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Bosambo / Edgar Wallace
Bosambo / Edgar Wallace

 

 

Biblioteca Virtual do Poeta Sem Limites

 

 

Bosambo

 

                  

 

Como se educa um rei

SANDERS FORA PROMOVIDO AO comando da África Ocidental Britânica por estágios tão favoráveis, que nem sequer se lembrava mais de quando começara a familiarizar-se com as regiões da costa. Tempos atrás, o governo britânico encarregara-o de tomar conta de um quarto de milhão de canibais, que dez anos antes olhavam para os homens brancos do mesmo modo por que nós outros olhamos para o unicórnio. E foi então que ele se encontrou com os Bassutos, Zulus, Fingos, Pondos, Matabeles, Mashonas, Barotses, Hotentotes e Bechuanas. A curiosidade e o interesse levaram-no a esse tempo, para o norte e para o oeste: dirigindo-se para o norte, atingiu ao Congo; e, dirigindo-se a oeste, chegou até Massai. Finalmente, depois de ter estado também entre o povo de Angola, veio, pela terra dos Pygmeus, até ao próprio país dos mesmos.

Note-se que há uma diferença sutil entre todas essas raças, uma diferença que somente pode ser conhecida por homens da espécie de Sanders.

Não se trata, precisamente, de variedades de cor, embora uns sejam pardos, outros amarelos e alguns muito poucos sejam de cor de azeviche. A diferença essencial está no caráter. Pelo código de Sanders, podeis confiar em todos os indígenas da África, acima referidos, da mesma forma por que confiais em crianças, com poucas exceções notáveis. Os Zulus e os Bassutos, esses eram homens, ainda que infantis em sua fé ingênua. Os negros, que usavam o fez, eram astutos, porém dignos de confiança. Mas os pardos da Costa-do-Ouro, que falavam inglês, usavam roupas européias e se tratavam por "Mister", eram aqueles a quem Sanders mais abominava.

Vivendo tanto tempo com "crianças grandes", era natural que ele próprio assimilasse algumas das suas qualidades pueris. Uma vez, achando-se ele de licença em Londres, pregaram-lhe uma peça atrevida, e somente a sua ingênita honestidade pôde tirá-lo de um embaraço ridículo. Porque, quando o negociante lhe ofereceu uma pesada barra de ouro, todos os nervos morais de Sanders se eriçaram, e ele correu do confiante mercador de metais à estação policial mais próxima, acusando-o, perante uma perplexa autoridade- do "I. G. B.", isto é, de compra e venda ilícitas de ouro. Sanders não duvidava de que a barra fosse do fulvo metal; estava, porém, convencido de que tal ouro não fora legalmente adquirido. A sua surpresa, quando averiguou que o "ouro" era batido na Casa da Moeda e, portanto, de curso legal no comércio, foi simplesmente comovedora.

De Sanders, o que melhor podeis dizer é que ele era um estadista, — o que equivale a afirmar-se que não tinha opinião exagerada acerca do valor individual da vida humana.

Se via uma folha morta na árvore da civilização, arrancava-a; se via um joio a crescer entre flores, extirpava-o, não se preocupando com o considerar o direito que o joio tinha à vida, tanto quanto as flores.

Quando um homem, por mau exemplo, comprometia a paz do seu país, fosse ele "capita" ou fosse escravo, Sanders exterminava-o. Nos seus dias de rebelião, os Isisis chamavam-lhe "Ogani-Isisi", que significa "O Pequeno Açor", e, certamente, naquele tempo, Sanders estava disposto a enforcar meio mundo. Governava um povo que ficava a trezentas milhas dos limites da civilização. Hesitação em agir, demora em determinar a forma de punição, qualquer dessas coisas poderia ser tomada por fraqueza entre os indígenas que não tinham capacidade de raciocínio, nem hábito de perdoar, nem espécie alguma de benevolência.

Na região que faz curva ao longo das margens do Togo, o povo compreende a punição como dor e morte, e nada mais. Houve certo comandante sem tino, saturado de idéias humanitárias, que tendo ido a Akasava, — nome da citada região, — resolveu experimentar ali a persuasão moral. Tratava-se de invasão armada. Alguns indivíduos de Akasava tinham atravessado o rio e penetrado em Ochori, onde roubaram mulheres e cabras. Creio que houve também um ou dois homens mortos; mas isso era o de menos importância. As cabras e as mulheres estavam vivas e clamavam por vingança. Gritavam tanto, que foram ouvidas lá embaixo, no quartel-general inglês, e o comandante Niceman (não era este o seu verdadeiro nome, mas servirá para o caso que estou contando) subiu imediatamente a averiguar a causa de todo aquele barulho. Encontrou o povo de Ochori tomado de cólera e talvez ainda mais assustado do que furioso.

— Se os invasores, — disseram a Niceman os seus emissários, — devolverem as nossas cabras, podem ficar com as mulheres, porque as cabras têm, para nós, mais valor do que elas.

Então o comandante inglês, teve uma longa, muito longa conferência, que durou dias e dias, com o chefe do povo de Akasava e respectivos conselheiros, e, por fim, a persuasão moral triunfou: o soba prometeu que, em certo dia, a certa hora, quando a lua estivesse em tal fase e a maré em determinada altura, as mulheres seriam devolvidas ao povo de Ochori e as cabras também.

Após o quê, mister Niceman voltou ao quartel-general, ancho de admiração por si mesmo, e escreveu um estirado relatório acerca do seu gênio, de suas habilidades administrativas e do seu conhecimento dos indígenas da África. E isso foi dado à estampa no "Livro Azul (África)", 7.943 - 1896.

Mas aconteceu que, logo depois, mister Niceman foi gozar uma licença na Inglaterra, o que não lhe permitiu ouvir as reiteradas queixas e os tristes gemidos do povo Ochori, por não haver este recuperado nem as suas mulheres, nem as suas cabras. Sanders, que, nessa ocasião, trabalhava às margens do Rio Isisi, tendo apenas 10 Houssas e um ataque de malária, recebeu a seguinte ordem:

— "Vá a Akasava e resolva aquela infernal questão de mulheres — Administração".

Sanders imediatamente apertou o cinturão sobre os rins, tomou 25 grãos de quinino, e, adiando a sua boa ocupação, — a da captura de M'Beli, o médico feiticeiro, que havia envenenado a um amigo, — rumou para Akasava.

Não tardou a avistar a aldeia, cujo chefe lhe saiu prontamente ao encontro.

— Que é que há aqui a respeito de umas certas mulheres? — perguntou ele, antes de mais nada, ao soba.

— Teremos sobre isso uma conferência, — respondeu o outro. — Convocarei hoje mesmo os meus conselheiros.

— Convocará coisa nenhuma! — gritou-lhe Sanders, sem mais aquela. — Restituam já as mulheres e as cabras, que você e os seus guerreiros roubaram do povo de Ochori!

— Ouvi-me, senhor! — disse o chefe negro. — Por ocasião da lua cheia, como é nosso costume, quando a maré também estiver cheia e todos os sinais de deuses e demônios nos forem propícios, eu farei como me ordenais.

— Soba, — berrou-lhe Sanders, batendo de leve no peito de ébano do outro, com a ponta da fina bengala, — eu não tenho nada com a lua e rio, nem com deuses e demônios! As mulheres e as cabras têm que voltar para a gente de Ochori hoje mesmo, ao pôr do sol. Se não, eu amarro você a uma árvore e açoito-o, até você soltar o último suspiro!

— As mulheres, senhor, — declarou, afinal, o chefe negro, — serão restituídas hoje mesmo.

— E as cabras também — acrescentou Sanders.

— Quanto às cabras, — ponderou humildemente o soba, — morreram, pois foram abatidas para um banquete, que realizamos aqui.

— Você falas-á voltar à vida, — ponderou-lhe Sanders, firmemente.

— Pensais, então, senhor; que eu sou mágico? — perguntou ao comandante inglês o chefe dos Akasavas.

— Eu o que penso é que você não passa de um grande mentiroso, — disse-lhe Sanders, peremptòriamente.

E assim terminou a conversa.

Naquela mesma noite, as mulheres e as cabras foram devolvidas ao povo de Ochori, e Sanders preparou-se para partir.

Chamou o soba de Akasava para um canto da aldeia, pois não desejava envergonhá-lo em público, nem diminuir-lhe a autoridade perante os seus súditos.

— Chefe, — disse ele ao outro, — do meu quartel-general até Akasava a viagem é bastante comprida, e eu sou um homem muito atarefado. Espero que você não me obrigue a voltar outra vez aqui...

— Senhor, — respondeu-lhe o cacique negro com sinceridade, — creia que não desejo vê-lo nunca mais aqui!

Sanders não pôde deixar de sorrir, ao escutar semelhante declaração. Reuniu os seus 10 Houssas e regressou ao Rio Isisi, a fim de continuar as suas pesquisas para a captura do M'Beli.

Por diversas causas, não era um trabalho agradável, e havia também sérias suspeitas de que o próprio rei do Isisi era o protetor do assassino. — Confirmou-se isso certa manhã, quando Sanders, acampado perto do Grande-Rio, tomava uma singela refeição de leite condensado e torradas. Chegou ali, inesperadamente, Sato-Koto, irmão do rei, o qual parecia muito aflito, pois que estava fugindo, segundo dizia, à ira do soberano. Tagarelou a mais não poder dando toda sorte de notícias, pela maior parte das quais não tomou Sanders o menor interesse. Mas, quando ele afirmou que o médico-feiticeiro vivia à sombra do rei e estava escondido por este, Sanders foi todo ouvidos e despachou logo um mensageiro ao quartel-general. Do quartel-general, conforme prontamente se divulgou, não tardou a partir para a aldeia de Isisi mister Niceman, — que, a esse tempo, expirada a licença, havia retornado à África, — a fim de "moralizar", por persuasão, ao rei do povo do Grande-Rio.

Ora, como é lícito inferir do testemunho de Sato-Koto, o soberano não andava de bom humor.

E tanto não andava, que a pobre cabeça de Niceman, espetada numa estaca, erguida em frente à cabana do cacique negro, proclamou aos quatro ventos aquele fato indisputável.

De Simonstown vieram logo H. M. S. St. George, H. M. S. Trush, H. M. S. Philomel e H. M. S. Phoebe, tendo também descido de Serra-Leoa H.M.S. Dwarf; e, meno de um mês depois de haver o rei de Isisi matado aquele seu hóspede, por certo que estava arrependido de o ter feito.

A administração enviou para ali o comandante Sanders, a fim de que este aclarasse e resolvesse o lado político do conflito.

Mostrou-lhe o imediato do St.-George o que restava da aldeia, dizendo-lhe, num tom apologético:

— Será necessário cavar para este povo um novo rei, pois nós não tivemos outro remédio senão matar o antigo.

Sanders meneou a cabeça, ponderando-lhe:

— Pode estar certo de que eu não tomarei luto...

Não houve dificuldade alguma em achar candidatos para o trono vacante. Sato-Koto, irmão do rei morto, exprimiu, com louvável presteza, o seu consentimento em assumir as responsabilidades do alto cargo.

— Que dizeis a isto? — perguntou a Sanders o comandante da expedição naval.

— Discordo, senhor, — respondeu-lhe Sanders, sem a menor hesitação. — O falecido rei tinha um filho, um menino de nove anos. A este é que deve caber a realeza. Quanto a Sato-Koto, pode exercer à vontade a regência.

E assim se acomodaram as coisas, tendo Sato-Koto, entretanto, assentido de mau humor a semelhante deliberação.

O novo rei foi encontrado na selva, escondido em meio do pessoal feminino. Quando descoberto, tentou fugir; mas Sanders o agarrou pela orelha e desse modo o levou para a aldeia.

— Meu menino, — perguntou-lhe Sanders carinhosamente, — como é que este povo te chama?

— Pedro, senhor, — choramingou o rapazinho, todo nervoso, — é como me chamam aqui, à maneira da gente branca.

— Muito bem! — disse-lhe o comandante inglês. — Tu serás o rei Pedro, e governarás este país sabiamente e justamente, de acordo com a lei e a moral. Não farás mal a ninguém, não envergonharás a ninguém, não matarás a ninguém, nem invadirás terras e aldeias alheias! Tratarás somente de praticar as coisas que tornam a vida digna, porque, se tu errares, salve-te Deus, que eu não sei o que te poderá acontecer!

Eis aí como foi proclamado monarca do povo de Isisi o menino Pedro. Sanders voltou ao quartel-general, com o seu pequeno exército de Tommies e Houssas. M'Beli, o médico-feiticeiro, tinha morrido na tomada da aldeia, de sorte que a tarefa de Sanders, quanto a esse assassino, estava também encerrada.

A história da tomada da aldeia de Isisi e da coroação do rei-menino saiu a lume nos jornais de Londres, onde nada se perdeu de tão interessantes episódios. Foi de tal modo descrita a matança dos negros, — pois muitos correspondentes das folhas londrinas acompanharam a expedição naval, — que muitas distintas senhoras de Bayswater verteram lágrimas copiosas e muitas mocinhas de Mayfair exclamaram:

— Como é comovente!

Das inúmeras emoções que o fato provocou, proveio partir da Inglaterra para a África a senhorinha Qinton Calbraith, M. A., jovem extraordinariamente bela.

O seu intuito era "servir de mãe" ao reizinho órfão, de quem esperava ser amiga e conselheira. Pagou ela a sua própria passagem. Mas os livros, que levou, e os demais petrechos didáticos, destinados ao ensino do rei-menino, e que enchiam dois grandes caixotes, foram-lhe fornecidos pelos bondosos leitores da revista infantil "Tiny Toddlers", editada na capital da Inglaterra. Sanders foi esperar no cais a sua compatriota, curioso por ver com que se parecia aquela mulher branca.

Pôs uma cabana à disposição dela e mandou a esposa do seu ordenança cuidar da mesma.

— E agora, miss Calbraith, — perguntou ele à jovem, durante o jantar, naquela mesma noite, — que é que espera fazer de Pedro?

A moça levantou seu lindo queixo, pensativamente, e afinal lhe respondeu:

— Principiaremos com as lições mais elementares, quais as mais simples de um "jardim de infância", e iremos subindo gradualmente. Assim é que eu espero ensinar ao pequeno rei calistenia e, um pouco de botânica... Mas, mister Sanders, o senhor está rindo...

— Não, senhorinha, não estou rindo, — apressou-se o comandante a afirmar-lhe. — Faço sempre uma cara que parece de riso, principalmente à noite. Mas diga-me primeiro: fala o idioma Suaholi-Bomongo-Fingo?

— Aí está para mim uma grande dificuldade... — proferiu ela, meditativamente.

— Quer ouvir um bom conselho? — indagou ele.

— Com todo o prazer.

— Pois bem, aprenda a língua! (A moça meneou a cabeça). Volte para Londres e aprenda-a! (Ela franziu o sobrecenho). Levará cerca de um quarto de século...

— Mister Sanders, — obtemperou ela, com dignidade, — o senhor está a agourar-me... o senhor está zombando de mim...

— Perdoe-me Deus, — disse Sanders, compungidamente, — se acaso pensei jamais em fazer coisa tão ruim!

O fim de tudo isto, no que respeita à linda pessoa de miss Clinton Calbraith, foi que ela partiu para Isisi, ficou lá três dias e voltou desatinada.

— Pedro não é propriamente uma criança! — exclamou ela, estouvadamente. — Ele é um... um demoniozinho!

— Bem dizia eu... — ponderou Sanders, filosòficamente.

— Aquilo então é um rei? Que coisa horrorosa! Mora numa cabana suja e não usa roupa de espécie alguma... Ah! se eu tivesse sabido!

— É um filho da natureza, — proferiu Sanders, sentenciosamente. A senhorinha não esperava encontrar aqui uma espécie de Luís XV, não é verdade?

— Eu mesma não sei o que é que esperava, — replicou a jovem, desiludidamente. —- O que sei é que me foi impossível ficar... absolutamente impossível!

— Evidentemente, — murmurou Sanders, entre os dentes. — Que ele havia de ser preto, eu bem sabia, — continuou miss Calbraith. -r- E também sabia que... mas, ah! foi... foi horrível!

— O fato é, — observou-lhe finalmente, Sanders, — que Pedro não é tão pitoresco, quanto a senhorinha o imaginou. Não é uma criança gentil, um pobre orfãozinho de olhos suplicantes. E vive sem higiene alguma, não é verdade?

Não foi essa a única tentativa em prol da educação de Pedro. Alguns meses depois, — quando miss Calbraith já havia regressado para o seu país e escrevia diligentemente o seu famoso livro "Sozinha na África — Por uma dama inglesa, — ouviu Sanders falar de outra invasão educativa, da qual era também alvo o reizinho de Isisi. Dois membros de certa missão etíope entraram em Isisi pelo litoral. Tal missão etíope é composta de pretos cristãos, os quais, com muita razão, baseando a sua crença nas Sagradas-Escrituras, pregam o evangelho da Igualdade. Um negro é tão bom quanto um branco, em qualquer dia da semana, infinitamente melhor aos domingos, se por acaso é membro da Igreja Etíope reformada.

Chegaram a Isisi e ali granjearam imediatamente considerável popularidade, porque a forma de conversação, de que usavam, era muito do agrado de Sato-Koto, regente do reino, e dos conselheiros do rei.

Sanders não tardou a mandar chamar os missionários à sua presença. À primeira intimação, recusaram-se a obedecer; mas, recebida a segunda, acudiram prontamente ao chamado, porquanto a mensagem, que Sanders lhes enviou, era ao mesmo tempo peremptória e ominosa.

Vieram ao quartel-general os dois apóstolos. Eram negros americanos, cultos, de boa aparência e conversação agradável. Falavam inglês irrepreensivelmente e eram, em todos os sentidos, dois perfeitos cavalheiros.

— Não podemos compreender o motivo de vossa ordem, — disse um deles, em nome de ambos, a Sanders, — a qual prova um tanto de interferência em nossa liberdade individual...

— Compreender-me-eis melhor, — declarou-lhes Sanders, que conhecia os seus homens, — quando eu vos disser que não posso permitir que pregueis ao meu povo idéias sediciosas!

— Idéias sediciosas, mister Sanders? — regougou o negro, em tom ofendido. — Fazeis-nos uma acusação muito grave!.

Sanders tirou um papel da gaveta de sua secretária, pois a entrevista se realizava no seu escritório, — e explicou-lhes:

— Em tal data, dissestes isto; em tal outra data, dissestes aquilo...

E, enumerando-lhes os sermões, acusou-os formalmente de ultrapassar o credo da Igualdade e de penetrar na perigosa fronteira da agitação política.

— Mentiras! — bradou o mais velho dos dois, sem hesitação.

— Verdades ou mentiras, — decidiu categoricamente Sanders, — não ireis mais a Isisi!

— Então quereis que aqueles pobres pagãos continuem nas trevas em que vivem? — perguntou a Sanders, em tom de censura, o negro que primeiro havia falado. — Será porque brilha muito a luz que acendemos ali?

— Não! — retrucou-lhe imediatamente Sanders. — É porque ela é quente demais!

Assim, cometeu o comandante inglês o ultraje de afastar os etíopes daquele cenário dos seus fervorosos labores, e, em conseqüência disso, houve interpelações ao governo, em pleno parlamento britânico.

A educação de Pedro foi, então, empreendida pelo soba do povo de Akasava, — um velho amigo do reizinho, — como ele se dizia. O território de Akasava juntou-se ao território de Isisi, e, por isso, o chefe daquele entendeu de dar sugestões militares ao regente deste.

Chegou ali ao toque de tambores, levando presentes de peixe, bananas e sal.

— Sois um grande rei! — disse ele ao menino de olhos sonolentos, que se sentava desajeitadamente num trono, olhando-o com ávido interesse. — Quando andais, o mundo se abala ao som dos vossos passos; o rio caudaloso, que corre precipite para o mar imenso, divide-se em duas partes, à vossa palavra; as árvores da floresta agitam-se e as feras fogem, buscando esconderijos, quando Vossa Majestade passa!

— Oh! ko! ko! — riu desarticuladamente o reizinho, agradavelmente lisonjeado.

— Os brancos temem-vos! — continuou o chefe dos Akasavas. — Eles tremem e ocultam-se, mal soltais o vosso grito de guerra!

Sato-Koto, que estava em pé, ao lado do pequeno rei, e que era um homem prático, interrompeu os cumprimentos do recém-chegado, perguntando-lhe:

— Que é que quereis de nós, chefe?

Então o soba de Akasava lhe falou numa aldeia povoada por gente fraca e rica de tesouros da terra, assim como de cabras e de mulheres.

— E por que não ides vós mesmo tomar tudo isso? — inquiriu dele o regente.

— Porque sou um escravo, — replicou-lhe lamentosamente o outro, — um escravo de Sândi, que me espancaria—Ao passo que vós, senhor, pertenceis ao número dos grandes, sois o regente do rei, e, por causa de tal grandeza vossa Sândi não vos espancaria...

Seguiu-se a esta confabulação preliminar uma conferência, que durou dois dias.

— "Terei de entender-me com Pedro, — escrevia desesperadamente Sanders ao general encarregado da administração inglesa da África, — pois o miseravelzinho foi à guerra contra os infelizes Ochoris. Ficar-vos-ia eu muito agradecido, se me enviásseis 100 homens, uma ou duas metralhadoras e um feixe de canas-da-índia. Receio bastante ter que cuidar, eu mesmo, da educação de Pedro".

 

— Senhor, não vos falei a verdade? — dizia a Pedro o soba dos Akasavas, triunfante. — Sândi não nos fez coisa alguma! Devastamos a aldeia dos Ochoris, tomamos-lhes todas as suas riquezas, e o branco está na moita até agora, tudo por causa da vossa grandeza! Esperemos, agora, que a lua apareça novamente nos céus, pois eu vos mostrarei outra aldeia para assolarmos!

— Sois um homem extraordinário, — baliu o reizinho, — e algum dia haveis de construir a vossa cabana à sombra do meu palácio.

— Ah! senhor! Em tal dia, — disse o chefe Akasava, com magnífica resignação, — morrerei, certamente, de alegria!

 A lua cresceu e minguou; quando ela veio de novo, — um aro argentino de luz no céu do oriente, — reuniram-se na praça pública da sua aldeia os guerreiros de Isisi, armados de lanças e espadas de largas lâminas, com "ingola" no corpo e barro no cabelo.

Dançaram uma grande dança, à luz de enorme fogueira, enquanto todas as mulheres da tribo lhes faziam círculo, batendo palmas compassadamente.

Estavam eles em meio de tal folgança, quando ali chegou um mensageiro, vindo em canoa pelo rio, o qual imediatamente se prostrou diante do rei, dizendo-lhe:

— Senhor! Sândi está a um dia de viagem daqui! Traz ele consigo cinco vintenas de soldados e um canhão de cobre que faz: Ha-ha-ha-ha-ha!

Reinou logo um grave silêncio nos círculos da corte, o qual foi, todavia, quebrado pela voz trêmula do soba de Akasava:

— Não posso deixar de ir para casa, — disse ele ao rei.

— Estou adoentado, e, além disso, é esta a quadra do ano em que as minhas cabras costumam parir.

— Não tenha medo! — gritou-lhe Sato-Koto, brutalmente.

— A sombra do rei paira sobre você, e, como você foi o primeiro a dizer, o nosso rei é tão poderoso, que a terra se abala ao seu passo, as águas do Grande-Rio se separam, quando ele o quer atravessar, e todos os homens brancos o temem...

— É... tudo isso é verdade... — disse o chefe Akasava, com visível agitação. — Mas o certo é que eu preciso ir para casa, porque meu filho mais novo está atacado de febre e chama a todo instante por mim!

— Fique! — vociferou-lhe o regente.

E o soba compreendeu bem o que significava o tom de voz de Sato-Koto.

Sanders não veio no dia seguinte, nem no imediato. Marchava ele vagarosamente, pois atravessava um país onde havia então muitas dissensões, que necessitavam de apaziguamento. Quando chegou à aldeia do rei Pedro, tendo mandado adiante um mensageiro, para dar a notícia da sua vinda, encontrou ali toda a gente entregue a trabalhos e folguedos pacíficos.

As mulheres pilavam milho, os homens cachimbavam e as crianças brincavam, correndo alegremente pelas ruas.

Sanders parou nos limites da aldeia, numa pequena colina que lhe dominava a rua principal, e mandou chamar ó regente à sua presença.

— Então é preciso que eu mande chamar a você? — bradou Sanders ao regente. — E por que é que o rei se deixa ficar lá na aldeia, quando eu chego aqui? Vocês dois não têm vergonha na cara?

— Senhor, — ponderou-lhe Sato-Koto, —não é conveniente que um grande rei se humilhe assim...

Sanders não estava para graças. Tratava com um povo rebelde, e, por isso, os seus próprios sentimentos bons deviam ser recalcados em benefício da paz daquele território.

— Pelo que estou vendo, Pedro tem tido maus conselheiros, — proferiu ele, como se estivesse refletindo em voz alta, levando muita inquietação ao espírito de Sato-Koto. — Vá-se embora, já, para a aldeia, e diga ao rei que venha imediatamente ter comigo, pois que eu sou um amigo dele!

O regente partiu sem demora, mas voltou sozinho, novamente, e disse asperamente a Sanders:

— Senhor, ele não quer vir!

— Ah! É assim? Então, vou eu buscá-lo regougou Sanders. O reizinho, sentado à frente da sua cabana, limitou-se a cumprimentar, de olhos baixos, ao comandante inglês.

Enfileirados em semicírculo, os soldados de Sanders, atrás deste, continham à distância o povo da aldeia, que se juntara todo ali.

— Levante-se, rei Pedro! — ordenou Sanders ao soberanozinho.

O comandante inglês levava na destra uma cana-da-índia, de forma comum, e, enquanto falava, agitava-a no ar, produzindo um sussurro muito ligeiro.

— Para quê? interveio Sato-Koto, ao ouvir tal ordem.

— Você vai ver já para quê, — respondeu-lhe Sanders.

O regulo levantou-se, com evidente relutância, e Sanders agarrou-o logo pela sujeira do pescoço..

— Suish!

A vara sibilou no ar e alcançou-o o mais indesejavelmente que para ele era possível, tanto que ele pulou, soltando um grito de terror.

— Suish! suish! suish!

A vara continuou a sibilar, e o rei Pedro, dançando e gritando, agitando as mãos selvagens, a fim de defender-se dos açoites, chorou a mais não poder, implorando misericórdia, até que as faces se lhe incharam.

— Senhor! — estentorou Sato-Koto, com a cara decomposta pela raiva e enristando a lança de que estava armado.

Sanders, sem soltar o rei, deu aos seus soldados a seguinte ordem:

— Atirem neste homem, se ele ousar intervir!

O regente, vendo tantas carabinas apontadas contra si, recuou precipitadamente.

— Agora, — disse Sanders a Pedro, soltando-o das garras e lançando em terra a cana-da-índia, — vamos conversar um pouco!

— Uú-uú-oh-ko! — suspirou sua majestade.

— Volto para a floresta, — disse-lhe Sanders, — e, logo depois, um mensageiro meu virá ter aqui com você, a quem dará a notícia de que o comandante inglês está a caminho da aldeia. Entendeu?

— Yí-hi! — sibilou o reizinho.

— Você, então, sairá, daqui, com todos os seus conselheiros e cortesãos, e irá esperar-me, como de costume com todas as honras que me são devidas. Compreendeu?

— Si-im se-nhor! — gemeu o menino.

— Muito bem! — exclamou Sanders, satisfeito, e retirou-se, com toda a sua tropa.

Menos de uma hora mais tarde, veio à presença do soberanozinho do Isisi um mensageiro sisudo, ouvido o qual, a corte saiu imediatamente para a pequena colina, a fim de dar as boas-vindas ao homem branco.

Tal foi o começo da educação do rei Pedro, a quem se ensinou o dever da obediência.

Sanders, então, dirigiu-se para a casa que lhe era destinada oficialmente em Isisi, e para ali convocou toda a corte. Tendo-se entendido com alguns indivíduos dela, disse no segundo dia das suas audiências, ao regente:

— Sato-Koto, conhece você a aldeia de Ikan?

— Sim, senhor! Está daqui a dois dias de viagem, dentro da mata.

Sanders meneou afirmativamente a cabeça e declarou-lhe o seguinte:

— Você levará suas mulheres, seus filhos, seus servos e seus trastes para a aldeia de Ikan, e ficará lá, até que eu lhe dê licença para voltar. A minha audiência com você está terminada.

Veio, em seguida, à presença de Sanders o soba de Akasava, o qual, muito envergonhado e cabisbaixo, foi logo declarando ao comandante inglês:

— Senhor, se algum homem vos disser que eu procedi mal, podeis estar certo de que mente!

— Nesse caso, — berrou-lhe Sanders, — eu sou um mentiroso, porque afirmo que você é um perverso, cheio de mil astúcias!

— Se vos fosse possível, — suplicou humildemente o chefe negro, — ordenar que eu vá para a minha aldeia, como procedestes com Sato-Koto, eu iria de bom grado, uma vez que vós, que sois meu pai, não estais contente comigo.

— Melhor será que eu também ordene, — disse-lhe Sanders, — tome você vinte açoites de vara, para bem de sua alma! Além disso, faço lembrar a você que abaixo daqui, perto de Tembeli, no Grande-Rio, há uma aldeia, onde os homens trabalham acorrentados, porque foram infiéis ao meu governo e praticaram abominações.

E, sem mais aquela, o chefe do povo de Akasava teve que partir para o ponto designado, a fim de cumprir a pena.

Havia ainda outros negócios, pendentes de deliberação, mas eram menos importantes que os acima assinalados. Quando ficaram todos eles solucionados, com plena satisfação de Sanders, embora a contragosto da gente da aldeia de Isisi, volveu o comandante a sua atenção para o melhor meio de educar o rei.

— Pedro, — declarou ele ao soberano negro, — amanhã, quando o sol nascer, volto para d meu quartel, deixando você aqui, sem conselheiros.

— E como é, senhor, que posso governar sem conselheiros, pois que sou ainda um meninozinho? — perguntou ele a Sanders, revelando no tom de voz que ainda estava abatido pelo castigo.

— Dizendo a si mesmo, quando um homem vier a você pedir justiça: — "Se eu fosse este homem, como é que desejaria a justiça do rei?"

O regulo não se sentia bem.

— Sou ainda muito jovem, — repetiu ele, — e hoje mesmo virão aqui muitos homens de aldeias distantes, buscando desagravo contra os seus inimigos.

— Tanto melhor! — exclamou Sanders. — Sentar-me-ei hoje à direita do rei e espero aprender muito da sua sabedoria.

O menino, embaraçado e vacilante, nada mais teve que dizer, limitando-se a olhar de esguelha para Sanders.

Atrás da aldeia de Isisi, há uma pequena colina. Vai-se até lá por um caminho muito batido e no topo dela ergue-se uma cabana coberta de colmo, sem paredes laterais. Do alto daquela pequena colina, descortina-se o largo rio, com os seus baixios arenosos, onde os crocodilos dormem de boca aberta; vêem-se dali, no solo que se vai elevando para Akasava, lombadas que surgem, como que umas por cima das outras, cobertas de um aranhol de verde vivo

Naquele galpão rústico é que o rei se assenta para julgar, chamando com a cabeça a um por um dos litigantes. Sato-Koto, na sua qualidade de regente, era quem costumava falar pelo rei, distribuindo justiça.

Mas, naquele dia, Sato-Koto estava em preparos de partida para a aldeia de Ikan, e quem se sentou à direita do rei foi Sanders.

Quando a sessão de julgamento começou, já era considerável ali o número de litigantes.

Havia certo sujeito, que tinha comprado uma esposa, pela qual dera nada menos que mil canas e duas sacas de sal. Depois de três meses de coabitação, ela foi-se embora.

— Ela foi-se embora, — explicou filosòficamente ò homem ao rei, — porque tinha um amante. Em tal caso, Poderoso Sol de Sabedoria, reclamo a restituição de minhas canas e de meu sal.

— Que diz você a isto? — perguntou Sanders a Pedro.

— Não será melhor ouvirmos o pai da mulher? — interrogou hesitantemente o reizinho ao comandante inglês.

Sanders meneou a cabeça, aprovativamente:

— Aí está uma providência muito acertada!

E chamou o tal pai, que era um velhote agitado e impaciente.

Ó rei, — foi ele dizendo logo, apressadamente, a Pedro, — é verdade que vendi minha filha a este homem. Mas de que modo poderia eu conhecer sua intenção futura? Cumpri integralmente o contrato, desde que ela foi para a companhia do esposo. Como é que poderá predominar um pai, quando um marido falha?

Sanders olhou novamente para o rei, e o menino tomou um largo fôlego.

— Parece-me, M'Bleni, — falou ele ao velhote, — que se a mulher deste homem, sua filha, viveu muitos anos na sua cabana, e você não lhe conhece a moral, ou você é um grande parvo ou ela é uma grande velhaca. Estou certo, portanto, de que você vendeu sua filha, conhecendo-lhe bem as faltas. Em todo caso, o marido também não devia ter comprado a rapariga sem informações seguras de estranhos. Você, por conseguinte, levará consigo sua filha, devolvendo ao marido enganado 500 canas e uma saca de sal; e, se sua filha casar novamente, você terá que entregar a este homem metade do dote que ela receber.

Esta sentença, proferiu-a ele muito devagar, hesitando, ansioso, olhando de relance, e de quando em quando, para o homem branco como que a aliciar-lhe a aprovação.

Saiu-se você muito bem! — disse-lhe Sanders, e chamou imediatamente a um novo litigante.

— Senhor rei, — disse o outro querelante, — peço-vos justiça contra um homem mau, que rogou certa praga sobre mim e a minha família, do que resultou adoecermos todos nós.

Ai estava uma causa bastante árdua para o pequeno juiz, a qual se embrenhou em silêncio no mérito dela, sem que Sanders lhe oferecesse o menor auxílio.

— Que espécie de praga rogou ele em você e em sua família? — inquiriu finalmente do queixoso o soberanozinho.

— Foi a praga da morte, — respondeu o outro, numa voz tranqüila.

— Então, você deve também rogar sobre ele e a família dele uma praga de morte, — decidiu o rei, — pois assim se verá qual das duas tem mais poder.

Sanders escondeu o rosto atrás das mãos em concha, para rir à vontade, e o reizinho, vendo-lhe o gesto, riu também.

Dali por diante, o progresso de Pedro foi rápido. Ao quartel-general, de tempos em tempos, chegavam notícias de um pequeno rei da África central, o qual era um novo- Salomão em discernimento.

Tão sábio era ele (quem é que conhecia as fórmulas que aplicou a cada caso?), tão bondoso, tão pacífico, que o soba de Akasava, de quem periodicamente recebia o tributo, aproveitou-se-lhe das tendências benévolas e não lhe mandou mais nada dos impostos, nem milho, nem peixe, nem cabras. O referido cacique assim começou a proceder, depois de uma viagem à longínqua aldeia de Ikan, onde conferenciou com o tio do rei Pedro, Sato-Koto, tendo ajustado ambos agirem, dali em diante, de comum acordo. Como as colheitas de Isisi tinham sido muito boas, o rei Pedro lhes relevou a primeira falta; mas o segundo tributo ficou também em débito, pois nem Akasava nem Ikan o pagaram, e o povo de Isisi, irritado por semelhante insolência, entrou a murmurar acerbamente. O rei Pedro recolheu-se à solidão da sua cabana, a fim de pensar sobre o melhor modo de proceder, com justiça e eficácia, no tocante aos seus súditos de Akasava e de Ikan.

 

— "Estou realmente contristado por ter que novamente incomodar-vos, — escrevia Sanders ao general encarregado da administração inglesa da África central, — pois não posso deixar de pedir-vos emprestados os vossos Houssas, dos quais preciso para uma séria diligência no país de Isisi. Houve lá uma questão de pagamento de impostos. Pedro desceu a Ikan e trucidou o tio; em seguida, dirigiu-se a Akasava e deu naquele povo a maior pancadaria que o mesmo tomou, desde que existe até agora. Aprovo inteiramente tudo que Pedro acaba de fazer, porque sinto que ele é apenas movido pelo mais vivo senso de justiça e pelo desejo de fazer as coisas direitas e na devida oportunidade. Já era tempo de Sato-Koto ser morto, embora tenha eu que repreender a Pedro, para salvar as aparências. O soba de Akasava meteu-se no mato, onde anda oculto até hoje."

Pedro, depois da sua curta, mas sanguinolenta excursão, voltou para a aldeia de Isisi, deixando atrás de si dois territórios que melhoraram consideravelmente, em conseqüência da sua visita, embora ficassem algum tanto magoados.

O jovem rei reuniu logo todas as notabilidades da sua corte, — anciãos, cabos de guerra e médicos-feiticeiros.

— De acordo com as leis dos homens brancos, — disse ele, — errei contra Sândi, porque ele me proibiu de guerrear, e eu, apesar disso, liquidei meu tio que era um cão, e obriguei o soba de Akasava a refugiar-se na floresta. Mas Sândi disse-me também que eu devo fazer tudo quanto for justo. Ora, foi isso o que eu fiz, de conformidade com as minhas luzes, porque exterminei um homem, que havia exposto a opróbrio o meu povo. Parece-me, agora, que só me resta uma coisa a fazer: é ir ter com Sândi, dizer-lhe a verdade e pedir-lhe que julgue o meu procedimento.

— Senhor rei, — ponderou-lhe o mais sisudo dos seus anciãos, — que será de nós, se Sândi vos puser em cativeiro?

— Nada tenho que ver com o dia de amanha, — declarou terminantemente o rei.

E deu ordens para que se aprestasse tudo quanto fosse necessário à sua viagem.

No meio do caminho para o quartel-general, encontraram-se os dois: o rei Pedro, descendo, e Sanders, subindo. E foi ali que ocorreu o grave incidente.

Antes do pôr do sol, nenhuma palavra trocaram sobre as faltas ou acertos de Pedro. Quando, porém, se levantou para os ares o fumo azul das fogueiras dos Houssas e dos guerreiros de Isisi, e o pequeno acampamento, naquela clareira de mato, era todo uma tagarelice incessante, Sanders tomou o pequeno rei pelo braço e conduziu-o pelo trilho que levava áo interior da floresta.

Pedro contou-lhe então toda a sua história, que o comandante inglês ouviu pacientemente.

— E que fim levou o soba de Akasava? — perguntou ele a Pedro?

— Senhor, — respondeu-lhe o rei, — ele escapuliu para a selva, amaldiçoando-me, e em sua companhia eu sei que foram muitos homens maus.

Sanders meneou a cabeça, com inquietação,

Falaram ainda de muitas outras coisas, até que o sol espalhou longas sombras. Então, retrocederam. Estavam à distância de meia milha do acampamento. O fraco ruído do riso dos homens e o cheiro acre das fogueiras já chegavam até eles, quando o soba de Akasava saiu de detrás de uma árvore e postou-se-lhes em frente, no meio do trilho. Acompanhavam-no oito homens robustos e bem armados.

— Senhor rei, — disse a Pedro o chefe negro, — estou aqui à vossa espera!

O soberano de Isisi não lhe deu trela, nem fez movimento algum. Mas Sanders empunhou imediatamente o revólver.

Sua mão já apertava a arma engatilhada, quando recebeu uma pancada na cabeça e caiu de borco ali no chão.

— Agora, mataremos tanto o rei de Isisi, quanto o homem branco!

A voz erário cacique de Akasava; mas Sanders não pôde tomar interesse algum por semelhantes palavras, porque, além de uma dor confusa, parecia zumbir-lhe na cabeça uma colméia de abelhas selvagens. Sentia-se mal.

— Se me matarem, — bradou-lhes o rei, — pouco adiantarão vocês com isso, porque não faltarão homens que ocupem o meu lugar. Mas, se vocês matarem a Sândi, matarão o pai do povo, e ninguém o poderá substituir.

— Ele vos açoitou, reizinho! — obtemperou-lhe o soba de Akasava, em tom de mofa. E, depois de um curto intervalo, continuou: — Mandarei jogá-lo no rio, e assim não se encontrará nenhum vestígio dele, e não haverá ninguém que nos possa atribuir a sua morte.

— Mas que é que faremos do rei? — perguntou outro. Nisto, ouviram-se estalidos de galhos e vozes de homens, que se aproximavam dali.

— São os soldados, que estão à procura dos dois, — cochichou uma voz. — Rei, se vós nos denunciardes, eu vos matarei!

— Pois mate! — disse-lhe Pedro, com voz firme, e começou a gritar pelos seus: — M'Sabo! Beteli! Venham! Sândi está aqui!

E foi tudo quanto Sanders pôde ouvir.

 

Dois dias mais tarde, Sanders sentou-se na cama e pediu informações. Quando ele acordou, estava ali a seu lado um jovem médico militar, que providencialmente havia chegado, havia pouco, do quartel-general.

— Quer o sr. saber que fim teve o rei? — respondeu-lhe o médico, como que hesitando. — Pois vou contar-lhe tudo: deram-lhe cabo do canastro. Antes disso, porém, ele salvou í vida do senhor. Presumo que o sr. sabe disso, não?

— Sim, — disse Sanders, sem revelar emoção.

— Um mendigozinho altivo, — sugeriu o doutor.

— Justamente! — concordou Sanders. E imediatamente: — E o soba de Akasava, conseguiram agarrá-lo?

— Sim, pois ele estava com tanta gana de dar cabo do senhor, que retardou a fuga. O pequeno rei lançou-se sobre o corpo do senhor e defendeu-lhe assim a vida.

— É bastante!

Nos bons tempos, a voz de Sanders era áspera e as suas maneiras eram arrebatadas. Naquele momento, porém, a sua rudeza era brutal. — Agora doutor, saia da cabana, pois eu quero dormir!

Mal o médico se retirou, mal lhe ouviu o barulho dos passos fora da porta da cabana, Sanders voltou o rosto para a parede e chorou copiosamente.

 


Os guardas da pedra

HÁ UM POVO QUE VIVE EM OCHORI, na selva africana, às margens do rio Ikeli, e é conhecido, na língua indígena, pela denominação de "Os Guardas da Pedra".

Consoante antiga lenda, possuía ele, desde muitos anos, cala-cala, uma pedra vinda de fora, achatada, "com sinais insculpidos pelos demônios" (na frase de um autorizado historiador local) a qual era grandemente estimada e adorada ali, em parte por seus poderes mágicos e em parte por causa dos dois fantasmas que tomavam conta dela.

Era um fetiche de extraordinário valor para o povo pacífico que habitava aquela ínvia selva. Mas os Akasavas, que não eram pacíficos nem reverentes e, além disso, sofriam carestia de deuses, caíram sobre os Ochoris, numa rubra manhã, e só se retiraram da aldeia subjugada, levando a pedra miraculosa, assim como outros bens móveis. Custou-lhes não pequeno esforço o apoderarem-se da pedra, porque estava ela embutida numa laje cinzenta de sólida rocha, de sorte que muitas pontas metálicas de lanças foram quebradas, antes que o fetiche pudesse ser arrancado do respectivo nicho. Mas, após muitos e mui penosos trabalhos, foi arrebatada, e, por diversos anos, constituiu-se a glória dos Akasavas, os quais tiraram muitos benefícios de tão sagrada possessão. Mas, certo dia, a pedra desapareceu de repente da aldeia dos Akasavas, e, com ela, toda a próspera ventura dos seus donos. Porque o sumiço da pedra coincidiu com a chegada, ali, das autoridades britânicas, e isto era uma coisa ruim para os Akasavas.

Entrou ali, naquelas priscas eras (1895?), um indivíduo ridículo, vestido de branco e acompanhado por seis soldados. Trazia uma bela mensagem de paz e fraternidade, falava de um novo soberano e de uma nova lei. Os Akasavas escutaram-no, atônitos de assombro. Quando, porém, voltaram a si, cortaram-me a cabeça, o mesmo fazendo com os homens da escolta. Parecia-lhes que era a única coisa que podiam fazer, naquela conjuntura.

Então, certa manhã, o povo de Akasava acordou, para achar a sua aldeia repleta de gente branca, estrangeira, que subira o rio rapidamente, em barcos a vapor. Era muito grande o número dos invasores, e, por isso, o povo indígena se sentou quieto, um pouco assustado e muito curioso, enquanto dois soldados pretos, às ordens dos brancos, amarravam o chefe dos Akasavas de pés e mãos, a fim de pendurá-lo de uma árvore, onde ele não tardou a morrer.

O caiporismo daquele povo não terminou aí. Sobreveio-lhe um ano pobre, em que a raiz da mandioca estava ruim e cheia de água mortífera (*).

(*) Contém a mandioca uma formidável quantidade de ácido hidrônico (ácido prússico). — (Nota do autor).

 

Em tal ocasião, não só lhes morreram muitas cabras, como também suas exíguas colheitas foram estragadas por um inesperado furacão. Para eles, entretanto, havia sempre um remédio à mão, a fim de se ressarcirem de tais prejuízos. E, quando a gente não consegue, por bem, o que se pode, vai-se e toma-se. Assim, imitando inúmeros precedentes, os Akasavas fizeram uma visita aos Ochoris, apoderando-se de muitos grãos e deixando atrás grande quantidade de homens mortos e de vivos que suplicavam a morte. Mas os brancos não tardaram a vir de novo à aldeia de Akasava, trazendo, em seus ligeiros barcos, a vapor, pequenos canhões de bronze, bem como grossas cordas, que amarraram indígenas à mesma árvore, para o mesmo fim inevitável.

— Parece, — disse o novo chefe dos Akasavas (o qual foi enforcado mais tarde, por causa da morte do rei de Isisi), — que a lei dos homens brancos é feita para permitir que os fracos triunfem à custa dos fortes. Isto, à primeira vista, é insensato, mas deve lisonjeá-los.

O primeiro ato do novo soba foi cortar a árvore-forca, ato sem dúvida muito notável e significativo* Consagrou-se, em seguida, ao afã de descobrir a causa de todas as calamidades que estavam recaindo sobre Akasava. Ora, tal causa não demandou longo exame. A pedra miraculosa tinha sido roubada dali, como todo o povo sabia, e o remédio único, portanto, era descobrir-se o ladrão. E de quem haviam, desde logo de suspeitar, senão dos infelizes Ochoris?

 — Se os atacarmos, — disse o caudilho dos Akasavas, com muita ponderação, — de certo nos será preciso matar muito poucos, porque talvez nos baste expô-los ao fogo, para que logo nos contem onde foi que ocultaram a pedra-ídolo. E, assim, é de crer que o Grande-Ser nos perdoe o que lhes fizermos.

— No tempo longínquo da minha mocidade, — observou um conselheiro muito idoso, — quando homens perversos não nos queriam contar onde haviam enterrado coisas roubadas, punhamos-lhes cinza quente nas mãos, depois de os termos amarrado sòlidamente.

— Aí está um bom processo! — exclamou outro macróbio, abanando a cabeça, em sinal de aprovação. Mas, para fazer qualquer ladrão indicar onde está o que furtou, também se pode estendê-lo, amarrado, em cima de um formigueiro de saúvas.

— Penso, todavia, que nada nos adiantará acometer os Ochoris, — ponderou ainda o soba, — e isso por diversas razões, a principal das quais é que, se a pedra estiver em poder deles, não conseguiremos subjugá-los, visto contarem com os dois espíritos que tomam conta dela... Apesar de que, — acrescentou, com certos visos de esperança, — quando a pedra estava conosco, parece que eles não a souberam defender como lhes cumpria.

A incursão armada, que se seguiu a este conciliábulo, e a inútil procura da pedra são contadas resumidamente pelos relatórios oficiais da época. Foi realmente infrutífera a pesquisa do precioso fetiche, e a gente de Akasava teve que contentar-se com os despojos de que rapidamente se assenhoreou.

De como mister Niceman, o então comandante, e depois o próprio Sanders se meteram em tais alhadas, — já fiz clara referência, em linhas atrás. E tudo isso ocorreu há muito tempo, — cala-cala, como dizem os indígenas, — tendo acontecido, posteriormente, muitas outras coisas, que tiraram da mente do povo de Akasava toda e qualquer preocupação a respeito da pedra divina.

Transcorrido algum tempo, o soba dos Akasavas foi morto, por motivo de várias faltas que havia cometido, e a paz desceu de novo às terras que margeiam o rio Togo.

 

Sanders teve duas surpresas em sua vida. A primeira foi em Ikoli, que, na língua indígena, quer dizer "rio pequeno". Pois não é, absolutamente, um rio pequeno, e sim muito pelo contrário uma caudal larga, violenta, sombria, que gira, redemoinha e espuma, fazendo vibrar as sinuosidades das terras, banhadas pelo seu tortuoso curso em direção ao mar. Sanders sentou-se numa cadeira de bordo colocada sob o toldo do seu pequeno barco a vapor, e observou o rio á precipitar-se para trás. Achava-se ele satisfeito, porque todo o território, confiado ao seu comando, estava tranqüilo e as colheitas eram boas. Além disso, não tinha ele notícia de crime algum.

Só o que havia era doença-do-sono em Botafi e beribéri em Akasava; e, no país de Isisi, alguém tinha descoberto um novo deus, constando, conforme as narrações que vinham rio abaixo, que o novo fetiche era ali adorado dia e noite.

A Sanders não contrariava nunca a notícia do descobrimento de novos deuses, porque ele acreditava que os deuses de toda e qualquer espécie fossem sempre benfazejos.

Milini, o sucessor de Pedro em Isisi, tinha-lhe mandado um recado, que assim lhe interpretou o mensageiro:

— "Senhor, este novo deus habita uma caixa, a qual é conduzida aos ombros dos sacerdotes. Tem ela o mesmo comprimento e a mesma largura, com quatro encaixes, aos quais se adaptam as estacas. O deus, que mora dentro dela, é muito poderoso e sobranceiro".

— Oh-ko! — respondeu Sanders, com polido interesse. — Diga ao rei, seu senhor, que, enquanto este novo deus obedecer à lei, poderá ficar no país de Isisi, sem pagar imposto. Se ele, porém, aconselhar os moços a fazerem guerra, eu irei lá com um deus muito mais forte e destruirei o de vocês. Está terminada a audiência.

Com as costas na cadeira e os pés estirados sobre a amurada do barco, pôs-se Sanders a pensar, indolentemente, no novo deus de Isisi. Qual a data do aparecimento do último? No país de N'Gombi, anos atrás, havia um deus mau, que vivia numa cabana, da qual homem algum ousava aproximar-se; depois, surgiu outro, vindo entre trovões, e que exigia sacrifícios, e, o que era pior, sacrifícios humanos. Esse deus excepcionalmente maléfico, custara ao governo britânico 600.000 libras esterlinas, porque correu sangue em combates na selva e a vida do distrito ficou bastante transtornada. Mas, em sua maior parte, os deuses ali eram bons; não causavam prejuízo a ninguém, porquanto o caso comum dos novos deuses era fazerem sua aparição depois das colheitas e antes de principiar a estação chuvosa.

Assim pensava Sanders, à sombra de um toldo listrado e à proa do pequeno Zaire.

No dia seguinte, antes do nascer do sol, fez ele o barco abicar para cima, preocupado com o bem-estar do tímido povo de Ochoris, que morava muito perto do de Akasava. Aquela gente precisava de consolo e, além disso, necessitava de alimentos. Muito vagarosa era a marcha do pequeno barco a vapor, pois que estava navegando contra a corrente impetuosa. Depois de dois dias de viagem, Sanders chegou a Lukati, onde o seu imediato, o jovem Carter, era o comandante do posto.

Desceu ele à praia, em pijama, com um grande capacete de cortiça inclinado para trás da cabeça, e saudou ruidosamente ao seu chefe.

— Vai tudo bem aqui? — perguntou-lhe Sanders.

E Carter deu-lhe imediatamente todas as notícias. Havia um litígio sobre terras em Ebidi; Otako, de Bofabi, tinha mor-rido de doença-do-sono; dois leopardos andavam causando prejuízos nas aldeias distantes; e...

— Que é que sabe você a respeito do novo deus dos Isisis? — interrompeu-o Sanders, que lhe contou então o que lhe havia informado o rei Milini.

— O tal deus, — respondeu-lhe Carter, — é coisa antiga nestes rincões. O povo daqui me contou que a caixa-ídolo não contém senão a velha pedra dos Ochoris.

— Oh! — exclamou Sanders, com súbito interesse. Almoçou com o seu imediato, inspecionou a guarnição de

Lukati, composta de trinta homens, e percorreu toda a vasta horta de Carter, admirando-lhe a plantação de batatas e de tomates.

Voltou em seguida para bordo, onde escreveu um curto despacho, com a letra mais miúda possível e no mais trivial pedaço de papel.

— No caso de... — murmurou Sanders consigo mesmo. E, de repente, gritou: — Abiboo! Traga-me o 14!

O servente não tardou a aparecer, com um pombo na mão.

— Agora, avezinha, — disse Sanders ao pombo, enquanto enrolava cuidadosamente o papel em redor da perna vermelha do pequeno mensageiro, atando-o com uma liga de borracha, — tens duzentas milhas a vencer, antes que nasça o sol amanhã! Mas... cuidado com os gaviões!

Ergueu então o pombo na destra, caminhou para a popa 'do barco e lançou-o aos ares.

A equipagem, composta de doze homens, estava, naquele momento, sentada em volta da panela, uma panela que ferve eternamente.

— Yoka! — chamou ele, acudindo-lhe de pronto à voz o maquinista, um negro seminu. — Navegue!! Tome lenha mais adiante. Toque para Isisi!

Não havia mais dúvida alguma de que o tal novo deus era extremamente poderoso. A três horas de distância da aldeia, o Zaire aproximou-se de uma canoa comprida, com quatro homens, os quais empunhavam os remos, cantando tristemente. Lembrou-se então Sanders de que havia passado por uma povoação, onde as mulheres, com o corpo adornado de folhas verdes, choravam à margem do rio.

Sanders fez o barco descer devagar, até atingir à canoa, em cujo fundo avistou estendido um homem morto.

— Para onde é que estão vocês levando este cadáver? — perguntou ele aos da canoa.

— Para Isisi, senhor! — foi a resposta.

— O fundo do rio e as ilhotas são lugares mais próprios para os mortos, — disse-lhes Sanders, subitamente. — É loucura levar os mortos para o meio dos vivos!

— Senhor! — explicou-lhe o homem que lhe falara antes, — em Isisi há um deus que ressuscita os mortos. Este homem (e apontava para o fundo da canoa) é meu irmão e morreu repentinamente, vítima de um leopardo. Morreu tão depressa, que não nos pôde contar onde é que tinha escondido as suas armas e o seu sal. Portanto, se o estamos levando para Isisi, é só a fim de que o novo deus lhe dê alguns instantes de vida, para ele não prejudicar aos seus parentes.

— Olhe ali no meio do rio! — disse-lhe Sanders tranqüilamente, apontando para uma ilha solitária, toda coberta de emaranhada vegetação verde. — Ali está o cemitério. Como é que você se chama?

—Senhor, meu nome é N'Kema, — respondeu o homem, de mau humor.

— Vá, então, N'Kema! — ordenou-lhe o comandante inglês.

E conservou o vaporzinho em movimento vagaroso, enquanto a canoa virava o beque para a ilha e ali desembarcava a sua fúnebre carga.

Só depois disso foi que mandou tocar a máquina com o vento em proa, navegando ao largo de um banco de areia, e retomou a rota para Isisi.

Estava verdadeiramente preocupado com todos aqueles sucessos.

A pedra era algo de excepcional em fetiches, e aquele caso devia ser resolvido com muita delicadeza. Que a pedra existia, era coisa que ele sabia desde muito tempo. Conheceu também inúmeras lendas a respeito dela, e um explorador europeu, munido de bons óculos, vira-a ainda recentemente. Tinha igualmente ouvido falar, com assombro, dos dois fantasmas "vestidos de bronze", — avejões belicosos, que faziam os homens pacíficos sair para o combate, todos exceto apenas os Ochoris, que nunca foram de índole marcial e aos quais número algum de espíritos podia incitar a atos de violência.

Tereis notado que Sanders tomava muito a sério tudo quanto concernia ao povo indígena, confiado ao seu comando, e Isso, — observo-o aqui, de passagem, — era o segredo do seu bom governo. Um homem que não pensasse assim, ter-se-ia apenas divertido com aqueles casos; Sanders, porém, não se divertia com os mesmos, porque tinha ali uma grande responsabilidade.

Chegou a Isisi à tarde, e percebeu, mesmo à distância, que algo de anormal ocorria então ali. A sua chegada não atraiu, como costumava, a multidão de mulheres e crianças, quando ele deu volta pelo meio do rio. Seguiu, pois, sem a habitual galeria feminina e infantil, o curso da água, em demanda do banco de areia.

Esperavam-no somente o rei e um punhado de macróbios. O rei estava evidentemente nervoso e desassossegado.

— Senhor, — foi ele dizendo logo a Sanders, sem mais aquela, — não sou mais rei nesta aldeia, por causa do novo deus. O meu povo abandonou-me. Agora, não sai mais de lá da encosta do morro, onde, de dia e de noite, está em adoração ao deus que mora na caixa!

Sanders mordeu os lábios, pensativamente, e não lhe disse coisa alguma.

— A noite passada, — continuou o rei, — os "Guardas-da-Pedra" apareceram aqui, caminhando à vontade por toda a aldeia...

E, ao referir isso, tremia, brotando-lhe o suor da testa abundantemente, pois um fantasma era coisa que mesmo de longe o terrificava.

— Essa visão de "Guardas-da-Pedra" não passa de loucura! — disse-lhe Sanders, calmamente. — Decerto, eles só foram vistos pelas mulheres e pelas crianças...

— Senhor, eu os vi, eu mesmo, com os próprios olhos que a terra há de comer! — murmurou o rei, tremulamente ainda.

E Sanders não pôde deixar de ficar abalado, porque o rei era um sujeito certo das faculdades mentais.

— É o diabo! — exclamou em inglês o comandante; mas, depois, perguntou ao rei, na língua nativa: — E como é que estavam trajados os tais espíritos que você diz ter visto?

— Senhor, — replicou o soberano, — eram de rosto branco, como vós. Traziam bronze em cima da cabeça e sobre o peito. As pernas deles estavam descobertas, mas em sua parte inferior havia também bronze.

— Já não é fácil a gente acreditar em qualquer espécie de espírito — regougou Sanders, irritadamente. — Agora, acreditar em fantasmas de bronze, é que por forma alguma fará o filho de meu pai!

Tudo isso disse ele, novamente, em inglês, como era hábito seu, quando falava consigo mesmo. O rei, que não o entendera, conservava-se em silêncio.

— E que mais sabe você a respeito deles? — inquiriu o comandante.

— Tinham espadas, — prosseguiu Milini, — largas e curtas, semelhantes às que são usadas pelos caçadores de elefantes do povo de N'Gombi. Além disso, traziam grandes escudos no braço esquerdo.

Sanders estava perplexo.

— E gritavam: "Guerra"! — acrescentou o rei. — Ora, isto é o que mais me está preocupando, porque os meus moços não fazem outra coisa senão dançar a dança da morte, pintar o corpo e falar vaidosamente em combates.

— Vá para a sua cabana, — ordenou-lhe Sanders. — Logo mais, irei ter com você.

O comandante inglês pensou e repensou naquele complicado caso, fumando cigarros ininterruptamente. Afinal, chamou por Abiboo, o seu sargento.

— Abiboo, — disse-lhe carinhosamente, — segundo creio, tenho sido para você um bom patrão.

— Assim é, senhor! — respondeu-lhe Abiboo, risonho.

— Agora, por isso, eu vou confiar a você uma importante missão, qual é a de descobrir os deuses em que acreditam todos os homens da equipagem deste barco. Se eu próprio os interrogar, mentir-me-ão por polidez, inventando ora este, ora aquele deus, pensando que assim me agradam.

Abiboo escolheu a hora da refeição, quando o sol já se havia posto, a terra ficara cinzenta e as árvores pareciam imóveis. Voltou com a informação, quando Sanders estava tomando a suâ segunda xícara de café, na solidão da sua pequena câmara de convés.

— Comandante, — relatou o sargento, — três homens não adoram deus nenhum; três outros têm uma casta especial de ídolos; dois são mais ou menos cristãos; e os quatro Houssas São da minha fé.

— E qual é a de você?

Abiboo, o rapaz de Kano, sorriu à simulação de inocência de Sanders, dizendo-lhe afinal:

— Senhor, eu sigo a lei do Profeta, acreditando somente em um deus, beneficente e misericordioso.

— Assim, está tudo bem! — exclamou Sanders. — Agora, diga aos homens que carreguem a lenha para dentro do barco e a Yoka que tenha a máquina pronta para a partida, quando nascer a lua.

Eram dez horas no seu relógio-pulseira, quando ele mandou aos seus quatro Houssas que se pusessem em forma, entregando a cada qual uma carabina e uma cartucheira. Logo após, desembarcou em companhia dos mesmos.

O rei estava sentado, pacientemente, à porta da sua cabana, onde Sanders o encontrou, dizendo-lhe:

— Você continuará sentado aqui, Milini, porque, assim, nenhuma culpa lhe advirá se acontecer qualquer coisa esta noite com o seu povo.

— Que é que poderá acontecer, senhor? — perguntou o rei, algo inquieto.

— Quem sabe lá? — retrucou-lhe Sanders, filosòficamente. Reinava nas ruas da aldeia uma escuridão de breu. Abiboo, porém, erguendo na destra uma lanterna, iluminava o caminho. Exceto uma cabana alugada, pela qual o grupo passou ocasionalmente, todas as demais choças estavam vazias, pois que no interior delas só se enxergava o brilho frouxo de achas, que queimavam lentamente. Em certo ponto, mais adiante, uma rapariga, que se dizia doente, chamou por eles, de passagem. Disse-lhes ela que estava próxima a dar à luz e que não havia ali por perto ninguém para ajudá-la no momento supremo da sua angústia.

— Deus a ajude, irmã! — disse-lhe Sanders, sempre reverente quanto ao mistério augusto do nascimento. — Enviarei mulheres que tomem conta de você. Qual é o seu nome?

— Chamo-me Ifabi e sou casada com Adako, — respondeu a voz queixosa. — Mas as mulheres não virão ajudar-me, senhor! À noite, os homens partem para a guerra e as mulheres esperam pela grande dança da morte.

— À noite?

— À noite, sim, senhor! Porque foi assim que mandaram os fantasmas de bronze.

Sanders deu um muxoxo, semelhante a um ruído do tique-taque, dizendo em seguida:

— Pois vamos ver isso!

E prosseguiu o seu caminho.

O pequeno bando não tardou a chegar aos limites da aldeia. Diante deles, esfumada num céu cor de bronze, avultava a massa escura de uma colinazinha, que rodearam. Aquela cor de bronze se tornou vermelha, rósea e voltou depois ao matiz primitivo, à medida que as chamas, que produziam tais gradações cromáticas, aumentavam ou diminuíam. Contornando a base do morro, deparou-se logo a Sanders uma vista completa da cena que se representava ali.

Entre a orla da floresta e o declive da colina, estendia-se uma larga faixa de terreno plano. À esquerda, corria o rio, e, à direita, sucediam-se pântanos e novamente a selva.

Bem no centro do terreno plano, cintilava uma enorme fogueira. Em frente desta, sustentada por suas quatro estacas e em cima de dois altos cavaletes, ostentava-se uma caixa quadrada.

E quanto povo ao redor dela!

Era um vasto círculo, de cócoras, imóvel e silencioso: — homens, mulheres, crianças, as menores das quais agarradas aos quadris maternos. Era uma sólida roda humana tendo a caixa-ídolo e a fogueira por centro.

Havia, entretanto, naquela enorme roda uma pequena solução de continuidade, através da qual podia um homem chegar até à fogueira e até à caixa: era uma pequena ala, ao longo da qual passava constantemente, indo e vindo, uma procissão de homens nus. Eram estes os que mantinham o lume sempre aceso, pois Sanders os viu conduzindo lenha para tal fim.

Chegando perto da multidão acocorada, dirigiu-se para aquela estreita passagem. Parou ali, olhando primeiramente para os seus Houssas, aos quais disse, no curioso árabe do povo de Kano:

— Está escrito que nós havemos de retirar daqui este falso deus, levando-o conosco à força. Agora, quanto àqueles de nós, que viverão ou morrerão nesta aventura, isso é com Alá que é quem sabe todas as coisas.

Arrojou-se, então, sem temor, pela ala adiante.

Sanders, antes de desembarcar, havia trocado as suas calças brancas por um uniforme azul-ferrête, de modo que escapou aos reparos da maioria da multidão, até aproximar-se da caixa-ídolo, com os seus quatro Houssas. O calor do fogo era ali espantoso, opressor. De mais perto, pôde ver que a veemência das labaredas havia arqueado as tábuas toscas da caixa, e, por uma das frinchas da mesma, pôde lobrigar, à luz da fogueira, um ângulo da pedra.

— Levantem a caixa depressa e corram com ela! — ordenou ele aos seus quatro soldados.

Os Houssas seguraram as estacas e levantaram-nas aos ombros. Até então, aquela grande assembléia permanecera em silencioso pasmo. Quando, porém, os soldados de Sanders se apoderaram do precioso fardo, partiu de cinco mil gargantas um grito de furor, e os homens saltaram para retomá-la.

Sanders, ereto em frente da fogueira, ergueu uma das mãos, ordenando silêncio, e o ímpeto iniciado cessou como por encanto, pois a curiosidade dominou o ressentimento da multidão.

— Povo de Isisi! — bradou-lhes Sanders. — Que nenhum homem se mova, até que a caixa-divindade tenha acabado de passar, porque a morte vem depressa para os que ousam atravessar-se no caminho dos deuses!

Tinha ele uma pistola automática em cada mão, e a divindade particular, em que estava pensando no momento, não era positivamente a da caixa.

O povo não sabia o que fazer, agitando-se, qual um mar encapelado.

Os Houssas, apressando-se o mais que podiam, levaram o seu precioso fardo pela ala adiante, e já estavam quase a transpô-la, quando uma velha avançou para Sanders e lhe segurou com força o braço, guinchando-lhe:

— Senhor! senhor! Que é que ides fazer com o nosso deus?

— Levá-lo para o lugar próprio! — respondeu-lhe o comandante. — E o governo escolherá as pessoas que o devem guardar.

— Dai-me, então, um sinal de que o nosso deus não nos abandonará — grasnou ela.

E toda aquela turba agitada, que estava ali perto, repetiu, aos gritos:

— Um sinal, senhor! um sinal!

— Eis o sinal, — disse-lhes Sanders, lembrando-se repentinamente da mulher que se queixara de estar sozinha, com dores de parto: — Por mercê do deus da caixa, nascerá esta noite a Ifabi, mulher de Adako, um menino.

Daí em diante, ouviu Sanders a sua declaração do favor divino repetida pelas inúmeras bocas daquela turba irrequieta; escutou tagarelices infindáveis; viu um grande grupo de mulheres voltando para a aldeia. Foi então que ele deu aos seus quatro Houssas a ordem de continuarem a marcha. Houve murmúrios, e um dos homens da aldeia chegou a começar o canto de guerra, em voz alta e clara, mas ninguém o acompanhou.

Outro, — ou talvez, o mesmo homem, — percutiu com a lança o seu escudo de junco, mas este gesto belicoso também não encontrou imitadores. Sanders e os seus Houssas chegaram, portanto, sem mais incidentes, à rua principal da aldeia.

Aglomeravam-se-lhes ao redor tantos homens e tantas mulheres, que era com dificuldade que transportavam, por entre aquela multidão, a caixa-ídolo. Já avistavam o rio, e a lua cheia, um globo pálido e tristonho, alçando-se por cima das árvores, prateava a água da caudal. Foi então que daquela enorme massa humana irrompeu uma celeuma de furor:

— Ele mentiu! ele mentiu! Ifabi, a mulher de Adako, teve uma menina!

Sanders voltou-se rapidamente, como um cão perseguido, a fim de enfrentar o novo perigo. Os lábios encresparam-se-lhe num rosnado, mostrando os dentes alvos e regulares.

— Alto lá! — gritou ele, falando muito rapidamente, aos que o ameaçavam. — O primeiro homem, que erguer a lança contra mim, morrerá imediatamente!

De novo pararam, irresolutos, os capitaneadores da turba, e Sanders, por cima dos ombros, deu uma ordem aos seus Houssas.

Mas a hesitação do povo indígena durou apenas um momento, porque, quando os soldados de Sanders agarraram outra vez as estacas da caixa-divindade, nova gritaria selvagem encheu os ares e os chefes do bando negro saltaram para a frente, a fim de tentarem retomar o seu fetiche.

Mas, dentre eles mesmos, uma voz sussurrou qualquer coisa, que foi logo repetida por toda a turba, e como por súbita magia, o tumulto cessou, precipitando-se a multidão para trás ou para os lados, caindo uns por cima dos outros, no frenético desejo de escapar.

Sanders, empunhando ainda na destra a pistola engatilhada, permanecia boquiaberto, sem compreender a causa daquela fuga.

Ficara ele sozinho ali, apenas com os seus quatro Houssas, e então viu...

Pelo meio da rua, vinham dois homens. Vestiam-se do mesmo modo: curtos saiotes vermelhos, que lhes deixavam os joelhos descobertos; enormes capacetes de bronze, que quase lhes escondiam o rosto; e couraças, também de bronze, que lhes cobriam o peito.

Sanders observava-os atentamente, e, quando se aproximaram bastante dele, murmurou:

— Ou estou delirando de febre ou enlouqueci!

Porque o que ele avistou ali — eram dois centuriões romanos com gládios pesados, que lhes pendiam da cintura. E, como o comandante inglês continuasse imóvel, os dois homens passaram por junto dele, tão ao alcance dos seus olhos, que estes, à luz do luar, puderam ler no relevo de um dos escudos dos centuriões as mal modeladas letras:

— "Augustus cae."

— Estou positivamente delirando de febre! — regougou Sanders, enfaticamente, e acompanhou o pequeno bando de Houssas que conduziam para o barco a caixa-ídolo.

 

Quando o Zaire alcançou a aldeia de Lukati, Sanders ainda nutria certas dúvidas quanto à sua higidez psíquica, porquanto, sendo normal a sua temperatura, nem a febre nem o sol podiam ser responsável por aquela visão singular, que ele tivera. Além disso, os seus quatro Houssas tinham visto também a mesma coisa.

Encontrou em Lukati os reforços, que pedira pelo pombo-correio, e que agora lhe eram desnecessários.

— Pode-se lá acreditar numa coisa destas? — perguntou ele a Carter, depois de contar-lhe toda a história. — Mas é melhor tirarmos a pedra da caixa. Talvez ela nos forneça alguma explicação. Centuriões, bah!

Exposta à luz do sol, viu-se que a pedra, achatada dos quatro lados, era de granito cinzento, como Sanders não se lembrava de ter encontrado nunca por aquelas bandas.

— Eis aqui as marcas dos demônios! — exclamou ele, virando a pedra por todos os lados. — É possível que... fiu-fiu!

Não era de estranhar que ele assobiasse, porque, insculpidos grosseiramente na pedra, havia grande número de caracteres romanos. Soprando o pó, que os recobria, começou Sanders a ler:

 

— Marius et Augustus

Cen .  .  .  .  Neronis

Imperat .   . in deorum

.  .  .  .   .   .   .   dulce

 

Naquela mesma noite, Sanders, polindo com grande esforço o seu enferrujado latim, e preenchendo ao mesmo tempo as lacunas da inscrição, fez a tradução seguinte:

— "Mário e Augusto, centuriões de Nero, César e imperador, dormem docemente no seio dos deuses. Pertencemos ao número daqueles que vieram ter às terras incultas, descobertas por Hanno, o cartaginês... Marcus Septimus voltou para o Egito, indo em sua companhia Decimus Superbus. Nós, porém, pela vontade de César e com o favor dos deuses, navegamos pelo mar tenebroso abaixo. Tendo naufragado aqui o nosso navio, não pudemos sair mais desta terra, onde vivemos adorados pelos selvagens, aos quais ensinamos a arte da guerra... Vós, os que aqui vierdes depois... levai a Roma saudações nossas a Cato Hippocritus, que mora junto da porta..."

Sanders sacudiu a cabeça, ao concluir a tradução, e disse aos seus botões que aquilo era, positivamente, "um caso divertido".


 

 Bosambo de Monróvia

POR MUITOS ANOS O POVO DE Ochori constituiu uma espécie de relevo na tragédia da colonização inglesa da África, o qual teria sido cômico, se não o envolvessem tantas tristezas. Agora, entretanto, pode bem acontecer que não riamos mais dos Ochoris. Nem mais, nas horas curtas da noite, — quando esmorece a conversa no pequeno círculo, formado ao redor da fogueira, num acampamento de pescadores, — os sonolentos serão excitados à alegria pelas histórias da mansidão dos Ochoris. Tudo isso aconteceu por culpa do governo liberiano, embora, até ao presente, o governo liberiano não seja sabedor do fato.

Com todo o respeito que devo à República da Libéria, digo eu que os monrovianos são, por natureza, mentirosos e ladrões.

Certa ocasião, para que aumentasse ainda mais o brilho daquele Estado, adquiriu o mesmo um navio de guerra, embora tenha eu uma vaga lembrança de que foi presenteado à República da Libéria por um desinteressado armador norte-americano. O governo, sem perda de tempo, nomeou para a belonave 3 almirantes, 6 vice-almirantes, 9 contra-almirantes e tantos outros oficiais da escala hierárquica, quantos podia conter o barco. Recebeu a numerosa oficialidade uniformes suntuosos,  os quais, entretanto, não ficavam nunca bem assentados no corpo de nenhum dos guapos marujos. O governo teria também, necessariamente, contratado para o mesmo uma tripulação: mas o navio não era bastante grande para que coubesse nele um número maior de pessoas do que o dos seus oficiais reunidos.

A pequena nau de guerra da república negra saiu ao mar uma única vez. Os seus almirantes, vice-almirantes e contra-almirantes, cada qual por seu turno, fizeram-na cortar as águas do Atlântico, bem perto da costa africana, desempenhando cada qual o posto de comando por certo número de horas. Verificaram todos que era muito agradável aquela sensação nova de dirigir um barco.

Regressando a belonave ao ponto de partida, o mais velho dos almirantes disse o seguinte:

— Agora, eu quero dirigir sozinho o navio! E tomou imediatamente a roda do leme. Mas o barco, apenas abicou a proa para a saída, bateu logo num rochedo, junto à entrada do porto de Monróvia, e soçobrou. Os oficiais ; salvaram-se com extrema facilidade, porque todo monroviano nada qual um peixe. Somente os seus belos uniformes é que ficaram estragados pela água do mar. À sugestão de que deviam ser empreendidas, sem detença, operações destinadas a fazer a nau de guerra flutuar de novo, — o governo da república negra declarou, muito prudentemente, que não, que pensava não convir...

— Sabemos onde ela está, — ponderou-lhes o presidente, que, sentado a um dos ângulos da sua secretária, no palácio do governo, comia sardinhas, servindo-se dos dedos como garfos — e isso é quanto basta. Se em qualquer ocasião viermos a precisar dela, consolar-nos-emos com o fato de achar-se ela tão perto de nós!

Teria aí ficado encerrado o incidente, se o Almirantado Britânico, logo após, não houvesse decidido que aquele barco ali naufragado era um perigo para as manobras da esquadra inglesa, reclamando, por isso, do governo liberiano a imediata colocação de uma bóia no lugar onde soçobrara o seu único navio de guerra.

Mas o governo liberiano deixou, a princípio, de atender ao governo britânico, alegando que para o dito serviço não possuía verba alguma orçamentária. Feita, porém, certa pressão sobre a república negra (eu suspeito bastante do comandante do H. M. S. Dwarf que era homem de linguagem e gestos rudes), uma bóia de sino não tardou a ser ancorada sobre o casco da belonave submergida.

Que som agudo e que bonita algazarra não fazia aquele sino! O povo de Monróvia estava encantado, sentindo-se bem recompensado do dinheiro que fora forçado a despender com a aquisição daquela bóia.

Monróvia, porém, não foi povoada somente pelos escravos americanos, que, libertados por instituições filantrópicas, tinham sido mandados para aquele ponto da costa africana em 1821. Havia ali também os aborígenes que se descreviam altivamente como os "verdadeiros monrovianos", e os principais deles são os Kroomen, que não pagam impostos, pouco se importando com o governo, e, por intervalos, beliscam o nariz oficial da República.

Dois dias depois de colocado o sino no lugar, acordou Monróvia espantada ante o completo silêncio que reinava em sua baía, não obstante a grande marulhada, que havia então. O sino não tocava. Por isso, dois ex-almirantes, que já estavam a vender peixe ali na praia, pediram emprestado o bote de um amigo, e, remando para a entrada do porto, foram investigar a causa de tal silêncio. A explicação era simples: — o sino tinha sido roubado!

— Agora, — gritou o presidente da República da Libéria, quase a arrancar desesperadamente o topete da carapinha, — que Belzebu, pai e autor de tudo quanto é pecado, desça sobre estes Kroomen ladrões!

Foi adquirido e posto no lugar outro sino, e na mesma noite foi roubado. Um terceiro sino foi ligado à bóia, tendo-se incumbido uma pequena frota, dirigida pelos ex-almirantes, de montar-lhe guarda ali. Durante toda a noite, os barcos da esquadrilha permaneceram alerta, subindo e descendo com a marulhada. Aos ouvidos da tripulação dos mesmos era uma verdadeira música aquele incessante e monótono "clan-jangle-clong". Toda a noite se ouviu essa música; mas, pela madrugada, na hora do lusco-fusco que precede ao nascer do sol, pareceu que a voz do sino, tangesse este ainda muito embora, se ia tornando mais fraca, mais fraca...

— Camaradas, — bradou um dos ex-almirantes, — estamos a afastar-nos do sino!

Mas a explicação era outra: — o sino é que se havia afastado deles, porquanto, cansados de meias medidas, os Kroomen tinham chegado ali e tinham levado tudo consigo, bóia e sino, de sorte que, até hoje, não há mais sinal algum que indique onde foi que um navio de guerra, pertencente à República da Libéria, naufragou no porto de Monróvia.

A hábil criatura, que planejou e executou tal furto, foi um certo Bosambo, que tinha três esposas. Uma delas, conguesa de nascimento e traidora ao marido, deu à polícia denúncia do fato. Com dificuldade não pequena Bosambo foi preso; julgado depois pela Corte Suprema, condenou-o esta a dez anos de servidão penal pelo crime de "roubo e alta traição".

Levaram para a prisão a Bosambo, o qual no mesmo dia teve com o carcereiro negro a seguinte entrevista:

— Meu amigo, — disse ele, — tenho um grande ju-ju lá na floresta. Se você não me soltar esta noite mesmo, você e sua mulher morrerão em grande tormento.

— De seu ju-ju não tenho medo algum, — disse-lhe o carcereiro filosoficamente. — Mas recebo dois dólares por semana, para guardar os presos; e, se eu os deixar fugir, perderei o meu bom emprego.

— Conheço certo lugar, não muito distante daqui, onde existe escondida muita prata, — disse-lhe Bosambo sem perda de tempo. — Iremos, você e eu, a tal lugar, e ficaremos ricos.

— Se você sabia onde estava oculta tanta prata, por que é que roubava sinos, que são de bronze e de muito menor valor? — perguntou-lhe o atilado guardião.

— Vejo que você tem um coração de pedra, — atirou-lhe Bosambo às bochechas.

E, no dia seguinte, marchou, com outros presidiários, para a Colônia-da-Floresta, a fim de cortar árvores destinadas às obras públicas do Estado.

Quatro meses depois, Sanders, o comandante chefe das forças britânicas nos territórios de Isisi, Ikeli e Akasava, recebia, inter alia, a seguinte comunicação estereotipada:

— "A quem possa interessar — Procura-se, a pedido de S. Ex. o Sr. Presidente da República da Libéria, o indivíduo chamado Bosambo Krooboy, que se evadiu da Colônia Correcional de Monróvia, depois de haver matado um guarda. Acredita-se que se haja encaminhado para as possessões britânicas da África Central".

Seguia-se uma descrição do fugitivo.

Sanders pôs de lado esse papel, ao lado de outros que tais, — pois não eram raras semelhantes ocorrências, por aquela época, — e entregou o espírito a novas cogitações sobre o eterno problema dos Ochoris.

Naquele momento, como sempre, achava-se o povo de, Ochori em sérios embaraços. Não havia em toda a África outra tribo tão indefesa, quanto a dos pobres Ochoris. Os Fingos, escravos por nome e tradição, eram ferozes, como os Massais, quando comparados com os Ochoris.

Sanders andava então algo irritadiço, de sorte que uma comissão de três Ochoris, vinda da sua aldeia até ali, ao quartel-general, a fim de expor ao comandante inglês os agravos que o seu povo havia sofrido, o encontrou de má catadura.

Deu-lhes audiência na varanda.

— Senhor, — disse-lhe um deles, — ninguém mais nos deixa em paz! A gente de Isisi e até a de N'Gombi, que mora mais longe, vem constantemente à nossa aldeia, pedindo isto e aquilo, e nós lhes damos, com medo!

— Com medo de quê? — perguntou-lhe Sanders, de sobrecenho carregado.

— Nós temos medo da dor e da morte, assim como de incêndio e de captura de nossas mulheres! — gemeu o outro.

— Qual de vocês é o chefe? — indagou deles Sanders, fingindo não o conhecer.

— Sou eu, senhor, — respondeu o mais idoso, recoberto por uma pele de leopardo.

— Volte já para o meio do seu povo, chefe, — bradou-lhe Sanders, — se é que você é realmente chefe e não um maricas sem-vergonha! Volte e leve consigo um fetiche, um fetiche poderosíssimo, o qual ficará, do mesmo modo que eu, velando por todos vocês e protegendo a todos vocês. Este ídolo, que eu vou entregar a você, deverá ser colocado à entrada da aldeia, no ponto em que melhor bater o sol do meio-dia. Você primeiro abrirá o buraco onde ele terá que ser fixado, e à meia-noite, com a conveniente cerimônia, o colocará no lugar, sacrificando-lhe uma cabra nova. Asseguro que correrá, depois disso, grande perigo, quem quer que seja que ouse maltratar ou roubar a vocês!

Sanders disse-lhes isto com tal gravidade, que os três homens de Ochori ficaram profundamente impressionados. E ainda mais impressionados ficaram quando, antes de regressarem pouco depois à sua aldeia, o comandante inglês lhes pôs nas mãos uma pesada estaca, em cuja larga extremidade superior estava pregada uma tábua lisa, cheia de certos sinais bem gravados.

Gastaram seis dias de viagem através da floresta e quatro em canoa pelo Rio-Pequeno, até chegarem com o seu precioso fardo a Ochori. Ali, à luz da lua, com o sacrifício de duas cabras (por seguro), fincaram em terra a estaca, à entrada da cubata, e de modo que a tábua, repleta de caracteres misteriosos, ficasse voltada para o sol do meio-dia.

Correram logo rápidas as notícias, tanto pelas terras do litoral, quanto pelas aldeias dos Isisis, e dos Akasavas, de que os Ochoris estavam agora protegidos pela magia de uma divindade branca. Ora, protegidos sempre foram eles, e muitos negros tinham morrido às mãos dos brancos, porque entre os indígenas se havia tornado irresistível a tentação de fazer mal aos Ochoris.

Tendo ouvido tal nova, disse o soba dos Akasavas aos seus homens de guerra:

— Não creio que Sândi tenha feito tal coisa! Atravessemos o rio e vamos ver o novo ídolo com os nossos próprios olhos! Se for mentira, espancaremos os Ochoris com varas, mas sem matar a nenhum deles, por causa de Sândi e da sua crueldade.

Assim, no mesmo dia transpuseram o rio e marcharam por terra até Ochori. O povo de Ochori, sabendo que o povo de Akasava se aproximava, fugiu para o mato e escondeu-se ali, como era seu costume.

Os Akasavas chegaram, portanto, sem embaraço algum, até perto da estaca, que estava ali enterrada no solo, e olharam a tábua, em que havia os sinais postos pelo demônio.

Cheios de temor, permaneceram algum tempo em silêncio diante do ídolo, ao qual sacrificaram um frango (que, aliás, era propriedade legal dos Ochoris); e, fazendo-lhe em seguida uma profunda reverência, retrocederam para a sua aldeia.

Mal chegados, não tardou a aparecer-lhes um numeroso bando de gente de Isisi, o qual precisou de atravessar o território de Akasava. Trouxeram presentes aos Akasavas, com os quais se hospedaram por uma noite.

— Que história é essa do novo ídolo dos Ochoris? — perguntou o chefe dos Isisis ao seu colega de Akasava.

— Pode você poupar-se ao incômodo da viagem, com toda esta sua gente, — respondeu-lhe o outro, — porque a notícia é verdadeira: nós já vimos o ídolo.

— Não caio nessa! — bradou-lhe o cacique dos Isisis. — Eu só acreditarei no tal ídolo, quando eu mesmo o tiver visto!

— Isto agora é demais! — berrou um guerreiro Akasava, que estava à frente do povo, assistindo à entrevista. — Estes cães de Isisis chamam-nos de mentirosos!

Não houve, todavia, derramamento de sangue. Na manhã seguinte, os Isisis prosseguiram o seu caminho.

Viram-nos chegar os Ochoris, que logo se refugiaram no mato; mas podiam ter deixado de tomar semelhante precaução, porque os guerreiros de Isisi, dando de cara com o fetiche, puseram imediatamente sebo nas canelas.

Outras peregrinações, semelhantes a essas, foram ainda feitas à aldeia de Ochori: a dos N'Gombis, a dos Bokelis e a do Povo-Pequeno da selva, o qual era tão tímido, que realizou a sua incursão à noite. Então o povo de Ochori começou a compreender o valor do seu novo ídolo e a capacitar-se da sua própria importância.

Foi nessa ocasião que ali apareceu em cena Bosambo, um Krooman e um aventureiro inato. Atravessara oitocentas milhas de terra selvagem, na dupla esperança de que o tempo embotasse um dia a memória do governo liberiano e de que ele mesmo pudesse achar uma Canaã de leite e mel.

Bosambo tinha sido, em sua vida, um cabide de coisas e capacidades. Fora despenseiro numa barca a Elder Dempster; estudara na Escola da Missão e era orgulhoso possuidor de um exemplar encadernado da "Vida dos Santos", — prêmio da sua aplicação escolar; e, entre os seus predicados intelectuais, contava-se, finalmente, um regular conhecimento da língua inglesa.

Receberam-no afavelmente ali os hospitaleiros Ochoris, que lhe deram a comer mandioca assada e cana-de-açúcar, referindo-lhe, em seguida, como se sentiam então sossegados, graças à magia de Sanders. Acabada a sua frugal refeição, Bosambo foi ver o ídolo e nele leu apenas a seguinte inscrição, feita no idioma britânico:

— Transgressores, acautelai-vos!"

Sem sentir a menor impressão, vagueou ali pelos arredores e voltou para o centro da aldeia, pensando profundamente em seu destino.

— Esta magia, — declarou ele ao soba, — é muito eficaz. Eu sei disso, porque tenho sangue de branco em minhas veias.

E, em apoio, de semelhante declaração, prosseguiu difamando um oficial britânico, que estivera em Serra-Leoa, e ao qual, embora inocente, atribuía a sua vinda ao mundo.

Os Ochoris ficaram arraigadamente persuadidos do valor do seu novo ídolo, graças às palavras de Bosambo. Contaram-lhe então as inúmeras perseguições que haviam sofrido, — uma história que começava em épocas imemoriais, desde quando Tigano-Beni, o grande rei, descera do norte e devastara todas aquelas regiões até às margens do Isisi.

Bosambo teve que levar duas noites e a maior parte de um dia ouvindo aquela longa história, porquanto o narrador oficial dos Ochoris tinha um método todo seu de contá-la, e terminada ela, o evadido de Monróvia falou aos seus botões:

— Este é o povo que eu tenho ansiosamente procurado. Ficarei aqui.

Depois, em voz alta, perguntou ao chefe:

— Quantas vezes por ano vem Sândi ter aqui com vocês?

— Ele vem aqui uma só vez por ano, senhor, — respondeu-lhe o soba, — e isso na décima segunda lua ou um pouco depois.

— E quando foi que ele veio pela última vez?

— Quando esta lua de agora estava cheia, isto é, há três luas, pois ele chegou aqui depois das grandes chuvas.

— Então, — disse Bosambo novamente aos seus botões, — por nove meses posso eu ficar tranqüilo aqui.

Diante da deliberação, expressa depois em voz alta por Bosambo, de deixar-se ficar ali com eles, os Ochoris construíram-lhe uma cabana e ao lado da mesma plantaram-lhe um bananal, dando-lhe sementes de cereais. Pediu ele, então, a filha do chefe, para sua esposa, e, embora nada pudesse ele dar em pagamento para obtê-la, o casamento foi efetuado.

Souberam logo as outras tribos que um estrangeiro estava morando na cubata principal dos Ochoris, porque notícias de tal jaez prontamente se espalham naquelas regiões. Mas, depois de ter Bosambo casado com pessoa da família do soba, propalou-se que o homem devia ser mesmo da gente dos Ochori, e a história, assim contada, chegou sem alteração ao quartel-general de Sanders. Logo depois, morreu o soba dos Ochoris; morreu repentinamente, de certa dor que o acometeu; mas tais falecimentos não causam estranheza a ninguém, e seu filho assumiu imediatamente as rédeas do governo. O filho, entretanto, depois de um reinado muito curto, acompanhou o pai para baixo da terra. Bosambo, à vista disso, convocou o povo, — os mais velhos, os sábios e os guerreiros da aldeia, — para que se elegesse o novo soba de todo aquele povo.

— Parece, — discursou-lhes ele, — que os vossos inúmeros deuses estão descontentes convosco, pois que, em breve prazo, vos arrebataram dois reis. Ora, foi-me revelado por um sonho que eu agora é que serei o vosso chefe. Por conseguinte, ó anciãos, sábios e guerreiros de Ochori, curvai-vos perante mim, como é costume, e eu farei de vós um grande povo!

A característica dos Ochoris era que a ninguém diziam "não", embora ali, na sua assembléia-, houvesse pelo menos três homens que, de acordo com a tradição e os costumes da tribo, pudessem reclamar a coroa real.

Logo que Sanders ouviu falar da aclamação do novo rei, ficou preocupado.

—Etabo? — repetiu ele o nome pelo qual se fazia conhecer Bosambo. — Não me lembro de homem algum assim chamado. Se ele, contudo, puder dar espinha dorsal àquele povo, pouco importa quem seja!

Espinha dorsal ou astúcia, ou tudo isso junto, o certo é que Bosambo estava bem instalado ali.

— Ele põe em vigor ali muitas práticas estranhas, — relatou a Sanders um dos seus espiões indígenas. — Reúne todos os dias os homens válidos da aldeia e fá-los caminhar sobre um pelebi (tabuleiro) em cima do qual se acham muitos ovos. Cada homem, por ordem sua, ao passar correndo sobre o pelebi, deve apanhar tão rapidamente um dos ovos, que olho algum humano o veja apanhá-lo. E, se o homem errar, ou quebrar o ovo, ou for vagaroso, o novo rei envergonha-o açoitando-o.

— É um divertimento! — ponderou Sanders, mas, em toda a sua vida, nunca soubera de jogo semelhante, por aquelas bandas.

Chegavam-lhe constantemente notícias das loucuras do novo cacique dos Ochoris. Algumas vezes, obrigava os infelizes indígenas a exercícios noturnos, ensinando-lhes coisas, que nunca haviam eles feito antes. Assim foi que os instruiu na maneira de agarrarem uma cabra, de tal jeito que o animal não pudesse gritar. Mostrou-lhes também como é que poderiam arrastar-se em terra, deitados sobre o ventre, de modo que não fizessem o menor ruído, nem deixassem o menor vestígio. Tudo isso os Ochoris aprenderam a fazer, embora se queixassem dos esforços desenvolvidos, ou se lamentassem dos castigos recebidos.

— Raios me partam, se eu for capaz de entender isto! — exclamou Sanders, franzindo o sobrecenho, quando se inteirou da informação derradeira. — Se isto se passasse com qualquer outro povo, eu diria que se tratava de preparação para guerra. Mas, com os Ochoris, não é possível semelhante hipótese!

Não obstante o seu desdém pela incapacidade bélica dos Ochoris, conservou Sanders de prontidão o seu contingente de Houssas.

Não lhe chegou, entretanto, notícia de guerra alguma. O que ele recebeu foi uma queixa do povo de Akasava de que na selva, próxima de sua aldeia principal, "havia muitos leopardos".

— Os leopardos que esperem um pouco, — pensou Sanders, — pois os Akasavas são caçadores bastante hábeis e corajosos, para liquidá-los a todos, independentemente de auxílio de fora.

Mas a notícia seguinte foi alarmante: em duas semanas, os tais leopardos tinham arrebatado de Akasava 60 cabras, 20 sacos de sal e muito marfim.

— Que os leopardos comem cabras, é coisa sabida, — refletiu Sanders; — podiam mesmo ser uns leopardos de estômago tão delicado, que não pudessem digerir cabras sem um pouco de sal. Mas leopardo algum carrega dentes de marfim, nem mesmo para palitar os próprios dentes que mastigaram a carne caprina ensalmourada...

Sanders, por isso, preparou-se para viajar rio acima, visto como as menores coisas se tornavam consideráveis naquelas primitivas regiões do mundo, onde o povo tira moscas da comida, mas engole caravanas inteiras.

— Senhor, — disse a Sanders o soba de Akasava, com certa emoção, — as nossas cabras têm-nos sido furtadas noite a noite, embora nós as vigiemos atentamente. Agora, quanto ao sal e ao marfim, esses nós não vigiávamos.

— Mas leopardo algum carrega sal e marfim! — ponderou-lhe Sanders, irritadamente. — Isto é negócio de ladrões!

O cacique indígena fez um gesto vago, após o qual obtemperou ao comandante inglês:

— Mas quem é que se atreveria a vir roubar-nos tais coisas? O povo de N'Gombi habita muito longe daqui, assim como o de Isisi. Quanto aos Ochoris, nossos vizinhos, esses são tolos e, além do mais, muito medrosos.

Sanders lembrou-se então do tal brinquedo dos ovos e das manobras noturnas dos Ochoris, sob o novo rei. E tomou uma resolução repentina.

— Vou visitar o novo soba dos Ochoris, — disse ele ao chefe Akasava.

E, naquele mesmo dia, atravessou o rio.

Tendo mandado adiante um mensageiro anunciar-lhe a chegada, esperou que o povo de Ochori viesse dar as boas-vindas a duas milhas da aldeia. E, de fato, ali foram ter os cortesãos e sábios do país, levando-lhe presentes de peixe e frutas.

— E o vosso chefe, por que foi que não veio, convosco? — perguntou-lhes Sanders.

— Porque está doente, senhor! — responderam-lhe gravemente.— Hoje, foi ele acometido por um mal repentino, e caiu no chão, gemendo. Carregamo-lo para a sua cabana.

Sanders sacudiu a cabeça, desconfiado, e disse-lhes asperamente:

— Vamos vê-lo!

Conduziram-no até à porta da cabana do rei, e Sanders foi entrando. Reinava ali completa escuridão, e, precisamente no canto mais escuro, jazia um homem prostrado. Sanders curvou-se sobre ele, apalpou-lhe o pulso levemente e procurou ver, cautelosamente, se o enfermo tinha algum tumor no pescoço, atrás das orelhas, o que seria sinal da doença do sono. Não achou, porém, esse indício. Entretanto, no ombro descoberto, enquanto seus dedos passavam sobre o corpo do homem, sentiu uma cicatriz de regularidade singular, e, procurando outra de igual conformação, também a achou, dando-lhe ambas um elemento seguro para proceder, pois que lhe era familiar o ferrete dos degredados do governo monroviano.

— Não pode deixar de ser ele... — pensou Sanders, e, vibrando no homem, que gemia, um vigoroso pontapé, ordenou-lhe: — Saia para a luz, Bosambo de Monróvia!

E Bosambo levantou-se, obedientemente, seguindo o comandante inglês para a porta da cabana.

Por alguns minutos, permaneceram ali, olhando um para o outro. Por fim, falando no dialeto da Costa-Pimenta, Sanders regougou para o mestiço:

— A vontade que eu tenho, Bosambo, é de mandar enforcar a você!

— E eu nada mais tenho a fazer, senão curvar-me à vontade de Vossa Excelência! — respondeu-lhe o evadido.

Sanders, batendo ligeiramente na bota com a ponta da bengala, ficou pensativo, a olhar para baixo. Depois de um momento de concentração, assim perguntou ao mestiço, encarando-o severamente:

— Por que foi que você fez dos Ochoris uns ladrões, em vez de fazê-los homens?

— Creia Vossa Excelência, — replicou-lhe Bosambo, — que eles agora podem combater, pois estão bufando de orgulho, por terem roubado aos Akasavas!

Sanders mordeu a extremidade superior de sua bengala, como quem está imerso em dúvidas.

— Mas é preciso que você fique sabendo que eu não admito roubo, nem homicídios! — bradou-lhe, pouco depois, energicamente. — Nem quero ter mais notícias de chefes, ou filhos de chefes, mortos aqui repentinamente... — acrescentou significativamente.

— Senhor! Far-se-á tudo, como Vossa Excelência deseja e ordena!

Quanto às cabras, que vocês roubaram, podem guardá-las, bem como o marfim e o sal. Porque, se vocês devolverem tais coisas aos Akasavas, lhes redobrarão o furor, e daí surgiria inevitavelmente uma guerra.

Bosambo meneava a cabeça, lentamente e aprovativamente. E o comandante inglês continuou:

— Pode você, então, ficar aqui, no governo deste povo, pois vejo que é um homem sagaz, e os Ochoris precisam de um caudilho como você. Mas, se...

— Senhor! Juro, pela salvação de minha alma, que cumprirei rigorosamente todas as ordens e obedecerei cegamente aos desejos de Vossa Excelência! — exclamou alegremente Bosambo. — Creia Vossa Excelência que sempre tive vontade de ser chefe num território destas regiões, sob o comando do governo britânico!

Sanders achava-se já a meio caminho, de regresso ao seu quartel-general, quando deu por falta do binóculo, que trazia sempre consigo, e não podia recordar-se de ponto algum, onde acaso o tivesse deixado por esquecimento. Naquele mesmo instante, achava-se Bosambo a exibir ao seu povo, maravilhado, o precioso objeto do comandante inglês. E dizia aos Ochoris:

— De hoje em diante, não faremos mais roubos de cabras, nem roubos de quaisquer coisas que sejam. Foi o que eu prometi, em meu nome e em nome de vocês, ao grande Sândi. E, como símbolo de nossa amizade, vejam vocês, deu-me ele esta coisa mágica, que devora o espaço!

— Senhor, — perguntou-lhe, com reverente temor, um dos seus mais velhos conselheiros, — conhecíeis já o Grande-Branco?

— Tenho razões sobejas para conhecê-lo, — retrucou-lhe Bosambo, modestamente, — porque sou filho dele!

Afortunadamente para o audacioso mestiço, Sanders nada soube de semelhante declaração.


 

O "doente-do-sono"

HAVIA CERTAS OCASIÕES, — principalmente quando o comandante inglês esbarrava com quaisquer embaraços que lhe provinham do mundo exterior, — em que Sanders, meditando nas regiões sitas além das mais longínquas florestas, além daquele agitado mar azul, pensava nos homens e nas mulheres que viviam em casas confortáveis e cuidadosamente interdiziam confabulações sobre mortes violentas e outros acontecimentos de tão horrível jaez, quais os que lhe caracterizavam, ali na África, a sua atividade de cada dia.

Tinha ele que tratar com gente, que, pela maior parte, era ilógica e acreditava em fetiches. Ora, para lidar com gente assim, para governar raças assim influenciadas, são puramente inúteis quaisquer conhecimentos de direito constitucional ou de economia política.

Há um tipo de homem, que pode governar sabiamente províncias indígenas, ali ou alhures, e esse tipo é òtimamente representado por Sanders.

Há, entretanto, outros tipos bem diferentes, como aquele a que me vou referir particularmente agora.

Certa feita, chegou ali, enviado da Inglaterra, um jovem de fama. Foi mandado pelo Departamento Militar das Colônias, para superintender, como subcomandante, um distrito subordinado a Sanders. Era bacharel em direito; estudara ciências; e adquirira também, de forma bastante metódica, alguns conhecimentos práticos de suaheli, bacteriologia e medicina. Distinguia-se pela sua seriedade, e, na primeira noite em que chegou ali, impediu que Sanders (o qual não podia deixar de bocejar furtivamente) fosse para a cama, pois não se cansava de parolar, tentando expor, nos seus mais desenvolvidos fundamentos, um sistema admirável, pelo qual o aborígene poderia ser facilmente convertido, — não convertido religiosamente, isso não! — da vadiagem estéril, em que vivia, para uma condição superior de boa cidadania.

Sanders, que se limitara a usar para com ele as expressões habituais de polidez convencional, nada lhe disse que importasse em aprovação ou desaprovação do pasmoso plano. E, dando-lhe a bênção oficial, despachou logo o sábio moço e sua formidável bagagem para um posto setentrional do território sujeito ali ao protetorado britânico.

Torrington, — este era o nome do erudito rapaz, — estabeleceu-se em Entoli e imediatamente começou a insinuar na rude mente dos pagãos os princípios elementares de mecânica aplicada. Por outras palavras: tentou ensinar-lhes, por intermédio da língua suaheli, — que eles compreendiam imperfeitamente, — e de uma pequena caldeira de estanho, o que vinha a ser o vapor da água. A função da caldeira, isso eles não ignoravam: mas não puderam saber que espécie de alimento estava o europeu cozinhando nela; e, quando o branco lhes explicou, pela quadragésima vez, que estava apenas cozinhando água, olharam de relance uns para os outros, significativamente, e concordaram todos em que ele não estava muito certo da bola.

Não lhe disseram isto ali nas bochechas, porque os canibais têm maneiras corteses, embora o seu código de bom-tom deixe bastante a desejar.

Mister Torrington realizou perante eles diversas experiências de química, demonstrando-lhes, por exemplo, como era que o ácido sulfúrico, aplicado ao açúcar, produzia Su2, Su4, ou expressões semelhantes. O resultado de tudo isso foi que ganhou fama de mágico, e, em mais de uma cabana, considerado e adorado como um Grande e Hábil Demônio, — o que, até certo ponto, não deixava ele de ser. Mas, na primeira ocasião em que teve de decidir certo fato contra o espírito e o costume do povo, — a sua ciência, o seu direito e as suas teorias, por mais claras que fossem estas, caíram ruidosamente por terra. E aí foi que lhe apareceu Sanders, aquele Sanders, que havia esquecido toda a química, aprendida na mocidade, e que, como estudante de direito constitucional, tinha sido um desastre completo.

Eis como se passaram as coisas, que exigiram a intervenção de Sanders.

Certo feiticeiro de Isisi havia profetizado que ali, em tal dia e tal hora, o rio subiria e afogaria o povo. Quando mister Torrington soube de tal previsão, achou graça nela e, a princípio, não fez caso algum da mesma. Ocorreu-lhe, porém, pouco depois, que ali estava uma esplêndida oportunidade para ele revelar aos bárbaros um pouco da maravilhosa ciência de que era tão plenamente dotado.

Dirigindo-se, então, à aldeia de Isisi, exibiu aos olhos dos sábios da mesma um plano de seção, que havia caprichosamente traçado em papel apropriado, e no qual se encontravam:

a) o leito do rio;

b) a altura das margens;

c) a máxima elevação do rio;

d) a altitude da aldeia circunvizinha.

E demonstrou-lhes, tão claramente quanto lhe era possível, o palpável absurdo da profecia.

Pois, apesar de tudo isso, aquele ignaro povo não quis convencer-se da verdade e começou abandonar a aldeia, quando Sanders apareceu em cena. Mal chegado ali, mandou logo chamar o profeta, que era um rapaz de tendências nevróticas. Fez construir, de madeira, uma jaula-prisão, no ponto mais baixo da margem do rio e trancafiando nela ao jovem vidente declarou-lhe Sanders:

— Você ficará aqui, até o rio subir; e, quando o rio subir, você deverá profetizar que ele baixará, senão, com certeza, você morrerá afogado!

À vista disso, o povo, reanimado, voltou novamente para os seus lares, esperando que o rio afogasse primeiro ao profeta para comprovar-lhe a previsão. Mas o rio, ao invés de subir, minguava cada vez mais, como acontecia sempre naquela quadra do ano, e o pobre rapaz da jaula-prisão, à semelhança de muitos outros profetas, deixou de o ser na sua própria terra.

Sanders regressou tranqüilo ao seu quartel-general, e, embora algum tanto desanimado, mister Torrington recomeçou as suas experiências científicas. Primeiro de tudo, escolheu a "doença-do-sono", gastando três meses de trabalhos vãos sobre ela, a ninguém impressionando, senão a certo cavalheiro, de quem tratarei mais detidamente em páginas adiante. Pouco depois, abandonou repentinamente tais pesquisas e entregou-se a outras.

Tinha ele idéias muito acertadas a respeito da vacina. Mas o primeiro bebê, a quem ele vacinou, morreu de crupe, e Torrington veio voando pelo rio abaixo, a fim de contar a Sanders uma história muito longa da correria de toda uma população enfurecida que exigia o sangue do subcomandante vacinador... Foi em conseqüência disso que Torrington voltou para a Europa.

— "O território, confiado ao meu comando, goza presentemente de pleno sossego, — escrevia Sanders, com certa ironia,  ao governador-geral da África Britânica. — Há numerosas questões pendentes de julgamento; nenhuma, porém, de qualquer importância particular. O povo de Isisi está extraordinariamente tranqüilo. E Bosambo, o monroviano, — sobre quem já tenho escrito por vezes a Vossa Excelência, — constitui um chefe modelar para os Ochoris. Há três meses que estes não praticam roubo algum. Ficarei muito agradecido a Vossa Excelência, se me puder fornecer uma informação completa quanto a uma expedição que atualmente está sendo feita neste território, sob a denominação de Sindicato de Exploração de Isisi, e a qual acaba de atravessar esta zona."

Era bem singular que Torrington se houvesse esquecido de que um dos membros da referida expedição fora, ali em Entoli, um dos mais interessados nos seus estudos sobre os indivíduos atacados pela "doença-do-sono".

O Sindicato de Exploração de Isisi, Limitado, tinha nascido, entre a sopa e a sobremesa, em casa de um cavalheiro cujo nome cristão era Isidoro e que vivia no Vale de Maida. Jantando, certa noite, com um amigo muito querido, — o qual se chamava Mac-Pherson todos os dias do ano, exceto em Yum-Kippur, quando francamente admitia que fora batizado por Isaac, — surgiu entre ambos uma questão sobre bons títulos de companhias, e Mac-Pherson contou então a Isidoro que, havia muitos anos, trazia em mente a Exploração de Isisi. Com o auxílio de um mapa, descobriram ambos todo o território de Isisi. Era um mapa daqueles que traziam gravadas as principais produções das terras. E sobre a superfície de Isisi havia as seguintes indicações, bem claras: "Borracha", "Cola", "Cana-de-açúcar" e "Tabaco". Recomendo aos leitores que não se esqueçam deste "Tabaco".

— Há por aquelas bandas um soba com quem tenho mantido alguma correspondência, — disse a Isidoro mister Mac-Pherson, mastigando o charuto, meditativamente, — poderíamos obter dele uma espécie de concessão. Mas isso terá de ser feito em absoluto segredo, porque Isisi pertence ao Protetorado Britânico. Se pudéssemos descobrir um homem, capaz de conseguir a coisa conforme desejamos, isto é, escondidamente, e enviá-lo à África a fim de firmar o documento de concessão, possuiríamos o começo de uma companhia, destinada a dar enormes e seguros lucros.

Uma investigação judiciosa não tardou a descobrir o homem que se procurava em Claude Hyall Cuthbert, plutocrata ainda bastante jovem, o qual, jactanciando-se constantemente de ter atirado em um leão, que quase matou em Uganda, era tido em conta de autoridade em assuntos da África por um grande número de pessoas.

Cuthbert, que chafurdava em muito metal sonante e em muitos títulos de bolsa, era excelente aquisição para qualquer sindicato. Muito lisonjeado com a confiança, de que fora alvo, para ir pessoalmente à África obter a concessão secretamente, ele financiou, alegremente, o novo sindicato até a soma de 7.000. libras esterlinas, 4.000 das quais lhe foram restituídas pelos srs. Isidoro e Mac-Pherson para cobrir as despesas da expedição. As outras 3.000 ficaram especialmente consignadas para despesas oficiais.

— Seja o que for que venha a acontecer-nos, meu rapaz,.— disse Mac-Pherson a Cuthbert, — estamos, por enquanto, navegando em mar de rosas!

E isso era perfeitamente verdadeiro. E pouco antes de Cuthbert fazer-se à vela, ainda Mac-Pherson lhe deu o seguinte pequeno conselho:

— Em tudo quanto você fizer, guarde sempre absoluto segredo e sobretudo evite aquele danado de comandante Sanders! É um sujeito ladino, intrometido...

— Conheço bem semelhante raça, — obtemperou-lhe Cuthbert, sabiamente. — Demais, não é esta a primeira expedição que faço à África. Eu não lhe contei já, que quase matei um leão em Uganda?

Uma semana mais tarde estava ele sulcando as águas do Atlântico, em demanda do Continente Negro.

 

Pouco tempo depois, começou a atravessar o território subordinado ao comando de Sanders um estranho homem branco. Tal homem branco, que era Cuthbert, estava trilhando o caminho verde para a morte, mas não sabia do perigo a que se expunha. Virou o rosto para a selva como dizem os indígenas, e riu. E o povo da aldeia de O'Tembi, em frente das suas cabanas de colmo, observava-o em silenciosa admiração.

Era aquele um caminho largo entre árvores enormes, e o musgo verde, que tapizava o chão, era apenas salpicado pela luz solar. Aquele caminho verde sem dúvida era belo de ver-se, pouco divergindo de uma, avenida de parque das cidades adiantadas.

N'Beki, soba da aldeia dos O'Tembis, era um velho muito bom. Quando o homem branco ia reencetar dali a sua viagem, N'Beki foi ter com ele, à beira do caminho, e assim lhe falou solenemente:

— Homem branco, este é o caminho do inferno, onde vive toda espécie de demônios. Se fores por ele adiante, a noite te trará remorsos e a aurora te trará a aversão por ti mesmo, o que é pior do que a morte.

Cuthbert, cujo suaheli era deficiente e cujo conhecimento da língua bomonga era nulo, riu impacientemente, enquanto o seu guia lhe interpretava de forma pitoresca as palavras do velho chefe:

— O negro danado diz este ser mau lugar não bom. Diz mais que vós viveis para morrer.

— Diga-lhe que vá para o inferno! — proferiu Cuthbert, ruidosamente. — Mas, olhe aqui, Flagstaff! Pergunte-lhe onde é que há borracha por aqui, compreende? Conte-lhe que nós estamos bem informados de que há muita riqueza na selva. Indague dele também onde é que se encontram elefantes por estas bandas.

Cuthbert era largo de ombros e robustamente constituído; sob o amplo capacete de cortiça seu rosto estava muito corado e cheio de camarinhas de suor.

— Diga ao homem branco, — respondeu tranqüilamente ao intérprete o velho cacique, — que, dentro de sete dias de marcha, ele não encontrará borracha e que aqui não existe marfim algum. Havia aqui elefantes, cala-cala; agora, não.

— Ele não passa de um mentiroso! — foi o comentário único de Cuthbert. — Faça esses mendigos levantar-se para ir-nos embora, Flagstaff! Hi! alapa! avanti! trek!

Os tais "mendigos", em fila, retomaram as cargas sem queixa alguma. Eram bons carregadores, encarados apenas como carregadores, e só dois deles tinham morrido, desde que a marcha começara.

Cuthbert continuou parado à beira do caminho, para vê-los passar, e ainda aplicou desapiedadamente a sua chibata nas costas dos retardatários. Só então se dispôs a acompanhá-los. Mas, antes de partir, ainda ordenou ao intérprete:

— Pergunte ao velho por que é que ele chama a este caminho de "caminho do inferno"!

O velho sacudiu a cabeça, respondendo com a maior simplicidade possível:

— Por causa dos demônios!

— Diga-lhe que ele é um asno chapado! — rugiu Cuthbert, e apressou-se para alcançar o seu bando de carregadores.

Aquela vereda natural, que a expedição tomou, estendia-se quase numa linha reta, através da floresta. Era um caminho singular, por causa da sua perfeita igualdade, e o único inconveniente, que apresentava, consistia em ser o foco de moscas horrivelmente incômodas, — umas moscas pretas, tão grandes quanto a mosca doméstica de forma comum, senão um pouco maiores.

Aterrorizavam aos indígenas por muitas razões, mas principalmente porque lhes davam ferroadas. Não atemorizavam tanto a Cuthbert, porque este vestia roupas de fibras grossas; havia, entretanto, ocasiões em que as tais moscas negras lhe descobriam alguma fenda por entre as peças do traje, e encolerizavam-no a mais não poder.

O caminho verde prolongava-se por cerca de dez milhas, tornando agradável a viagem, exceto quanto às ferroadas das moscas. Ao fim dele, o chefe da expedição penetrou em plena selva, seguindo outro trilho, bem batido, porém, mais difícil.

Por atalhos esconsos, chegou mister Cuthbert ao coração dos territórios confiados ao comando de Sanders. Foi, sem dúvida, bem sucedido, evitando qualquer encontro com o famoso comandante inglês. Cuthbert tinha uma caravana de 60 homens e um guia-intérprete, e, sem incidente algum, atingiu ao seu objetivo., que era a aldeia de um grande chefe, o qual governava uma província notável; Bosambo, rei dos Ochoris, nada menos, aquele mesmo Bosambo, antigamente Krooman, despenseiro a bordo do Elder Dempster, e, agora, soba dos Ochoris por permissão de Sanders. Bosambo era, incontestavelmente uma figura interessante, e, podeis estar certos, saiu logo ao encontro do seu visitante, a fim de apresentar-lhe as boas-vindas.

— Diga-lhe, — ordenou Cuthbert ao seu intérprete, — que eu me orgulho de vir encontrar aqui o grande chefe!

— Senhor chefe, — disse o intérprete a Bosambo, no vernáculo dos Ochoris, — este homem branco é um tolo e tem muito dinheiro.

— Estou vendo, — respondeu-lhe Bosambo.

— Diga-lhe também, — ordenou Cuthbert ao intérprete, com toda a dignidade de um embaixador, — que vim trazer-lhe lindos presentes!

— O branco diz, — traduziu o intérprete para Bosambo, — que se fordes bom para com ele, dar-vos-á muitos presentes. E agora, — continuou o intérprete, cautelosamente, — como sou aqui o único homem que posso falar em nome do branco e em nome de vós, façamos nós dois um acordo. Se me entregardes uma terça parte de tudo quanto o branco vos oferecer, eu persuadirei a este que continue a fazer-vos presentes, pois ele é um verdadeiro "pai-de-pançudos"...

— E você, — disse-lhe Bosambo subitamente, — é o pai dos velhacos!

Fez Bosambo um sinal à sua guarda, a qual, agarrando imediatamente o infeliz intérprete, o levou para a aldeia. Cuthbert, suando de medo, engatilhou o revólver.

— Senhor! — disse-lhe Bosambo, pomposamente, — não atire! Aquele negro danado é um canalha: fez o senhor dizer coisas ruins. Eu falo inglês regularmente. Sente-se e conversemos.

Dirigiu-se Cuthbert, em seguida, para a aldeia dos Ochoris, onde, durante três dias, houve uma larga troca de presentes, terminada pela assinatura de concessões. Bosambo concedeu ao sindicato de que era representante Cuthbert, todo o país dos Ochoris, o que era uma coisa de nonada. Concedeu direitos sobre a floresta de Isisi, vendeu os Akasavas, alienou as terras dos Lulungos, bem como "os produtos indígenas dos mesmos", conforme está escrito no documento original, ora arquivado no Departamento Militar das Colônias e trazendo a firma garatujada de Bosambo. E a tudo quanto acabo de mencionar, ajuntou ele ainda, de choro ou como uma altiva intenção reservada, o distrito de Ikeli.

— E quanto aos direitos de navegação do rio? — perguntou-lhe Cuthbert, encantado.

— Quanto é que o sr. me poderá dar por eles? — inquiriu Bosambo do europeu, cautelosamente.

— Servem-lhe quarenta libras esterlinas? — sugeriu Cuthbert.

 — Aceito, — declarou prontamente Bosambo.

Foi uma negociação admiravelmente simples. Um homem mais instruído e sagaz do que Cuthbert estaria assustado por aquela facilidade, que encontrou ali. Mas Cuthbert achava-se radiante com o seu êxito e consigo próprio, para se amedrontar com qualquer coisa.

Conta-se que a sua despedida de Bosambo foi uma cena comovedora: o chefe dos Ochoris chorou desabaladamente e beijou os pés do seu benfeitor.

Seja lá como for, Cuthbert retornou logo em direção à costa, com as "concessões" no bolso, e sempre evitando qualquer encontro com Sanders.

Chegando a Etebi, achou ali um subcomandante, que o recebeu de braços abertos. Ali, resolveu Cuthbert ficar toda uma semana.

Mister Torrington, por aquele tempo, estava terrivelmente ocupado em traçar um quadro esquemático de sintomas, para a caracterização perfeita da "doença-do-sono". Cuthbert, até aquele momento estava sob a impressão de que se tratava de uma doença agradável, cujo sintoma principal era um coma indolor. Fascinado pelas pesquisas de Torrington, prolongou a sua estada ali por quinze dias, tendo presenciado muitos espetáculos horríveis, porque Torrington estabelecera em seu quartel uma espécie de clínica de amador, de sorte que diariamente tinha que atender a cerca de uns cem casos.

— É verdade que esta doença resulta da picada da mosca tsé-tsé? — perguntou Cuthbert a Torrington. — Mostre-me uma tsé-tsé!

Torrington atendeu-lhe o pedido, e, quando o outro viu o pequeno inseto negro, empalideceu até aos lábios.

— Meu Deus! — gemeu Cuthbert. — Eu já fui picado por um bichinho destes!

— Daí não se segue que... — começou a explicar-lhe Torrington.

Mas Cuthbert, desatinado, presa de um medo atroz, saiu, tropeçando, do quartel do subcomandante em demanda do acampamento de seus carregadores.

— Vamos! Depressa! Peguem já as cargas! — foi ele gritando. — Precisamos de sair o mais depressa possível desta terra maldita!

Torrington correu a procurá-lo e com uma calma filosófica, tentou tranqüilizá-lo. Mas Cuthbert não estava disposto a ser apaziguado.

Deixou Etebi aquela mesma noite e foi acampar na floresta. Uns três dias depois, chegava a uma Casa de Missão, onde se queixou de dores de cabeça e dores no pescoço (não fora à toa que ele assistira à clínica de Torrington). O missionário, julgando, pela aparência do enfermo, que à cor macilenta juntava uma apatia generalizada, tratar-se de um ataque de malária, aconselhou-o a descansar ali por uns poucos dias. Cuthbert, porém, estava todo aflito para chegar à costa. A vinte milhas da Casa de Missão, ordenou aos seus carregadores que seguissem sem ele para o litoral, pois pretendia cobrir sozinho as últimas cem milhas da jornada de regresso.

Os indígenas atenderam-lhe prontamente àquela ordem singular, e, desde tal momento, não lograram mais pôr-lhe a vista em cima.

 

Sanders seguia por um curto atalho através da floresta, para evitar as intermináveis sinuosidades do rio, quando chegou, repentinamente a uma aldeia morta, — quatro tristes cabanas, construídas apressadamente no meio de uma emaranhada mata de corte. Chamou, mas ninguém lhe respondeu. Tinha ele bastante prudência, para não entrar, sem mais aquela, em qualquer daquelas taperas.

Conhecia bem tais pequenas malocas levantadas e abandonadas em clareiras da selva. Era costume dos indígenas levar os velhos e os moribundos, — especialmente os atacados da "doença-do-sono", — para lugares distantes, fora do alcance humano, e deixá-los lá, com alimento suficiente para uma semana e fogo aceso, a fim de expirarem em conveniente solidão.

Sanders chamou de novo, mas somente lhe respondeu o eco da floresta, daquela floresta tagarela, barulhenta, toda um estalar de movimentos de seres ocultos. Ninguém acudiu ao chamado do comandante inglês, mas em frente de uma das cabanas havia uma fogueira fumegante, que denunciava ali a impulsão de vida.

Sanders recomeçou a sua jornada; antes, porém, mandou preparar uma certa quantidade de alimentos, que foram colocados em lugar visível, para o morador da choça diante da qual havia fogo.

Achava-se em mais uma diligência para descobrir o paradeiro de Cuthbert. Era a quarta viagem de tal natureza que empreendia. E já tinha pedido a muita gente notícias do seu compatriota.

Bosambo, soba dos Ochoris, tinha restituído, com grande tristeza, os presentes que recebera de Cuthbert e confessado a Sanders as suas faltas.

— Senhor! — dissera ele, — quando eu estava entre os brancos do litoral, aprendi a arte da escrita, e a esse maldito dom é que devo todas as calamidades que acabam de sobrevir-me. Porque, desejando mostrar a meu povo quão grande homem era eu, escrevi uma carta em inglês, sobre a minha boa sorte aqui, e a enviei, por mensageiro, a um amigo residente em Serra-Leoa. Ele, decerto, comunicou a notícia para a Inglaterra e foi assim que o povo de Londres soube dos tesouros existentes nesta região.

Sanders, em poucas, mas claras palavras, exprimiu o seu juízo sobre a índole de Bosambo, dizendo-lhe:

— Por que foi que você, escravo e filho de escravo, a quem, em lugar de uma prisão, entreguei o governo dos Ochoris, enganou ao homem branco, vendendo-lhe terras que não eram suas?

— Senhor! — respondeu-lhe Bosambo, com a mais natural das simplicidades, — eu não tinha mais nada que pudesse vender...

Ali, porém, não havia indicação alguma do rumo derradeiro que tomara Cuthbert, nem na Casa de Missão, nem entre os carregadores, detidos por suspeita. Só um homem é que podia ter projetado luz sobre aquele desaparecimento e esse homem era Torrington. Mas Torrington estava então em sua pátria, desempenhando o cargo de professor-assistente de mecânica em South Kensington (ali, sim, achava-se ele no seu verdadeiro elemento) e ocupava as horas vagas no preparo de um livro sobre "A emigração dos povos da raça banto".

Assim, o resultado da quarta pesquisa de Sanders não foi mais feliz do que o da terceira, ou o da segunda, ou o da primeira, e ele, então, resolveu voltar para o quartel-general, sentindo-se bastante desanimado.

Veio pelo mesmo atalho que havia tomado na ida, e chegou de surpresa ao Acampamento-da-Morte, antes de anoitecer. A fogueira ainda estava acesa, e os alimentos, que ele havia; mandado pôr ali perto, tinham sido retirados do lugar. Chamou por alguém da cabana, em idioma indígena, mas não obteve resposta alguma. Depois de mais alguns instantes de espera, deu ordem para que pusessem ali no chão mais alimentos, destinados ao ser humano que habitava a choça.

— Pobre diabo! — exclamou Sanders e tocou-se, com os seus Houssas, para diante.

Mal havia dado meia dúzia de passos, deteve-se subitamente. A seus pés, brilhava alguma coisa, em que se refletia a luz amortecida do poente. Parou, abaixou-se e apanhou. Era um cartucho vazio de bala de carabina. Examinou-o cuidadosamente, tendo verificado, pelo cheiro, que havia sido queimado recentemente. Olhando em redor, não tardou a achar outro nas mesmas condições. Eram de fuzil Lee-Metford e traziam a data de "1907", o que significava terem menos de um ano.

Estava ainda meditando, com os pequenos cilindros de cobre na palma da mão, quando Abiboo veio ter com ele.

— Senhor, — perguntou-lhe o Houssa, — quem é que anda amarrando macacos, com cordas, às árvores?

— Você deu agora para fazer enigmas? — inquiriu-lhe Sanders, mal humorado, pois que trazia o cérebro preocupado somente, naquela ocasião, com os cartuchos que havia achado.

Abiboo limitou-se a acenar-lhe com a mão, chamando-o para certo ponto.

A uns cinqüenta metros da cabana, havia uma árvore, amarrados ao tronco da qual, guinchando, choramingando e tagarelando, numa atitude de ignóbil terror, estavam dois macaquinhos pretos.

Cuspiram e trejeitearam incessantemente, quando o comandante inglês se aproximou deles. Sanders olhou dos cartuchos para os macacos e dos macacos para os cartuchos. Depois, começou a investigar atentamente a relva que ali atapetava o solo. Não levou muito a achar mais dois cartuchos vazios e uma lanceta enferrujada, das que só se podem encontrar no estojo de algibeira de um explorador de terras selvagens.

Dirigiu-se então para a cabana, em frente à qual ardia a fogueira, e chamou amistosamente:

— Mister Cuthbert!

Nada de resposta. Sanders, então, chamou novamente, agora em tom enérgico:

— Mister Cuthbert!

Do interior da choça veio um longo gemido, ouvindo-se logo depois uma voz fraca, que dizia:

— Deixe-me só! Vim aqui para morrer!

— Venha cá para fora e seja mais cortês! — disse-lhe Sanders, serenamente. — Pode morrer depois.

Após alguns momentos de demora, surgiu à porta da cabana a ruína de um homem, de cabelo comprido e barba intensa, o qual se deteve de mau humor diante do comandante inglês.

— Posso perguntar-lhe, — arrumou-lhe Sanders, sem mais aquela, — que brincadeirazinha é esta sua?

O outro sacudiu a cabeça fatigadamente. Era um quadro lastimoso. As roupas caíam-lhe em farrapos e ele estava sujo e denegrido. Afinal, disse em voz cansada:

— Doença-do-sono! Senti que estava cada vez pior, sei que coisa horrível ela é, e não quis ser um fardo para ninguém. Ah! Deus meu! Que doido que fui em vir a este país imundo!

— Creio bem que tenha feito mal em vir a estas regiões, — disse-lhe Sanders. — Mas quem foi que lhe diagnosticou a "doença-do-sono"?

— Eu mesmo a conheço, eu a conheço bem, — respondeu o homem, negligentemente.

— Sente-se aí! — ordenou-lhe o comandante inglês.

O outro obedeceu, e Sanders pôs-se logo a examiná-lo, superficialmente embora, mas de acordo com os conhecimentos que possuía daquela enfermidade.

— Se você contraiu a "doença-do-sono", — declarou-lhe Sanders, acabado o exame, — então eu estou sofrendo de mania religiosa! Homem, quer saber de uma coisa? Você o que está é doido!

Havia, entretanto, qualquer coisa, inquietante na expressão fisionômica de Cuthbert. Estava lerdo, desanimado, estúpido. Seus movimentos eram vagarosos, como que letárgicos.

Sanders viu-o tirar do bolso esfarrapado um cachimbo de madeira negra e, com doloroso vagar, enchê-lo de certa massa escura, esfiapada aos poucos de uma bolsa de couro. Acendeu o cachimbo por meio de um graveto que meteu na fogueira e começou a resmungar lentamente:

— Pois é! Estou liquidado (puff)! Fiquei certo disto (puff), desde que aquele meu velho camarada Torrington (puff) me descreveu os sintomas da moléstia (puff)! Senti-me pesado, sonolento (puff). Peguei um casal de macacos (puff) e injetei neles meu sangue (puff), e eles se tornaram também sonolentos (puff), — sinal certo da coisa...

— Onde foi que você obteve esse tabaco? — perguntou-lhe Sanders, de súbito, compreendendo agora tudo.

Cuthbert levou algum tempo para poder responder-lhe:

— Foi um meu antigo camarada, um camarada que hoje é soba, Bosambo. Disse-me ele que é tabaco indígena. E não é mau. Comprei-lhe por bom preço o diabo de um lote.

— Que é uma coisa diabólica, também direi eu, — regougou Sanders, e, abaixando-se, apanhou a bolsa de couro e guardou-a consigo.

 

Depois que Sanders viu mister Cuthbert em segurança a bordo de um vapor que seguia para a Inglaterra, reuniu os seus vinte Houssas e seguiu com eles para a cubata dos Ochoris, a fim de prender Bosambo. Esperava que Bosambo fugisse, ao vê-lo aproximar-se dali; mas o imperturbável mestiço aguardava a chegada do comandante inglês e prestou-lhe as honras do costume.

— É verdade que vendi o cânhamo ao branco, — confessou ele a Sanders. — Mas eu mesmo o fumei, não tenho sentido incômodo algum. Como é que podia eu saber que isso o faria dormir?

— Mas por que foi que você lhe vendeu o cânhamo? — perguntou-lhe Sanders.

Bosambo levantou intrepidamente os olhos para o rosto do comandante inglês, dizendo-lhe:

— Na última lua, Senhor, viestes perguntar-me por que foi que dei ao homem branco o país de Isisi e os direitos de navegação sobre o Rio-Pequeno, quando nem um nem outro eram meus para dar. Agora, Senhor, vindes ter comigo, para perguntar-me por que foi que dei tabaco ao homem branco. Senhor, que é que havia eu de fazer, se, de todas as coisas que dei ao homem branco, o tabaco era realmente a única que me pertencia?


 

O correspondente especial

O Hon. George Tackle tivera a felicidade de ser filho de pai alcaide; cabe-me, porém, declarar, aqui, que ele não possuía nenhuma virtude particular. Sendo o pai, entretanto, proprietário do jornal Courier and Echo (ao qual estavam incorporadas não sei quantas estrelas extintas ou apagadas do firmamento da Fleet Street), gozava George de uma "popularidade", com a qual nenhuma soma real de méritos ousaria competir, e, quando começaram a propagar-se as histórias de atrocidades, perpetradas no distrito africano de Lukati, e sobre as mesmas foram feitas no parlamento interpelações ao governo, abriu o jovem o seu Gazetteer ricamente encadernado, verificou que o distrito de Lukati estava no território britânico e imediatamente pediu ao pai a missão de ir investigar aqueles crimes, que constituíam mancha indelével em nossa excelsa civilização.

O pai concordou com a idéia, pois fazia um alto conceito, completamente errado, do gênio do filho e a este sugeriu que fosse ao escritório do jornal, a fim de obter "informações sobre todos os fatos concernentes às atrocidades". George, com um sorriso amável, achando graça no simples pensamento de querer alguém instruí-lo sobre coisas em que se julgava tão cabalmente versado, prometeu fazer o que o pai lhe recomendara; mas o escritório do Courier and Echo ficou sem a honra de o ver, e o bibliotecário do jornal, que havia preparado um maço, realmente valioso, de recortes, panfletos, mapas e sugestões diversas, até relativas à saúde dos exploradores de terras africanas, — tudo destinado à orientação do rapaz, — ficou desanimado (ou, talvez, aterrado), ao saber que o ousado jovem partira sem as necessárias instruções sobre o assunto que ia investigar, levando apenas as precárias informações colhidas da apressada leitura dos "sueltos", que apareciam diariamente na imprensa matutina de Londres.

Para estas questões de correspondentes especiais, apresento, com alegria mal reprimida, o caso do Hon. George Tackle, como terrível advertência a todos os proprietários de jornais, que permitem suas afeições paternas primarem sobre uma boa e acertada escolha.

Tudo que o Hon. George Tackle sabia era que em Lukati tinha havido quatro casos autênticos de atos bárbaros, de crueldades infligidas aos indígenas, e que o comandante do distrito era o responsável pelos açoites e torturas, de que os mesmos tinham sido vítimas.

Pensava o moço que isso era tudo quanto se lhe fazia necessário conhecer. Mas aí foi que cometeu ele o seu maior erro.

Lá pelas bandas de Lukati aconteceu um mundo de coisas, como veio a saber, à custa do seu próprio sossego, o comandante Sanders. Entretanto, já havia ele, naquele ano, visitado uma vez o referido distrito e deixara-o tranqüilo, sob a direção do seu imediato Carter, para quem os indígenas construíram uma belíssima cabana, rodeada de jardins, tudo isso por espontaneidade dos mesmos.

Mas, certo dia, — exatamente quando Carter acabara de escrever um relatório entusiástico da índole pacífica daquele povo e da boa vontade com que acolheram e obedeciam ao novo regime, — o chefe da aldeia, a quem Carter chistosamente chamava de O'Leary (o seu nome de batismo era realmente Olari), veio procurá-lo.

Carter, na ocasião, estava passeando pela bem varrida rua da aldeia, com as mãos nos bolsos do casaco e o grande capacete branco, de cortiça, a cobrir-lhe a parte posterior da cabeça, porquanto o sol lhe batia no toutiço.

— Pai, — disse-lhe o chefe Olari, — eu trouxe aqui estas pessoas para ver-vos.

E apontou com a mão para seis guerreiros estranhos, armados de escudo e lança, os quais olhavam serenamente para o branco.

Carter sacudiu afirmativamente a cabeça.

— Desejam eles, — continuou Olari, — ver o pequeno e prodigioso fetiche negro, que trazeis no bolso, para que possam contar os poderes do mesmo ao povo a que pertencem.

— Diga-lhes, — ponderou-lhe Carter, bem humorado, — que eu não trouxe hoje o fetiche aqui comigo; se eles forem à rainha cabana, lá eu lhes mostrarei os poderes do mesmo.

Olari, sem mais nada, ergueu a lança e feriu com ela a Carter, contra quem se arremessaram, ao mesmo tempo, os seis guerreiros de fora. Carter, apesar de desarmado, bateu-se bravamente com todos eles.

Quando Sanders recebeu a notícia da morte do seu subordinado, não desmaiou, nem teve nenhum frenesi de maldições insanas. Estava sentado na larga varanda do seu quartel-general, quando ali chegou o mensageiro, todo coberto de pó. Levantou-se com os lábios contraídos e o sobrecenho carregado, virando ê revirando entre os dedos a carta, — a qual lhe fora dirigida por Tollemache, inspetor de polícia em Bokari, — e mediu a passos largos toda a extensão da varanda.

— Pobre rapaz! pobre rapaz! — foi tudo quanto achou para exclamar.

Não mandou dizer nada a Olari, nem fez preparo algum para uma jornada de castigo. Continuou a assinar documentos, a inspecionar os seus Houssas e a comparecer a jantares, como se Carter nunca houvesse vivido ou morrido. Todas essas coisas foram relatadas a Olari pelos espiões deste, que ficou agradecido e tranqüilo.

Achando-se Lukati a duzentas milhas do quartel-general, não era empresa fácil uma expedição para lá, através de terras selvagens e montanhosas; e o governo britânico, apesar de sua riqueza, não pode despender cem mil libras esterlinas só para vingar a morte de um oficial subalterno. De tudo isso era Sanders bem sabedor; e, por conseguinte, empregou o tempo em colher e autenticar os nomes dos assassinos de Carter. Quando estava completo o rol, dirigiu-se, numa viagem de setenta milhas pelo interior da mata, ao grande médico-feiticeiro Kelebi, cujo nome era bem conhecido por todo o litoral daquela região da África, desde Daka até às fronteiras orientais da Togolândia. — Eis aqui os nomes de homens que me afrontaram, — disse ele a Kelebi, — e o principal deles foi Olari, soba do povo de Lukati.

— Porei em Olari um feitiço muito mau, — declarou-lhe o mandingueiro, — e um feitiço menor nos outros homens. O preço de tudo será de seis libras inglesas.

Deu-lhe Sanders a quantia pedida, à qual juntou duas garrafas de bojo quadrado e um pedaço de pano novo. E voltou para o quartel-general.

Logo depois, certa noite, houve grande reboliço na maloca de Lukati. Com frêmitos de medo e olhando cautelosos para todos os lados, os homens sussurravam a notícia:

— Olari, o chefe, está enfeitiçado!

Olari, por suas mulheres, soube da nova que se estava então divulgando ali, e saiu da cabana para a rua, banhada de luar, não tardando a delirar horrivelmente.

No dia seguinte, caiu de cama, sofrendo dores terríveis, que lhe prenunciavam a morte próxima. Ao mesmo tempo, tombaram também enfermos, atacados por cruéis padecimentos, os seis homens que haviam tomado parte no assassinato de Carter. Se todos eles não morreram, — declarou o médico-feiticeiro não ser culpa da sua mandinga e sim da grande distância que mediava entre ele e os seus castigados.

Quanto a Sanders, ficou contente com o que soubera, dizendo que as dores sofridas pelos sete homens lhe haviam custado barato e que ele esperava ainda ter a satisfação de escrever a palavra "fim" com relação a Olari pelas suas próprias mãos.

Uma semana depois desses acontecimentos, caiu doente Abiboo, o criado favorito de Sanders. Não tinha febre, nem apresentava sintoma algum de qualquer doença grave; apenas, por assim dizer, começou a definhar.

Procedendo a investigações, veio Sanders a saber que Abiboo tinha ofendido ao médico-feiticeiro Kelebi, pelo quê, este enviara ao seu ofensor a mensagem da morte.

Sanders, acompanhado de cinqüenta Houssas, penetrou de novo na mata e foi ter com o mandingueiro, a quem disse:

— Tenho razão para crer que a mandinga feita por você é um malogro completo, pelo menos quando se trata de matar gente.

— Senhor, — replicou-lhe Kelebi, desculpando-se, — a minha magia não pode atravessar montanhas. Se não, Olari e os seus seis amigos já teriam morrido.

— Não estou discutindo isso, — retrucou-lhe Sanders. — Estou agora a referir-me a um feitiço aqui de perto, cabendo-me avisar a você de que, no dia seguinte ao em que Abiboo morrer, virei outra vez aqui e enforcarei a você.

— Pai, — bradou-lhe Kelebi, enfaticamente, — juro-vos que, uma vez que assim o desejais, Abiboo viverá!

Sanders deu-lhe uma moeda de ouro e virou as rédeas do cavalo para o quartel-general, onde já encontrou o seu Houssa em vias de completo restabelecimento.

Se vos narro esse fragmento de história de Sanders, é porque estou certo de que ele vos habilitará a compreender o ambiente singular em que o sobredito comandante inglês consumiu a maior parte de sua vida e também porque apreciareis muito melhor a ironia da situação que ali criou a chegada do Hon. George Tackle.

Sanders tinha mandado que lhe servissem o almoço na varanda da casa. Do ponto em que se achava sentado, dominava, por sobre as lindas flores do seu jardim, um largo trecho de mar oleoso, como que a enrolar uma chama dourada de luz por sob o sol abrasador. Avistou um barco a vapor a três milhas de distância (somente a cinco braças de água), e Sanders, tomando o óculo-de-alcance, reconheceu-o como o Elder Dempster, que trazia a mala mensal. Desde que não havia cartas em cima de sua mesa e o barco tinha estado ali por duas horas, inferiu que o mesmo não lhe trouxera correspondência alguma e ficou aliviado, pois já havia transposto aquele período sentimental da vida em que as cartas são sempre possibilidades agradáveis.

Não recebera cartas, nem esperava visitas, de modo que lhe causou verdadeiro espanto quando deu com os olhos no Hon. George Tackle, transportado numa rede, por dentro, ali, do seu jardim.

O recém-chegado desceu da rede cuidadosamente, ajustou bem sobre o coco o capacete branco, de cortiça, alisou os frisos das suas imaculadas calças de linho alvo e subiu com aprumo os degraus que conduziam ao pórtico da varanda.

— Como vai passando? — perguntou a Sanders, e, sem esperar resposta, continuou: — Meu nome é Tackle, George Tackle.

E sorriu, como se dizer mais fosse um insulto à inteligência do seu ouvinte.

Sanders, sem lhe dizer palavra alguma, curvou-se um pouco, cerimoniosamente. Percebeu que era isto que o seu visitante queria.

— Vim aqui no desempenho de certa missão, — prosseguiu o Hon. George Tackle. — Como sem dúvida deve saber, meu pai é o proprietário do Courier and Echo. Pensou ele que o melhor era eu partir para aqui e ver as coisas com os meus próprios olhos. Não vacilo em admitir que as notícias publicadas o têm sido com algum exagero.

— Ainda bem! — disse-lhe Sanders, a quem aquelas últimas palavras esclareceram, como uma luz subitânea. — Então, pelo que vejo, é uma espécie de correspondente de jornal?

— Exatamente.

— E veio aqui a fim de inquirir sobre...

— O tratamento dos indígenas e matérias correlatas, — disse o Hon. George Tackle, tranqüilamente.

— E sobre o que está errado na maneira por que são tratados os indígenas? — perguntou-lhe Sanders, delicadamente.

O jornalista respondeu-lhe por um gesto vago, mas, em seguida, declarou-lhe:

— O senhor bem sabe... São coisas de jornais missionários...

Tais palavras foram por ele proferidas rapidamente, pois que se sentia embaraçado pela compreensão de que o homem responsável, fosse por que modo fosse, pelas atrocidades noticiadas, estava ali em pé, diante dele.

— Não leio nunca os jornais, — ponderou-lhe Sanders, — e...

— Mas, interrompeu-o o Hon. George Tackle, ansiosamente, — não tenho dúvida em admitir que hajam sido injustas as acusações feitas ao senhor.

— Oh! muito agradecido! — E, com excessivo reconhecimento, Sanders ofereceu-lhe a mão, acrescentando em seguida:

— Bem! Desejo que seja feliz em sua missão. Permita-me, entretanto, perguntar-lhe: Onde é que vai aboletar-se aqui?

O Hon. George Tackle estava visivelmente acanhado para responder-lhe. Afinal, disse:

— Desculpe, senhor! Onde... como... Vejo-me em talas infernais! Onde é que hei de alojar-me?

— Aqui em casa?

— Sim! A minha bagagem está lá na praia. Pensava eu que...

— Então pensava que eu lhe daria hospitalidade?

— Sim! Pensei...

— Pensou também que eu lhe cairia nos braços e lhe daria as boas-vindas?

— Não exatamente isso. Mas...

— Ora, acabemos com isto! — disse-lhe Sanders, dobrando cuidadosamente o guardanapo. — Não tenho motivo algum para estar contente de vê-lo aqui e de ouvi-lo.

— Creio-o bem! — bradou-lhe o Hon. George Tackle, impertigando-se todo.

— Porque o senhor é uma responsabilidade, e eu detesto responsabilidades estranhas ao meu serviço. Pode levantar a sua tenda em qualquer lugar que lhe agrade por aqui. Mas eu não lhe posso oferecer a hospitalidade que deseja.

— Contarei tudo isto ao governador, — obtemperou-lhe, ameaçadoramente, o Hon. George Tackle.

— Pode contar tudo isto até à tia solteira de sua avó! — disse-lhe Sanders, polidamente.

Meia hora depois, via ele o Hon. George Tackle dirigindo-se de novo para o navio que o trouxera a Isisi-Bassam, e riu-se. O jornalista iria logo ao palácio do governador, e teria uma recepção, ao lado da qual uma tempestade do Saara não passaria de um zéfiro da Arábia.

Sanders, entretanto, não deixou de ficar algum tanto perturbado, — embora não propriamente estomagado, — com o que acabava de chegar-lhe ao conhecimento. Nunca, em seu distrito, houvera questão alguma de atrocidades contra os indígenas. Assim, não sabia como julgar os rumores que induziram aquele "correspondente especial" à sua viagem de investigação. Seria, acaso, uma narração falsificada do castigo imposto a Olari?

—Venha cá! — chamou ele a um dos Houssas, que rodavam ali por perto. — É preciso que você vá depressa levar um papel ao indivíduo que acaba de sair daqui.

E, enquanto dava essa Ordem, concluiu o seguinte bilhete:

— "Receio ter sido um pouco rude com o senhor, pois não entendi bem que diabo pretendia fazer aqui. Mas uma curiosidade opressiva aconselha-me a que o convide para hóspede de meu bangalô, até que o tempo lhe permita dirigir-se para qualquer ponto em que tenha de realizar as suas investigações".

O Hon. George Tackle leu tal convite com um afetado sorriso de íntima satisfação.

— O melhor modo de lidar a gente com estes sujeitos, — disse ele ao capitão do Elder Dempster, — é tratá-los por cima dos ombros. Eu estava certo de que ele havia de chegar ao rego.

O comandante do Elder Dempster, que conhecia, por tradição, o feitio moral de Sanders, sorriu discretamente, sem nada ponderar ao jornalista. Uma vez mais, a montanha de malas do correspondente especial do Courier and Echo foi metida no bote costeiro e o Hon. George Tackle acenou uma despedida aos amigos que ficaram no vapor.

O capitão do Elder Dempster, inclinando-se sobre o costado da ponte e depois de observar o bote a subir e descer marulhada em fora, ponderou ao seu imediato:

— Ali vai um homem que está procurando sarna para se cocar! Eu nem por quinhentas libras do melhor ouro aceitaria a metade do trabalho que ele vai ter.

— Devemos continuar ainda ancorados, mister Simmons? — perguntou o imediato.

— Não! Dirija-se, à meia-proa, para o poente exato!

O Hon. George Tackle, ao pôr os pés em terra, teve como um sorriso de triunfo. Não só havia ali na praia dez policiais uniformizados, à sua espera, para lhe transportarem a bagagem, como o próprio Sanders descera ao portão do jardim, a fim de recebê-lo.

— O motivo disto é... — começou Sanders, acanhadamente.

Mas o magnânimo jovem, estendendo-lhe a destra, interrompeu-o:

— Lance um véu sobre o passado, sr. Comandante! Águas passadas não moem moinhos...

Sanders sentiu-se inexplicavelmente incomodado diante de tal manifestação de generosidade. E ainda mais preocupado ficou, quando o correspondente especial se recusou a reabrir a questão das atrocidades.

— Como seu hóspede, — disse-lhe solenemente o Hon. George Tackle, — compreendo que, em tudo quanto lhe diz respeito, não poderei fazer uma sindicância imparcial. Creia que me esforçarei, tanto quanto me for possível, por me colocar em seu lugar, tomando em linha de conta todas as circunstâncias atenuantes...

— Oh! o senhor de certo bebeu gin swizzle demais! — bradou-lhe Sanders, rude e impacientemente. — O senhor, com o que me está dizendo, longe de agradar-me, apenas me aborrece! Mas permita-me que lhe faça só duas perguntas. Onde é que o senhor supõe que foram cometidas as atrocidades?

— No distrito de Lukati, — respondeu-lhe o Hon. George Tackle.

— Olari! — disse Sanders aos seus botões; e, depois, em voz alta: — E qual foi a vítima?

— Houve mais de uma, — replicou-lhe o correspondente especial, tirando do bolso o seu livro de notas. — O senhor bem compreenderá que seria melhor não discutirmos este assunto. Mas, uma vez que insiste, eu vou ler os nomes das vítimas. A primeira foi Efembi de Wastambo.

— Oh! — exclamou Sanders, e suas sobrancelhas se ergueram.

— A outra foi Kabindo de Machembi...

— Oh, senhor! — regougou Sanders. E o Hon. George Tackle leu ainda seis outros nomes, a cada um dos quais se apagava um vinco da testa de Sanders.

Acabando de ouvir a enumeração das vítimas, o comandante inglês disse vagarosamente ao jornalista:

—Posso fazer-lhe uma exposição, que lhe poupará uma grande perda de trabalho desnecessário.

— Acho melhor não a ouvir, — obtemperou-lhe o Hon. George Tackle, com o tom de um juiz circunspeto.

— Pois seja assim! — disse-lhe calmamente Sanders, que se afastou, assobiando, para mandar que servissem o jantar.

Durante a refeição, expôs ele ao correspondente especial do Courier and Echo:

— São amigos meus quase todos os habitantes deste posto colonial. Não devo encobrir ao senhor semelhante circunstância. Além de outros, o senhor encontrará aqui O'Neill, capitão dos Houssas; o médico militar Kennedy; e o encarregado do depósito de material. Gostaria de interrogá-los?

— O senhor não acaba de dizer-me que são seus amigos?

— Sim, são meus amigos pessoais.

— Nesse caso, — obtemperou-lhe o Hon. George Tackle, gravemente, — é melhor que eu não os ouça.

— Como queira, — limitou-se a dizer-lhe Sanders.

Com uma escolta de quatro Houssas e cinqüenta carregadores, estes recrutados nas aldeias vizinhas, o correspondente especial do Courier and Echo estava de partida para o interior, e Sanders ia tê-lo bem longe dali. À hora da despedida, disse-lhe o comandante inglês:

— Não posso, naturalmente, responder pela vida do senhor e devo também preveni-lo de que o governo britânico em nada poderá ser responsabilizado por qualquer mal que ao senhor venha a acontecer.

— Bem o sei, — disse-lhe intencionalmente o Hon. George Tackle, — mas não sou homem que possa ser dissuadido de tão importante missão, qual a que me foi confiada. Além disso, pertenço a um tronco...

— Atrevo-me a referir-lhe, — cortou-lhe Sanders, de repente, as reminiscências genealógicas, — que o último viajante, devorado aqui nesta selva, foi um D'Arcy, cujos ascendentes se entroncavam em Guilherme-o-Conquistador.

O jornalista mandou tocar a sua tropa em direitura para Lukati, e, ao fim do terceiro dia de viagem, chegou à aldeia de Mfabo, na qual morava Kelebi, o famoso médico-feiticeiro.

O viajante acampou fora da habitação, e, acompanhado de quatro Houssas, fez uma visita ao soba. Foi esse um dos primeiros erros que cometeu, porque devia ter mandado chamar o chefe à sua presença; e, se tivesse que visitar a alguém, seria ao médico-feiticeiro, que valia por mais de quarenta chefes indígenas.

Entretanto, pouco depois, achava-se ele de cócoras, no terreiro em frente à porta da choça do célebre mandingueiro, com quem mantinha animada confabulação por intermédio de um intérprete, que obtiveram em Serra-Leoa.

— Diga-lhe primeiramente, — recomendou o jornalista ao seu intérprete, — que eu sou um grande chefe branco e que meu coração sangra por todos os desventurados indígenas da África. Pergunte-lhe, depois, se Sanders é um homem bom.

O médico-feiticeiro, que estava ainda bem lembrado da recente ameaça que lhe fizera Sanders, respondeu prontamente:

— Não!

— Por quê? — inquiriu ansiosamente o jornalista. — Sanders manda bater nos indígenas?

— Não manda somente espancar os negros — explicou, com prazer, o médico-feiticeiro, — mas já houve ocasiões em que mandou queimar vivos a alguns dos indígenas.

— Eis aí uma acusação muito séria! — exclamou o Hon. George Tackle, careteando desaprovativamente.

E escreveu rapidamente o seguinte, em seu "Diário de viagem à África":

— Entrevistei a Kelebi, respeitado médico indígena, que me prestou a informação que se segue: — "Tenho vivido neste distrito, desde que me entendo por gente, e jamais conheci a um homem tão cruel quanto Sândi (Sanders). Recordo-me de uma vez em que ele deu ordem para que um pobre negro fosse afogado no rio, embora haja eu esquecido o nome da vítima. Em outra ocasião, fez queimar vivo a um infeliz indígena, por se ter recusado este a guiá-lo, bem como aos seus Houssas, através da floresta. Ainda me lembro bem de que ele fez incendiar uma aldeia, não longe daqui, causando grande prejuízo e muito sofrimento ao povo da mesma. Todos quantos habitam neste distrito, sujeito ao comando de Sândi, gemem sob suas tremendas opressões, porque ele vem sempre exigindo dinheiro e víveres, e, quando não lhe entregam imediatamente o que ele reclama, açoita os infelizes negros, até que eles chorem bem alto". — Suponho ser verdadeira esta última declaração, porque Sanders encontra não pequena dificuldade, quando sai a recolher o imposto das cabanas, legalmente estabelecido pelo governo britânico.

Acabando de escrever a nota acima, o Hon. George Tackle meneou a cabeça, exclamando:

— Sanders vai ficar em maus lençóis!

Apertou, em despedida, a mão do velho preto, o que causou grande surpresa ao mandingueiro, não avezado a tais gestos de polidez, e que logo perguntou algo ao intérprete, em sua língua nativa.

— O senhor pode dar-lhe alguma coisa? — perguntou o intérprete ao jornalista, a quem traduziu o desejo de Kelebi.

— Dar-lhe alguma coisa?

— Um presente qualquer: moeda ou, por exemplo, uma garrafa de genebra.

— Não! — disse o Hon. George Tackle. — Ele que fique satisfeito com o saber que está prestando um bom serviço à humanidade e que está auxiliando a causa de um povo oprimido!

Ouvindo isto do intérprete, o médico-feiticeiro disse qualquer coisa em réplica, que muito prudentemente deixou de ser traduzida para o conhecimento do jornalista inglês.

 

— Como é que vão as sindicâncias do jornalista? — indagou de Sanders o capitão dos Houssas, três semanas mais tarde.

— Tanto quanto posso inferir das notícias recebidas, — respondeu-lhe o comandante inglês, — o nosso amigo está colecionando uma lista de óbitos, ao lado da qual a estatística da Peste-Grande figurará como boa recomendação de um concurso de saúde...

— Onde é que se encontra ele presentemente?

— Já chegou a Lukati, — replicou-lhe Sanders, — o que não pode deixar de pôr-me aflito.

E Sanders simulava, ironicamente, uma grande perturbação.

O capitão dos Houssas meneou a cabeça, porquanto ao seu conhecimento tinham chegado muitos boatos, vindos das bandas de Lukati. Por lá, haviam sido boas as colheitas, e boas colheitas significavam ociosidade subseqüente, e ociosidade equivalia quase sempre a barulhos de toda espécie. Tanto que já tinham sido realizadas lá muitas danças diabólicas, e o povo pacífico do distrito de Bokari, vizinho de Lukati, perdera muitas mulheres.

— Tenho plenos poderes para jugular rebeliões em início, — ponderou Sanders, tristemente, ao capitão dos Houssas, — e tudo está indicando que vai haver rebelião em Lukati. Que é que pensa você? Devemos fazer um relatório ao governador e esperar reforços, ou marchar já e arriscar-nos a tudo?

— Isto é o diabo! — exclamou o capitão dos Houssas, coçando a cabeça. — Não me atrevo a aconselhar-vos, porque, se o trunfo vos sair às avessas, estou certo de que só receberei. pontapés. Mas, se fosse eu o comandante, iria como um raio, naturalmente...

— Bastam 140 homens? — interrompeu-o Sanders.

— E duas metralhadoras, — sugeriu o outro.

— Pois vamos lá! — decidiu Sanders.

Meia hora depois, uma trompa de caça atroava os ares, por cima das linhas dos Houssas, e Sanders escrevia um relatório ao governador britânico da África Ocidental, então nos Lagos longínquos.

O Hon. George Tackle não tinha outra idéia, — pode-se afirmá-lo, — senão a de que seria recebido como um anjo salvador, caído do céu, na aldeia de Lukati.

Olari, o soba, saudara-o amistosamente e logo lhe foi contando histórias da brutalidade de Sanders, — histórias que, conforme escreveu o jornalista itinerante, "se verdadeiras, deveriam fazer soar o dobre de finados sobre a civilização britânica nas nossas possessões da África".

Não estou disposto a adivinhar o que tais palavras queriam exatamente dizer.

O Hon. George Tackle passou ali um mês inteiro, como hóspede de Olari. Tencionava ficar, quando muito, três dias, mas foram surgindo sempre motivos diversos, que o forçavam a adiar a partida.

Uma vez, eram os seus carregadores, que haviam desertado; outra vez, eram as estradas que estavam perigosas; e, ainda outra vez, era Olari, que lhe pedira que ficasse mais um pouco, a fim de assistir às danças dos moços da aldeia. O correspondente especial do Courier and Echo ignorava que a sua escolta de quatro Houssas se sentia inquieta, porque o seu intérprete (um tolo tão grande quanto o seu patrão!) não sabia traduzir expressões de presságios. O Hon. George Tackle nada deduzia de uma dança, em que tomavam parte não menos do que seis médicos-feiticeiros, nem compreendia a história de uma cabana desabada, que permanecia solitária em uma das extremidades da aldeia. Tivesse ele tomado o incômodo de visitar aquela choça em ruínas, lá houvera encontrado uma pequena mesa, uma cadeira e um leito de rodas, e sobre a mesa se lhe depararia um relatório, manchado de pó e gotas de chuva, o qual começava assim:

"Tenho a honra de informar-vos que os indígenas deste distrito continuam em sua anterior atitude, operosa e pacífica".

Porque aquela cabana era a em que morava, quando vivo, Carter, o imediato de Sanders; e os pretos, em razão do seu supersticioso respeito pelos mortos, dali não tiraram nada.

Aproximava-se o fim do mês da sua estada ali, quando o Hon. George Tackle começou a perceber em seu hospedeiro uma certa insolência de tom, mal disfarçada, e no procedimento dos negros da aldeia algo mais ameaçador ainda.

As danças guerreiras realizavam-se então toda noite, e o compassado bater de pés no chão, o entrechocar de lanças contra escudos e a ininterrupta celeuma dos cânticos dos dançarinos não deixavam o jornalista inglês conciliar o sono. Olari recebia diariamente mensageiros, vindos de cubatas longínquas. Certa vez, o Hon. George Tackle despertou, a horas caladas da noite, em conseqüência de uma tremenda gritaria. Saltou da cama, afastou a esteira movediça, que lhe servia de porta à tenda, e avistou meia dúzia de mulheres nuas, que, soltando bramidos horrorosos, estavam sendo arrastadas pela rua da aldeia, — resultado de uma incursão dos Lukatis contra os inofensivos Bokaris. Vestiu-se rapidamente, suando ao mesmo tempo de medo e indignação, e dirigiu-se à cabana do cacique, afortunadamente sem levar consigo o seu intérprete, porque, se ele tivesse entendido o que Olari lhe respondeu, houvera ficado sem pinga de sangue.

Na manhã seguinte (após aquela entrevista, inteiramente inútil), ordenou aos seus quatro Houssas e aos carregadores que lhe foi possível encontrar, que se preparassem imediatamente para a partida.

— Senhor, — disse-lhe Olari, quando, pelo intérprete, soube de tal resolução, — ainda é cedo para a sua partida. O senhor fará melhor em ficar aqui mais uns dias. Os caminhos andam cheios de pessoas perigosas e eu ainda tenho muita coisa que lhe contar a respeito da maldade de Sândi. Além de tudo isso, — concluiu o soba, — esta noite vai haver uma grande dança em sua honra.

E apontou para onde três escravos estavam ocupados em fincar um grande moirão, ao centro da rua da aldeia.

O jornalista inglês olhou, sem saber o que dizer, para o ponto indigitado.

— Acabada a festa, — declarou Olari, — deixarei então o senhor ir, porque o senhor é meu pai e minha mãe.

O Hon. George Tackle continuava hesitante, quando de súbito, em cada extremidade da rua, apareceram, como por arte mágica, vinte Houssas, empoeirados da viagem. Estiveram parados por alguns momentos, observando o movimento da maloca, e, em seguida, abriram alas para os lados e no centro de cada destacamento brilhou o grosso suporte metálico de uma possante metralhadora.

Em face de tão inesperada visita, Olari nada disse. Olhou primeiro para um lado e depois para o outro, e o rosto pardo não tardou a tornar-se-lhe de um cinzento sujo.

Em direção ao grupo, formado em frente da cabana do chefe por este, pelo viajante inglês e pelo intérprete, veio Sanders caminhando vagarosamente. Estava sem se barbear, com as roupas laceradas por espinhos das árvores da estrada, e trazia na destra um revólver de cano comprido.

— Olari! — chamou ele calmamente, ao aproximar-se. O soba deu logo um passo à frente.

— Penso, Olari, — disse-lhe Sanders, em tom muito brando, — que você já tem sido chefe aqui por muito tempo.

— Senhor, — ponderou-lhe Olari, com as feições contraídas, — antes de mim, meu pai também foi chefe aqui, e, antes de meu pai, o pai dele também foi chefe.

— Que fim levou Tagondo, amigo Olari? — perguntou-lhe Sanders, falando de Carter pelo nome indígena que este tinha ali.

— Senhor, ele morreu, — retrucou Olari, com voz trêmula. — Ele morreu de "mongo" e somente da moléstia mesmo.

— Está você bem certo disso? — inquiriu Sanders dele, meneando a cabeça. — Pois é da mesma doença que você vai morrer!

Olari circunvagou então o olhar para diversos pontos, à procura de um meio de escapar-se.

Não achando para onde fugir, avistou, contudo, o Hon. George Tackle, que contemplava perplexo os dois homens, e arremessou-se aos pés do jornalista britânico.

— Senhor! — gritou-lhe, salve-me deste homem, que me odeia e que me quer matar!

O correspondente especial do Courier and Echo, se não compreendeu tais palavras, entendeu, pelo menos, o gesto de Olari, e seu intérprete o inteirou do resto. E, por isso, quando um dos Houssas de Sanders, por ordem deste, estendeu a mão para agarrar Olari, o filho da casa aristocrática de Widnes, arvorando-se em campeão do senso da justiça, o impeliu para trás. Olvidando também todos os seus pressentimentos anteriores, todos os receios concernentes à atitude do soba de Lukati, não vacilou em dizer ao comandante inglês:

— Pare lá, mister Sanders! Permita-me dizer-lhe que já puniu bastante este pobre diabo!

— Leve daqui este negro, sargento! — disse Sanders asperamente ao Houssa, que agarrou Olari pelo ombro e o arremessou para trás.

— O senhor há de responder oportunamente por tudo isto! — rugiu o Hon. George Tackle, tomado de impotente furor. — Que é que o senhor vai fazer com ele, Deus meu! Não! não! não o mate sem um julgamento!

Proferidas estas palavras, saltou para diante, como que para impedir o fuzilamento sumário de Olari. Mas os Houssas o seguraram e contiveram.

 

Um mês depois destes acontecimentos, quando o Hon. George Tackle se dirigia para bordo do vapor em que ia regressar à Inglaterra, disse ele a Sanders, que o acompanhara amavelmente até à praia:

— Fique certo de que o senhor sofrerá bastante por tudo quanto acaba de fazer!

— Isso em nada me preocupa, — respondeu-lhe Sanders. — O que eu apenas desejo é mostrar-lhe que, se eu não tivesse chegado a Lukati no momento oportuno, o senhor é que teria chegado ao termo dos seus sofrimentos. O senhor ia ser sacrificado pelos indígenas, isto é, ia ser queimado vivo, na noite em que cheguei lá. Não viu o moirão em que ia ser amarrado?

— Isso não passa de uma invenção sua! — bradou o outro. — Pode estar certo de que tornarei toda a Inglaterra sabedora das suas crueldades! A maneira pela qual o senhor comanda este distrito é uma verdadeira mancha para a civilização britânica!

 

— "É fora de dúvida, — disse o juiz, mister Keneally, relatando o processo-crime Sanders versus o Hon. George Tackle, como correspondente especial do Courier and Echo, então submetido a julgamento em plenário, — que o querelado Tackle escreveu certo número de artigos difamantes, prejudiciais, portanto, à bona existimatio do querelante; e, ao meu ver, o aspecto mais espantoso do caso é que, encarregado, como estava, pelo seu jornal, de investigar de acontecimentos presumidos irregulares ou delituosos no distrito de Lukati, o querelado nem sequer se deu ao incômodo de averiguar qual era semelhante localidade. Consoante já me ouvistes dizer, srs. jurados, há na África nada menos de quatro aldeias com o mesmo nome de Lukati. Entretanto, o querelado se dirigiu à aldeia de Lukati, da África Ocidental, quando deveria ter rumado para a aldeia de Lukati, pertencente à Togolândia. Qual a razão pela qual ele tomou a Lukati da África Ocidental Britânica pela Lukati da Togolândia Germânica, eu não sei dizer-vos. Mas, com o intuito de sustentar as suas acusações contra um oficial inglês de todo em todo inocente, apresentou não poucas declarações infundadas e insustentáveis, — cada uma das quais deve ser considerada, inquestionavelmente, como prejudicial aos créditos ilibados do querelante, e, acima de tudo, mais prejudicial ainda para o conceito do jornal, que, em sua colossal ignorância, deu a público tal acervo de sandices".

O júri fez adjudicar a Sanders, como indenização, 9.750 libras esterlinas.


 

A dança sobre pedras

OS HERÓIS DEVIAM SER ALTOS robustos e belos, de olhos relampejantes; Sanders não era alto, tinha o rosto amarelado e, além disso, seu cabelo já grisalhava. Os heróis deviam também possuir recursos verbais cavalheirescos cheios e frases corteses para com as mulheres ternas, que lhes aparecessem na linha de frente do horizonte da vida; Sanders, entretanto, era um homem de linguagem rude, que praguejava à mais ligeira provocação, e não revelava o menor interesse para com os rabos de saia.

Quando colocais um homem num trono, — seja esse trono, embora, um banco de madeira, que, no mercado, valeria, quando muito, quatro pence, — assumis uma responsabilidade, que sobrepuja em muito a toda e qualquer satisfação pessoal, que vos possa produzir o vosso nobre feito. Em certo túmulo da cidade espanhola de Toledo há uma placa de bronze, a qual assinala à posteridade a existência de um célebre fazedor de reis, que viveu o bastante para provar a sua insignificância. O epitáfio, que se lê na citada placa de bronze, patenteia o verdadeiro conhecimento do que é, em fim de contas, todo esforço humano.

— "Pulvis et nihil" — diz a referida inscrição tumular. E "Pó e Nada" — eis o destino definitivo de todos os fabricantes de reis.

Sanders foi também, em começo, um criador de reis. Ajudou a subjugar uns poucos de monarcas africanos, e, em obediência às leis de compensação, tomava também parte no afã de substituí-los por outros.

Destruiu Esindini, Matabini, T'Saki, — para citarmos apenas três, — e ajudou outrora, em outro distrito, a vencer Lo-Bengola, o "Grande-Touro".

Criador de reis, ele o era, sem dúvida alguma, — apesar do republicanismo, escrito legivelmente, no riso cheio de ironia, com que ele os fabricava, — mas os reis, que fazia, eram pequenos. O sistema do governo anglo-africano, com efeito, consistia em subjugar a um grande rei e em colocar muitos reizinhos no lugar do mesmo, pois isso sempre e mais seguro.

Algures, cerca de 12° de latitude norte e a 0o de longitude, existe um território singular, pelo fato de ser britânico, francês, germânico e italiano, de acordo com qualquer mapa africano, pelo qual vós vos guiardes.

Ao tempo em que escrevi estas páginas anteriores, não era, em verdade, de nenhum dos citados povos, mas governava-o soberanamente Mensiki-Limbili, o "Grande-Rei". Era o mais poderoso dos monarcas daquelas regiões, e, por isso mesmo, o mais cruel. O seu domínio estendia-se "do surgir da lua ao pôr do sol", consoante a expressão dos seus súditos, e gozava de enorme e evidente prestígio. Rodeava-se de uma numerosa corte; sentava-se em trono de marfim; sobre a pele de leopardo, de uso geral, que lhe pendia dos ombros, trazia um manto, tecido de fios de ouro e de fios escarlates; e administrava justiça. Tinha 300 mulheres e 40.000 guerreiros. As suas relações com os europeus começaram e terminaram com a vinda de certa missão francesa, a qual lhe deu os seguintes presentes: um chapéu alto, um órgão de canudos e 100.000 francos em ouro.

Tal era Limbili, o rei de Yitingi.

Os pequenos reis das terras meridionais falavam dele com a respiração diminuída; o nome dele era proferido em voz baixa, como o de um deus; era o símbolo da majestade e da força. Os povos de Isisi, — uma nação de bastante importância e também vaidosa, — referiam-se a si mesmos injuriosamente, quando se comparavam com o reino de Yitingi.

À missão francesa seguiu-se a britânica. Sanders foi enviado a Limbili, levando-lhe presentes de uma só qualidade e mensagem de boa vontade.

Uma vez dentro do território de Yitingi, foi escoltado por um grande exército indígena e alojado na capital do reino.

Depois de dois dias de espera, foi informado de que Sua Majestade se dignava de recebê-lo, e foi então conduzido à "Presença".

A "Presença" era um velho, — um velho cheio de vícios (Se é que Sanders podia bem ajuizar do caráter alheio), — o qual mostrou inconfundíveis sinais de cólera e desdém, quando o comandante inglês lhe fez entrega dos presentes.

— Para quem é que são estes presentes, homem branco? — perguntou-lhe carrancudamente o rei. — São enfeites para as minhas mulheres ou gratificações aos meus fâmulos?

— São para Vossa Grandeza, — respondeu-lhe Sanders, serenamente. — E o povo, que os envia, não mede a amizade pela opulência dos presentes.

O rei tomou um pouco de fôlego.

— Diga-me, homem branco, em suas viagens pelo mundo já viu algum rei tão grande quanto eu? ,,

— Senhor rei, — replicou-lhe Sanders, cujo defeito era ser franco, — já vi maior.

O rei carregou o sobrecenho e a multidão, que lhe rodeava a sagrada pessoa, rugiu ameaçadoramente.

— É mentira, homem branco, — obtemperou-lhe calmamente o rei, — porque nunca houve no mundo um rei maior do que eu!

 — Deixe o homem branco dizer quem é maior! —  resmungou um ancião, conselheiro da corte, a cujas palavras se seguiu um murmúrio de aprovação.

— Senhor, — disse Sanders, olhando firmemente para o velho soberano, que se refestelava no trono, — eu já vi Lo-Ben(*).

(*) Lo-Bengola, rei dos Matabeles (Nota do autor).

 

Limbili franziu novamente as sobrancelhas e meneou a cabeça, objetando:

— Já ouvi falar dele, como um grande rei e destruidor de nações. Quem mais?

 — Senhor, — mentiu Sanders, — conheço também Ketcewayo.

E alguma coisa, semelhante a um silêncio abafado, caiu sobre aquela corte, porquanto o nome de Ketcewayo era temido em todo o norte.

— E de reis brancos? — insistiu Limbili. — Há no mundo algum, cuja palavra, quando sai, faz tremer os homens?

Sanders riu-se Intimamente, com ironia, pois bem conhecia tal rei; mas respondeu que, em toda a sua vida, jamais encontrara um soberano assim.

— E de exércitos, homem branco, — indagou dele ainda o rei, — já viu em qualquer tempo um exército igual ao meu?

E, nesse teor, percorreu o rol de tudo quanto possuía. Sanders, achando que a mentira lhe pouparia maiores incômodos, serviu-se dela à grande: aclamou Limbili como o rei maior do inundo, comandante do exército mais perfeito e administrador de um povo sublime.

Pode-se dizer que a tais envaidecimentos é que o reino de Yitingi devia a sua integridade, porquanto, satisfeito com a perfeição de tudo quanto possuía, Mensiki-Limbili restringira as injustiças, crueldades e pequenas guerras, a dentro dos limites do seu país. E é bem de ver que nisso buscava as suas distrações.

Certo dia, logo depois das chuvas, quando a terra ainda estava úmida e o ar impregnado dos aromas suaves da primavera africana, fez Sanders uma viagem através dos pequenos distritos da sua jurisdição. Eram terras situadas longe dos grandes rios, circunscritas por sinuosidades desiguais, divididas violentamente no mapa por esta ou aquela linha de fronteira internacional, ou espalhadas pelas orlas de países selvagens e vagamente inscritas pelo cartógrafo como "Sob influência britânica".

Era sempre uma viagem interessante, — Sanders fazia-a uma vez por ano, — porque o caminho margeava rios pitorescos, e, descortinando cenários poucos comuns, atravessava malocas, onde, além de Sanders, nunca fora visto outro homem branco. Depois de um mês inteiro de jornada, chegou o comandante inglês a Icheli, aldeia ereta nas fronteiras do reino de Mensiki-Limbili, e foi recebido ali com imensa alegria pelo cacique e respectivos conselheiros.

— Senhor, chegaste em boa ocasião, — disse-lhe amavelmente o chefe. — Daihili vai dançar esta noite.

— E quem é Daihili? — perguntou-lhe Sanders.

Contou-lhe o soba quem era Daihili, a qual foi logo chamada para ser vista por Sanders, que imediatamente averiguou tratar-se de uma rapariga muito ancha do valor que lhe davam, de uma insignificância petulante demais para aquele meio indígena.

Era, todavia, uma esbelta meninota, mais alta do que a média daquela tribo; tinha as formas já perfeitamente modeladas, um rosto nada desagradável, mesmo para o ponto-de-vista europeu, porte gracioso, e todos os seus movimentos eram harmoniosos. Sanders, mascando a ponta do charuto, analisou-a num relance.

— Minha menina, contaram-me que você dança bem. É verdade? — perguntou-lhe ele.

— É verdade, senhor! — respondeu ela, muito convencida. — Sou a melhor dançarina de todo o mundo.

— A tão longe não posso eu chegar, — disse-lhe o comandante inglês, cautelosamente. — Mas não ponho dúvida em que a sua dança seja admirável.

— Senhor, — exclamou ela, gesticulando orgulhosa, — quando eu danço, os homens ficam todos babando por mim e chegam até a perder a cabeça! Esta noite, quando a lua estiver bem alta, eu lhe mostrarei a dança dos "Três-Namorados".

— Esta noite, — declarou-lhe Sanders para fecho da conversa, — eu a passarei toda na cama, onde espero dormir descansadamente.

A rapariga franziu um pouco a testa. Sentiu-se provavelmente ferida em sua vaidade, pois já tinha quinze anos e não divergia em nada das mulheres de qualquer outra região do mundo: Isto é que Sanders, de certo, não sabia; e duvido que, se ele o soubesse, tal conhecimento o levasse a proceder de outra forma.

Aquela noite, quando já estava na cama, ouviu o toque do tambor e o rítmico batido de mãos; e, antes de adormecer, ainda imaginou qual seria o fim de uma galante menina, a qual dançava de tal jeito, que os homens ficavam todos loucos por ela.

Daihili era filha do caudilho daquela cubata; e, antes de retirar-se dali, Sanders julgou dever dar um conselho ao pai, com relação a ela.

— Esta sua filha tem quinze anos, — disse ele ao chefe, — e seria melhor que se casasse quanto antes.

— Senhor, — replicou-lhe, orgulhosamente, o soba, — ela já tem muitos namorados, mas nenhum bastante rico para comprá-la, pois ela é uma tão perfeita dançarina! Chefes e guerreiros de aldeias longínquas têm vindo aqui, somente para vê-la. — Olhou para todos os lados e continuou, agora em voz muito baixa: — Diz-se que o próprio Grande-Rei já tem falado dela. Talvez a mande chamar, oferecendo isto e mais aquilo. Se assim acontecer (concluiu, radiante de esperança), relutarei e regatearei, conservando-o na incerteza, de modo que cada dia o preço dela suba mais...

—Se o Grande-Rei a quiser, deixe-a ir, — disse-lhe Sanders, — para que não mande aqui um exército, em vez de presentes e dinheiro. No território sujeito ao meu comando, não quero saber de guerras, nem de questões de mulheres, que são piores do que guerras. Tome nota disto, chefe!

— Senhor, a vossa palavra é o meu desejo! — obtemperou-lhe o soba, hipocritamente.

Sanders iniciou o regresso para o seu quartel-general de maneira cômoda, isto é, fazendo escalas. Em Isisi, teve que parar toda uma semana, a fim de liquidar uma questão de feitiçaria. Em Belembi, pertencente ao distrito de Isisi, ficou três dias, para solucionar um caso de homicídio por meio de mandinga. Havia ele proferido já a sua sentença, e Abiboo, o executor de suas decisões, escolhia e experimentava a vara mais vigorosa para os açoites que iam ser dados no réu, quando o soba dos Ichelis veio voando rio abaixo, com três canoas, e Sanders, que, donde estava sentado, avistava até bem longe a caudal, logo conjeturou de que séria perturbação se tratava.

— Justiça, senhor! ululou o cacique de Icheli, com voz trêmula, por causa da raiva e do medo, que simultaneamente nutria. — Justiça contra o Grande-Rei, roubador de mulheres e destruidor de aldeias! Dai-lhe a morte! Dai-lhe a morte, senhor! Ewa!

No mesmo dia em que Sanders havia partido de Icheli, chegara ali um mensageiro de Limbili, escoltado por cem guerreiros, o qual viera pedir para o Grande-Rei a jovem e famosa dançarina. Fiel ao plano que se pré-traçara, o pai começou as necessárias entabulações de ajuste. Sempre regateando, declarava que os presentes eram muitos pequenos, pois sua filha valia, pelo menos, mil sacas de sal.

Tudo isso contou o chefe ao comandante inglês.

— Você, positivamente, estava louco! — bradou-lhe Sanders. — Não há mulher alguma que valha mil sacas de sal...

— Bem pode ser! — concordou o pai ultrajado. — Mas não seria eu tolo, para pedir logo um preço muito baixo.

Consoante a narração do soba de Icheli, o regateio prosseguiu através da noite e durou todo o dia seguinte, até que o enviado de Limbili se tornou impaciente.

— Mande trazer aqui a mulher! — ordenou ele. Cumprida a intimação, Daihili veio logo, afetando certa modéstia, mas com secretos relances de estímulo ao embaixador insensível e exibindo habilmente todos os seus encantos.

— Mulher, — disse-lhe o mensageiro, — o maior dos reis deseja-a. Quer ir para ele?

— Senhor, — respondeu prontamente a rapariga, — não desejo nada melhor.

Cercada imediatamente pelos guerreiros armados, de ordem do plenipotenciário de Limbili, Daihili lá se foi para o Grande-Rei.

— E, assim, — perguntou Sanders ao soba de Icheli, — nada obteve você por ela?

— Senhor, é como dizeis! — gemeu o velho chefe.

— É evidente, — disse-lhe Sanders, — que foi cometida para com você uma grave injustiça, porque nenhum homem pode levar mulher alguma, sem que pague o preço dela. Penso eu, — acrescentou, num lampejo daquele humor mordaz, que por vezes lhe iluminava as decisões, — que o homem paga duas vezes ao pai, além de pagar a vida inteira à esposa... Mas Limbili pagará!

Seis semanas mais tarde, depois de semelhante deliberação, Sanders mandou um mensageiro ao Grande-Rei, reclamando o pagamento do preço de Daihili.

O que aconteceu ao enviado de Sanders, antes quisera eu não descrever. Dizer que foi morto, é o que me custa menos. Precisamente antes de soltar o derradeiro alento, quando já seus olhos refletiam o embaciado da morte, seu pobre corpo esfrangalhado, em vez de ir para o descanso do perpétuo olvido, foi conduzido para um ponto bem em frente da cabana do Grande-Rei, e, em torno dele, dançou Daihili a "Dança-dos-Espíritos". Fica-se conhecendo assim uma parte do suplício.

Sanders nada fez, nem o governo britânico: apenas foram trocadas algumas notas diplomáticas entre Londres e Paris; e a isso se limitou o desfecho do episódio.

Dirigiram-se ao país do Grande Rei dois espiões de Icheli. Um deles pôde voltar à aldeia natal, onde contou que a rapariga dançarina era a esposa favorita do velho Limbili e que, por isso, os destinos daquele povo estavam então subordinados aos caprichos dela. Tanto assim que, conforme relatou ele, já tinham morrido lá, por causa da linda jovem, que dançava tão bem, muitos homens, entre os quais alguns conselheiros e cabos-de-guerra do Grande-Rei. O outro espião não regressou.

Foi provavelmente a prisão do segundo espia que levou a dançarina a mandar um exército contra Icheli. Indignou-se ela, por certo, de estar sendo espionada.

Certo dia, a aldeia de Icheli foi cercada e invadida pelos soldados do Grande-Rei. E ali não escapou ninguém, nem homens, nem mulheres, nem crianças.

A notícia de tal matança custou muito a chegar ao conhecimento de Sanders. A razão era simples: não sobrevivera nenhum Icheli para levar-lhe a mensagem e aquele povo vivia muito isolado. Mas, um dia, alguns caçadores de Isisi, que andavam à procura de elefantes, chegaram a certo lugar, onde havia forte cheiro de queimadas e inúmeros esqueletos. E só assim foi que Sanders veio a saber...

— "Não podemos, — respondeu ao chanceler inglês o Ministro dos Negócios Coloniais da França, mr. Léon Marchassa, — aceitar responsabilidade alguma pelos delitos do rei de Yitingi. E meu governo olharia com simpático interesse qualquer tentativa que fosse feita pelo governo de Sua Majestade Britânica, no sentido de pacificar aquele povo".

O governo britânico, porém, nada fez, porque guerra é um negócio muito sério e muito dispendioso. Sanders riu-se sardonicamente, amaldiçoando, sem rancor, os seus superiores.

Arriscando a própria vida, chegou até às fronteiras de Yitingi, tendo levado consigo apenas vinte Houssas. Dali enviou a Limbili um mensageiro, — um súdito do soberano de Yitingi Com aquela audácia, que não era o menor dos seus predicados morais, mandou ordem ao Grande-Rei para que viesse ali ter com ele uma conferência urgente.

Esta aventura quase se malogrou em começo, porque, precisamente quando o Zaire subia por entre as margens do Isisi, Sanders surpreendeu, inopinadamente, vestígios de uma expedição invasora. Havia sinais inconfundíveis quanto ao autor e cabecilha da mesma. Foi por isso que o comandante inglês disse a Abiboo:

— Tenho vontade de voltar, a fim de punir aquele maldito Bosambo, chefe dos Ochoris! O bandido jurou-me, por uma variedade imensa de deuses e demônios, que havia de conservar-se em paz. No entanto veja você como ele acaba de invadir terras alheias!

— E há de continuar a proceder assim, senhor! — ponderou-lhe o seu dedicado servidor. — Ele ainda está aqui pelas vizinhanças, porque os incêndios, que ateou, ainda estão quentes.

Sanders, todavia, prosseguiu na sua rota, e, como dissemos acima, enviou a mensagem ao Grande-Rei.

Determinou que o seu pequeno barco estivesse de fogos acesos, — havia ele escolhido o único ponto em que o rio banha as fronteiras de Yitingi, — e esperou, bem preparado para uma ignominiosa, ainda que prudente, escapula. Foi com espanto não pequeno que soube, por espiões seus, que Limbili se aproximava dali. Devia ele aquele gesto do Grande-Rei à influência de Daihili, porquanto a jovem dançarina, como mulher que era, guardava na memória certa recusa, tendo, portanto, contas a ajustar com o sr. comandante Sanders.

Chegou Mensiki-Limbili, atravessando as terras, semelhantes a campinas, que orlam as duas margens do rio. Sanders observava, com sentimentos confusos, a marcha do grande cortejo. O rei, afinal, fez alto a uns cem metros do rio; o seu enorme guarda-sol escarlate ocupava o centro de uma linha negra de soldados, a qual se estendia, de cada lado, por mais de trezentos metros.

Concluídas tais manobras, uma parte da soldadesca do Grande-Rei destacou-se da fileira negra e veio para ao pé de uma árvore morta, que ficava encostada ao rio e sobre a qual drapejava, no ar límpido, a bandeira da Inglaterra.

— Aqui, — falou Sanders aos seus botões, — é onde vou hoje perder a vida.

Era tal a gravidade da situação, qual se lhe apresentava naquele momento, que ele se permitiu alterar o velho costume, indo em pessoa à presença do rei.

— O Grande-Rei espera-vos, homem branco, oferecendo-vos abrigo à sombra do seu pálio! — disse-lhe o mensageiro de Limbili.

Sanders sacudiu a cabeça, afirmativamente, e seguiu, devagar, para o meio das tropas negras, achando-se logo diante do soberano de Yitingi, o qual, acocorado sobre um montão de peles, piscava os olhos, como um macaco, à luz do sol.

— Viva para sempre, senhor rei! — bradou-lhe Sanders, fluentemente.

E, enquanto levantava a destra em saudação ao velho soba, viu Daihili a contemplá-lo, de má catadura.

— Que é que desejais de mim, homem branco? — perguntou-lhe Limbili. — Que ricos presentes me trazeis, uma vez que me chamastes a tantos dias de viagem?

— Rei, — respondeu-lhe Sanders, arrojadamente — não trago presente algum para você, porém sim a mensagem de um soberano que é maior do que você, porque os seus soldados excedem em número as areias deste rio, e as suas terras se estendem do oriente ao ocidente, do norte ao sul!

— Não há tal rei! — rosnou Limbili. — Vós mentis, homem branco, e eu cortarei vossa língua em tirinhas!

— Deixai-o dar sua mensagem, senhor! — aconselhou habilmente Daihili.

— Vou transmitir a você a mensagem do meu rei, — disse Sanders, tranqüilo, com a mão direita no bolso do dólmã branco, de sorte que Limbili estava mais perto da morte do que contava.

— O rei meu senhor, manda-me declarar a você o seguinte: "Desde que o Grande Chefe de Yitingi destruiu o povo de Icheli, desde que atravessou a fronteira dos meus domínios e causou sofrimento a um povo que protejo, — meu coração ficou magoado. Entretanto, se o Grande Chefe de Yitingi pagar uma multa de mil cabeças de gado e permitir, tanto aos meus comandantes, quanto aos meus soldados, livre acesso ao seu território, viverei em paz com ele".

Limbili soltou uma risada perversa, de caçoada.

— Oh! ko! — estentorou ele. — Que grande rei!

Daihili deu um passo à frente, aproximando-se do comandante inglês, a quem disse:

— Sândi, vós uma vez me desfeiteastes, porque, quando eu ia dançar em vossa honra, vós fostes dormir!

— A você, Daihili, — ponderou-lhe Sanders, firmemente, — eu nada tenho que dizer. Não vim aqui para ter conferência com mulheres. Esse não é meu costume, nem minha lei. O meu negócio é somente com Limbili.

O soberano de Yitingi estava falando rapidamente, por trás das mãos em concha, a um homem que se curvava sobre ele. Sanders, sempre com a destra no bolso do dólmã, desapertou o gancho de segurança da sua Colt automática.

Durante todo o tempo em que a rapariga lhe falava, ele não deixara de observar pelo canto dos olhos o homem que conversava com Limbili. Viu-o desaparecer entre a grande massa de soldados que estavam de pé, atrás do velho regulo agachado, e prontos para o que desse e viesse.

— Uma vez que eu não pude dançar em vossa honra, — guinchou a rapariga a Sanders, — o Grande-Rei, meu esposo e senhor, vai fazer com que vós danceis em minha honra!

— Isso é uma loucura! — bradou-lhe Sanders.

Mas, vendo a linha de cada lado fazer meia volta para cercá-lo, tirou a pistola do bolso.

— Crack! crack!

O tiro, destinado a Limbili, não acertou no alvo, indo atravessar a perna de um soldado que estava atrás do rei.

Fora mau atirador, pela primeira vez. Isso, Sanders compreendeu-o com alguma filosofia, quando, extremamente aborrecido, se viu estendido no chão e amarrado como uma ave.

Mas, ao primeiro tiro, Abiboo, obedecendo às instruções que recebera de Sanders, fez o barco a vapor aproar corrente abaixo. Era essa a única esperança, que restava ao comandante inglês, naquela gravíssima conjuntura.

Durante todo aquele longo dia, com um sol desapiedado a bater-lhe em cheio no rosto, ficou ele deitado, em meio de uma escolta armada, à espera da morte, a qual lhe sobreviria, de certo, por uma forma terrível.

Entretanto, não havia perdido o ânimo, porquanto aquilo • era o fim lógico do cumprimento do seu dever. Ao anoitecer, deram-lhe água, o que lhe foi muito agradável. Da tagarelice dos guardas inferiu que devia ser supliciado à noite; mas, quanto ao gênero de morte, era preciso adivinhá-lo.

Do ponto em que estava deitado de costas, podia ver, voltando um pouco a cabeça para o lado, a tenda do rei, em frente à qual, pelo fim da tarde, estavam alguns homens empenhados diligentemente em dispor pedras lisas no chão. Eram elas de singular uniformidade: pareciam ter sido talhadas previamente, de modo que se ajustassem para algum fim especial. Ao guarda, que lhe estava mais próximo, fez uma pergunta a respeito delas.

— São as pedras para a dança, homem branco! — respondeu-lhe o soldado. — Foram tiradas da montanha que fica próxima à nossa aldeia.

Mal desceu a escuridão sobre a terra, foi acesa ali perto uma enorme fogueira. Foi então que ouviu os seus guardas comentar a fuga do Zaire, agradecendo-lhes, intimamente, tão boa notícia.

Exausto de corpo e de espírito, dormitava ele, quando foi despertado, pois os guardas o arrastaram pelos pés, tiraram-lhe as cordas e conduziram-no à presença do rei. Viu, então qual a forma por que ia ser torturado.

As pedras Usas estavam sendo tiradas do fogo, pelos soldados, com grandes tenazes de madeira, e eram colocadas diante da tenda de Limbili, formando uma espécie de pavimento tosco.

— Homem branco, — disse-lhe Limbili, enquanto mãos grosseiras tiravam as botas do comandante inglês, — Daihili, minha mulher, deseja ver-vos dançar.

— Fique certo, rei, — respondeu-lhe Sanders, por entre os dentes, — de que algum dia você dançará no inferno, em mais agradável companhia, depois de ter dançado antes na ponta de uma corda!

— Se viverdes depois da dança, homem branco — declarou-lhe ainda o rei, — haveis de ficar em triste estado!

Em torno das pedras, formara-se um círculo de soldados negros, cujas lanças estavam enristadas para o centro; os que se achavam do lado da tenda do rei permaneciam agachados, a fim de que seus corpos não escondessem o espetáculo à visão de Limbili.

— Façam-no dançar! — ordenou o rei aos soldados, e Sanders foi arremessado sobre as pedras. A primeira, em que pisaram os seus pés, descalços, estava apenas morna, e sobre ela se deixou ele ficar, até que a ponta de uma lança o impeliu para diante. A pedra seguinte fumegava abrasadora, de sorte que Sanders saltou sobre ela, soltando um grito abafado. Não tardou a ser empurrado, por outro lançaço, para uma terceira pedra, mais quente ainda, e sobre a qual ele não pôde deixar de saltar novamente.

— Joguem-lhe água em cima! — gritou o rei, em tom alegre.

E os soldados cumpriram-lhe a ordem, enquanto retiravam Sanders de cima das pedras, arrastando-o para o chão, onde ele tombou desfalecido, qual um montão inerte de carne humana.

— Façam-no dançar mais uma vez! — ordenou Limbili. Mas, apenas acabava ele de pronunciar tais palavras, lá da escuridão, que cobria as margens do rio, saltou uma trêmula irradiação de luz amarela.

— Ha-ha-ha-ha-ha-ha-ha-há!

A metralhadora, posta em ação por Abiboo, pipocava da distância de uns cinqüenta metros, e uns quinhentos homens, sob o comando de Bosambo, o cabecilha dos Ochoris, corriam sobre os Yitingis.

Tomados assim de surpresa, os soldados de Limbili ficaram a princípio estarrecidos; mas, ante os gritos selvagens dos Ochoris, não tardaram a tomar-se de pânico, pondo-se logo em desabalada fuga.

Sanders foi rapidamente transportado, a braços, para o barco a vapor, porquanto os seus salvadores receavam que os Yitingis, famosos combatentes noturnos, recobrassem coragem e voltassem imediatamente a enfrentá-los. Sentado no convés do Zaire, Sanders, enquanto tratava dos pés queimados e blasfemava constantemente, observava a faina dos seus Houssas, que gemiam, ao içarem a metralhadora para bordo, e via os Ochoris retomando as canoas, em que tinham vindo rio acima. Mas desfaleceu novamente.

— Senhor, — disse-lhe Bosambo, na manhã seguinte, — há muitas luas atrás, fizestes aos Ochoris a acusação de que eles não sabiam combater. Isso só era verdade nos dias longínquos, em que eles não tinham ainda por chefe a Bosambo. Agora, graças ao meu ensino e ao ardor que eu lhes pus no sangue, vistes como eles derrotaram aos soldados do Grande-Rei.

O comandante inglês notou que ele se lhe apresentara magnificamente paramentado, pois lhe pendia dos ombros um manto de fio de ouro, entrançado sobre fundo azul, que não era seu na véspera.

— Bosambo, — declarou-lhe Sanders, calmamente, — embora eu tenha uma certa conta a ajustar com você, que quebrou a nossa lei, invadindo terras alheias, não posso deixar de confessar-me agradecido a você cujo desejo de apoderar-se do que é de outrem o arrastou a este lugar. Onde foi que você obteve essa linda capa?

— Roubei-a, senhor! — respondeu-lhe Bosambo, com toda a franqueza. — Roubei-a da tenda do Grande-Rei. Também eu trouxe comigo uma das pedras, de sobre a qual meu senhor não mais se levantaria... Trouxe-a, pensando que ela pode servir de prova contra os Yitingis.

Sanders meneou a cabeça afirmativamente, e, fazendo uma pequena careta, mordeu a ponta do charuto, que estava fumando. Aquela frase, — "de sobre a qual meu senhor não mais se levantaria", — tinha sido pronunciada por Bosambo com excessivo agrado deste.

— Deixe-me vê-la! — bradou-lhe Sanders.

E o próprio Bosambo foi buscá-la, trazendo-lha para ali.

Havia ela suportado uma temperatura bastante elevada, mas um dos seus cantos tinha sido quebrado pelo rude manejo dos soldados de Yitingi. E Sanders ficou olhando longamente, seriamente, para aquele canto quebrado.

— Isto é, de fato, — ponderou ele, — um argumento concreto, em face do qual nenhum governo britânico, convenientemente esclarecido, poderá passar por alto. Estou lendo aqui o fim de Limbili!

 

Passou-se a estação chuvosa e voltou a primavera, que foi quando Sanders se encontrou de novo em frente do Grande-Rei. Ali, em redor da vasta aldeia de Yitingi, tudo era desolação, tudo eram ruínas. A planície estava juncada de cadáveres e a enorme cubata estava reduzida a escombros fumegantes. À esquerda, viam-se acampados três regimentos de Houssas; à direita, dois batalhões de carabineiros africanos se acocoravam em redor de grandes caldeirões, para a segunda "refeição", enquanto as notas ásperas das suas trompas de caça feriam agudamente o espaço silencioso.

— Eu sou um velho, senhor !— ululava Mensiki-Limbili. Mas Daihili, que lhe estava ao lado, agachada junto dele, nada disse. Apenas os seus olhos, bem abertos e pávidos, não se desfitavam do rosto vermelho-atijolado de Sanders.

— Velho, você de fato o é, — retrucou-lhe o comandante inglês, — mas não é velho demais, para deixar de ser enforcado.

— Eu sou um grande rei, — gemeu o outro, — e não é decente que um grande rei seja enforcado!

— Mas, se eu não mandar enforcar a você, — ponderou-lhe Sanders, — muitos outros grandes reis, que há também por estas bandas, dirão: "Podemos cometer toda espécie de abominações, porque, em razão da nossa grandeza, não seremos condenados à morte!"

— E que ides fazer de mim, senhor? — perguntou-lhe Daihili, em voz baixa e lúgubre.

— De você? — E Sanders olhou para ela. — Ho! hi! — exclamou, como se somente em tal momento se houvesse recordado dela. — Agora, nada faremos de você, Daihili, porque você nada é!

E viu que ela se encolhia toda, como alguém que tivesse recebido uma chicotada.

Acabada a execução de Mensiki-Limbili, puseram-se a conversar Sanders e o comandante dos Houssas.

— O que ainda não pude bem compreender, — dizia-lhe o coronel, — é o motivo pelo qual só agora fomos repentinamente mandados a esta expedição. Há muito que ela se fazia necessária. Mas por que foi que só agora deu o governo inglês autorização e ordens para a mesma?

Sanders riu-se misteriosamente.

— É um povo admirável o povo inglês! —explicou ele, alegremente, ao seu interlocutor. — O velho Limbili comete roubos contra súditos britânicos, e eu envio ao meu governo um relatório sobre isso. — "Muito grave!" diz a Inglaterra, e não passa de tais palavras. Limbili invade e destrói uma aldeia vizinha, e eu informo disso ao meu governo. — "Deplorável!" exclama a Inglaterra e continua na moita. O Grande-Rei faz-me dançar sobre as originais, bem intencionadas pedras do inferno. — "Trate isso como um simples gracejo!" replica-me a Inglaterra. Mas, apenas remeto ao meu governo uma das tais pedras, demonstrando que ela encerrava uma onça, no valor de dez pence, de ouro fino, prova de que havíamos descoberto o mais rico filão aurífero da África Central, em menos de seis meses eis aqui este exército!

Quanto a mim, penso que Sanders foi um pouco injusto, no juízo que formulou sobre a maneira de agir do governo inglês. Afinal de contas, não há guerra que não custe dinheiro, e uma guerra de vingança é, notoriamente, sempre sem proveito algum.


 

A floresta dos-sonhos-felizes

Sanders, em viagem para receber impostos e administrar justiça à gente que habita o baixo Isisi, havia parado para fazer uma provisão de lenha.

O pequeno barco a vapor ancorara à margem do rio. Havia ali uma pequena enseada, na qual as corrente velozes da caudal se quebravam brandamente. Apesar de tudo, o comandante inglês inspecionou as extremidades dos cabos de metal, antes de atravessar a estreita prancha que unia à terra o convés do Zaire. A lenha já estava toda empilhada a bordo, pois a viagem seria recomeçada no dia seguinte. A nova sonda fora experimentada por Yoka, o maquinista, conforme Sanders ordenara; as máquinas tinham sido bem limpas; e o comandante inglês, que tudo examinara, havia meneado a cabeça, aprovativamente. Transpôs ligeiramente duas ou três formas adormecidas, enrodilhadas sobre o convés, e ganhou a praia.

— Agora, creio que posso descansar um pouco, — murmurou consigo próprio.

E olhou para o seu relógio-pulseira. Eram nove horas. Conservou-se de pé, por alguns momentos, na crista da margem escarpada do Isisi, e fitou a vista para além do rio. A noite estava escura, mas ele lobrigava os contornos da floresta, a qual se estendia por toda a margem fronteira. Via o céu cintilante de jóias, cujo pálido reflexo se espelhava na água. Rumou, então, vagarosamente, para a sua tenda, armada em terra, e vestiu logo o pijama. Tirou de um frasco duas tabletes de quinino, engoliu-as, bebeu por cima um copo de água, e, metendo a cabeça pela abertura das cortinas da tenda, ordenou, no idioma indígena:

— Ó Sokani! Toque o lo-koli!

E meteu-se no vale dos lençóis.

Ouvia o bulício dos homens no acampamento, o estrépito das risadas, provocadas por sutis zombarias e gracejos, pois que o povo de Cambul tem bastante aguçado o senso do bom-humor, e, logo após, o retumbo das varetas batendo no tambor indígena, que não passa de um tronco de árvore oco. O rústico instrumento ressoou ferozmente, furiosamente, arquejantemente; com alguma nota mais profunda de quando em quando, visto como o tocador, pondo de manifesto toda a sua arte, enviava ao acampamento a mensagem do sonho.

Depois de um crescendo selvagem, o lo-koli cessou de todo, e Sanders, soltando um suspiro de satisfação, voltou-se para a parede da tenda e fechou os olhos. De repente, porém, sentou-se na cama. Devia, sem dúvida, ter dormitado; mas, agora, estava inteiramente desperto.

Depois de ter escutado, por alguns momentos, certos ruídos estranhos, saltou da cama e calçou as suas botas resistentes. Saiu, dando alguns passos ali fora, em meio da escuridão, encontrando logo adiante a N'Kema, o vigilante, que já o estava esperando.

— Ouviu alguma coisa, senhor? — perguntou-lhe o indígena.

— Ouvi, — respondeu-lhe Sanders, num tom perplexo. — É esquisito! Não estamos perto de aldeia alguma...

E pôs-se novamente à escuta.

Vinha, de além da mata, recoberta pela escuridão da noite, uma confusa mescla de ruídos ininterruptos; dominando-os, porém, percebia-se, inconfundível, o fraco som de um tambor, que 'respondia ou avisava. O homem branco franziu a testa, presa de hesitação, murmurando em seguida:

— Mais próxima daqui não há outra maloca, senão a de Bogindanga. Às margens do rio, não vi aldeias de pesca, e as florestas atualmente estão desertas...

O indígena ergueu um dedo, pedindo-lhe silêncio, e encostou a cabeça no chão, prestando ouvidos atentos. Estava procurando decifrar a mensagem, enviada pelo tambor longínquo. Sanders esperou pacientemente. Conhecia o fato prodigioso daquele telégrafo africano, que transmitia notícias através das selvas virgens. Ele não podia entendê-lo; nenhum europeu o compreendia; tinha, todavia, muito respeito pelo seu mistério.

N'Kema interpretou a mensagem da seguinte maneira:

— Está aqui um homem branco. Está doente.

— Um homem branco? — repetiu Sanders.

E, na escuridão, as suas sobrancelhas ergueram-se incredulamente.

Mas N'Kema continuou a sua interpretação:

— O homem branco está louco. Acha-se na Floresta-dos-Sonhos-Felizes e não quer mudar de lugar.

O comandante inglês deu um muxoxo, impacientemente, murmurando mais para si mesmo do que para fazer-se ouvir pelo vigilante:

— Não há branco algum que se atreva a morar na Floresta-dos-Sonhos-Felizes, a menos que, de fato esteja doido varrido!

Mas o tambor indígena, lá de longe, repetia monotonamente a notícia enfadonha. Lá ao longe, sem dúvida, no coração da clareira mais pitoresca da África, acampado no próprio centro do Caminho-Verde-da-Morte, havia um homem branco.

— Um branco doente, na Floresta-dos-Sonhos-Felizes, um branco doente...

E assim o tambor distante prosseguiu no seu rufo, e prosseguiu, até que Sanders, acordando ao seu soldado Sokani, que tinha tocado havia pouco, o lo-koli, mandou ao outro uma resposta estrepitosa, de que seguiria pelo rio abaixo. E começou a vestir-se apressadamente.

Além, no âmago da selva, estava, deveras, um homem muito doente. Fora ele próprio quem escolhera aquele sítio para acampar. Era uma clareira, não distante da pequena enseada do Isisi, que ali volteava entre altas ervas-de-elefante. Mainward escolhera-o, pouco antes de adoecer, porque achara muito bonito aquele sítio. Semelhante razão não bastaria a qualquer outro homem; mas Mainward era um sentimental e sua vida não passava de uma longa história de escolhas de lugares bonitos para acampamento, sem respeito aos perigos...

— "Mainward era, — dizia um jornal londrino, comentando o desastre final, que o obrigara a fugir da justiça para as terras selvagens da África, — um indivíduo de imaginação exuberante".

Vítima de uma confiança excessiva em si mesmo, o fugitivo elegeu para asilo aquele pedaço letal dos Ituris, por estes denominado grosseiramente de "Terra-onde-todos-os-maus-pensamentos-se-tornam-bons-pensamentos", expressão que os exploradores e negociantes destemidos transmudaram poeticamente na de "Floresta-dos-Sonhos-Felizes". Uma confiança excessiva tinha sido, realmente, a causa da ruína de Mainward: confiança excessiva na ligeireza de seus cavalos para vencerem grandes corridas; confiança excessiva em sua própria habilidade para arranjar dinheiro, a fim de encobrir desfalques, que dera, como diretor do Banco de Welshire, cargo que exercera uma única vez; confiança excessiva em assenhorear-se do amor de certa mulher, que, quando ocorreu o escândalo do desfalque, o olhou desgostosa, declarando-lhe que estava profundamente contristada pela situação dele, porém não acreditava que ele nutrisse para com ela o mesmo sentimento...

Levantando do travesseiro a cabeça dolorida, Mainward praguejou em voz alta contra o ruído do tambor, que os seus homens estavam tocando. Pouco sabia ele do idioma indígena, do qual possuía apenas os conhecimentos superficiais, que podem ser adquiridos por qualquer europeu em uma residência de três meses, transcorridos entre Serra-Leoa e o Grande-Bassan.

— Para que é que estão fazendo esse maldito barulho, hein? — perguntou ele ao seu criado, que lhe estava perto do leito. — Você é um sujeito muito maluco, Abiboo!

— Sim, senhor! — concordou calmamente o rapaz, que era de Kano.

— Mande parar esse barulho, ouviu? — Mande pará-lo já! — gritou ele, como em delírio, soerguido no leito desmanchado. — Este barulho me põe completamente doido. Diga-lhes, Abiboo, que deixem de tocar esse maldito tambor!

Mas, em tal momento, o lo-koli do acampamento do homem doente cessou de motu-proprio, pois que os carregadores ao serviço de Mainward já tinham ouvido a fraca resposta, que lhes viera do acampamento de Sanders.

— Venha cá, Abiboo! — gritou Mainward ao seu criado. — Quero um pouco de leite. Abra uma lata nova. E diga ao cozinheiro que eu quero também um caldo.

Abiboo deixou-o ali, a resmungar e a agitar-se de um lado para outro, na rangedora cama de acampamento. Mainward tinha muitas coisas que lhe terebravam o pensamento. Era singular como todas elas clamavam estranhamente por uma atenção imediata! Era singular como todas elas se lhe acotovelavam simultaneamente nos miolos, e até se combatiam umas às outras, em suas pretensões ruidosas de lhe atraírem a observação! Os prejuízos que tivera nas corridas de cavalos, a descoberta do desfalque dado por ele ao Banco (era muito conveniente que aquele sócio, inspetor, se retirasse), a sua ligação com Ethel e...

A Floresta-dos-Sonhos-Felizes! — Que linda história, se Mainward estivesse em condições de poder escrevê-la! Mas, enfermo, como infelizmente se encontrava, como escrever? Assinar, sim, isso ele podia fazer. Por exemplo, pôr o seu nome debaixo de um título de dívida "De hoje a três meses pagarei à ordem de"... Podia, até, assinar o nome de outras pessoas... Gemeu tristemente e amaldiçoou o próprio pensamento.

Mas não era aquela uma região, onde os maus pensamentos se tornavam bons? Ah! Deus bem sabia como a sua cabeça estava cheia de maus pensamentos. Necessitava ele de sono, de paz e de felicidade. Ele desejava, principalmente, a felicidade. Seria verdade que a sua égua Fairy-Lane tinha ganhado a corrida em Workingham? Naturalmente, não tinha vencido coisa nenhuma (e ele amaldiçoou, de novo, aquela má lembrança). Mas se o tivesse feito? E se ele tivesse encontrado um amigo, que lhe emprestasse, pelo menos £. 16.000? Se Ethel...

Mas a voz de Abiboo interrompeu-lhe aquela sucessão de pensamentos:

— Senhor o puck-a-puck está chegando!

— Hein? Que é que você está dizendo? — gritou Mainward, voltando-se quase ferozmente para o criado.

— Puck-a-puck, ouviu, senhor?

Mas o homem doente não podia ouvir o barulho da roda de popa do Zaire, quando o pequeno barco, que chegava ali, arrostava o ímpeto descendente do rio. Mainward ficou surpreendido, ao ver que já rompera a manhã, e, muito a contragosto, foi abrigado a reconhecer que tinha dormido bastante. Fechou novamente os olhos e teve um sonho estranho. A figura principal, que lhe apareceu em tal sonho, era a de um homem pequeno, queimado de sol, de barba feita, com um capacete branco, e que trazia um sobretudo amarelo-escuro sobre um simples pijama.

— Como é que vai passando? — perguntou-lhe o estrangeiro.

— Muito mal, — rosnou Mainward, — principalmente por causa de Ethel! Acredita você que ela praticou a infâmia de querer convencer-me de que estava apaixonada por mim, para, depois, no último instante, abandonar-me e rir-se de mim?

— Horrível! — murmurou o branco forasteiro, com toda a gravidade. — Mas varra tudo isso do seu espírito, agora mesmo! Tal mulher não é digna de que você se aflija por causa dela. Que me diz a isto que eu trouxe para você?

E mostrava-lhe uma pequena pílula esverdeada, entre o indicador e o polegar. Mainward riu docemente.

Oh! que tentação! Você, de certo, — e falava e entres-sorria debilmente, — é um dos gênios bons desta Floresta-dos-Sonhos-Felizes. Mas que vem a ser isso? É algum filtro de amor?

E tal gracejo não deixou de produzir nele um riso histérico.

— Amor ou vida, tudo é a mesma coisa, — respondeu-lhe Sanders, meneando a cabeça, mas aparentemente aborrecido. — Engula isto!

Mainward riu novamente, sem motivo algum, e obedeceu ao mando do comandante inglês.

 — Agora, — disse-lhe Sanders, e isto seis horas mais tarde, — o melhor que você tem a fazer é deixar que os meus rapazes o conduzam daqui para o meu barco a vapor e o levem rio abaixo.

Mainward sacudiu a cabeça, negativamente. Acordara irritado e sentia-se deploravelmente fraco.

— Meu caro senhor, creia que eu lhe admiro a espantosa bondade de ter vindo acudir-me. Pelo que estou vendo, o senhor é médico?

— Ao contrário, — respondeu-lhe Sanders, com loquacidade, — sou apenas o comandante deste distrito do protetorado britânico. Mas então não quer ir?

— Quero ficar aqui. Este lugar é de uma beleza diabólica!

— Diabólico é mesmo o adjetivo que eu também teria aplicado a este sítio, — ponderou-lhe Sanders. — Isto aqui, meu caro patrício, é o ponto mais pestífero do Congo: é o berço natal de todas as moscas que produzem a morte na África!

Acenando com a mão para os pontos afastados da clareira, que se avistavam dali, à luz das fogueiras do acampamento, e indigitando a Mainward aquele verde vivo, aquelas suntuosas trepadeiras, disse-lhe ainda Sanders:

— Repare bem naquela relva! Esta terra é a única que possui uma tapeçaria assim. É a terra da relva, e isso é que constitui a sua maior sedução. Eu mesmo, certa vez, quase me deixei ficar aqui. Mas venha comigo, meu caro patrício, deixe-me levá-lo para o meu barco!

Mainward sacudiu a cabeça para os lados, obstinadamente, respondendo-lhe depois:

— Agradeço-lhe muito a sua bondade, mas ficarei aqui por um dia ou mais. Preciso de experimentar em mim os efeitos sobrenaturais desta natureza maravilhosa. Pois eu, — concluiu com um sorriso forçado, — alojei nos miolos muitos pensamentos que necessitam de tratamento...

— Olhe cá! — disse-lhe Sanders, asperamente. — Você deve saber qual a razão do nome desta localidade. Tomou ela a denominação de Floresta-dos-Sonhos-Felizes, porque está impregnada de febre e de outras moléstias, desde o beribéri até à doença-do-sono. Você não despertará mais dos sonhos que sonhar aqui. Homem, eu conheço tudo isto por aqui, como a palma de minha mão, ao passo que você é um recém-chegado. Você veio para aqui, ou para fugir da vida, ou para recomeçá-la sob outro aspecto...

— Queira perdoar-me, senhor, mas não me diga mais nada!

E o rosto de Mainward corou, ao proferir tais palavras.

— Oh! Eu estou a par de tudo quanto lhe aconteceu, — obtemperou-lhe Sanders. — Não acabei de dizer-lhe que sou o comandante deste distrito? Eu estava na Inglaterra, quando você passou o seu mau quarto de hora, e li o resto nos jornais, que de quando em quando me chegavam às mãos, por estas bandas. Mas tudo quanto sei a seu respeito não altera o meu proceder. Estou aqui, a fim de ajudá-lo a curar-se e a viver uma vida nova, uma vida digna. Se você queria suicidar-se, porque vir fazê-lo aqui, na África? Convença-se do que lhe estou dizendo e mude quanto antes de acampamento. Quanto aos seus homens, mandarei o meu barco buscá-los depois. Quer vir comigo?

— Não! — replicou-lhe Mainward, de mau humor. — Não quero! Não sei o que me acontecerá aqui... Mas não estou em condições de viajar.

A semelhante argumento não podia Sanders oferecer uma fácil contradita. O comandante inglês, ele mesmo, nada ousaria afirmar em tal sentido. E hesitou, por isso, antes de falar novamente a Mainward.

— Muito bem! — disse-lhe, por fim. — Pois fique você aqui mais um dia, para ter oportunidade de destruir-se. Como, porém, você ainda poderá estar vivo, virei amanhã aqui, mais uma vez, e trarei comigo uma cadeira própria para o transporte de doentes. Quer apostar comigo como o levarei para o meu barco, amanhã?

Mainward estendeu a destra, para apertar a que Sanders lhe oferecia, e o aspecto de um sorriso enrugou-lhe os cantos dos olhos, ao mesmo tempo que respondia ao comandante inglês:

— Aposto!

Viu Sanders retirar-se e atravessar o acampamento, falando, numa língua estranha, ora a um, ora a outro dos negros. — Que indivíduo singular e imperioso, aquele! — pensava Mainward. Um homem daqueles não teria dominado a Ethel? Observava-o com extrema curiosidade e notava como os seus próprios preguiçosos demônios de carregadores prontamente saltavam do chão, quando Sanders lhes dirigia a palavra.

Mas o comandante inglês voltou dentro de poucos minutos a ter com Mainward, dizendo-lhe:

— Que linda noite, hein? — E Mainward olhou para o céu. — Você precisa tomar mais uma bolinha, igual à outra que engoliu anteriormente. Ei-la aqui. Amanhã você estará tão esperto, como um serelepe. Quanto a mim, tenho que voltar ao acampamento esta noite, senão amanhã encontrarei roubada a metade das minhas provisões. Mas, se você quiser que eu fique aqui a seu lado...

— Não! não! — replicou o outro, apressadamente. Eu preciso estar só. Tenho um grande rol de assuntos a resolver comigo mesmo. Um deles, por exemplo, é o caso de Ethel...

— Mas não se esquecerá de tomar a pílula?

— Não! E novamente lhe digo que estou sinceramente agradecido, por ter vindo ver-me. O senhor tem sido um branco muito bom!

Sanders sorriu, retrucando-lhe alegremente:

— Não diga absurdos! Tudo isto é amor fraternal. Branco para branco e parente para parente, não é assim? Nós dois estamos inteiramente sós aqui, pois não há nenhum outro homem de nossa cor dentro de um raio de quinhentas milhas. Boa noite! Não deixe de tomar a pílula!

Mainward pôs-se a escutar o ruído dos passos do comandante inglês. Pareceu-lhe ouvir também, pouco depois, o retinir de uma campanhia. Aquilo, de certo, seria o sinal para que se pusessem em movimento as máquinas do vapor. Pois daí a pouco ouvia ele também o puck-a-puck das rodas, e foi também aquele nome que em seu espírito tomou o barco de Sanders.

Abiboo trouxe-lhe um copo de leite condensado, inquirindo logo do patrão:

— Já tomou o medicamento, senhor?

— Tomei, — murmurou debilmente Mainward. Entretanto, a pílula verde ainda estava debaixo de seu travesseiro.

Começou, logo depois, a sentir uma curiosa sensação de contentamento. Não a analisou, nem procurou indagar-lhe a causa. Tivera excessivo trabalho mental introspectivo, durante aquele dia. Aquilo lhe sobreveio como um choque agradável, para convencê-lo de que era realmente feliz.

Abriu os olhos e olhou em redor.

Tinham-lhe posto a cama fora da tenda; e, ali no claro, para ver ainda melhor, ele afastou para os lados as cortinas do mosquiteiro.

Em direção a seu leito, vinha desembaraçadamente um homemzinho, que caminhava sobre aquela extensão de relva aveludada, a qual descia da clareira. Mainward assobiou de alegria.

— Atty é você? — perguntou ele ao recém-chegado, como num suspiro. — Como tudo isto é admirável!

Era, em verdade, Atty, o mesmo Atty seco de outrora, porém não mais puxando o queixo comprido, qual Mainward se acostumara a vê-lo. O homenzinho trazia a roupa de viagem, tanto as pequenas botas de montar, quanto a jaqueta vermelha de seda, com sinais evidentes de uma longa corrida. Tocou a pala dianteira do barrete com a ponta do chicote, estouvada-mente, e mudou do braço esquerdo para o direito o fardo do selim de corrida, que carregava consigo.

— Diga-me, Atty — perguntou-lhe Mainward, com um sorriso, — por tudo quanto há à face da terra, que é que você veio fazer aqui na África?

— Ora! Foi uma corrida muito curta para um bom jóquei como eu, — respondeu-lhe o homenzinho. — Há muito tempo já que eu tinha pensado em vir até aqui. Estava certo de que Fairy-Lane faria bem a viagem, senhor, e ela realmente a fez!

Mainward acenou sabiamente com a cabeça, ponderando ao outro:

— Eu também estava certo de que ela o faria!

E perguntou, em seguida, ao homenzinho:

— Fairy-Lane proporcionou-lhe uma corrida agradável?

— Isso é coisa que ela nunca fez! — replicou-lhe o jóquei risonhamente. — Mas a corrida dela é sempre bastante divertida. Depois do sinal de saída, ela vacilou um pouco; mas eu mostrei-lhe o chicote, e ela avançou tão reta, quanto uma flecha. Em certo momento, pensei que Stalk nos venceria. Mas eu fechei o tempo com ela e não tivemos mais dificuldade alguma. Tanto que eu podia ter vencido por dez comprimentos...

— Por dez comprimentos? — repetiu Mainward, tomado de assombro. — Muito bem, Atty! Você acaba de fazer-me um grande favor! Esta vitória tirar-me-á de um dos maiores buracos em que caiu, desde que o mundo é mundo, um homem imprevidente. Jamais esquecerei, Atty, o serviço que você acaba de prestar-me!

— Estou certo de que não o esquecerá, senhor! — disse-lhe o pequeno jóquei sensibilizado. — Agora, se me dá licença...

Mainward meneou afirmativamente a cabeça e viu-o, instantes após, sumir-se rapidamente por entre as arvores.

Agora, ali na clareira, havia diversas pessoas, todas muito bem vestidas. E Mainward olhou tristemente para o seu terno branco, já bem sujo.

— Que idiota, que fui, em vir assim para aqui! — murmurou, inquieto. — Mas, como é que poderia eu ter sabido que havia de encontrar aqui todas aquelas pessoas?

Entre elas, havia uma, que ele positivamente não desejava ver. Assim, quando avistou Venn, com aqueles olhos desconfiados e aquele nariz adunco, Mainward pensou em esconder-se dele. Mas Venn logo o descobriu, e, tropeçando por entre as árvores, veio, com aqueles olhos estúpidos, sem brilho, estender-lhe a mão grande e flácida.

— Hullo! hullo! — bradou ele, rindo-se ironicamente.

— Eu estava, precisamente, à procura de você!

Mainward resmungou-lhe alguma resposta inconseqüente e ininteligível.

— Que lugar extravagante este, em que venho encontrar a você, hein?

E, assim dizendo, Venn tirou da cabeça a sua brilhante cartola e limpava o suor do rosto com um enorme e espaventoso lenço de seda. Após o quê, perguntou a Mainward.

— Mas diga-me cá uma coisa, seu silvícola, e aquele dinheiro?

— Não se aflija por causa dele, meu caro sr.! — declarou-lhe Mainward, tranqüilamente. — Pagar-lho-ei agora mesmo.

— Não! não! Você me compreendeu mal! — disse o outro, impetuosamente. — Não foi por causa de umas centenas de libras que eu vim vê-lo aqui. Você não me disse que estava precisando de uma grande soma?

— E você não me disse que não podia...

— Sim, sim, — interrompeu-o apressadamente o outro, — mas isso foi antes de Kaffirs começar a ganhar. Agora, seu silvícola, eu já posso emprestá-la a você!

Disse tudo isso com uma ênfase grotesca, conservando-se em pé, mas com as pernas desmesuradamente abertas, com a cartola inclinada para trás da cabeça e com as nédias mãos dramaticamente estendidas para Mainward, que ria a mais não poder.

— Dezesseis mil libras? — perguntou-lhe este.

— Ou vinte mil, se você quiser, — declarou-lhe o outro, de modo impressivo. — Quero mostrar-lhe que...

Mas, nisto, alguém o chamou, e, desculpando-se às pressas, lá se foi ele embora, tropeçando por aquela encosta verde acima, parando e voltando o rosto para trás, de quando em quando, para lisonjear a Mainward com uma pequena pantomima, ilustrativa da sua confiança e do seu espontâneo desejo de servir ao outro.

Mainward ria uma risada baixa, sussurrante, de pura alegria. E pensava: — Que mudança a que tinha feito Venn! com aquelas antigas perguntas sobre negócios! Venn, com aquelas malditas teorias sobre crédito e confiança! Bem! bem!

Mas a sua alegria cessou subitamente e ele voltou a amaldiçoar o cérebro. O coração começou a bater-lhe apressado, cada vez mais apressado, e ele sentia uma fraqueza esquisita.

Ah! que visão esplendidamente linda e fresca não era aquela!

Muito alva e muito esbelta, estava ela passeando ali na clareira. Ele percebia-lhe o frufru da saia de seda, enquanto ela marchava delicadamente sobre aquele extenso tapete de relva. Estava toda de branco e trazia um cinto verde, bordado a ouro. Observava-a avidamente, minuciosamente: os ornatos do cinto, o lenço de rendas, que ela trazia ao pescoço, o...

Ela não correu para ele, não era este o seu sistema. Mas, nos olhos dela, lobrigou ele uma ternura crescente, naqueles queridos olhos que timidamente se baixavam agora, diante dele.

— Ethel! — ciciou ele, ousando segurar-lhe a mão.

— Não está maravilhosamente surpreendido? — perguntou-lhe ela.

— Ethel! Ethel! você aqui?

— Eu... eu... não podia deixar de vir!

Ella não se atrevia a olhar para ele. Mainward, porém, via-lhe o róseo das faces e ouvia-lhe a voz hesitante, cheia de volúveis promessas. Disse-lhe ela, afinal:

— Procedi tão mal para com você, querido! Tão mal! E pendeu a cabeça sobre o seio.

— Querida! querida!

Foi tudo quanto pôde murmurar Mainward, que se atirou às apalpadelas, para o lado dela, como um indivíduo cego ou bêbedo.

Num átimo, achava-se Ethel nos braços dele, apertada contra seu peito, com o aroma de sua presença a entontecer-lhe o cérebro.

— Eu não podia deixar de vir ter com você! — E a face abrasada dela encostava-se à dele. — Eu amo tanto a você!

— A mim é que você ama? Ousa você dizer isto? — E a sua voz tremia, bêbeda de felicidade.— Minha querida! minha bem-amada!

O rosto dela estava voltado para o dele, e os lábios de ambos quase se tocavam. Mainward sentia o coração de Ethel bater tão apressado, quanto o dele próprio. E beijou-a longamente, nos lábios, nos olhos, no cabelo aromai...

— Deus meu! como sou feliz! — gorjeava ela. — Tão.. tão... tão feliz!

 

Sanders saltou em terra, precisamente quando o sol nascia, e, por entre o matagal de abrolhos, dirigiu-se pensativamente para o acampamento de Mainward. Abiboo, agachado junto à cama-de-campanha, recoberta pelas cortinas do mosquiteiro, não se levantou do chão. Sanders aproximou-se do leito do enfermo, puxou para os lados as dobras do mosquiteiro e curvou-se para observar o homem, que jazia ali.

Mas endireitou logo as cortinas, acendeu vagarosamente o cachimbo e olhou para o chão, onde estava acocorado Abiboo, perguntando a este:

— Quando foi que ele morreu?

— Antes de clarear a madrugada, senhor! — respondeu-lhe o fâmulo.

Sanders meneou a cabeça, num gesto de aborrecimento, e indagou de Abiboo:

— E por que você não me foi chamar?

Por um momento, aquela figura, que parecia enrodilhada no chão, não lhe deu resposta alguma. Mas, afinal, levantou-se, espreguiçou-se, e explicou-lhe em árabe, que é uma língua que permite certas distinções elegantes:

— Senhor, este homem sentia-se afortunado, pois divagava pela Floresta-dos-Sonhos-Felizes. Por que havia eu de chamá-lo para uma terra, onde não havia luz de sol, nem felicidade alguma, mas somente trevas, dores e doenças?

— Você é um filósofo! — disse-lhe Sanders, irritadamente.

— Sou apenas um seguidor do Profeta, senhor! — retrucou-lhe Abiboo, o rapaz de Kano. — E todas as coisas, aqui no mundo, passam-se, sempre, de acordo com a sabedoria de Alá!

 

O missionário negro dos Akasavas

VÓS QUE NÃO COMPREENDEIS como é que o mal possa surgir sem o bem, deveis retirar-vos com a vossa enxada para alguma região coberta de relva, uma região virgem, não tocada ainda pela mão e pés do homem, desde a origem dos tempos. Eis aqui uma relva fresca, macia: nela não há sinal algum de urtiga, de joio grosseiro e mau. Está como Deus a fez. Revolvei, entanto, este solo com a vossa enxada, intentai melhorar a obra-prima de Deus, e, na estação seguinte, vereis esta terra coberta de urtigas e de joio, de plantas rasteiras e fracas, de vegetação de folhagem grosseira. Foi, portanto, a vossa enxada que despertou para a vida as sementes adormecidas do mal. Fizestes, assim, germinar uma vida inútil e feia, que, fora da vossa vista, dormia desde tempos imemoriais. Agora, só depois de uns vinte anos de diligente esforço, é que podereis exterminar as ervas daninhas e reintegrar a terra no estado primitivo, isto é, tapizada por uma relva qual a que a cobria anteriormente. Mas precisareis, para isso, de gastar uma fortuna de trabalho.

Podem ter sido as melhores possíveis as vossas intenções, ao lavrardes o torrão virgem. Podeis ter tido a perspectiva de rosas a florescerem onde só havia grama. Mas o resultado será sempre o mesmo.

Aplica-se esta parábola à história de um missionário e do trabalho do mesmo no coração da África. O missionário era um homem bom, apesar de trazer uma cor desprezada. Nutria idéias excelsas a respeito do seu dever para com o próximo; fora inspirado pelo êxito do seu sacerdócio em outras terras; mas, conforme havia ele de ouvir, muito apropositadamente, de Sanders, "África não é Índia."

Kenneth Mac-Dolan procurou o sr. comandante Sanders, para quem trazia uma carta de recomendação, firmada pelo novo governador-geral.

Sanders tinha acabado de almoçar, mas estava ainda à mesa, por uma abrasadora manhã, quando Abiboo, que era o seu ordenança, lhe apresentou um cartão de visita. Era um bonito cartão, arredondado nos cantos e de bordas douradas. Ao centro, lia-se em tipo inglês antigo: — "Rev. Kenneth Mac-Dolan". Logo abaixo, estava escrito a lápis: — "Para uma rápida visita".

Sanders tomou, impacientemente, um longo fôlego. No seu entender, "reverendo" queria dizer "missionário", e "missionário" sempre queria alguma coisa. Olhou novamente para o cartão e franziu a testa, cheio de perplexidade. A seu ver, o tipo inglês antigo e a qualidade de "reverendo", inscrita naquele cartão de visita, não se coadunava bem com os cantos arredondados e com as bordas douradas do mesmo.

— Onde é que ele está?

— Senhor, — respondeu-lhe Abiboo, — está na varanda. Devo pô-lo fora a pontapés?

Abiboo disse isto muito naturalmente, e com ingênua retidão; mas Sanders encarou-o severamente, dizendo-lhe:

— Filho do pecado! É assim que você quer tratar aos homens de Deus, aos homens brancos?

— É verdade que o tal sujeito usa roupas de um homem de Deus, ponderou-lhe Abiboo, serenamente, — mas é um preto, que não me parece merecer a menor importância.

Sanders calçou sobre o pijama as botas de cano alto e praguejou consigo mesmo.

— Missionários brancos, vá lá! — resmungou, irritadamente. — Mas missionários pretos, com esses não quero graças!

O rev. Kenneth Mac-Dolan estava refestelado na cadeira de vime de Sanders, com uma das pernas estendida negligentemente para um dos lados, a fim de exibir melhor os sapatos de seda. Tamborilava com as pontas dos dedos nos braços da cadeira e contemplava, com visível tolerância, o pequeno jardim, viridente e florido, que era o encanto especial do comandante inglês.

Era preto, preto retinto, mas revelava maneiras corretas e tinha um porte sereno.

Curvou a cabeça, risonhamente, para Sanders e estendeu-lhe uma destra preguiçosa.

— Ah, sr. comandante, — foi ele dizendo logo, num inglês irrepreensível, — tenho ouvido falar tanto em V. Exa.!

— Saía dessa cadeira! — ordenou-lhe Sanders, sem mais aquela. — E levante-se, pois que tal é sua obrigação em minha presença! Que é que quer comigo?

O rev. Kenneth Mac-Dolan levantou-se prestesmente e aceitou a situação, que lhe impôs o comandante, com uma rapidez e tolerância, que só não poderá compreender quem desconhecer quão inerentemente profunda é a cultura do selvagem adiantado.

— Vim fazer a V. Exa. uma curta visita, — disse ele a Sanders, com uma nota de deferência na voz. — Como estou percorrendo, em serviço religioso, as pequenas vilas e aldeias dá costa, vim pedir permissão a V. Exa. para falar aqui ao seu povo

Não era propriamente isto o que ele havia preparado para dizer ao comandante inglês. Tinha acabado de chegar diretamente de Londres, depois de ter conquistado algo de celebridade no meio social de Bayswater, e onde também os seus elevados conhecimentos de teologia lhe haviam granjeado consideração e não pequena aura de fama, num círculo ainda mais vasto.

— Pode falar ao meu povo, onde e quando quiser, — ponderou-lhe Sanders, — exceto à gente de Kano e aos meus Houssas, porque todos esses estão petrificados na lei do Profeta.

 Recuperando a sua presença de espírito, o missionário sorriu e começou a obtemperar:

— Mas meu dever é levar a luz do Evangelho aos lugares escuros...

— Proceda apenas conforme lhe ordenei, — disse-lhe Sanders, secamente. — A audiência está terminada.

Girou sobre os calcanhares e tornou a entrar no bangalô.

Como, porém, lhe acudisse, de súbito, certo pensamento, retrocedeu para a varanda e gritou ao missionário, que se retirava:

— Hi!

O homem voltou-se prontamente.

— Donde foi que você tirou o nome de Kenneth Mac-Dolan?

O negro sorriu e explicou-lhe:

— É o cognome que me foi dado por um bom cristão branco, de Serra-Leoa, o qual me criou e educou, como se eu fosse seu próprio filho.

Sanders arreganhou os dentes, dizendo-lhe com desagrado:

— Já tenho ouvido falar de casos assim...

No dia seguinte, o missionário resolveu seguir para o interior daquelas terras selvagens, para os rincões do norte, e voltou ao bangalô de Sanders, a fim de anunciar tal intento ao comandante inglês. Entrou ali na varanda, como se nada lhe houvesse acontecido na véspera. Talvez esperasse encontrar o comandante inglês um pouco arrependido do procedimento anterior; mas, se assim pensou, teve que ficar logo desiludido, porquanto Sanders estava escandalosamente impenitente.

— Pode ir, — disse-lhe. — Uma vez que você obteve uma carta de recomendação do governador-geral, bem vê que não o posso estorvar.

— Tenciono, — ponderou-lhe o missionário, — trabalhar bastante nestas vinhas incultas da África, levando a palavra de Deus e, ao mesmo tempo, certos socorros aos necessitados. Na Índia, onde já estive, uns quatrocentos mil...

— Isto aqui não é Índia! — interrompeu-o Sanders, em tom ríspido.

E deu as costas ao pregador indígena, que girou imediatamente nos calcanhares.

Os que conhecem bem os íncolas de Akasava, sabem que eles se distinguem pela preguiça, salvo quando cogitam de vinganças, de contendas de famílias ou de roubos de cabras uns dos outros,— casos esses em que todos eles desenvolvem uma energia e uma agilidade verdadeiramente inexplicáveis.

"Todo homem de Akasava aponta com o pé", — é um provérbio do alto Isisi.

A origem de tal rifão remonta a um tempo nebuloso, quando (consoante a lenda) certo estrangeiro encontrou um homem da tribo dos Akasavas deitado na mata.

— Amigo, — disse-lhe o estrangeiro, — perdi-me nestes rincões. Mostre-me, por favor, o caminho para o rio!

E o guerreiro de Akasava, levantando do chão uma das pernas, indicou-lhe, com o dedo do pé, o caminho pedido.

Posto que esta lenda deixe tudo a desejar, quanto ao aspecto do humor, é considerada como a quintessência das histórias engraçadas desde Bama até ao país de Lado.

Foi seis meses depois que o rev. Kenneth Mac-Dolan partira para o interior daquela zona, que veio à procura de Sanders, no quartel-general deste, uma comissão aflita de indígenas, chegada ali em duas canoas, por noite alta. Assim, quando ele saiu do banho matinal e se dirigiu para a larga varanda do bangalô, já ali o esperava um bando de homens cansados e tristes, os quais, acocorados no vestíbulo de madeira, olhavam para o comandante inglês, como mendigos imersos na mais extrema indigência.

— Senhor, nós somos do povo de Akasava, — disseram os emissários, — e chegamos de uma longa jornada.

— Disso não posso eu deixar de ser sabedor, — declarou-lhes Sanders, com uma frieza mordente, — a menos que a aldeia de Akasava tenha mudado de posição da noite para o dia... Que é que quereis de mim?

— Senhor, estamos na maior miséria possível, — expôs-lhe o orador da comissão, — porque as nossas colheitas foram más e o rio não tem mais peixes. Eis porque viemos procurar-vos, pois vós é que sois o nosso pai!

Tais pedidos eram ali muito raros, porquanto os autóctones da África Central não ficam assim facilmente na miséria; além disso, Sanders não tinha recebido, anteriormente, notícia alguma sobre falta de víveres no alto Isisi.

— Tudo que me dizeis, tresanda a mentira, — disse-lhes Sanders, pausadamente. — Como é que pode não ter havido colheitas em Akasava, quando foram tão abundantes em Isisi? Além disso, os peixes não deixam o seu habitat sem causa; e, se o fazem, podem ser facilmente seguidos.

Os pedintes tergiversaram, trocando olhares inquietos. Por fim, o seu orador obtemperou ao comandante inglês:

— Senhor, nós tivemos lá muita doença, e, enquanto cuidávamos uns dos outros, passou a quadra da plantação; e, quanto aos peixes, os nossos rapazes estavam muito ralados de tristeza, por causa dos seus mortos, para poderem empreender longas viagens.

Sanders olhava-o fixamente, sem nada objetar.

— Portanto, — continuou o orador dos Akasavas, — apressamo-nos a vir aqui, da parte do nosso chefe, a fim de pedir-vos que nos salveis, porque estamos morrendo de fome!

O homem falara com certa confiança, e isto era o que mais surpreendia a Sanders. Achava-se este embaraçado, francamente confundido. Porque, em todo o curso excêntrico, que tomava ali a sua vida de cada dia, tinha ela sempre uma regularidade, que lhe caracterizava a própria irregularidade. Mas, naquele momento, enfrentava ele uma situação nova e pouco comum. Aquilo não podia deixar de torná-lo perplexo, e ele, por isso, estava preocupado em sondar até ao fundo o estranho caso. Por fim, declarou alto e bom som aos emissários:

— Nada tenho que dar a vocês, senão este aviso: Voltem depressa para o lugar donde vieram e digam ao seu chefe que eu dentro em pouco irei ter com ele e procederei lá a um inquérito!

Os homens não ficaram satisfeitos. O mais velho deles, um sujeito todo enrugado e de carapinha toda branca, levantou-se e assim falou a Sanders, como que resmungando por entre as maxilas desdentadas:

— Disseram-me, senhor, que, em outras terras, quando os homens caem na miséria, os brancos vão levar-lhes trigo e conforto.

— Hein?

E os olhos de Sanders estreitaram-se.

— Esperem um pouco! — disse-lhes, e atravessou rapidamente a porta aberta, que dava para a varanda do bangalô.

Quando voltou, empunhava um chicote flexível de couro de rinoceronte, e a comissão, perdendo a serenidade, fugiu precipitadamente.

Sanders viu os homens remando freneticamente rio acima as duas canoas, mas o seu sorriso não tinha nenhum sinal manifesto de alegria. Naquela mesma noite, partia o Zaire para a aldeia de Akasava, levando para o rev. Kenneth Mac-Dolan a seguinte carta, pouco extensa, mas de inconfundível clareza:

— "Caro reverendo. — O senhor, com tudo quanto lhe pertencer, acompanhará o portador desta à minha presença. Caso não queira atender prontamente a esta ordem, o meu sargento leva instruções para trazê-lo preso. — Cordialmente seu, — H. Sanders, comandante".

Poucos dias depois, no quartel-general, dizia Sanders ao rev. Kenneth Mac-Dolan:

— A razão pela qual ponho você fora de todo este meu distrito, é porque você introduziu idéias esquisitas nos miolos do meu povo.

— Asseguro a V. Exa. que... — começou a dizer o negro.

— Não perca o tempo em assegurar-me coisa alguma! — interrompeu-o Sanders. — Não admito que você me fabrique uma Capital-de-Fome-Indiana aqui na África Central!

— Mas o povo estava morrendo de fome, senhor!

Sanders sorriu e declarou-lhe o seguinte, asperamente:

— Mandei dizer ao tal povo que eu estou de viagem para Akasava e que lá agarrarei o primeiro homem que me aparecer com cara de quem está morrendo de fome, e lhe darei uma sova de pau, até que ele ponha a alma pela boca!

Na manhã seguinte, partia para a Inglaterra o rev. Kenneth Mac-Dolan, para intenso alívio, — seja dito de passagem, — dos muitos missionários brancos, espalhados acima e abaixo do Isisi, porque, por mais que isso pareça estranho, um evangelizador de pele retinta, que usa hábito preto e sapatos de seda, é olhado ali com certa suspeição.

Cumprindo a sua promessa, Sanders dirigiu-se à cubata principal dos Akasavas, onde não achou ninguém para sovar, porquanto aquela comunidade estava singularmente bem provida de víveres. Gastara ela, pouco antes, toda uma semana no trabalho de desenterrar dos esconderijos as matérias alimentícias que, — por sugestão de um pregador, muito zeloso deles, segundo a fama, — haviam habilmente ocultado.

— Aqui, — proferiu Sanders, perversamente, — recebeu este povo uma primeira e boa lição!

Mas o comandante inglês estava longe de sentir-se tranqüilizado. É um fato notável que, quando algo perturba a existência de uma aldeia sertaneja, a esta custa muito o recuperar a sua calma bucólica.

Não se pode afirmar, com segurança, que os acontecimentos, subseqüentes à retirada do rev. Kenneth Mac-Dolan daquela aldeia, se vinculassem imediatamente à sua hábil tentativa de instaurar em Akasava uma greve da fome. Mas o certo é que ele semeou ali uma semente: a semente da idéia de que alguém era responsável pelo bem-estar daquela pequena coletividade. Erigiu ali um novo e prodigioso fetiche: o ídolo da Pobreza. No curto espaço de sua permanência naquele meio selvagem, insinuou na mente dos pagãos a pálida, vaga e enganadora miragem da Fraternidade Humana,

Sanders descobriu isso, quando, já de volta da sua visita de inspeção, encontrou, impelida pela corrente, uma canoa, na qual havia um homem semideitado, a guiá-la preguiçosamente, com desacoroçoadas pancadas de remo.

Sanders, à proa do seu pequeno barco a vapor, puxou o cordão que controlava o apito da máquina, a fim de dar aviso à canoa, que lhe estava em frente do caminho. Apesar do sinal de alarma, o homem da canoa nada fez para dar passagem ao Zaire; e, como ambos desciam ao sabor da corrente, a roda do barco a vapor teve que raspar um banco de areia, por se haver encostado para um dos lados do rio, a fim de evitar que metesse a pique a piroga obstinada.

— Tragam-me aquele homem aqui para bordo! — ordenou Sanders, indignado, aos seus Houssas.

E, quando a canoa foi puxada por um croque, sem cerimônia alguma, para o costado do Zaire, e o dono da mesma rudemente empurrado para o convés do vaporzinho, Sanders não pôde deixar de fazer explodir a sua justa cólera:

— Pela sua preguiça infernal, vejo que você é do povo de Akasava. Mas por que foi que você, apesar do meu aviso, tomou para si só o meio do rio?

— Senhor, — respondeu-lhe o homem serenamente, — está escrito nos livros dos vossos deuses que o rio é para todos nós, pretos e brancos, porque todos nós somos iguais aos olhos dos deuses brancos!

Sanders contraiu os lábios, com irritada impaciência, dizendo afinal ao homem de Akasava:

— Quando você e eu estivermos mortos, seremos iguais. Mas, já que eu ainda estou vivo e você também está vivo, vou mandar dar-lhe dez chicotadas, para tirar dos seus miolos a doutrina prejudicial que alguém meteu neles.

Escusado é dizer que o homem saiu dali convertido.

Mas o mal estava feito.

Sanders conhecia, melhor que ninguém, a índole dos nativos da África, e, por isso, durante o mês seguinte, gastou de cada dia alguns minutos, para lançar anátemas ao rev. Kenneth Mac-Dolan. Até ali, entretanto, não tinha havido nenhum prejuízo irreparável. Mas Sanders não era homem capaz de ser apanhado em descuido. Os seus Houssas, que ele costumava empregar em investigações secretas, foram enviados aos mais longínquos rincões do seu pequeno reino, e Sanders ficou esperando o desenrolar dos fatos.

A princípio, eram animadoras as novas que recebia: os seus espias só lhe falavam em trabalho pacífico, em existência normal; mas, logo depois, os relatos já eram menos satisfatórios. O país de Akasava, com efeito, está para isso situado muito desafortunadamente, por ser o verdadeiro centro do vasto território sujeito ao comando de Sanders; e ali, conforme o oficial inglês já verificara antes, era o foco ideal para a irradiação de princípios subversivos. '

As notícias, que os espias de Sanders mandavam a este ou lhe traziam pessoalmente, referiam-se a reuniões secretas, a constantes mensagens de tribo para tribo, a emissários que saíam furtivamente das aldeias pela calada da noite, a ritos curiosos, celebrados no aranhol das florestas, e a outras coisas não menos inquietadoras.

Veio, pouco depois, uma notícia ainda mais grave.

Tigili, soba do povo de N'Gombi, fizera preparativos para uma viagem secreta. Sacrificara uma cabra e assegurara que o presságio era bom; além disso, três dos seus médicos-feiticeiros, reunidos em conclave solene, declararam ter ouvido do oráculo uma profecia favorável.

À vista disso, Tigili deslizou rio abaixo, certa noite, numa grande canoa, tocada por 14 remadores. Trazia um tambor, seus principais cabos-de-guerra e duas de suas esposas. Ao pôr do sol do dia seguinte, chegava às ribanceiras da aldeia de Akasava. O cacique desta foi ao seu encontro e levou-o para a sua cabana.

— Irmão, — disse-lhe o chefe de Akasava, não sem certo timbre de magnificência, — eu já cobri o meu arco com a pele de um macaco.

Tigili meneou a cabeça gravemente, respondendo-lhe com ênfase:

— Pois as minhas flechas alam-se até às nuvenzinhas!

Por essa maneira cabalística, entenderam-se ambos durante quase uma hora, e parece que a entrevista lhes foi de grande proveito.

Lá fora, à sombra da cabana e do crepúsculo, estava deitado um homem seminu, que parecia dormir: tinha a cabeça sobre o braço e as pernas dobradas comodamente.

Um dos guardas da cabana do soba de Akasava viu-o e procurou despertá-lo com o conto da lança; mas o dorminhoco apenas se mexeu sonolentamente e foi deixado em paz, porque a sentinela pensou que fosse um homem da comitiva de Tigili.

Quando os dois sobas terminaram a conferência, Tigili ergueu-se do chão da cabana e seguiu para a sua canoa, acompanhado do seu colega de Akasava, o qual permaneceu à margem do rio, até ver sumir-se além, na curva do rio, pelo mesmo caminho por onde viera, a embarcação do seu aliado.

O dorminhoco levantou-se, então, silenciosamente, e tomou outra vereda em direção ao rio. Logo ao sair da aldeia, tinha que atravessar uma clareira, iluminada pelo luar, e, ali, um homem o intimou a parar.

O homem era um guerreiro de Akasava e estava armado; o outro, por isso, obedeceu prontamente à intimação.

— Quem é você?

— Sou um estrangeiro, de passagem por aqui, — respondeu o caminhante.

O guerreiro aproximou-se dele, mirou-o bem no rosto e bradou-lhe:

— Você é um espia de Sândi!

E agarraram-se os dois, imediatamente.

O guerreiro teria gritado, se uma escura mão de aço não lhe houvesse logo comprimido a garganta. O Akasava fez apenas um ruído, semelhante ao que produz um regato, quando atravessa um leito raso, coberto de seixos; depois, dobraram-se-lhe as pernas, e ele caiu inerte no chão.

O ex-dorminhoco acurvou-se sobre o morto, em cujo ombro descoberto limpou a faca com que o abatera, e prosseguiu a marcha em direção ao rio. Ali, à margem, escondida sob as espessas moitas, achou a sua canoa; desatou-lhe a corda de embira, que a segurava a um pequeno tronco de árvore, e, saltando nela, fê-la derivar velozmente pela corrente abaixo.

 

— E que é que você deduz de tudo quanto acaba de dizer-me? — perguntou-lhe Sanders.

O comandante inglês estava de pé, na ampla varanda do bangalô, e, diante dele, achava-se o espia, um jovem de corpo robusto e ágil, que envergava o uniforme de sargento de Houssas.

— Senhor, é a formação de uma sociedade secreta, — respondeu-lhe o inferior, — e eu não me admirarei, se estivermos em vésperas de uma grande matança.

Sanders mediu a varanda a passos largos, com a cabeça inclinada para o peito e as mãos cruzadas atrás das costas.

Conhecia ele, muito bem, as tais sociedades secretas, embora o território, subordinado à sua jurisdição, tivesse estado, até aquela ocasião, isento delas. Sabia que elas surgiam repentinamente, levantando-se do nada com rituais e práticas convencionais. Sabia da influência que elas exerciam acima e abaixo da costa liberiana. Tinha conhecimento dos nomes de algumas delas, quais os "Silenciosos" da Nigéria e os "Rostos-Brancos" do Kassai. E, agora, a praga viera também para as terras do seu governo! Isso queria dizer o mesmo que guerra e significava a destruição do trabalho de vinte anos, — trabalho de homens que morreram alegremente, certos de que haviam concorrido para a paz da terra! Aquilo significava que tinha ele que lutar com inimigos ocultos, revéis à sua autoridade.

Parou em frente de Abiboo e disse-lhe:

— Tome ó barco a vapor e vá depressa à aldeia dos Ochoris! Diga a Bosambo, o chefe, que irei por estes dias ter com ele. Está terminada a audiência.

Sanders sabia que podia contar com Bosambo, se tivesse que enfrentar uma situação pior.

Enquanto esperava a execução de certas medidas que aparelhara, dirigiu longa mensagem ao governador-geral, que vivia numa doce pasmaceira, dali a uma centena de milhas, na costa meridional. Dispunha Sanders, para semelhantes comunicações, de um fio telegráfico terrestre, que beirava todo o litoral e que, quando estava em condições de funcionar, era uma verdadeira maravilha. Naquela ocasião, achava-se ele em perfeita ordem, felizmente para Sanders, que não gostava de demoras. Houve um tempo, porém, em que manadas vagabundas de elefantes andaram a arrancar postes e a emaranhar alguns quilômetros de fio.

A resposta à mensagem do comandante inglês veio rapidamente, pelo teor seguinte:

— "Tome providências extremas, a fim de destruir as sociedades secretas. Se necessário, prenda Tigili. Só lhe posso enviar 400 homens e uma canhoneira. Será conveniente resolver tudo sem estardalhaço. — Governador-geral".

Sanders deu um longo passeio, a pé, pela beira-mar, a fim de refletir naquele sério problema e no melhor meio de solucioná-lo. Se, como tudo fazia supor, a guerra vinha sendo preparada pelo povo do seu distrito, o levante seria forçosamente geral, em ação simultânea. Sacudiu a cabeça. Que é que lhe adiantavam, em tal caso, 400 homens e uma canhoneira? Nutria ele, entretanto, a esperança de que alguma tribo se levantasse antes das outras. Poderia tratar com os Akasavas; poderia tratar com os Isisis, ainda melhor do que com os Akasavas; e estava certo da fidelidade dos Ochoris. Isto era, sem dúvida, um consolo. Mas os outros povos? Meneou a cabeça, novamente. Talvez a inata ociosidade dos Akasavas os compelisse ao sossego. A possibilidade de uma leva-de-broquéis era contrária às tradições dos mesmos.

Devia ele, decerto, ter chegado a alguma solução, parou repentinamente, no seu longo passeio, permanecendo imóvel por muito tempo, a pensar, com a cabeça inclinada sobre o peito. Girou, depois, os calcanhares, e voltou apressadamente para o bangalô.

Qual a data escolhida para o levante coletivo, foi coisa que nunca conseguimos saber ao certo. Mas o indubitável é que os Akasavas, os N'Gombis, os Isisis e os Bokelis se preparavam em segredo para uma sublevação sanguinolenta, quando lhes chegou uma grande notícia:

Sanders morrera!

Uma canoa, em que ele atravessava o Isisi, tinha afundado num dos peraus do rio, e a corrente impetuosa arrastara o comandante inglês; e, embora os seus homens corressem acima e abaixo, em longa extensão das margens da ampla caudal, nenhum indício dele fora descoberto a não ser um grande capacete de cortiça, que flutuou um instante naquele ponto, desaparecendo vagarosamente da vista deles, mais adiante.

Foi isso que um homem de Akasava ouviu de um sargento de Houssas, à beira do rio, e correu a relatar em sua aldeia.

Imediatamente o lo-koli começou a ferir os ares com os seus sons agudos, e os sobas das aldeias circunvizinhas vieram ofegantes à procura do chefe supremo dos Akasavas.

Este disse-lhes solenemente:

— Sândi morreu! Ele era nosso pai e nossa mãe e sempre nos protegeu com seus braços. Nós o amávamos, e, por causa disso mesmo, lhe fizemos muitas coisas desagradáveis. Agora, que ele morreu e que não há mais ninguém para nos dizer "sim" ou "não", é chegado o tempo, do qual vos tenho falado secretamente. Peguemos, portanto, em nossas armas e marchemos, primeiro contra os homens de Deus, que rezam e nos enfeitiçam com aspersões de água, e depois contra o chefe dos Ochoris, que há alguns anos nos vem afrontando!

— Senhor, — ponderou-lhe um pequeno chefe de certa aldeia de pesca, — será prudente agirmos assim, quando o nosso senhor Sândi sempre nos disse que não devíamos fazer guerras?

— Nosso senhor Sândi já morreu, — replicou-lhe sabiamente o chefe supremo dos Akasavas, — e, se morreu, não nos interessa mais o que ele nos disse quando vivo. Além disso, (e exprimiu, então, um pensamento, que lhe acudiu subitamente), na noite passada eu tive um sonho, em que Sândi me apareceu. Ele estava de pé, no meio de grandes fogueiras, e me ordenou: — "Marcha para diante e traze-me a cabeça do chefe dos Ochoris!"

Diante disso, não se perdeu mais tempo algum.

Naquela mesma noite, os homens de vinte aldeias dançaram a "dança-da-morte" e a grande fogueira dos Akasavas avermelhou a praia arenosa, dificultando o sono de uma família eqüina, que vivia ali perto, entre as altas gramíneas.

Ao raiar do dia, o cacique dos Akasavas passou revista às 600 lanças e 60 canoas, dirigindo aos guerreiros, em seguida, a seguinte arenga:

Primeiramente, destruiremos os homens das missões, porque são brancos, e não é justo que vivam, uma vez que Sândi já morreu. Depois, marcharemos contra Bosambo, o chefe dos Ochoris. Quando as chuvas vieram, no mesmo tempo em que as nossas cabras pariram, aquele malvado, que é um estrangeiro para nós e não tem nenhum sentimento humano, trouxe consigo muitos indivíduos perversos e destruiu as nossas aldeias de pesca. Reclamamos de Sândi, e Sândi declarou que não admitia nossa vingança. Agora, Sândi está morto e provavelmente no inferno, de sorte que não há mais ninguém que possa conter a nossa força e impedir a nossa vingança!

Mal acabara de pronunciar o seu discurso, ouviu o soba dos Akasavas o ruído das máquinas do Zaire, que vencia vagarosamente a curva do rio, pois arrostava ali uma corrente forte e traiçoeira. Era digno de nota o fato de não se achar a meio-pau a bandeirinha azul que lhe tremulava no mastro da popa. Mas os Akasavas não compreenderam a exata significação disso. A pequena embarcação sondou cautelosamente o caminho para a tira arenosa da praia, sobre a qual foi embicar uma comprida e larga tábua, e por sobre esta desceu, todo de branco e sorridente, com o castão de prata de sua bengalinha de ébano a voltear entre os dedos, o sr. comandante Sanders, muito vivo e muito são. E de cada lado da prancha, que fora lançada ali parto, não tardaram a aparecer duas luzidas metralhadoras.

Paralisado pelo pasmo e cheio de apreensões, todo aquele exército negro observava o "desembarque" de Sanders, achando-se o chefe supremo dos Akasavas um pouco adiante dos seus guerreiros pintados.

O rosto de Sanders deixava transparecer o júbilo de uma inocente e agradável surpresa.

— Chefe, — disse ele ao soba dos Akasavas, — agradeço a você a grande honra de haver reunido os seus jovens guerreiros para vir dar-me aqui as boas-vindas. Apesar disso, eu preferia ver vocês todos trabalhando em suas plantações.

Andou ao longo da primeira e extensa fila de guerreiros, inteiramente sujos de tinta roxa, e o passo vagaroso e teso do comandante inglês semelhava o de grande monarca, passando revista a uma guarda-de-honra.

—Estou vendo, — observou ele, falando por cima dos ombros, ao cacique dos Akasavas, que fascinado por aquela visita inesperada, o acompanhava, — estou vendo que cada homem traz uma lança de combate e um escudo de vime, e até alguns têm espadas de N'Gombi...

— Senhor, tudo isso é verdade, — explicou-lhe o chefe, como que recuperando o uso da fala, — porque nós vamos caçar elefantes na Floresta-Grande.

— Mas alguns trazem também pequenos ossos humanos, atados em redor do pescoço, e isto não me parece que se use para a caçada de elefantes...

Sanders disse isto tristemente, cismadoramente, sem interromper a sua inspeção. O chefe dos Akasavas, que estava visivelmente embaraçado, gaguejou então:

— Senhor, correu aqui um certo rumor... falou-se que... veio um espia que nos contou... que os Ochoris se estavam preparando para nos atacar! Nós ficamos receosos...

— Estranho boato, — exclamou Sanders, como que para si mesmo, mas no idioma indígena, — estranho boato, pois eu estou vindo da aldeia dos Ochoris, onde somente vi homens que pilavam milho ou caçavam pacificamente, além de que o seu chefe está na cama, tiritando de sezões!

E sacudiu a cabeça, numa bem simulada confusão,

— Senhor, talvez o boato seja mesmo mentiroso, — obtemperou-lhe o pobre soba dos Akasavas, — pois outras notícias falsas já têm corrido por aqui,..

— Isso, que você está dizendo agora, é que é a verdade, — bradou-lhe Sanders gravemente. — Esta aldeia aqui é uma terra de mentiras! Fizeram espalhar que eu tinha morrido, e veja você o resultado que tal mentira produziu aqui: já não existe mais lei alguma nesta cubata, e os homens entendem que podem guerrear e matar a seu bel-prazer!

— Ainda que eu morra neste instante, — gemeu, com unção de virtude, o caudilho dos Akasavas, — ainda que o rio se torne em fogo e destrua os meus lábios, ainda que cada árvore se transforme num tigre para me devorar, — eu vos juro que nunca pensei em guerra!

Sanders riu-se intimamente.

— Poupe o seu fôlego, — disse-lhe Sanders, gentilmente, — bem como o dos seus homens! Não se esqueçam de que vocês vão caçar elefantes, e é uma viagem longa daqui até a Floresta-Grande, havendo muitos pântanos a atravessar e muitos rios a transpor a nado! Mas meu coração está contente, por ter eu chegado aqui a tempo de apresentar a vocês as minhas despedidas...

Houve ali um silêncio tumular, porque a tal caçada de elefantes não passava de uma desculpa esfarrapada do chefe. Dali até à Floresta-Grande era uma jornada de dois meses, um para a ida e outro para a volta, e, além disso, através de uma região amaldiçoada, e os Akasavas não eram homens que gostassem de viagens longas, a não ser pela corrente do rio.

O silêncio foi quebrado pelo soba, que assim falou ao comandante inglês:

— Senhor, em honra vossa, a nossa viagem será adiada, porque, se partirmos agora, como é que nos dareis audiência?

Sanders sacudiu a cabeça para os lados, retrucando-lhe:

— Homem algum deve estorvar a caçadores! Vá em paz, chefe, e traga de lá muitos dentes de elefantes!

Nisto, percebeu que uma luz repentina fulgurara nos olhos do outro. Por isso, continuou:

— Mandarei, em companhia de você, um sargento de Houssas, para que ele me conte depois toda a história da caçada, (e a luz, neste instante, extinguiu-se nos olhos do chefe), porque não faltarão mentirosos, capazes de dizer que vocês não chegaram à Floresta-Grande, e eu quero uma prova segura, para poder confundi-los!

O chefe mostrava-se ainda hesitante, e as fileiras de guerreiros, que o escutavam e lhe aguardavam a decisão, começaram a desordenar-se ansiosamente, até que desistiram totalmente de exibir qualquer aparência de um exército disciplinado e se transmudaram numa turba-multa irrequieta.

— Senhor, — disse o soba, — partiremos amanhã...

Os lábios de Sanders ainda sorriam, mas seu rosto ostentava a firmeza habitual e seus olhos tinham aquele brilho inflexível, que o cabecilha dos Akasavas bem conhecia.

— Você vai hoje mesmo, meu caro! — intimou-o Sanders, abaixando a voz, ao ponto de torná-la pouco mais que um sussurro. — Senão, estes guerreiros marcharão sob outro chefe, e você ficará balançando aqui, de uma árvore bem alta!

— Senhor, nós então seguimos agora mesmo, — disse o homem, roucamente, — ainda que sejamos maus caminhantes, por termos os pés muito delicados...

Sanders lembrou-se da preguiça dos Akasavas e contraiu o sobrecenho, retrucando ao outro:

— Com os pés feridos, vocês poderão descansar, ao passo que, — acrescentou significativamente, — com as costas feridas, vocês não poderão nem marchar, nem descansar. Sigam!

Ao romper da manhã seguinte, chegava ali, em 25 canoas de guerra, o povo de N'Gombi, que vinha juntar-se ao seu aliado de Akasava; mas na aldeia só havia velhos, mulheres e crianças, e Tigili, que ficou seriamente abalado, ao verificar tudo isso em pessoa, rendeu-se tranqüilamente ao pequeno destacamento de Houssas, que ficara ali na praia.

Que é que ides fazer de mim, senhor? — perguntou Tigili ao comandante inglês.

Sanders assobiou, pensativamente, e respondeu-lhe:

— A respeito de você, tenho algures certas instruções, que recebi do meu governo.

 

 A mata-dos-demônios

A QUATRO DIAS DE VIAGEM DE M'Sakidanga, se não for falsa a informação dos nativos, há um rio piscoso, que serpeia pelas terras de N'Gombi. Dizem os indígenas que ele é navegável, mesmo na estação da seca.

Os missionários de Bonginda ridicularizam semelhante asseveração. E Arburt, o jovem chefe do posto evangélico, tinha um sorriso bondoso nos olhos azuis ao escutar, um dia, a afirmação de Elebi, de existir uma região fabulosa e opulenta nas cabeceiras do referido rio, — e mostrava-se polidamente incrédulo.

— Se, em semelhante lugar, há marfim entesourado, — disse-lhe no idioma indígena, — ou outras grandes riquezas, capazes de ser roubadas, você deve ir dar parte de tudo a Sândi, porque tais bens pertencem ao governo britânico. Mas você, Elebi, o que deve principalmente fazer, é fixar o seu espírito nos tesouros da bondade divina e pensar quão indigno é você para merecer um cantinho no reino dos céus. Deixe em paz o marfim e as outras riquezas ocultas!

Elebi era conhecido de Sanders. Este considerava-o um pregador nativo do tipo furacão, pois era volúvel e fulminante subministro do serviço apostólico daquela zona. Nos seus momentos extáticos e felizes, tinha, com efeito, realizado muitas conversões. Havia, porém, certos dias de reação, durante os quais Elebi se deixava ficar em sua cabana de taipa e criticava calmamente o cristianismo.

Era penoso, ali, o trabalho da evangelização dos íncolas. Não podeis iniciar freneticamente o serviço e dá-lo por acabado ao fim de uma semana. Necessitais de prossegui-lo, de continuá-lo cada vez com maior fervor, não vos cansando nunca, não vos desviando nunca do caminho reto, praticando, até, enfadonhas renúncias, e deixando de fazer, muitas vezes, o que devíeis fazer.

— Religião é prisão, — queixou-se Elebi, ao findar o seu colóquio com Arburt, e encolheu os largos ombros negros.

Em sua cabana, estava habituado a trocar o traje europeu pela tanga e o manto, porque Elebi era um selvagem, — um selvagem mimetista, — mas bárbaro ainda. De uma feita, pregando o Evangelho à gente do Rio-dos-Demônios, chegou a tal grau de fervor entusiástico, que feriu gravemente a um zombador da sua palavra, quebrando-lhe o braço. E um certo Sanders, indignado, prendera-o, açoitara-o e ainda o multara em mil canas. Daí em diante, em certos círculos de missionários ingleses, Elebi figurava como um mártir cristão, porque mentira magnificentemente ao contar o castigo que recebera, atribuindo-o a uma simples e brutal perseguição, sofrida do comandante inglês.

O marfim, entretanto, jazia escondido a três dias de viagem para além do Rio-Secreto. E nisso é que Elebi constantemente meditava, dia e noite, em sua cabana, acurvado sobre as achas de lenha em ignição. O esconderijo dos tesouros ficava três dias de marcha além do rio, a partir de um ponto onde havia duas sepulturas. Era uma região honrosamente inçada de demônios, e Elebi estremecia, só ao pensar em tal. Ele, porém, era um missionário, um evangelista leigo; além disso, era o orgulhoso detentor de uma cópia da "Epístola aos Romanos" (laboriosamente vertida para a sua língua indígena); e, por conseguinte, não devia nutrir receio algum dos espíritos maus. Devia ter mais medo de certo Demônio-Branco, que residia em remoto quartel-general e que, a cada momento, podia aparecer por ali, a fim de percorrer as terras banhadas pelo Rio-Secreto, quando as chuvas viessem e passassem.

Supunha-se que Elebi fosse legitimamente casado e monógamo, em conformidade com o costume dos homens brancos, cuja fé adotara; mas a rapariga, que entrou ali na cabana, com uma terrina fumegante, cheia de peixe cozido, suspensa das mãos escuras, não era a esposa que os missionários reconheciam como tal.

— Sikini, — contou-lhe ele, — vou fazer uma viagem de canoa. r

— Para o serviço de Deus? — perguntou-lhe a mulher, que havia recebido a influência de Elebi, quando este evangelizava as multidões, nos seus períodos mais exaltados.

— A língua da mulher é semelhante ao estalejar do fogo, — disse-lhe Elebi. — E é mais fácil conservar-se um testo em cima de uma panela de água a ferver, do que uma fêmea guardar no coração qualquer segredo.

Elebi trazia à ponta dos lábios os provérbios daquele populário fluvial, e a moça riu, porque era a sua concubina favorita e estava certa de que, dentro em pouco, ele próprio lhe daria completa informação sobre o fim da viagem.

— Sikini, — disse-lhe o homem, repentinamente, — você bem sabe que eu a protegi, quando o "Tirador-de-Sangue" quis chupar o de você.

(Referia-se a Arburt, que possuía um microscópio e gostava de passar as suas tardes investigando o sangue do seu rebanho, à procura de indícios de tripanossomíase).

Como a rapariga nada lhe obtemperasse, ele continuou:

— Você bem sabe que, por sua causa, eu preguei uma grande mentira a ele, que é meu pai e meu protetor, dizendo-lhe: —"Em minha casa haverá uma só mulher, e será aquela Tomboli, que mora no litoral".

A moça meneou a cabeça, em sinal de confirmação, e continuou a contemplá-lo tolamente.

— Por tudo isso é que eu conto a você que vou além do Rio-Secreto três dias de viagem, deixando a canoa num lugar onde há duas sepulturas.

— Que é que você vai buscar lá? — indagou ela.

— Há lá muitos dentes de elefantes, — referiu ele, — marfim abandonado, que certas pessoas trouxeram consigo de um país distante e esconderam ali, por medo do "Quebrador-de-Pedras" (*). Voltarei rico e comprarei muitas mulheres, que servirão a você, e, então, deixarei de ser cristão, para adorar novamente o fetiche vermelho, como fizeram meu pai e meu avô.

(*) Bula-Matidi, isto é, "Quebrador-de-Pedras", alcunha dada pelos indígenas ao governador do Congo. — (Nota do autor).

 

— Pois vá! — disse ela, sacudindo a cabeça, pensativa-mente.

Ele, logo após, ainda lhe contou muitas outras coisas, que não havia revelado a Arburt: — donde tinha vindo o marfim, quais as pessoas que o trouxeram e os meios que ele tencionava empregar, para apoderar-se daquela riqueza.

Na manhã seguinte, antes de soar o lo-koli da missão, desaparecia Elebi, com a sua canoa. Arburt, quando soube disso, suspirou, dizendo que ele era "um miserável iludido", porque Arburt era humano. Mas Sanders, que também era humano, mandou ágeis mensageiros, com ordem de prenderem a Elebi. Não convinha absolutamente que os indígenas, caçadores de tesouros, invadissem território estrangeiro, pois tais incursões significavam guerra, e guerra significava para Sanders, de qualquer modo, uma solene correspondência oficial, que ele solenemente abominava, do fundo de sua alma.

Quem procurasse alcançar aquele caçador de riquezas, precisava de remar-lhe no rasto até Okau, onde o Barina encontra o Lapoi; tomando, depois, o caminho que fica à esquerda do primeiro daqueles rios e atravessando a lagoa tranqüila do Demônio-Branco, devia seguir a caudal tortuosa até atingir à terra dos elefantes. Ali, a floresta tinha sido abatida, para divertimento dos Grandes; a margem do rio está juncada de troncos de árvores, arrancados à toa e do mesmo modo arremessados ao chão pelo mammuth salteador. O solo não tem ali mata, nem pastagens: é um enorme charco, muito raso, onde se vêem os sulcos das grandes patas dos elefantes.

Elebi puxou a canoa para cima da margem do rio, e, tendo retirado do fundo dela o seu caldeirão de cozinhar, cheio de brasas vivas, despejou estas no chão e sobre as mesmas amontoou boa quantidade de gravetos, que apanhou por ali perto. Quando ficou pronto o seu banquete, ingeriu-o tranqüilamente e foi dormir.

Pelo meio da noite, sentiu aproximar-se dali uma pantera errante, que uivava e farejava. Elebi levantou-se e reacendeu a fogueira. Ao romper da manhã, procurou a vereda que devia levá-lo ao Rio-Secreto, e encontrou-a oculta pelos ervaçais.

Contava Elebi muitos amigos no país de N'Gombi. Moravam todos na cubata de Tambango, — para o desassossego infinito do soba de tal localidade, — porque os amigos de Elebi deitavam o gatázio em tudo quanto desejavam. Eram estrangeiros ali, andavam sempre bem armados e, além disso, excediam em número, na proporção de três para um, aos indígenas da aldeia. Um deles, o chamado O'Sako, era quem causava maior medo ao chefe, porque falava pouco e andava tragicamente, pela rua suja de Tambango, com um facão luzidio, de cabo curvo, pendurado do braço esquerdo. O'Sako era alto e elegante: brilhavam-lhe nuas as espáduas largas e seus braços musculosos não ostentavam enfeites. Trazia a carapinha empastada de barro, de jeito a dar-lhe a feição do cabelo de gente branca e pintava o corpo com ingola.

Pela primeira vez, condescendeu em falar ao seu hospedeiro:

— Você tem que arranjar-me três rapazes, quando regressar o sr. Elebi, para irem conosco às terras do Rio-Secreto.

— Mas, senhor, — alegou o soba, — não há ninguém que seja capaz de chegar ao Rio-Secreto, por causa dos demônios!

— Quero três homens, — disse-lhe O'Sako, escandindo as palavras, — três rapazes de pé ligeiro, de olho vivo como os de N'Gombi e de boca silenciosa como a dos mortos.

— Mas os demônios? — repetiu, fracamente, o chefe. O'Sako, entretanto, não lhe deu a honra de uma discussão e tocou-se a passos largos para diante.

Quando o sol resplendia furiosamente sobre o esferóide terrestre, num último esforço expirante, e o rio largo era qual uma torrente de fogo e extensas sombras se projetavam do alto das clareiras, Elebi chegou à aldeia de Tambango. Chegou inesperadamente, do lado do sul, e não trouxe consigo prova alguma de sua residência temporária nos campos da civilização, pois que, excetuando-se a tanga e o manto de pele de leopardo, que lhe pendia dos ombros, estava desnudo.

Havia na extremidade da maloca uma casa de audiências. Era uma cabana coberta de capim amarrado e fora construída no viso de pequena colina. Foi lá que o sr. Elebi reuniu os seus amigos e o cacique da aldeia, aos quais dirigiu a seguinte alocução:

— Cala-cala (vós, leitores, já sabeis que isto significa "há muito tempo" e é ali um exórdio tradicional), antes de os brancos chegarem aqui, e quando os árabes desciam dos países do norte, para roubarem em nossas terras mulheres e marfim, o povo do Rio-Secreto enterrou todos os "dentes", que possuía, num Lugar-de-Demônios. Suas mulheres, isso aquela pobre gente não pôde enterrar, e, por isso, perdeu-as. Agora, já não existe mais ninguém do povo do Rio-Secreto. Uns foram mortos pelos árabes, outros por Bula-Matidi; mas a doença foi quem matou a quase todos eles. Onde eram as suas cabanas, hoje cresce alto o capim; e em seus antigos pomares hoje só se vê o pássaro-tecelão. Conheço por demais aquele lugar, porque tive uma vez certa visão e ouvi uma voz que me dizia...

O final do discurso, do ponto-de-vista europeu, não passou de uma série de blasfêmias, porque Elebi recebera ensino para o papel de pregador leigo e possuía uma dicção muito fácil.

Quando ele acabou o palavreado, coube a palavra ao soba de Tambango. Fez este uma dissertação muito séria sobre demônios. Para ele, não restava dúvida alguma de que na floresta, para guardar o "tesouro escondido", havia uma legião de diabos. Alguns desses espíritos maus tinham caras perversas e eram de altura descomunal, — mais altos ainda do que a árvore da goma-copal, porquanto usavam como cacetes troncos inteiros; alguns outros, porém, eram muito pequenos, tão pequenos, que podiam viajar sobre as asas das abelhas. Todos eles, contudo, eram muito poderosos, muito terríveis, e, por isso, não havia ninguém capaz de enfrentar aqueles eficientes guardiães do "tesouro escondido". A maior habilidade deles consistia em dar cabo dos viajantes: os homens, que penetravam naquela floresta, em busca de caça, de borracha ou de marfim, não voltavam nunca mais, porque para entrar havia mil caminhos e para sair não havia nenhum.

Elebi ouviu tudo isso com suma gravidade, assim retrucando, prontamente, ao orador:

— Demônios naturalmente há por aquelas bandas, inclusive Satanás, o diabo velho, que é o maior inimigo de Deus. Sempre tive muito que fazer, para conseguir a expulsão de demônios dos corpos dos vivos, em minha sagrada qualidade de servidor da palavra divina. Mas dos demônios menores nada sei, embora não lhes ponha em dúvida a existência. Penso, portanto, que o melhor, que nos cumpre fazer, é oferecermos a Deus as nossas orações, para que ele no-los afugente do caminho.

Guiado por Elebi, todo o bando ajoelhou-se ali mesmo, bem em frente da aldeia, orando convencionalmente, porém com grande ardor, "para que contra eles não prevalecesse o Poder das Trevas, e, sim, que se prosseguisse triunfantemente o Grande Trabalho". Era essa a fórmula usual e brilhante de Elebi.

Depois disso, para estar duplamente seguro, não hesitou o bando em sacrificar dois frangos sobre uma pilastra de pedra que ficava bem em frente da porta do chefe, e, terminado o holocausto, um médico-feiticeiro, macróbio já decrépito, besuntou com gordura humana o corpo de Elebi.

Iremos pelo caminho de Ochori, — disse Elebi, que era um tanto estrategista, aos seus companheiros de viagem. — Aquela gente de Ochori nos dará alimento e guias, porque é a mais medrosa e covarde que eu conheço.

Despediu-se do cacique de Tambango e encetou a jornada, levando atrás de si o pequeno bando, comandado por O'Sako. Andaram assim durante dois dias. No terceiro dia, quando estavam apenas a uma hora de distância da aldeia de Ochori, Elebi fez parar o seu séquito, dizendo-lhe o seguinte:

— Conhecendo bem o mundo, estou familiarizado com os Ochoris, que são verdadeiros escravos: vocês verão como o seu chefe vem aqui beijar-me os pés. Mas, sabendo eu dos costumes dos homens brancos e da magia que os mesmos empregam, devo também ser recebido com honras, onde quer que chegue. Por isso, é preciso que mandemos adiante um mensageiro, a fim de dizer aos Ochoris que acaba de chegar aqui o sr. Elebi e ordenar-lhes que matem certo número de cabras, para nos darem as boas-vindas.

— É uma resolução muito acertada, — ponderou O'Sako, seu imediato.

Um mensageiro foi imediatamente despachado ao caudilho dos Ochoris.

Elebi seguiu para diante, vagarosamente, com a sua pequena caravana.

Conta-se que a mensagem de Elebi chegou a Bosambo de Monróvia, soba dos Ochoris, quando se encontrava ele tomado do desânimo peculiar àqueles homens de ação, para quem a vida corre muito suavemente.

Era costume de Bosambo, — o que não deixava de causar certa apreensão ao seu povo, — falar inglês, quando refletia em voz alta, durante os momentos de crise, ou em qualquer ocasião em que não lhe conviesse serem conhecidos de outrem, ali, os seus pensamentos.

Sentado diante da porta da sua cabana e fumando um cachimbo curto de madeira, ouviu em silêncio o mensageiro descrever-lhe a qualidade do visitante que se aproximava e que vinha dar aos Ochoris a honra sem igual da sua presença.

Ao fim da longa exposição, Bosambo proferiu, em inglês, as seguintes palavras:

— Que negro petulante!

O mensageiro ficou perturbado ante aquela linguagem estranha.

— Senhor chefe, — disse-lhe, contudo, — meu senhor é um homem muito importante e conhece todos os hábitos dos homens brancos.

— Eu também conheço alguma coisa dos homens brancos, — replicou-lhe calmamente Bosambo, agora no dialeto indígena, — pois tenho entre eles muitos amigos, inclusive Sândi, que casou com a irmã de meu cunhado e está, portanto, aparentado comigo. Também — continuou ele ousadamente, — já apertei as mãos do Grande Rei Branco, que mora além dos mares e que me deu muitos presentes.

Foi assim inteirado que o mensageiro voltou para o meio do seu pequeno bando, que vinha avançando lentamente para a aldeia dos Ochoris. Elebi, depois de ouvi-lo, não deixou de ficar um pouco confundido e bastante impressionado.

— É singular! — exclamou ele. — Ninguém conheceu jamais chefe algum dos Ochoris que não fosse um cão e filho de cão! Quem será esse Bosambo? Você não lhe disse que viesse receber-me no caminho, com as honras que me são devidas?

— Não, senhor! — respondeu-lhe, francamente, o mensageiro. — Ele se mostrou tão importante, tão insolente, por causa de Sândi se ter casado com a irmã do cunhado dele, que eu não me atrevi a dizer-lhe que viesse receber-vos!

À entrada da aldeia de Ochori, há um lugar alto, onde Sanders, certa feita, mandara erigir uma tabuleta de aviso, conforme sabeis. Foi ali que Bosambo esperou a Elebi, que ficou com isso sobremaneira lisonjeado. Na pequena casa de audiências da aldeia, a qual era ali perto, realizou-se entre os dois uma longa e importante conferência. Elebi contou da sua viagem o que lhe pareceu estritamente necessário, e Bosambo acreditou da história aquilo que lhe convinha acreditar.

— Em fim de contas, que é que quereis de mim e do meu povo? — perguntou Bosambo ao forasteiro.

— Senhor chefe, — respondeu-lhe Elebi, — a verdade é que estou empreendendo uma viagem, que me foi aconselhada pelo Espírito-Santo, do qual o senhor nada sabe, porque se trata de um mistério especial, somente conhecido dos homens brancos.

— Não há mistério que eu desconheça! — retrucou-lhe Bosambo, altaneiramente. — E, se o senhor pensa embasbacar-me, falando-me de espíritos-santos, eu lhe falarei também de uma certa Virgem, que é tida em grande respeito e devoção pelos brancos.

— Se o senhor falasse do bem-aventurado apóstolo Paulo... — começou Elebi, um pouco em talas.

— Não só lhe posso falar de Paulo, mas também de Pedro, João, Lucas, Mateus, Antônio e Tome, — recitou-lhe Bosambo, rapidamente.

Não fora à toa que havia estudado na missão católica. Elebi confessou-se confundido.

— Deixemos em paz esses assuntos de magia dos brancos, — ponderou Elebi, prudentemente, ao soba dos Ochoris. Estou vendo que o senhor é, de fato, um homem instruído. E, por isso, vou dizer-lhe toda a verdade. A minha viagem tem por fim procurar uns tesouros estupendos. Tudo quanto eu lhe disse antes, foi pura mentira. Falemos, agora, como dois irmãos. Eu vou à Mata-dos-Demônios, onde, há muitos anos, não tem pisado o pé de nenhum homem. O que eu vim aqui pedir-lhe é que me arranje provisões de boca e me ceda dez homens para meus carregadores.

— Quanto a alimentos, o senhor poderá levar; mas, quanto aos homens, não posso ceder-lhe nenhum, — respondeu-lhe Bosambo, — porque empenhei minha palavra com Sândi, que é, como o senhor já sabe, o marido de uma cunhada minha, de que homem algum deixaria esta aldeia para o serviço de estranhos.

Com semelhante resolução teve Elebi que conformar-se, porquanto os Ochoris, que ele tinha visto anteriormente, estavam possuídos de um espírito novo: nos olhos daqueles escravos de outros.dias, notava-se agora um constante desafio, que era, sem dúvida, perturbador. Além disso, andavam sempre bem armados.

Prosseguindo a jornada, Elebi fazia o seu pequeno destacamento parar de quinhentos em quinhentos metros, amarrando, então, uma tira de pano vermelho em redor do tronco ou do galho de uma árvore.

— Por esse modo, — comunicou ele ao seu imediato, — podemos tornar-nos independentes dos deuses e intrépidos quanto aos demônios, visto como, se não pudermos descobrir o marfim, ao menos poderemos achar novamente o caminho para o regresso.

(Semelhante processo, — de amarrar tiras de pano às árvores, — tinha-o ele aprendido dos missionários, quando os acompanhara na travessia do território entre Bonguidja e o Rio-Grande; mas ali não havia demônios).

Após dois dias de viagem, surpreendeu-os um sítio em que havia duas sepulturas. Ali existira também uma aldeia, porquanto cresciam luxuriantemente, nos arredores, palmeiras iguais às de Isisi, e, afastando a relva para os lados, descobriram eles o teto apodrecido de uma cabana. Devorando os cocos das palmeiras, faziam grande algazarra os pássaros-tecelões, e sufocado pelo matagal avistava-se um bosque de bananeiras.

Tendo examinado os dois túmulos, que estavam cobertos de cacos de panela, Elebi ficou satisfeito.

Na floresta, uma légua além da aldeia morta, surpreenderam um macróbio, tão mirrado pela ancianidade, que poderíeis, de certo, levantá-lo do chão, suspendendo-o com o índice e o polegar.

— Aonde é que vocês vão com tanta força, moços? — murmurou ele, infantilmente. — Vão à terra dos demoniozinhos? Quem é que guiará a vocês para a volta, para verem novamente as suas mulheres? Ninguém! Porque os demônios confundirão a vocês, abrindo novos caminhos para dentro do mato e fechando o antigo para a saída da floresta. Oh-ko-ko!

E começou a chorar miserandamente, como uma criança.

— Pai, — disse-lhe Elebi, fazendo tremular nas mãos um punhado de tiras de flanela vermelha, — não vos aflijais por nossa causa! Eis aqui a magia dos brancos, graças à qual poderemos voltar pelo mesmo caminho por onde viemos!

O macróbio teve, então, um acesso de cólera e atirou-lhes mil maldições e pragas de morte, ante as quais os sequazes de Elebi recuaram, presas de intenso pavor.

— Você já viveu demais! —bradou Elebi ao ancião, e atravessou-lhe o pescoço com a lança.

 

Acharam o marfim a dois dias de viagem do lugar em que foi perpetrado aquele estúpido homicídio. Achava-se enterrado numa espécie de mundéu, recoberto por luxuriante vegetação. Fazendo-se o cálculo do mesmo em moeda européia, devia valer mais ou menos £ 50.000.

Na manhã em que Elebi e o seu bando partiram de Ochori, Bosambo, que não se arriscara a acompanhá-los, vira-os pôr ò pé no caminho. Observara que parte da carga da pequena caravana consistia em dois cestos, cheios, até às bordas, de tiras estreitas e compridas de pano vermelho.

Tivera curiosidade de indagar de Elebi para que levava aquilo, e o outro respondera-lhe misteriosamente:

— Isto é a minha magia. É conveniente que o senhor lhe conheça o poder.

E contara o destino que ia dar às mágicas tirinhas escarlates, enquanto Bosambo lhe bocejava na cara, com grande insolência.

Adiante de Ochori um dia de viagem, o bando alcançara a primeira guarda avançada da Floresta-Grande: consistia ela numa cerrada falange de árvores de goma-copal. E ali começou a ser posta em ação a magia das tiras vermelhas.

— Por esta forma, havemos de voltar e achar carregadores, — explicou Elebi à sua gente, — e havemos de trazer conosco tanto marfim, quanto pudermos transportar.

Descoberto o marfim, duas horas mais tarde começou o bando a sua viagem de regresso, pelo caminho onde, a intervalos de quinhentos metros, uma tira de pano carmesim pendia do galho ou do tronco de uma árvore.

Havia, de fato, naquela região, inúmeros caminhos, que pareciam oferecidos aos viandantes pela mão do homem. Elebi estava radiante de satisfação, por ter marcado o que lhe servira na ida.

Encontrando sempre os sinais que lhe indicavam a direção, o bando marchou rapidamente durante oito horas, parando somente quando anoiteceu.

Mas, a altas horas daquela noite, Elebi foi acordado pelos gritos de um dos seus homens, o qual saltava em redor da fogueira, acesa em meio do acampamento.

— É o irmão de Olambo de Kinshassa, — disse-lhe uma voz, abalada pelo medo. — Ele está atacado da doença "mongo".

Elebi mandou prender de pés e mãos o enfermo e assim falou, sabiamente, aos seus outros companheiros, logo reuni' dos em conselho:

— Há muitos modos pelos quais os brancos tratam esta moléstia: ora dão certos pós, ora espetam agulhas nos braços do doente. Mas dar qualquer medicamento, quando sobrevém a loucura, é perder tempo, — assim ouvi sempre dos sacerdotes da missão, — porquanto a loucura sobrevém, quando o doente está para morrer.

— Mas o nosso companheiro estava perfeitamente bom "ainda na noite passada, — ponderou uma voz calma.

— Então, decerto, isto é coisa dos demônios da floresta, — obtemperou Elebi. Vamos perguntar-lhe o que foi que ele viu!

Dirigiram-se ao enfermo, — agitada forma humana, que jazia amarrada no chão, — e começaram a interrogá-lo. Encontraram muita dificuldade em obter dele qualquer resposta, porque o doente chorava, ria e vociferava sem parar.

— Não nos esqueçamos de perguntar-lhe pelos demônios! — bradou Elebi.

— Demônios?— guinchou o louco. — I-i! Eu vi seis demônios, que vomitavam fogo! Eles virão matar a você, Elebi! Cão!...

E proferiu ainda outras coisas inconvenientes. — Se houvesse algum rio aqui perto, — declarou Elebi, — poderíamos afogá-lo. Como, porém, só temos por aqui terra firme e mato, levem-no vocês ali para a floresta, que eu o farei ficar silencioso.

Seis homens robustos conduziram o lunático para dentro da espessura da selva, onde o deixaram a sós com Elebi. Os gritos cessaram repentinamente, e Elebi voltou, limpando as mãos em sua pele de leopardo.

— Agora podemos tornar a dormir, — disse Elebi aos companheiros, e foi deitar-se.

Antes de romper o dia, já o bando estava de novo em movimento.

Tendo marchado mais de um quilômetro, acharam-se os homens, de repente, diante de vários trilhos, e, então, pararam, hesitantes.

— Por aqui, não há marca alguma, senhor! — anunciou o guia.

Elebi chamou-o de tolo e foi proceder a investigações, pessoalmente.

Mas, realmente, não havia por ali nenhuma tira de pano carmesim, nem resto algum da mesma. Andaram mais outro quilômetro, sem melhor resultado.

— Tomamos um caminho errado! — declarou-lhes Elebi. — Voltemos!

E a pequena caravana retrocedeu para o acampamento, que pouco antes havia deixado. Gastaram aquele dia explorando a região por três léguas em torno. Mas, em ponto algum se lhes deparou o sinal mágico, para, mostrar-lhes a verdadeira pista.

— Todos nós somos homens de N'Gombi, — disse Elebi aos companheiros, — e, por isso, prosseguiremos amanhã a nossa jornada, dando as costas ao sol. A selva não inspira terror à gente de N'Gombi! Apesar de tudo, ainda não pude compreender como foi que nos falhou aqui a magia do homem branco...

— Foram, decerto, os demônios! — murmurou, de mau humor, o imediato de Elebi.

O chefe mirou-o pensativamente, por alguns instantes, dizendo-lhe depois com ênfase:

— Os demônios, às vezes, desejam sacrifícios! E a cabra prudente não costuma balir, quando o sacerdote se aproxima do rebanho.

Na manhã seguinte, fizeram uma grande descoberta: uma 'tira de flanela apareceu-lhes, amarrotada, nos limites do acampamento. Estava bem no meio do trilho, e Elebi deu pulos de alegria.

A pequena caravana pôs-se de novo a caminho. Um quilômetro mais adiante, surpreendeu-lhes o olhar outra tira escarlate; menos de um quilômetro além, novamente outra.

Nenhuma das tiras de flanela vermelha, entretanto, estava onde as havia posto a mão de Elebi, e todas as achadas agora traziam indícios de ter sido rudemente amarrotadas por alguém, o que muita inquietação produziu no espírito do missionário leigo. Algumas vezes, os pequenos trapos vermelhos desapareciam totalmente por certa extensão da vereda, mas uma pesquisa, efetuada pelo bando, vinha a descobrir algum, a certa distância do trilho, e a marcha continuava.

Quase ao pôr do sol, Elebi parou de repente e pôs-se a refletir silenciosamente: — estendia-se-lhe para diante a longa sombra; estava-lhe o sol atrás das costas, quando, naquele momento, devia estar-lhe em frente.

Então, disse ele aos companheiros:

— Estamos marchando em direção errada!

Os homens deixaram cair no chão as suas cargas e encararam-no com espanto.

— Não há dúvida nenhuma, — ponderou-lhes Elebi, depois de uma pausa, — isto é obra dos demônios! Invoquemos a misericórdia de Deus!

Toda a caravana se ajoelhou, e ele puxou o terço, em voz alta, fervorosamente, durante vinte minutos. A escuridão caiu, antes que eles houvessem acabado a prece.

Acamparam, aquela noite, no lugar em que se lhes deparara o último sinal vermelho. Na madrugada seguinte, retrocederam pelo mesmo caminho que haviam percorrido até ali. Dispunham de bastantes provisões de boca, mas dificilmente poderiam encontrar água potável, e isto é que constituía para eles o perigo maior. Percorreram poucos quilômetros, antes que desaparecessem completamente os trapinhos vermelhos, e depois começaram a vagar em círculo, sem rumo algum.

— Isto, agora, evidentemente, não é mais caso para oração, e, sim, para sacrifício! — exclamou Elebi.

E, de acordo com os companheiros, foi sacrificado um dos pobres guias.

Três noites mais tarde, O'Sako, o amigo de Ele(bi, arrastou-se furtivamente para o lugar onde estava dormindo o missionário leigo, e, com a lâmina afiada de sua enorme faca, resolveu rapidamente a disputa, que se havia entre ambos levantado durante o dia, quanto à pessoa a quem devia competir o comando da expedição...

 

— Senhor, — dizia Bosambo de Monróvia ao comandante inglês, — tudo quanto me mandastes fazer, eu fiz!

Sanders estava sentado em sua cadeira dobrável, diante da cabana do soba dos Ochoris, e meneou aprovativamente a cabeça.

— Quando recebi vossa mensagem, — continuou Bosambo, —para prender Elebi, por ser ele inimigo do governo e haver desobedecido às vossas ordens, tomei comigo cinqüenta dos meus jovens guerreiros e segui-lhe no encalço. A princípio, o caminho foi fácil, porque ele tinha amarrado tiras de pano vermelho às árvores, para guiar-se por elas, quando tivesse de voltar; mas, depois, o caminho se nos tornou difícil, porque os N'Kimas, que vivem na floresta...

— Macacos? — perguntou-lhe Sanders, franzindo as sobrancelhas.

— Macacos, sim, senhor! — confirmou Bosambo. — Os macaquinhos pretos da selva gostam de cores berrantes. Por isso, desceram às árvores em que havia os trapinhos encarnados e arrancaram-nos, levando-os para as suas casas, conforme o costume dos símios. Aí está a razão por que Elebi e os seus companheiros se perderam na Mata-dos-Demônios. Achei lá os ossos de todos eles, porque eu conheço bem o caminho da selva.

— E que mais achou você, além dos ossos dos homens? L- perguntou-lhe Sanders.

— Nada mais, senhor! — respondeu-lhe Bosambo, olhando-o diretamente nos olhos.

— Isso, provavelmente, é mentira! — resmungou Sanders, levantando-se.

Bosambo ficou pensando no marfim, que enterrara debaixo do chão de sua cabana, e não se atreveu a contestar o comandante inglês.

 

Os amores de M'Lini

QUANDO UM HOMEM AMA A CERTA mulher, esteja ela viva ou morta, seja uma profunda e vivida recordação ou uma realidade muito agradável, está apto para receber a coima de "inimigo das mulheres", julgamento apressado que os tolos, os frívolos, formulam a respeito de todo homem cujos amores não se refocilam na promiscuidade e que não vivem confidenciando as suas paixões. Sanders era tido na conta de "inimigo das mulheres" pelos homens que o conheciam pouco, para poderem analisar-lhe o caráter. Sanders, entretanto, não era "inimigo das mulheres" em sentido algum de tal expressão, porquanto não guardava rancor para com ser algum da espécie feminina, e, certamente, também não havia sido vítima de nenhum amor secreto.

Havia um jovem, chamado Ludley, que tinha vindo da Inglaterra, para exercer o cargo de imediato de Sanders na África Central e que estivera em tal posto durante três meses. Ao fim desse tempo, Sanders mandou-o chamar de Isisi, para onde o havia destacado, ao quartel-general, e disse-lhe:

— Pode preparar-se, a fim de voltar para a Inglaterra. O moço abriu desmesuradamente os olhos, tomado de visível espanto, e perguntou-lhe:

— Por que motivo?

Sanders, em vez de responder-lhe, olhava fixamente, através da porta aberta do bangalô, para o mar distante.

— Por que motivo? — tornou a perguntar-lhe o jovem.

— Tenho ouvido certas coisas a seu respeito, — disse-lhe Sanders, com secura.

Estava bastante contrariado com aquele colóquio, mas não revelava cólera alguma.

— Certas coisas... de que espécie? — indagou Ludley. Sanders moveu-se inquietamente na cadeira.

— Oh! certas coisas... — disse ele, vagamente; depois acrescentou: — Volte para a Inglaterra e case-se com a bonita moça, da qual me disse gostar loucamente, quando você aqui chegou!

Ludley, cuja pele ficara abaçanada pelo sol da África, tornou-se vermelho como um camarão.

— Olhe lá, chefe, — ponderou ele, meio zangado, meio defensivamente, a Sanders, — não faça caso de tais certas coisas, pois bem sabe como é que a gente procede nestes países negros... Sim! Ponha de lado tudo quanto lhe disseram a meu respeito! Não creio que vá agir como censor da minha conduta, não é assim?

Sanders olhou para o moço friamente, obtemperando-lhe depois, com sinceridade:

— A moral, que você põe em prática, não merece que eu me incomode com ela. Você podia ser o mais depravado diabo do mundo, — e eu reconheço que, de fato, não é tanto assim, — que eu não me daria ao trabalho de corrigi-lo. Não! O que me aflige é a moral dos meus canibais. Vá, portanto, para a sua casa, para o seio da sua família, meu filho! E case-se logo por lá, pois crescit sub pondere virtus! Você encontrará a tradução deste meu latim na seção de frases estrangeiras de qualquer dicionário respeitável. Quanto à espécie de coisas, que você insinua serem praticadas comumente em nossos países negros, creia que não são feitas em todos eles. Tais sem-vergonhices são muito boas para o Congo Belga ou para a Togolândia. Mas não são toleráveis neste pequeno território de selvagens, confiados ao meu comando.

Ludley partiu, no dia seguinte, para a Inglaterra.

Lá, não contou a ninguém a razão por que voltara, pois isso não teria soado bem. Era, sem dúvida, um rapaz discreto, como os rapazes do seu tipo, e nada de mal disse de Sanders, senão que este era um "inimigo das mulheres".

A cena que ocorreu depois da partida de Ludley para o seu país, no interior do território governado por Sanders, patenteia quão pequena é a divergência que existe entre a mentalidade do branco e a mentalidade do preto, na forma por que agem ambos. Com efeito, depois de ver o seu imediato pelas costas, Sanders subiu o rio para a aldeia de Isisi, e lá foi entender-se com uma rapariga, que se chamava M'Lini.

Por via de regra, as mulheres pretas são feias de rosto, mas têm belas as restantes partes do corpo. M'Lini, entretanto, não era mulher comum, conforme ides saber. O povo de Isisi, que guarda de memória fatos extraordinários, tradicionados ali de pais a filhos, conta que M'Lini era de procedência árabe. Com efeito, se um nariz afiladamente esculpido e lábios finos provam alguma coisa, M'Lini não podia ser de pura raça banto.

Veio prontamente à presença de Sanders, logo que este a mandou chamar, atenta, mas desconfiada, cheia de dedos. Antes que ele abrisse a boca para falar-lhe, fez ela ao comandante inglês, de sopetão, a seguinte pergunta:

— Senhor, onde é que está Lijinjii?

Tal era a prosódia mais aproximada que os indígenas haviam achado ali para o nome de Ludley.

— Lijinjii lá se foi, através das grandes águas negras, — respondeu-lhe Sanders, gentilmente, — para o seio de seu próprio povo.

— Fostes vós que o mandastes embora! — disse ela imediatamente.


Sanders não lhe retrucou. E ela, então, acrescentou: — Senhor, — e Sanders admirou-se da amargura do seu tom de voz, — diz-se que vós odiais as mulheres!

— Se disseram de mim isso a você, então disseram uma grande mentira! — replicou-lhe Sanders. — Não odeio as mulheres. Ao contrário, eu respeito-as profundamente, porque elas descem aos quintos dos infernos, quando têm filhos, e também as considero altamente, porque elas são, em geral, mais corajosas e leais do que os homens.

Ela nada obtemperou a isto. Inclinou a cabeça para baixo, até quase enterrar o queixo no colo moreno descoberto, olhando para o comandante inglês por debaixo das sobrancelhas, e seus olhos estavam repletos de um fulgor estranho. Alguma coisa, semelhante a um pânico, agitou o peito de Sanders. Teria o seu imediato deixado ali um rebento? Amaldiçoou a Ludley e segredou uma praga fervorosa, ainda que muito malévola, para que naufragasse em pleno mar o barco que o levava, aquela hora, para a Inglaterra. Mas as palavras de M'Lini não tardaram a tranqüilizá-lo, pois que ela lhe disse:

— Fui eu que seduzi a Lijinjii! Embora fosse ele um grande senhor e eu uma pobre escrava, eu consegui que ele ardesse de amor por mim! E eu teria também descido aos infernos, porque esperava dar-lhe filhos algum dia! Mas, agora, que vós o mandastes embora, isto não poderá mais acontecer...

— Pois dê graças a Deus por isso! — segredou Sanders, dentro de si mesmo.

Sanders parecia disposto a dizer-lhe algumas palavras de consolo; mas a rapariga voltou-lhe as costas, abruptamente, e lá se foi embora. Contemplou-lhe ele a graciosa figura, que se afastava pela rua abaixo, e voltou para bordo do Zaire.

Já navegara umas dez milhas ao sabor da corrente, na viagem de regresso, quando se lembrou de não ter feito a M'Lini repreensão, que para a mesma havia encerebrado.

— Que coisa extraordinária! — monologou Sanders, com certo desgosto. — Estou, sem dúvida, perdendo a memória!

Três meses mais tarde, saía da Inglaterra o jovem Penson, para ir preencher o lugar do despedido Ludley. Era um moço de semblante vivo, vibrante de entusiasmo, e, o que ainda mais o recomendava, já tinha estado dois anos em Serra-Leoa, onde se familiarizara com os serviços de administração da África Britânica.

— Você vai subir imediatamente para Isisi, — disse-lhe Sanders, — mas primeiramente preciso preveni-lo de que deve proceder lá com a máxima cautela.

— Qual é a dificuldade que há por lá? — indagou o jovem, ansiosamente. — Por acaso, andam os selvagens a sublevar-se?

— Tanto quanto sei, — respondeu-lhe Sanders, colocando os pés sobre a balaustrada da varanda, — não estão. Mas não é contra revoltas sangrentas, e, sim, contra o amor, que você deve precaver-se.

E contou ao seu imediato a história dos amores de Ludley e M'Lini, embora tal história não fosse nada honrosa para a administração inglesa.

— Pode confiar plenamente em mim, senhor! — disse Penson a Sanders, quando este rematou a narração.

— Confio muito em você, — ponderou-lhe o comandante, — porém não confio na mulher... Escreva-me, de quando em quando, referindo-me como é que ela procede; porque, se você não me disser nada a respeito dela, ficarei desconfiado, e irei vê-lo, numa disposição de ânimo muito desagradável.

— Pode confiar em mim! — reafirmou ao seu superior o jovem oficial.

Penson achava-se ainda na idade em que o homem tem muita confiança em si mesmo.

Por mais que possa parecer extraordinário o que vou referir-vos, o certo é que Penson, desde o dia em que assumiu o seu novo posto até voltar, poucos meses mais tarde, ao quartel-general, à presença de Sanders, em situação de perjúrio perante este, nenhuma palavra escrevera sobre a esbelta e altiva rapariga de olhos maravilhosos. Muitas comunicações lhe saíram da pena para o seu superior, — relatórios oficiais, bem redigidos e pontuais, bem como cartas sobre vários assuntos, — mas sem fazer a mais ligeira referência a M'Lini, o que levou Sanders a inquietar-se.

Entretanto, de Isisi para o quartel-general começaram a infiltrar-se mexericos, alguns muito esquisitos, de pessoas que haviam sido punidas injusta e barbaramente, com açoites mandados aplicar pelo imediato de Sanders, de sorte que o comandante inglês se viu forçado a embarcar-se no Zaire e a seguir, muito preocupado, ao arrepio da corrente.

Desembarcou a pequena distância da aldeia e para ela marchou a pé, pela margem do Isisi. Não foi um passeio fácil, porque a vegetação era ali exuberante. E foi naquele ponto que, em meio do matagal, surpreendeu um idílio africano: um moço, sentado sobre velho tronco de árvore morta, a tocar um violino plangente, para o deleite da gentil e formosa M'Lini, que estava deitada de bruços, com o queixo sobre as mãos.

— Com um milhão de diabos! — vociferou Sanders, colericamente, quando se lhe deparou tal cena.

O rapaz levantou-se do assento rústico e olhou calmamente para o seu superior, sem nenhum vexame aparente.

Sanders, porém, voltou-se para a rapariga, que continuava na mesma postura, e disse-lhe brandamente (porque estava tomado de raiva), apontando-lhe com a ponta da bengala a povoação próxima:

— Volte para a aldeia, minha cara senhora!

E, depois que a rapariga, tendo-se erguido do chão com todo o vagar, tomou relutantemente o rumo da cubata, dirigiu-se então Sanders ao seu imediato:

— Agora é que eu posso entender-me com você, magnífico espécime de homem branco! Que história é essa, que acaba de chegar ao meu conhecimento, de você ter mandado açoitar a O'Sako?

Penson tirou o cachimbo do bolso, acendeu-o com todo o vagar e respondeu a Sanders, no tom sereno de quem apresenta a mais cabal justificação:

— Ele tinha espancado a M'Lini.

— De semelhante declaração deduzo eu que O'Sako é o infeliz marido desta fascinadora dama, a quem você estava seduzindo agora mesmo, quando cheguei aqui, por meio da magia do seu diabólico violino, não é assim?

— Não seja bruto! — retorquiu-lhe Penson, com certo ar de ameaça na voz. — Sei que ela não passa de uma pobre mestiça e que tem uma porção de defeitos... Mas o povo do meu país não tardará a acostumar-se com a cor dela.

— Vá para bordo do Zaire! — disse-lhe Sanders, tranqüilamente, apontando-lhe o lugar onde parará o barco. — E, desde já, considere-se prisioneiro à minha ordem!

Conduziu-o Sanders para o quartel-general, sem ter procedido a qualquer investigação sobre os açoites aplicados a O'Sako, e, até saltarem do barco, nenhuma palavra trocaram a respeito de M'Lini.

— Você bem compreenderá que vou mandá-lo definitivamente para o seu país, — disse-lhe Sanders.

— Eu estava certo disso, — retrucou-lhe o outro, indiferentemente, de cabeça baixa.

Penson, durante a viagem pelo rio abaixo, tivera tempo de meditar, e havia perdido todo o aprumo anterior. Estava realmente muito abatido, agora.

Na véspera de partir para a Inglaterra, no barco da mala postal, disse ele a Sanders:

— Eu com certeza enlouqueci, porque, desde o momento em que vi aquela mulher, eu a amei perdidamente! Deus meu! que asno que sou!

— É um asno não pequeno, — concordou Sanders, que, com o coração desafogado, assim se despediu dele.

Eis o que ele imediatamente escreveu, com certo azedume, ao governador-geral da África Inglesa:

— "Não terei mais subcomandante algum em Isisi. Acho já bastante divertida a minha tarefa, para não precisar do passatempo adicional de servir de chaperon, a oficiais britânicos..."

Fez logo uma viagem especial a Isisi, para endireitar as coisas por lá, e, mal chegou, M'Lini foi vê-lo, sem ter sido convidada.

— Senhor, — perguntou-lhe a rapariga, — ele também foi mandado embora?

— Quando eu precisar de entender-me com você, M'Lini, — respondeu-lhe Sanders, — mandarei chamá-la.

— Senhor, eu amava a Pênsi! — declarou ela a Sanders, com mais sentimento do que pensava ele fosse possível a uma indígena manifestar.

— Você não passa de uma grande sirigaita! — repreendeu-a o comandante inglês.

— Senhor, assim são de fato algumas mulheres — obtemperou ela. — Eu, não! Eu, quando amo, amo com uma força terrível! Também, quando odeio, odeio para sempre! Eu vos odeio, senhor!

Tudo isso foi dito por ela numa arrancada.

— Se você fosse homem, — bradou-lhe Sanders, exasperado, — eu a amarraria e açoitaria!

A rapariga desdenhosamente replicou com os nomes mais insultuosos, e foi-se embora, enquanto ele a olhava pelas costas, tomado de espanto.

Para que compreendais bem o caso, não olvideis que. Sanders era o comandante, isto é, o senhor de todo aquele distrito; que, ali, tinha o poder de vida e de morte sobre toda a gente; e que nenhum homem ousava contrariá-lo ou desobedecer-lhe à palavra. Pertencesse M'Lini ao sexo masculino, como ele dissera, — teria ela, sem dúvida, sofrido forte castigo por aquela "traição" (não há vocábulo melhor para exprimir a ofensa que ela fizera a Sanders); mas era mulher, e mulher de dotes invulgares, certa, por isso, da fascinação que exercia.

O comandante inglês não a tornou a ver, durante os três dias que passou ali na aldeia, nem discutiu com o soba (circunstância mais extraordinária ainda) a respeito do procedimento da rapariga. Todavia, sem que pedisse particularmente notícias dela, soube que M'Lini desde muito se tornara a esposa favorita de O'Sako, de quem escarnecia francamente, dando corda a muitos namorados. Viu-a Sanders uma vez, caminhando para o seu lado, e ele, por isso, mudou de rumo, para não se encontrar com ela. Era isto uma fraqueza horrível, ele o confessava a si próprio; mas a verdade era que ele custava a resistir ao desejo, que o aguilhoava, de dar-lhe um tratamento somente devido às pessoas de origem elevada.

Acabada a visita, Sanders descia o rio em marcha vagarosa, manejando ele próprio a roda do leme, com os olhos a esquadrinharem o rio traiçoeiro, por causa dos bancos de areia. Trazia a mente ocupada com o problema de M'Lini, quando, repentinamente, da macega, que acairelava o Isisi, alguma coisa fez "wuf!-wuf!" e pedacinhos de ferro fundido encheram o ar em direção ao Zaire. Um dos estilhaços bateu no camarote do comandante, despedaçando-lhe um caixilho; muitos caíram na água; e outro, finalmente, errando a cabeça de Abiboo, fez voar-lhe da mesma o "tarbosh".

Sanders fez parar o barco, abicando-o para o sítio donde partiram as detonações, curioso por descobrir o indivíduo que despejara a carga do bacamarte em sua direção e por saber a causa de tal tentativa de morte; e Abiboo, de cabeça ao léu, pulou para a frente do barco e tirou a coberta de lona da pequena e luzida metralhadora.

Quatro Houssas saltaram do Zaire para a água e nadaram para a margem do rio, sustentando acima da cabeça, com uma das mãos, a carabina e respectiva munição, enquanto Sanders permanecia na balaustrada do barco, equilibrando na curva do braço esquerdo uma espingarda de caça, marca "Lee-Enfield".

Quem quer que fosse o suposto assassino, havia bem escolhido o lugar de que atirara sobre o barco. A vegetação era ali muito densa. Para do meio do rio atingir-se aquele ponto, era preciso passar através de altas gramíneas que brotavam de um pântano marginal, a cujos lados crescia exuberante a macega, repleta de arbustos, cobertos estes de trepadeiras, as quais formavam uma espécie de muralha, impenetrável a um homem branco.

Mas os Houssas sabiam abrir caminho em toda parte: acharam o homem, com a arma fumegante em mãos, esperando-os calmamente.

Pertencia ao povo de Isisi, — uma nação de filósofos, — de sorte que entregou a Abiboo, sem a menor dificuldade, a arma de que se havia utilizado.

— Penso, disse ele ao sargento dos Houssas, enquanto, pela ribanceira, marchavam apressadamente em direção ao barco, — que só o que me espera é a morte.

— A morte, — respondeu-lhe Abiboo, — e, depois dela, os tormentos do inferno!

Note-se que Abiboo estava desesperado pela perda do seu "tarbosh", que lhe havia custado cinco francos no território francês.

Sanders pôs de lado a sua "Lee-Enfield", quando viu chegar o prisioneiro. Deu-lhe imediatamente audiência, no camarote despedaçado do convés.

— Foi você quem atirou em mim? — perguntou ele ao homem.

— Sim, senhor! — respondeu-lhe o indígena.

— Por que motivo?

— Porque, — redargüiu o sujeito, — vós sois um demônio e praticais feitiçarias.

Não pôde Sanders deixar de sentir-se perturbado por esta acusação, tanto que perguntou imediatamente ao prisioneiro:

— Em que seção particular do departamento dirigido pelo diabo soube você que eu tenho estado a trabalhar?

O indígena, que não desfitava os olhos do rosto de Sanders, retrucou-lhe:

— Senhor, eu não tenho capacidade para entender de tais coisas. Dizem-me: — "Mate!", e eu mato.

Sanders não gastou mais tempo com perguntas inúteis. O homem foi posto a ferros, o beque do pequeno barco a vapor voltou a cortar a água do rio, corrente abaixo, e o comandante inglês retomou a roda do leme.

A meio caminho, entre B'Fani e Lakaloli, chegou o Zaire a um lugar propício à ancoragem. Tinha sido feita ali uma derrubada de mato, de sorte que Sanders mandou â tripulação abastecer de lenha o barco.

Estava aborrecido, não porque um homem tentara sem razão tirar-lhe a vida, nem mesmo porque o seu elegante camarotezinho do convés do Zaire tivesse os vidros despedaçados pelas estilhas de ferro fundido do bacamarte do indígena, mas porque se lhe deparavam dificuldades onde ele só esperava encontrar paz e harmonia..

Tinha o governo de uns dezesseis povos diferentes e separados, cada qual segregado do outro por línguas e costumes. Eram diferentes entre si, não como os franceses são dos italianos, mas sim como os eslavos são dos turcos.

Ali, nas priscas eras que já iam bem longe, antes de chegarem os ingleses, havia muitas guerras, tribo contra tribo, povo contra povo. Havia batalhas, invasões, homicídios, incêndios, crucificações, tudo por atacado. Mas o governo britânico tinha conseguido modificar tudo isso. Naquela terra, passara a reinar a paz.

Sanders tirou da cigarreira, com cuidado, um charuto comprido e fino, mordiscou-o na ponta e acendeu-o. O prisioneiro estava sentado sobre a coberta de aço do Zaire, perto do alojamento dos Houssas. Estava acorrentado pela perna a uma chapa do barco, e não parecia, por forma alguma, humilhado com isso. Sanders veio colocar-se diante dele, trazendo uma cadeira-de-bordo. Sentou-se e começou a interrogá-lo:

— Como é que você se chama, meu homem?

— Bofabi de Isisi.

— Quem foi que mandou você matar-me?

— Senhor, eu não me lembro!

— Foi homem ou foi mulher?

— Senhor, pode ter sido um ou outro...

Mais do que isso, não logrou Sanders arrancar dele. Retrocedendo a Isisi, a fim de aclarar certa desconfiança que nutria, Sanders mandou proceder a uma acareação entre Bofabi e M'Lini, mas o homem declarou que não a conhecia.

À vista disso, Sanders voltou para o quartel-general numa embaraçosa disposição de espírito, e Bofabi foi mandado para o presídio, estabelecido na desembocadura do Isisi. Assim permaneceram as coisas durante o espaço de três meses, e a única novidade, que Sanders veio a saber a respeito da rapariga, foi que ela tinha um novo admirador na pessoa de Tebeki, soba dos Akasavas.

Foi ao findar aquele período de calma, que Tebeki, achando mais bonita a galinha do vizinho, invadiu com trezentas lanças o território de Isisi, queimou a aldeia em que se abrigava M'Lini, crucificou o marido da mesma e levou-a consigo para Akasava.

Para comemorar tal façanha, deu Tebeki um banquete e uma dança, em que correu cachaça a valer. Houve grandes e impudentes orgias, que duraram quase toda uma semana, e o pedaço de selva, que orla o rio entre Isisi e Akasava, tornou-se um pequeno pandemônio.

Terminada a festa, Tebeki descansou e pôs-se a refletir nas violências que perpetrara. Estava ele precisamente a arquitetar desculpas esfarrapadas para p seu crime, quando Sanders fez ali uma repentina aparição. Ainda mais minazes eram os Houssas e a metralhadora, que acompanhavam o homenzinho de rosto moreno e avermelhado.

Sanders dirigiu-se para a cabana de Tebeki e mandou-o sair. O soba, confuso e vacilante, não tardou a estacar os passos trôpegos diante de Sanders, sob o sol ardente.

— Tebeki, — disse-lhe o comandante inglês, — por que foi que você matou a O'Sako, fazendo mal, ao mesmo tempo, a toda a aldeia de Isisi?

— Senhor, — respondeu-lhe Tebeki, gaguejadamente, — ele me afrontara...

— Poupe-me o incômodo de ouvir as suas mentiras! —> disse-lhe Sanders, friamente, e fez sinal aos Houssas, para que se aproximassem.

Em seguida, olhou em torno, à procura de uma árvore de boa altura. Não tardou a descobrir uma atrás da cabana de Tebeki: uma grande árvore de goma-copal.

— Dentro de meia hora, você será enforcado! — preveniu Sanders a Tebeki e olhou para o relógio-pulseira.

O caudilho nada objetou; apenas os pés descalços agitaram-se-lhe na poeira.

Nisto, saiu da cabana do chefe uma rapariga esbelta, que, a princípio, se deteve à porta, olhando curiosamente para o grupo; adiantou-se, porém, logo depois e veio colocar a destra sobre o ombro desnudo de Tebeki.

— Que é que vão fazer com este homem? — perguntou ela, olhando para Sanders e os Houssas. — Eu sou M'Lini, esposa de O'Sako.

Sanders não ficou horrorizado; mostrou apenas os dentes, num triste riso de ironia, e olhou para ela, dizendo-lhe:

— Você achará outro marido, M'Lini, tão prontamente quanto achou este.

E afastou-se dela, imediatamente, a fim de dar instruções aos seus Houssas, relativamente à execução de Tebeki. Mas a mulher acompanhou-o e, num gesto arrojado, segurou-o por um braço, dizendo-lhe:

— Senhor, se a morte de O'Sako prejudicou a alguém, não foi a mim, sua esposa? Entretanto, eu vos suplico: deixai que Tebeki continue a viver, porque eu o amo!

— Vá para o diabo, que a carregue! — obtemperou-lhe Sanders, polidamente. — Já estou cansado de aturar a você e os seus namorados!

Enforcado expeditamente e com mestria, Tebeki morreu imediatamente, porque Sanders era habilíssimo na direção de tal gênero de execuções.

Em seguida, retirou-se dali, com o seu destacamento de Houssas, ouvindo, cada vez mais fraco, à medida que a floresta os envolvia, o canto de morte de M'Lini. Sanders acampou aquela noite na Colina-das-Árvores, que domina a curva impetuosa do Isisi, e, de manhã cedo, o seu ordenança lhe anunciou que a esposa de O'Sako desejava falar-lhe.

O comandante inglês amaldiçoou in petto a já maldita esposa de O'Sako, mas fê-la vir à sua presença.

Ela, sem preâmbulo algum, começou a expor-lhe o que desejava merecer-lhe:

— Senhor, por causa da morte que O'Sako, meu marido, sofreu por minha causa, e por causa também da morte de Tebeki, meu amante, o povo de Akasava me expulsou! Todas as mãos estão levantadas contra mim! Por isso, se eu ficar neste país, morrerei...

— E então? — perguntou-lhe Sanders.

— Senhor, rogo-vos me leveis convosco até ao rio Sangar, que vai para o Congo. Eu tenho irmãos lá.

— Pode ser verdade tudo quanto você disse, — declarou-lhe Sanders, — como também sei que o seu coração está cheio de ódio para comigo, porque eu lhe tirei dois namorados brancos e acabo de enforcar-lhe o terceiro. Apesar disso, você poderá vir conosco até ao rio Sangar, mas com uma condição: você não porá a mão no "bocado", nem da comida, nem da bebida, dos meus homens, nem conversará com eles.

Ela meneou a cabeça afirmativamente e retirou-se. Sanders deu instruções a Abiboo sobre a maneira de ser a rapariga tratada pelos Houssas.

Mas, em meio da noite, Abiboo, que, além de ordenança de Sanders, era sargento de Houssas, dirigiu-se à tenda do seu comandante, que saltou da cama, agarrando automaticamente no seu "Express".

— Leopardos? — perguntou ele.

— Não, senhor! — respondeu-lhe Abiboo. — Mas é M'Lini, a qual não passa de uma grande feiticeira!

— Sargento, — disse-lhe Sanders, mal humorado, — se você me acordar outra vez, em meio da noite, por semelhante motivo, eu lhe quebrarei a estúpida cabeça!

— Seja como for, senhor, — ponderou-lhe Abiboo, meio encafifado, — mas o fato é que ela é uma feiticeira perigosa, porque conversou com os meus soldados e praticou certas coisas espantosas, fazendo-os ver, até, as suas casas longínquas, com as suas esposas e filhos...

— Tenho eu, por acaso, uma escolta de bebês? — perguntou-lhe Sanders, sobremaneira irritado. — Eu teria procedido mais acertadamente, — continuou com uma ferocidade calma, — se houvesse escolhido kroomen ou bushmen (e, ao ouvir isto, o sargento estremeceu), ou os homens tresloucados do rio Isisi, ao invés desta minha companhia de Houssas do rei...

Abiboo engoliu o insulto, nada objetando ao seu superior.

— Traga-me aqui a mulher! — ordenou-lhe Sanders. E vestiu estremunhado a roupa, depois de ter acendido a lanterna de sua tenda.

Poucos instantes depois, ouviu um ruído de pés descalços: M'Lini chegava à porta da tenda e olhava-o tranqüilamente.

— M'Lini, — disse-lhe Sanders, — eu ordenei a você que não conversasse com os meus homens...

— Foram eles, senhor, — ponderou-lhe ela, — que falaram primeiro comigo.

— É verdade o que diz esta mulher? — indagou Sanders, voltando-se para Abiboo.

O sargento respondeu-lhe primeiramente com um meneio de cabeça, explicando depois:

— Tembeli, o filho de Sekambano, foi o primeiro que falou com ela, desobedecendo assim às ordens recebidas, e os outros soldados o imitaram.

— São bushmen, por Deus! — exclamou Sanders, indignado. — Você, Abiboo, vai pegar imediatamente a Tembeli, filho de Sekambano, e amarrá-lo-á a uma árvore, onde lhe administrará vinte açoites!

O sargento curvou-se, tirou do bolso do dólmã um livrinho de notas, de cor viva, encadernado, com chapinhas de cobre nas pontas e bordas douradas, no qual inscreveu um trabalhoso apontamento.

— Quanto a você, — disse Sanders a M'Lini, — deixe de fazer aqui, com os meus homens, sessões de diabólico mesmerismo, senão eu mandarei aplicar-lhe o mesmo castigo que vai receber Tembeli. Alaki?

— Sim, senhor! — respondeu ela, meigamente, e foi-se embora.

Dois Houssas amarraram Tembeli a uma árvore, e o sargento, com um chicote flexível de couro de cavalo, deu-lhe vinte e um açoites, sendo o açoite extra a gratificação de Abiboo.

Mas, na manhã seguinte, o sargento relatou a Sanders que Tembeli havia morrido durante a noite, e o comandante inglês afligiu-se imensamente com esse fato.

— Não pode ter sido dos açoites, — ponderou ele, consigo mesmo, — porque ele já tem sofrido algumas vezes tal castigo.

— Isto é coisa feita da mulher, — disse Abiboo, judiciosamente, ao seu superior. — Ela é uma feiticeira danada! Eu previ tudo isto, quando ela começou a viajar conosco...

Sanders deu ordens para que fosse enterrado Tembeli, o filho de Sekambano, e sobre as circunstâncias da morte do mesmo escreveu nada menos de três relatórios, cada um dos quais foi rasgado por ele próprio.

E a pequena coluna prosseguiu a marcha de regresso para o quartel-general.

Naquela noite, fez alto perto de uma aldeia, e Sanders mandou a mulher, sob escolta, ao soba, com recomendação de guardá-la ali, até que ela pudesse seguir, acompanhada de pessoa idônea, para o rio Sangar. Meia hora depois, voltava ela, com a escolta, e Abiboo dava a Sanders a seguinte explicação:

— O chefe não a quis receber. Tem medo!

— Medo? — resmungou Sanders, enraivecido. — Medo? De que é que tem ele medo?

— Das diabruras dela, — respondeu o sargento. — O lo-koli contou-lhe a história de Tebeki, e ele não a quer ver nem pintada...

Sanders praguejou, com volubilidade, durante cerca de cinco minutos, e depois resolveu ir entender-se pessoalmente com o soba.

A entrevista foi curta e sem rodeios. O comandante inglês conhecia muito bem aquele caudilho indígena, e não se enganou com o mesmo.

— Chefe, — disse-lhe Sanders, ao findar a conferência, — duas coisas posso eu fazer: uma é punir a você, por sua desobediência às minhas ordens; e a outra é prosseguir o meu caminho, como se nada tivesse havido agora entre nós dois.

— Senhor, — disse-lhe o outro, com veemência, — ainda mesmo que condenásseis a mim e a minha aldeia ao fogo, nem assim eu recebia aqui essa mulher chamada M'Lini!

— Pois eu tanto compreendo isso, — obtemperou-lhe Sanders, — que vou continuar o caminho levando-a outra vez comigo.

Reencetou a viagem na madrugada seguinte, indo a rapariga um pouco à frente da coluna, mas sempre sob as vistas. Fazendo alto, ao meio-dia, para uma ligeira refeição e um pequeno descanso, veio ter com ele um dos Houssas, informando-lhe que havia um homem morto, suspenso de uma árvore, na floresta. Como Sanders era responsável por tudo quanto ocorresse no território confiado ao seu comando, dirigiu-se imediatamente, com o soldado, ao lugar que este havia indicado.

— Onde é que está o homem? — perguntou ao Houssa. E o soldado apontou-lhe uma árvore direita, de goma-copal, que se erguia em meio da clareira.

Mas Sanders, como não descobrisse na árvore designada cadáver algum, para corpo de delito de uma tragédia, tornou a perguntar ao Houssa:

—Onde é que está?

O homem limitou-se a apontar de novo, sem cessar, para a mesma árvore. Sanders franziu a testa e ordenou-lhe:

— Pois vá até lá e toque no pé do enforcado!

Depois de uma pequena hesitação, o Houssa caminhou lentamente em direção à árvore, e estendeu a mão para certo ponto da mesma; nada, porém, tocou, senão o ar, tanto quanto Sanders pôde ver.

— Você o que está é maluco! — regougou ele ao soldado, e chamou pelo sargento, assobiando.

— Que é que você enxerga ali? — perguntou Sanders a Abiboo, mal este prontamente lhe acudiu ao chamado.

— Além de um homem enforcado...

— Não há ali nenhum homem enforcado! — ponderou-lhe Sanders, serenamente, pois começava a compreender que o momento exigia um raciocínio calmo. — Ali não há mais nada, senão uma árvore e algumas sombras.

O Houssa informante mostrou-se perturbado, diante de tais palavras, e, com um aspecto grave, disse a Sanders:

— Senhor, perdoai-me, mas ali há um homem enforcado!

É isso mesmo, — disse Sanders tranqüilamente. — Precisamos de investigar este caso.

E fez sinal aos Houssas, que estavam ali em grande parte, a fim de voltarem para o acampamento.

No caminho, perguntou a Abiboo, como quem não queria, se ele também havia falado com M'Lini.

— Senhor, eu a vi bem de perto, — respondeu ele, pelos olhos.

— Diga-me uma coisa: onde foi que vocês enterraram a Tembeli, o filho de Sekambano?

— Senhor, nós o deixamos, segundo o nosso costume, no chão, encostado a uma árvore.

Sanders sacudiu novamente a cabeça, porque não era esse o costume dos Houssas.

— Pois bem: nós vamos voltar, por sobre as nossas pegadas, até ao lugar do acampamento, onde M'Lini se juntou a nós, — declarou ele.

Retrocederam e jornadearam até ao pôr do sol. Enquanto dois homens lhe fincavam a tenda no chão, Sanders pôs-se a vaguear em redor do pequeno acampamento. Os Houssas estavam sentados em redor das panelas, mas M'Lini achava-se algum tanto afastada deles, com os cotovelos nos joelhos e o rosto entre as mãos.

Sanders parou repentinamente diante dela e perguntou-lhe, de chofre:

— M'Lini, quantos homens já tem você matado em sua vida?

Ela olhou-o fixa e longamente, e ele lhe sustentou o olhar, até que ela baixou as pálpebras e lhe respondeu:

— Muitos homens, senhor!

— Disso estou bem certo! — declarou Sanders, e seguiu para diante.

Estava ele jantando, quando Abiboo chegou, passo a passo, para perto dele e segredou-lhe:

— Senhor, o homem morreu!

Sanders olhou para ele, atentamente, e perguntou-lhe:

— Que homem?

— O homem que vós açoitastes com vossas próprias mãos — replicou-lhe Abiboo.

Ora, o comandante inglês não havia açoitado a homem algum, nem ordenara a seus soldados semelhante punição. Apesar disso, respondeu a Abiboo, em tom positivo:

— Irei vê-lo.

No extremo do acampamento, havia um pequeno grupo de Houssas, em redor de certa forma humana prostrada no chão. Os soldados afastaram-se, com olhares sombrios, quando Sanders se aproximou dali, e não deixaram de murmurar lamentos sobre a morte do companheiro. Sem que Sanders o pudesse ver, M'Lini, que lhe estava atrás, olhou de certo modo estranho para Ahmid, um dos Houssas, o qual empunhou imediatamente o seu fuzil e seguiu furtivamente para a mata próxima.

O comandante inglês curvou-se sobre o soldado, que estava estendido ali no chão, e auscultou-lhe o coração, sem que lhe percebesse as pulsações.

— Tragam-me aqui a minha caixa de medicamentos! Mas ninguém lhe obedeceu. Então, ele se dirigiu a Abiboo:

— Sargento! Traga aqui a minha caixa de medicamentos! Abiboo fez-lhe vagarosamente a continência militar, e, com toda a aparência de relutância, saiu a cumprir-lhe a ordem.

Voltou, instantes depois, com a caixa de couro cru, que entregou ao seu superior. Sanders tirou dela um frasco de amônia, que desarrolhou, chegando-o às ventas do homem prostrado. Este não deu sinal algum de vida.

— Veremos! — foi tudo quanto Sanders disse, quando viu que falhara a sua primeira tentativa. Tomou uma seringa para aplicações hipodérmicas e encheu o pequeno tubo com uma solução de estricnina, injetando-a, sem cerimônia alguma, nas costas do homem. Um minuto depois, o "cadáver" acordou, agitando-se.

— Ah! — exclamou Sanders, alegremente. — Evidentemente, eu sou um grande mágico!

Ergueu-se, sacudiu a poeira que lhe sujara a calça nos joelhos e acenou ao sargento, chamando-o.

— Abiboo, escolha quatro homens e vá com eles ao lugar onde vocês deixaram Tembeli. Se os leopardos não o devoraram, talvez vocês o encontrem na estrada, porque a esta hora já ele terá despertado!

Depois que viu partir o pequeno destacamento, voltou a sua atenção para M'Lini, a quem disse:

— Minha cara senhora, estou, enfim, convencido de que você é uma hábil feiticeira, ainda que, anteriormente, haja eu encontrado coisa semelhante a você! — Podia-se observar que o rosto do comandante inglês se tornara muito pálido. — Entretanto, se não posso açoitá-la, porque você é mulher, posso matá-la!

A rapariga riu-se.

As pupilas dos dois, tomadas de vivo fulgor, entraram numa verdadeira porfia de superioridade. Olharam fixamente um para o outro, durante um bom pedaço de tempo, que pareceu a Sanders uma eternidade, porém que, com toda a probabilidade, não passou de cerca de um minuto.

— Seria melhor que vós vos matásseis a vós mesmo! — murmurou ela, finalmente.

— Quem sabe se realmente seria melhor? — proferiu Sanders, lentamente, e empunhou o revólver, que tirara do bolso do dólmã.

A arma já estava meio engatilhada, quando das moitas próximas partiu a detonação de uma carabina, e M'Lini caiu de borco, sem soltar um gemido.

Ahmid, o Houssa, tinha sido sempre um mau atirador.

 

 

— Acredito, — disse Sanders a Ahmid, alguns minutos mais tarde, — que você empunhou a sua carabina para matar-me. Como, porém, você estava sob a influência de M'Lini, não o castigarei.

— Senhor, — disse-lhe o Houssa, com a maior ingenuidade, — eu não sei de nada que tenha feito contra vós...

— Pois também posso crer nisso que você acaba de dizer-me, — ponderou-lhe Sanders.

E deu ordem para continuar-se a marcha.

 

O médico-feiticeiro

COISA ALGUMA SURPREENDIA A Sanders, excetuada a ignorância da maior parte dos bretões, habitantes da Inglaterra, quanto a tudo que se relacionava com os povos selvagens da África. Coisas estranhas aconteciam no "setor negro", — era assim que os oficiais britânicos do litoral denominavam o território sujeito à jurisdição de Sanders, — coisas misteriosas, miraculosas. Sanders, entretanto, nunca se surpreendia. Tratava com povos que criam em duendes e demônios, que se corporificavam em pessoas, e simpatizava com eles, por compreender que é muito difícil atribuir todos os males da vida a intervenção meramente humana.

Sanders era um homem irrequieto, — pelo menos assim o supunham os seus patrícios, — ou algum tanto louco, segundo o ponto-de-vista dos indígenas. E o pior de tudo é que não havia método em sua loucura.

Outros comandantes só viajariam depois das chuvas e mandariam aviso prévio da sua chegada. Era, sem dúvida, um bom costume. Os Isisis, os Ochoris e os N'Gombis, eternamente em luta, gostavam disso, porque, graças ao aviso oportuno da aproximação do comandante, lhes seria possível afastar das vistas do mesmo a feia evidência de faltas graves, ou escondendo o corpo de delito ou lavando o lodo da culpa.

Era-lhes desagradável marchar timidamente das cabanas ao encontro do comandante, sob a luz clara do sol nascente, exibindo, para seu descrédito, os tristes efeitos de um banquete noturno, realizado na véspera e encarar os olhos frios e firmes de um homenzinho moreno, vestido de roupa branca imaculada. Trazia ele, sempre, na mão direita, um chicotinho, que fazia estalar sugestivamente sobre o couro das botas altas, e acompanhavam-no quatro soldados Houssas, fardados de azul e escarlate, vigilantes e ágeis para a execução de qualquer ordem sua.

Certa feita, Sanders chegou a uma aldeia de N'Gombi ao romper da manhã, quando, por todas as convenções conhecidas, deveria estar descansando no seu confortável bangalô, a umas trezentas milhas rio abaixo.

Sanders entrou na rua da aldeia, justamente quando o sol atingia ao cimo das árvores e longas sombras se estendiam pelo solo, antes de incidirem nele torrentes de luz cor de limão.

A povoação achava-se silenciosa e deserta, o que era mau sinal, indício de orgias noturnas. Sanders tocou-se para diante, até chegar à grande praça, em meio à qual se erguia a casa de audiências, e, ali, ainda fumegava obstinadamente a escura ruína de uma fogueira apagada.

Sanders lobrigou qualquer coisa, que o compeliu a revolver as cinzas com o cabo da chibata.

— Pah! — exclamou o comandante inglês, com as feições transtornadas subitamente.

Mandou Abiboo ao barco, a fim de trazer de lá todo o seu destacamento de Houssas, e, chegados estes, dirigiu-se à cabana do soba, onde o acordou a pontapés.

O chefe indígena saiu da choça pestanejando e como que a tremer de frio, embora a manhã estivesse quente.

— Telemi, filho de O'Ari, — rugiu-lhe Sanders, — por que é que eu deixarei de enforcar a você, se você é um comedor de homens?

— Senhor, — gaguejou o caudilho, — nós comemos ontem um homem, porque era nosso inimigo, roubando aqui, dentro da aldeia, à noite, tudo quanto podia e carregando consigo as nossas cabras e os nossos cães. Além disso, nós não sabíamos que vós estivésseis para chegar aqui...

— Isso eu acredito, — disse Sanders.

Um lo-koli, tocado imediatamente, convocou para ali a todos os habitantes da aldeia, e, perante uma grande multidão, silenciosa e apavorada, o soba de N'Gombi foi cientificamente açoitado.

Sanders reuniu, em seguida, um círculo de anciãos e dirigiu-lhes a seguinte arenga, na qual havia ameaças e verberações, em vez de carinho:

— Só os crocodilos e as hienas é que comem os seres da sua própria espécie. O mesmo fazem também certos peixes...

Houve um estremecimento geral, porque ser comparado a peixe, entre os N'Gombi, corresponde a um insulto mortal.

— Não gosto de canibais, — continuou o comandante inglês, — e eles são também detestados pelo governo do meu rei. Portanto, quando chegar ao meu conhecimento, — e vocês não ignoram que eu tenho por toda parte muitos espias, — que vocês comeram algum homem, seja inimigo, seja amigo, virei correndo para aqui e os açoitarei o mais que puder! Se vocês tornarem a comer algum ser humano, trarei comigo uma corda, muitos corpos ficarão pendentes de árvores e algumas cabanas ficarão sem dono nesta aldeia! Muitas cabanas ficarão destruídas aqui!

Estremeceram de novo, ante a ameaça de cabanas destruídas, porque os N'Gombis têm por tradicional costume derribar as paredes da choça de um homem morto, para darem livre saída à alma do mesmo.

Sanders levou consigo o soba, cujos tornozelos arrastavam uma forte cadeia metálica e que assim foi conduzido para uma colônia penitenciária, instalada na costa ocidental, onde trabalhou durante cinco anos, em companhia de outros chefes de sua igualha, os quais haviam também sido postos em servidão ali, por motivo de diversos crimes.

Nos distritos do alto Isisi, Sanders era conhecido por um sonoro e comprido nome, o qual só se pode traduzir eufemisticamente pela forma seguinte: "O homem-que-tem-uma-esposa-desleal". Isso resultará de um pequeno gracejo de Bosambo, chefe dos Ochoris, e era imensamente sutil, porque queria dizer que Sanders estava casado com a gente indígena.

Norte e sul, leste e oeste, — percorria ele todo o território confiado à sua vigilância. Viajava de dia e de noite. Algumas vezes, o seu pequeno barco a vapor ia sulcando as águas rio acima, e, em tais ocasiões, era mais bem observado, sem que Sanders o pressentisse, pelas malfazejas aldeolas de pesca.

Sarala, um ancião que capitaneava uma das tais aldeiazinhas, sitas no distrito de Akasava, viu certo dia Sanders passar por ali.

— Tomem a canoa e vão depressa atrás de Sândi, por umas três horas de viagem, e vigiem o rio, por causa da volta dele! E, ao primeiro sinal de regresso do barco, — o que vocês poderão saber, se subirem ao alto da colina que domina a curva do rio, — venham depressa avisar-me, porque eu desejo praticar certos costumes de meu pai, dos quais Sândi não gosta.

Assim falou a dois dos seus homens, os quais partiram imediatamente. Ora, aquela noite, à luz de uma fogueira, em torno à qual havia danças e toques de tambor, o filho do chefe trouxe o seu primogênito, um inocentinho que contava apenas um dia de vida e que chorava sem parar, como se tivesse conhecimento prévio da condenação iminente, e colocou-o aos pés de Sarala.

— Meu povo, — discursou então o chefe, — é um provérbio que todos sabem, pois vem desde o começo do mundo, que o primogênito goza de uma virtude especial. Assim, se sacrificarmos este a diversos deuses e demônios, seremos felizes em tudo quanto empreendermos!

Deu uma ordem ao filho, o qual tomou uma lança de lâmina larga e começou a revolver, ali perto, um pedaço de terra, até abrir no mesmo uma cova pequena. Dentro desta, foi colocada a criança viva, cujos pezinhos batiam debilmente de encontro à parede do buraco.

Em pé, solenemente, diante da cova, pronunciou o velho soba a seguinte invocação:

— Ó deuses e demônios, sêde-nos propícios! Que esta criança, cujo sangue não foi derramado, chegue até vós imaculada!

O pai do bebê começou a remover com o pé a terra solta, de jeito que ela fosse cobrindo as pernas da criança. Mas, subitamente, Sanders fez a sua aparição ali, à luz da fogueira, e o filho do cacique caiu logo de costas no chão.

Sanders estava fumando um charuto fino, e, por cerca de um minuto, continuou a fumá-lo, como se estivesse inteiramente imerso em íntimas cogitações. Aquele minuto foi um tempo muito longo. Avançou então para a cova, abaixou-se e retirou dela a criança, desajeitadamente, porque estava mais habituado a manejar homens do que bebês; deu-lhe, em seguida, uma pequena sacudidela, para tirar-lhe de sobre a pela a terra solta, e entregou-a a uma rapariga que lhe estava perto, ordenando à mesma:

— Leve esta criança para a mãe dela e diga-lhe que ma venha mostrar viva amanhã cedo! De outro modo, ela que trate de arranjar desde já outro marido!

Voltou-se, então, para o chefe, a quem perguntou:

— Ancião, quantos anos conta você viver ainda?

— Senhor, — respondeu-lhe humildemente o macróbio, — isso vós é que podeis dizer.

Sanders cocou o queixo, reflexivamente, e o velho soba observava-o, com olhos medrosos. Por fim, disse a este:

— Você irá ter com o chefe dos Ochoris, dizendo-lhe que fui eu que o mandei para lá, e lá cultivará a horta de Bosambo e carregará água para ele, até morrer.

— Eu já sou tão velho, que a morte virá logo! — gemeu Sarala.

— Se você tivesse menos anos no costado, eu não esperaria por ela! — bradou-lhe Sanders. — Quanto ao filho de você, só decidirei amanhã o destino dele.

Os Houssas, que se encontravam ali de prontidão, obedecendo as ordens do comandante inglês, levaram o filho do soba para o acampamento, que Sanders assentara abaixo do rio, pois o Zaire, que passara por ali, tivera apenas o propósito de enganar a um chefe suspeito. E, de manhã, quando chegou a notícia de que a criança tinha morrido, — se de choque ou ferimento, se de ter ficado na cova, Sanders não cuidou de averiguar, — o filho de Sarala foi sumariamente enforcado.

Conto-vos estas histórias de "Sanders of the River", para que possais bem avaliar que espécie de homem era ele e saber alguma coisa do esforço insano, que ele desenvolvia ali. Se era expedito na aplicação de castigos, agia de acordo com o espírito do povo que governava. O indígena não tinha memória. O dia de ontem, com as suas faltas, os seus erros e os seus ensinamentos, era já, para qualquer nativo, uma data muito remota. E o homem se ressente de uma punição injusta por um crime de que ele já se esqueceu.

Podia Sanders cometer enganos deploráveis. Mas isso jamais lhe aconteceu, embora uma vez tenha ele estado quase a pique de fazê-lo.

Sanders expunha o seu ponto-de-vista, a respeito dos íncolas da África, em conversa com o professor sir George Carsley, quando este notável cientista inglês chegou ao quartel-general, tendo sido enviado ao continente negro pelo governo britânico, a fim de estudar as moléstias tropicais no seu próprio meio.

Sir George era um homem já de bastante idade, excepcionalmente pálido e com a barba toda branca.

— Houve já certo jornalista que afirmou que eu trato como cães a estes povos que governo, — dizia-lhe Sanders, lentamente, porque estava falando inglês, língua em que raramente se exprimia. — Creio que ele não deixa de ter razão. Com efeito, eu os trato como sé eles fossem bons cães, não para serem acariciados num minuto e escoiceados no outro; não para serem mandados deitar nos tapetes da sala de visitas um dia e no dia seguinte expulsos a murros, dos capachos da cozinha.

Sir George não lhe deu resposta alguma. Era um homem discreto, que já possuía alguma experiência da vida do litoral e também permanecera, durante anos, na solidão de uma província centro-africana, estudando os hábitos do mosquito transmissor da malária.

Sanders não fora nunca um grande conversador, de sorte que os três dias, passados pelo cientista no quartel-general, tornaram-se imensamente insípidos para o comandante inglês.

Havia, no entanto, um assunto, um só, em que o notável sábio se tornava loquaz.

— Preciso de estudar bem o papel que exerce aqui o médico-feiticeiro, — disse sir George. — Penso que não há, no mundo, nomeação alguma que me desse maior satisfação, maior sensação de poder, do que a minha indicação, por um povo indígena, para o posto de seu médico-feiticeiro.

Sanders pensou que sir George estivesse gracejando; mas o outro voltou ao assunto repetidas vezes, grave, ardente, persistentemente; e, por simples distração, o comandante inglês referiu-lhe todas as histórias que sabia sobre médicos-feiticeiros, ocorridas em qualquer tempo naquelas regiões da África.

— Mas o senhor espera, acaso, aprender qualquer coisa de tais indivíduos? — perguntou-lhe Sanders, por mera brincadeira.

— Sem dúvida nenhuma! — replicou-lhe o outro, seriamente. — Estou certo de que farei valiosas descobertas científicas, se puder tratar longamente com eles.

— Então você não passa de um velho asno mentecapto! — disse Sanders, mas apenas dentro de si mesmo.

O pálido sábio deixou-o, ao findar o quarto dia, e, além de uma notificação oficial de que se havia estabelecido na fronteira, nenhuma outra notícia veio dele para o comandante inglês durante seis meses. Certa tarde, entretanto, chegou ao quartel-general a nova de que o velho cientista se havia afogado no Isisi, em conseqüência do soçobro de uma canoa. Dizia-se que tinha partido sozinho para uma excursão de estudos, conduzindo consigo alguns instrumentos científicos. Depois, nada mais se soube dele, senão que a sua canoa, feita de casca de bétula, tinha sido encontrada, a flutuar emborcada no rio. Nenhum outro vestígio de sir George Carsley foi encontrado por aquelas bandas; e, por isso, Sanders, em tempo hábil, recolheu e remeteu para Londres tudo quanto pertencia ao suposto morto.

Houve dois fatos singulares com relação a semelhante tragédia. O primeiro foi que Sanders não viu jamais prova alguma, nem em documentos oficiais, nem em órgãos de imprensa, de quaisquer resultados das pesquisas científicas incumbidas a sir George Carsley. O segundo foi que, tendo achado um livrinho de notas, que pertencera ao sábio britânico, Sanders encontrou no mesmo, cuidadosamente registradas, as histórias de médicos-feiticeiros, que havia contado ao seu compatrício.

(O comandante inglês reconheceu no dito livrinho até uma história que ele próprio havia inventado, no entusiasmo do momento, para melhor distrair ao cientista).

Passaram-se sobre isso uns seis meses, mais ou menos tranqüilos, e então começou toda uma série de episódios esquisitos, que coroam a história do Homem-Demônio.

As coisas começaram lá pelo Rio-Pequeno.

Havia certa mulher do povo de Isisi que odiava ao marido, embora este fosse muito bom para com ela, tanto que além de construir-lhe uma cabana e pôr-lhe ao serviço uma esposa mais antiga, ainda lhe havia dado muitos presentes, entre os quais uns brincos de argola, que valiam algumas libras e qué a tornaram a mulher mais invejada nos territórios banhados pelas águas do Isisi. Mas a aversão dela pelo marido não se extinguira, e, certa manhã, saiu da cabana muito assustada e como que adoidada, a cantar, com voz trêmula, a "Canção-dos-Mortos", e a entornar automaticamente pequenos punhados de poeira sobre a cabeça. Os homens da aldeia não tardaram a entrar-lhe na cabana, onde acharam inteiriçado na cama o marido dela, com a cara retorcida e apavorada, parecendo ter ainda nos olhos esbugalhados todas as dores do inferno.

Decorridos dois dias, o cadáver foi queimado no meio do rio, e, quando a canoa, que o transportava, desapareceu de vista numa curva da caudal, a mulher entrou na água e lavou a poeira que lhe sujava o corpo, despojando-se também das folhas verdes de luto, que trazia na cintura.

Voltou, depois, para a aldeia, com um passinho ligeiro, pois que estava livre do homem a quem mais odiava na vida,

— e assim parecia terminado o caso.

Mas, quatro dias mais tarde, ali chegava um homenzinho carrancudo, de rosto moreno e cabelo ruivo, tirante a vermelho.

— M'Fasa, — disse Sanders à mulher, parando-lhe à porta da cabana e olhando-a com repugnância, enquanto ela, simulando uma intratável indiferença, pilava um pouco de milho, — é verdade que seu marido morreu?

— Senhor, é verdade, — respondeu ela. — Morreu de uma doença repentina.

— Parece-me, até, que foi repentina demais! — ponderou-lhe Sanders, e desapareceu no interior escuro da cabana.

Sanders saiu logo lá de dentro e olhou para a mulher com o sobrecenho carregado. Trazia na mão um pequeno frasco redondo, de vidro, dos que os europeus conhecem muito bem, e que era coisa notavelmente rara numa aldeia paga.

— Eu possuo um bom fetiche, — disse Sanders à mulher,

— e ele me contou que você, M'Fasa, envenenou a seu marido!

— Senhor, o vosso fetiche mentiu! — regougou ela, sem levantar a cabeça.

— Não discutirei tais coisas com você! — disse-lhe Sanders, prudentemente.

E, como ele não dispusesse de prova alguma contra ela, senão simples suspeitas, mandou chamar à sua presença o soba da aldeia.

Enquanto não chegou o chefe, a mulher continuava a moer o milho vagarosamente, cabisbaixa, parando de quando em quando para enxugar o suor que lhe escorria da testa; e Sanders, com o capacete de cortiça para trás da cabeça, um charuto já meio fumado na boca e as mãos metidas no fundo dos bolsos da calça, observava-a, franzindo aborrecidamente as sobrancelhas.

Nisto, chegou ali o caudilho da povoação, o qual se havia demorado, porque tivera de procurar um dólmã escarlate, que usava nas ocasiões solenes.

— Senhor, mandastes chamar por mim? — perguntou ele a Sanders.

O comandante inglês mudou da mulher para ele o olhar e respondeu-lhe:

— Sim, mas já tomei uma nova resolução. Não preciso mais de você!

O soba voltou para a sua cabana, levando no peito um completo serviço religioso de ação de graças, porque era responsável por certos atos secretos, ocorridos não havia muito em seu distrito, e pelos quais esperava punição.

Apenas o chefe se retirou, disse Sanders à mulher:

— M'Fasa, você irá para o meu barco!

E ela, largando imediatamente a mão-de-pilão, levantou-se e dirigiu-se para o ponto em que estava ancorado o Zaire. Sanders foi-lhe vagarosamente no encalço, refletindo sobre as várias arestas daquele caso. Se ele denunciasse aquela mulher, como assassina do marido, aos anciãos da aldeia, ela seria lapidada até morrer; se a levasse para o quartel-general e a submetesse a processo, não havia prova sobre a qual pudesse estear-se uma sentença condenatória; e, finalmente, não havia lugar algum idôneo, para onde pudesse ele deportá-la. Deixá-la, todavia, impune, ali, seria abrir precedente para futuros crimes de tal jaez.

Ela esperou-o no convés do barco. Era uma rapariga de dezoito anos, elegante, bem proporcionada de formas, intrépida e desafiadora.

— M'Fasa, — interrogou-a Sanders, — por que foi que você matou a seu marido?

— Senhor, — respondeu-lhe ela, prontamente, — eu não o matei! Ele morreu de doença!

E havia certa aspereza no seu tom de voz, como quando fora interrogada antes.Sanders mediu a passos largos o estreito espaço do convés, com a cabeça inclinada sobre o peito, pois aquele era um problema dos mais sérios. Finalmente, ergueu a cerviz e disse à mulher:

— Pode ir-se embora!

M'Fasa, um pouco confusa, dirigiu-se logo para a prancha, que ligava o barco à praia, e desapareceu na mata próxima.

Três semanas depois, os espias de Sanders trouxeram-lhe a notícia de que muitos homens tinham morrido, inexplicavelmente, no alto Isisi. — Ninguém sabia, informara um agente secreto, porque era que os homens morriam; sentava-se um indígena, cheio de vida e saúde, para a refeição da tarde, e, — vejam lá!, — de manhã, no dia seguinte, quando a sua gente o ia acordar, ele, mais que desacordado, estava desagradavelmente morto!

Tais fatos haviam acontecido em diversas malocas do território do Isisi.

— Isto já se vai tornando monótono! — disse Sanders, exasperado, ao comandante dos Houssas. — Presumo que se trate de envenenamento por atacado. Subo, portanto, para descobrir o cavalheiro que me anda a distribuir tóxicos pelos indígenas.

Ora, o primeiro caso que lhe despertou a atenção, sucedeu na principal aldeia de Isisi. Morrera ali, subitamente, certa mulher, e Sanders logo suspeitou do marido, que era, notoriamente, um sujeito de maus bofes.

— Okali, — perguntou-lhe o comandante inglês, logo que o homem lhe acudiu à intimação, — por que foi que você envenenou sua esposa?

— Senhor, — respondeu-lhe o indígena, — ela morreu de doença! Ao anoitecer, ainda estava boa; mas, ao lusco-fusco, antes de o sol nascer, virou-se na cama, dizendo: "Ah! oh!" e morreu imediatamente.

Sanders tomou um longo fôlego. Em seguida, ordenou a Um dos seus Houssas:

—Vá buscar uma corda!

Logo que o soldado voltou, Abiboo agarrou o galho mais baixo de uma árvore de goma-copal e nele amarrou cientificamente uma corda, preparando um ótimo nó corredio.

— Okali, — disse Sanders, calmamente, ao indígena, — vou enforcar a você, por causa da morte de sua esposa. Sou um homem muito ocupado e não tenho tempo para fazer inquéritos. Se, de fato, não foi você quem envenenou sua mulher, ainda há muitas outras ações ignóbeis de que você é positivamente culpado. Portanto, sinto-me plenamente justificado do castigo que você vai sofrer.

O homem ficou cinzento de terror, quando lhe passaram o laço pela cabeça, para apertá-lo ao pescoço, e lhe amarraram as mãos atrás das costas.

— Senhor, — gaguejou ele, — ela era uma esposa muito má para mim e tinha muitos amantes! Eu não tencionava matá-la; mas o Homem-Demônio, a quem expus a minha situação, me deu um medicamento, dizendo que, se ela o tomasse, esqueceria os amantes...

— Homem-Demônio? Que diabo de Homem-Demônio é esse, a que você se refere? — perguntou-lhe Sanders, vivamente interessado.

— Senhor, é um Homem-Demônio grandemente respeitado em todos estes arredores. Ele vagueia sempre pela floresta e dá muitos medicamentos esquisitos.

— Onde é que ele pode ser encontrado?

— Senhor, ninguém o sabe. Ele vem e vai, como um fantasma cinzento, e possui um fetiche mais poderoso do que mil demônios dos comuns. Senhor, eu dei à minha esposa o remédio que o Homem-Demônio me forneceu, e ela morreu. Como é que eu poderia saber que ela morreria?

— Cheg'li! — ordenou Sanders, abreviadamente, ao Houssa que segurava a ponta da corda, e Cheg'li, no dialeto do Isisi, quer dizer "Puxe a corda!"

Mas, de repente, mudou de resolução, e gritou ao soldado:

— Pare lá!

Sanders achava-se numa disposição de ânimo fora do comum e bastante irritado pelo fato de estar reconhecendo à sua própria indecisão.

E perguntou ao indígena:

— De que modo foi que você obteve a tal droga: em pó, em líquido, em quê?

Os lábios do homem estavam como que paralisados. Nada mais podia fazer do que sacudir a cabeça, frouxamente.

— Solte-o! — ordenou Sanders a Abiboo, que imediatamente desamarrou as mãos do homem e lhe tirou do pescoço o nó corredio.

— Se você mentiu, morrerá ao pôr do sol. Mas, primeiro, dê-me mais informações a respeito do tal Homem-Demônio, porque eu desejo ardentemente travar relações com ele.

Deu ao sujeito dez minutos de descanso, para que ele se restabelecesse dos efeitos do medo, e, expirado o prazo, fê-lo vir novamente à sua presença.

— Senhor, — disse a Sanders o indígena, — nada sei do Homem-Demônio, senão que ele é o maior médico-feiticeiro do mundo. Certas noites, depois que a lua aparece e algumas estrelas estão nos seus lugares, ele vem para junto de nós, como um espírito, e todos nós ficamos com muito medo. Aqueles que precisam do Homem-Demônio, acompanham-no ao lugar da floresta que ele indicar, e, então, ele dá as drogas, de acordo com os desejos dos que as pedem.

— E como é que ele carrega as drogas?

— Senhor, é num tubo de cristal, como aqueles em que os brancos conduzem os seus medicamentos. Vou mostrar-vos

o que ele me deu.

Dirigiu-se à cabana e volveu de lá poucos minutos depois, trazendo um frasquinho redondo, semelhante ao que já estava em poder de Sanders, apreendido por este na choça de M'Fasa. O comandante inglês tomou-o, desarrolhou-o e cheirou-o. Sentiu um fraco odor de amêndoas. Sanders assobiou, pois acabava de reconhecer o cheiro de cianeto de potássio, uma droga que os ignorantes médicos-feiticeiros daquela região não podiam conhecer e muito menos empregar.

 

— "O que somente vos posso sugerir, — escrevia Sanders ao governador-geral, — é que, por desgraça muito provável, a caixa de medicamentos do falecido sir George Carsley está nas mãos de algum médico indígena. Recordar-vos-ei que a dita caixa se encontrava em poder do notável cientista, quando ele se afogou no Isisi. Decerto, veio ela à tona da água e foi descoberta... Estou, entretanto, procedendo às mais diligentes investigações, a fim de identificar o tal Homem-Demônio, que me parece ter ganhado fama muito repentinamente".

Houve para Sanders, dali por diante, noites de vigília, de marchas rápidas e de subterfúgios, noites de ligeiras corridas pelo rio acima e de chegadas repentinas às aldeias, assim como noites de vigílias solitárias na floresta ou à beira de grandes lagoas. Mas, apesar de tanto esforço, o comandante inglês não pudera encontrar-se com o Homem-Demônio, embora tivesse sabido de muitas coisas interessantes a respeito dele. A mais poderosa das suas possessões mágicas, por exemplo, era uma caixinha "muito pequena", informava certa pessoa que a tinha visto e mostrava, para indicar-lhe o menor tamanho, um quadrado de seis polegadas. Em tal caixinha morava um deus miudinho e malicioso, que beliscava e arranhava a gente (embora sem deixar sinal algum) e que podia espetar agulhas no corpo humano, sem nunca tirar sangue...

— Isto já me está apoquentando! — exclamou Sanders, tomado de desespero.

E regressou para o quartel-general, a fim de refletir maduramente sobre os meios de solucionar aquele grave problema.

Tinha-se sentado, certa noite, para jantar, quando ouviu, ao longe, das bandas do rio, um toque de tambor. Não era o rufo regular do lo-koli, mas uma série de pancadinhas de staccatto. Dirigiu-se para a porta da varanda do bangalô, sem fazer barulho com os pés, e pôs-se à escuta ali.

Tinha ele, muitos dias atrás, pedido emprestado ao governador-geral os agentes secretos do estado-maior dos Houssas e postara-os, por intervalos, ao longo do Isisi. Por uma noite silenciosa, como aquela, o batido fraco de um tambor alcança longe; mas a percussão de varetas de pau-ferro sobre um tronco oco de árvore morta atinge ainda a maior distância.

— Clok-clok-clokitty-clok!

Parecia o coaxar longínquo de um sapo-intanha. Mas o comandante inglês apanhou facilmente a seguinte mensagem:

— "O Homem-Demônio vai sacrificar amanhã, à noite, na Floresta-dos-Sonhos-Felizes".

Enquanto Sanders tomava nota da mensagem na manga branca do seu dólmã, Abiboo veio correndo para o bangalô, caminho acima.

— Já ouvi, — disse Sanders ao seu sargento, poupando-lhe o incômodo de falar. — Há vapor no puck-a-puck?

— Estamos todos prontos, senhor! — respondeu-lhe Abiboo.

Sanders só gastou o tempo necessário para tirar um revólver, que estava pendente de um gancho na parede, e para jogar sobre o braço esquerdo um sobretudo, porque os seus outros objetos de viagem já estavam, desde três dias atrás, a bordo do Zaire.

Na escuridão, a aguda proa do seu pequeno barco a vapor virou para o lado oposto, e, dez minutos depois de ouvida a mensagem tamborilada, o Zaire sulcava as águas, ao arrepio da correnteza veloz.

Durante toda aquela noite, o barco prosseguiu a sua rota, virando freqüentemente de bordo, de margem a margem, para evitar os bancos de areia.

A aurora encontrou-o fazendo abastecimento de lenha. Os Houssas, trabalhando febrilmente, amontoaram-lhe tantas achas no convés, que ele mais parecia um transporte de madeira.

Rumou ele novamente para cima, detendo-se apenas para receber, dos espias espalhados acima e abaixo, por aquelas cercanias, notícias seguras do próximo sacrifício anunciado.

À meia-noite, tendo o barco atingido à orla da Floresta-dos-Sonhos-Felizes, Sanders fê-lo ancorar ali. Tinha consigo dez soldados Houssas, à frente dos quais desembarcou, marchando com eles para a escuridão da mata. Um dos soldados seguiu à frente, para descobrir o melhor caminho e guardá-lo, e, por essa forma, executou a pequena coluna uma penosa marcha de duas horas. Em certo ponto, surpreenderam a dois leopardos em combate; mais adiante, tropeçaram num búfalo, que dormia em meio do caminho. Por duas vezes, perturbaram o sono ou os amores de feras perigosas, que se ocultavam no aranhol da selva, enquanto eles passavam, mas que vinham depois rosnar-lhes atrás das costas, até que Sanders projetasse sobre elas alguns raios da sua lâmpada elétrica. Conseguiram, afortunadamente, chegar às escondidas ao lugar designado para o sacrifício.

Havia ali, pelo menos, umas 600 pessoas de cócoras, formando um extenso semicírculo, diante de um altar tosco, construído de toros de madeira. Duas enormes fogueiras chamejavam e crepitavam, de cada lado do altar. Mas os olhos de Sanders não viam mais nada, senão o Homem-Demônio, que se acurvava sobre o corpo de uma rapariga, aparentemente adormecida, a qual jazia inerte sobre o altar.

Aquele Homem-Demônio já usara os mesmos trajos dos civilizados, ao que se podia inferir dos seus andrajos. Achava-se em sujas mangas de camisa, trazia intensa e despenteada a comprida barba branca, e em seu rosto muito pálido, de uma curiosa tensão nervosa, os olhos brilhavam com estranho fulgor. Empunhava na destra um polido e afiado escalpelo e dirigia-se à numerosa assistência, — o que era mais singular ainda, — em perfeito inglês.

— Isto, meus senhores, — começou, apoiando-se tranqüilamente ao grosseiro altar e exprimindo-se com a facilidade de alguém que já houvesse feito muitas de semelhantes preleções, — é um mau caso de tripanossomíase. Podeis observar nesta jovem a descoloração da pele, as pupilas cintilantes, e, agora, que a paciente está sob a ação da anestesia, podeis notar-lhe o deslocamento das glândulas cervicais, o que constitui um sintoma invariável da moléstia.

E, benignamente, circunvagou o olhar pela assistência.

— Posso dizer-vos, —. continuou ele, — que vivi alguns anos entre os indígenas deste continente. Ocupei a honrosa posição de médico-feiticeiro na África Central...

Deteve-se e passou a mão pela testa, como que a esforçar-se por se relembrar de alguma coisa, que lhe havia fugido da memória. Instantes depois, retomava o fio da sua longa conferência.

Durante todo o tempo em que ele falou, aquela assembléia seminua conservou-se silenciosa e presa de terror, embora nada entendesse do que ele lhe explicava. O que todos aqueles autóctones sabiam era que o tal médico-feiticeiro de rosto branco e pálido não viera de parte alguma e já tinha feito muitas coisas assombrosas; sabiam mais que a sua caixa mágica (ignoravam eles que era apenas um pilha galvânica) estava para praticar estranhos ritos.

— Meus senhores, — continuou o Homem-Demônio, batendo agora de leve, no peito de sua vítima, com o cabo do escalpelo, — vou fazer nesta doente uma incisão...

Foi então que Sanders abandonou de repente o seu esconderijo e caminhou a passos firmes para a improvisada mesa de operações.

— Sir George Carsley! — disse-lhe o comandante inglês, em voz muito meiga, e o louco olhou para ele com um franzir nervoso dos sobrolhos.

— Estais a interromper a minha clínica! — invectivou ele a Sanders, com impertinência. — Eu vou agora demonstrar que...

— Isso eu já sei, senhor!

E, assim dizendo, Sanders segurou-o brandamente pelo braço, e sir George Carsley, o preclaro sábio, insigne cirurgião do Hospital de São Marcos, de Londres, e reputado autor de muitos livros sobre doenças tropicais, acompanhou-o, como uma criança.

 

O Solitário

O SR. COMANDANTE SANDERS Vivera tanto tempo com o povo nativo da África, que assimilara não pouca coisa da sua simplicidade. Mais do que isso: adquirira o raro condão de conhecer coisas, que não teria podido jamais conhecer, a menos que fosse dotado da presciência, que constitui a herança de cada aborígine.

Enviara, separadamente, três espias ao território de Isisi, — o qual está situado a uma distância considerável do quartel-general e é de difícil acesso, — e, depois de esperá-los dois meses, viu-os um dia chegar juntos, trazendo-lhe boas notícias.

Isto irritou Sanders a um grau indesculpável.

— Senhor, — protestou um dos espias, — afirmo-vos que os Isisis estão sossegados e que entre eles não há conversas de guerra.

— Hum! — resmungou Sanders, abespinhado. — E você? Dirigia-se ao segundo espião, que lhe respondeu:

— Senhor, eu entrei na floresta e cheguei até à fronteira do país. Também não ouvi conversa alguma de guerra. Sobas e anciãos asseguraram-me os seus intuitos de paz.

— Você, com efeito, é um grande espião! — zombou dele Sanders. — E como foi que pôde você chegar aos chefes e anciãos? E como foi que eles saudaram a você, senão assim: — "Salve, agente secreto de Sândi!" Huh!

Despediu os homens, com um aceno de mão, e, pondo à cabeça o capacete de cortiça, desceu às linhas dos Houssas, onde os soldados de dólmã azul jogavam cartas, à sombra das suas barracas brancas, irrepreensivelmente limpas.

O comandante dos Houssas, naquele momento, tinha diante de si uma carteirinha de papéis para envoltório de cigarros e um frasco de bissulfato de quinino, mediante os quais estava preparando uma droga, para medicar-se.

Notou-lhe Sanders a mão trêmula e falou-lhe em tom irritado:

— Há perturbação da ordem em Isisi, conforme tenho razão para suspeitar. Ainda não sei o que é. Mas estão ocorrendo lá diabruras de toda espécie!

— Serão sociedades secretas? — sugeriu-lhe o Houssa.

— As avós de vocês é que são secretas! — grunhiu-lhe Sanders. — De quantos homens dispõe você?

— De sessenta, inclusive os doentes, — respondeu-lhe o oficial Houssa.

E engoliu, fazendo careta, o quinino que pusera no papelinho.

Sanders batia no cano alto da bota com a sua fina bengala de ébano e estava pensativo. Afinal, declarou ao comandante dos Houssas:

— Talvez eu venha a precisar deles! Mas vou primeiro ver se descubro o que é que está fazendo de mau aquele povo de Isisi...

 

Perto de um córrego que se desvia abruptamente do Rio-dos-Espíritos, Imgani, o solitário, erguera uma cafua. Dera-lhe quase uma feição de casa, graças à madeira que furtara de uma aldeia, distante cinco milhas dali. Em tal aldeia houvera muitas mortes, causadas pela "Doença"; é o costume velho do alto Isisi, todas as vezes que falece alguém, derribar-se também a casa pertencente ao morto.

Homem algum ousa abrigar-se sob o teto amaldiçoado, que a alma do que se foi continua a guardar; as armas do morto são quebradas e espalhadas sobre a sua cova rasa; e as panelas de barro de suas mulheres também são depostas lá.

Bem depressa, sob as influências combinadas da chuva e do vento, o teto de colmo começa a vergar e a afundar-se; os umbrais da porta apodrecem; a erva-de-elefante, grosseira e vigorosa, cresce e sobe por entre as fendas da parede e do telhado; depois, vem, enfim, uma chuva mais forte, ou um vento mais rijo, e a floresta fica inteiramente limpa daquele feio borrão.

Imgani, — que se dizia oriundo do povo de N'Gombi e não tinha medo de demônio algum, nem mesmo, de qualquer modo, dos demônios de Isisi, — furtou intrepidamente tábuas e embira. Furtou-as à noite, quando a lua estava escondida por trás das árvores, e zombou dos espíritos dos mortos, chamando-os por nomes feios e abjetos.

Agiu, todavia, cautelosamente, porque, conquanto não tivesse respeito algum pelos mortos, temia deveras aos vivos de Isisi, os quais o condenariam fatalmente à morte, se lhe descobrissem o sacrilégio, embora, muito singularmente, fosse a morte o que Imgani menos receava.

Furtou, portanto, os esteios e vigas da casa mal-assombrada; e teria furtado também o teto, se não fosse a circunstância de estar muito velho e cheio de aranhas.

Fazendo-se dono de todas aquelas coisas, carregou-as, por cinco milhas, até à curva do rio, e, ali, com todo o sossego, construiu p seu casebre., Ali, durante o dia, entregava-se ao sono; durante a noite, pescava ou caçava animais de boa carne por meio de arapucas e mundéus; não tentou, entretanto, agarrar os morcegos grandes, cujo pouso era na ilha sita em meio do rio, embora fossem eles comidos por muita gente, que os considerava um saboroso pitéu.

Mas um dia, antes do pôr do sol, entrou ele na mata, perseguindo a uma zebra. Levava duas grandes lanças de caça, semelhantes às fabricadas pelos N'Gombis, um escudo de junco, e, às costas, suspensa de uma tira de couro, uma cambada de peixes, que ele havia pescado no rio.

Imgani era de altura mediana, magro de corpo, mas de ombros largos. Tinha na pele a cor da saúde e o seu andar era lépido. Quando se movia mais apressadamente, viam-se inturgescer os músculos das costas, como soem fazer os músculos bem adestrados.

Estava a cerca de meia hora de distância da sua cabana, no interior da floresta, quando ali avistou, surpreso, uma rapariga. Carregava ela à cabeça um grosso feixe de raízes de mandioca e caminhava graciosamente. Quando se encontrou com Imgani, ficou como paralisada, e o medo da morte, senão de coisa pior, lhe repontou nos olhos, pois sabia ser aquele homem um proscrito, sem lei e sem rei. Tais homens são mais temíveis do que o ingali, que se levanta sorrateiro da relva e crava em vossa perna as presas venenosas.

Permaneceram alguns instantes, espreitando-se. O homem apoiava ambas as mãos sobre as lanças, nas quais encostara o rosto. A moça tremia em todo o corpo,

— Mulher, aonde é que você vai? — perguntou-lhe Imgani.

— Senhor, — respondeu-lhe ela, gaguejando, — eu tomei este atalho, para ir à aldeia do rio.

— E que é que você vai levando aí?

— Senhor, é mandioca, para fazer biscoitos, — replicou ela, atropeladamente.

— Então você é uma comedora de raízes, não é assim? — motejou ele, meneando a cabeça.

— Senhor, deixai-me passar! — rogou ela, encarando-o. O homem sorriu e disse-lhe:

— Percebo que você está com medo de mim. Entretanto, eu nada quero de você. Eu sou Imgani, isto é, o Solitário, e não quero saber de esposas ou concubinas, pois estou muito acima de tais loucuras. Pode você, portanto, ficar tranqüila, comedora de raízes, porque, se eu quisesse, encheria esta floresta com as filhas dos chefes, todas elas muito bonitas e todas babando-se por mim!

A moça perdera o medo e olhava agora para Imgani, cheia de curiosidade. Reconheceu que havia verdade na pretensão, de que ele se jactanciava, para levar uma vida isolada e austera. Talvez até ela se sentisse, por isso, algum tanto ofendida, porquanto lhe ponderou acrimoniosamente servindo-se de um provérbio muito em voga entre os Isisis:

— Só as cabras é que costumam balir à boca da caverna do leopardo! Os Isisis odeiam cada vez mais aos estrangeiros!

Ele fitou-a obliquamente, objetando-lhe:

— Pois nas aldeias da parte baixa do rio sempre ouvi dizer que os Isisis vendem homens e mulheres aos árabes. Mas semelhante conversa não presta... Pode seguir o seu caminho!

E, com outra sacudidela de cabeça, despediu-a. Tinha ela dado poucos passos para diante, quando ele a chamou, fazendo-a parar e lhe disse:

— Comedora de raízes, se perguntarem a você quem sou eu, você dirá que sou Imgani, o Solitário; que eu sou um príncipe entre os príncipes; que tenho matado muitos homens, desde que me entendo por gente, e tantos homens, que nem sei mais contá-los. Você dirá também que, desde a minha casa, sita à beira do rio, até tão longe, quanto possa um homem enxergar, tudo isto é meu reino; e que ninguém se atreva a vaguear por aqui, exceto se me trouxer presentes nas mãos, porque sou muito terrível e muito desconfiado!

— Senhor, — afirmou-lhe a moça, — eu direi tudo isso, que me mandais!

E lá se foi ela, mais correndo do que andando, em direção à aldeia, enquanto Imgani continuava o seu caminho para o lado oposto.

Ora, na aldeia, a que pertencia a rapariga, havia muitos jovens que gostavam dela, porque era filha do chefe e porque, além disso, tinha quatorze anos, isto é, já estava na idade casadoura. Assim, quando ela entrou correndo na rua da aldeia, ainda meio nervosa de medo, chorando, balbuciando palavras incoerentes, não lhe faltou simpatia, nem cavalheiro valente, disposto a vingar o insulto que ela havia sofrido.

Seis moços, armados de lanças e espadas curtas, dançaram, diante do soba e da filha do soba (quão ancha ficou ela, qualquer mulher de qualquer raça vo-lo dirá!), a Dança-dos-Bravos, e um deles, E'Kebi, que se distinguia pela oratória mais apurada, descreveu, desde o pôr do sol até ao surgir da lua, ou seja durante quatro boas horas, o que haveria de acontecer exatamente a Imgani, quando os jovens guerreiros de Isisi o encontrassem: como seus olhos se apertariam, qual se estivesse ele diante de um grande fogo aterrorizante; como seus membros se consumiriam; e diversas outras mudanças fisiológicas do paciente, as quais não convém ser particularizadas aqui.

— Tudo isso está muito direito, — ponderou-lhes o chefe, — mas, uma vez que Sândi é o nosso senhor e tem espias por toda parte, tenham vocês todo o cuidado em não derramarem o sangue de Imgani, porque o cheiro do sangue é levado mais longe do que se pode ver. E Sândi fica com o diabo no corpo, quando sabe de qualquer morte. Além disso, o Solitário é estrangeiro, e, se vocês o trouxerem vivo para aqui, poderemos vendê-lo aos árabes, que nos darão por ele genebra e alguns panos.

Acabada a arenga do chefe, os guerreiros sacrificaram uma cabra nova e marcharam para a floresta. Assaltaram a casinhola de Imgani; mas o dono dela não estava lá dentro, pois nesse momento preparava mundéus para as feras da selva. Limitaram-se, portanto, os atacantes a queimar-lhe o casebre e a destroçar-lhe a horta, ajudados nesta última depredação por muitas outras pessoas de Isisi, as quais os haviam seguido a certa distância, a fim de verificarem se era real o conceito que o Solitário fazia da sua própria bravura. Celebraram todos ali uma grande orgia, até que, de repente, o sol apareceu no céu, iluminando a ilhota do meio do rio, e todas as estrelinhas do céu se apagaram.

Apoiado em suas lanças e escondido nas sombras da floresta, Imgani assistira à maior parte daquelas cenas; contentara-se, porém, com ser um simples espectador delas.

— Porque, — raciocinou ele, — se avançasse contra todo aquele bando, seria morto ou açoitado, e nada disso se coadunava com o seu alto espírito.

Ao contemplar a sua vivenda, construída com tanto trabalho, destruída pelas chamas, exclamou consigo mesmo:

— Que malvados! Estão preparando o inferno para si próprios, porque a alma do morto, antigo dono daquela madeira, ficará ofendida e há de causar-lhes inúmeras doenças!

Quando viu toda a sua habitação reduzida a um grande monte de cinzas, do qual saía ainda alguma labareda vermelho-escura, por entre um nebuloso rolo de fumaça, meteu de novo a cara no aranhol da floresta. Andou ele todo aquele dia, parando somente para comer o peixe que levava consigo, e, à noite, foi dar com os costados em outra cubata do território de Isisi, chamada O'Fasi.

Atravessou toda a extensão da rua da aldeia, de cabeça ereta e ombros levantados, a brandir guapamente as suas lanças. Não olhou nem para a direita, nem para a esquerda. Vendo-o a exibir tal garbo, os habitantes da povoação apinharam-se às portas das cabanas, levaram à boca as mãos fechadas e murmuraram por entre os nós dos dedos:

— O-ho!

Isso indicava que estavam profundamente impressionados.

Daquele jeito andou Imgani, insolentemente, por toda a maloca, e estava já a retomar o caminho da floresta, quando atrás dele veio sapateando um mensageiro, que o fez parar e lhe disse:

— Senhor, o "capita" desta aldeia, como responsável, que é, perante o governo, por todas as pessoas que passam por aqui, principalmente por ladrões que possam ter fugido da Aldeia-das-Algemas, deseja ver-vos. Está certo de que não sois um ladrão, mas sim um grande homem, e, por isso mesmo, quer prestar-vos todas as honras que mereceis.

Assim falou ele. Era um homem pacífico, que fora escolhido para tal missão por ser parente afim da esposa favorita do soba de O'Fasi. Olhava cautelosamente para as lanças de ponta larga do intruso e determinou a linha mais curta por onde fugir.

— Volta para junto do teu senhor, escravo, — respondeu-lhe Imgani, — e dize-lhe que vou à procura de um lugar de relativa solidão, onde possa dormir esta noite e entregar-me aos mais altos pensamentos. Só depois que eu houver achado tal sítio, é que poderei voltar aqui. Diz>lhe também que eu sou um príncipe do meu próprio povo e que meu pai tem tal quantidade de legiões, que, se cada combatente apanhasse um punhado de areia do fundo do Isisi, o rio ficaria sem leito por onde correr. Dize-lhe ainda que eu me chamo Imgani e que me amo a mim mesmo mais do que qualquer homem tem amado a si próprio, desde que a lua ficou branca, a fim de não se parecer com o sol!

E seguiu para diante, deixando ali o mensageiro estarrecido de pasmo.

Fiel ao que havia prometido, Imgani voltou.

Voltou, para descobrir que havia, ali, na aldeia, uma séria conferência, da qual o principal objeto era o desafortunado parente afim da esposa do soba.

— Você, — estava a dizer-lhe o chefe, — me envergonhou, revelando-se tão estúpido, quanto sua prima, minha esposa.

— Senhor, — obtemperou-lhe humildemente o pobre homem, — eu roguei ao estrangeiro que voltasse e viesse à vossa presença. Mas ele é muito soberbo e, de mais, tinha pressa em seguir o seu caminho...

— A avó de você já era estúpida, — vociferou-lhe o caudilho, — a mãe de você não era menos estúpida, e o pai de você, quem quer que fosse ele, pois ninguém o conheceu, devia ter sido também um grande estúpido!

Este interessante começo de um indigesto discurso sobre a estupidez hereditária foi interrompido pela volta de Imgani. E, enquanto o forasteiro vinha descendo vagarosamente a colinazinha, a pequena assembléia, reunida em frente à cabana do chefe, observou-o cuidadosamente, desde a navalha de aço, de forma quadrada, metida na fita do gorro justo, feito de pele de leopardo, até os finos pingentes de bronze, que ele trazia em redor dos tornozelos.

O cacique de O'Fasi, um machacaz, cuja coragem não correspondia à sua alentada corpulência, notou que as lanças do intruso tinham os contos muito polidos, indício de excessivo manejo.

— Senhor, — disse-lhe, apenas o homem se aproximou dele, — eu sou o chefe desta aldeia, por designação do governo, que me deu uma medalha, para eu usar em redor do pescoço. Ela traz de um lado o retrato de um grande homem barbado e do outro lado certos sinais diabólicos, assim como letras de um vasto poder. Foi-me dada, para que todos os povos conhecessem a minha qualidade de chefe; mas eu, infelizmente, perdi a rica medalha. Apesar disso, tenho outro objeto, com o qual vos posso provar que sou o chefe desta aldeia.

Remexeu por trás do peito da camisa e tirou de lá uma bolsa de pele de cobra; abriu-a e dela extraiu um papel muito sujo.

Desdobrou-o com escrupuloso cuidado. Era uma folha de papel oficial, em que havia algumas palavras rabiscadas pelo próprio punho do sr. comandante Sanders. Nela só se liam as palavras seguintes:

— "A todos os meus imediatos, oficiais de polícia, comandantes de portos e soldados Houssas — Prendam e detenham o portador, se for encontrado em qualquer outro território que não seja o de Isisi — Sanders".

A este singular documento ligava-se certa história, ocorrida algum tempo atrás. Tinha sido feita certa invasão, não autorizada, em algumas aldeias dos Ochoris, o que deu lugar a um julgamento subseqüente, proferido no quartel-general de Sanders. E, ali, um chefe, trêmulo de medo, escutou uma pura, mas compreensível profecia, sobre o destino que o esperava, se ele tornasse a pôr os pés fora das terras do seu restrito domínio.

Imgani tomou o papel das mãos do soba de O'Fasi e leu-o cora vivo interesse. Rodou-o, tentou raspar a escrita com a unha, levemente, a fim de verificar se a tinta era indelével, e, depois, devolveu-o ao dono.

— Isto tem, de fato, muito poder, embora eu não receie magia alguma, exceto uma qualidade especial, que é praticada por um dos médicos-feiticeiros de meu pai. Seja, porém, como for, eu não conheço governo algum, que me possa governar!

Depois disso, só falou do pai, das esposas e legiões do pai, e de outras coisas de igual jaez.

— Estou certo de que confiareis em minha palavra. Eu sou um Solitário: aborreço a convivência dos homens, os quais são tão volúveis quanto as névoas que pairam sobre o alto das montanhas. Deixei, por isso, a minha terra natal, lá abandonando as minhas esposas, as quais me eram fiéis, tanto quanto o podem ser mulheres; e não quis trazer comigo legião alguma, por pertencerem todas a meu pai.

O soba ficou perplexo ante tais afirmações. Mas disse, afinal, ao forasteiro:

— Porque preferistes tornar-vos um Solitário, é fato que escapa à minha compreensão. Entretanto, creio terdes procedido bem, deixando as legiões de vosso pai. Por se tratar de um assunto fora do comum, vou convocar uma assembléia dos meus homens mais idosos, a fim de serdes mais bem ouvido e atendido.

E mandou que se fizesse soar o lo-koli, chamando todos os velhos da aldeia.

Vieram logo os anciãos, trazendo eles próprios os seus bancos esculpidos, e sentaram-se em círculo, na casa das audiências, coberta de capim, sob a presidência do chefe.

Contou-lhes Imgani a sua história, já nossa conhecida: deixara na terra natal cinqüenta esposas e legiões de guerreiros, tão inumeráveis, quanto as areias que bordam as margens baixas do Isisi. E os ingênuos Isisis tudo escutaram e em tudo creram piamente.

— Agora, preciso apenas do seguinte, — declarou-lhes Imgani, como epílogo: — uma cabana, construída à beira do rio, num ponto pelo qual não passe caminho algum e onde nenhum ser humano me chegue ao alcance da vista. Sou, por natureza, um Solitário e um grande inimigo dos homens.

Imgani foi viver na clareira, que a Natureza como que parecia ter feito ali para gozo dele, e numa boa casinhola, erigida para ele por seus novos amigos. Recusou toda e qualquer outra hospitalidade.

— Não preciso de mulheres, nem as desejo, — expôs também ao soba de O'Fasi. — Estou exclusivamente preocupado com planos poderosos, a fim de retomar o meu reino dos homens perversos, que são os conselheiros de meu pai.

Solitário ele o era realmente, porque dali em diante ninguém o viu mais, senão em ocasiões muito espaciais. Costumava caçar durante a noite, dormindo fora de casa nos dias quentes. Algumas vezes, quando a bola vermelha do sol caía atrás das árvores, na margem ocidental do rio, os habitantes da aldeia de O'Fasi viam a estreita espiral azul de fumaça, sinal de que Imgani estava preparando a sua refeição da tarde; outras vezes, algum canoeiro, ao voltar para casa, via o Solitário deslizando silenciosamente por entre as árvores da mata, em marcha para alguma caçada.

Chamavam-lhe "o Silencioso", e desde logo granjeou Imgani, ali, uma certa fama.

Mais do que isso, gozava da plena confiança dos seus hospedeiros. O país de Isisi está ao alcance do Rio-dos-Estrangeiros, pelo qual descem à noite barcos vazios, de formas estranhas, e voltam cheios de pessoas, acorrentadas umas às outras pelo pescoço. E os oficiais da África Ocidental Francesa, a qual se limita com o país de Isisi, ouvem freqüentemente histórias de invasões e de incêndios, sobre os quais não têm eles facilidade de proceder a investigações, porque a fronteira do. Isisi está a seiscentas milhas, aproximadamente, do quartel-general francês, e, além disso, para alcançá-la, cumpre atravessar um deserto.

Imgani, em suas excursões de caça, via coisas, que o teriam enchido de espanto, se ele não fosse um homem já embotado para as emoções.

Via pequenas caravanas, as quais desciam das bandas do território francês, trazendo mulheres chorosas e homens que gemiam na escravidão.

Viu, à meia-noite, curiosos embarques de mercadoria humana e conheceu os compradores árabes, vestidos de branco e que manejavam tão destramente o chicote.

Uma noite, quando estava ele observando um de tais embarques, El-Mahmud, o famoso traficante árabe, avistou-o, graças ao luar, e fê-lo aproximar-se, verificando logo que pertencia a um povo diverso do de Isisi.

— Donde é você? — perguntou-lhe El-Mahmud.

— Senhor, — respondeu-lhe Imgani, — sou de um povo estrangeiro: o de N'Gombi.

— Isso é mentira, — contestou-lhe o comprador de escravos, — porque você não tem as características faciais dos homens de N'Gombi. Você não passa de um árabe mestiço.

E dirigiu-se-lhe em língua árabe.

Imgani, porém, sacudiu negativamente a cabeça.

— Ele não compreende mais a nossa língua, — ponderou-lhe El-Mahmud ao seu imediato. — Descubra onde é que fica a cabana deste homem. Uma noite, havemos de levá-lo conosco, porque ele ainda vale bom dinheiro.

Disse isso em árabe, e o seu subordinado respondeu-lhe com um sinal afirmativo de cabeça.

Quando o traficante voltou ali, em outra temporada, três árabes armados visitaram a casinhola de Imgani; mas o Solitário estava então caçando, o que ele fazia sempre, todas as vezes que os compridos barcos estrangeiros vinham a O'Fasi, durante a noite.

 

Sanders deixou de ir a O'Fasi por cerca de seis meses, durante os quais, convém que se acentue, nada aconteceu ali que, por qualquer esforço de imaginação, se pudesse admitir como justificativa de alguma perda de prestígio da autoridade.

Ficou, assim, devendo aos Isisis a sua visita semestral. As colheitas tinham sido boas, havia abundância de peixe, as chuvas não causaram prejuízos e não irrompera por lá nenhuma epidemia. Deveis levar em conta esses fatos.

Certa manhã, quando remoinhos de neblina volteavam de árvore em árvore e o oriente se tornava cor de cinza, Imgani voltava da floresta para casa, trazendo aos ombros um veadinho, que havia laçado durante a noite.

Avistando diante da porta da sua cabana uma pequena fogueira e junto a ela um homem acocorado, com o queixo metido entre os joelhos, o Solitário rodou na destra, alegremente, as suas afiadas lanças, e tocou-se para diante, pois que não temia a homem algum.

— Está o mundo tão cheio de gente, que você entendeu de vir aqui perturbar a minha solidão? — perguntou Imgani ao intruso. — Não terei outro remédio, senão matar a você e frigir-lhe o coração, porque não gosto de ver sentado a homem algum, junto a uma fogueira, diante da porta da minha cabana.

Despejou tudo isto, em tom feroz, da boca para fora, de sorte que o indivíduo, que estava acocorado em frente do fogo, se ergueu inquieto.

— Senhor, — disse ele a Imgani, — eu já esperava de vós isto mesmo, porque sei sois um homem orgulhoso e iluminado. Mas vim aqui, à vossa procura, exatamente por causa da vossa altivez e da vossa sabedoria.

Imgani atirou o veadinho das costas para o chão e sentou-se, colocando o conto das lanças sobre os joelhos nus, e ficou olhando ameaçadoramente para o seu inesperado visitante.

O outro, então, esticou o pescoço para diante e pôs-se a falar-lhe demorada e ansiosamente.

O sol ergueu-se e avermelhou a terra; o homem, entretanto, continuava a falar, com incansável energia, a Imgani, que o escutava em silêncio.

— Pelo modo que acabo de expor-vos, senhor, — concluiu o forasteiro, — mataremos a Sândi, quando ele vier de visita a O'Fasi. Ifiba. M'Bwka e um primo de minha mãe matá-lo-ão depressa a lançadas, e, assim, nós nos tornaremos um grande povo.

Imgani meneou a cabeça, dizendo ao outro, com entono magistral:

— Sim, você tem razão! O povo, que mata a homens brancos, deve ser grandemente honrado, porque todas as outras nações não poderão deixar de dizer dele: — "Vede: aquele é um povo que mata a homens brancos!"

— E, depois que Sândi estiver morto, — continuou o mensageiro, — irão muitos jovens guerreiros nossos ao barco que fumega e matarão a todos os homens que encontrarem lá!

— Isso será também um ato muito acertado, — ponderou-lhe Imgani. — Eu, por minha vez, quando mato a algum homem branco, mato-lhe igualmente os amigos.

O Solitário, agora, foi quem dissertou, durante longo tempo, sobre os seus próprios feitos, e com as mais insignificantes minúcias. Depois que o mensageiro se foi embora, Imgani preparou e comeu uma caldeirada de peixe e mandioca, poliu com areia fina as lâminas de aço de suas lanças, secou-as cuidadosamente com capim e deitou-se à sombra da cabana, para tirar uma soneca.

Acordou ao cair da tarde. Atirou-se ao rio, nadando até ao longe, pela corrente do meio, com grandes e vigorosas braçadas.

Voltando para a praia, em frente de sua casinhola, deixou-se enxugar pelos restos do sol e lançou depois aos ombros a sua pele de leopardo.

Dirigiu-se lentamente para a aldeia, que achou agitada.

Mais que todos, estava o chefe, aquele prudente "capita", porque lhe chegara a notícia da aproximação de Sândi, cujo barco a vapor já estava singrando a curva do rio.

Malograra-se o plano do soba: Sanders chegava ali dois dias antes do em que era esperado, e Ifiba e M'Bwka, homens de confiança do caudilho negro, estavam ausentes em certa expedição lucrativa, e não havia tempo de substituir tão valentes assassinos.

O Zaire, girando preguiçosamente uma roda da popa, veio dar com o costado na praia, e logo os homens da cubata, entre os quais se intrometera Imgani, viram as cobertas do barco apinhadas de soldados, implacáveis guerreiros morenos, de uniforme e quepes azuis.

Lançada uma prancha do convés para a praia, onde bateu com força, desceram por ela os soldados, que seguravam ao alto as carabinas, vindo à frente dos mesmos um oficial branco, que, entretanto, não era Sanders.

Era um branco de modos muito rudes, o qual, apenas enfrentou o grupo dos homens da aldeia, foi logo perguntando, com voz mal humorada:

— Quem é o chefe aqui?

— Senhor, sou eu! — respondeu o corpulento soba, pavoneando-se todo.

— Prendam este sujeito!

A esta ordem, um sargento de Houssas agarrou o chefe e rodou-o convenientemente, para que um cabo dos soldados de Sanders lhe pusesse aos pulsos um par de algemas.

— Senhor, — gemeu o cacique, — por que é que me fazeis passar por esta vergonha?

— Porque você, — bradou-lhe o oficial, — é um ladravaz, um provocador de guerras, um vendedor de escravos!

— Se alguém vos disse isso, senhor, — ululou o soba, — mentiu, porque nenhum homem do governo presenciou de mim, aqui, semelhantes abominações!

Imgani adiantou-se para a frente do caudilho negro e disse-lhe tranqüilamente:

— Chefe, eu vi tudo o que acaba de dizer aquele oficial branco!

— Você é um grande mentiroso! — rugiu-lhe, tremendo de raiva, o alentado "capita". — Sândi, que é meu amigo, não acreditará nunca em você!

— A questão é que eu sou Sândi, — declarou-lhe Imgani. E sorriu perversamente.

 

O Vidente

HÁ MUITAS COISAS QUE acontecem no verdadeiro coração da África e que nenhum homem pode explicar. E por isso é que aqueles que melhor conhecem o continente negro hesitam em escrever histórias a seu respeito.

Porque uma história acerca da África não pode deixar de I ser uma história de mistério, e o leitor de obras de ficção exige I sempre que o mistério, no fim da narração, seja exposto aos raios "X", de sorte que até os ossos lhe fiquem visíveis.

Não podeis explicar muitos acontecimentos, que são, às vezes, simples lugares-comuns, na latitude de 2.° N. e na longitude (diga-se) de 46.° O., do mesmo modo por que não podeis também explicar os milagres da fé ou as maravilhas da telepatia, consoante agora eu vou demonstrar-vos.

Certa noite, a horas caladas, o sr. comandante Sanders acordou.

Estava o Zaire ancorado junto a um depósito de lenha, onde, desde anos atrás, o comandante inglês fizera preparar  uma boa provisão de combustível, mandando derribar árvores, podando-as e deixando-as secar.

Achava-se apenas a um dia de marcha, para cima ou para baixo do rio, da aldeia mais próxima e somente a seis horas do povo de Amatombo, que vive no próprio âmago da selva e emprega contra o inimigo flechas envenenadas com tétano.

Sanders sentou-se na cama e pôs-se à escuta.

Um pássaro noturno chilreava monòtonamente; além disso, ouvia o "gluglu" da água sob as rodas do barco e o brando ciciar de folhas, quando uma brisa suave, ao perpassar, fazia oscilar os ramos novos das árvores que pendiam sobre o Zaire. Depois de ter escutado muito atentamente, tomou do chão as meias e as botas de cano alto.

Calçou-as, vestiu o sobretudo de flanela, que estava pendurado atrás da porta do seu pequeno beliche, e saiu muito devagar, abeirando-se do convés, onde ficou de pé, à espreita, com a cabeça inclinada para fora da amurada.

Ali, em meio da escuridão, fazia ele trejeitos desagradáveis e, puxando para trás, com pouca destreza, a presilha de couro que lhe segurava os coldres pendentes da cinta, empunhou a sua pistola Colt automática, armando-a sem a mínima bulha.

Sanders era um homem cauteloso e, por isso, não se perturbava facilmente. Tinha método em todos os seus movimentos. Teve bastante prudência, para não mexer no fecho de segurança da pistola, o qual impede a detonação prematura, e bastante asseio para não sujar com o cano a manga macia e branca do sobretudo. Esperou algum tempo, naquela escuridão tépida de uma noite africana.

Não tardou, porém, a ouvir novamente o som estranho, que o havia despertado. Era ainda o gorjeio fraco de um pássaro-tecelão.

Sanders sabia que os pássaros-tecelões dormem à noite, como os mais sensatos dos seres humanos, e não moram perto das aldeias, detestando as coletividades da espécie mais adiantada. E, com certeza, não tinham por hábito anunciar descaradamente a sua presença, como estava fazendo aquele pássaro, que chilreava e chilreava, por intervalos.

Sanders continuou pacientemente à espreita.

Então, repentinamente, de dentro do próprio barco, não longe do convés onde se encontrava o comandante inglês, saiu um gorjeio em resposta.

De junto do beliche, que era sito na ponte do barco, Sanders seguiu mais adiante; e, no canto da ponte, abaixou-se, com o polegar no fecho de segurança da Colt.

Sentiu, mais do que viu, entrar no Zaire um homem, vindo da floresta; e sabia que ali, a bordo do barco, havia outro, que o esperava.

Dentro em poucos instantes, dois sujeitos galgaram o convés, e arrastando-se sutilmente ao longo da amurada, dirigiram-se para o pequeno camarote de Sanders, onde entraram de gatinhas. O comandante inglês vira-lhes bem as formas, ouviu o pequeno ruído que eles fizeram lá dentro do beliche, e não pôde deixar de rir-se, embora tivesse certeza de que as pontas das lanças dos mesmos estavam fazendo um triste estrago nas suas roupas de cama.

Após uma curta pausa, um dos homens saiu sozinho do camarote e olhou em redor.

Voltou-se, em seguida, para dentro do beliche, falando em voz baixa ao companheiro, que ficara lá.

Sanders, que continuava agachado, levantou-se então, silenciosamente.

O sujeito, que permanecia à entrada da porta do camarote, disse — "Kah!", como num gemido, e caiu estatelado no chão, porque Sanders lhe pespegara um hábil pontapé na boca do estômago, que é o lugar mais fraco do corpo dos indígenas. O outro indivíduo correu logo do interior do beliche, mas tombou, com estrépito, por sobre a perna estendida do comandante inglês, e recebeu imediatamente, nas proximidades da orelha direita, o pesado golpe de um cano de pistola.

Yoka! — chamou Sanders, com voz forte, e logo ouviu atrás das costas um ruído de pés, porque o indígena tem o sono muito leve. — Amarre estes homens! Depois, dê vapor à máquina, para ir-nos embora daqui. Este lugar não é nada bom!

Sanders, conforme tenho tentado deixar patente, era um homem que conhecia bem os naturais da África; pensava, muitas vezes, como eles; e havia também momentos em que não agia diversamente de um bárbaro.

Livre daquele perigo, fez o barco ancorar numa pequena ilha, que ficava bem em meio da corrente do Isisi, e isso precisamente quando a aurora já se tornava cinzenta. Fez ali desembarcar, aos empurrões, os seus dois prisioneiros.

— Meus homens, — disse-lhes Sanders, — vocês vieram tentar matar-me, às horas caladas da noite!

— Senhor, é verdade, — obtemperou-lhe um deles, — eu vim, de fato, para matar-vos, e este outro homem, que é meu irmão, me fez ver a hora em que eu devia fazer a tentativa. Entretanto, em vez de ser a mim, poderia ele ter chamado a outro, porque eu sou apenas um dentre muitos.

O comandante inglês compreendeu, assim, que se havia formado ali toda uma cadeia de assassinos destemidos, a qual lhe aguardava a chegada sem nenhuma evidenciação de desprazer.

— Agora, — ordenou-lhe Sanders, — você me dirá quem foi que lhe deu ordem para matar-me e porque é que eu preciso de ser morto!

O homem, a quem se dirigia, um aprumado latagão, pertencente ao povo de Amatombo, limpou o suor da testa, com as mãos algemadas, e replicou-lhe:

— Senhor, ainda que me despedaceis, nada vos direi, porque eu tenho um grande ju-ju, e há certos fetiches que não podem ser contrariados!

Sanders sondou o outro homem, sem melhor resultado. Tratava-se de um pobre lavrador, que havia tomado ao seu serviço numa aldeia, a quatro dias de viagem por aquele rio abaixo. Este outro, à semelhança do companheiro, também lhe declarou;

— Senhor, ainda que o meu silêncio me acarrete a pior das mortes, nada vos direi!

— Pois seja assim! — murmurou o comandante inglês e fez a Abiboo um sinal com a cabeça.

Depois, declarou aos prisioneiros:

— Vocês vão ser amarrados sobre estacas, de modo que fiquem com as pernas e braços bem esticados no chão. Sobre o peito de vocês mandarei acender uma fogueirinha, de modo que vocês imediatamente me dirão tudo quanto eu quero saber.

Os dois sujeitos foram realmente amarrados sobre estacas, de costas para o chão, e sobre o peito dos mesmos foram postas algumas frutinhas secas de trepadeiras. Sanders empunhou então, uma grande acha de lenha, bastante inflamada, que tirara da fogueira, ali preparada pelos seus Houssas.

Os homens, esticados sobre as estacas, observavam todos os movimentos de Sanders. Viram-no soprar a ponta da acha, bem avermelhada, até fazê-la chamejar bastante, e avançar para eles.

Disse-lhe, então, um deles:

— Senhor, eu falarei!

— Assim o creio! — bradou-lhe Sanders. — Mas diga-me a verdade, senão você sofrerá muito!

Caso me pergunteis se Sanders teria empregado a acha acesa contra os homens, responder-vos-ei sinceramente que acho isso bem possível, pois Sanders talvez conhecesse os homens, sujeitos ali ao seu governo, melhor do que conheço eu a Sanders.

Libertos daquela posição horrível, os dois prisioneiros contaram tudo francamente ao comandante inglês, de sorte que este teve que entregar-se à tarefa de tomar notas, em sua língua, de toda aquela conversa, feita no idioma Bomongo.

Acabado o longo interrogatório, Sanders guardou no bolso os apontamentos tomados e mandou conduzir os dois prisioneiros, novamente, para bordo do Zaire. Duas horas mais tarde, movia-se o barco, com a maior velocidade possível, em direção a uma aldeia dos Akasavas, a qual, na língua dos mesmos, é conhecida pelo nome de Tukalala.

Na dita povoação havia um missionário, certo metodista norte-americano, jovem e abnegado, o qual tinha escolhido aquela zona de febres, para viver entre os pagãos e poder levantar-lhes os corações, até que alcançassem p conhecimento do verdadeiro Deus.

Sanders não tinha nenhuma estima especial para com os missionários. Os seus pontos-de-vista, no tocante à fraternidade humana, não o levavam a acreditar muito na obra evangelizadora; mas o certo é que se afeiçoara ao jovem pastor protestante, que trabalhava ali, tão alegre e dedicadamente, com tão pouco promissora matéria-prima. E, por isso, o comandante inglês passeava agora, impacientemente, pela pequena coberta do barco, pois era necessário que chegasse a Tukalala, antes que acontecessem ali certos fatos de suma gravidade.

O sol já ia descendo por trás das árvores da margem ocidental, quando, ao fazer o barco uma curva do rio, divisou Sanders a praia branca, junto à qual ficava o posto missioneiro.

Fez sinal, com a mão, ao homem que manejava a roda do leme, e o pequeno barco imediatamente se inclinou, quase que de bordo, para a margem fronteira à Missão, e a água escura do rio corcoveou contra o costado do Zaire, como se batesse contra uma saída de comporta.

Navegou para a praia, ao canto ruidoso da roda da popa:

— Puck-a-puck puck-a-puck!

Onde antes se erguia a casa do missionário, agora havia apenas um montão de ruínas enegrecidas, das quais ainda se levantavam, preguiçosamente, pequenos rolos de fumaça.

O missionário, vestido de calças brancas, jazia de borco em terra, muito sujo de sangue e poeira. A Sanders não foi fácil erguê-lo, porque o desafortunado moço estava pregado no chão com uma lança própria para a caçada de elefantes, uma lança de lâmina larga, que lhe fora quebrada à altura dos ombros.

Sanders virou-o de costas, fechou-lhe os olhos, que pareciam fitar avidamente a abóbada celeste, como numa derradeira interrogação à sabedoria divina, e, tirando do bolso um vistoso lenço de seda da Índia, colocou-o sobre o rosto do missionário morto.

— Abiboo — mandou Sanders, brandamente, ao seu sargento, — cave-me um grande buraco, junto àquela árvore de goma-copal, porque este homem era um grande chefe entre os seus compatrícios e tinha comunhão com os deuses!

— Era um cristão, — ponderou cientemente Abiboo, esclarecido prosélito do Profeta, — e no "Sura de Maria" está escrito: — "Os homens caíram em dissídios acerca de Jesus; mas, quando chegar o juízo final, ai daqueles que não crêem!"

Abiboo usava o título de "hádji", porque estivera em Meca e conhecia o Alcorão, melhor do que muitos cristãos conhecem a Bíblia.

Sanders nada lhe retrucou: tirou da cigarreira Um charuto e acendeu-o, circunvagando o olhar por toda a antiga povoação.

Não ficara de pé, ali, nenhuma construção. Onde fora o posto da Missão Cristã, com o seu belo jardim e bem plantada horta, agora reinava apenas a desolação.

À luz amortecida do crepúsculo, avistou Sanders, em pontos mais distantes, alguns frangalhos de roupa. Eram outras vítimas dos indígenas, ele bem o sabia.

Ao suave claror do luar, assistiu ao enterro do missionário, sobre quem recitou a Oração Dominical, engrolando também algumas palavras do Ofício Fúnebre, tanto quanto lhe foi possível recordar-se delas.

Voltou, em seguida, para bordo do Zaire, onde determinou rigorosa vigilância. De manhã, Sanders mandou virar a proa do barco corrente abaixo, e, ao empardecer da tarde, chegou ao Isisi, — estivera navegando antes num tributário deste, — pois ali, na confluência dos dois rios, é que se ergue a aldeia de Akasava.

Fez vir à sua presença o chefe supremo de todo aquele povo e teve com o mesmo uma conferência na coberta do Zaire, à luz de uma lanterna, que servia para todo o convés, enquanto uma candeia fraca iluminava lá atrás a marinhagem.

— Chefe, — disse-lhe Sanders, — encontrei um homem branco, assassinado no território de você, e ou eu arrancarei os corações dos homens que o mataram, ou, por Ewa, espetarei num poste a cabeça de você!

Proferiu isto calmamente, sem paixão. Jurou, todavia, por Ewa, que significava "Morte", e é ali, o mais tremendo dos juramentos. O chefe, que estava de cócoras no convés, sacudia as mãos, tremendo de medo.

— Senhor, — respondeu ele, titubeante, — nada sei sobre o que acabais de dizer-me! Se isso aconteceu em meu território, foi tão fora de mão, que eu não posso punir, nem recompensar ninguém!

Sanders guardou silêncio, externando apenas o seu aborrecimento por uma fungadela malévola.

— Além disso, senhor, — continuou o soba, — se quereis saber a verdade, não deveis dirigir-vos somente aos Akasavas, porque todos os homens das aldeias sitas ao longo do rio estão em revolta, obedecendo agora a novo ju-ju, que é mais poderoso do que quaisquer outros dos adorados antes!

— Entendo pouco desse negócio de ju-jus, observou-lhe Sanders, rispidamente, — e apenas sei que foi assassinado aqui um homem branco, cujo espírito está vagando e não descansará, enquanto eu não matar os homens que o trucidaram! Quer seja você ou outro qualquer, pouco me importa! Está terminada a audiência.

O soba ergueu-se com dificuldade, levantou a destra para a saudação habitual e desceu a passo incerto a larga tábua, que estabelecia as comunicações entre o barco e a terra firme.

Quanto a Sanders, sentou-se pensativo, fumando charutos, uns após outros. Ficou sentado muito tempo, ali no convés, pela noite adentro. Chamou Abiboo uma única vez, a fim de pôr na lanterna uma vela nova e trazer-lhe uma almofada, onde recostar a cabeça. Ficou sentado ali, até que a barulhenta aldeia próxima se aquietou para dormir, até não perceber mais ruído algum, senão o das asas dos morcegos, num constante vaivém entre a ilha do meio do rio e a povoação, porque os morcegos dão preferência às ilhas, para seu habitat, especialmente os grandes vampiros.

Às duas horas da madrugada, o comandante inglês, depois de olhar para o seu relógio-pulseira, segurou a lanterna e andou de proa à popa.

Abriu caminho por sobre os soldados adormecidos, até chegar à parte do convés onde um Houssa, acocorado e com a carabina carregada entre os joelhos, vigiava os dois prisioneiros. Sanders sacudiu-os levemente com o pé, e eles sentaram-se, piscando os olhos, por causa da luz da lanterna.

— Você precisa dizer-me alguma coisa mais, — disse Sanders a um deles. — Como foi que o tal mau ju-ju veio para o seu povo?

O homem, a quem ele se dirigiu, olhou-o serenamente e respondeu-lhe:

— Senhor, como é que vem a chuva e como é que vem o vento? Foi uma coisa repentina, que apareceu lá no meu povo. Houve certos ritos, certas danças e até comemos um homem. Depois, todos nós pintamos o rosto com tinta roxa, e as nossas virgens nos disseram: — "Matem!"

Sanders sabia, às vezes, revelar muita paciência.

— Eu sou o mesmo que vosso pai e vossa mãe! — murmurou ele aos dois prisioneiros. — Tenho-vos carregado em meus braços. Quando as águas do rio subiram muito e destruíram as vossas plantações, eu vos levei sal e mandioca e vos salvei da fome. Quando a epidemia vos atacou, eu trouxe comigo homens brancos muito sábios, que vos arranharam os braços e puseram mágica em vosso sangue, para curar-vos. Pacifiquei todas as aldeias, que viviam em guerra umas com as outras, e as vossas mulheres agora não são mais raptadas pela gente de N'Gombi ou de Isisi. E, ainda assim, viestes matar-me?

O que falara antes acenou afirmativamente com a cabeça, dizendo-lhe depois:

— Senhor, é verdade tudo quanto acabais de dizer. Mas como é que deixaremos de obedecer aos ju-jus? Eles são Coisas-Elevadas e, quando nos dão ordens, nós temos que cumprir, e não temos que lembrar-nos de mais nada!

Sanders estava indignado. Aquilo transcendia a órbita do seu alcance.

— Mas, afinal, que foi que disse a vocês o tal ju-ju? — perguntou-lhe o comandante inglês.

— Senhor, ele nos disse muito claramente, falando pela boca de um ancião, M'Fabaka, de Begeli...

— M'Fabaka, de Begeli? — repetiu Sanders, lentamente e tomou nota do nome, para fazer o portador do mesmo pender brevemente de uma forca.

— Senhor, sim! — continuou o outro. — M'Fabaka, de Begeli, teve uma visão, teve-a com grande dor, soltando espuma pela boca e sentindo fogo nos olhos, pois presenciou muitos homens brancos assassinados por homens pretos, que também lhes queimaram as casas.

— E quando foi que ele contou a tal visão a vocês?

— Foi quando a lua estava cheia (eram já decorridos seis dias, refletiu Sanders), e viu também um grande rei, à frente de muitas legiões, o qual marchava através de toda esta terra, apavorando a todos os homens brancos.

E, daí em diante, deu a Sanders, tanto quanto podia fazê-lo a memória de um indígena, a mais minuciosa notícia da marcha do rei: como foi que ele matou mulheres e homens brancos, incendiando-lhes ao mesmo tempo as casas; como era que as suas legiões dançavam, para honrarem ao monarca vitorioso.

— E tudo isto aconteceu, quando a lua estava cheia, — concluiu o prisioneiro. — Nós, portanto, saímos também para matar os brancos, e, sabendo que vós estáveis chegando, como é costume vosso, para nos dar audiência nesta estação do ano, pareceu-nos a melhor ocasião para matar-vos, assim como ao missionário cristão.

Referiu tudo isso num tom positivo, e Sanders, que conhecia bem o seu povo nativo, não teve dúvida de que o prisioneiro lhe dissera a verdade.

Qualquer outro homem teria ligado maior importância àquela parte da narrativa que lhe dizia respeito; mas o que principalmente ocupava, naquele momento, o espírito de Sanders, era o tal rei ("um homem muito alto de ventre muito desenvolvido"), com as suas legiões devastadoras.

Em tudo aquilo havia um certo fundo de verdade, refletia Sanders. Tinha havido algures um levante, que ainda não lhe chegara oficialmente ao conhecimento; e passou em revista, mentalmente, com muita rapidez, os reis dos territórios vizinhos e os da região subordinada ao seu governo pessoal.

Bosambo de Monróvia, aquele usurpador da chefia dos Ochoris, mandava-lhe, de quando em quando, notícias concernentes à atitude dos povos distantes. E, segundo elas, não havia guerra ao norte, nem ao sul, nem a leste.

— Não posso deixar de ir ver aquele famoso ancião M'Fabaka, de Begeli, — disse Sanders aos seus botões.

Begeli é uma pequena aldeia, situada num dos braços internos do Isisi, o qual é tão estreito ali, que parece um arroio, e tão tranqüilo, que semelha um lago. Filas de árvores imensas vergam por sobre as margens. Os enormes vegetais acham-se entrelaçados uns nos outros por inúmeras lianas, que dão idéia de serpentes, e muitos trazem os troncos guarnecidos de abundantes acúleos. O Zaire penetrou cautelosamente naquela extensa água serena, brilhando-lhe significativamente na coberta os canos de duas metralhadoras.

Tinha o pequeno vapor a pender-lhe do mastro o grande pendão da Inglaterra. Elevava-se acima da roda da popa aquele símbolo ameaçador, porque, quando Sanders fazia drapejar a sua bandeira azul de comandante, aquilo implicava perigos e desgostos para alguém.

Achava-se ele em pé, no convés, fazendo sinal, com os dedos erguidos, para o homem que manejava a roda do leme.

— Fiu!

Era uma flecha, que tinha vindo despedaçar-se de encontro ao camarote de madeira da coberta. Puxou-a e examinou-lhe cuidadosamente a ponta de aço, atirando-a depois ao rio.

— Bang!

E, enquanto mirava ele a fumaça que saía do meio da mata marginal, uma bala lhe havia quebrado o espaldar da cadeira-de-bordo.

Abaixou-se, apanhou do chão uma carabina e fez atenta mira em direção à espiral de fumaça.

— Bang!

Não havia alvo que patenteasse onde batera a bala, e o único som, que se ouviu dali, foi o agudo "suish" do projétil, quando passara através dos arbustos verdes, varando caminho para o ponto visado.Não se ouviu mais tiro algum.

— Puck-a-puck puck-a-puck!

Assim cantava a roda da popa, vagarosamente, enquanto a proa do Zaire cortava as águas tranqüilas, deixando atrás um leque de espuma. Antes de se avistar a aldeia, seis canoas de guerra, impelidas a remos duas a duas, vieram ao encontro do comandante inglês. Mandou ele parar o barco, e, quando cessou o barulho das máquinas, pôde ouvir, através do ar parado, o toque de tambores indígenas. Divisou também, pelo óculo-de-alcance, corpos fantàsticamente pintados, assim como uma cabeça humana, erguida, como troféu, sobre a ponta de uma lança.

Andara por aquelas bandas certo negociante, chamado Ogílvio, homem tão pacífico, quanto imundo, o qual vendia coisas de armarinho e comprava borracha bruta.

— Quinhentos metros! — anunciou Sanders a Abiboo.

O sargento, que dirigia a metralhadora de bombordo, deu um pequeno puxão no cinto da cartucheira da peça e virou-lhe a boca para a frente, olhando ansiosamente a mira. Ao mesmo tempo, o cabo de Houssas, seu comandado, que dirigia a metralhadora de estibordo, sentou-se na tripeça que ficava atrás dela, com o polegar no controle.

De uma das canoas centrais saiu um jacto de fumaça, mas a bala passou, sem atingir ao alvo.

— Ogílvio, pedaço de canalha! — monologou Sanders. — Se você ainda estiver vivo, do que duvido muito, há de explicar-me a presença destas balas Schneiders!

As canoas aproximavam-se cada vez mais. Os seus remos mergulhavam na água compassadamente, acompanhando-lhes o movimento um zumbido baixo, mas forte, de canto selvagem.

— Quatrocentos metros! — disse Sanders aos seus Houssas das metralhadoras, os quais ajustaram imediatamente a mira.

Depois de uma pausa rápida, ordenou-lhes Sanders:

— Visem as duas canoas do meio! Fogo!

— Ha-ha-ha-ha-ha-ha-ha-ha! — riam as Maxims, sardonicamente.

Pelo óculo de alcance, observou o comandante inglês os estragos causados pelos tiros. Depois, ordenou apressadamente:

— Agora, as outras canoas!

— Ha-ha-ha-ha-ha-ha-ha-ha!

Os artilheiros eram homens cuidadosos, que atiravam espasmodicamente, a fim de verem os efeitos dos seus projéteis.

Sanders via cair a maior parte dos nativos que enchiam as canoas; viu uma das pirogas adernar e submergir-se, aparecendo logo à tona da água muitas cabeças negras de indígenas. Mandou, então, que o Zaire seguisse para a frente, a todo o vapor.

Nisto, de uma das canoas ilesas alguém atirou contra o barco. A bala passou junto ao rosto de Sanders, que lhe sentiu o sopro, e foi bater na amurada do Zaire, pouco atrás das costas do comandante inglês.

Não tardou a vir outra bala, e o soldado Houssa que estava à roda do leme, voltou a cabeça para o lado de Sanders, fazendo um pequeno trejeito.

— Senhor, — exclamou ele, em árabe, ao seu comandante, — estava escrito!

Sanders fez resvalar o braço por sobre o ombro do rapaz, amparando-o, até deixá-lo cair suavemente no convés.

— Tudo nos é determinado por Deus! — murmurou-lhe Sanders, meigamente.

— Abençoado seja o seu nome! — balbuciou o rapaz, já em agonia.

Sanders tomou conta da roda do leme, para não interromper a marcha do barco, e chamou bem depressa outro piloto.

A quilha do vapor arremessava-se sobre a canoa atacante. Para os homens que estavam nesta, foi isso uma circunstância desastrosa, porque as duas metralhadoras, operando juntas, a cobriram de balas, de sorte que, através do nevoeiro azul da fumaça, logo se pôde ver que a piroga indígena ficara vazia de gente.

Foi isso que pôs termo ao combate. Um guerreiro, que estava mais atrás, na quinta canoa, levantou a lança horizontalmente acima da cabeça, em sinal de rendição, e, dez minutos depois, o chefe dos rebeldes já se encontrava a bordo do Zaire.

— Senhor, — disse o caudilho, calmamente, apenas chegando à presença de Sanders, — esta audiência é bem desagradável para mim! Como é que me ides tratar?

Sanders olhou-o firmemente e respondeu-lhe:

— Serei misericordioso para com você, porque o enforcarei, logo que chegarmos à aldeia!

— Disso tinha eu certeza, — retrucou-lhe o chefe, sem mover músculo algum do corpo. — Tenho ouvido dizer que enforcais os homens muito rapidamente, de modo que eles sentem pouca dor.

— É a minha velha prática! — obtemperou-lhe Sanders. E o caudilho meneou a cabeça, aprovativamente, murmurando:

— Oxalá seja assim!

Foi a uma aldeia constristada que chegaram, porque ali só havia inúmeras mulheres, pranteando ininterruptamente os seus mortos.

Sanders desembarcou com todos os seus Houssas e anunciou logo uma audiência solene, que foi realizada sob uma grande árvore.

— Tragam-me aqui o ancião M'Fabaka, que tem visões! — ordenou ele.

Momentos após, chegava à sua presença um homem tão velho, que não tinha mais senão ossos para lhe darem uma forma corpórea.

Foi carregado até ao lugar da audiência e sentaram-no em frente de Sanders.

— Você é um indivíduo perverso! — disse-lhe o comandante inglês. — Por causa da língua de você ter mentido, morreram muitos homens. Hoje mesmo, enforcarei aqui, nesta árvore que nos cobre, o chefe de você, e, em seguida a ele, enforcarei a mais alguns outros, também responsáveis por esta desordem. Agora, se você se levantar diante de todo este povo e lhe disser: — "A história da visão, que eu contei a vocês, foi apenas mentira, e nada mais que mentira!", — poderá você viver ainda mais algum tempo. Mas, se persistir na mentira que pregou, eu juro, por meu Deus e pelo deus de você, que você não escapará de hoje!

Passou-se bastante tempo, antes que o macróbio falasse, porque era muito velho e estava muito assustado: pesava sobre ele o pavor da morte, que é o fantasma de alguns velhos.

— Falei a verdade, — resmungou finalmente. — Falei do que vi e do que soube... e somente disso.

Tomou fôlego e Sanders não o interrompeu.

— Eu vi o grande rei matar e queimar. Ontem, eu o vi marchar para a guerra, com as suas legiões, e fizeram-lhe uma grande aclamação. E ainda vi fumaça...

Parou, sacudiu a cabeça, como tomado de um completo desespero, e acabou a confissão:

— Eu vi todas estas coisas. Como é que eu poderei dizer agora que não vi nada?

— Que espécie de rei viu você? — perguntou-lhe Sanders. Houve novamente um longo intervalo de silêncio, até que o ancião recobrasse outra vez o ânimo para falar.

— Um grande rei, papagueou, por fim, às sacudidelas, — tão grande, quanto um touro, principalmente no meio do corpo. Traz à cabeça um comprido penacho branco e sobre os ombros a pele de um leopardo.

— Você está é com o miolo mole! — xingou-o Sanders, e deu por encerrada a audiência.

 

Seis dias mais tarde, Sanders estava de regresso para o seu quartel-general, tendo deixado atrás de si um povo bem corrigido.

As notícias más correm ainda mais depressa do que o vapor que impele as máquinas de um barco, e, por isso, o pequeno Zaire, mantendo-se sempre em meio da corrente e tendo a drapejar no alto do mastro o pendão azul, era objeto de vivo interesse por parte de muitas aldeiazinhas, cujos habitantes se apinhavam às margens do rio, onde permaneciam de braços cruzados, ou, então, com as mãos fechadas e de juntas unidas em frente aos lábios, para darem a entender a perturbação em que se encontravam, quando não erguiam, à passagem do barco, um coro monótono de aclamações:

— Ó Sândi, pai nosso! Quantos perversos matastes hoje! Ó matador de demônios! Ó enforcador de homens nas árvores! Nós não temos medo de vós, porque só amamos as virtudes! Ei-fo, Kalaba! Ei-ko, Sândi! Eiva-fo-Elegi

E assim por diante.

Sanders descia o rio, ao sabor da corrente, com toda a rapidez possível, pois desejava dar parte dos acontecimentos ao governador-geral da África Britânica. Que havia algures, em qualquer ponto do continente negro sujeito ao domínio inglês, um movimento de rebelião, — era coisa de que ele estava certo.

Havia um grande fundo de verdade em tudo quanto o velho M'Fabaka dissera antes de morrer, pois que se finara de puro pânico e de muita ancianidade.

Quem seria o tal rei em revolta? Não podia ser o rei dos Isisis, nem o dos N'Gombis, nem os dos povos ocupantes das remotas regiões que ficam além dos Ochoris.

Ao atingir ao ponto de destino, na praia próxima ao quartel-general, um capitão de Houssas aguardava a chegada de Sanders.

— O telégrafo terrestre está funcionando? — perguntou-lhe o comandante inglês, ao desembarcar do Zaire.

O oficial acenou afirmativamente com a cabeça e indagou de Sanders:

— Tendes algo de urgente a comunicar?

— Sim, — respondeu-lhe Sanders, — uma perturbação qualquer, pois algum rei, ou outro diacho semelhante, acha-se em estado de guerra.

E, rapidamente, contou toda a história que sabia, ao seu subordinado.

O oficial Houssa assobiou, murmurando em seguida:

— Por Deus Onipotente, guardião da bolsa particular! isto está engraçado!

Sanders censurou-lhe o esquisito juramento!

— Você tem um senso humorístico muito venenoso!

— Parai aí! — disse-lhe o Houssa e segurou-lhe o braço. — Não sabeis que Lo-Bengola está em rebelião? A descrição, que acabastes de fazer, adapta-se perfeitamente a ele.

Sanders deteve os passos, soltou um suspiro de alívio e concordou com o subordinado:

— Sem dúvida alguma!

— Mas, — ponderou-lhe perplexo o oficial, — a Matabelelândia acha-se a três mil milhas daqui e a rebelião rompeu lá apenas há uma semana. Como é que esses vagabundos das aldeias do Isisi já souberam de tudo isso?

Em resposta, Sanders acenou, chamando um homem seminu, pertencente ao povo de Akasava e que fazia parte da tripulação do seu barco, como um excelente cortador de lenha.

— I'Fasi, — disse-lhe, — conte-me uma coisa: que é que os homens de Akasava estão fazendo hoje lá?

O rapaz sorriu timidamente, embora lisonjeado, porque era uma honra para todo empregado subalterno, quando Sanders lhe dirigia a palavra, e o tratava pelo nome, e, em seguida, respondeu com segurança:

— Senhor, eles vão à caça de elefantes.

— E quantos homens? — indagou ainda Sanders.

— Todos os homens de duas aldeias, porque os da outra têm doença e não podem ir.

— Como é que você sabe de tudo isso? — interrogou-o Sanders, finalmente. — Como foi que você teve conhecimento do que acaba de contar-me, se Akasava dista daqui três dias por terra e quatro pelo rio?

O rapaz pareceu ficar meio desconcertado, mas redargüiu-lhe:

— É realmente como dizeis, senhor! Mas a verdade é que eu sei.

Sanders voltou-se então para o oficial Houssa e disse-lhe sorrindo:

— Tem-se sempre muito que aprender nestas terras!

 

Um mês depois, recebia Sanders um retalho do "Cape Times". O trecho, que lhe despertara interesse, dizia o seguinte:

— "O boato, que correu aqui e foi geralmente acreditado pelos rebeldes de Matabelelândia, de que os seus aderentes setentrionais sofreram lá uma repulsa, não teve confirmação até agora. O comandante da Barotselândia nega a existência, tradicionada há pouco pelos indígenas, de uma tribo rebelada naquela região, e informa que, tanto quanto lhe é lícito saber, a totalidade do seu povo tem permanecido em completa paz. Outros comandantes de territórios setentrionais prestaram idênticas informações. Assim, podemos asseverar que não repercutiu ao norte o movimento armado da Matabelelândia, embora os nativos continuem a jactanciar-se de que, "numa terra longínqua", cuja situação não podem precisar bem, ocorreu também uma grande rebelião. Tal coisa, sem dúvida alguma, não passa de uma notícia absurda".

Sanders sorriu maquiavelicamente.

 

Cães de Guerra

A MAIOR DAS RESTRIÇÕES, IMPOSTAS ao homem negro pelo seu protetor branco, é aquela que o impede, quando se lhe exacerbam as paixões ferozes, de agarrar o inimigo pela garganta e trinchá-lo com uma lâmina larga e curva, de fabricação indígena.

É bem de ver que até a mais disciplinada das tribos africanas custa a obedecer a semelhante proibição, determinada ali pelos representantes do governo inglês.

Podeis estar certos de que a memória dos Akasavas é muito fraca e de que a punição, recebida por sua última falta, lhes caiu rapidamente em olvido, na primeira oportunidade e na primeira tentação, que tiveram e sentiram, com o decorrer do tempo. Assim, os Akasavas, vítimas de certas maldades por parte dos Ochoris, julgaram-se no genuíno dever de vingar-se das novas afrontas, e, por isso, prepararam-se para a guerra, mandando, porém, a Sândi, primeiramente, uma respeitosa mensagem, na qual lhe expuseram, com patente exagero, os insultos que os Ochoris lhes haviam feito. Sanders estava felizmente, por aquelas bandas, de sorte que, muito prontamente, se dirigiu para Akasava, onde imediatamente convocou a assembléia popular, conseguindo acalmar, da melhor forma que pôde, aquela nação ultrajada. O comandante inglês era um homem de tato, e o tato não implica, necessariamente, manejos brandos. Pois havia ali uma alma cruel, que era figura conspícua da assembléia e procurava agitá-la por meio de questões inesperadas, que interpunha a cada momento.

Como o agitador se tornasse mais audaz, em razão de Sanders tratá-lo com brandura, não tardou a transpor, — como faria qualquer criança ou um rude selvagem, — a linha de proceder, que separa das maneiras más as boas maneiras.

Sanders, aí, não pôde tolerá-lo mais, perguntando-lhe:

— Que foi que você veio fazer aqui, seu cachorro bastardo de um escravo?

E, enquanto o sujeito pensava na resposta que devia dar, Sanders, com um pontapé, precipitou-o pelo declive da colina, em cujo cimo estava colocada a casa de audiências, restabelecendo-se ali, mais uma vez, a harmonia interrompida.

Já ao findar a sessão, recebeu o comandante inglês uma queixa amarga dos Isisis. Dizia respeito a redes de pescar, que eles haviam lançado ao rio e que tinham sido vandàlicamente destruídas pela gente de Lulungo. Tal assunto não era nada fácil, para que Sanders pudesse ali resolvê-lo de pronto. Por diversas causas, todo povo, que respeita a si próprio, odeia os Lulungos, homens turbulentos, malfazejos, perigosos, sem pudor e sem critério. Sanders, todavia, conseguiu chamar a intuitos de paz os Isisis, evitando, assim, que eles se vingassem dos Lulungos, numa guerra, aliás, justa. Houve ainda outros alarmas de menor importância, — com os quais o comandante inglês já estava familiarizado, pois faziam parte da sua tarefa quotidiana, — mas Sanders afligia-se principalmente por causa da atitude dos Lulungos, não só em razão da maldade que os caracterizava, como principalmente por causa de todo o povo sujeito ao seu governo Isisis, Ikelis, Akasavas e Ochoris, todos os quais manifestavam para com os Lulungos uma aversão profundamente arraigada. Como Sanders, julgando intimamente aqueles fatos, sabia que a guerra de tais povos contra os Lulungos podia somente ser adiada pela ação que ele imprimia às queixas recebidas, — entendeu de dirigir-se ao gabinete de Londres. Respondeu-lhe um nervoso subsecretário de Whitehall, rogando-lhe urgentemente que envidasse todos os esforços no sentido de que a guerra, naquele território da África Central Britânica, não estalasse, por forma alguma, "durante o presente ano financeiro, pelo amor de Deus!"

No distrito de Lulungo, que estava a três dias de marcha da aldeia de Akasava, era corrente o seguinte provérbio: "Quando qualquer homem tem um inimigo secreto, e não pode descobri-lo, derribe-lhe a própria cabana e procure-o entre as ruínas dela!" É esta, sem dúvida, uma tradução enfadonha. Outro refrão popular daquela zona, reza assim: "Acautela-te do inimigo, que vive à sombra da tua cabana!" E ainda é comum ali outro brocardo, que diz: "Se não podes descobrir teu inimigo, mata o teu amigo mais querido!" Tais ditados servem nitidamente para evidenciar que o povo de Lulungo tinha na vida uma perspectiva sombria e era profundamente desconfiado.

Ora, tinha Sanders um cozinheiro, o qual nascera no seio da tribo de Lulungo e o estava servindo em M'Piti, — aquela cidade-modelo, que era a sede do quartel-general do sr. comandante britânico. Começara por querer tornar-se cosmopolita, vagabundando desde Daka, ao norte, até Banana, ao sul, e, presumivelmente, andara também por terras do Congo, até Matadi. Um belo dia, chegou a M'Piti e pediu trabalho a Sanders. Perguntando-lhe este como era que se chamava, respondeu-lhe o homem, no "inglês" da costa:

— Senhor, há muito tempo que eu estou sendo chamado de "Seis-Pence". Eu sou um bom cozinheiro, muito economiza-dor. Se vós procurardes um cozinheiro melhor do que eu, não achareis!

— E que diabo de algaravia, — perguntou-lhe ainda Sanders, no dialeto dos Lulungos, — é essa que você fala?

— Senhor, é inglês! — replicou-lhe o negro, muito encafifado.

— Qual inglês, qual nada! Isso é língua de macacos! — disse-lhe Sanders, cruelmente. — Ou, então, é geringonça dos meninos de Kroo e dos marujos mestiços, que não têm língua própria. Como é que você é chamado pelo seu povo de Lulungo?

— Lataki, senhor! — informou, finalmente, o cozinheiro.

— Pois por esse nome é que você será chamado aqui, — ponderou-lhe Sanders. — Além disso, não quero que você fale aqui outra língua, senão a sua própria. O seu ordenado será de dez xelins por mês.

Lataki revelou-se, de fato, um excelente cozinheiro e procedeu ali exemplarmente por espaço de três meses, findos os quais, voltando Sanders, certo dia, de uma excursão de caça, achou o seu empregado a dormir, não na cama que lhe destinara, mas sim no confortável leito do patrão. Achava-se Lataki completamente embriagado, como, para seu descrédito, mudamente testificavam duas garrafas vazias de genebra, caídas ao pé da cama. Sanders chamou um dos Houssas, e Lataki foi conduzido para a prisão, a fim de desembriagar-se, o que só conseguiu vinte e quatro horas depois.

— Você deve compreender muito bem, — disse Sanders ao réu, no dia seguinte, — que eu não posso consentir que os meus criados se embriaguem; e, mais especialmente ainda, não posso permitir que os meus empregados, quando bêbedos, cozam a carraspana em minha cama!

— Senhor, eu estou muito envergonhado do que fiz, — respondeu-lhe Lataki, — mas vós também deveis compreender que estas coisas acontecem a um homem que já correu a maior parte do mundo...

— A mesma coisa pode também você dizer do açoite, que vai agora correr-lhe as costas, — observou-lhe Sanders, que deu imediatamente uma ordem a Abiboo.

Lataki nada tinha de estóico. Assim, quando, amarrado a uma árvore, recebeu nas costas robustas dez valentes chicotadas, que lhe vibrou um Houssa inexorável, vociferou muito alto contra Sanders e contra aquela civilização da qual era Sanders o bárbaro instrumento.

Concluída a correção e tendo o paciente verificado que estava ainda vivo, embora bastante contundido, confessou que havia recebido um pouco mais de açoites do que em verdade merecia e prometeu a Sanders, com lágrimas nos olhos, que aquela lição não ficaria perdida. O comandante inglês, que nada mais tinha a dizer-lhe sobre o caso, despachou-o para as suas obrigações.

Uma semana depois do incidente que acabamos de referir, estava Sanders jantando, sozinho, costeletas de porco, preparadas com azeite-de-dendê, — um apetitoso quitute da costa africana, — e frango. Mal cortara a costeleta, levantou-se da mesa, dirigiu-se ao escritório e trouxe de lá um microscópio. Raspando a costeleta, tirou dela quanto poderia caber na cabeça de um alfinete, e, cobrindo com tal matéria uma pequena lâmina de prova, focalizou o instrumento. O que ele viu, interessou-o sobremaneira. Guardou o microscópio e mandou chamar Lataki. Este veio logo lá da cozinha, todo vestido de branco, muito limpo.

— Lataki, — disse-lhe Sanders, despreocupadamente, — como você conhece bem os costumes dos brancos, diga-me como é que um patrão pode mostrar-se contente com os criados.

— Há muitos modos, — respondeu ele, depois de ligeira hesitação. — Podia...

E parou, por não estar bem seguro do caminho que pisava.

— Ora, como você é um bom empregado, embora tenha já cometido algumas faltas, — disse-lhe Sanders, — desejo manifestar-lhe o meu contentamento. Escolhi, por isso, um meio idôneo: como você já dormiu em minha cama, sem prévio convite meu, agora vai sentar-se aqui à mesa, para jantar comigo, por ordem minha!

O homem, a princípio, hesitou, um pouco escabreado; mas, logo depois, adiantou-se, com passo inseguro, para a mesa, ê sentou-se muito desajeitadamente na cadeira, que ficava bem em frente da do seu patrão.

— Vou eu mesmo servir a você, — observou-lhe Sanders, — de acordo, aliás, com o costume do seu próprio povo.

Amontoou num prato dois grandes pedaços de costeleta, com azeite-de-dendê, e entregou-o ao homem dizendo-lhe:

— Coma!

Lataki, porém, não fez o menor movimento para pegar o prato, pois conservava os olhos abaixados e fixos na toalha da mesa.

— Coma! — ordenou-lhe novamente Sanders. Mas o homem ainda permanecia imóvel.

Sanders, então, levantou-se, chegou até à porta do bangalô, que estava aberta, e soltou um assobio.

Ouviu-se logo um tropel, aparecendo imediatamente ali o sargento Abiboo, em companhia de quatro Houssas.

— Levem daqui este bandido e ponham-no a ferros! — determinou-lhes o comandante inglês. — Amanhã mandá-lo-ei submeter a julgamento.

Voltou para a mesa, apenas os Houssas se retiraram, levando o preso, e depois de guardar cuidadosamente o prato envenenado, tomou uma ligeira refeição de ovos e bananas, alimentos nos quais não é possível introduzir vidro moído, sem correi o risco de descoberta imediata.

Vidro moído, — vidro reduzido a um pó tão fino, que se assemelha a um precipitado de giz, — é um veneno perigoso, porque, se entra em contato com as membranas delicadas do âmago do corpo humano, chega a dilacerá-las, e a vítima perde a vida, como sabem até agora, e o souberam durante séculos atrás, todos os indígenas de maus bofes do litoral da África. Lataki foi, de fato, poucos dias depois, submetido a julgamento, perante certo magistrado, que presidia a um tribunal, cuja sede era um vasto galpão, coberto de capim. O acusado levou consigo três primos, um irmão e um amigo desinteressado, todos os quais juraram que tinha sido o próprio Sanders quem, com premeditada malícia, pusera o vidro moído na costeleta de porco, preparada com azeite-de-dendê. A despeito de tão unânimes depoimentos, — as testemunhas tinham realizado nada menos de quatro ensaios, numa pequena cabana, à véspera da sessão do júri, — o réu foi condenado a quinze anos de trabalhos forçados.

O incidente ficaria encerrado com semelhante decisão, se o povo de Lulungo, que mora tão longe, lá para as bandas do norte, não houvesse considerado como um casus belli a pena aplicada pela justiça a um membro da sua tribo.

Era, como já dissemos, um povo desconfiado, irritadiço, insensível ao bom trato, cruel e bem favorecido geograficamente", pois morava nos lindes de um território indisputavelmente francês, dentro do qual se tornaria inatingível.

Sanders, prevendo o que havia de acontecer, enviou mensagens a todos os brancos, estabelecidos então nas proximidades das aldeias dos Lulungos. Eram seis ao todo e pertenciam a duas missões, uma jesuíta e outra batista. Eram pessoas de excessiva boa-fé, como se vê pela maneira por que responderam ao comandante inglês.

Eis o que disse o pastor protestante:

— "Missão de Losebi — Caro Sr. Comandante. — Eu e minha esposa vos ficamos muito reconhecidos pelo aviso que nos mandastes. Deus, porém, nos enviou para este lugar, e aqui é que devemos permanecer, para servirmos aos desígnios de Nosso Senhor, até que ele, em sua divina sabedoria, ordene que deixemos esta sede dos nossos labores".

O padre da Companhia de Jesus escreveu o seguinte:

— "Rio Ebendo. — Caro Sr. Sanders. — Penso que estais enganado a respeito dos nativos de Lulungo, com muitos dos quais eu me tenho encontrado recentemente. São até bastante sociais, precisamente o único sinal mau que até agora observei neles. Não me retirarei daqui, pois estou certo de poder defender-me de qualquer ataque que me fizerem. Disponho aqui de quatro carabinas Martini-Metford, com três mil cartuchos, e esta casa, como não ignorais, é construída quase toda de pedra. Creio, portanto, que estais mal informado, Mas"...

Sanders meteu-se no Zaire, levando uma das metralhadoras e o destacamento de Houssas, e galgou o Isisi, até aonde pôde levá-lo a pequena roda do barco. Ao fim de cada dia de viagem, parava num lugar onde a mata fora derribada e onde, à margem do rio, se via empilhada uma boa provisão de lenha. Algures, na floresta, existia uma pequena aldeia, cuja única contribuição para o governo britânico era aquela pilha de lenha, sempre sortida. Dia e noite, dois Houssas, sentados à proa do Zaire, e enquanto ela cortava monòtonamente a água, faziam a sondagem desta, com varapaus muitos compridos. Havia por ali muitos baixios, bancos de areia e canais. Algumas vezes, com um choque que fazia tudo estremecer, o barco escorregava por sobre a superfície lisa de um banco de areia escondido e ia bater as asas, do outro lado, na caudal profunda; outras vezes, durante a noite, o vapor saltava um baixio, para encontrar-se, além, numa estagnação, cujas margens intransponíveis eram somente de areia encoberta e que impediam toda a passagem. Era, então, imprescindível que os Houssas saltassem da embarcação para o leito arenoso do rio, e, caminhando pelo álveo, empurrassem lentamente o Zaire para a água profunda.

Achava-se Sanders ainda a sessenta milhas da Missão Batista, quando, por intermédio de um indígena amigo, recebeu a seguinte notícia:

— "Senhor, os Lulungos entraram de madrugada em Losebi e dali arrancaram, levando-os para a sua aldeia, o missionário, bem como a esposa e a filha do mesmo".

Sanders, barbado, sujo, com os olhos pesados em razão das constantes vigílias noturnas, e, de mais a mais, com o rosto amarelado pela maleita, limpou, com as costas da mão, o suor que lhe escorria da testa e ordenou a Abiboo:

— Leve-me o barco o mais depressa possível pelo rio acima! Eu preciso de dormir.

Eram quatro horas da tarde, quando ele foi despertado pelo barulho de uma garrafa de água, a qual estava numa prateleira, ao lado da cama, e que se quebrou, sem que a Sanders parecesse ter havido alguma razão para isso. Ele ficou todo salpicado de gotas de água e de estilhas de vidro.

Mas, nisto, ouviu perto dali o estrépito da detonação de um rifle:

— Pang!

Quando saltou do leito e abriu a porta de tela de arame do seu camarote, a fim de ir ver o que era aquilo, já Abiboo lhe aparecia em frente dando-lhe a informação seguinte:— Dois homens postaram-se à margem do rio e de lá desfecharam tiros de carabina contra o barco. Mas a um deles eu consegui pôr fora de combate.

Aproximavam-se, agora, da aldeia, e, contornando uma curva violenta do rio, chegaram à vista da povoação. O pequeno, mas forte, apito do Zaire guinchou, então, longamente e desafiadoramente.

Sanders avistou uma imensa mó de homens precipitando-se em direção à margem, onde acabava de ancorar o barco a vapor. Graças ao seu óculo-de-alcance, divisou-lhes o brilho das lanças e a pintura que lhes zebrava os corpos. À frente da multidão de guerreiros, seis canoas desciam o meio da caudal, com grande velocidade, em rumo ao Zaire.

Um cabo de Houssas estava negligentemente sentado num banco alto, coberto de couro, atrás da metralhadora, na qual apoiava os braços.

— Quinhentos metros! — disse-lhe o comandante inglês. O soldado ajustou a mira, sem mostrar pressa alguma. As pirogas dos indígenas avançavam com uma rapidez de furacão, pois navegavam ao sabor da corrente. O cabo, que dirigia a Maxim, limpou um ponto embaçado do depósito de água, com a manga azul do seu dólmã, e depois olhou para Sanders.

Sanders acenou-lhe com a cabeça.

As canoas vinham agora mais perto, uma delas como capitânia, guiando as outras naquela corrida, alentada pelo ódio, e da qual seria a morte o prêmio definitivo.

De repente:

— Ha-ha-ha-ha-ha-ha-ha-ha-ha!

A metralhadora riu assim, sardonicamente, e a piroga principal dos atacantes capotou, tendo soçobrado na corrente, mortos ou feridos, quase todos os homens que a enchiam. Outra vez:

— Ha-ha-ha-ha-ha-ha-ha-ha-ha!

A esta nova gargalhada da Maxim, houve na segunda canoa um alarido infernal, porque ela adernou e submergiu-se, ficando o rio, naquele ponto, tauxiado de cabeças negras, enquanto o ar era ferido por gritos lancinantes.

Diante disso, o restante da flotilha inimiga procurou salvação na fuga acelerada. O cabo de Houssas, que dirigia a metralhadora do Zaire, introduziu nela outro pente de cartuchos e empregou o melhor dos seus manejos, para ver se as balas alcançavam os novecentos metros, a que já haviam chegado os fugitivos. Mas as canoas, remadas freneticamente, não tardaram a ficar livres da ação tremenda da Maxim.

Sanders ordenou que o seu barco se tocasse a toda a pressa para a frente, o que foi feito.

Na praia, os Lulungos opuseram a mais desesperada resistência, e projéteis de muitas espécies batiam incessantemente no costado do barco de Sanders. Mas a metralhadora dizimou-os tão implacável e ruidosamente, que logo um nativo nervoso, agitando uma folha de palmeira, veio postar-se quase em frente do Zaire. O comandante inglês mandou imediatamente cessar o fogo e gritou, pelo seu microfone, que o mensageiro devia nadar para bordo, a fim de vir falar-lhe.

Daí a instantes, galgava o parlamentário o convés do vapor, pingando água desde a cabeça até aos pés, e assim dizia a Sanders:

— Senhor, estamos muito envergonhados! Não sabíamos que estávamos combatendo a Sândi, o leão, a Sândi, o búfalo, diante do bater de cujos pés poderosos...

O comandante inglês não quis ouvir mais tais elogios e disse-lhe, com ríspida frieza:

— Chega! chega! Em poder de vocês, há um casal de brancos e uma filha dos mesmos. Traga-os já para aqui, porque, somente depois que me forem eles entregues, é que irei dar audiência a vocês e discutir o caso que me trouxe a este lugar.

O mensageiro parecia presa da maior inquietação. Depois de alguns momentos de hesitação, respondeu a Sanders:

— Senhor, o homem branco morreu de doença; a mulher dele também está doente; quanto à filha deles, eu nada sei...

Sanders olhou firmemente para ele, com a cabeça à banda, qual uma ave de rapina à espreita, e ordenou-lhe em tom cortante:

— Traga-me para aqui o homem branco, vivo ou morto; a mulher branca também, sã ou doente; e a filha deles, também!

Uma hora depois, dava entrada a bordo do Zaire, o cadáver do infeliz missionário ianque, tendo os indígenas gastado algum tempo para torná-lo apresentável. Em seguida, noutra canoa, veio a esposa do pastor protestante, segura por quatro mulheres nativas, pois estava completamente louca.

O mensageiro tinha já retornado à presença de Sanders.

— E a menina? — perguntou-lhe o comandante inglês. — Onde é que ela está?

A sua voz pouco mais era do que um ligeiro sussurro. O parlamentado dos Lulungos nada lhe respondeu.

— Que é da menina? — perguntou-lhe novamente Sanders, e açoitou-o na cara com a sua fina bengala de ébano.

— Senhor, — resmungou o homem, com a cabeça metida no peito ,— ela está em poder do chefe!

Sanders deu uma volta acima e abaixo do convés, depois foi ao seu camarote e saiu de lá com dois revólveres, que meteu no cinturão.

— Vou ver o tal chefe! — disse ele. — Abiboo, você meterá a proa do barco na areia macia da praia e dominará toda a extensão da rua com a metralhadora, enquanto eu estiver em terra!

Desembarcou, sem encontrar oposição alguma: não viu nenhuma lança em riste, nem ouviu estrondo algum de arma, enquanto galgava rapidamente a larga rua da maloca. A pobre menina jazia em terra, diante da porta da cabana do soba, morta, muito calma, muito quieta. A mão, que lhe extinguira a existência juvenil, fora mais clemente do que Sanders ousara esperar. Levantou ele a menina nos braços e transportou-a para o barco. Em certo ponto, ouviu atrás de si um ruído de passos; mas de lá do Zaire detonaram três carabinas e os passos foram substituídos por gritos de dor.

Subiu, com o cadáver nos braços, a prancha que levava de terra firme para o Zaire, e depositou, reverentemente, aqueles despojos mortais no convés da popa. Contaram-lhe, então, que a mulher do missionário também já tinha morrido, e ele meneou a cabeça lentamente, declarando que assim fora melhor.

O pequeno vapor foi empurrado para o meio da corrente, e Sanders ficou observando dali a aldeia, com a maior atenção. Tinha ganas de apoderar-se do soba dos Lulungos. Queria, com a cólera mais fria, amarrá-lo em estacas, à maneira de uma águia de asas espalmadas, e matá-lo a fogo lento.

Mas o caudilho dos Lulungos, acompanhado por muitos dos seus guerreiros sobreviventes à refrega, homiziara-se na floresta, a qual ia dar no território francês, onde ele e o seu povo podiam ainda refugiar-se.

Ao cair da tarde, assistiu Sanders ao enterro dos corpos do missionário, esposa e filha, numa ilhota que ficava bem no meio da caudal. Desceu, depois, a corrente, levando na alma uma fúria insopitável e, ao mesmo tempo, uma desoladora sensação de impotência, pois que não lhe era possível combater toda uma nação de selvagens com duas dúzias de soldados Houssas.

Já se adensava a escuridão do crepúsculo, quando o Zaire chegou a um depósito de lenha. Ali ancorou, para passar a noite. Pela manhã, recomeçou a viagem, e, ao meio-dia, sem o menor aviso, deu de encontro com o grosso de uma flotilha de guerra.

Não podia haver engano algum quanto à finalidade das cem canoas, que vinham vagarosamente corrente acima, quatro a quatro, remadas compassadamente, com a regularidade de máquinas aperfeiçoadas. A linha direita era ocupada pelas pirogas dos Akasavas, o que facilmente se lhes reconhecia pela forma dos beques.A linha esquerda era formada pelas canoas dos Ochoris, listradas de vermelho. Ao centro, em igaras mais leves, porém de fabricação menos tosca, lobrigou o comandante inglês os rostos pintados dos guerreiros de Isisi.

— Em nome dos céus, parai! — bradou Sanders, de sobrolhos erguidos, aos primeiros homens que lhe chegaram ao alcance da voz.

Houve na esquadrilha uma visível consternação. As suas linhas irregulares ondeavam e quebravam-se, pois o Zaire penetrou no meio delas. Sanders fez então parar as máquinas e convocou imediatamente para uma conferência a bordo do seu barco todos os chefes dos guerreiros da flotilha.

— Que vergonha é esta que estais praticando? — perguntou-lhes o comandante inglês.

Otako, rei dos Isisis e o decano de todos aqueles sobas, olhou desconsoladamente para Ebeni, chefe dos Akasavas. Mas foi Bosambo, o usurpador do governo dos Ochoris, quem primeiro falou.

— Senhor, — disse ele, — quem é que poderá escapar ao olhar vigilante de Sândi? Vede! Nós supúnhamos que estivésseis a muitas milhas de distância daqui. À semelhança da coruja, porém...

Sanders interrompeu-o, perguntando-lhe:

— Aonde é que vão?

— Senhor, não o enganaremos! — replicou-lhe Bosambo. — Estes grandes chefes são todos meus irmãos, porque os Lulungos invadiram as nossas aldeias e fizeram-nos muito mal, espalhando por toda parte mortes e incêndios, depredando as nossas cabanas e roubando-nos criações e mulheres. Portanto, visto havermos todos nós sofrido igualmente deles e sermos um todo só no infortúnio, resolvemos castigar o povo mau de Lulungo. Senhor, nós somos humanos e nossos corações estão muito feridos!

Um riso sardônico, mau e triste, irrompeu dos lábios do comandante inglês.

— E vocês vão também levar incêndios e mortes ao povo de Lulungo? — perguntou ele a Bosambo.

— Senhor, retrucou-lhe o cacique dos Ochoris, — era o prazer com que contávamos, antes de encontrar-vos aqui!

— Vão queimar-lhes a aldeia, assassinar-lhes o chefe e dispersar por toda parte o povo que ora se oculta na selva?

— Senhor, — afirmou Bosambo, — ainda que se escondam no inferno, lá mesmo iremos encontrá-los! Todavia, se vós, que sois o mesmo que um pai para todos nós, nos disserdes que "não!", iremos prontamente reunir os nossos guerreiros e lhes diremos que nos proibistes a justa vingança.

Sanders pensou, então, nos três túmulos novos, que foram abertos numa ilhazinha do Isisi, e disse-lhes, apontando para o rio acima:

— Vão!

Ficou de pé, na coberta do Zaire. Dali viu sumir-se a última canoa na curva do rio e escutou a celeuma de muitas vozes, que se iam tornando cada vez mais fracas, cada vez mais fracas... Estavam acabando de entoar o "Canto-dos-Bravos", tal como fazem sempre os Isisis, antes de travarem peleja.

 

                                                                                            Edgar Wallace

 

 

                      

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