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Planeta Criança



Poesia & Contos Infantis

 

 

 


Borboleta / V. C. Andrews
Borboleta / V. C. Andrews

 

 

                                                                                                                                   

 

 

 

 

Ela era a resposta para todos os sonhos de seus novos pais... mas tão frágil quanto uma borboleta...

Ao que se lembrava, seu mundo sempre fora o orfanato, com suas brincadeiras cruéis e o desejo silencioso do dia em que teria a própria família. Janet mal conseguiu acreditar quando Sanford e Celine Delorice a escolheram como filha, afastando-a de seu trágico passado.

Seu novo pai é bonito e gentil. Celine, embora confinada a uma cadeira de rodas, é a mulher mais linda e elegante que Janet já conheceu.

Logo Janet aprende sem dificuldade as rotinas da enorme propriedade, inclusive do estúdio em que toma aulas de balé com uma professora rigorosa. Celine está convencida de que um dia Janet irá deslumbrar audiências como bailarina, como ela própria fazia antes de seu acidente automobilístico. Ansiosa em proporcionar alegria a seus pais, Janet procura agradá-los com todo empenho. Mas dança sobre uma frágil teia de felicidade, jamais sabendo o que poderá acontecer se um filamento romper...

 

 

 

 

Eu estava sozinha na sala da sra. McGuire, aguardando o encontro com o casal que pedira para me ver. Sentar ”direito” na cadeira de encosto reto, ao lado da mesa da sra. McGuire, fazia minhas costas doerem, mas eu sabia por experiências passadas que tinha de mostrar o meu melhor comportamento. A sra. McGuire era diretora do orfanato e ficava furiosa quando tínhamos uma postura relaxada ou fazíamos qualquer coisa ”imprópria” na presença de visitas.

— Postura, postura! — gritava ela, quando passava por nós no refeitório.

Todas assumíamos posição de sentido. As que não obedeciam, no mesmo instante, tinham de passar horas andando com um livro na cabeça... e se o livro caísse, eram obrigadas a repetir o exercício no dia seguinte.

— Vocês são órfãs — lembrava ela — à procura de pessoas simpáticas que queiram tirá-las daqui e levá-las para suas casas, para serem parte de suas famílias. Devem ser melhores do que as outras crianças, as que já têm pais e casas. Devem ser mais saudáveis, mais inteligentes, mais educadas, e certamente mais respeitosas.


Sua voz costumava ficar estridente nesses longos discursos. Seus olhos contemplavam cada órfão e, todos com uma visão crítica, os lábios finos contraídos, enquanto continuava:

— Em suma, devem se tornar desejáveis. Por que alguém haveria de querer que um de vocês fosse seu filho ou filha?

Ela tinha razão. Quem poderia me querer? Eu havia nascido prematura. Alguns meninos e meninas diziam que eu era raquítica. Ainda no dia anterior Donald Lawson me chamara de Anã.

— Mesmo quando já estiver na escola secundária, ainda vai usar roupas de garotinha — zombara ele.

Donald se afastara com a cabeça erguida. Compreendi que ele se sentia melhor por me fazer sentir pior. Minhas lágrimas eram como troféus para ele. Não se arrependia por vê-las. Em vez disso, serviam para encorajá-lo.

— Até suas lágrimas são pequenas — entoara ele, ao passar por mim no corredor. — Talvez fosse melhor chamá-la de Pequenas Lágrimas em vez de Anã.

As crianças no orfanato não eram as únicas que pensavam que havia alguma coisa errada comigo. Margaret Lester, a garota mais alta do orfanato, quatorze anos com pernas que pareciam se estender até os ombros, ouvira o último casal conversando a meu respeito, e correra para me contar todas as coisas horríveis que haviam dito.

— O homem falou que achou você adorável, mas quando descobriram sua idade, queriam saber por que era tão pequena. A mulher disse que você devia ser doente, e por isso decidiram procurar outra criança.

Margaret contara tudo com um sorriso insinuante. Nenhum pai ou mãe em potencial olhava para ela. Por isso se sentia feliz quando um de nós era rejeitado.

— Não sou doente — murmurei em minha defesa. — Nem mesmo tive um resfriado durante o ano inteiro.

Sempre falava em voz baixa e suave; se tenho de repetir alguma coisa, faço um esforço para falar mais alto. A sra. McGuire dizia que eu deveria parecer mais segura.

— Pode ser um pouco tímida, Janet. Afinal, a maioria das crianças de hoje é barulhenta e desagradável, mas as pessoas irão ignorá-la se for modesta demais. Vão pensar que é retraída como uma tartaruga, mais à vontade dentro do casco. E você não vai querer isso, não é mesmo?

Sacudi a cabeça, mas ela continuou no sermão:

— Pois então fique empertigada quando falar com as pessoas. Olhe para elas, não para o chão. E não retorça os dedos desse jeito. Estique os ombros para trás. Precisa de toda altura que puder alcançar.

Quando entrei hoje em sua sala, ela me mandou sentar naquela cadeira. Pôs-se a andar de um lado para o outro na minha frente, os saltos altos ressoando no chão de ladrilhos, enquanto me aconselhava e orientava sobre a maneira de me comportar quando os Delorices chegassem. Eram os nomes deles, Sanford e Celine Delorice. Claro que eu nunca os vira antes. A sra. McGuire, porém, informou que eles já tinham me visto algumas vezes. O que era uma surpresa. Algumas vezes? Não pude deixar de especular quando; e se era verdade, por que eu nunca os vira?

— Eles sabem muita coisa a seu respeito, Janet, e ainda assim continuam interessados. É a sua melhor oportunidade até agora. Compreende isso? — Ela fez uma pausa para me avaliar, antes de acrescentar, ríspida: — Sente-se direito!

Obedeci no mesmo instante.

— Sim, sra. McGuire.


— Como? — Ela pôs a mão atrás da orelha e inclinou-se para mim. — Disse alguma coisa, Janet?

— Sim, sra. McGuire.

— Sim o quê? — perguntou ela, recuando, as mãos nos quadris.

— Sim, compreendo que esta é a minha melhor oportunidade, sra. McGuire.

— Ótimo. Mantenha voz forte e firme. Só fale quando lhe dirigirem a palavra. Sorria o máximo que puder. Não abra demais as pernas. Assim está bom.

Mostre as mãos.

Ela pegou minhas mãos entre seus dedos compridos e finos. Virou-as de uma maneira tão brusca que

meus pulsos doeram.

— Muito bem. Sabe se cuidar, Janet. Acho que é um ponto positivo em seu favor. Algumas de nossas crianças, como bem sabe, acham que são alérgicas ao banho.

A sra. McGuire olhou para o relógio.

— Eles já devem estar chegando. Vou sair para recebê-los. Espere aqui. Quando passarmos pela porta, levante-se para cumprimentá-los. Entendido?

— Sim, sra. McGuire.

Ela tornou a estender a mão para trás da orelha. Limpei a garganta e tentei de novo:

— Sim, sra. McGuire.

Ela sacudiu a cabeça, com uma expressão de imensa tristeza, os olhos cheios de dúvida.

— Esta é a sua grande oportunidade, Janet... sua melhor oportunidade. Talvez sua última oportunidade.

A sra. McGuire deixou a sala.

Agora eu continuava sentada ali, olhando para a estante, os retratos na mesa, as cartas emolduradas nas paredes dando-lhe os parabéns por seu desempenho como diretora de nossa agência de bem-estar infantil no interior do Estado de Nova York. Logo me cansei de observar as coisas que decoravam a sala da sra. McGuire. Virei-me na cadeira para olhar pela janela. Era um dia de primavera ensolarado. Suspirei ao contemplar as árvores, as folhas verdes lustrosas, as flores desabrochando. Tudo parecia me chamar. E tudo crescia depressa, por causa das fortes chuvas da primavera. Percebi logo que Philip, o jardineiro, não estava muito satisfeito por ter de cortar os gramados intermináveis ainda no início da estação. Seu rosto se contraía numa cara amarrada. Quase que eu podia ouvi-lo resmungar que a grama estava crescendo tão depressa naquele ano que se podia até observar o crescimento. Por um momento, deixei os pensamentos vaguearem, ao som monótono do cortador de grama de Philip, ao sol ofuscante que entrava pela janela.

Tentei recordar minha mãe verdadeira, mas nas lembranças mais antigas eu já estava no orfanato. O outro orfanato, não este, aquele em que fiquei até ser transferida para cá, quando tinha quase sete anos. Agora estou com quase treze anos, mas até eu admitiria que não pareço ter mais do que nove, talvez dez. Porque não podia lembrar minha mãe verdadeira, Tommy Turner dizia que provavelmente eu era um daqueles bebés que os médicos fazem em laboratório.

— Aposto que você nasceu num tubo de ensaio, e por isso é tão pequena. Alguma coisa saiu errada com a experiência.

Ele disse isso quando saíamos do refeitório, na noite passada. Todas as outras crianças acharam muito engraçado e riram de sua piada. Riram de mim.

— A mãe e o pai de Janet eram tubos de ensaio — zombaram todos.

— Não — declarou Tommy. — O pai era uma seringa e a mãe um tubo de ensaio.

— Então quem deu a ela o nome de Janet? — perguntou Margaret, hesitante.

Tommy teve de pensar um pouco.

— Era o nome da técnica de laboratório, Janet Taylor. Por isso foi o escolhido.

Pelas expressões em seus rostos, pude compreender que as outras crianças acreditavam nele.

E na noite passada, como nas outras noites, eu desejara com toda a força do meu coração poder saber qualquer coisa sobre o meu passado, algum fato, um nome, algo que pudesse dizer a Tommy e aos outros, para provar que já tivera um pai e uma mãe de verdade. Não era uma anã, muito menos um bebê de proveta, mas sim... ora, eu era como uma borboleta, destinada a ser linda e a subir muito acima do solo, muito acima dos problemas e dúvidas, muito acima de crianças implicantes que achavam graça das outras pessoas só porque eram menores e mais fracas.

O problema é que até agora eu não saíra do casulo. Ainda era uma menina tímida, enroscada em meu mundo quieto e aconchegante. Sabia que um dia teria de me livrar dessa timidez, ser mais corajosa, falar mais firme, me tornar mais alta, mas naquele momento tudo isso parecia assustador demais. A única maneira que eu conhecia para me esquivar das zombarias e evitar que as outras crianças me provocassem tanto, era permanecer em meu casulo... um lugar quente e seguro, onde ninguém podia me magoar. Mas um dia eu subiria muito alto. Como uma linda borboleta, voaria bem alto, pairando acima de todos. Mostraria o que Podia fazer. Algum dia...

 

— Janet! — Ouvi o sussurro da sra. McGuire e abri os olhos no mesmo instante. Ela tinha uma expressão de raiva, a boca contorcida, os olhos cinzentos arregalados e brilhando como fogos de artifício. — Sente-se direito!

Depois ela forçou um sorriso e virou-se para o casal por trás.

— Por aqui, sr. e sra. Delorice — acrescentou ela, num tom muito mais simpático.

Respirei fundo, prendi o ar nos pulmões. O coração disparado soava como um tambor dentro do meu peito. A sra. McGuire foi se postar atrás de mim, para que os Delorices pudessem me ver direito. O sr. Delorice era alto e magro, com cabelos escuros e olhos sonolentos. A sra. Delorice sentava-se numa cadeira de rodas. Era bonita, os cabelos da cor de pôr-do-sol vermelho. Tinha feições pequenas, como as minhas, mas com proporções mais perfeitas. Os cabelos flutuavam em torno dos ombros, em ondas suaves. Não havia nada de doentio ou frágil em sua aparência, apesar da cadeira de rodas. A pele tinha uma tonalidade de pêssego com creme, os lábios eram como morangos frescos.

Usava um vestido amarelo, minha cor predileta, com um colar de pérolas pequenas no pescoço. Parecia com todas as outras mães em potencial que eu já vira, exceto pela cadeira de rodas e as sapatilhas pequenas. Embora eu nunca tivesse visto antes sapatilhas de balé, achei que eram aquilo. Mas se estava numa cadeira de rodas, por que usava sapatilhas de balé?

O sr. Delorice empurrou-a até a minha frente. Eu estava fascinada demais para fazer qualquer movimento, quanto mais falar. Por que uma mulher numa cadeira de rodas queria adotar uma criança como eu?

— Sr. e sra. Delorice, esta é Janet Taylor. Janet, sr. e sra. Delorice.

-Olá.

Obviamente, não falei bastante alto para agradar a sra. McGuire. Ela gesticulou para que eu ficasse de pé e me levantei apressada.

— Por favor, minha cara, pode nos chamar de Sanford e Celine — disse a mulher bonita.

Ela estendeu a mão. Apertei-a, cautelosa. Surpreendi-me com a firmeza com que seus dedos envolveram os meus. Por um momento, olhamos apenas uma para a outra. Depois, fitei Sanford Delorice.

Ele me observava, os olhos bem abertos, revelando sua mistura de castanho e verde. Tinha os cabelos bem curtos, o que fazia com que o rosto magro parecesse ainda mais longo e estreito. Usava um casaco esporte cinza-escuro, sem gravata, uma calça azul-marinho. Os dois botões de cima da camisa branca estavam abertos. Pensei que devia ser para proporcionar espaço de movimento ao pomo-de-adão saliente.

— Ela é perfeita, Sanford, simplesmente perfeita, não concorda? — murmurou Celine, fitando-me.

— É, sim, querida.

Os dedos compridos de Sanford ainda apertavam a barra da cadeira de rodas, como se estivessem presos ou sentissem medo de largar.

— Alguma vez ela estudou artes? — perguntou Celine à sra. McGuire.

A mulher não olhou para a sra. McGuire ao falar. Não desviava os olhos de mim. Embora aquilo começasse a me deixar arrepiada, também não conseguia desviar os olhos.

— Artes?

— Canto, dança... balé, por acaso?

— Oh, não, sra. Delorice. As crianças aqui não são tão afortunadas.

Os olhos de Celine se tornaram menores, fixados nos meus com uma intensidade ainda maior.

— Janet será... isso mesmo, será muito afortunada — previu ela, com ar de certeza absoluta. Depois, sorriu e acrescentou: — Gostaria de morar com Sanford e comigo, Janet? Terá seu próprio quarto, grande e confortável. Estudará numa escola particular. Compraremos roupas novas para você, inclusive sapatos. Terá uma área separada no quarto para os deveres de casa, um banheiro só seu. Tenho certeza de que vai gostar de nossa casa. Vivemos nos arredores de Albany, com um jardim tão grande quanto o daqui, se não maior.

— Parece maravilhoso.

A sra. McGuire fez o comentário como se o novo lar lhe fosse oferecido. Mas a sra. Delorice não parecia nem um pouco interessada no que ela dizia. Em vez disso, continuou a me fitar, aguardando a minha resposta.

— Janet? — interveio a sra. McGuire, depois de longo momento de silêncio.

Como eu podia recusar aquela oferta? E, no entanto, quando olhei para Sanford e de novo para Celine, não pude deixar de sentir pequenos passos de apreensão atravessando meu coração na ponta dos pés. Mas tratei de expulsá-los da mente, olhei para a sra. McGuire, acenei com a cabeça.

— Eu gostaria muito — declarei, desejando ser tão boa quanto a sra. McGuire na simulação de um sorriso.

— Ótimo! — Celine virou-se na cadeira de rodas para a sra. McGuire. — Quando ela poderá partir?

— Temos de cumprir todas as formalidades. Mas sabendo de tudo o que já sabemos a respeito da senhora e seu marido, as sólidas referências, o relatório da assistente social, etc., creio que...

— Podemos levá-la conosco hoje? — indagou Celine, impaciente.

Meu coração parou por um instante. Hoje? Tão depressa?

Por uma vez, a sra. McGuire ficou desorientada, sem saber o que dizer.

— Acho que é possível — respondeu ela, ao final de uma longa pausa.

— Assim é melhor — disse Celine. — Sanford, por que não fica com a sra. McGuire e cuida de todas as formalidades necessárias? Enquanto isso, Janet e eu podemos sair e nos conhecer melhor.

Devia ser uma sugestão, eu suponho, mas soou como uma ordem para mim. Olhei para o sr. Delorice. Percebi que ele tinha os músculos dos maxilares contraídos, enquanto os dedos apertavam a barra da cadeira de rodas com toda força.

— Mas há documentos que exigem as assinaturas dos dois — insistiu a sra. McGuire.

— Sanford tem uma procuração minha, pode assinar qualquer documento no meu lugar. — Celine olhou para mim, sorrindo. — Janet, quer empurrar minha cadeira? Não peso tanto assim.

Olhei para a sra. McGuire. Ela acenou com a cabeça.

Sanford saiu de trás da cadeira, para que eu pudesse assumir a posição.

— Para onde vamos, Janet?

— Acho que podemos sair para o jardim — respondi, indecisa.

A sra. McGuire tornou a acenar com a cabeça.

— É uma idéia maravilhosa. — Quando comecei a empurrá-la para a porta, ela acrescentou: — Não demore mais do que o necessário, Sanford.

Adiantei-me, abri a porta, depois saímos. Comecei a empurrá-la pelo corredor, emocionada e espantada com o que estava acontecendo. Não apenas teria pais agora, mas também encontrara uma mãe que queria que eu cuidasse dela, quase tanto quanto eu queria que cuidasse de mim. Era um estranho e maravilhoso começo, pensei, enquanto empurrava minha nova mãe para o dia ensolarado que nos aguardava.

— Tem sido difícil para você viver aqui, Janet? — perguntou Celine lá fora, enquanto seguíamos pelo caminho que levava ao jardim.

— Não, madame — respondi, fazendo um esforço para não me distrair com as crianças que olhavam para nós.

— Não me chame de madame, Janet, por favor. — Ela virou-se para pôr a mão sobre a minha. Sua mão era quente. — Por que não me chama de mamãe? Não vamos esperar para nos conhecermos melhor. Faça isso desde já.

— Está bem.

Dava para perceber que a sra. Delorice não gostava que discutissem suas decisões.

— Fala muito baixo, querida. Imagino que se sentia insignificante. Mas não vai mais se sentir assim. Você vai ser famosa, Janet. Vai ser espetacular.

Ela fez a declaração com tanta veemência que quase fiquei sem fôlego.

- Eu?

— Isso mesmo, Janet, você. Dê a volta e sente-se neste banco.

Havíamos alcançado o primeiro banco no caminho. A sra. Delorice cruzou as mãos no colo e esperou até eu sentar. Depois, sorriu e continuou a falar:

— Você flutua, Janet. Sabia disso? Desliza como se estivesse andando sobre uma nuvem. É instintivo. A graciosidade é uma coisa com que se nasce ou não, Janet. Não se pode aprender. Ninguém pode ensinar.

Ela fez uma pausa, os olhos verdes se tornaram sombrios.

— Houve um tempo em que eu era graciosa. Também deslizava como você. Mas... — a expressão mudou de repente, o tom voltou a ser mais leve, mais feliz — vamos falar primeiro sobre você. Eu a tenho observado.

— Quando? — perguntei, recordando o que a sra. McGuire me contara.

— Em diversas ocasiões, há cerca de duas semanas. Sanford e eu estivemos aqui em diferentes horas, durante o dia. Em geral ficávamos sentados no carro, observando você e seus infelizes irmãos e irmãs brincando. Fui até vê-la na escola.

Escancarei a boca em surpresa. Haviam me seguido até a escola? Ela riu.

— Quando a vi pela primeira vez, compreendi que precisava de você. Lembra-me muito de mim mesma quando tinha a sua idade.

— Sou tão parecida?

— É, sim. Quando voltava para casa com Sanford, eu pensava em você, sonhava com você. Até a via dêscendo pela escada de nossa casa, deslizando de um lado para outro. Podia até ouvir a música.

A sra. Delorice tinha uma expressão distante nos olhos. Comecei a pensar que ela podia ser um pouco mais do que apenas mandona.

— Que música?

— A música que você vai dançar, Janet. Ah... — Ela se inclinou para a frente, pegou minha mão. — Há tanta coisa para lhe dizer, tanta coisa para fazer... Mal posso esperar para começar. Por isso é que eu queria que Sanford resolvesse logo as formalidades e nos levasse para casa. O lar... Ela fez uma pausa, repetiu a palavra, o tom ainda mais suave: — O lar. É uma palavra desconhecida para você, não é mesmo? Nunca teve um lar. Sei de tudo a seu respeito.

— Pode me contar o que sabe?

Talvez ela soubesse alguma coisa sobre meu pai e minha mãe de verdade.

— Sei que ficou órfã logo depois que nasceu. Sei que algumas pessoas idiotas vieram procurar crianças para adotar e a preteriram. Pior para elas e melhor para mim!

A sra. Delorice soltou uma risada estridente.

— O que quis dizer quando falou na música que eu dançaria?

Ela largou minha mão e recostou-se. Por um momento, pensei que não ia responder. Desviou os olhos para as árvores. Um pardal pousou perto e olhou para nós, curioso.

— Depois que a escolhi, passei a observá-la e imaginei uma apresentação sua — explicou a sra. Delorice. — Estudei seu jeito de andar, os gestos, a postura, a fim de determinar se era capaz de ser preparada para se tornar a bailarina que eu deveria ser, a bailarina que não posso agora sequer sonhar em me tornar. Gostaria disso? Gostaria de ser uma bailarina famosa, Janet?

— Uma bailarina famosa? Eu nunca tinha pensado nisso. — Minha resposta era sincera. — Gosto de dançar. E gosto também de música.

— Claro que gosta. Uma pessoa com a sua graciosidade e ritmo natural não pode deixar de amar a música. Tenho certeza de que vai amar também a dança. E adorar o poder. Vai sentir...

Ela fechou os olhos, respirou fundo. Quando tornou a abrir os olhos, vi que irradiavam uma luz estranha.

— Vai sentir que pode alçar voo como uma ave. Quando for boa... e será muito boa... você se perderá na música, Janet. A música vai arrebatá-la, como aconteceu comigo, muitas e muitas vezes, antes de me tornar aleijada.

— O que aconteceu com a senhora?

Eu sabia que a pergunta era uma impertinência. Parecia óbvio que falar sobre dança a deixava emocionada, mas a estranha luz em seus olhos me punha nervosa. Queria que ela fizesse outra coisa que não olhar para mim com tanta intensidade.

A sra. Delorice perdeu o sorriso suave e sonhador. Olhou para o prédio, antes de tornar a se virar para mim e responder:

— Sofri um terrível acidente de carro. Sanford perdeu o controle do carro uma noite, quando voltávamos de uma festa. Ele havia bebido além da conta, embora nunca vá admitir isso. Alegou que foi ofuscado pelos faróis de um caminhão. Saímos da estrada e batemos numa árvore. Ele usava o cinto de segurança, mas eu esquecera de pôr o meu. A porta abriu e fui jogada para fora do carro. Sofri uma grave lesão na coluna. Quase morri.

— Sinto muito — murmurei.

O rosto da sra. Delorice se tornou duro de repente, as linhas se aprofundaram, enquanto sombras escureciam sua pele.

— Já não sinto mais nada. Lamentei por anos, mas ter pena de si mesma não ajuda em nada, Janet. Nunca se entregue à autocompaixão. Você se torna incapaz de ajudar a si mesma.

Ela fez uma pausa. O excitamento ressurgiu, o brilho voltou a seus olhos, quando continuou:

— Tenho muita coisa para lhe dizer, Janet, muita coisa para ensinar. Vai ser maravilhoso para nós duas. Não se sente excitada também?

— Sinto, sim.

Era verdade, mas tudo avançava depressa demais. Eu não podia deixar de me sentir também nervosa e um pouco assustada.

A sra. Delorice tornou a se virar para o prédio.

— Onde ele está? Nunca vi um homem perder tanto tempo em bobagens. Mas você vai admirá-lo por sua compaixão e sensibilidade, Janet. Não há nada que ele não faça por mim agora. — O sorriso se alargou quando ela acrescentou: — E também não vai haver nada que ele não fará por você.

Ela fez uma pausa.

— Pense a respeito, Janet, pense um pouco. Pela primeira vez em sua vida, você terá duas pessoas afetuosas que se importarão mais com você do que com elas próprias. Isso mesmo, minha querida e preciosa Janet, é a pura verdade. Olhe para mim. Por que eu deveria continuar a me preocupar comigo? Sou prisioneira deste corpo aleijado pelo resto da minha vida. Já Sanford... ora, Sanford vive para me fazer feliz. Portanto, minha cara... — a sra. Delorice soltou outra vez aquela risada estridente — se a minha felicidade depender da sua felicidade, Sanford vai cuidar bem de você tanto quanto eu. Você será feliz, Janet.

Ela falou com tanta firmeza que me senti assustada. Era quase como se estivesse me ordenando para ser feliz.

— Eu prometo, Janet.

Sanford saiu do prédio naquele momento.

— Já era tempo — murmurou ela. — Vamos embora, Janet querida. Você vai começar agora sua nova vida. Pense nisso como seu verdadeiro nascimento. Certo? Até usaremos este dia para comemorar seu aniversário, daqui por diante. Por que não? Concorda? Gosto da idéia.

A sra. Delorice soltou mais uma vez sua risada estridente e exclamou:

— Hoje é seu aniversário!

Antes que eu pudesse responder, ela gritou:

- Sanford!

Para ser sincera, eu não sabia o que dizer. Meu aniversário nunca fora uma data especial para mim. Quando ele chegou perto, a sra. Delorice declarou:

— Este dia é mais extraordinário do que imaginávamos. É o aniversário de Janet.

— É mesmo? — perguntou ele, parecendo confuso. — Mas eu pensei que...

— É, sim.

Ela falou num tom incisivo, como se gravasse as palavras no ar entre os dois. O marido acenou com a cabeça.

A sra. Delorice me estendeu a mão.

— Vamos embora logo, Janet. Temos de chegar em casa para comemorar.

Quando percebi a expressão sombria de Sanford e me lembrei da luz estranha nos olhos da sra. Delorice, não pude deixar de me perguntar em que confusão me metera.

 

Apesar dos anos em que vivera no orfanato, não havia ninguém que eu lamentasse deixar para trás. Minhas despedidas foram rápidas. As pessoas que haviam zombado de mim por tanto tempo apenas me olharam com a maior inveja. Ninguém tinha muito o que dizer. Só Margaret me procurou quando eu pegava minhas coisas e sussurrou:

— Que tipo de mãe é essa, numa cadeira de rodas?

— Uma mãe que quer me amar.

Com essa resposta, deixei-a mordendo a parte interna da bochecha. Celine já estava no carro, esperando. Sanford me ajudou a guardar minhas coisas na mala, depois abriu a porta para mim, como se fosse meu motorista. Era um carro preto que parecia ser muito caro, os bancos de couro macios como marshmallow. O carro era tão grande quanto uma limusine. E tinha a fragrância de rosas frescas.

— Olhe só para ela, Sanford — disse Celine. — Não se sente nem um pouco arrependida por deixar este lugar. Não é verdade, querida?

— É, sim... — a palavra seguinte parecia difícil de se formar, muito estranha para mim. Minha língua tropeçou ao pronunciá-la. — mamãe.

— Ouviu isso, Sanford? Ouviu como ela me chamou?

— Ouvi, meu bem. — Ele olhou para mim e sorriu pela primeira vez desde que eu o conhecera. — Seja bem-vinda à nossa família, Janet.

— Obrigada.

Mas eu sabia que falara baixo demais para que qualquer dos dois pudesse ouvir.

— Tivemos uma boa conversa enquanto você preenchia formulários no escritório, Sanford.

— É mesmo?

— Janet me contou que adora dançar.

— Verdade?

Sanford parecia surpreso. Eu dissera que gostava de dançar, mas nunca dançara o suficiente para poder dizer que amava, ainda mais o tipo de dança a que ela se referia. A sra. Delorice virou a cabeça para me fitar.

— Eu era menor do que você quando comecei a dançar, Janet. Minha mãe me dava o maior apoio, talvez porque a mãe dela, minha avó Annie, tivesse sido uma prima ballerina. Partiu o coração de minha mãe quase tanto quanto o meu quando tive de parar de dançar.

Como ela me fitava, pude verificar que aquela estranha luz retornara a seus olhos. Depois de respirar fundo, a sra. Delorice continuou:

— Meus pais ainda estão vivos. Moram na mesma casa em Westchester onde meu irmão Daniel e eu fomos criados.

Meu coração voltou a bater forte. Uma coisa era sonhar em ter um pai e uma mãe, outra era pensar numa família inteira, com avós, tios e tias. Talvez houvesse uma prima também, uma garota mais ou menos da minha idade, que pudesse se tornar minha melhor amiga.

— Infelizmente, os pais de Sanford já morreram. — Ela lançou outro olhar para o marido. — Sua irmã Marlene mora em Denver, mas quase não nos vemos. Ela não me aprova.

— Celine, por favor... — murmurou ele.

— Sanford tem razão. Nada de desagradável hoje. Nunca mais. Você não precisa conhecer todas as coisas desagradáveis que tive de suportar, Janet. Já teve problemas demais em sua pobre vida. Também não precisa se preocupar com dinheiro. Somos ricos.

— Não deve dizer essas coisas, Celine.

A censura de Sanford foi no tom mais gentil possível, mas percebi no mesmo instante que ele se arrependia de ter falado.

— Por que não? Por que eu não deveria me orgulhar disso? Sanford possui e dirige uma fábrica de vidro. Não é tão grande quanto a Corning, mas somos uma concorrente, não é mesmo, Sanford?

— É, sim, querida. — Ele tornou a olhar para mim. — Depois que você estiver assentada, eu lhe mostrarei a fábrica.

— Pode mostrar, Sanford, mas quero que saiba que ela não vai passar muito tempo ali. Ficará bastante ocupada com a escola e as aulas de balé.

Uma gota de gelo escorreu pela minha espinha.

— E se eu não for capaz de me tornar uma bailarina? O medo me dominou. Será que me mandariam de volta?

— Não ser capaz? Não diga bobagem, Janet. Eu disse que você tem a graciosidade necessária. Você já dança. Isso mesmo, dança quando anda na maneira como fica parada, na maneira como olha para as pessoas, na maneira como se senta. Como eu também tinha esse talento, sei como reconhecê-lo em outra pessoa. Você não vai fracassar. — O sorriso de Celline era de confiança absoluta. — Não permitirei que fracasse. Serei seu amortecedor, seu pára-quedas. Não vai sofrer o mesmo tipo de desapontamento que eu sofri.

Ainda mais ansiosa, comprimi os braços contra o corpo. Quando era menor, fingia que meus braços eram os braços de minha mãe, me abraçando. Fechava os olhos e imaginava a fragrância de seus cabelos, a suavidade de seu rosto, o calor de seus lábios em minha testa. Celine alguma vez me abraçaria assim? Ou o fato de ela viver numa cadeira de rodas tornaria isso muito difícil?

Olhei pela janela para a paisagem. Era como se o mundo inteiro tivesse se tornado líquido e passasse correndo por nós, num fluxo de árvores, casas, campos e até pessoas. Poucas nos dispensavam qualquer atenção, embora eu me sentisse muito especial. Deveriam estar batendo palmas enquanto passávamos. Eu não era mais uma órfã.

— Parece que teremos chuva pela frente. Sanford acenou com a cabeça para uma massa de nuvens escuras que vinha do horizonte em nossa direção.

— Essa não! — exclamou Celine. — Quero que o sol brilhe durante o dia inteiro!

Sanford sorriu e pude sentir que sua tensão se desanuviava.

— Verei o que posso fazer.

Pela maneira como ele a contemplou, apaixonado, não tive a menor dúvida de que, se pudesse, moldaria o tempo e o mundo para agradá-la. Havia amor ali, pensei, algum tipo de amor. Eu só esperava que fosse do tipo certo.

Quando finalmente vi a casa, pensei que tinha caído num livro de histórias. Ninguém podia viver numa casa assim, foi o pensamento que me ocorreu, enquanto subíamos pelo longo caminho circular, com sebes aparadas com perfeição nas alamedas. Havia lampiões de um cinza escuro a intervalos regulares, as lâmpadas em armações de latão. Celine não exagerara. Eles tinham um gramado maior que o orfanato. Havia frondosos bordos vermelhos, parecendo rubis escuros, além de um par de salgueiros-chorões, as pontas dos galhos tocando no chão para formar uma caverna de sombras. Mal pude divisar os contornos de dois bancos e um pequeno chafariz, cercado pela escuridão. Esquilos corriam em torno do chafariz, por cima dos bancos, pelas árvores, através do gramado, com uma energia nervosa e feliz. Um coelho saiu de trás das árvores, olhou em nossa direção, e depois disparou para a relva mais alta. Virei-me para contemplar a casa, de dois andares, com uma varanda ao redor. Dois tordos desfilavam sobre os quatro degraus de madeira na frente. Ao lado havia uma rampa para a cadeira de rodas de Celine, com um pardal postado ali, tão imóvel que parecia empalhado.

Tudo parecia mágico, como se as coisas fossem tocadas por uma varinha de condão e adquirissem vida.

— Lar, doce lar — declarou Celine. — Fizemos muitas coisas para modernizar a casa, depois que a compramos. É vitoriana.

Eu não sabia o que isso significava; pela maneira como ela falou, no entanto, compreendi que se tratava de uma coisa importante.

A casa parecia ter sido pintada pouco antes, com um branco brilhante. A porta dupla de entrada tinha vidro espelhado na metade superior. Todas as janelas no primeiro e segundo andares tinham cortinas transparentes. Só as janelas do sótão eram escuras, dando a impressão de que tinham cortinas cinza, fechadas.

- Seu quarto dá para o leste, e assim terá o sol para acordá-la todas as manhãs — explicou Celine.

À direita e logo atrás da casa ficava a garagem, mas Sanford parou o carro na frente e saltou. Abriu a mala, tirou a cadeira de rodas de Celine. Foi abrir a porta dela.

— Pegue as coisas de Janet — ordenou ela, assim que se acomodou na cadeira.

— Não quer que eu a leve para dentro de casa primeiro?

— Não. Pedi para você pegar as coisas de Janet. — Depois de repetir a ordem com firmeza, ela murmurou baixinho: — Onde está Mildred?

Saí do carro para ver melhor a casa, meu novo lar. O desejo de Celine fora em parte atendido. As nuvens haviam se entreaberto por um instante. Os raios do sol faziam as janelas faiscarem, enquanto parávamos ali. Mas antes de subirmos para a porta da frente, as nuvens tornaram a se deslocar e voltou a ficar escuro. Celine estremeceu e se aconchegou no xale que Sanford ajeitara em torno de seus ombros.

— O que você acha? — perguntou-me ela, com uma expectativa ansiosa.

— É linda... — murmurei.

Mas é verdade que quase todas as casas que eu conhecera em minha vida pareciam-me lindas se tinham uma família dentro, mesmo que fossem da metade do tamanho e custassem muito menos do que aquela. Por trás das portas fechadas e no outro lado das cortinas, famílias sentavam para jantar ou assistir televisão juntas. Irmãos e irmãs implicavam uns com os outros, mas se contavam segredos e mantinham os sonhos uns dos outros como confidenciais. Havia ombros em que se apoiar, lábios que removiam as lágrimas, vozes que aqueciam pequenos corações, frios e assustados. Havia pais com braços fortes para pegar no colo, pais que recendiam a sol e loção de barba, pais com amor no sorriso; e mães que eram belas e gentis, que exalavam a fragrância de flores, perfumes que entravam pelas narinas e atiçavam a imaginação, povoando a mente com sonhos de se tornarem também lindas e adoráveis.

Não restava a menor dúvida de que era uma casa bonita. Todas as casas eram bonitas.

— Depressa, por favor, Sanford — disse Celine, levando a cadeira de rodas até a rampa.

Ele tinha dificuldade para carregar duas malas e uma bolsa menor. Comecei a me encaminhar para a cadeira, mas Celine virou-se, na expectativa. Era como se tivesse olhos por trás da cabeça.

— Não, Janet. Não quero que você faça nada que exija tanto esforço. Pode distender um tendão.

Parei no mesmo instante, confusa. Distender um tendão? Eu não tinha a menor idéia do que isso significava.

— Não se preocupe — murmurou Sanford.

De alguma forma, ele conseguiu segurar a cadeira, ao mesmo tempo em que mantinha as malas debaixo do braço. Empurrou-a pela rampa e fui atrás. Ao chegarmos à varanda, Sanford largou as malas no chão e foi abrir a porta.

— Onde está aquela idiota? — perguntou Celine, a voz ríspida.

Eu nem imaginava a quem ela se referia. Será que outra pessoa morava naquela linda casa?

— Está tudo bem — disse Sanford, enfiando a chave na fechadura.

Celine virou-se para mim e sorriu.

— Agora você pode me empurrar, querida. Adiantei-me apressada até a cadeira. Sanford abriu a porta e entramos na casa. O vestíbulo era largo, com espelhos nos lados. À direita havia um cabide para casacos e uma mesinha, sobre a qual encontravam-se alguns folhetos. Quando cheguei mais perto, descobri que eram programas de balé. Na capa de um deles havia uma foto de Celine. Por cima, em letras vermelhas grandes, li as palavras A Bela Adormecida.

— Quero que veja o estúdio primeiro — disse ela, quando percebeu o que atraíra a minha atenção. — Sanford, leve as coisas de Janet para o quarto dela e veja se consegue encontrar Mildred. Vamos demorar alguns minutos.

Descobri que havia um elevador especial para Celine no lado da escada. Lá em cima estava outra cadeira de rodas à sua espera. Celine foi impulsionando a cadeira pelo interior da casa. Segui atrás, devagar, absorvendo tudo: os quadros lindos nas paredes, todos de bailarinas, uma delas muito parecida com Celine.

— Esta é a nossa sala de estar — informou ela, acenando com a cabeça para uma sala à esquerda.

Só pude lançar um olhar rápido porque ela já se afastava pelo corredor. Vi um sofá elegante em rosa e branco, com babados na base, uma poltrona com almofadas vermelhas, a lareira grande de pedra, por cima da qual estava pendurado um enorme retrato de Celine, em traje de balé.

— Aqui! — anunciou ela, parando em outra porta. Fui me postar ao seu lado e olhei para a sala. Era grande e vazia, com um assoalho de madeira brilhando. Tinha espelhos cobrindo as paredes e uma longa barra de madeira num lado.

— Este era o meu estúdio e agora é seu — informou Celine. — Mandei derrubar uma parede e ligar duas salas. Não se pode poupar despesas quando se trata de sua arte.

— Minha?

— Claro, Janet. Você terá a melhor professora, Madame

Malisorf, que já preparou algumas das melhores bailarinas russas. Ela própria foi outrora uma bailarina extraordinária. E foi minha mestra e mentora.

Aquela expressão distante e estranha tornou a dominar Celine.

— Não sei nada sobre balé — murmurei, a voz trêmula.

Tinha medo que ela quisesse que eu voltasse ao orfanato imediatamente quando soubesse da minha falta de jeito.

— Não se preocupe — respondeu ela, pegando minha mão. — É melhor assim. Prefiro que você não saiba nada.

— É mesmo?

— É, sim. Dessa maneira, é uma bailarina pura, inocente e intacta, não contaminada por alguma professora medíocre. Madame Malisorf ficará satisfeita. Ela adora trabalhar com o talento puro.

— Mas não tenho nenhum talento!

— Claro que tem.

— Acho que nunca sequer vi um balé na televisão. Celine riu e me senti contente ao verificar que ela retomava seu rosto normal.

— Nunca imaginei que tivesse visto, vivendo em lugares como aquele, com crianças que não tiveram oportunidades. Mas não deve ter medo. — A voz era suave. Ela apertou a minha mão. — O balé não é tão difícil como você pode imaginar. Não é uma estranha forma de dança reservada apenas aos muito ricos. É apenas outra maneira de contar uma história, uma linda maneira, através da dança. O balé é a base de todo o teatro de dança do mundo ocidental. Pessoas que querem se tornar dançarinos modernos sempre recebem o conselho de começar pelo balé.

— É mesmo?

— Claro que é. — Celine sorriu. — Portanto, fará uma coisa que a ajudará sob muitos aspectos. Terá uma postura maravilhosa, mais graciosidade, ritmo e beleza. Você será a minha prima ballerina, Janet.

Ela me fitava com olhos tão cheios de esperança e amor que só pude retribuir ao sorriso. Foi nesse instante que ouvimos uma porta bater e alguém descer a escada às pressas. Celine virou a cadeira. Também olhei para trás. Vi uma jovem loura e alta aproximar-se pelo corredor. Vestia um uniforme de criada. Tinha grandes olhos castanhos, o nariz um pouco comprido, a boca um pouco larga demais, com um queixo pequeno e pontudo.

— Desculpe, sra. Delorice. Não ouvi o carro chegar.

— Provavelmente porque tinha aqueles fones estúpidos nos ouvidos, escutando aquela horrível música de rock — comentou Celine, secamente.

A criada se encolheu e começou a balançar a cabeça, vigorosamente.

— Pare de se lamentar, Mildred. Esta é nossa filha, Janet. — O tom ríspido de Celine se atenuou no momento seguinte, quando ela olhou para mim. — Janet, esta é nossa criada, Mildred Stemple.

— Como tem passado? — Mildred fez uma pequena mesura. Ao sorrir, as feições se transformaram, fazendo com que parecesse bonita. — Pode me chamar de Milly.

— Ela não vai chamá-la assim — interveio Celine, com firmeza. — Seu nome é Mildred.

O sorriso de Mildred murchou.

— Olá... Mildred — murmurei, sem querer criar problemas.

— Eu estava trabalhando para deixar o quarto dela limpo e arrumado, sra. Delorice — declarou Mildred, continuando a explicação por não ter aparecido na porta da frente.

- Você sempre deixa tudo para o último minuto, Mildred. Não sei por que a mantenho aqui. Vamos jantar cedo esta noite. Posso presumir que já pôs o peru para assar?

— Já, sim, sra. Delorice.

— Pois então trate de aprontar o resto.

Mildred me lançou um rápido olhar e um sorriso, para depois se retirar.

— Essa é a minha obra de caridade — murmurou Celine, levantando os olhos para o teto. — Mas vamos voltar ao que eu dizia. Madame Malisorf virá aqui depois de amanhã para conhecê-la.

— Depois de amanhã?

— Não queremos perder tempo, minha cara. Na dança, especialmente no balé, a prática é muito importante. Eu gostaria de ter descoberto você quando era anos mais jovem. Teria sido muito mais fácil. Mas também não precisa se afligir. Você está numa idade perfeita. Começará com uma seqüência de exercícios para desenvolver seus preciosos músculos. Há sempre muito alongamento e aquecimento para evitar as lesões. E aprenderá como usar a barre.

— A barre?

— Sempre chamamos a barra ali de barre. Todos os nomes no balé são franceses. O balé começou na França. Você usa a barre para se firmar durante a primeira parte da aula de balé. Proporciona resistência quando você se inclina para baixo. Também ajuda a alongar a espinha.

Ela soltou uma risada.

— Pense na barre como seu primeiro par. Eu lhe dei o nome de Pierre. — A pronúncia do francês me pareceu perfeita. — Tenho certeza de que você também vai encontrar um nome apropriado para o seu primeiro par.

Olhei pela porta para a barre, sem entender como poderia algum dia imaginar que aquilo era uma pessoa.

— Vamos embora, minha cara. Temos muito o que fazer. Preciso providenciar as sapatilhas e comprar suas malhas amanhã de manhã.

— E a escola? — perguntei.

Celine continuou a impulsionar a cadeira de rodas por mais um momento. Parou na base da escada.

— Não se preocupe. Vou matriculá-la numa escola particular. Poderemos cuidar disso mais tarde. Primeiro, as coisas mais importantes.

Ela começou a se transferir para a cadeira do elevador enquanto ainda falava.

Primeiro as coisas mais importantes? Mas a escola não era a mais importante?

— Deixe-me ajudá-la, querida — murmurou Sanford, descendo a escada.

— Não precisa.

Celine acomodou-se na cadeira do elevador. Apertou um botão. A cadeira começou a subir, junto da grade. Observei-a por um instante. Ela parecia radiante e excitada enquanto subia.

— É maravilhoso — comentou Sanford, ao meu lado. — Sua presença aqui já proporcionou uma nova força a Celine. Somos abençoados por ter você em nossa casa, minha cara.

Olhei para ele, sem entender o que podia ter feito para proporcionar tanta felicidade a duas pessoas que horas antes não passavam de absolutos estranhos. E não pude deixar de temer que estivessem me confundindo com outra pessoa.

 

Fiquei boquiaberta quando parei na porta do quarto que seria meu. Nunca, nem mesmo nas fantasias mais extravagantes, eu fora capaz de imaginar um quarto tão bonito quanto aquele. Nem tão grande e aconchegante. E, ainda por cima, aquela era a primeira vez na vida em que tinha um quarto só para mim!

— Gostou do seu quarto? — perguntou Celine, excitada.

Por um momento, não fui capaz de falar. Se eu tinha gostado? O verbo gostar era fraco demais para descrever o que eu sentia, pensei. Ia mesmo dormir aqui e viveria e faria os deveres da escola aqui?

— É enorme...

Tive medo de entrar. Se o fizesse, foi meu receio, tudo poderia desaparecer como um sonho. Celine avançou na cadeira de rodas. Sanford postou-se atrás de mim, com as mãos em meus ombros, enquanto ela inspecionava o quarto para ter certeza de que Mildred arrumara tudo direito.

— Tudo certo. Pelo menos suas coisas foram guardadas. Vamos fazer compras amanhã de manhã, Janet. Você precisa ter algumas roupas decentes.

— Eu gostaria de ir à fábrica primeiro, querida — interveio Sanford. — Se voltar logo e...

— Pode se manter longe de sua preciosa fábrica por mais um dia, Sanford. Seu gerente é muito competente. — Celine olhou para mim. — De qualquer maneira, o que é mais importante?

Ela tornou a olhar para o marido, com uma expressão decidida. Sanford não disse nada.

Ansiosa em evitar palavras veementes e olhares irritados, tratei de entrar no quarto. As cortinas eram rosadas como os flamingos, assim como o dossel da cama, os travesseiros e a colcha. Havia uma escrivaninha branca como casca de ovo, um abajur com a base no formato de um pato. As paredes eram ornamentadas com quadros de bailarinas.

— Essas cenas são de balés famosos, Janet — explicou Celine. — Aquele é Lago dos Cisnes, este é de Le Jeune Homme et La Mort. A que está por cima da cama é de Romeu e Julieta. Quero que você viva cercada pela dança... durma, coma e beba, do jeito que eu era. Com o passar do tempo, será a única coisa com que vai se importar.

Mais uma vez, senti que era uma ordem. Celine foi até um armário ao lado do closet e abriu-o.

— Aqui encontrará fitas e CDs das músicas que eu quero que escute. Terá de conhecê-las tão bem que até será capaz de cantarolar por inteiro. A música deve se tornar uma parte de você. Vai acabar como eu, ouvindo o música em toda parte, mesmo quando estiver fora do estúdio. E se descobrirá querendo fazer uma pirueta ou Efetuar um changement de pieds.

— O que é isso?

Ela olhou para Sanford e sorriu.

— Com bastante freqüência, você precisa mudar a posição dos pés, do pé direito na frente para o pé esquerdo na frente, ou vice-versa. É um pulo que termina com o outro pé na frente. Portanto, changement de pieds significa mudança de pés. Não se preocupe. Será mais fácil do que imagina, ainda mais para você.

Olhei para Sanford, a fim de verificar se ele tinha a mesma confiança em mim. Seus olhos irradiavam um sorriso.

— Deixe-a conhecer melhor seu novo quarto, Celine.

— Claro — disse ela, recuando. — O banheiro é naquela porta.

Dei uma olhada na banheira redonda e no boxe do chuveiro. Todas as torneiras eram de latão reluzente. Olhei para as toalhas penduradas. Havia alguma coisa escrita nelas. Cheguei mais perto para ler.

— Meu nome está na toalha! Sanford riu.

— E também no copo e na saboneteira — informou ele.

Espantada, verifiquei tudo.

— Mas como fizeram isso tão depressa?

— Lembre-se de que tenho uma fábrica de vidro e muitas ligações — disse Sanford, obviamente divertido com a minha pergunta.

— Mas como soube que eu viria morar aqui?

Ele olhou para Celine, que impulsionara a cadeira de rodas até a porta do banheiro.

— Já lhe disse, minha cara, que compreendi que era a garota certa desde o momento em que a vi pela primeira vez. A única certa. Estávamos destinadas a formar uma família.

Pensei que ia explodir pela maneira como a felicidade encheu meu coração. Uma linda casa, móveis, coisas com meu nome no banheiro, roupas novas, tudo que eu podia querer. Era Natal na primavera.

— Está feliz? — perguntou Sanford.

— E muito!

Quase que gritei a resposta. Finalmente, pensei, estou falando bastante alto para agradar até a sra. McGuire.

— Isso é ótimo. Agora, troque de roupa e lhe mostrarei os jardins — disse Sanford. — Há um lago lá atrás onde os gansos pousam no verão.

— Eu vou telefonar para Madame Malisorf — informou Celine — e confirmar sua primeira aula para depois de amanhã. Estou tão emocionada... será que não deveríamos antecipar para amanhã de manhã? Não, não dá. Amanhã temos de comprar as sapatilhas e as malhas. Não vamos nos precipitar.

— Não deveria esperar antes de comprar as sapatilhas, minha cara? — perguntou Sanford, suavemente.

— De jeito nenhum! — Ela virou-se para mim. — Janet será a melhor discípula de Madame Malisorf... depois de mim, é claro. Que dia maravilhoso!

Celine pegou minha mão e a de Sanford, com aquela expressão distante.

— Somos finalmente uma família.

Pensei que as lágrimas que ardiam sob minhas pálpebras iam escorrer pela face, mas permaneceram onde estavam, à espera de outra ocasião.

Depois que troquei de roupa, pondo um jeans velho, uma blusa e ténis, vagueei pelo corredor no segundo andar. Havia outro quarto com a porta fechada, depois o quarto de Celine e Sanford. Eu não queria dar a impressão de que espionava. Por isso, virei-me para descer e esperar lá embaixo, quando ouvi Celine mencionar meu nome.

— Janet vai desabrochar como uma flor em nosso solo, não é mesmo, Sanford?

— Claro, querida. E agora descanse um pouco, por favor. Foi um dia longo e emocionante para todos nós.

— E quando ela desabrochar — continuou Celine, ignorando-o — vai deslumbrar as audiências da maneira como eu tencionava fazer.

Deslumbrar audiências? Eu? A menina que as outras crianças chamavam de Gata Medrosa, por tanto tempo quanto podia me lembrar? A que não era capaz de falar bastante alto para que alguém ao meu lado pudesse ouvir direito? Apresentar-me diante de audiências e deslumbrá-las? Como poderia? Assim que Celine e Sanford descobrissem que eu não era capaz, tratariam de me mandar de volta ao orfanato. Tinha tanta certeza que meu coração murchou. O lindo quarto, aquela casa, a promessa de uma família, tudo não passava de um sonho. Baixei a cabeça e desci a escada, lentamente.

Entrei na sala de estar e olhei para o retrato de Celine pendurado em cima da lareira. O pintor a mostrara no meio de um salto, talvez aquele changement de pieds que ela descrevera. As pernas, as mesmas que ficavam ocultas agora sob uma manta, inertes e sem vida, eram musculosas no quadro. Celine parecia uma ave alçando voo, como ela garantira que eu me sentiria um dia. Como ela era graciosa e bela contra o fundo escuro! O quadro era tão parecido com a vida que quase esperei que ela pousasse na minha frente.

— Ah, então você está aqui. — Deparei com Sanford na porta ao me virar. — Celine foi descansar um pouco. Vamos sair. Começaremos pelo lago.

Notei que ele falava num tom muito diferente na ausência de Celine. Ao sairmos, descobri que o céu limpara, como Celine dissera que aconteceria. Não pude deixar de me perguntar se todos e tudo faziam o que Celine pedia.

— Por aqui.

Sanford virou à direita ao descer os degraus. Andava com as mãos nas costas, o corpo alto e magro inclinado para a frente. As passadas eram longas e ágeis, uma para cada duas das minhas.

— Esta casa foi um achado. O estado de conservação era ótimo, apesar da idade. Realizamos diversas mudanças e melhorias. Tenho certeza de que você será tão feliz aqui quanto nós temos sido, Janet. — Ele sorriu e acenou com a cabeça para a elevação à nossa frente. — O lago fica logo depois da crista. Tenho um barco a remo, mas há bastante tempo que não o usamos. Sabe nadar, Janet?

— Não, senhor.

Falei baixinho, com medo de acrescentar outro ”não” ao meu nome. Não sei dançar. Não sei nadar. Não posso ficar.

— Teremos de remediar isso antes do verão... e, por favor, não me chame de senhor. Se não puder me chamar de papai por enquanto, então me trate apenas por Sanford, está bem?

Seus olhos faiscavam. Relaxei e retribuí ao sorriso. Já tinha a impressão de que Sanford seria muito mais fácil de agradar do que Celine.

Continuamos a andar.

— Tenho uma firma que vem duas vezes por semana para cuidar dos jardins. — Ele acenou com o braço comprido para leste. — Possuímos todo esse terreno e mais alguma coisa. Deixei o bosque intacto, para termos privacidade e a sensação de que nos encontramos no meio da natureza. Não estamos muito longe da cidade. A escola particular em que você vai estudar fica a apenas vinte e cinco quilómetros de distância. Celine já tomou todas as providências. Apenas tenho de levá-la até lá para fazer a matrícula.

— Ela cuidou de tudo?

Era estranho pensar que Celine planejara uma vida para mim, para nós, antes mesmo de eu conhecê-la. Seu dissesse que não queria ir embora com eles? Mas, por outro lado, eu era uma órfã... e órfãos nunca dizem não. Sanford riu da minha expressão de perplexidad

— Isso mesmo. Celine vem se preparando para sua vinda literalmente desde o primeiro momento em que a viu, Janet. Jamais esquecerei aquele dia. Ela ficou tão excitada que não conseguiu dormir. Não parava de falar a seu respeito. Conversou até tarde da noite. Quando acordei na manhã seguinte, seu nome foi a primeira palavra que ela pronunciou.

Em vez de me encher de alegria, essas palavras provocaram pequenos choques elétricos de medo ao longo da minha espinha. O que Celine vira em mim que eu mesma não podia ver, que ninguém jamais vira antes? E se fosse tudo inverdade?

— Por que nunca tiveram filhos? — perguntei. Sanford se manteve em silêncio por alguns minutos, enquanto continuávamos a andar. Pensei que talvez não tivesse me ouvido. Mas depois ele parou, olhou para a casa, suspirou. A expressão sombria que eu vira antes retornou a seu rosto.

— Eu queria ter filhos. Desde o primeiro dia do meu casamento, planejava ter uma família. Mas Celine era dedicada demais à sua carreira. Achava que ter 1 criança tiraria toda a sua força como bailarina.

Recomeçamos a andar, a caminho do lago.

— Além do mais, ela seria a primeira a admitir que não tinha temperamento para filhos naquele tempo. Sanford sacudiu a cabeça. — Era preciso procurar muito para encontrar uma pessoa tão mal-humorada. Ele se sentia como um meteorologista inepto, incapaz de ver os dias de sol ou tempestade. Num momento ela mostrava-se relaxada e feliz, mas no seguinte, por causa de alguma insatisfação num ensaio, tornava-se deprimida e triste, definhando como uma flor sem água. Nada que eu fizesse era capaz de animá-la. Mas...

Ele fez uma pausa, sorriu para mim outra vez.

— Agora que você está aqui, tudo isso vai mudar. Não haverá mais dias de tempestade.

Como eu podia deixar Celine tão feliz a ponto de esquecer o que acontecera com suas pernas? Observar-me dançar faria com que se sentisse melhor por nunca mais ser capaz de dançar? Como eu podia ser responsável pela felicidade de Celine? Era muito pequena e muito tímida. Nunca conseguiria fazê-lo.

— Eu tinha a sensação de que andava descalço sobre cacos de vidro quando voltava para casa do trabalho todos os dias.

A voz de Sanford interrompeu meu devaneio. Era agradável escutá-lo, abrindo o coração para mim como se eu já fosse parte da família, há muitos anos. Eu só gostaria que os pensamentos e desejos confidenciados por ele fossem agradáveis. Quanto mais Sanford falava, no entanto, mais eu compreendia como ele era triste e amargurado.

— Os ânimos de Celine eram totalmente imprevisíveis. Pioraram ainda mais depois do acidente. Mas agora tudo vai mudar.

Ele reiterou a afirmação com a maior jovialidade. Percebi que fazia um esforço para não dizer qualquer coisa depressiva.

Paramos no alto da elevação e contemplamos o lago. Tremeluzia ao sol, a água parecendo lisa como gelo. Havia um atracadouro logo abaixo de nós, com o barco que ele descrevera.

— O lago não é muito grande, tem menos de um quilômetro, mas é sempre agradável ter uma massa de água em sua propriedade. E os gansos que nos visitavam todos os anos oferecem uma cena maravilhosa, quase no final do verão. Você vai gostar.

Senti-me feliz por ouvi-lo planejar minha presença na casa por todo aquele tempo.

— É muito bonito — comentei, grata por ele ter mudado de assunto.

— Também acho. — Sanford pensou por um momento, e depois me fitou. — Tenho falado demais sobre nós. Não lhe dei uma oportunidade de falar a seu respeito. Quais são as coisas que você gosta de fazer? Alguma vez já patinou no gelo?

Sacudi a cabeça.

— Tenho certeza de que nunca esquiou. Pratica algum esporte?

— Só faço esportes na escola. Nunca jogamos nada no orfanato.

— E livros? Gosta de ler?

— Gosto.

— Ótimo. Temos uma boa biblioteca. Também gosto de ler. Imagino que gosta de televisão.

Acenei com a cabeça.

— E cinema?

— Não fui ao cinema muitas vezes.

Na verdade, eu podia contar as vezes nos dedos das mãos.

— Sua vida vai mudar muito, Janet. Quase que me sinto mais excitado por você do que por nós. — Depois de um momento, ele acrescentou: — Vamos embora. Quero lhe mostrar os morangos silvestres.

Tive quase que correr para acompanhá-lo. Morangos silvestres, um lago com um barco, lindas flores e um vasto jardim exclusivo, uma escola particular e roupas novas. Eu começava a acreditar que era mesmo Cinderela! Só esperava poder adiar pelo máximo de tempo possível a batida da meia-noite.

Naquela noite tive meu primeiro jantar em minha nova casa. Celine usava um vestido de tricô vermelho, com brincos de ouro no formato de lágrimas, um colar com um camafeu engastado em ouro. Estava linda. Sanford usava terno e gravata. Eu só tinha o vestido azul-claro surrado que usara em nosso primeiro encontro no orfanato.

A sala de jantar era iluminada por um enorme lustre sobre a mesa. Todos os pratos, guardanapos, velas e talheres pareciam tão caros que eu tinha medo até de tocar. Sanford sentou numa extremidade da mesa comprida, com Celine na outra e eu no lado. Mildred começou a servir a comida momentos depois que sentamos. Nada parecia tão estranho quanto ter uma criada. Desde o dia em que podíamos fazer as coisas sozinhas no orfanato, passávamos a cuidar de nossas próprias necessidades.

Observei como Celine comia, bicando a comida, que nem um passarinho. Enquanto isso, Sanford me explicava qual talher usar e a etiqueta do jantar. Tudo estava delicioso e eu sentia a maior fome, mas Celine não me permitiu comer tanto quanto eu gostaria.

— Não ofereça a ela uma segunda porção de batatas — ordenou ela, quando Sanford estendeu a mão para a tigela. — De hoje em diante, Janet tem de se manter numa dieta.

Celine virou-se para mim e explicou:

— As bailarinas precisam manter a silhueta. A gordura em excesso é inadmissível. Vai retardar os movimentos, deixá-la desajeitada. Embora não dance mais, ainda cuido do meu corpo. Os hábitos tornam-se parte de quem você é, definem sua personalidade. Lembre-se disso, Janet. Estou lhe transmitindo toda a minha sabedoria, a mesma sabedoria que me foi transmitida por pessoas muito famosas e bem-sucedidas.

Deixei a mesa naquela noite ainda sentindo alguma fome o que nunca me acontecia no orfanato. Era estranho contemplar todas aquelas comidas deliciosas e ter que me abster de saboreá-las. Olhava para Celine cada vez que Sanford me passava qualquer coisa; se ela franzia o rosto ou se mostrava insatisfeita, eu não aceitava. Meu estômago roncou mais alto quando recusei um bolo de chocolate com creme, de aparência apetitosa.

Vai descobrir que não há um aparelho de televisão em seu quarto - informou Celine, impulsionando sua cadeira de rodas ao meu lado, enquanto passávamos para a sala de estar. - Sei que as adolescentes adoram televisão, mas entre a escola e as aulas de balé, não vai lhe sobrar muito tempo para outras coisas, especialmente as frívolas. Nunca me sobrava.

Eu quase não via televisão no orfanato. Havia apenas um aparelho, na sala de recreação, e os meninos mais velhos sempre decidiam o que todos iam assistir.

Eu preferia ler.

O que é ótimo. Tenho um livro sobre balé que quero que você comece a ler esta noite.

Ela entrou na sala de estar na minha frente. Fui atrás e observei-a tirar um livro de uma estante. Estendeu-o para mim e me adiantei apressada para pegá-lo.

Tem várias informações básicas, Janet. Assim, você não vai bancar a boba quando Madame Malisorf vier depois de amanhã.

Ela está muito excitada para ler e reter todas as informações, Celine - protestou Sanford, a voz suave.

Não pude deixar de pensar que Celine poderia escutá-lo se ele falasse com um pouco mais de firmeza.

- Não diga bobagem. Sei que ela também está cansada. Vai querer agora subir para seu quarto, deitar na cama e ler.

Celine virou-se para mim, obviamente a espera de minha concordância. Olhei para Sanford, para o livro e depois para ela.

— Tem razão — murmurei. — Estou cansada.

— Sei disso. Não é todos os dias que se começa uma vida nova. — Celine pegou minha mão. — Somos tão parecidas, você e eu, que é como se fosse realmente minha filha.

Vi lágrimas em seus olhos. O que trouxe lágrimas aos meus. Meu coração batia forte com a promessa de encontrar o verdadeiro amor, a verdadeira alegria.

— Tenha uma boa noite, Janet. Seja bem-vinda ao seu novo lar.

Ela me puxou para baixo e beijou-me no rosto. Foi a primeira vez na vida em que alguém que queria ser minha mãe me beijava. Reprimi as lágrimas de felicidade e me encaminhei para a porta. Sanford deteve-me e também me deu um beijo no rosto.

— Boa-noite, Janet — murmurou ele. — Pode me chamar se precisar de qualquer coisa.

Agradeci e subi a escada, quase correndo, com o livro de balé na mão.

Fui para o meu quarto, parei ali, fiquei olhando ao redor, em espanto e admiração.

Tinha um lar.

Era a filha de alguém.

Finalmente.

 

Celine sentia-se tão animada em me aprontar para as aulas de balé que, no dia seguinte, entrou em meu quarto antes mesmo que eu abrisse os olhos. Na noite passada, quando finalmente encostara a cabeça no travesseiro macio, eu me virara e me contemplara no espelho na parede. A cama era tão grande que eu até parecia menor do que era na realidade. Mas era confortável, a cama mais confortável em que eu já dormira, com lençóis novos e lavados. Quando dei por mim, já era de manhã.

— Levante e brilhe, levante e brilhe — entoou Celine, ao avançar pelo quarto, na cadeira de rodas. — Temos uma porção de coisas para fazer hoje, Janet.

Esfreguei os olhos para me livrar do sono, e sentei na cama.

— Ah, você dormiu de roupas de baixo! — exclamou ela. — Não tem uma camisola?

— Não.

— Como mandam uma menina para o mundo sem uma camisola? Vamos, levante-se. Trate de se lavar e se vestir. Desça para o café da manhã em quinze minutos. Depois sairemos para fazer compras.

Ela acenou com a mão, autoritária, virou-se e saiu do quarto. Apressei-me em fazer o que ela mandara. Desci dez minutos depois. Sanford já estava de paletó e gravata, sentado à mesa, lendo o jornal.

— Mildred! — chamou Celine, assim que entrei na sala de jantar.

Mildred veio da cozinha, carregando uma bandeja com suco de laranja, torradas com manteiga e ovos quentes. Eu nunca comera um ovo quente antes. Fiquei olhando aturdida quando foi posto na minha frente.

— Começa sua dieta hoje — explicou Celine, quando percebeu minha expressão curiosa.

— Dieta? — Eu nunca fora acusada de ter excesso de peso. Ao contrário, todos pensavam que eu era subdesenvolvida. — Mas não peso muito.

Celine riu.

— Dieta não é uma coisa que você faz só para emagrecer. Dieta neste caso significa comer direito. Uma bailarina é uma atleta e tem de comer e viver como tal, Janet. Vamos, comece a comer.

Sanford baixou o jornal e me ofereceu um olhar simpático, enquanto eu tomava o suco de laranja.

— Dormiu bem? — perguntou ele.

— Dormi.

Celine inclinou-se para mim e sussurrou:

— Papai.

— Dormi, papai.

— Ótimo.

Sanford voltou à leitura do jornal, enquanto Celine discorria sobre nossa agenda.

— Já marquei uma reunião na sapataria para providenciar as sapatilhas. Iremos em seguida à loja que vai fornecer seus trajes de dança. Depois, visitaremos a loja de departamentos para lhe comprar mais algumas roupas, sapatos, lingerie e um bom casaco para você... e uma camisola, é claro.

— E a escola? — perguntei, enquanto comia, pois não podia deixar de pensar como seria ter novos professores, conhecer novas crianças da minha idade.

— A escola pode esperar por mais um dia — declarou Celine. — Tenho certeza de que você é uma excelente aluna e não vai demorar a recuperar o tempo perdido.

Eu era mesmo uma boa aluna, mas ainda assim me surpreendi por sua confiança na minha capacidade. Sanford dobrou o jornal, tomou um gole de café e acenou com a cabeça.

— Depois das compras, passaremos pela fábrica — acrescentou ele.

— Se tivermos tempo — ressaltou Celine.

Eu mal acabara de comer quando ela se afastou da mesa e declarou que eu devia escovar os dentes e ir ao banheiro”. Teríamos de nos encontrar na porta da frente dentro de dez minutos.

Tudo era dez minutos, cinco minutos. Para uma mulher numa cadeira de rodas, ela tinha uma energia incrível. Enquanto subia correndo a escada, pensei que fora acordada para participar de alguma espécie de maratona. Mas tinha medo de enunciar sequer uma sílaba de protesto. Sanford parecia muito feliz com o excitamento e a energia de Celine; e, no final das contas, ambos queriam fazer muitas coisas por mim.

Quando tornei a descer, Celine já se encontrava no carro, esperando. Sanford guardava a cadeira de rodas na mala.

— Depressa! — gritou ela. — Quero terminar tudo num só dia!

Corri para o carro e embarquei. Partimos um momento depois.

— Ter sapatilhas apropriadas é condição imprescindível para o sucesso como bailarina — explicou Celine. — No balé, talvez mais do que em qualquer outra coisa, os preparativos iniciais são muito importantes, mas muito mesmo. Suas sapatilhas devem se ajustar como uma segunda pele. Não há espaço para o crescimento. Quando puser as sapatilhas antes dos exercícios não amarre os cordões muito apertados. Isso pode lesionar o tendão de Aquiles. Deixe-me ver seus pés.

— Meus pés?

— Isso mesmo, seus pés. Preciso verificar uma coisa que já deveria ter observado antes.

Tirei os tênis e as meias. Ela se inclinou para trás, entre os bancos, puxou meus pés para a frente, examinou os dedos.

— As unhas estão compridas demais. Não lhe ensinaram coisa alguma no orfanato? Deve manter as unhas dos pés sempre curtas. Corte todas as manhãs, mas todas as manhãs mesmo, entende?

— Está bem — murmurei, acenando com a cabeça. Celine abriu a bolsa e tirou um cortador de unha.

Entregou-me e ficou me olhando aparar as unhas dos pés. Minhas mãos tremiam e pensei que poderia me cortar. Mas Celine começava a parecer zangada e eu queria agradá-la.

— Tem certeza de que a loja abre tão cedo, Celine? perguntou Sanford, ao nos aproximarmos do distrito comercial.

— Claro que tenho. Marquei uma hora. Eles sabem como isso é importante para mim.

A voz de Celine já era mais calma agora. Apressei-me em pôr as meias e os tênis. Olhei pela janela, enquanto o carro diminuía a velocidade e parava na frente da loja. Sanford saltou para pegar a cadeira de (rodas na mala.

— É muito inconveniente ter de esperar por aquela coisa — murmurou ela. — Ainda por cima, Sanford é mais lento do que uma tartaruga.

Celine estava ansiosa em entrar na loja e me comprar as sapatilhas. Desejei estar tão excitada quanto ela, mas sentia que fora apanhada por um turbilhão e mal tinha tempo para respirar. Assim que se acomodou na cadeira de rodas, ela me chamou.

— Vamos logo, Janet. Estamos atrasadas.

Ao entrarmos na loja, o vendedor, baixo, gorducho e careca, com óculos bifocais sobre o nariz grosso, veio dos fundos, bamboleando, para nos cumprimentar.

— Bom-dia, sra. Delorice. É um prazer tornar a vê-la...

— Aqui está ela — interrompeu Celine. — Janet, sente-se e tire os tênis e as meias.

O vendedor acenou com a cabeça para Sanford.

— Sr. Delorice.

— Bom-dia, Charles. Como tem passado?

— Muito bem, obrigado.

— Por favor, vamos nos concentrar — exigiu Celine.

Charles franziu o rosto e agachou-se para examinar meus pés. Ergueu-os em suas mãos como se fossem jóias, virou-os gentilmente para um lado e outro. Tateou sob meus dedos, comprimiu os calcanhares.

— Delicados — comentou ele.

— Ela pode lhe parecer pequena, mas não é frágil — assegurou Celine.

— Claro que posso perceber o potencial, sra. Delorice. Vou providenciar as sapatilhas certas.

Ele parecia sinceramente satisfeito. Levantou-se e voltou para os fundos da loja.

— Todas as sapatilhas são feitas à mão — explicou Celine. — Não há lado direito ou esquerdo. Portanto, não se confunda.

— Devem custar muito caro — murmurei, torcendo para que o dinheiro não fosse desperdiçado.

— Claro que custam, se são boas... e você deve ter as melhores. Nossos equipamentos, os trajes, todos os preparativos são muito importantes para nós, Janet.

Era a primeira vez que ela se incluía. Soou esquisito. Era como se Celine pudesse se levantar da cadeira de rodas e fazer uma pirouette em plena loja.

Charles trouxe três pares e experimentou-os em meus pés. Celine conferiu junto com ele. Mandou que eu me levantasse, andasse pela loja.

— Uma jovem muito graciosa — comentou Charles. Eu começava a me perguntar se Celine não tinha razão. Talvez eu pudesse mesmo me tornar uma bailarina.

— Também acho. — Os olhos de Celine faiscavam de excitamento. — Como se sente, Janet? Lembre-se de que quero que você pense nas sapatilhas como uma segunda pele.

— Acho que estão boas.

Mas eu não tinha certeza. Nunca usara sapatilhas antes, não sabia como deveria senti-las.

— Estas sapatilhas têm Toe-Flo — informou Charles — a melhor coisa que já inventaram para acolchoamento.

— Não quero que ela se torne muito dependente de protetores. Prefiro que seus pés se fortaleçam depressa.

A expressão de Celine era sombria agora.

— Pode ter certeza de que isso vai acontecer — garantiu Charles.

— É o que veremos. Levaremos estas sapatilhas.

— Excelente escolha, sra. Delorice.

Quase que pude sentir os sinais de dólares flutuando na mente de Charles. Sentei e comecei a tirar as sapatilhas.

— Precisamos ter as melhores para podermos nos desenvolver depressa. — Celine sorriu e afagou meus cabelos. — Vamos nos tornar prima ballerinas.

Olhei para Sanford, parado ao lado da porta. Mais uma vez, surpreendi-o com uma expressão de profunda preocupação, os olhos fixados em Celine. Mas depois ele percebeu que eu o observava, e se apressou em sorrir.

Compradas as sapatilhas, fomos para uma loja que vendia trajes para balé, malhas e tutus. Celine comprou meia dúzia de trajes. Foi apenas o começo do que se transformou num frenesi de compras. Fomos à loja de departamentos, passamos pelas seções de lingerie, sapatos e roupas. As caixas registradoras cantavam, emitindo longas notas. Era como se todas as roupas que eu devesse ter tido desde o nascimento estivessem sendo compradas agora. Em um só dia, eu alcançava as crianças que nunca haviam sido órfãs. Mal tinha tempo de respirar antes de ser levada para outra seção da loja, onde era medida, vestida e ajustada, para usar qualquer coisa que Celine achava que podia ficar bonita em mim. As etiquetas com o preço pareciam não ter a menor importância. Ela não olhou para nenhuma, nem piscava os olhos quando as somas eram feitas. Limitava-se a estender a nota para Sanford, que entregava seu cartão de crédito.

Apenas um dia antes eu pensava em mim como um alvo de caridade, rejeitada, uma criança vivendo à custa do Estado, sem pais, sem família, sem qualquer pessoa que se importasse com a minha aparência ou se me sentia confortável em roupas e sapatos. Subitamente, eu me tornava uma pequena princesa. Quem podia me culpar por ter medo de piscar e me descobrir de volta no orfanato, despertando de um sonho?

Quase como se isso a afligisse, Celine concordou relutante em fazer uma pausa para o almoço. Sanford levou-nos a um bom restaurante. Disse que eu podia pedir qualquer coisa que quisesse do cardápio. Mas Celine interveio no mesmo instante e proibiu-me de pedir um enorme e suculento hambúrguer.

— Escolha uma salada — determinou ela. — Precisa agora tomar cuidado com a gordura.

— Ela está crescendo — murmurou Sanford. — Vai queimar todas as calorias, Celine.

— O importante não é o que ela vai queimar, Sanford, mas sim o desenvolvimento de bons hábitos. Por favor, não se meta. Sei o que estou fazendo. Eu é que fui treinada para ser bailarina, não você. E não quero que a mime quando eu não estiver presente, Sanford.

Havia um sinal evidente de advertência em seus olhos. Ele fitou-me e riu, mas foi uma risada fraca, embaraçada.

— Gosto de saladas — declarei, para acabar com qualquer discussão.

— Está vendo, Sanford? Ela tem uma tendência natural para fazer a coisa certa. É de sua natureza. Janet é instintiva, como eu era. Ela é eu. Compreende tudo.

Celine sorriu para mim. Por mais que isso me deixasse contrafeita, eu sabia que podia agradá-la com a maior facilidade. Precisava apenas concordar com qualquer coisa que ela dissesse. Acho que começava a entender por que Sanford parecia tão desolado durante todo o tempo.

Sanford queria que dividíssemos uma sobremesa, mas Celine não permitiu.

— Ela pode comer sobremesa depois do jantar. Partimos de novo, desta vez para comprar os artigos de uso pessoal que Celine achava que eu precisaria.

— Quero que tome um cuidado especial com seus cabelos, Janet. Sua pele é fundamental, toda a sua aparência é muito importante. Afinal, é uma artista... uma obra de arte natural e viva. Foi assim que aprendi a pensar e acreditar, é assim que quero que você acredite.

Quando estávamos numa seção especializada da loja, ela me levou para um lado, a fim de que Sanford não ouvisse a conversa.

— Já ficou menstruada, Janet?

— Ainda não — respondi, baixinho.

Era uma coisa que me envergonhava admitir, porque todas as meninas da minha idade no orfanato e na escola, até mesmo um ano mais moças, já haviam menstruado.

Celine me fitou atentamente nos olhos por um longo momento, depois acenou com a cabeça.

— De qualquer forma, devemos estar preparadas.

Ela tratou de comprar o que eu precisaria. Ao deixarmos o distrito comercial e seguirmos para a fábrica de vidro de Sanford, eu me sentia bastante cansada. Celine, no entanto, continuava a parecer cheia de energia. Falava sem parar sobre as aulas de balé, preparando-me para o primeiro encontro com Madame Malisorf.

— Uma aula de balé é uma seqüência de exercícios graduados com todo cuidado, durando pelo menos uma hora e meia, Janet. Você vai começar pelos exercícios de alongamento e aquecimento usando a barre. Madame Malisorf gosta de passar quase uma hora fazendo isso. Depois, você passa para o centro do estúdio, a fim de trabalhar sem apoio. Chamamos essa segunda parte da aula de adage. Consiste de um trabalho lento, enfatizando as posições de sustentação e equilíbrio. A terceira parte da aula é chamada de allegro. Consiste de um trabalho rápido, combinações, seqüências de passos, com os grandes saltos e as voltas que tornam o balé tão impressivo. Pode se lembrar de tudo isso, Janet? Madame Malisorf ficará feliz se lembrar.

Era evidente, pelo seu tom de voz, que eu deveria memorizar o que ela dissera. Comentei que lera alguma coisa do livro que ela me dera, e que não deixaria de mencionar para Madame Malisorf.

— Isso é ótimo. Você vai aprender mais depressa do que as pessoas esperam. Tenho certeza.

— Chegamos! — anunciou Sanford, orgulhoso. Parecia que, além de agradar Celine, a fábrica era a coisa mais importante na vida de Sanford. Talvez eu fosse em breve acrescentada à lista.

A fábrica era muito maior do que eu imaginara. Havia dezenas e dezenas de carros no estacionamento. Sanford possuía tudo aquilo? Não era de admirar que o dinheiro parecesse não ter a menor importância, pensei.

— Estou realmente muito cansada, Sanford — declarou Celine subitamente. — Preciso descansar.

— Mas... não posso mostrar a fábrica a Janet e verificar algumas coisas?

O sorriso e o brilho de orgulho haviam desaparecido de seu rosto.

— Leve-me para casa primeiro — ordenou ela, incisiva. — Além do mais, Janet já viu a fábrica. Por que ela tem de entrar e ficar exposta a toda aquela poeira?

— Poeira? Não há poeira lá dentro, Celine. Sabe como me orgulho do nosso ambiente industrial.

Ele começava a se lamuriar.

— Por favor... Entre você e papai, ouço mais do que o suficiente sobre negócios. Meus pais possuem uma gráfica, Janet. Por favor, Sanford, vamos embora.

Pude ver que ele comprimia os dentes, enquanto a fitava. Depois, olhou para a fábrica e deu de ombros.

— Apenas pensei que poderíamos, já que estávamos aqui...

Sanford já desistira. Falava como um órfão que acabara de ser preterido por outro casal de pais em Potencial.

- Ela não está apenas nos visitando, Sanford. Vai morar conosco. Haverá outras ocasiões

-Claro. Tem toda razão, querida. Vamos para casa.

Ele deu a partida no carro, com um suspiro. E a minha escola? Não pude deixar de pensar nisso Não deveríamos ir até lá agora?

Celine deu a impressão de que lia meus pensamentos.

Sanford a levará à escola pela manhã e será matriculada, Janet. Quando voltar para casa, encontrará Madame Malisorf à sua espera.

O rosto tornou a irradiar aquela luz estranha, o mesmo excitamento de antes, quando ela acrescentou:

- E então começaremos tudo de novo.

 

Mais tarde, naquela noite, quando Celine começou a me interrogar sobre o que eu lera no livro de balé, tive a sensação de que já fora matriculada numa nova escola. Ela era como uma professora, corrigindo, explicando, determinando mais leituras. Queria ter certeza de que eu conhecia todos os nomes famosos no balé.

— Não contei nada a Madame Malisorf sobre seu passado, Janet. Ela não precisa saber que você passou toda a sua vida num orfanato. Pode ser uma parente distante que eu resolvi adotar.

Era a primeira vez que ela dizia alguma coisa que me fazia sentir vergonha do lugar de onde eu vinha. Lembrei da primeira vez em que ouvira alguém se referir a mim como uma órfã. Aconteceu no playground na escola. Eu estava na quarta série e havíamos saído para o recreio. Havia uma pequena calçada que as meninas usavam para pular amarelinha. Costumávamos nos dividir em duplas. Quando uma das meninas, Blair Cummings, teve de ficar comigo, queixou-se no mesmo instante:

— Não quero fazer dupla com Janet. Ela é muito pequena. Além disso, é uma órfã.

As outras olharam para mim como se eu tivesse uma verruga no nariz. Lembro que fiquei com o rosto vermelho, as lágrimas pareciam gotas fervendo por trás das pálpebras. Virei-me e saí correndo. Mais tarde, quando nossa professora, a srta. Walker, me encontrou sentada sozinha num canto do playground, perguntou se eu estava doente.

— Estou, sim. — Era a maneira mais conveniente de escapar de novas zombarias. — Sinto dor de barriga.

Ela me mandou para a enfermaria. Recebi a ordem de ficar deitada quieta, depois que a enfermeira tirou minha temperatura, embora ela constatasse que eu não tinha febre. Suponho que era por isso que as pessoas me julgavam uma menina sempre doente. Cada vez que eu me sentia menosprezada, tinha uma "dor de barriga", uma boa desculpa para desaparecer. Ser órfã me deixava com vontade de me tornar invisível.

— A maioria das alunas de Madame Malisorf vem das melhores famílias — continuou Celine — pessoas de cultura que criaram suas crianças num mundo de música, arte e dança. Elas têm uma vantagem. Mas não se preocupe, querida.

Celine inclinou-se para a frente, encostou a mão em meu rosto.

— Você tem a mim, o que é uma vantagem maior do que qualquer uma das mais afortunadas jamais teve.

Depois do jantar, sentei com ela e Sanford. Ouvi as descrições de Celine de alguns dos balés em que se apresentara.

— Madame Malisorf me comparou a Anna Pavlova. Já ouviu falar dela?

Eu nunca tinha ouvido falar, é claro. Ela balançou a cabeça e suspirou.

— É um crime, um autêntico crime, que alguém como você, alguém que é um diamante bruto, tenha tido tanta coisa negada, tanta oportunidade perdida. Graças a Deus que eu a vi naquele dia.

Ninguém jamais sugerira que eu tivesse qualquer tipo de talento, muito menos pensara em mim como um diamante bruto. Quando deixei Celine naquela noite e fui para o meu quarto, parei na frente do espelho, de sapatilhas e malha, para estudar meu corpo pequeno, na esperança de perceber alguma coisa que me convencesse de que era especial. Tudo o que vi, no entanto, foi uma menina subdesenvolvida, com olhos grandes e assustados.

E me deitei naquela noite apavorada com o que poderia acontecer no futuro.

Na manhã seguinte, depois do café da manhã, Sanford levou-me à Peabody School, uma escola particular. A diretora era a sra. Williams. Era alta, mas não muito magra, com cabelos castanho-claros, cortados e arrumados com a maior elegância. Achei que seu sorriso era cordial, até caloroso. Era muito diferente do diretor da minha antiga escola, o sr. Saks, que parecia sempre mal-humorado e infeliz, sempre ansioso em castigar os alunos pela violação de uma norma ou outra. Muitas vezes ele se postava nos corredores como um gavião, espreitando e esperando. Vivia entrando e saindo dos banheiros, na expectativa de surpreender alguém fumando.

A Peabody era uma escola muito menor, também mais limpa e mais nova. Fiquei surpresa ao ser levada a uma sala em que havia oito outros alunos, três meninos e cinco meninas. Para a minha série havia apenas uma professora, a srta. London, que ensinava inglês e história, e um professor, o sr. Wiles, que ensinava matemática e ciências. Nossa professora de educação física, sra. Grant, também ensinava educação sanitária. Descobri que havia apenas 257 alunos em toda a escola.

— As turmas são tão pequenas que você sabe que recebe uma atenção especial aqui — comentou Sanford.

Ele tinha razão. Todos os professores eram simpáticos e tinham tempo para explicar o que eu precisava aprender para alcançar os colegas.

O que eu mais gostei, porém, foi ter sido matriculada e apresentada aos outros alunos como Janet Delorice. Ninguém foi informado de que eu era adotada, que havia sido uma órfã antes. Todos presumiram que eu fora transferida de outra escola particular. Não falei nada para pensarem que podia ser diferente.

Achei que a maioria das meninas era metida a besta, assim como os meninos, à exceção de um, Josh Brown. Ele não era muito mais alto ou maior do que eu, mas me ofereceu o sorriso mais efusivo e o cumprimento mais cordial quando sentei ao seu lado, na minha primeira aula. Depois, ele saiu da sala comigo, falou sobre a escola e os professores. A cor dos seus cabelos era tão parecida com a minha que podíamos ser confundidos como irmão e irmã. Mas sua aparência não era parecida com a minha. Josh tinha olhos castanho-escuros, um rosto redondo com lábios mais firmes, um nariz que terminava numa ponta. Eu o achava bonito quando sorria, mas não tive coragem de dizer a ele.

— Seus pais acabaram de se mudar para cá? — perguntou ele, no intervalo entre as aulas.

— Não. Meu pai é dono de uma fábrica de vidro. Nesse momento, cheguei à conclusão de que não teria como evitar a informação de que viera de um orfanato.

Mas Josh pensou por um momento e acenou com a cabeça.

— Sei onde fica.

Ele parecia satisfeito com a resposta, e me senti feliz em mudar de assunto.

Mais tarde, naquele mesmo dia, as meninas fizeram mais perguntas. Percebi que uma delas, Jackie Clark, estava desconfiada.

— Você não estudava numa escola particular antes, não é mesmo? — insistiu ela.

-Não.

Tive de admitir, embora com a maior relutância. E pensei que precisava inventar uma história que explicasse tudo.

— Você era uma criança problema? — perguntou Betty Lowe.

-Não.

— Nunca se meteu em encrencas? — continuou Jackie.

Sacudi a cabeça.

— Como são suas notas? Muito ruins?

A pergunta foi de Betty, acompanhada por um aceno de cabeça e um sorriso, como se torcesse para que fossem mesmo péssimas.

— Não. Tenho boas notas.

Elas trocaram olhares, confusas e céticas.

— Por que nunca estudou antes numa escola particular? — indagou Jackie.

Dei de ombros.

— Meus pais só decidiram agora — respondi, deliberadamente vaga.

— Eu preferia estudar numa escola pública — admitiu Betty.

— Eu não — declarou Jackie.

As duas se absorveram em sua discussão e me esqueceram por um momento. Foi nessa ocasião que Josh se ofereceu para me mostrar mais alguma coisa da escola e nos afastamos. Gostei tanto do meu primeiro dia na nova escola, talvez por causa de Josh, que quase esqueci que Madame Malisorf estaria à minha espera quando voltasse para casa. Ao final das aulas, Sanford me aguardava na frente da escola.

— Pode haver ocasiões em que terei que mandar um dos meus empregados buscá-la, Janet. Quem quer que seja, vai ser muito simpático. E não precisa dizer nada a Celine. Ela nunca entende por que às vezes o trabalho precisa vir em primeiro lugar. Gosto de tirar uma folga para vir pegá-la, mas não poderei fazer isso todos os dias. Não se preocupe. Celine não vai descobrir. Será o nosso pequeno segredo.

Tentei não me preocupar com a idéia de haver mais um segredo entre nós... outro segredo escondido de Celine. Fiz um esforço para me concentrar no percurso. Havia uma obra na rua entre a casa e a escola. Ficamos retidos num engarrafamento cerca de um quilómetro e meio depois da escola. Não achei tão terrível assim, mas Sanford foi ficando cada vez mais nervoso. Não parava de murmurar ”Droga! Droga!”, criticando-se por não ter feito um desvio. Mas finalmente passamos pelo engarrafamento. Ele passou a guiar muito mais depressa. Não pude deixar de pensar no acidente que Sanford sofrera com Celine. As rodas rangeram quando entramos no caminho da casa, até que o carro parou abruptamente junto da porta da frente.

Saltei com meus livros novos nos braços e segui apressada com ele até a porta. Celine esperava no vestíbulo, sentada na cadeira de rodas. Fitou-nos com a cara amarrada, como se estivesse esperando ali há horas.

— Por que se atrasaram tanto? — perguntou ela, assim que entramos.

— Uma obra na estrada — explicou Sanford. — Houve...

— Não tenho tempo para desculpas, Sanford. Pode voltar para a sua preciosa fábrica.

Ela falou em tom ríspido, quase rangendo os dentes. Virou-se para mim, com uma expressão furiosa.

— Janet, Madame Malisorf está esperando no estúdio. Largue seus livros... e venha comigo.

Larguei os livros na mesa do vestíbulo, fitei Sanford, com os olhos arregalados e assustados, depois fui atrás de Celine. Meu coração batia forte quando entrei no estúdio. A primeira coisa que me espantou foi descobrir como Madame Malisorf era pequena. Pela maneira como Celine a descrevera, eu imaginara uma figura alta e imponente, pelo menos tão impressiva quanto a sra. McGuire. Madame Malisorf parecia não ter mais que um metro e meio de altura. Os cabelos eram grisalhos, o rosto cheio de rugas, mas o corpo era esguio e atlético. Dava a impressão de ser uma jovem que envelhecera prematuramente. Os olhos me avaliaram, enquanto eu me aproximava, por trás de Celine.

Madame Malisorf tinha os cabelos presos num enorme coque. Usava uma malha preta e sapatilhas como as que Celine comprara para mim. Os lábios eram vermelhos, os olhos pareciam manchas de carvão no rosto muito pálido.

— Janet, esta é Madame Malisorf — disse Celine. Fiquei aturdida com seu tom de voz, pois não parecia mais zangada. Era como se a passagem pela porta do estúdio a tivesse transformado.

— Olá — murmurei, com um sorriso tímido.

Ela me fitou sem dizer nada, depois virou-se para Celine.

— Sabe que não gosto de pôr as meninas em sapatilhas de pointe até completarem treze anos, Celine, não importa há quanto tempo estejam estudando.

— Ela fará treze anos muito em breve, Madame. Madame Malisorf sorriu com um evidente ceticismo.

— Ela parece não ter mais que nove ou dez anos.

— Sei disso. Ela pode ser pequena, mas é muito preciosa e talentosa.

— É o que veremos. — Madame Malisorf virou-se para mim. — Quero que você ande até a parede do outro lado e volte.

Olhei para Celine, que sorriu e acenou com a cabeça em encorajamento. Fui até a parede, virei-me e voltei.

— E então, Madame? — perguntou Celine, na maior ansiedade.

Era óbvio que ela esperava que Madame Malisorf concordasse com sua avaliação.

— Ela tem uma boa postura e equilíbrio. O pescoço parece um pouco fraco, mas isso será logo retificado. Fique na ponta dos pés.

Obedeci. Quando comecei a baixar, Madame Malisorf ordenou, a voz áspera:

— Não! Continue assim até eu mandar baixar. Fiquei esperando. As batatas das pernas começaram a tremer e doer, mas permaneci na ponta dos pés. Senti que o rosto estava ficando todo vermelho.

— Estenda os braços. Fiz isso também.

— Mantenha a cabeça erguida, olhando para a frente.

Parecia alguma espécie de tortura. Mas como Celine observava, com aquele seu sorriso, fiz um esforço para agüentar firme. Todo o meu corpo passou a tremer. Esperava que fosse mais fácil nas sapatilhas de pointe.

— Relaxe — disse Madame Malisorf. — Boa força. E um bom equilíbrio para uma menina sem qualquer treinamento. Talvez você tenha razão, Celine, mas será preciso um tremendo esforço. Quanto ao trabalho de pointe, veremos o tempo que será necessário para aprontá-la.

Ela virou-se para mim e ordenou:

— Vista o traje de exercício e volte em dez minutos.

Dez minutos outra vez. Celine acenou com a cabeça para mim. Saí apressada, subi a escada para meu quarto, vesti a malha. Celine tinha razão sobre a maneira como Madame Malisorf conduzia sua aula. Ela fazia a demonstração, depois me punha para ensaiar um exercício depois de outro na barre. Repetição era a palavra mágica. Ela gritava ordens e esperava que eu obedecesse imediatamente. Se eu fazia uma pausa para recuperar o fôlego, ela soltava um suspiro profundo e dizia ”E então?” Celine tossia de leve, da porta, de onde acompanhava tudo. Repeti cada movimento tantas vezes que acabei pensando que poderia fazer os exercícios durante o sono. Ao final, Madame Malisorf mandou que eu me afastasse da barre e trabalhasse em ficar com os pés virados para fora.

— Por vários motivos, relacionados com a estrutura da articulação do quadril — explicou ela — uma bailarina pode obter maior extensão se girar a perna para fora, longe de sua posição usual. Esse giro lhe permitirá mover-se para o lado com a mesma facilidade que para trás e para a frente. Essa posição é conhecida como...

— Giro lateral — apressei-me em dizer, querendo impressioná-la com meu conhecimento.

— Isso mesmo.

Mas ela não parecia surpresa, nem sequer satisfeita. Em vez disso, Madame Malisorf parecia contrariada por eu ter concluído a frase. Pelo reflexo no espelho, percebi que os olhos de Celine transmitiam uma advertência. Apressei-me em assumir a posição que fora descrita no livro.

— Não! Não! — gritou Madame Malisorf. — Não comece pelos tornozelos. Não force os pés para essa posição e deixe tudo acompanhar daí para cima. O giro lateral começa na articulação do quadril.

Ela me pegou pela cintura e me fez repetir o movimento várias vezes, até se sentir satisfeita. Ainda era muito cedo no treinamento para iniciarmos os pulos. Por isso, voltamos à barre para mais exercícios.

— Terá que ser bastante forte para poder tentar os movimentos que lhe ensinarei — declarou Madame Malisorf confiante.

Quando terminamos por aquele dia, eu me sentia toda dolorida, em particular nos quadris e pernas. A dor era tão intensa em alguns pontos que me deixava com lágrimas nos olhos. Mas não ousei emitir uma única palavra de queixa. Durante todo o tempo em que trabalhei com Madame Malisorf, Celine ficou assistindo da cadeira de rodas, acenando com a cabeça e sorrindo a cada coisa que a professora de balé dizia.

— Ela será maravilhosa, absolutamente maravilhosa, não é mesmo, Madame Malisorf? — perguntou Celine, ao final da sessão.

— Veremos — respondeu Madame Malisorf, os olhos frios e críticos.

— Já providenciei as sapatilhas de pointe.

— Não podemos apressá-la, Celine — declarou Madame Malisorf, ríspida. — Você, entre todas as pessoas, devia saber disso.

— Não vamos nos precipitar, mas tenho certeza de que ela progredirá depressa — garantiu Celine, inabalável. — Cuidarei disso. Ela vai praticar e praticar, Madame.

— Espero que sim. — A professora olhou para mim. — Não poderia se tornar uma bailarina apenas com as nossas sessões.

Ela pensou por um momento, depois acrescentou:

— Acho que na próxima vez trarei alguém. — Madame Malisorf virou-se para Celine. — É bom ter outra pessoa para trabalhar junto.

— Está bem — murmurou Celine. — Obrigada. Amanhã?

— Amanhã — confirmou Madame Malisorf, começando a recolher suas coisas.

Amanhã? Eu teria aulas todos os dias? Quando meu pobre corpo teria uma chance de se recuperar?

Assim que Madame Malisorf se retirou, Celine impulsionou a cadeira de rodas até o lugar em que eu havia ficado, os olhos ardendo de excitamento.

— Ela gosta de você. Tenho certeza. Eu a conheço há muito tempo. Se ela achasse que você não tinha potencial, simplesmente recusaria ser sua professora de balé. Madame Malisorf não perde tempo com alunas medíocres. A sua oferta de trazer uma de suas alunas especiais... você nem imagina o que isso significa, Janet. Deve ser por isso que não se sente tão excitada quanto deveria estar. Tem de ficar excitada, Janet. Não entende? Madame concorda comigo. Você vai ser uma prima ballerina. O que é maravilhoso, absolutamente maravilhoso!

Celine bateu palmas. Tentei sorrir, apesar de todas as minhas dores. O que a levou a soltar uma risada.

— Não se preocupe com as dores, Janet. Tome um banho de água quente na banheira antes do jantar. Não ficará mais dolorida depois de algumas sessões. Vai ver só. Ah, mal posso esperar para contar a Sanford sobre a aula! Eu tinha razão. Sabia disso. Tinha toda razão.

Ela virou a cadeira e impulsionou-a para a porta.

O que eu fizera para torná-la tão confiante, especulei, além de desfilar pelo estúdio, erguendo-me na ponta dos pés, equilibrando-me e realizando alguns exercícios tão vigorosos que me deixaram com a sensação de ter sido atropelada por um caminhão?

Saí do estúdio e subi para o meu quarto, muito mais devagar do que fizera no dia anterior. Só depois que entrei no quarto e fechei a porta é que me permiti o primeiro gemido. Abri a água quente na banheira e imergi os músculos doloridos. Mais tarde, ao jantar, meu trabalho no estúdio com Madame Malisorf foi o tema exclusivo de Celine. Sanford ainda tentou me fazer perguntas sobre o meu primeiro dia na escola, mas Celine interrompia a todo instante, com conselhos sobre esse e aquele exercício na barre.

— Eu gostaria que você pudesse estar presente para vê-la, Sanford. Houve momentos em que senti que olhava para mim mesma no espelho, quando minha mãe costumava vir me assistir também.

Não pude deixar de pensar quando conheceria meus novos avós, mas não houve qualquer referência a uma visita.

Celine queria que eu permanecesse em sua companhia depois do jantar, a fim de conversarmos mais sobre o balé. Sanford, porém, lembrou-a de que eu tinha muitos deveres da escola para fazer.

— Deveres da escola... — repetiu ela, desdenhosa. — Algum dia, muito em breve, ela terá uma tutora pessoal, como aconteceu comigo.

— Quer dizer que parou de ir à escola? — perguntei.

— Claro. O balé era tudo para mim. Será para você também, Janet. Vai ver só.

Apenas o balé e uma tutora, durante todo o tempo. Mas o que dizer de amigos, festas e, acima de tudo, namorados? Acho que não me mostrei muito entusiasmada com a perspectiva, porque Celine franziu o rosto e indagou:

— Qual é o problema?

— Ela está muito cansada, Celine — interveio Sanford. — Foi um dia comprido... um dos mais longos da vida de Janet, eu diria.

Celine estudou-me por um segundo, depois sorriu.

— Tenho certeza de que foi mesmo. Pode ir fazer os deveres, querida, e depois tenha um sono reparador.

Fui dispensada e voltei para o meu quarto. Por algum tempo, fiquei sentada à mesa, imóvel, olhando para a pequena montanha de leituras que tinha de fazer. Ganhar uma nova casa e uma nova família não era tão fácil quanto eu sempre sonhara que seria.

Quando me estiquei contra o encosto da cadeira, as costas e as batatas das pernas protestaram em dor. Contemplei-me no espelho e soltei um gemido. Tinha uma notícia para o meu corpo cansado.

— Vai sentir ainda mais dor!

 

Madame Malisorf cumpriu sua promessa. No dia seguinte, quando Sanford me trouxe da escola, havia um garoto mais velho esperando no estúdio com ela. Não sei por que, mas esperava que ela trouxesse uma menina para tomar aula comigo. A visão de um garoto usando malha me pegou de surpresa. Fiquei parada ali, olhando para ele, aturdida. Devia ter pelo menos quinze ou dezesseis anos. Era, no mínimo, quinze centímetros mais alto do que eu, os cabelos muito pretos, olhos que brilhavam como ônix. Tinha uma pele escura, mas a boca era tão vermelha que dava a impressão de que usava batom. Parecia não haver um grama de gordura em seu corpo.

Os ombros eram musculosos, as pernas ainda mais musculosas. A malha ajustava-se ao corpo como uma segunda pele, de tal forma que não deixava muito espaço para a imaginação. O sexo era com freqüência o tema das conversas das meninas mais velhas no orfanato. Eu não podia deixar de ouvir, porque queria conhecer suas experiências. Pelo que elas me disseram diretamente e as coisas que ouvi de passagem, eu pensava que sabia de tudo o que havia para saber em minha idade, apesar de não ter uma irmã mais velha ou mãe para me explicar o que faziam os passarinhos e as abelhas. Só que eu nunca estivera na mesma sala com um garoto mais velho que parecesse tão... tão nu. Não pude deixar de corar. Percebi no mesmo instante que meu embaraço o irritava, e por isso me apressei em desviar os olhos.

— Este é Dimitri Rocmalowitz — informou Madame Malisorf. — É um dos meus melhores alunos e muitas vezes instrui os novos nos elementos básicos. Claro que ele ainda tem muito a aprender, mas já é um bailarino talentoso e preciso. Quando ele lhe disser para fazer alguma coisa, deve tratá-lo com o mesmo respeito e consideração que me dispensaria. Entendeu, Janet?

— Entendi, Madame — respondi, cética.

Afinal, Dimitri parecia jovem demais para ser um bailarino tão extraordinário. Seria estranho receber instruções dele.

— Observar alguém que conhece o balé como Dimitri vai ajudá-la a compreender o que se espera de você — continuou ela. — Hoje e daqui por diante, quero que comece as sessões usando estes meiões para aquecer as pernas.

Ela me entregou os meiões de lã, bem grossos, num tom púrpura brilhante.

Depois que os pus, fomos para a barre. Notei que Celine levara a cadeira de rodas para um canto do estúdio, onde permaneceu, as mãos cruzadas no colo, assistindo.

Dimitri iniciou um exercício de aquecimento. Por um momento, não pude fazer outra coisa que não observá-lo. Ele não parecia tímido ou nervoso por dançar na nossa frente. Era como se estivesse em seu próprio mundo. As pernas se movimentavam com a maior graça e rapidez, enquanto ele mantinha o corpo numa linha vertical perfeita.

— Comece — ordenou Madame Malisorf.

Aproximei-me da barre, a alguns passos de Dimitri.

— Não, não, não aperte tanto a barre — disse ela. — Observe como Dimitri a segura apenas para o equilíbrio.

Tentei relaxar. Iniciamos uma série de exercícios, que incluíam pliés, tendus e glissés, tudo o que ela me ensinara no dia anterior. Daí, passamos para os fondus e depois os ronds de jambe à terre. Primeiro, Madame Malisorf descrevia o que queria. Depois, Dimitri fazia uma demonstração, sempre com uma expressão orgulhosa, como se dançasse para uma audiência de milhares de pessoas. Eu começava em seguida, quase sempre interrompida por Madame Malisorf:

— Não, não, não. Dimitri, de novo. Observe-o, Janet. Estude a maneira como ele mantém as costas e o pescoço.

Às vezes eu precisava de tanto tempo para satisfazê-la que quase chegava às lágrimas antes que ela me permitisse passar para outra coisa, sempre com uma declaração condicional:

— Voltaremos a trabalhar nisso mais tarde.

Não havia nada que eu não tivesse de trabalhar mais, aparentemente por toda a eternidade, pensei.

Quando chegamos ao giro lateral, a dor nos quadris foi tão intensa que quase gritei. Tinha certeza de que o rosto revelava todas as minhas novas dores. Só que Madame Malisorf parecia implacável. No momento em que eu pensava que haveria uma curta pausa, em que poderia recuperar o fôlego, ela determinava alguma coisa nova, com Dimitri demonstrando, para eu tentar imitar seus movimentos em seguida.

A sessão durou mais tempo que a do dia anterior. Eu suava demais. Sentia a umidade na malha, agora grudada em minha pele. Madame Malisorf finalmente nos concedeu uma pausa. Arriei no chão. Ela foi conversar com Celine. Dimitri fitou-me pela primeira vez desde que eu entrara no estúdio.

— Por que você quer ser uma bailarina? — perguntou ele, com uma rispidez na voz que me fez sentir culpada.

— Minha mãe acha que devo ser — respondi, na defensiva.

— É esse o seu motivo?

Dimitri sorriu. Enxugou o rosto com sua toalha. Depois, jogou a toalha encharcada para mim.

— Você está pingando.

Encontrei uma área seca na toalha, enxuguei o rosto e a nuca.

— Creio que vou gostar — comentei, cautelosa. Ele tornou a sorrir.

— O balé exige absoluta e completa devoção, um empenho total da mente, corpo e alma. Torna-se sua religião. Uma professora como Madame Malisorf é a sua alta sacerdotisa, sua deusa, as palavras que ela diz a você viram o evangelho. Tem de pensar e andar como uma bailarina, comer e respirar como um bailarina. Não há nenhuma outra coisa que seja nem pela metade tão importante. E só assim você talvez tenha uma chance de ser uma verdadeira bailarina.

— Não espero me tornar uma bailarina famosa. Era difícil entender por que aquele garoto fazia com que eu sentisse necessidade de me defender... ainda mais quando não tinha certeza se queria mesmo me tornar uma bailarina. Ele lançou um rápido olhar para Madame Malisorf e Celine, antes de voltar a me fitar.

— Nunca deixe que Madame Malisorf a ouça fazer um comentário tão indeciso e derrotista. Ela vai virar as costas e deixar a sala para sempre.

Meu coração, já disparado dos exercícios, parou de repente... e logo voltou a bater ainda mais forte. Celine ficaria arrasada. Passaria a me odiar.

— Madame Malisorf lhe dirá o que você vai ser ou não vai ser. — Dimitri balançou a cabeça, acrescentou um comentário desdenhoso: — Outra criança rica mimada cujos pais acham que é especial.

— Não sou mimada! — protestei, quase em lágrimas.

— Não é? Quantas crianças da sua idade têm um estúdio como este em sua casa e uma professora que custa milhares de dólares por semana?

— Milhares?

Engoli em seco, atordoada.

— Isso mesmo, sua pequena idiota. Não sabe quem ela é? — Ele soltou um grunhido. — Não vai durar muito. Dá para sentir.

Dimitri tornou a balançar a cabeça.

— Vai durar, sim. Farei tudo o que tiver de fazer... e farei muito bem.

Eu não queria dizer a ele que pensava que minha vida dependia disso; que a mulher que eu queria que me amasse como uma mãe tinha seu coração empenhado em meu sucesso como uma bailarina; e que eu devotaria toda a minha força e energia para fazê-la feliz.

— Minha mãe ia se tornar uma famosa bailarina, até que sofreu um terrível acidente de carro. Por isso é que temos este estúdio. Não estou aqui só por mim.

Ele sorriu, ainda desdenhoso.

— Não deveria olhar de cima alguém que está começando só porque é um bom aluno de balé.

O sorriso agora foi de satisfação.

— Como eu poderia olhar para você de outra forma que não de cima? Qual é a sua altura? Um metro e quarenta?

Dessa vez as lágrimas escaparam pelos cantos dos meus olhos. Virei as costas a Dimitri e apressei-me em enxugá-las.

— Você tem realmente quase treze anos?

A voz de Dimitri abrandara um pouco. Achei que havia se arrependido de me ter magoado.

Eu me preparava para responder quando Madame Malisorf voltou e me disse para tirar os meiões. Era tempo de me afastar da barre e repetir tudo o que fizéramos, só que dessa vez sem a ajuda da barre. Eu não podia deixar de me sentir exausta e de cometer erros. Sabia que parecia muito desajeitada e inepta. Cada vez que Madame Malisorf me corrigia, Dimitri balançava a cabeça e sorria desdenhoso. Depois, como se quisesse reiterar seu menosprezo, ele fazia o que ela pedia com absoluta perfeição, exibindo-se, as voltas tão rápidas que parecia um borrão. De vez em quando ele saía dos rodopios e dava um salto que parecia desafiar a gravidade, caindo sem fazer qualquer barulho. Sempre que ele demonstrava alguma coisa para mim, Madame Malisorf gritava:

— É isso. É exatamente isso o que eu quero. Trate de estudá-lo. Observe-o. Algum dia você deve ser tão boa quanto Dimitri.

O rosto dele assumia uma expressão de orgulho arrogante, enquanto estufava o peito em minha direção.

Eu tinha vontade de dizer que preferia ver um peixe morto flutuando em nosso lago, mas prendia a respiração para as palavras não saírem... e tentava de novo. A sessão finalmente terminou, um ato de misericórdia. Celine bateu palmas e avançou na cadeira de rodas para o centro do estúdio.

— Bravo, bravo! Um início maravilhoso. Obrigada, Madame Malisorf. Muito obrigada. E você, Dimitri, me faz ter vontade de sair desta cadeira, esquecer as pernas entrevadas e dançar em seus braços.

Ele se inclinou numa reverência.

— Madame Malisorf me contou como dançava maravilhosamente e a tragédia que foi para o balé quando sofreu o acidente, sra. Delorice.

— É verdade... — Os olhos de Celine exibiram de repente aquela expressão distante. Depois, ela sorriu para mim. — Mas minha filha fará o que não pude mais fazer. Não concorda?

Dimitri olhou para mim.

— Talvez — respondeu ele, com um sorriso torto. — Se ela aprender a ser dedicada, devotada e obediente.

- Ela aprenderá - garantiu Celine.

Perguntei-me se a sua ordem me transformaria numa bailarina com a mesma facilidade com que convertera um dia escuro e nublado em claro e ensolarado.

Tentei não parecer tão cansada e dolorida quanto me sentia, mas Dimitri percebeu tudo através de minha máscara, oferecendo-me um sorriso cruel. Assim que entrei em meu quarto, fui me jogar na cama e deixei que as lágrimas escorressem.

Nunca serei a bailarina com que Celine sonha, pensei. Talvez nunca me torne a filha que ela deseja, mas prefiro morrer tentando do que desapontá-la.

Mais uma vez, toda a conversa durante o jantar concentrou-se na aula de balé e no meu progresso. Celine falou tanto que mal comeu ou respirou entre as frases. Sanford tentou conversar sobre outras coisas, mas ela se recusou a mudar de assunto. Ele sorria para Celine e para mim, com uma expressão divertida. Depois, Sanford me levou para um lado e comentou que ha muito tempo Celine não se mostrava tão animada e alegre.

- Obrigado por fazer Celine tão feliz, Janet. Você é um acréscimo maravilhoso à nossa família. Obrigado por simplesmente ser quem você é.

Ele sorriu de uma maneira espontânea e sincera. Não pude deixar de pensar que aquele sorriso ficava muito melhor do que o sorriso tenso e sombrio que Sanford costumava exibir na presença de Celine. Ela nos surpreendeu no corredor e notou o sorriso radiante do marido.

— Por que está sorrindo como um idiota, Sanford? O que vocês dois conversavam? — Seus olhos se contraíram subitamente, tornaram-se frios e ameaçadores. — Janet, vá para o seu quarto. Você precisa descansar. É evidente que vai precisar de toda a ajuda que puder obter para acompanhar Dimitri.

Não pude deixar de sentir que Celine me repreendera. Subi para o meu quarto e desmaiei de cansaço na cama.

As duas primeiras semanas de minha nova vida voaram tão depressa que pareciam apenas horas. Tive certeza de que era assim porque cada um e todos os momentos do meu dia eram cheios de coisas por fazer. Ao contrário do orfanato, não havia longas horas de vazio para preencher com distrações e sonhos. Agora eu fazia os deveres da escola, tinha aulas de balé, recuperava-me do esforço físico, e começava tudo outra vez. Ia dormir cedo e comia apenas a rigorosa dieta de bailarina projetada por Celine. Embora pensasse que ainda era muito cedo para constatar mudanças concretas, tinha a impressão de que minhas pernas já estavam mais fortes, os pequenos músculos mais resistentes. Pensei até que já fazia o que Dimitri insistia que eu teria de fazer: andar e me movimentar como uma bailarina, mesmo quando não me encontrava no estúdio.

Porque o tempo depois da escola era dedicado às aulas de balé, era difícil fazer novas amizades. Ainda por cima, Celine não permitia que eu entrasse em equipes ou clubes.

— A última coisa que precisamos agora é que você sofra uma lesão em alguma brincadeira — comentava ela.

Celine tentou até me tirar da aula de ginástica, mas a escola não permitiu. Sanford argumentou que isso não iria interferir com as aulas de balé.

— Claro que vai atrapalhar! — insistiu Celine. — Não quero que ela desperdice sua energia física em bobagens.

— Não é uma bobagem, querida — ele ainda tentou explicar.

Mas Celine não queria saber de nada. Não conseguira impor sua vontade, o que a deixava irritada.

— Não faça mais do que o necessário — aconselhoume ela. — Faça também o que eu costumava fazer sempre que podia: alegue que está com cólicas menstruais.

— Mas ainda não tive a primeira menstruação.

— E daí? Quem vai saber? — Ao ver minha expressão, ela acrescentou: — A mentira é aceitável se é pela causa certa. Nunca a castigarei por fazer alguma coisa que proteja seu balé, Janet. Nunca, mas nunca mesmo, não importa o que possa acontecer.

Seus olhos se tornaram tão grandes e brilhantes que me assustaram. Eu me perguntava para onde ela ia sempre que assumia aquela expressão.

Como a maioria dos meninos e meninas do orfanato na minha idade, eu costumava fantasiar sobre as pessoas que se tornariam meus pais. Povoava a cabeça com coisas divertidas, como piqueniques, passeios no parque de diversões. Via-me segurando a mão de meu pai ao passar pelos portões da Disneylândia. Imaginava festas de aniversário enormes e alegres. Até sonhava em ter irmãos e irmãs.

Como parecia vazia e diferente aquela casa enorme em que eu vivia agora, quando comparada à casa dos meus sonhos. É verdade que eu tinha as coisas mais caras, um quarto maior do que jamais vira, havia um lago e lindos jardins na propriedade. Mas não existia a intimidade de família, as viagens, diversões e brincadeiras que eu imaginara. Sanford queria passar mais tempo comigo, me levar à fábrica, mas Celine sempre arrumava um motivo atrás de outro para evitar a visita. Ela acabou compreendendo que seus argumentos eram absurdos, o que a fez mudar de idéia. Fui para o trabalho com Sanford num sábado, vi as máquinas e os produtos. Conheci alguns operários e executivos. Fiquei espantada ao verificar como ele se mostrava feliz e ansioso em me mostrar tudo; e me senti triste quando nosso momento a sós terminou. Creio que Sanford sentiu a mesma coisa... na viagem de volta para casa, nenhum dos dois falou. Pela primeira vez naquele dia, o clima entre nós era desolado.

Ao chegarmos em casa, comecei a fazer um relato sobre o dia para Celine. Mas ela fez uma careta, como se sentisse dor, e declarou:

— Precisamos da fábrica para podermos desfrutar os luxos da vida. O que não precisamos é reconhecer sua existência. E, certamente, não podemos permitir que ocupe um momento sequer de nosso tempo ou pensamento.

— Mas algumas coisas feitas na fábrica são lindas, não é mesmo? — insisti.

— Suponho que sim, de uma maneira vulgar — admitiu Celine.

Não entendi direito o que ela quis dizer com isso, mas percebi que o comentário desagradou a Sanford. Celine não voltou a ficar animada e feliz até que Sanford anunciou que comprara ingressos para a apresentação de The Four Temperaments, no Metropolitan Ballet.

— Agora, Janet, você vai assistir à sua primeira apresentação de balé de verdade, e compreender o que eu quero que faça e se torne!

Celine mandou que Sanford nos levasse a uma loja para me comprar um vestido elegante. Escolhi um vestido de tafetá azul. Celine até exigiu que Sanford me comprasse jóias, um par de brincos de safira e um colar combinando.

— Ir ao balé é uma coisa muito especial — explicou Celine. — Todas as pessoas usam suas melhores roupas. Você vai ver.

Ela me levou a um salão de beleza onde arrumaram meus cabelos. Também me ensinou a aplicar a maquilagem direito. Quando me contemplei no espelho, fiquei espantada ao descobrir como parecia adulta.

— Quero que você se destaque, que seja notada, que todos olhem e pensem: ”Lá está uma estrela em ascensão, uma pequena princesa.”

Tive de admitir que finalmente fui absorvida pelo mundo de Celine. Permiti-me acalentar os mesmos sonhos, pensar em mim como uma celebridade, meu nome nas marquises. Quando vi o teatro e todas aquelas pessoas ricas e elegantes na audiência, também fui dominada pelo excitamento. O bale começou. Olhei para minha nova mãe, ao meu lado, na cadeira de rodas, vi a felicidade e o brilho radiante em seus olhos. Senti que saltava e me elevava pelo ar ao seu lado. Durante o primeiro ato, ela inclinou-se pela escuridão, até encontrar minha mão. Quando me virei, Celine sussurrou:

— Algum dia, Janet, Sanford e eu estaremos vindo aqui para assisti-la no palco.

Uma pausa e ela repetiu, perdida em seus sonhos:

— Algum dia...

E ousei acreditar que podia ser verdade.

 

Embora quase não ouvisse referências a eles, eu não podia deixar de me perguntar quando conheceria meus avós, a mãe e o pai de Celine. Nunca a ouvi nem vi falar com eles pelo telefone; nem ela nem Sanford mencionaram ter falado com eles recentemente ou numa base regular. Durante a semana, Sanford e eu costumávamos tomar o café da manhã sem Celine, já que ela levava muito mais tempo para se levantar e vestir. Eu sabia que Sanford me falaria sobre meus novos avós se lhe perguntasse, mas não tinha coragem de abordar o assunto. Acabei decidindo que me acomodaria em minha rotina e esperaria que Celine tornasse a falar de seus pais... só então pediria para conhecê-los.

À medida que os dias passavam, minhas aulas de balé pareciam melhorar. Embora não pudesse me imaginar gostando algum dia de Dimitri, não pude deixar de me sentir lisonjeada quando ele elogiou minha técnica. Madame Malisorf não chegou ao ponto de dizer que eu era uma aluna especial, mas admitiu que era melhor do que a média, o que foi suficiente para deixar Celine feliz e ainda mais confiante.

— Acho que é tempo de minha mãe conhecer Janet — anunciou Celine uma noite, ao jantar. — Janet já fez um progresso significativo. Pedirei à minha mãe para vir aqui durante uma de suas aulas de balé.

Sanford acenou com a cabeça, sem dizer nada. Percebi algo estranho em seus olhos, uma expressão de preocupação que eu não vira muitas vezes antes. Como era natural, eu não podia deixar de especular por que não conhecera os pais de Celine antes. Sabia que eles não moravam muito longe. Por que nunca nos visitavam? Critiquei-me por não ter tido a coragem de perguntar a Sanford, pois era óbvio, por sua expressão, que ele tinha opiniões firmes a respeito dos sogros.

— Seu irmão não vai voltar das férias amanhã? — perguntou Sanford.

Seu rosto não havia relaxado nem um pouco. Pensei que havia alguma coisa na família de Celine que o deixava transtornado.

— Não me lembro. E o que está querendo dizer com ”voltar das férias”? Quando Daniel não está de férias?

Celine arrematou com uma risadinha estridente. Nada mais foi dito a respeito de sua família. Dois dias depois, porém, no meio do jantar, a campainha da porta tocou. Mildred saiu apressada da cozinha para atender. Logo em seguida ouvi uma risada áspera.

— Mildred! — exclamou um homem no vestíbulo. — Você ainda está aqui! Maravilhoso

— Daniel... — resmungou Celine, balançando a cabeça.

Momentos depois, o irmão mais novo de Celine entrou na sala de jantar. Os cabelos castanho-claros eram compridos, espalhados pelo rosto e cabeça como se ele estivesse passando os dedos por horas. Com cerca de um metro e oitenta de altura, corpo atlético, Daniel tinha olhos também castanho-claros, num rosto muito mais delineado que o de Celine. Percebi semelhanças no nariz e boca, mas havia um sorriso insinuante em Daniel que eu descobriria ser uma característica habitual. Ele usava um blusão de couro preto, uma jeans desbotada e botas pretas, além de luvas de couro preto.

— Celine, Sanford, como vocês têm passado? — Ele começou a tirar as luvas. — Cheguei a tempo para o jantar. Muita sorte. Estou morrendo de fome.

Daniel se acomodou numa cadeira na minha frente e pegou uma fatia de pão, antes que alguém pudesse responder.

— Olá, Daniel — disse Celine, secamente. — Esta é Janet.

Ele piscou para mim.

— Já soube que vocês finalmente se tornaram pais. Mamãe me fez um sermão. — Daniel me estudou por um instante. — Como eles a estão tratando? Sanford já negociou sua mesada? É melhor me deixar representála. Ah, vitela assada!

Daniel pegou um pedaço de carne, enquanto acrescentava:

— Mildred é uma cozinheira e tanto.

Ele meteu a carne na boca e mastigou. Era como se um vento forte e impetuoso soprasse pela casa. Era evidente que Sanford estava tão atordoado com a aparência de Daniel que permanecia imóvel, com a mão parada no ar, o garfo cheio de petit-pois.

— Olá, Daniel — disse ele, os olhos abrandando. — Vejo que finalmente conseguiu a motocicleta que vinha ameaçando comprar.

— Pode apostar que sim. Pelo que me lembro, você também tinha a idéia de comprar uma motocicleta.

— Nunca falei sério — murmurou Sanford, lançando um olhar para Celine.

— E você, Janet, não quer dar uma volta depois do jantar? — perguntou-me Daniel.

— Claro que não — interveio Celine. — Acha que eu a exporia a tamanho risco?

Daniel soltou uma risada e continuou a comer. Eu ainda me sentia muito surpresa para falar. Ele tornou a piscar para mim.

— Aposto que você gostaria de dar uma volta.

Ele me fitava com tanta intensidade que dava a impressão de que podia ver até a minha alma. Eu me perguntei se minha alma vestia o blusão de couro de um motoqueiro!

— Pare com isso, Daniel — ordenou Celine.

Ele riu de novo e balançou a cabeça em derrota.

— Onde você esteve desta vez? — perguntou Sanford.

Embora ele tencionasse ser crítico, senti uma certa inveja em seus olhos enquanto esperava que Daniel relatasse suas aventuras.

— No Cape. Você teria adorado, Sanford. Nós pegamos a estrada litorânea, através de Connecticut. Juro que pensei que poderia viajar para sempre, com o vento desmanchando nossos cabelos, e o cheiro de maresia. E nunca mais voltar.

— E, no entanto, você está aqui — murmurou Celine, torcendo o nariz. — Não ouso perguntar sobre o nós.

— Não ousa? Engraçado, mamãe também não ousou.

— Era de se esperar — comentou Sanford, sorrindo.

— Na verdade, Sanford, era uma linda donzela em apuros quando a encontrei, vesti, alimentei e lhe comprei uma motocicleta.

Daniel não parou de comer enquanto falava.

— Comprou uma motocicleta para uma estranha? — perguntou Celine, com uma careta.

— Depois de alguns dias, ela não era mais uma estranha. — Daniel tornou a piscar para mim. — E agora me fale sobre você, Janet. Quantos anos tem?

— Farei treze anos dentro de algumas semanas — respondi, hesitante.

Daniel parecia fora do comum. Fiquei nervosa quando ele passou a concentrar suas perguntas em mim.

— Tão velha assim? Vai precisar negociar também um pacote de aposentadoria. Falando sério, está sendo bem tratada aqui? Tenho amigos em altos postos que podem interceder por você num instante, se não estiver. Eles devem respeitar as normas da Convenção de Genebra sobre prisioneiros.

— Mas... mas não sou uma prisioneira.

Lancei um olhar para Sanford e Celine, em busca de ajuda.

— Quer parar com isso, Daniel? Está assustando-a com seu comportamento. — Celine fez uma pausa. — Como estão mamãe e papai?

— Muito bem. — Ele olhou para mim. — Nossos pais estão se transformando lentamente em estátuas. Ficam imóveis como granito e só respiram ar filtrado.

— Daniel! — exclamou Celine.

— Ora, eles estão ótimos. Só os vi por alguns minutos, antes de mamãe começar você sabe o quê.

Ele acenou com a cabeça em minha direção ao final da frase.

— Já chega! — interveio Sanford, ríspido.

— Não acha que ela deve saber o que a espera, o tipo de família em que se meteu?

— Por favor... — suplicou Celine. Daniel deu de ombros.

— Está bem, serei cortês. Juro. Gosta da vida aqui, Janet?

— Gosto muito.

— E eles a matricularam naquela escola esnobe?

— A Peabody não é uma escola esnobe — corrigiu Celine. — É uma escola especial, com muitos benefícios.

— Já lhe contaram que passei pela Peabody, mas fui convidado a procurar outra escola para estudar?

Sacudi a cabeça.

— Meu irmão é o que se costuma chamar de garoto mimado — explicou Celine. — Não importa quanto dinheiro meus pais estivessem dispostos a gastar com ele ou o que estivessem dispostos a fazer, Daniel sempre dava um jeito de estragar tudo.

— Sempre me senti sufocado naquele berço de ouro. — Ele deu de ombros. — Mildred, você se superou com esta vitela. Ficou tão suculenta quanto os lábios de uma virgem.

Daniel estalou os lábios ao terminar. Mildred ficou vermelha.

— Daniel! — protestou Celine.

— Quero apenas fazer um elogio e demonstrar meu agradecimento. — Ele inclinou-se para mim. — Minha irmã sempre se queixa de que não sou agradecido.

Olhei para Sanford, que largou o garfo e a faca de prata com um pouco mais de vigor que o habitual.

— Como vão os negócios na gráfica, Daniel? — perguntou ele.

Daniel empertigou-se na cadeira, limpou a boca com o guardanapo.

— Quando parti para as férias, havíamos sofrido uma queda de cinco por cento em relação ao mesmo período no ano passado, o que elevou a pressão de papai em cinco por cento. Mas quando passei por lá hoje, a fim de pegar minha correspondência, ele disse que pegamos a conta dos clubes de golfe Glenn, o que nos levou de volta à situação anterior. Portanto, sua pressão melhorou. Juro que papai tem o coração ligado ao índice Dow-Jones. Se houver um craque, papai desaba. Ele passou um dedo pelo pomo-de-adão, sorrindo.

— Pode zombar o quanto quiser, Daniel, mas papai construiu uma grande empresa, que nos proporcionou uma vida confortável — declarou Celine.

— Tem razão. Eu estava apenas brincando, Janet. Algo que o meu cunhado aqui quase não faz, porque trabalha demais. Muito trabalho e pouca diversão, Sanford. — Daniel olhou para mim. — Já soube que você vem tendo aulas de balé.

— Isso mesmo — respondi, baixinho.

— E tem se saído muito bem — acrescentou Celine.

— O que é maravilhoso. — Daniel recostou-se. — Devo dizer, minha querida irmã, que você e o Mister Vidro escolheram uma pequena pedra preciosa. Estou impressionado, Sanford.

— Gostamos muito de Janet e esperamos que ela venha a gostar de nós — disse Sanford.

Fiquei feliz ao ver seu sorriso.

— Gosta deles? — perguntou-me Daniel, com aquele brilho malicioso nos olhos.

— Gosto.

Ele soltou uma risada.

— Tem certeza de que não posso levá-la para um passeio de motocicleta?

— Certeza absoluta — respondeu Celine. — Se você quer sair por aí e se arriscar, não posso impedi-lo, mas não permitirei que arrisque também minha filha. Ainda mais agora que ela se encontra no limiar de se tornar uma pessoa muito especial.

— É mesmo? — Daniel fitou-me através da mesa, sorrindo. — Eu diria que ela já era especial, antes mesmo de vir para cá.

Seu sorriso me deslumbrava. Não podia deixar de gostar dele, embora a expressão e as palavras duras de Celine indicassem com clareza que ela desaprovava o irmão.

Depois do jantar, Daniel e Sanford foram conversar no escritório. Celine e eu fomos para a sala de estar, onde ela pediu desculpas pelo comportamento do irmão.

— Seu novo tio tem bom coração, mas anda um pouco perdido no momento. Fazemos tudo o que podemos para ajudá-lo. É difícil. O problema é que ele não tem objetivos. Não tem nenhum foco, o que é a coisa mais importante na vida, Janet. Foco e determinação. Ele não quer demais qualquer coisa para se sacrificar e fazer tudo para alcançar. É muito egoísta e indulgente.

Celine olhou para seu retrato por cima da lareira e suspirou.

— Viemos da mesma casa, temos os mesmos pais, mas às vezes ele me parece um estranho.

— Alguma vez ele quis dançar balé também?

— Daniel? — Ela riu. — Meu irmão parece que tem dois pés esquerdos e não é capaz de concentrar sua atenção para aprender um único exercício.

Celine soltou outro suspiro e acrescentou:

— Mas é meu irmão e tenho de amá-lo. Ela fez uma pausa, fitou-me nos olhos.

— E você é minha esperança. Sempre a amarei.

Saber que os olhos de Celine sempre me acompanhavam e que eu era sua esperança me levou a um esforço ainda maior. Por outro lado, também me fazia sentir pior se não agradava a Madame Malisorf ou se meu progresso não era tão rápido quanto se esperava. No dia seguinte à apresentação explosiva de tio Daniel, Celine teve uma consulta médica que a atrasou. Por isso, não pôde comparecer à minha aula de balé depois da escola. Sem ela sentada no canto, senti-me um pouco mais à vontade. Até Dimitri parecia mais cordial. Ao final da aula, Madame Malisorf anunciou que no dia seguinte eu começaria a fazer exercícios de pointe.

— Não compreendo por que ela está fazendo isso — declarou Dimitri, depois que Madame Malisorf se retirou para a sua aula seguinte. Ele já tinha carteira de motorista e guiava seu próprio carro. — É a mais exigente professora de balé daqui e não põe uma aluna para fazer exercícios de pointe com facilidade. E nunca tão cedo.

Ele pensou por um momento, depois acrescentou:

— É bem provável que ela esteja apenas querendo agradar sua mãe. Seus pés ainda não se desenvolveram direito.

— Claro que já se desenvolveram — murmurei, baixando os olhos para verificar se ele tinha razão.

Dimitri enxugou o rosto com a toalha, sem desviar os olhos de mim.

— Sempre gostei de ver garotas se desenvolvendo — declarou ele subitamente.

A maneira como ele me olhava me deixava acanhada. Minha malha era tão justa quanto a dele, e pela primeira vez me senti embaraçada ao pensar no quanto revelavam.

— Seus seios já começam a se desenvolver ou é apenas gordura de criança? — perguntou ele, estendendo um dedo em minha direção.

Dei um pulo para trás, fora do seu alcance, a respiração presa na garganta.

— Soube que há um grupo de bailarinos de avantgarde em que todos dançam nus. Não quer experimentar?

Depois do que Dimitri acabara de tentar, eu não fazia a menor idéia se ele zombava ou não.

-Nus?

Era uma coisa inconcebível para mim.

— Ao que dizem, dá mais liberdade de expressão. Posso muito bem tentar um dia desses. E então?

— Então o quê?

— Não respondeu à minha pergunta. Seios ou gordura de criança?

— É uma coisa muito pessoal.

— Não devia se envergonhar de seu corpo, Janet.

— Não me envergonho.

— Dou a impressão de estar envergonhado do meu? Escondo qualquer coisa de você? Dê uma boa olhada em mim. — Ele ficou de frente, sorrindo. — Não esqueci como você me olhou naquele primeiro dia.

Comecei a sacudir a cabeça.

— Não negue. A honestidade é a característica mais importante para uma bailarina. Sua honestidade fica evidente quando se movimenta. Madame Malisorf sempre diz isso. Seios ou gordura de criança?

Ele deu um passo em minha direção. Sorria, o lábio superior contraído na expressão zombeteira agora familiar.

— Eu poderia fazer com que você se dê mal. Madame a tiraria dos exercícios de pointe em segundos. E sua mãe não ficaria nada satisfeita, não é mesmo?

As lágrimas me turvaram a visão.

— O que você quer de mim?

— Deixe-me decidir... — Dimitri tornou a estender a mão para tocar em meu peito. Eu me sentia assustada demais para impedi-lo. — Ainda não tenho certeza. Eu lhe direi quando souber.

Comecei a me afastar, mas ele agarrou minha malha pelo ombro e puxou-a, antes que eu pudesse me desvencilhar.

— Pare com isso! — supliquei.

— Envergonhada?

Dimitri quase que grunhiu a palavra.

— Não, mas por favor não faça isso.

— Se não me deixar ver, estragarei seu primeiro dia de exercícios de pointe.

Engoli o caroço na garganta e fiquei imóvel, o coração batendo forte, enquanto ele continuava a baixar minha malha, até deixar o peito à mostra. Dimitri não se mexeu por um longo momento, apenas me olhava. Depois, bem devagar, os olhos se contraíram e se tornaram estranhamente escuros, quando ele me tocou. Dei um pulo para trás, como se seus dedos estivessem carregados de eletricidade.

— Seios, Janet. Pronto. Foi tão difícil assim? Dimitri deu uma pirouette completa, um salto com

uma queda suave, antes de sair pela porta do estúdio. Deixou-me com as lágrimas escorrendo pelas faces, o coração disparado.

Levantei a malha e saí também. Permaneci nas sombras do corredor até que o ouvi deixar a casa.

— Algum problema? — perguntou Mildred, ao me ver encolhida num canto.

— Não — murmurei. — Eu estava apenas descansando.

Ela inclinou a cabeça, numa confusão evidente.

Continuei apressada pelo corredor, afastando-me de seus olhos inquisitivos, subi a escada e entrei em meu quarto, fechando a porta. Ainda me sentia embaraçada e assustada com a experiência no estúdio. Minhas pernas tremiam. O que me apavorava mais era a sensação de ter ficado acuada e impotente. Dimitri poderia me despir toda, pois eu teria medo de detê-lo. Por que ele fizera aquilo? Por que se aproveitara de mim? Por que eu não gritara por socorro? Pelo menos Mildred teria ido me ajudar.

Limpei as lágrimas e contemplei-me no espelho. Ninguém jamais me tratara como outra coisa que não uma garotinha. Nenhum garoto jamais pensara em mim sexualmente, até onde eu sabia. Mas agora meus seios começavam a desabrochar. Meu tempo se aproximava. Quando Dimitri me tocara, eu ficara apavorada, mas também experimentara uma nova e estranha sensação. Não tinha certeza se sentia mais medo dele ou do que acontecera dentro de mim.

Como eram afortunadas as outras meninas, que tinham mães e irmãs para conversarem num momento como aquele, pensei. Se relatasse a Celine o que ocorrera, poderia provocar a maior confusão em minhas aulas de bale. Madame Malisorf podia até desistir de mim. E o que eu faria neste caso?

Como eu guardaria o segredo? Qual seria a minha reação quando me encontrasse com Dimitri no dia seguinte? Já estaria bastante nervosa por iniciar os exercícios de pointe. Não pude deixar de me perguntar se aquela era a primeira de muitas outras experiências que teria de suportar para agradar a Celine.

E isso, tanto quanto qualquer outra coisa, me fazia ter medo do que o amanhã traria.

 

Fiquei me revirando na cama durante horas naquela noite. Quando finalmente peguei no sono, tive inúmeros pesadelos, dos quais despertava suando frio. Pela manhã, tremia toda e sentia uma dor intensa na nuca. Adormeci de novo pouco antes da hora em que deveria levantar e me aprontar para a escola. Uma suave batida na porta me acordou. Sanford esticou o rosto para dentro.

— Já deveria ter se levantado, Janet — disse ele, sorrindo.

Acenei com a cabeça e comecei a sentar na cama. A dor desceu pela espinha e soltei um gemido. Sanford entrou no quarto, preocupado.

— Qual é o problema?

— Não me sinto bem — murmurei, os dentes batendo. — A nuca dói e sinto calafrios.

Ele pôs a mão em minha testa, parecendo ainda mais preocupado.

— A impressão é que você está com febre. Vou pegar um termómetro.

Sanford saiu apressado do quarto. Voltou em menos de um minuto, ajeitou o termómetro sob a minha língua.

— Eu já receava que isso pudesse acontecer. — Ele andava de um lado para outro enquanto esperava. — Tem se esforçado demais, com a escola e as aulas de balé. Precisa de mais tempo para descansar. Também está crescendo, e tenho certeza de que tudo isso é novo e assustador para você. Ninguém me escuta, mas sei que estou certo neste ponto.

Ele olhou para o termómetro e balançou a cabeça.

— Mais de trinta e oito. É febre. Fique aqui, mocinha. Vou mandar Mildred trazer uma aspirina. A garganta dói?

Sacudi a cabeça.

— Não. Apenas o pescoço e os ombros. E as batatas das pernas.

Mas estas sempre doíam, e por isso eu não achava que fosse alguma coisa especial. Sanford fitou-me em silêncio por um momento.

— Mudei de idéia. Não tomará a aspirina por enquanto. Vou levá-la ao médico. Vista-se depressa. Vamos nos encontrar lá embaixo.

Ele saiu do quarto. Levantei devagar, lavei o rosto, vesti uma velha camisa de flanela e umjeans largo. Ao passar pelo quarto de Sanford e Celine, pude ouvir suas vozes abafadas. Celine parecia transtornada.

— Mas do que está falando, Sanford? Isso é bobagem. Ninguém fica doente por dançar demais.

— Eu não disse que era a única causa. A criança está exausta.

— Isso é um absurdo. Ela é jovem. Tem uma reserva ilimitada de energia.

Eu não tinha força para escutar mais e tratei de descer. Quando me encontrou no vestíbulo, Sanford se ofereceu para me carregar até o carro. Mas a dor não era tão grande assim e me senti constrangida só por ele segurar meu braço, como se eu fosse uma velha.

— Falei com o dr. Franklin. É um bom amigo e vai para o consultório um pouco mais cedo só para atendê-la.

— Celine está zangada comigo? Ela nem fora ver como eu passava.

— Não, claro que não. Está preocupada, mais nada. Sanford apressou-se em desviar os olhos. O médico examinou-me e concluiu que eu tinha gripe. Receitou apenas aspirina e repouso. Menos de uma hora depois, eu me encontrava de volta na cama, tomando aspirina e bebendo um chá.

— Ligarei da fábrica — disse Sanford a Mildred. — Tire a temperatura dela daqui a duas horas, está bem?

— Sim, senhor — murmurou ela, com um sorriso. Tornei a pegar no sono e tive um bom descanso.

Poderia ter dormido mais, mas fui dominada pela sensação de que havia alguém no quarto. Abri os olhos para deparar com Celine, em sua cadeira de rodas, ao lado da cama, observando-me.

— Não me parece muito quente — comentou ela, tirando a mão de minha testa.

— Estou me sentindo um pouco melhor — concordei, embora ainda estivesse dolorida e cansada.

— Ainda bem. Não se preocupe com a escola. Já telefonei e seus deveres para amanhã serão entregues aqui em casa ao final da tarde. Descanse pelo resto do dia, até a aula de balé.

— A aula de balé? — balbuciei. — Talvez fosse melhor esperar até amanhã, mamãe.

— Não, não. Nunca se cancela uma aula com Madame Malisorf. Ou ela cancela você. Tem alguma idéia de quantas pessoas vivem atrás dela para que dê aulas a seus filhos e filhas? Foi um feito e tanto conseguir que ela se concentrasse em você desse jeito. E tem se saído muito bem, Janet. Ela me disse que decidiu iniciar seus exercícios de pointe. Estou orgulhosa de você, minha querida. Levei anos para chegar a esse ponto. Sabia disso?

Sacudi a cabeça.

— Pois é verdade. Por isso, pode constatar como você é talentosa.

— Mas tenho medo de não ter um bom desempenho se estiver me sentindo mal.

— Nunca devemos permitir que nossos corpos nos desapontem, Janet. Uma bailarina deve ser dedicada. Não importa o que aconteça, quando chegar o momento de dançar, você dança. Dancei até mesmo no dia em que minha avó morreu. Era muito ligada a ela. Sempre fui sua neta predileta. Foi ela quem estimulou o apoio de meus pais para que me tornasse uma bailarina. Sentia-me triste, mas tinha de dançar e ponto final. Se eu pude dançar no dia da morte de minha avó, você pode dançar com um pouco de dor e uma febre mínima, Janet. Entendido?

Como eu não respondesse de imediato, ela insistiu:

— Entendido?

— Entendido.

Não pude deixar de desejar que Sanford estivesse em casa para me salvar.

— Ótimo. Então está resolvido. Descanse até eu chamá-la. — Celine começou a se afastar, mas parou e comentou: — Na verdade, foi até um golpe de sorte. Você pôde descansar durante o dia inteiro antes de começar os exercícios de pointe. Tudo sempre favorece as pessoas dedicadas.

Depois que ela saiu, eu pensei: Celine dançou no dia em que sua avó morreu. Eu nunca tivera uma avó, nem mesmo uma mãe; mas se tivesse, haveria de amálas tanto e me sentiria tão triste no dia de suas mortes que não seria capaz de fazer qualquer coisa. Nunca poderia ser tão dedicada quanto Celine. Será que havia alguma coisa errada em mim?

Mildred veio tirar minha temperatura e informou que estava abaixo de trinta e oito. Mas eu ainda sentia uma dor na nuca e quase não comera durante o dia. Comi uma torrada com geléia e algumas colheres de mingau de aveia. O estômago ardia a cada coisa que eu engolia. Compreendi que acabaria vomitando se tentasse comer mais.

Sanford mandou um recado: esperava que eu estivesse me sentindo melhor e pedia desculpas por ter de permanecer na fábrica. Mildred comentou que ele dissera que tinha alguns problemas difíceis para resolver, caso contrário voltaria mais cedo para casa.

Adormeci de novo. Só acordei quando ouvi o som do elevador de cadeira de Celine. Esperei, olhando para a porta do quarto. Momentos depois, ela entrou.

— É tempo de se levantar, minha cara — entoou Celine, como se fosse de manhã. — Tome uma chuveirada quente para aquecer os músculos, ponha a malha e as sapatilhas de pointe.

Gemi ao sentar. Quando me levantei, tive uma vertigem, mas tentei esconder de Celine. Sabia que não tinha opção. Precisava dançar, por ela.

— Não demore no chuveiro — ordenou Celine. Eu sentia as pernas duras. Como poderia dançar?

Tinha dificuldades para andar. Mesmo assim, forcei-me a entrar no chuveiro, deixei que a água escorresse pela nuca e costas. Fez com que me sentisse um pouco melhor.

— Desça logo — disse Celine, antes de sair do quarto. — Quero que faça alguns exercícios de aquecimento antes de Madame Malisorf chegar. Dimitri já está aqui. Ele vai instruí-la.

Quase me deixou exausta vestir a malha e pôr as sapatilhas, mas consegui. Quando desci, Mildred saiu da sala de estar, onde estivera tirando o pó e lustrando os móveis. Ficou surpresa ao me ver.

— Não deveria sair da cama, Janet. — Ela passou o braço por meus ombros, para me virar na direção da escada. — O sr. Delorice deu ordens para...

— Minha mãe me quer na aula de balé.

— É mesmo? Ahn...

O tom de voz deixava claro qual Delorice ela mais tinha medo de contrariar.

— Janet! — chamou Celine.

— Já estou indo!

Segui apressada para o estúdio. Dimitri já iniciara o alongamento na barre. Como sempre, ele se mostrava totalmente alheio a tudo e a todos ao seu redor. Aproximei-me, tomei minha posição e comecei. Dimitri olhou para mim.

— Hoje é o seu grande dia — murmurou ele. — Se for boa para mim, farei com que tudo corra bem.

Dimitri riu e se afastou, para fazer o que eu já aprendera que eram frappes em três quartos de pointe. Ele fazia com que parecesse tão fácil quanto andar. Por sua expressão presunçosa, compreendi que estava se exibindo. Seu sorriso arrogante começava a me deixar mais doente do que a gripe.

Madame Malisorf chegou poucos minutos depois. Mostrou-se satisfeita por eu já ter feito o aquecimento.

— Deixe-me ver seus pés. — Ela inspecionou as sapatilhas de pointe. — Excelentes. Um bom trabalho, Celine. Faça uma flexão.

A postura do balé que alinha o corpo de uma maneira em que você fica reta, com os quadris no mesmo nível, os ombros abertos, mas relaxados, a pélvis reta, as costas retas, a cabeça erguida, o peso distribuído de forma regular entre os pés, era conhecida como flexão. Madame Malisorf dizia para eu me imaginar suspensa por um fio preso no topo da cabeça. Dizia também que eu fazia isso muito bem, tinha uma excelente postura.

— A coisa mais importante a lembrar para o trabalho de pointe é a coordenação apropriada de todo o corpo, cada parte se adaptando corretamente. Não deve haver tensão na hora de assumir qualquer nova posição, Janet.

A voz anasalada de Madame Malisorf parecia mais altiva do que o habitual. Dimitri, ao lado dela, fez a demonstração. Deu-me a impressão de um fantoche gigante.

— Temos nos empenhado a fundo para desenvolver sua força. Quero seus joelhos absolutamente retos, como os de Dimitri. Estou satisfeita pelo fato de sua articulação do tornozelo ser bastante flexível para formar um ângulo reto com a parte dianteira do pé na demi-pointe. Não vire nem contraia os dedos do pé. Dimitri.

Ele fez outra demonstração. Enquanto eu iniciava os exercícios e movimentos determinados, ela gritava a todo instante:

— A postura, a postura! Não, não, não! Você está vergando. Por que age como se estivesse fraca? — Em frustração, ela acrescentou: — Outra demonstração, Dimitri. Observe-o bem, Janet, estude o que ele faz.

Ela acabou perdendo a paciência, agarrou-me pelos ombros e virou-me para Dimitri.

— Observe-o!

Ele postou-se bem na minha frente, a menos de um passo de distância, e começou.

— Percebe como a postura é importante?

— Sim, Madame.

— Então por que está esquecendo hoje?

Olhei para Celine. Ela sacudiu a cabeça, gentilmente. Eu não tinha permissão para dar desculpas. Não podia sequer mencionar que estava doente. Comecei de novo, fazendo um esforço ainda maior. Meu corpo tremia todo por dentro, como se os ossos chocalhassem, mas consegui evitar que percebessem.

Dimitri demonstrou os ronds de jambe en lair, os petite e grande battements, sempre com um ar de superioridade. A música ressoava em meus ouvidos. Sentia-me mais desajeitada do que nunca. Cada vez que olhava para Madame Malisorf, via sua desaprovação e desapontamento.

— Pare, pare, pare! - gritou ela. - Talvez seja ainda muito cedo.

— Não! — murmurei.

Meus tornozelos davam a impressão de que iam partir a qualquer momento, os dedos dos pés provavelmente ficariam entrevados para sempre, mas eu não podia parar. Minha nova vida dependia daquilo.

Dimitri olhou para mim e depois veio se postar ao meu lado.

— Vamos tentar de novo, Madame - disse ele, pondo as mãos em meus quadris. - Eu a guiarei através do exercício.

Relutante, ela bateu palmas e começamos. Dimitri sussurrou em meu ouvido, explicando como eu deveria fazer, para que lado me inclinar e virar. Passei a me sentir diferente, melhor e mais segura em suas mãos firmes. Ele tinha uma enorme força e houve ocasiões em que praticamente me sustentou.

— Muito melhor — murmurou Madame Malisorf.

- É assim que se faz. Ótimo. Mantenha a linha.

Sentia-me como um trapo descartado quando a aula finalmente terminou. A malha estava encharcada de suor.

— Uma adequada primeira tentativa — declarou Madame Malisorf, enfatizando a palavra adequada.

— Ela será muito melhor amanhã — garantiu Celine, aproximando-se.

— Talvez não amanhã, mas muito em breve — admitiu Madame Malisorf.

Dimitri suava quase tanto quanto eu.

— Obrigada por seu esforço extra, Dimitri — disse ela. — Deve tomar uma chuveirada quente imediatamente. Não quero que meu aluno principal saia para o ar frio e fique doente. Celine?

— Claro. Pode subir e usar meu banheiro, Dimitri. Janet, leve-o ao meu quarto, por favor.

Madame Malisorf virou-se para Celine.

— Dentro de duas semanas farei uma apresentação dos meus alunos e Janet será incluída.

— Oh, Janet, isso é maravilhoso! Ouviu o que ela disse? Obrigada, Madame, muito obrigada. Seu primeiro recital! Que coisa maravilhosa, Janet!

— Recital? — repeti, a voz esganiçada. — Com audiência e todo o resto?

— Você estará preparada para o que terá de fazer — garantiu Madame Malisorf, com um pequeno sorriso.

— Claro que estará! — garantiu Celine. — O que quer que seja, ela estará preparada!

Dimitri pegou sua bolsa e saiu do estúdio atrás de mim.

— Você estava horrível no início — comentou ele, ao alcançarmos a escada.

— Eu me sentia mal. E ainda me sinto. Tive febre esta manhã.

Ele riu.

— Fico contente por não ter dito isso a Madame. Ela detesta desculpas. Vá na frente. - Ele acenou com a cabeça para a escada. Comecei a subir. — Sabe, Janet,

sua bunda se tornou mais firme e arredondada no curto período em que temos trabalhado juntos.

Senti-me embaraçada demais para dizer qualquer coisa. Continuei a subir. Levei-o até o banheiro de Celine e Sanford. Depois de lhe entregar uma toalha limpa, fui para o meu quarto, a fim de tomar também uma chuveirada e me deitar em seguida. Meus tornozelos doíam mais do que qualquer outra parte do corpo. Quando tirei as sapatilhas, descobri os pés cobertos por manchas vermelhas.

Abri o chuveiro e tirei a malha. Pouco antes de entrar no boxe, porém, ouvi Dimitri dizer:

— Flexão!

Virei-me, chocada. Lá estava ele, com a toalha enrolada na cintura, olhando para mim.

— Flexão — repetiu ele. — Postura, postura.

— Vá embora!

Tratei de me cobrir, da melhor forma possível. Dimitri riu.

— Lembra daquele grupo que eu falei, em que todos dançam nus?

Ele se inclinou para pegar minhas mãos. Mantive-a firme, me cobrindo, mas Dimitri era mais forte e afastou meu braço do peito. Depois, em outro movimento, soltou a toalha. Ficou nu na minha frente. Não consegui desviar os olhos dele, apesar do meu choque e terror.

Dimitri se ergueu na ponta dos pés, puxou-me, virou-me, levantou-me pelo ar. Tornou a me pôr no chão, comprimiu seu corpo contra o meu.

— Pronto, Janet. Não foi bom?

Ele riu e pegou sua toalha, tornou a enrolá-la na cintura, enquanto saía do quarto. Eu mal conseguia respirar.

Minha cabeça girava. Lentamente, arriei para o chão, fiquei sentada ali, atordoada. Um momento depois, pensei que ia vomitar. Arrastei-me literalmente para o chuveiro, entrei no boxe cheio de vapor.

Saí em alguns minutos, enxuguei-me depressa, fui para a cama, como havia planejado. No instante em que fechava os olhos, ouvi a porta ser aberta. Era Dimitri.

— Até amanhã. E como eu disse, você tem mesmo uma bundinha firme e empinada. Vai ser uma bailarina, no final das contas.

Ele soltou outra risada e foi embora. Não apenas eu não podia falar, mas também não era capaz de pensar. Comprimi as mãos contra a barriga e virei de lado. Adormeci em seguida.

Dormia há apenas umas poucas horas quando acordei para ouvir uma discussão. Já estava escuro lá fora. As vozes de Sanford e Celine vinham pelo corredor. Sanford não podia acreditar que ela me obrigara a fazer uma aula de balé.

— Ela estava com febre. O dr. Franklin disse que era uma gripe forte. Como pôde submetê-la a tamanho esforço físico?

— Você não compreende, Sanford. Ela tem de enfrentar os obstáculos, superá-los, desenvolver sua força interior. É isso que faz a diferença entre uma autêntica bailarina e uma amadora, uma criança e uma mulher. Ela teve um desempenho bastante bom hoje para ser convidada para um recital. Não ouviu o que eu disse? Um recital!

— Ela é muito jovem, Celine — insistiu Sanford.

— Nada disso, seu tolo. Ela é quase velha demais. Numa questão de semanas, Janet cresceu vários anos. Você não entende de qualquer outra coisa que não seja vidro e aquela sua estúpida fábrica. Limite-se a isso e deixe que eu cuido de nossa filha. Você tirou a minha oportunidade, mas não fará a mesma coisa com ela.

E depois houve apenas o silêncio.

 

Apesar do que Celine dissera ao jantar, só fui conhecer meus novos avós no dia do recital de Madame Malisorf. Duas vezes por ano ela promovia um festival para apresentar os novos alunos e mostrar os mais antigos. Os novos bailarinos, como eu, tinham de demonstrar diversos exercícios e movimentos. Cada um dos mais antigos apresentava uma cena de um balé famoso. Dimitri dançaria o balé principal de Romeu ejulieta.

Como eu aprendia e praticava em meu próprio estúdio, não conhecia a meia dúzia de outros alunos iniciantes. Por isso, eles não sabiam até onde eu havia progredido, mas eu também não tinha idéia do que eles eram capazes de fazer. Quando cheguei com Sanford e Celine ao estúdio de Madame Malisorf, os outros alunos e eu nos estudamos durante os exercícios de aquecimento, como se fôssemos pistoleiros prestes a entrar num tiroteio. Pelas expressões intensas de pais, avós, irmãos e irmãs, senti que todos esperavam que seu filho, filha, irmão ou irmã se destacasse acima do resto. Eu sabia que era essa a expectativa de Celine. Durante toda a viagem para o estúdio, ela se gabou por mim.

— Quando descobrirem que você não teve qualquer treinamento antes de ir morar conosco, mas também nunca sequer vira um balé, todos ficarão espantados. E espere só até descobrirem a rapidez com que Madame Malisorf a pôs para fazer exercícios de pointe. — Ela soltou uma pequena risada. — Posso imaginar as reações... e você também, não é, Sanford?

— Ainda acho que houve uma certa precipitação nesse ponto, Celine.

Sanford era o único a notar minhas dores terríveis. Todas as noites me perguntava se eu queria uma bolsa de água quente ou uma massagem. Havia ocasiões em que eu ficava tão ruim que mal conseguia andar no dia seguinte.

— Acho que Madame Malisorf é a pessoa que tem mais condições de julgar isso, Sanford. Se ela não achasse que Janet está indo bem, não a incluiria em seu recital.

Como se eu já não me sentisse bastante nervosa, as palavras e as grandes expectativas de Celine me faziam tremer. Talvez porque estivesse tão nervosa, meus pés doíam ainda mais. Estavam tão inchados que fora difícil dar o laço nas sapatilhas naquela manhã.

Quando chegamos ao estúdio de Madame Malisorf já se encontrava ali uma pequena multidão de espectadores. Era constituída na maior parte pelas famílias dos bailarinos, mas havia também, segundo Celine, alguns amantes do balé e outros professores, até mesmo produtores de balé, à procura de novos astros e estrelas em potencial.

O estúdio tinha um pequeno palco e um vestiário por trás. Eu já usava meu tutu e as sapatilhas. Assim, estava pronta para os exercícios de aquecimento. Mal começara quando vi Sanford empurrando a cadeira de rodas de Celine em minha direção, acompanhados por um homem mais velho, de bigode grisalho, e uma mulher também mais velha, alta, cabelos grisalhos meio azulados. A mulher usava um excesso de maquilagem, pensei, com ruge demais escurecendo as faces, uma camada de batom nos lábios tão grossa que a fazia parecer um palhaço.

O homem vestia um terno azul-marinho e gravata. Tinha passos ágeis e um sorriso cordial, iluminado por olhos azuis que o faziam parecer quase tão jovem quanto Sanford. O rosto da mulher era todo esticado, os olhos cinzentos muito frios. Mesmo quando chegou perto, ainda parecia alguém usando uma máscara.

— Janet, quero que conheça meus pais, sr. e sra. Westfall — disse Celine.

Aquelas eram as duas pessoas que seriam meus avós, pensei. Antes que pudesse falar, o homem disse:

— Olá, querida.

-Olá.

Minha voz era pouco mais que um sussurro. Minha nova avó fitou-me. Fui avaliada, pesada e medida da cabeça aos pés.

— Ela é petite. — A mulher olhou para Celine. — Disse que ela tem quase treze anos?

— Isso mesmo, mamãe. Mas tem movimentos tão graciosos quanto uma borboleta — respondeu Celine, orgulhosa. — Eu não gostaria que ela fosse diferente.

— E se ela não crescer muito mais do que isso?

A sra. Westfall observou-me atentamente. Notei que faiscava de jóias. Tinha no pescoço um ofuscante colar de diamantes, os dedos eram cobertos por anéis, rubis, diamantes, tudo em engastes de ouro e platina.

— Claro que ela vai crescer! — declarou Sanford, numa voz indignada que me surpreendeu.

— Duvido muito — murmurou minha nova avó. — Onde vamos sentar?

Ela virou-se para o auditório, já quase lotado.

— Nossos lugares são aqueles ali.

Sanford acenou com a cabeça para algumas cadeiras vazias na primeira fila. O que pareceu agradar à minha nova avó.

— Pois então vamos sentar.

Ela se encaminhou para as cadeiras com um modo de andar gracioso, a cabeça bem erguida.

— Boa sorte, mocinha — disse meu novo avô.

— Sairemos depois para jantar e comemorar — acrescentou Celine, pegando minha mão.

— Relaxe e faça o melhor que puder — aconselhou Sanford, oferecendo-me seu sorriso especial.

— Oh, não! — exclamou Celine, ao se virar na cadeira. — É meu irmão. Quem podia esperar que ele viesse?

Daniel avançou pelo corredor com um sorriso largo. Usava um chapéu de vaqueiro, uma camisa amarelo-clara ao estilo do Oeste, jeans e botas. Tudo parecia novo, mas porque o resto da audiência se vestia como se fosse um teatro de balé em Nova York, ele se destacava, causando uma onda imediata de comentários.

— É assim que se veste para uma ocasião como esta? — perguntou Celine, quando ele nos alcançou.

— O que há de errado com a minha roupa? Tudo custou muito caro. Ei, Janet, quebre uma perna!

Não havia uma cadeira reservada para ele. Daniel foi se encostar na parede, cruzou os braços. Pouco depois de sua chegada, deixei a família e fui me juntar aos outros alunos, que se exercitavam nas barres. Dimitri parou e se aproximou de mim.

— Relaxe, Janet. Está muito tensa. Lembre-se de que isto não é o Metropolitan Ballet. Vamos nos apresentar apenas para um bando de pais orgulhosos.

Nota de rodapé:

Em inglês, break a leg, expressão brejeira usada no meio teatral americano, com a intenção real de desejar boa sorte. (N. T.)

Fim da nota de rodapé.

— Seus pais estão aqui?

— Claro que não. Esta apresentação não tem a menor importância.

— Tem para mim.

Dimitri exibiu aquele seu sorriso arrogante. Arrependi-me no mesmo instante por ter admitido como aquela noite era importante para mim.

— Apenas finja que estou lá com você e tudo correrá bem. — Ele inclinou-se para mim. — Mais do que isso, imagine que estou nu.

Fiquei vermelha. Dimitri riu e voltou para junto dos alunos mais velhos. Percebi que todos olhavam para mim. Ele sussurrou alguma coisa e os outros riram. Tentei ignorá-los, concentrar-me no que fazia, mas meu coração batia forte e eu sentia dificuldade para respirar.

Finalmente, Madame Malisorf entrou no palco. Houve silêncio no auditório, a tal ponto que deu para ouvir alguém limpando a garganta lá no fundo.

— Boa-tarde para todos. Obrigada por terem vindo ao nosso recital semestral. Começaremos hoje pela demonstração de alguns exercícios de balé básicos, embora difíceis, o que chamamos de parte do adágio em nossa aula. Serão apresentados por alunos iniciantes. Vão notar como todos mantêm muito bem a posição e o equilíbrio.

Ela fez uma pausa.

— Todos eles, sinto-me feliz em dizer, estão agora dançando sur lês pointes, como costumamos dizer. Como alguns de vocês que já estiveram aqui antes sabem, dançar na ponta dos pés foi desenvolvido no início do século XIX, mas não se tornou muito usado pelos bailarinos até a década de 1830. Foi nessa ocasião que a bailarina sueca-italiana Marie Taglioni demonstrou seu potencial para o efeito poético. Tradição, estilo, técnica, graça e forma são os elementos que enfatizamos na Escola de Balé Malisorf. E agora, sem mais comentários, meus alunos iniciantes.

Madame Malisorf fez uma pequena reverência e recuou, acenando com a cabeça para o pianista.

Sabíamos o que tínhamos de fazer assim que a música começou. Todos foram ocupar suas posições. A parte mais difícil da rotina, pelo menos para mim, era o entrechat, que eu acabara de aprender. O entrechat é um dos passos da elevação. A bailarina pula reto para cima, bate com as panturrilhas em pleno ar, cai suavemente. Madame Malisorf queria que ligássemos isso a uma pirouette, antes de uma parada graciosa, encerrando com uma reverência, na expectativa de aplausos.

Olhei para meus novos avós e depois para Celine, que tinha um pequeno sorriso nos lábios. Sanford acenou com a cabeça para mim e ofereceu um sorriso mais largo. Daniel dava a impressão de que ria de todos. Afastou-se da parede e fingiu ficar em pointe, depois tornou a se encostar.

A música começou. Enquanto dançava, notei que todos os alunos olhavam para todos. Lembrei como era importante me concentrar, sentir a música, absorverme em seu pequeno mundo, e tentei ignorá-los. O único rosto que passei a vislumbrar era o de Dimitri. Ele parecia tão crítico e rigoroso quanto Madame Malisorf.

A dor em meus pés era terrível. Podia muito bem estar em alguma espécie de câmara de tortura, pensei. Por que Madame Malisorf ignorava minha agonia? Era mesmo assim que se desenvolvia uma bailarina, ou Dimitri tinha razão, ela me pressionava porque Celine queria assim?

Pouco depois que começamos, a garota ao meu lado passou a diminuir a distância que nos separava. Madame Malisorf nunca nos pusera para ensaiar juntas.

Presumia-se que permaneceríamos em nosso próprio espaço e faríamos o que nos fora ensinado. Eu deveria ter prestado mais atenção aos alunos ao meu redor. Ao completar uma volta, a garota roçou a saia do meu tutu com a mão direita.

Isso me deixou desequilibrada, mas não percebi até terminar o entrechat e iniciar a pirouette. Inclinei-me demais na direção dela. Quando ela virou e eu girei, nós colidimos e perdemos o equilíbrio. Caí no chão encerado num movimento desajeitado, apoiada nas mãos. Ela continuou a perder o equilíbrio e quase esbarrou em outra bailarina, antes de se estatelar de lado.

A audiência desatou a rir. A risada de Daniel foi uma das mais altas. Dimitri parecia desesperado. Celine abriu e fechou a boca, seu rosto se contraiu em incredulidade. Sanford parecia triste, mas minha nova avó não parava de balançar a cabeça, com um sorriso afetado. Meu novo avô se mostrava surpreso.

Madame Malisorf, à direita do palco, gesticulou para que levantássemos depressa. Tratei de obedecer. Comecei a efetuar os últimos passos de novo, mas ela sacudiu a cabeça e indicou que eu deveria parar e acompanhar os outros numa reverência.

Os aplausos foram estrondosos. Os convidados pareciam ter apreciado nossas imperfeições. Madame Malisorf retornou ao centro do palco. Esperou que houvesse silêncio.

— É por isso que passamos a maior parte da nossa juventude tentando fazer os exercícios e passos mais simples. O balé é de fato a dança dos deuses. Meus novos alunos...

Ela gesticulou para nós, enfatizando a palavra novos. Houve mais aplausos, enquanto deixávamos o palco às pressas. Os alunos mais antigos adiantaram-se para tomar nosso lugar. Dimitri lançou-me um olhar furioso.

Eu tinha a sensação de ter o estômago cheio de cascalho. A garota que colidira comigo se aproximou.

— Sua idiota! — gritou ela. Todo mundo parou para escutar. — Como pode ser tão desastrada? Por que não olha para onde vai?

— Eu olhei. Você é que chegou perto demais de mim.

— Todos viram. — Ela olhou para os amigos. — De quem foi a culpa?

— Da Anã — gracejou um dos meninos, fazendo com que todos rissem.

A garota lançou-me outro olhar de raiva e todos se afastaram. Sentei numa cadeira, as lágrimas escorrendo em ziguezague pelo rosto, pingando do queixo.

— Calma, calma...

Levantei a cabeça ao ouvir o sussurro e avistei Sanford se aproximando pelos bastidores.

— Não há motivo para isso, Janet — acrescentou ele. — Você se saiu muito bem.

— Fui horrível!

— Não foi, não. A queda não foi culpa sua.

— Todos acham que foi — balbuciei, removendo as lágrimas com as costas das mãos.

— Vamos assistir ao resto da apresentação. Peguei sua mão e fui para a audiência. Tinha a impressão de que todos olhavam para mim e riam. Mantive a cabeça abaixada, os olhos fixados nos pés, enquanto dávamos uma volta e descíamos pelo lado para alcançar as cadeiras na frente. Havia duas vazias. Meus novos avós tinham ido embora.

Celine não disse nada. Respirou fundo, olhando para o palco, enquanto começava a cena de Romeu e Julieta. Dimitri foi tão maravilhoso quanto era em nosso estúdio. Dançava como se fosse o dono do palco. Era evidente, até mesmo para mim, uma simples principiante, que ele fazia com que os outros parecessem melhores do que eram. Quando a cena terminou, os aplausos foram mais altos, as expressões dos convidados indicavam sua satisfação. Madame Malisorf anunciou uma recepção na sala ao lado, onde seriam servidos hors doeuvres e vinho para os adultos.

— Vamos para casa — resmungou Celine.

— Celine...

Eu sabia que Sanford não queria que me sentisse ainda mais constrangida do que já estava. Celine não o deixou continuar:

— Por favor, vamos embora.

Ele foi para trás da cadeira de rodas e começou a empurrá-la. Algumas pessoas pararam para dizer que haviam gostado de meu desempenho.

— Não se sinta desanimada, menina — disse um homem de cara vermelha. — É como montar a cavalo. Levante e tente de novo.

A esposa se apressou em afastá-lo. Celine lançoulhe um olhar agressivo, impregnado de ódio, depois virou-se para a porta. Não podíamos chegar lá com a rapidez que ela gostaria.

Especulei onde Daniel estava. Avistei-o conversando com uma das bailarinas mais velhas. Acenou para mim enquanto nos retirávamos, mas eu me sentia embaraçada demais para acenar em resposta. Foi só depois que entramos no carro que falei:

— Desculpe, mamãe. Não sabia que a garota estava tão perto de mim, e ela também não me notou.

— A culpa foi da outra garota — confortou-me Sanford.

Celine manteve-se calada. Pensei que ela nunca mais falaria comigo. Alguns minutos mais tarde, no entanto, Celine disse:

— Não se pode atribuir a culpa por qualquer coisa a outra bailarina ou bailarino. Você deve estar atenta à outra. Se ela esbarra, você tem de compensar. É o que faz com que se torne a melhor.

Seu tom não deixava margem para uma argumentação, mas mesmo assim Sanford tentou me defender.

— Ela está apenas começando, Celine. E os erros servem como lições.

— Os erros devem ser cometidos nos ensaios, não num recital. Você terá de se esforçar mais.

Celine sentia-se envergonhada de mim, e não se dava ao trabalho de esconder.

— Mais ainda? Como ela pode trabalhar mais do que já trabalha, Celine? Janet não faz outra coisa. Nunca teve a oportunidade de arrumar novas amizades. Ela precisa ter uma vida também.

Sanford não ia desistir. O que me deixou chocada, já que ele sempre cedia com a maior facilidade às vontades de Celine.

— Esta é a sua vida. Janet a quer tanto quanto eu a quero para ela. Não é verdade, Janet?

— É, sim, mamãe.

— Está vendo? Conversarei com Madame Malisorf. Talvez possamos persuadi-la a dar mais uma aula por semana a Janet.

— Quando? — indagou Sanford. — No fim de semana? Você está sendo irracional, Celine.

— Estou cansada de ouvir você discutindo comigo, Sanford. E não vou admitir que sempre tome o lado dela. É meu marido, Sanford: sua lealdade me pertence. Janet terá mais uma aula por semana.

Sanford sacudiu a cabeça.

— Ainda acho que pode ser demais, Celine — murmurou ele, gentilmente agora.

— Deixe que Madame Malisorf e eu decidamos o que é demais, Sanford.

Ele não argumentou mais. Enquanto seguíamos para casa, lembrei da idéia de jantar fora. E por que meus novos avós haviam ido embora? Tive medo de perguntar. Também não precisei, porque Celine logo explicou, a voz fria:

— Mamãe e papai ficaram tão embaraçados que foram direto para casa.

Não imaginava que era possível me sentir ainda menor do que era, mas desejei poder afundar na fenda entre os bancos e desaparecer por completo. Assim que chegamos em casa, subi correndo para o meu quarto e fechei a porta. Pouco depois, ouvi uma batida suave.

— Entre! — gritei.

Sanford entrou e me sorriu. Eu estava sentada na cama. Chorara todas as lágrimas que guardara para ocasiões tristes. Meus olhos doíam.

— Não quero que se sinta tão mal — murmurou ele, gentilmente. — Terá muitas outras oportunidades de ter um desempenho melhor.

— Cometerei outro erro, com toda certeza. Não sou tão boa quanto Celine acha que sou.

— Não se subestime depois de apenas um recital, Janet. Todos, até mesmo os grandes bailarinos, cometem erros.

Ele pôs a mão em meu ombro, depois esfregou meu pescoço tenso e dolorido.

— Ela me odeia agora — murmurei.

— Claro que não, Janet. Ela é muito determinada, mas vai relaxar e compreender também que não é o fim do mundo. Vai ver só. — Sanford passou a mão por meus cabelos. — Você era sem dúvida a bailarina mais atraente no palco. Tenho certeza de que a maioria achou que era a melhor.

— É mesmo?

— Claro que sim. Todos olhavam para você.

— O que tornou tudo ainda pior. Sanford riu.

— Não pense mais nisso. Pense apenas em coisas felizes. Seu verdadeiro aniversário não é no próximo sábado?

— É, sim, mas Celine decidiu mudar para o dia em que me adotou.

— Foi apenas um desejo tolo de Celine. Por que nós dois não planejamos sua festa de aniversário? Sei que ainda não teve a oportunidade de fazer novas amizades, mas talvez seja possível na sua festa. Pense em algumas das crianças que gostaria de convidar. Vamos nos divertir.

— Meus avós virão?

O sorriso de Sanford se tornou tenso.

— Acho que sim. E agora troque de roupa para jantarmos.

— Celine não está zangada comigo? — perguntei, esperançosa.

— Não. Celine sofreu um grande desapontamento em sua vida. É difícil para ela ter outros. Foi só isso. Ela vai ficar bem. Todos nós ficaremos.

Era para ser uma promessa, mas saiu mais como uma prece... e durante a maior parte da vida, minhas preces não haviam sido atendidas.

 

Madame Malisorf recusou-se a acrescentar outro dia às minhas aulas de balé na semana. Celine e ela conversaram três dias depois... a primeira aula após o recital.

— Não — declarou Madame Malisorf. — Foi em parte um erro meu tê-la pressionado. Nunca deveria ter concordado em iniciar os exercícios de pointe. Seria melhor se tivesse dado mais atenção ao meu instinto. Janet precisa encontrar seu próprio nível de competência, sua capacidade. Talento é como água. Se você remove as obstruções, vai alcançar o nível mais alto possível por si mesmo.

— Isso não é verdade, Madame — protestou Celine. — Devemos fixar os limites para ela. Devemos determinar sua capacidade. Ela não vai se empenhar ao máximo se não a pressionarmos. Não tem disciplina interior.

Madame Malisorf lançou-me um olhar. Eu fazia aquecimento com Dimitri, que ainda não dissera nada sobre meu desempenho na apresentação.

— Deve tomar cuidado, Celine. Pode fazê-la perder o interesse e a afeição pela beleza e habilidade. Se treina demais um atleta, ele começa a regredir, a perder a habilidade e a massa muscular.

— Correremos esse risco. Dobre o tempo de treinamento. Dinheiro não é problema.

— Dinheiro nunca foi nem jamais será uma consideração para mim — garantiu Madame Malisorf, em tom ríspido, erguendo os ombros e a cabeça, orgulhosa.

Celine pareceu murchar na cadeira de rodas.

— Sei disso, Madame. Quis dizer apenas...

— Se vou ser a professora da garota, Celine, devo ter o comando. Eu é que determinarei a quantidade de aulas. Mais nem sempre é melhor. O importante é aprimorar a qualidade do que já existe. Se você pensa de maneira diferente...

— Claro que tem toda razão, Madame Malisorf — disse Celine. — Apenas fiquei desapontada no outro dia, e sei que também sentiu a mesma coisa.

— Ao contrário, não fiquei desapontada.

Celine ergueu a cabeça num gesto abrupto. Até mesmo eu interrompi os exercícios para olhar.

— Não ficou? — murmurou Celine, cética.

— Não, não fiquei. Senti-me feliz ao ver a criança se levantar e tentar continuar. Isso é vigor, determinação. Vem daqui.

Madame Malisorf encostou a palma da mão no coração.

— Claro, Madame, tem razão outra vez — murmurou Celine, olhando para mim. — Fico agradecida por a termos como professora.

— Então não vamos desperdiçar o tempo de que dispomos, Celine.

Com um aceno de mão, Madame Malisorf encerrou a conversa. Foi até o lugar em que Dimitri e eu nos aquecíamos para iniciar a aula.

E foi uma boa aula. Até mesmo eu senti que fizera mais do que o habitual. O único comentário de Madame Malisorf sobre a apresentação foi uma referência a meu trabalho de pointe. Durante o resto da aula, ela e Dimitri me conduziram através de uma série de exercícios, elogiando-me por meu trabalho.

Mas nada disso pareceu atenuar as preocupações de Celine. Ela permaneceu em silêncio na cadeira de rodas, com uma expressão sombria. Assim que a aula terminou e os dois se retiraram, Celine veio me dizer que achava que Madame Malisorf estava errada.

— Ela apenas não quer abrir mão de sua folga — declarou Celine, irritada. — No balé, mais é melhor. É preciso ser exigente com seu corpo e sua alma. Vou orientar seus exercícios nos fins de semana. Começaremos este sábado.

— Mas este sábado é meu aniversário. Sanford e eu vamos fazer uma festa. Já convidei alguns colegas da escola.

— Sanford está planejando sua festa, hem? — A expressão nos olhos de Celine me deixou gelada. — Mas a festa não vai durar o dia inteiro, não é mesmo? Faremos os exercícios pela manhã, e você pode ter a festa de tarde... se é que vai ter.

Ela virou a cadeira e se retirou. Desde a apresentação que Celine vinha se comportando de uma maneira diferente comigo. Estava mais impaciente, as palavras mais ríspidas, os olhos mais críticos. Passava mais tempo sozinha, às vezes apenas olhando pela janela. E sempre que eu mencionava Sanford, ela contraía os olhos e me fitava como se tentasse ver dentro de mim, descobrir o que eu pensava e sentia. Uma ocasião encontrei-a encolhida num canto, as sombras cobrindo-a como uma manta. Olhava para o quadro que a mostrava num traje de balé.

Quando mencionei minha preocupação para Sanford, ele disse que eu deveria dar tempo a Celine. Não comentei que achava que Celine não gostava do tempo que ele e eu passávamos juntos. Tive medo de que começasse a me evitar para não desagradá-la.

— Ela tem seus altos e baixos — explicou Sanford. — Como tudo vem acontecendo muito depressa, Celine precisa de tempo para se ajustar.

Nós dois saíramos para uma caminhada pelo terreno, descendo até o lago. Eram momentos especiais como aquele, na companhia de um pai que me amava e se importava comigo, que faziam com que valessem a pena todas as horas de tortura no estúdio.

— Já fiz todos os planos para a sua festa de aniversário — anunciou Sanford, quando chegamos à beira do lago. — Teremos um churrasco, com cachorro-quente e hambúrguer, além de bifes para os adultos.

— Quem virá? — indaguei, na esperança de que ele mencionasse meus novos avós.

— Algumas das pessoas da fábrica que você já conheceu, a sra. Williams da Peabody, Madame Malisorf, é claro, e... — como se lesse meus pensamentos, ele se apressou em acrescentar, depois de uma pausa: — os pais de Celine e Daniel. Quantas pessoas você convidou?

— Dez.

— A festa será sensacional. Mas lembre-se de uma coisa: não quero que ninguém use o bote sem a presença de um adulto. Combinado?

Acenei com a cabeça. Aquela era a coisa mais emocionante em minha vida, ainda mais do que o recital. Afinal, eu nunca tivera uma autêntica festa de aniversário. E só tivera um bolo de aniversário uma vez, mas fora também para duas outras crianças no orfanato. Partilhar o bolo fizera com que deixasse de ser uma coisa especial. Os aniversários não são especiais sem uma família para ajudar a comemorar, sem uma mãe para lembrar coisas sobre seu crescimento e um pai para dar beijos e murmurar ”Minha garotinha está crescendo. Daqui a pouco vai começar a namorar.” Mas agora eu teria uma festa de aniversário só para mim... e uma festa grande ainda por cima!

Contei a Sanford que Celine queria que eu tivesse um treinamento de balé na manhã do meu aniversário. Seus olhos se tornaram pequenos e preocupados. Mais tarde, durante o jantar, ele mencionou o assunto. Celine me lançou um olhar que parecia dizer que eu a traíra.

— Ela foi se queixar para você? — indagou Celine. — Por que se tornou de repente o seu cavaleiro num cavalo branco?

— Ora, Celine, pare com isso. Janet apenas mencionou o assunto quando falei dos planos para a festa de aniversário. Pensei em decorar a sala na manhã de sábado e...

— O que esperava que eu fizesse, Sanford? — perguntou ela, desdenhosa. - Subisse numa escada para pendurar balões?

— Claro que não. Apenas pensei...

Dava para perceber que ele começava a fraquejar. Celine olhou para mim.

Não há feriados nem dias de folga, nenhum momento para esquecer qual é o seu destino, Janet.

— Sei disso. Não estava me queixando.

Não queria que ela pensasse que eu não me sentia grata. Celine fitou-me em silêncio por um longo momento. Foi um olhar duro, cheio de desapontamento. Tive de baixar os olhos para a minha comida.

— Sei que ainda é uma menina, Janet, mas como bailarina está entrando num mundo que exige que se torne adulta mais depressa. O que vai torná-la mais forte para tudo na vida, eu prometo.

Levantei os olhos e ela sorriu.

— Percorreu um longo caminho muito depressa, Janet. Não faz tanto tempo assim que era uma criança perdida naquele orfanato. Agora, tem um nome e um talento. Vai ser alguém na vida. Não me abandone.

A voz de Celine me surpreendeu ao final, com seu suave tom de súplica.

— Isso não vai acontecer, mamãe.

Como ela podia recear que eu a abandonasse?

— Ainda bem. Então está resolvido. Vamos trabalhar pela manhã e você poderá ter sua festa de tarde. E Mildred pode ornamentar a sala, Sanford.

— Eu gostaria de ajudar — murmurou ele.

— Foi o que pensei.

Percebi que Celine o estudava como muitas vezes fazia comigo, tentando espiar dentro de sua mente.

Celine era uma professora mais rigorosa do que Madame Malisorf. Na manhã do meu aniversário ela esperava por mim no estúdio, impaciente. Eu seguia para o estúdio quando Mildred avisou que alguém me chamava ao telefone. Era uma das garotas da escola, Betty Lowe, querendo falar sobre a festa e os cinco garotos que eu convidara. Ela disse que todos sabiam o quanto Josh Brown gostava de mim. A conversa demorou mais do que imaginei. Celine estava aborrecida quando entrei no estúdio, cinco minutos atrasada.

— O que eu lhe falei sobre o tempo e sua importância quando se faz exercícios, Janet? Pensei que tinha entendido.

— Desculpe.

Antes que eu pudesse oferecer qualquer desculpa, Celine me mandou para a barre. Eu não podia deixar de pensar na festa, sobre todos se arrumando, a música e a comida. Sabia que aquela festa faria com que as crianças convidadas finalmente me aceitassem em seu grupo. Achava que não precisava fazer mais nada para impressionar Josh, mas mesmo assim usaria meu vestido mais bonito.

Enquanto esses pensamentos me passavam pela cabeça, iniciei a rotina de exercícios. Celine adiantou a cadeira de rodas até ficar a poucos centímetros de distância. Começou a criticar os movimentos e o ritmo

Está perdendo a sintonia, Janet. Não, não tão depressa. Escute a música. Caiu com muita força! Não pode cair como um elefante. Tem de flutuar como uma borboleta. Relaxe os joelhos. Não. Pare!

Ela cobriu o rosto com as mãos.

Desculpe - murmurei, quando ela permaneceu calada. - Estou tentando.

- Não não está. Tem os pensamentos longe daqui. Eu gostaria que Sanford nunca tivesse pensado em realizar essa festa de aniversário.

A boca normalmente bonita de Celine se contorceu numa expressão horrível, os olhos ardiam com uma raiva interior, levando-me a virar o rosto. Depois de uma longa pausa, ela acrescentou:

-Está certo. Compensaremos mais tarde. Vá se aprontar para a festa. Sei quando luto uma causa perdida. Pode ter certeza de que sei.

Seu tom era amargurado. Tornei a pedir desculpas. Mas assim que deixei o estúdio e virei no corredor, desatei a correr pela casa. Subi a escada e fui para o meu quarto. Queria arrumar os cabelos num novo estilo, e ainda não decidira que vestido usar. E queria também passar esmalte nas unhas. Quando os primeiros convidados chegaram, eu ainda estava me arrumando. Sanford teve de vir bater na porta para me avisar que devia descer e receber as pessoas.

Os presentes se acumularam como os embrulhos debaixo da árvore de Natal. Mildred pusera balões de gás no teto, amarrados com fitas de cores diferentes. Havia enfeites de aniversário nas paredes e janelas. A quantidade de comida era impressionante. Ouvi a sra. Williams comentar que nem podia imaginar o que Sanford e Celine fariam numa festa de casamento.

Um casamento?, pensei. Haveria de me tornar uma bailarina famosa e casaria com outro bailarino famoso? Casaria com um rico industrial, como Sanford? Iria para a universidade e conheceria algum rapaz bonito? Era como se a minha vida aqui fosse a chave para destrancar uma arca do tesouro de fantasias... e fantasias que poderiam ser consumadas!

Meus novos avós foram os últimos a chegar. Ouvi Celine perguntar por Daniel, e vi minha avó fazer uma careta.

— Quem sabe onde ele está? Foi por isso que nos atrasamos. Ele deveria nos trazer.

— Feliz aniversário — disse meu avô, ao me ver parada ali perto.

Foi ele quem me entregou o presente.

— Feliz aniversário — repetiu minha avó.

Ela não me lançou mais que um olhar de passagem, antes de começar a conversar com os outros convidados. Meu avô foi conversar com Sanford e voltei para junto de meus amigos. Dançamos, bebemos ponche e comemos. Josh passou a maior parte do tempo ao meu lado, embora Billy Ross também me convidasse para dançar.

Mais tarde, cortei o enorme bolo de aniversário. Tive de soprar as velas. Todos cantaram ”Parabéns pra Você”, menos minha avó, que se manteve imóvel, com uma expressão infeliz. Enquanto comíamos o bolo, abri os presentes, todos aplaudiram as roupas bonitas, o secador de cabelos, as jóias. Meus avós haviam me comprado um par de luvas de couro, pelo menos dois números maior.

Detestei quando a festa terminou. Josh ficou e lembrou que eu lhe prometera mostrar nosso lago. Informei a Sanford para onde íamos e saímos de casa. O céu estava nublado, o tempo um pouco frio. Vesti meu casaco de couro novo, presente de Sanford e Celine.

— É uma casa bem grande — comentou Josh. — Duas vezes maior do que a minha. Com um terreno tão grande que dava para fazer um campo de beisebol. Você tem sorte.

— É verdade, tenho sorte.

Paramos no alto da encosta, contemplando o lago.

— Fico contente que você tenha sido transferida para a nossa escola, Janet. Se não fosse por isso, talvez eu nunca a tivesse conhecido.

— Não teria mesmo.

Pensei no lugar de onde vinha. Quase que fui tentada a contar a verdade. Josh era maravilhoso, mas receei que ele mudasse e passasse a fingir que não me conhecia depois de ouvir a palavra órfã.

— Podemos dar uma volta no barco? — perguntou ele, assim que o viu no atracadouro.

— Meu pai não quer que eu ande no barco sem a presença de um adulto. Não sei nadar.

— É mesmo? Como é possível? Dei de ombros.

— Nunca aprendi.

Seus olhos se contraíram, as sobrancelhas quase se tocaram. Mas depois ele sorriu.

— Talvez eu ensine você a nadar neste verão.

— Eu gostaria muito.

— Ainda não dei um beijo de aniversário em você. Não me mexi. Josh inclinou-se para mim, lentamente. Fechei os olhos. Ali, no alto da encosta, por trás de minha nova casa, fui beijada nos lábios pela primeira vez. Não durou muito. Houve até um pequeno choque da fricção, mas achei que foi o beijo mais maravilhoso do mundo, melhor do que qualquer outro que eu vira na televisão ou no cinema. A sensação de calor subseqüente perdurou por um momento em torno do meu coração, depois escorreu para a memória, onde permaneceria para todo o sempre.

— Janet! — Viramos para ver Sanford nos fazendo um sinal. — O pai de Josh veio buscá-lo.

— Já estamos indo! — gritei em resposta.

Começamos a voltar para a casa. Josh pegou minha mão. Nenhum de nós dois falou. Ele me soltou antes de contornarmos a casa, até o lugar em que seu pai esperava.

— Até segunda na escola — murmurou Josh.

Desejei poder beijá-lo em despedida, mas ele parecia embaraçado e se encaminhou apressado para o carro do pai. Partiu um momento depois, acenando em despedida. Minha festa de aniversário acabara. Senti-me como acontecia ao recebermos uma maravilhosa sobremesa especial no orfanato. Quando estava chegando ao fim, eu queria prolongar ao máximo os últimos momentos de prazer.

Tornei a entrar. Mildred estava ocupada com a limpeza da sala, mas não parecia irritada pelo trabalho extra. Ofereci-me para ajudar, mas ela riu e disse que não precisava me preocupar. Já ia subir para tirar o vestido da festa quando ouvi vozes na sala de jantar. Meus avós ainda estavam na casa, tomando café e conversando com Celine.

Fiquei com receio de interrompê-los. Hesitei, junto da porta. Pouco antes de decidir que entraria e tentaria conhecê-los um pouco melhor, ouvi minha avó dizer:

— Ela sempre será uma estranha para mim, Celine.

Não é do nosso sangue e o sangue é a coisa mais importante numa família.

— Isso é um absurdo, mamãe. De qualquer maneira, não estou preocupada com a família. Não quero apenas uma filha. Qualquer pessoa pode ter uma filha. Quero uma bailarina.

Senti um aperto no coração ao ouvir suas palavras. O que ela queria dizer com isso?

— Mais razão ainda para questionar o que está fazendo, Celine. Vi a garota na apresentação. O que a levou a acreditar que ela tinha alguma coisa especial?

— Mas ela tem — insistiu Celine.

— Se tem, guarda muito bem escondido. Onde ela se meteu? Era de se esperar que demonstrasse algum respeito. Afinal, dei-me ao trabalho de vir até aqui.

Decidi que essa era a minha deixa e entrei na sala.

— Olá. — Minha voz tremia, tinha o estômago embrulhado por causa das palavras de Celine. — Obrigada pelo presente, vovô e vovó.

Meu avô balançou a cabeça e sorriu. Minha avó contraiu os cantos dos lábios.

— Temos de ir agora — disse ela. — Seu irmão é uma constante preocupação para mim, Celine. Acho que ele vai acabar se casando com uma de suas vagabundas e desgraçar a todos nós um dia desses.

Ela se levantou, enquanto Celine dizia:

— A culpa é sua. Você o mimou demais.

— Não mimei, não. Seu pai é quem mimava Daniel.

— Ele vai acabar bem — interveio Sanford. — Está apenas cometendo as loucuras da mocidade.

— Acha mesmo? — disse minha avó. — Mas quando essa mocidade vai acabar?

Sanford riu e acompanhou-os até a porta principal.

Meu avô passou a mão por minha cabeça na passagem e murmurou algo como ”Muitos retornos felizes”.

Fiquei na sala com Celine, na cadeira de rodas, remoendo em silêncio.

— Obrigada pela festa — murmurei.

Ela levantou os olhos abruptamente, como se acabasse de descobrir que eu ainda me encontrava ali.

— Onde você se meteu?

— Fui dar uma volta com Josh para mostrar o lago. Celine impulsionou a cadeira em torno da mesa e se aproximou de mim.

— Precisa tomar cuidado com os meninos, Janet. Não pude deixar de sorrir. Tinha apenas treze anos.

— Sei o que está pensando. Acha que tem bastante tempo para se preocupar com o romance... mas não tem. Acredite em mim. Não você. É especial. Não quero que transforme o cérebro em gelatina por causa do amor. Só serve para distrair, e esta manhã você viu o que a distração pode fazer.

Ela chegou ainda mais perto, até nos fitarmos nos olhos.

— O sexo consome sua energia criativa, Janet. Pode esgotá-la. Quando eu dançava e me aproximava do auge de meu desenvolvimento, abstinha-me de todas as atividades sexuais com Sanford. Por muito tempo, até dormimos em quartos separados.

Não falei nada. Não me mexi. Acho que nem sequer pisquei.

— Tinha muitos garotos atrás de mim, ainda mais na sua idade, mas não dispunha de tempo para desperdiçar em paixões tolas. Você também não precisa encorajar nenhuma. — Celine começou a se afastar, mas logo tornou a parar. — Amanhã tentaremos compensar o dia de hoje.

Ela me deixou parada ali, olhando pela porta.

”Compensar o dia de hoje?” Ela falara como se meu aniversário e a festa fossem uma total inconveniência.

Tinha uma avó que não me queria e uma mãe que só me queria para ser a bailarina que ela não podia mais ser.

Não, Josh, pensei, talvez eu não seja tão afortunada quanto você imagina.

Lá fora, o céu se tornava mais escuro. A chuva começou, e as gotas que batiam nas janelas pareciam lágrimas do céu.

 

Depois que Celine e eu começamos a trabalhar nos fins de semana, essas horas de prática tornaram-se uma parte regular da minha agenda. Sanford ainda tentou, em diversas ocasiões, planejar excursões familiares, passeios, compras, cinema, ou apenas um jantar num bom restaurante. Celine não apenas rejeitava suas sugestões, mas também se mostrava contrariada e furiosa com ele por apresentá-las.

Depois da festa do meu aniversário, passei a ser convidada para ir às casas das outras garotas. Uma noite fui convidada para uma festa de pijama na casa de Betty Lowe. Celine sempre encontrava um motivo para que eu não fosse, o principal sendo o de que eu ficaria acordada até tarde, acabaria me cansando e começaria os ensaios atrasada.

— Os pais não tomam conta direito de suas filhas hoje em dia — declarou ela. — Não tenho certeza se haverá adultos presentes na casa. Sei muito bem o que costuma acontecer nessas festas só de meninas. Os garotos sempre aparecem e então... as coisas acontecem. Não que eu comparecesse a qualquer festa assim... sabia o que queria e não permitia que nada me distraísse.

-Tentei explicar a situação às minhas novas amigas. Mas depois que recusei meia dúzia de convites, deixei de recebê-los. Mais uma vez, senti que havia uma enorme distância me separando dos outros alunos da escola. Até mesmo Josh começou a perder o interesse por mim, já que nunca tínhamos uma oportunidade de ficar a sós. Uma ocasião e apenas porque Sanford persuadira Celine a me levar para a fábrica depois da aula de balé no sábado, pude me encontrar com Josh numa lanchonete. Sanford sabia que era por isso que eu queria acompanhá-lo. Deixou-me ficar ali por quase duas horas até o momento de voltar para casa.

- Provavelmente é melhor você não mencionar o encontro a Celine - sugeriu ele. - Não porque queremos esconder segredos dela, mas apenas porque não quero que Celine se preocupe.

Concordei com a cabeça. Sanford nem precisava falar. Eu jamai sonharia em mencionar o assunto para ela.

Fiz o melhor que podia para explicar a situação a Josh, mas ele não conseguiu compreender como a dança me impedia de fazer quase tudo que os outros adolescentes podiam fazer. A crise explodiu quando ele me convidou formalmente para ir ao cinema. Seu pai nos levaria de carro Sanford concordou, mas Celine disse não. Tiveram a pior discussão desde que eu chegara na casa.

- Desta vez é apenas uma noite no cinema, depois um sorvete e um sorvete com toda a gordura de que ela não precisa. Amanhã será um dia e uma noite no fim de semana E depois ela vai querer passar o fim de semana inteiro com amigas que não têm nada no cérebro e possuem dois pés esquerdos.

- Ela só tem treze anos, Celine.

- Aos treze anos eu já tinha me apresentado em doze programas e dançara em A Bela e a Fera no Centro de Artes de Albany. Já viu os recortes

— Você é você. Janet é Janet.

— Janet tem oportunidades agora que nunca poderia ter antes, Sanford. É quase um pecado fazer qualquer coisa que possa frustrar ou diminuir essas oportunidades.

Celine não se deixaria convencer do contrário.

— Mas...

— Não acha que já causou danos suficientes ao balé por uma vida inteira, Sanford?

Naquela noite, quando ele foi ao meu quarto, eu já sabia qual era a decisão.

— Sinto muito, Janet. Celine acha que você é jovem demais para esse tipo de coisa.

Sanford falou de cabeça baixa, os olhos fixados no chão.

— Pensarei em alguma coisa agradável para fazermos em breve.

Ele saiu, deixando-me chorar em paz. Josh ficou murcho e pálido quando avisei que não poderia sair com ele naquela noite de sexta-feira. Tentei dar uma explicação, mas Josh se limitou a sacudir a cabeça.

— Qual é o problema? Seus pais acham que não sou bastante rico para você?

Josh virou-se e me deixou parada sozinha ali, no corredor da escola, antes que eu pudesse negar.

Experimentei a sensação de que ingressava agora no mundo particular de sombras de Celine. Uma das colegas me telefonou e zombou:

— Tanto trabalho e nenhuma diversão fazem de Janet uma chata.

O mundo que se tornara cheio de sol e cores passou a ter tonalidades de cinza. Mesmo nos dias de céu claro, eu sentia que nuvens pairavam sobre a minha cabeça. Meu desânimo impregnou o desempenho nas aulas. Os olhos de Madame Malisorf assumiram uma expressão desconfiada. Celine me fizera prometer que jamais contaria como trabalhávamos nos fins de semana, mas Madame Malisorf era muito perceptiva.

— Não está descansando as pernas? — perguntoume ela uma tarde.

Celine estava em seu canto habitual, observando. Lancei um olhar para ela. Madame Malisorf percebeu e virou-se.

— Celine, você está trabalhando esta aluna sete dias por semana?

— De vez em quando ensaio alguns passos com ela, Madame Malisorf. Ela é jovem e...

— Quero que ela tenha um descanso de vinte e quatro horas no mínimo. Os músculos precisam de tempo para se recuperar. Cada vez que fazemos exercícios, nós os desgastamos. E você, entre todas as pessoas, devia saber disso. — Madame Malisorf balançou a cabeça. — Cuide para que ela tenha o repouso necessário.

Celine prometeu, mas não cumpriu a promessa; e se eu abordava o assunto, ela entrava num acesso de raiva, depois caía em depressão. Ia para um dos cantos escuros da casa e ficava olhando desconsolada para os retratos de seu antigo eu. Às vezes ela lia e relia um programa de balé. Eu a encontrava adormecida na cadeira de rodas, o programa no colo, apertado entre os dedos. Eu não tinha ânimo para oferecer qualquer resistência.

Tentei fazer melhor, ser pontual, atingir todos os objetivos. Agora, sem amigas para me telefonar, fazia os deveres de casa e me deitava cedo. Fazia até o que ela me aconselhara quando eu ingressara na escola. Aleguei sentir cólicas para evitar a aula de educação física em algumas ocasiões. Precisava conservar minha energia. Tinha pavor de me mostrar cansada ou lenta.

O verão se aproximava do fim, trazendo a promessa de freqüentar uma prestigiosa escola de balé. O dinheiro, porém, não podia comprar uma vaga na escola. Todos os candidatos tinham de fazer uma audição. A nova obsessão de Celine era me preparar para isso. Madame Malisorf concordou em me ajudar a conquistar uma vaga. Achava que era uma boa idéia a minha ida para a escola, já que passaria a maior parte do verão na Europa, como costumava fazer. Minhas aulas se tornaram revisões dos passos fundamentais. Dimitri quase nunca aparecia. Já fora aceito por uma escola de balé da cidade de Nova York e se preparava para o novo treinamento.

Tínhamos de viajar para Bennington, Vermont, onde seria realizada a audição para a escola de balé. Eu me sentia animada, porque passaria oito semanas na escola. Lera o programa e os horários, sabia que haveria mais tempo para descanso e recreação do que tinha agora. É verdade que quase qualquer lugar me daria mais tempo. Ao final do folheto da escola havia depoimentos de ex-alunos. Muitos falavam sobre os eventos sociais, os cantos em torno da fogueira de acampamento, o baile social semanal, as pequenas excursões de ônibus a museus e locais históricos. Nem tudo tinha a ver com o balé. A filosofia da escola era a de que uma pessoa com um desenvolvimento mais amplo podia se tornar uma artista mais completa. O custo era bastante elevado e me surpreendia que tantas pessoas competissem para gastar tanto dinheiro.

Na última aula antes da audição, Madame Malisorf me submeteu ao que previa que seria o teste da escola. Postou-se ao lado de Celine e tentou fazer um julgamento objetivo. Ao final, ela e Celine conversaram em voz baixa por um momento. Depois, Madame Malisorf sorriu e disse:

— Eu lhe daria um lugar na minha escola, Janet. Teve uma melhoria considerável e alcançou uma qualidade de desempenho que justificaria o investimento de mais tempo e esforço.

Celine estava radiante. Também me senti feliz, porque queria ingressar na escola. Creio que uma parte de mim, uma parte bem forte, queria escapar por algum tempo, não ter um sentimento de culpa em cada passo errado. Antes de ir embora, Madame Malisorf advertiu Celine a não me desgastar.

— Ela é um artigo frágil agora, Celine. Nós a levamos longe, talvez longe demais muito depressa, mas ela chegou lá. Agora, vamos deixá-la se desenvolver num ritmo normal. Caso contrário... — Ela me fitou. — Podemos arruinar o que criamos.

— Não se preocupe, Madame. Cuidarei dela tão bem quanto cuidava de mim, se não melhor ainda.

Apesar dos dias árduos e aulas difíceis, apesar de seus olhos críticos e comentários muitas vezes ríspidos, eu passara a apreciar e respeitar Madame Malisorf. Sentia até algum medo do que poderia acontecer sem ela para supervisionar tudo. Mas antes de partir ela me assegurou que os professores na escola seriam da mais alta qualidade.

— Eu a verei de novo em setembro, Janet. Assim que ficamos a sós, Celine declarou:

— Eu sabia que ela passaria a considerá-la da mesma maneira que eu. Devemos continuar a nos preparar. Isto é maravilhoso!

Durante os dias subseqüentes ela se mostrou tão animada e excitada quanto nos primeiros dias de minha chegada.

Sanford, no entanto, parecia mais perturbado. Os problemas na fábrica absorviam mais e mais do seu tempo. Ele vivia me pedindo desculpas. Era como se lamentasse ter de me deixar a sós com Celine por tanto tempo. Celine não se mostrava nem um pouco interessada pela fábrica, não tinha paciência para escutar qualquer coisa que Sanford dissesse. Concentrava-se em minha audição. Parecia que não pensava em nenhuma outra coisa desde o momento em que se levantava até o momento em que dormia.

E de repente, uma semana antes da audição, surgiu uma nova crise na família. Daniel saíra de casa e casara com uma mulher que engravidara. Meus avós ficaram acabrunhados. Realizaram uma reunião de família em nossa casa. Não fui convidada, mas eles falaram em voz tão alta que eu teria de ser surda para não ouvir.

— Meus dois filhos saem de casa e fazem coisas impulsivas! — exclamou minha avó. — Ninguém pensa mais na família!

Ouvi todos tentando acalmá-la, mas ela estava fora de si. Falaram sobre a nova esposa de Daniel, como ela vinha de uma classe inferior.

— Que tipo de criança uma mulher assim poderia gerar? — indagou vovó. — Devemos repudiar os dois. Não há outro jeito.

Se o fizessem, o que aconteceria com o bebê? Por acaso se tornaria um órfão como eu?

A discussão terminou em soluços. Pouco depois, meus avós saíram da sala, vovó com uma aparência transtornada, os olhos injetados, a maquilagem borrada. Ela olhou para mim, depois virou-se e se apressou em deixar a casa.

Daniel foi o tema principal da conversa no início do jantar naquela noite, mas Celine logo o encerrou, bruscamente.

— Não quero mais ouvir o nome dele esta semana. Não quero que nada nos distraia de nosso objetivo, Sanford. Vamos esquecê-lo.

— Mas seus pais...

— Eles vão superar.

Celine virou-se para mim, passando a falar sobre as coisas que deveríamos aperfeiçoar para a minha apresentação.

O dia finalmente chegou. Tive dificuldade para dormir na noite anterior, com pesadelos constantes. Na maioria, eu caía ou sentia uma vertigem na pirouette, o movimento se tornava horrível. Via cabeças balançando e Celine se encolhendo na cadeira de rodas.

No instante em que mexi as pernas para sair da cama, pela manhã, senti a dor no estômago. Era como se houvesse um punho fechado dentro de mim. A dor na altura dos rins era tão intensa e profunda que trouxe lágrimas a meus olhos. Engoli em seco e respirei fundo, várias vezes. Um filete quente na parte interna da coxa irradiou calafrios de terror para os pés, subindo de volta pelo corpo para ricochetear na cabeça e fazer o cérebro latejar. Cautelosa, em centímetros de cada vez, estendi a mão. Soltei um grito ao ver sangue nas pontas dos dedos.

— Não! Não agora! Não hoje! — supliquei a meu corpo insistente.

Virei as pernas, pus os pés no chão. Mas quando apoiei o peso do corpo, as pernas cederam. Caí de quatro no chão, a dor cada vez pior, quase me sufocando. Fiquei estendida de lado, me encolhi na posição fetal, tentando respirar. Foi quando a porta do quarto se abriu e Celine entrou na cadeira de rodas, o rosto transbordando de excitamento, enquanto gritava:

— Acorde! Acorde! Hoje é o nosso grande dia! Acor...

Ela ficou imóvel, as mãos paradas no alto das rodas, enquanto me fitava.

— O que está fazendo, Janet?

— É... minha menstruação, mamãe. Descobri que sangrava ao acordar. Tenho cólicas e dores nas costas. E ainda por cima sinto uma terrível dor de cabeça. Cada vez que levanto a cabeça, parece que bilhas estão rolando lá dentro.

— Por que não pôs a proteção que comprei para você? Deveria sempre se antecipar. Foi o que eu falei.

— Nunca me disse para fazer isso antes de dormir, todas as noites.

— Isso é ridículo. E agora trate de se levantar. Tome um banho e vista-se. Mandarei Mildred trocar as roupas da cama. Levante-se!

Ouvi os passos de Sanford subindo a escada.

— O que aconteceu, Celine? Por que está gritando? Qual é o problema? — Ele passou pela porta e parou logo atrás de Celine. — Janet!

— Não é nada. Ela apenas ficou menstruada.

— Dói muito... — balbuciei.

— Não seja ridícula — insistiu Celine.

— Se ela diz que dói, Celine...

— Claro que dói, Sanford. Nunca é agradável. Mas ela está apenas sendo melodramática.

— Acho que não. Já ouvi falar de garotas ficando praticamente incapacitadas de fazerem qualquer coisa. Minha irmã teve de ser quase carregada da escola para casa. Lembro...

— Sua irmã é uma idiota. — Celine chegou perto de mim. — Levante-se agora.

Fiz um esforço para sentar. Depois, apoiando-me na cama, comecei a me levantar. Sanford se adiantou apressado e ajudou-me a ficar de pé.

— Você vai estragar o tapete! — gritou Celine. — Vá logo para o banheiro! Não tem nenhum orgulho?

— Pare de gritar com ela — murmurou Sanford. Ele me ajudou a ir para o banheiro, depois saiu.

Lavei-me e ajeitei o absorvente íntimo. Tive de sentar na tampa do vaso fechado para recuperar o fôlego. A dor não diminuía.

— O que está fazendo aí dentro? — gritou Celine, chegando à porta do banheiro.

Estendi as mãos para a pia e me levantei. Cada passo acarretava mais dor. Abri a porta e olhei para ela.

— Dói demais, mamãe...

— Já vai passar. Vista-se. Partiremos dentro de uma hora.

Ela virou-se e deixou o quarto. Saí do banheiro. As cólicas continuavam a me apertar a barriga. Tentei me movimentar pelo quarto, pegar o vestido no closet, calçar os sapatos, mas a dor era cada vez pior. A única posição que proporcionava algum alívio era deitar de lado e erguer as pernas.

Como eu poderia dançar hoje? Como poderia dar os saltos e pirouettes? O mero pensamento de ficar em pointe provocava ainda mais dor nas costas e barriga. A cabeça latejava.

— O que está fazendo? — gritou Celine, na porta do quarto. — Por que ainda não se vestiu?

Não respondi. Apertava a barriga com as duas mãos, procurando respirar fundo.

— Janet!

— O que está acontecendo agora? — perguntou Sanford.

— Janet ainda não se vestiu. Olhe só para ela.

— Janet! — gritou Sanford ao me ver. — Você está bem?

— Não. Cada vez que tento me levantar, dói demais.

— Ela não pode ir hoje, Celine. Você tem de adiar.

— Ficou louco, Sanford? Não se pode adiar a apresentação. Há muitas garotas disputando uma vaga. Vão preencher a quota antes que ela tenha tempo de mostrar o que sabe. Temos de ir de qualquer maneira.

— Mas ela nem consegue ficar de pé!

— Claro que consegue. Levante-se.

Celine impulsionou a cadeira de rodas até a cama. Sanford estendeu as mãos para detê-la.

— Celine, por favor!

— Vamos, levante, sua pirralha ingrata! Levante-se! Eu tinha de tentar. Pus os pés no chão. Sanford ficou observando enquanto eu fazia o esforço. No instante em que ergui o corpo, a dor na barriga subiu para o peito. Soltei um grito, dobrei-me, caí de volta na cama.

— Levante-se! — berrou Celine. Sanford virou a cadeira de rodas.

— Pare com isso! Ela tem de ir! Pare com isso, Sanford! Pare!

Ele continuou a empurrá-la para fora do quarto.

— Talvez ela precise de algum medicamento — declarou Sanford. — Tenho de levá-la ao médico.

— Isso é um absurdo, seu idiota! Ela não vai conseguir entrar na escola! Janet!

A voz ressoou pelo corredor. Meu corpo ficou tenso. Sentia-me apavorada. Fechei os olhos e apertei-os com toda força, para apagar o mundo ao meu redor. Havia um zumbido em meus ouvidos. Logo fui envolvida pela escuridão, uma escuridão tranqüila e confortável, em que não mais sentia a dor e a agonia.

Tive a sensação de que flutuava. Os braços haviam se transformado em asas, finas como papel. Eu vagava pela escuridão na direção de um ponto de luz. Era fácil e maravilhoso. Planava e virava, descia e subia, batendo as asas sem o menor esforço.

Passei pelo que parecia ser um corredor com paredes de espelhos, sempre batendo as asas. Olhei para mim, enquanto me aproximava da luz.

E, espantosamente, descobri que era uma borboleta.

 

— Qual é o problema? — ouvi alguém perguntar.

A voz soava muito distante, como se estivesse no fim de um túnel; por isso, era difícil reconhecê-la.

— Todos os sinais vitais são fortes. É alguma espécie de ataque de ansiedade, Sanford.

— Isso é um absurdo! — exclamou outra voz, enquanto a escuridão começava a diminuir. — Ela não tem nada que possa deixá-la ansiosa! Tem mais do que a maioria das garotas de sua idade jamais sonhou!

— Você não sabe tanto sobre o passado dela quanto imagina, Celine. Há muitas coisas trabalhando no subconsciente. E tudo isso pode ser decorrente do trauma psicológico de ter a primeira menstruação.

— Já ouviu alguma coisa tão absurda, doutor? Por favor, receite um medicamento para que ela fique logo boa.

— Não há nenhum remédio para este caso, Celine, a não ser um pouco de tempo e muito carinho.

— O que acha que ela vem recebendo?

— Celine! A voz forte de Sanford rompeu a escuridão.

— Ele fala como se estivéssemos torturando a menina.

A escuridão diminuiu ainda mais, a luz se tornou mais forte, mais ampla. Minhas pálpebras tremeram.

— Ela está acordando.

Abri os olhos e deparei com o rosto do dr. Franklin.

— Olá — murmurou ele, sorrindo. — Como se sente? Eu me sentia confusa. Tornei a fechar os olhos e tentei pensar. Logo abri-os e olhei ao redor. Ainda estava em meu quarto. Celine se encontrava ao pé da cama, Sanford ao seu lado, com as mãos no encosto da cadeira de rodas.

— Pode sentar? — perguntou o médico.

Acenei com a cabeça e comecei a me erguer. Estava um pouco tonta, mas logo passou. Sentia uma dor difusa nas costas, o estômago nauseado. Olhei para o relógio e verifiquei que já era o meio da tarde.

— Ela vai ficar boa — disse o médico. — Só precisa de um dia de descanso. O pior já passou.

— É mesmo? — indagou Celine, sarcástica.

Ela sacudia a cabeça e me fitava com uma expressão furiosa. O médico fechou a maleta e saiu do quarto com Sanford. Celine impulsionou a cadeira de rodas para mais perto de mim.

— Não sei o que aconteceu comigo, mamãe. Vou me vestir agora.

— Vestir? — Ela soltou uma risada estridente e as- sustadora. — Para quê? Já acabou. Não tem mais nenhuma chance de entrar na escola. Perdemos a audição.

— Não podemos marcar outra?

Eu sentia a garganta ressequida, doía quando falava.

— Não. Não serviria para nada. Avaliaram dezenas de garotas e a esta altura já preencheram todas as vagas.

— Sinto muito.

— Eu também. Todo o trabalho, as horas e horas de aulas, as melhores sapatilhas...

Celine balançou a cabeça, virou a cadeira de rodas e saiu do quarto. Saltei da cama e me encaminhei para o banheiro. Tinha a sensação de que andava sobre um chão de balões. Meus tornozelos fraquejavam a princípio, mas logo se tornaram mais fortes. Molhei o rosto com água fria, escovei os cabelos. Ainda me sentindo fraca, fui até o closet e peguei um vestido. Mildred entrou no quarto no momento em que acabava de me vestir.

— O sr. Delorice mandou-me verificar se você está com fome. Posso trazer o que quiser.

— Não precisa se preocupar. Posso descer. Obrigada, Mildred.

Ela disse que me faria uma sopa e um sanduíche de queijo quente. Respondi que era uma boa idéia. Quando saí para o corredor, vi que a porta do quarto de Celine estava aberta. Fui dar uma espiada. Ela se encontrava deitada na cama, olhando para o teto.

— Já estou me sentindo melhor. — Como ela não dissesse nada, perguntei: — Você está bem, mamãe?

Celine fechou os olhos. Meu coração disparou. Ela ficara tão zangada comigo que agora fingia não me ouvir? Desci tão depressa quanto podia. Encontrei Sanford em seu escritório, falando com alguém na fábrica. Ele acenou quando apareci na porta, indicando que estaria comigo dentro de um instante. Fui para a sala de jantar. Mildred me levou a sopa e o sanduíche.

— Celine está muito zangada comigo? — perguntei a Sanford, quando ele entrou na sala.

— Claro que não. Ela ficou desapontada, mas tudo estará melhor pela manhã. É o que sempre acontece. Como você se sente agora?

— Estou melhor, mas ainda com a sensação de que escalei uma montanha enorme e corri por quilómetros.

Sanford sorriu e balançou a cabeça.

— Acho que é verdade quando dizem que os homens têm uma vida mais fácil. Vou ver como Celine está.

Quando tornou a descer, ele parecia mais preocupado. Ofereceu-me um sorriso rápido e disse que precisava dar um pulo à fábrica, mas não ia demorar.

— Celine está descansando, Janet. Tente não perturbá-la.

Subi sem fazer barulho, pensando em dar outra espiada em Celine. Mas encontrei a porta fechada. Permaneceu fechada pelo resto do dia e durante a noite. Assisti televisão, li um pouco, fui para a cama antes de Sanford voltar da fábrica.

Sentia-me melhor quando acordei na manhã seguinte. O sol brilhava através das cortinas. Tive vontade de usar uma roupa alegre. Escolhi uma blusa amarela e saia branca, com os tênis azuis que Celine e Sanford haviam me comprado na primeira semana. Ao sair para o corredor, vi que a porta do quarto de Celine continuava fechada. Imaginei que Sanford estava lá embaixo, à mesa da sala de jantar, lendo o jornal e esperando por mim. Era o que ele fazia quase todas as manhãs desde que haviam me trazido do orfanato.

Quando desci, no entanto, não encontrei ninguém na sala de jantar. Mildred veio da cozinha e informou que Sanford levantara muito cedo, já saíra de casa.

— E minha mãe? — perguntei.

— Levei o café da manhã no quarto. Mas ela quase não tocara no jantar e não parecia muito interessada em comer qualquer coisa agora. Quase não falou. — Mildred sacudiu a cabeça. — Acho que ela está doente.

— Talvez Sanford tenha saído para buscar o médico.

— Não. — A maneira como Mildred contraiu os lábios dizia que ela sabia de muito mais. — Ele não foi buscar o médico.

— O que está acontecendo, Mildred? Qual é o problema?

— Não sei qual é o problema, mas o sr. Delorice parecia muito preocupado com a fábrica esta manhã. Não que eu escute as conversas pelo telefone...

— Sei que não escuta, Mildred. Por favor, conte tudo o que sabe.

— Alguma coisa aconteceu na fábrica esta semana, mas não sei o que foi. Só posso dizer que o deixou perturbado. Vou preparar seu café da manhã.

— Verei como está minha mãe primeiro.

Subi apressada a escada. Bati na porta de Celine, mas ela não respondeu. Esperei um momento, depois abri a porta lentamente e dei uma espiada.

Celine estava sentada na cadeira de rodas, olhando por uma janela. Ainda usava a camisola, tinha os cabelos desgrenhados. Não usava batom.

— Mamãe? — murmurei, aproximando-me. Ela não respondeu. Continuou a olhar pela janela. Falei mais alto. — Está bem, mamãe?

Subitamente, ela desatou a rir. Começou com um rumor baixo na garganta. Depois, o rosto se desmanchou num sorriso largo, com uma expressão desvairada nos olhos. A risada se tornou mais alta, mais estranha. Lágrimas escorriam dos olhos. Os ombros tremiam. Ela pôs as mãos nas rodas da cadeira, impulsionou para a frente, depois para trás, outra vez para a frente, até bater na parede.

— O que está fazendo, mamãe? Por que faz isso? Ela riu e continuou.

Dei um passo para trás.

— Pare com isso! — gritei. — Por favor!

A risada tornou-se ainda mais alta, enquanto ela impulsionava a cadeira de rodas para a frente e para trás, a cada vez batendo com mais força na parede.

— Mamãe! Pare!

Ela não parou. Virei-me e saí correndo do quarto, para deparar com Sanford, que subia a escada.

— Há alguma coisa errada com Celine! — gritei para ele. — Ela não pára de rir e fica jogando a cadeira contra a parede!

— O quê? Oh, não!

Ele passou por mim e entrou no quarto. Ouvi-o suplicar para que Celine parasse. A risada ainda era muito alta. Tive de tapar os ouvidos, de tão assustadora que era. Mildred apareceu na base da escada.

— O que está acontecendo, Janet?

— Celine não pára de rir.

— Oh, não! — Mildred balançou a cabeça. — Ela já fez isso uma vez antes.

Mildred afastou-se, tornando a sacudir a cabeça. Olhei para o quarto de Celine, o coração batendo tão forte que pensei que romperia o peito.

A risada finalmente cessou. Comecei a me encaminhar para o quarto, mas Sanford fechou a porta antes que eu chegasse lá. Fiquei parada no corredor por um momento, depois desci para esperar. Mildred me serviu um suco, torradas e ovos, mas eu não podia comer qualquer coisa. Não muito depois ouvi a campainha da porta. Mildred foi abrir. Era o dr. Franklin. Ele subiu apressado. Também subi, mas a porta do quarto foi fechada outra vez.

O médico permaneceu lá dentro por um longo tempo. Desci para esperar lá embaixo. Acabei saindo da casa, fui sentar no banco sob os salgueiros-chorões. Era um lindo dia, com umas poucas nuvens brancas aqui e ali. Os passarinhos cantavam e voavam ao meu redor. Um esquilo curioso parou e ficou me olhando, mesmo quando comecei a falar. Depois, subiu por uma árvore.

Numa manhã tão gloriosa, como as coisas podiam ser tão cinzentas e melancólicas em meu coração?

Finalmente a porta da frente da casa foi aberta. Sanford e o dr. Franklin conversaram ali em voz baixa por um momento. Trocaram um aperto de mão e o médico dirigiu-se para o carro. Levantei-me e ele olhou para mim.

— Como se sente hoje?

— Muito melhor. Como está minha mãe?

— Sanford vai conversar com você.

Depois dessa resposta enigmática, ele entrou no carro. Observei-o partir, antes de seguir apressada para a casa. Encontrei Sanford ao telefone outra vez. Ele ergueu o indicador direito, depois virou a cadeira, ficando de costas para mim, enquanto continuava a conversa. Eu não sabia para onde ir. Sentia-me de repente completamente perdida. A porta do quarto de Celine ainda estava fechada. Vagueei pela casa, parei no estúdio. Subi para o meu quarto, sentei na cama, esperei. Tive a impressão de que uma eternidade passara até que Sanford subisse.

— Desculpe, Janet. Estou enfrentando uma crise na fábrica. Meu gerente industrial vinha desviando material, mas por sorte descobri a tempo. Poderia ter ido à falência. Mas tive de superar os problemas junto com os gerentes administrativo e financeiro, além da polícia. Ainda não consegui resolver tudo. Estou no meio do processo para... Celine não está bem.

— O que há de errado com ela? — perguntei, com lágrimas nos olhos. — É culpa minha?

— Claro que não.

Sanford fitou-me em silêncio por um momento, depois respirou fundo. Olhou pela janela, os olhos úmidos, sacudiu a cabeça.

— A culpa é toda minha. Fui eu quem a pôs naquela cadeira de rodas, não você. Tirei a coisa mais importante para ela, o que lhe dava uma razão para existir. Apenas temos fingido que vivemos desde então. Uma manhã ela acordou com a idéia de adotarmos alguém como você. Achei que era a nossa salvação... a minha salvação, eu deveria dizer.

Ele atravessou meu quarto, foi se postar junto da janela. Continuou a falar de costas para mim.

— Não pensei direito. Deveria ter compreendido o que você, o que qualquer uma em seu lugar, teria de suportar. Não era justo.

— Não me importei. Tem sido difícil, mas...

— Tem sido cruel — corrigiu Sanford, virando-se para mim. — É isso mesmo. Sua infância foi negligenciada, ignorada, sacrificada para satisfazer um sonho irrealista. Você nunca pode ser o que Celine quer... não pode lhe devolver suas pernas, sua carreira, seu sonho. Ninguém pode, nem mesmo a bailarina mais talentosa. Ela tentou viver por seu intermédio. Lamento dizer que deixei que isso acontecesse, porque me proporcionava alguma paz e alívio dos meus opressivos sentimentos de culpa.

Ele fez uma pausa, sorriu.

— De certa forma, Janet, eu também a tenho explorado. Peço que me desculpe.

— Não estou entendendo.

— Sei que não entende. Mas foi demais para impor a alguém de sua idade. É uma injustiça sobrecarregá-la tanto. E esta família tem mais problemas do que qualquer um pode imaginar.

Com as mãos nas costas agora, Sanford continuou:

— Seja como for, não posso mais ignorar os problemas mais profundos de Celine. Ela vai precisar de ajuda profissional. Será uma jornada longa e árdua, que talvez nunca termine. Lamento muito ter permitido que você fosse envolvida. Mas ainda é bastante jovem para ter outra chance, uma chance melhor de uma vida boa e saudável.

— Como assim? — balbuciei, com a sensação de que meu coração parava.

— Não posso cuidar de Celine e ao mesmo tempo lhe oferecer a vida familiar que você merece. É melhor para todos se você tiver outra oportunidade.

— Outra oportunidade?

Não era possível que Sanford estivesse dizendo o que eu pensava.

— Não será agradável para você aqui, Janet. Não creio que Celine possa melhorar se tiver de ver você, compreendendo que falhou de novo. Não que eu pense que ela falhou. Acho que você se saiu muito bem, Janet. Qualquer um numa situação de família normal se orgulharia de você. Eu me orgulho. Mas também tenho medo por você.

Ele tornou a olhar pela janela, antes de acrescentar:

— A verdade é que tenho medo até por mim. Sanford sorriu para mim. Foi um sorriso corajoso.

— Detesto perdê-la, Janet. É uma garota maravilhosa, uma companhia muito agradável. Esta casa nunca mais será a mesma. Quero que saiba que você significa muito para mim, Janet. Trouxe um pouco de luz para a minha vida e a nossa casa. Agora é a minha vez de levar luz para a sua vida.

— Vai me mandar de volta? — perguntei, fazendo um esforço para reprimir as lágrimas.

— Não quero, mas é a melhor solução. Tenho de devotar todo o meu tempo à recuperação de Celine. Devo isso a ela, Janet, e tenho certeza de que você pode compreender. Não haverá ninguém para cuidar direito de você aqui, e receio que Celine não poderá ser mãe para ninguém.

Ele respirou fundo.

— Já viu como seus avós são. Só se preocupam agora com sua pequena crise com Daniel. Juro que ele faz o que faz apenas para atormentá-los. Esta não é uma família feliz neste momento, muito menos um lugar para se criar uma criança. Você merece coisa melhor.

— É tudo culpa minha. Porque tive a menstruação no momento errado.

— Está enganada, Janet. Percebo agora que foi uma bênção. Vamos supor que você tivesse ido à apresentação e não fosse escolhida. Celine teria a mesma reação. E se fosse escolhida, acabaria tendo outro teste em que não seria aprovada como ela gostaria. Nunca poderia fazer tudo, porque você não pode ser ela. Acho que Celine compreendeu isso; enfrenta o fato e é o motivo pelo qual... vem tendo problemas. A verdade, Janet, é que talvez seja preciso internar Celine. O que seria doloroso demais para mim. Sinto muito. E, por favor, não se culpe. Providenciarei tudo o que for necessário. Tenho certeza de que não passará muito tempo antes que outro casal, mais saudável, a tire do orfanato.

Ele me beijou na testa e se retirou. Continuei sentada, atordoada, correndo os olhos por meu lindo quarto. Tão depressa quanto me fora dado, agora seria tirado. Gostaria de nunca ter vindo para cá, pensei. Era pior ter conhecido aquilo e perdido do que nunca ter visto. Quantas mães e pais eu perderia? Quantas vezes teria de me despedir?

Eu me sentia furiosa, fervendo por dentro, as emoções se projetando como ondas num furacão. Sentia-me traída. Nunca me fora concedida realmente a oportunidade de amá-los.

Ao jantar, Sanford me informou que já acertara tudo. O serviço de proteção à criança queria que eu fosse para um lar provisório coletivo, onde ficaria até ser adotada de novo.

— Disseram que é uma casa ótima e que você fará novos amigos — comentou ele.

— Já fiz novos amigos aqui. - Ele balançou a cabeça, os olhos tristes.

— Sinto muito, Janet. Parte meu coração. Com toda sinceridade.

Sanford virou-se, mas não antes que eu visse lágrimas em seus olhos. Acreditei nele, mas isso não tornava a situação mais fácil. Ao contrário, tornava ainda mais difícil.

Houve um fluxo de atividade na manhã seguinte. Chegou uma enfermeira para ajudar com Celine. Pouco depois, os Westfalls vieram fazer uma visita. A mãe de Celine não me lançou mais que um olhar de passagem ao subir para ver a filha. Depois, Sanford e o sogro foram para o escritório, a fim de conversarem sobre os acontecimentos na fábrica de vidro. Ao partirem, minha avó fitou-me na sala de estar, virou-se para Sanford e comentou:

— Celine desperdiçou uma preciosa energia para transformar em ouro o que nunca deixará de ser lata.

Eu não sabia direito o que isso significava, mas senti que ela me culpava.

Mais tarde, naquele mesmo dia, Sanford mandou Mildred ao meu quarto para me ajudar a fazer as malas. Eu ainda não vira Celine, pois ela não saíra do quarto e a porta continuava trancada. Mas não podia ir embora sem falar com ela pelo menos mais uma vez. Fui até a porta e bati. A enfermeira abriu.

— Quero me despedir.

Ela não ia me deixar entrar, mas Sanford subira para me buscar e disse que não tinha problema. A enfermeira deu um passo para o lado e entrei no quarto.

Celine estava sentada na cadeira de rodas, junto da janela, olhando para o jardim da frente. Pus a mão sobre a sua e ela virou-se, bem devagar.

— Sinto muito, Celine. Eu queria que você fosse minha mãe. Queria dançar para você.

Ela me fitava como se eu fosse uma estranha total.

— Espero que melhore muito em breve. Obrigada por tentar me fazer uma prima ballerina.

Celine piscou.

— Está na hora — murmurou Sanford da porta. Acenei com a cabeça, inclinei-me e dei um beijo em seu rosto.

— Adeus.

Quando eu ia me virar, ela pegou minha mão.

— Há muita gente no auditório?

— Como? Celine sorriu.

— Já estou me aquecendo. Diga a Madame Malisorf que já estou pronta, sairei num instante. E diga também que já comecei a ouvir a música. Ela gosta disso. Vai dizer a ela?

— Claro, Celine, claro.

Eu não tinha a menor idéia do que ela falava.

— Obrigada.

Celine virou-se para a janela. Por um momento, pensei ouvir a música. Lembrei o que ela dissera quando nos encontráramos pela primeira vez:

— Quando você for boa... e tenho certeza de que será boa... vai se perder na música, Janet. Vai arrebatá-la...

Era o que acontecia agora, a música me arrebatava. Fitei-a pela última vez e depois deixei sua casa para sempre.

 

Não olhei para trás quando nos afastamos da casa. Tinha a sensação que deixava um livro de histórias, as capas sendo fechadas por trás. Não queria ver o fim da minha história. Queria lembrar a casa para sempre como era: alegre, aconchegante, com a magia das flores e passarinhos, coelhos e esquilos, uma casa de fantasia, a minha terra de Oz.

Sentei no banco traseiro do enorme carro. Na mala do carro estava minha bagagem, as roupas e sapatos novos, os trajes de balé, além das maravilhosas sapatilhas. A princípio, não queria levar coisa alguma. Preferia partir com pouco mais do que tinha ao chegar. Mas pensei: se eu não tivesse aquelas coisas, com certeza acordaria uma manhã e pensaria que sonhara tudo, os rostos, as vozes, até mesmo minha festa de aniversário.

— Espero que você continue a dançar — comentou Sanford. — Estava se tornando cada vez melhor.

Não falei nada. Permaneci em silêncio, olhando pela janela do lado, vendo a paisagem passar. Parecia que o mundo estava gravado numa fita que se desenrolava e flutuava em nossa esteira. Sanford dizia alguma coisa de vez em quando. Vi que ele me observava pelo espelho retrovisor. Seus olhos transbordavam de tristeza e culpa.

— Espero que Celine melhore — murmurei.

— Obrigado.

Mais uma vez, percebi lágrimas em seus olhos, íamos para um lar provisório coletivo, um lugar chamado The Lakewood House. Sanford explicou que era dirigido por um casal, Gordon e Louise Tooey, que tinham antes uma pousada para turistas. Ficava a pouco menos de dois quilómetros de carro.

— Será mesmo um lar temporário para você, Janet, tenho certeza.

No caminho, ele queria parar em algum lugar para eu comer, mas respondi que não tinha fome. Quanto mais depressa chegasse e iniciasse minha nova vida, pensei, melhor seria. No momento, eu me sentia no limbo.

Sanford seguiu as orientações escritas, mas perdeu-se uma vez e teve de parar num posto de gasolina para se informar. Finalmente encontramos a rua.

— É ali — anunciou Sanford.

À nossa frente havia uma casa enorme, cinzenta, de dois andares. Tinha tanto se não mais terreno que a casa de Sanford e Celine. Avistei quatro garotas andando juntas na direção do que parecia ser um campo de jogo. Dois adolescentes cortavam a grama, enquanto um homem alto e musculoso, com cabelos castanhoescuros e rosto bem definido, gritava com algumas outras crianças, que recolhiam a grama cortada.

— Parece agradável — comentou Sanford. Depois que estacionamos, ele pegou minhas malas.

Uma morena alta, com cabelos na altura dos ombros, presos atrás, saiu pela porta da frente da casa. Parecia ter uns cinqüenta anos. Fiquei impressionada com seus incríveis olhos azuis.

— Esta deve ser Janet. Passei o dia inteiro esperando por você, querida. É sem dúvida uma linda menina.

— Também acho — murmurou Sanford, sempre triste.

— Seja bem-vinda à Lakewood House, meu bem. Meu nome é Louise. Vou lhe mostrar o seu quarto. — Ela lançou um olhar para Sanford. — No momento, ela ficará sozinha num quarto, mas estamos esperando novas crianças em breve.

Ele sorriu e acenou com a cabeça.

— Gordon! — gritou Louise. — Gordon!

— O que é?

— A nova garota chegou!

— Isso é ótimo. Mas agora tenho de vigiar estas crianças, que nunca cuidam da grama direito.

Ele me pareceu um tanto rabugento.

— Gordon se orgulha da maneira como mantemos a propriedade — explicou Louise. — Todos ajudam, mas você vai ver como é divertido. Vamos entrar, por favor.

Ela pôs a mão em meu ombro, conduziu-me pelos degraus até a porta da frente. Havia um vestíbulo pequeno, depois uma sala grande, com móveis antigos.

— A Lakewood foi uma das mais procuradas pousadas para turistas em seu tempo — comentou ela para Sanford.

Louise continuou a falar, explicando como o fluxo de turistas diminuíra. Por isso, ela e o marido Gordon decidiram usar a propriedade como um lar provisório para crianças. Não tinham filhos, ”mas sempre considerei que todos aqui são meus filhos”.

Subimos e paramos na porta de um quarto que tinha a metade do tamanho do meu quarto na casa dos Delorices.

— Acabei de limpá-lo — informou Louise. — As meninas partilham o banheiro no final do corredor.

Cooperação é a palavra-chave aqui. Prepara as crianças para a vida.

Sanford tornou a sorrir. Largou minhas malas no chão.

— Agora darei tempo para vocês dois se despedirem — acrescentou Louise, olhando para Sanford e para mim. — Depois, Janet, eu lhe mostrarei o resto da casa.

— Obrigado — murmurou Sanford.

Ela se retirou. Sentei no que seria minha cama. Ele ficou de pé, em silêncio, por um momento.

— Ah, quero que você fique com algum dinheiro. Sanford tirou uma carteira do bolso, pegou várias notas de grande valor. Comecei a sacudir a cabeça.

— Não, por favor, Janet. Fique com isso e esconda. Na primeira oportunidade que tiver, deposite no banco. Ter algum dinheiro seu vai lhe proporcionar uma certa independência. — Ele pôs o dinheiro na minha mão. — Sei que não ficará muito tempo aqui, Janet. É uma garota linda e talentosa.

Eu não sabia o que dizer a ele.

— Talvez eu venha visitá-la de vez em quando. Gostaria disso?

Sacudi a cabeça, o que o deixou surpreso.

— Não gostaria? Por que não?

— Quando as pessoas envelhecem, perdem a memória. Assim, não se lembram do que não podem mais ter.

Sanford sorriu.

— Quem lhe disse isso? Dei de ombros.

— Ninguém. Pensei isso um dia.

— Provavelmente está certa. É a natureza. Mas espero que não me esqueça, Janet. Eu não vou esquecê-la.

— Celine já me esqueceu.

— Ela está apenas confusa, absorvida em suas lembranças pessoais.

— Então é melhor que ela esqueça.

Sanford parecia prestes a chorar. Antes, ele apenas me beijara na testa e segurara minha mão para atravessar a rua. Agora se ajoelhou e me abraçou, apertando-me com força por um longo momento.

— Eu queria uma filha como você, Janet, mais do que qualquer outra coisa.

Ele me beijou no rosto e levantou-se depressa, virou-se e saiu do quarto. Escutei seus passos descendo a escada.

Por algum tempo, fiquei sentada ali, olhando para o chão. Depois, fui até a janela e olhei. Avistei o carro de Sanford desaparecer na rua. Comecei a chorar, a primeira lágrima explodindo numa gota quente, que escorreu pela face. Foi nesse instante que uma linda borboleta pousou no peitoril da janela. Manteve-se ali apenas por um instante, depois alçou voo para o vento. Contemplei-a flutuar para longe, e pensei que algum dia eu faria a mesma coisa.

 

                                                                                V. C. Andrews  

 

 

                      

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