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Planeta Criança



Poesia & Contos Infantis

 

 

 


BRINDE COM VENENO, PRINCESA! / R. F. Lucchetti
BRINDE COM VENENO, PRINCESA! / R. F. Lucchetti

                                                                                                                                                   

                                                                                                                                                  

 

 

Biblioteca Virtual do Poeta Sem Limites

 

 

 

 

                       UM MUNDO DESINTERESSANTE

 

     Acendi um cigarro, pus os pés sobre a mesa e dei uma olhadela pelo escritório. Nada de impressionar. A mobília fora comprada de segunda mão, há muito tempo atrás. A pintura verde do fichário cambeta estava cheia de falhas e manchas. As letras do vidro da porta apagavam-se. Elas anunciavam para um mundo desinteressado:

 

  1. DASHER — INVESTIGAÇÕES PARTICULARES

 

     Creio que os escritores de ficção traçaram um quadro das peripécias de detetives particulares tão falso como o de MacMarthy, com relação ao Departamento de Estado. Durante toda a minha vida, jamais ouvi falar de nenhum se precipitando como os Fuzileiros Navais salvadores, no nariz da polícia, sob o espanto geral, para apontar o verdadeiro assassino, de quem menos se suspeitava. O dinheiro que entrava era da evidência sórdida dos divórcios, de negociações com o baixo mundo, para retorno de jóias roubadas e muitas outras coisas baratas e desprovidas de qualquer romantismo.

     A porta abriu-se e eu girei as pernas, deixando os pés caírem no chão. Acabara de entrar uma moça, juntamente com um leve perfume de jasmim. Era morena e devia ter perto de vinte e três anos. Usava um vestido vermelho que nada fazia ocultar os seus encantos e um chapéu idiota, posto de lado na cabeça, como um passarinho embriagado.

     Olhou-me com um par de olhos castanhos, francos, dizendo, sem preâmbulos:

     — Sou Judy Morehead.

     Retribui-lhe o olhar, um pouco impressionado, curvei-me e respondi:

     — Como vai, Senhorita Morehead?

     — Sr. Dasher, – começou ela. — Recomendaram-me o senhor. Tenho ouvido referências a seu respeito.

     — Agradáveis suponho – ajuntei.

     Ela sorriu ligeiramente.

     — Ao contrário. Ouvi dizer que o senhor é um oportunista que não examina com muito escrúpulos a proveniência de um dólar. E que não se opõe a compartilhar de uma felonia ou de uma chantagem, contanto que a recompensa seja suficiente para compensar o risco.

     Dei uma olhadela ao meu relógio de pulso. Pensei rapidamente e propus:

     — Vamos discutir isso tomando um cocktail?

     Ela balançou a cabeça.

     — Não, obrigada. Também estou prevenida quanto a isso.

     — Ouviu falar do meu costume de dar ponta pés em cachorros? – repliquei — Ou do plano engenhoso que imaginei para roubar os sorvete das criancinhas?

     Ela não sorriu.

     — Posso pagar-lhe esplendidamente, Sr. Dasher, – disse ela. — No entanto, terá talvez de burlar uma ou duas leis, para provar o que desejo.

     — Muito bem. Conte lá.

     — Não vai perguntar quanto é?

     Suspirei.

     — Está bem. Quanto é?

     — Quinhentos à vista para começar. E, se fizer um bom trabalho, algo mais, dentro do razoável. A figura central é um ricaço.

     — Bem, então conte-me a respeito.

     Ela acendeu um cigarro com um isqueiro de prata e sentou-se à borda da mesa.

     — O meu noivo está na Coréia – principiou. — O seu nome é Worth. Robert Worth. Era o único herdeiro do seu pai, Robert Worth, pai. Talvez tenha ouvido falar dele.

   Eu tinha muito mais do que simplesmente ouvido falar de Robert Worth, pai. Mas tudo que adiante foi:

     — Lembro-me. Aço, não é?

     — E muitas coisas mais. Bob sempre cuidou dos seus próprios negócios antes de ir lutar por Mac Arthur. Passou estão uma procuração a um velho amigo de seu pai. Um homem chamado Thorpe. Thorpe está dirigindo atualmente o vasto patrimônio. Na minha opinião ele é um patife.

     — E quer que eu prove isso?

     Ela balançou a cabeça.

     — Thorpe vive na propriedade dos Worths, com a tia de Bob e o neto dela, primo dele. Ela não gosta de mim. Não obstante, concorda em que Thorpe seja um ladrão. Ela está ciente de que vim aqui tratar disso com o senhor.

     — Tem alguma razão fundamental para acreditar que esse Thorpe não seja honesto? Ou trata-se apenas de intuição feminina?

     — Tenho minhas razões. Ele vive num padrão de vida acima do que recebe. Quando Bob partiu ele não era um homem rico. Agora, gasta uma fortuna com mulheres e jogo. Ademais, a tia, Sadie, ouviu-o dizer a alguém pelo telefone, que se Bob continuasse ausente mais um ano, ele – Thorpe – não mais teria que se preocupar por questões de dinheiro enquanto vivesse.

     Refleti um momento sobre isso. Mas, de algum modo, minha concentração não se propiciou. Minha mente vagava. Creio que se distanciou até bastante, deteve-se diante de uma cena muito desagradável.

     — Bem, disse Judy Morehead — O que resolve?

     Voltei abruptamente à realidade.

     — Considerando a coisa dessa forma, – disse eu. — Já que pretende casar-se com Worth, algum dia esse patrimônio inteiro, ou pelo menos parcialmente, será seu. Se ele morrer antes da senhorita, irá obtê-lo integral. Nesse ínterim, se ele morrer antes do casamento o dinheiro irá provavelmente para tia Sadie ou o seu neto. Ela estaria, então, como se torna clara, em oposição ao seu casamento com Worth. Mas ela gostaria de afastar Thorpe do caminho. De outro lado, Thorpe, se estiver especulando, ficará impune se Worth for morto por algum biltre vermelho. A mim me parece que os abutres estão brigando antes que o cadáver se apresente.

     Ela enrubesceu e mordeu o lábio.

     — Adivinhou. Assim parece aos outros, também. Tudo o que posso dizer é que se aceitar minha oferta, tudo o que possa desencavar contra mim poderá ser usado livremente pelo senhor.

     Pus-me em pé e apanhei o meu chapéu. Coloquei-o na cabeça, dizendo:

     — Diante dessas circunstâncias, aceito. Vamos conversar com Thorpe e Tia Sadie. Não é necessário dizer-lhes quem sou.

     Saímos juntos para o hall. A meio caminho do elevador, um homem pesado surgiu à vista na volta do corredor. Vestia um terno castanho-claro e uma gravata verde bastante para atrair a continência de um Irlandês. Tinha ao redor do estômago volumoso uma pesada corrente de relógio.

     Diminuiu os passos quando nos viu e começou a falar. Cortei-lhe as palavras.

     — Mais tarde, Arthur – observei-lhe. — Espere por mim no escritório. Eu voltarei mais tarde ou então telefonarei.

     Ele concordou, deu um olhar de franca aprovação à moça e seguiu pelo hall. Entramos no elevador e descemos para a rua.

     Achamos um táxi e subimos nele. Judy Morehead deu um endereço ao motorista. Remexeu por um momento na sua bolsa volumosa, retirando um maço de notas. Pô-las na minha mão. Pisquei os olhos, dizendo:

     — O que é isso?

     — Seu pagamento. Prometi-lhe quinhentos à vista.

     — Ah, sim. – murmurei e guardei-as na minha carteira.

     — Vou apresentá-lo a Thorpe como se fosse um velho amigo de Bob, recém chegado à cidade – disse ela. — Depois disso, fica por sua conta. Ou siga o rastro dele ou então devasse-lhe a mesa e dê uma olhadela nos seus papéis.

     — Suas sugestões a respeito do que fazer são muito vagas.

     — Não sou detetive – obtemperou ela. — Não sou obrigada a saber essas coisas. Pelo que ouvi dizer, o senhor sabe o que tem a fazer.

     — Claro – murmurei — claro, deixe tudo por minha conta.

     Passamos os limites da cidade em silêncio. Eu observava furtivamente a moça, com o canto dos olhos. Pensei em propor-lhe, pelo menos, umas vinte perguntas. Não lhe fiz entretanto, nenhuma.

     A propriedade dos Worths incluía, segundo parecia, uma porção de água conhecida como Silver Lake. Tinha bem uma milha e meia de diâmetro. Na extremidade oposta, que se apresentou quando o guarda-portão admitiu-nos através das grades de ferro batido, tinham sido construídos uns pequenos bangalôs de verão.

     A casa era em velho estilo colonial, sobre a qual se construíra uma adição de tijolos, transformando-a numa monstruosidade arquitetônica. Nosso carro deixou-nos sob as duas grandes pilastras brancas, diante da antiga entrada da casa, e um momento depois éramos admitidos por um mordomo negro, antigo na casa. Ele sorriu para Judy Morehead, murmurando:

     — Algo está acontecendo, senhorita. Estão todos na ala do escritório de Mr. Thorpe. Nós, os criados, recebemos ordens de nos afastarmos.

     Segui a moça ao interior da casa. Ela atravessou um vasto salão de estar, e foi até um hall de teto elevado. Deteve-se diante de uma porta que, segundo deduzi, conduzia ao prolongamento construído de tijolos. Experimentou a maçaneta. A porta encontrava-se aparentemente fechada.

     — Quem é? – perguntou uma voz em tom elevado e num timbre agudo.

     Houve uma pausa, durante a qual ouviu-se o ruído de um trinco sendo aberto. Então abriu-se a porta.

     Do outro lado surgiu o mais repelente menino que já me fora dado contemplar. Tinha perto de quatorze anos e era incrivelmente gordo. Um dos lados do seu rosto estava todo besuntado de chocolate e tinha uma revista de histórias em quadrinhos metida debaixo do braço gorducho. Contemplou Judy com um ar de malícia inconfundível.

     — Que pequena que você me sai – disse ele. — Quantas vezes já não lhe disse para não mexer nas coisas da minha câmara escura?

     — Ora, Anthony, – disse Judy — não mexi em nada, não senhor.

     Ele apanhou um pedaço de doce do bolso e enfiou-o na boca, mastigando-o com ruído.

     — Chi, você nem faz idéia do que lhe vai acontecer!

     Ele voltou-se, andando atrás de nós, enquanto eu seguia Judy até o interior do aposento, além da ante-sala, onde Anthony encontrara conosco. Era um quarto grande, mobiliado mais como ante-sala de escritório do que com uma peça pertencente a uma casa particular.

     As cadeiras eram de couro castanho, havia cinzeiros estrategicamente espalhados pelo pesado tapete e viam-se duas pessoas ali. Uma delas, obviamente Tia Sadie, parecia incrivelmente velha.

     O seu cabelo grisalho mal cuidado caia em mechas sobre um rosto excessivamente pintado. Seus olhos eram de um azul-pálido, como o de um defunto. A face eram só rugas. Estava sentada com um par de mãos encarquilhadas cruzadas sobre o colo e fitava Judy com verdadeiro ódio.

     — Jamais pensei que você tivesse a coragem de voltar – disse ela. – Fez um gesto brusco com a cabeça em direção ao segundo ocupante do quarto, um homem com perto de 50 anos, de tronco ereto e olhos claros.

     — Este é o Tenente Fortini.

     — Judy cumprimentou-o. Sentou-se, amofinada.

     — O que dizer com isso? A senhora sabia muito bem que fui a cidade para... A senhora sabe bem para que.

     — Talvez você não esteja entendendo – disse Sadie Worth. — O Tenente Fortini é da polícia.

     — Da polícia? E por que está aqui?

     — Pra fazer uma batida, menina, disse Fortini, numa voz chata, nasal.

     — Não quero escândalo, se puder ser evitado – disse Sadie Worth. — Mandei então chamar Fortini. É um velho amigo da família. Judy Morehead piscou os olhos...

     — Quer dizer que vou ser presa? Por que?

     — Homicídio – disse Fortini friamente. — Pelo assassinato de James Thorpe.

     A moça virou a cabeça e me fitou. Havia uma nota desesperada no seu olhar. Ela ouviu naquele instante que deveria permanecer incógnito.

     — Sr. Dasher, – disse ela asperamente — isso é ridículo!

     À menção do nome, Fortini ficou como um perdigueiro.

     — Dasher? – ponderou ele. — Bem, bem, é engraçado que ainda não me tenha encontrado com você pela cidade. Já ouvi falar de sua pessoa. E nada bem. O tribunal dificilmente o aceitaria como testemunha qualificada para uma senhorita acusada de homicídio em primeiro grau.

     — Mas – observou Judy Morehead — o Sr. Thorpe estava bem quando eu o deixei está manhã.

     — Que estava bem, estava, – disse Fortini. — E esteve bem até esvaziar aquele copo de licor de ameixas com cianureto que você engenhosamente preparou para ele.

     Judy Morehead dirigiu-me outro olhar. Havia algo em sua expressão que me fez sentir como Galahad. Isso nunca acontecera comigo anteriormente.

     Limpei a garganta.

     — Tenente, – disse eu. — se vai fazer uma batida, faça-a. Ninguém lhe poderá impedir. Suponho que irá comunicar-se antes com a chefatura. Entrementes, poderia ter a bondade de nos relatar o que sucedeu?

     — Claro – disse Fortini na sua voz monocórdica. – Levantou-se. Atravessou o aposento e abriu a porta. — Entre – ajuntou, num tom casual, como se me estivesse oferecendo uma bebida.

     Entrei. O aposento era duas vezes maior do que aquele que eu havia deixado. Largas janelas francesas abriam-se para um campo espaçoso e, ao fundo, rebrilhava o lago. No centro do quarto havia uma grande escrivaninha de mogno. Sentado a ela, com o rosto contra o forro de mata-borrão da mesa, estava um homem. À sua esquerda, sobre o mata-borrão, estava com um copo meio vazio.

     — Thorpe – disse Fortini, fazendo um gesto em direção ao cadáver. — Senhor James Thorpe. Agora um cadáver, assassinado por Miss Judith Morehead por motivos que se tornarão aparentes no transcorrer do inquérito.

     — Poderia conhecê-los agora?

     Ele fitou-me intensamente durante um momento e em seguida encolheu os ombros.

     — Por que não? Todos saberão, quando os jornais matutinos chegarem às bancas.

     Tirou um charuto do bolso de cima do casaco, mordeu-lhe a ponta e acendeu um fósforo de cozinha com a unha do polegar.

     — Essa pequena imaginou que Thorpe estava roubando Worth, com quem pretendia casar-se, – começou ele. — Talvez ele estivesse. Talvez não. De qualquer forma ela assim pensou. Pensou também que poderia pertencer a ela, se jogasse suas cartas direito. Então envenenou-o. Fê-lo estupidamente. Todas as assassinas são assim. Imaginou que pareceria suicídio, quando uma revista nos livros demonstrasse que ele estaria roubando. Pegou? Ele roubou, ficou com a consciência pesada e em seguida deu cabo da vida. Isso foi o que ela imaginou. Mas, conforme eu disse, ela agiu estupidamente.

     — Continue falando – pedi-lhe eu.

     — Bem, parece que esse Thorpe tinha um hábito de beber licor de ameixa com soda. – Aqui Fortini estremeceu, repugnado, como um bebedor de uísque. — No quarto pegado a este, à esquerda há um pequeno bar. Adiante está o quarto do garoto. Ele tem uma mania de fotografia. Esta manhã Thorpe teve uma dor nas costas ou algo parecido.

     Pediu a Judy para lhe arranjar licor de ameixas. Temos testemunhas que comprovem isso. Ela o fez. Foi perto do bar e apanhou na câmara escura o cianureto e pôs no copo. Como eu disse, temos testemunhas e suas impressões digitais não deixam lugar a dúvidas, pois estão no lugar exato.

     Judy Morehead estava em pé na porta. Seu rosto estava pálido como a neve.

     — Está claro que minhas impressões estão no copo – disse ela. — Está claro também que dei a ele o licor que ele me pediu. Mas não pus veneno algum.

     — É estranho – disse Fortini – que essa tenha sido a única vez que ele lhe tivesse pedido para preparar a bebida. Não é?

     — É – disse a moça em voz baixa.

     — E você já não disse uma vez a Sadie Worth que gostaria de envenená-lo?

     — Acho que disse que ele deveria ser envenenado, se estivesse roubando Bob.

     Fortini olhou-me, abrindo as mãos em palma:

     — Isso é o bastante por ora – disse ele. — No entanto, ainda coligirei mais provas, com o prosseguir das coisas.

     Judy Morehead disse, com voz estrangulada:

     — Meu Deus, não quero ir para a cadeia. Ainda que fosse somente por umas poucas semanas, até que eu pudesse...

     — Será apenas por umas semanas – disse Fortini, a voz tão chata como uma rocha cortada – se eles decidirem pela força. Senão, seria para a vida toda.

     O olhar dela encontrou-se com o meu. Tinha a expressão de um cão faminto implorando um osso. Respirei fundo e fechei os olhos. Minha mente vagou de novo. Quando abri os olhos sabia o que tinha a fazer.

     Fortini estava parado junto da janela francesa, olhando o lago rebrilhante. Disse:

     — Vou mandar chamar agora os técnicos de impressões digitais e os peritos. Eles vão decidir isso.

     Quando ele se voltou, tomando a direção do telefone, sobre a escrivaninha, divisei o volume no seu casaco, formado certamente pelo coldre de uma arma. Movi-me na direção dele. Sabia que ele era duro. Contudo tinha cinqüenta anos. Eu estava com vinte e nove.

 

                                   AGORA EU COMEÇO

     Minha direita jogou-o no chão, tonteando-o o suficiente para que eu lhe pudesse apanhar, sem impedimentos, a sua Especial Para a Polícia. Armado, dirigi-me para a ante-sala.

     — Sadie – disse eu. — Você também, seu peralta, venham aqui.

     Sadie fitou a arma, murmurou algo e entrou no quarto. O peralta hesitou um pouco até que eu o auxiliei com um ponta pé no traseiro. Judy olhava-me, emudecida. No chão, Fortini abriu os olhos.

     — Dasher – murmurou ele — Estou pasmo.

     Pôs-se em pé, sem sombra de malícia nem de raiva no rosto. Suspirou e sentou-se.

     — Dasher – obtemperou ele – será que você ficou tão maluco quanto patife? Sei que você é um homem capaz de se arriscar se o preço ajudar. Será que ela lhe está pagando o bastante para fazê-lo cúmplice de um assassino?

     — Não – disse eu. Voltei-me para Judy. — Há algum lugar onde possamos trancar esses três? Preciso de um pouco de tempo. Preciso deles fora de combate pelo menos uma hora e meia.

     — Há um socavão perto do bar, sem janelas. É grande bastante. Mas os criados...

     —Eles já receberam ordens de não virem aqui. Vão se manter afastados no mínimo por uma hora ou mais.

     — Dasher, – disse Fortini — ouça-me. Há uma coisa que nós, policiais, temos que os patifes não possuem. Mesmo os particulares como você.

     — O que é?

     — Paciência. Nós sabemos esperar. Meses, anos, se for preciso. E somos pagos cada semana, enquanto esperamos. Você não, Dasher. Nós acabaremos por apanhar você e enquanto estiver refugiado não poderá ter uma vida decente. Será que ela vai fornecer-lhe dinheiro bastante para você viver o resto de sua vida, digamos em Costa Rica?

     — Não – respondi.

     — Bem, então o que diz, diante do que lhe acabo que expor?

     — Fiquei impressionado – declarei, sinceramente. — Judy, abra a porta do socavão.

     Ela atravessou o aposento, desaparecendo por alguns momentos, dizendo em seguida.

     — Está tudo pronto. Duvido que alguém vá ouvir algum som partido daqui.

     — Fortini, – disse Tia Sadie — detenha-os. Eles não podem fazer isso.

     — Enquanto minha arma estiver em poder deles – confessou Fortini — Nada poderei fazer.

     Fiz um sinal brusco com a cabeça em direção ao socavão. Fortini pôs-se de pé com um suspiro. Escoltou Sadie em direção dele. Puxei o choramingante Anthony, na retaguarda. Fechei a porta atrás deles e tranquei-a.

     Disse para a moça:

     — Tem algum dinheiro?

     — Só uns dólares. Por que?

     — Vou precisar.

     — Já tem os quinhentos que lhe dei.

     — Vamos precisar mais do que isso. Será que haverá algum na mesa de Thorpe?

     — Ela olhou o cadáver, hesitando, em seguida virou o rosto.

     — Em dinheiro, não, certamente. Talvez em ações ou em qualquer outra coisa.

     — Servirá.

     Abri as gavetas. Achei trinta ações da Union Pacific.

     — Ficaremos com essas – disse eu.

     — Como vamos poder usá-las?

     — Há várias maneiras – respondi.

     Quando nos voltamos em direção à porta, ouvi um potente berro vindo do socavão. O pequeno Anthony não se estava conformando de maneira alguma com a sua prisão.

     — Shiu! – disse tia Sadie. — chorar não adianta. Eu vou rezar.

     Enquanto eu fechava a porta do escritório atrás de mim, ouvi os punhos gordos de Anthony batendo inutilmente nas paredes do socavão. A voz de Tia Sadie elevou-se, como uma ladainha, escolhendo ela o recurso pouco mundano de invocar o auxílio do céu.

     Ao deixarmos a casa, informamos o mordomo de que Sadie dera ordens para que não fosse perturbada. Passamos pelo portão de ferro e mais ou menos um quilômetro depois, na entrada, encontramos um táxi.

     — Vou deixá-la no Royal Bar – disse eu. — Espere por mim lá. Não demorarei.

     Ela deu meia volta no assento e encarou-me.

     — Olhe, – disse — não compreendo isso. Por que age assim? Conforme Fortini declarou, quinhentos dólares não pagam esse sacrifício.

     — Talvez – murmurei vagarosamente. — Mas afinal de contas, talvez a senhorita não tenha matado Thorpe.

     — Deus do céu, e o senhor pensou que eu o tivesse feito?

     — Não tenho a menor idéia. Vou descobrir.

     Ela ressentiu-se com isso.

     — E tem alguma importância o que o senhor pensa?

     Sustentei firmemente o seu olhar.

     — Sim – respondi. — Tem grande importância eu acreditar que a senhorita tenha ou não matado Thorpe. Agora, deixe as coisas correrem, por enquanto.

     Seguimos em silêncio durante algum tempo. Minha mente trabalhava como jamais o fizera antes em minha vida.

     — Dê-me o nome de uma cidade – disse eu por fim. — Uma pequena cidade. Que não seja muito acessível. Pelo menos a uns 600 quilômetros daqui.

     — Marion – disse ela. — Marion, Kansas. Tenho um primo lá, por que?

     — Marion – repeti. — Servirá.

     Deixei-a no Royal Bar. Em seguida fui trocar as ações de Worth. Minutos depois voltei para o escritório.

     Arthur ainda estava lá, indolente como um gato gordo. Olhou-me silenciosamente durante um instante e em seguida disse:

     — Estou espantado de você já estar de volta. Pequena de classe aquela que estava com você.

     Concordei.

     — Menino, – disse eu — tenho um negócio para você. Quinhentos dólares estão no jogo.

     Ele balançou a cabeça em minha direção.

     — Está bem, aceito.

     — Quero que você vá até Marion, Kansas. Imediatamente. Não há tempo a perder. Vá ao Regente Hotel lá. Veja se tem um tal de Hammersmith registrado. George Hammersmith. Se não estiver, você espera. Peça-lhe uma carta para mim. Logo que obtiver, traga-a aqui.

     — Está bem, meu caro. Qual é mesmo o nome do hotel?

     — Regent.

     Apanhei os quinhentos dólares que Judy me dera e dei-lhos. Ele olhou-me estranhamente enquanto os punha no bolso.

     — Quando estiver de volta venho procurá-lo aqui ou uso o outro endereço?

     — Como quiser. O importante é que vá indo logo.

     — Okay.

     Levantou-se vagarosamente, apanhou o chapéu.

     — Estou a caminho.

     Dei-lhe tempo suficiente para chegar à rua, de elevador. Em seguida sai, apertando cuidadosamente o fecho, a fim de que a porta se trancasse atrás de mim.

 

     Judy Morehead estava sentada junto de um balcão do Royal Bar, com um cocktail intacto diante de si. Agora que a reação tivera tempo de se processar, ela se mostrava mais nervosa do que antes. Tinha o rosto pálido e não conseguia manter os dedos firmes.

     — Somos uns tolos – disse ela. — Vão apanhar-nos cedo ou tarde. Eu devia arranjar um bom advogado e ir entregar-me.

     — Se a senhorita estiver inocente, – observei. — Quem quer que lhe esteja culpando, fará tudo para que as coisas não mudem de rumo. Se matou realmente Thorpe, de qualquer modo estará perdida. Não pode vencer.

     — Se não posso vencer – exclamou ela arrebatadamente. — E o senhor? Como vai arranjar-se?

     — Não posso arranjar-me – murmurei lentamente. — Nunca pude. – Isso parecia uma resposta demasiado vaga. Não o era entretanto. — Vamos resolver isso à minha maneira – continuei. — A senhorita vai precisar de algumas roupas. Onde mora?

     — Tenho passado a maior parte do meu tempo lá na propriedade. Mas tenho um quarto num hotel aqui da cidade.

     — Vá para lá, Agora, apanhe alguns vestidos. Dirigi-se em seguida a este endereço. — Escrevi-o num guardanapo de papel e dei-o a ela. — Não fale com ninguém. Não deixe ninguém vê-la, quando vier procurar-me. E ande depressa.

     Paguei a bebida dela e pedi um duplo para mim e fiquei olhando-a quando se afastava do bar. Bebi sem parar durante os trinta minutos seguintes, saindo em seguida, a pé, para o endereço que tinha dado a ela.

     Pus a chave na porta, virei-a e pressenti que, de algum modo, algo estava errado. Entrei no quarto e vi Arthur sentado preguiçosamente na melhor cadeira. Equilibrada cuidadosamente no seu amplo joelho estava uma automática.

     Ele disse sonolentamente:

     — Alô, Allan.

     Respirei fundo. Pus a mão na maçaneta da porta para me recuperar. Já tivera medo antes, em minha vida, até mesmo recentemente. Agora, porém, senti-me perto do pânico. Arthur me superara. Isso me ia pôr em grande perigo, e eu não era o único envolvido.

     Recompus-me.

     — O que faz aqui!

     Ele fez uma careta amigável.

     — Estou tentando apanhar um dólar honesto. Você me conhece bastante para supor que eu esteja sempre tentando.

     — Dei-lhe um dólar honesto para ir a Marion.

     — Ah, sim. É que eu achei que apanharia mais dinheiro ficando aqui.

     — Por que?

     — Nunca esteve em Marion?

     — Não.

     — Eu já. Morei certa vez em Wichita. É pouco distante. Conheço Marion, muito bem.

     — Então, e daí?

     — Não existe nenhum Hotel Regent em Marion, Allan. Encasquetei-me então que você estava tentando me pôr de lado.

     Ele suspirou e pôs-se de pé como se isso lhe custasse um grande esforço físico.

     — Vim aqui então e dei uma batida para ver o que havia. Não achei nada.

     — Eu nunca deveria ter-lhe revelado o meu endereço – disse eu, amargamente.

     — Está bem – disse ele. — Da maneira como as coisas estão indo, porém, já que nada achei aqui, creio que vou ter que dar uma busca em você.

     Ele avançou para mim, mantendo o cano da arma contra meu estômago. A primeira coisa que ele achou foi a Especial para a Polícia, de Fortini. Tirou-a de mim e deixou-a cair em seu bolso. Naquele momento soou a campainha da porta.

     — Okay – disse ele. — Vá abri-la.

   Fui relutantemente. Judy entrou com uma maleta na mão. Viu a arma de Arthur, deixou cair a valise e disse:

     — O que há agora? Ele...

     — É um amigo meu – disse eu amargamente. — Um velho amigo.

     — Está, está claro – disse Arthur. — É a senhorita Morehead. Sente-se, senhora. Não demorarei muito. Estava revistando, Allan — lembra-se? Sua carteira, faça o favor.

     Dei-lha. Habilidosamente ele manteve a arma apontada para mim, enquanto examinava o seu conteúdo. Pareceu desinteressado, até que descobriu um documento. Assobiou.

     — Sabe o que significa isso?

     — Sei – disse eu laconicamente.

     — Com isso – murmurou ele vagarosamente – poderíamos dar o fora, Allan. Haveria bastante para nós dois. Se fosse manejado direito.

     — Não – repliquei.

     Ele olhou-me com curiosidade

     — Você nunca esteve assim tão escrupuloso antes. Isso aqui ia resolver nossas vidas para sempre.

     Estendi a mão.

     — Seria melhor que você me devolvesse.

     Ele recolocou o documento na minha carteira e devolveu-a. Suspirou e pareceu um tanto irresoluto. Judy observava-o, com uma expressão misto de espanto e de medo no rosto.

     — Bem – disse eu — O que pretende fazer?

     — Apanhar o dólar fugitivo. Onde ele estiver, lá estarei eu. Acho que vou dar uma olhadela por ai primeiro.

     — Esta bem – disse eu. — Faça-o. Mas deixe-me dizer-lhe isso: Se descobrir esse dólar fugitivo em algum lugar que vá de encontro aos meus interesses pessoais, venha procurar-me antes de agir. Talvez possamos decidi-lo. Talvez eu possa adicionar mais um outro a esse que lhe tenham oferecido alhures.

     — Nesse ponto, – declarou ele — Você pode confiar em mim – Seguiu em direção à saída. Não ponha a cabeça de fora cedo demais, depois de eu ter saído. Posso ainda estar no hall. Bem até a vista, Al.

     Recuou para a porta, de arma ainda na mão. O rosto de Judy estava pálido. Voltou-se para mim.

     — Que é ele? – perguntou ela. — O que deseja? O que está sucedendo, em nome dos céus?

     — Estamos numa enrascada, parece – disse eu. Refleti durante um longo momento. — Haverá alguma maneira de voltar à casa dos Worths, sem usar o portão fronteiro?

     — Claro. Pelo outro lado do lago.

     — Quer dizer que teremos de nadar?

     — Não é preciso, embora eu já tenha dúzias de vezes com Bob. Há sempre uma bote ou uma canoa na beira. Não acredito que o senhor hesitasse, em roubar uma dessas insignificantes coisas.

     — Não, – confessei – não hesitaria.

     Ele olhou-me durante longo tempo. Ergueu-se, então e veio em minha direção. Pôs a mão na manga do meu casaco.

     — Que esquisito que o senhor é! Não o entendo, simplesmente. O que é que o estimula a agir? O que lhe passa pela cabeça? Estará fazendo isso tudo por minha causa?

     — Não.

     — Então por que? Haverá alguma outra mulher por quem o senhor faria tudo? Será que não o atraio? Não sente o mínimo desejo de me beijar?

     — Não – declarei — Seria a última mulher por quem eu experimentaria tal desejo.

     Ela enrubesceu.

     — Serei tão ruim assim? O que quer dizer com isso?

     — Algum dia saberá – disse eu. — Entrementes, reflita.

     Ela sentou-se e acendeu um cigarro. Comecei a andar de um lado para o outro. Depois de uma longa pausa, ela falou, hesitantemente.

     — Aquele homem, – disse — quando ele apanhou aquele papel da sua carteira. Disse que valia uma fortuna para vocês dois. Se era verdade isso, por que não o guardou?

     — Só tem valor para mim – expliquei. — Só vale para ele se eu for junto. Não vale um níquel para ninguém, a não ser para mim.

     — Então não posso imaginar o que seja.

     — Não precisa – disse eu. — Ouça. Vou à casa dos Worths hoje à noite. Vou precisar de você, como guia. Virá?

     — Depois do que fez, eu não posso recusar. O que espera descobrir lá?

     — Entre outras coisas, nosso gordo amigo Arthur, à procura do seu dólar fugitivo. Talvez outras coisas mais.

     — Por exemplo?

     — Já decidi que ou Sadie matou Thorpe, ou você, ou então ele cometeu suicídio. Não acho que Anthony já seja capaz de matar.

     — Você já especificou as coisas – disse ela, ironicamente.

     — Sim. Uma vez dentro de casa, serei capaz de especificar ainda mais. Deve haver algum indício lá. Algum novo ponto de vista. Diga-me, nega ter mexido nos pertences fotográficos do garoto?

     — Está claro que o nego.

     — Não digo de outras vezes, só desta.

   — Nunca. Nunca estive na sua câmara escura.

     — Bem, essa já é uma base. Julgo ter outra. Mas diga-me o seguinte: esse garoto, Anthony, é muito mimado. Suponho que a idosa tia seja louca por ele?

     — Louca é o termo. Ela já era louca pelo seu próprio filho, o pai de Anthony. Quando ele morreu ela transferiu toda sua afeição e mais um pouco para Anthony. Ela perde toda sua sensatez quando se trata dele. Está estragando a vida do menino.

     Concordei. Fiquei satisfeito de ouvir isso.

     — Olhe – disse ela, ardorosamente. — Não sei por que confio em você. Mas, acredita honestamente poder descobrir quem matou Thorpe? E antes do amanhecer? Acredita nisso?

     Balancei a cabeça.

     — Acredito que vou saber. Serei ou não capaz de prová-lo para um sujeito como Fortini, isso não sei. Terei que ter alguma sorte. Há ainda algo mais. Tenho que escrever umas coisas.

 

     Ela sentou-se em silêncio enquanto eu ia para a mesa e corria a caneta tinteiro sobre um pedaço de papel. Quando terminei, levantei-me e estendi-o para ela.

     — Quero que leia isso, antes que eu o assine.

     Ela leu-o muito devagar. Ergueu o olhar do papel e perguntou:

     — Você está maluco?

     — Não – disse eu.

     — Sabe o que escreveu aqui?

     — Naturalmente, confessei ter assassinado Thorpe. Forjei um lero-lero qualquer, dizendo como eu o estava chantageando e ele refugara, ameaçando chamar a polícia. De como eu me esgueirei para dentro da propriedade, vindo do extremo oposto do lago, escondendo-me do lado de fora das janelas francesas, esperando minha oportunidade. Vi-a trazer a bebida dele e, logo depois, quando ele se afastou do aposento, aparentemente para ir ao lavatório, eu entrei e deixei cair dois glóbulos de cianureto no copo.

    — Mas está claro que você não fez tal coisa!

     — Não, disse eu. — Não o fiz. Não obstante, daqui a pouco vou descer e pedir ao porteiro e a sua mulher para testemunharem minha assinatura deste papel. Não tenho de lê-lo. Somente testemunhar. Isso torna legal e aceitável como evidência.

     — Repito – disse ela. — Você não está maluco?

     — Não, não estou maluco. Nem morto, tampouco. Esse é o ponto central da coisa. Deixe-me explicar-lhe ao menos uma parte.

     Ela passou a mão pela testa. Pareceu repentinamente muito cansada.

     — Prossiga – murmurou — sinto-me como um rato num labirinto.

     — Quero tentar entrar na casa sem ser visto. Está claro que não poderemos fazê-lo pela frente. O guarda-portão chamaria a polícia, no instante em que nos visse. Vamos agir como ladrões. Poderemos muito bem deparar com polícias, com o nosso amiguinho Arthur, ou possivelmente com o assassino de Thorpe, que não hesitara em matar de novo.

     — Quer dizer que poderemos ser assassinados?

     — Quero dizer eu, apenas. Tenciono colocá-la bem à retaguarda. Agora, se eu morrer, pouco vou importar-me se o mundo inteiro pensar que eu matei Thorpe. Desde que não estou certo de que você o tenha morto, gostaria que tivesse uma chance.

     — Então deverei usar esta confissão somente se lhe suceder alguma coisa?

     — Isso mesmo. Se algo suceder por ventura, você estaria encrencada. Já que não tenho certeza de sua culpabilidade. Isso não seria justo. Você está intitulada a beneficiar-se com a alternativa.

   Ela balançou a cabeça.

     — Não compreendo direito. Há ocasiões em que você procede como um refinado patife. Há outras em que parece um nobre.

     — Sou um camarada grato, – declarei — com um forte senso de lealdade. Agora dê-me este papel e vamos ao porteiro.

     Tomei-o dela e desci. Quando voltei, eu o pus no envelope, selei-o e entreguei-o de volta a ela.

     — Ponha-o na sua bolsa – disse eu. — Se eu estiver vivo amanhã, devolva-me.

     Ela pôs o envelope na bolsa, balançando a cabeça, enquanto o fazia.

     — Quando faremos esse raid? – perguntou ela.

     — Depois do escurecer. Tem certeza de que poderemos apanhar uma canoa qualquer?

     — Tenho.

     Foi uma longa tarde. Lembrei-me de um pouco de uísque que havia na minha maleta e apanhei-o. A moça recusou beber. Esvaziei a garrafa vagarosamente, sombrio e sem apreciá-la. Ela falou-me apenas uma vez.

     — Sabe que é estranho que estejamos aqui juntos. Quer saber como cheguei a ir até seu escritório?

     Antes que eu pudesse responder, ela lançou-me outra interrogação.

     — Conhece um homem chamado Costain?

     — Muito bem.

     — Pois é, ele está no Corpo de Fuzileiros, com Bob. Escrevi a Bob, escrevi a Bob dizendo que alguém deveria vigiar Thorpe. Ele não sabia de ninguém que se dedicasse a isso, e então perguntou a esse Constain, que segundo parece, já andou por seca e meca. Constain indicou você. Informou que você era duro e desonesto, mas que conhecia o seu ofício.

     — Bondade dele reconhecer isso – disse eu. Apanhei de novo a garrafa e a conversa morreu.

 

                                     SADIE DEIXOU DE VIVER

     Saímos às noves horas. A despeito do álcool que vibrava na minha corrente sangüínea, eu estava nervoso. Judy também. Externamente ela parecia tranqüila, mas havia uma tensão nela, um agudo nervosismo em seus olhos.

     Fazia uma noite meio friorenta de começo de primavera. Ela garantiu-me ser muito cedo na estação para que os bangalôs do extremo oposto do lago estivessem ocupados. Por sugestão sua, tomamos um táxi até Green Mongoose, uma casa situada a um quilômetro do nosso destino.

     Tomamos uma bebida no bar e em seguida saímos a pé para a estância de verão. O vento levantou-se quando nos aproximamos da margem do lago. Fustigava a superfície em pequeninas ondas e suspirava lamentosamente entre as árvores.

     Sobre nós havia a lua, obscurecida por uma nuvem cor de pérola. Caminhamos pela linha da margem durante uns bons vinte minutos; aí então Judy segurou-me pela manga do casaco.

     — Olhe – disse ela apontando.

     Meu olhar seguiu-lhe o braço estendido. A uns dois quilômetros além, com o lago de permeio, apareceu a mansão Worth. A ala ocupada pelo gabinete de Thorpe estava profusamente iluminada.

     — Aquela parte da casa nunca é aberta à noite – explicou ela. — A polícia deve estar lá.

     — Espero que tenham apanhado Arthur – disse eu.

     — Você acha realmente que seu amigo Arthur está lá?

     — Conhecendo-o como eu o conheço, é impossível que esteja em outra parte.

     O vento aumentara. Abaixamos a cabeça e marchamos dentro dele.

     — Lá está nossa canoa – disse Judy abruptamente.

     Lá estava mesmo, virada e coberta com uma lona. Tirei uma faca do bolso e cortei os cordames. Felizmente havia um par de remos debaixo dela. Puxei-a até a beira d’água e impeli-a um tanto desajeitado.

     — Não sou muito bom nisso – disse eu — Você é?

     — Sou uma perita. Sente-se na popa e reme. Eu darei a direção.

     Trepei, vacilante na popa.

     — Você sabe nadar, não sabe? – perguntou ela.

     Balancei a cabeça.

     — Como um prego.

     — Então, – disse ela, com espantosa imprudência diante daquela situação — Não devia entrar na canoa.

     Sentei-me na proa, remo na mão e esperei por ela.

     — Está muito bem – disse ela.

     Afundei meu remo na água. Senti as remadas dela, seguras vindas da popa. Deslizamos sobre as águas inquietas.

     Estávamos a uns 200 metros da mansão Worth quando aconteceu aquilo. Uma rajada de vento e uma onda atingiram-nos simultaneamente. A canoa oscilou perigosamente. Senti faltar-me equilíbrio, ao mesmo tempo que perdia meu remo. A canoa virou completamente. A água fria e envolvente como uma mortalha, fechou-se sobre minha cabeça. Mexi desesperadamente com os pés. Meu rosto atingiu a tona d’água. Vi num relance a canoa seguindo toda emborcada. Judy segurava-se nela, com uma das mãos. Com a outra ela ainda conservava o remo.

     — Socorre-me – gritei. — pelo amor de Deus...

     — Calma – aconselhou ela. — Descanse. Não fique se batendo.

     Ela deixou o remo flutuando ao seu lado e rumou em minha direção com poderosas braçadas. Virou-se de costas com espantosa facilidade, dizendo:

     — Bóie apenas. E mais nada.

     Passou um braço sob meu queixo e nadou com a outra mão para a canoa. Lá ela recuperou o remo e deixou-me ofegante, pendente da canoa com uma mão enregelada.

     — Estamos indo bem – disse ela calmamente. — O vento está a nosso favor. Vai-nos levar para a praia dentro de dez minutos. Espere um pouco mais.

     Fiquei esperando. Ela tinha razão. Dentro de uns dez minutos meus pés tocaram o fundo e andei encharcado até a beira. Ela seguiu-me. Ficamos imóveis um instante, batendo os dentes e olhamos em direção à casa. Pelas janelas francesas podiam-se divisar claramente vultos. Pelo menos, um deles usava um uniforme da polícia.

     — E então, Sherlock. – disse ela — e agora?

     Sorri para ela.

     — Estou usando agora o meu outro plano, alternado. Vamos audaciosamente até a casa desafiaremos o criminoso.

     — Então já sabe quem é o assassino?

     — Sim – disse eu.

     — Não sou eu, pois não?

     — Já decidi que não. Vamos.

     Andamos rapidamente até as janelas. Bati fortemente no vidro. Através dele divisei um estático momento de consternação lá dentro. E então a grande janela abriu-se. Em frente a nós, encarando-nos estava o Tenente Fortini. A expressão em seu rosto era o sinal mais próximo de espanto que ele conseguira registrar.

     Entretanto, manteve sua voz roufenha e imperturbável, dizendo:

     — Boa-noite. Façam o favor de entrar.

     Entramos no aposento, pingando água sobre o assoalho. Além de Fortini, havia dois homens uniformizados, um deles um sargento da polícia. Sentado numa cadeira de braços recostado confortavelmente estava Arthur. Havia um corte no lado direito de seu rosto e um pouco de sangue nos lábios No outro lado do quarto estava Tia Sadie usando uma recente aplicação de ruge. O Lordezinho Fauntleroy, segundo deduzi, teria sido mandado para a cama.

     Arthur piscou para mim.

     — Não se preocupe, Allan – disse ele – não disse nada para eles.

     — Claro, – observei eu — você ainda não teve uma oportunidade de saber quanto pagarei pelo seu silêncio.

     — Será que poderemos arranjar um par de casacos? – disse Judy para Fortini. — Estamos gelados.

     — Fortini acedeu. Dirigindo-se ao patrulheiro, disse:

     — Welks, vá com esta moça apanhar alguns casacos. Não a perca de vista e traga-a logo de volta.

    Deu-me um cigarro enquanto esperávamos. Acendi-o com os dedos duros de frio.

     Judy e Welks voltaram. Ela usava um pesado casaco de peles sobre o vestido molhado. Estendeu-me um casaco de pele de camelo, o mais caro que eu jamais vira. Vesti-o.

   — Bem, – disse Fortini — confesso que não compreendo esta aparição repentina e molhada mas quem sou eu para mandar examinar os dentes a um cavalo dado. Pouparam-me um bocado de trabalho se apresentando. Ótimo, rapazes. Acho que agora poderemos levá-los todos.

     — Sob que acusação? – perguntou Arthur, ajeitando-se confortavelmente na sua cadeira.

     — A moça pelo assassinato – disse Fortini. — Este sujeito aqui – indicou-me — por intrujice, cumplicidade, importante acessório do homicídio. — Você, – dirigiu-se a Arthur — por entrada ilegal, conduta desordenada e insolência para com um policial.

     — Intrujice? – perguntou Judy. — como?

   — Sim, ele está se passando por Dasher.

     — Dasher?

     — Arthur mexeu-se na cadeira.

     — Ele enganou você, menina, Dasher sou eu.

     — Mas por que? Por que?

     Lutei contra o frio que me invadia e dei um passo à frente.

     — Tenente, – disse eu — o senhor está muito interessado no assassino, não está?

     — Claro. Mas nós já a apanhamos.

     — Ainda não. Querem-me escutar por um instante?

     — Por que não? Devo-lhe um favor. Se você não se tivesse mostrado, teria de dar uma batida até achá-lo. Diga sua parte. Aceito, aliás, um pouco de esclarecimento vindo de você. Que diabo é você?

     — Está vendo, Allan? – disse Arthur Dasher. — Eu não lhes disse nada.

     — Está bem – disse eu. — Vou dar-lhe seu dólar.

   Pela primeira vez Tia Sadie ergueu a voz:

     — Fortini – disse ela. — Vai ou não tirar essa gente daqui? Desejo recolher-me.

     — Só um minuto, pedi eu — Olhe, Fortini, esta moça não matou a Thorpe. Ela estava sendo caluniada. Você descobriu as impressões dela no copo, não foi?

     — Claro. Conferimos com as impressões nas escovas, no quarto dela.

     — Está certo, mas aposto que não descobriu nenhuma na garrafa de cianureto.

     Fortini encolheu os ombros.

     — Não sei ainda. A garrafa está no laboratório de pesquisas neste momento.

     — Você não as descobrirá nela – disse eu

     — Então é sinal de que ela as raspou.

     — E por que o faria somente da garrafa? E não do copo? Tia Sadie, aqui, descobriu o corpo. É uma senhora respeitável que, supõe-se, nada sabe a respeito de venenos, assassinatos ou qualquer desses assuntos macabros. Entretanto, quando ela descobriu Thorpe inconsciente, não mandou chamar o médico. Chamou você. Ela sabia que ele estava morto.

     — Bem, – ponderou Fortini — e ele estava, não estava?

     — Estava – disse eu — mas ela informou-o de que ele morrera pelo cianureto.

     — Ah, isso é fácil. Cianureto tem um odor muito definido. Qualquer um que tenha lido novelas policiais sabe disso.

     — Claro que assim é, Cheira a ameixas. E o que tomava Thorpe? Licor de ameixas. Não precisa um perito para sentir cheiro de cianureto naquele copo.

     — Pressenti-o eu, – disse Fortini — como também um leve cheiro de amêndoas.

     — Você é um perito – confirmei eu.

     Houve um silêncio. Arthur Dasher fitou-me admirativamente.

     — Muito bem, Allan, – disse ele — disso não convencerá um promotor público mas, de qualquer forma, não está nada mau.

     — Dasher tem razão – declarou Fortini. É melhor nós irmos rumando para a cidade.

     Fortini ia apanhar seu casaco. Nesse instante, interrompi apressadamente:

     — Está claro que lhe estava construindo apenas uma base circunstancial. Se quiser esperar um minuto, fornecer-lhe-ei uma confissão.

     — Confissão – disse Fortini. — De quem?

     — De Tia Sadie – disse eu.

     Tia Sadie deu-me uma olhadela com os olhos faiscantes.

     Fortini sorriu brandamente.

     — Acha que vai obter uma confissão dela?

     — Acho que sim – garanti. — Ouça isto, em primeiro lugar: Ela é doida por esse pequeno, o Anthony. E quando digo doida, quero dizer precisamente isso mesmo. Ela estragou-o tanto, que ele chega a cheirar mal. É capaz de tudo por ele. Tudo. Mormente se tratar de uma fortuna. Pegaram? Ela desconfiou de Thorpe, como os outros. Achou que ele estava desfalcando um patrimônio que seria algum dia de Anthony. Portanto deseja ver-se livre dele.

     Quer também ver-se livre de Judy Morehead. Ou de qualquer moça com quem Bob se queria casar, porque isso também viria diminuir a herança do Lordezinho Fauntleroy. Concorda com Judy em que as ações de Thorpe merecem investigações. Fica, entretanto, de olho aberto para uma oportunidade que possa beneficiar Anthony.

     — Você quer dizer – interrompeu Arthur Dasher – que quando esse Thorpe pediu a Judy a sua bebida, a velha senhora esperou até que Judy se fosse e até que Thorpe talvez também se afastasse de sua mesa um momento, e então teria posto o cianureto, imaginando que iria matar dois coelhos de uma só cajadada?

     Fortini suspirou.

     — Ainda não está bom – observou ele. É tudo conjectura. Você não disse algo a respeito de uma confissão?

     — Sim – disse eu. Meti a mão no bolso. Tirei minha carteira e removi sua capa à prova d’água. Tirei o papel dela, um documento.

     — Tia Sadie. – continuei — Minha proposta é esta: se a senhora continuar a negar que matou Thorpe, Anthony jamais pegará um centavo da fortuna dos Worths. Acabo com ela dentro das próximas quarenta e oito horas, comprando as mais desvalorizadas ações de petróleo que puder achar por aí. Não sobrará um níquel no fim da semana.

     Sadie fitou-me, piscando. Fortini ergueu as sobrancelhas e seus olhos me interrogaram sobre a possibilidade de eu ter enlouquecido. Dasher deixou escapar um assobio baixo e em seguida riu-se.

     — Por outro lado, – prossegui, – se confessar agora, garantirei o pequeno. Ele receberá um fundo que lhe permitirá educar-se decentemente e o bastante grande para um pecúlio regular, durante o resto da sua existência. É você quem decide. Anthony fica sem níquel ou recebe o fundo?

     — Fortini, – disse Tia Sadie – não acha melhor pedir uma camisa de Força?

     Fortini disse tranqüilamente:

     — Como é que você vai dispor do patrimônio dos Woeths? Não lhe pertence, pois não?

     — Não, respondi — mas posso arruiná-lo, se o desejar. – Estendi-lhe um papel. — Leia isso. É um papel que me confere inteiros poderes de procurador. Está assinado por Robert Woeth e testemunhado pelo seu comandante. Você pode me por na cadeia e em camisa de força. Arranjarei simplesmente advogado. Posso fazê-lo, e legalmente. Posso deixar o patrimônio dos Woeths aniquilado. E, por Deus, que o faço.

     Sadie ergueu os seus olhos remelosos e olhou Fortini. Ele suspirou e devolveu-me o papel. Respondeu à pergunta inarticulada de Sadie.

     — Sim, – disse – está legalizado. Ele pode fazê-lo.

     Os olhos de Sadie se umedeceram.

     — Eu gostava tanto dele – murmurou ela. — É exatamente como o pai. – Ela recompôs-se. — Quanto ele vai receber de fundo?

     — Garantirei cem mil dólares. Mais tarde, Bob poderá aumentá-lo.

     — Promete? Você o obrigará a fazê-lo, Fortini?

     Fortini olhou-me e em seguida a Sadie. Balançou a cabeça.

     — Estou certo de que ele o fará.

     — Muito bem. Eu envenenei-o. Farei tudo que disser, Fortini. O menino, porém, precisa de ser cuidado. Não deverá saber disso.

     — Prometo-lhe isso – disse Judy, e havia um tremor em sua voz. Ela voltou-se então. — Você é Costain, Allan Costain.

     — Tenente Costain, – expliquei — reformado.

     Meia hora depois estávamos a sós na grande sala de estar. Uma tora de lenha ardia na espaçosa lareira.

     — Bob Worth – disse eu para ela — era um homem preocupado. Tinha recebido cartas de você, sugerindo que as coisas não andavam bem, cartas de Sadie, afirmando a mesma coisa e cartas de Thorpe afirmando que você era uma intrujona e Sadie uma ladra potencial. Ele não sabia em quem confiar.

     — Então você recomendou Dasher para auxiliá-lo.

     — Disse-lhe a respeito de Dasher e ele escreveu-lhe a respeito. Recebi então repentinamente do corpo médico o meu desligamento. Bob passou-me a procuração. Disse-me para fazer o que quisesse. Acima de tudo, descobrir se você estava procedendo corretamente. Como vê, ele a amava.

     — Mas por que disse que era Dasher?

     — É fácil. Tão cedo cheguei e aluguei um apartamento mobiliado, fui ver Dasher. Queria saber se você tinha estado lá, se ele podia dar-me alguma informação, antes de eu aparecer por aqui. Ele pediu-me, então, para ficar no escritório, pois tinha de ir a um encontro, prometendo voltar logo em seguida. Foi ai que você surgiu, não é simples?

   Ela concordou.

     — Está certo que você se arriscou tanto foi por Bob – disse ela vagarosamente. — Não foi por mim. Ele é tão seu amigo assim?

     — Sim – respondi — Foi numa noite no Jane Russell Knob. Havia um homem preso no arame farpado, quase morrendo. E havia um outro mais que não poupou sua vida por mim. Teve sorte. Conseguiu o que pretendia.

     — E eu? Quando descobriu que eu não era a assassina?

     — Há duas horas atrás. Quando me retirou do lago.

     — Só porque lhe salvei a vida, deduziu que eu não era a criminosa? Isso não está lógico.

     — Dessa maneira Thorpe. Se você me deixasse afogar, estaria livre. Uma assassina o faria.

     — Ainda bem que eu não o era.

     — Ainda bem.

     — Quando Bob voltar – disse ela. — nós três vamo-nos divertir à grande. Mora aqui por perto?

     — Sim, perto – disse eu — Em Daleton. Vou voltar para o meu antigo emprego lá.

     — E qual era ele?

     — Já ouviu falar do Arrowhead County Club? Trabalho lá.

     — Mas o que faz?

     Fitei-a durante um longo momento.

     — Não vai zangar-se seu o disser?

     Ela riu-se. E ocorreu-me que era aquela a primeira vez que a via rir-se.

     — Como poderei zangar-me com você de novo?

     — Está bem – disse eu — Você quem o quis. Sou instrutor de natação lá.

     Ela olhou-me com os olhos brilhantes durante um momento e em seguida explodiu numa risada franca. Contemplei-a, consciente de um furioso desejo em mim de beijá-la e de um outro, de desgosto, por saber que jamais poderia fazê-lo. Suspirei, virei-me para o lado da mesa e preparei uma nova rodada de bebida.

 

                                                                                R. F. Lucchetti  

 

                      

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