei — Ben respondeu.

— É você quem vai me dizer.

Quando subiam os degraus da varanda, Dave saiu pela porta.

— Vou verificar como está o meu sítio. Quer que eu volte mais tarde?

— Sim — Ben respondeu.

— Agora, mais do que nunca.

Dave arregalou os olhos.

— O que aconteceu?

— Podemos estar com uma pista muito quente nas mãos.

— Está brincando.

— O senador Wakefield não está achando a menor graça.

— Wakefield? Como ele entra nessa história? Ben retirou uma fotografia do bolso e es­tendeu-a para China.

— Vamos deixar que China nos diga.

Ela pegou a foto de cabeça para baixo. Quan­do começou a virá-la, viu o rosto que assom­brava seus pesadelos.

— E então, querida, o que acha? — Ben perguntou.

China gemeu baixinho. Seus joelhos ameaçaram vergar. Ela largou a foto e cobriu o rosto com as mãos.

Ben agarrou-a, sustentando-lhe o peso. Esperava uma reação forte, mas não tanto.

— China... querida... fale comigo. É ela?

— Acho que vou vomitar — ela murmurou, antes de sair correndo para o banheiro.

Ben correu atrás dela, deixando Dave sozi­nho na porta. Ele se abaixou e apanhou a fotografia.

— Meu Deus! — exclamou.

— Mona Wakefield. Como pode ser?

Mattie saía da cozinha quando China pas­sou por ela em disparada.

— Querida, o que aconteceu? — ela pergun­tou, mas China não parou.

Quando Ben passou, também correndo, Mat­tie teve a certeza de que algo muito grave havia acontecido. Decidiu seguir os dois. Se alguma coisa ruim estava se passando dentro de sua casa, ela precisava saber.

China estava debruçada na pia, lavando o rosto, quando Ben entrou no banheiro.

— Você está bem?

China plantou as duas mãos nas beiradas da pia e sacudiu a cabeça em uma resposta negativa. Ben apanhou uma toalha e começou a secá-la. Naquele momento, Mattie entrou.

— É melhor alguém começar a falar — ela anunciou.

China sentou-se na beirada da banheira e escondeu o rosto entre as mãos, deixando a tarefa de contar a história para Ben.

— Mostrei a China uma fotografia de outra suspeita. Foi essa a reação dela.

Mattie arregalou os olhos e sentou-se ao lado de China.

— É verdade, querida? Você reconheceu a mulher que atirou em você?

China estremeceu.

— Parece ser ela. Ah, meu Deus, é pratica­mente idêntica!

— Isso era tudo o que eu precisava ouvir — Ben declarou.

— Vou telefonar para o ca­pitão Floyd. Precisamos de um mandado de prisão.

— Quem é ela? — Mattie inquiriu.

— Mona Wakefield.

— Mona Wakefield? — ela repetiu, incré­dula.

— A mãe do senador?

— Ela mesma.

— Mas, Bennie, por que uma mulher como ela se tornaria uma assassina?

— Quem sabe? Seja pelo que for, ela não vai sair impune. Fique com China, mamãe, por favor. Preciso fazer algumas ligações.

— Vão prendê-la esta noite? — China perguntou.

— Preciso falar com o capitão, primeiro. Res­ponderei à sua pergunta em seguida.

— Quero estar com você, quando for prendê-la.

— De jeito nenhum!

Ela se levantou, fitando-o diretamente nos olhos, sem exibir o menor sinal de medo.

— Eu preciso Ben. Preciso ver o rosto dela. Preciso vê-la algemada e saber que ela nunca mais poderá me ferir.

Os ombros de Ben vergaram.

— Bem, veremos — ele murmurou.

— Também quero ficar ao seu lado enquanto fizer as suas ligações — ela acrescentou.

— Preciso saber o que está acontecendo.

Ele estendeu a mão. Ela a segurou como quem se agarra a um salva-vidas.

— Ainda está aqui? — Mattie perguntou a Dave, quando o viu na sala.

— Fiz parte dessa história desde que Ben trouxe China para cá. Agora parece que es­tamos chegando ao fim. Eu não perderia isso por nada.

— É por isso que gosto tanto de você — Mattie resmungou.

— Sua sede de sangue é insaciável.

Dave segurou-a pelos ombros e beijou-a rapidamente.

— Então, decidiu confessar que gosta de mim? Ela corou e ficou em silêncio.

— Quando pretende tomar uma decisão, Mattie? Não vamos ficar mais jovens.

— Está me pedindo em casamento, Dave?

— Você aceitaria, se estivesse?

— Quando tudo isso terminar, talvez eu aceite — Mattie respondeu, puxando-o pela mão.

— Ao que parece, não haverá jantar nes­ta casa hoje. Vamos, ao menos, fazer pipocas. Estou faminta.

— Vou ajudá-la.

Quando se dirigiam para a cozinha, ouviram Ben falando ao telefone. Dave queria ouvir a conversa, mas Mattie exibiu um sorriso sedu­tor e ele preferiu acompanhá-la.

— Escute capitão, tenho a identificação po­sitiva de nossa única testemunha. Ela diz que Mona Wakefield é a mulher que atirou nela. O que mais o senhor deseja?

China ouvia certa de que o capitão estava citando algum argumento que Ben não queria sequer considerar.

— Eu sei — Ben resmungou.

— Sim, ela tem um álibi, mas não verificamos sua vera­cidade ainda. Ela diz que estava em uma festa de Natal, no clube de campo. O senhor sabe como são essas coisas. Ela pode ter aparecido na festa, circulado por algum tempo e, então, desaparecido sem que ninguém notasse. Pode ter saído de lá, cometido o crime e voltado, sem levantar a menor suspeita. Lembra-se de que, em sua primeira descrição, China disse que a mulher usava um vestido de festa e um casaco de pele longo? Um traje mais do que adequado para uma festa no clube de campo, não acha?

Ben começou a andar de um lado para o outro. China tentou chamar-lhe a atenção, para fitá-lo nos olhos e tentar descobrir algo a partir da expressão em seu rosto. Ben, po­rém, simplesmente não tirava os olhos do chão. De repente, ele explodiu.

— Ah, mas isso é ótimo! E dar tempo para ela sair do país? Não concordo.

O problema era que Aaron Floyd não estava nem um pouco preocupado se alguém concor­dava com ele ou discordava.

— Não dou a mínima para o que você pensa, ou se concorda ou não — ele disse.

— Não vamos prender a mãe idosa de um senador enquanto não derrubarmos o seu álibi.

— Mona Wakefield é um tubarão em luta, não uma velhinha indefesa. E se a confirma­ção de sua testemunha não vale nada, resolva seu caso sem ela!

Com isso, desligou o telefone e, então, ati­rou-o no sofá.

— Miserável! — praguejou.

China quase teve medo de perguntar:

— Não vão prendê-la?

— Ainda não. Estão com medo de ofender os sentimentos de muitos políticos, mas não desista de nós, ainda. Red já conseguiu a lista de convidados da festa do clube de campo, e o capitão Floyd designou duas equipes de de­tetives para contatar as pessoas que compa­receram à festa. Antes do amanhecer, saberei o que Mona Wakefield estava vestindo, e até mesmo o que ela comeu. Se ela tiver algum segredo, tenha certeza de que vou descobrir.

— Ainda corro perigo?

Ben hesitou, mas acabou balançando a ca­beça em uma resposta afirmativa. Não poderia haver nada que não fosse à verdade entre eles.

— Provavelmente, agora, mais do que nunca — ele disse.

— Mas Dave e eu estamos aqui. Vamos nos revezar, vigiando a casa. Não creio que alguém saiba seu nome e, menos ainda, onde você está. Mesmo assim, não podemos correr nenhum risco.

— Já está quase terminando, não está, Ben?

Ele a tomou nos braços e apertou-a contra si.

— Estamos perto, querida. Agüente mais um pouco... por mim.

— Está bem.

— Sente fome? De repente, descobri que es­tou faminto.

Ela sorriu.

— Isso vai deixar sua mãe muito feliz. Se aprendi uma coisa sobre Mattie, é que ela usa a comida como um remédio para todos os males.

— E funciona, não é?

— A menos que você coma demais, mas então teria outro problema — China replicou com uma risada.

Mona seguia para o sul, sem destino. Havia sacado todo o dinheiro que tinha no banco, na intenção de se afastar de Dallas o máximo possível. Porém, quanto mais longe chegava, mais dolorosas as lembranças se tomavam.

Bobby Lee, seu único filho, a chamara de vadia. Dissera que preferia ter se tornado órfão a ter de carregar o nome dela para sempre. Como pudera ser tão cruel? Afinal, ela dedicara a vida ao marido e ao filho. Depois que se tornara viúva, tivera várias chances de se casar novamente, e alguns de seus pretendentes não eram só ricos, mas muito atraentes também. Mas o que ela fi­zera? Por acaso pensara em si mesma e nas próprias necessidades? Claro que não! Ficara com Bobby Lee.

Ela sempre soubera que ele era especial, pois sempre se esforçava mais do que os outros meninos da mesma idade. Nunca se satisfazia com o segundo lugar. Estava sempre lutando para ir adiante. Mesmo durante seu breve casamento, Mona estivera sempre à disposição dele e, quando o relacionamento ruíra de vez, ela estava lá para consolá-lo, ajudando-o a reconstruir sua vida.

Era verdade que ela não havia freqüentado a faculdade, mas isso não significava que fosse burra. Sabia muitas coisas.

Reprimiu um soluço e assoou o nariz com uma das mãos, enquanto mudava de faixa na estrada. Precisava de um plano, mas enquanto isso precisava de um lugar onde pudesse se esconder. Embora seu filho houvesse amaldiçoado a sua existência, ela o conhecia muito bem. Bobby Lee tentaria levá-la de volta para casa, mas não por estar arrependido. Ah, não... Seria pelo bem de sua imagem, nada mais. Ele precisava levá-la de volta, antes que descobrissem que sua mãe fugira de casa. Mona sabia que os motéis seriam óbvios de­mais. Mesmo se pagasse em dinheiro, eles a encontrariam.

Foi somente quando se deu conta de que se encontrava nos arredores de Houston que ela se lembrou da velha amiga, dos tempos de juventude. Se Bitsy Chance ainda vivia em Pasadena, sem dúvida a ajudaria. A amizade das duas era muito antiga.

Satisfeita por já estar dando início a um plano, parou no primeiro posto de gasolina que viu e dirigiu-se diretamente à cabine te­lefônica. Por sorte, havia uma lista telefônica dentro dela, e Mona começou a folheá-la, pro­curando pelo nome de Bitsy. Para seu alívio, encontrou o número que procurava, mas só quando já discava deu-se conta de que a lista tinha, pelo menos, cinco anos de idade.

— Ah, Deus, faça com que ela esteja lá — Mona rezou baixinho quando o telefone come­çou a chamar.

No quinto toque, um homem atendeu.

— Alô — Mona falou com voz incerta.

— Bitsy está?

— Quem quer falar?

— Sou uma amiga dela, de Amarillo. Diga que é Baby Doll.

— Ei, Bitsy — o homem chamou.

— Uma mu­lher que se identifica como Baby Doll quer falar com você. Diz que conhece você de Amarillo.

Mona ouviu o grito animado de Bitsy e co­meçou a chorar, mas suas lágrimas eram do mais puro alívio.

— Baby! É você?

Mona reprimiu um soluço.

— Sim, Bitsy, sou eu.

— Ah, menina, tenho lido tudo o que en­contro sobre você e seu garoto. Você é uma das mulheres mais conhecidas do país. Estou surpresa que não tenha se esquecido de al­guém como eu.

— Ah, Bitsy, acho que estou metida em uma encrenca. Preciso de um lugar para ficar.

De repente, qualquer resquício de inveja que Bitsy Chance pudesse ter alimentado se foi. Era como nos velhos tempos, quando ela e Mona saíam de suas casas pela janela do quar­to, enganando os pais para se divertirem nos bares de caubóis.

— Onde você está querida?

Mona estreitou os olhos, tentando divisar, através do vidro imundo a placa que havia à sua frente.

— Estou em Pasadena, em um lugar cha­mado The In and Out.

Bitsy soltou mais um de seus gritos.

— Ah, querida, isso só pode ser obra do des­tino! Estou a doze quarteirões daí.

— Seu marido não vai se importar? — Mona perguntou.

Bitsy soltou uma risada.

— Ora, aquele idiota não é meu marido. E não se preocupe, pois ele irá embora muito antes de você chegar.

— Não diga a ele quem eu sou — Mona implorou.

— Não se preocupe, e não saia de onde está. — Bitsy ordenou.

— Vou buscá-la.

Mona desligou o telefone, trancou-se em seu carro e esperou pela amiga. Teria tempo para chorar mais tarde, quando não precisasse en­xergar para dirigir.

Eram seis e meia da manhã quando Bobby Lee abriu a porta para Ainsley Been, que come­çou a falar antes mesmo de atravessar a soleira.

— Sinto muito, Bobby Lee, mas é como se Mona houvesse evaporado da face da Terra — ele disse.

Bobby Lee gemeu, aflito, agarrando o amigo pelo braço e puxando-o para dentro.

— Isso é horrível! Simplesmente, horrível! Ponha mais homens para procurá-la. Ela tem de deixar alguma pista, em algum lugar.

— Ela sacou todo o dinheiro da conta ban­cária. Sabe se a quantia era alta?

— Claro que era! Provavelmente ela tinha uns vinte ou trinta mil dólares — Bobby Lee respondeu, pondo-se a andar de um lado para o outro.

A situação era mesmo muito pior do que ele havia imaginado. Calculara que ela faria um pouco de charme e, pela manhã, reapare­cesse, de braços dados com algum jovenzinho musculoso, apenas para provar que ainda não perdera seu poder sobre os homens. Mas, se havia sacado todo aquele dinheiro, a perspec­tiva não era nada boa.

Ele pensou em todos os problemas pen­dentes em sua própria vida, mas não podia se esquecer do mais óbvio: a campanha presidencial.

— Pensei nisso a noite toda — disse a Ainsley.

— Pensou em quê?

— Quero que marque uma entrevista coletiva.

— Para quê? Não está pensando em falar sobre toda essa confusão, está?

— Não. Vou me retirar do foco das atenções o quanto antes, enquanto ainda existe uma chance de minha vida não estar totalmente arruinada. Ainda sou o senador Wakefield. Ainda tenho meu orgulho e minha reputação. Poderei concorrer à presidência em outra elei­ção. Além de mais, preciso estar de volta a Washington no próximo fim de semana. Não posso deixar Dallas com tantas suspeitas pai­rando sobre minha cabeça.

— O que está dizendo? — Ainsley inquiriu.

— Vou renunciar à minha candidatura por motivos pessoais e deixar a história por isso mesmo.

Ainsley fechou os olhos e suspirou, desolado. Agora, seu futuro era tão vazio quanto o de Bobby Lee. Ninguém pensaria em contratar um administrador de campanha que não fora capaz de proteger o candidato que represen­tava dos escândalos de sua mãe.

— Tem certeza? — indagou.

— Absoluta — Bobby Lee confirmou.

— Marque a coletiva para amanhã de manhã, no Wyndham Anatole, antes que eu mude de idéia. Foi lá que anunciei a minha candidatura, será lá que abrirei mão dela.

— Sim, senhor — Ainsley disse.

— Ligarei mais tarde para informá-lo dos detalhes.

Quando ele saiu, Bobby Lee já começava a planejar o seu discurso. Se conseguisse chorar enquanto falava, talvez a imprensa desse um tom diferente à notícia, transformando-o em um herói, desolado e deprimido, mas um herói assim mesmo, capaz de colocar a família acima de seus interesses pessoais.

Mona acordou deitada de costas, no exato momento em que uma barata enorme passava pelo teto, bem acima de sua cama. Ela obser­vou o inseto com sonolenta fascinação, perguntando-se como criaturas como aquela con­seguiam desafiar as leis da gravidade. Não era a primeira vez que ela acordava e não sabia onde estava, mas fazia alguns anos que isso não ocorria. Então, ouviu Bitsy tossindo no banheiro, do outro lado do corredor, e lembrou-se de onde estava: Pasadena, Texas. Lembrou-se também de que havia fugido de casa.

Sentou-se na beirada da cama e, ignorando a própria nudez, levantou-se e foi para o banheiro.

— Bitsy, vai demorar para sair daí? Preciso usar o banheiro — gritou.

— Espere um instante. Vou enxaguar a boca — Bitsy respondeu no mesmo tom.

Mona esperou. Momentos depois Bitsy abriu a porta e parou, boquiaberta.

— Ora, menina, você não mudou nada mes­mo! Ainda desfila por aí exatamente como nas­ceu, todas as manhãs, como fazia nos velhos tempos!

Mona deu de ombros.

— São apenas ossos e carne — declarou, fechando a porta do banheiro atrás de si.

— Sim, mas os seus ossos e a sua carne sempre pareceram diferentes do resto da hu­manidade — Bitsy gritou para a porta fecha­da, antes de voltar ao seu quarto e tirar a camisola.

Ao passar pelo espelho, parou e examinou o próprio reflexo. Era quase dez anos mais jovem que Mona, mas não era o que parecia.

Na verdade, Mona não parecia mais velha ago­ra do que aparentava aos quarenta anos de idade. Bitsy franziu o cenho, ainda fitando os estragos do tempo em seu corpo, mas acabou dando de ombros. O que isso importava, afi­nal? Não estava, exatamente, procurando por um homem. Tinha vários deles e não fazia a menor questão de se prender a um só.

Quando Mona saiu do banheiro, Bitsy havia preparado o café e ligado à televisão.

Mona atravessou a sala, embrulhada em uma toalha. Bitsy apressou-se em fechar as cortinas.

— Por Deus, Baby Doll, você tem um jeito engraçado de tentar esconder-se, desfilando desse jeito diante das janelas.

Mona voltou a dar de ombros.

— Não pensei nisso.

Bitsy sorriu.

— Sirva-se de uma xícara de café, sente-se aqui e conte-me tudo.

Mona serviu-se, mas agora que a noite se fora, não sentia a mesma disposição de par­tilhar a confusão em que se metera com al­guém que não via fazia anos. E se dissesse alguma coisa que pudesse arruinar as chances de Bobby Lee na Casa Branca? Não, seria me­lhor guardar seus problemas para si mesma. E foi salva de ter de responder de pronto, pois o telefone começou a tocar.

— Deve ser o meu chefe — Bitsy disse.

— Liguei logo cedo, dizendo que estava doente, mas acho que ele não acreditou. Vou atender no quarto e fingir estar morrendo.

— Está bem — Mona replicou, concentran­do-se no noticiário da televisão.

Estava tão absorvida pelos próprios proble­mas que só prestou atenção ao que estava sendo noticiado, quando ouviu o nome de seu filho ser mencionado. Aumentou o volume e bebe­ricou o café e, não pela primeira vez, pensou no que havia deixado para trás. Belas roupas, lençóis macios e os deliciosos biscoitos de De­lia, cobertos de manteiga.

"O senador Wakefield marcou uma entrevista co­letiva para esta tarde, no Wyndham Anatole, em Dallas. Fontes seguras dizem que ele deverá se retirar da campanha pelas eleições presidenciais. Se ele o fizer, esta terá sido a candidatura mais breve da história. Ele nem chegou a anunciar uma plataforma, e já está renunciando."

— Não — Mona gemeu, empertigando-se no sofá.

— Não, Bobby Lee, você não pode fazer isso comigo.

Bitsy voltou para a sala, pronta para ouvir uma história muito interessante, mas encon­trou Mona se levantando, aflita.

— O que aconteceu? — perguntou.

— Preciso voltar para casa — Mona declarou.

— Bobby Lee está prestes a cometer o maior erro de sua vida, e preciso impedi-lo, antes que seja tarde demais.

— Mas você acabou de chegar aqui!

— Sim, e não tenho palavras para agradecer a ajuda que você me deu, mas preciso estar em Dallas antes do meio-dia.

— Está louca? Não vai conseguir chegar a tempo.

— Eu preciso. Tudo depende disso. Cinco minutos depois ela estava vestida, dando a partida no motor de seu carro, dei­xando Bitsy Chance com uma cama desfeita, quatro toalhas de banho molhadas e uma xí­cara suja de café. Bitsy concluiu que Mona era rica havia tempo demais, para continuar sendo divertida.

No entanto, dinheiro não estava entre as preo­cupações de Mona. Quando ela finalmente se viu na estrada, seguindo para o norte, pisou no acelerador até senti-lo tocar o assoalho do carro.

China acordou nos braços de Ben. A última coisa de que se lembrava era de Ben levando-a para a cama. Ouvira a porta da frente se abrir e fechar, e concluíra que ele saíra para se revezar com Dave. Ele tinha olheiras profun­das, e sua pele apresentava-se pálida. China sentiu-se culpada, sabendo que o estresse cau­sado por sua presença na vida dele era a causa de tamanho cansaço.

Aconchegou-se de encontro ao peito dele, suspirando de satisfação ao sentir os braços dele apertarem-na, em um gesto inconsciente. Parecia um milagre o fato de Ben amá-la, mas era verdade, ele amava. Ele lhe dizia isso todos os dias, e demonstrava de todas as maneiras possíveis. Tudo o que ela tinha de fazer era acreditar que seu relacionamento duraria, para que suas vidas fossem perfeitas. Depois que a assassina fosse colocada atrás das gra­des, claro. Por enquanto, era essa a prioridade de ambos.

Quando China pensou em voltar a dormir, o telefone começou a tocar. Ben despertou em questão de segundo e atendeu a ligação, antes mesmo de abrir os olhos.

— Alô?

— Ben, sou eu, Red. Conseguimos o mandado de prisão.

Ben levantou-se de um pulo, ao mesmo tem­po que continuava falando:

— O álibi dela foi derrubado?

— Todos se lembram de tê-la visto lá, mas ninguém pode afirmar que ela esteve na festa o tempo todo, ou a que horas ela foi embora.

— Conseguiu uma identificação do que ela vestia?

— Sim. Um vestido longo. Duas mulheres disseram que era cinza, mas o resto afirmou que era azul.

O coração de Ben disparou. Um vestido de festa azul.

— E quanto ao casaco de pele? Ela estava usando um, também.

— Ah, sim. Na verdade, foi o que mais cha­mou a atenção de todos. Mais ou menos me­tade das mulheres que interrogamos são defensoras do meio ambiente e criticaram Mona duramente por ela aparecer coberta por animais mortos.

— Grande! — Ben exclamou, antes de piscar para China, que já estava de joelhos no col­chão, atenta a cada palavra que ele dizia.

— Conseguimos um mandado de busca e prisão?

— Sim. As roupas foram o ponto decisivo para o capitão nos liberar. Quando ele soube disso, disse que o senador podia ir para o in­ferno, e ordenou que prosseguíssemos com nosso trabalho. Deu alguns telefonemas, des­cobriu um juiz que não gosta muito da política de Bobby Lee, e o mandado está bem aqui, na minha mão! A que horas estará pronto?

— Que horas são agora? — Ben perguntou.

— Quase sete.

— Encontro vocês as oito, em frente à man­são Wakefield.

— Estaremos esperando — Red declarou. Ben desligou o telefone.

— Conseguimos o mandado — disse.

— Vou com você — China anunciou, pulando da cama e apanhando as roupas.

Ben hesitou.

— Querida, não sei se isso... Ela parou e fitou-o.

— Já conversamos sobre isso. Ele suspirou.

— Então, trate de se apressar. Não temos tempo para um banho. Apenas vista-se e peça a mamãe para preparar um café. Dormi pouco mais de três horas, e não quero bater em um poste antes de ter o prazer de colocar as al­gemas naquela mulher.

 

Bobby Lee ainda estava de pijama, quando a campainha começou a tocar. Ele apanhou um robe e correu para a escada. No caminho, implorou a Deus por no­tícias de sua mãe. Porém, suas esperanças morreram quando ele viu os dois detetives que haviam estado lá na véspera e os policiais uni­formizados atrás deles.

Delia já estava na porta, de olhos arregalados, parecendo prestes a explodir em lágrimas.

— Senador, essas pessoas estão procurando pela Sra. Mona. Eu não sei o que dizer.

— Vá para a cozinha — ele disse.

— Depois, traga o meu café para a sala de jantar.

— Sim, senhor — ela murmurou, antes de desaparecer apressada.

Bobby Lee alisou os cabelos com a palma das mãos e, então, amarrou o cinto do robe.

— Cavalheiros, por favor, entrem. Se deixar­mos à porta aberta, as moscas invadem a casa.

— Estamos procurando por sua mãe, se­nhor. Temos um mandado de prisão.

Os ouvidos de Bobby Lee começaram a zunir, e ele sentiu o sangue desaparecer de suas faces. Perguntou-se se, pela primeira vez em sua vida, ia desmaiar.

— Não pode estar falando sério — murmurou.

— Estamos sim — Ben confirmou.

— Ela foi positivamente identificada como a mulher que atirou em Charles Finelli. E, como o se­nhor sabe, a arma que foi usada para matar Finelli foi à mesma de outros crimes ocorridos na cidade. Agora, ou o senhor pede para ela descer, ou teremos de subir e apanhá-la.

— Não, não, vocês não estão entendendo — Bobby Lee disse, quando Ben fez um sinal para que os policiais entrassem e subissem à escada.

— Ela não está aqui. Eu juro.

Todos pararam. Por um momento, o silêncio foi total. Então, Ben deu um passo à frente e agarrou o senador pelas lapelas do robe.

— O que está dizendo?

— Tivemos uma discussão, ontem, depois que vocês foram embora. Ela saiu e não a vi desde então. Meus homens procuraram por ela durante a noite toda, mas não encontra­ram a menor pista de seu paradeiro.

Ben encostou-o na parede.

— Se estiver mentindo, será preso por cum­plicidade, por esconder uma fugitiva, e por qualquer outra coisa que me ocorra.

— Não estou mentindo, eu juro! — Bobby Lee balbuciou.

— Vocês só podem estar enganados. Minha mãe não machucaria ninguém. Ela não é capaz de fazer uma coisa dessas. — Ben soltou-se com expressão de desdém.

— Policiais, comecem a busca — ordenou, antes de virar-se para Red.

— Vou enviar um alerta geral sobre Mona Wakefield, enquanto o senador leva vocês ao quarto dela.

— Sim, claro — Bobby Lee murmurou, co­meçando a subir a escada, no exato momento em que China entrou.

Ben virou-se.

— Eu pedi para você esperar lá fora — disse.

— Onde está ela? — China inquiriu.

— Pre­ciso vê-la frente a frente, como nos vimos da outra vez.

— Ela não está aqui. — China gemeu.

— Ela fugiu?

— Não sei o que aconteceu — Ben respon­deu, segurando-a pelo braço.

— Por favor, querida, espere no carro, com o outro poli­cial, está bem?

Ela assentiu, e já se virava para sair quando viu alguém na escada. Era a primeira vez que via o senador pessoalmente, e ele não se parecia em nada com a imagem que ela formara em sua mente. Na verdade, ele parecia ter visto um fantasma.

— É você a testemunha... não é? A mulher em quem mamãe, supostamente, atirou.

China deu um passo adiante, colocando-se fora do alcance de Ben.

— Minha filhinha está morta por causa dela.

Bobby Lee gemeu e, então, sentou-se na es­cada, pois suas pernas estavam fracas demais para sustentar seu peso.

— Tudo isso não passa de um terrível engano. Infelizmente, ninguém se mostrou inclinado a acreditar nele.

— Senador, não vai levar meu parceiro ao quarto de sua mãe?

— Subam à escada e entrem na primeira porta à esquerda. Fiquem à vontade. Não es­tou me sentindo bem.

Os policiais subiram, liderados por Red Fisher, deixando o senador sentado na escada.

Ben segurou China pelo braço e puxou-a para a porta.

— No carro. Agora.

— Já estou indo — ela replicou.

— O capitão não ficaria nada satisfeito co­migo se soubesse que você está aqui. Portanto, não abuse da sorte, está bem?

— Ela vai conseguir fugir? — China inquiriu.

— De jeito nenhum! O rosto de Mona Wakefield é tão conhecido no Texas quanto os arcos dourados do McDonald's. Ela vai apa­recer e, quando isso acontecer, nós a prende­remos. Espere por mim lá fora. Terei de passar na delegacia, mas estaremos em casa antes da hora do almoço.

Não era o que ela queria ouvir, mas já era o bastante. China voltou para a viatura, en­quanto Ben se juntava aos demais policiais na revista da mansão.

Bobby Lee havia se retirado para a biblio­teca e estava procurando, desesperado, pelo número do telefone de seu advogado. Amal­diçoando todas as mulheres vivas na face da Terra, decidiu ligar para Ainsley, que atendeu ao primeiro toque.

— Sou eu — Bobby Lee anunciou.

— A po­lícia tem um mandado de prisão para minha mãe, e minha casa está sendo revistada, neste exato momento. A que horas marcamos a en­trevista coletiva?

— Meu Deus, Bobby Lee! Você só consegue pensar nisso?

— Limite-se a me responder. Sei o que estou fazendo.

Ainsley suspirou.

— A coletiva foi marcada para o meio-dia.

— Tarde demais. Antecipe para as dez horas.

— Desta manhã? Faltam apenas duas ho­ras para as dez! Não vou conseguir mudar todos os...

— Faça o que estou dizendo — Bobby Lee ordenou impaciente.

— Vou dar a notícia, eu mesmo. Não admitirei que seja diferente. Re­cuso-me a parecer uma parte dessa confusão.

— Faça isso e estará vendendo a alma de sua mãe.

— Ela se vendeu há muitos anos — Bobby Lee retrucou.

— Finalmente, vieram cobrar.

— Está bem. Espero que você realmente sai­ba o que está fazendo.

— Eu sempre sei o que estou fazendo — Bobby Lee declarou, antes de desligar.

Então, foi para seu quarto, a fim de se vestir, passando pela destruição do quarto de sua mãe. Não queria saber o que iam encontrar. Em sua maneira de ver as coisas, quanto me­nos soubesse, mais inocente pareceria. Quan­do estava finalmente pronto para descer, já tinha cada passo calculado. Ora, sairia daque­la história parecendo um herói, custasse o que custasse. Não seria fácil, mas ele estava pres­tes a anunciar aos cidadãos daquela cidade justa que, ao descobrir a duplicidade de sua mãe, ele mesmo a entregara à polícia pelos crimes horríveis que ela havia cometido.

Depois disso, teria apenas mais uma ques­tão pendente a resolver. Então, tudo voltaria ao normal. Evidentemente, ele não concorreria à presidência. E daí? Quanto mais refletia so­bre o assunto, mais se convencia de que aquele fora o sonho de sua mãe, não o dele.

Como o destino adora pregar peças, Mona descobriu-se com um pneu furado, logo depois de ter passado a entrada para Austin. Esta­cionou no acostamento e abriu o porta-malas, embora não fizesse a menor idéia de como re­tirar o estepe e, menos ainda, de como trocar um pneu. Porém, lembrou a si mesma que descendia de pioneiros intrépidos. Sua tataravó atravessara o país a pé, de Boston até o Texas, seguindo a carroça da família, em busca de novas terras. Se aquela mulher fora capaz de caminhar por milhares de quilôme­tros e sobreviver aos ataques de índios e me­xicanos, então Mona certamente seria capaz de trocar um pneu furado.

Enrolou as mangas do paletó do conjunto que usava desde a véspera e inclinou-se so­bre o porta-malas, para estudar a disposição de seu conteúdo. O estepe parecia pequeno demais. Portanto, devia estar vazio também. Apenas para se certificar disso, ela retirou o manual do carro do porta-luvas e começou a ler. Antes que passasse da segunda página, um caminhoneiro estacionou bem atrás de seu carro.

— Obrigada, Senhor! — ela sussurrou. Então, levantou-se, curvou os lábios em um sorriso e dirigiu-se ao homem.

Ele saiu do caminhão convencido de que aquele era o seu dia de sorte. Antes mesmo de compreender exatamente o que estava acontecendo, já mostrava a ela como retirar o estepe do porta-malas e onde colocar o ma­caco, de maneira que o carro não tombasse.

— Não sei o que eu teria feito sem a sua ajuda — Mona declarou, desempenhando com perfeição o papel da mocinha indefesa.

— Foi um prazer — ele disse, enquanto ten­tava retirar o estepe, sem sucesso.

— Está emperrado. Acho que enroscou em alguma coi­sa — declarou, inclinando-se um pouco mais.

Tentou mais algumas vezes e, ao fazê-lo, parte do carpete que forrava o porta-malas soltou-se.

— Alguém derramou alguma coisa aqui. Veja. O carpete estava completamente colado ao estepe. Parece que este pneu nunca foi usa­do, ou o problema teria sido descoberto antes.

Mona assentiu, fingindo grande interesse, mas pouco se importava. Tudo o que queria era prosseguir em sua viagem.

— Vou ajeitar o carpete — disse.

— Por favor, tire aquele pneu furado, está bem?

O caminhoneiro sorriu. Ele trocaria o pneu, claro, e esperava que ela estivesse disposta a recompensar o favor.

Mona sabia exatamente o que ele estava pensando, mas preferiria morrer a se envolver com um homem daqueles. Nunca fora do tipo que saía com estranhos. Inclinou-se so­bre o porta-malas e começou a esticar o car­pete. Ao fazê-lo, o brilho de um objeto metá­lico ofuscou-lhe a visão momentaneamente. Ela ergueu o carpete novamente e espiou de­baixo dele. No mesmo instante, sentiu o co­ração disparar.

Uma arma. Ora, era mesmo uma arma.

De onde surgira aquilo? O carro era dela. Ela mesma o comprara, menos de um ano an­tes. Ninguém o dirigia, exceto ela. Não era possível que a arma...

A expressão de seu rosto se alterou. Olhou para o caminhoneiro, a fim de se certificar de que ele não vira nada e, então, alisou o carpete com movimentos calmos. Poucos minutos de­pois, o pneu havia sido trocado.

— Pode, por favor, colocar esta coisa suja no porta-malas? — Mona pediu.

— E diga-me quanto lhe devo pela ajuda que me prestou.

O caminhoneiro atirou o pneu furado e o macaco no porta-malas e fechou-o.

— Não pode dirigir a mais de oitenta qui­lômetros por hora com esse tipo de pneu — ele disse.

— Quanto ao que me deve, bem, prefiro deixar a decisão por sua conta.

Então, passou a mão sobre o zíper da calça e sorriu. Mona retribuiu o sorriso.

— Por que não entra na cabine do seu ca­minhão e se acomoda, enquanto penso no que posso fazer por você?

Quando ele agarrou sua mão e puxou-a para o caminhão, praticamente correndo, Mona pensou que acabaria quebrando o salto de um dos sapatos. Porém, sua oportunidade estava chegando. Tinha de ganhar algum tempo so­bre aquele idiota, perder-se no trânsito, sem ter de se preocupar se ele a seguia. E sabia exatamente o que fazer.

O caminhoneiro subiu na cabine e, então, puxou-a para dentro. Já estava tirando a calça e pulando para trás do banco, onde estava sua cama, quando Mona sentou-se no banco. Depois de lançar um único olhar para o que pendia entre as pernas dele, Mona arrancou as chaves da ignição e saltou do caminhão.

Dessa vez, ao atingir o chão, realmente sen­tiu o salto do sapato se quebrar, mas a adrenalina correndo em suas veias impediu-a de dar maior atenção ao fato. Girou o braço no ar, acima da cabeça, e atirou as chaves no pasto ao lado da estrada. Teve um vislumbre do brilho metálico voando alto, para então de­saparecer em meio ao capim alto. Em seguida, ela começou a correr.

O caminhoneiro estava vestindo a calça e praguejando, ao mesmo tempo que pratica­mente se atirava do caminhão. Era evidente que não conseguia decidir se deveria segui-la ou tentar encontrar suas chaves. Mona, po­rém, já estava em seu carro, disparando pela estrada, antes mesmo que ele conseguisse fechar o zíper. O que lhe deixou como única opção procurar pelas chaves, E ele se dirigiu para o pasto, recitando todos os palavrões que conhecia.

Mona lembrou-se vagamente da advertência sobre não dirigir em velocidade muito alta, mas não tinha tempo a perder. Pisou fundo no acelerador, preparada para a longa viagem, sem fazer a menor idéia do que esperava por ela em Dallas.

Horas depois, quando já estava nos arredores da cidade, deu-se conta de que voltara tar­de demais. As emissoras de rádio não paravam de repetir a notícia. O filho favorito de Dallas havia desistido de sua candidatura à presi­dência. O desespero de Mona deu lugar ao horror provocado pela notícia dada a seguir.

Um mandado de prisão contra ela fora ex­pedido. Segundo o noticiário, seu próprio filho a delatara. Magoada muito além do que uma mãe poderia suportar, foi o instinto de auto-preservação que a conduziu ao chalé em Lake Texoma. Fazia anos que ela não ia até lá, mas seria um bom lugar para se esconder, enquanto pensava no que fazer. Na verdade, estava mais preocupada em lamber as feridas do que em se esconder.

Enquanto atravessava a cidade, imagina­va que todas as pessoas por quem passava sabiam quem ela era. O medo fez com que ela seguisse adiante, embora o carro tivesse pouco combustível. Errou a entrada para o chalé e teve de voltar. Quando finalmente estacionou, o marcador indicava que o tan­que estava vazio.

Mona saiu do carro, as pernas trêmulas, o estômago roncando de fome. Mas nada disso importava. Ela pensaria em seus problemas mais tarde. Tudo o que queria era uma cama e um chuveiro. Se a água e a eletricidade es­tivessem desligadas, ela se banharia no lago.

Não lhe ocorreu, até girar o trinco, que a porta estaria trancada. Ela começou a chorar, esmurrando a porta com desespero. Não tinha forças para suportar nem mais um golpe. En­quanto batia, algo caiu do batente superior, produzindo um ruído metálico aos seus pés. Uma chave. Claro! A chave reserva!

Mona abriu a porta e entrou, esperando qualquer coisa, menos o que encontrou. Em vez dos móveis cobertos por panos brancos e da inevitável camada de poeira, tudo estava impecavelmente limpo. E, se seus olhos não estavam lhe pregando uma peça, toda a mo­bília era nova. Ao menos, muito mais nova do que da última vez em que ela estivera ali.

Acendeu as luzes e foi de quarto em quarto, espiando armários, abrindo gavetas. Estavam cheias de roupa, como se alguém morasse ali. Ao pensar nisso, ela virou, correu para a porta e trancou-a, para então colocar a trava de se­gurança. Parecia óbvio que Bobby Lee havia alugado o chalé para alguém, sem avisá-la. Que confusão! Alguém poderia chegar a qual­quer momento e, então, ela seria descoberta. Não podia ficar ali.

Por outro lado, sentia-se tão cansada e suja. O mínimo que poderia fazer seria tomar um banho e, quem sabe, encontrar roupas limpas, Poderia comer alguma coisa, deixar dinheiro sobre a mesa, pela comida que apanhara, e chegar no único posto de gasolina do lago, an­tes que fechasse. Estava cansada demais para dirigir, mas não parecia ter alternativa.

Aflita, correu para o banheiro e despiu-se. Minutos depois, saiu do chuveiro e foi para o quarto, à procura de roupas limpas.

O primeiro quarto estava mobiliado, mas os armários estavam vazios. No segundo, porém, encontrou mais do que o necessário. Havia maquiagem sobre a penteadeira, como se a mulher que vivia ali houvesse acabado de dei­xar o chalé. O armário estava repleto de ves­tidos. Mona vasculhou os trajes, apressada, procurando por algo confortável, mas para sua surpresa encontrou apenas camisolas e vesti­dos de festa. Não fazia sentido. Não era o tipo de roupa que uma habitante das margens do lago usaria. Fechou a porta e foi até o outro armário, na esperança de encontrar uma calça jeans, ou algo parecido.

Abriu a porta e gritou, antes de se dar conta do que realmente estava vendo. A primeira vista, pareciam cabeças decapitadas, mas ela logo se deu conta de que se tratava de perucas, longas e loiras, colocadas em suportes de cabeleireiros.

— Meu Deus! — resmungou, tocando de leve as perucas. — Que mau gosto! Tantas perucas, e nenhuma de boa qualidade.

Continuou sua busca e já estava prestes a desistir quando finalmente encontrou uma calça jeans e uma camisa, na última gaveta.

— Graças a Deus! — agradeceu, vestindo-se sem perder tempo.

Para sua surpresa, a roupa lhe serviu com perfeição. A cintura da calça estava um pouco larga, mas o comprimento estava correto. As mangas da camisa chegavam aos seus punhos, o que era incomum, considerando-se sua es­tatura acima da média.

Quando enfiou as mãos nos bolsos das calças e retirou um punhado de recibos, descobriu que suas surpresas ainda não haviam termi­nado. Curiosa, ela se sentou na beirada da cama e começou a desdobrar os recibos. Um após o outro, ela os leu em silêncio. Porém, quanto mais ficava ali sentada, maior era a sua compreensão.

Ergueu os olhos para as roupas guardadas no armário, para as perucas sobre cabeças plásticas sem rosto, para voltar a fixá-los nos recibos. Pensou na arma que encontrara no porta-malas do carro. A polícia a procurava por assassinato porque seu próprio filho a delatara. Mona pensou nas férias que ele lhe dera de presente e nas mudanças que ele insistira que ela fizesse em sua aparência. Sentiu o estômago revirar. Escondeu o rosto nas mãos e lembrou-se do dia em que ele nascera... todo aquele sangue... toda aquela dor... todas as noites em claro... para terminar assim.

— Ah, meu Deus... meu Deus... O que eu fiz?

Após alguns instantes, deitou-se sobre as cobertas e encolheu-se em posição fetal. O que quer que fosse acontecer com ela, teria de es­perar até o dia seguinte. Estava cansada de­mais para fazer qualquer coisa que não fosse dormir.

A notícia causou alvoroço em todo o país, e todos os noticiários e jornais não se cansavam de falar sobre o assunto. Fora expedido um mandado de prisão contra Mona Wakefield, mãe do senador Bobby Lee Wakefield.

Ariel Simmons estava sentada no quarto de um motel quando ouviu a notícia e começou a rir. Graças a Deus, estava tudo terminado, Mas, quanto mais ela ria, pior ela se sentia. E não demorou a explodir em lágrimas. Não havia terminado. Nunca terminaria. Sua re­putação fora arruinada, apesar de ela não ser mais suspeita de assassinato. As pessoas que iam ouvir os seus sermões eram poucas, na maioria idosos, com pouco dinheiro, ou ne­nhum, para doar à sua igreja. Não valia a pena pregar, quando as pessoas que apare­ciam só queriam ouvir a Palavra de Deus. Eram os que acreditavam ser possível comprar seu ingresso para o reino dos céus que haviam pago suas contas, durante anos.

Sem elas, ela ficara reduzida a lugares como aquele, em vez da opulência a que havia se acostumado. Finalmente, parou de chorar e foi até o banheiro, para lavar o rosto. Aquela era a última parada de sua excursão, não que ela se importasse com isso. Quando aquela noite terminasse, ela pensaria em se mudar para o sul, talvez para a Flórida, um lugar onde ela pudesse se perder na multidão e criar um mundo novo, até mesmo uma nova identidade. Se vendesse sua mansão, em Dallas, assim como o restante de suas propriedades, teria dinheiro suficiente para viver com conforto pelo resto da vida.

Quanto mais considerava a idéia, mais gos­tava dela. Afinal, enquanto houvesse vida, tudo seria possível.

Já estava escuro quando o tiro atravessou a janela perto de onde China estava sentada. Ela começou a gritar e, sem saber como, foi parar no chão, de bruços, com Ben sobre ela, pedindo silêncio. Ela respirou fundo e agar­rou-se a ele, apavorada, enquanto ele pas­sava as mãos por seu corpo, em um gesto desesperado.

— Diga-me que você está bem. Diga-me que a bala não a atingiu.

— Estou bem — China sussurrou, esforçan­do-se para conter os gritos que continuavam presos em sua garganta.

— Meu Deus! — Bem exclamou, antes de empurrá-la para o vão entre o sofá e a parede.

— Não importa o que aconteça, não se mova, está me ouvindo?

— Ben! Bennie! Você está bem?

Ben ouviu os passos da mãe no corredor.

— Mamãe! Volte! Deite-se no chão e fique onde está até eu lhe dizer que está tudo bem.

Ele a ouviu chorar, mas ela obedeceu pron­tamente, embora à necessidade de saber se aqueles a quem amava estavam bem superas­se a prudência de ficar em silêncio.

— Bennie, você e China estão bem? E quan­to a Dave? Ele está lá fora, não está? Ah, meu Deus, e se ele...

— Não se movam — Ben insistiu.

— Preciso ir.

Segundos depois, China o viu arrastar-se pelo chão, na direção da cozinha, onde as luzes estavam apagadas. Ela sabia que ele se ex­poria ao perigo, mas tudo o que poderia fazer seria rezar.

Seria impossível saber se a bala havia atingido o alvo. Em um instante, a moça estava bem diante da janela e, no momento seguinte, havia desaparecido. Uma coisa era certa: o trabalho tinha de ser terminado.

Começou a correr agachado em torno da casa, procurando por uma entrada, quando to­das as luzes se apagaram. Praguejando em silêncio, decidiu que seria loucura continuar com o ataque. Atirara na mulher. Talvez houvesse tido sorte.

Ouviu um farfalhar no capim à sua esquer­da. Pensou no policial dentro da casa e no outro, que ele deixara inconsciente, perto do estábulo. Seria possível haver outros? Não po­deria correr o risco.

Em poucos minutos, ele estava longe dali.

Ben encontrou Dave desacordado, no mesmo instante em que ouviu o ronco de uma motoci­cleta, afastando-se na direção da estrada. Quem quer que houvesse atirado estava fugindo.

Dave gemeu, e foi o som mais agradável que Ben poderia ter ouvido naquele momento.

— Dave, está ferido?

— Minha cabeça dói. Acho que fui ferido na cabeça. O que aconteceu?

— Explicarei tudo mais tarde. Agora, pre­ciso levá-lo para dentro de casa.

Uma hora depois, o sítio estava apinhado de policiais sob o comando de Christopher Scott, delegado do condado de Navarro, além de todos os detetives da divisão de homicídios do departamento de polícia de Dallas. Todos sabiam o que havia acontecido, mas o atirador fugira. A boa notícia era que China Brown estava viva.

O delegado Scott estava à espera de Ben, quando ele saiu do estábulo.

— O atirador fugiu Ben. Encontramos pe­gadas e sabemos onde ele deixou a moto, mas teremos de esperar pelo amanhecer para in­vestigar melhor.

— Eu sei Chris, e obrigado por ter vindo.

— Estou apenas fazendo o meu trabalho. Além disso, não me agrada nem um pouco saber que algo tão horrível está acontecendo no meu condado.

— Sim, entendo como se sente.

— Deixarei um homem de guarda na en­trada do sítio, embora eu não acredite na pos­sibilidade de outro ataque esta noite.

— Obrigado. E obrigado pela ambulância para Dave. Eles foram mesmo rápidos.

— Provavelmente, ele teve uma concussão, mas vai ficar bem — Scott garantiu.

— Mattie foi com ele?

Ben assentiu, pensando em China, sozinha na casa.

— Preciso cuidar de China. Os últimos me­ses foram muito difíceis para ela. O que houve hoje não ajudou em nada.

— Se eu puder ajudar em alguma coisa, não hesite em ligar — Scott repetiu antes de partir.

Poucos minutos depois, não havia sinais da comoção que tomara conta do sítio, exceto por algumas gotas do sangue de Dave, na varanda, além das inúmeras pegadas no quintal. Dois policiais haviam pregado dois pedaços de madeira sobre a janela quebrada, que seria consertada no dia seguinte. Por enquanto, Bem só queria abraçar China e se certificar de que ela estava sã e salva. Não conseguia apagar da mente a imagem dela sorrindo e, então, do vidro se quebrando e ela gritando.

Entrou na casa, chamando-a.

Ela veio da cozinha, empunhando uma faca. O choque ainda era evidente na expressão de nervosismo em seu rosto. Ben trancou a porta atrás de si e retirou a faca da mão dela.

— Dê-me isso, querida.

Ela entregou a faca sem dizer uma palavra sequer.

Ben afastou os cabelos de seu rosto, dese­jando poder afastar também aquele ar de hor­ror dos olhos dela.

— O delegado deixou um policial de guarda, mas a pessoa que atirou fugiu faz tempo.

— Não acabou. Nunca vai acabar, até que eu esteja morta.

— Não diga isso — Ben pediu, tomando-a nos braços.

— Nunca mais repita isso.

Ela suspirou. Parecia inevitável. Por mais que os mocinhos se esforçassem, os bandidos venceriam no final.

— Não quero morrer — ela disse.

— Já faz tempo que deixei de querer morrer.

— Eu também não quero querida. E não vou deixar que isso aconteça. Eu prometi. Lembra-se?

China chorou nos braços de Ben até cair no sono. Então, ele continuou a abraçá-la, en­quanto ela dormia. Ficou apoiado na cabecei­ra, um dos braços firme em torno do corpo dela, a outra mão empunhando sua arma. As lágrimas corriam soltas por suas faces, en­quanto ele esperava pelo nascer do sol. Estava assustado. Mais do que se lembrava ter estado em toda a sua vida. Se algo não acontecesse em favor deles, muito em breve, seria muito difícil cumprir a promessa que fizera.

O sol já estava alto no céu quando Ben e China chegaram na Commerce Street. O estô­mago de Ben revirava, enquanto ele manobrava o carro no estacionamento da delegacia. Preci­sava apresentar-se ao capitão, informá-lo de tudo o que acontecera na noite anterior e tentar traçar um plano para seguir dali por diante.

— Venha querida. Acho que não vou me demorar aqui e, então, poderemos visitar Dave. Mamãe disse que ele está bem, mas quero ver com meus próprios olhos.

China odiou-se pelo medo absurdo de sair do carro de Ben, mas estava tão cansada de se esconder que chegou a desejar que a his­tória chegasse ao fim, independente do desfe­cho. Agarrou a mão de Ben e deixou que ele a conduzisse rapidamente para dentro do edi­fício. Uma vez lá dentro, começou a relaxar. Para onde quer que olhasse, via uniformes e distintivos e policiais armados. Segura. Ali, estava segura.

Ben apresentou-a ao capitão Floyd, que, de pronto, decidiu que ela estava magra demais e precisava comer. Acomodou-a em sua pró­pria cadeira, com uma lata de refrigerante e uma caixa de rosquinhas.

— As que têm cobertura de chocolate são as mais gostosas — disse, entregando também o controle remoto do aparelho de televisão.

— Descanse um pouco, assista à televisão e coma alguma coisa. Se sentir sono, pode se deitar no meu sofá. Faremos nossa reunião na sala em frente.

— Obrigada por ser tão gentil — ela agra­deceu com um sorriso.

Aquela altura, Floyd estava perdido. Ele limpou a garganta, corou e franziu o cenho.

— Sim... Bem, vamos, English. Quero saber tudo o que aconteceu ontem à noite, e vou querer um relatório completo do delegado de Navarro, o quanto antes.

Ben piscou para China e seguiu o chefe até a sala em frente, onde a força-tarefa havia se reunido para trocar as últimas informações sobre o caso. O foco principal era Mona Wa­kefield. Ela continuava desaparecida, e China fora vítima de um atentado a bala, na noite anterior. Todas as pistas e conclusões levavam a Mona.

China deixou a caixa de doces de lado, mas continuou com seu refrigerante nas mãos, enquanto mudava os canais da televisão, à pro­cura de algo que a distraísse.

O tempo passou e ela cochilou. O programa mudou e uma reprise da entrevista coletiva do senador Wakefield entrou no ar. Semi-adormecida. China ouvia tudo, mas não conseguia interessar-se pelo que passava na tela, até que ela ouviu um repórter gritar, na tentativa de ser ouvido:

— Bobby Lee... Bobby Lee... você vai...

China pôs-se de pé em um pulo, os olhos arregalados, a expressão amedrontada, o co­ração disparado. Em um gesto instintivo, ela recuou um passo e pousou as mãos sobre o ventre, exatamente como fizera naquela noite, na região sul de Dallas.

— Não! — gritou.

— Não atire! Não atire!

Foi como se ela houvesse gritado "Fogo!", pois todos os policiais presentes naquele andar do edifício, inclusive Ben, invadiram a sala de armas em punho, antes que ela despertasse por completo de seu pesadelo.

Era evidente que não havia mais ninguém na sala, além dela, e todos já começavam a atribuir o incidente a um pesadelo de fato quando China começou a gritar:

— Ah, meu Deus! Meu Deus! — E cobriu o rosto com as mãos.

— Eu não me lembrei disso até agora, Ah, meu Deus, todo esse tempo e não me lembrei!

— O quê? — Ben inquiriu, forçando-a a retirar as mãos do rosto.

— O que você não lembrou?

— O fotógrafo. Ele gritou para a mulher. Quando ela o ouviu, virou-se. O flash da câ­mera começou a piscar. Ela ficou furiosa, tirou a arma da bolsa e começou a atirar. Então, atirou em mim. Mas, até agora, eu não me lembrava de que Finelli chamou-a pelo nome.

— Está dizendo que ouviu Finelli chamar Mona?

— Não — ela respondeu com um gemido.

— Ele gritou "Bobby Lee", três vezes, bem alto. Foi quando a mulher ficou furiosa. Foi quando ela sacou a arma.

Um momento de absoluto silêncio se passou. Em seguida, todos começaram a falar ao mes­mo tempo. China deixou-se cair no sofá, e Ben sentou-se ao lado dela. Ele a segurou pelos ombros e fitou-a nos olhos.

— Está dizendo que Finelli chamou a mu­lher de Bobby Lee?

— Sim.

Ben olhou para o capitão.

— Bem?

Floyd permaneceu em silêncio, avaliando as implicações do que acabara de ouvir. De repente, gritou:

— Avery! Alguém traga Matt Avery aqui!

Quando o jovem policial entrou, China o re­conheceu. Fora ele quem a ajudara a construir o retrato falado.

— Avery, se tiver a fotografia de alguém, é possível alterá-la no seu programa de computador?

— Sim, senhor. Floyd gritou de novo:

— Alguém dê a ele uma foto do nosso querido senador. Quero ver o que vamos conseguir.

 

Foi como um passe de mágica. Em um instante, o rosto de Bobby Lee Wakefield estava na tela e, então, depois de alguns comandos do policial Avery no teclado, ele havia se transformado em uma mulher, desde os cabelos loiros e longos até os olhos perfeitamente maquilados.

— China?

— Sim.

— Meu Deus! — Floyd sussurrou, deixan­do-se cair na cadeira.

— Isso explica por que Bobby Lee decidiu assumir o crédito por ter delatado a própria mãe. Com certeza, isso o livraria de toda a culpa, não acham? — Red comentou.

Floyd sacudiu a cabeça, incrédulo.

— Mas ele é uma estrela do futebol americano, herói de guerra e um maldito senador dos Es­tados Unidos da América! Não faz sentido. — Voltou a olhar para China. — Tem certeza? En­tenda... você apontou a mãe dele, antes.

— O que não deveria surpreender ninguém — Ben interferiu.

— Veja a semelhança entre mãe e filho. Poderiam ser irmãos gêmeos. Quan­to a fazer sentido, assassinos nunca fazem. No entanto, se me lembro de alguma coisa das aulas de psicologia, assassinos do sexo masculino, da­dos a perversões sexuais, podem estar, simbo­licamente, tentando matar a si mesmos.

— Mas Finelli não era um pervertido, era? — China perguntou.

— Não, querida. Talvez ele nem soubesse das outras vítimas. Mas uma foto de Bobby Lee travestido seria o grande golpe do século. Imagine quanto dinheiro ele ganharia com uma só chantagem.

— No entanto, foi Finelli quem estampou as manchetes dos jornais — Floyd lembrou, passando a mão trêmula pelo rosto, sem ja­mais desviar os olhos da tela do computador.

— Vão apanhar o miserável. Quando chega­rem, terei conseguido o mandado.

China levantou-se.

— Você vai esperar aqui, mocinha — o ca­pitão disse.

— Deixe-a ir — Ben pediu.

— Ela tem esse direito.

Então, retirou do bolso o celular.

— Para quem está ligando? — Floyd perguntou.

— Estou apenas cumprindo a promessa que fiz a uma conhecida.

Connie Marx saía do chuveiro, com uma toa­lha em torno da cabeça, quando o telefone co­meçou a tocar. Ela atravessou a cama de joe­lhos e agarrou o fone, deixando a toalha mo­lhada cair no chão.

— Alô?

— Connie?

— Sim?

— Aqui fala Ben English. Ela ficou imóvel.

— Sim?

— Sabe onde o senador Wakefield mora? Agora, o coração de Connie batia em disparada.

— Sim, claro. Trata-se de Mona Wakefield? Vocês vão prendê-la?

— Não, não é Mona que vamos prender. Houve um momento de silêncio e, de repen­te, ela adivinhou.

— Está brincando — murmurou.

— Estamos a caminho — Ben informou-a.

— Ah, meu Deus, isso é demais!

Ela desligou sem se despedir de Ben e já se vestia quando se lembrou de que precisaria de um câmera para fazer um bom trabalho. Apanhou o telefone e ligou para a emissora onde trabalhava antes, disfarçando a voz para que ninguém suspeitasse de sua identidade.

— Preciso falar com Arnie White, por favor.

— Sou eu.

— Arnie, aqui fala Connie. Continua faminto? Ele sabia exatamente o que as palavras dela significavam. Os dois partilhavam uma pai­xão, o que prometia levá-los a uma carreira muito maior e melhor.

— Ah, sim. O que está acontecendo, boneca?

— Esta é grande, Arnie. Muito grande. Pe­gue uma câmera e vá me encontrar na casa do senador Wakefield, o mais rápido possível. Estamos prestes a dar o maior furo de repor­tagem na história do Texas.

— Já fui! — ele disse, desligando em seguida. Ela sorriu. Justiça. Havia esperado muito tempo por justiça, e agora a teria em uma bandeja.

Bobby estava ao telefone, falando com seu escritório em Washington, quando ouviu o som de vários carros chegando.

— Acho que tenho visitas — disse.

— Entre em contato com aquele lobista que mencionei. Conversaremos quando eu chegar. Sim, amanhã, por volta do meio-dia. Sairemos para almoçar.

Embora não estivesse esperando visitas, de­pois da bomba que lançara na véspera, seria natural ser procurado. E ele não estava dis­posto a dispensar a imprensa. Não quando planava nos ventos da simpatia.

Mas não foi a imprensa que Delia mandou entrar, e, quando viu China Brown liderando o grupo, ele sentiu o estômago contorcer. Ela sabia. Bobby Lee não fazia idéia como, mas ela sabia!

Ben segurou a mão do senador e torceu-a, até levá-la às costas dele. Uma algema foi colocada.

— Bobby Lee Wakefield, está preso pelos assassinatos de Charles Finelli e de Bebê Brown. Também responderá pelos assassina­tos de Tashi Yamamoto, LaShon Fontana e...

Quando a outra algema foi colocada, a men­te de Bobby Lee pareceu esvaziar-se. Ele podia ver a boca do detetive se movendo, mas não ouvia nem uma palavra sequer. Seu mundo havia se reduzido à mulher que apontava para ele, dizendo coisas que ele não queria admitir.

— Você atirou em mim — China acusou.

— Não fiz nada a você e, ainda assim, você atirou como se eu fosse um cão vira-lata.

— Não — ele balbuciou.

— Não fui eu. Você está enganada. Foi minha mãe, lembra-se? Você já a identificou, e estava certa. Ela é uma vadia enlouquecida. Ninguém sabe por que ela fez essas coisas, mas sempre demons­trou um interesse exagerado por sexo. Todo tipo de sexo, com todo tipo de homem.

— Está mentindo! Todos se viraram.

Mona Wakefield estava parada na porta, pa­recendo um anjo vingador, os cabelos revoltos e ainda usando as roupas do filho. Ela tentou passar pela multidão de policiais, mas foi im­pedida por eles.

— Deixem-na passar — Ben ordenou.

Pelo canto do olho, viu outro carro chegando. Era Connie Marx. Ela não perdera nem um minuto. Na opinião de Ben, ela merecia, no mínimo, aquela compensação.

As pernas de Mona tremiam tanto quanto sua voz. Ver todos aqueles policiais dentro de sua casa, sabendo por que estavam lá, era mais do que ela podia suportar. Não conseguiu olhar para Bobby Lee. Ao menos, ainda não. Não até dizer tudo o que tinha para dizer.

Parou diante de Ben e estendeu-lhe um pu­nhado de recibos.

— Encontrei isso nas roupas de meu filho, em nosso chalé em Lake Texoma — disse.

— Um desses recibos, emitido em nome dele, comprova a compra de uma arma idêntica à que foi usada pelo assassino em série, a mesma arma que encontrei debaixo do estepe, no porta-malas do meu carro. O carro que eu, de coração, emprestava ao meu filho, todas as vezes que ele queria ficar sozinho. No chalé, também encontrarão um armário repleto de vestidos, alguns manchados de sangue, e outro contendo perucas loiras, baratas, muito dife­rentes do meu estilo.

— Mamãe! O que está dizendo? Não pode me culpar. Sou seu filho!

Mona fechou os olhos e, então, lentamente, virou-se para encarar o filho. A pena de morte. Ele seria condenado à pena de morte. O Texas não era um Estado generoso, no que dizia res­peito à justiça. Homem ou mulher, jovem ou velho, se o tribunal sentenciava um criminoso à morte, ele realmente morria. Os lábios dela começaram a tremer, ao mesmo tempo que seus olhos se encheram de lágrimas.

— Não, você não é mais meu filho. No que me diz respeito, você agora é o órfão que sempre quis ser.

— Não — Bobby Lee choramingou.

— Eu não estava falando sério. Você sabe que, quando fico nervoso, falo sem pensar. Diga a eles que eu sinto muito. Diga a eles e faça tudo ficar bem, novamente.

Mona fitou-o como se nunca o tivesse visto antes e, de verdade, chegou a se perguntar se realmente o conhecia. Em sua mente, teria ela inventado o filho com quem sempre so­nhara, em vez de reconhecer o bastardo que ele sempre fora? Agora já não importava. Nada mais importava. Ela deu meia-volta e, ao fazê-lo, viu a mulher parada junto à parede. Imediatamente, soube quem ela era.

— Você... é a mulher em quem ele atirou? — China não respondeu, pois não encontrou a voz.

— É você, não é? — Mona suspirou, e as lágrimas correram soltas por suas faces. — Não sei o que lhe dizer. Por causa da minha família, você perdeu seu bebê. Entendo o seu sofrimento, pois acabo de perder o meu filho também. Sinto muito. Muito mesmo.

— Então seus ombros vergaram e, pela primeira vez, Mona Wakefield aparentou cada um de seus sessenta e oito anos.

— Detetives, cumpram o seu dever. Farei uma declaração à imprensa pela manhã. Imagino que as acusações contra mim terão sido retiradas, então.

— Sim, senhora, e obrigado por ter nos aju­dado — Ben agradeceu.

— Se eu sequer desconfiasse, teria feito isso muito antes.

A sala se transformou em um burburinho de passos apressados, juntamente com os gritos de Bobby Lee Wakefield, prometendo se regenerar. Por um momento, China ficou presa contra a parede, prensada por uma multidão de pessoas e uma mulher com uma câmera.

— China?

Ela virou e deparou com Ben, que chamava seu nome, com expressão preocupada.

— Estou bem — ela disse, abrindo caminho para sair da casa.

Lá fora, ergueu o rosto para o sol, fechou os olhos e respirou fundo. Uma fragrância suave penetrou-lhe as narinas, avisando-a que, em al­gum lugar não muito longe dali, as lilases flo­resciam. O calor em seu rosto, o som de um passarinho em uma árvore próxima... a paz de tudo aquilo tomou conta do seu coração.

Ela poderia caminhar nas ruas quando quisesse.

Faria compras em um shopping center, se assim preferisse.

Tomaria sol no parque, sem jamais ter medo de receber um tiro pelas costas. Estava terminado.

 

A primavera se aproximava do fim para dar lugar ao verão. As centáureas-azuis floresciam, e tudo havia adquirido uma tonalidade viva de verde, desde os pastos do sítio dos English até as árvores que ladeavam as estradas. Até onde os olhos po­diam enxergar, a terra estava viva e colorida.

China estava sentada na varanda dos fun­dos, observando Ben cortar feno no pasto adiante. Atrás dela, a casa estava silenciosa, seus cômodos ecoando apenas os passos dela e de Ben, uma vez que Mattie e Dave haviam se casado e ela se mudara para o sítio dele.

Em momento algum surgira a questão sobre China partir. Seu lugar era ali, agora, assim como ela e Bem, haviam nascido um para o outro. Havia dias em que ela reconhecia o de­sejo nos olhos dele, e vezes em que ela percebia que ele se mantinha calado, por medo de pressioná-la. China amava Ben com uma paixão que não imaginara possível existir. Mas ele queria colocar uma aliança em seu dedo, chamá-la de algo mais que, simplesmente, China, ou "a mulher dos seus sonhos". Ben queria chamá-la de esposa.

Era estranho ela continuar resistindo. Não conseguia imaginar-se em qualquer outro lu­gar, ou ao lado de qualquer outro homem. No entanto, algo dentro dela estava mudando. China podia sentir a mudança, dia a dia. Ergueu os olhos para o sol, calculando que horas eram e quando teria de começar a preparar o jantar. Ben ainda demoraria horas para vol­tar do campo

Inquieta, levantou-se abruptamente, tirou a poeira do short com as mãos e seguiu na di­reção do estábulo para ver Cowboy. Parou no portão, como sempre fazia, para enterrar o nariz nas madressilvas e sentir-lhes a fragrância rica e adocicada. Ao inclinar-se, um pe­queno movimento chamou-lhe a atenção, e ela ergueu os olhos.

Pendurado em uma haste, pelo que parecia um minúsculo fio de seda, havia um casulo aberto. De dentro dele emergia uma pequena borboleta, as asas ainda molhadas e dobradas de encontro ao corpo.

Era um milagre poder assistir àquele mo­mento de renascimento. China prendeu a res­piração, observando a borboleta arrastar-se até a haste e esperar, como um lenço de seda ao vento, enquanto suas asas secavam. Pouco a pouco, as asinhas começaram a se agitar, para então se abrirem, revelando tons de amarelo, emoldurados pelo contorno preto.

China estendeu um dedo e, como se sentisse o calor de sua pele, a borboleta deixou a haste e colocou-se em sua mão, adiando o momento de voar.

De repente, China voltou a ser uma criança, escondendo-se de Clyde, debaixo da varanda da casa de sua mãe. Viu a pequena lagarta marrom arrastando-se pela grama, lembrou-se de ter se sentido feia e insignificante. Só agora dava-se conta de que havia vivido toda a sua vida, pensando assim, nunca vendo a si mesma como uma mulher vibrante, mas enxergando-se através dos olhos de um ho­mem amargurado. Ele a chamara de feia e tentara afogá-la, como algumas pessoas fazem com animais que não desejam criar.

Embora houvesse crescido e amadurecido, ha­via uma parte dela que ela mantivera escondida. E essa parte permanecera pendurada em algum recanto de sua mente, assim como o casulo ficara pendurado na haste da flor, sem se dar conta das mudanças que ocorriam dentro de si.

Então, a borboleta subitamente ergueu-se da ponta de seu dedo, sustentando-se no ar, como um helicóptero decolando. Deixando-se ajudar por uma brisa leve, desapareceu do ou­tro lado da casa.

China ficou ali parada, em estado de choque, olhando em volta, observando tudo o que havia ao seu redor. Então, lentamente, levou as mãos ao rosto. Elas começaram a tremer quando China tocou os próprios traços, esculpindo uma nova imagem em sua mente. De repente, descobriu que tinha de ver com os próprios olhos se o que estava sentindo era mesmo verdade.

Correu para dentro da casa e, uma vez em seu quarto, parou diante do espelho. Ficou ali parada, olhando fixamente para a mulher que a encarava.

Seus cabelos eram fartos e longos, e estavam presos na nuca por uma fita tão azul quanto seus olhos. Suas faces estavam coradas, a pele levemente bronzeada, e o sorriso que curvava seus lábios vinha de dentro dela. Estendeu as mãos para o espelho e pousou-as sobre o vidro, mas a mulher que China via não estava lá. Voltou a tocar o próprio rosto, sentindo o calor da própria pele. Então, fechou os olhos, dei­xando-se invadir por um profundo sentimento de felicidade.

Em algum ponto entre a perda de sua filha e o calor dos braços de Ben, ela havia se trans­formado em uma mulher que era bonita por­que se sentia amada.

Afastou-se do espelho, temendo separar-se da felicidade que via no rosto daquela mulher. Então sorriu. A mulher retribuiu seu sorriso, como se dissesse: "Está tudo bem. Estarei sempre aqui".

China riu alto e saiu com passos largos e determinados. Quando chegou ao quintal e to­mou o rumo do pasto, onde Ben continuava cortando feno, começou a correr.

Ben a viu aproximar-se. Ao perceber que ela corria, sentiu um aperto de medo no peito. Só então avistou o rosto dela e deu-se conta de que ela estava rindo. Ele não sabia o que havia acontecido, mas queria partilhar daquela alegria. Parou o trator no meio do campo e saiu da cabine apressado. Quando começou a correr para ela, teve a impressão de que ela voava, pulando de uma fileira de feno cortado para outra, como uma borboleta voa de uma flor para outra.

Tomou-a nos braços, rindo, embora não sou­besse por quê. E quando China enroscou os dedos em seus cabelos e disse que o amava, Ben soube que algo havia mudado.

— O que aconteceu? — perguntou.

Não haveria como explicar o que ela sentia. Por isso, ela fez a única coisa possível no mo­mento: entregou-lhe seu coração.

— Bennie, se eu fizesse uma pergunta séria, você me diria a verdade?

— Sempre.

— Promete? Ele sorriu.

— Prometo.

— Sou bonita para você, não sou?

Ben sentiu um nó se formar em sua gar­ganta, ao mesmo tempo que seus olhos se en­chiam de lágrimas.

— Sim, querida, mais do que as palavras podem descrever.

Ela riu e atirou as mãos para o alto, como se houvesse conquistado uma grande vitória. Ele continuava sem saber o que estava acontecendo, mas já começava a gostar.

— Então, não acha que deveria se casar logo comigo, antes que os homens façam uma fila em nossa porta?

Um sorriso da mais pura alegria curvou os lábios de Ben.

— China Brown, está me pedindo em casamento?

Ela sorriu.

— Sim, estou.

Ele a tomou nos braços e girou lentamente, saboreando o som do riso dela e as curvas suaves e sensuais contra seu corpo.

— Isso quer dizer sim? — China perguntou. Em vez de responder, Ben alargou o sorriso.

— É um "sim"! — ela gritou. — Ele aceitou!

— Não sei o que aconteceu com você, mas seja o que for, serei eternamente grato.

China beijou-o com ardor, saboreando a ver­dade em seu coração.

— Não aconteceu nada. Apenas vi uma borboleta.

 

                                                                                Sharon Sala  

 

                      

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