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Brincando Com a Morte / Rex Stout
Brincando Com a Morte / Rex Stout

 

 

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Brincando Com a Morte

 

       Os originais botões artesanais constituem a única pista de que dispõe Nero Wolfe, o famoso detetive particular de 150 quilos, para descobrir a origem de um bebê deixado à porta de uma rica viúva com um bilhete insinuando ser ele filho de seu marido. Nero Wolfe e seu assistente, o namorador Archie Goodwin, envolvem-se, a partir dessa pista, numa de suas mais emocionantes e movimentadas aventuras, que obrigam o requintado sherloque a deixar sua casa — coisa que raramente faz — durante vários dias, abandonando também o mordomo-cozinheiro que lhe prepara as lautas e requintadas refeições. Mas a argúcia de Nero Wolfe e de seus auxiliares acaba por desvendar, a partir de um implacável raciocínio lógico, esse novo mistério.

     

Quando a campainha tocou, naquela terça-feira de manhã, no princípio de junho, pouco depois das onze horas, fui até à porta da frente e olhei através do vidro da porta, que só permite visibilidade de dentro para fora. Vi o que, ou quem, esperava ver: um rosto um pouco estreito demais, olhos cinzentos um pouco grandes demais e um corpo um tanto fino demais para ter boas curvas. Sabia quem era porque, na segunda-feira de tarde, ela telefonara e marcara hora para uma entrevista. Conhecia seu rosto porque já a vira algumas vezes em teatros e restaurantes.

      Sabia o suficiente a respeito dela para contar a Nero Wolfe sem ter de fazer nenhuma pesquisa: uma parte era do domínio público e outra parte mexerico. Era a viúva de Richard Valdon, um romancista que morrera há nove meses, afogado na piscina de alguém em Westchester. Como quatro de seus livros foram best-sellers e um deles, Nunca mais sonhe, vendera mais de um milhão de exemplares a 5 dólares e 95 centavos, ela não teria problema para pagar a conta de um detetive particular, se e quando quisesse um. Há seis anos, ao ler Nunca mais sonhe, Wolfe livrara-se do livro doando-o a uma biblioteca mas colocou em sua estante um outro intitulado Sua própria imagem, que achou bem melhor. Talvez por esse motivo teve o trabalho de levantar seu corpanzil da cadeira, quando a mandei entrar no escritório, e de continuar de pé até que ela se sentasse na poltrona vermelha perto da sua escrivaninha. Ao sentar-me à minha escrivaninha, não estava ansioso. Ela dissera pelo telefone que queria consultar Wolfe sobre um assunto pessoal e confidencial, mas sua aparência não denotava qualquer sofrimento. Devia ser alguma coisa rotineira, como uma carta anônima ou um parente que sumira.

      Colocou a bolsa na mesinha ao lado da poltrona, olhou ao redor, fixou os olhos grandes e cinzentos em mim durante meio segundo e, voltando-se para Wolfe, disse:

      — Meu marido teria gostado desta sala.

      — Hum — fez Wolfe. — Gostei de um dos livros dele, mas com reservas. Quantos anos ele tinha quando morreu?

      — Quarenta e dois.

      — E qual a sua idade?

      Esta última pergunta era para mim. Acreditava em três coisas: que (a) sua atitude para com as mulheres fazia com que lhe fosse impossível julgar qualquer uma delas; que (b) eu só precisava de uma hora com qualquer mulher no mundo para classificá-la; e que (c) ele podia ajudar fazendo perguntas impertinentes e indiscretas, e sua favorita era lhes perguntar a idade. Era inútil tentar mostrar-lhe a atitude correta.

      Pelo seu método, o modo como Lucy Valdon reagiu já era uma pista, pois sorriu e disse:

      — Já tenho idade suficiente, mais do que suficiente. Tenho 26 anos, o bastante para saber quando preciso de ajuda, e aqui estou. É sobre... é extremamente confidencial — disse, olhando-me de relance.

      Wolfe acenou: — Em geral, é. Quando se trata de assuntos profissionais, meus ouvidos pertencem ao Sr. Goodwin, e os dele a mim. Quanto a ser confidencial, creio que a senhora não cometeu nenhuma falta capital, não?

      Sorriu de novo. O seu sorriso surgia e desaparecia depressa, mas era sincero.

      — Não teria coragem. Não, não é crime. Quero que o senhor encontre alguém para mim.

      “Hum, hum”, pensei, “aqui vamos nós. A prima Mildred está desaparecida e a tia Amanda pediu à sobrinha rica para contratar um detetive.” Mas ela continuou:

      — É um pouco... bem, é meio fantástico. Estou com um bebê e quero saber quem é a mãe. Como já disse, é confidencial, mas na realidade não é segredo. A empregada e a cozinheira sabem a respeito disso, bem como meu advogado e duas amigas minhas, mas é só, pois não sei se quero ficar com ele... com o bebê, quero dizer.

      Wolfe estava de testa franzida, e não era para menos:

      — Não sirvo para juiz de bebês, minha senhora.

      — É claro que não. O que quero... mas deixe-me contar-lhe. Há duas semanas que estou com a criança. Há duas semanas, no domingo, dia 20 de maio, o telefone tocou, atendi e uma voz disse que havia alguma coisa no meu vestíbulo. -Fui olhar, e lá estava ele no chão, embrulhado num cobertor. Levei-o para dentro e encontrei um pedaço de papel preso à coberta por um alfinete. — Apanhou a bolsa da mesinha ao lado, abriu-a e, assim que tirou o papel, eu já estava ao seu lado para recebê-lo. Bastou um olhar de relance para ler o que estava escrito, mas, em lugar de entregá-lo a Wolfe por cima da escrivaninha, dei a volta ao redor dele para ler mais uma vez. Era um pedaço de papel ordinário de 12 por 18 centímetros e a mensagem, em cinco linhas tortas, impressa com um desses conjuntos de borracha para criança, era curta e dizia o essencial:

      SRA. RICHARD VALDON

      ESTE BEBÊ É PARA A SENHORA

      PORQUE UM MENINO DEVE

      VIVER NA CASA  DE SEU PAI

      Havia dois furos de alfinete num canto. Wolfe colocou-o em cima da escrivaninha, virou-se para ela e perguntou:

      — É verdade?

      — Não sei — respondeu ela. — É claro que não sei. Mas poderia ser verdade.

      — É provável ou apenas possível?

      — Creio que é provável. — Fechou a bolsa e colocou-a outra vez na mesinha. — Quero dizer, é provável que possa ter acontecido.

      Fez um gesto com a mão onde havia uma aliança de casamento. Seus olhos me fitaram e voltaram-se para Wolfe.

      — É claro que isso é confidencial, o senhor entende.

      — Sim.

      — Bem... já que estou lhe contando tudo, é melhor que compreenda. Dick e eu nos casamos há dois anos... faria dois anos no mês que vem. Estávamos apaixonados, claro que estávamos, mas admito que, no que me concerne, também tinha importância ele ser um homem famoso, e que eu seria a Sra. Richard Valdon. E para ele havia meu... bem, quem eu era então, uma Armstead. Não soube o quanto isso significava para ele até que estivéssemos casados, quando ele descobriu que eu estava cansada de ser uma Armstead.

      Respirou fundo e continuou: — Antes de se casar comigo, tinha uma reputação de Don Juan, mas devia ser exagero, como em geral acontece. Durante dois meses fomos completamente... — Parou e seus olhos fecharam. Abriu-os quase em seguida. — Para mim, nada existia a não ser nós dois, e acho que para ele também. Tenho certeza. Depois, com sinceridade, não sei. Só sei que não era a mesma coisa. Durante este ano, o último ano de sua vida, pode ter tido uma mulher, ou duas, ou uma dúzia... simplesmente, não sei. Sei que ele pode ter tido. Por isso o bebê... como foi que eu disse? É provável que pudesse Ler acontecido, compreende?

      Wolfe concordou: — Até este ponto, sim. E seu problema?

      — O problema é o bebê, é claro. Pretendia ter um, dois ou três, sou sincera ao dizê-lo, e Dick também, mas eu queria esperar um pouco. Adiei. Quando ele morreu, o mais duro, talvez a parte mais difícil, foi isto: ele queria que eu tivesse um bebê e eu adiei. Agora há um bebê, que está comigo. — Apontou para o pedaço de papel na mesa de Wolfe. — Acho que o que está escrito aí é correto. Um menino deve viver na casa do pai e, é claro, deve ter o nome do pai. Mas o problema é o seguinte: Richard Valdon era o pai dessa criança? Pronto, já falei!

      Wolfe resmungou: — Bobagem, nunca será solucionado e a senhora sabe. Homero já disse: “Nenhum homem pode saber quem era seu pai.” Shakespeare disse: “O homem sábio é o que conhece seu próprio filho.” Não posso ajudá-la, minha senhora. Ninguém pode.

      Ela sorriu: — Também posso dizer: “bobagem”. É claro que pode me ajudar. Sei que não pode provar que Dick era o pai, mas pode descobrir quem pôs o bebê no meu vestíbulo, quem é a mãe, e aí podemos... Olhe.

      Abriu a bolsa e pegou outro pedaço de papel, não do mesmo tipo ou tamanho:

      — Já calculei tudo. O médico disse que o bebê tinha quatro meses no dia em que chegou, 20 de maio, por isso usei esta data. — Olhou o papel. — Logo, nasceu perto do dia 20 de janeiro e portanto deve ter sido concebido mais ou menos no dia 20 de abril do ano passado. Quando descobrir quem é a mãe, pode averiguar a respeito dela e de Dick, se é verdade, ou então quais as probabilidades de que estivessem juntos naquela época. É claro que isso não provará que o bebê é filho dele, mas pode significar que a probabilidade é grande. Além do mais, se for apenas uma artimanha, se Dick não fosse o pai e não houvesse possibilidade de o ser e o senhor descobrisse isso, também me ajudaria, não é verdade? Então, a primeira coisa é descobrir quem o deixou no meu vestíbulo e, depois, quem é a mãe. Aí então talvez eu mesma queira lhe fazer umas perguntas, mas não... Bem, veremos.

      Wolfe recostara-se, olhando-a de cara fechada. Estava começando a parecer o tipo de trabalho que só poderia recusar com uma desculpa fingida, e ele detestava trabalhar. Além disso, o saldo bancário estava bem gordo.

      — A senhora está presumindo que eu possa fazer tudo isso — disse, levantando uma objeção. — Não sou mágico. Sra. Valdon.

      — É claro que não. Mas o senhor é o melhor detetive do mundo, não é?

      — É provável que não. Talvez o melhor detetive do mundo seja um sujeito grosseiro, com um vocabulário limitado. A senhora disse que seu advogado sabe a respeito da criança. Sabe também que a senhora veio me consultar?

      — Sim, mas não aprova. Acha que é tolice querer ficar com a criança. Há leis a respeito, e providenciou para que possa ficar com o bebê temporariamente, porque insisti: embora ele seja contra a idéia de tentar achar a mãe. Mas isso é assunto meu. Seu negócio é a lei.

      Sem que ela percebesse, atingiu o alvo. O próprio Wolfe não poderia ter descrito melhor a sua própria atitude em relação a advogados, com todo o vocabulário que tinha. Sua cara fechada melhorou um pouco.

      — Duvido — disse ele — que já tenha medido bem as conseqüências. A busca seria, com certeza, bem demorada, trabalhosa, cara e possivelmente não levaria a nada.

      — Sim. Eu disse que sabia que o senhor não é mágico.

      — Pode arcar com as despesas? Meus honorários não são baixos.

      — Sei disso. Tenho uma herança da minha avó e os rendimentos dos livros de meu marido. Tenho casa própria. — Deu um sorriso. — Se quiser ver uma cópia do meu imposto de renda, está com meu advogado.

      — Não será necessário. Pode levar uma semana, um mês, um ano.

      — Está bem. Meu advogado disse-me que, para eu ficar com o bebê temporariamente, pode fazer uma prorrogação mês a mês.

      Wolfe apanhou o pedaço de papel, olhou-o de cara feia, colocou-o outra vez na mesa e olhou para ela também de cara feia.

      — Já que é assim, deveria ter me procurado mais cedo.

      — Só tomei a decisão de procurá-lo ontem.

      — Talvez seja tarde demais. Já se passaram 16 dias desde domingo, 20 de maio. O telefonema foi dado durante o dia?

      — Não, à noite. Um pouco depois das dez horas.

      — Homem ou mulher?

      — Não tenho certeza. Acho que era um homem tentando imitar voz de mulher, ou uma mulher tentando imitar voz de homem, não sei bem.

      — E se tivesse de dar um palpite?

      Abanou a cabeça: — Não poderia.

      — O que foi dito? Palavra por palavra.

      — Estava sozinha em casa, pois a empregada havia saído. Quando atendi o telefone, disse: “Da casa da Sra. Valdon.” A voz perguntou: “É a Sra. Valdon?” Respondi que sim, e a voz retrucou: “Vá ao vestíbulo, há algo para a senhora lá”, e desligou. Quando vi que era um bebê e que estava vivo, levei-o para dentro, chamei o médico e...

      — Um momento, por favor. Passou o dia todo e a noite em casa?

      — Não. Tinha ido passar o fim de semana no campo. Cheguei em casa por volta das oito horas da noite. Detesto o tráfego de domingo à noite.

      — No campo onde?

      — Perto de Westport. Na casa de Julian Haft, que é quem publica os livros de meu marido.

      — Onde é Westport?

      Arregalou os olhos, surpresa. Eu, não. O que ele ignora sobre a área metropolitana daria para encher um atlas.

      — Ora, em Connecticut — respondeu. — Condado de Fairfield.

      — A que horas saiu de lá?

      — Pouco depois das seis da tarde.

      — De carro? Seu próprio carro?

      — Sim.

      — Com um motorista?

      — Não. Não tenho motorista.

      — Vinha alguém junto no carro?

      — Não, vim sozinha. — A mão com a aliança fez um gesto para o lado. — É claro que o senhor é que é o detetive, Sr. Wolfe, e não eu, mas não vejo qual a finalidade disso.

      — Então a senhora não usou o cérebro. — Virou-se para mim. — Conte para ela, Archie.

      Estava sendo insultuoso. Não querendo se ocupar de algo tão óbvio, passou para mim. Fiz o que pedia.

      — A senhora provavelmente tem andado muito ocupada com o bebê para pensar no assunto. Digamos que tivesse sido eu. Coloquei o bebê no vestíbulo antes de lhe telefonar. Não teria feito isso se não soubesse que a senhora estava lá, que alguém atenderia o telefone. Pode ser que tivesse ficado por lá até vê-la voltar ou até ver uma luz na casa, mas é provável ainda que soubesse que a senhora passaria o fim de semana fora e chegaria em casa depois do anoitecer. Talvez até soubesse a que horas saiu de Westport. Voltemos à última pergunta: alguém mais estava no carro? Esse seria o modo mais simples e seguro de saber a que horas a senhora iria chegar, se estivesse no mesmo carro. Caso tivesse respondido que sim, a pergunta seguinte seria: quem?

      — Deus do céu! — Olhava-me atônita. — Alguém que eu conheça bastante para...

      Deixou a frase no meio e virou-se para Wolfe:

      — Está bem. Pergunte o que quiser.

      Wolfe deu um grunhido: — Não o que eu quiser. O que devo perguntar... se aceitar o trabalho. Disse que a casa é própria. Onde fica?

      — Na Rua 11 perto da Quinta Avenida. Herdei-a, foi meu bisavô quem a construiu. Quando disse que estava cansada de ser uma Armstead, não estava apenas falando por falar. Falo sério, mas gosto da casa, e Dick a amava.

      — Divide a casa com alguém? Tem inquilinos?

      — Não. Agora eu... não sei.

      — A empregada e a cozinheira moram lá?

      — Sim.

      — Mais alguém?

      — Para dormir, não. Uma mulher vem cinco dias por semana para ajudar.

      — A diarista ou a cozinheira poderia ter tido um filho em janeiro?

      Sorriu: — A cozinheira, de jeito nenhum. Nem a diarista. Está comigo há quase dois anos. Não, ela não teve um bebê.

      — Então uma parenta delas. Talvez uma irmã. Uma situação ideal para um sobrinho inconveniente.

      Wolfe afastou a idéia com um gesto.

      — Isso é de rotina. — Bateu com o dedo no pedaço de papel. — As marcas de alfinete. Era um alfinete de segurança?

      — Não, não era. Era um alfinete comum.

      — É mesmo? — Levantou as sobrancelhas. — A senhora disse dentro do cobertor. Onde? Perto de que parte do bebê: pés, barriga, cabeça?

      — Acho que perto dos pés, mas não tenho certeza. Já tinha tirado o bebê para fora do cobertor quando vi o papel.

      Wolfe girou a cadeira:

      — Archie, você gosta de dar opiniões em termos de probabilidades. Quais as probabilidades de uma mulher expor um bebê dessa forma a um alfinete comum?

      Levei três segundos para responder: — Não tenho dados suficientes. Onde estava exatamente o alfinete? O que é que o bebê estava usando? Por alto, diria dez contra um, mas isso não significa que era um homem. Não aposto.

      — Não pedi que apostasse. — Tornou a girar a cadeira em direção a ela. — Não creio que, dentro do cobertor, estivesse nu.

      — Ah, não. Estava vestido até demais: suéter; um chapéu de veludo cotelê; macacão, também de veludo cotelê; uma camiseta de malha; uma camisa; calça plástica e fralda. Ah, e botinhas. Estava vestido mesmo.

      — Algum alfinete de segurança?

      — É claro, na fralda.

      — A fralda estava... hã... limpa?

      — Não, estava imunda. Provavelmente ficou com a mesma fralda várias horas. Mudei a fralda antes que o médico chegasse, mas tive de usar uma fronha.

      Interrompi: — Já que pediu a minha opinião, vou fazer uma aposta: um contra 20 que se foi uma mulher que prendeu o bilhete no cobertor não foi a mesma que vestiu o bebê.

      Não houve comentários. Ele virou a cabeça para olhar o relógio de parede. Faltava uma hora para o almoço. Aspirou pelo nariz todo o ar a que tinha direito, e que era muito, e expeliu-o pela boca. Aí virou-se para ela:

      — Será necessário obter mais informações da senhora, muitas mais, e o Sr. Goodwin pode fazer isso tão bem quanto eu. Meu compromisso seria descobrir a identidade da mãe e prová-la de um modo que a satisfaça, e demonstrar o grau de probabilidade de seu marido ser o pai, sem nenhuma garantia de sucesso. É isso?

      — Ora... sim. Se o senhor... Não, só direi sim.

      — Muito bem. Resta a formalidade de um sinal.

      — É claro. — Apanhou a bolsa. — Quanto?

      — Não importa. — Empurrou a cadeira e levantou-se. — Tanto pode ser em dólar, como cem ou mil. O Sr. Goodwin tem muitas perguntas a lhe fazer. Desculpe-me, por favor.

      Encaminhou-se para a porta e no corredor virou à esquerda, em direção à cozinha. Para o almoço teríamos caçarola de ovas de peixe, um dos poucos pratos sobre o qual ele e Fritz tinham opiniões diferentes que nunca foram solucionadas. Concordavam a respeito da gordura, da manteiga de anchova, cerefólio, cebolinha, salsa, louro, pimenta, manjerona e creme, mas discutiam quanto à cebola. Fritz era a favor, mas Wolfe era totalmente contra. Talvez, ao discutir, alteassem as vozes, por isso fechei a porta, que era à prova de som, antes de apanhar meu caderno. Ao voltar à minha escrivaninha, ela me deu um cheque no valor de mil dólares.

     

Naquela tarde, às quinze para as cinco, eu estava na cozinha da casa de Lucy Valdon na Rua 11 Oeste. Estava de pé, encostado à geladeira, segurando um copo de leite. A cozinheira, a Sra. Vera Dowd, que, pela aparência, comia uma boa parte do que cozinhava, estava sentada na cadeira. A meu pedido, dera-me o leite. A Srta. Marie Foltz, a diarista, de uniforme, que há dez anos deveria ter sido bem interessante e ainda não era de se jogar fora, estava à minha frente, encostada na pia.

      — Preciso de ajuda — disse eu, tomando um gole de leite.

      Não estou passando por cima de minha entrevista com a cliente antes do almoço só para esconder alguma coisa, mas não há motivo para repetir tudo que anotei no caderno. Aqui vão algumas amostras, se é que podemos acreditar nela:

      Ninguém a detestava ou lhe queria mal o suficiente para pregar-lhe uma peça suja como aquela, deixando-lhe uma criança que ninguém sabia quem era, incluindo sua família. Seu pai e sua mãe estavam no Havaí, de onde iriam dar a volta ao mundo; seu irmão casado morava em Boston e sua irmã casada em Washington. Sua melhor amiga, Lena Guthrie, uma das três pessoas a quem mostrara o papel que viera preso ao cobertor, sendo que as outras duas eram o médico e o advogado, achava que o bebê se parecia com Dick, mas ela, Lucy, ainda não dera sua opinião. Não ia dar nenhum nome ao bebê a não ser que decidisse ficar com ele. Talvez ela o chamasse de Moisés, já que ninguém sabia ao certo quem era o pai de Moisés, mas deu um sorriso ao dizer isso. E assim por diante. Forneceu, também, cerca de uma dúzia de nomes; os nomes dos convidados na casa de Haft, em Westport, no dia 20 de maio; os nomes de quatro mulheres, que tive de arrancar dela, com quem Dick talvez pudesse ter tido algum relacionamento em abril de 1961, e uma lista de nomes, a maior parte deles de homem, que talvez soubessem mais sobre os divertimentos pessoais de Dick do que sua viúva. Três desses pareciam ser os mais promissores: Leo Bingham, produtor de televisão; Willis Krug, agente literário, e Julian Haft, editor, o chefe da Parthenon Press. E já era o bastante.

      Estava conversando com a Sra. Dowd e a Srta. Foltz na cozinha porque é mais fácil fazer com que as pessoas falem num local onde estão acostumadas a falar. Quando lhes disse que precisava de ajuda, a Sra. Dowd fitou-me com os olhos franzidos e a Srta. Foltz lançou-me um olhar cético.

      — É sobre o bebê — disse eu, tomando mais um gole de leite. — A Sra. Valdon levou-me lá em cima para vê-lo. Achei-o gordo demais, um pouco seboso e o nariz é só uma bolota, mas é claro que sou apenas um homem.

      A Srta. Foltz cruzou os braços. A Sra. Dowd disse:

      — O bebê está muito bem.

      — Creio que sim. Parece que a pessoa que o deixou no vestíbulo achou que a Sra. Valdon fosse ficar com ele. Ficando ou não ficando com o bebê, é claro que ela quer saber de onde ele veio, por isso contratou um detetive para descobrir. O nome é Nero Wolfe. Talvez já tenham ouvido falar dele.

      — Ele aparece na tevê? — perguntou a Srta. Foltz.

      — Não seja tola — disse-lhe a Sra. Dowd. — Como poderia aparecer? Ele é de verdade.

      Virou-se para mim: — É claro que já ouvi falar dele, e do senhor também. Vi seu retrato no jornal há um ano. Esqueci o seu primeiro nome... não, não esqueci. Archie. Archie Goodwin. Deveria ter me lembrado quando a Sra. Valdon disse Goodwin. Tenho boa memória para nomes e rostos.

      — E tem mesmo — disse eu, bebendo meu leite. — Vou dizer por que preciso de ajuda. Num caso desses, do que é que um detetive se lembraria em primeiro lugar? Acharia que deve haver uma razão para o bebê ter sido deixado aqui em vez de outro lugar, e qual seria a razão? Bem, um bom motivo poderia ser que alguém que vive aqui gostaria que o bebê também ficasse. Então, o Sr. Wolfe perguntou à Sra. Valdon quem vive aqui além dela, e ela disse: a Sra. Vera Dowd e a Srta. Marie Foltz. Depois ele perguntou se alguma delas poderia ter um filho há quatro meses e ela respondeu...

      Ambas me interromperam. Levantei a mão, com a palma para fora.

      — Agora estão vendo — falei, sem levantar a voz —, estão vendo por que preciso de ajuda. Foi só dizer que um detetive perguntou uma coisa corriqueira e natural e as duas se exaltam. Tentem ser detetives, pelo menos uma vez. É claro que a Sra. Valdon explicou que nenhuma das duas poderia ter tido um filho há quatro meses, e a pergunta seguinte foi: alguma das duas teria uma parenta, uma irmã talvez, que tivesse um filho que não poderia ficar com ela? Isso é mais difícil de responder. Teria de pesquisar. Teria de descobrir seus parentes e amigos, fazer uma porção de perguntas, sei que levaria muito tempo e custaria caro, mas é certo que conseguiria a resposta.

      — Pode conseguir a resposta agora mesmo — disse a Sra. Dowd.

      Acenei com a cabeça: — Quero e sei que posso. O caso é que não quero que fiquem aborrecidas com ã Sra. Valdon por ela ter-lhes pedido que conversassem comigo. Quando alguém contrata um detetive, tem de deixar que ele investigue. Ou ela me permitia interrogá-las ou despedia Nero Wolfe. Se uma das duas sabe de onde o bebê veio, e quer que alguém tome conta dele, é só dizer. A Sra. Valdon talvez não fique com ele, mas providenciará para que vá para uma boa casa e ninguém saberá de nada que não queiram que saiba. A alternativa é começar a investigar, procurar seus parentes e amigos e descobrir...

      — O senhor não precisa ver meus parentes e amigos — disse a Sra. Dowd com ênfase.

      — Nem os meus — declarou a Srta. Foltz.

      Sabia que não precisava. É claro que nem sempre se consegue uma resposta definitiva só ao olhar um rosto, mas algumas vezes isso é possível, e eu conseguira. Nenhum dos dois rostos escondia o problema: ou considerar a oferta da Sra. Valdon ou me deixar fazer a investigação. Admiti isso para elas. Ao terminar o copo de leite, conversei sobre fisionomias e o que revelavam, e lhes disse que garantira à Sra. Valdon que bastava ter uma conversa com elas para me assegurar disso, o que era mentira. Nunca se sabe o que uma conversa vai decidir, até que se tenha realizado, mesmo quando seja você próprio a falar o tempo, todo. Separamo-nos mais ou menos amigos.

      Havia um elevador, mais suave e silencioso do que o da velha casa de tijolos de Wolfe, na Rua 35 Oeste, mas era apenas um andar acima daquele onde a Sra. Valdon disse que estaria, e por isso subi a pé. Era uma sala grande, maior do que o nosso escritório e sala da frente juntos, sem nada de moderno, exceto o carpete e a televisão no fundo. Tudo o mais era antigo, mas não entendo muito disso. A cliente estava num sofá, com uma revista, e perto dela havia um bar portátil que não estava ali há uma hora. Mudara de roupa outra vez. Ao se encontrar com Wolfe usava um terno bege com listas marrons; ao chegar estava com um vestido cinzento que combinava mais com a cor de seus olhos do que o bege. Agora estava com um vestido sem mangas, bem decotado, azul-claro, aparentemente de seda, mas nunca se tem certeza. Ao me aproximar, abaixou a revista:

      — Tudo certo — falei. — Pode tirá-las da lista.

      — Tem certeza?

      — Absoluta.

      Sua cabeça estava inclinada para trás.

      — O senhor não demorou muito. Como foi que fez?

      — É segredo profissional. Nada devo dizer a uma cliente até ter feito meu relatório ao Sr. Wolfe. Mas elas reagiram bem. Se tivermos alguma idéia nova, telefonarei pela manhã.

      — Vou tomar um martini. Não quer? Ou prefere outra coisa?

      Ao deixar a cozinha consultara o relógio, e lembrara-me que Wolfe ficaria na estufa das orquídeas até as seis horas e que uma das minhas funções é entender qualquer mulher com quem estivermos lidando e; visto que o gim era Follansbee, pensei que era melhor ser bem sociável. Ofereci-me para fazer a bebida, dizendo que a proporção que eu preferia era cinco por um, e ela concordou. Depois que preparei o martini, servi e sentei-me no sofá ao seu lado. Provamos a bebida e ela disse:

      — Vamos experimentar uma coisa? Você toma um gole do meu e eu tomo um gole do seu. Você se importa?

      É claro que eu não me importava, já que devia tentar entendê-la. Segurou o copo para que eu desse um gole, e segurei o meu para que ela provasse.

      — Realmente, este gim bom está desperdiçado — disse eu. — Acabei de tomar um copo de leite.

      Ela nem me ouviu. Nem sabia que eu tinha falado. Olhava para mim, mas não me via. Como podia entender isso? Como não queria ficar com os olhos fitos nela, olhei o seu ombro, que nada tinha de magro.

      — Nem sei por que quis fazer isso, assim de repente — disse. — Desde que Dick morreu que não o faço. De repente soube que tinha de fazê-lo, não sei por quê.

      Achei melhor conservar a coisa no plano profissional, e o melhor modo era trazer Wolfe para a conversa:

      — O Sr. Wolfe diz que nunca ninguém sabe por que realmente faz alguma coisa.

      Ela sorriu: — E lá em cima, quando você olhava o bebê, quase o chamei de Archie. Não estou tentando flertar com você. Não sei flertar. Não creio que... Você não é hipnotizador, é?

      Tomei um gole do martini.

      — Que diabo — disse. — Relaxe. Provar bebida um do outro é um antigo costume persa. Quanto a me chamar de Archie, é o meu nome mesmo. Não me chame de Svengalli. Quanto a flertar, vamos discutir isso. Homens e mulheres flertam. Cavalos flertam. Os periquitos flertam. Sem dúvida as ostras também flertam, mas devem ter algum modo especial...

      Parei porque ela estava andando. Saíra do sofá, colocara o copo, ainda meio cheio, no bar e disse, ao sair: — Não se esqueça de levar a mala quando for embora.

      Levei algum tempo para entender. Sentei-me e pensei no assunto, uns quatro ou cinco minutos, enquanto bebia o martini. Levantei-me, pus meu copo no bar, tocando o dela para mostrar que entendera, o que não era verdade, e saí. Embaixo, na entrada, ao sair, peguei a valise que ela me ajudara a fazer.

      Pegar um táxi àquela hora, naquela parte da cidade, é como esperar conseguir um dez quando se tem na mão um oito, nove, valete e dama. Eram só 24 quarteirões pequenos e quatro grandes e a valise era leve. De qualquer modo, sou um andarilho. Queria chegar antes de Wolfe descer para o escritório e consegui; eram cinco horas e cinqüenta e quatro minutos quando subi os degraus da velha casa de tijolos aparentes, abri a porta com a minha chave, entrei, fui ao escritório, coloquei a valise na cadeira, abri-a e retirei o que havia dentro. Quando ouvi o barulho do elevador, todos os objetos estavam na escrivaninha de Wolfe, cobrindo-a quase por inteiro e, quando ele entrou, eu estava na minha mesa, ocupado com os jornais. Quando parou e deu um grunhido, girei minha cadeira.

      — O que é isso? — perguntou.

      Levantei-me e apontei: — Suéter, chapéu, macacão, camiseta de malha, cobertor, botinhas, calça impermeável, fralda. Tem que se dar crédito a ela por conservar a fralda. A empregada não estava e só arranjou uma enfermeira no dia seguinte. Deve ter lavado a fralda ela mesma. Não há marcas de lavanderia ou de lojas. O suéter, chapéu, macacão e as botinhas têm marcas da fábrica, mas duvido que sirvam para alguma coisa. Há uma coisa em um dos objetos que talvez ajude. Se você não o reconhecer, talvez não valha a pena mencioná-lo.

      Foi para sua cadeira feita sob medida, e sentou-se:

      — E quanto à cozinheira e à diarista?

      — Nós já conversamos. Estão de fora. Quer saber palavra por palavra da conversa?

      — Se ficou satisfeito com as respostas, não.

      — Estou. É claro que, se não descobrirmos nada, podemos verificar a história delas.

      — O que mais?

      — Primeiro, há um bebê vivo. Eu o vi. Ela não sonhou. Não há nada fora do comum com o vestíbulo; a porta não tem fechadura e são só quatro degraus, qualquer pessoa poderia subir e descer rapidamente; tentar descobrir alguém que viu quem fez isso há 17 dias, no escuro, seria uma perda de meu tempo e do dinheiro da cliente. Não incluí a faxineira no interrogatório porque, se o bebê fosse dela, teria outra cor, e não incluí a enfermeira porque foi contratada através de uma agência, no dia seguinte. Há um bonito tapete. Tekke no quarto de criança, que era antes um quarto de hóspedes. Você sabe que aprendi sobre tapetes com você, e sobre quadros com a Sra. Rowan. Há um Renoir na sala de estar, e creio que um Cézanne. A cliente bebe gim Follansbee. Não estou em suas boas graças, porque me esqueci que ela era uma Armstead e fui irreverente. Quando acordar estará bem.

      — Por que a irreverência?

      — Ela balançou meu braço e derramei gim nas minhas calças.

      Olhou-me dentro dos olhos: — É melhor fazer um relato textual.

      — Não é necessário. Estou satisfeito.

      — Sem dúvida alguma. Tem alguma sugestão?

      — Sim, senhor. Parece sem esperanças. Se não conseguirmos nada dentro de duas semanas, pode dizer-lhe que descobriu que o bebê é meu, que o coloquei no vestíbulo e que se quiser casar comigo pode ficar com ele. Posso simplesmente...

      — Cale a boca.

      De qualquer modo, ainda não tinha decidido como solucionar a questão da mãe. Apanhou o suéter e inspecionou-o. Não o virou do avesso porque era uma inspeção rápida e ainda voltaria a examiná-lo. Largou-o e apanhou o chapéu. Quando chegou ao macacão fiquei olhando o seu rosto, mas não vi sinal de ter reparado em coisa alguma, então girei a cadeira para apanhar o catálogo telefônico Páginas Amarelas de Manhattan, que antes era Páginas Vermelhas. Sob o título: “Roupas de Bebê e Criança — Fab. e Atac.”, que enchia quatro páginas e meia, encontrei o que queria. Levei a mão ao telefone, mas trouxe-a de volta. Talvez ele o notasse ao examinar a roupa pela segunda vez, mas deveria ter uma oportunidade sem que eu lhe desse uma pista. Levantei-me, fui até o corredor, subi os dois andares até meu quarto, e disquei o número no telefone da mesinha-de-cabeceira. Mas, como era de esperar naquela hora do dia, não tive resposta. Tentei outro número, o de uma moça que conhecia e que tinha três filhos, mas ela não pôde me ajudar; disse que só vendo o macacão. Então tinha de esperar pela manhã seguinte. Desci de novo para o escritório.

      Wolfe voltara para a sua cadeira e estava segurando o macacão para que a luz o iluminasse bem, e na outra mão estava sua maior lente de aumento. Examinava um botão. Andando em sua direção, perguntei:

      — Encontrou alguma coisa?

      Girou a cadeira e colocou a lente na mesa: — Talvez. Os botões desta roupa. Quatro deles.

      — O que é que há com eles?

      — Não me parecem adequados. Essas roupas devem ser feitas aos milhares, incluindo os botões. Mas é claro que estes botões não foram produzidos em série. O material parece tecido de crina branca, embora possa ser uma fibra sintética. Mas há grande diferença de tamanho e feitio. Não há possibilidade de terem sido feitos em grande quantidade por uma máquina.

      — Isso é muito interessante. Parabéns — disse, sentando-me.

      — Sugiro que os examine.

      — Já examinei, embora não com uma lente. É claro que notou que a marca da fábrica é Querubim. Essa marca é feita por Resnick e Spiro, Rua 37 Oeste, 340. Acabei de falar para lá mas não obtive resposta, já que passam das seis da tarde. Fica a cinco minutos de distância daqui. Irei amanhã de manhã, a não ser que você queira que eu encontre o Sr. Resnick ou o Sr. Spiro agora.

      — De manhã está bem. Devo pedir desculpas por tirar um pouco dos seus louros?

      — Nós os repartiremos — respondi, e levantei-me para apanhar o macacão e a lente.

     

O distrito de vestuário de Manhattan tem de tudo, desde palácios de mármore de 30 andares até escritórios mínimos. Não é lugar para se passear a pé, pois se passa a maior parte do tempo fora da calçada, dando a volta em caminhões que estão recuando ou entrando, mas é ótimo como local de treino para pular e se desviar, e para aprimorar os reflexos. Se, depois de uma hora nas ruas que cruzam as Ruas 30, você sair inteiro, estará seguro em qualquer parte do mundo. Então achei que conseguira alguma coisa, quando cheguei à entrada da Rua 37 Oeste, 340, às dez horas da manhã de quarta-feira.

      Mas aí ficou complicado. Tentei explicar o melhor que pude, primeiro para uma jovem num guichê no primeiro andar e depois a um rapaz na sala de espera no quarto andar, mas não conseguiram entender por que, se não queria vender ou comprar alguma coisa nem estava procurando emprego, eu estava no prédio. Afinal, consegui chegar até um homem de mais visão, sentado numa escrivaninha. É claro que não conseguia entender por que a pergunta “os botões foram postos neste macacão por Resnick e Spiro?” era suficientemente importante para que eu tivesse de atravessar a Rua 37 a fim de conseguir a resposta, mas estava ocupado demais para comentar isso. Só o fato de um homem ter tido tanto trabalho para lhe fazer uma pergunta já merecia uma resposta. Depois de um olhar rápido, disse-me que Resnick e Spiro jamais tinham usado um botão desse tipo e nunca usariam. Usavam quase exclusivamente plástico. Devolveu-me o macacão.

      — Muito obrigado — repliquei. — Não lhe interessaria saber por que estou lhe incomodando com isso, mas não é simples curiosidade. Conhece alguma firma que fabrica botões iguais a esse?

      Ele abanou a cabeça: — Não tenho a menor idéia.

      — Alguma vez já viu botões desse tipo?

      — Nunca.

      — Pode me dizer de que são feitos?

      Inclinou-se para olhar melhor:

      — Creio que são sintéticos, mas de que material só Deus sabe. — De repente deu um sorriso simpático, humano e cheio de humor. — Ou então o imperador do Japão. Tente perguntar-lhe. Daqui a pouco, tudo virá de lá.

      Agradeci, recoloquei o macacão no saco de papel e fui embora. Como suspeitasse que não conseguiria nada mais de Resnick e Spiro, terça-feira à noite detive-me uma hora nas quatro páginas e meia intituladas “Botões” das Páginas Amarelas, e no meu caderninho de bolso havia o nome de 15 firmas, num perímetro de cinco quarteirões de onde estava. Um deles ficava a 50 passos dali e dirigi-me para lá.

      Depois de 90 minutos, tendo ido a quatro firmas diferentes, sabia um pouco mais sobre botões em geral, mas nada específico sobre os do macacão. Uma das firmas fazia botões cobertos, outra de poliéster e acrílico, outra usava madrepérola, outra banhava-os de ouro e prata. Ninguém tinha a mínima idéia de quem fizera o meu, ou de que eram feitos, e ninguém se importava. Parecia que só ia receber uma coleção de negativas, o que, de um certo modo, estava certo. Encaminhei-me pelo corredor no sexto andar de um prédio na Rua 39 até uma porta onde estava escrito: CIA. DE BOTÕES EXCLUSIVOS — NOVIDADES.

      Se soubesse, seria o primeiro lugar aonde teria ido. Uma mulher, que sabia exatamente o que eu queria antes que eu dissesse dez palavras, levou-me a uma sala interna sem prateleiras nas paredes e nem um botão à vista. Um velhote, com grandes orelhas e cabelos brancos, sentado a uma mesa olhando uma pasta, não levantou os olhos até que eu estivesse ao seu lado e puxasse o macacão da pasta. Quando mexeu os olhos, viu um dos botões. Puxou o macacão de minha mão, olhou com atenção cada um dos botões, os dois na gola e os dois do lado, levantou os olhos e perguntou:

      — De onde vieram esses botões?

      Dei uma risada. Talvez você não ache graça, mas há mais de duas horas que vinha trabalhando para obter essa resposta. Havia uma cadeira e sentei-me nela.

      — Estou rindo de mim, não do senhor — expliquei-lhe. — Uma resposta definitiva a essa pergunta vale 100 dólares, em dinheiro, a quem fornecê-la. Não vou lhe explicar por que, é muito complicado. O senhor pode dar-me a resposta?

      — O senhor é um homem de botões?

      — Não.

      — Quem é o senhor?

      Apanhei a carteira de documentos do bolso e dei-lhe meu cartão. Ele o apanhou e leu-o, apertando os olhos:

      — É um detetive particular?

      — Isso mesmo.

      — Onde conseguiu esses botões?

      — Ouça — respondi —, quero apenas...

      — Ouça você, meu jovem. Sei mais sobre botões do que qualquer outro homem no mundo. Recebo-os de toda a parte. Tenho a melhor e mais abrangente coleção do mundo. Também os vendo. Já vendi 1.000 dúzias de botões num só lote por 40 centavos a dúzia, e vendi quatro botões por 6.000 dólares. Já vendi botões para a duquesa de Windsor, para a rainha Elizabeth e para a Srta. Bette Davis. Já dei botões para nove museus diferentes em cinco países. Sei que, em hipótese alguma, um homem poderia me mostrar um botão que eu não pudesse identificar, mas você pôde. Onde os conseguiu?

      — Está bem — respondi. — Ouça, agora é a sua vez. Sei menos a respeito de botões do que qualquer outro homem no mundo. Preciso saber de onde veio este macacão, porque está ligado a um caso em que estou trabalhando. Como são um produto-padrão, vendido em toda parte, não consigo saber de onde vieram, mas me pareceu que os botões não são padronizados e sua origem pode ser descoberta. É isso que estou tentando descobrir, de onde vieram. É claro que o senhor não pode.

      — Admito que não posso!

      — Está bem. É óbvio que o senhor conhece botões fora do comum, botões raros. Sabe também a respeito de botões comuns, comerciais?

      — Sei tudo sobre botões!

      — E nunca viu ou ouviu falar de botões como estes?

      — Não! Já admiti isso!

      — Ótimo. — Apanhei minha carteira de dinheiro, tirei cinco notas de 20 dólares e coloquei-as na mesa. — O senhor não respondeu à minha pergunta, mas ajudou bastante. Será que, de algum modo, esses botões foram feitos a máquina?

      — Não. Impossível. Alguém levou várias horas para fazê-los. É uma técnica que nunca vi.

      — De que são feitos? Qual o material?

      — Isso talvez seja difícil. Vai levar algum tempo. Talvez possa dizer-lhe alguma coisa amanhã à tarde.

      — Não posso esperar tanto tempo.

      Puxei o macacão, mas ele não o soltou.

      — Prefiro ficar com os botões do que com o dinheiro — falou. — Ou pelo menos com um só. O senhor não precisa de todos os quatro.

      Tive de puxar para que soltasse o macacão. Coloquei-o na bolsa e me levantei.

      — O senhor me poupou muito tempo e trabalho — disse-lhe —, e gosto de mostrar como estou agradecido. Se e quando eu tiver terminado com os botões, doarei um ou mais de um para a sua coleção, e lhe direi de onde vieram. Pelo menos, é o que espero.

      Levei cinco minutos para sair. Não queria ser grosseiro. Ele era com certeza o único fanático por botões na América e tivera sorte de encontrá-lo antes do almoço.

      Pensava no almoço ao deixar o prédio. Era meio-dia e dez minutos. Será que Nathan Hirsh almoçava cedo ou tarde? Decidi não perder tempo em telefonar, e tive sorte de novo. Quando entrei na sala de espera dos Laboratórios Hirsh, no décimo andar de um prédio na Rua 43, o próprio Hirsh também lá estava, pronto para sair. Quando lhe disse que trouxera uma coisa da parte de Nero Wolfe e que não podia esperar, levou-me outra vez para dentro, pelo corredor, até a sua sala. A publicidade em torno do seu testemunho em juízo, há uns anos, num dos casos de Wolfe, não prejudicara em nada seus negócios, pelo contrário.

      Mostrei o macacão e perguntei:

      — Só uma perguntinha simples. De que são feitos os botões?

      Foi até sua escrivaninha, apanhou uma lente e inspecionou um deles:

      — Não é tão simples, com tanto tipo de material que há por aí. Parece tecido de crina, mas para termos certeza teremos que cortar um deles em pedaços.

      — Quanto tempo vai levar?

      — De vinte minutos até cinco horas.

      Disse-lhe que quanto mais cedo melhor e que ele sabia o número de nosso telefone.

      Cheguei na Rua 35 e entrei em casa no momento exato em que Wolfe cruzava o corredor para ir à sala de jantar. Como não se pode falar de negócios à mesa, parou na soleira e perguntou:

      — E então?

      — Até agora tudo bem — respondi. — Na verdade, perfeito. Um homem que sabe tanto sobre botões como você sobre comida nunca viu nada igual. Alguém levou horas a fazê-los. Não conseguiu identificar o material, por isso levei-os a Hirsh. Fará seu relatório hoje à tarde.

      Respondeu que era satisfatório e encaminhou-se para a mesa. Fui lavar as mãos antes de fazer-lhe companhia.

      Com todos os tipos de maquininhas que já inventaram, talvez haja uma que se pudesse colocar em Wolfe e em mim para descobrir se ele me irrita mais do que eu a ele ou vice-versa, mas, como tal máquina não existe, não sei. Admito que há ocasiões que não há nada a fazer exceto esperar, mas como esperar é que é a questão. Naquele dia, depois do almoço, no escritório, eu aborreci Wolfe ao olhar o relógio a cada dois minutos, enquanto ditava uma longa carta a um colecionador de orquídeas em Honduras, e depois foi ele quem implicou comigo ao se sentar, bem à vontade, lendo Viajando com Charley, de John Steinbeck. Que diabo, ele tinha um serviço a fazer. Se queria ler um livro, por que não ler Sua própria imagem, de Richard Valdon, que estava na estante? Talvez fosse algum tipo de insinuação, não sei.

      O telefonema de Hirsh foi às três e quarenta e três. Meu caderno de anotações estava à mão, caso fosse complicado, com palavras científicas grandes, mas foram só palavras comuns e não eram muitas. Desliguei e girei a cadeira, e Wolfe chegou a tirar os olhos do livro.

      — Tecido de crina — disse eu. — Sem tintura, verniz ou qualquer outra coisa, apenas crina tecida, sem nenhuma alteração.

      Deu um grunhido: — Há tempo para um anúncio nos jornais de amanhã? Times, News e Gazette.

      — Times e News, talvez, Gazette, sim.

      — Apanhe o caderno de anotações. Em duas colunas, mais ou menos dez centímetros. Em cima, negrito, corpo 30 ou maior: 100 dólares, em números. Mais abaixo, corpo 14, também negrito: Pagamos em dinheiro qualquer informação a respeito do fabricante, vírgula, ou então da origem, vírgula, de botões de crina brancos feitos à mão. Ponto. Botões de qualquer feitio ou tamanho para serem usados em roupas. Ponto. Não quero saber quem pode fazer esses botões, vírgula, mas quem realmente os fez. Ponto. Os 100 dólares serão pagos apenas à pessoa que fornecer a primeira informação. Embaixo, ponha meu nome, endereço e telefone.

      — Em negrito?

      — Não. Tamanho padrão, condensed.

      Ao virar-me para a máquina de escrever, daria uma dúzia de botões de poliéster para saber se ele planejara isso ao ditar as cartas ou enquanto lia Viajando com Charley.

     

É claro que as regras da velha casa de tijolos aparentes da Rua 35 Oeste são feitas por Wolfe, pois a casa é dele, mas quaisquer variações na rotina matinal geralmente partem de mim. Wolfe conserva seu horário pessoal: às oito e quinze da manhã toma café no quarto do segundo andar, numa bandeja que Fritz leva; às nove horas entra no elevador, vai para a estufa acima e às onze desce para o escritório. Meu horário depende do que está acontecendo e da hora em que fui deitar. Preciso dormir oito horas completas, e à noite ajusto o relógio na minha mesinha-de-cabeceira para despertar oito horas depois. Como naquela noite de quarta-feira fui ao teatro, depois ao Flamingo com uma amiga, e só voltei para casa depois de uma hora, regulei o despertador para as nove e meia.

      Mas quinta-feira de manhã não foi o radiorrelógio que me acordou. Quando aconteceu, fechei ainda mais os olhos tentando descobrir o que era. Não era o telefone, pois desligara minha extensão, e de qualquer maneira o barulho não era suficientemente alto. Era uma abelha, e que diabos estava uma abelha zunindo na Rua 35 no meio da noite? Ou talvez o sol já tivesse aparecido. Fiz força para abrir os olhos e olhei o relógio: faltavam seis minutos para as nove horas. E era o telefone interno, é claro. Deveria saber. Estiquei-me e apanhei-o.

      — Quarto de Archie Goodwin. Sr. Goodwin ao telefone.

      — Desculpe, Archie. — Era Fritz. — Mas ela insiste...

      — Quem?

      — Uma mulher no telefone. Alguma coisa a respeito de botões. Ela disse...

      — Está bem, eu atendo. — Girei o interruptor da extensão e apanhei o telefone: — Sim? Archie Goodwin fal...

      — Quero falar com Nero Wolfe e estou com pressa!

      — Ele não pode falar. Se é a respeito do anúncio...

      — É. Vi o anúncio no News. Conheço alguns botões desse tipo e quero ser a primeira...

      — E é. Seu nome, por favor?

      — Beatrice Epps. E-P-P-S. Sou a primeira?

      — Se estiver certa, é. Sra. Epps, ou senhorita?

      — Srta. Beatrice Epps. Não posso lhe dizer agora...

      — Onde está?

      — Estou numa cabine telefônica na Estação Grand Central. Estou a caminho do trabalho e tenho de estar lá às nove horas, por isso não posso lhe falar agora, mas queria ser a primeira.

      — Claro. Muito sensato de sua parte. Onde trabalha?

      — Na Quinn e Collins, no Edifício Chanin. Corretores de imóveis. Mas não vá lá, não gostariam disso. Telefonarei de novo na hora do almoço.

      — A que horas?

      — Meio-dia e meia.

      — Está bem, estarei na banca de jornais do Edifício Chanin meio-dia e meia e lhe pagarei o almoço. Levarei uma orquídea pequena na lapela, branca e verde, e terei 100...

      — Estou atrasada, preciso ir embora.

      A ligação foi interrompida. Caí nos travesseiros, vi que estava acordado demais para ficar mais meia hora na cama, virei-me e pus os pés no chão.

      Às dez horas estava na cozinha, à mesa, colocando açúcar mascavo num bolinho de grelha, feito com coalhada, e com o Times, numa armação na minha frente. Fritz, ao meu lado, perguntou:

      — Sem canela?

      — Não. — respondi com firmeza. — Descobri que canela é um afrodisíaco.

      — Então para você seria... como se diz? Chover em alguma coisa?

      — Chover no molhado. Não é bem isso, mas você está bem-intencionado e lhe agradeço.

      — Sempre estou bem-intencionado.

      Vendo que eu já estava na segunda mordida, foi para o fogão fazer mais bolinhos.

      — Vi o anúncio. Também vi na sua mesa o que você trouxe na valise. Ouvi dizer que o caso mais perigoso para um detetive é rapto.

      — Talvez sim e talvez não. Depende.

      — Em todos os anos em que trabalho para ele é o primeiro caso de rapto que aceita.

      Bebi um gole de café: — Lá vem você de novo, Fritz, dando voltas. Você podia perguntar: “é um caso de rapto?”, e eu diria que não. Porque não é. É claro que tirou essa idéia vendo as roupas de bebê. Mas cá entre nós, muito confidencialmente, as roupas de bebê pertencem a ele. Ainda não está decidido quando o bebê virá para aqui, e duvido que a mãe venha algum dia, mas ouvi dizer que ela é uma boa cozinheira, e se você for tirar umas férias prolongadas...

      Ele estava ao pé de mim com o bolinho e apanhei a geléia de tomate e limão. Se punha geléia não usava manteiga.

      Ele retrucou: — Você é um verdadeiro amigo, Archie.

      — Não existe melhor.

      — Vraiment. Estou contente que tenha me dito isso, para que eu possa comprar o que for necessário. É um menino?

      — Sim. E parece-se com ele.

      — Ótimo. Sabe o que vou fazer? — Voltou para o fogão e acenou com a mão, empunhando uma espátula. — Vou pôr canela em tudo!

      Não concordei e discutimos o assunto.

      Ao invés de esperar até Wolfe descer, para comunicar o que acontecera, subi os três andares até a estufa, depois de ter executado minha tarefa matinal no escritório: abrir a correspondência, tirar a poeira, esvaziar as cestas de papel, tirar as folhas dos calendários de mesa, colocar água fresca na jarra da mesa de Wolfe. Junho não é o melhor mês para mostrar uma coleção de orquídeas, em especial uma como a de Wolfe, com mais de 200 variedades. A primeira sala, a tropical, só tinha algumas pinceladas de cores; a seguinte, a intermediária, era mais colorida, mas não se comparava com o mês de março; a terceira, a fresca, tem mais flores, mas não são tão coloridas. Na última, na sala dos cacos de planta, Wolfe estava sentado num banco com Theodore Horstmann, inspecionando as protuberâncias de um pseudo-bulbo. Ao me aproximar, virou a cabeça e grunhiu: — Que é que há?

      Ele só deve ser interrompido lá em cima em caso de emergência.

      — Nada de urgente — respondi. — Estou só lhe avisando que vou apanhar uma Cypripedium lawrenceanum hyeanum, para usar. Uma mulher me telefonou a respeito de botões e quando eu a encontrar ao meio-dia e meia, a flor servirá para identificação.

      — A que horas vai sair?

      — Um pouco antes do meio-dia. Na ida, vou parar no banco para depositar um cheque.

      — Muito bem.

      Continuou a sua inspeção. Estava ocupado demais para perguntas. Apanhei a flor e desci. Ao descer, às onze horas, pediu-me que fizesse um relatório textual, que eu forneci, e só fez uma pergunta:

      — E ela, que tal?

      Respondi que sabia tanto quanto ele que havia uma chance em dez de ela saber alguma coisa, e quando disse que era melhor sair antes, passar por Hirsh, apanhar o macacão para tê-lo comigo, ele concordou.

      Por isso, estava com uma sacola de papel, quando cheguei à banca de jornal na entrada do Edifício Chanin, um pouco antes da hora. Pelo catálogo telefônico, vira que Quinn e Collins ficavam no nono andar. Este tipo de espera é diferente, tendo que vigiar todos os tipos de rostos, indo e vindo, homem e mulher, velho e novo, firme e enrugado. Cerca de metade deles parecia que precisava de um médico, um advogado ou um detetive, inclusive a que parou na minha frente com a cabeça virada para trás. Quando perguntei. Srta. Epps? — ela concordou.

      — Sou Archie Goodwin. Vamos descer? Reservei uma mesa.

      Abanou a cabeça: — Sempre almoço sozinha.

      Quero ser justo, mas também acho justo dizer que ela provavelmente tinha pouquíssimos convites para o almoço, se é que tinha algum. Seu nariz era chato e tinha o dobro do queixo de que precisava. Sua idade poderia estar entre 30 e 50 anos.

      — Podemos conversar aqui mesmo — disse ela.

      — Pelo menos podemos começar aqui — retruquei. — O que sabe sobre botões brancos de crina?

      — Sei que já vi alguns. Mas antes de lhe contar... como saberei que me pagará?

      — Não sabe. — Segurei seu cotovelo e nos afastamos do tráfego. — Mas eu sei. — Tirei um cartão do bolso e lhe dei. — Naturalmente, terei de verificar o que me disser, e terá que ser algo prático. Você pode me dizer que conhecia um homem em Cingapura que fazia botões de crina, mas que está morto.

      — Nunca estive em Cingapura. Não é nada disso.

      — Ótimo. Como é então?

      — Vi-os aqui mesmo. Neste prédio.

      — Quando?

      — No verão passado — hesitou e continuou —, durante um mês, uma moça no escritório estava substituindo outra nas férias, e um dia vi os botões de sua blusa. Disse-lhe que nunca vira botões assim e ela respondeu que poucas pessoas tinham visto. Perguntei-lhe onde podia conseguir alguns e respondeu que em lugar nenhum. Disse que sua tia os fazia de crina, e levava um dia inteiro para fazer um botão, por isso não os fazia para vender, só como hobby.

      — Os botões eram brancos?

      — Sim.

      — Quantos havia na sua blusa?

      — Não me lembro. Acho que cinco.

      No Laboratório Hirsh, decidindo que seria melhor não mostrar o macacão, eu retirara um dos botões, um dos três ainda intactos. Tirei-o do bolso e mostrei-o.

      — Parecido com este?

      Ela olhou com atenção: — Exatamente como esse, se me lembro, mas é claro que foi há um ano atrás. O tamanho também era o mesmo.

      Peguei o botão de volta.

      — Parece que isso vai ajudar. Srta. Epps. Qual o nome da moça?

      — Creio que tenho de lhe contar — hesitou.

      — É claro que tem.

      — Não quero criar problemas para ninguém. Nero Wolfe é um detetive e o senhor também.

      — Não quero criar problema para ninguém, a não ser que eles próprios é que o tenham criado. De qualquer modo, seria facílimo encontrá-la, depois do que já me contou. Qual o nome dela?

      — Tenzer. Anne Tenzer.

      — Qual o nome de sua tia?

      — Não sei. Ela não disse, nem eu perguntei.

      — Viu-a alguma vez desde o verão passado?

      — Não.

      — Sabe se Quinn e Collins arranjaram seus serviços através de uma agência?

      — Sim, foi isso. Serviço de Emprego de Emergência.

      — Quantos anos ela tem?

      — Oh, menos de 30.

      — É casada?

      — Não. Pelo menos que eu saiba, não.

      — Qual sua aparência?

      — É mais ou menos do meu tamanho. É loura, ou pelo menos era, no verão passado. Ela se acha atraente, e creio que é. Suponho que o senhor também acharia.

      — Vou ver quando encontrá-la. É claro que não direi o seu nome.

      Tirei minha carteira de dinheiro: — As instruções que recebi do Sr. Wolfe foi só lhe pagar depois que verificasse suas informações, mas ele não a viu e nem ouviu a sua história, e eu ouvi. — Apanhei duas notas de 20 e uma de dez. — Aqui está metade, contanto que não diga nada disso a ninguém. A impressão que me dá é que pode ficar de boca fechada.

      — E posso.

      — Não diga nada a ninguém. Certo?

      — Não direi. — Colocou as notas na bolsa. — Quando receberei o resto?

      — Dentro em breve. Pode ser que a veja de novo, mas, se não for necessário, mandarei o dinheiro pelo correio. Pode me dar o endereço e o telefone da sua casa?

      Ela me deu o endereço Rua 169 Oeste. Ia falar mais alguma coisa, decidiu não falar e virou-se para ir embora. Acompanhei-a com os olhos até sair. Suas pernas não tinham agilidade. A relação entre um rosto de mulher e o modo como caminha tomaria todo um capítulo num livro que nunca escreverei.

      Como tinha mesa reservada no restaurante embaixo, desci e pedi um ensopado de mariscos, que Fritz nunca faz, e que foi só o que desejei comer depois de um café tardio. Parei no caminho para ver o endereço do Serviço de Emprego de Emergência: Avenida Lexington, 493. Mas o modo de lidar com ele tinha que ser pensado, pois: (1) agências são desconfiadas quando se trata de endereços do seu pessoal; (2) se Anne Tenzer era a mãe do bebê, teríamos de lidar com ela com cuidado. Preferi não telefonar para Wolfe. Tínhamos combinado que, quando eu estivesse desempenhando uma tarefa, usaria a inteligência guiada pela experiência (era o modo como ele dizia), significando minha inteligência, não a dele.

      O resultado foi que, depois das duas horas, fiquei sentado na ante-sala da Cia. de Botões Exclusivos — Novidades esperando um telefonema, ou melhor, na esperança que houvesse uma ligação. Fizera um acordo com o Sr. Nicholas Losseff, o maníaco de botões, enquanto ele estava sentado à sua mesa comendo salame, pão preto, queijo e picles. Ele ganhara o botão que retirei do macacão e uma promessa de contar-lhe tudo, quando as circunstâncias o permitissem. Eu conseguira permissão de dar um telefonema e esperar ali até receber a ligação de volta, não importa quanto tempo levasse, e usar seu escritório para uma entrevista, se fosse necessário. O telefonema fora para o Serviço de Emprego de Emergência. Como disse antes, sabia que talvez tivesse muito tempo livre, parara no caminho para comprar quatro revistas e dois livros de bolso, sendo um deles Sua própria imagem, de Richard Valdon.

      Nunca cheguei a ler Sua própria imagem, mas as revistas foram bem lidas e já estava na metade do outro livro de bolso, uma série de histórias sobre a Guerra Civil, quando o chamado chegou às cinco horas e quinze minutos. A moça à mesa, que na quarta-feira passada soubera o que eu queria antes que lhe dissesse, saiu de sua cadeira para que me sentasse, mas preferi ficar de pé.

      — Goodwin falando.

      — Aqui é Anne Tenzer. Recebi um recado para chamar a Cia. de Botões Exclusivos — Novidades e falar com o Sr. Goodwin.

      — Certo. Sou Goodwin. — Sua voz era bem feminina, por isso deixei a minha bem masculina. — Gostaria muito de vê-la, para conseguir alguma informação, se possível. Creio que a senhorita talvez saiba alguma coisa sobre botões.

      — Eu? Não sei nada sobre botões.

      — Sobre esse tipo determinado de botão creio que saberia. É de crina branca feito à mão.

      — Oh! — Houve uma pausa. — Ora, como... quer dizer, o senhor tem um?

      — Sim. Posso perguntar onde se encontra?

      — Estou numa cabine telefônica na esquina da Madison com a Rua 49.

      Presumi, pela sua voz, que minha voz estava dando resultado.

      — Então não posso esperar que venha ao meu escritório, na Rua 39 e do outro lado da cidade. Que tal o saguão do Churchill? A senhorita está perto dele. Posso chegar lá em vinte minutos. Podemos tomar um drinque e discutir botões.

      — Quer dizer que o senhor vai falar sobre botões.

      — Está bem. Sou bom nisso. Conhece a Alcova Azul, no Hotel Churchill?

      — Sim.

      — Estarei lá em vinte minutos, sem chapéu, com um saco de papel na mão e uma orquídea branca e verde na lapela.

      — Uma orquídea! Não! Homens não usam orquídeas.

      — Eu uso e sou homem. A senhorita se importa?

      — Só saberei disso depois de vê-lo.

      — É assim que se fala. Está bem, estou de saída.

     

Numa mesa encostada à parede no Bar do Almirantado no Churchill não há muita luz, mas no saguão havia. Beatrice Epps estava certa, quando disse que Anne Tenzer era do seu tamanho, mas a semelhança parava aí. Era fácil de imaginar que a Srta. Tenzer tivesse despertado em algum homem, talvez em Richard Valdon, o tipo de reação que é um fator importante na propagação da espécie; na verdade, em mais de um homem. Ainda era loura, mas não exagerava; nem precisava. Tomava um bloody mary como se tanto fizesse tomá-lo ou não.

      Tínhamos decidido o assunto do botão em dez minutos. Expliquei que a Cia. de Botões Exclusivos — Novidades especializava-se em botões raros e famosos, e que alguém, num dos lugares onde trabalhara, me dissera que vira os botões em sua blusa, perguntara sobre eles e a resposta fora que haviam sido feitos à mão, de crina branca. Respondeu que era isso mesmo, durante anos sua tia os fizera como distração e lhe dera seis como presente de aniversário. Ainda os tinha, cinco numa blusa e um guardado em algum lugar. Não me lembrou de que, ao telefone, eu dissera que tinha um. Perguntei se achava que sua tia teria vários deles para vender. Respondeu-me que não sabia, mas achava que ela não teria muitos, pois levava um dia inteiro para fazer um. Perguntei se não se importaria caso eu fosse ver a sua tia para lhe falar, ela disse “claro que não” e me deu o nome e endereço: Srta. Ellen Tenzer, Estrada Rural 2, Mahopac, Nova Iorque. Deu-me também o telefone.

      Já tendo descoberto onde encontrar a tia, a fornecedora dos botões, decidi tentar um atalho perigoso com a sobrinha. Claro que era arriscado, mas talvez simplificasse bastante as coisas. Dei um sorriso bem masculino e disse:

      — Não lhe contei tudo, Srta. Tenzer. Ouvi falar dos botões, já vi alguns deles, estão aqui comigo.

      Coloquei o saco de papel na mesa e retirei o macacão.

      — Havia quatro, mas tirei dois para inspecioná-los. Está vendo?

      A sua reação serviu para confirmar tudo. Não provava que nunca tivera um bebê, ou de que não deixara um no vestíbulo da casa de Lucy Valdon, mas provava que, mesmo que ela própria o tivesse deixado lá, não sabia que o bebê estava usando macacão de veludo cotelê azul com botões brancos de crina, coisa muito pouco provável.

      Apanhou o macacão, olhou os botões e deu-me de volta:

      — São mesmo feitos por tia Ellen. Ou são uma imitação muito boa. Não me diga que alguém lhe contou que estava usando isso em algum lugar onde trabalhei. Não cabe em mim.

      — Isso é óbvio — concordei. — Só lhe mostrei porque a senhorita foi muito prestativa e pensei que pudessem diverti-la. Se estiver curiosa, dir-lhe-ei onde o consegui.

      Ela abanou a cabeça: — Não se preocupe. Esse é um dos meus muitos defeitos. Nunca sou curiosa a respeito do que não tem importância. Quero dizer, é sem importância para mim. Talvez o senhor também seja curioso só a respeito de botões. Já não chega de falar em botões?

      — Acho que sim. — Coloquei o macacão outra vez no saco. — Sou como a senhorita, curioso apenas sobre as coisas que me interessam. Agora estou curioso a seu respeito. Que tipo de trabalho de escritório faz?

      — Oh, sou muito especial. Secretária de alto nível. Quando uma secretária particular se casa, sai de férias ou é despedida pela mulher do chefe e não há ninguém por perto para substituí-la, lá vou eu. O senhor tem uma secretária?

      — É claro. Tem 80 anos, nunca tira férias, recusa todas as propostas de casamento e não tenho esposa para despedi-la. Tem um marido?

      — Não. Tive durante um ano, e foi demais. Não olhei antes de pular e nunca mais pularei.

      — Talvez esteja numa rotina, servindo de secretária para homens importantes em escritórios. Talvez deva variar um pouco, cientistas ou presidentes de faculdades ou autores. Talvez fosse interessante trabalhar para um escritor famoso. Nunca pensou em tentar?

      — Não, nunca. Suponho que tenham secretárias.

      — É claro que sim.

      — Conhece algum?

      — Conheço um homem que escreveu um livro sobre botões, mas não é muito famoso. Vamos tomar outro drinque?

      Estava disposta. Eu não estava, mas não disse nada. Como não esperava obter mais nada dela naquele momento, queria ir-me embora, mas talvez fosse útil no futuro, e de qualquer modo lhe dera a entender que me impressionara, portanto, não podia de repente me lembrar que estava atrasado para outro compromisso. Tomaria pelo menos mais um: ela era agradável de se olhar e boa de conversa, e se sua inteligência deve se guiar por experiência, é preciso se ter experiência. Tudo indicava que, se a convidasse para jantar, aceitaria, mas aí teria de passar a noite toda e iria custar a Lucy Valdon uns 20 dólares.

      Cheguei em casa um pouco depois das sete da noite e verifiquei que devia uma desculpa a Wolfe. Lia Sua própria imagem. Terminou o parágrafo e, como estava perto da hora do jantar, colocou o marcador de páginas e pôs o livro na mesa. Nunca dobra o canto da página de um livro que mereça lugar na estante. Já o vi muitas vezes começar usando o marcador de páginas e no meio começar a dobrar a ponta da página.

      A pergunta estava escrita no seu rosto e respondi. Só gosta de um relatório textual quando nada mais é suficiente, portanto apenas dei-lhe os fatos, incluindo, é claro, a reação de Anne Tenzer ao macacão. Quando terminei, observou:

      — Satisfatório. — Decidiu então que era pouco e acrescentou: — Muito satisfatório.

      — Sim, senhor — concordei. — Um aumento seria ótimo.

      — Sem dúvida. É claro que pensou na possibilidade de ela ter visto o anúncio, sabia que estava fingindo e resolveu enganá-lo.

      Concordei. — Aposto o que quiser como ela não viu o anúncio. Não tentou jogar verde e não é burra.

      — Onde fica Mahopac?

      — Condado de Putnam, 160 quilômetros ao norte. Posso comer alguma coisa na cozinha e estar lá às nove horas.

      — Não, de manhã serve. Você é impetuoso. — Olhou o relógio de parede. A qualquer momento Fritz entraria para anunciar o jantar. — Pode entrar em contato com Saul agora?

      — Por quê? — perguntei. — Não disse que me demitiria se não conseguisse um aumento. Disse apenas que um aumento ajudaria.

      Ele deu um grunhido: — Eu disse que sem dúvida. Você vai a Mahopac de manhã. Enquanto isso, Saul vai descobrir o que a Srta. Tenzer, a sobrinha, fazia em janeiro. Podia ter tido um filho? Você acha que não, mas é bom ter certeza. Saul pode fazer isso sem... — Virou a cabeça. Fritz estava na porta.

      Já que falamos em Saul, é bom que o apresente. Dos três operadores free-lancer que chamamos, quando precisamos de ajuda, Saul Panzer é o melhor. Mesmo se incluirmos todos os da área metropolitana, ele será o melhor. É por isso que, embora cobre 10 dólares por hora, recusa cinco vezes o número de trabalhos que aceita. Se e quando precisar de um detetive, e só serve o segundo da lista, veja se o consegue. O melhor de todos é Nero Wolfe, mas esse é cerca de 10 dólares por minuto.

      Assim, sexta-feira pela manhã, uma bonita e clara manhã mesmo para princípios de junho, enquanto seguia despreocupado pela Estrada Sawmill River dirigindo o sedan Heron que pertence a Wolfe, mas é usado por mim, Saul verificava a história de Anne Tenzer. Caso fosse necessário, descobriria onde e quando almoçou no dia 17 de janeiro, quer alguém se lembrasse quer não, sem que ninguém ficasse curioso e sem levantar pistas. Isso parece impossível, e é, mas sem dúvida ele é um sétimo filho ou coisa assim.

      Às dez e trinta e cinco entrei num posto de gasolina perto de Mahopac, parei o carro, saltei, fui até perto de um cara que limpava o pára-brisa de um freguês e perguntei se sabia onde a Srta. Ellen Tenzer morava. Disse que não sabia, mas talvez o patrão soubesse. Foi lá dentro e encontrou o chefe, que tinha cerca de metade da idade de seu ajudante. Sabia exatamente onde Ellen Tenzer morava e deu-me as explicações para chegar lá. Pelo seu modo e tom de voz, era óbvio que não havia quase nada que não soubesse, com toda a probabilidade poderia ter respondido a perguntas sobre ela, mas não fiz nenhuma. Limitar as perguntas ao que na realidade é necessário é um bom hábito.

      Outro capítulo do livro que nunca escreverei seria sobre como chegar a um lugar. Era fácil acertar ao virar à direita na igreja, mas cerca de um quilômetro e meio depois havia uma bifurcação que não mencionara. Parei o carro, tirei uma moeda, olhei-a, era coroa, e virei à esquerda. Desse modo não se fica responsável por um palpite errado. A moeda acertou, porque depois de mais outro quilômetro e meio cheguei à ponte que mencionara e, mais adiante, ao beco sem saída, onde virei à direita. Pouco depois acabou o asfalto e estava na terra, aos pulos, com bosques de ambos os lados, e uns quinhentos metros depois vi sua caixa de correio, à esquerda. Virei e entrei num caminho apertado, cheio de raízes; fui devagar para não bater nas árvores, e cheguei ao lugar de origem dos botões brancos de crina. Quando saltei, deixei o saco de papel com o macacão no porta-luvas do carro. Podia ser que eu quisesse o macacão, podia ser que não.

      Olhei em volta. Árvores por todos os lados. Para meu gosto, havia árvores demais, e muito próximas de casa. A clareira tinha apenas trinta metros de comprimento por quarenta de largura, e onde se manobrava o carro mal se podia fazer uma curva. A porta da garagem, onde só cabia um carro, estava aberta e lá estava um sedã Rambler. A garagem era ligada à casa, de um só andar, com tábuas colocadas verticalmente, pintada de branco. A pintura parecia ser nova, e tudo estava limpo e arrumado, incluindo os canteiros de flores. Dirigi-me à porta, que se abriu antes de chegar lá.

      A desvantagem de não usar chapéu é que não se pode tirá-lo quando se encontra uma senhora miúda, de meia-idade, talvez mais idosa do que de meia-idade, com cabelo grisalho em coque, e os olhos cinzentos claros e vivos. Quando perguntei: — Srta. Ellen Tenzer? — ela concordou e disse: — Esse é o meu nome.

      — O meu nome é Goodwin. Creio que deveria ter telefonado, mas gosto de ter uma desculpa para dirigir no campo num dia bonito como este. Estou no negócio de botões, e creio que, de certo modo, a senhora também está... bem, não no negócio. Estou interessado nos botões de crina que a senhora faz. Posso entrar?

      — Por que está interessado?

      Isso me pareceu um pouco estranho. Teria sido natural perguntar: como sabe que faço botões de crina? Ou: quem lhe disse que faço botões de crina?

      — Bem — disse eu —, acho que gostaria mais de mim se fingisse que gosto de arte apenas pela arte, mas, como disse, estou no negócio de botões e me especializo em botões que são diferentes. Pensei que estaria disposta a me vender alguns. Pagaria um bom dinheiro, à vista.

      Olhou o Heron e de novo para mim:

      — Só tenho poucos. Só 17.

      Ainda não mostrava curiosidade a respeito de onde ouvira falar neles. Talvez, como a sobrinha, só fosse curiosa a respeito das coisas que lhe interessassem.

      — Para começar, já chegava — disse eu. — Seria muito incômodo se lhe pedisse um pouco de água?

      — Ora... não.

      Assim que se afastou e desocupou a porta, entrei e, quando ela passou por outra porta à esquerda, adiantei-me e olhei em volta. Meus olhos são bastante perspicazes e suficientemente bons para reconhecer a uma distância de seis metros um objeto que vira antes... ou melhor, um igual. Estava numa mesa entre duas janelas na parede oposta, e mudava toda a situação pelo menos no que dizia respeito a Ellen Tenzer. Até então, eu acreditava na possibilidade, bem provável, de que os botões do macacão tivessem sido dados a alguém, talvez há muitos anos, mas agora já não pensava assim. Isso tornou-se uma hipótese remota, diante do que vira.

      Como não queria que soubesse que eu descobrira, tomei a direção da porta por onde passara e fui até a cozinha. Na pia, com a torneira aberta, encheu um copo e me ofereceu. Apanhei-o e bebi a água.

      — Boa água. Um poço fundo? — disse-lhe.

      Não respondeu. Talvez não tivesse ouvido a pergunta, já que estava com uma na cabeça, e que agora formulou:

      — Como descobriu que faço botões?

      As palavras foram mal colocadas e ditas tarde demais. Se tivesse feito a pergunta mais cedo, e eu não tivesse visto o objeto na mesa, teria de responder como imaginara inicialmente. Esvaziei o copo, coloquei-o na pia e respondi:

      — Muito obrigado. Água ótima. Como descobri é muito complicado e não tem importância, tem? Posso ver alguns deles?

      — Como lhe disse, só tenho 17.

      — Sei, mas se não se importa...

      — Como é mesmo seu nome?

      — Goodwin. Archie Goodwin.

      — Está bem, já bebeu sua água, agora pode ir embora.

      — Mas, Srta. Tenzer, viajei 96 quilômetros só para...

      — Não me interessa se viajou mil quilômetros. Não vou lhe mostrar nenhum botão e não vou falar sobre eles.

      Isso me convinha, mas não disse nada. Para mim, seria bem mais interessante que algum dia, num futuro próximo, os fatos fizessem ela falar à vontade sobre botões, mas seria um erro tentar acuá-la para descobrir mais coisas. Para manter as aparências, ainda insisti um pouco, mas não me ouviu. Agradeci pela água e saí. Ao manobrar o sedã Heron e sair, ia pensando que, se tivesse o equipamento no carro, e se estivesse escuro, iria vigiar seu telefone, isto é: se estivesse disposto a me arriscar a ir para a cadeia.

      Precisava de um telefone, urgente. Vira um, uma cabine externa, depois de um posto de gasolina, ao virar à direita, após a igreja. Cinco minutos depois de deixar Ellen Tenzer, eu estava ao telefone dando à telefonista um número que eu já sabia de cor. Já passava das onze horas, portanto Wolfe provavelmente atenderia.

      E foi ele mesmo: — Sim? — nunca soube atender um telefone e nunca saberá.

      — Sou eu. Estou numa cabina em Mahopac. Saul já telefonou?

      — Não.

      — Então vai telefonar ao meio-dia. Sugiro que o mande aqui. A sobrinha pode esperar. A tia sabe quem pôs o macacão no bebê.

      — É mesmo? Ela lhe contou?

      — Não. Há três pormenores: primeiro, não fez a pergunta certa; segundo, ficou nervosa e me mandou sair; terceiro, o Times de ontem estava lá numa mesa. Mas não sabe que eu o vi. Estava dobrado, com uma fruteira em cima, mas na cabeça da página à mostra estava uma manchete com as palavras: “JENSEN SE RECUSA”. O nosso anúncio estava naquela página. Então ela viu o anúncio, mas quando cheguei e disse que estava interessado nos botões de crina que ela fazia, não falou nele. Quando chegou a fazer a pergunta que deveria ter feito, usou as palavras erradas. Perguntou como descobri que fazia botões. Era a mesma coisa que perguntar como Nero Wolfe conseguira resposta tão rápida ao seu anúncio. Aí viu que não estava agindo direito e me pôs para fora. Eu aposto 20 contra um que não é a mãe. Se não tiver 60 anos, está perto disso. Mas aposto 40 contra um que sabe o que o bebê estava usando, é o mínimo que sabe. Estou sendo impetuoso?

      — Não. Quer que Saul tome conta dela?

      — Não, não quero. Se ele pode manejá-la, também posso. Acho que, antes de sabermos mais coisas a seu respeito, ninguém pode fazer nada. Talvez agora mesmo esteja telefonando para alguém, mas não podemos impedi-la. Vou voltar e ficar vigiando. Podemos vigiá-la o tempo todo, se você mandar Fred e Orrie. Vai mandar Saul?

      — Sim.

      — Ele vai precisar de instruções sobre como chegar aqui e você precisa de um lápis.

      — Já tenho um.

      — Está bem. — Dei-lhe as instruções, sem me esquecer da bifurcação na estrada. — A partir da estrada de terra, cerca de 400 metros, há um lugar largo onde pode estacionar e ficar esperando no carro. Se eu não aparecer dentro de uma hora é porque não estou por perto, é porque ela saiu e eu a segui, mas nesse caso Saul deve procurar um telefone para lhe perguntar se deixei algum recado. Primeiro, poderia ir até à casa de Ellen Tenzer dar uma olhada. Talvez eu esteja com a cabeça para dentro de uma janela procurando escutar o que ela conversa com alguma visita. Tem alguma sugestão?

      — Não. Vou chamar Fred e Orrie. Quando é que vai comer?

      Respondi-lhe que talvez no dia seguinte. Ao entrar de volta no Heron, decidi que, ao correr do dia, talvez não achasse tanta graça em ficar sem comer, então fui para a Rua Principal, achei um mercado onde comprei tabletes de chocolate, bananas e uma caixa de leite. Deveria ter dito a Wolfe que arranjaria comida. Não suporta a idéia de alguém pular uma refeição.

      Na volta, vim pensando onde deixaria o carro. Não muito longe da caixa do correio havia lugares onde podia escondê-lo entre as árvores, mas se ela saísse teria de pô-lo na estrada depressa, pois talvez ela tomasse a direção oposta e eu não sabia qual a direção da estrada de terra depois da colina. Decidi que colocar o carro bem dentro do bosque, até que ficasse escondido, estava fora de cogitação, portanto seria melhor colocá-lo num lugar bem à mão. De qualquer modo, ela já conhecia o meu carro, e quando eu a seguisse, caso eu a seguisse em plena luz do dia, saberia que era eu. Minha única esperança era que não saísse até que Saul viesse com um veículo que ela ainda não tivesse visto. Deixei o Heron em lugar aberto, a menos de 100 metros da caixa do correio, onde entre as árvores havia espaço suficiente, e entrei no bosque. Não sou índio nem escoteiro, mas, se ela estivesse espiando de uma janela, não teria me visto quando me esgueirei até um lugar de onde poderia ver a garagem e a casa por detrás de uma moita.

      A garagem estava vazia.

      A situação exigia uns palavrões e xinguei em voz alta. Não peço desculpas nem pelos palavrões nem pela situação. Nas mesmas circunstâncias, teria feito a mesma coisa outra vez. Se fôssemos manter Ellen Tenzer vigiada, mais cedo ou mais tarde teria de me afastar para dar um telefonema e, se eu o fizesse exatamente no momento em que ela avaliava a situação enquanto decidia o que fazer, não seria apenas uma boa ocasião, mas a melhor — até que a garagem vazia mostrou-me que fora a pior opção.

      Está bem, estava sem sorte. Esquivei-me entre as árvores até a clareira, atravessei-a, fui até à porta e bati. Talvez houvesse mais alguém em casa, embora, quando estivera lá, não tivesse visto ninguém. Esperei meio minuto e bati de novo, com mais força.

      — Há alguém aqui? — gritei.

      Após meio minuto experimentei a maçaneta. A porta estava trancada. À direita, havia duas janelas e fui experimentá-las: também trancadas. Dei a volta, tomando cuidado para não pisar nos canteiros de flores, o que, nessas circunstâncias, mostrava muita educação, e encontrei uma janela toda aberta. Ela saíra às pressas. Nem precisei tocar na janela. Tudo que precisei fazer foi pôr uma perna dentro, colocar meus quadris no peitoril e pôr a outra perna dentro de casa, e o arrombamento estava feito.

      Estava num quarto. Gritei, bem alto: — Ei, a casa está pegando fogo! — e esperei. Nem um ruído, mas para me certificar examinei-a rapidamente: dois quartos, banheiro, sala e cozinha. Ninguém, nem mesmo um gato.

      Talvez tivesse ido apenas à farmácia comprar uma aspirina e voltasse a qualquer momento. Se assim fosse, decidi, deixaria que me encontrasse dentro de casa. Eu a enfrentaria. Era quase certo que fosse cúmplice de alguma coisa. Não conheço de cor todos os estatutos de Nova Iorque, mas deve haver uma lei sobre deixar bebês nos vestíbulos das pessoas, portanto, não iria ficar prestando atenção ao barulho de um carro subindo a colina.

      Comecei pela sala porque havia maior probabilidade de se encontrar cartas, números de telefone ou talvez um diário. O Times ainda estava na mesa, sob uma fruteira. Desdobrei-o para ver se recortara o anúncio, mas estava intacto. Não tinha escrivaninha, mas na mesa havia uma gaveta e, na mesinha do telefone, a um canto, três gavetas. Numa delas, encontrei um cartão com cerca de meia dúzia de números de telefone, mas eram todos locais. Numa das paredes, algumas prateleiras com livros, outras com revistas e enfeites. Leva muito tempo examinar livros, por isso deixei para depois e fui para o quarto, que obviamente era o dela.

      Foi lá que descobri, na gaveta de baixo de uma cômoda. Uma busca rápida não é muito perfeita, e quase não o notei; mas no fundo, debaixo de uma pesada camisola de inverno, lá estava — ou antes, lá estavam. Não era um só, eram dois macacões de veludo cotelê azul, cada qual com quatro botões brancos de crina. Do mesmo tamanho daquele que estava no porta-luvas do Heron. Nunca pensaria, uma semana atrás, que teria tanto prazer em ver roupa de criança. Depois de um minuto inteiro de satisfação, coloquei-os de volta na gaveta e fui abrir a porta do armário. Queria mais coisas.

      Consegui, afinal, mais alguma coisa, mas não no armário. Nem mesmo na casa, para falar em termos exatos mas no porão. Era um porão de verdade, não apenas um’ buraco para um aquecedor a óleo. O lugar do aquecedor estava cercado, separadamente, e o resto era o que um porão deveria ser: armários e prateleiras com comida enlatada. Tinha até uma estante com garrafas de vinho. Num canto, encostado à parede, havia pedaços de metal, que não era necessário armar para saber que eram um berço de bebê. Havia também três maletas e duas malas grandes e em uma delas encontrei: fraldas; calça impermeável; babadores; chocalhos; balões (vazios); camisetas; camisas de malha; suéteres; outras peças de roupa e vários objetos.

      Tendo satisfeito por completo minha vontade de ver roupas de bebê e como Ellen Tenzer não tinha voltado, recomecei a procurar na sala. Em algum lugar deveria existir alguma coisa que me desse uma indicação de quem era o bebê e de onde tinha vindo. Mas não havia. Só comentarei a meia hora seguinte para dizer que sei procurar alguma coisa escondida e foi o que fiz naquela casa. Quando se quer deixar as coisas como estavam, demora mais; mas procurei em todos os lugares. Ao terminar, tudo o que consegui foram uns nomes e endereços, provenientes de cartas e envelopes numa gaveta no quarto, e alguns números de telefone, e nenhum deles parecia promissor.

      Estava com fome, mas como estava ali sem ser convidado, teria sido vulgar comer de sua comida. Além disso, faltavam vinte minutos para as três horas e Saul provavelmente já devia ter chegado há algum tempo, por isso saí pela janela por onde entrara, fui pela entrada de automóvel até a estrada e virei à direita. Ao fazer a curva, vi o carro de Saul, fora da estrada, no ponto mais largo. Ao me ver, deixou-se cair no assento e, quando cheguei, já estava roncando. Já não é bonito, tem nariz grande, queixo quadrado e testa grande inclinada e, dormindo de boca aberta, estava horrível. Pus a mão pela janela e torci-lhe o nariz e, num milionésimo de segundo, estava torcendo meu pulso. Está vendo? Sabia o que eu iria fazer com o seu nariz antes mesmo que eu fizesse.

      — Chega — disse eu.

      — Que dia é hoje? — perguntou, soltando meu pulso e sentando-se.

      — Hoje é dia de Natal. Há quanto tempo está aqui?

      — Há uma hora e vinte minutos.

      — Então deveria ter ido embora há vinte minutos. Siga as instruções.

      — Sou um detetive. Vi o Heron. Gostaria de comer um sanduíche, bolo de passas e leite? Já tomei o meu.

      — Se gostaria? — apanhei e abri uma caixa que estava no assento de trás. Dois sanduíches de pão de centeio com corned beef. Ao desembrulhar um, falei: — Ela partiu enquanto fui telefonar para pedir que você viesse. Já se foi há mais de três horas. — Dei uma mordida.

      — A vida é assim mesmo. Há mais alguém lá?

      — Não.

      — Encontrou alguma coisa?

      Não perguntou se eu entrei na casa, já era de se prever. Engoli e apanhei a caixa de leite:

      — Se qualquer uma de suas amigas tiver filhos gêmeos, numa mala grande no porão há coisas suficientes para ambos. E numa gaveta lá em cima há dois macacões azuis com botões brancos de crina. É claro que não estão na mala por causa dos botões. No porão também está o berço onde o bebê dormia.

      Na quinta-feira à noite, quando lhe explicara a situação, contara-lhe tudo. Quase sempre fazemos isso, no caso dele. Durante uns 30 segundos considerou as implicações do que eu dissera:

      — Poderia haver uma explicação para as roupas, mas o berço resolve a questão.

      — Sim — respondi, com a boca cheia.

      — Então o bebê esteve aqui e ela sabe a resposta. Talvez não saiba quem é a mãe, mas sabe o bastante. Ela é uma pessoa irredutível?

      — É do tipo que talvez o surpreenda. Eu acho que ela iria trancar a boca. Se chegasse e me encontrasse lá, iria enfrentá-la, mas agora não sei. Seu palpite vale tanto quanto o meu. Talvez a melhor coisa fosse vigiá-la durante uns dois dias.

      — Então, não deveríamos estar aqui sentados. Ela já conhece o seu carro, não conhece?

      Concordei, enquanto bebia um gole de leite. Pus o leite e o resto do sanduíche na caixa:

      — Está bem, vou terminar este lanche, que está me salvando a vida, no Heron. Esconda seu carro no bosque e venha para o meu. Se ela vier antes de eu sair, esconda-se. Irei para casa fazer meu relatório. Se Wolfe achar que deve ser vigiada, Fred ou Orrie estarão aqui às nove horas da manhã. Você decide como deseja que faça o contato e me diz. Se ele decidir que quer trazê-la para ele mesmo interrogá-la, virei, em vez de Fred ou Orrie, e talvez precise de sua ajuda.

      Saltei do carro, com a caixa. Saul perguntou:

      — E se ela voltar antes de me encontrar com você?

      — Fique no carro que o encontrarei. Fui caminhando pela estrada.

     

Saul Panzer, Fred Durkin e Orrie Cather, em turnos, tinham mantido a casa de Ellen Tenzer, ou o caminho que levava a ela, sob vigilância durante vinte horas. Saul, das três horas da tarde até as nove da noite, na sexta-feira; Fred, das nove da noite de sexta-feira até as seis da manhã de sábado; Orrie, de seis da manhã até as onze, no sábado. E não apareceu ninguém.

      No sábado pela manhã, às onze horas, quando Wolfe desceu para o escritório, bastou olhar para o meu rosto para ter a resposta, antes que fizesse a pergunta. Não havia novidades. Na mão trazia, como sempre, a orquídea que escolhera para ter a honra de passar um dia em seu escritório. Colocou-a em um vaso na escrivaninha, ajustou seu corpo volumoso na cadeira e deu uma olhada na correspondência matinal, que eu abrira. Ao ver que não continha nada interessante, ou útil, empurrou-a para um lado e encarou-me de cara amarrada.

      — Que diabos! — grunhiu — aquela mulher deu no pé. Não foi?

      Apanhei uma moeda no bolso, virei-a sobre minha mesa e olhei para ela: — Cara — disse. — Não, não foi.

      — Ora, eu quero uma opinião.

      — Não, não quer. Só um idiota completo tem uma opinião quando não tem nada para substanciá-la, e você sabe disso. Você só está me lembrando que, se eu tivesse ficado lá em vez de lhe telefonar, estaria na pista dela.

      — Não era isso o que pensei.

      — É o que penso. Foi azar, já sei, mas a sorte derrota o melhor cérebro. O fato de ter entrado na casa e encontrado as coisas não conserta nada. Teríamos apenas que fazer perguntas para saber que hospedou um bebê dentro de casa. Detesto azar. Saul telefonou.

      — Quando?

      — Há meia hora. A sobrinha não teve filho em dezembro, janeiro ou fevereiro. Já pesquisou esse período e vai fazer um relatório com os detalhes. Agora está tentando descobrir se a tia foi ao apartamento da sobrinha desde ontem ao meio-dia. É ótimo ter cérebro e sorte. Vai telefonar lá para o meio-dia para perguntar se deve substituir Orrie e...

      O telefone tocou e girei a cadeira para atender:

      — Escritório de Nero...

      — É Orrie Cather. Estou numa cabine em Mahopac.

      — E daí?

      — Não está nada bom. Às dez e cinqüenta e cinco chegou um carro da polícia estadual e entrou. Saíram três homens, um da polícia estadual, um outro que suponho ser um delegado do condado e Purley Stebbins. Experimentaram a porta e aí deram a volta à casa e o delegado entrou pela janela aberta. Stebbins e o patrulheiro voltaram para a porta, que logo foi aberta e entraram. Achei que não ajudaria nada estar ali e por isso vim embora. Quer que eu volte?

      — Tem certeza que era Purley?

      — Ora, bolas, não disse que pensei que era Purley, disse que era. Estou relatando o fato.

      — Está mesmo. Venha para cá.

      — Se voltasse talvez...

      — Que diabos, volte para cá!

      Coloquei o telefone no gancho com delicadeza, respirei fundo e virei-me:

      — Era Orrie Cather, falando de uma cabine em Mahopac. Disse para vir para cá porque a tia não vai voltar para casa. Está morta. Três homens, em um carro da polícia estadual, foram para a casa dela agora, e um deles é Purley Stebbins. Não preciso de sorte ou cérebro para saber que um sargento do Departamento de Homicídios de Nova Iorque não vai ao condado de Putnam para procurar botões brancos de crina.

      Os lábios de Wolfe estavam tão apertados que era como se não os tivesse. Abriu-os de leve para dizer:

      — Um palpite não é certeza.

      — Posso esclarecer isso agora.

      Virei-me, apanhei o telefone e disquei o número do Gazette, e Wolfe, ao ouvir-me pedir para falar com Lon Cohen, pegou o seu telefone e ficou também na linha. A metade do tempo de Lon é gasta em falar em um de seus telefones, e em geral tem que se esperar ou deixar um recado, mas peguei-o entre telefonemas e logo conversamos. Perguntei-lhe se ainda tinha algum saldo de crédito e ele respondeu que em pôquer não, mas em indicações sobre os acontecimentos, sim.

      — Não é bem uma indicação dessa vez — contei-lhe. — Estou verificando um rumor que acabei de ouvir. Sabe de alguma coisa sobre uma mulher chamada Tenzer? Ellen Tenzer?

      — Ellen Tenzer.

      — Certo.

      — Talvez tenhamos. Não tente ser tão cheio de rodeios, Archie. Se quer saber onde estamos num caso de assassinato, então diga isso.

      — Isso.

      — Assim é que se fala. Ainda não descobrimos muita coisa a não ser que tenham aparecido fatos nesta última hora. Hoje de manhã, às seis horas, um policial olhou para dentro de um carro, um sedã Rambler, estacionado na Rua 38, perto da Terceira Avenida, e viu uma mulher no chão, atrás. Fora estrangulada com um pedaço de corda que ainda estava em seu pescoço. Estava morta há cinco ou seis horas. Foi identificada, mas sem confirmação, como Ellen Tenzer, de Mahopac, Nova Iorque. É tudo. Posso ligar lá para baixo e pedir as últimas novidades e lhe chamar de volta, se é tão importante.

      Respondi que não era e agradeci, desligando. Wolfe também desligou. Olhou-me zangado, e olhei-o também.

      — Isso torna tudo muito bom — falei. — Pode falar nos se.

      — É ineficaz — disse Wolfe, abanando a cabeça.

      — Há um se especial. Se eu tivesse ficado e falado com ela naquela hora, talvez se abrisse comigo e agora estaria aqui e estaríamos solucionando o caso. Que vá para o inferno a inteligência guiada pela experiência.

      — É inútil.

      — E agora, o que não é? Não se podia querer nada melhor do que botões brancos de crina, e agora não temos nada, e além do mais Stebbins e Cramer vão se pendurar em nossos pescoços. A Rua 38 pertence à área da Homicídio Sul.

      — Homicídio é problema deles, não nosso.

      — Diga isso a eles. A sobrinha vai lhes contar que um comerciante de botões, chamado Archie Goodwin, conseguiu o endereço de sua tia na quinta-feira à tarde. O sujeito no posto de gasolina vai descrever o cara que pediu informações para chegar à casa dela na sexta-feira pela manhã. Encontrarão milhares de impressões digitais minhas na casa toda, inclusive no porão, bem frescas e nítidas. É melhor telefonar logo para o Parker agora e dizer-lhe para ficar pronto para conseguir fiança quando eu for autuado como testemunha.

      Wolfe deu um grunhido: — Você não pode fornecer nenhuma informação que seja relevante.

      Olhei-o fixamente: — É claro que posso.

      — Acho que não. Vamos considerar tudo. — Recostou-se e fechou os olhos, mas os lábios não começaram com a rotina para dentro e para fora. Isso era só para problemas difíceis de fato.

      Num minuto abriu os olhos e endireitou-se:

      — É muito simples. Uma mulher chegou com o macacão e me contratou para verificar de onde vieram os botões, e pus o anúncio. Beatrice Epps respondeu ao anuncio, e lhe contou sobre Anne Tenzer, que por sua vez lhe falou da tia e você foi até Mahopac. Como a tia está morta, o resto fica inteiramente por sua conta. Ninguém pode lhe denunciar. Vou dar uma sugestão: ela disse que ia sair para um encontro e, após conversarem um pouco, você pediu permissão para esperá-la voltar, e a permissão foi concedida. Ela disse que não sabia quanto tempo demoraria. Encontrando-se sozinho, e curioso sobre a importância, para nosso cliente, dos botões brancos de crina, e com tempo de sobra, você fez uma exploração da casa. Isso deve bastar.

      — Sem dar o nome do cliente.

      — É claro que não.

      — Então não seria uma testemunha. Seria esconder provas. Ela fez os botões sobre os quais a cliente queria informações, e foi lá perguntar sobre os botões, e ela entrou em contato com alguém que tem conexão com botões, portanto vão querer fazer perguntas à cliente, então dir-lhes-ei seu nome ou enfrento as conseqüências.

      — Você tem uma resposta. A cliente nada sabia sobre Ellen Tenzer; contratou-me para descobrir de onde os botões vieram. Portanto, é pouco provável que Ellen Tenzer soubesse sobre nossa cliente. Não temos obrigação de divulgar o nome de uma cliente apenas porque a polícia gostaria de verificar uma vaga suspeita.

      Examinei a idéia por algum tempo e concordei:

      — Talvez possamos nos safar com essa versão. Se você agüentar, eu agüento. Quanto à sua versão, você não mencionou a ocasião em que fui lhe telefonar e comprar o meu almoço, mas, se descobrirem, posso dizer que foi depois que ela saiu. Entretanto, tenho algumas perguntas a lhe fazer, talvez três. Não é provável que Ellen Tenzer ainda estivesse viva se você não tivesse aceitado este trabalho, colocado o anúncio e me mandado lá?

      — Mais do que provável.

      — Então não seria mais provável que os tiras pegassem o cara que a matou se soubessem o que sabemos, especialmente sobre o bebê?

      — Certamente.

      — Está bem. Você disse: “Homicídio é problema deles, não nosso.” Se for com essa idéia até o fim, isso vai me preocupar. Talvez perca até o sono. Eu a vi, estive em sua casa e conversei com ela, e deu-me um copo d’água. Sou a favor de proteger os interesses dos clientes, sou contra a idéia de Lucy Valdon ser molestada pela polícia, além disso me deu um martini, mas pelo menos ainda está viva.

      — Archie, minha obrigação é descobrir a identidade da mãe e estabelecer isso até que o cliente fique convencido, e demonstrar o grau de probabilidade de seu marido ser o pai. Você acha que posso fazer isso sem descobrir também quem matou aquela senhora?

      — Não.

      — Então não me amole. Já está bem ruim sem você me amolar.

      Esticou-se para apertar a campainha e pedir cerveja.

     

Fiquei em custódia desde três horas e quarenta e dois minutos da tarde de domingo, quando o inspetor Cramer me levou, até as onze horas e cinqüenta e oito minutos da manhã de segunda, quando Nathaniel Parker, o advogado que Wolfe chama apenas quando a polícia intervém, chegou ao escritório do promotor público com um papel assinado por um juiz, que fixara a fiança em 20 mil dólares. Como a fiança comum para testemunhas em casos de assassinato em Nova Iorque é de cerca de 8 mil dólares, isso me colocava numa faixa especial e apreciei o elogio.

      A custódia não foi dura, e nem difícil, exceto pela perda de sono, por não comer duas refeições feitas por Fritz e por não poder escovar os dentes. Seguindo a sugestão de Wolfe, com alguns melhoramentos, contei primeiro minha história ao inspetor Cramer, no escritório, com Wolfe presente e, depois disso, com o promotor público assistente, chamado Mandei, a quem já conhecia, um punhado de tiras do Departamento de Homicídios e, numa certa hora, ao próprio promotor. Tudo que tinha a fazer era seguir em frente. Wolfe marcou o tom, no domingo à tarde, durante o encontro com Cramer, especialmente no final, depois de este se ter levantado para ir embora.

      Wolfe tivera que inclinar a cabeça para trás, o que o faz ficar chateado.

      — Não lhe devo nada — disse ele. — Não estou agradecido por sua leniência. O senhor sabe que seria inútil me levar junto com o Sr. Goodwin, já que eu ficaria mudo, e o único resultado seria que, no futuro, quando eu tivesse alguma sugestão a fazer, nunca a faria ao senhor.

      — Um dos resultados — disse Cramer, com irritação — seria que se passaria muito tempo antes de o senhor poder fazer uma sugestão.

      — Tolice. Se pensasse que isso fosse verdade, o senhor me levaria também. No seu bolso, o senhor tem uma declaração, assinada por mim, dizendo que. não tenho conhecimento algum da identidade do assassino de Ellen Tenzer e tenho bases seguras para acreditar que meu cliente também não tem. Quanto à sua ameaça de me tirar a licença, preferia dormir debaixo de uma ponte e comer restos de comida que revelar o nome de um cliente para sujeitá-lo a interrogatórios embaraçosos.

      Cramer abanou a cabeça:

      — Você comendo restos! Meu Deus! Vamos,

      Goodwin.

      Não tínhamos nenhum palpite sobre a identidade da mãe, e nada tínhamos como base para descobrir, embora não tivéssemos ficado parados. Dispensáramos Saul, Fred e Orrie. Lêramos os jornais. Fomos falar com Lon Cohen, para lhe perguntar se a Gazette tinha qualquer coisa que não publicara. Também me enviaram para falar com a cliente. Mandáramos pelo correio 50 dólares para Beatrice Epps. Atendêramos ao telefone, sendo dois telefonemas de Anne Tenzer e Nicholas Losseff.

      Admito que seria desperdiçar dinheiro da cliente fazer com que Saul, Fred e Orrie investigassem o caso Ellen Tenzer, já que os jornalistas e funcionários da polícia vinham fazendo isso. Através dos jornais e de Lon Cohen tínhamos mais fatos do que nos interessavam ou que podíamos utilizar. Ellen Tenzer era enfermeira registrada, mas parara de trabalhar nisso há dez anos, quando sua mãe morrera e ela herdara a casa em Mahopac e um pouco de dinheiro que dava para viver. Nunca se casara, mas parecia gostar de bebês, pois durante dez anos abrigara mais de uma dúzia, um de cada vez. De onde vieram e para onde foram ninguém sabia. Sobre o último bebê ninguém sabia nada a não ser que era um menino, tinha um mês de idade quando chegara, em março, ela o chamava de Buster e fora embora há cerca de três semanas. Se alguém o visitara, ninguém vira. A melhor fonte de informações a respeito dos bebês, o médico local que era chamado quando necessário, sabia manter a boca fechada. Lon duvidava que mesmo Purley Stebbins tivesse conseguido alguma coisa dele.

      Além da sobrinha, Anne, os únicos parentes vivos eram um irmão e sua mulher, os pais de Anne, que moravam na Califórnia. Anne recusava-se a falar com os repórteres, mas Lon me disse que aparentemente ela não encontrava muito a tia e sabia pouquíssimo a seu respeito.

      Ao me levantar para ir embora, Lon perguntara:

      — Está certo, dei tudo e não recebi nada, porém ainda tem um saldo. Mas posso fazer uma pergunta? Achou os botões? Sim ou não?

      Como jogara muito pôquer com ele, já tinha bastante prática de manter meu rosto sem expressão em sua presença.

      — Se você tivesse uma mente treinada como a minha — respondi —, não faria isso. Pusemos aquele anúncio, e agora queremos saber notícias sobre Ellen Tenzer, esse é o motivo por que você acha que há uma conexão. Não há nenhuma. Wolfe gosta de botões brancos de crina em suas calças.

      — Pago para ver.

      — Nos suspensórios — disse eu, saindo.

      O telefonema de Nicholas Losseff veio no sábado à tarde. Estava à espera, já que naturalmente Anne Tenzer dissera à polícia que Archie Goodwin era da Cia. de Botões Exclusivos — Novidades, e iriam vê-lo, e ninguém gosta de falar com tiras do Departamento de Homicídios. Pensei que estivesse aborrecido. Mas não estava. Só queria saber se descobrira de onde vinham os botões. Perguntei se recebera visitas oficiais, respondeu-me que sim, isso porque pensou que talvez eu tivesse novidades para ele. Disse-lhe que tinha receio de nunca ter novidades, e aí ficou aborrecido. Se alguma vez me viciar em alguma coisa, como ele, não será em botões.

      Anne Tenzer telefonou domingo de manhã. Estava esperando por isso também, já que seu nome estava nos jornais ligado ao caso que o News chamava do assassinato da baby-sitter. Um jornal dizia que eu era assistente de Nero Wolfe e outro dizia que era seu moço de recados. Não sei qual deles Anne Tenzer vira. Estava aborrecida, mas não sabia ao certo por quê. Não se ressentia de eu fingir ser um homem que trabalhava com botões, nem me culpava do que acontecera à sua tia. Quando desligamos, levei um minuto pensando no caso e achei que estava aborrecida porque estava me telefonando. Talvez me desse a falsa impressão de que queria ouvir minha voz de novo. Era a impressão que me dava. Mesmo levando em conta que a impressão era falsa, devia ter decidido, antes de ligar, o que a estava aborrecendo.

      Ninguém nunca é tão famoso como pensa que é, inclusive eu. Apertei a campainha do vestíbulo da Rua 11 Oeste, no domingo de manhã, comparecendo a um compromisso que marcara pelo telefone, e Marie Foltz deixou-me entrar, mas não havia nem sinal de que vira meu nome nos jornais. Eu era apenas uma interrupção no que estava fazendo. E quando entrei na sala enorme no primeiro andar e aproximei-me de nossa cliente, ela estava tocando piano. Terminou de tocar antes de se virar no banco e me perguntar, com delicadeza:

      — Bom dia. Suponho que descobriu alguma coisa?

      Minha língua estava com vontade de perguntar se terminara o martini, mas eu decidi contra.

      — Alguma coisa. — Disse eu. — Se leu os jornais da manhã...

      — Já o vi, mas não o li. Nunca leio.

      — Então vou lhe pôr a par. — Apanhei uma cadeira, coloquei-a a uma boa distância e sentei-me: — Se nunca lê os jornais, creio que não viu o anúncio do Sr. Wolfe na quinta-feira.

      — Não. Um anúncio?

      — É. Talvez se lembre de que pensei que os botões no macacão eram fora do comum, e ele também pensou assim. O anúncio oferecia uma recompensa a quem desse informações sobre botões brancos de crina, e conseguimos resposta. Depois de passos que não são de interesse, fui a Mahopac sexta-feira de manhã. Sabe onde fica Mahopac?

      — Claro.

      — Fui visitar uma senhora chamada Ellen Tenzer, pois descobri que fazia botões brancos de crina. Agora já descobrimos mais coisas a seu respeito, mas não através dela. Foi quem fez os botões do macacão da criança. E o bebê veio da casa dela. É uma casa pequena, vivia sozinha lá, com o bebê. Ficou lá cerca de três meses.

      — Então ela é a mãe.

      — Não. Há várias boas razões para saber que não. Eu não...

      — Mas ela sabe quem é a mãe do bebê!

      — Acho que sabia. Pelo menos sabia onde o conseguiu e de quem. Mas não pode responder porque está morta. Foi...

      — Morta?

      — É o que estou lhe contando. Após conversarmos rapidamente na sexta-feira de manhã, saí para dar um telefonema e pedir ajuda e, quando voltei para a casa, seu carro não estava mais lá, nem ela. Estou lhe contando apenas os detalhes necessários para entender a situação. Ellen Tenzer nunca voltou para casa. Ontem de manhã, às seis horas, um tira encontrou uma mulher morta dentro de um carro estacionado aqui em Manhattan, na Rua 38, perto da Terceira Avenida. Foi estrangulada com um pedaço de corda. Era Ellen Tenzer e o carro era o dela. Se lesse os jornais, saberia do caso. Agora, ela não pode nos dizer nada.

      Seus olhos estavam arregalados: — Quer dizer... foi assassinada?

      — Foi.

      — Mas o que... É horrível.

      — É. Estou descrevendo a situação. Se a polícia não sabe ainda que estive lá e examinei a casa, incluindo o porão, vai saber logo. Vão saber que, logo depois de termos conversado, foi-se embora no seu carro, e que cerca de quatorze horas depois foi assassinada. Vão querer saber por que fui vê-la e sobre o que conversamos. A respeito disso não há problema, pois estávamos sós e está morta, mas por que fui vê-la é mais difícil. Vão saber que fui lhe perguntar sobre os botões, mas por quê? Quem tinha tanta curiosidade acerca de botões a ponto de contratar Nero Wolfe? Vão querer o nome do cliente, na verdade vão exigir e, se conseguirem, a senhora vai ser convidada a ir ao escritório do promotor público responder a umas perguntas. Aí vão inventar teorias e, provavelmente, uma das teorias será que o bebê não foi posto em seu vestíbulo, isso é apenas a história que a senhora arranjou para justificar o bebê estar em sua casa. Será facílimo investigar essa teoria. Seus amigos vão se divertir muito. O fato é que...

      — Não!

      — Não, o quê?

      — Não... O senhor está indo depressa demais. — Estava com a testa franzida, concentrando-se. — Não é uma história. O bebê foi mesmo deixado no meu vestíbulo.

      — Claro, mas a teoria não é má. Já conheci piores. O caso é que, se dermos o nome da cliente, a senhora vai ter um pouco de aborrecimento, mesmo que não adotem essa determinada teoria. E se recusarmos...

      — Espere um minuto... — A testa ainda estava franzida.

      Esperei mais do que um minuto, enquanto punha suas idéias em ordem.

      — Creio que estou confusa — disse. — Quer dizer que a mulher foi assassinada por causa de... por que o senhor foi vê-la? Devido ao que disse ou coisa assim?

      Balancei a cabeça, negando:

      — Não é assim que deve colocar as coisas. Digamos que é possível que tenha sido assassinada, com toda probabilidade, porque alguém não queria que ela fizesse algo ou contasse alguma coisa sobre o bebê que foi deixado aqui. Digamos que, se não fosse iniciada uma investigação sobre o bebê, não teria sido assassinada.

      — O senhor está dizendo que sou responsável por um assassinato.

      — Não estou. Isso é tolice. Quem quer que tenha posto o bebê em seu vestíbulo com aquela mensagem presa por alfinete devia saber que a senhora tentaria descobrir de onde veio. A responsabilidade pelo assassinato cabe a ele, portanto, não tente dizer que é sua.

      — Detesto isso. — Estava agarrando a borda do banco com força. — Detesto. Assassinato. O senhor disse-me que seria convidada a ir ao gabinete do promotor público. As perguntas, o mexerico...

      — Havia um se, Sra. Valdon. Se dermos o nome da cliente. Comecei a dizer...

      — Por que não me chama de Lucy?

      — Diga-me por escrito e farei assim. A senhora é muito volúvel para uma moça que não sabe flertar. Comecei a dizer que, se recusarmos a dar o nome da cliente, talvez nós fiquemos encrencados, mas isso é problema nosso. Preferimos não dar seu nome, e não o daremos, se a senhora mesma não fornecer seu próprio nome.

      — Mas... por que faria isso?

      — Não deve, mas talvez já o tenha feito. Três pessoas sabem que contratou Nero Wolfe: sua criada, sua cozinheira e seu advogado. Quem mais?

      — Ninguém. Não contei a ninguém.

      — Tem certeza?

      — Sim.

      — Então não conte. A ninguém, absolutamente ninguém. Nem mesmo à sua melhor amiga. As pessoas falam, e se a polícia ouvir algum falatório sobre o fato de ter contratado Nero Wolfe, aí pronto. Os advogados não devem falar, mas a maior parte deles fala, mas temos que confiar nele, na criada e na cozinheira. Não diga para não falarem, quase nunca dá certo. As pessoas são tão estranhas que, se disser a elas que não mencionem alguma coisa, aí é que querem falar. Isso não se aplica à senhora, por que tem alguma coisa a perder falando. Vai ficar muda?

      — Sim. Mas o senhor... o que vai fazer?

      — Não sei. O Sr. Wolfe é o cérebro, sou o moço de recados. — Levantei-me. — O problema imediato é mantê-la fora disso, foi esse o motivo por que vim. Ainda não vieram falar conosco, embora descobrissem milhares de impressões digitais minhas naquela casa e, como detetive registrado, as minhas impressões estão arquivadas. Então, estão sendo engraçadinhos. Por exemplo, seria engraçadinho me seguir até aqui. Ao sair não me preocupei em ver se estava sendo seguido, isso leva tempo se o cara for bom. Vim a pé e certifiquei-me de que o despistara, se estivesse me seguindo — Virei-me e tornei a ficar em sua direção. — Se acha que lhe devemos uma desculpa pelo fato de deixar a busca por uma mãe terminar em assassinato, aqui vai ela.

      — Eu é que lhe devo uma desculpa — afastou-se do banco — por ter sido grosseira naquele dia. — Deu um passo. — Já vai?

      — Claro, já fiz o que me mandaram. E se fui seguido, ele pode estar sentado nos degraus esperando para me perguntar onde estive.

      Ele não estava. Mas quase meia hora depois de ter chegado em casa, Cramer chegou e começamos a discussão que finalmente terminou às três horas e quarenta e dois minutos, quando me levou.

      Na segunda-feira, pouco depois do meio-dia, ao chegar em casa, depois de Parker ter pago a fiança e me dado uma carona até a Rua 35, fiquei contente de ver, ao entrar no escritório, que Wolfe estivera ocupado durante a minha ausência. Começara a ler outro livro, Primavera silenciosa, de Rachel Carson, e estava adiantado. Fiquei de pé até terminar o parágrafo, fechar o livro com o dedo marcando o lugar e fazer uma pergunta com os olhos:

      — Vinte mil — respondi. — O promotor público queria 50 mil, portanto estou indo alto. Um dos tiras era bem bom, quase me pôs para escanteio fazendo perguntas sobre o macacão, mas consegui me safar. Não falaram em Saul, Fred ou Orrie, então nada souberam sobre eles e agora provavelmente não saberão. Assinei duas declarações diferentes, com dez horas entre cada uma, mas podem ficar com elas. O statu quo em nada se modificou. Se não há nada urgente, vou subir e cuidar de mim. Dormi só uma hora, com um tira de pé ao meu lado. Quanto a comer, o que há para o almoço?

      — Miolos com molho bechamel, trufas e cerofólio. Salada de beterraba e agrião. Queijo Brie.

      — Se tiver bastante, pode comer um pouco. — Tomei a direção da escada.

      Poderia dar cinco boas razões para já ter largado esse trabalho há muito tempo, mas daria seis, igualmente boas, para não o ter feito, como, por outro lado, daria dois motivos, talvez três, para Wolfe me despedir e dez para que não o fizesse, e não o faz. Das dez, a principal é que, se eu não estivesse por perto, ele talvez estivesse dormindo embaixo de uma ponte e comendo restos, pois detesta trabalhar. Nenhum de nós dois disse abertamente que pelo menos metade do salário que recebo é para instigá-lo, mas não precisa ser dito.

      Quando o espicaço bastante, porém, pergunta se tenho alguma sugestão. Na segunda-feira à tarde, depois do almoço, quando voltamos ao escritório, abriu o livro para ler e eu não dei uma palavra. Caso o instigasse ao ponto de me perguntar se tinha sugestões, teria de responder que não. Nunca vira um caso tão sem saída. Descobríramos de onde viera o bebê e estávamos pior do que quando começamos. Já se tinham passado três meses desde que o bebê chegara na casa de Ellen Tenzer, portanto nada se podia fazer. Quanto aos nomes, endereços e números de telefones que apanhara na casa, passara horas a examiná-los no sábado à tarde e nenhum deles servia para nada. De qualquer jeito, os tiras tinham os nomes agora e estavam trabalhando num assassinato. Se algum coisa útil fosse descoberta ao investigarem Ellen Tenzer ou o bebê, os tiras é que iriam encontrar. Era provavelmente o que Wolfe imaginava, ao se sentar com a cara enfiada num livro. Se descobrissem o assassino, poderia partir dali para encontrar a mãe. É claro que, se descobrissem alguém que fosse o assassino e a mãe, teria que cobrar pouco da cliente, mas poupar-lhe-ia muito trabalho. Admito que seria uma perda de dinheiro da Sra. Valdon — quero dizer Lucy — mandar Saul, Fred e Orrie ficar perambulando pelo condado de Putnam.

      Por isso não o instiguei e ele não trabalhou — pelo menos, pensei que não. Mas quando fechou o livro e colocou-o na mesa às três horas e cinqüenta e cinco minutos, empurrou a cadeira, levantou-se para ir para o elevador ver as orquídeas e disse:

      — A Sra. Valdon pode estar aqui às seis horas?

      Devia ter decidido isso há horas, talvez antes do almoço, porque não decide nada enquanto está lendo. Mas evitara assumir qualquer compromisso até o último minuto. Não apenas teria de trabalhar, teria que falar com uma mulher.

      — Posso descobrir — respondi.

      — Faça isso, por favor. Se não puder ser às seis horas, então às nove. Como talvez estejam vigiando nossa porta, é melhor que entre pelos fundos. — Saiu da sala e virei-me para telefonar.

     

Entrar na nossa casa pelos fundos é um pouco mais complicado do que pela porta da frente, mas não muito. Na Rua 34 entra-se numa passagem estreita, entre dois prédios, que termina num portão de madeira maciça de dois metros de altura. Não há maçaneta, trinco ou campainha para apertar e, se você não tiver a chave para a fechadura Hotchkiss e não tiver sido convidado, vai precisar de uma ferramenta, digamos um machado forte. Mas se estiver sendo esperado e bater no portão, ele se abrirá, como se abriu para Lucy Valdon às seis horas e dez minutos naquela segunda-feira à tarde. Caminha-se por uma passagem de tijolos entre fileiras de ervas, desce-se quatro degraus, continua-se e sobe-se uma escada de 12 degraus. Em cima, vira-se à direita para a cozinha ou à esquerda para o escritório ou para a frente da casa.

      Levei Lucy para o escritório. Ao entrarmos, Wolfe mal a cumprimentou com a cabeça, apertou os lábios e ficou a olhá-la sem nenhum entusiasmo enquanto se sentava na poltrona vermelha, colocava a bolsa na mesinha ao lado e punha seu abrigo, de zibelina ou outra pele, para trás.

      — Já disse a Archie que sinto estar um pouco atrasada — disse Lucy. — Não imaginei que ele tivesse de esperar por mim lá fora.

      Foi um mau começo. Como jamais um cliente o chamou de Nero, nem o chamará, o “Archie” significava para ele que, ou ela estava tomando liberdades, ou eu já as tomara. Olhou-me rapidamente, virou-se para ela e respirou fundo:

      — Não gosto disso. Não é um procedimento normal, de minha parte, pedir ajuda a um cliente. Quando aceito um trabalho, o trabalho é meu. Mas sou obrigado pelas circunstâncias. Ontem pela manhã o Sr. Goodwin lhe descreveu a situação.

      Ela fez que sim com a cabeça.

      Tendo decidido esse assunto, tendo feito com que ela admitisse, ao acenar, que o meu nome era Sr. Goodwin, recostou-se:

      — Mas talvez não tenha tornado a situação bastante clara. Estamos em apuros. Era óbvio que o modo mais simples de executar o trabalho seria descobrir de onde viera o bebê; logo que soubéssemos isso, o resto seria fácil. Muito bem, foi o que fizemos; sabemos de onde veio o bebê, e estamos sem saída. Ellen Tenzer está morta, e a linha de sindicância completamente obstruída. A senhora está entendendo?

      — Ora... sim.

      — Se ainda tem idéias sobre isso, é melhor desistir. Seria idiotice tentar descobrir como, de onde e quem trouxe o bebê até Ellen Tenzer. Um trabalho desses é para a polícia, com seu exército de homens treinados, alguns competentes, e com seu status oficial. Não é para o Sr. Goodwin e para mim. É de se presumir que estejam trabalhando nisso por ser relevante para sua investigação de assassinato. Por esse motivo, por agora, deixaremos Ellen Tenzer para a polícia, pois é o que devemos fazer, com uma observação: sabemos que ela não colocou o bebê em seu vestíbulo. Mas nós...

      — Como sabemos disso? — Lucy estava com a testa franzida.

      — Por dedução. Não foi ela quem colocou um pedaço de papel preso no cobertor com um alfinete comum e enrolou o cobertor em volta da criança. O Sr. Goodwin encontrou uma vasilha quase cheia de alfinetes de segurança na casa dela. Mas não encontrou nenhum estojo de carimbos de borracha e almofada para carimbo, que é o que foi usado na mensagem no papel. A dedução não é conclusiva, mas é válida. Acredito que no dia 20 de maio Ellen Tenzer entregou o bebê para alguém, ou em sua casa ou, mais provavelmente, num ponto de encontro em outro lugar. Talvez não desconfiasse que o destino do bebê era seu vestíbulo. Duvido que soubesse. Mas sabia demais sobre a história do bebê e sua origem, e por isso foi morta.

      — Então acredita nisso? — As mãos de Lucy estavam crispadas, os dedos torcidos. — Que foi assassinada porque sabia demais?

      — Não. Mas seria estupidez não admitir tal hipótese. Outra suposição: Ellen Tenzer não apenas não deixou o bebê no seu vestíbulo como nem sabia que esse era o seu destino; ela nem ao menos sabia que seria largado de forma que sua origem permanecesse desconhecida e não pudesse ser descoberta. Pois se imaginasse isso nunca teria colocado no bebê aquele macacão. Sabia que aqueles botões eram especiais e que uma investigação levaria até a sua origem. O que quer que ela...

      — Espere um momento. — Lucy estava de testa franzida, concentrando-se. Wolfe esperou. Ela logo continuou: — Talvez ela quisesse que fosse descoberto.

      Wolfe abanou a cabeça: — Não. Nesse caso, quando descobrisse que os botões tinham sido encontrados, receberia o Sr. Goodwin de forma diferente. Não. Não importa o que soubesse em relação ao passado do bebê, não sabia nada a respeito do futuro que lhe pretendiam dar. Seja quem for que o deixou em seu vestíbulo deveria estar seguro de que nenhuma roupa trazia pista alguma sobre suas origens, portanto não conhecia suficientemente roupa de criança para ver que os botões eram diferentes, até mesmo raros, e podiam dar uma pista. Mas o Sr. Goodwin descobriu isso e eu também.

      — Eu não.

      Olhou-a zangado: — Isso só fornece informações a seu respeito apenas, madame, não sobre o problema. Minha preocupação é o problema, e agora não apenas tenho de fazer um trabalho que aceitei, preciso também evitar ser acusado, juntamente com o Sr. Goodwin, de cometer um crime. Se Ellen Tenzer foi morta a fim de que não pudesse revelar fatos sobre o bebê deixando em seu vestíbulo, e é quase certo que é por esse motivo que foi assassinada, o Sr. Goodwin e eu estamos ambos escondendo provas a respeito de um homicídio, e, como disse, estamos em apuros. Não quero dar à polícia seu nome e a informação que me forneceu confidencialmente. A senhora seria perturbada e perseguida e, com toda probabilidade, atormentada; a senhora é minha cliente, por isso meu amor-próprio ficaria ferido. Orgulho-me de só me expor a reclamações dos outros, nunca de mim mesmo. Mas se o Sr. Goodwin e eu evitarmos mencionar seu nome e o que a senhora nos contou, não bastará apenas cumprir nossa obrigação com a senhora e deixar o homicídio para a polícia; além de encontrar a mãe, precisamos descobrir o assassino ou estabelecer de que não há nenhuma ligação entre a morte de Ellen Tenzer e sua ligação com o bebê deixado no seu vestíbulo. Como é muito provável que haja uma conexão, estarei na pista de um assassino para a senhora e às suas custas. Fui claro?

      Os olhos de Lucy vieram em minha direção: — Eu lhe disse que detesto isso.

      Concordei: — O problema é que você não pode sair de cena. Se desistir, não é mais cliente dele e teremos de contar tudo; eu, pelo menos, terei. Sou uma pessoa muito importante porque fui o último a ver Ellen Tenzer com vida. Aí terá de enfrentar a polícia. Agora está conosco, Sra. Valdon, terá que fazer sua escolha.

      Ela abriu a boca e fechou-a de novo. Virou-se, apanhou a bolsa na mesinha, abriu-a, tirou um pedaço de papel, levantou-se, caminhou em minha direção e deu-me o papel. Segurei-o e li, escrito à mão, com tinta:

                                                    Segunda-feira

                     Para Archie Goodwin:

                              Chame-me de Lucy.

                                            Lucy Valdon

      Imagine a cena: no escritório de Wolfe, na sua presença, sua cliente me dá um bilhete que deve saber que eu preferi não mostrar a ele. Tinha que fazer uma manobra. Levantei uma sobrancelha lá em cima, coisa que sempre o aborrece porque não o consegue; pus o papel no bolso e olhei, com a cabeça inclinada para ela, que se sentou de novo na poltrona vermelha.

      — Não, se não for mais uma cliente — disse-lhe eu.

      — Mas eu sou. Detesto como as coisas estão, mas é claro que sou.

      Olhei para Wolfe e encarei-o nos olhos.

      — A Sra. Valdon nos prefere à polícia. Isso é bom para nosso amor-próprio.

      Ela falou com ele: — Foi o modo como colocou as coisas, perseguir um assassino por mim. Quer dizer... precisa fazer isso primeiro?

      — Não — disse, secamente. Ela não era apenas uma mulher, era uma criatura que me passara um bilhete particular em frente aos seus olhos. — Isso é eventual, mas precisa ser feito. Então posso continuar?

      — Sim.

      — Então vai ter de ajudar. No momento, deixamos Ellen Tenzer para a polícia e começamos na outra extremidade — o nascimento do bebê, e sua concepção. Na terça-feira a senhora forneceu ao Sr. Goodwin, com relutância, os nomes de quatro mulheres. Precisamos de mais nomes. Queremos os nomes de todas as mulheres que estiveram ou pudessem ter estado em contato com seu marido, embora por pouco tempo, na primavera do ano passado. Todas elas.

      — Mas isso é impossível. Não podia dar o nome de todas. — Fez um gesto com a mão da aliança. — Meu marido encontrava centenas de pessoas que eu nem conhecia. Por exemplo, quase nunca íamos juntos aos coquetéis literários. Ficava entediada, e de qualquer modo ele divertia-se mais se eu não estivesse lá.

      Wolfe deu um grunhido:

      — Não duvido. A senhora dará ao Sr. Goodwin todos os nomes que conhece, sem exceção. Essas pessoas não serão importunadas, já que as pesquisas a seu respeito se restringirão a um único ponto: onde estavam na época que o bebê nasceu. É uma vantagem uma mulher não poder ficar grávida e ter o bebê sem interromper a sua rotina. Pouquíssimas delas serão interrogadas diretamente, talvez nenhuma. Não omita um único nome.

      — Está bem, não omitirei.

      — A senhora também deu ao Sr. Goodwin os nomes de alguns homens, e agora iremos utilizá-los, pelo menos alguns deles, mas para isso precisamos de sua ajuda. Podemos começar com uns poucos, digamos três ou quatro, e continuar com os outros se precisarmos. Quero vê-los, e virão aqui, já que nunca saio de minha casa a negócios. Não preciso vê-los separadamente, posso vê-los em grupo. A senhora fará os arranjos, após terem sido escolhidos.

      — O senhor quer dizer que lhes pedirei para vir vê-lo?

      — Sim.

      — Mas que lhes direi?

      — Que me contratou para fazer uma investigação para a senhora, e que preciso falar com eles.

      -— Mas então... — sua testa estava franzida. — Archie me disse para não contar a ninguém, nem mesmo à minha melhor amiga.

      — O Sr. Goodwin estava obedecendo minhas instruções. Pensando bem, concluí que preciso aceitar o risco. A senhora me disse que seu marido encontrava centenas de pessoas que nunca conheceu. Espero que “centenas” seja apenas um exagero, mas se há dúzias preciso saber do nome de todas. A senhora diz detestar o modo como as coisas estão. Que diabos, madame, eu também. Se soubesse que o caso iria se desenvolver dessa forma — um assassinato, meu envolvimento e pescar informações de rotina num mar sem fim —, nunca teria aceitado o caso. Preciso ver os três ou quatro homens que estiverem mais qualificados para completar a lista dos conhecidos do seu marido, e para me fornecer as informações que a senhora não tem sobre ele. Após a seleção feita pela senhora e pelo Sr. Goodwin, quer fazer o favor de trazê-los aqui?

      Cada vez mais ela detestava tudo: — O que devo dizer quando me perguntarem o que está investigando para mim?

      — Diga que explicarei tudo. É claro que será delicado. É certo que não mencionarei o bebê que foi deixado no seu vestíbulo com aquela mensagem. Com toda probabilidade, sabe-se mais a respeito de um bebê em sua casa do que a senhora suspeita, mas se um deles ou vários me perguntarem sobre o bebê, direi que não vem ao caso. Quando eu decidir com certeza o que lhes dizer, a senhora será informada, antes de vê-los, e se a senhora tiver algumas objeções, estas serão levadas em consideração. — Girou a cadeira para olhar o relógio. Faltava meia hora até o jantar. Girou a cadeira de volta. — Esta noite, a senhora e o Sr. Goodwin decidirão quais serão os três ou quatro homens a serem escolhidos dentre os amigos de seu marido. Gostaria de vê-los ou amanhã de manhã às onze horas ou às nove horas da noite. Por favor, prepare também a lista de nomes de mulheres. Mas deixe-me fazer-lhe uma pergunta: pode fazer o favor de me dizer onde estava sexta-feira? Depois das oito horas da noite?

      — Sexta-feira? — ela arregalou os olhos.

      Ele fez sinal que sim: — Não tenho motivos, madame, para duvidar da sua boa fé. Mas agora tenho de lidar com alguém que não hesita em assassinar, e não é totalmente inconcebível que a senhora seja uma Jezebel. Ellen Tenzer foi morta sexta-feira, mais ou menos à meia-noite. Onde estava a senhora?

      Lucy fitou-o: — Mas o senhor não pode... não pensa...

      — É muito improvável, mas é concebível. A senhora deveria estar satisfeita que possa imaginar que me enganou com uma ótima exibição de lábia e esperteza.

      Tentou sorrir: — O senhor tem uma idéia estranha das coisas que agradam as pessoas. — Olhou para mim. — Por que não me perguntou isso ontem?

      — Eu ia perguntar, mas esqueci.

      — Está falando sério?

      — Não, mas ele tem razão, é um elogio. Pense como tinha que ser esperta para enganar a ele e a mim. Onde estava sexta-feira à noite?

      — Está bem. Sexta-feira. — Demorou algum tempo para responder: — Saí para jantar no apartamento de uma amiga, Lena Guthrie, mas cheguei em casa a tempo da mamada das dez horas do bebê. A enfermeira estava lá, mas em geral gosto de estar presente também. Então desci e toquei piano durante algum tempo, e depois fui para a cama. — Virou-se para Wolfe. — Isso é tolice!

      — Não — resmungou ele. — Nada que se relacione as excentricidades da conduta humana é tolice. Se hoje a noite a enfermeira estiver lá, o Sr. Goodwin vai lhe fazer perguntas a respeito de sexta-feira.

     

No dia seguinte, terça-feira, havia três homens conosco no escritório ao meio-dia, mas não eram amigos do falecido Richard Valdon. Saul Panzer estava na poltrona de couro vermelha. Nas duas cadeiras amarelas na frente da escrivaninha de Wolfe estavam Fred Durkin, um metro e setenta e sete centímetros, noventa e cinco quilos, careca e corpulento, e Orrie Cather, um metro e oitenta centímetros, noventa quilos, bem-proporcionado dos pés à cabeça. Cada um segurava nas mãos uns cartões de dez centímetros por sete nos quais a informação fornecida pela cliente fora datilografada e, nas carteiras, tinham algumas notas usadas de cinco e dez dólares retiradas do cofre.

      Os olhos de Wolfe se fixavam em Orrie e Fred, o que sempre acontece quando dá ordens ao trio. Ele sabe que Saul entende tudo.

      — Não deve haver dificuldades nem complicações — dizia ele. — É muito simples. No começo deste ano, ou talvez no fim do ano passado, uma mulher deu à luz um bebê. Quero encontrá-la. Mas a missão de vocês, por enquanto, se restringe a eliminações. Com respeito a cada uma das mulheres cujos nomes estão no cartão, vocês só têm que responder a uma pergunta: ela poderia ter tido um filho naquela época? Quando encontrar alguém que se possa excluir o nome com facilidade, cujo destino e movimentos durante este período precisem de uma pesquisa mais elaborada, nada façam sem me consultar. Fui * bem claro?

      — Não muito — disse Orrie. — Até que ponto vai o excluir com facilidade?

      — Isso é inerente ao método de aproximação que sugiro, o qual foi elaborado por mim e Archie. Só se dirigirão à mulher em si se precisarem. Na maioria dos casos talvez em todos, podem obter informação suficiente de outras pessoas: empregados dos apartamentos, vendedores, correio, vocês conhecem a rotina. Usarão seus próprios nomes e as perguntas serão feitas em nome da Dolphin Corporation, proprietária e operadora de Dolphin Cottages, Clearwater, Flórida. Uma mulher está processando a corporação por danos, por uma grande quantia, meio milhão de dólares, por ferimentos que teve no dia 6 de janeiro, sábado, deste ano, ao sair do cais para um barco, Ela afirma que o empregado da corporação que manobrava o barco deixou que esse se movesse e seus ferimentos foram ocasionados por sua negligência. O caso virá logo a julgamento e a corporação quer o testemunho de uma certa Jane Doe (um nome de um de seus cartões). Jane Doe era inquilina de uma das casinhas da corporação de 10 de dezembro a 12 de fevereiro; estava no cais quando aconteceu o acidente e contou ao gerente das casas que o barco não se mexeu e o barqueiro não teve culpa. Estou sendo muito circunstancial?

      — Não — respondeu Fred. Se sabia ou não o que era “circunstancial” não importava, mas provavelmente achava que Wolfe não podia ser exagerado em nada.

      — O resto é óbvio. Não existe nenhuma Jane Doe, e nunca existiu, no endereço que deu à Dolphin Corporation, e vocês estão tentando encontrá-la Seria ela a Jane Doe do seu cartão? Ela estava na Flórida de 10 de dezembro a 10 de fevereiro? Não? Onde estava ela? Mas vocês não precisam de sugestões de como se certificar. Será um processo apenas eliminatório. Está claro?

      — Para mim, não — disse Orrie, levantando os olhos da caderneta onde escrevia. — Se a única coisa necessária é se ela teve um bebê, porque falar em Flórida, delfins e um processo legal? — O seu tom de voz agressivo vem do fato de que acredita que todos os homens são criados iguais, especialmente ele e Nero Wolfe.

      Wolfe virou a cabeça: — Dê-lhe a resposta, Saul.

      A caderneta de notas de Saul estava já no bolso, junto com os cartões. Olhou para Orrie como para um igual, coisa que ele não era.

      — É evidente que as probabilidades são de que o bebê seja ilegítimo e que a mãe se ausentasse para tê-lo, portanto, perguntamos se estava ausente. Se não estava, a única coisa que qualquer pessoa saberia sobre o que uma mulher fazia há cinco meses atrás era se estava tendo um bebê ou não. Esse negócio a respeito da Flórida é só para começar a conversa.

      O modo como Wolfe procedeu não era direito, pois Saul já sabia de tudo há cinco dias, mas a idéia era ensinar bons modos a Orrie, e é claro que Saul tinha de bancar o esperto. Depois que todos se foram e eu voltei ao escritório, disse a Wolfe:

      — Sabe de uma coisa? Se exagerar e der a Orrie um complexo de inferioridade, vai ser péssimo, e um ótimo operador estará estragado.

      Ele bufou: — Tolice. Inconcebível. — Apanhou o livro Primavera silenciosa e ajustou-se confortavelmente Aí levantou o queixo e disse, amável: — Você já percebeu que não vou lhe perguntar o que estava no papel que aquela mulher lhe deu ontem.

      Abanei a cabeça: — Sabia que mais cedo ou mais tarde seria comentado. Se fosse alguma coisa a ver com meu serviço, é claro que contaria. De qualquer modo, vou contar. Estava escrito à mão: “Querido Archie, Lizzie Borden apanhou o machado e deu 40 machadadas na mãe. De sua querida Lucy.” Caso queira.

      — Cale a boca — disse abrindo o livro.

      Ainda não sabíamos quantos iriam comparecer à reunião dos homens naquela noite, e só no fim da tarde Lucy telefonou para dizer que todos os quatro viriam. Quando Wolfe desceu da estufa às seis horas, as notas que eu datilografara estavam em sua mesa. Eram:

      MANUEL UPTON: Cerca de 50 anos. Editor da Distaff, a “revista para toda e qualquer mulher”, circulação acima de 8 milhões. Foi quem colocou Richard Valdon no caminho da fama e da fortuna há dez anos, ao publicar vários de seus pequenos contos e fizera seriado de duas novelas suas. Casado, a mulher está viva, três filhos crescidos. Mora num apartamento da Park Avenue.

      JULIAN HAFT: Cerca de 50 anos. Presidente da Parthenon Press, que publica os livros de Valdon. Ele e Valdon foram amigos íntimos durante os últimos cinco anos da vida de Valdon. Viúvo, dois filhos crescidos. Mora numa suíte na Torre Churchill.

      LEO BINGHAM: Cerca de 40 anos. Produtor de televisão. Não tinha negócios com Valdon, mas era seu amigo mais antigo e mais chegado. Solteiro. Tipo festeiro. Mora num duplex na Rua 38 Leste.

      WILLIS KRUG: Também tem cerca de 40 anos. Agente literário. Valdon era seu cliente há sete anos. Viúvo; casado e divorciado. Não tem filhos. Mora num apartamento na Rua Perry, no Village.

      Sempre que esperamos vários convidados depois do jantar, Wolfe, após deixar a mesa, não volta para a sua cadeira favorita no escritório. Vai para a cozinha, onde há uma cadeira sem braços que agüenta seu peso de mais de cento e quarenta quilos, sobrando apenas um pouco dos lados. A única vez que não foi obedecido, em matéria de mobília, foi quando comprou uma poltrona tamanho extragrande para a cozinha e Fritz foi contra. A poltrona foi entregue e, uma certa manhã, ele se sentou nela durante meia hora ao discutir sopa de nabo com Fritz, mas quando voltou da estufa às seis horas, a cadeira havia sumido. Se ele ou Fritz alguma vez mencionaram o fato novamente, foi em particular.

      Como nenhum dos quatro convidados podia ser a mãe que estávamos procurando, e não havia razão para supor que um dos quatro fosse o assassino, foi só por força do hábito que os examinei quando a campainha tocou e abri-lhes a porta. Willis Krug, o agente literário, chegou primeiro, um pouco cedo, era um cara alto e ossudo, com uma cabeça comprida e orelhas grudadas na cabeça. Encaminhou-se para a poltrona vermelha, mas mostrei-lhe outra cadeira, pois decidira que Bingham, o melhor e o mais antigo amigo de Valdon, era quem devia sentar ali. Ele foi o próximo a chegar, às nove horas em ponto. Leo Bingham, o produtor de televisão. Alto, graúdo e bonito, com um sorriso grande, que aparecia e desaparecia, como um anúncio a gás neon. Julian Haft, o editor, que chegou a seguir, era uma barrica dos quadris para cima e tinha um par de palitos dos quadris para baixo, era careca no topo da cabeça, e usava uns óculos de aros redondos. Manuel Upton, editor de Distaff, foi o último a chegar, e, ao olhá-lo, espantei-me que tivesse conseguido chegar. Miúdo, olhos tristes e todo amarrotado, ombros caídos e resfolegando por ter subido os degraus. Fiquei penalizado de não ter-lhe guardado a poltrona vermelha. Depois de sentar-se na poltrona amarela, são, embora talvez não salvo, fui até minha escrivaninha e chamei a cozinha no interfone.

      Wolfe entrou. Três dos convidados se levantaram. Manuel Upton, que era o que menos tinha que levantar, ficou sentado. Wolfe, que não gosta de apertar mãos, foi até sua escrivaninha e esperou até eu lhe dizer os nomes, dando a todos um aceno com a cabeça, de pelo menos um centímetro. Sentou-se, percorreu-os com os olhos da direita para a esquerda, olhou-os outra vez em sentido contrário, e disse:

      — Não lhes agradeço por virem aqui, senhores, pois estão fazendo um favor à Sra. Valdon, não a mim. Mas aprecio o que fazem. São todos homens ocupados, depois de um dia de trabalho. Querem beber alguma coisa? Não há nada em sua frente, pois isso restringe a escolha, mas temos um sortimento à mão. Querem alguma coisa?

      Willis Krug abanou a cabeça. Julian Haft declinou, agradecendo. Leo Bingham pediu conhaque. Manuel Upton pediu um copo dágua, sem gelo. Pedi scotch com água. Wolfe apertou a campainha e Fritz apareceu. Fizemos o pedido, incluindo cerveja para Wolfe.

      Bingham deu um sorriso para Wolfe:

      — Tive prazer em vir. Gostei da oportunidade de conhecê-lo. — Sua voz de barítono combinava bem com o sorriso. — Já pensei, diversas vezes, na enorme possibilidade que teria na televisão, e agora que o vi, e ouvi sua voz... meu Deus, seria estupendo! Virei outro dia conversar a respeito. — Manuel Upton balançou a cabeça vagarosamente para a esquerda e para a direita.

      — Talvez o Sr. Wolfe não o entenda, Leo. — Sua voz fanhosa combinava com o resto dele. — Talvez pense que “enorme” e “estupendo” é uma referência pessoal.

      — Não comecem vocês dois agora — disse Willis Krug. — Deviam alugar o Madison Square Garden e disputar lá.

      — Somos incompatíveis — disse Bingham. — Todos os homens de revista detestam televisão porque está tirando todo o seu lucro. Dentro de dez anos não haverá revistas, exceto uma: guia de tevê. Na realidade, eu o amo, Manny. Graças a Deus que você irá receber pensão do Estado.

      Julian Haft falou para Wolfe: — É assim que acontece, Sr. Wolfe. Cultura de massas. — Seu tenor fino harmonizava-se bem com suas pernas, mas não com o torso. — Ouvi dizer que lê muito. Graças a Deus que livros não precisam de propaganda. Já escreveu algum livro. Deveria. Talvez não fosse enorme ou estupendo, mas certamente daria uma boa leitura, e gostaria muito de publicá-lo. Se o Sr. Bingham pode pedir, eu também posso.

      Wolfe deu um grunhido: — Nem pensar nisso, Sr. Haft. É difícil manter a integridade como um detetive particular; preservá-la durante as 100 mil palavras de um livro seria impossível para mim, como o foi para tantos outros. Nada corrompe um homem de modo tão profundo como escrever um livro; as tentações inumeráveis são de estarrecer. Não ousaria...

      Fritz entrou com a bandeja. Primeiro a cerveja para Wolfe, depois o conhaque para Bingham, a água para Upton, e o scotch com água para mim. Upton puxou uma caixa de pílulas do bolso, tirou uma e colocou-a na boca, bebendo a água. Bingham tomou um gole do conhaque, pareceu surpreso, tomou outro gole, reteve-o na boca, ficou atônito, engoliu, disse:

      — Posso? — Levantou-se, foi até à mesa de Wolfe para olhar o rótulo da garrafa. — Nunca ouvi falar nele — disse a Wolfe — e pensei que conhecia conhaque. Incrível, servi-lo assim, a um estranho. Onde o conseguiu, pelo amor de Deus?

      — De um homem para quem fiz um serviço. Na minha casa um convidado é um convidado, seja ou não estranho. Não faça economia; tenho quase três caixas. — Wolfe bebeu a cerveja, lambeu os lábios e recostou-se.

      — Como já disse, senhores, aprecio terem se dado ao trabalho de vir aqui, e não os deterei mais do que o necessário. Minha cliente, a Sra. Valdon, disse que deixaria a meu cargo explicar para que me contratou, e serei o mais breve possível. Entretanto, primeiro quero que entendam que tudo quanto for dito aqui, pelos senhores ou por mim, é confidencial. Concordam?

      Todos disseram que sim.

      — Muito bem. Meu segredo é profissional e apenas uma obrigação com minha cliente; a dos senhores é pessoal, um favor a uma amiga. A situação é esta: no mês passado, a Sra. Valdon recebeu três cartas anônimas que estão no’ meu cofre. Não vou mostrá-las, nem dizer o seu conteúdo, mas fazem certas acusações ao seu marido, já falecido, Richard Valdon, e fazem exigências específicas. A letra, a tinta, está disfarçada, mas não há dúvida sobre o sexo de quem as escreveu. O conteúdo das cartas torna claro que foram escritas por uma mulher. Meu compromisso com a Sra. Valdon é identificá-la, falar com ela, e ver suas exigências.

      Inclinou-se para apanhar o copo, tomou um gole de cerveja e recostou-se de novo.

      — É uma tentativa de chantagem, mas se as acusações forem verdadeiras a Sra. Valdon estará inclinada a atender às exigências, com reservas. Quando encontrar quem as escreveu, a pessoa não será desmascarada, acusada ou compelida a desistir de seu pedido, a não ser que as acusações sejam falsas. Primeiro é preciso encontrá-la e aí está a dificuldade. O arranjo que fez para que satisfaçam seu pedido é demasiado engenhoso, nada tão simples como deixar um pacote de notas em algum lugar. Vou sugerir a natureza do arranjo. Os senhores são todos homens de negócios. Sr. Haft, se alguém lhe dissesse, anonimamente, sob ameaça de contar tudo a respeito de um segredo que desejasse preservar, para depositar uma soma de dinheiro a crédito de uma conta, só identificada por um número, num banco na Suíça? O que faria?

      — Meu Deus, não sei — disse Haft.

      Krug disse: — Os bancos suíços têm umas regras engraçadas.

      Wolfe concordou: — O arranjo de quem escreveu a carta ainda é mais hábil. Não apenas não há risco de contato; não há possibilidade de haver uma aproximação. Mas precisamos encontrá-la, e pensei em dois modos. Um seria muito caro e talvez levasse muitos meses. O outro necessitaria da cooperação de homens que foram amigos íntimos ou associados do Sr. Valdon. Selecionamos quatro nomes, dentre os que a Sra. Valdon sugeriu: os seus. Em nome dela, peço a cada um dos senhores que faça uma lista dos nomes de todas as mulheres com as quais, pelo que saibam, Richard Valdon manteve contato durante os meses de março, abril e maio de 1961. O ano passado. Todas as mulheres, mesmo que o contato tenha sido breve e não obstante sua natureza. Podem me fornecer logo essa lista? Digamos, amanhã à noite?

      Três falaram ao mesmo tempo, mas a voz de barítono de Leo Bingham abafou a dos outros:

      — É um pedido difícil — disse ele. — Dick Valdon passeava muito.

      — Não apenas isso — disse Julian Haft —, precisamos saber como proceder. Há oito ou nove mulheres e moças no meu escritório com quem Dick mantinha algum tipo de contato. O que vai fazer com os nomes que fornecermos?

      — Há quatro no meu escritório — disse Willis Krug.

      — Olhe — resmungou Manuel Upton. — Vai ter que nos dizer quais são as acusações.

      Wolfe estava bebendo cerveja. Pôs o copo vazio em cima da mesa. — Para a finalidade que as quero — disse ele —, as listas devem incluir todo mundo. Serão usadas com discrição. Ninguém será perturbado; não ofenderemos ninguém; não haverá boatos; não despertaremos curiosidade. Pouquíssimas pessoas das listas serão abordadas. Pelas indicações na carta retirei dados que limitam o âmbito das possibilidades. Asseguro-lhes que não terão motivos para se arrepender de terem feito esse favor para a Sra. Valdon, com esta única ressalva: se descobrirmos que quem escreveu as cartas é alguma pessoa por quem têm estima, é claro que ela se sentirá contrariada e possivelmente frustrada. Esse será o único risco que correm. Tome mais conhaque, Sr. Bingham.

      Bingham levantou-se e apanhou a garrafa.

      — Suborno — disse, colocando conhaque no copo. Tomou um gole. — Mas que suborno! — Deu um grande sorriso.

      — Quero saber as alegações — falou Upton.

      Wolfe abanou a cabeça: — Isso violaria a garantia que dei à minha cliente. Não discutirei isso.

      — Ela é minha cliente também — disse Krug. — Fui agente de Dick, e agora sou dela, já que os direitos autorais lhe pertencem. Sou também seu amigo, e sou contra quem manda cartas anônimas, não importa quem seja. Mandar-lhe-ei a lista amanhã.

      — Diabos, estou viciado — disse Leo Bingham. Estava de pé, girando o conhaque no copo. — Fui subornado. — Virou-se para Wolfe. — Que tal uma proposta? Se ela vir de minha lista, ganho uma garrafa destas.

      — Não, senhor. Não posso me comprometer. Como um gesto de apreciação, talvez.

      Julian Haft removera os óculos de aro redondo e brincava com as hastes.

      — As cartas — perguntou ele — foram postas no correio em Nova Iorque? Na cidade?

      — Sim, senhor.

      — Então está com os envelopes?

      — Sim, senhor.

      — Podemos vê-los? Só os envelopes? O senhor disse que a letra está disfarçada, mas é possível... um de nós podia ter um palpite ao vê-la.

      Wolfe concordou: — Portanto, não seria de bom alvitre mostrá-lo aos senhores. Um dos senhores podia realmente ter um palpite sobre a identidade de quem a escreveu, mas não dizer nada, então tornaria o problema mais complicado para mim.

      — Quero fazer uma pergunta — disse Manuel Upton. — Ouvi dizer que na casa da Sra. Valdon há um bebê e uma enfermeira tomando conta. Nada sei a respeito, mas a pessoa que me contou não é fofoqueira. Há alguma ligação entre o bebê e as cartas?

      Wolfe o contemplava com a testa franzida:

      — Um bebê? O bebê da Sra. Valdon?

      — Não disse que o bebê era dela. Disse que há um bebê na casa dela.

      — É mesmo? Vou perguntar-lhe, Sr. Upton. Se houver alguma ligação com as cartas, ela deve estar a par. Por falar nisso, disse-lhe que não mencionasse as cartas para ninguém. Sem exceção. Como os senhores sabem, não as mencionou aos senhores. O assunto está em minhas mãos.

      — Está bem, tome conta disso — disse Upton levantando-se. Seu peso era cerca de metade do de Wolfe, mas pelo esforço que teve de fazer para se levantar parecia justamente o oposto. — Do modo como o senhor está tentando nos manobrar, acho que vai estragar tudo. Não devo nada a Lucy Valdon. Se quiser que lhe faça um favor, ela mesma pode me pedir.

      Ele tomou a direção da porta, empurrando o cotovelo de Leo Bingham ao passar, e a outra mão de Bingham apareceu de repente e deu-lhe um empurrão. Como um convidado é um convidado, e porque duvidava que ele tivesse energia para fechar a porta, levantei-me, ultrapassei-o no corredor e levei-o à porta. Quando voltei, Julian Haft estava falando:

      — ...mas antes de fazer isso quero conversar com a Sra. Valdon. Não concordo com o Sr. Upton, não digo que esteja agindo mal, mas o que pede é um pouco... hã... fora do comum. — Colocou outra vez os óculos e virou-se: — É claro que concordo com você, Willis, sobre pessoas que mandam cartas anônimas. Suponho que pensa que estou sendo cauteloso demais.

      — Isso é privilégio seu — respondeu Krug.

      — Ao diabo com o privilégio — disse Bingham. Deu seu grande sorriso para Haft. — Eu não diria cauteloso demais, eu diria cuidadoso. Você já nasceu com medo, Julian.

      É preciso dar-se desconto. Compradores e vendedores. Para um agente literário um editor é um cliente, mas para um produtor de televisão é apenas mais um vendedor.

     

Tenho à minha frente uma cópia das despesas do caso, no arquivo, na letra V de Valdon. O segundo estágio, para trabalharmos nos nomes das listas fornecidas por Willis Krug, Leo Bingham, Julian Haft e a cliente (nunca recebemos a lista de Manuel Upton), durou 26 dias, de 10 de junho a 7 de julho, e custou à cliente 8.674.30 dólares, sem incluir qualquer parte do meu salário, que é pago pelos honorários e nunca é parcelado.

      A lista de Lucy tinha 47 nomes, a de Haft, 81, a de Bingham, 106 e a de Krug, 55. Uma das filhas de Upton, casada, estava na lista de Haft e na de Bingham, mas não na de Krug. A filha casada de Haft estava na lista de Lucy mas em nenhuma outra. Uma certa amiga de Bingham não estava na lista de mais ninguém; Orrie descobriu o nome dela no meio da pesquisa. É claro que havia muitas duplicatas nas quatro listas, mas havia 148 nomes diferentes, a seguir:

      Seção            Número           Estado Civil

        A                    57                 Solteira

        B                    52                 Casada, vivendo com o marido

        C                    18                 Divorciada

        D                    11                 Viúva

        E                    10                 Casada, separada

      Outra estatística, daquelas em cada seção que tiveram filhos entre 1.° de dezembro e 28 de janeiro de 1962:

      Seção                    Número

        A                            1

        B                            2

        C                            0

        D                            1

        E                            0

      A da Seção A (solteira) que tivera um bebê trabalhava no escritório de Krug, mas todos sabiam a respeito da criança e esta fora dada legalmente (ou vendida) a um serviço de adoção. Saul levou quase duas semanas para se certificar de que o bebê não tinha ido terminar no vestíbulo da Sra. Valdon. A da Seção D (viúva) talvez fosse um problema para seus amigos e inimigos, mas não para nós. O marido morrera dois anos antes de o bebê nascer, mas ficara com o bebê e não se importava com quem soubesse. Eu o vi.

      Os dois bebês da Seção B (casada, vivendo com o marido) eram, na realidade, três; um deles era gêmeo. Estavam todos morando com os pais. Fred viu os gêmeos e Orrie viu o outro.

      Além das mães, duas moças na Seção A, duas mulheres na B, duas na C e uma na D tinham estado longe de casa e/ou trabalho durante uma parte ou todo o período. Orrie teve de tomar um avião para ir à França, na Riviera, para confirmar um deles, e Fred teve de voar até o Arizona para esclarecer outro caso.

      Nunca houve uma operação mais bem-feita desde que vocês sabem Quem espalhou a poeira no chão do templo. Absolutamente sem falhas. Orrie foi levado a um prédio de apartamentos cujo superintendente era um porteiro, mas foi culpa sua, e Fred foi posto para fora das coxias de um teatro, mas isso faz parte de um dia de trabalho. Foi um trabalho perfeito, como exemplo de ótima bisbilhotice. E quando Saul telefonou às três horas e trinta minutos no sábado à tarde, dia 7 de junho, para dizer que unira o elo que faltava na adoção e que vira realmente o bebê, estávamos no mesmo ponto de onde partíramos no dia 12 de junho, há 26 dias.

      Entretanto, havia uma diferença. Surgiram algumas novidades, mas não fomos nós que as descobrimos. Uma, a menor delas, era que eu não era mais a última pessoa a ter visto Ellen Tenzer viva. Naquela sexta-feira à tarde fora à casa de uma certa Sra. James R. Nesbitt, na Rua 68 Leste, uma ex-paciente dos tempos em que praticava enfermagem. A Sra. Nesbitt só contara o fato depois de duas semanas, pois não queria ter o nome envolvido num assassinato, mas afinal decidira que deveria contar. Talvez o promotor público lhe prometesse que seu nome não apareceria, mas algum jornalista, de alguma forma, conseguira o seu nome, e viva a liberdade de imprensa! Realmente, a Sra. Nesbitt não ajudou grande coisa. Ellen Tenzer dissera apenas que precisava de conselho de um advogado, e pedira à Sra Nesbitt que lhe desse o nome de algum em que pudesse confiar. Isso fora feito, e marcara hora num advogado. Mas Ellen Tenzer não comparecera ao encontro. Não dissera à Sra. Nesbitt por que precisava de um advogado. Só para nos certificarmos, colocáramos o seu nome na lista de Saul, mas há dez anos não tinha bebê e sua filha de 20 anos nunca tivera um filho.

      O outro acontecimento, o principal, foi que a cliente quase desistira. Telefonara na segunda-feira, dia 2 de julho, às quatro horas e quinze minutos. É claro que sempre estivera em contato com ela: quando se está gastando mais de 300 dólares por dia do dinheiro de um cliente, e não conseguindo nada, o mínimo que se pode fazer é lhe telefonar, ou passar na sua casa e dizer: “alô, o dia está bonito, mas o interior precisa de chuva.” Uma vez ela estava dando a mamadeira ao bebê, de outra vez eu almoçara com ela, jantara duas vezes, ensinara-a a jogar pinocle e, no total, ouvira-a tocar piano durante seis horas. Também dançáramos um pouco, na sala de jantar, ao som de discos, num lugar sem tapete. Dançava muito bem, e merecia uma noite no Flamingo ou no Gilloti, mas isso teria de esperar, pois tínhamos que manter o segredo. Se você me perguntasse teria tanto trabalho para manter uma cliente satisfeita, se ela fosse vesga ou de tornozelos grossos?, a resposta seria não.

      Ao atender ao telefone às quatro horas e quinze minutos no dia 2 de julho e começar a responder com o habitual: — Escritório de Nero... — ela interrompeu:

      — Archie, pode vir aqui? Agora mesmo?

      — É claro que posso. Por quê?

      — Um homem esteve aqui, um policial. Acabou de sair. Perguntou-me se eu contratara Nero Wolfe e perguntou a respeito do bebê. Você pode vir?

      — O que é que você respondeu?

      — Nada, é lógico. Disse que não tinha direito de perguntar sobre meus assuntos particulares. Foi isso que você me disse para responder.

      — Certo. Lembra-se do nome?

      — Ele me disse o nome, mas estava tão... não sei.

      — Era Cramer?

      — Cramer... não.

      — Rowcliff?

      — Não.

      —- Stebbins?

      — Parece que é esse, Stebbins. É, acho que é.

      — Grande, forte com um nariz largo e uma boca grande, fazendo força para ser delicado?

      — É.

      — Está bem. É meu policial favorito. Fique calma. Toque piano. Estarei aí dentro de 20 minutos, já que não preciso me preocupar em ser seguido.

      — Você vem para cá?

      — Lógico.

      Desliguei, chamei a estufa no interfone e depois de esperar um pouco a voz de Nero Wolfe disse:

      — Sim?

      — A Sra. Valdon telefonou. Purley Stebbins esteve lá e lhe fez perguntas sobre você e o bebê. Ela não contou nada. Quer que eu vá lá e já estou de saída. Alguma instrução?

      — Não. Que amolação!

      — Sim, senhor. Trago-a para cá?

      — Só se for absolutamente necessário. — Desligou.

      Fui à cozinha dizer a Fritz que o telefone e a porta da rua eram de sua responsabilidade até que eu voltasse, e saí. Ao descer os degraus até a calçada e virar na direção leste, automaticamente olhei em volta, mas na realidade não me importava o fato de alguém me seguir ou não. Era quase certo que houvesse alguém de vigilância na residência dos Valdon.

      Fui a pé. Os cinco minutos economizados num táxi não iriam adiantar nada, e minhas pernas gostam de sentir que estão ajudando. Ao virar na Rua 11 e me aproximar da casa, olhei em volta outra vez, mas de novo não fazia diferença. O assunto pulara da frigideira para o fogo, e agora era evitar sair queimado. Subi os três degraus até o vestíbulo, mas não precisei tocar a campainha, pois a porta estava aberta e Lucy lá estava. Não disse uma palavra. Ao cruzar a soleira, fechou a porta, virou-se e tomou a direção da escada. Eu a segui. Aparentemente, esquecera-se do progresso que havíamos feito em nosso relacionamento. No andar de cima entrou no salão, fechou a porta depois que entrei, virou-se para mim e disse:

      — Ele me perguntou se eu conhecia Ellen Tenzer.

      — Lógico. É natural.

      — Você fica aí de pé e diz que é natural! Jamais aconteceria... se não tivesse procurado Nero Wolfe... você sabe disso, Archie!

      — Chame-me de Sr. Goodwin.

      Seus olhos, grandes e cinzentos, arregalaram-se.

      — O caso é que — disse eu — misturar relações pessoais e de negócios é ruim para nós dois. Se quiser ficar de mãos dadas, ótimo. Se quiser ser uma cliente ofendida, está bem. Mas não é justo que uma cliente ofendida me chame de Archie.

      — Não estou ofendida!

      — Está bem, ranzinza.

      — Não sou ranzinza. Você sabe que é verdade, que se eu não tivesse procurado Nero Wolfe e você não tivesse descoberto aquela mulher, não a teriam assassinado. Detesto isso! E agora sabem sobre Nero Wolfe e o bebê. Vou contar tudo. Foi por isso que pedi que viesse: para que me dissesse aonde ir e a quem contar. Ao promotor público? E queria lhe pedir... quer ir comigo?

      — Não. Posso usar seu telefone?

      — Ora, pode, se... Para quê?

      — Para dizer ao Sr. Wolfe que está despedido, para que possa...

      — Não disse que está despedido!

      Levantei as sobrancelhas.

      — A senhora está confusa, Sra. Valdon. Já discutimos a esse respeito diversas vezes, o que aconteceria se viessem até aqui e lhe falassem. O que combinamos é que agüentaríamos até que a situação ficasse difícil demais, e que você nos deixaria decidir o se e quando. Queria que lhe explicasse as regras sobre supressão de provas e obstrução da justiça etc. e expliquei. Foi bem claro que, se e quando o caso fosse abandonado, o Sr. Wolfe é quem decidiria. Agora você decide abandonar tudo, portanto, vou lhe telefonar e direi que vá em frente. Quanto a despedi-lo, vamos chamar de outra forma, se prefere... diga que o está liberando de suas obrigações. Soa melhor. Usarei o telefone lá de baixo.

      Virei-me para sair. Prendeu meu braço com os dedos:

      — Archie.

      Voltei-me: — Ouça — falei. — Não estou representando. Mas não pense que vou me abaixar, tirar seus sapatos e esfregar seus pés gelados de medo.

      Passou os braços em volta do meu pescoço e agarrou-me.

      Por isso quinze minutos depois, ou talvez vinte minutos, estávamos sentados no sofá com martinis e ela estava falando:

      — Você sabe, é tolice aquilo que você dizia sobre misturar relações pessoais com relações de negócio. Há um mês que a gente faz isso, e ainda estamos aqui. Fui eu quem começou, da primeira vez que esteve aqui, dizendo-lhe que não estava tentando flertar com você. Por que não riu de mim?

      — Mas foi o que fiz. Eu lhe disse que as ostras flertam e você levantou-se e foi embora.

      Ela sorriu: — Preciso admitir uma coisa.

      — Ótimo. Cada uma fala de uma vez.

      — Quando eu disse aquilo, honestamente pensava que não estava tentando flertar com você. Como é que consegue suportar uma mulher assim tão burra?

      — Não consigo e nem conseguiria.

      — O quê? — Franziu a testa. — Oh, muito obrigada, mas sou burra mesma. Enquanto você falava com Nero Wolfe, é claro que eu deveria pensar sobre o que iria acontecer, se deveria pedir-lhe para não fazer isso, o que eu iria fazer a respeito de tudo, mas o que realmente estava me preocupando era: nunca mais me beijará. Sempre soube que não era muito inteligente. Por exemplo, quando você me perguntou agora se aquele homem deixara perceber alguma pista que nos dissesse como descobrira que eu contratara Nero Wolfe, eu teria conseguido alguma informação da parte dele, se fosse inteligente, não?

      — Não. De Purley Stebbins, não. Às vezes se atrapalha sobre o que vai dizer em seguida, mas sempre sabe o que não dizer. — Tomei um gole de bebida e continuei: — Agora que estamos acertados, vamos esclarecer tudo. Talvez eu tenha tido uma falsa impressão. Você ainda é nossa cliente?

      — Sim.

      — Tem certeza absoluta de que quer continuar até o fim?

      — Aperte aqui.

      Estendeu a mão e apertei-a. Foi assim que nosso relacionamento cordial começou, há três semanas, quando passara uma longa noite com ela, fazendo a lista e escolhendo os quatro homens que iríamos convidar para ajudar. Quando um aperto de mão passa um segundo que seja além da rotina, é um teste. Se ambos decidem parar ao mesmo tempo, tudo bem. Mas se ela terminar antes de você, ou vice-versa, cuidado. Vocês não combinam. Desde a primeira vez nós fomos simultâneos. E desta vez também fomos.

      — Ok — disse eu. — Estamos em grandes apertos. Mas não preciso dizer, você sabe tão bem quanto eu. Sua parte pode ser difícil mas é simples. Você apenas não diz nada, e não responde a nenhuma pergunta, qualquer que seja, não importa quem a faça. Certo?

      — Certo.

      — Se lhe convidarem a ir ao escritório do promotor público, recuse. Se Stebbins ou mais alguém vier aqui, receba-o ou não, como preferir, mas não lhe diga nada, e nem tente tirar alguma coisa dele. Como descobriram sobre a contratação de Nero Wolfe e sobre o bebê não importa. Meu palpite e de que foi através de Manuel Upton, mas não daria um níquel para saber se estou certo. Se foi Upton, algumas das perguntas que não vai responder serão sobre cartas anônimas. Poderão ser as partes mais difíceis para o Sr. Wolfe e para mim, mas sabíamos disso. Ele contou para os quatro homens que as cartas estavam no seu cofre. Se a Corte der uma ordem para que as apresente, e ele disser que nunca existiram, podemos ser acusados de destruir provas e, o que é pior, de escondê-las. Isso será muito engraçado e preciso me lembrar de rir.

      — Archie.

      — Sim?

      — Há seis semanas eu apenas existia. Não havia bebê lá em cima, nunca o vira, nem sonhava que poderia ser... assim. Quando digo que detesto tudo, você entende, não?

      — Lógico que entendo. — Dei uma olhada no relógio, terminei meu martini, coloquei o copo na mesa e me levantei. — É melhor ir embora.

      — Por que não fica para o jantar? Precisa ir mesmo?

      — Não ouso ficar. São cinco horas e trinta minutos. Aposto o mesmo dinheiro que Stebbins ou o inspetor Cramer vão aparecer às seis horas ou logo após, e preciso estar lá.

      Encolheu os ombros, depois relaxou-os, e levantou-se do sofá:

      — E tudo que tenho a fazer é não dizer nada. — Ficou com a cabeça levantada. — Então volte mais tarde e me conte. Relações comerciais.

      Não sei se foi o que ela disse ou a forma como o disse, ou alguma coisa nos seus olhos. Fosse o que fosse, sorri e depois dei uma risada, e aí ela riu também. Meia hora antes não se poderia supor que logo estaríamos rindo juntos. É óbvio que era um bom modo de terminar uma conversa, por isso virei-me e saí.

      Faltavam dois minutos para as seis horas, quando usei minha chave para abrir a porta da velha casa de tijolo. Fui à cozinha dizer a Fritz que já voltara e fui para o escritório. Mesmo as pessoas que são espertas fazem uma porção de perguntas desnecessárias; por exemplo: perguntei a Fritz se houvera algum telefonema. Em primeiro lugar, teria me dito sem precisar lhe perguntar, e, em segundo lugar, Cramer ou Stebbins raramente telefonam. Vêm direto, e quase sempre às onze horas da manhã, ou cerca de duas horas e trinta minutos depois do almoço, ou às seis horas da tarde, pois conhecem o horário de Wolfe. Ao entrar no escritório ouvi o ruído do elevador descendo.

      Wolfe entrou. Em geral vai para sua escrivaninha antes de perguntar alguma coisa, ou de fazer a pergunta com os olhos, mas daquela vez parou antes de lá chegar e resmungou:

      — E então?

      — Tudo bem — respondi. — O que se poderia esperar. Esperar trambolhão é uma coisa, recebê-lo é outra bem diferente. Ela estava um pouco sobressaltada. Queria uma garantia de que você pode dominar a situação, e lhe dei essa garantia. Ela entende por que não deve fazer nenhuma exceção ao não responder às perguntas. Purley lhe perguntou se conhecia Ellen Tenzer. Presumo que manteremos a mesma posição que antes.

      — Sim.

      Foi até a estante e ficou olhando os títulos. Há muito tempo que deixara de ficar nervoso quando seus olhos se fiavam nas duas prateleiras superiores. Se decidisse apanhar um dos livros fora do alcance da mão, apanharia a escada, subiria o número de degraus necessários, e desceria sem nem balançar, quanto mais tropeçar. Desta vez nenhum título, no alto ou embaixo, chamou sua atenção e foi na direção do globo e começou a girá-lo devagar. Talvez estivesse procurando um lugar onde a mãe de um bebê abandonado pudesse esconder-se, ou talvez procurando aonde pudesse ir quando tivesse de fugir da cidade.

      Até a hora do jantar não havia aparecido ninguém. O telefone tocou duas vezes, mas nada sobre negócios oficiais. Um telefonema foi de Saul, dizendo que mais dois nomes tinham sido eliminados, e o outro foi de Orrie. Eliminara mais um e só sobravam dois. Fred estava no Arizona. Já tínhamos quase chegado ao fim da linha.

      Na mesa, após Wolfe ter terminado seus morangos à Romanoff, usado o guardanapo e empurrado a cadeira para trás, levantei-me e disse:

      — Não vou tomar café com você. Eles nunca vêm depois do jantar, a não ser que seja urgente, e tenho uma espécie de encontro.

      Resmungou: — Posso lhe falar, se precisar?

      — Claro. Na casa da Sra. Valdon. Está no cartão.

      Olhou para mim: — É alguma tolice? Você disse que estava sobressaltada, mas que você lhe deu firmeza. Agora está em dúvida?

      — Não, senhor. Ela agora tem certeza. Mas pode ter medo de que o senhor caia fora. Pediu que fosse falar com ela depois de ter lhe falado.

      — Bobagem.

      — Sim, mas ela não o conhece tão bem quanto eu. Você também não a conhece tão bem como eu.

      Deixei o guardanapo na mesa e parti.

     

Cramer veio às 11 horas e quinze minutos da manhã, na terça-feira, dia 3 de julho. Quando a campainha tocou, eu estava ao telefone, tratando de um assunto pessoal. Em maio aceitara um convite para passar um fim de semana de cinco dias, para terminar no dia 4 de julho, na casa de um amigo em Westchester. A maratona em busca da mãe me forçara a cancelar o convite, e o telefonema era do meu amigo, para dizer que se eu fosse para lá de carro, no dia 4 de julho, encontraria uma caixa de fogos de artifício e um canhão de brinquedo à minha espera. Quando a campainha tocou, disse:

      — Você sabe que eu gostaria de ir, mas um inspetor de polícia, talvez um sargento, está lá fora agora, esperando para entrar. Talvez eu passe a noite na cadeia. Vê-lo-ei no tribunal.

      Ao desligar, a campainha tocou outra vez. Fui até o corredor para dar uma espiada através do vidro que só permite visibilidade de dentro para fora e quando disse a Wolfe que era Cramer, apertou os lábios. Fui abrir a porta e disse:

      — Como vai? O Sr. Wolfe está um pouco aborrecido, pois o esperava ontem.

      Creio que não ouviu nada, pois já dera as costas e encaminhava-se para o escritório. Eu o segui. Cramer tirou o velho chapéu de feltro que usa no inverno e no verão, com sol ou chuva, sentou-se na poltrona vermelha, sem pressa, pôs o chapéu na mesinha ao lado e olhou para Wolfe. Wolfe encarou-o de volta. Ficaram assim uns cinco segundos, só olhando. Não era um teste para ver quem agüentava mais; nenhum dos dois tinha idéia de que sustentaria o olhar mais do que o outro, estavam apenas se preparando.

      Cramer falou primeiro:

      — Já se passaram 23 dias.

      Estava rouco, o que era fora do comum. Em geral, só depois de dez minutos, ou mais, com Wolfe é que ficava rouco. Também o seu rosto vermelho estava um pouco mais avermelhado do que de costume, mas podia ser devido ao calor de julho.

      — Vinte e cinco — disse Wolfe. — Ellen Tenzer morreu na noite de 8 de junho.

      — Vinte e três dias desde que estive aqui. — Cramer recostou-se na cadeira. — O que é que houve? Não sabe o que fazer, está sem saída?

      — É isso.

      — Duvido que não saiba. Quem ou o que o está impedindo?

      Um canto da boca de Wolfe levantou-se uns três milímetros. — Não poderia lhe responder sem lhe dizer o que estou procurando.

      — Sei que não poderia. Estou ouvindo.

      Wolfe abanou a cabeça:

      — Sr. Cramer, estou no mesmo ponto onde estava há 23 dias. Não tenho nenhuma informação para lhe dar.

      — É difícil de acreditar. Nunca vi o senhor marcar passo durante três semanas. Sabe quem matou Ellen Tenzer?

      — Essa eu posso responder: não.

      — Acho que sabe. Tem alguma outra cliente agora além da Sra. Richard Valdon?

      — Também posso responder a isso: não.

      — Então acho que sabe quem matou Ellen Tenzer. E óbvio que há uma ligação entre seu assassinato e para o que quer que seja que a Sra. Valdon o contratou. Não há necessidade de explicar tudo: os botões; Anne Tenzer; o macacão; o bebê que estava hospedado com Ellen Tenzer; o bebê na casa da Sra. Valdon; a ida de Goodwin para Mahopac para ver Ellen Tenzer; sua partida súbita depois que falou com ele. O senhor nega que há uma conexão direta entre a visita de Goodwin a Ellen Tenzer e o assassinato?

      — Não. Também não afirmo. Não sei. O senhor também não sabe.

      — Tolice. — Cramer estava mais rouco. — Pode juntar os fatos tão bem quanto eu. Se quer dizer que nenhum de nós pode prová-lo, está bem, mas o senhor pretende fazer isso. Não sei para que a Sra. Valdon o contratou, mas sei muito bem que pretende descobrir o assassino, contanto que não tenha sido ela. Não creio que fosse ela porque acho que o senhor sabe quem foi e, se fosse ela, já teria largado este caso. Posso lhe dizer por que penso que sabe quem é o assassino?

      — Por favor, diga.

      — Tenho certeza que gostaria de saber. O senhor nega isso?

      — Como hipótese, posso concordar.

      — Está bem. Está gastando o dinheiro da Sra. Valdon como se fosse água. Panzer, Durkin e Cather estão trabalhando nisso há três semanas. Vêm aqui todos os dias, às vezes duas vezes ao dia. Não sei o que estão fazendo, mas sei o que não estão fazendo, e Goodwin também. Estão ignorando totalmente Ellen Tenzer. Nenhum deles foi a Mahopac, nem foi ver a Sra. Nesbitt, nem Anne Tenzer, nem verificou a vida de Ellen Tenzer, interrogou seus amigos ou vizinhos ou fez contato com qualquer dos meus homens. Não mostraram o mínimo interesse nela, inclusive Goodwin. Mas você gostaria de saber quem a matou. Portanto, a minha conclusão é que você já sabe.

      Wolfe resmungou: — Isso é muito capcioso, mas abandone esse raciocínio. Dou-lhe minha palavra de que não tenho a menor idéia de quem matou Ellen Tenzer.

      Cramer encarou-o: — Sua palavra?

      — Sim, senhor.

      Bem, isso decidia tudo. Por experiência própria, Cramer sabia que Wolfe, quando dava sua palavra, falava sério e não procurava enganar. Perguntou:

      — Então que diabos Panzer, Durkin e Cather estão fazendo? E Goodwin?

      Wolfe abanou a cabeça.

      — Não, senhor. O senhor acabou de dizer que sabe o que não estão fazendo. Não estão se intrometendo em seus negócios. Não estão investigando um homicídio. Nem o Sr. Goodwin. Nem eu.

      Cramer virou os olhos em minha direção: — Você está sob fiança.

      Concordei, dizendo: — O senhor deve saber disso.

      — Ficou a noite passada na casa da Sra. Valdon.

      Levantei uma sobrancelha: — Há duas coisas erradas com essa declaração. Primeiro, não é verdade. Segundo, mesmo que fosse verdade, o que isso teria a ver com o homicídio?

      — A que horas saiu.

      — Não saí. Ainda estou lá.

      Fez um gesto com a mão, virando a palma para cima:

      — Olhe, Goodwin. Você sabe que tenho de depender de relatórios. O homem que vigia das oito às duas horas disse que você chegou às nove horas e vinte e cinco minutos e não saiu. O homem das duas às oito horas disse que você não saiu. Quero saber qual dos dois não o viu sair. A que horas saiu?

      — Estava imaginando o que o trouxe aqui — disse eu. — Sabia que não podia ser homicídio, pelo modo como fala. Então você está checando os rapazes. Ótimo. A Sra. Valdon e eu estávamos um pouco altos à uma e quarenta e cinco, e resolvemos dançar na calçada numa noite de verão. Às duas e quinze ela entrou e vim embora. Por essa razão ambos não me viram. Também, é claro...

      — Você é palhaço e mentiroso. — Levantou a mão devagar e apertou o nariz. Olhou para Wolfe. Apanhou um charuto do bolso, olhou-o com raiva, enrolou-o entre as palmas das mãos, colocou-o na boca e apertou os dentes nele. — É só telefonar para Albany que consigo tirar-lhes a licença.

      — Sem dúvida — concordou Wolfe.

      — Mas são tão teimosos. — Tirou o charuto da boca. — Sabem que posso lhes tirar a licença. Sabem que posso levá-los para a central e fichá-los como testemunhas. Sabem que estarão vulneráveis a uma acusação de delito grave se não resolverem o caso. Mas são tão teimosos que não vou perder meu tempo tentando fazê-los falar.

      — Isso faz sentido.

      — Sei. Mas o senhor tem uma cliente. A Sra. Richard Valdon. Além de estarem escondendo provas, Goodwin e o senhor aconselharam-na a escondê-las também.

      — Foi isso que ela disse?

      — Não precisa dizer. Não banque o inocente. É claro que o senhor a instruiu. É sua cliente e está de boca calada. O promotor público pediu que fosse ao escritório e ela não quer ir. Por isso a levaremos lá.

      — Não acha um pouco arriscado? Numa cidadã com seus antecedentes e seu lugar de destaque na comunidade?

      — Não é arriscado, em vista do que sabemos que ela sabe. Goodwin foi ver Ellen Tenzer por causa dos botões do macacão. O macacão estava no bebê que a Sra. Valdon diz que foi deixado em seu vestíbulo e está agora na casa dela. Portanto...

      — O senhor disse que a Sra. Valdon está muda.

      — Ela contou a pelo menos duas pessoas que o bebê foi largado em seu vestíbulo... quando estava sozinha em casa. Não nos contou nada, mas se tiver um pouco de juízo, contará, se não tiver feito nada errado. Se estiver inocente nos contará tudo, inclusive por que motivo os contratou e o que os senhores já fizeram. Não acho que fosse nada sério como um rapto, porque conseguiu que o advogado legalizasse tudo, numa base temporária. Mas tenho certeza absoluta de que o bebê da sua casa é o que Ellen Tenzer tinha na casa dela até cerca do dia 20 de maio. Havia dois macacões na casa de Ellen Tenzer, exatamente iguais ao que Goodwin mostrou a Anne Tenzer, com botões do mesmo tipo. Esses malditos botões!

      A mim me parecia que não tinha a menor importância ele estar tão aborrecido com botões, mas talvez tivesse tido uma entrevista com Nicholas Losseff. Ele continuou:

      — Então quero saber o que a Sra. Valdon e os senhores sabem a respeito daquele bebê. O promotor público não pode conseguir nada através de seu advogado ou de seu médico, é lógico que a informação deles é confidencial. A enfermeira, a diarista e a cozinheira não têm privilégios, mas, se sabem alguma coisa, foram arroladas. A enfermeira diz que a única coisa que sabe é que é um menino, está com saúde e tem aproximadamente cinco a sete meses de idade. Portanto, a Sra. Valdon não é a mãe dele. Ela não teve um bebê em dezembro ou janeiro.

      — Já lhe dei minha palavra — disse Wolfe — que não sei quem matou Ellen Tenzer.

      — Eu ouvi.

      — Agora lhe dou minha palavra que não sei mais do que o senhor sobre esse bebê: não sei quem são seus pais, de onde veio nem quem o colocou no vestíbulo da Sra. Valdon.

      — Não acredito.

      — Tolice. É claro que acredita. Sabe muito bem que eu nunca desonraria essa frase.

      Cramer encarou-o aborrecido: — Então, em nome de Deus, o que é que sabe? Para que é que foi contratado? Por que a manteve escondida? Por que disse para ela ficar de bico calado?

      — Fui consultado em confiança, para manter segredo. Por que me negam um privilégio que é dado a advogados e médicos, mesmo àqueles que não são dignos disso? Ela não violou nenhuma lei, não fez nada que tivesse de prestar contas, não tinha conhecimento de nenhuma ofensa questionável. Não havia...

      — Ela o contratou para fazer o quê?

      Wolfe concordou: — Aí está o ponto. Se lhe contar, com todos os detalhes, ou se ela lhe contar, será alvo de todas as atenções públicas. Quando deixaram o bebê no seu vestíbulo, estava embrulhado num cobertor, e dentro, preso ao cobertor com um alfinete comum, de cabeça, estava um pedaço de papel com uma mensagem. A mensagem fora impressa com carimbos de borracha — um desses conjuntos que são usados quase só por crianças. Portanto...

      — O que o bilhete dizia?

      — O senhor está interrompendo. Portanto, como pista, era inútil. Foi a mensagem que obrigou a Sra. Valdon a me procurar. Se eu...

      — Onde está ela?

      — Se lhe dissesse o que a mensagem trazia, a minha cliente estaria sujeita a uma publicidade vulgar. E...

      — Quero aquela mensagem e quero agora!

      — O senhor já me interrompeu quatro vezes, Sr. Cramer. Minha tolerância não é infinita. É claro que o senhor diria, de boa fé, naturalmente, que a mensagem não seria publicada, mas sua boa fé não é o bastante. Tenho certeza de que asseguraram à Sra. Nesbitt que seu nome não se tornaria público, mas se tornou. Por isso, guardo a mensagem. Eu ia dizendo que isso não o ajudaria a encontrar o assassino. Exceto por esse único detalhe sem importância, o senhor sabe tudo que sei, agora que encontrou minha cliente. Quanto ao fato de a Sra. Valdon ter me contratado, creio que está evidente. Tentei descobrir a mãe do bebê. Há três semanas que eles procuram isso, e só isso: o Sr. Goodwin, Sr. Panzer, Sr. Durkin e Sr. Cather. Perguntou se estou sem saída. Estou. Não sei mais o que fazer.

      — Aposto que está. — Os olhos de Cramer estavam quase cerrados. — Se não quer dizer o texto da mensagem, por que me falou a respeito dela?

      — Para explicar por que a Sra. Valdon está tendo tanto trabalho com um bebê que foi deixado em seu vestíbulo. Para evitar que a amolassem, tive que lhe contar que ela me contratou, e dizendo-lhe isso, tinha que explicar o porquê.

      — É claro que o senhor está com a mensagem.

      — Talvez esteja. Se tem idéia de arranjar uma ordem judicial para apresentá-la, não estará disponível. É melhor não ter esse trabalho.

      — Não terei. — Cramer levantou-se. Deu um passo, jogou o charuto na minha cesta de papéis, mas errou, como de hábito. Olhou para Wolfe: — Não acredito que houvesse uma mensagem. Reparei que não usou aquela frase famosa. Quero a verdadeira razão por que a Sra. Valdon está gastando uma fortuna num bebê que apareceu não se sabe de onde, e está com o bico calado, e se não conseguir a resposta com o senhor, juro por Deus, vou conseguir com ela. E se havia uma mensagem, vou conseguir isso também.

      Wolfe bateu na mesa com o punho:

      — Depois de tudo isso! — rugiu ele. — Depois de ter feito o possível para agradá-lo! Depois de lhe ter dado minha palavra nos dois pontos essenciais! O senhor iria molestar minha cliente!

      — E pode jurar que vou!

      Cramer deu um passo em direção à porta, lembrou-se do chapéu, esticou-se por cima da poltrona vermelha para apanhá-lo e saiu. Fui até o corredor para ter certeza de que saíra mesmo, ao bater a porta. Quando voltei, Wolfe me falou:

      — Não mencionou cartas anônimas. Seria um estratagema?

      — Não. Do jeito que está se sentindo, usaria qualquer arma que tivesse. Por isso não foi Upton. Não que isso tenha importância. Havia uma dúzia de pistas que levavam até ela.

      Ele aspirou o ar profundamente pelo nariz e deixou-o escapar pela boca.

      — Ela não sabe nada que ele não saiba, exceção feita à mensagem. Será que você deveria aconselhá-la a falar, só não dizendo isso?

      — Não. Se responder a dez perguntas, eles farão mais um milhão de outras. Vou lá lhe dizer o que esperar, e lá estarei quando chegarem com a ordem judicial. Sugiro que telefone para Parker. Amanhã é dia 4 de julho e arranjar fiança num feriado às vezes se torna um problema.

      — Que miserável! — resmungou e, ao me encaminhar para a porta da rua, estava imaginando a quem ele se referia, se ao Cramer ou à cliente.

     

Quando Saul Panzer telefonou às três e meia no sábado à tarde, dia 7 de julho, para dizer que investigara o último elo da lista de adoção e, portanto, excluíra a garota que trabalhava no escritório de Willis Krug, estava terminado o segundo estágio em busca da mãe. Nós cinco (pois também podia incluir Wolfe) tínhamos executado um magnífico trabalho, investigáramos 148 mulheres e mocas e as excluíramos sem que ninguém se aborrecesse. Muito satisfatório. Besteira. Disse a Saul que era só por agora, mas que talvez houvesse mais trabalho mais tarde. Fred e Orrie já tinham sido dispensados.

      Wolfe estava sentado e olhava aborrecido para qualquer coisa que seus olhos focalizassem. Perguntei se tinha alguma tarefa para mim e, quando me lançou um olhar que a situação merecia, mas eu não, disse que ia à praia tomar um banho de mar e voltaria domingo à noite. Nem me perguntou onde poderia me encontrar, mas, antes de sair, deixei um papel sobre a mesa com o número de telefone que pertencia à casinha em Long Island que Lucy Valdon alugara para veraneio.

      O latido de Cramer fora pior do que a mordida do promotor público. O nome dela não saiu nem nos jornais. Terça-feira ao meio-dia, ao chegar na Rua 11 lhe dizer quem viria, teve um pequeno ataque de medo e quase não almoçou. Mas quando um tira do Departamento de Homicídios chegou, cerca das três horas, não trazia nem um mandado. Só um pedido por escrito, assinado pelo próprio promotor público. Quatro horas mais tarde, quando telefonou, já estava em casa. O capitão encarregado do Departamento e dois promotores assistentes tinham-na interrogado, cada qual por sua vez, e um deles fora bastante severo, mas não perdera a calma. Quando se encontra alguém que não quer falar, só resta uma opção: sentar-se e olhar para ela ou prendê-la. Ela era uma Armstead, tinha uma casa, muitos amigos e a possibilidade de ter assassinado Ellen Tenzer, ou de saber quem o fizera, era uma em dez milhões. Assim, ela passou o 4 de julho na casa da praia com o bebê, a enfermeira, a criada e a cozinheira. A casa tinha cinco quartos e seis banheiros. O que aconteceria se todos os banheiros estivessem ocupados e um tira do Departamento de Homicídios aparecesse e quisesse tomar banho? Temos que estar preparados para todas as eventualidades.

      Em geral, quando me afasto, me esqueço do escritório e do trabalho em andamento, caso haja algum, e em especial esqueço-me de Wolfe. Mas, naquele domingo na praia, minha anfitriã era a cliente, e quando ela estava lá dentro dando comida ao bebê, deitei-me na areia, enquanto examinava a situação. Uma tristeza total, absoluta. Num trabalho, é comum acontecer que, à primeira vista, pareça não haver lugar onde começar, mas sempre se encontra alguma coisa onde beliscar. Esse era diferente. Há quase cinco semanas que trabalhávamos no caso, seguíramos duas pistas e ambas as vezes chegáramos a um beco sem saída e não conseguia imaginar nenhuma outra pista. Estava quase pronto a aceitar a idéia de que Richard Valdon não era o pai do bebê, que nunca encontrara a moça que era a mãe do bebê, e que ela era alguma louca. Provavelmente lera seus livros ou o vira na televisão, e ao ter um bebê que não podia manter ao seu lado, decidira arranjar um jeito de que se chamasse Valdon. Se fosse uma loucura desse tipo, seria como procurar uma agulha num palheiro, e nossa única esperança era esquecer a mãe e tentar descobrir o assassino, o que os tiras vinham tentando há um mês. Era pelo menos 99% de tristeza. Deitado de costas na areia, meus olhos fechados, disse alto um palavrão, e ouvi a voz de Lucy:

      — Archie! Acho que deveria ter feito algum barulho para avisar que estava aqui.

      Levantei-me às pressas e fomos para a água.

      E na segunda-feira de manhã, às onze horas, Wolfe entrou no escritório como se fosse a um lugar determinado, pôs as orquídeas no vaso e, sem olhar para a correspondência, disse:

      — Seu caderno de anotações.

      Assim começou o terceiro estágio.

      Na hora do almoço, já discutíramos o último detalhe do projeto e só restava levá-lo avante, o que era de minha responsabilidade. Só levei três dias para arrumar tudo, mas ainda demorou uns quatro dias até que as coisas começassem a acontecer, porque a Gazette de domingo só sai aos domingos. Meus três dias foram passados da seguinte forma:

      SEGUNDA-FEIRA À TARDE: Voltei à praia para negociar a idéia com a cliente; ela não aceitou, então fiquei para o jantar. Não era tanto pelo fato de voltar à cidade que ela não aprovava, era a propaganda, e se eu não tivesse misturado o relacionamento pessoal com o profissional não teria conseguido sua aprovação. Quando parti, ela já me prometera estar de volta à Rua 11 até o meio-dia de quarta-feira, e ficar quanto tempo fosse necessário.

      TERÇA-FEIRA DE MANHÃ: Fui falar com Al Posner, co-proprietário da Posart Camera Exchange, na Rua 47, a fim de persuadi-lo a ir me ajudar a comprar um carrinho de bebê. Depois de voltar à sua loja com ela, deixei-o com a tarefa de escolher as câmeras e instalá-las, depois de explicar como seriam usadas. Prometeu que teria tudo pronto até quarta-feira ao meio-dia.

      TERÇA-FEIRA À TARDE: Fui ao escritório de Lon Cohen, no 20.° andar do Prédio da Gazette. Se Lon tem um título, não sei qual é. Na porta da saleta, a segunda porta no corredor de quem vem do grande escritório de canto do editor, só aparece seu nome. No decorrer dos anos, já estive lá mais de 100 vezes e, em pelo menos 70 delas, estava num dos três telefones na sua mesa quando entrei. Naquela terça-feira também estava. Sentei-me na poltrona ao lado da mesa e esperei.

      Desligou, passou a mão no seu cabelo escuro, liso, girou a cadeira e me encarou, fixando seus olhos pretos e espertos em mim:

      Onde ficou assim queimado de sol?

      — Eu não me queimo. Você não entende nada de cores. — Bati levemente no meu rosto: — Moreno castanho-avermelhado .

      Ao decidir esse assunto, ou melhor, não decidir, cruzei minhas pernas: — Você é um sujeito de sorte. Só porque eu gosto de você, dentro dos limites, é claro, entro aqui e lhe dou uma história exclusiva, que qualquer jornal na cidade daria 1.000 dólares para ter.

      — Não acredito.

      — Isso não é um cavalo dado, que não se pode olhar os dentes. Já ouviu falar em Lucy Valdon? A viúva de Richard Valdon, o escritor?

      — Já.

      — Será uma edição de domingo, página inteira, a maior parte com fotografias. Um título bem sugestivo, assim como: AS MULHERES GOSTAM DE BEBÊS. Se houver texto, será pequeno, feito por um de seus artistas da palavra. Vai dizer que a Sra. Valdon, jovem, bonita, rica, viúva de um homem famoso, não tendo filhos, trouxe um bebê para sua casa luxuosa e está cuidando dele carinhosamente. Contratou uma enfermeira, muito experiente, que é muito devotada ao garotinho, que está aprendendo a andar ... não, ele ainda não anda. Talvez devesse dizer anjinho ou um bebê inocente. Não sou eu que vou escrever. A enfermeira leva-o para passear duas vezes ao dia, em um carrinho muito caro, das dez às onze da manhã e de quatro às cinco da tarde, na Praça Washington, para que ele possa apreciar as maravilhas da natureza: árvores, grama e assim por diante.

      Agitei as mãos: — Que poema! Se tiver um poeta na folha de pagamento, ótimo, mas tem que incluir todos os detalhes. As fotografias ficam a seu critério: a Sra. Valdon alimentando o bebê, ou dando banho nele, se gosta de nus; mas uma fotografia tem que aparecer: a da enfermeira com o carrinho de bebê na Praça Washington. Nisso eu insisto. Também vai ter que sair no próximo domingo. As fotografias podem ser tiradas amanhã à tarde. Pode me agradecer quando quiser. Alguma pergunta?

      Quando abriu a boca, pela sua expressão, vi que não era para me agradecer, mas um dos telefones tocou. Atendeu o telefone verde, ouviu e falou, mas principalmente ouviu e desligou.

      — Você tem a ousadia de um homem de uma perna só numa convenção de chutes no rabo — disse-me.

      — Isso não apenas é irrelevante — disse eu —, é vulgar.

      — Não é, não. Talvez você se lembre de que um dia, há um mês, quando esteve aqui fazendo perguntas sobre Ellen Tenzer, lhe perguntei se encontrara os botões.

      — Agora que mencionou, me lembrei.

      — E você evitou o assunto. OK, mas agora ouça o que quer. Você sabe mais sobre os botões do que eu, mas sei uma coisa: esses botões foram feitos por Ellen Tenzer e usados na roupa do bebê que está com Lucy Valdon e sei que foram encontrados alguns botões iguais em macacões de bebê guardados na casa de Ellen Tenzer, que já esteve com um bebê em sua companhia. Ela foi assassinada na noite seguinte em que você a viu. E agora você chega com essa história sobre Lucy Valdon e um bebê, e me pergunta se tenho alguma dúvida. Tenho. O bebê que está na casa de Lucy Valdon é o mesmo que estava na casa de Ellen Tenzer?

      É claro que eu sabia que isso ia acontecer. Respondi:

      — Confidencialmente?

      — Está bem.

      — Até lhe dizer que pode falar. Eu disse que concordava.

      — Então, sim.

      — Lucy Valdon é a mãe dele?

      — Não.

      — Não pergunto se é cliente de Wolfe, porque isso é óbvio. Se não fosse, você não a teria escolhido para essa comédia. Quanto à palhaçada, dispenso. Não dá.

      — Não acontecerá nada, Lon. Ela vai assinar concordando.

      Ele abanou a cabeça:

      — Isso não ajudaria em nada se alguém jogasse uma bomba. É quase certo que Ellen Tenzer foi assassinada por causa do bebê. Esse bebê é perigoso, não sei por que, mas é. Você está me pedindo para chamar a atenção sobre ele, não só a respeito de onde mora, mas onde pode ser visto na rua duas vezes por dia. Seria formidável. A Gazette dá a notícia, e no dia seguinte raptam o bebê, ou o atropelam e matam, ou Deus sabe o quê. Nada feito, Archie. Obrigado pela visita.

      — Posso lhe garantir, com toda a certeza, que não haverá esse risco. Nenhum risco, mesmo.

      — Não é suficiente.

      Descruzei as pernas: — Tudo que dissermos é confidencial.

      — Claro.

      — Então estamos entendidos. Aposto um contra mil de que não haverá rapto ou qualquer outra encrenca. Há cinco semanas, a Sra. Valdon contratou Nero Wolfe para descobrir quem é a mãe do bebê. Alguém o deixara no vestíbulo de sua casa, e ela nada sabia a seu respeito e ainda não sabe. Gastamos bastante do dinheiro dela e muito do nosso tempo e energia em busca da mãe, e nada. Ainda estamos procurando. Esta tentativa é baseada na teoria de que uma mulher que teve um bebê há seis meses e largou-o em qualquer lugar, não importa por que motivo, gostaria de ver a carinha dele. Verá a página na Gazette, irá à Praça Washington, reconhecerá a enfermeira e o carrinho do bebê pela fotografia e vai dar uma olhada.

      A cabeça de Lon inclinava-se para um lado:

      — E se não souber que o bebê dela está com a Sra. Valdon?

      — Provavelmente sabe. Se não souber, estamos gastando mais tempo, energia e dinheiro.

      — A circulação da Gazette é de cerca de dois milhões. Se contarmos a história, no dia seguinte haveria uma multidão de mulheres em volta do carrinho do bebê. E aí?

      — Espero que não seja uma multidão. Algumas mulheres, sim. A enfermeira será uma detetive, a melhor operadora feminina que há por aí. Talvez tenha ouvido falar nela: Sally Corbett.

      — Já ouvi.

      — Saul Panzer, Fred Durkin e Orrie Cather estarão por perto, ao alcance da voz. O carrinho do bebê terá três câmeras fotográficas escondidas, e a enfermeira sabe como usá-las. Vai fotografar todas as pessoas que se aproximarem para olhar o bebê, e os retratos vão ser mostrados à Sra. Valdon. Como o bebê foi deixado no vestíbulo dela, talvez a mãe seja alguém que ela possa reconhecer. Vamos também mostrar as fotografias para outras pessoas, cujo nome não precisa saber. É claro que tudo isso depende de uma dúzia de possibilidades, mas o que é que não depende? Se você atravessar a rua com o sinal verde talvez chegue vivo em casa. Se sabe o que é bom para seu jornal, vai agarrar essa matéria exclusiva. Se publicá-la e der certo, talvez possamos lhe dar o retrato da mãe e a história de como o conseguimos.

      — Isso tudo é sério, Archie?

      — Tão sério como um ás, rei, dama, valete e dez.

      — Quem matou Ellen Tenzer?

      — Como diabos vou saber? Pergunte aos tiras ou ao promotor público.

      — Você disse que Panzer, Durkin e Cather estarão por perto. E você?

      — Não. Alguém podia me reconhecer. Sou uma celebridade. A Gazette publicou minha fotografia três vezes nos últimos quatro anos.

      Abaixou a cabeça durante cinco segundos, enquanto esfregava o queixo com a ponta de um dedo. Encarou-me:

      — Está bem. As fotografias têm que estar prontas até quinta-feira às oito da manhã para poderem sair no domingo.

      Levamos uma hora para decidir todos os detalhes porque fomos interrompidos por quatro telefonemas.

      CONTINUAÇÃO DE TERÇA-FEIRA À TARDE: Fui ao escritório de Dol (Theodolinda) Bonner, na Rua 45, a um encontro que tinha marcado com Sally Corbett, naquela manhã pelo telefone. Há seis anos, Dol e Sally foram responsáveis pela minha mudança de atitude em relação às operadoras femininas, e isso me fazia ficar contra elas, assim como Wolfe era contra Jane Austen por forçá-lo a admitir que uma mulher podia escrever uma boa novela. Naquela tarde Sally me provou, mais uma vez, que tinha mesmo de mudar de idéia. Só tomou nota do que era necessário, mas seus olhos de cor azul-escura mostravam curiosidade, e fez apenas as perguntas que precisava. Combinamos nos encontrar na manhã seguinte na Posart Camera Exchange.

      QUARTA-FEIRA DE MANHÃ: Sally e eu passamos mais de duas horas numa sala nos fundos da loja Posart Camera Exchange com dois mecânicos, vendo como instalavam e testavam as câmeras. Se fosse comprá-las, a cliente gastaria 1.600 dólares, mas Al Posner alugara-as para mim por uma semana. Mostraram a Sally como lidar com as câmeras, mas mais tarde explicariam tudo melhor. Levei-a para almoçar no Rusterman.

      QUARTA-FEIRA À TARDE: Fui à casa dos Valdon com Sally. Lucy voltara da praia na terça-feira à noite. Já combinara com a enfermeira que durante mais ou menos uma semana outra pessoa levaria o bebê para passear, assim, a enfermeira poderia descansar um pouco. Também acertara tudo com a empregada e com a cozinheira. Não sei como explicou o carrinho de bebê todo incrementado, que chegara um pouco antes de nós. Quando o pessoal da Gazette chegou, um pouco antes das três horas — uma jornalista, um fotógrafo e o ajudante — Sally já estava de uniforme, a enfermeira já partira com a tarde de folga, o carrinho estava todo equipado e Lucy precisava de um drinque.

      Fotógrafos de jornal trabalham rápido, e às três horas e trinta minutos terminaram de tirar os retratos de Lucy e Sally, no quarto do bebê. Fui junto até à Praça Washington, para ver como Sally se saía com um carrinho de bebê. Nunca fizera um estudo a esse respeito, mas achei que se saiu bem, arrastando um pouco os pés e com os ombros caídos. Quando voltei para a casa de Lucy, a jornalista ainda estava lá com ela, mas foi logo embora e fiz os martinis.

      QUINTA-FEIRA, SEXTA-FEIRA E SÁBADO: Fui à Gazette de manhã cedo para ver tudo. A fotografia que haviam escolhido, de Sally com o carrinho e o bebê, na praça, era perfeita. As outras duas, no quarto do bebê, uma de Lucy com o bebê no colo e uma de Sally escovando o cabelinho do bebê enquanto Lucy observava, eram boas fotografias; mas Lucy não tinha a aparência de uma mãe coruja. Parecia uma mulher tentando sorrir apesar de uma dor de dentes. Lon disse que as outras fotos ainda estavam piores. Não vi motivo para publicar um retrato que tiraram na frente da casa, mas não fiz objeções. Lon aprovou as quatro modificações que fiz no texto.

      Sally levou o bebê no carrinho para a Praça Washington para dar um passeio duas vezes ao dia, durante três dias. Mas praticou com a câmera dentro de casa, no quarto grande do segundo andar, com Al Posner, Lucy e eu. Precisavam de Lucy porque era dezessete centímetros mais baixa do que eu e tínhamos que cobrir todos os ângulos. Duas câmeras estavam escondidas nos enfeites nas extremidades das barras por onde se empurrava o carrinho, e a outra estava numa caixa estreita na frente do carrinho, com um chocalho e outros brinquedos. Essa última operava-se por controle remoto. Durante aqueles três dias tiraram meu retrato umas mil vezes, pelo menos. Os de quinta-feira estavam, na maioria, fora de foco, os de sexta-feira estavam melhores, mas no sábado pela manhã Sally acertara tudo direitinho. Qualquer pessoa que se aproximasse a uma distância de 6 metros ou menos do bebê ia ser bem fotografada.

      Saul, Fred e Orrie estiveram na velha casa de tijolos no sábado à noite até depois da meia-noite. A primeira meia hora foi no escritório, recebendo instruções (Saul é quem ia decidir onde todos ficariam na praça de manhã) e as últimas três horas foram passadas na sala de jantar comigo, jogando pinocle e bebendo alguma coisa.

      DOMINGO DE MANHÃ: Tomei café na cozinha às nove horas e trinta minutos. Às dez horas, no momento em que Sally entraria na praça empurrando o carrinho, eu estava comendo meu terceiro bolinho de creme, enquanto com a mão esquerda segurava a Gazette aberta na página inteira com a entrevista: AS MULHERES ADORAM BEBÊS. É uma questão de gosto. Na minha opinião, seria mais sutil dizer: AS MULHERES GOSTAM DE BEBÊS.

     

Quando Lon Cohen disse que haveria uma multidão, achei que talvez estivesse exagerando algo, possivelmente o efeito causado pela Gazette. No domingo conseguimos 26 retratos: sete de manhã e 19 de tarde. Eu estava na casa quando Sally voltou com o carrinho e seu conteúdo pouco depois das cinco horas, e ajudei-a a retirar os filmes. A câmera na caixa da frente do carrinho do bebê só tirara duas fotos, mas enrolamos o filme e o retiramos. Do modo como gastávamos o dinheiro da cliente, mais alguns dólares não era nada.

      Vinte e quatro horas depois ainda não sabíamos se havíamos conseguido ou não um retrato da mãe. A única coisa que sabíamos é que Lucy não reconhecera nenhuma das 26 pessoas, e Julian Haft, Leo Bingham e Willis Krug disseram que também não. De manhã, Wolfe falara ao telefone com cada um deles, pedira-lhes que olhassem algumas fotografias, sem explicar como as conseguíramos. Quando Wolfe recebera seis cópias de cada mandadas por Al Posner, ao meio-dia, mandara as fotos para eles por um mensageiro. Às cinco horas todos já haviam telefonado. Todos os três não reconheceram ninguém. Levei um conjunto para Lucy e ela examinou-o bem. Não estava certa sobre uma delas, mas a mulher que talvez fosse conhecida estava na sua lista e a possibilidade de ela ser a mãe fora eliminada por Saul. Convidou-me para ficar lá até que Sally voltasse do passeio da tarde com o bebê e retirasse o rolo de filmes do dia. Mas queria estar na Rua 35 para receber os relatórios de Krug, Haft e Bingham.

      Às quatro horas e vinte minutos Haft e Bingham já haviam telefonado, mas Krug não, e quando o telefone tocou pensei que fosse ele. Mas logo ao começar a dizer as palavras de rotina, fui interrompido.

      — É Saul, Archie. Estou numa cabine na Praça da Universidade.

      — E...?

      — Talvez tenhamos alguma coisa. Alguma coisa que pensamos que pudesse acontecer. Às quatro horas e quatro minutos um táxi parou no lado norte da praça, em estacionamento duplo, e uma mulher saiu. Atravessou a rua e olhou em volta. O táxi ficou parado. Ela viu o carrinho do outro lado da praça, dirigiu-se para ele e chegou bem perto. Não se inclinou nem pôs a mão no carrinho ou dentro dele, mas falou com Sally. Ficou de pé a fitá-lo menos de um minuto — quarenta segundos. O carro de Orrie estava logo depois da esquina, mas com o táxi esperando não ia adiantar. Voltou para o táxi e foi embora. Era um Paragon. Quer que fique aqui até às cinco horas?

      — Não. Encontre aquele táxi.

      — Quer o número?

      — Claro. Alguém pode atropelá-lo ou algo assim.

      Deu-me então o número de registro do táxi, anotei-o e disse que estaria na rua das quatro horas e quarenta e cinco minutos até às seis horas apanhando os filmes com Sally e levando-os para Al Posner. Ao desligar fiquei sentado por um minuto, respirando, mais satisfeito do que vinha me sentindo há semanas. Então toquei o interfone para a estufa.

      — Sim?

      — Parabéns. Sua teoria de que uma mulher que teve um bebê há seis meses gostaria de ver com quem se parece era válida. A idéia de ter os homens e as câmeras também foi válida. Vou sair dentro de 10 minutos e achei que gostaria de saber. Dois contra um que achamos a mãe. Aposto três contra um.

      — Favor fazer seu relatório.

      — Com prazer. — E expliquei tudo o que sucedeu. — Se ela é a mãe, já a pegamos. Descobrir onde o táxi a levou talvez não ajude muito, mas é claro que Saul saberá qual é a fotografia. Parabéns.

      — É satisfatório — disse ele e desligou.

      Krug telefonou uns minutos depois — quando eu já estava de saída — para dizer que não reconhecia ninguém nas fotos que lhe mandara, mas talvez tenha ficado surpreso ao notar que eu estava tão alegre.

      As fotografias de segunda-feira foram o dobro das de domingo. Sally mudara os filmes ao meio-dia, portanto, havia seis rolos. Ao todo 54 fotos e uma delas valia seu peso em rubis. Levei-as para a Rua 47 antes das seis horas, mas Al não podia revelá-las naquela noite: dois empregados estavam de férias, um estava em casa doente e estava cheio de serviço. Acabei conseguindo convencê-lo a abrir e me deixar entrar às oito horas da manhã, e levei os filmes para casa comigo. Quando estávamos à mesa do jantar, Saul telefonou. O nome do motorista do táxi era Sidney Bergman e aceitara bem os 5 dólares. Apanhara a passageira na Avenida Madison, entre a Rua 52 e a Rua 53, levara-a direto à praça, e na volta deixara-a na Rua 52 esquina com a Park. Nunca a havia visto antes e nada sabia sobre ela. Disse a Saul para ficar de olhos abertos na praça pela manhã — talvez a mulher voltasse para dar mais uma olhada — e vir depois para o escritório e me esperar.

      Só cheguei ao escritório com as fotografias na terça-feira, quando faltavam quinze minutos para o meio-dia. Podia ter chegado meia hora mais cedo, mas fiquei no Posart Camera Exchange embrulhando fotos para Al mandar para Krug, Haft e Bingham. Se Lucy não a conhecesse, talvez um deles soubesse quem era. Wolfe estava à escrivaninha bebendo cerveja, e Saul, na poltrona vermelha, bebendo vinho. Na mesinha ao seu lado estava uma garrafa de Corton Charlemagne. Aparentemente estavam discutindo literatura; havia três livros na escrivaninha de Wolfe e um aberto na sua mão. Entrei, sentei e fiquei ouvindo. Era literatura. Levantei-me para sair e fui interrompido pela voz de Wolfe:

      — Sim, Archie?

      Virei-me.

      — Detesto interromper. — Cheguei perto de Saul. — Quer comprar retratos sujos, senhor? — Entreguei-os a ele.

      — Ela não apareceu hoje de manhã — disse ele. As mãos eram tão ágeis com as fotos como com as cartas do jogo de pôquer. Bastava um olhar de relance em cada uma até que chegou quase no meio, quando inclinou uma para ver melhor, à luz, balançou a cabeça e estendeu-a:

      — É ela.

      Apanhei o retrato. Era uma foto bem nítida, vendo-se três quartos do rosto, de um ângulo de baixo para cima, como a maioria das outras fotografias. Testa larga, olhos bem distanciados, nariz um pouco estreito, boca um tanto grande, o queixo um pouco pontudo. Os olhos estavam fixos, focalizados à direita, concentrados.

      — Ela pode ser atraente — disse eu.

      — E é — disse Saul. — Tem um jeito de andar muito altaneiro e delicado.

      — E como é?

      — Tem um metro e setenta e pesa uns setenta quilos. Mais de 30 anos.

      — O envelope, por favor. — Devolveu-me o envelope e pus a fotografia com as outras e o envelope no meu bolso. — Desculpe ter interrompido os senhores. Tenho um assunto para tratar. Se precisarem de mim, sabem o número da Sra. Valdon. — Virei-me e saí.

      As relações de Lucy comigo, desde domingo, estavam um pouco estremecidas. Não, não era bem assim. Era a sua relação com o mundo que estava estremecida, e era eu que estava por perto. Seu advogado lhe telefonara no domingo à noite, sobre o artigo da Gazette, e na segunda-feira viera até sua casa para conversar. -Achava que ela estava se arriscando e era contra isso. Sua melhor amiga, Lena Guthrie, desaprovava ainda mais, e recebera cerca de uma dúzia de telefonemas de outros amigos, para não mencionar os dos inimigos, e devido a um comentário que fez na segunda-feira à tarde, calculei que Leo Bingham fora um deles.

      Assim, a atmosfera estava tensa, e quando cheguei na terça-feira e Marie Foltz me mandou subir para o segundo andar, fiquei quase meia hora sozinho na sala enorme. Quando a cliente finalmente apareceu, parou a três passos de distância e perguntou:

      — Alguma coisa de novo, Archie?

      — Só as fotografias de ontem — respondi.

      — Ah! Quantas são?

      — São 54.

      — Estou com dor de cabeça. Preciso vê-las agora?

      — Talvez não. — Tirei o envelope do meu bolso, procurei entre as fotografias e dei-lhe uma para ver. — Veja essa. É especial.

      Ela deu uma olhada rápida: — O que há de especial nela?

      — Aposto três contra um que ela é a mãe. Veio num táxi e mandou-o esperar enquanto localizava o carrinho de bebê, foi lá, deu uma boa olhada, de quase um minuto, e voltou para o táxi. Você a conhece?

      Outro olhar rápido: — Não.

      — Você se importaria de levá-la até à luz e olhar bem para ter certeza?

      — Não... Está bem. — Foi até à lâmpada da mesa, acendeu-a e fixou os olhos, franzindo as sobrancelhas. Virou-se: — Talvez já a tenha visto em algum lugar.

      — Então esqueça-se da dor de cabeça, de todas as dores de cabeça, e olhe bem outra vez. É claro que, mais cedo ou mais tarde, iremos encontrá-la, mas hoje faz seis semanas que contratou Nero Wolfe para encontrar a mãe do bebê, e já gastamos um bocado do seu dinheiro, e você teve bastante desgostos. Caso consiga identificá-la, vai economizar tempo, dinheiro e evitar aborrecimentos. Sente-se perto da lâmpada, está bem?

      Fechou os olhos, esfregou a testa com a mão e sentou-se. Não olhou a fotografia de novo, só fez sentar-se e ficar olhando para longe, testa franzida, lábios apertados. De repente, virou a cabeça rápido em minha direção e disse:

      — É claro. Carol Mardus.

      Dei uma risada: — Sabe, durante essas seis semanas já a vi desde alegre até triste, mas nunca a vi realmente abatida como agora. Ri-me porque é engraçado.

      — Não acho graça.

      — Eu acho. Sinto-me ótimo. Tem certeza de que é Carol Mardus?

      — Sim. Claro. Não devia ter custado tanto a lembrar-me.

      — Quem é e o que faz?

      — Foi ela quem ajudou Dick no começo. Era quem lia os livros para Distaff, e convenceu Manny Upton a aceitar as histórias de Dick. Mais tarde, colocou-a como editora de ficção. O que é até hoje.

      — Editora de ficção da Distaff?

      — Sim.

      — Não estava na sua lista?

      — Não. Nem pensei nela. Só a vi duas ou três vezes.

      — C-A-R-O-L M-A-R-D-I-S?

      — U-S.

      — Casada?

      — Não pelo que eu saiba. Foi casada com William Krug e divorciou-se.

      Levantei as sobrancelhas.

      — Isso é interessante. Não estava na lista dele. Há quanto tempo se divorciaram?

      — Não sei ao certo. Creio que há quatro ou cinco anos. Só a conheci após ter casado com Dick, assim como a Willis.

      — Tenho de lhe fazer uma pergunta. Se ela é a mãe, e agora aposto dez contra um, qual a possibilidade... não, possibilidade, não. Até que ponto é verossímil o fato de Dick ser o pai?

      — Não sei. Já lhe contei sobre Dick, Archie, Sei que foram bem íntimos, há muitos anos... não, não sei, na verdade, mas alguém me contou. Mas se ela é a mãe... —De repente levantou-se. — Vou vê-la. Vou lhe fazer umas perguntas.

      — Agora não. — Ia segurá-la pelo braço, mas parei. Só se deve misturar relações pessoais com as profissionais caso seja necessário. — Vou-lhe dar uma ordem. Já fiz alguns pedidos e sugestões, e lhe convenci a fazer algumas coisas, mas nunca lhe dei uma ordem. Agora vou dar. Não mencione Carol Mardus a ninguém, ninguém mesmo, até que eu permita. Não vai vê-la nem lhe telefonar. Está bem?

      Ela sorriu: — Desde que meu pai morreu, ninguém me deu uma ordem.

      — Então já não é sem tempo. Vai fazer o que mandei?

      — Aperte aqui. — Esticou a mão e eu a apertei.

      A atmosfera se normalizou outra vez, mas havia trabalho para fazer. — Como cliente, você é o crème de la crème. Preciso dar um telefonema de negócios.

      Na extremidade da sala havia um telefone dentro de um armário. Fui até lá, abri a portinha e disquei. Não ficaria surpreso se Fritz atendesse, pois estavam tão imersos em literatura, mas quem atendeu foi Saul. Disse-lhe que seria mais rápido se eu pudesse falar com Wolfe, que logo atendeu:

      — Sim?

      — Estou na casa da Sra. Valdon. Ela conhece a mulher, mas não muito bem. O nome dela é Carol Mardus. — Soletrei-o. — É a editora de ficção da revista Distaff. O prédio da Distaff fica na Avenida Madison na Rua 52. Há alguns anos foi íntima de Valdon. Depois mandarei mais detalhes. Parabéns de novo. Se não é a mãe do bebê então deve saber quem é, com certeza. Vou agora sair para descobrir o que fazia em janeiro.

      — Não — disse Wolfe. — Saul vai.

      — Espere um instante, fui descuidado. — Virei-me para Lucy. — Disse que já a viu umas duas ou três vezes. Viu-a no último inverno?

      Abanou a cabeça: — Estava pensando nisso. Não a vi desde que Dick morreu.

      Virei-me para o telefone: — Saul? A Sra. Valdon não a vê desde setembro. Não se aproxime muito dela, talvez ela estrangule da mesma forma que anda: macia e corretamente. Era casada com Willis Krug, mas se separaram há quatro ou cinco anos. Você pode começar com ele, mas talvez não valha a pena. Talvez não queira que alguém lhe fale a esse respeito já que nem a colocou na lista. Tenho uma sugestão a fazer.

      — Qual é? — disse Wolfe.

      — O chefe dela é Manuel Upton. Há cinco semanas ele disse que se a Sra. Valdon quisesse um favor, era só pedir. Ela podia telefonar e perguntar se Carol Mardus estava por aqui no inverno passado. Mas ao invés de simplificar as coisas, talvez possa complicá-las.

      — É mesmo. Saul seguirá a rotina. Diga à Sra. Valdon para não mencionar Carol Mardus a ninguém.

      — Já disse.

      — Diga de novo. Fique com ela. Distraia-a. Não a perca de vista. — Clique, desligou.

      Coloquei o fone no gancho, fechei a porta do móvel, e virei-me para Lucy:

      — Saul vai investigar Carol Mardus. Você está sob minha responsabilidade. Devo conservá-la sob vigilância constante. O Sr. Wolfe compreende, sabe que você queria descobrir a mãe para lhe puxar o cabelo. Se você sair de casa, devo segui-la.

      Ela tentou sorrir: — Estou exausta, Archie — disse. — Carol Mardus!

      — Ainda não é certeza, só dez a um — respondi.

     

Dois dias mais tarde tínhamos certeza, às dez horas e vinte minutos da noite de quinta-feira, quando Saul deu seu último telefonema da Flórida.

      É claro que o assassinato de Ellen Tenzer é que complicava tudo. Se o assunto fosse só a busca da mãe, eu simplesmente poderia ir ver Carol Mardus, mostrar a fotografia e lhe perguntar como e onde passara o último inverno, e se ela tentasse fingir dir-lhe-ia que era fácil descobrir se estivera grávida e se tivera um filho e, respondendo às perguntas ela me economizaria tempo e trabalho. Mas era quase certo que, se era a mãe, ou assassinara Ellen Tenzer, ou sabia quem o fizera, ou suspeitava portanto, não era tão fácil.

      Ignorei as instruções de Wolfe sobre ficar de olho na cliente, já que ele próprio admite que mulher é a única coisa que conheço mais do que ele, e fui substituir Saul na Praça Washington. Ao chegar ao escritório, no fim da tarde de terça-feira, após ter levado os filmes para Al Posner, já havia novidades. Willis Krug, Julian Haft e Leo Bingham tinham telefonado para dizer que não reconheciam nenhum dos rostos nas 54 fotografias, coisa que, no caso de Krug, era surpreendente, já que fora casado com uma delas. Saul já telefonara duas vezes, a primeira antes das quatro horas, para falar com Wolfe antes que subisse para a estufa, declarando que Carol Mardus se ausentara de seu emprego na Distaff durante quase seis meses, desde o Dia do Trabalho até o final de fevereiro. Telefonara outra vez após as seis horas para dizer que ela também não estivera em casa, um apartamento na Rua 83 Leste, e o apartamento não fora sublocado. Isso aumentava as probabilidades para 50 contra um. Wolfe apreciou o jantar mais do que o fizera nas últimas semanas, e eu também.

      Um pouco antes das onze horas a campainha tocou e era Saul. Tomou a minha frente, encaminhando-se para o escritório e disse:

      — Acabei de fazer um coisa que felizmente meu pai nunca saberá. Jurei alguma coisa, com a mão no Novo Testamento. A Bíblia estava de cabeça para baixo.

      Wolfe deu um grunhido: — Era inevitável?

      — Era. Essa pessoa é meio pancada. Ele ou ela estava recebendo 50 mangos para me dizer uma coisa que tinha prometido nunca dizer a ninguém. Isso não foi sensato. E se o meu preço para contar tudo fosse só 60 mangos? De qualquer jeito, consegui o endereço. — Tirou a caderneta de notas do bolso e abriu-a. — Aos cuidados da Sra. Arthur P. Jordan, Sunset Drive, 1424, Praias do Lido, Sarasota, Flórida. As coisas que foram mandadas para lá para Carol Mardus, no outono, foram-lhe entregues. Ele ou ela não jurou na Bíblia, mas acreditei e paguei pela informação.

      — Satisfatório — disse Wolfe. — Talvez.

      — É claro que ainda é talvez — concordou Saul. — Há um avião que sai de Idlewild para Tampa às três horas e vinte e cinco minutos da madrugada.

      Wolfe fez uma careta: — Creio que sim.

      Ele detesta aviões. Sugeri apanhar o sedã Heron e levar Saul até Idlewild, mas Wolfe disse que não, porque eu precisava estar na Praça Washington às dez horas da manhã. Sabe o quanto bocejo se durmo pouco.

      Saul telefonou quatro vezes da Flórida. Quarta-feira à tarde, disse que Sunset Drive, 1424 era a residência do Sr. e Sra. Arthur P. Jordan, e Carol Mardus fora hóspede deles durante o outono e o inverno. Na segunda-feira à noitinha, telefonou para dizer que Carol Mardus estivera grávida, com toda a certeza, em novembro e dezembro. Quinta-feira à tarde telefonou dizendo que no dia 16 de janeiro ela fora levada ao Hospital Geral de Sarasota e naquela noite tivera um menino. Na quinta-feira à noite, às dez horas e vinte minutos comunicou que estava no Aeroporto Internacional de Tampa, que Clara Waldron, com um bebê, tomara um avião de lá para Nova Iorque no dia 5 de fevereiro, e que em três horas ele faria o mesmo.

      Wolfe e eu desligamos. A caçada terminara: 45 dias. Ele olhou para mim:

      — Quanto já gastamos do dinheiro dela?

      — Cerca de 1.400 dólares.

      — Bobagem. Diga a Fred e Orrie que não precisamos mais deles. E também à Srta. Cobertt. Diga à Sra. Valdon que pode voltar para a casa da praia. Devolva as câmeras.

      — Sim, senhor.

      — Que chato! Seria tudo tão simples, se não fosse por aquela mulher!

      — A assassinada. Seria, sim.

      — Mas ela lhe deu um copo de água.

      — Tolice. Se disséssemos tudo a Cramer agora, incluindo a mensagem, o único problema seria que nós gostaríamos que houvesse dois julgamentos separados. Não apenas nós dois, mas a cliente também gostaria. Posso telefonar para Parker e lhe perguntar o que é pior, esconder provas ou tentar impedir a justiça.

      Apertou os lábios, respirou fundo uma vez, depois outra:

      — Tem alguma sugestão?

      Tenho uma dúzia. Há dois dias que você e eu sabemos que teríamos de enfrentar isso. Podemos falar com Carol Mardus apenas sobre o bebê, sem mencionar Ellen Tenzer, só perguntar o que fez do bebê, para ver o que acontece. É remotamente possível, mas ainda assim existe a possibilidade de que ela simplesmente tenha se livrado do bebê, coisa que não é difícil de conseguir, que não soubesse onde ele estava, e tendo lido o artigo na Gazette a respeito da Sra. Valdon, ficasse curiosa, ou desconfiada. Segunda sugestão: podíamos tentar resolver o resto do compromisso assumido com a cliente. Você deveria descobrir a identidade da mãe. Isso foi feito. Você tinha também que demonstrar o grau de probabilidade de Valdon ser o pai. Antes de enfrentarmos Carol Mardus podíamos fazer uma investigação de rotina a respeito de Valdon e ela na primavera do ano passado.

      Ele abanou a cabeça: — Levaria tempo e gastaríamos mais dinheiro. Você irá falar com Carol Mardus.

      — Não, senhor — respondi, enfaticamente —, você é que vai. Já fui ver Ellen Tenzer. Fui ver a Sra. Valdon 20 vezes enquanto você a viu apenas duas vezes. Executo as tarefas, mas você é que é o responsável. Quer vê-la de manhã?

      Olhou-me aborrecido. Outra mulher com quem conversar! Mas não podia negar que eu tinha razão. Depois de decidido o assunto, dei outra sugestão: que não havia pressa em dizer à cliente que a busca da mãe terminara definitivamente; seria melhor esperar até que tivéssemos conversado com a própria mãe do bebê.

      Antes de ir deitar, telefonei para Fred Durkin, Orrie Cather e Sally Corbett, a fim de lhes dizer que o caso fora encerrado, do ponto de vista de Wolfe, para não falar no meu. Também pensei em ligar para o apartamento de Carol Mardus na Rua 83, a fim de convidá-la para nos visitar no dia seguinte de manhã, mas achei melhor não permitir que tivesse a noite toda para pensar no assunto.

      Descobri, na sexta-feira de manhã, que na realidade tivera a noite toda para pensar. Planejei ligar para seu escritório lá pelas dez horas, mas às dez para as nove, quando estava na cozinha comendo bacon e bolinhos de milho com mel, o telefone tocou. Atendi na cozinha e disse as palavras habituais. Uma voz de mulher disse que gostaria de falar com Nero Wolfe. Respondi que isso só seria possível depois das onze horas, que eu era seu assistente confidencial e talvez pudesse ajudar.

      — O senhor é Archie Goodwin? — perguntou ela.

      — Sou.

      — Talvez já tenha ouvido meu nome. Carol Mardus

      — Sim, Srta. Mardus, já ouvi.

      — Estou telefonando para perguntar... — fez uma pausa. — Soube que estão fazendo perguntas a meu respeito. Aqui em Nova Iorque e também na Flórida. Sabe alguma coisa a respeito?

      — Sim. As perguntas foram feitas a pedido do Sr. Wolfe.

      — Por que... — fez outra pausa — por quê?

      — Onde está, Srta. Mardus?

      — Numa cabine telefônica. Estou indo para o escritório. Isso tem importância?

      — Talvez tenha. E mesmo que esteja numa cabine fechada, preferia não discutir o assunto por telefone. Suponho que a senhorita também não deve gostar. Tomou muito cuidado e fez muita despesa para que o bebê ficasse em segredo.

      — Que bebê?

      Ora, vamos. É muito tarde para isso. Mas se insiste em obter uma resposta, o Sr. Wolfe poderá atende-la às onze horas, aqui no escritório dele.

      Uma pausa maior: — Posso ir ao meio-dia.

      Assim seria ótimo. Falando por mim, Srta. Mardus, estou aguardando sua visita com prazer.

      Ao desligar e voltar para os bolinhos de milho, ia pensando: “Estou mesmo! Quanto tempo levei para achá-la.”

      Ao terminar a segunda xícara de café, fui ao escritório e fiz minhas tarefas. Telefonei para a estufa pelo interfone. Se nada lhe comunicasse, Wolfe estaria certo de que iria vê-la na poltrona vermelha quando descesse, pois me dera instruções para trazê-la ao escritório às onze horas, e ficaria satisfeito ao saber que teria um intervalo de uma hora antes de precisar trabalhar. Quando lhe contei que ela lhe poupara uns níqueis ao nos chamar, e que aqui estaria ao meio-dia, respondeu:

      — Bom!

      O intervalo seria ótimo para mim também. Disse a Fritz que ia sair. Fui até à Rua 11, disse a Lucy que tínhamos suspendido a farra na Praça Washington e que mais tarde contaria tudo, tirei as câmeras do carrinho do bebê, levei-as de volta para Al Posner e disse-lhe que mandasse a conta.

      Quando a campainha da rua tocou às doze horas e dez minutos, fui até a porta e vi, afinal, a mãe em pessoa; minha primeira impressão foi que, se Richard Valdon se distraía com isso quando tinha Lucy, era louco. Se fosse 20 anos mais velha, não seria exagero chamá-la de bruxa. Mas após levá-la ao escritório e sentar-me na minha poltrona, enquanto ela se acomodava na poltrona vermelha, fiquei a encará-la. O rosto virado para Wolfe era totalmente diferente: era um rosto doce e picante, agradável — talvez agradável não seja a palavra certa. Apenas ela não mostrara essa faceta a quem lhe abrira a porta. Além disso, sua voz não estava doce quando disse a Wolfe como estava contente em estar em sua casa e conhecê-lo. Era óbvio que a ousadia que sua voz e olhos transmitiam não era fingida; era natural, nascera com ela.

      Wolfe recostara-se, encarando-a:

      — Posso lhe devolver o cumprimento, madame — respondeu ele —, tenho muito prazer em conhecê-la. Há seis semanas que a procuro.

      — Procurar-me? A mim? Meu nome está no catálogo. Na revista Distaff, meu nome está no cabeçalho. — Sua voz e olhar davam a entender que teria adorado falar com ele.

      Wolfe acenou: — Mas eu não sabia disso. Sabia apenas que tivera um filho e livrara-se dele. Tive de...

      — O senhor não sabia que eu tive um filho. Não podia saber.

      — Agora sei. Enquanto estava grávida, durante os últimos quatro meses, esteve hospedada na casa da Sra. Arthur P. Jordan em Sarasota, Flórida. Deu entrada no Hospital Geral de Sarasota no dia 16 de janeiro, como Clara Waldron, e o bebê nasceu naquela noite. No dia 5 de fevereiro, quando tomou um avião em Tampa para Nova Iorque, ainda como Clara Waldron, o bebê estava com a senhora. O que fez com ele e onde ele está agora?

      Ela demorou a responder, mas a voz era quase a mesma:

      — Não vim até aqui para responder a perguntas. Vim fazer algumas. O senhor mandou um homem fazer perguntas a meu respeito aqui em Nova Iorque e na Flórida. Por quê?

      Wolfe apertou os lábios.

      — Não há razão mais para esconder isso — concordou ele. — O retrato, Archie.

      Tirei a fotografia de dentro da gaveta e dei-a para ela. Ela olhou para o retrato, para mim, novamente para a fotografia e para Wolfe.

      — Nunca vi isso antes. Onde a tirou?

      — No carrinho do bebê havia câmeras fotográficas, lá na Praça Washington.

      Isso a confundiu. Abriu a boca, deixou-a assim algum tempo e depois fechou-a. Olhou de novo a fotografia, segurou-a entre o polegar e o indicador, rasgou-a, tornou a rasgar e colocou os pedacinhos na mesinha ao seu lado.

      — Nós temos mais — disse Wolfe — se quiser levar de lembrança.

      Tornou a abrir e fechar a boca, mas não emitiu nenhum som..

      — No total — continuou Wolfe — tiraram retrato de mais de 100 pessoas, mas o seu mereceu um destaque especial porque a senhora chegou à praça de táxi, com o único objetivo de olhar o bebê naquele determinado carrinho, pois vira o retrato dele e da enfermeira num jornal. A senhora disse...

      — Meu Deus — disse finalmente —, foi por esse motivo que ela fez isso. O senhor foi o culpado.

      — Eu sugeri. A senhora disse que não veio responder às perguntas, mas simplificará tudo se fizer o que peço. Conhece o Sr. Leo Bingham?

      — O senhor sabe que sim, já andou me investigando.

      — Conhece o Sr. Julian Haft?

      — Sim.

      — Conhece o Sr. Willis Krug, já que foi casada com ele. Todos os retratos tirados por aquelas câmeras foram mostrados a esses três homens. Algum deles é o pai de seu bebê?

      — Não!

      — O pai era Richard Valdon?

      Nenhuma resposta.

      — Quer fazer o favor de responder, madame?

      — Não.

      — Não quer responder, ou ele não era o pai.

      — Não vou responder.

      — Eu a aconselho a responder. Já se sabe que antigamente a senhora teve ligações íntimas com Richard Valdon. Se continuarmos a investigar, ficaremos sabendo se renovou essas ligações na primavera do ano passado.

      Nenhum comentário.

      — Quer responder?

      — Não.

      — Numa data posterior, a senhora deixou o bebê no vestíbulo da casa da Sra. Valdon na Rua 11?

      Nenhuma resposta.

      — Quer fazer o favor de responder?

      — Não.

      — A senhora escreveu a mensagem que estava presa com um alfinete no cobertor do bebê, quando ele foi colocado no vestíbulo da Sra. Valdon? Quer fazer o favor de responder?

      — Não.

      — Recomendo-lhe que responda a esta pergunta, madame. Como sabia que o bebê que a Sra. Valdon tinha em casa, conforme foi dito no artigo de jornal, era o seu bebê?

      Nenhuma resposta.

      — Por favor, responda.

      — Não.

      — Onde a senhora esteve na noite de domingo, 20 de maio? Por favor, responda.

      — Não.

      — Onde a senhora esteve na noite de sexta-feira, 8 de junho? Por favor, responda.

      Ela levantou-se, saiu, e, para ser justo, caminhou altaneira e suavemente. Teria de andar rápido se quisesse chegar à porta da frente antes dela, portanto, fui apenas até o corredor. Depois que saiu e fechei a porta, entrei no escritório, voltei para minha escrivaninha, sentei-me e olhei para Wolfe. Ele olhou de volta para mim.

      — Grrr — disse ele.

      — Aquela última pergunta... — falei.

      — Que é que tem?

      — Talvez fosse um pouco... hã... prematura. É possível, mas é uma hipótese remota, que nada saiba a respeito de Ellen Tenzer. Se a idéia era fazer com que ela começasse a investigar, não deveríamos ter Saul de prontidão? Ou todos os três?

      — Bobagem. Será que ela é tola?

      — Não.

      — Então até o próprio Saul podia segui-la?

      — É provável que não. Então por que lhe perguntou sobre o dia 8 de junho?

      — Ela veio aqui para descobrir o quanto sabemos. Valeu a pena ter dito a ela que nosso interesse não se restringe só ao bebê e seus pais, que estamos também preocupados, mesmo que apenas de passagem, com o assassinato de Ellen Tenzer.

      — OK. — Duvidava que tudo estivesse bem, mas não adiantava ficar insistindo. — E o que faremos a seguir?

      — Não sei. — Olhou-me, zangado. — Que diabo, não sou um relâmpago. Vou pensar. Provavelmente vou querer ver o Sr. Bingham, o Sr. Haft e o Sr. Krug, para lhes perguntar por que não a reconheceram, mas pode ser que isso não tenha importância. Vou pensar. Será que ela vai falar com a Sra. Valdon? Será que está indo para lá agora?

      — Não. Pode apostar o que quiser.

      — Será que a Sra. Valdon ou o bebê estão em perigo?

      Pensei durante cinco segundos e abanei a cabeça:

      — Creio que não.

      — Eu também. Vá falar com ela e diga que volte para a praia. Vá com ela, acompanhe-a. Volte essa noite. Se ficar aqui vai me amolar e vamos acabar brigando. Amanhã faremos alguma coisa. Só não sei o quê.

      — A Sra. Valdon vai querer ficar com seu próprio carro na praia — protestei. — Depois de lhe contar tudo, terei toda a tarde e a noitinha para verificar o que Carol Mardus fez no dia 20 de maio.

      — Não! — Deu um murro na mesa. — Um idiota poderia fazer isso. Será que não tenho imaginação? Não sou esperto? Sou um idiota?

      Levantei-me: — Não me pergunte porque respondo. Bem que eu posso. Diga a Fritz para guardar um pouco de lagosta para mim quando eu voltar hoje à noite. A comida na praia deverá ser pouca.

      E saí, tendo primeiro subido para vestir uma camisa limpa.

      Desse modo, cinco horas mais tarde estava esticado na areia, à beira do Atlântico. Se esticasse o braço, meus dedos tocariam na cliente. Sua reação ao relatório fora típica de uma mulher. Queria saber o que Carol Mardus dissera, palavra por palavra, qual era a sua aparência e o que vestia. Dava a entender que o modo como se vestia tinha uma influência direta na resposta à pergunta: “Richard Valdon era o pai do bebê?”, mas é claro que nem liguei para isso. Nenhum homem com um pouco de juízo pode supor que as palavras de uma mulher tenham, exatamente, o mesmo significado para ambos.

      É claro que queria saber o que iríamos fazer agora. Respondi que, se soubesse, não estaria agora naquele momento com ela, estaria em outro lugar a executá-lo.

      — A dificuldade — disse eu — é que o Sr. Wolfe é um gênio. Um gênio não se preocupa com o trabalho normal, como mandar seguir alguém. Tem que fazer acrobacias, tomar o caminho mais curto. Qualquer pessoa pode tirar um coelho do chapéu, então ele tem de tirar o chapéu do coelho. Esta noite ficará sentado no escritório, recostado, os olhos fechados, movendo os lábios para dentro e para fora, para dentro e para fora. Talvez tenha sido desse modo que Newton descobriu a lei da gravidade, recostado, de olhos fechados e movendo os lábios.

      — Não foi assim. Foi uma maçã que caiu.

      — Claro. Estava de olhos fechados e a maçã bateu no nariz dele.

      Pouco depois da meia-noite, ao voltar para a velha casa de tijolos, esperava encontrar em minha mesa um recado dizendo que fosse ao quarto de Wolfe às oito horas e quinze minutos da manhã, mas não havia nada. Evidentemente sua imaginação e esperteza não tinham produzido nada. Mas as de Fritz tinham. Havia na cozinha um prato de lagosta à la Cardeal e um pires com queijo parmesão ralado. Coloquei o queijo por cima e pus no forno, bebi leite e fiz café enquanto o prato gratinava. Enquanto isso, pensava que, quando Fritz descesse após ter lhe levado a bandeja de café, talvez trouxesse instruções para eu subir e receber ordens. Agora que descobríramos a mãe, precisávamos descobrir um revólver.

      Nada feito. Quando Fritz voltou à cozinha no sábado de manhã, às oito horas e vinte minutos não disse nada. E eu que só dormira seis horas para estar acordado a tempo! Decidi provocá-lo um pouco, seria melhor vê-lo no quarto antes de subir para ver as orquídeas. Então comi depressa os ovos escaldados à la Creole e os pãezinhos torrados, desisti da segunda xícara de café e estava empurrando a cadeira para me levantar quando o telefone tocou.

      Era Saul. Perguntou se ouvira o noticiário das oito horas e trinta minutos e respondi que não, estava pensando.

      — Então trago más notícias — disse. — Há cerca de três horas, um tira encontrou um cadáver, numa ruela que dá em Perry Street, que foi identificado como Carol Mardus. Ela foi estrangulada.

      Tentei falar alguma coisa, mas o som não saía. Minha garganta estava entupida. Pigarreei: — Mais alguma coisa?

      — Não, foi só isso.

      — Obrigado. Não preciso lhe dizer para ficar de bico calado.

      — É claro.

      — E aguarde. — Desliguei.

      Olhei o relógio: faltavam oito minutos para as nove horas. Fui até o corredor, subi um andar, encontrei a porta aberta e entrei. Wolfe terminara o café e estava de pé, em mangas de camisa, com o paletó na mão.

      — O que foi? — perguntou.

      — Saul acaba de telefonar dando uma notícia que foi dada agora no noticiário das oito horas e trinta minutos. O corpo de Carol Mardus foi encontrado numa ruela por um tira. Estrangulada.

      Sua cara ficou feroz: — Não!

      — Sim.

      Atirou o paletó para mim.

      Passou por perto, mas não o apanhei, pois estava atordoado. Nem acreditava que ele tivesse feito isso. Enquanto ficava imóvel, só a olhá-lo, ele foi até o telefone interno, que ficava numa mesa perto da janela, apertou o botão, levantou o fone e disse, numa voz cheia de raiva:

      — Bom dia, Theodore. Não irei vê-lo esta manhã.

      Colocou o fone no gancho e começou a andar de um lado para o outro. Jamais fizera isso. Depois de meia dúzia de voltas, apanhou o paletó, vestiu-o e dirigiu-se para a porta.

      — Para onde vai? — perguntei.

      — Para a estufa — disse, ao mesmo tempo que caminhava para o elevador. Ele não estava bom da cabeça. Desci e fui beber minha segunda xícara de café.

     

Quando Wolfe entrou no escritório, às onze horas, presumindo-se que tivesse seguido a rotina habitual, encontrou na sua mesa um recado que dizia:

9h 22 min — Estou indo para a praia. Já telefonei para a Sra. Valdon comunicando-lhe que ia. Se ela ouvir o noticiário pode ficar tão perturbada como você e fazer alguma tolice. Creio que continuaremos a agir e direi isso a ela. Devo estar de volta para o almoço. O telefone da casa dela está no cartão.

                                       AG

      Na realidade, o número de telefone seria inútil, se tivesse qualquer coisa urgente para me dizer, porque naquele momento em que lia o recado eu estava no Heron, com a cliente ao lado, estacionado sob uma árvore no acostamento da estrada. Como havia dois convidados para o fim de semana na casa, além da empregada, da cozinheira e da arrumadeira, não dava para se ter uma conversa particular, portanto trouxera Lucy no carro antes de lhe contar a notícia. Agora, estacionado, podia dar-lhe toda a minha atenção, e bem que ela precisava disso. Segurava meu braço com força e seus dentes estavam cravados no lábio.

      — Está bem — disse eu —, é difícil, é muito difícil. Todos estes se: se você não tivesse contratado Nero Wolfe, eu não teria encontrado Ellen Tenzer e, se não a tivesse encontrado, não teria sido assassinada. Se você não tivesse ajudado com aquele artigo no jornal, e com o carrinho do bebê, não teríamos encontrado Carol Mardus e, se não a tivéssemos encontrado, ela não teria sido assassinada. Mas você tem que...

      — Mas você sabe mesmo se isso é verdade, Archie?

      — Não. Sei o que Saul me contou e o que ouvi no rádio ao vir para cá. Apenas o que lhe contei. Mas aposto um milhão contra um que é por isso que ela morreu. Você simplesmente tem que ignorar os se. Se quiser parar por causa dos riscos que terá de enfrentar se continuar, talvez seja uma coisa sensata...

      — Não quero parar.

      — Não quer? — creio que olhei-a estupefato.

      — Não. Quero que Nero Wolfe o descubra. Apanhe-o. O homem que... o assassino, ele matou todas as duas, não matou?

      — Sim.

      — Ele pôs o bebê no meu vestíbulo, não foi?

      — Foi. Isso é quase certo.

      — Então quero que Nero Wolfe o apanhe.

      — Os tiras vão apanhá-lo, mais cedo ou mais tarde.

      — Quero que Nero Wolfe o apanhe.

      Pensei comigo mesmo, a gente nunca sabe como as coisas vão ser. Perdera meu tempo com os se, mas eles não mais a incomodavam. Talvez fosse apenas uma questão de quantidade, podia sentir-se responsável por um assassinato, mas não por dois. De qualquer modo, minha tarefa tornara-se completamente diferente do que eu esperara.

      — É claro que o Sr. Wolfe gostaria de apanhá-lo — respondi. — Eu também. Mas você é cliente dele e precisa compreender que isso muda toda a situação. No caso de Ellen Tenzer, podíamos dizer que nenhuma conexão fora feita entre sua morte e o trabalho para o qual o Sr. Wolfe fora contratado, e, provavelmente, teriam que aceitar o que dissemos. Mas com Carol Mardus o caso muda por completo. Se não dissermos o que sabemos sobre ela, isso inclui você também, estaríamos definitivamente escondendo provas importantes num caso de homicídio e não podemos dizer que não sabíamos que era prova importante. É claro que sabemos. Então se não contarmos e a polícia descobrir e apanhar o assassino antes de nós, estamos perdidos. Nós, o Sr. Wolfe e eu, não apenas perderíamos nossas licenças, poderíamos ser presos por uma acusação de delito grave. Você não tem...

      — Archie, não...

      — Deixe-me terminar. Você não tem uma licença a perder, mas você também poderia ser acusada de delito grave. Duvido muito que fizessem a acusação, mas você estaria vulnerável. Quero deixar isso bem claro antes de você decidir o que fazer.

      — Mas você quer dizer... você iria para a cadeia?

      — É possível.

      — Está bem.

      — Está bem o quê?

      — Desisto.

      — Que diabos, Lucy, ou você torceu tudo ou então fui eu. Não queremos que você desista. Mas não queremos mesmo. O Sr. Wolfe está lívido de raiva. Ficou aborrecido com o fato de Ellen Tenzer ter sido assassinada porque mandou vê-la, mas isso não foi nada comparado com agora. Se ele não apanhar o homem que matou Carol Mardus, não vai conseguir comer durante um ano. Só queria deixar claro a que você se expõe, se continuar.

      — Mas você pode ir para a cadeia!

      — Isso é problema meu. É meu negócio, sou um detetive. Deixe isso conosco. Os tiras não sabem que há uma conexão entre Carol Mardus e Ellen Tenzer e você e nós e, se tivermos um pouco de sorte, não saberão até que tenhamos apanhado o assassino, aí não terá mais importância. Você mencionou o nome de Carol Mardus a alguém?

      — Não.

      — Tem certeza?

      — Tenho. Você deu ordem para não falar.

      — E dei mesmo. Agora vou lhe dizer: esqueça-se do Sr. Wolfe e de mim e pense só em você. Continua ou desiste?

      Agarrou novamente o meu braço. Seus dedos eram mais fortes do que era de se esperar:

      — Diga-me com sinceridade, Archie. Quer que eu continue? Pensando só em você?

      — Quero.

      — Então eu continuo. Me dá um beijo.

      — Está parecendo uma ordem.

      — E é.

      Vinte minutos mais tarde entrei com o Heron no caminho de sua casa, dei a volta e parei na porta da casa. Não se via ninguém. Todos estavam no lado da praia. Disse a Lucy, enquanto saía do carro:

      — Acabei de ter uma idéia. Só tenho uma por ano. Talvez eu passe por sua casa e tenha vontade de entrar. Pode me dar uma chave?

      Arregalou os olhos. Em mil mulheres, do modo como nosso relacionamento estava, 999 perguntariam “Naturalmente, mas por quê?”. Ela disse apenas: “Naturalmente”, fechou a porta do carro e entrou. Dois minutos depois estava de volta. Deu-me a chave.

      — Ninguém lhe telefonou — disse fazendo força para sorrir. Apertei o pedal e parti.

      Sentar à mesa para almoçar com Wolfe era um dos projetos para o futuro que não me agradavam. Seria doloroso. Ele sempre conversava à mesa, e uma das duas coisas poderiam acontecer: ou passaria o tempo todo sem ao menos tentar falar no assunto, ou, pior ainda, escolheria alguma coisa o mais distante possível de bebês ou assassinatos, por exemplo, a influência de Freud no dogma teológico e lutaria com esse tema até o fim. A situação já estava bastante ruim sem isso. Então parei num restaurante no caminho e comi pato com um molho que teria feito Fritz virar a cara. Quando deixei o Heron na garagem, logo depois da esquina, subi os degraus e usei a chave para entrar, faltavam cinco minutos para as duas horas.

      Wolfe deveria estar terminando o almoço. Mas não estava. Nem estava na sala de jantar. Atravessei o corredor e fui até à porta do escritório dar uma olhada. Também não estava lá, mas havia outras pessoas: Leo Bingham, na poltrona vermelha e Julian Haft, numa das amarelas. Viraram a cabeça em minha direção, e os rostos não demonstravam nenhuma animação. Fui correndo para a cozinha e lá estava Wolfe na minha mesa de café, comendo queijo, bolacha e café. Levantou o rosto, deu um grunhido e continuou mastigando.

      — O pato está quente, Archie. O molho é de azeitona flamenga — disse Fritz.

      Juro que não sabia que havia pato para o almoço quando pedi no restaurante.

      — Comi qualquer coisa na praia — disse eu, mentindo. Virei-me para Wolfe: — A Sra. Valdon quer que você pegue o assassino. Disse a ela que, mais cedo ou mais tarde, se ela quisesse desistir, os tiras o apanhariam, mas respondeu-me textualmente: “Quero que Nero Wolfe o apanhe.”

      — Você sabe muito bem que esse modo de falar é horrível — resmungou.

      — Eu me sinto horrível. Sabe que tem visitas?

      — Sim. O Sr. Bingham chegou há meia hora. Estava almoçando, ainda não falei com ele. Por intermédio de Fritz, disse a ele que não o veria a não ser que ele chamasse o Sr. Haft e o Sr. Krug e ele foi para o telefone. -— Estava colocando Brie num cream cracker. — Por que demorou tanto? Ela estava difícil?

      — Não, demorei de propósito. Estava com medo de almoçar com você. Pensei que você talvez me atirasse o prato na cara. Krug também vem?

      — Não sei.

      — Você realmente não falaria com Bingham, se se recusasse a chamar os outros?

      — É claro que falaria, mas teria de esperar até eu terminar o almoço e assim seria ótimo se conseguisse chamar os outros. — Apontou-me um dedo. — Archie, estou fazendo um esforço para me controlar. Aconselho-o a fazer o mesmo. Sei que a provocação é tão insuportável para você como...

      A campainha tocou. Fiz um movimento, mas Wolfe disse:

      — Não. Fritz vai. Coma um pedaço de queijo. Café? Apanhe uma xícara.

      Fritz já fora. Apanhei uma xícara e despejei café, e coloquei Brie numa bolacha. Eu estava me controlando. Podia ser Willis Krug na porta, mas podia também ser o inspetor Cramer e, se fosse, haveria uma cena. Mas, quando Fritz voltou, disse que mostrara ao Sr. Krug o caminho do escritório, e por isso bebi um grande gole de café e queimei a língua. Wolfe pegou outra bolacha e queijo, e depois mais outra. Afinal perguntou-me, amavelmente, se eu queria mais, empurrou a cadeira, levantou-se, agradeceu a Fritz pela refeição, como sempre, e foi indo. Eu o segui.

      Ao entrarmos no escritório, Leo Bingham pulou da poltrona vermelha e rugiu:

      — Quem diabos você pensa que é?

      Wolfe deu a volta ao redor dele. Meu caminho era entre a mesa de Wolfe e os outros dois. Wolfe sentou-se e disse:

      — Sente-se, Sr. Bingham.

      — Por Deus, se você...

      — Sente-se! — gritou Wolfe.

      — Eu quero...

      — Sente-se!

      Bingham sentou-se. Wolfe encarou-o:

      — Na minha casa quem grita sou eu. O senhor vem me ver, sem ser convidado. O que quer?

      — Eu fui convidado — disse Julian Haft. — O que é que o senhor quer? — Sua voz de tenor fino era quase um guincho.

      — Não vim aqui para falar na frente de todos — disse Bingham. — O senhor queria Krug e Haft, aqui estão eles. Quando tiver terminado com eles, falarei com o senhor em particular.

      Wolfe virou a cabeça vagarosamente para a direita, levando os olhos de Haft para Krug, o mais próximo a mim, e de novo para a esquerda.

      — Poupa tempo ter os três aqui, porque quero fazer a mesma pergunta aos três. E, sem dúvida, cada um dos senhores quer me fazer a mesma pergunta. A pergunta dos senhores seria: “por que uma fotografia de Carol Mardus estava entre as que lhes mandei na terça-feira?” A minha pergunta é: por que nenhum dos senhores a identificou?

      — O senhor mandou para eles também? — Bingham perguntou de repente.

      — Mandei.

      — Onde a conseguiu?

      — Vou lhes dizer, mas vou fazer um longo preâmbulo. Primeiro para deixar tudo bem claro, preciso lhes dizer que o que lhes contei nesta sala há quase seis semanas era pura invenção. A Sra. Valdon não recebera nenhuma carta anônima.

      Bingham e Krug resmungaram qualquer coisa. Haft ajustou seus óculos de aro com borracha a fim de Ver melhor.

      Wolfe ignorou os ruídos.

      — A Sra. Valdon não me procurou sobre cartas anônimas. Foi sobre um bebê que fora deixado no seu vestíbulo. Contratou-me para descobrir quem o deixara lá e quem era a mãe e o pai. Falhei totalmente. Após uma semana de esforço infrutífero, decidi verificar a hipótese de que o falecido marido da Sra. Valdon era o pai, e pedi a ela para solicitar a cooperação de três ou quatro das pessoas mais próximas a ele. Os senhores sabem qual foi o resultado. O Sr. Upton recusou-se a fazer o que eu pedira. Cada um dos outros três deu-me uma lista de nomes de mulheres que estiveram em contato com o Sr. Valdon na primavera do ano passado, o período em que o bebê foi concebido. Preciso dizer que o nome de Carol Mardus não estava em nenhuma das listas.

      — Ela está morta — disse repentinamente Bingham.

      — Está mesmo. É claro que- fiz isso para descobrir se algumas das mulheres nas listas tiveram um bebê na época indicada. Quatro delas tinham tido filho, mas todos os bebês estavam com elas. Esse esforço, também infrutífero, levou quase quatro semanas. Já quase desesperado, tentei outra suposição, que a mãe do bebê gostaria de vê-lo e consegui que publicassem... talvez tenham visto a página na Gazette sobre a Sra. Valdon?

      Todos tinham visto.

      — Deu resultado. Colocamos câmeras fotográficas escondidas no carrinho de bebê e tiramos retratos de todos que pararam para olhar. Essa foi a origem das fotografias que mandamos a cada um dos senhores na segunda e terça-feira. Cada um dos senhores disse que não reconhecia ninguém, mas a Sra. Valdon reconheceu Carol Mardus e deu-me o nome. A investigação provou que fora para a Flórida em setembro, ficara lá durante o inverno, entrara num hospital no dia 16 de janeiro, sob um nome falso, e dera à luz um bebê. Voltara a Nova Iorque no dia 5 de fevereiro com o bebê. Obviamente, eu encontrara a mãe do bebê deixado no vestíbulo da Sra. Valdon, já que o artigo de jornal a levara até à Praça Washington para vê-lo. E claro que eu queria vê-la, e, ontem de manhã, o Sr. Goodwin ia lhe telefonar, mas ela se antecipou. Telefonou... quando, Archie?

      — Às oito horas e cinqüenta minutos.

      — E veio logo depois do meio-dia. Ela tinha...

      — Ela veio aqui? — perguntou Leo Bingham.

      — Sim, senhor. Descobrira que fizéramos investigações a seu respeito, e queria saber por quê. Eu lhe disse e lhe fiz umas perguntas, mas só respondeu três delas: que conhecia o Sr. Bingham, e o Sr. Haft, e que nenhum dos senhores, nem o Sr. Krug, seu ex-marido, era o pai do bebê. Sentou-se ali — apontou para Bingham na poltrona vermelha — enquanto eu lhe fazia várias outras perguntas, mas não respondeu a nenhuma, levantou-se repentinamente e saiu. E agora está morta.

      Ninguém falou. Bingham estava inclinado para a frente, os cotovelos nos braços da poltrona, a mandíbula cerrada, os olhos fixos em Wolfe. Os olhos de Krug estavam fechados. De perfil, seu rosto ossudo e comprido parecia ainda mais comprido. Haft estava com a boca apertada, piscando os olhos. Pelo lado, eu via as pestanas por trás dos óculos.

      — Então é por isso que ela... — Disse Krug, sem terminar.

      — O senhor admitiu que é um mentiroso — falou Bingham.

      — Disse que ela não respondeu às suas perguntas — falou Haft. — Então não disse que era a mãe do bebê.

      — Não em palavras. Mas deixou subentendido. Estou dizendo o que sei. Como está morta, e o Sr. Goodwin estava presente, poderíamos dizer o que quiséssemos. Estou relatando tudo. Não há dúvida de que Carol Mardus era a mãe do bebê colocado no vestíbulo da Sra. Valdon, e que ficou muito preocupada quando descobriu que eu sabia e podia provar. É quase certo que outra pessoa, X, estava, de alguma forma, profundamente envolvida, que ela contou a X da conversa que teve comigo, e que X, com medo de que ela contasse o seu envolvimento, a matou. Vou encontrar X e acusá-lo.

      — Isso é... fantástico — disse Krug.

      — Talvez fale a verdade — falou Haft — mas me parece que... que tipo de envolvimento? Matou-a só porque estava envolvido em deixar um bebê num vestíbulo?

      — Não. O nome de Ellen Tenzer lhe diz alguma coisa, Sr. Haft?

      — Não.

      — E para o senhor, Sr. Krug?

      — Ellen Tenzer? Não.

      — Não é esse o nome da mulher cujo corpo foi encontrado num carro? Estrangulada?? Há algumas semanas? — perguntou Bingham.

      — É. Era enfermeira aposentada. O bebê do vestíbulo da Sra. Valdon ficara com ela. O Sr. Goodwin descobriu, falou com ela, e X a matou. A ameaça que Carol Mardus representava não era apenas que ela denunciaria seu envolvimento com o bebê, fosse qual fosse, mas que ela sabia que ele assassinara Ellen Tenzer.

      — Como sabia disso? — perguntou Haft.

      — Provavelmente por dedução. Podemos presumir que sabia que o seu bebê estava sob os cuidados de Ellen Tenzer. Provavelmente lia os jornais, soube o que aconteceu com Ellen Tenzer e que o Sr. Goodwin fora lhe perguntar sobre uns botões no macacão de um bebê e soube também que a polícia estava fazendo investigações acerca de um bebê que recentemente estivera hospedado com ela. Como podem ver, estou sendo franco. Podia simplesmente dizer que Carol Mardus admitiu isso ou aquilo, e o Sr. Goodwin confirmaria. Prefiro contar tudo, pois preciso da ajuda dos senhores.

      — Está contando tudo? — perguntou Bingham.

      — Sim.

      — Tudo isto é verdade: o bebê, Lucy Valdon, Carol ontem aqui, Ellen Tenzer?

      — É.

      — Já contou à polícia?

      — Não. Estou...

      — Por que não?

      — Já ia entrar nesse assunto. — Wolfe virou os olhos para a direita e para a esquerda. — Tenho uma proposta a fazer aos senhores. Presumo que também desejam que o assassino de Carol Mardus seja julgado. Se eu contar à polícia o que sei, vou contar tudo o que sei. Vou lhes contar sobre a lista de nomes que os senhores me forneceram, é claro que incluindo o detalhe que o Sr. Upton recusou-se a dá-la e que o nome de Carol Mardus não aparecia em nenhuma lista. Dir-lhes-ei sobre as fotografias que lhes foram enviadas para serem identificadas, e que cada um dos senhores declarou não reconhecer ninguém, embora a fotografia de Carol Mardus estivesse bem nítida. Isso tornará as coisas desagradáveis para os senhores, possivelmente até penosas. A polícia não tem intenção de ser espirituosa; sabe que cada um dos senhores tinha uma razão pessoal para não contar, mas isso não é do interesse da investigação deles; mas saberá também que, se um dos senhores estivesse envolvido com Carol Mardus a respeito do bebê, e que se houvesse matado Ellen Tenzer, é claro que omitiria o nome da lista e não identificaria a fotografia. Por isso, será implacável com todos.

      — Parece-me que o senhor quer dizer que não contou nada disto à polícia por consideração para conosco — disse Krug secamente.

      Wolfe abanou a cabeça:

      — Não é nada disso. Não lhes devo nenhuma consideração, da mesma forma que os senhores também não me devem nenhuma. Mas talvez possamos nos ajudar mutuamente. Eu preferia não ajudar a polícia a apanhar o assassino porque quero pegá-lo eu mesmo e pretendo fazer isso. Ele me desafiou com uma patente desfaçatez. Minha cliente, a Sra. Valdon, deu-me uma informação em confiança, e só irei revelá-la se for obrigado a isso.

      Haft removera os óculos e brincava com as hastes:

      — O senhor disse que tinha uma proposta.

      — Sim. Posso poupar-lhes muito aborrecimento não dizendo à polícia o que sei. Em troca, os senhores responderão a algumas perguntas. Muitas perguntas. Podem se recusar a responder a alguma específica, mas em geral uma recusa fornece mais informações do que uma resposta. O caso é que todos ficarão até eu ter terminado. Talvez leve horas. Não espero conseguir tudo que os senhores conservam na cabeça e na memória sobre Carol Mardus, mas vou conseguir o que puder.

      — O senhor provavelmente conseguiria mais se nos interrogasse em separado — disse Krug.

      Wolfe abanou a cabeça: — Assim é melhor. O que um omitir o outro pode completar. E é mais seguro, já que devem ser todos ou ninguém. Se algum dos senhores preferir falar com a polícia em vez de falar comigo, eu retiro a proposta. O que acha, Sr. Krug?

      — De qualquer forma terei de falar com a polícia. Sou o marido divorciado de Carol. É claro que a lista e a fotografia tornariam as coisas piores. E se o senhor for tão bom quanto sua reputação... fico com o senhor. Responderei às suas perguntas.

      — Sim. Bingham?

      — Concordo. Talvez possa responder às suas perguntas.

      — Sr. Haft?

      Ele já colocara os óculos outra vez no lugar.

      — Isso me parece unilateral. O senhor pode contar a polícia sobre as listas e as fotografias quando quiser.

      É verdade. É um risco que correm. Sei que não direi, se todos aceitarem minha proposta, mas os senhores não sabem. Têm que escolher entre uma certeza e uma possibilidade.

      — Muito bem. Aceito a proposta.

      Wolfe girou a cadeira para olhar o relógio. Duas horas e cinqüenta minutos. Adeus, horário. Não havia possibilidade de conseguir.

      — Vai levar algum tempo — disse. — Querem beber alguma coisa?

      Todos queriam e Wolfe tocou a campainha chamando Fritz. Haft queria scotch com soda, bourbon e água para Krug; Bingham queria conhaque com água separados, eu, leite, e Wolfe, cerveja. Recostou-se e fechou os olhos. Haft levantou-se, foi até às estantes e ficou olhando os títulos. Bingham pediu para usar o telefone e depois desistiu. Krug não parava, olhando para aqui e para ali, prendendo e soltando os dedos. Quando seu bourbon com água chegou, bebeu um pouco, teve dificuldade em engolir e quase engasgou. Wolfe abriu a garrafa de cerveja, jogou a tampa na gaveta — sempre as coloca lá para saber quantas toma —, despejou no copo, esperou até a espuma baixar e então bebeu.

      Lambeu os lábios e encarou o marido divorciado:

      — Tenho uma sugestão a fazer, Sr. Krug. Fale-nos sobre Carol Mardus, sua associação com ela, sua associação com os outros, qualquer coisa que o senhor ache que interesse. Só interromperei com perguntas se achar que devo.

     

Willie Krug demorou um pouco. Olhou para Haft, demoradamente, depois para Bingham e depois para seu copo, que estava sobre seu joelho com ambas as mãos em volta dele. Ao falar, seus olhos fitavam o copo.

      — Há pessoas, várias delas, que provavelmente podem lhe contar a respeito de Carol e eu tanto quanto eu posso. Talvez até mais sobre ela do que eu. Estivemos casados exatamente 14 meses. Eu não passaria por isso tudo de novo nem... — Levantou os olhos para Wolfe: — O senhor sabe que eu era o agente de Dick Valdon.

      Wolfe acenou que sim.

      — Carol mandou-o para mim. Nunca a vira nem ouvira falar dela. Ela lia para a Distaff e persuadira Manny Upton a aceitar três histórias de Dick, e achou que ele deveria ter um agente e mandou-o para mim. Conheci-a por intermédio de Dick e um ano depois nos casamos. Sabia que ela e Dick tinham tido... um relacionamento. Todos sabiam. Também já tivera com Manny Upton. Todos sabiam também. Não estou falando mal dos mortos. Se ela estivesse sentada aqui, não acharia que estava falando mal dela. Casou-se comigo porque fora nomeada editora de ficção da Distaff, um trabalho importante, e queria... bem, usarei suas próprias palavras. Disse que queria ficar domesticada. Sabia usar as palavras. Poderia ter sido escritora.

      Bebeu um pouco de bourbon com água e tomou cuidado ao engolir.

      — Acredito que ficou domesticada três ou quatro meses, mas não sei com certeza. Logo descobri que, com ela, nunca se saberia realmente. Não vou citar nomes porque o que aconteceu foi há mais de cinco anos, e nada tem a ver com o período no qual o senhor está interessado. Não quero dizer que eu não esteja interessado. Estou. Houve uma época em que eu mesmo poderia tê-la estrangulado... se fosse desse tipo. Mas foi há muito tempo.

      O senhor disse que quer apanhar o assassino... está bem, quero que apanhe, é claro que quero. Só é difícil de acreditar que tenha tido um filho. Do modo como contou, deve ter tido. Ela fez um aborto quando esteve casada comigo. Se teve um bebê, Dick Valdon deve ter sido o pai. Tenho certeza disso. Nenhum outro homem significou para ela tanto quanto Dick. Deus sabe que eu não significava. O senhor tem certeza sobre o bebê? De que foi para a Flórida e teve um bebê?

      — Sim.

      — Então Dick Valdon era o pai.

      — Sou-lhe muito grato, senhor, em nome da minha cliente — disse Wolfe. — É claro que a identidade do pai lhe interessa. Continue.

      — É só isso.

      — Tenho certeza de que não é. Quando foi o divórcio?

      — Em 1957.

      — E desde então? Especialmente durante os últimos 16 meses?

      — Não posso ajudá-lo nessa parte. Durante os últimos dois anos só vi Carol umas cinco ou seis vezes, em festas ou lugares assim. Correspondi-me com ela e falei-lhe ao telefone com certa freqüência, mas só sobre negócios, manuscritos que lhe mandei ou queria mandar. É claro que ouvi falatório a seu respeito. Há pessoas que são capazes de dizer a um homem: “Soube que sua ex-mulher está tendo um caso com Fulano.” Isso não quer dizer nada. Nada do que essas pessoas dizem vale alguma coisa.

      — O senhor está errado, Sr. Krug. Cada palavra dita desde que o homem inventou as palavras faz parte de um registro, embora não conservado. Concordo que. fofocas em geral são vazias. Deixe-me fazer uma pergunta: se sua associação com sua ex-mulher foi só fortuita desde o divórcio, por que omitiu o nome dela da lista que me deu, e por que não identificou a fotografia?

      Krug acenou: — Naturalmente. — Uma pausa. — Francamente, não sei.

      — Tolice.

      — Talvez seja tolice, mas não sei. É fácil de entender o porquê de não colocar seu nome na lista... — Parou. Fez uma pausa maior. — Não, não vou me esquivar. Não tem importância como tenha justificado isso conscientemente. Não podemos controlar nosso inconsciente, mas às vezes sabemos o que ele está fazendo. Inconscientemente eu me recusava a aceitar a possibilidade de Carol ter mandado cartas anônimas para Lucy Valdon, então não a coloquei na lista e rasguei a fotografia. É o melhor que posso responder para o senhor ou para a polícia.

      — A polícia nunca lhe perguntaria isso. É claro que iriam lhe perguntar o seguinte, então também posso lhe perguntar: o senhor matou Carol Mardus?

      — Oh, pelo amor de Deus, não!

      — Quando e como soube de sua morte?

      — Fui passar o fim de semana no campo. Tenho uma casinha em Pound Ridge. Manny Upton telefonou quando eu tomava o café, bem tarde. A polícia lhe notificara e lhe pedira para identificar o corpo. Carol não tinha parentes em Nova Iorque. Fui de carro para a cidade e fui para o meu escritório, e chegara há poucos minutos quando Leo Bingham telefonou e me pediu para vir aqui.

      — Passou a noite no campo?

      — Sim.

      — A polícia vai querer pormenores, já que é seu ex-marido, mas deixo isso com eles. Mais uma pergunta hipotética: se Carol Mardus teve um bebê de Richard Valdon, concebido em abril do ano passado, que nasceu em janeiro, quatro meses após a morte de Valdon, e se X sabia e ajudou-a a livrar-se dele e, mais tarde, movido por inveja, ciúme ou despeito, apanhou-o e colocou-o no vestíbulo da Sra. Valdon, quem é X? Dos homens na órbita de Carol Mardus, qual deles se ajusta à especificação? Não estou pedindo que faça acusações, só sugestões.

      — Não posso — disse Krug. — Já lhe disse, nada sei sobre ela nesses últimos dois anos.

      Wolfe colocou cerveja no copo, esvaziando a garrafa, esperou até a espuma chegar no nível correto, bebeu, lambeu a espuma dos lábios, pôs o copo na mesa e girou a cadeira para ficar de frente para a poltrona vermelha.

      — O senhor ouviu a pergunta hipotética. Tem alguma sugestão?

      — Eu não estava ouvindo — disse Bingham. — Estava pensando a seu respeito. Estou ficando bêbado com o seu conhaque. Estou decidindo se devo ou não acreditar no senhor, a respeito de como conseguiu aquela fotografia. O senhor é muito finório.

      — Tolice. Acredite ou não, como quiser. O senhor aceitou a proposta. O que tem a dizer sobre Carol Mardus?

      Bingham não tinha tido tempo para ficar bêbado, mas estava tentando. Fritz deixara a garrafa de conhaque na mesinha, e a segunda dose de Bingham fora bem generosa. Seu sorriso de gás neon ainda não aparecera nem uma vez, não fizera a barba e o nó de sua gravata estava deslocado.

      — Carol Mardus — disse. — Carol Mardus era uma vagabunda fascinante, aristocrática e elegante. — Levantou o copo. — Um brinde a Carol! — Tomou um gole.

      Wolfe perguntou: — O senhor a matou?

      — Claro. — Esvaziou o copo e colocou na mesa. — Está bem, vamos falar sério. Eu a conhecia há muitos anos, e era só estalar os dedos que eu era dela, mas havia duas dificuldades. Eu estava quebrado e vivendo de migalhas, e ela pertencia ao meu melhor amigo, Dick Valdon. Pertencia é o termo errado porque ela nunca pertenceu a ninguém, mas ela era de Dick naquele primeiro ano. Depois foi de outra pessoa, e assim por diante. Manny Upton, aquele peixe. Como sabe, esteve casada durante algum tempo com Willis Krug. — Olhou para Krug. — Você não é nenhum peixe. Você realmente acreditou que estava domesticada?

      Não houve resposta.

      — Não acreditou. Não podia. — Bingham voltou-se para Wolfe. — Usei outra palavra errada. Carol não era uma vagabunda. Não era uma cabeça oca. Uma cabeça oca largaria um bom emprego durante seis meses para ter um filho?

      — Mas o senhor ainda não se decidiu a acreditar em mim.

      — Diabo, acredito. Acredito porque se encaixa direitinho em Carol. Krug tem razão: Dick era o pai. Dick estava morto, então ela podia ter o filho. Percebeu? Não haveria um homem a quem o bebê pertencesse, seria só dela. Aí, depois que o bebê chegou, viu que não o queria. Não queria ficar amarrada a um homem, mas seria a mesma coisa ficar amarrada a um bebê, mas só viu isso depois que ele nasceu. Então eu acredito, encaixa direitinho. Admito que não gosto de uma coisa. O senhor disse que alguém a ajudou a livrar-se do bebê, então, ela deve ter-lhe pedido. Por que não me pediu? Isso me magoa. Falo sério, magoa.

      Pegou a garrafa com uma mão e o copo com a outra, despejou conhaque e bebeu um bom gole. Não estava apreciando o conhaque, só estava a bebê-lo.

      — Que diabo, ela devia ter-me pedido.

      — Talvez preferisse pedir a uma mulher.

      — Nem em sonhos. Pode desistir dessa idéia. Carol, nunca. Não tinha que ser mantido em segredo?

      — Sim.

      Ela não confiaria em mulher alguma para guardar qualquer segredo. Não teria confiança em mulher nenhuma.

      — O senhor está magoado porque ela não lhe pediu, porque não lhe preferiu às outras alternativas disponíveis. Portanto, deve ter uma idéia de quem eram as outras alternativas. A pergunta não é hipotética: é claro que pediu a alguém para ajudá-la a livrar-se do bebê. A quem pediu, se não foi o senhor?

      — Não sei.

      — É claro que não sabe. Mas em quem ela poderia ter confiado num assunto tão delicado, preferindo-o ao senhor?

      — Sabe, é uma idéia. — Bingham levou o copo aos lábios e deixou-os lá. Tomou um gole pequeno. — A primeira pessoa que eu diria seria seu ex-marido, Willis Krug.

      — O Sr. Krug disse que sua única associação recente com ela foi de negócios. Duvida disso?

      — Não. Só estou respondendo à sua pergunta. É uma pergunta muito boa. Sei como Carol se sentia sobre Krug: gostava dele. Sabia que podia confiar nele, podia contar com ele. Mas se diz que não foi ele, então provavelmente não foi. Minha segunda escolha seria Julian Haft.

      — O senhor está apenas dando os nomes das pessoas presentes — protestou Wolfe. — Está fazendo palhaçada.

      — Não estou. Carol achava que Haft era o máximo. Pensava que ninguém se lhe comparava como um juiz de escritores e dizia isso. Era o único homem com quem saía. para jantar e depois ia para casa ler manuscritos. Uma outra razão por que vagabunda é a palavra errada para chamá-la é porque gostava de seu trabalho e era boa no que fazia. Posso fazer palhaçada, mas não estou fazendo palhaçada agora. Não deveria ter falado em Krug primeiro. Esqueci-me de Manny Upton, deveria tê-lo colocado em primeiro lugar.

      — O patrão dela.

      — Bem, o chefe. É por isso que deve ser o primeiro. Deixou-a sair por seis meses e voltar para o seu lugar. Deveria saber por que ela saiu. Ela contou aos amigos, a mim inclusive, que ia tirar umas longas férias, mas deve ter dito a verdade a Manny. Diabos, isso é óbvio. Se o senhor for quase tão bom como dizem ser... é evidente.

      — É, realmente. Mas só ontem à tarde é que ela esteve sentada na cadeira que o senhor está ocupando. Mesmo que o Sr. Upton seja a alternativa mais provável, há alguma outra? Além do Sr. Haft e do Sr. Krug?

      — Não. — Bingham tomou um gole de conhaque. — Não, a não ser que houvesse alguém que eu não conhecesse, porém não acredito que houvesse. Carol gostava de me contar as coisas. Gostava do modo como as aceitava.

      — Acho que lhe perguntei se a matou.

      — E eu respondi. Certamente que não, foi o que quis dizer. O senhor não me perguntou onde estive na noite passada, como e quando soube de sua morte. Passei a noite em casa na cama, sozinho, e estava no estúdio antes das nove horas, trabalhando. Estou preparando uma sinopse para um grande show no outono, e já estou atrasado um mês. Alguém no estúdio ouviu a notícia no rádio e me contou. Na pilha de retratos que o senhor me mandara na terça-feira, havia um dela. Logo que pude, vim lhe ver e lhe perguntar sobre a fotografia. Sabia muito bem que o senhor deveria saber de alguma coisa.

      — Então reconheceu a fotografia.

      — É claro que sim. O motivo pelo qual não disse nada, e não a pus na lista, foi o mesmo de Krug, só que ele disse que agiu inconscientemente e eu, não. O senhor nos dissera que estava procurando por alguém que mandara cartas anônimas para Lucy Valdon. Carol Mardus nunca mandaria, em hipótese alguma, cartas anônimas para ninguém. Não precisava que meu inconsciente me dissesse isso.

      — Mas era íntimo dela, Sr. Bingham?

      — Besteira. Não, nunca nos falávamos. Usávamos sinais de fumaça. — Olhou o relógio. — Preciso voltar ao estúdio.

      — Devemos terminar logo. — Wolfe apanhou o copo, esvaziou-o e colocou-o na mesa. — Sr. Haft, na lista de alternativas do Sr. Bingham, o senhor se sobressai. Faça seus comentários.

      Haft estava largado na cadeira, com suas pernas magras esticadas para a frente. Alguns homens ficam bem assim largados, mas ele não tinha corpo para isso. Terminou seu scotch com soda e pôs o copo na mesa de Wolfe.

      — Suponho que devesse me sentir orgulhoso — disse ele. Sua voz fina de tenor contrastava com o barítono de Bingham. Virou a cabeça para Bingham. — Leo, aprecio sua consideração de imaginar que Carol me julgasse digno de sua confiança num assunto tão delicado. Mesmo tendo-me posto em último lugar, com Manny Upton em primeiro. — Virou-se para Wolfe. — Como Bingham já descreveu com precisão a natureza de meu relacionamento com a Srta. Mardus, parece-me que nada resta a dizer, a não ser a respeito da lista e da fotografia. Mas até nelas já falaram antes. Só posso repetir o mesmo, como um papagaio. A Srta. Mardus não poderia nunca ser culpada de mandar cartas anônimas. Creio que... não, o senhor me perguntou sobre a noite passada. Habitualmente, passo os fins de semana na minha casa em Westport, mas um de meus autores mais importantes, pelo menos para mim, chega hoje à tarde da Inglaterra, e vou levá-lo para jantar e ao teatro esta noite. Dormi em minha suíte na Torre Churchill, e estava lá quando Bingham me telefonou. Só soube sobre a Srta. Mardus quando me telefonou. — Recolheu as pernas. — Mais alguma pergunta?

      — Qual é o nome do autor importante? — Wolfe encarava-o com a testa franzida.

      — Luke Cheatham.

      — Escreveu Nenhum luar hoje.

       — Sim.

      — O senhor o publica?

      — Sim.

      — Por favor, dê-lhe meus cumprimentos.

      — Com todo o prazer. É claro.

      Wolfe olhou o relógio. Faltavam doze minutos para as quatro horas. Havia tempo bastante para um pequeno discurso. Olhou em volta:

      — Senhores — disse ele —, talvez não confiemos uns nos outros, mas temos um interesse mútuo. A razão por que omitiram o nome de Carol Mardus de suas listas, e evitaram identificar seu retrato, talvez me satisfizesse, mas é certo que não satisfaria a polícia. Suspeitariam que, para um dos senhores, o motivo era falso e ninguém pode provar que o motivo fosse verdadeiro. Por isso nem os senhores e nem eu queremos que saibam o que foi dito aqui ou mesmo que estiveram aqui. Nosso interesse é mútuo. Quanto aos resultados, veremos. É inevitável que o homem que matou Ellen Tenzer e Carol Mardus seja acusado. Já dei aos senhores a razão pela qual quero ser o instrumento de sua desgraça. Com um pouco de sorte, serei.

      Levantou-se. — De qualquer modo, agradeço a todos, em nome de minha cliente.

      Encaminhou-se para o corredor, cinco minutos antes do horário. Leo Bingham olhou para a garrafa de conhaque, depois para o relógio, levantou-se rápido e foi também. Eu os segui. No corredor, Wolfe entrava no elevador. Bingham chegou à porta da rua na minha frente, e mantive-a aberta porque os outros dois já vinham. Cumprimentaram-me ao passar. Fiquei de pé na soleira e vi-os descer os degraus antes de voltar ao escritório.

      Havia diversas coisas para se pensar, mas naturalmente as principais eram as alternativas de Bingham. Se era tão íntimo de Carol Mardus como dissera, só havia quatro candidatos. Mesmo que ele a houvesse matado, daria o nome daqueles que ela provavelmente escolheria, se não o escolhesse, então era muito provável que fosse um dos quatro. Olhei pela janela, sentei-me à escrivaninha, fiquei outra vez de pé, tudo isso enquanto pensava neles. Qual deles? Esse é o pior tipo de jogo que há, e todos nós o jogamos, tentando descobrir um assassino no meio de grupo, pelo que dissera, pelo que fizera e até por sua aparência, a não ser que se possa perceber alguma coisa que na realidade faça sentido. Eu não consegui.

      O problema é que não sabíamos quanto tempo tínhamos: um mês, uma semana, um dia. Ou uma hora. Todos os pontos sobre Carol Mardus seriam verificados pelo Departamento de Homicídios, que entrevistaria todos eles e os interrogaria. Provavelmente Willis Krug seria o primeiro, e um deles podia contar tudo. Se o fizesse, estávamos enrascados. Há uma grande diferença entre não fornecer informação sobre a qual não se fez perguntas, e não comunicá-la, ou falsificá-la, quando as perguntas são feitas. Tudo o que Cramer precisava era de uma leve suspeita de que havia uma conexão entre Carol Mardus e o bebê, ou mesmo o simples fato de que viera falar com Nero Wolfe, qualquer coisa que lhe permitisse chegar, entrar no escritório e perguntar a Wolfe se já ouvira falar de Carol Mardus. Só isso bastava. Nunca tínhamos nos arriscado tanto. Tive de ir para a cozinha conversar com Fritz para não ir lá em cima, na estufa, dizer a Wolfe que, já que não me consultara antes de contar tudo para Krug, Haft e Bingham, não iria lhe perguntar quando eu poderia contar tudo. Ele podia me despedir ou parar de brincar com aquelas malditas orquídeas ou fazer qualquer coisa. Decidi esperar até que descesse e, se me perguntasse se tinha uma sugestão, jogaria qualquer coisa nele.

      Mas não iria me encontrar sentadinho no escritório, como um ladrão na cadeia. Estaria no corredor e ele podia ouvir tudo de pé. Não iria espicaçá-lo, seria como um soco na barriga. Por isso, quando ouvi o barulho do elevador, fui para a frente da porta. Quando o elevador parou e a porta se abriu, ele saiu e deu de cara comigo. Ia abrindo a boca quando a campainha tocou, e nós dois viramos a cabeça para ver quem era, pelo vidro que só se vê de dentro para fora. Era o inspetor Cramer.

     

Nossas cabeças voltaram à posição inicial e nossos olhos se encontraram. Falou baixinho:

      — Venha.

      Encaminhou-se para os fundos, e eu o segui. Na cozinha, Fritz estava na pia, jogando água gelada no agrião. Olhou-nos rápido, viu a cara de Wolfe e virou-se.

      — O Sr. Cramer está à porta — disse Wolfe. — Archie e eu estamos saindo pelos fundos e não sabemos quando estaremos de volta, mas não voltaremos essa noite, com certeza. Não o deixe entrar. Ponha a corrente. Diga apenas que não estamos aqui e mais nada. Nada. Se voltar com um mandado de busca, deixe-o entrar, mas não lhe diga nada. Você não sabe quando saímos.

      A campainha tocou.

      — Entendeu?

      — Sim, mas...

      — Vá.

      Fritz foi. Wolfe me perguntou:

      — Pijamas e escova de dentes?

      — Não há tempo. Se Stebbins estiver junto, vai mandá-lo à Rua 34 imediatamente.

      — Trouxe dinheiro?

      — Não o suficiente. Vou apanhar mais.

      Fui rápido. Mas Fritz estava abrindo a porta da frente, o pouco permitido pela corrente, portanto, fui na ponta dos pés até o escritório, abri o cofre, apanhei a grana na gaveta, fechei a porta do cofre e girei o segredo. Voltei na ponta dos pés até o corredor. Wolfe estava lá, descendo as escadas. Ao chegarmos embaixo, tomei a frente, subimos os quatro degraus e fomos pela passagem até o portão com a fechadura Hotchkiss. Dali chegamos à Rua 34. Não adiantava parar para dar uma olhada; não era provável que Cramer pusesse um homem de guarda ali, mas se tivesse colocado, logo saberíamos. Viramos à esquerda. Não se podia supor que um homem que caminha tão pouco como Wolfe pudesse esticar tanto as pernas sem fazer força, mas conseguia. Pôde até falar:

      — Estamos sendo seguidos?

      — Duvido. Nunca fizemos isso antes. De qualquer modo, não nos seguiriam, nos parariam.

      Havia mais gente andando na calçada do que é usual num sábado à tarde, em julho. Tivemos de nos separar para deixar passar um cara que andava em linha reta, com os braços balançando, e depois nos unimos de novo. Wolfe perguntou:

      — Precisamos ir para um hotel?

      — Não. Seu retrato já saiu muito nos jornais. Depois de virarmos a esquina, podemos ir mais devagar. Vou dar uma sugestão. Hoje pela manhã, na praia, pensei que talvez precisássemos de um esconderijo, e pedi à Sra. Valdon uma chave da casa. Está no meu bolso.

      — Não está sob vigilância?

      — Por que estaria? Foram para a praia ontem. Não há ninguém lá.

      Na esquina, esperamos o sinal abrir, atravessamos a Rua 34 e tomamos a direção da Nona Avenida. Já andávamos mais devagar. Disse eu:

      — É menos do que três quilômetros. O exercício ao ar livre faz com que o corpo fique disposto e a mente alerta. Motoristas de táxi falam muito. Por exemplo, quando um deles fosse tomar um prato de sopa numa lanchonete, diria: “Nero Wolfe saiu. Acabei de levá-lo naquela casa na Rua 11, onde aquela mulher está com a criança.” Dentro de uma hora a cidade inteira saberia. Podemos parar num bar para tomar uma cerveja. Diga quando quiser.

      — Você é que fala demais. Você já me viu caminhar por vales e montanhas durante dias.

      — Sim, nunca me esquecerei disso.

      Realmente paramos no caminho, numa lojinha na Sexta Avenida com a Rua 12, e, ao entrarmos no vestíbulo que um dia abrigara um bebê num cobertor, estávamos cheios de comida. Presunto, corned beef, caviar, anchovas, alface, rabanetes, cebolinha, pepinos, laranjas, limões, pêssegos, ameixas, três tipos de bolachas, café, manteiga, leite, creme, quatro tipos de queijo, ovos, picles, azeitonas e 12 garrafas de cerveja. Não trouxemos pão. Se Fritz morrer, Wolfe provavelmente nunca mais comerá pão. Na cozinha, quando afinal consegui esvaziar um pouco o braço para olhar o relógio, eram sete horas e dez minutos e só às sete horas e quarenta e cinco minutos terminei de guardar tudo e Wolfe pusera o jantar na mesa da cozinha.

      O molho da salada, feito com os ingredientes encontrados no armário, não estava tão bom quanto o de Fritz, mas é claro que não tinha os mesmos ingredientes. Lavei os pratos e ele os enxugou.

      Agora não havia razão para espicaçá-lo ou mesmo cutucá-lo. Estava exilado da casa, da estufa, da sua poltrona e da sua sala de jantar, e só havia um jeito de voltar sem ser com o rabo entre as pernas. É claro que não me podia mandar fazer nada, já que eu também estava exilado, mas havia Saul, Fred e Orrie, e podemos presumir que pensava neles, onde poderiam começar a investigar, quando saímos da cozinha. Mas perguntou-me onde era o quarto do bebê. Respondi que duvidava que achasse qualquer pista lá.

      — O tapete — respondeu. — Você disse que há um Tekke muito bom.

      Ele não apenas inspecionou o Tekke, examinou todos os tapetes da casa. Perfeitamente natural. Gosta de tapetes bons e sabe muita coisa a respeito deles, e quase nunca tem a oportunidade de ver outro que não seja o dele. Depois disso, passou meia hora examinando o elevador e fazendo-o funcionar, para cima e para baixo, enquanto eu solucionava o problema de cama. Uma noite muito agradável, mas não adiantava cutucá-lo. Afinal, fomos nos deitar, nos dois quartos de hóspedes do quarto andar. No quarto havia um bom tapete, que disse ser um Feraghan do século XVIII.

      Um cheiro me fez acordar no domingo de manhã, pelo menos foi a primeira coisa de que tomei conhecimento, um cheiro que conheço muito bem. Era muito leve, mas eu o reconheci. Levantei-me e fui até a escada e cheirei; não havia dúvida. Desci três andares até a cozinha e lá estava ele, tomando seu café em mangas de camisa: ovos au beurre noir. Ele estava brincando de casinha.

      Deu-me bom-dia e disse:

      — Avise-me vinte minutos antes de estar pronto.

      — Claro. Vinagre branco, não é?

      Concordou: — Não é muito bom, mas serve.

      Subi de novo.

      Uma hora e meia mais tarde, após tomar café e lavar tudo, encontrei-o na sala grande do segundo andar, numa cadeira grande que puxara para perto da janela, lendo um livro. Estava decidido a não espicaçá-lo. Perguntei, com delicadeza:

      — Quer que eu saia e vá comprar o jornal?

      — Como queira. Se achar que é seguro.

      Não estava brincando de casinha, estava acampando. Quando se acampa, não se precisa de jornais.

      — Talvez fosse melhor telefonar para a Sra. Valdon e dizer-lhe onde estamos.

      — Seria bom.

      Minha válvula estourou: — Ouça, senhor. Há ocasiões em que pode ser excêntrico e ocasiões em que não pode. Talvez possa ser agora, mas eu não. Desisto.

      Abaixou o livro devagar.

      — É um domingo de verão, Archie. Onde estão as pessoas? Especificamente, onde está o Sr. Upton? Estamos presos aqui. Quer se dar ao trabalho de encontrar o Sr. Upton, usando o telefone, e convencê-lo a vir aqui conversar comigo? Mesmo supondo que consiga, seria prudente?

      — Não, mas não é a única pista que nos resta. Quem falou com os tiras? Talvez consiga descobrir pelo telefone. Seria menos um em quem trabalhar.

      — Não temos tempo para agir assim. Não podemos fazer a barba, não podemos trocar de camisa, meia ou cueca. Quando for comprar o jornal, compre escovas de dentes. Preciso ver o Sr. Upton. Estive pensando na Sra. Valdon. Quando lhe telefonar, peça-lhe para vir aqui esta noite, ao escurecer, sozinha. Será que vem?

      — Vem.

      Outro ponto em que estive pensando. Não há pressa, mas como você está furioso... pode falar com Saul?

      — Sim, ligo para o serviço de recados.

      — Peça para que venha amanhã de manhã. Estive pensando em Anne, a sobrinha de Ellen Tenzer.

      — Sim.

      — Se entendi direito seu trabalho, ela substitui empregadas de escritório que precisam se ausentar?

      — Certo. — Levantei as sobrancelhas. — Macacos me mordam! É claro. Lógico que é possível. Devia ter pensado nisso eu mesmo.

      — Você estava ocupado demais em ficar furioso. Falando em furioso, o esturjão está muito bom e pensei em fazê-lo fumé à la Muscovite. Quando for apanhar o jornal, pode comprar erva-doce, louro, cebolinha, salsa, cebolas pequenas e extrato de tomate?

      — Numa loja, no domingo de manhã? Não.

      — Que pena! Então traga as ervas que conseguir.

      Um detetive particular licenciado e nem sabia o que se pode encontrar numa delicatessen.

      Portanto o domingo passou de forma agradável — jornais, livros, televisão, tudo que se pode querer. O esturjão ficou bom, mesmo havendo ervas que foram substituídas. Quando telefonei para Lucy e lhe contei que tinha hóspedes e que estava convidada a vir passar a noite conosco, seu primeiro pensamento foi para os lençóis. Havia lençóis nas camas? Ao lhe dizer que sim, ficou tão aliviada que nem se importou muito com o fato de sermos fugitivos da lei. Saul telefonou lá pelas nove horas, ao receber a mensagem do serviço de recados, e eu lhe disse onde devia vir de manhã. Telefonara para o escritório sábado à noite e domingo de manhã também, ao ouvir dizer o que acontecera com Carol Mardus, e quando Fritz lhe dissera que não estávamos lá e que não sabia de mais nada, é claro que ficara um pouco irritado, sabendo que, quando Wolfe ficava muito aborrecido, topava qualquer tipo de risco.

      Como não sabia se Lucy tinha outra chave, fiquei na cozinha, após o jantar, com umas revistas, pronto para atender à campainha, mas um pouco depois das dez horas ouvi a porta abrir e fechar e fui até à entrada para lhe falar. Como precisava de duas mãos, ou braços, para um cumprimento adequado entre detetive e cliente, deixou a bolsa cair ao chão. Depois de cumprimentá-la, apanhei a bolsa.

      — Sei por que estão aqui — disse ela. Estava muito elegante num vestido de verão verde-claro com um casaquinho verde-escuro. Uma pele bem bronzeada é mais atraente na cidade do que na praia. Apanhou a bolsa. — Pensou que eu não fosse... discreta. É convencido, mas gosto de você assim mesmo. Falou a verdade ao telefone? Você e Nero Wolfe estão mesmo escondidos?

      Expliquei o suficiente para que entendesse a situação, inclusive o que Krug e Bingham tinham dito sobre Dick ser o pai do bebê.

      — Por isso — falei — já está terminado o trabalho para o qual contratou o Sr. Wolfe. Agora só restam dois assassinatos, e se quiser que a gente saia de sua casa, basta pegar o telefone. O promotor público gostaria de mandar um carro para nos apanhar. Foi um prazer conhecê-la. Se eu sou convencido, a culpa é sua. Mas antes o Sr. Wolfe quer lhe fazer umas perguntas.

      — Diga-me a verdade, Archie. Você acha que realmente posso?

      — É claro. Você não lhe deve nada. Quanto a mim, não sou tão convencido assim. Na realidade, não sou nada convencido. Apenas acho que faz sentido gostar de mim mesmo.

      Ela sorriu: — Onde ele está?

      — No andar logo acima.

      Quando entramos na sala, Wolfe levantou-se. Embora não fosse convidado, podia ser educado. Após cumprimentá-lo, ela olhou em volta, talvez surpresa de não estar tudo desarrumado, já que dois homens tinham passado a noite ali. A seguir, disse a Wolfe que esperava que tivesse ficado confortável.

      — Nunca estive mais inconfortável na minha vida — resmungou ele. — Com isso, não estou desfazendo de sua hospitalidade. Agradeço-lhe pelo abrigo, mas sou um cão de fila, não uma lebre. O Sr. Goodwin já lhe descreveu a situação? Archie, veja cadeiras.

      Já estava trazendo duas cadeiras, sabendo que continuaria sentado na maior, perto da lâmpada. Sentamo-nos. Wolfe virou-se para ela:

      — Estamos em apuros. Pergunto-lhe claramente, madame, pode agüentar firme?

      Franziu a testa: — Se pergunta se posso ficar calada, sim, posso. Ontem, disse a Archie que podia.

      — A polícia vai pressioná-la, agora que conseguiram estabelecer uma conexão entre Carol Mardus e eu e, portanto, com a senhora, e eu fugi. A senhora é minha cliente e deveria protegê-la, mas, ao invés, a senhora é que me protege. E ao Sr. Goodwin. Ele mesmo pode lhe agradecer pelo seu lado, o que fará, sem dúvida; quanto a mim, estou sinceramente agradecido e devo lhe pedir para fazer mais uma coisa. Preciso ver Manuel Upton o mais cedo possível. Pode trazê-lo aqui amanhã de manhã?

      — Ora, claro... se puder.

      — Sem lhe dizer que estou aqui. Uma vez ele me disse que, se a senhora quisesse um favor dele, poderia lhe pedir. Muito bem, peça que venha vê-la.

      — E se vier, o que digo?

      — Nada. Basta trazê-lo aqui. Se eu não puder mantê-lo aqui com palavras, os músculos do Sr. Goodwin o manterão. Gosta de ovos?

      Ela deu uma risada. Olhou para mim, então também ri.

      Wolfe franziu a testa: — Que diabos, que graça há em ovos? A senhora sabe fazer ovos mexidos, Sra. Valdon?

      — Sim, é claro.

      — Para usar uma das frases favoritas do Sr. Goodwin, aposto um contra dez como não sabe. Vou fazer ovos mexidos para o café e veremos. Avise-me quarenta minutos antes de estar pronta.

      Ela arregalou os olhos: — Quarenta minutos?

      — Sim. Imaginei que não sabia fazer.

     

Manuel Upton chegou na segunda de manhã, às onze horas e quarenta e cinco minutos.

      Enquanto isso, aconteceram algumas coisas. A cliente admitira a Wolfe, em minha presença, que não sabia fazer ovos mexidos. Eu admitira a Wolfe, na presença dela, que os ovos mexidos que acabara de comer eram dignos dos melhores feitos por Fritz. Ele admitira a ela, na minha presença, que quarenta minutos era tempo demais para que uma dona-de-casa gastasse apenas a fazer ovos mexidos, mas achava que era impossível fazê-los com perfeição em menos tempo, para que todos os pedacinhos ficassem firmes, macios e úmidos.

      O jornal News, que saíra para comprar, declarava que a falecida Carol Mardus fora, há algum tempo, amiga íntima de Richard Valdon, novelista famoso, mas não havia nenhuma insinuação de que nada mais era do que um assunto interessante, que o público tinha o direito de saber.

      Saul chegara às nove horas e trinta minutos, conforme o combinado, e já recebera instruções sobre Anne Tenzer. Contou que telefonara para Fritz às oito horas, que lhe dissera que os tiras do Departamento de Homicídios vigiavam o escritório noite e dia, em turnos, pois tinham mandado de busca, e que um deles estava a escutá-los pelo telefone. Saul respondera que estava telefonando só para dizer que nada descobrira e que se Wolfe quisesse alguma coisa, estava disponível. Contou-nos, também, que ouvira de uma fonte fidedigna — nem a nós quis dar o nome — que fora encontrado no escritório de Carol Mardus um pedacinho de papel com o número de telefone de Wolfe. Sendo assim, talvez ninguém tivesse batido com a língua nos dentes. Talvez Cramer fosse lá perguntar apenas se Wolfe já vira ou ouvira falar de Carol Mardus, mas isso seria o bastante para acender o pavio. Demos a Saul 300 dólares, em notas de 10 e 20 dólares. Talvez Anne Tenzer estivesse sem dinheiro e gostasse de recebê-los.

      Preparamos uma recepção simples para Upton. De qualquer modo, quem atendia a porta era Lucy, já que alguém da polícia poderia procurá-la. Mandou-o entrar, levou-o ao segundo andar, para a sala grande. A cadeira mais confortável estava perto do sofá, e Wolfe estava sentado nela. Eu estava de pé. Upton entrou, nos viu e parou. Virou-se para Lucy, mas ela não estava lá. Saíra e fechara a porta, conforme combinado.

      Upton tornou a se virar para ficar de frente para Wolfe. Era tão miúdo que, estando Wolfe sentado e ele em pé, seus olhos estavam quase na mesma altura. Parecia ainda menor do que me lembrava.

      — Seu palhaço gordo — grasnou. Deu meia-volta e dirigiu-se para a porta, mas encontrou-me no caminho e parou.

      — Desculpe — disse eu —, saída fechada.

      Tinha juízo demais para discutir quando era evidente que, com uma só mão, poderia impedi-lo. Deu-me as costas: — Isso é absurdo — reclamou. — Isso é Nova Iorque, não é Montenegro.

      “Então é contra Montenegro”, pensei. Não falei, só pensei, portanto não coloquei no meu diário.

      — É melhor sentar, Sr. Upton. Vamos conversar bastante. — Wolfe mostrou-lhe uma cadeira. — Se acha que é absurdo mantê-lo aqui contra sua própria vontade, não é, não. Há três pessoas aqui que refutariam qualquer acusação que fizesse. O seu tamanho evita que se cometa violência; o Sr. Goodwin poderia levantá-lo como uma marionete. Sente-se.

      Upton estava com o queixo erguido: — Conversarei com a Sra. Valdon.

      — Talvez mais tarde. Depois de ter-me contado tudo que sabe a respeito de Carol Mardus.

      — Carol Mardus?

      — Sim.

      — Entendo. Quer dizer, não entendo. Por que... — Parou. Depois disse: — O senhor está na casa de Lucy Valdon. Por isso ainda está com ela. Convenceu-a de que Carol Mardus foi quem lhe mandou as cartas anônimas? Agora que está morta?

      — Não havia cartas anônimas.

      Upton encarou-o espantado. A cadeira estava mais perto do que o sofá, mas foi se sentar no sofá.

      — Não vai se livrar assim — falou. — Quando o senhor falou sobre as cartas anônimas, havia mais três homens lá.

      — Já falei com todos outra vez, anteontem, sábado a tarde — Wolfe concordou — e lhes contei que as cartas anônimas eram simples invenções minhas, para justificar o pedido das listas de nomes. As listas não ajudaram em nada, mas terminei o trabalho para o qual fui contratado pela Sra. Valdon. Não precisa mais de mim; estou em sua casa apenas porque o permitiu. Agora estou atrás de um assassino. No sábado à tarde, durante a conversa com os outros três homens, foi levantada a hipótese de que o senhor matara Carol Mardus. É isso que quero discutir com o senhor, a possibilidade de o senhor ser um assassino.

      — Bah! — Upton inclinou a cabeça. — Sabe, devo admitir. O senhor construiu sua reputação à custa do seu descaramento. Também é mentiroso. Ninguém disse que eu matara Carol Mardus. Ele disse por que a matei? O que é que o senhor está procurando na realidade? Por que pediu a Lucy Valdon para me trazer aqui?

      — Para conseguir umas informações de que preciso com urgência. Quando soube que Carol Mardus veio me ver na sexta-feira?

      — Tolice. Não pensei que tentaria usar esse velho truque, ela foi vê-lo, contou-lhe qualquer coisa e está morta. Suponho que lhe contou que eu ameacei matá-la. É qualquer coisa desse gênero?

      — Não. — Wolfe remexeu-se na cadeira. O espaldar não é suficientemente alto para que possa se recostar bem como faz em casa. — Se vamos conversar direito, vou lhe explicar. Prometi à Sra. Valdon descobrir a mãe do bebê que deixaram no vestíbulo de sua casa. Consegui isso, depois de muita despesa e perda de tempo. Era Carol Mardus. Ela foi me procurar na sexta-feira, para descobrir o que eu sabia, e lhe contei. Para se livrar do bebê, quando voltou com ele da Flórida, pedira ajuda a um amigo. Vamos chamá-lo de X.

      — Vamos chamá-lo de Z. X já está muito batido.

      Wolfe ignorou-o. — Havia quatro homens a quem a Srta. Mardus poderia ter pedido ajuda num assunto desses: Willis Krug, Julian Haft, Leo Bingham e o senhor. O problema de livrar-se do bebê foi logo resolvido; foi colocado aos cuidados de uma tal Ellen Tenzer, uma enfermeira aposentada, que morava sozinha em sua própria casa em Mahopac. Mas a Srta. Mardus disse a X que Richard Valdon era o pai do bebê e isso foi um erro. Por duas razões. A Srta. Mardus não levara em consideração dois fatos sobre X: uma que ela sempre lhe negara o prazer de seus favores íntimos e isso o aborrecia; duas, que ele tinha a alma de um diabrete. Diabrete significando um espírito maligno. Como o senhor é editor, tem bom vocabulário.

      Upton nada disse.

      — Por isso, quando o bebê tinha quatro meses, e as despesas para o manter faziam com que pensassem em se livrar dele de outra forma permanente, X resolveu se distrair com o que ele sem dúvida encarava apenas como uma brincadeira. Escolhendo um domingo de maio, quando sabia que a Sra. Valdon estaria em casa sozinha, apanhou o bebê com Ellen Tenzer, prendeu um pedaço de papel no qual imprimira uma mensagem com um alfinete no cobertor, colocou-o no vestíbulo da casa da Sra. Valdon e telefonou comunicando que havia qualquer coisa no seu vestíbulo. A mensagem está no meu cofre. Dizia... sua memória é melhor do que a minha, Archie.

      Eu estava sentado na cadeira que Upton não quisera. Falei:

      — O bilhete dizia: “Sra. Richard Valdon, este bebê é seu porque uma criança deve viver na casa do seu pai.”

      — Repita — pediu Upton.

      Repeti.

      — Um espírito maligno — disse Wolfe. — Ele não apenas teve o prazer de perturbar a Sra. Valdon; teve ainda o prazer adicional de contar à Srta. Mardus o que fizera. Mas a Sra. Valdon veio me procurar, e em três dias apenas o Sr. Goodwin e eu descobrimos que o bebê estivera sob os cuidados de Ellen Tenzer. O Sr. Goodwin foi vê-la e falou com ela, que ficou alarmada. Duvido que soubesse como tinham se livrado do bebê; é provável que não soubesse quem era a mãe, mas sabia que sua origem deveria ser um segredo que nunca deveria ser revelado. Comunicou-se com X, e encontraram-se naquela noite. A alma de um diabrete é um fenômeno estranho. Ela o levara a fazer uma diabrura inofensiva, mas a ameaça de ser descoberto era intolerável. Permitia-se fazer, mas não podia ser descoberto. Estava no carro com Ellen Tenzer e não a estrangulou por um impulso repentino, pois devia estar com a corda.

      Upton mexeu-se no sofá. Ouvia com os dois olhos e os dois ouvidos.

      — Daria qualquer coisa para saber quanto do que me disse é invenção. Tudo?

      — Não. Já podemos provar quase tudo. Algumas poucas coisas são suposições baseadas em evidências. Daqui por diante é suposição, pois a Srta. Mardus não me disse quando ou se suspeitava que X matara Ellen Tenzer. Talvez suspeitasse, se soubesse que seu bebê estava na casa de Ellen Tenzer, mas talvez não soubesse disso. Ela lia os jornais?

      — O quê?

      — A Srta. Mardus lia os jornais?

      — É claro.

      — Então não precisamos supor que, após conversar comigo, ela suspeitou que X matara Ellen Tenzer. Mais do que suspeita. Os jornais falaram sobre a visita do Sr. Goodwin a Ellen Tenzer. Preciso explicar mais?

      — Não.

      — Então o resto está claro. Depois de conversar comigo, a Srta. Mardus fez o que Ellen Tenzer fizera após conversar com o Sr. Goodwin: comunicou-se com X. Encontraram-se naquela noite, e ele tinha um pedaço de corda no bolso. Pelas descrições, não o mesmo tipo de corda que usara em Ellen Tenzer. Uma precaução perspicaz. A ameaça agora não era apenas contar uma brincadeira desagradável, mas um assassinato. Ele a estrangulou — talvez, no seu próprio carro — e jogou o corpo numa ruela, a rua Perry, a menos de um quarteirão onde Willis Krug mora. Devolvendo-a para seu antigo marido? Não é suposição, apenas comentário. Seria bastante diabólico, não?

      — Termine — grunhiu Upton. — Conjecture quem é X.

      — É arriscado, Sr. Upton. Pode ser calúnia.

      — Sim, talvez possa. O escritório do promotor público, aparentemente, nada sabe a respeito disso. Passei a maior parte do dia de ontem lá. O senhor não lhes devia contar?

      — Devia, sim. Ainda não contei. Contarei quando lhes puder dar o nome de X.

      — Então está escondendo provas?

      — Estou fazendo algo muito pior; estou conspirando para obstruir a justiça. Assim como a Sra. Valdon e o Sr. Goodwin. É por esse motivo que preciso mantê-lo aqui até que eu possa dizer quem é X.

      — O senhor fica aí sentado com tanta calma... — Upton deixou o assunto pendente. — É inacreditável. Por que está me contando?

      — Precisava discutir isso com o senhor. Conversei com Bingham, Krug e Haft no sábado e queria conversar com o senhor. Está implícito na opinião que um deles emitiu que o senhor matara Carol Mardus. Dava como explicação o fato de que o senhor não a deixaria tirar seis meses de férias, a não ser que lhe tivesse contado a razão que a levava a fazer isso; que o senhor sabia que ela estava grávida, e que portanto é provável que o senhor a ajudara a livrar-se do bebê. Daí a conclusão de que o senhor era X. Não é uma conclusão leviana. Quando disse que queria discutir a possibilidade de o senhor ser um assassino, o senhor disse “bah”. Não creio que agora possa agir da mesma forma.

      — Ainda digo bah. Não vou conspirar para obstrução da justiça. — Levantou-se. — Vou ver se o senhor na realidade... — disse encaminhando-se para a porta.

      Como não tinha vontade de levantá-lo, cheguei na porta antes dele e encostei-me nela. Tentou segurar meu braço, mas errou e segurou a parte da frente do meu paletó e começou a puxar. Isso não é bom para paletós em especial os mais leves, de verão, então peguei seus pulsos e os torci, talvez com um pouco mais de força do que necessário. Ele me soltou e eu também o soltei, mas o idiota levantou o braço para me bater. Desviei-me, girei-o, prendi seus braços atrás, empurrei-o até uma cadeira e coloquei-o nela. Aquela cadeira era mesmo para ele. Ao me encaminhar para a minha, a campainha do telefone no armário do outro lado da sala tocou, mas nem liguei.

      — Está bem — Wolfe falou com aspereza — já demonstrou que está aqui obrigado. Portanto, não está conspirando. Vamos presumir de que não é X. Mas é claro que a Srta. Mardus lhe disse por que precisava de seis meses de licença. O senhor sabia que estava grávida e ia ter um filho. Não lhe contou, mais tarde, quando voltou, quem a ajudara a livrar-se da criança? Veja, Sr. Upton, essa pergunta o senhor precisa responder.

      Respirava com dificuldade e olhava-me aborrecido. Aí transferiu o olhar para Wolfe.

      — Responderei a quem tiver o direito de perguntar. E o senhor terá muito a que responder. — Parou para respirar. — Não falei do bebê à polícia porque não sabia que tivesse alguma coisa a ver com o assassinato, e ainda não estou certo se tem. Contei-lhes sobre as cartas anônimas e que o senhor queria listas das mulheres que conheciam Dick Valdon, que é provável que tenha conseguido as listas de Krug, Haft e Bingham. Se pensa que vou rastejar...

      Bateram à porta, e abri-a o suficiente para ver quem era. Lucy estava lá. Sussurrou:

      — Saul Panzer. — Fiz sinal que sim, fechei a porta e disse para Wolfe:

      — Telefone para você. — Ele se levantou e veio. Abri a porta e fechei-a logo que passou, voltei para a minha cadeira e me sentei.

      — O senhor foi interrompido. Estava falando qualquer coisa sobre rastejar. Se quiser continuar, terei prazer em lhe escutar.

      Aparentemente, não queria. Nem me olhar zangado queria, e eu sabia o porquê. Seus pulsos doíam, mas não me queria dar a satisfação de vê-lo esfregando os pulsos e precisava se concentrar. Quando a gente torce um pulso desse jeito, dói durante algum tempo. Lembrei-me que havia um tubo de pomada num armário lá em cima que aliviaria, mas não ia levá-lo lá. A casa não era minha e, além disso, não devia ter puxado meu paletó daquela forma. Ele que sofresse. Foi o que fez, durante uns quinze minutos.

      A porta se abriu e Lucy entrou, seguida por Wolfe. Ela parou e ele continuou. Upton levantou-se e começou a falar, mas Wolfe interrompeu:

      — Fique sentado. A Sra. Valdon vai fazer uma chamada telefônica, e é bom que ouça. — Virou-se para mim. — Diga a ela qual é o número do Sr. Cramer.

      Ditei o número, ela o repetiu e encaminhou-se para o armário do outro lado da sala. Upton foi na mesma direção, mas topou comigo. Disse que Wolfe era um mentiroso, um charlatão e assim por diante. Quando ela conseguiu falar, ele calou-se e ouviu. Eu também. Pela dificuldade que teve em conseguir falar com Cramer, calculei que era o tenente Rowcliff na linha... Nunca irei entender por que Cramer permite que ele fique por perto. Mas, afinal, Lucy conseguiu.

      — Inspetor Cramer? Sim, Lucy Valdon. Estou em casa, na Rua 11. Decidi lhe contar algumas coisas sobre o bebê e Carol Mardus... Sim, Carol Mardus... Não, não quero contar ao promotor público, quero contar ao senhor... Não, não sei onde Nero Wolfe está. Decidi que preciso lhe contar, mas vou fazer isso à minha maneira. Quero contar a outras pessoas também, na mesma ocasião... Willis Krug, Leo Bingham e Julian Haft e quero que o senhor os traga ou faça com que venham... é mesmo... Não, não vou fazer isso, quero que eles ouçam o que vou lhe dizer... Não, não farei e posso ser teimosa, o senhor já sabe, eles precisam estar aqui com o senhor... Não, Manuel Upton está aqui comigo agora... Está bem, estou bem... Sim, sei exatamente o que estou fazendo... É claro, pode vir logo, se quiser, mas não lhe direi nada até que todos estejam aqui... Sim, é claro... Está bem, não farei.

      Desligou e virou-se: — Tudo bem?

      — Não — disse Wolfe. — Não deveria ter dito que o Sr. Upton está aqui. Chegará primeiro e vai querer vê-lo. Não tem importância; a senhora dirá que já foi embora. Archie, leve-o para o quarto andar e mantenha-o quieto.

 

Em todos esses anos em que trabalho para Nero Wolfe, essa foi, que eu saiba, a primeira e única vez em que ficou sozinho com uma mulher num quarto de dormir. Ficava no quarto andar, onde dormira, e a mulher era Anne Tenzer. Só estou relatando o fato, não estou fazendo insinuações; a porta do quarto estava aberta é não muito longe havia outra porta aberta, a do quarto onde eu mantinha Manuel Upton quieto. Dito assim causa má impressão. Ele estava mesmo quieto, sem que eu fizesse nada. Após ouvir Lucy convidar o inspetor Cramer para ir lá, não dissera mais do que 20 palavras, e a metade delas foi para recusar a oferta de um sanduíche de presunto e de um copo de leite, que Wolfe trouxera. Eu aceitara. Ovos mexidos, quando muito bem-feitos, são um bom prato, mas digerem rápido.

      Saul Panzer estava lá embaixo, ajudando Lucy a receber e mostrar os lugares aos convidados, seguindo as instruções de Wolfe quanto aos lugares. Contou-me depois que Leo Bingham, que veio por último, foi quem atrasou tudo. Faltavam 20 minutos para as duas horas quando ouvi passos e vi Saul na porta do outro quarto. Falou com Wolfe, virou-se para mim e disse:

      — Tudo pronto.

      Desceu as escadas. Logo que coloquei Upton no elevador, Wolfe e Anne Tenzer entraram. Ainda haveria lugar para mais um casal, se não fossem do tamanho de Wolfe. Ele próprio apertou o botão e inclinou a cabeça, tentando ouvir um rangido ou estalo, mas nada ouvimos. Desconfiei que dentro em breve me pediria para descobrir quanto custava um elevador daqueles.

      Jamais achei, e ainda não acho, que o inspetor Cramer fosse um trouxa. Por exemplo, observemos a reação dele quando virou a cabeça e nos viu entrar. Deu um pulo, abriu a boca e fechou-a de novo. Raciocinou logo que Wolfe não ousaria fazer esta reunião se não estivesse certo do que fazia, e, se perdesse a cabeça na frente de testemunhas, tornaria o sucesso de Wolfe ainda maior. Ao nos dirigirmos ao grupo, seu rosto ficou mais vermelho e sua boca mais apertada, mas não deu um pio.

      Saul os colocara conforme as instruções. Lucy estava à esquerda e perto dela estava uma cadeira para Anne Tenzer. Willis Krug e Julian Haft estavam no sofá, e Leo Bingham estava numa cadeira ao lado direito do sofá. A cadeira de Cramer estava em frente ao sofá, e Saul estava à sua esquerda. A cadeira maior, para Wolfe, estava onde a colocara antes, na extremidade esquerda do sofá, onde havia lugar para Upton e para mim, estando Upton ao lado de Haft e eu perto de Wolfe.

      Mas Upton tinha outras idéias. Ao chegarmos ao sofá, em vez de se sentar, virou-se para Cramer:

      — Quero fazer uma acusação, inspetor — disse ele. — Contra Nero Wolfe e Archie Goodwin. Mantiveram-me aqui à força, força física. Goodwin me atacou. Sou Manuel Upton. Não sei exatamente qual seria a acusação, mas o senhor sabe. Quero que o senhor os prenda.

      Cramer já tinha bastante com o que se preocupar sem precisar ainda disso. Encarou-o e disse:

      — Eles estão enfrentando uma acusação ainda mais grave. — Olhou para Wolfe, já sentado. — Que me diz dessa?

      Wolfe fez uma careta: — O Sr. Goodwin, a Sra. Valdon e eu nem damos importância. Sugiro que deixe para mais tarde. Temos agora um assunto mais sério a tratar... como o senhor já sabe, pois é óbvio que o telefonema da Sra. Valdon foi dado sob instruções minhas,

      — Quando veio para cá?

      — Sábado. Anteontem.

      — Está aqui desde sábado?

      — Sim.

      — Goodwin também?

      — Sim. Não quer se sentar? Não gosto de esticar o pescoço.

      — Prenda-os — grasnou Upton. — Isso é um pedido formal. Prenda-os.

      — Não seja idiota — disse-lhe Wolfe. — Vou dizer quem é o assassino, e o Sr. Cramer sabe disso. De outra forma, logo que me viu, teria me prendido, mas não devido à sua acusação.

      Olhou para a direita e depois para a esquerda. Cramer sentou-se. Eu me sentei. Com isso, o único em pé era Upton, que acabou sentando-se também, entre Haft e eu no sofá.

      — Não sei o quanto sabe — Wolfe olhou para Cramer — mas podemos preencher as lacunas mais tarde. Esse assassino é uma dessas criaturas infelizes que não são destinados nem próprios para esse papel espetacular e se encontram...

      — Deixe isso para depois — disse Cramer.

      — É uma introdução necessária: encontram-se abruptamente lançados nele. Há uns sete meses, Carol Mardus pediu-lhe ajuda para livrar-se de um bebê que ela não queria conservar, e ele a ajudou. Se, naquela ocasião, alguém lhe dissesse que, como resultado deste favor camarada a uma amiga, ele teria cometido um duplo assassinato dentro de um ano, ele pensaria que esse alguém estava louco. O passo seguinte, embora não fosse camarada, não era fatal, era apenas uma travessura. Como sabia que Richard Valdon era o pai da criança, então pegou...

      — Aí há um intervalo muito grande. Era o bebê que estava na casa de Ellen Tenzer?

      — Sim. Já vi que assim não serve. Preciso dar o nome dele. Conhece a moça que entrou na sala comigo?

      — Não.

      — Ela é Anne Tenzer, a sobrinha de Ellen Tenzer. É claro que foi interrogada durante a investigação sobre a morte da tia, mas aparentemente não foi o senhor quem a interrogou. — Wolfe virou-se. — Srta. Tenzer, quer fazer o favor de dizer ao Sr. Cramer qual o seu trabalho?

      Anne pigarreou. Ainda era loura, e se perguntasse a dez homens qual das mulheres ali sentadas era a mais atraente, ela ou Lucy, é provável que uns sete deles dissessem que era ela. Ao entrar no elevador, quando me viu, dissera apenas uma palavra, alô, bem distante. Alô não é ôi.

      Seus olhos frios e competentes dirigiram-se a Cramer: — Sou secretária. Trabalho para o Serviço de Emprego de Emergência. Nós substituímos as pessoas de férias, ou em ausência temporária. Estou no nível de executiva-sênior.

      — Então trabalhou para muitas firmas diferentes? — perguntou Wolfe.

      — Trabalhei em muitas firmas diferentes. Meu patrão é o Serviço de Emprego de Emergência. Tenho uma média de 15 trabalhos por ano.

      — Já trabalhou para alguém aqui nesta sala?

      — Sim.

      — E o reconhece?

      — Claro. Julian Haft, presidente da Pathernon Press.

      — Quando trabalhou para ele?

      — Não sei a data certa, mas foi no princípio do verão passado. Creio que foram as duas últimas semanas de junho e a primeira semana de julho.

      — No seu trabalho, a senhorita estava em contato freqüente com o Sr. Haft?

      — Sim. Estava substituindo sua secretária particular, que estava de férias.

      — Ao conversar com ele, alguma vez o nome de sua tia, Ellen Tenzer, foi mencionado?

      — Sim. Ditou uma carta sobre um livro, um manuscrito, escrito por uma mulher que fora enfermeira, e mencionei que tinha uma tia que fora enfermeira, e conversamos um pouco sobre ela. Devo ter mencionado que, de vez em quando, ela hospedava bebês em sua casa, porque, quando me telefonou, pediu...

      — Um momento, por favor. Quando ele lhe telefonou?

      — Alguns meses depois, no inverno. Creio que era janeiro. Telefonou para o Serviço de Emprego de Emergência e deixou um recado, e eu liguei para ele. Perguntou se minha tia ainda hospedava bebês, e eu disse que achava que sim, e pediu seu nome e endereço.

      — E a senhorita deu? O nome e endereço?

      — Sim.

      — Já esteve...

      — Um momento. — Cramer encarava-a zangado. — Por que não disse isso quando foi interrogada na época da morte de sua tia?

      — Porque esqueci... não, não tinha esquecido, mas nem pensei nisso. Por que deveria?

      — E por que se lembrou agora?

      — Um homem veio me perguntar. — Fez um sinal na direção de Saul. — Aquele homem. Disse o nome de alguns homens, quatro, e perguntou se alguma vez conhecera algum deles. Disse-lhe que conhecia Julian Haft, que trabalhara para ele, e perguntou se eu tinha algum motivo que me levasse a pensar que ele ouvira falar de minha tia. Aí eu me lembrei e lhe contei. Ele disse que talvez ajudasse a descobrir quem assassinara minha tia, e então lhe contei tudo.

      — Com ele ajudando a se lembrar?

      — Não sei o que quer dizer com a palavra “ajudando”. Lembro-me de tudo sozinha. Como ele me podia ajudar a lembrar?

      — Podia fazer sugestões. Podia sugerir que a senhorita dissera ao Sr. Haft que sua tia hospedava bebês. Podia sugerir a respeito do telefonema que a senhorita disse que recebeu em janeiro.

      — Talvez pudesse, mas não o fez. Não sugeriu nada, só fez perguntas. O senhor é quem está fazendo sugestões. Estou fazendo uma coisa que não deveria fazer, e nunca fiz isso antes. No tipo de trabalho que faço, para muitos homens diferentes, importantes, não devo falar do que faço para ninguém, e nunca falo. Estou comentando a respeito disso porque nada tem a ver com meu trabalho; e sobre minha tia e ela foi assassinada.

      — Este homem pagou pela informação que lhe deu?

      — Não. — Os olhos de Anne faiscaram e levantou o queixo. — Acho que o senhor deveria ter vergonha de si mesmo. Minha tia foi assassinada há mais de seis semanas, o senhor é o inspetor encarregado do caso, e não prendeu ninguém, e quando alguém tenta fazer alguma coisa, e está evidente que ele fez alguma coisa, o senhor o acusa de me subornar. Devia ter vergonha.

      — Não estou acusando ninguém, Srta. Tenzer — Cramer não parecia envergonhado. — Estou fazendo o mesmo que esse homem fez: apenas perguntas. Prometeu pagar-lhe qualquer coisa?

      — Não!

      — Declararia sob juramento o que acabou de dizer aqui?

      — É claro.

      — Já encontrou ou viu qualquer dos outros homens nesta sala? Além do Sr. Haft?

      — Não.

      — Não? Na declaração que assinou há algumas semanas, não falou sobre uma conversa que teve com um deles?

      Ela olhou em volta: — Oh! Archie Goodwin. Sim.

      — Viu Goodwin ou falou com, ele desde a conversa relatada na declaração?

      — Não.

      — Quando foi que Panzer falou com a senhora e lhe fez perguntas?

      — Hoje de manhã.

      — Ninguém lhe fizera nenhuma pergunta sobre esse assunto antes de hoje?

      — Não. Quero dizer, sim, ninguém fez.

      Os olhos de Cramer fixaram-se em Saul:

      — Panzer, confirma tudo o que a Srta. Tenzer disse?

      — Concorda com tudo o que sei — concordou ele.

      — Foi vê-la por ordem de Nero Wolfe?

      — Fui.

      — Quando e onde ele lhe deu essas instruções?

      — Pergunte a ele.

      — Estou perguntando a você.

      — Tolice — disse Wolfe. — Responda, Saul.

      — Na cozinha hoje pela manhã — disse Saul. — Cerca de nove horas e trinta minutos de hoje.

      Cramer virou-se para Wolfe:

      — Como foi que teve essa idéia sobre Anne Tenzer de repente?

      Wolfe abanou a cabeça: — Não foi de repente, foi tardia. Nem foi, para falar a verdade, uma idéia; foi tentar de tudo. — Olhou para Julian Haft. — Presumo que se lembra das ocasiões relatadas pela Srta. Tenzer, Sr. Haft? No último verão, há um ano, quando ela lhe contou a respeito de sua tia, e no inverno passado, quando telefonou pedindo seu nome e endereço?

      Haft ainda não decidira como agir. Devia estar pensando no assunto desde que vira Anne Tenzer entrar com Wolfe, mas já tirara os óculos três vezes e os colocara de novo também três vezes e, se não conseguia decidir o que fazer com as mãos, é claro que também não sabia o que fazer com a língua. Por isso, falou de modo brusco:

      — Não, não me lembro.

      — Não se recorda dessas ocasiões?

      — Não.

      — Está a contradizê-la? Está dizendo que ela mente?

      Lambeu os lábios: — Não digo que esteja mentindo. Digo que está enganada. Deve estar me confundindo com outra pessoa.

      — Está sendo irrefletido. Mais, está sendo pueril. O senhor devia ou aceitar os fatos que ela relata e duvidar de sua implicação ou chamá-la de mentirosa. Mas é claro que e um tolo. O senhor chamou atenção sobre si mesmo, de uma forma tola, aquele dia no meu escritório, em junho, quando contei ao senhor e aos outros sobre as cartas anônimas. Resistiu ao meu pedido da lista de nomes e ficou relutando em fornecê-la, mas me pediu para ver os envelopes, dizendo que alguns dos senhores podiam ter um palpite vendo a letra. Isso deu lugar a uma conjectura. Não à conjectura de que o senhor tivesse alguma base de suspeita em relação às cartas, pois não havia cartas, mas porque o senhor sabia que não havia cartas e, se o senhor sabia que não havia cartas anônimas, o senhor...

      Cramer interrompeu: — O senhor está dizendo que não havia cartas anônimas?

      — Estou.

      — Que foi tudo falso?

      — Foi uma manobra. Eu já lhe disse que preencho as lacunas depois. — Wolfe voltou-se para Haft. — Se sabia que não havia cartas anônimas, e não disse nada, provavelmente sabia por que a Sra. Valdon me contratara. Como já disse, chamou atenção sobre si mesmo de uma forma tola, mas não corria nenhum verdadeiro perigo, já que eliminara sua ligação com o perigo eliminando Ellen Tenzer. Seria...

      — É mentira. Digo que o senhor é mentiroso.

      — É claro. Mesmo um verme teria que dizer isso, e, por definição, o senhor é um homem. O senhor nada mais tem a temer de mim, Sr. Haft. Não posso provar que matou Ellen Tenzer e Carol Mardus; só posso declarar que o fez. Estou satisfeito. Completei o trabalho que a Sra. Valdon me contratou para fazer há dois dias, e ninguém pode esperar que ela me pague para fazer o papel de Nêmesis. Agora que delatei sua culpa e sua desfaçatez, posso lhe dar um conselho. Saia daqui imediatamente e vá preparar sua defesa. Deve haver vestígios de uma operação tão extensa: cartas ou telegramas; canhotos de cheques e cheques cancelados, se pagou Ellen Tenzer; um rolo de corda, o número do telefone de Ellen Tenzer anotado em algum lugar; o estojo de letras de borracha que usou para imprimir a mensagem presa no cobertor da criança; um cabelo da cabeça de Carol Mardus no seu carro; um cabelo seu no carro de Ellen Tenzer; as possibilidades são inumeráveis, agora que sabemos que foi o senhor. Há também, é claro, os fatos que não pode apagar, tais como o uso de um carro, seu ou de outra pessoa, na noite de sexta-feira. O senhor tem muito trabalho à sua frente e deve começar logo. O senhor não vai?

      Leo Bingham falou baixo: — Deus do céu, isso é brutal!

      — O senhor sabe muito bem que ele não vai — falou Cramer com aspereza. — Ninguém vai a lugar nenhum. — Levantou-se: — Onde há um telefone?

      Wolfe esticou o pescoço: — Vou dar uma sugestão. Há duas horas fiz uma pergunta ao Sr. Upton, que ele se recusou a responder. Disse que só a responderia a quem tivesse o direito de fazê-la. Presumo que ele concordaria que o senhor tem esse direito. Sugiro que pergunte a ele se Carol Mardus lhe dissera quem a ajudara a livrar-se da criança.

      Cramer olhou para Upton com um olhar zangado: — Ela lhe disse?

      — Sim — respondeu Upton.

      — E por que o senhor não disse isso ontem?

      — Ninguém me perguntou. Não sabia o que sei agora. Repito meu pedido formal, que prenda Nero Wolfe e Archie Goodwin devido à minha queixa. Mas responderei à sua pergunta. Carol Mardus me disse que Julian Haft fora esperá-la no aeroporto, ou logo após, e levou o bebê.

      Virou-se para Haft, que estava ao seu lado:

      — Julian, você não pode esperar que...

      Nem terminou. Haft estava tentando tirar os óculos e suas mãos tremiam tanto que não estava conseguindo.

      Cramer perguntou à Sra. Valdon: — Onde está o telefone?

      Ela apontou: — Ali.

      Encaminhou-se na direção dele, mas parou e virou-se, ordenando: — Fiquem onde estão, todos vocês. Vou mandar pedir uns carros e vou levar todos para o escritório do promotor público.

      Fixou o olhar em Wolfe: — Inclusive você. Nunca sai de casa, hem? Agora que saiu, só vai voltar quando eu lhe der permissão.

      Encaminhou-se para o armário onde estava o telefone.

      Wolfe virou-se para nossa cliente:

      — Sra. Valdon, a senhora fez o que lhe pedi e Sou-lhe grato. Sugiro que saia desta sala. Suba e tranque a porta. No estado de espírito que o inspetor Cramer se encontra, vai insistir para a senhora ir e não há razão para que deva ir. Vá, por favor.

      Lucy levantou-se e saiu. Há exatamente 48 dias ela se levantara e me deixara só nesta mesma sala.

 

Sentado à mesa de café na cozinha em uma manhã da semana passada, o tipo de manhã fria e com neve de janeiro, quando é agradável ficar na janela a olhar para fora, mastiguei devagar meu terceiro pedaço de panqueca com carne de porco, engoli-o e disse para Fritz:

      — Está criando de novo?

      Ele deu um sorriso: — Está aprendendo a ter paladar, Archie. A distinguir. Daqui a dez anos você terá paladar. Sabe o que fiz?

      — É claro que não. Mas fez alguma coisa. O quê?

      — Diminuí um pouco a sálvia e pus um pouco mais de orégano. O que é que você acha?

      — Acho que você é um gênio. Dois gênios na mesma casa e um deles é fácil de se conviver. Você pode contar para o outro o que acabei de dizer.

      Comi mais um pouco de panqueca, sem bacon. Em geral eu como bacon depois de comer duas ou três garfadas de panqueca, mas queria desenvolver meu paladar.

      — Falando nele, leu o jornal da manhã?

      — Sim. Aquele assassino, Haft, negaram sua apelação.

      — Ele vai tentar de novo. Tendo dinheiro para pagar o advogado, pode-se fazer muita coisa. Essa é uma das desvantagens de ser pobre, não se pode matar ninguém.

      Ele estava ao fogão, virando a nova rodada de panquecas.

      — Desculpe tê-lo feito esperar, Archie, mas a grelha estava fria. Só pensei que descesse mais tarde. Você disse que ia ao Flamingo.

      Engoli panqueca com bacon.

      — Lá está você fazendo rodeios de novo. Você podia apenas perguntar por que não fui ao Flamingo, e, se fui, por que voltei para casa cedo.

      — Bien. Estou perguntando.

      -— Ótimo. Eu respondo. Primeiro, fui. Segundo, voltei para casa cedo porque saímos cedo. Terceiro, saímos cedo porque o bebê estava com febre e minha amiga estava preocupada. Uma mulher preocupada não deveria estar dançando. Isso abrange tudo?

      — Sim.

      Veio apanhar o meu prato e logo voltou com panquecas.

      — Ele também está preocupado, Archie. Está achando que há perigo de você se casar com ela.

      — Sei disso, mas para mim é ótimo. Num mês ou dois posso pedir um aumento.

      Comi um pouco de panqueca com orégano.

                                                                                            Rex Stout

 

 

                      

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