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Planeta Criança



Poesia & Contos Infantis

 

 

 


BOUVARD E PÉCUCHET / Gustave Flaubert
BOUVARD E PÉCUCHET / Gustave Flaubert

                                                                                                                                                   

                                                                                                                                                  

 

Biblio VT

 

 

 

 

Com um calor de trinta e três graus, o bulevar Bourdon estava absolutamente deserto.

Mais abaixo, o canal Saint-Martin, fechado pelas duas comportas, estendia em linha reta sua água cor de tinta.
No meio estava um barco carregado de madeira, e na margem duas fileiras de barris.
Além do canal, entre as casas separadas por estaleiros, o grande céu puro recortava-se em chapas de azul-ultramarino e, sob a reverberação do sol, as fachadas brancas, os telhados de ardósia, os cais de granito cegavam de tanto brilho. Um rumor confuso subia de longe na atmosfera morna e tudo parecia entorpecido pela ociosidade do domingo e pela tristeza dos dias de verão.
Dois homens apareceram.
Um vinha da Bastilha, outro do Jardim Botânico.
O mais alto, vestido de algodão, caminhava de chapéu caído para trás, colete desabotoado e gravata na mão. O mais baixo, cujo corpo desaparecia sob a sobrecasaca marrom, vinha de cabeça baixa sob um boné de pala pontuda.
Quando chegaram no meio do bulevar, sentaram-se ao mesmo tempo no mesmo banco.
Para limpar a testa, tiraram os chapéus, que pousaram junto de si; e o baixinho viu escrito no chapéu do vizinho “Bouvard”, enquanto este distinguia facilmente no boné do sujeito de sobrecasaca a palavra “Pécuchet”.
— Olha! — disse ele — tivemos a mesma ideia, mandar gravar nossos nomes nos chapéus.
— Foi mesmo! É que podiam levar o meu no escritório!
— O mesmo comigo, sou empregado.
Então se encararam.
O aspecto amável de Bouvard encantou logo Pécuchet.

 


 


Seus olhos azulados, sempre semicerrados, sorriam em seu rosto corado. A calça com uma grande pala de proteção na frente, que afinava embaixo sobre sapatos de couro de castor, moldavam seu ventre, fazendo inchar a camisa na cintura; e os cabelos louros, naturalmente ondulados em leves caracóis, davam-lhe algo de infantil.

Soprava pela ponta dos lábios uma espécie de constante assobio.

O ar grave de Pécuchet impressionou Bouvard.

Parecia que usava peruca, com aquelas madeixas negras que lhe ornamentavam o crânio alto. O rosto parecia estar sempre de perfil, por causa do nariz que lhe vinha até muito embaixo. As pernas, enfiadas em canudos de lasting, eram desproporcionadas relativamente ao comprimento do tronco; e tinha uma voz forte, cavernosa.

Escapou-lhe esta exclamação: — Que bem que se estaria no campo!

Mas os arredores, segundo Bouvard, eram tediosos devido à algazarra dos casas de pasto. Pécuchet pensava o mesmo. Mas começava a sentir-se cansado da capital, e Bouvard também.

E os olhos de ambos vagueavam por montes de pedra de construção, pela água repugnante onde flutuava um molho de palha, pela chaminé de uma fábrica que se erguia no horizonte; evolavam-se miasmas de esgoto. Viraram-se para o outro lado. Tiveram então diante de si as paredes do Celeiro Público.

Não havia dúvida (e Pécuchet se admirava) de que ainda se sentia mais calor na rua do que em casa!

Bouvard o animou a despir a sobrecasaca. Era-lhe indiferente o que os outros diziam!

De repente, um bêbado atravessou em ziguezague a calçada e, a propósito dos operários, encetaram uma conversa política. Tinham as mesmas opiniões, embora Bouvard fosse talvez mais liberal.

Um ruído de ferros soou na calçada, num turbilhão de poeira. Eram três caleças de aluguel que partiam para Bercy, levando uma noiva com seu buquê de flores, burgueses de gravata branca, damas enfiadas nas saias até os sovacos, duas ou três meninas, um colegial. A visão deste casamento levou Bouvard e Pécuchet a falarem das mulheres — que declararam frívolas, rabugentas, obstinadas. Apesar disso, eram muitas vezes melhores que os homens; outras vezes eram piores. Em suma, mais valia viver sem elas: por isso Pécuchet se deixara ficar solteiro.

— Sou viúvo — disse Bouvard — e sem filhos!

— Talvez seja uma sorte... — Mas a solidão, com o tempo, era bem triste.

Depois, na beira do cais, apareceu uma mulher da vida com um soldado. Pálida, de cabelos negros e com marcas de bexigas, apoiava-se no braço do militar, arrastando os chinelos e balançando as ancas.

Quando ela se afastou, Bouvard permitiu-se uma reflexão obscena. Pécuchet fez-se muito vermelho e, decerto para evitar responder, apontou-lhe com o olhar um padre que avançava.

O eclesiástico desceu lentamente a avenida dos magros olmeiros que lhe pontuavam o passeio e Bouvard, logo que deixou de ver o tricórnio, declarou-se aliviado porque execrava os jesuítas. Pécuchet, sem os absolver, mostrou alguma deferência pela religião.

Entretanto caía o crepúsculo, e tinham sido erguidas algumas persianas em frente. Os transeuntes tornaram-se mais numerosos. Soaram as sete horas.

As palavras fluíam-lhes inesgotavelmente, as observações sucediam-se às anedotas, os bosquejos filosóficos às considerações individuais. Disseram mal dos engenheiros das Pontes e Calçadas, da Manufactura dos Tabacos, do comércio, dos teatros, da nossa marinha e de todo o gênero humano, como pessoas que sofreram grandes dissabores.

Cada um, ao ouvir o outro, reencontrava partes esquecidas de si mesmo; e embora tivessem passado a idade das emoções ingênuas, sentiam um prazer novo, uma espécie de desafogo, o encanto das ternuras no seu início.

Vinte vezes se tinham erguido e tinham tornado a se sentar, e haviam feito toda a extensão do bulevar desde a comporta de montante até a comporta de jusante, sempre querendo se despedir mas sem forças para isso, retidos por uma espécie de fascínio.

Mas iam se separar, e estavam apertando as mãos quando Bouvard disse de repente: — Ora, e se jantássemos juntos?

— Já tinha essa ideia! — replicou Pécuchet — Mas não me atrevia a propor!

E deixou-se levar para um pequeno restaurante em frente ao Hôtel de Ville onde se estaria bem.

Bouvard encomendou a refeição.

Pécuchet receava as especiarias que lhe podiam incendiar o corpo, o que foi objeto de uma discussão médica.

Em seguida, glorificaram as vantagens das ciências: quantas coisas havia para conhecer! Quantas investigações — se para elas houvesse tempo! Infelizmente, o ganha-pão tomava-o todo; e ergueram os braços de espanto, quase se abraçaram por cima da mesa, ao descobrir que eram ambos escriturários, Bouvard numa casa de comércio, Pécuchet no Ministério da Marinha — o que não o impedia de consagrar, todas as tardes, alguns momentos ao estudo. Notara erros na obra do Sr. Thiers e falou com o maior respeito de um tal professor Dumouchel.

Bouvard adiantava-se em outros aspectos. A sua corrente de relógio de trança fina e a maneira como batia o molho remoulade denunciavam um velho gaiteiro cheio de experiência; e enfiava a ponta do guardanapo no sovaco, enquanto debitava coisas que faziam rir Pécuchet. Era um riso especial, uma só nota muito baixa, sempre a mesma, lançada com longos intervalos. O de Bouvard era contínuo, sonoro, descobria-lhe os dentes, sacudia-lhe os ombros, e os clientes à porta viravam-se naquela direção.

Acabada a refeição, foram tomar café em outro estabelecimento. Pécuchet, contemplando os bicos de gás, lamentou os excessos de luxo e depois, com um gesto desdenhoso, afastou os jornais. Bouvard era mais indulgente. Gostava de todos os escritores em geral, e tivera na juventude predisposições para ator!

Quis fazer sortes de equilíbrio com um taco de bilhar e duas bolas de marfim, como as executava Barberou, um amigo seu. As bolas caíam invariavelmente e, rolando pelo chão por entre as pernas das pessoas, iam perder-se ao longe.

O criado que de todas as vezes se levantava para buscá-las, de quatro embaixo dos bancos, acabou por se queixar.

Pécuchet discutiu com ele; veio o dono do bar, mas não aceitou as desculpas e até contestou a conta.

Propôs em seguida que terminassem a noite pacificamente em sua casa, que era perto, na rua Saint-Martin.

Mal entrou, enfiou uma espécie de guarda-pó e fez as honras do quarto.

Havia uma mesa de pinho bem no meio, de cantos incômodos, e em redor, em prateleiras, em cima das três cadeiras, na velha poltrona e pelos cantos da casa encontravam-se em desordem vários volumes da Enciclopédia Roret, do Manual do Magnetizador, um Fénelon e outros livros — com montes de papelada, dois cocos, medalhas diversas, um barrete turco — e conchas, trazidas do Havre por Dumouchel. Uma camada de poeira aveludava as paredes outrora pintadas de amarelo. A escova dos sapatos jazia na beira da cama de lençóis pendentes. Via-se no teto uma grande mancha negra produzida pela fumaça do candeeiro.

Bouvard, decerto por causa do cheiro, pediu licença para abrir a janela.

— Não, os papéis voariam! — exclamou Pécuchet, que temia, além disso, as correntes de ar.

Contudo, ofegava naquele quartinho aquecido desde manhã pelas ardósias do telhado.

Bouvard disse: — Se fosse eu, tiraria a camisa interior!

— Ora essa — e Pécuchet baixou a cabeça, assustado com a hipótese de tirar seu colete de salvação.

— Acompanhe-me a minha casa — continuou Bouvard —, o ar lá fora vai refrescá-lo.

Por fim Pécuchet tornou a enfiar as botas, resmungando: — O senhor me enfeitiça, palavra de honra! — e, apesar da distância, acompanhou-o à casa, na esquina da rua Béthune, diante da ponte de Tournelle.

O quarto de Bouvard, bem encerado, com cortinas de percal e móveis de acaju, desfrutava de uma varanda com vista para o rio. Os dois ornamentos principais eram uma licoreira no meio da cômoda e, ao longo do espelho, daguerreótipos que representavam amigos; uma pintura a óleo ocupava a alcova.

— O meu tio! — disse Bouvard, e a vela que segurava iluminou um cavalheiro.

Suíças ruivas alargavam seu rosto, encimado por um tapete ondulado na ponta. A sua gravata alta, com o colarinho triplo da camisa, do colete de veludo e da casaca preta, faziam-lhe parecer ter o pescoço enterrado nos ombros.

Tinham-lhe representado diamantes nos bofes da camisa.

Os olhos eram repuxados para as maçãs do rosto e sorria com um arzinho malicioso.

Pécuchet não pôde deixar de dizer: — Mais parece ser seu pai!

— É meu padrinho — replicou Bouvard, negligentemente, acrescentando que os seus nomes de batismo eram François, Denys, Bartholomée. Os de Pécuchet eram Juste, Romain, Cyrille. E tinham a mesma idade: quarenta e sete anos! Esta coincidência agradou-lhes; mas surpreendeu-os, pois cada um julgara o outro muito menos jovem. Depois, admiraram a Providência cujas combinações são por vezes maravilhosas. — É que, enfim, se não tivéssemos saído há bocado para passear, poderíamos morrer sem nos conhecermos! — E, depois de trocarem os endereços dos respectivos patrões, desejaram-se mutuamente boas-noites.

— Não vá às meninas! — gritou Bouvard na escada.

Pécuchet desceu os degraus sem responder à brejeirice.

No dia seguinte, no pátio dos Srs. Descambos irmãos — tecidos da Alsácia, rua Hautefeuille, 92 — uma voz gritou:

— Bouvard! Senhor Bouvard!

Este enfiou a cabeça pela janela e reconheceu Pécuchet, que silabou mais alto.

— Não estou doente! Tirei-a!

— Tirou o quê?

— Aquilo! — disse Pécuchet, apontando para o peito.

Todas as conversas do dia, mais a temperatura do apartamento e os labores da digestão, não o tinham deixado dormir, de tal modo que, não aguentando mais, despira a camisa interior. De manhã, recordara-se do seu ato felizmente sem consequências e vinha comunicá-lo a Bouvard, que, por este fato, foi colocado na sua estima a uma prodigiosa altura.

Era filho de um pequeno comerciante e não conhecera a mãe, que morrera muito nova. Aos quinze anos tinham-no tirado do colégio interno para o porem a trabalhar com um oficial de diligências. Os guardas apareceram lá e o patrão foi mandado para as galés, uma história cruel que ainda o aterrorizava. Em seguida, tentara várias profissões, vigilante de estudos, praticante de farmácia, contabilista num dos paquetes do alto Sena. Por fim, um chefe de repartição seduzido pela sua letra contratara-o como copista; mas a consciência de uma instrução defeituosa, com as necessidades de espírito que ela lhe dava, irritavam-lhe o humor; e vivia completamente só, sem pais e sem amante. A sua distração era, ao domingo, passar revista às obras públicas.

As mais antigas recordações de Bouvard levavam-no às margens do Loire, a um pátio de fazenda. Um homem que era seu tio trouxera-o para Paris para lhe ensinar comércio. Na maioridade pagaram-lhe uns milhares de francos.

Então tomara mulher e abrira uma loja de confeiteiro. Seis meses mais tarde, a esposa desaparecia, levando a caixa.

Os amigos, a boa mesa e sobretudo a preguiça haviam prontamente consumado a sua ruína. Mas teve a inspiração de utilizar a sua bela letra, e nos últimos doze anos mantinha-se no mesmo lugar, em casa dos Srs. Descambos irmãos, rua Hautefeuille, 92. Quanto ao tio, que em tempos lhe mandara como recordação o famoso retrato, Bouvard ignorava até seu endereço e já não esperava nada dele.

Quinhentas libras de rendimento e os seus vencimentos de escriturário permitiam-lhe ir todas as noites dormitar num botequim.

Assim, o encontro dos dois tivera a importância de uma aventura. Tinham-se desde logo agarrado um ao outro por fibras secretas. De resto, como explicar as simpatias? Por que determinada particularidade, uma certa imperfeição indiferente ou odiosa numa pessoa, encanta noutra pessoa? Aquilo a que se chama amor à primeira vista vale para todas as paixões. Antes do fim dessa semana tratavam-se por tu.

Era frequente irem procurar-se um ao outro nos respectivos escritórios. Logo que um aparecia, o outro fechava a sua carteira e saíam juntos para a rua. Bouvard caminhava a grandes pernadas, enquanto Pécuchet, multiplicando os passos, com a sobrecasaca batendo nos calcanhares, parecia deslizar sobre patins. Também seus gostos específicos se harmonizavam. Bouvard fumava cachimbo, gostava de queijo, tomava regularmente seu copinho. Pécuchet cheirava rapé, só comia compotas na sobremesa e molhava um torrão de açúcar no café. Um era confiante, irrefletido, generoso. O outro, discreto, meditativo, poupado.

Para lhe ser agradável, Bouvard quis que Pécuchet conhecesse Barberou. Era um antigo caixeiro-viajante, atualmente empregado na Bolsa, muito bom rapaz, patriota, amador de mulheres, que imitava a linguagem dos arrabaldes.

Pécuchet achou-o desagradável e levou Bouvard a casa de Dumouchel. Este autor (porque publicara uma pequena mnemotecnia) dava lições de literatura num internato tinha opiniões ortodoxas e aparência grave. Aborreceu Bouvard.

Nenhum dos dois ocultara ao outro a sua opinião.

Ambos reconheceram as respectivas razões. Os seus hábitos mudaram; e, deixando as suas pensões burguesas, acabaram por jantar juntos todos os dias.

Emitiam reflexões sobre as peças de teatro de que se falava, sobre o governo, a carestia dos víveres, as fraudes do comércio. De tempos a tempos a história do Colar ou o processo de Fualdes vinha à baila nas suas conversas; depois, investigavam as causas da Revolução.

Planavam pelas lojas de velharias. Visitaram o Conservatório das Artes e Ofícios, Saint-Denis, os Gobelins, os Invalides e todas as coleções públicas. Quando lhes pediam os passaportes fingiam tê-los perdido, porque se apresentavam como dois estrangeiros, dois ingleses.

Nas galerias do Muséum, passaram estupefatos diante dos quadrúpedes empalhados, com prazer diante das borboletas, com indiferença diante dos metais; os fósseis fizeram-nos sonhar, a conquiliologia aborreceu-os. Examinaram as estufas através das vidraças e estremeceram ao pensar que todas aquelas folhagens destilavam venenos. O que admiraram do cedro foi o ter sido trazido num chapéu.

No Louvre esforçaram-se por se entusiasmar com Rafael. Na grande biblioteca desejaram saber o número exato dos volumes.

Uma vez entraram no curso de Árabe do Colégio de França; e o professor ficou espantado por ver aqueles dois desconhecidos que tratavam de tomar notas. Graças a Barberou, penetraram nos bastidores de um pequeno teatro.

Dumouchel arranjou-lhes bilhetes para uma sessão na Academia. Informavam-se acerca das descobertas, liam os prospectos e, com esta curiosidade, as suas inteligências desenvolveram-se. Ao fundo de um horizonte todos os dias mais longínquo distinguiam coisas simultaneamente confusas e maravilhosas.

Ao admirar um velho móvel, lamentavam não ter vivido na época em que ele era utilizado, embora ignorassem em absoluto que época fosse. A partir de certos nomes imaginavam países, tanto mais belos quanto nada neles podiam definir. As obras cujos títulos lhes eram ininteligíveis pareciam-lhes conter um mistério.

E ao ter mais ideias tiveram mais sofrimentos. Quando se cruzavam com uma mala-posta na rua, sentiam a necessidade de partir com ela. O cais das Flores fazia-os suspirar pelo campo.


Um domingo puseram-se a caminho logo de manhã; e, passando por Meudon, Bellevue, Suresnes, Auteuil, ao longo de todo o dia vagabundearam entre os vinhedos, arrancaram papoilas à beira dos campos, dormiram deitados na erva, beberam leite, comeram debaixo das acácias das casas de pasto e regressaram muito tarde, empoeirados, encantados. Repetiram frequentes vezes estes passeios, mas os dias seguintes eram tão tristes que acabaram por desistir.

A monotonia do escritório tornava-se-lhes odiosa. Sempre a raspadeira e a sandáraca, o mesmo tinteiro, as mesmas penas e os mesmos colegas! A estes, consideravam-nos estúpidos e falavam-lhes cada vez menos; o que lhes valeu má vontade. Chegavam todos os dias atrasados e foram alvo de admoestações.

Antes se sentiam quase felizes. Mas a sua profissão humilhava-os desde que se tinham em melhor conta; e reforçavam-se nesta repugnância, exaltavam-se mutuamente, eram indulgentes consigo mesmos. Pécuchet foi contagiado pela aspereza de maneiras de Bouvard, Bouvard contraiu algo da melancolia de Pécuchet.

— Queria ser saltimbanco de praça pública! — dizia um.

— Antes ser trapeiro — exclamava outro.

Que situação abominável! E não havia maneira de saírem dali! Nem sequer esperança!

Uma tarde (era o dia 20 de janeiro de 1839), estava Bouvard em sua escrivaninha quando recebeu uma carta trazida pelo correio.

Ergueu os braços, a cabeça descaía-lhe para trás a pouco e pouco, e caiu desfalecido no lajedo.

Os amanuenses precipitaram-se; tiraram-lhe a gravata; mandaram chamar um médico.

Reabriu os olhos — e depois, às perguntas que lhe dirigiam: — Ah!... é que... é que... com um pouco de ar isso passa. Não! Deixem-me! Com licença! — e, apesar da sua corpulência, correu num só fôlego até o Ministério da Marinha, passando a mão pela testa, julgando endoidecer, tentando acalmar-se.

Perguntou por Pécuchet.

Pécuchet apareceu.

— O meu tio morreu! Sou o herdeiro!

— Não é possível!

Bouvard mostrou as linhas seguintes:

 

CARTÓRIO DO DR. TARDIVEL, NOTÁRIO.

Savigny-en-Septaine, 14 de Janeiro de 39.

Caro senhor,

Solicito-lhe que compareça no meu cartório para tomar conhecimento do testamento de seu pai natural Sr. François Denys Bartholomée Bouvard, ex-negociante na cidade de Nantes, falecido nesta comuna a 10 do corrente mês. Esse testamento contém em seu favor uma disposição muito importante.

Queira aceitar, caro senhor, a expressão do meu respeito.

TARDIVEL, notário.

 


Pécuchet foi obrigado a sentar-se num marco do pátio.

Depois devolveu o papel dizendo lentamente: — Oxalá... não seja... uma partida...

— Achas que é uma partida! — respondeu Bouvard numa voz estrangulada, semelhante ao estertor de um moribundo.

Mas o selo do correio, o nome do cartório em caracteres impressos, a assinatura do notário, tudo provava a autenticidade da notícia; e olharam um para o outro com um tremor ao canto da boca e uma lágrima que lhes rolava nos olhos fixos.

Faltava-lhes espaço. Foram até o Arco do Triunfo, regressaram pela beira da água, foram além de Notre-Dame.

Bouvard estava muito vermelho. Deu a Pécuchet punhadas nas costas e durante cinco minutos desarrazoou completamente.

Recusavam-se a acreditar. Aquela herança, é claro, devia ser coisa para..? — Ah! seria bom demais, não falemos mais nisso. — E voltavam a falar.

Nada impedia que se pedissem já explicações. Bouvard escreveu ao notário para as obter.

O notário enviou a cópia do testamento, que terminava assim: “Em consequência, lego a François Denys Bartholomée Bouvard, meu filho natural reconhecido, a porção dos meus bens disponíveis segundo a lei.”

O homenzinho tivera aquele filho na sua juventude, mas mantivera-o à distância cuidadosamente, fazendo-o passar por sobrinho; e o sobrinho sempre lhe tinha chamado tio, embora sabendo pôr-se no seu lugar. Por volta dos quarenta, o Sr. Bouvard casara-se e depois enviuvara. Como os seus dois filhos legítimos tinham evoluído contra os seus desejos, fora tomado de remorsos pelo abandono a que havia tantos anos votava o seu outro filho. Se não fosse a influência da cozinheira, até o teria mandado ir para sua casa. A cozinheira deixou-o graças às manobras da família — e no seu isolamento, perto da morte, quis reparar os seus erros legando ao fruto dos seus primeiros amores tudo o que podia da sua fortuna. Elevava-se esta a metade de um milhão, o que dava para o escriturário duzentos e cinquenta mil francos.

O mais velho dos irmãos, o Sr. Étienne, anunciara que respeitaria o testamento.

Bouvard caiu numa espécie de idiotia. Repetia em voz baixa, sorrindo o sorriso pacífico dos bêbados: — “Quinze mil libras de rendimento!” E Pécuchet, apesar de ser mais forte de cabeça, não queria acreditar.

Foram bruscamente abalados por uma carta de Tardivel. O outro filho, o Sr. Alexandre, declarava a sua intenção de tudo resolver perante a justiça, e até de atacar o legado se pudesse, exigindo previamente selos, inventário, nomeação de um fiel depositário, etc.! Com isto Bouvard teve uma doença biliosa. Ainda convalescente, partiu para Savigny — de onde regressou sem qualquer espécie de conclusão e deplorando as despesas da viagem.

Depois foram insônias, alternativas de cólera e de esperança, de exaltação e de abatimento. Por fim, passados seis meses, apaziguado o Sr. Alexandre, Bouvard entrou de posse da herança.

A sua primeira exclamação foi: — “Vamos nos retirar para o campo!” E esta frase, que ligava o amigo à sua felicidade, achara-a Pécuchet muito simples. Porque a união daqueles dois homens era absoluta e profunda.

Mas como não queria viver à custa de Bouvard, não iria antes da sua reforma. Mais dois anos; não tinha importância! Permaneceu inflexível e assim ficou decidido.

Para descobrir onde iriam instalar-se passaram em revista todas as províncias. O Norte era fértil mas excessivamente frio, o Sul tentador pelo seu clima mas incômodo devido aos mosquitos, e o Centro, francamente, nada tinha de curioso. A Bretanha poderia convir-lhes se não fosse o espírito beato dos seus habitantes. Quanto às regiões do Leste, nem se pensava nisso por causa do patoá germânico.

Mas havia outras regiões. Por exemplo, que tal o Forez, o Bugey, o Roumois? As cartas geográficas não diziam nada a este respeito. De resto, fosse a casa deles aqui ou ali, o que importava é que iriam ter uma.

Já se viam em mangas de camisa, junto de um canteiro, podando roseiras e cavando, sachando, apalpando a terra, transplantando tulipas. Despertariam com o canto das calhandras para irem andar atrás das charruas, iriam com um cesto colher maçãs, veriam fazer manteiga, debulhar trigo, tosquiar ovelhas, cuidar das colmeias, e haviam de se deleitar com o mugir das vacas, com o aroma do feno cortado. Adeus escriturações! Adeus chefes! Adeus, até, prazos de pagamento! Porque iriam ter casa própria! E comeriam as galinhas da sua capoeira, os legumes da sua horta e jantariam de tamancos calçados! — “Faremos tudo o que nos apetecer! Deixaremos crescer a barba!”

Compraram instrumentos hortícolas e depois uma quantidade de coisas “que talvez pudessem vir a servir”, como uma caixa de ferramentas (tem sempre que haver uma numa casa), e também balanças, uma cadeia de agrimensor, uma banheira para o caso de adoecerem, um termômetro, e até um barômetro “sistema Gay-Lussac” para experiências de física, se lhe desse tal fantasia. Também não estaria mal (porque nem sempre se pode trabalhar ao ar livre) ter algumas boas obras de literatura; e procuraram-nas, muito embaraçados às vezes por não saber se determinado livro “era verdadeiramente um livro de biblioteca”. Bouvard decidia a questão.

— Ora! Não vamos precisar de uma biblioteca.

— De resto, eu tenho a minha — dizia Pécuchet.

Organizavam-se antecipadamente. Bouvard levaria os seus móveis, Pécuchet a sua grande mesa preta; tirariam partido das cortinas e, com alguma bateria de cozinha, seria mais do que suficiente. Tinham jurado a si mesmos calar tudo aquilo; mas estavam radiantes. Por isso, os colegas achavam-nos “esquisitos”. Bouvard, que escrevia estendido sobre a carteira com os cotovelos de fora para melhor arredondar a letra bastarda, soltava a sua espécie de assobio enquanto piscava as pálpebras pesadas com um ar malicioso.

Pécuchet, empoleirado num grande banco de palha, continuava a cuidar das pernas da sua escrita comprida — mas, inchando as narinas, apertava os lábios, como se tivesse receio de soltar o seu segredo.


Após dezoito meses de pesquisas, nada tinham encontrado. Fizeram viagens a todos os arredores de Paris, e desde Amiens até Évreux, e de Fontainebleau até o Havre. Queriam um campo que fosse campo mesmo, sem insistir exatamente num local pitoresco, mas um horizonte limitado os entristecia. Fugiam da vizinhança das casas, e contudo temiam a solidão. Às vezes decidiam-se e depois, receando arrepender-se mais tarde, mudavam de opinião, pois o lugar lhes parecera malsão, ou exposto ao vento do mar, ou excessivamente próximo de uma fábrica, ou de acesso difícil.

Barberou salvou-os.

Conhecia o sonho deles e um belo dia veio dizer-lhes que lhe tinham falado de uma propriedade em Chavignolles, entre Caen e Falaise. Consistia numa propriedade de trinta e oito hectares com uma espécie de solar e uma horta em pleno rendimento. Foram até Calvados e ficaram entusiasmados, simplesmente, pela fazenda e pela casa (não se vendia uma sem a outra). Exigiam cento e quarenta e três mil francos. Bouvard só dava cento e vinte mil.

Pécuchet combateu sua obstinação, rogou-lhe que cedesse, e por fim declarou que completaria o que faltava.

Era toda a sua fortuna, proveniente do patrimônio da mãe e das suas economias. Nunca dissera uma palavra a esse respeito, reservando aquele capital para uma grande ocasião.

Tudo foi pago por volta de 1840, seis meses antes de sua aposentadoria.

Bouvard já não era escriturário. De início mantivera-se nas suas funções por não se fiar no futuro, mas tinha se demitido logo que se certificara da herança. No entanto, voltava frequentemente aos Senhores Descambos, e na véspera da sua partida ofereceu um punch a todo o escritório.

Pécuchet, pelo contrário, foi desagradável com os colegas e saiu no último dia batendo brutalmente a porta.

Tinha que vigiar as embalagens, fazer uma série de recados, mais compras, e despedir-se de Dumouchel!

O professor propôs-lhe um comércio epistolar em que o manteria ao corrente da Literatura; e, após novas felicitações, desejou-lhe boa saúde. Barberou mostrou-se mais sensível ao receber as despedidas de Bouvard. Abandonou de propósito uma partida de dominó, prometeu ir visitá-lo, mandou vir duas anisetas e abraçou-o.

Bouvard, ao regressar a casa, aspirou à varanda uma larga golfada de ar, dizendo de si para si: “Até que enfim.”

As luzes dos cais tremiam na água, o rolar dos ônibus, ao longe, atenuava-se. Recordou-se dos dias felizes passados naquela grande cidade, das comezainas nos restaurantes, das noites no teatro, dos mexericos da porteira, de todos os seus hábitos; e sentiu um desfalecimento de coração, uma tristeza que não se atrevia a confessar a si mesmo.

Pécuchet passeou pelo quarto até as duas da manhã.

Nunca mais voltaria ali: tanto melhor! Contudo, para deixar alguma coisa sua, gravou o seu nome no gesso da chaminé.

O maior da bagagem partira na véspera. Os instrumentos hortícolas, os catres, os colchões, as mesas, as cadeiras, um calorífero, a banheira e três barris de borgonha iriam pelo Sena até o Havre, e daí seriam remetidos a Caen, onde Bouvard os esperaria e faria chegar a Chavignolles.

Mas o retrato do pai, os cadeirões, a licoreira, os livros, o relógio, todos os objetos preciosos foram metidos num carro de mudanças que iria por Nonancourt, Verneuil e Falaise. Pécuchet quis acompanhá-lo.

Instalou-se na boleia junto do condutor, e, com a sua mais velha sobrecasaca, um lenço de pescoço, mitenes e a sua escalfeta de escritório, no domingo, 20 de Março, ao romper da manhã, saiu da Capital.

O movimento e a novidade da viagem ocuparam-no nas primeiras horas. Depois, os cavalos afrouxaram o andamento, o que ocasionou discussões com o condutor e o carreiro. Escolhiam execráveis estalagens e, embora respondessem por tudo, Pécuchet, por excesso de prudência, dormia nas mesmas pousadas. No dia seguinte tornavam a partir de madrugada; e a estrada, sempre a mesma, alongava-se, subindo, até a beira do horizonte. Os metros pedregosos sucediam-se, os valados estavam cheios de água, o campo estendia-se em grandes superfícies de um verde monótono e frio, corriam nuvens no céu, de tempos a tempos chovia.

No terceiro dia levantaram-se borrascas. O encerado do carro, mal preso, estalava ao vento como a vela de um navio.

Pécuchet baixava a cara debaixo do boné e, de cada vez que abria a sua tabaqueira, tinha, para defender os olhos, de se voltar completamente. Nos solavancos ouvia oscilar atrás de si toda a sua bagagem e prodigalizava recomendações. Vendo que estas não serviam de nada, mudou de táctica; fez-se bonacheirão, cheio de condescendências; nas subidas penosas, empurrava à roda com os homens; chegou até a pagar-lhes o ponche depois das refeições. A partir daí eles andavam mais lestamente, e tanto que, nas imediações de Gauburge, o eixo se partiu e a carroça ficou inclinada. Pécuchet revistou imediatamente o interior; as xícaras de porcelana jaziam em pedaços. Ergueu os braços, rangendo os dentes, e amaldiçoou aqueles dois imbecis; e o dia seguinte foi um dia perdido, por causa do carreiro que se emborrachou; mas não teve forças para se queixar, pois a taça da amargura estava cheia.

Bouvard só saíra de Paris dois dias depois dele, para jantar mais uma vez com Barberou. Chegou ao pátio das recovagens no último minuto e depois acordou diante da catedral de Rouen; tinha-se enganado na diligência.

Nessa noite todos os lugares em Caen estavam tomados; não sabendo o que fazer, foi ao Teatro das Artes, e sorria para os seus vizinhos, dizendo que estava retirado dos negócios e adquirira recentemente uma propriedade nas redondezas. Quando desembarcou na sexta-feira em Caen não estavam lá os seus balotes. Recebeu-os no domingo e enviou-os numa carroça, depois de prevenir o caseiro de que seguiria atrás deles com algumas horas de diferença.

Em Falaise, no nono dia da sua viagem, Pécuchet tomou um cavalo de reforço, e até o pôr-do-sol andou-se bem.

Para lá de Bretteville, depois de sair da estrada principal, entraram por um atalho, julgando ver a cada minuto o frontão de Chavignolles. Mas os trilhos apagavam-se, desapareceram, e deram consigo no meio de campos lavrados. A noite caía. Que iria acontecer? Por fim, Pécuchet abandonou o carro e, patinhando na lama, avançou em frente, à aventura. Quando se aproximava das fazendas os cachorros latiam.

Ele gritava com todas as suas forças a perguntar o caminho. Ninguém respondia. Tinha medo e tornava a afastar-se. De repente brilharam duas lanternas. Distinguiu um cabriolé e lançou-se ao seu encontro. Bouvard ia lá dentro.

Onde estaria a carroça da mudança? Durante uma hora gritaram por ela nas trevas. Por fim, lá foi encontrada, e chegaram a Chavignolles.

Na sala chamejava um grande fogo de silvas e pinhas.

A mesa estava posta com dois talheres. Os móveis chegados na carroça atulhavam o vestíbulo. Nada faltava. Sentaram-se à mesa.

Tinham-lhes preparado uma sopa de cebola, um frango, toucinho e ovos cozidos. A velha que cozinhava vinha de vez em quando informar-se sobre os seus gostos. Eles respondiam: “Oh, muito bom! Muito bom!”, e o grande pão difícil de cortar, as natas, as nozes, tudo os deleitou! Os vidros tinham buracos, as paredes destilavam umidade. No entanto, passeavam à sua volta um olhar de satisfação, comendo na mesinha onde ardia uma vela. Tinham os rostos avermelhados pelo ar livre. Esticavam a barriga, apoiavam-se nas costas das cadeiras, que estalavam, e repetiam um para o outro: “Ora cá estamos! Que felicidade! Parece um sonho!”

Embora fosse meia-noite, Pécuchet teve a ideia de dar uma volta pela horta. Bouvard não se recusou. Pegaram na vela e, abrigando-a com um velho jornal, passearam ao longo dos canteiros.

Tinham prazer em nomear em voz alta os legumes: “Olha, cenouras! Ah, couves!”

Em seguida, examinaram as trepadeiras. Pécuchet procurou descobrir rebentos. Às vezes uma aranha fugia de repente pela parede — e as sombras dos seus corpos desenhavam-se, ampliadas, repetindo-lhes os gestos. As pontas das ervas gotejavam de orvalho. A noite era completamente escura; e tudo estava imóvel num grande silêncio, numa grande suavidade. Ao longe, cantou um galo.

Os seus dois quartos tinham entre si uma portinha disfarçada pelo papel de parede. Tinham acabado de lhe fazer saltar os pregos com os encontrões de uma cômoda. Deram com a porta escancarada. Foi uma surpresa.

Despidos e nas suas camas, conversaram durante algum tempo, e depois adormeceram; Bouvard de costas, de boca aberta, cabeça descoberta, Pécuchet deitado para o lado direito, com os joelhos encostados à barriga, embiocado num barrete de algodão; e ambos roncavam à luz do luar, que entrava pelas janelas.


II

Que alegria no dia seguinte ao acordarem! Bouvard fumou uma cachimbada e Pécuchet cheirou uma pitada, que declararam respectivamente as melhores das suas vidas.

Depois puseram-se à sacada, para ver a paisagem.

Tinham em frente os campos, à direita um celeiro, com o campanário da igreja — e à esquerda uma cortina de choupos.

Duas áleas principais, em cruz, dividiam a horta em quatro partes. Os legumes estavam em canteiros, onde se erguiam, aqui e ali, ciprestes anões e árvores talhadas em forma de roca. De um lado, um caramanchão acabava num cabeço com uma latada, do outro uma parede sustentava as espaldeiras; — e uma abertura gradeada, ao fundo, dava para o campo. Havia para além do muro um pomar, depois da azinhaga uma pequena mata, atrás da abertura gradeada um caminho estreito.

Contemplavam este conjunto, quando um homem de cabeleira grisalha e com um casaco preto percorreu o carreiro raspando com a bengala todos os varões do gradeamento. A velha criada informou-os de que era o Sr. Vaucorbeil, um médico famoso no distrito.

Os outros notáveis eram o conde de Faverges, que já fora deputado, e de quem se gabavam as vacarias, o presidente da Câmara, o Sr. Foureau, que vendia madeira, gesso, toda a espécie de coisas, o Sr. Marescot, notário, o padre Joufroy e a Sra. Bordin, viúva, que vivia dos rendimentos.

À criada chamavam-lhe Germaine, por causa do seu defunto marido Germain. “Fazia dias” mas gostaria de entrar ao serviço dos senhores. Aceitaram-na, e partiram para sua fazenda, situada a um quilômetro de distância.

Quando entraram no pátio, o caseiro, mestre Gouy, vociferava contra um rapaz, e a caseira, em cima de um banco, apertava entre as pernas uma perua que empanturrava com bolas de farinha. O homem tinha testa estreita, nariz fino, olhos baixos e ombros robustos. A mulher era muito loura, com as maçãs do rosto pintalgadas de sardas e aquele ar de simplicidade que se vê nos camponeses dos vitrais das igrejas.

Na cozinha havia meadas de cânhamo penduradas do teto. Três velhas espingardas alinhavam-se na alta chaminé.

Um aparador carregado de faianças floridas ocupava o meio da parede; e as vidraças de vidro de garrafa lançavam sobre os utensílios de lata e de cobre vermelho uma luz alvacenta.

Os dois parisienses queriam fazer a sua inspeção, pois só tinham visto a propriedade uma vez, e sumariamente.

Mestre Gouy e a mulher acompanharam-nos; e a litania das lamentações começou.

Todos os edifícios, desde a cocheira até a destilaria, precisavam de reparações. Era preciso construir um anexo para os queijos, pôr nas estacadas ferragens novas, levantar cercas, escavar o charco e replantar muitas macieiras nos três pátios.

Em seguida, visitaram as culturas. Mestre Gouy depreciou-as. Comiam muito estrume; os carretos eram dispendiosos, era impossível tirar dali as pedras, as ervas daninhas empestavam os prados — e este denegrimento da sua terra atenuou o prazer que Bouvard sentia em pisá-la.

Regressaram pelo barranco, sob uma avenida de faias.

Daquele lado via-se o pátio de honra e a fachada da casa.

Era pintada de branco, com vivos de cor amarela.

O telheiro e a adega, a casa do forno e o matadouro formavam duas alas mais baixas. A cozinha comunicava com uma saleta. A seguir era o vestíbulo, uma segunda sala maior e o salão. Os quatro quartos do primeiro andar abriam para o corredor, que dava para o pátio. Pécuchet ficou com um dos quartos para as suas coleções; o último foi destinado à biblioteca; e ao abrir os armários encontraram outros livros, mas não tiveram a fantasia de lhes ler os títulos. O mais urgente era a horta.

Bouvard, ao passar perto da azinhaga, descobriu debaixo dos ramos uma dama de gesso. Afastava a saia com dos dedos, de joelhos flectidos, cabeça reclinada sobre o ombro, como que temendo ser surpreendida. “Ah, Perdão! Esteja à sua vontade!” e esta brincadeira divertiu-os tanto que vinte vezes por dia, durante mais de três semanas, a repetiram.

Entretanto, os burgueses de Chavignolles desejavam conhecê-los; vinham observá-los através da grade. Taparam as aberturas com tábuas. A população ficou contrariada.

Para se defender do sol, Bouvard usava na cabeça um lenço atado em turbante e Pécuchet o seu boné; e tinha um grande avental com uma algibeira à frente, dentro da qual balançavam uma tesoura de podar, o lenço de seda e a tabaqueira. De braços nus, e lado a lado, lavravam, sachavam, podavam, impunham tarefas um ao outro, comiam o mais depressa possível; mas iam tomar café no cabeço da latada, para gozar a vista.

Se encontravam um caracol, aproximavam-se e esmagavam-no, com um trejeito do canto da boca, como ao partir uma noz. Não saíam sem a enxada — e cortavam ao meio as larvas com tal força que o ferro mergulhava três polegadas na terra. Para se livrar das lagartas, batiam as árvores com grandes golpes de vara, furiosamente.

Bouvard plantou uma peônia no meio da relva — e tomateiros que haviam de cair como lustres sob a abóbada do caramanchão.

Pécuchet mandou escavar diante da cozinha um grande buraco e dispô-lo em três compartimentos, onde fabricaria um composto que faria crescer uma data de coisas, cujos detritos trariam outras colheitas, que forneceriam outros adubos, e assim indefinidamente; e sonhava à beira da fossa, avistando no futuro montanhas de frutos, excessos de flores, avalanchas de legumes. Mas faltava-lhe o esterco de cavalo, tão útil para as fermentações. Os agricultores não o vendiam; os estalajadeiros recusaram-no. Por fim, depois de muito procurar, apesar das instâncias de Bouvard, e renunciando a qualquer pudor, tomou o partido de “ir ele mesmo à bosta!”

Foi no meio desta ocupação que a Sra. Bordin, um dia, se acercou dele na estrada principal. Depois, de o cumprimentar, perguntou-lhe pelo amigo. Os olhos negros daquela mulher, muito brilhantes embora pequenos, as suas excelentes cores, a sua segurança (tinha até um leve bigode), intimidaram Pécuchet. Respondeu brevemente e voltou costas — indelicadeza que Bouvard censurou.

Depois vieram os maus dias, a neve, os grandes frios.

Instalaram-se na cozinha e faziam entrançados de canas; ou então andavam pelos quartos, conversavam ao canto da lareira, contemplavam a chuva que caía.

A partir da terceira quinta-feira da Quaresma puseram-se à espreita da Primavera e repetiam todas as manhãs: “tudo acaba”. Mas a estação foi tardia; e consolavam a sua impaciência dizendo: “tudo vai acabar”.

Viram por fim nascer as ervilhas. Os espargos deram muito. A vinha prometia.

Já que eram entendidos em horticultura, tinham de triunfar na agricultura; e foram conquistados pela ambição de cultivar a herdade. Com bom senso e estudo não tinham dúvidas de que haviam de saber desembaraçar-se.

Primeiro, era preciso ver como os outros faziam; e redigiram uma carta em que pediam ao Sr. de Faverges a honra de visitar a sua exploração. O conde marcou-lhes imediatamente um encontro.

Após uma hora de marcha chegaram à encosta de um outeiro que domina o vale do Orne. O rio corria ao fundo, sinuosamente. Aqui e além erguiam-se blocos de greda vermelha e rochas maiores formavam ao longe como que uma falésia sobre o campo, coberto de trigos maduros. Em frente, na outra colina, a verdura era tão abundante que ocultava as casas. Era dividida por árvores em quadrados desiguais, marcados no meio das ervas por linhas mais escuras.

O conjunto da propriedade surgiu de repente. Casas cobertas de telhas indicavam a herdade. O solar de fachada branca encontrava-se à direita com um bosque mais além, e um relvado descia até o rio, onde plátanos alinhados refletiam a sua sombra.

Os dois amigos entraram num campo de luzerna que estava a ser preparada para secar. Mulheres com chapéus de palha, lenços de chita ou palas de papel levantavam com ancinhos o feno deitado no chão — e na outra ponta da planície, junto das medas, atiravam rudemente os feixes para dentro de uma carroça comprida atrelada a três cavalos.

O Sr. Conde avançou, seguido do capataz.

Tinha um traje de algodão, postura retesada e suíças em forma de costeletas, que lhe davam ao mesmo tempo o aspecto de um magistrado e de um dândi. As feições do rosto, mesmo quando falava, não se moviam.

Trocadas as primeiras fórmulas de cortesia, expôs o seu sistema relativamente às forragens; virava-se a erva segada e alinhada sem a espalhar, as medas tinham de ser cônicas e os molhos feitos logo ali e depois amontoados às dezenas. Quanto à ceifeira mecânica, o prado era excessivamente irregular para tal instrumento.

Uma rapariguinha de pés descalços metidos em chinelos, de corpo ao léu através dos rasgões do vestido, dava de beber às mulheres, servindo cidra de um canjirão, que apoiava contra a anca. O conde perguntou de onde viera aquela criança; ninguém sabia. As mulheres que trabalhavam o feno tinham-na recolhido para as servir durante a ceifa. Ele encolheu os ombros e, enquanto se afastava, proferiu algumas lamentações sobre a imoralidade dos nossos campos.

Bouvard elogiou-lhe a luzerna. Era bastante boa, com efeito, apesar dos estragos da cuscuta; os futuros agrônomos abriram os olhos ao ouvirem a palavra cuscuta.

Dada a quantidade do seu gado, dava muita importância às pastagens artificiais; era aliás um bom precedente para as outras colheitas, o que nem sempre acontece com as raízes forrageiras. — Pelo menos isso parece-me incontestável.

Bouvard e Pécuchet responderam em conjunto: “Oh, incontestável”.

Estavam na extrema de um campo todo plano, cuidadosamente destorroado. Um cavalo levado à mão puxava uma grande grade montada sobre três rodas. Sete relhas, embaixo, abriam paralelamente sulcos finos, nos quais a semente caía por tubos que desciam até o chão.

— Aqui — disse o conde — semeio nabos. O nabo é a base da minha cultura quadrienal —, e iniciava a demonstração do semeador mecânico. Mas veio um criado procurá-lo. Precisavam dele no solar.

Foi substituído pelo capataz, homem de rosto fuinha e maneiras obsequiosas.

Levou “os cavalheiros” para outro campo, onde catorze ceifeiros, de peito nu e pernas afastadas, segavam centeio.

Os ferros assobiavam na palha, que era deitada para a direita.

Cada um descrevia diante de si um vasto semicírculo e todos em linha avançavam ao mesmo tempo. Os dois parisienses admiraram-lhes os braços e sentiam-se invadidos por uma veneração quase religiosa pela opulência da terra.

Ladearam em seguida vários terrenos em lavra. O crepúsculo caía; as gralhas desciam sobre os regos abertos.

Depois encontraram um rebanho. Os carneiros pastavam aqui e além e ouvia-se o seu contínuo mastigar. O pastor, sentado num tronco de árvore, tricotava uma meia de lã, com o cão junto de si.

O capataz ajudou Bouvard e Pécuchet a saltarem uma sebe e atravessaram dois “montes” onde vacas ruminavam debaixo das macieiras.

Todas os edifícios da fazenda eram contíguos e ocupavam os três lados do pátio. O trabalho que ali se fazia era mecânico, com uma turbina que utilizava um ribeiro que expressamente tinham desviado. Havia correias de couro que iam de um telhado ao outro e, no meio da estrumeira, funcionava uma bomba de ferro.

O capataz mostrou nos currais pequenas aberturas junto ao chão e nos compartimentos dos porcos portas engenhosas que podiam fechar-se sozinhas.

O celeiro era abobadado como uma catedral, com arcos de tijolo assentes em paredes de pedra.

Para divertir os cavalheiros, uma criada atirou às galinhas punhados de aveia. O eixo da prensa pareceu-lhes gigantesco e subiram ao pombal. A leiteria deixou-os especialmente maravilhados. Torneiras nos cantos forneciam água suficiente para inundar as lajes, e quem entrava sentia um frescor surpreendente. Talhas marrons, alinhadas sobre grades, estavam cheias de leite até a borda. Terrinas menos profundas continham nata. Seguiam-se os pães de manteiga, e a espuma transbordava dos baldes que acabavam de colocar no chão.

Mas a joia da fazenda era o estábulo. Barrotes de madeira firmados perpendicularmente em todo o comprimento a dividiam em duas seções, a primeira para o gado e a segunda para o serviço. Mal se via, porque todas as aberturas estavam fechadas. Os bois comiam amarrados a curtas correntes e os seus corpos exalavam um calor que o teto baixo concentrava. Mas alguém fez entrar luz. Um fio de água espalhou-se de repente na caleira que bordejava as manjedouras. Ouviram-se mugidos. Os cornos faziam como que um retinir de paus. Todos os bois avançaram os focinhos entre os barrotes, e bebiam lentamente.

Grandes carros puxados a cavalos entraram no pátio e os poldros relincharam. No rés-do-chão acenderam-se duas ou três lanternas, e depois desapareceram. Os trabalhadores passavam, arrastando os seus socos sobre as pedras — e tocou o sino para a ceia.

Os dois visitantes foram embora.

Tudo o que haviam visto os encantava. A sua decisão ficou tomada. Nessa noite retiraram da biblioteca os quatro volumes da Casa Rústica, mandaram vir o curso de Gasparin e assinaram um jornal de agricultura.

Para ir às feiras mais comodamente compraram uma tipoia, que Bouvard conduzia.

Vestidos com um camisão azul, chapéu de abas largas, polainas até os joelhos e um cajado de alquilador na mão, andavam em torno dos animais, faziam perguntas aos agricultores e não deixavam de assistir a todas as reuniões de lavradores.

Depressa cansaram mestre Gouy com seus conselhos, deplorando principalmente seu sistema de repouso da lavoura.

Mas o rendeiro insistia na sua rotina. Pediu que lhe fosse dado um prazo a pretexto do granizo. Quanto à renda, não pagou nenhuma. Perante as reclamações mais justas, a mulher dava gritos. Por fim, Bouvard declarou sua intenção de não renovar o arrendamento. Desde então mestre Gouy passou a poupar no estrume, deixou crescer as ervas daninhas, arruinou a propriedade.

E foi embora com um ar bravo que anunciava planos de vingança.

Bouvard pensara que vinte mil francos, isto é, mais de quatro vezes o preço da renda, chegaria de início.

Seu tabelião de Paris os enviou.

A exploração compreendia quinze hectares de terras em exploração e pastagens, vinte e três de terras aráveis e cinco de baldio, situados num montículo coberto de pedras a que chamavam o Cabeço.

Arranjaram todos os instrumentos indispensáveis, quatro cavalos, doze vacas, seis porcos, cento e sessenta ovelhas — e, como pessoal, dois carroceiros, duas mulheres, um criado e um pastor, além de um grande cão.

Para obter dinheiro imediatamente venderam as forragens; pagaram a domicílio; o ouro dos napoleões contados sobre a arca da aveia pareceu-lhes mais reluzente do que qualquer outro, extraordinário e melhor.

No mês de Novembro fabricaram cidra. Era Bouvard que chicoteava o cavalo, enquanto Pécuchet, empoleirado na dorna, remexia o bagaço com uma pá. Resfolgavam apertando a tarraxa, provavam da cuba, vigiavam os batoques, calçavam pesados tamancos, divertiam-se enormemente.

Partindo do princípio de que o trigo nunca seria demais, suprimiram cerca de metade das pastagens artificiais e, como não tinham adubos, serviram-se de resíduos de frutos e sementes que enterraram sem os triturar — de tal modo que o rendimento foi lamentável.

No ano seguinte fizeram as sementeiras muito compactas. Vieram tempestades. As espigas prostraram-se.

Mas teimavam no trigo; e resolveram limpar de pedras o Cabeço; uma carroça levava os pedregulhos. Ao longo de todo o ano, de manhã à noite, com chuva ou sol, via-se a eterna carroça, com o mesmo homem e o mesmo cavalo, trepar, descer e voltar a subir a colina. Algumas vezes Bouvard ia atrás, fazendo paragens a meia encosta para enxugar o suor da testa.

Não se fiando em ninguém, tratavam eles próprios dos animais, administravam-lhes purgas, clisteres.

Graves perturbações aconteceram. A menina.da capoeira ficou grávida. Contrataram pessoal casado e as crianças pulularam, mais os primos, as primas, os tios, as cunhadas. Uma horda vivia à custa deles; e resolveram dormir na fazenda, alternadamente.


Mas à noite estavam tristes. A sujeira do quarto os chocava; e Germaine, que levava as refeições, resmungava em cada viagem. Enganavam-nos de todas as maneiras. Os malhadores do celeiro escondiam trigo nos cântaros de beber. Pécuchet apanhou um e exclamou, empurrando-o para fora agarrado pelos ombros: — Miserável! És a vergonha da aldeia que te viu nascer!

A sua pessoa não inspirava qualquer respeito. — Por outro lado, tinha remorsos por causa da horta. Todo o seu tempo não seria suficiente para mantê-la em bom estado. Bouvard iria ocupar-se da fazenda. Assim deliberaram; e este arranjo ficou decidido.

O primeiro ponto era ter bons estufins. Pécuchet mandou construir um, de tijolos. E ele próprio pintou as armações, e, temendo o sol, lambuzou de cal todas as campânulas.

Com os tanchões teve o cuidado de retirar as cabeças juntamente com as folhas. Depois tratou das mergulhias.

Tentou várias espécies de enxertos, enxertos de fenda, de coroa, de escudo, enxertia de encosto, enxertia inglesa. Com que cuidado ajustava os dois entrecascos! Como ele apertava as ataduras! Tanto unguento para as cobrir!

Duas vezes por dia, pegava no regador e balançava-o sobre as plantas, como se as incensasse. À medida que verdejavam sob a água que caía em chuva fina, parecia-lhe que se desalterava e renascia com elas. Depois, cedendo a uma embriaguez, arrancava a ponta do regador e derramava água pelo gargalo, copiosamente.

Ao fundo da azinhaga, perto da dama de gesso, erguia-se uma espécie de cabana feita de toros de madeira. Pécuchet guardava ali as suas ferramentas; e ali passava horas deliciosas escolhendo as sementes, escrevendo etiquetas, pondo em ordem seus pequenos vasos. Para descansar, sentava-se diante da porta, em cima de um caixote, e então projetava melhorias.

Criara ao fundo da escada dois açafates de gerânios; entre os ciprestes e as árvores em forma de roca plantou girassóis; e como os canteiros estavam cobertos de botões de ouro, e todas as áleas de areia nova, o jardim brilhava numa abundância de amarelos.

Mas o estufim encheu-se de larvas; e, apesar das camadas de folhas mortas para aquecimento, debaixo das armações pintadas e das campânulas lambuzadas só brotaram vegetações raquíticas. Os tanchões não deram nada; as enxertias despegaram-se; a seiva dos mergulhões parou, as árvores tinham mela nas raízes; os viveiros foram uma desolação.

O vento divertia-se a deitar abaixo as estacas dos feijoeiros. A abundância de esterco prejudicou os morangueiras e a falta de limpeza dos gomos os tomateiros.

Falhou nos brócolis, nas berinjelas, nos nabos — e também nos agriões que quisera criar num caixote. No fim do degelo todas as alcachofras estavam perdidas.

As couves consolaram-no. Uma houve, sobretudo, que lhe deu esperanças. Desenvolvia-se, crescia, acabou prodigiosa mas absolutamente incomestível. Pouco lhe importava!

Pécuchet ficou contente de possuir um monstro.

Então tentou o que lhe parecia ser a suma da arte: a cultura do melão.

Semeou as sementes de várias variedades em tinas cheias de terriço que enfiou no seu estufim. Depois, ergueu outro estufim; quando começou a germinação, replantou os renovas mais belos com campânulas por cima. Fez todas as podas segundo os preceitos do bom horticultor, respeitou as flores, deixou os frutos vingarem, escolheu um em cada braço, suprimiu os outros; logo que chegaram à grossura de uma noz, enfiou-lhes debaixo da casca uma tabuinha para os impedir de apodrecerem em contato com a bosta de cavalo.

Umedecia-os, arejava-os, tirava com o lenço a bruma das campânulas — e se apareciam nuvens trazia logo esteiras.

De noite, não dormia por causa disso. Várias vezes, até se levantou; e, de pés descalços enfiados nas botas, em camisa, a tiritar, atravessava toda a horta para ir estender sobre as estufas o cobertor da sua cama.

Os cantalupos amadureceram.

Ao primeiro, Bouvard fez caretas. O segundo não foi melhor, e o terceiro também não; Pécuchet encontrava para cada um uma nova desculpa, até o último, que atirou pela janela declarando não perceber nada daquilo.

Com efeito, como cultivara umas perto das outras espécies diferentes, os valencianos tinham-se confundido com os brancos espanhóis, o “casca de carvalho” com o “pele de sapo” — e, com a vizinhança do tomate a completar a anarquia, dali tinham resultado abomináveis híbridos com gosto a abóbora.

Então Pécuchet virou-se para as flores. Escreveu a Dumouchel para conseguir arbustos com sementes, comprou uma provisão de terra virgem e, resolutamente, deitou mãos à obra.

Mas plantou passifloras à sombra, amores-perfeitos ao sol, cobriu de estrume os jacintos, regou os lírios depois da floração, destruiu os rododendros com excesso de desbaste, estimulou as fúcsias com grude e assou uma romeira que expôs ao calor do fogo na cozinha.

Com a aproximação do frio, abrigou as roseiras bravas debaixo de cúpulas de papel fortemente untadas de sebo de vela; tudo isto formava uma espécie de pães de açúcar, mantidos no ar com paus. As estacas de amparo das dálias eram gigantescas; e distinguiam-se entre todas aquelas linhas direitas os ramos tortuosos de uma sófora japônica que permaneceu imutável, sem desfalecer, mas sem crescer.

Todavia, se as árvores mais raras prosperam nas hortas da capital, também deviam resultar em Chavignolles — e Pécuchet arranjou lilases das Índias, a rosa da China e o eucalipto, então nos primórdios da sua reputação. Todas as experiências falharam. E de todas as vezes ficava muito espantado.

Bouvard, como ele, deparava com dificuldades. Consultavam-se mutuamente, abriam um livro, passavam para outro, e depois não sabiam que resolver perante a divergência das opiniões.

Assim, a respeito da marga, Puvis recomenda-a; mas o manual Roret a combate.

Quanto ao gesso, apesar do exemplo de Franklin, Rieffel e o Sr. Rigaud não parecem entusiasmados com ele.

Os poisios, segundo Bouvard, eram um preconceito gótico. Todavia, Leclerc aponta os casos em que são quase indispensáveis. Gasparin cita um agricultor de Lyon que durante meio século cultivou cereais no mesmo campo — o que destrói a teoria dos afolhamentos. Tull exalta as lavras em prejuízo dos adubos; e aí está o major Beatson que suprime os adubos graças às lavras!

Para se familiarizar com os avisos do tempo, estudaram as nuvens segundo a classificação de Luke-Howard. Contemplavam as que se estendem como crinas, as que parecem ilhas, as que se poderiam tomar por montanhas de neve — tentando distinguir os nimbos dos cirros e os estratos dos cúmulos; mas as formas mudavam antes de encontrarem os nomes.

O barômetro enganou-se; o termômetro não ensinava nada; e recorreram ao expediente imaginado no tempo de Luís XV por um padre de Touraine. Uma sanguessuga num frasco de boca larga era suposto subir em caso de chuva, manter-se no fundo com bom tempo estável, agitar-se perante as ameaças de tempestade. Mas a atmosfera quase sempre contradisse a sanguessuga. Meteram lá dentro outras três com a primeira. Cada uma das quatro se comportou de maneira diferente.

Depois de muita meditação, Bouvard reconheceu que se havia enganado. A sua propriedade exigia a grande cultura, o sistema intensivo, e arriscou o que lhe restava de capitais disponíveis: trinta mil francos.

Animado por Pécuchet, teve o delírio do adubo. Na fossa do composto amontoaram-se ramadas, sangue, tripas, penas, tudo o que conseguia encontrar. Utilizou o licor belga”, o “lizier suíço”, a “lixívia Da-Olmi”, arenques defumados, sargaço, trapos; mandou vir guano, tratou de fabricá-lo — e, levando até o fim seus princípios, não tolerava que se perdesse a urina; suprimiu os locais de alívio de necessidades. Traziam-lhe para o pátio cadáveres de animais, com que estrumava as terras. Os seus despojos semeavam os campos. Bouvard sorria no meio desta infecção. Uma bomba instalada numa carroça cuspia esterco líquido sobre a colheitas. Aos que faziam ares de repugnância dizia: “É ouro! Ouro puro!” E lamentava ainda não ter mais estrumes. Felizes os países onde se encontram grutas naturais cheias de excrementos de pássaros!

A colza foi ruim, a aveia medíocre; e o trigo vendeu-se muito mal, pelo cheiro que tinha. Coisa estranha era o Cabeço, finalmente sem pedras, dar menos do que antes.

Achou por bem renovar o seu material. Comprou um escarificador Guillaume, um extirpador Valcourt, um semeador mecânico e o grande arado de Mathieu de Dombasle, que o condutor deitou pelas ruas da amargura.

— Aprende a servir-te dele!

— Então, mostre-me como é!

Ele tentava mostrar, enganava-se, e os camponeses zombavam.

Nunca conseguiu obrigá-los ao comando do sino.

Andava constantemente a gritar atrás deles, corria de um lado para o outro, anotava as suas observações num canhenho, marcava encontros, não pensava mais nisso — e a cabeça fervilhava-lhe de ideias industriais. Tencionava cultivar papoulas pensando no ópio, e sobretudo astrágalos, que venderia sob o nome de “café das famílias”.

Para engordar mais depressa os bois, sangrava-os de quinze em quinze dias.

Não matou nenhum dos porcos e empanturrava-os de aveia salgada. A pocilga não tardou a ficar pequena demais. E os porcos obstruíam o pátio, arrombavam as vedações, mordiam as pessoas.

Durante os grandes calores, vinte e cinco carneiros começaram a andar à volta e pouco tempo depois morreram.

Na mesma semana expiravam três bois, como consequência das flebotomias de Bouvard.

Para destruir os vermes teve a ideia de meter galinhas numa gaiola com rodas, que dois homens empurravam atrás da charrua — o que não deixou de lhes partir as patas.

Fabricou cerveja com folhas de carvalhinha e deu-a aos ceifeiros como se fosse cidra. Declararam-se doenças intestinais. As crianças choravam, as mulheres gemiam, os homens estavam furiosos. Todos ameaçavam ir-se embora; e Bouvard cedeu.

Todavia, para os convencer da inocuidade da sua beberagem, absorveu diante deles várias garrafas, sentiu-se incomodado, mas ocultou as dores sob um ar de jovialidade.

Mandou até transportar a mistela para sua casa. Bebia-a à noite com Pécuchet, e ambos se esforçavam por achá-la boa. De resto, não se podia perder.

Como as cólicas de Bouvard se tornaram muito fortes, Germaine foi chamar o médico.

Era um homem grave, de testa convexa, e que começou por assustar o doente. A colerina do cavalheiro devia ter que ver com aquela cerveja de que se falava na região.

Quis saber da sua composição e censurou-a em termos científicos enquanto encolhia os ombros. Pécuchet, que fornecera a receita, ficou atormentado.

A despeito dos banhos de cal perniciosos, das duplas cavas omitidas e de muito escardear intempestivo, Bouvard, no ano seguinte, tinha à sua frente uma bela colheita de trigo. Teve a ideia de o secar por fermentação, gênero holandês, sistema Clap-Mayer — o que quer dizer que o mandou ceifar de uma só vez e amontoar em medas, que seriam desfeitas logo que o gás se soltasse e, depois, expostas ao ar livre; após o que Bouvard se retirou sem a menor inquietação.

No dia seguinte, estavam a jantar quando ouviram debaixo das faias o rufar de um tambor. Germaine saiu para ver o que havia; mas o homem já ia longe; quase logo a seguir, o sino da igreja repicou violentamente.

Uma angústia se apoderou de Bouvard e de Pécuchet.

Levantaram-se e, impacientes por informações, avançaram de cabeça descoberta para os lados de Chavignolles.

Passou uma velha. Não sabia nada. Detiveram um garoto, que respondeu: — Eu acho que é fogo! — E o tambor continuava a rufar, e o sino repicava mais forte. Por fim, chegaram às primeiras casas da aldeia. O merceeiro gritou-lhes de longe: — O fogo é em vossa casa!

Pécuchet seguiu em passo de ginástica; e dizia a Bouvard, que corria com o mesmo andamento ao seu lado: — Um, dois; um, dois; a compasso! Como os caçadores de Vincennes!

A estrada que seguiam era sempre a subir; o terreno em declive ocultava-lhes o horizonte. Chegaram lá acima, perto do Cabeço; e, num só olhar, revelou-se-lhes o desastre.

Todas as medas, aqui e além, chamejavam como vulcões — no meio da planície nua, na calma da noite.

Havia, em torno da maior, talvez umas trezentas pessoas; e, sob as ordens do Sr. Foureau, o presidente da Câmara, de lenço tricolor, uns rapazes tiravam a palha de cima com varas e ganchos, para salvar o resto.

Bouvard, com a pressa, quase fez cair a Sra. Bordin, que estava lá. Depois, vendo um dos seus criados, cumulou-o de insultos por não o ter prevenido. O criado, pelo contrário, por excesso de zelo, tinha primeiro corrido a casa, à igreja, e depois a casa do patrão, e voltara pela outra estrada.

Bouvard perdia a cabeça. Os criados rodeavam-no falando todos ao mesmo tempo; e ele proibia que se deitassem abaixo as medas, suplicava que o socorressem, exigia água, reclamava bombeiros!

— Temos lá bombeiros! — exclamou o presidente da Câmara.

— A culpa é sua! — replicou Bouvard. Encolerizava-se, proferiu coisas inconvenientes; e todos admiraram a paciência do Sr. Foureau, ele que era brutal, como se via pelos lábios grossos e pela mandíbula de buldogue.

O calor das chamas tornou-se tão forte que já ninguém se podia aproximar. Debaixo das chamas devoradoras a palha torcia-se com crepitações, os grãos de trigo açoitavam os rostos como grãos de chumbo. Depois, a meda desmoronava-se num largo braseiro, de onde esvoaçavam faíscas; e os reflexos ondulavam sobre aquela massa vermelha, que apresentava nas alternâncias da cor partes cor-de-rosa como vermelhão e outras castanhas como sangue coalhado. A noite chegara; o vento soprava; turbilhões de fumaça envolviam a multidão; uma fagulha, de tempos a tempos, passava no céu negro.


Bouvard contemplava o incêndio, chorando baixinho.

Seus olhos desapareciam sob as pálpebras inchadas; e todo o seu rosto parecia dilatado pela dor. A Sra. Bordin, brincando com as franjas do xale verde, chamava-lhe “pobre Senhor”, tentava consolá-lo. Já que não se podia fazer nada, tinha que “resignar-se”.

Pécuchet não chorava. Muito pálido ou, antes, lívido, de boca aberta e cabelos colados pelo suor frio, mantinha-se à distância meditando. Mas o prior, que chegara de súbito murmurou numa voz caridosa: — Ah! Que infelicidade, realmente; é muito desagradável! Pode estar certo que me associo....

Os outros não fingiam qualquer tristeza. Conversavam sorrindo, de mãos estendidas diante das chamas. Um velho apanhou palhinhas a arder para acender o cachimbo. Houve crianças que se puseram a dançar. Houve até um garoto que gritou que era muito divertido.

— Sim, que lindo divertimento! — replicou Pécuchet, que o ouvira.

O fogo diminuiu. Os montes baixaram; e uma hora depois não restavam mais do que cinzas, formando na planície marcas redondas e negras. Então foram-se todos embora.

A Sra. Bordin e o padre Jeufroy acompanharam os Senhores Bouvard e Pécuchet até casa.

Pelo caminho, a viúva dirigiu ao vizinho censuras amáveis sobre o seu feitio arisco — e o eclesiástico exprimiu toda a sua surpresa por não ter conseguido conhecer ainda um paroquiano tão distinto.

A sós, procuraram a causa do incêndio — e em vez de reconhecer como toda a gente que a palha úmida se tinha inflamado espontaneamente, suspeitaram de uma vingança. Vingança que vinha, sem dúvida, de mestre Gouy, ou talvez do caçador de toupeiras... Seis meses antes Bouvard recusara os serviços deste e defendera até num círculo de ouvintes que, como a sua ocupação era funesta, o governo devia proibi-la. O homem, desde essa altura, andava pelas imediações. Usava barba completa e parecia-lhes assustador, sobretudo à noite, quando aparecia a rondar os pátios, sacudindo a sua longa vara guarnecida de toupeiras penduradas.

O prejuízo era considerável e, para avaliar a situação, Pécuchet trabalhou durante oito dias nos livros de registo de Bouvard, que lhe pareceram “um verdadeiro labirinto”.

Depois de ter conferido o diário, a correspondência e o grande livro coberto de notas a lápis e de remissões, descobriu a verdade: não havia mercadorias para vender, nenhum efeito a receber, e em caixa, nada: o capital era um défice de trinta e três mil francos.

Bouvard não quis acreditar em nada disto, e mais de vinte vezes repetiram os cálculos. Chegavam sempre à mesma conclusão. Mais dois anos de uma agronomia assim e a sua fortuna ia-se!

O único remédio era vender.

Pelo menos, era preciso consultar um notário. Era uma diligência muito penosa; encarregou-se dela Pécuchet.

Na opinião do Sr. Marescot, mais valia não fazer editais de anúncio. Falaria da fazenda com clientes sérios e esperaria pelas suas propostas.

— Muito bem! — disse Bouvard — temos tempo à nossa frente! — Ia contratar um caseiro; depois se veria.

— Não seremos mais infelizes do que dantes! Simplesmente, somos forçados a fazer economias!

Estas contrariavam Pécuchet por causa da horticultura e, alguns dias depois, disse: — Devíamos dedicar-nos exclusivamente à arboricultura, não por prazer, mas como especulação! Uma pera, que custa três soldos, às vezes chega a ser vendida na capital a cinco e seis francos! Há hortelãos que fazem com os damascos vinte e cinco mil libras de rendimento! Em S. Petersburgo, durante o inverno, paga-se a uva a um napoleão por cacho! É uma bela indústria, tens de concordar! E que custa isso? Cuidados, estrume, e o uso de um podão!

Despertou de tal modo a imaginação de Bouvard, que imediatamente procuraram nos seus livros uma nomenclatura de árvores para plantar; e depois de escolherem nomes que lhes pareciam maravilhosos, dirigiram-se ao dono de um viveiro de Falaise, que se apressou a fornecer-lhes trezentos tanchões para os quais não encontrava colocação.

Tinham mandado vir um serralheiro para as estacas de sustentação, um quinquilheiro para os esticadores, um carpinteiro para os suportes. As formas das árvores estavam antecipadamente desenhadas. Fragmentos de fasquias no muro representavam candelabros. Dois postes em cada ponta dos canteiros sustentavam horizontalmente fios de arame; e, no pomar, havia arcos que apontavam a estrutura de vasos e varinhas em cone a de pirâmides — e tão bem que quem chegasse a casa deles julgava ver as peças de qualquer máquina desconhecida ou a carcaça de um fogo de artifício.

Cavados os buracos, cortaram as extremidades de todas as raízes, boas ou más, e mergulharam-nas num composto.

Seis meses depois, os tanchões estavam mortos. Novas encomendas ao dono do viveiro, e plantações novas, em buracos ainda mais profundos! Mas, como a chuva desconjuntou o solo, os enxertos enterraram-se por si próprios e as árvores soltaram-se.

Chegada a primavera, Pécuchet pôs-se a podar as pereiras. Não retirou as guias e respeitou os esporões; primava em querer rebaixar em esquadria as pereiras duchesse que haviam de formar os cordões unilaterais e cortava-as ou arrancava-as invariavelmente. Quanto aos pessegueiros, confundiu-se nas pernadas, nas braças e nos raminhos do ano. Apareciam sempre vazios e cheios onde não os devia haver; e era impossível obter na espaldeira uma simetria perfeita, com seis ramos para a direita e seis para a esquerda, não incluindo os dois principais e formando o todo uma bela espinha de peixe.

Bouvard tentou dominar os damasqueiros. Eles revoltaram-se. Deitou abaixo três troncos junto ao chão; nenhum voltou a crescer. As cerejeiras em que fizera entalhes produziram goma.

Primeiro podaram muito curto, o que matava os gomos da base, e depois muito longo, o que provocava ladrões; e muitas vezes hesitavam, sem saber distinguir os gomos dos botões. Começaram por se alegrar por ter flores: mas, reconhecendo o seu erro, arrancavam três quartos delas para fortificar o resto.

Falavam constantemente da seiva e do câmbio, da formação de trepadeiras, de esterroar, de desladroar. Tinham no meio da casa de jantar, num quadro, a lista dos seus pupilos, com um número que se repetia na horta, num pequeno pedaço de madeira na base da árvore.

A pé desde madrugada, trabalhavam até a noite, com a bolsa de vimes pela cintura. Pelas frias manhãs de Primavera, Bouvard conservava o seu casaco de malha debaixo da bata larga e Pécuchet a velha sobrecasaca debaixo do avental de serapilheira; e os que passavam ao longo do gradeamento ouviam-nos tossir na bruma.

Às vezes Pécuchet tirava da algibeira o seu manual; estudava um parágrafo, de pé, com a enxada junto de si, na posição de hortelão que ilustrava o frontispício do livro.

Esta semelhança até o lisonjeou muito e por isso ainda concebeu maior estima pelo autor.

Bouvard estava constantemente empoleirado numa alta escada diante das pirâmides. Um dia foi tomado de tonturas — e não se atrevendo já a descer, gritou pela ajuda de Pécuchet.

Finalmente apareceram peras; e havia ameixas no pomar. Então utilizaram contra os pássaros todos os artifícios recomendados. Mas os pedaços de espelho rebrilhavam tanto que cegavam, a castanhola do moinho de vento acordava-os durante a noite — e os pardais empoleiravam-se no espantalho. Fizeram outro, e depois mais um, cuja fatiota variaram, inutilmente.

No entanto, podiam ter esperanças de alguma fruta.

Pécuchet acabava de entregar a respectiva nota a Bouvard quando de repente ressoaram os trovões e a chuva começou a cair — uma chuva pesada e violenta. O vento, intervaladamente, sacudia toda a extensão da espaldeira. As estacas de sustentação caíam uma após outra — e as infelizes árvores em forma de roca, ao balançarem-se, entrechocavam os respectivos frutos.

Pécuchet, surpreendido pelo aguaceiro, refugiara-se na cabana. Bouvard mantinha-se na cozinha. Viam voar em turbilhão na sua frente estilhaços de madeira, galhos, ardósias; e as mulheres de marinheiros que, na costa, a dez léguas dali, contemplavam o mar, não tinham olhar mais tenso e coração mais oprimido. Depois, de súbito, os suportes e as barras das espaldeiras, juntamente com a grade, caíram sobre os canteiros.

Que quadro aquele, quando foram inspecionar! As cerejas e as ameixas juncavam a erva entre o granizo em fusão. As peras passe-colmar estavam perdidas, assim como as bésides-vétérans e as triomphes-de-jodoigne. Mal restavam entre as maçãs algumas bons-papas. E doze tétons-de-vénus, toda a colheita de pêssegos, rolavam em charcos de água, junto dos buxos arrancados.

Depois do jantar, em que comeram muito pouco, Pécuchet disse baixinho: — Era bom vermos se não aconteceu nada na fazenda...

— Ora... para descobrirmos mais motivos de tristeza!

— Talvez. Porque realmente não somos nada ajudados! — E queixaram-se da providência e da natureza.

Bouvard, de cotovelo em cima da mesa, soltava o seu leve sussurro — e, como todas as dores se suportam, os antigos projetos agrícolas voltaram-lhe à memória, particularmente a fabricação de fécula e um novo tipo de queijos.

Pécuchet respirava ruidosamente; e enquanto enfiava pelas narinas pitadas de tabaco, pensava que, se a sorte assim o tivesse querido, faria agora parte de uma associação de agricultores, brilharia nas exposições, seria citado nos jornais.

Bouvard passeou em torno de si uns olhos melancólicos.

— Palavra, dá-me vontade de largar aquilo tudo para nos estabelecermos noutro lado!

— Como quiseres — disse Pécuchet; e um momento depois:

— Os autores recomendam que se suprima qualquer canal direto. A seiva, assim, é contrariada, e a árvore sofre forçosamente com isso. Para ter boa saúde precisava de não dar frutos. No entanto, aquelas que não podamos e não adubamos nunca, produzem-nos... não tão grandes, é verdade, mas mais saborosos. Têm que me dar razão! E, não apenas cada espécie exige cuidados próprios, como ainda cada indivíduo, consoante o clima, a temperatura, uma data de coisas! Então onde está a regra? Que esperança temos nós de qualquer êxito ou lucro?

Bouvard respondeu-lhe: — Verás em Gasparin que o lucro não pode ultrapassar um décimo do capital. Portanto, melhor faríamos se colocássemos esse capital numa casa bancária; ao fim de quinze anos, pela acumulação dos juros, teríamos o dobro sem nos metermos em trabalhos.

Pécuchet baixou a cabeça.

— Se calhar a arboricultura é uma peta...

— Como a agronomia! — replicou Bouvard.

Em seguida, acusaram-se mutuamente por terem sido excessivamente ambiciosos — e resolveram poupar daí em diante esforço e dinheiro. Uma poda de vez em quando seria suficiente para o pomar. As espaldeiras foram proscritas, e não substituiriam as árvores mortas; mas iriam aparecer intervalos muito feios, a não ser que destruíssem todas as outras que permaneciam de pé. Que fazer?

Pécuchet fez vários desenhos servindo-se do seu estojo de matemática. Bouvard dava-lhe conselhos. Não chegavam a nada de satisfatório. Felizmente, encontraram na biblioteca a obra de Boitard intitulada O Arquiteto dos Jardins.

O autor divide-os numa infinidade de gêneros. Há, em primeiro lugar, o gênero melancólico e romântico, que se caracteriza por perpétuas, ruínas, túmulos e “um ex-voto à Virgem, indicando o lugar onde um senhor caiu sob o ferro de um assassino”; compõe-se o gênero terrível com rochedos suspensos, árvores despedaçadas, cabanas incendiadas; o gênero exótico consegue-se plantando círios-do-Peru “para suscitar recordações a um colono ou a um viajante”. O gênero grave deve apresentar, como Ermenonville, um templo à filosofia. Os obeliscos e os arcos de triunfo caracterizam o gênero majestoso, musgo e grutas o gênero misterioso, um lago o gênero sonhador. Há até o gênero fantástico, cujo mais belo exemplo se via ainda há pouco num jardim de Wurtemberg — onde se encontravam sucessivamente. um javali, um eremita, vários sepulcros e uma barca que se afastava sozinha da margem para nos levar a uma saleta onde éramos inundados por uns repuxos quando nos sentávamos no sofá.

Perante este horizonte de maravilhas, Bouvard e Pécuchet tiveram como que um deslumbramento. O gênero fantástico pareceu-lhes reservado aos príncipes. O templo à filosofia seria incômodo pelo tamanho. O ex-voto à madona não teria significado, dada a falta de assassinos e, por muito que custasse aos colonos e viajantes, as plantas americanas custavam muito caro. Mas os rochedos eram possíveis, e bem assim as árvores despedaçadas, as perpétuas e o musgo; e, num entusiasmo progressivo, depois de muitas tentativas, com o auxilio de um só moço, e por uma quantia mínima, fabricaram uma residência que não tinha semelhante em todo o departamento.

A azinhaga, aberta aqui e além, dava luz sobre a pequena mata, cheia de caminhos sinuosos em forma de labirinto. Na parede da espaldeira tinham pretendido fazer um arco sob o qual se avistava a perspectiva. Como o espigão não se podia manter suspenso, daí resultara uma enorme brecha, com ruínas no chão.

Tinham sacrificado os espargos para construir no local um túmulo etrusco, isto é, um quadrilátero de gesso preto, com seis pés de altura e o aspecto de uma casota de cão.

Quatro abetos nos cantos rodeavam este monumento, depois encimado por uma urna e enriquecido com uma inscrição.

Na outra parte da horta, uma espécie de Rialto saltava sobre um tanque que tinha nos bordos conchas de mexilhões incrustadas. A terra bebia a água, mas que tinha isso?

Havia de formar-se um fundo de argila que a reteria.

A cabana fora transformada em choça rústica com vidros coloridos. No alto do cabeço da latada seis árvores em quadrado sustentavam um chapéu de folha-de-flandres de pontas reviradas, e o todo simbolizava um pagode chinês.

Tinham estado nas margens do Orne, onde escolheram pedras de granito, que tinham partido, numerado e trazido eles mesmos numa carroça, e depois haviam juntado os pedaços com cimento, acumulando-os uns por cima dos outros; e, no meio do relvado, erguia-se um rochedo, semelhante a uma gigantesca batata.

Qualquer coisa faltava a tudo isto para completar a harmonia. Abateram a maior tília da azinhaga (aliás, três quartos dela estavam mortos) e estenderam-na pela horta, de tal maneira que se julgaria ter sido arrastada por uma torrente ou derrubada pela tempestade.

Terminada a tarefa, Bouvard, que estava na escada exterior, gritou de longe: — Vê-se melhor daqui!

“Melhor daqui”, ecoou pelos ares.

Pécuchet respondeu: — Já vou!

“Á vou!”

— Olha! Há eco!

“Eco!”

Até ali, a tília impedira-o de existir; e era agora favorecido pelo pagode em frente do celeiro, cuja parte superior era mais alta que a azinhaga.

Para experimentar o eco divertiam-se a lançar frases jocosas. Bouvard gritou algumas obscenas.

Estivera várias vezes em Falaise, a pretexto de ter dinheiro a receber — e voltava de lá sempre com uns embrulhinhos que fechava na cômoda. Pécuchet partiu uma manhã para Bretteville e regressou muito tarde com um cesto que escondeu debaixo da cama.

No dia seguinte, ao acordar, Bouvard ficou surpreendido. Os dois primeiros teixos da álea principal (que ainda na véspera eram esféricos) tinham a forma de pavões — e uma corneta e dois botões de porcelana fingiam o bico e os olhos. Pécuchet levantara-se de madrugada; temendo ser descoberto, talhara as duas árvores à medida dos apêndices enviados por Dumouchel. Havia seis meses que os outros teixos imitavam, aproximadamente, pirâmides, cubos, cilindros, veados ou cadeirões. Mas nada igualava os pavões.

Bouvard reconheceu o fato com grandes elogios.

A pretexto de se ter esquecido da enxada, arrastou o companheiro para o labirinto. Porque tinha aproveitado a ausência de Pécuchet para fazer também algo de sublime.

A portinhola que dava para o campo estava coberta de uma camada de gesso, sobre a qual se alinhavam numa bela ordem quinhentos fornilhos de cachimbos, representando vários Abd-el-Kader, negros, turcos, mulheres nuas, patas de cavalo e caveiras!

— Estás a ver a minha impaciência!

— Acredito!

E abraçaram-se, emocionados.

Como todos os artistas, sentiram a necessidade de ser aplaudidos — e Bouvard pensou em oferecer um grande jantar.

— Cuidado! — disse Pécuchet — vais lançar-te nas recepções. É um abismo!

Mas a coisa ficou decidida.


Desde que moravam na região mantinham-se à distância. Todos, por desejo de conhecê-los, aceitaram o convite, salvo o Conde de Faverges, chamado à capital a negócios. Aproveitaram o Sr. Hurel, o seu factotum.

Beljambe, o estalajadeiro, antigo chefe de cozinha em Lisieux, viria preparar certos pratos. Fornecia um moço.

Germaine requisitara a moça da capoeira. Marianne, a criada da Sra. Bordin, viria também. Desde as quatro horas que o gradeamento estava aberto de par em par e os dois proprietários, cheios de impaciência, esperavam os seus convivas.

Hurel parou debaixo do faial para vestir a sobrecasaca.

Depois avançou o prior, com uma sotaina nova, e, momentos depois, o Sr. Foureau, com um colete de veludo. O Doutor dava o braço à mulher, que caminhava penosamente, abrigando-se sob o guarda-sol. Uma onda de fitas cor-de-rosa se agitou atrás deles; era a touca da Sra. Bordin, com um belo vestido de seda furta-cores. A corrente de ouro do relógio batia-lhe no peito e os anéis brilhavam-lhe nas duas mãos calçadas de mitenes pretas. Finalmente, apareceu o notário, com um panamá na cabeça e lornhão; porque o funcionário ministerial não abafava nele o homem de sociedade. O salão estava tão encerado que não se podia estar de pé. As oito poltronas de Utrecht estavam encostadas ao longo da parede; uma mesa redonda, no meio, tinha em cima a licoreira e sobre a lareira via-se o retrato de Bouvard pai. As manchas baças reapareciam a contraluz e provocavam-lhe um trejeito na boca, um entortar de olhos, e um pouco de bolor nas maçãs do rosto aumentava a ilusão das suíças. Os convidados acharam-lhe parecenças com o filho e a Sra. Bordin acrescentou, olhando para Bouvard, que devia ter sido um belíssimo homem.

Depois de uma hora de espera, Pécuchet anunciou que se podia passar à casa de jantar.

As cortinas de pano branco com cercadura vermelha estavam, como as do salão, completamente fechadas diante das janelas; e o sol, atravessando o tecido, lançava uma luz loura sobre o lambrim, que tinha como único ornamento um barômetro.

Bouvard colocou as duas senhoras junto de si; Pécuchet sentou o presidente da Câmara à esquerda e o prior à direita; e entraram nas ostras. Cheiravam a lodo. Bouvard ficou desolado, desfez-se em desculpas, e Pécuchet levantou-se para ir à cozinha fazer uma cena a Beljambe.

Durante toda a primeira parte da refeição, composta de um rodovalho entre um folhado e pombos de conserva, a conversa tratou da maneira de fabricar cidra. Após o que chegaram ao tema dos pratos digestos e indigestos. O médico, naturalmente, foi consultado. Encarava as coisas com cepticismo, como um homem que esgotara a ciência e contudo não tolerava a mínima contradição.

Com o lombo de vaca serviu-se borgonha. Estava turvo.

Bouvard, atribuindo este acidente à lavagem da garrafa, deu a provar outras três, sem maior êxito — e depois serviu Saint-Julien, evidentemente novo demais, e todos os convivas se calaram. Hurel sorria constantemente; os passos pesados do criado ressoavam sobre o lajedo.

A Sra. Vaucorbeil, atarracada e com um ar rezingão (aliás, estava no fim da sua gravidez), conservara um mutismo absoluto. Bouvard, não sabendo com que entretê-la, falou-lhe do teatro de Caen.

— A minha mulher nunca vai a espetáculos — retorquiu o médico.

O Sr. Marescot, quando residia em Paris, só frequentava os Italiens.

— Eu — disse Bouvard — desembolsava às vezes uma plateia no Vaudeville, para ouvir farsas!

Foureau perguntou à Sra. Bordin se gostava de farsas.

— Depende de que espécie — respondeu ela.

O presidente da Câmara estava a amofiná-la. Ela respondia às brincadeiras. Em seguida aconselhou uma receita para os pepinos pequenos. De resto, os seus talentos de dona de casa eram conhecidos, e tinha uma quintinha admiravelmente bem cuidada.

Foureau interpelou Bouvard: — Tem a intenção de vender a sua?

— Ora, por enquanto, não sei, porque...

— Como? Nem sequer as terras das Écalles? — replicou o notário. — Vinha-lhe mesmo a calhar, senhora Bordin.

A viúva replicou, com uma mornice: — As pretensões do Sr. Bouvard seriam fortes demais! Talvez se pudesse abrandá-lo...

— Eu não tentaria isso!

— Ora! E se o beijasse?

— Vamos tentar! — disse Bouvard; e beijou-a nas duas faces, entre os aplausos da assembleia.

Quase imediatamente desarrolhou-se o champanhe, cujas detonações duplicaram a alegria. Pécuchet fez um sinal. As cortinas abriram-se e apareceu o jardim.

Era, ao crepúsculo, algo de assustador. O rochedo, como uma montanha, ocupava o relvado, o túmulo era um cubo no meio dos espinafres, a ponte veneziana um acento circunflexo por cima dos feijoeiros — e a cabana, mais além, uma grande mancha negra, porque lhe tinham incendiado o telhado para a tornar mais poética. Seguiam-se os teixos em forma de veados ou de cadeirões, até a árvore fulminada, que se estendia transversalmente desde a azinhaga ao caramanchão, onde pendiam tomateiros como estalactites. Um girassol, aqui e além, abria o seu disco amarelo. O pagode chinês pintado de vermelho parecia um farol sobre o cabeço da latada. Os bicos dos pavões batidos pelo sol refletiam fulgências, e por trás da grade, desobstruída das tábuas, o campo em planura terminava no horizonte.

Perante o espanto dos seus convivas, Bouvard e Pécuchet sentiram um verdadeiro prazer.

A Sra. Bordin admirou sobretudo os pavões. Mas não compreenderam o túmulo, nem a cabana incendiada, nem o muro em ruínas. Depois, cada um por sua vez passou por cima da ponte. Para encher o tanque, Bouvard e Pécuchet tinham carregado água durante toda a manhã. Ela escapara entre as pedras do fundo, mal juntas, e agora cobertas de lodo. Enquanto passeavam houve quem se atrevesse a críticas: — Se fosse a si, teria feito assim. — As ervilhas estão atrasadas. — Este canto francamente não está limpo. — Com uma poda dessas, nunca terá fruta.

Bouvard foi obrigado a responder que não lhe importava a fruta.

Quando caminhavam ao longo da azinhaga, disse com um ar espertalhão: — Ah! Ora aqui está uma pessoa que vimos incomodar! Mil desculpas!

A brincadeira não pegou. Toda a gente conhecia a dama de gesso!

Depois de várias voltas pelo labirinto, chegaram diante da porta dos cachimbos. Trocaram-se olhares estupefatos.

Bouvard observava as caras dos convidados — e, impaciente de conhecer a sua opinião, perguntou: — Então que dizem?

A Sra. Bordin desatou a rir. Todos fizeram o mesmo.

O prior soltava uma espécie de cacarejo, Hurel tossia, o Doutor até chorava, a mulher teve um espasmo nervoso — e Foureau, homem desembaraçado, partiu um Abd-el-Kader que meteu no bolso, como recordação.

Quando saíram da azinhaga, Bouvard, para espantar a sua gente com o eco, gritou com todas as suas forças: — Às vossas ordens! Minhas senhoras!

Nada! Nada de eco. Era das obras do celeiro: a parte superior da empena e o telhado tinham sido demolidos.

O café foi servido no cabeço da latada — e os cavalheiros iam começar um jogo de bolas, quando viram à sua frente, por trás da grade, um homem a olhar para eles.

Era magro e tisnado, com umas calças vermelhas aos farrapos, um casaco azul, sem camisa, barba preta cortada em escova; e articulou em voz rouca: — Deem-me um copo de vinho!

O presidente da Câmara e o padre Jeufroy reconheceram-no imediatamente. Era um antigo marceneiro de Chavignolles.

— Vá lá, Gorgu! Vá-se embora — disse o Sr. Foureau. — Não se pede esmola.

— Eu? Esmola! — exclamou o homem, exasperado. — Fiz sete anos de guerra em África. Acabo de sair do hospital. Trabalho, nada! Terei que matar alguém? Raio de vida!

A sua cólera desvaneceu-se — e com os dois punhos apoiados nas ancas encarava os burgueses com um ar melancólico e zombeteiro. A fadiga dos acampamentos, o absinto e as febres, toda uma vida de miséria e de crápula se revelava nos seus olhos turvos. Os lábios pálidos tremiam-lhe e descobriam-lhe as gengivas. O grande céu de púrpura envolvia-o num clarão sangrento — e a sua obstinação em não arredar pé provocava uma espécie de terror.

Bouvard, para acabar com aquilo, foi buscar o resto de uma garrafa. O vagabundo bebeu sofregamente; depois desapareceu no meio da aveia, gesticulando.

Logo começaram a censurar o Sr. Bouvard. Aquelas complacências favoreciam a desordem. Mas Bouvard, irritado pelo fracasso do seu jardim, tomou a defesa do povo; todos falavam ao mesmo tempo.

Foureau exaltava o governo. Hurel só via neste mundo a propriedade das terras. O padre Jeufroy queixou-se de que não se protegia a religião. Pécuchet atacou os impostos. A Sra. Bordin gritava intervaladamente: — Eu, acima de tudo, detesto a República — e o médico declarou-se a favor do progresso. — Porque, a verdade, meu caro senhor, é que precisamos de reformas.

— É possível! — respondeu Foureau — mas todas essas ideias prejudicam os negócios.

— Não me interessam os negócios! — exclamou Pécuchet.

Vaucorbeil continuou: — Pelo menos, concedam-nos a união das competências. — Bouvard não ia tão longe.

— É essa a sua opinião? — replicou o médico. — Está definido! Boa-noite! E desejo-lhe um dilúvio para poder navegar no seu tanque!

— Eu também me vou embora — disse o Sr. Foureau um momento depois; e, apontando para o bolso onde tinha o Abd-el-Kader: — Se precisar de outro, voltarei.

O prior, antes de ir, confiou timidamente a Pécuchet que não achava conveniente aquele simulacro de túmulo no meio dos legumes. Hurel, ao retirar-se, cumprimentou o grupo em voz baixa. O Sr. Marescot desaparecera depois da sobremesa.

A Sra. Bordin recomeçou a descrever em pormenor os seus pepinos, prometeu uma segunda receita para as ameixas com aguardente; — e deu ainda três voltas na álea principal; mas, ao passar perto da tília, ficou-lhe presa a roda do vestido e ouviram-na murmurar: — Meu Deus! Que estupidez, esta árvore!

Até a meia-noite, os dois anfitriões, debaixo do caramanchão, deram largas ao seu ressentimento.

É claro que se podiam criticar no jantar duas ou três coisinhas, aqui e além; porém, os convivas tinham-se empanturrado como ogres, prova de que ele não era assim tão mau. Mas, quanto ao jardim, tanta difamação provinha do mais baixo ciúme; e exaltando-se os dois: — Ah! Falta a água no tanque! Paciência, ainda verão ali um cisne e peixes!

— Mal notaram o pagode!

— Pretender que as ruínas não são coisas limpas é uma opinião de imbecil!

— E o túmulo uma inconveniência! Por que inconveniência? Então uma pessoa não tem o direito de construir um na sua propriedade? Até quero ser enterrado ali!

— Não fale disso! — disse Pécuchet.

Depois, passaram em revista os convivas.

— O médico parece um belo de um presunçoso!

— Observou a zombaria de Marescot diante do retrato?

— Que grosseirão aquele presidente da Câmara!

Quando se janta em casa alheia, que diabo!, respeitam-se as curiosidades.

— A Sra. Bordin — disse Bouvard.

— Oh, é uma intriguista! Nem falar.

Enjoados de gente, resolveram não ver mais ninguém, viver exclusivamente em casa, só para eles.

E passavam dias na adega a retirar o tártaro das garrafas, voltaram a envernizar todos os móveis, caiaram os quartos. Todas as noites, olhando para a lenha a arder, dissertavam sobre o melhor sistema de aquecimento.

Por economia, tentaram fumar presuntos, coar eles próprios a barrela. Germaine, incomodada, encolhia os ombros; mas na época das compotas zangou-se, e eles foram instalar-se na sala do forno.

Era uma antiga lavanderia, onde havia debaixo dos molhos de lenha uma grande cuba de pedra, excelente para os seus projetos, pois lhes tinha vindo a ambição de fabricar conservas.

Encheram catorze frascos de boca larga com tomates e ervilhas; betumaram as rolhas com cal viva e queijo, aplicaram nos bordos tirinhas de pano, e depois mergulharam-nos em água a ferver. Esta evaporava-se e deitaram água fria: a diferença de temperatura fez estalar os frascos. Só três se salvaram.

Depois arranjaram velhas caixas de sardinhas, puseram lá dentro costeletas de vitela e meteram-nas em banho-maria.

Saíram redondas como balões; o arrefecimento as achataria. Para continuar a experiência, meteram em outras caixas ovos, chicória, lavagante, peixe com cebolas e vinho tinto, uma sopa! — e felicitavam-se, como o Sr. Appert, “por terem fixado as estações”; tais descobertas, segundo Pécuchet, eram mais importantes que os feitos dos conquistadores.

Aperfeiçoaram os legumes de conserva da Sra. Bordin apimentando o vinagre; e as suas ameixas com aguardente eram muito superiores! Obtiveram por maceração licores de framboesa e de absinto. Com mel e angélica num barril de Bagnols pretenderam fazer vinho de Málaga; e lançaram-se igualmente na fabricação de um champanhe! As garrafas de chablis, cortadas de mosto, rebentaram. Então, deixaram de ter dúvidas quanto ao êxito.

Com o desenvolvimento dos seus estudos, acabaram por suspeitar de fraudes em todos os gêneros alimentícios.

Atenazavam o padeiro por causa da cor do pão. Arranjaram um inimigo no merceeiro ao acusá-lo de adulterar os chocolates. Foram a Falaise para comprar jujuba e, nas barbas do farmacêutico, submeteram a massa à prova da água.

Tomou o aspecto de um couro de toucinho, o que denotava a presença de gelatina.

Após este triunfo, exaltou-se-lhes o orgulho. Compraram o material de um destilador falido — e não tardaram a chegar-lhes a casa peneiras, barricas, funis, escumadeiras, coadores e balanças, sem contar com um prato com uma bola de ferro para triturar e um alambique de caldeira de tampa esférica, que exigiu um forno refletor com uma chaminé.

Aprenderam a branquear o açúcar e os diversos pontos: de cabelo, de pérola, assoprado, rebuçado, caramelo.

Mas ardiam por usar o alambique; e trataram de fabricar licores finos, começando pela aniseta. O líquido trazia quase sempre consigo os depósitos, ou então estes colavam-se ao fundo; outras vezes verificavam que se haviam enganado na dosagem. À sua volta, os grandes tanques de cobre reluziam, as retortas esticavam as suas pontas aguçadas, as colheres de bico enfeitavam a parede. Muitas vezes estava um a escolher ervas em cima da mesa enquanto o outro fazia girar a bola de ferro no prato suspenso. Agitavam as colheres; provavam as misturas.

Bouvard, sempre em suores, tinha por única vestimenta a camisa e as calças seguras até a reentrância do estômago pelos curtos suspensórios; mas, estavanado como um pássaro, esquecia-se do diagrama da cucúrbita ou exagerava no fogo. Pécuchet resmoneava cálculos, imóvel na sua comprida bata, uma espécie de capa de criança com mangas; olhavam-se mutuamente como pessoas sérias, ocupadas em coisas úteis.

Por fim sonharam com um “creme” que superasse todos os outros. Nele meteriam coentros como no kummel, kirsch como no marasquino, hissopo como na chartreuse, ambreta como no vespetro, calamus aromaticus como no krambambuli; e seria colorido de vermelho com madeira de sândalo.

Mas com que nome haviam de apresentá-lo no comércio? Porque era preciso um nome fácil de reter e ao mesmo tempo invulgar. Depois de procurarem demoradamente decidiram que ia se chamar “O Bouvarino”!

Nos fins do outono apareceram manchas nos três frascos de conservas. Os tomates e as ervilhas estavam podres.

Seria da maneira de arrolhar? Então atormentou-os o problema das rolhas. Para tentarem os métodos novos faltava-lhes dinheiro. A fazenda os arruinava.

Por várias vezes se tinham vindo oferecer caseiros. Bouvard não os aceitara. Mas o seu moço de confiança tratava das terras de acordo com as suas ordens, com uma poupança perigosa, de tal modo que as colheitas diminuíam e tudo periclitava; e conversavam eles acerca das suas dificuldades, quando mestre Gouy entrou no laboratório, escoltado pela mulher, que se deixava ficar atrás, timidamente.

Graças a todas as operações que tinham sofrido, as terras haviam melhorado — e vinha para retomar a fazenda.

Disse mal dela. Apesar de todos os trabalhos que eles tinham feito, os lucros eram duvidosos; em suma, se a desejava era por amor à região e por gostar de tão bons patrões. Mandaram-no embora friamente. Voltou nessa mesma tarde.

Pécuchet fizera um sermão a Bouvard; iam ceder; Gouy pediu uma diminuição da renda; e como eles protestavam, começou a berrar mais do que a falar, puxando Deus como testemunha, enumerando as suas dificuldades, gabando os seus méritos. Quando o intimaram a dizer o seu preço, baixou a cabeça em vez de responder. Então a mulher, sentada perto da porta com um grande cesto em cima dos joelhos, recomeçava os mesmos protestos, piando em voz aguda como uma galinha ferida.

Por fim, o contrato ficou decidido por três mil francos por ano — menos um terço do que dantes.

Mestre Gouy ofereceu-se imediatamente para comprar as alfaias; e os diálogos recomeçaram.

A avaliação dos objetos durou quinze dias. Bouvard morria de cansaço com aquilo. Largou tudo por uma soma de tal modo irrisória que Gouy, primeiro, arregalou os olhos — e, exclamando: “Combinado!”, deu-lhe uma palmada na mão.

Depois disto, os proprietários, segundo o uso, convidaram-no a comer uma bucha lá em casa; e Pécuchet abriu uma das garrafas do seu málaga, menos por generosidade do que na esperança de conseguir elogios.

Mas o agricultor, fazendo má cara, disse: — É como xarope de alcaçuz — e a mulher “para fazer passar o gosto”

implorou um copo de aguardente.

Coisa mais grave os ocupava agora! Estavam enfim reunidos todos os elementos do “Bouvarino”.

Juntaram-nos na cucúrbita, com álcool, acenderam o fogo e esperaram. Entretanto, Pécuchet, atormentado pelo dissabor do málaga, tirou do armário as caixas de folha, fez saltar a tampa da primeira e depois da segunda e da terceira. Repelia-as com fúria, e chamou por Bouvard.

Bouvard fechou a torneira da serpentina para se precipitar para as conservas. A desilusão foi completa. As fatias de vitela pareciam solas cozidas; um líquido lodoso ocupava o lugar do lavagante; já não se reconhecia o peixe com cebolas e vinho tinto. Tinham crescido cogumelos na sopa — e um cheiro intolerável empestava o laboratório.

De repente, com o ruído de um obus, o alambique rebentou e desfez-se em estilhaços, que saltaram até o teto, estourando as marmitas, achatando as escumadeiras, despedaçando os vidros; o carvão espalhou-se, o fornilho ficou destruído; no dia seguinte Germaine encontrou uma espátula no pátio.

A força do vapor quebrara o aparelho, tanto mais que a cucúrbita se encontrava cavilhada ao capitel.

Pécuchet agachara-se imediatamente atrás da cuba, e Bouvard como que se tinha desmoronado num banquinho.

Durante dez minutos permaneceram nesta posição, não se atrevendo a um único movimento, pálidos de terror, no meio dos cacos. Quando conseguiram recuperar a palavra, perguntaram um ao outro qual era a causa de tantos infortúnios, e sobretudo do último — e não compreendiam nada, a não ser que quase tinham morrido. Pécuchet concluiu com estas palavras: — É talvez por não sabermos química!


III

Para saberem química, arranjaram o cusso de Regnault — e começaram por aprender que “os corpos simples talvez sejam compostos”.

Dividem-se em metaloides e metais — diferença que “nada tem de absoluto”, diz o autor. Do mesmo modo, quanto aos ácidos e às bases, “um corpo pode comportar-se como os ácidos ou como as bases, consoante as circunstâncias”.

A notação pareceu-lhes barroca. As Proporções múltiplas perturbaram Pécuchet.

— Supondo que uma molécula de A se combina com várias partes de B, parece-me que essa molécula deve dividir-se em outras tantas partes; mas se se divide, deixa de ser a unidade, a molécula primordial. Enfim, não percebo nada.

— Eu também não! — dizia Bouvard.

E recorreram a uma obra menos difícil, a de Girardin — onde adquiriram a certeza de que dez litros de ar pesam cem gramas, que não entra chumbo nos lápis, que o diamante é apenas carbono.

O que os pasmou acima de tudo é que a terra como elemento não existe.

Aprenderam a manobrar o maçarico, noções sobre o ouro, a prata, a lixívia da roupa, a estanhadura das caçarolas; depois, sem o mínimo escrúpulo, Bouvard e Pécuchet lançaram-se na química orgânica.

Que maravilha encontrar nos seres vivos as mesmas substâncias que compõem os minerais! Contudo, sentiam uma espécie de humilhação perante a ideia de que os seus indivíduos continham fósforo como os fósforos, albumina como as claras dos ovos, gás hidrogênio como os candeeiros de iluminação pública.

Depois das cores e dos corpos gordos chegou a vez da fermentação.

Levou-os ela aos ácidos — e a lei dos equivalentes embaraçou-os mais uma vez. Trataram de a esclarecer com a teoria dos átomos, o que acabou de os perder.

Para entenderem tudo aquilo, segundo Bouvard, precisariam de aparelhos. A despesa era considerável; e já tinham feito muita.

Mas o doutor Vaucorbeil podia sem dúvida elucidá-los.

Apareceram na hora das consultas.

— Senhores, sou todo ouvidos! Que mal os aflige?

Pécuchet replicou que não estavam doentes e, depois de expor a finalidade da visita, disse: — Desejamos conhecer primeiramente a atomicidade superior.

O médico corou muito e depois censurou-os por quererem aprender química.

— Não nego a sua importância, podem estar certos!

Mas atualmente metem-na em todo o lado! Ela exerce sobre a medicina uma ação deplorável. — E a autoridade da sua palavra reforçava-se com o espetáculo das coisas que o rodeavam.

Em cima da lareira havia diaquilão e ligaduras. O estojo de cirurgia estava no meio da secretária. Sondas enchiam uma cuveta a um canto — e na parede estava a representação de um esfolado.

Pécuchet cumprimentou o médico por tudo aquilo.

— Deve ser um belo estudo, a Anatomia!

Vaucorbeil alargou-se acerca do encantamento que outrora sentia nas dissecções; e Bouvard perguntou quais são as relações entre o interior da mulher e o do homem.

Para o satisfazer, o médico tirou da estante uma colectânea de estampas anatômicas.

— Levem-nas! Podem vê-las em casa mais à vontade!

O esqueleto espantou-os pela proeminência da mandíbula, os buracos dos olhos, o comprimento assustador das mãos. Faltava-lhes uma obra explicativa; voltaram a Vaucorbeil e, graças ao manual de Alexandre Lauth, aprenderam as divisões da ossada, pasmando com a espinha dorsal, dezesseis vezes mais forte, diz-se, do que se o Criador a tivesse feito reta. Por que dezesseis vezes, precisamente?

Os ossos do metacarpo desolaram Bouvard; Pécuchet, obstinado no crânio, perdeu a coragem diante do esfenoide, embora se assemelhe a uma “sela turca, ou túrcica”.

Quanto às articulações, eram ocultadas por excessivos ligamentos — e atacaram os músculos.

Mas as inserções não eram cômodas de descobrir — e, chegados às goteiras vertebrais, desistiram completamente.

Então Pécuchet disse: — E se voltássemos à química? Quanto mais não fosse para utilizar o laboratório!

Bouvard protestou; e julgou lembrar-se de que se fabricavam para uso nos países quentes cadáveres artificiais.

Barberou, a quem escreveu, deu-lhe informações a este respeito — por dez francos por mês podiam ter um dos homenzinhos do Sr. Auzoux; e na semana seguinte o recoveiro de Falaise colocou diante da grade um caixote oblongo.

Transportaram-no para a casa do forno, cheios de emoção. Quando se despregaram as tábuas, a palha caiu, os papéis de seda escorregaram, o manequim apareceu.

Era cor de tijolo, sem cabeleira, sem pele, colorido de inúmeros fios azuis, vermelhos e brancos. Não se parecia nada com um cadáver, mas com uma espécie de brinquedo, bastante desagradável, muito limpo e a cheirar a verniz.

Depois retiraram o tórax; e viram os dois pulmões, parecidos com duas esponjas, o coração como um grande ovo, um pouco de lado visto de trás, o diafragma, os rins, todo o embrulho das tripas.

— Ao trabalho! — disse Pécuchet.

Naquilo passaram o dia e a noite.

Tinham vestido batas, como fazem os estudantes de medicina nos anfiteatros, e à luz de três velas trabalhavam nos seus pedaços de cartão quando ouviram um punhada na porta. — Abram!

Era o Sr. Foureau, seguido do guarda rural.

Os patrões de Germaine tinham-se divertido a mostrar-lhe o homenzinho. Ela fora a correr ao merceeiro para contar a novidade; e toda a aldeia julgava agora que eles tinham em casa um verdadeiro morto. Foureau, cedendo ao rumor público, vinha certificar-se do fato. Havia curiosos no pátio.

O manequim, quando ele entrou, estava deitado de lado; e como os músculos da face estavam desprendidos, o olho formava uma saliência monstruosa, era algo de pavoroso.

— O que o traz por aqui? — disse Pécuchet.

Foureau balbuciou: — Nada! Nada mesmo! — e pegando uma das peças em cima da mesa: — Que é isto?

— O bucinador! — respondeu Bouvard.

Foureau calou-se — mas sorria velhacamente, com ciúmes de que eles tivessem um divertimento acima da sua competência.

Os dois anatomistas fingiram continuar as suas investigações. As pessoas que se aborreciam no limiar tinham entrado na casa do forno — e, como se empurravam umas às outras, a mesa tremeu.

— Ah! É demais! — exclamou Pécuchet. — Tire-nos daqui o público!

O guarda rural mandou embora os curiosos.

— Muito bem! — disse Bouvard — não precisamos aqui de ninguém!

Foureau compreendeu a alusão; e perguntou-lhe se eles tinham o direito, não sendo médicos, de possuir um objeto daqueles. Aliás, ia escrever ao Prefeito. — Que país este!

Não se podia ser mais inepto, selvagem e retrógrado! A comparação que fizeram entre eles próprios e os outros consolou-os. Ambicionavam sofrer pela ciência.

O médico também os veio visitar. Depreciou o manequim como muito afastado da natureza; mas aproveitou a circunstância para dar uma lição.

Bouvard e Pécuchet ficaram encantados e, por desejo deles, o Sr. Vaucorbeil emprestou-lhes vários volumes da sua biblioteca, afirmando contudo que não iriam, até o fim.

Eles tomaram nota, no Dicionário das Ciências Médicas, dos exemplos de partos, longevidade, obesidade e obstipações extraordinárias. Como não tinham conhecido eles o famoso Canadiano de Beaumont, os polífagos Tarare e Bijoux, a mulher hidrópica do departamento do Eure, o piemontês que ia à retrete de vinte em vinte dias, Cimorre de Mirepoix que morreu ossificado e aquele antigo presidente da câmara de Angoulême cujo nariz pesava três libras!

O cérebro inspirou-lhes reflexões filosóficas. Distinguiam-lhe muito bem lá dentro o septum lucidum, composto de duas lamelas, e a glândula pineal, que se assemelha a uma ervilhinha vermelha. Mas havia pedúnculos e ventrículos, arcos, pilares, andares, gânglios e fibras de toda a espécie, e o forâmen de Pacchioni, e o corpo de Pacini, em suma, um amontoado inextricável, que chegava para lhes desgastar a existência.

Às vezes, numa vertigem, desmontavam completamente o cadáver, e depois viam-se em dificuldades para colocar os pedaços nos seus lugares.

Este trabalho era rude, sobretudo depois do almoço; e não tardavam a adormecer, Bouvard de queixo para baixo, o abdômen para a frente, Pécuchet de cabeça apoiada nas mãos, com os dois cotovelos na mesa.

Muitas vezes, naquela altura, o Sr. Vaucorbeil, que acabava as suas primeiras visitas, entreabria a porta.

— Então, colegas, como vai a anatomia?

— Perfeitamente! — respondiam eles.

Então ele fazia perguntas pelo prazer de os confundir.

Quando estavam cansados de um órgão, passavam a outro — assim estudando e abandonando sucessivamente o coração, o estômago, o ouvido, os intestinos; porque o homenzinho de cartão os aborrecia, apesar dos seus esforços por se interessarem por ele. O médico acabou por surpreendê-los no momento em que voltavam a pregá-lo na sua caixa.

— Bravo! Já estava à espera disso. — Na idade deles não se podiam fazer aqueles estudos; e o sorriso que acompanhava as suas palavras magoou-os profundamente.

Que direito tinha ele de os julgar incapazes? Acaso pertenceria a ciência àquele cavalheiro? Como se fosse uma personagem muito superior!

Portanto, aceitando o seu desafio, foram até Bayeux para comprar livros. O que lhes faltava era a fisiologia; e um alfarrabista arranjou-lhes os tratados de Richerand e de Adelon, célebres na época.

Todos os lugares-comuns sobre as idades, os sexos e os temperamentos lhes pareceram da mais alta importância. Ficaram bem contentes por saber que há no tártaro dos dentes três espécies de animálculos, que a sede do gosto está debaixo da língua e a sensação da fome no estômago.

Para apreender melhor as Funções, lamentavam não ter a faculdade de ruminar, como a tinham tido Montegre, M. Gosse e o irmão de Bérard; e mastigavam com lentidão, trituravam, salivavam, acompanhando com o pensamento o bolo alimentar nas suas entranhas; seguiam-no mesmo até as suas últimas consequências, cheios de escrúpulo metódico, de atenção quase religiosa.

Para produzir digestões artificialmente encheram de carne um frasquinho onde estava o suco gástrico de um pato — e andaram com ele debaixo do braço durante quinze dias, sem outro resultado além do de infectarem as suas pessoas.

Foram vistos a correr pela estrada principal, vestidos com roupa molhada e sob a ardência do sol. Era para verificarem se a sede acalma com a aplicação de água na epiderme. Regressaram ofegantes; e ambos constipados.

A audição, a fonação, a visão, foram aviadas rapidamente. Mas Bouvard alargou-se sobre a geração.

As reservas de Pécuchet nesta matéria sempre o haviam surpreendido. A sua ignorância pareceu-lhe tão completa que o instou a explicar-se — e Pécuchet, corando, acabou por fazer uma confissão.

Em tempos, uns brincalhões tinham-no arrastado para um casa de má nota — donde tinha fugido, guardando-se para a mulher que mais tarde viesse a amar; nunca acontecera uma circunstância feliz; de tal modo que, por falsa vergonha, embaraço pecuniário, temor das doenças, teimosia, hábito, aos cinquenta e dois anos, e apesar da estada na capital, detinha ainda a sua virgindade.

Bouvard teve dificuldade em acreditar nele — e depois riu-se enormemente; mas deteve-se ao avistar lágrimas nos olhos de Pécuchet.

Porque a ele não lhe tinham faltado paixões — apaixonara-se sucessivamente por uma dançarina de corda, pela cunhada de um arquiteto, por uma empregada de balcão e finalmente por uma pequena lavadeira; e o casamento ia até realizar-se, quando descobrira que ela estava grávida de outro.

Bouvard disse-lhe: — Há sempre uma maneira de recuperar o tempo perdido; vá, nada de tristezas! Se tu quiseres, encarrego-me...

Pécuchet replicou, suspirando, que não se pensava mais nisso. E continuaram com a sua fisiologia.

Será verdade que a superfície do nosso corpo exala constantemente um vapor subtil? A prova é que o peso de um homem decresce em cada minuto. Se em cada dia se operar a adição do que falta e a subtração do que sobra, a saúde manter-se-á em perfeito equilíbrio. Sanctorius, o inventor desta lei, gastou meio século a pesar quotidianamente a sua alimentação com todas as suas excreções, e pesava-se a si mesmo, só descansando para escrever os seus cálculos.

Tentaram imitar Sanctorius. Mas como a balança que tinham não podia com os dois, foi Pécuchet quem começou.

Tirou a roupa, para não perturbar a perspiração — e mantinha-se em cima do prato, completamente nu, exibindo, apesar do pudor, o seu tronco muito comprido que parecia um cilindro, as pernas curtas, os pés chatos e a pele morena.

Ao seu lado, numa cadeira, o amigo fazia a leitura.

Há sábios que pretendem que o calor animal se desenvolve pelas contrações musculares, e que é possível, agitando o tórax e os membros pélvicos, elevar a temperatura de um banho morno.

Bouvard foi buscar a banheira — e, quando tudo ficou pronto, mergulhou nela de termômetro em punho.

As ruínas da destilaria varridas para o fundo da sala desenhavam na sombra um vago montículo. Ouvia-se intervaladamente o roer dos ratos; pairava um velho odor a plantas aromáticas — e como se sentiam ali muito bem, conversavam serenamente.

No entanto, Bouvard sentia que o banho estava um pouco fresco.

— Agita os membros! — disse Pécuchet.

Ele agitou-os sem alterar o termômetro. — Está frio, não há dúvidas.

— Eu também não tenho calor — retorquiu Pécuchet, igualmente tomado de um arrepio — mas agita os membros pélvicos! Agita-os!

Bouvard abriu as coxas, torcia os flancos, balançava o ventre, soprava como um cachalote — e depois olhava para o termômetro, que continuava a baixar. — Não percebo nada! E olha que me mexo! — Mas não o suficiente!

E continuava a sua ginástica.

Durara esta três horas, quando mais uma vez pegou no tubo.

— Ora esta! Doze graus! Ah, boa-noite! Eu retiro-me!

Entrou um cão, meio de fila e meio de caça, pelo amarelo, sarnento, de língua pendente.

Que fazer? Não havia campainhas e o criado era surdo.

Tremiam, mas não se atreviam a mexer-se, com medo de ser mordidos.

Pécuchet julgou hábil lançar ameaças, revirando os olhos.

Então o cão ladrou; e saltava e m torno d a balança, onde Pécuchet, aferrando-se às cordas e dobrando os joelhos, tratava de se erguer o mais possível.

— Estás a fazer mal — disse Bouvard; e começou com risadinhas para o cão proferindo palavras doces.

O cão deve tê-las compreendido. Tentava fazer-lhe meiguices, pespegava-lhe as patas nos ombros, arranhava-o com as unhas.

— Ora! Esta agora! Agora levou-me as ceroulas!

Ele deitou-se-lhes em cima e ficou quieto.

Por fim, com as maiores precauções, atreveram-se, um a descer do prato da balança e o outro a sair da banheira; e quando Pécuchet acabou de se vestir, escapou-lhe esta exclamação:

— Tu, meu rapaz, vais servir para as nossas experiências!

Quais experiências?

Podiam injetar-lhe fósforo e depois fechá-lo numa cave para ver se ele lançaria fogo pelas narinas. Mas como injetá-lo? Além disso, não iriam vender-lhes fósforo.

Pensaram fechá-lo debaixo da máquina pneumática, fazê-lo respirar gases, dar-lhe venenos a beber. Mas talvez nada daquilo tivesse graça! Acabaram por escolher a magnetização do aço pelo contato com a medula.

Bouvard, reprimindo a sua emoção, estendia um prato com agulhas a Pécuchet, que as espetava nas vértebras.

Partiam-se, escorregavam, caíam no chão; pegava outras e enfiava-as vigorosamente, ao acaso. O cão quebrou as amarras, passou como uma bala de canhão através das vidraças, atravessou o pátio, o vestíbulo, e apareceu na cozinha.

Germaine desatou aos gritos ao vê-lo todo ensanguentado, com ataduras em torno das patas.

Os patrões, que o perseguiam, entraram nesse mesmo momento. O cão deu um salto e desapareceu.

A velha criada interpelou-os.

— Mais uma das vossas asneiras, é claro! E a minha cozinha está limpa! Se calhar ele vai ficar com raiva! Há quem vá parar à prisão por menos que isto!

Voltaram para o laboratório para experimentar as agulhas. Nem uma atraiu a mínima limalha.

Depois a hipótese de Germaine inquietou-os. Ele podia ficar com raiva, regressar de repente e atirar-se a eles.

No dia seguinte andaram por toda a parte, pedindo informações — e durante vários anos desviavam-se nos campos logo que aparecia um cão semelhante àquele.

As outras experiências fracassaram. Contrariando os autores, os pombos que sangraram com o estômago cheio ou vazio demoraram o mesmo tempo para morrer. Gatinhos mergulhados em água morreram ao fim de cinco minutos — e um ganso que tinham empanturrado de garança apresentou periósteos de completa brancura.

A nutrição atormentava-os.

Como é que o mesmo suco pode produzir ossos, sangue, linfa e matérias excrementícias? Mas não se podem acompanhar as metamorfoses de um alimento. O homem que utiliza um só alimento é quimicamente semelhante ao que absorve vários. Vauquelin calculara toda a cal contida na aveia de uma galinha e veio a encontrar mais nas cascas dos respectivos ovos. Portanto, dá-se uma criação de substância. De que maneira? Não se sabe.

Não se sabe até qual é a força do coração. Borelli admite que é a necessária para erguer um peso de cento e oitenta mil libras e Keill avalia-a em cerca de oito onças. Donde concluíram que a Fisiologia é (segundo uma velha frase) o romance da medicina. Como não conseguiram compreendê-la, não acreditavam nela.

Um mês se passou em ociosidade. Depois pensaram no seu jardim.

A árvore morta atravessada era incômoda. Cortaram-na em pedaços. Este exercício fatigou-os. Bouvard precisava com muita frequência de mandar arranjar as ferramentas ao ferreiro.

Um dia em que ia para lá foi abordado por um homem que levava às costas um saco de pano e que lhe ofereceu almanaques, livros piedosos, medalhas benzidas e, por fim, o Manual da Saúde de François Raspail.

Esta brochura agradou-lhe tanto que escreveu a Barberou pedindo-lhe que lhe enviasse a grande obra. Barberou remeteu-a e indicava na carta uma farmácia para os medicamentos.

A clareza da doutrina seduziu-os. Todas as doenças provêm dos vermes. Eles estragam os dentes, escavam os pulmões, dilatam o fígado, devastam os intestinos e provocam-lhes ruídos. O que há de melhor para nos livrarmos deles é a cânfora. Bouvard e Pécuchet a adotaram. Cheiravam-na, mastigavam-na e distribuíam cigarros, frascos de água sedativa e pílulas de aloés. Começaram até a cura de um corcunda.

Era uma criança que tinham encontrado num dia de feira. A mãe, uma mendiga, trazia-o a casa deles todas as manhãs. Eles friccionavam-lhe a corcunda com gordura canforada, aplicavam durante vinte minutos uma cataplasma de mostarda e depois cobriam-na de diaquilão; para terem a certeza de que ele voltaria, davam-lhe de almoçar.

Com o espírito concentrado nos helmintos, Pécuchet observou na cara da Sra. Bordin uma mancha esquisita.

O doutor há muito tempo que a tratava com amargos; ao princípio redonda como uma moeda de vinte soldos, a mancha aumentara e formava um círculo cor-de-rosa. Pretenderam curá-la. Ela aceitou; mas exigia que fosse Bouvard a fazer-lhe as unções. Colocava-se diante da janela, desapertava a parte de cima do corpete e ficava de cara estendida, olhando-o com uns olhos que seriam perigosos. se não fosse a presença de Pécuchet. Nas doses permitidas, e apesar do pavor do mercúrio, administraram calomelanos. Um mês mais tarde, a Sra. Bordin estava salva.

Ela fez a propaganda deles; e o perceptor das contribuições, o secretário da Câmara, o próprio presidente, toda a gente em Chavignolles chupava pelo oco de penas.

Entretanto, o corcunda não se endireitava. O perceptor deixou os cigarros, que lhe redobravam as sufocações. Foureau queixou-se das pílulas de aloés, que lhe provocavam hemorroidas, Bouvard teve dores de estômago e Pécuchet atrozes dores de cabeça. Perderam confiança no Raspai!, mas tiveram o cuidado de não dizer nada, temendo diminuir a sua consideração.

E mostraram muito zelo pela vacinação, aprenderam a sangrar sobre folhas de couve, adquiriram até um par de lancetas.

Acompanhavam o médico a casa dos pobres e depois consultavam os seu livros.

Os sintomas notados pelos autores não eram os que acabavam de ver. Quanto ao nome das doenças, latim, grego, francês, uma salsada de todas as línguas.

São aos milhares, e a classificação de Lineu é bem cômoda, com os seus gêneros e as suas espécies; mas como determinar as espécies? Então perderam-se na filosofia da medicina.

Devaneavam sobre o arqueu de Van Helmont, o vitalismo, o brownismo, o organicismo, perguntavam ao médico de onde vem o germe da escrófula, para que lugar vai o miasma contagioso e o meio de distinguir em todos os casos mórbidos a causa e os seus efeitos.

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— A causa e o efeito confundem-se — respondia Vaucorbeil.

Esta falta de lógica desgostou-os; e visitaram os doentes sozinhos, entrando nas casas a pretexto de filantropia.

Ao fundo dos quartos, em sima de sujos colchões, estavam estendidas pessoas de rosto caído para o lado, outras que o tinham inchado e de um vermelho escarlate, ou cor de limão, ou então roxo, com narinas contraídas, a boca tremente; e estertores, soluços, suores, exalações a couro e queijo velho.

Eles liam as receitas dos médicos e ficavam muito surpreendidos de que os calmantes fossem por vezes excitantes, os vomitórios purgantes, que o mesmo remédio conviesse a doenças diversas e que uma doença se fosse com tratamentos opostos.

Contudo, davam conselhos, reforçavam o moral, tinham a audácia de auscultar.

A sua imaginação trabalhava. Escreveram ao Rei, para que fosse instalado no Calvados um instituto de enfermeiros, de que seriam os professores.

Foram ao farmacêutico de Bayeux (o de Falaise continuava de mal com eles por causa da jujuba) e convenceram-no a fabricar, como os Antigos, pila purgatoria, isto é, bolinhas de medicamentos que de tanto serem apertadas na mão se absorvem no indivíduo.

Seguindo o raciocínio de que diminuindo o calor se impedem as flegmasias, penduraram das vigas do teto, sentada na sua cadeira, uma mulher com meningite e a balançaram, empurrando-a com os braços até o marido chegar e colocá-los na rua.

Por fim, com grande escândalo do Sr. prior, tinham adotado a moda nova de introduzir termômetros nos traseiros.

Espalhou-se pelos arredores uma febre tifoide: Bouvard declarou que não ia meter-se nisso. Mas a mulher de Gouy, o rendeiro, veio lamentar-se lá a casa. O seu homem estava doente havia quinze dias ; e o Sr. Vaucorbeil não lhe ligava nenhuma.

Pécuchet consagrou-se ao doente.

Manchas lenticulares no peito, dores nas articulações, ventre inchado, língua vermelha, eram todos os sinais do tifo. Recordando-se da frase de Raspail segundo a qual retirando a dieta se suprime a febre, receitou caldos e um pouco de carne. De repente, apareceu o médico.

O doente estava a comer, com dois travesseiros por trás das costas, entre a caseira e Pécuchet, que o animavam.

Ele chegou-se à cama e atirou o prato pela janela, exclamando: — É um verdadeiro assassínio!

— Por quê?

— O senhor está a perfurar-lhe o intestino, visto que a febre tifoide é uma alteração da membrana folicular.

— Nem sempre!

E travou-se uma discussão sobre a natureza das febres.

Pécuchet acreditava na sua essência. Vaucorbeil fazia-as depender dos órgãos. — Por isso afasto tudo o que possa sobrexcitar!

— Mas a dieta enfraquece o princípio vital!

— Lá vem o senhor com o seu princípio vital! Como é ele? Quem o viu?

Pécuchet embrulhou-se.

— De resto — dizia o médico — Gouy não quer alimentos.

O doente fez um gesto de assentimento debaixo do seu barrete de algodão.

— Não interessa! Precisa deles!

— Nunca! O pulso dá-lhe noventa e oito pulsações.

— Que interessam as pulsações! — E Pécuchet nomeou as suas autoridades.

— Deixemos Os sistemas! — disse o doutor.

Pécuchet cruzou os braços.

— Então o senhor é um empírico?

— De modo nenhum! Mas vou observando.

— E se se observar mal?

Vaucorbeil tomou esta palavra como uma alusão à herpes da Sra. Bordin, história de que a viúva fizera alarido e cuja recordação o irritava.

— Primeiro, é preciso ter prática.

— Os que revolucionaram a ciência não a tinham! Van Helmont, Boerhaave, o próprio Broussais.

Vaucorbeil, sem responder, inclinou-se para Gouy e disse erguendo a voz: — Qual de nós dois escolhe você como médico?

O doente, sonolento, distinguiu rostos encolerizados e começou a chorar.

A mulher também não sabia que responder; porque um era hábil, mas o outro talvez tivesse um segredo...

— Muito bem! — disse Vaucorbeil. — Visto que oscilam entre um homem com um diploma... — Pécuchet riu sardonicamente. — Por que se está a rir?

— É que um diploma nem sempre é argumento!

O médico estava a ser atacado no seu ganha-pão, nas suas prerrogativas, na sua importância social. A cólera desatou-se-lhe.

— Vê-lo-emos quando o senhor comparecer perante os tribunais por exercício ilegal da medicina! — E depois, virando-se para a rendeira: — Faça com que este senhor o mate à sua vontade, e seja eu enforcado se alguma vez voltar a sua casa.

E enfiou pelo faial, gesticulando com a bengala.

Bouvard, quando Pécuchet regressou, também estava em grande agitação.

Acabava de receber Foureau, exasperado pelas suas hemorroidas. Em vão defendera que elas preservam de todas as doenças, porque Foureau não ouvia nada e tinha-o ameaçado com perdas e danos. Estava de cabeça perdida.

Pécuchet contou-lhe a outra história, que considerava mais séria — e ficou um pouco chocado pela sua indiferença.

Gouy, no dia seguinte, teve uma dor no abdômen. Estaria aquilo relacionado com a ingestão de alimentos? Talvez Vaucorbeil não estivesse enganado. A verdade é que um médico vai saber disso! E Pécuchet foi assaltado de remorsos. Receava ser homicida.

Por prudência, mandaram embora o corcunda. Mas por causa do almoço que lhe escapava, a mãe gritou muito. Não era pelo trabalho de tê-los obrigado a vir todos os dias de Barneval até Chavignolles!

Foureau acalmou-se — e Gouy recuperava forças. Agora a cura era certa; um êxito assim tornou Pécuchet mais atrevido.

— E se nós experimentássemos os partos, com um daqueles manequins...

— Basta de manequins!

— São meios-corpos de pele, inventados para os estudantes, futuros parteiros. Parece-me que era capaz de dar a volta ao feto...

Mas Bouvard estava cansado da medicina.

— As molas da vida estão-nos ocultas, as doenças são muito numerosas, os remédios problemáticos; e não se descobre nos autores qualquer definição razoável de saúde, de doença, de diátese, nem sequer de pus!

No entanto, todas aquelas leituras lhes tinham abalado os miolos.

Bouvard, numa gripe, imaginou que começava um fluxo no peito. Como sanguessugas não enfraqueceram a dor nas costas, recorreu a um vesicatório, cuja ação incidiu nos rins. Então julgou-se com pedra.

Pécuchet ficou muito cansado com a poda da azinhaga e vomitou depois de jantar, o que o assustou muito. Depois, observando que tinha a tez um pouco amarelada, suspeitou de uma doença de fígado, e perguntava a si mesmo: “Tenho dores?” — E acabou por tê-las.

Entristecendo-se mutuamente, olhavam para as respectivas línguas, apalpavam-se os pulsos, mudavam de água mineral, purgavam-se; e temiam o frio, o calor, o vento, a chuva, as moscas, principalmente as correntes de ar.

Pécuchet pensou que o uso do rapé era funesto. De resto, às vezes um espirro provoca a ruptura de um aneurisma — e abandonou a tabaqueira. Por hábito, mergulhava nela os dedos e depois, de repente, recordava-se da sua imprudência.

Como o café puro abala os nervos, Bouvard quis renunciar à sua meia xícara; mas dormia depois das refeições e tinha medo ao acordar, porque o sono prolongado é uma ameaça de apoplexia.

O ideal deles era Cornaro, aquele fidalgo veneziano que, à força de regime, atingiu uma longevidade extrema.

Sem o imitar em absoluto, pode-se ter as mesmas precauções, e Pécuchet retirou da sua biblioteca um Manual de Higiene pelo Doutor Morin.

Como tinham eles conseguido viver até então? Os pratos de que gostavam estavam proibidos na obra. Germaine, embaraçada, já não sabia que havia de lhes servir.

Todas as carnes têm inconvenientes. A morcela e a salsicharia, o arenque fumado, o lavagante e a caça são “refractários”. Quanto maior é um peixe mais gelatina contém e, por consequência, mais pesado é. Os legumes causam azias, o macarrão produz sonhos, os queijos “de uma maneira geral são de difícil digestão”. Um copo de água de manhã é “perigoso”; cada bebida ou comestível era seguida de um aviso semelhante, ou então destas palavras: “mau! — evite o abuso! — não convém a toda a gente.” Por que mau? onde está o abuso? como saber se determinada coisa nos convém?

Que problema, o do pequeno-almoço! Deixaram o café com leite, por causa da sua detestável reputação; e em seguida o chocolate — porque é “Um amontoado de substâncias indigestas”; portanto, ficava o chá. Mas “as pessoas nervosas devem evitá-lo completamente”. No entanto, Decker, no século XVII, prescrevia vinte decalitros por dia para limpar os pântanos do pâncreas.

Esta informação abalou Morin na estima que lhe votavam, tanto mais que ele condena todos os chapéus, barretes e bonés, exigência que revoltou Pécuchet. Então compraram o tratado de Becquerel, onde viram que o porco é em si mesmo <mm bom alimento”, o tabaco de perfeita inocência e o café “indispensável aos militares”.

Até então tinham acreditado na insalubridade dos locais úmidos. De modo nenhum! Casper declara-os menos mortais que os outros. Ninguém toma banho no mar sem ter primeiro refrescado a pele. Bégin pretende que as pessoas se lancem à água em plena transpiração. O vinho puro depois da sopa passa por ser excelente para o estômago. Lévy acusa-o de alterar os dentes. Por fim, a camisola interior, essa defesa, esse tutor da saúde, esse paládio querido de Bouvard e inerente a Pécuchet, sem rodeios nem receio da opinião dos outros, autores há que a desaconselham aos homens pletóricos e sanguíneos.

Que é então a higiene?

“Verdade aquém dos Pirenéus, erro para além deles”, afirma Lévy; e Becquerel acrescenta que ela não é uma ciência.

Então encomendaram para o jantar ostras, um pato, porco com couves, natas, um Pont-l'Évêque, uma garrafa de borgonha. Foi uma libertação, quase uma vingança; e troçavam de Cornaro! Só um imbecil se tiranizava como ele! Que baixeza pensar sempre no prolongamento da própria vida! A vida só é boa desde que seja gozada.

— “Mais um bocado?” — “Eu quero.” — Eu também!” — “À tua saúde!”

— “À tua!” — “E não liguemos ao resto!” Exaltavam-se.

Bouvard anunciou que queria três xícaras de café, embora não fosse militar. Pécuchet, de boné sobre as orelhas, tomava sucessivas pitadas de tabaco, espirrava sem medo e, sentindo a necessidade de um pouco de champanhe, ordenaram a Germaine que fosse logo à taberna comprar-lhes uma garrafa. A aldeia era muito longe. Ela recusou-se. Pécuchet ficou indignado.

— Intimo-a, está a ouvir? Intimo-a a ir já a correr.

Ela obedeceu, mas resmungando, resolvida a não tardar a abandonar os patrões, de tal modo eles eram incompreensíveis e fantasiosos.

Depois, como dantes, foram tomar o ponche para o cabeço da latada.

A ceifa tinha acabado havia pouco — e no meio dos campos as medas erguiam os seus volumes negros sobre a cor da noite, azulada e suave. As fazendas estavam tranquilas. Já nem sequer se ouviam os grilos. Todo o campo dormia. Digeriam, sorvendo a brisa que lhes refrescava as faces.

O céu muito alto estava coberto de estrelas; umas brilhavam aos grupos, outras em fila, ou então isoladas com intervalos distantes. Uma zona de poeira luminosa, que ia de setentrião a meridião, bifurcava-se por cima das suas cabeças. Havia entre essas claridades grandes espaços vazios; e o firmamento parecia um mar azul, com arquipélagos e ilhotas.

— Que quantidade! — exclamou Bouvard.

— E não vemos tudo! — continuou Pécuchet. — Por trás da Via Láctea estão as nebulosas; para além das nebulosas mais estrelas! A mais próxima está separada de nós por trezentos biliões de miriâmetros! — Ele espreitara frequentes vezes pelo telescópio da Place Vendôme e recordava-se dos números.

O sol é um milhão de vezes maior do que a Terra, Sirius tem doze vezes a grandeza do sol, há cometas que medem trinta e quatro milhões de léguas!

— É de enlouquecer — disse Bouvard. Deplorou a sua ignorância e lamentava até não ter passado, na sua juventude, pela Escola Politécnica.

Então Pécuchet, virando-o para a Ursa Maior, mostrou-lhe a Estrela Polar e depois a Cassiopeia, cuja constelação forma um Y, Vega da Lira, toda cintilante, e, na base do horizonte, a vermelha Aldebarã.

Bouvard, de cabeça para trás, seguia penosamente os triângulos, os quadriláteros, os pentágonos que é preciso imaginar para nos orientarmos no céu.

Pécuchet continuou: — A velocidade da luz é de oitenta mil léguas por segundo. Um raio da Via Láctea leva seis séculos a chegar até nós — de tal modo que uma estrela, quando a observamos, pode ter desaparecido. Várias são as intermitentes, outras nunca voltam; e mudam de posição, tudo se agita, tudo passa.

— No entanto, o Sol está imóvel?

— Antes pensava-se assim. Mas os sábios de hoje anunciam que ele se precipita para a constelação de Hércules!

Aquilo perturbava as ideias de Bouvard... e disse, depois de um minuto de reflexão: — A ciência faz-se segundo os dados fornecidos por um cantinho de toda a extensão. Talvez não se adeque a todo o resto que ignora, que é muito maior e que não podemos descobrir.

Falavam assim, de pé no cabeço da latada, sob a luz dos astros — e os seus discursos eram entrecortados de longos silêncios.

Por fim, interrogaram-se sobre s e haveria homens nas estrelas. Porque não? E como a criação é harmônica, os habitantes de Sirius deviam ser desmesurados, os de Marte de tamanho médio, os de Vênus bem pequenos. A não ser que seja tudo igual em toda parte... Existem lá em cima comerciantes e guardas, lá se negocia, lá se batem uns nos outros, lá se destronam reis!...

Algumas estrelas cadentes escorregaram de repente, descrevendo no céu como que a parábola de um monstruoso foguete.

— Olha! — disse Bouvard — ali vão mundos que desaparecem.

Pécuchet continuou: — Se o nosso, por sua vez, desse um salto, os cidadãos das estrelas não estariam mais emocionados do que nós estamos agora! Tais ideias reforçam-nos o orgulho.

— Qual é o objetivo de tudo aquilo?

— Talvez não haja.

— Mesmo assim! — e Pécuchet repetiu duas ou três vezes “mesmo assim”, sem encontrar nada mais para dizer. — Seja como for! Bem gostaria de saber como se faz o universo!

— Isso deve estar no Buffon! — respondeu Bouvard, cujos olhos se fechavam. — Eu não posso mais! Vou-me deitar!

As Épocas da Natureza ensinaram-lhes que um cometa, ao chocar com Sol, soltara uma porção dele, que veio a ser a Terra. Primeiro, os polos tinham arrefecido. Todas as águas tinham envolvido o globo. Haviam-se retirado para as cavernas e depois dividiram-se os continentes, apareceram os animais e o homem.

A majestade da criação causou-lhes um pasmo infinito como ela. As suas mentes dilatavam-se. Estavam orgulhosos de refletir em tão grandes temas.

Os minerais não tardaram a fatigá-los; e recorreram como distração às Harmonias de Bernardin de Saint-Pierre.

Harmonias vegetais e terrestres, aéreas, aquáticas, humanas, fraternas e até conjugais, tudo por ali passou — sem omitir as invocações a Vênus, aos Zéfiros e aos Amores! E espantavam-se de que os peixes tivessem barbatanas, os pássaros asas, as sementes um invólucro — cheios daquela filosofia que descobre na Natureza intenções virtuosas e a considera uma espécie de São Vicente de Paulo sempre ocupado a espalhar mercês!

Admiraram em seguida os seus prodígios, as trombas, os vulcões, as florestas virgens; compraram a obra do Sr. Depping sobre as Maravilhas e Belezas da Natureza em França. O Cantal possui três, o Hérault cinco, a Borgonha duas — não mais —, enquanto o Delfinado conta, por si só, quinze maravilhas! Mas não tardará que não possamos mais encontrá-las! As grutas de estalactites tapam-se, as montanhas ardentes extinguem-se, os glaciares naturais aquecem; e as velhas árvores em que se dizia a missa caem sob o machado dos arroteadores, ou estão a morrer.

Depois a sua curiosidade virou-se para os bichos.

Tornaram a abrir o seu Buffon e extasiaram-se perante os gostos estranhos de certos animais.

Mas como nem todos os livros valem uma observação pessoal, entravam nos pátios das fazendas e perguntavam aos agricultores se tinha visto touros juntar-se a éguas, os porcos procurarem as vacas e os machos das perdizes cometerem torpezas entre si.

— Nunca na vida! — Achavam até estas perguntas um pouco esquisitas para cavalheiros da sua idade.

Quiseram então tentar alianças anormais.

A menos difícil é a do bode e da ovelha. O rendeiro deles não tinha bode. Uma vizinha emprestou o dela; e quando chegou a época do cio, fecharam os dois animais no lagar, escondendo-se atrás das pipas, para que o acontecimento se pudesse realizar em paz.

De início, cada um comeu o seu pequeno montinho de feno. Depois, ruminaram e a ovelha deitou-se; e balia constantemente, enquanto o bode, muito direito nas suas pernas torcidas, com a sua grande barba e as orelhas pendentes, fitava neles uns olhos que brilhavam na sombra.

Por fim, na tarde do terceiro dia, acharam conveniente facilitar a natureza. Mas o bode virou-se contra Pécuchet e vibrou-lhe uma cornada no baixo-ventre. A ovelha, tomada de medo, pôs-se a andar às voltas no lagar como num picadeiro. Bouvard correu atrás dela, lançou-se-lhe por cima para a segurar e caiu no chão com punhados de lã nas duas mãos.

Recomeçaram as suas tentativas com galinhas e um pato e um cão de fila e uma porca, na esperança de que dali saíssem monstros, e nada percebiam do problema da espécie.

Esta palavra designa um grupo de indivíduos cujos descendentes se reproduzem. Mas animais classificados como sendo de espécies diferentes podem reproduzir-se e outros incluídos na mesma perderam essa faculdade.

Conceberam a esperança de obter a este respeito ideias nítidas através do estudo do desenvolvimento dos germes; e Pécuchet escreveu a Dumouchel para arranjar um microscópio.

Colocaram sucessivamente na placa de vidro cabelos, tabaco, unhas, uma pata de mosca. Mas tinham-se esquecido da gota de água, indispensável. Outras vezes, era a pequena lamela; e empurravam-se, desregulavam o instrumento; depois, distinguindo apenas uma névoa, acusavam o óptico. Chegaram a duvidar do microscópio. As descobertas que se lhe atribuem talvez não sejam tão positivas como isso.

Dumouchel, ao mandar-lhes a factura, pediu-lhes que recolhessem para ele amonites e ouriços-do-mar, curiosidades de que continuava a ser amador, e frequentes naquela região. Para os animar à geologia, enviava-lhes as Cartas de Bertrand com o Discurso sobre as Revoluções do Globo de Cuvier.

Depois destas duas leituras, imaginaram as coisas seguintes.

De início, uma imensa toalha de água, donde emergiam promontórios, salpicados de líquenes; e nem um ser vivo, nem um grito; era um mundo silencioso, imóvel e nu. — Depois, longas plantas oscilavam numa bruma que se assemelhava ao vapor de uma estufa. Um sol completamente vermelho sobreaquecia a atmosfera úmida. Então rebentaram vulcões, as rochas ígneas brotavam das montanhas; e a massa dos pórfiros e dos basaltos que escorria solidificou-se. — Terceiro quadro: em mares pouco profundos surgiram ilhas de madréporas dominadas aqui e além por um tufo de palmeiras. Existem conchas semelhantes a rodas de carros, tartarugas com três metros, lagartos de sessenta pés. Há anfíbios que esticam entre as canas os seus pescoços de avestruz com mandíbula de crocodilo. Voam serpentes aladas. — Por fim, nos grandes continentes, apareceram grandes mamíferos, os membros disformes como peças de madeira mal cortadas, o couro mais espesso que placas de bronze, ou então peludos, beiçudos, com crinas e defesas de complicados contornos. Rebanhos de mamutes pastavam nas planícies onde depois foi o Atlântico; o paleotério, metade cavalo e metade tapir, punha em desordem com a sua tromba os formigueiros de Montmartre, e o cervus giganteus tremia debaixo dos castanheiros ao ouvir a voz do urso das cavernas, que fazia ganir na sua toca o cão de Beaugency, três vezes mais alto do que um lobo.

Todas estas épocas tinham sido separadas umas das outras por cataclismos, o último dos quais é o nosso dilúvio. Era como uma mágica em vários atos, que tinha o homem como apoteose.

Ficaram estupefatos por saber que existiam em pedras marcas de libélulas, patas de pássaros — e, depois de folhearem um dos manuais Roret, puseram-se à procura de fósseis.

Uma tarde, quando revolviam sílex no meio da estrada principal, passou o Sr. prior e disse, abordando-os numa voz untuosa:

— Então os senhores ocupam-se de geologia? Muito bem!

Porque estimava essa ciência. Ela confirma a autoridade das Escrituras, provando o Dilúvio.

Bouvard falou dos coprólitos, que são excrementos de animais petrificados.

O padre Jeufroy pareceu surpreendido com o fato; a verdade é que, se existiam, essa era mais uma razão para admirar a Providência.

Pécuchet confessou que as suas pesquisas até então não tinham sido frutuosas — e contudo os arredores de Falaise, como todos os terrenos jurássicos, deviam ser abundantes em restos de animais.

— Ouvi dizer — replicou o padre Jeufroy — que em tempos encontraram em Villers a mandíbula de um elefante. — De resto, um dos seus amigos, o Sr. Larsonneur, advogado do tribunal de Lisieux e arqueólogo, talvez lhes fornecesse informações! Fizera uma história de Port-en-Bessin, onde estava anotada a descoberta de um crocodilo.

Bouvard e Pécuchet trocaram uma olhadela; a mesma esperança lhes tinha ocorrido; e, apesar do calor, ficaram de pé durante muito tempo, interrogando o eclesiástico que se abrigava debaixo de um guarda-chuva de algodão azul.

Tinha a parte inferior do rosto um pouco pesada, com o nariz pontiagudo, e sorria continuamente, ou inclinava a cabeça fechando as pálpebras.

O sino da igreja repicou as ave-marias.

— Então boas-tardes, meus senhores! Dão-me licença, não é verdade?

Recomendados por ele, esperaram durante três semanas a resposta de Larsonneur. Por fim, chegou.

O homem de Villers que desenterrara o dente de mastodonte chamava-se Louis Bloche; faltavam os pormenores.

Quanto à sua história, ocupava um dos volumes da Academia Lexoviana, e ele não emprestava o seu exemplar com receio de desirmanar a coleção. No que tocava ao aligátor, tinha sido descoberto no mês de Novembro de 1825, na falésia das Hachettes, em Sainte-Honorine, perto de Port-en-Bessin, distrito de Bayeux. Seguiam-se saudações.

A obscuridade que envolvia o mastodonte aguçou o desejo de Pécuchet. Por sua vontade, iria imediatamente a Villers.

Bouvard objetou que, para se pouparem a uma deslocação talvez inútil, e decerto dispendiosa, convinha tirar informações — e escreveram ao presidente da Câmara do sítio uma carta onde lhe perguntavam que era feito de um tal Louis Bloche. Na hipótese de ter morrido, poderiam os seus descendentes ou colaterais informá-los acerca do seu precioso achado? Quando o fizera, em que lugar da comuna jazia aquele documento das idades primitivas? Tinham eles possibilidades de encontrar outros análogos? Qual era por dia o preço de um homem e de uma carroça?

E por mais que se dirigissem ao adjunto, e depois ao primeiro conselheiro municipal, não receberam de Villers quaisquer notícias. Por certo, os habitantes eram ciosos dos seus fósseis. A não ser que os vendessem aos Ingleses.

A viagem às Hachettes foi decidida.

Bouvard e Pécuchet tomaram a diligência de Falaise para Caen. Depois, uma caleça transportou-os de Caen a Bayeux — e de Bayeux foram a pé até Port-en-Bessin.

Não os tinham enganado. A costa das Hachettes apresentava pedras estranhas — e, seguindo as indicações do estalajadeiro, chegaram à beira-mar.

Como a maré estava baixa, punha a descoberto todos os seus calhaus, com uma pradaria de algas até a beira das ondas.

Pequenos sulcos cobertos de ervas recortavam a falésia, feita de terra mole e castanha que, ao endurecer, se tornava nos seus estratos inferiores uma muralha de pedra cinzenta. De lá caíam constantemente fios de água, enquanto o mar, ao longe, rosnava. Às vezes parecia suspender o seu pulsar; e apenas se ouvia então o ligeiro ruído das fontes.

Eles cambaleavam em cima de ervas viscosas, ou então tinham de saltar buracos. Bouvard sentou-se perto do mar e contemplou as vagas, não pensando em nada, fascinado, inerte. Pécuchet levou-o para a costa para lhe fazer ver uma amonite, incrustada na rocha, como um diamante na sua ganga. Partiram-se-lhes as unhas nela, precisavam de utensílios e aliás a noite estava a chegar. O céu estava afogueado a ocidente, e todo o lugar coberto de sombra. No meio dos sargaços quase negros, as poças de água alargavam-se.

O mar subia para eles; era tempo de regressarem.

No dia seguinte, logo de madrugada, com uma picareta e um enxadão, atacaram o fóssil, cujo invólucro estalou. Era uma amonite do tipo nodosus, roída nas pontas mas que pesava bem dezesseis libras, e Pécuchet, entusiasmado, exclamou: — O menos que podemos fazer é oferecê-la a Dumouchel!

Depois encontraram esponjas, terebrátulas, orcas, e nenhum crocodilo! À falta dele, esperavam uma vértebra de hipopótamo ou de ictiossáurio, uma ossada qualquer contemporânea do Dilúvio, quando distinguiram na falésia, à altura de um homem, contornos que desenhavam o perfil de um peixe gigantesco.

Deliberaram acerca dos meios de o conseguir.

Bouvard iria soltá-lo por cima, enquanto Pécuchet, por baixo, demoliria a rocha para o fazer descer, suavemente, sem o estragar.

Recuperavam o fôlego quando viram por cima das suas cabeças, no campo, um guarda-fiscal de capote, que gesticulava com ares de comando.

— Ora! Ele que nos deixe em paz! — e continuaram a sua tarefa, Bouvard na ponta dos pés batendo com o enxadão, e Pécuchet todo curvado escavando com a picareta.

Mas o guarda-fiscal reapareceu, mais embaixo, num vale, multiplicando os acenos: bem lhe ligavam eles! Um corpo oval arqueava-se debaixo da terra mais delgada, e inclinava-se, ia escorregar.

Outro indivíduo, com um sabre, apareceu de repente.

— Os vossos passaportes!

Era o guarda rural em ronda; e no mesmo momento chegou o homem da alfândega, vindo por uma ravina.

— Agarre-os, tio Morip, que se não a falésia vai desmoronar-se!

— É com um fim científico — respondeu Pécuchet.

Então caiu uma massa de terra, roçando-os tão de perto aos quatro que mais um pouco e estariam mortos.

Quando a poeira se dissipou, reconheceram um mastro de navio que se esfarelou debaixo da bota do guarda-fiscal.

Bouvard disse suspirando: — Não estávamos a fazer grande mal!

— Não se pode fazer nada dentro do domínio militar! — continuou o guarda rural. — Primeiro, quem são os senhores? Tenho que lhes lavrar um auto!

Pécuchet recalcitrou, gritando que era uma injustiça.

— Nada de discussões! Sigam-me!

Logo que chegaram ao porto, foram escoltados por uma multidão de garotos. Bouvard, vermelho como uma papoila, fingia um ar digno. Pécuchet, muito pálido, lançava olhares furiosos; aqueles dois estrangeiros, que levavam pedras nos lenços, não tinham bom aspecto. Provisoriamente, puseram-nos na estalagem, cujo dono, no limiar da porta, barrava a entrada. Depois o pedreiro exigiu as suas ferramentas; pagaram-nas; mais despesas! O guarda rural nunca mais voltava! Por quê? Por fim, foram libertados por um senhor que tinha a cruz de honra; e foram-se embora, depois de ter dado os seus apelidos, nomes próprios e domicílio, com o compromisso de serem no futuro mais cuidadosos.

Além de um passaporte, faltavam-lhes muitas coisas!

E, antes de realizar novas explorações, consultaram o Guia do Viajante Geólogo de Boné.

É preciso ter, em primeiro lugar, uma boa mochila de soldado, e depois uma cadeia de agrimensor, uma lima, pinças, uma bússola e três martelos, enfiados num cinto que se oculta debaixo da sobrecasaca e “vos defenderá assim daquela aparência original que se deve evitar em viagem”.

Como cajado, Pécuchet adotou francamente o cajado de turista, com seis pés de altura e longa ponta de ferro.

Bouvard preferia a bengala-guarda-chuva, ou guarda-chuva de vários ramos, cujo castão encolhe para agarrar a seda contida, à parte, num saquinho. Não esqueceram uns sapatos fortes, com polainas, para cada um “dois pares de suspensórios, por causa da transpiração” e, embora não pudessem “apresentar-se por toda a parte de boné”, recuaram perante a despesa de <mm daqueles chapéus que se dobram e que têm o nome do chapeleiro Gibus, seu inventor”. A mesma obra dá preceitos de comportamento: “Saber a língua do país que se visita”, isso sabiam eles. “Conservar uma apresentação modesta”, era o seu costume. “Não ter dinheiro consigo”, nada mais simples. Por fim, para se poupar a toda a espécie de dificuldades, é bom assumir “a qualidade de engenheiro!”

— Muito bem! Assumiremos!

Assim preparados, começaram as suas digressões, e estavam às vezes ausentes durante oito dias, passavam a vida ao ar livre.

Ora, nas margens do Orne, distinguiam numa fenda panos de rochedos erguendo as suas lâminas oblíquas entre choupos e estevas; ora se entristeciam por só encontrar ao longo do caminho camadas de argila. Diante de uma paisagem não admiravam a série de planos, nem a profundidade dos longes, nem as ondulações de verdura; mas o que não se via, o que estava debaixo, a terra; e todas as colinas eram para eles “mais uma prova de Dilúvio”.

À mania do Dilúvio seguiu-se a dos blocos erráticos.

As grandes pedras isoladas nos campos deviam provir de glaciares desaparecidos; e procuravam morenas e fáluns.

Por várias vezes foram tomados por vendedores ambulantes, dado o seu atavio — e ao responderem “engenheiros” assaltava-os um receio; a usurpação de tal título podia causar-lhes dissabores.

Ao fim do dia ofegavam sob o peso das amostras, mas, intrépidos, levavam-nas para casa. Havia-as ao longo dos degraus da escada, nos quartos, na sala, na cozinha; e Germaine queixava-se da quantidade de pó.

Não era tarefa fácil saber os nomes das rochas antes de lhes colar as etiquetas; a variedade das cores e do granulado levava-os a confundir a argila e a marga, o granito e o gneisse, o quartzo e o calcário.

E depois a nomenclatura os irritava. Por que devoniano, câmbrico, jurássico, como se as terras designadas por estas palavras só estivessem em Devonshire, perto de Cambridge e no Jura? Impossível se orientarem naquilo! O que para um é sistema é para outro uma ordem, e para outro uma simples fiada. As folhas das camadas misturam-se, confundem-se; mas Omalius d'Halloy previne que há que não acreditar nas divisões geológicas.

Esta declaração aliviou-os — e quando viram calcários com polipeiros na planície de Caen, filagos em Balleroy, caulino em Saint-Blaise, oólito por toda a parte, e procuraram hulha em Cartigny e mercúrio em Chapelle-en-Juger perto de Saint-Lô, decidiram uma excursão mais longínqua, uma viagem ao Havre para estudar o quartzo pirômaco e a argila de Kimmeridge!

Mal desceram do paquete, perguntaram pelo caminho para os faróis. Estava obstruído por derrocadas; era perigoso aventurarem-se por ele.

Foram abordados por um homem que alugava carros e que lhes ofereceu passeios nos arredores, Ingouville, Octeville, Fécamp, Lillebonne, “Roma se fosse preciso”.

Os preços eram despropositados; mas o nome de Fécamp havia-os impressionado: desviando-se um pouco da estrada, poderiam ver Étretat. E tomaram a carruagem de Fécamp para começar por ir ao mais longe.

Na carruagem Bouvard e Pécuchet meteram conversa com três camponeses, duas mulherzinhas e um seminarista, e não hesitaram em qualificar-se de engenheiros.

Pararam diante da concha. Chegaram à falésia e, cinco minutos depois, passaram rentes a ela, para evitar uma grande poça de água que avançava como um golfo no meio da costa.

Em seguida, viram uma arcada que se abria por cima de uma gruta profunda. Era sonora, muito clara, semelhante a uma igreja, com colunas de alto a baixo e um tapete de sargaço ao longo das lajes.

Esta obra da natureza espantou-os; e ergueram-se a considerações sobre a origem do mundo.

Bouvard tendia para o neptunismo. Pécuchet, pelo contrário, era plutônico. O fogo central tinha quebrado a crosta do globo, levantado as terras, aberto rachas. Era como um mar interior com o seu fluxo e refluxo, as suas tempestades. Uma delgada película nos separa dele. Não dormiríamos se pensássemos em tudo o que existe sob os nossos calcanhares. No entanto, o fogo central diminui e o Sol enfraquece, de tal modo que a Terra morrerá um dia de arrefecimento. Tornar-se-á estéril; toda a madeira e toda a hulha se terão convertido em ácido carbônico — e nenhum ser poderá subsistir.

— Ainda não chegamos aí —, disse Bouvard.

— Esperemos! — continuou Pécuchet.

Mas a verdade é que esse fim do mundo, por muito longínquo que estivesse, os tornou sombrios — e, lado a lado, caminhavam silenciosos sobre os calhaus.

A falésia, perpendicular, toda branca e raiada de negro, aqui e além, por linhas de sílex, avançava para o horizonte como a curva da muralha de uma fortaleza com cinco léguas de extensão. Soprava um vento de Leste, áspero e frio.

O céu era cinzento e o mar esverdeado e como que entumescido. Do alto dos rochedos voavam pássaros, que davam uma volta e logo regressavam aos seus buracos. Às vezes, quando uma pedra se soltava, saltava aqui a além antes de descer até eles.

Pécuchet continuava em voz alta os seus pensamentos.

— A não ser que a Terra seja aniquilada por um cataclismo. Ignora-se a extensão do nosso período. Basta que o fogo central extravase.

— Mas, no entanto, está a diminuir?

— Isso não impede que as suas explosões tenham produzido a ilha Julia, o Monte-Nuovo e muitos outros ainda.

Bouvard recordava-se de ter lido estes pormenores no Bertrand. — Mas fatos desses não acontecem na Europa?

— Peço mil desculpas! Olha o de Lisboa! Quanto às nossas regiões, as minas de hulha e de pirite ferrosa são numerosas e podem muito bem, ao decompor-se, formar bocas vulcânicas. De resto, os vulcões rebentam sempre perto do mar.

Bouvard passeou os olhos pelas ondas e julgou distinguir ao longe uma fumaça que subia para o céu.

— Se a ilha Julia desapareceu — continuou Pécuchet — talvez outros terrenos produzidos pela mesma causa possam ter a mesma sorte... Uma ilhota do Arquipélago é tão importante como a Normandia, e até como a Europa.

Bouvard imaginou a Europa mergulhada num abismo.

— Admite — disse Pécuchet — que tem lugar um tremor de terra debaixo da Mancha. As águas arremessam-se para o Atlântico. As costas da França e da Inglaterra, vacilando nas suas bases, inclinam-se, juntam-se e, zás!, tudo é esmagado entre elas.

Em vez de responder, Bouvard começou a caminhar tão depressa que não tardou a estar a cem passos de Pécuchet. Quando ficou só, a ideia de um cataclismo perturbou-o. Não comera desde manhã. As têmporas zumbiam-lhe.

De repente, o chão pareceu-lhe estremecer e a falésia por cima da sua cabeça inclinar-se pelo alto. Naquele momento soltou-se lá de cima uma chuva de cascalho.

Pécuchet viu-o escapulir com violência, compreendeu seu terror e gritou-lhe de longe: — Para! Para! O período ainda não acabou!

E, para pegá-lo, dava saltos enormes com seu cajado de turista, enquanto vociferava: O período ainda não acabou! O período ainda não acabou!

Bouvard, enlouquecido, continuava a correr. Seu guarda-chuva caiu, as abas da sobrecasaca esvoaçavam, a mochila chacoalhava nas costas. Era como uma tartaruga com asas que galopasse entre as rochas; uma destas maiores, ocultou-o.

Pécuchet chegou lá sem fôlego e não viu ninguém; depois voltou para trás para atingir a terra cultivada através de uma ravina por onde Bouvard certamente tinha seguido. Essa ladeira estreita, talhada em grandes degraus na falésia, era da largura de dois homens, e brilhante como alabastro polido. A cinquenta pés de altura, Pécuchet quis descer. O mar na maré alta açoitava a costa. Recomeçou a trepar.

Na segunda curva, quando avistou o vazio, ficou gelado de medo. À medida que se aproximava da terceira as pernas tornavam-se-lhe moles. As camadas do ar vibravam à sua volta, uma cãibra apertava-lhe o epigastro; sentou-se no chão, de olhos fechados, não tendo mais consciência que do bater do seu coração, que o sufocava. Depois, jogou fora o cajado de turista e com os joelhos e as mãos recomeçou a sua ascensão. Mas os três martelos pendurados na cintura entravam pela barriga, as pedras que atulhavam as bolsas batiam em seus quadris; a pala do boné o cegava e o vento redobrava de força; por fim, atingiu o planalto e lá encontrou Bouvard, que subira mais adiante, por uma ravina menos difícil.

Foram recolhidos por uma carroça. Esqueceram Étretat.

No dia seguinte à tarde, no Havre, enquanto esperavam o barco, viram no rodapé de um jornal um folhetim intitulado Do ensino da geologia.

Este artigo, cheio de fatos, expunha a questão como ela era entendida na época.

Nunca houve um cataclismo completo do globo; mas uma mesma espécie não tem sempre a mesma duração e extingue-se mais depressa num lugar do que noutro. Terrenos da mesma idade têm fósseis diferentes, como depósitos muito afastados os abrigam semelhantes. Os fetos de outrora são idênticos aos fetos de hoje. Muitos zoófitos contemporâneos se encontram nas camadas mais antigas. Em resumo, as modificações atuais explicam as perturbações anteriores. As mesmas causas continuam a agir, a natureza não dá saltos, e os períodos, afirma Brongniart, não passam, afinal, de abstrações.

Até aí Cuvier surgira-lhes no brilho de uma auréola, nos cumes de uma ciência indiscutível. Esta, porém, estava minada. A criação já não tinha a mesma disciplina; e o respeito que sentiam por aquele grande homem diminuiu.

Através de biografias e de extractos, aprenderam alguma coisa das doutrinas de Lamarck e de Geoffroy Saint-Hilaire.

Tudo aquilo contrariava as ideias assentes, a autoridade da Igreja.

Bouvard sentiu como que o alívio de um jugo quebrado.

— Gostaria de ver, agora, o que o cidadão Jeufroy me responderia sobre o Dilúvio!

Encontraram-no na sua pequena horta, onde esperava os membros do Conselho da Fábrica, que iriam reunir-se a seguir por causa da aquisição de uma casula.

— Os senhores desejam...?

— Um esclarecimento, por favor — e Bouvard começou.

Que significavam no Gênesis “O abismo que se rompe” e “as cataratas do céu”? Porque um abismo não se rompe e o céu não tem cataratas!

O padre cerrou as pálpebras, e depois respondeu que havia que distinguir sempre entre o sentido e a letra. Coisas que a princípio nos chocam tornam-se legítimas quando se aprofundam.

— Muito bem! Mas como explicar a chuva que ultrapassava as mais altas montanhas, que medem duas léguas!

Estás a ver, duas léguas! Uma espessura de água com duas léguas!

E o presidente da Câmara, que chegara, acrescentou: — Arre, que banho!

— Tem que concordar — disse Bouvard — que Moisés exagera danadamente.

O prior lera Bonald, e replicou: — Ignoro os seus motivos; era, sem dúvida, para provocar um pavor salutar nos povos que conduzia!

— Finalmente, aquela massa de água, de onde vinha ela?

— Sei lá! O ar tinha-se transformado em chuva, como acontece todos os dias.

Pela porta da horta viram entrar o Sr. Girbal, diretor das Contribuições, com o Capitão Heurtaux, proprietário; e Beljambe, o estalajadeiro, dava o braço a Langlois, o merceeiro, que caminhava com dificuldade devido ao seu catarro.

Pécuchet, sem cuidar deles, tomou a palavra.

— Perdão, Sr. Jeufroy. O peso da atmosfera (demonstra-o a ciência) é igual ao de uma massa de água que formasse em torno do globo um invólucro de dez metros. Por consequência, se todo o ar condensado caísse no estado líquido, aumentaria em muito pouco a massa das águas existentes.

E os fabriqueiros esbugalhavam os olhos, escutando.

O prior impacientou-se.

— Vai negar que se encontraram conchas nas montanhas? Quem as pôs lá senão o Dilúvio? Ao que julgo, elas não têm o hábito de crescer sozinhas na terra, como cenouras! — E como esta frase tinha feito rir a assembleia, acrescentou apertando os lábios: — A não ser que seja mais uma das descobertas da ciência!

Bouvard, quis responder com a elevação das montanhas, a teoria de Elie de Beaumont.

— Não conheço! — respondeu o padre.

Foureau apressou-se a dizer: — É de Caen! Vi-o uma vez na Prefeitura!

— Mas se o seu Dilúvio — recomeçou Bouvard — tivesse trazido conchas, iríamos encontrá-las quebradas na superfície, e não por vezes em profundidades de trezentos metros.

O padre agarrou-se à veracidade das Escrituras, à tradição do gênero humano e aos animais descobertos no gelo, na Sibéria.

Isso não prova que o Homem tenha vivido ao mesmo tempo que eles! A Terra, segundo Pécuchet, era consideravelmente mais velha. — O Delta do Mississípi remonta a dezenas de milhares de anos. A época atual tem cem mil, pelo menos. As listas de Manéthon...

Apareceu o Conde de Faverges.

Todos fizeram silêncio quando ele se aproximou.

— Continuem, por favor! Que diziam?

— Estes senhores atacavam-me — respondeu o padre.

— A propósito de quê?

— Sobre a Sagrada Escritura, senhor Conde!

Bouvard alegou imediatamente que, como geólogos, tinham o direito de discutir religião.

— Cuidado — disse o conde. — Conhece a frase, meu caro senhor: um pouco de ciência afasta dela; muita, a ela faz regressar. E num tom ao mesmo tempo altivo e paternal: — Acredite! Lá voltará! Lá voltará!

— Talvez! — mas que pensar de um livro onde se pretende que a luz foi criada antes do Sol, como se o Sol não fosse a única causa da luz!

— Está se esquecendo da luz chamada boreal — disse o eclesiástico.

Bouvard, sem responder à objeção, negou fortemente que ela pudesse estar de um lado e as estrelas de outro, que tivesse havido uma noite e uma manhã quando os astros não existiam, e que os animais tivessem aparecido de repente, em vez de se formar por cristalização.

Como as áleas eram excessivamente pequenas, gesticulando, andavam por cima dos canteiros. Langlois teve um ataque de tosse. O capitão gritava: “Os senhores são revolucionários!” Girbal: “Paz! paz!” O padre: “Que materialismo!” Foureau: “Tratemos antes da nossa casula!”

— Mau! Deixem-me falar! — E Bouvard, excitado, foi ao ponto de dizer que o Homem descendia do Macaco!

Todos os fabriqueiros se entreolharam, muito pasmados e com que para se certificar de que não eram macacos.

Bouvard continuou: — Comparando um feto de uma mulher, de um cadela, de um pássaro...

— Basta!

— Pois eu vou mais longe! — exclamou Pécuchet. — O homem descende dos peixes! — Estalaram risos. Mas, sem se perturbar, continuou: — O Telliamed! Um livro árabe!...

— Meus senhores, vamos para a sessão!

E entraram na sacristia.

Os dois companheiros não tinham desancado o padre Jeufroy como haviam calculado — e por isso Pécuchet encontrou nele “O selo do jesuitismo”

A sua luz boreal, no entanto, inquietava-os; procuraram-na no mundo de d'Orbigny.

É uma hipótese para explicar como os vegetais fósseis da baía de Baffin se assemelham às plantas equatoriais.

Supõe-se, no lugar do Sol, um grande foco luminoso, agora desaparecido, do qual as auroras boreais serão talvez vestígios.

Depois acudiu-lhes uma dúvida sobre a proveniência do Homem; e, embaraçados, pensaram em Vaucorbeil.

As suas ameaças não haviam tido consequências. Como dantes, passava de manhã diante da grade raspando com a bengala todos os varões um após outro.

Bouvard pôs-se à espreita — e, depois de o deter, disse-lhe que lhe queria submeter um tema curioso de antropologia.

— Acha que o gênero humano descende dos peixes?

— Que estupidez!

— Antes dos macacos, não é?

— Diretamente, é impossível!

Em que haviam de se fiar? Porque a verdade é que o médico não era católico!

Continuaram os seus estudos, mas sem paixão, fartos que estavam do eocênico e do miocênico, do Monte Jorullo, da ilha Julia, dos mamutes da Sibéria e dos fósseis, invariavelmente comparados em todos os autores a “medalhas que são testemunhos autênticos” — de tal modo que um dia Bouvard atirou a mochila ao chão, declarando que não iria mais longe.

A geologia é excessivamente imperfeita! Mal conhecemos alguns lugares da Europa. Quanto ao resto, incluindo o fundo dos Oceanos, sempre o ignoraremos.

Por fim, como Pécuchet tinha pronunciado a expressão reino mineral, acrescentou: — Não acredito no reino mineral! Pois se matérias orgânicas tomaram parte na formação do sílex, da greda, do ouro! Então o diamante não foi já carvão e a hulha uma junção de vegetais? aquecendo-a a não sei quanto graus obtém-se serradura de madeira; de modo que tudo passa, tudo corre. A criação é feita de uma matéria ondulante e fugaz. Mais valia tratarmos de outra coisa!

Deitou-se de costas e começou a dormitar, enquanto Pécuchet, de cabeça baixa e agarrando um joelho com as mãos, se entregava às suas reflexões.

Uma orla de musgo ladeava um caminho cavado, sobretudo por freixos cujas copas leves tremiam. Angélicas, hortelã, alfazema, exalavam aromas quentes, ricos; a atmosfera era pesada; e Pécuchet, numa espécie de estado de embrutecimento, sonhava com as existências inúmeras esparsas à sua volta, com os insectos que zumbiam, com as nascentes ocultas debaixo da relva, com a seiva das plantas, com os pássaros nos seus ninhos, com o vento, com as nuvens, com toda a Natureza, sem procurar descobrir os seus mistérios, seduzido pela sua força, perdido na sua grandeza.

— Tenho sede! — disse Bouvard, despertando.

— Também eu! Bebia qualquer coisa!

— É fácil — respondeu um homem que passava em mangas de camisa, com um tábua às costas.

E reconheceram aquele vagabundo a quem em tempos Bouvard havia dado um copo de vinho. Parecia dez anos mais novo, usava o cabelo com caracóis colados às têmporas, bigode bem luzidio, e bambaleava a cintura com modos parisienses.

Cerca de cem passos adiante abriu a barreira de um pátio, encostou a tábua a uma parede e mandou-os entrar para uma cozinha alta.

— Mélie! Estás aí, Mélie?

Apareceu uma menina; cumprindo ordens, foi “tirar de beber” e regressou para junto da mesa p ara servir aqueles cavalheiros.

O cabelo cor de trigo saía-lhe d e ambos Os lados da testa, debaixo de uma touca de pano cinzento. Todo o seu pobre vestuário lhe descia ao longo do corpo sem uma ruga; tinha o nariz retilíneo, os olhos azuis, algo de delicado, de campesino e de ingênuo.

— É simpática, não é? — disse o marceneiro, enquanto ela trazia copos. — Podia jurar-se que é uma menina vestida de camponesa! E no entanto é forte no trabalho! Vá, meu amorzinho! Quando eu for rico caso contigo!

— Está sempre a dizer asneiras, senhor Gorgu — respondeu ela com voz suave e num tom arrastado.

Um moço de cavalariça veio buscar aveia a uma velha arca e deixou cair-lhe a tampa tão brutalmente que saltou uma lasca de madeira.

Gorgu irritou-se contra a falta de jeito de todos “estes tipos do campo” e depois, de joelhos diante do móvel, procurou o lugar daquele bocadinho. Pécuchet, ao pretender ajudá-lo, distinguiu debaixo da poeira figuras de personagens.

Era uma arca da Renascença, com um friso espiralado embaixo, parras nos cantos e colunetas que lhe dividiam a frente em cinco compartimentos. Via-se ao meio Vênus Anadiômena de pé sobre uma concha,. e depois Hércules e Onfalo, Sansão e Dalila, Circe e os seus porcos, as filhas de Lot embriagando o pai; tudo aquilo estragado, roído pelos bichos, e até faltava o painel da direita. Gorgu pegou numa vela para mostrar melhor a Pécuchet o da esquerda, que representava, debaixo da árvore do Paraíso, Adão e Eva numa posição muito indecente.

Bouvard admirou igualmente o baú.

— Se fazem muito gosto nisso, cede-se por bom preço.

Eles hesitavam pensando nas reparações.

Gorgu podia executá-las, porque fazia parte do seu ofício de marceneiro. — Pronto! Venham! — E arrastou Pécuchet para o “monte”, onde a Sra. Castillon, a patroa, estendia roupa.

Mélie, depois de ter lavado as mãos, pegou na sua almofada de fazer renda que estava na beira da janela e sentou-se em plena luz, trabalhando.

Estava enquadrada pelo lintel da porta. Os bilros corriam-lhe debaixo dos dedos com um estalido de castanholas. Continuou de cabeça inclinada, de perfil.

Bouvard interrogou-a acerca dos seus pais, de onde era, da soldada que lhe pagavam.

Era de Ouistreham, já não tinha família, ganhava uma pistola por mês ; enfim, ela agradou-lhe tanto que lhe apeteceu tomá-la ao seu serviço para ajudar a velha Germaine.

Pécuchet reapareceu com a dona da fazenda e, enquanto continuavam a regatear o preço, Bouvard perguntou baixinho a Gorgu se a criadinha aceitaria trabalhar para ele.

— Ora essa!

— No entanto — disse Bouvard — tenho que consultar meu amigo.

— Muito bem, eu trato do assunto. Mas não fale nisto, por causa da patroa.

Acabava de se fechar o negócio por trinta e cinco francos. Quanto ao conserto, depois se entenderiam.

Mal chegou ao pátio, Bouvard contou a sua intenção relativamente a Mélie.

Pécuchet parou, para refletir melhor, abriu a tabaqueira, aspirou uma pitada e disse, depois de se ter assoado: — De fato, é uma ideia! Céus, claro que sim! Por que não? De resto, tu és o patrão!

Dez minutos depois, Gorgu apareceu na beira de um valado e interpelou-os: — Quando é que tenho que lhes levar o móvel?

— Amanhã!

— E quanto ao outro assunto, estão decididos?

— Combinado! — respondeu Pécuchet.


IV

Seis meses mais tarde tinham-se tornado arqueólogos; e a casa deles parecia um museu.

No vestíbulo erguia-se uma velha trave de madeira.

Os espécimes de geologia atulhavam a escada; e uma enorme corrente estendia-se pelo chão ao longo do corredor.

Tinham retirado a porta entre os dois quartos onde não dormiam e condenado a entrada exterior do segundo para transformar essas duas salas numa só divisão.

Quando se transpunha o limiar esbarrava-se numa pia de pedra (um sarcófago galo-romano) e depois os olhos eram invadidos de quinquilharias.

Encostado à parede em frente estavam um esquentador de camas e, embaixo, dois cachorros e uma placa de chaminé, que representava um monge acariciando uma pastora.

Sobre umas prateleiras em redor viam-se tochas, fechaduras, cavilhas, porcas. O chão desaparecia debaixo de cacos de telhas vermelhas. Uma mesa ao meio exibia as curiosidades mais raras: a carcaça da touca de uma camponesa de Caux, duas urnas de argila, medalhas, um frasquinho de vidro opalino. Um cadeirão de tapeçaria tinha sobre o espaldar um triângulo de guipura. Um pedaço de cota de malha ornamentava a parede da direita; e, por baixo, umas pontas sustentavam horizontalmente uma alabarda, peça única.

O segundo quarto, para onde se descia por dois degraus, continha os antigos livros trazidos de Paris e os que ao chegarem tinham descoberto num armário cujos batentes haviam sido retirados. Chamavam-lhe a biblioteca.

A árvore genealógica da família Croixmare ocupava por si só toda a parte de trás da porta. No lambrim em ângulo reto o busto em pastel de uma dama vestida à Luís XV emparelhava com o retrato do pai Bouvard. A moldura do espelho tinha como decoração um sombrero de feltro preto e uma monstruosa galocha cheia de folhas, os restos de um ninho.

Em cima da chaminé dois cocos (pertencentes a Pécuchet desde a sua juventude) ladeavam um barril de faiança cavalgado por um camponês. Perto, num cesto de palha, havia uma moeda de décimo de franco oferecida por um pato.

Diante da biblioteca repimpava-se uma cômoda em conchas, com guarnições de pelúcia. O tampo tinha em cima um gato com um rato na boca — uma petrificação de Saint-Allyre — e uma caixa de costura também com conchas; e por cima dessa caixa, uma garrafa de aguardente continha uma pera-de-bom-cristão.

Mas a maior beleza estava no vão da janela, uma estátua de S. Pedro! A mão direita enluvada apertava a chave do Paraíso, cor verde-maçã; a casula ornamentada com flores-de-lis era azul-celeste, e a tiara, muito amarela, pontiaguda como um pagode. Tinha as faces pintadas, grandes olhos redondos, boca aberta, o nariz torto e arrebitado. Por cima pendia um baldaquino feito de um velho tapete onde se distinguiam dois amores num círculo de rosas — e a seus pés, como uma coluna, erguia-se um pote de manteiga, com estas palavras em letras brancas sobre fundo chocolate: “Executado diante de S.A.R. Monsenhor o duque de Angoulême, em Noron, em 3 de outubro de 1817”.

Pécuchet via da sua cama tudo aquilo de enfiada — e às vezes até ia ao quarto de Bouvard para aumentar a perspectiva.

Em frente da cota de malha permanecia vago um lugar, o do baú Renascença.

Ainda não estava pronto. Gorgu ainda trabalhava nele, passando-lhe a garlopa nos painéis, na casa do forno, e ajustando-os e desmontando-os.

Às onze horas almoçava; depois conversava com Mélie e muitas vezes já não tornava a aparecer durante todo o dia.

Para obter peças do gênero desse móvel, Bouvard e Pécuchet tinham-se posto em campo. O que traziam não se adequava. Mas tinham encontrado uma multidão de coisas curiosas. Viera-lhes o gosto pelos bibelôs, e depois o amor pela Idade Média.

Começaram por visitar as catedrais; e as altas naves mirando-se na água das pias de água-benta, os vitrais rebrilhando como forros de pedradas, os túmulos ao fundo das capelas, a luz incerta das criptas, tudo, até a frescura das paredes, lhes causou um frêmito de prazer, uma emoção religiosa.

Não tardaram a ser capazes de distinguir as épocas — e, desdenhando dos sacristões, diziam: “Ah, uma abside românica! Aquilo é do século XII! Cá estamos a voltar ao flamejante!”

Tratavam de compreender Os símbolos esculpidos nos capitéis, como os dois grifos de Marigny dando bicadas numa árvore em flor. Pécuchet viu uma sátira nos chantres de mandíbulas grotescas em que terminam os arcos de Feuguerolles; e quanto à exuberância do homem obsceno que cobre uma das colunetas de Hérouville, provava, segundo Bouvard, que os nossos antepassados gostavam de brejeirice.

Chegaram ao ponto de já não tolerar o mínimo sinal de decadência. Tudo era decadência — e deploravam o vandalismo, travejavam contra a pintura a oca.

Mas o estilo de um monumento nem sempre corresponde à data que lhe é atribuída. O arco de volta inteira, no século XIII, domina ainda a Provença. A ogiva talvez seja muito antiga e há autores que contestam a anterioridade do românico sobre o gótico. Esta falta de certeza contrariava-os.

Depois das igrejas, estudaram os castelos, os de Domfront e de Falaise. Admiravam debaixo da porta os entalhes do rastilho e, chegados ao alto, viam primeiro todo o campo, depois os telhados da cidade, mulheres no lavadouro. A muralha descia a pique até os silvados do fosso — e empalideciam ao pensar que houvera homens que por ali tinham subido pendurados em escadas. Ter-se-iam arriscado nos subterrâneos se Bouvard não tivesse a barriga como obstáculo e Pécuchet o temor das víboras.

Quiseram conhecer os velhos solares, Curcy, Bully, Fontenay-le-Marmion, Argouges. Por vezes, na esquina dos edifícios, por trás da estrumeira ergue-se uma torre carolíngia. A cozinha equipada com bancos de pedra faz pensar em bródios feudais. Outros têm um aspecto exclusivamente bélico, com as suas três cercas visíveis, seteiras debaixo da escada, longas torrinhas de telhados agudos. Depois, chega-se a uma sala onde uma janela do tempo dos Valois, cinzelada como um marfim, deixa entrar o sol quente sobre um soalho de sementes de colza espalhadas. Há abadias que servem de celeiros. As inscrições das pedras tumulares estão apagadas. No meio dos campos, uma parede que ficou de pé — revestida de alto a baixo de hera tremulando ao vento.

Uma quantidade de coisas lhes excitava a cobiça — um pote de estanho, uma fivela de strass, chitas de grandes ramagens. A falta de dinheiro os retinha.

Por um acaso providencial, desencantaram em Balleroy, na casa de um estanhador, um vitral gótico — que tinha o tamanho suficiente para cobrir perto do cadeirão a parte direita da janela até a segunda vidraça. Via-se ao longe o campanário de Chavignolles, o que fazia um efeito esplêndido.

Com a parte de baixo de um armário Gorgu fabricou um genuflexório para colocar debaixo do vitral, porque lhes lisonjeava as manias. Estas eram tão fortes que lamentavam os monumentos acerca dos quais nada de sabe, como a casa de recreio dos bispos de Séez.

— Bayeux —, diz o Sr. de Caumont, devia ter um teatro. — Em vão procuraram o lugar dele.

A aldeia de Montrecy tem uma pradaria que é célebre devido às medalhas de imperadores que antes lá se descobriram. Contavam fazer ali uma bela colheita, mas o guarda recusou-lhes a entrada.

Não foram mais felizes quanto à comunicação que existia entre uma cisterna de Falaise e os subúrbios de Caen.

Alguns patos que lá tinham sido introduzidos reapareceram em Vaucelles, grunhindo: — “Can can can” — de onde veio o nome da cidade.

Nenhuma diligência lhes era custosa, nenhum sacrifício.

Na estalagem de Mesnil-Villement, em 1816, o Sr. Galeron teve um almoço pelo preço de quatro soldos. Foram lá fazer a mesma refeição e verificaram com surpresa que as coisas já não se passavam assim!

Quem é o fundador da abadia de Saint-Anne? Existirá um parentesco entre Marin-Onfroy, que importou no século XII uma nova espécie de maçã, e Onfroy, governador de Hastings na época da conquista? Como arranjar A Astuciosa Pitonisa, comédia em verso de um tal Dutrésor, feita em Bayeux, e atualmente muito rara? No reinado de Luís XVI, Hérambert Dupaty, ou Dupastis Hérambert, compôs uma obra, que nunca foi publicada, cheia de anedotas sobre Argentan — havia que encontrar essas anedotas. O que foi feito das memórias da Sra. Dubois de La Pierre, consultadas para a história inédita de Laigle por Louis Daspres, cura de Saint-Martin? Tantos problemas, tantos pontos curiosos a esclarecer!

Mas, muitas vezes, um fraco indício abre caminho a uma descoberta inestimável.


Portanto, voltaram a vestir os guarda-pós para não chamar as atenções; e, sob a aparência de vendedores ambulantes, apresentavam-se nas casas pedindo para comprar papéis velhos. Venderam-lhes montes deles. Eram cadernos escolares, faturas, antigos jornais, nada de útil.

Por fim, Bouvard e Pécuchet dirigiram-se a Larsonneur.

Estava perdido no celtismo e, ao responder sumariamente às perguntas deles, fez outras.

Teriam observado em seu redor vestígios da religião do cão como se encontram em Montargis? E detalhes especiais das fogueiras de São João, dos casamentos, os ditados populares etc.? Até lhes pedia que recolhessem para ele alguns daqueles machados de sílex chamados então de celtae, e que os druidas utilizavam “nos seus criminosos holocaustos”.

Através de Gorgu arranjaram uma dezena, enviaram-lhe o menor — e os outros foram enriquecer o museu.

Passeavam por ele com amor, eles mesmos o varriam, falavam dele com amor a todos os conhecidos.

Uma tarde, a Sra. Bordin e o Sr. Marescot vieram vê-lo.

Bouvard recebeu-os e começou a demonstração pelo vestíbulo.

A trave era nada mais nada menos do que a antiga forca de Falaise, segundo o marceneiro que a tinha vendido — o qual recebera esta informação do avô.

A grossa corrente no corredor era proveniente das masmorras do torreão de Torteval. Segundo o notário, era semelhante às correntes dos marcos diante dos pátios de honra. Bouvard estava convencido de que servira em tempos para amarrar os cativos. E abriu a porta do primeiro quarto.

— Por que essas telhas todas? — exclamou a Sra. Bordin.

— Para aquecer as estufas! Mas um pouco de ordem, se não se importam! Isto é um túmulo descoberto numa estalagem, onde o usavam como bebedouro.

Em seguida, Bouvard pegou nas duas urnas cheias de terra, que era cinza humana, e aproximou dos olhos o frasquinho para mostrar por que método os Romanos nele derramavam pranto.

— Mas em vossa casa só se veem coisas lúgubres!

Efetivamente era um pouco sério demais para uma dama, e então tirou de uma caixa de papelão várias moedas de cobre, com um dinheiro em prata.

A Sra. Bordin perguntou ao notário quanto poderia aquilo valer hoje em dia.

A cota de malha que ele estava a examinar escapou-lhe dos dedos; partiram-se anéis. Bouvard disfarçou o seu descontentamento.

Teve até a gentileza de desenganchar a alabarda — e curvando-se, erguendo os braços, batendo os calcanhares, fingia ceifar os jarretes de um cavalo, dar uma estocada como de baioneta, derrubar um inimigo. A viúva, intimamente, achou-o um impetuoso mocetão.

Ficou entusiasmada com a cômoda de conchinhas.

O gato de Saint-Allyre espantou-a muito, a pera na garrafa um pouco menos. Depois, ao chegar à chaminé, disse: — Ah, aqui está um chapéu que precisava de conserto.

Três buracos, marcas de balas, perfuravam-lhe as abas.

Fora de um chefe de ladrões do tempo do Diretório, David de La Bazoque, apanhado em delito de traição e imediatamente morto.

— Tanto melhor, bem feito! — disse a Sra. Bordin.

Marescot sorria diante dos objetos desdenhosamente.

Não compreendia aquela galocha que fora a insígnia de um mercador de calçados, nem o porquê do barril de faiança, ou de uma jarra comum de cidra; e São Pedro, francamente, era lamentável com a sua cara de bêbado.

A Sra. Bordin fez esta observação: — No entanto, deve-lhe ter custado bom dinheiro?

— Oh, não muito! Não muito!

Um pedreiro de ardósias tinha-o deixado por quinze francos.

Em seguida, ela censurou, dada a inconveniência, o decote da dama de peruca empoada.

— Onde está o mal — replicou Bouvard — quando se possui algo de belo? — E acrescentou mais baixo: — Como a senhora, decerto?

O notário virava-lhes as costas, estudando os ramos da família Croixmare. Ela não respondeu nada, mas começou a brincar com a sua comprida corrente de relógio. Os seios bombeavam-lhe o tafetá preto do corpete; e de pestanas um pouco cerradas, baixava o queixo, como uma rola a pavonear-se. Depois, com um ar ingênuo: — Como se chamava esta senhora?

— Não se sabe! É uma amante do Regente... sabe, aquele que era tão dado a leviandades!

— Bem acredito! As memórias do tempo!... — E o notário, sem acabar a frase, deplorou aquele exemplo de um príncipe arrastado pelas suas paixões.

— Mas vocês são todos assim!

Os dois homens recalcitraram; e seguiu-se um diálogo sobre as mulheres, sobre o amor. Marescot afirmou que existem muitas uniões felizes. — Às vezes, até, sem se dar por isso, temos junto de nós aquilo de que precisávamos para nossa felicidade. A alusão era direta. As faces da viúva ficaram púrpura; mas, recuperando quase imediatamente, disse: — Já não estamos na idade das loucuras! Não é, senhor Bouvard?

— Oh, oh, eu não digo isso! — e ofereceu-lhe o braço para regressarem ao outro quarto. — Atenção aos degraus. Muito bem! Agora, observem o vitral.

Distinguia-se nele uma capa escarlate e as duas asas de um anjo — tudo o resto se perdia debaixo dos chumbos que mantinham em equilíbrio as numerosas fracturas do vidro. A luz diminuía; estendiam-se sombras; a Sra. Bordin tornara-se grave.

Bouvard afastou-se e reapareceu embiocado num cobertor de lã e depois ajoelhou-se no genuflexório, cotovelos para fora, cara entre as mãos, com o clarão do sol a cair-lhe na calvície; e ele tinha consciência deste efeito, porque disse: — Então não pareço um monge da Idade Média?

Em seguida, ergueu a fronte obliquamente, olhos aguados, fazendo com que o rosto tomasse uma expressão mística.

Ouviu-se no corredor a voz grave de Pécuchet: — Não tenhas medo! Sou eu!

E entrou, com a cabeça completamente coberta por um capacete — um pote de ferro de orelhados pontiagudos.

Bouvard não saiu do genuflexório. Os outros dois permaneciam de pé. Passou-se um minuto de pasmo.

A Sra. Bordin pareceu um pouco fria a Pécuchet. No entanto, ela quis saber se já lhe tinham mostrado tudo.

— Parece-me que sim... — e apontando para a parede: — Ah, perdão! Vamos ter aqui um objeto que está agora a ser restaurado.

A viúva e Marescot retiraram-se.

Os dois amigos tinham imaginado fingir uma concorrência. Iam às compras um sem o outro, o segundo fazendo ofertas superiores às do primeiro. Pécuchet acabava de obter assim o capacete.

Bouvard felicitou-o e recebeu elogios a propósito do cobertor.

Mélie arranjou-o com cordões à maneira de cogula.

Punham-no alternadamente para receber as visitas.

Tiveram visitas de Girbal, de Foureau, do Capitão Heurtaux, e depois de pessoas de mais baixa condição, Langlois, Beljambe, os rendeiros, e até as criadas dos vizinhos; e, de todas as vezes, repetiam as suas explicações, mostravam o lugar onde estaria a arca, fingiam modéstia, pediam indulgência para a acumulação de objetos.


Nesses dias Pécuchet punha o barrete de zuavo que em tempos tinha em Paris, considerando-o mais adequado ao meio artístico. A dado momento, punha o capacete e inclinava-o para a nuca para desimpedir o rosto. Bouvard não esquecia a manobra da alabarda; finalmente, com uma olhadela, perguntavam um ao outro se o visitante merecia que fizessem “o monge da Idade Média”.

Que emoção quando parou diante da grade a carruagem do Sr. de Faverges! Ele vinha só para trocar duas palavras. Eis o que se passou.

Hurel, o seu administrador, contara-lhe que, ao procurarem documentos por toda a parte, haviam comprado papéis velhos na herdade da Aubrye.

Nada mais verdadeiro.

Não tinham eles descoberto lá cartas do Barão de Gonneval, antigo ajudante de campo do Duque de Angoulême e que estivera na Aubrye? Desejava aquela correspondência por interesses de família.

Não estava em casa deles. Mas tinham na sua posse uma coisa que lhe interessava, se se dignasse acompanhá-los até a biblioteca.

Nunca aquelas botas envernizadas tinham estalado no corredor, e esbarraram contra o sarcófago. Por pouco esmagava várias telhas, virou o cadeirão, desceu dois degraus — e, chegados ao segundo quarto, mostraram-lhe, debaixo do baldaquino, diante do São Pedro, o pote de manteiga executado em Noron.

Bouvard e Pécuchet tinham julgado que a data, às vezes, podia servir.

O fidalgo, por delicadeza, inspecionou o museu. Repetia: “Encantador, muito bem!”, e ia dando pancadinhas na boca com o castão da sua chibatinha; pela sua parte agradecia-lhes por terem salvo aqueles restos da Idade Média, época de fé religiosa e de devoções cavaleirescas. Ele amava o progresso — e ter-se-ia dedicado, como eles, àqueles estudos interessantes. Mas a Política, o Conselho Geral, a Agricultura, um verdadeiro turbilhão desviava-o disso!

— Contudo, depois dos senhores, só ficarão respigas; porque não tardará que possuam todas as curiosidades do departamento.

— Sem amor-próprio, é o que pensamos — disse Pécuchet.

E, no entanto, ainda se podiam descobrir algumas em Chavignolles; por exemplo, havia no muro do cemitério, na ruela, uma pia de água-benta mergulhada debaixo das ervas, desde tempos imemoriais.

Eles ficaram felizes com a informação e trocaram um olhar que significava “valerá a pena?” — mas já o conde abria a porta.

Mélie, que estava atrás dela, fugiu bruscamente.

Quando ia a passar no pátio reparou em Gorgu, que estava a fumar o seu cachimbo de braços cruzados.

— Este rapaz é vosso empregado? Hum! Num dia de zaragata não me fiaria nele. — E o Sr. de Faverges voltou a subir para o seu tílburi.

Por que a criada parecia ter medo dele?

Interrogaram-na; e ela contou que tinha servido na herdade do conde. Era ela aquela menina que dava de beber às ceifeiras quando eles lá tinham ido. Dois anos mais tarde tinham-na contratado como ajudante no solar — e despedido “em consequência de informações falsas”.

Quanto a Gorgu, que havia a censurar-lhe? Era muito habilidoso e mostrava por eles uma infinita consideração.

No dia seguinte, logo de madrugada, foram ao cemitério.

Bouvard, com a bengala, tacteou no lugar indicado.

Ressoou um corpo duro. Arrancaram algumas urtigas e descobriram uma bacia de grés, uma pia batismal onde cresciam plantas.

Mas a verdade é que não é costume pôr pias batismais fora das igrejas.

Pécuchet fez um desenho dela, Bouvard a descrição; e remeteram tudo a Larsonneur.

A resposta foi imediata.

— Vitória, meus caros confrades! É incontestavelmente uma cuba druídica!

Todavia, que tomassem cuidado! O machado era duvidoso. — E tanto para si próprio como para eles indicava-lhes uma série de obras a consultar.

Larsonneur confessava em pós-escrito a sua vontade de conhecer aquela cuba — o que teria lugar num dia qualquer, quando fizesse a viagem da Bretanha.

Então Bouvard e Pécuchet mergulharam na arqueologia céltica. Segundo esta ciência, os antigos Gauleses, nossos antepassados, adoravam Kirk e Kron, Taranis, Ésus, Netalémnia, o Céu e a Terra, o Vento, as Águas e, acima de tudo, o grande Tutatis, que é o Saturno dos pagãos.

Saturno, quando reinava na Fenícia, desposou uma ninfa chamada Anobret, de quem teve um filho chamado Yehud — e Anobret tem as feições de Sara e Yehud foi sacrificado (ou quase foi) como Isaac; portanto, Saturno é Abraão, de onde há que concluir que a religião dos gauleses tinha os mesmos princípios da dos judeus.

Tinham uma sociedade muito bem organizada. A primeira classe de pessoas incluía o povo, a nobreza e o rei, a segunda os jurisconsultos, e na terceira, a mais elevada, incluíam-se, segundo Taillepied, “as diversas maneiras de filósofos”, isto é, os druidas ou sarônidas, também eles divididos em Eubages, Bardos e Vates.

Uns profetizavam, outros cantavam, outros ensinavam botânica, medicina, história e literatura, em suma, “todas as artes da sua época”. Pitágoras e Platão foram seus alunos. Ensinaram a metafísica aos gregos, a feitiçaria aos persas, o arupiscismo aos etruscos — e aos romanos a estanhadura do cobre e o comércio de presuntos.

Mas, deste povo, que dominava o mundo antigo, só restam pedras, ou isoladas ou em grupos de três, ou dispostas em galerias, ou formando cercas.

Bouvard e Pécuchet, cheios de ardor, estudaram sucessivamente a Pierre-du-Post em Ussy, a la Pierre-Couplée no Guest, a Pierre du Jarier, perto de Laigle — e ainda outras!

Todos aqueles blocos de igual insignificância os entediaram prontamente; e um dia em que acabavam de ver o menir do Passais, iam virar-lhe as costas quando o guia os levou a um bosque de faias, atulhado de massas de granito semelhantes a pedestais ou a monstruosas tartarugas.

A mais considerável é escavada como uma bacia. Um dos bordos levanta-se — e do fundo partem dois entalhes que vão até o chão; era para escoar sangue; impossível duvidar! O acaso não faz coisas daquelas.

As raízes das árvores emaranhavam-se naquelas rochas abruptas. Chovia um pouco; ao longe, os flocos de bruma subiam, como grandes fantasmas. Era fácil imaginar debaixo da folhagem os sacerdotes da tiara de ouro e vestes brancas, com as suas vítimas humanas de braços amarrados atrás das costas — e a druidesa observando o riacho vermelho à beira da cuba, enquanto à sua volta a multidão berrava, entre o bater dos címbalos e buzinas feitas de cornos de auroque.

Logo decidiram o seu plano.


E numa noite de luar tomaram o caminho do cemitério, movendo-se como ladrões, na sombra das casas. As persianas estavam fechadas e os “montes” tranquilos; nem um cão ladrou. Gorgu acompanhava-os, e deitaram mãos à obra.

Só se ouvia o ruído dos pedregulhos onde a enxada batia ao escavar a relva. A vizinhança dos mortos era-lhes desagradável; o relógio da igreja soltava um estertor constante e a rosácea do tímpano parecia um olho espiando os sacrilégios. Por fim, levaram a cuba.

No dia seguinte regressaram ao cemitério para ver os vestígios da operação.

O padre, que tomava fresco à porta de casa, pediu-lhes que lhe dessem a honra de uma visita; e depois de os mandar entrar para a saleta, olhou para eles de um modo singular.

No meio do louceiro, entre os pratos, havia uma terrina decorada com ramos de flores amarelas.

Pécuchet elogiou-a, não sabendo o que dizer.

— É uma velha peça de Rouen — respondeu o prior —, um objeto de família. Os amadores dão-lhe valor, sobretudo o Sr. Marescot. — Quanto a ele, graças a Deus, não tinha o amor das curiosidades; e como eles pareciam não entender, declarou que ele mesmo os vira furtando a pia batismal.

Os dois arqueólogos ficaram muito embaraçados, balbuciantes. O objeto em questão já não estava em uso.

Tanto fazia! Tinham que devolver.

Sem dúvida! Mas pelo menos que lhes fosse permitido mandar vir um pintor para a desenhar.

— Seja, meus senhores.

— Aqui entre nós, não é verdade? — disse Bouvard. — Sob o selo da confissão!

O eclesiástico, sorrindo, tranquilizou-os com um gesto.

Não era a ele que temiam, mas Larsonneur. Quando passasse por Chavignolles desejaria a cuba — e os seus falatórios chegariam aos ouvidos do governo. Por prudência, ocultaram-na na casa do forno e depois no caramanchão, na cabana, num armário. Gorgu estava farto de andar com ela de um lado para o outro.

A posse de uma peça como aquela afeiçoava-os ao celtismo da Normandia. Suas origens são egípcias. Séez, no departamento do Orne, escreve-se às vezes Sais como a cidade do Delta. Os gauleses juravam pelo touro, importação do boi Ápis. O nome latino de Bellocastes que era o da gente de Bayeux vem de Beli Casa, moradia, santuário de Bélus. Bélus e Osíris são a mesma divindade. “Nada obsta”, diz Mangon de la Lande, “a que tenha havido, perto de Bayeux, monumentos druídicos”. — “Esta região”, acrescenta o Sr. Roussel, “assemelha-se à região onde os egípcios construíram o templo de Júpiter-Ámon”. Portanto, havia um templo e que continha riquezas. Todos os monumentos celtas as contêm.

Em 1715, relata Dom Martin, um tal senhor Héribel exumou nos arredores de Bayeux vários vasos de argila cheios de ossadas — e concluiu (segundo a tradição e autoridades passadas) que aquele lugar, uma necrópole, era o monte Faunus, onde se enterrou o Vitelo de Ouro.

— Mas o Vitelo de Ouro foi queimado e engolido! A não ser que a Bíblia esteja enganada!

— Primeiro, onde é o monte Faunus? Os autores não o indicam. Os indígenas não sabem nada dele. Era preciso fazer escavações; — e com esse fim, enviaram ao senhor prefeito uma petição que não teve resposta.

Talvez o monte Faunus tenha desaparecido, e não fosse uma colina mas um tumulus? Que significavam os tumulus?

Há vários que contêm esqueletos, com a posição do feto no seio da mãe. Quer isso dizer que o túmulo era para eles como que uma segunda gestação que os preparava para outra vida. Portanto, o tumulus simboliza o órgão feminino, como a pedra ereta é o órgão masculino.

Com efeito, onde há menires persistiu um culto obsceno. Testemunho que se recolhia em Guérande, em Chichebouche, no Croisic, em Livarot. Antigamente, as torres, as pirâmides, os círios, os marcos das estradas e até as árvores tinham uma significação de falos — e para Bouvard e Pécuchet tudo se tornou falos. Recolheram eixos de carros, pernas de cadeiras, trincos de adegas, pilões de farmacêutico. Quando alguém os vinha visitar perguntavam: “Com que acha que isto se parece?”, e depois confiavam o mistério — e se alguém reclamava encolhiam piedosamente os ombros.


Uma tarde, pensavam nos dogmas dos druidas e apareceu o padre discretamente.

Imediatamente mostraram o museu, começando pelo vitral, mas ansiavam por chegar a um compartimento novo, o dos Falos. O eclesiástico deteve-os, considerando a exibição indecente. Vinha reclamar a sua pia batismal.

Bouvard e Pécuchet imploraram quinze dias mais, o tempo de fazer um molde.

— Quanto mais cedo melhor — disse o padre. E depois conversou de coisas indiferentes.

Pécuchet, que se tinha ausentado por um minuto, meteu-lhe na mão um napoleão.

O Padre recuou.

— É para os seus pobres!

E Jeufroy, corando, enfiou a moeda de ouro na sotaina.

Devolver a cuba, a cuba dos sacrifícios? Nunca! Eles pretendiam até aprender hebraico, que é a língua-mãe do celta, se é que dele não deriva — e iam fazer a viagem da Bretanha, começando por Rennes, onde tinham um encontro com Larsonneur, para estudar aquela urna mencionada nas memórias da Academia céltica e que parece ter contido as cinzas da rainha Artemísia — quando o presidente da Câmara entrou, de chapéu na cabeça, sem maneiras, como homem grosseiro que era.

— Não é bem assim, meus senhorinhos! É preciso devolvê-la!

— Mas o quê?

— Seus maganões! Eu bem sei que a escondem!

Tinham sido traídos.

Replicaram que a tinham com autorização do senhor prior.

— Vamos ver.

E Foureau se afastou.

Regressou uma hora depois.

— O prior diz que não! Venham explicar-se.

Eles teimaram.

Primeiro, ninguém precisava daquela pia de água-benta — que não era uma pia de água-benta. Iriam prová-lo com uma multidão de razões científicas. Depois, ofereceram-se para reconhecer, no seu testamento, que ela pertencia à comuna.

Propuseram até comprá-la.

— E, de resto, até me pertence! — repetia Pécuchet.

Os vinte francos aceites por Jeufroy eram uma prova do contrato — e se tinham que comparecer perante o juiz de paz, tanto pior, faria um juramento falso!

Durante estes debates, voltara a ver a terrina várias vezes; e na sua alma desenvolvera-se o desejo, a sede, o prurido daquela faiança. Se quisessem dá-la, ele devolveria a cuba. De outro modo, não.

Por cansaço ou receio do escândalo, Jeufroy cedeu-a.

Foi colocada na coleção, perto da touca da camponesa de Caux. A cuba ficou enfeitando o pórtico da igreja, e eles se consolaram de perdê-la com a ideia de que o povo de Chavignolles ignorava seu valor.

Mas a terrina inspirou-lhes o gosto das faianças — novo tema de estudos e explorações no campo.

Era a época em que as pessoas distintas procuravam os velhos pratos de Rouen. O notário possuía alguns e retirava do fato uma espécie de reputação de artista, prejudicial ao seu ofício, mas que ele resgatava com outros aspectos sérios.

Quando soube que Bouvard e Pécuchet tinham adquirido a terrina, veio propor-lhes uma troca.

Pécuchet recusou-se.

— Não falemos mais nisso! — e Marescot examinou as cerâmicas que possuíam.

Todas as peças penduradas ao longo das paredes eram azuis sobre um fundo branco sujo; e algumas ostentavam a sua cornucópia de tons verdes e avermelhados, bacias de fazer a barba, pratos e pires, objetos longamente procurados e trazidos contra o peito, no oco da sobrecasaca.

Marescot elogiou-os, falou de outras faianças, da hispano-árabe, da holandesa, da inglesa, da italiana; e, depois de os ter pasmado com a sua erudição, disse: — E se eu voltasse a ver a vossa terrina?

Fê-la soar com um toque do dedo e depois contemplou dois S pintados debaixo da tampa.

— A marca de Rouen! — disse Pécuchet.

— Oh! Oh, Rouen, propriamente, não tinha marca.

Quando não se sabia de Moustiers todas as faianças francesas eram de Nevers. O mesmo se passa com Rouen hoje em dia! De resto, fazem-se imitações perfeitas em Elbeuf!

— Não é possível!

— Imitam-se bem as majólicas! A vossa peça não tem qualquer valor; e eu ia fazer uma bela asneira!

Quando o notário desapareceu, Pécuchet deixou-se cair na cadeira, prostrado!

— Não devíamos ter devolvido a cuba — disse Bouvard —, mas te exaltas! Zangas-te sempre.

— Sim, zango-me! — e Pécuchet, pegando na terrina, atirou-a para longe, contra o sarcófago.

Bouvard, mais calmo, apanhou os pedaços um a um; e, algum tempo depois, teve esta ideia: — Talvez Marescot, por ciúmes, tenha feito pouco de nós...

— Como?

— Nada me garante que a terrina não seja autêntica.

Ao passo que as outras peças que ele fingiu admirar talvez sejam falsas...

E o fim do dia passou-se em incertezas, em lamentações.


Não era razão para desistirem da viagem da Bretanha.

Contavam até levar com eles Gorgu, que os ajudaria nas suas pesquisas.

Desde há algum tempo que ele dormia lá em casa, para terminar mais depressa o conserto do móvel. A perspectiva de um deslocamento o contrariou, e como eles falavam dos menires e dos tumulus que contavam ver, dizia-lhes: — Eu conheço melhor; na Argélia, no Sul, perto das nascentes de Bou-Mursoug, encontram-se em quantidade. — Fez até a descrição de um túmulo, aberto à sua frente por acaso, e que continha um esqueleto, agachado como um macaco, com os dois braços em torno das pernas.

Larsonneur, a quem comunicaram o fato, não quis acreditar em nada.

Bouvard aprofundou a matéria e foi mais longe que ele.

Como é possível que os monumentos dos gauleses sejam informes quando esses mesmos gauleses eram civilizados no tempo de Júlio César? Provinham, decerto, de um povo mais antigo...

Tal hipótese, segundo Larsonneur, era falta de patriotismo.

Tanto faz! Nada nos diz que esses monumentos sejam obra dos gauleses. — Mostre-nos um texto!

O acadêmico zangou-se e não respondeu mais; e eles bem o estimaram, de tal modo os Druidas os aborreciam.

Se se sentiam perdidos quanto à cerâmica e ao celtismo era porque ignoravam a história, particularmente a história da França.

Tinham a obra de Anquetil na sua biblioteca; mas a sequência dos reis fainéants divertiu-os muito pouco e a perversidade dos mestres do Palácio não os indignou nada; e deixaram Anquetil, desgostosos da inépcia das suas reflexões.

Então perguntaram a Dumouchel “qual é a melhor história da França”.

Dumouchel fez em nome deles uma assinatura numa sala de leitura e enviou-lhes as cartas de Augustin Thierry, com dois volumes do Sr. de Genoude.

Segundo este escritor, a realeza, a religião e as assembleias nacionais são verdadeiramente “os princípios” da nação francesa, que remontam aos merovíngios. Os carolíngios derrogaram-nos. Os Capetos, de acordo com o povo, esforçaram-se por mantê-los. No tempo de Luís XIII, o poder absoluto foi estabelecido para vencer o protestantismo, último esforço do feudalismo — e 89 é um retorno à constituição dos nossos antepassados.

Pécuchet admirou estas ideias.

Elas davam pena a Bouvard, que lera Augustin Thierry primeiro.

— Que estás dizendo aí, com a tua nação francesa! Olha que não existia França, nem assembleias nacionais! E os carolíngios nada usurparam, nada! E os reis não libertaram as comunas! Lê com os teus olhos!

Pécuchet submeteu-se à evidência e não tardou a ultrapassá-lo em rigor científico! Iria se sentir desonrado se tivesse dito: Carlos Magno, e não Karl o Grande, Clóvis em vez de Clodowig.

Mas estava seduzido por Genoude, e considerava hábil aquela junção das duas pontas da história da França, de maneira tal que o meio é verbo de encher! E para terem uma visão clara disto tudo pegaram a coleção de Buchez e Roux.

Mas o pathos dos prefácios, essa amálgama de socialismo e de catolicismo enjoou-os; os pormenores muito numerosos impediam a visão do conjunto.

Recorreram ao Sr. Thiers.


Era durante o verão de 1845, na horta, debaixo do caramanchão. Pécuchet, com um banquinho debaixo dos pés, lia em voz alta com a sua voz cavernosa, sem cansaço, só se detendo para enfiar os dedos na tabaqueira. Bouvard escutava-o de cachimbo na boca, pernas abertas, com a parte de cima das calças desabotoada.

Alguns velhos tinham-lhes falado de 93, e certas recordações quase pessoais animavam as desgraciosas descrições do autor. Naquele tempo, as grandes estradas estavam cobertas de soldados que cantavam a Marselhesa. No limiar das portas, mulheres sentadas cosiam panos para fazer tendas. Às vezes chegava uma onda de homens de barretes vermelhos, inclinando na ponta de uma lança uma cabeça descorada, de cabelos pendentes. A alta tribuna da Convenção dominava um nuvem de pó, onde rostos furiosos berravam gritos de morte. Quando se passava a meio do dia perto do tanque das Tulherias ouvia-se o baque da guilhotina, semelhante a golpes de pilão.

E a brisa agitava as parreiras do caramanchão, a cevada madura oscilava de vez em quando, um melro assobiava.

Passeando os olhos em redor, saboreavam aquela tranquilidade. Que pena que desde o começo eles não tenham conseguido entender-se — porque, se os realistas tivessem pensado como os patriotas, se a Corte tivesse usado de maior liberalidade e os seus adversários de menor violência, muitas desgraças teriam deixado de acontecer.

De tanto conversar a este respeito apaixonaram-se. Bouvard, espírito liberal e coração sensível, foi constitucional, girondino, thermidoriano. Pécuchet, bilioso e de tendências autoritárias, declarou-se sans-culotte e até robespierrista. Aprovava a condenação do rei, os decretos mais violentos, o culto do Ser Supremo. Bouvard preferia o da natureza. Teria saudado com prazer a imagem de uma enorme mulher derramando dos seios para os seus adoradores, não água, mas vinho de Chambertin.

Para terem mais fatos em que apoiassem os seus argumentos, procuraram outras obras, Montgaillard, Prudhomme, Gallois, Lacretelle, etc.; e as contradições destes livros não os embaraçavam nada. Cada um lá ia buscar o que podia defender a sua causa.

Assim, Bouvard não duvidava de que Danton tinha aceite cem mil escudos para fazer moções que perderiam a República; e, segundo Pécuchet, Vergniaud teria pedido cem mil francos por mês.

— Nunca! Explica-me antes Por que a irmã de Robespierre tinha uma pensão de Luís XVIII?

— Nada disso! Era de Bonaparte; e já que pões assim a questão, qual é a personagem que pouco tempo antes da morte de Égalité teve com ele uma conferência secreta?

Quero que se reimprimam nas memórias da Campan os parágrafos suprimidos! A morte do Delfim parece-me suspeita.

O paiol de Grenelle, ao explodir, matou duas mil pessoas!

Causa desconhecida, diz-se, que estupidez! — porque Pécuchet não estava longe de a conhecer e atribuía todos os crimes às manobras dos aristocratas, ao ouro do estrangeiro.

No espírito de Bouvard, “subam-ao-céu-filhos-de-São-Luís”, as virgens de Verdun e os calções de pele humana eram indiscutíveis. Aceitava as listas de Prudhomme, exatamente um milhão de vítimas.

Mas o Loire vermelho de sangue desde Saumur até Nantes, numa extensão de dezoito léguas, fê-lo pensar. Pécuchet teve igualmente dúvidas, e ambos começaram a desconfiar dos historiadores.

A Revolução é para uns um acontecimento satânico.

Outros proclamam-na uma exceção sublime. Os vencidos de cada lado são, naturalmente, mártires.

Thierry demonstra, a propósito dos Bárbaros, como é idiota procurar saber se determinado príncipe foi bom ou mau. Por que não seguir esse método no exame das épocas mais recentes? Mas a história tem que vingar a moral; estamos reconhecidos a Tácito por ter dilacerado Tibério.

A verdade é que, quer a Rainha tenha tido amantes ou não, Dumouriez, a partir de Valmy, se tenha ou não proposto trair, tenha sido a Montanha ou a Gironda a começar no Prairial, e no Thermidor os Jacobinos ou a Planície — que importa tudo isso para o desenvolvimento da Revolução, cujas origens são profundas e cujos resultados são incalculáveis! Portanto, ela tinha que se cumprir, tinha que ser o que foi; mas suponha-se a fuga do Rei sem entraves, Robespierre escapulindo-se ou Bonaparte assassinado — casos que dependiam de um estalajadeiro menos escrupuloso, de uma porta aberta, de uma sentinela adormecida — e o rumo do mundo teria mudado.

Já não tinham sobre os homens e os fatos daquela época uma única ideia de pé.

Para julgar imparcialmente, seria preciso ler todas as histórias, todas as memórias, todos os jornais e todas as peças manuscritas, porque da mínima omissão pode depender um erro que levará a outros até o infinito. Desistiram.

Mas tinham pegado o gosto pela história, a necessidade da verdade por si mesma.

Talvez ela seja mais fácil de descobrir nas épocas antigas... Estando os autores longe das coisas, devem falar delas sem paixão. E começaram o bom Rollin.

— Que caterva de frivolidades! — exclamou Bouvard logo no primeiro capítulo.

— Espera um pouco — disse Pécuchet, rebuscando na parte de baixo da biblioteca, onde se amontoavam os livros do último proprietário, um velho jurisconsulto, maníaco e ilustrado; e depois de ter mudado de lugar muitos romances e peças de teatro, com um Montesquieu e traduções de Horácio, chegou ao que procurava: a obra de Beaufort sobre a História de Roma.

Titus Livius atribui a fundação de Roma a Rômulo. Salústio dá essa honra aos troianos de Eneias. Coriolano morreu no exílio segundo Fabius Pictor e devido aos estratagemas de Attitus Tullus se acreditarmos em Denys; Sêneca afirma que Horatius Cocles regressou vitorioso, Dion que foi ferido numa perna. E La Mothe Le Vayer emite dúvidas semelhantes relativamente aos outros povos.

Ninguém está de acordo quanto à antiguidade dos Caldeus, ao século de Homero, à existência de Zoroastro, aos dois impérios da Assíria. Quintus Curtius escreveu historietas. Plutarco desmente Heródoto. Teríamos de César outra ideia se Vercingetorix tivesse escrito os seus comentários.

A história antiga é obscura por falta de documentos.

Na moderna, eles abundam; e Bouvard e Pécuchet regressaram à França, pegaram o Sismondi.

A sucessão de tantos homens dava-lhes vontade de conhecê-los mais profundamente, de se misturar com eles. Queriam ler os originais, Gregório de Tours, Monstrelet, Commines, todos com nomes estranhos ou agradáveis.

Mas os acontecimentos embrulharam-se, por não saberem as datas.

Felizmente possuíam a mnemotecnia de Dumouchel, um in-12 cartonado com esta epígrafe: <<Instruir divertindo”.

Ela combinava os três sistemas de Allévy, de Paris e de Feinaigle.

Allévy transforma os números em figuras; o número se exprime- por uma torre, 2 por um pássaro, 3 por um camelo, e assim por diante. Paris surpreende a imaginação com enigmas; uma cadeira guarnecida de pregos com rosca, isto é, “dous à vis”, dará: Clou, vis Clóvis; e como o ruído da fritura é “ric, rie”; pescadas numa frigideira lembrarão Chilperico. Feinaigle divide o universo em casas, que contêm quartos, cada um dos quais com quatro paredes de nove painéis, e cada painel com um emblema. Portanto, o primeiro rei da primeira dinastia ocupará no primeiro quarto o primeiro painel. Um farol em cima de um monte dirá como ele se chamava “Phar à mond”, sistema Paris — e, segundo o conselho de Allévy, colocando por cima um espelho que significa 4, um pássaro 2, e um arco O, obtém-se 420, data do advento deste príncipe.

Para maior clareza, tomaram como base mnemotécnica a sua própria casa, o seu domicílio, ligando a cada uma das suas partes um fato diferente; e o pátio, a horta, os arredores, toda a região, já não tinham outro sentido além do de facilitar a memória. As demarcações no campo limitavam certas épocas, as macieiras eram árvores genealógicas, os silvados batalhas, o mundo tornava-se símbolo. Procuravam nas paredes muitas coisas ausentes, acabavam por vê-las, mas já não sabiam as datas que representavam.

De resto, as datas nem sempre são autênticas. Aprenderam num manual para os colégios que o nascimento de Jesus deve reportar-se a cinco anos antes do que ordinariamente se diz, que havia entre os Gregos três maneiras de contar as Olimpíadas e oito entre os Latinos de marcar o começo do ano — outros tantos motivos de enganos, para além dos que resultam dos zodíacos, das eras e dos calendários diferentes.

E da indiferença pelas datas passaram ao desdém pelos fatos.

O que é importante é a filosofia da História!

Bouvard não conseguiu concluir o célebre discurso de Bossuet.

— A águia de Meaux é um farsante! Esquece a China, a Índia e a América! Mas tem o cuidado de nos ensinar que Teodósio era “a alegria do universo”, que Aarão “tratava de igual para igual com os reis” e que a filosofia dos Gregos descende dos Hebreus. A preocupação dele com os Hebreus irrita-me!

Pécuchet partilhou esta opinião e quis levá-lo a ler Vico.

— Como admitir — objetava Bouvard — que haja fábulas mais verdadeiras do que as verdades dos historiadores?

Pécuchet tentou explicar os mitos, perdia-se na Scienza Nuova.

— Negarás tu o plano da Providência?

— Não o conheço! — disse Bouvard.

E decidiram recorrer a Dumouchel.

O Professor confessou que estava agora desconcertado com a história.

— Ela muda todos os dias. Contestam-se os reis de Roma e as viagens de Pitágoras! Ataca-se Belisário, Guilherme Tell, e até o Cid, que se tornou, graças às últimas descobertas, um simples bandido. É caso para desejar que não se façam mais descobertas, e o Instituto devia até estabelecer uma espécie de cânone, prescrevendo aquilo em que se deve acreditar!

Enviava em pós-escrito regras de crítica retiradas do curso de Daunou: — Citar como prova o testemunho das multidões, é má prova; elas não existem para garantir seja o que for.

— Rejeitar as coisas impossíveis. A pedra engolida por Saturno foi mostrada a Pausanias.

— A arquitetura pode mentir; exemplo: O Arco do Forum, onde se diz que Tito foi o primeiro vencedor de Jerusalém, conquistada antes dele por Pompeu.

— As medalhas, por vezes, enganam. No reinado de Carlos IX cunharam-se moedas com o cunho de Henrique II.

— Levar em conta a destreza dos falsários, o interesse dos apologistas e dos caluniadores.

Poucos historiadores trabalharam segundo estas regras mas todos tendo como objetivo um causa especial, uma religião, uma nação, um partido, um sistema, ou para refrear os reis, aconselhar o povo, apresentar exemplos morais.

Os outros, os que pretendem apenas narrar, não são melhores. Porque não se pode dizer tudo. É preciso escolher. Mas na escolha dos documentos vai dominar um certo espírito; como ele varia segundo as condições do escritor, nunca a história será definitiva.

— É triste — pensavam eles.

Porém, podia-se pegar num assunto, esgotar as fontes, analisá-las bem — e depois condensá-lo numa narrativa, que seria como que um resumo das coisas que refletisse a verdade inteira. Uma obra assim parecia a Pécuchet exequível.

— Queres que tentemos escrever uma história?

— Não quero outra coisa! Mas qual?

— Realmente, qual?

Bouvard sentara-se. Pécuchet caminhava de uma ponta a outra do museu; quando deu com os olhos no pote de manteiga, e parando de repente, disse: — E se escrevêssemos sobre a vida do duque de Angoulême?

— Mas ele era um imbecil! — replicou Bouvard.

— Que importa? As personagens de segundo plano têm por vezes uma influência enorme... e esta talvez tivesse nas suas mãos a engrenagem dos negócios do Estado.

Os livros lhes dariam informações — e o Sr. de Faverges decerto as possuía, pessoalmente ou através de velhos fidalgos seus amigos.

Meditaram neste projeto, discutiram-no e resolveram enfim passar quinze dias na Biblioteca Municipal de Caen, para pesquisas.

O bibliotecário colocou a sua disposição histórias gerais e brochuras, mais uma litografia colorida que representava, em três quartos, Monsenhor o Duque de Angoulême.

O tecido azul do uniforme desaparecia debaixo das dragonas, dos crachás e da grande fita vermelha da Legião de Honra. Uma gola extremamente alta continha-lhe o longo pescoço. A cabeça piriforme era enquadrada pelas melenas da cabeleira e pelas suíças estreitas; e as pesadas pálpebras, o nariz muito forte e os lábios grossos davam-lhe ao rosto uma expressão de bondade insignificante.

Depois de tomar notas, redigiram um programa.

Nascimento e infância, nada de especial. Um dos seus governadores é o padre Guénée, o inimigo de Voltaire. Em Turim, mandam-lhe fundir um canhão e estuda as campanhas de Carlos VIII. Por isso é nomeado, apesar da sua juventude, coronel de um regimento de guardas nobres.


97. Casamento.

1814. Os Ingleses apoderam-se de Bordéus. Ele acorre atrás deles — e mostra-se pessoalmente aos habitantes. Descrição da pessoa do Príncipe.

1815. Bonaparte surpreende-o. Imediatamente recorre ao rei de Espanha, e Toulon, sem Massena, é entregue à Inglaterra.

Operações no Sul. É batido, mas solto sob a promessa de devolver os diamantes da coroa, levados a grande galope pelo Rei, seu tio.

Após os Cem Dias, regressa com os pais e vive tranquilamente. Passam-se vários anos.

Guerra da Espanha. — Mal ultrapassa os Pirenéus, a Vitória segue por toda a parte o neto de Henrique IV. Arrebata o Trocadéro, chega às colunas de Hércules, esmaga as fações, abraça Fernando e regressa.

Arcos de triunfo, flores oferecidas por meninas, jantares nas prefeituras, Te Deum nas catedrais. Os Parisienses estão no auge da embriaguez. A cidade oferece-lhe um banquete. Cantam-se nos teatros alusões ao Herói.

O entusiasmo diminui. Porque em 1827, em Cherbourg, um baile organizado por assinaturas é um fracasso.

Como é grande almirante da França, inspeciona a armada que vai partir para Argel.

Julho de 1830. Marmont dá-lhe a conhecer o estado dos negócios do Estado. Então entra em tal fúria que se fere na mão com a espada do general.

O rei confia-lhe o comando de todas as forças.

Encontra, no bosque de Bolonha, destacamentos da linha — e não acha uma só palavra para lhes dizer.

De Saint-Cloud voa para a ponte de Sèvres. Frieza das tropas. O que não o abala. A família real abandona Trianon. Senta-se ao pé de um carvalho, desdobra um mapa, medita, volta a montar a cavalo, passa diante de Saint-Cyr e envia aos alunos palavras de esperança.

Em Rambouillet, os guardas pessoais fazem as suas despedidas.

Embarca, e durante toda a travessia vai doente. Fim da sua carreira.

Deve sublinhar-se aqui a importância que as pontes tiveram. Primeiro, expõe-se inutilmente na ponte do Inn, toma a Ponte Saint-Esprit e a ponte de Lauriol; em Lyon, as duas pontes são-lhe funestas — e a sua Fortuna expira diante da ponte de Sevres.

Quadro das suas virtudes. Inútil elogiar a sua coragem, a que juntava uma grande política. Porque ofereceu sessenta francos a cada soldado para abandonarem o Imperador — e na Espanha tratou de corromper com dinheiro os Constitucionais.

A sua reserva era tão profunda que aceitou o casamento projetado entre seu pai e a rainha da Etrúria, a formação de um gabinete novo após as ordonnances, a abdicação a favor de Chambord, tudo o que queriam.

No entanto, não lhe faltava firmeza. Em Angers quebrou a infantaria da guarda nacional, que, com ciúmes da cavalaria, e graças a uma manobra, conseguira fazer-lhe escolta — de tal modo que Sua Alteza se viu cercada no meio dos infantes até o ponto de ter os joelhos comprimidos. Mas censurou a cavalaria por causa da desordem e perdoou à infantaria — verdadeiro julgamento de Salomão.

A sua piedade assinala-se por numerosas devoções, e também a sua clemência ao obter o perdão do general Debelle, que levantara armas contra ele.

Detalhes íntimos — traços do Príncipe: No palácio de Beauregard, na sua infância, deu-se ao prazer de escavar, com seu irmão, um tanque de água que ainda hoje se vê. Uma vez visitou o quartel dos caçadores, pediu um copo de vinho e bebeu-o à saúde do Rei.

Quando passeava, para marcar o passo, repetia para si mesmo: “Um, dois; um, dois; um, dois!”

Conservaram-se algumas das suas frases.

A uma deputação de Bordaleses: — “O que me consola de não estar em Bordeaux é me encontrar entre vós!”

Aos protestantes de Nîmes: — “Eu sou bom católico; mas nunca esquecerei que o mais ilustre dos meus antepassados foi protestante.”

Aos alunos de Saint-Cyr, quando tudo está perdido: — “Bem, meus amigos! As notícias são boas! Vai tudo bem! Muito bem.”

Após a abdicação de Carlos X: “Já que não me querem, que se arranjem!”

E e m 1814, a propósito de tudo, na mínima aldeia: — “Não há mais guerra, não há mais serviço militar, não há mais direitos cobrados.”

Seu estilo era tão bom quanto sua palavra. As suas proclamações ultrapassam tudo.

A primeira do Conde de Artois começava assim: — “Franceses, chegou o irmão do vosso rei.”

A do príncipe — “Vou chegar! Eu sou o filho dos vossos reis! Vós sois franceses.”

Ordem do dia datada de Bayonne: — “Soldados, vou chegar!”

Outra, em plena deserção: — “Continuai a manter com o vigor que convém ao soldado francês a luta que começastes. A França espera-o de vós!”

Última em Rambouillet: — “O rei entrou em negociações com o governo estabelecido em Paris; e tudo leva a crer que essas negociações estão prestes a concluir-se.” Tudo leva a crer era sublime.


— Uma coisa me preocupa — disse Bouvard. — Não mencionamos seus casos amorosos?

E anotaram à margem: “Procurar os amores do Príncipe!”

Quando iam embora, o bibliotecário, reconsiderando, mostrou-lhes outro retrato do Duque de Angoulême.

Neste estava vestido de coronel dos cuirassiers, de perfil, olhos ainda menores, boca aberta, cabelos lisos esvoaçando.

Como conciliar os dois retratos? Teria ele os cabelos lisos ou ondulados... ou levaria a galanteria ao ponto de mandar frisá-los?

Questão grave, segundo Pécuchet; porque a cabeleira faz o temperamento, e o temperamento faz o indivíduo.

Bouvard pensava que nada se sabe de um homem enquanto se ignoram as suas paixões; e para esclarecer estes dois pontos apareceram no solar de Faverges. O conde não estava, o que lhes retardava a obra. Regressaram a casa, humilhados.

A porta da casa estava aberta de par em par. Ninguém na cozinha. Subiram a escada; e o que viram eles no meio do quarto de Bouvard? A Sra. Bordin, que olhava para a direita e para a esquerda.

— Desculpem-me — disse ela fazendo um esforço para rir. — Há uma hora que procuro a cozinheira, preciso dela por causa das minhas compotas.

Foram dar com ela na casa da lenha, numa cadeira, dormindo profundamente. Sacudiram-na. Ela abriu os olhos.

— O que é agora? A senhora está sempre me picando com suas perguntas!

Era evidente que, na ausência deles, a Sra. Bordin as fazia. Germaine saiu de seu torpor e declarou-se com indigestão.

— Eu fico para cuidar dela — disse a viúva.

Então distinguiram no pátio um grande chapéu cujas fitas se agitavam. Era a Sra. Castillon, a dona da fazenda.

Gritou: — Gorgu! Gorgu!

E do celeiro a voz da criadinha respondeu gritando; — Ele não está aqui!

E desceu ao fim de cinco minutos, de faces vermelhas, perturbada. Bouvard e Pécuchet censuraram-lhe a sua lentidão. Ela desabotoou-lhes as polainas sem murmurar.

Em seguida foram ver a arca.

Os pedaços esparsos juncavam a casa do forno; as esculturas estavam danificadas, os batentes partidos.

Perante este espetáculo, diante desta nova decepção, Bouvard reteve as lágrimas e Pécuchet tremia de emoção.

Gorgu, que apareceu quase imediatamente, contou o que se passara: acabava de pôr a arca cá fora a envernizar, quando uma vaca vadia a atirara ao chão.

— Vaca de quem? — disse Pécuchet.

— Não sei.

— Pois! Você tinha deixado a porta aberta como ainda agora! A culpa é sua!

De resto, desistiam: por tempo demais que ele andava fazendo pouco deles — e não queriam mais nada com ele nem com seu trabalho.

Os senhores estavam enganados. O prejuízo não era assim tão grande. Em três semanas tudo estaria acabado; e Gorgu acompanhou-os até a cozinha, onde Germaine, arrastando-se, vinha a chegar para fazer o jantar.

Eles repararam em cima da mesa numa garrafa de calvados, com três quartos a menos.

— Foi você, claro? — disse Pécuchet a Gorgu.

— Eu? Nunca.

Bouvard objetou: — Você era o único homem em casa.

— Pois, e as mulheres? — replicou o operário, com uma olhadela oblíqua.

Germaine caiu-lhe em cima: — Ora diga lá que fui eu!

— Com certeza que foi a senhora!

— E se calhar fui eu quem destruiu o armário!

Gorgu fez uma pirueta. — Não veem que ela está bêbada?

Então brigaram violentamente, ele pálido, zombeteiro, e ela corada e arrancando os seus tufos de cabelo grisalho debaixo da touca de algodão. A Sra. Bordin defendia Germaine e Mélie Gorgu.

A velha estourou.

— Então isto não é uma abominação? Passam dias juntos metidos na mata, sem falar da noite! Seu parisiense comedor de burguesas! Que vem para casa dos nossos patrões para lhes meter petas!

As pupilas de Bouvard arregalaram-se. — Que petas?

— Digo que não lhes ligam importância nenhuma!

— A mim ninguém pode deixar de me ligar importância! — exclamou Pécuchet, e, indignado com a sua insolência, exasperado pelas contrariedades, expulsou-a; ela que se safasse dali. Bouvard não se opôs a esta decisão — e retiraram-se, deixando Germaine a soluçar sobre a sua infelicidade, enquanto a Sra. Bordin tentava consolá-la.

Nessa tarde, quando ficaram calmos, passaram em revista estes acontecimentos, interrogaram-se sobre quem tinha bebido o calvados, como se tinha quebrado o móvel, que queria a Sra. Castillon ao chamar Gorgu, e se ele teria desonrado Mélie...

— Não sabemos o que se passa no nosso lar — disse Bouvard — e pretendemos descobrir como eram o cabelo e os amores do duque de Angoulême!

Pécuchet acrescentou: — Quantas questões igualmente consideráveis e ainda mais difíceis!

Donde concluíram que os fatos exteriores não são tudo.

É preciso completá-los com a psicologia. Sem a imaginação, a História é imperfeita. — Vamos mandar vir alguns romances históricos!


V

Começaram por ler Walter Scott.

Foi como que a surpresa de um mundo novo.

Os homens do passado, que para eles não passavam de fantasmas ou de nomes, tornaram-se seres vivos, reis, príncipes, bruxos, criados, couteiros, monges, vagabundos, mercadores e soldados, que deliberam, combatem, viajam, negociam, comem e bebem, cantam e rezam, na sala de armas dos castelos, nos bancos negros das estalagens, pelas ruas tortuosas das cidades, sob os alpendres das quitandas, nos claustros dos mosteiros. Paisagens artisticamente compostas rodeiam as cenas como um cenário de teatro. Acompanha-se com os olhos um cavaleiro que galopa ao longo das praias. Aspira-se entre as giestas a frescura do vento, a lua ilumina lagos onde desliza um barco, o sol faz rebrilhar as couraças, a chuva cai sobre as choças de folhagem.

Sem conhecerem os modelos, achavam estas pinturas parecidas e a ilusão era completa. Nisto se passou o inverno.

Acabado o almoço, instalavam-se na saleta, nas duas pontas da chaminé; e um diante do outro, com um livro na mão, liam silenciosamente. Quando a luz desfalecia, iam passear na estrada principal, jantavam à pressa e continuavam as suas leituras pela noite. Para se defender do candeeiro Bouvard tinha óculos azuis e Pécuchet usava a pala do boné inclinada sobre a testa.

Germaine não se fora embora e Gorgu vinha de tempos a tempos cavar a horta, porque eles haviam cedido por indiferença, por esquecimento das coisas materiais.

Depois de Walter Scott, Alexandre Dumas divertiu-os como uma lanterna mágica. As suas personagens, vivas como macacos, fortes como bois, alegres como tentilhões, entram e partem bruscamente, saltam dos telhados para a calçada, recebem terríveis ferimentos de que se curam, são julgadas mortas e reaparecem. Há alçapões nos soalhos, antídotos, disfarces — e tudo se mistura, corre e se resolve sem um minuto para refletir. O amor conserva-se decente, o fanatismo é alegre, os massacres fazem sorrir.

Agora exigentes, graças a estes dois mestres, não puderam tolerar a mexerufada de Bélisaire, a tolice de Numa Pompílio, Marchangy e Arlincourt.

A cor de Frédéric Soulié, como a do bibliófilo Jacob, pareceu-lhes insuficiente — e o Sr. Villemain escandalizou-os ao mostrar na página 85 do seu Lascaris um espanhol que fuma cachimbo, <<Um longo cachimbo árabe”, em meados do século XV.

Pécuchet consultava a biografia universal — e resolveu rever Dumas do ponto de vista da ciência.

O autor, em As Duas Dianas, engana-se nas datas.

O casamento do Delfim Francisco teve lugar a 14 de Outubro de 1548, e não a 20 de Março de 1549. Como sabe ele (ver O Pagem do Duque de Saboia) que Catarina de Médicis, após a morte do marido, queria recomeçar a guerra?

É pouco provável que tenham coroado o Duque de Anjou de noite, numa igreja, episódio que ornamenta A Dama de Montsoreau. A Rainha Margot, principalmente, está inçada de erros. O Duque de Nevers não estava ausente. Opinou no conselho antes de São Bartolomeu. E Henrique de Navarra não acompanhou a procissão quatro dias depois.

E Henrique III não regressou da Polônia tão depressa. De resto, quantas banalidades — o milagre do espinheiro, a varanda de Carlos IX, as luvas envenenadas de Joana d'Albret. Pécuchet deixou de confiar em Dumas.

Perdeu até todo o respeito por Walter Scott, por causa dos descuidos do seu Quintino Durward. O assassínio do bispo de Liege é antecipado quinze anos. A mulher de Roberto de Lamarck era Joana d' Arschel e não Hameline de Croy. Longe de ser morto por um soldado, foi mandado matar por Maximiliano, e o rosto do Temerário, quando se encontrou o seu cadáver, não exprimia qualquer ameaça, visto que os lobos o tinham semidevorado.

Bouvard nem por isso deixou de continuar com W alter Scott, mas acabou por se aborrecer com a repetição dos mesmos efeitos. A heroína, como habitualmente, vive no campo com o pai, e o apaixonado, uma criança raptada, é restabelecido nos seus direitos e triunfa sobre os seus rivais.

Há sempre um mendigo filósofo, um castelão ríspido, donzelas puras, criados facetas e intermináveis diálogos, um recato estúpido, a falta completa de profundidade.

Num movimento de ódio ao ferro-velho, Bouvard pegou em George Sand.

Entusiasmou-se com as belas adúlteras e os nobres amantes, gostaria de ser Jacques, Simon, Bénédict, Lélio, e de viver em Veneza! Soltava suspiros, não sabia o que tinha, achava-se mudado.

Pécuchet; investigando a literatura histórica, estudava as peças de teatro. Engoliu dois Pharamonds, três Clóvis, quatro Carlos Magno, vários Filipes Augustos, uma multidão de Joanas d' Are e muitas marquesas de Pompadour e conspirações de Cellamare!

Quase todas lhe pareceram ainda mais estúpidas do que os romances. Porque existe no teatro uma história combinada, que nada pode destruir. Luís XI não deixará de se ajoelhar diante das figurinhas do seu chapéu; Henrique IV

será constantemente jovial, Maria Stuart chorona, Richelieu cruel — enfim, todos os caracteres são mostrados em bloco, por mor das ideias simples e respeito pela ignorância — de tal modo que o dramaturgo, longe de elevar, abaixa; em vez de instruir, embrutece.

Como Bouvard lhe tinha elogiado George Sand, Pécuchet começou a ler Consuelo, Horace, Mauprat, foi seduzido pela defesa dos oprimidos, o lado social e republicano, as teses.

Segundo Bouvard, elas estragavam a ficção e pediu à sala de leitura romances de amor.

Em voz alta e um após outro, percorreram A Nova Heloísa, Delphine, Adolphe, Ourika. Mas os bocejos daquele que ouvia conquistavam o companheiro, cujas mãos não tardavam a deixar cair o livro no chão. Criticavam todos aqueles romances por nada dizerem do meio, da época, do traje das personagens. Só se trata do coração; sempre sentimento!

Como se no mundo não houvesse outra coisa!

Em seguida, experimentaram romances humorísticos, tais como A Viagem à Roda do meu Quarto, de Xavier de Maistre, e Debaixo das Tílias, de Alphonse Karr. Neste gênero de livros o autor tem que interromper a narração para falar do seu cão, das suas pantufas ou da sua amante.

Esta familiaridade começou por encantá-los e depois pareceu-lhes estúpida; porque o autor apaga a sua obra ao ostentar nela a sua pessoa.

Por necessidade e dramatismo mergulharam nos romances de aventuras, e a intriga interessava-os tanto mais quanto mais era intrincada, extraordinária e impossível. Afadigavam-se a prever as soluções finais, tornaram-se muito fortes nisso, e cansaram-se duma bagatela como aquela, indigna de espíritos sérios.

A obra de Balzac maravilhou-os, ao mesmo tempo como uma Babilônia e como grãos de poeira vistos ao microscópio. Nas coisas mais banais surgiram aspectos novos. Não haviam suspeitado de que a vida moderna fosse tão profunda.

— Que observador! — exclamava Bouvard.

— Eu acho-o quimérico — acabou por dizer Pécuchet. — Ele acredita nas ciências ocultas, na monarquia, na nobreza, maravilha-se com os velhacos, mexe em milhões como se fossem cêntimos, e os seus burgueses não são burgueses, mas colossos. Por que empolar o que é chato e descrever tantas tolices? Fez um romance sobre a química, outro sobre a Banca, outro sobre as máquinas de imprimir. Como um tal Ricard fizera “O cocheiro de tipoia”, “O aguadeiro”, “o vendedor de cocos”. Vamos tê-los sobre todos os ofícios e de todas as províncias, e depois sobre todas as cidades e sobre os andares de cada casa e sobre cada indivíduo, o que já não será literatura, mas estatística ou etnografia.

A Bouvard pouco importava o processo. Queria instruir-se, ir mais ao fundo no conhecimento dos costumes. Releu Paul de Kock, folheou velhos eremitas da Chaussée d'Antin.

— Como perder o nosso tempo com inépcias destas? — dizia Pécuchet.

— Mas mais tarde será muito curioso, como documento.

— Vai passear com os teus documentos! Eu peço qualquer coisa que me exalte, que me arrebate das misérias deste mundo!

E Pécuchet, tendendo para o ideal, virou Bouvard insensivelmente para a Tragédia.

Os longes em que ela se passa, os interesses que nela se debatem e a condição das suas personagens impunham-lhes como que um sentimento de grandeza.

Um dia Bouvard pegou Athalie e recitou o sonho tão bem que Pécuchet quis também experimentar. Desde a primeira frase, sua voz se perdeu numa espécie de zumbido. Era monótona e, embora forte, indistinta.

Bouvard, cheio de experiência, aconselhou-lhe, para torná-la flexível, que a desdobrasse desde o tom mais baixo até o mais alto e que voltasse a dobrá-la, emitindo duas escalas, uma ascendente e outra descendente — e ele próprio se entregava a este exercício, de manhã, na cama, deitado de costas, segundo o preceito dos gregos. Enquanto isso, Pécuchet trabalhava da mesma maneira; fechavam a porta de comunicação — e vociferavam em separado.

O que lhes agradava na tragédia de Racine era a ênfase, os discursos sobre a política, as máximas de perversidade.

Aprenderam de cor os diálogos mais famosos de Racine e Voltaire e os declamavam no corredor. Bouvard, como no Théâtre-Français, caminhava com a mão no ombro de Pécuchet, detendo-se de vez em quando, e revirava os olhos, abria os braços, acusava os destinos. Tinha belos gritos de dor no Pi/octeto de La Harpe, um belo soluço em Gabriela de Vergy e, quando fazia de Denys tirano de Siracusa, uma maneira de encarar o filho chamando-lhe “Monstro, digno de mim!” que era verdadeiramente terrível. Com isto, Pécuchet esquecia-se do seu papel. Os meios faltavam-lhe, não a boa vontade.

Uma vez, na Cleópatra de Marmontel, imaginou reproduzir o silvo da áspide, como devia fazê-lo o autômato inventado expressamente por Vaucanson. Este efeito fracassado manteve-os rindo até a tarde. A tragédia caiu na estima de ambos.

Bouvard foi o primeiro a ficar cansado e, com franqueza, demonstrou como ela é artificial e impotente: a tolice dos seus meios, o absurdo dos confidentes.

Passaram à comédia — que é a escola dos matizes.


É preciso desmanchar a frase, sublinhar as palavras, pesar as sílabas. Pécuchet não conseguiu dar conta do recado — e fracassou completamente no papel de Célimène.

De resto, achava os apaixonados bastante frios, as personagens que incarnam a razão maçadoras, os criados intoleráveis, Clitandre e Sganarelle tão falsos como Egisto e Agamemnon.

Restava a Comédia séria, ou tragédia burguesa, aquela onde se veem pais de família desolados, criados salvando os seus patrões, ricaços oferecendo as suas fortunas, costureiras inocentes e infames subornadores, gênero que se prolonga de Diderot a Pixérécourt. Todas essas peças que pregam a virtude os chocaram como triviais.

O drama de 1830 encantou-os pelo seu movimento, a sua cor, a sua juventude. Não faziam qualquer diferença entre Victor Hugo, Dumas, ou Bouchardy; e a dicção já não devia ser pomposa ou fina — mas lírica, desordenada.

Um dia em que Bouvard tentava fazer Pécuchet compreender o papel de Frédérick Lemaître, a Sra. Bordin apareceu de repente com o seu xale verde e um volume de Pigault-Lebrun que vinha devolver, porque os cavalheiros tinham a bondade de lhe emprestar romances de vez em quando.

— Continuem! — disse ela, que estava ali há um minuto e com prazer em ouvi-los.

Eles se desculparam. Ela insistia.

— Meus Deus! — disse Bouvard — nada nos impede!...

Pécuchet alegou, por falsa vergonha, que não podiam representar de improviso, sem trajes.

— Efetivamente! Precisaríamos nos disfarçar.

E Bouvard procurou um objeto qualquer, encontrou apenas o barrete grego e pegou nele.

Como o corredor não tinha largura suficiente, desceram para o salão.

Corriam aranhas ao longo das paredes — e os espécimes geológicos que atravancavam o chão tinham embranquecido com a sua poeira o veludo das cadeiras. Estenderam em cima da menos suja um esfregão para que a Sra. Bordin pudesse sentar-se.

Era preciso apresentar-lhe algo de bom. Bouvard era partidário de A Torre de Neste. Mas Pécuchet receava papéis que exigissem muita ação.

— Ela gostará mais do clássico! Pedra, por exemplo...

— Seja.

Bouvard contou o assunto. — É uma rainha cujo marido tem um filho de outra mulher. Ela perdeu a cabeça pelo rapaz — entendido? Vamos a isto!

Sim, Príncipe, suspiro e ardo por Teseu, A ele amo!

E, falando para o perfil de Pécuchet, admirava o seu porte, o seu rosto, “esta cabeça encantadora”, desolava-se por não o ter encontrado na armada dos Gregos, desejaria perder-se com ele no labirinto.

A mecha do barrete vermelho inclinava-se amorosamente; e a sua voz tremente e o seu rosto bom esconjuravam o cruel a apiedar-se da sua chama. Pécuchet, desviando-se, ofegava para exprimir emoção.

A Sra. Bordin, imóvel, arregalava os olhos, como se estivesse diante de prestidigitadores. Mélie escutava atrás da porta. Gorgu, em mangas de camisa, espiava-os pela janela.

Bouvard encetou a segunda tirada. A sua representação exprimia o delírio dos sentidos, o remorso, o desespero, e atirou-se para o gládio ideal de Pécuchet com tanta violência que, tropeçando nas pedras, quase caiu no chão.

— Não se preocupe! Depois, chega Teseu e ela envenena-se!

— Pobre mulher! — disse a Sra. Bordin.

Em seguida pediram-lhe que lhes indicasse uma passagem.

A escolha a embaraçava. Ela só tinha visto três peças: Roberto, O diabo na capital, O jovem marido em Rouen — e outra em Falaise, que era muito divertida e que se chamava O carrinho de mão do vinagreiro.

Por fim Bouvard propôs-lhe a grande cena do Tartufo, no terceiro ato.

Pécuchet julgou necessária uma explicação: — É preciso saber que Tartufo...

A Sra. Bordin interrompeu-o. — Toda a gente sabe o que é um Tartufo!

Bouvard desejava, para uma certa passagem, uma beca.

— Só vejo roupa de monge — disse Pécuchet.

— Não importa! Veste!

Reapareceu com ele, e com um Molière.

O começo foi medíocre. Mas quando Tartufo chega ao ponto de acariciar os joelhos de Elmira, Pécuchet tomou um tom de polícia.

— Que faz aí a vossa mão?

Bouvard replicou logo numa voz açucarada: — Apalpo o vosso traje, o tecido é fofo. — E fazia dardejar as pupilas, esticava a boca, fungava, tinha um ar extremamente lúbrico, acabou mesmo por se dirigir à Sra. Bordin.

Os olhares daquele homem incomodavam-na — e quando ele parou, humilde e palpitante, ela quase procurou uma resposta.

Pécuchet recorreu ao livro: — A declaração é bem galante.

— Ah, sim — exclamou ela — é um soberbo sedutor.

— Não é? — retomou orgulhosamente Bouvard. — Mas aqui está outra, de uma elegância mais moderna — e, depois de desabotoar a sobrecasaca, acocorou-se sobre uma pedra de cantaria e declamou de cabeça inclinada para trás: Inunda o meu olhar com as chamas dos teus olhos / Canta-me qualquer canção, como as cantavas / Certas vezes, à tarde, e de pranto me inundavas.

“Parece ser comigo”, pensou ela.


Sejam felizes! Bebamos! Está cheia a taça, e dura.

Porque esta hora é nossa, e o resto é loucura.


— Como o senhor é engraçado!

E ela ria baixinho, um riso que lhe vinha da garganta e lhe descobria os dentes.


E não é doce amar

E saber que de joelhos és amada?


Ele se ajoelhou.

— Pare com isso!

Oh, deixa-me dormir e sonhar sobre o teu seio, Dona Sol! Minha beldade! Meu amor!

— Aqui ouvem-se os sinos, há um montanhês que os perturba.

— E felizmente! Se não fosse isso...! — E a Sra. Bordin sorriu, em vez de terminar a frase. A luz desfalecia.

Ela se levantou.

Tinha acabado de chover — e como o caminho pelo faial não era fácil, era melhor regressar pelos campos. Bouvard acompanhou-a ao jardim para lhe abrir a porta.

Começaram por caminhar ao longo das árvores em forma de roca, sem falar. Ele estava ainda comovido com a sua declamação; e ela sentia no fundo da alma como que uma surpresa, um encanto que vinha da Literatura. A Arte, em certas ocasiões, abala os espíritos medíocres; e há mundos que podem ser revelados pelos seus intérpretes mais desgraciosos.

O sol reaparecera, fazia brilhar as folhas, lançava manchas luminosas nos cerrados, aqui e além. Três pardais, com o seu pipilar, saltitavam no tronco de uma velha tília abatida. Um espinheiro em flor estendia a sua paveia rosada, reclinavam-se os lilases mais pesados.

— Ah, aquilo faz bem! — disse Bouvard, sorvendo o ar a plenos pulmões.

— Também, cansa-se tanto!

— Não é que eu tenha talento, mas lá fogo tenho.

— Vê-se — continuou ela, intervalando as palavras — que o senhor já amou... em tempos.

— Só antigamente... acredita nisso?

Ela parou.

— Não sei.

“Que quer ela dizer?” E Bouvard sentia o coração bater.

Uma poça no meio da areia obrigou-os a um desvio e levou-os a subir para a azinhaga.

Então conversaram acerca da representação.

— Como se chama a última passagem que disse?

— E tirada do Hernâni, um drama.

— Ah! — e depois, lentamente, e falando consigo mesma: — Deve ser bem agradável, haver um cavalheiro a dizer-nos coisas assim a sério.

— Estou às suas ordens — respondeu Bouvard.

— O senhor?

— Sim! Eu!

— Que brincadeira!

— De modo nenhum!

E, depois de lançar um olhar à sua volta, tomou-a pela cintura, por trás, e beijou-a na nuca com força. Ela fez-se muito pálida como se fosse desmaiar — e apoiou-se com uma mão numa árvore; depois abriu as pálpebras e sacudiu a cabeça.

— Já passou.

Ele olhava-a com espanto.

Aberta a grade, ela subiu para o limiar da portinha.

Corria um rego do outro lado. Juntou todas as pregas da saia e mantinha-se à beira, indecisa.

— Quer que a ajude?

— Não é preciso.

— Por quê?

— Ah! O senhor é muito perigoso!

E, no salto que deu, viu-se sua meia branca.

Bouvard censurou-se por ter perdido a ocasião. Ora! Outra viria; e depois as mulheres não são todas as mesmas.

E preciso ser precipitado com umas e a audácia perde-nos com outras. Em suma, estava contente consigo; e se não confiou a sua esperança a Pécuchet foi por medo das observações dele e de modo nenhum por delicadeza.

A partir daquele dia declamaram consequentemente diante de Mélie e Gorgu, lamentando não ter um teatro de sociedade.

A criadinha divertia-se sem compreender nada daquilo, espantada com a linguagem, fascinada pelo ronronar dos versos. Gorgu aplaudia as tiradas filosóficas das tragédias e tudo o que era para o povo nos melodramas; de tal modo que, encantados com o seu gosto, pensaram em dar-lhe lições, para mais tarde fazer dele um ator. Esta perspectiva deslumbrava o operário.

Tinha-se espalhado a fama dos seus trabalhos. Vaucorbeil falou-lhes deles de um jeito malicioso. Em geral, desprezavam-nos.

Com isso mais se estimavam ainda. Sagraram-se artistas. Pécuchet passou a usar bigode e Bouvard nada encontrou de melhor, com a sua aparência redonda e a sua calvície..._ do que arranjar <<Uma cabeça à Béranger!”

Por fim, resolveram escrever uma peça.

O difícil era o assunto.

Procuravam-no enquanto almoçavam, e bebiam café, licor indispensável ao cérebro, e depois dois ou três cálices.

A seguir iam dormir nas suas camas; após o que desciam para o pomar, passeavam por lá e saíam finalmente para encontrar no exterior a inspiração; caminhavam lado a lado e regressavam extenuados.

Ou então fechavam-se a sete chaves, Bouvard limpava a mesa, punha papel à sua frente, molhava a pena e ficava-se de olhos no teto, enquanto Pécuchet, no cadeirão, meditava de pernas estendidas e cabeça baixa.

Por vezes sentiam um arrepio e como que o vento de uma ideia; no momento de a agarrarem, desaparecera.

Mas existem métodos para descobrir assuntos. Pega-se num título, ao acaso, e dele decorre um fato; desenvolve-se um provérbio, combinam-se aventuras numa só. Nenhum desses processos deu resultado. Folhearam em vão colectâneas de anedotas, vários volumes das causas célebres, uma quantidade de histórias.

E sonhavam ser representados no Odéon, pensavam nos espetáculos, tinham saudades de Paris.

— Eu fui feito para ser ator, e não para me enterrar no campo! — dizia Bouvard.

— Também eu — respondia Pécuchet.

Veio-lhes uma iluminação: se tinham tantas dificuldades era porque não sabiam as regras.

Estudaram-nas, em A Prática do Teatro, de d'Aubignac, e em algumas obras menos fora de moda.

Aí se debatem problemas importantes: se a comédia se pode escrever em verso, se a tragédia não excede os seus limites se retirar a fábula da história moderna, se os heróis devem ser virtuosos, que gênero de celerados ela comporta, até que ponto os horrores são permitidos. Que os pormenores concorram para um único objetivo, que o interesse cresça, que o final corresponda ao começo — sem dúvida!

Inventai energias que possam amarrar-me, diz Boileau.

Como inventar energias?

Que nos vossos discursos a paixão desperta Toque o coração, o aqueça e subverta.

Como aquecer o coração?

Portanto, as regras não bastam. Além delas, é preciso gênio.

E o gênio não basta. Corneille, segundo a Academia Francesa, não entende nada de teatro. Geoffroy disse mal de Voltaire. Racine foi injuriado por Subligny. La Harpe rugia ao ouvir o nome de Shakespeare.

Como a velha crítica os enjoava, quiseram conhecer a nova, e mandaram vir as recensões de peças, nos jornais.

Que sobranceria! Que obstinação! Que falta de probidade! Ultrajes a obras-primas, reverências a coisas insípidas — e as burrices daqueles que passam por sábios e a estupidez dos outros proclamados espirituais!

Será no Público que devemos confiar?

Mas por vezes certas obras aplaudidas desagradavam-lhes, e nas assobiadas havia qualquer coisa de que gostavam.

Assim, a opinião das pessoas de gosto é enganadora, e o juízo da multidão inconcebível.

Bouvard colocou o dilema a Barberou. Pécuchet, pelo seu lado, escreveu a Dumouchel.

O antigo caixeiro-viajante espantou-se com o amolecimento causado pela província, o seu velho Bouvard estava a dar em tonto, em suma, “já não era o mesmo”.

O teatro é um objeto de consumo como qualquer outro.

Faz parte dos “artigos de Paris”. As pessoas vão a um espetáculo para se divertir. O que é bom é o que diverte.

— “Mas, imbecil”, exclamou Pécuchet, “O que te diverte não é o que me diverte — e os outros e tu mesmo se fatigarão com isso mais tarde. Se as peças são sem dúvida escritas para ser representadas, como é que acontece que as melhores sejam sempre lidas?” E esperou a resposta de Dumouchel.

Segundo o professor, a sorte imediata de uma peça não provava nada. O Misantropo e Athalie caíram. Zaire já não é compreendido. Quem fala hoje em dia de Ducange e de Picard? E recordava todos os grandes êxitos contemporâneos, desde Fanchon, a Sanfoneira até Gaspardo, o Pescador, deplorava a decadência da nossa cena. Essa decadência tem por causa o desprezo pela Literatura — ou antes, pelo estilo.

Então, perguntaram eles, em que consiste precisamente o estilo? — e graças a autores indicados por Dumouchel aprenderam o segredo de todos os gêneros.

Como se obtém o majestoso, o temperado, o ingênuo; os giros que são nobres, as palavras que são baixas. Cães reabilita-se com devoradores. Vomitar só se usa no sentido figurado. Febre aplica-se às paixões. Intrépido é belo em verso.

— E se fizéssemos versos? — disse Pécuchet.

— Mais tarde! Primeiro tratemos da prosa.

É formalmente recomendado que se escolha um clássico como modelo, mas todos têm os seus perigos — e não apenas pecaram pelo estilo como ainda pela língua.

Tal asserção desconcertou Bouvard e Pécuchet e puseram-se a estudar gramática.

Temos nós no nosso idioma artigos definidos e indefinidos como em latim? Uns pensam que sim, outros que não.

Não se atreveram a decidir.

O sujeito concorda sempre com o verbo, salvo nas ocasiões em que o sujeito não concorda.

Outrora não havia qualquer distinção entre o adjectivo verbal e o particípio presente, mas a Academia apresenta uma, pouco cômoda de apreender.

Ficaram muito satisfeitos por saber que o pronome seu se utiliza tanto para as pessoas como para as coisas, ao passo que outros se utilizam para as coisas e às vezes para as pessoas. Deverá dizer-se “esta mulher é de aspecto bom” ou “de aspecto boa”? — “Uma acha de pau seco” ou “de pau seca”? — “Mais que” ou “do que”? — “Um bando de ladrões chegou” ou “chegaram”?

Outras dificuldades: “À roda” ou “em redor”, onde Racine e Boileau não viam diferença; “impor” com e sem objeto, indiferentes em Massillon e em Voltaire; “crocitar” e “coaxar” confundidos por La Fontaine, que no entanto sabia distinguir um corvo de uma rã.

Os gramáticos, na verdade, estão em desacordo; uns veem uma beleza onde outros descobrem um erro. Admitem princípios cujas consequências rejeitam, proclamam as consequências cujos princípios recusam, apoiam-se na tradição, rejeitam os mestres, e têm refinamentos estranhos.

Ménage, em vez de lentículas e de torrão, preconiza lentifelas e terrão. Bouhours, zerarquia e não hierarquia; e o Sr. Chapsal, os olhos da sopa.

Pécuchet ficou sobretudo assombrado por Génin.

— Como? Z'annetons era melhor que hannetons, z'aricots melhor que haricots e no reinado de Luís XIV pronunciava-se “Roume e Sr. de Lioune”, em vez de Rome e Sr. de Lionne!

Littré deu-lhes o golpe de misericórdia ao afirmar que nunca houve ortografia positiva, nem pode haver.

Daqui concluíram que a sintaxe é uma fantasia e a gramática uma ilusão.

Naquele tempo, aliás, uma retórica nova anunciava que é preciso escrever como se fala e que tudo está bem desde que tenha sido sentido e observado.

Como tinham sentido e julgavam ter observado, consideraram-se capazes de escrever. Uma peça é incômoda devido à estreiteza do quadro; mas o romance tem mais liberdades. Para fazerem um, pesquisaram nas suas recordações.

Pécuchet lembrou-se de um dos seus chefes de escritório, um sujeito bem desagradável, e ambicionava vingar-se dele num livro.

Bouvard conhecera no botequim um velho professor de caligrafia bêbado e miserável. Nada seria mais engraçado que esta personagem.

Ao fim de uma semana imaginaram fundir estes dois temas num só — mas não tinham sequência e passaram aos seguintes: — Uma mulher causa a infelicidade de uma família; uma mulher, o marido e o amante; uma mulher que seria virtuosa por falta de predisposição oposta, um ambicioso, um mau padre.

Tratavam de ligar a estas concepções incertas coisas fornecidas pela memória, cortavam, acrescentavam. Pécuchet era pelo sentimento e pela ideia, Bouvard pela imagem e pela dor — e começavam a já não se entender, cada um admirado por o outro ser tão limitado.

A ciência a que se chama estética talvez viesse a decidir os seus diferendos. Um amigo de Dumouchel, professor de filosofia, mandou-lhes uma lista de obras sobre a matéria. Trabalharam separadamente e comunicavam um com o outro as suas reflexões.

Primeiro, que é o Belo?

Para Schelling é o infinito que se exprime pelo finito, para Reid qualidade oculta, para Jouffroy um elemento indecomponível, para de Maistre o que agradava à virtude; para o Pe. André, o que convém à Razão.

E existem várias espécies de Belo: um belo nas ciências, a geometria é bela, um belo nos costumes, não se pode negar que a morte de Sócrates seja bela. Um belo no reino animal. A Beleza do cão consiste no seu faro. Um porco não pode ser belo, devido aos seus hábitos imundos; uma serpente também não, porque desperta em nós ideias de baixeza. As flores, as borboletas, os pássaros, podem ser belos. Enfim, a condição primordial do Belo é a unidade na variedade, este é o princípio.

— No entanto — disse Bouvard — dois olhos vesgos são mais variados que dois olhos direitos e produzem pior efeito... habitualmente.

Trataram da questão do sublime.

Certos objetos são por si mesmos sublimes — o estrépito de uma torrente, trevas profundas, uma árvore açoitada pela tempestade. Um temperamento é belo quando triunfa e sublime quando luta.

— Estou a compreender — disse Bouvard — o Belo é o Belo, e o Sublime é o muito Belo.

Como distingui-los?

— Por meio do tato — respondeu Pécuchet.

— E o tato, de onde vem ele?

— Do gosto!

— Que é o gosto?

— É definido como um discernimento especial, um juízo rápido, a vantagem de distinguir certas relações.

— Enfim, o gosto é o gosto... e nada disso diz a maneira de o ter.

É preciso guardar as conveniências; mas as conveniências variam; e por muito perfeita que seja um obra, não será nunca imaculada. Existe, todavia, um Belo indestrutível cujas leis ignoramos porque a sua gênese é misteriosa.

Visto que uma ideia não pode traduzir-se por qualquer forma, devemos reconhecer limites entre as Artes, e em cada uma das Artes vários gêneros. Mas surgem combinações em que o estilo de um entrará no outro sob pena de desviar do fim, de não ser verdadeiro.

A aplicação excessivamente exata da verdade prejudica a beleza, e a preocupação com a Beleza impede a Verdade. Contudo, sem ideal não há Verdade; por isso é que os tipos são de uma realidade mais constante que os retratos. A arte, aliás, apenas tratava da verosimilhança — mas a verosimilhança depende de quem a observa, é coisa relativa, passageira.

Perdiam-se assim em raciocínios. Bouvard acreditava cada vez menos na estética.

— Se não é um embuste, o seu rigor vai ser demonstrado com exemplos. Ora, escuta. — E leu uma nota que lhe exigira muitas pesquisas.

Bouhours acusa Tácito de não ter a simplicidade exigida pela História. O Sr. Droz, um professor, critica Shakespeare pela sua mistura do sério e do bufo; Nisard, outro professor, acha que André Chénier está como poeta abaixo do século XVII; Blair, um inglês, deplora em Virgílio o quadro das harpias. Marmontel lamenta as liberdades de Homero, Lamotte não admite a imoralidade dos seus heróis, Vida indigna-se com as suas comparações. Enfim, todos os fazedores de retóricas, de poéticas e de estéticas me parecem imbecis!

— Estás exagerando! — disse Pécuchet.

Era agitado por dúvidas — porque se os espíritos medíocres (como observa Longino) são incapazes de errar, então os erros pertencem aos mestres, e haveremos de admirá-los? É forte demais! Contudo, os mestres são os mestres! Gostava de obter a conciliação entre as doutrinas e as obras, os críticos e os poetas, apreender a essência do Belo; e estas questões atormentaram-no de tal modo que a bílis se lhe alterou e apanhou icterícia.

Estava esta no seu período máximo quando Marianne, a cozinheira da Sra. Bordin, veio pedir a Bouvard uma entrevista para a sua patroa.

A viúva não tornara a aparecer desde a sessão dramática. Seria uma tentativa de aproximação? Mas por que Marianne como intermediária? E durante toda a noite a imaginação de Bouvard andou perdida.

No dia seguinte, por volta das duas horas, andava ele a passear no corredor, olhando de vez em quando pela janela; soou um toque de sineta. Era o notário.

Atravessou o pátio, subiu a escada, sentou-se no cadeirão — e, trocadas as primeiras fórmulas de delicadeza, disse que, cansado de esperar pela Sra. Bordin, viera à frente.

Ela queria comprar-lhe as Écalles.

Bouvard sentiu uma espécie de frio e passou para o quarto de Pécuchet.

Pécuchet não soube que responder. Estava preocupado; o Sr. Vaucorbeil devia estar a chegar.

Por fim, chegou ela. O atraso explicava-se pelo aparato do seu vestuário: caxemira, chapéu, luvas acetinadas, a aparência própria das ocasiões solenes.

Depois de muitos rodeios, perguntou se mil escudos seriam quantia suficiente.

— Um acre! Mil escudos? Nunca!

Ela pestanejou: — Oh! É para mim!

E ficaram os três silenciosos. Entrou o Sr. de Faverges.

Trazia debaixo do braço, como um procurador, uma pasta de couro — e disse ao colocá-la em cima da mesa: — São folhetos! São acerca da Reforma: questão escaldante. Mas está aqui uma coisa que por certo vos pertence...

E estendeu a Bouvard o segundo volume das Memórias do Diabo.

Mélie estava a lê-lo na cozinha; e, como se deve vigiar os costumes daquela gente, achara por bem confiscar-lhe o livro.

Bouvard tinha-o emprestado à criada. Conversaram acerca dos romances.

A Sra. Bordin gostava de romances quando não eram lúgubres.

— Os escritores — disse o Sr. de Faverges — pintam-nos a vida com cores lisonjeiras!

— Mas é preciso pintar! — objetou Bouvard.

— Então, não temos mais do que seguir o exemplo!...

— Não se trata de exemplo!

— Pelo menos, vai concordar que eles podem cair nas mãos de uma menina. Eu tenho uma.

— Encantadora! — disse o notário, fazendo a sua cara dos dias de contrato de casamento.

— Muito bem, por causa dela, ou antes, das pessoas que a rodeiam, proíbo-os em minha casa, porque o Povo, meu caro senhor...

— Que fez ele, o Povo? — disse Vaucorbeil, aparecendo de repente no limiar.

Pécuchet, que lhe reconhecera a voz, veio juntar-se ao grupo.

— Eu sustento — continuou o conde — que é preciso afastar dele certas leituras.

Vaucorbeil replicou: — Então não é a favor da instrução?

— Isso mesmo! Dá licença?

— Quando todos os dias — disse Marescot — se ataca o governo!

— Onde está o mal?

E o fidalgo e o médico começaram a dizer mal de Luís Filipe, recordando o caso Pritchard e as leis de Setembro contra a liberdade de imprensa.

— E a do teatro! — acrescentou Pécuchet.

Marescot não aguentava mais. — Vai muito longe, esse seu teatro!

— Isso concedo-lhe eu! — disse o conde; — peças que exaltam o suicídio!

— O suicídio é belo! Veja o caso de Catão — objetou Pécuchet.

Sem responder ao argumento, o Sr. de Faverges estigmatizou essas obras onde se injuriam as coisas mais sagradas, a família, a propriedade, o casamento!

— Muito bem, e Molière? — disse Bouvard.

Marescot, homem de gosto, replicou que Molière já não seria mais representado — e, aliás, os seus méritos estavam um pouco exagerados.

— Enfim — disse o conde — Victor Hugo foi impiedoso — sim, não teve piedade de Maria Antonieta, arrastando pela lama a figura da Rainha na personagem de Maria Tudor!

— Como? — exclamou Bouvard —, então eu, autor, não tenho o direito...

— Não, meu caro senhor, não tem o direito de nos mostrar o crime sem pôr ao lado o corretivo, sem nos oferecer uma lição.

Vaucorbeil achava também que a Arte devia ter um objetivo: visar a melhoria das massas! Cantem-nos a ciência, as nossas descobertas, o patriotismo — e admirava Casimir Delavigne.

A Sra. Bordin elogiou o Marquês de Foudras.

O notário respondeu: — Mas a língua, que pensa dela?

— Qual língua? Como?

— Fala-se de estilo! — gritou Pécuchet. — Acha as obras dele bem escritas?

— Sem dúvida, muito interessantes!

Ele encolheu os ombros — e ela corou, atingida pela impertinência.

Por várias vezes a Sra. Bordin tentara voltar ao seu assunto. Mas era tarde demais para concluí-lo. Saiu de braço com Marescot.

O conde distribuiu os seus panfletos recomendando que os difundissem.

Vaucorbeil ia-se embora quando Pécuchet o deteve.

— Está a esquecer-se de mim, Doutor!

O seu aspecto amarelado era lamentável, com o bigode e o cabelo negro pendendo-lhe debaixo de um lenço mal atado.

— Purgue-se — disse o médico; e, dando-lhe duas palmadinhas, como a uma criança: — Nervos a mais, artista a mais!

Esta familiaridade deu-lhe prazer. Tranquilizava-o; e, logo que ficaram sozinhos, disse: — Achas que aquilo não era a sério?

— Não! Claro que era!

Resumiram o que acabavam de ouvir. A moralidade da Arte resume-se para cada um ao aspecto que lhe lisonjeia os interesses. Ninguém gosta de Literatura.

Em seguida folhearam os impressos do Conde. Todos exigiam o sufrágio universal.

— Parece-me — disse Pécuchet — que não tardaremos a ter zaragata. — É que via tudo negro, talvez por causa da icterícia.


VI

Na manhã de 25 de fevereiro de 1848 soube-se em Chavignolles, por um indivíduo que vinha de Falaise, que Paris estava coberta de barricadas — e no dia seguinte foi afixada a proclamação da República na Câmara.

Este grande acontecimento deixou os burgueses estupefatos.

Mas quando se soube que o Tribunal de Cassação, o Tribunal da Relação, o Tribunal de Contas, o Tribunal de Comércio, a Câmara dos Notários, a Ordem dos Advogados, o Conselho de Estado, a Universidade, os generais e o próprio Sr. de La Rochejacquelein davam a sua adesão ao Governo Provisório, os corações se desoprimiram; e como em Paris se plantavam árvores da liberdade, o Conselho Municipal decidiu que era preciso fazê-lo em Chavignolles.

Bouvard ofereceu uma, satisfeito no seu patriotismo com o triunfo do Povo — e, quanto a Pécuchet, a queda da Realeza de tal modo confirmava as suas previsões que não podia deixar de estar contente.

Gorgu, obedecendo-lhes zelosamente, retirou da terra um dos choupos que bordejavam a pastagem por baixo do Cabeço, e transportou-o para o “Passo do Pousio”, à entrada do burgo, local designado.

Antes da hora da cerimônia estavam os três esperando o cortejo.

Soou um tambor e apareceu uma cruz de prata; em seguida, surgiram dois archotes nas mãos de chantres, e o Sr. prior com a estola, a sobrepeliz, a capa e o barrete.

Era escoltado por quatro meninos de coro, e um quinto levava o balde da água-benta, seguido do sacristão.

Subiu para a beira da cova onde se erguia o choupo, enfeitado com tirinhas tricolores. Em frente estava o presidente da Câmara e os seus dois adjuntos, Beljambe e Marescot, e depois os notáveis, o Sr. de Faverges, Vaucorbeil, Coulon, juiz de paz, um homenzinho de rosto sonolento; Heurtaux tinha posto na cabeça um barrete de polícia — e Alexandre Petit, o novo professor, vestira a sua sobrecasaca, uma pobre sobrecasaca verde, a dos domingos. Os bombeiros, comandados por Girbal, de sabre em punho, formavam uma só fila; do outro lado brilhavam as chapas brancas de algumas velhas barretinas do tempo de La Fayette — cinco ou seis, não mais, já que a guarda nacional caíra em desuso em Chavignolles. Camponeses com as mulheres, operários das fábricas vizinhas, garotos, amontoavam-se lá atrás; e Placquevent, o guarda rural, que tinha cinco pés e oito polegadas de altura, sofreava-os com o olhar, passeando de braços cruzados.

A alocução do prior foi como a dos outros padres na mesma circunstância. Depois de ter travejado contra os Reis, glorificou a República. Não é que se diz República das Letras, República Cristã? O que é mais inocente que uma e mais belo que outra? Jesus Cristo formulou a nossa sublime divisa; a árvore do povo era a árvore da Cruz. Para que a Religião dê os seus frutos, precisa da caridade — e, em nome da caridade, o eclesiástico esconjurou os seus irmãos a não cometerem qualquer desordem, a regressarem a suas casas pacificamente.

Depois, aspergiu o arbusto, implorando a bênção de Deus. “Que ele se desenvolva e nos recorde a libertação de toda a servidão, e esta fraternidade mais benéfica que a sombra dos seus ramos! Amém!”

Algumas vozes repetiram Amém e, após um rufar de tambor, o clero, entoando um Te Deum, retomou o caminho da igreja.

A sua intervenção produzira excelente efeito. Os simples viam nela uma promessa de felicidade, os patriotas uma deferência, uma homenagem prestada aos seus princípios.

Bouvard e Pécuchet achavam que lhes deviam ter agradecido o seu presente, que lhe deviam ter feito ao menos uma alusão; e abriram-se a este respeito com Faverges e o médico.

Que interessavam tais misérias! Vaucorbeil estava encantado com a Revolução, e o conde também. Este execrava os d'Orléans. Nunca mais os veriam; boa viagem! Agora, tudo pelo povo! — e, seguido de Hurel, o seu factotum, foi juntar-se ao Sr. prior.

Foureau caminhava de cabeça baixa, entre o notário e o estalajadeiro, humilhado pela cerimônia, com receio de um motim; e instintivamente virava-se para o guarda rural, que deplorava com o capitão a insuficiência de Girbal e a má apresentação dos seus homens.

Passaram operários na estrada cantando a Marselhesa.

Gorgu, no meio deles, brandia uma bengala; Petit escoltava-os, de olhos excitados.

— Não gosto daquilo! — disse Marescot — vociferam, exaltam-se!

— Meu Deus! — respondeu Coulon — a juventude tem que se divertir!

Foureau suspirou. — Estranho divertimento! E depois a guilhotina, lá no fim! — Tinha visões de cadafalso, estava à espera de horrores.

Chavignolles recebeu o contragolpe das agitações de Paris. Os burgueses assinaram jornais. De manhã amontoavam-se no correio, e a diretora não teria resolvido o problema do ajuntamento se não fosse o capitão, que às vezes a ajudava. Depois, ficavam-se na Praça, a conversar.

A primeira discussão violenta teve por objeto a Polônia.

Heurtaux e Bouvard exigiam que a libertassem.

O Sr. de Faverges pensava de maneira diferente.

— Com que direito havíamos de lá ir? Seria desencadear a Europa contra nós. Nada de imprudências!

E, como toda a gente o aprovava, os dois polacos calaram-se.

De outra vez, Vaucorbeil defendeu as circulares de Ledru-Rollin.

Foureau ripostou com os 45 centavos.

Mas o governo, disse Pécuchet, suprimira a escravatura.

— Que me interessa a escravatura!

— Muito bem, e a abolição da pena de morte por motivos políticos?

— Ora essa! — continuou Foureau —, querem abolir tudo. Entretanto, quem sabe? Já os inquilinos se mostram de uma exigência!...

— Tanto melhor! — Os proprietários, segundo Pécuchet, eram favorecidos. — Quem possui um imóvel...

Foureau e Marescot o interromperam, gritando que ele era um comunista.

— Eu, comunista?

E todos falavam ao mesmo tempo, quando Pécuchet propôs que fundassem um clube! Foureau teve a ousadia de responder que nunca haveria um em Chavignolles.

Em seguida, Gorgu reclamou espingardas para a guarda nacional — pois a opinião pública tinha-o designado instrutor.

As únicas espingardas que havia eram as dos bombeiros. Girbal não consentia. A Foureau não lhe agradava entregá-las.

Gorgu fitou-o. — No entanto, acham que eu sei servir-me delas — porque ele juntava a todos os seus engenhos a caça furtiva, e muitas vezes o Sr. presidente da Câmara e o estalajadeiro lhe compravam uma lebre ou um coelho.

— Pronto! Fique com elas! — disse Foureau.

Nessa mesma tarde começaram os exercícios.

Era no relvado diante da igreja. Gorgu, de camisola azul, com uma gravata à volta dos rins, executava os movimentos de uma forma automática. Quando comandava, a sua voz era brutal. — Encolham a barriga! — E igualmente Bouvard, sustendo a respiração, metia a barriga para dentro, endireitava as ancas. — Ninguém lhes está a dizer para formarem um arco, que raio! — Pécuchet confundia as filas e as fileiras, meia-volta para a direita e meia-volta para a esquerda; mas o mais lamentável era o professor: débil e de exígua estatura, com uma barba loura em colar, vacilava sob o peso da espingarda, cuja baioneta incomodava os vizinhos.

Usavam calças de todas as cores, talabartes imundos, velhas peças de uniforme excessivamente curtas, que não cobriam a camisa nos lados; e cada um deles pretendia “não ter meios para se vestir de outra maneira”. Abriu-se uma subscrição para vestir os mais pobres. Foureau foi avarento, mas houve mulheres que se notabilizaram. A Sra. Bordin ofereceu cinco francos apesar do seu ódio à República.

O Sr. de Faverges equipou doze homens; e não faltava aos exercícios. Depois instalava-se no merceeiro e pagava copinhos a quem aparecesse.

Os poderosos bajulavam então a classe baixa. Tudo era menos importante que os operários. Disputavam a vantagem de ser deles. Eles eram agora nobres.

Os do cantão, na sua maioria, eram tecelões. Outros trabalhavam nas manufacturas de chitas, ou numa fábrica de papel recentemente fundada.

Gorgu fascinava-os com o seu palavreado, ensinava-lhes a luta a pontapé, levava os íntimos a beber a casa da Sra. Castillon.

Mas os camponeses eram muito numerosos, e nos dias de mercado o Sr. de Faverges, enquanto passeava pela Praça, informava-se acerca das suas necessidades e tratava de os converter às suas ideias. Eles ouviam sem responder, como o tio Gouy, disposto a aceitar qualquer governo desde que diminuíssem os impostos.

De tanto tagarelar, Gorgu fez nome. Talvez o levassem à Assembleia.

O Sr. de Faverges pensava a este respeito como ele — embora procurando não se comprometer. Os conservadores oscilavam entre Foureau e Marescot. Mas, como o notário tinha o seu cartório, Foureau foi o escolhido — um rústico, um cretino. O médico ficou indignado.

Fruto seco dos concursos, tinha a nostalgia de Paris — e era a consciência da sua vida falhada que lhe dava um ar lúgubre. la abrir-se-lhe uma carreira mais ampla — que vingança! Redigiu a sua profissão de fé e veio lê-la aos senhores Bouvard e Pécuchet.

Estes felicitaram-no por ela; tinham as mesmas doutrinas.

Contudo, eles escreviam melhor, sabiam de história, podiam fazer parte da Câmara tanto como ele. Porque não?

Mas qual deles devia candidatar-se? E travou-se uma luta de delicadezas. Pécuchet preferia o amigo a si mesmo.

— Não! Não, cabe-te a ti! Tu tens melhor presença! — Talvez — respondia Bouvard — mas tu tens mais atrevimento!

— E, sem resolverem a dificuldade, traçaram planos de comportamento.

Esta vertigem de ser deputado já conquistara outros.

O capitão sonhava com isso debaixo do seu barrete de polícia, fumando o seu cachimbo; e o professor também, na escola, e também o prior entre duas orações — de tal modo que às vezes se surpreendia de olhos no céu dizendo: “Meu Deus, fazei que eu seja deputado!”

O doutor, que recebera incitamentos, foi a casa de Heurtaux e expôs-lhe as suas possibilidades.

O capitão não esteve com meias medidas. É certo que Vaucorbeil era conhecido; mas pouco querido dos seus confrades, e especialmente dos farmacêuticos. Todos enredariam contra ele; o povo não queria um cavalheiro; os seus melhores doentes abandoná-lo-iam; e, depois de pesar estes argumentos, o médico lamentou a sua fraqueza.

Mal ele se foi embora, Heurtaux foi ter com Placquevent. Entre velhos militares há obrigações! Mas o guarda rural, todo afeiçoado a Foureau, recusou-se claramente a servi-lo.

O prior demonstrou ao Sr. de Faverges que ainda não chegara a hora. Era preciso dar à República o tempo de se desgastar.

Bouvard e Pécuchet fizeram ver a Gorgu que ele nunca seria suficientemente forte para vencer a coligação dos camponeses e dos burgueses; encheram-no de incertezas, tiraram-lhe toda a confiança. Petit, por orgulho, deixara entrever o seu desejo. Beljambe preveniu-o de que, se fracassasse, a sua destituição seria inevitável.

Por fim, o Bispo ordenou ao prior que se deixasse ficar quieto.

Portanto, só restava Foureau.

Bouvard e Pécuchet combateram-no, recordando a sua má vontade quanto às espingardas, a sua oposição ao clube, as suas ideias retrógradas, a sua avareza; e até persuadiram Gouy de que ele queria restabelecer o antigo regime.

Por muito vaga que essa coisa fosse para o camponês, a verdade é que ele a execrava com um ódio acumulado na alma dos seus antepassados, durante dez séculos — e virou contra Foureau todos os seus parentes e os da mulher — cunhados, primos, sobrinhos, netos, uma horda.

Gorgu, Vaucorbeil e Petit continuavam a atacar o Sr. presidente da Câmara; e, com o terreno assim limpo, Bouvard e Pécuchet, sem ninguém dar por isso, podiam triunfar.

Tiraram à sorte para saber quem iria candidatar-se.

A sorte nada decidiu — e foram consultar o médico a esse respeito.

Ele deu-lhes uma notícia. Flacardoux, redator do Calvados, anunciara a sua candidatura. A decepção dos dois amigos foi grande; cada um deles, além da sua, sentia a do outro. Mas a Política exaltava-os. No dia das eleições fiscalizaram as urnas. Flacardoux venceu.

O Sr. conde concentrara-se na guarda nacional, sem obter a dragona de comandante. Os chavignolleses decidiram nomear Beljambe.

Este favor do público, estranho e imprevisto, consternou Heurtaux. Ele desleixara os seus deveres, limitando-se a inspecionar por vezes as manobras e a emitir observações. Mesmo assim, achava monstruoso que se preferisse um estalajadeiro a um antigo Capitão do Império — e disse, após a invasão da Câmara a 15 de Maio: “Se as patentes militares se dão assim na capital, já não me admiro do que está a acontecer!”

Começava a Reação.


Acreditava-se nos purés de ananás de Louis Blanc, na cama de ouro de Flocon, nas orgias reais de Ledru-Rollin — e como a província julga saber tudo o que se passa em Paris, os burgueses de Chavignolles não duvidavam dessas invenções e admitiam os boatos mais absurdos.

Uma tarde, o Sr. de Faverges foi ter com o prior para o informar da chegada à Normandia do Conde de Chambord.

Segundo Foureau, Joinville dispunha-se com os seus marinheiros a calar os socialistas. Heurtaux afirmava que em breve Luís Bonaparte seria cônsul.

As fábricas despediam pessoal. Havia pobres, em bandos numerosos, vagueando pelos campos.

Um domingo (era nos primeiros dias de Junho), de repente, um guarda partiu para Falaise. Os operários de Acqueville, Liffard, Pierre-Pont e Saint-Rémy marchavam sobre Chavignolles.

Fecharam-se os alpendres e o Conselho Municipal reuniu-se; resolveu, para prevenir desgraças, que não se ofereceria qualquer resistência. A guarda foi até fechada no quartel, com a injunção de não aparecer.

Não tardou a ouvir-se uma espécie de ronco de tempestade. Depois, o canto dos Girondinos fez estremecer as vidraças; e pela estrada de Caen desembocaram homens de braço dado, cobertos de pó, suados, andrajosos. Enchiam a Praça. Ouvia-se um grande sussurro.

Gorgu e dois companheiros entraram na sala. Um era magro e de rosto fuinha, com um colete de malha com os pontos caídos. O outro, negro como o carvão — decerto um mecânico —, tinha os cabelos cortados em escova, grandes sobrancelhas, chinelos de ourela. Gorgu, como um hussardo, usava o casaco pelos ombros.

Ficaram os três de pé — e os Conselheiros, sentados em torno da mesa coberta de um pano azul, olhavam para eles, pálidos de angústia.

— Cidadãos! — disse Gorgu — precisamos de trabalho!

O presidente da Câmara tremia; faltou-lhe a voz.

Marescot respondeu, em seu lugar, que o Conselho tomaria imediatas providências; e quando os companheiros saíram discutiram-se várias ideias.

A primeira foi extrair pedras.

Para utilizar as pedras, Girbal propôs um caminho de Anglevilles a Tournebu.

O de Bayeux servia exatamente para o mesmo.

Podia-se limpar o charco — mas não era trabalho que chegasse! Ou então escavar um segundo charco! — mas onde?

Langlois era de opinião de que se fizesse um aterro ao longo dos Mortins, para prevenir uma inundação — mas, segundo Beljambe, mais valia desmoitar as charnecas. Era impossível decidir fosse o que fosse! Para acalmar a multidão, Coulon desceu ao peristilo e anunciou que estavam a preparar estaleiros de caridade.

— Caridade? Muito obrigado! — exclamou Gorgu. — Abaixo os aristocratas! Queremos o direito ao trabalho!

Era a questão da época. Fazia dela um motivo de glória para si. Foi aplaudido.

Ao voltar-se, tocou com o cotovelo em Bouvard, que Pécuchet arrastara até ali — e começaram a conversar. Não havia pressa; a Câmara estava cercada. O Conselho não poderia fugir.

— Onde encontrar dinheiro? — dizia Bouvard.

— Na casa dos ricos! De resto, o governo irá ordenar obras.

— E se não tivermos necessidade de obras?

— Fazem-se antecipadamente!

— Mas os salários baixam! — ripostou Pécuchet. — Quando o trabalho falta é porque há produtos a mais!... e você está a exigir que os aumentem!

Gorgu mordia o bigode. — No entanto... com a organização do trabalho...

— Então o governo será o patrão?

Alguns, em redor, murmuraram: — Não! Não, mais patrões não!

Gorgu irritou-se. — Não interessa! Temos de fornecer um capital aos trabalhadores... ou então instituir o crédito!

— De que maneira?

— Ah, não sei! Mas deve-se instituir o crédito!

— Já basta — disse o mecânico; — aqueles farsantes estão a aborrecer-nos!

E subiu a escadaria, declarando que meteria a porta dentro.

Foi recebido por Placquevent, de perna direita dobrada, punhos cerrados. — Ora avança um bocadinho!

O mecânico recuou.

Uma assuada da multidão chegou à sala; todos se ergueram, com vontade de fugir. O auxílio de Falaise não havia meio de chegar! Deplorava-se a ausência do Sr. Conde. Marescot retorcia uma pena. O tio Coulon gemia. Heurtaux exaltou-se, defendendo a ideia de que se recorresse aos guardas.

— Comande-os! — disse Foureau.

— Não tenho ordens.

Entretanto, o ruído redobrava. A Praça estava coberta de gente; e todos observavam o primeiro andar da Câmara quando, na varanda do meio, debaixo do relógio, se viu surgir Pécuchet.

Tomara habilmente a escada de serviço; e, querendo fazer como Lamartine, começou a arengar ao povo: — Cidadãos!

Mas ao boné, ao nariz, à sobrecasaca, a toda a sua figura faltava prestígio.

O homem do colete de malha interpelou-o: — O senhor é operário?

— Não.

— Então é patrão?

— Também não!

— Bem, então retire-se!

— Por quê? — respondeu altivamente Pécuchet.

E imediatamente desapareceu no vão da janela, agarrado pelo mecânico. Gorgu veio em seu auxílio. — Deixe-o!

É um bravo! — Estavam engalfinhados.

A porta abriu-se e Marescot, no limiar, proclamou a decisão municipal. Fora sugerida por Hurel.

O caminho de Tournebu teria uma ramificação para Anglevilles, que levaria ao solar de Faverges.

Era um sacrifício a que a comuna se sujeitava no interesse dos trabalhadores. Eles dispersaram.

Ao regressar a casa, Bouvard e Pécuchet foram surpreendidos por vozes de mulheres. As criadas e a Sra. Bordin soltavam exclamações, a viúva gritava mais alto — e quando eles apareceram: — Ah, que felicidade! Há três horas que vos espero!

Meu pobre jardim! Nem mais uma única tulipa! Porcaria por toda a parte, em cima da relva! Não vai ser possível recuperá-lo!

— Quem fez isso?

— O tio Gouy!

Ele viera com uma carroça de estrume — e atirara tudo completamente ao acaso no meio das plantas. — Agora está cavando! Vou correr para acabar com aquilo!

— Eu a acompanho! — disse Bouvard.

Junto dos degraus, lá fora, um cavalo entre os varais de uma carroça de transporte mordia um tufo de rododendros. As rodas, roçando os canteiros, tinham esmagado os buxos, partido um loendro, deitado abaixo as dálias — e montes de estrume negro, como a terra das tocas das toupeiras, ondulavam na relva. Gouy cavava-a com ardor.

Um dia a Sra. Bordin dissera displicentemente que queria amanhar aquele chão. Ele atirara-se ao trabalho e, apesar da sua proibição, continuava. Era daquela maneira que entendia o direito ao trabalho, porque o discurso de Gorgu lhe tinha transtornado os miolos.

Só se foi embora depois de violentas ameaças de Bouvard.

A Sra. Bordin, como compensação, não lhe pagou a mão de obra e ficou com o estrume. Era judiciosa — a mulher do médico e até a do notário, embora de nível social superior, tinham consideração por ela.

Os estaleiros de caridade duraram uma semana. Não houve qualquer perturbação. Gorgu saíra da região.

No entanto, a guarda nacional continuava preparada; ao domingo uma revista, passeios militares às vezes — e todas as noites rondas, que sobressaltavam a aldeia.

Tocavam as sinetas das portas por brincadeira; entravam nos quartos onde casais ressonavam sobre o mesmo travesseiro, diziam brejeirices — e o marido acabava por se levantar e ir buscar uns cálices. Depois regressavam à casa da guarda para jogar um dominó até os cem; pediam cidra, comiam queijo, e a sentinela que se aborrecia à porta entreabria-a a cada minuto. A indisciplina reinava graças à moleza de Beljambe.

Quando estalaram os dias de Junho toda a gente esteve de acordo em “voar em socorro de Paris”, mas Foureau não podia abandonar a Câmara, Marescot o seu cartório, o doutor a sua clientela, Girbal os seus bombeiros. O Sr. de Faverges estava em Cherburgo. Beljambe foi à cama. O capitão resmungava: “Não me quiseram a mim, pior para eles!”

E Bouvard teve a sensatez de suster Pécuchet.

As rondas pelo campo foram até mais longe.

Havia pânicos causados pela sombra de uma meda, ou pela forma dos ramos; uma vez, todos os guardas nacionais deitaram a fugir. À luz do luar tinham avistado numa macieira um homem com uma espingarda — e de arma apontada para eles.

De outra vez, numa noite escura, quando a patrulha fazia alto debaixo do faia!, ouviu alguém à sua frente.

— Quem vem lá?

Nada de resposta!

Deixaram o indivíduo continuar o seu caminho, seguindo-o a distância, porque podia ter uma pistola ou um bastão — mas quando chegaram à aldeia, com auxílio à mão, todos os doze homens do pelotão se precipitaram ao mesmo tempo sobre ele, gritando: “Os seus papéis!” Sacudiam-no, cobriam-no de insultos. Os da casa da guarda tinham saído.

Arrastaram-no para lá; e, à luz da vela que ardia em cima do fogão, acabaram por reconhecer Gorgu.

Um paletó ordinário de lasting estalava-lhe nos ombros.

Os dedos apareciam-lhe pelos buracos das botas. A cara sangrava-lhe de arranhões e contusões. Estava prodigiosamente mais magro e revirava os olhos como um lobo.

Foureau, que viera a correr, perguntou-lhe como é que ele estava no faia!, que vinha ele fazer a Chavignolles, que fizera nas últimas seis semanas.

Isso não lhes dizia respeito. Ele era livre.

Placquevent revistou-o à procura de cartuchos. Iam prendê-lo provisoriamente.

Bouvard interpôs-se.

— É inútil! — respondeu o presidente da Câmara. — Conhecemos suas opiniões.

— E então?...

— Ah, tome cuidado, aviso-o! Tome cuidado!

Bouvard não insistiu mais.

Então Gorgu virou-se para Pécuchet: — E o senhor, patrão, não diz nada?

Pécuchet baixou a cabeça como se ele tivesse duvidado da sua inocência.

O pobre diabo teve um sorriso de amargura. — E eu que o defendi!

Ao romper da manhã, dois guardas levaram-no a Falaise.

Não foi levado a conselho de guerra, mas condenado pelo correcional a três meses de prisão, por delito de palavras tendentes à perturbação da sociedade.

De Falaise escreveu aos seus antigos patrões pedindo-lhes que lhe mandassem com brevidade uma certidão de bom comportamento e costumes — e como tinham que legalizar a assinatura através do presidente da Câmara ou do adjunto, preferiram pedir esse pequeno favor a Marescot.

Introduziram-nos numa casa de jantar ornamentada com pratos de faiança antiga. Um relógio de Boulle ocupava a parede mais estreita. Em cima da mesa de acaju, sem toalha, havia dois guardanapos, uma chaleira, tigelas. A Sra. Marescot atravessou a sala vestida com um penteador de caxemira azul. Era uma parisiense que se aborrecia no campo. Depois entrou o notário, com um gorro na mão e o jornal na outra; e imediatamente, com um ar amável, estampou o seu carimbo — embora o protegido deles fosse um homem perigoso.

— Realmente — disse Bouvard —, só por algumas palavras!...

— Quando a palavra provoca crimes, meu caro senhor, desculpe!

— No entanto — continuou Pécuchet — que demarcação se deve estabelecer entre as frases inocentes e as culposas? Uma coisa agora proibida será depois aplaudida.

E criticou a maneira feroz como se tratavam os insurretos.

Marescot alegou naturalmente a defesa da Sociedade, a Salvação Pública, lei suprema.

— Perdão! — disse Pécuchet. — O direito de um só é tão respeitável como o de todos, e o senhor nada tem a opor-lhe além da força, se ele virar contra si o axioma.

Marescot, em vez de responder, ergueu as sobrancelhas desdenhosamente. Desde que continuasse a lavrar autos e a viver no meio dos seus pratos, no seu pequeno ambiente confortável, nenhuma injustiça que aparecesse o perturbaria. Mas os negócios chamavam-no. Desculpou-se.

A sua doutrina da salvação pública tinha-os indignado.

Os conservadores falavam agora como Robespierre.

Outro motivo de espanto: Cavagnac declinava. A guarda móvel tornou-se suspeita. Ledru-Rollin estava perdido, até na opinião de Vaucorbeil. Os debates sobre a Constituição não interessaram a ninguém; e a 1 O de Dezembro todos os chavignolleses votaram a favor de Bonaparte.

Os seis milhões de votos arrefeceram Pécuchet a respeito do povo; e Bouvard e ele estudaram a questão do sufrágio universal.

Sendo de toda a gente, não pode ter inteligência. Um ambicioso ganhará sempre, e os outros obedecerão como um rebanho, pois os eleitores nem sequer são obrigados a saber ler; por isso é que, segundo Pécuchet, houvera tantas fraudes na eleição presidencial.

— Não houve nenhuma — replicou Bouvard — acredito mais na tolice do povo. Pensa em todos aqueles que compram a Revalesciere, a pomada Dupuytren, a água das castelãs, etc! Esses patetas formam a massa eleitoral e nós suportamos a sua vontade. Por que não podemos fazer com coelhos três mil libras de rendimento? É que uma aglomeração excessiva é causa de morte. Do mesmo modo, simplesmente devido à multidão, os germes de estupidez que ela contém desenvolvem-se, e daí resultam efeitos incalculáveis.

— O teu cepticismo assusta-me! — disse Pécuchet.

Mais tarde, na Primavera, encontraram o Sr. de Faverges, que os informou acerca da expedição a Roma. Não atacaríamos os Italianos. Mas precisávamos de garantias. De outro modo, a nossa influência cairia por terra. Nada mais legítimo que aquela intervenção.

Bouvard arregalou os olhos. — A propósito da Polônia o senhor defendia o contrário!

— Não é a mesma coisa! — Agora, tratava-se do Papa.

E o Sr. de Faverges, ao dizer: — Nós queremos, nós faremos, nós esperamos — representava um grupo.

Bouvard e Pécuchet enjoaram-se tanto com os poucos como com os muitos. Em suma, a plebe era igual à aristocracia.

O direito de intervenção parecia-lhes suspeito. Procuraram os respectivos princípios em Calvo, Martens, Vattel; e Bouvard concluiu: — Intervém-se para repor o príncipe no trono, para libertar um povo... ou por precaução, por causa de um perigo. Em ambos os casos é um atentado ao direito de outrem, um abuso da força, uma violência hipócrita!

— No entanto — disse Pécuchet — os povos, como os homens, são solidários.

— Talvez! — E Bouvard pôs-se a sonhar.

Não tardou a começar a expedição de Roma no interior do país.

Odiando as ideias subversivas, a nata dos burgueses parisienses saqueou duas tipografias. Formava-se o grande partido da ordem.

Tinha como chefes no distrito o Sr. conde, Foureau, Marescot e o prior. Todos os dias, por volta das quatro, passeavam de uma ponta a outra da Praça e conversavam sobre os acontecimentos. O assunto principal era a distribuição dos folhetos. Os títulos não deixavam de ser saborosos: Deus o quer — Os que gostam de partilhas — Saiamos do lodaçal — Para onde vamos? O que tinham de melhor eram os diálogos em estilo aldeão, com pragas e erros de francês, para levantar o moral dos camponeses. Graças a uma lei nova, a venda ambulante estava nas mãos dos prefeitos — e acabavam de meter Proudhon em Sainte-Pélagie, imensa vitória.

As árvores da liberdade foram em geral abatidas. Chavignolles obedeceu às instruções. Bouvard viu com os seus próprios olhos os pedaços do seu choupo em cima de um carrinho de mão. Serviram para aquecer os guardas; e ofereceram o pé ao Sr. prior — a ele, que o tinha benzido! Que ridículo!

O professor não ocultou o seu modo de pensar. Bouvard e Pécuchet felicitaram-no por isso um dia em que iam a passar diante da sua porta.

No dia seguinte, ele apareceu lá em casa. No fim da semana pagaram-lhe a visita.

A tarde caía; os garotos acabavam de sair e o mestre-escola, de mangas arregaçadas, varria o pátio. A mulher, com uma touca na cabeça, dava de mamar a uma criança.

Uma rapariguinha escondeu-se atrás da saia da mãe; um fedelho horrendo brincava no chão, a seus pés; a água da barrela feita na cozinha corria para os baixos da casa.

— Estão a ver — disse o professor — como o governo nos trata! — E imediatamente começou a atacar o infame capital. Era preciso democratizá-lo, libertar a matéria!

— Eu não quero outra coisa! — disse Pécuchet.

Pelo menos, devia ser reconhecido o direito à assistência.

— Mais um direito! — disse Bouvard.

Que interessava isso? O Provisório fora frouxo, não regulando a Fraternidade.

— Então tratem de a instituir!

Como já não havia luz, Petit ordenou brutalmente à mulher que trouxesse uma tocha para o seu escritório.

Nas paredes de gesso estavam afixados com alfinetes retratos litografados dos oradores da esquerda. Um armário com livros dominava uma secretária de pinho. Tinham para sentar-se uma cadeira, um banquinho e um velho caixote de sabão; ele fingia rir de tudo aquilo. Mas a miséria colava-se-lhe às faces, e as suas têmporas estreitas denotavam uma obstinação de carneiro, um orgulho intratável.

Nunca ele transigiria.

— Mas vejam o que me aguenta!

Era um montão de jornais em cima de uma tábua — e expôs em palavras febris os artigos da sua fé: desarmamento das tropas, abolição da magistratura, igualdade dos salários, nivelamento — meios através dos quais se obteria a idade do ouro, sob a forma de República — com um ditador à cabeça, um latagão para mandar, sem hesitações!

Depois, puxou de uma garrafa de aniseta e de três copos, para erguer um brinde ao Herói, à imortal vítima, ao grande Maximiliano. No limiar, apareceu a sotaina preta do prior.

Depois de ter cumprimentado vivamente os circunstantes, aproximou-se do professor e disse-lhe quase em voz baixa: — O nosso caso de São José, em que ponto é que está?

— Eles não deram nada! — respondeu o mestre-escola.

— A culpa é sua!

— Eu fiz o que pude!

— Ah, fez?

Bouvard e Pécuchet levantaram-se por discrição. Petit obrigou-os a sentarem-se de novo; e, dirigindo-se ao prior: — É tudo?

O padre Jeufroy hesitou; e depois, com um sorriso que temperava a sua reprimenda: — Há quem ache que o senhor se desleixa um pouco com a história sagrada.

— Oh, a história sagrada! — atalhou Bouvard.

— De que é que a acusa, meu caro senhor?

— Eu? De nada! Simplesmente, talvez haja coisas mais úteis que a anedota de Jonas e dos reis de Israel!

— É sua opinião! — replicou secamente o padre; e, sem se preocupar com os estranhos, ou por causa deles: — A hora do catecismo é curta demais!

Petit encolheu os ombros.

— Tome atenção. Está perdendo seus internos!

Os dez francos por mês desses alunos eram o que o seu cargo tinha de melhor. Mas a sotaina o exasperava. — Tanto pior, vingue-se!

— Um homem com o meu caráter não se vinga! — disse o padre, sem se perturbar. — Simplesmente, lembro-lhe que a lei de 15 de Março nos atribui a vigilância da instrução primária.

— Ah, eu bem sei! — exclamou o professor. — Ela até pertence aos coronéis da guarda! Por que não ao guarda rural? Seria completo!

E deixou-se cair no banquinho, mordendo o pulso, refreando a cólera, sufocado pela sua sensação de impotência.

O eclesiástico tocou-lhe levemente no ombro.

— Não quis afligi-lo, meu amigo! Acalme-se! Um pouco de razão! A Páscoa não tarda aí! Espero que dê o exemplo... comungando com os outros.

— Ah, é demais! Eu! Eu, sujeitar-me a tais asneiras!

Perante esta blasfêmia o prior empalideceu. As pupilas fulguravam-lhe. A mandíbula tremia-lhe. — Cale-se, infeliz! Cale-se! E pensar que é a mulher dele que trata das roupas da igreja!

— E então? Que é? Que fez ela?

— Falta sempre à missa!... Como o senhor, aliás!

— Ah, não se despede um mestre-escola por causa disso!

— Pode ser transferido!

O padre não falou mais. Estava ao fundo da sala, na sombra. Petit, de cabeça caída para o peito, pensava.

Chegariam à outra extremidade da França com o último tostão comido pela viagem — para encontrar lá sob nomes diferentes, o mesmo prior, o mesmo reitor, o mesmo prefeito! Todos, até o ministro, eram como que elos da sua cadeira opressiva! Recebera já uma advertência e outras viriam. E depois? — E, numa espécie de alucinação, viu-se caminhando numa grande estrada, com um saco às costas, com aqueles que amava junto de si, de mão estendida para uma diligência!

Naquele momento, a mulher, na cozinha, teve um ataque de tosse e o recém-nascido começou a vagir; o garoto chorava.

— Pobres crianças! — disse o padre em voz suave.

O pai, então, desatou em soluços. — Sim! Sim, tudo o que quiserem!

— Conto com isso — respondeu o prior; e, fazendo a reverência: — Meus senhores, muito boas-tardes.

O mestre-escola continuava com o rosto entre as mãos.

Afastou Bouvard.

— Não! Deixe-me! Quero estourar! Sou um miserável!

Os dois amigos voltaram para casa, felicitando-se pela sua independência. O poder do clero assustava-os.

Era agora utilizado para consolidar a ordem social.

A República não tardaria a desaparecer.

Três milhões de eleitores foram excluídos do sufrágio universal. A caução dos jornais foi aumentada, a censura restabelecida. Os romances-folhetim eram detestados; a filosofia clássica era considerada perigosa; os burgueses pregavam o dogma dos interesses materiais — e o Povo parecia contente.

O dos campos regressava aos seus antigos senhores.

O Sr. de Faverges, que tinha propriedades no Eure, foi eleito para a Legislativa e a sua reeleição para o Conselho Geral do Calvados estava antecipadamente garantida.

Achou por bem oferecer um almoço aos notáveis da região.

O vestíbulo onde três criados esperavam para lhes pegar nos casacos, o bilhar e os dois salões de enfiada, as plantas nos jarrões da China, os bronzes nas chaminés, os frisos de ouro nos lambris, os cortinados espessos, os vastos cadeirões, todo aquele luxo imediatamente os lisonjeou como uma delicadeza para com eles; e, ao entrarem na sala de jantar, perante o espetáculo da mesa coberta de carnes em travessas de prata, com os copos alinhados diante de cada prato, os acepipes aqui e ali e um salmão no meio, todos os rostos se iluminaram.

Eram dezessete, incluindo dois fortes lavradores, o subprefeito de Bayeux e um indivíduo de Cherburgo. O Sr. de Faverges pediu aos seus convidados que desculpassem a condessa, impedida de estar presente por uma enxaqueca; e, depois dos cumprimentos pelas peras e as uvas que enchiam quatro cestos nos cantos, falou-se da grande notícia: o projeto de uma investida contra a Inglaterra de Chanjarnier.

Heurtaux desejava-a como soldado, o prior porque odiava os protestantes, Foureau no interesse do comércio.

— Os senhores exprimem — disse Pécuchet — sentimentos da Idade Média!

— A Idade Média tinha coisas boas! — replicou Marescot. — Veja, as nossas catedrais!...

— No entanto, meu caro senhor, os abusos!...

— Não interessa, a Revolução não teria acontecido!...

— Ah, a Revolução, aí é que está a desgraça! — disse o eclesiástico, suspirando.

— Mas todos contribuíram para ela! E (vai perdoar, senhor Conde) os próprios nobres também, devido à sua aliança com os filósofos!

— O que quer? Luís XVIII legalizou a espoliação! Desde aquele tempo, o regime parlamentar mina nossas bases!...

Apareceu um rosbife — e durante alguns minutos apenas se ouviu o ruído dos garfos e das queixadas, com os passos dos criados no soalho e estas duas palavras repetidas: “Madeira! Sauterne!”

A conversa foi retomada pelo cavalheiro de Cherburgo.

Como parar à beira do abismo?

— Entre os Atenienses — disse Marescot — entre os Atenienses, com quem temos semelhanças, Sólon abateu os democratas elevando o censo eleitoral.

— Mais valia — disse Hurel — suprimir a Câmara; toda a desordem vem de Paris.

— Descentralizemos! — disse o notário.

— Amplamente! — continuou o conde.

Segundo Foureau, a comuna devia ser senhora absoluta, até o ponto de vedar as suas estradas aos viajantes se o achasse conveniente.

E enquanto os pratos se sucediam — galinha cozinhada no seu próprio sangue, camarões de água doce, cogumelos, legumes em salada, calhandras assadas — muitos assuntos foram tratados: o melhor sistema de impostos, as vantagens da grande cultura, a abolição da pena de morte — e o subprefeito não se esqueceu de citar esta frase encantadora de um homem espirituoso: — “Primeiro os senhores assassinos!”

Bouvard estava surpreendido pelo contraste entre as coisas que o rodeavam e as que se diziam — porque parece sempre que as palavras devem corresponder aos ambientes e que os altos tetos terão sido feitos para os grandes pensamentos. Contudo, estava vermelho à sobremesa e entrevia as compoteiras no meio de uma névoa.

Tinham tomado vinhos de Bordéus, de Borgonha e de Málaga... O Sr. de Faverges, que conhecia os seus convidados, mandou abrir champanhe. Os convivas, entrechocando os copos, beberam ao êxito da eleição — e já eram mais de três horas quando passaram para o salão de fumar, para tomar café.

Uma caricatura do Charivari andava por cima de uma consola, entre números de L'Univers; representava um cidadão, em que as abas da sobrecasaca deixavam ver uma cauda que terminava num olho. Marescot deu a explicação. Riram muito.

Beberricavam licores — e a cinza dos charutos caía nos estofos dos móveis. O padre, pretendendo convencer Girbal, atacou Voltaire. Coulon adormeceu. O Sr. de Faverges declarou a sua devoção por Chambord. — As abelhas provam a monarquia.

— Mas os formigueiros a República! — De resto, o médico não aguentava mais.

— Tem razão! — disse o subprefeito. A forma de governo interessa pouco!

— Com liberdade! — objetou Pécuchet.

— Um homem honrado não precisa dela — replicou Foureau. Eu não faço discursos! Não sou jornalista!

E garanto-lhe que a França quer ser governada por um braço de ferro!

Todos reclamavam um Salvador.

E à saída Bouvard e Pécuchet ouviram o Sr. de Faverges dizer ao padre Jeufroy: — É preciso restabelecer a obediência. A autoridade morre se a discutirmos! O direito divino, é isso mesmo!

— Perfeitamente, senhor Conde!

Os pálidos raios de um sol de Outubro estendiam-se por trás dos bosques; soprava um vento úmido; enquanto caminhavam sobre as folhas caídas respiravam como se tivessem sido libertados.

Tudo o que não tinham podido dizer se soltou em exclamações: — Que idiotas! Que baixeza! Como imaginar tanta teimosia? Primeiro, que significa o direito divino?

O amigo de Dumouchel, o tal professor que os tinha esclarecido sobre a estética, respondeu à pergunta deles numa carta erudita.

“A teoria do direito divino foi formulada no tempo de Carlos II pelo inglês Filmer.

“Ei-la:

“O Criador deu ao primeiro homem a soberania do mundo. Esta foi transmitida aos seus descendentes; e o poder do Rei emana de Deus. ‘Ele é a sua imagem’, escreve Bossuet. O império paterno acostuma à dominação de um só. Fizeram-se os reis segundo o modelo dos pais.

“Locke refutou esta doutrina. O poder paternal distingue-se do monárquico, pois todo o súbdito tem sobre os seus filhos o mesmo direito que o monarca tem sobre os seus. A realeza só existe por escolha popular — e mesmo a eleição era recordada na cerimônia da sagração, onde dois bispos, apontando para o Rei, perguntavam aos nobres e aos camponeses se o aceitavam como tal.

“Portanto, o Poder vem do Povo. Ele tem o direito ‘de fazer tudo o que quer’, diz Helvetius, ‘de mudar a sua constituição’, diz Vatel ‘de se revoltar contra a injustiça’, pretendem Glafy, Hotman, Mably, etc.! E São Tomás de Aquino autoriza-o a libertar-se de um tirano. Está até, diz Jurieu, dispensado de ter razão.”

Espantados com o axioma, pegaram o Contrato Social de Rousseau.

Pécuchet foi até o fim — e depois, fechando os olhos e reclinando a cabeça, fez a respectiva análise.

— Supõe-se uma convenção pela qual o indivíduo alienou a sua liberdade. O Povo, ao mesmo tempo, comprometia-se a defendê-lo contra as desigualdades da Natureza e tornava-o proprietário das coisas que detém.

— Onde está a prova do contrato?

— Em parte alguma! E a comunidade não oferece garantias. Os cidadãos ocupar-se-ão exclusivamente de política. Mas, como são precisos ofícios, Rousseau aconselha a escravatura. As ciências perderam o gênero humano.

O teatro é corruptor, o dinheiro funesto; e o Estado deve impor uma religião, sob pena de morte.

Como?, disseram eles, ora aqui está o deus de 93, o pontífice da democracia!

Todos os reformadores o copiaram; e arranjaram o Exame do Socialismo, de Morant.

O capítulo primeiro expõe a doutrina saint-simoniana.

No cimo está o Pai, ao mesmo tempo papa e imperador. Abolição das heranças, todos os bens imóveis constituem um fundo social, que será explorado hierarquicamente.

Os industriais governarão a fortuna pública. Mas, nada a temer, porque se terá como chefe “aquele que mais ama”.

Falta uma coisa, a Mulher. Da chegada da Mulher depende a salvação do mundo.

— Não compreendo.

— Nem eu!

E examinaram as doutrinas de Fourier.

Todas as desgraças vêm da coação. Se a atração for livre a harmonia vai estabelecer-se.

A nossa alma contém doze paixões principais, cinco egoístas, quatro anímicas, três distributivas. Tendem elas, as primeiras, para o indivíduo, as seguintes para os grupos, as últimas para os grupos de grupos, ou séries, cujo conjunto é a Falange, sociedade de mil e oitocentas pessoas, que habitam num palácio. Há carros que levam os trabalhadores para o campo todas as manhãs e os trazem à tarde.

Usam estandartes, dão festas, comem bolos. Toda a mulher, se assim o quiser, possui três homens, o marido, o amante e o genitor. Para os solteiros, é instituído o Bailadeirismo.

— Isto calha-me! — disse Bouvard; e perdeu-se nos sonhos do mundo da harmonia.

Graças à restauração das condições climáticas a terra tornar-se-á mais bela, graças ao cruzamento das raças a vida humana será mais longa. Poderão dirigir-se as nuvens como agora se faz com os raios, choverá de noite sobre as cidades para as limpar. Navios atravessarão os mares polares degelados sob as auroras boreais — porque tudo se produz graças à conjunção dos dois fluidos macho e fêmea, que brotam dos polos — e as auroras boreais são um sintoma do cio do planeta, uma emissão prolífica.

— Isto ultrapassa-me — disse Pécuchet.

Depois de Saint-Simon e Fourier, o problema reduz-se a questões de salário.

Louis Blanc, no interesse dos operários, quer que seja abolido o comércio externo, La Farelle que se imponham as máquinas, outro que se desagravem as bebidas, ou que se reponham as juradias, ou que se distribuam sopas. Proudhon imagina uma tarifa uniforme e reclama para o Estado o monopólio do açúcar.

— Os teus socialistas — dizia Bouvard — pedem sempre a tirania.

— Olha que não!

— Sem dúvida!

— Tu és absurdo!

— E tu revoltas-me!

Mandaram vir as obras de que apenas conheciam resumos. Bouvard anotou várias passagens e, mostrando-as, disse: — Lê tu mesmo! Propõem-nos como exemplo os Essênios, os Irmãos Morávios, os Jesuítas do Paraguai, e até o regime das prisões.

“Entre os icarianos o almoço faz-se em vinte minutos, as mulheres dão à luz no hospital. Quanto aos livros, é proibido imprimi-los sem autorização da República.”

— Mas Cabet é um idiota.

— Agora, aqui está Saint-Simon: os publicistas submeterão os seus trabalhos a uma comissão de industriais.

“E Pierre Leroux: a lei obrigará os cidadãos a ouvir um orador.

“E Auguste Comte: os padres educarão a juventude, dirigirão todas as obras do espírito e obrigarão o Poder a regular a procriação.”

Estes documentos afligiram Pécuchet. Nessa tarde, ao jantar, replicou.

— Que haja nos utopistas coisas ridículas, concordo.

No entanto, merecem o nosso amor. A fealdade do mundo desolava-os e, para o tornarem mais belo, tudo sofreram.

Recorda-te de Morus decapitado, de Campanella sete vezes torturado, de Buonarroti com uma corrente à volta do pescoço, de Saint-Simon morrendo de miséria e de muitos outros. Podiam ter vivido descansados! Mas, não! Seguiram o seu caminho, de cabeça erguida, como heróis.

— Acreditas que o mundo — continuou Bouvard — mudará graças às teorias de um senhor qualquer?

— Que interessa isso? — disse Pécuchet. — E tempo de não estagnarmos mais no egoísmo! Procuremos o melhor sistema!

— Então, contas encontrá-lo?

— Decerto!

— Tu?

E, no riso que assaltou Bouvard, os ombros e a barriga saltavam ao mesmo tempo. Mais vermelho que as compotas, com o guardanapo debaixo do braço, repetia: “Hahaha”, de forma irritante.

Pécuchet saiu da sala batendo a porta.

Germaine chamou-o pela casa toda e foram descobri-lo no fundo de seu quarto numa poltrona, sem fogo nem vela e com o boné puxado para a testa. Não estava doente, mas entregue a reflexões.


Passada a desavença, reconheceram que faltava uma base aos seus estudos: a economia política.

Informaram-se acerca da oferta e da procura, do capital e do arrendamento, da importação, da proibição.

Uma noite Pécuchet foi acordado pelo estalido de uma bota no corredor. Na véspera, como habitualmente, ele mesmo correra todos os ferrolhos — e chamou Bouvard, que dormia profundamente.

Ficaram imóveis debaixo dos cobertores. O ruído não continuou.

As criadas, interrogadas, nada tinham ouvido.

Mas, passeando na horta, repararam no meio de um canteiro, perto da abertura gradeada, na marca de uma pegada — e dois varões do gradeamento estavam partidos.

Era evidente que o tinham escalado.

Era preciso prevenir o guarda rural.

Como ele não estava na Câmara, Pécuchet foi ao merceeiro.

E quem viu ele no fundo da loja, ao lado de Placquevent, entre os bebedores? Gorgu! Gorgu vestido como um burguês — e pagando de beber à assembleia.

Este encontro era insignificante. Não tardaram a chegar ao problema do Progresso.

Bouvard não duvidava dele no domínio científico. Mas em literatura é menos evidente — e se é certo que o bem-estar aumenta, o esplendor da vida desapareceu.

Pécuchet, para o convencer, pegou num pedaço de papel.

— Traço obliquamente uma linha ondulada. Os que a percorressem deixariam de ver o horizonte sempre que ela desce. No entanto, ela volta a subir, e apesar dos meandros eles atingirão o alto. Esta é a imagem do Progresso.

A Sra. Bordin entrou.

Era o dia 3 de Dezembro de 1 85 1. Trazia o jornal.

Eles leram muito depressa e lado a lado o Apelo ao Povo, a dissolução da Câmara, a prisão dos deputados.

Pécuchet ficou pálido. Bouvard encarava a viúva.

— Como? A senhora não diz nada!

— Que querem que eu faça? — Eles esqueciam-se de a mandar sentar. — Eu que vim cuidando dar-lhes prazer.

Ah, não estão nada amáveis hoje — e saiu, chocada com a indelicadeza deles.

A surpresa tinha-os emudecido. Depois foram à aldeia derramar a sua indignação.

Marescot, que os recebeu no meio dos contratos, pensava de maneira diferente. A tagarelice da Câmara tinha acabado, graças ao céu. Daí em diante teriam uma política de negócios.

Beljambe ignorava os acontecimentos, e aliás não os tomava a sério.

No Mercado detiveram Vaucorbeil.

O médico tinha-se curado de tudo aquilo. — Fazem muito mal em atormentar-se.

Foureau passou perto deles, dizendo com um ar trocista: — Os democratas foram para o buraco! — E o capitão, de braço dado com Girbal, gritou de longe: “Viva o Imperador!”

Mas Petit havia d e compreendê-los — e quando Bouvard bateu na vidraça o mestre-escola saiu da aula.

Achava ele extremamente engraçado que Thiers estivesse preso. Aquilo vingava o Povo. — Ah! Ah! Senhores Deputados, é a vossa vez!

O tiroteio nos bulevares teve a aprovação de Chavignolles. Nenhuma misericórdia para com os vencidos, nenhuma piedade das vítimas! Quem se revolta é um celerado.

— Agradeçamos à Providência! — dizia o prior. — E, depois dela, a Luís Bonaparte. Ele está rodeado dos homens mais distintos! O Conde de Faverges será senador.


No dia seguinte tiveram a visita de Placquevent.

Os senhores tinham falado demais. Convidava-os a se calarem.

— Queres saber a minha opinião? —, disse Pécuchet.

“Já que os burgueses são ferozes, os operários invejosos, os padres servis — e o Povo, enfim, aceita todos os tiranos, desde que lhe deixem meter o focinho na gamela, Napoleão fez bem! Que o amordace, o pise e o extermine! Nunca será demais, pelo seu ódio ao direito, a sua covardia, a sua inépcia, a sua cegueira!”

Bouvard pensava: “O Progresso, hã, que grande peta!”

E acrescentou: E a Política, uma bela porcaria!

— Não é uma ciência — replicou Pécuchet. — A arte militar é melhor, prevê-se o que acontece. A ela é que devíamos nos apegar...

— Ah, obrigado! — replicou Bouvard. — Tudo me repugna. Antes vender nossa barraca e ir viver, com mil raios, com os selvagens!

— Como quiseres!

Mélie, no pátio, tirava água.

A bomba de madeira tinha uma longa alavanca. Para puxar para baixo curvava-se — e viam-se então suas meias azuis até a altura da barriga da perna. Depois, num gesto rápido, levantava o braço direito, enquanto virava um pouco a cabeça — e Pécuchet, olhando para ela, sentia algo de completamente novo, um encantamento, um prazer infinito.


VII

Começaram dias tristes.

Já não estudavam, com receio das decepções; os habitantes, de Chavignolles afastavam-se deles; os jornais tolerados não informavam de nada — a sua solidão era profunda e a ociosidade completa.

Às vezes abriam um livro e tornavam a fechá-lo; para quê? Noutros dias tinham a ideia de limpar a horta, e ao fim de um quarto de hora eram tomados de cansaço; ou de ir ver a fazenda, e regressavam repugnados; ou de tratar da casa, e Germaine queixava-se; desistiram.

Bouvard quis fazer o catálogo do museu, e declarou aqueles objetos estúpidos. Pécuchet pediu emprestada a Langlois a espingarda de caçar patos para atirar às calhandras; a arma rebentou ao primeiro tiro e quase o matou.

Portanto, viviam naquele tédio do campo, tão pesado quando o céu branco esmaga com a sua monotonia um coração sem esperança. Ouvem-se os passos de um homem de tamancos ao longo do muro, ou as gotas da chuva caindo do telhado no chão. De tempos a tempos, uma folha caída vem roçar a vidraça, e depois esvoaça e vai-se. Chegam indistintos sons de sinos trazidos pelo vento. Ao fundo do estábulo muge uma vaca.

Bocejavam um diante do outro, consultavam o calendário, olhavam para o relógio, esperavam as refeições; e o horizonte era sempre o mesmo! Campos em frente, à direita a igreja, à esquerda uma cortina de choupos; as copas balançavam na bruma, constantemente, com um ar lamentoso!

Hábitos que dantes toleravam faziam-nos sofrer. Pécuchet tornava-se incômodo com a sua mania de pôr o lenço em cima da toalha. Bouvard já não largava o cachimbo e conversava bamboleando-se. Levantavam-se discussões a propósito dos pratos ou da qualidade da manteiga. Quando estavam juntos pensavam em coisas diferentes.

Um acontecimento transtornara Pécuchet.

Dois dias após o tumulto de Chavignolles, ia ele passeando os seus dissabores políticos, quando chegou a um caminho coberto de olmeiros frondosos e ouviu atrás das suas costas uma voz gritar: “Para!”

Era a Sra. Castillon. Corria do outro lado, sem dar por ele. Um homem que caminhava à frente dela virou-se.

Era Gorgu; e abeiraram-se um do outro à distância de uma toesa de Pécuchet, de quem estavam separados pelo renque de árvores.

— É verdade? — disse ela — Vais bater-te?

Pécuchet meteu-se no valado, para ouvir: — Pois bem, vou — replicou Gorgu — vou bater-me!

Que te interessa isso?

— E ele pergunta! —, exclamou ela, torcendo os braços. — E se te matam, meu amor? Oh, fica! — E os seus olhos azuis, mais ainda do que as suas palavras, eram de súplica.

— Deixa-me em paz! Tenho de ir-me embora!

Ela troçou, encolerizada. — A outra autorizou, não foi?

— Não fales nisso! — Ele ergueu o punho fechado.

— Não!, meu caro, não! Eu calo-me, eu não digo nada.

— E desciam-lhe grandes lágrimas ao longo das faces para as golas do colarinho.

Era meio-dia. O sol brilhava sobre o campo, coberto de trigos amarelos. Muito ao longe, o toldo de um carro deslizava lentamente. Um torpor se disseminava no ar — nem um grito de ave, nem um zumbido de insecto. Gorgu tinha cortado uma varinha e raspava-lhe a casca. A Sra. Castillon não erguia a cabeça.

Pensava, a pobre mulher, na futilidade dos seus sacrifícios, nas dívidas que tinha liquidado, nos seus compromissos futuros, na sua reputação perdida. Em lugar de se queixar, recordou-lhe os primeiros tempos do seu amor, quando ela ia, todas as noites, ter com ele ao celeiro; de tal modo que uma vez o marido, julgando ser um ladrão, largara pela janela um tiro de pistola. A bala estava ainda na parede. — Desde o momento em que te conheci me pareceste belo como um príncipe. Gosto dos teus olhos, da tua voz, do teu andar, do teu cheiro! — E acrescentou mais baixo: — Estou louca por ti!

Ele sorria, lisonjeado no seu orgulho.

Ela agarrou-o pelos flancos com as duas mãos e disse de cabeça reclinada, como em adoração: — Meu querido! Meu querido amor! Minha alma!

Minha vida! Vá! Fala! Que queres tu? É dinheiro? Havemos de arranjá-lo. Eu fiz mal! Aborrecia-te! Desculpa! Encomenda roupa ao alfaiate, bebe champanhe, diverte-te! Eu permito-te tudo... tudo! — E murmurou num esforço supremo: — Até ela!... desde que voltes para mim!

Ele inclinou-se para a sua boca, passando-lhe um braço em torno da cintura para a impedir de cair; e ela balbuciava: — Meu querido! Querido amor! Como tu és belo! Meus Deus, como tu és belo!

Pécuchet, imóvel, e com a terra na altura do queixo, olhava-os, ofegante.

— Nada de fraquezas! — disse Gorgu. — Só me faltava perder a diligência! Prepara-se um golpe danado; e eu participo. Dá-me dez soldos para pagar um ponche para o condutor.

Ela tirou cinco francos da bolsa. — Depressa me devolves.

— Tem um pouco de paciência! Há que tempos que ele está paralisado! Pensa nisso! E, se quisesses, iríamos à capela da Croix-Janval... e lá, meu amor, eu juraria diante da Virgem Santa casar contigo quando ele morrer!

— Oh, teu marido não morre nunca!

Gorgu virara costas. Ela apanhou-o; e, aferrando-se aos seus ombros:

— Então deixa-me ir embora contigo! Serei tua criada! Precisas de alguém. Mas não vás embora! Não me abandones! Antes a morte! Mata-me!

Arrastava-se, agarrada aos joelhos dele, tentando agarrar-lhe as mãos para as beijar; o chapéu caiu-lhe, e depois a travessa, e dispersaram-se-lhe os cabelos curtos. Eram brancos sob as orelhas — e como ela o olhava de baixo para cima, soluçando, com as pálpebras vermelhas e os lábios tumefatos, ele exasperou-se e repeliu-a.

— Para trás, velha! Boa tarde!

Quando ela se levantou, arrancou a cruz de ouro que tinha pendurada no pescoço e, jogando-a, gritou: — Toma! Canalha!

Gorgu afastava-se, batendo com a sua chibatinha nas árvores.

A Sra. Castillon não chorava. D e boca aberta e pupilas baças, ficou-se sem um movimento, petrificada no desespero — já não um ser, mas uma coisa em ruínas.

O que acabava de surpreender foi para Pécuchet como que a descoberta de um mundo — todo um mundo! — que tinha clarões que cegavam, florações desordenadas, oceanos, tempestades, tesouros — e abismos de infinita profundidade; dele se evolava algum terror, mas que importância tinha isso? Sonhou com o amor, ambicionava senti-lo como ela, inspirá-lo como ele.

No entanto, execrava Gorgu — e, na casa da guarda, tivera dificuldades em não o trair.

O amante da Sra. Castillon humilhava-o por ser esbelto, pelos seus anéis de cabelo regulares, pela sua barba em flocos, pelo seu ar de conquistador; ao passo que a ele a cabeleira colava-se-lhe ao crânio como uma peruca molhada, o tronco metido no casacão assemelhava-se a um travesseiro, faltavam-lhe dois caninos e tinha um rosto severo. Considerava o céu injusto, sentia-se deserdado, e o seu amigo já não gostava dele. Bouvard abandonava-o todas as tardes.

Depois da morte da mulher, nada o impedira de arranjar outra — que o encheria de mimos agora, que lhe cuidaria da casa. Era velho demais para pensar nisso!

Mas Bouvard olhou-se ao espelho. As maçãs do rosto conservavam as cores, os cabelos ondulavam-se como dantes; nem um dente vacilara — e, perante a ideia de que podia agradar, teve um renovo de juventude; a Sra. Bordin acudiu-lhe à memória: ela fizera tentativas, a primeira vez por ocasião do incêndio das medas, a segunda no jantar lá em casa, e depois no museu, durante a declamação, e ultimamente viera sem ressentimentos três domingos a seguir. Por isso, foi a casa dela, e lá voltou, prometendo a si mesmo seduzi-la.

Desde o dia em que Pécuchet observara a criadinha a tirar água falava com ela mais frequentemente; e quer ela estivesse a varrer o corredor, ou a estender roupa, ou a tratar das panelas, ele não se fartava da felicidade de a ver — surpreendido com as suas emoções, como na adolescência. Tinha as mesmas febres e langor — e era perseguido pela recordação da Sra. Castillon agarrada a Gorgu.

Interrogou Bouvard sobre o que fazem os libertinos para arranjar mulheres.

— Dão presentes! Regalam-se nos restaurantes.

— Muito bem! Mas depois?

— Há as que fingem desmaiar para que a gente as leve para um canapé, outras deixam cair o lenço. As melhores marcam um encontro, sem rodeios. — E Bouvard alargou-se em descrições que incendiaram a imaginação de Pécuchet como gravuras obscenas. — A primeira regra é não acreditar no que elas dizem. Conheci algumas que, sob a aparência de santas, eram verdadeiras messalinas! Antes de mais nada, é preciso ser atrevido!

Mas o atrevimento não se encomenda. Pécuchet adiava quotidianamente a sua decisão, aliás intimidado pela presença de Germaine.

Esperando que ela se despedisse, exigiu-lhe um acréscimo de trabalho, anotava as vezes em que ela estava tocada, fazia observações em voz alta a sua sujeira, a sua preguiça, e tanto fez que a despediram.

Então Pécuchet ficou livre!

Com que impaciência esperava a saída de Bouvard!

Como lhe batia o coração logo que a porta se fechava!

Mélie trabalhava numa mesa redonda, perto da janela, à luz de uma vela. De vez em quando partia a linha com os dentes, e depois piscava os olhos para a enfiar no buraco da agulha.

Primeiro, ele quis saber que homens lhe agradavam.

Por exemplo, eram os do gênero de Bouvard? De modo nenhum; ela preferia os magros. Atreveu-se a perguntar-lhe se tinha tido namorados. — “Nunca!”

Depois, aproximando-se, contemplava-lhe o nariz fino, a boca estreita, o contorno do rosto. Dirigiu-lhe galanteios e exortava-a a ter juízo.

Inclinando-se para ela, distinguia-lhe no corpete formas brancas de onde emanava um aroma morno que lhe aquecia a face. Uma tarde, roçou-lhe os lábios pelos cabelos travessos da nuca, e com isso sentiu um abalo até a medula dos ossos. De outra vez, beijou-a no queixo, refreando-se para não lhe morder a carne, tanto ela era saborosa. Ela devolveu-lhe o beijo. A casa andou à roda. Já não via nada.

Ofereceu-lhe um par de botinas e regalava-a muitas vezes com um copo de aniseta.

Para lhe evitar trabalho, levantava-se cedo, partia a lenha, acendia o fogo, levava o seu cuidado ao ponto de limpar os sapatos de Bouvard.

Mélie não desmaiou, não deixou cair o lenço, e Pécuchet não sabia que resolver, enquanto o seu desejo aumentava com o medo de o satisfazer.

Bouvard fazia assiduamente a corte à Sra. Bordin.

Ela recebia-o, um pouco apertada no seu vestido de seda furta-cores, que estalava como os arreios de um cavalo, enquanto brincava, para não parecer acanhada, com o seu longo cordão de ouro.

Os seus diálogos rolavam sobre as pessoas de Chavignolles ou “o seu defunto marido”, que fora oficial de diligências em Livarot.

Depois, ela quis saber do passado de Bouvard, curiosa de conhecer “as suas leviandades de rapaz”, incidentalmente a sua fortuna, por que interesses se ligara a Pécuchet...

Ele admirava o tratamento da sua casa e, quando jantava lá, a beleza do serviço, a excelência da mesa. Uma sequência de pratos, de fundo sabor, cortada a intervalos regulares por um velho borgonha tinto, levava-os até a sobremesa, em que ficavam muito tempo a tomar café; e a Sra. Bordin, dilatando as narinas, molhava no pires os seus lábios carnudos, levemente sombreados por uma penugem escura.

Um dia apareceu decotada. Os ombros fascinaram Bouvard. Como estava numa cadeirinha diante dela, começou a passar-lhe as duas mãos ao longo dos braços. A viúva se zangou. Ele não continuou, mas imaginava redondezas de amplitude e consistência maravilhosas.

Uma noite em que a cozinha de Mélie lhe não agradara, teve uma alegria ao entrar no salão da Sra. Bordin. Ali que era preciso viver!

O globo do candeeiro, coberto de papel cor-de-rosa, espalhava uma luz tranquila. Ela estava sentada junto do fogo; e o pé surgia para além da fímbria do vestido. Depois das primeiras palavras a conversa murchou.

No entanto, ela olhava-o, de pestanas semicerradas, de uma maneira langorosa, obstinada.

Bouvard não aguentou mais! E, ajoelhando-se no chão, balbuciou: — Eu a amo! Casemo-nos!

A Sra. Bordin respirou com força; depois, com um ar ingênuo, disse que ele estava brincar, por certo; iam fazer troça, que falta de juízo. Aquela declaração deixava-a aturdida.

Bouvard objetou que eles não precisavam de consentimento de ninguém. — Quem a impede? É o enxoval? A nossa roupa tem uma marca semelhante, um B! Uniremos as nossas maiúsculas.

O argumento a agradou. Mas havia um assunto importante que a impedia de se decidir antes do fim do mês. E Bouvard se lamentou.

Ela teve a delicadeza de o conduzir à porta — escoltada por Marianne, com uma lanterna.

Os dois amigos tinham ocultado um ao outro as suas paixões.

Pécuchet contava esconder para sempre o seu enredo com a criada. Se Bouvard se opusesse, levá-la-ia consigo para outro lugar, mesmo para a Argélia, onde a vida não é cara! Mas raramente levantava estas hipóteses, pleno de amor, sem pensar nas consequências.

Bouvard projetava fazer do museu o quarto conjugal, a não ser que Pécuchet a tal se recusasse; se assim fosse, iria viver em casa da esposa.

Numa tarde da semana seguinte, estava em casa dela, no jardim; os rebentos começavam a abrir e havia, entre as nuvens, grandes espaços azuis; ela se abaixou para colher violetas e disse, oferecendo-as: — Cumprimente a Sra. Bouvard!

— Como? É verdade?

— A pura verdade.

Ele quis tomá-la nos braços, ela repeliu-o. — Que homem! — E depois, já séria, avisou-o de que não tardaria a pedir-lhe um favor.

— Está concedido!

Marcaram a assinatura do contrato para a quinta-feira seguinte. Ninguém deveria saber de nada até o último momento.

— Combinado!

E ele saiu de olhos no céu, leve como um cabrito montês.

Na manhã desse mesmo dia Pécuchet prometera a si mesmo que morreria se não obtivesse os favores da criada — e acompanhara-a à cave, esperando que as trevas lhe concedessem audácia.

Por várias vezes ela quisera ir-se embora; mas ele retinha-a, para contar as garrafas, escolher ripas ou ver o fundo dos barris; e aquilo arrastava-se há muito tempo.

Ela estava diante dele, sob a luz do respiradouro, direita, pálpebras descidas, com o canto da boca um pouco erguido.

— Gostas de mim? — disse bruscamente Pécuchet.

— Sim, gosto.

— Bem, então prova-o!

E envolvendo-a com o braço esquerdo, começou com a outra mão a desapertar-lhe o corpete.

— Vai me fazer mal?

— Não, meu anjo! Não tenhas medo!

— Se o Sr. Bouvard...

— Eu não lhe digo nada! Fica descansada!

Atrás deles estava um monte de lenha. Ela deixou-se cair, com os seios fora da camisa, de cabeça reclinada; depois escondeu a cara debaixo de um braço — e qualquer outro teria compreendido que não lhe faltava experiência.

Bouvard não tardou a chegar para jantar.

A refeição fez-se em silêncio, cada um deles com medo de se trair. Mélie servia-os, impassível como habitualmente.

Pécuchet desviava os olhos para evitar os dela, enquanto Bouvard, olhando para as paredes, pensava em melhoramentos.


Oito dias depois, na quinta-feira, regressou a casa furioso.

— Maldita mulher!

— Quem?

— A Sra. Bordin.

E contou que havia levado a sua demência até o ponto de querer fazer dela sua mulher. Mas tudo tinha acabado, um quarto de hora antes, no cartório de Marescot.

Ela pretendera receber como dote as Écalles, das quais ele não podia dispor — visto que, como a fazenda, as tinha liquidado em parte com dinheiro de outro.

— Com efeito! — disse Pécuchet.

— E eu, eu que tive a estupidez de lhe prometer um favor, à sua escolha! Era aquele! Eu teimei; amasse-me ela e teria cedido! — A viúva, pelo contrário, tinha-se exaltado em injúrias, achincalhara seu físico, a sua pança. — A minha pança! Só faltava essa.

Entretanto Pécuchet saíra várias vezes, caminhando de pernas abertas.

— Dói? — disse Bouvard.

— Ah, sim, dói!

E depois de fechar a porta, Pécuchet, após muitas hesitações, confessou que acabava de descobrir em si uma doença secreta.

— Tu?

— Eu!

— Ah! Meu pobre rapaz! Quem ta pegou?

Ele ficou ainda mais vermelho, e disse em voz ainda mais baixa:

— Só pode ter sido Mélie!

Bouvard ficou estupefato.

A primeira coisa a fazer era despedir a menina.

Ela protestou com um ar cândido.

A verdade é que o caso de Pécuchet era grave; mas, com vergonha da sua ignomínia, não se atrevia a ir ao médico.

Bouvard teve a ideia de recorrer a Barberou.

Enviaram-lhe a descrição exata da doença, para ele mostrar a um médico, que a trataria por correspondência.

Barberou foi zeloso, convencido de que o caso era com Bouvard, e chamou-o de velho gaiteiro, felicitando-o. — Na minha idade! — dizia Pécuchet. — É algo lúgubre! Mas por que ela me fez isto?

— Tu a agradavas.

— Devia ter me prevenido.

— A paixão não raciocina! — E Bouvard se queixava da Sra. Bordin.

Tinha-a surpreendido muitas vezes parada diante das Écalles, em companhia de Marescot, em conferência com Germaine. Tantas manobras por um pouco de terra!

— É avarenta! Eis a explicação!

Ruminavam assim seus desenganos, na saleta, ao canto da lareira, Pécuchet engolindo os seus remédios e Bouvard fumando cachimbadas — e dissertavam sobre as mulheres.

Estranha necessidade — será necessidade? Elas levam ao crime, ao heroísmo e ao embrutecimento! O inferno debaixo de umas saias, o paraíso num beijo; gorjeio de rola, meneias de serpente, garras de gato; perfídia do mar, variedade da lua — disseram todos os lugares-comuns que sobre elas já se espalharam.

Fora o desejo delas que suspendera a sua amizade.

Foram tomados de remorso. — Mulheres, nunca mais, não é? Vivamos sem elas! — E abraçaram-se com ternura.

Era preciso reagir — e Bouvard, depois da cura de Pécuchet, considerou que a hidroterapia lhes seria conveniente.

Germaine, que regressara logo após a partida da outra, carregava todas as manhãs com a banheira para o corredor.

E os dois, nus como selvagens, lançavam um ao outro grandes baldes de água; depois iam a correr para os quartos. Houve quem os visse através do gradeamento; e houve quem ficasse escandalizado.


VIII

Satisfeitos com este regime, quiseram melhorar os respectivos temperamentos com a ginástica.

E, pegando no manual de Amoros, percorreram o respectivo atlas.

Todos aqueles rapazes, acocorados, de cabeça para baixo, de pé, dobrando as pernas, afastando os braços, mostrando o punho, erguendo fardos, cavalgando traves, trepando escadas, fazendo cabriolas em trapézios, todo aquele aparato de força e agilidade excitou-lhes a cobiça.

Mas entristeciam-nos os esplendores do ginásio descritos no prefácio. Porque nunca poderiam arranjar um átrio para os trens, um hipódromo para as corridas, um tanque para a natação, nem uma “montanha de glória”, colina artificial com trinta e dois metros de altura.

Um cavalo de volteio de madeira estofado seria dispendioso, e renunciaram a ele; a tília abatida no jardim serviu-lhes de trave horizontal; e, quando já eram destros a percorrê-la de uma ponta a outra, replantaram, para obter uma vertical, uma pequena viga das espaldeiras. Pécuchet trepou até lá cima. Bouvard escorregava, voltava sempre a cair, e acabou por desistir.

Os “paus ortossomáticos” agradaram-lhe mais — isto é, dois cabos de vassouras ligados por duas cordas, a primeira das quais passa debaixo dos braços e a segunda por cima dos pulsos — e durante horas conservava-se neste aparelho, de queixo erguido, peito para a frente, cotovelos colados ao corpo.

À falta de halteres, o carpinteiro de carros torneou-lhes quatro pedaços de freixo que se assemelhavam a pães de açúcar terminados em gargalo de garrafa. Devem manejar-se estas maças à direita, à esquerda, à frente e atrás; mas, como eram muito pesadas, fugiam-lhes dos dedos, com o risco de lhes esmagar as pernas. Mas tanto fazia: teimaram nas “maças persas” e até, receando que estalassem, todas as tardes as esfregavam com cera e um pedaço de pano.

Depois, procuraram valas. Quando encontravam uma que lhes convinha, apoiavam-se ao meio numa longa vara, tomavam balanço com o pé esquerdo, atingiam a outra ponta e depois repetiam o exercício. O campo era plano e eram vistos de longe; os aldeãos perguntavam que eram aquelas duas coisas extraordinárias pulando no horizonte.

Quando chegou o outono entregaram-se à ginástica de interior; aborreceu-os. Que pena não terem a cadeira de molas, ou de mala-posta, imaginada no tempo de Luís XIV pelo padre de Saint-Pierre! Como era aquilo construído?

Onde haviam de informar-se? Dumouchel nem sequer se dignou responder-lhes!

E então instalaram na casa do forno uma báscula braquial. Por duas roldanas aparafusadas ao teto passava uma corda, que segurava uma travessa em cada ponta. Logo que a agarravam, um fazia força no chão com os dedos dos pés e o outro baixava os braços até o nível do chão; o primeiro, com o seu peso, puxava o segundo, que, soltando um pouco a corda, subia por sua vez; em menos de cinco minutos os membros gotejavam suor.

Para seguir as prescrições do manual, tentaram tornar-se ambidextros, até o ponto de se privar da mão direita temporariamente. Fizeram mais: Amoros indica os versos que se devem cantar nos exercícios — e Bouvard e Pécuchet, marchando, repetiam o hino n. 0 9, “Um rei, um rei justo é um bem sobre a terra.” Quando batiam nos peitorais: <<Amigos, a coroa e a glória, etc.” Em passo de corrida: Será nosso o animal cansado!


Apanharemos o rápido veado!

Sim, haveremos de vencer!

É correr! É correr! É correr!

 

E, mais ofegantes do que cães, animavam-se com o ruído das próprias vozes.

Havia um aspecto da ginástica que os exaltava: a sua utilização como meio de salvamento.

Mas precisariam de crianças para aprender a levá-las em sacos; e pediram ao mestre-escola que lhes fornecesse algumas. Petit objetou que as famílias iriam zangar-se.

Concentraram-se nos socorros aos feridos. Um fingia estar desmaiado e o outro transportava-o num carrinho de mão, com toda a espécie de precauções.

Quanto às escaladas militares, o autor preconiza a escada de Bois-Rosé, assim chamada do nome do capitão que outrora surpreendeu Fécamp subindo pela falésia.

Seguindo a gravura do livro, colocaram uns pauzinhos num cabo que amarraram debaixo do telheiro.

Mal se cavalga o primeiro pau e se agarra o terceiro, lançam-se as pernas para fora, para que o segundo, que ainda agora estava contra o peito, fique justamente debaixo das coxas. O ginasta endireita-se, agarra o quarto, e continua.

Apesar de prodigiosos bamboleios, foi-lhes impossível atingir o segundo degrau.

Talvez seja menos difícil um homem agarrar-se às pedras com as mãos, como fizeram os soldados de Bonaparte no ataque do Fort-Chambray... — e, para nos tornar capazes de tal ação, Amoras possui uma torre no seu estabelecimento.

O muro em ruínas podia substituí-la. Tentaram a respectiva escalada.

Mas Bouvard, que retirara depressa demais o pé de um buraco, teve medo e foi tomado de vertigens.

Pécuchet achou que a culpa era do método que seguiam: tinham menosprezado as falanges — e, por isso, deviam voltar aos princípios.

As suas exortações foram vãs; e, na sua presunção, meteu-se com as andas.

A natureza parecia tê-lo destinado a elas; porque usou logo as grandes, com suportes a quatro pés do solo; e, descansado lá em cima, percorria a horta como uma gigantesca cegonha que andasse a passear.

Bouvard, à janela, viu-o oscilar — e depois cair em peso sobre os feijoeiros, cujos ramos, ao partir-se, lhe amorteceram a queda. Apanharam-no coberto de terra, com as narinas a sangrar, lívido — e achava que tinha feito uma hérnia.

Decididamente, a ginástica não convinha a homens da sua idade; abandonaram-na, já não se atreviam a mexer-se com receio dos acidentes, e ficavam-se todo o dia sentados no museu, sonhando com outras ocupações.

Esta mudança de hábitos influiu na saúde de Bouvard.

Tornou-se muito pesado, soprava após as refeições como um cachalote; quis emagrecer, passou a comer menos e enfraqueceu.

Também Pécuchet se sentia “minado”, tinha comichões na pele e pontos brancos na garganta. “Isto não vai bem”, diziam eles, “isto não vai bem”.

Bouvard teve a ideia de ir à estalagem escolher algumas garrafas de vinho espanhol, para recuperarem o moral.

la ele a sair quando o amanuense de Marescot e mais três homens traziam a Beljambe uma grande mesa de nogueira; o “Senhor” agradecia muito. Tinha-se portado perfeitamente.

Bouvard soube assim da moda nova das mesas de pé-de-galo. Gracejou com o amanuense a este respeito.

No entanto, em toda a Europa, na América, na Austrália e na Índia, milhões de mortais passavam a vida a fazer girar mesas; e descobria-se a maneira de transformar os canários em profetas, de dar concertos sem instrumentos, de comunicar através dos caracóis. A Imprensa, oferecendo ao público, com toda a seriedade, estas patranhas, reforçava-o da sua credulidade.

Os Espíritos-das-pancadinhas tinham desembarcado no solar de Faverges, e dali tinham-se espalhado pela aldeia — e o notário, em especial, fazia-lhes perguntas.

Chocado com o cepticismo de Bouvard, convidou os dois amigos para um serão de mesas de espiritismo.

Seria uma armadilha? A Sra. Bordin havia de lá estar.

Foi Pécuchet sozinho.

Havia como assistentes o presidente da Câmara, o perceptor dos impostos, o capitão, outros burgueses com as respectivas esposas, a Sra. Vaucorbeil, a Sra. Bordin efetivamente, além de uma antiga vigilante de estudos da Sra. Marescot, a Mlle Laverriere, pessoa um pouco vesga e de cabelo grisalho caindo-lhe em espirais para os ombros, à maneira de 1830. Numa poltrona estava um primo de Paris, vestido com um traje azul e de ares impertinentes.

Os dois candeeiros de bronze, o móvel de prateleiras com curiosidades, romanzas com vinhetas em cima do piano e aguarelas minúsculas em molduras exorbitantes eram habitual motivo de espanto em Chavignolles. Mas naquela noite os olhos concentravam-se na mesa de acaju. Não tardaria a ser posta à prova, e tinha a importância das coisas que contêm um mistério.

Doze convidados tomaram lugar em redor dela, de mãos estendidas, com os dedos mínimos tocando-se. Apenas se ouvia o tiquetaque do relógio. Os rostos denotavam uma profunda atenção.

Ao fim de dez minutos queixaram-se alguns de formigueiros nos braços. Pécuchet estava incomodado.

— O senhor está a empurrar! — disse o capitão a Foureau.

— De modo nenhum!

— Está sim, senhor!

— Oh, meu caro senhor!

O notário acalmou-os.

De tanto apurar o ouvido, julgaram distinguir estalidos de madeira. Ilusão: nada mexia.

Ainda no outro dia, quando as famílias Aubert e Lormeau tinham vindo de Lisieux e tinham pedido emprestada de propósito a mesa de Beljambe, tudo tinha corrido tão bem! Mas aquela, hoje, era tão teimosa!... Porque seria?

Era decerto o tapete que a contrariava; e passaram para a sala de jantar.

O móvel escolhido foi uma larga mesa redonda com um só pé, onde se instalaram Pécuchet, Girbal, a Sra. Marescot e o seu primo Alfred. A mesa, que tinha rodízios, deslizou para a direita; os operadores, sem desarrumarem os respectivos dedos, seguiram-lhe o movimento e, sozinha, ainda deu mais duas voltas. Ficaram estupefatos.

Então o Sr. Alfred articulou em voz alta: — Espírito, como achas a minha prima?

A mesa, oscilando lentamente, bateu nove pancadas.

Segundo um letreiro em que o número de pancadas se traduzia em letras, aquilo significava “encantadora”. Estalaram bravos.

Depois, Marescot, para implicar com a Sra. Bordin, intimou o espírito a declarar a idade exata dela.

O pé da mesa bateu cinco vezes.

— Como? Cinco anos? — exclamou Girbal.

— As dezenas não contam — respondeu Foureau.

A viúva sorriu, interiormente vexada.

Faltaram as respostas às outras perguntas, de tal modo o alfabeto era complicado. Mais valia a Tabuinha, expediente de que mademoiselle Laverriere se servia para anotar num álbum as comunicações diretas de Luís XII, Clémence, Isaure, Franklin, Jean-Jacques Rousseau, etc. Esses mecanismos eram vendiam na rua de Aumale; o Sr. Alfred prometeu um e depois disse, dirigindo-se à vigilante de estudos: — Mas neste quarto de hora vamos ter um pouco de piano, não é? Uma mazurca!

Vibraram dois acordes seguidos. Ele agarrou a prima pela cintura, desapareceu com ela, regressou. Era refrescante o vento do vestido que roçava as portas ao passar. Ela reclinava a cabeça, ele arredondava o braço. Admirava-se a graça de uma, o ar elegante do outro; e, sem esperar pelos bolinhos, Pécuchet retirou-se, pasmado, do serão.

Por muito que ele repetisse: “Mas eu vi!”, Bouvard negava os fatos, mas aceitou experimentar pessoalmente.

Durante quinze dias passaram as tardes um em frente do outro com as mãos em cima de uma mesa, e depois em cima de um chapéu, em cima de um cesto, em cima de pratos. Todos estes objetos permaneceram imóveis.

O fenômeno das mesas de pé-de-galo nem por isso deixa de ser verdadeiro. O vulgo o atribui a espíritos, Faraday ao prolongamento da ação nervosa, Chevreul à inconsciência dos esforços, ou então, como admite Ségouin, talvez da reunião das pessoas emane um impulso, uma corrente magnética...

Esta teoria deu o que pensar a Pécuchet. Tirou da estante o Guia do Magnetizador de Montacabere, releu-o atentamente e iniciou Bouvard na teoria.

Todos os corpos animados recebem e comunicam a influência dos astros, propriedade análoga à virtude do ímã.

Dirigindo esta força, podem curar-se doentes, eis o princípio. A ciência, desde Mesmer, desenvolveu-se; mas continua a ser importante verter o fluido e fazer passes que, inicialmente, devem adormecer.

— Bom, então adormece-me — disse Bouvard.

— É impossível — replicou Pécuchet; — “para sofrer a ação magnética e para a transmitir é indispensável a fé.”

E depois, encarando Bouvard: — Ah! Que pena!

— Como?

— Sim, se tu quisesses, com um pouco de prática, não haveria um magnetizador como tu!

Porque ele tinha tudo o que era preciso: aspecto simpático, constituição robusta — e sólido moral.

Esta faculdade que acabavam de lhe descobrir lisonjeou Bouvard. Mergulhou à socapa no Montacabere.

Depois, como Germaine tinha zumbidos nos ouvidos que a ensurdeciam, disse uma noite num tom desatento: — E se experimentássemos o magnetismo? — Ela não se recusou. Sentou-se diante dela, segurou-lhe os dois polegares nas suas mãos — e olhou-a fixamente, como se em toda a sua vida não tivesse feito outra coisa.

A boa mulher, com uma escalfeta debaixo dos calcanhares, começou por fletir o pescoço; os olhos se fecharam e, muito suavemente, começou a ressonar. Ao fim de uma hora de a contemplarem, Pécuchet disse em voz baixa: “Que sente?”

Ela despertou.

A lucidez viria certamente mais tarde.


Este êxito tornou-os audaciosos; e, retomando galhardamente o exercício da medicina, trataram Chamberlan, o sacristão, das suas dores intercostais; Migraine, o pedreiro, que sofria de uma neurose do estômago; a tia Varin, cujo tumor na clavícula exigia para se alimentar emplastros de carne; um paciente de gota, o tio Lemoine, que se arrastava pelas imediações das tabernas; um tísico, um hemiplégico e muitos outros. Trataram também de corizas e frieiras.

Após a exploração da doença, interrogavam-se com o olhar para saber que passes utilizar, se deviam ser de grandes ou pequenas correntes, ascendentes ou descendentes, longitudinais, transversais, bidigitados, tridigitados ou até pentadigitados. Quando um estava farto daquilo, o outro substituía-o. Depois, regressados a casa, anotavam as observações no diário do tratamento.

As suas maneiras untuosas captaram as pessoas. No entanto, preferiam Bouvard; e a sua reputação chegou a Falaise quando curou “a Barbada”, filha do tio Barbey, um antigo capitão de longo curso.

Ela sentia como que um prego no occipital, falava em voz rouca, passava muitas vezes vários dias sem comer e depois devorava gesso e carvão. As suas crises nervosas, que começavam com soluços, terminavam numa torrente de lágrimas; tinham usado todos os remédios, das tisanas às moxas — de tal modo que, por cansaço, aceitou as ofertas de Bouvard.

Depois de ter mandado embora a criada e corrido os ferrolhos começou a friccionar-lhe o abdômen carregando-lhe no lugar dos ovários — e logo um bem-estar se manifestou por suspiros e bocejos. Colocou-lhe um dedo entre as sobrancelhas no alto do nariz — e de repente ela ficou inerte. Se lhe levantavam os braços, eles tornavam a cair; a cabeça conservou as atitudes que ele quis — e as pálpebras semicerradas, vibrando num movimento espasmódico, deixavam entrever os globos oculares, que rodavam lentamente; fixaram-se nos cantos, convulsos.

Bouvard perguntou-lhe se tinha dores; ela respondeu que não; que sentia agora? Distinguia o interior do seu corpo.

— E que é que vê?

— Um verme!

— Que é preciso para o matar?

A testa franziu-se-lhe: — Estou à procura... mas não posso; não posso!

Na segunda sessão prescreveu a si própria um caldo de urtigas; na terceira, erva-gateira. As crises atenuaram-se até desaparecer. Era verdadeiramente uma espécie de milagre.

A digitação nasal não resultou com os outros; e para provocar o sonambulismo projetaram construir uma pia de Mesmer. Pécuchet já tinha até recolhido limalha e lavado duas dezenas de garrafas, quando um escrúpulo o deteve.

Entre os doentes, viriam pessoas do sexo oposto. “E que faremos nós se tiverem ataques de erotismo furioso?”

Isto não era de molde a deter Bouvard; mas por causa das intrigas e talvez da chantagem, mais valia absterem-se.

Contentaram-se com uma harmônica, e levavam-na com eles às casas dos pacientes, o que alegrava as crianças.

Um dia em que Migraine estava pior recorreram a ela.

Os sons cristalinos exasperaram-no; mas Deleuze manda que não nos assustemos com as queixas, e a música continuou.

— Basta! Basta! — gritava ele. — Um pouco de paciência — repetia Bouvard. Pécuchet tocava mais depressa nas lâminas de vidro, o instrumento vibrava e o pobre homem berrava, quando o médico apareceu, atraído pela algazarra.

— Como? Outra vez os senhores! — exclamou ele, furioso por os encontrar sempre em casa dos seus clientes.

Eles explicaram o seu método magnético. Então ele travejou contra o magnetismo, uma caterva de palhaçadas cujos efeitos provêm da imaginação.

No entanto, magnetizam-se animais. Montacabere o afirma e o Sr. Lafontaine conseguiu magnetizar uma leoa.

Eles não tinham leoa. Mas o acaso ofereceu-lhes outro animal.

É que no dia seguinte, às seis horas, veio um moço de lavoura dizer-lhes que a sua presença era necessária na fazenda, por causa de uma vaca em estado desesperado.

Correram para lá.

As macieiras estavam em flor e a erva no pátio fumegava sob o sol nascente. À beira do charco, meio coberta por um pano, mugia uma vaca, tiritando debaixo dos baldes de água que lhe deitavam sobre o corpo; e, desmesuradamente inchada, parecia um hipopótamo.

Por certo comera “peçonha” ao pastar nos trevas.

O tio e a tia Gouy estavam desolados — porque o veterinário não podia vir e um carreiro que sabia palavras contra o inchaço não queria incomodar-se, mas aqueles senhores, cuja biblioteca era célebre, haviam de conhecer o segredo.

Depois de arregaçarem as mangas, colocaram-se, um diante dos cornos, o outro junto da garupa — e, com grandes esforços interiores e uma gesticulação frenética, afastavam os dedos para espalhar sobre o animal rios de fluido, enquanto o rendeiro, a mulher, o filho e vizinhos os contemplavam quase assustados.

O marulhar que se ouvia dentro da barriga da vaca provocou-lhes borborigmos no fundo das entranhas. A vaca emitiu uma ventosidade. Pécuchet disse então: — É uma porta aberta para a esperança! Uma saída, talvez...

A saída deu-se; a esperança brotou num embrulho de matérias amarelas rebentando com a força de um obus. Os corações desoprimiram-se, a vaca desinchou. Uma hora depois já não se notava nada.

Não era efeito da imaginação, de certeza. Portanto, o fluido contém uma virtude especial que se deixa encerrar em objetos, onde se pode ir buscá-la sem por isso a enfraquecer. Tal processo poupa as deslocações. Adotaram-no e enviavam aos seus clientes fichas magnetizadas, lenços magnetizados, água magnetizada, pão magnetizado.

Depois, continuando os seus estudos, abandonaram os passes em troca do sistema de Puységur, que substitui o magnetizador por uma velha árvore, em cujo tronco se enrola uma corda.

Havia uma pereira no “monte” que parecia ter sido feita de propósito. Prepararam-na abraçando-se a ela com força por várias vezes. Montaram um banco por baixo. Ali se alinhavam os seus clientes habituais; e obtiveram resultados tão maravilhosos que, para desbaratar Vaucorbeil, convidaram-no para uma sessão com os notáveis da região.

Nem um faltou.

Germaine recebeu-os na saleta, pedindo “que fizessem o obséquio de desculpar”, os patrões não tardavam.

De vez em quando ouvia-se um toque de sineta. Eram os doentes, que ela fazia entrar por outro lado. Os convidados apontavam uns aos outros as janelas cheias de pó, as manchas nos lambris, a pintura que empipocava; e a horta estava lamentável! Madeira seca por toda a parte! Dois paus diante da fenda do muro barravam a passagem para o pomar.

Apareceu Pécuchet. — Às vossas ordens, meus senhores! — e viram ao fundo, debaixo da pereira “de Edouin”, várias pessoas sentadas.

Chamberlan, sem barba, como um padre, e de sotaina curta de lasting com um solidéu de couro, entregava-se a estremeções provocados pela sua dor intercostal; junto dele, Migraine, que continuava a sofrer do estômago, fazia caretas. A tia Varin, para ocultar o seu tumor, vestia um xale de várias voltas. O tio Lemoine, de pés descalços metidos em chinelos, tinha as muletas debaixo das barrigas das pernas — e a Barbada, com a roupa dos domingos, estava extraordinariamente pálida.

Do outro lado da árvore viram outras pessoas: uma mulher com cara de albina enxugava as glândulas supurantes do pescoço. O rosto de uma garota quase desaparecia sob uns óculos azuis. Um velho com a espinha deformada por uma rigidez muscular esbarrava nos seus movimentos involuntários com Marcel, uma espécie de idiota coberto por um camisão aos farrapos e umas calças remendadas.

O lábio leporino mal cozido mostrava-lhe os incisivos — e tinha uns panos a disfarçar-lhe a face, tumefacta devido a uma enorme congestão.

Todos seguravam na mão um cordel que descia da árvore; os pássaros cantavam e o aroma da relva morna rolava no ar. O sol passava entre os ramos. Tudo era leve e macio.

No entanto, os pacientes, em vez de dormir, arregalavam os olhos.

— Até agora, não tem graça nenhuma — disse Foureau. — Comecem, que eu afasto-me por um minuto.

E regressou, fumando num Abd-el-Kader, último resto da porta dos cachimbos.

Pécuchet lembrou-se de um excelente processo de magnetização. Meteu na boca todos os narizes dos doentes e aspirou-lhes o hálito para atrair a si a eletricidade — e ao mesmo tempo Bouvard abraçava a árvore para aumentar o fluido.

O pedreiro interrompeu os seus soluços, o sacristão ficou menos agitado, o homem da rigidez muscular deixou de se mexer. Podiam agora aproximar-se deles, submetê-los a todas as provas.

O médico, com a sua lanceta, picou Chamberlan debaixo da orelha e ele estremeceu um pouco. A sensibilidade nos outros foi evidente. O gotoso soltou um grito.

Quanto à Barbada, sorria como num sonho, e um fio de sangue corria-lhe debaixo da queixada. Foureau, para ser ele próprio a experimentar, quis pegar na lanceta e, como o doutor a recusasse, beliscou a doente com força. O capitão fez-lhe cócegas nas narinas com uma pena, o perceptor dos impostos ia enfiar-lhe um alfinete na pele.

— Deixem-na em paz — disse Vaucorbeil — não é nada para espantar, afinal! Uma histérica! O diabo perdia o seu latim com isto!

— Aquela — disse Pécuchet apontando para Victoire, a mulher escrofulosa — é médica! Reconhece as doenças e indica os remédios.

Langlois ardia de vontade de a consultar acerca do seu catarro; não se atreveu; mas Coulon, mais corajoso, pediu qualquer coisa para os seus reumatismos.

Pécuchet colocou-lhe a mão direita na mão esquerda de Victoire — e, de pestanas sempre fechadas, com as maçãs do rosto um pouco vermelhas, lábios trementes, a sonâmbula, depois de ter divagado, receitou Valum Becum.

Servira em Bayeux em casa de um boticário. Vaucorbeil deduziu dali que ela queira dizer album graecum, palavras talvez entrevistas na farmácia.

Depois aproximou-se do tio Lemoine que, segundo Bouvard, conseguia ver através dos corpos opacos. Era um antigo mestre-escola caído na devassidão. Em redor da cara espalhavam-se-lhe cabelos brancos; e, encostado à árvore, com as palmas das mãos abertas, dormia, em pleno sol, majestosamente.

O médico amarrou-lhe por cima das pálpebras uma gravata dupla; e Bouvard, mostrando-lhe um jornal, disse imperiosamente: — Leia.

Ele baixou a testa, mexeu os músculos da face e depois deitou a cabeça para trás e acabou por soletrar: “Constitucional”.

Mas com jeito consegue-se afastar todas as vendas!

Estas denegações do médico revoltavam Pécuchet.

Aventurou-se ao ponto de afirmar que a Barbada lhe poderia descrever o que se passava atualmente na sua própria casa.

— Seja — respondeu o doutor; e, depois de puxar do relógio: — Que está a minha mulher a fazer agora?

A Barbada hesitou muito tempo e depois disse com um ar de tédio: — Hã? Quê? Ah! Está bem. Está a coser fitas num chapéu de palha.

Vaucorbeil arrancou uma folha do seu caderninho e escreveu um bilhete, que o amanuense de Marescot se apressou a levar.

A sessão acabara. Os doentes foram-se embora.

Bouvard e Pécuchet, em suma, não tinham triunfado.

Teria sido por causa da temperatura, ou do cheiro a tabaco, ou do guarda-chuva do padre Jeufroy, que tinha uma guarnição de cobre — metal contrário à emissão fluídica?

Vaucorbeil encolheu os ombros.

No entanto, não podia contestar a boa fé dos Srs. Deleuze, Bertrand, Morin, Jules Cloquet. Ora, esses mestres afirmam que houve sonâmbulos que predisseram acontecimentos e que sofreram, sem dor, operações cruéis.

O padre relatou histórias mais espantosas. Um missionário viu brâmanes andarem sobre uma abóbada de cabeça para baixo, o Grande Lama no Tibete corta as tripas para emitir oráculos.

— Está a brincar? — disse o médico.

— De modo nenhum.

— Ora, que besteira!

E, afastando-se da questão, cada um deles contou histórias.

— Eu — disse o merceeiro — tive um cão que estava sempre doente quando o mês começava numa sexta-feira.

— Nós éramos catorze filhos — continuou o juiz de paz. — Nasci num dia 14, casei num dia 14... e o dia do meu santo é 14! Expliquem-me isso.

Beljambe tinha muitas vezes sonhado com o número de viajantes que no dia seguinte teria na estalagem. Petit contou a história da ceia de Cazotte.

O prior, então, emitiu esta reflexão: — Porque não ver nisto tudo, muito simplesmente...

— Os demônios, não é? — disse Vaucorbeil.

O padre, em vez de responder, fez um aceno de cabeça.

Marescot falou da Pítia de Delfos. — Miasmas, sem dúvida nenhuma...

— Ah! Agora, miasmas!

— Eu admito um fluido — replicou Bouvard.

— Nervoso-sideral — acrescentou Pécuchet.

— Mas prove-o! Mostre lá o seu fluido! De resto, os fluidos estão fora de moda; ora, escute.

Vaucorbeil adiantou-se para se pôr à sombra. Os burgueses acompanharam-no. — Se disser a uma criança: "Eu sou um lobo, vou te comer", ela imagina que o senhor é um lobo e tem medo; é portanto um sonho comandado por palavras. Do mesmo modo, o sonâmbulo aceita as fantasias que quisermos. Recorda-se e não imagina, tem apenas as sensações quando julga pensar. Deste modo, são sugeridos crimes, e pessoas virtuosas poderão transformar-se em bestas ferozes e tornar-se antropófagas.

Olharam todos para Bouvard e Pécuchet. A ciência deles tinha perigos para a sociedade.

O amanuense de Marescot reapareceu na horta, brandindo uma carta da Sra. Vaucorbeil.

O doutor abriu-a, empalideceu e, por fim, leu estas palavras:

— Estou a coser fitas num chapéu de palha!

O espanto não os deixou rir.

— Uma coincidência, que diabo! Isto não prova nada.

E como os dois magnetizadores arvoravam um ar de triunfo, voltou-se no limiar da porta para lhes dizer: — Não continuem! São divertimentos perigosos!

o prior, levando consigo o sacristão, repreendeu-o vivamente:

— Você é doido? Sem a minha autorização! Manobras proibidas pela Igreja!

Toda a gente se fora; Bouvard e Pécuchet conversavam no cabeço da latada com o professor, quando Marcel saiu do pomar, com a ligadura da cara desfeita, balbuciando: — Curado! Curado! Meus bons senhores!

— Bem! Basta! Deixe-nos em paz!

— Ah, meus bons senhores! Gosto dos senhores! Vosso criado!

Petit, homem de progresso, achara a explicação do médico terra-a-terra, burguesa. A ciência é um monopólio nas mãos dos Ricos. Exclui o Povo. À velha análise da Idade Média é tempo que suceda uma síntese vasta e espontânea!

A Verdade deve atingir-se pelo Coração — e, declarando-se espiritista, indicou várias obras, sem dúvida com defeitos, mas que anunciavam uma aurora.

Eles mandaram-nas vir.

O espiritismo propõe como dogma a melhoria fatal da nossa espécie. Um dia a terra virá a ser o céu, e por isso é que esta doutrina encantava o professor. Sem ser católica, invoca Santo Agostinho e São Luís. Allan Kardec publica até fragmentos ditados por eles e que estão ao nível das opiniões contemporâneas. É prática, benéfica e revela-nos, como o telescópio, os mundos superiores.

Os Espíritos, depois da morte e em Êxtase, são transportados para lá. Mas às vezes descem ao nosso globo, onde fazem estalar os móveis, se intrometem nos nossos divertimentos, saboreiam as belezas da Natureza e os prazeres das Artes.

No entanto, muitos de nós possuímos uma trompa aromal, isto é, um longo tubo atrás do crânio que sobe do cabelo até os planetas e nos permite conversar com os espíritos de Saturno; as coisas intangíveis nem por isso são menos reais e, da terra aos astros e dos astros à terra, há um vaivém, uma transmissão, um constante intercâmbio.

Então o coração de Pécuchet dilatou-se de aspirações desordenadas — e, quando a noite caía, Bouvard surpreendia-o na janela contemplando aqueles espaços luminosos povoados de espíritos. Swedenborg fez por lá grandes viagens. Porque, em menos de um ano, explorou Vênus, Marte, Saturno, e vinte e três vezes Júpiter. Além disso, viu em Londres Jesus Cristo, viu São Paulo, viu São João, viu Moisés, e em 1736 viu até o Juízo Final. E também nos dá descrições do céu.

Lá encontramos flores, palácios, mercados e igrejas, exatamente como aqui.

Os anjos, outrora homens, lançam os seus pensamentos em folhas de papel, conversam das coisas da casa, ou então de assuntos espirituais; e os empregos eclesiásticos pertencem àqueles que na sua vida terrestre cultivaram a Sagrada Escritura.

Quanto ao inferno, está cheio de um odor nauseabundo, com casebres, montões de imundícies, pessoas mal vestidas.

E Pécuchet dava tratos à sua inteligência para compreender o que há de belo nestas revelações. Elas pareceram a Bouvard o delírio de um imbecil. Tudo aquilo ultrapassa os limites da Natureza! No entanto, quem conhece esses limites? E então entregaram-se às reflexões seguintes.

Os charlatães podem iludir a multidão; um homem de paixões violentas pode arrastar outros com elas; mas como agiria a simples vontade sobre a matéria inerte? Diz-se que houve um bávaro que amadureceu uvas; o Sr. Gervais reanimou um girassol; um, mais forte, em Toulouse, afasta as nuvens. Será admitir uma substância intermediária entre o mundo e nós? Um novo imponderável, uma espécie de eletricidade, talvez não seja outra coisa... As suas emissões explicam o clarão que os magnetizados julgam ver, os fogos-fátuos dos cemitérios, a forma dos fantasmas.

Logo, estas imagens não seriam uma ilusão, e os dons extraordinários dos Possessos, semelhantes aos dos sonâmbulos, teriam uma causa física...

Seja qual for a sua origem, existe uma essência, um agente secreto e universal. Se pudéssemos agarrá-la, não precisaríamos da força da duração. O que exige séculos desenvolver-se-ia num minuto; todo o milagre seria praticável e o universo estaria à nossa disposição.

A magia provinha desta cobiça eterna do espírito humano. Não há dúvida de que se tem exagerado o seu valor; mas não se trata de uma mentira. Certos Orientais que a conhecem executam prodígios; todos os viajantes o declaram; e no Palais-Royal o Sr. Dupotet perturba com um dedo a agulha magnética.

Como haviam de se tornar mágicos? Esta ideia começou por lhes parecer louca, mas regressou, atormentou-os, e a ela cederam quando dela fingiam rir.

É indispensável um regime preparatório.

Para melhor se exaltarem, viviam de noite, jejuavam e, para transformar Germaine num medium mais delicado, racionaram-lhe a alimentação. Ela desforrava-se na bebida e bebeu tanta aguardente que acabou por se alcoolizar. Os passeios deles pelo corredor acordavam-na. Confundia o ruído dos passos com os seus zumbidos nos ouvidos e com as vozes imaginárias que ouvia saírem das paredes. Um dia em que de manhã guardara um solho na adega, teve medo quando o viu todo coberto de fogo, e dali em diante sentiu-se pior; e acabou por acreditar que eles lhe tinham deitado mau-olhado.

Para conseguir ter visões, comprimiram as nucas um do outro, fizeram saquinhos de beladona e por fim adotaram a caixa mágica: uma caixinha donde se ergue um cogumelo eriçado de pregos e que se guarda sobre o coração com uma fita amarrada ao peito. Tudo falhou. Mas podiam utilizar o círculo de Dupotet.

Pécuchet riscou com um carvão uma rodela preta no chão, “para lá encerrar os espíritos animais que haviam de ajudar os espíritos ambientes” — e, feliz por dominar Bouvard, disse-lhe com um ar de pontífice: — Desafio-te a atravessares a linha!

Bouvard olhou para aquele redondel. Logo o seu coração começou a bater e os olhos turvaram-se-lhe. — Ah! Acabemos com isto! — E saltou por cima para escapar a um mal-estar inexprimível.

Pécuchet, cuja exaltação ia crescendo, quis fazer aparecer um morto.

No tempo do Diretório, um homem na rua do Échiquier mostrava as vítimas do Terror. Os exemplos de Espectros são inúmeros. Podem ser uma aparência, mas que importa? O que é preciso é produzi-la. Quanto mais o defunto nos toca de perto, melhor acorre ao nosso apelo; mas ele não tinha qualquer relíquia da sua família, nem anel nem miniatura, nenhum cabelo, ao passo que Bouvard estava em condições de chamar o pai; e, como ele mostrava repugnância, Pécuchet perguntou-lhe: — De que tens medo?

— Eu? Oh, de nada! Faz o que quiseres!

Pagaram a Chamberlan, que lhes forneceu às escondidas uma velha caveira. Um alfaiate cortou-lhes dois capotes pretos, com um capuz, como hábitos de monge. A carreira de Falaise trouxe-lhes um grande rolo embrulhado. Depois deitaram mãos à obra, um curioso de a executar e o outro com receio de acreditar nela.

O museu estava arranjado como um catafalco. Três luzes ardiam junto da mesa, empurrada contra a parede, debaixo do retrato do pai Bouvard, encimado pela caveira. Tinham até enfiado uma vela no interior da caveira; e saíam-lhe os raios de luz pelas duas órbitas.

No meio, em cima de uma braseira, fumegava incenso.

Bouvard estava atrás — e Pécuchet, de costas voltadas para ele, lançava na lareira punhados de enxofre.

Antes de se chamar o morto é necessário o consentimento dos demônios. Ora, como aquele dia era uma sexta-feira, dia que pertence a Bechet, era preciso primeiro tratar de Bechet. Bouvard, depois de cumprimentar para a direita e para a esquerda, baixou o queixo, ergueu os braços e começou.

— Por Etaniel, Amazim, Isquiros — esquecera-se do resto. Pécuchet logo lhe soprou as palavras anotadas num pedaço de cartão.

— Isquiros, Atanatos, Adonai, Sadai, Elói, Messias — a litania era longa — eu te esconjuro, eu te imploro, eu te ordeno, ó Bechet — e depois, baixando a voz: — Onde estás, Bechet? Bechet! Bechet! Bechet!

Bouvard deixou-se cair na poltrona; e estava muito satisfeito por não ver Bechet — porque um certo instinto censurava sua tentativa como um sacrilégio. Onde estava a alma do pai? Podia ela ouvi-lo? E se de repente ela viesse?

As cortinas agitavam-se lentamente com o vento que entrava por um vidro rachado; e os círios balançavam sombras sobre a caveira e sobre a cara pintada. Uma cor terrosa as sombreava também. O bolor devorava as maçãs do rosto, os olhos já não tinham luz, mas uma chama brilhava por cima, nos buracos da cabeça vazia. Parecia às vezes tomar o lugar do outro, pousar na gola da sua sobrecasaca, ter suas suíças; e a tela, meio despregada, oscilava, palpitava.

A pouco e pouco sentiram como que o aflorar de um hálito, a aproximação de um ser impalpável. Gotas de suor orvalhavam a testa de Pécuchet — e eis que Bouvard começou a bater os dentes, uma cãibra apertava-lhe a barriga como uma onda, fugia-lhe debaixo dos calcanhares, o enxofre que ardia na lareira, voltou a descer em grossas volutas, ao mesmo tempo volteavam morcegos, e um grito se ergueu; quem seria?

Debaixo dos capuzes, tinham caras tão descompostas que o seu pavor com isso redobrava — não se atrevendo a fazer um gesto, nem sequer a falar — quando atrás da porta ouviram gemidos, como os de uma alma penada.

Por fim, atreveram-se.

Era a velha criada — que, espreitando-os por uma fenda do tabique, julgara ver o Diabo; e, de joelhos no corredor, multiplicava-se em sinais da cruz.

Todos os arrazoados foram inúteis. Ela deixou-os nessa mesma noite — não querendo mais servir pessoas assim.

Germaine deu com a língua nos dentes. Chamberlan perdeu o lugar; e formou-se contra eles uma surda coligação, alimentada pelo padre Jeufroy, a Sra. Bordin e Foureau.

A maneira de viver deles — diferente da dos outros — era incômoda. Tornaram-se suspeitos; e inspiravam até um vago terror.

O que sobretudo os deitou abaixo na opinião pública foi a escolha do criado. À falta de outro, tinham ficado com Marcel.

O seu lábio leporino, a sua fealdade e a sua algaraviada afastavam as pessoas. Criança abandonada, crescera ao acaso pelos campos e conservava da sua longa miséria uma fome insaciável. Animais mortos de doença, toucinho podre, um cão atropelado, tudo lhe convinha desde que fosse um bom bocado; e era dócil como um carneiro, mas completamente estúpido.

A gratidão levara-o a oferecer-se como criado em casa dos Senhores Bouvard e Pécuchet; e depois, julgando-os bruxos, esperava ganhos extraordinários.

Logo nos primeiros dias confiou-lhes um segredo. Na charneca de Poligny, em tempos, um homem encontrara um lingote de ouro. A história é contada pelos historiadores de Falaise; mas eles ignoravam a continuação: doze irmãos, antes de partir para uma viagem, tinham escondido doze lingotes iguais, ao longo da estrada, de Chavignolles até Bretteville; e Marcel suplicou aos patrões que começassem as pesquisas. Os tais lingotes, pensaram eles, tinham talvez sido escondidos na altura da emigração.

Era um caso para utilizar a varinha divinatória. As suas virtudes são duvidosas. Mas estudaram a questão e souberam que um tal Pierre Garnier apresenta para as defender razões científicas: as nascentes e os metais projetariam corpúsculos em afinidade com a madeira.

Nada disso é provável. Mas quem sabe? Experimentemos!

Afiaram um garfo de aveleira — e uma manhã partiram à descoberta do tesouro.

— Teremos de o devolver — disse Bouvard.

— Ah, não! Ora essa!

Depois de três horas de caminho foram detidos por uma reflexão: <<A estrada de Chavignolles para Bretteville!

Seria a antiga ou a nova? Devia ser a antiga...”

Arrepiaram caminho — e percorreram os arredores, ao acaso, porque o traçado da estrada antiga não era fácil de reconhecer.

Marcel corria pela direita e pela esquerda, como um cachorro na caça; de cinco em cinco minutos, Bouvard era obrigado a chamá-lo; Pécuchet avançava passo a passo, segurando a vara pelos dois ramos, com a ponta para cima.

Muitas vezes parecia-lhe que uma força, como que um gancho, a puxava para o chão; e logo Marcel fazia um entalhe nas árvores próximas para mais tarde encontrar o lugar.

No entanto, Pécuchet afrouxava o andamento. Abriu a boca, as pupilas começaram a rodar. Bouvard interpelou-o, sacudiu-o pelos ombros; ele não se mexeu — e permanecia inerte, exatamente como a Barbada.

Contou depois que sentira em torno do coração uma espécie de rasgão, algo de estranho, proveniente da vara, com certeza; e já não lhe queria tocar.

No dia seguinte regressaram para junto das marcas feitas nas árvores. Marcel, com uma enxada, escavava buracos mas a escavação nunca levava a nada. Estavam, cada vez mais, extremamente confusos. Pécuchet sentou-se na beira de um valado; e estava ele pensando de cabeça erguida, esforçando-se por ouvir a voz dos Espíritos através da sua trompa aromai, perguntando até se a teria, quando fixou o olhar na pala do boné; voltou a ser invadido pelo êxtase da véspera. Durou muito tempo, aquilo tornava-se assustador.

Por cima da aveia, num caminho, apareceu um chapéu de feltro; era Vaucorbeil a trote na sua égua. Bouvard e Marcel o chamaram.

A crise estava a terminar quando o médico chegou.

Para melhor examinar Pécuchet levantou-lhe a pala — e, vendo a testa coberta de placas acobreadas, disse: — Ah, ah! Fructus belli! São sifílides, meu caro! Trate-se! Que diabo, não se brinca com o amor!

Pécuchet, envergonhado, voltou a pôr o boné, uma espécie de barrete, inchado sob uma pala em forma de meia-lua, e cujo modelo fora buscar ao atlas de Amoros.

As palavras do doutor deixavam-no estupefato. Pensava naquilo, olhando para o ar — e de repente teve um novo ataque.

Vaucorbeil observava-o, e depois, com um piparote, fez-lhe cair o boné.

Pécuchet recobrou as suas faculdades.

— Já desconfiava — disse o médico. — A pala envernizada hipnotiza-o como um espelho; e este fenômeno não é raro nas pessoas que olham para um corpo brilhante com excessiva atenção.

Indicou como praticar a experiência com galinhas, montou a garrana e desapareceu lentamente.

Meia légua mais adiante notaram um objeto piramidal que se erguia no horizonte num pátio de fazenda — parecia, segundo o uso normando, um longo mastro com travessas onde se empoleiravam perus de pescoços estendidos ao sol.

— Entremos — e Pécuchet falou com o caseiro, que satisfez o seu pedido.

Traçaram com cal uma linha no meio do lagar, amarraram as patas de um peru e depois estenderam-no de papo para baixo com o bico em cima do risco. O animal fechou os olhos e não tardou a parecer morto. O mesmo se passou com os outros. Bouvard passava-os vivamente a Pécuchet, que os arrumava de lado logo que estavam adormecidos.

A gente da fazenda mostrou inquietação. A patroa gritou; uma garotinha chorava.

Bouvard desamarrou todas as aves. Reanimavam-se progressivamente; mas ninguém sabia as consequências daquilo.

Perante uma observação um pouco desabrida de Pécuchet, o caseiro pegou no ancinho.

— Ponham-se a mexer, raio! Ou rebento-lhes com o canastro!

Eles escapuliram-se.

Que interessava aquilo? O problema estava resolvido; o êxtase depende de uma causa material.

Então, que é a matéria? Que é o Espírito? Donde vem a influência de uma sobre o outro, e reciprocamente?

Para obter informações a este respeito fizeram investigações em Voltaire, em Bossuet, em Fénelon — e retomaram até uma assinatura de uma sala de leitura.

Os mestres antigos eram inacessíveis devido à extensão das obras ou à dificuldade do idioma; mas Jouffroy e Damiron iniciaram-nos na filosofia moderna; e tinham autores para a do século passado.

Bouvard retirava os seus argumentos de La Mettrie, de Locke, de Helvetius; Pécuchet do Sr. Cousin, Thomas Reid e Gérando. O primeiro apegava-se à experiência e, para o segundo, o ideal era tudo. Havia Aristóteles neste e Platão naquele — e discutiam.

— A alma é imaterial — dizia um.

— De modo nenhum! — dizia o outro; — a loucura, o clorofórmio, uma sangria, transtornam-na e, visto que nem sempre pensa, não é uma substância que apenas pense.

— No entanto — objetou Pécuchet — eu tenho em mim algo de superior ao meu corpo e que por vezes o contradiz.

— Um ser no ser? O homo duplex! Com franqueza!

Tendências diferentes revelam motivos opostos. Eis tudo.

— Mas essa qualquer coisa, essa alma, permanece idêntica sob as mudanças do exterior. Portanto, é simples, indivisível e por consequência espiritual!

— Se a alma fosse simples — replicou Bouvard — o recém-nascido havia de se recordar e de imaginar como um adulto! O Pensamento, pelo contrário, acompanha o desenvolvimento do cérebro. Quanto a ser indivisível, o perfume de uma rosa ou o apetite de um lobo, exatamente como um ato volitivo ou uma afirmação, não se cortam em dois.

— Isso não quer dizer nada — disse Pécuchet; — a alma é isenta das qualidades da matéria!

— Aceitas a gravidade? — continuou Bouvard. — Ora, se a matéria pode cair, também pode pensar. Tendo tido um começo, a nossa alma tem que acabar e, dependente dos órgãos, desaparecer com eles.

— Eu defendo que ela é imortal! Deus não pode querer...

— E se Deus não existir?

— Como? — E Pécuchet debitou as três provas cartesianas: — Primo, Deus está compreendido na ideia que dele temos; secundo, a existência é possível; tertio, ser finito, como eu teria uma ideia de infinito?... e, visto que temos esta ideia, ela vem de Deus, portanto Deus existe!

Passou ao testemunho da consciência, à tradição dos povos, à necessidade de um criador. — Quando vejo um relógio...

— Sim, sim! É sabido! Mas onde está o pai do relojoeiro?

— Mas é necessária uma causa!

Bouvard duvidava das causas. — Do fato de um fenômeno suceder a um fenômeno conclui-se que dele deriva. Provem-no!

— Mas o espetáculo do universo denota uma intenção, um plano!

— Por quê? O mal está tão perfeitamente organizado quanto o Bem. O verme que cresce na cabeça do carneiro e o faz morrer equivale como anatomia ao próprio carneiro. As monstruosidades ultrapassam as funções normais. O corpo humano podia ser mais bem constituído. Três quartos do globo são estéreis. A lua, esse lampadário, nem sempre está visível! Julgas o oceano destinado aos navios e a madeira das árvores ao aquecimento das nossas casas?

Pécuchet respondeu: — No entanto, o estômago é feito para digerir, a perna para caminhar, o olho para ver, embora tenhamos dispepsias, fracturas e cataratas. Não há ordem sem uma finalidade! Os efeitos surgem mais cedo ou mais tarde. Tudo depende de leis. Portanto, há causas finais.

Bouvard teve a ideia de que talvez Espinosa lhe fornecesse argumentos, e escreveu a Dumouchel para conseguir a tradução de Saisset.

Dumouchel mandou-lhe um exemplar pertencente ao seu amigo professor Varlot, exilado do Dois de Dezembro.

A Etica assustou-os com os seus axiomas, os seus corolários. Leram apenas as passagens assinaladas com um traço a lápis e compreenderam isto: A substância é o que é em si, por si, sem causa, sem origem. Essa substância é Deus.

Só ele é a Extensão — e a Extensão não tem limites.

Limitá-la com quê?

Mas, embora seja infinita, não é o infinito absoluto; porque contém apenas um gênero de perfeição; e o Absoluto contém-nos a todos.

Muitas vezes interrompiam-se, para refletir melhor.

Pécuchet absorvia pitadas de tabaco e Bouvard estava vermelho de atenção.

— Isto diverte-te?

— Sim, claro! Adiante! — Deus desenvolve-se numa infinidade de atributos, cada um dos quais exprime à sua maneira a infinidade do seu ser. Nós só conhecemos dois: a Extensão e o Pensamento.

Do Pensamento e da Extensão decorrem modos inúmeros, que contêm outros.

Aquele que simultaneamente abarcasse toda a Extensão e todo o Pensamento não encontraria qualquer contingência, nada de acidental — mas uma sequência geométrica de termos, ligados entre si por leis necessárias.

— Ah! Seria belo! — disse Pécuchet.

Portanto, não há liberdade no homem nem em Deus.

— Estás a ouvi-lo! — exclamou Bouvard.

Se Deus tivesse uma vontade, um objetivo, se agisse por uma causa, então tinha uma necessidade, faltar-lhe-ia uma perfeição. Não seria Deus.

Assim, o nosso mundo não passa de um ponto no conjunto das coisas — e o universo é impenetrável ao nosso conhecimento, uma porção de uma infinidade de universos que emitem junto do nosso modificações infinitas. A Extensão envolve o nosso universo, mas está envolvida por Deus, que contém no seu pensamento todos os universos possíveis, e o seu pensamento está igualmente envolvido na sua substância.

Parecia-lhes ir num balão, de noite, com um frio glacial, levados numa corrida sem fim para um abismo sem fundo, e sem nada à sua volta além do inapreensível, do imóvel, do Eterno. Era forte demais. Desistiram.

E, desejando algo de menos rude, compraram o Curso de Filosofia para Uso nas Escolas, do Senhor Guesnier.

O autor interroga-se sobre qual será o melhor método, se o antológico se o psicológico.

O primeiro adequava-se à infância das sociedades, quando o homem dirigia a sua atenção para o mundo exterior. Mas, presentemente que ele a centra em si mesmo, “consideramos o segundo mais científico” — e Bouvard e Pécuchet decidiram-se por ele.

O objetivo da psicologia é estudar os fatos que se passam “no seio do em>; descobrem-se pela observação.

— Observemos! — E durante quinze dias, habitualmente depois do almoço, procuravam na sua consciência, ao acaso, esperando com isso fazer grandes descobertas, e não fizeram nenhuma, o que muito os espantou.

Um fenômeno ocupa o eu, a saber, a ideia. De que natureza é ela? Supôs-se que os objetos se espelham no cérebro e que o cérebro envia essas imagens para o nosso espírito, que nos dá conhecimento deles.

Mas se a ideia é espiritual, como representar a matéria? Daí, cepticismo quanto às percepções externas. Se ela é material, os objetos espirituais não seriam representados? Daí, cepticismo no que respeita às noções internas.

“De resto, cuidado! Esta hipótese levar-nos-ia ao ateísmo!”

porque, como uma imagem é uma coisa finita, não pode representar o infinito.

— No entanto — objetou Bouvard — quando penso numa floresta, numa pessoa, num cão, vejo essa floresta, essa pessoa e esse cão. Portanto, as ideias representam-nos.

E trataram da origem das ideias.

Segundo Locke, há duas, a sensação e a reflexão — e Condillac reduz tudo à sensação.

Mas então a reflexão não terá bases. Ela precisa de um sujeito, de um ser que sinta; e é impotente para nos fornecer as grandes verdades fundamentais: Deus, o mérito e o demérito, o justo, o belo, etc., noções a que chamamos inatas, isto é, anteriores à experiência e universais.

— Se fossem universais, havíamos de tê-las desde que nascemos.

— Quer-se dizer, com esta palavra, disposições para tê-las, e Descartes...

— O teu Descartes patinha! Porque sustenta que o feto as possui e confessa em outro lugar que é de uma maneira implícita.

Pécuchet ficou admirado.

— Onde está isso?

— Em Gérando! — E Bouvard deu-lhe uma palmada na barriga.

— Acaba lá com isso — disse Pécuchet. E depois, falando de Condillac: — Os nossos pensamentos não são metamorfoses da sensação! Ela ocasiona-os, põem-no em ação. Para os pôr em ação é preciso um motor. Porque a matéria, por si mesma, não pode produzir o movimento... e encontrei isso no teu Voltaire! — acrescentou Pécuchet, fazendo-lhe um rasgado cumprimento.

E assim repisavam os mesmos argumentos, cada um desprezando a opinião do outro, sem o convencer da sua.

Mas a Filosofia aumentava a consideração em que se tinham. Recordavam-se apiedadamente das suas preocupações com a agricultura, com a Literatura, com a Política.

Agora, o museu desgostava-os. O que mais desejariam era vender os objetos; e passaram ao capítulo segundo: das faculdades da alma.

Contam-se três, e não mais! A de sentir, a de conhecer, a de querer.

Na faculdade de sentir distingamos a sensibilidade física e a sensibilidade moral.

As sensações físicas classificam-se naturalmente em cinco espécies, conduzidas que são pelos órgãos dos sentidos.

Os fatos da sensibilidade moral, pelo contrário, nada devem ao corpo. — “Que há de comum entre o prazer de Arquimedes ao encontrar as leis da gravidade e a voluptuosidade imunda de Apicius devorando uma cabeça de javali?”

Esta sensibilidade moral tem quatro gêneros; e o seu segundo gênero, “desejos morais”, divide-se em cinco espécies, e os fenômenos do quarto gênero, “afeições”, subdividem-se em outras duas espécies, entre as quais o amor-próprio, “tendência legítima, sem dúvida, mas que quando exagerada toma o nome de egoísmo”.

Na faculdade de conhecer encontra-se a percepção racional, onde se encontram dois movimentos principais e quatro graus.

A Abstração pode apresentar escolhos às inteligências extravagantes.

A memória suscita uma correspondência com o passado, tal como a previsão com o futuro.

A imaginação é, pode-se dizer, uma faculdade especial, sui generis.

Tantas dificuldades para demonstrar coisas insípidas, o tom pedante do autor, a monotonia dos modos de dizer — “Estamos prontos a reconhecê-lo... Longe de nós o pensamento... Interroguemos a nossa consciência” — o elogio sempiterno de Dugalt-Stewart, enfim, todo aquele palavreado os agoniou tanto que, saltando por cima da faculdade de querer, entraram na Lógica.

Ensinou-lhes ela o que é a Análise, a Síntese, a Indução, a Dedução e as causas principais dos nossos erros.

Quase todos vêm do mau uso das palavras.

“O sol se põe, o tempo escurece, o inverno se aproxima”, locuções viciosas e que levariam a crer em entidades pessoais, quando se trata apenas de acontecimentos bem simples! — “Recordo-me de um determinado objeto, de um determinado axioma, de uma determinada verdade” — que ilusão! São as ideias, e de modo nenhum as coisas, que permanecem no eu, e o rigor da linguagem exige: “Recordo-me de determinado ato do meu espírito pelo qual apreendi esse objeto, pelo qual deduzi esse axioma, pelo qual admiti essa verdade.”

Como o termo que designa um acidente não o abarca em todos os seus modos, trataram de usar apenas palavras abstratas — e assim, em vez de dizer: “Vamos dar uma volta, — são horas de jantar, — tenho dores de barriga”, soltavam estas frases: “Um passeio seria salutar, — chegou a hora de absorver alimentos, — sinto uma necessidade de alívio.”

Uma vez senhores do instrumento lógico, passaram em revista os diferentes critérios, a começar pelo do senso comum.

Se o indivíduo nada pode saber, Por que todos os indivíduos haviam de saber mais? O erro, ainda que com cem mil anos de antiguidade, por isso mesmo que é velho não constitui a verdade. A Multidão segue invariavelmente a rotina; pelo contrário, é o pequeno número que conduz ao Progresso.

Será melhor fiarmo-nos no testemunho dos sentidos?

Eles às vezes enganam, e informam sempre apenas sobre a aparência. O fundo escapa-lhes.

A Razão oferece mais garantias, por ser imutável e impessoal — mas para se manifestar tem que incarnar.

Então, a Razão torna-se a minha razão. Uma regra pouco importa, se for falsa. Nada prova que seja justa.

Recomenda-se vigiá-la com os sentidos; mas eles podem tornar as suas trevas mais espessas. De uma sensação confusa será induzida uma lei defeituosa que mais tarde impedirá a visão nítida das coisas.

Resta a moral. É fazer descer Deus ao nível do útil, como se as nossas necessidades fossem a medida do Absoluto!

Quanto à Evidência, negada por um, afirmada por outro, ela é o critério de si mesma. O Sr. Cousin assim o demonstrou.

— Não vejo mais que a Revelação — disse Bouvard. — Mas para acreditar nela há que admitir dois conhecimentos prévios, o do corpo que sentiu, o da inteligência que percebeu, admitir o Senso e a Razão, testemunhos humanos e, por consequência, suspeitos.

Pécuchet refletiu e cruzou Os braços. — Mas vamos cair no abismo assustador do cepticismo.

Segundo Bouvard, ele só assustava os miolos pobres.

— Muito obrigado pelo elogio! — replicou Pécuchet.

— Porém, há fatos indiscutíveis. Podemos atingir a verdade dentro de certos limites.

— Quais? Dois e dois são sempre quatro? O conteúdo é de alguma maneira menor que o continente? Que quer dizer aproximadamente verdadeiro, uma fração de Deus, a parte de uma coisa indivisível?

— Ah, tu não passas de um sofista! — E Pécuchet, humilhado, amuou durante três dias.

Passaram-nos percorrendo os índices de vários volumes. Bouvard sorria de vez em quando — e continuando a conversa: — É que é difícil não duvidar! Assim, no que respeita a Deus, as provas de Descartes, de Kant e de Leibniz não são as mesmas e destroem-se mutuamente. A criação do mundo pelos átomos, ou por um espírito, continua a ser inconcebível.

Sinto-me ao mesmo tempo matéria e pensamento sem deixar de ignorar o que é uma e o que é outro. A impenetrabilidade, a solidez, a gravidade, parecem-me mistérios, tanto quanto a minha alma — e, por maioria de razão, a união da alma e do corpo.

Para os explicar, Leibniz imaginou a sua harmonia, Malebranche a premonição, Cudworth um mediador e Bonriet vê neles um milagre perpétuo, “que é uma asneira, porque um milagre perpétuo deixaria de ser um milagre”.

— Efetivamente! — disse Pécuchet.

E ambos confessaram um ao outro que estavam cansados dos filósofos. Tantos sistemas confundem uma pessoa.

A metafísica não serve para nada. Podemos viver sem ela.

Aliás, os seus embaraços pecuniários aumentavam.

Deviam três barris de vinho a Beljambe, doze quilos de açúcar a Langlois, cento e vinte francos ao alfaiate, sessenta ao sapateiro. A despesa aumentava sempre; e mestre Gouy não pagava.

Foram a casa de Marescot, para ele lhes arranjar dinheiro, fosse com a venda das Ecalles, fosse com uma hipoteca sobre a fazenda, ou alienando a casa, que seria paga em renda vitalícia e cujo usufruto conservariam; meio impraticável, disse Marescot, mas combinava-se um negócio melhor e não deixaria de os prevenir.

Depois, pensaram na sua pobre horta. Bouvard tratou da poda da azinhaga e Pécuchet do decote da espaldeira — e a Marcel competia cavar os canteiros.

Ao fim de um quarto de hora paravam, um fechava o podão, outro pousava a tesoura, e começavam a caminhar devagarinho, Bouvard à sombra das tílias, sem colete, de peito para a frente, braços nus, Pécuchet ao longo do muro, de cabeça baixa, mãos atrás das costas, com a pala do boné virada sobre o pescoço por precaução; e caminhavam assim paralelamente, sem querer ver Marcel, que, descansando junto da cabana, comia um naco de pão.

Naquela meditação, surgiam pensamentos; acercavam-se um do outro, receando perdê-los; e a metafísica regressava.

Regressava a propósito da chuva ou do sol, de uma pedrinha no sapato, de uma flor na relva, a propósito de tudo. Contemplando a chama da vela que ardia, interrogavam-se sobre se a luz está no objeto ou nos nossos olhos. Tal como há estrelas que podem ter desaparecido quando o seu brilho chega até nós, talvez admiremos coisas que não existem.

Tendo encontrado no fundo de um colete um cigarro medicinal Raspai!, desfizeram-no em água e a cânfora girou.

Ali estava, portanto, o movimento na matéria! Um grau superior do movimento provocaria a vida.

Mas se a matéria em movimento bastasse para criar os seres, eles não seriam tão variados. Porque na origem não existiam terras, nem águas, nem homens, nem plantas.

Qual era então essa matéria primordial que nunca se viu, que não é nenhuma das coisas do mundo, e que as produziu a todas?

Às vezes sentiam necessidade de um livro. Dumouchel, cansado de os servir, já não lhes respondia, e eles teimavam no problema, principalmente Pécuchet.

A sua necessidade de verdade tornava-se uma sede ardente.

Movido pelos discursos de Bouvard, abandonava o espiritualismo, voltava a ele para depois o deixar, e exclamava de cabeça entre as mãos: “Oh! A dúvida, a dúvida! Antes queria o nada!”

Bouvard entrevia a insuficiência do materialismo e tentava ficar por aí, declarando, de resto, que aquilo era de enlouquecer.

Começavam raciocínios sobre uma base sólida. Esta desmoronava-se e, de repente, a ideia desaparecia, como uma mosca voa quando queremos agarrá-la.

Nas noites de Inverno, conversavam no museu, ao canto da lareira, contemplando as brasas. O vento que soprava no corredor fazia tremer as vidraças, os volumes negros das árvores oscilavam e a tristeza da noite aumentava a gravidade dos seus pensamentos.

Bouvard, de vez em quando, ia até a ponta da sala e depois regressava. As chamas e os tachos de cobre encostados às paredes lançavam no chão sombras oblíquas; e o São Pedro, visto de perfil, estendia no teto o recorte do seu nariz, semelhante a uma monstruosa trompa de caça.

Tinham dificuldade em circular entre os objetos, e muitas vezes Bouvard, descuidadamente, esbarrava na estátua. Com os seus grandes olhos, a sua beiça pendente e o seu ar de bêbado, também incomodava Pécuchet. Há muito que queriam desfazer-se dela; mas, por negligência, adiavam todos os dias.

Uma noite, no meio de uma discussão, Bouvard bateu com o dedo grande do pé no polegar de São Pedro — e disse, voltando contra ele a sua irritação: — Irrita-me este palerma, vamos pô-lo na rua!

Era difícil pela escada. Abriram a janela e inclinaram-no lentamente sobre o parapeito. Pécuchet, de joelhos, tentou erguer-lhe os calcanhares, enquanto Bouvard lhe fazia peso sobre os ombros. O homenzinho de pedra não se movia; tiveram que recorrer à alabarda como alavanca — e conseguiram por fim estendê-lo na horizontal. Então, depois de o balançarem, mergulhou no vazio, de tiara para a frente — e ouviu-se um ruído surdo; no dia seguinte foram encontrá-lo partido em doze pedaços na antiga cova do composto.

Uma hora depois entrou o notário com uma boa notícia. Uma pessoa da localidade daria adiantadamente mil escudos, mediante uma hipoteca sobre a fazenda; e como eles se regozijavam com o fato, acrescentou: “Perdão! Essa pessoa exige uma cláusula! É que lhe vendam as Écalles por mil e quinhentos francos. O empréstimo será liquidado hoje mesmo. Tenho o dinheiro comigo no cartório.”

A ambos apetecia ceder. Bouvard acabou por responder: — Meu Deus... Seja!

— Combinado! — disse Marescot; e informou-os do nome da pessoa, que era a Sra. Bordin.

— Eu já suspeitava! — exclamou Pécuchet.

Bouvard, humilhado, calou-se.

Ela ou outro qualquer, que importava isso? O principal era livrarem-se de dificuldades.

Recebido o dinheiro (o das Écalles sê-lo-ia mais tarde), pagaram imediatamente todas as contas — e voltavam para casa quando na curva do Mercado o tio Gouy os deteve.

la a casa deles para lhes comunicar uma desgraça. Na noite anterior, o vento deitara abaixo vinte macieiras nos pátios, destruíra a destilaria, arrancara o telhado do celeiro.

Passaram o resto da tarde a verificar os estragos e o dia seguinte com o carpinteiro, o pedreiro e o telhador. As reparações custariam mil e oitocentos francos, pelo menos.

Depois, à noite, apareceu Gouy. Marianne em pessoa acabava de lhe contar a venda das Écalles. Um terreno com um rendimento magnífico, que lhe convinha. muito, que quase não precisava de cultura, o melhor pedaço de toda a fazenda! — e pedia uma diminuição da renda.

Os senhores recusaram-na. O caso foi submetido ao juiz de paz, que decidiu a favor do rendeiro. A perda das Écalles, com o acre calculado a dois mil francos, causava-lhe um prejuízo anual de setenta francos; e não havia dúvidas de que ganharia perante os tribunais.

A fortuna deles estava reduzida. Que fazer? Como conseguiriam viver dentro em breve?

Sentaram-se ambos à mesa, cheios de desânimo. Marcel não percebia nada de cozinha; desta vez o seu jantar ultrapassou todos os outros. A sopa parecia água de lavar louça, o coelho cheirava mal, os feijões estavam crus, os pratos sujos e, à sobremesa, Bouvard estourou, ameaçando-o de lhe partir tudo na cabeça.

— Sejamos filósofos — disse Pécuchet —, um pouco menos de dinheiro, as intrigas de uma mulher, a falta de jeito de um criado, que é isso tudo? Estás excessivamente mergulhado na matéria!

— Mas a verdade é que ela me incomoda — disse Bouvard.

— Eu não admito isso! — continuou Pécuchet.

Lera ultimamente uma análise de Berkeley, e acrescentou: — Eu nego a extensão, o tempo, o espaço, e até a substância! Porque a verdadeira substância é o espírito que apercebe as qualidades.

— Perfeito — disse Bouvard — mas, suprimido o mundo, faltarão provas para a existência de Deus.

Pécuchet protestou, e longamente, apesar da dor de cabeça causada pelo iodeto de potássio, e uma febre permanente contribuía para a sua exaltação. Bouvard, inquietando-se, mandou chamar o médico.

Vaucorbeil receitou xarope de laranja com o iodeto, e para mais tarde banhos de cinábrio.

— Para quê? — replicou Pécuchet. — Mais dia menos dia a forma vai-se. A essência é que nunca fenece!

— Sem dúvida — disse o médico — a matéria é indestrutível! Porém...

— Não, não! Indestrutível é o ser. Esse corpo que está aí à minha frente, o seu, doutor, impede-me de conhecer a sua pessoa, por assim dizer não passa de uma roupagem, ou antes, de uma máscara.

Vaucorbeil julgou-o louco. — Boa-noite! Trate a sua máscara!

Pécuchet não parou. Arranjou uma introdução à filosofia hegeliana e quis explicá-la a Bouvard.

— Tudo o que é racional é real. E nada é real além da ideia. As leis do Espírito são as leis do universo; a razão do homem é idêntica à de Deus.

Bouvard fingia compreender.

— Portanto, o Absoluto é ao mesmo tempo o sujeito e o objeto, a unidade onde convergem todas as diferenças.

Assim estão resolvidas todas as contradições. A sombra permite a luz, o frio misturado com o quente produz a temperatura, o organismo só se mantém graças à destruição do organismo; por toda a parte, um princípio que divide e um princípio que encadeia.

Estavam no cabeço da latada; e o prior passou ao longo do gradeamento, com o breviário na mão.

Pécuchet pediu-lhe que entrasse, para concluir diante dele a exposição de Hegel e um pouco para ver o que ele diria.

O homem da sotaina sentou-se junto deles; e Pécuchet falou do cristianismo.

— Nenhuma religião estabeleceu tão bem esta verdade: “A Natureza não passa de um momento da ideia!”

— um momento da ideia? — murmurou o padre, estupefato.

— Claro! Deus, ao tomar um invólucro visível, mostrou a sua união consubstancial com ela.

— Com a Natureza? Oh, Oh!

— Com o seu falecimento, prestou testemunho da essência da morte; portanto, a morte estava nele, fazia, faz parte de Deus.

O eclesiástico fez um ar de descontentamento. — Nada de blasfêmias! Foi pela salvação do gênero humano que ele suportou os sofrimentos...

— Engano! Considera-se a morte no indivíduo, onde ela é sem dúvida um mal, mas relativamente às coisas é diferente. Não separe o espírito da matéria!

— No entanto, meu caro senhor, antes da criação...

— Não houve criação. Ela sempre existiu. De outro modo, seria um ser novo acrescentando-se ao pensamento divino; o que é absurdo.

O padre levantou-se; tinha coisas a tratar fora dali.

— Orgulho-me de lhe ter dado uma coça! — disse Pécuchet. Mais uma palavra. Visto que a existência do mundo não passa de uma passagem contínua da vida para a morte e da morte para a vida, em vez de tudo ser, nada é: tudo devém. Compreendes?

— Sim, percebo, ou antes, não! — O idealismo acabava por exasperar Bouvard. — Não quero mais! O famoso cogito enfastia-me. Tomam-se as ideias das coisas pelas próprias coisas. Explica-se o que muito pouco se entende, através de palavras que não se entendem de todo! Substância, extensão, força, matéria e alma são abstrações, imaginações.

Quanto a Deus, é impossível saber como ele é, ou sequer se é! Outrora era ele que causava o vento, o raio, as revoluções. Presentemente, está a encolher. De resto, não vejo a sua utilidade.

— E a moral em tudo isso?

— Ah, pior para ela!

“Efetivamente ela não tem bases”, disse Pécuchet de si para si.

E ficou silencioso, encurralado num beco sem saída, consequência das premissas que ele mesmo tinha colocado.

Foi uma surpresa, foi esmagador.

Bouvard já nem sequer acreditava na matéria.

A certeza de que nada existe (por muito deplorável que seja) nem por isso deixa de ser uma certeza. Poucas pessoas são capazes de a ter. Esta transcendência inspirou-lhes orgulho, e bem gostavam de o ostentar. Surgiu uma ocasião.

Uma manhã, quando iam comprar tabaco, viram um ajuntamento diante da porta de Langlois. Rodeavam a carruagem de Falaise, e falava-se de Touache, um condenado às galés que vagabundeava pela região. O condutor o tinha encontrado na Cruz Verde entre dois guardas, e os habitantes de Chavignolles soltaram um suspiro de alívio.

Girbal e o capitão ficaram na Praça; depois chegou o juiz de paz, curioso de informações, e o Sr. Marescot com um gorro de veludo e pantufas de carneira.

Langlois convidou-os a honrarem a loja com a sua presença. Lá estariam mais à vontade; e, apesar dos fregueses e do ruído da sineta, os senhores continuaram a discutir as proezas de Touache.

— Meus Deus — disse Bouvard — realmente ele tinha maus instintos!

— Vencem-se com a virtude — replicou o notário.

— Mas se não temos virtude? — E Bouvard negou positivamente o livre-arbítrio.

— No entanto — disse o capitão — eu posso fazer o que quero! Sou livre, por exemplo... de mexer a perna.

— Não, meu caro senhor, porque tem um motivo para a mexer!

O capitão procurou uma resposta e não a encontrou... mas Girbal disparou esta seta: — Um republicano falando contra a liberdade! Que engraçado!

— Dá vontade de rir! — disse Langlois.

Bouvard interpelou-o: — Por que não dá sua fortuna aos pobres?

O merceeiro, com um olhar inquieto, percorreu toda a sua loja.

— Olha, não sou estúpido! Guardo-a para mim!

— Se o senhor fosse São Vicente de Paulo não agiria assim, porque teria o caráter dele. Mas obedece ao seu. Portanto, não é livre!

— É uma trapaça — respondeu a assembleia em coro.

Bouvard não vacilou; e, apontando para a balança em cima do balcão, disse: — Ela irá manter-se inerte enquanto um dos pratos estiver vazio. É assim a vontade; e a oscilação da balança entre dois pesos que parecem iguais é a imagem do trabalho do nosso espírito quando ele delibera sobre os motivos, até o momento em que o mais forte vence e o determina.

— Nada disso — disse Girbal — vem em favor de Touache, e não o impede de ser um tipo bem vicioso.

Pécuchet tomou a palavra: — Os vícios são propriedades da Natureza, como as inundações, as tempestades.

O notário interrompeu-o; e, erguendo-se a cada palavra na ponta dos pés, afirmou: — Acho o vosso sistema de uma imoralidade completa.

Dá livre curso a todos os desregramentos, desculpa os crimes, absolve os culpados.

— Perfeitamente — disse Bouvard. — O infeliz que segue os seus apetites está no seu direito, tal como o homem honesto que ouve a razão.

— Não defenda os monstros!

— Por que monstros? Quando nasce um cego, um idiota, um homicida, isso parece-nos desordem, como se conhecêssemos a ordem, como se a natureza agisse para um fim!

— Então contesta a Providência?

— Sim! Contesto!

— Ora veja a História! — exclamou Pécuchet. — Lembre-se dos assassinatos de reis, das chacinas de povos, das dissensões nas famílias, dos desgostos de cada um.

— E ao mesmo tempo — acrescentou Bouvard, porque eles excitavam-se um ao outro — essa Providência cuida dos passarinhos e faz recuar as patas dos caranguejos. Ah!

Se entende por Providência uma lei que regula tudo, adeus, minhas encomendas!

— No entanto, meu caro senhor — disse o notário — existem princípios!

— O que o senhor está para aí a dizer! Uma ciência, segundo Condillac, é tanto melhor quanto menos precisa deles! Os princípios nada mais fazem que resumir os conhecimentos adquiridos e levam-nos para essas noções que precisamente são discutíveis.

— Já, como nós — continuou Pécuchet — perscrutaram, pesquisaram os arcanos da metafísica?

— É verdade, meus senhores, isso mesmo!

E a assembleia dispersou-se.

Mas Coulon puxou-os de parte e disse-lhes num tom paternal que era certo que não era devoto, e que até detestava os jesuítas, mas que não ia tão longe como eles! Ah, não, é claro; — e, na esquina da praça, passaram diante do capitão, que reacendia o cachimbo resmungando: “No entanto, eu faço o que quero, caramba!”

Bouvard e Pécuchet proferiram noutras ocasiões os seus abomináveis paradoxos. Punham em dúvida a probidade dos homens, a castidade das mulheres, a inteligência do governo, o bom-senso do povo, enfim, minavam as bases.

Foureau insurgiu-se contra isso e ameaçou-os com a prisão se continuassem com tais discursos.

A evidência da superioridade deles feria. Como sustentavam teses imorais, seguia-se que eram imorais; e inventaram-se calúnias.

Então desenvolveu-se no seu espírito uma faculdade lamentável, a de verem a estupidez e de já não a tolerarem.

Entristeciam-nos coisas insignificantes: os anúncios dos jornais, o perfil de um burguês, uma reflexão tola ouvida por acaso.

Pensando no que se dizia na aldeia e verificando que até nos antípodas havia outros Coulon, outros Marescot, outros Foureau, sentiam sobre eles como que o peso de toda a terra.

Deixaram de sair, já não recebiam ninguém.

Uma tarde, travou-se no pátio um diálogo entre Marcel e um senhor com um chapéu de abas largas e óculos escuros. Era o acadêmico Larsonneur, que não deixou de observar que havia uma cortina entreaberta e portas que se fechavam. A sua diligência era uma tentativa de reconciliação e foi-se embora furioso, encarregando o criado de dizer aos patrões que os considerava uns grosseirões.

Bouvard e Pécuchet não se preocuparam com isso.

O mundo tinha cada vez menor importância — e entreviam-no numa nuvem que lhes descia dos cérebros para os olhos.

De resto, não seria um mau sonho, um ilusão? Talvez, no fim das contas, as prosperidades e as desgraças se equilibrem... Mas o bem da espécie não consola o indivíduo E que me importam os outros! — dizia Pécuchet.

Seu desespero afligia Bouvard. Fora ele que o levara até ali; e a deterioração da casa avivava-lhes o desgosto com irritações quotidianas.

Para se animar, exortavam-se mutuamente, prescreviam tarefas um ao outro, e depressa voltavam a cair numa preguiça mais forte, num desânimo profundo.

No fim das refeições ficavam-se de cotovelos na mesa, gemendo com um ar lúgubre; Marcel arregalava os olhos com aquilo, e depois voltava para a cozinha, onde, solitariamente, enchia a barriga.

A meio do Verão receberam um bilhete de participação do casamento de Dumouchel com a Sra. Olympe-Zulma Poulet, viúva.

Que Deus o abençoasse! E recordaram-se do tempo em que eram felizes. Por que já não acompanhavam os ceifeiros? Que era feito daqueles dias em que entravam pelas fazendas procurando antiguidades em toda a parte? Nada agora podia proporcionar aquelas horas tão doces ocupadas na destilaria ou na Literatura. Um abismo os separava delas.

Algo acontecera de irrevogável.


Quiseram dar um passeio pelos campos como dantes, foram até muito longe, perderam-se. No céu eriçavam-se uma nuvens pequenas, o vento balançava as campainhas das aveias, ao longo de um prado murmurava um riacho, quando de repente foram retidos por um cheiro infecto; e viram em cima das pedras, entre juncos, o cadáver de um cão.

Os quatro membros estavam ressequidos. O rictus do focinho revelava debaixo dos beiços azulados presas de marfim; em lugar da barriga havia um amontoado de cor terrosa, e que parecia palpitar, de tal modo fervilhava de vermes que se agitavam, batidos pelos sol, sob o zumbido das moscas, naquele intolerável cheiro, um cheiro feroz e como que devorador.

Entretanto, Bouvard franzia a testa e seus olhos se umedeceram de lágrimas. — Pécuchet disse estoicamente: — Um dia seremos como aquilo!

Tinham sido assaltados pela ideia da morte. Conversaram sobre isso no regresso.

Afinal ela não existe. As pessoas vão-se no orvalho, na brisa, nas estrelas. Tornam-se qualquer coisa da seiva das árvores, do brilho das pedras finas, da plumagem das aves. Devolvem à Natureza o que ela lhes emprestou e o Nada que está diante de nós nada tem de mais horrível que o nada que se encontra atrás.

Tentavam imaginá-la sob a forma de uma noite intensa, de um buraco sem fundo, de um desfalecimento constante.

Qualquer coisa, fosse o que fosse, era melhor que aquela existência monótona, absurda e sem esperança.

Recapitularam as suas necessidades insatisfeitas. Bouvard sempre desejara cavalos, carruagens, grandes reservas de borgonha e belas mulheres complacentes numa casa esplêndida. A ambição de Pécuchet era o saber filosófico.

Ora, o mais vasto dos problemas, o que contém todos os outros, pode resolver-se num só minuto. Então quando chegaria ela?

— Mais vale acabar com isto imediatamente.

— Como quiseres — disse Bouvard.

E examinaram a questão do suicídio.

Onde está o mal de rejeitar um fardo que nos esmaga?

E de cometer uma ação que não prejudica ninguém? Se ofendesse a Deus, teríamos nós esse poder? Não é uma cobardia, embora digam que sim; — e é bela a insolência de escarnecer, até em prejuízo próprio, do que os homens mais estimam.

Deliberaram acerca do gênero de morte.

O veneno faz sofrer. Cortar o pescoço exige muita coragem. Com a asfixia falha-se muitas vezes.

Por fim, Pécuchet montou no celeiro dois cabos da ginástica. Depois, amarrando-os à mesma viga do teto, deixou cair um nó corredio e pôs-lhe por baixo duas cadeiras para chegarem às cordas.

Este processo ficou decidido.

Interrogavam-se sobre a impressão que aquilo iria causar no distrito, para onde iriam depois a biblioteca, as papeladas, as coleções. O pensamento da morte provocava-lhes ternura por si mesmos. No entanto, não abandonavam o seu projeto e, de tanto falar dele, acostumaram-se.

Na noite de 25 de Dezembro, entre as dez e as onze horas, estavam refletindo no museu, vestidos de maneira diferente. Bouvard usava um guarda-pó por cima do colete de malha — e Pécuchet havia três meses que não tirava o hábito de monge, por economia.

Como tinham muita fome (porque Marcel, que saíra de madrugada, não reaparecera), Bouvard achou higiênico beber uma garrafinha de aguardente, e Pécuchet tomar chá.

Ao levantar a chaleira espalhou água pelo soalho.

— Desajeitado! — exclamou Bouvard.

Depois, achando a infusão medíocre, quis reforçá-la com mais duas colheradas.

— Ficará execrável — disse Pécuchet.

— De modo nenhum!

E com cada um a puxar a caixa para si, caiu o tabuleiro; uma das xícaras partiu-se, a última do belo serviço de porcelana.

Bouvard empalideceu. — Continua! Destrói! Não te incomodes!

— Que grande infelicidade, realmente!

— Sim! Uma infelicidade! Herdei-a do meu pai!

— Natural — acrescentou Pécuchet, escarninho.

— Ah! Agora insultas-me!

— Não, mas canso-te! Confessa!

E Pécuchet foi tomado de cólera, ou antes, de demência. Bouvard também. Gritavam os dois ao mesmo tempo, um irritado pela fome, o outro pelo álcool. A garganta de Pécuchet já só emitia um estertor.

— Uma vida assim é infernal; prefiro a morte. Adeus.

Pegou na luz, virou costas, bateu com a porta.

Bouvard, no meio das trevas, teve dificuldades em abri-la, correu atrás dele, chegou ao celeiro.

A vela estava no chão e Pécuchet de p é em cima de uma das cadeiras com a corda na mão.

O espírito de imitação dominou Bouvard: — Espera por mim! — E estava a subir para a outra cadeira quando, interrompendo-se de repente, disse: — Mas... não fizemos o nosso testamento!

— Olha! Tens razão!

Tinham o peito inchado de soluços. Chegaram-se ao janelo para respirar.

O ar era frio, e numerosos astros brilhavam no céu, negro como tinta. A brancura da neve que cobria a terra perdia-se nas brumas do horizonte.

Distinguiram umas luzinhas rente ao chão; e, aumentando, aproximando-se, iam todas para o lado da igreja.

Foram arrastados para lá pela curiosidade.

Era a missa da meia-noite. Aquelas luzes eram as das lanternas dos pastores. Alguns, debaixo do alpendre, sacudiam as capas.

O serpentão roncava, o incenso fumegava. Copos suspensos ao longo da nave desenhavam três coroas de luzes multicores — e no fim da perspectiva, de ambos os lados do tabernáculo, os círios gigantes erguiam chamas vermelhas. Por cima das cabeças da multidão e dos toucados das mulheres, para além dos cantores, distinguia-se o padre na sua casula de ouro; à sua voz aguda respondiam as vozes fortes dos homens que enchiam a tribuna, e a abóbada de madeira tremia sobre os arcos de pedra. As paredes estavam decoradas com imagens que representavam o caminho da cruz. No meio do coro, diante do altar, estava deitado um cordeiro, com as patas debaixo da barriga, de orelhas esticadas.

A temperatura morna produziu neles um singular bem-estar, e os seus pensamentos, ainda agora tempestuosos, tornavam-se suaves, como vagas que se pacificam.

Escutaram o Evangelho e o Credo, observavam os movimentos do padre. Entretanto os velhos, os jovens, as mendigas esfarrapadas, as caseiras com as suas altas toucas, os rapagões robustos de louras suíças, todos rezavam, absorvidos na mesma alegria profunda; e contemplavam sobre a palha de um estábulo o corpo do Deus-Menino que irradiava como um sol. Esta fé dos outros tocava Bouvard, apesar da sua razão, e Pécuchet, apesar da dureza do seu coração.

Fez-se um silêncio; todas as costas se curvaram — e ao tilintar de uma sineta o cordeirinho baliu.

A hóstia foi mostrada pelo padre com os dois braços estendidos, o mais alto possível. Então estalou um canto de alegria que convidava as pessoas a irem reclinar-se aos pés do Rei dos Anjos. Bouvard e Pécuchet, involuntariamente, misturaram-se com elas; e sentiam uma espécie de aurora erguer-se nas suas almas.


IX

Marcel reapareceu no dia seguinte às três horas, de rosto esverdeado, olhos vermelhos, um galo na testa, calças rasgadas, fedendo a aguardente, imundo.

Segundo o seu costume anual, estivera a seis léguas dali, perto de Iqueuville, a passar a noite em casa de um amigo; e gaguejando mais do que nunca, chorando, querendo bater em si próprio, pedia perdão como se tivesse cometido um crime. Os patrões concederam. Uma calma singular fazia-os tender para a indulgência.

A neve derretera de repente — e passeavam pela horta, aspirando o ar morno, felizes de viver.

Teria sido apenas o acaso que os desviara da morte?

Bouvard sentia-se enternecido. Pécuchet recordou-se da sua primeira comunhão; e, plenos de gratidão à Força, à Causa de que dependiam, ocorreu-lhes a ideia de fazerem leituras piedosas.

O Evangelho dilatou-lhes a alma, deslumbrou-os como um sol. Avistavam Jesus, de pé na montanha, de braço erguido, e a multidão escutando-o embaixo; ou então na beira do Lago, entre os Apóstolos que puxam as redes; e depois montado na burrinha, no clamor dos aleluias, com os cabelos arejados pelas palmas frementes; e por fim no alto da cruz, inclinando a cabeça, de onde cai eternamente um orvalho sobre o mundo. O que os conquistou, o que os deleitava, era a ternura pelos humildes, a defesa dos pobres, a exaltação dos oprimidos. E naquele livro onde o céu se desdobra nada havia de teologal; no meio de tantos preceitos, nem um dogma; nenhuma exigência, além da pureza do coração.

Quanto aos milagres, a razão não se surpreendeu com eles; conheciam-nos desde a infância. A elevação de São João arrebatou Pécuchet — e predispô-lo a melhor compreender a Imitação.

Aqui já não havia parábolas, flores, aves — mas lamentações, uma retração da alma sobre si mesma. Bouvard entristeceu-se ao folhear estas páginas, que parecem escritas em tempo de bruma, ao fundo de um claustro, entre um campanário e um túmulo. A nossa vida mortal surge ali tão lamentável que, esquecendo-a, temos de virar-nos para Deus; e os dois pobres homens, depois de todas as suas decepções, sentiam a necessidade de ser simples, de amar qualquer coisa, de descansar o espírito.

Leram o Eclesiastes, Isaías, Jeremias.

Mas a Bíblia assustava-os com os seus profetas de voz de leão, o estrondo do trovão nos céus, todos os soluços da Geena, e o seu Deus dispersando os impérios, como o vento faz com as nuvens.

Liam isto ao domingo, à hora das vésperas, enquanto o sino retinia.

Um dia foram à missa e voltaram lá mais vezes. Era uma distração ao fim da semana. O conde e a condessa de Faverges cumprimentaram-nos de longe, o que foi notado.

O juiz de paz disse-lhes, piscando o olho: — Perfeito! Aprovo-os. — Todas as burguesas passaram a mandar-lhes o folar.

O padre Jeufroy fez-lhes uma visita; eles pagaram-na, e passaram a frequentar-se; e o padre não falava de religião.

Ficaram espantados com esta reserva; tanto que Pécuchet, num tom indiferente, lhe perguntou o que havia de fazer para obter a Fé.

— Primeiro, pratique.

Puseram-se a praticar, um com esperança, o outro por desafio, Bouvard convencido de que nunca seria um devoto.

Durante um mês seguiu regularmente todos os ofícios, mas, ao contrário de Pécuchet, não quis sujeitar-se à abstinência.

Seria uma medida de higiene? Bem sabemos o que vale a Higiene! Uma simples conveniência? Abaixo as conveniências! Um sinal de submissão à Igreja? Também isso não lhe interessava! Em suma, declarava aquela regra absurda, farisaica e contrária ao espírito do Evangelho.

Nas sextas-feiras santas dos outros anos comiam o que Germaine lhes servia.

Mas, desta vez, Bouvard encomendara um bife. Sentou-se, cortou a carne; e Marcel contemplava-o escandalizado, enquanto Pécuchet tirava gravemente a pele da sua posta de bacalhau.

Bouvard continuou com o garfo numa mão e a faca na outra. Decidindo-se por fim, levou um bocado aos lábios.

De repente as mãos tremeram-lhe, o gordo semblante empalideceu, a cabeça reclinava-se.

— Estás mal?

— Não!... Mas... — e fez uma confissão. Por força da sua educação (era mais forte do que ele) não podia comer carne naquele dia, por medo de morrer.

Pécuchet, sem abusar da sua vitória, aproveitou para viver à sua maneira. Uma noite regressou com o rosto marcado por uma alegria grave e, deixando cair a frase, disse que acabava de se confessar.

Então discutiram a importância da confissão.

Bouvard admitia a dos primeiros cristãos, que se fazia em público: a moderna é fácil demais. No entanto, não negava que aquele inquérito sobre nós mesmos fosse um elemento de progresso, um fermento de moralidade.

Pécuchet, desejoso de perfeição, procurou os seus vícios.

Os ímpetos de orgulho há muito tinham desaparecido.

O seu gosto pelo trabalho isentava-o da preguiça. Quanto à gula, ninguém era mais sóbrio. Às vezes era arrebatado pelas cóleras. Jurou a si mesmo não mais as ter.

Depois, era preciso adquirir as virtudes, a começar pela Humildade — isto é, julgar-se incapaz de qualquer mérito, indigno da mínima recompensa, imolar o espírito e situar-se de tal modo embaixo que fosse calcado aos pés como a lama dos caminhos. Estava ainda longe dessas disposições.

Outra virtude lhe faltava: a castidade — porque interiormente tinha saudades de Mélie, e o desenho a pastel da dama com o vestido Luís XV embaraçava-o com o seu decote.

Fechou-o num armário, redobrou de pudor até o ponto de recear olhar para si mesmo, e dormia de ceroulas.

Tantos cuidados com a Luxúria desenvolveram-na. Principalmente de manhã, tinha que travar grandes combates — como os tiveram São Paulo, São Bento e São Jerônimo, numa idade muito avançada. Depois deles, recorriam a penitências furiosas. A dor é uma expiação, um remédio e um meio, uma homenagem a Jesus Cristo. Todo o amor exige sacrifícios — e nenhum mais penoso que o do nosso corpo!

Para se mortificar, Pécuchet suprimiu o cálice depois das refeições, limitou-se a quatro pitadas durante o dia, nos grandes frios já não punha o boné.

Um dia, Bouvard, que estava a atar a vinha, encostou uma escada à parede do terraço junto da casa — e sem querer encontrou-se numa posição em que via o que se passava no quarto de Pécuchet.

O amigo, nu até a barriga, açoitava brandamente os ombros com as disciplinas dos frades; depois, entusiasmando-se, tirou os calções, açoitou as nádegas e caiu numa cadeira, sem fôlego.

Bouvard ficou perturbado como ao descobrir um mistério que não se deve surpreender.

Já havia algum tempo que notava mais limpidez nas vidraças, menos buracos nos guardanapos, uma alimentação melhor — mudanças que se deviam à intervenção de Reine, a criada do Sr. prior.

Misturando as coisas da igreja com as da cozinha, forte como um moço de lavoura e dedicada embora pouco respeitosa, introduzia-se nas casas, dava conselhos, fazia-se senhora. Pécuchet confiava absolutamente na sua experiência.

Uma vez ela trouxe-lhe um indivíduo obeso, de olhinhos à chinesa, nariz em bico de abutre. Era o Sr. Goutman, negociante de artigos de piedade; desencaixotou alguns, metidos em caixas, debaixo do telheiro; cruzes, medalhas e terços de todas as dimensões, candelabros para oratórios, altares portáteis, ramos de lantejoulas — e sagrados-corações de papelão azul, são-josés de barba ruiva, calvários de porcelana. Pécuchet cobiçou-os. Só o preço o retinha.

Goutman não pedia dinheiro. Preferia as trocas e, quando subiu ao museu, ofereceu pelos ferros antigos e todos os chumbos uma certa quantidade das suas mercadorias.

Pareceram estas hediondas a Bouvard. Mas o olhar de Pécuchet, as instâncias de Reine e a tagarelice do vendedor acabaram por convencê-lo. Quando o viu tão indulgente, Goutman quis também a alabarda; Bouvard, cansado de demonstrar como se manobrava, entregou-a. Feita a estimativa total, os cavalheiros deviam ainda cem francos. Lá se arranjaram através de quatro promissórias a três meses de prazo — e felicitaram-se por ter comprado tão barato.

As suas aquisições foram distribuídas por todas as divisões. Um presépio cheio de feno e uma catedral de cortiça decoraram o museu. Na chaminé de Pécuchet passou a estar um São João Baptista de cera, ao longo do corredor retratos das glórias episcopais e, ao fundo da escada, debaixo de um candeeiro de correntinhas, uma Nossa Senhora de manto azul e coroada de estrelas. Marcel limpava aqueles esplendores não imaginando no paraíso algo de mais belo.

Que pena o São Pedro se ter partido, como ficaria bem no vestíbulo! Pécuchet parava às vezes diante da antiga fossa do composto, onde se reconhecia a tiara, uma sandália, um bocado de orelha, soltava suspiros e depois continuava a jardinar; porque juntava agora os trabalhos manuais aos exercícios religiosos — e cavava a terra vestido com o hábito de monge, comparando-se a São Bruno. Este disfarce podia ser um sacrilégio; renunciou a ele.

Mas estava a ficar com o tipo eclesiástico, sem dúvida devido ao convívio com o prior. Tinha o mesmo sorriso, a mesma voz, e com um ar friorento enfiava como ele as duas mãos nas mangas até os pulsos. Chegou um dia em que o canto do galo o importunou; as rosas aborreciam-no; já não saía, ou lançava sobre o campo olhares ariscos.

Bouvard deixou-se levar ao mês d e Maria. A s crianças que cantavam hinos, os ramos de lilases, as grinaldas de verdura tinham-lhe dado como que a sensação de uma juventude imperecível. Deus manifestava-se ao seu coração pela forma dos ninhos, pela clareza das fontes, pelo sol benfazejo; e a devoção do seu amigo parecia-lhe extravagante, fastidiosa.

— Por que gemes durante a refeição?

— Devemos comer gemendo — respondeu Pécuchet; — porque o Homem perdeu por esta via a sua inocência —, frase que lera no Manual do Seminarista, dois volumes in-12 que pedira emprestados a Jeufroy. E bebia água de La Salette, entregava-se à porta fechada a orações jaculatórias, esperava entrar na confraria de São Francisco.

Para obter o dom da perseverança, resolveu fazer uma peregrinação a Nossa Senhora.

A escolha das localidades embaraçou-o. Seria a Nossa Senhora de Fourvieres, de Chartres, de Embrun, de Marselha ou de Auray? A da Délivrande, mais próxima, também era conveniente. — Vais me acompanhar!

— Vou fazer figura de parvo — disse Bouvard.

A verdade é que podia voltar de lá crente, não se recusava a sê-lo, e cedeu por complacência.

As peregrinações devem realizar-se a pé. Mas quarenta e três quilômetros seria duro; e, como as carruagens não eram adequadas à meditação, alugaram um velho cabriolé, que depois de doze horas de estrada os deixou diante da estalagem.

Ficaram num quarto de duas camas, com duas cômodas, em cima das quais estavam dois potes de água em pequenas bacias ovais, e o dono da casa informou-os de que era “O quarto dos capuchinhos”. No tempo do Terror tinham escondido ali a senhora da Délivrande com tantos cuidados que os bons Padres ali diziam missa clandestinamente.

Isto deu prazer a Pécuchet e leu em voz alta uma nota sobre a capela, que trouxera lá de baixo, da cozinha.

Foi fundada em princípios do século II por São Reinoberto, primeiro bispo de Lisieux, ou por São Ranoberto, que vivera no século VII, ou por Roberto o Magnífico, em meados do século XI. Os dinamarqueses, os normandos e sobretudo os protestantes a incendiaram e saquearam em diversas épocas.

Por volta de 1112, a estátua primitiva foi descoberta por um carneiro, que, batendo com o pé numa moita, indicou o local onde ela estava — e nesse local o conde Balduíno erigiu um santuário.

Os seus milagres são inúmeros: — Um mercador de Bayeux cativo dos Sarracenos invoca-a, e os seus ferros quebram-se e foge. — Um avarento descobre no celeiro uma quantidade de ratos, chama-a em seu socorro e os ratos afastam-se. — O contato de uma medalha que lhe roçou a efígie fez arrepender-se no seu leito de morte um velho materialista de Versailles. — Devolveu a palavra ao senhor Adeline, que a perdera por ter blasfemado; e, graças à sua proteção, o Sr. e a Sra. de Becqueville tiveram forças bastantes para viver castamente no estado de casados.

Citam-se entre aqueles que ela curou de doenças irremediáveis Mlle Palfresne, Anne Lorieux, Marie Duchemin, François Dufai e a Sra. de Jumillac, d'Osseville em solteira.

Personagens consideráveis a visitaram: Luís XI, Luís XIII, duas filhas de Gastão de Orleans, o cardeal Wiseman, Samirrhi, patriarca de Antioquia, Mons. Véroles, vigário apostólico da Manchúria; e o arcebispo de Quélen veio agradecer-lhe a conversão do príncipe de Talleyrand.

— Poderá converter-te a ti também! — disse Pécuchet.

Bouvard, já deitado, soltou uma espécie de grunhido e adormeceu completamente.

No dia seguinte, às seis horas, entravam na capela.

Estavam a construir outra; panos e tábuas estorvavam a nave, e o monumento, de estilo rococó, desagradou a Bouvard, sobretudo o altar de mármore vermelho, com as suas pilastras coríntias.

A estátua miraculosa, num nicho à esquerda do coro, está envolvida num manto com lantejoulas. Apareceu o sacristão com uma vela para cada um deles. Espetou-as numa espécie de grade por cima da balaustrada, pediu três francos, fez uma reverência e desapareceu.

Em seguida contemplaram os ex-votos.

Inscrições e m placas testemunham o reconhecimento dos fiéis. Podem admirar-se duas espadas em aspa oferecidas por um antigo aluno da Escola Politécnica, ramos de noivas, medalhas militares, corações de prata e, num canto ao nível do chão, uma floresta de muletas.

Da sacristia saiu um padre com o santo cibório.

Depois de permanecer alguns minutos ao fundo do altar, subiu os três degraus, disse o Oremus, o Introito e o Kyrie, que o menino de coro, de joelhos, recitou de um só fôlego.

Os assistentes eram raros, doze ou quinze mulheres idosas. Ouvia-se o roçar dos terços e o ruído de um martelo batendo nas pedras. Pécuchet, inclinado sobre o genuflexório, respondia aos Améns. Durante a elevação suplicou a Nossa Senhora que lhe enviasse uma fé constante e indestrutível.

Bouvard, num cadeirão ao seu lado, pegou no Eucológio dele e deteve-se nas litanias da Virgem.

“Puríssima, castíssima, venerável, amável — poderosa, clemente — torre de marfim, casa de ouro, porta da manhã”, estas palavras de adoração, estas hipérboles arrebataram-no para aquela que é celebrada com tantas homenagens.

Sonhou-a como a representam nos quadros de igreja, sobre um monte de nuvens, com querubins a seus pés, o Menino Jesus ao peito — mãe das ternuras que todas as aflições da terra reclamam, ideal da Mulher transportada para o Céu; porque, saído das suas entranhas, o Homem exalta o seu amor e só aspira a repousar sobre o seu coração.

Acabada a missa, percorreram as lojas encostadas à parede do lado da Praça. Ali se veem imagens, caldeirinhas de água-benta, urnas com filetes de ouro, cristas de casca de coco, terços de marfim; e o sol, ao bater nos vidros dos quadros, cegava os olhos, fazia ressaltar a brutalidade das pinturas, a fealdade dos desenhos. Bouvard, que em sua casa achava aquelas coisas abomináveis, foi indulgente com elas. Comprou uma pequena Virgem de gesso azul. Pécuchet, como recordação, contentou-se com um rosário.

Os dois comerciantes gritavam: — “Vamos! Vamos! Por cinco francos, por sessenta cêntimos, por dois soldos! Não recusem Nossa Senhora!”

O s peregrinos vagueavam sem escolher nada. Ouviram-se observações descorteses.

— Que é que querem aqueles passarões?

— Se calhar são turcos!

— Ou protestantes!

Uma menina alta puxou Pécuchet pela sobrecasaca; um velho de óculos pôs-lhe a mão no ombro; todos berravam ao mesmo tempo; depois, abandonando as suas barracas, vieram rodeá-los, redobravam de solicitações e injúrias.

Bouvard não aguentou mais. — Deixem-nos em paz, que raio! — A turba afastou-se.

Mas uma mulher gorda seguiu-os por algum tempo pela Praça e gritou que haviam de arrepender-se.

Ao regressar à estalagem encontraram Goutman no café.

O seu negócio chamava-o àquelas paragens — e conversava com um indivíduo que examinava listas em cima da mesa, em frente deles.

Aquele indivíduo tinha um boné de couro, umas calças muito largas, a tez avermelhada e cintura fina; apesar dos cabelos brancos, parecia ao mesmo tempo um oficial reformado e um velho cabotino.

De vez em quando soltava uma praga e depois, a uma palavra de Goutman dita em voz mais baixa, acalmava-se imediatamente e passava a outro papel.

Bouvard, que o observava, ao fim de um quarto de hora aproximou-se dele.

— O senhor é Barberou, não é?

— Bouvard! — exclamou o homem do boné — e abraçaram-se.

Barberou conhecera no últimos vinte anos fortunas diversas. Gerente de um jornal, agente de seguros, diretor de um parque de ostras; “vou lhe contar isso”; regressado por fim ao seu primeiro ofício, era viajante de uma casa de Bordéus, e Goutman, que “fazia a diocese”, colocava-lhe vinhos em casa dos eclesiásticos — “mas desculpe; daqui a um minuto estarei à sua disposição!”

Voltara às suas contas quando, dando um salto no banco, exclamou: — Como, dois mil?

— Claro!

— Ah, esta é forte!

— Acha?

— Acho que eu próprio estive com Hérambert —, replicou Barberou, furioso. — A factura tem quatro mil; nada de brincadeiras!

O vendedor não perdeu o sangue-frio. — Muito bem; liberta-o da sua dívida! E depois?

Barberou ergueu-se e, a avaliar pelo seu rosto inicialmente pálido e depois roxo, Bouvard e Pécuchet julgavam que ia estrangular Goutman.

Voltou a sentar, cruzou os braços. — Você é um grande canalha, tem que concordar!

— Nada de insultos, senhor Barberou; temos testemunhas; tome cuidado!

— Vou pôr-lhe um processo!

— Basta! — E, depois de fechar a carteira, Goutman soergueu a aba do chapéu: — até a próxima! — e saiu.

Barberou expôs os fatos: em troca de uma dívida de mil francos, depois duplicada por manobras usurárias, entregara a Goutman três mil francos de vinho, o que pagaria o que devia com mil francos de lucro; mas, pelo contrário, devia três mil. Os patrões iriam despedi-lo, seria processado! — Crápula! Bandido! Porco judeu!... e janta isto nos presbitérios! De resto, tudo o que tem que ver com sotainas!... — Invectivou os padres e batia na mesa com tanta violência que a estatueta quase caiu.

— Calma! — disse Bouvard.

— Olha! Que é isto? — e Barberou, depois de desfazer o embrulho da pequena Virgem, disse: — Um objeto de peregrinação! É seu?

Bouvard, em vez de responder, sorriu ambiguamente.

É meu! — disse Pécuchet.

— Os senhores me afligem — continuou Barberou — mas vou educá-los a esse respeito, não tenham medo!

E como há que ser filósofo, e a tristeza não serve para nada, ofereceu-lhes almoço.

Sentaram-se os três à mesa.

Barberou foi amável, recordou os velhos tempos, abraçou a criada pela cintura, quis medir a barriga de Bouvard.

Em breve iria à casa deles e levaria um livro muito engraçado.

A ideia da visita alegrava-os muito relativamente. Conversaram acerca disso no carro durante uma hora, enquanto o cavalo trotava. Depois Pécuchet fechou as pálpebras. Bouvard calava também. Interiormente, inclinava-se para a religião.

O Sr. Marescot aparecera na véspera para lhes fazer uma comunicação importante — Marcel não sabia mais que isso.

O notário só pôde recebê-los três dias depois; e logo explicou do que se tratava. Por sete mil e quinhentos francos a Sra. Bordin propunha ao Sr. Bouvard comprar-lhe a fazenda. Ela a cobiçava desde a juventude, conhecia todas as suas dependências, os defeitos e vantagens — e este desejo era como um câncer que a minava. Porque a boa senhora, como verdadeira normanda, gostava acima de tudo da propriedade, não tanto pela segurança do capital como pela felicidade de pisar um chão próprio. Com essa esperança, tinha inquirido, vigiado diariamente, feito longas economias, e esperava com impaciência a resposta de Bouvard.

Ele ficou embaraçado, não querendo que Pécuchet um dia se encontrasse sem fortuna; mas era preciso agarrar a ocasião, que era um efeito da peregrinação. A Providência se manifestava pela segunda vez em seu favor.

Ofereceram as condições seguintes: o valor, não de sete mil e quinhentos francos, mas de seis mil, seria garantida ao último sobrevivente. Marescot sublinhou que um era fraco de saúde e que o temperamento do outro o predispunha à apoplexia; e a Sra. Bordin assinou o contrato, arrastada pela paixão.

Bouvard, com isso, ficou melancólico. Alguém desejava sua morte; e reflexão inspirou-lhe pensamentos graves, ideias de Deus e eternidade.


Três dias depois, Jeufroy convidou-os para o jantar de cerimônia que oferecia uma vez por ano a colegas.

O jantar começou por volta das duas da tarde, para acabar às onze da noite. Bebeu-se perada, disseram-se trocadilhos. O padre Pruneau compôs logo ali um acróstico, o Sr. Bougon fez habilidades de cartas e Cerpet, um jovem vigário, cantou uma pequena romanza que roçava a galanteria. Um ambiente assim divertiu Bouvard. No dia seguinte estava menos sombrio.

O prior vinha vê-lo frequentemente. Apresentava a religião com cores graciosas. De resto, o que arriscava? E Bouvard não tardou a consentir em se aproximar da sagrada mesa. Pécuchet participaria do sacramento com ele.

Chegou o grande dia.


A igreja, devido às cerimônias de primeira comunhão, estava cheia de gente. Os burgueses e as burguesas enchiam os bancos e o povo miúdo estava em pé, atrás ou na tribuna acima da porta.

O que ia se passar a seguir era inexplicável, pensava Bouvard; mas a razão não basta para compreender certas coisas. Muitos grandes homens admitiram aquela. Era fazer como eles. E, numa espécie de entorpecimento, contemplava o altar, o turíbulo, os círios, com a cabeça um pouco vazia porque não tinha comido nada... e sentia uma singular fraqueza.

Pécuchet, meditando na Paixão de Jesus Cristo, excitava-se a ímpetos de amor. Gostaria de lhe oferecer sua alma, a dos outros e os arrebatamentos, os transportes, as iluminações dos santos, todos os seres, o universo inteiro.

Embora rezasse com fervor, as diversas partes da missa pareceram-lhe um pouco longas.

Por fim, os rapazinhos ajoelharam-se no primeiro degrau do altar, formando com as suas roupas uma faixa preta, encimada irregularmente por cabelos louros ou escuros. As meninas tomaram os seus lugares, com os véus caídos debaixo das coroas; de longe, dir-se-ia um alinhamento de nuvens brancas ao fundo do coro.

Depois chegou a vez dos adultos.

O primeiro do lado do Evangelho era Pécuchet; mas, por certo muito emocionado, balançava a cabeça para a direita e para a esquerda. O prior teve dificuldade em meter-lhe a hóstia na boca e ele recebeu-a revirando os olhos.

Bouvard, pelo contrário, abriu tanto a queixada que a língua lhe pendia sobre o lábio inferior como uma bandeira. Quando tornou a levantar-se, tocou no cotovelo da Sra. Bordin. Os seus olhos encontraram-se. Ela sorria; sem saber por que, ele corou.

Depois da Sra. Bordin comungaram Mlle de Faverges, a condessa, a sua dama de companhia — e um senhor que ninguém conhecia em Chavignolles.

Os dois últimos foram Placquevent e Petit, o professor; foi quando, de repente, se viu aparecer Gorgu.

Já não tinha barbicha; e regressou ao seu lugar, com os braços cruzados sobre o peito, de uma maneira muito edificante.

O prior falou aos rapazinhos. Que cuidassem de mais tarde não fazer como Judas, que traiu o seu Deus, e que conservassem sempre as suas vestes de inocência. Pécuchet teve saudades da sua. Mas arrastavam-se cadeiras; as mães tinham pressa de beijar os filhos.

Os paroquianos, na saída, trocaram felicitações. Alguns choravam. A Sra. de Faverges, enquanto esperava pela carruagem, virou-se para Bouvard e Pécuchet e apresentou o seu futuro genro: — “0 Sr. Barão de Mahurot, engenheiro.”

O conde queixava-se de não os ver. Estaria de regresso na próxima semana. “Tomem nota! Peço-lhes.” A caleça chegara; as damas do solar partiram. E a multidão dispersou.

Encontraram em seu pátio um pacote no meio das plantas.

Como a casa estava fechada, o carteiro o jogou por cima do muro. Era a obra que Barberou prometera — Exame do Cristianismo, de Louis Hervieu, antigo aluno da Escola Normal. Pécuchet o repeliu. Bouvard não desejava conhecê-lo.

Tinham-lhe repetido que o sacramento o transformaria: durante vários dias, esteve à espreita de florações em sua consciência. Continuava a ser o mesmo, e foi tomado de um espanto doloroso. Como? A carne de Deus mistura-se com a nossa carne — e nada provoca nela! O pensamento que governa os mundos não ilumina o nosso espírito. O supremo poder abandona-nos à impotência.

Jeufroy, para tranquilizá-lo, receitou-lhe o Catecismo do padre Gaume.

Por outro lado, a devoção de Pécuchet tinha se desenvolvido. Desejava comungar nas duas espécies, cantava salmos, passeando pelo corredor, detinha os habitantes de Chavignolles para discutir e convertê-los. Vaucorbeil riu na cara dele, Girbal encolheu os ombros e o capitão chamou-o de Tartufo. Agora achavam que eles estavam indo longe demais.

Um excelente hábito é encarar as coisas como outros tantos símbolos. Se o trovão ribomba imagine-se o juízo final; perante um céu sem nuvens, pense-se na morada dos bem-aventurados; durante os passeios, cada um repita a si próprio que cada passo o aproxima da morte. Pécuchet observou este método. Quando pegava a roupa pensava no invólucro carnal que a segunda pessoa da Trindade vestiu.

O tiquetaque do relógio recordava-lhe o bater de seu coração, uma picadela de alfinete os pregos da cruz. Mas, por mais que ficasse de joelhos durante horas, que multiplicasse os jejuns e que espremesse a imaginação, o desapego de si mesmo não vinha; era impossível atingir a contemplação perfeita! Recorreu a autores místicos: Santa Teresa, João da Cruz, Luís de Granada, Scupoli — e outros mais modernos, como Monsenhor Chaillot. Em lugar do sublime que esperava, só encontrou chateza, um estilo muito frouxo, de frias imagens e muitas comparações tiradas do armazém dos lapidárias.

No entanto, aprendeu que existe uma purgação ativa e uma purgação passiva, uma visão interna e uma visão externa, quatro espécies de orações, nove excelências no amor, seis graus na humildade, e que a ferida da alma não difere muito do voo espiritual.

Havia pontos que o embaraçavam.

Se a carne é maldita, por que devemos agradecer a Deus o dom da existência? Que distância guardar entre o temor indispensável à salvação e a esperança, que não o é menos? Onde está o sinal de graça? Etc.!

As respostas de Jeufroy eram simples: — Não se atormente! Se queremos aprofundar tudo, corremos por um perigoso declive.

O Catecismo de Perseverança de Gaume desagradara tanto a Bouvard que pegou o volume de Louis Hervieu, que era uma suma da exegese moderna proibida pelo governo. Barberou, como republicano, tinha-o comprado.

Despertou dúvidas no espírito de Bouvard — e até demais sobre o pecado original. — Se Deus criou o Homem pecável, não devia puni-lo; e o mal é anterior à queda, visto que já havia vulcões, animais ferozes! Enfim, este dogma subverte as minhas noções de justiça!

— Que quer o senhor — dizia o prior — é uma daquelas verdades em que toda a gente está de acordo sem se poderem apresentar provas; também nós fazemos recair sobre as crianças os crimes dos seus pais. Assim os costumes e as leis justificam este decreto da Providência, que vamos encontrar na Natureza.

Bouvard abanou a cabeça. Duvidava também do inferno.

— Porque todo castigo deve visar o melhoramento do culpado, o que se torna impossível com uma pena eterna! E quantos a sofrem! Ora pense: todos os Antigos, os judeus, os muçulmanos, os idólatras, os heréticos e as crianças mortas sem batismo, essas crianças criadas por Deus! E com que fim? Para as punir por uma falta que não cometeram!

— É essa a opinião de Santo Agostinho — acrescentou o prior — e São Fulgêncio envolve na danação até os fetos. É verdade que a Igreja nada decidiu a este respeito. No entanto, uma observação: não é Deus mas o pecador que se condena a si próprio; e como a ofensa é infinita, visto que Deus é infinito, a punição tem que ser infinita. É tudo, meu caro senhor?

— Explique-me a Trindade — disse Bouvard.

— Com todo o prazer! Tomemos uma comparação: os três lados do triângulo, ou antes a nossa alma, que contém: ser, conhecer e querer; aquilo a que no Homem se chama faculdade é pessoa em Deus. Aí está o mistério.

— Mas os três lados do triângulo não são cada um o triângulo. Estas três faculdades da alma não fazem três almas. E suas pessoas da Trindade são três deuses.

— Blasfêmia!

— Então só há uma pessoa, um Deus, uma substância apresentada de três maneiras!

— Adoremos sem compreender — disse o prior.

— Seja! — disse Bouvard.

Tinha receio de passar por ímpio, de ser mal visto no solar.


Agora iam lá três vezes por semana — por volta das cinco, no inverno — e a xícara de chá aquecia-os. O Sr. conde pelas suas maneiras “recordava a elegância da antiga corte”, a condessa, plácida e gorda, mostrava acerca de todas as coisas um grande discernimento. Mademoiselle Yolande, a filha, era “o modelo das jovens”, o anjo dos keepsakes — e a Sra. de Noaris, a dama de companhia, parecia-se com Pécuchet, porque tinha o nariz arrebitado.

Da primeira vez que entraram no salão, estava ela a defender alguém.

— Garanto-lhes que ele mudou! O seu presente prova-o.

Este alguém era Gorgu. Acabava de oferecer aos futuros esposos um genuflexório gótico. Trouxeram-no. Ostentava as armas das duas casas em relevos coloridos. O Sr. de Mahurot pareceu contente com ele; e a Sra. de Noaris disse-lhe:

— Vai se lembrar do meu protegido!

Depois, trouxe duas crianças, um garoto de uns doze anos e a irmã, que tinha talvez dez. Pelos buracos dos andrajos que vestiam viam-se os membros vermelhos de frio.

Um calçava umas velhas pantufas, e a outra tinha apenas um tamanco. As testas desapareciam-lhes debaixo do cabelo e olhavam à sua volta com pupilas ardentes como jovens lobos desvairados.

A Sra. de Noaris contou que os tinha encontrado de manhã na estrada principal. Placquevent não podia fornecer qualquer pormenor.

Perguntaram-lhes os nomes. “Victor — Victorine.” — “Onde estava o pai deles?” — “Na prisão.” — “E antes que fazia ele?” — “Nada.” — “De que terra eram?” — “Saint-Pierre.” — “Mas qual Saint-Pierre?” Os dois pequenos, como única resposta, diziam fungando: — “Não sei, não sei.”

A mãe morrera e andavam mendigando.

A Sra. de Noaris explicou como seria perigoso abandoná-los; enterneceu a condessa, espicaçou a honra do conde, foi apoiada pela menina, teimou, triunfou. A mulher do guarda rural tomaria conta deles. Mais tarde lhes arranjara trabalho; e, como não sabiam ler nem escrever, a Sra. de Noaris lhes daria lições pessoalmente, para os preparar para o catecismo.

Quando Jeufroy vinha ao solar iam buscar as duas crianças e ele interrogava-as, e depois fazia uma conferência com pretensões por causa do auditório.

Uma vez em que discorrera sobre os Patriarcas, Bouvard, ao regressar com ele e com Pécuchet, disse muito mal deles.

Jacob distinguiu-se por intrujices, David pelos assassínios, Salomão pelos seus deboches.

O padre respondeu-lhe que era preciso ver mais longe.

O sacrifício de Abraão é a imagem da Paixão. Jacob é uma outra figura do Messias, como José, como a serpente de bronze, como Moisés.

— Acredita — disse Bouvard — que ele compôs o Pentateuco?

— Claro! Sem dúvida!

— No entanto conta-se lá a morte dele! O mesmo se diga de Josué... e, quanto aos Juízes, o autor nos previne de que na época cuja história está a contar Israel ainda não tinha Reis. A obra foi portanto escrita no tempo dos Reis.

Os Profetas também me espantam.

— Agora vai negar os Profetas?

— De modo nenhum! Mas o espírito exaltado deles apreendia Jeová sob formas diversas, a de um fogo, de uma sarça, de um velho, de uma pomba; e não estavam seguros da Revelação, visto que estão sempre a pedir um sinal.

— Ah! E o senhor descobriu essas belas coisas...

— Em Spinoza! — Ao ouvir esta palavra, o prior deu um salto. — Leu-o?

— Deus me livre!

— Mas olhe que a ciência!...

— Meu caro senhor, não se é sábio se não se for cristão.

A ciência inspirava-lhe sarcasmos. — Nem uma espiga de trigo faz crescer, a ciência! Que sabemos nós? — dizia ele.

Mas sabia que o mundo foi criado para nós; sabia que os Arcanjos estão acima dos Anjos; sabia que o corpo humano ressuscitará tal como era por volta dos trinta anos.

A sua sobranceria sacerdotal irritava Bouvard, que, por desconfiar de Louis Hervieu, escreveu a Varlot. E Pécuchet, mais bem informado, pediu a Jeufroy explicações sobre a Escritura.

Os seis dias do Gênesis querem dizer seis grandes épocas. O rapto dos vasos preciosos feito pelos Judeus aos Egípcios deve entender-se acerca das riquezas intelectuais, das Artes, de cujo segredo se tinham apoderado. Isaías não se despiu completamente — Nudus em latim significa nu até as ancas; assim, Virgílio aconselha os homens a ficarem nus para lavrar e este escritor não teria dado um preceito contrário ao pudor; Ezequiel devorando um livro nada tem de extraordinário — não dizemos nós devorar um folheto, um jornal?

Mas se virmos metáforas por toda a parte, que é feito dos fatos? O padre, contudo, defendia que eles eram reais.

Este entendimento pareceu desleal a Pécuchet. Levou mais longe as suas pesquisas e trouxe uma nota sobre as contradições da Bíblia.

O Êxodo ensina-nos que durante quarenta anos se fizeram sacrifícios no deserto; não se fez nenhum segundo Amós e Jeremias. Os Paralipômenos e Esdras não estão de acordo quanto à contagem do Povo. No Deuteronômio, Moisés vê o Senhor face a face; segundo o Êxodo, nunca o pôde ver.

Então onde está a inspiração?

— Mais um motivo para a admitirmos — replicava Jeufroy, sorrindo. — Os impostores precisam de conivência, os sinceros não se acautelam. Em caso de dificuldade recorramos à Igreja. Ela é sempre infalível.

De onde vem a infalibilidade?

Os concílios de Basileia e de Constança atribuem-na aos concílios. Mas muitas vezes os concílios divergem, como o atestam o que se passou com Atanásio e com Ário. Os de Florença e de Latrão outorgam-na ao Papa. Mas Adriano VI declara que o Papa, como qualquer outro, pode enganar-se.

Besteira! Nada disso prejudica a permanência do dogma.

A obra de Louis Hervieu aponta as suas variações: o batismo era outrora reservado aos adultos. A extrema-unção só foi um sacramento no século IX; a Presença real foi decretada no século VIII, o Purgatório reconhecido no século XV, a Imaculada Conceição é de ontem.

E Pécuchet acabou por não saber que pensar de Jesus.

Três evangelhos fazem dele um homem. Numa passagem de São João ele parece igualar-se a Deus; noutra do mesmo parece reconhecer-se seu inferior.

O padre ripostava com a carta do rei Abgar, os Atos de Pilatos e o testemunho das Sibilas “cujo fundo é verdadeiro”. la encontrar a Virgem nas Gálias, o anúncio de um Redentor na China, a Trindade por toda a parte, a Cruz no barrete do grande lama e, no Egipto, no pulso dos deuses; e até mostrou uma gravura que representava um nilômetro, que, segundo Pécuchet, era um falo.

Jeufroy consultava secretamente o seu amigo Pruneau, que lhe procurava provas nos autores. Travou-se uma luta de erudição; e, chicoteado pelo amor-próprio, Pécuchet tornou-se transcendente, mitólogo.

Comparava a Virgem com Ísis, a Eucaristia com o Homa dos persas, Baco com Moisés, a Arca de Noé com o navio de Xisutros, e estas semelhanças demonstravam-lhe a identidade das religiões.

Mas não pode haver várias religiões, porque há um só Deus e, quando lhe faltavam argumentos, o homem da sotaina exclamava: — É um mistério!

Que significa esta palavra? Falta de saber, muito bem. Mas se designa uma coisa cujo simples enunciado implica contradição, é uma tolice; e Pécuchet não largava Jeufroy.

Ia surpreendê-lo na sua horta, esperava-o no confessionário, ia importuná-lo à sacristia.

O padre arquitetava manhas para lhe escapar.

Um dia em que saíra para Sassetot para administrar sacramentos a alguém, Pécuchet foi à sua frente pela estrada, para tornar a conversa inevitável.

Era ao fim da tarde, em fins de Agosto. O céu escarlate escureceu e formou-se uma grande nuvem, regular embaixo, com volutas no alto.

Primeiro Pécuchet falou de coisas indiferentes e, depois de ter introduzido a palavra mártir, disse: — Quantos pensa que terá havido?

— Uns vinte milhões, pelo menos.

— O número não é assim tão grande, diz Orígenes.

— Orígenes, como sabe, é suspeito!

Passou um grande golpe de vento, inclinando a erva dos valados e as duas filas de olmeiros até o fim do horizonte.

Pécuchet continuou: — Classificam-se entre os mártires muitos bispos gauleses mortos ao resistirem aos Bárbaros, que é uma questão diferente.

— Agora vai defender os Imperadores!

Segundo Pécuchet, tinham-nos caluniado. — A história da Legião tebana é uma fábula. Contesto igualmente Sinforosa e os seus sete filhos, Felicidade e as suas sete filhas, e as sete virgens de Ancira, condenadas à violação,apesar de septuagenárias, e as onze mil virgens de Santa Ursula, que tinha uma companheira chamada Undecemilla, nome tomado por um número... e ainda mais os dez mártires de Alexandria!

— No entanto... No entanto encontram-se em autores dignos de crédito.

Caíram gotas de água. O prior abriu o guarda-chuva; e Pécuchet, quando se meteu lá debaixo, atreveu-se a pretender que os católicos tinham feito mais mártires entre os judeus, os muçulmanos, os protestantes e os livres-pensadores do que todos os Romanos de outrora.

O eclesiástico protestou: — Mas contam-se dez perseguições desde Nero até o César Galério!

— Muito bem, e as chacinas dos Albigenses? E o São Bartolomeu? E a Revogação do Édito de Nantes?

— Excessos deploráveis, sem dúvida, mas não compare essa gente com Santo Estêvão, São Lourenço, Cipriano, Policarpo, uma multidão de missionários.

— Perdão! Recordo-lhe Hipatia, Jerônimo de Praga, Jan Hus, Bruno, Anne Dubourg!

A chuva aumentava e os seus raios dardejavam com tanta força que saltavam do chão como pequenos fusos brancos. Pécuchet e Jeufroy caminhavam lentamente apertados um contra o outro, e o prior dizia: — Após suplícios abomináveis lançavam-nos em caldeirões!

— Nada de brincadeiras! Tu crês ou não?

— Não sei.

Acendeu uma vela e depois disse, quando os olhos lhe caíram no crucifixo da alcova: — Quantos miseráveis recorreram àquele! — E após um silêncio: — Desnaturaram-no!

A culpa é de Roma: a política do Vaticano!

Mas Bouvard admirava a Igreja pela sua magnificência e gostaria de ter sido cardeal na Idade Média. — Tens que concordar que a púrpura me teria ficado bem!

O boné de Pécuchet, colocado diante das brasas, não estava ainda seco. Ao estendê-lo sentiu qualquer coisa na dobra e caiu uma medalha de São José. Ficaram perturbados; o fato parecia-lhes inexplicável.

A Sra. de Noaris quis saber se Pécuchet não tinha sentido uma espécie de mudança, uma felicidade, e denunciou-se com estas perguntas. Uma vez, estava ele a jogar bilhar, cosera-lhe a medalha no boné.

Era evidente que ela o amava; poderiam ter-se casado: ela era viúva; e ele não suspeitou daquele amor, que talvez tivesse feito a felicidade da sua vida.

Embora ele se mostrasse mais religioso do que o Sr. Bouvard, ela dedicara-o a São José, cujo auxílio é excelente para as conversões.

Ninguém como ela conhecia todos os rosários e as indulgências que eles proporcionam, o efeito das relíquias, os privilégios das águas santas. Tinha o relógio preso a uma correntinha que tocara nos laços de São Pedro. Entre os seus berloques luzia-lhe uma pérola de ouro, imitada da que contém na igreja de Allouagne uma lágrima de Nosso Senhor.

Um anel que usava no dedo mínimo tinha lá dentro cabelos do cura de Ars; e como colhia simples para os doentes, o seu quarto parecia uma sacristia e uma oficina de boticário.

Passava o tempo a escrever cartas, a visitar os pobres, a dissolver concubinatos, a espalhar fotografias do Sagrado Coração. Um cavalheiro tinha ficado de lhe enviar “Massa dos Mártires”: uma mistura de cera pascal e de pó humano retirado das catacumbas, e que se utiliza nos casos desesperados, em sinais no rosto ou em pílulas. Prometeu dá-la a Pécuchet.

Ele pareceu chocado com um materialismo assim.

À noite, um criado do solar trouxe-lhe uma cestada de opúsculos, relatando palavras piedosas do grande Napoleão, frases espirituais de padres em estalagens, mortes assustadoras acontecidas a ímpios. A Sra. de Noaris sabia tudo aquilo de cor, mais uma infinidade de milagres.

Contava alguns estúpidos — milagres sem finalidade, como se Deus os tivesse feito para pasmar o mundo. A sua própria avó tinha fechado num armário ameixas passas cobertas com um pano, e quando um ano mais tarde se abriu o armário viram-se treze em cima da toalha, formando uma cruz. — “Explique-me isto.” Era a sua frase depois das histórias que defendia com uma obstinação de burrica, mas boa mulher, e de humor jovial.

Porém, uma vez “perdeu as estribeiras”. Bouvard contestava-lhe o milagre de Pezilla: uma compoteira onde tinham escondido hóstias durante a Revolução dourou-se por si mesma — sozinha.

Talvez fosse, no fundo, um pouco de cor amarela proveniente da umidade...

— Nada disso! Repito-lhe que não! O dourado tem origem no contato da Eucaristia — e apresentou como prova o atestado dos bispos. — Dizem eles que é como um escudo, um... um paládio sobre a diocese de Perpignan. Ora pergunte ao P.e Jeufroy!

Bouvard não aguentou mais; e depois de rever o seu Louis Hervieu, levou lá Pécuchet consigo.

O eclesiástico acabava de jantar. Reine ofereceu cadeiras e, obedecendo a um gesto, foi buscar dois cálices que encheu de rosólio.

Após o que Bouvard expôs o que o trazia.

O padre não respondeu francamente. Tudo é possível a Deus — e os milagres são uma prova da Religião.

— No entanto, há leis.

— Isso não quer dizer nada. Ele subverte-as para instruir, para corrigir.

— Como sabe que ele as subverte? — replicou Bouvard. — Enquanto a Natureza segue a sua rotina, não se pensa nisso; mas num fenômeno extraordinário vemos a mão de Deus.

— Ela pode estar lá — disse o eclesiástico — e quando um acontecimento é certificado por testemunhas...

— As testemunhas engolem tudo, porque há falsos milagres!

O padre fez-se vermelho. — Sem dúvida... às vezes.

— Como distingui-los dos verdadeiros? E se os verdadeiros apresentados como provas também precisam de provas, por que fazê-los?

Reine interveio e, pregando como o seu patrão, disse que era preciso obedecer.

— A vida é uma passagem, mas a morte é eterna!

— Em suma — acrescentou Bouvard, emborcando o rosólio — os milagres de outrora não estão mais bem demonstrados que os milagres de hoje, razões análogas defendem os dos cristãos e os dos pagãos.

O prior atirou com o garfo para cima da mesa. — Esses eram falsos: mais uma! Não há milagres fora da Igreja!

“Olha, disse Pécuchet de si para si, é o mesmo argumento que usou para os mártires: a doutrina baseia-se nos fatos e os fatos na doutrina.”

Jeufroy, depois de beber um copo de água, continuou: — Ao negá-los, acredita neles. O mundo convertido por doze pecadores: aí está, parece-me, um bom milagre...

— De modo nenhum! — Pécuchet explicava isso de outra maneira. — O monoteísmo vem dos hebreus, a Trindade dos indianos. O Logos pertence a Platão, a virgem-mãe à Asia.

Isso não interessava! Jeufroy agarrava-se ao sobrenatural, não queria que o cristianismo pudesse ter humanamente a mínima razão de ser, embora visse em todos os povos pródromos ou deformações dele. Teria sido capaz de tolerar a impiedade escarninha do século XVIII, mas a crítica moderna, com a sua polidez, exasperava-o.

— Prefiro o ateu que blasfema ao céptico que argumenta!

Depois olhou para eles com um ar de bravata, como que para os mandar embora.

Pécuchet regressou melancólico. Esperara o acordo entre a Fé e a Razão.

Bouvard deu-lhe para ler esta passagem de Louis Hervieu: “Para conhecer o abismo que os separa, oponha seus axiomas: “Diz a Razão: O todo contém a parte — e a Fé responde com a substanciação. Jesus comungando com seus apóstolos tinha seu corpo na mão e a cabeça na boca.

“Diz a Razão: Não somos responsáveis pelos crimes dos outros — e a Fé responde com o Pecado Original.

“Diz a Razão: Três são três — e a Fé declara: Três é um.”

E deixaram de ir a casa do padre.


Era a época da guerra da Itália. A gente de bem temia pelo Papa. Trovejava-se contra Emanuel. A Sra. de Noaris ia ao ponto de lhe desejar a morte.

Bouvard e Pécuchet só timidamente protestavam.

Quando a porta do salão se abria à sua frente e eles se miravam ao passar nos altos espelhos? enquanto pelas janelas se avistavam as áleas onde o colete vermelho de um criado ressaltava sobre a verdura, sentiam prazer; e o luxo daquele meio tornava-os indulgentes para as palavras que ali se proferiam.

O conde emprestou-lhes todas as obras do Sr. de Maistre, cujos princípios desenvolvia perante um círculo de íntimos: Hurel, o prior, o juiz de paz, o notário e o barão seu futuro genro, que vinha de tempos a tempos ao solar por vinte e quatro horas.

— O que há de abominável — dizia o conde — é o espírito de 89! Primeiro, contesta-se Deus, a seguir discute-se o governo, e depois chega a liberdade; liberdade de injúrias, de revolta, de gozo, ou, antes, de pilhagem. Por conseguinte, a Religião e o Poder devem proscrever os independentes, os heréticos. Claro que vão gritar que se trata de Perseguição! Como se os carrascos perseguissem os criminosos. Abrevio. Não há Estado sem Deus! A lei só pode ser respeitada se vier do alto; e atualmente não se trata dos italianos, mas de saber quem vencerá, se a Revolução se o Papa, Satã ou Jesus Cristo!

Jeufroy aprovava por monossílabos, Hurel com um sorriso, o juiz de paz acenando com a cabeça. Bouvard e Pécuchet olhavam para o teto, a Sra. de Noaris, a condessa e Yolande trabalhavam para os pobres — e o Sr. de Mahurot, junto da noiva, percorria as gazetas.

Depois havia silêncios, em que cada um parecia mergulhado na investigação de um problema. Napoleão III já não era um Salvador, e dava até um exemplo deplorável ao deixar nas Tulherias que os pedreiros trabalhassem aos domingos.

— Não se devia permitir — era a frase habitual do Sr. conde. Economia social, belas-artes, literatura, história, doutrinas científicas, decidia acerca de tudo, na sua qualidade de cristão e de pai de família — oxalá o governo tivesse a este respeito o mesmo rigor que ele manifestava em casa.

Só o Poder é juiz dos perigos da ciência; excessivamente difundida, ela inspira no povo ambições funestas. Este pobre povo era mais feliz quando os senhores e os bispos temperavam o absolutismo do rei. Agora os industriais exploram-no. Vai cair na escravatura!

E todos se mostravam saudosos do antigo regime, Hurel por baixeza, Coulon por ignorância, Marescot como artista.

Bouvard, mal chegava a casa, retemperava-se com La Mettrie, d'Holbach, etc. — e Pécuchet afastou-se de uma religião que se tornara um meio de governo. O Sr. de Mahurot comungara para melhor seduzir “as damas” e se praticava era por causa dos criados.

Matemático e diletante, tocador de valsas ao piano e admirador de Toeppfer, distinguia-se por um cepticismo de bom gosto; o que se conta dos abusos feudais, da Inquisição ou dos Jesuítas eram preconceitos, e elogiava o Progresso, embora desprezasse quem não fosse fidalgo ou oriundo da Escola Politécnica.

Do mesmo modo, Jeufroy desagradava-lhes. Acreditava nos sortilégios, troçava dos ídolos, afirmava que todos os idiomas derivam do hebraico; à sua retórica faltava imprevisto; era invariavelmente o cervo encurralado, o mel e o absinto, o ouro e o chumbo, perfumes, urnas — e a alma cristã comparada ao soldado que deve dizer diante do Pecado: “Não passarás!”

Para evitar as suas conferências, chegavam ao solar o mais tarde possível.

No entanto, um dia encontraram-no lá.

Esperava havia uma hora pelos seus dois alunos. De repente, entrou a Sra. de Noaris.

— A pequena desapareceu. Trago o Victor. Ah, desgraçado!

Apanhara-lhe na algibeira um dedal de prata perdido havia três dias e depois, sufocada pelos soluços: — E não é tudo! Não é tudo! Enquanto eu lhe ralhava, mostrou-me o traseiro! — E antes de o conde e a condessa dizerem fosse o que fosse: — De resto, a culpa é minha, perdoem-me!

Ocultara-lhe que os dois órfãos eram os filhos de Touache, agora na prisão de forçados.

Que fazer?

Se o conde os mandasse embora, estavam perdidos e o seu ato de caridade passaria por um capricho.

Jeufroy não ficou surpreendido. Como o homem estava naturalmente corrompido, era preciso castigá-lo para o melhorar.

Bouvard protestou. A brandura era melhor.

Mas o conde, mais uma vez, alargou-se sobre a mão de ferro, indispensável às crianças como aos povos. Aqueles dois estavam cheios de vícios, a menina era mentirosa e o rapaz brutal. Aquele roubo podia ser desculpado, mas a insolência nunca, porque a educação devia ser a escola do respeito.

Portanto, Sorel, o guarda de caça, administraria imediatamente ao rapaz uma boa nalgada.

O Sr. de Mahurot, que tinha qualquer coisa para lhe dizer, encarregou-se do recado. Pegou numa espingarda na antecâmara e chamou Victor, que ficara no meio do pátio, de cabeça baixa: — Acompanha-me — disse o barão.

Como o caminho até a casa do guarda pouco se desviava de Chavignolles, Jeufroy, Bouvard e Pécuchet acompanharam-no.

A cem passos do solar pediu-lhes que não falassem enquanto contornasse a mata.

O terreno descia até a beira do ribeiro, onde se erguiam grandes pedaços de rocha. O rio formava chapas de ouro sob o sol poente. Do outro lado, a verdura das colinas cobria-se de sombra. Soprava um ar vivo.

Saíram coelhos das suas tocas; e roíam a relva.

Um tiro partiu, um segundo, mais outro — e os coelhos saltavam e rolavam. Victor atirava-se para cima deles para os agarrar e ofegava encharcado em suor.

— Tratas bem os teus trapos — disse o barão. A blusa dele, aos farrapos, tinha sangue.

A visão do sangue repugnava a Bouvard. Não admitia que o derramassem.

Jeufroy falou: — Às vezes as circunstâncias exigem-no.

Se não for o culpado a dar o seu, é preciso o de outro, verdade que a Redenção nos ensina.

Segundo Bouvard, ela não tinha servido de nada, quase todos os homens eram condenados apesar do sacrifício de Nosso Senhor.

— Mas ele renova-a quotidianamente na Eucaristia.

— E o milagre — disse Pécuchet — faz-se com palavras seja qual for a indignidade do Padre!

— O mistério está aí, meu caro senhor!

Entretanto, Victor não despregava os olhos da espingarda, e tentava até tocar-lhe.

— Patas para baixo! — E o Sr. de Mahurot seguiu por um carreiro debaixo da mata.

O eclesiástico tinha Pécuchet de um lado e Bouvard do outro, e disse a este: — Atenção, bem sabe: Debetur pueris.

Bouvard garantiu-lhe que se humilhava diante do Criador, mas estava indignado por fazerem dele um homem.

Teme-se a sua vingança, trabalha-se para a sua glória; ele tem todas as virtudes, um braço, uma vista, uma política, uma morada. — Pai nosso que estais no céus, que quer isso dizer?

E Pécuchet acrescentou: — O mundo alargou-se; a terra já não é o centro. Ela rola no meio da multidão infinita dos seus semelhantes. Muitos ultrapassaram-na em tamanho, e este apoucamento do nosso globo dá de Deus um ideal mais sublime. Portanto, a Religião devia mudar.

O Paraíso é algo de infantil, com os seus bem-aventurados sempre contemplando, sempre cantando, e que olham de cima para as torturas dos condenados. Quando se pensa que o cristianismo tem por base uma maçã!

O prior se zangou. — Negue a Revelação, será mais simples.

— Como quer que Deus tenha falado? — disse Bouvard.

— Prove que ele não falou! — dizia Jeufroy.

— Mais uma vez, quem o afirma?

— A Igreja!

— Belo testemunho!

Esta discussão aborrecia o Sr. de Mahurot; e disse sem deixar de caminhar: — Então, ouçam o prior! Ele sabe mais disso que os senhores!

Bouvard e Pécuchet fizeram sinais um ao outro para tomarem outro caminho, e depois, chegados à Cruz Verde, disseram: — Muito boa noite.

— Às ordens — disse o barão.

Tudo aquilo seria contado ao Sr. de Faverges; e talvez dali se seguisse uma ruptura... Paciência! Sentiam-se desprezados por aqueles nobres; nunca os convidavam para jantar; e estavam cansados da Sra. de Noaris com as suas constantes admoestações.

Porém, não podiam ficar com o De Maistre; e uns quinze dias depois voltaram ao solar, achando que não seriam recebidos. Foram.

Estava toda a família na saleta, incluindo Hurel, e Foureau, que não era frequentador habitual.

O corretivo não corrigira Victor. Recusava-se a aprender o catecismo; e Victorine proferia palavras porcas. Em suma, o rapaz iria para os “Jovens Detidos” e a pequena para um convento. Foureau encarregara-se dessas diligências e já se ia embora quando a condessa tornou a chamá-lo.

Esperavam Jeufroy para se fixar em conjunto a data do casamento, que teria lugar na Câmara muito antes de se fazer na igreja, para mostrar que se desprezava o casamento civil.

Foureau tentou defendê-lo. O conde e Hurel o atacaram. Que era uma função municipal próxima de um sacerdócio! — mas o barão não se julgaria casado se o tivesse sido apenas diante de uma faixa tricolor.

— Bravo! — disse Jeufroy, que vinha entrando. — Como o casamento foi estabelecido por Jesus...

Pécuchet o interrompeu. — Em que evangelho? Nos tempos apostólicos davam-lhe tão pouca importância que Tertuliano o compara ao adultério.

— Ah, ora essa!

— Claro! E não é um sacramento! O sacramento precisa de um sinal. Mostre-me o sinal no casamento!

— O prior cansou de responder que ele era a figura da aliança de Deus com a Igreja.

— O senhor já não compreende o cristianismo! E a lei...

— Conserva a marca dele — disse o Sr. de Faverges; — se não fosse ele, a lei autorizaria a poligamia!

Uma voz replicou: — Onde estaria o mal?

Era Bouvard, meio oculto por uma cortina. — Pode-se ter várias esposas, como os patriarcas, os mórmons, os muçulmanos, e contudo ser uma pessoa de bem!

— Nunca! — exclamou o Padre. — Pessoa de bem é a que paga o que é devido. Nós devemos homenagem a Deus. Ora quem não é cristão não é pessoa de bem!

— Tanto quanto outros — disse Bouvard.

O conde, julgando ver nesta réplica um ataque à Religião, exaltou-a. Ela libertara os escravos.

Bouvard fez citações provando o contrário: — São Paulo recomenda-lhes que obedeçam aos senhores como a Jesus. Santo Ambrósio chama à servidão um dom de Deus. O Levítico, o Êxodo e os Concilias sancionaram-na. Bossuet classifica-a entre o direito das gentes.

E Monsenhor Bouvier a aprova.

O conde objetou que o cristianismo desenvolvera igualmente a civilização.

— E a preguiça, fazendo da Pobreza uma virtude!

— No entanto, meu caro senhor, a moral do Evangelho...

— Ora, ora! Não é lá muito moral! Os operários da última hora são tão bem pagos como os da primeira. Dá-se àquele que possui e retira-se àquele que não tem. Quanto ao preceito de receber bofetadas sem as devolver e de se deixar roubar, encoraja os audaciosos, os poltrões e os velhacos.

O escândalo redobrou quando Pécuchet declarou que gostava igualmente do Budismo.

O padre desatou a rir. — Ah! ah! ah! O Budismo!

A Sra. de Noaris ergueu os braços. — O Budismo!

— Como, o Budismo? — repetia o conde.

— O senhor conhece-o? — disse Pécuchet a Jeufroy, que ficou confundido.

— Muito bem, saiba que, melhor que o cristianismo e antes dele, reconheceu o nada das coisas terrestres. As suas práticas são austeras, os seus fiéis mais numerosos que todos os cristãos e, quanto à encarnação, Visnu não tem uma, mas nove! Agora, julgue!

— Mentiras de viajantes — disse a Sra. de Noaris.

— Apoiados pelos francomaçons — acrescentou o prior.

E, falando todos ao mesmo tempo: “Vá — Continue! — Muito bonito! — Eu acho engraçado — Não é possível” — de tal modo que Pécuchet, exasperado, declarou que se faria budista!

— Está a insultar senhoras cristãs! — disse o barão.

A Sra. de Noaris deixou-se cair num cadeirão. A condessa e Yolande calavam-se. O conde revirava os olhos; Hurel esperava ordens. O padre, para se conter, lia o seu breviário.

Este exemplo pacificou o Sr. de Faverges; e, encarando os dois pobres homens, disse: — Antes de criticar o Evangelho, e quando se têm manchas na vida, há certas reparações...

— Reparações?

— Manchas?

— Basta, senhores! Devem compreender-me. — E depois, dirigindo-se a Foureau: — Sorel está prevenido! Pode ir!

— E Bouvard e Pécuchet retiraram-se sem cumprimentar.

Ao fim da avenida, soltaram os três os seus ressentimentos. “Tratam-me como um criado”, resmungava Foureau; e como os outros o aprovavam tinha por eles, apesar da recordação das hemorroidas, uma espécie de simpatia.

Havia cantoneiros a trabalhar no campo. O homem que os comandava aproximou-se; era Gorgu. Começaram a conversar. Estava a fiscalizar a pavimentação da estrada votada em 1848, e devia aquele lugar ao Sr. de Mahurot, o engenheiro, “aquele que vai casar com Mademoiselle de Faverges! Vêm de lá, decerto?”

— Pela última vez! — disse brutalmente Pécuchet.

Gorgu tomou um ar ingênuo. — Uma desavença? Olha, olha!

E, se lhe pudessem ter visto a cara quando viraram costas, teriam compreendido que ele estava a farejar a causa.

Um pouco mais adiante pararam diante de um cerrado de canas, que tinha lá dentro casotas de cão e uma casinha de telhas vermelhas.

Victorine estava à porta. Soaram latidos. Apareceu a mulher do guarda.

Sabendo a razão da vinda do presidente da Câmara, chamou Victor.

Estava preparado com antecedência, com o seu enxoval em dois lenços fechados com alfinetes. “Boa viagem”, disse-lhes ela, “estou feliz por deixar de ter esta peste!”

Seria culpa deles terem nascido de um pai forçado?

Pelo contrário, pareciam muito dóceis, nem sequer se preocupavam com o lugar para onde os levavam.

Bouvard e Pécuchet viam-nos caminhando à sua frente.

Victorine cantarolava palavras indistintas, com o lenço no braço, como uma modista que leva uma caixa de cartão.

Virava-se de vez em quando; e Pécuchet, vendo os seus caracóis louros e a sua figura delicada, lamentava não ter uma filha assim. Criada em outras condições, viria a ser encantadora: que felicidade vê-la crescer, ouvir todos os dias o seu gorjeio de ave, beijá-la quando quisesse; e uma ternura que lhe subia do coração à boca umedeceu suas pálpebras, e oprimia-o um pouco.

Victor, como um soldado, tinha posto a bagagem às costas. Assobiava; atirava pedras às gralhas nos regos da lavra, caminhava debaixo das árvores para cortar chibatinhas — e Foureau chamou-o; e Bouvard, segurando-o pela mão, sentia prazer em ter na sua aqueles dedos de criança robustos e vigorosos. O pobre diabrete só queria desenvolver-se livremente, como uma flor ao ar livre; e iria apodrecer entre muros, com lições, castigos, uma caterva de asneiras!

Bouvard foi invadido por uma revolta da piedade, uma indignação contra a sorte, uma daquelas raivas em que se quer destruir o governo.

— Galopa! — disse ele. — Diverte-te! Goza o que te resta!

O garoto escapou-se.

A irmã e ele dormiriam na estalagem — e de madrugada o mensageiro de Falaise iria buscar Victor para o levar à penitenciária de Beaubourg, enquanto uma religiosa do orfanato de Grand-Camp levaria Victorine.

Foureau, depois de dar estes pormenores, voltou a mergulhar nos seus pensamentos. Mas Bouvard quis saber quanto podia custar a manutenção das duas crianças.

— Bah!.. É talvez coisa para trezentos francos! O conde entregou-me vinte e cinco para as primeiras despesas! Que avarento!

E repisando no coração o desprezo dele pela sua faixa, Foureau apressava o passo, silenciosamente.

Bouvard murmurou: — Sinto pena. Poderia me encarregar deles!

— Também eu — disse Pécuchet, a quem ocorrera a mesma ideia. Talvez houvesse impedimentos...

— Nenhum! — replicou Foureau. De resto, como presidente da Câmara tinha o direito de confiar a quem lhe parecesse as crianças abandonadas. E depois de uma longa hesitação: — Pois muito bem! Fiquem com eles! Vai fazê-lo escamar-se.

Bouvard e Pécuchet levaram as crianças. Ao regressar a casa, encontraram Marcel ao fundo da escada, debaixo da madona, de joelhos, rezando com fervor. De cabeça reclinada, olhos semicerrados, dilatando o seu beiço leporino, parecia um faquir em êxtase.

— Que burro! — disse Bouvard.

— Por quê? Talvez assista a coisas que invejarias se pudesses vê-las. Não é verdade que existem dois mundos, completamente distintos? O objeto de um raciocínio tem menos valor do que a maneira de raciocinar. Que importa a crença? O principal é crer.

Tais foram as objeções de Pécuchet à observação de Bouvard.


X

Arranjaram várias obras sobre educação — e o seu sistema ficou decidido. Havia que banir qualquer ideia metafísica e, segundo o método experimental, acompanhar o desenvolvimento da natureza. Nada era urgente, porque os dois alunos tinham que esquecer o que haviam aprendido. Embora tivessem um temperamento sólido, Pécuchet queria, como um Espartano, endurecê-los mais, acostumá-los à fome, à sede, às intempéries, e até que usassem calçado esburacado para prevenir os catarros. Bouvard opôs-se.

O gabinete escuro ao fundo do corredor tornou-se quarto de dormir das crianças. Tinha como móveis duas camas de vento, duas bacias, um cântaro. A claraboia abria-se por cima das suas cabeças; e as aranhas corriam pelo estuque.

Recordavam-se muitas vezes do interior de uma cabana onde se discutia. Uma noite, o pai regressara com sangue nas mãos. Algum tempo depois chegaram os guardas. Em seguida tinham morado numa mata. Homens que faziam tamancos beijavam a mãe. Ela morrera; haviam sido levados numa carroça; batiam-lhes muito. Tinham-se perdido.

Depois reviam o guarda rural, a Sra. de Noaris, Sorel, e sem perguntar por que estavam naquela outra casa, sentiam-se ali felizes. Por isso foi penoso o seu espanto quando, ao fim de oito meses, recomeçaram as lições.

Bouvard encarregou-se da pequena. Pécuchet do garoto.

Victor distinguia as letras, mas não conseguia formar as sílabas. Balbuciava-as, interrompia-se de repente, e ficava com um ar de idiota. Victorine fazia perguntas. Por que em orchestre tem o som de um q e o de um k em archéologie? Às vezes é preciso juntar duas vogais, outras vezes separá-las. Nada daquilo era justo. Indignava-se.

Os mestres professavam à mesma hora, nos seus respectivos quartos — e como o tabique era fino, aquelas quatro vozes, uma aflautada, uma profunda e duas agudas, formavam uma algazarra abominável. Para acabar com aquilo e estimular os fedelhos pela emulação tiveram a ideia de os pôr a trabalhar juntos no museu; e começaram a tratar da escrita.

Os dois alunos, cada um na sua ponta da mesa, copiavam um exemplo. Mas a posição do corpo era má. Tinham que os endireitar; caíam-lhes as páginas, os aparos partiam-se, a tinta entornava-se.

Em certos dias Victorine ia bem durante cinco minutos e depois punha-se a traçar gatafunhos; e, tomada de desânimo, ficava-se de olhos no teto. Victor não tardava a adormecer, espojado no meio da secretária.

— Talvez sofressem... Uma tensão excessivamente forte prejudica os jovens cérebros.

— Paremos com isto — disse Bouvard.

Não há nada mais estúpido do que obrigar a aprender de cor; mas, se não se exercita a memória, ela atrofia-se; e repetiram-lhes continuadamente as primeiras fábulas de La Fontaine. As crianças aprovavam a formiga que entesoura, o lobo que come o cordeiro, o leão que fica com todos os quinhões.

Agora mais atrevidos, devastavam a horta. Mas que divertimento lhes haviam de dar?

Jean-Jacques, no Emílio, aconselha ao governador que mande fazer ao aluno os seus próprios brinquedos auxiliando-o um pouco, sem ele dar por isso. Bouvard não conseguiu fabricar um arco, Pécuchet não conseguiu coser um bola.

Passaram aos jogos instrutivos, tais como recortes, um copo a arder. Pécuchet mostrou-lhes o seu microscópio; e, com a vela acesa, Bouvard desenhava com a sombra dos seus dedos uma lebre ou um porco na parede. O público cansou-se daquilo.

Há autores que louvam como prazer uma almoço no campo, um passeio de barco; francamente, seria praticável?

Fénelon recomenda de tempos a tempos “uma conversa inocente”. Era impossível imaginar uma que fosse!

Voltaram às lições; e as bolas facetadas, as riscas nos minerais, a tábua de caracteres de imprensa, tudo fracassara — quando descobriram um estratagema.

Como Victor era inclinado à gula, apresentavam-lhe o nome de um prato: não tardou a ler correntemente no Cozinheiro Francês. Como Victorine era galante, dar-lhe-iam um vestido se, para o ter, ela escrevesse à costureira: em menos de três semanas realizou esse prodígio. Era cortejar os defeitos deles, meio pernicioso mas que havia resultado.

Agora que sabiam escrever e ler, que haviam de ensinar-lhes? Outra dificuldade. As meninas não têm necessidade de ser sábias como os rapazes. Pouco importava! Habitualmente educam-nas como verdadeiras rústicas e toda a sua bagagem se limita a tolices místicas.

Conviria ensinar-lhes línguas? “O espanhol e o italiano”, pretende o Cisne de Cambrai, “só servem para ler obras perigosas”. Tal motivo pareceu-lhes estúpido. Porém, Victorine não faria nada com aqueles idiomas; ao passo que o inglês é de uso mais comum. Pécuchet estudou as regras e demonstrava, com gravidade, a forma de emitir o th, “assim, olha — the, the, the!”

Mas, antes de instruir uma criança era preciso conhecer as suas aptidões. Adivinham-se através da Frenologia.

Mergulharam nela. Depois quiseram verificar as suas asserções nas suas próprias pessoas. Bouvard apresentava a bossa da benevolência, da imaginação, da veneração e da energia amorosa, vulgo: erotismo.

Sentia-se nos temporais de Pécuchet a filosofia e o entusiasmo, juntamente com o espírito de astúcia.

Tais eram os seus caracteres.

O que mais os surpreendeu foi reconhecerem tanto num como no outro a tendência para a amizade — e, encantados com a descoberta, abraçaram-se com ternura.

Em seguida o seu exame incidiu em Marcel.

O seu maior defeito, e que eles não ignoravam, era um extremo apetite. Contudo, Bouvard e Pécuchet ficaram assustados ao verificar por cima do pavilhão auricular, à altura do olho, o órgão da alimentividade. Com a idade, o criado viria a tornar-se talvez como aquela mulher da Salpêtrière, que comia quotidianamente oito libras de pão, engoliu de uma vez doze sopas — e de outra sessenta tigelas de café. Não poderiam aguentar isso.

As cabeças dos seus alunos nada tinham de curioso.

Talvez estivessem a fazer o exame mal... Um meio muito simples desenvolveu a sua experiência. Nos dias de mercado insinuavam-se entre os camponeses na Praça, entre os sacos de aveia, os cestos de queijos, os vitelos, os cavalos, insensíveis aos empurrões — e quando encontravam um rapazinho com o pai pediam para lhe apalpar o crânio com um fim científico.

A maioria nem sequer respondia. Outros julgavam que se tratava de uma pomada para a tinha e recusavam humilhados — e alguns, por indiferença, deixavam-se levar para debaixo do portal da igreja, onde estariam à vontade.

Uma manhã em que Bouvard e Pécuchet começavam a sua manobra o prior apareceu de repente; e vendo o que eles estavam a fazer, acusou a Frenologia de levar ao materialismo e ao fatalismo. O ladrão, o assassino, o adúltero, não têm mais do que lançar a culpa dos seus crimes para as suas bossas.

Bouvard objetou que o órgão predispõe à ação, sem contudo obrigar ninguém a ela. Do fato de um homem possuir o germe de um vício nada prova que venha a ser vicioso. “De resto, admiro os ortodoxos; eles defendem as ideias inatas e rejeitam as tendências. Que contradição!”

Mas a Frenologia, segundo Jeufroy, negava a omnipotência divina, e ficava mal praticá-la à sombra do lugar santo, mesmo diante do altar. “Retirem-se! Não, retirem-se!”

Estabeleceram-se na loja de Ganot, o barbeiro. Para vencer qualquer hesitação, Bouvard e Pécuchet iam ao ponto de oferecer aos pais uma barba ou uma ondulação do cabelo.

O médico veio uma tarde cortar o cabelo. Ao sentar-se na cadeira distinguiu reflectidos pelo espelho os dois frenólogos, que passeavam os dedos sobre cachimônias de crianças.

— Agora andam com essas asneiras? — disse ele.

— Por que asneiras?

Vaucorbeil fez um sorriso de desprezo; e depois afirmou que não havia no cérebro vários órgãos. Assim, um determinado homem digere um alimento que outro não digere. Haverá que supor no estômago tantos estômagos quantos os gostos? Um trabalho, porém, descansa do outro, um esforço intelectual não puxa ao mesmo tempo todas as faculdades. Cada uma tem, portanto, uma sede distinta.

— Os anatomistas não as encontraram — disse Vaucorbeil.

— Porque dissecaram mal — replicou Pécuchet.

— Como?

— Sim! Claro! Eles cortam fatias, sem ter em conta a conexão entre as partes — frase de um livro de que se recordava. — Ora aí está uma estupidez! —, exclamou o médico. — O crânio não se molda pelo cérebro, o exterior pelo interior. Gall está enganado e desafio-vos a legitimarem a sua doutrina tomando ao acaso três pessoas aqui na loja.

A primeira era uma camponesa, com grandes olhos azuis. Pécuchet, observando-a, disse: — Tem muita memória.

O marido testemunhou o fato e ofereceu-se também para a exploração.

— Oh! Você, meu valente, é difícil convencê-lo.

Segundo os outros, não havia no mundo ninguém tão teimoso como ele.

A terceira prova fez-se num garoto escoltado pela avó.

Pécuchet declarou que ele devia gostar de música.

— É o que eu acho! — disse a boa mulher. — Mostra aos senhores para eles verem.

Ele tirou da blusa um berimbau — e pôs-se a soprar.

Ouviu-se um estrondo. Era a porta, fechada violentamente pelo médico que se ia embora.

Deixaram de duvidar de si mesmos e, chamando os dois alunos, recomeçaram a análise das suas caixas cranianas.

A de Victorine era geralmente regular, marca de ponderação — mas o irmão tinha um crânio deplorável! Uma eminência muito forte no ângulo mastoideu dos parietais indicava o órgão da destruição, do assassínio; mais abaixo uma tumescência era sinal da cobiça, do roubo. Bouvard e Pécuchet ficaram tristes com isto durante oito dias.

Havia que compreender o sentido das palavras; aquilo a que se chama combatividade implica o desprezo pela morte.

Se faz homicídios, pode também produzir salvamentos.

A aquisitividade engloba a habilidade dos trapaceiros e o ardor dos comerciantes. A irreverência é paralela ao espírito de crítica, a astúcia à circunspecção. Sempre um instinto se desdobra em duas partes, uma má e outra boa; destruir-se-á a segunda se se cultivar a primeira; e por este método uma criança audaciosa, longe de vir a ser um bandido, virá a ser um general. O cobarde terá apenas prudência, o avarento economia, o pródigo generosidade.

Um sonho magnífico os ocupou: se levassem a bom termo a educação dos seus alunos, fundariam um estabelecimento com a finalidade de corrigir a inteligência, dominar os caracteres, enobrecer o coração. Já falavam das mensalidades e do edifício.

O seu triunfo no Ganot tornara-os célebres — e vinham pessoas consultá-los para que lhes dissessem as suas hipóteses de fortuna.

Desfilou gente de todas as espécies: crânios em bola, em pera, em pão de açúcar, quadrados, elevados, apertados, achatados, com mandíbulas de boi, caras de pássaro, olhos de porco. Ora, tanta gente incomodava o barbeiro no seu trabalho. Os cotovelos roçavam o armário de portas de vidro que continha a perfumaria, desarrumavam os pentes, partiu-se o lavatório; e ele pôs na rua todos os amadores, pedindo a Bouvard e Pécuchet que os acompanhassem, ultimato que eles aceitaram sem murmurar, porque estavam um pouco cansados da cranioscopia.

No dia seguinte, iam eles a passar diante do jardinzinho do capitão, quando viram, conversando com ele, Girbal, Coulon, o guarda rural e o seu filho mais novo Zéphyrin, vestido de menino de coro. A opa que vestia era novinha, andava com ela antes de a devolver na sacristia — e era cumprimentado por isso.

Placquevent pediu aos cavalheiros que apalpassem o seu rapaz, curioso de saber o que pensariam.

A pele da testa parecia esticada; um nariz fino, muito cartilaginoso na ponta, caía-lhe obliquamente sobre lábios delgados; o queixo era pontiagudo, o olhar fugidio, o ombro direito alto demais.

— Tira o solidéu — disse-lhe o pai.

Bouvard enfiou-lhe as mãos no cabelo cor de palha; depois foi a vez de Pécuchet; e comunicavam um ao outro em voz baixa as suas observações: — Biofilia manifesta. Ah! Ah! A aprovatividade! Conscienciosidade ausente! Amatividade nula!

— Então? — disse o guarda rural.

Pécuchet abriu a tabaqueira e aspirou uma pitada.

— Nada de bom, hã?

— Palavra — replicou Bouvard — nada famoso.

Placquevent corou de humilhação. — Seja como for, vai fazer o que eu quiser.

— Oh, oh!

— É que eu sou o pai, que raio, tenho esse direito!...

— Em certa medida — respondeu Pécuchet.

Girbal meteu-se na conversa: — A autoridade paterna é incontestável.

— E se o pai for um idiota?

— Não faz mal — disse o capitão — o seu poder nem por isso deixa de ser absoluto.

— No interesse dos filhos — acrescentou Coulon.

Segundo Bouvard e Pécuchet, eles nada deviam aos autores dos seus dias, e os pais, pelo contrário, devem-lhes alimentação, instrução, atenções, enfim, tudo!

Os burgueses protestaram contra esta opinião imoral.

Placquevent sentia-se ferido por ela como por uma injúria.

— Por isso é que são lindos aqueles que os senhores recolhem nas estradas! Vão longe! Tomem cuidado.

— Cuidado com quê? — disse Pécuchet asperamente.

— Oh, eu não tenho medo de si!

— Nem eu.

Coulon interveio, moderou o guarda rural e fez com que ele se afastasse.

Durante alguns minutos ficaram em silêncio. Depois falou-se das dálias do capitão, que não deixou o seu auditório sem as ter exibido uma a uma.

Bouvard e Pécuchet voltavam para casa quando, cem passos à sua frente, avistaram Placquevent, e Zéphyrin, perto dele, erguia o cotovelo à maneira de escudo para se defender das bofetadas.

O que acabavam de ouvir exprimia sob outras formas as ideias do Sr. Conde; mas o exemplo dos seus alunos havia de testemunhar como a liberdade é mais forte que o constrangimento. Contudo, era necessária alguma Disciplina.

Pécuchet pregou no museu um quadro para as demonstrações; iriam manter um jornal onde os atos da criança anotados à noite seriam relidos no dia seguinte. Tudo se realizaria ao som da sineta. Como Dupont de Nemours, usariam primeiro a injunção paternal e depois a injunção militar, e foi proibido o tratamento por tu.

Bouvard tratou de ensinar contas a Victorine. Às vezes, enganava-se; riam-se disso, um e outra; depois, beijando-o no pescoço, no lugar sem barba, ela pedia para se ir embora e ele deixava-a partir.

Pécuchet bem tocava a sineta nas horas das lições e gritava pela janela a injunção militar, porque o garoto não vinha. As peúgas, tinha-as sempre caídas sobre os tornozelos; mesmo à mesa metia os dedos no nariz e não retinha os gases. A este respeito Broussais proíbe as reprimendas; porque “é preciso obedecer às solicitações de um instinto conservador”.

Victorine e ele usavam uma linguagem horrorosa, dizendo ê tamém em vez de “eu também”, ber em vez “beber”, el em vez de “ela”, premeiro, auga; mas como a gramática não pode ser compreendida pelas crianças e virão a sabê-la se ouvirem falar corretamente, os dois pobres homens vigiavam-lhes os discursos até se sentirem incomodados com isso.

Divergiam de opiniões quanto à geografia. Bouvard pensava que é mais lógico começar pela comuna. Pécuchet, pelo conjunto do mundo.

Com um regador e areia quis demonstrar o que era um rio, um ilha, um golfo; e sacrificou até três canteiros para os três continentes; mas os pontos cardeais não entravam na cabeça de Victor.

Numa noite de Janeiro, Pécuchet levou-o a campo aberto. Enquanto caminhavam defendia a astronomia; os navegadores utilizam-na nas suas viagens; Cristóvão Colombo sem ela não teria feito o seu descobrimento. Devemos gratidão a Copérnico, Galileu, Newton.

Fazia muito frio e no azul-escuro do céu cintilava uma infinidade de luzes.

Pécuchet ergueu os olhos. Como? Não estava lá a Ursa Maior; a última vez que a vira estava virada para outro lado; por fim reconheceu-a, e depois descobriu a Estrela Polar, sempre a norte, pela qual as pessoas se orientam.

No dia seguinte colocou no meio do salão um cadeirão e pôs-se a valsar à roda dele.

— Imagina que esta cadeira é o Sol e que eu sou a Terra! Ela move-se assim.

Victor olhava para ele cheio de espanto.

Pegou em seguida uma laranja, enfiou-lhe uma varinha para sinalizar os polos e depois cercou-a de um traço a carvão para marcar o equador. Depois disto, passeou a laranja à roda de uma vela, fazendo notar que os diversos pontos da superfície não eram todos iluminados simultaneamente, o que produz a diferença dos climas; e por causa da diferença das estações inclinou a laranja, porque a Terra não está direita, o que provoca os equinócios e os solstícios.

Victor não compreendera nada daquilo. Achava que a Terra gira sobre uma agulha comprida e que o Equador é um anel que lhe aperta a circunferência.

Com um atlas, Pécuchet descreveu-lhe a Europa; mas, deslumbrado com tantas linhas e cores, ele já não encontrava os nomes. As bacias e as montanhas não se harmonizavam com os reinos, a ordem política confundia a ordem física.

Talvez tudo aquilo se esclarecesse com o estudo da História.

Teria sido mais prático começar pela aldeia, depois pelo distrito, o departamento, a província. Mas como Chavignolles não tinha anais, tinham mesmo que se limitar à História Universal.

Está atravancada de tantas matérias que se devem apenas escolher as pérolas.

Para a história grega: “Combateremos à sombra”, o invejoso que baniu Aristides e a confiança de Alexandre no seu médico; quanto à romana: os gansos do Capitólio, o tripé de Cévola, o tonel de Regulus. O leito de rosas de Guatimozin é de considerar no que toca à América; quanto à França, inclui o vaso de Soissons, o carvalho de São Luís, a morte de Joana d'Arc, a galinha no púcaro do Béarnais — a dificuldade é escolher. Sem contar com “A mim da Auvergne” e o naufrágio do Vengeur!

Victor confundia os homens, os séculos e os países.

Contudo, Pécuchet não ia lançá-lo em considerações subtis e o volume dos fatos é um verdadeiro labirinto.

Concentrou-se na nomenclatura dos reis da França. Victor esquecia-se deles, por não conhecer as datas. Mas se a mnemotecnia de Dumouchel fora para eles insuficiente, que seria para o rapaz! Conclusão: a História só pode aprender-se com muitas leituras. Assim fariam.

O desenho é útil num grande número de circunstâncias; ora Pécuchet teve a audácia de ser ele próprio a ensiná-lo (do natural!), tratando imediatamente da paisagem. Um livreiro de Bayeux enviou-lhe papel, borracha, duas pastas de cartão, lápis e fixador para as suas obras — que, debaixo de vidros e em molduras, ornamentariam o museu.

A pé desde madrugada, punham-se a caminho com um pedaço de pão na algibeira; e muito tempo se perdia à procura de um local. Pécuchet queria ao mesmo tempo reproduzir o que se encontrava debaixo dos seus pés, o extremo horizonte e as nuvens. Mas os longes dominavam sempre os primeiros planos; o ribeiro escorria do céu, o pastor caminhava por cima do rebanho — e um cão adormecido parecia ir a correr. Pelo seu lado, desistiu.

Recordando-se de ter lido esta definição: “O desenho compõe-se de três coisas: a linha, o grão, o grão fino, mais a acentuação do traço — mas a acentuação do traço só o mestre a dá” — retificava a linha, colaborava no grão, vigiava o grão fino, e esperava a oportunidade de acentuar o traço. Essa ocasião nunca chegava, de tal modo a paisagem do aluno era incompreensível.

A irmã, preguiçosa como ele, bocejava diante da tábua de Pitágoras. Mlle Reine ensinava-lhe a costurar — e quando marcava roupa erguia os dedos tão delicadamente que, depois, Bouvard não tinha coragem de atormentá-la com a sua lição de aritmética. Haviam de voltar a isso num dia qualquer.

Não há dúvida de que a aritmética e a costura são necessárias num lar. Mas é cruel, objetou Pécuchet, educar as meninas exclusivamente com vista ao marido que vão ter. Nem todas estão destinadas ao himeneu, e se quisermos que mais tarde venham a dispensar os homens temos de lhes ensinar muitas coisas.

Podemos inculcar as ciências a propósito dos objetos mais vulgares; dizer, por exemplo, em que consiste o vinho; e Victor e Victorine tinham de repetir a explicação fornecida. O mesmo se passou com os temperos, os móveis, a iluminação; mas a luz era para eles o candeeiro, e nada tinha de comum com a chispa de uma pederneira, a chama de uma vela, a claridade da lua.

Um dia Victorine perguntou por que a madeira arde; os mestres se entreolharam embaraçados, porque a teoria da combustão os ultrapassava.

De outra vez, Bouvard falou desde a sopa ao queijo dos elementos nutritivos e aturdiu os dois pequenos com a fibrina, a caseína, a gordura e o glúteo.

Em seguida, Pécuchet quis explicar-lhes como se renova o sangue, e patinhou na circulação.

O dilema não é cômodo: se se parte dos fatos, o mais simples exige razões muito complicadas; se primeiro se colocam os princípios, começa-se pelo Absoluto, pela Fé.

Que decidir? Combinar os dois ensinos, o racional e o empírico; mas o processo duplo com um único objeto não será o contrário do método? Ah! Tanto fazia!

Para os iniciar na história natural, tentaram alguns passeios científicos.

“Estás a ver”, diziam eles mostrando um burro, um cavalo, um boi, “os animais de quatro patas são quadrúpedes. Os pássaros têm penas, os répteis escamas e as borboletas pertencem à classe dos insectos”. Tinham uma rede para as apanhar — e Pécuchet, segurando no animalzinho com delicadeza, fazia-lhes notar as quatro asas, as seis patas, as duas antenas e a tromba óssea que aspira o néctar das flores.

Colhia simples atrás dos valados, dizia-lhes os nomes, ou inventava-os para conservar o seu prestígio. De resto, a nomenclatura é o que é menos importante na Botânica.

Escreveu no quadro este axioma: “Toda a planta tem folhas, um cálice e uma corola, que contém um ovário ou pericarpo, onde está a semente.”

Depois ordenou aos seus alunos que colecionassem ervas ao acaso no campo.

Victor trouxe botões de ouro, uma espécie de ranúnculo cuja flor é amarela. Victorine trouxe um tufo de gramíneas; em vão procurou nelas um pericarpo.

Bouvard, que desconfiava do seu saber, procurou em toda a biblioteca e descobriu no Temido das Damas o desenho de uma rosa; o ovário não estava situado na corola, mas por baixo das pétalas.

— É uma exceção — disse Pécuchet.

Encontraram X, uma rubiácea que não tem cálice.

Assim, era falso o princípio apresentado por Pécuchet.

Tinham na horta tuberosas, todas sem cálice. — Uma doidice! A maioria das liliáceas não têm.

Mas quis um acaso que vissem uma gardênia (descrição da planta) — e ela tinha cálice.

— Ah, bom, se nem as próprias exceções são verdadeiras, em quem haviam de fiar-se?

Um dia, em outro daqueles passeios, ouviram pavões gritando, lançaram os olhos por cima do muro e de início não reconheceram a sua fazenda. O celeiro tinha um telhado de ardósia, a estacaria era nova, os caminhos empedrados. Apareceu tio Gouy: “Não é possível! São os senhores?” Quantas histórias dos últimos três anos, incluindo a da morte da mulher! Mas ele continuava forte como um carvalho.

— Entrem por um minuto.

Estava-se no começo de abril — e as macieiras em flor alinhavam nos três “montes” os seus tufos brancos e rosados; o céu cor de cetim azul não tinha uma nuvem; toalhas, lençóis e guardanapos estavam verticalmente pendurados, presos por molas de madeira a cordas esticadas. O tio Gouy levantava a roupa para passar quando de repente encontraram a Sra. Bordin, sem chapéu, de bata curta — e Marianne entregava-lhe nos braços trouxas de roupa branca.

— Às vossas ordens, meus senhores! Estejam como em vossa casa! Eu vou sentar-me, estou estafada.

O rendeiro propôs a toda a assembleia que bebessem um copo.

— Agora não — disse ela — sinto calor demais!

Pécuchet aceitou e desapareceu na adega com o tio Gouy, Marianne e Victor.

Bouvard sentou-se no chão, ao lado da Sra. Bordin.

Recebia pontualmente a sua renda, não tinha de que se queixar, já não estava de mal com ela.

A luz forte iluminava-lhe o perfil, um dos lados do cabelo negro descia até embaixo e os caracóis da nuca se colavam à pele ambarina, úmida de suor. Ao respirar, os dois seios subiam. O perfume da erva misturava-se ao aroma bom da sua carne sólida; e Bouvard teve uma recrudescência de fogosidade que o encheu de alegria. Então felicitou-a pela sua propriedade.

Ela ficou encantada e falou dos seus projetos. Para aumentar as zonas cultivadas iria deitar abaixo a cerca.

Victorine, naquele momento, trepava pelos taludes e colhia primaveras, jacintos e violetas, sem receio de um velho cavalo que pastava erva ali ao pé.

— Não é airosa? — disse Bouvard.

— Sim! Uma menina é uma coisa linda! — E a viúva soltou um suspiro, que parecia exprimir a longa tristeza de toda a sua vida.

— Podia ter tido uma.

Ela baixou a cabeça.

— Só dependia de si!

— Como?

Ele lançou-lhe um olhar tal que ela purpureou-se, como perante a sensação de uma carícia brutal — mas imediatamente disse abanando-se com o lenço: — O senhor perdeu uma boa ocasião, meu caro!

— Não compreendo — e, sem se levantar, ele ia-se aproximando.

Ela encarou-o de alto a baixo, longamente, e depois, sorridente e de olhos úmidos, disse: — A culpa é sua!

Os lençóis, à sua volta, cercavam-nos como as cortinas de um leito.

Ele inclinou-se sobre o cotovelo, roçando-lhe os joelhos com a cara.

— Por quê? Hã! Por quê? — E como ela estava calada e ele num estado em que os juramentos não custam nada, tentou justificar-se, acusou-se de loucura, de orgulho: — Perdão! Será como dantes!... Quer?... — Pegara-lhe na mão, que ela abandonava na dele.

Um golpe de vento brusco levantou os lençóis — e viram dois pavões, um macho e uma fêmea. A fêmea permanecia imóvel, com as patas dobradas, dorso erguido.

O macho, passeando à sua volta, arredondava a cauda em leque, emproava-se, cacarejava — e depois saltou-lhe para cima, recolhendo as penas, que a cobriram como um berço: e as duas grandes aves estremeceram num só frêmito.

Bouvard sentiu-o na palma da mão da Sra. Bordin. Ela soltou-se rapidamente. Estava à frente deles, boquiaberto e como que petrificado, o jovem Victor, olhando; um pouco mais adiante, Victorine, estendida de costas, ao sol, cheirava todas as flores que tinha colhido.

O velho cavalo, assustado pelos pavões, partiu com um coice uma das cordas, embaraçou as patas nela e, galopando pelos três pátios, arrastava a roupa lavada atrás de si.

Aos gritos furiosos da Sra. Bordin, Marianne veio a correr. O tio Gouy injuriava o cavalo: “Traste de pileca!

Estupor! Ladrão!” —, dava-lhe pontapés na barriga, batia-lhe nas orelhas com o cabo do chicote.

Bouvard ficou indignado por ver bater num animal.

O camponês respondeu: — Tenho esse direito! Ele é meu.

Não era razão.

E Pécuchet, que chegou entretanto, acrescentou que os animais também tinham os seus direitos, porque têm uma alma como nós — se é que a nossa existe.

— O senhor é um ímpio! — exclamou a Sra. Bordin.

Ttês coisas a exasperavam: a roupa que tinha que ser lavada outra vez, as suas crenças ultrajadas e o receio de ter sido vista há pouco numa posição suspeita.

— Julgava-a mais forte — disse Bouvard.

Ela replicou magistralmente: — Não gosto de descarados. — E Gouy começou a culpá-los a eles por ter feito mal ao cavalo, cujas narinas sangravam. Resmungava baixinho: “Raio de gente! la castrá-lo quando eles chegaram.”

Os dois pobres homens retiraram-se, encolhendo os ombros.

Victor perguntou-lhes Por que se tinham zangado com Gouy.

— É que ele abusa da força, o que está mal.

— Por que está mal?

Então as crianças não teriam qualquer noção de justiça? Talvez.

E nessa noite Pécuchet, com Bouvard à direita, algumas notas na mão e os dois alunos à frente, começou um curso de moral.

Esta ciência ensina-nos a dirigir as nossas ações.

Elas têm dois motivos, o prazer e o interesse — e um terceiro mais imperioso: o dever.

Os deveres dividem-se em duas espécies: Primo, deveres para connosco mesmos, que consistem em cuidarmos do nosso corpo, defendermo-nos de qualquer injúria. Isso eles compreendiam perfeitamente. Secundo, deveres para com os outros, isto é, sermos sempre leais, complacentes e até fraternos, porque o gênero humano é uma única família.

Muitas vezes agrada-nos uma coisa que prejudica os nossos semelhantes; o interesse difere do Bem, porque o Bem é por si mesmo irredutível. As crianças não percebiam. Ele deixou para a próxima vez a sanção dos deveres.

Em tudo aquilo, segundo Bouvard, não chegara a definir o Bem.

— Como queres tu defini-lo? Sentimo-lo.

Então as lições de moral só se adequariam às pessoas com moral; e o curso de Pécuchet foi interrompido.

Mandaram ler aos seus alunos historietas que procuravam inspirar o amor à virtude e que enfastiaram Victor.

Para impressionar a imaginação deles, Pécuchet pendurou nas paredes do quarto imagens que descreviam a vida do Homem Bom e a do Homem Mau. O primeiro, Adolphe, beijava a mãe, estudava alemão, ajudava um cego e era admitido na Escola Politécnica. O mau, Eugene, começava por desobedecer ao pai, tinha uma briga num café, batia na mulher, caía de bêbado, partia um armário — e um último quadro representava-o na prisão de forçados, onde um senhor acompanhado de um rapaz dizia, apontando para ele: “Estás a ver, meu filho, os perigos do mau comportamento.”

Mas para as crianças o futuro não existe. Por mais que pregassem e os saturassem com a máxima segundo a qual o trabalho é honroso e os ricos às vezes são infelizes, a verdade é que eles tinham conhecido trabalhadores que ninguém honrava e se recordavam do solar onde a vida parecia ser boa. Os suplícios do remorso eram-lhes pintados com tanto exagero que farejavam naquilo uma patranha e desconfiavam do resto.

Tentaram levá-los pelo ponto de honra, a ideia de opinião pública e o sentimento da glória, gabando-lhes os grandes homens, sobretudo os homens úteis, como Belzunce, Franklin, Jacquard! Victor não mostrava qualquer vontade de se parecer com eles.

Um dia em que fizera uma soma sem erros Bouvard coseu-lhe no casaco uma fita que simbolizava a cruz. Ele pavoneou-se com aquilo. Mas, como se esquecera da morte de Henrique IV, Pécuchet pôs-lhe na cabeça umas orelhas de burro. Victor começou a zurrar com tanta violência e durante tanto tempo que houve que tirar-lhe as orelhas de cartão.

A irmã mostrava-se, como ele, lisonjeada pelos elogios e indiferente às censuras.

Para torná-los mais sensíveis, deram-lhes um gato preto para cuidar; e confiavam-lhes dois ou três soldos para darem esmolas. Acharam a pretensão odiosa; aquele dinheiro lhes pertencia.

Vergando-se a um desejo dos pedagogos, chamavam a Bouvard “tio” e a Pécuchet “bom amigo”, mas tratavam-nos por tu, e metade das lições, habitualmente, passava-se em discussões.

Victorine abusava de Marcel, fazia-o de cavalinho, puxava seus cabelos, para fazer pouco do seu lábio leporino falava pelo nariz como ele — e o pobre homem não se atrevia a se queixar, de tanto que gostava da menina. Uma noite a sua voz rouca subiu extraordinariamente de tom. Bouvard e Pécuchet desceram à cozinha. Os dois alunos observavam a chaminé — e Marcel, juntando as mãos, exclamava: “Tirem-no! É demais! É demais!”

A tampa da panela saltou como o estourar de uma bomba. Uma massa acinzentada subiu até o teto e depois, girando freneticamente sobre si mesma, soltou abomináveis gritos.

Reconheceram o gato, esgalgado, sem pelo, com um rabo que parecia um cordão. Da cabeça saíam-lhe olhos enormes. Eram cor de leite, como que esvaziados, e no entanto viam. O horrendo animal continuava a berrar, atirou-se para a chaminé, desapareceu, e depois voltou a cair no meio das cinzas, inerte.

Fora Victor que cometera esta atrocidade; e os dois pobres homens recuaram, pálidos de estupefação e horror. Às censuras que lhe dirigiram, o rapazinho respondeu como o guarda rural acerca do filho e como o rendeiro acerca do cavalo: “E então? Ele é meu!” Sem embaraço, ingenuamente, na placidez de um instinto saciado.

A água a ferver da panela tinha-se espalhado pelo chão; caçarolas, tenazes e brasas chamejantes juncavam o lajedo.

Marcel ficou algum tempo a limpar a cozinha — e os patrões enterraram o pobre gato na horta, debaixo do pagode.

Em consequência, Bouvard e Pécuchet conversaram longamente acerca de Victor. O sangue paterno manifestava-se. Que fazer? Entregá-lo ao Sr. de Faverges ou confiá-lo a outros seria uma confissão de impotência. Talvez ele viesse a emendar-se um pouco.

Mas a verdade é que a esperança era duvidosa e a ternura já não existia! Que prazer termos junto de nós um adolescente curioso das nossas ideias, cujos progressos observamos, que mais tarde se torna um irmão; mas Victor não tinha espírito, e ainda menos coração! E Pécuchet suspirou, com o joelho dobrado entre as mãos juntas.

— A irmã não é melhor — disse Bouvard.

Ele imaginava uma menina, mais ou menos de quinze anos, de alma delicada, humor jovial, adornando a casa com as elegâncias da sua juventude; e; como se fosse seu pai e ela acabasse de morrer, o pobre homem chorou por ela.

Depois, procurando desculpar Victor, alegou a opinião de Rousseau: a criança não tem responsabilidade, não pode ser moral ou imoral.

Aqueles, segundo Pécuchet, tinham a idade do discernimento — e estudaram os meios de os corrigir.

Para que um castigo seja bom, diz Bentham, deve ser proporcional à falta e sua consequência natural. Se a criança partiu um vidro, não se deve pôr outro para que ela sofra com o frio. Se, já sem fome, pede para repetir um prato, devemos ceder; uma indigestão depressa a fará arrepender-se. Se é preguiçosa, que fique sem trabalho; o tédio bastará para a reconduzir a ele.

Mas Victor não sofria com o frio, o seu temperamento podia suportar excessos, e a ociosidade bem lhe conviria.

Adaptaram o sistema inverso, o castigo medicinal.

Foram-lhe marcadas lições a dobrar e ele tornou-se mais preguiçoso. Privavam-no de compota e a sua gula redobrou com ISSO.

Teria a ironia algum êxito? Uma vez em que viera almoçar com as mãos sujas, Bouvard escarneceu dele, chamando-lhe coraçãozinho, alfenim, luvas brancas. Victor ouvia de olhos baixos, empalideceu de repente e atirou com o prato à cabeça de Bouvard; depois, furioso por não lhe ter acertado, precipitou-se para ele. Não seriam demais três homens para o conter. Ele rebolava pelo chão, tentava morder. Pécuchet regou-o de longe com um jarro de água; acalmou-se com isso; mas ficou rouco durante três dias. O processo não era bom.

Pegaram noutro; ao menor sintoma de cólera, tratando-o como um doente, deitavam-no na cama. Victor sentia-se lá bem e cantava.

Um dia descobriu na estante um velho coco; e começava a parti-lo quando apareceu Pécuchet.

— O meu coco!

Era uma recordação de Dumouchel! Tinha-o trazido de Paris para Chavignolles, e ergueu os braços de indignação. Victor desatou a rir. O “bom amigo” não aguentou mais — e com uma vigorosa cacholeta atirou-o ao chão no fundo do quarto; depois, a tremer de emoção, foi queixar-se a Bouvard.

Bouvard censurou-o. — Tu és parvo com o teu coco!

As pancadas embrutecem, o terror enerva. Também tu estás a degradar-te!

Pécuchet objetou que os castigos corporais são às vezes indispensáveis. Pestalozzi utilizava-os; e o célebre Melanchthon confessa que sem eles nada teria aprendido.

Mas houve castigos cruéis que levaram crianças ao suicídio; relatam-se exemplos disso.

Victor tinha-se barricado no quarto. Bouvard parlamentou atrás da porta; e, para o obrigar a abri-la, prometeu-lhe uma tarte de ameixas. A partir daí ele piorou.

Restava um processo, preconizado por Dupanloup: “o olhar severo”. Tentavam imprimir aos seus rostos um aspecto assustador e não provocavam qualquer efeito.

— Só nos falta tentar a Religião — disse Bouvard.

Pécuchet protestou. Tinham-na banido do seu programa.

Mas o raciocínio não satisfaz todas as necessidades.

O coração e a imaginação pretendem outra coisa. O sobrenatural, para muitas almas, é indispensável, e resolveram mandar as crianças ao catecismo.

Reine propôs-se levá-los lá. la lá a casa e sabia fazer-se amar com modos meigos. Victorine mudou de repente, ficou mais reservada, melíflua, ajoelhava-se diante de Nossa Senhora, admirava o sacrifício de Abraão, casquinava desdenhosamente ao ouvir a palavra protestante.

Declarou que lhe tinham prescrito o jejum. Eles informaram-se a este respeito e não era verdade. No dia de Corpus Christi, os goivos desapareceram de um canteiro para ornamentar o altar do Santíssimo; ela negou descaradamente tê-los cortado. De outra vez tirou a Bouvard vinte soldos que pôs na bandeja do sacristão.

Daqui concluíram eles que a moral se distingue da Religião; quando não tem outra base, a sua importância é secundária.

Uma noite, estavam eles a jantar, o Sr. Marescot entrou — e Victor fugiu imediatamente.

O notário não quis sentar-se e contou o que ali o trazia. O jovem Touache espancara e quase matara o seu filho.

Como eram conhecidas as origens de Victor e ele era antipático, os outros garotos chamavam-lhe Forçado; e nesse mesmo dia assentara no Sr. Arnold Marescot uma violenta surra. O querido Arnold ainda tinha vestígios na cara.

“A mãe está desesperada, a roupa está em farrapos, tem a saúde abalada, para onde vamos?”

O notário exigia um castigo rigoroso; e que Victor deixasse de frequentar o catecismo para prevenir novas refregas.

Bouvard e Pécuchet, embora feridos pelo seu tom arrogante, prometeram tudo o que ele quis, submeteram-se.

Teria Victor obedecido ao sentimento da honra ou ao da vingança? Fosse como fosse, não era um cobarde.

Mas a sua brutalidade assustava-os. Como a música suavizava os costumes, Pécuchet teve a ideia de lhe ensinar solfejo.

Victor teve muita dificuldade em ler correntemente as notas e em não confundir os termos adaggio, presto, smorzando. O mestre esforçou-se por explicar a escala, o acorde perfeito, a diatônica, o cromatismo e as duas espécies de intervalos, chamados maior e menor.

Obrigou-o a colocar-se muito ereto, peito para a frente, a boca toda aberta, e, para ensinar pelo exemplo, entoou em voz desafinada; a de Victor saía-lhe penosamente da laringe, de tal modo a contraía — e quando o compasso começava com uma respiração arrancava imediatamente ou tarde demais.

Contudo, Pécuchet começou com o canto a duas vozes.

Pegou uma varinha fingindo de batuta e agitava o braço magistralmente como se tivesse uma orquestra na frente; mas, ocupado com duas tarefas, enganava-se no tempo; o seu erro provocava outros no aluno e, de olhos na pauta, franzindo as sobrancelhas, esticando os músculos do pescoço, continuavam ao acaso até o fundo da página.

Por fim, Pécuchet disse a Victor: — Não brilharás nos orfeões — e abandonou o ensino da música. — Aliás, talvez Locke tenha razão: ela nos leva a companhias de tal modo dissolutas que mais vale tratarmos de outra coisa.

Sem querer fazer dele um escritor, seria cômodo para Victor que soubesse ao menos amanhar uma carta. Uma reflexão os deteve: o estilo epistolar não pode aprender-se porque pertence exclusivamente às mulheres.

Pensaram em seguida em enfiar-lhe na memória alguns trechos de literatura; e, embaraçados com a escolha, consultaram a obra da Sra. Campan. Ela recomenda a cena de Éliacin, os coros de Esther e todo o Jean-Baptiste Rousseau.

É um pouco antiquado. Quanto aos romances, proíbe-os, porque pintam o mundo com cores excessivamente favoráveis.

No entanto, permite Clarisse Harlowe e O Pai de Família de Miss Opie. — Quem será essa Miss Opie?

Não descobriram o nome dela na Biografia Michaud.

Restavam os contos de fadas. “Assim, vão esperar palácios de diamantes”, disse Pécuchet. A literatura desenvolve o espírito, mas exalta as paixões.

Por causa das suas, Victorine foi expulsa do catecismo.

Tinham-na surpreendido a beijar o filho do notário; e Reine não estava a brincar — tinha uma cara séria debaixo da touca de grandes canudos. Depois de um escândalo assim, como haviam de ficar com uma menina tão corrupta?

Bouvard e Pécuchet qualificaram o prior de velho animal. A criada defendeu-o. Eles replicaram e ela foi-se embora arregalando olhos terríveis e resmungando: “A gente bem vos conhece! A gente bem vos conhece!”

Com efeito, Victorine tomara-se de ternuras por Arnold, de tal modo o achava bonito com o seu colarinho bordado, o casaco de veludo, os cabelos bem cheirosos; e levava-lhe ramos de flores, até que foi denunciada por Zéphyrin.

Que imbecilidade esta aventura! As duas crianças eram de uma perfeita inocência.

Teriam então que lhes ensinar o mistério da geração?

“Não haveria mal nenhum russo”, disse Bouvard. O filósofo Basedow explicava-o aos seus alunos, mas só entrava em pormenores no tocante à gravidez e ao nascimento.

Pécuchet foi de opinião diferente, porque Victor começava a inquietá-lo.

Desconfiava de que ele tinha um certo vício. Porque não? Há homens sérios que o conservam durante toda a vida, e há quem diga que o duque de Angoulême se entregava a esse hábito. Interrogou o seu discípulo de tal maneira que ele lhe abriu as ideias, e pouco tempo depois deixara de ter qualquer dúvida.

Então chamou-lhe criminoso, e pretendia como tratamento obrigá-lo a ler Tissot. Essa obra-prima, segundo Bouvard, era mais perniciosa do que útil.

Mais valia inspirar-lhe um sentimento poético. Aimé Martin relata que uma mãe, num caso semelhante, emprestou A Nova Heloísa ao filho; “e para se tornar digno do amor, o rapaz precipitou-se no caminho da Virtude”.

Mas Victor não era capaz de sonhar com um Anjo.

— E se nós o levássemos às meninas?

Pécuchet exprimiu o seu horror às mulheres da vida.

Bouvard considera esse horror idiota; e falou até em fazer uma viagem de propósito ao Havre.

— Pensas nisso? Iam nos ver entrar!

— Bom, compra-lhe um aparelho!

— Mas o homem da loja achava que era para mim — disse Pécuchet.

Ele precisava era de um prazer movimentado, como a caça, o que acarretaria a despesa de uma espingarda, de um cão. Preferiram cansá-lo com o exercício e organizaram corridas no campo. O garoto escapava deles. Embora se revezassem, já não podiam mais, e à noite não tinham forças para segurar o jornal.

Enquanto esperavam Victor, conversavam com os transeuntes — e por uma questão de pedagogia tratavam de lhes ensinar higiene, deploravam a perda de água, o desperdício de estrume. Chegaram ao ponto de inspecionar as amas, e indignavam-se contra a dieta dos bebês. Algumas os empanturram de mingau de farinha, o que os faz desfalecer de fraqueza. Outras os enchem de carne antes dos seis meses — e estouram de indigestão. Algumas os limpam com a sua própria saliva; todas os tocam com brutalidade.

Quando viam numa porta uma coruja crucificada entravam na fazenda e diziam: — Fazem mal, esses animais vivem de ratos, de animais daninhos; já encontraram no estômago de uma coruja cinquenta larvas de lagarta.

Os aldeões os conheciam por tê-los visto primeiro como médicos, depois procurando móveis velhos, e depois catando pedras, e respondiam: — Fora daqui, seus tratantes! Não venham com lições!

A sua convicção vacilou. Porque os pardais limpam as hortas mas engolem as cerejas. Os mochos devoram os insectos e ao mesmo tempo os morcegos, que são úteis — e se as toupeiras comem as lesmas, a verdade é que arruínam o solo. Uma coisa de que estavam certos é que é preciso destruir toda a caça, funesta à Agricultura.

Uma noite em que iam a passar na mata de Faverges, chegaram diante da casa do guarda. Sord, à beira da estrada, gesticulava entre três indivíduos.

O primeiro era um tal Dauphin, sapateiro, baixinho, magro e de cara sonsa. O segundo, o tio Aubain, moço de fretes nas aldeias, que vestia uma velha sobrecasaca amarela com calça de algodão azul. O terceiro, Eugene, criado em casa do Sr. Marescot, distinguia-se pela barba, aparada como a dos magistrados.

Sorel mostrava-lhes um nó corredio, de fio de cobre, amarrado a um fio de seda seguro por um tijolo, aquilo que se chama de gola; descobrira o sapateiro colocando-a.

— Você é testemunha, não é?

Eugene baixou o queixo de maneira aprovadora — e o tio Aubain replicou: — Visto que você o diz.

O que enraivecia Sorel era o topete de terem colocado uma armadilha mesmo nas imediações da sua casa; aquele tratante julgava que ninguém a iria descobrir naquele local.

Dauphin assumiu o papel de choramingão. — Eu ia a passar por cima dela, estava até a tentar parti-la. — Estavam sempre a acusá-lo; era um desgraçado!

Sorel, sem lhe responder, tirara um caderninho da algibeira, uma pena e tinta para escrever um auto.

— Ah, não! — disse Pécuchet.

Bouvard acrescentou: — Solte-o, é um bom homem!

— Ele? Um caçador furtivo!

— Muito bem, mesmo que o fosse! — E começaram a defender a caça ilegal. Primeiro, sabe-se que os coelhos roem as plantas a despontar; as lebres estragam os cereais; só talvez a galinhola...

— Ora deixem-me em paz. — E o guarda escrevia de dentes cerrados.

— Que teimosia — murmurou Bouvard.

— Mais uma palavra e mando vir os guardas.

— O senhor é mesmo grosseiro — disse Pécuchet.

— E vocês uns zé-ninguém — respondeu Sorel.

Bouvard, de cabeça perdida, chamou-lhe ave de rapina e bufo! — e Eugene repetia: “Paz, paz”, enquanto o tio Aubain gemia a três passos deles em cima de um metro de pedregulhos.

Perturbados por estas vozes, todos os cães da matilha saíram das suas casinhas; viam-se através das grades seus olhos ardentes, os focinhos negros, e, correndo de um lado para o outro, ladravam assustadoramente.

— Não me aborreçam mais — exclamou o dono — que senão lanço-os atrás de vocês!

Os dois amigos afastaram-se, contentes por ter defendido o Progresso, a Civilização.

No dia seguinte receberam uma notificação para comparecerem no tribunal de polícia, por injúrias ao guarda — e ali ouvirem a sua condenação a cem francos de indemnização por perdas e danos “salvo o recurso do Ministério Público, dadas as contravenções por eles cometidas. Custas, seis francos e setenta e cinco cêntimos. Tiercelin, oficial de diligências”.

Por que um Ministério Público? A cabeça rodou. Depois, acalmando-se, prepararam a sua defesa.

No dia designado, Bouvard e Pécuchet foram à Câmara, chegando com uma hora de antecedência. Ninguém — cadeiras e três poltronas rodeavam uma mesa coberta por um pano; na parede havia um nicho para o fogão, e o busto do Imperador numa peanha dominava o conjunto.

Vaguearam até o sótão, onde havia uma bomba de incêndio, várias bandeiras — e a um canto, no chão, outros bustos de gesso: Napoleão sem diadema, Luís XVIII com dragonas sobre o fraque, Carlos X, reconhecível por causa da beiça caída, Luís Filipe, de sobrancelhas arqueadas e cabelo em pirâmide. A inclinação do teto roçava-lhes a nuca e estavam todos sujos de moscas e poeira. Este espetáculo desmoralizou Bouvard e Pécuchet. Os governos metiam-lhes pena quando regressaram à sala grande.

Ali encontraram Sorel e o guarda rural, um com a sua chapa no braço e o outro de quépi.

Havia uma dúzia de pessoas a conversar, acusadas de não terem varrido, cães vadios, falta de lanterna ou de terem mantido aberta uma taberna durante a missa.

Por fim, apareceu Coulon, enfiado numa toga de sarja preta e com um gorro redondo com veludo embaixo.

O escrivão pôs-se à sua esquerda. O presidente da Câmara, de faixa, à direita. — E chamaram logo a seguir o caso Sorel contra Bouvard e Pécuchet.

Louis-Martial-Eugene Lenepveur, criado de quarto em Chavignolles (Calvados), aproveitou-se da sua posição de testemunha para despejar tudo o que sabia sobre uma quantidade de coisas alheias à causa.

Nicolas-Juste Aubain, trabalhador manual, receava desagradar a Sorel e prejudicar aqueles cavalheiros, tinha ouvido palavrões, mas no entanto duvidava, alegou a sua surdez.

O juiz de paz mandou-o sentar-se e depois dirigindo-se ao guarda: “Confirma as suas declarações?”

— Certamente.

Em seguida, Coulon peguntou aos dois acusados o que tinham a dizer.

Bouvard sustentava não ter insultado Sorel, antes, ao defender Dauphin, defendera o interesse dos nossos campos. Recordou os abusos feudais, as caçadas ruinosas dos grandes senhores.

— Não interessa! A contravenção...

— Interrompo-o! — exclamou Pécuchet. — As palavras contravenção, crime e delito nada valem. Usar a pena para classificar os fatos puníveis é usar uma base arbitrária.

É o mesmo que dizer aos cidadãos: “Não se inquietem com o valor das vossas ações. Ele só é determinado pelo castigo do Poder”; de resto, o Código Penal parece-me uma obra irracional, sem princípios.

— Pode ser — respondeu Coulon. E ia pronunciar a sua sentença: “Atendendo...”

Mas Foureau, que era Ministério Público, levantou-se. Tinham insultado o guarda no exercício das suas funções. Se não se respeitarem as propriedades está tudo perdido. Em suma, quisesse o Sr. juiz de paz aplicar a pena máxima.

Esta foi de dez francos, sob a forma de indemnização por perdas e danos a Sorel.

— Muito bem — disse Bouvard.

Coulon ainda não tinha acabado: — Condeno-os a cinco francos de multa como culpados da contravenção invocada pela Ministério Público.

Pécuchet virou-se para o auditório: — A multa é uma ninharia para o rico mas um desastre para o pobre. A mim, não me apoquenta! — E tinha o ar de troçar do tribunal.

— Admira-me — disse Coulon — que cavalheiros de espírito...

— A si, a lei dispensa-o de o ter — replicou Pécuchet. — O juiz de paz ocupa o seu lugar indefinidamente, ao passo que o juiz do Supremo Tribunal só é considerado competente até os setenta e cinco anos, e o da primeira instância deixa de o ser aos setenta.

Mas, a um gesto de Foureau, Placquevent avançou. Eles protestaram.

— Ah, se tivesse sido nomeado em concurso...

— Ou pelo conselho geral...

— Ou por uma comissão de homens bons...

— Com base num título sério...

Placquevent empurrava-os; e saíram, apupados pelos outros acusados, que julgavam ficar bem vistos graças a este sinal de baixeza.

Para desabafar a sua indignação, foram à noite à estalagem de Beljambe.

O café estava vazio, porque os notáveis tinham o costume de se ir embora por volta das dez. Haviam baixado a luz do candeeiro; as paredes e o balcão distinguiam-se no meio de uma névoa.

Apareceu uma mulher.

Era Mélie.

Não pareceu perturbada — e, sorrindo, serviu-lhes dois copos de cerveja. Pécuchet, pouco à vontade, não tardou a sair do estabelecimento.

Bouvard tornou a ir lá sozinho, divertiu alguns burgueses com sarcasmos contra o presidente da Câmara e, a partir dali, passou a frequentar o botequim.

Dauphin foi absolvido dez semanas depois por falta de provas. Que vergonha! Suspeitavam daquelas mesmas testemunhas em quem tinham acreditado quando depuseram contra eles.

E a sua cólera foi ilimitada quando o Registo os avisou de que tinham de pagar a multa. Bouvard atacou o Registo como prejudicial à propriedade.

— Está enganado! — disse o perceptor.

— Ora essa! É ela que aguenta um terço da dívida pública! Sou a favor do processos de impostos menos vexatórios, de um cadastro melhor, de alterações ao regime hipotecário, e que se suprima o Banco de França, que tem o privilégio da usura.

Girbal não estava à altura de discutir com ele, caiu estrondosamente na opinião dos outros e não tornou a aparecer. No entanto, Bouvard agradava ao estalajadeiro; atraía gente; e, enquanto esperava pelos clientes habituais, conversava familiarmente com a criada.

Emitiu ideias divertidas acerca da instrução primária.

À saída da escola, todos deviam ser capazes de cuidar de doentes, de compreender as descobertas científicas, de se interessar pelas Artes! As exigências do seu programa levaram-no a zangar-se com Petit; e magoou o capitão ao pretender que os soldados, em vez de perder tempo em exercícios, fariam melhor se cultivassem legumes.

Quando se pôs a questão da livre troca, levou consigo Pécuchet; e durante todo o Inverno houve no café olhares furiosos, atitudes de desprezo, injúrias e berros, com punhadas nas mesas que faziam saltar as garrafas de cerveja.

Langlois e os outros comerciantes defendiam o comércio nacional; Voisin, dono de uma fábrica de fiação, Oudot, gerente de uma oficina de laminação e Mathieu, ourives, a indústria nacional; e os proprietários e rendeiros, a agricultura nacional — cada um exigindo para si privilégios, em detrimento da maioria. Os discursos de Bouvard e de Pécuchet eram alarmantes.

Como eram acusados de menosprezar a Prática, de tender para o nivelamento e para a imoralidade, desenvolveram estas três concepções.

Substituir o apelido de família por um número de matrícula. Hierarquizar os Franceses — e para cada um conservar o seu posto teria de tempos a tempos de fazer um exame.

Acabar com os castigos e as recompensas; mas haveria em todas as aldeias uma crônica individual que passaria à Posteridade.

Os outros desdenharam do sistema deles.

Sistema que expuseram num artigo para o jornal de Bayeux, numa nota ao prefeito, numa petição às Câmaras, num memorial ao Imperador.

O jornal não publicou o artigo; o prefeito não se dignou responder; as Câmaras ficaram mudas; e esperaram muito tempo por uma carta do Palácio. Com que é que estava ocupado o Imperador? Com mulheres, claro!

Foureau aconselhou-lhes mais reserva quanto ao subprefeito.

Eles troçavam do subprefeito, do prefeito e dos Conselhos de Prefeitura, e até do Conselho de Estado, pois a Justiça Administrativa era uma monstruosidade, porque a administração, através de favores e ameaças, governa injustamente os seus funcionários. Em suma, estavam a tornar-se incômodos — e os notáveis impuseram a Beljambe que não recebesse mais aqueles dois indivíduos.

Então Bouvard e Pécuchet quiseram assinalar-se por uma obra que, provocando inevitavelmente o respeito alheio, deslumbrasse os seus concidadãos — e não encontraram melhor que projetos de embelezamento para Chavignolles.

Três quartos das casas seriam demolidas; far-se-ia no meio do burgo uma praça monumental, um hospício do lado de Falaise, matadouros na estrada de Caen e, no Passo do Pousio, uma igreja românica e polícroma.

Pécuchet fez uma aguarela com tinta-da-china, não se esquecendo de colorir as matas a amarelo, as pastagens a verde, os edifícios a vermelho; os quadros de uma Chavignolles ideal perseguiam-no em sonhos! Virava-se repetidamente no colchão. Uma noite, Bouvard, acordou por causa disso. — Estás mal?

Pécuchet balbuciou: — Haussmann não me deixa dormir.

Por essa época recebeu uma carta de Dumouchel que queria saber o preço dos banhos de mar na costa normanda.

— Ele que vá passear com os seus banhos! Temos lá tempo para escrever! — E, quando arranjaram uma corrente de agrimensor, um grafômetro, um nível de água e uma bússola, começaram outros estudos.

Invadiam as casas; muitas vezes os burgueses ficavam surpreendidos por ver aqueles dois homens plantando marcos nos pátios. Bouvard e Pécuchet anunciavam tranquilamente o que dali viria. O Público inquietou-se porque sabia-se lá se a autoridade não alinharia com o parecer deles?

Às vezes eram mandados embora com brutalidade. Victor escalava os muros e subia para os telhados para lá pendurar um sinal; demonstrava boa vontade e até um certo ardor.

Estavam também mais contentes com Victorine.

Quando passava a roupa branca empurrava o ferro sobre a tábua cantarolando numa voz suave, interessava-se pela lida da casa, fez um barrete para Bouvard, e os seus pontos de piqué valeram-lhe os cumprimentos de Romiche.

Este era um dos alfaiates que vão às fazendas consertar roupas. Tiveram-no quinze dias em casa.

Corcunda, de olhos vermelhos, resgatava os seus defeitos corporais com um humor cômico. Enquanto os patrões andavam por fora divertia Marcel e Victorine contando-lhes histórias cômicas, botava a língua de fora até o queixo, imitava o cuco, fingia ser ventríloquo, e à noite, poupando as despesas de estalagem, ia dormir na casa do forno.

Ora, uma manhã, muito cedo, Bouvard, sentindo vontade de trabalhar, foi lá buscar lenha para acender o fogo.

Ficou petrificado pelo espetáculo.

Por trás dos restos da arca, em cima de um catre, Romiche e Victorine dormiam juntos.

Ele tinha-lhe passado o braço pela cintura — e a outra mão, comprida como a de um macaco, segurava num joelho dela, que estava de pálpebras semicerradas, o rosto ainda convulso num espasmo de prazer; sorria, estendida de costas. A abertura da camisa de dormir deixava-lhe a descoberto o peito infantil marmoreado de manchas vermelhas pelas carícias do corcunda. Os cabelos louros estavam soltos e a claridade da madrugada lançava sobre ambos uma luz alvacenta.

Bouvard sentira no primeiro momento como que uma pancada em pleno peito. Depois um certo pudor impediu-o de dar um passo, de fazer um gesto. Era assaltado por dolorosas reflexões.

— Tão nova! Perdida! Perdida!

Foi acordar Pécuchet e numa palavra disse-lhe tudo.

— Ah! Aquele miserável!

— Não podemos fazer nada! Acalma-te!

E ficaram muito tempo suspirando um diante do outro.

Bouvard sem sobrecasaca, de braços cruzados, e Pécuchet à beira da cama, de pés descalços e barrete de algodão.

Romiche devia ir embora nesse mesmo dia, porque terminara o seu trabalho. Pagaram-lhe altivamente, silenciosamente.

Mas a Providência estava contra eles.

Marcel levou-os em passos sorrateiros ao quarto de Victor e mostrou-lhes no fundo da sua cômoda uma moeda de vinte francos. O garoto pedira-lhe que lhe arranjasse troco.

De onde provinha a moeda? De um roubo, evidentemente! E cometido durante as suas expedições de engenheiros.

Se viessem a exigi-la, eles iriam parecer cúmplices.

Por fim, chamaram Victor e ordenaram-lhe que abrisse a gaveta; a moeda já não estava lá.

Mas a verdade é que ainda agora tinham pegado nela e Marcel era incapaz de mentir. Essa história o transtornava tanto que desde a manhã levava no bolso uma carta para Bouvard.

“Senhor, receando que o Sr. Pécuchet esteja doente, recorro à sua gentileza.” Mas de quem era a assinatura? “Olympe Dumouchel, em solteira Charpeau.”

Ela e o marido perguntavam em que localidade balneária, Courseulles, Langrune ou Ouristreham, se podia encontrar companhia menos ruidosa — e todos os meios de transporte, o preço da lavanderia, mil e uma coisas.

Esta impertinência encolerizou-os contra Dumouchel, e depois o cansaço mergulhou-os num desânimo mais pesado.

Recapitularam todo o trabalho que haviam tido, tantas lições, tantas precauções, tantos tormentos.

— E pensar — diziam — que em tempos queríamos fazer dela vigilante de estudos! E, ultimamente, fazer dele fiscal de obras!

— Se ela é viciosa não é por falta de leituras.

— Eu, para fazer dele um homem honesto, ensinei-lhe a biografia de Cartouche.

— Talvez lhes tenha faltado uma família, os cuidados de uma mãe.

— Eu era a mãe deles! — objetou Bouvard.

— Que desgosto! — continuou Pécuchet. — Mas há naturezas desprovidas de sentido moral; e a educação nada pode fazer contra isso.

— Ah, sim, a educação é uma bela coisa...

Como os órfãos não sabiam ofício algum, procurou dois lugares de criados — e depois que fosse o que Deus quisesse! Nunca mais se meteriam no assunto! E a partir dali o Tio e o Bom Amigo puseram-nos a comer na cozinha.

Mas não tardaram a aborrecer-se, porque os seus espíritos precisavam de um trabalho, as suas vidas de um objetivo!

De resto, que é que prova um fracasso? O que se tinha frustrado com crianças poderia talvez ser menos difícil com homens... E tiveram a ideia de fundar um curso de adultos.

Tinham de fazer uma conferência para expor as suas ideias. Para isso, conviria perfeitamente a sala grande da estalagem.

Beljambe, sendo adjunto, teve medo de se comprometer; começou por recusar, mas depois mudou de opinião e mandou dizer isso pela criada. Bouvard, no excesso da sua alegria, beijou-a em ambas as faces.

O presidente da Câmara estava ausente, o outro adjunto, Marescot, estava inteiramente tomado pelo seu cartório, e assim a conferência iria realizar-se e foi anunciada pelo tambor para o domingo seguinte às três horas.

Só na véspera pensaram em como iam vestidos.

Pécuchet, graças a Deus, conservara um velho traje de cerimônia de gola de veludo, duas gravatas brancas e luvas pretas. Bouvard vestiu a sua sobrecasaca azul, um colete de ganga, sapatos de pele de castor. E estavam muito comovidos quando atravessaram a aldeia.


O manuscrito de Gustave Flaubert fica por aqui.

Publicamos em seguida um extrato do plano encontrado entre seus papéis e que expõe a conclusão da obra.


Conferência

A estalagem. Duas galerias laterais de madeira no primeiro andar, com balcão saliente — corpo principal do edifício ao fundo — café no rés-do-chão, sala de jantar, bilhar — as portas e as janelas estão abertas.

Multidão, notáveis, gente do povo.

Bouvard: Trata-se em primeiro lugar de demonstrar a utilidade do nosso projeto; os nossos estudos dão-nos o direito de falar.

Discurso de Pécuchet, pedante.

Tolices do governo e da administração. Impostos a mais, duas economias a fazer: supressão dos orçamentos do exército e dos cultos.

Acusam-no de impiedade.

Pelo contrário, é necessária uma renovação religiosa.

Chega Foureau e quer dissolver a assembleia.

Bouvard provoca o riso à custa do presidente da Câmara a propósito dos seus prêmios imbecis pelos mochos. Objeção: “Se é preciso destruir os animais prejudiciais às plantas, então seria preciso destruir o gado que come erva.”

Foureau se retira.

Discurso de Bouvard, familiar.

Preconceitos: celibato dos padres — futilidade do adultério — emancipação da mulher. Os brincos que ela usa são o sinal da sua antiga servidão. — Coudelaria de homens.

Censuram-lhes o mau comportamento de seus alunos. Também, para que tinham adotado os filhos de um forçado...

Teoria da reabilitação. Jantariam com Touache.

Foureau, que regressa, lê, para se vingar de Bouvard, uma petição dele ao Conselho Municipal em que pede o estabelecimento de um bordel em Chavignolles — razões de Robin.

A sessão é encerrada no meio do maior tumulto.

Ao regressarem a casa avistam um criado de Foureau galopando pela estrada de Falaise à rédea solta.

Deitam-se muito cansados, sem suspeitar de todos os ódios que contra eles fermentam — motivos que têm para lhes querer mal o prior, o médico, o presidente da Câmara, Marescot, o povo, toda a gente.

No dia seguinte, ao almoço, tornam a falar da conferência.

Pécuchet vê o futuro da humanidade bem negro: o homem moderno está diminuído e tornou-se uma máquina.

Anarquia final do gênero humano (Buchner, I, II).

Impossibilidade de Paz (idem).

Barbárie devida ao excesso do individualismo e ao delírio da Ciência.

Três hipóteses. 1. 0, o racionalismo panteísta quebrará qualquer laço com o passado e seguir-se-á um despotismo desumano; 2. 0, se o absolutismo teísta triunfar, o liberalismo que se entranhou na humanidade desde a Reforma sucumbirá e tudo ficará alterado; 3. 0, se as convulsões que existem desde 89 continuarem, sem fim, entre duas soluções, essas oscilações arrastar-nos-ão pelas suas próprias forças.

Não haverá mais ideal, nem religião, nem moralidade.

A América conquistará a terra.

Futuro da Literatura.

Boçalidade universal. Tudo passará a ser apenas uma vasta pândega de operários.

Fim do mundo pela cessação do calórico.

Bouvard vê o futuro da humanidade em beleza. O homem moderno está em progresso.

A Europa será regenerada pela Ásia, pois segundo a lei histórica a civilização vai do Oriente para o Ocidente — papel da China — as duas humanidades serão enfim fundidas.

Invenções futuras: maneiras de viajar. Balão. Barco submarino com janelas, no meio da uma calma constante, pois a agitação do mar só existe à superfície — Ver-se-ão passar os peixes e as paisagens do fundo do oceano — animais domesticados. Todas as culturas.

Futuro da Literatura (contrapartida da literatura industrial). Ciências futuras. Regular a força magnética.

Paris, um jardim de inverno; espadeiras com fruta no bulevar.

O Sena filtrado e quente — abundância de pedras preciosas de fantasia — prodigalidade dos dourados; iluminação das casas: vamos armazenar a luz, porque há corpos que têm essa propriedade, como o açúcar, a carne de certos moluscos e o fósforo de Bolonha. As pessoas serão obrigadas a pintar as casas com a substância fosforescente, e a sua irradiação iluminará as ruas.

Desaparecimento do mal pelo desaparecimento da necessidade.

A filosofia será uma religião.

Comunhão de todos os povos, festas públicas.

Os homens chegarão aos astros — e quando a terra estiver gasta a humanidade vai se mudar para as estrelas.

Mal ele acabou: entrada dos guardas.

Quando os veem, terror das crianças — efeito das suas vagas recordações.

Desolação de Marcel.

Inquietação de Bouvard e Pécuchet. — Virão prender Victor?

Os guardas exibem um mandado de captura.

O que está em causa é a conferência. Acusam-nos de ter atentado contra a religião, a ordem, de terem excitado à revolta, etc.

Chegada súbita do Sr. e Sra. Dumouchel, com as suas bagagens; vêm tomar banhos de mar. Dumouchel não mudou; a Sra. usa óculos e compõe fábulas. — A perturbação deles.

Chega o presidente da Câmara, sabendo que os guardas estão em casa de Bouvard e Pécuchet e encorajado pela presença deles.

Gorgu, vendo que a autoridade e a opinião pública estão contra eles, quis aproveitar-se disso e escolta Foureau. Supondo Bouvard o mais rico dos dois, acusa-o de ter em tempos pervertido Mélie.

“Eu, nunca!” E Pécuchet treme. “E até de lhe ter feito mal.”

Bouvard protesta. Ao menos que lhe estabeleça uma pensão para a criança que vai nascer; porque ela está grávida. Esta segunda acusação baseia-se na intimidade de Bouvard no café.

O público invade a casa pouco a pouco.

Barberou, que veio à região chamado por um negócio do seu comércio, soube há pouco na estalagem do que se passa e aparece.

Julga Bouvard culpado, toma-o de parte e exorta-o a ceder, a estabelecer uma pensão.

Chegam o médico, o conde, Reine, a Sra. Bordin, a Sra. Marescot debaixo da sua sombrinha; outros notáveis. Os garotos da aldeia, do lado de fora da grade, atiram pedras para a horta. Ela está agora bem tratada e a população tem inveja.

Foureau quer arrastar Bouvard e Pécuchet para a prisão.

Barberou interpõe-se, e com ele interpõem-se Marescot, o médico e o conde com uma piedade insultuosa.

Explicar o mandado de captura: o subprefeito, ao receber a carta de Foureau, enviou-lhes um mandado de captura para lhes meter medo, e uma carta para Marescot e Faverges dizendo-lhes que os deixassem em paz se mostrassem arrependimento.

Tudo se acalma. Bouvard estabelecerá uma pensão a Mélie.

Porém, não se lhes pode entregar a direção das crianças. Eles recalcitram; mas não adoptaram legalmente os órfãos.

O presidente da Câmara repreende as crianças.

Elas demonstram uma insensibilidade revoltante.

Bouvard e Pécuchet choram por causa disso.

O Sr. e a Sra. Dumouchel vão-se embora.

Assim, tudo lhes estalou nas mãos.

Já não têm qualquer interesse na vida.

Uma boa ideia alimentada em segredo por cada um deles. Dissimulam-na e de vez em quando sorriem, quando ela lhes ocorre; depois comunicam-na um ao outro simultaneamente: copiar.

Confecção da escrivaninha dupla. (Recorrem para isso a um marceneiro. Gorgu, que ouviu falar daquela invenção deles, propõe-se fazê-la. Recordar a arca).

Compra de livros de cópia — e de utensílios, sandáraca, raspadeiras, etc.

Começam o trabalho.


O Autor

 

 


GUSTAVE FLAUBERT (1821-1880) situa-se no ponto de confluência das correntes romântica e realista. Submetendo o romance a regras fixas de observação, transformou-o em obra de arte harmônica, impessoal, que vive de sua beleza própria. Entre outros escritos de juventude, é autor de Les Funerailles du Docteur Mathurin (1839) — in As escadas não têm degraus (Cotovia, 1990) —, de Mémoires d'un Fou (1838) e de Novembre (Cotovia, 1991), que indiciam já L'Education Sentimentale. Depois de ter publicado La Tentation de Saint Antoine (1874), dedica-se a sua obra-prima — e obra-prima do romance moderno — Madame Bovary (1877) e finalmente escreve Bouvard et Pécuchet (1880).

 

(...) como se deve vigiar os costumes daquela gente, achara por bem confiscar-lhe o livro.

Bouvard tinha-o emprestado à criada. Conversaram acerca dos romances.

A Sra. Bordin gostava de romances quando não eram lúgubres.

— Os escritores — disse o Sr. de Faverges — pintam-nos a vida com cores lisonjeiras!

— Mas é preciso pintar! — objetou Bouvard.

— Então, não temos mais do que seguir o exemplo!...

— Não se trata de exemplo!

— Pelo menos, vai concordar que eles podem cair nas mãos de uma menina. Eu tenho uma.

— Encantadora! — disse o notário, fazendo a sua cara dos dias de contrato de casamento.

— Muito bem, por causa dela, ou antes, das pessoas que a rodeiam, proíbo-os em minha casa, porque o povo, meu caro senhor...

— Que fez ele, o povo? — disse Vaucorbeil, aparecendo de repente no limiar.

Pécuchet, que lhe reconhecera a voz, veio juntar-se ao grupo.

— Eu sustento — continuou o conde — que é preciso afastar dele certas leituras.

Vaucorbeil replicou: — Então não é a favor da instrução?

 

 

                                                                  Gustave Flaubert

 

 

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