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Planeta Criança



Poesia & Contos Infantis

 

 

 


BR 163 - Duas histórias na estrada / Tony Bellotto
BR 163 - Duas histórias na estrada / Tony Bellotto

                                                                                                                                                   

                                                                                                                                                  

 

 

Biblioteca Virtual do Poeta Sem Limites

 

 

BR 163 - Duas histórias na estrada

 

BR 163 - É reta e plana, com longos e cansativos trechos. O asfalto está malconservado, a sinalização desapareceu e o acostamento é de terra. A ausência de infraestrutura torna perigoso viajar à noite, principalmente de Cuiabá a Cáceres. As queimadas e os animais na pista são freqüentes.

Guia Quatro Rodas Brasil 1999

 

 

                                     A menina tatuada

 

A mulher me ofereceu a caneca com café e eu aceitei. Ela vestia saia jeans e camiseta com o nome de um candidato do PT a vereador. Usava sandália havaiana e não tinha os dentes da frente, nem os de cima nem os de baixo. O café era ruim pra cacete: doce e frio. Mas eu engoli e disse que estava legal. Faz parte do negócio, ganhar a simpatia, depois a confiança. Duas crianças - um menino e uma menina - ficaram me olhando. Troço intimidador. O menino devia ter uns seis, sete anos. Era um pouco mais velho do que a menina. Também usavam sandália havaiana mas vestiam japonas. É, estava meio frio mesmo.

 

"Por que elas estão sem meia?", perguntei para a mulher.

 

"Não adianta. Eles não gostam de usar meia. Pode reparar, nenhuma criança aqui no acampamento usa meia.”

 

Uma secreção verde escorria do nariz do menino. Escorria, não. Ficava parada ali, embaixo do nariz dele. Nem bem escorria para a boca, nem bem voltava para o nariz.

Ele continuava me olhando de um jeito que me fez sentir desvendada. Como quando um gato fica te olhando. Duas outras mulheres se apro ximaram enquanto eu observava o ranho fixo no nariz do menino. Elas eram mais jovens do que a que tinha me oferecido o café.

 

"É verdade que você é polícia?", uma delas me perguntou.

 

"É sim.”

 

Riram, meio nervosas.

 

"Vocês acham estranho?”

 

"Achamos.”

 

"Porque eu sou mulher?”

 

"Difícil ver polícia mulher.”

 

"Polícia homem vocês vêem bastante, né?”

 

"Só fardado. De roupa paisana não aparece, não.”

 

"Por que vocês acham estranho mulher polícia? Vocês não pegam na enxada e trabalham na lavoura feito homem?”

 

"Mas não trabalhamos com arma. Você tem arma?", perguntou a mais velha.

 

Fiz que sim com a cabeça. E fiquei pensando que de vez em quando aquelas enxadas, pás e foices que elas usavam viravam armas, sim. Muitas vezes contra nós mesmos.

Não que eu me inclua assim de corpo e alma nesse "nós", afinal de contas sou da Federal e geralmente quem lida com esse tipo de problema são os homens da Militar.

Mas enfim, aos olhos das pessoas somos todos "polícia", não é mesmo ?

 

"Posso ver a arma da senhora?", perguntou uma das mais jovens. A mais curiosa.

 

"Senhora, não", eu disse. "Não dá. Eu guardo a arma no carro." Apontei com o queixo na direção do Opala estacionado debaixo de um pé de jambo.

 

Elas olharam para o Opalão.

 

Minha arma estava no coldre, embaixo do braço. Usar um coldre para mim é tão natural quanto usar um sutiã, mas eu não ia mostrar o Doutor Smith para elas. Não ia mesmo. Quer di zer, pensando bem, talvez fosse divertido. Uma arma, para aquelas mulheres, é um negócio tão estranho quanto uma enxada para mim. Só que uma Smith & Wesson 4506

 

é muito mais excitante que uma enxada. Talvez um cavalo. É, dar uma volta a cavalo ia me deixar feliz. Mas aquelas coitadas não tinham nem terra para trabalhar, como iam ter um cavalo?

 

"Vocês não deviam deixar o carro embaixo do jambo", disse a mais velha - a que não tinha os dentes da frente, e não dava para não reparar nesse detalhe -, "a fruta cai e pode manchar o carro.”

 

"O Opalão é preto", eu disse. "Não tem problema.”

 

Não tem mesmo, o Opalão pertence à Polícia Federal, é um bem da União.

 

"O Opalão é nosso", eu disse.

 

"Teu e do outro polícia?", perguntou o menino.

 

O danadinho estava ligado na conversa. O ranho continuava lá, grudado entre o nariz e a boca.

 

"É. Mas também é teu, da tua irmã, da tua mãe, do teu pai e de todo mundo aqui no acampamento.”

 

"Aquele carro é meu?", ele perguntou, apontando para o Opala.

 

"É de todos os brasileiros. É da Federação. É nosso. ”

 

"É nosso nada", disse a mais velha. "Se não dão nem um pedaço de roça pra nós plantar, como é que vão dar um carro bonito desses?”

 

A mulher tinha razão. Acho que exagerei um pouco. O Opalão não era de ninguém. Olhei para o bicho: segurou legal a viagem até ali. O Cardoso veio bem, fez em menos de sete horas. Olhei o jambeiro. No orfanato também tinha um jambeiro. E mangueiras, mamoeiros, abacateiros, jabuticabeiras e uma porrada de outras frutas. De repente vi o Cardoso sair da barraca com uma cara de quem comeu e não gostou. Eu já esperava por isso. Ele também. Fez um sinal paramim e foi andando direto para o carro. Devolvi a caneca e me despedi das mulheres e das crianças. Aquilo parecia uma tribo de índios. O Cardoso na barraca, conferenciando com os caciques. Nós, as mulheres, esperando ali do lado de fora . "Na próxima vez eumostro minha arma", disse para elas, e caminhei até o Opala sem olhar para trás.

 

"O homem não está aqui e nem passou por aqui", disse o Cardoso.

Ele estava dirigindo, a estrada de terra era estreita e esburacada.

"Será que não está escondido numa daquelas barracas?”

"Não. Os líderes foram honestos comigo. Não está, não passou e se aparecer eles me avisam.”

"Como você conseguiu isso?”

"Explicando pra eles quem é o home m. Mostrando que um contrabandista é um puto a serviço dos burgueses ricos e que acobertar um bandido desses só ia enfraquecer o movimento deles.”

"Parece papo de comunista.”

"E é. Quando precisa eu viro comunista.”

"Eu nunca achei que ele ia ficar escondido num acampamento de sem-terra. Não ia dar esse mole", eu disse.

"Eu também. Mas temos de checar todas as informações, certo?”

"Certinho. ”

 

Ele olhou para a frente, com a atenção grudada na estrada. Passamos por um mata-burro e pegamos o asfalto. O céu ali era enorme e muito azul. O Cardoso precisava fazer a barba. Estava idêntico ao Fred Flintstone, com aquela mancha escura em volta da boca. O rosto acusava cansaço: olheiras, a pele sem viço. Mas o Cardoso é do bem. Tem muito agente preconceituoso com mulher. Não gostam de pegar missão em companhia de mulher. Acham que atrapalhamos, que ficamos menstruadas no meio de uma perseguição e eles vão ter de parar o carro para comprar absorventes. Pensam que começamos a chorar quando vemos um cadáver, essas coisas. Preferem as mulheres nos serviços burocráticos, atrás de uma mesa, atendendo telefone, passando fax. Aquele negócio de lugar de mulher é na cozinha. Na polícia, lugar de mulher é no escritório. O que eu já cansei de assinar e carimbar passaportes. Mas nessa missão não teve jeito. Eu já estava estudando as ações do homem havia meses. Ninguém na Federal sabia o que eu sabia (e sei) das conexões e ramificações do esquema dele. Até aí, tudo bem: eu não precisaria ter saído a campo. Já estava tudo acertado, o juiz tinha expedido o mandado de prisão baseado nas provas e no material incriminatório que eu havia reunido em meses de trabalho, e dois agentes foram enviados até Presidente Venceslau para executar a prisão. O problema foi quando ele sumiu. Alguém bateu para o homem que a Federal estava com o esquema da prisão dele armadinho.

Isso rola. Cagüetagem rola em qualquer meio. Nas melhores - e piores - famílias. Bateram para o homem e ele sumiu. Aí não teve jeito, tive de entrar em cena. O Maia não tinha como designar outra pessoa, ninguém conhecia a vida do homem tão bem quanto eu. O Maia, justiça seja feita, sempre foi legal comigo. Foi ele quem me deu de presente o Doutor Smith, quando fui promovida ao Departamento. E eu adoro. Essa é a parte mais excitante do trabalho na polícia: ir atrás, descobrir, enfrentar. Afinal foi por isso que eu virei polícia. O Maia foi esperto de chamar o Cardoso para chefiar a missão. O Cardoso é um cara sincero. Durão, mas sincero. Olhei para a cara dele. O tempo estava passando rápido para o Cardoso. E aquela barba. Se nós temos o incômodo mensal da menstruação, os homens têm o incômodo diário da barba. Todo dia! Deve ser um saco. O Cardoso acendeu os faróis, estava escurecendo.

"E agora?", perguntei.

"Estou morto. E você?”

"Cansada.”

"Vamos direto pró hotel.”

"OK.”

Para mim não é problema ficar sozinha. No orfanato a gente está sempre só, essa é que é a verdade. Dormíamos juntas, as meninas, no mesmo quarto. Tomávamos banho, comíamos juntas. Mas aquilo não era uma casa, um lar. Era um orfanato, caramba. Não tive sorte bastante para sair de lá. Nunca me adotaram. Talvez tenha sido melhor assim. Vai que eu tivesse caído na família errada. Existem muitas famílias erradas. Engraçado esse negócio. No Brasil as pessoas adotam as crianças muito branquinhas ou então querem logo as mais pretinhas. Moreninhas, tipo eu, dançam. A Jéssica, por exemplo. Foi minha melhor amiga durante toda a infância. Era preta. Quando foi adotada, chorei muito. Não só porque estava perdendo uma amiga. Mas porque não me conformava de ter sido ela, e não eu, a escolhida. Me lembro de pensar: mas é uma família branca, por que querem uma filha preta? Sei lá se isso faz sentido. A verdade é que dancei. Nunca tive uma família.

Saímos bem cedo, antes de o sol nascer. Fazia frio.

"Se a gente afrouxar o laço, o homem some. Se entoca direito e ninguém mais acha", disse o Cardoso. Depois acendeu um cigarro. O sol nem tinha nascido e ele já estava fumando. Fuma muito, o Cardoso.

Trabalhávamos com três informações diferentes.

Primeira: ele está escondido num acampamento de sem-terra no Pontal do Paranapanema.

Segunda: foi para uma das fazendas de outro bambambã do contrabando, Santo Milani (alguns probleminhas: o Santo já morreu e seu filho, Santiago, não se dá com o homem. Não sabemos a localização exata de nenhuma dessas fazendas, apenas que ficam no Mato Grosso do Sul, em algum lugar entre a fronteira com o Paraguai e o Pantanal).

Terceira: está no Paraguai, acobertado pela polícia local.

O homem tem dinheiro e contatos, então tudo é possível. Mas que é um trabalho de maluco, isso é. Três informações tão diferentes e todas fornecidas por gente nossa.

Se você for levar todo mundo a sério, o homem está em três lugares ao mesmo tempo: Pontal do Paranapanema, interior do Mato Grosso do Sul e borda paraguaia da fronteira.

Não duvido de nada. Já me aconteceram coisas inacreditáveis no exercício dessa profissão.

"Qual é o plano?", perguntei assim que o Cardoso jogou fora o toco do cigarro. Sei que antes de terminar o primeiro cigarro do dia é melhor não falar com o Cardoso.

E melhor nem olhar pra ele.

"Tenho um contato em Dourados.”

"Você acha que o homem pode ter ido pró Paraguai?”

"Duvido. Ele não ia querer se afastar tanto. Não ia largar o negócio e fugir que nem uma bichinha assustada. Ele está por aqui." Cardoso olhou a paisagem pela janela.

"Você não sente?”

“Sinto o que?

"A presença dele.”

Achei que os cigarros que o Cardoso fuma pela manhã estavam aguçando demais a sua sensibilidade: eu não sentia a presença de ninguém, não.

 

Não sei ao certo onde nasceu Geraldo Veronese. Provavelmente em alguma cidade do Oeste paulista: Sorocaba,, Tietê, Tupã, Marília, Assis, Presidente Prudente. O que ele fazia quando era menino, também não sei. Não há registros. Mas é fácil supor. O que fazem os garotos em cidades do interior? Birincam descalços, caçam passarinhos, brigam entre si, nadam nos lagos, rios, açudes, caixas-d'água e piscinas, se apegam aos cachorros, sonham em voz alta, inventam histórias, choram de do r e sentem medo da imensidão do céu noturno. Tive muitos amigos meninos. Mais que amigos, quase irmãos. No orfanato- somos todos quase irmãos. Hoje em dia não sei por onde andam. Sempre achei as brincadeiras deles mais atraentes que as das meninas. Ação. Mas não é fácil ser aceita no mundo dos honnens. E preciso provar lealdade. Homemtem muito esse negócio de lealdade, né? Entre os órfãos e os abandonados, então, a lealdade é imprescindível. É como na prisão. Mas Geraldo Veron-ese não era um órfão, nem um abandonado. Tinha pai e mãe como qualquer criança normal. (Bom, órfãos e abandonados também têm pai e mãe, o problema é que, quando não estão mortos, estão distantes, escondidos, desaparecidos, inatingíveis como fantasmas ou fugitivos.)

 

Os registros oficiais do Veronese começam quando ele tinha seus quinze, dezesseis anos. Abandonou a família e arrumou emprego como ajudante de borracheiro num posto de estrada perto de Presidente Venceslau. O trabalho no posto permitiu que conhecesse muitos caminhoneiros que faziam a rota São Paulo - Mato Grosso-Paraguai. Nas folgas semanais, juntava o dinheirinho que tinha ganhado, pegava carona nos caminhões e ia até Pedro Juan Caballero, no lado paraguaio da fronteira. Naquele tempo os produtos estrangeiros não taxados saíam baratíssimo no Paraguai. E não havia similares no Brasil. Ele trazia de tudo: tênis, calça jeans, brinquedos e aparelhos eletrônicos. Virou sacoleiro. Logo percebeu que todas aquelas bugigangas não rendiam nada se comparadas às armas e ao uísque. O que o uísque já rendeu de grana para bandido não é brincadeira. No Brasil, o uísque paraguaio é uma instituição tão sólida quanto o jogo do bicho, as brigas de galo ou a maconha pernambucana.

 

O dinheiro começou a entrar. Veronese largou o trabalho no posto, comprou um carrinho (não consegui descobrir a marca) e passou a agir sem intermediários. Depois do carro, comprou uma Kombi. Depois da Kombi, uma caminhonete. O negócio prosperou tanto que começou a incomodar o homem que controlava todo o abastecimento de uísque paraguaio naquela região: Santo Milani. O Santo vivia em Presidente Prudente e fazia anos que estava naquele ramo. Não contrabandeava só uísque, não. Armas, eletrodomésticos e motores também constavam do seu cardápio. Mas o uísque era a mercadoria mais procurada. Não tinha para ele. Até que as notícias dos negócios do Veronese começaram a preocupar o Santo. Ele estava perdendo clientes em algumas cidades. O Veronese, que não era burro, estava vendendo o uísque mais barato e com isso ganhou boa parte da clientela do Santo. Como sempre acontece em casos como esse, o confronto foi se tornando inevitável. Enquanto isso não acontecia, o Veronese foi tocando o negócio. Foi tocando a vida, também. Gostava da noite, o dinheiro estava entrando fácil e ele vivia em puteiros farreando. Até que conheceu uma puta na zona de Marília. Se apaixonou, tirou ela da vida. Casou com ela. Depois de alguns anos, veio um filho, Alan.

(Falando em Alan, a freira chefe do orfanato, a irmã Lair, tinha uma foto do Alain Delon escondida numa gaveta do armário dela, no quarto. Juro por Deus. Ela não sabe que eu descobri.)

 

Um belo dia o Santo chamou um homem de confiança dele e o enviou para Venceslau com uma mensagem para o Veronese. Mensagem clara e sintética como um telegrama: Você está atrapalhando o meu negócio. Cai fora antes que alguma coisa ruim aconteça para você ou para sua família.

 

O Veronese estava casado. Tinha um filho pequeno. Não ia adiantar nada bater de frente com o Santo. Sabia que o Santo poderia utilizar argumentos convincentes para tirá-lo da jogada. Argumentos incontestáveis: aprontar alguma para o filho ou a mulher.

 

Um sujeito normal teria recolhido o time naquele momento. Um mais ambicioso mandaria a família para longe e se armaria para o confronto. Mas o Veronese optou por outra estratégia, e é por essas e outras que eu tenho certeza de que não vai ser assim tão fácil pegá-lo.

 

Paramos num posto.

 

"Vamos comer", disse o Cardoso.

 

O Cardoso gosta de dar ordens. É o típico caga-regras. Se fosse eu no comando, chegava para o meu companheiro e dizia: "Eu estou com fome, e você? O que acha da gente dar uma paradinha?".

 

Mas o Cardoso é o tipo do cara que decide a hora em que todos devem comer baseado em sua própria fome. Entramos no restaurante do posto. Havia janelas grandes de vidro dando para a estrada. Numa das paredes tinham pintado um caminhão gigante, todo colorido, um negócio chamativo pra burro. No meio do salão, perto da mesa onde estavam as saladas, construíram um laguinho de azulejos azuis. Do meio do laguinho saía uma coluna em que despontava uma santa de gesso envolta em samambaias de plástico. O laguinho estava cheio de moedas. Acho que tinha uma lágrima desenhada no rosto da santa. Ou então era uma mosca. Tinha muita mosca por ali. Escolhemos uma mesa perto da janela, sentamos um ao lado do outro, de frente para a porta. Vício de tira: de olho no entra-e-sai. Bisbilhotando. Nas outras mesas, só caminhoneiros. Uns comendo sozinhos, outros em grupo. Nenhuma mulher.

Só homens e moscas. Quando entramos, todos olharam para nós. Se fosse um homem no meu lugar, seria fácil adivinhar: uma dupla de tiras. O Cardoso tem uma puta cara de tira. Comigo ali, a coisa ficava mais disfarçada. Fomos até o meio do salão e nos servimos de salada: alface, tomate, cebola, grão-de-bico. O Cardoso me viu botar uma cebola inteira no prato e perguntou: "Vai beijar alguém hoje?".

 

"Só se for você, babaca.”

 

Ele riu. Voltamos para a mesa, os garçons começaram a servir o rodízio. Eles eram todos louros e brancos e pareciam irmãos. Falavam com aquele sotaque cantado de

Santa Catarina. Encheram nossa mesa de guarnições: arroz, feijão, farofa, banana, polenta. O Cardoso avançou com apetite. Eu peguei leve, esperando a carne. Quando a carne chegou - e chegou com tudo, como tropa de choque em passeata de desempregado: picanha, fraldinha, maminha, galeto, lombinho, cupim, costela - foi uma decepção.

Dura, muito passada e com gosto forte. Decepção para mim, o Cardoso continuava atacando tudo com a disposição de um predador. Ele percebeu que eu não estava comendo a carne: "Não vai comer?".

 

"Muito dura. Só pra caminhoneiro, mesmo. Gosto malpassada.”

 

"Quer uma cerveja?”

 

"Guaraná.”

 

Um dos catarinas trouxe o guaraná e serviu nossos copos.

 

"Como é que tá o coração?", perguntou o Cardoso.

 

Eu sabia que ele não estava se referindo aos coraçõezinhos de galinha intocados no meu prato.

 

"Batendo.”

 

"Não é isso que eu estou perguntando.”

 

"Sozinho, como sempre.”

 

"Você tem que dar um jeito nisso, Lavínia. Uma menina bonita assim, jovem... não é direito.”

 

"Que conversa é essa, Cardoso? A gordura da picanha tá te deixando sentimental?”

 

"Você está precisando de homem.”

 

"Vá se foder, Cardoso.”

 

Ele riu e voltou a agredir o prato. É, o jeito que ele comia não era um ataque, era uma agressão.

 

"Já tenho um homem", eu disse.

 

"Fala um pouco mais da vida dele.”

 

"De novo?”

 

"Eu não entendo de novela, você não entende de futebol. Nosso papo é esse mesmo. Quem sabe você não deixou passar algum detalhe?”

 

"A grande jogada do Veronese foi convencer o Santo, que já estava rico com o uísque, a vender lança-perfume. Com isso ele transformou o rival em sócio.”

 

"Santo é foda. Quando o pai botou esse nome nele, não imaginou que o filho fosse virar bandido.”

 

"Tem muitos santos que levaram vidas horríveis mas se arrependeram no fim.”

 

"O Milani se arrependeu?”

 

"Não que eu saiba.”

 

"Como foi a jogada do lança-perfume?”

 

"O Santo estava ficando bem puto de perder a clientela do uísque. Ele tinha um bufê, o Bufê Milani, em Prudente. Fazia tudo quanto era festa de casamento, batizado, aniversário de debutante e encontros sociais. No interior tem muito disso, encontro do Rotary Club, Lions Club, Ténis Clube, Country Club. Ele também municiava de uísque os restaurantes, churrascarias, pizzarias. Cada festa ou restaurante que ele perdia para o Veronese era um tombo que tomava. Dizem que o velho não gostava de perder. Nem jogando bocha ele gostava de perder. Quando finalmente perdeu a paciência, mandou o recado para o Veronese em Venceslau.”

 

"Quem levou a mensagem?”

 

"Um jagunço do Santo, Nestor Capataz. Era um bugre do mato, homem criado em fazenda, acostumado a lidar com gado. Mas muito leal. Fiel como um cachorro. Ele chegou para o Veronese e passou o recado. Se manda, a coisa vai ficar feia pró teu lado. Mas isso não intimidou o homem, não. Disse que não tinha medo de ameaça e queria falar com o Santo cara a cara. Se quer me ameaçar, que me ameace pessoalmente. Os dois voltaram juntos para Presidente Prudente. Não sei que argumentos o Veronese usou para convencer o Santo, mas o fato é que saíram da conversa como sócios. Desconfio que o Veronese convenceu o Santo a ampliar os negócios com o comércio de lança-perfume.”

 

"Faz sentido. O que ele estava perdendo na divisão dos lucros do uísque seria plenamente recompensado pelos lucros do lança-perfume.”

 

"Só pode ter sido isso. Armas, ele já vendia.”

 

"Já estavam no contrabando, não custava nada entrar no tráfico", disse o Cardoso.

 

"Não é assim que funcionava a cabeça deles. Os dois sempre foram muito rígidos com isso. Nunca comercializaram droga. Receberam muita proposta, muita gente do tráfico quis se unir aos dois. Eles tinham os melhores sistemas de conexão, transporte e distribuição de mercadoria do Paraguai até o interior de São Paulo. Sabe o que rola de grana no interior de São Paulo? Isso aqui é país de primeiro mundo, Cardoso. Só fazenda, gado, grana, grana, grana. Eles tinham o esquema muito bem montado. É claro que malandro ficou de olho grande em cima. Mas eles não toparam. Droga, não.”

 

"Não importa o que eles achavam. Estavam no tráfico. Lança-perfume é um estupefaciente.”

 

"Pra eles o lança-perfume era como o uísque, algo para as pessoas ficarem mais alegres e soltas nas festas e nos bailes de Carnaval. O que eles vendiam de lança para os clubes durante o Carnaval não é brincadeira. Era proibido mas todo mundo cheirava. Prefeitos, figurões das sociedades locais, todo mundo cheirava. Havia complacência da polícia, não era como pó ou maconha. É diferente e eles tinham razão. Eles eram éticos nesse ponto. Se recusavam a negociar com traficantes de droga e expulsavam do esquema qualquer colaborador que se envolvesse com maconha ou pó. ”

 

"Éticos pra caralho. Vendiam arma, mas não vendiam pó.”

 

"Arma, pra eles, era como eletrodoméstico. Nenhuma relação com droga.”

 

"Tá bom.”

 

"É isso mesmo. O problema deles era a droga. Só ela. Era como uma lei. ”

 

"Essa lei durou até o Milani morrer", disse o Cardoso.

 

"Foi. O filho do Santo, Santiago, vivia tentando convencer o pai a abrir para a droga. Ele estava vendo que a droga iria quadruplicar o patrimônio que eles tinham levantado com o contrabando. Mas o Santo não quis saber de papo. Droga, não. Pouco tempo antes do Santo morrer, quando já estava abatido pela doença, o Santiago começou a trazer pó da Bolívia, escondido do pai e do Veronese. Depois que o Santo morreu, o Santiago tomou o lugar do pai e mudou todas as regras.”

 

"O Veronese tentou manter a sociedade com o Santiago?”

 

"Tentar, ele tentou. Mas por muito pouco tempo. Disse que maconha e cocaína ele não negociaria. Topava qualquer ne gócio menos droga. O Santiago chegou matando: Sem dro ga vamos todos à falência. A era do uísque paraguaio acabou. Vendendo revólver e aparelho de som pra filho de fazendeiro nós vamos acabar todos na merda. Ele tinha razão, a era do contrabando de uísque tava morrendo mesmo. Não só do uísque, mas de todos os produtos importados. Qualquer supermercado vendia os mesmos produtos pelos mesmos preços. E a verdade é que o Santiago puxou muito pouco o pai. Tava cagando pra princípios éticos. Cresceu como playboy, estourando carros em rachas, aterrorizando os puteiros e arrumando brigas horríveis em bailes e festas. Ficou famoso em Prudente. Era um menino mimado e violento. Brigão. Não tinha como o Veronese continuar com ele.”

 

"Por que não?”

 

"O Veronese tinha princípios, né?”

 

"Esses são os mais perigosos", disse o Cardoso.

 

"Quem? ”

 

"Os que têm princípios.”

 

Então eu não devo ser perigosa. Nunca tive princípios tão rígidos. Quer dizer, não me importo, às vezes, de desobedecer às regras. Se não fosse assim, não teria sobrevivido. Não me refiro ao trabalho na polícia. Nem ao pó ou ao fumo. Estou falando do orfanato. No orfanato há uma lei fundamental: não tente saber quem são os seus pais. Mas todo órfão e abandonado do mundo quer saber quem são (ou foram) seus pais. Não é óbvio? E legítimo? Desde sempre eu quis saber onde estavam meus pais. Eles morreram? Os olhares evasivos das freiras indicavam que aquela era uma pergunta que não devia ser feita. Um dogma a mais não ia fazer diferença nenhuma, não é mesmo? O cacete. Estão vivos? Como se chamam? Como é a minha mãe?

 

Eu costumava sonhar com isso. Minha mãe entrava no orfanato e dizia: "Pronto, filha, mamãe voltou. Vamos pra casa". No meu sonho minha mãe era gorda e tinha o rosto muito parecido com o da irmã Lair.

 

As coisas que a gente sonha.

 

Dormi depois do almoço. Sonhei umas coisas estranhas, acho que o Gabriel estava no meio. Engraçado, antes de dormir eu tinha sentido cólica, sempre sinto cólica quando estou para menstruar mas encano que é algum problema de útero ou ovário (tenho essa paranóia de que sofro de algum mal que vai me impedir de ter filhos), no fim das contas menstruo, passam as cólicas e não encano mais com isso até a próxima menstruação. Então foi sintomático sonhar com o Gabriel, pois se teve algum homem com quem cogitei casar e ter filhos, foi o Gabriel. Nome de anjo, né? De anjo não tem nada, o filho-da-puta. Safado que só ele. E lindo. Conheci na faculdade, hoje ele é promotor, mas a gente não se cruza mais. Acho que tem uma noiva. Fodase. Depois do Gabriel, para mim ficou difícil arrumar namorado. Na polícia só tem babaca. Incrível como homem inseguro e problemático acaba na polícia. Todos (quase todos, vai) neuróticos. Policial não me atrai. Advogado, promotor, professor eu gosto. Juiz acho legal também. Eu e o Gabriel namoramos uns três anos, quase todo o meu período na faculdade. Já estávamos para ficar noivos, ele se formou e aí a coisa foi esfriando. Não foi culpa dele nem minha. Esfriou, simplesmente. Tá certo que a mãe dele foi meio filha-da-puta.

Não gostava de mim. Achava esquisito o negócio do orfanato. Ô, bela - ela me chamava de bela -, mas você nunca ficou curiosa de saber como são seus pais? Falsa pra cacete. Deve ter feito a cabeça dele para desencanar de mim. O pai era legal. Homem culto, professor. Ele me ensinou muita coisa. Me emprestava livros, dizia que advogado não pode ficar bitolado lendo só livros de direito. Li Casa-grande Ó senzala, Os sertões, Outono do patriarca, O velho e o mar, Memórias de Adriano, e uns outros livros de que não lembro mais os nomes. Tudo indicação dele. Mas quem fazia a cabeça do Gabriel era a bruacona. O pai ficava na biblioteca, lendo. Então esfriou.

E nunca mais pensei em ter filhos. Mas vou ter. Vou sim. Difícil é achar um pai. Na polícia, nem pensar. De vez em quando saio com uns caras, mas incrível como homemfoge de mulher polícia. Nem homem polícia tem colhão de namorar mulher polícia. Bom, esses são os que menos têm. Caretas, machões, reacionários, antiquados. Mas até homem mais cabeça-feita, tipo professor, tem medo de mulher polícia. Tesão, eles têm. Não conheço um homem que não fica com tesão de ver uma mulher armada. Mas do tesão para o casamento é uma distância e tanto, né? Então eu estava dormindo, naquela estrada sem fim rumo a Dourados, e sonhei umas coisas estranhas, o Gabriel aparecia (era o Gabriel, mas estava meio diferente. Aquele negócio confuso de sonho) e a gente começava a transar numa praia, foi me dando tesão, de repente ele saía e começava a transar com outra garota na minha frente e eu ficava puta da vida, é a cara do Gabriel isso. E senti a cólica. Abri o olho, vi aquele estradão na minha frente. O Cardoso, no volante, parecia uma estátua. Fiquei preocupada que ele estivesse dormindo também. Dormindo de olho aberto. Mas não estava. O problema do Cardoso, na verdade, é o contrário: ele nunca dorme. À noite fica acordado de olho fechado. Então achei que tinha ficado menstruada, e esse é o grande tabu de uma mulher na Polícia Federal: ficar menstruada numa missão. Os caras pegam no pé, não tem jeito. O negócio é disfarçar.

 

"Pára num posto", eu disse. "Preciso ir no banheiro.”

 

"Tudo bem.”

 

Demorou um tempo para aparecer um posto. Quando apareceu um Atlantic, o Cardoso parou, eu disse que precisava pegar a mala. Ele desconfiou na hora. O Cardoso é foda.

Deu uma risadinha: "Precisa da mala pra fazer xixi?".

 

"Não enche. Abre o porta-malas.”

 

Ele não falou mais nada, abriu o porta-malas e ficou aquela sacanagem no ar. Peguei a mala, não era uma mala grande, eu sou prática em missão, levo pouca coisa.

No banheiro vi que era alarme falso, não tinha ficado menstruada nada. Mas estava para ficar. Quando voltei para o carro, não vi o Cardoso. O Opalão estacionado e trancado. Fui até o bar do posto, achei que o Cardoso ia estar tomando café ou bebendo água. Não estava. Eu com aquela mala na mão. Deve ter ido no banheiro, pensei.

Então vi que estava num orelhão, no lado de fora do posto. Na hora não achei nada. Podia estar ligando para a família ou para alguém no Departamento. Mas a cara que ele fez quando viu que eu estava olhando para ele foi estranha. Me deu um estalo. Com quem ele está falando? Ele chegou em seguida, meio sem graça. Fiquei na minha.

 

"Tava falando com o Dedo Grande", disse.

 

Eu não tinha perguntado nada, estava na minha.

 

"O Dedo Grande é o meu contato em Dourados. Tem o dedo e a língua bem compridos. E útil.”

 

"Tudo bem", eu disse. "E aí?”

 

"E aí o quê?”

 

"Que que o Dedo Grande falou?”

 

"Nada. Pedi pra ele se informar. Quando a gente chegar em Dourados ele já vai ter alguma coisa.”

 

Não sei por quê, mas fiquei com uma sensação meio esquisita. O Cardoso estava diferente. Vai ver ligou para uma amante, sei lá. Homem casado quando viaja fica louco para aprontar. Então eu deixei quieto e não pensei mais no assunto. Voltamos para a estrada, dormi de novo, não senti cólicas nem me lembro de ter sonhado.

 

Chegamos em Dourados e paramos numa praça cheia de flamboyants floridos. Cardoso foi até um orelhão ligar para o contato dele. O tal do Dedo Grande. Saí do Opalãoe aproveitei para esticar as pernas. Um velho bem enrugado estava vendendo pipoca. Ele sorriu para mim. Fui até onde ele estava e comprei um saco de pipoca doce vermelha. Estavam frias, mas saborosas. O Cardoso chegou: "O homem quer negociar".

 

"Falou com ele?”

 

"Claro que não. O Dedo Grande tá sabendo que ele quer negociar a rendição.”

 

"Como é isso?”

 

"Não sei. Temos que escutar o homem.”

 

"Viemos aqui pra prender ele.”

 

"Antes de prender, precisamos saber onde ele está.”

 

"Agora já sabemos.”

 

"Eu não sei de nada", Cardoso se espreguiçou, me olhando. "Me dá uma pipoca dessas.”

 

Ofereci a pipoca para ele. Notei que estava rindo. Detesto quando o Cardoso vem com esse paternalismo para cima de mim. Como se eu fosse café-com-leite.

 

"Qualé, Cardoso, tá rindo de quê?”

 

"Você ficou nervosa de repente.”

 

"Me explica direito o que aconteceu.”

 

"Um homem do Veronese entrou em contato com o Dedo Grande. O Veronese está por aqui. Eu sabia. Ele também farejou a nossa presença.”

 

"Que bonito. Dois cachorros se farejando.”

 

"Você está muito nervosinha. Tá de chico?”

 

O Cardoso é foda. Eu sabia que ele ia me jogar na cara. Questão de tempo. Esperou a hora certa.

 

"Não. Estou deprimida por não ter um focinho, como você.”

 

"Não enche meu saco, Lavínia. Um homem do Veronese quer se encontrar comigo. Pessoalmente.”

 

"Só com você?”

 

"Com nós dois. Disse que o patrão topa se render, com condições. ”

 

"Que condições?”

 

"Calma. Amanhã a gente vai saber.”

 

"Amanhã?”

 

"O encontro é amanhã.”

 

"Onde? ”

 

"Porra, Lavínia, você acha que o cara deu o endereço? Ele vai informar a gente no hotel. Fica calma. Vamos pró hotel.”

 

Quando me formei, a irmã Lair estava lá. Nada mais correto. A irmã Lair foi a única mãe que tive. Me lembro muito bem, me chamaram pelo nome, subi os degraus que levavam ao palco do auditório e peguei o diploma. Aplaudiram muito. Sempre fui muito querida na turma. Sabe como é, menina de orfanato, sem pai nem mãe, estudando com bolsa. Conseguir me formar em direito foi uma vitória e todo mundo reconheceu isso. Irmã Lair chorou. Não me lembro de ter vistoela chorando em outra ocasião. Durona. Mas não naquela noite: "Minha menina, minha menina".

 

Ela não ficou tão emocionada assim quando entrei para a polícia. Nem quando, pouco tempo depois, decidi procurar meus pais. Pelo contrário, ela tentou me fazer desistir das duas coisas. Inútil, ela sabia que não ia conseguir.

 

Por indicação das freiras do orfanato, me mudei para um pensionato de moças num bairro em São Paulo. Finalmente tinha um quarto só meu, e não precisava mais dividi-lo com quase-irmãs. Prestei concurso para agente da Polícia Federal e fui aprovada. No primeiro fim de semana longe do orfanato, voltei até lá para conversar com a irmã Lair. Ela disse: "Desiste de tentar encontrar teus pais, Lavínia. Eles te abandonaram. Eles não te quiseram".

 

"Como eu vim parar aqui?”

 

"Já te contei essa história. Tua mãe deixou você aqui. Você tinha menos de quatro meses.”

 

"Algum registro oficial?”

 

"Sim, mas não tem nenhuma informação importante. Só a data, a cor da tua pele e o teu peso.”

 

"Estranho.”

 

"Naquele tempo era assim. As mulheres ficavam com medo de se comprometer e não forneciam nenhuma informação. Até hoje é assim. Um pouco menos, mas ainda é.”

 

"Ela não disse o nome?”

 

"Fomos nós que escolhemos teu nome e te batizamos.”

 

"O nome dela, irmã.”

 

Ela fez que não com a cabeça.

 

"Quem foi a irmã que me recebeu?”

 

"Irmã Carmen.”

 

"A irmã Carmen já morreu. Não tinha ninguém junto com

 

ela? ”

 

"Não.”

 

Eu já conhecia esse filme, porra.

 

Acordei bem cedo e fui para o quarto do Cardoso. Pedimos café e ficamos sentados na cama. O Cardoso acendeu um cigarro, liguei a televisão e fiquei olhando um desenho animado. Scooby-Doo. O garçom chegou com o café. O Cardoso só tomou café preto e nem apagou o cigarro. Comi umas bolachas com manteiga e geléia de uva. O telefone tocou por volta das dez horas. O Cardoso atendeu. Desliguei a TV, me aproximei do telefone e tentei escutar o que o interlocutor dizia. Não consegui .

 

iooooioooo iooooioooo

 

Sei, sei.

 

Os "sei, sei" do Cardoso eram alternados por silêncios breves. O Cardoso me olhou de repente e disse: "Uma caneta, rápido".

 

Peguei a caneta e ele anotou uns garranchos no maço de cigarros.

 

"OK, daqui a meia hora", disse, e olhou o relógio.

 

O outro falou mais alguma coisa, o Cardoso disse OK, desligou o telefone e levantou da cama.

 

"Vamos. ”

 

"Qual é a parada?", perguntei, me levantando também.

 

"Daqui a meia hora alguém vai fazer contato.”

"Onde? ”

"Vinte quilómetros daqui.”

"Que lugar é esse?”

"Uma pista de pouso.”

"Pista de pouso?”

"É, Lavínia, uma pista de pouso. Vamos embora.”

"Você não vai ligar pra ninguém?”

"Pra quem você quer que eu ligue?”

"Pró Maia ou alguém do Departamento, avisar que a gente vai para uma operação arriscada. ”

O Cardoso me olhou muito sério: "Senta aí" .

Eu me sentei na cama. Ele sentou ao meu lado. Muito perto. Senti o hálito forte de café com cigarro. E o cheiro de homem.

"Você não entendeu ainda que essa é uma operação arriscada desde o começo?”

"Busca e prisão. Risco normal, calculado.”

"Continua a mesma coisa.”

"Nós dois no meio de uma pista de pouso? E se eles resolvem caçar os patinhos na lagoa? Um atirador razoável, bem posicionado, acaba com a operação com dois tiros.”

"O Veronese não ia ser louco de mandar atirarem na gente.”

"Por que não?”

"Porque não. Vamos", disse, e se levantou. Olhei para o telefone. O Cardoso olhou para mim: "Lavínia, quem está no comando da operação?" .

Eu me levantei e fomos embora.

 

As irmãs tinham um pacto entre elas. Só pode ser. Impossível ninguém se lembrar de nada. Nem uma simples descriçãozinha da minha mãe. Das doze freiras que já estavam no orfanato quando fui abandonada, dez não se lembravam direito daquele dia. "São tantas crianças." Duas se lembravam sim, mas não tinham reparado na minha mãe.

"Foi a irmã Carmen quem recebeu você." Era fácil botar a responsabilidade nas costas da irmã Carmen, ela já estava morta.

 

Um dia voltei ao orfanato disposta a esclarecer tudo, custasse o que custasse. Fui até a secretaria e fiz um levantamento dos funcionários que trabalhavam lá na época da minha chegada. De todos, só o seu Haroldo, o jardineiro, ainda fornecia seus serviços para as irmãs. Mas ninguém sabia o seu endereço. Tive de esperar mais cinco dias até chegar o dia em que ele trabalhava. Fazia trinta anos que, todas as terças-feiras de manhãzinha, religiosamente, seu Haroldo cuidava do jardim. Naquela terça-feira saí do pensionato bem cedo, antes de o sol raiar. Quando cheguei no orfanato ele já estava lá, ajoelhado, cortando a grama com uma tesourona velha. Voltei uns vinte anos no tempo: o farnelzinho acomodado num ninho de capim, a calça desbotada dobrada até o meio das canelas, seu Haroldo descalço. Seco como um galho de árvore. O cabelo branquinho, branquinho. O mesmo seu Haroldo de sempre, igual. Não tinha mudado um nada nos últimos vinte e cinco anos. Sempre magro, preto e velho.

Velhinho. Quantos anos teria?

 

"Oi, menina", disse quando me viu, sorrindo com a boca banguela.

 

Nenhum espanto, nenhuma curiosidade em relação a minha presença ali, tão cedo. Aquele era o seu Haroldo, sem dúvida. Me ajoelhei ao lado dele e perguntei: "Seu Haroldo, o senhor lembra do dia que eu cheguei aqui?".

 

"O primeiro dia?”

 

"O primeiro.”

 

"Claro que lembro, dona Lavínia.”

 

"Não me chama de dona.”

 

"Chamo sim. Me lembro que a mulher entrou aqui numa manhã bem fria.”

 

"A minha mãe?”

 

"Não sei se era a tua mãe. Mas te carregava no colo. Eu estava ali." Apontou com a tesoura uns arbustos que circundavam o prédio principal do orfanato. "Estava podando aquelas coroasde-cristo. Acho que era a tua mãe, sim, pelo jeito que ela te carregava.”

"Como ela me carregava?”

"Como mãe. Entrou andando bem rápido, com a senhora no braço. Era miudinha, miudinha.”

"A mulher era miúda?”

"Não, a senhora, dona Lavínia. ”

"E a mulher?”

 

"Normal. Nem alta nem baixa, moça, tinha o cabelo preto, meio crespo, bem comprido. O cabelo tava preso na nuca e descia até o meio das costas. Era bonita a mulher.”

 

Ele sorriu e a gengiva dele me lembrou um pedaço de mortadela.

 

"A mulher tinha alguma coisa que chamou a atenção do senhor?”

 

"O cabelo.”

 

"Além do cabelo.”

 

"As irmãs não gostam que a gente fale dessas coisas com os internos. ”

 

"Não sou mais interna. Agora sou da Polícia Federal." Tirei a carteira da bolsa e mostrei a insígnia para ele.

 

"Eu já soube, já soube!" Ele largou a tesoura e levantou os braços: "Ô, não vai me prender, hein?".

 

Riu e seu pomo-de-adão balançou de um jeito que fez seu pescoço sacudir como o pescoço de um peru. Ri também. Mais do pescoço que do gracejo.

 

Se o senhor não me contar tudo o que sabe sobre essa mulher, te prendo!”

 

Ele continuou rindo até seus olhos ficarem cheios de água. De repente, parou de rir: "Aqui, não. Mas se a senhora me pagar uma cachacinha depois do serviço, conto mais umas coisinhas sobre a mãe da senhora".

 

O Cardoso estava fumando mais do que o normal. Estava quietão, esquisito. Acho que estava nervoso. Eu também estava nervosa. O Opalão ia aos solavancos, rodávamos por uma estrada de terra esburacada. O Cardoso fumava e olhava para os lados, depois para o espelho retrovisor e para os espelhos laterais. Tá nervoso?", perguntei.

 

Ele deu de ombros: "Você está?".

 

"Não", menti.

 

"Fodidona.”

 

Chegamos na pista de pouso. Era uma pista de terra, cercada por capim e barbas-de-bode. Na cabeceira da pista havia um trator parado ao lado de um monte de terra.

Não tinha ninguém por ali. O Cardoso encostou o carro na estradinha que dava acesso à pista. Jogou o toco do cigarro para fora do carro e ficou olhando em volta.

Olhei também. À esquerda de onde estávamos parados, do lado oposto ao campo de pouso, havia um barranco de uns dois metros de altura. Do outro lado, circundando a pista, um capinzal imenso com vegetação baixa e alguns cupinzeiros. À nossa frente, a estradinha seguia por uns cem metros até uma ladeira. Depois da ladeira, não se via mais nada. Um lugar perfeito para uma emboscada.

 

"Vamos", disse o Cardoso.

 

"Não é melhor esperar no carro?”

 

"Enquanto a gente não sair, eles não aparecem.”

 

"Eles? ”

 

"Eles. Ele. Ela. Elas. Qual a diferença?”

 

"Quer que eu fique aqui, te dando cobertura?", perguntei.

 

"O cara que me ligou foi bem claro: eu e você no meio da pista. Vamos.”

 

"Tá com pinta de emboscada.”

 

"Deixa de ser cagona.”

 

Tirei o Doutor Smith do coldre e destravei o gatilho.

 

"Você vai com o berro na mão?", o Cardoso perguntou.

 

O bicho estava no meu pé, não tinha jeito. Travei o trilho e botei o Doutor Smith de volta no coldre. Botei a viola no saco, como dizem.

 

"Vamos lá, Lavínia. Não vai acontecer nada.”

 

Saímos do carro e fomos andando até a pista de terra.

 

Foi só depois da segunda cachaça que o seu Haroldo começou a rechear minha empada: "A mulher tinha um borogodó, um negócio diferente. Mas só reparei quando ela estava saindo do prédio. Na entrada não percebi. Quando saiu ela estava chorando, sozinha, a senhora tinha ficado lá dentro".

 

Fiquei olhando para ele, esperando.

 

"Fazia frio, ela estava de malha, mas usava um vestido e não calçava meias.”

 

"Sei. ”

 

"Tinha uma tatuagem. Uma ave grande, um gavião, um negócio assim, com duas asas abertas.”

 

"Uma águia?”

 

"Parecia mais um gavião.”

 

"Em que lugar do corpo ela era tatuada?”

 

"Na perna, de lado, um pouco pra cima do tornozelo.”

 

"Ficou de olho na perna da mulher, safado?”

 

"Era uma mulher bonita, já disse.”

 

"A tatuagem era na perna direita?”

 

"Aí complicou.”

 

"Era do lado de fora da perna?”

 

"É. ”

 

"Então era na perna direita.”

 

"Vocês aprendem a descobrir essas coisas na polícia?”

 

"O senhor estava podando as coroas-de-cristo, não estava? A mulher saiu pela porta da frente, não foi?”

 

"Foi. ”

 

"Então. Perna direita.”

 

"Foi isso mesmo. Tua mãe saiu por ali.”

 

"Minha mãe é a irmã Lair. Essa mulher tatuada só me pariu.”

 

"Parir é coisa de vaca, égua, cadela. Mulher dá à luz.”

 

"Pois é. Essa mulher me pariu.”

 

Comecei a investigar tudo quanto era hospital das regiões próximas do orfanato: Carapicuíba, Osasco, Taboão da Serra, Cotia, Embu, Itapecerica. Foi um trabalho do cão. Tinha de gastar muita conversa para encontrar um funcionário que se dispusesse a tentar se lembrar de um parto, vinte e cinco anos antes, em que uma mulher com um gavião tatuado na perna "dera à luz" - como diria o seu Haroldo - uma menina. O trabalho me tomou semanas. E olha que eu tinha a ajuda da carteira da Federal.

Sem a carteira, não conseguiria passar das recepções da maioria dos hospitais que visitei. Mesmo assim, o resultado foi frustrante: ninguém se lembrava de nada, a única mulher tatuada que encontrei foi uma diabética com um pôr-do-sol tatuado no pescoço. Detalhe: nunca tivera filhos. Depois de hospitais e maternidades, percorri pensões, hotéis, casas, bares. Passei carão. Deram risada de mim. Acharam que eu estava viajando de algum bagulho. Abandonei a região do orfanato e passei a investigar os hospitais de São Paulo. Aí foi a loucura total. Hospital do Servidor Público, Maternidade São Paulo, Hospital Municipal, Beneficência Portuguesa, Sírio-Libanês, Nove de Julho, São Luiz, São Camilo, Santa Catarina, Santo Isso, Santo Aquilo, resultado: nada.

 

Um dia, um dia não, uma noite, a irmã Lair me telefonou no pensionato. Eram dez horas e eu estava supercansada. Havia passado o dia assinando e carimbando passaportes e tinha perdido o horário de almoço numa investigação inútil no hospital da Universidade de São Paulo. Eu ainda não tinha pegado no sono, talvez por estar tão cansada

- sou assim, quanto mais cansada, menos sono -, e me lembro de ter ficado preocupada. Aquela não era uma hora comum de a irmã Lair me ligar. Freiras são como galinhas, dormem e acordam muito cedo. Desci apreensiva até o térreo e atendi o telefone.

 

"Como vai, Lavínia?”

 

"Indo, irmã.”

 

"Procurando ainda?”

 

"É. ”

 

"Achou alguma coisa?”

 

"Não.”

 

"Você não vai desistir, vai?”

 

"A senhora sabe que não.”

 

"Sei, sim. Vem me ver. Tenho uma coisa importante pra te dizer.”

 

"Agora? ”

 

"Se você puder.”

 

Cheguei no orfanato já eram mais de onze horas. Fazia tempo que eu não passava por lá. Irmã Lair estava me esperando no portão. Fomos até a sala dela. No corredor, ouvi som de televisão ligada.

 

"Na minha época a senhora mandava desligar a TV às nove.”

 

"As coisas vão mudando, Lavínia.”

 

O rosto dela também estava mudando. Muitas rugas em volta dos olhos, a pele flácida pendendo do pescoço. Na sala, ela sentou na poltrona, atrás da mesa, e eu sentei na cadeira, de frente para ela.

 

"O que a senhora tem pra me dizer?”

 

"Sei onde tua mãe está.”

 

Não fiquei feliz, ou triste, ou aliviada, ou histérica, ou confusa, ou satisfeita com aquela declaração. Fiquei nada. Um imenso nada, como uma geléia gigante, se apoderou de mim. Um nadão.

 

"Onde? ”

 

"No hospital, em Cotia. Ela está doente.”

 

"A senhora conhece a minha mãe?”

 

Ela fez que sim com a cabeça. Continuei ali, imobilizada por aquele nadão que me invadia.

 

"Ela entrou em contato comigo uns anos atrás. Perguntava por você, queria saber como estava indo, o que estava fazendo. Mas sempre implorava que eu não revelasse nada para você." Irmã Lair ficou em silêncio, me olhando. "Mesmo que ela não tivesse implorado, eu não teria contado.”

 

"Por quê?”

 

"Porque é melhor assim.”

 

Me lembrei naquele momento daqueles três pastorezinhos portugueses que testemunharam a aparição da Nossa Senhora de Fátima. Costumava ter um santinho com a foto deles, ali na mesa. Não tinha mais.

 

"E por que a senhora está me contando isso agora?”

 

"Não sei. Talvez porque ela esteja muito doente. Câncer." Ela ficou quieta de novo, mas não me olhava.

 

"Como é o nome dela?”

 

Os olhos da irmã se arregalaram para mim: "Maria Aparecida".

 

O Cardoso e eu ficamos um tempão ali, no campo de pouso, parados. Estávamos bem no meio da pista, feito dois pedaços de pau. Ouvimos o som de motor vindo do céu.

Um aviãozinho despontou no horizonte, se aproximando. O Cardoso botou a mão por dentro do blusão, num gesto instintivo.

 

"Eles vêm de avião?", perguntei.

 

"Ninguém me disse nada de avião." Ele tirou o 38 para fora e apoiou sobre a coxa, segurando firme.

 

"Porra, se marcaram um encontro numa pista de pouso, só pode ser porque vêm de avião", eu disse.

 

"Nada disso. Marcaram aqui pra ter uma visão boa da gente. Pra ter certeza de que não preparamos uma emboscada.”

 

O avião se aproximava bem rápido. Era um monomotor azul e branco.

 

"Emboscada foi o que dês prepararam", falei, e fiz menção de pegar o Doutor Smith.

 

Cardoso segurou o meu braço com a mão esquerda, me impedindo de pegar a arma.

 

"Calma. Não tem necessidade de pegar o berro.”

 

"Fácil falar, tá com o teu na mão.”

 

"Deixa comigo. Me obedece, porra.”

 

O homem estava uma pilha. Resolvi obedecer. Ele olhou mais uma vez para o avião, que já estava bem baixo, e mandou que eu o seguisse. Saímos do meio da pista e caminhamos até o capim, na beirada. Vimos o avião pousar levantando um poeirão e fazendo barulho. O Cardoso guardou a arma, mas continuou de olho grudado no avião. O bicho taxiou, estacionou, o barulho da hélice foi diminuindo até ela parar de girar. O Cardoso olhou para os lados, provavelmente calculando uma rota de fuga .

 

"Só faz o que eu mandar, certo?”

 

"Certinho.”

 

Abriram a porta do avião, eu podia sentir a tensão do Cardoso ao meu lado. Podia sentir a minha, também. Meu coração estava disparado. O primeiro a sair do avião foi um sujeito careca, jovem, de óculos escuros. Fez um sinal para nós. O Cardoso respondeu à saudação. Devia ser o piloto. Atrás dele desceram um homem barrigudo de cabelo branco e uma mulher magra. Estavam bem-vestidos. Depois desceu uma menina de uns quinze anos, por aí. Cabelo comprido, calça jeans, com um walkman enfiado nas orelhas. Uma família de fazendeiros, deduzi. Olharam para nós, mas não fizeram nada. Foram caminhando na direção oposta à que estávamos. O piloto ficou para trás, cobrindo a hélice com uma lona. O Cardoso não baixava a guarda, parecia um cachorro com as orelhas em pé. Uma perua Pajero prateada chegou e estacionou, a família entrou dentro. O piloto os alcançou em seguida, carregando duas malas. Também entrou na perua. Foram embora. Senti os músculos do Cardoso relaxando. A adrenalina tinha deixado a minha perna meio bamba. O Cardoso acendeu um cigarro. Sorriu: "Trabalhinho filho-da-puta esse que a gente arrumou".

 

Voltamos para o centro da pista e ficamos parados ali, de novo, como dois bobos. Quando ele acabou de fumar, disse: "Lavínia, preciso te falar uma coisa".

 

Achei o tom dele esquisito. Serião demais, como se estivéssemos numa solenidade de entrega de medalhas por bravura.

 

"Fala. ”

 

"O homem fez uma proposta.”

 

Fiquei olhando para ele.

 

"Ele quer arreglar o esquema.”

 

Senti ânsia de vómito, frio na barriga, moleza na perna. Ai, que merda.

 

"Quer liberar uma grana pra gente esquecer dele.”

 

Olhei para o lado. A porra da emboscada me assombrando

 

como uma nuvem escura.

 

"Qualé, Cardoso? Que papo brabo é esse?”

 

"Papo brabo é o caralho. Dinheiro alto. Dinheiro pra não precisar mais pensar em dinheiro. Independência.”

 

"To fora.”

 

Ele estava nervoso pra cacete.

 

Eu também.

 

"Não quer ouvir quanto?”

 

"To fora.”

 

Ele olhou para um ponto acima da minha cabeça, atrás de mim. Alguma coisa tinha chamado a atenção dele. Virei a cabeça para ver o que ele estava olhando. Um homemcaminhava na nossa direção. Magro, pernas tortas de caubói. Tentei puxar o Doutor Smith do coldre, mas o Cardoso já estava com o tresoitão dele apontado para a minha cara.

 

"Não faz loucura, Lavínia. Não caga em cima do pau. E dinheiro que você não vai ganhar nunca.”

 

Não tinha visto o puto do Cardoso tão tenso. Cagar no pau é uma imagem horrorosa. A mão dele tremia. O caubói se aproximava por trás .

 

"E muita grana, Lavínia. Como ganhar na sena.”

 

"Você pirou? E a tua reputação? O emprego, a família?”

 

"Ninguém vai saber. Todo mundo faz isso, Lavínia. A gente não pode perder a oportunidade.”

 

"E se for uma armadilha?”

 

"To pagando pra ver.”

 

"Me deixa sair fora, Cardoso. Não conto nada pra ninguém, juro por Deus.”

 

Ele sorriu um sorriso travado, metálico: "Gracinha".

 

Naquela noite voltei do orfanato e não consegui dormir direito. A imagem da irmã Lair me contando que conhecia a minha mãe não me largava. Acordada eu pensava naquilo.

Dormindo também. De manhã bem cedinho liguei para o Departamento e avisei que estava com cólica e não iria trabalhar. Fui direto para o hospital em Cotia. Quando cheguei, lembrei que já tinha passado por ali antes, perguntando pela tal mulher tatuada que, agora eu sabia, se chamava Maria Aparecida. Na época, ninguém se lembrou de nada. Foi estranho pronunciar aquele nome. Na recepção me disseram que ela estava no ambulatório e eu fui até lá. Entrei, vi seis camas, três de cada lado, todas ocupadas por mulheres. Duas dormiam, as outras quatro olharam para mim. A mulher que estava na última cama à esquerda, perto da janela, tinha olhos fundos, pele cor de parafina e foi a única que sorriu quando me viu. É ela, pensei. Minha mãe. Fui andando na direção dela, com o coração batendo forte e uma sensação esquisita de obrigação. Como se eu estivesse fazendo aquilo não por vontade própria mas por obrigação. Fui andando e uma outra coisa me chamou a atenção. Uma das mulheres que dormiam estava com uma parte da perna descoberta pelo lençol.

 

Perna direita.

 

É, a tatuagem.

 

Não era uma águia nem um gavião. Era uma pomba com as asas abertas. Em volta dela, uns risquinhos davam a idéia de que emanava luz, calor ou alguma espécie de energia mística. A tatuagem já estava bem gasta, com as cores desbotadas. Olhei o rosto da mulher. Dormia com expressão de dor. Ou desconforto. O rosto meio inchado e a pele sem cor dificultavam um palpite sobre a idade. Já estava nos "enta", com certeza. Entre quarenta e cinqüenta, mais para cinqüenta que para quarenta. Cabelo preto, crespo, forte, cheio de fios brancos. Lábios grandes, nariz achatado e manchas na pele. Cacete, era a minha mãe. Não me reconheci nela nem senti nenhuma emoção especial. Só uma mistura de nervosismo e frustração. É, de alguma maneira aquilo estava sendo triste, difícil e muito decepcionante. Fiquei um tempão olhando a mulher dormir. As outras doentes não falaram nada. Nem sei se me olharam. Não estava preocupada com o que elas estavam pensando. Chegou uma hora em que achei que devia acordar minha mãe. Não tive coragem. Ou vontade, sei lá. Era uma estranha com a qual eu não tinha a menor intimidade. Olhei a pomba tatuada. Passei a mão de leve sobre a tatuagem. Me senti bem daquele jeito, acariciando aquela pomba esmaecida. Porra, era a minha mãe! Não sei se a acariciava por vontade legítima ou se apenas agia da maneira como achava que uma filha deveria agir naquela circunstância. Ela abriu os olhos. Continuei fazendo carinho na tatuagem.

 

"Quem é você?", perguntou.

 

"A Lavínia do orfanato.”

 

"Filha. ”

 

Desmoronei. Não, implodi. Chorei que nem um nenê abandonado (eu era um nenê abandonado).

 

"É linda a tua tatuagem", eu disse, ainda chorando. Comentário besta. As coisas que a gente fala nessas horas.

 

"Teu pai adorava essa tattoo.”

 

"Cadê ele?”

 

"Vou me encontrar com ele já, já.”

 

"Ele vem pra cá?”

 

Ela sorriu um sorriso cansado: "Não, eu é que vou pra lá. Ele já morreu".

 

Devo ter chorado uns dez minutos seguidos. Ela também. Negócio maluco. Apareceram enfermeiras e nos ofereceram água com açúcar. Enfermeiras e pacientes choraram quando souberam da nossa história. As que não choraram, sorriram. Vieram médicos de outras alas do hospital conhecer a mãe e a filha que se reencontravam. Só faltouaparecer a televisão. Um desses programas que chantageiam as emoções do povão. Depois de muito tempo a gente conseguiu conversar um pouco. Ela disse que meu pai se chamava Fernando e era músico. Tocava guitarra e cantava num conjunto de baile, e tinha morrido alguns meses antes de eu nascer. Naquela época ela trabalhava como dançarina numa boate no centro de São Paulo, a Dakar, e foi lá que conheceu meu pai. Disse que ele cantava uma música de um cantor jamaicano, Jimmy Cliff "Many rivers to cross" era o nome da música -, e todas as mulheres ficavam loucas por ele. Era bonito e desprotegido. Ela usou esta palavra, desprotegido. Lembrei do Gabriel, ele também era desprotegido. E safado. Eles se apaixonaram mas meu pai nunca quis saber de casar. Continuei lembrando do Gabriel, mas depois esqueci, porque a história da minha mãe foi me envolvendo cada vez mais. Ela disse: "O Fernando era boêmio, bonito, charmoso e muito paquerador. Mulherengo, mesmo. Quando falei que estava grávida, ele foi se desinteressando de mim. Minha barriga apareceu e perdi o emprego. Ninguém me ajudou. Teu pai sumiu. Voltei

 

aqui para Cotia e fiquei morando de favor na casa de uma prima. Um dia, pouco antes de você nascer, recebi a visita de umas meninas da boate, minhas amigas. Me contaram que o Fernando tinha morrido de enfarte. Novinho, novinho. Dizem que quando enfarta assim, jovem, morre mesmo. Ele morreu. Foi a noite que acabou com ele. Músico bebe muito. Até hoje, quando dá, visito o túmulo dele no dia de Finados. Aí você nasceu, foi uma parteira, a dona Conceição, quem fez o parto, lá em casa mesmo".

 

Desde que me abandonara no orfanato, a vida da minha mãe tinha se tornado uma sucessão de erros e infortúnios. "Parecia que Deus estava me punindo por ter te abandonado.”

 

Uma via-crúcis: perdeu o emprego de dançarina na Dakar, não conseguiu se empregar nas outras casas da Boca. Começou a fazer programa na rua para sobreviver. Ficava em frente ao Jockey Club, mostrando os peitos e a bunda para os carros que passavam. Ficou alguns anos no Norte do Paraná (não guardei direito o nome da cidade,

Apucarana ou Maringá, não tenho certeza), como amante de um português rico, casado, que montou uma casinha para ela.

 

"Sempre sonhei com uma casinha só minha.”

 

Um dia o português morreu e ela teve de sair fugida da cidade, pois tivera o descaramento de aparecer no enterro do português e a viúva e os filhos quiseram linchá-la em pleno cemitério. Quando voltou do Paraná (uma viagem longa, pagando com sexo as caronas nos caminhões), lambeu a lama, trocando favores sexuais por goles de pinga embaixo de viadutos. Viveu anos sob viadutos na avenida Nove de Julho. Tentou se suicidar duas vezes. "Mas nem pra me matar tinha talento. Fui um fracasso em tudo na vida. Não fui mulher, não fui mãe, não fui puta. Fui uma merda.”

 

Quando já não via mais nenhum sentido na vida, voltou ao orfanato atrás de notícias minhas. "Nunca te esqueci. Não teve um único dia na minha vida que não pensei em você.”

 

A irmã Lair ajudou com dinheiro e conselhos espirituais. Freiras são boas nisso. Minha mãe voltou à casa da prima em Cotia e começou a trabalhar como doméstica e diarista. Quando as coisas começaram a melhorar, a doença apareceu. Impossibilitada de trabalhar, passava a maior parte do tempo naquele hospital.

 

"Apesar de tudo, hoje é o dia mais feliz da minha vida", ela disse. "Obrigada por ter vindo.”

 

Eu estava arrasada. Nem triste nem feliz, cansada.

 

Tem horas que você precisa pensar em salvar a pele. Continuar vivo. Como um bicho que não quer morrer. É instinto, não tem jeito. Quem está vivo, não quer morrer.

Não entendo suicida. Minha mãe disse que tentou se matar mas não acredito. Quem quer morrer, morre. É tão fácil morrer. Difícil é ficar vivo. Eu queria (e quero) continuar viva. Então disse para o Cardoso: "Tá bom, porra. Vamos nessa".

 

Eu estava tentando ganhar tempo, mas não conseguia pensar em nada. Estava puta da vida com o Cardoso.

 

"Me dá a pistola", ele disse.

 

"Qual é? To contigo na parada.”

 

"Me dá a pistola, Lavínia.”

 

Aquele tom grave da voz, sempre tão convincente. Entreguei o Doutor Smith para ele. O Cardoso enfiou minha pistola na cintura e guardou o três oito dele no coldre, dentro da jaqueta.

 

O caubói chegou por trás de mim e perguntou para o Cardoso: "Tudo certo?".

 

Ele estava com um coldre no cinto, como um caubói mesmo. Dentro do coldre tinha uma 45 de cano longo, prateadona.

 

"Tudo. Cadê a grana?”

 

"Na caminhonete, na estrada, depois da lombada. Vamos até lá.”

 

"A combinação era você me trazer a grana aqui na pista.”

 

"Não to te pagando uma gorjetinha que dá pra levar no bolso, xará. É grana grande. A grana tá numa sacola, não ia carregar até aqui.”

 

"Por que não?”

 

"Porque é pesada. Além disso, queria ter certeza de que estava tudo nos conformes.”

 

"Tá tudo nos conformes", .disse o Cardoso. "Por que você não veio com o carro até aqui?''

 

"E se você me aprontasse uma recepção? Botasse uma meia dúzia de soldadinhos me esperando? Sou escaldado com polícia, companheiro.”

 

"Não tem recepção nenhuma. Tenho palavra, meu. Tá tudo nos conformes", repetiu o Cardoso. O caubói me olhou no olho pela primeira vez. Depois me mediu de cima a baixo com aquela cara de macho viado que ele tinha. Detesto quando um viado me olha como se fosse macho. É tão fácil reconhecer um viado.

 

"Cadê o Veronese?", perguntei.

 

Ele riu: "Não tem Veronese. Tem o dindim do Veronese. Você gosta?" .

 

"Gosta do quê, babaca?”

 

"De dindim.”

 

"Vamos parar com essa merda e pegar logo a grana", disse o Cardoso.

 

"Ela gosta", disse o caubói, rindo de novo. Caubói viado é foda. Saiu andando e nós fomos atrás dele. O Cardoso estava meio pálido, cada vez mais nervoso. Ou culpado, arrependido, sei lá. Esquisito. Eu tentava olhar nos olhos dele, mas o judas não tinha coragem de me olhar na cara. Cagão. Fomos pela estradinha, passamos o Opalão e subimos a lombada. Sensação esquisita subir uma ladeirinha sem saber o que vem depois. Do alto da lombada avistamos na descida a tal caminhonete, uma Ford cor de vinho, estacionada ao lado do barranco. A estrada era tão estreita que a caminhonete, mesmo estacionada bem juntinho do barranco, ocupava metade da estrada. Do lado oposto do barranco, um pastão de capim se estendia até perder de vista. Mas não tinha nenhum gado ali, não. Continuamos seguindo na direção da caminhonete. O caubói ia na frente.

 

"Tem alguém no carro?", perguntou o Cardoso.

 

Eu, olhando, não vi ninguém.

 

"Tem não, companheiro", disse o caubói.

 

"E você deixou a grana sozinha?”

 

"Dindim não tem perna. Não foge.”

 

Nesse momento o caubói olhou pra gente e desacelerou o passo, ficando do nosso lado.

 

"Esquenta, não. Isso aqui não é São Paulo. Não tem ladrão aqui", disse, rindo.

 

Achei estranho ele se posicionar ali, do nosso lado. Fiquei olhando o Doutor Smith na cintura do Cardoso. Se pelo menos ele olhasse para mim, o judas. Mas olhar para mim seria como olhar para a própria consciência, não é mesmo? Dinheiro é negócio do diabo, não tem jeito. As irmãs estavam certas. Olha pra mim, Cardoso!, pensei, quem sabe eu não conseguia fazer um contato telepático. Nada. O judas estava com uma cara fechadona, enfiado nele mesmo. Conheço um pouco o Cardoso. Aquilo não estava sendo fácil para ele. Parei de pensar nos problemas de consciência do Cardoso quando observei dois movimentos acontecerem ao mesmo tempo: o caubói saiu ainda mais de lado, na direção do pasto, e alguém se levantou da caçamba da caminhonete. Usava um gorro preto e óculos escuros, e apontava um rifle na nossa direção.

 

Foi tudo muito rápido: o sujeito da caçamba começou a disparar e o caubói, ao lado do Cardoso, tirou a 45 do coldre e também saiu atirando. A minha sorte - e o azar dele - foi que os dois miraram o Cardoso. O erro deles foi terem mirado o Cardoso ao mesmo tempo. E a redenção do Cardoso - engraçado eu pensar nessa palavra, redenção, mas foi uma redenção mesmo - foi que enquanto estava sendo alvejado, em vez de tentar reagir, pegando o tresoitão, não, ele puxou o Doutor Smith da cintura e jogou para mim. Peguei o bicho no ar e saí disparando contra o caubói. Ele e o Cardoso caíram no chão ao mesmo tempo. Então o encapuzado da caminhonete começou a disparar na minha direção, mas eu rolei deitada até o barranco e me enfiei numa fenda de terra, uma terra vermelhona, cheirosa, e me agachei, tremendo. Tinha umas barbas-de-bode me roçando o rosto e o atirador não deu refresco, continuou atirando. Ouvi e vi os tiros do rifle arrancarem lascas de terra no barranco.

 

"Cardoso!", gritei, mas o corpo dele estava todo desmilingüido, largadão no meio da estrada. Nenhum movimento. Ele e o caubói. Não sou médica, mas achei que já estavam mortos. Ou quase. Dei uns pipocos na direção da caminhonete, mas eu estava sem ângulo e sabia que ia ser difícil acertar aquele filhoda-puta de gorro e óculos escuros. Não entendi o porquê daquela fantasia. Papagaiada do cacete. Eu tremia, a adrenalina corria como um busca-pé pelas minhas veias. Senti uma euforia estranha e passei a mão esquerda pelo corpo, para ver se não tinha sido atingida e não estava percebendo. Isso rola, nego leva um tiro e demora um tempo para perceber. Graças a deus não tinha nenhum furo de bala no meu corpo. Então pensei: Vou guardar munição, pois eu não tinha ângulo para acertar o atirador, mas ele também não podia fazer nenhum movimento em falso. Era levantar aquela cabeça de malaco da caçamba e eu acertava ele inteiro. O filho-da-puta de gorro. Tentei rezar, mas não consegui lembrar de nenhuma oração. Nem do pai-nosso eu lembrei.

 

"Cardoso!", gritei de novo, mas estava na cara que ele não ia poder responder. Depois fiquei quieta, pensando num monte de merda. O encapuzado ficou quieto, também.

Bom sinal. Estávamos num impasse, um respeitando o outro. Trégua é sinal de respeito, certo? Ele tinha acertado o Cardoso, eu tinha acertado o caubói. Um a um: jogo empatado.

 

Aproveitei a trégua para analisar melhor a situação. Se conseguisse escalar o barranco, ficaria numa posição bem melhor, tanto para acertar o atirador como para tentar uma fuga, se fosse o caso. O barranco não era muito alto, dois metros no máximo. O problema era que, se tentasse escalar, colocaria minhas costas à disposição das balas do encapuzado. Muito arriscado. Fora isso, não havia nenhuma opção, a não ser ficar ali, esperando algum movimento dele. Mas ele também não se movia. Então esperei. Não sei quanto tempo passou, nós dois ali, um tentando surpreender o outro. Lembro que fiquei mais calma, consegui rezar o pai-nosso e a ave-maria. Depois de rezar, mens truei. A hora que eu inventei de menstruar. Vai entender. Lembro também de ficar olhando fixamente para o corpo do Cardoso, na esperança de perceber algum movimento.

Mas ele não deu nenhum sinal de ainda estar vivo. Fiquei com muita pena dos filhos dele. Eu conhecia os meninos. Dois molequinhos muito bonitinhos, Zé Carlos e João

Pedro. Que merda, mais dois órfãos no mundo. Depois esqueci do Cardoso e comecei a pensar que aquela era uma estradinha pública, então alguma hora um carro ia passarpor ali. Quando passasse, tudo que tinha de fazer era aproveitar o momento para pular para cima do barranco. Quem sabe ainda não dava tempo de alcançar o Opalão e buscar uma ambulância e reforço policial? Daí lembrei que a chave do Opalão estava no bolso do Cardoso. Que merda, por que a gente não pensou em ter duas cópias da chave, uma comigo e outra com ele? A gente só pensa nessas coisas quando é tarde demais. Passou mais um tempo, comecei a achar que não ia aparecer carro nenhum.

Ainda faltava muito, mas se anoitecesse e eu ainda estivesse por ali, naquela situação, a coisa ia ficar muito estranha. Eu ali, suada, imunda, menstruada e apavorada.

Então comecei a chorar. Chorei baixinho para o encapuzado não perceber que eu estava chorando. Não ia dar esse mole. Não podia. De repente, ouvi a voz dele: "Vamos negociar".

 

Gelei. Eu conhecia aquela voz. Já a tinha escutado em gravações de grampos telefônicos. E também nos meus sonhos.

 

"Veronese?", perguntei.

 

E a voz, de novo: "Quem quer saber?".

 

Depois que conheci minha mãe, pensei que finalmente me tornaria uma pessoa normal. Pessoa normal, para mim, sempre foi aquela que sabe quem são seus pais. Eu era uma moça normal, filha de uma dançarina (meio prostituta) que estava prestes a morrer e de um músico (meio gigolô) que já estava morto. Tentei agir como uma filha normal, e passei a visitar minha mãe no hospital todos os dias. Levava flores, chocolates, revistas. Conversávamos sobre assuntos que, imaginava, filhas conversam com mães: vida de artistas, mudanças no tempo, receitas de brigadeiro e tramas de novelas. Tratávamos uma à outra por "mãe"e "filha". Num domingo, fui até o cemitério visitar o túmulo do meu pai. Na lápide de Fernando José da Silva não havia foto do morto, o que me deixou frustrada. Mesmo assim, rezei um pai-nosso e depositei flores sobre o túmulo. Com o tempo, fui espaçando as visitas ao hospital. Eu não estava realmente afeiçoada àquela mulher, que ainda era uma estranha para mim, e muitas vezes me perguntei se não estaria forçando uma situação. Não me sentia como alguém que estava de fato per dendo a mãe. Minha mãe continuava sendo a irmã Lair. A irmã Lair, por sinal, me ajudou muito nessa fase. A gente conversava horas e horas seguidas. Passei a freqüentar mais o orfanato do que o hospital. Muitas vezes a irmã Lair ia junto comigo ao hospital. Minha mãe também conversava bastante com a irmã Lair. Rezávamos juntas o terço. Dá uma paz muito grande rezar o terço com a irmã Lair. Apesar de todos os meus conflitos, tinha consciência de que estava ajudando minha mãe a ter um final de vida um pouco mais feliz. Porra, ela teve uma vida de merda.

 

Um dia, logo depois que fui promovida ao Departamento, recebi um telefonema de uma enfermeira do hospital.

 

"A tua mãe está chamando. Ela está muito mal.”

 

Era cedo ainda, e achei chato aquilo, afinal eu estava gostando do trabalho ali no Departamento e não queria me ausentar logo nos primeiros dias. Estava querendo impressionar o Maia e retribuir a força que ele tinha me dado me promovendo. Então achei que sair assim não estava certo. A cabeça da gente, como é louca. Os argumentos que a gente inventa para a gente mesma. Não saí na hora. Pensei: vou acabar meus compromissos, depois eu vou. Mas é claro que não consegui me concentrar em nada do que estava fazendo. O Maia mesmo reparou que eu estava esquisita.

 

"Você está se sentindo bem, Lavínia?”

 

"É que me ligaram do hospital, minha mãe está mal.”

 

"Vai pra lá, menina. Larga tudo e vai pra lá", ele disse. "Mãe a gente só tem uma.”

 

Olha que engraçado ele me dizer isso naquela hora. Mãe a gente só tem uma. Logo pra mim, que tinha duas. Ou que não tinha nenhuma.

 

Fui para o hospital. Eu ainda não sabia, mas aquela seria a última vez que veria minha mãe com vida.

 

Tinham tirado ela do quarto e levado para a UTI. A sala da UTI cheirava a álcool e clorofórmio. Ela estava deitada, com tubos enfiados nos pulsos e no pescoço. Senti uma moleza, vi tudo em câmera lenta, achei que fosse desmaiar e tive dúvida se ela ainda estava viva. A enfermeira percebeu minha hesitação: "Fala bem perto do ouvido que ela escuta".

 

Aproximei minha boca do ouvido dela e disse: "Ei, mãe".

 

Ela exalava um cheiro forte, como o de algumas freiras velhas do orfanato. Abriu um pouco o olho direito, o esquerdo ficou fechado.

 

"Preciso te confessar uma coisa", ela disse com muita dificuldade.

O que?

 

Esperei ela tomar fôlego.

 

"Teu pai não morreu.”

 

"Como assim?”

 

"Ele não morreu. E também não era guitarrista. Inventei tudo. ”

 

Aquela sensação de câmera lenta que eu estava sentindo sumiu de repente. Parecia que tinha tomado um choque elétrico na base da espinha dorsal. Meu coração disparou como quando você mergulha numa piscina gelada.

 

"Quem é que tá enterrado naquele túmulo?”

 

"O Fernando. Ele morreu e era guitarrista." Ela respirou fundo. "Mas não era teu pai. Foi só um... casinho que eu tive.”

 

Ela riu. A filha-da-puta morrendo, me falando aquela merda, e ainda ria. Ria de quê?

 

"Conheci teu pai na boate em que eu trabalhava, a Dakar. Era praticamente uma menina naquele tempo. Ele aparecia de vez em quando, com muito dinheiro. Sempre me escolhia, só queria ficar comigo. Quando eu não estava, as meninas diziam que ele perguntava por mim. Elas falavam: O teu fazendeiro andou te procurando. Ele era louco pela minha tatoo. Isso eu não inventei, não, quando disse pra você que o teu pai adorava ficar passando a mão na minha tatoo.”

 

Ela respirou fundo, aquela confissão estava dando um trabalhão para a minha mãe.

 

"Ele aparecia de tempo em tempo. Às vezes demorava a voltar. Aos poucos ia me contando a vida dele. Morava no interior, era casado, não tinha filhos. O maior sonho dele era ter um filho, mas a mulher não pegava filho. Fui me apaixonando, Lavínia, e ficava só com ele. Esperava por ele e enquanto ele não aparecia eu quase não fazia programa. Só quando precisava muito de dinheiro. Uma vez ele veio e disse que me dava todo o dinheiro que precisasse mas queria que ficasse só dele. Eu disse que já estava fazendo isso e não era por dinheiro. Ele perguntou: É pelo que então? Eu disse: Amor.”

 

Aquela palavra bateu mal na minha mãe. Ela engasgou, tossiu, a enfermeira chegou e falou: "Você está fazendo muito esforço. Não é bom".

 

Esperamos em silêncio a enfermeira se afastar um pouco. Minha mãe continuou falando, agora com mais dificuldade ainda: "Uma vez eu engravidei. Achei que ele fosse ficar feliz".

 

"Não ficou?”

 

"Sumiu. Nunca mais apareceu.”

 

"Sumiu? ”

 

"Sumiu. Nunca mais eu vi, nem tive notícia.”

 

"Por que você não me contou isso antes?”

 

"Imaginei..." Respirou fundo, as palavras estavam custando para sair. "Imaginei que você fosse querer procurar por ele. E ele não merece. ”

 

"E por que agora resolveu me contar mesmo assim?”

 

"Porque vou morrer.”

 

"Você não vai morrer nada.”

 

"Claro que vou. Já estou meio morta, agora. Não consigo abrir o olho. ”

 

Olhei bem para os olhos dela. O esquerdo estava um pouquinho aberto.

 

"Você tá de olho aberto, estou vendo.”

 

"Que nada. Resolvi contar tudo porque você é minha única filha, você é a única coisa que eu tenho. Não é certo não deixar você saber a verdade.”

 

Quando ela disse: Você é a única coisa que eu tenho, meus olhos se encheram de lágrimas. No rosto dela, além da expressão de dor, percebi um esboço de sorriso.

 

"Estou com medo de ir para o inferno", ela disse, brincando. Quer dizer, acho que estava brincando. Aquela afirmação espantou minhas lágrimas .

 

"E como é o nome do meu pai fazendeiro?", perguntei.

 

"Ele não era fazendeiro nada. Essa é a parte mais engraçada. Sempre pensei que fosse fazendeiro. Mas as meninas da boate me contaram depois que ele era bandido.

Um contrabandista poderoso do interior. Geraldo Veronese.”

 

"A tua filha", gritei.

 

Ele não disse nada. Natural, não é sempre que um homem pergunta: Quem quer saber?, para uma policial que o está interpelando e escuta: A tua filha, como resposta.

O sujeito fica, no mínimo, meio abalado. Levantei de leve o rosto para ver como ele estava reagindo à situação. Ele disparou um tiro na minha direção e eu abaixei a cabeça rapidinho.

 

"Não tenho filha!", ele gritou.

 

"Tem sim. A menina da Dakar, lembra? A menina tatuada com a pomba de asas abertas. Sou a filha de vocês dois.”

 

Esperei. Quando levantei a cabeça, ele estava encostado na dianteira da caminhonete, de frente para mim. Jogou o rifle no chão, tirou o gorro e os óculos e foi a primeira vez que vi o roSto do meu pai.

 

Oeste, Selene

 

O ônibus ia pela Raposo Tavares rumo ao Oeste do estado de São Paulo. Selene estava no ônibus, lendo uma carta. O sujeito sentado na poltrona ao lado era gordo e fedia muito. De vez em quando ela olhava pela janela e via o sol - brilhante como um ovo frito - iluminar a paisagem: asfalto, postos de gasolina, bóias-frias, capim, gado, coqueiros, terra, milho, soja, cana, café. Mas nem o vento que entrava pela janela conseguia dissipar o mau cheiro daquele homem.

 

"É do namorado?", ele perguntou de repente, apontando a carta aberta sobre o colo de Selene. Com um gesto rápido ela dobrou a folha de papel: "Não, é do meu pai".

 

"O seu pai mora em Venceslau?”

 

"Mora. ”

 

Fechou os olhos, como quem dorme, torcendo para que o gordo não perguntasse qual o endereço do pai. Ela não conhecia o nome de nenhuma rua em Presidente Venceslau.

 

O ônibus parou num posto à beira da estrada.

 

Selene comprou uma revista com fotos de artistas e celebridades e pediu queijo-quente com coca-cola.

 

"Servida?", disse o gordo, oferecendo um espetinho com pedaços gordurosos de frango. Selene não tinha percebido que ele se aproximara. Pensou: O que importa o cheiro de uma pessoa ?

 

"Não, obrigada.”

 

O ônibus voltou à estrada.

 

Selene resolveu dormir de verdade, antes que o gordo começasse a falar. Estava simpatizando com ele e isso não era bom sinal. Já havia cometido erros terríveis em nome da compaixão. Engoliu a seco meio comprimido de Dormonid.

 

Usando óculos que aumentavam o tamanho dos seus olhos - conferindo ao rosto um aspecto cômico -, Hélio Palito lia um livro. Fingia que lia. Olhou de rabo de olho para Eusébio. Ele roncava. Invejou a tranqüilidade com que dormia aquele homem velho cuja pele negra brilhava como ébano envernizado. Os últimos acontecimentos haviam transformado Palito num insone. Usava inibidores de apetite para permanecer acordado e varava as noites lendo. Isso contribuiu para que, apesar de naturalmente magro, perdesse peso e ganhasse olheiras. Tinha o aspecto de um homem acabado e essa era a mais correta definição que poderia conceber a respeito de si mesmo. Mas não queria morrer assassinado, nem dormindo nem acordado.

 

Voltou ao livro.

 

As letrinhas se embaralhavam e ele não conseguia ler. A culpa não era só do cansaço. Ali não era fácil conseguir óculos decentes. Pegou o copo d'água sobre a pilha de livros e gibis que servia de criado-mudo e engoliu dois comprimidos de Inibex. Apagou a luz do abajur e ficou acordado, velando o sono de Eusébio. Sentiu o cheiro de madeira queimada trazido pelo vento. Ou iu um galo cantando e cachorros latindo .

 

"Moça! Moça!”

 

Alguém tocava o joelho de Selene.

 

"Acorda.”

 

Era o gordo avisando que o ônibus chegara a Presidente Venceslau. Os outros passageiros já haviam desembarcado.

 

"Como você chama?”

 

"Selene.”

 

"Joel. ”

 

"Jor-El é o nome do pai do Super-Homem.”

 

"Você ainda está sonhando, acorda.”

 

"Já acordei.”

 

"Teu pai está te esperando?”

 

"Está. Mas não aqui.”

 

Desceram do ônibus.

 

"Quer uma carona?”

 

"Não, obrigada. Preciso tomar um café. Estou sonada.”

 

"Te acompanho.”

 

Caminharam em direção ao único bar do terminal rodoviário de Presidente Venceslau. Selene reparou que Joel andava com dificuldade e desacelerou o passo. Sentiu com mais intensidade o cheiro azedo que emanava do corpo dele.

 

No bar ele pediu café com leite e ela café puro, sem açúcar. O rádio tocava uma música triste de Roberto Carlos. Depois que tomaram café, Joel pagou a conta e eles se despediram. Selene foi até o ponto de táxi.

 

"Me leva pra um hotel com telefone e televisão", ela disse para o motorista.

 

Amanheceu, Hélio Palito cochilava sentado. Despertou com um rumor. Em dias de visita a agitação começava cedo. Para ele, era um dia como outro qualquer: nunca recebia visitas.

 

"De pé!”

 

Sargento Miyazaki, o Japonês, caminhava gritando pelo corredor. Miyazaki, além de carcereiro, era sargento da Polícia Militar. Tinha fama de incorruptível e sentia um prazer especial em acordar os presos pessoalmente. Miyazaki lembrava a Palito um réptil pegajoso. Ele não conseguia confiar num réptil pegajoso incorruptível.

Na lógica particular de Hélio Palito, incorruptibilidade era sinônimo de sadismo.

 

Depois do café da manhã a maioria dos presos dirigiu-se ao setor de visitas. Alguns presidiários idosos, já esquecidos por suas famílias, se encaminharam aos afazeres rotineiros. Hélio Palito trabalhava na biblioteca. Ultimamente se dedicava a catalogar o acervo de gibis. Ele gostava dos antigos: Fantasma, Spirit, Flash Gordon.

A idéia de trazer gibis para a biblioteca fora sua. Isso lhe valera popularidade entre os presos, que preferiam ler

 

gibis a livros. Além disso, por um preço baixo (dois cigarros para escrever, um para corrigir) escrevia e corrigia cartas. O trabalho na biblioteca era o único prazer de Palito no presídio. Só não suportava os presos evangélicos que passavam o tempo todo lendo a bíblia. Tentava dizer-lhes que a religião era uma prisão pior que aquela em que viviam, mas eles não estavam interessados.

 

"Palito, visita pra você!", disse Eusébio ao entrar na biblioteca. Seu companheiro de cela era um dos evangélicos que sempre começavam o dia lendo um trecho da bíblia.

Hélio Palito interpretou aquilo como uma brincadeira de mau gosto, apesar de saber que Eusébio não era um sujeito de brincadeiras. Eusébio percebeu a confusão de

Palito: "E sério. Tem visita pra você".

 

Hélio Palito caminhou devagar em direção ao pavilhão de visitas .

 

"Selene...”

 

Ela olhou para os lados, evitando encarar o pai.

 

"De quanto você precisa?", perguntou.

 

"Ei, ei? Isso é jeito de falar com o pai que você não vê há... quantos anos mesmo?”

 

"Porra, papai, vamos parar com esse teatro. Vim até aqui, tenho grana. De quanto você precisa?”

 

"Olha o palavreado, filha. Que coisa feia uma mulher dizendo porra. Não vamos falar de dinheiro. Você está tão linda. Sempre foi, mas antes era uma menina. Agora é uma mulher.”

 

"Obrigada, pai. Mas não vim até aqui pra você me fazer elogios.”

 

"Não são elogios, são constatações. Você é uma mulher muito bonita. Pare de insistir nesse assunto de dinheiro.”

 

"Foi por isso que vim até aqui, não foi?”

 

"Vinte mil reais", disse ele. "Cash.”

 

"Vinte mil?”

 

"Você não tem vinte mil?”

 

"Você acha que eu vou carregar vinte mil na bolsa?" Palito olhou para a bolsa de Selene. "Eles te revistaram.”

 

"Claro que sim. Mas não foi por isso que eu não trouxe vinte mil.”

 

"Quanto você trouxe?”

 

"Pai. Papai. Isso não é uma barganha. Só não imaginei que fosse tanto dinheiro... puta merda, eu não devia ter vindo!”

 

Selene começou a chorar. Um choro tímido: lábios retorcidos e olhos apertados.

 

Pessoas em volta - presos, visitantes e agentes penitenciários - olharam para os dois. "Periquita, pára de chorar.”

 

Ao chamá-la de Periquita, Palito só conseguiu intensificar o choro de Selene. Agora ela se lembrava do passado - Periquita era como os pais a chamavam quando criança

- e sentia pena de si mesma.

 

"Você está tão magrinho!" "Sempre fui magro." "Não quero que você morra." "Nem eu.”

 

"Trabalhei pra cachorro esses anos todos. Juntei dinheiro pró futuro. ”

 

"Acho que o futuro chegou", ele disse, olhando fixamente para a filha. Havia determinação e alívio naquele olhar.

 

"No banco." Selene limpou com a mão as últimas lágrimas que ainda escorriam pelo rosto. "Tenho esse dinheiro no banco." "Parabéns." "Pelo quê?”

 

"Por ter feito uma coisa que eu nunca consegui: guardar dinheiro.”

 

"No fim das contas parece que eu também não. E o doutor Lupércio? ”

 

"O que tem o Lupércio?”

 

"Será que ele não pode te ajudar a sair daqui de um jeito menos arriscado? ”

 

"Selene, o Lupércio sumiu assim que levou meu último centavo. Advogados são assim. Depois que conseguiu minha transferência aqui para Venceslau, nunca mais eu vi.

Não sei por onde anda, se é que está vivo.”

 

"Por que querem te matar?”

 

"Parece ridículo, mas querem me matar por causa de uma piada.”

 

"Quem? ”

 

"Piranha e Diabo Verde. São assaltantes, homicidas, gente muito sofisticada. Piranha tem os dentes pontudos, como o peixe que inspirou seu apelido. É musculoso e meio débil mental. Diabo Verde, ao contrário do que pode parecer, não é um terrorista ecológico nem um desentupidor de latrinas, e muito menos um torcedor fanático do Palmeiras. É um ladrão punk, todo tatuado, que costumava pintar o cabelo de verde. Isso só facilitou o trabalho da polícia na hora de encontrar o otário. Hoje em dia não tem mais cabelo pra pintar. Está careca. Ele domina o Piranha. É o ativo, digamos assim, do ponto de vista social. Sexualmente os papéis devem se inverter, mas isso não é da minha conta.

 

"Tudo começou num dia que eu estava tomando sol no lugar onde os presos se exercitam nas barras e levantam pesos. Devia ter ido direto para a biblioteca, mas aquele era o primeiro dia de sol depois de muitos dias de chuva, então fiquei com vontade de tomar um ar pra tirar o mofo. Nunca paro por ali, mas naquele dia eu estava lá, ao lado daqueles viadões musculosos. Alguém, não me lembro qual deles - são todos iguais, burros, grandes, tatuados enrustidos -, começou a contar piada. Eram piadas S cei lá, falando de mulheres traindo seus maridos, homens com homens, essas coisas. Me aventurei a contar uma alguns presos riram, para não me deixar constrangido, os dois não entenderam a graça da piada. Disseram: piadaridícula é essa, Palito? Então você vem até aqui pra contar uma piada que não tem graça? Respondi: Não tenho culpa se vocês são ignorantes e não entenderam a piada.

Vocês são portugueses? Obviamente era uma piada de português.

 

"Como é a piada?

 

"Não é uma piada en graçada, esquece.”

 

"Conta. ”

 

"Não sou umcontador de piada. Aliás, não sei por que fui inventar de contar Piada naquele dia.”

Selene ficou q Uieta acendeu um cigarro enquanto olhava para o pai.

 

Ele disse: você deveria parar de fumar. Sua mãe morreu

disso" .

 

Selene perma neceu em silêncio, soltando fumaça pelo

nariz.

muita decadência ser assassinado por dois sujeitos que se chamam Piranha e Diabo Verde.”

 

"Que diferença fazem os nomes?”

 

"Toda. Mark Chapman. Lee Oswald. Charles Manson. O que os meus biógrafos vão dizer?”

 

"Pelo menos você não perdeu o bom humor.”

 

"Perdi sim. A tua presença é que trouxe ele de volta.”

 

"Você não pode comprar proteção?”

 

"Inútil. Sou visto com muita antipatia. Me sinto diferente dos outros presos e eles sabem disso. Tudo bem, organizei a biblioteca e ganhei alguns pontos com isso, mas no geral me acham esnobe e me chamam de Artista. Sabem que sou de outro nível. ”

 

"Que nível?”

 

"Não enche, Selene.”

 

"Orgulhoso.”

 

"Prefiro morrer do que fazer parte desse grupo de sádicos ignorantes.”

 

"Morrer por causa de uma piada é dose.”

 

"Não é só a piada. É o que ela significa.”

 

"Essa piada significa alguma coisa?”

 

"Significa que eles são burros e se sentem inferiores a mim. Nenhum dinheiro vai mudar isso. A força bruta é a única maneira que eles têm de me subjugar.”

 

Selene saiu da agência do banco e caminhou até o Ringo Bar. Ali aconteceria o encontro. Escolheu uma mesinha na calçada, sentou, pediu coca-cola e esperou. Fazia calor mas ela gostava de sentir o sol queimando a pele. Imaginou o destino tramando tudo aquilo apenas para aproximá-la do pai. Ou para fazer renascer nele a vontade de viver. Às vezes fugir é a única saída.

 

O garçom trouxe a coca-cola com gelo e limão, Selene bebeu um gole e ficou olhando o movimento. Agora já não pensava em nada. Era bom estar num lugar desconhecido, morder uma pedra de gelo e observar pessoas por trás das lentes escuras dos óculos de sol. Sem perceber, sua atenção voltou-se dos pedestres para as palavras do pai, no dia anterior: "Tem alguém que pode me ajudar, o nome dele é Veronese, ficou preso aqui alguns anos por homicídio. Agia no contrabando, matou um federal numa emboscada".

 

"Gente fina.”

 

"É mesmo. Desenvolveu um método infalível de fuga enquanto esteve preso. Por ser infalível custa caro: vinte mil.”

 

"O que é um 'método infalível de fuga'?”

 

"Dizem que cavou um túnel. Já botou muita gente pra fora. Quem saiu não voltou pra contar onde fica o túnel.”

 

"E o Veronese quer toda essa grana só pra ele?”

 

"Claro que não, meu amor. Uma fuga envolve muita gente. Só para os policiais daqui vão uns dez mil. O resto é para alguém que me leve em segurança até o Paraguai.

Talvez precise de um avião.”

 

"Quanto o Veronese leva nessa brincadeira?”

 

"Pouco. ”

 

"Vou dar vinte mil na mão do cara e ele só tira um pouco?”

 

"Você não vai dar o dinheiro pra ele, mas pra algum contato dele.”

 

"Não dá pra eu fazer o negócio direto com o Veronese?”

 

"Não. Está quase cego e vive numa cadeira de rodas. E um sujeito esquisito. A mulher não larga do pé dele e não pode saber que o velho ainda se envolve com o trabalho.”

 

Selene compreendia a língua do pai, em que trabalho e crime têm o mesmo significado.

 

"Que garantia a gente tem de que não vão sumir com a grana?”

 

"A palavra do Veronese.”

 

Um pedestre se aproximou: "Selene?".

 

Ela emergiu dos pensamentos e levantou os óculos até o topo da cabeça. Prendeu os óculos no cabelo. Viu um rapaz de olhos inquietos, nariz fino e rosto pálido.

 

"Você é o amigo do Veronese.”

 

"Filho dele.”

 

O rapaz sentou numa cadeira ao lado de Selene.

 

"Meu nome é Alan.”

 

Ele pronunciou o nome acentuando a segunda sílaba: A-lãn.

 

"Nome francês", disse Selene.

 

"Trouxe o dinheiro?”

 

"Avisei meu pai que tem de ser aos poucos. É muita bandeira sacar uma bolada de uma vez só.”

 

"A gente ainda tem uma semana, mas não mais que isso. Se passar muito tempo, vaza informação. Aí já era. Quanto você trouxe?”

 

"Cinco mil.”

 

"Me dá.”

 

"Peraí, que cara nervosa é essa?”

 

"Cadê a grana?", perguntou Alan.

 

Selene tirou da bolsa o envelope com o dinheiro. Passou o envelope para ele por baixo da mesa. Alan prendeu o envelope na cintura, sob a camiseta .

 

"Depois de amanhã, aqui mesmo, na mesma hora", disse, enquanto se levantava .

 

Selene concordou com um movimento da cabeça. Depois observou Alan se afastar. Resolveu voltar a pé ao hotel, o percurso não era longo. As pessoas olhavam para ela;

numa cidade do interior é fácil distinguir alguém de fora. O jeito de andar, os óculos escuros, as roupas: tudo fazia perceber em Selene uma mulher diferente. Atravessou a linha de trem que divide a cidade e parou numa farmácia. Farmácias a atraíam.

 

"Aspirina, duas carteias; sal de frutas Eno, seis; Afrin vinte e quatro horas você tem?”

 

O atendente, um rapaz magro, se esforçava para acompanhar a velocidade de Selene. Era difícil.

 

"É de São Paulo?", perguntou.

 

"Sou. ”

 

"Tem parente aqui?”

 

Selene lembrou de Joel, o gordo no ônibus. Por que tanta curiosidade, sempre? "Embrulha tudo e vê quanto foi.”

 

Na biblioteca da prisão, Eusébio fez uma pausa na leitura da bíblia e se aproximou de Hélio Palito.

 

"Era a tua filha?”

 

"Era. ”

 

"Bonita.”

 

"Puxou a mãe.”

 

"Os olhos são verdes como os teus.”

 

"Parecem com os meus por fora. Enxergam as coisas como os da mãe.”

 

"Como era a mãe?”

 

"Má, como todas as mulheres lindas.”

 

Eusébio não disse nada, o olhar perdido.

 

"Tem certeza de que não quer ler um gibizinho? Nem um Tio Patinhas? A bíblia é interessante mas uma hora enjoa. Tudo que a gente faz muito enjoa", disse Palito.

 

"Você não entende, não acredita em Deus", respondeu Eusébio, voltando à bíblia.

 

Palito continuou seu trabalho de organização do arquivo

 

de gibis. A disposição era outra, agora que sentia a possibilidade da liberdade.

 

Um preso chegou e perguntou: "Tem alguma coisa nova aí?".

 

Robson era um bandido respeitado e experiente de apenas dezenove anos de idade. Palito não entendia por que aquele rapaz - que ele achava parecido com Muhammad Ali quando jovem - lhe dedicava tanta atenção e simpatia.

 

"Chegou uma coleção bonita do Spint. Conhece o Spirit?" Palito mostrou algumas revistas do Spirit. Era uma coleção bem cuidada, um capricho para colecionadores.

Robson deu uma olhada.

 

"Gosto mais daquelas que têm mulheres gostosas." Palito retirou da estante dois números de uma coleção da Valentina de Guido Crepax. Entregou as revistas para Robson, temendo pela integridade das páginas.

 

"Se é pra esporrar em cima, pega logo uma Playboyl" "Nenhuma daquelas putas da televisão é mais gostosa que a Valentina", disse Robson.

 

Depois do jantar, Piranha e Diabo Verde jogavam cartas nlima cela do pavilhão destinado aos assassinos e presos perigosos. Jogavam uma modalidade de truco, com dois jogadores em v de quatro. Estavam sentados no chão, um de frente para o °utro. Diabo Verde distribuiu as cartas, três para cada um, virou um seis de espadas (que fazia dos sete as cartas mais valiosas na quelela mão) e apoiou sobre ele o baralho. Em seguida olhou paraas suas cartas: dois cinco (um de copas, outro de paus)

e um V alete de ouros. Uma merda de jogo. Piranha descartou um dois paus. Nenhuma das cartas de Diabo Verde valia mais que dois. Blefou: "Truco!".

Piranha consultou seu jogo e desistiu, atirando as cartas sobre a mesa. Diabo Verde puxou um palito de fósforo para si. O jogo terminava quando algum dos jogadores conseguisse reunir doze palitos. Cada doze palitos valiam um cigarro.

Diabo Verde contou quantos tinha: sete. Pegou um deles e ficou olhando. A haste fina de madeira clara e macia. A cabeça marrom e porosa.

"Sabe o que me lembra esse palito?”

Piranha, que embaralhava as cartas, disse: "Recebeu visita da filha. Gostosinha".

 

"Esquece. E de luxo, tu não tem bala pra comer mulher chique nem na punheta. Encomendei uma branca pró Robson. É ele me jogar na mão e nós faz o Artista.”

 

Piranha distribuiu as cartas. Agora era Diabo Verde quem devia iniciar o jogo. Consultou suas cartas e constatou que novamente a sorte cagava para ele. Olhou para

Piranha. Tinha uma cara de menino burro mas alguma coisa naquele rosto fazia com que Diabo Verde sentisse pena dele.

 

"Truco!", blefou.

"Seis!", respondeu Piranha.

Diabo Verde deixou de sentir pena.

Hélio Palito lia em sua cela. Eusébio, deitado, luta va contra o sono segurando a bíblia, que de vez em quando caía sobre seu peito. O carcereiro Donizete comandava a vigia noturna. Entrou na cela e, sem dizer nada, a pretexto de observar que livro era aquele que Palito lia, disfarçadamente largou uma tirinha de papel ao seu lado. Palito pegou o papel e o guardou entre as páginas de O nome da rosa.

 

Esperava que Eusébio adormecesse para poder ler em paz o bilhete. Mas seu companheiro de cela estava inquieto e se recusava a entregar-se ao sono .

 

Quando Eusébio finalmente adormeceu, Palito retirou do livro o bilhete que Donizete lhe passara. Ouviu cães latindo e mulheres entoando cantos religiosos. Quando sua esposa ainda vivia e Selene era criança, Hélio Palito tinha um cachorro, Lobo. Sentiu cheiro de madeira queimando. Aquele cheiro o deixava melancólico e com saudades do passado. Quando pensava no passado, lembrava-se de dias ensolarados. Os anos na prisão haviam apurado seu olfato e enfraquecido sua visão. Colocou os óculos e leu o bilhete.

 

No Ringo Bar, Selene estava na mesma mesa das outras vezes. O garçom, sem que ela pedisse, trouxe coca-cola com gelo e limão. Alan chegou.

 

"Vem cá, não é muita bandeira a gente se encontrar sempre no mesmo lugar?", perguntou Selene.

 

"Ninguém tá nem aí.”

 

"Só se for pra você. Nunca fui tão olhada na minha vida.”

 

"Também, com esses óculos.”

 

"Você marca encontro numa calçada, com um puta de um sol incandescente, e quer que eu venha como?”

 

"Quem planejou tudo foi meu pai, só obedeço ordens.”

 

Selene, como fizera várias vezes naquela semana, passou o envelope para Alan por baixo da mesa. Depois de prender o envelope na cintura, Alan chamou o garçom.

 

"Me traz uma garapa", disse.

 

"Garapa é muito doce", afirmou Selene enquanto o garçom se afastava.

 

"Você não gosta de coisas doces?”

 

"Quando era pequena gostava de comer pastel com caldo de cana na feira. Mas já não me lembro mais do gosto. Lembro só que era tão doce que me dava enjôo.”

 

O garçom voltou trazendo o copo cheio do líquido verde. Selene sentiu o cheiro doce da garapa e observou abelhas sobrevoando o copo.

 

"Experimenta", disse Alan.

 

Selene deu um gole e fez uma careta: "É horrível! Muito doce!".

 

"Você não sabe o que é bom", disse Alan. Bebeu a garapa. "Amanhã é dia de visita." Limpou a boca com um guardanapo de papel. "Tem uns lances que você tem de falar pró seu pai. Ele já foi avisado pelo Donizete que você vai levar informação.”

 

"Tipo qual?”

 

"Antes tem uma coisa importante que você precisa saber. Vai ter de participar da fuga junto comigo.”

 

Selene não disse nada.

 

"Você vai ter de participar da fuga", repetiu Alan.

 

"Tá brincando?”

 

"Não. Meu pai não quer gente estranha. A mulher que costuma fazer o serviço pra nós teve que ir pra Rondônia. Mataram o filho dela. Papai tem medo de cagüetagem.

Confiança vale muito nessa hora.”

 

"Muito agradecida, mas por que você não vai sozinho?”

 

"Não dá. Muita coisa pra fazer. Mulher é bom para despistar, se precisar. Se. Nunca precisou. Mas é bom não facilitar. A gente tem de trocar de carro nos primeiros minutos da fuga pra confundir a polícia. Essa é uma parte importante, sem a troca fica mais arriscado. É só até chegar no Paraguai. Lá, você tá liberada pra voltar.

Você sabe dirigir, não sabe?”

 

"Sei. Mas não estou a fim.”

 

"Vamos sair daqui.”

 

"Você não disse que era um lugar seguro?”

 

"Não pra discutir. Vamos dar uma volta na praça.”

 

Alan pediu a conta e Selene acendeu um cigarro. Permaneceram em silêncio até o garçom trazer a conta. Selene fez questão de pagar. No caminho até a praça, Alan continuou em silêncio. Selene tentou ficar calada mas não conseguiu: "Me dá um pouco de pó", disse, olhando direto nos olhos dele.

 

"Que pó?”

 

"Não disfarça, você não precisa tentar disfarçar pra mim, eu conheço. Você está sempre cheirado, tenho reparado.”

 

O rosto de Alan ficou vermelho.

 

"Quero cheirar. Estou precisando", insistiu Selene.

 

"Quer cheirar aqui na praça?”

 

"Vamos no meu quarto, lá no hotel.”

 

"Você não quer mais conversar sobre a sua participação na fuga? Tá na fissura?”

 

"Já avisaram meu pai?”

 

"O Donizete passou um bilhete pra ele explicando tudo.”

 

"Participo da fuga se o meu pai achar que eu devo participar. Pronto.”

 

"Então você fala com ele amanhã. Mas não esquece que o tempo está acabando. A fuga tem que acontecer daqui a três dias, a gente já está no risco. Além das cagüetagens, a qualquer hora pode sair o bye-bye.”

 

"Bye-bye?”

 

"Bye-bye pró teu pai.”

 

Selene jogou longe a guimba do cigarro. Naquelas conversas a morte era tratada com uma banalidade que a assustava. O chão da praça, de pedras portuguesas, tinha um cheiro forte de urina seca. Caminharam até o coreto no centro da praça e subiram os degraus de cerâmica vermelha. Apoiaram-se à balaustrada branca.

 

"Tem mais, avisa o Palito que às onze e meia da noite de terça ele chama o Donizete e diz que está passando mal e que precisa ir para a enfermaria. O Donizete vem e tira ele da cela.”

 

"E daí?”

 

"Ele sai andando.”

 

"Sai andando?”

 

"Sai andando. Você achou que ele ia abrir caminho a bala, atirando em quem aparecesse pela frente?”

 

"Não é a cara dele.”

 

"Ele sai acompanhado pelo Donizete, passa pela primeira porta de segurança e chega no pátio. Em vez de ir para a enfermaria, vai para a lavanderia. Nos fundos da lavanderia está o túnel.”

 

"Existe mesmo esse negócio de fugir por túnel? Pensei que só rolava no cinema.”

 

"Porra nenhuma. Quando meu pai esteve lá, cavou um túnel com o Donizete. ”

 

"Teu pai fugiu por ele?”

 

"Meu pai não precisou fugir, conseguiu sair na condicional. Enquanto estava lá dentro tinha que fazer alguma coisa pela liberdade, não podia ficar parado olhando a areia escorrer. Era cavar ou morrer.”

 

"Teu pai tinha uma ampulheta?", ironizou Selene.

 

"Não.”

 

"Então ele não viu areia nenhuma escorrendo.”

 

"Modo de dizer.”

 

"Quando era pequena eu ficava olhando pró relógio tentando ver o tempo passar.”

 

"Quando o túnel ficou pronto, meu pai estava prestes a conseguir a condicional. Preferiu não arriscar.”

 

"Foi um investimento, então.”

 

"Se você quer ver desse jeito. Pra mim, foi o que manteve pai vivo.”

 

"Um passatempo.”

 

"Cavar um buraco na parede do presídio não é a mesma coisa que jogar dominó.”

 

"Desculpe minha ignorância. Meu pai encontra o túnel. E depois?”

 

"A tua ignorância eu desculpo. O que não é certo é você ficar tirando uma da minha cara.”

 

Por alguns momentos os dois se encararam. Selene decidiu baixar os olhos. Alan continuou falando.

 

"O buraco é atrás dos tanques, num lugar difícil de chegar. O Donizete fez uma parede falsa. Ninguém acha. Os presos não podem entrar na lavanderia sem autorização.

E por isso que o Donizete sempre supervisiona as paradas. Vai deixar o buraco aberto, com uma lanterna ao lado. Teu pai atravessa o túnel e cai num cano de esgoto.

Se arrasta por uns quinhentos metros, talvez menos, pela tubulação. Escapa pelo bueiro do campinho de futebol. Aquele campinho que você vê quando está indo pró presídio.

Não tem como errar. O bueiro já está com as barras serradas. Estou do lado de fora, ele entra no meu carro. Você espera a gente na Raposo, um pouquinho antes de

C aiuá.”

 

"Com que carro?”

 

"Ainda estou vendo. Acho que vai ser uma picape. Fica calma.”

 

"Calma? Vamos cheirar uma linria no meu hotel. Juro por Deus que não vou mais tirar sarro da tua cara.”

 

Alan tirou um pacotinho de plástico do bolso da calça jeans e entregou para Selene. "Não posso ir até lá com você. Fica com isso. ”

 

Ela guardou o pacotinho na bolsa, olhando para os lados, para ter certeza de que ninguém testemunhava aquele ato. Os dois se despediram.

 

"Selene", ele disse antes de se afastar, "não conta pró teu pai que eu te dei pó.”

 

Dia de visita, Selene decidiu ir a pé até o presídio. O presídio de Presidente Venceslau, um dos mais antigos do estado, foi construído dentro do perímetro urbano da cidade. Hoje em dia, normas de segurança não permitem mais que se ergam presídios dentro de cidades. Selene estava preocupada em não chamar atenção e concluiu que indo a pé não deixaria um rastro tão claro como o que deixaria indo de táxi. Ela já tinha percebido a curiosidade dos motoristas de táxi.

 

No trajeto notou algumas pessoas indo para o presídio. Uma mulher caminhava metros à frente. Devia ter quase quarenta anos e tinha o rosto enrugado. Havia nela uma beleza sem vigor, como a que se pode descobrir num velho leão de circo. Selene reconheceu nela uma prostituta. Era algo óbvio e ela não precisou de nenhum sinal para confirmar sua suposição. Uma puta apaixonada, pensou Selene.

 

Ela não sabia se sentia pena ou inveja da mulher.

 

Ao passar pelo carapinho de futebol de que lhe falara Alan, Selene desviou-se da avenida Newton Prado e andou pela terra batida do campo, sentindo falta de ar. Estava nervosa. Ao deparar com o bueiro e constatar que alguém havia mesmo serrado as barras de ferro, uma vertigem se apoderou dela, como se fosse desmaiar.

 

No presídio, enquanto passava pelos procedimentos impostos aos visitantes (a revista minuciosa, que a obrigava a ficar nua e abrir as pernas diante de uma agente gorda e masculinizada), Selene sentiu crescer a dúvida. Ao encontrar o pai, explodiu: "Porra, você me manda falar com um moleque caipira de nome francês e depois de uma semana de lengalenga ele chega e me avisa que eu vou ter de participar da fuga?".

 

"Não fala porra, me incomoda.”

 

"Participar de uma fuga também me incomoda. E também ficar pelada e ter meus órgãos genitais examinados por uma carcereira sapatona, como se fosse uma médica ginecologista.”

 

"Se você não quer vir, não precisa. Não posso te obrigar. Também estranhei quando soube, mas se o Veronese acha que é melhor você vir junto, não se discute.”

 

"Claro que se discute, estou pagando! É esse o método infalível de fuga? Um túnel que um paralítico cego cavou?”

 

"Não seja leviana, Selene. Quando o Veronese cavou esse túnel ele ainda andava e enxergava. Por sinal, foi o túnel que salvou a vida dele. Quando foi preso, caiu numa depressão terrível. Dizem, não sei se é verdade, que foi preso pela própria filha.”

 

"Como assim?”

 

"Uma filha que ele nem conhecia. Teve um caso com uma prostituta na juventude, em São Paulo. A menina virou agente da Federal e veio prender o homem. Acho que por vingança, sei lá. Na prisão o Veronese virou um zumbi, não falava com ninguém, não comia, não dormia. Um dia alguém mostrou uma foto do filho pra ele e o homem começou a reagir. Dizem que cavou o túnel para poder reencontrar o Alan. No fim, conseguiu sair com liberdade condicional.”

 

"Uns se sacrificam pelos filhos, outros pelos pais.”

 

"Pára com isso, Selene.”

 

"Você já tem o meu dinheiro, já comprou o direito de fugir pelo túnel. Por que precisa de mim?”

 

"Meu amor, fugir não é só vazar do presídio. O mais difícil vem depois. Não adianta sair daqui e ficar entocado no mato esperando os cachorros da polícia. Não posso questionar as decisões do Veronese, é quem está organizando tudo, quem tem os contatos e as armações. E já tirou muita gente daqui, sempre ajudado pelo moleque caipira de nome francês. É caipira? Tem nome francês? Mas é esperto. Como o pai. Eles são bons, pode ter certeza. Agora, se você quer me deixar sozinho nessa, tudo bem.”

 

"Quando você me deixou sozinha com a Laís eu não recla mei.

 

"Selene, você acha que não me arrependo de ter deixado você com uma cafetina?”

 

"O problema não era a Laís ser cafetina. Eu também sou puta.”

 

"Naquele tempo você não era.”

 

"Não vem dizer que virei puta por causa da Laís.”

 

"Não estou dizendo nada. Além do mais, você não é puta, é garota de programa.”

 

"Tem diferença?”

 

"Claro. Puta é pobre, rameira, fodida. Garota de programa é uma profissional como outra qualquer. Mulheres modernas, independentes. Secretárias bilíngües, administradoras de empresas. ”

 

"O caralho. Garota de programa é uma puta que não tem coragem de dizer que é puta. Acho brega. Prefiro ser uma rampeirinha mesmo.”

 

"Sai dessa, Selene. Você precisa se destacar no que faz. Eu, por exemplo, sempre fui um falsificador. Jamais um ladrão.”

 

"Deixa de ser louco, papai. Eu sou uma puta e você é um ladrão. Ladrão preso, o que é pior.”

 

"Sou ladrão mas sou teu pai. Cadê o respeito?”

 

"Que respeito? O mesmo que você teve comigo quando me abandonou?”

 

"Você é muito jovem, não conhece a vida. Pensa que é fácil para um viúvo estelionatário, falido e alcoólatra criar sozinho uma filha adolescente? A primeira vez que você menstruou...”

 

"Não acredito! Vai falar da minha menstruação?”

 

"Vou. Cala a boca e escuta: a primeira vez que você menstruou fiquei deprimido, me senti inseguro pra criar uma menina que se transformava numa mulher. Eu, o boçal, como ia poder compreender as tuas necessidades? Eu tentei, Selene. Juro.”

 

"Você me mandou flores quando menstruei pela primeira vez. Flores amarelas.”

 

"Você se lembra disso? Foi a única coisa que consegui fazer. Não tive coragem de falar nada. O que se fala pra uma menina que menstrua pela primeira vez?”

 

"Sei lá. 'Parabéns.' 'Meus pêsames.' 'E aí? Quer que compre um modess?'“

 

"Estou falando sério, Selene.”

 

"Falando sério? Dá pra levar a sério um pai que abandona a filha porque ela menstruou? Joguei no lixo aquelas flores amarelas!”

 

"Não abandonei você por causa da menstruação! Você está deturpando minhas palavras. Parece uma advogada.”

 

"Vá tomar no eu.”

 

"Estou muito velho pra isso.”

 

 noite, depois de terminado o horário de visita, Hélio Palito se preparava para deixar a biblioteca. Não havia mais ninguém ali dentro quando Robson chegou trazendo as revistas da Valentina sob o braço. Jogou as revistas na mesinha em que Palito costumava trabalhar.

 

"Tão aí, limpinhas. Esporrei na parede.”

 

"Você devia cavar um túnel com essas ejaculações", disse Palito .

 

"Agora me dá um negócio mais leve. Uma Mônica ou um Tio Patinhas.”

 

"Você não gosta do Homem-Aranha?”

 

Não .

 

Hélio Palito pegou revistas da turma da Mônica e dos personagens de Disney.

 

"Palito", disse Robson, enquanto folheava uma revista do Cascão, "aqueles dois têm uma disfunção contigo, não têm?”

 

"Cascão e Cebolinha?”

 

"Piranha e Diabo Verde.”

 

"É uma bronca, os dois não vão com a minha cara.”

 

"Sei que é mais do que isso.”

 

"É uma piada. Ou foi uma piada. Eles não têm senso de humor.”

 

"Não estou entendendo tua conversa.”

 

"Ninguém aqui entende a minha conversa, Robson. Esse é o problema.”

 

"E verdade que vagabundo não entende o teu jeito, Palito, mas sei que tu é sangue. Sinto isso na minha cabeça. Lá dentro. Bem lá dentro mesmo. Ninguém vai mudar a minha idéia.”

 

"Obrigado, Robson. Você devia ler o Spirit. É do caralho.”

 

"Não muda de assunto.”

 

"Não se mete nisso. A treta é comigo.”

 

Robson olhou para os lados, para se certificar de que não eram observados. Retirou um embrulho que trazia sob a camisa. Entregou o embrulho para Hélio Palito.

 

"Pega. ”

 

O jornal amassado cobria uma faca improvisada. Afiada.

 

"Não tenho cigarro pra te pagar.”

 

"Não quero cigarro", disse Robson. "Mas também não quero ser o mensageiro da tua morte. Mensageiro da morte é foda. A branca aí foi o Diabo Verde que me encomendou.

Eles vão te matar, Palito. Se liga. Vou dizer pra ele que mixou a faca, mas não vou contar que agora ela é tua. Se vierem pra cima, não tem dó." Encostou o polegar no próprio pescoço, um pouco acima do pomo-de-adão: "Aqui é um abraço. Ou então na barriga, de baixo pra cima. Se tu mata um deles, vai merecer o respeito de todo mundo. E a lei. Não precisa nem fazer os dois. Um só já te livra a cara"

 

Na terça-feira de manhã, pouco depois de adormecer - trabalhara a noite inteira -, o carcereiro Adindo Donizete despertou com os berros histéricos da mulher, Ivone.

 

"Donizete, a mãe teve um enfarte!”

 

Ele demorou alguns segundos para entender o que se passava.

 

"A Ivete ligou, a mãe está mal, vamos pra lá agora", prosseguiu Ivone, deixando Donizete irritado. Ele se irritava com qualquer coisa que Ivone dissesse. Ou com qualquer coisa que dissessem os irmãos de Ivone: Ivete e os gêmeos Ivana e Ivan. E também não sentia nenhuma tristeza pelo enfarte ou pela morte iminente da sogra,

Izilda. A única coisa que o aporrinhava era a perspectiva de ter de pegar a estrada até Marabá Paulista, onde vivia a família da esposa, numa casa em que a varanda era ornamentada por Um arremedo das colunas losangulares do Palácio da Alvorada.

 

"Mas o trabalho...", disse, sentado na beira da cama, tenacordar, vestido apenas com a cueca larga e furada.

 

"E daí? A minha mãe está morrendo!”

 

"Os presos...”

 

"Os presos que vão pró inferno! Veste a roupa, vamos embora.”

 

Donizete, ainda sonolento, imaginou que talvez a mulher estivesse sendo excessivamente alarmista. A sogra, carente da presença dos filhos, já pregara peças desse tipo em outras ocasiões. Concluiu que antes das seis da tarde, quando começava seu turno no presídio, já estaria de volta a Presidente Venceslau. Mirou no espelho a barriga flácida que se debruçava sobre o pequeno e escuro pênis.

 

"To gordo pra caralho", disse para si mesmo.

 

Hélio Palito não tinha conseguido dormir. Mas naquela noite não precisara de remédios. Várias vezes acariciara a ponta aguda da faca com que Robson o havia presenteado.

Imaginou-se golpeando o peito tatuado de Diabo Verde e o pescoço musculoso de Piranha. Viu o sangue jorrar para o alto enquanto os dois tombavam mortos. Ao seu lado os outros presos o aplaudiam e carregavam pelo pátio. Até mesmo o diretor do presídio veio cumprimentá-lo pelo favor prestado à sociedade ao eliminar do convíviohumano os dois criminosos. Palito nunca matara ninguém. Sabia que tudo aquilo não passava de delírio. Suas especialidades sempre foram os crimes limpos, as falsificações e os golpes bem tramados. Não faria sentido perpetuar sua estada naquele inferno, mesmo que isso o transformasse num herói.

 

O dia nasceu e a idéia da fuga assustou Hélio Palito. Não pela fuga em si, pois confiava na capacidade de Veronese de tirá-lo dali em segurança. Mas por voltar aoconvívio do mundo estranho que lhe enviava sinais por latidos de cães e cheiro de madeira queimando.

 

De manhã, no pátio, Piranha levantava pesos e se comprazia com a imagem dos próprios bíceps inchados. Diabo Verde aproximou-se e Piranha reparou que ele tinha a expressão contrariada.

 

"Qual foi?", perguntou, colocando os halteres no chão.

 

"Mixou a branca.”

 

"Em quais?”

 

"O Robson deu pra trás.”

 

"Filho-da-puta.”

 

"Bota puta nisso. Amarelão do caralho.”

 

"Foda-se. Nós faz o Artista de qualquer jeito", disse Piranha.

 

"Como? Na porrada?”

 

"Eu preferia furar, mas tenho um cinto mocado.”

 

"E tu não me fala nada?", perguntou Diabo Verde.

 

"E eu tenho de dar satisfação de tudo que faço, mane?”

 

Diabo Verde sorriu enquanto admirava os músculos rígidos de seu companheiro de cela. "Vai morrer igual o Tiradentes.”

 

"Tiradentes?", perguntou Piranha.

 

"Tu não sabe que Tiradentes morreu enforcado?”

 

"Quem é Tiradentes, porra?”

 

"Esquece.”

 

Selene e Alan encontraram-se no Ringo Bar à uma da tarde.

 

"Tudo pronto?", perguntou Selene.

 

"Tá nervosa?”

 

"Não, supercalma. Tiro gente da prisão todo dia.”

 

"Vai dar tudo certo.”

 

"E o meu carro?”

 

"Uma picape azul. Está estacionada aqui perto, depois te levo até lá. Primeiro vamos comer.”

 

"Por que uma picape azul?”

 

"Você prefere uma cor-de-rosa?”

 

"Não é isso, babaca.”

 

"Pra parecer que somos fazendeiros. A polícia acha que bandido só usa carro velho e preto. Galaxie, Opala, Maverick. Já andou num Maverick?”

 

"Nunca. ”

 

Alan fez sinal para o garçom e pediu bife a cavalo com fritas. Para beber, uma fanta.

 

"E a senhora?", perguntou o garçom.

 

"Só uma cerveja.”

 

"Come alguma coisa", disse Alan.

 

Ela fez que não com a cabeça, o garçom se afastou.

 

"Você vai ter que trabalhar muito à noite, é melhor estar de estômago cheio.”

 

"Não enche o saco, quero pó.”

 

"Não.”

 

"Sem pó não vou.”

 

"Já matou aquele que te dei?”

 

"Faz tempo.”

 

"Te dou uma carinha depois. Agora come.”

 

"Como um pouco das tuas batatas. Hoje você não quer garapa?”

 

"Quando tenho que trabalhar não tomo garapa. Me dá sono. Vamos acertar nossos relógios. São uma e doze no meu.”

 

Selene acertou o dela, que estava cinco minutos adiantado. Gostava de deixar o relógio sempre um pouco adiantado. Com isso tinha a ilusão de que conseguiria ser pontual.

 

"As dez e quinze da noite você sai do hotel e pega a Raposo Tavares na direção de Presidente Epitácio", disse Alan. "Roda mais ou menos cinco quilômetros, passa por um posto Shell grande, à direita, e por uma fazenda chamada Santa Sofia. Depois, à esquerda, você vai ver o presídio novo...”

 

"Pra que tantos presídios numa cidade tão pequena?”

 

"O presídio regional está velho e cheio de buracos.”

 

"Vai mixar o negócio do teu pai.”

 

"Por que você não se concentra no que eu estou falando? E importante. ”

 

"Você se preocupa muito com detalhes e eles só me confundem ainda mais. O que importa se o posto é Shell e se o nome da fazenda é Santa Genoveva?”

 

"Santa Sofia.”

 

"Tá vendo? Já me confundi. Não dá pra ir direto ao que interessa?”

 

"Tudo interessa!”

"Quilômetro 625, um pouco antes da entrada para Caiuá", disse Alan. "Ali tem uma faixa larga de acostamento ao lado de um canavial. É lá que a gente vai abandonar o outro carro, o que eu vou estar dirigindo.”

 

"Estou com medo de passar batido, sem ver a plaquinha da quilometragem.”

 

"E por isso que os detalhes são importantes. A gente vai até lá depois do almoço; assim você fica segura.”

 

O garçom chegou com a fanta e a cerveja. Encheu os copos e saiu.

 

"Quando você chegar no quilômetro 625, estaciona no acostamento, desliga o carro, apaga os faróis e espera. Se a polícia rodoviária aparecer, e eles não vão aparecer, é muito difícil darem ronda por ali naquele horário, mas se aparecer, inventa alguma coisa e finge que vai embora. Mas roda pouco e volta.”

 

Depois do almoço caminharam até a rua Presidente Bernardes, onde estava estacionada a picape Chevrolet.

 

Presidente Prudente, Presidente Venceslau, Presidente Epitácio, Presidente Bernardes, presidente pra caralho, pensou Selene.

 

"Você dirige", disse Alan, abrindo a porta do motorista para Selene.

 

Ela agradeceu e entrou no carro. Percebeu o olhar dele em suas coxas quando o vestido levantou um pouco ao sentar-se. Fizeram o trajeto até o canavial e Alan foi mostrando cada detalhe do caminho.

 

E stacionaram.

 

"Vamos fumar um cigarro lá fora", disse Selene.

 

Saíram da picape, ventava, ouviram o assobio grave das folhas de cana se movimentando. Selene tentou acender um cigarro mas o vento não deixou. Alan fez sinal para que ela o seguisse. Passaram por uma cerca de arame farpado e caminharam alguns metros ladeando a cerca. Alan ia observando uma a uma as estacas de madeira que sustentavam o arame. De repente, parou. Viu o talho na madeira cinza de uma das estacas. Aquele talho sinalizava o lugar por onde deveriam entrar no canavial. Abriram caminho entre os pés de cana. Caminharam em linha reta por uns quinze metros até chegarem a uma clareira.

 

"E aqui que vou esconder o outro carro", disse Alan. A terra ali era escura e úmida e exalava um cheiro forte que Selene não soube precisar de quê.

 

"Quem vai vir buscar o carro?”

 

"Eu mesmo, depois.”

 

"Não passa ninguém por aqui?”

 

"Não nessa época. Só na colheita. Mas até lá o seu pai já vai estar em casa.”

 

"Meu pai não tem casa.”

 

"Mato Grosso, Rondônia, Paraguai, Bolívia, qualquer lugar do mundo que não seja uma cela de cadeia.”

 

"Você nunca teve outra profissão?", ela perguntou.

 

"Você acha que tirar gente da cadeia é uma profissão?”

 

"Você vive disso, não vive?”

 

"Porra nenhuma. Também movimento uns esquemas por aí, mas pretendo largar tudo isso.”

 

"Quando?”

 

"Quando eu casar. Pego a grana que juntei e abro uma loja de acessórios para automóveis.”

 

"Tem data marcada?”

 

"Pra abrir a loja?”

 

"Pra casar.”

 

"Não, mas tenho uma noiva.”

 

"Noiva? Que lindo, você tem uma noiva! Ninguém mais fica noivo. Qual é o nome dela?”

 

"Diana. ”

 

"Diana Palmer é a namorada do Fantasma.”

 

"Que Fantasma?”

 

"O das histórias em quadrinhos.”

 

"Não sabia que o Fantasma tinha uma namorada.”

 

"Ele parece viado, né? Se eu disser pró meu pai que o Fantasma é viado ele me mata. O importante é que você está noivo da Diana Palmer. Eu nunca tive um noivo.”

 

"Não acho que o Fantasma é viado.”

 

"Mas é. Conheço quando um cara é viado.”

 

"Você tem namorado?", perguntou Alan.

 

"Na minha profissão é difícil. Puta é como jogador de futebol, tem de aproveitar a juventude. Se não tiver cabeça, dança. ”

 

"Não sabia que você era puta.”

 

"Também não sabia que você estava noivo. Nem que era traficante.”

 

"Não é a mesma coisa.”

 

"Noivo e traficante?”

 

"Puta e traficante.”

 

"Não mesmo. Tenho menos chances de ir parar na cadeia do que você.”

 

"Mas corre mais risco de pegar doença.”

 

"Já disse, precisa ter cabeça. Cabeça e camisinha.”

 

"E você tem?”

 

"Camisinha, sim. Cabeça eu tinha até vir pra cá.”

 

"Você já deve ter se apaixonado por alguém.”

 

"Sei lá. Acho que não. Trouxe pó?”

 

"Quer cheirar aqui?”

 

"Quero cheirar. Não importa onde.”

 

"Tá ventando muito. Vamos pró carro.”

 

Voltaram à picape. Alan tirou do bolso um frasquinho de vidro próprio para o consumo de cocaína em pequenas doses. A tampa do vidrinho se desdobrou numa colherinha que Alan usou para pegar um pouco do pó e levar até uma das narinas de Selene. Ela aspirou com força. Ele repetiu a operação, agora levando a colher ao próprio nariz.

 

"Bom pó", disse Selene, observando o nariz bem desenhado de Alan.

 

"Vem do Mato Grosso, é purinho, purinho", afirmou ele, servindo Selene de mais uma dose. "Agora vamos embora. Quero passar tudo com você mais uma vez.”

 

Selene finalmente conseguiu acender o cigarro e manobrou de volta a Presidente Venceslau. Enquanto Alan repetia passo a passo os procedimentos da fuga, ela sentiu vontade de beijar a boca dele.

 

O carcereiro Donizete checou as válvulas do motor do Monza e maldisse sua situação: no acostamento da estrada para Presidente Venceslau, atrasado em mais de uma hora para o começo do trabalho e sem saber o motivo do enguiço de seu carro. Atribuiu à má sorte os chiliques da sogra, que se encontrava em ótimo estado de saúde em Marabá Paulista, sentada na varanda calorenta, rodeada por Ivone, Ivete e os gêmeos Ivan e Ivana. E ele ali, fodido, bem na noite em que deveria colaborar com a fuga de Hélio Palito e fazer jus aos cinco mil reais que já havia recebido de Veronese. Sem outra alternativa, já que não passavam muitos carros pela estrada e os poucos que passavam recusavam-se a dar carona àquele homem gordo e pesadão -, começou a caminhar. Sabia que a alguns quilômetros dali havia um posto Ipiranga.

No posto, com certeza encontraria um telefone. Enquanto caminhava, ouviu o canto de um curiango e tentou afastar da mente a idéia de que aquele canto anunciava mau agouro.

 

Depois de jantar, Piranha palitava os dentes. Diabo Verde lia num jornal notícias sobre futebol.

 

"Ronaldinho", disse, "o joelho do moleque bichou. Isso é injustiça social. Neguinho tá com o eu entupido de grana e fica chorando por causa da porra de um joelho.

Foda-se o joelho.”

 

Piranha baixou um pouco a calça, deixando à mostra um cinto preto e largo, fechado sobre os músculos bem definidos de seu abdome: "Ronaldinho é o caralho".

 

Diabo Verde olhou para a barriga de Piranha. Sentia-se atraído pela visão daquela barriga. Nenhuma mulher tinha uma barriga mais bonita que aquela.

 

"Amanhã", disse Diabo Verde, largando o jornal. "Amanhã nós faz o homem.”

 

"Onde? ”

 

"Sei lá. No banheiro da biblioteca. Nós faz uma campana logo de manhã. O velho deve mijar bem cedo. Velho mija o dia inteiro.”

 

"Antes da ginástica", concordou Piranha. "Assim já chego na adrena e puxo logo uns cem supinos.”

 

Às onze e meia da noite Hélio Palito começou a gritar.

 

"Meu peito!”

 

Eusébio acordou assustado e Palito emitiu um ruído seco, vindo do estômago, como se fosse vomitar. Depois segurou o ar, como se estivesse sufocando. Ficou vermelho.

 

Eusébio pulou da cama e gritou pelo postigo da porta da cela: "Preso passando mal!".

 

Palito continuou segurando o ar e seu rosto foi de vermelho a roxo. Eusébio começou a socá-lo no peito. Palito não gostou da sensação de tomar porradas no peito tendo de segurar o ar. A porta abriu de repente e Miyazaki entrou na cela.

 

"Que merda é essa?”

 

Hélio Palito levou um susto ao ver Miyazaki. O susto serviu para que sua performance ficasse ainda mais convincente: agora estava branco como um cadáver.

 

"O Palito tá enfartando!", disse Eusébio.

 

"Como é que você sabe? É médico, crioulo do caralho? Pára de socar o sujeito.”

 

Hélio Palito voltou a encenar os desconfortos físicos de alguém que agoniza: "Meu peito...".

 

Miyazaki apoiou as costas de Palito ao seu braço direito e os dois saíram da cela.

 

O que o puto do Japonês está fazendo aqui?

 

Miyazaki conduzia Hélio Palito pelo corredor.

 

Cadê a anta do Donizete?

 

Passaram pela primeira porta de segurança e quando chegaram ao pátio Hélio Palito decidiu arriscar-se: desvencilhou-se de Miyazaki e começou a caminhar em direção à lavanderia.

 

"Ficou maluco, ladrão?", perguntou Miyazaki, abrindo o coldre para pegar o revólver. Palito teve certeza de que o Japonês não compactuava com a fuga. Num impulso tirou da cintura a faca que Robson lhe dera, saltou para cima do carcereiro e enfiou a faca com força em sua barriga. Um esguicho de sangue morno molhou o braço de Palito. Miyazaki abriu a boca, arregalou os olhos e seu rosto perdeu a cor. Palito achou que ele fosse gritar, ou vomitar, mas o Japonês arrotou. Um arroto sonoro e demorado. Empurrou a faca para dentro e a puxou para cima, na direção do peito, como se quisesse rasgar o homem em dois. Pressionou a faca até Miyazaki cair no chão, estrebuchando, e pensou nos estertores de um cachorro atropelado na estrada. Quando parou de tremer, Miyazaki continuou com os olhos arregalados, como se observasse

Palito. Não observava. O Japonês já não podia enxergar mais nada. Morto. Palito olhou para

cima e viu o céu cheio de estrelas. Ouviu latidos longínquos. Virou a cabeça para os lados, ninguém por perto. Largou a faca no corpo inerte de Miyazaki e correu até a lavanderia.

 

A porta estava aberta, mas lá dentro, tudo escuro. Palito conhecia razoavelmente bem o espaço da lavanderia. Isso não impediu que esbarrasse os quadris nas quinas de alguns tanques. Estava ofegante e nervoso o suficiente para não sentir dor alguma. No que julgou ser a última fileira de tanques, pulou no chão e foi se esgueirando entre as tubulações e a parede. Sentiu cheiro de barro. No breu em que se encontrava, só contava com o olfato para chegar ao túnel. O coração disparou. Respirou fundo. Não adiantou nada: o coração continuou disparado. Seguiu o cheiro até chegar ao buraco aberto na parede. Donizete o avisara de que haveria uma lanterna esperando por ele ao lado da boca do túnel. Tateou o chão em busca da lanterna. Arranhou a palma da mão na poeira e nos pedregulhos que se acumulavam sobre o chão frio de cerâmica. Encontrou a lanterna e iluminou a boca do túnel. Um buraco malcheiroso e úmido aberto numa parede em que a pintura descascava. Impossível um homem caber ali dentro. Entrou no buraco sentindo vertigens e certo de que jamais conseguiria alcançar o outro lado.

 

De dentro do Gol branco, Alan observava o campinho de futebol - àquela hora escuro e vazio - próximo à penitenciária. Já jogara muitas peladas ali mesmo, em sua infância. Mas aquele era um outro tempo. Agora, começava a ficar impaciente. O vento forte causava uma sensação de desconforto, como se prenunciasse uma tempestade, embora o céu estivesse limpo e cheio de estrelas. Olhou para o relógio, quase meia-noite. Repassou mentalmente todos os estágios ao plano. Pensou na escopeta Winchester, na faca de pesca Jungle Viper - semelhante à usada por Silvester Stallone no filme Rambo, com cabo de osso rajado e lâmina dentada de aço reluzente -, na corda e na enxada que trazia sob o banco traseiro ao Gol. Aqueles objetos poderiam ser úteis caso alguma coisa... não! Era preciso afastar da mente os pensamentos negativos.

Não era isso o que sempre dizia sua mãe? Afastar da mente os pensamentos negativos. Impossível. E se Selene, por exemplo, não estivesse no local combinado? Ele argumentara com o pai sobre os riscos de utilizá-la na operação, mas Veronese fora irredutível: "Ela é filha do Pa lito. Normalmente uma filha não trai um pai. A não ser que seja uma filha-da-puta. Não é o caso, a menina veio até aqui só para ajudar o homem a sair da cana. É bom quando a gente pode confiar nos filhos, Alan".

 

Nos filhos, sim, mas numa filha? Logo ele? Linda, é verdade. E gostosa. Puta. Como pode uma mulher tão gostosa, puta? As putas da zona de Presidente Venceslau não eram bonitas como Selene.

 

Viu de repente um braço sair do chão. A rnão segurava uma lanterna acesa. Alan desceu do carro, agarrou com força o braço de Hélio Palito e o puxou para fora do bueiro. Entraram no carro, Alan ligou o motor, acendeu a luz baixa dos faróis e saiu andando devagar.

 

"Tudo certo?", perguntou.

 

Antes que pudesse ouvir a resposta sentiu no ar um cheiro que não era o do suor nem o da lama. Acendeu as luzes internas do Gol. Notou que a camisa, os braços e o pescoço de Palito, além de sujos de lama, estavam manchados de sangue.

 

"O que aconteceu?”

 

"Matei o réptil.”

 

"Encontrou um lagarto no túnel?”

 

"O réptil pegajoso e incorruptível. Miyazaki, o sádico.”

 

Alan freou o carro. "Você matou o Japonês?”

 

"Simulei um enfarte e comecei a gritar, como vocês tinham mandado fazer. Quando a porta abriu, dei de cara com o Miyazaki. Quase tive um enfarte de verdade. Vocês tinham me avisado que o Donizete ia me levar pra fora.”

 

"Era pra ser o Donizete.”

 

"Não foi. O Miyazaki disse que ia me levar pra enfermaria. Depois de passar pela primeira grade eu tinha duas opções: ou ia mesmo pra enfermaria, e se fosse estaria fodido, ou tentava seguir as instruções. Como eu ia saber se o Miyazaki estava ou não no esquerna?”

 

"O Japonês nunca está no esquema. É uma besta.”

 

"Era. ”

 

"Não é possível. Tem certeza?”

 

"Certeza de quê, moleque?”

 

"De que ele morreu.”

 

"E a única certeza que tenho na vida.”

 

"Era mesmo o Miyazaki?”

 

"Estou sem óculos mas sei que matei um puto de olho puxado. Não sou cego. ”

 

"Como você matou ele?”

 

"Com uma faca.”

 

"Que merda, Palito. Quem te deu uma faca?”

 

"Não interessa.”

 

"Claro que interessa.”

 

"Não faz diferença nenhuma. O Japonês está morto. Se eu te disser quem me deu a faca ele vai ressuscitar?”

 

"Não pode ser. Se o Japonês morreu mesmo, estamos fodidos.”

 

"Ele morreu, mete isso na cabeça.”

 

"Estamos fodidos.”

 

"Ele está mais fodido que nós.”

 

"Não é hora de fazer piada.”

 

"Elas têm me custado muito, é verdade. Eu não tinha outra alternativa, Alan. Tirei a faca da cintura, enfiei na barriga dele e saí correndo pra lavanderia. Fiz tudo sem pensar. Se tivesse pensado teria cagado na calça. E estaria morto agora, no lugar dele. Morto e cagado.”

 

"E a faca?”

 

"Esquece a faca.”

 

"O que você fez com a faca?”

 

"O que você acha que eu fiz com a faca, porra? Deixei na barriga dele. O puto morreu arrotando. Já ouviu falar de alguém morrer arrotando? ”

 

"Por que você largou a faca no corpo dele, Palito? Que merda.”

 

"Pra que eu ia precisar de uma faca? Não sabia que era tão fácil matar alguém.”

 

"Não é nada disso. Foi fácil na hora. Agora vai ficar difícil. A polícia vem pra cima, temos de mudar tudo.”

 

"Contanto que eu não volte pra lá, mude o que você quiser. Você já dançou alguma vez na vida, Alan? Conhece o cheiro de mofo misturado com mijo das celas de prisão?”

 

"Não. E nem pretendo.”

 

"Então pensa bem antes de mudar qualquer coisa.”

 

"Chega de piada, Palito. To nervoso.”

 

"Isso não é piada. Se você está nervoso, imagina eu. Matar uma pessoa é um negócio complicado. E olha que sou ateu. Já matou alguém?”

 

Não .

 

"Então não enche o saco. Cadê a Selene?”

 

"Tá esperando a gente na estrada. Mas antes tenho de ligar pró meu pai. Pula pra trás e fica agachado no chão. Vou achar um orelhão. ”

 

"Por que vocês não compram uns celulares com toda essa grana que cobram da gente?”

 

"Fica quieto, Palito.”

 

"Filho-da-puta do Donizete...", disse Veronese. Ele falava baixo ao telefone para que a esposa não ouvisse a conversa. "... Ligou da estrada... avisei o corno que se acontecesse alguma coisa a culpa ia ser dele... o carro do lazarento pifou... perdeu a hora... ligou pró Japonês pedindo substituição no turno da noite... gordo cagão... a culpa é dele.”

 

"Não importa de quem é a culpa. O que eu faço?”

 

"Apaga o Palito. Ele e a filha. Enterra os dois no canavial.”

 

Silêncio.

 

"Merdas cagadas não voltam ao eu, filho. Aprende isso.”

 

"Já tinha notado.”

 

"O Palito mata um sargento, a rataria vai à forra. Não tem como a gente mudar isso. Não vou voltar pra prisão, Alan. Também não vou deixar você ir pra lá. O plano gorou, quanto menos testemunhas, melhor. Sei que não é agradável matar o velho e a moça, mas tem que ser feito.”

 

"Não vem com esse papo de merdas cagadas.”

 

"Às vezes as coisas saem erradas quando a gente menos espera. Aí não adianta chorar.”

 

"Não estou chorando.”

 

"Na prisão você chora. E lá dentro reza pra ninguém te ver chorando. ”

 

"Eu não tenho enxada.”

 

"Devia ter. Se vira. Enfia os dois no carro e moita nas canas. Depois você volta e enterra os corpos. Mas mata. Tem que matar. Mata e confere pra ter certeza de que morreram. ”

 

"Se me pegam por duplo homicídio fico em cana muito mais tempo do que ficaria por ajudar um fugitivo.”

 

"Morto fala?”

 

"Qual é?”

 

"Já fiz muita merda na vida. Aprendi as regras na marra. Não se pode fraquejar. Na vez que eu fraquejei, dancei. Perdi tudo de um golpe só. Meu dinheiro, minha liberdade e até a minha saúde. Acreditei que por ter gerado uma filha ela me amaria como a um pai. Me ferrei.”

 

"Esquece o passado, pai.”

 

"Se você ficar dando bobeira com esses dois por aí, logo, logo te apanham. Aí você se ferra também. Às vezes é melhor não esquecer o passado.”

 

"Pode ir pensando num advogado.”

 

"O caralho! Você acha que a polícia vai deixar o Palito vivo? Quem tiver com ele tá condenado. Você e a menina vão de sobremesa. Eu conheço as coisas, filhote. Não vai sobrar ninguém pra contar a história. Se você enterra direitinho, ninguém acha os corpos. Nunca mais. Se algum dia encontrarem, vão dizer que a polícia vingou a morte do Japonês. Não se pode fraquejar.”

 

"Nunca matei ninguém.”

 

"Tá com medo?”

 

Alan ficou quieto.

 

Selene acendeu um cigarro. Era o terceiro que acendia desde que estacionara a picape no acostamento. As luzes dos faróis estavam apagadas. De vez em quando relâmpagos iluminavam o céu indicando que a muitos quilômetros dali desabava uma tempestade. Viu um carro se aproximar pela estrada e prendeu a respiração. O carro passou, devagar, mas não parou. Voltou os olhos para o canavial. O coração batendo rápido. Sorriu enquanto soprava a fumaça do cigarro, nervosa a ponto de ver fantasmas.

 

Às seis horas da manhã, Ubirajara Zarur saiu da rodovia Castelo Branco e estacionou o Escort azul-metálico num posto da Petrobrás. Retirou a cuia, a bomba e o mate de uma sacola esportiva, caminhou até o bar e pediu ao atendente que servisse água fervendo.

 

"O senhor é gaúcho?”

 

Ubirajara concordou, pensando em quão pouco seus hábitos haviam mudado após dez anos vivendo em São Paulo.

 

Depois de tomar o primeiro gole do mate sentiu-se revigorado. O líquido quente e amargo era o melhor despertador do mundo. Caminhou até um grande mapa do estado de São Paulo, pregado numa parede, e reparou nos nomes de várias cidades que fazem fronteira com o Mato Grosso do Sul: Rubinéia, Ilha Solteira, Itapura, Jupiá, Buriti,

Paulicéia, Panorama, Campinal e Presidente Epitácio, todas margeando o rio Paraná.

 

Despejou na cuia o resto da água quente e voltou com pressa ao Escort estacionado.

 

Maria Veronese acordou com a primeira luz do dia. Mal tinha conseguido dormir naquela noite e na anterior, preocupada com a ausência do filho. Não precisou olhar para o lado para saber que o marido não estava mais na cama. Percebera quando ele se levantara ainda de madrugada. Era difícil para ele sair sozinho da cama e acomodar-se na cadeira de rodas. Mas seu orgulho não permitia que aceitasse a ajuda da mulher.

 

Maria lavou o rosto, escovou os dentes, vestiu o penhoar e caminhou até a sala. Viu o marido sentado na cadeira de rodas, olhando para a calçada através do vidro da janela.

 

"Já levantou, mãe?", perguntou o homem, sem virar o rosto.

 

"Vou passar o café.”

 

"O moleque deve estar numa farra boa, não?", perguntou ele. "Duas noites fora de casa.”

 

Maria foi até a cozinha. A tentativa do marido de tranqüilizá-la só aumentara sua apreensão. Sabia que ele estava tão inseguro e preocupado quanto ela, mas jamais trocariam uma palavra a respeito. Preocupações, para Geraldo Veronese, eram assunto para homens. Mulheres deviam se concentrar na comida e na limpeza. Maria abriu a torneira, encheu uma panela com água e acendeu o fogo. Pegou o bule de alumínio, o filtro de pano e a lata de leite Ninho onde guardava o café. No momento de passar o pó para o filtro de pano, deixou cair o café no chão da cozinha, manchando de marrom o piso branco de cerâmica.

 

"Ubirajara Zarur?", perguntou o delegado Garbulho.

 

"Esse mesmo, delegado", respondeu o investigador António Carlos. "Apresentou uma carteira da Federal.”

 

A barba rala de António Carlos só evidenciava - para seu desgosto - a pouca idade.

 

"Deixa entrar", disse Garbulho. "Estudamos juntos na Academia de Polícia.”

 

António Carlos saiu da sala e voltou acompanhando Ubirajara Zarur.

 

"Gaúcho!", disse Garbulho. Os dois tiras se cumprimentaram. "Engordaste um pouco, chê", disse Ubirajara. "Você está igual. Como conseguiu não perder cabelo nem ganhar peso em cinco anos?”

 

"Ginástica. E não bebo. Não bebo nada." "Não resisto a cerveja. Cerveja com churrasco, todo fim de semana. E não é só churrasco de carne, não, como na tua terra.

Aqui dá muito peixe bom: dourado, pacu, tudo assado no carvão com sal grosso e limão, uma beleza. Você não bebe uma cervejinha de vez em quando?" "Não.”

 

"Tá certo. Essa merda é boa mas dá barriga. Agora também entendo de vinho. É mais chique, né? E não dá barriga. Comprei uma adega climatizada, revestida com madeira trabalhada, toda envernizada, coisa fina. Você gosta de vinho?" "Também não, Garbulho." "E churrasco?”

 

"As carnes de São Paulo não têm sabor." "Bosta de gaúcho! Chimarrão?”

 

"No dia que eu deixar de tomar chimarrão deixo de ser gaúcho.”

 

Garbulho sorriu e fez sinal para que Ubirajara sentasse numa das cadeiras em frente à sua mesa. António Carlos saiu da sala. Quando sentou, Ubirajara olhou para a mão esquerda de Garbulho, apoiada sobre a mesa. Além da aliança dourada, que parecia apertar o dedo anular, inchado, ele usava no dedo mínimo um anel em que se destacava um pequeno triângulo prateado. Garbulho notou o olhar de Ubirajara e disse: "Sou maçom. Temos um grupo forte aqui. Você sabe, um tira tem que se proteger".

 

Pegou um porta-retratos que estava sobre a mesa e mostrou para Ubirajara: "Casei, tenho dois filhos".

 

Ubirajara olhou a foto em que uma moça morena sorria ao lado de dois garotinhos gordos. O menor tinha uma expressão de choro. "Parabéns, Garbulho", disse Ubirajara, desinteressado, devolvendo o porta-retratos ao delegado. Crianças não o sensibilizavam.

 

"Então, o que você está fazendo em Presidente Venceslau?", disse Garbulho. "Uma pescaria, talvez? Dá muito peixe aqui, nessa época do ano.”

 

"Infelizmente não", respondeu Ubirajara. "Ou talvez sim, de certa forma. A fuga do falsificador. O que fugiu com a ajuda da filha. ”

 

"Devia ter adivinhado. É aparecer uma mulher bonita pra todo mundo ficar ouriçado. A imprensa não sai do meu pé, mas eu acho bom. Publicidade ajuda. O que você quer saber? Hélio Palito é um falsificador exímio que dançou já faz uns três ou quatro anos. O homem era uma lenda, usava nomes diferentes. Culto, cheio de estilo o filho-da-puta.

Tinha uma ficha corrida de quilômetros e nenhuma condenação. Pegou uma pena brava. O advogado conseguiu transferir ele do Carandiru pra cá. Desde então vinha se comportando bem, organizou a biblioteca dos presos, ganhou a confiança de muita gente lá dentro. Mas ninguém podia imaginar que estivesse tramando uma fuga, até porque, pelo que me disseram, era um sujeito pacífico e de boa índole. Era. Matou um policial militar, Hiroíto Rodrigues Miyazaki, o japonês. Parece que alguém estava tentando matar o Palito, mas isso é difícil de apurar. Pode ter sido o motivo da fuga. Só não entendo por que matou o Japonês. Talvez tenha havido uma falha no plano.

O agente designado para o turno da noite, Arlindo Donizete, não chegou a tempo, o carro dele enguiçou na estrada quando voltava de Marabá Paulista. Ele ligou para o Japonês pedindo pra ele cobrir o turno, o Japonês topou. Fodeu-se. Apertamos o Donizete. Apertamos não, esprememos. O filho-da-puta apanhou pra caralho, confesso.

Tem situações que só a porrada resolve, você sabe. O Donizete é um carcereiro tarimbado, veterano, e tentou enrolar. Mas apanhou tanto que acabou abrindo que um plano estava sendo organizado pela Selene Teixeira, a filha do Palito. Rastreei os passos da menina e descobri que estava mancomunada com um elemento aqui da cidade,

Alan Veronese.”

 

"Como o Donizete soube do plano?”

 

"Como ele soube? Ele está envolvido! Não confessou, mas sei que estava no esquema desta e de outras fugas. Além do mais, num presídio todo mundo sabe de tudo. Na nossa presença ficam com amnésia. Todos: presos, carcereiros, guardas e até faxineiros. Um fenómeno essa amnésia. É só a gente sair e a memória dos putos volta a funcionar direitinho. Deviam fazer um estudo científico sobre isso. Levantei a historinha e descobri que a Selene passou uma semana aqui, se encontrando com o Alan e pegando dinheiro no banco. O Donizete vai responder processo. Muita coisa ainda vai aparecer. Descobrimos um túnel atrás de um tanque na lavanderia do presídio.

Esses ratos se metem em qualquer buraco pra escapar da prisão.”

 

"Alguma pista deles?”

 

"Não sabia que a Federal estava na fita.”

 

Ubirajara olhou para o lado, num tique que Garbulho reconheceu dos tempos da Academia de Polícia: "Não está. Não estou a trabalho. E interesse pessoal".

 

"Que interesse?”

 

"A guria, Selene. Conheço ela.”

 

"Conhece como?”

 

"Dou proteção.”

 

"Conheceu Hélio Palito?”

 

"Nunca. Nem sabia que Selene era filha dele. Fiquei sabendo pelos jornais.”

 

"Você dava proteção para a menina e não sabia que ela estava envolvida no plano de fuga do pai?”

 

"Não sabia de nada. Ela viajou pra cá sem me avisar. Eu dava proteção informal, não sou cafetão dela." *

 

"Difícil imaginar você, Gaúcho, apaixonado.”

 

"Sou humano, chê. Parece que não, mas sou.”

 

"Eles sumiram. Hélio Palito, Selene e o tal do Alan. Montamos batidas nas rodovias e aeroportos, mas não encontramos nada. Já devem estar no Paraguai.”

 

"Gostaria de interrogar o Donizete.”

 

"Impossível. ]á levou muita porrada, a Corregedoria tá de olho. Não tenho como conseguir isso pra você. Sem um mandado de juiz, não tem jogo, Gaúcho.”

 

"Deve ter mais gente envolvida.”

 

"Claro, mas ninguém abre. O pai do Alan, Geraldo Veronese, deve ser o mentor de tudo. Ele já cumpriu pena por homicídio. Era homem do contrabando, trazia mercadoria do Paraguai. Faz um par de anos, foi preso. A Federal armou uma emboscada pra ele. Ou então ele armou uma emboscada para a Federal, isso nunca ficou muito claro.

Nesse rolo aí ele matou um agente da Federal que tinha vindo de São Paulo incumbido de dar voz de prisão pra ele. Passou uns anos na cana. Perdeu tudo o que tinha.

O homem ficou esquisito depois desse incidente. Abandonou o contrabando, ficou doente. Conseguiu sair com condicional. Tenho impressão que, para sobreviver, ele começou a agenciar fugas, graças aos contatos que fez enquanto cumpriu pena. Agora, tem uma coisa: o homem é duro que nem um caralho, não fala nada.”

 

"E a ficha do Alan?", perguntou Ubirajara, olhando de novo para o anel triangular de Garbulho.

 

"Limpo. Vende pó e lança-perfume para os playboys da cidade, mas nunca pegamos o puto com a mão na merda. Agora deu pra ajudar o pai no negócio das fugas. É lambari, pé-de-chinelo.”

 

"O pé-de-chinelo está com a minha guria, chê." Garbulho sorriu: "Não esquenta, o pai está com ela, Gaúcho".

 

Ubirajara tocou a campainha. Era uma casa pequena e branca, com janelas de ferro verde. Notou uma imagem de Nossa Senhora Aparecida numa reentrância da parede. A copa de uma mangueira carregada de mangas vermelhas projetava-se por cima do telhado e Ubirajara sentiu o aroma doce das mangas maduras. Uma mulher magra e curvada, de cabelo grisalho, abriu a porta.

 

"Seu Geraldo", disse Ubirajara, lacônico como um tira que se preze.

 

"Quem é o senhor?”

 

"Polícia Federal.”

 

Mostrou a insígnia com indiferença calculada. A mulher sentiu a pressão: "Meu nome é Maria, sou esposa do Geraldo. Aconteceu alguma coisa com o meu filho?".

 

"Não sei nada do seu filho.”

 

"Entra", disse ela.

 

Ubirajara abriu o portão e atravessou um pequeno jardim com roseiras. Depois de passar por uma garagem vazia revestida de azulejos amarelos, entrou na sala acompanhado por Maria. Ela anunciou o visitante ao marido.

 

"Vai pra dentro, mulher", disse Veronese, conduzindo a cadeira de rodas na direção deles. "Eu cuido disso.”

 

Maria se retirou, Ubirajara observou a sala: sofá e duas poltronas de curvim vermelho, mesa de fórmica, televisão, aparelho de som e uma coleção da enciclopédia

Barsa na estante. Na parede, uma gravura da Virgem Maria, um quadro mostrando um incêndio numa floresta, uma imitação de tapete persa, fotos coloridas de carros de fórmula um e fotos em preto-e-branco do rosto de um bebê em poses diferentes.

 

"Esse é o Alan?", perguntou Ubirajara.

 

"O tempo passa.”

 

"Tu gostas de corridas.”

 

"Quando eu enxergava. O que você quer?”

 

"Não estou aqui a trabalho. Meu interesse é pessoal. Quero encontrar a Selene.”

 

"Uma vez eu vi um Grande Prêmio em Interlagos. Quem é Selene?”

 

"Não lês jornal, chê?”

 

"Não percebeu que não enxergo direito?”

 

Ubirajara se aproximou de Veronese e pressionou seu peito com o dedo indicador.

 

"Não estou brincando, velho.”

 

Veronese agarrou o pulso de Ubirajara.

 

"Conheço conversa fiada de polícia.”

 

Ubirajara girou o pulso e o desvencilhou da mão de Veronese. Retirou do coldre sob a camisa a pistola Glõck 9 milímetros e a colocou sobre a mesa de fórmica no centro da sala. Fez o mesmo com a carteira da Polícia Federal.

 

"Me cago para a polícia. Nunca amaste uma mulher, chê?”

 

Veronese permaneceu em silêncio.

 

"Tu sabes que esse caso não está na alçada da Federal. Sabes também que o Garbulho não é homem de aceitar interferência.”

 

"Não sei onde eles estão. Também gostaria de encontrar o meu filho. Minha mulher não dorme há dois dias.”

 

"O Alan não deu notícias?”

 

Veronese fez que não com a cabeça. Ubirajara não sabia ainda se acreditava naquele homem quase cego e incapaz de andar, mas forte.

 

"Se estiveres mentindo, posso complicar tua vida", disse.

 

"Ela não pode ficar mais complicada do que já está. Meu filho está desaparecido, perseguido pela polícia.”

 

"Tenho uma proposta.”

 

"Quer beber alguma coisa? Uma cerveja, um uísque, um café?”

 

"Só um copo d'água.”

 

"Meu uísque não é paraguaio.”

 

"Obrigado, não bebo.”

 

"Maria!", gritou Veronese, "traz água e cafezinho.”

 

Ubirajara pegou de volta a arma e a insígnia e sentou numa das poltronas vermelhas: "Minha proposta é simples".

 

"Calma", disse Veronese, interrompendo a frase de Ubirajara. "Ainda não." Levou o dedo indicador aos lábios fechados, pedindo silêncio. Maria entrou trazendo água e café. Depositou copos e xícaras sobre a mesa e voltou à cozinha.

 

"Agora faz a tua proposta", disse Veronese.

 

"Bueno. Tu me dizes o que sabes, eu encontro Selene e teu filho.”

 

Veronese pensou um pouco.

 

"E se os dois não estiverem mais juntos?", perguntou.

 

"Encontro um, depois encontro o outro. Sou homem de palavra, chê. ”

 

"A questão", disse Veronese, "é que não sei onde está o moleque. O safado me desobedeceu, não tenho notícia dele desde o dia da fuga. Quando voltar vai ter de se explicar." Virou o rosto em direção à cozinha, certificando-se de que a mulher não estava por perto. "Se voltar.”

 

"A quem Alan apelaria se quisesse agir escondido de ti?”

 

"Ele já agiu. Não tenho nada a ver com essa fuga.”

 

"Não quero saber se tu estás envolvido na fuga. Quero encontrar Selene. ”

 

"Eu não sei da vida do Alan, ele já é um homem-feito, dono do próprio cacete. Não sei com quem se relaciona. Infelizmente não posso aceitar tua proposta. Não tenho como ajudar. ”

 

"O rapaz mora aqui, na tua casa, e tu não sabes com quem ele se relaciona? ”

 

"Pois é.”

 

Ubirajara ficou quieto. Começava a ficar irritado.

 

"Talvez eles tenham matado o Alan. Isso me preocupa", disse Veronese.

 

"Eles? ”

 

"Hélio Palito e a filha.”

 

"Que motivo teriam para matar o Alan?”

 

"Quando um plano fura, as coisas ficam confusas.”

 

"O que exatamente furou no plano?”

 

"Desiste. De mim você não arranca mais nada.”

 

"A Selene não mataria ninguém", afirmou Ubirajara. "Hélio Palito só matou o sargento porque houve um imprevisto. Ele nunca havia matado ninguém até então.”

 

"Um homem desesperado é capaz de fazer qualquer coisa", disse Veronese.

 

Um homem apaixonado também, pensou Ubirajara.

Ubirajara deixou a casa de Veronese no final da tarde. Escurecia, mas o calor do sol impregnara asfalto, muros e paredes. Atravessou a cidade em seu Escort azul e, na linha do trem, teve de esperar por alguns minutos a passagem monótona de uma locomotiva sem vagões. Dirigiu-se ao Hotel Central, o mesmo em que Selene havia se hospedado. Na recepção, perguntou se poderia ocupar o quarto que ocupara a moça fugitiva.

 

"O senhor está falando sério?", perguntou a recepcionista. Seu cabelo era negro escorrido, como o de uma índia.

 

"Estou sim.”

 

Ela sentiu o coração disparar. A presença daquele homem a inquietava. Consultou um grande caderno cor de vinho: "Pode ficar, está vago".

 

Ubirajara preencheu a ficha de admissão sem prestar atenção à recepcionista. Pegou a chave e foi até o quarto. Tomou uma ducha fria e deitou na cama, nu. Fechou os olhos e aspirou com força o lençol, na esperança de sentir o cheiro de Selene. Só percebeu a fragrância do sabão em pó.

 

Adormeceu.

 

O investigador Antônio Carlos caminhou até um orelhão e discou o número da casa do delegado Garbulho.

 

Garbulho estava ao lado da mulher, sentado no sofá da sala, vendo televisão. Atendeu o telefone.

 

"Delegado? O homem voltou pró hotel e está lá até agora. Deve estar dormindo.”

 

"Dormindo o cacete. O Gaúcho não dorme. Não come, não bebe, não dorme e não faz nada que uma pessoa normal faz. Nem Grêmio nem Inter. O filho-da-puta só pensa em trabalho. ”

 

"Não come, não bebe, será que também não trepa?”

 

"Não botei você na campana pra saber se ele trepa.”

 

"Brincadeira, delegado.”

 

"Olho nele. Na moita. E vai me avisando.”

 

"A qualquer hora?”

 

"Contanto que não seja pra me avisar que ele está trepando. Ou cagando. ”

 

"Então ele caga.”

 

"Boa noite, Antônio Carlos", disse Garbulho.

 

Desligou o telefone.

 

"Quem é que não trepa?", perguntou a mulher de Garbulho.

 

"Assanhada. Não interessa. E não gosto que você fale palavras feias. Pega uma cervejinha pra mim, chuchu.”

 

Garbulho e a mulher tratavam-se, na intimidade, por chuchu.

 

"Falar, não", disse a mulher. "Mas você adora que eu faça coisas feias.”

 

Garbulho sorriu. Chuchu levantou-se e foi até a cozinha pegar uma lata de cerveja.

 

Ubirajara despertou com o telefone.

 

"Seu Ubirajara?", perguntou a voz feminina.

 

"Quem fala?" *

 

"E dona Maria, mulher do Veronese.”

 

"Como vai a senhora?", perguntou Ubirajara, tentando despertar. Eram dez horas da noite.

 

"Eu... aceito a proposta que o senhor fez para o meu marido.”

 

"A senhora?”

 

Agora ele já estava totalmente desperto.

 

"Mas antes de falar qualquer coisa preciso ter certeza de que o senhor não vai entregar meu filho para a polícia.”

 

"O que eu ganho entregando teu filho para a polícia?”

 

"O senhor é polícia.”

 

"E a senhora é mulher. Mãe. Sem a arma e a insígnia sou só um homem. Não podes compreender alguém fazer alguma coisa por amor? ”

 

"É difícil.”

 

"Tens que confiar, chê.”

 

"Preciso falar rápido, estou ligando da rua, o Veronese não pode saber que estou falando com o senhor. Anota o que vou dizer.”

 

Ubirajara saltou da cama e retirou da sacola um bloco de anotações e uma caneta. O tom de voz da mulher era decidido. Não parecia a esposa submissa que Ubirajara conhecera algumas horas antes.

 

"O Veronese não sabe mas eu escutei tudo. Ele mandou o Alan matar a menina e o pai e depois enterrar os corpos no canavial onde deveria esconder o carro.”

 

"Onde fica esse canavial?”

 

" ienho certeza de que meu filho não é um assassino.”

 

"Me diz onde fica o canavial.”

 

"No quilômetro 625 da Raposo Tavares, ao lado de uma faixa de acostamento. Fica a uns cinco quilômetros daqui, logo que passa o posto grande da Shell.”

 

Ubirajara anotava tudo o que a mulher dizia.

 

"A senhora acredita que o Alan prosseguiu com o plano de fuga?”

 

"Só pode ser isso. Não quero pensar que alguma coisa horrível tenha acontecido.”

 

Ubirajara sabia que a mulher se referia à possibilidade de Hélio Palito e Selene terem assassinado Alan.

 

"O Alan deve ter tido o bom senso de não obedecer à ordem estúpida do pai", disse.

 

"O Veronese é estúpido e todas as suas ordens são estúpidas", concordou a mulher. "O homem é um fardo na minha vida. Uma sina. Se souber que estou contando tudo isso ao senhor, me mata.”

 

"Ele não vai saber. A senhora conhece os detalhes do plano? Os lugares e as pessoas que iam ajudar nos outros estágios da fuga?”

 

"A fuga deu pra trás. O Veronese perdeu o contato com o Alan. Eles estão por conta própria.”

 

"Os nomes", insistiu Ubirajara.

 

"Não sei nome nenhum.”

 

"Lembra bem, dona Maria.”

 

A mulher ameaçou começar a chorar. Ubirajara sabia que ainda era cedo para isso.

 

"Calma, dona. Sou a única pessoa que pode ajudar a senhora. Preciso de mais informações.”

 

"O quê? Fala logo, tenho que desligar.”

 

"O Alan deve ter amigos que iam ajudar numa situação dessas. ”

 

"O Alan trabalha para um contrabandista, o Santiago. O Santiago é filho do Santo, que fez negócio com o Veronese mas já é falecido. O problema é que o Santiago vende tóxico. O Veronese odeia traficante, ele não admite que alguém ganhe a vida vendendo tóxico.”

 

"Sei. ”

 

"O Veronese imagina que o Alan pode ter apelado para o Santiago, mas meu marido é muito orgulhoso. Pior que a diabete é o orgulho. E por isso que ele não quis ajudar o senhor e é por isso que ele não faz nada para encontrar o Alan. Orgulho. ”

 

A mulher ameaçou recomeçar o choro.

 

"Santiago de quê?”

 

"Milani.”

 

"Mora onde?”

 

"Já morou em Prudente. Foi onde meu filho conheceu ele. Hoje em dia vive numa fazenda no Mato Grosso. Aqui em Venceslau não costuma aparecer. ”

 

"Mato Grosso ou Mato Grosso do Sul?”

 

"Pra mim é tudo a mesma coisa. Quando fui criada só existia um Mato Grosso.”

 

"Em que lugar do Mato Grosso?”

 

"Prós lados de Dourados, perto de uma cidade chamada Nova América.”

 

A conversa caiu no silêncio enquanto Ubirajara anotava os nomes das cidades.

 

"O senhor vai me ajudar? Vai trazer meu filho de volta?”

 

"O trato está feito, chê. Fica calma, vai dar tudo certo.”

 

No quilómetro 625 da Raposo Tavares Ubirajara viu os primeiros raios de sol pelo espelho retrovisor e parou no acostamento. Saiu do Escort e inspirou o ar da manhã.

Não havia na brisa sinais de corpos apodrecendo nem urubus sobrevoando a região. Atravessou a cerca de arame farpado e ficou parado por alguns instantes, olhando em torno. Notou que uma das estacas de madeira da cerca tinha uma marca feita a facão. Na sua profissão é sempre difícil prever o passo seguinte. Calculou uma linha reta a partir da estaca marcada e entrou no canavial. O perigo de se aprofundar num canavial é a possibilidade de nunca mais encontrar a saída. Demorou meia hora até encontrar o Gol de Alan, trancado e coberto por folhas de cana.

 

À primeira vista não havia nada (nem ninguém) dentro do carro. Mas Ubirajara sabia que as melhores surpresas são reservadas aos porta-malas. Estava trancado, é claro.

Retornou ao Escort em busca de uma chave de fenda. Encontrou-a na maleta de ferramentas mas ela não lhe foi útil: estava nervoso e só conseguiu fazer alguns riscos na pintura do capo branco do Gol de Alan. Pensou em quebrar o vidro traseiro, mas desistiu. Poderia ferir-se. Novamente voltou ao Escort e pegou um pé-de-cabra.

Ao empunhá-lo, percebeu a mão úmida de suor. Abriu o tampo do porta-malas do Gol com um tranco seco: não tinha nada ali dentro. Vasculhou a terra em torno procurandoescavações recentes. Não encontrou indícios de que alguém estivesse sepultado ali.

 

De volta à estrada, abriu o mapa. Havia um longo percurso a percorrer até Nova América, no Mato Grosso do Sul. Acho que vou precisar de um mate, pensou.

 

Selene olhou o mapa e disse: "Puta que pariu, vai dizer que estamos perdidos de novo?".

 

Alan, dirigindo a picape: "Eu só pedi pra você achar uma cidade chamada Cruzeiro do Oeste. Ninguém está perdido".

 

"Pára de implicar com o Alan, filha", disse Hélio Palito, deitado no banco de trás, despertando de um sono que já durava horas. Estava vestido apenas com uma bermudavelha que Alan lhe arranjara. "Perdidos nós estaríamos se tivéssemos ido direto pró Mato Grosso do Sul pelas estradas principais. Foi uma idéia muito boa a gente esperar e depois vir pró Paraná.”

 

"Já sei, pai, já sei." Ela virou o rosto para trás e olhou para o pai, refestelado no banco. "Nada como a liberdade, hein?”

 

Palito acariciou a própria barriga. "A vida é bem melhor se você pode comer e dormir quando tem vontade. Parece óbvio, não é? Comer e dormir. Eu não podia mais comer nem dormir." Pegou um biscoito de maisena de um pacote aberto que mantinha ao seu lado. Além dos biscoitos havia ali alguns gibis. Ele mordeu o biscoito e começou a ler um Homem-Aranha. "Que merda é a vida na prisão.”

 

"Quem sabe a gente não acaba voltando pra lá", disse Selene.

 

"Never", retrucou Palito, sem tirar os olhos do gibi, a boca cheia de farelo de biscoito.

 

"Você viu no posto, pai, nossas fotos estão nos jornais e aposto que devem estar também na televisão.”

 

"Nunca subestime um pouco de publicidade, ela pode nos ajudar no futuro.”

 

"Você pretende escrever um livro de memórias?", perguntou Selene.

 

"Talvez. Quer ser a minha ghostwriter?”

 

"Dá pra você achar logo Cruzeiro do Oeste?", interrompeu Alan, dirigindo-se a Selene.

 

"Puta merda, como vocês são chatos!", disse, concentrada no mapa .

 

Selene encontrou a cidade que procurava. Alan estacionou a picape no meio da estrada de terra (não havia acostamento) e observou o mapa. Sentiram o aroma úmido da terra vermelha e escura.

 

"Mais umas duas, três horas e a gente chega em Porto Figueira. De lá pró Mato Grosso é só atravessar o rio", disse Alan.

 

"Rapaz", disse Palito, tocando o braço de Alan. "Sei que você está fazendo isso contra a vontade do teu pai. Sei que quando matei o Japonês o plano de fuga se desfezigual a uma bolha de sabão. Agora, como é que fica? Você me leva são e salvo até ° Paraguai, me despeja numa cidadezinha qualquer e missão cumprida?”

 

"Não vou te largar numa cidadezinha qualquer, você vai Para Assunção. Lá, contatos do meu pai vão te ajudar a sobreviver. Um bom falsificador nunca fica desempregado", disse Alan.

 

"Um falsificador enferrujado fica", disse Hélio Palito.

 

"Você não queria sair daquela cela?", perguntou Selene. está vivo e está livre. Não é isso que você queria?”

 

"Não basta estar vivo para estar livre", resmungou. "Estou ficando previsível. Agora você já tem uma frase pra botar no meu túmulo: Não basta estar vivo para estar livre", repetiu, irônico.

 

"Tá cedo pra gente pensar em frases pró seu túmulo. E quem disse que vou botar uma frase sua no seu túmulo?", perguntou Selene.

 

"Você está certa. Frases em túmulos são sempre lugares-comuns. Prefiro ser cremado.”

 

Ubirajara parou o carro num posto Esso a poucos quilômetros de Presidente Epitácio. Ligou a cobrar para a sede da Polícia Federal em São Paulo. Apresentou-se à secretária que atendeu o telefonema e pediu que ela o pusesse em contato com o agente Demétrius Siqueira, no departamento de informação.

 

"Demétrius? É Ubirajara. Preciso de um favor teu.”

 

"Ligando cedo, Gaúcho.”

 

Ubirajara pediu a ficha completa de Santiago Milani, contrabandista e traficante que supostamente viveria no Mato Grosso do Sul e agiria, ou já teria agido, na região de Presidente Prudente, no estado de São Paulo.

 

"Onde eu te acho?", perguntou Demétrius.

 

"Te ligo daqui a meia hora", disse Ubirajara.

 

Desligou, caminhou até o balcão e percebeu que suas pernas formigavam, adormecidas. Sentia falta dos exercícios que praticava regularmente .

 

"Santiago Milani", disse pelo telefone o agente Demétrius Siqueira, "é filho de um velho contrabandista de Presidente Prudente, o Santo Milani. O Santo começou a carreira vendendo lingüiça nos puteiros da zona de Prudente. De lá, passou a servir comida e bebida em casamentos e churrascos. Com o tempo, começou a trazer uísquedo Paraguai. O negócio deu certo, logo abriu o seu próprio bufê. Esse bufê acobertava um tremendo comércio de uísque falsificado. Depois ele se associou ao Geraldo

Veronese, um outro contrabandista da região que comerciava lança-perfume. O Santiago cresceu ajudando o pai. Nos Carnavais, municiavam de uísque e lança-perfume todos os bailes dos clubes da região. Ganharam muito dinheiro, compraram fazendas, propriedades. Com a morte do Santo, Santiago entrou no ramo do pó, que o pai e o sócio sempre condenaram. O Santiago acabou com a sociedade com o Veronese e aí o patrimônio triplicou.”

 

"Esse cara já dançou alguma vez?”

 

"O Veronese já foi preso e condenado. O Santiago não tem

nenhuma condenação. Nunca ficou mais de uma semana em cana. Nem ele nem o pai. Sempre tiveram a polícia de Prudente no bolso. Hoje em dia, Santiago tem bons advogados.”

 

"Endereço?"

 

"Geladeira. Vive numa fazenda no Mato Grosso do Sul, mas não sabemos onde, exatamente.”

 

"Tudo bem", disse Ubirajara, "obrigado.”

 

Desligou antes que Demétrius lhe perguntasse por que estava tão interessado em Santiago Milani.

 

Selene e Hélio Palito dormiam enquanto Alan dirigia a picape. O sol já estava alto e Alan teve a impressão de que a estrada fervia. Pela janela observava pastagens amplas em que pequenas extensões de mata nativa despontavam de vez em quando. Havia também ipês e coqueiros, mas pareciam tão solitários que nem sombra conseguiam produzir. Logo logo não haveria mais nenhum vestígio de árvores. Só o pasto e o gado. Ali sempre vicejaram o café, depois a cana, a soja e o milho. Agora Alan enxergava as plantações darem lugar a vacas, bois e bezerros. A terra também estava ficando cansada.

 

Passou por um posto Atlantic e sentiu o cheiro de óleo diesel e de borracha queimada. Viu muitos caminhões estacionados, a churrascaria estava cheia de motoristas almoçando. Aqui a comida deve ser boa, pensou, sentindo vontade de comer picanha malpassacla, farofa de ovo mexido com banana à milanesa c cerveja para acompanhar.

Notou que o ponteiro do combustível estava baixo e tocou de leve no cotovelo de Selene. Dorm indo ela parecia uma criança.

Elnão se moveu. Alan sabia que Selene sempre dormia indu zida Por soníferos e balançou seu braço com mais força:

Ela continuou inerte. Alan chacoalhou de leve os joelhos dela. Notou suas coxas duras e a penugem loira umedecida pelo suor. Sentiu vontade de levantar o vestido para ver a calcinha: "Selene! Acorda!".

"Ha? ”

"Precisamos de gás, como estamos de grana?”

"Eu tenho cara de tesoureira?”

"Acho que estou apaixonado por você", confessou Alan, sem entender de onde brotara aquele ímpeto inesperado. Talvez da vontade de ver a calcinha dela. Selene não sabia se ele estava brincando.

"E a noiva?", perguntou.

 

"A essa altura, depois do que saiu no jornal, deve ter vergonha de mim.”

 

"Não, senhor, mulher gosta de bandido. Ela nunca pegou no teu berro? No berro mesmo, não no pau. No teu pau eu sei que ela pega.”

 

Alan não disse nada.

 

"Você nunca saiu com ela pra dar uns tirinhos?", insistiu Selene. "Tiro de máquina, não de pó.”

 

"Nunca mostrei minha Luger pra ela. E não interessa o que eu faço ou deixo de fazer com ela. Como você sabe que eu tenho uma arma?”

 

"Se liga, Alan. Você ia se meter numa fuga sem um berro?”

 

"A Luger não é berro, é pistola.”

 

"E tudo a mesma coisa.”

 

"Não é não. Cada arma tem uma função diferente. Tenho uma Luger g milímetros e uma escopeta Winchester, de 12 . A pistola é boa pra acertar uma pessoa a poucos metros de distância. Com a escopeta você pode parar um carro e apagar todo mundo que estiver lá dentro.”

 

"Nunca vi uma escopeta. Deixa eu ver a tua.”

 

"Mulher e arma não combinam.”

 

"Mulher combina com o quê?”

 

"Com um monte de coisas. Coisas boas. Filhos, casa, comida. Não combina com arma nem com grana.”

 

"É mesmo? Você sabe quem está financiando essa brincadeira toda? ”

 

"Você é uma mulher diferente.”

 

"De quem?”

 

"Da minha mãe.”

 

"Não conheço a tua mãe, mas não vai pensando que dá pra conhecer uma mulher pelo que ela aparenta. As mulheres sabem esconder o que pensam e, principalmente, o que sentem. ”

 

"Foi bom você falar em esconder", disse Alan.

 

"Eu não escondo nada.”

 

"Nem grana? Estamos duros.”

 

"Pensti que você tinha me acordado pra dizer que estava apaixonado.”

 

"Foi também.”

 

"Tá bom. Dei toda minha grana pra você, Alan.”

 

"Não sobrou nada?”

 

"Claro que não. Estou aqui, gastando há duas semanas, sem trabalhar. Eu é que pergunto se não sobrou nada, te dei vinte mil ré ais, tá ligado?”

 

"A grana foi distribuída entre quem fazia parte do esquema. No momento em que dançou o plano, mixou a grana. Se alguém devolveu, devolveu pró meu pai, não pra mim.

O que eu tinha já foi na gasolina e nas bolachas.”

 

"-A gasolina está acabando?”

 

Alan disse que sim.

 

" Pelo menos ainda sobraram algumas bolachas." Não tem graça, Selene. ”

 

Tenho uma idéia, mas não é muito brilhante. Também não é engraçada.”

 

Melhor que nada. E o que eu estou pensando?”

 

Em Umuarama, no Paraná, Alan e Selene entraram num bar próximo à rodoviária. Sentiram o cheiro doce e úmido de fumo de corda.

 

"As paredes estão manchadas de terra", disse Selene baixinho.

 

"Terra roxa. A terra mais fértil do mundo", disse Alan, orgulhoso como se a terra fizesse parte dele.

 

"Pra mim não tem nada de roxa. E vermelha e marrom, como qualquer outra terra. Por que deram esse nome de terra roxa numa terra marrom?", perguntou Selene.

 

"Você é que nem criança, vive fazendo perguntas difíceis de responder.”

 

Apoiaram-se no balcão e Alan pediu uma coca-cola. Observaram as pessoas. O rádio tocava música sertaneja. Nos fundos do bar, presa a uma armação de ferro pregada no alto da parede, uma televisão reprisava uma novela antiga.

 

O atendente trouxe a coca-cola e dois copos. Alan ia servir o copo de Selene mas ela o impediu. Pegou um canudo e disse: "Pode ter sapinho".

"Se você é tão preocupada com doenças, devia ter outra profissão", disse Alan.

 

"E você devia movimentar terra roxa em vez de pó.”

 

Dois homens bebiam cerveja no balcão. Usavam chapéus de palha e cintos largos. Uma moça com um bebê no colo, também no balcão, bebia café com leite. Numa das mesas um casal de namorados, ele negro, ela branca, tomava guaraná e comia sanduíches. Um velho dormia em outra mesa, a cabeça largada ao lado de um copo de cachaça. Tinha o rosto enrugado coberto por uma barba rala e brilhante. Seus dedos estavam sujos e deformados pela artrite. Na última mesa, perto da televisão, uma mulher maquiada fumava um cigarro e bebia café. Na cadeira ao seu lado, uma bolsa e uma mala.

 

"E aquela, embaixo da TV", sussurrou Selene.

 

"Vai viajar, deve ter grana na bolsa", concordou Alan. "Alguma idéia?”

 

Selene fez que sim com a cabeça. "Antes eu quero mais uma coca", disse.

 

Alan pediu outra coca-cola.

 

"Disfarça. Esconde teu relógio sem dar bandeira", disse Selene.

 

Alan percebeu que ela estava sem relógio e guardou discretamente o seu no bolso. O atendente trouxe a coca-cola e Selene enfiou vários canudos dentro da garrafa.

 

"Como é bom coca", disse, entre dois goles.

 

"Sei de que coca você gosta.”

 

"Quem sabe aquela bolsa não está cheia de pó? A mulher pode ser uma mula vindo da Bolívia, levando pó para São Paulo.”

 

"Pára de sonhar, criança", disse Alan. "Qual é a idéia? ”

 

"A mais simples, sempre.”

 

Alan ficou olhando para ela.

 

"Você se acha esperto?”

 

"Qualé?”

 

"Paga a conta.”

 

Alan botou seus últimos trocados sobre o balcão. Selene começou a caminhar em direção ao fundo do bar. Alan foi atrás dela. Selene olhou para a televisão e viu um ator velho dizer alguma coisa a um ator jovem e inexpressivo que ela achava bonito. Aproximou-se da mulher maquiada, que estava distraída, fumando e olhando a televisão.

 

"Tem horas?”

 

A mulher olhou para o relógio: "Duas e quinze", e voltou a assistir TV .

 

"Obrigada", disse Selene.

 

Ela e Alan saíram do bar caminhando normalmente.

 

"Gostei de ver", disse Selene assim que eles chegaram à calçada. "Você passou no teste. E esperto.”

 

"O truque mais velho do mundo: você pergunta as horas, eu pego a bolsa. Não é preciso ser assim tão esperto.”

 

Ubirajara parou num posto perto de Casa Verde, no Mato Grosso do Sul. Completou o tanque de combustível, estacionou e caminhou até o bar munido do mate, da cuia e da bomba, atrás de água fervente. Dirigira sem parar por várias horas e precisava espantar o sono.

 

No bar, pediu água quente e ficou olhando o noticiário do meio-dia numa TV postada entre garrafas de bebida, atrás do balcão. Sem prestar atenção às notícias, pensava nas informações que lhe passara o agente Demétrius Siqueira, algumas horas antes, a respeito de Santiago Milani. Levou um susto ao ouvir o locutor do telejornal anunciar o nome de Selene Teixeira. Voltou a atenção para a tela da TV e viu fotos dos rostos de Hélio Palito, Alan e Selene: "... o carro usado pelos fugitivos foi encontra do num canavial próximo à rodovia Raposo Tavares...", prosseguiu o locutor.

 

A foto de Selene era antiga, tirada de algum documento.

 

A primeira coisa que Ubirajara pensou: "Selene está estranha nessa foto. Ela vai odiar saber que botaram essa foto na TV".

 

A imagem agora mostrava o canavial, com o Gol de Alan cercado por policiais. O rosto inchado do delegado Garbulho apareceu de repente: "... a busca continua e em breve prenderemos os três elementos...".

 

A segunda coisa que Ubirajara pensou: "Garbulho filho-daputa, botou alguém atrás de mim. Traíra".

 

Voltou ao Escort antes que lhe servissem a água quente, mas agora já não sentia sono.

 

Selene abriu a bolsa roubada e despejou seu conteúdo sobre o banco de trás da picape. Ela e Hélio Palito ficaram olhando para os objetos espalhados sobre o estofamento.

Reuniam coragem para examiná-los, como se algum pudor os impedisse de consumar o ritual que já haviam iniciado.

 

Alan, dirigindo, perguntou: "E aí?".

 

A pergunta despertou pai e filha do torpor momentâneo e fez com que começassem a manusear os objetos, classificando-os: "Molho de chaves, agenda de telefones, crucifixo...

uma mulher religiosa", disse Palito. Selene prosseguiu: "Modess, um pirulito, batom...". Abriu a tampa do batom, examinando-o. "... vagabundo, ficha telefônica...”

 

"Grana?", interrompeu Alan. Selene observou de relance o olhar aflito dele pelo retrovisor. Ela já tinha visto a carteira escura, mas decidira examiná-la por último.

 

"Uma carteira", disse Selene, "uma carteira de imitação de couro cru.”

 

"Abre logo", disse Alan.

 

Hélio Palito empurrou todos os outros objetos, fazendo-os cair sobre o piso do carro, e Selene iniciou o exame da carteira: "Carteira de identidade, carteira de sócia do Clube Recreativo de Campo Mourão, certidão de casamento, foto de uma menina, uma nota de cinqüenta, uma de cinco e quatro de um. Cinqüenta e nove reais.

Uma merreca".

 

"Dá pra encher o tanque", disse Palito.

 

"Cartão de crédito?", perguntou Alan.

 

"Não.”

 

"Cheque?”

 

"Um talão do Bradesco, pela metade. E também um cartão do banco, assinado por ela. Maria Clara Mota.”

 

"Ótimo", disse Alan.

 

"A Maria Clara deve estar sustando esse cheque neste exato momento", disse Palito.

 

"E daí? Problema do banco", disse Alan.

 

"Vamos logo com isso, então. Pára num posto, vamos comer um churrasco", sugeriu Palito.

 

"E se alguém quiser conferir a assinatura do cheque?", perguntou Selene .

 

"Esqueceu que está sentada ao lado do maior falsificador de assinaturas do país?", perguntou Alan.

 

Selene olhou o pai e constatou que ele não parecia alguém que era o maior no que quer que fosse.

 

Alan estacionou a picape sob um bambuzal. O sol estava a pino e não havia ninguém por perto, à exceção de algumas vacas pastando. Coqueiros completavam a paisagem.

 

"Por que a parada?", perguntou Hélio Palito. "Vamos logo para uma churrascaria. Ou vocês pretendem laçar as vacas e fazer um churrasco aqui mesmo?”

 

"Esqueci de trazer a churrasqueira", disse Alan.

 

"Muito engraçado", disse Selene. "Pai, você tem de falsificar a assinatura da mulher.”

 

"Deixa isso pra lá, ninguém vai conferir assinatura nenhuma. Você rabisca qualquer coisa no cheque", disse Palito.

 

"Por que correr risco à toa? E se o garçom pedir o cartão do banco ou a identidade pra conferir a assinatura?", disse Selene.

 

"Não faço isso há muito tempo. No presídio eu só escrevia cartas.”

 

"Sem essa, Palito", disse Alan.

 

Esqueci meus óculos na prisão, minha vista está uma merda.”

 

"Na hora de matar o Japonês você enxergou direitinho", disse Alan .

 

"Era outra situação.”

 

"Porra, papai, você passa o tempo todo lendo gibis, seus olhos não podem estar tão mal assim.”

 

"Eu não leio. Olho as figuras. Não fala porra.”

 

"É só uma assinaturazinha", insistiu Selene, segurando a carteira de identidade de Maria Clara Mota, brasileira, nascida em Campo Mourão, Paraná, em 195...

 

Hélio Palito pegou a carteira e a examinou. Selene e Alan repararam que ele apertou os olhos para enxergar melhor. Não repararam, no entanto, num quase imperceptível tremor em suas mãos.

 

"Caneta?”

 

Alan abriu o porta-luvas, retirou dali uma caneta esferográfica azul e a entregou para Palito. Ele a pegou como um objeto estranho, desconhecido.

 

"Vamos sair do carro, preciso de um apoio mais firme.”

 

Saíram do carro. Hélio Palito colocou a carteira de identidade e o talão de cheques lado a lado sobre o capo dianteiro da picape. Alan e Selene, por trás dele, observavam.

 

"Preciso de um papel em branco.”

 

Alan voltou ao carro e retirou de um bloquinho uma folha de papel. Deu o papel para Palito e continuou observando.

 

"Vocês não querem dar uma voltinha, não? Isso aqui não é um show do David Copperfield. Preciso de concentração. Aproveitem pra regar a terra roxa com urina.”

 

"A terra é vermelha, não é roxa", disse Selene.

 

"Erre, ó, esse, esse, á. Rossa. Que, em italiano, quer dizer vermelha", explicou Palito. "O nosso amigo Alan Veronese é uma prova de que muitos imigrantes italianos vieram pra essa região. Os caboclos escutavam os italianos dizerem rossa e en tendiam 'roxa'. Vai ver foi o tataravô do Alan quem inventou a terra roxa. Se mandem. ”

 

Selene e Alan não disseram nada, mas ficaram felizes com o desvendamento do mistério da terra roxa. Caminharam até dentro do bambuzal, sentaram no chão e ficaram ouvindo o som do vento. E então se beijaram.

 

Ubirajara olhou pelo retrovisor o grande declive às suas costas. Havia vários carros se deslocando em diferenies velocidades. Conseguiu distinguir um caminhão Mercedes-Benz, uma perua Cherokee e um Corsa. Seria difícil descobrir a identidade de seu perseguidor enquanto estivesse na BR 267, uma rodovia grande, com movimento contínuo.

Sem diminuir a velocidade, consultou o mapa aberto sobre o console.

 

Alguns quilómetros adiante, numa cidade chamada Vítor, virou à esquerda numa estrada de terra. A estrada conduzia a uma outra cidade, Angélica, e ele imaginou se haveria algum dia duas cidades chamadas Ubirajara e Selene. Riu de seu próprio pensamento e creditou-o ao cansaço. Quem seria o filho-daputa que o estava seguindo?

Não se pode confiar em ninguém. Traído por Garbulho, a quem considerava amigo. Maçom! Traíra. Ninguém vale nada. Como fora capaz de abandonar Selene quando ela mais precisava dele? Será que precisava mesmo? O que leva uma mulher a se transformar numa puta? Olhou para trás, viu somente a poeira que os pneus de seu Escort levantavam.

Vaidade? Grana fácil? Falta de vergonha na cara? Ele precisaria agir com muita perícia se quisesse flagrar seu perseguidor. Perderia algum tempo, mas nada o demoveria de encontrar Selene. Ao avistar uma curva, diminuiu a velocidade. Contornou-a e estacionou, deixando o Escort à vista. Abriu a sacola, pegou a pistola Glõck 9 milímetros e um canivete vermelho do exército suíço. Travou as portas e saiu com pressa. Atravessou uma cerca de arame farpado e correu duzentos metros pelo pasto. Escondeu-se numa vala atrás de um enorme formigueiro. Em menos de dez minutos um Santana cor de vinho passou devagar pela estrada, mas não parou.

 

Ubirajara teve certeza de que ele voltaria.

 

O beijo começou delicado mas logo tornou-se violento e um pouco desesperado. As mãos de Alan encontraram os bicos duros dos seios de Selene. Ela enfiou a mão dentro da calça dele. Quando seus lábios se separaram, estavam ofegantes.

 

"Você sabia que puta só beija quando está apaixonada?", perguntou Selene.

 

"Que besteira é essa?”

 

"Vi num filme. É a história de uma puta que se apaixona.”

 

"Você não é puta.”

 

"Claro que sou, Alan.”

 

"Agora você é minha mulher. E eu não namoro puta.”

 

"Sempre tem uma primeira vez. O teu pau tá duro.”

 

"Por que você nunca fala sério?”

 

"Pau duro é coisa séria.".

 

"Você não entende que eu te amo?”

 

"Por que homem gosta tanto de dizer Eu te amo pra puta?”

 

"Por que você se orgulha tanto de ser puta? Você devia ter vergonha. ”

 

"Vergonha de quê?”

 

"De trepar por dinheiro.”

 

"Você queria que eu trepasse por tesão?”

 

"Nem sei o que essa palavra quer dizer.”

 

"Você acabou de falar que puta só beija quando está apaixonada.”

 

"E daí? Paixão e amor são coisas diferentes. Qualquer criança sabe disso.”

 

"Você está apaixonada?”

 

"Acho que sim. Mas vou te dar um conselho: não acredita em tudo que eu falo.”

 

"O problema vai ser quando eu não acreditar em nada do que você fala. ”

 

"Tive um namorado, uma vez.”

 

"Quem? ”

 

"Por que o teu pau ficou mole?”

 

"Adivinha.”

 

Selene tirou a mão de dentro da calça de Alan.

 

"Um cana. O nome dele era Gaúcho.”

 

"Gaúcho não é nome.”

 

"Todo mundo chamava ele de Gaúcho.”

 

"Foi o único homem que você amou? Esse homem que você nem sabe como se chama?”

 

"Foi o único homem que eu beijei de verdade.”

 

"Então isso é o amor. Beijar de verdade", disse Alan. "Pensei que a gente tinha se beijado de verdade agora há pouco.”

 

"Beijamos, sim, mas não pode ser só isso. Falam tanto no amor! Nas novelas e nos filmes ele é tão... intenso. Não pode ser só isso. ”

 

"Ele te amava?”

 

"O Gaúcho? Ele amava ele. Uma das paixões mais fortes

 

que eu já vi na minha vida. Louco por ele mesmo, uma beleza de paixão. Acho que ele era meio viado, também. Como o Fantasma. Desconfio de homem muito sarado, apesar de achar bonito. O problema é quando um viado não sabe que é viado.”

 

"Você nunca foi amada como merece, vem ficar comigo.”

 

"Uma hora que meu pai estiver dormindo a gente transa.”

 

"Não estou falando de transa. Vem viver comigo, vamos casar.”

 

Alan não entendeu se o olhar de espanto de Selene foi causado por sua declaração ou pelo chamado de Hélio Palito: "Selene!".

 

Ao se aproximarem da picape, Selene e Alan viram Hélio Palito sentado, encostado no pneu, curvado sobre si mesmo. Selene reparou que o pai estava velho. Ao lado dele, jogados no chão, o talão de cheques e a folha de papel amassados.

 

"O que você fez?", perguntou Alan, enquanto pegava os cheques e a folha de papel do chão. Notou as tentativas toscas de falsificação: a letra tremida, insegura, incapaz de reproduzir a assinatura de Maria Clara Mota.

 

Selene ajoelhou e abraçou o pai: "Não precisa ficar assim, você está sem óculos".

 

"Não são os óculos. Eu estou acabado. Minhas mãos tremem", disse, esticando a mão trêmula.

 

"Isso vai passar.”

 

Hélio Palito continuou observando o tremor da própria mão, alheio às palavras de Selene. Ela não sabia se sentia pena ou raiva por ver o pai tão desesperado e inseguro.

 

"Vamos embora", disse Alan. "O churrasco fica pró Paraguai. A grana dá pra três pê-efes e pra encher o tanque. Isso vai segurar até Dourados. Lá eu tenho como conseguir mais grana. ”

 

"Algum amigo do teu pai?", perguntou Selene.

 

"Um conhecido meu.”

 

158 "E por que um conhecido teu vai querer se arriscar ajudando três bandidos?", insistiu Selene. "Porque é bandido também.”

 

O investigador Antônio Carlos sabia que alguma coisa estava errada. De dentro do Santana ele observava o Escort azulmetálico estacionado. Não havia o menor sinal da presença de Ubirajara Zarur na redondeza. O lugar era quente e parecia esquecido do mundo em sua aridez. Antônio Carlos odiava o Mato Grosso do Sul. Tinha péssimas lembranças da infância pobre em Aquidauana. Se tivesse de voltar, seria para acabar com todos os traficantes e contrabandistas da região. Ele sabia que ainda estava longe de poder realizar a façanha. Por enquanto, se conseguisse não perder o rastro do homem que perseguia, já estaria no caminho para uma promoção. Sonhava em ir para São Paulo ou Brasília, integrar os quadros de elite da Polícia Federal. Sabia que, se conseguisse encontrar os três fugitivos, sua carreira deslanchada. Até ali as coisas tinham corrido bem. Ubirajara o levara ao canavial onde o Gol de Alan estava escondido. Isso lhe valera elogios do delegado Garbulho, pelo telefone:

"A televisão está filmando tudo, talvez apareça no Jornal Nacional. Parabéns, continua na cola do homem. Mas não esquece que a qualquer momento ele pode perceber que está sendo seguido. Se ele perceber, é melhor você tirar o time de campo".

 

Antônio Carlos não tiraria o time de campo. Não era a sua.

 

Ele observava o Escort a uma distância de cinqüenta metros. Temeu que Ubirajara já estivesse longe dali, mas podia ser que estivesse simplesmente aliviando a bexiga ou os intestinos no mato. Afinal de contas, por que motivo o tal Gaúcho abandonaria o carro ali? Qualquer atitude teria de ser muito bem avaliada. Um erro poderia ser fatal. Antônio Carlos decidiu esperar mais alguns minutos. Olhou para o relógio, faltavam dezesseis minutos para as três. Esperaria até que os ponteiros marcassem três horas em ponto para começar a agir.

 

Selene dirigia a picape, para que Alan pudesse dormir um pouco. Pelo espelho retrovisor ela observava os olhos arregalados do pai, sentado no banco de trás.

 

"Dorme, pai. Descansa.”

 

Hélio Palito não disse nada.

 

"Esquece aquilo", ela prosseguiu. "Você está sem óculos, suas mãos tremeram um pouco, qual o problema? Fugiu da prisão, matou um cara, normal ficar meio estressado.

Matar alguém deve ser barra. Desencana.”

 

Ele continuou quieto, imóvel, e Selene pensou: Será que eu dei tanto trabalho pra ele quanto ele tá dando pra mim?

 

Um tempo depois ele disse: "Nunca tinha notado que Eusébio era um pigmeu bandar".

 

Alan dormia profundamente. O calor subia pela terra batida da estrada. O som do motor do carro misturado ao do vento que entrava pela janela contrastava com o silêncio enorme da paisagem.

 

"Nunca tinha notado que Eusébio era um pigmeu bandar", repetiu Palito.

 

"Quem é Eusébio?”

 

"Meu companheiro de cela. Nunca te falei dele?”

 

"Não lembro. Ele é anão?”

 

"Anão?”

 

"Pigmeus não são aqueles caras pequenininhos?”

 

"Guran era um pigmeu bandar.”

 

"Vai ver ele era um gabiru. Pigmeus bandar não existem.”

 

"O Guran?”

 

"Não. O Eusébio.”

 

"O Eusébio é um pigmeu bandar.”

 

"OK", disse Selene. "Dorme um pouco, pai.”

 

"Guran é o melhor amigo do Fantasma. O Espírito que Anda. Senhor Walker. Não, o Eusébio não é um anão. Também não é um gabiru. Que coisa ridícula um gabiru. Eusébio tem o espírito de um pigmeu bandar. E a cor, também.”

 

"Dorme, pai.”

 

Ubirajara, deitado numa vala atrás do formigueiro, observava Antônio Carlos sentado dentro do Santana. Formigas enormes, alheias à presença de Ubirajara, entravam e saíam do formigueiro. Então Garbulho mandara aquele pato persegui-lo? O que o fez pensar que Ubirajara não perceberia? A falta de recursos está acabando com a polícia. Por que o filho-da-puta não sai logo do carro? Alguma hora ele vai sair .

 

O capim-gordura sob seu corpo começou a incomodar. Ubirajara sentiu coceiras desagradáveis no pescoço e nas canelas. Era preciso contar também com a possibilidade de bernes e micuins. Micuim é o pior carrapato que existe. É pequeno, quase imperceptível, mas deixa o corpo com coceiras terríveis que duram semanas. Ubirajara se lembrou de quando serviu o Exército, em Santa Maria. Foi um soldado dedicado que chegou a receber a patente de cabo por sua aplicação e interesse. Os exercícios que simulavam situações de guerra, no mato, eram os que mais gostava. Uma vez foi atacado por micuins e sua mãe teve de banhá-lo com vinagre por vários dias. Vinagre era a única coisa que aplacava as coceiras e o ardor provocados pelos micuins. Ubirajara começou a se esgueirar pela vala.

 

Selene decidiu estacionar às margens do Amambaí, no Mato Grosso do Sul. Estava preocupada com Hélio Palito, que se recusava a dormir e só abrira a boca para falar coisas sem sentido. Pigmeus bandar? Além disso, sentia-se cansada e esticar as pernas e tomar um ar fora do carro pareceu-lhe uma boa idéia. Estacionou o carro.

Alan acordou.

 

"O que aconteceu?", perguntou.

 

"Nada. Paradinha pra descanso.”

 

Selene pegou um pacote de biscoitos e conduziu o pai pela mão até a beira do rio.

 

"Senta aí, pai, vamos descansar.”

 

"Estou cansado de ficar sentado, vou caminhar", ele disse.

 

"Vai mesmo?”

 

"De que adianta fugir da prisão se não posso nem dar uma voltinha sozinho?”

 

"Cuidado", ela disse, enquanto Palito se afastava pela margem repleta de seixos do rio escuro.

 

Selene sentou no chão e olhou para o rio e para a margem do outro lado. Lá, havia casebres de madeira e em algum lugar distante uma criança chorava.Virou o rosto para trás e viu Alan se espreguiçando ao lado da picape.

 

"Vem cá", ela disse. "Deita aqui do meu lado.”

 

Alan se aproximou e deitou a cabeça nas coxas de Selene. Perceberam o ruído da água correndo pelo leito do rio e Alan sentiu o cheiro da pele suada de Selene. Mais uma vez teve vontade de ver a calcinha dela sob o vestido.

 

"Alan? ”

 

"Oi. ”

 

"Você tava falando sério sobre aquele papo de casar?”

 

"Tudo o que eu falo é sério.”

 

"Não posso casar com você. Procurada pela polícia, levando meu pai para o Paraguai, não é a melhor hora pra casar. Meu pai está... diferente, talvez eu passe uns tempos em Assunção até ele ficar legal.”

 

"O que está acontecendo com teu pai?”

 

"Não sei. Está velho, acho.”

 

"Ele é estranho.”

 

"Sempre foi. O problema é que agora ele está diferente. Acredita que quando eu era pequena não sabia direito qual era o nome dele? Essa foi a época boa, Alan. Quandoele tinha muitos nomes e eu não via nenhum motivo pra me preocupar com ele. O problema é agora. Agora que todo mundo sabe que ele não tem nenhum outro nome além deste mesmo, Hélio Palito.”

 

"Fico com vocês em Assunção. Posso arrumar trabalho. Conheço gente lá.”

 

"Melhor não. Pode ficar confuso. Sei me virar sozinha.”

 

"Talvez você me ame e não saiba", disse Alan.

 

"Se eu sinto uma coisa mas não sei que sinto, é como se não sentisse, certo? Esquece esse negócio de amor, é muito complicado.”

 

António Carlos olhou para o relógio, quase vinte minutos haviam se passado e nada acontecera. As nuvens não se moviam. A natureza suspensa. O Mato Grosso do Sul, pensou, está estagnado. Ao escutar o grito de uma araponga, sua impaciência atingiu o limite: trancou as portas do Santana, tirou o Taurus 38 do coldre e caminhou até o Escort de Ubirajara Zarur.

 

Ubirajara continuava se esgueirando lentamente pelo pasto. Observou António Carlos sair do Santana e percebeu que ele estava nervoso. Um homem nervoso fica desatento, o que é uma vantagem. Mas pode também se precipitar e se tornar perigoso. Ê preciso ter muito cuidado com um homem nervoso. Ubirajara estava agora num ponto equidistante entre o formigueiro e a estrada, deslocando-se em diagonal. Levantou o rosto por trás de umas florezinhas amarelas e viu uma enorme mosca verde. Se a mosca o picasse, ele teria boas chances de hospedar um berne de vaca. Seu corpo coçava da cabeça aos pés e ele estava empapado de suor. Mas não estava a fim de hospedar um berne de vaca sob sua pele. Deu um sopro e a mosca saiu voando. Então ele viu António Carlos se aproximar do Escort.

 

Antônio Carlos chegou cauteloso, com o revólver em punho, e olhou pelos vidros, certificando-se de que Ubirajara não estava dentro do carro. Checou as portas e viu que estavam trancadas. Mais calmo, voltou a olhar pelos vidros das janelas e viu um mapa aberto sobre o console e uma garrafa de água Lindoya bebida até a metade, largada sobre o banco dianteiro. No banco de trás, uma sacola esportiva da Adidas. Olhou em torno: uma pastagem longa e solitária de onde despontava um enorme formigueiro.

Seria possível que o homem estivesse ali? Firmou a mão na empunhadura da arma e caminhou na direção do formigueiro. Atravessou com cuidado a cerca de arame farpado mas não evitou que uma ponta do arame furasse o tecido de sua camisa. Feriu-se mas a adrenalina não permitiu que sentisse dor. Apertou o passo, chegou ao formigueiro quase correndo. Ao contrário do que supunha, não havia ninguém escondido ali. Apenas formigas. Formigas cor de vinho, enormes, que carregavam pedaços de folhas numa fila interminável. Sentiu alívio. Até que ouviu o ruído de motor entrando em movimento, virou os olhos para a estrada e viu o Escort se afastar, Teve a impressão de que Ubirajara, ao volante, acenava para ele.

 

Correu de volta ao Santana, mas não conseguiria sair dali tão cedo: dois pneus haviam sido rasgados e estavam quase murchos.

 

Selene estava sentada, olhando o rio. Alan, de olhos fechados, apoiava a cabeça no colo dela. Selene ouviu alguém pisando os seixos. Levantou o rosto e viu Hélio

Palito. Ele estava pálido.

 

"O que aconteceu?", ela perguntou.

 

Alan abriu os olhos.

 

"Eu vi o Lobo", disse Palito.

 

"Que Lobo?”

 

Ele tomou fôlego: "O cachorro branco, você lembra?".

 

Selene e Alan se levantaram.

 

"Um cachorro?", perguntou Alan.

 

"Não um cachorro. O Lobo.”

 

"Que papo é esse, pai?”

 

Alan foi até o carro atrás de sua pistola. Quem sabe o velho não deu de cara com um cachorro da polícia?

 

"Era ele, Selene, o Lobo. Eu estava andando, ele saiu de trás de uma folhagem, ficou me olhando. Tinha o olhar esquisito, como se não me reconhecesse. Eu disse:

Lobo! Lobo!, e fui me aproximando. Ele amansou e começou a balançar o rabo, rosnando do jeito que costumava rosnar quando eu entrava em casa. Tentei fazer um carinho na cabeça dele, mas o bicho fugiu. Arfando, latindo, correndo como se eu fosse um demônio.”

 

"Pai, o Lobo morreu há mais de dez anos. Você mesmo enterrou ele.”

 

"Eu sei. Mas era ele.”

 

"Como assim, era ele? Se o Lobo morreu, não era ele", disse Selene.

 

"Deve ter sido um cachorro parecido com ele", disse Alan, olhando para os lados, com a Luger na mão.

 

"Vocês não entendem. Eu não estou louco. Era o Lobo.”

 

Selene abraçou o pai: "Vamos embora daqui".

 

Selene, Hélio Palito e Alan chegaram à fazenda de Santiago Milani no final do dia. Ao lado do portão de entrada, sobre um obelisco de tijolos de dez metros de altura, viram um fusquinha velho cor de uva com a Jataria enferrujada.

 

"O Santiago é artista plástico?", perguntou Hélio Palito.

 

"Foi com esse fusca que o Santiago fez as primeiras viagens trazendo pó da Bolívia para o Brasil", disse Alan. "O Pablo Escobar também guardava na fazenda dele o teco-teco em que mandou as primeiras cargas de pó para os Estados Unidos. ”

 

Palito não disse nada, limitou-se a olhar para o carro-monumento.

 

"Ridículo", sussurrou Selene.

 

Dois sujeitos armados com submetralhadoras se aproximaram. Um de cada lado. O mais velho, um pouco gordo e com bigodes, chegou bem perto da porta do motorista. Alan notou que ele tinha um nariz metálico que reluzia à luz do sol. O outro capanga, no lado oposto, permaneceu alguns metros afastado. Ele se parecia com o bigodudo, mas era bem mais jovem. Alan

 

levantou os braços: "Sou amigo do Santiago. Meu nome é Alan, sou filho do Veronese de Venceslau".

 

"Desliga o carro", disse o bigodudo de nariz metálico.

 

Alan desligou o motor, o sujeito se aproximou ainda mais e deu uma olhada dentro do carro.

 

"Espera um pouco", disse, e caminhou até o portão de entrada. Tirou do cinto um walkie-talkie e conversou com alguém. O outro capanga continuou imóvel - e atento

- , de olho na picape.

 

Minutos depois um sujeito forte, de mais ou menos sessenta anos, com músculos duros e pele seca, veio de dentro da fazenda. Selene passou para o banco de trás e o sujeito ocupou o banco ao lado de Alan. Com poucas palavras o sujeito indicou o caminho até a sede, uma mansão em estilo colonial, com antena parabólica e paredes brancas sujas de terra. A mesma terra, sempre, manchando tudo.

 

O homem pediu que Alan estacionasse a picape e disse: "Vem comigo".

 

Hélio Palito estava quieto e Selene exausta, com os olhos vermelhos de dormir pouco. Apesar da fome e do cansaço, não conseguia tirar da cabeça a imagem do bigodudo com nariz metálico. Um nariz de metal é um negócio muito impressionante.

 

"Vocês me esperam aqui dentro", Alan avisou ao sair da picape.

 

O homem conduziu Alan até a sala principal da mansão. Amplas janelas davam numa piscina. O homem revistou Alan, que estava desarmado.

 

"Espera um pouco que o senhor Santiago já vem", disse. Retirou-se em seguida. Alan ficou olhando os móveis pesados, de madeira escura. Havia garrafas de diferentes marcas de uísque escocês e licores franceses e italianos nas prateleiras de uma estante. Notou a cabeça empalhada de um porco-do-mato pregada numa parede. Tinha dentes brancos afiados.

 

Santiago desceu as escadas, fazendo barulho ao pisar os degraus de madeira com suas botas de cano alto. Era um homem de trinta e muitos anos, já começando a ficar grisalho no cabelo sobre as têmporas, forte apesar da visível tendência à obesidade. Poderia ser confundido com um pacato fazendeiro, não fosse por algum ingrediente no olhar, que fazia lembrar mais um cachorro louco do que um fazendeiro.

 

"Alan! Alguém te seguiu até aqui?", disse Santiago enquanto estendia a mão.

 

"Não. Certeza absoluta", respondeu Alan, um pouco apreensivo, retribuindo o cumprimento.

 

"Como você pode ter certeza? Já descobriram teu rastro, malandro! ”

 

"Conversa.”

 

"Encontraram teu carro camuflado no canavial, alguém sabe das coisas e está cantando.”

 

"Impossível.”

 

"Um Gol branco mocosado num canavial pertinho de Venceslau. Deu na TV.”

 

"Só eu e o meu pai...”

 

"Fica frio", disse Santiago, cortando o assunto antes que Alan começasse a desconfiar do próprio pai. O momento não era apropriado para dramas familiares.

 

"Imaginei que você talvez aparecesse. Senta aí. Toma uma cachacinha do meu alambique? Ou prefere uísque?”

 

"O meu pai não ia me entregar.”

 

"Claro que não. Senta aí", disse Santiago, indicando com a mão um sofá marrom de couro brilhante. Alan sentou no sofá e observou Santiago caminhar até a estante em que ficavam as bebidas e pegar uma garrafa de vidro verde-escuro.

 

"Precisando de dinheiro?", perguntou Santiago, enquanto oferecia a Alan um copinho com pinga.

 

"Dinheiro e comida. E uma cama pra poder dormir direito até amanhã. Eu, o Palito e a filha dele. Olha, tenho certeza que ninguém me seguiu. Se descobriram o carro, deve ter sido alguém que me viu naquela noite, o meu pai nunca...”

 

"Esquece isso", disse Santiago.

 

Beberam. Alan sentiu o calor do álcool queimando a garganta e o peito. Um bem-estar tomou conta dele.

 

"Vocês podem dormir na casa do Nestor Capataz. É o sujeito que te trouxe até aqui, é de confiança. Não convido pra ficarem aqui em casa porque tenho uma reunião hoje à noite com meu advogado. Sempre que ele vem, pernoita. A pista de pouso não opera à noite.”

 

"Tudo certo, não quero incomodar.”

 

"Paraguai?”

 

Alan concordou com um movimento da cabeça. Santiago botou mais cachaça nos copos. Alan sentiu o segundo copo descer mais fácil do que o primeiro.

 

"É melhor levarem guaranis, assim não chamam a atenção em casa de câmbio", disse Santiago. "Tenho guaranis mocosados perto daqui. O Nestor te entrega algum amanhã cedo, antes de você queimar. É melhor queimar rapidinho. E não volta logo. Deixa a coisa esfriar.”

 

"Tudo bem", disse Alan. "Mas quando voltar eu pago tudo.”

 

"Não esquenta.”

 

Alan sabia que os guaranis seriam cobrados um a um mas não quis se preocupar com isso naquele momento. Ao contrair dívida com um traficante, ele sabia, a própria vida é sempre o que se oferece por garantia. Mas a pinga que continuou bebendo fazia tudo parecer distante, como se fosse um simples espectador de tudo o que lhe acontecia.

 

Nestor Capataz levou os três visitantes até sua casa, distante duzentos metros da sede da fazenda. Durante o trajeto, não disse nada. Selene notou que ele usava um cinturão de balas com o coldre amarrado em torno da coxa, como um caubói de filme. Hélio Palito percebeu que, ao contrário de Alan, ele não estava fedendo a cachaça.

 

A casa era simples, de alvenaria, com sala, cozinha, banheiro e dois quartos. Na sala, poucos móveis e um rádio antigo. Na parede havia uma foto oval e retocada de Nestor Capataz muito jovem ao lado de uma noiva. Na foto, os dois estavam sérios e circunspectos. No quarto onde ficariam Selene, Hélio Palito e Alan, apenas uma cama e uma cadeira. Pregado na parede sobre a cama, um crucifixo.

 

"Esperem aqui, vou trazer dois colchões", disse Nestor Capataz e saiu.

 

"O velhote sarado me assusta", Selene comentou com Alan. "Ele e aquele outro, com o nariz de ferro. Nunca tinha visto um cara com um nariz de ferro.”

 

Alan sorriu: "Adivinha como ele perdeu a napa".

 

"Foi com o Santiago que você se entupiu de cachaça?", perguntou Palito.

 

"Não enche meu saco", disse Alan, revelando uma agressividade que só aflorava quando bebia.

 

"Olha o respeito, moleque.”

 

Alan olhou para Palito com raiva. E respeito.

 

"O homem vai emprestar dinheiro pra gente?", prosseguiu Palito.

 

"Guaranis. Mas só amanhã de manhã.”

 

"Guarani não é dinheiro", disse Palito.

 

"Estou com o saco cheio das tuas piadas.”

 

"Você não é o primeiro.”

 

"Parem com essa merda. Vamos descansar. Quanto mais cedo a gente sair daqui, melhor", concluiu Selene.

 

Alan não disse a Selene o quanto ela estava certa. Preferiu não alarmá-los com a notícia da descoberta do Gol no canavial. A euforia alcoólica enevoava a sensação de ameaça permanente com a qual convivera nos últimos dias. Tudo vai se resolver, pensou. Vamos sair dessa numa boa.

 

Nestor Capataz voltou trazendo dois colchões. Largou os colchões no chão e disse: "Tem janta pronta na cozinha. Amanhã cedinho eu trago o dinheiro. Vou pousar. Boas noites".

 

Pouco depois, Selene, Hélio Palito e Alan já haviam comido e estavam sentados na soleira da porta da cozinha da casa de Nestor Capataz. Observavam em silêncio a noite clara iluminada pela lua cheia. Sons chegavam de um brejo próximo. Selene fumava um cigarro e Alan sentia a cabeça pesada e o estômago embrulhado. Uma ressaca terrível se anunciando.

 

"Vou dar uma volta, a noite está bonita", disse Hélio Palito.

 

"Vou com você", disse Selene.

 

"Não. O senhor Walker precisa andar.”

 

"Não começa com essas histórias de senhor Walker, pai, por favor. Vou acabar achando que você ficou louco.”

 

"Fugi da prisão e ainda não fiquei sozinho nem um minuto. Isso sim pode me deixar louco. Um homem saudável precisa de um pouco de solidão.”

 

"Cuidado com o Lobo", disse Alan, enrolando a língua.

 

"Você está bêbado. Não tem moral pra me dizer nada.”

 

"Estou falando sério, Palito. De noite eles soltam uns filas pra vigiar a propriedade.”

 

"Não tenho medo de cachorro.”

 

"Cuidado, pai.”

 

"Vocês estão fazendo drama. Vou dar uma mijada, tá bom? Vou mijar no mato. Posso?”

 

"Cuidado, senhor Mijão", disse Alan.

 

"Qualquer coisa, grita", disse Selene.

 

Hélio Palito se levantou e sumiu ao som de sapos e grilos.

 

"Qual é o problema do teu pai?", perguntou Alan.

 

"O problema? Meu pai deve ter uns quinhentos problemas, no mínimo. Ele matou um polícia, fugiu da cadeia, deve estar com mal de Parkinson e anda tendo visões de cachorros fantasmas. Precisa mais?”

 

"Quem é o senhor Walker?”

 

"O Fantasma.”

 

"O viado?”

 

Selene riu. "Não tenho certeza se ele é viado mesmo.”

 

"Você disse que tinha.”

 

"Minha cabeça tá mudando.”

 

"O teu pai tem que se cuidar pra não levar um tiro.”

 

"Só se você der um tiro nele.”

 

"Eu, não. Algum capanga do Santiago. Isso aqui não é um hotel-fazenda.”

 

"Meu pai já provou que tem capacidade pra se cuidar sozinho. Eu sou filha, não mãe dele. Estou com o saco cheio de ficar cuidando de marmanjo. O patrão vai arrumar algum pó pra gente?”

 

"Não estou mais pensando em pó. Você não está com sono?”

 

"Não. Meu Dormonid acabou.”

 

"Você não consegue dormir sem a merda desse remédio?”

 

"Não. E meu remédio não é uma merda.”

 

"Vou dormir", disse Alan, deitando a cabeça no colo de Selene.

 

"Achei que a gente ia fazer uma coisa melhor.”

 

Alan já estava dormindo. Selene fez com que se levantasse e o ajudou a caminhar até o quarto. Talvez a sua sina fosse mesmo cuidar de marmanjos. Alan desabou sobre o colchão e ela

 

descalçou os ténis dele. Depois, apagou a luz. E então, talvez por preocupação ou talvez por não estar ainda com vontade de deitar - aquele quarto era pequeno, abafado e escuro, e Alan exalava um cheiro desagradável de pinga -, Selene decidiu sair atrás do pai.

 

Selene caminhava sem direção quando ouviu uma música barulhenta e ritmada. O som a atraiu. Deu com uma grande piscina azul ao lado da mansão principal da fazenda.

Ali estava um sonho de consumo: casa com piscina iluminada de noite. Era de dentro da mansão que vinha o som da música. Foi até a beira da piscina, ajoelhou-se e molhou a mão na água. Refrescou o rosto com a mão úmida e ouviu alguém chamando: "Moça! Moça!".

 

A voz lhe pareceu familiar, de um modo estranho, como quando num sonho se reconhece uma pessoa que na realidade não se conhece. Selene virou o rosto na direção da mansão e viu um homem muito gordo que lhe acenava de uma das janelas da sala. Sua primeira reação foi ficar de pé e se afastar da beira da piscina. Ao olhar de volta para a janela, não viu mais o homem. Instantes depois ele caminhava em sua direção. Ela notou que ele era jovem, enorme, e andava com dificuldade. Agora tinha quase certeza de já tê-lo visto antes, embora não soubesse onde nem quando.

 

"Lembra de mim?", ele perguntou, estendendo a mão.

 

"Jor-El?" Ela o reconheceu, ignorou a mão estendida e deu um beijo na bochecha gorda dele. "O que você está fazendo aqui?”

 

"Eu que pergunto: o que você está fazendo aqui, Selene?”

 

"Eu... ”

 

"Não precisa responder", disse Joel, "sei que o Santiago está ajudando vocês.”

 

"Você conhece o Santiago?”

 

"Sou assistente do advogado dele. Estamos tendo uma reunião. O que você está fazendo aqui na beira da piscina?”

 

"Passeando. Pensando. Sei lá.”

 

"Vem comigo, vamos beber alguma coisa lá dentro.”

 

Selene olhou as janelas amplas do casarão. A música continuava tocando.

 

"Não quero atrapalhar a reunião", ela disse.

 

"A reunião já está no fim.”

 

"Vocês fazem reunião de negócios ouvindo Madonna?”

 

"O Santiago é um cara meio estranho. Gosta de conversar com música alta. É paranóia de traficante, que acha que estão sempre querendo gravar o que ele fala.”

 

"Eu adoro a Madonna", disse Selene.

 

Joel deu a mão para ela. Caminharam de mãos dadas até a sala da mansão. Ela se sentiu bem ao lado daquele homem gordo e malcheiroso.

 

Ao entrar na sala, o porco na parede foi a primeira coisa a atrair a atenção de Selene.

 

"Fui eu mesmo que matei essa queixada", disse Santiago, caminhando na direção de Selene com as botas barulhentas. Ao lado de Santiago, um homem magro, usando terno, gravata e boné, olhava para Selene com olhos brilhantes. Ela achou o sujeito abatido, como se estivesse doente. Tá rolando pó, pensou.

 

"Esse é o doutor Augusto Ferreira, meu advogado", disse Santiago. "Cadê o Palito?", perguntou em seguida.

 

"Está por aí", respondeu Selene. "Ele não está muito bem. ”

 

"Dá pra entender", disse Augusto. "A situação de vocês está complicada. Talvez eu possa ajudar.”

 

"Meu pai está decepcionado com advogados.”

 

"E quem não está?", perguntou Santiago. "São uns filhosda-puta que só querem arrancar dinheiro da gente.”

 

Augusto e Joel riram alto, de um jeito forçado. Selene sentiu-se estranha na companhia daqueles homens.

 

"E o Alan?", perguntou Santiago.

 

"Estava se sentindo mal, foi deitar. Eu também já vou indo.”

 

"Fica mais um pouco", disse Santiago. "Quer beber alguma coisa? Tem uísque, cerveja, o que você quiser. Gosta de lança-perfume?”

 

"Talvez ela prefira pó", observou o advogado, apontando várias carreiras de cocaína esticadas num espelho sobre a mesa. Selene sentiu uma vontade irresistível de cheirar uma daquelas carreiras.

 

"Acho que vou aceitar. Só uma.”

 

Joel despedaçava com uma gilete uma pedra brilhante de cocaína pura. Palavras jorrando como água de um esguicho. Augusto dizia: "... aquele juiz sofria um problema sério de hemorróidas, todo mundo sabia disso, e essa foi a principal razão daquela pena ridícula, vinte anos, as hemorróidas do juiz Galeano...", Selene pensava:

"... eu preciso contar pra eles do nosso assalto, foi uma loucura aquilo, eu e Alan roubando a bolsa de uma mulher num bar da rodoviária de Umuarama... eu tenho tanta coisa pra contar...".

 

Santiago não aproximava o nariz do pó. Sempre com um copo de uísque na mão, de vez em quando afirmava, já com a dicção afetada pelo álcool: "Cheirem à vontade, esse iceberg é gentileza da casa".

 

Santiago chegou perto de Selene - ela estava curvada sobre a mesa, cheirando uma linha do pó - e agarrou com força a sua bunda. Talvez nesse momento, ao virar-se, ela tenha notado o olhar de cachorro louco de Santiago. E o hálito.

 

Tarde demais.

 

Joel, fedendo: "Selene, você devia ter aceitado minha carona na rodoviária de Venceslau. Se tivesse aceitado, com certeza não estaria agora fugindo da polícia".

 

Augusto, pálido: "Tem que tomar cuidado, tem muito picareta nesse ramo das fugas".

 

Ramo das fugas? Advogados e seus conselhos, pensou Selene, sentindo que Santiago passava a mão em suas costas, por baixo da blusa: "Você é gostosa, menina. Fica por aqui e você vai longe. Quanto faz em São Paulo por fim de semana? Mil, mil e quinhentos? Quanto leva o cafetão? Ou é cafetina? Olha, no Paraguai o negócio é mais complicado".

 

Augusto, com a mão fria, apalpou o seio esquerdo de Selene.

 

"O ramo das putas, no Paraguai, é muito competitivo.”

 

Joel, sorrindo nervoso, olhava de longe, acariciando-se sobre a calça.

 

Ramo das putas? "Parem com essa merda", disse Selene.

 

Santiago agora tentava arrancar a blusa dela: "Puta!".

 

"Parem com isso", ela repetiu, já sem esperanças de que lhe obedecessem. "Vamos conversar.”

 

"Não tem conversa, não negocio com puta", disse Santiago. Riu. "Você achou que ia cheirar todo esse pó e ficar por isso mesmo? Comigo sempre tem que pagar.”

 

"Você disse que era gentileza da casa.”

 

"Gentileza é o que você vai fazer pra mim agora. Menina gentil. ”

 

"Menina gentil é o olho do teu c u.”

 

Santiago segurou os pulsos de Selene e ordenou a Joel: "Vem cá, gordo punheteiro, e ajuda a gente a tirar a roupa dessa puta. Depois você toca essa punheta em paz".

 

"Joel é broxa", disse Augusto, tentando despir a calcinha de Selene sob o vestido. "Sempre que vamos a um puteiro ele só fica na punheta.”

 

"Gordo punheteiro e broxa", disse Santiago. "Além de tudo, advogado.”

 

Joel parou com o que estava fazendo, se aproximou e segurou com força os braços de Selene. Deitaram-na de bruços sobre a mesa, imobilizada por Joel, que ficou à sua frente. Augusto e Santiago permaneceram por trás dela, fora de seu campo de visão. Selene viu de perto o rosto enorme de Joel e sentiu mais uma vez o fedor que tanto a impressionara no ônibus, a caminho de Venceslau. Olhou fundo nos olhos dele, pedindo ajuda, mas só encontrou covardia e submissão naquele rosto, além de bochechas suadas.

 

Os homens por trás dela seguraram sua cabeça, prendendo seu cabelo. Tiraram toda a sua roupa. Um deles - ela não sabia qual e isso, naquele momento, não fez a menor diferença - preparou-se para penetrá-la por trás. Selene olhou de relance para uma das janelas da sala e viu os olhos do pai, que assistia a tudo do lado de fora do casarão .

 

No instante seguinte, Hélio Palito entrou na sala com o rosto contraído e a respiração suspensa. Seus olhos estavam arregalados e a pele perdera a cor. Correu na direção de Santiago. Ele não interrompeu o ato sexual, que já se consumava. Augusto tirou um Taurus 45 de uma capanga sobre a mesa. Palito continuou correndo, respirando pela boca, e agarrou as costas de Santiago. Augusto disparou apontando para baixo e a bala acertou a perna esquerda de Hélio Palito.

 

Joel continuava segurando Selene com força. Ela virou o rosto para o pai e viu despontando de sua bermuda a perna branca coberta de sangue. Começou a chorar.

 

"Deixa meu pai em paz, eu faço o que vocês quiserem.”

 

"Não tem paz, você chegou no inferno", disse Santiago.

 

Alan foi arrancado do sono por uma mistura indefinida de sons que juntava coaxar de sapos, dance music, tiros, gritos e latidos. Sua cabeça girava e ele vomitou com força, percebendo a barriga se retesar a cada golfada de vômito que expelia. Sentiuse um pouco melhor depois de vomitar - apesar do gosto horrível na boca -, mas os gritos que continuou ouvindo produziram arrepios em sua nuca, ao constatar que não faziam parte de um pesadelo. Esperou que os olhos se acostumassem à claridade fraca da lua entrando pela janela e notou que estava sozinho no quarto. Com a cabeça ainda pesada calçou os tênis e saiu. Andou, meio tonto, até onde a picape estava estacionada. Abriu a porta e apanhou a escopeta Winchester que mantinha escondida sob o banco traseiro. A arma estava carregada. Pegou uma caixa extra de munição e enfiou no bolso de trás da calça jeans. Caminhou até a sede da fazenda ouvindo o som da música. Enquanto se aproximava de uma das janelas da sala, caiu em si, repentinamente deslocado por estar carregando uma arma tão grande. Deve estar rolando uma festa, pensou. Estou imaginando coisas, bebi muita cachaça. Selene e o Palito devem estar se divertindo. Filhos-da-puta. Aliás, eu também devia me divertir. Primeiro vou pedir um café forte, pra tirar o gosto de vômito da boca.

 

Aliviado, encostou a testa na janela, sentindo na pele a temperatura fria do vidro. Forçou os olhos para enxergar o que acontecia dentro da sala. E então comprovou que alguém realmente se divertia lá dentro, mas não eram, definitivamente, nem Selene nem Hélio Palito.

 

Quebrou o vidro da janela com a parte de trás da escopeta e imediatamente começou a disparar. Atirou primeiro no gordo, que se masturbava com a mão esquerda enquanto segurava o braço de Selene com a outra. Pensou ouvir o ruído seco das balas atravessando o osso da testa e viu o rosto carnudo se descompor em espasmos. O segundo a ser atingido foi um homem magro e pálido, vestindo terno, gravata e um boné vermelho que anunciava uma empresa de adubos. Ele apontava uma arma para Palito, que estava sentado no sofá marrom de couro brilhante. Alan acertou o homem nas costas. Hélio Palito tentou se levantar. Antes de desfalecer, o homem com o boné vermelho disparou um tiro na direção de Palito. Alan, sem prestar atenção à movimentação do homem e de Palito, já mirava Santiago - que tinha a calça arriada sobre as botas de couro - e em seguida baleou seus órgãos genitais. Santiago urrou enquanto tentava inutilmente estancar o sangue que jorrava do pênis decepado pelas balas da escopeta.

A música continuava tocando em volume alto: "... beautiful stranger..." .

 

Selene estava nua, ainda deitada de costas sobre a mesa, assustada. A imobilidade dela contrastava com a movimentação de Alan: ele entrou rapidamente pela janela, sem se importar com as pontas do vidro estilhaçado, que feriram de leve seu braço. Aproximou-se dos homens e descarregou sobre seus corpos agonizantes mais munição, até ter certeza de que estavam mortos. Recarregou a arma, juntou-se a Selene e reuniu as roupas dela, espalhadas pelo chão.

 

"Se veste rápido, vamos sair daqui.”

 

Enquanto Selene se vestia, Alan enfiou a mão no bolso da calça arriada de Santiago. Não havia nada ali, só sangue morno. Encontrou uma carteira no bolso interno do paletó do advogado Augusto Ferreira. Tirou um maço de notas de cem reais e alguns cartões de crédito. O talão de cheques estava úmido e vermelho de sangue. Jogou longe o talão e a carteira e se aproximou de Palito. Ele estava fraco, o rosto sem cor, largado na poltrona.

 

"Vamos embora", disse Alan, reparando que uma das pernas de Hélio Palito estava coberta de sangue.

 

"Você não vai pegar a carteira do gordo?", perguntou Palito.

 

"Não dá tempo.”

 

"Esse merda não deve ter porra nenhuma mesmo", disse Palito.

 

Alan e Selene ampararam Hélio Palito e caminharam até o carro. A lua fazia tudo parecer um filme preto-e-branco. Selene sentiu a umidade da camiseta de Palito e imaginou que o pai estava suando. Acomodaram Palito deitado no banco de trás e viram o vidro da janela traseira da picape se estilhaçar ao som de uma rajada de tiros.

O bigodudo de nariz metálico e o outro capanga corriam na direção deles, disparando. Alan começou a atirar com a Winchester contra os dois, enquanto Selene pulava para dentro do carro, por cima de Palito. O capanga mais moço foi atingido e o de nariz metálico parou de correr por um instante, ajoelhando-se ao lado do companheiro ferido. Alan aproveitou para ligar o carro e manobrar, pisando fundo no acelerador, ainda de portas abertas, voando na direção dos dois homens.

 

"Segura firme", disse.

 

A picape chocou-se contra os dois capangas de Santiago Milani. O impacto foi tão grande que o carro derrapou e bateu com uma das laterais contra um barranco. Com o choque, o motor morreu. Por alguns segundos houve silêncio.

E então Alan se refez do susto, ligou novamente o carro e saiu correndo em direção à estrada.

 

Ubirajara viu o grande obelisco de tijolos. Sobre a capota do fusquinha enferrujado havia uma antena sinalizadora, para que nenhum avião colidisse com o monumento.

Olhou para o portão, que estava escancarado, e achou estranho não ver nenhum vigia. Rodou mais alguns metros na estradinha escura e estacionou. Aquela poderia ser a fazenda de Santiago Milani. Que outro idiota ergueria um monumento daqueles a não ser um cheirador, um profissional da droga, do dinheiro fácil e da extravagância?

Quando, ao passar por Nova América, lhe falaram de uma fazenda com um fusquinha sobre uma coluna gigante de tijolos, não teve dúvidas. Um fazendeiro comum ergueria um monumento em homenagem à ferradura ou ao arado. Ao trator. A uma limusine de filme americano. À espiga de milho, à flor do algodão, ao berrante ou aos chifres de um boi. Um fusca? O que não estava colando era o fato de ninguém estar vigiando a entrada. Um traficante pode ser louco o suficiente para erguer um monumento em homenagem a um carro velho. Não para deixar o portão de sua fazenda sem vigilância.

 

Ubirajara desceu do Escort com a Glõck 9 milímetros na mão. Olhou para o muro alto de concreto que circundava aquela parte da fazenda. Notou o arame farpado e os fios elétricos no topo do muro. Quem tentasse pular por ali seria eletrocutado. Isso não é permitido por lei, mas traficar cocaína também não é. Ubirajara se aproximou do portão. Estava mesmo aberto e não havia ninguém ali. Caminhou para dentro da propriedade. Seguiu pela estradinha de saibro, ladeada por hibiscos. Nenhum ruído, nenhum cachorro latindo. De repente, a música. Ubirajara destravou o gatilho da pistola. Viu a mansão, luzes acesas e ouviu o som da música tocando em volume alto.

Saiu da estradinha e começou a caminhar por trás da cerca viva de hibiscos, alternando sua atenção entre a casa e a estradinha, olhando pelos vãos entre os arbustos.

E então viu, no meio da trilha, dois cachorros farejando um amontoado de lixo. Os cães latiram ao notar sua presença. Depois de latir, avançaram sobre ele. Dois filas. Ubirajara não pensou muito, disparou. Quatro tiros calaram os filas.

 

Ubirajara ainda não tinha se refeito do susto, e seu coração batia acima do ritmo normal, quando percebeu que aquilo que os cães farejavam não era um monte de lixo.

Eram dois homens mortos que haviam sido atropelados por um carro.

 

Um deles, Ubirajara notou, tinha nariz de metal.

 

Nestor Capataz acordou de repente. Estava acostumado às festinhas do patrão. Música alta e gritos de mulheres eram comuns. Tiros nem tanto. Nestor nunca sonhava.

Lembrava-se de já ter sonhado, mas isso fora havia muito tempo. Bem antes de a mulher ter morrido. No tempo em que seu Santo, pai de Santiago, ainda mandava em tudo por ali. No tempo em que a cocaína ainda não tinha chegado e transformado aquela fazenda numa espécie de templo proibido onde nunca se dormia. A cocaína que corroera o nariz de Solano, o vigia. Naquele momento Nestor teve a sensação de que talvez tivessesonhado, como quando era jovem. Mas e se não fosse um sonho? Ouvira o som de um carro derrapando, ouvira o latido dos filas e aquela música chata encobrindo todos os outros sons. Teria ouvido mesmo um tiro? Ainda que não fosse um sonho, não havia nada com que se preocupar. Solano e seu filho estavam a postos, vigiando tudo.

 

De repente a música parou de tocar. O silêncio caiu como se um meteorito tivesse desabado sobre o telhado. Que silêncio é este, meu Deus? Cadê as vozes? O latido dos filas? Nestor teve certeza de que tinha perdido para sempre a capacidade de sonhar. Tudo o que ouvira fazia parte dos acontecimentos do mundo real. O mundo em que as coisas acontecem e têm conseqüências reais. Sem perder tempo com troca de roupa, pois dormia vestido e calçado, pegou o fuzil israelense Uzi (presente de Santiago) que mantinha ao seu lado, na cama. Gostava de chamar o fuzil de Eliane, o nome da sua mulher morta. Foi até o quarto dos hóspedes: vazio, com cheiro azedo de vômito. Correu até a sede da fazenda e no caminho deparou com Solano e o filho esmagados como bichos atropelados na estrada. Ao lado deles, também mortos, os filas aparentavam mais dignidade.

 

Dentro da casa, Nestor encontrou três cadáveres no meio de uma poça de sangue. Havia um quarto homem, que ele não conhecia, ajoelhado entre os cadáveres, cheirando-os feito um cão farejador (ou um tarado mórbido). Era musculoso e tinha o cabelo muito escuro. Nestor Capataz apontou Eliane para a cabeça do forasteiro e disse: "Pra trás! Mão na cabeça, filho da puta!".

 

Hélio Palito estava deitado com a cabeça apoiada nas pernas de Selene. Ele abriu os olhos e viu o rosto da filha voltado para a frente. Reparou como o pescoço dela era fino e muito branco. Estavam no banco de trás de um carro em movimento. Lembrou-se de quando ela era uma garotinha. Uma vez ele e Esteia a levaram para passar um final de semana em Águas de Santa Bárbara, uma estação de águas no interior de São Paulo. Selene tinha três anos e corria por um gramado às margens do rio Pardo.

Vestia apenas uma calcinha azul com bolinhas brancas. O cabelo negro cortado como o de um menino caía sobre a testa numa franjinha brilhante e simétrica. Suas pernas eram gorduchas e a pele estava rosada de sol. Ela gargalhava enquanto corria, dizendo: "Ninguém me pega! Ninguém me pega!". . Ninguém jamais conseguiu pegar Selene.

 

Depois Palito a viu já mocinha, estranhamente calma, consolando-o no velório de Esteia. Estavam ao lado do caixão e ela evitava olhar o rosto da mãe morta. Aquela atitude o surpreendeu, pois nos dias finais da doença, quando Esteia agonizava no hospital, Selene esteve sempre ao lado da mãe, chorando muito e recusando-se a comer e a dormir. Naqueles dias ele imaginou que a morte inevitável de Esteia faria com que Selene caísse num desespero sem consolo. Mas lá estava ela, no velório, fria e controlada, amparando-o, já que ele - ele sim - se abatera e desabara numa agonia infinita, incapaz de aceitar a morte da esposa.

 

Agora Palito via Esteia nua, com pernas abertas, esperando que a penetrasse. Era a primeira vez que faziam amor e Esteia era muito jovem e bonita. Estava deitada no banco traseiro do carro - um fusca -, seus seios eram grandes e seu púbis brilhava como se uma lâmpada acesa se escondesse sob os pêlos. De repente a vagina iluminada de Esteia expeliu um jorro de sangue que manchou de vermelho o estofamento, o teto e os vidros das janelas fechadas do fusca.

 

Palito fez força para despertar - aquilo só podia ser um sonho - e percebeu que haviam amarrado um pedaço de pano ao ferimento de sua perna, estancando o sangue.

Concluiu que não tinham reparado no tiro disparado pelo advogado, que o atingira nas costas. Melhor assim, pensou. Notou que caía uma tempestade e que o barulho dos pingos d'água chocando-se contra a lataria do carro se assemelhava ao produzido por uma rajada de tiros de metralhadora. Mas que carro era aquele, afinal? O seu fusca? E quem estava dirigindo? Selene baixou o rosto e olhou para o pai. Ele reparou que ela ainda era uma menina de doze anos. Os olhos verdes dela estavam plácidos, como se uma infinita sabedoria morasse dentro deles. "Você acordou, pai? Como está se sentindo?”

 

Talvez aquela sabedoria existisse só nos olhos de Hélio Palito e na maneira como ele via os olhos de Selene naquele momento.

 

Ele levantou o corpo e com muito esforço conseguiu sentar-se. Aproximou lentamente seu rosto ao da filha e deu um beijo nela. A chuva cessou de repente. Palito olhou para fora, através do vidro da janela. O dia estava nascendo. Olhou para o próprio corpo, ensangüentado, mas não sentiu o cheiro do sangue. Estava bem-disposto. Olhou de novo pela janela e viu um pasto enorme, uma infindável seqüência de capim em que, de vez em quando, algum coqueiro despontava. Lá longe, na linha do horizonte, uma gigantesca paineira parecia filtrar os raios do sol que acabava de nascer.

 

O fusca - agora ele tinha certeza de que estavam no seu velho fusca, mas ainda não conseguia ver quem o dirigia - parou de repente. Palito, sem esforço, abriu a porta. "Pra onde você está indo, pai?" "Oeste, Selene", respondeu.

 

Caminhou até o pasto. Fazia frio ali. O silêncio era surpreendente. Ao nascer do dia os pássaros costumam fazer muito barulho e não se ouvia ruído algum naquele lugar. Antes que pudesse dizer qualquer coisa, Palito viu um cão branco que corria em sua direção.

 

"Lobo", disse.

 

O cão rosnou, balançando o rabo, esticou as patas dianteiras e esfregou a cabeça nos pés de Palito. Depois virou as costas para ele, ainda balançando a cabeça e o rabo e rosnando. Palito notou que Lobo queria que ele o seguisse. Lobo começou a andar rapidamente em direção ao horizonte e Palito foi atrás dele. Ouviu a voz de menina de Selene: "Pai, você está indo na direção errada, o oeste é para o outro lado!".

 

Ela estava com a cabeça para fora da janela do fusca e Hélio Palito ficou desconcertado com aquela afirmação. E então percebeu para onde o cão o guiava.

 

"Não está respirando", disse Selene.

 

Alan, sem diminuir a velocidade, olhou para trás.

 

"Você tem certeza? Foi só um tiro na perna. Está desacordado, só isso.”

 

"Não está respirando", repetiu, sentindo ela própria dificuldade para respirar. "Ele morreu, Alan?”

 

Alan parou o carro no acostamento, acendeu as luzes internas da picape e pulou para o banco de trás. Estranhou que a bermuda de Hélio Palito estivesse tão ensangüentada, pois haviam amarrado um pano em volta de sua perna, sobre o ferimento, e aquilo com certeza estancara o sangue que escapava por ali. Checou a pulsação no pescoço e depois nos pulsos e não havia pulsação alguma. Alan levantou a camiseta de Palito e encontrou em suas costas a perfuração de bala de onde um filete de sangue brotava num fluxo fraco porém contínuo.

 

"Alguém acertou ele nas costas.”

 

Selene emitiu sons estranhos pela garganta e Alan pensou que ela estava engasgada ou sufocando. Em seguida percebeu que era um choro convulsivo e sem lágrimas.

 

"Quem acertou as costas dele?", ela perguntou, o rosto contorcido dando enfim vazão às lágrimas. "Os putos com as metralhadoras?”

 

"Não. O puto do bonezinho vermelho. Vi de rabo de olho ele dando um tiro antes de cair. Não imaginei que tivesse atingido o Palito.”

 

Selene ajoelhou-se no vão apertado entre os bancos traseiro e dianteiro, abraçou o peito do pai e ficou chorando baixinho.

 

"Por que ele não me avisou que tinha levado um tiro nas costas?", perguntou Alan.

 

"Porque a gente ia levar ele pra um hospital. Porque ele estava cansado de fugir. Porque do hospital a gente ia direto pra prisão", respondeu Selene .

 

"Ou pró caixão", disse Alan.

 

"Coitadinho", disse Selene. "Tão magro.”

 

Alan tocou o braço dela: "Temos de enterrar logo o corpo".

 

"Eu sei", ela disse, abraçando o morto com mais força. "Mas estou com sede, preciso beber água antes de fazer qualquer coisa.”

 

"A gente não pode ficar andando por aí com o corpo no carro. ”

 

"Preciso beber água, preciso me lavar.”

 

"Você tem idéia do risco que a gente corre se alguém descobre que estamos carregando um cadáver no carro?”

 

"Fui violentada, preciso me limpar! Estou suja, Alan. Imunda. Meu pai morreu. Preciso de água!”

 

Selene voltou a emitir sons estranhos pela garganta. Agora Alan já sabia que era a maneira como ela chorava. Pulou de volta para o banco da frente e apagou as luzes internas da picape. Selene abraçou Palito com tanta força que teve a sensação de ter partido uma das costelas dele. Alan ligou o motor e retomou a estrada.

 

Pararam num posto da Atlantic perto da cidade de Juti. O lugar estava vazio, com apenas três caminhões estacionados. Os motoristas dormiam dentro dos caminhões. Selene pegou dinheiro com Alan e depois foi até o banheiro.

Lavou o rosto, os braços e as mãos com um sabonete líquido verde que ficava dentro de uma bola de vidro presa à parede de azulejos sobre a pia. Cuidou de retirar todos os vestígios de sangue que manchavam seus pulsos e antebraços. Limpou as partes íntimas com papel higiénico num dos recintos privados em que ficam as latrinas.

Saiu do banheiro, foi até o bar e comprou uma garrafa de água e duas latas de coca-cola. Voltou à picape, Alan a aguardava olhando para o mapa.

 

Rodaram por uma estrada secundária até a margem do Amambaí. Alan desceu do carro e pegou uma enxada sob o banco traseiro da picape. Selene ficou ao lado do corpo do pai. Alan procurou um lugar para cavar a sepultura mas a luz imprecisa do luar dificultava o trabalho. Achou que estavam seguros ali, decidiu esperar pela claridade do amanhecer. Notou que a brisa balançava os galhos dos salgueiros curvados sobre a margem do rio.

 

O atendente do posto Atlantic disse: "Eles passaram por aqui, sim, mas eram só dois, um homem e uma mulher. O homem ficou no carro e a mulher foi até o mictório.

O braço dela tava sujo de tinta".

 

"De que cor?", perguntou Ubirajara.

 

"Branca. Bem clarinha mesmo.”

 

"Tinta branca?”

 

"Não. A mulher era branca. A tinta era vermelha.”

 

"Cor de sangue?”

 

"Quer saber se ela estava sangrando?”

 

"É. ”

 

"Acho que não. Parecia tinta.”

 

"E depois?”

 

"Depois?”

 

"Ela entrou no banheiro, certo?”

 

"Certo. ”

 

"E depois?”

 

"Saiu do mictório e comprou alguma coisa no bar. Daí voltou pró carro e eles foram embora.”

 

"E o sangue?”

 

"Não sei se era sangue. Acho que era tinta. Quando saiu do mictório, estava limpa.”

 

Ubirajara agradeceu, deu a partida e voltou à estrada.

 

"Estranho o negócio do sangue", disse.

 

"Vai ver ela tava de chico", disse Nestor Capataz.

 

"E mais provável que o teu patrão e os amigos dele tenham ferido a guria.”

 

Nestor não disse nada. Não estava ali para julgar as atitudes do patrão. Ex-patrão.

 

"Se só os dois estavam no carro, o que foi feito do Hélio Palito?", prosseguiu Ubirajara. "Talvez o sangue seja dele.”

 

Nestor continuou calado. Ubirajara ficou pensando: Em algum momento Selene e Alan têm de parar para descansar. Ou para comer. Beber. Ir ao banheiro. Mas quando?

E onde? Olhou para o homem ao seu lado e notou que se parecia com um índio velho. Havia muito tempo ele vira um filme que contava a história da batalha de Little

Big Horn, em que o general Custer foi derrotado por um índio sioux chamado Touro Sentado. Era incrível que tivesse como companheiro um homem parecido com o chefe Touro Sentado. E era igualmente curioso que pela segunda vez tivesse feito uma barganha para conseguir encontrar a mulher que amava. Poucas horas antes, quando Nestor o flagrara ajoelhado entre os mortos na casa da fazenda, tivera de usar toda sua técnica para convencer o homem de que não tinha sido ele o autor daquela chacina.

E depois de apresentar sua insígnia de policial, mostrou que todos os indícios da cena do crime sugeriam que os três homens mortos haviam violentado sexualmente

Selene (a posição dos corpos, a calça arriada e o pênis decepado de Santiago, a mancha de esperma na calça do gorducho). Estava claro qtre-Alan ou Hélio Palito, ou talvez os dois juntos, haviam vingado aquela violência.

 

"Esses filhos-da-puta têm que pagar pela morte do menino Santiago", dissera Nestor. "Devo isso ao pai dele, seu Santo.”

 

Naquele momento Ubirajara teve a idéia de propor um trato a Nestor Capataz. Ele estava ficando bom nisso.

 

"Tu me dás as informações a respeito deles e eu te ajudo a encontrá-los. Mas a vida da guria tem de ser preservada. Eu te entrego o pai e o guri, tu deixas que eu me mande com Selene.”

 

Ubirajara sabia que, ao firmar esse trato, estava automaticamente desonrando o trato anterior, firmado com a mãe de Alan em Presidente Venceslau. Mas numa operação como aquela, tudo seria justificado pelo amor.

 

"Eu amo a guria, chê.”

 

"Negócio fechado.”

 

A primeira claridade da manhã iluminou a noite e Alan se aproximou de Selene. Ela continuava imóvel, velando o corpo do pai no banco traseiro da picape. "Vai dar uma volta", disse Alan. "Tá boa? Não vou participar do enterro do meu pai?" "Tudo bem. Mas deixa que eu cavo sozinho." Selene saiu do carro, sentou no chão e ficou olhando Alan cavar um buraco.

 

"Não sei se devo confessar isso", ele disse, "mas meu pai, na noite da fuga, pediu que eu matasse e enterrasse vocês dois. Eu disse pra ele que não poderia fazer isso porque não tinha uma enxada." Enxugou o suor da testa com a mão: "Mas eu tinha".

 

"Eu agradeço. Mas estou muito triste pra ter certeza de que você tomou a decisão certa.”

 

"Tenho certeza de que tomei a decisão certa. O que está me chateando é que a polícia descobriu meu Gol no canavial e talvez esteja seguindo a gente. E só meu pai sabia daquele esconderijo.”

 

"O que você quer dizer com isso? Que teu pai te entregou?”

 

"Sei lá. Estou confuso.”

 

"Ele pode ter sido forçado pela polícia, vai saber. A gente já tem muitos problemas reais pra você ficar imaginando outros.”

 

"Você tem razão.”

 

Alan terminou de cavar o buraco, pegou o corpo de Hélio Palito e o carregou até a cova. Agora o sol já estava firme e seus raios confirmavam que tudo aquilo realmente acontecia e não era só um pesadelo. Nos pesadelos, pelo menos, há um momento em que se desperta. Acomodaram o corpo no buraco úmido e Alan cobriu-o de terra enquanto

Selene rezava o pai-nosso.

 

Ubirajara parou num posto rodoviário da BR 163 e pediu que Nestor o aguardasse no carro. Caminhou até um guarda gordo e sonolento sentado em frente a uma janela com ampla visão da estrada. O sol já se firmara, eram sete da manhã. Apresentou a carteira da Polícia Federal e perguntou ao guarda se ele tinha visto passar por ali uma picape Chevrolet azul levando um casal. Ou um casal e um velho. Um velho magro. Talvez ferido.

 

"Não reparei. Quer que dê um alerta pelo rádio?”

 

"Onde fica o próximo posto?”

 

"Na divisa com o Paraná.”

 

"Não precisa dar alerta nenhum, obrigado.”

 

Retornou ao carro, mas não o pôs em movimento.

 

"Eles não passaram por aqui.”

 

"Devem ter ido pró Paraguai", disse Nestor.

 

"Não foram para o Paraguai. O Alan sabe que no Paraguai não conseguiriam escapar dos homens do Santiago.”

 

Nestor Capataz não disse nada.

 

"O Hélio Palito não foi abandonado pelo caminho", prosseguiu Ubirajara. "Mas o corpo dele também não estava na fazenda. Ninguém viu o homem no posto. Deve ter sido atingido no tiroteio.”

 

Nestor Capataz continuou quieto enquanto Ubirajara falava olhando para a frente, pensando em voz alta: Eles estão carregando o homem morto no porta-malas ou deitado no banco de trás. Devem estar parados em algum lugar, aproveitando a claridade para desovar o cadáver.

 

"Seria mais fácil jogar num rio", disse Nestor.

 

Selene e Alan estavam cansados. Deitaram na terra ainda fria da noite e se protegeram do sol na sombra dos salgueiros. Tiraram a roupa e começaram a se abraçar.

Sentiram a umidade e o calor um do outro. Se pegaram com força, transaram. Depois dormiram.

 

Alan despertou com a visão de uma Glõck g milímetros apontada para os seus olhos. O homem que segurava a pistola fez sinal de silêncio, colocando o dedo indicador sobre os lábios, e moveu a cabeça na direção de Selene, que dormia. Alan entendeu que o homem não queria despertar Selene e aquela atitude selou um pacto de cavalheiros entie eles. Em seguida o homem tirou do bolso da jaqueta uma carteira da Polícia Federal.

 

Dancei, pensou Alan. Passo um tempo na prisão, depois saio de lá. Foda-se. Melhor que cair nas mãos dos capangas do Santiago.

 

O homem fez sinal para que Alan o acompanhasse, sem deixar de apontar o cano da Glõck para sua testa. Alan se levantou e vestiu a calça. Saíram da sombra dos salgueirose caminharam pela beira do rio, afastando-se bastante do local onde Selene dormia.

 

"Obrigado por não assustar a moça", disse Alan, quando o homem ordenou que parasse de andar. "Eu me entrego, mas não falo nada sem a presença de um advogado.”

 

"Teu advogado vai ser o diabo", disse Nestor, aparecendo de repente. Ele carregava o fuzil Uzi e tinha uma expressão neutra no rosto. Aquele era um ritual que tinha de ser cumprido, e ele o cumpriria.

 

Alan sentiu um sopro frio percorrendo a espinha e olhou para o homem da Polícia Federal, esperando dele uma atitude que o salvasse. Mas o homem virou as costas e guardou a pistola no coldre, sob a jaqueta. Deu alguns passos, parou e voltouse de frente, com os braços cruzados. Agora ele era um simples espectador. Alan entendeu que não havia nada a fazer, a não ser deixar-se matar com dignidade.

 

"Te ajoelha", ordenou Nestor com determinação.

 

"Então você é o Gaúcho", disse Alan, olhando para o homem da Polícia Federal.

 

"E como me chamam. Meu nome é Ubirajara.”

 

"Pelo menos você tem um nome", disse, ajoelhando-se. Seu corpo tremia um pouco. Nestor encostou o cano do fuzil na nuca dele. Eliane. O toque frio do aço foi incômodo.

 

"Diz pra Selene que eu amo ela", pediu Alan para Ubirajara. Em seguida virou-se para Nestor: "Me enterra do lado do Hélio Palito, capataz".

 

Nestor concordou com um movimento sutil da cabeça. Respeitava um homem que demonstrava coragem diante da morte.

 

Selene acordou inquieta e não viu Alan ao seu lado. Viu sua camisa e o par de tênis. O sol estava quente mas no lugar onde se encontrava, sob os salgueiros, uma brisa a refrescava. Inicialmente não estranhou a jaqueta que cobria sua nudez, creditando-a a uma gentileza de Alan. Mas no instante seguinte deu-se conta de que aquela jaqueta não pertencia a Alan. Sentiu que alguém a observava e virou o rosto num movimento brusco: "Você?".

 

Sentiu a cabeça rodar, como se ainda estivesse sonhando e quisesse desesperadamente acordar. Não esperou nenhuma explicação de Ubirajara e perguntou:

 

"Cadê o Alan?”

 

"Calma", disse Ubirajara. Aproximou-se dela com uma garrafa de água mineral na mão e ajudou-a a vestir a jaqueta. "Quer um gole d'água?", perguntou.

 

"Eu não quero nada. Então era você?”

 

"Eu? ”

 

"O carro do Alan no canavial.”

 

"Isso não importa mais. Vim te buscar.”

 

"A gente não se fala há anos!”

 

"Descobri que te amo. Sempre te amei.”

 

"Que frase ridícula. O que está acontecendo com vocês?”

 

"Vocês?”

 

"Os homens! Resolveram se apaixonar por mim todos de uma vez?”

 

"O guri estava mesmo apaixonado por ti?”

 

"Cadê ele?”

 

"E tu? ”

 

"Eu o quê?”

 

"Tavas apaixonada por ele também?”

 

"Tenho coisas mais sérias pra resolver na minha vida.”

 

"Tavas ou não?”

 

Selene ficou em pé: "Por que 'tavas'? O que você fez com o Alan?".

 

"Tavas ou não?”

 

"Nunca me apaixonei por ninguém, Gaúcho, nem por você. Por que me apaixonaria por ele?”

 

"As razões do coração são complexas.”

 

"Não dá pra você falar umas frases mais originais?”

 

"Te apronta, vamos embora.”

 

Selene se aproximou de Ubirajara: "Gaúcho, Gaúcho, você está louco? Cadê o Alan? O que está acontecendo?".

 

"Descobri que te amava quando vi as notícias sobre a fuga do teu pai. Nunca imaginei que você fosse filha de um ladrão famoso.”

 

"Foi por isso que você se apaixonou por mim?”

 

"Não diga isso.”

 

"Você não me conhece de verdade.”

 

"E precisa conhecer pra amar? A primeira vez que te vi, na casa da Laís, ela foi logo dizendo: Tira os olhos da Selene, ela não está na vida. O pai é meu amigo.

Teve de ir embora e eu estou criando a filha. Enquanto estiver comigo, é moça direita. Me lembro como se fosse hoje. Era estranho, num puteiro, uma moça linda como tu. Te vi por dentro, Selene.Vi a mulher madura no casulo da menina assustada.”

 

"Casulo? Deu pra fazer poesia, Gaúcho? Com esse papo de casulo você não me ganha. Não mesmo.”

 

"Gosto do teu jeito, guria. Sempre gostei. Me liguei em ti no momento em que vi teus olhos verdes. Depois foi aquela história de namoro, tu muito novinha, eu com os meus problemas, é natural que não tenha dado certo. Mas agora, depois de anos, quando vi tua foto no jornal... Selene, eu mudei, estou mais maduro. ”

 

"O que você está dizendo? Você me largou sem dar satisfação, só pensava em você mesmo, nunca queria fazer as coisas que eu gostava de fazer, odiava me levar para dançar, só falava de armas, de bandidos, de perseguições. Nem no cinema você deixava eu escolher o filme. Tinha que ser sempre um filme do Rambo, da Máquina Mortífera, ou de um daqueles pentelhos que ficam lutando caratê e gritando o filme inteiro. E agora ainda me vem com esse papo de casulo? Casulo é o cacete.”

 

"O tempo passou. Cheguei pra me desculpar e oferecer o meu amor.”

 

"O mercado está inflacionado. O que eu faço com tanto amor? Cadê o Alan?”

 

"Tá junto com teu pai.”

 

Selene demorou alguns segundos para entender o que aquilo queria dizer. Olhou para o lugar onde Hélio Palito estava enterrado. Em vez de uma, viu duas sepulturas.

 

"Por que você fez isso?", ela perguntou, começando a chorar baixinho, sentindo muito frio, como se todo o sangue do seu corpo tivesse congelado.

 

"Não fui eu. Foi o Nestor Capataz. Ele foi embora com meu carro. Agora, tu estás comigo.”

 

"Por que vocês vivem se matando, como nos filmes?", foi tudo o que ela conseguiu dizer.

 

Ubirajara conduziu a picape até a rodovia 141 e tomou a direção sul. Selene estava em silêncio, a roupa suja e amassada. O rosto sério. Perguntou de repente: "Quer dizer que fui trocada por um carro e um homem? Estou valendo bastante, hein?".

 

"Cínica.”

 

"Você não é turco? Não são os turcos que trocam mulheres por camelos?”

 

"Árabes. Se eu não estivesse aqui, tavas morta. Presa, na melhor das hipóteses.”

 

"E por que você acha que o perigo acabou?”

 

"Não acabou. Continuas procurada pela polícia. Mas vou te proteger. Nós vamos sumir por uns tempos, até a coisa esfriar.”

 

"Nós?”

 

"Eu e tu. Nós.”

 

"Onde vamos morar? Numa tenda no deserto? Ou numa fazendinha no Paraguai? ”

 

"Não estamos indo para o Paraguai. Dorme um pouco.”

 

"Meu remédio acabou. Nunca mais vou conseguir dormir.”

 

"Quando te encontrei tu dormias.”

 

"Se estivesse acordada talvez o Alan ainda estivesse vivo.”

 

"Ele ia morrer de qualquer jeito. Não se mata um traficante. Nem polícia mata.”

 

"Ele matou pra me proteger. Aqueles animais estavam me violentando.”

 

"Dorme, Selene. O perigo acabou, estou aqui. Não tem mais Paraguai.”

 

Selene fechou os olhos, fingindo que dormia.

 

Mas não dormia.

 

Ao se aproximarem de Eldorado, Ubirajara entrou por uma estrada de terra. A placa indicava que Morumbi distava vinte e cinco quilómetros. Rodaram alguns quilómetros até encontrar uma porteira que separava a estrada de um pasto. A porteira estava aberta e eles entraram. A picape deslocava-se aos solavancos. No sopé de um pequeno declive, Ubirajara estacionou. Dali não se podia avistar a estrada. Desceu da picape e pediu que Selene fizesse o mesmo.

 

"Tira tudo que é teu daí de dentro", disse antes que ela descesse.

 

"O que você está fazendo?", perguntou Selene.

 

"Vou me livrar do carro. Nestor voltou para a fazenda com o meu Escort. Tanto o Escort como a picape têm que ser destruídos. Estão marcados. É provável que meu Escort vá para um desmanche. Essa picape precisa sumir.”

 

Selene fez o que ele mandou. Afastou-se alguns metros da picape, abriu a bolsa e pegou um cigarro.

 

"Cigarro agora não", disse Ubirajara.

 

Usando um tubo de plástico transparente e um galão branco que estavam no porta-malas da picape, ele transferiu gasolina do tanque para o galão. Depois banhou a picape por dentro e por fora com o líquido inflamável. Pegou Selene pelo braço e tomaram distância.

 

"Me dá o fósforo", disse.

 

A labareda subiu até o céu claro do meio-dia, esquentando o rosto de Selene e fazendo seus olhos arderem.

 

Caminharam até Eldorado.

 

A rodoviária era uma calçada com ônibus estacionados. Havia guichês de passagens ao lado de bares e lojas de roupas baratas.

 

"Tu precisas de roupas novas e limpas", disse Ubirajara.

 

"Prefiro ser presa do que usar esses vestidos caipiras.”

 

Ubirajara comprou duas passagens para Cascavel num ônibus que partia às cinco da tarde. Como ainda restavam duas horas de espera, foram até um bar e pediram pão com manteiga e café com leite.

 

Selene ainda sentia fome depois de comer o pão com manteiga e pediu uma vitamina de leite batido com frutas.

 

"Preciso de uma farmácia", disse, depois que acabou de beber a vitamina.

 

"Se não for nada urgente, deixa pra ir em Cascavel.”

 

"Tudo é urgente na minha vida. O que a gente vai fazer em Cascavel?”

 

"Comprar roupas chiques pra ti e pegar um avião pra algum lugar.”

 

"Pra que lugar?”

 

"Não sei ainda.”

 

"Não quero viver fugindo. Mesmo com roupas chiques.”

 

"É só por uns tempos, chê. Eu vou estar contigo, não te preocupa. ”

 

Selene não disse nada. Estava preocupada.

 

"Eu te amo", disse Ubirajara.

 

"Puta que o pariu, não agüento mais esse papo de amor. O amor não existe. É uma invenção dos homens pra manter as mulheres presas.”

 

Ubirajara riu: "De onde tirastes isso?".

 

Selene olhou para Ubirajara e viu a expressão abobalhada e risonha de um homem que se acreditava senhor da situação.

 

"Talvez eu esteja errada. Talvez vocês tenham fingido tanto que acabaram acreditando no amor. É sempre uma besteira acreditar na própria mentira.”

 

No ônibus, Selene cochilava apoiada no ombro de Ubirajara. Anoitecera e uma brisa fria entrava pela janela. Ubirajara prestou atenção ao ruído contínuo do motor e sentiu-se seguro, como se aquele ruído pudesse protegê-los de tudo o que estava do lado de fora do ônibus. Agora as coisas estão nos eixos, pensou, sentindo na pele o calor do cabelo negro de Selene. Ela está nervosa, é justo que esteja, perdeu o pai, em pouco tempo estará mais calma. Vou proteger essa mulher, vou amá-la, teremos filhos, seremos felizes.

 

Próximo a Toledo, no Paraná, o ônibus parou num posto.

 

"Meia hora", disse o motorista.

 

Selene abriu os olhos.

 

"Quer comer alguma coisa?", perguntou Ubirajara.

 

"Primeiro vou ao banheiro.”

 

"Te espero na lanchonete", ele disse.

 

No banheiro, uma índia velha de cabelo branco passava um rodo pelo chão. O cheiro forte da água sanitária invadiu as narinas de Selene. Ela sentiu que suas mucosas ainda estavam feridas pela cocaína cheirada na outra noite. Olhou fixamente para o rosto da índia. Era um rosto cheio de rugas e sem expressão. Os olhos, dois buracos vazios.

 

Quando saiu do banheiro, Selene não foi para a lanchonete. Pegou carona num caminhão que estava deixando o posto. O motorista era um sujeito de bigode que estava indo para Itajaí. Chamava-se Jefferson e não fez nenhuma pergunta, mesmo estando curioso a respeito daquela menina inquieta que não parava de olhar para trás, como se temesse que a seguissem.

 

Quando o dia raiou, o caminhão se aproximava da cidade de Pato Branco, no Paraná. Selene pediu que Jefferson a deixasse ali mesmo, à beira da estrada. Ele disse que aquele não era um lugar apropriado para uma moça ficar sozinha, mas ela insistiu e Jefferson acabou estacionando. Selene desceu do caminhão e andou por um descampado.

Ouviu um galo cantar. Os pés começaram a doer e ela sentou sobre uma pedra, sentindo na pele os raios do sol. Era bom sentir o calor do sol, olhar as nuvens vermelhas no horizonte e respirar o ar úmido da manhã.

 

Tudo bem fugir, pensou, contanto que se saiba do que se foge.

 

Um cão latiu e Selene sorriu pela primeira vez desde a noite em que fora violentada. Acendeu um cigarro e teve certeza de que nenhum fantasma poderia alcançá-la.

 

                                                                                Tony Bellotto  

 

                      

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