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Planeta Criança



Poesia & Contos Infantis

 

 

 


BRITANNIA / Simon Scarrow
BRITANNIA / Simon Scarrow

                                                                                                                                                   

                                                                                                                                                  

 

 

Biblio VT 

 

 

Series & Trilogias Literarias

 

 

 

 

 

 

LISTA DE PERSONAGENS

No forte
Segunda Coorte de Cavalaria Trácia - os Corvos Sangrentos Prefeito Cato
Decuriões: Miro, Temistocles, Corvino, Aristófanes, Harpex, Platão Soldado Traxis Médico Pausino Optio Pandaro Quarta Coorte, Décima Quarta Legião Centurião Macro
Centuriões: Crispo, Festino, Portilho, Lêntulo, Macer Optios: Crotão, Diodoro Destacamento da Oitava Coorte Itírica Centuriões: Fortuno, Apilo Optios: Safro, Mago
Soldado auxiliar: Lomo

Coluna para a invasão de Mona
Legado Quintato, Comandante do exército Legado Valens, Comandante da Vigésima Legião e (interinamente) da Décima Quarta Prefeito do Campo Silano Tribuno Livónio

Outros
Aulo Dídio Galo, recém-nomeado Governador de uma província em tumulto
Caio Porcino Glaber, chefe do estado-maior de Galo
Venisto, vaidoso líder dos seguidores civis da Oitava Coorte Ilírica
Júlia, a desafortunada esposa de um militar
Petrónio Deano, um mercador nativo e um mercenário
Lúcio, filho do prefeito Cato e de Júlia

 

 

 

 

 

 

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Outubro, 52 d.C.

- Então, o que acha? - indagou o prefeito Cato, enquanto continuava a percorrer com a vista a encosta, até se deter na povoação muralhada que se estendia ao longo
do vale. Embora não tivesse um aspeto tão formidável como as grandes colinas fortificadas com que se tinham deparado nas terras meridionais da Britânia, era a prova
evidente de que a tribo dos deceanglos também era capaz de edificar defesas de respeito. A aldeia tinha sido instalada numa zona de terreno elevado, na margem do
rio que percorria velozmente o fundo do vale. Um fosso profundo protegia a muralha de terra, encimada por uma paliçada de aspeto sólido. Nas duas extremidades da
povoação situavam-se portões fortificados, guarnecidos por sentinelas atentas a tudo o que se passava quer a montante quer a jusante. Cato calculou que existiam
várias centenas de cabanas de forma arredondada no interior das defesas. Havia também um número considerável de animais em cercados, bem como aquilo que parecia
ser uma linha de tendas - na realidade, as coberturas dos poços revestidos a pedra que os nativos usavam para armazenar cereais.
Deitado na relva ao lado do jovem oficial, estava o centurião Macro, a face vincada e enrugada pelo esforço posto na observação do vale, uma paisagem banhada pela
luz do fim de tarde que dava aos campos ceifados uma cor que os fazia parecer terem sido queimados, e fazia dos esparsos pinhais nada mais do que manchas escuras
que cobriam partes das encostas que rodeavam a povoação. Os dois homens tinham tido o cuidado de remover os capacetes e de os deixar com a pequena patrulha que os
aguardava do outro lado da crista do terreno. Tinham sido os membros dessa patrulha a assinalar a invulgar atividade que se registara no dia anterior naquela povoação.
Graças às discretas capas de tom acastanhado que os envolviam e ao cuidado que tinham posto na deslocação até ao ponto de observação situado no meio das árvores
mirradas que
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cobriam o cimo da colina, Cato e Macro tinham evitado ser avistados pelo inimigo, e podiam assim avaliar calmamente os preparativos dos guerreiros deceanglos.
Macro, um veterano enrijecido ao longo de inúmeras campanhas, fez um esgar.
- Já não tenho dúvidas nenhumas. Têm estado a recrutar homens nas aldeias em redor. Estás a ver aquele grupo junto aos cavalos? Mesmo ao lado da pilha de lanças
e de escudos. Aposto um denário contra dez em como aquilo não é um grupo a preparar-se para ir à caça. - Fez uma pausa e procedeu a um rápido cálculo aproximado
dos números do inimigo. - Não podem ser mais de uns quinhentos ou seiscentos. Para já, não representam qualquer perigo.
Cato assentiu. Era verdade. O forte em que tinham sido colocados, a pouco mais de quinze quilómetros a leste dali, estava bem situado, e era guarnecido pelas duas
unidades que tinha sob o seu comando: uma coorte de legionários da Décima Quarta Legião, liderada por Macro, e a sua própria coorte auxiliar, de natureza mista.
Os Corvos Sangrentos, como se tinham tornado conhecidos graças ao símbolo que ostentavam nos estandartes, tinham em tempos sido uma unidade exclusivamente de cavalaria.
Porém, as campanhas recentes nas montanhas a ocidente da província tinham provocado a perda de muitos dos cavalos da unidade. O depósito em Luntum, onde as montadas
eram treinadas, tinha desenvolvido todos os esforços para lhes fornecer animais de substituição, mas não os tinha em quantidade suficiente para satisfazer as necessidades
de todo o exército. Em resultado dessa escassez, metade dos homens da coorte de Cato agiam agora na qualidade de infantaria, e a unidade tinha sido colocada, com
os homens de Macro, num dos postos avançados que tinham a seu cargo a defesa das fronteiras da nova província do Imperador Cláudio. Uma remessa de exércitos substitutos
tinha preenchido as fileiras das duas unidades, recompondo-lhes o efetivo até ficarem quase com os mesmos números com que tinham encetado a campanha contra as tribos
das montanhas. Com mais de quatrocentos legionários e outro tanto de tropas auxiliares, não se sentiam propriamente ameaçados pelo grupo de guerreiros que se tinha
reunido na povoação nativa.
Ainda assim, levantava-se uma questão.
- O que estarão eles então a preparar? - Cato trocou um breve olhar com o seu subordinado, e calculou que os pensamentos de Macro
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se dirigiam no mesmo sentido. - Vou mandar uma mensagem ao legado. O mais provável é que ele esteja a receber relatórios similares dos outros postos. O que me leva
a pensar que os druidas estão outra vez em plena atividade, e que vamos ter outra vez confusão da grossa.
- Filhos de uma cabra - rosnou Macro. - Sacanas de druidas. Mas esses merdosos desgrenhados não sabem ficar quietos?
- Macro, esta é a terra deles. Esta gente é o seu povo. Acha que nós reagiríamos de outra forma se estivéssemos no lugar deles?
- Se fosse esse o caso, senhor, as legiões nunca teriam conseguido sequer pôr um pé nesta ilha.
Cato soltou uma risada perante o ar convencido do amigo.
- Embora admire a avaliação que faz das nossas capacidades guerreiras, não posso deixar de lamentar a sua falta de empatia pelos celtas.
Macro fungou.
- Se alguma vez tive alguma espécie de sentimento caloroso por estes bárbaros cabeludos, desvaneceu-se já há muito, mais ou menos por volta do momento em que eles
deviam ter-se mostrado suficientemente inteligentes para perceber que nunca haverão de nos conseguir derrotar.
- Houve alturas em que estiveram perto disso.
Macro franziu um sobrolho.
- Se assim o diz, senhor.
- E não houve um único momento ao longo de todo este tempo em que não se tenham mostrado dispostos a enfrentar-nos. - Cato suspirou. - Já vão quase dez anos desde
que o exército aqui desembarcou, e ainda não podemos dizer que a província é realmente segura. Claro que é difícil chegar a esse ponto quando até os nativos que
supostamente estão do nosso lado se veem tratados quase como animais.
O companheiro lançou-lhe um olhar resignado. Macro já tinha ouvido o amigo a arengar daquela forma muitas vezes, e atribuía tal facto ao peculiar apetite do jovem
pelas inutilidades da filosofia dos gregos, que o levava a ter tendência para pensar demasiado nas coisas. O que não tinha servido de grande coisa aos próprios gregos,
considerou para si mesmo. No fim de contas, a terra deles não passava agora de uma província de Roma, tal e qual como acabaria por suceder com toda a Britânia, mais
cedo ou mais tarde. Limpou audivelmente a garganta, antes de ripostar.
- Sim, pois, hão de ser tratados de forma mais decente assim que deixarem de se portar como animais e aceitarem os nossos modos. Mas,
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primeiro, ainda temos que andar de cajado aperrado e meter-lhes juízo nas cabeças, à porrada se for preciso. - Fez um gesto com o polegar, designando a povoação
no vale. - A começar por esses trastes dos druidas. Digo-to eu, a nossa tarefa nesta terra tornar-se-á bem mais simples a partir do momento em que pregarmos o último
desses sacripantas numa cruz e o deixarmos a secar ao sol.
- Talvez seja assim - refletiu Cato. A hostilidade de Macro relativamente ao culto dos druidas tinha muito boas razões de existir. Embora a ilha estivesse dividida
em inúmeros reinos tribais, cerca de metade dos quais tinha concluído tratados com Roma ainda antes de o primeiro legionário ter posto o pé nas suas praias, todos
eles manifestavam uma profunda reverência pelos druidas e facilmente sucumbiam aos seus apelos para que resistissem aos invasores. Naquele preciso instante, e disso
Cato não tinha a menor dúvida, muitas das tribos que já tinham sido subjugadas olhavam para os druidas como exemplo e inspiração para prosseguir a luta. Inúmeros
guerreiros dessas tribos tinham cruzado a fronteira, na direção das montanhas, para se juntarem às fileiras dos que lutavam ainda contra Roma. A situação tinha sido
potenciada pela morte do governador da província. Ostório era já um comandante experimentado quando fora colocado na Britânia. A verdade é que a experiência acumulada
acabara por se revelar demasiado pesada. Toda a tensão do combate infindável contra as tribos das montanhas tinha-o desgastado, e sofrera um colapso em plena reunião
com os seus oficiais, acabando por falecer menos de um mês depois.
Não podia ter acontecido em pior altura. As legiões tinham acabado de alcançar uma difícil vitória sobre os guerreiros nativos. O comandante do exército bretão,
Carátaco, fora capturado e enviado para Roma com a sua família, e o ânimo dos seus seguidores tinha sido quebrado de forma aparentemente definitiva. E precisamente
nesse momento, o governador morrera. Os druidas tinham imediatamente tirado proveito do facto, apregoando-o como um claro sinal dos deuses de que os romanos estavam
amaldiçoados e de que as tribos tinham de prosseguir o combate, agora que os deuses lhes haviam dado a sua explícita aprovação. Os postos fronteiriços tinham sido
atacados, as colunas de abastecimento e as patrulhas romanas emboscadas, e o exército vira-se obrigado a recuar para uma linha de mais fácil defesa na orla dos territórios
dos siluros, ordovicos e deceanglos. A ausência de um comandante incontestado
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tinha minado a posição romana; o governador nomeado para substituir o malogrado Ostório não se apresentaria para tomar posse do seu posto antes da primavera. E agora,
ali estava a clara evidência de que as tribos se preparavam para renovar os seus assaltos.
- Já vi o suficiente - decidiu Cato. - Vamos.
A rastejar, recuaram para a linha do arvoredo. Assim que se embrenharam na segurança das sombras, os dois homens voltaram a pôr-se de pé e ajustaram as capas e os
cinturões das espadas. Por cima deles, as ramagens já perdiam as suas folhas. A folhagem tinha adquirido tons amarelados e ferrugentos, e a ligeira brisa que soprava
fazia voltear pelo ar todo o mato seco. Cato, mais alto e muito mais magro do que o amigo, sentiu um arrepio. Não lhe agradava de todo a perspetiva de passar os
longos meses de inverno confinado ao forte, a que algum membro mais espirituoso do pessoal do anterior governador tinha dado o nome de "Imperatoris Stultitiam" -
a Tolice do Imperador. Fora uma daquelas alcunhas que colara, e o forte passara a ser assim designado em toda a correspondência oficial. O tempo invernoso da ilha
já era absolutamente miserável, refletiu Cato, mas ali, naquela região acidentada e montanhosa, era constantemente frio, húmido e ventoso.
Cato sentia saudades dos confortos de Itália, com o seu clima temperado. Mais importante, era lá que a esposa aguardava pelo seu regresso, na casa que tinham adquirido
em Roma. Naquela altura, já Júlia teria dado à luz o seu primeiro filho, e Cato aguardava ansiosamente uma carta dela que lhe acalmasse o espírito quanto a essa
questão. Ainda se passariam muitos meses, talvez anos, até que a Britânia se tornasse um lugar sossegado, que lhe permitisse solicitar licença para regressar a Roma,
e por isso já decidira que ia antes pedir a Júlia que viajasse para a ilha. As primeiras cidades da nova província estavam em rápida expansão, e embora ainda não
passassem de lugarejos, já ofereciam um grau de conforto suficiente para lhes permitir reclamar o título de pontos civilizados do Império. Além disso, ele e Júlia
teriam ocasião de se ver com maior facilidade, e Cato poder-se-ia permitir saborear algo da vida familiar a que almejava desde o instante em que soubera da gravidez
da esposa.
Foi Macro quem seguiu à frente enquanto subiam o declive por entre as árvores, as botas a fazer restolhar as folhas caídas e a fazer estalar os galhos também tombados
sobre o solo. Alcançaram a crista do terreno, estreita e pedregosa, mas de imediato começaram a descer pela outra
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face, até ao trilho onde o esquadrão de cavalaria auxiliar os aguardava. Com a colina a separá-los do inimigo, os dois oficiais já se sentiam em segurança, pelo
que passaram a falar em tom normal, uma vez que não existia o risco de serem detetados.
- Achas mesmo que estes sacanas nos vão tentar lixar antes da chegada do inverno? - indagou Macro.
Cato pensou uns instantes, antes de assentir.
- É mais do que provável que assim suceda. Os druidas hão de querer lançar um ataque tão cedo quanto possível, enquanto o povo ainda celebra a morte do Ostório.
Vão tornar as coisas muito difíceis para nós, mas duvido que tenham a força necessária para nos expulsar das montanhas. Graças aos deuses, já não têm o Carátaco
para os liderar nessa renovada ofensiva.
- Pois, foda-se, ainda bem que não - soltou Macro com todo o ardor. - O cabrão tinha mais truques na manga do que uma puta de dez sestércios.
Cato arqueou as sobrancelhas, divertido.
- Que imagem tão colorida.
Macro escarrou para o solo.
- E, como de costume, temos a sorte de não vir a receber qualquer recompensa pela sua captura, coisa que até fizemos por duas vezes. Não, o crédito pela façanha
vai acabar nas mãos de outro sacana sortudo qualquer.
Cato compreendia perfeitamente o azedume do amigo. A situação nada tinha de justo, mas já passara suficiente tempo de serviço no exército para saber que um soldado
raramente recebia o crédito merecido pelas suas ações. Especialmente quando havia por perto algum político pronto a reclamar como seu o sucesso que se devia a outros.
- Muito gostava eu de saber como será o Carátaco recebido em Roma, quando lá chegar agrilhoado - prosseguiu Macro. - Espero que lhe ofereçam o mesmo tratamento que
César deu àquele gaulês.
- O Vercingetorix?
- Esse, pois.
Cato recordou o homem que se tinha oposto a Júlio César, cerca de cem anos antes. Derrotado em Alésia e feito prisioneiro, passara vários anos a definhar numa masmorra
nas catacumbas de Roma, até ser arrastado para as ruas e estrangulado no momento da celebração do
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triunfo de César. Um fim indigno para um nobre inimigo, considerou Cato. Esperava que o Imperador Cláudio poupasse Carátaco a uma tão miserável e humilhante execução.
Tinha combatido de forma valente e incansável contra Roma, e merecia o respeito dos seus inimigos. Apesar do que Macro pudesse sentir sobre esse tema.
- Espero bem que não.
Macro lançou um olhar seco sobre o ombro.
- Com pena do nobre bárbaro?
Cato sorriu.
- Sim, qualquer coisa do género.
- Merda, miúdo, quando é que vais meter isto na cabeça? Aqui estamos nós, e ali estão eles - os bárbaros - a interporem-se no rumo e no destino de Roma. Se fossem
espertos, davam-nos passagem. Não sendo o caso, isso só prova que são burros. Neste mundo não há cá lugar para a piedade. No nosso campo profissional, é tudo o que
é preciso saber.
Cato encolheu os ombros. Uma tão informal troca de ideias e palavras entre um centurião e o seu oficial superior causaria em geral um cerrado franzir de sobrolhos,
mas a verdade é que os dois homens tinham servido lado a lado desde que Cato fora incorporado nas legiões, já fazia uma década. Em privado, continuavam a conversar
da forma jocosa e informal que usavam havia anos, e Cato apreciava a situação. Era bem melhor ter um camarada em quem podia confiar para dizer aquilo que realmente
pensava do que um que se limitasse a obedecer sem pestanejar.
- Além disso - prosseguiu Macro, - achas, por um instante que seja, que eles te devolvem o favor? Nem pensar. Odeiam-nos profundamente e, se pudessem, cortavam-nos
as goelas sem pestanejar. Os únicos que acreditam nessa treta de nobres bárbaros são aqueles mariconços literários que se deixam ficar por Roma a inventar historietas
de merda. Não existem bárbaros nobres, só bárbaros, mais nada.
- Dá-me ideia de que esse rico filão de imagens coloridas e insultuosas já foi explorado até ficar esgotado, e há bastante tempo - foi a resposta de Cato. - Portanto,
faça-me um favor e poupe o fôlego, sim?
Macro cerrou os lábios e fez uma careta.
- Como queira, prefeito.
A mudança de tom e a referência à sua patente denunciavam que Macro ficara magoado com o remoque, e Cato suspirou para si mesmo
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enquanto seguia o amigo em silêncio. Mais adiante já se via luz por entre as árvores, e depressa emergiram para o trilho nativo que atravessava a floresta. Fizeram
uma pausa, de respiração pesada, e olharam para ambos os lados, mas não viram sinal dos soldados que os tinham acompanhado desde o forte.
- Não estou a reconhecer este lugar - notou Cato. - Devemos ter entrado na floresta um bocado mais à frente no trilho.
- E agora, para que lado?
Olhou para a crista da colina e avistou alguns penedos em que tinha reparado à chegada.
- Para a esquerda. Vamos.
Avançaram a passo rápido pelo trilho encaixado entre as árvores, a brisa a correr por entre as ramadas. Depois de percorrerem uma curta distância, o trilho fazia
uma curva para acompanhar a forma da encosta, e ali, a cinquenta passos, aguardava a patrulha. Dez homens, à espera junto das montadas, um deles a segurar os cavalos
dos oficiais, além do seu. As capas, calças e botas estavam tão cobertas de lama como os flancos dos animais. Assim que avistou os oficiais, o decurião Miro alertou
os homens, e todos se prepararam para montar.
- Tinhas razão, decurião - começou Cato, quando se aproximaram. - Está-se a preparar confusão.
Miro inclinou a cabeça num sinal de reconhecimento, aliviado por ver que o seu comandante concordava com a avaliação que fizera da situação.
- Senhor, as suas ordens?
- Regressamos ao forte. Depois trataremos de enviar as nossas observações ao legado.
Miro olhou para ele.
- Senhor, o que pensa que o legado Quintato fará acerca disto?
- Decurião, não nos cabe pormo-nos a imaginar o que fará o legado. - Cato subiu para a sela, passou a outra perna pela garupa, acomodou-se e deu ordem. - Montar!
Os outros imitaram-no, com um coro de grunhidos, couros a estalar, e o resfolegar das pesadas montadas. Assim que os homens empunharam as rédeas nas mãos esquerdas
e apoiaram as lanças no encaixe junto aos estribos, Cato fez um gesto com a mão, para que se pusessem em andamento, e levou o grupo a trote pelo trilho. Este era
suficientemente
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estreito para obrigar os romanos a seguir em fila indiana durante algum tempo, até sair da floresta e desembocar num espaço aberto. Nessa altura Macro fez o seu
cavalo acelerar até se colocar ao lado do prefeito.
- Vamos ter que preparar os rapazes para uma marcha, senhor. Para o caso de o Quintato dar essa ordem.
- Estou ciente disso. Preciso que me prepare um inventário completo dos suprimentos que temos ainda à nossa disposição. Se nos faltar alguma coisa, tratarei de a
pedir ao quartel-general. Não vamos cair outra vez naquela situação ridícula que nos aconteceu no início do ano.
Macro assentiu, satisfeito. As duas unidades sob o comando de Cato tinham sido colocadas a proteger um comboio de bagagens, e o oficial responsável pelos abastecimentos
do exército tinha-os por sua vez colocado no fim da longa lista de unidades às quais era preciso fornecer materiais de substituição. Só quando Cato tinha conseguido
encurralar o tribuno subalterno responsável e lhe tinha dado uma valente ensaboadela é que a escolta das bagagens começara a receber aquilo de que necessitava. Se
Quintato se visse forçado a lançar uma nova campanha, desta vez era essencial que fosse assegurado que os Corvos Sangrentos e os legionários de Macro estivessem
bem equipados e abastecidos com tudo o que era necessário para enfrentar os rigores do combate nas montanhas.
De repente, Cato esticou o braço no ar e refreou o cavalo. Antes de conseguir reagir, o cavalo de Macro tinha prosseguido e adiantara-se ligeiramente. Os outros
cavaleiros imitaram o gesto do líder, enquanto Cato se debruçava na sela e escrutinava um afloramento rochoso que se projetava sobre o trilho a curta distância.
- Senhor, o que se passa? - indagou Macro.
- Há ali movimento. Avistei alguém no meio das rochas.
Macro olhou para o mesmo ponto e inchou as bochechas.
- Não dou por...
Antes que pudesse terminar, um vulto diminuto numa túnica de lã ergueu-se e aprestou um arco. Por instinto, Macro lançou a mão ao punho da espada, antes de parar
e soltar uma sonora gargalhada, ao reparar que se tratava de um miúdo escanzelado.
- Desaparece! Antes que eu chegue aí e te dê cabo do canastro!
Os soldados romanos riram nervosamente, deixando dissipar-se a
tensão. O rapaz soltou um grito de desafio na sua própria língua e soltou
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a flecha. O projétil descreveu um arco a caminho dos cavaleiros e desapareceu por entre as ervas que ladeavam o trilho.
- Olha o descaramento! - rosnou Macro. - Vou ensinar umas maneiras ao fedelho merdoso, antes de o levarmos prisioneiro.
Fez avançar o cavalo a caminho das rochas, sob um coro de aplausos de alguns dos auxiliares. O miúdo pegou noutra flecha e assestou-a no arco, antes de o levar à
cara e apontar ao cavaleiro que se aproximava dele.
Cato levou a mão em concha à boca para lançar um aviso.
- Macro! Cuidado!
A segunda flecha saltou do arco, e Cato percebeu de imediato que o jovem tinha feito pontaria com precisão, ou que se limitara a ter sorte, dada a velocidade do
seu alvo. Macro estremeceu na sela. O cavalo desacelerou repentinamente, seguindo a trote até se imobilizar enquanto o centurião se debruçava para inspecionar a
perna.
- Foda-se... O cabrãozito acertou-me. - O tom era mais de surpresa do que de dor, e Cato apressou-se a fazer avançar a sua montada. O rapaz mantinha-se sobre as
rochas, a boca aberta de surpresa perante o resultado da sua bravata. O feitiço quebrou-se, e ele baixou o arco e virou-se para fugir.
- Atrás dele! - gritou o decurião Miro.
Cato deteve-se junto a Macro e viu a haste escura da flecha a sair das calças de couro que cobriam as pernas do amigo. Já se via o sangue a escorrer em torno da
ferida, a descer pela perna e a pingar para o solo. O centurião abanou a cabeça, ainda admirado, os lábios arreganhados num sorriso amarelo, enquanto rangia os dentes.
- Apanhou-me mesmo, o sacaninha. Um golpe de sorte.
Cato desceu da sela e examinou a ferida de perto. Sentiu-se agoniado quando notou a forma como o sangue corria sem cessar. Apercebeu-se dos vultos escuros dos cavaleiros
a passarem por ele, liderados por Miro na caça ao miúdo nativo, e teve a presença de espírito para se empertigar e chamar o decurião.
- Deixem o miúdo! Decurião! Chama os teus homens!
Os auxiliares abandonaram a caça com evidente relutância e ficaram a ver o fugitivo a saltitar agilmente por entre as rochas, a caminho do cimo da colina. Seria
uma perda de tempo tentar segui-lo. O rapaz era astuto, seguindo por um caminho inacessível aos cavalos, e por outro
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lado facilmente se distanciaria dos soldados equipados pesadamente com as armaduras, se o seguissem a pé. Cato voltou-se para o amigo.
- Macro, temos que estancar a hemorragia. Isso está mau.
- Isso vejo eu muito bem, obrigado.
Cato inspirou profundamente.
- Sabe o que tenho que fazer?
- Despacha-te lá com isso.
- Muito bem. - Cato cerrou o punho esquerdo em torno da haste e firmou o braço. Depois colocou a mão direita também na haste, a curta distância da outra. Retesou
os músculos. - Pronto? Aos três.
Macro anuiu, e olhou para cima.
- Um... - De repente, Cato fez força e partiu a haste, e o amigo soltou um urro de dor, antes de lhe lançar um olhar furibundo do alto da sela.
- Batoteiro de merda... senhor!
O sangue jorrou da ponta da haste ainda cravada na perna de Macro, e Cato apressou-se a tirar o lenço do pescoço e a colocar uma ponta por baixo da perna do centurião
antes de começar a enrolá-lo em torno do membro ensanguentado, passando de um e do outro lado da haste e apertando a ligadura improvisada com toda a força. Assim
que acabou de a atar, começaram a surgir manchas avermelhadas no tecido, e ele esticou a mão e pediu.
- Dê-me o seu lenço.
Macro desapertou o pano que tinha em redor do pescoço, e Cato usou-o para reforçar a ligadura. Apesar da pressão, a ferida continuava a sangrar, e o jovem percebeu
que Macro estava a perder muito sangue, a um ritmo muito elevado. Tinha que o levar de volta ao forte rapidamente, para permitir que ele fosse tratado pelo médico
da guarnição.
- Miro! Quero um homem de cada lado do centurião. Têm que o manter direito na sela.
Enquanto os homens se colocavam em posição, Macro abanava a cabeça.
- Porra, não preciso de enfermeiras. Sou bem capaz de me aguentar sozinho.
- Cale-se, e faça como lhe digo - ripostou Cato, voltando a subir para a sela. Pegou nas rédeas e olhou na direção do rapaz, já longe e num ponto mais elevado do
terreno. Tinha parado para se dedicar a lançar
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insultos aos romanos, e a sua voz estridente ecoava nas rochas. Depressa se aperceberiam do tumulto na povoação nativa, e não perderiam a ocasião de tentar atacar
a patrulha.
- Temos que sair daqui.
Sentiu uma ponta de ansiedade ao ver Macro a oscilar na sela; o centurião já tinha perdido muito sangue, e o choque contribuía para o fazer sentir tonto. Depressa
a ansiedade que Cato sentia se transformou em receio: o temor de perder o seu mais próximo amigo no mundo, em resultado daquele absurdo confronto e da inacreditável
sorte do segundo disparo do rapaz. A ironia de ver Macro abatido por um miúdo magricela, depois de ter derrotado vários dos mais formidáveis inimigos do Império,
era quase insuportável para Cato.
- Merda. Merda - resmungou, ao cruzar o olhar com o de Macro, que exibia um ar ausente. - Não o Macro. Não agora. Não neste lugar.
- Nem pensar nisso, foda-se - respondeu Macro, num arranque.
- Não te preocupes com isso, miúdo.
Cato assentiu, e virou-se para o decurião Miro.
- Regressamos ao forte! Não há paragens por nada deste mundo. Vamos!
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- Deitem-no aí nessa mesa - ordenou o médico, ao ver os auxiliares entrarem na sala de tratamentos da pequena enfermaria situada ao lado do edifício onde funcionava
o quartel-general do forte. Macro seguia entre os dois homens, um braço em redor do ombro de cada um, sem forças. Mal se mantinha consciente, e a cabeça descaía-lhe;
Cato ficou chocado ao verificar o ar pálido, quase branco, do rosto do veterano. Lá fora, o dia estava a terminar, e uma trombeta tinha acabado de dar o sinal para
a mudança de turno. Uma patrulha entrava a galope pelo portão principal, mas a plácida rotina quotidiana da guarnição prosseguia, sem que alguém se desse conta do
pequeno drama que se desenrolava.
Pausino era um dos raros médicos militares que não eram gregos ou naturais de uma das províncias orientais, onde o conhecimento médico estava mais desenvolvido e
era fácil de adquirir. Tinha sido escolhido entre os homens das fileiras para ser treinado no tratamento de feridas, antes de progredir na carreira até à posição
que ocupava naquele momento, depois de muitos anos de experiência a remediar ferimentos, fraturas e doenças dos soldados.
A mesa de exames tinha uma pequena almofada de couro numa das pontas, para permitir que os pacientes ali encostassem a cabeça. Os homens que amparavam o centurião
levantaram-no e pousaram-no sobre a dura superfície, e Cato afastou-se ligeiramente, para permitir que Pausino desempenhasse o seu papel.
- Tirem-lhe o arnês e a armadura. As botas também. Deixem-lhe só a túnica.
Enquanto os auxiliares cumpriam as indicações, Macro não parava de soltar imprecações, embora os olhos lhe rebolassem nas órbitas e a cabeça lhe oscilasse lentamente
de um lado para o outro. Entretanto,
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o médico tinha pegado na sua maleta de instrumentos e selecionado com todo o cuidado alguns deles, que pousou num banco ao lado da mesa. Chamou um dos ajudantes
para que lhe trouxesse ligaduras limpas, vinagre e a caixa de ervas, antes de abrir as persianas da janela do outro lado da cama onde Macro jazia, de forma a deixar
entrar toda a luz possível.
- Saiam-me da frente! - Fez menção de empurrar um dos auxiliares com um gesto brusco. - Afastem-se. - Inclinou a cabeça na direção de Cato. - Senhor, não me dirigia
a si, claro. Mas mantenha-se desse lado, sim?
Cato anuiu e deixou-se ficar numa posição que lhe permitia ver o rosto pálido do amigo, sem prejudicar o trabalho do médico ou da sua equipa.
Depois de a armadura de Macro ter sido removida, Pausino desfez as ligaduras feitas com os lenços e lançou os panos ensopados em sangue para um cesto ao lado da
mesa. Debruçou-se para inspecionar de perto a haste da flecha antes de se endireitar e se dirigir ao centurião.
- Vou ter que lhe cortar as calças para as abrir e ter acesso à ferida, senhor.
- Não... - protestou Macro, em voz fraca. - Ainda hoje as vesti...
- Pois, é uma pena. - Pausino pegou numa tesoura e começou a cortar o cabedal até à altura da ferida, depois continuou com todo o cuidado em torno da haste da flecha
e prosseguiu até à cintura, até as poder abrir e afastar da pele do centurião. O sangue vivo misturava-se com o seco numa pasta, que se tinha acumulado na área em
que a flecha rasgara a carne. O médico testou-a com os dedos, e Macro deixou escapar um gemido profundo.
- Humm. Isto está feio. Não consigo sentir a ponta da flecha. Deve ter penetrado profundamente. - Pausino cofiou o queixo, onde se notava uma ligeira penugem, deixando
uma risca avermelhada sobre a sua própria pele.
- O que vais fazer então? - inquiriu Cato.
- Senhor, só há uma coisa a fazer. Uma extração progressiva deverá resolver o problema.
Cato suspirou e assumiu uma expressão de dúvida.
- Não me queres explicar o que é isso?
- Claro, senhor, explicar-lhe-ei tudo à medida que for trabalhando.
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O centurião continua a perder sangue, portanto não temos tempo a perder. - Pausino virou-se para os auxiliares. - Ponham-no de lado e segurem-no. Quando eu começar,
não podem permitir que ele se mexa, nem um bocadinho que seja. Percebido? Ótimo! Vamos então a isso.
- Eu faço isso. - Cato afastou um dos auxiliares, e segurou nos ombros de Macro.
Pausino olhou para ele com uma expressão de surpresa, antes de encolher os ombros.
- Como queira. Pronto? Agora.
O médico foi dando indicações, e os homens ao redor da mesa colocaram Macro na posição pretendida, com a ferida para cima e a haste na melhor posição para trabalhar.
- Segurem-no bem - indicou Pausino, enquanto empunhava um escalpelo de bronze e avaliava o ângulo de entrada da flecha na carne. Respirou fundo e inseriu a ponta
do instrumento na carne, no outro lado da perna de Macro. Sangue de um vermelho vivo escorreu da nova ferida infligida ao centurião, e correu pela pele de Macro
até se depositar na mesa. O centurião soltou um renovado gemido e tentou remexer-se. Cato segurou o amigo pelos ombros, enquanto um auxiliar lhe prendia as pernas.
Cato sentiu o corpo de Macro a tremer debaixo das suas mãos.
- Se ele está a perder tanto sangue, porquê fazer uma nova ferida?
Sem levantar os olhos ou interromper o seu trabalho, o médico
respondeu.
- Como já disse, a flecha penetrou profundamente. Além disso, reparei que tinha uma ponta larga. Muito provavelmente era uma flecha de caça. Se tentar uma extração
por retração, ou seja, se a puxar pelo ponto de entrada, acabará por causar muitos mais danos e perda de sangue. Portanto, o truque é fazer uma incisão no ponto
oposto à entrada e fazer a flecha sair por aí. - Levantou o olhar. - Claro que isto é mais difícil do que parece. Não é de estranhar que o Celso estivesse sempre
a queixar-se disso. Calculo que não tenha lido os seus trabalhos.
- Conheço o nome.
- Conhecer o nome e conhecer o seu trabalho não são exatamente a mesma coisa, senhor - lançou Pausino a seco, enquanto continuava a fazer a incisão. - O De Medicina
é o texto de referência para os médicos militares. O Celso cobriu quase todos os temas de forma adequada, mas a verdade é que não há substituto para a experiência.
Tal como disse
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Hipócrates: "Aquele que deseja praticar a medicina deve partir para a guerra." E graças às múltiplas campanhas que temos levado a cabo aqui na Britânia, tenho acumulado
bastante mais experiência do que a maior parte daqueles que praticam a minha profissão. E muito mais do que a maior parte deles. - Designou um dos ajudantes com
um aceno da cabeça. - Pode portanto estar certo de que o centurião está em boas mãos.
Afastou por fim o escalpelo e pousou o instrumento ensanguentado no banco, antes de empunhar um estilete.
- Agora é que vem a parte mais complicada.
Afastou os lábios da incisão com os dedos da mão esquerda, fazendo surgir o músculo vermelho vivo por baixo da pele. O sangue escorria sem parar.
- Temos que estancar isto. Tu, deita ali vinagre!
O ajudante inclinou-se para a ferida, tirou a tampa a um pequeno frasco e verteu algum líquido, sem poupar na quantidade; limpou o excesso de sangue em volta da
ferida, antes de deitar mais vinagre diretamente sobre a incisão. Macro voltou a agitar-se freneticamente debaixo das mãos de Cato, e rugiu.
- Foda-se! Isso... arde...
Lançou mais um grunhido, e ficou inerte. O coração de Cato quase parou.
- O que aconteceu?
- Desmaiou, só isso. Não me surpreende nada. É rijo, o centurião. A maior parte dos homens já teria desmaiado há muito tempo, por causa do choque e da perda de sangue.
Parece que o vinagre foi a gota que faltava para o deitar abaixo. - Pausino afastou mais a carne e inseriu o estilete com toda a cautela. Cerrou os dentes e manobrou
o instrumento, até acenar. - Encontrei-a. Prende as bordas da incisão e passa-me o extrator.
O assistente hesitou e Pausino soltou um silvo, irritado.
- Aquele ali, com o entalhe.
Já de posse do instrumento que tinha pedido, o médico olhou para Cato.
- Agora é que isto se torna interessante. Parece-me que tem uma mão mais firme do que este idiota. - Designou o assistente com um aceno. - Senhor, importa-se de
trocar de lugar com ele? Gostava de poder contar com alguém capaz de aguentar a pressão.
Cato engoliu em seco.
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- Se isso ajudar.
Afrouxou o aperto sobre os ombros de Macro e deixou que o assistente tomasse o seu lugar. Pausino entregou-lhe os ganchos: dois instrumentos esguios com pontas recurvas
e rombas.
- Preciso que mantenha as bordas da incisão bem afastadas, de forma a que eu consiga chegar à ponta da flecha. Não tão abertas que provoquem mais danos ao centurião,
mas o suficiente para eu conseguir ver o que estou a fazer. Entendido?
- Acho que sim.
Pausino perscrutou-lhe o rosto por momentos e adotou um tom gentil.
- O centurião não é apenas mais um camarada, pois não? É mais do que isso. Um amigo?
- O melhor - replicou Cato. - Conheço-o desde o momento em que entrei para o exército.
- Estou a ver. Nesse caso, tem que perceber bem isto. Se queremos fazer o melhor possível para o ajudar, não podemos deixar-nos afetar pelo sofrimento que lhe vamos
causar agora. Temos que fazer tudo o que é necessário para o salvar.
- Compreendo.
- Muito bem. Então, ao trabalho! Abra a ferida, mas dê-me espaço para fazer o resto. - Quando reparou na hesitação de Cato, o médico apontou para a incisão. - Senhor,
isso não se vai abrir sozinho.
- Mas que porra. Seja, vamos a isso. - Cato brandiu os ganchos e colocou as pontas sobre as bordas do corte, antes de afastar a pele para expor o músculo vermelho
no interior. Pausino lançou de imediato mais vinagre sobre a abertura.
- Senhor, tem que ter firmeza nas mãos.
Cato firmou a pega dos ganchos e fletiu os músculos dos braços enquanto Pausino se colocava de lado, para deixar a luz da janela cair sobre a área da incisão. Avançou
então com o estilete, afastando os músculos para o lado enquanto procurava pela ponta da flecha. Como já sabia, depois da primeira tentativa, em que zona devia procurar,
foi coisa de um momento.
- Ora cá estás tu, minha cara amiga. Está a ver?
Manteve separada uma secção de músculo fibroso, e usou o extrator para apontar o pedaço metálico.
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- Muito bonito - respondeu Cato, sentindo-se ligeiramente agoniado. - E o que diz o Celso para fazer a seguir?
Pausino não respondeu de imediato, já que se tinha concentrado na colocação precisa do extrator. Ajustou o instrumento à ponta do projétil, rodou o encaixe para
que se prendesse à base da ponta metálica e deu-lhe um ligeiríssimo puxão.
- Gaita...
- O que se passa?
- Precisamente o que eu mais temia. É mesmo uma flecha de caça. A ponta é achatada e tem farpas. Se tento tirá-la assim como está, vou provocar imensos danos internos.
Bom, não importa. Vou ter que utilizar outro instrumento, não é? - Pousou o extrator junto à incisão e pegou num par de tenazes de aspeto delicado. Voltou a concentrar-se
na ferida e deu ordens ao assistente para manter imóvel a haste da seta.
Enquanto o outro homem fazia o que lhe tinha sido indicado, o médico avançou com as pinças e afastou os tecidos do músculo rasgado, de forma a expor uma barbilha.
Apertou a pinça à volta da fina agulha metálica saliente, e partiu-a pela base, junto à parte lisa da ponta da flecha.
- Cá está uma. - Puxou a farpa e exibiu-a, para que Cato a apreciasse, antes de a lançar para o cesto que estava por baixo da mesa. - Agora vamos à outra.
Repetiu o procedimento, antes de pousar as tenazes e voltar a pegar no extrator.
- E agora sim, podemos concluir o trabalho.
Cato observou com um fascínio mórbido enquanto o médico voltava a introduzir o instrumento de bronze pelo meio dos músculos da perna de Macro, o ajustava sobre a
cabeça metálica da flecha e o rodava para o prender.
- Cá vamos - murmurou Pausino quando começou a puxar a ponta da flecha para a incisão que tinha realizado. O ferro estava envolto em sangue, o que o tornava escorregadio,
e o extrator soltou-se. Com toda a paciência, o médico voltou a prendê-lo e continuou a puxar até a ponta sair pela incisão, entre os ganchos que Cato continuava
a segurar com toda a força. Assim que um comprimento suficiente da haste se tornou acessível, Pausino pegou nela com dois dedos, largou os outros instrumentos e
puxou-a para fora. Quase vinte centímetros de madeira
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revestida de fluidos e sangue emergiram, até que por fim, com um pequeno estalo, se libertou por completo, e o médico levantou-a no ar enquanto endireitava as costas.
- Uma peça realmente perigosa.
Cato assentiu enquanto examinava a ponta metálica larga e achatada, agora despojada das duas farpas. Tornava-se bem claro porque fora necessário seguir o procedimento
adotado por Pausino. Qualquer tentativa de sacar a flecha pelo orifício de entrada teria esfacelado o interior da perna de Macro, ao rasgar músculos e vasos sanguíneos.
- Agora há que limpar e fechar isto - anunciou Pausino. Pegou nalgumas compressas da caixa médica, colocou-as numa pequena taça de latão e despejou sobre elas uma
generosa porção de vinagre. Quando já tinham absorvido todo o líquido que podiam, extraiu-as e empurrou-as pela incisão que fizera, antes de repetir o gesto para
a ferida de entrada.
- Senhor, já pode tirar os ganchos.
Cato soltou-os cuidadosamente e pousou as pequenas peças de bronze sobre a mesa. Entretanto, Pausino tinha embebido duas esponjas, que passou para as mãos do seu
assistente.
- Faz pressão nas feridas até eu dizer.
- Sim, senhor.
Deixando o assistente a tratar das feridas, o médico endireitou-se e rodou os ombros.
- Bom, correu tudo pelo melhor. Conseguimos evitar o risco de produzir mais danos. Desde que a ferida não infete, que ele descanse e dê à perna a hipótese de sarar,
a recuperação deve ser total. Durante uns meses sentirá a perna um bocado hirta, mas isso é de esperar. Não se apanha com uma flecha de caça na perna e se continua
como se nada se tivesse passado. Ele é do género de se revelar um paciente irrequieto e impaciente?
Cato fez uma careta.
- Nem sequer imaginas...
- Bem, senhor, nesse caso terá que lhe ordenar que siga as minhas indicações. Lá por ser um oficial, não tem o direito de colocar em risco o meu trabalho, e bem
difícil que ele foi. Atrevo-me a dizer que será preciso dar-lhe instruções estritas para fazer o que lhe dizem, até recuperar por completo.
- Tratarei disso. - Cato imaginava facilmente como isso seria
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apreciado por Macro. Ainda assim, ordens eram ordens, e o amigo teria simplesmente que se habituar à situação e aguentar.
- Assim sendo, vou preparar-lhe uma cama no dormitório. - Pausino deu atenção à sua caixa de medicina e tirou do interior uma agulha e algum fio, feito de tripa
torcida. Depois de passar o fio pelo buraco da agulha, pegou em três alfinetes com fecho e juntou-os ao material preparado. - O orifício de entrada é pequeno, e
basta cosê-lo - explicou. - As fíbulas são para fechar a incisão que realizei para extrair a flecha. O que têm de bom é que se podem pôr e tirar com facilidade,
se for preciso examinar a ferida. Claro que dói imenso, mas quanto a isso não há nada a fazer. Muito bem, podes tirar as esponjas.
O assistente deixou de fazer pressão nas feridas e atirou as esponjas para o cesto enquanto Pausino extraía as compressas. Sorriu.
- Cá está! Agora ficou tudo limpo e com melhor aspeto. Nada de coágulos. Hão de aparecer alguns, como sempre sucede, mas desaparecerão quando drenarmos o pus da
ferida, nos próximos dias. Nessa altura não vai ter bom aspeto, isso é certo. Vai haver com certeza alguma inflamação. O que é normal, e até benfazejo, até certo
ponto. Se for demasiada, por outro lado, isso poderá indicar infeção. Se isso suceder...
- Inspirou por entre os dentes. - Talvez não seja má ideia fazer uma oferta a Esculápio, em nome do centurião.
- Tratarei pessoalmente desse assunto.
- Excelente. Vamos lá então acabar o trabalho. - Pausino pegou na carne dilacerada junto à ferida de entrada, apertou-a e fez a agulha atravessar a pele de Macro.
- Temos que ir bem fundo, para não corrermos o risco de os pontos se quebrarem. Uso um fio de tripa de carneiro trançado. Tem a resistência que é precisa para estes
casos. - Deu quatro pontos, cortou o fio e atou-o. Voltou então a atenção para a incisão e fechou-a com as fíbulas, antes de voltar a abrir uma delas, para proceder
a um ajustamento ligeiro; voltou a trespassar a carne de Macro uma última vez. Assentiu para si mesmo, satisfeito. - Pronto. Tu, faz a ligadura.
Cato observou enquanto a ligadura era colocada à volta da perna de Macro.
- E agora?
Pausino atravessou a sala até chegar ao pé de um lavatório instalado numa pequena mesa a um canto. Lavou o sangue das mãos enquanto se dirigia ao comandante.
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- Agora? Temos que esperar e ver se o seu amigo melhora. Para lá do risco da infeção da ferida, ele vai ter muitas dores. Normalmente, daria aos meus pacientes umas
poucas gotas de ópio. Nas províncias do Leste é fácil de arranjar, mas aqui na Britânia é tão raro como uma verruga no rabo de Vénus. Esgotei tudo o que tinha já
há alguns meses. Portanto, o centurião terá que se contentar com raíz de mandrágora embebida em vinho morno. Sempre acalmará as dores, mas vai dar-lhe sono. Pelo
menos assim não poderá estragar o trabalho nas feridas.
- Daqui a quanto tempo é que saberemos que irá recuperar?
O médico acabou de lavar as mãos e secou-as com um pano limpo.
- Aí pelo quinto dia, normalmente. Nessa altura, o grau de inflamação será suficiente para sabermos o que se vai passar. Se estiver mau, o mais provável é que tenha
ficado alguma coisa na ferida que esteja a causar o problema. Caso em que terei de voltar a abri-la, limpar tudo com vinagre e depois com mel quente dissolvido em
água, antes de voltar a cosê-lo.
- Estou a ver. - Um pensamento ocorreu a Cato. - Mas se não houver inflamação, poderei concluir que o Macro estará em plena recuperação.
- Nem por isso. Se não houver qualquer indício de inflamação, normalmente isso é um péssimo sinal.
- É...? - Cato não conseguia seguir a lógica do que o médico acabara de afirmar. - Como é isso?
- Significa que a carne está a morrer. Mas se for esse o caso, será fácil de perceber pelo cheiro que sai da ferida. Nessas circunstâncias, tudo o que poderei fazer
será mantê-lo o mais confortável possível, até que a morte sobrevenha. - Pausino contemplou o paciente, enquanto o seu assistente rodava Macro até este ficar de
costas. Batucou com um dedo na perna do centurião. - Se a ferida fosse mais abaixo no membro, poderia considerar a possibilidade de cortar a parte morta, mais um
pedaço de carne ainda viva para garantir o sucesso, serrar o osso e amputar-lhe a perna. A sua carreira militar estaria terminada, mas teria alguma hipótese de sobrevivência.
Seria a morte certa se não fosse tratado dessa forma. Mas nesta parte da perna, tão acima, é muito complicado. O processo é mais demorado, perde-se muito mais sangue.
- Refletiu por momentos e encolheu os ombros. - Portanto, oremos para que Esculápio nos seja propício, e para que o centurião Macro recupere por completo.
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Cato estava a ficar um tanto farto dos modos do médico, e virou-se para ele com uma expressão firme e pouco amigável.
- Vou responsabilizar-te pessoalmente por essa recuperação. Tratarás de garantir que ele tenha atenção constante, e que todas as suas necessidades sejam satisfeitas.
Comida, bebida, higiene. Ele é um oficial de um género que é extremamente difícil de substituir, e o exército precisa dele. Ficarei muito pouco satisfeito, para
não dizer mais, se ele acabar por falecer. E posso sempre arranjar lugar na frente de combate para um ex-médico do exército. Estou a fazer-me compreender?
Pausino enfrentou o olhar do prefeito sem pestanejar.
- Senhor, não há qualquer necessidade de proferir esse género de ameaças. Assumo as minhas responsabilidades com tanta seriedade como qualquer oficial. E não estabeleço
preferências entre os meus pacientes. Todos têm direito ao melhor dos meus esforços, seja qual for a sua patente. Tem a minha palavra quanto a isso.
Cato perscrutou a face do outro, em busca de qualquer sinal de falta de sinceridade, mas não o encontrou, pelo que se acalmou.
- Muito bem. Mantém-me a par dos progressos do centurião.
- Com certeza, senhor. - Pausino inclinou a cabeça.
Cato virou-se para contemplar Macro uma última vez, antes de sair. A respiração do amigo era leve, mas mais regular do que antes, e no pescoço pulsava uma veia.
Cato deu-lhe uma ligeira palmada no ombro.
- Meu amigo, espero que recupere - disse, suavemente.
Dirigiu-se por fim à porta e saiu do pequeno hospital do forte romano. Lá fora, a luz mortiça do fim do dia derramava-se quase na horizontal sobre as muralhas, e
produzia longas sombras sobre os blocos de casernas, todos alinhados, todos com as suas telhas de madeira escura. Atravessou a via principal do campo e dirigiu-se
à entrada do quartel-general, trocando pelo caminho uma saudação com as sentinelas que guardavam a porta. Os seus aposentos pessoais eram compostos por um conjunto
de quartos modestos ao fim do corredor. Assim que chegou ao seu gabinete, tirou o manto e chamou o seu criado pessoal. Traxis, um trácio de ar sombrio, com cabelo
escuro e curto, emergiu rapidamente do cubículo onde dormia.
- Prefeito?
- Ajuda-me a tirar a armadura.
Cato levantou os braços e debruçou-se para o homem, enquanto se
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torcia, de forma a sair da armadura que o criado segurava pelas pontas e puxava para cima, por cima da cabeça. Despiu a seguir a veste de enchimento. Com um grunhido
de alívio, empertigou-se e espreguiçou-se, fazendo rodar os ombros. Só então reparou nas manchas de sangue seco espalhadas pelas placas metálicas, e olhou para as
mãos, onde havia mais sangue seco nos dedos.
O sangue de Macro.
Passou-se um momento até ser capaz de sacudir o sentimento de apreensão que o tomou. Limpou a garganta e voltou a dirigir-se ao criado.
- Quero carne, pão e vinho. Acende o fogo no braseiro. Depois disso, trata do meu equipamento.
- Sim, senhor. O centurião Macro virá juntar-se a si?
Cato hesitou. Estava demasiado fatigado para se pôr com grandes explicações.
- Esta noite não.
- Muito bem, senhor.
O trácio deixou-o. Cato ficou a olhar para as próprias mãos durante algum tempo, incapaz de reagir, até que seguiu o exemplo do médico e foi lavar as mãos no lavatório
sobre a mesa de campo, do outro lado do gabinete, em frente à secretária. Teve que se empenhar para limpar o sangue seco, usando as unhas para o soltar da pele.
Quando se livrou dos últimos resquícios, contemplou a água avermelhada e suspirou, frustrado. Mas no que estaria Macro a pensar quando se tinha lançado a toda a
velocidade na direção do jovem nativo? Tinha sido um gesto temerário, e a loucura custara-lhe bem caro. Se morresse, seria um fim ignominioso. Mas a verdade é que
era um destino partilhado por inúmeros soldados. Eram muitos mais os que morriam devido a acidentes ou doenças do que os que tombavam em batalhas. Porém, Cato nunca
teria sido capaz de imaginar que o fim do amigo chegasse de outra forma que não à cabeça da sua coorte. Era isso que assentava ao caráter daquele homem.
Secou as mãos e atravessou a sala para se sentar no banco por trás da secretária. Com Macro confinado ao leito de enfermo por um período indeterminado, seria preciso
dar aos homens um comandante interino. A escolha óbvia era o centurião Crispo. Um verdadeiro gigante, embora a presença física imponente fosse compensada por uma
absoluta falta de bom humor. Mas não havia volta a dar-lhe. Teria que
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ser o Crispo. Decidiu que lho iria comunicar assim que tivesse comido qualquer coisa.
Mas primeiro havia outro assunto que não podia esperar. Pegou numa das tábuas enceradas empilhadas sobre a secretária, abriu-a e empunhou um dos aparos de latão
também colocados na mesa. Traxis tinha tratado bem das tábuas e a cera estava bem preparada, com uma superfície lisa e impecável. Cato deixou-se estar sentado e
quieto por momentos, a contemplar a parede do outro lado do compartimento, enquanto compunha mentalmente a memória do que tinha observado na aldeia nativa. Por fim,
lançou-se ao trabalho.
"Ao Legado Gaio Quintato, da Décima Quarta Legião, saudações. Peço respeitosamente licença para apresentar este relatório..."
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3

- Como se sente? - quis saber Cato enquanto puxava um banco e se sentava ao lado de Macro; era manhã cedo, e tinha passado um mês desde que o centurião fora ferido.
O veterano estava recostado num colchão de palha e ervas. A perna, toda ligada, estava esticada e hirta, e Cato tinha ficado agradado por ver que não havia manchas
escuras nos panos que rodeavam as feridas. Poucos dias antes, Pausino tinha confirmado que a ferida de Macro estava isenta de infeção e que uma boa quantidade de
pus tinha sido retirada com uma nova aplicação de vinagre, antes de a perna voltar a ser ligada. Restava apenas, para conseguir a recuperação completa que se podia
felizmente esperar, que Macro descansasse e tomasse regularmente a mandrágora embebida em vinho, como lhe fora indicado. E beber vinho nunca fora coisa que desagradasse
ao centurião, embora achasse o sabor do extrato de raiz um tanto amargo.
- Como me sinto? - Macro soltou um profundo suspiro. - Foda-se, mais chateado do que um galináceo. Isto não é vida para um soldado.
- É com toda a certeza, se o soldado em questão estiver a recuperar de uma ferida na perna feita por uma flecha de caça. - Cato sorriu. -Além disso, o exército é
bem capaz de se arranjar sem a sua presença pelo menos por um mês.
- Achas mesmo? - Macro franziu o sobrolho. - Ouvi dizer que puseste o Crispo à frente da minha coorte enquanto eu aqui estou. Que tal se está ele a safar?
- Razoavelmente. Ele é farinha do mesmo saco, embora não possua os seus modos calorosos e sedutores.
- Muito engraçado - protestou Macro, antes que Cato prosseguisse.
- Agora a sério. Ele está a fazer um bom trabalho. Não tem que
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Se preocupar com os seus rapazes, não está tudo a ir por água abaixo. O Crispo está a fazê-los treinar no duro com vista à próxima campanha. Isso quando não está
a verificar as provisões e a assegurar-se de que temos equipamentos, carros e mulas suficientes quando chegar o momento em que recebermos ordem de marcha.
- Com essa parte do trabalho pode ele ficar para sempre. Nunca apreciei a burocracia.
- Faz parte, centurião Macro. Porque é que acha que lhe pagam muito mais do que a um vulgar legionário?
- Ora, sempre pensei que fosse por causa dos meus modos calorosos e sedutores.
Riram juntos, mas o humor de Macro depressa esmoreceu, e a sua expressão tornou-se séria.
- Então, sempre é verdade que o Quintato vai fazer avançar o exército para as montanhas?
- Parece-me bem que sim. O meu relatório não foi o único a avisar que as tribos estavam a concentrar os seus guerreiros. Ao que parece, os deceanglos e os ordovicos
estabeleceram uma espécie de pacto contra nós. Foram sem dúvida os druidas que o mediaram. O legado deu instruções à Vigésima e à Décima Quarta, e a seis coortes
auxiliares, incluindo os Corvos Sangrentos, para realizarem todos os preparativos necessários para uma campanha. - Cato deu um estalo com a língua. - Uma pena que
não possa juntar-se a nós.
Macro remexeu-se no colchão e endireitou-se.
- O caralho é que não posso. Eu vou. É só questão de me meterem num dos vagões com o equipamento, até a minha perna ficar boa. E, se for preciso, até deitado luto.
Cato abanou a cabeça.
- Já passei a escrito todas as ordens. Ficará aqui no forte. O legado vai chamar algumas unidades de reserva para guarnecerem os postos na fronteira enquanto conduz
o resto do exército ao encontro do inimigo. Duas centúrias da Oitava Ilírica virão ocupar esta posição quando nós marcharmos. Na minha ausência, assumirá o comando,
assim que estiver capaz de se aguentar de pé. Tente não lhes tornar a vida demasiado difícil, sim?
Macro fungou.
- A Oitava Ilírica? Pelo que tenho ouvido, são uns inúteis. Um
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grupo de miúdos imberbes, uns tantos inválidos e mais uns veteranos pescados noutras unidades para terem direito a uma cerimónia de despedida em grupo assim que
o Imperador lhes conceder dispensa. Que os deuses me ajudem...
Cato deu uma palmada no ombro do amigo.
- Nesse caso, Macro, é mesmo o homem de que eles precisam para se tornarem uma unidade decente.
- Ora, treinar homens sei eu fazer. Mas milagres, porra, isso já é mais difícil.
- Ninguém lhe está a pedir que faça milagres, simplesmente que cumpra o seu dever. Além disso, quem é que se queixou de estar aborrecido? Dentro de pouco tempo terá
com que se entreter, e bem.
Foram interrompidos pelo som de passos no corredor, e no momento seguinte um auxiliar ofegante irrompeu pelo dormitório e apresentou a saudação regulamentar.
- Senhor, o optio de serviço envia-lhe cumprimentos. Uma coluna de cavaleiros aproxima-se do forte.
Cato levantou-se.
- De que direção vêm?
- De leste, senhor. Na estrada de Viroconium.
Cato considerou a informação. O mais provável era que fossem romanos, vindos da fortaleza onde estava acantonado o grosso do exército. Ainda assim, podia ser um
embuste. Era sabido que, em diversas ocasiões, o inimigo já tinha usado equipamento romano capturado.
- Nossos ou deles?
- Não consegui determinar, senhor. Avistámo-los à distância, mas depois sumiram-se no meio da névoa que cobre o fundo do vale.
- Estou a ver. - Cato coçou o queixo. - E quantos eram?
- Creio que... pelo menos uns trinta, senhor.
- Nesse caso, não constituem uma ameaça imediata. Muito bem. Regressa ao teu posto e diz ao optio que me juntarei a ele daqui a muito pouco. - Virou-se para Macro
e lançou um encolher de ombros à laia de desculpa. - Voltarei assim que puder.
- Não se preocupe, senhor. Por muito que me custe, não vou a lado nenhum tão cedo.
Cato seguiu o auxiliar para fora do hospital e dirigiu-se aos seus aposentos, para dizer a Traxis para lhe levar a armadura, armas e capa
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À casa da guarda do portão de leste. Atravessou então o forte, resistindo a custo à tentação de desatar a correr. Seguia a escola de pensamento que defendia que
era bom para os homens ver que o seu comandante mantinha a calma e permanecia sereno e imperturbável em qualquer situação. Quando alcançou os degraus na base do
torreão, sentiu-se compensado ao escutar o optio a dar ordens para alertar o resto da unidade. Uma nota estridente soou de uma trombeta de latão e espalhou-se pelo
forte. Três toques rápidos, seguidos de uma pausa, e depois uma repetição. Os oficiais nas casernas começaram de imediato a apressar os homens, com uns gritos bem
colocados e algumas imprecações bem medidas. As portas dos quartos de cada uma das secções abriam-se de par em par quando os homens saíam a correr; depois, já no
exterior, ajudavam-se uns aos outros a envergar as cotas de malha e o resto do equipamento e iam-se colocar nos postos que lhes tinham sido atribuídos nas muralhas.
Cato subiu as escadas até à plataforma sobre o portão, onde se juntou ao optio de serviço e a uma sentinela, que estavam apoiados à balaustrada de madeira. Trocaram
uma saudação e Cato virou o olhar para a estrada que saía do forte e descia para o fundo do vale. A manhã estava fresca e as nuvens que tapavam o Sol davam à paisagem
selvagem um ar tenebroso. Tal como a sentinela dissera, havia uma névoa espessa que se espalhava pelo terreno mais abaixo, como uma maré cinzenta que rodeasse o
outeiro sobre o qual o forte fora construído. Um inimigo podia facilmente avançar sem ser detetado até poder utilizar um arco para abater um homem na muralha, calculou
o prefeito. Virou-se para o optio, um homem do esquadrão de Miro.
- Fizeste bem em mandar soar o toque para que os homens tomem as suas posições.
O soldado deixou transparecer brevemente o prazer pelo elogio.
- Senhor, nunca mais os avistámos, desde que o mandei avisar.
Na torre estabeleceu-se o silêncio, em contraste com o ruído de fundo das botas dos membros da guarnição a batucarem nos passadiços da paliçada enquanto se dirigiam
às suas posições. Por fim, quando o último dos soldados ocupou o seu posto, Cato debruçou-se sobre a balaustrada e esforçou os ouvidos. Depressa conseguiu distinguir
o ruído de cascos distantes, e pouco depois o chocalhar dos arreios e do equipamento dos cavaleiros.
- Em breve saberemos quem são - afirmou, e de imediato se
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amaldiçoou por ter deixado escapar aquele comentário desnecessário. Lá se ia a imagem do comandante imperturbável, lembrou a si mesmo com pesar.
A escada rangeu com o peso de Traxis, que subia até à plataforma com todo o equipamento de Cato preso debaixo do braço. O trácio respirava com dificuldade quando
pousou o fardo e ajudou o oficial a envergar a armadura articulada e a passar o cinturão da espada por cima do ombro.
- A capa, senhor?
Cato abanou a cabeça, de atenção presa no manto de nevoeiro.
- Além! - A sentinela ao lado do optio apontou para um ponto na estrada. O prefeito e o optio olharam na direção indicada e avistaram uma vaga perturbação na névoa,
que a pouco e pouco se foi definindo como o grupo de cavaleiros em aproximação ao forte. Cato distinguiu a forma de um estandarte romano, e no momento seguinte os
cavaleiros à cabeça da coluna emergiram da névoa para o espaço aberto à frente do portão. A tensão no torreão dissipou-se, até que Cato avistou o capacet encimado
por plumas e a placa peitoral brilhante usados pelo cavaleiro que seguia logo atrás do estandarte.
- É o legado Quintato.
- Senhor, devo organizar uma guarda de honra? - quis saber o optio.
- Já não temos tempo para dar espetáculo. Não, abre simplesmente o portão.
O optio dirigiu-se às traseiras do torreão e gritou para baixo, para a secção de auxiliares que aguardava no interior das pesadas portadas. Cato apressou-se a descer,
saindo da casa da guarda precisamente quando os soldados se esforçavam para acabar de escancarar o portão, que rangia.
- Em sentido! - berrou, e colocou-se ele mesmo numa posição rígida, enquanto os homens pegavam nos escudos e lanças e formavam uma linha à sua esquerda. O troar
dos cascos encheu o espaço, até que os cavaleiros refrearam as montadas já a curta distância do portão, e a conduziram a passo pela entrada do forte. Um esquadrão
de legionários montados da Décima Quarta foi o primeiro a entrar, avançando uma curta distância pela via principal do forte e formando também uma linha de honra,
com os cavalos alinhados. Seguiu-se o estandarte pessoal
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do legado, seguido pelo próprio Quintato, de cara afogueada pelo esforço da cavalgada naquela manhã fria. Quintato era o mais antigo dos quatro comandantes de legiões
na Britânia, e fora ele a assumir o comando da província depois da morte de Ostório. Cato via-o como um soldado competente mas que, como muitos dos da sua classe
social, albergava ambições políticas. E por vezes estas exigiam o sacrifício dos soldados que tinham o azar de ser comandados por homens daquele género.
Cato encheu os pulmões.
- Apresentar armas!
Os auxiliares moveram as lanças num movimento rápido, apresentando-as ao governador interino da Britânia. Quintato passou uma perna por cima da sela do seu cavalo
e deslizou para o solo. Enquanto o porta-estandarte pegava nas rédeas, o legado aproximou-se de Cato com um sorriso amigável.
- Prefeito Cato, é muito bom voltar a ver-te. Como andam as coisas? Mais algum sinal de atividade inimiga?
- Não, senhor, embora eles não parem de enviar grupos de guerra para flagelar as nossas patrulhas e as manter afastadas das aldeias.
Quintato assentiu.
- O que só prova que eles estão a preparar alguma coisa.
- Sim, senhor.
- E constitui uma boa razão para os atacarmos em força, e depressa. Antes que sejam eles a tomar a iniciativa. Será uma excelente ocasião para que a tua unidade
consiga alcançar mais alguma glória em batalha, não é?
Cato não respondeu. Havia melhores razões para entrar em guerra do que a perspetiva de acumular prémios daquele género. Quintato olhou em redor.
- E onde está o fogoso e destemido centurião Macro? Estou seguro de que deve estar cheio de vontade de ir malhar mais um bocado no inimigo.
- O centurião está a recuperar de um ferimento, senhor. Está confinado à enfermaria.
Quintato franziu o cenho.
- Oh? Nada de muito grave, espero?
- Uma ferida de flecha, senhor. Está a recuperar bem. Diz o médico que poderá retomar tarefas ligeiras lá para o fim do mês que vem.
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- Uma pena. Não vai poder participar na festa.
- Pois não, senhor. - Cato fez um gesto a designar o edifício do quartel-general no coração do forte. - Deseja com certeza refrescar-se um pouco nos meus aposentos?
- De facto. Mostra lá o caminho. Mas primeiro, gostaria de dar uma volta rápida pelo forte, para conduzir uma breve inspeção aos teus homens.
Enquanto os dois oficiais seguiam pelo meio da avenida principal do campo, o comandante da escolta deu ordem para que os seus homens desmontassem e fossem dar de
beber aos cavalos, ao mesmo tempo que ecoava por todo o forte o sinal a indicar à guarnição que podia abandonar o estado de prontidão. Quintato passou um olhar profissional
pelos legionários, apreciando a forma ordeira como cumpriam as ordens.
- Que tal estão os teus homens?
- Senhor?
- Estão com o moral em cima? Estiveram todo o ano na linha da frente, e sofreram pesadas baixas. Sei que a maior parte deles são substitutos. São de confiança?
Cato ordenou os pensamentos antes de fazer menção de responder.
- Tenho toda a confiança neles, senhor. Em todos eles. Os veteranos são do mais rijo que se pode encontrar, e são eles que estabelecem o padrão. O centurião Macro
e eu temos trabalhado os novos homens com a dureza necessária, e eles estão a corresponder.
- Excelente. - Quintato assentiu para si mesmo. - Era isso mesmo que esperava ouvir. Talvez te estejas a perguntar o porquê desta visita.
Cato deitou-lhe uma olhadela rápida.
- Já me tinha passado pela cabeça a vontade de lhe fazer essa pergunta, senhor.
O legado sorriu, mas depressa adotou uma expressão mais séria.
- Recebi relatórios muito similares ao teu da maior parte dos postos fronteiriços. O inimigo está a concentrar forças, isso é certo. Estou seguro de que tencionam
lançar um ataque em força antes da chegada do novo governador. Portanto, tenciono ser eu a atacar antes. Mas dir-te-ei o resto quando estivermos a sós.
Mais tarde, nos aposentos de Cato, Traxis colocou sobre a mesa um tabuleiro com um jarro de vinho e dois cálices de prata, inclinou respeitosamente a cabeça perante
o legado e deixou o convidado a sós com
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o comandante do forte. Cato encheu os cálices e ofereceu um ao seu superior, antes de pegar no outro e se sentar no banco junto à secretária, enquanto Quintato ocupava
a cadeira, mais confortável. Ao saborear o vinho, apercebeu-se de que devia provir da última ânfora da sua reserva pessoal de vinho de Falerno, e lançou um suspiro
para dentro ao pensar que já só lhe restariam algumas ânforas de vinho gaulês barato.
Quintato arregalou as sobrancelhas de forma apreciativa perante o néctar que lhe enchia o cálice, antes de o depositar sobre a mesa e se virar para Cato.
- Temos aqui a ocasião de vibrar um poderoso golpe no inimigo, de tal forma que ele não conseguirá recuperar, Cato. Se eles forem idiotas a ponto de resolverem concentrar
os seus guerreiros e nos pouparem assim o esforço de os caçar aos poucos, só temos que aproveitar a oportunidade que nos oferecem. Nem consigo dizer-te quão cansado
e farto estou de lhes aturar os ataques repentinos, e de os perseguir uma e outra vez sem conseguir mais do que vê-los desaparecer algures nestas montanhas, os sacanas.
Portanto, pretendo reagrupar o exército, avançar pelo coração do território nativo e destruí-los até ao último homem que tente opor-se ao nosso avanço. Sobretudo
se forem druidas. Se os ameaçarmos diretamente, eles não deixarão de solicitar ajuda a todos os seus aliados, e isso poupar-nos-á o trabalho de andar à procura deles.
- Isso significa atacar o covil dos druidas em Mona, senhor.
- E foi por isso mesmo que dei ordens a um dos esquadrões da marinha para se encontrar connosco na costa e apoiar o nosso ataque à ilha. Quando tivermos terminado,
os deceanglos não passarão de uma memória, e os últimos traços dos druidas e dos seus bosques sagrados estarão erradicados da face desta terra. - Fez uma pausa,
para deixar que as suas palavras fossem bem compreendidas. - E quando os siluros e os ordovicos souberem do destino dos seus vizinhos do Norte, virão ter connosco
para fazer a paz. E nesse momento, por fim, teremos tornado esta província um sítio seguro e tranquilo.
Cato remexeu o cálice na mão, devagar.
- Senhor, com todo o respeito, foi isso que o Ostório tentou fazer. Mas em vez de assustar o inimigo e o levar a solicitar negociações, só conseguiu endurecer-lhe
a resolução de nos combater.
- Isso foi enquanto tinham o Carátaco para os liderar. Agora que ele já não anda por aí, não há ninguém capaz de unir as tribos.
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- Exceto os druidas.
- Sim, é um facto. Mas quero dizer um homem, um líder carismático que todos se sintam inclinados a seguir. Ninguém tem essa capacidade de evitar que estes bárbaros
se atirem às goelas uns dos outros, pelo menos o tempo suficiente para lutarem contra nós de forma unida. Se fizermos dos deceanglos um exemplo, talvez o resto das
tribos desta ilha perceba finalmente que a escolha que se lhes oferece é entre a submissão à vontade de Roma ou o extermínio.
Cato soltou uma risada nervosa.
- Extermínio? Não está a falar a sério, pois não, senhor?
Quintato encarou-o com ar austero, e uma expressão fria como aço.
- Muito a sério, prefeito. Até à última criança, até ao último animal.
- Mas porquê?
- Às vezes, só a mais pesada das lições é capaz de abrir os olhos a quem não quer ver.
- Senhor, e se a lição que acabar por ser apreendida for outra, completamente diferente? Afinal, não tentou o Ostório precisamente o que agora advoga? E só conseguiu
dar novo alento à resistência contra Roma.
- Faltou-lhe a determinação para levar a tarefa até ao fim. Ou talvez estivesse demasiado cansado. Se ele fosse um pouco mais jovem, talvez a história tivesse sido
diferente. Mas as coisas são como são e, ao que parece, o destino escolheu-me para continuar a obra do Ostório. Seja qual for a situação, prefeito Cato, os meus
planos estão traçados. Talvez estejamos a deitar fora a oportunidade de fazer uma fortuna na venda de cativos para a escravatura, mas paciência. Quanto ao panorama
geral, se uma salutar dose de implacável crueldade servir para convencer as outras tribos de que a resistência é verdadeiramente fútil talvez a longo prazo se possam
salvar muitas vidas. - Coçou a face. - Incluindo vidas nativas. Vês com certeza a lógica disto? Um tipo inteligente como tu?
Cato pensou por momentos. Havia boas razões para apoiar um plano daquele género, mas ao mesmo tempo parecia-lhe um completo desperdício de vidas, além de que, para
o bem das futuras relações entre Roma e a população da nova província, seria muito melhor tentar minimizar o sofrimento imposto a esta última, e tentar antes conquistá-la
de outra forma. Todavia, no fim de contas, ele era um soldado, tinha proferido um juramento de fidelidade ao Imperador e a todos aqueles que
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O soberano decidisse colocar em posições que lhe conferissem autoridade sobre si.
- Sim, senhor. Compreendo.
- Ótimo.
Ambos resolveram sorver mais algum vinho, enquanto matutavam no diálogo que tinham travado. Os pensamentos de Cato regressaram a uma questão que se lhe tinha posto
mais cedo, e para a qual ainda não tinha encontrado resposta adequada. Limpou a garganta.
- Senhor, podia ter convocado todos os comandantes de postos e fazê-los ir ao quartel-general para lhes dizer isto. Porque é que veio cá em pessoa? Se posso perguntar?
Quintato sorriu lentamente e ergueu o cálice num brinde fingido.
- A tua circunspeção serve-te perfeitamente, jovem Cato. Digo-o mais como elogio do que de forma condescendente. Sendo apenas um soldado profissional, demonstras
uma cabal perceção das realidades políticas deste mundo. Diz-me tu, então, porque é que pensas que eu me desloquei até aqui?
Cato sentiu o coração a acelerar. O legado conhecia o seu passado, e o de Macro, dos tempos em que tinham sido recrutados para trabalhar como agentes do secretário
imperial Narciso. E Quintato sabia-o, porque também ele tinha desempenhado uma função similar para o arquirrival do secretário, um outro servidor do palácio, chamado
Pallas. Os dois libertos estavam envolvidos numa terrível luta pela supremacia, havia já alguns anos, e com as forças de Cláudio a começarem a vacilar, era apenas
uma questão de tempo até que Pallas conseguisse empurrar aquele que era o seu sucessor preferido, Nero, até ao trono imperial. E até ali, no limite do Império, a
luta mortal entre os dois prosseguia. Assim que tinham regressado à província, Cato e Macro haviam sido colocados numa posição de perigo, e tal fora um gesto deliberado,
uma determinação de Quintato, a mando de Pallas. Depois de Cato ter conseguido resolver a situação no forte de Bruccium, um posto avançado no território inimigo,
e depois de ele e Macro terem desempenhado um papel decisivo na captura de Carátaco, tinha tido alguma esperança de que uma trégua não declarada se tivesse instalado
entre eles e o legado.
- Não faço ideia, senhor.
- Ora, vá lá. Fico muito desapontado. Tinha fortes suspeitas de que tivesses a impressão de que eu tinha vindo até aqui apenas para te colocar
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em maus lençóis. Portanto, deixa-me descansar-te quanto a isso. Não é essa a razão da minha visita. Muito pelo contrário. Vim visitar-te por várias razões. A primeira
é puramente militar. Queria avaliar com os meus próprios olhos o estado de prontidão dos teus homens para a campanha que vamos começar. E o que vi agradou-me sobremaneira.
Ambas as coortes parecem em boa forma. Ao contrário de algumas guarnições que tenho visitado nos últimos dias. A segunda razão tem mais a ver contigo pessoalmente,
prefeito Cato. - Quintato pousou a taça e cruzou as mãos, enquanto olhava Cato nos olhos. - Até aqui, houve várias ocasiões em que não estivemos propriamente de
acordo.
- É uma forma de ver a coisa, senhor.
O legado franziu o sobrolho.
- Todos jogamos em função de alguém. Tu foste forçado a trabalhaj para o Narciso, e eu fui persuadido a defender os interesses do Pallas. ambos satisfizemos os pedidos
dos nossos bonecreiros, pelo menos para já.
- Não sou fantoche de ninguém - retorquiu Cato, com firmeza.
- Achas que não? Achas mesmo? Agora sim, desapontas-me, de facto. Mas pondo isso de parte por agora, preciso que entendas as minhas verdadeiras intenções por trás
da campanha que se aproxima. Portanto escuta. - Quintato voltou a pegar no cálice e recostou-se na cadeira. -A situação em Roma vai sofrer alterações muito em breve.
O Imperador Cláudio é um ancião, e os velhos têm uma certa propensão para caírer mortos de repente. As pessoas inclinam-se para atribuir essas mortes a causas naturais.
O que dá uma certa vantagem aos que procedem de forma a acelerar o processo de mortalidade natural. Estás a seguir a minha ideia?
Perfeitamente, pensou Cato. Alguns anos antes, ele e Macro ti nham-se visto envolvidos numa operação secreta para proteger Cláudio de presumíveis assassinos que
operavam no seio do palácio imperial. Tanto eles como o Imperador tinham tido dificuldade em escapar vivos dessa história.
- Nos tempos que correm, veneno ou uma lâmina entre as costelas passaram a ser vistos como causas naturais de morte no palácio. Uma pena, é certo, mas é assim. Há
com toda a certeza muita gente a fazer planos para proporcionar ao Imperador uma partida antecipada, e isso deixa o meu homem e o teu a digladiarem-se para arranjar
forma de
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colocar o seu candidato no trono assim que Cláudio falecer. No momento, as hipóteses parecem estar mais do lado de Pallas e Nero, mas quem sabe? Talvez o Narciso
consiga manobrar de forma a pôr o Britânico no lugar do pai. Na realidade, ele tem a vantagem de ser o filho natural do Imperador. Mas o Nero tem a mãe, e não há
nada que aquela megera da Agripina não seja capaz de fazer para alcançar aquilo que deseja. O Narciso poderá ainda vir a surpreender-nos a todos. Está encurralado,
e é nessas alturas que se torna mais perigoso. Tens a sorte de ele estar do teu lado.
Cato mal sufocou uma risada amarga.
- Sorte? Eu e o Macro pouco pudemos dizer a respeito. Vimo-nos forçados a fazer o que ele indicava, e ele colocou-nos em perigo mortal uma e outra vez.
- Nada a que vocês não estivessem habituados. No fim de contas, são soldados.
- Sim, senhor. Mas embora esteja preparado para sacrificar a minha vida por Roma, não estou de forma nenhuma pronto a imolar-me em nome daquele réptil do Narciso.
- Um princípio muito louvável e decente. Mas, tal como muitos outros princípios, completamente desfasado da realidade em que tantas vezes nos encontramos, não é?
Além disso, é bem melhor ter uma serpente como o Narciso ao teu lado do que enrolada no teu pescoço. Só um idiota pensaria o contrário, e tu és tudo menos idiota.
- Quintato ergueu o cálice na direção de Cato, e depois esvaziou-o de um trago, antes de o pousar na mesa com violência. - Deixa-me portanto partilhar algumas ideias
contigo. À minha frente abre-se uma oportunidade. O novo governador não chegará à Britânia senão daqui a uns meses. Tempo suficiente para eu poder atacar o inimigo
e esmagá-lo de uma vez por todas. A minha intenção declarada é destruir os deceanglos, tomar a ilha de Mona e varrer os druidas para longe deste mundo. Sem eles
no cenário, não haverá mais ninguém capaz de coordenar a resistência das tribos nativas. Forçarei estes bárbaros a submeterem-se. A vitória será minha. E uma vez
que terminarei o meu turno nas legiões e serei chamado a Roma para o ano, será de grande utilidade levar comigo a fama de uma campanha de sucesso. Partindo do princípio
de que o Nero sucederá ao seu pai adotivo, e que o Pallas se mantém como o verdadeiro poder por trás do trono, a minha estrela continuará em ascensão. Nessa
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altura, como qualquer homem de poder, vou precisar de apoiantes en quem possa confiar. Homens capazes, com folhas de serviço distintas com várias capacidades e experiência
suficiente. Tu és um desses homens. Tal como o teu amigo Macro. Seria uma honra para mim poder contar convosco entre os meus apoiantes.
- Não duvido de que o seria.
Quintato interrompeu-se por momentos, antes de prosseguir num tom calmo mas pleno de ameaça.
- Prefeito, antes de adotares essa postura de superioridade, deixa-me lembrar-te algumas realidades. É quase certo que o Narciso será um dos primeiros a ser proscrito
assim que o Nero assumir o poder. Conheço bem o Pallas, e ele fará tudo para se assegurar de que os seguidores do Narciso sejam eliminados com o seu mestre.
- Eu não sou apoiante do Narciso.
- Podes até acreditar nisso, mas essa tua crença não afeta a forma como o Pallas olha para a questão e para ti. Para ele, tu e o Macro são meros detalhes. Não perderá
um segundo a considerar se sim ou não. Os vossos nomes estarão na lista, e a seu tempo chegará à Britânia uma ordem para a vossa prisão e execução. E tudo estará
terminado. Ou melhor, nem tudo. Tens uma esposa, creio eu. Se fores condenado como traidor, as tuas propriedades serão confiscadas. A tua mulher ficará na miséria.
Pensa bem nisso.
Aguardou algum tempo, deixando as suas palavras penetrar no espírito do interlocutor, antes de continuar num tom de maior razoabilidade.
- Contudo, se vocês me apoiassem, eu não teria quaisquer dúvidas em garantir a vossa idoneidade. Trataria de informar o Pallas de que vocês tinham deixado de trabalhar
para o Narciso, e que a vossa lealdade para comigo, e por conseguinte para com ele e com o Nero, estaria assegurada. Claro que a vossa causa seria imensamente reforçada
se vocês dessem mais um passo...
Cato compreendeu a implicação velada.
- E fingíssemos ser leais ao Narciso, enquanto vos ajudávamos a destruí-lo?
- E porque não? Como tu mesmo disseste, a criatura é um réptil. Ele não hesitou em colocar as vossas vidas em risco. Não lhe devem nada.
- Nem ao Pallas ou a si, senhor.
O legado soltou uma risada.
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- Dizes isso agora. Daqui a um, dois anos, as coisas serão muito diferentes, e nessa altura sentir-te-ás grato por dispores da minha proteção. Não apenas para ti
e para o Macro, mas também, ou sobretudo, para a tua família.
Cato sentiu as entranhas a torcerem-se de ansiedade.
- Está a ameaçar a minha família?
- Pelo contrário, estou a oferecer-lhe a minha proteção. Infelizmente, aqueles que amamos e por quem fazemos tantos sacrifícios têm uma forte tendência para se tornarem
nos nossos calcanhares de Aquiles. Se queres controlar um homem, há que controlar os seus receios. Não me provoca qualquer prazer enunciar este princípio. Como já
te disse, estou apenas a apontar a realidade da situação. Só tu podes escolher o que queres fazer quanto a ela.
- Não há escolha - ripostou Cato em tom neutro, enquanto lutava para controlar o azedume. - Pois não?
Quintato abanou a cabeça suavemente.
- Temo bem que não. Se te servir de consolo, a minha própria família está também debaixo do olho do Pallas. Ele interpelou-me em tempos, da mesma maneira que o faço
contigo, e fez-me a mesma oferta, e a mesma ameaça, e desde esse momento vi-me forçado a seguir os seus ditames. Isso foi há dez anos. Nos tempos em que o Pallas
ainda tentava subir pelo pau ensebado.
- Mas escolheu não cumprir as ordens dele, de assegurar a nossa eliminação.
- Achas mesmo? Enviei-vos para aquilo que pensava ser a vossa morte certa, em Bruccium. Porém, contra todas as probabilidades, vocês triunfaram. Admirei-vos por
isso. Seria uma pena ver-vos eliminados sem que tal fosse necessário... Cato, pensa bem. Percebes muito bem a situação. Vês com certeza que não existe alternativa.
Ou pelo menos, nenhuma que não tenha um custo insuportável.
- Sim, vejo isso - admitiu Cato.
- Compreendo o teu desespero. Mas hás de ultrapassá-lo. A ausência de uma verdadeira possibilidade de escolha tratará de to fazer esquecer. Tudo o que há a fazer
é adaptar e sobreviver. Não é isso, no fim de contas, que nos ensina a vida?
Esperou por uma resposta, mas Cato estava demasiado furioso e amargo para se atrever a ripostar. Queria a todo o custo refutar os argumentos
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que lhe tinham sido apresentados. Queria desesperadamente afirmar os seus princípios e desafiar a vontade dos homens poderosos que se achavam no direito de decidir
o destino dos outros. Aspirava de facto a um mundo em que a honra, a honestidade e o mérito contassem mais do que a astúcia, a avareza e a ambição. Porém, tinha
à sua frente a demonstração perfeita de que aquilo por que ansiava não passava de um devaneio, Apesar de tudo o que já conseguira, de todas as batalhas que travara
e vencera, de todas as promoções que recebera, vivia submetido aos caprichos de homens como Narciso e Pallas. Que não eram sequer realmente romanos. Meros libertos
que tinham aprendido a tocar os botões do seu antigo dono como se este fosse um instrumento musical. Pior ainda era o facto de estar consciente da extensão da sua
vulnerabilidade àquelas maquinações devido ao seu casamento com Júlia. E também o seu filho, a seu tempo se tornaria um involuntário refém no jogo mortal de intriga
política que era praticado pelos habitantes do palácio imperial, de forma tão instintiva como a que os outros homens usavam para respirar.
Suspirou.
- Torna-se claro que vês a razão - observou Quintato, com alguma simpatia na voz. - Isso é bom. Nenhum homem deve escolher uma morte inútil. Vou deixar-te. Precisas
de tempo para pensar em tudo o que te disse, e para o aceitar por completo. Voltaremos a falar quando te sentires preparado. Agradeço-te pelo vinho.
Levantou-se, e Cato imitou-o. A informalidade que vigorara havia pouco desvaneceu-se e o legado tornou-se novamente o comandante, de modos bruscos e exigentes.
- Os teus substitutos chegarão ao forte depois de amanhã. Assim que eles cá estiverem, levarás a tua coluna na direção de Mediolanum. Aí te juntarás à Décima Quarta,
a um destacamento da Vigésima e às outras coortes auxiliares destacadas para a campanha. Eu estarei no comando geral, pelo que o Valens comandará a Décima Quarta
e o prefeito de campo Silano será o líder da Vigésima. É minha intenção dar início às operações daqui a cinco dias. Penetraremos nas montanhas, queimaremos qualquer
povoação inimiga que encontrarmos, localizaremos e destruiremos as forças nativas e eliminaremos toda e qualquer criatura com que nos depararmos. Depois seguiremos
para Mona, e faremos o mesmo. Quando o novo governador assumir o controlo da província, tudo estará em ordem. Não terá sobrado ninguém para desafiar a supremacia
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de Roma. Mais precisamente, não haverá qualquer conquista que possa ser reclamada como sua pelo substituto de Ostório. Essa glória pertencer-me-á, a mim e àqueles
que me seguirem. Compreendido, prefeito Cato?
- Sim, senhor.
- Nesse caso, nada mais temos a dizer um ao outro. Ver-nos-emos de novo em Mediolanum.
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- Hmm, não têm lá grande aspeto - resmungou Macro, enquanto observava a pequena coluna de homens que entrava no forte. - Um grupo de miseráveis preguiçosos, se alguma
vez vi algum. Porra, esta malta da Oitava Ilírica não serve nem para limpar as latrinas. Só os deuses sabem que utilidade terão estes melros no caso de o inimigo
resolver vir fazer-nos uma visita enquanto a guarnição estiver ausente.
Estava sentado num banco, no exterior do edifício do quartel-general, a muleta apoiada na parede ao seu lado. A tarde já ia avançada e, embora o céu estivesse limpo
durante todo o dia, a temperatura caía rapidamente, pelo que os dois homens já se tinham embrulhado nas pesadas capas militares. Cato mantinha-se de pé, a meio da
via que atravessava todo o campo. Pôs uma mão em pala para proteger a vista da luz do Sol poente, enquanto procedia a uma primeira avaliação da guarnição substituta.
Os ilíricos não tinham de facto grande aprumo militar. Não faziam sequer uma tentativa de marchar em cadência, e as armaduras mostravam um ar baço, denunciando a
falta de polimento. Alguns usavam os capacetes, mas a maior parte trazia-os presos à cintura ou nas cangas de marcha. À cabeça da coluna vinha um oficial atarracado,
de bochechas gordas e avermelhadas. Muito obviamente, um homem que apreciava a bebida, considerou Cato.
O prefeito estava francamente exasperado. A chegada dos substitutos estivera prevista para meio do dia, o que teria permitido à guarnição partir para se ir juntar
ao resto do exército que se concentrava em Mediolanum, a dois dias de distância. Os trácios e os legionários que comandava já tinham preparado tudo para a marcha,
e as carroças que constituíam o pequeno comboio de bagagens da guarnição aguardavam
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alinhadas por trás da muralha, prontas a receber as equipagens de mulas que as puxariam. Aliás, os animais tinham mesmo sido aparelhados, pouco antes do meio-dia,
ficando preparados para partir rapidamente. Quando a hora combinada chegou sem qualquer sinal da aproximação dos ilíricos, o mesmo se passando nas duas horas seguintes,
Cato deu
- embora com franca relutância - ordens para que conduzissem os animais de regresso aos estábulos, e para que o mesmo sucedesse aos cavalos do contingente montado.
Os homens da guarnição tinham também sido dispensados, uma vez que não havia qualquer perspetiva de partir antes da manhã seguinte.
Cato avançou lentamente para o meio da via, para aguardar o centurião auxiliar, enquanto o grosso dos recém-chegados abandonava a formação e se espalhava pelo espaço
livre entre as rampas da muralha e os blocos das casernas.
O centurião aproximou-se em passo indolente, e inclinou a cabeça, numa saudação pouco ortodoxa, antes de exibir um sorriso marcado pelas fendas entre os dentes.
- Foda-se - soltou. - Senhor, isto é que foi uma marcha. Nunca pensei que fôssemos capazes de cá chegar antes do anoitecer.
- Põe-te direito! - disparou Cato. - E apresenta o teu relatório com maneiras, homem.
O queixo do centurião caiu de repente, mas ele lá conseguiu recuperar alguma compostura, fechando a cara e puxando os ombros para trás. Tal movimento teve o desafortunado
efeito de pôr em evidência o rotundo ventre, dando a Cato a ideia de ter à sua frente um ovo. A comparação ganhou força quando as bochechas do homem pareceram recolher
ao interior do pescoço, e todo o conjunto se arredondou de forma escorreita até aos ombros. Sim, pensou Cato. Um ovo. Um ovo definitivamente balofo.
O oficial respirou fundo e apresentou-se por fim.
- Marco Fortuno, da Quinta Centúria, Oitava Coorte Ilírica, senhor! Em destacamento. Eis as minhas ordens, senhor. - Procurou no interior da sacola que usava a tiracolo
e extraiu uma tábua encerada. Cato abriu-a e passou um olhar rápido pelo que estava escrito na cera. As ordens seguiam o formato padrão, e autorizavam Fortuno a
conduzir duas centúrias para a posição indicada, onde serviriam como guarnição temporária até receberem novas instruções. Traziam o nome do chefe do
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estado-maior do legado, e eram autenticadas pelo selo do anel do legado. Fechou a tábua com rispidez e devolveu-a ao outro oficial.
- Marco Licínio Cato, prefeito da Segunda Trácia de Cavalaria, e comandante deste forte. Estás atrasado. Aguardávamos a vossa chegada por volta do meio-dia.
- A estrada era complicada, senhor, e os acompanhantes atrasaram-nos.
- Acompanhantes? - Cato olhou para além do homem, na direção dos portões. E era bem verdade - o último dos soldados já tinha entrado, mas era seguido por uma longa
fila de mulheres e crianças, acompanhadas por algumas carroças puxadas por mulas.
- Que Júpiter me dê paciência! - soltou Macro. - Que raio vem a ser tudo aquilo?
Fortuno olhou por trás do ombro, gesto que efetuou com alguma dificuldade.
- Há soldados que têm família na vila de Viroconium. E uns poucos veteranos já desmobilizados têm negócios em parceria com alguns dos meus homens. No total não devem
chegar a cem. O forte foi construído para acomodar mil homens, portanto não haverá falta de espaço. Além disso, é bom para o moral. - Olhou com curiosidade para
Macro, sem saber se lhe devia obediência. O centurião usava uma simples túnica por baixo da capa, e não ostentava qualquer insígnia que indicasse a patente que possuía.
Macro encarregou-se de pôr fim ao dilema.
- Centurião Lúcio Cornélio Macro, Quarta Coorte, Décima Quarta Legião. Serei eu a comandar o forte na ausência do prefeito.
- A comandar? Foi-me dado a crer que seria eu... senhor.
- Pois, mas não serás tu o comandante - declarou Cato. - O centurião Macro está a recuperar de um ferimento, e não está por isso em condições de conduzir a sua coorte
na campanha que aí vem. Portanto ficará no forte.
- O que é uma miserável vergonha - acrescentou Macro entre dentes
Fortuno abanou a cabeça.
- Lamento, senhor. Porém, as minhas ordens são muito específicas. Fui nomeado comandante do forte na sua ausência. Assim o afirma o chefe do estado-maior do legado.
- Afagou a sacola. - Como pôde comprovar com os seus próprios olhos.
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Cato fez um gesto que abarcava a desordenada turba que compunha a coorte ilírica, bem como os últimos dos civis que atravessavam o portão do campo romano.
- Nem pensar em deixar um posto avançado nas mãos do homem que comanda esta ralé. A minha decisão está tomada. Se tens algum problema com ela, sugiro que a leves
ao próprio legado.
- Mas... mas ele prepara-se para avançar para as montanhas - protestou Fortuno. - Podem passar meses até que ele me dê uma resposta.
- Isso já não é problema meu - assinalou Cato. - Até lá, é a minha decisão que prevalece. E de agora em diante passas a dizer "senhor" sempre que te dirigires a
mim ou ao centurião Macro. Entendido?
- Sim, senhor.
- Assim está melhor. - Cato voltou a contemplar os recém-chegados que atravancavam a área junto ao portão. - Por agora, podes instalar os teus homens e os teus acompanhantes
civis nos estábulos, na ponta do forte.
- Estábulos? - Fortuno fez uma careta. - Senhor, eu...
- Os meus homens ainda precisam das casernas esta noite, graças ao teu atraso. E os meus cavalos ficarão com as melhores instalações dos estábulos. Tu e o teu grupo
vão ocupar o que estiver livre, e ainda darão graças por eu não te ordenar que acampes no exterior do forte até ao momento em que eu conduzir a minha coluna para
longe, amanhã. Por agora, tira-os da minha vista. - Cato dispensou o homem com um gesto curto.
Fortuno fez o cumprimento regulamentar e virou-se para se ir juntar aos seus homens, enquanto Cato e Macro o observavam com ar carrancudo.
- Bom - começou Macro em tom suave, - isto é o exemplo mais merdoso e lamentável de soldado que alguma vez tive o azar de conhecer.
Cato arregalou uma sobrancelha e deitou uma olhadela ao amigo.
- A sério? E então aquele recruta escanzelado que se foi juntar à Segunda Legião lá nos confins da Germânia, há uns aninhos? Se bem me lembro, a descrição que considerava
mais adequada nesse caso era "uma caganita de pardal anémico".
Macro encolheu os ombros.
- Oh, era pois. Completamente. Mas no fim acabou por se tornar um soldado sofrível. O exército fez dele um homenzinho.
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- Agradeço-lhe esse elogio, um modelo de vacuidade.
- Ora, precisas mesmo de elogios meus. A tua folha de serviço fala por si, e não tem parado de crescer desde essa altura.
Cato sentiu um tremor de dúvida. Nunca se sentia plenamente confortável com o que tinha conseguido, como se tudo fosse mais o resultado do acaso do que dos seus
esforços, e nessa posição, a de um homem que tinha beneficiado apenas dos favores da sorte, não se julgava merecedor de elogios. Limpou a garganta.
- Bom, agora terá ocasião de tratar de pôr o Fortuno e os seus homens em condições, enquanto eu estiver fora. Deve chegar para o manter ocupado.
- Aquela malta? - Macro lançou uma gargalhada amarga. - Há de ser certo. Tarefa descomunal, especialmente no caso do Fortuno. Muita sorte teremos se o forte ainda
estiver de pé e habitável quando a campanha terminar.
Alguns dos membros da guarnição tinham deixado as casernas para inspecionar os recém-chegados, e contemplavam-nos com sorrisos amarelos, ou lançavam provocações
bem-humoradas aos ilíricos, que retorquiam no mesmo tom, até que Fortuno os mandou formar, aos berros - mais para impressionar os oficiais superiores do forte do
que para apressar os homens, calculou Cato. Os auxiliares lá se foram colocando em posição, apoiando as lanças no solo e aguardando que os últimos dos seus camaradas
se juntassem a eles depois de saírem do meio dos acompanhantes civis.
Macro virou a cabeça e cuspiu para a vala que corria na margem da
via.
- Era capaz de ter mais sorte a treinar macacos. Mas que bando de desgraçados.
- Bom, meu amigo, agora são todos seus.
- Obrigadinho.
Cato deu uma risada.
- Ora, basta mantê-los longe de sarilhos. E cuide bem do meu forte. E trate de dar descanso a essa perna, e bastante. Quero-o em cima das canetas e pronto a surrar
o inimigo o mais cedo possível. Por falar nisso, como vai a coisa?
Macro deu umas palmadinhas na perna, acima da ligadura.
- A cicatriz está a ficar bonita. Mas o músculo dói-me como tudo,
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e dá a sensação de que está a ser puxado para todo o lado. A perna ainda não está em condições de aguentar o peso do corpo, e está tão rígida que se eu conseguisse
andar, ia fazer lembrar uma puta da Subura depois de uma dose dupla. - Suspirou. - Já passei por piores, mas nenhuma foi tão humilhante como esta: ferido por um
fedelho nativo. Mas digo-te uma coisa, o puto tinha tomates.
- Ele e todos os outros bárbaros destas montanhas. - A disposição de Cato voltou a toldar-se, ao pensar na campanha que se aproximava. Era má altura no ano para
dar início a uma operação militar de larga escala. O exército começaria o seu avanço já em pleno outono, e a chuva tão frequente naquelas paragens depressa tornaria
as estradas um pesadelo para o avanço do comboio de bagagens, isto para não falar nas tristes perspetivas que a infantaria enfrentava: marchar naquela lama gelatinosa
das estradas nativas, que depressa seriam remexidas pelos cascos, rodas e botas cardadas da coluna romana. Os nativos tinham ainda a vantagem de conhecerem o terreno,
e adotariam por certo a tática que tão bons resultados lhes tinha proporcionado noutras campanhas, de ataques rápidos e retirada imediata.
Todavia, se o método do legado, de empregar força bruta e frieza implacável para destruir os deceanglos e os druidas, alcançasse os resultados previstos, havia boas
possibilidades de que o exército pudesse regressar ao seu aquartelamento de inverno antes que os dias curtos e frios dessa estação se abatessem sobre a Britânia.
O frio e a humidade crescentes já tinham começado a provocar uma dor constante na mão de Cato, no sítio onde ele próprio tinha sido atingido por uma flecha, no princípio
do ano. Esfregou o tecido branco e áspero da cicatriz por trás dos nós dos dedos e pela palma da mão, e sentiu o formigueiro habitual que se propagava para as pontas
dos dedos e pelo braço acima até ao cotovelo.
Macro viu-o fazer uma careta.
- A mão ainda te dói?
Cato deixou o braço pender ao lado do corpo.
- Estava só a pensar.
Olhou em redor, para ter a certeza de que ninguém os podia escutar. A sentinela à entrada do quartel-general era a pessoa mais próxima, e Cato baixou o tom de voz
para garantir a segurança da conversa.
- Teve tempo para pensar naquilo que lhe contei?
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- Acerca do Quintato? Sim, pensei nisso. Não me sinto propriamente feliz por ter que me associar a outro mestre das conspirações, depois de tudo o que passámos com
o Narciso.
- Nem eu. Mas parece-me que não temos muito por onde escolher. O que ele me disse é verdade. A estrela que protegia o Narciso está a empalidecer. Dentro de pouco
tempo não poderá oferecer-nos qualquer proteção. Nem sequer se conseguirá proteger a si mesmo.
- Bom, não o lamentarei, quando a víbora se vir forçada a tombar sobre a própria espada. Merda, até gostava era de lhe oferecer a minha própria lâmina para fazer
o trabalhinho. Ou enterrá-la eu mesmo naquela pança, se ele não tivesse os tomates para cumprir o destino. - Macro sorriu com ar cruel enquanto se imaginava a fornecer
os seus prestáveis serviços ao secretário imperial.
- Não é com ele que me preocupo - prosseguiu Cato. - É mesmo connosco. E com aqueles que dependem de nós.
- Não precisas de te preocupar com a Júlia. O pai tomaria conta dela. O Semprónio tem popularidade suficiente no Senado para fazer o Pallas pensar duas vezes antes
de o transformar num inimigo.
- Espero bem que sim. Mas não me parece que o Pallas seja o tipo de homem que hesite perante a perspetiva de fazer alguns inimigos no Senado. Não enquanto mantiver
a influência que tem junto da esposa do Imperador, e estiver a trabalhar para colocar Nero no trono. Por muito que despreze a ideia de nos tornarmos apoiantes do
Quintato, julgo que é o passo mais sensato a dar. Pelo menos por agora. Se o Pallas perder o favor imperial por qualquer motivo, poderemos perfeitamente quebrar
os nossos laços com o legado.
Macro soltou um profundo e indignado suspiro.
- Cato, não está certo que tenhamos que viver com estes problemas. Somos soldados. Não somos assassinos. Muito menos servidores de nenhum liberto de merda, convencido
de ser mais importante do que os cidadãos romanos. Porra, estou farto até acima de viver sob a ameaça de levar uma cacetada, aqui no cu do mundo, tão longe de Roma
quanto se pode estar, só porque posso ter pisado involuntariamente as patas de um cabrão qualquer lá em Roma.
- Macro, creia no que lhe digo, partilho por inteiro esses sentimentos. Mas os sonhos são baratos e de nada nos servem neste momento. Não vejo que possamos optar
por outra resposta. A não ser que
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queiramos passar o resto dos nossos dias a olhar para todos os lados. E já temos bastante com que nos preocupar quando avançamos contra o inimigo. Muito desta ilha
só é província no nome. Há ainda muito trabalho pela frente. - Fez uma pausa, e passou a mão sobre os caracóis escuros. - Temos de mostrar que somos muito mais úteis
ao Império vivos do que mortos.
- O caralho! - As feições de Macro enrugaram-se. - Cato, não temos nada a provar a ninguém. Nós não. Já derramámos o nosso sangue uma vez e outra por Roma. Já destilámos
suor aos litros em longas marchas através de terras hostis. Sem sequer mencionar a merda que tivemos que atravessar graças aos malditos esquemas obscuros do Narciso.
Ganhámos o direito a sermos deixados em paz, para podermos seguir com as nossas vidas. Conquistámo-lo, uma, duas, mil vezes.
- Macro...
O centurião abanou a cabeça.
- Não, não posso fazer isso. Não vou trocar o Narciso pelo Pallas. Não me vou transformar num lacaio de um aristocrata conspirador como o Quintato. Não! Nunca, nunca
mais. Daqui em diante, a minha única lealdade será para com os meus camaradas, e para com Roma. Se quiseres continuar metido nesses jogos com gente da laia do Quintato
e do Pallas, é contigo. Mas eu não quero ter nada a ver com isso. Percebes?
Cato reconheceu a determinação do amigo em escapar do letal mundo da política e das conspirações. Aquela não era a ocasião mais indicada para tentar argumentar e
o levar a mudar de posição. Não havia tempo nem privacidade para debater a questão em profundidade. Além disso, simpatizava com os princípios em que Macro baseava
a sua posição, por muito perigosos que pudessem ser. Nenhum deles merecia ser tratado como um simples joguete de homens egocêntricos que apenas se preocupavam com
a conquista do poder. Mas homens desse tipo pouco ou nada ligavam a detalhes do género dos princípios, e pouca atenção dariam à justeza da posição de Macro. Pior
ainda, ficariam inclinados a tomá-la como um ato de desafio. Uma coisa que Cato tinha aprendido acerca de gente como Pallas era que não toleravam que os desafiassem.
Ser visto a aceitar tais gestos seria dar a entender uma fraqueza. E era necessário dar exemplos a todos os que se poderiam sentir tentados a assumir posições semelhantes.
Macro estava a brincar com o fogo. E ao
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fazê-lo, estava a colocar-se em grave perigo, não só a ele mas também a Cato.
A medida que a noite caía sobre o forte, as rotinas habituais, como a colocação do primeiro turno de vigia e a distribuição das senhas, prosseguiam, sem que se desse
grande importância à presença inabitual de mulheres e crianças. Os gritos destas últimas, que brincavam nas vias entre as casernas e os outros edifícios, davam ao
forte o ar de uma pequena aldeia, ao invés de um posto avançado do Império numa fronteira hostil e perigosa.
No quartel-general, Cato oferecia um jantar aos oficiais da guarnição. Não pensara nisso antes, mas o atraso na partida tinha significado a permanência no forte
por mais uma noite e, uma vez que todos os preparativos já tinham sido concluídos, não havia muito para os oficiais fazerem. Traxis matara o último dos leitões do
prefeito, e tinha-o assado com molho de mel. Macro esfregou as mãos e lambeu os beiços quando viu chegar o animal de pele rebrilhante e tostada numa grande travessa
de madeira, que foi colocada sobre a longa mesa no salão principal do edifício do comando. A carne era acompanhada com pão, queijo e o melhor do que restava de vinho
ao prefeito. Para lá de Macro, Cato tinha convidado Crispo e os centuriões da coorte de legionários, bem como os decuriões da sua coorte de auxiliares.
Cato não estava habituado a ter por convidados os seus subordinados, ao contrário do que sucedia com a maior parte dos homens da sua patente em postos similares.
Não tinha herdado nenhuma fortuna que pudesse servir para providenciar algum entretenimento para lá do disponível, e secretamente sentia alguma ansiedade por achar
que isso daria aos seus oficiais, à exceção de Macro, razões para o considerar com o calmo desdém que era geralmente reservado aos "novos homens", designação habitualmente
dada àqueles que trepavam pela hierarquia social de Roma. Apesar de o salário de um prefeito ser de uma ordem de grandeza maior que o de patentes mais baixas, Cato
tinha obrigações familiares a considerar; a casa que tinha na capital, uma esposa e um filho a manter no estilo de vida adequado à classe equestre a que tinha ascendido
graças à promoção. Antes de deixar Roma, tinha tratado de que a maior parte do seu salário fosse entregue a Júlia. O que sobrava, em conjunto com as magras poupanças
que tinha acumulado ao longo dos anos de
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serviço, mal lhe dava para viver. Sobretudo porque, desde que regressara à Britânia, o pagamento chegava-lhe de forma irregular e incompleta, e nenhum estratagema
tinha resultado para convencer os funcionários imperiais que tratavam dos pagamentos aos soldados a acertar as contas com ele.
Por conseguinte, fazia por viver com a mesma quantidade de vestuário que tinha tido enquanto centurião, a armadura que usava tinha muito mais de funcional que de
decorativo, e ao contrário de um prefeito de família aristocrática, que poderia suportar um pequeno séquito de criados e escravos, Cato recorria apenas aos préstimos
de Traxis. Ao contemplar o pobre festim que se via sobre a mesa, fez uma careta e desejou não ter tido aquela ideia. O mais provável era que já o olhassem com alguma
espécie de pena, e o seu coração sofreu com vergonha, embora tentasse mostrar-se calmo e portar-se com o à-vontade de um anfitrião acostumado a reuniões daquele
género.
Fortuno e o outro centurião da coorte ilírica foram os últimos a chegar, algo temerosos de assumir os seus lugares à mesa depois da receção pouco amistosa que tinham
tido naquela tarde. Cato apontou-lhes a ponta da mesa.
- Meus senhores, apresento-vos o centurião Fortuno, da Oitava Coorte Ilírica. - Voltou a atenção para o outro oficial, um homem que era a antítese física do seu
gordo companheiro. O crânio calvo era orlado por cabelo cinzento, curto, e usava uma pala num olho. - E tu és...?
O homem inclinou brevemente a cabeça.
- Centurião Gaio Apilo, senhor. Da Sexta Centúria.
- Bem, Apilo, senta-te. - Cato apresentou à vez os outros oficiais ao redor da mesa. - Centurião Macro, que será o comandante do forte na minha ausência. Centurião
Crispo, que lidera interinamente a Quarta Coorte da Décima Quarta Legião. Os outros são os centuriões Festino, Portilo, Lêntulo e Macer, e aquele é o optio Crotão,
que assumiu a centúria do Macro. Do outro lado da mesa estão os Corvos Sangrentos. Os meus esquadrões montados são liderados pelos decuriões Miro, Temistocles, Corvino
e Aristófanes. Por fim, os encarregados das centúrias de infantaria, Harpex e Platão - sem qualquer relação.
Fortuno olhou para ele por alguns momentos, de rosto impávido.
- Sem relação com quê, senhor?
Cato encolheu os ombros.
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- Não importa. Vamos a isto. Meus senhores, vamos a isto! Temos que consumir tudo isto, senão será o Macro a ter o trabalho de acabar com o que ficar das minhas
provisões pessoais. Suspeito que ele se sentirá menos inclinado a partilhá-las, mesmo com os poucos oficiais que ficarão no forte depois de a guarnição marchar para
a guerra.
- É bem certo! - assentiu Macro, vigorosamente, antes de esvaziar a taça, pegar no jarro de vinho e voltar a enchê-la até cima.
Em redor da mesa os outros oficiais pegaram nas suas facas, trinchando a carne e empilhando-a nos pratos, antes de lhe juntarem nacos de pão e queijo. Comeram, conversaram
e partilharam histórias e piadas, com o animado espírito de homens que se preparam para uma boa aventura. Fortuno e Apilo depressa se juntaram ao convívio, e as
pesadas queixadas do primeiro estremeciam enquanto ele se deleitava com a carne, que mastigava vigorosamente enquanto o molho lhe escorria pelo canto da boca. Traxis
mantinha-se a um dos lados, mantendo vigilância sobre o jarro de vinho, e levando-o regularmente para a copa, onde voltava a enchê-lo assim que surgia o perigo de
o recipiente ficar vazio. Fazia o mesmo quanto aos cestos de pão e queijo, e ainda deitava lenha na lareira na parede lateral, onde ardia um bom fogo. A luz da fogueira
juntava-se à que era produzida pelos archotes encaixados na parede. À medida que a noite se alongava, o vinho escorria e os rostos dos oficiais tornavam-se corados
graças ao calor da lareira e aos efeitos da bebida. Mas não o de Cato. Tentava dar a aparência de partilhar o ambiente de alegre camaradagem, enquanto ao mesmo tempo
procedia a mais uma avaliação à qualidade dos homens que liderava.
Portilo, Lêntulo e Crotão eram comandados por Macro havia menos de um mês, já que tinham chegado com os substitutos vindos de Rutupiae. Os dois primeiros tinham
sido promovidos ao centurionato muito recentemente, mas eram homens com uma já longa carreira militar, de mais de dez anos; Crotão era ligeiramente mais novo, e
tinha-se tornado optio depois de um desempenho prometedor na campanha contra os brigantes no verão anterior. Quanto aos oficiais da coorte trácia, Miro e Temistocles
eram os únicos decuriões que restavam do tempo em que Cato tinha assumido o comando da unidade. Miro era um indivíduo competente, mas totalmente desprovido de qualquer
imaginação ou iniciativa, e por vezes permitia que a sua disposição nervosa tomasse conta das suas ações. Era perfeitamente capaz de se manter na sua posição na
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linha de batalha, mas não era de confiar quando se tratava de lhe dar um comando independente. Temistocles era um caso diferente. Duro e experiente, era capaz de
cumprir qualquer ordem recebida sem considerar as possíveis consequências. E era essa a razão pela qual também não era de fiar para assumir comandos independentes.
Eram estes os homens que cabia a Cato liderar e levar ao combate, pelo que era absolutamente vital que conhecesse todos os seus pontos positivos e negativos. Mais
ainda por não poder contar com Macro a seu lado. O seu grande amigo era insubstituível. Duro, destemido, absolutamente leal, com mais de vinte anos de experiência
no exército, e possuidor ainda de uma apurada compreensão dos homens que o rodeavam e da melhor forma de os treinar e preparar para o combate. Quando chegava a hora
da batalha, poucos homens se lhe podiam comparar. E Cato sabia perfeitamente que lhe ia sentir a falta muitas vezes nos meses que se aproximavam.
A verdade, porém, era que o tempo de alistamento de Macro estava a aproximar-se do fim. Tinha dedicado os melhores anos da sua vida a servir Roma, e ser-lhe-ia permitido
reformar-se com um bónus generoso, em resultado da sua honrosa dispensa do serviço militar. A maior parte dos centuriões que deixavam o exército regressavam a Itália
e adquiriam pequenas propriedades rurais, ou estabeleciam negócios nalguma cidade da província, tornando-se parte do pequeno círculo dos homens mais influentes da
região, que geriam as coisas, em grande medida para seu próprio benefício. Porém, era difícil a Cato imaginar Macro a assumir um daqueles papéis, pelo menos de boa
vontade. Já tinham discutido a vida depois da carreira militar, por vezes, naqueles momentos em que os soldados procuravam um assunto que os pudesse distrair dos
desconfortos da situação em que se encontravam. Macro entrava no jogo tão bem como outro qualquer legionário, construindo fantasias de infindáveis sessões de bebida,
de prazer com mulheres de virtude fácil, ou, em momentos de menor animação, visões mais bucólicas de uma vida tranquila na serena paisagem da Campânia. Mas momentos
desses passavam depressa, e era claro que para Macro só existiria para sempre um verdadeiro lar: as fileiras das legiões de Roma. Era como se tivesse nascido para
aquilo, e o mais provável era que fosse nesse posto que a sua vida terminasse um dia, por doença, ferida ou morte em batalha. Causas naturais, como o próprio comentava
com humor, de tempos a tempos.
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Cato sorriu ao relembrar o estoicismo militarista do amigo, antes de os seus pensamentos se virarem para o seu próprio destino. As promoções até à sua patente presente
tinham-se sucedido com rapidez, dado o número de campanhas em que tinha estado envolvido desde que se juntara ao exército. Sem possuir a vantagem de provir de uma
família aristocrática, havia um limite para a progressão que podia conseguir na carreira. Nunca lhe seria possível alcançar os postos mais elevados, como legado,
cônsul ou governador. Se tivesse mesmo muita sorte, poderia conseguir uma das duas posições supremas a que homens da classe de cavalaria podiam almejar: comandante
da guarda pretoriana, ou prefeito do Egito - postos que nenhum governante se mostrava disposto a entregar nas mãos de possíveis rivais. Se Nero sucedesse ao doente
Cláudio, seria vital conseguir o apoio de Pallas para poder ter alguma hipótese de chegar a um desses postos. A curto prazo, isso significava oferecer a sua lealdade
a Quintato, por pouco agradável que a ideia fosse.
Ao olhar em torno da mesa, Cato percebeu que os oficiais tinham terminado a refeição e afastado os pratos para o lado, enquanto se concentravam no vinho. Chamou
Traxis com um gesto e fê-lo compreender que devia limpar a mesa.
Traxis recolheu primeiro o prato e a faca do comandante e, ao debruçar-se para ele, murmurou:
- Senhor, estamos já na última ânfora de vinho. Deseja que a abra? Não haverá praticamente qualquer possibilidade de arranjar mais vinho enquanto estivermos em marcha.
- Talvez, mas posso viver sem vinho; além disso, vou precisar de manter a mente bem desperta. O que é mais do que eles vão ter quando chegar a manhã. Mas eles que
aproveitem o momento... Sim, traz-lhes mais vinho.
Traxis deu um estalo com a língua.
- Como quiser, senhor.
Depois da mesa limpa e do jarro de vinho reabastecido, Macro pegou num conjunto de dados de marfim, que tirou de uma pequena caixa.
- Bem, rapazes, que tal algum desporto com os meus dados da sorte? Uma oportunidade para vos limpar as bolsas. No sítio para onde vão não vão precisar de dinheiro.
Crispo apoiou os cotovelos na mesa e sorriu.
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- Eu alinho.
- Quem mais? - indagou Macro, olhando em redor. - E tu, Fortuno?
O recém-chegado anuiu e apresentou uma bolsa surpreendentemente bem recheada.
- Porque não? Dá sempre jeito complementar o salário que o exército me paga.
As sobrancelhas de Macro arregalaram-se.
- Admiro a tua confiança. Senhor, e quanto a si?
Cato hesitou. Por princípio, não gostava de jogar aos dados. Não havia naquele jogo qualquer saber, apenas sorte, acaso, por muito que aqueles que amavam o jogo
proclamassem o contrário. Era simplesmente ridículo arriscar as pequenas fortunas que os soldados punham em jogo sem pensar duas vezes. Muitas vezes o jogo acabava
por dar azo a ressentimentos em vez de diversão, e os dados eram causa frequente de rixas, e de mais do que algumas mortes. Todavia, era uma tradição antiga, bem
estabelecida, e qualquer comandante que se atrevesse a tentar cercear o apetite dos seus homens pelo jogo arriscava-se a provocar muitos maus sentimentos nas fileiras.
Por vezes, concluía Cato, era melhor deixar passar aqueles vícios e até alinhar neles, de forma a melhor compreender os que o rodeavam.
Suprimiu um suspiro e ordenou a Traxis que lhe fosse buscar cinquenta denários ao cofre nos seus aposentos, soma que não lhe daria jeito nenhum perder, mas que ao
mesmo tempo não pareceria demasiado pequena aos seus convidados. A última coisa que lhe apetecia era fazer fraca figura perante o centurião Fortuno.
Depois de toda a gente ter posto sobre a mesa as suas moedas, Macro pediu um recipiente para os dados, enquanto os outros faziam as suas apostas. Cato examinou os
círculos que Macro tinha desenhado a giz na mesa, colocou uma moeda no número 7 e depois forçou-se a colocar uma segunda moeda. Viu como os outros colocavam as suas
apostas, alguns apontando às probabilidades mais arriscadas, outros distribuindo o dinheiro. Cato notou a estratégia adotada por cada um dos homens e perguntou-se
o que ela revelaria das suas personalidades; se seriam temerários ou se preferiam jogar pelo seguro. Observou, curioso, a forma como Fortuno colocava uma moeda no
12, e depois três moedas ao lado da aposta de Cato. Macro foi o último a apostar. Avaliou as posições que
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os outros tinham tomado e colocou então cinco moedas no círculo marcado com o número 6.
- Todos prontos?
Cobriu a taça com uma mão e agitou-a com força, de tal forma que os dados chocalharam ruidosamente no interior. Então, com uma prece murmurada a Fortuna, lançou
os dados para a mesa. Saltaram até se imobilizarem, e todos os oficiais se debruçaram para verificar os resultados.
- Seis! - gritou Macro, entusiasmado. - O seis da sorte para o centurião da Fortuna!
Os outros soltaram imprecações, exceto Crotão, que tinha colocado uma aposta num número par e sorria abertamente. Macro atirou-lhe uma moeda e acumulou todas as
outras, formando um monte de onde recolheu os seus ganhos. Levantou o olhar, ansioso.
- Azar, rapazes. Vamos a outra aposta.
Enquanto os outros pegavam nas moedas para as colocar, o centurião Fortuno lançou a mão rechonchuda para a mesa. Pegou nos dados e levantou-os à luz enquanto os
inspecionava, antes de os fazer rolar na palma da mão para testar o peso e o equilíbrio. O sorriso de Macro apagou-se.
- Fortuno, há alguma coisa errada?
- Não. Nada de nada. Estava apenas a admirar os dados. Um belo conjunto, se mo permite, senhor. Devem ter-lhe custado uma boa maquia. Posso saber onde os adquiriu?
- Na Síria.
- Ah, Síria... - Fortuno assentiu com ar natural. - Evidentemente.
Os olhos de Macro semicerraram-se.
- O que é que isso quer dizer?
- Apenas que isso explica a sua qualidade, senhor. - Fortuno depositou os dados sobre a mesa. Esperou que todos os outros colocassem as apostas e depois fez escorregar
uma moeda para o 6 e recostou-se na cadeira. Cato percebeu a desconfiança do homem, mas considerou-a deslocada. Macro não era do tipo batoteiro. Preferia a honesta
excitação de um bom jogo, muito mais do que a perspetiva de ganhar envolto numa nuvem de culpa e desonestidade.
Cato resolveu jogar de novo segundo as probabilidades, e apostou no 7. Mais uma vez os dados chocalharam e rasparam na mesa antes de anunciarem o resultado.
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- Dois! Castor e Polux! - exclamou Macro. - Foda-se, que tenho uma sorte...
Enquanto o jogo prosseguia, pontuado por silêncios expectantes, gritos e trocas de palavras excitadas, cada um dos homens teve ocasião de lançar os dados algumas
vezes. Cato reparou que alguns murmuravam preces rápidas, outros cerravam os olhos e moviam os lábios em silêncio, e outros ainda eram menos supersticiosos e limitavam-se
a sacudir os dados antes de os lançar. Mas nada parecia afetar a incrível boa sorte de Macro e Fortuno, cujas pilhas de moedas cresciam continuamente, enquanto as
dos outros minguavam. Ao escutar o som da trombeta a anunciar a mudança de turno das sentinelas, Cato decidiu que era tempo de pôr fim à reunião.
- Um último lançamento, senhores - anunciou. - Amanhã temos um longo dia pela frente.
Os outros anuíram, já fatigados, e prepararam-se para o último lance. Ao verificar o seu pecúlio, Cato viu que lhe restavam ainda oito moedas. Com todo o bom humor
que conseguiu reunir, colocou-as no círculo marcado com um 10.
- Quem não arrisca não petisca.
As últimas apostas foram colocadas, e depois Macro entregou-lhe a taça com os dados.
- Senhor, a honra é sua.
Cato pegou na taça com um aceno de agradecimento e mostrou-a aos outros.
- Boa sorte a todos.
Sacudiu-a com toda a força, fazendo os dados produzir um ritmo selvagem junto ao seu ouvido. Então, com um golpe do pulso, lançou-os para a mesa, onde saltaram uma
e outra vez e rodopiaram até parar. Depois de uma minúscula pausa, Fortuno fungou, desapontado.
- Dez! Que merda de sorte... - Soprou as bochechas e abanou a cabeça. - Paciência. Saí-me bem. Bravo, senhor. Um excelente lançamento.
Cato sentiu-se desapontado pelo elogio vazio.
- Não há neste jogo qualquer técnica. A única coisa a fazer é jogar com as probabilidades.
A testa de Macro franziu-se.
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- Nesse caso, senhor, como explica que alguns ganhem mais do que outros?
- É a vida, Macro - retorquiu Cato, pacientemente. - Só isso.
- Se assim o diz. - Macro contou algumas moedas e passou o pequeno monte a Cato. - Parece-me que no fim de contas equilibrou as suas perdas, senhor.
- Como eu digo. Nada de ganho. - Deitou as moedas para a bolsa que Traxis trouxera do cofre, enquanto os outros recolhiam o dinheiro que lhes tinha sobrado. - E
assim concluímos este serão. Agradeço-vos a todos pela companhia. Creio que passámos uma noite agradável.
Os oficiais murmuraram os seus agradecimentos com maior ou menor coerência, e os bancos rasparam nas lajes do chão quando eles se levantaram e dirigiram à porta
que conduzia ao pequeno pátio do edifício. Macro deixou-se estar sentado, a esfregar levemente a pele em torno da ligadura.
- Está a doer-lhe?
Macro fungou.
- De tempos a tempos faz comichão, é uma porra.
- Já não falta muito para ficar bem.
Macro ergueu o olhar com uma expressão sóbria.
- Tempo bastante... O suficiente para ter que ficar aqui sentado e ver-te a conduzir a minha coorte para o combate.
- Nem toda a coorte. Resolvi deixar-lhe duas secções de legionários, para dar algum apoio à guarnição. E dez homens do contingente montado dos Corvos. Vai precisar
deles para patrulhas e envio de mensagens.
- Sim, dar-me-ão jeito. Agradeço-te... Meu amigo, tem cuidado.
- Vai correr bem. Já é tempo de aprender a ter-me em pé sozinho
- retorquiu Cato, de bom humor.
- Há muitos anos já que o fazes. Não precisas de mim. O facto é que sou eu quem precisa de estar no centro da ação. Não aguento a ideia de ter de ficar de fora.
- Haverá outras campanhas, Macro.
- Eu sei. - O veterano ficou em silêncio por momentos. - Há uma coisa que preciso que faças por mim.
- Diga.
Macro colocou os dados na sua caixa e entregou-a a Cato.
- Leva isto contigo.
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Cato ficou intrigado.
- Porquê? Para quê?
- Para te dar sorte. Quando os comprei, foi-me prometido que me trariam sorte. Viste como me safei bem esta noite ao jogo. Têm funcionado para mim. Agora farão o
mesmo por ti.
- Macro, eu...
- Leva-os, simplesmente. Ficarei mais sossegado sabendo que os tens contigo.
Cato hesitou, até reparar na expressão de preocupação que ocupava o rosto do amigo. Sorriu e assentiu.
- Obrigado, então. Mantê-los-ei por perto. E quando regressar, devolver-lhos-ei.
- Ótimo. - Macro pegou na muleta e, a custo, pôs-se de pé. - Vejo-o pela manhã, senhor. Boa-noite.
- Boa-noite, centurião Macro.
Macro coxeou para o exterior e fechou a porta ao sair, deixando Cato a sós à luz moribunda da lareira e dos dois archotes que ainda ardiam na parede. O prefeito
contemplou a caixa que tinha na mão, fechou os dedos em torno dela e dirigiu-se devagar para os seus aposentos. Apesar das suas dúvidas sobre os mecanismos do destino,
poderia muito bem vir a precisar de toda a sorte que conseguisse reunir, nos dias que se avizinhavam.
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- Quando regressar, espero verificar que já fez a sua magia habitual
no Fortuno e na sua turba - disse Cato, enquanto lançava um
último olhar em redor do forte.
A guarnição estava formada ao longo da via que cruzava o campo de uma ponta a outra, para lá dos arcos que marcavam a entrada do edifício do quartel-general. Os
cavaleiros do esquadrão montado encontravam-se ao lado dos seus cavalos, à cabeça da coluna. Cada uma das montadas estava equipada com uma rede com feno e alforges
com aveia. Atrás deles seguia o pelotão de honra, onde se incluíam os estandartes das duas unidades comandadas por Cato; depois vinham os legionários, que aguardavam
junto às suas cangas de marcha. Na retaguarda seguia um pequeno comboio de bagagens: catorze vagões, carregados com equipamento e rações para a marcha, e quatro
das balistas que existiam no forte. Os soldados de infantaria da coorte trácia, organizados em duas centúrias, tinham sido designados para a proteção dos veículos
e formavam a retaguarda. Era o trabalho menos desejado por todos os que seguiam numa coluna, já que no verão tinham que levar com a sufocante poeira que era levantada
por todos os que seguiam à sua frente, e no inverno tinham que avançar sobre lama já muito revolvida.
O dia ainda mal tinha começado; o Sol ainda não subira o suficiente para lançar os seus raios por cima da muralha oriental, embora a sua luz rosada banhasse os homens
da guarnição substituta, que faziam as suas rondas e mantinham vigia nas plataformas que encimavam os quatro portões do forte. Na área da sombra projetada pela muralha
o ar parecia tingido de azul e estava gélido, o que fazia os homens darem graças pelas suas espessas capas militares.
Macro deixou a muleta encostar-se à parede junto à entrada do quartel-general e esfregou as mãos com todo o vigor.
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- Não te preocupes. Vais ver-te grego para reconhecer estes ilíricos. Sobretudo o pote de banha do Fortuno. A esse, considero-o um desafio pessoal. Vai suar aquela
gordura toda, e ficar em forma, ou esticar o pernil a tentá-lo.
- Também não é preciso ir tão longe - lembrou Cato. - Trate simplesmente de garantir que ele caiba na armadura. Já será suficiente.
Partilharam uma gargalhada rápida e Cato ofereceu a sua mão. Apertaram mutuamente os antebraços.
- Senhor, tome cuidado.
Cato detetou um tom de ansiedade que tentava passar despercebido nas palavras do amigo.
- Vai tudo correr bem.
Macro não conseguiu reprimir mais algumas palavras em tom menos formal.
- Tem cuidado com aquele sacana do Quintato. Diga ele o que disser, continua a ser um daqueles cabrões ardilosos que só pensa em si mesmo e no que pode arrebanhar.
- Eu sei. Vou tomar todas as precauções.
- Muito bem... - Macro lançou um sorriso embaraçado e mudou de assunto com toda a rapidez. - E, já agora, toma conta dos meus rapazes.
Cato assentiu.
- Não se preocupe. Vou manter o Crispo debaixo de olho, e garantir que a sua coorte não é demasiado castigada.
Olharam ambos para a cabeça da coluna de legionários, e vislumbraram a alta figura do centurião referido, a bater impacientemente com a vara de videira na palma
da mão.
- Estão em boas mãos - admitiu Macro. - O Crispo é um bom soldado. Faz-me lembrar eu mesmo, quando era mais jovem.
- A sério? Então tem engordado bastante, sem eu dar por isso.
Macro rosnou com raiva fingida e afastou o braço de Cato com
gentileza.
- Pois, e vá-se foder também... senhor - resmungou, de bom humor. - Despacha-te lá, e deixa-me ficar com estes ilíricos merdosos, para os tratar à minha maneira.
Cato deitou-lhe um último sorriso e virou-se, dirigindo-se a passo largo para a frente da coluna, onde Traxis lhe segurava o cavalo. Assim
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que o centurião Crispo notou a sua aproximação, apoiou a vara no chão e inspirou profundamente.
- Coluna! Formar em linha de marcha!
De imediato os homens da infantaria deixaram as suas conversas murmuradas e todos pegaram nas suas cargas, tentando colocar os incómodos bordões sobre os ombros
numa posição tão confortável quanto possível. Os quatro esquadrões de trácios pegaram nas rédeas das montadas e acalmaram os animais, enquanto Miro olhava em volta
para se certificar de que todos estavam preparados para a ordem seguinte.
- Segunda de Cavalaria Trácia! Preparar para montar... Montar!
Cada um dos cavaleiros apoiou uma mão no corno da sela para se
içar e usar o impulso para ajudar a passar a outra perna sobre a garupa do cavalo, antes de se sentar na sela e voltar a controlar as rédeas. Com a palha empacotada
nas redes presas às garupas, e os alforges de aveia, não era um feito fácil, e demorou algum tempo até que as linhas se compusessem e a cavalaria se mostrasse pronta
a marchar. Cato sentia-se muito feliz por o seu cavalo ter sobre o lombo apenas a sela, e nenhuma daquelas inconveniências. Traxis entregou-lhe as rédeas e dobrou-se
para criar um degrau com as mãos. Depois de Cato ali colocar a bota, o maciço trácio empurrou o prefeito para cima, e Cato aterrou na sela com toda a graça que conseguiu
reunir. Ajustou as rédeas e sentou-se tão direito quanto possível, contemplando a coluna e verificando que todos os homens estavam preparados e a aguardar novas
ordens.
Respirou fundo.
- Abram os portões!
Fortuno soltou uma ordem para a secção de ilíricos que aguardava junto à casa da guarda, e estes adiantaram-se para remover a tranca e puxar as portadas para dentro,
deixando entrar os brilhantes raios do Sol nascente pelo forte adentro. Cato viu-se obrigado a semicerrar os olhos enquanto levantava o braço e o fazia descer para
a frente.
- Coluna! Avançar!
Fez o cavalo seguir a passo e sentiu a familiar sensação de oscilação, à medida que o animal mexia as patas. Atrás dele vinha Traxis, que transportava o estandarte
pessoal do prefeito, e depois dois escribas do quartel-general, à frente do decurião Miro e do primeiro dos esquadrões de cavalaria trácia, que seguiam debaixo do
seu estandarte negro onde se desenhava um corvo a vermelho, imóvel no ar parado do começo
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da manhã. Assim que ultrapassaram o fosso que rodeava o forte, Miro ordenou que o esquadrão se adiantasse, pelo que os homens passaram pelos dois lados de Cato em
passo rápido, para ocuparem uma posição algumas centenas de metros adiantados em relação ao grosso da coluna, atentos a qualquer sinal da presença do inimigo.
Enquanto os últimos auxiliares trácios marchavam para o exterior do forte, Macro pôs-se de pé, amparado na muleta. Dirigiu-se para o portão fortificado, enquanto
Fortuno berrava ordens para que ele fosse encerrado e a tranca colocada em posição; Macro fez uma pausa na base das escadas que permitiam subir a rampa e ter acesso
à paliçada.
- Tu! - interpelou o mais próximo dos ilíricos. - Ajuda-me aqui.
O soldado amparou-o de um lado e ele usou a muleta no outro, e assim foi saltitando de degrau em degrau até chegar à paliçada, onde se agarrou aos postes mal acabados
e ficou a contemplar a coluna a serpentear pelo vale. O Sol já tinha subido acima das colinas a leste e, à medida que o dia avançava, as sombras iam diminuindo rapidamente.
Macro deixou-se ficar ali ainda mais algum tempo, notando o reflexo da luz solar nos metais polidos e franzindo os olhos num esforço para distinguir a capa vermelha
do prefeito junto à cabeça da coluna. Estava preocupado com o amigo. Ao longo dos anos tinham-se acostumado a tomar conta um do outro, protegendo-se dos inimigos
que surgiam de todos os lados, e era por isso natural que se sentisse estranho ao ver Cato a marchar para a guerra sem nada poder fazer para o ajudar.
Não, nada não, corrigiu-se. Tinha uma tarefa a executar. Cato tinha-o deixado no comando do forte e da guarnição substituta. Isso ia mantê-lo ocupado e dar-lhe alguma
coisa de útil para fazer. Sorriu para si mesmo ao pensar em tudo o que tinha reservado a Fortuno e aos seus ilíricos. Ia ser como nos bons velhos tempos.
A vanguarda da coluna atingiu a crista de uma pequena colina na boca do vale e começou a desaparecer de vista, como um inseto tremeluzente. Dada a estação do ano,
e as chuvas recentes, não se notava a costumeira nuvem de poeira que soldados, cavalos e carros em movimento levantavam ao avançar, e Macro conseguiu distinguir
perfeitamente os últimos dos homens a alcançarem o cimo da subida e depois a descerem, saindo do seu campo de visão. O vale ficou calmo e tranquilo, e a paisagem
em redor do forte aninhado entre as duas cristas florestadas que
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davam entrada ao território dos ordovicos tornou-se silenciosa. O outono ia muito avançado, e os ramos de muitas das árvores já se apresentavam despidos, enquanto
o solo por baixo delas estava coberto de folhas castanhas e amarelas. Macro cheirou o ar. Gostava do odor almiscarado e húmido que imperava naquela altura do ano,
e da forma como a luz do Sol parecia realçar a riqueza das cores naturais.
De repente empertigou-se, e fez uma careta, furibundo.
- Foda-se, mas o que é que eu estou para aqui a pensar? - resmungou. - A devanear como um cabrão dum poeta.
Pegou na muleta e virou-se para contemplar toda a extensão do forte, e depressa avistou Fortuno, sentado com o optio nuns bancos à entrada da caserna que tinha sido
atribuída à sua centúria. Macro encheu os pulmões de ar e lançou um berro do alto das muralhas, com tanta força que facilmente se propagou por todo o forte.
- Centurião Fortuno! Quero-te a ti e aos teus oficiais no quartel-general assim que for feita a mudança de turno. Estás a ouvir?
Fortuno debateu-se para se levantar e fazer uma saudação formal. Macro respondeu com um gesto brusco e chamou um dos auxiliares para o ajudar a descer as escadas;
sentia o coração animado pela ideia de que já não tinha que se preocupar com os cuidados do metediço do médico, que tinha seguido na coluna de Cato.
Sentia-se estranho, sentado do outro lado da secretária. Fortuno, Apilo e os seus optios estavam de pé à sua frente, bem como o mais antigo dos legionários da secção
que Cato tinha deixado no forte. Lúcio Diodoro servira mais de dez anos na Décima Quarta, quase sempre na Britânia. Tinha um cabelo ralo, demasiado comprido e desgrenhado
para o gosto de Macro, e uma cicatriz esbranquiçada na maçã do rosto. Alto e bem constituído, e com uma boa folha de serviço, tinha tudo para constituir uma escolha
sensata para o papel de instrutor de treino. Os optios dos auxiliares, pelo contrário, tinham um ar tão inútil como os seus centuriões. Safro era um tipo pequeno
e fino, perto dos quarenta anos de idade, com uma permanente expressão maliciosa, e Mago era pesado e aparentava um ar de estupidez. O tipo de homem que poderia
ter tido uma breve carreira na arena, lugar onde a sua força bruta lhe teria permitido sobreviver até encontrar um adversário com um mínimo de astúcia.
Macro suspirou devagar. Era aquele o material de que era feito o seu
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novo comando. Inclinou-se para a frente e descansou os antebraços na mesa ao dirigir-se a Fortuno.
- Os teus homens já se instalaram nas casernas?
- Sim, senhor. Creio que já estão todos.
Cato tinha decidido atribuir-lhes as casernas mais próximas aos estábulos, onde tinham sido colocados os seguidores civis, mas Macro tinha uma opinião diferente
quanto à melhor disposição das coisas.
- Nesse caso, trata de os arrebanhar e levar para as casernas do outro lado do edifício do comando. Quero-os lá instalados assim que terminar esta reunião.
Fortuno não escondeu a perplexidade.
- Mudá-los? Outra vez?
- Foi o que eu acabei de dizer. Quero-os onde os possa ter debaixo de olho. E não os quero nas proximidades daquela turba que ocupa os estábulos enquanto estiverem
de serviço. E mesmo depois, os homens têm que dormir nas casernas. Entendido?
- Sim, senhor. Mas será realmente necessário?
- Centurião Fortuno, estarás por acaso a colocar em questão as minhas ordens?
- Claro que não, senhor.
- Então limita-te a fazer o que te mando. Isto é um posto militar, caraças, não é nenhuma colónia de férias para veteranos. Exijo que os teus homens se comportem
como soldados a sério, mesmo que na realidade estejam longe de o ser. E é aí que entra aqui o Diodoro. Escolhi-o para me ajudar a metê-los na ordem.
Fortuno mostrou-se irritado.
- A Oitava Ilírica é uma boa unidade, senhor. Não somos recrutas acabados de chegar. Viu com certeza as medalhas de honra no nosso estandarte, atribuídas pelas muitas
batalhas travadas.
- Vi, de facto. Portanto elucida-me, quando é que foram atribuídas exatamente?
Fortuno mudou o peso para o outro pé, oscilando ligeiramente.
- Foi antes do meu tempo, senhor.
- Estou a ver. Então, diz-me, quando é que tu e a tua unidade estiveram em combate pela última vez?
- Foi na Panónia, senhor. Alguns anos antes de sermos enviados aqui para a Britânia.
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O cenho de Macro franziu-se brevemente com a concentração.
- Não me lembro de ter ouvido falar de guerra na Panónia.
- Não foi exatamente uma guerra. A coorte recebeu ordens para suprimir uma revolta, senhor.
- Oh? Conta-me lá então essa história.
- Algumas aldeias recusaram-se a pagar os impostos. Fomos enviados para restabelecer a ordem.
- Portanto, partiram umas cabeças, arrasaram um edifício aqui e ali, enfim, o costume. Não?
Fortuno corou visivelmente.
- Bom, senhor, pode ser descrito dessa forma. Mas, se bem me lembro, os locais eram verdadeiramente hostis.
-Atrevo-me a imaginar que sim. Deixa-me adivinhar. Lançaram-vos terríveis insultos e, pior ainda, insistiram, só que dessa vez com a ajuda de umas pedras, ou de
umas bostas, e vocês perseguiram-nos e fizeram-nos dispersar.
Fortuno abriu a boca para protestar, mas optou por fazer uma pausa, pensar uns momentos e cerrar os lábios firmemente, de tal forma que formaram uma linha fina no
rosto vermelho.
Macro anuiu.
- Foi o que eu pensei. Bom, isto não é lugar para uma força de manutenção da ordem pública. Estamos mesmo na fronteira, em face de um inimigo que luta a sério e
até ao último fôlego. Uns cabrões decididos, verdade seja dita. Um tanto ou quanto mais desafiadores do que um punhado de contribuintes renitentes. Só os deuses
sabem porque é que um idiota qualquer lá no palácio imperial selecionou a vossa unidade e a despachou para a Britânia. Embora explique porque é que vos têm mantido
na retaguarda, com as reservas. Porém, estão aqui agora, e terão que se colocar em forma e prontos a combater como deve ser. E eu vou tratar disso.
" A primeira coisa que devem ficar a saber é que estou tudo menos feliz com o facto de terem aqui chegado com toda essa companhia de seguidores atrás. Noutras circunstâncias,
nem sequer lhes permitiria que permanecessem no interior do forte. Mas dada a nossa posição, isso equivaleria a deixá-los à mercê do inimigo. Portanto, tenho mesmo
que os aturar. Isso não quer dizer que não os sujeite à mesma disciplina que se aplica à guarnição. Quero que designes um líder entre os civis.
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Alguém capaz, e de preferência de confiança. Ficará responsável por garantir que eles cumprem as regras e os regulamentos do forte. Sabes de alguns candidatos adequados?
Fortuno e Apilo trocaram um olhar, antes de o último falar.
- Que tal o Venisto? A maior parte da gente segue o que ele diz.
Fortuno assentiu.
- Sim, é o melhor dos homens.
- Será então esse tal Venisto - anunciou Macro. - Podem ir dar-lhe as boas notícias e dizer-lhe para vir ter comigo imediatamente, para que eu lhe explique os deveres
de que se viu incumbido.
- Sim, senhor.
- Depois, quero uma barreira instalada a dividir o forte, para que os civis se mantenham na área que lhes foi atribuída. Ninguém poderá transitar entre as duas áreas,
a não ser que esteja de serviço ou tenha autorização expressa para tal.
- Senhor, alguns dos homens têm famílias...
- Não, de acordo com os regulamentos militares não têm. O exército não permite casamentos, ou famílias, aos homens alistados. Os teus homens talvez precisem de que
esse facto lhes seja recordado.
- Senhor, isso pode ser verdade, mas é uma tradição bem estabelecida.
- Não, aqui no meu forte não é - ripostou Macro em tom pouco amigável. - E se não gostarem disso, estejam à vontade para fazer o caminho de volta a Viroconium. -
Endireitou-se. - Bom, senhores, por agora é tudo. Estão dispensados. Diodoro, fica.
Fortuno e os outros apresentaram o cumprimento regulamentar e saíram do gabinete. Quando a porta se fechou atrás deles, Macro deu atenção a Diodoro.
- O que achas?
A expressão do legionário manteve-se impávida.
- Senhor?
- Já viste os oficiais e os homens da coorte ilírica. Impressões?
- Senhor, posso falar francamente?
- Por favor.
- São um bando de inúteis. Não marcham com passo certo, não cuidam do equipamento, não cuidam de si mesmos. Alguns têm idade suficiente para serem meus avôs, outros
são tão novos que podiam ser
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meus filhos. Que os deuses não o permitam, mas se tivermos que entrar em combate, a única ameaça que eles representam para o inimigo é o perigo de o fazer morrer
de riso perante o mísero espetáculo que o centurião Fortuno e os seus homens oferecerão. Para além disso, senhor, o que eu vejo é um magnífico grupo de homens, que
fariam o Imperador orgulhoso.
Macro sorriu.
- É o que eu penso, mais ou menos. São uns imprestáveis, sem sombra de dúvida. Mas agora, optio Diodoro, são um problema teu.
- Viu o breve faiscar de confusão nos olhos do soldado, antes que ele compreendesse o que acabara de ouvir. - Sim, é isso mesmo, acabo de te promover oficiosamente.
Conheces as rotinas de treino. A partir de amanhã, quero que comeces a aplicá-las aos ilíricos. Primeiro, trata de os colocar fisicamente em forma. Depois avança
para o treino com armas. Quero o Fortuno e os seus lambisgóias prontos para a ação assim que possível.
- Acha que corremos o risco de sermos atacados, senhor?
- É bastante provável, sim, Diodoro. Podes ter a certeza de que o inimigo já sabe da mudança de guarnição aqui no forte. Saberão perfeitamente que o efetivo foi
diminuído. Assim que o legado der início à campanha, ficarão também a saber que não haverá nenhuma coluna de auxílio a vir de Viroconium para nos ajudar em caso
de ataque. Depressa concluirão que têm uma excelente ocasião para tentar tomar este forte.
O optio anuiu.
- Estou a ver, senhor.
- Nesse caso, percebes porque é que temos que enrijecer estes ilíricos o mais depressa possível. Embora eu goste muito de treinar soldados, não o faço apenas porque
gosto de estar entretido. Se chegarmos a ter uma batalha nas mãos, temos que ter a certeza de que podemos contar com o Fortuno e os seus homens. E isso inclui também
os civis. Todos os homens que estejam em condições para isso devem juntar-se aos auxiliares. Esperemos que não venham a ser necessários. Mas se o inimigo resolver
mesmo tentar aproveitar a ocasião, enfrentará o maior número possível de espadas que consigamos colocar nas muralhas do forte.
- Sim, senhor.
- Farei tudo o que puder para te ajudar, mas até me conseguir ver livre desta muleta de merda, terás que ser tu a treinar aqueles cabrões.
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Acho que és o homem certo para este trabalho, Diodoro, mas o que achas tu?
O legionário empertigou-se, mostrando toda a sua estatura.
- Senhor, não o vou deixar ficar mal.
- Agrada-me ouvi-lo. Dispensado.
Trocaram uma continência, e o recém-nomeado optio girou sobre os calcanhares e marchou para fora do gabinete. Enquanto Macro ouvia os passos do homem a ecoar no
salão do edifício, sorriu. Aquele era o verdadeiro trabalho de um soldado. Treinar homens para a guerra e depois, se tal se tornasse necessário, colocar em prática
todo esse treino. E era para aquilo mesmo que ele tinha nascido.
Outros passos se aproximavam do gabinete, e um do punhado de escribas que Cato tinha deixado no forte bateu à porta e entrou. Trazia um monte de tábuas enceradas.
- O que é isso tudo? - interrogou Macro.
- O relatório sobre os danos no celeiro, senhor. Um dos pilares cedeu e os ratos conseguiram chegar ao cereal. Deram cabo de dez medidas de cevada. E também está
aqui a promoção do Diodoro, senhor. O resto são as contagens ao efetivo, e alguns registos referentes aos ilíricos. Calculei que os quisesse ver.
- Claro. Põe isso tudo aqui na mesa.
O homem despejou a sua carga e deixou Macro a contemplar a pilha de tábuas. Soltou um silvo de frustração. Lá se ia todo aquele entusiasmo sobre o verdadeiro trabalho
de um soldado. Se Cato ainda ali estivesse, seria ele a lidar com toda aquela burocracia.
- Sortudo de um cabrão - resmungou o centurião, azedo. Então, e pela primeira vez, reparou na pequena caixa com dados à beira da mesa, meio escondida por trás de
uma tábua, e sentiu as entranhas darem uma volta. O amigo tinha-se esquecido de levar os seus dados da sorte. Não conseguiu deixar de ver naquilo um mau presságio.
Um indício de coisas terríveis.
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6

- Prefeito Cato, saudações! - O legado Quintato sorriu calorosamente ao levantar os olhos da sua refeição vespertina. - Vem daí, senta-te aqui comigo, vou mandar
vir mais comida.
- Obrigado, senhor, mas não. Os meus homens fizeram uma marcha forçada para chegar aqui. Estão fatigados, e tenho que me assegurar de que lhes é atribuído um lugar
para montarem as tendas e que lhes é fornecida comida. Vim apenas anunciar-lhe a minha chegada.
- Queres tratar primeiro dos teus homens, é? Muito bem. Quem me dera que existissem mais oficiais como tu. - O legado mastigou rapidamente e engoliu. Depois assumiu
uma expressão mais formal. - Então, a que se ficou a dever a marcha forçada e esta chegada tardia?
- Fomos retardados porque os nossos substitutos se atrasaram, senhor. Não me pareceu prudente deixar o forte sem guarnição.
- E porque é que os ilíricos se atrasaram, pergunto-me?
Cato não se sentia muito confortável por se queixar de um colega oficial, mas tinha sido alvo de uma pergunta direta, e Fortuno nada tinha feito que justificasse
algum esforço de defesa da sua parte.
- Talvez tenha tido alguma coisa a ver com os seguidores civis que os acompanhavam.
Quintato arregalou as sobrancelhas, assombrado.
- Seguidores civis? Mas quem é que pode ter autorizado isso? Ah; espera lá! Deixa-me adivinhar. Só pode ter sido aquele verme corrupto; o prefeito da Oitava. Deve
ter recebido do centurião uma boa maquia por baixo da mesa, por conta das famílias e dos comerciantes que fornecem os seus homens. - Soltou uma breve gargalhada.
- Aquele Plácido é um tipo ambicioso. Tem a medida certa de ganância e a venalidade necessária para ir longe neste mundo. Talvez o deva manter debaixo de olho.
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- Essa poderá ser uma boa ideia, senhor, dado que é suposto contribuir para o avanço dos propósitos militares de Roma, em vez de forrar o próprio bolso.
Quintato deitou um olhar quase exasperado a Cato.
- Nem todos somos dotados de um tão elevado sentido moral como o que evidentemente julgas possuir em grande abundância.
Cato empertigou-se.
- O meu desejo é meramente o de servir Roma na justa medida das minhas capacidades, senhor. E espero que os outros ajam da mesma forma.
- A sério? E porquê, pergunto-me? Acho difícil de engolir que alguém com a tua indiscutível inteligência e experiência possa insistir na aplicação desse tão ingénuo
sentido de dever a todos os que estão em degraus mais altos da escala social, e não apenas à soldadesca vulgar. A glória de Roma é uma ideia que os aristocratas
venderam à plebe desde os primeiros dias da República, de forma a justificar o seu próprio engrandecimento.
Cato experimentou um instante de fúria gelada perante o cinismo do outro homem.
- Imagino que tenha razão em muitos casos, senhor. Mas até no Senado existem homens de honra.
- São tolos, e tu és também um tolo por acreditares neles. - Todos os traços de bom humor tinham desaparecido do rosto do legado. - Esperava algo melhor vindo de
ti, Cato. Depois de tudo o que fizeste ao serviço do Narciso, pensei que já tinhas adotado uma posição mais a meu gosto.
- Não lamento tê-lo desapontado, senhor.
Deu-se uma breve pausa, enquanto os dois homens se encaravam, enquanto os sons abafados da atividade do campo militar prosseguiam, indiferentes ao confronto. Por
fim, Quintato empurrou o prato para longe, o apetite claramente arruinado.
- Tem cuidado com o que dizes, e a quem o dizes, Cato.
- Senhor, não o temo. Nem ao Pallas.
- Mas devias. Sobretudo ao Pallas. Tem um coração mais negro do que Hades, e mais astúcia do que toda uma fossa repleta de víboras. Não passo de uma sombra de tal
homem, e no entanto represento para ti uma ameaça mais do que suficiente.
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- Estou ciente dessa realidade, senhor - ripostou Cato com azedume, ao recordar o perigoso posto em que Quintato o tinha colocado, ao lado de Macro, assim que tinham
chegado à Britânia, no início daquele ano.
- Devo portanto concluir que decidiste não me oferecer os teus serviços?
Cato sentia uma serenidade absoluta na mente. Tinha ensaiado aquele momento muitas vezes durante a marcha desde o forte. Respirou fundo antes de pronunciar a resposta.
- Senhor, respeito a sua oferta, bem como a visão que me mostrou das realidades da política em Roma.
- Mas...?
- Mas não partilho das suas ambições nem dos seus valores. Como poderia tal ser? Não nasci no seio da classe senatorial. Consegui ascender à classe equestre, mas
não tenho qualquer expectativa de algum dia me tornar membro do Senado. Tal facto inibe qualquer ambição que possa albergar. Porém, não sou parvo, e sei perfeitamente
que seria mais vantajoso servi-lo do que tornar-me seu inimigo. Mais que não fosse, para bem dos meus amigos e da minha família. Quero apenas que saiba que é com
um coração pesado que escolho servi-lo.
- Estou a ver. - O legado Quintato deixou transparecer um fino sorriso. - E agora que já tiveste o teu momento no pedestal e me deixaste clara a fraca opinião que
tens de mim e dos meus pares, calculo que acredites que isso, de certa forma, deixa a tua honra intacta?
- Pelo contrário, senhor. Acredito que isso faz de mim nada mais do que um hipócrita.
- Hipócrita? - Quintato abanou a cabeça com tristeza. - Não fiques assim tão abalado com isto, Cato. O termo perde toda a carga pejorativa quando não possuis qualquer
possibilidade de escolha na matéria. Acredita, sei-o bem. Mas se preferires ser duro contigo mesmo, tu é que sabes. Desde que me sirvas realmente, podes esfregar
o teu próprio nariz na nauseabunda realidade as vezes que quiseres. - Os lábios de Quintato desenharam um sorriso sardónico. - Tu e aquele pastelão do Macro.
- O centurião Macro pode ser muitas coisas, senhor, mas pastelão é que ele não é.
- Pouco me importa o que ele é, desde que esteja do meu lado. Caso contrário, é um inimigo.
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Cato sentiu um nó no estômago.
- Senhor, o Macro é um excelente soldado, mas não tem qualquer ideia política. Será bem melhor deixá-lo entregue aos seus deveres militares, e contentar-se com os
meus serviços apenas.
Os olhos do legado franziram-se, mostrando que ele percebera a situação.
- Contaste-lhe da minha oferta?
- Sim, senhor.
- E ele rejeitou a possibilidade de se pôr ao meu serviço?
- Em poucas palavras, senhor, sim. E tem toda a razão, senhor. O Macro não tem qualquer apetência para este género de trabalho. O melhor é deixá-lo de fora destas
histórias.
- Essa é uma decisão que me cabe a mim. O centurião é de facto um homem valoroso, ao seu modo. Como diz o povo, é melhor tê-lo dentro do forte a mijar lá para fora,
do que lá fora a mijar-nos em cima.
- O Macro não tem qualquer importância para si, senhor. Servi-lo-á melhor se lhe for permitido fazer apenas aquilo de que gosta: combater o inimigo.
- Embora admire os esforços que envidas para proteger o teu amigo, ambos estamos conscientes de que o Macro é possuidor de algum conhecimento sobre as realidades
do palácio imperial, que o Pallas não pode permitir que sejam conhecidas pelo vulgo. Sabes do que estou a falar?
Cato sabia perfeitamente aquilo a que se referia o seu superior. Dois anos atrás, enquanto ele e Macro conduziam uma operação secreta no seio da guarda pretoriana,
Macro tinha surpreendido Pallas e a esposa do Imperador numa posição comprometedora. Dada a ausência de qualquer misericórdia para com a anterior esposa do Imperador
e os seus amantes, Pallas não poderia ficar descansado até que Macro fosse efetivamente controlado ou eliminado. Embora sem qualquer intenção, o centurião tinha-se
tornado uma ameaça ao liberto imperial, facto que não poderia ser tolerado por Pallas ou qualquer outro da sua laia, e Cato sentiu verdadeiro receio pelo amigo.
- Senhor, o Macro não é um fala-barato.
- Exceto quando está com um grão na asa, ao que sei.
- Mesmo nessas circunstâncias, sabe perfeitamente que há coisas que tem de guardar para si mesmo. Podem-se permitir deixá-lo em paz.
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Dou a minha palavra quanto a isso. E tratarei de garantir que ele nunca revelará o que sabe.
- A tua palavra? Que gesto tão nobre. - Quintato fungou. - Mas, uma vez que tu não és realmente um nobre, tal promessa não tem valor. Lamento, prefeito, mas terás
que persuadir o Macro a juntar-se a ti ao meu serviço, ou nada poderei fazer para o proteger. Pode mesmo vir a suceder que me seja ordenado que o cale para sempre.
Cato sentiu uma fúria gelada a correr-lhe pelas veias.
- Se alguma coisa acontecer ao Macro, juro por todos os deuses que o vingarei.
- Não, Cato, não o farás. A não ser que não dês qualquer valor às vidas da tua esposa e do teu filho. Lúcio, creio eu que é o nome que lhe foi dado, de acordo com
os teus desejos.
- O meu filho?
Quintato limpou as mãos num pano e sorriu sem qualquer calor genuíno.
- Suponho que devia oferecer-te os meus parabéns.
- Um filho? - Cato estava assombrado. - Como pode sabê-lo?
- Recebo regularmente informações do Pallas. Conta-me tudo o que possa ser-me útil para usar nas conversas que tenho com soldados e aspirantes a políticos aqui na
Britânia. Portanto, as tuas boas notícias são as minhas boas notícias, desde que te deem uma nova razão para me obedecer. Seja como for, deves estar realmente orgulhoso.
Cato sentia-se apanhado de surpresa e desnorteado. No coração surgira-lhe um raio de alegria, e um lampejo de amor por Júlia, logo seguidos pelo ardente desejo de
poder estar com ela e com o seu filhote. Mas o momento fora estragado pela fria realidade que Quintato tinha feito questão de sublinhar. O seu filho era apenas um
novo refém nos jogos secretos que o legado e os da sua laia jogavam. Mais uma forma de obrigar Cato a fazer aquilo que desejavam. Tentou manter o controlo das emoções
que ameaçavam tomar conta de si ao dirigir-se ao seu superior.
- Quando se deu o acontecimento, senhor?
Quintato pensou por breves momentos.
- Há quase três meses. A tua mulher deu ao miúdo o nome de Lúcio, em honra, sem dúvida, do teu grande amigo Macro, uma vez que é esse também o seu nome próprio.
Cato refletiu naquele dado, e anuiu. A Júlia sabia bem quão grande
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era a amizade entre os dois, e que aquele gesto agradaria tanto ao esposo como ao seu camarada de armas.
- Um bom nome. Ela escolheu bem... E que mais notícias da minha família tem para mim, senhor? - indagou, tentando não dar a impressão de estar a suplicar mais novidades.
Quintato gozava o momento, saboreando o poder de fornecer ou ocultar novidades que eram como alimento dado a um homem esfomeado. Fez uma pausa suficientemente longa
para levar Cato a engolir em seco e dar meio passo em frente, pronto a pedir ou suplicar que ele dissesse mais qualquer coisa.
- Mãe e filho estão bem. O Pallas tem a tua casa sob constante vigilância, pelo que ficarás satisfeito por saber que a tua esposa não tomou qualquer amante na tua
ausência. Ao contrário do que fazem muitas esposas de oficiais superiores aqui na Britânia, incluindo a minha. Quanto a isso, haverá um ajuste de contas quando por
fim for chamado de volta a Roma. Mas no teu caso, prefeito Cato, asseguro-te de que a virtude da tua esposa se mantém intacta. É verdade que a Júlia teria tido dificuldades
em agir de outra forma no estado em que estava, e mais ainda agora que tem um filho de quem cuidar. És um sortudo.
Se aquilo era suposto dar-lhe algum conforto, do que Cato duvidava, as últimas palavras pouco peso tiveram. Tinha plena certeza do afeto de Júlia, e confiava nela
em absoluto na sua ausência. Ainda assim, permitiu que a sua imaginação pegasse na ideia, e isso deu-lhe um momento de dúvida que foi extremamente desconfortável.
No fim de contas, as suas origens eram das mais humildes, e a família Semprónio tinha uma longa e até certo ponto distinta tradição. Os aristocratas eram notoriamente
desatentos, e apesar de nem Júlia nem o seu pai alguma vez o terem feito sentir inferior em termos sociais, havia no seu espírito uma dúvida que permanecia quanto
ao que pensavam realmente dele; uma agulha que não deixava de o espicaçar, como sucedia a todos os que conseguiam subir acima do degrau em que tinham nascido na
rígida escala social de Roma.
- Ficarás também satisfeito por saber que a tua esposa não recebeu nenhum visitante que conste da lista negra do Pallas. Ela sabe bem como se manter afastada de
todos aqueles cuja influência acarreta alguns perigos. Ainda existem alguns que gostariam de ver Roma regressar aos dias da República, enquanto outros conspiram
para favorecer os interesses do candidato que preferem ver a suceder ao Cláudio. Já não durará muito,
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se a imperatriz puder fazer alguma coisa quanto a isso. Não há grande coisa sobre a arte dos venenos que ela não conheça. Acho mesmo que ela podia fazer pela preparação
de venenos o mesmo que Apício fez pela cozinha. - Quintato interrompeu-se para se rir da própria piada, antes de se aperceber da expressão imperturbável de Cato.
- Em resumo, a Júlia não tem dado ao Pallas absolutamente nenhuma causa de preocupação, e portanto não há qualquer razão para te afligires com a sua segurança, desde
que tu faças a tua parte, quando tal te for pedido.
Deixou a ideia assentar na mente de Cato, antes de prosseguir.
- O pai dela, porém, é outra história. O senador Semprónio tem sido visto ao lado de muitos dos líderes da fação que apoia o Britânico, e portanto o Narciso, na
questão da sucessão. Ainda não está claro se colabora ativamente com eles ou não. Mas isso não será o suficiente para o proteger quando o Nero se tornar imperador.
O que sucederá inevitavelmente. Enfim, quase de certeza. Quando chegar esse momento, o Pallas vai limpar a casa, para ter a certeza de que o reinado do Nero se inicia
com o menor grau de oposição possível. Portanto, o Semprónio é bem capaz de figurar na lista dos proscritos, a menos que o Pallas encontre uma boa razão para o poupar
a tal destino.
- E essa boa razão seria a minha disponibilidade para o servir?
- Sim - retorquiu Quintato, sem rodeios. - Desde que não haja provas claras de que o Semprónio está de facto envolvido a fundo com a outra fação. Nesse caso, nem
os teus melhores esforços o poderão salvar.
- Estou a ver. - Cato sentia-se impotente. - Deixam-me portanto sem outra alternativa que não seja servir-vos.
- Precisamente. Fico feliz por veres a razão. Mas foi por isso que te fiz a oferta, e tenho a certeza de que o Pallas aprova a minha decisão. Seria uma pena desperdiçar
tamanho potencial, sobretudo quando ele pode ser posto ao nosso serviço.
- Posto ao serviço. Como uma mula.
- Cato, não te deixes levar pelo azedume. A longo prazo, isto pode vir a revelar-se muito benéfico para ti. Haverá recompensas para todos os que servirem o novo
Imperador e a sua fação. Porque não haverias tu de colher a tua parte dos despojos? A tua esposa pode manter um rico estilo de vida, o teu filho crescer com todo
o conforto e segurança. E tu mesmo também beneficiarás desta aliança. Há inúmeros postos militares e civis que podes assumir.
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- E qual é o preço de todas essas recompensas? Afinal, o que é que querem exatamente que eu faça?
Quintato encolheu os ombros.
- Para já, nada. Mas poderás vir a receber um pedido para realizar um dado serviço. Tudo o que importa é que te mostres disposto a fazê-lo, sem questionares os motivos,
se chegar esse momento.
-Se?
- Seja: quando chegar esse momento... Como não deixará de suceder, no novo regime. Mas por agora, é suficiente para mim, e também para o Pallas, saber que estás
do nosso lado. Não há qualquer necessidade de romperes abertamente com o Narciso. Aliás, se ele pensar que ainda estás ao seu serviço, melhor ainda. Talvez te forneça
alguma informação que nos possa ser útil.
- Nunca estive ao serviço do Narciso. Ou, pelo menos, nunca estabeleci com ele nenhum acordo semelhante àquele que agora me estão a forçar a assumir.
- Meu caro prefeito, mas tu és impagável! Como se fizesse alguma diferença. Trabalhaste para o Narciso, querendo ou não, e agora passas a trabalhar para o Pallas.
Achas mesmo que tens alguma escolha na matéria? A única escolha que se te oferece é entre aceitar este facto e ficar a aguardar pelo dia em que alguém te vai espetar
uma faca nas costas, ou, se sobreviveres à carreira militar, em que abrirás a porta da tua bela casa romana a um pelotão de guardas pretorianos. E nessa altura a
tua única escolha será entre morreres pelas tuas próprias mãos ou deixares que sejam eles a fazerem o trabalho, antes de liquidarem a tua família.
Cato rangeu os dentes.
- Há ocasiões em que bem desejava ter permanecido centurião, ou mesmo optio, e cumprir todo o resto da minha carreira nessa patente - respondeu, em tom neutro.
- Os desejos são baratos, dez por sestércio. De qualquer maneira, foste bem merecedor da tua promoção. Aquilo com que não contavas era com a execrável verdade: quanto
mais sobes, mais ficas amarrado à vontade daqueles que estão acima de ti. Uma verdade triste, mas absolutamente vital.
Cato permaneceu imóvel, sentindo-se incapaz de resposta ou movimento, como se estivesse envolto em cordas apertadas, ou lhe tivessem
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cortado a língua. Não havia como escapar à força inexorável da lógica do legado. Absolutamente nenhuma alternativa.
- Olha, Cato, tens que aceitar a situação. Por agora, tudo aquilo com que tens de te preocupar é com a condição dos teus homens na campanha próxima. Não tenho qualquer
dúvida de que ainda vais ilustrar mais a tua já excelente reputação, e isso só poderá ajudar as tuas perspetivas futuras. Concentra-te nisso, sim?
Cato engoliu em seco.
- Evidentemente, senhor - respondeu, calmamente. - Nem é preciso dizê-lo. Sou, e serei sempre, um soldado.
- Ótimo. Nesse caso, serás capaz de apreciar o papel que te reservei. A tua coluna não ficará encarregue de escoltar o comboio das bagagens, como sucedeu da última
vez. É tempo de pôr os teus talentos a melhor uso. Resolvi colocar-te na outra ponta da linha de marcha. As tuas duas coortes formarão a vanguarda do exército. Serás
a ponta da minha lança quando avançarmos para o coração destas montanhas e nos lançarmos sobre esses desgraçados dos deceanglos. Será tua a honra de desferir o primeiro
golpe, por Roma.
- Porquê eu, senhor?
Quintato agitou um dedo à sua frente.
- Não, não é por te querer pôr em perigo, se é nisso que estás a pensar. Não, tem mais a ver com a reputação que os Corvos Sangrentos conseguiram construir desde
que começaram a atuar por estas bandas. A visão daquele estandarte chega para instilar o medo no inimigo. Quando virem aquele corvo vermelho a esvoaçar na brisa,
ficarão a saber que Roma não tenciona oferecer-lhes qualquer piedade. Quero que ajas de acordo com essa reputação, prefeito Cato. Tu e os teus homens vão criar um
rasto de sangue e destruição, de tal forma que, quando esta campanha terminar, não haverá em toda esta ilha uma única tribo com vontade de voltar a desafiar-nos.
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- Vanguarda? - lamentou-se o decurião Miro, com um suspiro.
- Porquê nós? Não tivemos já ação que chegue, nos últimos meses?
O centurião Crispo franziu o cenho.
- Alistaste-te no exército, fazes o que te mandam, e mais nada. Não há porquês, só ordens.
Miro abriu a boca para ripostar, pensou melhor e acabou por deixar os ombros descair, desanimado, enquanto enchia as bochechas de ar. Ao observá-lo, Cato não deixava
de compreender a reação do decurião. No ano anterior, as duas coortes tinham sido enviadas para um posto avançado, bem no coração das montanhas, e a unidade estivera
em permanente ação praticamente desde essa altura. O inimigo só tinha reduzido os seus ataques nos meses mais recentes, para fazer as colheitas e armazenar os cereais
em preparação para o inverno. Naquela altura, essas tarefas já estavam concluídas, e tinham com toda a certeza vontade e intenção de reatar a sua guerra contra Roma
sem perder mais tempo. Cato acabara por perceber que Miro era o tipo de homem que só antevia os perigos e as dificuldades de qualquer tarefa de que se visse encarregado.
Uma vez em ação, porém, o treino que recebera e os seus instintos vinham ao de cima e prestavam-lhe bons serviços. Era sem dúvida essa a razão por que fora promovido
a decurião, mas também explicava o facto de não ter voltado a ser merecedor de promoção. Era demasiado claro acerca das suas ansiedades, e esse tipo de sentimento
facilmente se propagava àqueles que comandava, afetando-lhes a confiança e o moral.
O silêncio impôs-se na tenda de Cato, enquanto os subordinados consideravam todas as implicações da posição que lhes fora atribuída na ordem de marcha do exército.
Cato, quanto a si, sentia-se aliviado por não ter que se arrastar na cauda da coluna, no lamaçal que as unidades
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precedentes não deixariam de provocar. Além disso, não teria que se haver com a constante necessidade de insistir e convencer os condutores dos vagões com todo o
material a manterem-se juntos. Claro que haveria outras dificuldades a enfrentar. Os que seguiam na cabeça da coluna tinham que se manter concentrados a todo o momento,
de forma a evitarem emboscadas. Além disso, caber-lhes-ia explorar o terreno e definir qual o melhor caminho para o avanço do resto do exército, seguindo os conselhos
dos comerciantes que Quintato tinha interrogado para identificar a melhor rota para atravessar as montanhas e seguir na direção da ilha de Mona. Era ainda dever
da vanguarda localizar o terreno mais indicado para a construção do campo de marcha para aquartelar as coortes ao fim de cada dia de caminho. O trabalho seria portanto
exigente, mas também muito mais interessante do que a exasperação de escoltar o comboio das bagagens.
Cato limpou a garganta. Sentia-se fatigado. A hora era já tardia, e os homens tinham acabado de tomar a principal refeição do dia, antes de se retirarem para as
suas tendas para passarem a noite. O esquadrão montado de Miro tinha os cavalos presos e tratados ali perto, e o cheiro acre do suor e dos dejetos dos animais chegava
facilmente à tenda. O exército ia iniciar a marcha pela alvorada, e era importante que Crispo e Miro percebessem perfeitamente o papel que os seus homens teriam
a desempenhar nos dias que se aproximavam.
- Para lá de sermos os olhos e ouvidos do exército, o Quintato quer que sejamos também a ponta da sua lança - lembrou Cato. - Sempre que encontrarmos o inimigo,
seja onde e quando for, temos que avançar sem piedade. Ele quer que deixemos uma faixa de total devastação nas terras dos deceanglos, daqui até à ilha de Mona.
- Mas isso é o covil dos druidas - interrompeu Miro.
Cato refreou a irritação que sentia, e assentiu.
- Estou perfeitamente ciente desse facto, decurião. Essa é uma das principais razões que levaram o legado a lançar esta nova campanha. Se conseguirmos quebrar o
espírito desta gente das tribos e esmagarmos o culto druídico, quem mais se poderá erguer para os unir contra nós, no futuro? Sabem bem como são os celtas. O momento
mais feliz das suas vidas é quando andam à pancada uns com os outros. Sempre foi essa a sua maior fraqueza. Mas se lhes apresentarem uma figura que os consiga unir
e liderar, lutarão como fúrias. Agora que o Carátaco foi removido
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deste quadro, os druidas são a única força capaz de unir as tribos contra nós. Sem eles, facilmente conteremos o inimigo e teremos por fim a oportunidade de impor
a paz e a ordem na nova província. Sabem os deuses o tempo que já levamos a tentá-lo. Uma vez alcançado esse objetivo, haverá dispensas para os veteranos, e alguns
de nós poderão ir a casa de licença.
Crispo matutou no que ouvira.
- Quase dez anos que levo sem ver a minha família lá em Lutécia. Tenho lá uma esposa, e duas filhas. Duvido que alguma delas ainda seja capaz de me reconhecer ao
fim destes anos todos.
Cato sentiu um suor frio perante tal perspetiva. Estar tanto tempo longe de casa. Não poder ver o seu filho a crescer de menino a rapaz. Nunca ter oportunidade de
se dar a conhecer a Lúcio, ser esquecido por Júlia. Isso seria o pior. Tal ideia deu-lhe ainda maior determinação para desempenhar com aplicação qualquer papel que
lhe coubesse na conclusão do conflito na Britânia. Cada inimigo que abatesse contribuiria para o colocar um passo mais próximo de casa, e do abraço da sua mulher
e do seu filho.
- Mas os druidas... - prosseguiu Miro. - Sabem como eles são. Demónios em forma humana. E com poderes mágicos. Já ouvi histórias de como eles conseguem invocar os
poderes dos seus deuses e lançar tempestades e monstros contra nós. E agora o Quintato quer levar-nos até ao seu mais sagrado antro, onde serão ainda mais poderosos.
Um erro, digo eu.
- Poderes mágicos? Uma porra. - Crispo fungou com evidente desprezo. - Pelo que tenho visto, não lhes têm servido de muito. Ou os seus deuses andam a dormir em serviço,
ou não passam de um bando de paneleirotes sem tomates que não servem sequer para beijar os pés a Júpiter e a Marte.
Miro não se mostrou convencido.
- Pois eu já vi do que são capazes. E também vi bem o efeito que têm naqueles que os seguem. Transformam-nos em bestas insaciáveis.
Cato decidiu que já tinha ouvido que chegasse.
- Não passam de homens como nós. Podem ser mortos com a mesma facilidade com que matam. Eu mesmo já o fiz. Posso garantir-vos que não são mais perigosos do que outros
bárbaros quaisquer. Portanto, decurião, não quero ouvir mais conversa desse género. Entendido?
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Miro deu um estalo com a língua antes de anuir.
- Se assim o quer, senhor. Espero que tenha razão.
Cato ignorou o último remoque, e virou a sua atenção para preocupações mais prementes.
- Uma vez que vamos seguir à cabeça da marcha, não haverá lugar para bagagens na nossa coluna. Os nossos vagões seguirão com o comboio principal. E não quero os
nossos homens carregados com os seus bordões. Consegui que o tribuno que trata dos abastecimentos reservasse algumas carroças para os nossos equipamentos. Portanto,
marcharemos sempre prontos para a ação. Os homens gostarão de saber disso.
- Sorriu, e Crispo respondeu da mesma forma. As cangas com os pertences de cada um eram o anátema de todos os soldados de infantaria em campanha. Sobrecarregados
com equipamentos e rações, pesavam à volta de metade do homem que os transportava, e em consequência desse facto eram unanimemente considerados uma verdadeira maldição.
- Portanto, armadura, dardo e escudo para os legionários - prosseguiu Cato. - O mesmo para os meus homens de infantaria. A cavalaria deixará também as sacas de ração
nos vagões, Miro. Bem como o equipamento suplementar. Temos que ser leves, rápidos, ágeis, e não podemos andar esgotados; em cada ocasião que se nos oferecer, temos
que combater com vigor, ou montar uma perseguição cerrada. E vamos querer fazer prisioneiros, sempre que tivermos ocasião para isso. Tenho que dar informações fiáveis
ao comando sobre o terreno que espera o grosso do exército, e sobre os homens que vamos enfrentar. Dado que o legado quer avançar até Mona, teremos que tentar perceber
aquilo que enfrentamos a cada passo que dermos.
Cato notou que Miro quase se arrepiava ao escutar o nome do antro dos druidas, e sentiu-se preocupado por ter um homem daquela têmpera a segui-lo em combate. Quanto
não teria preferido ter ali Macro. Alguém a quem poderia confiar a própria vida. Para ser justo, Miro ainda não o tinha deixado mal, mas também nunca revelara tanto
receio do inimigo que ia enfrentar, e Cato não pôde deixar de se interrogar se aquele sentimento estaria espalhado pela sua coluna e até por todo o exército.
- Mais uma coisa. Teremos connosco um oficial do quartel-general. O tribuno Livónio. Será ele quem vai traçar o mapa da rota que seguirmos, todos os dias.
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Crispo franziu o sobrolho por breves momentos, antes de assentir.
- Livónio. É um tribuno subalterno da Vigésima, não é?
- Esse mesmo. Sabes alguma coisa acerca dele?
- Se se trata do mesmo Livónio, ouvi dizer que é um tipo que dá jeito ter ao nosso lado numa alhada. Conduziu um grupo para recolher lenha nas colinas no mês passado,
e eles foram atacados por um bando de guerreiros siluros. Podia ter acabado mal, mas o tribuno conseguiu manter os rapazes unidos, e foi assim que abriram caminho
e conseguiram recolher ao posto mais próximo sem perderem muitos homens. Dá-me ideia de que tem presença de espírito. Embora não perceba por que raio lhe deram esse
trabalho de cartógrafo. Homens dessa têmpera deviam era comandar coortes na frente de batalha.
- Um mapa preciso pode vir a revelar-se um bem muito valioso, sobretudo nas montanhas - contrariou Cato. - Ainda assim, se for tão prestável como dizes, é uma adição
bem-vinda à coluna. Desde que não nos atrase. Muito bem, senhores. Gostaria de vos oferecer a oportunidade de perder algum dinheiro aos dados, mas temos que partir
cedo e um longo dia à nossa frente. Portanto, se não há mais nada a debater...
- Olhou para Crispo e Miro, mas nenhum deles mostrou sinal de ter questões a apresentar. - Nesse caso, desejo-vos uma boa noite.
Levantaram-se dos bancos e trocaram continências antes de deixarem a tenda. Assim que a aba da tenda se voltou a encerrar nas costas dos dois homens, Cato deixou
escapar um longo suspiro e espreguiçou-se, abrindo os braços até ouvir os ombros a estalar. Quase tudo tinha sido preparado ainda no forte, e os seus homens estavam
prontos para iniciar a marcha pela alvorada. Tinha algumas reticências quanto a Miro, mas já era demasiado tarde para fazer alterações. Enviá-lo para trás, para
se juntar a Macro, deixaria à vista de todos que tinha perdido a confiança no decurião. E esse era o género de golpe na autoestima de um homem que era muito difícil
de ultrapassar. Era bem melhor dar-lhe ocasião de mostrar o seu valor e recuperar a confiança que lhe viesse a permitir olvidar o seu nervosismo inato e a constante
cedência à cautela. Afinal de contas, recordou-se Cato, ele também tinha tido que enfrentar os seus próprios medos no início da sua carreira. Lembrava-se perfeitamente
do temor frio e pesado que lhe tolhia o corpo durante o seu primeiro combate, contra uns guerreiros germânicos na fronteira do Reno. Mesmo no presente, continuava
a sentir o mesmo momento de medo antes de
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um confronto, embora estivesse consciente da necessidade de nunca o revelar perante os homens que o seguiam. Mesmo que isso significasse assumir mais riscos do que
muitos com a sua patente se sentiam inclinados a fazer. Tinha que ser visto como um homem corajoso e confiante, fosse o que fosse que lhe ocupasse o espírito por
baixo dessa carapaça.
As abas da tenda voltaram a abrir-se, e Traxis entrou.
- Senhor, precisa de mais alguma coisa?
- O quê?
- Antes de eu me retirar? Precisa de alguma coisa?
Cato pensou na derradeira tarefa que ainda tinha de cumprir e que tinha andado a adiar, e assentiu.
- Um pouco de vinho morno, e já agora dá uma escovadela à minha capa. Quero-a livre da lama seca quando amanhã iniciarmos a marcha à frente da coluna.
Traxis soltou um silvo baixo, mas ainda assim Cato escutou-o.
- Algum problema?
- Senhor, é só uma coisinha de nada de lama. E vai ficar no mesmo estado em que está neste momento assim que tivermos percorrido para aí um quilómetro e meio.
- Olha, não te estou a pedir que limpes cada fibra, que a passes por urina e depois a enxagúes com água de nascente antes de a secar ao sol e a apresentares impecável.
Limita-te a escovar a porcaria da lama seca, e pendura-a ao pé da armadura.
- Como queira, senhor. - Traxis cruzou o espaço para pegar na capa, que tinha sido atirada para cima de um banco. Pegou nas dobras de lã vermelha e virou-se para
sair, enquanto resmungava baixinho sobre a inutilidade da tarefa que lhe fora atribuída.
Depois de ele sair, Cato abriu a arca onde guardava os seus documentos e remexeu no interior até encontrar uma folha de velo em branco, um pote de tinta e um aparo.
Desdobrou a folha sobre a mesa, destapou a tinta e molhou a ponta do aparo, tomando o cuidado de fazer sair o excesso de tinta antes de apoiar a ponta sobre a pele.
Começou a escrever numa letra cuidada. "À minha amada espoja Júlia, a mãe do meu querido filho Lúcio, saudações." Soltou uma imprecação e riscou "espoja" com vários
traços rápidos, antes de escrever "esposa" por cima. Estava cansado e precisava de se concentrar. Era uma carta demasiado importante para ser composta de forma descuidada.
Respirou lenta e profundamente, e
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só então recomeçou a escrever. Contou-lhe que tinha sabido das novidades sobre o nascimento do filho através de outro oficial; não tinha qualquer dúvida de que Júlia
lhe tivesse enviado uma carta com o relato desse evento, mas ainda não lhe tinha chegado às mãos. E uma vez que o exército se preparava para avançar, estava a aproveitar
a ocasião de lhe escrever para lhe expressar o prazer que sentia perante a notícia de que já era pai, bem como o seu orgulho e o amor que sentia pela esposa que
lhe dera um filho.
Aquela parte da carta foi fácil de escrever, e uma verdadeira alegria. O que vinha a seguir exigia muito mais ponderação, já que as suas cartas a Júlia seriam certamente
escrutinadas por um agente de Pallas ou de Narciso, ou de ambos, antes de serem entregues à destinatária. Voltou a molhar a ponta do aparo e prosseguiu, escrevendo
que esperava que ela estivesse bem e que tivesse o cuidado de não receber muitos visitantes em casa, para evitar qualquer efeito adverso na sua saúde. Que confiava
no pai dela, o bom senador, para tratar dos seus assuntos enquanto ela se concentrava no bem-estar e na educação do Lúcio. Fez uma pausa e releu o que tinha escrito,
tentando imaginar Júlia a fazer o mesmo e a compreender o aviso subentendido que estava a tentar fâzer-lhe chegar. Sem saber quem intercetaria a carta e a leria,
era imperativo que não pusesse nome às coisas, ou que deixasse transparecer a quem fora forçado a jurar lealdade, mas era também fundamental que Júlia ficasse consciente
de que estava a ser vigiada. Ela era suficientemente esperta para o adivinhar, e sabia também das confusões em que o marido estivera envolvido por ordens de Narciso.
O que não podia saber era que um agente de Pallas o tinha forçado a acolher as suas propostas, graças às pouco veladas ameaças à sua família. Como fazê-la saber
disso sem o dizer abertamente estava a forçar a sua mente cansada a um esforço enorme, e por fim acabou por pousar o aparo e recostar-se na cadeira.
- Foda-se...
Pouco depois, Traxis regressou com uma taça fumegante, que pousou na mesa.
- Tive que arrancar isso ao escravo do centurião Crispo. Agora fiquei a dever-lhe um favor. Se me tivesse dado algum dinheiro antes, podia ter comprado vinho a um
dos comerciantes na aldeia. Mas...
- Obrigado. É tudo. Vai dormir um bocado.
- Dormir? Ainda tenho que tratar da capa.
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- Isso ainda não está despachado?
Traxis olhou para ele, furioso.
- Estará despachado assim que puder ser feito, senhor.
- Nesse caso, não me deixes prender-te mais.
Traxis resmungou qualquer coisa em trácio enquanto saía, e Cato voltou a dar atenção à carta, coçando o queixo, irritado.
Debateu-se com a missiva à luz pálida da lamparina, até que o azeite começou a esgotar-se e a chama diminuiu. Concluiu com uma breve reafirmação do amor que sentia,
assinou o nome e releu a carta. Não era propriamente adequada aos propósitos que tinha em mente
- afirmar as saudades que tinha dela e avisá-la para se manter afastada do turbilhão político da capital. Ainda assim, dobrou cuidadosamente o velo e pegou na cera
para selar a missiva. Derreteu alguma, fê-la pingar sobre a dobra e pressionou o seu anel equestre sobre a cera que solidificava rapidamente, deixando a impressão
de um soldado montado que lançava um raio. A própria Júlia tinha-o ajudado a escolher aquele símbolo quando por fim fora confirmado na sua nova patente pelo Imperador,
e por consequência elevado à classe de cavalaria na sociedade romana. Acariciou o selo e deixou a carta sobre a mesa, para que Traxis a levasse ao quartel-general
pela manhã, com instruções para que o pessoal que ficava ali em Viroconium tratasse de a enviar para Roma na primeira oportunidade. Sabia que isso podia levar até
uns quatro meses naquela altura do ano, pelo que ofereceu uma rápida prece a Minerva, para que Júlia tivesse o bom senso de se manter fora das intrigas políticas
durante o tempo que ia decorrer até à chegada da carta.
Deitou-se na cama de campanha, uma dura armação de madeira, e estremeceu com o frio ar noturno. Puxou o cobertor e a pele de ovelha que Traxis lhe pusera ao alcance
e deixou-se estar de costas, a contemplar o teto escuro da tenda feita de pele de cabra, enquanto escutava um aguaceiro a precipitar-se sobre a fortaleza romana.
O último pensamento que lhe ocorreu antes de se deixar dormir foi o do rosto do seu criado quando visse a lama que se ia colar à capa devido à chuva noturna.
Estava acordado um momento antes de Traxis entrar na tenda, como se possuísse um sentido inato de qual era o momento apropriado para recuperar a consciência. Lá
fora ainda estava escuro, e a chuva
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continuava a cair, tornando o ar gelado e húmido, uma impressão que recebeu de forma clara quando bocejou.
- A sua capa - anunciou Traxis, enquanto colocava a peça de lã dobrada sobre a mesa. - Limpa, embora valesse mais tê-la arrastado pela lama, dado o tempo que hoje
impera. Deseja alguma comida, senhor?
- Não há tempo. Depois de partirmos, podes trazer-me qualquer coisa. - Cato levantou-se de túnica e espetou os braços no ar, de forma a que Traxis pudesse apertar
o enchimento dos ombros antes de o ajudar a envergar a parte de cima da armadura de placas. O criado apertou cuidadosamente as tiras que corriam pelo lado do braço
do escudo e Cato manteve-se imóvel enquanto o outro lhe passava o cinturão da espada sobre a cabeça e lho ajustava no ombro. Por fim calçou as botas e colocou a
capa, que prendeu no ombro com um alfinete.
- Que tal estou?
- Tal e qual o próprio Júlio César, senhor - replicou Traxis, num tom monocórdico e fatigado.
- Desde que não acabe como ele...
- Senhor?
- Deixa lá. Arruma o meu equipamento e manda a carroça para junto do comboio das bagagens. Vejo-te no campo, ao fim do dia.
Traxis inclinou a cabeça.
- Sim, prefeito.
Cato afastou a cortina da tenda e observou as linhas de tendas dos Corvos Sangrentos e da Quarta Coorte de legionários. Os homens já estavam a pé, embora mal se
descortinassem uns aos outros à diminuta luz que anunciava o dia ainda por nascer. Do céu completamente coberto caía uma chuva incessante e miúda, que silvava baixinho
enquanto os soldados desmontavam as tendas e as levavam para os vagões que aguardavam pela carga. Cato olhou por cima do ombro.
- E nessa altura vou querer roupas quentes e secas, e um fogo aceso.
- Sim, senhor. Mais alguma coisa?
- Um pouco de boa disposição, será pedir demasiado?
Traxis olhou para ele, impávido e sereno.
- Está certo. - Cato saiu da tenda e dirigiu-se para o seu cavalo. Um dos trácios segurava nas rédeas e passou-as ao prefeito antes de o ajudar a subir para a sela.
Daquela posição elevada, Cato olhou para a vasta área ocupada pela fortaleza de Mediolanum e pelos campos provisórios que
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a rodeavam, ocupados pelas unidades concentradas para a campanha. Milhares de homens atarefavam-se a desfazer acampamentos na escuridão, antes de formarem colunas
para a marcha, empurrados para as suas posições pelos berros de centuriões e optios. A vanguarda já aguardava no exterior do portão principal, e Crispo soltou uma
curta ordem para fazer sentido quando Cato se aproximou. O prefeito lançou o olhar sobre as fileiras de legionários, antes de se virar e se dirigir ao centurião
num tom suficientemente alto para que todos o ouvissem.
- Centurião, os homens parecem sedentos de glória.
- Sim, senhor! Como cães de caça, ansiosos por se libertarem das jaulas. Assim são os homens da Quarta Coorte.
- Nesse caso, que os deuses tenham piedade do inimigo, porque os teus homens não a mostrarão por certo!
Crispo sorriu e empunhou a espada, levando-a ao ar enquanto bradava o título da legião.
- Gémina! Gémina!
Os homens juntaram-se imediatamente a ele, soltando o mesmo grito a plenos pulmões, o que fez com que os outros elementos do exército interrompessem o que faziam
por breves momentos, virando-se para o tumulto antes de continuarem a levantar campo.
Cato sorriu aos legionários, satisfeito por poder alimentar o espírito guerreiro de que davam mostras. Fez-lhes uma saudação e cavalgou para a frente da coluna,
onde os Corvos Sangrentos aguardavam sobre as selas. As duas centúrias de auxiliares apeados tinham sido designadas para proteger o pequeno comboio de bagagens da
vanguarda. Com eles estava um oficial de capa vermelha, acompanhado de um criado bem constituído, num cavalo carregado de alforges vários.
- Deves ser o tribuno Livónio - indagou Cato, enquanto se aproximava. - Designado para cartografar o caminho que o exército tomará entre colinas e montanhas.
O oficial acenou uma confirmação.
- Prefeito Cato?
- Precisamente.
- É um prazer conhecê-lo, senhor. - Livónio sorriu. - Já ouvi inúmeras histórias sobre os seus feitos com os Corvos Sangrentos desde que fui colocado no estado-maior
do legado. É uma honra servir ao seu lado.
- Uma honra? - Cato abanou a cabeça, imediatamente desconfiado
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de elogios inesperados. - Eu e os meus homens limitamo-nos a cumprir ordens e a fazer o nosso dever. Nem mais nem menos do que qualquer outro soldado de Roma.
Livónio cerrou os lábios, deixando transparecer uma expressão admirada.
- Se assim o diz, senhor.
- Digo, de facto. E agora livra-te lá desse sorriso idiota.
- Sim, senhor. - O tribuno adotou uma expressão um tanto abatida.
- E quem é este? - Cato designou o homem que ladeava Livónio.
- Hieropates, senhor. O meu secretário pessoal, desenhador de mapas. É ele o verdadeiro cérebro por trás da equipa.
- Ah sim? - Cato contemplou o homem com mais cuidado. Era claramente um natural da parte oriental do Império, e não parecia ter um ar muito feliz por ter sido enviado
para a outra ponta dos domínios do Imperador. O cabelo escuro e encaracolado apresentava faixas de cinzento sobre um rosto bem vincado, no meio do qual rebrilhavam
dois olhos escuros. A capa parecia volumosa, dadas as inúmeras camadas de roupa por baixo dela, e a cabeça parecia querer recolher-se nas dobras de pano que lhe
rodeavam o pescoço. Como um pássaro a recolher ao ninho.
- Tens alguma experiência de fazer mapas destas montanhas? - Cato fez um gesto abarcando os contornos cinzentos das elevações que se estendiam para ocidente.
Hieropates inclinou a cabeça com toda a calma.
- De facto, senhor, eu e o meu senhor Livínio traçámos o mapa da fronteira leste, da Capadócia à Núbia, por ordem do prefeito da Síria.
- És portanto um escravo?
- Sim, senhor.
- E um excelente professor, também - interveio Livónio. - Aqui o bom do Hieropates ensinou-me tudo o que sei sobre a produção de mapas. E antes de mim ensinou o
tribuno Plínio, e foi graças à sua recomendação que o meu pai comprou o Hieropates.
Cato sentiu uma ponta de simpatia pelo homem. Era claramente um indivíduo educado e provavelmente achava que já merecia a liberdade, depois de tantos anos de bons
serviços prestados aos seus amos. Mas o que tinha acontecido fora ter sido transacionado de uma família
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aristocrática para outra, para educar os representantes da linhagem. E agora ali estava na Britânia, longe dos confortos e do calor do Império oriental. Cato sorriu
levemente a Livónio.
- Assim sendo, fico feliz por teres sido colocado na minha coluna. Espero que tu e os teus mapas prestem bons serviços a este exército.
- Assim será, senhor - ripostou Livónio. - Um exército precisa de bons mapas, tanto quanto precisa de abastecimentos, perseverança e das bênçãos de Fortuna. Entre
o Hieropates e eu próprio, vamos assinalar todos os passos do caminho que o exército seguir nesta empreitada de levar a guerra ao inimigo. Mediremos as distâncias
e faremos esboços dos marcos do terreno, de forma a incidirmos uma luz romana até no mais tenebroso vale que se esconda nestas terras montanhosas e bárbaras.
- Desde que para fazerem tudo isso não atrasem a marcha da minha coluna. Não podemos permitir-nos paragens para ficar à vossa espera enquanto fazem os vossos desenhos
e contam passos para saber as distâncias. Têm que nos acompanhar a todos os momentos. Se não o conseguirem, ficarão para trás. Entendido?
O tribuno pareceu um tanto desanimado, mas anuiu.
- Sim, senhor.
- Muito bem. Seguirão com o quarto esquadrão dos Corvos Sangrentos. O decurião manterá o comando das coortes, e vocês assumirão o papel de supranumerários.
Livónio debatia-se, manifestamente, para conter o desconforto de se ver colocado às ordens de um homem cuja patente estava vários graus abaixo da sua, e, ao notá-lo,
Cato resolveu apaziguá-lo.
- Há quanto tempo estás na Britânia, tribuno?
- Há quase três meses, senhor.
- Três meses... - O prefeito suspirou. Era muito pouco razoável esperar que Livónio tivesse consciência das condições que reinavam no território. Embora Cato compreendesse
a necessidade de dar alguma experiência militar aos jovens daquele género que iniciavam as suas carreiras públicas, a tendência era para os ter ao serviço por tempo
insuficiente. Muitos eram colocados em legiões que serviam de guarnição a algum posto tranquilo, e limitavam-se a ajustar-se às rotinas diárias de uma vida desse
género. Livónio tinha ficado com a palha mais curta, e tinha ido parar a uma posição onde se veria obrigado a aprender depressa,
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se quisesse manter-se vivo. Contudo, isso poderia fazê-lo crescer, desde que sobrevivesse à experiência. E o Crispo tinha assegurado que se tratava de um jovem com
valor. Cato obrigou-se a lançar-lhe um sorriso de encorajamento.
- Ora bem, vais ter muito que contar à tua família quando regressares a Roma. Observa bem o que te rodeia, Livónio, e escuta os conselhos que os veteranos te oferecerem.
É a melhor forma de aprender este ofício.
- Sim, senhor... Obrigado.
Cato fez a montada rodopiar e voltou a passar os olhos pela coluna. Sentiu o orgulho a crescer no peito ao ver os homens que estava prestes a conduzir contra os
opositores, a vanguarda de um grande exército prestes a lançar-se contra os guerreiros inimigos e os seus aliados druidas. Tinha combatido ao lado daqueles homens,
tinha derramado o seu próprio sangue com eles, e sabia que eles partilhavam o prazer que sentia pela reputação de árduos combatentes que ambas as unidades tinham
adquirido desde que assumira o seu comando. Era uma pena que Macro não estivesse ali para partilhar aquele momento com ele, lembrou-se durante alguns momentos.
Ergueu o braço e respirou fundo.
- Corvos Sangrentos! Quarta Coorte! Preparar para avançar!
Os legionários e os auxiliares de infantaria dobraram-se para levantar os escudos, enquanto os cavaleiros faziam os animais alinhar em duas colunas e ajustavam as
rédeas. Cato aguardou até que o último dos homens estivesse pronto antes de voltar a orientar o seu cavalo para longe do campo militar e deixar cair o braço, de
forma a indicar a estrada que conduzia na direção das colinas e montanhas. O céu de um cinzento uniforme parecia fazê-las ainda mais distantes, e já se conseguia
adivinhar uma faixa de nuvens mais escuras a chegar vinda de norte, a ameaçar mais chuva.
- Coluna... avançar!
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8

O centurião Macro estava sentado num banco de campanha, no montículo relvado que ladeava a pequena parada onde decorriam os treinos, e que tinha sido preparada pelos
seus legionários, pouco depois de terem acabado de construir o forte. Tinham aproveitado a área plana mais próxima ao forte, e haviam removido rochas e maciços de
arbustos, antes de cortar a vegetação rasteira, de forma a arranjarem espaço para a guarnição ter as suas sessões regulares de instrução. Numa das extremidades via-se
uma fila de postes de madeira, junto aos quais os homens de Fortuno aguardavam em fila, cada um deles à espera da sua vez para desferir golpes no alvo. O ruído constante
das espadas a abaterem-se sobre a rija madeira enchia o ar, até que o optio Diodoro soprava um apito que dava sinal para a troca. Homens ofegantes afastavam-se dos
postes e corriam para o fim da sua fila, e depois o assobio voltava a fazer-se ouvir e o estrondo das espadas recomeçava.
A outra centúria ilírica marchava em redor da parada, percorrendo em passo de corrida os lados mais compridos da área aproximadamente retangular. Passaram de novo
por Macro, a deitar os bofes pela boca, o equipamento a retinir, em pleno esforço para se manterem a par do comandante. O centurião Apilo mantinha um ritmo constante,
a crista do capacete a oscilar enquanto liderava os homens em mais uma volta. De vez em quando mudava de posição, colocando-se de lado a marcar o ritmo enquanto
lançava ameaças aos que se deixavam atrasar.
- Porra, mexam-me esses pés! É despachar! O primeiro homem que se deixe atrasar mais do que o comprimento da centúria fica de serviço às latrinas nos próximos dez
dias!
Macro acenou, em sinal de aprovação. Apesar do seu aspeto débil e da falta de um olho, Apilo era um oficial decente, que parecia saber do ofício, ao contrário de
Fortuno, que naquele preciso momento se debatia
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com um dos postes, enquanto o optio o incitava. Quando o assobio voltou a soar, o centurião dobrou-se sobre si mesmo, a tentar recuperar o fôlego, antes de cambalear
para o fim da sua fila. Era apenas o segundo dia de treino, e Macro já começava a distinguir os mais capazes e mais bem preparados dos auxiliares ilíricos, homens
em quem poderia confiar se chegasse a hora de combater. Entre os outros, havia quem apenas precisasse de exercício físico, e muitos que precisavam de uma instrução
completa. E depois havia um punhado de absolutos incapazes - homens já demasiado velhos para ocuparem posições numa frente de combate. Um deles, pertencente à centúria
de Apilo, já tinha saído da formação e caído de joelhos, o escudo no chão a um lado, enquanto ele tentava voltar a erguer-se, com a ajuda do dardo. De imediato,
o centurião avisou os outros para prosseguirem, antes de recuar para se ocupar do desesperado e cansado soldado.
- De pé!
O homem tentou de novo erguer-se, mas não se aguentou, e caiu, enquanto abanava a cabeça.
- Foda-se, isso foi absolutamente patético! - berrou Apilo, pondo a vareta a jeito e fazendo rebrilhar o olho que lhe restava de forma ameaçadora. - Porra, de pé,
meu sacana de gordo. Não volto a avisar-te.
O homem, de joelhos, nem se preocupou em tentar obedecer, e Apilo aplicou-lhe imediatamente um corretivo, acertando-lhe com a vareta nas costas. O soldado soltou
um gemido, mas levantou-se e seguiu os seus camaradas.
- É isso mesmo! Continua! Se voltas a deixar-te cair, juro que te arranco a pele à cacetada!
Alcançaram o resto da unidade e Apilo aumentou a passada até voltar a tomar a sua posição à cabeça da coluna. Macro batucou com os dedos na muleta que tinha atravessada
sobre as pernas. Aquele fora meramente o primeiro a atrasar-se. A instrução matinal ainda mal ia a meio, e sabia perfeitamente que haveria muitos mais a separar-se
da formação antes do fim. Ao que parecia, as latrinas iam ter quem cuidasse perfeitamente delas no próximo mês, considerou, com um sorriso de gozo.
Apoiou a ponta da muleta no chão e cerrou os dentes enquanto se punha de pé. Sentiu a familiar pontada de dor assim que a perna ferida ficou a suportar o peso do
corpo, e ajustou o equilíbrio para se apoiar
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mais na outra perna. Praguejou por entre os dentes e esperou que a dor amainasse. Ainda ia passar algum tempo até poder andar confortavelmente. Pôs a mão em concha
na boca, e chamou, na direção dos homens ao pé das estacas.
- Diodoro! Vem cá!
O optio interino apressou-se a ir ter com ele a correr, apresentando a continência enquanto ofegava.
- Deixa-os estar mais um bocadinho, e depois troca-os - ordenou Macro. - Fá-los trabalhar. Quero que estes madraços fiquem a saber como é a vida de um verdadeiro
soldado.
- Sim, senhor.
- Por volta do meio do dia dá-lhes um descanso, e depois manda-os equipar-se para marcha e põe-nos a dar voltas ao forte até fazerem uns doze quilómetros. Isso deve
chegar para separar os que se aproveitam dos outros. Quem não aguentar, já sabe o que o espera.
- As latrinas, senhor?
- Precisamente. Enquanto eu estiver no comando deste forte, a tarefa de limpar a merda às pazadas vai caber sempre aos madraços. Depressa ficarão tão fartos do fedor
que hão de preferir aplicar-se a fundo nos treinos. Trata disso.
- Sim, senhor.
- Bom, vou-me embora. Se precisares de mim, estarei no comando.
Trocaram uma saudação, e Diodoro virou-se e voltou para junto do
grupo que treinava o combate. Macro deitou uma última olhadela em redor da parada, e depois dirigiu-se no seu passo manco pela estrada que levava ao portão principal
do forte. Ao aproximar-se, reparou que os legionários que estavam de serviço nas muralhas só tinham olhos para os auxiliares, e exibiam os sorrisos que os soldados
reservam normalmente para os seus camaradas menos afortunados.
- Mas para que raio estão vocês aí especados a olhar? - lançou-lhes Macro. - Estão aí em cima para estarem atentos ao inimigo, e não para apreciar o espetáculo daquelas
lesmas de merda!
Os legionários voltaram rapidamente aos seus postos, fazendo menção de vigiar a paisagem circundante com toda a atenção.
Ainda irritado, Macro entrou no forte e dirigiu-se ao edifício do quartel-general. Um dos Corvos Sangrentos que Cato deixara no forte estava de guarda no arco da
entrada, e colocou-se em posição de sentido,
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com a lança aperrada, enquanto o comandante da guarnição passava. Com a partida de Cato e do resto da guarnição colocada no forte, o edifício estava envolto em sossego,
e apenas dois escribas se atarefavam nas mesas no interior do salão. Macro dirigiu-se ao mais próximo deles.
- Quero ver o optio Pandaro no meu gabinete, imediatamente.
- Sim, senhor.
Macro preparava-se para se dirigir aos aposentos do comandante da guarnição, ao fundo do corredor, quando o escriba clareou a garganta e acenou para um dos lados.
Macro seguiu a indicação com o olhar e avistou um civil sentado num banco, a fitá-lo com ar expectante.
- Aquele pediu para o ver, senhor.
- A sério? E quem é ele?
- Venisto, senhor. O homem designado para ser o porta-voz dos seguidores civis.
Macro rangeu os dentes ao contemplar aquela inesperada complicação, que o seu dia podia muito bem dispensar.
- E que porra quer o sujeito afinal?
- Não sei, senhor. Disse que só falaria com o encarregado disto tudo.
- O encarregado, com que então? - Macro fungou. - Isto é um posto militar, não é propriamente uma estalagem na Via Ápia. - Considerou brevemente a possibilidade
de o mandar embora com ordens para não o voltar a chatear, mas resolveu mostrar-se menos agreste. Qualquer que fosse a sua opinião sobre a presença dos civis no
forte, a verdade é que eles lá estavam e, a menos que estivesse disposto a enviá-los de volta a Viroconium, era melhor habituar-se à ideia. Se os enviasse de volta,
seriam presa fácil para os bandos de guerreiros inimigos que vagueavam pela zona fronteiriça entre as terras das tribos das montanhas e a nova província romana.
Mas também não podia fornecer-lhes uma escolta com força suficiente para lhes garantir a segurança, já que isso colocaria o forte em risco. Portanto, pelo menos
por agora, tinha que os aturar. E ao tal Venisto. Aproximou-se do homem com uma expressão contrariada.
- Muito bem. O que se passa?
Venisto levantou-se e sorriu amigavelmente.
- Centurião Macro, creio? Ainda não tivemos o prazer de travar conhecimento.
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- O prazer não é para aqui chamado. Diz lá o que te traz aqui, e depressa, Venisto.
A forma ríspida com que Macro abriu a conversa não pareceu afetar o civil, que já tinha passado longos anos na proximidade de soldados. O sorriso não se desfez,
e ele inclinou a cabeça, tentando fingir que não impunha a sua presença.
- Peço desculpa por o importunar, senhor, mas há algumas questões a resolver quanto à nossa acomodação e condições de vida que temo bem ser obrigado a trazer à sua
consideração.
- A sério? Ora conta lá então.
- Como sabe, senhor, foi-nos dada permissão pelo estado-maior do legado Quintato para acompanharmos o centurião Fortuno e os seus homens até este posto, e...
- Receberam essa licença do próprio legado, calculo?
- Não exatamente, senhor. Não. Fui autorizado por um elemento do pessoal do estado-maior.
- Alguém que teve as mãos untadas, sou capaz de apostar.
Venisto simulou na perfeição a receção de uma notícia ultrajante,
que a pouco e pouco era assimilada.
- Senhor, estará por acaso a acusar-me de tentar subornar um agente imperial?
- Será mesmo necessário acusar-te? - ripostou Macro. - Ambos sabemos como isto funciona, portanto não vamos perder tempo com isso. O que tens a dizer, afinal?
A expressão cordial de Venisto desapareceu como por magia e as feições austeras de um duro comerciante impuseram-se rapidamente.
- Senhor, colocou-nos nos estábulos. Trata-nos como se fôssemos animais. Ou pior ainda. Apanhamos com o esgoto das casernas, que ficam mais acima na encosta. É um
fedor indescritível. Além disso, determinou que ficássemos confinados àquela área, e os seus homens recusam-se a permitir-nos livre circulação pelo forte, ou que
o deixemos em qualquer momento. Muitos dos auxiliares têm famílias entre os seguidores, senhor. Não lhes está a ser permitido ver os seus próximos. Não era este
o arranjo que prevalecia lá em Viroconium, com o resto da coorte ilírica.
- Calculo que não. Mas isso devia ter mais a ver com a forma como o prefeito da coorte permitia que as coisas funcionassem. A Oitava Ilírica
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é uma piada, Venisto. Não está em condições de assumir o seu lugar na frente de batalha. Nem sequer para ser uma unidade de reserva, muito menos fazer de guarnição
num posto fronteiriço. Isso tem que mudar. E eu vou tratar disso. Estes homens vão passar a merecer o que lhes pagam, e ter um desempenho digno de soldados do exército
romano. Só quando isso acontecer é que lhes darei algum descanso e lhes permitirei gozar os privilégios atribuídos aos verdadeiros soldados. E se isso significa
privá-los do direito a uma cama aquecida, paciência, terão que aguentar. Além disso, dará às putéfias do grupo uma oportunidade para descansar.
- Mas elas têm que comer, senhor. E os soldados são os únicos clientes que têm.
- Não lhes faltará comida, pelo menos. Receberão as mesmas rações que os homens, por agora.
- Por agora?
Macro assentiu.
- Vou solicitar ao quartel-general que envie uma escolta que vos possa acompanhar de volta a Viroconium, o mais cedo possível. Atrevo-me a dizer que isso vai levar
algum tempo a concretizar, se pensarmos que deve lá ter ficado uma pequena guarnição depois de o legado ter conduzido o exército para as montanhas. E pode até ser
que o tipo que tens no bolso lá entre o pessoal do estado-maior arranje forma de contrariar o meu plano. Mas quero-vos longe. Quanto às acomodações, podes dar-te
por feliz por não vos ter ordenado que montassem uma aldeola no exterior do forte. Nesta época do ano, arranjar abrigo dos elementos é custoso. Os estábulos podem
ser fedorentos, mas pelo menos são secos e seguros. Talvez não fosse má ideia pensarem nisso e mostrarem algum reconhecimento.
- Claro que estamos reconhecidos. Mas quanto às famílias dos homens? E quanto à nossa forma de vida?
Macro suspirou, irritado com o tom exigente do civil.
- Como já te disse, isto é um posto militar avançado. Sou eu quem dita as regras nesta posição, e a vocês cabe apenas respeitá-las. Se algum dos teus as quebrar,
farei com que sejam expulsos do forte e tenham que se desenvencilhar lá fora, sozinhos. Se algum dos meus homens tentar atravessar a barreira e passar para a vossa
secção do forte sem ter licença para tal, será chicoteado. Se tens alguma objeção a estas disposições, sugiro que levantes a questão com o teu amigo Fortuno. Aposto
que vocês
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os dois deviam ter um belo arranjinho lá em Viroconium. Se agora que estão aqui ele já não pode cumprir a sua parte do acordo, problema teu. És livre de partir a
qualquer momento. Contudo, se resolveres ficar, vives sob a minha autoridade, e não há realmente mais nada para discutir.
Venisto abriu a boca para ripostar, mas o bom senso indicou-lhe que seria melhor manter o silêncio. Macro encarou-o com evidente fúria, quase a desafiá-lo a protestar.
O olhar do civil desviou-se, e ele acabou a fitar o solo entre os dois, desarmado.
- Assim é melhor - concluiu Macro. - Trata do teu pessoal, mantém-nos longe de mim e de quaisquer sarilhos, e tudo se passará sem problemas. Assim que tiver os ilíricos
em condições, talvez possamos ver se lhes pode ser concedido acesso aos estábulos, de tempos a tempos, como recompensa pelos seus esforços.
Venisto levantou o olhar, esperançado.
- Mas isso só acontecerá se toda a gente cumprir as regras - lembrou Macro, com firmeza.
Um vulto entrou no salão e Macro deitou-lhe uma espreitadela; confirmou que era o optio Pandaro, que se dirigia aos seus aposentos mas interrompera a marcha quando
avistara o seu superior à conversa com o civil. Macro fez-lhe sinal para prosseguir.
- Já aí vou ter contigo.
- Sim, senhor.
Voltou a dar atenção a Venisto.
- Já sabes em que pé estás. No futuro, se quiseres falar comigo, espera até soar o sinal do turno vespertino. Não te quero a interromper o funcionamento regular
do forte, entendido?
- Sim, centurião.
- Podes ir então.
Venisto voltou a inclinar a cabeça e recuou respeitosamente, antes de se virar para deixar o edifício. Macro ficou a vê-lo partir, contente por ter posto o homem
no seu lugar, mas ainda assim frustrado por ter tido de tratar do assunto. Estava completamente fora dos deveres de um soldado como ele os entendia, e perguntou-se
como teria Cato tratado aquela questão. Talvez fosse o género de coisa que cabia de facto a um oficial superior, imaginou. A quem possuísse habilidade para resolver
situações inesperadas e indesejadas que surgiam de repente e pouco tinham a ver com as rotinas quotidianas do comando de uma unidade militar. Se era
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aquilo que uma promoção tinha para oferecer, preferia ficar bem longe dela, concluiu com azedume.
Deixou escapar um longo suspiro e virou-se para atravessar a sala a coxear até à porta que conduzia ao seu gabinete e aos modestos aposentos que se situavam para
lá dele. Pandaro aguardava-o à frente da secretária; Macro entrou e rodou tendo como alvo a cadeira, onde se deixou cair com um grunhido audível. Encostou a muleta
contra a borda da secretária e dirigiu-se ao optio.
- Ao que parece, és agora o mais antigo oficial de cavalaria no forte, mas lá por causa disso não precisas de te armar.
Pandaro sorriu. Era um tipo agradável, um dos cada vez menos homens da primeira leva de trácios que tinham composto a coorte aquando da sua formação, havia já alguns
anos, numa pequena povoação na margem norte do mar Egeu. As campanhas na Britânia tinham feito mossa nas fileiras, e os substitutos tinham vindo sobretudo da Gália,
de entre tribos habituadas a utilizar cavalos. As recentes perdas, que tinham levado muitos homens experientes, haviam dado uma ajuda a Pandaro para conseguir finalmente
uma promoção a optio, ainda recente. Quando Macro encontrara pela primeira vez a unidade, os soldados tinham a aparência de homens selvagens, embrulhados em peles
e capas escuras, de cabelos longos e desgrenhados. Graças à diminuição do número de trácios originais, os homens da coorte apresentavam agora uma aparência mais
próxima da que se aguardava de homens de unidades auxiliares. As peles e capas ainda eram as mesmas, mas os cabelos estavam apanhados e entrançados, e havia mais
longos bigodes ao jeito dos celtas, e menos barbas hirsutas. Para o inimigo, contudo, aquela continuava a ser precisamente a mesma unidade de cavalaria que tinha
espalhado o terror pelas terras dos siluros, e continuavam a temer a simples aproximação do corvo vermelho sobre fundo negro que compunha o estandarte da coorte.
- Os teus dez homens são tudo o que tenho para fazer o trabalho de uma coorte - continuou Macro. - Continuamos a ter que patrulhar a área em redor do forte. A diferença
é que agora temos que nos portar mais como a presa do que como o caçador. Quero que comandes pessoalmente todas as patrulhas, e que leves cinco homens contigo. Os
outros ficam pelo forte, para o caso de me ver obrigado a enviar alguma mensagem urgente a Viroconium. Quando andares aí pelas colinas, mantém-te fora de vista dos
nativos. Em caso algum deves entrar em
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contacto com o inimigo, por muito tentadora que possa ser a situação. Não me posso dar ao luxo de perder um único homem. Quero apenas que observes tudo e me apresentes
relatórios detalhados. Entendido?
- Sim, senhor. - Pandaro anuiu, mas cerrou os lábios. - Estamos mesmo à espera de problemas, senhor? O inimigo terá com certeza as mãos bem cheias perante a ofensiva
do Quintato.
- Optio, já devias saber como são as coisas. Estás por cá há tempo suficiente para isso. De cada vez que o exército avança, tem que dispersar as coortes para guarnecer
o território conquistado. Isso chega para controlar as coisas enquanto o inimigo não concentra as forças até ter poder suficiente para atacar os postos dispersos.
Se eles conseguirem reunir guerreiros suficientes, somos obrigados a também juntar as nossas forças para os confrontar, o que significa levar quase todos os homens
disponíveis em fortes como o nosso. O que nos deixa vulneráveis. Espero bem que tenhas razão, mas não vou correr riscos. Se o inimigo tenciona aplicar-nos uma bicada,
quero saber disso a tempo. - Olhou para o optio com toda a franqueza. - Pandaro, isto quer dizer que tens de ser os olhos e ouvidos desta guarnição.
- Pode contar comigo, senhor.
- Não tinha dúvidas quanto a isso. Escolhe os melhores dos teus homens para te acompanharem, e mete-lhes na cabeça as mesmas instruções que acabo de te dar. Não
quero heróis, quero gente capaz de recolher informações. A partir de amanhã, conduzirás uma vistoria quotidiana às colinas a ocidente. Qualquer povoação que encontres,
qualquer bando de caçadores ou homens armados, toma nota dos números e da localização, e traz-me essa informação.
- Sim, senhor.
- É tudo. Estás dispensado... Espera! Mais uma coisa.
- Senhor?
- Vou precisar de um criado. - Macro deu uma palmada na coxa.
- Pelo menos enquanto estiver a recuperar desta filha da puta de ferida. Um dos teus homens servirá para o lugar. Quem é que podes dispensar?
O optio pensou rapidamente.
- O Bortamis, senhor. É o mais forte de entre os meus homens, mas também o mais pesado, e por isso prejudicará a rapidez e a agilidade das patrulhas. Portanto, ficará
no forte.
- Seja então esse Bortamis. Dá-lhe as novidades. Vou precisar dele
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todos os dias logo pela manhã. Ele que traga as coisas dele e se instale naquela sala vazia no corredor. Podes ir.
Trocaram uma continência rápida, e Pandaro saiu do gabinete. Macro recostou-se lentamente e esfregou levemente a ligadura que lhe passava por cima do joelho. Fazia
uma comichão insuportável, mas o médico tinha-lhe dito que era melhor não coçar com força, para não correr o risco de reabrir a ferida. Portanto, tinha que se contentar
com uma leve pressão, que só parecia servir para tornar a coisa pior.
- Foda-se... - resmungou com raiva, enquanto se punha a pensar na situação em que se encontrava. - Aqui sentado, a tomar conta destes mandriões de merda dos ilíricos,
enquanto todo o exército avança para o combate. Não está certo. Não está certo de todo. - Pigarreou e cuspiu na direção do canto do compartimento. - Aposto que o
Cato se está a divertir à grande.
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9

Cato encolhia-se na sela, tentando guardar o pouco calor que o seu corpo ainda mantinha. A túnica e a capa estavam completamente ensopadas, e continuava o pingar
incansável da borda do capacete, quase fazendo esquecer o constante ruído da bátega de água que inundava o mundo à sua volta. Atrás dele seguiam os esquadrões montados
dos Corvos Sangrentos, e mais atrás ainda vinha a infantaria; tanto homens como cavalos estavam encharcados pela chuva gelada que atormentava o exército desde o
primeiro dia de marcha. A estrada mal definida que tinham seguido a caminho das colinas transformara-se num lodaçal assim que a primeira centena de homens a tinha
percorrido, e o comboio das bagagens exigia uma constante assistência dos legionários que o escoltavam para manter em movimento as rodas dos pesados vagões. Em vez
dos vinte e cinco quilómetros previstos para cada jornada, a média que estavam a fazer desde que tinham deixado Mediolanum era de cerca de metade disso, e mesmo
assim só era conseguida levando os homens quase à exaustão, o que fazia com que a construção de um campo de marcha todas as noites se tornasse uma tarefa demorada.
Apesar de a vanguarda ser poupada a grande parte do esforço físico do avanço num terreno tão difícil, ainda assim era sobre eles que recaía a tensão de bater o terreno
à frente do exército e assegurar que Quintato e os seus homens não avançavam para alguma emboscada ou eram sujeitos a ataques repentinos de pequenos grupos inimigos,
uma das táticas favoritas dos nativos para retardar a progressão das legiões de Roma. Durante os primeiros cinco dias, tinham ocorrido apenas avistamentos ocasionais
do inimigo: grupos de cavaleiros que observavam a coluna a debater-se com o terreno do alto de colinas distantes. Viravam-se e desapareciam assim que Cato enviava
um dos esquadrões ao seu encontro, e os seus cavalos ágeis, bem como o conhecimento que tinham das colinas
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e florestas que constituíam o terreno faziam com que se evaporassem muito antes de haver alguma hipótese de contacto.
Mas naquele dia o inimigo tinha decidido marcar uma posição. O vale que o exército percorria estreitava de repente e tornava-se numa garganta de curta extensão,
entalada entre dois penhascos altaneiros. Tinha sido erigida uma barricada improvisada na entrada dessa passagem, feita de pedregulhos amontoados, e algumas centenas
de guerreiros guarneciam as defesas rudimentares. Os batedores romanos tinham regressado para junto da coluna para anunciarem o obstáculo assim que o haviam encontrado,
e agora Cato tinha que usar uma mão para proteger os olhos da chuva enquanto tentava apreender todos os detalhes da posição inimiga.
- O Crispo e os seus rapazes não deverão levar muito tempo a tirá-los do caminho - comentou o decurião Miro, que também avaliava a posição dos guerreiros deceanglos.
Virou-se na sela e olhou para trás.
- Ah, aí está ele, senhor.
O centurião dos legionários esforçava-se por caminhar ao lado da coluna, mas o solo ensopado prendia-lhe as pesadas botas, já envoltas em lama, e ele aproximou-se
num passo estranho, quase deslizante. A chuva também tinha deixado a crista do seu capacete num estado lastimável, e as cerdas de pelo de cavalo, normalmente rijas,
pareciam velhas folhas de palmeira, com as pontas a descair. Parou a curta distância do flanco reluzente de chuva da montada de Cato e engoliu em seco, para tentar
recuperar o fôlego.
- Senhor, mandou chamar-me?
- Temos companhia. - Cato apontou para a garganta. Crispo esforçou a vista pela paisagem pouco iluminada até distinguir os obstáculos que lhes impediam o caminho,
e as fileiras silenciosas dos guerreiros nativos que os guarneciam.
- Porra, que já não era sem tempo. Perguntava-me quando é que estes sacanas se decidiam a mostrar que têm tomates e resolviam combater, senhor.
- Trata-se apenas de uma ação pensada para nos atrasar, centurião. Só estão a tentar fazer-nos perder tempo, de forma a ajudar o grupo principal do seu exército.
- Atrasar-nos? - Crispo riu sem vontade, enquanto levantava uma das botas do chão e produzia um audível ruído de sucção. - Se
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estivéssemos a avançar só um bocadinho mais devagar, estaríamos em plena retirada.
- Portanto, não vamos perder muito tempo com isto. É um trabalho para a infantaria. A tua coorte vai limpar a garganta. Os meus auxiliares ficarão de reserva. Assim
que vocês penetrarem nas defesas e eles cederem, lançaremos a perseguição.
- Não nos deve levar muito tempo, senhor.
Cato virou-se para Miro.
- Envia um homem ao legado, para o informar de que estabelecemos contacto com uma pequena força inimiga, e fomos forçados a deter-nos. Depois tira os homens da estrada,
para deixar espaço à infantaria.
- Sim, senhor. - Miro saudou-o e afastou-se para passar as ordens a um dos seus subordinados.
Cato endireitou-se na sela e levou uma mão em concha à boca, para garantir que todos o ouviam, mesmo com o ruído da chuva a cair.
- Segunda Coorte Trácia... desmontar! Formem uma linha ao lado da estrada!
Os soldados fatigados desceram das selas e chapinharam na lama, antes de levarem os cavalos para uma barreira relvada que acompanhava o antigo caminho. Cato esperou
mais uns momentos para inspecionar a posição inimiga, mas não se via qualquer movimentação. Sabia que os nativos tinham vigias pelas colinas, e que estariam cientes
do avanço da coluna romana muito antes de ela ter chegado àquela passagem estreita. Os nativos pareciam empenhados em travar ali um combate, e não pôde reprimir
uma admiração passageira pela coragem e resolução que exibiam. Muitas vezes já se tinham batido contra os homens das legiões, e muitas vezes tinham sofrido derrotas
pesadas, e ainda assim não tinham desistido. Ainda continuavam a combater. Seria coragem, ou apenas estupidez obstinada? Eis uma questão para a qual Cato ainda não
encontrara resposta. Mais provavelmente, era uma convicção fanática, acicatada pelos druidas. Agora que os romanos atacavam os deceanglos, aproximavam-se cada vez
mais dos mais sagrados bosques do culto druídico, na ilha de Mona. E isso chegava para os inspirar a lutar com ainda maior determinação do que antes.
Cato desmontou e entregou as rédeas do seu cavalo a Traxis.
- Prende o Aníbal, e depois traz-me o meu escudo.
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O criado deitou-lhe um olhar de surpresa, enquanto a chuva lhe escorria pela cara. Mas sabia perfeitamente que não devia questionar o seu superior.
- Sim, senhor. Quer que fique com a sua capa?
Cato anuiu, e deitou a mão ao alfinete esmaltado que lhe prendia a capa no ombro. Tinha sido uma oferta de Júlia, e ele prendeu-o cuidadosamente ao lenço do pescoço,
onde ficaria em segurança. Passou a capa a Traxis e foi juntar-se a Crispo, alguns passos à frente da coluna. A sua consciência do frio e da humidade esmoreceu enquanto
se concentrava na tarefa que havia a executar. A entrada da garganta não tinha mais de uns quarenta passos de largura, e a barricada inimiga era mais alta do que
um homem. Iam ter que a escalar para alcançar os defensores, o que não seria fácil para os homens equipados com as pesadas armaduras, ainda mais pesadas devido à
água que lhes ensopava as roupas.
- Vai ser complicado - comentou, em tom calmo.
Crispo encolheu os ombros.
- E quando é que não é complicado? E esta chuva de merda não vai tornar a coisa mais fácil.
No momento seguinte outro vulto se foi juntar a eles. Livónio afastou o capuz da sua capa de pele de cabra. Tinha sido bem engordurada, e era impermeável, notou
Cato, com uma ponta de inveja.
- Tribuno, deves manter-te na parte de trás da vanguarda.
- Queria apenas ver o que nos estava a demorar, senhor. Ouvi um dos homens do Miro a dizer que eram forças inimigas. É a primeira vez que tenho ocasião de ver de
perto gente destas tribos das montanhas. São eles, além, por trás das rochas?
- São eles, com efeito.
Livónio franziu os olhos para contemplar os distantes guerreiros tribais, antes de se virar para os outros oficiais.
- Qual é o seu plano para enfrentar o inimigo, senhor? Um movimento pelo flanco?
- Hoje não, tribuno. Aqueles penhascos dos dois lados parecem-me bem íngremes. Levaríamos horas se mandássemos homens trepar ou descer por ali. Ficaríamos aqui atascados
o resto do dia. Portanto, vamos ensaiar um ataque frontal. O Crispo e a sua coorte depressa os afastarão, e depois eu avançarei com os meus rapazes para os perseguir.
Se tivermos sorte, faremos alguns prisioneiros.
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- Estou a ver. - O tribuno ficou em silêncio por momentos, a mão pousada no punho de marfim da espada. - Suponho que não poderia.
- Vais ficar quietinho, aqui mesmo - interrompeu-o Cato. - A seu tempo terás oportunidade para participar - acrescentou, num tom mais gentil.
- Senhor, com todo o respeito, já provei o meu valor no campo de batalha, e fui enviado para aqui para aprender o ofício de soldado.
- Tudo a seu tempo. Por agora, as tuas ordens são para fazeres mapas para o exército. É uma tarefa relevante, portanto não podemos correr o risco de ver acontecer-te
alguma coisa. E por falar nisso, como vão os trabalhos?
- Não com tanta facilidade como eu previa, senhor. Com esta chuva toda, tem sido difícil investigar o terreno que rodeia a linha que temos seguido. E também tem
sido complicado manter registos precisos das distâncias percorridas. Não há como dar um passo padronizado nestas condições. Portanto, temos estimado as distâncias;
fazemos o que podemos.
- Não há volta a dar a isso, tribuno. Podes pensar nisto como uma importante lição quanto ao trabalho de um soldado. A primeira vítima da guerra é o plano estabelecido
previamente.
- É bem verdade - confirmou Crispo.
A primeira centúria de legionários aproximou-se laboriosamente pela estrada, e Crispo ordenou-lhes que se dispusessem uns cem passos à frente da coluna. As cinco
unidades seguintes imitaram-na, até que toda a coorte se apresentou em duas linhas de três centúrias. Os oficiais deram ordens para remover as coberturas de couro
dos escudos, e os grandes escudos nus com as suas bossas deram aos soldados salpicados de lama uma aparência mais marcial. Os trácios formaram atrás deles, numa
linha única, os escudos ovais e as lanças a postos. Cato virou-se para Traxis, pegou no escudo, e avançou para se juntar aos homens que aguardavam, com Crispo ao
seu lado.
- Boa sorte! - bradou Livónio, ao vê-los afastarem-se.
- Pffít! - desdenhou Crispo. - A sorte não tem nada a ver com isto. O que importa é o aço, a vontade e os anos de treino rijo. É claro que ele não tem qualquer necessidade
de perceber isso. Depois de passar este ano, lá irá de volta a Roma e a algum trabalhinho confortável, a verificar a drenagem, ou o estado dos mercados, ou uma merdice
dessas.
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Cato estava habituado ao tom desdenhoso dos centuriões em relação aos jovens aristocratas que cumpriam a fase militar das suas carreiras, e adotou um tom de gozo
ao responder.
- Não me digas que eras capaz de trocar todos os prazeres da vida militar por uns anos a inspecionar os esgotos de Roma, centurião?
- Foda-se, senhor, é que nem pensar nisso.
- Então vamos lá resolver este assunto.
Ao chegarem junto dos soldados à espera, separaram-se, e Crispo avançou para uma posição no flanco direito da linha da frente, onde a primeira centúria estava colocada
e aguardava. Levantou o escudo e orientou-o para enfrentar o inimigo, pegou na espada e espetou-a no ar, contra as nuvens baixas. A chuva escorreu pela lâmina, dando-lhe
um brilho baço.
- Quarta Coorte! A passo! Avançar!
As centúrias estavam dispostas de forma a apresentar uma frente de dez homens, suficientemente estreita para caber na entrada da garganta, e oito filas de profundidade
davam peso suficiente ao assalto. Se tudo corresse como previsto, a segunda linha nem precisaria de combater, calculou Cato. O centurião que comandava as três últimas
centúrias esperou até que se abrisse o espaço regulamentar entre as duas linhas antes de ordenar aos seus homens que avançassem por sua vez. Cato aguardou mais um
pouco, e só depois ordenou aos seus trácios que avançassem. A erva sob as suas botas estava ensopada, e o solo era mole e cedia ao peso, e quando os auxiliares começaram
a seguir os passos da infantaria pesada, o terreno já estava revolto e transformado num lamaçal.
Ao aproximarem-se do inimigo, que se tinha mantido imóvel e silencioso enquanto os romanos dispunham as suas coortes, um enorme rugido soltou-se das gargantas dos
guerreiros tribais, e eles elevaram as armas ao céu e brandiram-nas, para que a parede de escudos que se aproximava as visse bem. A chuva, ao menos, dava uma ajuda,
pensou Cato. Estava demasiado húmido para permitir aos arqueiros trabalhar, e o espaço confinado em que a refrega seria travada também dificultava a ação de fundibulários.
Seria portanto um combate direto entre a disciplina férrea das legiões e a coragem fanática dos guerreiros nativos. E nem sequer se punha qualquer questão quanto
a quem acabaria por prevalecer.
O ar encheu-se dos sons das botas a serem sugadas pela lama, e dos
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grunhidos dos homens, já fatigados, que tentavam manter uma linha firme enquanto se aproximavam da barricada. Por cima das cabeças à sua frente, Cato conseguia ver
os rostos de alguns dos guerreiros por trás da barricada, de bocas abertas enquanto lançavam o seu desafio. Notou um súbito movimento por entre a chuva plúmbea,
e Crispo lançou um aviso:
- Escudos acima!
As primeiras filas da coorte ergueram os escudos e inclinaram-nos, para defletir os projéteis que tinham sido lançados sobre eles. Dardos. Cato já os via, a descer
em direção aos legionários. Atingiram a força romana num coro de estrondos e baques surdos. Depois de o fragor do primeiro embate se desvanecer, um dos homens de
Crispo ripostou aos berros.
- Já vão ter o que merecem, cabrões!
- Bico calado! - soltou Crispo, furibundo. - Silêncio nas fileiras, caralho!
Os homens prosseguiram o avanço, respeitando a ordem do centurião, e Cato sentiu um frémito a percorrer-lhe o corpo, por ser parte daquela cena. Não havia nada tão
impressionante e aterrador como a visão daqueles soldados disciplinados, a avançarem em linhas ordenadas por baixo dos seus estandartes ensopados, sem que uma palavra
lhes escapasse dos lábios. Dava ideia de que o inimigo também sentia o mesmo, já que os berros e insultos começaram a diminuir, e os rostos fecharam-se em expressões
determinadas, num espelho do que os romanos lhes apresentavam. Outra rajada de dardos foi lançada sobre os romanos, à mistura com pedras, cujo tamanho lhes permitia
serem atiradas do alto da barricada. De ambos os lados erguiam-se as escarpas, escuras e ameaçadoras, e o som da chuva bem como os gritos dos defensores ecoavam
perfeitamente nas rochas.
- Cerrem fileiras! - ordenou Crispo. - Cerrem fileiras!
Os seus homens já não estavam a mais de dez passos da base da barricada, e o oficial que comandava a segunda linha deu ordem de alto. Cato ergueu também o braço.
- Corvos Sangrentos! Alto!
Os auxiliares detiveram-se, vinte passos atrás dos últimos legionários. Havia ali uma pequena elevação que permitia a Cato ter uma vista desimpedida sobre a entrada
da garganta, e ele pestanejou para afastar

a chuva que lhe escorria da orla do capacete para os olhos. Avistou a primeira fila de legionários que começava a trepar a barricada, com os escudos por cima das
cabeças. As longas espadas dos nativos desferiam golpes sobre as superfícies curvas. Alguns deles tinham machados, e os seus golpes caíam com estrondo e faziam estilhaçar
a madeira, e os sons chegavam com clareza aos ouvidos de Cato, que observava a cena. A maior parte dos homens de Crispo mal se conseguia mexer perante a intensidade
e o número de ataques que choviam sobre eles, mas aqui e ali havia um ou outro legionário que já tinha conseguido subir o suficiente para ripostar contra o inimigo,
e o combate começava a intensificar-se ao longo de toda a barricada.
- Avancem! Avancem! - gritava o centurião, já rouco, e Cato lembrou-se de Macro e da forma destemida como levava os seus legionários a derrotar qualquer inimigo,
com os seus gritos constantes. - Vá, rapazes, não esmoreçam!
Aumentava o número de legionários que conseguiam alcançar o cimo da barricada e se juntavam aos seus camaradas que travavam duelos desesperados sob a chuva. As espadas
faiscavam em estocadas selvagens, e os homens tentavam derrubar-se uns aos outros com os escudos. Alguns dos nativos optavam por segurar nas orlas dos escudos dos
legionários e tentar arrancá-los às mãos dos seus detentores, de forma a permitir a outros guerreiros abaterem-nos sem dificuldade. Por trás da linha de combate,
as fileiras das primeiras três centúrias estavam apinhadas enquanto entravam na garganta. De momento o avanço fora interrompido, enquanto as duas partes lutavam
pelo controlo do topo da barricada.
Um corno de guerra fez-se ouvir por trás da massa dos guerreiros inimigos, uma nota profúnda e prolongada, que ecoou nas fragas em redor da cena do combate. Ao escutar
o som, os guerreiros britânicos voltaram a erguer um coro de aclamação, um som amplificado pela estreiteza do cenário. Uma massa escura precipitou-se do cimo das
falésias, e o movimento atraiu o olhar de Cato. Ao olhar para cima, distinguiu claramente um pedregulho que tinha embatido numa cornija de rocha e desabava a rebolar
sobre si mesmo, até se vir esmagar no meio dos legionários apinhados na base da barricada. Outros blocos foram atirados de lá de cima, e Cato avistou vários homens
recortados contra o cinzento do céu, que se dedicavam a apanhar pedras e a lançá-las para
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o vazio. Os legionários também olharam para cima e aperceberam-se da ameaça, mas perante o número de soldados que se acotovelavam, a fuga era impossível.
Cato correu para a frente, abrindo caminho por entre as fileiras da segunda vaga, enquanto gritava com todas as forças e a voz rouca:
- Recuem! Voltem para trás!
Os homens mais recuados, ainda à entrada da garganta, olharam em volta e começaram a recuar, fazendo diminuir a pressão Sobre os outros à sua frente, enquanto mais
calhaus caíam e desfaziam legionários no solo, esmagando crânios e estilhaçando ossos. Mais à frente, Crispo continuava a incitar os homens a avançar, sem se dar
conta do que sucedia nas suas costas.
- Recuem! - gritou Cato mais uma vez, e outra ainda, furioso consigo mesmo por ter enviado os seus homens para aquela armadilha. - Voltem para trás!
Outros repetiram o grito do prefeito, e os legionários começaram a recuar um a um para junto da segunda vaga, criando um espaço de forma a que outros dos seus camaradas
conseguissem escapar do perigo vindo de cima.
Cato manteve pé firme contra a maré de soldados que vinha em sentido contrário, e chamou:
- Centurião Crispo!
Por fim, o outro oficial percebeu que havia alguma coisa de errado. Lançou o escudo contra o rosto de um guerreiro inimigo e espreitou rapidamente em redor, notando
finalmente que no chão já jazia uma vintena dos seus homens, esmagados pelas rochas. Compreendeu imediatamente a natureza da ameaça, e dirigiu-se aos legionários
que ainda combatiam no cimo da barricada.
- Recuar!
Um por um, os homens deixaram de trocar golpes com os inimigos e desceram para o chão do vale. Mesmo livres do perigo representado pelos guerreiros inimigos, tinham
ainda assim que evitar as pedras que tombavam de lá de cima, e Cato contou três novas vítimas, abatidas enquanto se afastavam da barricada. Só quando o último se
tinha afastado o suficiente das falésias para estar fora de perigo é que o centurião recuou, mantendo-se sempre atento ao inimigo. Foi isso que o impediu de reparar
na grande pedra que veio a rebolar pelo meio da chuva. Cato
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avistou-a demasiado tarde para ter tempo de gritar um aviso, e Crispo caiu de joelhos devido ao impacto que o atingiu na face lateral do capacete e lhe esfacelou
o ombro e o peito. Oscilou um momento antes de deixar escapar espada e escudo das mãos e tombar de rosto no solo, imóvel.
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- O centurião foi morto! - gritou uma voz. - Vamos dar cabo daqueles cabrões!
- Não! - gritou Cato, antes de bloquear a retirada de dois homens que tentavam afastá-lo. - Tu e tu! Comigo. Vamos.
Não lhes deu qualquer oportunidade de hesitarem; empurrou-os a caminho da garganta, acelerou para se colocar na liderança e dirigiu-se ao centurião prostrado no
solo. Alguns dos outros legionários já se afadigavam a puxar os camaradas feridos para longe da zona de perigo, enquanto do outro lado da barricada o inimigo festejava
com evidente gozo o espetáculo da retirada romana.
Os gritos de júbilo eram respondidos por um coro sumido, lançado pelos elementos que se encontravam no cimo das falésias, e que tinham acabado de atirar as últimas
pedras, as quais se precipitavam com estrondo no solo. Ainda assim, Cato preferiu manter o escudo bem ao alto enquanto corria para Crispo e se ajoelhava a seu lado.
Lançou um grunhido de esforço e virou o corpo do centurião; notou de imediato o estado lamentável em que se encontrava o ombro do homem, e a profunda mossa no capacete.
O rosto de Crispo estava coberto de lama, e Cato limpou-o o melhor que pôde.
- Eu cubro-vos - anunciou aos legionários. - Peguem-lhe nos braços e levem-no para longe daqui.
Assim que os homens o começaram a puxar, Crispo soltou um gemido, seguido por um lamento de agonia quando a cabeça lhe tombou para trás.
- Continuem! - instou Cato, enquanto os dois soldados arrastavam o pesado corpo do centurião pela lama, para junto da segurança dada pela segunda vaga de legionários.
Escutou-se um grito de aviso do lado inimigo quando alguém se apercebeu da crista de oficial que
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encimava o capacete de Cato, e três homens saltaram da barricada, pularam para o chão e correram na direção do prefeito. Este puxou da espada, ergueu o escudo e
colocou-se entre o inimigo e Crispo e os dois legionários. Dois dos guerreiros estavam armados com lanças, enquanto o terceiro, ligeiramente adiantado aos companheiros,
empunhava uma espada e um escudo redondo. As suas feições mostravam um fervor selvagem, os olhos a rebrilhar e os lábios arreganhados em caretas que pareciam indicar
algum tipo de intoxicação. Ia ser um recontro curto e selvagem, percebeu Cato, enquanto firmava as botas na lama e preparava a espada. O chão, encharcado e revolto
depois da passagem das botas cardadas dos legionários, fez os inimigos perder ímpeto à medida que se aproximavam, desejosos de reclamar para si a cabeça de um oficial
romano, um troféu muito cobiçado.
Cato aguentou com pé firme, decidido a ganhar todo o tempo que pudesse para Crispo, e cerrou os dentes quando o guerreiro com a espada se aproximou. Não houve qualquer
pausa, nenhuma tentativa de ler a força do opositor. O homem lançou o escudo contra o de Cato e fez rodar o braço com a espada, numa tentativa de decapitar o romano.
Cato contrariou-o com o escudo, levantando-o mesmo a tempo de bloquear o gume da espada, que se desviou e lhe passou por cima da cabeça. Fez menção de retribuir
com uma boa estocada, mas o pé escorregou-lhe na lama, o que retirou ao seu golpe toda a potência, fazendo a lâmina limitar-se a afagar as peles que cobriam o peito
do homem.
Os dois contendores recuperaram o equilíbrio no mesmo instante, e ambos decidiram atacar a cabeça do adversário. As espadas entrechocaram-se com estrépito, e ali
ficaram, enquanto cada um tentava sobrepor-se ao outro. Um novo deslize seria fatal, apercebeu-se Cato, enquanto tentava ganhar uma posição firme no solo escorregadio.
As suas feições torceram-se numa careta de esforço, à medida que media a sua força contra a do inimigo, os rostos a poucos centímetros um do outro. Por cima do ombro
do homem, notou que os dois nativos com lanças rodeavam o seu camarada, de forma a terem uma linha livre para poderem atacar o oficial romano. Não havia tempo para
um duelo singular. De repente, Cato inclinou a sua espada de forma a permitir que a lâmina do guerreiro corresse livremente na direção do seu ombro, confiando que
a armadura chegaria para o proteger. Assim que a sua espada ficou livre, levantou o braço direito e bateu com toda a força
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com o punho da espada no crânio do outro, com estrondo. Ao mesmo tempo, o gume da espada do celta atingiu-lhe pesadamente o ombro, e o golpe deixou-o atordoado.
O guerreiro recuou, cambaleou e embateu no mais próximo dos homens com as lanças, fazendo-o deslizar na lama e ver-se forçado a cravar a arma no solo para recuperar
o equilíbrio. O indivíduo da espada caiu, de braços abertos, forçando o amigo a cair de joelhos sobre ele.
Cato rodou rapidamente para enfrentar o outro guerreiro de lança, e tentou apresentar-lhe o escudo, mas o golpe no ombro tinha-o deixado quase sem forças no braço,
e a cabeça continuava exposta. O homem lançou a lâmina contra os olhos do prefeito, que reagiu dobrando o pescoço para um lado e desviando a ponta da lança com a
espada. Mas o outro recuperou rapidamente a posição inicial, e preparou-se para desferir outro golpe. O efeito do impacto no ombro começava a dissipar-se, mas Cato
resolveu deixar o escudo ligeiramente em baixo para incitar o adversário a tentar novamente executar um ataque alto. O guerreiro reforçou a pega na haste da lança
e fê-la deslizar para a frente. Cato estava mesmo à espera disso. Deixou o escudo pender, agarrou na haste por trás da ponta metálica em forma de folha acerada,
e deu um puxão com toda a força na sua própria direção. O opositor não largou a arma e precipitou-se para a frente, o que o fez perder o equilíbrio e cambalear na
direção de Cato. O gládio do prefeito foi ao seu encontro, apanhando-o no flanco e penetrando profundamente nos seus órgãos vitais. Cato torceu o pulso de lado a
lado e manobrou a lâmina, libertando-a, antes de empurrar a haste da lança na direção do seu proprietário, que caiu sentado e tentou apertar a larga ferida que sofrera,
enquanto gemia em voz alta.
Cato notou que o outro guerreiro com lança era um jovem, apesar do cabelo empastado e da barba desgrenhada. O celta deitou um olhar do homem com a espada, inconsciente,
ao amigo ferido, e baixou a lança, antes de dar um passo cauteloso na direção do romano. Cato ostentou a espada, encheu os pulmões de ar e berrou com toda a fúria
que conseguiu reunir:
- Se não te queres juntar a eles, desanda, sacana!
A veemência das palavras era suficiente para lhes dar significado, e o outro recuou um passo, dilacerado entre manter o seu orgulho e enfrentar o homem que tinha
acabado de derrubar dois dos seus camaradas, em menos tempo do que levava a inspirar um punhado de vezes. Recuou
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ainda outro passo, cauteloso, mantendo a lança em posição e encarando Cato com toda a seriedade.
- Isso mesmo. - Cato acenou-lhe. - E agora, desaparece como um bom menino, sim?
O jovem recuou ainda mais, e Cato manteve-o à vista enquanto se baixava para recolher o escudo e recuava por sua vez para junto dos seus homens. Quando se sentiu
certo de que já não estava em perigo imediato, virou-se e correu atrás dos dois legionários que arrastavam Crispo para um lugar seguro. Os homens que tinham recuado
depois do primeiro assalto já estavam a formar de novo junto aos seus estandartes, na retaguarda da coorte, enquanto os feridos eram alinhados a um dos lados, à
espera que o médico e os seus ajudantes fossem cuidar deles. À medida que o centurião era levado por entre as fileiras dos legionários, todos contemplavam o comandante
da unidade com choque e raiva dirigida a quem o tinha derrubado.
Os dois homens que o transportavam largaram-lhe os braços, e o centurião ficou deitado de costas, a gemer, os olhos desfocados e a piscarem. Cato pousou o escudo
e ajoelhou-se ao seu lado. Viu o sangue a escorrer do nariz do centurião e a misturar-se com a água da chuva que lhe corria pela face.
- Crispo... Crispo! Estás a ouvir?
O centurião piscou mais uma vez os olhos e abriu-os, olhando para Cato fixamente. Fez uma careta e lambeu os lábios, preparando-se para falar.
- A sor... a sorte não tem nada... a ver com isto.
Fez outra careta, e os olhos reviraram-se, enquanto o corpo estremecia. Cato levantou o olhar.
- Médico! Aqui!
Pausino e os seus ajudantes já se dedicavam a examinar as primeiras vítimas das pedras, e os que tinham sido feridos no recontro da barricada. O médico acabou de
atar uma ligadura e apressou-se a ir ter com o prefeito. Ajoelhou-se do outro lado de Crispo e passou os dedos levemente pelo ombro esfacelado do homem.
- Os seus dias de soldado estão terminados, se sobreviver. - Sentiu os tremores do corpo do oficial, e reparou então na mossa no capacete do centurião. - Ajude-me
a tirar-lhe isto.
Enquanto Pausino segurava o capacete nas mãos, Cato desapertou
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a correia que o prendia no queixo e afastou as abas laterais. Só nessa altura o médico retirou o capacete, bem como a proteção de feltro no seu interior. Mas esta
pareceu estar presa nalguma coisa, e Cato reparou no sangue que escorria pela orla do tecido. Antes que o médico pudesse reagir, o ferido deu um estremeção violento
e a peça libertou-se, arrastando uma tira de escalpe ensanguentado e um fragmento de osso dentado, que revelou a completa extensão dos terríveis danos que a pedra
que atingira a cabeça de Crispo causara. Sangue e miolos escorreram da cavidade aberta pela remoção da proteção de feltro, e o centurião retorceu-se, estremeceu
e acabou por se imobilizar.
Cato contemplou-o, horrorizado.
O médico voltou a aplicar o feltro sobre a ferida, e endireitou-se.
- Está acabado. Nada posso fazer para o salvar, senhor.
- Nada?
Pausino pegou no pulso de Crispo e procurou sentir a pulsação, antes de o deixar tombar.
- Está morto.
Cato colocou a mão no antebraço do centurião, mas também não sentiu nada. Nenhum indício de movimento. Engoliu em seco.
- Seja... Vai tratar dos outros, então.
Enquanto Pausino se afastava, Cato deu um último aperto ao antebraço do centurião.
- Repousa em paz nas trevas, centurião Crispo - balbuciou. - Ganhaste bem o teu descanso. Goza-o na companhia de todos os camaradas que já tombaram.
Respirou fundo para se acalmar, pôs-se de pé e voltou a avaliar a situação na garganta. Os guerreiros inimigos continuavam a vitoriar-se e a lançar imprecações aos
romanos. Ao redor de Cato, os legionários fitavam-nos com indisfarçável ódio. Pressentiu a raiva, a amargura e a sede de vingança que os dominava. Nas veias ardia-lhes
a febre da batalha, e estavam claramente dispostos a vingar de imediato os camaradas que tinham perdido. O que era excelente, considerou, mas que podiam eles fazer
realmente? Os deceanglos tinham escolhido uma posição ideal para montar aquela armadilha, de forma a atrasar a progressão do exército romano. Até que as falésias
fossem limpas, não valia a pena voltar a tentar assaltar frontalmente a barricada que bloqueava a passagem. E alcançar os homens que tinham feito gorar o ataque
implicava uma
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ascensão difícil, permanentemente expostos às pedras que eles decidissem lançar sobre as cabeças dos soldados romanos. Seria um trabalho que custaria inúmeras vidas.
Concluiu relutantemente que não havia outra escolha: teriam que encontrar um caminho alternativo à garganta. Foi à procura do tribuno Livónio, e deu com ele a observar
da crista, junto ao contingente montado dos Corvos Sangrentos.
- Fico feliz por o ver indemne, senhor - saudou-o Livónio. - Foi uma armadilha e tanto, a que os nativos nos estenderam.
- Foi, com efeito - confirmou Cato. - Tens o teu mapa de campanha contigo?
- Sim, senhor. Além. - Fez um gesto para o seu escravo, Hieropates, que aguardava junto às duas mulas carregadas com todos os utensílios para a produção cartográfica
e os abastecimentos do tribuno.
- Preciso de o ver, agora mesmo.
Livónio olhou para o céu, de onde a chuva continuava a cair.
- Mas, senhor, a tinta vai-se esborratar toda.
- Não, se não lhe deixarmos cair água em cima. Põe alguns dos homens a formarem um abrigo com os escudos. Imediatamente.
- Sim, senhor.
Enquanto o tribuno se afastava rapidamente, Cato virou-se para Miro.
- Decurião, vai ver da Quarta Coorte e descobre quantas baixas houve. Diz ao centurião Festino que é dele o comando. O optio da primeira centúria pode encarregar-se
da sua unidade, para já.
- Sim, senhor... E o centurião Crispo?
- Está morto - ripostou Cato, de forma brusca. - Agora, vai fazer o que te disse.
Miro fez um gesto rápido de saudação e desceu a trote a encosta suave, enquanto Cato se encaminhava para onde Livónio ordenava a dois dos Corvos Sangrentos que segurassem
os escudos sobre a cabeça e não os mexessem. Hieropates, com um tubo de couro debaixo do braço, dirigiu-se ao abrigo improvisado e extraiu do interior um rolo de
velo, abrindo-o de forma a que o tribuno e Cato o pudessem ver, depois de se enfiarem também debaixo do resguardo. O caminho seguido pelo exército estava marcado
de forma clara, com as distâncias estimadas entre campos sucessivos e anotações sobre o terreno que se estendia dos dois
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lados da estrada. Livónio designou uma área em branco junto ao campo da noite anterior.
- Estamos mais ou menos por aqui. Claro que só poderemos atualizar o mapa depois de erigirmos o novo campo.
Cato deitou-lhe uma olhadela irritada.
- Muito útil, de facto.
Fechou os olhos por momentos, enquanto relembrava a marcha daquele dia. Tinham passado o tempo a lutar para progredir pela estrada ao longo daquele vale cheio de
curvas. As encostas dos dois lados eram íngremes, e entrecortadas por afloramentos rochosos. Não se lhes tinha oferecido qualquer via alternativa para tomar. Pensou
ainda mais para trás, no local onde tinham passado a noite anterior. Havia dois outros vales que se abriam a partir do sítio onde o exército pernoitara. Apontou
para a marca e as anotações relativas ao campo.
- E que tal estes outros vales? Será possível que possamos usar um deles para ultrapassar este bloqueio?
Hieropates abanou a cabeça.
- Não, a menos que não se importe de perder uns dois dias, prefeito. Percorri alguns quilómetros de cada um deles, enquanto o exército erigia o campo. Um vira para
norte e depois faz uma curva, quase na direção de Mediolanum. O outro conduz a sul, para o território dos ordovicos. Mas a paisagem era mais aberta para essas bandas.
- Inclinou a cabeça para o lado. - Podíamos usar isso para contornar esta garganta.
- Ótimo - decidiu Cato. - Se conseguirmos realmente contorná-la, o Quintato pode enviar depois uma pequena força para trás, para desimpedir a passagem e abrir linhas
de comunicação com Mediolanum pela rota mais direta. Claro que isso representará um atraso, enquanto o exército retrocede e toma esta rota a sul, amanhã.
Livónio deu um estalo com a língua.
- O legado não vai ficar lá muito feliz, senhor.
- Nada posso fazer quanto a isso. Hieropates, guarda o mapa.
Enquanto o escravo enrolava cuidadosamente a folha e a guardava
no estojo de couro, Cato virou-se para mais uma vez apreciar a situação na garganta. A barricada inimiga não tinha nenhum ar formidável, e o mesmo sucedia com a
força que a guardava. Eram os homens que ocupavam as inexpugnáveis falésias que representavam a verdadeira força daquela posição. Soltou um silvo de frustração e
começou a compor
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mentalmente o relatório que ia ter de enviar ao legado, aconselhando-o a dar ordem de meia-volta à coluna e a marchar de novo pelo mesmo caminho. Todos os homens,
qualquer que fosse a sua patente, iam ficar exasperados por terem que refazer o caminho já revolto e enlameado. Mas a verdade é que os soldados não deixariam de
resmungar, mesmo que as coisas estivessem a correr pelo melhor. Era Quintato quem representava o verdadeiro desafio. O seu maior desejo era desferir um golpe repentino
no coração do território inimigo. Em vez disso, o exército tinha-se arrastado lentamente, e agora teria que voltar para trás. O legado ficaria seguramente furioso,
mas Cato não conseguia ver forma de forçar a passagem pela garganta sem sofrer perdas pesadíssimas.
Preparava-se para passar a Traxis os detalhes do relatório verbal quando notou uma comoção na estrada, e por cima das cabeças e dos animais da coluna, retidos pelos
acontecimentos na garganta, distinguiu o estandarte pessoal do legado, acompanhado pelo da Décima Quarta Legião.
- É o legado - comentou Livónio. - Veio à frente ver por si mesmo o que se passa, sem dúvida.
- Nesse caso, poupou-me ao trabalho de ir ter com ele.
Ficaram a ver os homens que ocupavam a estrada a ser afastados
para a berma por centuriões e optios, de forma a permitir a passagem do comandante do exército e do seu estado-maior. Assim que avistou Cato, o legado deteve o cavalo
junto ao prefeito e encarou-o com maus modos.
- Porque é que a coluna parou? O que estão estes homens a fazer aqui formados?
Cato apontou para a garganta.
- O inimigo, senhor.
Quintato endireitou-se na sela e observou rapidamente a barricada e os guerreiros que a defendiam.
- Aquele grupelho? Varre-os dali e põe a coluna em marcha.
- Já lançámos um assalto, senhor. O problema é que eles têm homens dispostos no cimo das falésias, que nos atacam com grandes rochas. Já perdi um centurião e vários
legionários. A posição deles é demasiado forte para nos permitir forçar a passagem sem sofrer pesadas baixas. Sugiro que recuemos e procuremos outro caminho, senhor.
- O quê? Estás doido? Estás a sugerir que permitamos que um punhado de bárbaros faça recuar todo um exército romano? Perdeste a noção das coisas? Se recuarmos perante
aquele bando de bárbaros
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mal-amanhados, seremos alvo da chacota do inimigo. É isso que pretendes, prefeito?
- Claro que não, senhor - replicou Cato de imediato. Aceitava a posição do legado. Se o exército fosse forçado a um desvio, os deceanglos obteriam uma vitória sobre
Roma, pelo menos no campo anímico, e os druidas não perderiam tempo a espalhar a notícia por toda a ilha. Mas se o confronto naquelas condições provocasse a perda
de muitas vidas romanas, poderiam na mesma vangloriar-se de que um punhado de guerreiros tinha desafiado com sucesso uma força muito mais numerosa. De qualquer das
formas, o inimigo teria motivos para celebrar a humilhação imposta ao legado Quintato e aos seus homens.
Pensou rapidamente.
- Poderíamos trazer para a frente algumas balistas e uma catapulta, senhor. Se lhes déssemos a provar a nossa artilharia, estou certo de que fugiriam como coelhos
e libertariam a garganta.
Quintato avaliou a ideia, mas abanou a cabeça.
- A artilharia está mesmo no fim do comboio das bagagens, a muitos quilómetros daqui. Não a conseguiríamos ter cá antes do fim do dia. Não podemos perder tanto tempo.
Quero aquela garganta limpa imediatamente. O problema é teu, prefeito Cato. És tu quem comanda a vanguarda. Os teus homens têm o dever de limpar o terreno, de forma
a permitir a passagem do exército. Trata disso, e agora mesmo.
Por momentos, Cato manteve-se imóvel, embora na sua mente fervilhassem todas as objeções possíveis às palavras do legado. Não podia porém recusar uma ordem direta,
pelo que dobrou o pescoço em sinal de aceitação, antes de se virar e se dirigir para junto dos legionários, que tinham refeito a formação a uns cem passos da barricada.
- Oficiais! Comigo!
Quando o último deles se juntou ao pequeno grupo que rodeava Cato, já ele tinha desenhado um plano na mente. Era simples, já que não havia alternativa, e perigoso,
exatamente pela mesma razão. Não lhe agradava a ideia de perder mais alguns dos seus homens. Encarou os seus subordinados e reparou nas suas expressões pouco animadas,
enquanto a chuva tombava sobre o metal polido dos capacetes e escorria e pingava sobre ombros e peitos. Eram bons soldados, e demasiado preciosos para serem desperdiçados
noutra fútil tentativa de tomar a barricada, decidiu. Limpou a garganta e cuspiu para o chão.
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- O legado exige que limpemos a garganta da presença inimiga, imediatamente. Estou ciente de que isso significa pormo-nos ajeito para aqueles cabrões lá no alto,
e que isso nos vai provavelmente provocar a perda de muitos homens antes de conseguirmos ultrapassar a maldita barricada e desfazer o inimigo. Até esse momento,
seremos alvos fáceis. A nossa melhor hipótese é moê-los com dardos antes de formar as centúrias em testudos assim que entrarem na garganta.
- Testudos? - O centurião Festino coçou o nariz. - Peço perdão, senhor, mas isso não vai servir rigorosamente de nada. Os escudos dos homens não vão conseguir deter
aqueles pedregulhos. Vão esmigalhar-nos como insetos.
- Talvez, mas teremos ainda assim mais hipóteses do que se nos lançarmos ao ataque sem nada a proteger-nos as cabeças - respondeu Cato. - Mas vamos fazer isto segundo
todas as regras. Centurião Festino, quero que formes a Primeira Centúria numa linha de escaramuça. A segunda fila vai levar todos os dardos disponíveis, e passá-los
para a frente. Os homens que lancem em conjunto, e que levem todo o tempo de que precisarem para esgotar os dardos.
- Senhor? Pensei que era suposto despacharmos isto depressa.
- Tão depressa quanto possível, mas também com o menor número possível de baixas. É assim que eu quero, centurião. Portanto, não te apresses com os dardos, e faz
o mesmo com a formação dos testudos e o avanço para o assalto. Com alguma sorte, isso deve atrair as atenções do inimigo, e dar tempo suficiente a que alguns dos
Corvos Sangrentos escalem os penhascos e tratem da saúde aos amigos lá em cima.
Cato virou-se para os oficiais dos auxiliares.
- Harpex, o teu esquadrão vai trepar pelo lado esquerdo do vale. Corvino, os teus rapazes irão pela direita, comigo. Diz aos homens para deixarem as lanças cá em
baixo. Terão que levar os escudos às costas, e usar as espadas quando chegarmos ao cimo. Assim que nos vires lá em cima, Festino, podes lançar o ataque. Quando o
primeiro testudo estiver a chegar à barricada, espero que já estejamos em condições de dar ao inimigo um pouco do seu próprio veneno. Veremos então se eles gostam
de levar com uma chuva de pedregulhos nos cornos!
Os outros responderam com comentários de satisfação, à exceção de Harpex, que olhava para as escarpas com preocupação.
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- Vai ser uma escalada e tanto, senhor. Pelo menos uns sessenta metros.
- Mais do que isso, parece-me - retorquiu Cato. - Mas é uma boa forma de deixarem de estar aí de pé à espera, a ficarem cada vez mais frios debaixo desta chuva.
Um bocadinho de exercício, e aquecem num instante. Muito bem, senhores. Todos têm a sua tarefa. Vamos fazer com que isto resulte, e vamos fazê-lo bem. O legado está
a observar-nos, o resto do exército depende de nós, e não o vamos desiludir. Informem os vossos homens e coloquem-nos em posição o mais cedo possível.
Trocou uma continência com os oficiais, antes que cada um se dirigisse à sua unidade. Só nessa altura voltou a lançar uma olhadela às falésias, e engoliu em seco,
nervoso. Erguiam-se do fundo do vale como dentes podres e gigantescos. Mais perto dos cem metros do que dos sessenta, decidiu. Cada centímetro de parede rochosa
tornado ainda mais perigoso pela chuva que deixava tudo escorregadio. E quando alcançassem o topo, exaustos pela escalada, teriam o inimigo à espera, decidido a
manter a posse da posição e a enviar os cadáveres romanos pelo meio da chuva até se virem estatelar sobre as cabeças dos seus camaradas legionários lá em baixo.
Cato sentiu um nó nas entranhas quando afastou o olhar das tenebrosas e altaneiras massas de rocha e se encaminhou para junto da infantaria auxiliar disposta nas
margens do vale. Antes de aquele dia terminar, teria conseguido conquistar a garganta, ou então o seu corpo destroçado jazeria frio, esparramado no solo em conjunto
com algumas centenas de outros dos seus camaradas, à frente da barricada e dos rostos triunfantes do inimigo por trás dela.
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- Primeira Centúria! Alto! - ordenou Festino. A chuva tinha-se transformado num fino chuvisco, e começavam a surgir manchas de céu azul por entre as nuvens. Fraco
consolo para os homens ensopados, enterrados até aos tornozelos no terreno enlameado e revolto à entrada da garganta. Os legionários formavam numa linha única, e
detiveram-se a cerca de trinta passos da barricada, apresentando uma frente unida de escudos e dardos já prontos nas mãos direitas. Os auxiliares estavam colocados
nos flancos da linha, e da direita Cato viu que o inimigo observava o novo avanço dos romanos com todas as cautelas. Quando a linha romana estacou, também os gritos
e imprecações se calaram, enquanto todos esperavam para ver o que se ia seguir.
- Preparar dardos!
Os legionários ajustaram a forma como pegavam nos projéteis, e puxaram os braços atrás. De imediato se ouviu um aviso lançado por um dos guerreiros, e esse grito
foi rapidamente repetido, fazendo com que todos se escondessem por trás da barricada. Cato notou que algo tinha provocado uma pequena explosão de lama um pouco à
frente dos legionários, e outra ainda, e compreendeu que os guerreiros colocados no cimo das falésias estavam a tentar alvejar os romanos com pedras mais pequenas.
Festino percorreu a linha com o olhar, para ter a certeza de que todos os homens da primeira centúria estavam preparados, e só então soltou nova ordem.
- Lançar dardos!
As escuras linhas saltaram para o ar enquanto os homens deixavam escapar grunhidos de esforço pelo empenho posto no lançamento dos pesados projéteis. A primeira
rajada atingiu o pino do seu arco, e a maior parte mergulhou para lá da barricada. Alguns não tinham sido lançados
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com força suficiente para isso, e tombaram sobre os blocos e rochas que davam abrigo ao inimigo, sem causar danos. Cato ouviu o ruído dos impactos: o raspar agudo
das pontas metálicas a embater em escudos, os baques surdos que indicavam que a carne de alguém fora perfurada. Festino, seguindo à risca as instruções do prefeito
para manter um ritmo lento no ataque, esperou algum tempo antes de voltar a dar ordens.
- Passem dardos para a frente!
Os homens da segunda centúria passaram aos camaradas dardos dos fardos que cada um deles transportava. Assim que os legionários ficaram de novo armados, Festino
deu indicações para preparar um novo lançamento. Mais uma vez, os guerreiros que tinham a coragem suficiente para se mostrar na barricada desapareceram por trás
dos blocos rochosos. Cato virou-se para Corvino e os vinte Corvos Sangrentos do seu esquadrão e indicou-lhes que deviam avançar.
- Rapazes, é a nossa vez. Sigam-me!
Começou a correr na direção do talude de detritos que se tinham acumulado na base da falésia. No outro flanco, Harpex tinha estado atento aos movimentos do seu comandante,
pelo que imitou as suas ações e levou o seu esquadrão para a base do penhasco que limitava a face oposta da garganta. Assim que alcançaram as pedras soltas, Festino
deu ordem para a segunda rajada ser lançada, e pouco depois um novo coro de impactos ecoou pelas fragas.
Cato começou a trepar, usando mãos e pés para procurar os melhores apoios entre os fragmentos rochosos instáveis e húmidos, subindo à velocidade mais rápida que
conseguia. Por trás dele, os auxiliares bufavam e soltavam imprecações enquanto escalavam. Quando alcançou terreno mais estável no cimo do talude, fez uma pausa
e contemplou a confusão de penedos e árvores mirradas que cresciam em ângulos estranhos que se oferecia à sua apreciação. Ia ser uma subida muito complicada naquela
encosta quase a pique, concluiu, ao mesmo tempo que Festino dava ordem para a terceira rajada de dardos. Depressa os dardos se esgotariam, e os legionários teriam
que formar os testudos para o assalto, ficando ao alcance do bombardeamento do alto dos penhascos. Não havia tempo a perder. Cato apontou para a parede rochosa.
- Por aqui!
Assim que começou a ascensão, viu-se forçado a avançar de gatas, agarrado às rochas e à procura de pontos de apoio para os pés,
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puxando-se para cima com esforço. O peso da armadura e do escudo, pendurado da tira que lhe passava pelo ombro, depressa tornaram a subida uma tarefa extenuante,
e o frio e humidade que sentira havia pouco desvaneceram-se sem deixar rasto; o suor começou a pingar-lhe da testa, e o coração batia-lhe desalmadamente no interior
do peito.
Os Corvos Sangrentos já tinham subido metade da escarpa quando Cato ouviu a ordem para formar os testudos.
- Merda... - balbuciou. Festino e as três primeiras centúrias da sua coorte estavam quase a avançar para a garganta, mesmo por baixo das falésias de onde o inimigo
não hesitaria em de novo os reduzir a migalhas, muito antes de conseguirem alcançar a barricada e entrar em combate com os defensores nativos. Cato redobrou esforços,
tentando aumentar o ritmo de subida sem exagerar no risco de optar por apoios duvidosos mas que lhe permitissem trepar mais algum terreno. Avistou uma estreita cornija,
e mais acima o que parecia ser o topo da falésia, desenhado contra o céu que clareava a cada instante. Mal dera pelo fim da chuva, e que a água que ainda se mantinha
na superfície das rochas brilhava agora sob os primeiros raios de Sol.
Quando chegou à pequena plataforma, deixou-se cair sentado, a ofegar. Enquanto esperava que os outros se lhe juntassem, olhou para baixo e viu as fileiras distorcidas
pelo ângulo de visão, notando que os últimos homens já se juntavam aos testudos. Não mostravam qualquer pressa, e pouco depois Cato avistou o legado a aproximar-se
a cavalo e a gesticular vigorosamente na direção do centurião Festino. Este prestou uma saudação rápida e virou-se para berrar ordens que fizeram com que as três
centúrias começassem a avançar. Do ponto onde se encontrava, as formações pareciam escaravelhos segmentados que se dirigiam para a garganta.
Os primeiros dez dos homens de Cato já se tinham juntado a ele na plataforma, de faces vermelhas e respirações pesadas. Mas não havia tempo para descansarem.
- Vamos lá, rapazes. Um último esforço e estaremos no cimo. E trataremos da saúde àqueles cabrões, antes que façam mais estragos aos camaradas lá em baixo.
Não esperou por resposta; pôs-se de pé e procurou um apoio para a mão na parede acima. Graças à largura da cornija, os outros podiam escalar as rochas dos dois lados,
e assim conseguiriam atingir o cimo
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numa vaga em vez de um a um, notou Cato, aliviado. Nesse momento ouviu qualquer coisa a partir-se, sentiu a queda de uns torrões de terra, e ao virar-se deparou
com um dos seus homens a tentar freneticamente agarrar-se com uma mão, já que a rocha que deslocara deslizava pela cornija, e o ímpeto que levava fê-la atravessar
toda a plataforma. Logo a seguir soou um grito de alarme, que foi cortado de repente e seguido por um berro de desespero; a pedra em queda acertara num dos Corvos
Sangrentos mais abaixo, que se precipitara desamparado no vazio. Volteou pelo ar uns dez metros, antes de bater com o crânio num rochedo e se calar para sempre.
Mas os ecos dos seus gritos soavam ainda nas paredes da garganta.
- Continuem! - gritou Cato aos seus companheiros de subida, no tom mais alto a que se atreveu, temendo que a queda do infortunado auxiliar tivesse atraído a atenção
do inimigo no cimo da falésia. Os Corvos Sangrentos aperceberam-se do perigo, e todos tentaram acelerar a subida. Cato reparou que já estava a menos de três metros
do topo, e sentiu que as entranhas se tornavam mais leves com o alívio. Nesse instante, um relampejo de movimento ao canto do olho chamou-lhe a atenção e, ao virar-se,
avistou um vulto envolto em peles que olhava para ele e para os seus homens, a uns quinze metros de distância. O guerreiro esticou o braço, enquanto ao mesmo tempo
soltava um grito de alarme.
- Já nos descobriram! - soltou um dos auxiliares, o que fez os outros hesitar.
- Continuem! - instou Cato com toda a força, já que não fazia sentido tentar manter a discrição depois de terem sido localizados. - Subam! Subam!
Treparam num ritmo desesperado, enquanto o guerreiro inimigo corria pelo terreno irregular, a saltar de penedo em penedo, de espada em riste, a carregar sobre os
romanos. Alcançou o primeiro dos auxiliares precisamente quando o trácio se esforçava por chegar ao cimo das falésias. O homem percebeu o perigo, mas era demasiado
tarde, e só teve tempo para colocar o braço num esforço para se proteger do golpe que adivinhava. A lâmina do nativo faiscou à luz do Sol, e escutou-se um grunhido
profundo quando a pesada arma cortou a carne e esmagou o osso, quase decepando o membro antes de embater no ombro do auxiliar, cortando-lhe a respiração e fazendo
o sangue saltar do coto que ficara abaixo do cotovelo. Ao lado do soldado abatido, os seus camaradas
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trepavam a toda a pressa pelas pedras, tentando ao mesmo tempo soltar os escudos presos às costas e brandir as espadas antes que o guerreiro inimigo se pudesse virar
contra eles.
Cato olhou para trás do nativo e tentou apreender toda a situação. Havia cerca de vinte guerreiros a uns cinquenta passos daquele ponto, alinhados na borda da falésia,
com rochas pesadas nas mãos, prontos a lançarem-nas para o abismo de forma a que se fossem abater sobre os legionários que marchavam contra a barricada. Parecia,
no entanto, que ainda não tinham ligado aos gritos do homem da espada. Nesse momento, porém, ele levou a mão em concha à boca e berrou um novo aviso bem audível.
Os homens mais próximos viraram-se, olharam para ele e avistaram o punhado de romanos que surgia nas rochas, largando de imediato os projéteis que se preparavam
para atirar e avançando por entre os penedos para confrontar aquela ameaça à posição privilegiada que ocupavam no terreno. Sentindo-se apoiado pelos seus camaradas,
o primeiro guerreiro aumentou de audácia e enterrou a ponta da espada na parte de trás do pescoço da sua vítima, antes de a libertar e correr para o auxiliar mais
próximo. Já estavam cinco homens no cimo com Cato, e prepararam-se para lidar com o afoito guerreiro, enquanto o prefeito olhava para a parede da falésia, onde o
resto dos seus homens ainda se debatia com a subida.
- Ponham-se cá em cima! Foda-se, depressa!
Virou-se para se juntar aos outros, sobre quem o guerreiro já saltava, a espada a rasgar o ar num arco malévolo contra o primeiro auxiliar que encontrou pelo caminho.
Apesar da fadiga provocada pela longa escalada, o homem apresentou-lhe o escudo e forçou o golpe a desviar-se, antes de avançar sobre ele e desferir por sua vez
uma poderosa estocada. O nativo dobrou-se sobre si mesmo, empurrado pela potência do golpe. A ponta da espada irrompeu por entre a capa de peles que lhe cobria as
costas, depois de lhe cortar a espinha, e as pernas do homem dobraram-se, fazendo a espada tombar para o solo. O auxiliar aplicou um pontapé ao corpo, lançando-o
sobre as rochas, e firmou um pé contra o esterno do cadáver, para libertar a sua espada.
- Bem feito! - Cato deu uma palmada no ombro do auxiliar, antes de desembainhar a sua própria espada e preparar o escudo, enquanto os seus homens se iam agrupando
à sua volta. Nas suas costas ainda escutava os grunhidos e impropérios dos outros Corvos Sangrentos a
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chegarem ao cimo e a debaterem-se para se porem de pé e se juntarem aos seus camaradas para enfrentar o inimigo. Quando um deles fez menção de avançar, Cato repreendeu-o.
- Mantenham a posição! Esperem que estejam cá todos em cima.
Quando por fim o último elemento do esquadrão alcançou o topo da falésia, o mais adiantado dos guerreiros nativos tinha-se detido a curta distância do grupo, não
mais do que o comprimento de uma lança. De expressão selvagem no rosto, a avaliar os trácios, a espada numa mão e na outra o pequeno escudo que muitos celtas usavam
habitualmente. À medida que os seus companheiros se lhe juntavam, com a mesma expressão determinada, o homem fixou o olhar em Cato e lançou um grito de guerra, de
boca escancarada, os lábios arreganhados e os dentes bem à mostra, e depois carregou sobre ele. Cato mal teve tempo para colocar o escudo em posição de absorver
o primeiro golpe. Este acertou na orla do escudo oval e, apesar da força com que Cato o agarrava, fê-lo rodar, de tal forma que o peito do prefeito ficou exposto
ao empurrão brutal que o outro aplicou com o seu próprio escudo. Cato usou a guarda do punho da sua espada para o deter, e prosseguiu com uma estocada quase inútil,
que se limitou a fazer deslizar a lâmina ao longo da cota de malha que o nativo envergava. Ainda assim, foi o suficiente para o obrigar a recuar um passo; os dois
homens recuperaram a sua posição e enfrentaram-se com o olhar. Cato estava ciente dos combates singulares que se travavam ao redor, enquanto os seus homens e os
nativos se digladiavam pela posição no alto das falésias. O constante entrechocar e retinir de lâminas, e os estrondos dos golpes que embatiam nos escudos, misturavam-se
com os impropérios e gritos dos combatentes.
O homem que o enfrentava adotou uma posição semiagachada, atento a qualquer avanço do prefeito. Este sorriu de forma ameaçadora, reconhecendo que a iniciativa passara
para as suas mãos, e avançou rapidamente, dando um passo com o pé esquerdo e oferecendo o escudo, obrigando o inimigo a desferir um toque de espada para manter a
posição. Cato deixou o escudo absorver o choque e voltou a avançar. A espada do outro movimentou-se de novo, para desviar o gládio. Quando o braço do homem seguiu
o movimento da espada, abriu-se um espaço que Cato aproveitou para investir sobre o corpo. No último momento baixou a cabeça, de forma a atingir com toda a força
o rosto do guerreiro com a parte mais reforçada do capacete. O impacto foi feroz e quase
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deslocou o pescoço de Cato, mas o ataque inesperado teve o resultado pretendido, e o homem recuou, vacilante e ferido; demasiado atordoado para se salvar quando
Cato lhe cravou a espada na garganta e a fez dançar, provocando uma verdadeira fonte de sangue. O homem deixou cair a espada e levou uma mão ao pescoço, enquanto
tombava de joelhos, a gargarejar de forma horrível.
Cato deixou-o para trás e procurou outro adversário. À sua volta, os homens das duas fações estavam quase todos envolvidos em combates singulares. Aqui e ali havia
duelos mais desequilibrados, e alguns aproveitavam a confusão que se gerara para atacar um inimigo pelas costas, assim que viam a oportunidade. Não havia ali nenhum
indício de etiqueta à maneira dos gladiadores: era matar ou ser morto. Cato atraiu o olhar de um guerreiro alto e de feições escuras, de cabelo apanhado, preso numa
tira de cabedal. Empunhava um machado de cabo longo que brandia com as duas mãos, e fê-lo descrever um arco no ar enquanto encarava Cato. Os braços poderosos mostravam
o trabalho dos músculos enquanto o machado se movia cada vez mais depressa, até que ele se lançou sobre o prefeito ao mesmo tempo que deixava escapar dos pulmões
um profundo rugido.
Cato já tinha visto os estragos que uma arma daquele género era capaz de provocar, e agachou-se, ao mesmo tempo que se protegia com o escudo. De imediato a sua defesa
explodiu numa chuva de estilhaços, a orla de bronze destruída, o couro reduzido a tiras. O impacto quase o fez perder a pega do escudo, mas firmou-se a tempo de
não se permitir ser arrastado pela destruição. A cabeça do machado afastou-se, levada pela própria inércia, e ele aproveitou a oportunidade, golpeando a perna do
opositor com a espada e prosseguindo com vários golpes dirigidos à fraca proteção proporcionada pelas botas, tentando esmagar-lhe os ossos dos pés. O outro soltou
um urro de agonia e fúria, enquanto recuava a cambalear. Tinha perdido o ímpeto do ataque, e o novo golpe do machado revelou-se fraco, de tal forma que o que restava
do escudo de Cato conseguiu absorver o choque sem problemas. Voltou a avançar, obrigando o outro a apoiar-se no pé ferido. O movimento provocou-lhe um berro e um
grunhido de dor, e o homem acabou por cair de costas, deixando escapar o machado, que se estatelou entre as rochas.
Cato manteve o escudo já danificado em posição e a espada em riste, enquanto avaliava a situação. Os Corvos Sangrentos estavam a dar boa
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conta de si: apenas três homens jaziam no solo, contra vários elementos inimigos já abatidos. Do outro lado da garganta, no cimo da falésia oposta, viu o outro grupo
de guerreiros nativos a lançar as primeiras pedras sobre o testudo mais adiantado. Deixou escapar uma maldição. Onde raio estariam o Harpex e os seus homens?
Avistou então um homem encorpado e mais velho, de capacete, que distribuía ordens e encorajava os seus camaradas. O líder inimigo abriu caminho até à frente de combate
e levantou a espada para atacar o auxiliar à sua frente. O soldado reagiu por instinto erguendo o escudo, o que provocou apenas um sorriso feroz ao guerreiro tribal,
que agarrou a orla do escudo com a outra mão e o lançou para o lado antes de voltar a ameaçar com a espada. A pesada lâmina esmagou o capacete de bronze do trácio,
atravessando-lhe o crânio até ao queixo. O nativo libertou a arma e afastou o corpo do outro com um pontapé, ao mesmo tempo que soltava um grito de triunfo e fazia
dançar ao alto a espada ensanguentada, de maneira a que os seus homens a vissem bem.
Cato engoliu o medo que sentia, avançou e falou em tom calmo e forte, para que os seus homens o ouvissem claramente.
- Velho, não passas de uma grandessíssima bosta malcheirosa, e sou eu quem vai acabar contigo. Sou o prefeito Marco Licínio Cato, comandante dos Corvos Sangrentos.
- Repetiu o nome da coorte no pouco que sabia do dialeto siluro, que aprendera com mercadores nativos que tinham feito visitas comerciais ao forte. Sentiu uma ponta
de satisfação quando notou os olhos do homem a arregalarem-se momentaneamente perante a menção da unidade cujos ataques impiedosos no coração do território inimigo
tinham granjeado uma reputação assustadora entre as tribos das montanhas mais a sul.
O guerreiro levou um instante a recuperar a sua compostura, e ele rosnou insultos na direção de Cato; o desprezo em que envolvia as palavras era bem evidente para
todos os soldados romanos. Os seus camaradas aclamaram-no enquanto, no caso de muitos deles, continuavam a trocar golpes com os trácios. Quase que por acordo tácito,
abriu-se um espaço ao redor dos dois líderes, que avançaram cautelosamente até ficarem à distância de um golpe, enquanto se avaliavam mutuamente. Cato verificou
que o seu adversário já estava na curva descendente da vida, mas que não tinha falta de músculos, acompanhados embora de traços de uma vida repleta. Tinha padrões
azuis tatuados nos braços nus,
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e várias áreas de tecido branco cicatrizado atestavam as muitas batalhas que devia ter travado.
Cato apresentou o escudo, espreitando por cima da orla desfeita, e colocou a espada à altura do queixo, com a ponta bem assestada ao rosto do outro. Era tanto um
gesto de desafio como uma ameaça, e os lábios do veterano guerreiro torceram-se de desdém enquanto ele erguia a sua longa espada e dava ao escudo um forte empurrão.
Cato reagiu de imediato, pressionando com o escudo sobre a espada do outro, tentando afastá-la, de forma a poder avançar para aplicar uma estocada com a sua espada
bem mais curta. Mas o nativo era mais ágil do que parecia, e manteve-se à distância, recuando três passos rápidos para ter espaço para ripostar com ar decidido,
concentrando golpes na parte destroçada do escudo e impedindo Cato de contra-atacar, mantendo-se focado apenas em bloquear o assalto. Cada pancada aumentava a fenda
do escudo oval e provocava novo estilhaçar, o que o enfraquecia. O prefeito optou por se deslocar num círculo, de tal forma que levou a que as costas do guerreiro
ficassem viradas para o abismo, e deixasse de haver espaço disponível para ele recuar quando Cato voltasse a avançar.
O outro fez uma ligeira pausa para respirar, o peito a arfar devido ao frenesim que pusera no ataque, mas manteve o olhar fixo em Cato e a espada em movimento, rodando
devagar no ar, ameaçadora. Uma repentina aberta entre as nuvens inundou o vale de sol, e o nativo piscou os olhos perante a súbita claridade. Cato saltou para a
frente, optando desta vez por golpes alternados do escudo e da espada, desviando as tentativas de bloqueio. O seu opositor estava de tal forma concentrado na defesa
dos seus golpes que só no último instante se apercebeu de que tinha sido empurrado até à borda da falésia. Um dos seus homens gritou um aviso, e ele arriscou uma
espreitadela para trás; Cato aproveitou o ensejo, colocando todo o peso por trás do escudo e lançando-o contra o corpo do outro, fazendo-o perder o equilíbrio. O
calcanhar do homem escorregou na borda, e ele largou a espada e agarrou no escudo de Cato, puxando com toda a sua força. Cato foi apanhado de surpresa e sentiu-se
puxado, mas conseguiu soltar a pega do escudo e recuar mesmo a tempo. O escudo voou pelo ar e o homem imitou-o, a rodopiar e a gritar de desespero até embater numa
rocha protuberante e ressaltar, já morto, a rodar pelo ar em silêncio até à base da falésia, como se fosse a boneca de trapos de uma criança.
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Os seus seguidores ficaram imóveis, em choque. Antes que pudessem recuperar o ânimo, Cato soltou uma ordem para os seus homens.
- Recuem! Imediatamente!
Os Corvos Sangrentos afastaram-se e reagruparam-se, avaliando o inimigo com todo o cuidado, enquanto Cato se virava para os nativos e falava com ar autoritário.
- Larguem as armas! Já! - Apontou para a própria espada e espetou um dedo para o chão. - Agora!
Havia pelo menos uns dez nativos ainda de pé, e a princípio nenhum deles fez menção de obedecer, embora Cato percebesse que estavam indecisos e temerosos. Embainhou
a sua espada e aproximou-se do mais próximo, um jovem que empunhava uma lança nas duas mãos trémulas. Contornou lentamente a ponta acerada e arrancou calmamente
a haste das mãos do rapaz.
- Senta-te.
O outro assentiu, e deixou-se cair para o solo. Deu-se uma breve pausa antes de os outros o imitarem, depositando as armas no solo à sua frente. Cato virou-se para
Corvino.
- Deixa aqui cinco dos teus homens para recolher as armas e as lançar pela falésia, e depois a guardar os prisioneiros. Se eles derem problemas, mandem-nos pelo
mesmo caminho que o seu líder seguiu.
- Sim, senhor.
Deixou Corvino a distribuir ordens aos guardas designados e conduziu o resto dos homens até à borda da falésia, sobre a garganta. Enquanto escolhiam caminho por
entre o terreno acidentado, escutaram um grito de alarme na plataforma oposta, e Cato viu Harpex e os seus homens a alcançarem por fim o cimo e a formarem uma linha
de combate para enfrentar o outro grupo de guerreiros inimigos. Não havia nada que pudesse fazer para os ajudar, pelo que se dirigiu à borda, onde ainda se viam
pilhas de pedras prontas a serem usadas. Espreitou lá para baixo e notou que o primeiro testudo começava a desfazer-se à medida que atingia a barricada e que os
homens começavam a trepar pelas rochas para alcançar os defensores. Vários legionários tinham sido abatidos antes de a intervenção de Cato ter interrompido o lançamento.
O segundo testudo estava a passar mesmo por baixo daquele ponto, ainda sem saber que o alto das falésias já tinha sido tomado pelos Corvos Sangrentos.
Dali, Cato tinha uma vista desimpedida sobre os defensores por trás
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da barricada, e reparou que eram mais numerosos do que tinha pensado; pelo menos uns quatrocentos guerreiros, formados numa massa pronta a defender a garganta. Pelo
meio deles distinguiu alguns vultos de vestes escuras e capas longas, a esbracejar e a gritar encorajamentos aos seus homens, enquanto distribuíam maldições várias
sobre os romanos. Druidas, percebeu. O inimigo tinha seguramente a intenção de se defender com vigor, e de manter a posse daquela passagem durante algum tempo.
Sorriu para si mesmo e virou-se rapidamente para os homens que o tinham seguido até junto da borda.
- Guardem as espadas e ponham os escudos no chão! - Assim que os homens cumpriram a ordem, apontou para as pedras. - Vamos devolver-lhes o favor. Rapazes, não poupem
aqueles cabrões.
Pegou ele mesmo numa pedra que parecia um melão pequeno, levou-a pela borda até ficar sobre a parte de trás da barricada, e lançou-a pelo abismo. Ficou a vê-la a
girar pelo ar, a diminuir de tamanho, e depois a embater num escudo, a deslizar e a tombar para o solo. Rosnou de frustração e foi buscar outro projétil, enquanto
os trácios davam largas à sua sede de vingança, fazendo chover sobre o inimigo inúmeros pedregulhos, soltando gritos de alegria ou deceção consoante acertavam nos
nativos ou falhavam. Cato apontou o melhor possível antes de lançar outra pedra, para a zona onde a força inimiga era mais densa, e desta vez foi recompensado com
um impacto direto no cimo da cabeça de um homem. O guerreiro caiu como se tivesse sido atingido por um martelo que o quisesse cravar no solo. Alguns dos que o ladeavam
olharam para cima, os rostos nada mais do que manchas brancas rodeadas de cabelo escuro. Assim que viram os auxiliares em cima, começaram a apontar e a lançar avisos
aos companheiros. Vários deles foram entretanto esmagados pelas pedras que lhes caíam em cima, e depressa se instalou a confusão na horda nativa, já que os homens
tentavam evitar os arremessos e pouca atenção davam ao combate que se travava ao longo da barricada.
Cato avistou um dos druidas a correr para a frente, incentivando os guerreiros a oporem-se aos legionários que tentavam ultrapassar a barricada. Já tinha reunido
alguns homens quando também ele foi abatido, o crânio desfeito e o corpo esparramado, braços e pernas abertos junto à ruína sanguinolenta que em tempos fora a cabeça.
Ver um dos druidas assim fulminado afetou claramente os nervos dos nativos, que começaram a romper fileiras e a recuar em desalinho pela garganta até
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alcançarem um espaço aberto, onde estavam a salvo dos projéteis. O pânico espalhava-se velozmente, e depressa os defensores se viram reduzidos a um punhado de homens
que travavam um combate desesperado e desigual ao longo da barricada. Em menor número, sem a mesma capacidade de combate dos soldados treinados e equipados para
a guerra como nenhuns outros homens do mundo conhecido, os nativos começaram a ceder e foram obrigados a afastar-se da barricada assim que os primeiros romanos chegaram
ao cimo e forçaram a passagem.
Cato virou-se para os seus homens e gritou:
- Já chega, rapazes! Larguem essas pedras antes que acertem nos nossos legionários.
Depois de terem gozado a oportunidade de dar aos inimigos o mesmo tratamento, foi com relutância que os trácios deixaram as pedras e ficaram a ver os homens da Primeira
Centúria a criarem uma abertura na barricada com largura suficiente para mais homens a atravessarem e se empenharem no combate do outro lado. O resultado da refrega
deixara de estar em dúvida e, pouco depois, um corno de guerra nativo fez soar três notas. De imediato, os combatentes que ainda lutavam afastaram-se dos legionários
e correram para se reunir aos seus camaradas para lá da garganta. Um dos druidas sobreviventes apontou para a vertente que ladeava o vale, e os deceanglos começaram
a subir o talude. Ao vê-los retirar, Cato apressou-se a dirigir-se à falésia sobranceira à coluna romana, e levou a mão em concha à boca.
- Miro! Decurião Miro!
Os homens da retaguarda olharam para cima, e uma aclamação subiu-lhes nas gargantas ao verem o prefeito na posse da posição inimiga. Cato avistou o legado e o seu
estado-maior, e depois distinguiu Miro junto ao esquadrão mais adiantado de cavaleiros trácios.
- Miro! Monta e persegue-os! Derruba-os, antes que consigam escapar.
Se o decurião tinha realmente compreendido a ordem e respondido, Cato não percebeu, mas ficou satisfeito por ver Miro saltar para a sela e conduzir os Corvos Sangrentos
a trote pela garganta. Passaram pela barricada e abriram uma frente larga do outro lado, de longas espadas de cavalaria em riste, prontas a derrubar qualquer inimigo
que encontrassem. Os que tinham sido feridos e tentavam alcançar a segurança numa marcha mais lenta foram os primeiros a ser despachados sem piedade.
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Os outros tinham começado a subir a encosta, e Cato apercebeu-se da razão por que os seus líderes tinham escolhido um terreno tão difícil para tentar a fuga. A inclinação
do talude, e as muitas zonas de pedra solta, tornavam praticamente impossível o avanço a homens montados, e compreendeu que a perseguição aos nativos que recuavam
ficaria por ali. Era frustrante, mas recordou-se de que pelo menos o caminho do exército voltava a estar desimpedido e a coluna podia prosseguir o seu avanço. Ou
teria podido, se fosse mais cedo. Ao reparar na posição baixa do Sol, Cato calculou que faltavam poucas horas até que caísse a escuridão. Quintato ver-se-ia forçado
a dar ordem de alto daí a pouco, para dar tempo a que os homens construíssem um campo para passar a noite.
O inimigo tinha alcançado o seu propósito, concluiu Cato, enquanto os via a fugir. Tinha sido uma ação clássica, pensada para atrasar o avanço do exército romano.
Tinham conseguido detê-lo durante metade do dia, provocando um razoável número de baixas. Mais importante, tinham conseguido o tempo de que necessitavam para implementar
os seus planos de contrariar a progressão romana. Sentiu um arrepio de frio na nuca perante a possibilidade de os druidas e os seus aliados deceanglos terem algo
planeado, e Quintato estar a fazer precisamente o que eles queriam. Sorriu amargamente para si mesmo. Claro que haviam de tentar impedir o avanço romano. Aquela
era a sua terra, a sua casa, e para os druidas Mona era o mais sagrado dos solos. Aproveitariam toda e qualquer oportunidade para manter os romanos longe dali. Haveria
novas tentativas de os deter pelo tempo suficiente para que a chegada do inverno forçasse Quintato a retirar das montanhas. Ia ser uma campanha dura, sabia-o. Com
combates a cada passo. A brutal refrega que acontecera ali naquela tarde fora apenas a primeira amostra do que os esperava mais à frente.
O calor do Sol durante toda a tarde fazia com que se soltasse vapor das túnicas dos homens que o rodeavam, de tal forma que pareciam fumegar. Quando notaram o efeito,
os soldados começaram a rir, gozando uns com os outros, da forma que os homens aproveitam qualquer distração para soltar os nervos depois de uma ação desesperada
contra o inimigo. Apesar da disposição sombria que se tinha apossado do seu espírito, Cato deixou que eles prosseguissem naquela via. Mais uma vez os Corvos Sangrentos
tinham demonstrado o seu valor, e mereciam bem um pequeno momento de descontração.
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- Ei, optio! - lançou um dos homens. - Como parece que estão a distribuir promoções a esmo pelas fileiras, acha que podia dar uma palavrinha por mim? Estou fartinho
de mirar o rabo da besta que segue à minha frente na coluna.
Os outros homens da patrulha soltaram uma gargalhada em coro, e Pandaro virou-se na sela para lançar um olhar severo ao longo da fila que seguia pela estreita vereda.
- Diomedes, se alguma vez te promoverem, os outros homens terão grande dificuldade para te distinguir do animal em que estarás montado. E o exército não conseguiria
aguentar uma confusão tamanha.
Os homens voltaram a rir, desta vez às custas do seu camarada, e depois de uma brevíssima pausa o próprio Diomedes se juntou à risada, ansioso por mostrar que era
capaz de aguentar piadas em que era ele o alvo.
Já tinha decorrido um mês desde que o optio Pandaro fora promovido à sua nova patente, mas ainda continuava a ser alvo de piadinhas dos seus ex-camaradas das fileiras.
A coisa começava a tornar-se realmente difícil de aturar, refletiu, enquanto dava um toque nas rédeas. Conduzia mais uma patrulha pelos caminhos da floresta, seguindo
um trilho que subia uma das faces do vale até uma crista proeminente. Nos últimos dias o céu tinha-se apresentado quase sempre limpo. Mas a mudança no tempo fora
acompanhada de uma brusca descida de temperatura, e as geadas matinais eram muito difíceis de aguentar. Já era quase meio-dia, mas o Sol não subia muito no céu,
e oferecia muito pouco calor.
As nuvens e as neblinas tinham-se dissipado, e do cimo da crista rochosa Pandaro esperava conseguir ter uma vista desimpedida sobre toda a paisagem em redor. Seria
magnífico ter algo de interesse a relatar ao centurião quando a patrulha regressasse ao forte ao final do dia
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- em vez dos habituais avistamentos de miúdos que conduziam rebanhos e fugiam a sete pés quando os notavam, e as aldeias já abandonadas quando as encontravam. Por
vezes ainda avistavam mulheres e crianças a desaparecer na floresta, mas dos homens nem sinal. Isto preocupava tanto Pandaro como o comandante do forte, já que queria
dizer uma coisa apenas: que os homens tinham partido para travar a guerra algures. Talvez contra tribos rivais ou, muito mais preocupante, podiam estar a reunir-se
para lançarem ataques aos postos romanos mais próximos.
Apesar de tudo, refletiu, ainda não tinha havido sinais de que ia haver problemas, e a guarnição do forte não fora incomodada. O que era ótimo, dado o miserável
estado dos auxiliares ilíricos que tinham sido enviados para substituir os Corvos Sangrentos e a coorte da Décima Quarta Legião. Apesar do intenso treino a que tinham
sido submetidos nos últimos dias, mal seriam capazes de oferecer uma resistência simbólica contra um ataque determinado do inimigo. Pandaro não podia deixar de se
interrogar se aquela unidade seria um exemplo típico das formações de reserva que tinham sido chamadas a avançar para guarnecer os postos fronteiriços, privados
dos combatentes de valor quando fora necessário preencher as fileiras do exército que avançava naquele preciso momento pelo coração das montanhas. Se fosse esse
o caso, a primeira linha de defesa da nova província estava francamente debilitada.
Apesar da sua reduzida importância na hierarquia militar, Pandaro tinha uma clara compreensão do problema que permanentemente afligia todo e qualquer comandante
romano desde que a invasão da Britânia tivera início. E que consistia no dilema de ser necessário concentrar todas as forças disponíveis de cada vez que se tentava
conquistar novo território ou se enfrentava uma ameaça, enquanto, ao mesmo tempo, era necessário dispersá-las para manter o controlo de todo o território já conquistado.
Fosse como fosse, a iniciativa acabava nas mãos do inimigo, que podia flagelar as defesas fronteiriças e depois retirar para as montanhas assim que surgia uma força
romana considerável, para voltar a sair do esconderijo e continuar com o mesmo género de ataques quando o perigo se dissipava. Era o tipo de guerra que os deceanglos
e os seus aliados praticavam com toda a eficácia, e que resultara em longos anos de desgaste, de avanços e recuos da fronteira. A única verdadeira fraqueza das tribos
nativas era o ocasional desejo dos seus líderes de saciarem a sua sede de glória, que os conduzia a atreverem-se a enfrentar
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os romanos numa batalha em linha. Fora isso que provocara a captura de Carátaco, e a seu tempo seria o fim dos que lhe tinham sucedido. Pelo menos era com isso que
o comando romano contava, pensou.
- Devíamos começar a regressar ao forte - sugeriu Diomedes, interrompendo-lhe os pensamentos. - A este ritmo, vai escurecer antes de lá chegarmos.
- Estamos com medo do escuro, é? - gozou outro dos cavaleiros.
- Talvez estejas na coorte errada, Diomedes. Pareces mais um daqueles ilíricos do que um Corvo.
Pandaro olhou para trás por cima do ombro e viu Diomedes a deter o cavalo e deixar-se ficar a par do homem que proferira aquelas palavras, com uma expressão de fúria
no olhar.
- Olha, pá, vai-te foder com essa história. Voltas a confundir-me com um desses cabrões inúteis e arranco-te a cabeça dos ombros.
O outro ergueu uma mão e fez menção de se afastar de Diomedes.
- Tem lá calma! Eu só disse que parecias um deles com essa conversa.
- Chega! - irritou-se Pandaro. - Diomedes, mexe-te. Encetaremos o regresso ao forte quando eu determinar. Não antes. E agora, e isto vale para todos, bicos calados,
e olhos e ouvidos alerta. Estamos em pleno território inimigo, e será bem melhor que os vejamos a eles antes que eles nos topem a nós.
Os homens acataram a ordem, e a patrulha prosseguiu pela vereda em silêncio. Estavam a atravessar um pequeno pinhal, repleto de sombras que pareciam fazer diminuir
o espaço, e Pandaro sentiu um ligeiro arrepio na base do pescoço. Percebia a razão para a tagarelice de origem nervosa dos homens, a necessidade que sentiam de aliviar
a tremenda tensão provocada pela sucessão de patrulhas pelas terras inimigas. A natureza acesa do conflito entre Roma e as tribos das montanhas significava que poucas
ilusões podiam ficar quanto ao destino de qualquer soldado romano que tivesse a desdita de ser capturado vivo. Os celtas tinham algum prazer em decorar as suas cabanas
com as cabeças dos inimigos derrotados.
Os cascos dos cavalos pisavam suavemente o solo, coberto por um tapete de caruma. O único som que se escutava era o suave assobio da brisa nas copas das árvores
mais próximas da crista, e o crocitar dos corvos que deslizavam no céu como flocos de cinza negra, muito acima das
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rochas que marcavam o topo da colina. Daí a pouco o trilho alargou e saiu do meio das árvores, e Pandaro viu a crista a poucas centenas de metros. Sentia-se aliviado
por estar de novo em terreno aberto, e decidiu que vigiariam rapidamente o vale do outro lado da crista e depois voltariam para a segurança do forte. Ao aproximarem-se
da crista, refreou a montada e deu sinal de alto à patrulha. Passou a perna sobre a sela e deixou-se deslizar para o solo. Fez uma festa no flanco do cavalo, para
o acalmar.
- Desmontem - ordenou, antes de entregar as rédeas do seu animal a Diomedes. - Todos calados e tranquilos enquanto eu não regressar, sim? Isto vale para todos.
Diomedes inclinou a cabeça, num sinal de respeito mas também de gozo.
- Será feito como ordena o nosso optio.
- É isso mesmo, soldado. E não te esqueças disso.
Pandaro pensou em levar a lança e o escudo, mas afastou a ideia. O seu papel era observar, não envolver-se em qualquer combate. Afagou a espada que trazia à cintura,
um gesto de superstição e hábito, e dirigiu-se a passos largos para a crista, seguindo pelo trilho marcado. O vento aumentou de intensidade, soprando sobre a crista
praticamente nua, onde só alguns tufos de erva entre as rochas tentavam sobreviver, e Pandaro estremeceu de frio enquanto encolhia o pescoço de forma a mantê-lo
entre as dobras da capa. Tinha crescido nas montanhas da Trácia, e estava habituado ao agreste inverno dessa região, onde imperava o frio. Só os mais resistentes
dos animais circulavam pela paisagem, mas as pessoas ficavam nas suas tendas junto às fogueiras, aconchegadas, enquanto lá fora reinavam a neve, o gelo e o vento.
Ali na Britânia as coisas não eram muito diferentes. Pandaro e o resto da guarnição iam passar a maior parte do inverno nas casernas, à exceção dos turnos de sentinela
ou do cumprimento de outros serviços na guarnição. Lançou uma rápida prece aos deuses, pelo resto da coorte, para que Quintato conseguisse rapidamente esmagar os
deceanglos e os druidas, e regressasse para o interior das muralhas de Viroconium antes que a neve começasse a tombar.
Tinha a respiração mais pesada quando alcançou a crista, e o vapor que se exalava da sua boca afastava-se em torvelinhos que se dissipavam rapidamente; começou a
perscrutar o vale adjacente ao que a patrulha tinha estado a percorrer. A encosta era íngreme e florestada, e só muito
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mais abaixo o terreno se tornava mais plano. O seu olhar foi de imediato atraído por uma grande extensão de terreno aberto e cultivado. A meio dessa área viam-se
um pequeno fosso e paliçada que circundavam algumas cabanas grandes e vários pequenos redis para o gado. Das cabanas soltavam-se penachos de fumo, mas não havia
sinal de movimentos: só se avistava uma mulher solitária a partir lenha. Ainda assim, Pandaro considerou prudente descer uma curta extensão da vertente, de forma
a não se destacar contra o céu, se por acaso alguém lá em baixo se lembrasse de olhar na direção da crista. Avistou um aglomerado de penedos e instalou-se entre
eles para se proteger do vento enquanto continuava a observação. Daí a pouco lobrigou um pequeno grupo de vultos, ao que lhe pareceu crianças, que chegavam carregadas
de mais lenha para as fogueiras da aldeia. Mas continuava a não haver sinais de qualquer homem.
Levou as mãos até junto da boca e soprou ar quente sobre elas, antes de as esfregar vigorosamente. Havia pouco a relatar sobre o que via. A aldeia não constituía
qualquer ameaça, e até poderia render alguns escravos, se o centurião Macro pudesse ser persuadido a autorizar um ataque rápido. Sendo o comandante interino da guarnição,
Macro teria direito ao maior quinhão do valor de quaisquer cativos, e o próprio Pandaro conseguiria recolher uma boa maquia para juntar às suas poupanças. Talvez
o suficiente para fazer uma contribuição decente para o fundo dos funerais, de forma a um dia ter direito a uma lápide que lhe fizesse justiça, em vez da habitual
campa rasa, com uma inscrição apressada, que era aquilo a que a maior parte dos soldados comuns podia aspirar para relembrar as suas vidas.
O optio observou tempo suficiente para concluir que a aldeia nativa era defendida apenas por mulheres e crianças, e constituía um alvo fácil. Preparava-se para deixar
o seu nicho entre as rochas e regressar para junto dos homens quando notou um movimento no limite da floresta que cobria parte da vertente mais abaixo. Um cavaleiro
solitário emergiu para o terreno aberto, de manto e armadura, com alforges de comida para a montada pendurados por trás da sela. Às costas trazia um escudo, e na
mão direita empunhava uma lança. Não podiam ficar dúvidas de que se tratava de um membro da casta dos guerreiros nativos. Daí a momentos outro guerreiro saiu do
meio das árvores, e depois outros, formando uma coluna que se esticou a partir da orla da floresta como se
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fosse a cabeça de uma formidável serpente. A princípio, Pandaro pensou que se trataria de um grupo de caça que estivesse de regresso à aldeia, mas não paravam de
surgir guerreiros, centenas deles. Não era nenhum pequeno bando de guerreiros, compreendeu, enquanto o frio se começava a espalhar pelo seu corpo, a partir da nuca.
O último dos cavaleiros saiu do meio das árvores, e surgiu então a frente de uma coluna de infantaria, todos envolvidos em peles e brandindo um sortido de armas,
escudos, lanças, espadas e machados. Alguns pareciam mesmo envergar armaduras, capacetes e caneleiras romanas, provavelmente adquiridos depois de alguma emboscada
e subsequente destruição de patrulhas romanas. Pandaro continuou a ver a coluna inimiga a estender-se pelo fundo do vale. Não podiam restar quaisquer dúvidas: era
uma força poderosa, que marchava para norte, de forma a intercetar o avanço do exército do legado Quintato. Compreendeu de imediato o significado das movimentações
inimigas, e percebeu que tinha que regressar ao forte e apresentar o seu relatório sem mais delongas.
Preparava-se para se pôr de pé quando ouviu um cavalo a resfolegar ali perto, e estacou de imediato. Levou rapidamente a mão ao punho da espada e respirou fundo
enquanto espreitava por detrás do penedo que o protegia do vento. Aproximava-se um cavaleiro. Um guerreiro nativo, barbudo, envolto em peles. O cavalo dele era uma
daquelas pequenas mas robustas montadas, as preferidas das tribos das montanhas, e soltou um relincho breve quando o cavaleiro a forçou a seguir pela encosta. Pandaro
recuou para a proteção da rocha, furioso consigo mesmo por ter retardado o regresso para junto da patrulha. Devia ter percebido que o inimigo também teria os seus
batedores espalhados pelo terreno em redor da coluna, sobretudo se fosse sua intenção aproximar-se do exército romano sem ser detetado.
Considerou se seria melhor tentar que o outro passasse sem o notar e só depois regressar para junto dos seus homens, mas depressa percebeu que, se o batedor inimigo
escolhesse seguir pela crista, não deixaria de reparar nos auxiliares que aguardavam o comandante da patrulha, e depressa daria o alarme. Com um melhor conhecimento
do terreno e cavalos mais adequados a percorrê-lo, o inimigo teria grande hipótese de alcançar a patrulha. Não tinha portanto escolha. Precisava de resolver aquele
problema. E seria melhor capturar o batedor inimigo vivo, se
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tal fosse possível, para obter informações sobre as verdadeiras intenções daquela coluna.
Soltou o punho da espada e levou a mão à sacola que tinha ao ombro, para procurar a manápula de ferro comprada em Londinium, para ter alguma vantagem nas cenas de
pancadaria que irrompiam frequentemente entre grupos de homens pertencentes a unidades rivais, de folga e bem bebidos. Meteu os dedos por entre os anéis e cerrou
o punho. O cavaleiro passava pelas rochas, e o suave caminhar do animal preenchia-lhe os ouvidos. Notou o cheiro acre do suor de cavalo e o ainda mais ácido fedor
do guerreiro inimigo. O focinho, a cabeça e o flanco do animal surgiram-lhe à vista, e ele fincou os pés, pronto a saltar sobre o adversário. As botas resvalaram-lhe
ligeiramente nas pedras soltas e o cavalo assustou-se, fazendo o cavaleiro olhar para Pandaro, com tanto espanto que o queixo lhe descaiu.
Pandaro irrompeu de detrás do penedo e lançou-se sobre o outro, agarrando-o pelo braço e fazendo-o cair da sela. O guerreiro mal teve tempo de soltar um grito de
surpresa, antes de o optio lhe aplicar um murro na têmpora. O punho escorregou, e abriu uma ferida no escalpe do homem. Os dois envolveram-se num abraço e rolaram
pela encosta, enquanto o cavalo se empinava e fugia. Pandaro lutou com todas as forças para continuar a controlar o braço do outro e o impedir de brandir a espada,
tentando equilibrar-se com o outro braço e fincar as botas no terreno. O nativo depressa recuperou da surpresa e lançou uma série de golpes com a mão livre e com
os pés, tentando acertar no corpo do optio. O sangue escorria do rasgão que tinha no escalpe e salpicou a face do romano enquanto continuavam a lutar.
A mão livre do guerreiro subiu, os dedos bem esticados para tentar agarrar o pescoço de Pandaro. A dor explodiu-lhe na garganta, e ele forçou o queixo para baixo,
para evitar que o outro o estrangulasse. Conseguiu levar a mão atrás, convocar todas as suas forças e desferir novo murro com o punho reforçado no estômago do opositor,
fazendo-o soltar o ar dos pulmões. O hálito quente do outro atingiu-o no rosto. Por momentos o aperto no seu pescoço aliviou, e ele soltou-se, abrindo um espaço
entre os corpos dos combatentes. Voltou a atacar, diretamente à face do outro, e o instrumento de ferro acertou-lhe no nariz largo e esmagou o osso. Os olhos do
nativo esbugalharam-se de agonia e fúria, e os dentes amarelados surgiram num rosnido selvagem, enquanto
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o sangue fluía das narinas. Pandaro voltou a recolher o punho e lançou novo murro, pondo todo o seu peso por trás, atacando novamente a têmpora. Atingiu-a em cheio,
e a cabeça do guerreiro saltou para o lado, enquanto os membros se esticavam antes de o corpo ficar inerte, derramado sobre os tufos de erva na encosta.
Pandaro agachou-se sobre o outro, de punho preparado, mas notou que ele estava inconsciente e começou a erguer-se, de respiração ofegante. Assim que recuperou o
fôlego, endireitou-se e retirou o punho de ferro ensanguentado da mão ainda tremente, devolvendo-o à sacola. O cavalo do nativo tinha ficado ali perto, e fitava-o
com evidente apreensão, as orelhas a tremelicar.
- Calma, rapaz, calma. - Pandaro falou devagar e calmamente, enquanto se aproximava lentamente do animal. Pegou nas rédeas e afagou o focinho da montada até que
o animal se acalmou o suficiente para se deixar conduzir até junto do seu cavaleiro que jazia no solo. Pandaro cortou tiras da túnica do homem e usou-as para lhe
amarrar mãos e pés, antes de o amordaçar e o lançar por cima da sela. Depois de se assegurar de que o prisioneiro estava bem preso e não tombaria do dorso do cavalo,
lançou um derradeiro olhar ao exército nativo que serpenteava pelo fundo do vale. Procedeu a uma rápida estimativa do efetivo, e só então se virou e conduziu o cavalo
a caminho da crista e dos seus homens, que o aguardavam do outro lado.
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- Está fora! - gritou Macro, do montículo da parada que permitia uma melhor visão sobre o espaço do exterior do forte. À sua frente tinha sido criada uma área para
um campo de harpastum, com postes em cada canto e uma pequena vala cheia de pó calcário, branco, a marcar o meio do terreno. Tinha resolvido incluir o jogo no treino
dos ilíricos, para os enrijecer e tentar torná-los mais próximos dos outros camaradas da guarnição. Jogavam duas secções de oito homens de cada vez, enquanto o resto
dos ilíricos e os civis, a quem tinha sido dada permissão para assistir aos jogos, se espalhavam pelas linhas do terreno e incentivavam os jogadores ou distribuíam
insultos, consoante os seus gostos. Os oficiais tinham sido incluídos nas equipas, e Macro sorria abertamente ao ver o centurião Fortuno a levantar-se do lamaçal
e a ceder a bola de couro recheada de penas ao lado contrário.
Os outros jogadores, de túnicas enlameadas, já se posicionavam, entre puxões e empurrões, em torno do homem que detinha a bola naquele momento, o qual tratou de
a lançar na direção de um camarada que se tinha separado da confusão e corria a toda a brida para o meio-campo adversário, perseguido com entusiasmo e de perto pelos
rivais. Chegou a dez passos da linha antes de ser derrubado e mergulhar de cara à frente no terreno revolto e deslizar até se deter, meio desorientado. Os outros
jogadores lançaram-se alegremente sobre ele, numa pilha onde tudo valia para tomar posse da bola.
Macro levou a mão em concha à boca.
- Fortuno, mete-te ao barulho. Vá, homem, atira-te a eles!
O obeso oficial puxou para cima o cinto que lhe apertava a túnica e correu na direção do monte de jogadores. As duas equipas continuavam a lutar pela bola, e por
fim ela saltou e foi parar a uma poça mesmo aos pés de Fortuno. Apesar de levar algum tempo a reagir, o centurião lá lhe
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pegou, e conseguiu avançar alguns passos antes de ser atropelado por um adversário. Os espectadores rugiram de prazer ao ver o comandante tombar na lama e ficar
soterrado sob nova pilha de homens, tão enlameados que já se tornava difícil perceber de que lado estavam, a não ser pelo que ainda era visível da tira de tecido,
azul ou vermelha, que lhes tinha sido amarrada no braço direito.
Um jogador corpulento, de cabelo e barba louros, afastou alguns dos outros para o lado e saltou sobre o monte, arrancando a bola e desatando a correr para a outra
metade do terreno de jogo. Os membros da equipa adversária lançaram-se sobre ele, mas o colosso desembaraçou-se deles com facilidade e desdém, passando literalmente
por cima do último defensor. Soltou um grito triunfante, correu e deslizou o que lhe faltava para alcançar a linha que marcava a sua área, onde lançou a bola para
o solo com toda a força antes de elevar os dois punhos no ar e soltar o seu grito de guerra. Fortuno e o resto da equipa depressa o rodearam, dando-lhe palmadas
nas costas e partilhando o triunfo, enquanto a equipa adversária os contemplava, destroçada.
- Vitória para a primeira secção da centúria do Fortuno! - anunciou Macro. - Este jogo acabou! As próximas duas secções que avancem para o campo!
Enquanto as duas equipas cansadas e imundas saíam do terreno e os novos jogadores assumiam as suas posições, Macro chamou o optio Diodoro.
- Senhor?
- Aquele grandalhão. Como se chama?
Diodoro olhou para a figura gigantesca que ainda sorria enquanto celebrava a vitória com os outros homens da sua secção.
- É o Júnio Lomo, senhor. Um excelente elemento.
- Estou a ver. Tem o espírito adequado. Claro, ajuda o facto de ter a constituição de um bloco de latrinas feito de tijolo.
- Sim, senhor.
Macro admirou Lomo por mais uns momentos.
- Não me parece nada que seja de origem ilírica.
- Não é, senhor. Foi recrutado aqui na Britânia. O pai era um mercador de vinhos da Gália, e a mãe era da tribo dos cornovios.
Macro anuiu.
- Isso explica muita coisa.
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Tal como sucedia com muitas unidades auxiliares com um longo historial, a coorte ilírica tinha mantido esse estatuto apenas de nome, já que nela tinham sido incorporados
substitutos de todas as origens, ao sabor dos vários posicionamentos da coorte algures no Império. Macro deu um estalo com a língua.
- Um desperdício numa unidade de segunda categoria como esta. Vou ver se ele estará interessado numa transferência para os Corvos Sangrentos. O Lomo é mesmo do género
capaz de instilar o temor dos deuses no espírito do inimigo. Diz-lhe para vir ter comigo depois do primeiro turno de vigia.
Diodoro assentiu.
Macro aguardou que a bola fosse colocada na retaguarda da equipa que ganhara o sorteio inicial e que escolhera defender. As duas secções alinharam de ambos os lados
da linha de meio-campo e esperaram pelo sinal que dava início ao jogo. O rumor que se elevava dos espectadores esmoreceu rapidamente quando Macro levantou a vara.
Esperou que tudo se acalmasse e calasse, e só então fez descer com vigor a cana, apontando para o campo.
- Comecem!
A equipa atacante correu para a frente de imediato. Os defensores tentaram por todos os meios aguentá-los, bloqueando-lhes o caminho e distribuindo empurrões pouco
dóceis. Mas um dos atacantes acabou por se escapulir, e nessa altura as duas equipas viraram-se e correram para a bola, enquanto os espectadores excitados davam
largas ao entusiasmo. O atacante que ia mais adiantado pegou na bola e virou-se para a outra extremidade do campo, evitando com uma finta de pés o primeiro adversário
que tentou detê-lo. Mas depressa outro o agarrou. Um segundo adversário lançou-se sobre as pernas do atacante, prendeu-as e fê-lo girar no ar com um movimento rápido
que levou o detentor da bola a estatelar-se de costas na lama. Rapidamente se juntou um amontoado de jogadores dos dois lados, a lutar pela posse da bola.
Enquanto a multidão festejava, Diodoro debruçou-se para Macro e apontou para o cimo da colina mais próxima.
- Senhor, ali em cima!
Macro franziu os olhos para fixar a cena e avistou um pequeno grupo de cavaleiros a dirigir-se a passo rápido para o forte. A ansiedade apossou-se dele por momentos,
até que descortinou as túnicas vermelhas.
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- É a patrulha. Parece que vêm com um bocado de pressa. Talvez o Pandaro tenha alguma coisa a relatar. Vou ver o que se passa. Trata tu disto aqui. Daqui a pouco
vai escurecer. Será melhor deixar os jogos por aqui, por hoje.
- Sim, senhor.
Trocaram uma rápida continência, e Macro desceu do montículo e dirigiu-se para o portão mais próximo. Nas suas costas ouviu uma celebração ruidosa que assinalou
o facto de um dos jogadores se ter libertado do monte e ter conseguido dar alguns passos na direção da sua área, antes de ser alcançado e derrubado pelos adversários.
Macro deitou uma olhadela por cima do ombro, tentado a ficar e ver o que se ia seguir, mas acabou por soltar um suspiro e prosseguir a caminho do portão. O Pandaro
ia com certeza dirigir-se ao quartel-general assim que chegasse ao forte, já que era aí que tinha mais hipóteses de encontrar o comandante da guarnição. E se o optio
tinha realmente alguma coisa importante a relatar, era seu dever ouvi-lo o mais depressa possível.
- Estou a ver que trouxeste o resultado da pescaria - comentou Macro pouco depois, com um sorriso, enquanto saía do edifício e via o prisioneiro firmemente detido
pelo optio Pandaro e por um dos seus homens. O sangue no guerreiro inimigo já tinha secado, deixando uma crosta escura e espessa que lhe cobria grande parte do rosto
e lhe empastava o cabelo desgrenhado. Olhava com raiva para os seus captores e mantinha os lábios cerrados, como se quisesse mostrar aos romanos que nada diria em
resposta às inevitáveis questões que lhe seriam postas.
Macro apontou a travessa a um dos lados do pátio, onde se prendiam os cavalos.
- Amarra-o ali enquanto apresentas o teu relatório.
O Sol já estava baixo, e o forte era banhado pelo tom azulado da neblina de uma tarde de inverno. O ar estava frio, e uma brisa soprava num lamento sobre as muralhas
e os torreões. Ao olhar para o céu, Macro reparou numa faixa de nuvens espessas que se aproximava de ocidente e não pôde deixar de pensar se não seria o prenúncio
de uma daquelas cargas de água gelada tão comuns na Britânia naquela altura do ano, ou, pior ainda, das primeiras neves. Qualquer uma das possibilidades teria por
efeito o retardar do avanço do exército de Quintato mais a norte. E os druidas não deixariam de impingir aos seus seguidores a ideia de que aquele era um claro sinal
de que os seus deuses se colocavam ao seu lado
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contra os invasores. O pensamento fez com que Macro debatesse por momentos a possível realidade de um plano existencial onde as divindades rivais combatiam, em paralelo
com o que faziam os seus adoradores no plano terrestre. Se assim fosse, esperava bem que os deuses de Roma levassem a melhor. Os soldados romanos precisavam de ajuda
divina, naquele momento mais do que nunca.
Aguardou até Pandaro cumprir com o que lhe tinha sido indicado e deixar o outro soldado a guardar o prisioneiro. Então solicitou ao optio que o seguisse e coxeou
até ao salão principal, deixando-se cair sobre um banco corrido enquanto Pandaro se mantinha de pé à sua frente.
- Então, qual é a história? Onde é que encontraste este nosso novo e carrancudo hóspede?
Pandaro levou um instante a organizar os seus pensamentos.
- A uns vinte e tal quilómetros daqui, para poente, senhor. Tinha-me adiantado à patrulha para avaliar o terreno quando dei com o prisioneiro.
- Deste com ele? - Macro franziu o sobrolho. - Quantas vezes?
- Sabe como eles são. Dá algum trabalho convencê-los a vir connosco sem protestar. - A expressão de Pandaro tornou-se séria. - Foi o que vi antes de o apanhar que
me fez regressar ao forte o mais depressa possível, senhor.
- Prossegue.
- O inimigo vem a caminho. Este tipo que capturei era batedor de uma coluna. Com uns setecentos ou oitocentos homens. Dirigiam-se para norte, senhor.
- Para norte? Portanto, na direção do Quintato. - Macro fez uma pausa e coçou os pelos que lhe nasciam no queixo. - Ainda assim, não são os suficientes para constituir
uma ameaça séria.
- Supondo que se trata de toda a força nativa. O trilho que seguiam deu-me ares de estar bem marcado, senhor. Duvido que estes tenham sido os únicos a usá-lo nos
últimos tempos.
Macro ponderou a afirmação e sentiu uma ponta de ansiedade perante a ideia de uma poderosa força a marchar contra Cato e os camaradas que avançavam sobre o bastião
druida em Mona. Respirou fundo.
- Muito bem. Temos que descobrir o que é que estes sacripantas estão realmente a planear. Vamos lá dar uma palavrinha ao teu prisioneiro.
- Duvido que ele nos diga grande coisa. Ou, pelo menos, alguma
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coisa que nós consigamos perceber. A menos que haja entre os civis quem saiba falar a língua dele.
- Tenho uma ideia melhor. - Macro sorriu levemente. - Tenho exatamente em mente o homem de que precisamos. Vai até à parada. Há um tipo da coorte ilírica. Alto,
cabelo louro, forte como um touro. O Lomo. Ele que venha cá imediatamente. Diz-lhe que acaba de ser nomeado interrogador interino.
- Sim, senhor. - Pandaro fez um rápido aceno e afastou-se a passo decidido. Macro inclinou-se para a frente e repousou os cotovelos sobre os joelhos com todo o cuidado.
O inimigo estava claramente a planear alguma coisa. Embora fosse difícil determinar se os planos dos nativos constituíam um perigo palpável para o exército romano.
Mais ou menos umas centenas de guerreiros nativos não fariam grande diferença. Mas, e se aquela movimentação fosse parte de um plano mais vasto? Esforçou o pensamento
para tentar adivinhar as intenções precisas do inimigo, mas não conseguia entrar na cabeça dos nativos, e deu por si a desejar que Cato estivesse ali ao seu lado.
- O miúdo dava com a resposta em menos de nada - resmungou para si mesmo. Então, com um assobio de frustração, levantou-se do banco e dirigiu-se ao exterior, para
inspecionar o prisioneiro.
A luz desaparecia e o pátio estava já repleto de sombras. Um dos auxiliares acendia o primeiro dos pequenos braseiros que davam um mínimo de calor aos homens que
iam ficar de sentinela durante a noite. Junto ao poste de amarração, o prisioneiro estava agachado, de costas apoiadas a uma das estacas, as mãos amarradas atrás
das costas. O homem que Pandaro tinha deixado de vigia pôs-se rapidamente em sentido assim que deu pela aproximação de Macro.
- Diomedes, não é?
- Sim, senhor.
- Como está aqui o nosso amigo?
- Para lá de empestar o sítio com o seu fedor e de ser um tipo tão alegre como uma pedra tumular, tem sido um compincha, senhor.
Macro lançou-lhe um olhar de aviso.
- Soldado, deixa as graçolas para os teus superiores. No exército, ninguém aprecia chicos-espertos.
- Sim, senhor.
Macro aproximou-se do prisioneiro e enfiou os polegares no cinto
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enquanto inspecionava o homem com mais atenção. À parte as feridas, o guerreiro nativo parecia estar em boa condição física. Envergava uma túnica, uma cota de malha,
calças e botas de estilo romano, muito provavelmente pertencentes ao mesmo homem a quem tirara a cota de malha. O centurião debruçou-se e pegou-lhe no queixo com
brusquidão, obrigando a cabeça a ir para trás. O homem fitou-o com mal disfarçado ódio, enquanto Macro apreciava as cicatrizes que lhe corriam pela testa e maçãs
do rosto.
- Está visto que já andaste metido numa ou noutra confusão. E pelos trajes que usas, nem todas te correram mal. Portanto, és uma espécie de veterano. Talvez até
tenhas combatido ao lado do Carátaco, no seu tempo.
Ao escutar a menção ao líder inimigo derrotado, o guerreiro libertou-se das mãos de Macro e baixou a cabeça.
- Sensível, com que então? Podes tentar esse papel do herói silencioso se quiseres, meu caro, mas acredita em mim, não vais aguentar para sempre, e acabarás por
me dizer aquilo que quero saber. - Macro deu um toque no prisioneiro com a ponta da bota, para enfatizar aquilo que dissera, e preparava-se para se afastar quando
o cativo deu um esticão com os pés amarrados, com toda a força que conseguiu reunir. As botas apanharam em cheio as canelas do centurião, e o oficial cambaleou e
agitou os braços no ar, antes de cair de costas, desamparado, magoando estas.
- Ah! - O prisioneiro cuspiu e soltou um sorriso cruel. Diomedes aplicou-lhe um violento estalo antes de se dirigir à pressa para ajudar o superior hierárquico a
levantar-se, mas Macro afastou-lhe a mão e fez cara feia, enquanto tentava ignorar a dor que lhe percorria a perna magoada.
- Muito engraçado. Quero ver se continuas a sorrir quando o Lomo começar a trabalhar-te. Entretanto, fica já com esta. - Sem qualquer aviso, cerrou os dois punhos
e aplicou dois murros em rápida sucessão nas orelhas do homem, fazendo-lhe dançar a cabeça de um lado para o outro.
Os olhos do prisioneiro turvaram-se, e ele soltou um profundo gemido, antes de se enrolar e vomitar sobre si mesmo. O cheiro acre atingiu Macro nas narinas, e ele
recuou, ainda a massajar o fundo das costas. O prisioneiro voltou a vomitar, de cabeça dobrada, antes de tossir, cuspir
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e se empertigar, encostando-se ao poste. Não tinha qualquer temor no olhar, notou Macro, só desafio, e os dois homens encararam-se até que o som de passos os interrompeu.
Macro virou-se e viu Pandaro e Lomo a aproximarem-se. A túnica do auxiliar ainda estava manchada de lama, bem como o cabelo e a barba. Em combinação com o físico
poderoso e enorme, tinha um efeito ainda mais intimidatório.
Lomo colocou-se em sentido a poucos passos do centurião, e fez a saudação regulamentar.
- Senhor, mandou chamar-me.
- É verdade. Tenho aqui uma tarefa que requer algumas aptidões particulares. - Macro coxeou para o lado e acenou na direção do prisioneiro. - Aqui este nosso amiguinho
precisa que lhe seja dada uma lição, além de ter de ser persuadido a contar-nos o que sabe dos planos inimigos. Quero saber exatamente para onde se dirige a coluna
de que fazia parte, e com que objetivo. O interrogador dos Corvos Sangrentos não está disponível, portanto estou a oferecer-te a posição, já que me pareces o homem
indicado para amedrontar o prisoneiro. Além disso, segundo me foi indicado, tens algum conhecimento dos dialetos nativos.
- Assim é, senhor. Foi a minha mãe quem me ensinou.
- Nesse caso, parece que não me enganei na escolha. Se conseguires quebrar a resistência do prisioneiro e obter a informação de que preciso, o posto inclui dispensa
de serviço e um salário mais elevado. - Macro fez uma pausa, para deixar que os termos da oferta penetrassem na mente do soldado. - Interessado?
Lomo deitou uma olhadela ao prisioneiro e cerrou lentamente o punho direito, afagando-o com a outra mão. Acabou por assentir.
- Vou tentar, senhor.
- Ainda bem. Se te desenvencilhares tão bem como imagino, podes vir a ter hipóteses de te tornares interrogador permanente. E de seres transferido para uma unidade
melhor, talvez. Os Corvos Sangrentos têm sempre lugar para um homem como tu.
Lomo fez um esgar de apreciação e assentiu, agradecido.
- Pandaro, ficas encarregue do interrogatório. Assim que tiverem acabado, vai dar-me conta do resultado ao meu gabinete.
- Sim, senhor.
- Prossigam. - Macro fez menção de se afastar, mas uma dor agonizante percorreu-lhe a perna ferida e ele estremeceu. Murmurou uma
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imprecação e ficou a ver Pandaro e Lomo a porem de pé o prisioneiro. Deixaram-no só de calças, antes de voltarem a amarrá-lo com força ao poste, de forma a que não
pudesse escorregar. A expressão de desafio que o homem ostentava começou a diminuir enquanto ele olhava para um e outro dos romanos, sabendo perfeitamente o que
o aguardava. Lomo estava à sua frente, os punhos cerrados e os músculos dos braços bem marcados, à espera de uma ordem.
- Começa - disse Pandaro.
Lomo desferiu o primeiro murro, um golpe em gancho no estômago do prisioneiro. Prosseguiu com um soco da esquerda e depois, quando o nativo tentava recuperar o fôlego,
começou a trabalhar-lhe os flancos, os poderosos punhos a abaterem-se sem parar sobre as costelas, deixando o prisioneiro sem qualquer ar nos pulmões.
Macro anuiu, satisfeito, e virou-se devagar e com todo o cuidado, mantendo o peso na perna sã, antes de começar a dirigir-se em passo hirto para a entrada do edifício.
De volta aos seus aposentos, deixou-se cair sobre uma cadeira e esticou a perna. Embora a ferida estivesse a sarar sem problemas e a carne se tivesse fechado, o
médico da guarnição tinha insistido que a ligadura fosse mantida no lugar, para dar apoio ao membro até chegar o momento de retirar os pontos. O problema era que
a zona da ferida fazia uma comichão louca, e Macro tinha que resistir à tentação de a coçar furiosamente. O pontapé que levara do prisioneiro tinha provocado um
latejar doloroso, e agora que a dor diminuía, era a comichão que aumentava de intensidade.
Levou a mão à perna e esfregou levemente, a ranger os dentes perante a sensação de formigueiro. Embora estivesse consciente da sorte que tivera por a ferida não
o ter deixado incapacitado para sempre, como já vira suceder com muitos outros soldados, ainda fumegava perante o tempo que ia levar a recuperar por completo. E
tudo porque um nativo imbecil tinha resolvido disparar à sorte contra ele, antes de se escapulir pelas colinas. Levou um momento a recordar que tinha sido ele mesmo
a ter a malfadada ideia de perseguir o rapaz. Podia perfeitamente ter esperado que o miúdo fugisse por sua própria iniciativa, ou podia ter mandado outro homem para
o afugentar, mas não fazia parte da sua natureza exibir tamanha paciência, pelo que voltou a condenar sem reservas o rapaz nativo, lançando sobre o jovem inimigo
todas as maldições de que se conseguiu lembrar.
Quando a dor e a irritação diminuíram, mudou de posição, passando
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para junto da pequena secretária que ocupava uma das paredes do gabinete, e começou a tratar da burocrática rotina que era o fardo de todo e qualquer comandante
de guarnição por todo o Império. Depois de acender as lamparinas suspensas de um pequeno suporte, concluiu a entrada quotidiana no registo da guarnição, indicando
o número de homens no ativo, quantos estavam doentes ou feridos, bem como os ausentes noutros serviços, itens que, na posição em que estavam, raramente eram preenchidos.
Num local mais pacífico, haveria com certeza ausências autorizadas com alguma frequência, de homens enviados para comprar abastecimentos, equipamentos e cavalos,
ou que tinham sido destacados para guardar coletores de impostos, e oficiais subalternos que eram enviados para resolver questões entre a população local. E depois
ainda haveria alguns a quem teria sido atribuída uma licença, e que, no caso de unidades recrutadas localmente, a podiam aproveitar para uma visita à família. Nada
disso se aplicava à guarnição do forte, já que qualquer indivíduo que se afastasse um pouco mais das muralhas sozinho arriscava-se a meter-se em grandes sarilhos.
Depois, Macro passou a tratar dos pedidos dos armazéns do forte, verificando os inventários antes de aprovar ou recusar cada um dos pedidos.
Quando por fim deu por terminado o trabalho, já tinha escurecido por completo no exterior. Fechou as persianas e chamou o criado para lhe acender a lareira ao canto
da sala e lhe trazer alguma comida. Lá fora, no pátio, ouvia de vez em quando os sons do interrogatório; o estrondo abafado dos golpes aplicados, os gemidos e gritos
de sofrimento do prisioneiro, que se tornavam mais fracos à medida que o tormento prosseguia. O crepitar suave das chamas a consumir a acendalha e depois a lenha
abafaram o som do exterior, e Macro comeu em paz à mesa. Tinha praticamente terminado a refeição de guisado e pão duro quando ouviu alguém bater à porta.
- Entra!
O optio Pandaro entrou no gabinete e manteve-se hirto à frente da mesa do superior.
- Senhor, peço licença para informar que o interrogatório está concluído.
Macro baixou a colher e limpou os beiços nas costas da mão.
- Então? Conseguiram arrancar alguma coisa de útil àquele sacana?
- Sim, senhor. Se o que ele nos disse é verdade, o legado Quintato está a levar o exército para uma armadilha.
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- Armadilha?
- Tanto quanto o nosso homem sabe, os druidas estão a atrair a coluna para o coração das montanhas, a caminho da própria ilha de Mona. E será nessa altura que fincarão
os pés e enfrentarão o exército.
Macro assentiu.
- E é mesmo nisso que o legado aposta.
- Sim, senhor. Mas o que ele não sabe nem tem forma de saber é que os druidas convocaram os siluros e os ordovicos para que se juntem aos deceanglos. Estão em marcha
para cortar as linhas de comunicação do Quintato com o resto da província. Tencionam impedi-lo de receber quaisquer abastecimentos e bloquear o trajeto de retirada,
até que os seus homens sucumbam à fome ou ele dê a ordem de rendição.
- Rendição? - Macro fungou. - O caralho. Nunca o legado se desonraria dessa forma, ou o faria ao exército.
- Nesse caso, terá que abrir caminho para fora desta armadilha e combater cada centímetro do regresso a Mediolanum, senhor. O legado está numa inferioridade numérica
muito maior do que supõe. E o inimigo conhece o terreno. Se o tempo mudar e fizer com que o avanço se torne ainda mais difícil, então...
- Estou a ver - concluiu Macro, preocupado. - Temos que o avisar imediatamente.
- Mas como é que vamos conseguir mandar-lhe uma mensagem, senhor? Se o prisioneiro tem razão, o inimigo já cortou as vias de comunicação.
- Talvez assim seja, optio. Mas temos que conseguir passar, de qualquer maneira. E os únicos homens que temos por cá que podem ser capazes de levar a bom porto a
missão és tu e os outros homens dos Corvos Sangrentos.
- Mas, senhor, é apenas a minha secção.
- Não irão sozinhos. Eu vou convosco.
- Como? Senhor, com todo o respeito, não está em condições de...
- Caraças, sei perfeitamente o estado em que estou! - irritou-se Macro. - Na sela estarei perfeitamente bem. Saímos à primeira luz da alvorada. Vai, e prepara os
teus homens!
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O vento mordia, e Cato tinha que franzir os olhos enquanto subia a
íngreme encosta para alcançar o cimo da montanha. Os Corvos Sangrentos tinham ascendido até ao limite do possível com os cavalos, e depois o prefeito dera ordem
para desmontar e prosseguir a pé com um dos esquadrões. Os homens tinham posto os escudos às costas e usavam as lanças como apoio durante a ascensão. Já no desfiladeiro
estivera bastante frio, e era lá que tinham ficado os outros, mas, à medida que subiam, o vento uivava à sua volta, e as rajadas pareciam rugir-lhes aos ouvidos,
enquanto os pingos de chuva gelada lhes picavam a pele nua como se fossem agulhas em chamas.
- Foda-se para isto - vociferou Traxis, a curta distância atrás do comandante. - Só os deuses saberão por que raio haveria o Imperador de querer juntar esta terra
desolada ao Império. Bem melhor seria deixá-la aos bárbaros. Isto não é sítio para homens civilizados.
Cato afastou o lenço que usava em torno do pescoço e da boca para replicar.
- Traxis, sabes perfeitamente como isto funciona. Estamos aqui, porque é aqui que estamos.
O trácio soltou um suspiro.
- Bom, senhor, muito gostaria que não estivéssemos.
Cato voltou a passar o espesso pano em redor da boca e do nariz e deteve-se momentaneamente para recuperar o fôlego, antes de prosseguir. A capa militar esvoaçava
ao seu redor, e sentia o capacete a dançar-lhe na cabeça por causa do efeito do vento nas plumas. Ajeitou-o outra vez, e resolveu-se a continuar, um passo de cada
vez. Segundo o mercador que tinha oferecido os seus serviços ao legado Quintato, a capital dos deceanglos já não estava a mais de oito quilómetros de distância,
e seria facilmente visível do cimo daquela montanha. Ao olhar para
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cima, Cato não podia deixar de duvidar disso. O céu estava carregado, e havia farrapos de nuvens ainda mais escuras a passar-lhes por cima, ameaçando nova torrente
de chuva em cima daqueles aguaceiros gelados. Ainda assim, era seu dever, como comandante da vanguarda do exército, bater o terreno à frente da coluna principal,
e aproveitar todas as oportunidades para reconhecer o território bem como para procurar localizar o inimigo.
A verdade é que, desde a escaramuça na garganta, havia já vários dias, se tinham dado muito poucos incidentes do género. Para lá de pequenos grupos de cavaleiros
que mantinham o avanço romano sob vigilância, os guerreiros tribais e os seus líderes druidas tinham-se recusado a dar-lhes batalha ou até a ensaiar alguma nova
tentativa de lhes retardar o avanço. Ainda assim, não tinham faltado pequenos indicadores da presença nativa: trilhos bloqueados por árvores derrubadas com esse
fim expresso; pilhas de rochas acumuladas em passagens estreitas ladeadas por penhascos; relatórios de ataques repentinos às perigosamente esticadas e mal guarnecidas
linhas de comunicação do exército romano. Se tivesse ao seu dispor mais homens, Quintato poderia ter estabelecido uma cadeia de fortes bem preenchidos para manter
alguma segurança às linhas de abastecimento que se estendiam desde Mediolanum. Mas, nas condições prevalecentes, tinham sido edificados muito poucos postos, e nem
as patrulhas de cavalaria eram frequentes, o que as tornava mais suscetíveis a ataques ocasionais. Tal constituía mais um aborrecimento do que uma ameaça genuína,
e Cato não conseguia deixar de se interrogar qual seria a razão que levava o inimigo a não empreender maiores esforços para enfraquecer ainda mais o tradicional
ponto fraco de um exército em campanha.
Um grito súbito interrompeu-lhe os pensamentos, fazendo-o parar e olhar para baixo na encosta. Um dos homens tinha escorregado do trilho e jazia na vertente, junto
a um penedo que lhe tinha detido a queda. Dois dos seus camaradas acorriam a socorrê-lo, e Cato virou-se para Traxis.
- Mantém os homens em movimento. Eu já vou ter convosco.
Traxis continuou a subir, enquanto Cato descia até junto do homem caído. Trocou um breve aceno com Livónio ao passar pelo tribuno, que seguia os auxiliares na ascensão
da serra, na companhia do seu secretário.
- O que é que aconteceu? - perguntou assim que alcançou os homens, com a respiração pesada.
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Um homen dos Corvos Sangrentos olhou em redor e só então viu o prefeito.
- Foi o Bormino, senhor. Não parece nada bem.
- Deixa-me ver.
Abriram espaço para o prefeito, e Cato agachou-se junto do auxiliar. Já o tinham virado de costas, e os olhos do homem piscavam, enquanto a boca se abria e fechava,
tentando sugar o ar. O resto do corpo estava completamente inerte. Debruçou-se sobre O soldado, e os seus dedos enregelados procuraram as tiras de cabedal por baixo
do queixo do homem, desfizeram os nós e por fim, com todo o cuidado, removeram o capacete. A cabeça de Bormino descaiu, e os lábios moveram-se febrilmente, como
se tentasse respirar, mas da boca não saía qualquer traço do vapor que seria de esperar.
- O que é que se passa com ele? - indagou um dos seus camaradas, em tom ansioso.
Os olhos do soldado acidentado rolaram nas órbitas, ao mesmo tempo que o queixo saltou num espasmo e depois ficou quieto. Cato hesitou antes de se debruçar e colocar
a orelha junto aos lábios do homem; não conseguiu discernir qualquer som de respiração, ainda por cima o vento soprava sem cessar sobre o pequeno grupo de homens;
também não notou qualquer calor. Voltou a erguer-se e tentou sentir a pulsação no pescoço do homem, mas não sentiu qualquer veia a latejar.
- Foi-se.
- Foi-se? Como, senhor? Limitou-se a tropeçar e cair. Não pode estar morto.
- Bom, o sacana não está com certeza a fingir só para se livrar deste passeio - sugeriu o outro auxiliar.
Cato olhou para a rocha e reparou que parte dela era saliente, como se fosse a lâmina de um grande machado. Rolou o corpo para o lado e examinou-o. Por cima da linha
do lenço no pescoço avistou uma marca lívida na pele. Deu um estalo com a língua.
- Pescoço partido. Deve ter batido na rocha com o pescoço, ali. Não havia nada que pudéssemos fazer para o salvar. Nada.
Os três ficaram calados e imóveis por momentos, enquanto o vento os açoitava, até que o primeiro homem voltou a falar.
- Pobre desgraçado... Que maneira de paftir. O Bormino era um tipo decente. Um dos melhores.
Deu-se outra pausa antes de o camarada acrescentar o seu comentário.
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- Talvez fosse, sim, mas peidava-se a dormir, e fazia batota aos dados, isto para não falar do facto de se ter metido com a mulher de outro.
Cato olhou para ele e soprou o ar das bochechas.
- Não é lá um grande elogio fúnebre que lhe fazes.
O homem encolheu os ombros.
- Era assim que ele era, senhor.
- Muito bem então. - Cato pôs-se de pé, dando as costas ao vento incessante. - Vocês os dois, levem-no até ao cavalo, e depois deixem-se ficar com o resto da coluna.
- Sim, senhor - responderam os dois em coro, antes de um deles murmurar:
- Fantástico, Bormino, obrigadinho.
Cato deixou-os entregues à tarefa que lhes dera, e voltou a seguir o caminho do esquadrão, acelerando o passo para os ultrapassar e retomar o seu lugar à cabeça
da coluna que serpenteava pela encosta. Traxis já quase tinha alcançado o cimo, e dava os últimos passos dobrado sobre si mesmo, a lutar para se manter de pé. A
chuva tinha engrossado, da chuva fina que os afligira desde o momento em que tinham começado a ascensão até aos pesados pingos que açoitavam a pouco ordenada linha
de homens a bufar debaixo do peso de armaduras, escudos e lanças. Só o esforço da subida lhes dava alguma amostra de calor, e Cato sentia os dedos dormentes de frio
enquanto tentava agarrar-se às rochas escorregadias, para ter alguma ajuda na subida.
Por fim, com os membros a tremer do frio e do cansaço, alcançou o cume da montanha, inclinando-se contra o vento gélido que soprava ali com toda a força. Pousou
as mãos nos joelhos e tentou acalmar a respiração enquanto a pouco e pouco os outros homens se juntavam a ele, virando as costas ao tempo e usando os escudos para
obterem alguma proteção da chuva batida pelo vento. Um deles vacilou, as pernas cederam, e ele caiu. Quando tentava levantar-se, voltou a cambalear e tombou.
Traxis abanou a cabeça.
- O sacana está bêbado!
- Por Hades, que merda é esta? - berrou Cato, furioso, enquanto se aproximava do auxiliar. Estava prestes a desancar o soldado quando se apercebeu de que era o frio
horrível, não a bebida, que tinha deixado o corpo e a mente do homem naquele estado de torpor. Segurou-o pelos
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ombros com firmeza e abanou-o até voltar a ver uma centelha de consciência nos olhos do homem.
- Concentra-te! Mantém o corpo em movimento. Bate com os pés no chão, e esfrega as mãos. Percebido?
O soldado anuiu, ainda aturdido.
- Não te oiço! - gritou Cato. - Estás a perceber o que eu te digo, soldado?
- Sim... sim, senhor.
- Nesse caso, faz como te ordenei.
O auxiliar começou a marchar sem sair do sítio, enquanto apoiava a lança contra o ombro para esfregar as mãos uma na outra.
- Isso mesmo, continua assim - ordenou Cato, antes de se virar para o resto dos homens. - Vocês todos, façam o mesmo! A não ser que prefiram morrer congelados.
Afastou-se e atravessou com todo o cuidado a área acidentada e repleta de rochas e tufos de erva. Na ponta da crista conseguia espreitar pela encosta, mas uma cortina
de neblina cinzenta e de chuva impedia a visão poucas centenas de metros mais abaixo. Cato soltou uma imprecação num murmúrio. Naquelas condições, não havia hipótese
de confirmar a informação dada pelo mercador. Podia esperar ali que passasse a tempestade, mas os homens já tinham sofrido o suficiente, e não tinha vontade de perder
mais algum elemento nalguma queda pela encosta da montanha.
Traxis aproximou-se dele, os dentes a baterem enquanto lhe dirigia a palavra.
- Senhor, com todo o respeito, se ficamos aqui em cima muito mais tempo, acabamos todos mortos. Alguns dos rapazes estão em muito mau estado.
- Eu sei disso. Mas vamos esperar mais um pouco. - Cato olhou para o céu e julgou distinguir uma mancha menos escura por entre as nuvens que corriam sobre as montanhas.
- Olha para ali. O pior já está a passar.
Traxis franziu a vista e tentou identificar a área que Cato tinha indicado.
- Não vejo nada.
- Vai juntar-te aos outros. Diz-lhes para se manterem em movimento. Isso vai ajudá-los a ficarem quentes.
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- Quentes? - Traxis arregalou os olhos. - Acha mesmo, senhor?
- Basta. Vai juntar-te a eles e diz ao tribuno Livónio e ao seu escravo que venham ter comigo. Vai.
Enquanto Traxis se afastava a resmungar audivelmente, Cato voltou a dedicar atenção ao terreno na base das montanhas. Havia decididamente mais luz no céu, concluiu.
E daí a pouco começou a distinguir formas por entre a névoa: as copas pontiagudas dos pinheiros, afloramentos rochosos. O vento e a chuva começaram a amainar, e
o céu ganhou claridade. Cato notava cada vez mais detalhes. Por fim, lá muito em baixo, junto a um rio que serpenteava pela planície, avistou as linhas vagas de
muralhas que cercavam umas centenas de cabanas. Um punhado de luzes cintilantes indicou-lhe a presença de fogueiras. Mas a distância era demasiado grande para conseguir
distinguir quaisquer outros sinais de vida.
Pelo tamanho da povoação nativa, dava ideia de que a informação do mercador era fidedigna. Se assim fosse, o legado Quintato poderia realmente conseguir esmagar
ali os deceanglos e destruir-lhes a capital. E depois disso, restar-lhe-ia alcançar a costa, reunir-se às forças navais e lançar um assalto decisivo ao bastião dos
druidas, para lhes acabar com a raça de uma vez por todas. Sem a sua nefasta influência, as tribos nativas da Britânia ficariam sem orientação, e deixariam de conseguir
oferecer uma frente unida de resistência a Roma. E então, por fim, a nova província poderia conhecer a paz. Não seria apenas o conflito com Roma que estaria terminado,
também os conflitos entre as tribos, que afligiam a ilha desde muito antes de os primeiros romanos lá colocarem o pé, teriam fim.
O som de passos fê-lo despertar do devaneio; virou-se e viu Livónio e Hieropates a aproximarem-se. As mãos tremiam-lhes de frio, mas Cato ignorou o sinal de desconforto.
Se ele e os seus homens tinham que aguentar o frio e a chuva, o mesmo acontecia ao jovem aristocrata. Far-lhe-ia bem sofrer um bocado, considerou Cato, antes de
voltar a concentrar-se no assunto mais importante.
- Lá em baixo. - Apontou a povoação distante. - Façam um esboço numa tábua, mais tarde podem copiá-lo e dar-lhe melhor aspeto.
Enquanto o tribuno supervisionava a elaboração do plano do terreno em redor da povoação, tão bem quanto era possível nas condições de má visibilidade e luz a diminuir,
Cato procedeu a uma rápida estimativa do número de cabanas e da disposição das mesmas. Assim que
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Hieropates fechou a sua tábua de ardósia, os três regressaram para junto dos outros homens, todos apinhados e a tiritar. Cato pressentiu o ressentimento que reinava
por terem sido obrigados a subir a montanha, mas sendo aquele o verdadeiro coração do território inimigo, só um louco se teria atrevido a afastar-se da coluna principal
sem uma escolta. Apontou para o terreno mais abaixo.
- Vamos embora daqui.
Estás certo de que se trata da capital inimiga? - inquiriu Quintato.
- E de que está lá gente?
- Avistei algumas fogueiras, senhor. O tribuno Livónio está a atualizar o mapa. Conseguimos obter um panorama bastante completo da área à volta da povoação inimiga,
antes que a luz começasse a desvanecer-se. - Cato estava de pé, a capa a pingar, defronte do legado. O pesado couro da tenda do comando inchava e caía ao sabor da
forte brisa que soprava sobre o campo romano, e a chuva tombava de forma constante, ensopando o material e esgueirando-se por todas as costuras. Um escravo atarefava-se
a colocar outro poste junto ao leito de campanha do legado, para impedir que a água se acumulasse naquela zona do teto. Cato limpou a garganta e prosseguiu: - E
condiz com a descrição feita pela nossa fonte.
- Ótimo. Isso quer dizer que, por fim, os temos onde os queríamos. Partindo do princípio de que estarão pelo menos dispostos a defender as suas casas. Estou farto
de andar atrás de sombras. Esperemos que de repente ganhem coragem e que isto não seja outra artimanha das que eles costumam empregar. Não ficaria propriamente espantado
que dessem asas aos pés assim que descobrissem que estamos aqui à porta de casa. - Quintato pareceu embrenhar-se nos seus pensamentos durante alguns instantes. -
Mas não lhes vou dar essa hipótese...
O legado virou-se para o escravo.
- Procura o Petrónio Deano e diz-lhe para vir ter comigo. E também o prefeito do campo.
O escravo dobrou o pescoço e apressou-se a sair.
- Cato, senta-te e dá-me mais pormenores da posição inimiga, enquanto esperamos.
Antes de se sentar, Cato soltou o fecho da capa e deixou a peça encharcada cair para o solo. A armadura e a túnica também estavam
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ensopadas, e o forro de couro a que estavam presas as placas metálicas da armadura parecia ter o dobro do peso normal. Tentou ignorar o desconforto enquanto reunia
os pensamentos e começava a falar.
- A cidade fica numa zona ligeiramente elevada na margem do rio, senhor. A área em redor das muralhas foi desmatada, e é ocupada por terrenos de cultivo. Pelo meio
existem algumas cabanas e redis, mas nada de mais. A uns oitocentos metros começa a floresta densa. Depois há algumas ondulações nos flancos do vale, também com
floresta, que se estende até à passagem que temos de atravessar para entrar no vale... É tudo o que consigo recordar, senhor.
Quintato assentiu.
- Bom trabalho, prefeito. - Olhou para Cato como se só agora notasse o ar desconsolado que ele apresentava. - Deves ter frio, e fome, calculo.
- Sim, senhor.
As abas da entrada da tenda restolharam quando o escravo regressou e anunciou:
- Senhor, eis Petrónio Deano. Um escriba foi procurar Tito Silano.
Mal tinha terminado o anúncio, um homem magro e de cabelo cinzento entrou na tenda. Usava uma túnica de tom ocre, com um padrão de xadrez, o estilo celta das tribos
do Norte, e umas calças castanhas com sandálias. O cabelo era longo, mas estava atado atrás da cabeça com uma espessa tira de cabedal que lhe cruzava a testa. Os
olhos argutos avaliaram rapidamente Cato antes de inclinar a cabeça em sinal de respeito ao legado.
- Senhor, estou à sua disposição. De que forma pode Petrónio, fornecedor das mais finas mercadorias do Império, servi-lo desta vez?
Quintato encarou-o com ar fatigado.
- Fornecedor das mais finas mercadorias possíveis de arranjar nesta província atrasada, queres tu dizer.
- Hoje em dia sirvo os meus clientes na Britânia, mas no futuro as minhas mercadorias poderão ser apreciadas nas melhores casas de Roma, pela graça de Júpiter, o
maior e melhor dos deuses.
- Bom, ambição não te falta. Mas já chega de conversa fiada. Este é o prefeito Cato, comandante da vanguarda do exército. Ele já verificou as informações que me
forneceste. Ao que parece, a capital dos deceanglos está onde garantiste que estaria.
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Petrónio adotou um olhar magoado.
- Senhor, duvidou de mim? Um negócio é um negócio. Esteja eu a vender bens ou informações, nunca tento enganar ninguém.
O legado percebeu rapidamente o alcance das palavras do comerciante.
- Não te preocupes, serás pago conforme foi combinado.
Petrónio fez uma profunda vénia.
- Agradeço-lhe, senhor. Foi um prazer fazer negócio consigo.
- O nosso negócio ainda não está terminado.
O outro levantou o olhar, surpreso.
- Senhor?
- O nosso negócio não estará acabado enquanto a campanha não estiver terminada. Graças a ti, sei agora onde encontrar o inimigo. No entanto, preciso de mais alguns
pormenores. Números, condição, e por aí fora.
- Mas, senhor, como poderia eu fornecer-lhe informações desse tipo?
Quintato sorriu levemente.
- O que é que achas? És conhecido dos nativos destas montanhas. Fazes negócios com eles. Atrevo-me até a imaginar que contas alguns deles como teus amigos.
- Senhor, se fosse esse o caso, porque estaria eu aqui a servir Roma?
- Porque Roma te paga mais. E agora Roma exige que te dirijas à capital dos deceanglos e recolhas os dados de que preciso sobre o inimigo.
Petrónio abanou a cabeça.
- Lamento, senhor, mas o nosso negócio está concluído, e tenho que atender a assuntos prementes noutras partes da província. Assim que me for pago o combinado, partirei
de imediato.
- Não partirás antes de fazeres aquilo que te peço. Serás pago, todo o montante ajustado, assim que tivermos derrotado o inimigo. Só nessa altura é que te libertarei
do meu serviço. Ficou claro?
O queixo do mercador descaiu, e ele engoliu em seco antes de se empertigar e enfrentar o legado.
- Tínhamos combinado um negócio. Foi-me prometida prata em troca de informações sobre a localização do inimigo. Apertámos os braços para concluir o negócio. Tinha
a ideia de que os senadores de Roma eram homens que honravam a palavra dada, senhor.
Cato notou que o legado ficava lívido. Quintato avançou um passo e fixou o olhar carrancudo no mercador.
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- Atreves-te a pôr a minha honra em questão? Tu, um homem que negoceia com os inimigos de Roma? Um homem capaz de vender todos os seus clientes por um punhado de
denários? Não duvido que, se estes miseráveis bárbaros conseguissem reunir o montante suficiente, estarias a esta hora naquele antro de pulgas, a contar-lhes tudo
o que sabes sobre este exército. Não te atrevas sequer a tentar fingir que tens alguma superioridade moral, verme.
- Senhor...
- Silêncio! Farás aquilo que te ordeno. Amanhã, assim que nascer o dia, levarás a tua carroça até às portas da capital inimiga e lá conduzirás os teus negócios habituais.
Darás toda a atenção às defesas da cidade e ao número de combatentes que lá se encontram. Depois de teres recolhido essa informação, despedir-te-ás deles com todos
os sinais de amizade, e regressarás para aqui, para me apresentares um relatório completo. Depois do inimigo derrotado, e só nesse momento, estarás livre para te
ires embora. Lembra-te bem, Petrónio, que se ousares trair-me, ou tentares desaparecer, farei com que sejas declarado um proscrito em toda a província e em todo
o Império. Se fores apanhado, serás portanto pregado a uma cruz e abandonado para apodreceres ao sol. - Quintato fez uma pausa para que o silêncio imperasse. - Percebeste
tudo?
Petrónio humedeceu os lábios.
- Sim, senhor... mas, se me permite?
Quintato franziu o sobrolho e fungou, impaciente.
- Do que se trata?
- Ao que parece, interpretei mal os termos do nosso contrato original. Pelo facto, apresento as minhas mais humildes desculpas. Contudo, face à notoriamente perigosa
natureza daquilo que agora me é pedido, creio bem que um... bónus se justifica plenamente. Em reconhecimento do meu leal e útil serviço a Roma, posso sugerir que
eu seja nomeado como seu agente para a venda dos cativos que não deixarão de resultar da derrota inimiga?
Quintato não respondeu de imediato.
- Seja, a dez por cento.
- Senhor, creio ser razoável sugerir um número mais adequado à valorosa contribuição que vou realizar para a derrota do nosso inimigo. Digamos, vinte e cinco por
cento.
O legado fungou, irritado.
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- Nem Crasso teria tido a audácia de fazer tamanha exigência! Petrónio, dás passos mais largos que a tua perna.
- Vinte por cento, então, senhor.
- Quinze, e passarei uma esponja sobre o teu atrevimento.
- Dezassete.
- Quinze. E acabou a discussão.
O mercador fez novamente menção de falar. Mas reconsiderou a tempo, e anuiu com um gesto da cabeça.
- Excelente. Fico então à espera que me apresentes o teu relatório, amanhã à noite. Podes deixar-nos.
O mercador voltou a dobrar-se e recuou até sair da tenda. Cato não conseguiu evitar algum grau de simpatia pelo homem. Embora fosse verdade que ele tinha negociado
com tribos que eram inimigos jurados de Roma, e que tinha sem dúvida obtido chorudas vantagens com isso, as circunstâncias tinham mudado. Os nativos estavam em pé
de guerra, e não deixariam de encarar com desconfiança qualquer visitante, por muito familiar que fosse. Ainda assim, se Petrónio Deano fosse esperto, facilmente
lhes demonstraria a sua boa-fé, dispensando algumas informações sobre o exército romano que se aproximava.
Os pensamentos de Cato foram interrompidos pela chegada de nova personagem. Silano, o prefeito do campo, saudou o legado e ficou imóvel, de pés afastados e mãos
cruzadas atrás das costas, tão empertigado como a haste do estandarte da legião sob o qual tinha combatido a maior parte da vida.
- Senhor, mandou-me chamar?
- De facto. Convoca todos os oficiais superiores para virem ao comando. Podes dizer-lhes que lançaremos o ataque sobre a capital dos deceanglos depois de amanhã,
pela alvorada.
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Cato aguardava junto ao seu cavalo, numa pequena elevação, a menos de um quilómetro da povoação inimiga. Faltava pelo menos uma hora até que surgisse o primeiro
alvor no horizonte, mas em redor escutava o incessante movimento de homens e cavalos. O exército tinha saído do campo depois do cair da noite, e cada unidade seguira
um guia até à posição que lhe tinha sido atribuída, de forma a que, quando nascesse o dia, a capital inimiga estivesse cercada, e as hipóteses de os seus habitantes
se escapulirem fossem reduzidas. Nunca era coisa fácil fazer manobrar todo um exército em plena noite, e apesar de os preparativos terem sido pormenorizados, a coluna
de Cato tinha acabado por dar de caras com uma das coortes da Vigésima Legião, que tinha por sua vez sido retida no seu avanço. Em resultado dessa confusão, os Corvos
Sangrentos e a Quarta Coorte tinham alcançado o seu ponto de partida para o ataque da alvorada muito mais tarde do que o prefeito previra, e assim os homens teriam
muito pouco tempo de repouso antes de entrarem em ação.
A noite estivera muito fria, mas a marcha tinha mantido as coortes quentes. O frio tinha também feito o solo gelar, e dessa forma homens e animais não tinham tido
que patinhar no habitual lamaçal que até ali tanto lhes havia prejudicado o avanço pelas estradas das montanhas. O nevoeiro acumulara-se nos baixios e voltas do
vale, e a Cato agradava-lhe a situação, já que ajudava a esconder a aproximação dos seus homens ao objetivo que lhes tinha sido designado: o portão principal da
povoação nativa. O legado concedera a honra de liderar o ataque à vanguarda do exército. A sua tarefa era portanto tomar o portão, abri-lo e mantê-lo em mãos romanas,
de forma a que as coortes da Décima Quarta pudessem entrar para as ruas da povoação. Se o inimigo estivesse alerta e reagisse com rapidez, Cato e os seus homens
sofreriam por certo enormes
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perdas. Portanto, tinha resolvido com toda a firmeza que lançaria o assalto com toda a rapidez e dureza que pudesse. Enquanto os legionários estivessem a percorrer
o terreno aberto até à ponte que permitia atravessar o fosso, os Corvos Sangrentos seguiriam à sua frente, com as escadas de assalto, para ultrapassar as muralhas
dos dois lados do portão. Um pequeno grupo de legionários seguiria na retaguarda, levando com eles um aríete para romper as pesadas tábuas do portão. Assim que conseguissem
criar uma brecha, duas coortes da Décima Quarta sairiam dos seus esconderijos e lançar-se-iam sobre a povoação. O resto do exército teria apenas o trabalho de aprisionar
os nativos que tentassem fugir da capital. Uma vez que Petrónio Deano não tinha regressado da sua missão, não era possível saber ao certo quantos guerreiros inimigos
teriam que enfrentar. A expressão de Cato azedou-se quando recordou o viscoso mercador. Tinha sem dúvida preferido escapar da região em vez de arriscar o pescoço
entrando no covil do inimigo. Mas não poderia fugir à ira do legado para sempre, e quando fosse apanhado pelas autoridades romanas, como acabaria por acontecer,
teria um mau fim.
Se a fortuna estivesse do lado dos romanos, o rei dos deceanglos e alguns chefes das tribos aliadas seriam mortos ou capturados naquela mesma manhã. Toda a resistência
naquela região teria um fim. E depois disso, só haveria que atravessar o estreito canal que separava Mona da Britânia e destruir o culto druídico, antes de varrer
os restos de siluros e ordovicos para tornar o Oeste da província uma zona segura. O legado Quintato obteria uma notável vitória, que glorificaria o nome da sua
família, e marcaria muitos pontos para a sua carreira futura em Roma. No palácio, o Imperador recolheria todo o crédito por ter supervisionado o triunfo das suas
forças sobre aqueles inimigos bárbaros, e distribuiria ao exército um vasto donativo, como recompensa. A maior parte dessa maquia ia acabar nos bolsos da Guarda
Pretoriana, cuja lealdade era muito mais importante para Cláudio do que a das coortes que combatiam lá longe, nas fronteiras do Império. Os pretorianos já tinham
mostrado que não lhes era de todo impossível a eliminação de um Imperador e a imposição de um sucessor, quer ao Senado quer ao povo de Roma. Essas realidades não
passavam ao largo de qualquer pessoa que tivesse um mínimo de consciência da realidade do mundo da política, e Cato não conseguia deixar de lamentar o cinismo que
tal consciência acarretava. O mesmo podia ser dito quanto ao triunfo que
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o Imperador não deixaria de proclamar, com o apoio imediato dos seus lacaios no Senado. Uma elaborada procissão percorreria as principais vias de Roma, passando
pelo fórum, e pela sombra do magnífico palácio imperial, até terminar no templo de Júpiter, onde seriam exibidos e consagrados os despojos do inimigo, particularmente
as armas capturadas. No centro do cortejo iria o Imperador, de pé, empertigado, numa carruagem ornamentada, enquanto os líderes cativos o seguiriam, acorrentados,
à espera de conhecer o destino que lhes estava reservado. Se Cláudio se sentisse magnânimo, poderia perdoá-los, em sinal da clemência que Roma oferecia aos derrotados.
Mas também podiam ser simplesmente estrangulados à frente da turba exaltada, à espera que lhe fosse distribuído dinheiro, pão e vinho.
Para os homens do exército de Quintato haveria recompensas mais imediatas, especialmente para os que constituíam a vanguarda. Como era costume, o primeiro homem
a escalar as muralhas inimigas seria condecorado e promovido. O mesmo se aplicaria ao primeiro soldado a penetrar pela brecha no portão; um dos legionários que empunhavam
o aríete acabaria o dia como optio, a um passo de chegar a centurião. Um novo símbolo de honra em batalha seria apenso aos estandartes das duas unidades, e o peso
de Cato aumentaria nos círculos militares. O seu nome entraria por certo para a lista dos que seriam considerados para o comando das mais prestigiadas unidades de
coortes auxiliares.
Enquanto esperava na escuridão, enregelado, permitiu-se prosseguir no devaneio, contemplando o que poderia ser o pináculo da sua carreira. Tornar-se-ia um homem
rico e influente, com uma bela casa na capital e talvez uma outra casa de campo na Campânia, nas margens da baía que se abria à sombra do monte Vesúvio. Não devia
existir lugar mais tranquilo e confortável para passar a reforma e deixar correr o resto dos seus dias com Júlia e a família. Sentiu crescer a afeição e a saudade
no coração, e por momentos desejou poder estar muito longe daquelas montanhas cinzentas e dos seus bárbaros habitantes. Longe dos problemas e da dureza da vida diária
no exército. Imaginou-se sentado junto a uma acolhedora lareira a crepitar, a brincar com o seu filho, talvez com outras crianças, enquanto Júlia o fitava com aquele
sorriso adorável que o tinha conquistado.
- Senhor.
A imagem desvaneceu-se de imediato, e Cato virou-se para um vulto
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que mal se distinguia, e que se tinha aproximado sem ele dar conta. A custo percebeu a crista transversal no capacete do outro contra a escuridão ainda mais negra
do cenário noturno, e reconheceu a voz.
- Festino. Os homens estão prontos?
- Todos, menos os rapazes do aríete, senhor. Mas o optio mandou dizer que já estão perto. Vão estar na posição indicada a tempo.
- Muito bem. E como andam os espíritos?
O centurião riu-se.
- Senhor, sabe bem como são os rapazes. Resmungam e protestam como putas enganadas, por causa do frio, e do tempo que isto demora, mas estão mortinhos de vontade
de se meterem ao barulho. Sobretudo tendo em conta que vai haver promoções e recompensas. Não há nada com que se preocupar. Os desgraçados daqueles sacanas além
é que quase me fazem ter pena.
Os dois homens olharam na direção da povoação. Por trás dos portões e das muralhas avistavam-se pequenos clarões rosados, vindos dos pontos onde ardiam fogueiras
diminutas. Viam-se vultos a ocupar posições de defesa, recortados contra o brilho das chamas, mas não mostravam qualquer sinal de alarme, e pareciam apenas observar
descuidadamente a paisagem em redor, ainda envolta nas trevas.
- Senhor, acredita mesmo que isto vai correr tão bem como o legado sugeriu?
Cato recordou a reunião que tinham tido na véspera, de manhã, em que Quintato apresentara o seu plano. O pessoal do estado-maior do legado parecia ter pensado em
todas as contingências, mas ainda assim...
- Alguma vez ouviste falar de algum plano que tenha corrido precisamente como previsto?
Partilharam uma risada, antes de Cato fungar levemente e cuspir.
- Festino, o que importa é que nós cumpramos a nossa parte. É só com isso que temos de nos preocupar. Desde que os Corvos Sangrentos cheguem às muralhas antes de
o inimigo ter tempo para lá colocar muitos homens, os teus legionários devem conseguir rebentar o portão sem grandes problemas. Vai haver algumas baixas, mas vamos
ver se as conseguimos reduzir ao mínimo. O melhor é entrar a matar, fazer um barulho dos infernos, e acagaçar os sacanas dos nativos.
- Farei o melhor por isso, senhor.
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O silêncio reinou por momentos, até que Festino soprou para as mãos e as esfregou com força.
- É uma pena que o Macro não esteja aqui connosco. Se havia alguém para fazer isto da melhor maneira, era ele.
Cato sentiu-se tentado a concordar. O seu velho amigo estaria no seu elemento num assalto daquele género, e o seu exemplo seria fonte de inspiração para todos os
seus homens, levando-os a combater como fúrias. Mas Macro estava muito longe, a zelar pela pouco briosa guarnição do forte, enquanto recuperava da ferida na perna.
O peso da responsabilidade caíra sobre Festino, e Cato não queria que o centurião se sentisse diminuído ao comparar-se com o homem que, para o prefeito, era simplesmente
o melhor soldado que alguma vez conhecera.
- Poderás contar-lhe tudo, quando a campanha terminar e regressarmos ao forte. Até lá, porém, és tu quem comanda a coorte, Festino. É para ti que os homens vão olhar.
E eu também. E sei perfeitamente que cumprirás o teu dever, e que o farás da melhor forma.
- Sim, senhor. Evidentemente.
Cato virou-se para o cavalo e soltou um pequeno odre de vinho que levava preso à sela. Ofereceu-o a Festino.
- Bebe. É um preparado feito pelo Traxis, para ajudar a afastar o frio. Tem vinho e algumas especiarias.
Festino acenou um agradecimento e levou cuidadosamente o bocal aos lábios. Apertou o recipiente várias vezes antes de o devolver a Cato.
- Ahh! Isto é do bom... - De repente engasgou-se, e viu-se aflito para respirar. - Algumas especiarias... Foda-se, senhor, que raio usou ele? Pimenta?
- Entre outros ingredientes, sim. - Cato sorveu alguns tragos, engolindo cautelosamente, já que sabia o que esperar. O líquido parecia fogo a descer-lhe pela garganta
até ao estômago, e deu-lhe uma impressão de calor por dentro. - Ajuda a manter o frio longe, pelo menos... Bom, será melhor voltares para junto dos homens. Quero-os
atentos e prontos a correr sobre o portão no preciso momento em que for dado o sinal. Que os deuses te acompanhem, Festino.
- E a si também, senhor.
Trocaram um cumprimento mais adivinhado que visto, e o centurião embrenhou-se de novo nas trevas, deixando Cato sozinho com o
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cavalo. Aníbal tinha baixado a cabeça e pastava com pouco empenho nas folhas de erva repletas de geada, com um mastigar calmo, sem saber das preocupações do dono
e dos outros homens que aguardavam silenciosamente na escuridão. Cato pegou nas rédeas e conduziu o animal para uma cova no terreno por trás do montículo. O ar ali
estava ainda mais frio e húmido, e o nevoeiro que o rodeou deu-lhe a impressão de ter mergulhado numa poça de água. Por instinto, respirou apressadamente, antes
de retomar o controlo dos sentidos.
Entregou as rédeas a um soldado, e foi à procura do decurião Miro. Este estava à espera com os outros decuriões dos Corvos Sangrentos, a conversar em voz baixa.
Cato deteve-se e ficou a escutar a conversa.
- Lembrem-se do que vos digo - dizia Miro. - Isto não vai acabar bem. Querem que ataquemos pelo terreno aberto até às muralhas, carregados com escadas e ganchos?
Sem hipótese de usar os escudos, vamos ser alvos perfeitos para qualquer um daqueles cabrões bárbaros nas muralhas que tenha boa vista.
- Queixas-te muito - replicou outra voz, que Cato reconheceu como a de Corvino. - Aquele bando de bárbaros de cu peludo, os merdosos, vão-se pôr a fugir assim que
perceberem que chegou a hora de ajustar contas. Tal e qual como fizeram lá atrás na garganta.
- Isso não foi por terem medo... Ouve, Corvino. Sem ofensa, nem nada do género, mas tu estás na Britânia há poucos meses. O que é que tu sabes sobre o inimigo, foda-se?
Quando os tiveres enfrentado em combate tantas vezes como eu já fiz, nessa altura vem-me dizer coisas, sim? Nestas condições, não estou nada feliz por o prefeito
nos ter oferecido para este trabalho. O sacana só pensa na glória pessoal.
Cato voltou a avançar, e um dos outros decuriões, ao notá-lo, lançou uma rápida fungadela de aviso, antes de elevar a voz.
- O comandante!
Os decuriões viraram-se para ele e colocaram-se em sentido.
- À vontade. E falem em voz baixa. Estamos aqui a tentar lançar um ataque de surpresa, não estamos a treinar na parada.
- Desculpe, senhor.
Cato olhou em volta para os seus subordinados. Parecia-lhe já ser capaz de distinguir mais detalhes das feições dos homens. A alvorada aproximava-se.
- Tudo pronto?
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- Sim, senhor - respondeu Miro. - Eu e os rapazes estamos prontos para tudo.
Cato suprimiu um sorriso.
- Encantado por saber disso. Espero ver-te a liderar a carga, quando chegar esse momento. Mostra aqui ao Corvino como os Corvos Sangrentos se lançam sobre o inimigo,
sim?
Miro hesitou brevemente, antes de concordar.
- Sim, senhor. Claro. Pode contar comigo. Até ao fim, senhor.
- Até ao coração do campo inimigo, será suficiente por agora, Miro. Isso chegará para nos cobrir a todos de glória.
Cato deixou o decurião enfrentar o embaraço por mais alguns momentos, antes de olhar para o céu e tentar perceber se havia realmente uma estreita faixa de céu mais
claro ao longo do horizonte, ou se seria apenas a sua imaginação. Não, estava seguro. A alvorada ia surgir daí a muito pouco tempo.
- Meus senhores, será melhor juntarem-se aos vossos esquadrões. Deem ordem para montar, e fiquem atentos ao sinal. Quando ele soar, sabem o que têm a fazer. Vamos
dar a estes bárbaros uma lição tão completa que nenhum deles há de ficar para dizer que aprendeu alguma coisa.
Houve uma pausa, antes de Miro responder com incerteza na voz.
- Senhor?
- Esqueçam. Tratem de cumprir com o vosso dever, e ver-nos-emos de novo no interior das muralhas. Miro, juntar-me-ei a ti e aos teus homens no ataque.
- Sim, senhor.
O pequeno grupo desfez-se, os decuriões dirigindo-se aos seus esquadrões e Cato regressando para junto de Aníbal, antes de se encaminhar com a montada para perto
do estandarte dos legionários de Miro. À sua volta, por entre o nevoeiro, adivinhava as silhuetas de homens e cavalos, ouvia os cascos a rasparem o solo e o tilintar
das peças de equipamento. Miro estava junto ao seu cavalo, e deu a ordem em voz tão alta quanto possível.
- Primeiro Esquadrão... preparar para montar.
Ao ouvirem a ordem, os homens colocaram uma mão no corno da sela e fincaram os pés no chão.
- Primeiro Esquadrão... montar.
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Ouviu-se um coro de grunhidos quando os homens se impulsionaram para cima das selas, antes de passarem as pernas direitas sobre as garupas, se sentarem e acalmarem
os animais.
- Formem uma linha junto a mim.
O porta-estandarte colocou-se ao lado do decurião, e o resto dos homens foi-se dispondo ao seu lado, perdendo-se no nevoeiro. Os escudos estavam postos às costas,
mas as lanças tinham ficado no campo, já que os homens tinham que ter as mãos livres de modo a usarem o equipamento para escalar as muralhas. Alguns tinham escadas,
com uns quatro metros de altura, que levavam debaixo dos braços. Cato fez Aníbal avançar para o lado de Miro, e depois tudo ficou calmo e silencioso na linha, à
exceção do resfolegar ocasional dos cavalos, o agitar das caudas e o remexer das orelhas pontiagudas.
A escuridão começou finalmente a ceder no horizonte, e uma fina mancha de luz pálida surgiu, fazendo com que os detalhes da paisagem em volta começassem a emergir
das trevas. Cato avistou o resto da coorte e os homens a pé por trás dela, os escudos apoiados no solo, os cabos das lanças apoiados nos ombros, enquanto esfregavam
as mãos para impedir que os dedos ficassem dormentes. Alguns batiam os pés no chão, e todos soltavam curtas exalações de vapor ao respirar, como penas cinzentas,
que se desvaneciam. Virou-se na sela e viu Festino à cabeça da sua coorte, homens de equipamento pesado, em formações silenciosas, com grandes escudos retangulares.
Sentiu o coração acelerar enquanto esforçava os ouvidos, à procura da primeira nota estridente que daria o sinal para o início do assalto. Apesar do frio, sentia
as palmas das mãos húmidas, e a garganta seca. Da povoação inimiga não vinha qualquer sinal de vida, mas seria de qualquer forma difícil notá-lo sobre o burburinho
que se espalhava pela linha romana e sobre o pulsar do sangue no seu crânio. Sentiu vontade de fazer avançar a montada uns passos até à borda da cova onde a vanguarda
da coluna se mantinha oculta, só para ter a certeza de que não havia nada de errado. Mas obrigou-se a resistir ao impulso. Já era demasiado tarde para isso. O plano
estava traçado, e o sinal soaria a qualquer momento. Tudo o que lhe restava era preparar-se para se lançar à carga, e atirar-se para a refrega.
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16

Apesar de estar à espera de ouvir o sinal, o distante soar das buzinas do destacamento do quartel-general do exército fez com que Cato desse um pulo na sela. De
imediato, os homens mais próximos olharam para ele, com expectativa. Respirou fundo enquanto levantava o braço e anunciava:
- Vanguarda! Em frente!
Apertou os calcanhares, e Aníbal avançou, lançando-se num passo rápido para subir o declive até sair da bolsa de nevoeiro que ocupava a cova, e começando a percorrer
o terreno aberto que os separava das muralhas inimigas, a poucas centenas de metros de distância. À esquerda seguia Miro e o seu esquadrão, e depois o resto dos
Corvos Sangrentos, os cascos dos cavalos a martelar a vegetação coberta de gelo branco. Alguns dos homens entoavam os seus gritos de guerra, desafiando as ordens
que lhes tinham sido dadas para manter o silêncio, e Cato tomou nota mental do facto, para garantir que os oficiais responsáveis os castigavam devidamente mais tarde.
Aquilo não era nenhuma cavalgada selvagem, já que iam carregados com escadas, baraços de corda e ganchos, mas todos os homens sabiam que a velocidade era a melhor
forma de reduzir as baixas ao mínimo possível num ataque daquele género.
Cato inclinou-se para a frente e incitou a montada, de olhos fixos nos vigias inimigos, à espera que eles fizessem soar o alarme na povoação, mesmo que este fosse
inaudível sobre o tropel dos cavalos a galope em cima do terreno rijo. Os seus ouvidos captaram porém o som de outras trombetas romanas, à medida que o sinal do
quartel-general era repetido pelas outras unidades do exército que cercava a capital dos deceanglos. Também aquilo fazia parte do plano, e era destinado a confundir
o inimigo e impedi-lo de determinar com precisão qual a direção de onde vinha o verdadeiro assalto, de forma a dar a Cato e aos seus
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homens a possibilidade de executarem a sua tarefa antes que se pudesse organizar uma defesa poderosa. Olhou rapidamente sobre o ombro e viu os primeiros legionários
a saírem do baixio no terreno e do nevoeiro que o escondia, e a dirigirem-se para o portão num passo de corrida constante. A tensão da espera tinha desaparecido.
Estavam lançados no ataque. A vitória e a glória esperavam-nos, ou então a derrota e a morte. Mas a expectativa do resultado era esquecida perante a pura exaltação
que acompanhava aqueles primeiros momentos do assalto; os lábios de Cato formavam um sorriso selvagem enquanto ele cavalgava a toda a brida contra o inimigo.
Os vigias nativos nas muralhas e no torreão mantinham-se no seu lugar, decididos, mas se o alarme fora dado, os seus camaradas estavam a levar o seu tempo a responder-lhe,
pensou Cato, enquanto a distância que o separava do fosso diminuía rapidamente. Ao aproximar-se, refreou o andamento da montada, para permitir que o resto dos seus
homens se lhe juntasse. Os primeiros cavaleiros detiveram-se no limite do fosso e desmontaram rapidamente, deixando um em cada cinco homens a segurar as rédeas das
montadas. Carregados com os ganchos e as escadas, os homens correram e escorregaram pela íngreme face externa do fosso, deixando sulcos na erva coberta de geada.
Cato manteve-se na sela e tomou um curso paralelo às muralhas, dirigindo-se à ponte que atravessava o fosso e conduzia ao portão. Acima dele, à tímida luz da alvorada,
conseguia distinguir os escuros vultos dos guerreiros nativos. Virou-se na sela e viu que os auxiliares apeados já se aproximavam também. A curta distância atrás
deles vinham os legionários, uma onda oscilante de escudos e capacetes bem polidos. No fim vinham os homens que carregavam o aríete.
Cato deslizou da sela e afastou-se da ponte, onde apresentaria um alvo perfeito para o inimigo, e desceu pelo fosso, evitando por pouco uma das estacas aceradas
que tinham sido cravadas no fundo, para empalar qualquer atacante menos cuidadoso. A face oposta era mais inclinada ainda, e apresentava um maior desafio para os
Corvos Sangrentos, que tinham de usar as mãos para trepar e por fim alcançar o estreito patamar que ficava mesmo na base dos toros que constituíam a muralha. Um
dos auxiliares estava a instalar uma das escadas ali mesmo ao lado, e Cato afastou-o.
- Eu vou primeiro!
Colocou uma bota no primeiro degrau e lançou-se para cima,
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subindo o mais depressa possível. O coração batia-lhe com toda a força, e esperava a qualquer momento ver um dos guerreiros inimigos a espreitar sobre a paliçada,
ou surgir-lhe à frente para afastar a escada de assalto. Não havia muito espaço para trepar em segurança, e ele via-se forçado a apoiar-se na muralha enquanto subia.
Assim que se aproximou do cimo, e que calculou já estar ao alcance de uma espadeirada, levou a mão ao punho da sua arma e desembainhou-a, antes de prosseguir. Fletiu
os músculos, subiu os dois últimos degraus de um fôlego, passou uma perna sobre o cimo da paliçada e saltou para o passadiço, onde aterrou já agachado e de espada
em riste, pronto a enfrentar qualquer adversário.
Mas nada se movia ali. Acima do sangue que lhe martelava os ouvidos, os outros únicos sons que escutava eram os grunhidos dos homens a trepar as muralhas e o troar
das botas cardadas no solo gelado, feito pelos legionários que atacavam o portão. Olhou rapidamente em redor, mas estava sozinho naquele passadiço, até que um dos
Corvos Sangrentos se juntou a ele a curta distância. Depressa outros homens começaram a surgir por cima da paliçada. E ainda assim não havia reação do inimigo. Cato
podia ver a cabeça de um dos homens no torreão, recortada contra o céu cinzento da aurora, e imóvel. Agarrou firmemente na espada, percorreu a curta distância até
aos degraus que levavam à torre e subiu-os a correr, de arma a postos. Irrompeu pelo espaço reduzido, pronto a desferir um golpe letal no primeiro opositor que lhe
surgisse ao caminho. Mas não surgiu nenhum. Apenas rudimentares imitações de homens, feitas de vimes e envoltas em trapos. As lanças que brandiam não passavam de
hastes de madeira presas aos próprios bonecos.
Olhou para tudo aquilo, chocado. Por fim, abandonou a posição agachada e dirigiu-se ao mais próximo dos espantalhos. Examinou-o com toda a cautela, como se se pudesse
revelar alguma espécie de armadilha, e deu-lhe uma pancada forte com a espada. O boneco desfez-se e caiu em pedaços sobre as tábuas bem gastas do soalho, a "lança"
a saltar ao lado dele. Cato contemplou a cena e não conseguiu reprimir um comentário murmurado.
- Foda-se...
Embainhou a espada, e apressou-se a atravessar a torre, de onde contemplou a massa de telhados cónicos de colmo. Ainda se viam penachos de fumo a erguer-se no céu
de diversos pontos no meio do labirinto de cabanas, mas não havia qualquer outro sinal de vida. E também não
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havia qualquer sinal de combates ao longo do passadiço, de ambos os lados do portão. Alguns dos seus homens andavam por ali, com ar de absoluta incompreensão. Mais
adiante, um dos auxiliares não conteve a raiva, e saltou sobre um dos espantalhos, derrubando-o e desfazendo o vime, em claro sinal de frustração. Os degraus que
levavam ao passadiço rangeram quando o decurião Miro entrou na torre, ainda de espada em riste. Os dois oficiais trocaram um olhar, antes de Cato lançar um suspiro.
- Fomos enganados. O inimigo há muito que partiu. Devem ter deixado uns poucos para trás, e foram eles que fizeram estes bonecos, acenderam algumas fogueiras e fugiram
já há várias horas. Provavelmente, assim que anoiteceu.
- Nesse caso, senhor, onde estão eles?
Cato esfregou os olhos.
- Quem sabe? Podem estar escondidos nas montanhas, ou dispersos por diversas povoações. O mais provável é que tenham retirado para Mona, pensando que lá estariam
em segurança, depois de colocarem uma extensão de mar entre nós e eles.
Miro contemplou por sua vez a povoação.
- E se eles ainda por aí andam? E se isto for alguma espécie de emboscada?
Cato olhou para ele e deu um estalo com a língua.
- E que género de emboscada seria essa? Permitir que o inimigo penetre pelas defesas? Acredita em mim, decurião. Foram-se.
Uma ordem bem clara no exterior do portão interrompeu a troca de ideias. Cato atravessava a torre quando se ouviu um estrondo, e toda a estrutura estremeceu debaixo
dos seus pés.
- Miro. Vem comigo! - Correu pelos degraus abaixo, até ao espaço por trás do portão. - Dá-me uma ajuda com a tranca.
Antes que conseguissem levantar a pesada tábua do seu encaixe, o portão voltou a ser sacudido pelo embate do aríete. A poeira saltou de todos os espaços na madeira,
e Cato piscou os olhos, antes de olhar novamente para Miro. Os dois oficiais fincaram os pés no solo e levantaram a tranca, lançando-a para o chão ali perto, precisamente
quando o optio que comandava o grupo do aríete completava mais um ciclo de contagem para novo embate.
- Um... dois... três!
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Sem a tranca, as portadas abriram-se de par em par quando tocadas pela ponta do aríete, fazendo com que os legionários se vissem projetados para a frente, surpresos
pela inesperada falta de resistência.
- Boa tentativa, rapazes - lançou Miro. - Mas os Corvos Sangrentos bateram-vos, e por muito.
Cato tinha pouca vontade de permitir que se desse início a uma batalha de méritos, e cortou o assunto, passando pelo aríete e chamando o centurião Festino.
- O inimigo aplicou-nos uma partida, e abandonou o lugar.
- O quê?
- Foram-se. Mas, só para o caso de terem deixado alguém para trás, quero que os teus homens revistem todas as cabanas. Se encontrarem algum retardatário, tragam-no
até mim, vivo.
- Sim, senhor.
Cato voltou a atravessar o portão.
- Miro! Envia imediatamente um mensageiro ao legado. Que lhe diga que o inimigo abandonou a sua capital. Depressa.
Miro fez uma continência rápida e regressou para junto dos seus homens, que se tinham juntado na base da rampa interna, enquanto lançavam olhares de suspeição às
cabanas mais próximas. Cato sabia perfeitamente que a ansiedade dos homens se ia rapidamente transformar em frustração e raiva. O inimigo tinha-os evitado mais uma
vez, negando-lhes assim o espólio que todos ambicionavam, bem como a oportunidade de conseguirem reconhecimento por terem sido os primeiros a penetrar na fortificação.
Enquanto o homem que Miro tinha designado como mensageiro corria para o exterior à procura do seu cavalo, Cato deu ordens para que os Corvos Sangrentos se juntassem
à busca pelas cabanas, à exceção de um esquadrão, a quem foi dada a tarefa de guardar o portão até à chegada de mais forças. Juntou-se aos homens de Miro, que tinham
tirado os escudos das costas e avançavam cautelosamente pela via principal da povoação, que conduzia ao coração da cidade. Revistaram as cabanas pelo caminho, mas
não encontraram qualquer sinal de vida, só os parcos bens que os membros da tribo tinham abandonado na pressa de escapar ao assalto romano. Nem sequer tinham deixado
quaisquer animais, que deviam ter sido conduzidos pelos próprios habitantes em fuga. Cato depressa descobriu o que tinha acontecido às reservas de cereais, ao remexer
as cinzas
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na orla do que restava de uma fogueira ainda fumegante. Haveria muito pouco que os romanos pudessem aproveitar, e não conseguia deixar de admirar um inimigo que
era capaz de destruir as suas posses em vez de permitir que elas tombassem nas mãos de um invasor.
Um pouco adiante, a rua fazia uma curva na direção de uma grande cabana, que dominava o centro da povoação. Cato adivinhou que se tratava do salão do governante
da tribo. Seria ali, se nalgum sítio, que poderiam encontrar qualquer coisa de valor que o inimigo tivesse deixado para trás. Quando os romanos fizeram a curva,
a via abriu-se para um vasto terreiro, e do outro lado ficava a entrada para o recinto onde se situava o salão real. Ali viam-se os restos de outra fogueira - uma
grande pilha de cinzas, pequenas línguas de fumo que subiam de diversos pontos. No chão encontravam-se alguns cestos.
Cato deu alto ao esquadrão e mandou os homens verificar as cabanas em redor, antes de acenar a Miro e se dirigir à entrada do recinto real, um arco de madeira encimado
por uma série de crânios humanos, já marcados pelo tempo. Em redor do recinto havia uma paliçada baixa, que englobava ainda um punhado de cabanas. Não tinha a mesma
escala dos edifícios que Cato tinha visto entre as tribos do Sul da Britânia, e os crânios, bem como o ar esquálido do recinto, revelavam bem a bárbara natureza
da tribo dos deceanglos. Fizeram uma pausa à beira da entrada do salão, e Cato deitou uma olhadela a Miro.
- Vasculha o resto do recinto.
- Sim, senhor. - Miro engoliu em seco, deixando transparecer toda a ansiedade que sentia naquele cenário. Cato pensou em dar-lhe alguma confiança, mas resolveu não
o fazer. Miro tinha que ser capaz de dominar os seus medos por si mesmo. Fazia parte dos deveres do posto que ocupava.
Deixou o decurião à entrada e penetrou no interior. Apesar de a porta estar completamente aberta, havia um calor residual lá dentro, e o ar parecia pesado com os
cheiros a suor, carne assada e fumo da lenha. No centro do salão havia uma grande fogueira numa cova, por baixo de uma abertura no teto, e em redor dela viam-se
mesas compridas e bancos corridos. Havia pratos desordenados e cornos espalhados pelas mesas, e tornava-se aparente que o inimigo abandonara o local à pressa. Ao
fundo do salão via-se um grande cadeirão de madeira, decorado com um padrão ondulado, esculpido em todas as faces do assento. A
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laia de almofadas via-se uma pilha de peles. À frente do trono estavam dois baús abertos. À medida que se aproximava, Cato apercebeu-se de que continham cerâmica.
Pegou numa gamela do meio da palha que a acondicionava e segurou-a junto aos olhos, para examinar a superfície decorada. Era do tipo preferido por todos os que negociavam
com os nativos, que apreciavam sobretudo a bela aparência do material e pagavam bem por ele, apesar de ser produzido em série na Gália.
- Senhor!
Cato olhou para fora ao escutar o apelo.
- Senhor! Depressa, aqui!
Voltou a colocar a peça na arca e apressou-se a deixar o salão. Miro voltou a chamar, por trás do edifício, e Cato correu ao redor deste para se juntar ao decurião,
sem conseguir evitar um toque de ansiedade. Miro aguardava junto a uma carroça, de rosto lívido, o braço com a espada caído e inerte. Quando Cato chegou junto dele,
avistou a razão do choque que tinha afetado o decurião. Um corpo nu estava amarrado à parte de trás da carroça, os braços bem esticados e presos às faces laterais
do veículo. Numa verdadeira piscina de sangue seco aos seus pés via-se uma pilha de órgãos e intestinos. O estômago do homem fora aberto, e as pregas puxadas para
trás, para revelar toda a cavidade sangrenta. A cabeça tinha rolado para trás, os olhos fechados, a boca escancarada, e nela fora colocado o pénis decepado. As feições
do homem estavam distorcidas e repletas de cortes, mas ainda eram reconhecíveis.
- Petrónio Deano - comentou Cato, em voz baixa. - Desgraçado.
Miro engoliu em seco.
- Porque é que lhe fizeram isto? Animais de merda...
Cato afastou o olhar do cadáver e olhou para a carroça.
- Um aviso, para nós. Não, um aviso não. Um desafio. Olha.
Apontou para uma curta frase, escrita a sangue na face lateral da carroça, por baixo da mão direita de Petrónio. No dedo do homem havia sangue seco, e um arrepio
gélido percorreu a espinha de Cato quando percebeu que o mercador tinha sido obrigado a escrever aquela mensagem com o seu próprio sangue, antes de ser eviscerado.
As palavras eram suficientemente grandes para serem percetíveis, sem ser preciso aproximar-se mais.
Limpou a garganta e leu, em voz tão alta quanto lhe foi possível.
- Romanos, aguardamo-los em Mona. E lá todos vocês deixarão as vossas vidas...
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Macro esforçava-se por não deixar transparecer as dúvidas que o assolavam, embora deitasse frequentes olhadelas ao oficial que o acompanhava na ronda antes da aurora.
Um pouco antes, o centurião Fortuno tinha sido informado de que ia assumir o comando do forte, e tinha reagido precisamente da forma que Macro mais temia. A vida
na coorte ilírica fora demasiadamente fácil durante demasiado tempo, e a maior parte dos homens e oficiais tinha-se acostumado ao serviço de guarnição no conforto
de uma província pacificada. Mesmo depois de serem transferidos para o exército da Britânia, tinham feito parte da reserva, e ainda não tinham tido que travar qualquer
batalha, refletiu Macro, pensativo. Mas aquele forte estava situado na fronteira. E os guerreiros inimigos vagueavam pelas colinas e montanhas em redor. Era muito
possível que os nativos tivessem concentrado as forças para marchar sobre a principal coluna romana. Mas era igualmente possível que albergassem ambições mais vastas,
e que essas incluíssem uma ofensiva contra os fortes e postos fronteiriços. Se eles atacassem Fortuno e os seus homens, Macro tinha sérias dúvidas de que os ilíricos
conseguissem prevalecer. Apesar de os seus esforços para os enrijecer terem dado alguns frutos, e ser evidente que eles estavam agora em melhor forma física e com
maior capacidade de combate, estavam ainda assim muito longe de constituírem uma unidade pronta a entrar em batalha. E mais preocupante ainda era o facto de o comando
do forte recair em Fortuno, já que era o mais antigo dos oficiais que ficavam no posto.
Macro fez uma pausa na base das escadas que levavam ao torreão sobranceiro ao portão, e apoiou-se na sua vareta para tirar o peso de cima da perna ferida. Ainda
não conseguia andar mais de quilómetro e meio antes de a dor se tornar insuportável e a articulação ficar rígida.
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Esperou um momento e respirou com toda a calma, antes de se dirigir a Fortuno.
- Aplica outra tranca em cada portão. Se houver sarilhos, isso ajudará a manter os cabrões lá fora. E já agora, manda o ferreiro produzir tantos estrepes quanto
possível. Espalha-os pela vegetação em redor das muralhas. Isso deterá qualquer tentativa de os nativos lançarem um ataque repentino sobre o forte. Ainda não encontrei
um homem que pisasse um estrepe e o visse trespassar-lhe o pé e que fosse capaz de não desatar aos berros. - Macro sorriu com agrado quando recordou o efeito que
as perigosas estrelas de ferro tinham tido nos partos que ele e Cato tinham em tempos enfrentado nos desertos do Leste do Império.
- Senhor, acredita seriamente que haverá problemas?
Macro suspirou.
- Quem sabe? O ponto a ter em mente é que temos de estar prontos para os enfrentar a qualquer momento. É isso que fazem os soldados, Fortuno. Pelo menos os soldados
profissionais. Recebes o dinheiro do Imperador, eis que chegou o momento de o mereceres.
- Sim, senhor. Compreendo. - Fortuno hesitou e olhou para Macro, ansioso.
- Mas...? Desembucha, homem.
- É... é consigo que me preocupo, senhor.
Macro franziu o cenho.
- A sério?
- Sim, senhor. Ainda não recuperou por completo da ferida que recebeu. Seria bem melhor que ficasse no forte e enviasse outro oficial para avisar o legado.
Macro sentiu um desdém instintivo pela sugestão do outro, cuja motivação era tão transparente. Não tinha paciência para oficiais que se recusavam a assumir a responsabilidade
que vinha com a patente que ocupavam, para não falar do salário mais elevado. Não estava disposto a permitir que Fortuno se escondesse atrás de si, e menos ainda
que liderasse os seus homens a partir da retaguarda. Ainda assim, de pouco adiantaria dar-lhe um raspanete ali em público, ao alcance dos ouvidos de todos os que
ficariam sob a sua autoridade. Reprimiu a irritação que o percorria e mudou o apoio, de forma a manter-se bem direito à frente do outro homem.
- É vital que o legado seja informado dos planos do inimigo, e sou
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eu o homem mais indicado para conduzir um esforço para garantir que a informação lhe chega. É por isso que tenho de ir, e que tu tens de assumir o comando do forte.
Fortuno encarou-o com ar abatido, antes de baixar os olhos para o chão.
- Senhor, não tenho a certeza de ser o melhor homem para o lugar. Talvez fosse melhor se escolhesse outro para o comando.
As sobrancelhas de Macro franziram-se, mostrando a fúria que o possuía, e ele espetou um dedo na redonda barriga de Fortuno.
- Cala essa boca. Não é uma questão de escolha. Estou a ordenar-te que tomes o comando, e, foda-se, será precisamente isso que vais fazer. Está entendido? Porra,
és um centurião. Age como tal. Estes homens vão olhar para ti para lhes dares o exemplo. Vão depender de ti. E tu vais cumprir o teu dever e liderá-los da forma
que merecem: a melhor. Disso dependem as suas vidas. Tal como a tua, Fortuno. Estamos todos juntos nesta história. A diferença é que os oficiais devem liderar, dando
o exemplo. E tu dá-lo-ás, darás as ordens, e se for preciso morrerás à frente dos teus homens.
Fortuno estremeceu, e Macro fez uma pausa, desapontado pela completa falta de fibra moral que o homem exibia. De pouco serviria dar-lhe mais motivos para ficar ainda
mais ansioso. Fortuno precisava de uma abordagem um tanto mais subtil. Talvez de um pouco de encorajamento. Macro acalmou o tom de voz.
- Olha, não deve ter sido por acidente que foste promovido ao centurionato. Quem quer que tenha tomado a decisão de te colocar nessa posição deve ter tido as suas
razões. Sou soldado há tempo mais do que suficiente para saber que nesta posição temos que liderar os homens na primeira linha de combate, e sermos os últimos a
abandonar a luta se recebermos ordens para recuar. Fortuno, é suposto seres capaz de engolir fogo. É teu dever ser tão assustador para os teus homens como o és para
o inimigo. Talvez te tenhas esquecido disso e precises de o redescobrir em ti mesmo. Mas isso vai acontecer. Terá que acontecer. - Fez uma pausa e obrigou-se a sorrir.
- Claro que terás que dar mais umas voltas à parada antes de estares capaz de correr mais do que os rapazes!
Os olhos de Fortuno semicerraram-se.
- Senhor, está por acaso a sugerir que estou gordo?
- Bom, digamos que não te estou propriamente a chamar magricela.
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Entreolharam-se por momentos, até que o rosto do oficial auxiliar se vincou num sorriso. Macro imitou-o, e ambos soltaram uma boa gargalhada.
- Muito bem, o trabalho é teu. Centurião, cuida bem do meu forte.
- Sim, senhor. Darei o meu melhor.
- Não aceitaria menos do que isso. E se queres uma palavra de conselho, dá ouvidos ao Diomedes. É um bom homem, e um dia destes há de tornar-se um excelente centurião.
Não te fará mal nenhum escutar o que ele possa ter a dizer.
- Lembrar-me-ei disso, senhor.
- Ótimo. - Macro aplicou-lhe uma palmada no ombro e virou-se para subir os degraus da torre, rangendo os dentes de cada vez que tinha que dobrar a perna ferida.
Suava ligeiramente quando chegou ao cimo e se aproximou da borda interna da muralha. Apoiou-se na madeira e apontou para os três outros torreões.
- Já sei que o encarregado dos armazéns não gosta de ter a artilharia montada durante os meses de inverno, e que o frio e a humidade não fazem bem nenhum ao equipamento,
mas monta uma balista em cada torre. Se houve uma coisa que aprendi acerca dos nativos é que eles têm um medo tremendo das nossas balistas e catapultas. Sobretudo
quando os projéteis levam chamas. Devias tê-los visto, Fortuno. Como se fosse fogo vindo do céu, a lançar-se sobre as suas fileiras e a espalhar chamas e brasas.
Não há nada como isso. Portanto, usa-as assim que o inimigo for avistado. Se conseguirem ultrapassar o pavor, cruzar o fosso e lançarem-se às muralhas, tudo se resumirá
ao frio aço, à força bruta, à coragem e ao treino bem feito. E é isso que nos dá uma vantagem clara sobre o inimigo, portanto trata de manter o programa de treinos
e não os poupes. É só quando um homem acha que atingiu o ponto de exaustão que encontra aquela última reserva que lhe dá a confiança necessária para enfrentar qualquer
perigo.
- Sim, senhor.
Macro olhou o outro nos olhos e ofereceu-lhe a mão. Trocaram um aperto, e Macro assentiu, satisfeito.
- Vais-te safar, Fortuno. Acredita no que te digo.
- Obrigado, senhor. Não o deixarei ficar mal.
- Ai de ti se o fizeres, corto-te os tomates e sirvo-tos ao pequeno-almoço.
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Fortuno riu, a queixada a tremer de prazer. Mas o riso dissipou-se rapidamente.
- Se formos mesmo atacados, deverei depreender que o legado foi derrotado?
Macro pensou por momentos, e encolheu os ombros.
- O facto de o Quintato ser derrotado ou sair vitorioso não faz qualquer diferença. Aguentas o forte até poderes, até seres derrotado ou até que uma coluna de socorro
chegue, ou até que o inimigo desista e recue lá para as montanhas. É tudo o que te deve preocupar.
- Sim, senhor, Compreendo.
Macro avistou o optio Pandaro a conduzir a sua secção de homens montados na direção do portão, e endireitou-se.
- É tempo de ir. A partir deste momento, és o comandante desta guarnição. O forte está nas tuas mãos, centurião.
Fortuno pigarreou.
- Sim, senhor.
Desceram da torre e saíram da estrutura precisamente quando Pandaro e os outros se detinham. Macro passou os olhos pelos Corvos Sangrentos e o seu último recruta,
o gigante Lomo. Este conduzia uma segunda montada, que trouxe até junto de Macro. Tal como os outros animais, estava carregado de sacas de ração e do mínimo de equipamento
que iria ser necessário para aquela missão de encontrar o legado Quintato. Manteve-se junto ao cavalo, a segurar as rédeas e a vara numa mão, a outra pousada no
corno da sela. Instintivamente deu um impulso para se içar para a sela, mas a perna magoada recusou-se a responder, e nem chegou a deixar o solo. Vociferou em voz
baixa, embaraçado pela necessidade de pedir ajuda, pelo que rangeu os dentes e chamou Lomo com maus modos.
- Dá aqui uma mão!
O auxiliar largou as rédeas do seu animal e fez um apoio com as mãos, para que Macro lá colocasse o pé são. Como se estivesse a ajudar uma criança em vez de um homem
feito com uma armadura pesada, lançou Macro para cima de forma a colocá-lo sobre a montada. O centurião resmungou um agradecimento e ajeitou-se na sela, ajustando
a capa de forma a ficar bem coberto.
- Abram os portões.
A secção de auxiliares ilíricos que guarnecia o portão apressou-se a
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remover a tranca e a abrir as portadas, deixando entrar a luz rasante da madrugada. Macro deu um toque com os calcanhares no flanco do cavalo e fê-lo avançar. Pandaro
deu ordem aos outros para que montassem, e seguiram a trote atrás do centurião. Pouco depois, os portões voltaram a encerrar, e ouviu-se a pesada tranca a cair nos
encaixes. Macro virou-se ligeiramente na sela e avistou o volumoso vulto de Fortuno na torre. O novo comandante do forte levantou uma mão, num gesto de despedida,
e Macro acenou, antes de se voltar para a frente e encetar a estrada para Mediolanum, um carreiro estreito que seguia para as colinas a norte do forte, dirigindo-se
para a linha de marcha que Quintato tomara com o seu exército. Macro estremeceu na sela. Tinha sido difícil ajustar a posição de forma a que toda a tensão ficasse
sobre a perna boa, enquanto tentava ignorar qualquer dor que surgisse na outra. Mas depressa o desconforto se lhe varreu da mente, substituído pela ideia de encontrar
o legado e salvar os seus camaradas, e Cato, antes que tombassem na emboscada que o inimigo lhes preparava.
Passaram dois dias a forçar as montadas a avançar num ritmo acelerado, alternando o trote com um passo rápido, conforme o terreno que enfrentavam. A urgência não
lhes permitia seguir com grande cautela, e Macro confiava mais numa boa espada e na determinação inabalável, no caso de se depararem com nativos armados. Passaram
por várias aldeias aninhadas em vales, dando-lhes espaço para não levar os nativos a lançar qualquer perseguição, mas o coração do centurião foi ficando mais pesado
quando compreendeu que a ausência de escaramuças só podia dever-se ao facto de o inimigo estar mesmo a concentrar todos os guerreiros disponíveis para se lançar
sobre a coluna romana no momento em que decidisse fechar a armadilha. Tanto quanto sabia, isso até podia já ter acontecido, e os corvos e outros necrófagos entretinham-se
naquele preciso momento a debicar os cadáveres frios e inertes do exército romano, os bicos aguçados a arrancarem a carne putrefacta. Se fosse esse o caso, ele e
o pequeno grupo de homens que o acompanhava cavalgavam também ao encontro da morte, mas tal ideia não o perturbava. Se existia ainda a mais pequena réstia de esperança
de salvar Cato e os outros, pouco lhe custava arriscar a vida, pelo que incitava os homens e combatia com determinação o latejar que lhe cruzava a perna. Sentia-se
contudo grato ao verificar que apesar de por vezes a
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cicatriz ficar mais avermelhada, não havia sinais de a cavalgada lhe estar a prejudicar a recuperação.
Todas as noites acampavam numa qualquer zona abrigada que encontrassem, sem se atreverem a fazer fogueiras, para não atraírem nenhuma atenção indesejada. Mascavam
tiras de carne seca e pão duro, empurrados com água, e depois faziam o que podiam para se manterem quentes, embrulhados nas capas espessas, e tentavam dormir, embora
o sono fosse entrecortado e leve.
Na manhã do terceiro dia, o desconforto do ar frio e húmido das montanhas piorou, com a chegada de nuvens escuras. Pelo meio-dia já chovia a cântaros, e a escuridão
era tanta que até parecia a madrugada ou o anoitecer. Macro, para evitar dar de caras com o inimigo, ordenou a Lomo que se adiantasse ligeiramente no terreno. Seguia
encolhido na sela e contemplava a crina dançante do seu cavalo, enquanto oscilava ligeiramente de lado a lado. Tanto quanto conseguia estimar, já tinham percorrido
quase cem quilómetros, e deviam cruzar o caminho seguido por Quintato a qualquer momento. Não poderiam deixar de identificar o rasto de um tão vasto grupo de homens.
O terreno estaria revolto pelas botas cardadas, pelos cascos dos animais e pelos rodados dos grandes vagões, o que teria deixado uma larga cicatriz na paisagem.
Teriam apenas que a seguir para alcançar a coluna romana, ou pelo menos encontrar um dos postos construídos ao longo da rota para proteger a linha de comunicações
com o depósito fortificado de Mediolanum.
Antes de dar por isso, já quase chocava contra Lomo, pelo que deteve o seu cavalo repentinamente, enquanto o auxiliar o saudava e esticava o braço para apontar a
zona de onde vinha.
- Senhor, encontrámos o rasto. A pista é logo ali.
Macro sentiu um grande alívio a encher-lhe o coração.
- Vamos lá ver.
Prosseguiram e detiveram-se na orla da larga faixa de lama entrecortada por charcos que reluziam e tremelicavam debaixo da chuva. Macro olhou nas duas direções ao
longo da linha de avanço do exército, mas não descortinou qualquer sinal de vida. Fez um gesto para que os outros o seguissem, e orientou o cavalo para a esquerda,
para seguir a pista, mantendo-se longe da faixa mais enlameada, onde os cavalos ficariam com os cascos presos e teriam dificuldade para avançar. Não havia forma
de saber qual o avanço que o exército tinha sobre eles, mas pelo menos
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agora seria relativamente fácil encontrá-lo, refletiu, satisfeito. Quando tal sucedesse, e tivesse apresentado o seu relatório ao legado, teriam comida quente, fogueiras
para se aquecerem, e abrigo daquela maldita chuva.
Ao fim da tarde a chuva diminuiu de intensidade, tornando-se um chuvisco persistente, e passaram pelo que restava de um campo de marcha, que tinha sido arrasado,
de acordo com a prática romana de não deixar qualquer fortificação à mercê do inimigo. O terreno onde estivera instalado o campo era plano, e situava-se junto a
um riacho que percorria o vale. Para lá dele, a pista subia uma doce elevação, e o grupo de Macro incitou as cansadas montadas para um último esforço antes de se
deterem e acamparem para passar mais uma noite. Havia uma floresta onde predominavam os pinheiros altos e que descia da crista, ocupando um declive acentuado, e
Macro decidiu que aquele seria um sítio adequado para fazerem alto. Estava esgotado, a perna doía-lhe de forma quase insuportável, e a perspetiva de dormir num colchão
de caruma, com alguma proteção dos elementos, parecia-lhe um verdadeiro luxo.
Lomo estava outra vez ligeiramente adiantado, e foi o primeiro a alcançar a crista da elevação; Macro preparava-se para lhe ordenar que se dirigisse para o pinhal
quando o auxiliar deteve abruptamente o cavalo e esticou o pescoço. No momento seguinte, virou-se e fez gestos frenéticos.
- Aqui em cima, senhor! Depressa!
Macro fez o cavalo extenuado galopar até se colocar ao lado de Lomo, e olhou pela encosta até ao vale pouco pronunciado que se abria do outro lado. Algumas centenas
de metros adiante estava um pequeno comboio de vagões, talvez uns cinco carros pesados, de quatro rodas, puxados por bois, do género dos que normalmente transportavam
abastecimentos. No meio seguia também uma pequena carroça coberta. Em redor, viam-se os restos da escolta do comboio. Meia centúria de auxiliares, pelo rápido cálculo
de Macro, que combatiam pelas suas vidas contra um contingente de guerreiros nativos, talvez uns sessenta ou setenta, lançados com vigor sobre os odiados invasores
romanos.
Os outros homens do grupo de Macro alcançaram por sua vez a crista e dispuseram-se dos dois lados do centurião.
- Senhor, o que vamos fazer? - indagou Pandaro.
- Fazer? - Os lábios de Macro curvaram-se num sorriso, enquanto ele levava uma mão ao queixo para verificar se tinha o capacete bem
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preso. O seu primeiro pensamento foi a necessidade de completar a sua missão e avisar Quintato da armadilha para onde se encaminhava. Mas depois havia o inimigo
ali à sua frente, e camaradas em perigo. Ele e os seus homens podiam ser os suficientes para inverter o curso da refrega, calculou. Empunhou a espada e manteve-a
encostada à perna, onde havia menos perigo de atingir algum dos que o rodeavam. - O que fazemos nós? Vamos dar cabo daqueles sacanas. Mas primeiro, tu aí!
Apontou para um dos homens.
- Tu ficas aqui, longe do combate. Se a coisa correr para o torto, trata de arranjar maneira de passar e avisar o legado. Entendido?
- Sim, senhor.
- Ótimo. Os outros, comigo!
Voltou a incitar a montada, e o cavalo fungou antes de mergulhar pelo declive, dirigindo-se ao comboio de abastecimento que se via em maus lençóis.
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Macro e o destacamento de Corvos Sangrentos que liderava mantiveram-se longe do lamaçal que assinalava a passagem do exército do legado Quintato. Em vez disso, desceram
velozmente pelo declive coberto de ervas, de espadas em riste, as capas ensopadas a voltear nas suas costas. A dor na perna de Macro era como uma labareda que lambia
o membro de cada vez que embatia contra o flanco do cavalo, mas ele afastou-a do pensamento e deixou-se levar pela excitação e pelo entusiasmo da ação iminente.
Pandaro e alguns dos outros tinham-se adiantado ligeiramente, e Macro aproveitou um fôlego para os avisar.
- Mantenham a linha! Porra, não se dispersem!
Entendia perfeitamente a urgência de entrar naquela refrega, mas, como oficial, já tinha há muito apreendido a importância de manter os homens juntos e irromper
em grupo pela força inimiga, em vez de desperdiçar o ímpeto de uma boa carga em vários embates individuais. Ao escutarem a ordem, Pandaro e os outros refrearam o
andamento das montadas, para permitir que os demais os alcançassem, e prosseguiram numa linha bem definida. O grito de Macro tinha tido também o condão de alertar
o inimigo, e os nativos mais próximos já haviam lançado o aviso aos seus camaradas. A maior parte ainda estava entretida a enfrentar os homens da escolta, e continuaram
sem dar atenção ao aviso, mas um punhado deles, talvez uns vinte, voltaram-se na direção dos cavaleiros e juntaram-se perto da parte de trás do último vagão, de
escudos aperrados e lanças e espadas a postos. Macro avistou o condutor do vagão, derrubado sobre o seu banco, os braços abertos, e um vulto mais pequeno, um rapaz,
também ele morto ao seu lado, mas numa posição que dava a ideia de ainda se manter sentado. Gotas de chuva saltavam para o rosto de Macro, e o centurião teve que
piscar os olhos para as afastar, à medida que se aproximava dos guerreiros inimigos. Quando estava já a menos
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de cinquenta passos, viu-os prepararem-se para o embate, e os romanos levantaram as espadas e cobriram-se com os escudos, de forma a protegerem o flanco mais exposto.
- Corvos Sangrentos! A eles! - berrou Macro, e incitou a montada, que resfolegava, a uma última aceleração, orientando o animal para passar pelo lado direito do
vagão. Fixou a atenção num trio de nativos, colocado junto à roda traseira. Nenhum deles ostentava armadura, dois empunhavam escudos de vime e entre eles tinham
apenas uma espada, enquanto os outros brandiam machados. Com tão pobre equipamento, Macro conseguia ainda assim notar o brilho destemido dos seus olhares, enquanto
se preparavam para aguentar o embate e o desafiavam com imprecações várias. No último instante puxou pelas rédeas e fez o cavalo dirigir-se contra o vagão, esmagando
os três homens entre o animal e a roda do veículo. Usou o escudo para desferir uma pancada com a bossa em cheio no rosto de um dos homens, partindo-lhe a mandíbula
e rasgando-lhe os lábios. Esticou-se depois sobre a sela e golpeou com a espada, enterrando a lâmina no ombro do nativo. Entretanto, o cavalo, por instinto, voltou
a afastar-se, deixando o grupo para trás ao pé do rodado. Macro sabia que não tinha tempo para fazer meia-volta e acabar com eles. O que importava era continuar
e fazer os nativos sentir o peso da carga. Prosseguir. Desbaratar o inimigo. Abatê-los a todos, continuar a atacar. Quebrar-lhes o espírito.
Os Corvos Sangrentos avançavam pelos dois lados do comboio, desferindo golpes e estocadas com as lanças e pancadas com os escudos, enquanto entoavam o selvático
grito de guerra da unidade, uma vez e outra.
Outro adversário saltou para a frente de Macro. Um homem alto e espadaúdo, com um pequeno mas sólido escudo retangular e uma lança pesada, do tipo que os nativos
usavam para caçar javalis. O longo cabelo estava colado ao escalpe e reluzia sob a chuva; o homem sacudiu uma melena que lhe tapava um olho e afastou os pés, enquanto
o oficial romano se aproximava a galope. Macro tentou repetir a manobra que tinha derrubado os primeiros três nativos que enfrentara, mas o novo inimigo era muito
mais experimentado do que os seus companheiros, e facilmente evadiu o truque, deslocando-se para se manter do lado em que Macro empunhava a espada. Avançou e levantou
o escudo para deter o golpe desesperado do romano, e logo tentou manobrar a lança para
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o atingir. Macro recuperou a posição da espada e usou-a para defletir a ponta da lança. Deu um golpe de calcanhares ao cavalo para avançar, mas puxou as rédeas para
fazer o animal rodar contra o guerreiro. A pancada foi de raspão, pelo que o outro conseguiu recuar rapidamente e retomar o equilíbrio, enquanto Macro voltava a
avançar, lançando o seu escudo com estrépito contra o do inimigo numa série de pancadas, a que se seguiu uma chuva de golpes da espada. Mas o guerreiro nativo era
demasiado ágil, e movia os pés velozmente, pelo que conseguia desviar a lâmina ou saía do seu caminho, o que fez Macro ranger os dentes, frustrado e furibundo.
De repente, o opositor saltou para trás, abrindo um espaço entre ele e o cavalo de Macro, de forma a poder usar a lança contra o animal, fazendo-lhe um rasgão no
flanco. Um relincho aflito cruzou o ar, e o cavalo empinou-se e agitou os cascos, atirando o escudo do guerreiro para longe antes de enviar o próprio a voar desamparado
para a lama, aterrando numa poça, de costas, e levantando um tremendo estardalhaço. O homem manteve ainda assim a presença de espírito que lhe permitiu segurar bem
na lança, pelo que, quando Macro se debruçou sobre ele, pronto a desferir o golpe fatal, ele manejou a arma com ambas as mãos de forma a bloqueá-lo.
- Porra, cabrão, morre de uma vez! - vociferou Macro, exasperado. Voltou a atacar, mas no último instante alterou o ângulo de abordagem, de tal forma que o gume
da espada cortou em diagonal os dedos da mão direita do homem, dilacerando a carne e esmagando os ossos. Dois dedos decepados saltaram do cabo da lança para o chão,
e os outros ficaram a pender da mão destroçada, enquanto a ponta da lança caía para a lama. Ao ver-se apenas com o uso da mão esquerda, o guerreiro rugiu de raiva
e tentou ajustar a pega de forma a devolver o ataque. Mas Macro já tinha conquistado o prélio, e mais uma vez se esticou na sela de forma a conseguir empurrar a
ponta da espada pelo pescoço do adversário, rasgando os vasos sanguíneos e fazendo-o cair para trás, o sangue a espirrar da ferida.
Macro voltou a equilibrar-se na sela, levantou a espada e olhou rapidamente em redor. A maior parte dos inimigos à volta do último vagão já tinham sido abatidos.
Um grupo fugia pelo espaço aberto, tentando alcançar as árvores. Um pouco à frente, Lomo tinha-se dirigido diretamente contra outro grupo de nativos, e fazia dançar
a longa espada de cavalaria em arcos ameaçadores, que tinham feito dispersar os nativos e
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tinham já rasgado de um lado a outro os mais lentos a ficarem fora do alcance do gigante soldado. Adiante, ao longo do comboio, a escaramuça ainda estava por decidir,
e o veículo mais adiantado estava nas mãos dos guerreiros deceanglos, demasiado entretidos a saqueá-lo para prestar atenção à chegada dos cavaleiros romanos.
A atenção de Macro foi atraída pela confusão em redor da pequena carruagem que seguia a meio da coluna. Uma dezena de membros da escolta tinham-se reunido à volta
do optio, que segurava o estandarte da sua unidade com uma mão e combatia o inimigo com a espada na outra. A seu lado via-se um vulto esguio, numa couraça escura
e brilhante, decorada com serpenteantes motivos prateados. A fita amarrada sobre a couraça designava a patente - um tribuno superior - e Macro não deixou de se interrogar
como tão alta entidade se tinha integrado num pequeno comboio de abastecimentos. O tribuno e os seus homens estavam encurralados, e lutavam ombro a ombro numa formação
cerrada junto à carruagem, enquanto os combatentes inimigos, armados de machados e espadas, desferiam golpes em catadupa sobre os seus escudos ovais.
A boca de Macro estava seca, e teve que limpar a garganta antes de chamar o resto dos seus homens.
- Sigam-me! Sigam-me!
Esperou o tempo suficiente para verificar que os outros acatavam a sua indicação, antes de bater com a folha da espada na garupa do cavalo e o levar para junto da
encarniçada refrega. Os poucos auxiliares sobreviventes lutavam já costas com costas ou individualmente quando os Corvos Sangrentos chegaram ao cenário, abatendo
qualquer inimigo que lhes ficasse ao alcance. Depressa se viram entre os defensores, os cavalos a abrirem caminho no meio da confusão de lâminas a entrechocarem-se
e faíscas que se libertavam do metal e sobressaíam na escuridão crescente. Macro manteve o escudo bem apertado, protegendo a perna da melhor forma possível, enquanto
abatia os alvos que lhe apareciam à frente. O surgimento repentino dos reforços tinha desnorteado os nativos, que tentaram recuar para escapar aos ferozes guerreiros
a atacá-los do alto dos cavalos.
- É isso, rapazes! - gritou o tribuno. - Os sacanas estão a recuar! Deem cabo deles!
Os homens da escolta, de espírito renovado, avançaram, usando os escudos para empurrar o inimigo e desferindo estocadas rápidas com
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as suas espadas curtas, aproveitando a alteração do poder. Alguns dos guerreiros viraram as costas e fugiram, e tal exemplo depressa se espalhou entre os seus camaradas,
que começaram a recuar em desalinho. Macro viu Lomo a preparar-se para lançar o cavalo em perseguição dos fugitivos, e deu-lhe um berro.
- Lomo! Deixa-os ir. Optio!
- Senhor? - Pandaro deteve o cavalo e virou-se para o seu comandante.
- Leva os homens em formação, e afasta os outros nativos. Mas nada mais. Nada de os perseguirem para lá de uns cem passos. Não os quero a enfiarem-se nalguma armadilha.
Percebido?
- Sim, senhor!
Pandaro chamou os homens para formar a linha de batalha e dirigiu-se a trote para os três vagões na frente da coluna, abatendo qualquer guerreiro que se opusesse
à sua passagem. Entretanto, Macro virou-se para o tribuno e apresentou-lhe uma rápida saudação.
Ao aproximar-se, o tribuno ofereceu-lhe um sorriso de alívio.
- E a quem devo os agradecimentos pela intervenção no momento certo?
- Centurião Lúcio Cornélio Macro, da Primeira Centúria, Quarta Coorte da Décima Quarta, senhor.
- Muito prazer, centurião. Sou o tribuno Caio Pórcio Glaber. Não estou colocado em nenhuma legião, no meu caso. Pelo menos por enquanto. E quem são estes homens
que te acompanham? Não têm aparência de legionários, pelo menos de nenhuns que alguma vez eu tenha encontrado. A não ser que a Décima Quarta tenha decidido adotar
os usos dos nativos.
Macro riu.
- São Corvos Sangrentos, senhor. O mesmo é dizer que são da Segunda de Cavalaria Trácia, mais conhecidos por estas bandas como Corvos Sangrentos.
O tribuno franziu a testa.
- Dá a ideia de que conseguiram uma reputação assustadora.
- É só perguntar ao inimigo, senhor. Não há bárbaro que viva nestas montanhas que não tenha ouvido falar dos Corvos Sangrentos, e que não os tema.
- Estou a ver. - O tribuno escrutinou-o com toda a atenção, antes
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de prosseguir. - E o que faz um centurião dos legionários no comando de um punhado de cavalaria auxiliar? Se não tivesses vindo em nosso socorro, estaria tentado
a pensar que se tratava de um grupo de desertores. Ficar-te-ia grato se pudesses explicar-te, centurião Macro.
- Tenho importantes informações para o legado Quintato, senhor. Estes homens pertencem à guarnição do forte que eu comando.
O tribuno olhou à volta, a tempo de ver os últimos elementos inimigos a desaparecer velozmente por entre o arvoredo, e acenou, mostrando a sua satisfação.
- Nesse caso, congratulo-te pela qualidade dos teus homens. Os Corvos Sangrentos fazem-te crédito.
- A coorte é comandada pelo prefeito Cato, senhor. Eu fiquei no comando do forte depois de ter sofrido um ferimento que me impediu de seguir em campanha com o exército.
- Macro tocou ligeiramente na perna.
- Prefeito Cato... - A testa de Glaber voltou a franzir-se, ainda com mais vincos.
- Será melhor colocarmos este comboio em andamento, senhor. Onde está o comandante da escolta?
- Além. Pobre homem. - O tribuno designou um corpo de face na lama, ali perto. A crista do capacete tinha sido pisoteada, e mal se distinguia no meio do lamaçal.
Macro virou o olhar para o optio, que se mantinha por perto, ao lado do vagão, sem largar o estandarte.
- Nesse caso, és tu o novo comandante desta escolta. Reúne os teus homens, trata dos feridos e prepara os vagões para se porem em movimento. Temos que encontrar
um fortim ou uma patrulha, antes que aquele bando descubra que ainda tem tomates e resolva atacar de novo. Vai lá tratar disso.
O optio cravou o estandarte com toda a firmeza no solo ao lado da carruagem, e afastou-se para verificar o estado dos sobreviventes da escolta.
- Achas mesmo que eles voltarão? - indagou Glaber.
Macro soprou o ar das bochechas.
- Espero bem que não. Mas com os filhos de uma cabra dos druidas sempre a agitar os espíritos, os locais têm uma ponta de fanatismo, e é difícil calcular o que vão
eles fazer a seguir. O melhor é não ficarmos por aqui à espera para ver o que acontece, não é?
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- Parece-me bem pensado. - Glaber riu-se.
Macro avaliou o comboio com o olhar, e reparou que várias mulas tinham sido feridas e bramavam em agonia, presas aos vagões. Algumas tinham mesmo sido mortas e estavam
caídas na lama do caminho. Os condutores de vagões e os seus assistentes também tinham sofrido perdas no ataque, e os sobreviventes, ainda em choque, foram postos
pelo optio a trabalhar, removendo os animais inutilizados dos seus jugos.
- Vamos ter que deixar aqui pelo menos um dos vagões - decidiu Macro. - E alguns dos suprimentos. Claro que podíamos usar uma parelha de mulas para puxar a sua carruagem,
senhor.
Glaber empertigou-se ligeiramente.
- Acho melhor não. Como disseste, estamos com pressa. O melhor é partir rapidamente e não perder tempo a mudar as minhas coisas para um dos vagões. Vais precisar
de todo o espaço possível para colocar os suprimentos que for possível levar do vagão que vai ficar para trás.
Macro percebeu que não ia conseguir fazer o tribuno mudar de ideias, pelo que optou por outra abordagem.
- Senhor, incomoda-o que lhe pergunte o que estava a fazer neste comboio? Sei que tanto a Décima Quarta como a Vigésima já têm tribunos superiores, portanto não
vem ocupar uma vaga.
Glaber manteve-se em silêncio por momentos, antes de optar por responder.
- A pergunta tem razão de ser, e como eu já lancei algumas dúvidas sobre ti, suponho que te devo a resposta. Muito bem. Sou o chefe do estado-maior do novo governador
da Britânia, Aulo Dídio Galo. Fui enviado para informar o legado Quintato de que o governador chegará à província para assumir o seu posto antes do fim do ano. Tenho
que estabelecer a ligação com o legado, para tratar da transmissão de poderes. Contudo, não esperava ter de andar atrás dele pelas profundezas destas malditas montanhas.
- Galo? - Macro já tinha ouvido aquele nome. - Não foi governador da Sicília há uns anos?
- Precisamente.
- Um lugar apetecível, creio. Vai ver que as coisas por aqui são bem diferentes.
A testa de Glaber voltou a franzir-se.
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- Depois disso, já foi condecorado pelo Imperador, na sequência de uma campanha de sucesso no Bósforo, e depois disso conduziu também uma campanha contra um exército
de bandidos nas montanhas do Norte de África. Parece-me que vais descobrir que se trata do homem indicado para assumir o comando aqui na Britânia. Os bárbaros destas
paragens não serão grande problema.
- Não? - Macro não conseguiu evitar um sorriso fatigado. - Têm mantido as legiões no limite durante a maior parte dos últimos dez anos, senhor. E este pequeno recontro
em que se viu envolvido não é propriamente um caso isolado. Espero apenas que o novo governador não julgue que vai chegar e resolver a confusão toda num ano ou dois.
- Galo sabe bem o que faz, centurião. E palpita-me que não vai ficar lá muito bem impressionado por saber que um dos seus legados se veio enfiar nas montanhas para
conseguir um naco de glória para si mesmo, enquanto tem essa oportunidade.
Macro refez rapidamente a impressão que estava a construir do tribuno. Glaber não era nenhum pau-mandado, e já tinha percebido a verdadeira razão por trás da decisão
de Quintato de lançar aquela campanha. Ainda assim, o centurião tinha aprendido com Cato o suficiente para saber que assuntos relativos aos seus superiores tinham
que ser discutidos com extrema cautela.
- O legado Quintato é um bom comandante, senhor. Viu uma oportunidade de esmagar os druidas enquanto o inimigo se apresenta fraco e dividido, e aproveitou-a. Mas
está a avançar para uma armadilha, senhor. É sobre isso mesmo que venho avisá-lo.
Resolveu fornecer ao tribuno, de forma abreviada, todos os detalhes que tinham sido arrancados à pancada ao prisioneiro no forte. Glaber escutou-o com atenção.
- Nesse caso, não temos tempo a perder. Ia sugerir que tu e os teus homens seguissem à frente e tentassem alcançar o exército o mais depressa possível, mas também
me parece que este caminho está a ser vigiado atentamente pelo inimigo e que temos todos melhores hipóteses de lá chegar se nos mantivermos juntos.
- Concordo, senhor.
- Portanto, será melhor que nos ponhamos a caminho assim que os vagões estiverem prontos a seguir. Vou precisar de um condutor para a minha carruagem. O antecessor
julgou melhor tentar fugir assim que
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o inimigo surgiu. Foi o primeiro homem a morrer. - Glaber olhou para o céu bem carregado. - Diria que vamos ter chuva antes do anoitecer.
- Sim, senhor.
- Com toda a franqueza, preferia mil vezes estar no meu estúdio, lá em Roma, com os pés bem junto ao fogo.
- Não me custa imaginar que sim.
Trocaram sorrisos pesarosos, até que Glaber agitou um dedo no ar.
- Já me lembro. Disseste prefeito Cato, não foi?
- Sim, senhor.
- Marco Quintino Cato, o tipo que casou com a filha do senador Semprónio, há um ano ou coisa assim? Júlia, não era?
- Exatamente.
- Conheces o prefeito Cato?
- Sim, senhor. Um magnífico oficial, e um homem excelente. Orgulho-me de dizer que somos amigos há muito.
O tribuno sugou o ar, e a expressão do seu rosto alterou-se, tornando-se mais solene.
- Nesse caso, lamento dizer que tenho muito más notícias para ti e para o prefeito...
- Más notícias? - Macro sentiu um aperto de ansiedade a percorrer-lhe o escalpe. Nem queria atrever-se a tentar adivinhar a natureza das notícias de que o tribuno
era portador.
- O meu pai é um amigo próximo do senador Semprónio. Foi ele que me contou, pouco antes de deixar Roma. Ao que parece, a Júlia deu à luz uma criança, há algum tempo.
Não foi um parto fácil, nem de perto, e ela ficou muito fraca. Nunca recuperou totalmente, e por fim sucumbiu a um resfriado de verão. Uma pena. Pelo menos o jovem
Lúcio estava a crescer bem. Pelo menos quando eu deixei Roma. Sempre achei que a Júlia era uma bela e brilhante jovem. Foi um tremendo choque para o Semprónio, que
já não está novo. - Fez uma curta pausa e prosseguiu num tom mais melancólico: - Calculo portanto que serei eu a ter que dar as notícias ao esposo. Pobre homem.
- Ela faleceu?
- Sim. Lamento.
Macro engoliu em seco e abanou a cabeça, destroçado.
- Cato... Meu pobre amigo.
O optio aproximou-se com um dos homens e saudou-os, sem se
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aperceber do ar funesto com que os dois oficiais conversavam; e dirigiu-se ao tribuno Glaber. O outro homem pegou nos arreios das mulas presas à carruagem e preparou-se
para as conduzir.
- Os feridos já foram colocados num dos vagões, senhor. Os mortos foram postos no que vai ficar aqui, ao pé dos abastecimentos que não conseguimos levar. O resto
do comboio está formado e pronto a seguir.
- Sim, sim, claro. Será melhor irmos. Centurião?
Macro tentou libertar-se do torpor que se tinha apossado dele; endireitou as costas, compôs-se e encarou o tribuno.
- Estou pronto, senhor.
- Ótimo. Quero que tu e os teus homens batam o terreno à frente do comboio. Nada de heroísmos. Se vires alguma coisa, vens relatá-lo imediatamente, sem te envolveres
em combate. Está claro?
- Sim, senhor.
- Bom, meus senhores, vamos a isto então.
Macro saudou o superior e virou-se para montar. Enquanto se acomodava na sela, olhou em redor. Já havia um penacho de fumo a elevar-se do vagão onde jaziam vários
cadáveres de túnicas vermelhas, acomodados por cima das sacas de cereais e ânforas de azeite que ocupavam o leito do veículo. As rações das mulas já ardiam na parte
de trás, e depressa as chamas, acicatadas pela brisa, começaram a lamber os materiais inflamáveis colocados no cimo da pilha. Era uma visão dramática e sórdida,
mas a mente de Macro estava muito longe. Estava a recordar a última vez que tinha visto Cato e Júlia juntos, mesmo antes de deixarem Roma. A afeição que tinham um
pelo outro era evidente, e tinha tocado até o empedernido coração de Macro.
E agora a Júlia estava morta.
E Macro temia a reação do amigo quando soubesse daquela terrível notícia.
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- Porra, onde está o resto da maldita frota? - Quintato espumava
de fúria perante Cato, enquanto contemplava a baía que se abria na base do promontório. Na água cinzenta e agitada viam-se uma trirreme e quatro birremes mais esguias,
ancoradas a alguma distância da estreita faixa detrítica que corria pela orla marítima. A praia, se tanto se lhe podia chamar, era demasiado pequena, e a ondulação
demasiado fraca para permitir levar as embarcações até terra em segurança, e portanto elas dançavam nas ondas, os mastros a baloiçar, a cerca de cinquenta passos
da margem. No outro promontório que delimitava a baía estava em construção um fortim, onde trabalhavam marinheiros e soldados, protegidos por um piquete de Corvos
Sangrentos. Não havia sinal das outras embarcações de guerra que supostamente se iam encontrar com o exército na costa, nem dos transportes de legionários, barcos
de pequeno calado e fundo raso que seriam necessários para levar o exército através do canal que separava a Britânia da pequena ilha de Mona.
Por trás do legado aguardava todo o seu estado-maior, e o contingente montado da sua guarda pessoal. O grupo tinha-se adiantado à coluna principal, em resposta a
um relatório de Cato, que indicava que tinha encontrado os primeiros elementos da frota. O exército aproximava-se, ainda a alguns quilómetros, arrastando-se por
uma estrada costeira, mas devia chegar à baía ainda com tempo para construir um acampamento segundo as regras antes do anoitecer. O avanço tinha-se tornado ainda
mais lento depois de terem chegado à capital dos deceanglos e a terem deixado para trás, reduzida a uma ruína fumegante. O inimigo não tinha parado de apoquentar
a coluna, lançando súbitos ataques assim que descobria algum espaço entre as unidades, e desaparecendo imediatamente quando os romanos começavam a congregar forças
para os repelir. Tinham chegado relatórios a indicar que os comboios de abastecimentos
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que vinham na esteira da grande coluna estavam também a sofrer ataques ocasionais. Quintato vira-se obrigado a manter o exército numa coluna densa, o que lhe reduzia
o andamento, e destacara uma das coortes de cavalaria para patrulhar as linhas de comunicação e tentar desencorajar os ataques aos comboios.
Tudo isto preocupava seriamente Cato. O plano que o legado concebera originalmente para a campanha consistia num golpe rápido, um avanço veloz pelo coração das montanhas
para destruir os deceanglos antes mesmo de varrer do mapa o bastião dos druidas em Mona, e depois regressar à base ainda antes da chegada do inverno. Mas a verdade
é que o tempo passara, e apesar de não ter chovido nos últimos cinco dias, a temperatura caíra de tal forma que se formava gelo todas as noites, pelo que a água
congelava nos cantis dos homens, e tinha que se limpar a geada das tendas de pele de cabra antes de as desmontar todas as manhãs. E toda a vantagem que podia ser
ganha por o terreno estar duro e permitir um avanço mais fácil desvanecera-se graças à necessidade de reduzir a velocidade da coluna, perante os ataques repentinos
do inimigo. Nessa manhã tinha caído a primeira neve, um breve nevão a tombar de nuvens carregadas que depois o vento dispersara, não sem antes deixar uma fina cobertura
branca nas ramadas das árvores, nas rochas e na vegetação do terreno mais elevado. Mais vinha a caminho, Cato não tinha dúvidas, e, se caísse com força, o exército
ver-se-ia aflito para recuar através das montanhas, quanto mais para continuar a embrenhar-se no território inimigo. Tudo dependia de uma chegada rápida a Mona,
uma vitória decisiva, e um regresso sem problemas ao aquartelamento invernal. E nenhum daqueles passos parecia possível, sobretudo tendo em conta o infortúnio que
atingira a frota enquanto subia a costa para se reunir com o exército terrestre.
As patrulhas de batedores de Cato tinham dado com o punhado de barcos na baía na tarde do dia anterior, e haviam falado com os ainda abalados trierarcas que os comandavam,
antes de lhes darem instruções para começarem a construção do fortim. Cato tinha enviado uma mensagem pouco detalhada ao legado, e isso tivera por resultado aquele
encontro no promontório, de forma a que o prefeito apresentasse um relatório mais completo.
- Como já sabe, senhor, a frota foi atingida por uma tempestade há três dias, e foi dispersa pelos ventos. Os sobreviventes que alcançaram
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a baía relatam que viram alguns dos barcos a afundarem-se antes de os perderem de vista e se preocuparem em procurar abrigo, depois de navegarem em redor da ilha
de Mona. Enviei uma patrulha ao longo da costa para procurar por sinais do resto da frota. Regressarão com as informações ao entardecer.
- Bom, será melhor que me encontrem mais alguns barcos. Precisamos deles, e dos transportes, se queremos realmente tomar Mona.
- Sim, senhor.
Era uma ideia óbvia, e Cato apercebeu-se de que só a ansiedade podia ter feito o legado exprimi-la em voz alta. Podia ver a tensão nas feições do homem, e por instantes
sentiu uma ponta de simpatia pelo comandante. A campanha tinha por propósito desferir um golpe decisivo na vontade das tribos nativas de continuarem a sua resistência
a Roma, mostrar-lhes que essa opção acabaria sempre por se revelar futil. A intenção era conseguir a paz, e com ela a aclamação que não deixaria de ser concedida
a Quintato. E ao invés, a campanha fora assolada pela infelicidade, e estava agora em risco sério de fracasso, dada a aproximação do inverno e a obstinada recusa
do inimigo em enfrentar as legiões numa batalha decisiva. Mas depressa o momento de compreensão passou, assim que Cato considerou que o legado tinha de facto deixado
que as suas ambições levassem a melhor sobre a razão. Um traço de caráter bastante comum entre a classe política de Roma, e um risco particular quando essa ambição
colocava em perigo as vidas dos homens que serviam no exército romano.
- Entretanto - prosseguiu Quintato, - a que distância estamos do canal?
- A menos de um dia de marcha, senhor. Uns quinze ou dezasseis quilómetros ao longo da costa, a partir desta baía.
- Excelente. Nesse caso, passaremos a noite no outro promontório.
- O legado virou-se para procurar Tito Silano. - Quero um fosso duplo em torno das muralhas, uma vez que estamos muito perto do inimigo.
O prefeito do campo anuiu.
- Sim, senhor.
- Assim sendo, deixo-te a tratar disso, enquanto eu e a vanguarda nos adiantamos; quero ver Mona com os meus próprios olhos. Deve ser qualquer coisa, ficar frente
a frente com o covil dos druidas. - Elevou o tom de voz, de maneira a que todos os oficiais o ouvissem. - Meus
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senhores, quando a nossa missão aqui estiver terminada, nunca mais vos faltarão os convites para jantar, só para ouvirem as histórias de como participaram na derrota
final dos druidas!
Alguns sorriram perante a perspetiva, mas muitos limitaram-se a anuir respeitosamente, demasiado frios e cansados para se darem ao trabalho de tentar agradar ao
comandante. Quintato virou-se para Cato.
- Vamos lá, então.
Já havia vários dias que tudo o que os homens dos Corvos Sangrentos viam do inimigo eram grupos de cavaleiros distantes, que acompanhavam o progresso do exército
romano, nunca se aproximando o suficiente para confrontar os batedores de Cato, escapulindo-se sempre que a cavalaria auxiliar se acercava demasiado. Preocupado
com a possibilidade de os seus homens serem conduzidos a alguma emboscada, Cato tinha dado ordens estritas e permanentes para que não ocorressem tentativas de perseguição,
pelo que os dois lados se tinham limitado a ficarem atentos um ao outro de longe, enquanto a coluna continuava a atravessar as montanhas.
Ali, no momento em que alcançavam a crista que permitia contemplar o canal que separava a ilha de Mona da Britânia, avistaram, pela primeira vez desde que tinham
dado início à campanha, o exército inimigo. À luz mortiça do entardecer, a apenas algumas centenas de metros, dispostos ao longo da beira do canal, viam-se centenas
de abrigos, e o fumo das fogueiras espalhava-se sobre as coberturas de colmo e musgo. O campo inimigo estava protegido, no lado de terra, por uma muralha e um fosso
pouco profundo, que nem a menos empenhada das coortes auxiliares teria deixado naquelas condições. Dezenas de embarcações de boca larga estavam encalhadas na praia,
e viam-se três a transportar homens através do canal, que não devia ter mais de quatrocentos metros de largura no seu ponto mais estreito, calculou Cato. A maré
estava a encher, mas ainda não tinha feito desaparecer as filas de estacas afiadas que se podiam observar junto à costa da ilha, revelando a presença de um caminho
a pé seco até Mona, na maré baixa. Viam-se também outras linhas de defesas paralelas à costa e muitas mais cabanas nas encostas que subiam da margem. E dos dois
lados do canal, viam-se milhares de nativos.
- Apanhámo-los! - Quintato cerrou o punho. - Até que enfim que temos estes sacanas onde bem os queremos. Assim que os obrigarmos a
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recuar para a ilha, não terão qualquer possibilidade de fuga. Serão apanhados na armadilha, como os ratos que são.
O som grave de um corno soou lá em baixo, e momentos depois o alarme foi repetido por outros, até que um coro começou a fazer-se ouvir, como se fosse uma demonstração
de orgulho. Os guerreiros inimigos saíram dos abrigos como formigas, para se irem colocar nas muralhas, enquanto os que estavam ocupados no exterior, a recolher
lenha, correram de volta aos portões. Cato ficou impressionado com a velocidade de reação dos deceanglos. Além disso, pareciam estar bem organizados. Pequenos grupos
tinham formado a alguma distância das muralhas, mantendo-se como reserva, enquanto alguns cavaleiros saíam do meio das defesas para formar um piquete e investigar
os intrusos.
- Fracas sentinelas - considerou Quintato. - Quase estávamos em cima deles antes de darem o alarme. É espantoso há quanto tempo estes selvagens têm conseguido desafiar-nos,
dados os seus fracos atributos para um estilo de vida militar. Bom, chegou a altura de lhes dar uma lição que não lhes vai servir de nada, uma vez que não sobreviverão
a ela.
Cato procedeu a uma estimativa rápida do efetivo inimigo, em ambas as margens.
- Vários milhares, mas não chegam aos dez mil, no máximo, diria eu, senhor. E muitos deles serão agricultores recrutados nas tribos. Temos vantagem tanto na qualidade
dos homens como no equipamento.
- Assim é. Nada nos pode impedir de alcançar a vitória.
- Espero bem que não, senhor - replicou Cato, enquanto avaliava as posições inimigas. Um barco zarpava da ilha, e à proa era possível distinguir alguns vultos em
vestes escuras, agrupados, a observar os romanos, sem dúvida.
- Caramba! - soltou um dos tribunos subalternos, enquanto apontava. - Aqueles tipos de negro, serão druidas? Tanto que eu queria ver alguns em carne e osso.
Os oficiais mais experientes lançaram-lhe olhares de lamento, antes de se concentrarem na cena que se desenrolava a seus pés. Assim que os druidas alcançaram a margem,
dispersaram-se ao longo das muralhas, à exceção de um deles, que montou um cavalo negro e o lançou a galope, saindo pelo portão mais próximo para se dirigir a um
grupo de cavaleiros agrupados sob um estandarte comprido que dançava qual serpente alada na brisa cada vez mais forte. Outro sinal sonoro se fez ouvir,
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e algumas centenas de cavaleiros começaram a concentrar-se junto ao estandarte.
- Senhor, creio que é chegado o momento de regressarmos ao campo - sugeriu Cato. - Ao que parece, os locais começam a ficar desagradados com a nossa presença.
Os cavaleiros mais próximos do estandarte avançaram, e os outros seguiram-nos, dirigindo-se a boa velocidade diretamente contra o legado, o seu estado-maior e os
Corvos Sangrentos que os escoltavam.
- Bem visto, prefeito. Vamo-nos embora.
Quintato deitou um último olhar ao exército inimigo, e por fim puxou as rédeas e fez o cavalo rodopiar para seguir pelo trilho estreito que acompanhava o desenho
da costa até ao acampamento romano. Não demorou muito até um dos homens da retaguarda da coorte de cavalaria vir à frente anunciar que o inimigo mantinha a perseguição.
Cato olhou para trás e viu que tinham chegado à crista onde os romanos haviam estado e já desciam pelo declive, cerca de oitocentos metros atrás dos Corvos Sangrentos.
Deu ordens para acelerar o andamento, de forma a colocar alguma distância entre eles e os nativos. Não parecia haver necessidade de se lançarem num galope. Os perseguidores
já tinham puxado pelos cavalos para chegarem tão depressa à crista, pelo que os seus animais deviam estar muito fatigados.
Enquanto seguiam sobre o terreno duro, pareceu-lhe levar uma alfinetada na cara e piscou os olhos ao sentir qualquer coisa a atingi-los. Só então se apercebeu de
que a neve tinha começado a tombar, pequenos flocos dispersos que singravam ao sabor do vento que soprava do mar, à esquerda. A ondulação cor de chumbo engrossava
a cada instante, e a espuma explodia na costa rochosa; Cato deixou-se levar pela ideia de que o resto da frota devia estar a esforçar-se por alcançar a segurança
da baía, onde estavam ancorados os primeiros barcos a chegar ao ponto de encontro. O nevão não durou muito tempo, e à medida que as nuvens começaram a dispersar,
raios de Sol dourado espalharam-se sobre a superfície do mar, iluminando as faces viradas a oeste das colinas e montanhas, e criando longas sombras nas faces opostas.
O efeito não ia durar, compreendeu Cato, ao olhar sobre o ombro e ver uma nova faixa de espessas nuvens escuras a aproximar-se. Lá em baixo, o mar começava a desaparecer
por entre um véu acinzentado, com mais neve, que cobria Mona e se dirigia à outra margem do canal. O nevão voltara a acentuar-se bem depressa.
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O trilho chegou a uma pequena elevação, junto ao mar. Cato olhou de novo para trás e sossegou ao ver que o inimigo tinha cancelado a perseguição e se tinha detido
a alguma distância dos últimos elementos dos Corvos Sangrentos, mantendo-se sentado sobre as selas e agitando as lanças num claro desafio. Fez uma pausa e destacou
um esquadrão para manter os nativos sob vigilância, e depois ordenou à coluna para seguir a passo enquanto o legado e o seu estado-maior se adiantavam a caminho
do campo, a ser construído junto ao promontório.
O decurião Miro deteve subitamente a sua montada e olhou para o mar, antes de esticar o braço.
- Senhor! Olhe para aquilo!
Cato levou o seu cavalo para a berma do caminho e parou ao lado do decurião. O aviso de Miro tinha sido escutado pelo legado e pelos seus oficiais, que também pararam
e olharam na direção indicada pelo decurião.
- O que há? - inquiriu Cato.
- Um barco, senhor. Além!
A ondulação acinzentada do mar de inverno, sublinhada pela brancura na crista das ondas e pelas projeções de espuma, tornava difícil distinguir muitos detalhes.
Então, mais ou menos a umas duas milhas e meia da costa, Cato distinguiu os contornos de uma embarcação a remos, à medida que a proa pronunciada subia uma vaga antes
de mergulhar numa cava.
- Há outros! - fez notar um dos tribunos. Cato esforçou a vista e reparou que havia de facto outras embarcações lá fora, seguindo para a costa a favor do vento.
À medida que se aproximavam, contou seis barcos mastreados, birremes, e vários exemplares dos transportes, mais pequenos e pouco manobráveis, de boca larga. Alguns
mostravam pano curto, e outros quase nenhum, usando apenas os remos no esforço de alcançar a segurança da baía antes que a noite caísse por completo. Ia ser complicado,
considerou Cato. E a chegada da noite não era o único perigo que tinham que enfrentar. Algumas milhas mais longe, o céu estava quase negro, devido às espessas nuvens
de tempestade que corriam sobre o cinzento agitado do mar. Os romanos observaram das suas selas ainda mais alguns momentos, até que Quintato deu voz ao triste pensamento
que cruzava muitas mentes.
- Não vão conseguir.
Um dos jovens tribunos virou-se para ele.
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- Não estão assim tão longe, senhor.
- Calado, idiota. Não estás a ver? A tempestade vai desabar sobre eles antes de chegarem à baía. Não têm hipótese nenhuma.
- Pobres desgraçados - murmurou Cato para si mesmo. Via a razão na afirmação do legado, e reparou nas tripulações a tentarem desesperadamente conduzirem as suas
embarcações à medida que o mar se tornava cada vez mais agitado à sua volta. As vagas espumavam, altaneiras, e encharcavam constantemente o convés de cada barco.
A fúria da tempestade precipitou-se sobre eles quando as embarcações mais adiantadas já estavam a menos de meia milha da proteção mitigada que a baía lhes podia
oferecer. Apesar de os que tinham chegado mais cedo estarem abrigados por trás do promontório, os comandantes tinham lançado âncoras de popa para os amparar no mar
agitado, e os barcos oscilavam e saltavam, puxando pelos cabos de cada vez que eram atingidos por uma vaga. Mas os homens que assistiam ansiosos a qualquer sinal
de que as âncoras estavam a ceder corriam muito menor perigo do que os seus camaradas que enfrentavam a tempestade no mar aberto, apesar de ali tão perto.
Uma exclamação coletiva do grupo de oficiais atraiu a atenção de Cato para as outras embarcações, precisamente no momento em que um dos transportes era atingido
por uma vaga no costado. O barco oscilou, homens a escorregar pelo convés inclinado, adornou mais e acabou por rolar. Por momentos não se viu sinal da embarcação
ou dos homens que levava a bordo, como se o mar os tivesse engolido de um trago. Então surgiram à tona a quilha e o fundo do casco, a reluzir, como se fossem o dorso
de alguma criatura gigantesca das profundezas. Cato mal distinguia um punhado de figuras a debater-se nas águas circundantes. Uma delas agarrou-se ao leme e conseguiu
trepar para cima do casco, onde se esticou, tentando desesperadamente agarrar-se , enquanto as águas geladas lhe tombavam sem descanso em cima. Não havia qualquer
possibilidade de ser salvo por outro barco, cujas tripulações lutavam para tentarem salvar-se a si mesmas.
O vento e a chuva atingiram de súbito o promontório, fazendo os pingos gelados embater com fúria nos rostos dos cavaleiros que observavam o desastre a desenrolar-se.
A capa de Cato dançou à sua volta, e o cavalo virou-se de forma a dar a garupa ao vento, pelo que foi preciso uma mão firme para o fazer voltar à posição inicial.
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- Prefeito Cato!
Virou-se e viu Quintato a chamá-lo, de cabeça encolhida nas dobras do manto encharcado que lhe cobria os ombros.
- Senhor?
- Não há nada que possamos fazer por eles. Vou regressar ao campo. Tu e os teus homens ficarão aqui e manterão o inimigo sob vigilância. Se, quando cair a noite,
não tiverem dado mais nenhum sinal de avanço, deixa um dos teus esquadrões de piquete. Os outros poderão voltar para o campo.
- Sim, senhor. - Cato fez a saudação regulamentar.
O legado levou a montada a trote pela estrada que conduzia ao campo ainda em construção junto à costa, a curta distância. Os oficiais seguiram-no, enquanto a chuva
gelada os açoitava com a ajuda do vento.
Ao lado de Cato, o decurião Miro fungou, amargurado.
- Ora muito obrigado, legado Quintato. Vá lá aquecer-se ao braseiro, enquanto nós ficamos aqui a gelar, e não pense mais nisso.
- Chega - irritou-se Cato. Olhou em redor e notou um pequeno bosque a algumas centenas de passos dali. - Leva o resto dos homens para ali, e abriguem-se onde puderem.
Miro fez uma continência rápida e virou-se para passar a ordem à coluna de homens aninhados nas suas capas. Enquanto eles se afastavam, Cato deitou uma olhadela
aos homens que ainda estavam de piquete, a vigiar o que se passava na direção de Mona. Ainda faltava pelo menos uma hora até o dia terminar, e teriam que aguentar
ali. Porém, o seu sofrimento empalidecia perante o destino que aguardava as tripulações das embarcações que tentavam chegar à baía. A primeira embarcação estava
a passar pelas rochas na base do promontório, uns penedos aguçados e escuros que se erguiam entre as ondas e as explosões de espuma. O trierarca manteve o rumo um
bom quarto de milha antes de virar para o interior da baía, o que foi uma medida acertada. Da sua posição sobranceira, Cato via perfeitamente as filas de homens
aos remos, debatendo-se para fazer avançar a trirreme, e conseguia imaginar o temor e o horror que sentiam por se verem assim à mercê da ira de Neptuno. Uma a uma,
as outras embarcações de guerra e o primeiro dos transportes ultrapassaram as fragas e alcançaram águas mais abrigadas.
Contudo, ainda não estavam a salvo. Cato sentiu o coração apertado ao ver o mastro de um dos transportes a partir-se e mergulhar sobre a
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amurada, e a vela, apesar de quase toda recolhida, a servir de âncora e a fazer rodar a proa do barco em direção à base do promontório. A tripulação entrou imediatamente
em ação, tentando desesperadamente cortar o cordame para libertar a vela, enquanto as vagas os faziam avançar para os rochedos. O trabalho era prejudicado pelo mar
encapelado que se abatia sobre o convés e o varria, e Cato compreendeu que estavam condenados. Mesmo que conseguissem libertar-se da vela, teriam que se contentar
com os remos longos, desenhados para manobrar embarcações daquele género em espaço curtos, e não para propulsão. E assim não seriam capazes de se manter afastados
das fragas.
Por fim o último cabo foi cortado, permitindo que o mastro partido e a vela mergulhassem para o mar, sendo imediatamente arrastados pela ondulação. Os remos, dois
de cada lado, foram colocados na água, e as primeiras remadas desajeitadas serviram para pôr o pesado barco paralelo à linha de rochas, a uma curta centena de passos
de distância. Nesse momento, do meio do mar tempestuoso veio uma vaga enorme, uma massa de água cinzenta que levantou a embarcação e empurrou a proa outra vez para
a costa, deixando o barco tão próximo das fragas que a espuma levantada pelo choque das ondas nas rochas quase o escondia de vista. A tripulação continuava a debater-se
com os remos, levando o barco outra vez a retomar o rumo original e fazendo-a avançar pelas ondas alterosas. Cato sentiu renascer a esperança de que se conseguissem
salvar. E então surgiu outra vaga imensa do meio da escuridão e da chuva, que pegou no barco e o levou até se desfazer contra os penedos.
À medida que a água recuava, Cato notou que o transporte ficara encaixado no cimo das rochas luzidias e negras, inclinado, partido ao meio, a quilha estraçalhada
pelo impacto. Ainda se viam homens no convés, agarrados como podiam, condenados a viver mais alguns momentos até que as ondas desfizessem o que sobrava do barco,
e os levasse com elas. Cato continuou a olhar, horrorizado, com as entranhas torcidas de pena pelo que ia ser o destino dos desamparados marinheiros. Olhou de novo
para as rochas, avaliou a distância a que ficavam da praia rochosa junto à qual as três embarcações de guerra tinham ancorado, e tomou uma decisão.
Puxou pelas rédeas e lançou o cavalo a galope, alcançando Miro e os Corvos Sangrentos enquanto estes se aproximavam das árvores que lhes dariam algum abrigo.
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- Alto!
Os homens detiveram as montadas de imediato. Cato refreou o seu cavalo ao chegar junto do decurião, o sangue a martelar-lhe os ouvidos enquanto recuperava o fôlego
e começava a falar.
- O teu esquadrão vem comigo. Os outros podem esperar no meio das árvores. Diz ao Aristófanes para ficar no comando e manter a vigilância ao inimigo, e depois segue-me.
Miro fez uma careta.
- Senhor, o que tenciona fazer, precisamente?
Cato explicou rapidamente a situação em que se encontrava a embarcação de transporte, e a ameaça que pendia sobre a tripulação.
- Ainda podemos salvá-los.
- A mim parecem-me já mortos, senhor.
Cato franziu o sobrolho.
- Não, não enquanto houver esperança. Não enquanto pudermos tentar alguma coisa. Tens as tuas ordens, decurião. Despacha-te!
Deixou Miro a organizar os homens, virou-se e fez o cavalo descer o declive, a caminho da margem batida pela tempestade. O mais provável era que o decurião tivesse
razão. Mas maldito fosse se ia abandonar algum homem a um destino tão horrível, quando ainda existia uma hipótese de o salvar, por muito ténue que fosse.
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A violência da tempestade tornou-se ainda mais evidente quando Cato alcançou a faixa de seixos que curvava em redor da baía. O rugir do mar e o chocalhar das pedras
preencheu-lhe os ouvidos quando deteve o cavalo e deslizou da sela. À esquerda, o promontório dava-lhe alguma proteção da fúria do vento, mas ali, na zona menos
batida, a chuva transformava-se em neve. Grandes flocos rodopiavam no ar e derretiam-se praticamente assim que tocavam nos seixos da praia. Um pouco adiante, a falésia
terminava onde começavam os rochedos; grandes penedos, amontoados como se a extremidade do cabo tivesse sido pulverizada pelo punho gigantesco do próprio Júpiter.
As fragas projetavam-se para o mar ao longo de cerca de duzentos passos, até ao ponto onde o grande barco de transporte estava a ser desfeito pelas imensas vagas
provenientes das profundezas do oceano. Era a popa que sofria todo o impacto da tempestade, e que estava a partir-se pouco a pouco. A secção da proa era, por enquanto,
poupada ao impacto direto das ondas, mas depressa passaria também a sofrê-lo. Havia alguns homens agrupados no convés inclinado, e via-se um outro na proa, a fazer
sinais desesperados aos homens em terra, sem dúvida a implorar-lhes que tentassem montar uma operação de socorro.
Mas os seus camaradas limitavam-se a olhar, impotentes, para dezenas e dezenas de marinheiros empilhados em cada um dos barcos ancorados, muitos no convés, outros
na proa, a observar a cena. Cato aproximou-se de um dos oficiais navais que supervisionava a construção de um abrigo ao cimo da praia, para lá da linha de detritos
trazidos pelas marés. O trierarca berrava ordens para se fazer ouvir acima do barulho da rebentação, incitando os homens para regressarem ao trabalho.
- Porque é que não fazem nada? - indagou Cato.
- O que tem a ver com isso? - O trierarca virou-se para confrontar
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Cato, apercebeu-se da patente do interlocutor e levou uma mão à testa numa saudação rápida.
- Desculpe, senhor.
- Porque é que não estão a tentar salvar aqueles homens?
- Nada há que possamos fazer para os salvar, senhor. Teríamos que colocar mais vidas em risco. Seria um verdadeiro suicídio tentar extraí-los daquela situação. O
que resta do barco depressa será levado pelas vagas, e eles também. Uma pena, senhor. Mas não podemos realmente fazer nada.
Cato olhou amargurado para as rochas, e viu uma nova onda a rebentar sobre a embarcação condenada, tapando-a de espuma, antes de o mar recuar e deixar à vista as
madeiras já quase desconjuntadas da ruína que em tempos fora a ré. O homem que tinha estado a fazer sinais aos da margem deixou-se deslizar lentamente para o convés,
para junto dos seus camaradas, e sentou-se a abraçar os joelhos, com ar resignado. Cato fez uns cálculos rápidos sobre a distância entre as fragas e o mais próximo
dos barcos ancorados, e voltou-se para o trierarca.
- Não vou ficar aqui especado e deixar aqueles homens morrer - anunciou em tom decidido. - Quero um dos teus botes, e quatro homens decididos aos remos. E que sejam
todos bons nadadores.
O trierarca deu um estalo com a língua.
- Senhor, não creio que...
- Estou-me a cagar para o que tu crês! Limita-te a cumprir as ordens que te dei. Imediatamente!
Não deu ao outro qualquer oportunidade de ripostar, e dirigiu-se para junto do cavalo, precisamente quando Miro e os seus homens chegavam. Desfez o fecho do capacete
à pressa e colocou-o sobre os seixos. Com os dedos enregelados, removeu a capa e o cinturão, e voltou-se para Miro.
- Dá-me uma ajuda para tirar a armadura! - O decurião saltou da sela e ajudou-o a abrir os fechos, até que Cato conseguiu retirar a pesada veste articulada e a deixou
deslizar para o solo, para junto do resto do equipamento. Ficou ali, demasiado tenso para tremer, mesmo com o frio cortante. Por trás de Miro viu o trierarca a dar
instruções a vários dos seus homens, para levarem um dos pequenos esquifes vindos das grandes embarcações de guerra até à orla da água agitada.
Limpou a garganta para se assegurar de que os nervos não lhe traíam a voz.
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- Vamos tentar duas abordagens aos náufragos. Quero que tu e o teu esquadrão peguem numa corda e avancem pelas rochas. Aproximem-se o mais que conseguirem sem arriscarem
a vida, e atirem-na aos homens no barco. Entretanto, eu vou tentar alcançá-los a partir daquele bote.
Miro olhou para os rochedos que se projetavam para o mar na base do promontório e os olhos quase se lhe esbugalharam quando viu as ondas a rebentarem sobre eles
com estrépito.
- Decurião! - Cato pegou nele pelo arnês. - Não vamos permitir que aqueles homens morram. Entendido?
Miro piscou os olhos rapidamente, e assentiu.
- Sim... Sim, senhor!
- É isso mesmo. E agora, vamos ao trabalho. - Cato deu-lhe um ligeiro murro de encorajamento no ombro antes de se dirigir para a margem, onde os quatro marinheiros
escolhidos pelo trierarca instalavam os remos, enquanto os seus camaradas tentavam manter o esquife estável no meio das ondas ininterruptas. A água parecia gelo
líquido a fechar-se sobre as pernas do prefeito, e quando chegou à borda do bote e se puxou para dentro, já a tinha pela cintura. Tomou lugar à proa e apontou para
a birreme ancorada mais perto das rochas.
- Levem-nos até àquele barco!
Os marinheiros prepararam-se e, com um deles a marcar o ritmo, dedicaram-se ao trabalho e levaram o bote para águas mais profundas, saindo da zona da rebentação.
Ao colocarem-se lado a lado com a birreme que oscilava a meio da baía, Cato colocou uma mão em concha na boca e dirigiu-se aos tripulantes, que continuavam a assistir
ao drama que se desenrolava nas fragas.
- Preciso de uma corda aqui! Tu! - Apontou para o marinheiro mais próximo. - Ata uma ponta na base do mastro. Depois passa-me o resto. E aproveita para me trazer
mais uns dois baraços. Despacha-te!
Os homens nos remos mantiveram o bote em posição, enquanto lhes eram lançados para bordo, a partir do convés da birreme, dois baraços de corda, e depois lhes era
passada a corda entretanto amarrada ao mastro. Cato deu-lhe um puxão com toda a força para se assegurar de que estava bem presa, antes de dar ordens para dirigirem
o bote para junto das rochas, de forma a se manterem abrigados do pior da ondulação. Na base do promontório já via os vultos de Miro e dos seus homens,
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amarrados uns aos outros, a avançarem com toda a cautela na escuridão crescente. Ao avistar o prefeito, Miro acelerou o passo, aos tropeções e escorregadelas sobre
as rochas luzidias, tentando encontrar pontos de apoio para as mãos enquanto a água lhes caía em cima. Os marinheiros no transporte encalhado puseram-se de pé ao
verem o bote a dirigir-se para eles, trazendo a corda amarrada à birreme ancorada. Alguns fizeram gestos frenéticos, enquanto outros se mantiveram agarrados à amurada
e ficaram a ver as operações. A popa da embarcação já tinha praticamente soçobrado, feita em pedaços pelas vagas. Só a quilha e algumas peças da estrutura se conseguiam
identificar no meio do destroço.
A medida que o bote se aproximava, Cato teve alguns momentos para avaliar a situação mais friamente, e ficou horrorizado perante o perigo em que se tinha colocado.
Detestava meter-se na água, e isso no mais quente dos dias, e não era grande nadador. E agora estava sob uma clara ameaça de ser arrastado para as profundezas geladas
de um mar em fúria. Todavia, não havia nada que pudesse fazer para a evitar. Estava empenhado naquela temerária tentativa de salvamento dos marinheiros, e tinha
que a levar até ao fim. A menos de vinte passos, pelo meio da neve que dançava no ar, avistou uma negra massa rochosa a espreitar pela superfície da água quando
a cava de uma onda passou sobre ela, provocando violentos remoinhos em redor.
- Calma aí com os remos! - gritou. - Mantenham-nos nesta posição.
Os homens pararam de remar, e limitaram-se a manobrar de forma a manter o bote no mesmo sítio, enquanto Cato contemplava as rochas, o destroço e o mar, e considerava
qual seria a melhor forma de proceder. Os restos do transporte estavam a mais de quarenta passos dali. Mesmo que se aproximassem mais das rochas, estariam ainda
demasiado longe do destroço para alimentar qualquer esperança de conseguir lançar a corda aos homens que aguardavam na secção da proa da embarcação. Deu atenção
às rochas que se estendiam na base do promontório. Embora as vagas as batessem sem sossego, formavam uma linha contínua que levava quase até junto do barco encalhado,
onde havia um espaço de água aberta que as separava das aceradas fragas onde a embarcação ficara presa. Se Miro conseguisse chegar àquele ponto, um homem com um
braço forte poderia talvez lançar a corda aos marinheiros, calculou Cato.
Amparou-se com uma mão na borda do bote, soergueu-se e agitou a
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outra mão para chamar a atenção do decurião. Miro ainda estava a mais de cem passos dali, e Cato verificou que ele e os seus homens avançavam com uma lentidão exasperante.
Eram demasiado lerdos. A noite estava a tombar, e na escuridão não haveria qualquer esperança de salvar aqueles homens. Quando Miro olhou para ele, Cato fez um sinal
frenético com a mão livre, e apontou para a abertura entre as fragas. O decurião hesitou, antes de assentir e continuar a tentar encontrar o caminho, parando apenas
para se segurar quando a água voltou a subir à sua volta, a borbulhar como se entrasse em ebulição ao ficar em contacto com as rochas que constituíam aquele quebra-mar
natural.
- Isso mesmo - disse Cato para si próprio, enquanto se deixava cair sentado no banco. - Não pares, homem!
Enquanto a linha de homens amarrados uns aos outros continuava a progredir para a abertura, Cato pressentiu, mais do que viu, a aproximação de uma grande vaga. No
instante seguinte a massa de água precipitou-se sobre as rochas, inundando a área e ensopando Miro e os seus auxiliares. Um deles não se preparou a tempo para o
impacto, e caiu para a água, enquanto lançava um guincho de terror que chegou aos ouvidos de Cato, e quase levava atrás os companheiros que o ladeavam. Miro virou-se
para trás ao escutá-lo. No breve intervalo entre ondas, o homem foi puxado outra vez para cima das rochas e ficou um momento a recuperar o fôlego. Cato respirou
fundo, aliviado, e esticou o pescoço para ver melhor o que se passava, enquanto Miro agrupava os seus homens.
- Mas o que é que estás a fazer? Continua.
Porém, em vez disso, Cato viu a linha de homens começar a recuar para terra, e sentiu o sangue a ferver nas veias enquanto rangia os dentes, furioso. Impediu-se
de soltar qualquer comentário. A situação era demasiado séria para isso. Trataria de Miro mais tarde. Só então reparou que os marinheiros nos remos o fitavam, ansiosos,
enquanto se esforçavam para manter o barco no mesmo lugar entre as ondas. Limpou a garganta.
- Muito bem, agora é connosco. Levem-me até junto daquele espaço entre as rochas.
Nenhum deles respondeu de imediato, e Cato viu o medo nos seus olhos. Encarou-os, decidido.
- São camaradas vossos que ali estão. Preferem abandoná-los à mercê da tempestade? Gostavam que eles vos fizessem a mesma coisa, se fossem vocês a estar naquela
situação?
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- Senhor, é uma loucura tentar salvá-los - disse o homem no remo mais próximo da proa.
Cato sentiu-se tentado a responder-lhe com fúria e mandá-lo calar a boca, mas preferiu engolir a ira e tentar convencê-los com calma.
- Não vos peço que sacrifiquem as vossas vidas. Levem-me só até onde for possível, para eu tentar outra coisa. É tudo.
O homem anuiu e voltou a marcar o ritmo, e o bote avançou outra vez para o destroço preso nas rochas. Cato despiu a túnica encharcada, pegou num dos baraços de corda
que estavam no fundo do bote e colocou-o ao ombro.
- Se conseguir chegar lá, atiro-vos a ponta deste cabo. Terão que o amarrar ao outro, que está preso ao barco. Entendido?
- Sim, senhor.
- Mais uma coisa, a última. Se eu falhar, não tentem salvar-me.
O homem sorriu com ar funesto.
- Senhor, isso é uma ordem?
Cato obrigou-se a sorrir, e depois desapertou as botas e tirou-as, tremendo de frio enquanto se agachava só de tanga e tentava reunir toda a coragem que lhe restava.
Pensou brevemente em Júlia, e no filho de ambos, os quais se podiam tornar em breve viúva e órfão, e depois afastou-os da mente. Então, sem mais hesitações, saltou
do bote e mergulhou no mar agitado.
A primeira sensação que o atingiu foi a do terrível frio da água que se fechou sobre ele, como se um punho gigante se cerrasse à volta do seu corpo. Então a cabeça
irrompeu à tona de água, e os ouvidos ficaram repletos do rugido e silvar selvagem do oceano. Lançou-se de imediato na direção das rochas em que se apoiava o destroço
do transporte. Parecia próximo, mas era preciso combater correntes e remoinhos, e sabia que tinha de ser rápido. Não havia já muita luz, e o frio lancinante da água
depressa lhe roubaria as forças.
Nadou para uma espécie de degrau nas rochas, e quase o tinha alcançado quando uma nova vaga rebentou sobre a proa da embarcação. O refluxo puxou-o para um lado e
outro, e acabou por o fazer avançar. Aproveitou a corrente e deu algumas frenéticas braçadas até alcançar as rochas, onde procurou um ponto onde se apoiar. O nível
da água voltou a subir à sua volta, e ele deixou-se levar, e depois agarrou-se à superfície dura e áspera com toda a força, até sair da água e pular rapidamente
para
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um ponto mais elevado, onde parou finalmente para avaliar a situação. Estava agachado sobre uma rocha de cimo achatado, sobre as ondas. A curta distância via as
formas curvas do casco, e olhou para o convés, onde os marinheiros tinham estado a seguir o seu progresso com expressões ansiosas. Havia agora uma centelha de esperança
nos seus rostos, mas ainda estavam longe de estar salvos.
A tremer violentamente sob o vento e a neve, pegou na corda e levantou-se, os pés bem firmes e o braço puxado para trás, enquanto pedia aos homens no bote que se
aproximassem o mais possível. Estes manejaram os remos com toda a força, e quando estavam a pouco mais de uns seis metros da rocha onde Cato se encontrava, o homem
à proa recolheu o remo e preparou-se para agarrar a corda. Cato lançou o baraço pelo ar, e a corda foi serpenteando até tombar com estardalhaço à beira do bote.
Mordeu a língua e recolheu-a, voltando a enrolá-la rapidamente e preparando-se para novo lançamento. Nessa tentativa, a Fortuna acompanhou-o. A ondulação ergueu
o bote e trouxe-o para mais próximo, e a corda aterrou na proa. Começou imediatamente a deslizar, e o marinheiro tentou agarrá-la; falhou, mas voltou a procurá-la,
sem perder tempo. Dessa vez os dedos fecharam-se sobre a corda, e ele puxou-a para dentro e prendeu-a ao cabo que se estendia sobre a água desde a embarcação de
guerra, antes de olhar para o prefeito e acenar.
Cato virou-se para o transporte, pegou na parte da corda que tinha ficado consigo e avaliou as rochas que o separavam da água aberta. Outra vaga de grandes proporções
se aproximava, lançando espuma gelada para o convés destroçado e enrolando-se em redor das rochas por baixo dele. O mar recuou de novo e ele desceu do seu ponto
elevado e correu pelas rochas escorregadias e cobertas de algas, até ficar diretamente sob a proa do destroço.
- Agarrem a corda! - gritou aos rostos que o fitavam. Rodou o braço e atirou o baraço. Várias mãos o agarraram e puxaram a corda para cima, enquanto Cato rodeava
o casco até encontrar um buraco entre as madeiras estilhaçadas e subia para o que restava do convés, tentando recuperar o fôlego enquanto o corpo enregelado tremia
sem controlo. Cambaleou até junto dos outros, no preciso momento em que outra onda os atingia, tirando-lhe os pés do chão e lançando-o aos trambolhões pelo convés.
Tentou agarrar-se a qualquer coisa para evitar ser arrastado para o mar e então, quando já começava a desesperar, uma mão fechou-se
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em redor do seu antebraço e interrompeu-lhe o deslizar, e depois outras mãos puxaram-no para cima e para fora da água, e viu os rostos dos marinheiros a contemplá-lo.
O mais próximo deles sorria abertamente, por trás duma barba escura e molhada.
- Caramba, pá, tens uns tomates de ferro sólido! Deixa-me ajudar-te. - O homem ajudou Cato a colocar-se de pé e amparou-o, enquanto outros lhe davam palmadas nas
costas. Por trás deles, Cato notou que a corda já tinha sido amarrada com todo o cuidado ao mastro de vante e que estava retesada, desenhando uma descida pronunciada
para o mar, onde o bote dançava ao sabor das ondas. Como estava preso, tanto à trirreme como ao transporte, ou o que restava dele, o bote mantinha-se ainda assim
estável sobre o mar. Cato verificou que havia outros dois botes a aproximarem-se, guiando-se pelo cabo, e puxando-se ao longo deste. Olhou para os homens que o rodeavam
e contou nove.
- Temos que sair daqui o mais depressa possível. Um de cada vez, desçam a corda e sigam até ao bote.
O marinheiro mais corpulento, o que o tinha impedido de ser levado pelo mar, apontou para o mais próximo dos seus companheiros.
- Saio, vai tu primeiro. Pórcio, vais a seguir, assim que ele tiver chegado ao bote.
O pequeno grupo de homens reuniu-se junto ao mastro, enquanto Saio se agarrava à corda e descia. Ficou dependurado, mas conseguiu prender a corda entre as pernas
e seguiu sobre as rochas, ajudando-se com os braços até alcançar a água e se dirigir ao bote que tinha levado Cato até ali. Quando lá chegou, os outros botes já
estavam a par do primeiro, e ele foi passado para o mais próximo, enquanto outro homem deixava o transporte.
- Cuidado!
Cato girou a cabeça mesmo a tempo de ver a espuma a precipitar-se sobre si. Agarrou a amurada no momento em que a torrente gelada se abatia sobre o convés. O homem
que se agarrava à corda soltou um grito breve e, quando a espuma se desfez, não havia sinal dele, só a corda a estremecer e a água a escorrer dela.
- Desgraçado - soltou o marinheiro corpulento, antes de aplicar uma palmada no ombro de outro homem. - É a tua vez. Mexe-te!
Enquanto viam o homem a pendurar-se na corda e a descer para os botes que o esperavam, ele virou-se para Cato.
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- O meu nome é Talbo. Se escaparmos desta, prometo que te ofereço a melhor ânfora de vinho que puder encontrar, meu amigo.
Ofereceu a mão, e Cato apertou-lhe o antebraço.
- Ótimo. Depois disto, vamos mesmo precisar de uma bebida. Sou Cato.
- És do Medusa? - Talbo fez um gesto na direção da embarcação de guerra mais próxima. Prosseguiu antes que Cato pudesse responder.
- Espero sinceramente que o teu comandante te nomeie para uma medalha. Foda-se, meu amigo, bem a mereces.
Cato inclinou ligeiramente a cabeça.
- Obrigado, mas não vamos festejar antes de tempo, sim? Fortuna adora levar os seus jogos mesmo até ao fim.
A troca de palavras foi interrompida por uma sacudidela no convés, e um chiar estranho, e foi sem espanto que viram um pedaço do convés soçobrar a uns três metros
deles.
- Falta pouco - concluiu Cato.
Os marinheiros seguiram sem pânico, um a um, e o primeiro bote dirigiu-se para a praia com alguns já a bordo. Por fim só restavam a bordo Talbo e Cato.
- Depois de ti. - O marinheiro apontou para a corda.
Cato abanou a cabeça.
- És um tipo grande, vais precisar de mais tempo. Vai tu primeiro.
Vai.
- Estás-me a chamar gordo? Ora gaita, agora que começava a apreciar a tua companhia.
Talbo passou sobre a amurada e começou a afastar-se, deixando Cato a sós na proa do transporte. Outra onda veio embater no destroço, e este mexeu-se, de forma bem
nítida, e outra secção do convés abriu-se. A sua opinião sobre o marinheiro estava correta, e Cato teve que se esforçar para não desatar a gritar ao homem para se
mexer mais depressa. Tremia com violência, e já nem sentia as pontas dos dedos. Esfregou as mãos com força e bateu palmas para tentar evitar que ficassem dormentes.
Por fim Talbo lá chegou ao bote, e os marinheiros puxaram-no para bordo. Cato passou de imediato para o exterior da embarcação, segurou a corda, prendeu-a entre
as pernas e foi-se deixando deslizar, controlando o movimento com as mãos. De cada vez que o mar engolia o que restava do barco, a corda saltava, e ele baloiçou
sobre as rochas, e depois
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sobre a rebentação. Olhou para trás e viu que estava já perto do bote, e que os marinheiros o chamavam com gestos desesperados. A princípio não percebeu a razão
dessa impaciência, até olhar para cima e verificar que a última secção do casco destroçado baloiçava cada vez mais nas rochas. De repente, tudo saltou e se desfez,
a corda ficou solta e ele mergulhou outra vez no mar.
De novo se sentiu apertado num punho gelado, e desta vez prendeu a respiração e manteve-se agarrado à corda, em vez de se debater para voltar à tona. Se soltasse
a corda, não sabia se teria forças suficientes para nadar até ficar em segurança. Enquanto se agarrava com o que lhe restava de forças, sentiu um puxão, e o corpo
atravessou as profundezas do mar. Quando os pulmões já lhe ardiam, cortou a superfície a curta distância do bote, e rapidamente várias mãos se apossaram dele e o
puxaram para dentro, deixando-o cair sem cerimónia no fundo do esquife.
- Cortem a corda! - berrou Talbo. - Antes que aquela merda nos leve para o fundo com ela! Não tentes desatar o nó, idiota! Corta-o! Sai-me da frente.
Cato olhou, ainda atordoado, e viu o marinheiro, à luz mortiça do fim do dia, a cortar a corda com uma faca. O cabo foi-se desfazendo fio a fio, até se separar por
completo e a ponta solta saltar e desaparecer entre as ondas. Talbo guardou a faca e deu ordem para se dirigirem à margem. Pegou na túnica ensopada de Cato e cobriu-o
com ela, enquanto o prefeito tremia no fundo do barco, no meio de uma poça de água.
- Descansa, Cato. Já fizestes o que podias, pá.
Talbo deu-lhe um toque amigável no ombro, e depois começou a marcar o ritmo dos remadores, enquanto o bote subia e descia a superfície das ondas, afastando-se do
perigo representado pelas fragas, aproximando-se da segurança a cada remada. Cato sentia um tremendo cansaço a apoderar-se do seu corpo, e sentiu-se tentado a cerrar
os olhos e deixar-se ir. Mas temia aquele apelo do sono. E se nunca mais voltasse a acordar? Em vez disso, ergueu-se, apoiou-se no banco da popa e abraçou os joelhos
enquanto continuava a tremer, e os dentes batiam.
Por fim os seus ouvidos escutaram o som das ondas a rebentar sobre os seixos, e o bote oscilou quando bateu no fundo, subiu e ficou preso com firmeza. Os homens
recolheram os remos e saltaram pela borda, para puxar o bote mais para cima. Talbo debruçou-se para o interior e ofereceu uma mão. Cato aceitou-a de bom grado, e
deixou-se puxar para
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os seixos. A escuridão derramava-se sobre a costa, e era pior ainda por causa da neve que caía agora pesadamente.
- As minhas botas - pediu, em voz fraca, e o marinheiro debruçou-se de novo e recolheu-as.
- Aí estão elas, pá. Vou ver se te arranjo uma capa, e algum vinho, comida, e uma boa fogueira. Depois levo-te de volta ao teu barco.
Enquanto Cato anuía, sem saber bem o que fazia, ouviu-se o som de passos de corrida sobre os seixos.
- Senhor! Senhor! Prefeito Cato!
Olhou na direção dos sons e viu Miro e vários dos seus homens a correrem para ele com expressões excitadas e aliviadas. Um deles já tinha tirado a própria capa,
e colocou-a rapidamente sobre os ombros de Cato, enquanto Talbo observava a cena com os olhos arregalados.
- Prefeito Cato? Bem, eu... eu... foda-se! - Talbo soltou uma gargalhada. - E eu a pensar que eras um marinheiro. Um dos nossos. Nunca pensei que um dia havia de
ter a vida salva por um comedor de poeira. Ainda por cima, um oficial.
- Há-os de todos os géneros, Talbo. - Cato soltou um sorriso pouco firme.
Voltaram a trocar um aperto de braços e sorriram, com o prazer e o alívio de homens que tinham enfrentado um grande perigo juntos, e lhe tinham sobrevivido.
- E quanto ao tal vinho? Vê se arranjas algum do de Falerno, e o trazes à minha tenda. Não me esquecerei.
- Sim, senhor. Não faltarei. Pela minha palavra.
Fez-se uma pausa, e os dois homens olharam para as fragas como que por instinto. Já não havia qualquer sinal do transporte. A tempestade tinha acabado por o destruir
completamente, e engolira os destroços. Nas águas mais calmas da baía, as embarcações sobreviventes da frota, ainda abaladas, lançavam âncora ou eram conduzidas
até à praia pelas tripulações exaustas, por entre o vento e a neve, que começava a cobrir de branco a paisagem em redor. O inverno tinha chegado por fim, e em força,
refletiu Cato. E tentou calcular se tal facto não significaria apenas o começo dos seus verdadeiros problemas.
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Cato não conseguiu evitar estremecer quando ouviu as trombetas do quartel-general a soltarem as suas notas no ar matinal, e no momento seguinte a primeira bateria
de balistas entrou em ação. O costumeiro estalo dos braços destas a lançarem saía um tanto abafado devido à camada de neve que tinha coberto a paisagem durante a
noite. Quase dez centímetros, que se tinham acumulado junto à paliçada inimiga e em torno dos abrigos no interior. Havia explosões de pó branco nos pontos em que
os pesados projéteis com pontas de metal embatiam contra as madeiras da paliçada, incrustadas de gelo e neve. Os guerreiros inimigos que tinham estado a guarnecê-la,
e que se haviam entretido a lançar insultos na direção dos romanos, desapareceram imediatamente de vista. Depois de o último projétil alcançar o alvo, ocorreu uma
breve pausa, e depressa os pontos escuros que eram os rostos dos defensores reapareceram nas defesas. Os insultos voaram de novo, de forma prematura, já que a segunda
bateria se juntou à atividade e soltou os seus projéteis, concentrando-se na mesma área das defesas, em pleno centro da linha inimiga. Enquanto Cato apreciava a
cena, um dos defensores, mais ousado do que os seus camaradas, ergueu-se e agitou os punhos contra os atacantes. Foi de imediato atingido por uma das grandes setas
em pleno peito e varrido para longe das muralhas.
- O primeiro sangue é nosso - felicitou-se o legado Valens, da Décima Quarta, de pé ao lado de Cato. - Aqueles selvagens parece que nunca aprendem o que as modernas
armas são capazes de fazer. Não vai ser preciso grande esforço para destroçarmos aquelas pobres defesas.
Cato assentiu. Mais de uma centena de balistas e catapultas tinham vindo com o exército, e entre elas seriam mais do que suficientes para abrir brechas nas muralhas
inimigas, além de lhes provocar pesadas perdas. Porém, essa vantagem romana só se faria notar relativamente às
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defesas existentes daquele lado do canal. A artilharia não possuía alcance suficiente para atacar as defesas dos druidas ao longo da costa de Mona. Virou-se para
acompanhar a linha de costa com o olhar, até ao ponto onde as quatro embarcações de guerra que tinham sobrevivido à tempestade se dirigiam para a entrada norte do
canal que separava Mona da Britânia propriamente dita. Os barcos de combate tinham a bordo algumas peças de artilharia para apoiarem o desembarque na ilha, mas Cato
tinha sérias dúvidas de que fossem suficientes para influenciar de forma decisiva o curso da batalha. Os exércitos de assalto teriam que avançar para a ilha através
dos baixios cobertos de água gelada, antes de se lançarem contra as fortificações que protegiam a zona mais estreita do canal. Já tinha reparado que o resto da margem
que dava para o lado onde se encontravam os romanos tinha proteções menos elaboradas, muros de terra e linhas de estacas aguçadas. A única outra opção era uma espécie
de vau estreito e lamacento que podia ser percorrido durante a maré baixa. Mas mesmo esse era protegido por várias linhas densas de estacas. Ia ser uma tarefa sangrenta.
O legado Quintato e o seu estado-maior observavam os acontecimentos de uma colina, um pouco atrás dos homens da Décima Quarta, que ainda se estavam a dispor no terreno,
a preparar o assalto que teria lugar assim que existisse um número razoável de brechas praticáveis na paliçada inimiga. Nos flancos da legião dispunham-se as quatro
coortes auxiliares escolhidas para apoiar o ataque, duas das quais eram unidades de projéteis leves, compostas por arqueiros e fundibulários das ilhas baleares.
Os Corvos Sangrentos estavam posicionados no flanco direito. As montadas tinham ficado no acampamento; toda a unidade ia combater a pé, ao lado da coorte de legionários
a que tinham sido adstritos desde o início do ano. Era tamanho o terror que os Corvos Sangrentos infundiam nos corações inimigos, que Quintato tinha decidido que
eles se deviam juntar ao assalto.
Embora não houvesse vento e o mar estivesse calmo, o céu tinha um tom carregado que anunciava mais neve, e muitos dos soldados romanos tinham resolvido seguir para
o combate com as capas, sabendo perfeitamente que poderiam muito bem ter que esperar bastante tempo antes de receberem ordem para avançar. Os homens das coortes
que já tinham formado no declive que descia para as defesas inimigas batiam os pés no chão e esfregavam as mãos, numa tentativa de afastar o frio.
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Os seus camaradas da Vigésima e das restantes coortes auxiliares estavam a ser mantidos de reserva no campo que se espalhava pela crista da colina sobranceira ao
ponto mais estreito do canal. Ainda beneficiavam do conforto das fogueiras que ardiam no interior do campo, enquanto se preparavam para o caso de serem chamados
a participar no combate.
Tinham passado dois dias desde a tempestade, e a manhã que se lhe seguira revelara a extensão dos danos infligidos à indefesa frota que fora enviada para se juntar
a Quintato e à sua coluna. A costa tinha-se mostrado semeada de destroços e cadáveres ao longo de muitos quilómetros acima e abaixo da baía; dois terços das embarcações
e respetivas tripulações tinham sido tragadas pelo oceano. Os corpos haviam sido recolhidos e cremados em piras feitas com o madeirame estilhaçado dos barcos, antes
de o exército se instalar na colina que dominava as posições inimigas de ambos os lados do canal. Durante esse tempo, Cato recuperara dos efeitos do frio e da exaustão
que a sua ação de salvamento dos marinheiros tinha provocado. Pelo menos aqueles homens haviam sido salvos das garras da selvagem tempestade, o que confortava o
espírito do prefeito. Naquele momento, era no iminente assalto que focava a sua atenção, sem descurar a situação em termos mais globais, e prosseguia a conversa
que iniciara com o legado Valens.
- Resolveremos com alguma facilidade as coisas deste lado do canal, senhor, mas atravessar a água e tomar a ilha vai ser outra história, muito mais complicada. Ou
tentamos atravessar na maré baixa e temos que lidar com os obstáculos, ou fazemos a travessia com os legionários. O que não será fácil, dado o reduzido número de
transportes que resistiram à tempestade.
Os dois homens olharam para os barcos que se dirigiam para o canal. Mantinham-se junto à margem e atentos à possibilidade de algum golpe inimigo com as dúzias de
pequenos barcos que se viam na praia que rodeava a ilha. Para lá das embarcações de combate, havia oito transportes de legionários, mas cada um não tinha capacidade
para mais de cinquenta homens.
- Com apenas quatrocentos homens em cada vaga, vai ser mesmo muito difícil - prosseguiu Cato. - Os primeiros homens a atravessar vão enfrentar o mais difícil combate
das suas vidas.
- Não, não vai ser fácil - admitiu Valens. - Mas aposto que os rapazes da Décima Quarta vão levar a melhor sobre aquela turba de
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bárbaros que só sabem berrar. Só têm que chegar a terra firme e aguentar o tempo suficiente para lá chegarem mais reforços. Assim que tivermos um efetivo suficiente
na frente de combate, nada nos poderá deter. Vamos esmagar aqueles druidas como se fossem ovos. E isso vai dar cabo da vontade de quaisquer outras tribos que estejam
a pensar em dar-nos chatices, não?
Cato obrigou-se a sorrir de forma reconfortante.
- Pois, acho que sim.
Valens tinha razão num ponto. Sem os druidas para unir as tribos contra Roma, o padrão habitual da política de dividir para reinar obteria os seus costumeiros resultados.
Isso tornara possível que a pequena cidade-estado que Roma fora em tempos longínquos dominasse uma tão grande parte do mundo conhecido. E ali na Britânia as coisas
não seriam diferentes. Toda a população ficaria sob o controlo de três ou quatro legiões e algumas coortes auxiliares, com a ajuda dos líderes nativos cuja lealdade
a Roma já tinha sido comprada com prata romana. Seria esse o preço da paz para os nativos da Britânia.
Enquanto conversavam, as equipagens das balistas já tinham recebido permissão para dispararem à vontade, e como cada uma delas possuía o seu próprio ritmo de carregamento
e disparo, os estrondos das rajadas que tinham caracterizado o início da barragem haviam-se transformado numa série de estalos, sem qualquer continuidade. O inimigo,
que aproveitara os intervalos ao início do bombardeamento para exibir os seus sinais de desafio, estava agora acoitado por trás da paliçada, à espera que aquela
fase terminasse, pronto a saltar dos seus esconderijos assim que os romanos deixassem de disparar. O impacto concentrado das pesadas flechas já começava a provocar
a destruição de certas áreas da paliçada, e ouviu-se um coro de triunfo vindo das gargantas dos soldados que observavam o bombardeamento quando uma secção inteira
da paliçada desabou para o fosso, levando consigo um bom naco da rampa de terra em que se alicerçava.
- Oficiais, às vossas unidades! - avisou Quintato, da posição que escolhera, um pouco adiantado ao seu posto de comando. O prefeito do campo repetiu a ordem em tom
mais elevado, para se assegurar de que todos a tinham ouvido, e os comandantes das diversas unidades que se preparavam para entrar em ação avançaram para junto dos
seus homens. Cato acompanhou Valens ao longo de parte do caminho, e reparou na
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inabalável confiança do homem, enquanto saudava os seus subordinados e assumia posição junto aos porta-estandartes, na ponta direita da linha.
- Que Fortuna o acompanhe, senhor - lançou Cato, enquanto inclinava levemente a cabeça.
- E a ti, prefeito Cato! - Valens acenou. - Deem-lhes com força, Corvos Sangrentos!
O legado virou-se para dar algumas últimas indicações aos seus centuriões mais antigos, cumprindo a eterna tradição dos comandantes antes de uma batalha. Cato tinha
por vezes oferecido aos homens sob o seu comando um tratamento similar, mas duvidava que tal fosse necessário naquela ocasião. Os homens combateriam, fossem quais
fossem as circunstâncias, e umas piadas mal pensadas e apelos ao cumprimento do dever não lhes dariam maiores possibilidades de triunfar naquela batalha. Além disso,
considerou, seria melhor mostrar-lhes um profissionalismo sereno, e deixá-los confiar no treino e na experiência que tinham acumulado. Por isso, adotou modos tranquilos
e seguros enquanto se aproximava do grupo de honra dos Corvos Sangrentos e soltava o fecho que prendia a capa, antes de a passar para as mãos de Traxis e pegar no
escudo que lhe era apresentado pelo seu criado.
Por hábito, sopesou o escudo e testou-lhe o equilíbrio, e depois remexeu os ombros, fazendo-os girar para os soltar, antes de acenar a Traxis.
- Tudo pronto... - Fez uma pausa e olhou para o criado com ar avaliador. Tinha tomado uma decisão quanto ao futuro do trácio nessa mesma manhã, e aquele pareceu-lhe
um momento adequado para lhe dar as novidades. - Podes deixar a capa nas mãos de um homem da reserva, e depois podes tomar lugar junto ao porta-estandarte, como
seu adjunto.
Traxis não conseguiu ocultar a surpresa que sentiu.
- Senhor?
- Serviste-me bem. Embora nem sempre de bom humor, não foi?
- Cato sorriu ao recordar as inúmeras ocasiões em que Traxis tinha tratado das coisas que lhe eram pedidas como um homem que estivesse permanentemente de ressaca.
Viu-se retribuído por uma nova careta, mas a cara franzida desapareceu rapidamente e foi substituída por um sorriso assim que Traxis se deu conta da sua boa fortuna.
Ser o auxiliar
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do porta-estandarte tornava-o responsável pela segurança do outro em combate, e se ele fosse morto ou gravemente ferido, caberia ao próprio Traxis empunhar o estandarte
dos Corvos Sangrentos e mantê-lo bem ao alto. Além disso, ao posto correspondia uma melhoria salarial, que o faria passar a receber vez e meia o que lhe era pago
antes, e ainda uma dispensa de serviços. Tinham terminado para ele as duras limpezas de latrinas, a recolha de lenha, a limpeza do equipamento do seu superior. E
depois, ainda queria dizer que ficava em boa posição para uma promoção a optio, e depois disso a decurião. À medida que a mente do trácio percorria todas as novas
oportunidades que se lhe abriam, ele deteve-se e olhou para Cato.
- Senhor, quem me irá substituir ao seu serviço?
- Confio em que me encontres o homem indicado para isso, assim que regressarmos a Mediolanum. Não há pressa. Tudo o que peço é que me garantas que é um tipo mais
bem-disposto do que aquele que ocupa atualmente essa posição.
- Senhor, a piada não tem graça.
- Eu sei. Por isso mesmo é que preciso de um substituto.
Traxis sorriu e acenou, aceitando o remoque.
- Obrigado, senhor. Fico-lhe muito grato.
- Não é preciso. É perfeitamente claro para mim que tens potencial para te tornares um bom oficial subalterno. Parabéns.
Traxis afastou-se com a capa de Cato nas mãos e entregou-a aos auxiliares que preparavam ligaduras e talas, já a pensar no fluxo de feridos que começaria a chegar
assim que se desencadeasse o ataque. Regressou poucos momentos depois, com o seu próprio escudo, e tomou lugar ao lado do porta-estandarte. À sua volta, os Corvos
Sangrentos aguardavam em formação, cada esquadrão com o seu decurião colocado no flanco direito, e pequenos penachos de vapor a escaparem dos lábios dos homens de
cada vez que exalavam no ar frígido da manhã. A neve que cobria o solo abafava os sons das vozes e o chocalhar de peças de equipamento soltas, e dava à cena um ar
de calmaria que parecia pouco natural. De acordo com as ordens de Cato, tinham deixado as lanças no campo. O combate corpo a corpo que se avizinhava favorecia o
uso de espadas.
Cato observou os impactos das baterias de balistas, e notou com satisfação que estavam já a abrir várias brechas no centro da paliçada. Percorreu com a vista as
defesas do inimigo até ao pequeno
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bastião situado na extremidade, mesmo em frente à posição dos Corvos Sangrentos. Aquela fortificação ainda não sofrera qualquer impacto, mas a primeira birreme já
estava a soltar âncora numa posição que a punha ao seu alcance, e pouco depois lançou outra âncora à popa, de forma a estabelecer uma plataforma estável e apresentar
o costado à refrega em terra. Cato viu as equipagens das balistas montadas no convés a preparar as armas e a orientá-las para o bastião. Era aquele o objetivo atribuído
aos Corvos Sangrentos. Se fosse tomado, a coorte poderia depois carregar sobre o flanco inimigo e varrer toda a linha celta. Mas o facto era que a birreme se tinha
atrasado a chegar à posição designada de forma a juntar o seu poder de fogo ao bombardeamento, e Cato deixou escapar um longo suspiro de frustração.
Assim que os últimos estalidos da ação dos molinetes de carga esmoreceram, o trierarca que comandava a embarcação de guerra levantou o braço, para chamar a atenção
das equipagens das balistas, e logo o fez descer com um gesto rápido. As escuras hastes das pesadas flechas sobrevoaram a água e foram embater contra as defesas,
provocando uma explosão de estilhaços de madeira. As equipagens executaram mais umas tantas rajadas, até que se ouviram as trombetas do quartel-general a soar, e
todas as baterias cessaram a sua ação. Como que para reparar o atraso com que tinham iniciado o bombardeamento, os tripulantes ainda lançaram mais alguns projéteis
antes de interromperem a sua atividade.
Sobre o campo de batalha envolto em neve, desceu um silêncio sepulcral, enquanto os romanos esperavam a ordem de avançar. Por entre as muralhas surgiram as primeiras
faces inimigas, enquanto os guerreiros retomavam cautelosamente as suas posições e se preparavam para a defesa.
- Décima Quarta Legião! - ribombou uma voz, vinda das fileiras pesadamente equipadas colocadas à esquerda dos Corvos Sangrentos. - Preparar para avançar!
Os homens levantaram os escudos e colocaram-nos atravessados sobre o corpo.
- Avançar!
As fileiras mais adiantadas de cada coorte avançaram, e as que as seguiam ondularam em resposta, à medida que os homens iniciavam a marcha sobre a neve de um branco
virginal a separá-los das fortificações dos nativos. A ordem para iniciar o ataque foi repetida nas coortes que,
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nos flancos, eram compostas de arqueiros e fundibulários, e estas adiantaram-se aos legionários, prontos a castigar qualquer elemento inimigo que se descuidasse
e se oferecesse como um alvo fácil. Cato preparou-se e sorveu uma boa golfada de ar antes de, por sua vez, lançar uma ordem no ar límpido.
- Corvos Sangrentos, preparar... Avançar!
Deu um passo, e os homens de ambos os lados imitaram-no, enquanto o estandarte negro com o corvo vermelho ondulava sobre a formação. A neve cedia suavemente sob
as suas botas enquanto ele descia o declive pouco pronunciado, a caminho do fosso e do baluarte arredondado do bastião. Duzentos passos à frente, distinguia perfeitamente
os guerreiros inimigos que o esperavam para lhe oferecer uma receção pouco amistosa. Era a habitual mistura de elementos tribais, uns de armadura e outros sem ela,
a brandir lanças, espadas e machados. Os poucos arqueiros entre eles apressavam-se a armar os seus arcos e a recolher setas das aljavas, assestando-as e aguardando
que os romanos chegassem ao seu alcance.
Uma centúria da coorte de arqueiros correu para a frente dos Corvos Sangrentos, aproximando-se do fosso e detendo-se para soltar uma revoada de flechas. Os defensores
retaliaram, e os finos traços negros cruzaram-se em pleno céu cinzento. A vantagem era do inimigo, que podia recolher-se para um abrigo, enquanto os romanos estavam
num espaço descoberto e tinham que se proteger com a ajuda de pés ágeis e reações rápidas para evitar serem atingidos. Alguns não tiveram essa sorte, e Cato viu
um deles tropeçar ao sofrer o impacto de uma flecha no ombro. Depôs o arco e tentou libertar o projétil, enquanto recuava, passando pelos Corvos Sangrentos a caminho
da enfermaria de campanha.
Um silvo abafado chegou-lhe aos ouvidos e reparou então numa haste a tremelicar na neve, a menos de três metros à sua frente. Subiu o escudo até ao queixo para se
proteger, e prosseguiu sem diminuir o passo. Outra seta assobiou bem perto dele, e teve que se obrigar a não estremecer, para evitar que os homens que o rodeavam
notassem o seu receio. Os arqueiros tinham-se detido um pouco adiante, e começavam a abrir espaços nas suas fileiras para permitir a passagem dos esquadrões de Corvos
Sangrentos que se aproximavam da face externa do fosso. Os restos emplumados das setas inimigas nasciam da neve como se fossem estranhas flores de hastes negras.
Cato deixou-se levar pela comparação
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que lhe surgira de forma inesperada no espírito e sorriu, até reparar num arqueiro inimigo na paliçada, mesmo à sua frente, que apontava cuidadosamente na sua direção.
Quando os seus olhares se cruzaram, o homem puxou o braço direito atrás e alinhou a seta com os olhos. Cato mal teve tempo para levantar o escudo antes de o outro
soltar a seta, e quase de imediato sentiu o impacto que fez com que a ponta metálica rasgasse o couro e as tiras de madeira coladas, detendo-se a poucos centímetros
do seu rosto. Outras setas e projéteis silvaram pelo ar, à medida que os defensores tentavam desesperadamente abater tantos assaltantes quanto lhes fosse possível
antes que os romanos cobrissem a faixa de terreno que ainda os separava e se lançassem num combate corpo a corpo.
Um grito próximo fez com que Cato olhasse em volta. Viu um dos seus homens cambalear, deter-se e largar o escudo, enquanto levava as mãos à cara e tentava arrancar
a seta que lhe tinha desfeito a mandíbula. Mais um momento e o homem era de novo atingido, desta vez por um projétil de chumbo que o apanhou precisamente no meio
da testa, fazendo com que a cabeça se projetasse violentamente para trás e deixando-o sem sentidos. Caiu na neve e ali ficou imóvel, enquanto os seus camaradas avançavam
impiedosamente, uns ao lado e outros por cima dele.
Cato arriscou uma rápida espreitadela por cima da orla do escudo e constatou que estavam quase em cima do fosso. Reduziu o andamento assim que começou a descer o
declive externo. O fosso não tinha mais de três metros de profundidade, e o fundo estava semeado de estacas pontiagudas colocadas em ângulo no solo. Aqueles obstáculos
teriam sido perigosos para uma carga desordenada, mas o avanço deliberado e meticuloso dos soldados romanos bem treinados fez com que os atacantes simplesmente afastassem
as estacas e prosseguissem a caminho da face interna, antes de trepar o declive. Cato seguia à frente, dirigindo-se para um ponto em que a balista naval tinha reduzido
vários postes da paliçada a ruínas estilhaçadas. Quando começou a subir a custo a inclinada face interna do fosso, o que o obrigava a usar as mãos para se apoiar,
atravessando com elas a neve macia e cravando-as no solo gelado que estava por baixo dela, viu o inimigo a concentrar-se na paliçada. Muitos deles tinham o cabelo
empastado e fixo com cal, e os rostos guarnecidos de tatuagens ondulantes. Os lábios estavam arrepanhados e as bocas escancaradas, soltando insultos e imprecações
sobre os romanos. Alguns atiravam pedras do cimo da paliçada, que se iam
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abater sobre os escudos ovais dos Corvos Sangrentos, ou ressaltavam nos capacetes e armaduras. Alguns dos soldados, menos afortunados, foram atingidos nos membros
expostos, ou atordoados por impactos inesperados no crânio. Tombavam de imediato e deslizavam pela parede do fosso, desacordados.
Cato acabou de trepar a face interna do fosso praticamente de gatas, enquanto tentava manter o escudo a cobrir o corpo, estremecendo de cada vez que sentia o impacto
de um projétil. Na base da paliçada encostou-se aos postes e avaliou rapidamente a situação. Os seus homens imitavam-no de ambos os lados, aninhando-se junto às
defesas do bastião inimigo, concentrando-se nos pontos em que a curta barragem da birreme tinha enfraquecido a madeira. Reparou que a paliçada era mantida no lugar
por cordas entrelaçadas, que ajudavam a firmar os postes na sua posição. Desembainhou de imediato a espada, fez a lâmina entrar num dos espaços entre dois dos postes
e começou a serrar. Os cordões começaram a ceder, ao mesmo tempo que o porta-estandarte e Traxis se juntavam a ele; este empunhou a sua espada e seguiu o exemplo
do prefeito, cortando as cordas mais acima. Outros homens fizeram o mesmo ao longo da paliçada, enquanto o inimigo continuava a lançar sobre eles toda a sorte de
projéteis, tentando desesperadamente afastá-los da base da paliçada.
A corda rompeu-se e Cato embainhou a espada, de forma a poder usar as mãos para retirar as cordas que seguravam aquele par de postes. Chamou dois dos seus homens,
dois tipos grandes e fortes, que conseguiam chegar ao ponto onde os projéteis da balista tinham estilhaçado a madeira. Os dois homens procuraram pontos de apoio
e começaram a puxar os postes, enquanto Cato voltava a empregar a espada para ajudar a soltar os dois toros. O solo começou a deslizar, e um dos postes deu um ligeiro
estremeção, começando a inclinar-se num ângulo diferente dos outros.
- Está a resultar! - anunciou Cato. - Continuem.
Com a ajuda de Traxis, o poste voltou a mexer-se, e começou por fim a inclinar-se para fora. Um esforço final dos dois auxiliares extraiu-o completamente do solo,
deixando no lugar uma pequena pilha de terra remexida. À medida que o poste deslizava para o fosso, os romanos dedicaram toda a atenção aos postes vizinhos, onde
os toros começavam a ceder e prometiam alargar a abertura. Cato deu por uma sombra que
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se projetava sobre eles, e olhou para cima; um guerreiro nativo debruçava-se sobre a paliçada com uma longa lança de caça nas mãos, pronto a empregá-la contra o
grupo de romanos. Quando a larga ponta metálica se projetou para baixo, Cato empurrou o escudo para cima e bloqueou o golpe, fazendo com que a ponta se desviasse
para a madeira da paliçada. Logo a seguir largou a espada e agarrou na haste da lança, puxando-a com toda a força das mãos do homem que a empunhava. Ganhou algum
terreno, mas o outro reagiu rapidamente, e durante alguns momentos os dois disputaram a posse da arma um com o outro. Então Cato deu uma torção à haste e empurrou-a
para cima de surpresa. A ponta foi atingir o adversário por baixo do queixo, fazendo a mandíbula fechar-se com toda a força e projetando a cabeça do homem para trás,
e depois todo o corpo caiu.
- Bem feito, senhor! - lançou Traxis, com uma gargalhada.
Um outro poste já dançava no lugar e depressa se soltou do solo e da neve, abrindo uma brecha que já permitia, embora a custo, a passagem de um homem. Cato pegou
no escudo e fê-lo passar por entre os postes enquanto usava a outra mão para trepar pelo terreno instável, até se conseguir içar sobre a base de terra da paliçada.
Quando chegou à posição pretendida, ia de joelhos, e foi avistado imediatamente pelos mais próximos dos guerreiros inimigos, pelo que pegou na espada. Um homem espadaúdo
com uma capa de peles virou-se contra ele e avançou com um machado a dançar sobre a cabeça, enquanto soltava um urro e começava a correr na sua direção. O oficial
romano mal teve tempo para firmar os pés, enquanto o guerreiro celta fazia descer o machado com toda a força.
Cato reparou no reluzir do gume afiado da pesada arma, e colocou o escudo inclinado, de forma a desviar o golpe, mas a cabeça do machado abateu-se sobre a bossa
metálica do escudo num impacto muito mais forte e repentino do que esperava, fazendo-o perder a força na mão. O machado deslizou sobre o escudo, e o gume foi morder
a neve e o gelo sólido que cobriam a rampa de terra, levantando uma nuvem de partículas brancas e negras do solo. Cato apoiou-se no pé mais atrasado e usou o escudo
para contra-atacar, atingindo o homem com força, e fazendo-o recuar um passo para tentar manter o equilíbrio na superfície gelada do terreno. Cato voltou a arrancar
a espada da bainha e abriu ligeiramente a defesa para tentar uma estocada rápida, e a ponta da lâmina alcançou a capa peluda que rodeava o corpo do guerreiro inimigo.
Sentiu a camada
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de pele a ceder, e a lâmina penetrou na carne do homem. Cato torceu-a para um lado e para o outro, e arrancou-a com violência, enquanto o adversário cambaleava e
deixava escapar um rugido de fúria, antes de voltar a levantar o machado para se vingar.
Desta vez, Cato optou por recuar rapidamente para longe do alcance do outro, e espreitou sobre o ombro, para se certificar de que Traxis já emergia da brecha aberta
entre os postes da paliçada. Por trás dele, dois guerreiros inimigos com pequenos escudos retangulares e espadas corriam naquela direção, ansiosos por o abater antes
que conseguisse chegar ao cimo da rampa de terra. Cato virou-se rapidamente, afastando-se do inimigo que acabara de ferir, e correu para o outro lado de Traxis,
enquanto manobrava o escudo de forma a apresentar a largura máxima aos dois nativos. Nenhum dos oponentes se atreveu a tentar deter o movimento de repente naquela
superfície escorregadia, pelo que embateram uns nos outros com um tremendo estrondo de escudos e tilintar de lâminas, antes de caírem todos juntos sobre a rampa,
numa confusão de braços e pernas. Cato caiu pesadamente, e o impacto fê-lo perder o fôlego. Ficou meio por cima de um dos guerreiros inimigos, enquanto o outro se
via esparramado sobre as suas pernas. Tinha perdido o escudo e, embora ainda tivesse a espada na mão, o primeiro dos adversários estava por cima dela e não a conseguia
mexer. Em vez disso, cerrou o punho esquerdo e desferiu um potente murro no queixo do homem, uma vez e outra, até que o outro conseguiu levantar as mãos para se
proteger. O outro nativo abanava a cabeça para recuperar o tino, e Cato apercebeu-se de uma dor súbita no joelho, o que o fez compreender que a sua articulação e
a cabeça do homem deviam ter entrado em contacto no momento do choque violento. Ao recuperar os sentidos, o guerreiro rosnou uma ameaça a Cato e fez menção de pegar
na espada que estava no solo ao seu lado.
Cato nada podia fazer para evitar que ele recuperasse o uso da arma, pelo que voltou a atingir o homem que tinha mais próximo, antes de tentar mais uma vez libertar
a mão que empunhava a espada.
- Sai-me de cima, sacana de bárbaro de merda! - Fez um último esforço, e o homem rolou ligeiramente para o lado, permitindo por fim ao romano libertar a espada.
Cato endireitou-se imediatamente, ao mesmo tempo que o outro
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nativo começava a desferir um golpe em arco com a espada. No último instante, Cato conseguiu colocar o seu gládio entre o corpo e a lâmina do celta. As duas folhas
de metal chocaram e tiniram, e fagulhas saltaram, até que a mais pesada e longa espada do outro conseguiu afastar a de Cato, e este a sentiu a abater-se contra a
crista do seu capacete e deslizar por cima deste. Atacou o antebraço do guerreiro, desprotegido, e atingiu uma espessa pulseira de prata, que impediu que o ferisse
mas não evitou que os dedos do homem entrassem num espasmo e largassem a espada. Cato levantou a lâmina e mergulhou a ponta no pescoço exposto do inimigo, antes
de a puxar para o lado, rasgando a carne e provocando uma torrente de sangue. O guerreiro tombou sobre a rampa, enquanto tentava fechar a ferida letal com as duas
mãos.
Cato soltou um profundo suspiro de alívio e libertou-se da confusão; enquanto recuperava o escudo e se punha de pé, avistou Traxis a atacar o homem do machado, dilacerando-lhe
a pele do braço e partindo-lhe os ossos, fazendo-o gritar de dor. O celta tentou empunhar o machado para revidar, mas só conseguiu soltar mais alguns gritos de agonia,
já que o braço partido não conseguia aguentar o peso da arma. Traxis aproveitou para empurrar com o escudo, derrubando o celta no solo à beira da rampa, antes de
o fazer rebolar pelo declive coberto de neve.

Tanto Traxis como Cato se detiveram, os corações acelerados, olhos e ouvidos atentos a qualquer ameaça, mas nenhum inimigo os desafiava; o porta-estandarte dos Corvos
Sangrentos esgueirou-se por sua vez pela brecha, seguido pelos dois auxiliares de grande porte que tinham derrubado os postes. Por trás deles havia mais homens a
tentarem passar pela abertura, ansiosos por se lançarem no combate. Cato olhou em volta do bastião e viu que havia dois outros grupos dos seus homens que tinham
conseguido penetrar no interior da fortificação e lutavam para defender as suas posições, enquanto outros trepavam pelo exterior para se juntarem a eles. O interior
do bastião teria cerca de cinquenta passos de largura, e do ponto em que se encontrava Cato via bem a formidável linha de estacas afiadas cravadas no solo que defendia
o flanco na direção do canal. Na outra direção estendia-se a grande paliçada que protegia o estreito canal entre aquela margem e a ilha dos druidas.
Várias centenas de homens defendiam a paliçada, e até àquele momento não havia indícios de que tivessem desistido de proteger qualquer
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das brechas que as balistas da legião tinham aberto. Dado o peso das armaduras que envergavam, não era difícil de perceber que os homens da Décima Quarta estivessem
a levar mais tempo do que os Corvos Sangrentos para entrarem em ação, concedeu Cato.
Um coro de gritos de guerra chamou-lhe a atenção de volta ao que o rodeava mais de perto, e avistou um grupo de guerreiros inimigos a dirigir-se ao longo da rampa,
com a evidente intenção de se lançarem contra ele e o punhado de homens que rodeavam o estandarte dos Corvos Sangrentos.
- Atenção, rapazes - avisou, no tom mais calmo que conseguiu convocar. - Esta gente tem mais garganta do que coragem. Vamos lá mostrar-lhes que têm toda a razão
para continuar a temer os Corvos Sangrentos!
Traxis e os outros aprestaram escudos e espadas, e firmaram os pés no terreno enquanto se colocavam ombro a ombro, prontos a defender a posição. O porta-estandarte
cravou a haste no solo e desembainhou também a espada. Cato tomou lugar ao lado de Traxis, na beira da rampa, e cerrou os dentes enquanto enfrentava o bando de inimigos.
Estes já se dividiam, e alguns avançavam pela outra face da rampa, de forma a cercar o pequeno grupo de romanos que tinha entrado pela fenda entre os postes. Os
que seguiam pelo cimo da rampa corriam mais velozmente, e foram os primeiros a lançar-se contra os escudos de Traxis e dos outros dois. Os auxiliares responderam
de imediato com um forte empurrão dos escudos, empregando a firmeza das botas engastadas para se apoiarem no gelo do solo e forçar os nativos a recuar para cima
dos companheiros que os seguiam. No instante seguinte, os auxiliares começaram a desferir estocadas sobre a compacta massa de homens apinhados à sua frente, provocando
estragos enquanto faziam avançar e recuar velozmente as lâminas. Um primeiro guerreiro tombou de joelhos, e foi de imediato afastado para o lado pelos outros, rolando
pelo declive interno ao ser empurrado por outro homem, que mal podia aguardar pela sua vez de enfrentar os romanos.
Mais elementos inimigos se deslocavam pela rampa para atacar os romanos, e Cato usou o escudo em ângulo para atacar o primeiro, um homem com o rosto cheio de marcas,
uma barba espessa e o cabelo hirsuto. Trazia um escudo de vime e uma lança de caça, e desviou-se com agilidade do ataque de Cato, antes de proteger o corpo e usar
a larga
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lâmina numa estocada contra o romano. Cato usou o escudo para desviar o golpe para o solo, e mal conteve um grunhido de dor quando sentiu o gume da lâmina a lacerar-lhe
a barriga da perna, acima do tornozelo. Levantou o pé e pisou a cabeça da lâmina, enquanto tentava atingir a mão do homem, exposta. Falhou, mas em vez da mão atingiu
o cabo da lança, partindo-o e tornando a arma inútil. O outro soltou um grito de fúria, atirou a lança para longe e empunhou o machado que trazia à cintura. Apesar
de pequeno, a cabeça ainda se mostrava uma terrível ameaça, e o guerreiro trepou mais uns passos e fê-lo rodopiar antes de o lançar contra o escudo. Rachou a madeira
da orla inferior, e o homem libertou o machado e insistiu numa série de golpes selvagens, escaqueirando o escudo que Cato se via forçado a apresentar para proteger
os pés e canelas.
O inimigo continuava a engrossar os seus números ao longo da rampa, e o porta-estandarte viu-se forçado a lançar-se também na refrega, enfrentando de espada em riste
um jovem atarracado mas de ombros largos, que usava um capacete gaulês e uma cota de malha por baixo da capa. Decididamente, devia ser um dos nobres locais, percebeu
Cato, enquanto bloqueava mais um dos golpes que lhe estavam a despedaçar a parte inferior do escudo, pouco a pouco. Enquanto o seu opositor voltava a preparar o
ataque, Cato ripostou, fazendo avançar o escudo de repente, de forma a atingir o queixo do outro, rasgando-lhe a pele por baixo da barba e fazendo gotas de sangue
espalharem-se pela neve aos seus pés. Antes que o celta conseguisse recuperar da surpresa, o romano desferiu novo golpe, fazendo-o vacilar e cair pela rampa, até
se precipitar num montículo de neve na base.
Um grito ao seu lado chamou-lhe a atenção, e viu o porta-estandarte de boca aberta, a olhar espantado para o ponto onde o nobre nativo o tinha atingido profundamente
na virilha. Os lábios do bretão abriram-se num cruel sorriso de triunfo enquanto ele revirava a espada e depois a puxava com violência, fazendo nascer uma fonte
de sangue que se espalhou pelas calças do trácio. O porta-estandarte tremeu violentamente, os dedos a perderem força no punho da espada e no cabo do estandarte dos
Corvos Sangrentos. Este ondulava no ar frio enquanto caía nas mãos do nobre inimigo, que largou o escudo e apanhou a haste com um grito de júbilo, antes de se lançar
em corrida pelo declive abaixo, com o estandarte capturado bem alto, a ondular de um lado para o outro.
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Tudo estava acabado antes de Cato conseguir reagir, e já havia vários inimigos entre ele e o homem que corria para longe com o símbolo da sua unidade. Abatido pela
vergonha crescente, lançou um apelo angustiado:
- O estandarte! Salvem o estandarte!
248

22

Traxis olhou em volta, a expressão desalentada quando viu o porta-estandarte a cair no solo.
- Os cabrões levam-nos o estandarte!
Durante um curto período o combate no interior do bastião pareceu amainar, enquanto os homens dos dois lados tomavam consciência do que sucedera, mas depressa os
nativos começaram a soltar gritos de triunfo e desafio, enquanto os romanos se entreolhavam, sem esconder a vergonha que sentiam. Outros quatro auxiliares tinham-se
juntado ao grupo de Cato, e ele virou-se para Traxis e o homem mais próximo.
- Vocês os dois, comigo. Os outros, mantenham esta posição.
Deu alguns passos no terreno, para permitir que os dois homens
designados se colocassem um de cada lado.
- Vamos dar uma lição àquele sacana ousado. Ninguém se pode apoderar do nosso estandarte e ficar vivo o tempo suficiente para celebrar o feito. Quando eu der a ordem,
avançamos direitos a ele, e não paramos. Nada nos pode deter até recuperarmos o nosso símbolo. Depois disso, Traxis, a tarefa de o guardar é tua. Estás pronto para
isso?
Traxis fez girar a cabeça para descontrair os músculos do pescoço, e resmungou uma resposta.
- Sim, senhor. Lamento... Nunca devia ter permitido que isto sucedesse.
- Mais tarde. Agora, é tempo de nos redimirmos. Prontos?
- Sim, senhor.
- Sim - confirmou o outro legionário, antes de cuspir para o solo.
- Senhor, vamos lá dar cabo destes cabrões.
Cato assentiu, respirou fundo e empunhou a espada com toda a firmeza.
- Vamos a isso!
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Começou a descer o declive, apressando o passo mas tendo todo o cuidado de não escorregar na neve. Os outros seguiram-no, acompanhando-o de perto, e a pequena cunha
irrompeu por entre o grupo desorganizado de guerreiros inimigos na base da rampa. Cato acelerou no último momento, afastando um primeiro homem para o lado, e depois
usando a guarda da espada para atingir um segundo homem no rosto e o derrubar. Traxis, à sua esquerda, usou o escudo para empurrar outros dois nativos, fazendo-os
tombar sobre a neve, enquanto o soldado à sua direita desferia golpes impiedosos com a espada, esfacelando o braço tatuado de um guerreiro, cortando-lhe o membro
até ao osso. Os três romanos aceleraram o passo, carregando sobre a base da rampa e despachando os últimos adversários que se interpunham entre eles e o nobre celta,
que contemplava com gozo o estandarte capturado. Baixou o olhar ao ouvir um grito de aviso, e semicerrou os olhos ao notar os três romanos que corriam para ele.
Soltou um grunhido de desafio e espetou a ponta afiada da haste no terreno, antes de avançar e se colocar à frente do símbolo roubado, de braços bem abertos, num
gesto de claro desprezo pela tentativa inimiga de o recuperar. Quatro dos seus homens, gigantes com cotas de malha e capacetes celtas, cada um com um escudo redondo
ricamente decorado, aproximaram-se em corrida, vindos do outro lado do bastião. Eram também nobres, ou então os guarda-costas do primeiro, calculou Cato.
- Tratem daqueles! - ordenou. - O outro é meu.
No preciso momento em que proferiu tais palavras não conseguiu evitar um estremecimento interior perante a jactância com que se pronunciava, e reparou que aquele
era o género de coisa que podia ter sido dita por Macro numa situação semelhante. Não conseguiu evitar uma risada para si mesmo. Seria aquele o significado de ser
um veterano, confortável na sua pele, sentindo que estar no campo de batalha a arriscar o pescoço era o estado natural das coisas? O nobre nativo fitava-o com um
espanto expresso numa carantonha, como que irritado pelo bom humor que Cato exibia. Com toda a arrogância, fez menção de solicitar ao oficial romano que se aproximasse,
e ergueu a espada enquanto se empertigava e enchia o peito de ar.
- Ora então muito bem, meu amigo - respondeu Cato com toda a calma. - Vamos lá ver do que és realmente feito.
Um entrechocar de lâminas distraiu-o, e de relance notou que
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Traxis e o outro auxiliar tinham dado início ao duelo com os fortemente equipados companheiros do nobre. Estavam a lutar numa desproporção de dois para um, pelo
que não poderiam dar a Cato grande ajuda na recuperação do estandarte dos Corvos Sangrentos. Bateu com a espada na orla do escudo e avançou para enfrentar o desafio
do guerreiro nativo.
A expressão do jovem nobre celta intensificou-se, os olhos escuros a rebrilharem como chamas enquanto ele começava a fazer rodar a espada em círculo, para obter
mais impulso. De repente saltou para a frente e lançou o golpe, fazendo a lâmina descer na diagonal sobre a crista do capacete de Cato. Só a mais rápida das reações
salvou o prefeito, que levantou o braço esquerdo e recebeu o golpe em cheio na face do escudo. O impacto retiniu pelo seu braço e ombro, e fez o escudo bater na
proteção do capacete, sobre os olhos, e as mandíbulas entrechocarem-se, fazendo-o morder a língua.
A dor foi imediata e lancinante, e fê-lo saborear o gosto ferroso do sangue na boca. Mas não teve tempo para sequer cuspir, já que a espada do outro voltava a ameaçá-lo,
abatendo-se sobre o escudo e forçando-o a recuar. Uma fenda surgiu na parte inferior do escudo e cresceu quando um terceiro golpe a atingiu, e Cato apercebeu-se
de que aquele escudo não ia suportar muitos mais golpes tão poderosos antes de se desfazer. E depois ficaria equipado apenas com uma espada curta, com metade do
alcance da do seu opositor, e num combate desse género não teria grandes probabilidades de durar muito.
A sua reação foi instintiva e provocou-lhe quase tanta surpresa como a que causou ao adversário. Assim que o golpe seguinte o atingiu, lançou-se para a frente, colocando
todo o seu peso por trás da carga com o escudo danificado. Tencionava derrubar o outro, mas os reflexos do homem eram tão bons como os seus, pelo que ele saltou
para o lado e evitou a maior força do impacto. Cato passou por ele e largou o escudo agora inútil, enquanto corria mais alguns passos até junto do estandarte, onde
se virou por fim para enfrentar o celta, que se aproximava com a plena consciência de que detinha agora toda a vantagem. Cato colocou a espada numa posição elevada,
sobre o ombro, como se se preparasse para lançar um ataque desesperado, mas depois fez descer velozmente o braço e soltou a espada. A lâmina girou pelo ar enquanto
se dirigia ao espantado nativo, até o colher no ombro esquerdo. Apanhou-o em cheio
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e ressaltou para cima, passando sobre o homem antes de tombar sem ruído sobre a neve e o gelo alguns passos nas suas costas.
- Ah! - O nobre celta sorriu cruelmente. Sacudiu a cabeça e avançou, de espada em riste, pronto a abater o indefeso oficial romano.
Cato só tinha uma derradeira hipótese. Arrancou o estandarte dos Corvos Sangrentos do gelo e segurou-o com ambas as mãos, colocando a ponta dirigida ao inimigo como
se fosse uma lança, embora pendesse da outra extremidade uma faixa de tecido escuro. Fez uma ameaça, mas o outro limitou-se a rir e a afastar a ponta da haste com
a espada, quase sem precisar de usar a força, antes de dar mais uns passos para pôr termo à vida de Cato. Este recuou rapidamente e fez rodar a peça que empunhava.
As dobras do tecido tombaram repentinamente sobre o rosto do guerreiro, tapando-lhe a visão, e ele deteve-se, enquanto usava a mão livre para afastar o pano. Cato
recolheu a haste e deixou que a ponta em gancho caísse de maneira a ficar entre as pernas do adversário, antes de a rodar de forma a que a armação metálica onde
estava preso o tecido se apoiasse contra o tornozelo do outro. Nessa altura deu um vigoroso puxão, o que fez com que a perna do homem saltasse pelo ar, o fizesse
perder o equilíbrio e cair, com os braços a agitarem-se, sem controlo. Tombou pesadamente, e o ar foi expulso dos seus pulmões de forma audível. Cato avançou sobre
ele e os olhos dos dois homens cruzaram-se enquanto o outro tentava colocar a espada numa posição que lhe permitisse defender-se.
- Larga! - Cato mostrou a ponta afiada da haste do estandarte bem apontada ao peito do homem. Por momentos acreditou que o outro se ia render, mas os olhos do nobre
franziram-se, e ele tentou manobrar a espada de forma a atingir o romano no torso. Cato cerrou os dentes, fletiu os músculos e empurrou a ponta contra a abertura
por baixo do queixo do homem, antes de pressionar com força e sentir a ponta de ferro a rasgar carne e furar por entre ossos até irromper pelo outro lado do corpo,
atravessando a cota de malha e cravando-se no chão.
A cabeça do nativo projetou-se para trás e os maxilares abriram-se por completo, numa tentativa de sorver o ar, enquanto partículas de sangue lhe saltavam da garganta.
O braço com que empunhava a espada ficou sem forças e a lâmina tombou sobre a neve ao seu lado, enquanto Cato manejava a haste do estandarte num círculo, para provocar
o máximo de danos no adversário. Só então apoiou um pé no peito do
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homem, protegido pela cota de malha, e arrancou a ponta do estandarte, que surgiu escura e molhada de sangue quente, a libertar vapor no ar frio. O jovem nobre celta
agitou-se debilmente enquanto sangrava, os pés a remexerem a neve, a cabeça a deslizar de um lado para o outro. Murmurou para si mesmo, e o romano perguntou-se se
seria uma prece, ou umas palavras finais dirigidas a alguém amado.
Cato recuperou a espada e olhou em redor, para se certificar de que não estava em perigo imediato. Ali perto, Traxis erguia-se sobre um inimigo abatido, enquanto
o outro soldado cambaleava, tentando proteger uma ferida na perna. O sangue escorria-lhe pelo membro e salpicava o solo branco à sua volta. Os três guerreiros que
tinham vindo em auxílio do homem que Cato derrubara recuavam também, pesarosos perante a ferida mortal sofrida pelo seu líder. A sua reação de desalento foi rapidamente
partilhada por muitos dos outros defensores, que pareceram dispostos a recuar, num momento de dúvida.
Uma sonora aclamação ergueu-se das gargantas dos auxiliares ainda na rampa, ao perceberem que Cato tinha recuperado o estandarte, e depressa todos os seus camaradas
se lhe juntaram. Cato percebeu de imediato que tinham chegado a um momento decisivo, e levantou ao alto o símbolo da unidade, enquanto gritava aos seus homens:
- Corvos Sangrentos! Corvos Sangrentos! Em frente, até à vitória!
Os auxiliares responderam, lançando-se com fervor sobre o abalado
inimigo. Ao mesmo tempo, mais e mais dos seus camaradas passavam pelas brechas na paliçada e juntavam o seu peso ao combate. Porém, os companheiros do moribundo
nobre celta depressa recuperaram o sangue-frio, e recuaram, para tentar reagrupar os seus homens, que tinham deixado já metade da fortificação nas mãos dos romanos.
Ainda tinham vantagem nos números, e ainda seria possível manter o controlo da posição, apesar da quebra de confiança dos nativos. Cato percebeu que precisava de
manter a pressão sobre eles.
- Traxis, aqui!
O trácio acorreu rapidamente ao chamamento.
- Senhor?
- Passa-me o teu escudo, e segura no estandarte. Depressa, homem!
O auxiliar fez o que lhe era ordenado, e pouco depois colocava-se ao
lado do prefeito, de olhar determinado e satisfeito, enquanto contemplava o estandarte que lhe tinha sido confiado. Cato segurou firmemente no
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escudo e preparou-se para avançar sobre o inimigo, que reorganizava as fileiras no outro lado do bastião. Sentia a garganta quente e seca, apesar do frio, e teve
que a limpar antes de voltar a gritar:
- Corvos Sangrentos! Todos junto ao estandarte!
Os auxiliares que estavam envolvidos em duelos com o inimigo apressaram-se a responder ao apelo, e começaram a formar em redor de Cato, enquanto outros penetravam
pelas brechas e se dirigiam logo para junto deles. Assim que teve cerca de vinte homens agrupados consigo, Cato virou-se contra os nativos e avançou a passo firme.
- Sigam-me.
Os Corvos Sangrentos avançaram, de escudos à frente e braços dobrados, com as espadas prontas a golpear. Na rampa prosseguiam algumas escaramuças com os defensores,
mas Cato sabia que a luta pelo bastião seria ganha ou perdida ali mesmo, no centro da fortificação. A não mais de quinze passos de distância, o inimigo preparava-se
para os receber numa densa massa de guerreiros de cabelos desgrenhados, muitos com tatuagens onduladas nos rostos sombrios, de feições distorcidas pelo desafio e
pelo ódio. Mas havia ali também medo, notou Cato, e depressa encontrou um eco desse sentimento no seu próprio coração, como sucedia de cada vez que se preparava
para entrar em combate. Era aquele desejo instintivo de se virar e fugir para muito longe dali, para a segurança, que há muito se tinha forçado a dominar.
Um dos nobres inimigos ergueu a sua espada e soltou um rugido, antes de deixar cair a lâmina pelo ar, apontando-a diretamente a Cato, e lançando-se em corrida. Os
seus camaradas demoraram um momento a imitá-lo, seguindo-o a uns dois passos. Cato não reagiu ao desafio, preferindo prosseguir no mesmo passo cadenciado, de forma
a que todos os seus homens entrassem na refrega em simultâneo. Quase sorriu perante a natureza impulsiva daqueles guerreiros, e como tantas vezes ela servia o interesse
dos romanos, tal como tencionava demonstrar de novo num curto espaço de tempo.
O homem que liderava a carga inimiga avançou com o escudo à frente e fez rodar a espada num arco elevado para a fazer descer sobre o capacete de Cato, com a intenção
de lhe rachar o crânio. O romano apoiou um joelho em terra, e cobriu-se com o escudo, para aparar o golpe. Depressa sentiu o poder tremendo do golpe da espada e
depois do escudo do nativo, que o fizeram estremecer. Assim que o contacto passou,
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fez avançar a própria espada para fora e em torno do adversário, antes de a reorientar para cima e conseguir sentir o aço a morder profundamente na coxa do inimigo.
Revirou a lâmina e recolheu-a enquanto o outro se detinha com um berro, ferido e furioso. Cato levantou-se e usou o escudo para pressionar o adversário enquanto
voltava a estocar, desta vez ao ombro, rasgando os músculos e abrindo uma ferida de grandes dimensões que começou imediatamente a sangrar em abundância. Outro empurrão
fez com que o homem escorregasse na neve e acabasse por cair sobre os nativos que o seguiam, antes de descair para o solo. Os mais próximos refrearam o avanço e
detiveram os passos.
- Corvos Sangrentos! À carga! - Cato vociferou a ordem, e os seus homens soltaram um grito selvagem em uníssono e avançaram, colocando o peso por trás dos escudos,
lançando-se contra as fileiras desordenadas dos guerreiros nativos. Os auxiliares trácios tinham uma reputação de grande ferocidade em ação, e depressa justificaram
e ampliaram a sua fama sangrenta, à medida que iam abrindo caminho por entre a densa massa de nativos com que se defrontavam. O avanço era imparável, e eles agiam
quase automaticamente, as espadas a desferir golpes rápidos e selváticos que espalhavam gotas de sangue e salpicos que tingiam a neve compacta debaixo dos pés. O
agressivo contra-ataque que sofriam, bem como a perda de um segundo líder, depressa fizeram sentir o seu peso entre os nativos, e qualquer esperança que estes ainda
albergassem de manter o bastião na sua posse deu lugar a uma luta desesperada para salvar a vida, enquanto recuavam tentando evitar as espadas dos Corvos Sangrentos.
Os muitos anos de treino faziam-se sentir, e Cato baseava a progressão da unidade nos golpes de escudo, seguidos de breves estocadas, pausas para recuperação e novo
ciclo de avanço. Via por cima das cabeças dos guerreiros nativos imediatamente à sua frente que alguns dos mais atrasados tinham já virado costas àquele combate,
e trepavam a paliçada para se irem acoitar no espaço por trás da principal linha de fortificações, onde a Décima Quarta continuava a tentar penetrar.
- Continuem! - berrou Traxis, mesmo ao lado de Cato. - Vamos, rapazes, destrocem-nos!
Embora ainda fossem mais numerosos do que os poucos Corvos Sangrentos que tinham conseguido entrar para dentro das defesas, a maior parte dos inimigos eram combatentes
pouco experimentados
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- agricultores e caçadores, sem qualquer treino nas artes da guerra - que agora pagavam um preço elevado pela sua decisão de combater o invasor. Dúzias deles já
tinham sido feridos, e jaziam a esvair-se em sangue sobre o solo gelado. Alguns foram abatidos pelos auxiliares, muitos outros ignorados enquanto prosseguia o massacre,
e os Corvos Sangrentos deixavam um rasto de corpos inimigos na sua esteira.
Cato tinha acabado de deixar um adversário desacordado, depois de o atingir com a guarda da espada, quando olhou em redor e verificou que estavam próximos da base
da rampa. O declive que se abria à sua frente estava repleto de guerreiros que tentavam desesperadamente escapar à carnificina. Alguns tinham atirado fora as armas
e caíam de joelhos, suplicando piedade, mas a verdade é que no calor da batalha esta ficava esquecida. Cato avistou um velhote magro a implorar a um auxiliar que
lhe permitisse continuar a viver. A resposta foi rápida e brutal. O trácio rasgou o crânio do homem com o fio da espada, e o estalo do osso a ser partido foi claramente
audível a Cato, sendo acompanhado por uma fonte de sangue e cérebro. A terrível cena teve o condão de lhe devolver alguma razão à mente, e ele deteve-se.
- Corvos Sangrentos! Alto! Deixem-nos ir!
Um a um, os seus homens detiveram-se e ali ficaram, a arfar, escudos e espadas sanguinolentos, a observar com raiva a caótica retirada inimiga. Nem o mais destemido
dos guerreiros tinha ficado com alguma vontade de prosseguir aquele combate, e todos eles treparam a paliçada e saltaram para o outro lado, desaparecendo de vista.
Assim que o último se escondeu, Cato baixou o escudo de Traxis, já amolgado, e contemplou o interior do bastião, o peito a ofegar do esforço realizado, a respiração
a desenhar nuvens de vapor no ar frio da manhã. Numerosos corpos, muitos deles ainda com sinais de vida, estavam espalhados em redor, e verificou, para sua satisfação,
que muito poucos eram dos seus homens. Avistou o decurião Miro a passar por uma das apertadas brechas e chamou-o.
- Escolhe dez homens do teu esquadrão para tirar daqui os feridos e os levar à enfermaria. - Virou-se para o pequeno portão nas traseiras do bastião, com a tranca
ainda bem evidente no seu lugar. - Quero o resto dos homens formados ali adiante, imediatamente. Trata disso.
- Sim, senhor. - Miro fez uma breve continência e partiu em corrida, para cumprir as ordens. Cato ficou a vê-lo por momentos,
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perguntando-se por que carga de água é que o decurião tinha levado tanto tempo para entrar na fortificação, quando devia ter estado à cabeça dos seus homens quando
estes se tinham lançado ao assalto. Trepou então pela rampa e espreitou cuidadosamente sobre a paliçada, observando o que se passava ao longo das defesas inimigas
na fortificação principal.
Uma batalha feroz era travada ao longo de toda a linha. Era mais acesa na brecha que tinha sido feita a meio das defesas, e nessa zona uma densa massa de guerreiros
nativos estava a conseguir aguentar o ataque dos legionários. Mais perto do lugar onde estava, Cato avistou os nativos que tinham abandonado o bastião a correrem
para a beira da água, onde estava disposta uma série de embarcações de pequenas dimensões. Um punhado de outros homens tentava sem sucesso detê-los, e eles começaram
a arrastar os barcos mais próximos para as ondas. Um pouco mais longe, Cato reparou num pequeno grupo de cavaleiros com capas pesadas, junto a um homem que envergava
as vestes negras de um druida. Tinham visto os homens a escapar do bastião, e o druida já lançava ordens apressadas. Não havia tempo a perder se queriam aproveitar
a oportunidade que lhes era dada pela rápida tomada da fortificação que defendia o flanco da linha inimiga.
Cato virou-se para o interior do bastião e confirmou que grande parte da coorte já estava formada lá perto, enquanto outros ainda entravam pelas brechas. As primeiras
baixas, os feridos que ainda se podiam mover, tiveram que se afastar para o lado para deixar passar os camaradas que se juntavam aos homens a prepararem-se para
a continuação da ação. Cato desceu a rampa aos repelões, e apontou para o portão, enquanto gritava a Miro:
- Abre aquilo!
O decurião convocou uma secção de soldados para tratar da tranca, enquanto Cato se dirigia aos homens.
- Rapazes, até agora estivemos muito bem. Já fizemos o suficiente para garantir mais uma medalha para o nosso estandarte. - Apontou para os discos dourados presos
à haste que Traxis empunhava com orgulho. - Mas vamos assegurar-nos disso com uma carga daquelas de que só os Corvos Sangrentos são capazes. Do outro lado daquela
passagem estão milhares daqueles sacanas celtas à espera, mas neste momento estão um bocado ocupados a lidar com a Décima Quarta. Os rapazes do
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legado Valens estão a ter algumas dificuldades, e cabe-nos a nós ir lá safá-los de sarilhos.
- Merda de legionários! - soltou uma voz das fileiras. - Se querem um trabalho bem feito, é só chamar os Corvos Sangrentos!
Os homens soltaram um coro de apoio e reforço, antes que Cato conseguisse identificar o agitador, e acabou por optar por deixá-los gozar o momento, pelo que sorriu.
- É isso mesmo! Este é o nosso momento. Quando eu der a ordem, quero a coorte a passar por aquele portão em passo de corrida e a formar uma linha para varrer todo
o flanco inimigo. Quando avançarmos, será em velocidade, e com toda a força. O esquadrão do Miro vai correr a rampa, e os outros limpam o terreno por trás. Mantenham
a linha, e não se detenham em caso algum. Entendido?
Os homens, ainda excitados, assentiram com gritos de entusiasmo, e fizeram dançar as espadas no ar. O sangue estava quente, e Cato ficou certo de que podia confiar
naqueles homens para terminarem a tarefa que Quintato tinha atribuído à coorte. Virou-se para o portão e soergueu o escudo, antes de reparar que o sangue tinha escorrido
ao longo da lâmina da sua espada e sujara a pega, tornando-a escorregadia. Fez uma pausa para se debruçar e a limpar na túnica de um cadáver, e voltou a endireitar-se,
pronto a cumprir o seu dever.
- Corvos Sangrentos, em frente, em passo de corrida.
Lançou-se numa corrida ligeira, a bainha da espada e a da adaga a
tilintarem dos dois lados da cintura. O som das botas dos homens no terreno gelado fez-se ouvir nas suas costas, em coro com as respirações pesadas e todo o retinir
das peças do equipamento e dos escudos.
- Miro, a tua secção vai tomar a dianteira, e assim que estivermos do outro lado, vais subir a rampa o mais depressa possível.
- Sim, senhor.
Miro e os seus homens tomaram lugar à frente da coluna, e os auxiliares saíram do bastião e desembocaram na curva do fosso que quase chegava à beira do mar. Decidido
a não permitir que a repentina visão de milhares de guerreiros inimigos perturbasse os seus homens, Cato incitou-os em tons calmos. À sua direita avistou várias
embarcações a tentarem atravessar o canal, tripuladas pelos homens que tinham fugido do bastião. Iam sem dúvida alguma ter uma receção pouco entusiasta dos seus
camaradas que tinham visto a cena da ilha. Uma pena. Deviam
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ter defendido a posição com maior empenho. Agora, iam ser os guerreiros que ainda defendiam a praia que iam pagar pela sua falta de coragem.
Escolheu um ponto a uns cinquenta passos do bastião, perto da beira da água, para se deter e esticar um braço na direção da rampa da fortificação.
- Formar linha de batalha!
Os decuriões assumiram as suas posições, de maneira a que os seus esquadrões tomassem os lugares que lhes eram destinados na formação, enquanto Miro e os seus homens
prosseguiam pelo terreno gelado até chegarem ao ponto em que a extensa rampa de terra se unia ao bastião. Só um punhado de elementos inimigos se interpunha no seu
caminho, já que a maior parte se tinha dirigido à refrega que continuava encarniçada ao centro da linha. Miro levou os homens a subirem a rampa e depois formou-os
numa coluna bem firme, pronta a seguir pelo cimo da elevação de terra e a destroçar quem se lhe opusesse, assim que Cato desse a ordem.
Enquanto os últimos homens se juntavam à formação, Cato voltou-se para avaliar o terreno que se lhes deparava. A faixa de terra entre a rampa e a água era estreita,
não tendo mais de uns quarenta passos de largura na zona mais aberta. A coorte, ainda com cerca de trezentos homens, seria capaz de fazer valer o seu peso no início
do ataque, mas não lhe restavam ilusões sobre a distância que seriam capazes de percorrer enquanto empurravam e destroçavam o flanco inimigo, antes de perderem o
ímpeto ou enfrentarem uma resistência capaz de os fazer parar. O melhor que podiam almejar era perturbar os guerreiros nativos o suficiente para fazer algum tipo
de alarme espalhar-se entre as suas fileiras, pelo menos até à área da brecha, onde decorria o mais aceso combate, com os legionários de Valens. Se a Décima Quarta
conseguisse penetrar na fortificação com soldados suficientes, a luta estaria praticamente decidida, pelo menos daquele lado do canal.
Olhou em frente e ergueu a espada.
- Corvos Sangrentos, avançar!
Começaram a caminhar sobre a neve e os seixos remexidos, uma linha de escudos ovais, espadas reluzentes e rostos determinados, o estandarte a ondular calmamente
sobre eles. Traxis mantinha-o bem ao alto, onde podia facilmente ser visto e identificado pelo inimigo, para que este soubesse quem se lançava sobre ele. O grupo
de cavaleiros que Cato
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tinha visto anteriormente havia-se dispersado, e alguns deles percorriam a linha nativa, a avisar do ataque iminente pelo flanco. O druida e alguns outros tinham
ficado no mesmo lugar, a tentar reagrupar e incitar os homens que tinham fugido do bastião, bem como a dar ordens para que os que guarneciam a paliçada se preparassem
para enfrentar a nova ameaça. Mas Miro e o seu esquadrão já avançavam decididos pela crista da rampa, derrubando ou obrigando a recuar todos os que lhes surgiam
ao caminho, sem perderem ímpeto, e mantendo-se a par do resto dos Corvos Sangrentos que progrediam na zona mais próxima do mar.
Aproximaram-se do primeiro dos barcos ainda encalhados na praia, e Cato reparou numa poça de sangue no solo junto ao casco, e em mais sangue que manchava a proa
da embarcação. Ao passar por ela, avistou um jovem, que não devia ter mais de uns quinze anos, encolhido dentro do barco, o braço quase decepado à altura do ombro.
Os seus olhos cruzaram-se num instante, e Cato prosseguiu a marcha. Cem passos adiante, o druida e os seus companheiros tinham conseguido por fim arrebanhar uns
duzentos ou trezentos dos seus seguidores e tentavam organizá-los à pressa, de forma a apresentarem uma ordem de batalha.
- Continuem! - incitou Cato. Olhou para a esquerda rapidamente, e viu que havia também um grande magote de nativos a preparar-se para enfrentar o grupo de Miro,
e que eram suficientes para impedir a continuação da progressão dos Corvos ao longo da rampa. A sua intenção original, de manter a coorte toda junta, não ia ser
possível. Tudo o que lhe restava era insistir no assalto, e levá-lo tão longe quanto possível.
Já tinham percorrido metade da distância que os separava da linha nativa quando Traxis soltou um alerta:
- Projéteis!
Cato avistou o ondular da mancha negra de setas que se elevava das fileiras inimigas, e ergueu de imediato o escudo, colocando-o no ângulo necessário para proteger
a cabeça, enquanto soltava uma ordem:
- Levantar escudos!
Os Corvos Sangrentos imitaram-no ao longo de toda a linha, no momento em que a primeira rajada descia em voo picado do céu cinzento. As pontas metálicas embateram
com estrondo nos escudos. Algumas, com trajetórias mais apuradas, cravavam-se na madeira, rachando-a. Outros embates provocavam maior estrépito, e Cato percebeu
que também estavam a ser alvejados por metralha de fundas, que muitas vezes
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constituía uma ameaça bem mais séria do que as setas, dada a força do impacto. Quase de imediato ouviu um grito ali próximo, e virou-se a tempo de ver um dos seus
homens a sucumbir, com a cabeça rachada por um chumbo. O soldado tentou cobrir o corpo com o escudo, enquanto os camaradas prosseguiam e o deixavam para trás.
Cato teve que se esforçar para ignorar acontecimentos do género e manter um passo firme, sem reduzir o andamento em face da barragem de projéteis, nem o acelerar
para tentar cobrir a distância mais depressa e entrar em contacto com o inimigo, o que poria em risco a coesão da sua frente de combate. Por isso sofreram mais algumas
baixas enquanto se aproximavam dos nativos. No último momento, Cato arriscou uma espreitadela por cima da orla do escudo para apreciar as expressões ferozes da maior
parte dos homens que o aguardavam, e viu por trás deles o druida, a soltar gritos de encorajamento aos seus seguidores, alternados sem dúvida com imprecações contra
os romanos. Então as duas linhas encontraram-se, e ouviu-se um prolongado e irregular entrechocar de escudos e corpos, acompanhado pelo raspar e retinir de lâminas
bem afiadas.
Por momentos os dois lados mantiveram-se praticamente colados, mas depressa o superior equipamento dos auxiliares fez pender a balança para o seu lado, e eles começaram
a abater os seus inimigos com armaduras ligeiras, muitos deles sem outra proteção que não fossem escudos de vime e vestes acolchoadas. Cato respirou fundo, e soltou
um brado:
- Empurrar em cadência! Um!
Ao iniciar a contagem, empurrou o escudo para a frente e avançou para colocar o seu peso por trás dele, antes de desferir uma estocada com a espada. Os outros Corvos
Sangrentos imitaram-no de pronto, forçando o inimigo a recuar, e, com Cato a marcar a cadência e os decuriões a fazerem eco das suas ordens, a coorte ganhou terreno,
passando sobre os inimigos já abatidos, que eram liquidados sumariamente para evitar que tentassem continuar a lutar, mesmo no solo.
Ouviu chapinhar, e avistou três homens que avançavam pela água para tentarem rodear o flanco da linha romana. Lançou de imediato uma ordem sobre o ombro, aos homens
da segunda linha que o seguiam mais de perto.
- Vocês os dois. Cubram o flanco!
O par de soldados correu rapidamente para a água, avançando até terem água gelada pelos joelhos para contrariarem a intenção dos
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elementos inimigos, e Cato concentrou-se em dirigir a progressão. No movimento seguinte sentiu o escudo a ser agitado, e depressa descortinou os dedos que agarravam
a orla e o tentavam desviar para o lado. Quando o escudo começou a girar e a expor parte do corpo de Cato, viu a ponta de uma lança a tentar acertar-lhe a meio do
corpo. Só um gesto frenético do braço com a espada, no último instante, lhe permitiu desviar o golpe. Tentou recuperar o controlo do escudo, mas não conseguiu impor-se
ao vigor com que o opositor continuava a prendê-lo. Avançou e mordeu os dedos que tinha à vista, mesmo por baixo dos nós, fincando-lhes os dentes com toda a força.
Sentiu a pele a ceder e o sangue a correr-lhe pelos lábios e pela língua. O adversário soltou um grito agudo e largou de imediato o escudo, permitindo a Cato cobrir
de novo todo o corpo e voltar a empurrar, fazendo o escudo embater violentamente no corpo e na cara do nativo que tinha acabado de morder. Uma estocada rápida e
decidida deixou o homem fora de combate, preocupado apenas em agarrar com as mãos o rasgão que a ponta do gládio lhe tinha feito na barriga, sem conseguir evitar
que o sangue e os intestinos começassem a sair.
Cato já via homens a abandonarem a retaguarda da linha inimiga, a fugirem com expressões de medo no rosto, alguns virando as costas e tentando apenas alcançar os
barcos mais próximos. O druida e os outros homens montados tentaram bloquear-lhes a passagem e levá-los de novo ao combate, soltando gritos vociferados e distribuindo
pancadas com a folha da espada. Mas a maior parte dos nativos conseguia evitá-los e fugir para salvar as vidas. Depressa o pânico se espalhou entre as fileiras celtas,
e de repente toda a linha nativa começou a ceder, tentando apenas evitar os Corvos Sangrentos, até que o último dos guerreiros se afastou, recuou e se virou para
escapar para longe.
Os auxiliares, exaustos e cobertos de sangue, detiveram-se e soltaram um grito de vitória meio abafado, a que juntaram uns bons insultos proferidos às costas do
inimigo em fuga. O druida e os outros cavaleiros abandonaram as suas fúteis tentativas de deter a maré dos seus correligionários, e olharam com raiva para os Corvos
Sangrentos. Cato viu o druida manejar as rédeas e levantar a espada ao céu, enquanto virava a montada na direção do estandarte. Antes que ele se lançasse numa carga,
um dos seus companheiros fez avançar o cavalo para a sua frente, bloqueando-lhe a passagem, e pedindo com gestos frenéticos que desistisse de tão inútil intenção.
Por fim, depois de lançar mais um venenoso olhar
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ao inimigo, o druida rangeu os dentes, fez o cavalo rodopiar e afastou-se rapidamente da linha romana, dirigindo-se para junto da maior concentração de guerreiros
nativos ao longo da margem.
Os homens em fuga passavam por grupos de camaradas que ainda se mantinham formados e prontos para o combate, mas estes pressentiam o evidente pânico dos primeiros,
e começavam de imediato a vacilar e a seguir-lhes o exemplo, fazendo com que o colapso do flanco esquerdo da linha nativa de defesa prosseguisse sem travão.
- Em frente! - Cato agitou a espada para designar o inimigo. - Vamos continuar a varrê-los!
Exaustos como estavam, os seus homens tinham nas bocas o sabor da vitória, e mostravam-se ansiosos por saciar o apetite de glória. Não precisaram de mais nenhum
encorajamento, e a linha romana retomou o avanço. Na parte alta da rampa, o exemplo dos seus camaradas tinha destruído o espírito combatente dos homens que enfrentavam
Miro, e também eles acabaram por recuar em desalinho. Alguns tentavam escapar para a segurança da outra extremidade das defesas, os que mantinham maior presença
de espírito dirigiam-se para os barcos, arrastando-os para a água e saltando para bordo, enquanto outros viam a cena e resolviam imitá-los, numa tentativa desesperada
de garantir a sua própria preservação. Um inimigo em debandada era uma perspetiva deliciosa para Cato, mas que pouco durou. Rapidamente a sensação de um triunfo
formidável deu lugar a um sentimento de desgosto perante o egoísmo patente em homens capazes de pisar os seus próprios camaradas para salvar a pele.
O pânico que se espalhava pela linha inimiga tinha acabado por contagiar os que combatiam ferozmente para manter a Décima Quarta Legião do lado de fora da brecha
mais larga, e também eles começaram a ceder, até que toda a beira da água se transformou numa área viva, a pulular de nativos que corriam para escapar à armadilha
que se fechava sobre eles. Um pouco adiante, a margem ficava ainda mais próxima da rampa, e Cato deteve os Corvos Sangrentos no ponto mais estreito e alterou-lhes
a disposição, de forma a colocar os homens que lhe restavam em três filas, numa formação cerrada. Com os escudos sobrepostos, a linha da frente apresentava ao inimigo
um obstáculo intransponível, e tudo o que ficava a faltar era que o legado Valens e os seus homens selassem a vitória. Os guerreiros que ainda combatiam junto à
brecha estavam já a sofrer a inexorável pressão dos números que enfrentavam, e a
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verem-se forçados a recuar, e depressa Cato avistou o brilho baço de um estandarte representando uma águia, e viu os capacetes dos legionários começarem a preencher
o espaço e a penetrar pela brecha, invadindo as defesas nativas.
Miro aproximou-se de Cato a passo largo, com uma expressão de júbilo quase incrédula no rosto.
- Conseguimos, senhor! Pelos deuses, conseguimos!
- Não fomos só nós. - Cato apontou com a espada para os legionários que irrompiam pela brecha e para outros que passavam sobre a paliçada, enquanto o inimigo recuava
em toda a linha. A resistência parecia ter entrado em colapso, e a parte mais rasa do canal estava repleta de homens que chapinhavam na água gelada para tentar arranjar
lugar num dos barcos e conseguir assim escapar para Mona. Centenas de outros saltavam sobre a paliçada na outra extremidade das defesas, e fugiam ao longo da costa,
antes de se dirigirem para o interior, à procura de refúgio entre os pinhais cobertos de neve.
- Uma grande vitória, senhor. - Miro continuava a gozar o momento, como se tivesse acabado com a guerra. - Esmagámos estes cabrões. Esmagámo-los completamente.
- Sim, é verdade - concordou o prefeito, adotando um tom mais ponderado. - Um trabalho bem feito, sem qualquer dúvida. Excelente mesmo. Mas não deixou de ser só
metade do trabalho.
Virou-se para observar as ainda mais formidáveis defesas ao longo da costa de Mona, e a massa silenciosa de guerreiros e druidas que tinham estado a observar o combate
do outro lado do canal. Tornava-se evidente que eles não fugiriam, como os seus camaradas tinham feito. Não teriam sequer para onde fugir. A sua escolha era simples.
Tinham que manter Mona nas suas mãos, ou morrer a tentá-lo. Sentiu um leve toque de algo frio nas costas da mão, e olhou para baixo, onde descortinou um floco de
neve a derreter em contacto com a sua pele. Outros flocos foram contra a sua cara quando olhou para o céu, agora de um tom cinzento bem carregado. Daí a momentos
começou a cair um nevão, que cobriu rapidamente a margem e os corpos espalhados ao longo da beira da água. Cato limpou a garganta e cuspiu.
- Esta foi a parte fácil. Tomar Mona vai ser muito mais complicado. Lembra-te destas palavras...
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O pesado nevão da véspera tinha tornado o progresso difícil para
Macro e o pequeno comboio que o centurião conduzia pelas montanhas, para tentar alcançar o legado Quintato e o seu exército. Depois de o seu grupo se ter juntado
aos sobreviventes da emboscada inimiga, Macro tinha procurado fazê-los seguir à máxima velocidade possível. Os vagões e a carruagem do tribuno Glaber mantinham-se
bem juntos, enquanto a escolta de infantaria auxiliar marchava no flanco, protegendo a coluna de qualquer ataque repentino. Macro tinha dividido o seu grupo montado,
encarregando Pandaro de bater o terreno à frente da coluna com outros três homens, enquanto Lomo conduzia a retaguarda, seguindo a umas centenas de metros para se
assegurar de que não havia nenhuma força inimiga a dar-lhes caça. O cavalo de Macro ia atrelado à traseira da carruagem, e o centurião seguia sentado no banco ao
lado de Glaber, que conduzia ele mesmo, depois de ter perdido o seu condutor na escaramuça com os nativos. As bagagens pessoais do tribuno tinham sido empilhadas
por trás do banco, abrindo espaço suficiente para levar três feridos, que se viam forçados a aguentar o constante oscilar do leve veículo, para lá das dores causadas
pelas feridas recebidas. Ao longe avistavam-se por vezes vultos misteriosos, mas era totalmente impossível determinar se eram elementos inimigos ou somente os habitantes
daquelas áreas montanhosas, decididos a deixar passar os romanos bem longe. Não era que fizesse grande diferença, refletiu Macro. Naquelas terras, toda a gente parecia
ser inimiga de Roma.
A neve tinha começado a tombar menos de uma hora depois de terem deixado para trás o local da emboscada, a princípio uns flocos hesitantes, depois um nevão contínuo,
em flocos suaves e grandes, que depressa se começaram a acumular na paisagem, cobrindo-a com um manto de branco invernal. Pouco depois, o caminho já estava soterrado
na neve, e tiveram
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que seguir o que lhes ditava o instinto nas áreas onde não era possível distinguir a pista por entre os vales. Ao cair da noite a neve deixou de tombar, e Macro
deu ordem de alto quando encontraram uma quinta abandonada. Nada de valor tinha sido deixado para trás pelos nativos em fuga, ou então tinha sido pilhado pelos soldados
romanos de passagem. Mas pelo menos a estrutura ficara de pé, e ofereceu ao pequeno grupo um abrigo para a noite. Foram colocadas sentinelas e acesa uma fogueira
na lareira da maior das cabanas, e os homens dispuseram-se em volta dela para se aquecerem e cozinharem as suas rações.
O tribuno Glaber tinha cedido o comando a Macro sem qualquer problema, e não escondia o facto de a sua nomeação ter um caráter puramente político. Só lhe importava
servir o mínimo de tempo possível no exército antes de regressar a Roma e retomar a sua carreira, assim que o novo governador lhe desse permissão para deixar a Britânia.
Sentados em redor do calor do fogo, Macro tinha tentado extrair-lhe mais alguns detalhes acerca de Júlia, mas tudo o que Glaber lhe tinha podido dizer era que a
doença surgira de repente e que ela vivera apenas mais alguns dias antes de falecer na casa do pai em Roma, na mesma cama em que tinha nascido. Pelo menos o filho,
Lúcio, tinha sobrevivido, considerou Macro. Segundo Glaber, o miúdo crescia perfeitamente, ao cuidado de uma ama de leite, comprada antes de Júlia ter adoecido.
Macro só podia esperar que pelo menos isso pudesse oferecer algum conforto ao seu mais próximo amigo, assim que Cato soubesse daquelas tristes novas.
Não foram incomodados durante a noite, e prosseguiram o caminho assim que a luz do dia surgiu, fazendo apenas curtas pausas para limpar do carreiro a neve que se
tinha acumulado. Enquanto os homens se afadigavam a afastar neve às pazadas, Macro sentiu um crescente sentimento de desconforto perante a mudança do tempo. O legado
Quintato tinha assumido um tremendo risco ao lançar a campanha numa fase tão tardia do ano. Tinha apostado num golpe rápido e decisivo, que derrotasse o inimigo
e lhe permitisse regressar a Mediolanum antes da chegada do inverno. A neve aparecera mais cedo do que o esperado, e, se o tempo não se alterasse, ia provocar severos
danos na capacidade de o exército manobrar por entre as montanhas dos deceanglos. Olhou em redor, contemplando os picos envoltos em nuvens, e apertou a capa sobre
o corpo, enquanto dirigia a palavra a Glaber.
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- E o novo governador, o Galo. Alguma ideia acerca dos planos que ele tem para a província?
Glaber não respondeu de imediato, preferindo juntar as mãos e aproximá-las da boca, para soprar ar quente sobre elas.
- Isso é lá com ele, centurião. Contudo, posso dizer que havia alguns rumores a circular por Roma antes de eu partir, e o que transparecia era que o palácio começava
a ficar ansioso com a situação por cá. Praticamente dez anos passados, e a Britânia continua a chupar dinheiro da bolsa imperial. Têm-se sucedido perdas consideráveis
de homens, e continuam a não se ver perspetivas de a província começar a dar lucro. Francamente falando, isto está a fazer a decisão original de invadir a ilha parecer
um tremendo disparate. Porém, o Imperador construiu uma reputação em torno da conquista da ilha, e tem demasiado investido neste objetivo para poder desistir a esta
hora.
Macro assentiu.
- Sim, senhor, perdemos muitos bons homens para chegar até aqui. Seria uma pena que tudo tivesse sido para nada. O Quintato julgou que conseguia resolver isto com
mais um esforço. Um assalto final que pudesse obliterar o culto dos druidas para sempre. E quanto a isso, talvez tivesse razão.
- Talvez. O Quintato pode não ser o meu patrono, mas não consigo deixar de desejar que ele já tenha conseguido executar o que planeou. Com os druidas removidos do
cenário, talvez o ânimo das tribos destas montanhas finalmente se quebre, e a tua missão para o avisar se tenha tornado inútil. - O tribuno bateu com as botas nas
tábuas do fundo da carruagem e voltou a pegar nas rédeas. - Seja como for, quando o Cláudio já não existir, as coisas serão muito diferentes.
Macro deitou-lhe um olhar de soslaio.
- Como é isso?
- Tudo depende de quem vier a tornar-se o novo Imperador. Se for o Britânico, atrevo-me a pensar que a política atual se vai manter. Vamos continuar a atirar homens
e dinheiro sobre esta ilha até conseguirmos exterminar todas as tribos que nos resistem e comprarmos as outras. Ou isso, ou o Britânico terá que tratar de arranjar
um nome completamente diferente.
Trocaram um breve sorriso, antes de Glaber prosseguir.
- Por outro lado, se acabarmos com o Nero como Imperador, e é
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nisso que apostam os que sabem mais da coisa, ele não terá nada a perder se resolver retirar da Britânia. Para começar, teria toda a liberdade de dizer que nunca
tinha aceitado a necessidade de invadir a ilha, e que tudo não tinha passado de um custoso exercício de autopromoção do seu antecessor. Um argumento que até nem
é difícil de aceitar. Ou seja, o Nero pode dar ordem de retirada sem perder a face. E é por isso que penso que o Galo andaria bem se deixasse passar algum tempo,
em vez de tentar terminar a conquista de toda a ilha. Se fosse a ele, esperaria até ver quem ascendia ao manto púrpura, antes de resolver arriscar mais homens.
Macro pensou em tudo o que ouvira por momentos, até que soltou o ar dos pulmões, impaciente.
- Se os nativos descobrissem que o novo governador planeava não se mexer, podiam tornar as coisas muito difíceis para o nosso lado.
- De facto! - Glaber riu-se. - Vai ser uma situação complicada, pelo menos até que o Cláudio bata as botas. Calculo que vai ser sempre assim, quando tivermos uma
sucessão tão indecisa. Tudo é muito mais fácil quando os imperadores fazem um favor ao resto do Império e desaparecem da cena depressa e inesperadamente, em vez
de ficarem à espera que as causas naturais façam o seu trabalho. Embora nos dias que correm, uma faca assassina nas costas seja uma causa perfeitamente natural para
a morte de um pretendente ao trono imperial.
Macro não se sentia divertido. Ja há muito decidira que detestava e desprezava as intermináveis conspirações que pairavam em torno da casa imperial. Além disso,
estava a ficar farto da forma como os soldados nas fronteiras do Império, como ele e Cato, eram vistos como simples peças de jogo, que podiam ser movidas por todos
os que lutavam pelo poder em Roma. Um injustificável desperdício de vidas talvez ainda pudesse salvar a pretensão do Britânico; por outro lado, uma retirada lamentável
da Britânia poderia beneficiar o seu rival, Nero. Fosse como fosse, muitos soldados acabariam mortos.
O caminho já estava desimpedido. Os homens voltaram a guardar as pás na traseira de um dos vagões e o pequeno comboio voltou a colocar-se em movimento sobre o terreno
gelado. Uma hora depois, subiam um declive suave quando os apurados olhos do jovem tribuno avistaram um traço de neblina à distância. Alertou Macro, e pouco depois
o veterano também a conseguia distinguir.
- Dá-me ideia de ser fumo de fogueiras, senhor.
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- Esperemos então que sejam dos nossos rapazes, hein?
Alcançaram o cimo da encosta, e o terreno voltou a ficar plano. Ao
rodearem um conjunto de blocos rochosos, depararam-se com um fortim coberto de neve, a umas centenas de metros. Tinha sido ali construído para guardar a passagem
no colo entre as montanhas e, graças à sua posição no terreno, apanhava com o pior que o tempo conseguia atirar-lhe. Macro sentiu um breve momento de pena pela pequena
guarnição, antes de o seu olhar se espraiar para o vale que se abria do outro lado, permitindo distinguir o terreno até à costa e a vasta extensão cinzenta do oceano.
À esquerda, por trás de uma linha de colinas, o fumo do grande acampamento do exército era bem mais evidente, uma mancha escura por baixo das nuvens que cobriam
o céu.
- Já falta pouco - comentou Glaber. - Sentir-me-ei bem feliz por ter um abrigo decente, já para não falar na segurança do efetivo do exército.
Macro olhou em redor, apreciando a paisagem branca, mas não avistou qualquer sinal de movimentos ou da presença do inimigo.
- Provavelmente poderemos deixar aqui os vagões e a escolta e seguir em segurança.
Detiveram-se no exterior do posto, e os dois oficiais desceram da carruagem, enquanto Macro chamava os cavaleiros que seguiam à frente e atrás da coluna. O comandante
do fortim, um optio encorpado de uma coorte de auxiliares dácios, saiu da fortificação para os saudar, e os três trocaram continências.
- Que notícias há da campanha? - indagou Macro, enquanto acenava na direção do fumo que subia do acampamento longínquo. - Calculo que aquilo seja o Quintato e o
seu exército.
- Sim, senhor. O legado tem estado a tentar chegar à ilha dos druidas. A coisa até começou bem, limparam a margem deste lado sem problemas. Mas desde aí a campanha
complicou-se, de acordo com os relatórios. - O optio fez um gesto para designar os vagões. - Abastecimentos? Víveres?
- Isso mesmo.
- Mesmo a tempo, senhor. É o primeiro comboio de abastecimentos que vejo desde há muitos dias. Os meus homens estão a ficar esfomeados. Estamos a chegar às últimas
sacas de cevada e biscoitos duros. Alguma hipótese de podermos ficar com alguma coisa?
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- Isso não é comigo, homem. Esse departamento é controlado pelo responsável pelos abastecimentos do exército. O melhor é fazeres-lhe um pedido oficial.
- Já o fiz. Há dois dias, e nem recebi resposta.
Macro reparou na expressão preocupada no rosto do homem.
- Falarei disso assim que chegar ao quartel-general. É tudo o que posso fazer.
- Obrigado, senhor.
O som abafado dos cascos dos cavalos interrompeu a conversa, quando Lomo e os seus homens se juntaram ao comboio. Macro escolheu um cavalo para si mesmo e outro
para o tribuno, e deixou ordens aos homens que ficavam com o comboio para que prosseguissem até ao acampamento do exército. Depois conduziu o seu grupo para o vale,
a caminho da costa ainda distante. Quando se aproximaram da margem do mar, notaram os traços de um campo abandonado, junto a um dos promontórios que rodeavam uma
baía protegida. Num dos cantos desse campo tinha ficado outro fortim, e trocaram saudações com uma sentinela antes de prosseguirem ao longo da costa. Ao passarem
por uma última crista, o panorama das operações em curso para tomar Mona estendeu-se à sua frente.
Aos seus pés ficava o campo militar romano, suficientemente grande para acomodar as duas legiões, as coortes auxiliares que lhes estavam anexas, e os animais de
tiro, bem como os veículos do comboio de bagagens. Dezenas de fogueiras ardiam ferozmente, e os homens que estavam no campo apinhavam-se em redor delas, tentando
aquecer-se. Cavalos e mulas aguardavam nos seus recintos delimitados por cordas, afastando a neve com os focinhos à medida que procuravam pelos mirrados tufos de
erva que ela escondia. A umas centenas de metros mais adiante dispunham-se as linhas de batalha romanas: baterias de artilharia instaladas em aterros feitos pelos
engenheiros, cobrindo o canal por onde o exército tinha que seguir, e mantendo um bombardeamento constante das posições inimigas do outro lado da água. Eram auxiliadas
nos seus esforços por três embarcações de guerra ancoradas no canal, cujas balistas também visavam as fortificações que acompanhavam a margem da ilha de Mona. A
maré estava baixa, e avistava-se uma estreita faixa de lama que serpenteava entre a ilha e a margem ocupada pelos romanos. Não parecia ter mais de uns três metros
de largura, e fora densamente
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semeada de estacas bem afiadas que a tornavam inutilizável, embora fosse evidente que os romanos já tinham feito algumas tentativas para limpar o caminho.
E isso tivera custos. Macro viu dezenas de cadáveres, alguns empalados nas próprias estacas. Em torno dos corpos havia peças de equipamento abandonado - capacetes,
escudos, espadas, dardos -, muito do qual já tinha começado a ser engolido pela lama. Na orla do canal avistavam-se duas coortes de legionários, cada centúria formada
em filas de quatro homens. Outros legionários formavam mais atrás, prontos a reforçar os seus camaradas.
Enquanto Macro observava, soou um sinal lá em baixo, depressa repetido por muitas trombetas. A centúria mais próxima da passagem lamacenta começou a avançar para
a água. Ao mesmo tempo, as baterias de artilharia começaram a visar as fortificações na margem oposta. Os defensores que as ocupavam mantinham-se escondidos, mas
mais longe daquela área os guerreiros nativos que guarneciam as defesas observavam o novo ataque romano, imperturbáveis.
- Pelos deuses, que gente tão audaciosa - comentou Glaber.
Macro calculou que já se deviam ter acostumado aos assaltos romanos, e sabiam que estavam a salvo enquanto os projéteis se concentrassem nas defesas que ficavam
precisamente à frente do vau que se abria na maré baixa.
À medida que os legionários entravam na faixa lamacenta, o passo abrandava rapidamente, e as fileiras seguintes começavam a aglomerar-se, quase sem sair do mesmo
sítio. O centurião e o seu optio afadigavam-se a tentar manter os homens em formação, e a centúria lá ia avançando lentamente pela estreita faixa de lama. Macro
imaginava perfeitamente o esforço que era necessário para que um legionário pesadamente equipado conseguisse progredir naquele lodaçal. Encontravam as primeiras
estacas que ainda restavam junto à margem, e os homens formavam pares para se esforçarem para as retirar, usando as espadas para escavar a base até as conseguirem
desenterrar e atirar para o lado.
- Tenho que encontrar o legado. - Macro voltou a pegar nas rédeas.
- Também eu - indicou Glaber. - Se não me engano, deve estar para ali. Por trás da bateria mais à direita. Estás a ver?
Macro esforçou a vista, e pouco depois descortinou o grupo de cavaleiros com capas escarlates. Assentiu.
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- Vamos lá então, senhor.
Desceram o declive, passando por grupos de recolha de alimentos e os esquadrões de cavalaria que os protegiam, e seguiram ao longo do grande fosso do enorme acampamento.
Ainda conseguiam entrever o esforço dos legionários que continuavam a tentar avançar pela lama. Quando os homens se aproximaram das zonas ainda repletas de estacas
por arrancar, uma trombeta romana deu sinal à artilharia para interromper o bombardeamento. O último projétil descreveu um arco sobre o canal e foi mergulhar sem
perigo na rampa de turfa encimada por toros. Depois de uma curtíssima pausa soou um corno de guerra celta, e o inimigo ergueu-se de novo por trás das suas defesas
já danificadas, fazendo de imediato descer sobre os legionários a sua própria chuva de projéteis. Flechas, metralha, lanças, tudo se abateu sobre as superfícies
curvas dos pesados escudos dos legionários. Por vezes um projétil ultrapassava a muralha de escudos e derrubava um dos homens, que se via forçado a deixar a formação
e tentar a custo regressar à margem amiga. Alguns ficavam demasiado feridos para conseguir fazê-lo sozinhos, e mantinham-se no mesmo sítio, tentando proteger-se
com o escudo enquanto aguardavam ajuda.
O centurião deu uma ordem aos seus homens, e eles detiveram-se para formar um testudo, antes de voltarem a avançar lentamente contra as defesas inimigas; era agora
aos homens no interior da formação que cabia a missão de arrancar as estacas, enquanto os projéteis estrondeavam à sua volta, escavacando escudos, resvalando pelas
armaduras e derrubando qualquer um dos seus camaradas que tivesse o infortúnio de constituir um alvo para os projéteis que encontrassem caminho por entre a muralha
de escudos.
Macro desviou o olhar e fitou ao invés o campo, sabendo que Cato devia estar algures por ali. Sentiu-se enjoado perante a perspetiva de ter que lhe dar as notícias
sobre a morte de Júlia, e decidiu-se a fazê-lo assim que tivesse avisado o legado Quintato acerca do esquema inimigo para fechar a armadilha em torno do exército
romano.
Dispensou os homens que o tinham acompanhado desde o forte, e mandou-os procurar as tendas dos Corvos Sangrentos no campo. Depois, acompanhado pelo tribuno Glaber,
rodeou a esquina do forte e dirigiu-se para as baterias de artilharia. Uma secção de legionários guardava o legado e o grupo do estado-maior e, quando os dois homens
se
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aproximaram, um optio saiu-lhes ao caminho e ergueu uma mão, enquanto os interpelava.
- Alto, senhor, e informe que assunto o traz aqui!
Macro deteve a montada.
- Centurião Lúcio Cornélio Macro, da Quarta Coorte, Décima Quarta Legião. Tenho que falar com o legado, imediatamente.
O optio inclinou-se ligeiramente.
- E quem é o outro oficial?
Glaber adiantou-se até ficar ao lado de Macro e contemplou o homem com desdém.
- Tribuno-chefe Gaio Porcino Glaber, enviado do governador Aulo Dídio Galo. Também eu tenho que falar com o legado. - Fez uma pausa e acenou na direção de Macro.
- Embora conceda que o caso do centurião é mais premente. Dá-nos passagem.
O optio manteve-se na mesma posição.
- Lamento, senhor. Ordens permanentes. Ninguém pode interromper o legado enquanto ele conduz uma batalha. A não ser que tenha autorização do prefeito do campo, Silano.
- É vital que eu fale com ele - tornou Macro. - Portanto, sai-me da frente!
Quando o centurião deu um estalo com a língua para fazer avançar o cavalo, o optio fez um gesto rápido aos homens da sua secção, que se adiantaram de imediato para
lhe bloquear a passagem, de dardos bem assestados.
- Porra. Isto é absurdo! - vociferou Macro. - Quando acabar de falar com o legado, vou-te cortar os tomates e servir-tos ao pequeno-almoço.
- Chega deste disparate! - interveio Glaber, irritado. - Optio, envia um dos teus homens imediatamente à procura do prefeito do campo. Diz-lhe, em meu nome, que
precisamos de falar com o legado. Exijo licença para passar, ou que o Silano se apresente aqui imediatamente. Mexe-te!
O optio recuou um passo, submisso, antes de se virar e gritar uma ordem a um dos seus homens. O legionário deixou lança e escudo à guarda de um dos seus camaradas,
e correu na direção do grupo de cavaleiros que estava a uns cem passos, numa crista de onde todo o campo de batalha era visível. Macro virou-se para o tribuno e
agradeceu-lhe com um gesto mudo.
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No vau, a centúria que liderava o assalto tinha-se detido. Coberto de lama, à mercê da barragem inimiga, o testudo começava a desfazer-se. Uma longa fila de feridos
arrastava-se para a margem romana, tentando ainda proteger-se com os escudos. Alguns ajudavam camaradas mais debilitados, e um punhado de outros apenas se deixava
estar deitado na lama, incapaz de se mexer. Soou outro sinal, e uma nova centúria iniciou por sua vez o avanço, enquanto a primeira começava a recuar, sofrendo mais
baixas pelo caminho. Os homens desviaram-se para os lados enquanto a nova formação se debatia para progredir e se aproximar dos obstáculos que lhe cabia agora destruir,
ficando de imediato debaixo do mesmo dilúvio de projéteis que os seus antecessores tinham sofrido. Detiveram-se e formaram apressadamente um novo testudo, antes
de continuar.
- Os rapazes estão a levar uma valente coça hoje - comentou Macro, em tom neutro.
Glaber também tinha estado a acompanhar os acontecimentos, e deu um estalo com a língua.
- Sim, realmente é uma pródiga perda de homens para resultados tão limitados. Não me parece que tenham conseguido remover mais de umas dez daquelas estacas. Com
as que ainda lá estão, seria preciso gastar mais umas tantas legiões só para limpar a passagem, pelo menos a este ritmo, acho eu.
Observaram mais algum tempo, até que o legionário que tinha ido à procura de Silano regressou e apresentou um relatório ofegante ao optio. Este virou-se para o grupo
de homens e lançou um brado.
- Deem-lhes passagem!
Os soldados afastaram-se, e Macro e Glaber incitaram as montadas, dirigindo-se a trote para o pequeno grupo de oficiais e pessoal do estado-maior agrupados em torno
do legado Quintato. Ao som da sua aproximação, Quintato afastou o olhar do que se passava no campo de batalha e olhou com alguma fúria para Macro e Glaber, enquanto
estes desmontavam. Limpou a garganta.
- Será bom que sejam coisas importantes que me têm a dizer, senhores...
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24

- Uma emboscada, dizes tu? - Quintato franziu o cenho. Tinha
escutado Macro a apresentar o seu relatório sem o interromper, ambos de pé, a alguma distância dos outros oficiais, por insistência do legado. - Talvez estejas enganado.
- Não me parece, senhor. Interrogámos o prisioneiro de forma muito exaustiva. Era capaz de apostar uma boa maquia em como o que ele nos disse é a verdade. E além
disso, há a força numerosa que foi avistada a caminho do Norte, na direção das linhas de comunicação com Mediolanum.
- Centurião, não terás sobrestimado esse número?
- Não, senhor. O líder da patrulha que avistou o inimigo é um bom elemento. Um soldado de toda a confiança. Confio na sua avaliação.
- Patrulha? Portanto, não viste essa força inimiga com os teus próprios olhos?
- Não, senhor - admitiu Macro. - A presença do inimigo foi-me relatada pelo optio Pandaro. Tinha-se adiantado para observar uma aldeia e deparou com a coluna inimiga.
Tinha já procedido a uma estimativa do efetivo quando encontrou e capturou um dos batedores inimigos. Fê-lo prisioneiro e regressou ao forte para me apresentar o
relatório. Compreendi o significado da descoberta e entreguei o prisioneiro para interrogatório a um dos meus melhores homens, para lhe extrair toda a história.
- Só um momento, centurião. O teu optio foi a única testemunha quanto à presença dessa coluna?
- Sim, senhor. Mas esse ponto pouco importa.
- Oh, a mim interessa-me, e bastante. O homem devia estar fatigado, e pode muito bem ter procedido a uma avaliação incorreta da dimensão da força inimiga, por uma
série de diferentes razões.
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- E quanto à história do prisioneiro, senhor? Nesse caso temos inúmeras testemunhas.
- E quantos de vocês é que falam a língua do prisioneiro?
Macro começava a ter a clara impressão de que o legado não engolia
a sua história, dado o interrogatório, e teve que fazer um esforço para se recompor, antes de prosseguir.
- Usei um auxiliar da Oitava Ilírica para fazer a tradução, senhor. Ele tem algum conhecimento dos dialetos da ilha.
- Um auxiliar. Estou a ver...
- Não vi qualquer razão para duvidar de que ele estivesse a fazer um trabalho sério, senhor.
Quintato fungou.
- Estou certo disso. Essa é uma das razões por que és apenas um centurião, e não um legado. Por acaso passou-te pela cabeça a ideia de que o teu prisioneiro podia
muito bem estar a pregar-te uma bela treta? Não consigo imaginar nada de que o inimigo mais gostasse do que fazer-te acreditar numa pilha de lérias e levar-te a
vir a correr até aqui para me avisares de que os nativos estão a preparar uma armadilha letal para o meu exército, levando-me a retirar destas malditas montanhas
precisamente no momento em que estou prestes a alcançar uma vitória decisiva sobre a escumalha dos druidas e seus seguidores. - Fez uma breve pausa. - Centurião,
não vês o que quero dizer?
Macro cerrou os lábios e deixou-se estar a ferver por dentro, enquanto refletia que uma das principais razões para ser um centurião enquanto Quintato era um legado
era o facto de o último ter nascido numa porra de um berço de ouro. Desejou ardentemente que o pequeno Quintato tivesse caído do leito, e assim os tivesse poupado
a toda aquela canseira. Ainda assim, reviu tudo o que tinha relatado, passo a passo, e concluiu que, se o legado tinha alguma razão nas suas suspeitas, o inimigo
era realmente ardiloso num grau superlativo. E não apenas isso, mas também teria que beneficiar de uma cadeia de coincidências extraordinárias para concretizar tal
plano. Era difícil aceitar que pudesse ter sido ludibriado pelos nativos, mas a verdade é que a sua história não parecia cair muito bem em Quintato.
- Não duvido que o teu interrogador fosse capaz - prosseguiu o legado, - mas pensa bem em tudo, Macro. Um homem, o teu optio, avista alguns soldados inimigos, e
um deles acaba por cair em seu poder.
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Quando leva o prisioneiro para o forte para ser interrogado, só existe um homem capaz de traduzir tanto as perguntas como as respostas que o nativo dá. Não me parece
muito confiável. E, além disso, o próprio prisioneiro pode ter decidido mentir para nos levar ao engano. Não achas isto possível?
- É possível, senhor.
- Nesse caso, não será também possível que a última coisa que o inimigo deseja é ver-me prosseguir esta campanha, quando estamos mesmo à beira de uma grande vitória?
- Imagino que sim. - Macro deitou um olhar ao vau, que começava a desaparecer por baixo das águas trazidas pela mudança de maré. A segunda centúria já tinha abandonado
a tarefa de remover obstáculos, e regressava à margem detida pelos romanos. De passagem, recolhia os feridos, que ainda se arrastavam pela lama, e abandonava os
mortos à mercê do mar crescente, enquanto os últimos projéteis do inimigo caíam já inofensivos, longe deles. O corredor de passagem ainda continuava eriçado de obstáculos,
e o inimigo não deixaria de aproveitar qualquer oportunidade para lá colocar ainda mais estacas, durante os períodos de escuridão. Ao olho experiente de Macro, dava
a ideia de que o legado ainda estava muito longe de se encontrar à beira de uma grande vitória. Parecia-lhe muito mais evidente que se encontrava, sim, à beira de
uma tremenda derrota, a menos que levasse a sério o aviso e agisse de forma a extrair o exército da armadilha inimiga.
- Nesse caso, por Júpiter, o maior e melhor dos deuses, por que raio não estabeleceste uma ligação entre a informação que te estava a ser dada e a situação estratégica
global? Foste usado pelos druidas, e fizeste exatamente o que eles queriam, devo dizer. - Quintato adotou por fim um tom mais suave. - Macro, não há vergonha em
admitir o facto. Os druidas são tipos manhosos, e há que dar-lhes crédito por terem orquestrado toda esta situação para me levarem a quebrar o cerco e retirar. Sabem
perfeitamente que nunca conseguirão impedir-nos de alcançar a margem da sua ilha sagrada, custe o que custar. Têm a consciência de que não conseguirão defender a
ilha para sempre. Portanto, congeminaram este plano para tentar fazer-nos abandonar o nosso alvo. Vês isso agora, com certeza?
Macro pesou o argumento do legado, e acabou por se ver forçado a admitir que fazia algum sentido. Ao fazê-lo, sentiu uma onda de
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vergonha, por ter sido manipulado pelo inimigo de forma a quase conseguir sabotar a campanha romana. Mas então recuperou o senso. O legado até podia ter razão, mas
havia também a forte possibilidade de que o prisioneiro tivesse revelado a verdade acerca das intenções inimigas de fazer o exército romano cair numa armadilha.
Tinha que defender com firmeza essa hipótese, não por qualquer questão de orgulho, mas sim pela preocupação com a segurança de milhares dos seus camaradas.
- Senhor, espero bem que tenha razão. Ainda assim, penso que seria prudente considerar a possibilidade de que a informação recolhida do prisioneiro possa estar correta.
Quintato lançou-lhe um olhar gelado.
- E o que queres tu que eu faça? Que suspenda o ataque a Mona enquanto envio patrulhas para detetar esse suposto exército inimigo de que falas? Olha à tua volta,
centurião. O inverno está sobre nós. Esta neve é apenas um prenúncio do terrível tempo que vai chegar. Temos aqui uma curta oportunidade que precisamos de aproveitar
para esmagar os druidas e regressar ao aquartelamento de inverno antes que as passagens pelas montanhas fiquem completamente intransitáveis. Não vou renunciar à
oportunidade de erradicar o maior dos obstáculos ao estabelecimento da paz na Britânia. Bom, já gastei demasiado tempo com este tema. Podes ficar no campo esta noite,
mas pela alvorada vais regressar ao teu forte, e reassumir o comando.
- Mas, senhor, o meu lugar é aqui, com os meus rapazes da Quarta Coorte.
- O teu lugar é onde eu disser que é - concluiu Quintato, antes de olhar sobre o ombro do centurião. - E agora diz-me, quem é aquele?
Macro olhou também sobre o ombro.
- O tribuno Gaio Porcino Glaber, senhor. Enviado de Roma. Deparei-me com ele a meio do caminho para cá.
- Tribuno Glaber, chega aqui!
Glaber apressou-se a ir ter com os dois homens e fazer a saudação regulamentar, mas não dispôs de ocasião para se apresentar formalmente.
- Diz-me o centurião Macro que foste enviado por Roma.
- Sim, senhor.
- Porquê?
Glaber ficou momentaneamente surpreso pela abordagem direta do legado.
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- Fui enviado por ordem do Imperador, para o informar de que foi nomeado um novo governador para a província, e que ele chegará à Britânia dentro de muito pouco
tempo. Foi-me ordenado que estabelecesse uma ligação consigo e com o seu pessoal, para tratar da transmissão de poderes.
- Novo governador? - Foi a vez de Quintato ficar chocado. - Já? Não pode ser, impossível... Maldito homem, porquê tão cedo? Quem é ele?
- Aulo Dídio Galo, senhor.
- Conheço esse nome. Porquê o Dídio Galo? Um homem que nunca pôs o pé fora do Mediterrâneo. Não tem qualquer experiência de combater os celtas, nem de um clima deste
género. Uma fraca escolha, feita por políticos metediços, sem dúvida para pagar algum favor de negócios. Eu sou perfeitamente competente para governar a província
até à primavera.
- Senhor, não tenho qualquer informação quanto à oportunidade da nomeação - ripostou Glaber, ainda surpreso. - Não sou mais do que um mensageiro.
Quintato fungou.
- És o homem de mão do Galo. E vais ter que esperar até o meu trabalho aqui estar terminado, antes de começarmos sequer a pensar no processo de transmissão de poderes.
- As minhas ordens são as de iniciar os preparativos para a iminente chegada do novo governador. Galo solicita que lhe seja facultado um inventário completo do pessoal
civil e militar, das suas colocações e funções.
- Ele solicita-o, é isso?
- Isso, e uma série de outros pedidos, senhor. Toda a documentação está na minha arca, e estou disponível para começar a trabalhar com o seu pessoal assim que lhe
for possível.
Quintato soltou uma gargalhada.
- E este parece-te um momento conveniente para nos dedicarmos a esses exercícios burocráticos, tribuno Glaber? Estou a conduzir uma guerra. Tratarei de responder
aos teus pedidos quando tiver disponibilidade para isso. Entretanto, podes aproveitar a hospitalidade do meu campo militar. A não ser que prefiras regressar a Londinium
e esperar lá pela chegada do teu senhor?
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- Tendo já tido ocasião de travar conhecimento com os perigos que podem surgir nestas montanhas, senhor, acho que prefiro permanecer com o exército.
- Muito bem, mas faz-me o obséquio de não te meteres no meu caminho. Entendido?
- Sim, senhor.
O legado virou-se de novo para Macro.
- Estás a ver? Mais um motivo para avançar e esmagar estes cabrões dos druidas o mais depressa possível. Bom, tenho um exército para comandar. Estão dispensados,
os dois.
Não esperou por resposta; virou-se e caminhou de volta ao posto de comando, calcando a neve fresca debaixo das botas. Glaber aguardou que ele se afastasse e deixasse
de poder ouvi-los antes de assobiar baixinho.
- Personagem suscetível, este nosso legado. Ele é sempre assim?
- Oh, só quando descobre que alguém lhe quer tirar o lugar, imagino eu, senhor.
Glaber virou-se para ele com uma expressão divertida.
- Deves pensar que isto é tudo política, e apenas mais um momento em que alguém é apunhalado pelas costas, de acordo com o jogo que passa por diversão em certos
círculos sociais elevados.
- Eu, hã... - Incomodado, Macro começou a dançar sobre a perna ferida, que de imediato lhe recordou o facto e o obrigou a voltar a colocar o peso na perna em condições.
- Bom, tens toda a razão. É precisamente isso que se passa aqui. O meu senhor está em ascensão, e o Quintato ainda não tem peso suficiente para se lhe opor. Uma
pena para ele que o crédito por todo este esforço vá acabar por ser apropriado pelo Galo, mas é assim que as coisas são. Percebo perfeitamente a disposição dele.
- Senhor, isso pode ser o usual e corriqueiro para gente da sua classe social, mas para o resto de nós é pouco agradável, quando só pensamos em cumprir o nosso dever
e combater por Roma e pelos camaradas. Quando estamos enfiados na lama, com sangue até aos tornozelos, e a única coisa entre nós e bárbaros como aqueles ali na outra
banda é a nossa espada e o nosso escudo, é um tanto lamentável saber que os nossos melhores nos veem apenas como pequenas peças a movimentar nos seus jogos. Está
a ver o que eu quero dizer?
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Encararam-se por momentos, até que Glaber assentiu.
- Bom ponto, centurião. Tentarei lembrar-me disso.
- Obrigado, senhor.
Glaber limpou a garganta.
- Dado que sou um excedentário, calculo que posso ir para o campo e procurar uma bela fogueira para me aquecer. E quanto a ti?
Macro respirou fundo.
- Tenho que encontrar o prefeito Cato, e apresentar-me a ele. Pense o legado o que quiser, não estou convencido de que o inimigo tenha planeado enganar-me desta
maneira. O Cato fará uma avaliação correta da situação. É o que faz, geralmente. - Sorriu com agrado. - É nisso que ele é mesmo bom.
- Parece-me que tens uma grande admiração por esse teu superior. Macro empertigou-se.
- É um excelente oficial, senhor. Um dos melhores do exército, e qualquer pessoa que o conheça concordará comigo.
- Aceito a tua palavra. Creio que será muito interessante conhecê-lo. Macro manteve-se imóvel por momentos, preso pela ansiedade,
em face daquilo que tinha que contar ao amigo quando o encontrasse. Tossicou, e olhou para Glaber.
- Senhor, poderá fazer-me um favor?
As sobrancelhas de Glaber arregalaram-se com a surpresa. - Um favor? Do que se trata?
- É aquilo que me contou, acerca da esposa do prefeito. Seria capaz de vir comigo dar-lhe as más notícias? Ele há de querer saber detalhes. Seria melhor que quem
lhos der saiba mais da história do que eu.
Glaber fitou-o, sem se deixar enganar.
- Não consegues enfrentar a necessidade de lhe contar a verdade? A expressão de Macro manteve-se fixa por instantes, antes de ele abanar a cabeça, lentamente.
- É muito complicado para um homem dizer a um amigo que se tornou viúvo. O Cato amava-a profundamente, senhor. Ela era uma mulher extraordinária. Bem, como saberá
por si mesmo.
- Também a conhecias, então?
- Estava lá quando eles se conheceram, em Palmira.
- Ah sim, aquela história com os partos, há uns anos. Ouvi falar disso. Não fazia ideia de que a Júlia também tinha estado por lá. Atrevo-me
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a calcular que ela nunca entrou em pânico. Sempre teve uma personalidade forte, mesmo em criança, se bem me lembro.
- De facto. - Macro sorriu com pesar. - Tão corajosa como qualquer soldado. Faziam um belo par... Dava tudo para não ser eu a partir-lhe o coração desta forma.
Glaber mordeu os lábios antes de ripostar.
- Eu irei contigo.
Regressaram para junto dos cavalos, montaram e seguiram a caminho do portão principal do campo. Macro deitou uma última olhadela ao vau, notando que a maré já tinha
coberto completamente a passagem lamacenta até à ilha, e que só as pontas das estacas se viam à tona da água. Ao largo, o céu tinha-se tornado limpo, e um fulgor
azulado espalhava-se agora pela paisagem coberta de neve. Na margem, as baixas do último assalto estavam a receber cuidados, enquanto os sobreviventes tentavam limpar
a lama do equipamento. Os movimentos lentos, quase letárgicos, diziam tudo sobre o lamentável estado do moral das coortes, enquanto do outro lado do canal se faziam
ouvir os desafios e imprecações do inimigo. Macro ficou com a cena atravessada na garganta, consciente da forma como um revés daquele género afetava a sensibilidade
de soldados que acabavam de ver o seu assalto ser rechaçado. O truque era transformar aquele sentimento numa determinação férrea de triunfar e provar o seu valor,
provar a superioridade perante o inimigo. A alternativa era sucumbir ao desespero e ficar sem reação, a ver qualquer hipótese de vitória desvanecer-se e prosseguir
uma prova de resistência e atrito sem fim nem propósito.
Entraram no campo e pediram indicações para as tendas dos Corvos Sangrentos ao centurião de serviço. A unidade auxiliar tinha sido colocada numa área junto às outras
unidades montadas, mais abaixo na encosta do que os legionários, ao pé das valas de escoamento da água das chuvas e das latrinas. O diminuto calor que se fizera
sentir durante o dia tinha, ainda assim, transformado a superfície da neve numa papa em vários locais, mas a temperatura estava a baixar rapidamente, agora que caía
a escuridão, e os homens reforçavam as fogueiras usando a lenha que tinham conseguido reunir durante o dia.
Macro depressa avistou o estandarte dos Corvos Sangrentos a ondular sobre a grande tenda que servia como quartel-general da coorte em campanha. Ao invés de sentir
prazer ao pensar em voltar a ver o seu
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melhor amigo, sentiu o coração apertado e o estômago cheio de nós, e um cansaço pesado e melancólico caiu sobre ele. Ao seu lado, o jovem tribuno apontou para o
estandarte.
- É a unidade do Cato? Tenho que dizer que gosto do estandarte. Muito dramático. Não é de espantar que os nativos se borrem todos quando vocês se aproximam, hã?
O tom jovial de Glaber era um tanto forçado, e Macro percebeu que também o tribuno se mostrava apreensivo. Desejou que Glaber se mantivesse calado e aceitasse a
terrível natureza da tarefa que tinham pela frente. Não havia lugar para graçolas naquela situação. Nenhum lugar.
Levaram as montadas a passo até junto do estandarte e desmontaram antes de passarem as rédeas para as mãos de uma das sentinelas de guarda ao quartel-general.
- O prefeito está cá? - indagou Macro.
- Sim, senhor.
- Muito bem. Vê se os nossos cavalos recebem água e comida.
A sentinela anuiu e conduziu os animais para longe, enquanto Macro hesitava à entrada da tenda. Pela estreita abertura nas abas de pele de cabra avistou dois escribas
sentados em mesas de campanha, um deles a esfregar furiosamente para apagar as marcas numa tábua encerada. O colega estava a acender umas lamparinas num castiçal.
O fumo que subia até uma abertura no cimo da tenda denunciava a presença de um braseiro que Macro não conseguia divisar da posição em que se encontrava.
- Estás pronto para isto? - inquiriu Glaber, num tom suave.
- Não. Como poderia eu estar? - Macro suspirou pesadamente, e depois separou as abas e entrou na tenda. Os dois homens levantaram a vista e Macro virou na direção
da parte separada da tenda que estava atribuída ao comandante da coorte. Conseguia escutar a voz de Cato, a conversar calmamente com alguém, e pelo tom da voz percebeu
a exaustão que dominava o seu amigo. Dirigiu-se à abertura e viu Cato debruçado sobre a mesa de campanha, com o decurião Miro de pé ao seu lado.
- Tens que dizer ao Pausino que preciso de todos os homens - dizia Cato, enquanto batia com um dedo numa tábua, dispensando-o.
- Todos os homens capazes de subir para a sela serão declarados prontos para o serviço. Já estamos com menos de metade do efetivo, mesmo assim.
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- Sim, senhor.
O couro das abas gemeu levemente quando Glaber as abriu e se juntou a Macro. Cato olhou para eles com ar ausente durante o mais ínfimo dos momentos, antes de se
endireitar e abrir um largo sorriso.
- Macro! Pelos deuses, o que está aqui a fazer? É suposto estar lá no forte. - O sorriso desvaneceu-se quando ele reparou na expressão fúnebre de Macro. - O que
se passou? Algum ataque? O forte foi tomado pelos nativos?
- Nada desse género, senhor.
- Graças sejam dadas a Fortuna. E quem é este?
- O tribuno Glaber. Safei-o de boa, quando dei com ele e uns soldados depois de sofrerem uma emboscada no caminho.
- Tínhamos a situação controlada - protestou Glaber.
- Seja como for - prosseguiu Macro. - Tinha informações urgentes que achei que devia transmitir ao legado Quintato. Pelo menos era o que eu pensava.
- Conte-me lá isso.
Macro explicou com toda a brevidade, sem omitir qualquer detalhe da reação do legado ao relatório. Cato ouviu-o com uma expressão intensa, anuindo ao perceber certos
detalhes relevantes. Assim que Macro concluiu, sorveu ar por entre os dentes.
- Parece-me que teve toda a razão em vir avisá-lo. O Quintato está-se a agarrar ao vazio. Só lhe importa pôr fim aos druidas. Se o inimigo está a tentar cortar as
nossas linhas de comunicação com a retaguarda, vamos ver-nos numa situação muito complicada. Assim que nascer o dia, enviarei algumas patrulhas para investigar.
Os Corvos Sangrentos não são necessários para nenhuma ação por agora, portanto nem terei necessidade de informar o quartel-general. Se me perguntarem, direi que
os homens estão a conduzir um exercício. - Piscou um olho a Macro e, quando não viu reação, franziu os olhos.
- Macro, o que se passa? Há qualquer coisa que não me está a dizer.
- Sim, miúdo - soltou Macro, em tom lamentoso. - Há mesmo.
Limpou a garganta para falar, mas as palavras recusaram-se a sair.
O centurião engoliu em seco, ansioso, e fez um gesto para Glaber.
- Senhor, por favor, se puder esperar lá fora, para o caso de o prefeito querer falar consigo depois...
Glaber olhou para os dois homens, e anuiu.
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- Claro. Se houver alguma coisa que eu possa fazer, digam-me.
Depois de ele sair, Macro aproximou-se de Cato e indicou a cadeira
junto à mesa de campanha.
- Senta-te, miúdo.
- O que se passa? - inquiriu Cato, mas fez o que lhe era indicado, embora Macro permanecesse de pé. - Macro, o que é? Desembuche.
- Seja... Depois de eu e os rapazes nos termos metido ao barulho para salvar o Glaber, perguntei-lhe de onde vinha. Disse-me que tinha sido enviado de Roma. Disse-me
que a família dele conhecia o senador Semprónio, e a Júlia. Tinha sido pouco antes de partir que tinha ficado a saber das notícias.
- Notícias?
- Acerca da tua esposa.
A atmosfera na tenda pareceu a Cato tornar-se gelada, e ele inclinou-se para a frente e olhou para o amigo com toda a intensidade.
- Continue.
- Miúdo, tenho que te dizer uma coisa muito má. A pior de todas. A Júlia morreu.
Cato nada disse, e ficou sentado, imóvel.
- A Júlia morreu - repetiu Macro, para quebrar o insuportável silêncio. - Tenho tanta pena.
- Recebi uma carta dela há menos de um mês. Não pode ser... Como? Como morreu ela?
- Disse-me o Glaber que apanhou um resfriado. Disse que ela ainda estava fraca por causa do nascimento do vosso filho. Mas o Lúcio está vivo. Pelo menos os deuses
pouparam-te a essa perda.
- Sim. Calculo que sim. - Cato recostou-se e passou uma mão pelos caracóis escuros. - Ela morreu?
- Sim.
De repente, Cato pôs-se de pé e atravessou o espaço até à abertura, dirigindo-se ao tribuno que esperava no exterior.
- Glaber, isto é mesmo verdade? O que sabes precisamente sobre isto?
- É verdade, senhor. Sei muito pouco para além do que o centurião Macro já lhe contou. Foi o meu pai quem mo disse, ao regressar a casa depois de ter ido apresentar
as suas condolências ao senador Semprónio. Tudo aconteceu muito depressa. Segundo o meu pai, ela não sofreu
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demasiado, e faleceu em pleno sono. Uma pena. Ela sempre foi muito bem considerada por todos os que a conheceram. Eu... eu... - O tribuno não conseguiu encontrar
mais nada para dizer, e ficou encavacado.
- Sim. - Cato virou-se. - É tudo, muito obrigado, tribuno Glaber. Por favor, procura acomodações e repousa.
- Claro, senhor. Mais alguma coisa?
- Não. Nada. Deixa-nos, por favor.
Glaber dobrou o pescoço, em sinal de respeito.
- Se precisar de mim, estarei no quartel-general do exército. - Virou-se e saiu rapidamente, e Macro ouviu um cavalo a resfolegar enquanto o tribuno montava e fazia
o animal dar meia-volta para seguir pela via principal, na direção do coração do campo.
Cato caminhou lentamente até à cadeira e deixou-se cair nela, ainda demasiado atordoado para reagir. Por fim, olhou para Macro.
- Morta?
- Temo bem que sim. Olha, estás a tremer. Deixa-me cobrir-te com a capa. - Macro pegou na veste, que tinha sido lançada sobre uma arca, salpicada de lama e ainda
um tanto húmida. Colocou-a sobre Cato, alisando as dobras, e pousou uma mão sobre o ombro do amigo
- Não consigo exprimir todo o meu pesar, miúdo. Os deuses não tinham qualquer direito de a levar tão jovem.
Cato engoliu em seco e olhou para ele.
- Dê-me um momento de privacidade, por favor.
Macro viu o desespero nos olhos do prefeito, e anuiu.
- Estarei lá fora, então. Se precisares de mim.
- Sim, obrigado.
Macro aguardou um momento para ver se havia mais alguma coisa, antes de recuar em silêncio e se ir juntar aos escribas no átrio da tenda. Olhou uma última vez, e
viu o prefeito debruçar-se e colocar o rosto entre as mãos, os dedos cravados como garras no cabelo. Ouviu-se um leve gemido, e os ombros de Cato estremeceram.
Só então Macro fechou as abas daquela secção da tenda e permitiu ao seu melhor amigo em todo o mundo um momento de privacidade para chorar a perda do amor da sua
vida.
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25

- E lá vamos nós outra vez. - Macro debruçou-se sobre o parapeito do torreão do canto do campo militar, e olhou com atenção para o que se ia passar no vau. A manhã
já ia adiantada, e durante a noite a neve tinha voltado a cair com abundância. O campo, as plataformas da artilharia, as muralhas de terra de ambos os lados do canal
e o convés das embarcações de guerra e dos transportes, tudo tinha ficado coberto por um esplendoroso manto branco. Junto à beira da água, os legionários já estavam
formados, à espera de ordem para avançarem pela lama e continuarem a remover os obstáculos que lhes bloqueavam a passagem para a ilha. Por cima deles silvavam os
projéteis disparados pela artilharia romana - a mensagem de "maus-dias", como designavam os soldados aquela barragem de arremessos que caía sobre as posições inimigas.
Facto era que não parecia estar a ter grande efeito nos nativos, considerou Macro, ao ver as explosões de terra e os estilhaços que saltavam pelo ar quando um projétil
se abatia sobre as defesas. Os deceanglos e os seus líderes, os druidas, mantinham-se protegidos, à espera que o bombardeamento se interrompesse, antes de retomarem
os seus lugares e passarem eles a enviar projéteis de toda a sorte sobre os legionários que tentavam remover as estacas do vau. Macro reparou que tinham de facto
aproveitado a capa da escuridão para substituir muitos dos obstáculos que haviam sido removidos na véspera.
- Dá ideia de que vai voltar a nevar - comentou Glaber, de pé ao lado de Macro, e também ele a assistir aos acontecimentos.
Macro olhou para o céu, e depois seguiu as nuvens com o olhar, até uma massa escura que se concentrava sobre as montanhas.
- Vem mesmo a jeito para dar uma ajuda...
Os dois oficiais voltaram de novo as atenções para a estreita
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passagem, e observaram as manobras em silêncio por momentos, até que o tribuno comentou:
- Custa-me a crer que não haja uma forma alternativa de resolver este assunto.
- Oh, há de facto algumas alternativas, senhor - considerou Macro. - Mas depois de a tempestade ter destruído quase todos os barcos de transporte e a maior parte
da frota de guerra, um assalto direto através do canal tornou-se impossível. Bem como a possibilidade de realizar um desembarque noutro ponto qualquer da costa da
ilha, para rodear as defesas. E atrevo-me a imaginar que os druidas devem ter armazenado uma grande quantidade de víveres, e que seríamos nós a passar fome muito
antes de os conseguirmos vencer por esse processo. Se quer mesmo a minha opinião, o melhor que o legado tinha a fazer era desistir, retirar para Mediolanum e voltar
a atacar na primavera, depois de ter ocasião para substituir as embarcações que foram perdidas. Mas ambos sabemos perfeitamente que ele não vai fazer nada disso,
graças à chegada iminente do novo governador. E por isso ficamos limitados a esta abordagem sem qualquer subtileza, por estúpido que seja o plano.
- Estúpido, é mesmo esse o termo.
Olharam os dois para a plataforma sobre-elevada e aplanada onde estava implantada a bateria de artilharia, e de onde Quintato observava as posições inimigas, sem
dar mostra de qualquer emoção, enquanto os seus oficiais do estado-maior se aglomeravam em torno de um braseiro próximo, acabado de acender, de onde se soltavam
labaredas bem vivas que lançavam fagulhas para o ar, as quais vogavam uma curta distância antes de se extinguirem e desaparecerem contra o fundo, na distante e acinzentada
paisagem de Mona. O legado esperou até que a maré descesse o suficiente para descobrir a passagem que permitia à centúria avançar com uma frente de oito homens,
e só então se voltou e deu uma ordem. Os trombeteiros do quartel-general levantaram os seus instrumentos de metal, encheram os pulmões e fizeram soar o sinal para
avançar.
Tal como sucedera no dia anterior, a primeira centúria marchou sobre a neve e seguiu pela faixa de lama que dava acesso a Mona. E, tal como na véspera, foi recebida
com um dilúvio de setas e metralha, assim que se aproximou das estacas.
- Bom-dia.
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Macro virou-se e avistou Cato a subir para a torre. O amigo parecia esgotado, exangue. Ainda assim, obrigou-se a mostrar um leve sorriso nos lábios enquanto se aproximava
de Macro e Glaber.
- Bom-dia, senhor. - Macro saudou-o com toda a formalidade, incerto quanto ao tom que devia adotar. Convivia com a morte havia tanto tempo que ela se tinha tornado
uma parte da vida quotidiana, e tinha havido muitos camaradas cuja perda ele tinha sentido profundamente, mas nada parecia tê-lo preparado para a dor que sentia
perante a perda sofrida pelo seu melhor amigo. Se houvesse alguma forma de poder trocar a sua própria vida pela de Júlia, tê-lo-ia feito sem qualquer hesitação.
Havia no olhar de Cato uma expressão assombrada que lhe tolhia a alma, e ele desviou rapidamente o olhar para o canal e pigarreou, enquanto tentava pensar nalguma
coisa que pudesse dizer.
- O legado volta a insistir no assalto direto.
Cato assentiu.
- É o terceiro dia na mesma coisa, e não vamos conseguir aproximar-nos da outra margem durante pelo menos outros três dias, estou certo disso. Isto é demasiado lento.
Glaber fitou-o, expectante.
- Demasiado lento para quê, exatamente?
- Aqueles vagões que vocês trouxeram ontem foram os primeiros a alcançar o exército nos últimos dias. Com esta neve toda, calculo que os comboios de abastecimentos
planeados estejam retidos. Por causa do tempo, ou por razões ainda mais preocupantes.
- Como por exemplo?
Cato hesitou antes de replicar.
- E se a informação que o Macro trouxe for verdade? E se a razão que nos impede de receber abastecimentos é o facto de o inimigo nos ter cortado as linhas de comunicação?
De uma forma ou de outra, vamos ficar reduzidos a meias-rações ainda antes de pormos o pé na ilha, e depois será preciso avançar por Mona passo a passo, sempre a
combater. Quem sabe o tempo que isso vai levar.
Glaber considerou a ideia por breves momentos.
- Está a dizer que o exército está em perigo?
Cato soltou uma risada breve e seca.
- Tribuno, o exército está sempre em perigo. O truque consiste em garantir que estamos prontos a responder a qualquer ameaça
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potencial que o destino nos lance ao caminho. Como diz o ditado: "planeamento e preparação evitam que se dê com os burros no chão". O nosso problema é que o plano
original do legado foi desbaratado pela tempestade. Por isso é que nos vemos limitados a tentar forçar a passagem pelo vau. E também não estamos suficientemente
abastecidos para preparar um cerco longo. Portanto, da maneira como vão as coisas, diria que a nossa perspetiva é mesmo de darmos com os burros no chão. No mínimo.
A minha real preocupação é que estejamos a pôr-nos numa posição muito arriscada, e que o Quintato se recuse a aceitar esse facto.
- Acha mesmo que o inimigo planeia fechar-nos numa armadilha?
- Depressa o saberemos. Enviei as tais patrulhas, como disse. Antes da alvorada, de forma a que não despertassem demasiada atenção. Se o inimigo estiver acoitado
aqui pelas redondezas, haveremos de o encontrar.
Macro contemplou-o, preocupado. A última visão que tivera de Cato antes de ir procurar alojamento junto da Décima Quarta Legião na noite anterior fora a do amigo
a mergulhar num pranto incontrolável. E agora dava-lhe a ideia de que Cato se tinha permitido apenas umas curtas horas de pesar antes de voltar a assumir os seus
deveres militares. Era duvidoso que tivesse dormido alguma coisa, e muito provavelmente também não tinha comido nada, e nenhuma das situações era propriamente aconselhável
quando havia pela frente um dia de muito trabalho.
- Senhor, devia ir descansar enquanto aguarda o regresso das patrulhas. Eu mesmo o acordarei se houver novidades.
Uma leve ruga revelou-se na testa de Cato.
- Evidentemente que não. Não há qualquer necessidade disso. Não preciso de descanso, centurião Macro, muito obrigado.
Macro fez menção de responder, magoado com o tom formal e cortante da voz do amigo. Mas pensou melhor. Cato podia bem ser seu amigo, quase um irmão ou mesmo um filho
aos seus olhos, mas era também um oficial superior, e tinha-o relembrado do facto, de forma a não deixar qualquer dúvida. Engoliu em seco, antes de aceitar a reprimenda.
- Sim, senhor.
Instalou-se um silêncio constrangedor, enquanto todos se concentravam na ação que decorria junto à costa da ilha de Mona. Um grupo de legionários fazia o seu melhor
para bloquear os projéteis inimigos,
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enquanto os seus camaradas se debatiam para arrancar os obstáculos bem cravados no fundo das águas. Enquanto os três oficiais observavam, um dos soldados foi abatido
por uma seta que lhe trespassou o pescoço. Cambaleou e caiu de joelhos na lama, com o sangue a escorrer-lhe pelo ombro e ao longo do braço. Vacilou uns momentos,
enfraquecido pela perda de sangue, e deixou-se deslizar para a lama, onde ficou deitado, a estremecer. O optio da centúria mais adiantada destacou dois homens para
o ajudar, e eles arrastaram o legionário ferido até à segurança da enfermaria improvisada na retaguarda, na margem detida pelos romanos, antes de voltarem a juntar-se
ao ataque.
Uma voz soou na base da torre.
- Onde está o prefeito Cato?
- Lá em cima, senhor, na plataforma.
Momentos depois soaram botas no andar de baixo, a escada rangeu, e o decurião Miro trepou para a plataforma, para se juntar aos outros. Dirigiu-se imediatamente
a Cato, e saudou-o.
- Senhor, peço licença, mas já tivemos notícias de uma das patrulhas. Avistaram uma força inimiga não muito longe do campo.
Os outros oficiais trocaram olhares ansiosos, antes de Cato ripostar:
- A que distância do campo?
- Não mais de oito quilómetros, a leste, mesmo na área por onde passam as nossas linhas de abastecimento. No vale, além, senhor. - Miro apontou para a passagem entre
duas colinas, relativamente perto do campo.
- Que tamanho tem essa força?
- O optio indicou que avistou milhares de homens, senhor.
Cato virou-se para Macro e franziu a sobrancelha.
- Ao que parece, a sua informação era mesmo verdadeira.
- Claro que não tinha dúvidas a esse respeito, não é?
- Alguma vez duvidei de si? - Virou-se de novo para Miro. - Onde está esse optio agora?
- Ainda está com a patrulha, senhor. Ficou a vigiar os movimentos do inimigo. Enviou um dos seus homens com a informação. Está lá em baixo, à espera. Quer que o
envie ao quartel-general, senhor?
Cato considerou a situação.
- Eu vou com ele. Entretanto, coloca o resto da coorte de prevenção, e formada no exterior do campo. Podes seguir.
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Enquanto Miro se afastava rapidamente, Cato virou-se para Macro e Glaber.
- Não querem vir comigo? Gostaria que houvesse testemunhas para o que vai acontecer.
Macro ficou espantado.
- Porquê? Que diferença pode isso fazer?
- Não, ele tem toda a razão - contrariou Glaber. - Se escaparmos desta, o Quintato bem pode tentar arranjar um bode expiatório. Senhor, vejo que antecipa todas as
situações. Uma excelente capacidade.
- Uma estratégia de sobrevivência. Já tenho experiência suficiente a lidar com o topo da hierarquia para saber como as coisas funcionam. Vamos então. Macro, acha
que vai conseguir acompanhar-nos?
O designado sorriu.
- Pode tentar deter-me, se quiser, senhor.
Desceram da torre e saíram para as sombras, onde um soldado aguardava e se colocou em sentido assim que os viu.
- Falco, não é? - indagou Cato.
- Sim, senhor.
- Falco, segue-nos.
Passaram pelo portão, atravessaram a ponte sobre o fosso e dirigiram-se ao grupo do estado-maior, junto à bateria de artilharia. Macro caminhava de forma rígida,
forçando-se a acompanhar os outros e fazendo caretas perante o esforço que representava ignorar a dor que lhe trespassava a perna. Passaram o cordão de segurança
e aproximaram-se de Quintato e dos seus oficiais, que continuavam a contemplar a última tentativa para ultrapassar as linhas de defesa que bloqueavam a passagem
para Mona. Cato ignorou o prefeito do campo e dirigiu-se diretamente ao legado, virando-se para dar instruções a Falco, que seguia ao seu lado.
- Limita-te a repetir o que o optio te mandou dizer. E se o Quintato te fizer algumas perguntas, vê se lhe forneces o máximo de detalhes de que te lembrares, sobretudo
quanto ao efetivo da força inimiga. Percebido?
- Sim, senhor.
Quintato reparou por fim na aproximação do grupo pelo canto do olho, e quase sem se voltar dirigiu-se a Cato.
- Prefeito Cato, o que se passa?
Cato não hesitou na resposta.
- Senhor, caímos numa armadilha. A informação fornecida pelo
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centurião Macro estava correta. Uma das minhas patrulhas acaba de informar que avistou uma numerosa força inimiga.
- Uma das tuas patrulhas? Quais patrulhas? Não me lembro de ter dado essa ordem.
- Os homens foram enviados por minha autoridade, senhor.
- Por tua autoridade? - As narinas de Quintato fremiram de fúria. - Ora bem, a não ser que tenha acontecido algo de espantoso que me tenha escapado, por acaso resolveste
substituir-me na posição de comandante deste exército, prefeito Cato?
- Não, senhor.
- Nesse caso, como é que te atreves a ordenar aos teus homens para irem à procura do inimigo, sem fazeres passar essa intenção pela cadeia de comando?
Cato estava perfeitamente ciente de que não se podia deixar enredar numa altercação daquele género. Além disso, não havia tempo. Falou em tom assertivo, e em voz
suficientemente alta para que todos os oficiais do estado-maior ouvissem.
- Senhor, podemos discutir a quebra do protocolo mais tarde. O que importa agora é que o inimigo está próximo, e que este exército está em perigo. Este homem - indicou
Falco - seguia com a patrulha mencionada. Soldado, diz ao legado o que viste.
Falco manteve-se rígido e imóvel enquanto apresentava o seu relatório.
- Tínhamos percorrido cerca de oito quilómetros, senhor. Estávamos num vale, e havia nevoeiro, e foi nessa altura que o optio nos mandou subir a uma colina, para
observarmos o terreno à volta. Subimos acima da neblina, mas ainda assim não víamos grande coisa, só os cimos das colinas em redor. Depois o sol rasgou as nuvens
um bocadinho, e a neblina no vale começou a dissipar-se. E foi nessa altura que os vimos, senhor. O inimigo. A sair da neblina. Um grupo de cavalaria, e depois a
cabeça da coluna principal. Ainda estavam a alguns quilómetros de nós, e por isso o optio disse que devíamos esperar até termos uma ideia melhor de quantos eram,
antes de voltarmos ao campo para fazermos o relatório. Mas eles não paravam de vir, senhor. Aos milhares. Foi nessa altura que o optio me mandou regressar ao campo
para dar o alarme.
Quintato pareceu pouco inclinado a acreditar, enquanto considerava o relatório do soldado.
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- Quantos homens eram, afinal?
O homem hesitou.
- O optio mandou-me dizer que eram pelo menos dez mil, senhor.
- E tu, o que é que achas?
- Senhor, não percebo muito de números. Mas era capaz de dizer que os cabrões são pelo menos tantos como nós. Talvez mais.
- Parece-me que é precisamente como disse o centurião Macro, senhor - lembrou Cato. - Caso em que há todas as razões para aceitar que também o resto das informações
estão certas.
O legado respirou fundo e rangeu os dentes, enquanto pesava a situação. Por fim soltou um suspiro exasperado e virou-se para os oficiais do seu estado-maior.
- Silano! Manda suspender o ataque. Coloca uma coorte a guardar a nossa margem do canal, especialmente o vau. Depois disso, quero cinco coortes da Décima Quarta,
e os arqueiros ibéricos, a cobrir a entrada desse tal vale. Em passo rápido. E também seria bom termos alguma cavalaria a postos.
Silano dobrou o pescoço, enquanto Cato limpava a garganta.
- Senhor, dei ordens para que os Corvos Sangrentos se preparassem para entrar em ação.
Quintato fitou-o com dureza.
- Prefeito, parece que estás decidido a manteres-te um passo à minha frente.
Cato não ripostou.
- Muito bem, envia então os teus homens à frente, para cobrir o avanço da Décima Quarta. Mas tu ficas aqui. Vou precisar de fazer uma reunião com todos os comandantes
de unidades, depois de sopesar todas as opções que se nos deparam.
- E quanto à artilharia, senhor? - quis saber Silano. - Devo mandar vir os vagões e desmontar as balistas?
- Não. Se os druidas virem isso, ficarão imediatamente a saber que nos preparamos para retirar. Além disso, se tentarem uma surtida lá da ilha, poderemos castigá-los
assim que saírem de trás das suas muralhas.
- Quintato deitou um último longo e pesaroso olhar para a outra margem do canal, e voltou-lhe as costas. - Todos os oficiais superiores ao quartel-general, imediatamente!
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uando Cato se juntou aos outros na maior das tendas do quartel-general, as demais patrulhas já tinham regressado, também com notícias de avistamentos do inimigo.
Pequenos bandos montados, na maior parte, a baterem o terreno à frente e nos flancos da força principal. As patrulhas foram então enviadas para junto da força que
tinha por missão bloquear aboca do vale. Felizmente tratava-se de uma passagem estreita, e as encostas íngremes e rochosas, com penhascos que se erguiam de ambos
os lados, tornavam o espaço restrito. Os legionários tinham levado algumas fortificações portáteis, bem como cestas repletas de estrepes de ferro, para espalhar
à frente das suas linhas e quebrar qualquer carga do exército nativo em aproximação. Apesar da contínua presença das baterias de artilharia e dos legionários junto
à margem romana, os druidas e seus seguidores já tinham adivinhado o significado do cancelamento do ataque e das movimentações de tantos exércitos romanos a caminho
das montanhas. O som das aclamações propagou-se sobre as águas do canal, e grupos de vultos diminutos surgiram nos pontos mais elevados por trás das defesas, à procura
de sinais da chegada dos seus aliados, para fechar a armadilha sobre o exército romano.
A disposição na tenda era carrancuda, e a única luminosidade provinha de um braseiro na extremidade da sala. A passagem ininterrupta de homens e o calor dos corpos
ali acumulados tinha feito derreter a neve e o gelo, deixando um solo lamacento e escorregadio; os oficiais aguardavam que o legado emergisse dos seus aposentos
privados, onde tinha estado em conferência com o prefeito do campo e os mais próximos dos seus oficiais. Cato dirigiu-se às abas da entrada e colocou a cabeça no
exterior. As abertas por entre as nuvens que tinham surgido sobre o oceano e as montanhas por volta do meio-dia tinham dado lugar a uma cobertura ininterrupta de
nuvens da cor de um tecido muito sujo. Havia portanto muito mais neve a caminho, considerou. Prejudicaria o inimigo, tanto como o exército romano, mas havia uma
diferença crítica: legionários e auxiliares estavam muito longe da sua base, e as linhas de abastecimento tinham sido cortadas, enquanto os celtas estavam no seu
próprio território, e podiam aproveitar as reservas de cereais e carne que os nativos das montanhas tinham acumulado nos últimos meses.
- Então, o que acha?
Cato virou-se e deu com Glaber junto ao seu ombro.
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- Acho que vai nevar outra vez.
O tribuno abriu um sorriso.
- Muito engraçado. Queria eu dizer, o que acha que ele vai fazer?
Cato deixou a aba da tenda voltar ao lugar.
- Depressa saberemos.
- De repente tornou-se muito reticente em dar uma opinião.
- O legado tem toda a informação de que necessita. A decisão cabe-lhe a ele, não a mim. Não me vou pôr a tentar adivinhar o que ele vai fazer ou não. Sobretudo não
à frente do homem que representa o superior do legado, prestes a tomar o seu lugar.
Glaber cofiou a penugem no queixo.
- Não tem que se preocupar comigo. Não sou nenhum espião, e não estou aqui a catar informações para depois prejudicar alguém. Sou apenas mais um oficial entre tantos
nesta tenda, e estou metido na mesma situação bicuda. Estou apenas curioso quanto à sua opinião profissional sobre ela. É tudo.
- A minha opinião profissional é que o legado é o comandante deste exército, e que seguirá sem dúvida a linha de ação que considerar mais prudente. É também minha
opinião que os oficiais com patentes abaixo de legado se devem abster de se envolverem em questões políticas, tanto quanto o conseguirem, se é que sabem o que lhes
faz bem. - Cato fez uma pausa, antes de acrescentar: - Falo por experiência pessoal.
- Oh? - Glaber inclinou a cabeça, curioso. - Não quer elaborar um pouco?
- Não. - Cato rodeou o tribuno. - Com licença.
Dirigiu-se para junto de Macro, enquanto reprimia a vontade de bocejar. Doíam-lhe os olhos, e a pesada atmosfera dentro da tenda fazia-o sentir-se fatigado e dava-lhe
náuseas. Macro cruzou os grossos braços e rangeu os dentes.
- Quando ele acabar de conversar com os amigalhaços, já teremos chegado à porra da Saturnália.
Antes que Cato pudesse responder, Silano surgiu por entre as abas que delimitavam a parte privada da tenda, e colocou-se em sentido, enquanto anunciava:
- Atenção ao comandante!
Num repente todas as conversas se interromperam, e os oficiais colocaram-se em sentido enquanto Quintato entrava, seguido por um
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punhado de tribunos e pelo legado Valens. Quintato esperou que todos se aquietassem, e só então acenou ao prefeito do campo.
- À vontade!
Depois de deixar passar um instante para que a atenção de todos se concentrasse nele, Quintato deu início à reunião.
- Como já sabem, uma força inimiga numerosa surgiu na nossa retaguarda. É essa sem dúvida a razão para nenhum dos comboios de reabastecimento nos ter alcançado nos
últimos dias. E isso quer dizer que vamos ter que gerir os suprimentos que ainda temos no campo de forma muito cuidadosa. Porém, a mais imediata ameaça resulta de
estarmos presos entre esta nova força e o inimigo que nos enfrenta em Mona. Para já, bloqueámos o avanço desta coluna na entrada do vale. Mas podemos estar certos
de que eles arranjarão maneira de nos rodear durante a noite, ou amanhã pela manhã. Ao mesmo tempo, podemos apostar que os druidas e os seus amigos vão remover os
obstáculos no vau, para se prepararem para nos atacar a partir de Mona.
Dada a nova situação, temos pouco tempo para decidir qual o melhor curso de ação. Podíamos tentar lançar todo o nosso peso num assalto em várias frentes para atravessar
o canal e tomar a ilha. Nessa posição, facilmente manteríamos a principal força inimiga à distância, pelo tempo que fosse preciso. - Sorriu. - Seria engraçado vê-los
debater-se com os obstáculos que tantos problemas têm causado aos nossos rapazes nestes últimos dias. A questão é que qualquer tentativa de forçar a passagem pelo
vau será tremendamente custosa, e se os druidas optassem por uma política de terra queimada, acabaríamos por ficar retidos em Mona sem nada para nos suster durante
o inverno. O que não seria uma perspetiva de todo apelativa, senhores. Portanto decidi, embora com grande relutância, retirar para Mediolanum.
Os oficiais agitaram-se, em claro sinal de desconforto, e Cato percebeu perfeitamente porquê. O exército tinha sofrido centenas de baixas para conseguir chegar àquela
posição, e no momento em que tudo parecia indicar que os druidas iam ser eliminados de uma vez por todas, conseguiam novamente escapar à destruição.
- Não tenho escolha - prosseguiu Quintato. - E acreditem, sei bem que terei que enfrentar todas as consequências quando estas notícias chegarem a Roma. Mas quanto
a isso, nada a fazer. Se tentássemos tomar a ilha, o mais provável era que não conseguíssemos e fôssemos
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esmagados entre as duas forças inimigas. Se Mona não pode ser tomada, é meu dever tentar salvar este exército. - O legado deu um passo ao lado e solicitou a um dos
seus tribunos: - Livónio, o mapa, por favor.
O tribuno e o seu escravo, Hieropates, trouxeram uma moldura de madeira na qual tinham prendido o mapa que tinham vindo a desenhar todos os dias desde que o exército
dera início à campanha. Quando ficou no lugar indicado, Livónio colocou-se ao seu lado, enquanto o legado prosseguia o discurso, indicando as mais recentes adições
ao mapa.
- É aqui que estamos, senhores. A mais de cento e cinquenta quilómetros de Mediolanum, pelo caminho que seguimos para aqui chegar. Agora que o inimigo resolveu negar-nos
o regresso pela mesma rota, enfrentamos uma escolha. A nossa primeira opção é tentarmos abrir caminho, romper as linhas inimigas e regressar por onde viemos. Homem
por homem, temos muito melhores soldados do que eles, mas não deixaríamos de sofrer pesadas baixas. Eles são mais numerosos - mais ainda quando a guarnição de Mona
se juntar à refrega. Se, e mais provavelmente quando, isso suceder, poderão atacar-nos ao mesmo tempo pela vanguarda e pela retaguarda. Uma perspetiva pouco animadora;
mesmo que consigamos de alguma forma romper as linhas do exército inimigo, teremos que combater cada centímetro ao longo do caminho de regresso a Mediolanum, e esta
neve só tornará as coisas ainda piores. Teremos grandes problemas com o comboio das bagagens, isso é certo.
Fez uma pausa para dar maior ênfase às palavras, e depois apontou para a linha da costa.
- A alternativa, que eu prefiro, é seguir por esta rota, na direção da fortaleza de Deva. Não é tão direta como a retirada para Mediolanum, mas o caminho é mais
fácil para os vagões. Encerra contudo uma ameaça muito evidente: se o inimigo nos atacar pela frente, pelo flanco e por trás, ficaremos com as costas viradas para
o mar, e se nos virmos forçados a uma batalha em linha e formos derrotados, seremos literalmente empurrados para o mar. E, nesse caso, todo o exército será perdido.
Cato sabia que a perda de um exército teria profundas consequências. A destruição de praticamente duas legiões e das unidades auxiliares que lhes estavam adstritas
aumentaria enormemente a autoridade dos druidas, e inspiraria todos os guerreiros celtas que odiavam Roma a lançar-se numa revolta aberta. Os soldados ainda existentes
na Britânia seriam insuficientes para a reprimir, e o mais provável seria o novo
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governador chegar à ilha para descobrir que afinal já não tinha nenhuma província para gerir.
- A solução para este dilema - prosseguiu Quintato - é mantermo-nos em movimento ao longo da costa, tão depressa quanto pudermos. Se conseguirmos manter o exército
nativo à distância durante o tempo necessário para colocar os nossos homens em movimento, o inimigo não será capaz de nos bloquear a linha de marcha, e ver-se-á
obrigado a seguir-nos, mesmo que combine as suas duas forças. Vão andar a morder-nos os calcanhares, isso é certo, e a retaguarda da nossa coluna estará por isso
muito ocupada, mas assim conseguiremos realizar uma retirada em boa ordem, e sair das montanhas daqui a sete ou oito dias. Enquanto conseguirmos manter a coluna
bem unida e um andamento regular, devemos conseguir recuar sem grandes dificuldades. Algum comentário ou sugestão?
Ocorreu uma breve pausa, enquanto os oficiais ponderavam no que tinham acabado de escutar. Por fim o legado Valens levantou uma mão, e Quintato indicou-lhe com um
aceno que tomasse a palavra.
- Qualquer que seja o caminho escolhido, senhor, tanto homens como animais vão precisar de comida. Há já vários dias que não recebemos quaisquer suprimentos. Como
estão as reservas do exército nesta altura?
- O prefeito do campo pode dar-nos essa resposta.
Silano aclarou a garganta e olhou em volta da tenda.
- Temos dois dias de rações completas para os homens, e três dias para cavalos e mulas.
Levantou-se um burburinho ansioso entre os oficiais, antes de Quintato apelar ao silêncio e voltar a usar a palavra.
- Foi essa a razão de eu ter dado ordens para que os homens passem a receber meias-rações a partir deste momento. Informarão os vossos responsáveis de messes desta
decisão. Haverá algumas unidades que ainda tenham à sua disposição mais do que as quantidades de cevada e carne necessárias para três dias. Informarão Silano desse
facto. O mesmo se aplica às unidades que disponham neste momento de menos de dois dias de víveres. Tudo o que temos será partilhado por todos. Isso aplica-se também
aos oficiais. Cada um de nós deve aceitar o mesmo destino que os homens. Todas as reservas pessoais de comida e vinho deverão ser depositadas no quartel-general.
Se alguém for apanhado a
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açambarcar, tratarei do assunto com a mesma severidade com que trataria um roubo: o indivíduo em questão será espancado pelos seus camaradas, e ser-lhe-á negada
comida, assim como abrigo, até chegarmos a Mediolanum.
Dada a situação, e perante a chegada do tempo invernoso com o seu mordente frio, uma punição daquele género era equivalente a uma pena de morte, e todos os homens
na tenda o compreendiam. O silêncio manteve-se, à exceção do gemido do vento que se levantava no exterior da tenda.
- Muito bem, acho que todos compreendem a necessidade de nos movimentarmos o mais depressa possível. O exército começará a deixar o campo assim que cair a escuridão.
Os feridos serão transferidos para embarcações ainda capazes, de transportes ou militares, que seguirão ao longo da costa, à nossa frente. Pelo menos serão poupados
aos desconfortos e perigos da marcha. A artilharia será desmantelada a coberto da escuridão e carregada nos vagões. O campo será abandonado. Não podemos perder o
tempo necessário à sua demolição regulamentar. Deixaremos alguns dos nossos mortos nas muralhas, de forma a dar a impressão de que o exército ainda está no campo.
O embuste não enganará o inimigo durante muito tempo, mas talvez nos permita ganhar algumas horas. A força que neste momento está a bloquear a saída do vale será
substituída ao entardecer pelas coortes frescas da Décima Quarta, mas os trácios do prefeito Cato e os arqueiros manterão a sua posição. Tratarão de acender fogueiras
e disporão mais alguns dos mortos em redor delas, antes de retirarem e se juntarem à coluna que nessa altura já estará a caminho. Com alguma sorte, já teremos alguns
quilómetros de vantagem quando o inimigo se aperceber da nossa retirada. Depois disso, senhores, será uma verdadeira corrida.
Cato sugou o ar silenciosamente. E que corrida, refletiu. O exército, esfomeado e gelado, teria que atravessar campos cobertos de gelo e neve, sem se permitir um
descanso decente. Os que se revelassem demasiado lentos para manter o lugar na coluna ficariam para trás e à mercê dos druidas e seus aliados. O único prémio daquela
corrida seria a sobrevivência, mas chegaria com um custo terrível, expresso em sofrimento e perigo constante. O preço da derrota seria que todos os homens que ali
estavam na tenda, todos os que estavam no campo lá fora, morreriam. Por si mesmo, Cato já pouco se importava. O que significava para ele
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a vida, agora que Júlia já não estava ao seu lado? Apercebeu-se do medonho abismo repleto de dor que se abria à sua frente, e obrigou-se a recuar. Tinha que ser
forte, pelos seus homens, por Macro, e pelo seu filho. Até que a campanha terminasse. Só depois se poderia entregar por completo à dor e ao desespero.
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A madrugada ainda estava a algumas horas de distância quando Cato se apresentou ao legado Valens, que fazia o possível por se aquecer junto às brasas de uma fogueira,
na retaguarda das coortes dispostas no terreno de forma a garantir o domínio da boca do vale. Com ele encontravam-se o comandante dos arqueiros e os centuriões das
cinco coortes a quem fora confiada a tarefa de manter o inimigo à distância. O céu tinha continuado limpo durante a maior parte da noite, e junto ao horizonte podia-se
ver uma meia-lua que acrescentava o seu brilho ao cintilar distante das estrelas. O inimigo tinha tentado forçar a passagem durante a tarde do dia anterior, e voltara
a tentar assim que a escuridão começara a cair. De ambas as vezes, o assalto tinha sido detido por pesadas barragens de dardos e flechas, bem como pelos estrepes
e pelas fortificações que os legionários tinham erigido à pressa. Depois da segunda tentativa, os nativos haviam enviado grupos numerosos de homens pelas encostas
laterais do vale, para tentar flanquear os defensores. Os romanos, porém, tinham manobrado de forma a bloquear esses movimentos, e as forças dos dois contendores
tinham avançado a custo pela neve solta e profunda até se encontrarem, vultos escuros a trocarem golpes de espada, lança e escudo sobre um fundo alvo. Por fim a
refrega interrompera-se, com ambos os lados a recuarem quando a noite caiu, preocupando-se principalmente com a recolha de lenha que pudessem encontrar para fazer
as fogueiras que lhes permitissem comer e manterem-se quentes durante a noite que se adivinhava penosamente fria.
Cato e os Corvos Sangrentos posicionaram-se na retaguarda, prontos a cobrir uma eventual retirada, se a infantaria se visse forçada a abandonar a saída do vale.
Mas não tinham sido necessários e, depois de a noite cair, Cato dera ordens para que, à vez, os legionários alimentassem os animais e lhes tirassem de cima as selas,
para lhes darem algum
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descanso ao dorso e minimizarem o risco de surgirem feridas na pele dos cavalos. Graças à iluminação fornecida pela Lua e pelas estrelas, refletida na neve, não
tinha surgido qualquer oportunidade para intentar uma movimentação de surpresa, pelo que se tinha instalado uma calma nervosa na serena e bela paisagem montanhosa.
Mas, no mais profundo da noite, as estrelas começaram a apagar-se, um véu de nuvens finas surgiu sobre o rosto da Lua, e começou a tombar uma poalha de diminutos
cristais de neve. Foi nessa altura que Valens resolveu convocar os seus oficiais e preparar tudo para cumprir a mais difícil parte das suas ordens.
- Senhor, mandou chamar-me?
- Ah, prefeito Cato, isso quer dizer que já estamos cá todos. Vem para junto do fogo. - Valens designou um espaço entre os homens que se acotovelavam ao redor do
brilho caloroso que emanava das brasas ainda incandescentes da fogueira de campanha.
Cato notou a presença de Macro e acenou-lhe uma saudação, enquanto ocupava a posição ao seu lado. Fez um gesto para apontar a perna do amigo.
- Que tal tem andado?
Macro reassumira o comando da Quarta Coorte, e marchara à sua frente quando tinham avançado para render os homens que haviam estado a guardar a boca do vale, às
primeiras horas da noite.
- Ainda um bocado rígida, mas vou aguentando.
- Nada de surpreendente. É o que faz sempre. Duro como um cavalo, não é?
- Um cavalo velho, talvez. Mas ainda não estou pronto para o abate. Nem perto disso.
- Fico encantado por ouvi-lo dizer isso. - Cato sorriu brevemente, e depois baixou o tom de voz. - Por falar em cavalos, tenho um pronto para si, se vier a precisar
dele.
Macro cerrou os lábios.
- Obrigado. Esperemos que não seja preciso, sim?
Enquanto os dois conversavam, Valens perscrutava a escuridão, focado na miríade de fogueiras distantes que se viam espalhadas pela extensão do vale, a mais de quilómetro
e meio, e que marcavam a posição do exército inimigo. Voltou por fim a atenção para os seus subordinados.
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- Chegou o momento de começarmos a retirada. O prefeito Parmínio e os seus arqueiros serão os primeiros a marchar. Depois irá a Primeira Coorte de legionários; a
distância entre as diferentes unidades deve ser de uns quatrocentos metros. A Quarta Coorte será a última unidade de infantaria a deixar a posição, depois de terem
cumprido a última tarefa de que estão incumbidos.
Macro não evitou uma espreitadela aos vagões carregados de cadáveres, estacionados a curta distância. Não era algo que lhe agradasse contemplar. Mas até na morte
os camaradas que tinham tombado podiam vir a prestar um precioso auxílio aos que ainda viviam, e ele preparou-se para o trabalho que os aguardava.
- O elemento final do plano estabelecido pelo Quintato requer que os Corvos Sangrentos permaneçam nesta posição, para manter a ilusão de que continuamos a defender
esta passagem com uma força importante. Prefeito Cato, tu e os teus homens só retirarão quando o inimigo se aperceber desta nossa artimanha. Nunca antes disso. Preciso
que nos consigas o máximo de tempo possível, para termos oportunidade de nos reunirmos à coluna principal.
Cato assentiu com firmeza.
- Senhor, pode confiar nos Corvos Sangrentos.
- Atrevo-me a dizer que foi por isso mesmo que o legado te escolheu para comandar a retaguarda, Cato. Precisamente a mesma razão que fez com que te fosse atribuído
o lugar da vanguarda durante o nosso avanço. Os primeiros a entrar em ação, os últimos a deixá-la. Estás a conseguir uma reputação e tanto, hã?
- Talvez, senhor. Mas a questão é saber se consigo viver tempo suficiente para poder aproveitar a reputação que adquiri.
O comentário produziu algumas risadas bem-dispostas entre os outros oficiais, e a tensão perante a difícil situação em que se encontravam pareceu amainar muito ligeiramente.
Nesse momento, Cato apercebeu-se de um leve movimento a passar junto ao olho, e sentiu algo a tocar-lhe a face. Olhou para cima e deparou-se com a chegada de um
nevão, que rodopiava já sobre as montanhas. Os outros também o admiravam, e instalou-se um breve silêncio, que Valens interrompeu com um tossicar.
- Senhores, têm as vossas ordens. Prefeito Parmínio, começa a retirar os teus homens assim que puderes fazê-lo em segurança. Mantenham
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a calma, façam pouco barulho, e que Fortuna marche ao vosso lado. Dispensados!
A queda de neve aumentou de intensidade e começou a toldar a visibilidade, de maneira que as fogueiras inimigas depressa ficaram reduzidas a pequenas manchas vermelhas.
Assim que se certificou de que a retirada ia passar despercebida, Valens deu ordem de marcha aos arqueiros, e Parmínio conduziu os seus homens a caminho da estrada
costeira que o resto do exército já percorria. Quando estavam já quase fora de vista, a Primeira Coorte da legião seguiu-os, os homens embrulhados nas suas capas
antes de porem às costas as suas cargas pessoais e se fazerem ao caminho em silêncio pelo meio da neve que cobria já rochas, árvores e solo. O legado montou no seu
cavalo e seguiu com os últimos membros do seu destacamento, deixando na retaguarda a Quarta Coorte e os Corvos Sangrentos.
Enquanto as silhuetas dos legionários se dissolviam na escuridão, Cato virou-se para Macro, com uma expressão determinada no rosto.
- Chegou o momento de começar.
- Não posso dizer que esteja com muita vontade de fazer isto - comentou Macro. - Não é propriamente o tipo de despedida que os pobres rapazes esperavam quando se
alistaram.
- Macro, eles estão mortos. Não se vão aperceber de nenhuma indignidade. Além disso, se fosse comigo, e se soubesse que mesmo depois de morto poderia ainda ajudar
os meus camaradas, seria com todo o agrado que o faria.
Macro contemplou-o, sem esconder a dúvida.
- Bom, suponho que sim.
- E ainda mais, o inimigo fez uma coisa muito parecida connosco no início da campanha, e enganou-nos bem. Portanto, ao trabalho. Vou trazer os trácios para a frente
e dar a entender ao inimigo que ainda aqui estamos todos. A Quarta pode começar a dispor os cadáveres. Não temos tempo a perder, Macro. Quanto mais cedo isto estiver
feito, melhor. Pode parar de nevar a qualquer momento, e a última coisa que queremos é que o inimigo veja aquilo que estamos a preparar.
- Sim, senhor. - Macro assentiu e virou-se para chamar os seus homens, de modo a começarem a macabra tarefa. Metade da coorte permaneceu em armas, a guarnecer a
fraca linha de defesa virada para o
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vale. Os outros aproximaram-se dos vagões e começaram a descarregar cadáveres. Os corpos foram levados para junto das fogueiras e dispostos ao seu redor, colocados
em posição sentada ou de pé, como se estivessem a aproveitar o calor dos fogos. Depois de os colocar em posição, Macro ordenou que as fogueiras fossem atiçadas,
de maneira a que continuassem a arder até muito depois de os últimos romanos vivos terem deixado a área. Quando a neve cessasse de cair, o inimigo avistaria os vultos
agrupados junto às fogueiras com clareza, e com certeza esperaria até à alvorada, quando as defesas se iam tornar mais evidentes, antes de preparar um novo ataque.
Por essa altura, os romanos já teriam marchado muitos quilómetros. Mais importante, não se veriam encurralados entre as forças dos druidas em Mona e os seus aliados
que desembocavam das montanhas.
Cato levou os seus homens para a frente, interrompendo a marcha a curta distância do local onde o solo tinha sido semeado com estrepes. A neve fresca escondera os
pequenos montículos que denunciavam a colocação dos espigões metálicos, e aquela extensão de branco imaculado tinha dissimulado na perfeição a ameaça que se escondia
sob ele, pronta a deixar estropiado qualquer homem ou cavalo que o infortúnio levasse a pisar uma daquelas cruéis peças.
- Miro!
- Sim, senhor?
Cato considerou rapidamente qual a melhor forma de dispor os cerca de cem homens montados que ainda tinha no seu comando.
- Quero um esquadrão em cada flanco, dois a patrulhar o terreno entre eles e o último de reserva. Não avancem para lá deste ponto, e trata de garantir que nenhum
dos rapazes se lembra de perseguir qualquer grupo inimigo que se aproxime demasiado. Não nos podemos arriscar a ver-nos metidos em escaramuças.
- Sim, senhor.
Enquanto aguardava que as suas ordens fossem cumpridas, o prefeito procurou sinais do inimigo. De vez em quando apercebia-se de um vulto distante, sem dúvida um
dos batedores que se aproximava um pouco mais para ver o que faziam os romanos, mas depressa esses vultos se voltavam a esconder. Por fim, ficou convencido de que
o inimigo não se preparava para lançar qualquer ataque naquela altura, e recuou até se juntar a Macro. Encontrou-o a orientar a colocação dos últimos
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cadáveres em torno de uma fogueira. Não era um trabalho fácil. Alguns dos corpos tinham ficado hirtos em posições que tonavam fácil colocá-los agachados junto a
um fogo. A outros tal não havia sucedido, e tinham que ser colocados de pé, amparados por paus, ou então deitados no solo, as capas a cobri-los, como se estivessem
a tentar manter o calor do corpo. Era uma visão sinistra. Os rostos, alguns mutilados e cobertos de cortes, eram iluminados pelas chamas, que acentuavam os maxilares
abertos, os olhos vazios, incapazes de ver. Em vida, numa noite assim estariam sem dúvida sentados ao redor de uma fogueira daquelas, a partilhar vinho, a contar
piadas, em alegre camaradagem. Mas, naquele momento, os corpos imóveis e silenciosos pareciam uma sórdida imitação da ideia de uma existência vibrante no exército,
que em tempos fora a sua. Todas as memórias, as experiências e as ambições - desaparecidas.
Macro dispôs uma capa sobre os ombros de um último cadáver, e levantou-se para examinar o trabalho. Fez uma festa na cabeça do falecido e virou-se, com uma expressão
atormentada, deparando com Cato.
- Está feito, senhor. Todos foram colocados em posições adequadas.
- Bom trabalho, Macro.
- A verdade é que não consigo alegrar-me por isso, mesmo que perceba a razão para o fazer. Estes rapazes mereciam um funeral decente.
- Assim que chegarmos a Deva, serão lembrados com todas as honras. Juro-o.
Macro sorriu.
- Queres dizer, se chegarmos a Deva?
Cato endireitou o pescoço.
- Macro, o que é isso? Está a perder a esperança, ainda antes de começarmos? Ainda nem sequer teve ocasião de aplicar umas cacetadas ao inimigo. Deve ser um sinal
da idade.
Macro franziu o sobrolho.
- Quanto a isso, senhor, e com o máximo respeito, gostaria de lhe pedir simplesmente que se fosse foder, mais a ideia.
Cato soltou uma gargalhada.
- Assim é melhor! Ultimamente, temos tido muita dor e lamentos por estas bandas...
De repente a sua expressão mudou, e obrigou-se a fechar firmemente a boca por momentos, até conseguir recuperar o controlo da mágoa que mais uma vez ameaçava tomar-lhe
conta do espírito. Sabia que não
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se podia permitir deixar-se afundar na sua tragédia privada. Não naquele momento, quando as vidas dos seus homens dependiam de ele ser capaz de concentrar todos
os seus esforços no cumprimento do dever. Haveria tempo para contemplar a morte de Júlia, mais tarde. E se não sobrevivesse aos desafios que os próximos dias lhe
iam trazer, tanto melhor. Ver-se-ia assim poupado à angústia infinita que a perda da sua maravilhosa esposa lhe trazia, e ver-se-iam de novo reunidos, nas sombras
que sucediam àquela vida. Fez o melhor que pôde para afastar todo e qualquer pensamento acerca de Júlia e respirou fundo, longamente, para depois adotar uma expressão
concentrada.
- Centurião, é altura de levar os seus homens para longe daqui.
- E quanto aos vagões, senhor?
Cato olhou em volta e avistou os veículos, a neve a acumular-se junto às rodas. As equipagens de mulas mantinham-se nos seus lugares, as cabeças baixas, enquanto
os flocos se depositavam sobre o pelo dos dorsos e começavam imediatamente a derreter.
- Deixe-os. Só serviriam para nos atrasar.
- E as mulas?
Essa era outra história. As mulas eram valiosas, e não podiam permitir que tombassem em mãos inimigas. Noutras circunstâncias, Cato teria ordenado que Macro as abatesse
a todas, mas elas ainda podiam vir a revelar-se úteis ao exército.
- Tire-lhes os arreios e leve-as. Podem levar equipamento, ou qualquer baixa que ocorra. E se chegarmos a esse ponto, serão sempre úteis, é comida que se transporta
a si mesma.
- Sim, senhor. - Macro fez uma careta. - Não é propriamente a minha carne preferida.
- Com tudo o que nos espera, duvido que seja a pior coisa que ainda nos vamos ver obrigados a comer. Bom, Macro, será melhor pôr-se em marcha. E não se esqueça de
levar também o cavalo que lhe designei.
Trocaram um aperto de braços, e Macro abandonou de novo o tom formal.
- Não te exponhas a riscos desnecessários, ouviste?
- Ficaremos bem. Os nossos cavalos estão frescos e não teremos dificuldade em nos mantermos à frente do inimigo. Trate é de garantir que a sua unidade estará a postos
para fazer meia-volta e nos apoiar quando nos juntarmos à coluna.
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- Isso é garantido. Boa sorte, senhor.
Macro libertou o braço do amigo, e trocaram um cumprimento formal antes de ele se virar e dar ordens para que a sua coorte formasse. Os legionários mexeram-se através
da neve que lhes chegava aos tornozelos para tomarem os seus lugares e, quando todos estavam prontos, Macro deu ordem para avançar. Cato ficou a ver o amigo a trepar
para a sela da montada e a conduzi-la para a cabeça da coorte, para levar os seus homens através da neve que continuava a descer do céu escuro. Daí a pouco já não
se viam, deixando as linhas romanas nas mãos de Cato, dos seus homens, e dos mortos. Estes davam ideia de esculturas, pensou, enquanto observava a forma como a neve
se acumulava junto deles e se depositava nas suas cabeças, de onde já não se libertava qualquer calor que a derretesse. Se o nevão continuasse, pela manhã estariam
cobertos. Montículos de formas estranhas na paisagem de inverno, à espera de serem desvendados pelo inimigo.
Cato afastou do pensamento a mórbida imagem, e dirigiu-se para o centro da linha, onde Miro e o esquadrão de reserva aguardavam, com o estandarte dos Corvos Sangrentos.
Os homens andavam para cima e para baixo, para impedir os pés de congelarem, e sopravam sobre as mãos encaixadas umas nas outras. Os animais aguardavam, as cabeças
pendentes; uma brisa começou a soprar pelo vale, vinda das montanhas.
Cato trocou um aceno com Miro, antes de este falar.
- Senhor, quanto tempo é que ainda vamos ficar aqui?
- O tempo necessário para permitir que o Valens e os outros consigam reunir-se à coluna principal. Pelo menos até à alvorada.
Enquanto falava, Cato apercebeu-se de que tinha perdido por completo a noção do tempo, dada a exaustão que lhe toldava a mente. Naquele instante, daria um ano de
salário para estar sentado à lareira numa caserna quente em Viroconium, a beberricar vinho aquecido. Ou melhor ainda, em Roma, com Júlia, na casa do pai dela. O
agudo ferrão da agonia veio com a imagem, afastando imediatamente o cansaço, e ele limpou a garganta.
- Verifica se todos os cavalos estão bem alimentados. Daqui a pouco vão precisar de todas as suas forças. Passa a palavra aos outros esquadrões.
Miro concordou e falou aos seus homens, antes de subir para a sela para ir levar a ordem aos outros. Cato sentiu-se aliviado quando ele
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deixou a cena, já que estava farto das constantes queixas do decurião. Começou também ele a andar para um lado e outro junto ao estandarte, para não deixar os membros
ficarem dormentes. A neve já tinha quase vinte centímetros de espessura, e ele foi pontapeando o pó solto até criar um estreito trilho para percorrer, com uns trinta
passos de comprimento. Por fim Miro regressou, e ali ficaram à espera, enquanto o nevão se tornava mais intenso, transformando-se numa tempestade que uivava aos
ouvidos de Cato e levava a neve a ser arrastada pelo vento.
Devia ter passado cerca de uma hora, tanto quanto conseguia calcular, quando surgiu um cavaleiro do flanco direito, a neve a espalhar-se por todo o lado devido aos
cascos da montada.
- Senhor, peço licença, o inimigo está em movimento!
- O que estão eles a preparar? - inquiriu Cato. - Exatamente.
O homem engoliu em seco e respirou fundo.
- Avistámos um grupo de infantaria a deslocar-se para nos flanquear. O decurião Temistocles diz que os manterá sob vigilância apertada até receber novas ordens.
Cato assentiu para si mesmo. Chegara portanto o momento. Os nativos estavam claramente empenhados na libertação da saída do vale, o mais depressa possível, de forma
a permitir ao seu exército avançar contra os romanos assim que o dia clareasse.
- Diz ao decurião para esperar pelo sinal da trombeta. Assim que o ouvir, deve recuar até à zona das fogueiras. Vai!
O homem puxou pelas rédeas, fez o cavalo rodar e afastou-se a galope pela neve acumulada. Cato virou-se para Miro e os outros.
- Montar!
Os homens não precisaram de novo encorajamento para trepar para as selas, e em poucos momentos o esquadrão ficou pronto a seguir. Enquanto aguardavam, de lanças
na mão, Cato manteve o olhar fixo em frente, tentando perscrutar a escuridão. Por fim conseguiu distingui-los, uma linha de figuras a avançar pela neve. Ao mesmo
tempo ouviu gritos abafados, vindos da sua esquerda, e virou-se para o trombeteiro.
- Dá o sinal!
O soldado levou o instrumento metálico à boca e soprou. Uma nota fina e pouco segura soltou-se da outra ponta, e Cato percebeu que o frio devia ter deixado os lábios
do homem secos.
- Cospe, por Júpiter! Cospe, homem!
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O soldado virou a cabeça e arrancou um escarro da garganta, antes de voltar a pegar no instrumento. Desta vez encheu as bochechas de ar e soprou, produzindo uma
nota clara e capaz de se propagar pelo ar. Repetiu-a três vezes antes de descansar, e depois repetiu o sinal. Enquanto o fazia, os guerreiros inimigos que se aproximavam
detiveram-se, incertos quanto ao significado daquela nota. Ouviu-se logo uma voz irada, e eles voltaram a avançar, aparentemente esquecidos dos estrepes que os tinham
surpreendido na véspera.
- Corvos Sangrentos! - lançou Cato. - Recuar!
Os trácios fizeram rodar os cavalos e retiraram a trote na direção do brilho das fogueiras, que ainda ardiam fracamente na escuridão. Um pouco adiante, Cato avistou
outros cavaleiros à sua direita, e por instantes interrogou-se se poderiam ser inimigos, até avistar a flâmula de um dos seus esquadrões e soltar um suspiro de alívio.
Deteve Miro e os seus homens perto do que restava da fogueira junto à qual se tinha despedido de Macro. O fogo estava praticamente extinto, só umas pequenas labaredas
dançavam ao vento por entre as brasas e as cinzas. Em volta da fogueira, os cadáveres estavam quase completamente cobertos pela neve. Cato aguardou ansiosamente
pela chegada do primeiro esquadrão, e depois outros dois se lhe juntaram: os que tinham sido designados para patrulhar a linha de frente. Faltava o do flanco direito.
Só Temistocles e o seu esquadrão permaneciam algures no meio do nevão.
Corvino aproximou-se de Cato com uma expressão preocupada, detendo a sua montada junto à do prefeito.
- Estão a tentar rodear o flanco esquerdo, senhor. Vimo-los logo depois de ter soado o sinal.
- Estão é a tentar forçar as duas extremidades da frente. Faz sentido
- replicou Cato. Ouviu então gritos à esquerda, seguidos do inconfundível entrechocar do aço. Todos os homens se viraram imediatamente para a origem do som, e Cato
levou um instante a recuperar o sangue-frio e a dar ordem para formar uma linha de batalha. Os Corvos Sangrentos apressaram-se a dispor-se conforme indicado, posicionando
os escudos para cobrir os corpos e aperrando as lanças. Os sons cresceram de intensidade, até que por fim Cato avistou o primeiro dos cavaleiros do esquadrão do
flanco direito a abrir caminho pela neve até junto deles. Adiantou-se à linha para intercetar o homem, e notou que ele estava ferido numa perna, de onde o sangue
pingava, negro na escuridão reinante.
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- O que aconteceu? - indagou Cato. - Ordenei ao Temistocles que não se envolvesse em combate algum.
- O decurião está morto - ripostou o homem, a respirar com dificuldade, enquanto o cavalo resfolegava. - Mantivemo-los debaixo de olho, mas eles atacaram-nos de
três lados. Sofremos várias baixas antes mesmo de percebermos o que se estava a passar. - Espreitou por cima do ombro, claramente alarmado. Havia mais cavaleiros
a saírem da escuridão, e Cato ordenou-lhes que formassem por trás de Traxis.
Voltou-se novamente para o ferido.
- Quantos eram?
- Eu... eu não faço ideia, senhor. Uns cem. Talvez mais.
- Muito bem, junta-te à retaguarda!
Cato regressou à sua posição ao centro da linha, e aguardou até se tornar evidente que os últimos sobreviventes do malogrado esquadrão já se tinham juntado ao grupo;
nessa altura, voltou a perscrutar a escuridão com toda a atenção, até avistar o inimigo, uma série de vultos a pé que corriam na sua direção, dispersos pelo terreno.
Se conseguissem chegar junto das fogueiras, a artimanha dos romanos seria imediatamente desmascarada. Se fossem contrariados e obrigados a recuar, talvez isso atrasasse
mais um pouco a perseguição, pelo menos até nascer a luz. Desembainhou a espada e agitou-a no ar, apontando para a frente.
- Corvos Sangrentos! Avançar!
Conduziu o cavalo a passo, e começou a aumentar-lhe a velocidade, primeiro num trote ligeiro e depois mais rápido. A distância entre os cavaleiros e os nativos que
assaltavam a posição diminuiu rapidamente. No último momento, a não mais de trinta passos dos inimigos mais próximos, Cato deu ordem para carregar, e os Corvos Sangrentos
soltaram um urro incoerente à laia de grito de guerra, enquanto instavam as montadas e baixavam as pontas das lanças. Flocos de neve embateram no rosto de Cato e
ele viu-se forçado a piscar os olhos enquanto se preparava para o embate, firmando-se na sela e colocando a espada em posição para desferir golpes mortais. Os nativos
tinham-se lançado numa perseguição vitoriosa a um inimigo que julgavam destroçado, mas viam-se agora noutra posição, e os gritos de triunfo morreram-lhes nas gargantas
quando viram os Corvos Sangrentos a precipitarem-se sobre eles. Cato reparou num grupo pouco denso à sua frente, e avançou diretamente contra eles.
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Os nativos espalharam-se, lançando-se para o lado sobre a neve. Um, mais lento do que os companheiros, mergulhou mesmo por baixo do cavalo, e o grito que soltava
morreu quando o peso do animal lhe esmagou o peito. Cato desferiu um golpe de espada contra o último homem no seu caminho, e a lâmina rasgou-lhe as costas e o ombro,
fazendo-o tombar de joelhos. A seguir o prefeito deu meia-volta e lançou-se contra os que se tinham desviado da primeira carga. Dois homens correram agachados para
sair da sua frente. O último firmou-se na neve e brandiu um machado. Cato desviou-se para aparar o golpe com o escudo e torceu-se na sela para atacar a cabeça do
homem. O opositor tinha bons reflexos, e conseguiu bloqueá-lo com o escudo, antes de recuar. Com toda a atenção fixa no oficial romano, nem reparou no trácio que
se aproximava pelas suas costas, de lança em riste, e foi projetado para a frente, em pleno ar, quando a ponta ensanguentada da arma lhe irrompeu pela garganta.
Cato tomou nota de que a carga tinha desbaratado o inimigo por completo, e os nativos corriam agora na direção de onde tinham vindo, alguns abandonando mesmo as
armas e só pensando em escapar ao contra-ataque dos Corvos Sangrentos. Traxis e o trombeteiro estavam ali perto, e Cato virou-se para eles.
- Faz soar a retirada!
A nota estridente soou por cima do vento e dos sons de combates dispersos, e os oficiais chamaram os seus homens para junto dos respetivos estandartes, aos berros.
Alguns precisaram de argumentos mais fortes, como promessas de punições, para se deixarem persuadir. Daí a pouco já não se via nenhum elemento inimigo, à exceção
dos que tinham sido abatidos na carga, e os Corvos Sangrentos voltaram a formar por esquadrões. Temistocles e vários dos seus homens estavam em falta, pelo que Cato
tomou pessoalmente o comando dos sobreviventes desse esquadrão. Quando todos os homens se encontravam nas suas posições, virou o cavalo na direção da costa e deu
sinal para avançarem.
Já conseguia ver melhor à distância e distinguir mais detalhes, e compreendeu que a alvorada já não estava muito distante. Olhou de novo para as fogueiras e para
as formas imóveis dos mortos, e lançou uma prece a Fortuna, para que o inimigo levasse algum tempo a recuperar da carga dos seus homens, e se detivesse ainda mais
ao ver o que pareciam soldados romanos ainda nas suas posições. Pelo menos o tempo suficiente para que os Corvos Sangrentos ganhassem avanço bastante
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e evitassem também serem intercetados pelo inimigo que com certeza atravessava já o canal vindo de Mona.
À medida que o céu clareava, também a neve deixava de tombar, até que só vogavam na brisa pequenos flocos, como se fossem pó. Cato e os seus homens encolhiam os
pescoços para enfiarem as cabeças nos capuzes das capas. À sua esquerda viam os contornos do grande campo do exército, que acompanhava as irregularidades do terreno.
Também lá tinham sido acesas grandes fogueiras, bem abastecidas de lenha e deixadas a arder, a soltar fumo que se evolava ao sabor do vento, dando a impressão de
que as coortes romanas ainda lá estavam. Ao longo da paliçada e nos torreões viam-se os vultos de mais alguns elementos das baixas sofridas pelo exército. O efeito
era bastante convincente, admitiu Cato, e poderia bem ser capaz de iludir o inimigo mais algum tempo.
Levou os seus homens em direção ao mar, cinzento e agitado, com cristas de espuma branca enquanto se precipitava sobre a praia rochosa, soltando um contínuo e ritmado
rugido. Depararam com o caminho seguido pelo resto do exército quase por acidente. A neve tinha apagado os traços dos milhares de botas, cascos e rodas de carroças,
mas a superfície irregular que ficara era ainda percetível, e Cato conseguiu segui-la com facilidade, tomando a direção da coluna e levando os Corvos Sangrentos
num trote constante. A neve lançada ao ar pelos cascos criava como que uma nuvem, que rodopiava silenciosamente pelo terreno, e a ausência do habitual troar de um
grupo de cavaleiros em movimento só acentuava a sensação de irrealidade que Cato experimentava. Apesar da grave ameaça que pesava sobre ele e os seus camaradas,
e do frio que gelava até a lama, os seus pensamentos regressaram inevitavelmente a Júlia.
Que ela pudesse estar morta, continuava a parecer-lhe impossível. Ela, que fora abençoada com uma centelha divina de vivacidade, que o tocara desde a primeira vez
que a vira. Confiante, enfrentara cada desafio que tinham encontrado juntos com toda a coragem e resistência de um veterano experimentado: desde o cerco de Palmira
ao naufrágio junto à costa de Creta, e à sua captura e humilhação às mãos de Ajax e os seus escravos rebeldes. Por um momento, enquanto seguia a balançar suavemente
na sela, Cato relembrou o rosto da amada. O queixo ligeiramente quadrado, o nariz diminuto, os olhos cinzentos e as sobrancelhas escuras que de vez em quando se
arqueavam, quando ela decidia troçar
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dele. E o cabelo escuro que escorria do alto da cabeça e se derramava sobre os ombros. Apercebeu-se da falta que ela lhe fazia, tanto física como emocionalmente.
Ela era magra, com seios que lhe cabiam facilmente na mão, e um ventre liso que conduzia ao pequeno tufo escuro e suave de cabelo púbico - uma visão que lhe inflamava
o ser, de cada vez que o via. As curvas suaves das suas nádegas, sem falhas, doces. As pernas que eram um pouco mais curtas do que deviam ser, um dos pequenos desvios
do ideal, e eram vários, mas que tinham deixado em Cato a imagem da perfeição. O seu coração sofria para lá do concebível ao realizar que ela já não respirava. Que
ele nunca mais sentiria o calor dela ao seu lado. Ela era como os outros, os que tinham sido deixados ao inimigo, mortos, frios. Mas, se eles tinham sido abandonados
às forças da corrupção corpórea, pelo menos Júlia teria sido poupada a essa indignidade, quando o seu corpo tivesse sido cremado. A ideia da sua beleza a ser reduzida
a pele ressequida esticada sobre ossos, músculos e órgãos mirrados fez Cato sentir-se enjoado.
Abriu os olhos, quase num susto, e ficou furioso ao verificar que se tinha desviado alguns passos da leve pista deixada sob a neve. Um toque nas rédeas recolocou
a montada no caminho correto e ele disse a si mesmo, mais uma vez, que precisava de aceitar o facto: Júlia estava morta. Tinha a perfeita consciência de que ela
quereria que ele continuasse a viver e que tentasse encontrar a felicidade. Mas Cato sabia, com a mesma certeza com que sabia que o Sol subiria no céu depois da
alvorada, que nunca deixaria de contemplar o tempo que tinha partilhado com Júlia, e que o presente e qualquer perspetiva de futuro seriam sempre assombrados pela
sua memória. Cada dia de primavera, cada botão de flor, o brilho de jade das novas folhas, o perfume inebriante da vida a renascer, nunca voltariam a refrescar-lhe
o espírito como em tempos tinham sido capazes de fazer. Para ele, o futuro era um perpétuo inverno da alma, a vida submersa num manto tão branco como umas velhas
ossadas, frio como gelo e varrido por um vento onde se escutavam os suspiros devidos a cada prazer perdido e que agora lhe era para sempre negado. E nada alguma
vez poderia alterar isso.
- Senhor!
Cato deu novo pulo na sela, e piscou os olhos com força. Miro estava ao seu lado, e espetava o pescoço enquanto apontava em frente. A um quilómetro e meio mais adiante
era visível a cauda da coluna romana,
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que cobria uma larga faixa na paisagem invernal. Os vagões seguiam no meio de unidades de infantaria, e os homens eram forçados a empurrar as rodas para ajudar a
mover veículos que tinham ficado atascados ou se debatiam com algum declive mais íngreme. A cavalaria formava uma longa cortina de vigilância do lado do caminho
que dava para a terra, enquanto o outro flanco era protegido pela própria costa. Mais cavaleiros eram visíveis à distância, a bater o terreno à frente da coluna.
Cato esforçou a vista para olhar para lá destes, para leste, na direção que guardava a possibilidade de salvação daquele exército. Mas no seu coração não conseguia
deixar de pensar que já estava morto, e que se limitava a contemplar os milhares de homens que em breve partilhariam esse destino, de forma quase inevitável.
- Mantém-nos em andamento - disse a Miro, e levou a montada para fora da estrada, antes de se voltar e olhar para o caminho de onde tinham vindo. A coorte abrira
uma pista bem evidente na neve, e até que caísse outro nevão seria extremamente fácil de seguir, como se fosse um dedo a apontar diretamente para o exército romano
em fuga. O inimigo não teria qualquer dificuldade em descobri-los. E nessa altura lançar-se-ia numa perseguição selvagem da presa, determinado a alcançá-los e desfazê-los
em mil pedaços.
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os primeiros dois dias de marcha poucos sinais tiveram da presença do inimigo, embora os batedores nativos tivessem travado algumas escaramuças com os romanos logo
ao entardecer do primeiro dia da retirada. Os cavaleiros celtas foram primeiro avistados à distância, a mais de três quilómetros atrás da coluna. Depois de terem
encontrado o exército romano, avançaram de imediato a galope e só foram obrigados a recuar quando Cato e os seus Corvos Sangrentos deram meia-volta e se prepararam
para os confrontar. Porém, eles optaram por não se envolver em combate com os romanos, e limitaram-se a retirar para as colinas que ladeavam a estrada seguida pelo
exército, e a vigiá-los, mantendo o mesmo ritmo de marcha. Tarefa nada complicada para os guerreiros nativos, já que a coluna romana enfrentava grandes dificuldades
para ultrapassar as acumulações de neve que lhe bloqueavam a passagem. Em cada ocasião que os vagões tinham que interromper o avanço, os homens pegavam nas suas
pás e limpavam o caminho. E os problemas voltavam a surgir quando, depois da passagem de botas e rodas, a neve ficava compactada e se transformava em placas de gelo
que tornavam o avanço muito difícil para os mais atrasados. A única ideia que dava algum alento a Cato era que os druidas e os seus seguidores teriam que enfrentar
as mesmas condições, embora não tivessem o peso dos vagões e de outros veículos que prejudicavam o exército romano.
O legado Quintato conduziu os homens o mais longe possível antes de dar ordens para fazer alto para a noite. Graças ao avanço que os romanos tinham conseguido, não
considerava provável que os nativos os alcançassem antes do dia seguinte. Assim, não tinha sido construído o campo regulamentar, e os soldados limitaram-se a instalar
um perímetro de defesas ligeiras, com longas estacas aguçadas unidas para formar barricadas. Ao chegar a alvorada, estas eram fáceis de desmontar
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e colocar nos leitos dos vagões ou nos dorsos das mulas. Assim que as tendas foram erigidas, todos os que não estavam de serviço enfiaram-se no seu interior para
tentar escapar ao pior do vento e ao frio, e para mastigar desconsoladamente as suas magras rações.
Os homens da retaguarda não tinham tanta sorte. Quintato dera ordens para que os Corvos Sangrentos se mantivessem de guarda, e assim os homens de Cato só puderam
descansar metade da noite. A coorte de Macro fora mais uma vez colocada no pequeno comando de Cato, e tinha por missão fornecer o efetivo necessário para deter o
inimigo em caso de ataque. Mas os legionários eram pelo menos poupados aos rigores do serviço de piquete numa gélida noite de inverno. Na altura da mudança de turno,
Cato avançou com uma pequena escolta, percorrendo com todas as cautelas alguns quilómetros do caminho que já tinham feito. Se os batedores inimigos estavam a vigiar
a coluna romana, nem por isso se deram ao trabalho de defender as suas posições e enfrentar o pequeno grupo. Por fim, do cimo de uma colina, Cato avistou as fogueiras
do acampamento inimigo, uns doze quilómetros atrás da coluna romana. A menos de um dia de marcha, e muito mais próximos do que ele pensara, dados os truques que
tinham sido usados para atrasar os nativos.
Os romanos desmontaram o acampamento e prosseguiram assim que a luz ressurgiu. Pela primeira vez em vários dias, o Sol subiu num céu limpo. Ainda assim, pouco calor
derramava sobre a paisagem invernosa, e as montanhas e colinas projetavam longas sombras sobre a neve. As rações tinham voltado a ser cortadas na véspera, e os primeiros
sinais de fome começaram a fazer-se sentir ao fim do segundo dia. Exaustos pelas longas horas de marcha, os homens tinham desenvolvido um enorme apetite, sendo este
satisfeito com a minúscula porção de cevada e carne seca que lhes era distribuída.
À tarde, o número de cavaleiros inimigos que acompanhava a marcha da coluna romana tinha crescido de forma significativa e, quando a coluna se deteve, pouco antes
do escurecer, os batedores de Cato anunciaram que uma importante força de infantaria nativa se encontrava a não mais de seis quilómetros, e continuava a aproximar-se.
Quando a última réstia de luz desaparecia, surgiram no horizonte, recortados contra o brilho vermelho do Sol poente. Ali ficaram em silêncio por algum tempo, antes
de recuarem e desaparecerem da vista dos romanos. Desta
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vez Quintato tinha dado ordens para que o acampamento fosse rodeado por um fosso e muralha de terra, e os homens labutaram pela noite dentro, debatendo-se para partir
o solo gelado, até que o comandante se deu por satisfeito.
No momento em que os oficiais cansados se dirigiram à tenda do quartel-general, quando da primeira mudança de turno, nuvens esparsas corriam pelo céu estrelado.
Cato e Macro tinham conduzido uma derradeira ronda às posições do piquete colocado no exterior do campo, e foram os últimos a chegar. Enquanto se juntavam aos outros
oficiais de pé na tenda, o legado Quintato limpou a garganta e tossiu, antes de passar demoradamente o olhar sobre os rostos dos seus subordinados e por fim dar
início à reunião quotidiana.
- Senhores, a nossa situação tornou-se mais séria, agora que o inimigo está tão próximo. Podemos partir do princípio de que amanhã vão seguramente tentar provocar
um confronto. Por muito tentadora que seja a ideia de fazermos meia-volta e lhes darmos uma boa sova, isso só conseguiria atrasar-nos ainda mais, e seria fazer precisamente
o que eles querem. Já devem ter percebido que estamos com escassez de víveres, e que quanto mais tempo nos conseguirem prender nestas montanhas, mais fracos ficaremos
e mais fáceis seremos de derrotar. Temos portanto que continuar em movimento. O que será, só por si, uma tarefa cada vez mais complicada, graças ao tempo e à redução
das rações para um quarto do normal, que terá efeito já a partir de amanhã.
Macro soltou um gemido baixo ao escutar aquelas palavras, no que foi imitado por muitos outros oficiais. Mas o legado ignorou-os, e prosseguiu.
- Não temos outra opção. Esta redução dá-nos mais dois dias. Depois disso, teremos que prosseguir com as barrigas vazias, até recebermos mantimentos. Estou a tratar
disso. Ontem mesmo, enviei o tribuno Glaber e um esquadrão de cavalaria dácia à frente da coluna. Tem ordens para organizar um comboio de abastecimentos em Deva
e vir ao nosso encontro pela estrada da costa. Na melhor das hipóteses ainda vai levar uns quatro dias até que nos encontremos com ele, o que quer dizer que os homens
vão passar fome nos dois últimos dias desse prazo.
- Fome? - resmungou Macro. - Vão é cair que nem tordos. Com este frio, a coisa vai ser ainda pior.
- Pois - concordou Cato.
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- Tem que haver outra maneira, qualquer coisa que possamos fazer.
- E há. - Cato deu um passo à frente e ergueu uma mão.
- Senhor, se me permite?
- O que se passa, prefeito?
- Não seremos capazes de resistir muito mais neste frio, se não encontrarmos alguma coisa que os homens possam comer. É o momento de sacrificarmos algumas das mulas.
As suficientes para nos fornecerem carne para dois dias. Talvez nos permitam mesmo resistir até nos encontrarmos com Glaber e o comboio de socorro.
- E que mulas tens em vista para esse fim? Sabem os deuses que já temos poucas.
- Abatemos os animais que puxam o trem de artilharia.
- Para alimentar os homens que depois terão que ocupar o lugar dos animais?
Cato abanou a cabeça.
- Não era isso que eu ia sugerir, senhor. Considero que devíamos abandonar a artilharia.
A testa de Quintato franziu-se.
- Abandonar as balistas e as catapultas às mãos do inimigo? Estás louco? Roma nunca me perdoaria uma coisa dessas.
- Senhor, com todo o respeito, Roma pode vir a revelar-se ainda menos condescendente se, para tentarmos salvar a artilharia, sacrificarmos o resto da coluna.
Era uma afirmação ousada, e os outros oficiais não esconderam as expressões de surpresa enquanto olhavam de Cato para o comandante, para ver como este ia reagir.
Quintato parecia inclinado a partilhar a reação geral, mas Cato prosseguiu antes que ele tivesse tempo de dar largas à fúria.
- Não permitiremos que o inimigo capture as nossas armas. Queimamo-las todas... depois de lhes dar uma última amostra do que é sofrer um belo bombardeamento.
Quintato olhou para ele, pensativo, dividido entre aplicar ao subordinado uma admoestação precisa e ouvir o plano que ele tinha desenhado. Por fim, o legado engoliu
a fúria e assentiu.
- Explica-nos lá isso.
Os nativos voltaram a surgir em peso na crista da colina, precisamente quando a última coorte da Vigésima Legião abandonava o
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campo, seguindo atrás do comboio das bagagens. As muralhas de terra tinham sido lançadas para o fosso em pazadas apressadas, para não fornecerem qualquer abrigo
ao inimigo, e no terreno ficara bem marcado o contorno do campo fortificado graças às marcas de terra revolta, que contrastava com o branco da paisagem circundante.
Só a retaguarda permanecera para enfrentar o inimigo, formada numa linha esparsa que atravessava o caminho seguido pela coluna na noite anterior. Cato tinha alterado
a disposição habitual dos legionários, colocando os trácios montados ao centro e a infantaria auxiliar e os legionários de Macro nos dois flancos. A cavalaria estava
em formação apertada, com o mais ínfimo espaço entre os cavaleiros. Desta forma escondia a linha de balistas que estava mesmo por trás dela. Tinha sido empilhada
neve à frente das armas, para ajudar a escondê-las do inimigo, e palha seca bem como barris de pez tinham sido acumulados na base de cada um dos lançadores, prontos
a serem ateados. As equipagens de legionários estavam a postos com cestos de vime que continham os últimos projéteis do exército. Quatro braseiros ardiam uns dez
passos por trás da linha, e deles se libertavam penachos de fumo que se evolavam no ar límpido da manhã, antes de serem desfeitos pela brisa. Ao longo da linha,
a respiração dos homens transformava-se em pequenas nuvens de vapor, e outras mais espessas saíam das narinas dos cavalos.
- Sacanas barulhentos, estes tipos - opinou Macro, enquanto ajeitava o capacete sobre a proteção do crânio e o apertava debaixo do queixo.
Na crista, os druidas andavam de um lado para o outro à frente da horda nativa, os braços ao alto, a incentivar os seus seguidores e a levá-los a um frenesim que
os ajudasse a lançarem-se ao ataque. Cato já tinha testemunhado cenas similares muitas vezes, mas mesmo assim não conseguia deixar de sentir um arrepio a subir-lhe
pela espinha perante o rugido que ia crescendo nas densas fileiras do inimigo. Engoliu em seco e esforçou-se por não dar sinal de perturbação à frente de Macro nem
dos outros homens.
- Espero bem que a nossa pequena surpresa lhes faça baixar a crista.
- Crista? Que se foda isso. O que eu quero é cortar-lhes a merda dos pescoços de lado a lado, e aproveitar para lhes arrancar os corações.
Cato não conseguiu evitar um sorriso sardónico. Nada parecia calar a habitual verve do amigo quando estava prestes a entrar em combate.
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Mas a sua expressão endureceu ao recordar o fraco controlo que Macro possuía sobre si mesmo quando o sangue lhe fervia.
- Lembre-se de que isto é apenas uma ação destinada a atrasá-los. O objetivo é dar-lhes uma lição e fazê-los parar para pensar, enquanto nós recuamos em boa ordem.
- Isso, meu caro senhor, vai depender do inimigo. Apesar das nossas ideias, eles podem decidir avançar na mesma. Aí está uma coisa que a vida no exército nos ensina
depressa: o outro lado nem sempre se mostra disposto a seguir o nosso plano.
- Pois, muito obrigado por essa pérola de sabedoria.
- Não precisas de te irritar comigo. Estou só a dizer. Além disso, assim que virem as balistas a arder, podem muito bem recuperar a coragem e voltar ao assalto.
- Pode ser que sim - admitiu Cato. - E é por isso mesmo que os meus rapazes levam estrepes nos alforges.
Fez um gesto a apontar para o mais próximo dos trácios, com uma pesada sacola pendurada da sela.
- Vão semeá-los pelo terreno, do outro lado das balistas, depois de nós recuarmos. Se os nativos recobrarem o espírito o suficiente para se lançarem imediatamente
em perseguição, depressa encontrarão novas razões para repensar a tática.
Macro cerrou os lábios e olhou para o amigo com ar de admiração.
- Parece que pensaste em tudo.
- Nem de perto. Mas tento sempre cobrir todas as possibilidades que me ocorrem. Ajuda a manter-me vivo.
- O que dá sempre jeito...
- De facto.
Os druidas tinham dado por terminado o período de incitamento, e os cornos de guerra fizeram-se ouvir no cimo da colina. Quase de imediato, os guerreiros lançaram-se
pelo declive, na direção da magra linha de romanos que os aguardava. O cenário encheu-se de gritos de guerra inarticulados, de invocações dos deuses e dos insultos
que lançavam sobre aqueles que tinham tido a temeridade de invadir as suas montanhosas terras. Cato olhou ao longo da linha e verificou com satisfação que os homens
sob o seu comando não mostravam qualquer reação, e se limitavam a esperar e a observar em silêncio nos seus postos. Um silêncio daqueles era capaz de ser tão intimidatório
como o rugido da carga
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dos celtas, já que evidenciava a disciplina dura e treino aturado em que se baseava.
- Vejo-o depois, senhor.
- Espero bem que sim, centurião.
Trocaram um gesto formal, antes de Macro se dirigir à sua posição no flanco direito da sua coorte, tentando esconder o desconforto na perna da melhor forma possível.
Cato trepou para a sela com alguma dificuldade, dado o cansaço que sentia e o peso da armadura e do equipamento que envergava. Uma vez sentado, ajustou as rédeas
e levou a montada até ao centro da linha, tomando posição ao lado das balistas ainda ocultas. Acenou ao centurião que comandava a bateria, e este levou as mãos em
concha à boca.
- Equipagens... carregar!
Os legionários que tinham estado à espera junto aos molinetes lançaram sobre eles todo o seu peso, para dar tensão aos braços da arma, com uma sucessão de estalidos
cujo ritmo diminuiu à medida que esta aumentava e se interrompeu por fim quando os cordões, tão tensos como se fossem de ferro, ficaram na posição de disparo, prontos
a ser libertados. Por fim, os projéteis com pontas metálicas foram retirados dos cestos com as munições e colocados com toda a cautela nos canais que corriam ao
longo do comprimento das vigas; estas passavam pelo meio dos grossos cordões retorcidos que davam energia aos braços de lançamento. Os ruídos característicos dos
mecanismos das peças de artilharia perderam-se no troar da carga dos guerreiros celtas, e Cato não notou qualquer hesitação ou desaceleração nos homens que corriam
pela encosta na sua direção, ainda a algumas centenas de metros de distância.
À medida que eles se aproximavam, começaram a tombar os primeiros flocos do dia, vindos de um céu escuro. Melhor ainda, pensou Cato. A neve ia ajudar a reduzir a
visibilidade, e assim havia menos hipóteses de a artimanha ser descoberta e a carga interrompida antes que a massa inimiga entrasse na área ao alcance das armas
romanas. A coordenação temporal era fundamental naquela situação. Se Cato desse a ordem demasiado cedo, os Corvos Sangrentos deixariam à vista a emboscada, e os
druidas talvez ainda tivessem tempo de deter a maior parte dos seus guerreiros, à exceção dos mais casmurros. Se desse a ordem demasiado tarde, as equipagens das
balistas teriam tempo apenas para uns poucos
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disparos antes de o impacto da carga nativa desfazer a linha romana. Esperou até onde se atreveu, e por fim lançou a ordem.
- Corvos Sangrentos! À retaguarda!
Em posições alternadas, uns deram um passo à frente para dar espaço aos camaradas para fazer meia-volta, antes de os imitar no movimento e se esgueirarem por entre
as balistas para voltar a formar por trás delas e aguardar novas ordens. Agora que tinham os alvos bem à vista, as equipagens de artilharia procederam a apressados
ajustes de última hora à elevação e direção, e recuaram, deixando aos chefes de equipa a responsabilidade pelo disparo. Só naquele momento é que o inimigo se apercebeu
da nova ameaça que enfrentava. Os homens mais adiantados reduziram o passo e estabeleceu-se alguma confusão quando os que os seguiam, continuando numa corrida desenfreada,
lhes foram embater nas costas. Cato ergueu a mão e soltou uma nova ordem.
- Artilharia! Preparar para disparar!
Os homens olharam para ele, tensos, à espera, e Cato ficou satisfeito por verificar que a firme disciplina das legiões garantia que nenhum deles se antecipava à
ordem e disparava um projétil de forma prematura.
- Disparar!
Os legionários puxaram as alavancas, os braços projetaram-se para a frente e foram embater com estrondo contra os amortecedores de couro reforçado. As pesadas setas
saltaram das calhas e atravessaram o espaço, dirigindo-se para o inimigo em arcos pouco pronunciados, a caminho das densas fileiras. O impacto da primeira rajada
impressionou Cato, que ficou espantado e horrorizado. Tinham ao seu dispor quase cinquenta balistas na linha. As outras - as que precisavam de reparações - já tinham
sido desmanteladas e queimadas no campo. A rajada simultânea desceu sobre o inimigo como se fosse um véu translúcido, e depois, de repente, deu a sensação de que
os nativos tinham chocado de frente contra uma parede invisível. Dezenas foram empalados e empurrados para trás, para o meio da massa humana, e nalguns locais parecia
que uma enorme criatura tinha aberto um caminho por entre as fileiras, atirando homens para os lados sem qualquer piedade. Os gritos selvagens morreram nas gargantas
nativas, e a carga viu-se interrompida, embora os que vinham mais atrás continuassem a correr e contribuíssem para aumentar a confusão.
Cato contemplou a destruição com uma satisfação cruel, antes de se voltar para o centurião que comandava a bateria e deixar nova ordem.
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- Disparem à vontade!
As equipagens trabalharam a toda a velocidade, e o ar ficou repleto dos estalidos dos molinetes, e dos abruptos sons agudos do choque dos braços de lançamento contra
os amortecedores. Uma quase constante chuva de projéteis massacrou as densas massas dos guerreiros inimigos, agora quase imóveis no declive, e a neve em redor começou
a tingir-se de vermelho, tão brilhante como se fosse um prado coberto de papoilas, considerou Cato. Já havia pequenas pilhas de corpos, alguns ainda a remexer-se,
a semear a frente inimiga, e a cada instante havia mais baixas, de homens rasgados pela artilharia romana. Um druida adiantou-se alguns metros e virou-se para puxar
pelos seus seguidores, esbracejando de forma frenética, e atirando uma lança na direção da linha romana. Quase de imediato foi atingido em cheio nas costas e lançado
pelo ar vários metros, antes de cair desfeito mesmo à frente dos nativos. Um gemido coletivo ergueu-se dos lábios dos homens e espalhou-se pela turba, e Cato avistou
os primeiros a debandar, subindo de novo a encosta. Lentamente a princípio, mas ganhando rapidamente velocidade à medida que se afastavam dos camaradas que ainda
tentavam avançar contra a barragem romana. Porém, cada vez mais guerreiros se viravam para escapar, até que o ímpeto se quebrou por completo e toda a força nativa
começou a recuar, subindo a encosta, deixando pelo caminho centenas de camaradas feridos ou mortos sobre a neve ensanguentada.
- Parem de disparar! - gritou Cato - Cessar fogo!
Uma a uma, as balistas ficaram imóveis e silenciosas, e então Cato virou-se para a sua coorte.
- Corvos sangrentos, à frente! Formar linha e preparar para avançar!
Os trácios passaram pelos espaços entre as armas e colocaram-se em
posição. Assim que ficaram prontos, Cato empunhou a espada e apontou-a com convicção na direção do inimigo em fuga.
- Avançar!
A linha montada avançou com o equipamento a tilintar, os cascos dos cavalos a enterrarem-se na neve fresca. Ainda havia flocos a rodopiar no ar frio, misturando-se
com a respiração dos homens e das montadas. Cato deu ordens para acelerar para trote, e a linha ficou mais irregular, apesar de os trácios tentarem manter os cavalos
a moverem-se todos à mesma velocidade. A sua frente jaziam os cadáveres do inimigo, espalhados pelo terreno por entre as hastes dos projéteis que se tinham
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enterrado no solo em todos os ângulos possíveis. Os Corvos Sangrentos reduziram o passo para abrir caminho, e os cavaleiros aproveitaram para usar as lanças para
liquidar quaisquer nativos que ainda estivessem vivos. Alcançaram por fim o terreno livre, e voltaram a acelerar. Quando faltavam uns cinquenta metros, Cato respirou
fundo e deu nova ordem para a carga, e os Corvos Sangrentos lançaram-se a galope sobre a presa. Depressa alcançaram os mais retardatários dos elementos inimigos,
e a carnificina começou; com um quase selvagem abandono, os trácios usaram as lanças para trespassar um após outro dos nativos.
Cato tentou manter-se à cabeça dos seus homens, desferindo estocadas com a espada, partilhando a excitação, enquanto desbaratavam o inimigo e lhe destruíam a vontade
de lutar, deixando os nativos completamente derrotados. Tinham já alcançado o cimo do declive antes que Cato desse por isso, mas nessa altura teve a presença de
espírito suficiente para deter a montada. Do outro lado da colina, a pouco mais de um quilómetro, vinha o resto do exército inimigo. Não havia ali nenhuma coluna
organizada como a que os romanos empregavam, apenas grandes bandos de homens dispersos, a grande maioria a pé. Muitos transportavam pesadas cargas, muito provavelmente
cheias de mantimentos para a marcha, calculou Cato com amargura, o estômago a roncar de fome. Os outros Corvos Sangrentos também se detiveram ao longo da crista,
enquanto os nativos sobreviventes corriam pela encosta ao encontro dos seus. Era a primeira vez que Cato via o exército comandado pelos druidas em toda a sua extensão,
e estimou rapidamente que estavam ali pelo menos uns quinze mil homens bem à vista, e que havia ainda outros que mal se viam à distância, no meio da neve que tombava.
Mais do que os suficientes para perseguir Quintato e destruir o seu exército de homens exaustos e malnutridos.
Traxis levou o seu cavalo até junto do do comandante e deixou escapar um assobio ao contemplar a horda nativa.
- Foda-se... senhor, estamos mesmo bem lixados.
- Obrigado por essa tão profunda avaliação estratégica, soldado - ripostou Cato. Deitou uma última olhadela e puxou pelas rédeas para fazer o cavalo dar meia-volta.
- Já fizemos aqui tudo o que podíamos fazer. Vamos... Corvos Sangrentos! Recuar!
Os trácios deram meia-volta e formaram em coluna de quatro. Cato conduziu-os pela encosta abaixo, evitando os mortos inimigos, até ao
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ponto onde os legionários aguardavam. Macro saudou-o com a satisfação marcada no rosto, enquanto esfregava as mãos de contente.
- Grande tareia! Os rapazes das balistas deram-lhes uma sova e tanto. A confiança destes cabrões ficou mesmo estraçalhada.
- De facto. - Cato virou-se na sela e designou o centurião que comandava a bateria. - Deitem-lhes fogo. Verifiquem que o incêndio está bem ateado, e não deixem nada
que possa ser aproveitado pelo inimigo; depois leva os teus homens para a coluna principal. Macro, o mesmo vale para si. Já acabámos o serviço por aqui. Vamos a
mexer.
- Sim, senhor - respondeu Macro com toda a formalidade, antes de se dirigir para junto do seu grupo de honra, enquanto berrava ordens para que a Quarta Coorte formasse
em ordem de marcha. As equipas das balistas acorreram aos braseiros para acender archotes e regressaram para junto das armas para atear as pilhas de materiais inflamáveis,
antes de lançar mais combustível para as chamas à medida que estas começavam a crescer. O pez fumegou antes de se incendiar, mas depressa a primeira balista era
pasto das chamas, lançando para o céu um fumo escuro e acre. Quando a última foi ateada, o centurião deu ordens aos homens para retirar, e eles marcharam com a coorte
de Macro na direção seguida pela coluna principal.
Cato deixou-se ficar um breve momento para se certificar de que nenhuma das balistas escaparia à destruição pelas chamas, e depois voltou-se para o decurião Miro.
- Comecem a dispor os estrepes. Não há necessidade de os concentrar, que fique só uma faixa a cobrir toda a largura da pista que estamos a deixar.
Enquanto o resto dos Corvos Sangrentos recuava uns cem passos, os seus camaradas começaram a espalhar as estrelas de ferro. Cato olhou para cima, avaliando a neve
que caía. Depressa ocultaria os estrepes, embora não se acumulasse tanto quanto seria necessário para esconder o caminho que os romanos tinham tomado. Alguns dos
inimigos haveriam de sofrer ferimentos incapacitantes quando passassem sobre as peças metálicas. Talvez os suficientes para obrigar os seus camaradas a avançar lentamente,
com todo o cuidado. Tudo isso daria aos romanos mais algum do tempo de que tanto necessitavam para se manterem à frente dos perseguidores.
Quando os últimos estrepes foram deixados no caminho, Cato levou
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a coorte para leste, e deu ordens para prosseguirem. Nas suas costas, as labaredas rugiam ao devorar as estruturas de madeira e os cordões de tendão das balistas.
Cato olhou para o espetáculo como se fosse um presságio. Não haveria forma de repetir aquele truque quando o inimigo se voltasse a aproximar deles. Da próxima vez,
tudo acabaria em combate corpo a corpo, lâmina contra lâmina, homem contra homem. E apesar de todo o treino e disciplina do exército romano, os homens não deixavam
de precisar de comida e descanso. Duas coisas que iam continuar a tornar-se cada vez mais escassas nos dias que se aproximavam.
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- Pobres desgraçados - comentou Macro, enquanto deixava a vista percorrer a longa faixa de seixos. À sua direita estavam os retardatários da coluna, os feridos que
ainda podiam caminhar, os esfomeados e os exaustos, que se arrastavam como podiam pela neve e pelo gelo. Um punhado de centuriões e optios acompanhava-os, dando-lhes
incessantes berros para que se mexessem, dando umas pancadas naqueles que precisavam desse incentivo para fazerem um esforço para estugar o passo. Alguns, contudo,
tinham desistido, e ficavam sentados onde tinham caído, de olhar vazio, demasiado fatigados para dar qualquer atenção à autoridade e às ameaças dos seus superiores
hierárquicos.
Mas não era a esses que Macro dedicava a sua piedade. Contemplava, sim, a linha de cadáveres que se estendia pelos seixos, trazidos pelas ondas, em conjunto com
os destroços dos barcos naufragados, os mesmos que tinham zarpado com a intenção de transportar os feridos até porto seguro. O casco despedaçado de uma embarcação
de guerra estava de lado sobre algumas rochas perto da margem, e secções de outros barcos baloiçavam nos baixios, agitadas pelas constantes ondas do encapelado mar
cinzento.
- Devem ter sido apanhados pela tempestade, e atirados contra a costa - concluiu Cato. - É como diz, pobres desgraçados. Os feridos nem tiveram hipótese. Nem as
tripulações, com toda a probabilidade. Mas duvido que ficassem em maior segurança se tivessem permanecido com a coluna.
Tinham já passado dois dias desde que haviam emboscado os seus ávidos perseguidores. Desde então, a neve caíra intermitentemente, criando novas acumulações que atrasavam
a marcha do exército. Felizmente, a mesma neve também tinha prejudicado o avanço do inimigo, que se contentara em perseguir os romanos sem fazer qualquer nova tentativa
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para atacar, para lá da ocasional surtida de cavalaria contra soldados sozinhos ou em pequenos grupos que se tivessem afastado demasiado da coluna principal em busca
de comida nas aldeias ou quintas que o exército encontrava à sua passagem. Muito raramente se encontrava alguma coisa aproveitável. Os habitantes tinham-se desvanecido,
e levado consigo tudo o que tinha algum valor, bem como as provisões para o inverno. Cato calculou que tinham recebido ordens ou até ameaças para não deixarem nada
aos romanos, e as reservas de mantimentos haviam sido ou escondidas - o que era fácil, com os frequentes nevões - ou mesmo destruídas. As rações estavam esgotadas,
muitas das mulas já tinham sido abatidas, e o caminho seguido pelo exército estava juncado de veículos abandonados, de equipamento lançado fora, e de todos aqueles
que estavam demasiado fracos para poder prosseguir e tinham decidido aceitar o destino que o inimigo lhes reservasse, por muito cruel e macabro que fosse. Dos dez
mil homens que haviam iniciado a campanha, Cato tinha sérias dúvidas de que restasse metade, graças às perdas em combate e naquela marcha sombria.
Os homens do destacamento da retaguarda tinham-se mantido firmes durante os dois dias, muito graças à vontade férrea do seu comandante. Mais de duzentos dos legionários
de Macro ainda marchavam sob o estandarte da coorte, e os Corvos Sangrentos eram ainda quase cem montados e outros tantos a pé. Cato não lhes tinha permitido espalharem-se
pelo caminho; mantivera os legionários de Macro em coluna, e fizera os Corvos Sangrentos seguir no flanco, com os cavalos pela mão, para dar descanso aos animais,
tanto quanto possível, e assim evitar que se formassem escaras nos seus dorsos devido às selas. Os cavalos também pouca comida tinham, apenas as palhas que se conseguiam
recolher do fundo de poços e celeiros por onde passavam, sempre praticamente vazios. Alguns estavam claramente enfraquecidos, e dois tiveram de ser abatidos, já
que não estavam em condições de prosseguir, e a sua carne foi distribuída entre os homens.
Pela sua parte, Cato sentia a fome como os outros, mas não o incomodava tanto como a eles, já que tinha sempre em mente a necessidade de os fazer prosseguir a marcha.
Havia ocasiões, e não eram poucas, em que os seus pensamentos regressavam a Júlia, e ao que significava viver num mundo ao qual ela já não pertencia. Era tentador
permitir que esses pensamentos lhe amortalhassem a alma e varressem qualquer traço de
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esperança. Mas, em vez disso, ele preferia fixar a mente no bem-estar dos seus legionários. Tinha-lhe sido completamente impossível salvar Júlia, mas ainda podia
salvar aqueles homens: os legionários de rostos encovados e barbas espessas de Macro, que ainda carregavam os seus pertences aos ombros, embora aligeirados depois
de se terem livrado de peças desnecessárias do equipamento, mas que se punham imediatamente em sentido na chamada pela manhã e ao cair da noite; e os seus Corvos
Sangrentos, que, na medida do possível, ainda tratavam das montadas antes de cuidar de si mesmos, e punham em debandada quaisquer inimigos que se aventurassem até
demasiado próximo da cauda da coluna do exército de Quintato. Mas também eles começavam a ceder, e Cato temia que depressa deixaria de poder contar com o orgulho
que aqueles homens tinham nas suas unidades e na sua vontade de defender os estandartes que tantas vezes os tinham conduzido à batalha sob o seu comando. Todos os
homens podiam chegar a um ponto onde a autoridade deixava de ter importância e passava a ser a preservação de si mesmo a reinar suprema e feroz nos seus corações.
Ao olhar para as duas unidades, dispostas numa linha que se estendia dos seixos à beira do mar até uma encosta íngreme que se prolongava nuns penhascos, a enfrentar
o inimigo, Cato perguntou-se quanto tempo mais seria capaz de os manter unidos.
Os druidas tinham detido a sua força a algumas centenas de metros atrás da retaguarda romana havia já algum tempo, e tinham-na mantido ali. Tal como tinham feito
das duas últimas vezes em que Cato se vira forçado a enfrentá-los e a defender uma posição, para dar tempo aos retardatários e a alguns dos mais lentos dos veículos
oportunidade para alcançar o resto da coluna. A tática que o inimigo tinha adotado, de recusa em atacar, deixava-o perplexo. No seu lugar, teria fustigado constantemente
as coortes romanas, sem lhes dar descanso a cada metro que avançassem. A fome e a exaustão acabariam por os derrotar, e tudo o que os nativos teriam que fazer seria
acabar com os sobreviventes. Por isso, era difícil compreender porque é que os druidas pareciam contentar-se em seguir Quintato e a sua força.
- Estou a ficar um bocado farto disto - disse Macro, como que lendo os pensamentos do amigo. - Porque é que aqueles cabrões não atacam? Sabem muito bem que já não
temos balistas. Podiam varrer-nos para o lado sem grande incómodo. - Fez estalar os dedos para dar ênfase
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ao que dissera, antes de fechar as mãos uma sobre a outra e soprar sobre elas com força, várias vezes. - Está a ficar ainda mais frio, não está?
Cato assentiu.
- Muito mais.
A noite anterior tinha sido a pior de todas. Um nevão precipitara-se sobre o exército, o vento a uivar sobre as tendas, a esticar os tetos e paredes e a puxar pelas
espias. Algumas das tendas dos Corvos Sangrentos tinham voado, e fora impossível voltar a montá-las, o que tinha obrigado os homens a empilharem-se nas tendas dos
camaradas para passar a noite. A alvorada pusera à vista um exército quase escondido pela neve, as linhas de tendas quase a ruir com o peso acumulado, e montículos
junto a todas as paredes. Os homens tinham levado horas a libertarem-se de toda aquela neve e a colocarem a coluna em movimento. A água que fora deixada na véspera
no exterior tinha congelado, e até a que ficara em baldes dentro das tendas tinha uma camada de gelo à superfície. E durante o dia a temperatura não subira quase
nada, já que o Sol permanecera invisível, escondido por uma camada uniforme de nuvens.
Macro voltou a fazer estalar os nós dos dedos e encarou mais uma vez o inimigo.
- Isto deve ser tão difícil para eles como é para nós, com certeza - lançou, entre os dentes.
Cato pensou por momentos.
- Talvez sim. Mas eles têm comida, estão habituados às montanhas e sabem perfeitamente como se abrigar nelas. E são duros. A maior parte dos nossos homens vem de
Itália, da Gália e das províncias em volta do Mediterrâneo. Não estão tão habituados a estas condições como o inimigo. Sou capaz de apostar que os nativos suportam
isto melhor do que nós. E estão a defender a sua terra. O que dá sempre outro alento a uma causa.
- Sem esquecer que nos puseram em fuga, e que sentem o cheiro do nosso sangue. O que também ajuda.
- É bem verdade.
Os dois mantiveram-se em silêncio por momentos, até que Macro começou a dar murros na outra mão.
- E agora aproveitam para nos enervar, como se nos mijassem em cima... por falar nisso.
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Deu uns passos para lá da linha, o andar ainda um tanto rígido por causa da ferida. Fez uns cem passos na neve já pisoteada antes de se deter e espetar a vareta
no solo. Remexeu por baixo da túnica até extrair o pénis e esperou um momento antes de soltar uma torrente de urina na direção do inimigo.
- Inúteis baldes de mijo! - gritou através do terreno. - É o que vocês são! Druidas de merda! Como-vos ao pequeno-almoço, e cago-vos logo a seguir! - Os homens da
retaguarda desataram às gargalhadas perante aquele desafio pouco sofisticado, e depressa se juntaram num coro de gozo e imprecações ao inimigo.
A princípio este não se dignou responder. Então, um dos druidas avançou alguns passos à frente dos seus homens e remexeu num saco que levava a tiracolo. No momento
seguinte levantou alguma coisa na mão e ergueu-a no ar para que todos a vissem. Cato não teve que esforçar a vista para perceber do que se tratava. Uma cabeça cortada.
Para lembrar aos romanos o destino que os esperava.
Macro, depois de ter esvaziado a bexiga até à última gota, recolheu o pénis, virou-se e caminhou lentamente na direção dos seus homens, despreocupado. Estes entoaram
o nome do centurião em coro, em crescendo, até concluírem com uma aclamação final seguida de risada geral, que se foi apaziguando aos poucos. Macro debruçou-se para
apanhar neve e esfregar as mãos, e sorriu a Cato.
Este retribuiu o sorriso.
- Bela tentativa, Macro. Mas duvido que eles mordam o isco. Seja o que for que andam a planear, só atacarão quando se sentirem prontos e na posição ideal. Só gostava
de saber exatamente qual é a ideia.
- Talvez estejam borrados de medo com a ideia de enfrentarem os nossos rapazes num combate em linha.
Cato deitou-lhe um olhar sugestivo.
- Não acredito que isso seja uma sugestão séria.
- Se não é disso que se trata, então o que é?
Cato encolheu os ombros.
- Temo bem que depressa vamos ficar a saber.
Aguardou até que o último dos retardatários ainda capaz de caminhar desaparecesse sobre a crista da elevação seguinte, e deu ordem de marcha a Macro e à sua coorte.
Deu-lhes uma distância de
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cerca de oitocentos metros antes de mandar os Corvos Sangrentos seguir os legionários. Rapidamente alcançaram um homem, agachado e embrulhado na sua capa, ao lado
do caminho. Tinha deixado a carga e o capacete, mas ainda envergava a pesada armadura que era a preferida dos legionários, e Cato deteve-se, fazendo sinal aos homens
para prosseguir.
- Soldado!
Não teve resposta do homem, que se manteve de olhar fixo na beira da água, mirando os cadáveres espalhados pelos seixos, e os restos dos barcos que ali tinham naufragado.
- De pé! - instou Cato, em voz alta. Quando voltou a não ter resposta, desceu da sela e colocou-se diretamente em frente do homem, bloqueando-lhe a visão. O legionário
piscou os olhos e só depois olhou para Cato, com um ar surpreso. Era um homem já de idade, com cabelo escuro mas espesso, e uma barba rala. Nas têmporas o cabelo
era cinzento, e tinha rugas em redor dos olhos, e uma cicatriz branca que lhe cruzava a sobrancelha e chegava à maçã do rosto. Um veterano, portanto. Alguém que
tinha servido muitos anos nas fronteiras do Império, e participara em inúmeras batalhas e escaramuças em nome de Roma. Um homem que devia ser capaz de mais do que
desistir e aceitar a morte às mãos dos inimigos sem sequer soltar um murmúrio.
Assim que se deu conta de que estava a ser confrontado por um oficial, o homem debateu-se para se levantar e se colocar em sentido, embora cambaleasse com a fadiga.
- Assim está melhor - confortou-o Cato. - Qual é o teu nome e unidade?
O soldado franziu o cenho, como se lutasse para recordar esses dados, e por fim recitou:
- Marco Mureno, da Segunda Centúria, Oitava Coorte, Décima Quarta Legião, senhor!
- Ora bem, Marco Mureno, perdeste o contacto com o resto da malta do legado Valens, não foi?
- Sim, senhor... Eu... Eu não sei bem como. Ia com eles, a marchar. E depois... depois estava aqui, agora. O que é que aconteceu?
- Estás cansado, Mureno, é só isso.
- Sim, senhor. Muito cansado. E cheio de fome.
- Como estamos todos. Mas em breve haverá comida para todos.
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Já ouviste, com certeza, que o legado Quintato enviou alguns homens à nossa frente, para organizar um comboio de socorro. Estará connosco a qualquer instante. Se
calhar até poderá chegar ao acampamento esta noite mesmo. Pensa bem nisso!
Avistou um brilho de desespero nos olhos de Mureno, e o legionário anuiu.
- Então, vamos lá. Mete-te ao caminho e junta-te à tua unidade, sim? Vamos. - Deu um suave empurrão ao homem.
Mureno deu um passo titubeante e voltou a deter-se.
- Eu... Eu acho que não consigo, senhor.
- Disparate. Põe um pé à frente do outro, é tudo. - Cato hesitou um momento, e depois rebuscou na sacola até encontrar uma das duas finas tiras de carne salgada
que lhe restavam. Mostrou-a ao legionário.
- Olha. Come isto, e vê se recuperas algumas forças.
O homem tentou não se mostrar demasiado ávido.
- Que os deuses o abençoem, senhor.
Cato sentiu-se levemente embaraçado perante a evidente gratidão do homem, e limitou-se a acenar em resposta.
- Vejo-te no campo mais tarde, Mureno. Lembra-te, continua a andar e nunca pares.
- Sim, senhor.
Cato deu-lhe um sorriso de encorajamento e voltou a trepar para a sela, com o estômago a dar voltas perante a ideia de comida. Deu um estalo com a língua e colocou
a montada a trote, ultrapassando a coluna para retomar o seu lugar à cabeça dos Corvos Sangrentos. Quando voltou a olhar para trás algum tempo depois, ficou satisfeito
ao ver o legionário que ajudara a caminhar, lenta mas deliberadamente, enquanto continuava a mastigar a tira de carne.
Passaram por vários outros soldados sentados ou deitados na neve, muito claramente ainda vivos, mas Cato apercebeu-se de que não podia tentar auxiliar todos sem
se colocar, e pior, sem colocar os seus homens, em risco, e obrigou-se a ignorar o destino que os aguardava. Ao alcançarem nova crista, fez uma pausa para verificar
o cenário. À distância, a vanguarda inimiga surgiu, a atravessar a passagem estreita onde a retaguarda romana tinha estado colocada havia tão pouco tempo. O olhar
do prefeito procurou Mureno, e ele viu o legionário virar-se para trás e deter-se. Por momentos manteve-se imóvel, mas depois tombou
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lentamente de joelhos e sentou-se, encolhido. Uma pesada tristeza tomou conta do coração de Cato, ao ver aquela cena. Mas depressa se endureceu, se voltou e prosseguiu
para se juntar à coorte de Macro, que seguia um pouco adiante.
Ao entrar no campo ao entardecer, Cato deu-se imediatamente conta de uma mudança no estado de espírito dos homens. Ainda havia algumas centenas de retardatários
que se arrastavam atrás da retaguarda, e a maior parte fazia o possível por acelerar o passo quando viam a última linha de defesa entre eles e o inimigo a ultrapassá-los.
O trabalho no fosso e na muralha não estava tão avançado como devia. Os soldados trabalhavam lentamente, como mergulhados numa letargia, apesar dos incentivos dos
oficiais, enquanto outros erigiam as tendas com todo o vagar. Algumas mulas e cavalos coxos estavam a ser abatidos no exterior das tendas do quartel-general, e até
o sangue das bestas estava a ser recolhido para engrossar o caldo ralo preparado para os oficiais superiores.
Um optio guiou o destacamento da retaguarda até à zona onde iam instalar as suas tendas, e enquanto os homens de Macro pousavam as cargas e tiravam as tendas dos
vagões, os Corvos Sangrentos partilharam a última porção de aveia e depois alimentaram e deram de beber aos cavalos. Também nos animais se notava um desprendimento,
notou Cato, enquanto os via ali de pé, imóveis onde tinham sido presos, as cabeças baixas pelo peso da fome e do cansaço.
- Isto não pode continuar muito mais tempo - observou Macro, em tom neutro. - Daqui a um dia, dois no máximo, esta coluna vai começar a cair aos bocados. Até mesmo
os nossos rapazes vão acabar por perder a vontade de continuar, seja o que for que eu consiga usar como ameaça.
- Se isso suceder, temos que estar preparados.
Macro virou-se para ele e encarou-o diretamente.
- O que quer isso dizer?
Cato olhou em redor, para se certificar de que ninguém os ouvia.
- Significa que a retaguarda tem que se manter unida pronta para combater este problema, sozinha se for preciso. Se cada um se preocupar apenas com a sua própria
segurança, estamos todos mortos. Temos que manter uma disciplina apertada até ao último momento.
- Sim, senhor. Farei o meu melhor.
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- Eu sei que fará. - Cato deu-lhe um murro ao de leve no ombro.
- Estou a contar com isso.
Macro esfregou o nariz.
- Já tivemos que velar um pelo outro uma data de vezes antes disto, e já passámos por todas as tempestades de merda que os deuses resolveram atirar-nos para cima.
O que é que te faz pensar que uns flocos de neve e um bando de druidas piolhosos nos vão causar problemas sérios?
Cato soltou uma gargalhada.
- Ora aí está o famoso espírito do centurião Macro!
Macro fez uma careta.
- O que mais hei de eu dizer? Que devemos simplesmente desistir e morrer? Só espero que o Quintato tenha coragem suficiente para nos safar disto. Ele e o resto dos
oficiais superiores. Vai ser interessante ouvir o que pensam eles das coisas, no quartel-general, esta noite.
Cato observou silenciosamente o campo antes de responder.
- Sim, provavelmente, vai ser mesmo.
Depois de as duas coortes estarem instaladas para passar a noite, as sentinelas colocadas e as senhas distribuídas, os dois oficiais dirigiram-se para o quartel-general.
Não havia nenhum do ruído habitual de conversas e de gargalhadas das tendas por onde passavam. Um silêncio resignado, sepulcral, tinha-se instalado por todo o campo.
- Pelo menos o tempo limpou - comentou Cato, apontando para o céu. Entre as estrelas só se viam uns farrapos de nuvens, e a Lua cheia pairava sobre as montanhas,
banhando a paisagem branca num brilho prateado. - O outro lado não conseguirá oferecer-nos nenhuma surpresa desagradável esta noite.
Macro olhou na direção em que se encontrava o inimigo, e avistou um ténue brilho alaranjado para lá da crista a oeste do campo.
- É como dizes, eles não precisam de nos atacar para nos destruir. Só têm de esperar que a fome faça o trabalho por eles. Não têm tomates para nos enfrentar num
combate leal, os cabrões.
Cato considerou lembrar ao amigo que, se as posições fossem as inversas, ele adotaria precisamente a mesma estratégia, agora que tinha percebido as intenções do
inimigo, mas não estava com disposição para debater o assunto. Estava demasiado fatigado. Pelo menos os guardas pessoais do legado ainda estavam em forma, e colocaram-se
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imediatamente em sentido ao avistar os dois oficiais a aproximarem-se da entrada da maior das tendas. Estavam entre os primeiros oficiais a chegar para a reunião,
pelo que se foram colocar na frente, perto do braseiro que dava luz e calor ao interior da tenda. Os outros oficiais foram chegando sozinhos ou aos pares, o último
um tanto depois de soar o sinal para a mudança de turno. Cato avaliou as expressões e modos dos oficiais, e detetou neles a mesma letargia que tinha constatado nas
fileiras ao chegar ao campo.
O prefeito do campo tinha estado à espera dos oficiais e, quando verificou que todos estavam presentes, foi informar Quintato. Este abriu as abas que isolavam os
seus aposentos privados, e os subordinados colocaram-se em sentido.
- À vontade, senhores.
Os oficiais acomodaram-se novamente, e instalou-se um silêncio bizarro enquanto o comandante reunia as suas ideias. Cato julgou discernir brevemente um olhar assombrado
no rosto do homem, mas por fim Quintato aclarou a garganta e dirigiu-se a eles com toda a calma.
- Vou tratar primeiro dos assuntos de rotina. De acordo com os relatórios quotidianos sobre o efetivo, houve mais de quinhentos homens que não conseguiram reunir-se
às suas unidades antes de cair a noite. Alguns podem ainda chegar ao campo durante a noite, mas será apenas um punhado deles. Ontem perdemos duzentos. Amanhã, ficarei
surpreendido se perdermos menos de um milhar de homens por abandono das fileiras. Dos que estão no acampamento, a Vigésima Legião tem dois mil quinhentos e quatro
soldados, a Décima Quarta mil cento e oitenta. A maior parte das unidades auxiliares mal consegue apresentar metade do efetivo normal, e temos mais de seiscentos
feridos a ser transportados em vagões e carruagens. A única unidade de cavalaria que ainda temos disponível para o combate é a Segunda Trácia, do prefeito Cato.
- Fez uma pausa e cerrou os lábios, enquanto apreciava as reações dos oficiais.
- A situação é crítica, senhores. O exército passa fome e está exangue, sem forças. Mais um dia e não terá de todo forças para combater. Se queremos que esta coluna
sobreviva, temos que fazer qualquer coisa. Algum comentário?
Depois de uma pausa, o legado Valens falou. Estava sentado, com uma perna esticada, envolta em talas e ligaduras, consequência de ter caído do cavalo.
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- Não poderíamos tentar aguentar aqui mesmo até à chegada do Glaber com a coluna de socorro e com os abastecimentos? A não ser isso, marchamos mais um dia e paramos.
Se for preciso, podemos abrir uma brecha no exército inimigo para permitir a passagem ao Glaber.
Quintato pareceu desolado, e abanou a cabeça.
- Temo bem que tal não seja possível. Não vai haver nenhuma coluna de socorro, e nenhuma comida. Pela simples razão de que o Glaber nunca conseguiu chegar a Deva.
Ao redor de Cato, os oficiais remexeram-se, ansiosos. Quintato aguardou que se acalmassem.
- O Glaber foi emboscado e morto, ao mesmo tempo que a maior parte da escolta, a um dia de marcha do sítio onde nos encontramos agora. Os três homens que conseguiram
escapar voltaram ajuntar-se à coluna pouco depois do escurecer. Ao que parece, o Glaber deparou-se com outro exército nativo. Cavalaria, na maior parte. O que explica
por que razão a força que nos persegue não fez qualquer tentativa de nos forçar a uma batalha. Têm estado à espera que os seus amigos nos flanqueassem e bloqueassem
a nossa retirada. Uma bela manobra, muito bem executada, como decerto todos concordarão. E assim, ao que parece, a minha escolha é entre marchar mais um dia e enfrentar
os que destruíram o Glaber, ou ficar aqui e esperar que eles venham ter connosco. Seja como for, quando o combate começar, estaremos cercados.
Valens sorveu uma golfada de ar.
- Por mim, acho que devemos ficar aqui. Os homens podem abrigar-se do frio e poupar energias para a batalha. E além disso, não teremos mais problemas com retardatários.
- É verdade - admitiu Quintato, - mas passarão fome na mesma, e continuaremos mais uns vinte quilómetros distantes da mais próxima das nossas fortalezas na fronteira
da província. E o inimigo pode simplesmente sentar-se de cócoras e esperar que a fome nos leve à submissão. Por mim, prefiro tentar abrir caminho através desta força
que nos bloqueia a passagem e alcançar a fronteira. Mas estou aberto a outras sugestões, se alguém tiver alguma para oferecer.
Fez uma pausa e olhou em redor dos oficiais. Não houve qualquer resposta imediata, até que o tribuno Livónio se levantou. Cato e os outros viraram-se para ele, curiosos
para ver o que tinha um jovem e quase
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imberbe tribuno subalterno a oferecer aos seus muito mais experientes camaradas.
- Peço desculpa, senhor, mas a mim ocorre-me outro curso de ação.
- Tribuno, sou todo ouvidos.
- Bem, senhor, como sabe, tenho feito mapas da campanha tão completos quanto me tem sido possível... bom, quero dizer, nós temos feito isso. - Indicou Hieropates,
sentado ao seu lado, que baixou a cabeça modestamente enquanto o seu senhor prosseguia. - Isso implicou recolher relatórios das patrulhas que foram batendo o terreno
que ladeava a nossa linha de marcha. Muitas vezes, essas patrulhas percorriam grandes extensões de território, pelo que conseguíamos expandir a área dos nossos mapas,
dependendo dos relatórios e...
- Olha, tribuno, tudo isso é muito interessante, fascinante até, mas estamos num aperto. Preciso de soluções e não de apresentações à guilda dos cartógrafos. Qual
é o teu ponto?
A face de Livónio corou, e ele engoliu em seco, nervoso, antes de continuar.
- Senhor, creio que reconheço esta área.
- Crês? Como?
- Acompanhei algumas patrulhas, uma vez por outra, e numa dessas ocasiões percorremos um desfiladeiro que seguia por entre escarpas antes de se abrir para o mar,
aqui bem perto. Tomámos notas e regressámos pelo mesmo caminho. Não era caso de usarmos aquela rota, uma vez que os vagões nunca poderiam seguir por ali, nem qualquer
outro veículo. Mas homens e cavalos podem utilizar a passagem com facilidade.
Quintato deu um passo para se aproximar do tribuno.
- Onde fica esse desfiladeiro? És capaz de dar com ele outra vez?
- Oh, sim, senhor. Não fica a mais de quilómetro e meio daqui, entre duas das montanhas. Até posso apontar o lugar com facilidade, dado o luar que brilha hoje.
- Mais tarde. Diz-me o que há do outro lado. Onde é que ele vai dar?
Livónio concentrou-se por momentos.
- Há um vale entre este desfiladeiro e o caminho que o exército tomou na marcha para Mona. Não mais de uns vinte e cinco quilómetros de distância. E daí, é sempre
terreno fácil até Mediolanum. Ou era, antes de a neve ter começado a cair, pelo menos.
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Quintato tinha estado a escutar com toda a atenção. Chegara o momento de pesar as opções que se lhe ofereciam, pelo que se virou para os oficiais.
- Temos portanto três opções. Prosseguimos e lutamos. Ficamos aqui e lutamos. Ou tentamos escapar desta armadilha e seguimos pelas montanhas.
Valens abanou a cabeça.
- Senhor, não me agrada essa última hipótese. O caminho já é bem complicado por aqui. Nas montanhas será ainda pior. E isso significaria abandonar o abrigo que o
campo nos oferece e arriscarmos tudo com base nas palavras deste jovem. Um risco demasiado grande.
O seu superior lançou uma risada breve e sem humor.
- Um risco, sim, que se compara com a certeza da destruição se aqui ficarmos e combatermos, ou a grande probabilidade de sermos totalmente aniquilados se seguirmos
para leste e tentarmos forçar a passagem antes que a coluna inimiga nos ataque pelas costas.
- Há outro problema, senhor - anunciou Cato. - Algo que nos veremos forçados a enfrentar.
O legado virou-se para ele.
- Equeé...?
- Se esse tal desfiladeiro não permite a passagem de vagões e outros veículos, o que vamos então fazer com os feridos? Podemos talvez usar os cavalos e mulas que
ainda nos restam, mas os animais já estão num estado lastimável, e não me parece que fossem muito longe com essa carga. Além disso, não são suficientes. Talvez possamos
salvar os feridos que ainda conseguem andar, mas isso representa centenas que teríamos que deixar para trás. E todos sabemos muito bem o que os druidas gostam de
fazer com os cativos romanos... - Parou, para que todos os outros oficiais tomassem plena consciência do que estava a implicar. - Não os podemos deixar desamparados,
ou pelo menos vivos.
Os olhos de Macro arregalaram-se.
- Senhor, um momento. O que está a querer dizer? Liquidamos os nossos rapazes e fugimos?
Cato respirou fundo.
- Se queremos realmente salvar o resto da coluna, que escolha temos? Se ficarmos aqui e tentarmos prevalecer em combate, os
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feridos acabarão por perecer de qualquer das formas. Podemos ao menos dar-lhes a possibilidade de, quando o momento chegar, tomarem a sua própria decisão. E aos
que estão demasiado feridos para poderem tratar disso por si mesmos, os médicos poderão acudir para ajudar, da forma mais indolor possível.
- Por todos os deuses, senhor. Isso não é maneira de tratar os nossos camaradas. São homens ao lado de quem combatemos...
- O prefeito Cato tem toda a razão - interveio Quintato. - Se deixarmos o campo, teremos que deixar para trás todos os que estão incapazes de andar.
Afogueado, Valens inclinou-se para a frente e batucou nas talas que lhe amparavam a perna.
- É fácil de dizer para si, senhor. Espero bem que explique esse raciocínio a todos os feridos.
- Não penso em abandonar o comandante de uma legião à mercê do inimigo. Vamos arranjar maneira de te levar.
Valens enfrentou-o com evidente azedume.
- Salvar-me, enquanto os outros ficam para serem massacrados? Nunca permitiria que me desonrassem de tal forma.
- Disparate, homem! Estou a pensar nos danos que a reputação de Roma sofreria se os druidas conseguissem capturar-te vivo.
- Creia em mim, senhor. Nunca permitirei que isso suceda.
Os dois legados encararam-se por momentos, até que Cato interrompeu o confronto.
- Senhor, se me permite uma sugestão?
Quintato desviou o olhar de Valens, e encarou o prefeito.
- O que é agora?
- Se conseguirmos realmente escapar, o inimigo depressa se aperceberá do que se está a passar e virá atrás de nós, assim que tiver tratado dos feridos que ficarem
no campo. Se queremos arranjar algum tempo para construir um avanço decente, seria melhor que existisse algum esforço para defender o campo, de forma a dar a impressão
de que o exército ainda está no seu interior.
- Quem cá ficar, morrerá.
Cato anuiu lentamente, antes de responder.
- Senhor, seja qual for a sua decisão, alguém morrerá. Sugiro que solicitemos voluntários, e que tiremos à sorte os outros.
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- Os outros? - Valens fungou. - Quantos homens tens tu em mente sacrificar afinal, prefeito Cato?
- Os suficientes para tornar a coisa convincente, senhor. Quinhentos homens devem oferecer uma resistência suficiente e aguentar o campo por umas horas, pelo menos.
- Quinhentos homens...
- Sim, senhor.
Ninguém falou no interior da tenda durante alguns pesados momentos. Foi Quintato quem acabou por se manifestar, endireitando as costas enquanto se dirigia aos outros
oficiais.
- Da maneira como eu vejo isto, existe apenas uma forma que nos permite salvar o maior número de homens possível. Os homens de que vamos precisar para formar o núcleo
de um novo exército que possa completar o trabalho a que dei início nesta campanha. A Lua está cheia, mas há nuvens a descer das montanhas. O exército deixará o
campo quando estiver completamente escuro. Cada comandante de unidade pedirá voluntários para ficarem para trás, a defender o campo. Se tal se tornar necessário,
tiraremos sortes para garantir que temos homens suficientes para manter a ilusão de que o exército ainda está no acampamento. Não vou pedir a oficiais acima da patente
de centurião para participar nos sorteios.
O legado Valens ergueu a mão e interrompeu-o sem esperar por autorização para falar.
- Se me perdoar, senhor, não acho que devamos eximir qualquer oficial, com a exceção do comandante, claro. Evidentemente que não podemos permitir que um oficial
de tamanha importância caia nas mãos dos druidas. Quanto a mim, ficarei no campo, para comandar a defesa. Fornecerá um bom exemplo quando forem pedidos voluntários.
Quintato considerou a sugestão por momentos.
- Muito bem, se tens a certeza.
- Tenho.
- Nesse caso, temos que agir depressa. Cada comandante deverá apresentar o plano aos seus homens, antes de pedir os nomes daqueles que resolvam oferecer-se. Se forem
necessários mais homens, mandarei instruções sobre quantos cada unidade terá que fornecer. Depois disso, todas devem formar em ordem de marcha junto ao portão a
sul. O tribuno Livónio irá antes de mais determinar onde se encontra precisamente
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a entrada para esse desfiladeiro, assim que tivermos concluído esta reunião.
Livónio pareceu surpreso, mas recuperou e respirou fundo, antes de anuir.
- Sim, senhor. Hei de encontrá-la.
- Tribuno, tens mesmo que o fazer. Se não o fizeres, todos nós estamos mortos.
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29

A expressão de desalento que Cato trazia impressa no rosto dava imediatamente conta das notícias que vinham do quartel-general.
- Quantos homens quer ele então? - indagou Macro.
- Dez de cada coorte.
- Para lá dos voluntários? Já indicámos quinze voluntários, caramba. E um deles foi o Portilho. Um excelente oficial, que agora caminha para a morte.
Cato compreendia bem o amigo, mas não havia forma de contornar a ordem de Quintato.
- Mais dez, foi o que ele disse. E cabe-me a mim decidir se os escolho ou se tiram à sorte.
Macro inclinou a cabeça para tentar ler de forma mais clara a expressão do amigo, à luz da lamparina que lançava uma chama oscilante.
- E o que é que decidiste? Se os quiseres escolher, ainda há bastantes incapazes e maçãs podres para atirar fora. Preenchíamos a quota sem grande esforço. E salvaríamos
os homens mais capazes.
Cato já tinha ensaiado os argumentos em pensamento, enquanto se dirigia para a tenda de Macro. Era verdade que a opção lógica era a de escolher homens cujas mortes
constituíssem uma perda suportável para as coortes. Todavia, o peso moral de os condenar era demasiado grande para Cato aguentar sozinho, embora não deixasse de
se encolerizar consigo mesmo perante o que considerava ser um mero sentimentalismo. Aos oficiais eram constantemente pedidas decisões difíceis, e se não tivessem
forças para as tomar, não deviam sequer ser oficiais. Ainda assim, havia algo de profundamente imoral em designar homens para morrerem daquela forma. E facilmente
podia dar azo a ressentimentos entre os camaradas dos escolhidos, o que acabaria por prejudicar o feroz espírito de grupo dos homens que constituíam a retaguarda
do exército.
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Seria portanto bem melhor que fosse a mão cega do destino a determinar quem viveria e quem ficaria para trás, condenado a morrer.
Para os feridos, que jaziam em tendas próximas ao quartel-general, a questão era ainda mais complicada. A todos tinha sido distribuída uma adaga, e os médicos tinham
ido de homem a homem, a explicar qual a mais rápida e menos penosa forma de se autoinfligirem uma ferida mortal. A maior parte tinha decidido terminar a vida pelas
suas próprias mãos, mas Cato sabia perfeitamente que haveria alguns a quem faltaria a coragem no momento supremo, e que essas pobres criaturas acabariam por sofrer
inimagináveis tormentos às mãos dos druidas, a quem não faltava imaginação para esses casos.
- Farei a seleção por sorteio - anunciou. - Isto no que diz respeito aos Corvos Sangrentos. Quanto ao que vai acontecer na sua coorte, deixo-o à sua consideração.
Macro inclinou a cabeça para o lado.
- Senhor, essa decisão devia ser sua.
- Porquê?
- Responsabilidade da patente.
- Assim é, de facto - concordou Cato, fatigado. - E é por isso mesmo que lhe peço para decidir, Macro. São os seus homens, a sua responsabilidade. Seja como for,
o legado Valens quere-os no quartel-general o mais depressa possível.
- Assim seja. Vou tratar disso. Por sorteio.
- Ótimo. Quando estivermos despachados, quero a retaguarda formada e pronta a marchar. O legado deu ordens para que metade das tendas ficassem montadas, para ajudar
a dar a impressão de que o exército ainda está acampado. O que significa que os homens vão dormir ainda mais apertados, mas também reduz o peso e volume das bagagens.
E isso quer ainda dizer que vai haver mulas a mais, e que podemos comê-las.
Macro soltou uma risada seca.
- Há sempre um lado positivo em tudo.
Cato sorriu em resposta.
- Vejo-o assim que isto estiver despachado.
Trocaram uma saudação, e Cato afastou-se, dirigindo-se para junto da sua coorte. Os homens já sabiam o que se ia passar em seguida, e tinham formado nos seus esquadrões,
enquanto o decurião Miro metia
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num saco moedas que tirava da arca onde seguia o dinheiro dos salários. Depois de ter contado as moedas de bronze, juntou-lhes outras dez, mas de prata, praticamente
do mesmo tamanho, antes de sacudir fortemente o saco. Cato aproximou-se e voltou-se para os homens, a fim de lhes explicar a situação.
- Rapazes, não há tempo a perder com grandes discursos. O que se vai passar é o seguinte. Os esquadrões avançam à vez, e cada homem tira uma moeda do saco. Vamos
começar com o Harpex e os homens dele; os últimos serão o decurião Miro e o seu esquadrão. Eu tiro a primeira moeda.
Ao dizê-lo, virou-se para Miro, que lhe apresentou o saco; Cato colocou a mão no interior, agitou as moedas que sentiu com as pontas dos dedos, fechou-os em torno
de uma e extraiu-a, levando-a ao ar para que todos a vissem.
- Bronze! Harpex, é a tua vez.
Cato afastou-se para o lado e deixou que o decurião conduzisse os seus homens até ao saco. Cada um deles retirou uma moeda e mostrou-a ao alto, enquanto o resultado
era anunciado. Foi preciso esperar quase até ao último homem para surgir uma moeda de prata, e o trácio ficou imóvel, em choque, antes de aceitar o seu destino,
se despedir rapidamente dos camaradas e se colocar à parte, para aguardar o que a sorte reservava aos outros homens da coorte. Os outros cinco esquadrões avançaram
por seu turno, e outras moedas de prata foram aparecendo, até que, quando chegou a vez do esquadrão de Miro, já só faltava sair uma. Cada homem retirou uma das poucas
moedas que estavam no saco e exibiu-a claramente.
- Bronze... bronze... bronze...
Enquanto a fila diminuía, Cato reparava na crescente ansiedade no rosto do decurião, iluminado pelo luar. Por fim faltavam apenas Miro e Traxis tirar cada um a sua
moeda; o oficial hesitou, antes de oferecer o saco ao porta-estandarte.
- Tira tu primeiro.
Traxis cerrou os lábios, apreensivo, antes de meter a mão no saco e retirar rapidamente uma moeda. Não deixou de mostrar o alívio que lhe deu a natureza do metal
de que era feita quando a mostrou a todos.
- Bronze!
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Miro fitou-o com horror, e então, com todos os olhos virados para ele, colocou uma mão trémula no saco e extraiu a última moeda, como se fosse uma serpente venenosa.
- Prata...
Voltou a deixar cair a moeda no interior do saco, e largou-o aos pés, antes de dirigir um olhar desamparado a Cato, que se forçou a manter uma expressão impassível
enquanto se virava para os homens que tinham tirado as moedas de prata.
- Rapazes, foi assim que quis o destino. Lembrem-se de que serviram nos Corvos Sangrentos. Façam esta coorte orgulhosa uma vez mais, e garanto-vos que serão recordados.
Aguentem a pressão do inimigo o máximo de tempo possível, e matem o maior número daqueles cabrões que conseguirem. - Apertou o braço de cada um dos homens, deixando
Miro para o fim.
- Adeus, decurião. Foi uma honra servir ao teu lado.
Miro abriu a boca para responder, mas não lhe saíram quaisquer palavras. Engoliu em seco e tentou novamente, num tom baixo e quase suplicante.
- Senhor, precisa de mim. Quem mais poderá comandar o esquadrão?
- Eu próprio tomarei conta dos teus homens.
- Mas eles precisam de mim, senhor. Estão habituados à minha voz de comando. Somos camaradas. Se me perder, eles não combaterão tão bem como fizeram até aqui.
- Estou seguro de que combaterão de forma a prestar-te homenagem, decurião. Como eu próprio farei.
Miro inclinou-se para a frente e baixou ainda mais a voz.
- Senhor, eu não quero ficar cá. Não quero ficar aqui e morrer. Por favor, não me ordene que o faça. Diga ao Valens que tem um homem a menos... Por favor, senhor.
Por favor.
Cato tentou libertar a mão, mas o decurião mantinha-a agarrada com a força do desespero. Cato sentia-se enojado pela demonstração inequívoca da falta de coragem
do homem. Ripostou em voz baixa, num silvo furioso.
- Decurião, compõe-te. Imediatamente. As probabilidades eram iguais para ti e para todos os outros, foi Fortuna quem te escolheu. Aceita o facto e leva estes homens
até ao quartel-general. Vai...
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A força do aperto de Miro fraquejou por momentos, e Cato aproveitou para libertar a mão rapidamente.
- Prossegue, decurião Miro. Cumpre o teu dever.
Miro hesitou e olhou em volta, o maxilar a tremelicar. Instalou-se um terrível silêncio, até que Traxis deu um passo em frente.
- Senhor, peço licença para trocar de lugar com o decurião Miro!
- O quê? - Cato nem acreditava no que ouvia. - O que dizes?
- Senhor, eu troco de lugar com o Miro. Tal como ele diz, a coorte precisa dele. Permita-me ter uma oportunidade para arriar naqueles filhos da puta dos druidas.
Apetece-me mesmo dar-lhes uma lição.
Cato preparava-se para negar a permissão pedida quando viu o brilho desesperado nos olhos de Miro, e percebeu que a única forma de aquele homem lutar seria se alguém
o arrastasse aos gritos e pontapés até à presença do inimigo. O que seria extremamente perturbador para os homens que iam ficar para trás, e daria um miserável exemplo.
Engoliu a relutância e virou-se para Traxis.
- Tens a certeza absoluta sobre isto? Que queres ficar?
- Tenho, senhor. Será a oportunidade de abater alguns destes cabrões de celtas antes de lhes mostrar como morre um soldado de Roma. Vale bem a pena.
- Se é isso que realmente queres, Traxis.
- Sim, senhor. É isso.
Cato anuiu, cheio de admiração pelo homem.
- Muito bem. Mas há uma última coisa a fazer antes de nos separarmos. - Espetou um dedo na direção de Miro. - Passa ao Traxis o teu capacete e o teu arnês com as
medalhas. Imediatamente, a não ser que prefiras ficar e combater ao seu lado.
Miro não precisou que lho dissessem duas vezes, e entregou de imediato os mais visíveis símbolos da sua patente ao porta-estandarte. Traxis fez menção de lhe passar
o estandarte, mas Cato intercetou-o.
- Eu fico com isso. Miro, és despromovido para as fileiras, e ficas a partir deste instante encarregue das mulas. E até isso é mais do que realmente mereces. Desaparece
da minha vista.
Miro encolheu-se como se tivesse recebido uma bofetada, e recuou timidamente, antes de se virar e desaparecer na escuridão. Cato voltou a dar atenção a Traxis.
- Não significa muito, infelizmente, mas promovo-te a decurião.
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Ficarás no comando do contingente dos Corvos Sangrentos que vai permanecer no forte. E sei que tu e os outros erguerão bem alto o nome desta coorte. Por mim, considero
uma honra pessoal e um privilégio ter servido ao teu lado. Podes ter sido um criado quase sempre mal-humorado, mas és um excelente soldado.
Traxis sorriu ao luar.
- Senhor, por mim considero-o um excelente oficial, mas uma trabalheira tremenda para servir.
Trocaram um olhar silencioso, antes de Traxis se virar para os outros homens que iam ficar e morrer ao seu lado.
- Contingente dos Corvos Sangrentos! Atenção!
O pequeno grupo empertigou-se, com o ar de quem tinha acabado de chegar à parada. Traxis colocou-se à sua frente e fez uma curta pausa antes de soltar nova ordem.
- À minha voz, marcha em passo rápido! Um!
Enquanto se dirigiam para o centro do campo, um dos outros homens ergueu o braço numa saudação e começou a gritar:
- Traxis! Traxis!
O canto foi imediatamente adotado pelo resto da coorte, e Cato resolveu juntar-lhes a sua voz, gritando a plenos pulmões, até que os dez homens desapareceram, tragados
pelas trevas.
Quando tudo se acalmou, voltou-se para os seus homens e contemplou-os com orgulho e até um certo carinho. Da unidade cujo comando assumira depois de regressar à
Britânia, muito poucos homens restavam ainda.
- Não há muito a dizer - anunciou-lhes em tom calmo. - Vamos tratar de garantir que o sacrifício que os nossos camaradas vão fazer valha a pena. Regressaremos às
fronteiras da província, descansaremos ao longo do inverno, e na primavera voltaremos para vingarmos o Traxis e darmos àqueles druidas merdosos a lição que merecem.
É tudo. Agora, formem por esquadrões e preparem-se para marchar.
O tribuno Livónio e o seu escravo tinham marcado o caminho para o desfiladeiro com dardos a que tinham prendido pequenas tiras de pano escuro. Haviam aproveitado
as curvas do terreno para garantir que, tanto quanto possível, Quintato e o que restava da sua coluna não seriam observados. A rota escolhida partia do canto do
campo mais
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próximo das montanhas, e seguia uma ravina pouco profunda, por onde corria um riacho. Contornava depois um bosque que encobria a abertura do desfiladeiro. O legado
aguardou até que uma faixa de nuvens obscurecesse a Lua, antes de dar ordem para iniciar a fuga. A retaguarda manteve-se à espera enquanto o resto do exército saía
sorrateiramente do acampamento e seguia em fila indiana ao longo do caminho marcado. Se no dia seguinte o inimigo encontrasse por acaso aquela pista, poderia julgar
que só tinha passado por ali um pequeno contingente, em vez de se deparar com uma faixa de terreno largo e bem marcado por pegadas, que denunciasse a passagem de
uma força numerosa. Os homens caminhavam em silêncio, sombras escuras contra o brilho baço da paisagem coberta de neve, e os oficiais vigiavam a marcha, de forma
a garantir que ninguém falava ou fazia sons desnecessários. Os cavalos e mulas tinham os focinhos cobertos, e eram levados pelos cavaleiros e tratadores, que mantinham
uma mão nos flancos dos animais, para os acalmar e confortar enquanto atravessavam a neve.
Quando o último elemento da coluna já tinha deixado o campo, Cato lançou um último olhar às sentinelas na paliçada, e aos outros homens que se tinham reunido para
ver a partida dos seus camaradas em silêncio. Macro pressentiu quanto se sentia mal o amigo naquela situação.
- Apesar do que eu disse antes, tinhas toda a razão. Esta é a melhor forma de encerrar uma péssima história.
- Eu sei. Só gostava que isto não fosse, no fim das contas, apenas um desperdício de homens valorosos. Eles mereciam melhor.
- Pelo menos assim vão morrer da mesma forma que viveram, a combater, de espada na mão. Guarda a tua piedade para aqueles que vão morrer de frio, ou perecer por
causa das feridas, ou por doença, ou até por acidente. Existem inúmeras formas de a morte vir ao encontro de um soldado, sabes? Este é um dos fins mais dignos que
um homem pode ter. Acredita no que te digo.
Cato sabia que o amigo tinha razão, mas isso não tornava mais fácil aquele momento de adeus definitivo a tantos bons camaradas. Respirou fundo e deu a ordem no tom
de voz mais alto a que se atreveu.
- Retaguarda... avançar.
Os legionários de Macro tomaram a dianteira, abandonando o forte em fila, seguidos por Cato à cabeça dos Corvos Sangrentos, que seguiam a pé e guiavam as montadas
pela estreita vereda aberta na neve pelos
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homens e animais que os tinham precedido. Depois de o último homem deixar o campo, o portão fechou-se atrás deles, encerrando os defensores e permitindo-lhes umas
horas de descanso antes da chegada da alvorada e do destino inexorável que os aguardava. Os homens que seguiam no fim da coluna recolhiam os dardos que marcavam
o caminho, ao passar por eles. A neve começou a tombar em revoadas, em quantidade suficiente para se acumular sobre a pista que os romanos deixavam, mas não de forma
a escondê-la por completo.
O ar noturno estava absolutamente gelado, e Cato sentia-o a enregelar-lhe a garganta, de cada vez que inspirava. Para lá do som dos passos suaves a esmagar a neve
dos que o antecediam e dos que o seguiam, a noite estava calma e silenciosa, e Fortuna continuava a conceder-lhes a bênção de uma Lua escondida. Porém, quando os
Corvos Sangrentos estavam a alcançar a orla do bosque e começavam a rodeá-lo para se dirigirem à estreita fenda entre as duas íngremes encostas rochosas que separavam
as montanhas, a Lua começou a emergir das nuvens e banhou-os numa luz prateada que realçava as orlas das nuvens mais próximas no céu. O aumento da luminosidade foi
assombroso, e Cato sentiu-se horrivelmente exposto, antes de perceber que qualquer observador teria grandes dificuldades para distinguir a coorte das árvores contra
as quais os seus vultos se projetavam. Prosseguiram, progredindo com relativa facilidade sobre a neve compactada que tinha sido já pisada e lhes dava uma boa base
de apoio. À medida que as árvores cediam lugar a um terreno ermo semeado de pedregulhos, Cato viu os legionários de Macro a desaparecerem por entre as falésias.
Ao aproximar-se, percebeu que havia um caminho, suficientemente largo para permitir a passagem de uns cinco homens lado a lado. Era ladeado por grandes afloramentos
rochosos cobertos de musgo e neve, que se erguiam para o céu como se o quisessem engolir; o ar ali era húmido, e cheirava a bafio. A passagem começava a estreitar-se,
tornando-se o terreno mais irregular, e Cato refletiu que Livónio tinha tido razão. Não teria havido forma de fazer passar por ali qualquer veículo com rodados.
Olhou para cima e comprovou que o céu começava a clarear. Virou-se para trás e notou que havia mais luz na entrada do desfiladeiro, o que indicava a rápida aproximação
da madrugada.
Puxou a montada para o lado e deixou que a coorte passasse por ele, homem a homem. Na cauda da unidade vinha uma pequena fila de
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mulas que carregavam as parcas rações que Cato conseguira reunir ainda no campo. Miro conduzia os animais, e passou por ele sem se atrever a encará-lo.
Cato ficou ainda uns instantes a observar a forma como o céu começava a clarear e a adquirir um tom rosado junto ao horizonte oriental. Foi nesse momento que escutou
a distante nota produzida por um corno de guerra celta. O sinal foi repetido por outros instrumentos e seguido por um clamor crescente, como se fosse uma vaga a
rebentar numa praia longínqua. Ao que parecia, a paciência do inimigo tinha acabado de se esgotar, e os nativos tinham decidido não esperar que fosse a fome a levar
os romanos à rendição. Os druidas e os seus guerreiros queriam sangue, e a honra de poderem um dia contar aos netos o papel que tinham desempenhado na aniquilação
de um exército romano.
Cato puxou pelas rédeas do cavalo e avançou a passo mais rápido, para apanhar a cauda da coluna.
- Deixa passar! - ordenou rispidamente a Miro, e o antigo decurião apressou-se a afastar as suas mulas da vereda, para permitir a passagem do prefeito. Ao alcançar
o esquadrão que seguia em último lugar, Cato avisou:
- Passem a palavra ao legado: o inimigo acaba de lançar o assalto ao campo...
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Depois de o que restava do exército romano ter atravessado o desfiladeiro, as unidades voltaram a formar, e começaram a percorrer um estreito vale que serpenteava
para leste e sul ao longo de muitos quilómetros. Tal como Valens tinha antecipado, a neve era ainda mais profunda por ali, e os homens que seguiam à frente da coluna
tinham que abrir caminho com as pernas enterradas na neve até ao joelho, deixando o trilho mais fácil para os que vinham atrás. Ninguém conseguia deixar de pensar
no combate que estava naquele momento a desenrolar-se no campo que tinham abandonado. Depois de o inimigo conseguir penetrar nas defesas, tudo estaria terminado
em muito pouco tempo. E quando isso sucedesse, os druidas perceberiam que tinham sido enganados, e depressa se lançariam de novo em busca da pista da sua presa.
Não lhes levaria muito tempo a descobrir as marcas da passagem das coortes pelo desfiladeiro e a retomarem a perseguição à coluna romana.
Mas o inimigo não era a única coisa que apoquentava os pensamentos dos legionários que se arrastavam sobre a neve. Alguns não comiam havia já quase dois dias, e
tinham que suportar uma ininterrupta dor de estômago. Pelo menos a sede era facilmente saciada pegando numa mão-cheia de neve. Mas a fome roía-lhes as forças e a
resistência, e os homens, já extenuados, tinham que se forçar a prosseguir, um passo atrás do outro.
Não levou muito tempo até os primeiros se destacarem da ordem de marcha. Os seus oficiais berraram-lhes aos ouvidos para que voltassem a pôr-se de pé, e quando os
gritos em nada resultaram, recorreram a murros e vergastadas com as varetas. Nalguns casos tiveram sucesso, mas havia outros que se limitavam a aninhar-se em bola
e a suportar o castigo, sem se ralarem com a autoridade dos superiores nem com a dor que lhes era infligida. Esses homens acabavam por ser abandonados à sua sorte,
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e muitos ficavam ali mesmo onde se tinham sentado. Outros permaneciam na ordem de marcha, mas para isso abandonavam equipamento, e depressa o caminho ficou juncado
de peças da messe, roupas a mais, ferramentas para a construção dos campos, e até cargas completas, o que indicava que os seus anteriores donos só tinham ficado
com as armas, e a comida e bebida que tivessem nas mochilas.
Partia o coração a Macro ver soldados, em particular os seus muito prezados legionários, com o espírito tão quebrado que eram capazes de atirar fora de bom grado
todos os seus pertences, indo contra as admoestações dos seus oficiais. Manteve os seus homens debaixo de olho, tentando garantir que os oficiais da unidade os mantinham
em movimento e que eles também não começavam a atirar fora peças de equipamento. Para os Corvos Sangrentos era mais fácil, já que tinham os cavalos que levavam os
seus pertences e portanto só se preocupavam com a fome e o cansaço extremo. Cato deu com os seus pensamentos a virarem-se uma vez e outra para a comida, sobrepondo-se
até à mágoa que o preenchia pela morte de Júlia. De cada vez que isso sucedia, tinha que se obrigar a afastar tais pensamentos e manter-se focado nos seus homens,
vigiando-os para ter a certeza de que continuavam em formação, oferecendo palavras de encorajamento a todos os que pareciam necessitar delas, sempre a olhar para
trás pelo caminho percorrido, à procura dos primeiros sinais do inimigo.
Por volta do meio-dia, tanto quanto se conseguia estimar perante um céu totalmente nublado, o legado deteve a coluna para dar algum descanso aos homens e permitir
aos atrasados recuperarem. Estava demasiado frio para que alguém optasse por se sentar, pelo que os homens ficaram de pé, a bater os pés e a esfregar as mãos, tentando
de todas as maneiras manterem-se quentes.
Macro aproximou-se a passo largo do amigo.
- Tempo fresquinho, hã?
Cato, que era de constituição pouco robusta, tinha tendência para sentir o frio de forma mais pronunciada do que o amigo, e lutou para fazer os dentes pararem de
bater antes de responder.
- Não há nada que o aborreça seriamente?
- Então não? Putas com chatos, políticos honestos. Além de todos os que fazem batota aos dados. Já o frio, é só uma questão de hábito. Até aqui na Britânia. Mas
a fome? Isso já é diferente. Estava capaz de
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engolir uma perna de veado inteirinha, temperada com garo e servida com aquele molho de cebola bem grosso. - Macro olhou para a distância, enquanto prosseguia no
seu banquete imaginário, até que um barulho vindo do próprio estômago lhe chamou a atenção para o presente e para a realidade da situação em que se via. - Desculpa
lá isto. Não foi grande ajuda.
- Não, de todo - concordou Cato. - Nesta altura estou capaz de comer qualquer coisa que me dessem.
Olhou ao longo da linha do exército, até onde Miro cuidava dos animais.
- Parece-me que vamos abater as mulas esta noite. Metade para os trácios, metade para os seus rapazes. Não haverá muita carne para distribuir, mas talvez tenhamos
tempo para a cozer e a tornar suficientemente tenra para evitar o risco de partirmos algum dente a mastigá-la. E pelo menos os homens terão alguma coisa quente para
meter nas barrigas e lhes voltar a trazer um sorriso aos rostos. E logo vemos o que é que sobra para amanhã à noite.
Macro lançou-lhe um olhar rápido.
- Estás a adiantar-te muito. Temos que pensar nisto um dia de cada vez. É nisso que temos que nos concentrar, se queremos sobreviver.
Cato pensou por momentos, e acabou por concordar, com movimentos lentos da cabeça.
- Palavras bem sensatas, creio. Depois digo-lhe se conseguir sobreviver até amanhã à noite. - O tom tornou-se mais sério. - Como vão os seus homens?
- Os rapazes estão finos. Até agora, só perdi uma meia dúzia, mas deves ter visto isso por ti próprio. Claro que, se lhes dessem oportunidade, devoravam as próprias
mães. Mas por agora fazem o que lhes dizem, se é isso que queres saber.
Cato olhou em volta, preocupado com a possibilidade de serem escutados.
- É precisamente isso que quero saber. Pela quantidade de equipamentos que tenho visto abandonados pelo caminho, atrevo-me a imaginar que não haverá mais do que
um punhado de unidades em condições minimamente decentes para combater. Se chegarmos a esse ponto, o resto da coluna dependerá de nós. E só conseguiremos cobrir
a retirada se conseguirmos manter a disciplina entre os homens e dar-lhes uma boa
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razão para lutarem com toda a determinação. Está tudo sobre os nossos ombros, Macro.
- Eu sei. Nada muda muito neste mundo. Acabamos por dar sempre connosco metidos em sarilhos até ao pescoço, pouco importa em que parte do Império estejamos. Era
capaz de jurar que alguém nos lançou uma maldição, daquelas realmente bem feitas e poderosas.
Macro soltou uma risada que se transformou num acesso de tosse. Antes de conseguir recuperar voz suficiente para poder replicar, ouviu-se um grito vindo do esquadrão
mais recuado dos Corvos Sangrentos.
- Inimigo à vista!
Os dois oficiais viraram-se para olhar para o vale. Várias figuras a cavalo, pouco mais do que pontos escuros contra o fundo branco, galopavam na direção de um outeiro
a cerca de quilómetro e meio dali. Quando o alcançaram, fizeram uma pausa para observar a coluna romana. Então um deles voltou para trás a toda a brida, pelo mesmo
caminho de onde viera.
- Não lhes levou muito tempo a dar connosco - comentou Macro.
- Agora estamos mesmo feitos.
Cato chamou imediatamente um dos seus homens e enviou uma mensagem ao legado, a informá-lo do avistamento do inimigo. Voltou-se por fim para Macro.
- Se for apenas um grupo de batedores, vai gastar algum tempo para levar as notícias aos druidas, e para eles encetarem a perseguição. Temos um dia de avanço...
- Fez uma pausa e rangeu os dentes para os impedir de baterem uns contra os outros. - Porém, se forem antes um grupo avançado que segue à frente do exército, estamos
metidos num grande sarilho.
- Sarilho? Do género estamos-completa-e-absolutamente - fodidos, queres tu dizer?
Cato arregalou os olhos e deitou-lhe um olhar bem expressivo.
- Se prefere pôr a coisa dessa forma tão eloquente, sim, é isso.
A notícia do avistamento espalhou-se rapidamente pela coluna romana, e os soldados voltaram-se para contemplar o inimigo distante. Cato perscrutou as expressões
dos homens, e viu medo em muitos rostos, uma resignação triste noutros. Praticamente nenhum deles disse uma palavra. Pouco depois ouviu o som abafado de cascos e
ao virar-se avistou Quintato a percorrer a coluna, vindo ter com ele, o cavalo a
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levantar uma grande quantidade de neve fina. Deteve a montada ao alcançar Cato, e esforçou a vista por momentos.
- Conto oito. Viste mais alguns?
- Só o homem que enviaram para trás, com toda a certeza para informar que nos encontraram, senhor.
- Portanto, daqui a muito pouco saberão precisamente onde nos encontrar. Merda. - O legado baixou a cabeça, imerso em pensamentos.
- Ainda estamos a dois dias de marcha de Mediolanum. Talvez mesmo três dias, nestas condições. Temos que prosseguir a toda a velocidade. Vai dar ordens para repor
a coluna em movimento imediatamente. - Olhou para Cato. - Não há mais paragens até chegar a altura de erigir um campo, ao fim da tarde. Quem quer que se afaste da
formação deve ser deixado para trás. Entendido? Não podemos permitir-nos perder tempo e esforço em gente que não nos vai servir para nada.
- Sim, senhor.
- E terás que estar pronto a retroceder ligeiramente e combater, se tal se tornar necessário.
- Compreendo. O exército pode depender de mim e do Macro, senhor.
- Ótimo. Então que Júpiter, o melhor e maior dos deuses, nos guarde e nos guie até à segurança. Se vires mais alguns desses filhos de uma cabra, avisa-me de imediato.
- Sim, senhor.
Quintato fez o cavalo rodopiar e levou-o a galope a caminho da cabeça da coluna. Macro ficou a vê-lo afastar-se, e por fim deu um estalo com a língua.
- Realmente, adoro um comandante que conduz um exército na frente, mas perco um bocado de entusiasmo pela ideia quando estamos em retirada.
Cato fez uma careta.
- Cabe-nos portanto a nós liderar a partir da retaguarda, está visto.
A coluna continuou a avançar pelo vale. Alguns quilómetros adiante, este desembocou noutro, mais largo, e Quintato virou para leste. Ao longo do caminho, os cavaleiros
inimigos mantiveram-se na peugada dos romanos, estabelecendo sempre uma distância cautelosa. Tanto quanto Cato conseguia verificar, para lá dos batedores não havia
outros
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guerreiros celtas naquela área, e lançou uma prece a Fortuna para que por fim lhes concedesse o favor de lhes permitir manterem-se à frente do inimigo.
Ao virarem para leste, na esteira do resto da coluna, Cato olhou para a paisagem circundante e franziu o sobrolho.
- Estou a reconhecer esta zona. Passámos por aqui a caminho de Mona. Estou certo disso.
- Tens a certeza? - indagou Macro. - Com esta neve toda, as coisas têm um aspeto diferente.
- Estou seguro, sim - insistiu o prefeito.
Um pouco adiante depararam-se com dois legionários que se debatiam para manterem de pé um camarada e prosseguir em marcha lenta. Cato dirigiu-se a eles.
- O que se passa aqui?
Os homens fizeram uma fraca tentativa de se porem em sentido à frente do oficial que os interpelava, e o soldado que seguia no meio deles estremeceu, enquanto tentava
ocultar a dor que o afligia. Um dos seus companheiros tossicou para limpar a garganta, e explicou.
- É aqui o Ático, senhor. Não consegue sentir os pés. Não consegue caminhar sozinho.
- Não? - Cato obrigou-se a adotar uma expressão austera. - Vamos lá a ver. Afastem-se dele. Imediatamente.
Com evidente relutância, o par de homens obedeceu à ordem recebida. Assim que as mãos que o amparavam se afastaram, o legionário cambaleou por momentos, até que
as pernas se recusaram a sustentá-lo e ele caiu sobre a neve, com um suspiro. Cato aproximou-se dele.
- Ático, tens que caminhar sobre as tuas pernas. Não podes pôr os teus camaradas em risco por os obrigares a carregar-te. Percebes o que te digo?
O soldado acenou vagarosamente com a cabeça.
- Estou... muito... cansado.
- Ático! Ático! Olha para mim! - Cato debruçou-se sobre ele e abanou-lhe o ombro com brusquidão. Os olhos do legionário entreabriram-se, mas ele só conseguiu focá-los
ao fim de algum tempo. Cato esticou o braço na direção dos batedores inimigos. - Estás a vê-los? Daqui a pouco vão aparecer milhares dos amigos deles, cheios de
vontade de nos esmagar e de nos cortar as cabeças. Se não consegues andar, é como se já
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estivesses morto. E se os teus camaradas se puserem a carregar-te, também eles estão praticamente mortos. Roma não pode permitir-se perder mais homens. Portanto,
vais pôr-te de pé e voltares a juntar-te à coluna, ou ficas aí sentado e morres. A escolha é tua. - Virou-se para os outros dois legionários. - Regressem à vossa
unidade. Em corrida!
Os dois olharam incertos para o amigo, até que Cato os encarou com evidente fúria, quase os desafiando a desobedecer-lhe, altura em que se viraram e desapareceram.
Olhou de novo para Ático e sentiu as entranhas torcidas com pena do homem. Tinha sido duro obrigar os camaradas a abandoná-lo, mas fora necessário.
- Ático, faz o que puderes para te manteres em andamento. Se não te puderes de todo mexer, pega na espada e usa-a, no inimigo ou em ti mesmo. Não permitas que eles
te façam prisioneiro.
O legionário assentiu levemente, e balbuciou:
- Nada de prisioneiros.
Cato endireitou-se e foi ter com Macro, que tinha estado a observar a cena.
- Tive que o fazer, Macro. Portanto, nem uma palavra.
- Eu? Sei bem o que isso custa.
Prosseguiram, enregelados, esfomeados e com os pés cada vez mais doridos, tornando cada passo um martírio. Quando a luz começou a esmorecer e as sombras já se alongavam,
avistaram à distância uma garganta entre as colinas, e Cato notou de imediato que era o cenário do primeiro confronto da campanha. A ironia atingiu-o como uma piada
sem graça nenhuma. Daquele ponto, os romanos tinham marchado contra Mona plenos de confiança, à espera de uma vitória rápida e determinante. E ali estavam eles de
volta, a arrastarem-se para os seus aquartelamentos de inverno, como cães escanzelados que tivessem sido sovados pelo dono, a olhar por cima do ombro com a expressão
amedrontada dos animais que antecipavam nova tareia. Voltou a olhar para a garganta estreita, de forma longa e pensativa, e virou-se para Macro.
- Tome o comando aqui. Volto assim que puder.
- O quê? - Macro olhou em volta. - O que se passa?
- Mantenha os homens em movimento - disse Cato, enquanto saltava para a sela e sentia todos os ossos do flanco chupado do animal, antes de o incitar a avançar.
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Quando por fim se aproximava de Quintato, já a cabeça da coluna passava pela parte mais estreita da garganta, e o legado e os seus oficiais tinham-se detido para
observar aquele momento complicado. Quando avistou Cato, um breve olhar de alarme perpassou pelo rosto de Quintato, e ele lançou de imediato uma pergunta.
- O que é que aconteceu?
- Nada, senhor. Ainda não há sinal do inimigo.
- Nesse caso, por todos os deuses, porque é que vieste disparado por aí acima?
Cato apercebeu-se de que o comandante estava à beira da exaustão, os nervos tão desgastados como os do resto dos homens. Respirou fundo e devagar para se acalmar,
antes de responder.
- Senhor, recorda-se deste lugar?
- Evidentemente. Foi aqui que fomos detidos pelo inimigo no início da campanha. Graças ao tempo que levaste a desbaratar um punhado de nativos.
Cato não evitou um franzir de sobrolho perante aquela injusta acusação.
- Precisamente, senhor. E agora deparamo-nos com a oportunidade de lhes devolver o favor.
Quintato considerou a ideia por momentos, olhou para a garganta, que era atravessada naquele momento por uma coorte da Vigésima, enfiada entre as duas paredes de
rocha vertical que davam lugar às falésias mais acima.
- Achas que podemos detê-los aqui?
- Sim, senhor. Estou certo de que a retaguarda pode consegui-lo. Um dia, talvez mesmo dois. Tempo suficiente para que o resto do exército alcance Mediolanum em segurança.
Para isso precisamos de todos os dardos, todos os arcos e metralha para as fundas que ainda estejam disponíveis. Dê-me o que lhe peço, e garanto-lhe um dia de avanço,
sem problemas.
O legado mordiscou o lábio.
- Um dia pode significar milhares de vidas salvas. Embora não a minha. Quando as notícias deste desastre chegarem a Roma... Não interessa. - Abanou a cabeça para
afastar aquelas ideias, e assentiu. - Muito bem, prefeito Cato. Terás tudo aquilo de que necessitas.
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Cato deteve os Corvos Sangrentos numa crista, formando uma cortina que não permitia ao inimigo uma visão clara da garganta, enquanto Macro e os seus homens aceleravam
o passo para ajudar a preparar as defesas a instalar na estreita passagem. Blocos rochosos foram empilhados para bloquear o caminho, e depois arrumados de forma
a criar uma espécie de parapeito, deixando uma abertura com a largura suficiente para um homem passar com um cavalo. Dardos, setas e arcos foram armazenados no interior,
bem como os estrepes que ainda tinham sobrado da campanha. Uma centúria foi designada para fortificar os caminhos que levavam ao cimo das falésias, para bloquear
todo e qualquer trilho de cabras e outras veredas mais fáceis, com estacas aguçadas e outros obstáculos, enquanto outro grupo colocava pedregulhos em posição perto
da borda do precipício, nos pontos situados sobre a entrada para a garganta que o inimigo teria de seguir quando se aproximasse em perseguição da coluna romana.
A luz já desaparecia quando Macro enviou uma mensagem a Cato, a informá-lo de que as defesas estavam terminadas, e de que os Corvos Sangrentos podiam voltar a juntar-se
à retaguarda do exército. Cato deixou-se ficar sozinho na crista por momentos, a observar o inimigo, que já estava a menos de um quilómetro dali. Também eles o observavam,
antes de avançarem cautelosamente, ao perceberem que um romano sozinho dificilmente poderia constituir uma ameaça. Cato deixou-os chegar a duzentos passos dele antes
de fazer a montada dar meia-volta e recolher para a garganta num trote quase despreocupado. Quando alcançou as defesas, foi o último homem a atravessá-las, antes
de a abertura ser selada. Já havia fogueiras acesas na parte de trás da garganta, bem como no cimo das falésias. Um rico aroma a carne assada pairava no ar, e sentiu
o estômago aos pulos com um apetite feroz, quando Macro se aproximou para o saudar, passando entre os homens que estavam de vigia.
- Espetada de mula, está mesmo a sair, e o legado desencantou uns odres de vinho para distribuir pelos homens. Quanto ao próprio, já está meio tocado.
- O Quintato ainda cá está? Pensei que já tinha partido com o resto do exército.
- Acho que ele quer dar-te umas palavrinhas finais, antes de abalar para Mediolanum. Últimos pedidos, esse género de coisa, sem dúvida.
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- Macro encolheu os ombros. - Não é que signifique grande coisa. Mas, por mim, fico satisfeito com o vinho.
- Não duvido.
Cato desmontou e entregou as rédeas a um dos trácios, enquanto Macro espetava um dedo na direção de onde o inimigo se aproximava.
- Já há sinais deles?
- Só os batedores. Mas os outros não devem estar muito longe. Só espero que tenhamos possibilidade de dar algum descanso aos homens antes que eles lancem um assalto.
Mas agora, estou com tanta fome que era capaz de comer um cavalo.
Macro deu um estalo com a língua.
- Desculpa, disso não temos. Só mula, é mais rápido a assar.
Percorreram a garganta, saindo para perto de uma grande fogueira
que iluminava com um brilho alaranjado e quente as rochas cobertas de neve que a ladeavam. O torso de uma mula tinha sido empalado numa lança, e estava a assar por
cima das brasas amontoadas num dos lados do fogo. Entretanto, os soldados estavam por ali, sentados, com pedaços de carne espetados nas pontas de dardos, para os
segurar sobre as chamas, e vários odres de vinho circulavam entre eles. O legado Quintato estava de lado, a pé, com um sorriso animado e as mãos esticadas sobre
as labaredas, para as aquecer. Olhou para cima ao ver Cato a aproximar-se.
- Ah, Cato! Cá estás. Junta-te à festa.
- Festa? - balbuciou Cato, enquanto trocava um olhar com Macro. Era uma forma bizarra de descrever homens que daí a pouco iam enfrentar uma situação sem esperança,
mas calculou que fosse o vinho a falar. Ao avançar para o lado do legado, recebeu a oferta de um odre de vinho.
- Bebe um bom trago - convidou Quintato. - É da minha propriedade na Campânia. Pode não aguentar muito bem estas viagens, mas lá que viajou, viajou.
Cato acenou um agradecimento e beberricou, pouco confiante no seu estado físico para aguentar a bebida.
- Ainda não há sinal do exército inimigo, senhor.
- Eles hão de aparecer... - O legado cerrou os lábios. - Podes contar com isso. Mas estaremos prontos para eles.
Cato sorriu para dentro ao escutar aquele comentário tão inclusivo, mas desejou que o superior partisse e deixasse a retaguarda a seu cargo. Os Corvos Sangrentos
e os legionários de Macro tinham combatido lado
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a lado ao longo de muitos meses, e tinham acabado por estabelecer uma forte ligação sob o comando dos dois oficiais. Seria uma pena que o legado se intrometesse
demasiado naquela que podia bem ser a última noite que passavam todos juntos naquele mundo.
- Os rapazes vão aguentá-los até não poderem mais, senhor. E havemos de os fazer pagar um preço elevado para nos ultrapassar.
- Sim, fá-lo-emos - confirmou Quintato, com palavras bem precisas.
- Vai ficar aqui connosco?
O legado respirou fundo e confirmou.
- Que escolha tenho eu? Se regressar com um exército derrotado, o Imperador vai pedir a minha cabeça. Se ficar e combater, talvez possa recolher alguma glória pessoal,
e preservar a honra do meu nome de família. Mas não te preocupes, não vou interferir com o teu comando destes homens. Mereceste-o vezes sem conta. Tu e o Macro.
É uma verdadeira desgraça que Roma se veja privada dos serviços de dois tão extraordinários oficiais. Quem sabe, talvez algum milagre permita que eu sobreviva para
receber uma aclamação. Seja como for, pelo menos o resto do exército tem assim uma boa possibilidade de alcançar um ponto seguro.
- Espero bem que sim, senhor. E espero também que todos possamos beneficiar desse milagre. Ao longo dos meus tempos no exército, já vi coisas mais estranhas sucederem.
- Se não fossem estes malditos nevões tão precoces, teríamos esmagado os druidas.
- Não foi a neve, senhor. Foi o momento escolhido para a campanha. O inverno não é época para nos aventurarmos pelas montanhas.
- Mas eu tinha que o fazer. O tempo estava a esgotar-se - insistiu Quintato.
Cato refletiu por momentos. Sentia-se inclinado a temperar a crítica ao seu superior, mas a verdade é que essa tinha deixado de ser uma preocupação. Eram homens
condenados, todos eles. O que importava o que dissesse?
- Era o seu tempo que estava a esgotar-se, senhor. Claro que queria alcançar a glória antes da chegada do novo governador. Tudo isto foi pensado para dar brilho
à sua reputação, e custou uma aposta nas vidas dos homens que conduziu a estas montanhas. Não foi isso?
- Admito que foi um risco, sim. - Quintato fez uma pausa, e fixou
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o olhar nas chamas. - Um risco desmesurado. E estou pronto a pagar o preço dele, por isso estou aqui.
- Um preço que fez com que todos acabássemos por pagar também - ripostou Cato com firmeza. - Ficaria espantado se um terço do exército conseguir chegar a Mediolanum.
Até a retaguarda foi bastante afetada. A coorte do Macro já não tem mais de duzentos homens, e eu mal consigo reunir uns cem homens nos Corvos Sangrentos. Eles mereciam
melhor sorte.
Quintato virou-se e encarou-o sem reservas.
- Sim, mereciam - respondeu, num tom calmo e abatido.
Os homens devoravam a carne que lhes era dada como lobos esfaimados, por rija que fosse. Assim que a carne começou a aquecer-lhes o espírito, a boa disposição surgiu
como que por encanto. As vozes subiram de tom, e as anedotas e pedaços de canções começaram a ecoar nas apertadas paredes rochosas da garganta. As labaredas dançantes
lançavam sombras gigantescas sobre rochas e neve, e Cato sentiu o calor da camaradagem com maior intensidade do que alguma vez sentira. Quanto a Macro, aproveitava
o vinho com um abandono um tanto exagerado para o seu próprio bem, e antecipava a batalha próxima com um brilho nos olhos e um sorriso cruel nos lábios, enquanto
mastigava um rijo naco de carne de mula.
Não levou muito tempo para que o ambiente acalmasse. Não tinham ainda passado três horas desde o pôr do sol quando um dos vigias nas falésias colocou as mãos em
concha junto à boca e lançou o aviso aos que rodeavam as fogueiras lá em baixo:
- Aí vêm eles!
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- Às vossas posições! - gritou Macro, enquanto se punha de pé de um salto. - Todos a postos! Preparem-se para enfrentar o inimigo!
Os homens em redor das fogueiras largaram comida e bebida para pegar nas armas e equipamento e correrem para as posições que lhes tinham sido atribuídas. Macro e
os seus legionários tomaram lugar por trás da barricada de rochas. O legado Quintato desembainhou a espada com punho de marfim da sua bainha de prata e abriu caminho
até à frente, para se colocar ao lado do centurião. Este fitou-o com o cenho franzido, e o legado soltou uma risada.
- Tem calma, Macro. Este é um combate à medida de um centurião, não de um legado. Os homens são teus, tu é que comandas. E eu serei apenas mais um a obedecer às
ordens que emitires.
Entretanto, os Corvos Sangrentos tinham-se dividido em dois grupos, e subiam em passo de corrida as encostas que levavam ao cimo das falésias. Cato seguiu pela direita
e juntou-se aos homens que abriam laboriosamente caminho pela neve, e depressa sentiu músculos e pulmões a arder com tão violento esforço, ainda debaixo dos efeitos
debilitantes da exaustão e da fome. Quando por fim chegou à superfície irregular que marcava o topo da mesma falésia que tinha escalado havia tão poucas semanas,
o coração martelava-lhe aos ouvidos e respirava de forma ofegante. Atravessou o terreno até à berma que dava para a zona de aproximação à garganta. A sentinela que
tinha lançado o alarme aguardava junto à fogueira que ardia a bom ritmo. O brilho desta iluminava uma pilha próxima de dardos, arcos e flechas.
- Onde estão eles? - perguntou Cato, ainda a arfar.
O trácio apontou ao longo do vale, e até à pálida luz das estrelas Cato conseguiu distinguir uma densa maré escura que submergia o terreno
inimigo!
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perto da crista, a quilómetro e meio dali. À frente da força principal, já a meio dessa distância, vinha um grupo de cavaleiros disposto em leque. Entretanto, mais
elementos dos Corvos Sangrentos se aproximavam da beira, e alguns começaram a vociferar em voz baixa perante o panorama.
- Tudo calado! - ordenou Cato. - Guardem o vosso fôlego para o combate.
Olhou para a encosta que descia para o fundo do vale. Os declives eram íngremes, e reduziam a frente operacional à largura da garganta e aos dois caminhos que ascendiam
pelas encostas. Toda a vantagem pertencia aos defensores, tal como Cato antecipara. Além disso, os preparativos conduzidos por Macro tinham sido tão exaustivos quanto
o tempo disponível lho permitira, e tanto blocos rochosos como estacas bloqueavam os acessos ao cimo das falésias. Junto às bordas tinham sido empilhados pedregulhos
de tamanho razoável, prontos para serem lançados sobre os nativos. Nada disso poderia alterar o resultado final do embate entre forças tão desproporcionadas, mas
Cato tinha a certeza de que o inimigo ia sofrer pesadas baixas antes de conseguir romper a barricada e aniquilar os defensores. Apesar da ausência de luar, a ínfima
luz das estrelas refletida na neve revelava as forças nativas com clareza. Não conseguiriam surpreender a retaguarda romana com quaisquer manobras de flanqueamento
da posição, por discretas que fossem.
Os trácios continuaram a observar em silêncio, enquanto o imponente exército inimigo ultrapassava a crista e se aproximava da garganta. Era a primeira vez que Cato
podia apreciar no seu conjunto a escala das forças reunidas pelo inimigo para esmagar os invasores que tinham tentado forçar os druidas à submissão. E foi nesse
momento que realmente compreendeu - não havia forma alguma de as ambições de Quintato serem cumpridas contra tão grande força. Aquela campanha estivera condenada
desde o primeiro momento e de todas as formas.
A cavalaria inimiga deteve-se a cerca de quatrocentos metros da garganta, no limite do alcance de uma balista, e Cato sorriu para si próprio. Era evidente que a
experiência que tinham tido com a arma os deixara com um saudável respeito por ela, e não queriam arriscar, para o caso de os romanos ainda terem na sua posse algumas
peças da formidável artilharia. Os cavaleiros retiraram-se para o lado quando a infantaria começou a alcançá-los e se deteve também. Pouco depois, um pequeno grupo
de cavaleiros voltou a avançar, a passo. O objetivo era evidentemente
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o de avaliar a dimensão das forças que se lhes opunham, pensou Cato. Não tinha quaisquer intenções de lhes dar essa possibilidade, pelo que se virou para os seus
homens.
- Primeiro esquadrão! Vão buscar os arcos, e preparem as flechas.
Os homens pousaram os escudos e as lanças, e pegaram nos arcos.
Fincaram uma extremidade contra um pé e grunhiram com o esforço necessário para dobrar os braços do arco e fazer passar a corda pela outra extremidade da arma. Depois
disso, dedicaram-se a enrolar pequenas tiras de pano em torno das hastes das flechas, antes de as mergulhar em azeite. Quando por fim se deram por prontos, os cavaleiros
inimigos tinham já avançado com todas as cautelas até uns cinquenta passos da entrada da garganta. Dali podiam perfeitamente observar o contorno da barricada e os
homens de Macro contra a luz projetada pelas fogueiras no lado romano. Ainda assim, não teriam uma ideia precisa do tamanho das forças romanas. Era tempo de os deixar
um tanto abalados.
Os lábios de Cato torceram-se num esgar frio.
- Ateiem fogo às flechas e preparem-se para disparar.
Os trácios mergulharam as setas nas chamas até que o revestimento pegou fogo, e depois assestaram-nas rapidamente nas cordas.
- Puxem!
Os arcos rangeram levemente quando os homens puxaram as cordas para trás, as chamas a dançarem nos panos embebidos em gordura.
- Disparar!
As setas partiram em arcos flamejantes a brilhar no céu noturno, e mergulharam na direção dos cavaleiros. A maior parte precipitou-se sobre a neve e extinguiu-se
imediatamente, ou ficou a brilhar como uma estrela caída, a iluminar um pequeno pedaço de terreno em redor. Duas atingiram os alvos. A primeira cravou-se na garupa
de um cavalo, e a dor do impacto associada à queimadura provocada pelas chamas fizeram com que o animal se espantasse e desatasse aos saltos, empinando-se e acabando
por lançar ao solo o homem que o montava, antes de soltar um relincho de agonia e partir à desfilada pela noite. O brilho da seta incendiária permaneceu visível
por muito tempo, enquanto o cavalo corria pela orla da hoste inimiga e prosseguia para o vale. O segundo projétil atingiu um homem no pescoço, e este agarrou-se
à haste, a tentar extinguir as chamas enquanto o sangue lhe saltava das veias rasgadas. Tombou da sela e remexeu-se na neve, cada vez mais fraco.
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- Continuem! - indicou Cato aos homens, encorajando-os a acender mais flechas e a lançá-las contra o inimigo, até que os cavaleiros recuaram para fora do alcance,
deixando atrás de si um punhado de camaradas abatidos.
- Parem de disparar!
As últimas flechas partiram, e Cato virou-se para os homens satisfeitos e deu-lhes os parabéns.
- Excelente trabalho, rapazes. Isto deve tê-los deixado um tanto nervosos, e quando lançarem o primeiro assalto, já virão receosos.
Os defensores não tiveram muito que esperar. Uma massa de infantaria separou-se da hoste e avançou para a garganta. Enquanto progredia, a força começou a dividir-se
em três ramos, os dois exteriores a dirigirem-se para as encostas e para as vias de acesso ao cimo de ambas as falésias, enquanto a mais numerosa se lançava para
o interior da própria garganta. Mais uma vez as setas incendiárias voaram das alturas, das duas falésias, e Cato imaginou o efeito desmoralizador que deviam estar
a ter os projéteis flamejantes num inimigo que também era forçado a avançar a custo pela neve.
A curta distância da entrada da garganta, a força inimiga lançou um tremendo urro coletivo, antes de se lançar num ataque furioso. Macro aperrou o escudo, virado
contra os celtas, e apoiou a folha da espada contra a orla, enquanto gritava:
- Preparar dardos!
Por trás da barricada, havia um intervalo entre a primeira linha de defensores e o resto dos legionários. Os que estavam nas primeiras filas da reserva pegaram nos
dardos, calcularam o melhor ângulo de lançamento e esperaram já na posição adequada pela ordem de atirar. Macro permitiu que os mais afoitos dos guerreiros inimigos
se embrenhassem na garganta e se aproximassem até uns vinte passos da barricada, antes de dar a ordem.
- Lançar!
Mal deu pelo véu de hastes negras que lhe passou por cima da cabeça e se foi precipitar com estrondos e choques sobre os guerreiros em corrida, trespassando vários
deles e derrubando-os sem remissão. Mais dardos voaram, provocando mais baixas, até que o inimigo chegou junto das estacas, colocadas à pressa mas acompanhadas por
estrepes no solo, e mais homens foram derrubados, com os pés esfacelados pelos espigões
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metálicos ou empalados nas pontas aceradas pela pressão dos que os seguiam. Apesar dos mortos e feridos, os atacantes não se detiveram, alcançando por fim a barricada,
onde não perderam tempo para começar a atacar os romanos.
- Mantenham os escudos bem ao alto!
Macro notou as quase indistintas formas de um celta guedelhudo a erguerem-se à sua frente, enquanto o homem tentava trepar às rochas. Desferiu uma estocada que apanhou
o nativo em plena garganta, e torceu a lâmina de um lado para o outro antes de a puxar para trás. O homem tombou, mas outro tomou de imediato o seu lugar, tentando
atingir o rosto de Macro com golpes rápidos de uma lança. Este bloqueou o ataque com o escudo, absorvendo o impacto dos golpes frenéticos do opositor. Inclinou o
escudo de forma a fazer a ponta da lança passar-lhe por cima. O guerreiro agarrava a arma com toda a força, e foi projetado para a frente pelo movimento, ficando
ao alcance de Macro, que lhe atingiu de imediato o peito. Não foi um golpe profundo, mas fez o adversário perder o fôlego, levando-o a recuar apressadamente e a
tentar ao mesmo tempo respirar e estancar o sangue que escorria do peito lacerado. Por momentos ninguém surgiu para o atacar, e Macro aproveitou para verificar como
estavam a correr as coisas em seu redor. À esquerda, o legado Quintato soltou um grito de triunfo ao rachar o crânio de um nativo com a sua espada de gume afiado.
Por trás dele, Macro viu um dos seus homens ser derrubado da barricada por um dardo, sem dúvida recuperado entre os que tinham sido enviados contra o inimigo, e
que o atingiu na face, esmagando-lhe os malares e cravando-se no crânio. Enquanto o corpo girava sobre as rochas, já outro legionário avançava para tomar o lugar
do malogrado camarada.
Um movimento rápido atraiu a atenção do centurião para o que se passava à sua frente, e ele avistou outro guerreiro inimigo prestes a atacá-lo. O homem usava um
capacete gaulês, cota de malha e um escudo, o que o distinguia como membro da casta dos nobres. E, como todos eles, não era propriamente um ignorante nas artes do
combate. Bloqueou o primeiro golpe de Macro com facilidade, e ripostou com uma sequência de movimentos que obrigaram o romano a recuar da barricada. O celta aproveitou
essa vantagem e subiu os últimos blocos rochosos antes de usar o escudo para continuar a empurrar o centurião. Desequilibrado, Macro cambaleou, enquanto tentava
manter-se de pé,
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e por instantes colocou o escudo de lado para se amparar, expondo o corpo ao opositor.
O nobre celta silvou e preparou a espada para desferir um golpe fatal. Foi então que a ponta da espada do legado embateu violentamente contra o seu capacete, fazendo-lhe
a cabeça dançar para o lado e deixando-o atordoado. Antes que o inimigo pudesse recuperar, Macro lançou o escudo contra ele, com todo o seu peso por trás, e atirou-o
pelos ares, do alto da barricada para cima da densa massa de guerreiros inimigos que se acotovelava para obter uma oportunidade de combater de perto os odiados romanos
e reclamar as suas cabeças como troféus. Já havia um grande número de corpos em todas as posições junto à barricada, e também um punhado de legionários fora abatido.
O combate prosseguia na escuridão, iluminado apenas pelas chamas das fogueiras nas costas dos romanos e pelos seus reflexos na neve.
O progresso inimigo pelas encostas, a subir até ao cimo dos penhascos, era tão difícil como fora para os Corvos Sangrentos a ascensão pela outra face, mas ao mesmo
tempo os nativos sofriam uma contínua barragem de flechas incendiárias e pedras lançadas de lá de cima, e Cato notou com ar satisfeito o número de corpos que ficava
a juncar a neve enquanto os nativos tentavam alcançar a posição romana. Chegaram ao primeiro dos obstáculos colocados no seu caminho e tiveram que se deter e arrancar
as estacas, e desviar os penedos, enquanto eram massacrados com setas e pedras. Vários foram abatidos antes de conseguirem limpar a via, mas por fim voltaram a lançar-se
pelos últimos metros da subida até ao cimo das falésias.
- Aqui! Todos comigo! - gritou Cato, enquanto se precipitava para junto dos blocos de grandes dimensões colocados na orla do declive, onde terminava a vereda que
dava acesso ao cimo. Fincou os pés no chão e esforçou-se por deslocar o primeiro dos penedos. Este começou a mexer-se, e um dos seus homens foi ajudá-lo; com a força
dos dois, a rocha rolou e ganhou balanço. Mais um empurrão, e precipitou-se a rebolar pela encosta contra o inimigo; derrubou um primeiro homem, embateu num segundo
e lançou-o desamparado pela encosta, antes de chocar contra outro, fazendo com que alguns saltassem para o lado para se desviarem do bloco imparável. Cato e os seus
homens enviaram mais alguns pedregulhos pela encosta, fazendo com que o ataque se interrompesse, e depois prepararam escudos e lanças e aguardaram pelos
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inimigos que tinham conseguido ainda assim progredir até ao cimo das falésias. A árdua subida deixara-os esgotados, e eles lançaram um ataque pouco entusiasta contra
a linha trácia, que os aguardava a pé firme, em ordem de combate. Uma vintena de nativos foi rapidamente abatida perante as lanças dos Corvos Sangrentos, e os seus
corpos tornaram-se um novo obstáculo a ser transposto pelos camaradas que os seguiam.
Cato manteve-se de lado, a observar a escaramuça. Depressa reparou que o inimigo mostrava tendência para se deter a meio da encosta, e que os gritos de guerra já
não se ouviam, sinal de que a coragem e a determinação de triunfar estavam a fraquejar. Era o momento de lançar um contra-ataque. Desembainhou a espada, pegou no
escudo e abriu caminho até à primeira fila dos seus homens, enquanto respirava fundo e lançava uma ordem.
- Corvos Sangrentos, comigo! Avançar!
Deu o primeiro passo na encosta, o escudo bem erguido e a espada a apontar para a frente, perfeitamente alinhado com os seus homens. Tinham a vantagem de ocupar
o terreno mais elevado, e de as suas lanças terem um grande alcance, além de estarem menos fatigados do que os elementos inimigos, e facilmente os varreram pela
encosta abaixo. Alguns tombaram graças a estocadas das lanças; outros tropeçaram e precipitaram-se sobre os camaradas mais abaixo, e acabaram também espetados nas
lanças ensanguentadas. Os Corvos Sangrentos avançaram a passo firme, limpando toda a encosta, abatendo todos os inimigos envolvidos no ataque, até que o último resquício
do ímpeto inicial dos guerreiros nativos se apagou, e eles começaram a debandar, tentando desesperadamente escapar aos implacáveis trácios. Cato prosseguiu com o
contra-ataque por mais alguns metros, antes de dar ordens para parar e regressar ao cimo das falésias. Ao mesmo tempo, avistou os primeiros homens da grande massa
de inimigos que tinha entrado na garganta a recuar, abrindo caminho pela neve até se colocarem a distância segura dos legionários que guarneciam a barricada.
- O primeiro embate foi nosso, rapazes! - anunciou aos homens, que responderam com gritos animados. A aclamação foi imitada pelos homens que ocupavam a outra falésia,
e logo a seguir pelos que defendiam o chão da garganta, enquanto as forças inimigas envolvidas naquele primeiro assalto retiravam num silêncio mortificado.
Os nativos atacaram ainda duas outras vezes durante a noite, e em
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cada uma dessas ocasiões foram repelidos com pesadas baixas. O último assalto, porém, fez esgotar as flechas e dardos, e os romanos sofreram mais baixas, já que
os cansados legionários enfrentavam inimigos frescos em cada assalto. Depois de ter fracassado na terceira tentativa de romper as linhas romanas, o inimigo recuou
para esperar pela chegada do dia. Cato aproveitou a oportunidade para descer até à garganta, para ver como estavam as coisas com a Quarta Coorte. Macro saudou-o
junto às brasas de uma das fogueiras, em redor da qual tinham sido dispostos os feridos. Os mortos estavam alinhados a curta distância.
- Como vão as coisas lá por cima?
- Até aqui, contivemo-los sem grandes problemas - retorquiu Cato, - embora já só tenha dez homens. Quando a madrugada lhes mostrar como a linha dos Corvos Sangrentos
está magra, estes nossos amigos não hão de hesitar em se voltar a lançar sobre nós, e desta vez não os vamos conseguir segurar. E nesse caso passarão eles a deter
o terreno mais elevado, e conseguirão forçar os seus homens a abandonar a garganta. E quando nos apanharem em campo aberto, será um salve-se quem puder. Como está
a coisa por aqui?
Macro espreguiçou-se e fez estalar os nós dos dedos.
- Estávamos a safar-nos bem até este último assalto, em que levámos uma boa tareia. Não tenho mais de sessenta homens ainda em pé, e muitos deles até já foram feridos,
além de estarem prontos a cair de cansaço. Parece-me que a próxima tentativa será a final.
Em resposta, Cato limitou-se a fungar.
- E o legado?
- Sofreu um golpe de lança na perna. Foi ligado, mas não está capaz de se deslocar com prontidão. Ao que parece, não vai ter grande possibilidade de tomar a decisão
de ficar a defender a posição até ao fim. Isto dito, tem-se portado bastante bem. Salvou-me o pescoço uma vez, e já abateu um bom número daqueles cabrões. Com tempo
suficiente, até era capaz de o transformar num legionário meio decente.
- Nesse caso, é uma pena que ele seja legado e não legionário. Tinha-nos poupado todos a esta confusão.
- É bem verdade. Mas lá que o homem tem tomates, isso tem. Mais do que a maior parte dos da sua classe.
Cato olhou em redor, para os feridos deitados na neve. Alguns gemiam, lamentosos; outros jaziam em silêncio, contemplando as estrelas
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ou cerrando os olhos com toda a força enquanto tentavam aguentar a dor. Avistou o médico da coorte, Pausino, a parar junto a um homem cujo maxilar tinha sido cortado
de lado a lado e só estava preso por algumas tiras de carne, enquanto todo o corpo lhe tremia com violência. Pausino tinha na mão um escalpelo e, enquanto Cato observava
a cena, fez um ligeiro corte na garganta do homem ferido, fazendo jorrar o sangue da ferida. O legionário agitou-se, e o médico segurou-o com firmeza até ele deixar
de lutar, antes de se levantar e se dirigir ao homem seguinte.
Macro tinha notado que o amigo estava a ver aquilo.
- Dei-lhe ordens para que aliviasse o sofrimento dos casos mais desesperados. Ele disse-me que o podia fazer com um mínimo de dor, e que eles partiriam rapidamente.
Antes isso do que cair nas mãos dos druidas. Todos os que ainda têm capacidade para isso receberam uma espada ou adaga e eu disse-lhes para lutarem mesmo onde estiverem,
ou para se despacharem, quando o inimigo conseguir passar pela barricada. Eles sabem bem o que os espera.
- Muito bem. Que seja pelo melhor.
Os dois amigos contemplaram o cenário por momentos, antes de Macro voltar a dirigir-se a Cato.
- Achas que conseguimos dar ao resto da coluna tempo suficiente para se salvar?
- Acredito que sim. Conseguimos aguentar o inimigo até chegar a manhã, e obrigá-lo a passar uma noite ao frio, e a tratar dos muitos feridos que sofreram. Além disso,
também se lhes devem estar a acabar os mantimentos. Duvido que tenham ânimo para continuar a perseguir os restos do exército, pelo menos até descansarem um bocado.
E depois, eles derrotaram-nos, e forçaram-nos a sair do seu território. Seria um tanto idiota levar homens esfomeados e cansados para muito longe das suas fontes
de abastecimento, como nós mesmos descobrimos da maneira mais difícil. - A exausta mente de Cato debateu-se para reorganizar os seus pensamentos. - Sim, demos um
dia extra à coluna. Tempo suficiente para sair das montanhas e chegar a Mediolanum em segurança.
- Excelente. Embora isso pouca ajuda nos dê.
- Macro, meu amigo, nós estamos muito para lá de qualquer possibilidade de ajuda. Compreende?
- Claro! Não sou exatamente um pateta.
Cato riu-se.
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- Nunca o tomei por tal. Portanto, é isto. O fim. - Fez uma pausa desajeitada, inseguro quanto à melhor forma de transmitir ao seu mais próximo companheiro os sentimentos
que lhe surgiam no espírito.
- Miúdo, o fim não chega enquanto não chegar - ripostou Macro com firmeza, sem se deixar emocionar pelo comentário anterior. - Se for preciso, atiro-me àqueles cabrões
só com os dentes. Quando partir deste mundo, será a lutar até ao último instante.
- Não consigo sequer imaginá-lo a proceder de outra forma.
Trocaram um olhar triste, e Cato pegou no braço do amigo.
- Então, centurião Macro, é o adeus.
- Adeus, senhor.
Cato rodou sobre os calcanhares e encetou a última ascensão para o cimo das falésias. Subiu devagar, preservando as forças, e, enquanto o fazia, reparou que o céu
já estava a clarear, e que o dia prometia ser soalheiro. Uma pena, considerou. Aquele era o género de tempo que teria dado muito jeito aos romanos havia uns dias.
O destino parecia possuir um fantástico sentido de humor, ocasionalmente. Chegou ao cimo e foi juntar-se aos sobreviventes dos dois esquadrões lá colocados, que
o acolheram de pé; reparou que entre eles ainda estava Miro, coberto de sangue, mas com um ar determinado no rosto.
- À vontade. Guardem as energias para o inimigo, sim?
Sorriu-lhes, antes de se ir colocar no ponto de observação de onde
tinha vigiado os movimentos dos homens das tribos celtas durante toda a noite. Já conseguia distinguir melhor as coisas do que alguns minutos atrás. Havia centenas
de corpos espalhados pela neve na entrada da garganta, e empilhados nos caminhos de aproximação às falésias. O inimigo ainda sofrera mais baixas do que o que ele
admitira, e embora sentisse um tremendo orgulho profissional nos resultados obtidos pela retaguarda do exército de Quintato, sabia perfeitamente que os druidas haveriam
de querer vingança por todos os que tinham tombado, e que o fariam da forma mais cruel que pudessem imaginar.
A luz continuou a crescer, bem como o brilho no horizonte oriental. E então, precisamente quando os primeiros raios do Sol banharam uma crista distante, um corno
de guerra fez-se ouvir, seguido por outros, e o inimigo iniciou mais uma vez o avanço, numa mole que foi aumentando o passo até soltar uma tremenda aclamação e se
lançar numa corrida desenfreada para a entrada da garganta e pelas encostas que a ladeavam.
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Já só existia um punhado de pedras para lançar sobre os nativos, e poucos foram abatidos antes de alcançarem o cimo. Os Corvos Sangrentos ainda possuíam a vantagem
de não estarem esbaforidos pela subida, e de deterem a posição superior, mas Cato compreendeu perfeitamente que daquela vez não seriam capazes de fazer o inimigo
recuar. Brandiu a espada e assumiu a sua posição ao centro da linha, enquanto os trácios, fatigados mas de rosto fechado, baixavam as pontas das lanças e se preparavam
para o embate. Não se ouviu nenhum choque de escudos como era habitual quando duas forças equivalentes se enfrentavam, apenas a constante chegada de um guerreiro
e de outro, assumindo uma posição em frente a um dos trácios e dando início a um duelo desigual.
Cato viu-se confrontado por uma figura de capuz e respiração pesada, com um escudo retangular e um machado. Quando o nativo se preparava para erguer a arma, o prefeito
mergulhou para a frente, lançando o seu escudo contra o do adversário com um estrondo que forçou o outro a recuar um passo, e ao mesmo tempo golpeou com a espada,
rasgando o sovaco do outro, cravando-lhe a lâmina nas costelas até a ponta atingir o coração. Uma torção rápida da lâmina e um puxão para a libertar, fazendo jorrar
da ferida o sangue brilhante, e Cato recuou e preparou-se para enfrentar outro inimigo. Dos dois lados, os Corvos Sangrentos aparavam golpes com os seus escudos
e lançavam estocadas de lança. Como sucedera antes, o número de baixas era muito maior entre o inimigo, mas agora não havia já trácios suficientes para colmatar
as perdas, e a linha romana viu-se forçada a cerrar-se cada vez mais para tentar manter a posição.
Por fim, o inevitável aconteceu. Dois guerreiros nativos conseguiram subir a encosta até ao cimo e rodear o flanco da linha dos Corvos Sangrentos, lançando-se sobre
um trácio que enfrentava outro inimigo à sua frente. Apanhado entre ataques vindos de todos os lados, hesitou, antes de se virar para enfrentar os dois homens que
estavam agora acima dele. O adversário que tinha estado a combater lançou-se sobre o seu escudo e atirou-o ao chão, e os outros dois caíram imediatamente sobre ele,
retalhando-o a golpes de espada. O homem lutou para se voltar a pôr de pé, mas os golpes prosseguiram, esfacelando-lhe braços e pescoço, e ele acabou por tombar,
desamparado.
Cato tinha-se apercebido do incidente numa rápida olhadela em redor, e percebeu que os seus homens precisavam de tentar recuar e
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juntar-se aos legionários na base das falésias para uma última vez mostrarem do que eram capazes, antes do fim.
- Corvos Sangrentos! Recuar! Todos comigo!
Desferiu um golpe com a espada, cravando-a profundamente no ombro de um guerreiro, antes de se virar e começar a correr pelo cimo da falésia, até ao caminho que
ia dar à parte de trás da barricada. Os seus homens seguiram-no, perseguidos pelos celtas, ainda ofegantes depois da íngreme subida. Chegaram ao declive e começaram
a descer em desalinho, escorregando e tropeçando, enquanto lá atrás o inimigo celebrava por ver os romanos em fuga.
A curta distância da base da encosta, Cato reparou que alguns dos legionários recuavam da frente de combate na garganta, e ouviu outros gritos de celebração, que
ecoavam nas paredes rochosas dos dois lados. Sentiu o coração dar um pulo de ansiedade ao perceber que aquilo significava que os nativos deviam ter conseguido irromper
pela barricada. Nesse momento avistou Macro a amparar o legado enquanto retirava, rodeado por um pequeno grupo de legionários e o estandarte da Quarta Coorte, e
percebeu que tudo estava terminado. Ao alcançar o terreno plano na base da vertente, virou-se para os seus homens.
- A partir daqui, é cada um por si. Boa sorte, rapazes!
Correu para Macro, tencionando juntar-se ao amigo num último combate lado a lado. Alguns dos legionários corriam para os cavalos, tentando desesperadamente escapar
ao massacre, mas Cato não podia censurá-los. Apercebeu-se então de um vulto que carregava sobre si, e mal teve tempo para se deter e começar a virar-se antes de
o guerreiro embater contra ele e o derrubar, fazendo-o perder o ar dos pulmões. Soltou o escudo e levantou-se rapidamente, erguendo a espada mesmo a tempo de deter
a lâmina que descia sobre o seu corpo. Escutou o choque e o arranhar do metal, viu as fagulhas a saltarem e percebeu num momento de lucidez que só tinha conseguido
desviar a lâmina. No momento seguinte sofreu um impacto na testa, como se tivesse sido atingido por uma barra de metal incandescente. O sangue saltou imediatamente
da ferida por cima dos olhos, deixando-o cego.
- Não, meu grande cabrão! - Ouviu a voz de Miro, seguida de um profundo grunhido e o som de um corpo a cair na neve ao lado do seu. Sentiu uma mão a puxá-lo e a
pô-lo de pé.
- Vamos, senhor, por aqui!
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Cato ainda estava atordoado, e vacilou enquanto seguia guiado pelo trácio. Ergueu uma mão e conseguiu limpar o sangue dos olhos, vislumbrando a cena caótica que
o rodeava, com o inimigo a jorrar pela garganta e a lançar-se sobre os poucos romanos ainda vivos. Juntaram-se a um grupo de legionários, e lá estava Macro, a contemplá-lo
com evidente ansiedade.
- Cato, pobre miúdo.
- Eu estou bem. - A voz de Cato estava rouca de fadiga, e do choque. - Perdi a minha espada. Arranje-me outra.
E também ali estava Quintato, com uma careta de dor no rosto, devido à ferida na perna. Olhou para Cato.
- Macro, tira-o daqui - ordenou. - Ele não nos pode ajudar. E vocês os dois já fizeram mais do que vos era pedido. Roma precisará dos dois no futuro.
Macro abriu a boca para protestar, mas o legado esticou o braço na direção dos cavalos, e gritou:
- Vai! Desaparece daqui agora mesmo, foda-se!
Cato abanou a cabeça.
- Não... Eu quero lutar...
Macro embainhou a espada e deixou cair o escudo, pegando num braço do prefeito.
- Desculpa, meu amigo. Ouviste o legado. Miro, dá-me aqui uma ajuda.
- Não! - gritou Cato, debatendo-se para se libertar, enquanto mais sangue lhe voltava a toldar a visão. Ouviu a voz de Macro junto à orelha.
- Desculpa lá isto.
Sentiu um golpe na cabeça, e tudo se tornou escuro.
- Miro! Vem comigo. - Macro embainhou de novo a espada, e abaixou-se para apoiar o torso de Cato no ombro, antes de se voltar a erguer, levando o amigo às costas.
Avançou para fora do círculo de legionários, e caminhou a toda a brida para ao pé dos cavalos ainda disponíveis, enquanto Miro se mantinha a seu lado, pronto a deter
quaisquer ataques. Quando alcançaram os cavalos, já Cato se agitava de novo, balbuciando incoerências enquanto o sangue escorria pela testa e lhe cobria o rosto.
Macro depôs o amigo sobre um dos animais e colocou-lhe as mãos no corno da sela.
- Cato, agarra-te bem.
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Sentiu-se feliz ao ver os punhos do amigo a fazer força em redor das peças cobertas de couro que ajudavam a manter os cavaleiros em posição. Olhou para o seu próprio
cavalo, subiu para a sela e pegou nas rédeas, e nas do cavalo de Cato, antes de se virar para Miro.
- Vá! Não fiques aí especado. Monta!
Miro deu um passo para o cavalo mais próximo, mas logo se deteve. Voltou-se para Macro, e abanou a cabeça.
- Eu fico. Vá, senhor. Salve o prefeito.
- Não sejas parvo! - irritou-se Macro. - Se formos três, teremos mais hipóteses de escaparmos.
- Desculpe, senhor... Esta é pelo Traxis. - Miro pegou no escudo, ergueu a lança, e avançou em passo deliberado para a confusão à saída da garganta, antes de se
lançar em corrida, enquanto entoava um grito a plenos pulmões. - Corvos Sangrentos! Corvos Sangrentos!
Macro segurou as rédeas de Cato firmemente na mão direita, e incitou a sua montada a seguir, lançando-se a trote na esteira dos outros romanos que fugiam pelo vale.
Acelerou o passo, verificando que Cato se mantinha firme na sua sela.
Estava a recuperar a consciência, mas o sangue seco sobre os olhos continuava a impedi-lo de ver, e mantinha-se agarrado à sela com toda a determinação, para não
cair.
Um pouco adiante, o caminho embrenhava-se por entre as árvores e Macro refreou o andamento para deitar uma última olhadela ao que se passava na garganta. O estandarte
da Quarta erguia-se ainda no meio de uma densa massa de guerreiros nativos. Mal conseguiu divisar o brilho de uns poucos capacetes de legionários e a crista emplumada
do de Quintato, e depois o estandarte foi derrubado e desapareceu, avistando o reluzir súbito de uma espada romana lançada aos céus. Desapareceu rapidamente, e os
nativos soltaram um grito de vitória, enquanto erguiam ao ar punhos fechados e armas ensanguentadas.
Com o coração pesado, Macro virou-se e levou o cavalo por entre as árvores, bloqueando a visão da horrível cena. Tudo o que podia fazer agora era cumprir a última
ordem do legado, e salvar Cato.
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32

Três dias depois, por volta do meio-dia, a sentinela de plantão ao portão ocidental da fortaleza romana de Mediolanum esfregava as mãos e remexia os dedos dos pés
no interior das botas. Na véspera tinha caído mais neve do que em todos os dias anteriores, e um espesso tapete branco cobria tudo em redor. Os telhados dos blocos
de casernas, que se estendiam em filas ordenadas por trás da muralha, resplandeciam num branco imaculado, e havia montículos de neve a marcarem as passagens entre
os edifícios, criados pelas equipas de trabalho que tinham por missão manter aberto o caminho. Um esforço futil, já que depressa a neve voltava a cobrir tudo. Fumo
elevava-se das aberturas nos telhados das casernas, e no seu interior os homens agrupavam-se em torno das lareiras, para se aquecerem.
As casernas estavam sobrelotadas; os novos ocupantes eram tudo o que restava da coluna de Quintato, que tinha começado a surgir do meio do nevão ao longo dos dois
dias anteriores, numa constante maré de legionários cambaleantes, exaustos e esfomeados, liderada pelo prefeito de campo Silvano e pelo tribuno Livónio. Menos de
três mil homens, um terço do exército que tinha avançado para esmagar os druidas e os seus aliados. Muitos tinham abandonado todo o equipamento, e caminhavam só
com as capas e as outras roupas que podiam usar para embrulhar o corpo. Ao chegarem, era-lhes dado abrigo e calor junto às lareiras, e era-lhes fornecida comida
e bebida, que devoravam avidamente. Alguns limitavam-se a ficar sentados, mudos, a fitarem a distância, demasiado traumatizados para compreenderem que estavam salvos
e que as suas penas tinham tido fim.
Mas não eram eles os únicos recém-chegados à fortaleza. Alguns dias antes, Dídio Galo, e parte da sua comitiva, tomara residência no bloco do quartel-general, enquanto
o recém-nomeado governador tentava
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perceber quais tinham sido as disposições tomadas pelo seu antecessor interino. Havia boatos a circular acerca da fúria de Galo sobre a campanha encetada para libertar
o Império do último ninho de druidas, o legado Quintato sofreria um pesado castigo e seria enviado para Roma para se explicar pessoalmente ao Imperador, dizia-se.
Poucos tinham alguma ilusão sobre o previsível desfecho desse encontro. Os dias do legado estavam contados.
A sentinela não estava a ter grande sucesso no seu combate para se manter quente, pelo que decidiu andar para cá e para lá no torreão, para impedir os pés de ficarem
dormentes com o frio. Tentou não pensar nas longas horas que ainda lhe faltava cumprir até ser substituído, no fim do turno. Mais uma vez se perguntou se seria razoável
tentar dominar aquela ilha selvagem, cheia de bárbaros. Tinha vindo da Hispânia, e sonhava ainda com o caloroso litoral que deixara quando decidira servir numa coorte
auxiliar, que pouco depois desse momento fora enviada para incorporar o exército na Britânia. Tinha sido uma brincadeira dos deuses, bem amarga, refletiu com azedume,
e desde esse momento nunca mais tinham deixado de o atormentar, tendo conseguido umas boas gargalhadas à sua custa.
Atravessou para a frente do torreão e voltou a espreitar para a cortina de neve empurrada pelo vento. Era difícil distinguir o que quer que fosse a mais de cem passos
das muralhas, e, tanto quanto sabia, o inimigo até podia estar lá fora, a observar, a planear um ataque, a aguardar o momento mais propício. Embora, se fosse esse
o caso, sorriu para si mesmo, ainda eram mais estúpidos do que ele fora quando tinha tomado a decisão de se alistar no exército. Nenhum homem devia andar lá fora
com um tempo daqueles.
Interrompeu os pensamentos e debruçou-se sobre o parapeito de madeira, perscrutando a neve e piscando os olhos para afastar os flocos que vinham pousar-lhe nos olhos.
Tinha visto um movimento, estava seguro disso. Um vislumbre fugidio de qualquer coisa escura que sobressaíra contra o branco da paisagem de inverno. Levantou-se
nova ventania, e o cenário ficou mais límpido. Havia dois vultos a avançar penosamente para a fortaleza. A sentinela correu até ao alçapão que dava para o interior
do torreão e gritou:
- Optio! Há alguém a aproximar-se do forte.
No compartimento abaixo, o optio despertou da modorra em que
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tinha embarcado, encolhido nas dobras da capa. Estava sentado ao pé de uma grelha, onde ardia um pequeno fogo, a soltar tanto fumo que tornava o ar dentro da sala
pesado e acre.
- Mais algum dos nossos, ou dos deles?
- Ainda não consigo perceber, senhor.
- Seja. Vou dar uma espreitadela.
O optio dirigiu-se à pequena portinhola na muralha que permitia observar a zona mais próxima do portão. Ao soltar o ferrolho e puxar a tampa de madeira sólida, uma
rajada de vento gelado e neve fê-lo vociferar livremente. Espreitou, e viu os dois homens que se aproximavam. Não havia qualquer sinal de que se pudesse tratar de
uma artimanha do inimigo. Observou mais alguns momentos, e viu um dos homens tropeçar e cair de joelhos, e o outro debruçar-se sobre ele para o ajudar a pôr-se de
pé. Fechou a portinhola, voltou a aferrolhá-la e dirigiu-se à sala da guarda, na base do torreão, onde toda a secção se mantinha abrigada.
- Rapazes, vão abrir o portão. Há mais retardatários a chegar.
- Mais? - Um dos soldados não escondeu a surpresa. - Pensava que já tinham chegado todos.
- Ao que parece, não é o caso. E ainda pode haver outros. Vamos lá. Ponham-se a mexer!
Os homens resmungaram, enquanto se levantavam e saíam pela porta próxima à entrada do forte. Ergueram a pesada tranca e tentaram abrir as portadas, mas a neve tinha-se
acumulado de tal maneira que a tarefa se revelou impossível.
- Foda-se! - resmungou o optio. - Limpem isso, depressa!
Ficou ali, de braços cruzados, enquanto os homens usavam as mãos
para afastar neve suficiente e conseguir puxar uma das portadas, criando uma abertura. Saiu então, tomando todas as cautelas. Os dois homens já não estavam a mais
de vinte passos, e pelos arneses com medalhas que usavam e que lhe foram revelados por outra rajada de vento, que lhes abriu as capas, eram dois oficiais. Um, um
centurião, era mais baixo do que o seu camarada, e ostentava uma barba espessa e encaracolada, que se projetava do capuz da capa. O outro era mais alto, e tinha
a cara rodeada por um pano. A face estava cavada e coberta por faixas de sangue seco. Avançavam cambaleantes pela ponte sobre o fosso, e o optio adiantou-se para
os ajudar.
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O oficial mais alto ergueu a mão.
- Não... é preciso. Nós arranjamo-nos.
- Sim, senhor. - O optio deu um passo ao lado, enquanto os dois passavam por ele em passo periclitante e entravam no forte. Seguiu-os pela abertura, e deu ordens
para que o portão voltasse a ser encerrado, antes de se virar para os recém-chegados.
- Senhores, entrem. Há um braseiro de chão no segundo piso, e tenho aqui alguma comida que podem partilhar.
Não havia como ignorar o brilho da fome nos olhos dos dois homens, e o mais alto dos oficiais assentiu.
- Obrigado. Vamos fazer isso. Depois temos que nos apresentar no quartel-general.
- Vou enviar um homem ao governador, para o informar da vossa chegada, senhor.
- O novo governador? - Os dois homens trocaram um olhar. - Já está cá?
- Chegou há poucos dias, senhor. Quem devo dizer que são?
- Prefeito Cato, da Segunda de Cavalaria Trácia, e este é o centurião Macro, da Quarta Coorte, Décima Quarta Legião. Eu comandava a retaguarda na retirada do exército
do legado Quintato.
- O legado ainda não chegou ao forte, senhor.
- Nem vai chegar. Está morto. E quanto aos nossos homens? Viste algum soldado das nossas unidades?
O optio pensou um momento.
- Um punhado deles, senhor. Vinte, ou coisa assim. Mais nada.
Deixou os dois oficiais a sós enquanto foi tratar de enviar um mensageiro ao quartel-general. Durante algum tempo, os dois homens mantiveram-se quietos, calados,
ainda assombrados. Por fim, Cato soltou um longo suspiro e deixou descair os ombros.
- É uma pena... uma pena. Somos mesmo os últimos, Macro. Praticamente todos partiram. Foi o fim dos Corvos Sangrentos. Macro, eu perdi tudo. Os meus homens... e
a Júlia. - Deixou-se abater pesadamente num banco, e abanou a cabeça.
Macro sentou-se ao lado do amigo e encostou-se à parede, permitindo que toda a tensão deixasse o seu corpo. Respirou lenta e longamente, enquanto o corpo aquecia.
- Miúdo, ouve: os Corvos Sangrentos serão sempre lembrados.
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Sempre. Por todos e cada um dos homens por quem deram as vidas. Não consigo sequer começar a imaginar a dor que sentes pela Júlia, mas também ela viverá através
do vosso filho. Tenta encontrar algum conforto nessa ideia. Ainda tens o pequeno Lúcio. Tenho a certeza de que se tornará um rapaz extraordinário. E um homem de
quem te poderás orgulhar. Agarra-te a isso, sim?
Cato abriu os olhos e encarou Macro sem qualquer expressão, até se forçar a anuir.
- Vou tentar.
Ficaram de novo em silêncio por algum tempo, a aquecerem-se e a aproveitarem a oferta de comida e bebida do optio. Foi o suficiente para lhes amainar o apetite,
antes de poderem ter uma refeição decente.
A porta abriu-se, e entrou no compartimento uma revoada de frio, ao mesmo tempo que um vulto todo tapado, que fechou rapidamente a porta nas suas costas. Puxou o
capuz para trás e baixou o lenço com que tinha coberto boca e nariz, enquanto apreendia o interior da sala e fixava o olhar nos dois oficiais. Aproximou-se deles,
pegou num estilete e numa tábua encerada que tirou das dobras da capa, e dirigiu-se a Cato.
- Perdão, senhor. Sou o tribuno Gaio Pórcio. Sou o encarregado dos abastecimentos. Fui informado de que tinha chegado ao forte um último contingente da Quarta Coorte
da Décima Quarta e da Segunda Trácia. Tenho que lhes atribuir as devidas rações. Mas não consigo encontrar os homens.
Os lábios de Macro abriram-se num sorriso fraco.
- Acabaste de os encontrar. Somos nós.
Pórcio franziu o sobrolho.
- Não estou a perceber.
- Somos o que sobrou da retaguarda. E aceitamos com prazer as rações, obrigado. Agora mesmo, estava capaz de comer por todos os rapazes da minha coorte, e pedir
mais. Portanto, vai lá tratar disso. Regressa de pronto ao quartel-general e trata de garantir que está um verdadeiro festim à nossa espera quando eu e o prefeito
lá chegarmos. Um festim digno de heróis, porra. Percebido? - Macro encarou-o com um ar assustador, e o jovem tribuno encolheu-se visivelmente.
- Eu... Eu vou então tratar disso, senhor. Imediatamente.
Dobrou o pescoço, guardou o material de escrita e voltou a colocar
o capuz, antes de deixar o torreão.
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Macro recostou-se de novo na parede, com uma expressão satisfeita.
- Graças aos deuses pelos regulamentos do exército. Rações para cada coorte, e o suficiente para distribuir por todos, finalmente. - Deu um toque a Cato. - Vamos
encher as barrigas, e homenagear os homens.
- Sim, vamos fazer isso. Honrar os homens.
- E enquanto esperamos... - Macro inclinou-se e procurou no fundo da bolsa que levava à cintura até encontrar a pequena caixa onde estavam guardados os seus dados
da sorte. Tirou-os e deu-lhes um beijo, antes de se virar para os auxiliares sentados na sala.
- Então, rapazes... Vou precisar de muitas moedas para o vinho do quartel-general. Quem é que alinha num joguinho?
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NOTA DO AUTOR

Desde que se deu o primeiro conflito entre Roma e as várias nações celtas, os romanos viram-se confrontados e contrariados pelos cultos druídicos, que se impuseram
como o coração da contínua resistência à expansão romana. Do pouco que se sabe sobre eles, torna-se aparente que constituíam uma elite educada, reverenciada pelos
povos tribais da Gália, Britânia e Irlanda. Como tal, providenciavam uma influência unificadora que os romanos - desde os tempos de César - tentaram erradicar. Como
todas as potências imperiais, Roma compreendeu que limitar-se a destruir os exércitos inimigos nunca é o suficiente. Há também que destruir os laços ideológicos
que unem os povos conquistados, de forma a forjar e impor outros laços que prendam os derrotados à visão do mundo dos triunfadores.
É muito provável que boa parte dos planos de invasão da Britânia nos tempos de Cláudio estivesse relacionada com a supressão do culto dos druidas, como forma de
estabelecer e reforçar o controlo que Roma queria exercer sobre as tribos nativas. Dividir para reinar foi desde sempre uma estratégia adotada pelas potências imperiais,
e Roma não era diferente. Se Roma conseguisse retirar os druidas do cenário, uma das mais poderosas forças que contribuíam para cimentar a oposição aos invasores
estaria dissolvida, e o resultado seria que as tribos se tornariam muito mais fáceis de controlar.
A dificuldade para os romanos era os druidas poderem movimentar-se livremente entre as tribos, e serem difíceis de localizar. Porém, depressa os invasores ficaram
a saber que o lar espiritual dos cultos druídicos era a ilha de Mona - a moderna Anglesey - com os seus bosques sagrados e coleções de troféus macabros dos inimigos
dos celtas. Se a ilha pudesse ser tomada, os druidas destruídos, e todos os traços da sua existência erradicados num único esforço, seria vibrado um poderoso
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golpe nas tribos nativas, do qual nunca conseguiriam recuperar. Por consequência, o homem que conseguisse esse objetivo conseguiria uma tremenda aclamação popular.
E se há coisa que sabemos sobre os aristocratas romanos é que viviam as suas vidas com um olho sempre atento à posteridade.
O registo histórico, muito incompleto, diz-nos que o governador Ostório morreu no seu posto, provavelmente em consequência das tensões resultantes das tentativas
de submeter as ainda hostis tribos da Britânia. Houve um breve interregno até um novo governador ser enviado de Roma, e durante esse tempo as tribos das montanhas
do que é hoje em dia o País de Gales puseram duramente à prova as forças romanas, e derrotaram mesmo uma das suas legiões. Foi esta a matéria-prima a partir da qual
criei esta nova aventura de Cato e Macro. Sabendo o que sabemos sobre a cultura política romana, foi fácil imaginar um cenário em que um comandante do exército tomava
a seu cargo a condução da província e aproveitava a oportunidade política que se lhe apresentava, com o fito de erradicar finalmente a influência dos druidas. Teria
que agir rapidamente e de forma temerária, mas os ganhos potenciais seriam enormes. E assim se passou com o pobre Quintato; descrevi portanto a muito plausível história
de uma campanha desafortunada, que deixou a província da Britânia numa posição muito vulnerável, no preciso momento em que o novo governador, Aulo Dídio Galo, chegava
à ilha para assumir o seu posto.
Os desafios que se apresentavam a Dídio eram consideráveis. As tribos das montanhas tinham obtido um triunfo claro sobre as forças romanas, e estavam agora ainda
mais determinadas a prosseguir a resistência. A oposição a Roma nessas tribos, ainda no exterior das fronteiras, mas também a que existia no interior da província,
foi alimentada pelo desfecho da malfadada campanha, e os druidas mantiveram toda a sua influência.
Para Cato e Macro, exaustos embora pelos rigores da campanha invernal a que mal sobreviveram, pouco descanso haverá. A fronteira está em chamas, e a posição romana
na Britânia é mais precária do que nunca; um dos principais fatores que a afetam é o jogo político que se desenrola na própria capital do Império, onde o futuro
da nova província está em dúvida. Só quando o idoso Imperador Cláudio falecer é que esse assunto poderá ser finalmente resolvido.
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UMA BREVE INTRODUÇÃO AO EXÉRCITO ROMANO

A Décima Quarta, como todas as legiões, era composta por cinco mil
e quinhentos homens. A unidade de base era a centúria de oitenta homens, comandados por um centurião. Cada centúria dividia-se em secções de oito homens, que partilhavam
um quarto nas casernas e uma tenda quando em campanha. Seis centúrias compunham uma coorte, dez coortes uma legião, embora a primeira coorte tivesse o dobro do efetivo.
Cada legião era acompanhada por um contingente montado de 120 homens, dividido em quatro esquadrões, que eram usados como batedores e mensageiros. Por ordem descendente,
as principais patentes eram as seguintes:
O legado era um homem de ascendência aristocrática. Tipicamente, teria cerca de trinta e cinco anos de idade, e comandava uma legião por um período que se podia
estender até cinco anos. Tinha como principal objetivo construir uma reputação que lhe garantisse um bom começo para uma carreira política subsequente.
O prefeito do campo era um veterano muito experimentado, que teria passado pela posição de centurião mais antigo de uma legião, e que ocupava assim o pico da carreira
para um soldado profissional. Possuidor de vasta experiência e uma integridade reconhecida, era sobre ele que recaía o comando de uma legião se o legado se ausentasse
ou tombasse em combat.
Seis tribunos ocupavam postos no estado-maior. Eram homens ainda de vinte e poucos anos que faziam uma primeira passagem pelo exército para adquirirem experiência
de gestão antes de assumirem postos menores na administração civil. O tribuno-chefe era um caso diferente. Estava destinado a um cargo político importante, e possivelmente
passaria mais tarde pelo comando de uma legião.
A espinha dorsal de uma legião, em termos de treino e disciplina,
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consistia em sessenta centuriões. Eram escolhidos a dedo pelas qualidades de exercer o comando dos homens no terreno e pela disponibilidade para lutar até à morte.
Por essa razão, a taxa de mortalidade desta patente era muito superior a qualquer outra. O centurião mais antigo comandava a primeira centúria da primeira coorte,
e era um homem com uma folha de serviço repleta de condecorações, que por todos era respeitado.
Os quatro decuriões da legião comandavam os esquadrões de cavalaria, embora ainda exista debate sobre a possibilidade de haver um centurião a comandar todo o contingente
montado.
Cada centurião era assistido por um optio, que tinha alguma autoridade sobre os homens. Os optios aguardavam por oportunidades para subir ao centurionato.
Abaixo dos optios estavam os legionários, homens que se tinham alistado por um período de vinte e cinco anos. Em teoria era preciso ser um cidadão romano para que
um homem se pudesse alistar, mas havia um crescente número de recrutas com outras origens que recebiam a cidadania romana no ato de alistamento. Os legionários eram
bem pagos, e podiam esperar importantes bónus atribuídos de tempos a tempos pelo Imperador (sempre que este sentia que era necessário avivar a lealdade do exército!).
Com um estatuto inferior ao dos legionários existiam os homens das unidades auxiliares. Eram recrutados nas províncias e forneciam ao Império Romano a cavalaria,
infantaria ligeira e outras especialidades. A cidadania romana era-lhes atribuída ao fim de vinte e cinco anos de serviço. As unidades de cavalaria, como a Segunda
Coorte Trácia, tinham um efetivo aproximado de quinhentos ou mil homens; este último caso era reservado a unidades cujos comandantes possuíam uma larga experiência
e reconhecidas capacidades. Existiam ainda coortes mistas, com uma proporção de um terço de cavalaria e dois terços de infantaria, que eram usadas para policiar
o território.
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Parecido com A Guerra dos Tronos, mas real.
- THE OBSERVER, LONDON

Nascido entre a nobreza de Inglaterra, Uhtred é o herdeiro das terras de Bebbanburg na Northumbria. Aos 10 anos foi para a guerra pela primeira vez e viu o seu pai
morrer em combate. Raptado pelos vikings, tornou-se primeiro um escravo e, depois, um filho para Ragnar, o Destemido. O destino tornou-o um guerreiro viking, mas
o destino também trouxe traição. E essa traição levou-o até Alfredo, Rei de Wessex, o último reino a resistir à invasão dos vikings. A quem será Uhtred fiel?
Em O Último Reino, Cornwell transporta-nos para um passado violento e apaixonante, onde testemunhamos o nascer de Inglaterra e de toda uma nova era.

PRIMEIRA PARTE Uma Infância Pagã

1

Os dinamarqueses agiram com inteligência naquele dia. Tinham construído novos muros no interior da cidade e, depois de incitarem os nossos homens a invadirem as
suas ruas, encurralaram-nos entre os muros recém-construídos, cercando-os e matando-os. Não conseguiram dizimar todo o exército de Nortúmbria, pois até o mais sanguinário
dos guerreiros se cansa da matança, além de que os dinamarqueses retiravam elevados proventos do comércio de escravos. A maioria dos escravos feitos em Inglaterra
foram vendidos a agricultores das inóspitas ilhas nórdicas ou da Irlanda, enquanto outros foram enviados para as terras da Dinamarca, do lado de lá do mar. Alguns,
porém, segundo vim a saber, foram levados para os grandes mercados de escravos da Frância e, uma vez aí, um pequeno grupo foi expedido para sul, rumo a paragens
onde não havia Inverno e onde indivíduos com rostos cor de madeira queimada pagavam bom dinheiro pelos homens e ainda mais por mulheres jovens.
Mesmo assim, mataram muitos dos nossos. Mataram Jella, mataram Osbert e mataram o meu pai. Mia e o meu pai tiveram sorte, pois morreram no campo de batalha, empunhando
a espada, mas Osbert foi capturado e torturado na noite da batalha enquanto os dinamarqueses festejavam a sua vitória numa cidade que exalava um intenso odor a sangue.
Alguns dos vitoriosos estavam de guarda às muralhas, outros comemoravam no interior das casas ocupadas, mas a maioria reunira-se
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na residência do derrotado rei de Nortúmbria, para onde fui levado por Ragnar. Não sabia por que motivo ele o fazia, já que, em parte, esperava ser morto, ou, na
melhor das hipóteses, vendido como escravo. Ragnar, no entanto, fez-me sentar ao lado dos seus homens, colocou uma perna de ganso assada, meio pão e um jarro de
cerveja na minha frente e deu-me uma palmada brincalhona na cabeça.
De início, nenhum dos dinamarqueses me prestou qualquer atenção. Estavam demasiado ocupados a embebedarem-se e a ovacionar as rixas que irrompiam à medida que iam
ficando bêbedos. As aclamações mais ruidosas, porém, fizeram-se ouvir quando Osbert foi obrigado a defrontar um jovem guerreiro extraordinariamente habilidoso no
manejo da espada. Começando por rodopiar em volta do rei, o jovem decepou-lhe a mão esquerda antes de desferir um extenso golpe de espada que lhe rasgou o abdómen
e, como Osbert era um homem corpulento, as suas entranhas espalharam-se como enguias transbordando de um saco roto. Perante esta cena, alguns dos dinamarqueses quase
perderam o fôlego de tanto rir. A morte do rei foi muito lenta e, enquanto ele gritava, implorando que alguém pusesse fim ao seu sofrimento, os dinamarqueses crucificaram
um padre que lutara contra eles na batalha. A nossa religião intrigava-os e causava-lhes repugnância, por isso ficaram furiosos quando as mãos do padre se soltaram
dos pregos que as prendiam. Houve quem argumentasse, então, que era impossível matar alguém daquela maneira, dando origem a uma entaramelada troca de palavras sobre
o assunto que redundou numa nova tentativa de pregar o padre à parede de madeira do salão. Por fim, farto de tanta discussão, um dos guerreiros enterrou-lhe uma
lança no peito, esmagando-lhe as costelas e trespassando-lhe o coração.
Após a morte do clérigo, alguns dos dinamarqueses viraram-se para mim e, tomando-me pelo filho de um rei devido ao elmo ornado com um aro de bronze dourado, colocaram-me
um manto sobre os ombros enquanto um deles subia a uma mesa pronto a urinar para cima de mim. Nesse instante, uma voz poderosa gritou-lhes que parassem o que estavam
a fazer e Ragnar abriu caminho entre a multidão. Arrancou o manto que me cobria e repreendeu os homens, dizendo-lhes algo que não consegui compreender. Fosse lá
o que fosse, o certo é que eles desistiram de me importunar e, pondo um braço em volta dos meus ombros, Ragnar conduziu-me até um estrado num dos
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lados do salão, indicando-me com um gesto que subisse lá para cima. No estrado estava um ancião, que comia sozinho. Era cego e tinha uns olhos brancos como leite
e um rosto sulcado por rugas profundas, emoldurado por uma cabeleira grisalha, tão longa como a de Ragnar. Ouviu-me subir para o estrado e fez uma pergunta a que
Ragnar respondeu antes de se afastar.
- Deves ter fome, rapaz - disse o ancião em inglês.
Não lhe respondi. Sentia-me aterrorizado pelos seus olhos cegos.
- Desapareceste? - perguntou ele. - Os anões vieram buscar-te e levaram-te para debaixo da terra?
- Tenho fome, sim - admiti.
- Então, sempre estás aí - retorquiu ele. - Há carne de porco, pão, queijo e cerveja. Diz-me o teu nome.
Por pouco não respondi Osbert, mas depois lembrei-me de que me chamava Uhtred.
- Uhtred - disse.
- Que nome tão feio - comentou o ancião -, mas o meu filho pediu-me que tomasse conta de ti e é o que vou fazer. Mas tu também tens de tomar conta de mim. Podias
cortar-me um bocado de carne de porco?
- O vosso filho? - perguntei.
- O conde Ragnar - respondeu ele -, por vezes chamado Ragnar, o Destemido. Quem estavam a matar ali?
- O rei - disse eu - e um padre.
- Que rei?
- Osbert.
- E ele morreu bem?
- Não.
- Nesse caso, não devia ter sido rei.
- Sois rei? - perguntei.
Ele riu-se.
- Eu sou Ravn - revelou -, e em tempos fui conde e guerreiro, mas agora estou cego e não sou útil a ninguém. Deviam dar-me uma pancada na cabeça com uma moca e despachar-me
para o outro mundo.
Fiquei calado, sem saber o que responder.
- Mas esforço-me por ser útil - prosseguiu Ravn, tacteando à procura de pão. - Falo a tua língua e as línguas dos Bretões e dos Wends,
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bem como os idiomas dos Frísios e dos Francos. As línguas são meu ofício, rapaz, porque me tornei um skald. agora o
- Um skald?
- Um bardo, como me chamariam vocês. Um poeta, um tecedor de sonhos, alguém capaz de fabricar feitos gloriosos a partir do nada e que deslumbra todos os que o rodeiam
com a sua arte. E a tarefa que tenho em mãos neste momento é contar a história deste dia de maneira que os homens jamais esqueçam os nossos grandes feitos.
- Mas como podeis contar o que aconteceu - perguntei - se não podeis ver?
Ravn riu-se das minhas palavras.
- Já ouviste falar em Odin? Nesse caso, devias saber que Odin sacrificou um dos seus próprios olhos para que pudesse obter o dom da poesia. Talvez eu seja duas vezes
melhor skald do que Odin, não achas?
- Eu sou descendente de Woden - afirmei.
- Ai és? - pareceu impressionado, ou talvez apenas quisesse ser simpático. - Quem és tu, então, Uhtred, descendente do grande Odin?
- Sou o chefe de Bebbanburg - respondi, e ao lembrar-me da minha condição de órfão, a minha atitude provocatória desmoronou-se e, para minha vergonha, comecei a
chorar.
Ravn ignorou-me, prestando atenção ao alarido dos homens embriagados, às canções e à gritaria das raparigas que tinham sido capturadas no nosso acampamento e que
agora proporcionavam aos guerreiros uma merecida recompensa pela sua vitória. Ao vê-las espernear e estrebuchar esqueci o meu infortúnio, porque, para falar verdade,
eu jamais presenciara cenas idênticas, embora, no futuro, Deus seja louvado, viesse a usufruir de abundantes recompensas como aquelas.
- Bebbanburg? - repetiu Ravn. - Estive lá antes de teres nascido. Há vinte anos.
- Em Bebbanburg?
- Não na fortaleza - confessou ele -, era demasiado segura; Mas estive a norte dela, na ilha onde rezam os monges. Matei seis homens lá. Não monges, homens apenas.
Guerreiros - sorriu para si mesmo ao recordar o que se passara. - E agora, chefe Uhtred de Bebbanburg continuou -, descreve-me o que está a passar-se.
Então tornei-me os seus olhos e falei-lhe dos homens que dançavam,
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dos que despiam as mulheres e do que faziam com elas, mas nada disso interessava a Ravn.
- Que fazem Ivar e Ubba? - quis ele saber.
- Ivar e Ubba?
- Devem estar na plataforma alta. Ubba é o mais baixo e parece um barril com barba, e Ivar é tão escanzelado que lhe chamam Ivar, o Sem-Ossos. É tão magro que podíamos
juntar-lhe os pés e atirá-lo como se fosse uma seta.
Posteriormente, vim a saber que Ivar e Ubba eram os mais velhos de três irmãos e que dividiam entre si a chefia deste exército dinamarquês. Ubba dormia com a cabeça
coberta por uma massa de cabelos negros apoiada nos braços que, por sua vez, repousavam sobre o que restava da sua refeição, mas Ivar, o Sem-Ossos, estava acordado.
Tinha olhos encovados, um rosto que fazia lembrar uma caveira, cabelos amarelos puxados para trás e presos junto à nuca e uma expressão inquietantemente malévola.
Os seus braços estavam profusamente adornados com as braceletes douradas que os dinamarqueses gostam de usar como prova das suas proezas no campo de batalha e do
seu pescoço pendia uma corrente de ouro de várias voltas. Dois homens conversavam com ele naquele momento. Um deles, que estava de pé mesmo atrás de Ivar, parecia
segredar-lhe algo ao ouvido, enquanto o outro, um homem de semblante apreensivo, estava sentado no meio dos dois irmãos. Descrevi tudo isto a Ravn, que quis saber
como era o homem de semblante apreensivo que estava sentado entre Ivar e Ubba.
- Não tem braceletes - disse eu -, mas tem um aro de ouro à volta do pescoço. Tem cabelo castanho, barba comprida e é bastante velho.
- Aos olhos dos jovens todos parecem velhos - observou Ravn. - Deve ser o rei Egbert.
- O rei Egbert?
Jamais ouvira falar de semelhante pessoa.
- Em tempos era conhecido como chefe Egbert - explicou Ravn -, mas assinou um acordo de paz connosco no Inverno passado e, como recompensa, nomeámo-lo rei aqui em
Nortúmbria. Ele é o rei, mas os senhores da terra somos nós.
Soltou um riso abafado e, apesar da minha juventude, apercebi-me do acto de traição envolvido. O chefe Egbert possuía propriedades a sul do nosso reino e tinha o
mesmo estatuto que o meu pai detinha no norte:
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era senhor de um imenso poder. Fora subornado pelos dinamarqueses que o tinham mantido longe do campo de batalha e, a partir daquele momento, passaria a ser tratado
como rei, embora fosse evidente que seria um rei mantido com rédea curta.
- Se de facto estás destinado a permanecer vivo - aconselhou ele -, talvez fosse sensato da tua parte apresentares os teus respeitos a Egbert.
- Vivo? - deixei escapar de forma abrupta.
Sem saber nem como nem porquê, eu concluíra que o facto de ter sobrevivido à batalha era um sinal óbvio de que iria manter-me vivo. Era uma criança, estava à responsabilidade
de outrem. Todavia, as palavras de Ravn fizeram-me compreender os verdadeiros contornos da minha realidade. "Nunca devia ter revelado a minha posição social", pensei.
É preferível ser um escravo vivo do que um chefe morto.
- Eu acho que vais viver - disse Ravn. - Ragnar gosta de ti e Ragnar consegue sempre aquilo que quer. Ele disse-me que tu o atacaste, foi?
- Ataquei, sim.
- Ele deve ter gostado disso. Um rapaz que se atreve a atacar o conde Ragnar? Deve ser um rapaz e tanto, não? Demasiado bom para ser morto, disse-me ele. A verdade,
porém, é que o meu filho sempre foi um sentimentalão deplorável. Eu ter-te-ia cortado a cabeça, mas aqui estás tu, vivo, e eu acho que seria sensato da tua parte
se reconhecesses a autoridade de Egbert.
Hoje, ao recuar até uma época tão remota do meu passado, penso que é provável que tenha alterado os acontecimentos daquela noite. Decorria um festim, Ivar e Ubba
estavam presentes, Egbert tentava comportar-se como um rei, Ravn tratou-me com amabilidade, mas estou certo de que me sentia mais confuso e muito mais assustado
do que dei a entender. Por outro lado, as minhas recordações do festim são muito precisas. Observa e aprende, dissera o meu pai, e Ravn obrigou-me a observar e eu
aprendi, de facto. Aprendi o que era a traição, sobretudo quando Ragnar, chamado por Ravn, me agarrou pelo colarinho e me conduziu até ao alto estrado, onde, depois
de um enfadado gesto de assentimento por parte de Ivar, fui autorizado a aproximar-me da mesa.
- Meu rei - comecei, num tom de voz agudo, ajoelhando-me e obrigando Egbert a inclinar-se para a frente, perplexo, a fim de conseguir
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ver-me. - Sou Uhtred de Bebbanburg - fora instruído por Ravn quanto ao que devia dizer - e venho pedir a vossa nobre protecção.
Fez-se silêncio, apenas perturbado pela voz murmurada de um intérprete que falava com Ivar. Nesse momento, Ubba acordou e durante breves segundos pareceu sobressaltado,
como se não soubesse muito bem onde estava. Em seguida fitou-me e eu senti um calafrio percorrer-me todo o corpo, pois nunca tinha contemplado um rosto tão malévolo.
Os seus olhos eram escuros e o ódio que reflectiam era de tal modo intenso que desejei que a terra me engolisse. Não disse nada, limitou-se a olhar-me fixamente,
levando a mão ao amuleto em forma de martelo que trazia ao pescoço. Ubba tinha o mesmo rosto magro do irmão, mas em vez de cabelo amarelo puxado para trás bem junto
ao crânio, tinha uma farta cabeleira negra e uma barba espessa, salpicada com pedaços de comida. Bocejou e eu tive a impressão de estar a olhar para a pança de um
animal. O intérprete falou com Ivar, que disse algo, e dirigiu-se depois a Egbert, que tentava parecer firme e austero.
- O teu pai - disse ele - escolheu combater contra nós.
- E está morto - respondi, com lágrimas nos olhos.
Quis dizer algo mais, mas não me ocorreu nada, e em vez disso choraminguei como uma criança e senti o desprezo de Ubba queimar-me como o fogo de uma fogueira. Zangado,
limpei o nariz à manga da camisa.
- Decidiremos o que fazer contigo - declarou Egbert com altivez, e fui dispensado.
Voltei para junto de Ravn, que insistiu para que eu lhe contasse o que tinha acontecido, sorrindo quando lhe descrevi o silêncio cruel de Ubba.
- Ele é um homem assustador - concordou Ravn. - Posso afiançar que matou dezasseis homens em combates individuais e dezenas mais no campo de batalha, mas só quando
os augúrios correm de feição. Caso contrário, recusa-se a combater.
- Os augúrios?
- Ubba é um jovem muito supersticioso - explicou Ravn -, mas é também muito perigoso. Se há um conselho que te posso dar, jovem Uhtred, é que nunca, mas nunca, combatas
contra Ubba. Até Ragnar teria receio de o fazer e há poucas coisas que atemorizem o meu filho.
- E Ivar? - perguntei. - O vosso filho lutaria com Ivar?
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- O Sem-Ossos? - Ravn reflectiu sobre a pergunta. - Ele também é assustador, pois não sabe o que é a piedade, mas tem bom senso. Além disso, se há alguém que Ragnar
sirva, é Ivar, e são amigos, por isso não lutaria com ele. Já Ubba, só os deuses lhe dizem o que deve fazer e há que ter cuidado com os homens que recebem ordens
directamente dos deuses. Corta-me um bocado de pele de porco tostada, rapaz. Adoro pele de porco tostada.
Não consigo lembrar-me quanto tempo permaneci em Eoferwic. Puseram-me a trabalhar, disso lembro-me bem. Tiraram-me as roupas finas e deram-nas a um rapaz dinamarquês,
enquanto a mim me obrigavam a vestir uma camisa de lã esfarrapada e infestada de pulgas que eu cingi ao corpo passando um pedaço de corda em volta da cintura. Durante
alguns dias cozinhei as refeições de Ravn. Depois chegaram os outros navios dinamarqueses trazendo na sua maioria mulheres e crianças, as famílias do exército vitorioso,
e só então compreendi que estes dinamarqueses tinham vindo com intenção de se instalarem em Nortúmbria. A mulher de Ravn chegou também. Era uma mulher grande chamada
Gudrun e tinha uma gargalhada capaz de derrubar um boi. Enxotou-me para longe da cozinha da qual passou a ocupar-se juntamente com a mulher de Ragnar, que se chamava
Sigrid e tinha cabelos da cor do ouro quando é reflectido pela luz do Sol que lhe desciam até à cintura. Ela e Ragnar tinham dois filhos e uma filha. Sigrid dera
à luz oito crianças, mas apenas aqueles três tinham sobrevivido. Rorik, o seu segundo filho, era um ano mais jovem do que eu e logo no dia em que o conheci desafiou-me
para uma rixa, avançando para mim ao murro e ao pontapé, mas eu imobilizei-o no solo de costas para baixo e, quando estava a tentar sufocá-lo, fomos surpreendidos
por Ragnar que, empurrando as nossas cabeças uma contra a outra, nos ordenou que fôssemos amigos. O filho mais velho de Ragnar, que também se chamava Ragnar, tinha
dezoito anos, já era um homem e não o conheci logo porque estava na Irlanda, onde aprendia a guerrear e a matar, a fim de se tornar conde como o seu pai. Ao fim
de algum tempo, vim a conhecer Ragnar, o Novo, que se parecia muito com o pai. Senhor de uma alegria inabalável, de uma alegria esfusiante, fazia tudo o que precisava
de ser feito com entusiasmo e tratava com amabilidade todos os que se dirigiam a ele com respeito...

 

 

                                                    Simon Scarrow         

 

 

 

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