Aquilo era como um tapete mágico que a levaria para uma vida nova e encantadora...
Nos sonhos mais secretos de Brooke, algum dia sua mãe voltaria ao orfanato para buscá-la, cheia de remorso por tê-la deixado ali durante tanto tempo.
Mas não é isso o que acontece.
Brooke nunca imaginara que um casal rico, parecendo artista de cinema, pudesse dizer ”Vamos ficar com ela”, levando-a para sua casa.
Pamela Thompson e seu marido, Peter, parecem felizes por acolhê-la em sua mansão.
Brooke é matriculada numa escola particular de garotas esnobes. Passa a ter aulas diárias de etiqueta e maquilagem. Cada peça de roupa é planejada para prepará-la para um futuro concurso de beleza. Mas Brooke quer apenas levar uma vida familiar comum... e jogar no time de softball da escola, onde seus verdadeiros talentos são apreciados. E é quando ela está no campo com as amigas que pode escapar do terrível pressentimento de que deve ser sempre obediente... ou se arriscar a perder sua grande chance de ter um sobrenome, um lar e a libertação dos terríveis segredos do seu passado.
Quando vi Pamela Thompson pela primeira vez, pensei que estava olhando para uma artista de cinema. Eu tinha doze anos, os cabelos louros descendo até os ombros. Na maior parte do tempo, mantinha-os presos com a fita rosa desbotada que minha mãe pusera pouco antes de me largar no orfanato e desaparecer de minha vida. Como ainda não tinha dois anos na ocasião, não me lembro dela. Mas muitas vezes me imagino como um pião, girando e girando, até parar. Nesse instante me descubro perdida no sistema de amparo à infância e adolescência, transferida de uma instituição para outra, até acabar uma manhã contemplando aturdida aquela mulher alta e encantadora, com deslumbrantes olhos azuis e cabelos dourados.
O marido, Peter, alto e tão distinto quanto um presidente, postava-se ao seu lado, os braços cruzados, sorrindo para mim. Era meados de abril, em Monroe, uma pequena comunidade suburbana de Nova York, mas Peter estava tão bronzeado quanto alguém na Califórnia ou Flórida. Formavam o casal mais atraente que eu já conhecera. Até mesmo a assistente social, sra. Talbot, que não tinha muita consideração por ninguém, parecia impressionada.
Não pude deixar de me perguntar: — O que duas pessoas tão fascinantes querem comigo?
— Ela tem uma postura perfeita, Peter — comentou Pamela. — Repare como os ombros se mantêm empinados.
— Tem razão, é mesmo perfeita.
Ele sorriu e acenou com a cabeça, sem desviar os olhos de mim. Os olhos verdes suaves tinham um brilho cordial. Os cabelos eram ruivos, tão brilhantes e bem cuidados quanto os da esposa. Pamela agachou-se ao meu lado, nossos rostos ficaram quase juntos.
— Olhe para nós lado a lado, Peter.
— Estou vendo. — Ele riu. — É espantoso.
— Temos o mesmo nariz e a mesma boca, não é?
— Idênticos.
Pensei que ele devia ter um problema de vista. Não éramos nem um pouco parecidas.
— E os olhos?
— Os dela também são azuis, mas os seus têm uma tonalidade esverdeada.
— É o que sempre dizem quando me descrevem — comentou Pamela para a sra. Talbot. — Olhos azuis com uma tonalidade esverdeada. Apesar disso, Peter, são bem parecidos.
— Tem razão.
Ela pegou minha mão e estudou os dedos.
— Pode-se prever muita coisa sobre a beleza em potencial de uma pessoa através do exame de seus dedos. Foi o que Miss América me disse no ano passado. Tenho de concordar. Estes dedos são muito bonitos, Peter. As articulações não sobressaem. Brooke, você tem roído as unhas, não é?
Pamela contraiu os lábios, para indicar que era uma coisa inadmissível. Olhei para a sra. Talbot.
— Não roo as unhas.
— Então, quem as cortou não fez um bom trabalho.
— Ela mesma corta suas unhas, sra. Thompson — declarou a sra. Talbot. — As garotas aqui não têm qualquer tipo de cuidado de beleza.
Pamela sorriu para ela, como se a sra. Talbot não soubesse do que falava. Depois, empertigou-se e disse:
— Vamos levá-la. Certo, Peter?
— Claro.
Minha impressão era de ter sido comprada. Olhei para a sra. Talbot, que franzia o rosto em desaprovação.
— Alguém irá entrevistá-la dentro de uma semana, sra. Thompson — disse ela. — Se quiserem ir à minha sala para preencher os formulários...
— Uma semana? O que vamos fazer, Peter? Peter adiantou-se.
— Posso usar seu telefone, por favor, sra. Talbot? Ela ficou aturdida.
— Creio que posso abreviar o processo — acrescentou Peter. — Sei como vocês vivem ansiosos em encontrar lares apropriados para as crianças. Estamos do mesmo lado.
Ele sorriu. Compreendi naquele instante que ele podia ser muito insinuante quando queria. A sra. Talbot empertigou-se.
— Não se trata de uma questão de lados, sr. Thompson. Temos de cumprir todas as exigências.
— Sei disso. Posso usar seu telefone?
- Pode.
— Obrigado.
A sra. Talbot deu um passo para o lado. Peter entrou na sala dela.
— Estou emocionada com você — disse-me Pamela, enquanto Peter telefonava. — Posso ver que cuida bem dos seus dentes.
— Escovo duas vezes por dia.
— Eu não achava que fosse alguma coisa especial.
— Algumas pessoas têm bons dentes naturalmente — comentou ela para a sra. Talbot, cujos dentes eram um pouco tortos e escuros. — Sempre tive bons dentes. Os dentes e o sorriso são as marcas registradas de uma pessoa, Brooke. Nunca os negligencie. Nunca negligencie qualquer coisa, os cabelos, a pele ou as mãos. Que idade acha que tenho? Vamos, dê um palpite.
Tornei a olhar para a sra. Talbot, em busca de ajuda. Mas ela desviara os olhos para a janela, tamborilando com os dedos na mesa da sala de reuniões.
— Vinte e cinco — respondi.
— Compreende agora? Tenho trinta e dois anos. Não digo a todo mundo, é claro. Só falei agora para comprovar meu argumento.
Ela olhou para a sra. Talbot.
— E que argumento é esse, sra. Thompson?
— Que argumento? Ora, simplesmente que você não precisa envelhecer antes do tempo se cuidar direito de si mesma. Você canta, dança ou faz qualquer coisa criativa, Brooke?
— Não — respondi, hesitante, pensando se não deveria inventar alguma coisa.
— Ela é a melhor atleta do orfanato, e eu diria que da escola também — gabou-se a sra. Talbot.
— Atleta? — Pamela riu. — Esta menina não será alguma atleta escondida nas últimas páginas das revistas de esporte. Vai aparecer na capa das revistas de moda. Olhe para seu rosto, repare nas feições, em toda a perfeição. Se eu tivesse concebido uma filha, Brooke, seria igual a você. E então, Peter?
Ele sorriu, voltando à sala.
— Há alguém no telefone querendo lhe falar, sra. Talbot.
Peter piscou para Pamela, que pôs a mão em meu ombro e puxou-me.
- Brooke, querida, você vai para casa conosco.
Quando se é criada no mundo dos orfanatos, com toda a sua burocracia, não se pode deixar de ficar impressionada com as pessoas que têm o poder de estalar os dedos e conseguir o que querem. É emocionante. É como se você fosse arrebatada de repente por um tapete mágico e o mundo que julgava reservado apenas aos poucos afortunados eleitos passa a ser seu também.
Quem poderia me culpar por correr para os braços deles?
Um novo jogo
Nos meus sonhos mais secretos, do tipo que a gente mantém escondido debaixo do travesseiro e espera encontrar aguardando na escuridão assim que fecha os olhos, eu via minha mãe verdadeira entrando no orfanato. Não era nada parecida com os Thompson. Não estou querendo dizer que minha mãe não era bonita também, como Pamela, porque ela era. E no meu sonho nunca parecia também mais velha do que Pamela.
A mãe em meus sonhos tinha a mesma cor dos meus cabelos e dos meus olhos. Era igual, suponho, ao que eu pensava que seria quando crescesse. Era bonita por dentro e por fora, sabia fazer as pessoas sorrirem. No momento em que as pessoas tristes a viam, esqueciam sua infelicidade. Com minha mãe ao meu lado, eu também esqueceria como era ser infeliz.
Em meu sonho, ela sempre me reconhecia entre os outros órfãos, sem a menor hesitação; e quando eu a via parada na porta, sabia no mesmo instante quem ela era. Mamãe estendia os braços e eu corria para seu abraço. Ela cobria meu rosto de beijos, murmurava uma porção de desculpas. Eu não me importava com as desculpas, de tão feliz que me sentia.
— Voltarei em poucos minutos — dizia ela, antes de entrar no escritório para assinar todos os documentos.
No instante seguinte eu saía do orfanato, segurando sua mão, entrava no carro, e partia para começar minha vida nova. Teríamos muito para dizer, tanta coisa para pôr em dia, que falaríamos sem parar até o momento em que ela me poria na cama, com um beijo e a promessa de permanecer sempre ao meu lado.
Claro que era apenas um sonho. Minha mãe nunca veio. Nunca falei sobre ela, nunca fiz qualquer pergunta a seu respeito a alguém do orfanato. Sabia apenas que ela me deixara porque era jovem demais para cuidar de mim. No fundo do meu coração, no entanto, não podia deixar de acalentar a esperança de que ela sempre planejara voltar para me buscar quando tivesse idade suficiente para cuidar de mim. Tinha certeza de que ela acordava, muitas noites, como acontecia comigo, e pensava em mim, como eu parecia, se me sentia solitária ou amedrontada.
Nós, órfãos, não íamos a muitos lugares além da escola, mas de vez em quando havia uma excursão escolar à cidade de Nova York, para ir a um museu, uma exposição ou algum espetáculo determinado. Sempre que entrávamos na cidade, eu comprimia o rosto contra a janela do ônibus, e estudava as pessoas que passavam apressadas de um lado para outro da calçada. Minha esperança era avistar uma mulher ainda jovem que pudesse ser minha mãe. Sabia que tinha tanta chance de conseguir isso quanto de ganhar na loteria, mas era um desejo secreto... e, no final das contas, desejos e sonhos são as coisas que mais alimentam os órfãos. Sem isso, ficaríamos perdidos e esquecidos.
Não posso dizer que algum dia imaginei que pessoas como Pamela e Peter Thompson pudessem querer se tornar meus pais adotivos... e depois me adotar, me deixar fazer parte de sua família para sempre. Pessoas tão ricas e importantes quanto eles tinham outros meios de arrumar crianças, em vez de procurarem um orfanato comum como aquele. Com toda certeza, não saíam a procurar pessoalmente. Mandavam alguém fazê-lo.
Por isso, senti que ganhara na loteria naquele dia, quando deixei para trás o orfanato com eles. Vestia uma calça jeans, tênis e uma T-shirt do New York Yankees. Trocara um cartaz de Party of Five por aquela camiseta. Ao ver que o resto do meu guarda-roupa era assim, Pamela declarou a Peter:
— Deixe essas coisas. Deixe todo o passado dela para trás, Peter.
Eu não sabia o que dizer. Não tinha muitos bens importantes. Na verdade, a única coisa importante para mim era uma fita rosa desbotada, que supostamente usava no dia em que minha mãe me abandonara. Consegui guardá-la no bolso do jeans.
— Nossa primeira parada será na Bloomingdale’s — anunciou Pamela.
Peter parara seu Rolls-Royce na frente do orfanato. Eu já ouvira falar desses carros antes, mas nunca vira nenhum. Parecia folheado a ouro. Sentia-me atordoada demais para perguntar se era ouro de verdade. O interior recendia a novo, o couro era macio. Eu não podia sequer imaginar quanto devia ter custado. Várias crianças olhavam pelas janelas, os rostos comprimidos contra o vidro. Pareciam estar num aquário. Acenei antes de entrar no carro. Quando nos afastamos, tive a sensação de que era levada para longe num tapete mágico.
Não pensei que Pamela queria dizer literalmente que iríamos direto para a Bloomingdale’s, mas foi para lá que Peter nos levou. Todos conheciam Pamela na loja de departamentos. Assim que entramos, as vendedoras dispararam para cima de nós, como tubarões. Pamela rejeitou as ofertas com um aceno de mão. Saiu andando pelos corredores, apontando para isto e aquilo. Passamos horas experimentando roupas.
Enquanto eu experimentava os mais diversos trajes, blusas, saias, casacos, até chapéus, Pamela e Peter sentavam como membros da audiência num desfile de modas. Nunca antes eu experimentara tantas peças de roupa diferentes, muito menos as vira. Pamela parecia tão preocupada com a maneira como eu usava as roupas quanto com o ajuste delas. Não demorou muito para eu sentir que tinha de me comportar como modelo.
— Devagar, Brooke, ande devagar. Mantenha a cabeça erguida, os ombros para trás. Não esqueça a boa postura agora que está usando roupas que realçam sua aparência. Quando se virar, faça uma pequena pausa. Assim mesmo. Usa a saia muito alta na cintura. — Ela soltou uma risada. — Age como se quase nunca usasse uma saia.
— É isso mesmo. Sinto-me mais à vontade de jeans.
— Jeans? São ridículos. Não há linhas femininas que se salvem em jeans. Não sabia que as bainhas estavam tão altas este ano, Millie.
Ela falava com a vendedora que me atendia.
— Estão, sim, sra. Thompson. É a última moda.
— A última moda? Não é mesmo. Para a última moda, você teria de ir a Paris. O que temos em nossas lojas agora já vem com meses de atraso. Não suspenda os braços assim, Brooke. Fica muito dura. Parece até que está prestes a pegar uma bola de beisebol. Não concorda, Peter?
— Concordo — responde ele, rindo.
Pamela chegou ao ponto de se levantar para me mostrar como andar, suspender os braços, virar-me, erguer a cabeça. Por que era tão importante saber de tudo isso enquanto eu experimentava roupas? Ela se antecipou à pergunta.
— Não se pode saber até que ponto essas roupas ficarão bem em você se não usá-las corretamente, Brooke. Postura e porte são os dois elementos principais da elegância. Vão ajudá-la a fazer com que qualquer roupa que vista pareça especial, entende?
Acenei com a cabeça. Pamela sorriu.
— Você tem se mostrado tão boa, Brooke, que acho que merece algo especial. Não acha também, Peter?
— A mesma idéia me ocorreu. O que sugere, Pamela?
— Ela precisa de um bom relógio para esse pulso precioso. Pensei num daqueles novos relógios Cartier que avistei ao entrarmos na loja.
— Você está absolutamente certa... como sempre — comentou Peter, com uma risada.
Não fui capaz de falar quando vi o preço do que Pamela chamava de um bom relógio. O vendedor tirouo do mostruário e pôs em meu pulso. Parecia quente demais. Fiquei apavorada de quebrá-lo ou perdê-lo. Os diamantes faiscavam no mostrador.
— Só precisa de um pequeno ajuste na corrente para caber nela — declarou Pamela, levantando meu braço para que Peter pudesse ver o relógio no pulso.
Ele balançou a cabeça.
— Ficou ótimo nela.
— É muito dinheiro — murmurei.
Se Pamela ouviu, preferiu fingir que nada escutara.
— Vamos levá-lo — declarou Peter.
Como seria o Natal? Eu me sentia atordoada de participar de uma expedição de compras que não levava o custo em consideração. Até que ponto meus novos pais eram ricos?
Não pude acreditar em meus olhos quando vi a casa que Pamela e Peter chamavam de lar. Não era uma casa; era uma mansão, como Tara em E o Vento Levou. Era mais alta e mais larga do que o orfanato, com colunas compridas e degraus que pareciam de mármore, levando a um pórtico de mármore. Havia também uma varanda menor no segundo andar.
O gramado que se estendia pela frente da casa era maior do que dois campos de beisebol lado a lado, pensei. Avistei fontes e bancos. Dois homens idosos, de calça e camisa brancas, aparavam um canteiro de flores, que parecia tão largo e comprido quanto uma piscina olímpica. Quando entramos no caminho circular, descobri que havia uma piscina atrás da casa, além do que pareciam ser cabanas.
— Gostou? — perguntou Pamela, com intensa expectativa.
— Só vocês dois moram aqui? Eles riram.
— Temos criados que dormem numa parte da casa, mas só Peter e eu moramos aqui.
— É enorme...
— Como sabe, Peter é advogado. Trabalha para grandes empresas. Também tem uma participação ativa na política estadual. Foi por isso que conseguimos trazela para casa tão depressa. E já sabe que eu quase fui Miss América. — Uma pausa e ela acrescentou, sem a menor modéstia: — Durante muitos anos fui uma top model. É por isso que sei tanto sobre elegância e aparência.
— Acho que estamos deixando-a atordoada, Pamela — comentou Peter.
— Não há outro jeito. Temos muito o que fazer. Não podemos dar informações sobre nossa vida com conta-gotas, Peter. Ela precisa entrar logo no clima. Não é mesmo, querida?
— Acho que sim — balbuciei, ainda espantada quando paramos.
A porta da frente foi aberta no mesmo instante. Um homem alto e magro, com cabelos grisalhos por cima das orelhas, saiu apressado, seguido por uma morena baixa, com um uniforme azul de criada, um avental de renda branca por cima da saia.
— Olá, Sacket — disse Peter, ao saltar do carro.
— Olá, senhor.
O homem devia estar na casa dos cinqüenta ou sessenta anos. Tinha olhos pequenos e escuros, um nariz comprido que dava a impressão de ainda estar crescendo, para alcançar a boca fina e o queixo pontudo. A palidez do rosto fazia com que a cor nos lábios parecesse batom.
— Seja bem-vindo, sr. Thompson — disse ele, numa voz muito mais grave do que eu podia imaginar.
O som dava a impressão de começar no estômago e ecoar na boca, com a ressonância de um órgão de igreja.
A criada se movimentava em torno do carro como uma mariposa, esperando nervosa que Pamela desse as ordens. Não parecia ter mais do que trinta anos, mas era muito feia, sem maquilagem, o nariz pequeno demais para a boca larga e grossa. Os olhos castanhos irrequietos piscavam sem parar. Ela enxugou as mãos no avental e recuou quando Pamela saiu do carro.
— Comece por levar os pacotes na mala para o quarto de Brooke, Joline.
— Pois não, madame.
Ela me lançou um rápido olhar e deu a volta para se juntar a Sacket atrás do carro. Os dois começaram a pegar minhas coisas.
— Peter, pode mostrar a casa a Brooke enquanto me arrumo? — Pamela virou-se para mim. — Viajar e fazer compras podem deixar sua pele ressequida, ainda mais quando se entra nessas lojas de departamentos, com seu ar-condicionado central. Sem falar na poeira.
— Não se preocupe, querida. Brooke...
Ele estendeu o braço. A princípio, não entendi. Só quando ele chegou mais perto é que passei o braço pelo seu.
— Vamos dar uma volta por seu novo lar? — acrescentou Peter, sorrindo.
Olhei para os criados, levando minhas coisas para dentro da casa, os jardineiros podando e cuidando das flores, sebes e gramados, a vastidão da propriedade. Minha cabeça começou a girar. Tudo aquilo me deixava atordoada.
Meu novo lar?
Durante toda a minha vida só tivera quartos que não eram maiores do que um closet, às vezes até partilhando o espaço com outra órfã. Dividia o banheiro com meia dúzia de outras crianças na maioria das ocasiões. Comia num refeitório, lutava para assistir ao que queria num único aparelho de televisão, protegia meu reduzido espaço como a mamãe ursa defendendo seus filhotes.
E de repente, quase que num piscar de olhos, era levada para o que parecia ser um palácio. Não conseguia falar. O nó na garganta era tão grande que eu tinha a sensação de ter engolido uma maçã. Apoiei-me de verdade no braço de Peter. Ele me levou pelos degraus para a imponente porta da frente, pela qual Pamela passou apressada, como se a casa fosse um santuário contra as forças do mal que queriam roubar sua beleza.
— Voilà! — exclamou ele, dando um passo para o lado e me deixando entrar.
Assim que entrei no vestíbulo, o chão em quadrados que pareciam de sorvete de chocolate e baunilha, parei e virei-me em círculos lentos, olhando para os enormes quadros a óleo, que davam a impressão de terem sido trazidos de algum museu europeu. Olhei para o enorme lustre dourado por cima e a imensa tapeçaria na parede ao lado da escada semicircular, os degraus cobertos por um carpete grosso, de uma tonalidade branco-amarelada, parecendo macio como pêlo de coelho.
— É uma cena de Romeu ejulieta — disse Peter, acenando com a cabeça para a tapeçaria. — O baile de máscaras. Ainda não leu, não é?
Sacudi a cabeça.
— Mas aposto que conhece a história?
— Um pouco.
— O que está achando até agora?
— Não sei o que dizer. A casa é muito grande. Ele riu.
— Quase mil metros quadrados. Vamos continuar. Ao seu lado, contemplei a enorme sala de estar, com um piano de cauda branco.
— Nenhum de nós dois toca. E você? Sacudi a cabeça.
— Talvez devêssemos providenciar um professor de piano. Você gostaria?
— Não sei.
E não sabia mesmo. Nunca tivera o desejo de tocar piano. E é claro que também nunca teria a oportunidade de aprender.
— Provavelmente há muitas coisas novas que você vai descobrir que quer fazer — comentou Peter, pensativo. — Quando as coisas parecem impossíveis, imagino que não pensa duas vezes nelas, não é?
Acenei com a cabeça. Aquilo fazia sentido. Ele era esperto. Tinha de ser, para ganhar o dinheiro necessário para ter todas aquelas coisas, pensei.
Havia muitos outros quadros que pareciam caros, vasos e peças de cristal. Todos os móveis eram impecáveis, os braços e pernas de madeira lustrados até faiscarem, os sofás e poltronas dando a impressão de que ninguém jamais sentava neles.
— Não passamos muito tempo aqui — comentou Peter, como se pudesse ler meus pensamentos. — É o que se poderia chamar de sala de exibição. Em geral ficamos na sala íntima, onde temos o aparelho de televisão. Talvez agora que você está aqui possamos ter algum tempo de família, sentados e conversando. É uma boa sala para uma conversa, não acha?
Ele sorria ao fazer a pergunta.
— Faz-me pensar que devo sussurrar. É como uma sala de uma casa famosa ou algo parecido.
Peter riu ao meu comentário.
— Adoro observar as expressões dos que visitam minha casa pela primeira vez, porque assim posso contemplá-la como se nunca a tivesse visto antes.
Continuamos por um corredor, com espelhos em molduras douradas e cheias de arabescos, mesinhas com vasos contendo flores frescas, quadros onde quer que houvesse espaço.
— Há muitos quadros na casa — comentei, enquanto parava e admirava uma linda paisagem marinha.
— A arte é um bom investimento hoje em dia — disse Peter. — Você desfruta a beleza, enquanto o valor aumenta. É melhor do que comprar títulos de alguma empresa, não acha?
Dei de ombros. Era tudo como outra língua para mim. Peter soltou uma risada.
— Pamela tem o mesmo nível de interesse. É uma dessas mulheres que querem apenas que a máquina continue a produzir, mas não querem saber qualquer coisa sobre a máquina... o que é ótimo. Cuido dessa parte de nossas vidas, enquanto Pamela... ela é linda e me faz parecer bem. Entende o que estou querendo dizer? Ele piscou para mim. Mais uma vez, eu não tinha a menor idéia do que Peter dizia. Por isso, limitei-me a sorrir.
— Pamela está convencida de que você será tão linda quanto ela. E Pamela quase disputou o título de Miss América.
— É mesmo?
— Primeiro, ela foi rainha do baile de formatura, depois rainha do baile dos ex-alunos, em seguida Miss Alumínio, ou algo parecido. Foi Miss Baía de Chesapeake e finalista do concurso de Miss Delaware. Isso a levaria à disputa do título de Miss América. Mas perdeu para a filha de um rico proprietário de cavalos de corrida. Imagino que houve algum acerto nos bastidores.
Paramos na sala de jantar. Era preciso ter criados para fazer uma refeição ali, pensei. A mesa oval de cerejeira escura parecia bastante grande para acomodar todas as crianças no orfanato, os administradores, cozinheiras, vigias e até alguns visitantes. Tinha uma dúzia de lugares postos, com copos de vinho e mais talheres do que eu já vira em todo o refeitório. Havia um armário de portas de vidro num lado, com copos e pratos. Havia também mesas de serviço, cadeiras de encosto alto, uma parede espelhada e dois lustres.
— O jantar e todas as refeições formais são servidos aqui — informou Peter, com um gesto largo da mão. — Pamela supervisiona tudo na casa. Seus pais a mandaram para uma escola de preparo social, o que algumas pessoas chamam de escola de elegância. Ela sabe tudo o que há para saber sobre etiqueta. Vai aprender muito com Pamela. Juro que ela deveria ter nascido na realeza. Seria capaz de viver nesse mundo. Nossa sala íntima... ou sala da família, como alguns chamam.
Ele parou na porta seguinte, à direita. Os móveis eram de couro preto, a televisão era tão grande quanto as telas de alguns cinemas. As cortinas de veludo vermelho estavam abertas para deixar à mostra a piscina e a cabana. Toda uma parte da sala tinha as paredes devotadas a retratos de Pamela. Não pude resistir à atração.
— Aí está ela! — exclamou Peter. — Ganhando concursos de beleza, representando companhias, participando de paradas, encontrando-se com celebridades e políticos importantes, desfilando as criações de grandes estilistas... e foi assim que a conheci.
Eu me sentia atordoada. Minha nova mãe conhecia mesmo todas aquelas pessoas famosas? Peter veio se postar ao meu lado.
— Impressionante, não é?
— É, sim.
— Fui um afortunado quando ela se apaixonou por mim. Pamela é uma constante surpresa. Possui um tipo excepcional de beleza. Sabe o que a beleza pode fazer e não pode.
Ele acenou com a cabeça para mim e prometeu:
— Vai aprender muitas informações práticas para uma mulher atraente.
Pela maneira como Peter falava, parecia que Pamela e agora eu, o que não acreditava por um instante sequer, éramos cidadãs de um país diferente, ou integrantes de uma espécie diferente, por causa de nossa aparência.
— Ela pode ser inocente como uma criança quando é preciso, mas se torna perceptiva, sedutora, sofisticada e hábil quando tem de ser... e sabe distinguir o que uma determinada situação exige. Poucas mulheres que eu conheço fazem isso... e incluo as mais inteligentes e independentes que trabalham na minha firma.
Ele concluiu com alguma amargura. Percebeu que estava muito sério, sorriu e acrescentou:
— Este é o mais moderno sistema de som, digital, com Surround Sound. Poucas pessoas têm um parecido, pois a tecnologia é muito nova. Uma sala confortável, não acha?
Eu escutava apenas com meia atenção, uma parte de mim ainda estava impressionada com o luxo naquela casa espetacular. Peter continuou na escuursão, mos-trando-me os dois banheiros no primeiro andar, os aposentos dos criados, a cozinha, que parecia bastante grande para atender a um restaurante lotado, e a biblioteca, seu escritório em casa, uma sala escura e esplêndida, com centenas de livros encadernados em couro.
— Devo dizer que sou um pouco irracional em relação ao meu escritório, Brooke. Não permito que ninguém entre aqui sem que eu esteja presente. Há muitos documentos importantes e papéis particulares.
Vi uma folha impressa saindo de uma máquina. Peter acrescentou:
— Às vezes os documentos me são enviados por fax direto para cá. E agora vamos subir para você conhecer seu quarto.
Voltei com ele para a escada. Começamos a subir. Ouvimos o que parecia ser ópera vindo de trás de uma porta dupla fechada, no final do corredor.
— Pamela gosta de ouvir operetas quando está em seu boudoir. — Peter riu quando fiz uma careta. — E agora dê uma olhada.
Paramos diante de uma porta alta. Ele me fitou com um brilho malicioso nos olhos antes de abri-la. Desta vez não fui capaz de reprimir meu suspiro de espanto.
O quarto, meu quarto, era quatro vezes maior do que o quarto em que dormia no orfanato. A cama era enorme, do tamanho de uma rede de acrobacia. Tinha quatro postes rosados, uma cabeceira com uma rosa de haste comprida gravada. Tinha uma escrivaninha branca no outro lado do quarto, um balcão comprido com espelhos, uma cadeira na frente de uma mesa de maquilagem. Havia ali escovas, diversos tubos e potes de maquilagem, batons, um secador de cabelos e uma caixa de marfim cheia de travessas e fitas para os cabelos.
Todas as minhas roupas novas haviam sido guardadas na cômoda e no grande closet. Sobrava espaço para mais, muito mais. No closet havia espelhos, até mesmo uma mesinha com uma cadeira.
Nos lados da cama havia janelas grandes, com cortinas listradas em branco e rosa. Tinha uma vista de campos; a distância, podia avistar um lago.
Peter abriu um armário na frente da cama para mostrar um pequeno aparelho de televisão. Depois, abriu a parte inferior do armário, revelando o aparelho de som.
— Compraremos alguma música para você ouvir neste fim de semana. Pamela já planejou os próximos dias, incluindo compras em boa parte do tempo. — Ele pôs as mãos nos quadris. — E então? Está feliz?
Sacudi a cabeça. Feliz não era uma palavra bastante ampla. Dei uma volta, tocando nas coisas para ter certeza de que se encontravam mesmo ali, que não eram um sonho.
— Este é meu quarto? Peter riu.
— Claro. Por que não descansa um pouco, depois toma um banho de chuveiro e se veste para o jantar? Será a primeira refeição que faremos juntos. Pamela preparou algo especial. Está decidida a mimá-la. Diz que uma linda mulher tem de ser mimada. Deve ter razão. Afinal, quem pode negar que sempre a mimei?
Houve uma batida na porta. Viramos para deparar com Joline parada ali.
— A sra. Thompson me mandou verificar se a srta. Brooke deseja que eu prepare seu banho agora.
Srta. Brooke? Era incrível.
— Está vendo como Pamela sempre se antecipa a tudo? — disse Peter. — E então?
— Então o quê?
— Quer que Joline prepare seu banho agora?
— Como assim?
— Aprontar tudo para você — explicou Peter.
Olhei para a banheira grande e redonda, no banheiro reluzente. O que podia ser tão difícil em aprontar um banho?
— Posso fazer isso sozinha.
— Claro que pode, mas daqui por diante alguém cuidará disso para você. É o que Pamela quer. Deseja que você seja igual a ela.
Alguma coisa se agitou dentro de mim, onde ficavam todos os meus sonhos e pensamentos secretos. Era como um pequeno sinal de alarme. Um alarme que não entendi.
Olhei para as minhas roupas novas, o relógio caríssimo, todo o meu mundo novo, muito mais privilegiado e seguro do que o orfanato.
Que perigo poderia haver ali?
Fora com o antigo
Quando mandara Joline preparar meu banho, Pamela não se referia apenas a abrir a água. Instruíra-a também sobre a quantidade de sais e óleos de banho que devia ser misturada na água. Fiquei de lado, observando-a medir tudo com a precisão de uma química.
— O que é tudo isso? — perguntei.
— São as coisas que a sra. Thompson diz que manterão sua pele macia e sedosa, que a impedirão de envelhecer.
— Envelhecer? Não preciso me preocupar com isso por enquanto. Ainda nem completei treze anos.
Ela sorriu como se eu tivesse dito alguma tremenda estupidez, depois abriu a torneira. Arrumou a toalha, grande e felpuda, ajeitou o roupão e as chinelas, perguntando em seguida:
— Deseja mais alguma coisa?
— Não.
Eu não podia imaginar qualquer outra coisa para pedir.
— Tenha um bom banho — murmurou Joline, antes de se retirar.
Tenha um bom banho? Olhei para a banheira. No orfanato, costumávamos tomar banhos de chuveiro rápidos. Afinal, sempre havia outras pessoas querendo usar o banheiro. O que eu deveria fazer num banho além de me lavar e sair?
Tirei as roupas. Dobrei a camiseta e o jeans com todo cuidado, pus no balcão ao lado das pias. Embora minhas roupas fossem velhas e surradas, sentia que deveria tratá-las de uma maneira especial só porque estavam agora num banheiro digno de uma princesa. Tinha duas pias! Por que um banheiro precisava de duas pias? E o que era aquilo ao lado da latrina?
Os ladrilhos de mármore eram frios sob os meus pés descalços. Fechei a torneira. A espuma subira tão alto que ameaçava escorrer pela beira da banheira. Ao entrar nela, me abaixei, cautelosa. Não sei como conseguira, mas Joline preparara o banho na temperatura certa para mim, nem muito quente, nem muito frio. Era uma sensação das mais agradáveis. Tive de rir ao ver meu reflexo nos espelhos em torno da banheira. Lá estava eu apenas com a cabeça acima do mar de espuma.
Em vez de um pano para esfregar, tinha uma esponja, pendendo de uma prateleira. Passei-a pelas pernas e, em seguida, recostei-me para repousar a cabeça na almofada macia na beira da banheira. A água espumante parecia estalar ao meu redor.
Seria possível que os contos de fadas se transformassem em realidade? Cinderela fora muito mais feliz do que eu me sentia naquele instante?
— Aí está você, uma cena perfeita — disse Pamela, entrando no banheiro. Ela tinha os cabelos presos sob uma pequena toalha. Usava um roupão de seda vermelha comprido, com letras japonesas na frente. Tinha o que pareciam ser finas camadas de lama nas faces e na testa. — Como se sente?
— Muito bem — respondi, fazendo um esforço para não fitá-la.
— Estou vendo que Joline pôs sais de banho demais, mas não tem problema. Nascemos para ser indulgentes, você e eu. Suas indulgências ficaram em suspenso por algum tempo, mas isso já passou — declarou ela, com a confiança de uma rainha. — Peter diz que você gostou do seu novo lar.
— É um palácio. Pamela riu.
— Por que não? Somos uma dupla de princesas, não é mesmo? Não quer experimentar os jatos?
— Jatos?
Ela se abaixou e apertou um botão na base da banheira. A água começou a circular de maneira vertiginosa, os jatos me atingindo as pernas e costas. Soltei um grito de satisfação. Pamela riu. As bolhas foram se tornando cada vez maiores, até que tive de empurrá-las para o lado, a fim de ver Pamela parada ali. Ela tornou a apertar o botão, e os jatos cessaram.
— Direi a Joline que ela pôs espuma demais, para que a quantidade seja certa amanhã de noite.
— Amanhã de noite?
Eu deveria tomar um banho assim todas as noites?
— Isso mesmo. É preciso limpar os poros de sua pele todos os dias e se livrar dos venenos. Esses géis e sais são escolhidos com todo cuidado — continuou Pamela, apontando para os potes que Joline usara. — Tenho um dos melhores dermatologistas do país aconselhando-me sobre os cuidados com a pele. Você não vai ter nenhuma dessas manchas horríveis que as adolescentes costumam exibir.
Ela falou com tanta veemência que senti um aperto no coração. Uma pausa e ela arrematou:
— Não minha filha, não a filha de Pamela Thompson.
Ela afastou algumas bolhas e examinou meus cabelos.
— Há muito trabalho para ser feito — comentou ela, enquanto seus dedos testavam as mechas. — Seus cabelos parecem palha, quando deveriam oferecer a sensação de seda. Também precisamos aumentar o volume. Eu lhe darei seu primeiro xampu.
Pamela foi até o balcão para escolher um xampu.
— Começaremos por este. Molhe a cabeça. Afundei até a cabeça ficar debaixo d'água. Tornei a subi-la para as mãos, à espera, de Pamela. Ela despejou o xampu e começou a esfregar. Senti as pontas de suas unhas compridas roçarem no couro cabeludo. Chegou a doer em alguns momentos, mas não me queixei. Quando acabou, ela me disse para afundar de novo. Fiquei surpresa quando suas mãos acompanharam e continuaram a massagear o couro cabeludo. Permaneci debaixo d'água até que meus pulmões começaram a doer. Levantei a cabeça ofegante.
Pamela abriu a ducha do chuveiro e me enxaguou a cabeça. Depois, voltou ao balcão para escolher um condicionador. Espalhou-o nos meus cabelos e disse-me para deixar assentar por algum tempo.
— Nunca antes passei tanto tempo lavando os cabelos — confessei.
Parecia muito trabalho, de qualquer forma; e não podia imaginar por que era importante que os cabelos tivessem a textura de seda em vez de palha. Mas não disse nada.
— Tem de fazer isso todos os dias, daqui por diante. Deve se esforçar para não perder um único dia, mesmo que esteja doente. Uma beleza como a sua nunca pode ser considerada um fato consumado, Brooke. Já ouviu falar alguma vez de antitoxinas?
Balancei a cabeça.
— As toxinas a envelhecem, mas há antitoxinas para combatê-las e nos impedir de envelhecer depressa demais. Tenciono nunca ter a aparência da minha idade, mesmo que tenha de recorrer à cirurgia plástica. Sei o que está pensando — acrescentou ela, antes que eu dissesse qualquer coisa. — Pensa que já fiz uma cirurgia plástica, não é?
Balancei a cabeça.
— De que outra forma eu poderia parecer uma adolescente, ou uma mulher que acaba de fazer vinte anos, certo?
— Nem mesmo sei o que a cirurgia plástica faz — admiti.
Mas Pamela não prestava atenção ao que eu dizia.
— A cirurgia plástica é o último recurso artificial. Serve para as preguiçosas. Se você se mantém dentro de sua dieta, faz exercícios e cuida da pele como nós duas fazemos, não há razão para se submeter ao bisturi.
— Posso sair agora?
Não queria interrompê-la, mas a água começava a ficar fria.
— Como?
— Já posso sair da banheira?
— Primeiro queremos enxaguar o condicionador. — Pamela tornou a pegar a ducha do chuveiro. — Daqui por diante, poderá fazer isso pessoalmente. Se estiver cansada, pode pedir a Joline.
— Esta é a primeira vez em que alguém lava meus cabelos, ao que consigo me lembrar. Mas imagino que faziam isso quando eu era bebê.
— Você é sempre um bebê quando chega o momento de ser mimada, especialmente pelos homens. Nunca, mas nunca mesmo, deixe-os acreditarem que a tornaram feliz.
— Por que não?
— Eles pensarão que já fizeram o suficiente. E nunca são capazes de fazer o suficiente. Esse é o nosso lema. Muito bem, pode sair.
Levantei-me no mesmo instante.
— Como eu pensei. Você tem um corpo elegante, sem um único grama de gordura infantil. — Pamela me deixou de pé ali, nua, sem me entregar a toalha. — Mas é um pouco mais musculosa do que eu esperava. E não queremos um corpo tão duro.
Ela beliscou o músculo de minha coxa, enquanto acrescentava:
— Os homens gostam que suas mulheres sejam macias como mulheres.
Pamela finalmente me entregou a toalha. Enrolei-a depressa no corpo, passei a me enxugar, enquanto ela me estudava. Olhou para as minhas roupas.
— Você não usava sutiã, Brooke?
— Não.
— Seus seios começam a se formar. Nunca é cedo demais para uma mulher se preocupar com a flacidez. A primeira coisa que faremos amanhã de manhã será lhe comprar mais roupas de baixo. Sente-se que vou enxugar e escovar seus cabelos.
— Obrigada.
Sentei com a toalha ainda enrolada no corpo. Pamela ligou o secador e passou a escova por meus cabelos.
— É bom ter alguém para cuidar e desenvolver. É como se eu estivesse começando tudo de novo. Claro que eu não poderia fazer com qualquer uma. Só podia ser com uma jovem que prometesse. Estou surpresa com o tamanho de seus ombros. Não sei por que nunca percebi que eram tão largos.
— Meus ombros?
— Como fez para que se tornassem tão... viris? Não faz aqueles exercícios com pesos, não é?
Sacudi a cabeça. O que havia de errado com os meus ombros fortes?
— Suponho que é uma coisa que simplesmente aconteceu. Mas tenho certeza de que vai mudar, assim como seus hormônios. — Uma pausa e ela sussurrou em meu ouvido: — E sempre podemos ajudá-los.
— Podemos fazer o quê?
— Fazer com que nossos hormônios femininos sejam mais eficientes. Tenho algumas pílulas, suplementos nutricionais fornecidos por minha nutricionista. Eu lhe direi tudo a respeito. Ah, há tanta coisa para fazer! Não é divertido? Já reparou como seus cabelos melhoraram muito? Vamos, pode tocar.
Foi o que fiz. Os cabelos pareciam de fato mais macios. Acenei com a cabeça.
— Vai se tornar uma competidora muito mais depressa do que imagina, Brooke.
— Competidora?
— Nos concursos de beleza. — Pamela riu. — Talvez eu a inscreva no concurso de Miss Adolescente de Nova York este ano... Boa idéia, vou inscrevê-la. E tenho certeza de que ganhará. Pense no que eles dirão.
Ela deu um passo para trás. As manchetes surgiram diante de seus olhos, ajeitadas com movimentos da escova.
— Filha de Pamela Thompson eleita Miss Adolescente de Nova York!
Olhei para seu reflexo no espelho. Pamela ainda fantasiava alguma cena num palco de concurso de beleza. Meus olhos voltaram para a latrina.
— O que é aquilo? — perguntei.
— Como? — Pamela olhou. — Ah, é um bidê. Quer dizer que não sabia o que é isso?
Balancei a cabeça e ela acrescentou:
— Pobre coitada... Serve para nos manter limpas nas partes íntimas. Deve se lavar todos os dias. As mulheres não compreendem como podem... cheirar. Olhei para o bidê, os olhos arregalados.
— É uma sensação agradável. — Pamela riu. — Os homens querem que essa seja a parte mais saudável de nossos corpos. Mas aposto que você já sabia de tudo isso, não é?
— Não, não sabia.
— Não mesmo? — Ela ficou aturdida. — Ainda é virgem?
— Sou, sim — murmurei, espantada por ela perguntar.
— Que idéia maravilhosa, ser virgem até ganhar seu primeiro grande concurso. Adorei. Deve me prometer que não vai se entregar a qualquer garoto, Brooke. O sexo é seu tesouro. Deve protegê-lo como o dragão que defende os potes de ouro em sua caverna, entende? É para isso que servem as mães. E eu sou uma mãe.
Ela se contemplou no espelho.
— Quem, em seu juízo perfeito, olharia para mim e pensaria, sequer por um momento, que tenho idade para isso?
Pamela riu de novo e voltou a olhar para as minhas roupas.
— Temos de nos livrar dessas coisas. Lamento que você as tenha trazido para cá.
— Do que está falando?
Ela pegou minha camiseta e o jeans como se estivessem infectados.
— Ainda têm o mau cheiro daquele lugar horrível. De qualquer maneira, detesto jeans numa garota.
Pamela abriu uma gaveta e tirou uma tesoura. Antes que eu pudesse protestar, cortou o fundilho da calça. Depois largou-a no chão, junto com a camisa.
— Deixe aí para Joline recolher e jogar no lixo.
Ela lavou as mãos como se tivesse manuseado roupas contaminadas, depois sorriu para meu rosto chocado.
— Temos de escolher agora a roupa que você usará no jantar. Queremos parecer bonitas juntas quando entrarmos na sala e Peter levantar os olhos da mesa. Queremos deixá-lo impressionado. Daqui por diante, cada vez que entrarmos numa sala juntas cativaremos quem estiver lá. Fomos postas neste mundo para fazer isso.
Antes de segui-la para o meu quarto, fui até o jeans e peguei a fita para os cabelos, agradecida ao constatar que não fora cortada ao meio. Enquanto Pamela examinava todas as minhas novas roupas, guardei a fita numa gaveta da cômoda. Tinha medo de que ela pudesse querer jogá-la fora também.
— Não, não, não, talvez, sim — murmurou ela, tirando o vestido azul do cabide. — Experimente isto.
Ela me entregou o vestido e recuou. Por que tinha de me ver experimentá-lo de novo? Afinal, já me vira com o vestido na loja. Sabia como parecia.
— Não acha que deve vestir a calcinha primeiro? — indagou Pamela, quando larguei a toalha e fiz menção de pôr o vestido.
Acenei com a cabeça e fui pegar uma calcinha na gaveta da cômoda. Depois de pô-la, enfiei o vestido pela cabeça e puxei-o para baixo. Ajustava-se com perfeição. Tinha alças largas e uma gola em forma de U. Virei-me para fitá-la. Pamela fez uma careta.
— Não sei por que não notei antes, mas seus ombros e braços são tão...
— O quê?
— Viris. Terei de conversar com meu médico a respeito. Deve haver algum meio de atenuar isso. Pode entender agora por que as roupas são como coisas vivas?
Balancei a cabeça.
— As roupas assumem personalidades diferentes em ambientes diferentes. Na loja de departamentos, sob aquelas luzes fortes, as cores pareciam desbotadas, a impressão que se tinha era uma. Aqui, num cenário mais aconchegante, num quarto ou numa sala de jantar, elas se tornam diferentes. Eu não teria comprado esse vestido se o visse aqui. Daqui por diante, mandarei trazer as roupas para você experimentar em casa.
— Trazer para cá? Para eu experimentar no meu quarto?
— Claro. Fizemos essas primeiras compras às pressas. Mas... — Pamela recuperou-se com um sorriso. — ...não há mal nenhum. Compraremos mais roupas. Isso é tudo. Também tenho um vestido azul para usar. Qual é a sua experiência com maquilagem?
— Já passei batom algumas vezes.
— Batom? — Ela riu. — Sente-se à mesa de maquilagem. Vamos, depressa. Ainda tenho de arrumar meus cabelos e me maquilar.
Por que tínhamos de nos vestir com tanta elegância para o jantar? Haveria outras pessoas presentes? Seria como uma festa?
Sentei-me, e Pamela se aproximou por trás. Virou o espelho de aumento e a luz dissipou as sombras em meu rosto. Depois, comprimiu as palmas contra as minhas faces, virou meu rosto de um lado para o outro, estudando-o. Acenou com a cabeça.
— Agora que a vejo sob a luz, percebo onde temos de fazer seu nariz parecer menor. Quero realçar seus olhos e engrossar um pouco os lábios.
Ela começou a trabalhar como se me preparasse para um baile. A surpresa em meu rosto era fácil de constatar. Nunca fora muito boa em disfarçar meus sentimentos. Sempre que achava que alguma coisa era uma idiotice, os cantos da boca se contraíam num sorriso que me denunciava. Uma das professoras na escola primária, a sra. Carden, dissera-me certa ocasião que meu rosto era como um quadro-negro, em que os pensamentos surgiam em letras brancas e claras.
— Cada vez que sair deste quarto, Brooke, ainda mais quando tiver de sair de casa, lembre-se de que está no palco. Uma mulher, uma mulher de verdade, está sempre representando. Cada homem que olha para você é sua audiência. Quer gostemos ou não, somos atraentes, o que significa que os olhos dos homens são como pequenos refletores sempre focalizados em nossos rostos e corpos.
Pamela sorriu e acrescentou:
— E mesmo que esteja casada há séculos ou com um namorado firme há meses, ainda precisa surpreendê-lo com sua elegância e beleza cada vez que ele a contemplar, entende?
— Por quê?
— Por quê? — Ela parou de trabalhar e pôs as mãos nos quadris. — Por quê? Porque se não fizermos isso, eles poderão olhar para outro lado... e porque queremos ser sempre o centro de suas atenções.
Pamela recomeçou a me maquilar, enquanto continuava a falar:
— Espere até estar lá fora, competindo. Vai ver como pode ser terrível. É um mundo brutal e implacável quando chega o momento de conquistar as afeições dos homens. Cada mulher, quer queira ou não admitir, está competindo com todas as outras mulheres. Quando entro numa sala, quem você pensa que me olha primeiro? Os homens? Não. Suas esposas me olham e tremem.
Uma pausa e ela concluiu:
— Tenho o pressentimento de que a encontrei bem a tempo. Ainda é bastante jovem para desenvolver bons hábitos. Comprima os lábios um contra o outro. Está bom assim. E agora vamos ver o resultado.
Pamela virou minha cabeça para o espelho e tornou a se postar atrás de mim. Suas mãos me ajeitaram para que pudesse ver meu perfil.
— Percebe a diferença? Entrou aqui uma criança, mas agora parece uma moça. É o que farei com você.
Eu me contemplava no espelho, aturdida. Com o delineador dos olhos, o ruge, o batom, parecia muito diferente, mas não tinha certeza se gostava. Sentia-me ridícula. Mas tinha medo de fazer qualquer comentário, um pavor intenso de que o quadro-negro no rosto revelasse minha desaprovação. Se isso aconteceu, Pamela não percebeu, talvez porque tivesse coberto o quadronegro com maquilagem.
— Não pense que tem de passar muito tempo ao sol para ter essa tonalidade de pele, Brooke. A luz do sol é devastadora. Os terríveis raios ultravioletas nos envelhecem. De qualquer forma, não precisamos pegar sol com essa maquilagem. Agora você está pronta. Venha para o meu quarto. Ficaremos conversando enquanto me visto.
Levantei-me e segui-a.
— Espere um pouco! — Pamela falou com uma rispidez que eu não ouvira antes. — Não planejava andar por aí descalça, não é?
A maneira como ela disse descalça fez com que parecesse um pecado.
— Como? Ahn...
Baixei os olhos, constrangida.
— Ponha os sapatos que combinam com o vestido. Fui até o closet e olhei para as dezenas de pares que ela me comprara.
— O segundo par da direita — disse Pamela, impaciente. — Tem muito para aprender. Ainda bem que eu apareci em sua vida.
Pus os sapatos e segui-a. Lancei um olhar para o banheiro, vendo a camiseta e o jeans rasgado no chão, onde ela os jogara. Era como me despedir de uma velha amiga. Naquelas roupas caras, os cabelos arrumados, toda maquilada, eu tinha a sensação de que traíra alguém. A mim mesma?
— Vamos logo — pressionou Pamela, quando hesitei. — Peter já está esperando lá embaixo. Claro que devemos sempre manter os homens esperando. É uma regra fundamental. Nunca chegue na hora... e nunca, mas nunca mesmo, antes da hora marcada. Quanto mais fazemos os homens esperar, mais suas expectativas aumentam... e maiores são os aplausos em seus olhos. Agora, vamos andando. Preciso de tempo para me fazer mais bonita também.
Segui apressada em seu encalço. Quando ela abriu a porta dupla do quarto principal, senti que a respiração era expelida abruptamente dos pulmões e ficava presa na garganta, como uma enorme bolha de sabão. Não era um quarto; era uma autêntica casa à parte!
Havia um patamar comprido, acarpetado, levando a dois degraus. À direita havia uma sala de estar, com vários móveis e um aparelho de televisão. À esquerda, um quarto que era sem dúvida digno de uma rainha. Era redondo e tinha uma lareira de mármore branco, mas o que mais me espantou foi a cama, porque também era redonda, com almofadas enormes e fofas. O teto por cima era de espelhos. Havia espelhos por toda parte. Fiquei boquiaberta.
Pamela reparou em meu espanto e soltou uma risada.
— Talvez agora você compreenda o que eu quis dizer quando falei que estávamos sempre no palco, sempre representando, Brooke. — Ela olhou para a cama e depois para o teto. — Sabe qual é a sensação?
A voz era mais suave agora, mas ainda transbordava de paixão. Sacudi a cabeça.
— É como estar em seu próprio filme. E quer saber de outra coisa?
Esperei, com medo de respirar.
— Somos sempre as estrelas — arrematou Pamela, rindo.
O mundo inteiro é um palco
Pamela me fez sentar ao seu lado, em sua mesa de maquilagem. Fora projetada para que os espelhos não ficassem apenas na sua frente. Seguiam a curva da parede e cercavam-na. Ela podia olhar para a esquerda ou direita e ver seu perfil, sem mexer a cabeça. Comentou que era importante saber como parecia por todos os ângulos, todos os lados, especialmente por trás.
— Quando eles descobrem como sou fabulosa por trás — explicou ela —, ficam morrendo de vontade de ver meu rosto.
Pamela me falava pelo espelho, em vez de me fitar diretamente. Era como se estivéssemos olhando uma para a outra através de janelas.
— Sempre me chame de Pamela, Brooke. É maravilhoso ter uma filha, e quero ser conhecida como sua mãe. Mas prefiro que as pessoas pensem que parecemos mais como irmãs. Não concorda?
Acenei com a cabeça, embora não tivesse certeza. Tinha amigas no orfanato, garotas que eram tão parecidas comigo que poderíamos passar por irmãs. Partilhávamos roupas, fazíamos os deveres da escola juntas, às vezes conversávamos sobre os meninos e outras garotas na escola, que costumavam nos esnobar porque éramos do orfanato. Batalhávamos juntas, sofríamos juntas. Pela primeira vez, pensei na vida que deixara para trás e como sentiria saudade.
Mas o que eu nunca tivera era uma mulher mais velha, maternal, a quem poderia recorrer, não com queixas, mas com perguntas, as perguntas mais íntimas, as perguntas que não me sentia à vontade para fazer a conselheiras ou professoras. Não ser capaz de ter alguém assim me fazia sentir ainda mais sozinha, ouvindo os ecos dos meus próprios pensamentos.
— Essas mulheres que têm filho cedo logo se tornam matronas, mesmo quando mal saíram da casa dos vinte anos. É tudo uma questão de atitude... e as atitudes são muito importantes, Brooke. Terão um efeito direto em sua aparência. Se você pensa em si mesma como mais velha, vai parecer mais velha. Penso em mim mesma como me tornando ainda mais bela, mal começando a desabrochar.
Pamela sorriu para sua imagem no espelho, depois me fitou.
— Não quero que você pense que eu não queria ter filhos. Só que não podia tê-los enquanto participava de concursos e trabalhava como modelo. Ter filhos muda o nosso corpo. Agora... — Ela fez uma pausa, sorrindo. — ...ainda tenho meu corpo e também tenho uma filha.
Ela limpou a fina camada de lama marrom do rosto com uma esponja úmida, com o maior cuidado. Observou-se atentamente por um momento. Inclinou-se para o espelho. O indicador direito subiu para o alto da face esquerda, como se tivesse acabado de ser picada por um mosquito. Ela tocou em sua pele e virou-se para mim.
— Está vendo uma pequena vermelhidão aqui? — indagou ela, apontando o local.
Olhei bem.
— Não.
Pamela voltou ao espelho, estudou-se de novo, depois balançou a cabeça.
— Não é uma coisa que um olho destreinado possa perceber, mas há um ponto ressequido aqui. Cada vez que saio, volto para casa com alguma coisa negativa.
Ela correu os olhos pelas fileiras de potes com cremes e loções para a pele. Os olhos tornaram-se um pouco frenéticos quando pegou um pote e descobriu que estava vazio.
— Mas que garota insuportável! Eu disse a ela para manter esta mesa sempre estocada, para verificar todos os dias e substituir qualquer coisa que estivesse vazia ou quase vazia!
Pamela levantou-se. Foi até o closet à sua direita e abriu a porta. Quando deu um passo para o lado, vi que havia prateleiras e mais prateleiras com cosméticos. Parecia até que Pamela tinha sua loja particular. Tirou um pote de uma prateleira e voltou à mesa de maquilagem.
— Isto tem ingredientes herbáceos. Serve para reabastecer os óleos naturais do corpo.
Enfiou os dedos no pote, espalhou sobre o rosto a substância branca, parecendo cola, esfregou gentilmente contra a pele. Depois, limpou o resíduo e tornou a se examinar.
— Pronto! — Pamela virou-se para mim. — Percebe a diferença?
Não vi qualquer mudança, mas acenei com a cabeça assim mesmo.
— A pele é muito sensível às mudanças atmosféricas, diz meu dermatologista. Fazia muito calor naquele orfanato, por exemplo. Depois fomos para a loja de departamentos com seu ar-condicionado central. O próblema é que os filtros do sistema não funcionam direito. Há partículas flutuando no ar. Grudam na pele e começam a romper a textura. Pamela fez uma pausa.
— A água nesta casa é especialmente filtrada. Os minerais mais prejudiciais são removidos. Assim, você não precisa se preocupar com seus banhos de banheira e chuveiro.
Nunca antes me ocorrera ter qualquer preocupação com um simples banho.
— Tudo aqui é filtrado e bem filtrado, como o sistema de ar-condicionado e a calefação. As casas das outras pessoas têm poeira demais. Às vezes sinto vontade de usar uma máscara cirúrgica quando sou convidada para ir à casa de alguém, mesmo quando se trata de algum dos clientes mais ricos de Peter. Eles não sabem de nada... ou não se importam com os cuidados mínimos de beleza.
Pamela suspirou ao começar a escovar os cabelos.
— Estas pontas começam a quebrar de novo. Eu disse ao meu cabeleireiro que ele não está aparando direito. Droga!
Ela ficou imóvel por um instante.
— Está vendo isto? — Pamela apontou para seu rosto. — Sempre que fico transtornada, esta ruga persistente aparece sob meu olho direito. Percebe aqui?
Havia uma prega mínima em sua pele, mas eu nunca diria que se tratava de uma ruga.
Pamela respirou fundo, fechou os olhos, permaneceu sentada em silêncio por um longo momento. Esperei até que ela tornasse a abrir os olhos.
— Ansiedade, irritação, preocupação e estresse aceleram o processo de envelhecimento. Meu instrutor de meditação me ensinou a evitar tudo isso. Devo entoar um mantra e dizer a mim mesma que não ficarei transtornada. Mas às vezes é muito difícil. Ela me fitou atentamente.
— Não deve contrair os olhos desse jeito, Brooke. Vê como sua testa fica enrugada? Nunca é cedo demais para pensar a respeito. Precisa usar óculos?
— Acho que não.
— Não se preocupe se precisar. Providenciaremos as melhores lentes de contato. Peter usa lentes de contato.
— É mesmo?
— É um homem bonito, seu novo pai, não acha? — perguntou ela, com um sorriso orgulhoso. — Não casei apenas por dinheiro e posição. Casei com um homem bonito.
— Ele é mesmo bonito.
— E é um bom amante também. Um amante atencioso. Nunca sequer pensa em me beijar antes de se barbear. A barba de um homem pode causar uma devastação em sua pele. Se um homem for egoísta, se só se importar com sua própria satisfação sexual, você vai se sentir usada. Não pertenço a ninguém. Não sou um brinquedo de ninguém.
Pamela falou com veemência, como se alguém tivesse acabado de acusá-la de ser assim. Sempre que a raiva se estampava em seu rosto, as narinas se dilatavam, os olhos davam a impressão de que as chamas de pequenas velas brilhavam por trás. Ela fez uma pausa e tornou a me fitar com intensidade.
— O quanto você sabe sobre sexo? Sei que é virgem. Foi o que me disse, e acredito em você. Espero que nunca venhamos a mentir uma para a outra. Mas já chegou perto de perder a virgindade? Teve algum namorado firme?
Ela disparava as perguntas como se fossem tiros de espingarda.
- Nunca tive um namorado.
A incredulidade dominou o rosto de Pamela.
— Pelo que vi, os quartos no orfanato eram bem próximos. Rapazes e moças partilhavam várias coisas... e não havia muita supervisão, não é? Portanto, devia haver muitas oportunidades para sacanagens. Pode ser franca comigo, Brooke. Sou sua mãe agora. Ou sua mentora, se preferir.
— Juro que nunca tive um namorado.
— Mas sabe das coisas, não é? Sabe o que os homens querem, o que sempre querem, não importa como se apresentem ou o que prometam. Os homens só vêem você como uma coisa e uma coisa apenas, quer seja uma rainha do baile de formatura ou integre o Supremo Tribunal Federal, Brooke. Sabe o que é?
Balancei a cabeça.
— Um recipiente para o prazer em que podem mergulhar.
Pamela voltou a se maquilar.
— Satisfazendo suas pequenas lunetas — murmurou ela.
— Suas o quê? Ela riu.
— Lunetas. — Virou a cabeça para me fitar. — Não me diga que nunca viu nenhuma.
— Claro que já vi — respondi, recordando as diferentes ocasiões em que vira um dos meninos no banheiro.
— Então sabe que eles se projetam como uma luneta quando ficam excitados. Pelo menos é assim que sempre penso neles. — Pamela riu de novo. — Ah, não vai ser divertido para mim experimentar tudo de novo por seu intermédio?
Ela voltou a ficar séria e acrescentou:
— Por isso é tão importante que você faça tudo o que eu disser e se beneficie do meu conhecimento especialmente em matéria de homens. Afinal, o que mais pode ter a mesma importância?
Pamela deu de ombros. Correu os olhos pelo quarto enorme e suntuoso.
— Nunca se esqueça que foi meu conhecimento que conseguiu tudo isso. — Ela virou-se para mim e acrescentou, com tanta intensidade nos olhos que até me assustou: — E com a minha ajuda, você também vai conseguir tudo o que quer.
Peter estava sentado em silêncio na sala de jantar, à nossa espera. No instante em que passamos pela porta, ele se levantou, radiante de felicidade.
— Você pode mesmo fazer maravilhas, Pamela! — exclamou ele. — Olhe só para ela! É sem dúvida uma versão mais jovem de você.
A expressão de satisfação de Pamela se tornou instantaneamente gelada.
— Não tão mais jovem, Peter.
— Não, não, claro que não. Acontece apenas que ela entrou na casa como uma menina, e você a transformou em uma jovem dama numa questão de horas.
Ele puxou a cadeira para Pamela, que se sentou. Fez a mesma coisa para mim. Sentei na frente de Pamela, à esquerda de Peter, enquanto ela ficava à direita. Ainda restava tanto espaço à mesa que me senti contrafeita.
- Tenho muita coisa para ensinar a Brooke — declarou Pamela.
— Foi o que eu disse a ela, ressaltando que não havia mulher melhor para a função. Não é mesmo, Brooke?
Acenei com a cabeça. Pamela se acalmou. Relaxou e sorriu. Uma música suave parecia sair das paredes. Sacket entrou, com uma garrafa de champanhe num balde com gelo, que pôs ao lado de Peter.
— Já tomou champanhe alguma vez antes, Brooke? — perguntou Peter.
— Não — respondi. — Tomei um gole de cerveja uma vez.
Ele riu.
Pamela contraiu os lábios num pequeno sorriso. Dava a impressão de que era capaz de controlar cada movimento em seu rosto, por menor que fosse, cada feição se movendo independente das outras.
Peter acenou com a cabeça para Sacket, que serviu em meu copo a mesma quantidade de champanhe que pôs nos copos de Peter e Pamela. Depois, ele repôs a garrafa no balde e se retirou. Peter levantou seu copo, devagar.
— Vamos fazer um brinde, Pamela?
— Claro.
— À nossa nova filha, à nossa nova família... e às lindas mulheres em minha vida.
Todos tocamos o copo. Eu só vira a cena em filmes, e por isso fiquei emocionada. Tomei um gole de champanhe um pouco depressa demais. Comecei a tossir.
— Tomou demais — disse Pamela. — Apenas deixe que os lábios encostem no líquido. Só permita que uma quantidade mínima entre na boca. Tudo o que fizer daqui por diante deve ser feminino... e para ser feminina você deve ser delicada e graciosa.
Amassei o guardanapo com a mão e limpei a boca.
— Não, não, não! — gritou Pamela. — Encoste o guardanapo de leve, Brooke. Isto não é uma carrocinha de cachorro-quente; e mesmo que fosse, você não faria isso. É vulgar demais, muito viril.
Ela sacudiu a cabeça para se livrar do sentimento.
— Faça de novo, Brooke. Até acertar. Assim está bom. — O comentário veio quando repeti o ato tão de leve que o guardanapo mal tocou nos lábios. — Perfeito. Está vendo, Peter?
— Claro. Ela vem se saindo muito bem. Gostou do champanhe, Brooke?
Dei de ombros.
— Pensei que era mais doce.
— Não é uma Coca-Cola — interveio Pamela. — Além do mais, o açúcar é terrível para a sua pele. Verá que não temos chocolate em casa. As sobremesas, quando as temos, são sempre de gourmet. Normalmente tomamos o maior cuidado com as calorias. Mas como esta noite é especial, teremos certas indulgências.
Joline entrou com a salada. Observei Pamela para ver que garfo usar, porque havia três. Peter reparou como eu estudava cada movimento deles e sorriu.
— Cada momento de sua vida nesta casa será uma experiência de aprendizado — prometeu ele. — Basta seguir as instruções de Pamela, e garanto que fará tudo certo.
A salada foi seguida por um prato de lagosta. Sacket trouxe o vinho, que também tive permissão para tomar. Tudo estava delicioso. A sobremesa foi uma coisa chamada creme brülée. Eu nunca ouvira sequer falar, muito menos provara, mas era maravilhosa. Como todo o resto.
Depois, fomos para a sala íntima, a fim de conversar. Mas Pamela se mostrava irrequieta. Pediu licença e subiu. Pensei que devia haver alguma coisa errada. Quando Peter foi chamado ao telefone, resolvi ir vê-la. Subi a escada apressada e bati em sua porta. Ela não respondeu. Ouvi um som que parecia ser de alguém vomitando. Abri a porta e espiei.
— Pamela? — chamei. — Você está bem?
Os sons de vômito se tornaram ainda mais altos, mas depois cessaram abruptamente. Ouvi água correndo.
No instante seguinte, ela saiu do banheiro. Tinha o rosto vermelho.
— Você está bem?
— Qual é o problema, Brooke?
— Tive a impressão de ouvir alguém vomitando.
— Estou bem. Foi Peter quem a mandou?
— Não.
— Estou bem — repetiu ela. — Desça agora e continue a aproveitar a noite. Descerei num instante. Vá logo.
Saí do quarto, fechando a porta sem fazer barulho.
Se ela estava passando mal, por que se sentia envergonhada? Não dava para entender.
Minutos depois ela se juntou a Peter e a mim. Parecia tão perfeita quanto no momento em que descera para jantar. Não passara mal, com toda certeza, pelo menos não como as pessoas que eu já vira passando mal. Peter também não notava nada errado.
Peter me fez muitas perguntas sobre minha vida no orfanato. Pamela mostrou-se mais interessada pelo que eu lembrava de minha mãe.
— Não sei de nada. Tudo que tenho para lembrá-la é uma fita rosa desbotada que estava em meus cabelos quando me deixaram no orfanato.
— Ainda tem essa fita? Onde? Não a vi quando veio para cá.
Pamela lançou um olhar apreensivo para Peter.
— Estava no bolso do meu jeans. Guardei na gaveta da cômoda.
— Por que quis guardar uma coisa assim?
— Não sei — respondi, quase em lágrimas.
— Não é nada demais, Pamela — interveio Peter, dando de ombros. — Apenas uma lembrança.
Mas ela parecia infeliz com o fato. Recostou-se na cadeira lentamente.
— Há uma porção de histórias de horror sobre famílias que adotam uma criança — murmurou Pamela. — Anos depois, a mãe biológica, uma mulher que nada teve a ver com a criação da criança, aparece e reivindica seus direitos.
— Isso não vai acontecer conosco — assegurou Peter. — Ela nem se lembra do rosto da mãe. Não é mesmo, Brooke?
— É, sim.
— Não deveria guardar coisa alguma, nem sequer uma fita — declarou Pamela, furiosa. — A mulher se livrou de você como... como se fosse um filhote de cachorro indesejável.
— Está deixando-a perturbada, Pamela — protestou Peter, gentilmente.
Ela me fitou e tornou a relaxar.
— Só estou preocupada com você, Brooke. Quero que seja feliz conosco.
Tentei sorrir. O dia inteiro fora sufocante, repleto de surpresas e emoções, a tal ponto que eu mal conseguia manter os olhos abertos agora. Peter riu e sugeriu que eu fosse me deitar, para uma boa noite de sono.
— E é apenas o começo, Brooke — comentou ele. — Apenas um gostinho de tudo que vai conhecer.
— Subirei com você para ensinar a maneira certa de tirar a maquilagem — disse Pamela. — Também quero lhe dar uma coisa para passar no rosto.
Passar no rosto? — repeti, confusa. — Para que, se vou dormir agora?
— É quando seu corpo tem melhores condições de se recuperar, Brooke. — Vai querer acordar com uma aparência linda, não é mesmo?
Peter soltou uma risada.
— Escute sempre o que Pamela diz, Brooke. Já deve ter percebido que ela sabe o que fala.
Pôr maquilagem todos os dias, lavar com sabonetes vegetais, filtrar o ar, comer uma dieta especial, evitar aborrecimentos, entoar mantras, passar alguma coisa no rosto para dormir. Parecia muito esforço. Se era tudo isso que eu tinha de fazer para ser bonita, pensei, preferia ser feia como antes.
Mas nunca diria isso, não se quisesse que Pamela me amasse como filha... ou mesmo como uma irmã.
Era algo de que tinha certeza, mas não sabia que tudo o que eu sabia não era suficiente. Nem de longe.
Segredos
Durante os dias seguintes, Pamela assumiu o comando da minha vida, como se eu não tivesse nada mais a dizer a respeito. Decidia minha agenda para quase todos os momentos do dia, não deixava nada ao acaso. O plano era me matricular na Escola Feminina Agnes Fodor, uma escola particular apenas para os que nasciam em berço de ouro. Mas antes que eu fosse levada à escola para ser matriculada, Pamela queria que eu aprendesse o suficiente sobre postura, etiqueta e elegância ”para enganar aquelas garotas de sangue azul”.
— As garotas de sangue azul são aquelas que nascem na riqueza — explicou ela —, cujas famílias remontam às pessoas mais respeitáveis e importantes em nossa história social e política. Aprendem desde o dia em que nascem a se comportar e conduzir na sociedade. É assim que quero que você pareça.
— Mas não sou uma garota de sangue azul — ressaltei.
— É, agora. Peter e eu pertencemos às melhores famílias. Você terá nosso nome. Mais importante ainda, quando alguém olhar para você, estará olhando para mim. Entende?
Acenei com a cabeça, mas não gostei. Não me agradava virar de repente uma garota de sangue azul. Precisava de mais tempo para me acostumar a ter criados minha disposição, mais tempo para me orientar numa casa que mais parecia um palácio. Não gostava que Joline preparasse meu banho todas as noites, aprontasse minha camisola e chinelas. Sentia-me como uma inválida. Pamela determinava que cores eu vestiria, como devia escovar os cabelos. Quando falei que nunca usara esmalte nas unhas, ela me fitou como se eu fosse uma criatura de outro mundo.
— Nunca? Não posso acreditar.
Quando ri da idéia de pintar as unhas dos pés, ela ficou zangada.
— Não tem nada de engraçado, Brooke. É tão sério quanto cuidar de qualquer outra parte do seu corpo.
— Mas quem verá minhas unhas dos pés?
— Não é importante quem mais poderá ver. Você tem de compreender isso. Somos belas para nós mesmas, para nos sentirmos especiais... e quando nos sentimos especiais, os outros passam também a nos ver e considerar como especiais.
— Não compreendo por que seríamos tão especiais.
— Suas roupas, penteado, maquilagem, postura e sorriso, tudo deve estar coordenado, funcionar como um conjunto. As mulheres como nós são autênticas. obras de arte, Brooke. É o que nos torna especiais. Compreende agora?
Eu não compreendia, mas sabia que ela ficaria furiosa se não desse a impressão de que entendera tudo.
A única vez que ela brigou comigo ocorreu três dias depois da minha chegada. Perguntei se podia ligar para alguém no orfanato. Queria falar com Brenda Francis, minha única amiga lá. Sabia que ela sentia a minha falta. Eu era praticamente a única pessoa com quem ela
falava. Por isso, queria saber como ela estava. Partira tão depressa que nem tivéramos tempo de nos despedirmos.
— Absolutamente não! — disse Pamela, categórica. — Deve tirar de sua memória para sempre aquele lugar e todas as pessoas que conheceu lá!
Uma pausa e ela acrescentou:
— Muito em breve você vai esquecer por completo que já foi uma órfã.
Ela rangeu os dentes e fez uma careta, como se pronunciar a palavra órfã enchesse sua boca de óleo de rícino.
No fundo do coração, eu tinha uma grande preocupação: se minha nova mãe achava os órfãos tão repulsivos, como poderia algum dia me amar? Talvez ela também se preocupasse com isso, sendo o motivo pelo qual se mostrava tão empenhada em me transformar numa nova pessoa, o mais depressa possível. Para o bem de nós duas, pensei que deveria tentar com todo afinco.
A primeira coisa que fizemos, depois que Pamela me instruiu sobre a maquilagem da manhã, foi ir ao shopping e comprar mais roupas para mim. No departamento de lingerie, ela escolheu um sutiã com enchimento. Senti-me ridícula ao experimentá-lo, e ainda mais quando contemplei os contornos exagerados no espelho. Parecia anos mais velha apenas por essa mudança simples. Queixei-me que não mais parecia como era de fato.
— É exatamente o que quero para você. Conheço os juizes de concursos. Quando você participa de um concurso de Miss Adolescente isso ou aquilo e parece mais velha, todos ficam impressionados, os homens em particular.
Ainda me sentia surpresa por ela realmente acreditar que eu poderia participar de um concurso de beleza. O que Pamela via em meu rosto que eu não conseguia perceber? Que ninguém mais percebia? Julgava-me desgraciosa, mesmo com a aparência de seios maiores. Os movimentos com aquele sutiã me lembravam o uso de uma couraça. Sentia-me corpulenta e tinha a sensação de que todos me olhavam, porque o peito não combinava com o resto do corpo.
Antes de deixarmos a loja, ela me comprou mais meia dúzia de conjuntos de saia e blusa, três pares de sapatos para combinar com os conjuntos, um colar, três pares de brincos e um lindo anel de ouro e pequenos diamantes. Também marcou hora para que meus cabelos fossem aparados e penteados por seu cabeleireiro, no dia anterior à minha ida à escola para ser matriculada.
Ao voltarmos para casa, minhas aulas de etiqueta começaram, embora Pamela me dissesse que cada momento em sua companhia seria como cursar uma escola de elegância. Ela tinha razão nesse ponto.
Na limusine, ela me instruiu sobre a maneira correta de sentar. Demonstrou sua postura, a maneira como mantinha a cabeça erguida, como juntava as pernas, ou as cruzava da maneira apropriada.
— Vamos encontrar muitas pessoas diferentes ao longo dos próximos dias, Brooke. Sempre que eu apresentá-la a alguém, não diga ”Oi”. Sei que os jovens hoje em dia sempre usam essa expressão, mas você quer parecer refinada. Sempre responda com ”Prazer em conhecê-lo”. E sempre olhe para as pessoas, faça um contato visual. Assim a pessoa sentirá que você lhe dispensa toda a atenção possível, em vez de olhar por cima de seu ombro para algum homem deslumbrante. Também pode apertar a mão das pessoas. É apropriado. Mas será apresentada a alguns dos nossos conhecidos europeus. Eles têm o hábito de beijar o rosto. Por enquanto, siga o meu exemplo. Se o fizer, sairá tudo certo. Primeiro, aproxime a face direita da face direita da pessoa que está cumprimentando. Depois, recue um poucco a cabeça, e repita o gesto com a face esquerda. A maiooria prefere se limitar ao que é chamado de beijo no ar.
— Beijo no ar?
— Isso mesmo. Você não chega a encostar os lábbios no rosto da pessoa. Beija o ar, estalando os lábios bastante alto para parecer um beijo de verdade. — Pamela sorriu e prometeu: — Vai pegar o jeito num instante.
Tudo aquilo me parecia absurdo. Lembrava-me de algumas regras inventadas por Billy Tompson quando eu tinha dez anos e criamos nosso clube secreto no orfanato. Ele projetou un aperto de mão especial, que começava com a pressão dos polegares. Havia também senhas secretas. Talvez as pessoas refinadas e sofisticcadas também tivessem seu clube secreto.
— Também detesto a expressão ”numa boa”, outtra mania dos adolescentes hoje em dia. Quando alguém diz ”Como vai?”, você responde ”Muito bem, obrigada”. Tudo isso será muito importante quando os juizes realizarem suas entrevistas. Pois também vão julgar o comportamento e o charme.
— Que juizes?
— Os juizes do concurso. Não está escutando? Havia alguma irritação na voz de Pamela.
— Estou, sim. Mas quando entrarei num concurso?
— Não quero que participe de qualquer coisa enquanto não estiver preparada. Mas creio que o primeiro será daqui a seis meses.
— Seis meses? E que concurso será?
— Não é um dos mais prestigiados, mas é bom para você ter sua primeira experiência. É o Miss Nova York Adolescente do Turismo. A vencedora ganha uma bolsa de estudo, não que você precise disso. Passa a representar o Estado em diversas promoções publicitárias, aparecendo em cartazes e até mesmo num vídeo. Eu gostaria que você ganhasse.
Ganhar? Eu não teria coragem para passar pela porta, muito menos entrar no palco. Mas Pamela exibia aquela expressão determinada que eu já aprendera a reconhecer; quando ela assumia a expressão, era melhor não contrariá-la.
Minha educação no que eu agora pensava como Guia de Comportamento Apropriado para Garotas de Sangue Azul continuou assim que chegamos em casa naquele dia. A tarde foi reservada para um curso de etiqueta à mesa. Subitamente, a sala de jantar transformou-se em sala de aula.
— Sente-se empertigada. — Pamela demonstrou. — Pode se reclinar um pouco para o encosto da cadeira. Mantenha as mãos no colo quando não estiver comendo. Assim, não ficará mexendo nos talheres. Detesto isso, ainda mais quando as pessoas batem com o garfo no prato ou na mesa. Uma tremenda falta de educação. Você pode, como estou fazendo agora, apoiar a mão ou o pulso na mesa, mas nunca todo o antebraço. Nunca passe as mãos pelos cabelos, absolutamente nunca. Os cabelos podem se soltar, flutuar pelo ar até os pratos ou a comida.
Ela fez uma pausa.
— Se tiver de se inclinar para a frente, a fim de ouvir a conversa de alguém, pode apoiar os cotovelos na mesa. Na verdade, como pode constatar quando faço, parece mais gracioso do que apenas se inclinar para a frente, de uma maneira estúpida. Está vendo?
— Estou, sim.
Pamela me mandou fazer tudo o que instruíra.
— Os adolescentes... — Ela pronunciou a palavra como se fôssemos animais primitivos. — ...costumam inclinar a cadeira para trás. Nunca faça isso. Já sabe que deve pôr o guardanapo no colo. Mas deve, por cortesia, esperar que a anfitriã ponha o seu primeiro. Como sou a anfitriã desta casa, em qualquer dos nossos jantares, espere por mim. Está bem? Acenei com a cabeça.
— Também não sacuda o guardanapo. Detesto isso. Alguns amigos de Peter sacodem o guardanapo com tanta força por cima do prato que até apagam as velas. São muito grosseiros.
Quando Joline começou a servir a comida, Pamela explicou:
— Assim como faz com o guardanapo, também não comece a comer antes da anfitriã. No seu primeiro dia aqui não sabia que talher usar primeiro. Sempre comece com o talher que estiver mais longe do prato. Agora, observe como corto a carne, como uso o garfo, como mastigo a comida. Não corte um pedaço muito grande. Mastigue com a boca fechada, e nunca fale com comida na boca. Se alguém fizer uma pergunta enquanto estiver mastigando, termine de mastigar primeiro e só depois responda. Se suas companhias ao jantar forem sofisticadas, saberão que devem esperar.
Pamela fez outra pausa.
— Vai descobrir na Agnes Fodor que todas as garotas seguem essas regras de etiqueta, Brooke. Não quero que se sinta inferior no refeitório da escola. Se cometer um erro, não o prolongue, está bem?
— Claro.
Eu nunca me sentira tão nervosa ao comer. Para ser franca, tinha os nervos à flor da pele. A comida fervilhava em meu estômago. Não me lembrei depois do gosto de nada.
Ao jantar, eu deveria fazer tudo para Peter ver. Olhava para Pamela depois de cada movimento, quase depois de cada mordida, a fim de verificar se ela estava satisfeita ou não. Em geral, Pamela acenava com a cabeça ligeiramente ou franzia as sobrancelhas, se alguma coisa saía errada.
— Vem fazendo maravilhas com ela — declarou Peter. — Não falei que se encontrava nas mãos de uma profunda conhecedora de elegância e beleza, Brooke?
— É verdade.
— Quase não reconheci esta garota, Pamela. É a mesma pobre coitada que trouxemos para ser nossa nova filha? Pamela, você é uma mestra nisso.
Pamela ficou radiante com o elogio. Depois, quando nós duas ficamos a sós, ela iniciou o que considerava o segundo estágio do meu desenvolvimento: como manipular os homens.
— Já reparou como Peter me elogia com freqüência? Acenei com a cabeça, porque havia notado e especulado se todos os maridos eram assim.
— Não acontece por acaso — continuou ela. — Se deixa um homem saber que espera que demonstre sua apreciação, ele vai fazer tudo para adulá-la. Sou uma profissional. Fiz da feminilidade minha profissão. Não estou dizendo que sou uma dessas criaturas da libertação feminina que aparecem nas revistas e na televisão se queixando. Elas pensam que vão conseguir o que querem com reivindicações e protestos.
Pamela sorriu.
— Só há uma maneira segura de conseguir o que você quer de um homem. Faça com que ele pense que você o considera especial, que sempre o tratará assim, se ele tratá-la também como especial. Faça-o acreditar que é seu protetor. Seja frágil, delicada. Precisa da força dele. O homem irá à loucura no esforço para protegê-la, para mantê-la feliz... e voilà, você sempre conseguirá o que quer.
Ela fez um gesto largo ao final. Depois de uma pausa, logo continuou:
— É mais fácil do que protestar. Ao mesmo tempo, você se diverte. Quem quer marchar com cartazes ao sol quente, gritando e queimando sutiãs? E quem quer parecer como elas? Algumas preferem morrer a usar batom, muito embora sejam tão pálidas que até podem passar por mortas. Espero que você compreenda o que estou dizendo, Brooke. É muito importante.
Eu compreendia e não compreendia. Os homens ainda eram um grande mistério para mim. Sentia-me mais à vontade e segura ao enfrentá-los, já que era tão forte quanto os garotos da minha idade, tão rápida num campo de jogo. Nunca me comportava como se fosse uma irmã mais fraca. Sabia que me respeitavam porque costumavam me escolher para seus times antes de alguns garotos, mas sabia que era uma coisa que Pamela não gostaria de ouvir.
— Reparou na maneira como pisquei para Peter? Quando ri, prestou atenção aos movimentos dos meus olhos e ombros? Trate de me observar em todas as ocasiões.
Eu me sentia realmente chocada. Pamela planejava mesmo cada gesto, cada movimento dos ombros, cada reação dos olhos e da boca? E se ela o fazia, será que isso era certo? Em minha opinião, ela conspirava contra Peter, enganando-o e manipulando-o. Tinha dúvidas se era alguma coisa que se fazia com a pessoa que se amava. Não podia deixar de perguntar.
— Mas Peter não faria qualquer coisa por você, de qualquer maneira, porque a ama?
Pamela soltou uma risada.
— Como acha que pode fazer alguém amá-la, Brooke? Pensa que é como no cinema ou naqueles livros românticos? Pensa que alguém olha para você, através de uma sala lotada, e é atingido por um raio? É preciso trabalho para fazer alguém amá-la. E, de qualquer forma, os homens não sabem o que querem na metade do tempo. É preciso mostrar a eles o que querem. Ela me fitava nos olhos, séria agora.
— A maioria dos homens pensa que uma linda mulher é alguém com seios grandes, os quadris balançando como o pêndulo num relógio antigo. Mas uma linda mulher é muito mais do que isso, Brooke. É preciso acalentar e desenvolver sua beleza, como estou lhe ensinando. Só assim você saberá que é especial... e todos os homens que a contemplarem também saberão.
Uma pausa e Pamela concluiu:
— Quando for especial, todos se apaixonarão por você. Poderá então escolher quem quiser. Foi o que aconteceu comigo. Também acontecerá com você, se fizer tudo o que eu mandar.
Conquistar um homem era a única razão para a nossa existência, nosso único propósito? Tive vontade de perguntar isso. Mas com tantos outros pensamentos e indagações me fazendo cócegas na língua, tratei de me conter. Preferi guardar para outra ocasião, em vez de me arriscar à sua ira e desaprovação.
Apesar da maneira como Pamela falava e pensava, eu queria que ela me amasse como mãe. Queria que Peter fosse meu pai. Queria que nos tornássemos uma família. Queria que ríssemos e nos divertíssemos juntos, fizéssemos as coisas que eu via outras garotas da minha idade fazerem com suas famílias. Era natural que Pamela quisesse que eu fosse igual a ela, pensei. Dessa maneira, ela sentiria que tinha de fato uma filha.
O que me surpreendeu e até me assustou um pouco, no entanto, foram suas instruções a caminho da escola Agnes Fodor, para me matricular. Queria que eu começasse minha vida nova com uma grande mentira.
— Exceto pela sra. Harper, a diretora, não quero que ninguém mais saiba que você veio de um orfanato, Brooke.
— Como assim?
— A sra. Harper compreende por que prefiro assim. E acredite em mim: você vai se sentir mais à vontade, especialmente na companhia das outras garotas, se esse pequeno detalhe for esquecido.
Esquecido? Pequeno detalhe? Durante toda a minha vida eu fora uma órfã. Não tinha outras experiências. Como poderia fingir que era outra pessoa?
— Mas o que vou dizer? O que contarei às pessoas a meu respeito?
— Diga que é nossa filha. Diga que decidimos mandá-la para a Agnes Fodor, porque sua escola pública degenerou. Um novo grupo de estudantes das classes mais baixas pouco a pouco se tornou a maioria na escola pública. Por isso, surgiram muitos problemas. Seus pais ficaram preocupados com sua segurança e também com sua educação. A maioria das garotas vai compreender porque já passou por essa experiência. Os pais as matricularam na Agnes Fodor para afastá-las da educação pública inferior e das influências perniciosas.
Eu me sentia aturdida.
— Se você se comportar como venho lhe ensinando, todas acreditarão que é mesmo quem diz ser. E pelo menos ninguém terá vergonha de convidá-las para sua casa, não é mesmo? Tenho quase certeza de que você não terá nenhum problema.
Com um sorriso confiante, Pamela acrescentou:
— Quando em dúvida, apenas fique calada até me consultar. Ou pode falar a meu respeito. Conte sobre meu trabalho como modelo, meus títulos. A maioria das mães não é nem de longe tão atraente. Elas terão inveja imediatamente.
Pamela sorriu.
— Não imagina como me sinto excitada por você. Lembro quando entrei na escola de etiqueta. Tenho certeza de que Peter e eu nos orgulharemos de você muito em breve.
Olhei pela janela do carro. Quando vivia no orfanato e não tinha nada de valor real, nem mesmo um sobrenome, não precisava mentir. Agora que era rica, morava num palácio, tinha mais roupas no closet do que dez garotas juntas no orfanato; agora que tinha criados e só andava de limusine, devia fingir que era outra pessoa.
A estrada para a felicidade era longa e sinuosa, repleta de armadilhas e ilusões. Quando dera adeus à garota que eu era quando vivia no orfanato, nunca sonhara que poderia querê-la de volta. Mas por um momento, a caminho daquela escola nova e maravilhosa para as ricas e privilegiadas, ansiei em retornar a quem eu era, quem fora, assim como às vezes a pessoa deseja poder vestir de novo as roupas confortáveis e surradas, uma parte de sua personalidade, mesmo estando elas fora de moda e velhas demais.
— Chegamos! — anunciou Pamela. — A Agnes Fodor. Nem parece uma escola, não é?
Olhei para o enorme prédio de pedra num pequeno vale, cercado pelo verde, árvores lindas, com um laguinho por trás. Tudo era limpo e perfeito. E tranqüilo. Ela tinha razão. Não parecia uma escola. Era mais como um solar antigo.
Respirei fundo. O que Pamela deveria mesmo ter me ensinado era representar. Sentia-me apreensiva. Não sabia mentir direito. Quem conversasse comigo certamente não acreditaria em minhas histórias e respostas. O que tornaria tudo ainda pior. Com o coração batendo forte e pés que pareciam se arrastar pela lama, entrei na nova escola para me tornar uma nova pessoa.
Uma estrela cintilante
Com olhos cinzentos, frios e desconfiados, a sra. Harper me fitava. Eu me sentia intimidada com a escola. O saguão tinha um mural que se estendia do chão ao teto. Era uma cena de querubins olhando com devoção para um lampião aceso. Os chãos de mármore faiscavam em torno de sofás, cadeiras e mesas. Uma garota de uns quinze anos nos cumprimentou assim que entramos. Apresentou-se como Hiliary Lindsey e disse que estava de serviço como recepcionista da escola. Portou-se, falou e me estendeu a mão da maneira como Pamela descrevera e me instruíra a cumprimentar as pessoas. Enquanto Hiliary nos conduzia pelo corredor para o gabinete da sra. Harper, Pamela lançou-me um olhar, acenou com a cabeça e sorriu, como a dizer ”É assim que deve se comportar, está vendo?”
Fiquei ainda mais nervosa. A sala de espera era tão impecável quanto o saguão. A secretária da sra. Harper, srta. Randall, era uma ruiva baixa e de busto grande, com fios brancos nas têmporas e no alto da testa larga, que ela franziu ao nos ver entrar.
Hiliary apresentou-nos a ela e depois me fitou, com um pequeno sorriso, antes de se retirar. Momentos depois, a porta da outra sala foi aberta e a sra. Harper nos convidou a entrar. Era alta, os quadris estreitos, um busto pequeno, quase invisível no vestido azul-escuro, largo, descendo até os tornozelos. Os cabelos eram castanho-escuros, os olhos castanho-claros. Tinha um nariz pontudo e a boca pequena. As faces eram achatadas, o que fazia o rosto parecer ainda mais estreito. Tinha o tipo de pele que eu sabia que Pamela admirava, sem qualquer ruga, nem mesmo um vinco na testa.
Tudo em sua mesa era organizado, o mogno escuro parecendo tão polido e limpo quanto o resto que eu vira até agora. À sua frente, em cima da mesa, havia uma pasta com meu nome.
— A Agnes Fodor é uma escola de grande prestígio, muito bem considerada, uma instituição excepcional — começou ela. — Todas as minhas alunas têm um comportamento da mais alta qualidade. Vai notar imediatamente enormes diferenças entre a Agnes Fodor e a escola pública média.
Nada em seu rosto se movia, a não ser os lábios pequenos e finos.
— Para começar, nossas turmas são muito pequenas. Acreditamos em oferecer uma instrução personalizada às alunas. Por outro lado, todas as nossas alunas pertencem ao que chamamos de sistema de honra. Não esperamos que os professores se preocupem com problemas de comportamento. Todas conhecem as normas sob as quais vivemos e as respeitam. Se uma garota viola uma norma, deve confessar a violação. Não que isso costume ocorrer. Um professor pode até se retirar da sala durante uma prova. Nossas alunas não colam. Vai notar que os armários não têm cadeados. Nossas alunas não roubam. Vai notar que nossos banheiros são imaculados. Não há pontas de cigarro repulsivas nos vasos ou pias. Nossas alunas não fumam na escola... e a maioria também não fuma fora da escola.
— Fumar é a pior coisa para a pele — comentou Pamela.
A sra. Harper fitou-a por um momento com quase a mesma intensidade com que me olhava. Depois, tornou a se virar para mim, com um movimento brusco da cabeça, que nem um fantoche.
— Vai notar que não há pedaços de papel ou refugos de qualquer tipo no chão das salas de aula ou dos corredores. Nossas alunas não jogam lixo no chão. Nunca vai encontrar chicletes grudados debaixo de cadeiras. Não permitimos chicletes na escola. Depois do almoço, em nosso refeitório, há bem pouco para as zeladoras fazerem. As alunas tiram as mesas. Até as limpam, se for necessário.
Ela fez uma pausa.
— Nos intervalos entre as aulas, ninguém levanta a voz. Nossas alunas não gritam entre si. Nunca, mas nunca mesmo, houve qualquer tipo de comportamento violento em toda a história da Agnes Fodor. Se duas alunas têm alguma divergência, são exortadas a levarem o problema ao comitê judicial, que é constituído por alunas eleitas para o cargo. Temos uma organização estudantil muito produtiva e ativa, contando com a nossa confiança total. As alunas se policiam. Se alguém violar uma de nossas normas, tem de comparecer perante um comitê de colegas, sendo julgada e punida de acordo.
— Mas pensei que ninguém violava as normas — murmurei.
Só falei isso porque me sentia um pouco confusa. Mas os olhos frios da sra. Harper se tornaram de repente carvões em brasa. O rosto empalideceu, as veias no pescoço saltaram, até que pareciam em relevo sob a
pele.
— O que eu quis dizer foi que elas raramente violam as normas, tão raramente que no ano passado o comitê judicial só se reuniu duas vezes... durante o ano inteiro.
Ela olhou para Pamela e continuou:
— A Agnes Fodor não tem o hábito de aceitar uma aluna que não tenha um histórico de criação apropriada. Mas tendo em vista a sua posição e a de seu marido na comunidade, temos certeza de que Brooke vai se adaptar num instante a nossos elevados padrões.
Começara parecendo um elogio, mas terminara como uma ameaça, pensei. Pamela sorriu.
— Temos certeza quanto a isso.
— O que é ótimo. — A sra. Harper abriu a pasta com meu nome. Examinou-a por um momento, depois tornou a me fitar. — Não tem sido exatamente o que poderíamos chamar de uma boa aluna. Mas em geral constatamos que nossas alunas experimentam uma melhora imediata em seu desempenho aqui. É o mínimo que esperamos de você, apesar de suas infelizes origens.
A sra. Harper acenou com a cabeça para Pamela e acrescentou:
— Como sua mãe solicitou, nada sobre seu passado sairá desta sala. Sua pasta ficará em meus arquivos. Serei a única que poderá vê-la.
— Obrigada — disse Pamela.
— Contudo — continuou a sra. Harper, como se Pamela não tivesse falado —, você sabe que eu sei... e sabe o que espero de você. Alguma pergunta?
Balancei a cabeça.
Ela me observou atentamente, os olhos me esquadrinhando como pequenos refletores, à procura de qualquer imperfeição. Remexi-me na cadeira, contrafeita. Finalmente, a sra. Harper fechou a pasta e levantou-se.
— Venha comigo.
Levantei-me e segui-a.
Pamela estendeu a mão e tocou em meu braço quando cheguei à porta. Sorriu e murmurou:
— Boa sorte.
Acenei com a cabeça e continuei a seguir a sra. Harper. Antes de deixar seu gabinete, ela virou-se e disse para Pamela:
— Voltaremos logo, sra. Thompson.
A sra. Harper tornou a olhar para mim e fez sinal para que eu a acompanhasse. Andava depressa, em passos surpreendentemente largos. Eu quase tinha de dar dois passos para cada um dos seus.
— Esta é a aula de inglês do sr. Rudley. Como ele será seu professor principal, já tem a sua agenda.
Ela abriu a porta. O sr. Rudley, um homem alto, em torno dos cinqüenta anos, com os cabelos um pouco mais escuros do que cinza, levantou os olhos do livro em suas mãos. Sentava na beira da mesa e ergueu-se de um pulo assim que viu a sra. Harper. Toda a turma, formada por seis garotas, virou-se e ficou de pé no mesmo instante. Elas me fitaram com o maior interesse.
— Esta é a nova aluna que lhe informei que começaria hoje, sr. Rudley — anunciou a sra. Harper. — Seu nome é Brooke Thompson.
— Está certo, sra. Harper. Seja bem-vinda, Brooke. Pode sentar-se ali.
Ele acenou com a cabeça para uma carteira vazia à sua direita. Atravessei a sala apressada e esperei para sentar ao mesmo tempo que as outras. A sra. Harper permaneceu na porta.
— Eu consideraria um favor pessoal, meninas, se ajudassem Brooke a se sentir à vontade em nossa escola. Ela foi transferida de uma escola pública.
Os cantos da boca da sra. Harper se contraíram para baixo, numa óbvia desaprovação. As meninas olharam para mim. Uma loura magra, de olhos azuis e sardas salpicadas nas faces, fitou-me com mais intensidade. Não pude determinar se era um olhar de boas-vindas ou de advertência.
— Providencie para que ela receba sua agenda, sr. Rudley — acrescentou a sra. Harper, antes de sair e fechar a porta.
Houve um momento de silêncio. O sr. Rudley acenou com a cabeça e sentamos. Ele pegou minha agenda na mesa.
— Vamos nos apresentar, meninas — disse ele à turma. — Margaret?
— Sou Margaret Wilson. Prazer em conhecê-la. Antes que eu pudesse responder, a garota por trás, mais baixa e morena, continuou:
— Sou Heather Harper, sobrinha da sra. Harper.
A declaração foi feita num tom um tanto presunçoso.
— Sou Lisa Donald — disse uma garota de cabelos ruivos e os olhos mais verdes que eu já vira.
Ela parecia mais velha do que as outras porque tinha um busto ainda mais cheio do que o meu falso. Também havia em seus olhos um brilho mais perceptivo e sofisticado.
— Sou Eva Jensen — declarou uma jovem loura de aparência escandinava. Tinha um rosto rigidamente marcado e era muito magra.
— Meu nome é Rosemary Gillian — informou uma garota de cabelos castanhos.
Ela tinha covinhas nas faces e uma fenda no queixo, sob os lábios cheios. Achei que tinha um brilho malicioso nos olhos, especialmente pela maneira como sorriu para as outras garotas depois que falou.
— Helen Baldwin — declarou a garota que me fitara primeiro com maior interesse.
— Muito bem. — O sr. Rudley me entregou um livro. — Não sei o que você fazia na outra escola, mas estamos começando a leitura de Romeu e Julieta. Cada aluna lê um papel. Algumas lêem dois ou três, porque somos apenas sete na sala.
— Oito agora — ressaltou Rosemary.
— Exatamente — disse o sr. Rudley. — Por que você não fica com o papel de...
— Ela pode ser Romeu — interrompeu Heather Harper. — Não me sinto à vontade no papel de um homem.
— Esqueceu que ele é apenas um menino? — corrigiu Lisa Donald. — Foi o que o sr. Rudley nos disse.
— É isso mesmo — confirmou o sr. Rudley. — Romeu e Julieta na peça não são muito mais velhos do que vocês.
— Além disso, o sr. Rudley nos contou que um menino fazia o papel de Julieta nos tempos de Shakespeare — continuou Lisa. — Portanto, não é importante quem lê que papel.
— Acho que é — insistiu Heather. — Prefiro ler Julieta. Por que você não lê Romeu então? Por que tem de ler Julieta?
— Porque o sr. Rudley mandou — respondeu Lisa.
— Já chega, meninas. Brooke?
— Não me importo de ler Romeu.
Olhei para as outras. Heather exibia um sorriso afetado.
— Ótimo — disse o sr. Rudley. — Vamos voltar à peça.
Quando a campainha tocou, Eva Jensen e Helen Baldwin se aproximaram e se ofereceram para me mostrar a escola. Eu esperava que haveria mais alunas na próxima aula, mas o grupo das sete permaneceu junto pelo resto do dia. A passagem de uma sala para outra era como a sra. Harper descrevera: ordenada e comedida. Outras meninas me foram apresentadas, mas houve pouco tempo para conversas de verdade até a hora do almoço. Como era de se esperar, todas queriam saber onde eu estudara antes, como era a escola. Só Heather Harper dava a impressão de que não tinha o menor interesse por minhas respostas.
— Tem irmãos ou irmãs? — perguntou ela.
— Não.
— Seus pais são muito ricos?
As outras garotas pareceram recuar para deixá-la assumir o comando da conversa.
— São, sim. Meu pai é um advogado muito importante.
— O meu também — declarou Heather. — Até que ponto vocês são ricos?
— Não sei... isto é, não sei exatamente quanto dinheiro temos.
— Pois eu sei — gabou-se ela. — Só que não conto a ninguém.
— Então por que pediu a ela para lhe contar? — indagou Eva Jensen.
— Só para ver se ela diria. — Heather soltou uma risada. — De qualquer forma, eu poderia descobrir, se quisesse. Minha tia sabe quanto dinheiro todas aqui têm. Nossos pais tiveram de apresentar uma declaração financeira como qualificação para a escola.
— Ela não lhe contaria nada — declarou Rosemary Gillian. — E se souber que você sequer disse isso, poderia expulsá-la da escola.
Heather pareceu murchar em sua cadeira.
— Eu estava brincando. Todas querem apenas impressioná-la, Brooke. É o que sempre fazem quando uma nova aluna entra na escola. O que está achando daqui?
Ela retomou seu papel de inquisidora.
— O lugar é lindo — respondi. — Nem posso acreditar que é uma escola.
As outras sorriram.
— Também não podemos — comentou Heather, sarcástica.
— Fico contente que você tenha vindo estudar aqui — murmurou Eva, com uma expressão afetuosa nos olhos. — Sempre precisamos de novas amigas.
— O que está querendo dizer com novas amigas? — perguntou Heather, num tom zombeteiro. — Não deveria falar apenas em amigas e ponto final?
As outras riram. Eva deu a impressão de que poderia chorar.
— Claro que preciso de amigas. Nunca se pode ter amigas demais. — Olhei para Heather. — Isto é, amigas de verdade.
Ninguém falou por um momento, até que Heather soltou uma risada.
— Touché! — exclamou ela. — Sabe o que isso significa?
Eu não tinha certeza, mas acenei com a cabeça. A campainha tocou. Todas nos levantamos. Observei que cada garota verificava se seu lugar à mesa estava limpo. Fiz a mesma coisa e segui-as para a próxima aula. Heather foi andando ao meu lado.
— Você não parece vir de uma família rica — comentou ela.
— Por que não?
— É agradecida demais.
Ela sorriu pelo que julgava ser uma grande astúcia. Todas riram, até Eva, olhando para mim. Pensei: por que não embarcar também no navio delas? Acompanhei-as no riso, o que fez com que todas, até mesmo Heather, se sentissem melhor a meu respeito. Talvez eu pudesse fazer aquilo, refleti. Talvez pudesse passar por alguém que não era.
A aula de educação física foi a última do dia. Nossa turma se juntou com quatro outras, incluindo alunas da nona, décima e até da décima primeira séries. No total, havia o suficiente para duas equipes de softball, uma variedade mais suave de beisebol. A professora, sra. Grossbard, era uma ex-corredora olímpica, integrante de um revezamento que ganhara uma medalha de bronze. Fitou-me com evidente interesse quando me apresentei no uniforme de educação física da escola, uma blusa branca com o logotipo da Agnes Fodor no lado esquerdo do peito e um short azul-escuro. A escola também nos fornecia tênis e meias.
— Jogava softball na sua última escola? — perguntou-me a sra. Grossbard.
— Jogava, sim, madame.
— Pode me chamar de treinadora. Tenho a maravilhosa distinção de ser a treinadora de softball da escola, a treinadora de natação, corrida e basquete. Também tenho a distinção de nunca ter tido uma temporada vitoriosa em qualquer desses esportes. Mas — Ela soltou um suspiro. — ...bem que tento. Faço o melhor que posso com garotas que têm medo de quebrar uma unha.
Ela me fitou em silêncio por um momento, depois acrescentou:
— Vá para a segunda base do time azul e pegue o bastão na quinta posição.
Fui para o campo com a minha equipe. Eva foi para a primeira base, provavelmente por causa de sua altura. Heather foi ocupar uma posição além do losango. Sentou-se na grama no mesmo instante. As outras meninas da minha turma ficaram no time branco.
Senti-me bem por estar ao ar livre, esticando os braços e pernas, usando os músculos. Era um lindo dia para uma partida de softball. O céu estava azul claro, com algumas nuvens brancas aqui e ali. A brisa amena em meu rosto era revigorante. O sol já descera por trás das árvores e não incidia em nossos olhos. A fragrância da grama recém-cortada era inebriante.
Infelizmente, nossa lançadora teve dificuldade para arremessar a bola até a base da batedora. As três primeiras bolas caíram no chão na frente da batedora. A sra. Grossbard mandou que a lançadora chegasse mais perto. O que ela fez. O arremesso seguinte foi alto demais para que alguém pudesse alcançar. O outro quase acertou na batedora.
— Espere um instante.
A sra. Grossbard cobriu os olhos com as mãos, como se não quisesse olhar para a turma por um momento. Ou como se estivesse conversando consigo mesma. Depois, pegou a bola e a jogou para mim. Peguei-a com a maior facilidade.
— Jogue de volta.
Foi o que fiz. Ela pegou a bola na volta e ordenou:
— Troque de lugar com Louise.
— Por quê? — protestou Louise, nossa lançadora.
— Não sei. Pensei que poderíamos tentar jogar mais de um turno hoje — respondeu a sra. Grossbard, sarcástica.
Louise lançou-me um olhar furioso ao passar por mim.
— Faça um aquecimento — determinou a sra. Grossbard.
Encenei meia dúzia de lançamentos.
— Agora pode jogar a bola — ordenou a sra. Grossbard, com um certo brilho nos olhos.
A primeira batedora voltou à base e acertou em meu lançamento de raspão. A bola subiu e caiu um metro à sua frente. Saí correndo e peguei a bola ainda no ar. Meu time bateu palmas e gritou. A sra. Grossbard, encostada na barreira, empertigou-se no mesmo instante.
A batedora seguinte foi para a base. Errou as três bolas que lancei. A terceira batedora acertou meu último arremesso. Mas a garota na terceira base do meu time, Stacey, aluna da décima primeira série, conseguiu pegá-la. Fez um lançamento bastante bom para mim, antes que a batedora alcançasse a primeira base.
Fomos bater a bola.
— Já tinha lançado antes? — perguntou-me a sra. Grossbard.
— Já, sim.
— E por que não me disse que era a sua posição habitual?
— Não sei.
— De um modo geral, as garotas aqui não hesitam em me dizer aquilo em que pensam que são boas. A modéstia nesta escola é tão rara quanto a pobreza.
Não entendi o que ela quis dizer, mas sorri e acenei com a cabeça, antes de ir sentar no banco.
Nossa primeira batedora rebateu uma bola fraca, que caiu perto da segunda base. Era Lisa Donald quem estava ali. Ela caiu ao tentar pegar a bola. Conseguimos assim ter uma jogadora na base. Nossa segunda batedora saiu sem acertar as três bolas. A terceira rebateu uma bola com toda força entre a primeira e a segunda bases. Tínhamos garotas na primeira e terceira bases quando nossa quarta batedora, uma gorducha chamada Cora Munsen, rebateu a bola na direção da segunda base. A garota ali deixou a bola cair. Tínhamos todas as bases ocupadas quando fui rebater pela primeira vez em minha nova escola.
Todos os olhos fixavam-se em mim, algumas torcendo para que eu errasse, a maioria apenas curiosa. Vi o aceno de aprovação da sra. Grossbard pela maneira como segurei o bastão e assumi a posição. Meu ”coração batia forte. Saí do lugar por um momento, para recuperar o fôlego e me controlar. Voltei à posição.
O primeiro lançamento foi muito baixo e o segundo muito aberto, mas o terceiro foi lento e pelo meio, do tipo que eu mais apreciava. Calculei o momento apropriado e acertei a bola com toda força. Subiu e subiu, passou por cima da cabeça da jogadora no meio do campo externo. Havia uma pequena elevação no fundo do campo de beisebol da escola. A bola bateu lá em cima e começou a rolar. Mas estava muito longe da jogadora naquela posição. Ela nunca teria tempo para alcançá-la e jogá-la para outra, antes que eu contornasse todas as bases.
Logo em meu primeiro jogo na nova escola eu conseguia realizar um home run.
E a sra. Grossbard aplaudiu com tanto entusiasmo quanto qualquer outra pessoa já me aplaudira na escola pública.
Depois, todas falaram sobre o meu desempenho. Várias garotas vieram se apresentar no vestiário. Ao deixarmos a área do ginásio, para embarcarmos nos pequenos e luxuosos ônibus, não havia praticamente uma única aluna da Agnes Fodor que não tivesse ouvido falar da mais longa rebatida e seu home run no campo da escola. Ao final do dia, as conversas sobre a minha rebatida tinham se tornado tão exageradas que havia quem dissesse que a bola caíra no outro lado da elevação.
A sra. Grossbard veio falar comigo antes de eu pegar o ônibus de volta para casa.
— Amanhã você vai se inscrever na equipe de softball, está bem?
— Claro.
— Puxa, podemos até ganhar algum jogo este ano! No maior excitamento, entrei no ônibus, ansiosa em me gabar para meus novos pais sobre o primeiro dia na escola.
Preciso ser eu
Ainda excitada, corri para a porta da frente da minha nova casa. Entrei, mal conseguindo me conter. Já ia subir para o meu quarto, a fim de trocar de roupa, quando Pamela saiu da sala de estar.
— Ainda bem que chegou em casa na hora. Venha até aqui.
Ela acenou com a cabeça para a sala de estar.
— Eu ia subir para guardar os livros e trocar de roupa. Queria contar tudo sobre...
— Venha agora — insistiu Pamela, com uma voz mais firme. — Quero apresentá-la a uma pessoa.
Obediente, avancei pelo corredor e entrei na sala. Um homem baixo e calvo, com um rosto tão redondo quanto uma moeda, estava de pé ali. Fitou-me com seus enormes olhos cinza. Tinha uma mancha marrom-escura no crânio, afora isso lustroso. Parecia que alguém derramara molho de carne ali, porque a mancha se espalhava em linhas finas para trás da cabeça e para as têmporas.
— Este é o professor Wertzman, Brooke. Contrateio para lhe dar as primeiras aulas de piano. As concorrentes precisam demonstrar algum talento. O professor lhe ensinará a tocar bastante bem para poder apresentar alguma música.
Mais parecia que ela ordenara assim, que teria de ser assim de qualquer maneira.
— Mas não tenho nenhum talento musical — protestei, desolada. — Nunca sequer tentei tocar piano.
— Isso acontece porque nunca teve um piano para tocar. Que aulas lhe foram oferecidas no orfanato? — O sorriso de Pamela era frio. — Mas agora você tem todas as melhores coisas da vida à sua disposição. O sr. Wertzman é um dos mais conceituados professores de piano. Foi preciso muito empenho para persuadi-lo a liberar uma parte do seu tempo para você. Mas ele sabe como isso é importante para mim.
Pamela fitou-o com olhar gelado. Quando ele sorriu, o queixo tremeu e as narinas se contraíram e dilataram, como as de um coelho.
— É uma honra para mim ser capaz de prestar um favor a você e ao sr. Thompson.
— Está vendo, Brooke? Todos querem ajudá-la. A partir de hoje, terá uma aula todos os dias, depois da escola. Portanto, venha direto para casa.
— Mas...
— Mas o quê?
Ela olhou para o professor, que alargou seu sorriso. Os dois me fitaram.
— A sra. Grossbard, professora de educação física, me convidou para entrar no time de softball da escola. Acertei um home run hoje, logo na primeira vez que rebati. Tenho de ficar na escola depois das aulas para treinar todos os dias.
Por um momento, Pamela permaneceu em silêncio, aturdida, piscando os olhos. O constrangimento do professor era evidente. Ele limpou a garganta e balançou nos calcanhares, com as mãos nas costas.
— Tem alguma idéia do custo e esforço necessários para trazer o professor Wertzman até aqui? — começou Pamela, a voz suave. — Sabia que o professor dá aulas à maioria dos pianistas das melhores famílias da nossa comunidade? Ele me garantiu que poderá prepará-la para tocar uma peça em seis meses. Ninguém mais pode fazer tal promessa. Você é uma jovem muito afortunada.
A maneira como ela disse afortunada fez-me pensar que eu podia ser qualquer coisa menos isso.
— Não me importo! Não quero aprender a tocar piano. Nunca me interessei por piano. Acertei um home run. — Comecei a recuar. — Sou uma boa jogadora de softball. E quero entrar para o time.
— Brooke!
— Não! Você não se importa nem um pouco comigo! Só quer me fazer igual a você!
Virei e me encaminhei para a escada.
— Volte aqui agora! Brooke!
Subi correndo e entrei em meu quarto, as lágrimas escorrendo. Joguei-me na cama, comprimi o rosto contra o travesseiro.
Ela não tinha o direito de fazer aquilo, de planejar coisas sem me consultar antes. ”E não me importo com o que ela possa fazer”, pensei. ”Não me importo se me mandar de volta.” Parei de chorar, enxuguei os olhos, sentei enlaçando os joelhos, à espera de Pamela, que com certeza viria atrás de mim, furiosa. Escutei atentamente, na expectativa de seus passos no corredor. Mas não ouvi nada. Depois de um longo tempo, troquei de roupa, vestindo o que Pamela chamava de traje mais informal, uma calça comprida e uma blusa. Não me senti mais confortável do que com as roupas que usava na escola. E senti saudade do meu jeans, camisetas e blusões.
Ainda tinha medo de descer. Por isso, abri os livros e comecei os deveres de casa. Quase uma hora e meia depois ouvi uma batida na porta. Não ouvira passos. E não esperava que Pamela batesse. Ela sempre entrava direto.
— Pois não?
A porta foi aberta. Era Peter. Usava um terno azulmarinho sob medida, parecia tão vigoroso e bem-disposto como se estivesse começando o dia.
— Importa-se se eu entrar, Brooke?
— Não.
Ele sorriu, entrou e fechou a porta.
— Parece que temos a nossa primeira crise familiar.
— Não tenho nenhum talento musical.
— Como sabe disso?
— Não sei, mas não quero tocar piano. Peter sentou na beira da cama.
— Você ainda é muito jovem para saber o que quer e o que não quer. É como alguém que jamais experimentou caviar dizer ”Não quero comer caviar, porque não gosto”. Certo?
— Acho que sim.
Funguei. Não queria recomeçar a chorar, mas podia sentir que lágrimas quentes se acumulavam por trás dos olhos.
— Ou seja, não pode saber se quer tocar piano até experimentar. Pode descobrir que a experiência é maravilhosa. Ou pode fazer progressos tão rápidos que ficará emocionada. Você é uma jovem muito inteligente, Brooke. Tenho certeza de que pode compreender meu argumento.
Não falei nada por um momento. Depois, respirei fundo e virei-me para ele. As lágrimas ainda ardiam por trás das pálpebras.
— Acertei um home run na aula de educação física hoje. Foi um grand slam, porque tínhamos três jogadoras nas bases.
— É mesmo? — Peter arregalou os olhos. — Uma jogada sensacional?
— Foi mesmo. E era a primeira vez que eu rebatia na nova escola. A treinadora me convidou para entrar no time. Precisa de uma lançadora... e eu sempre era a lançadora na escola antiga.
— Ela quer você para a posição?
— O time treina todos os dias depois das aulas. A próxima partida será daqui a uma semana. Todos os treinos são importantes para mim.
— Entendo. E disse isso a Pamela?
Peter franziu as sobrancelhas, com uma expressão preocupada nos olhos.
— Disse.
— Estou entendendo agora.
Ele se levantou, foi até a janela, permaneceu ali por algum tempo. Virou-se e encaminhou-se para a porta.
— E se eu pudesse marcar as aulas de piano para a noite, depois do jantar? Acha que conseguiria fazer tudo, sem negligenciar os deveres da escola?
— Acho.
Falei sem hesitar, embora não tivesse a menor idéia se seria capaz.
— Teria de ser assim apenas até o final da temporada de softball.
Pela maneira como ele falava, percebi que já planejava a melhor maneira de persuadir Pamela.
— Mas pensei que o professor nos prestava um favor e só estaria disponível logo depois da escola.
Peter piscou um olho para mim.
— Podemos negociar. Afinal, é isso o que faço para ganhar a vida. O segredo é nunca entrar em pânico, mas recuar, respirar fundo e procurar novas portas para entrar na mesma casa. Assim, você entra no time, Pamela fica satisfeita por estar fazendo o melhor para você, e até o professor se sente mais feliz. Darei um jeito. Gosta da idéia?
Acenei com a cabeça.
— Ótimo. Não se preocupe mais, Brooke. Na maioria das vezes, fazemos com que nossos problemas pareçam maiores do que são. Quando os analisamos com calma, compreendemos que a maioria dos nossos dragões são criados por nossa própria imaginação. Quero ouvir mais sobre o seu home run depois.
Peter me ofereceu um enorme sorriso da porta e se retirou.
Soltei um suspiro de alívio. Tinha sorte por ter alguém como Peter como pai, pensei. Não é de admirar que ele seja tão bem-sucedido. Pensa em soluções e idéias muito depressa. Provavelmente poderá até ser o presidente dos Estados Unidos.
Na hora do jantar, porém, eu ainda me sentia bastante nervosa. Pamela sentou com os lábios comprimidos, as costas rígidas. Ocupei meu lugar em silêncio, com medo de olhar para ela. Sempre que o fazia, ela me lançava olhares furiosos.
— Já está tudo acertado com o professor Wertzman — anunciou Peter, feliz.
— Deve-me um pedido de desculpas pelo péssimo comportamento — murmurou Pamela, levantando os olhos para me focalizar. — Ainda mais na presença de alguém como o professor Wertzman. Ele freqüenta as casas das famílias mais importantes, e eu não gostaria que falasse mal de nós.
— Ele sabe que é melhor não fazer isso, Pamela — comentou Peter.
— Não é essa a questão.
— Desculpe — murmurei. — Fiquei transtornada. Foi uma surpresa e tanto.
— Procuro conseguir as melhores coisas para você, Brooke, mas me fez parecer uma tola.
— Desculpe.
— Está tudo bem agora — interveio Peter. — Vamos apenas apreciar um maravilhoso jantar e ouvir Brooke relatar seu primeiro dia na Agnes Fodor.
— Ela poderia ter tomado a primeira aula hoje — insistiu Pamela, a voz mais baixa, recuando como um motor de carro que rateia até parar.
— Brooke dará um jeito para compensar, tenho certeza — declarou Peter. — Fale-nos sobre a escola, Brooke.
Descrevi as aulas, os professores, algumas colegas. Pamela mostrou-se mais interessada nas amizades que eu fizera. Queria saber a que famílias as garotas pertenciam. Mas eu não sabia muita coisa a respeito. Não pude fornecer as informações que ela queria.
— Deve fazer mais perguntas, Brooke — recomendou ela. — Mostre que está interessada. Mesmo que não preste muita atenção.
Peter riu.
— Pamela é uma artista em matéria de conversa social. Todas as pessoas querem conversar com ela. No final da noite, no entanto, ela não é capaz de me relatar a metade do que disseram. Ninguém parece perceber. Portanto, suponho que não se importam.
Ele concluiu com outra risada. Por que alguém não se importaria se você não prestasse atenção às suas palavras? Que pessoas compareciam àquelas festas importantes?
— Agora, Brooke, fale-nos sobre seu home run — pediu Peter.
Pamela sorriu e começou a comer, enquanto eu descrevia a jogada e o que acontecera depois.
— Os esportes femininos são muito mais importantes agora do que no seu tempo, Pamela — explicou Peter.
Isso a deixou furiosa outra vez.
— Quando acrescentarem tênis, golfe, beisebol ou basquete ao concurso de Miss América, pode me avisar — comentou ela, sarcástica.
Peter riu, mas parou de falar sobre o assunto.
Os dias subseqüentes foram mais difíceis do que eu jamais imaginara. Havia muito trabalho extra que eu tinha de fazer para alcançar o resto da turma, além dos deveres do dia-a-dia. O treino de softball era a única coisa que eu aguardava com ansiedade. Meu entusiasmo deixava a treinadora Grossbard com um sorriso feliz. Mas ela era muito exigente em termos físicos. Não demorou muito para que a treinadora determinasse que eu seria a lançadora inicial e a última batedora. Só uma garota se mostrou insatisfeita com isso: Cora Munsen, que era antes a última batedora do time.
— Você apenas teve uma jogada de sorte — comentou ela, no vestiário. — Não é melhor do que eu como batedora.
Não queria que ela me odiasse, e por isso concordei.
— Farei tudo o que a treinadora quiser. O time é que é importante.
— Como se você realmente se importasse... É igual às outras. Quer toda a glória.
— Isso não é verdade, Cora.
Ela sacudiu a cabeça e se afastou.
A maioria das garotas ria de Cora porque ela era muito ”grande, mas nenhuma ousava fazer qualquer comentário na sua frente. Parecia que Cora podia derrubar qualquer uma com um golpe dos braços poderosos. Descobri que a haviam apelidado de Cora Munch, de mastigar, porque ela comia muito. Até dava um jeito de comer às escondidas nos intervalos das aulas. Concluí que ela ficaria bem bonita se emagrecesse, mas tive medo de lhe dizer.
Depois do treino de softball, eu tinha de voltar correndo para casa, a fim de me preparar para o jantar e tentar fazer alguns deveres. De vez em quando não tinha tempo de tomar uma chuveirada antes de sentar para a aula de piano. O professor Wertzman não parecia se importar. Ele próprio tinha um cheiro estranho, um odor que quase me deixava nauseada, porque sentávamos juntos no banco do piano. Eu bem que tentava virar o rosto para o outro lado ou prender a respiração, mas era difícil não inalar aquele cheiro rançoso, azedo e repulsivo. Notei que ele usava a mesma camisa durante a semana inteira. Na sexta-feira o colarinho tinha manchas amarelas e marrons, nos pontos em que encostava no pescoço.
Quando me dava instruções, ele costumava contrair os olhos, que se transformavam em fendas mínimas. Às vezes, quando ficava muito nervoso com um erro que eu cometia, Wertzman salpicava o piano com saliva, para depois limpar com a manga do braço esquerdo. Pamela entrava na sala para assistir à aula de vez em quando. Nessas ocasiões, a expressão dele se tornava suave, ressurgia a voz gentil e atenciosa do professor. Quando estávamos a sós, ele falava num tom ríspido, tinha pouca paciência, e se queixava a todo instante da dificuldade que tinha para transformar um seixo numa pérola. Eu sempre tinha vontade de dizer que nunca lhe pedira para realizar qualquer milagre, mas reprimia o orgulho e deixava-o me açoitar com zombadas e críticas.
Uma noite, quando Peter estava lendo na sala de estar, parei para conversar.
— Provei caviar... e detestei.
— Como? — Ele me fitou aturdido, mas depois sorriu. — Ah, entendi...
— Nunca serei uma boa pianista. Até o professor diz que meus dedos não são apropriados. Acha que sou vigorosa demais, que estaria melhor tocando tambor ou fazendo trabalhos de carpintaria.
— Foi o que ele disse? — Peter soltou uma risada. — Agüente apenas mais um pouco, até eu persuadir Pamela a pensar em algo melhor.
— Não quero participar de concursos de beleza.
— Não haverá mal algum se entrar em um ou outro. Considere como uma nova experiência.
— Ninguém mais na escola vai entrar em qualquer concurso de beleza... e há garotas ali que são muito mais bonitas do que eu. Vão rir de mim, se divertir à minha custa.
— Talvez você ganhe. E neste caso ninguém vai rir de você.
A maneira como Peter falou me fez acreditar que tinha alguma chance. Talvez Pamela estivesse certa a meu respeito, no final das contas.
— Você e Pamela vão ao jogo no sábado?
Eu mencionara o jogo durante toda a semana, mas Pamela fingira não ouvir.
— Claro. — Ele pensou por um momento. — E devo também levar uma filmadora. Mas não espere que eu me torne um desses pais fanáticos da Little League.
Soltei uma risada.
Quando Peter falou sobre o jogo ao jantar, naquela noite, Pamela declarou que não iria.
— rode imaginar que danos causam à pele ficar sentada sob aquele sol horrível, envolta por toda aquela poeira? Quando você chegar em casa, Brooke, vai entrar direto numa banheira, limpar toda a poluição dos poros, lavar os cabelos com o maior cuidado.
Ela pensou por um instante. Levantou-se subitamente e contornou a mesa.
— Deixe-me ver suas mãos, Brooke.
Ergui as palmas. Pamela pegou-as, passou os dedos por cima.
— Como eu pensava — disse ela a Peter. — A pele está ficando áspera. Daqui a pouco ela terá calos!
— É mesmo?
Peter parecia divertido. Percebi que ele fazia um esforço para não sorrir.
— Venha até aqui para sentir.
— Acredito em você.
— Isso é um absurdo. Uma filha com mãos que parecem pertencer a um trabalhador braçal. Quero que dê um pulo ao meu quarto depois do jantar, Brooke. Tenho uma loção para as mãos que terá de usar sempre. Esfregue-a quatro ou cinco vezes por dia.
— Quatro vezes por dia? Quer dizer que terei de usar até mesmo na escola?
— Claro. Por quanto tempo mais esse absurdo de beisebol vai continuar?
Pamela começava a ficar irritada.
— Só restam alguns jogos. Entrei quase no final da temporada.
— Ainda bem.
Ela voltou à sua cadeira. Tive medo de avisar que já concordara em fazer um teste para o time de basquete da escola. A treinadora me vira praticando lances livres com algumas alunas mais velhas e me convidara para fazer um teste na semana seguinte. Além disso, a treinadora Grossbard achava que eu poderia ser escolhida para o jogo com as melhores da temporada naquele ano. Neste caso, teria de fazer treinos especiais depois que terminasse o campeonato de softball. Eu sabia que só era boa em esporte... e não tencionava desistir.
Peter decidiu me levar ao jogo no sábado. Eu usava o uniforme quando desci correndo a escada. Pamela esperava sua massagista, mas ainda se encontrava lá embaixo, dando algumas instruções a Joline sobre um novo suco, com ervas que supostamente retardavam o processo de envelhecimento. Assim que me viu na escada, ela iniciou uma série de queixas.
— É esse o uniforme? Está vestida como um garoto. Por que não usam pelo menos uma saia?
— Elas não podem usar saia, Pamela — explicou Peter, rindo.
— Por que não?
— Às vezes as jogadoras precisam deslizar pelo chão para alcançar a base. Por isso, precisam de roupas mais práticas.
— Por que então não usam uma combinação de cores mais aceitável?
— São as cores da escola — informei.
— A pessoa que as escolheu não era muito criativa. Não esqueça o que eu disse que deve fazer assim que voltar para casa.
Pamela subiu a escada, resmungando baixinho.
— No fundo, Pamela se orgulha de você — declarou Peter, tentando me tranqüilizar. — Acontece apenas que os esportes nunca foram importantes para ela.
A caminho do campo, ele falou sobre seu interesse por esportes, como praticara o futebol americano e ainda jogava tênis.
— E sou um bom tenista — gabou-se Peter. — Um dia desses vou levá-la ao clube. Poderemos jogar uma partida. Gosta da idéia?
— Claro. Sempre quis jogar tênis, mas nunca tive uma quadra à disposição. Minha antiga escola não tinha nenhuma. Mas a Agnes Fodor tem.
— Isso é ótimo. O tênis é um esporte pelo qual Pamela pode se interessar. Ela gosta dos trajes.
Os trajes? Não tinham nada a ver com os motivos pelos quais eu gostava de jogar ou assistir a um jogo. Comecei a me perguntar se Pamela e eu poderíamos algum dia compreender uma à outra. E isso não era importante? Ter uma mãe que compreendia seus sonhos e desejos, suas esperanças e anseios?
Ao nos aproximarmos da escola, pensei no time que enfrentaríamos hoje. Estava invicto. Suas jogadoras pareciam mais duras, mais fortes e mais determinadas. A principal batedora era uma afro-americana alta, que dava a impressão de que podia rebater a bola através de qualquer pessoa no campo. Percebi que as garotas do meu time recuaram quando comecei a arremessar, prevendo uma rebatida direta. Mas tratei de aproveitar a altura da batedora adversária, usando lançamentos baixos. Ela errou dois. O terceiro saiu torto. Nossa jogadora na primeira base conseguiu pegar a bola sem muita dificuldade. Minhas companheiras aplaudiram. O nervosismo que demonstravam no início do jogo se dissipou.
Eu me sentia mais forte a cada lançamento. De vez em quando olhava para a arquibancada, e via Peter sorrindo. Ele trouxera sua filmadora nova e registrava todos os lances do jogo. Rebati três bolas naquele dia, uma delas uma tripla, com duas jogadoras nossas nas bases. Foi o que nos deu a vitória.
As garotas do outro time estavam atordoadas. Minhas companheiras se agruparam ao meu redor, exultantes como se tivéssemos vencido o campeonato nacional. Ao deixarmos o campo, ouvi a outra treinadora perguntar a Grossbard onde descobrira aquela nova e sensacional jogadora. Na volta para casa, Peter estava excitado.
— Espere só até eu mostrar a fita a Pamela. Aquela sua última rebatida foi um primor. Conseguiu meter a bola entre duas jogadoras. Como fez?
— A treinadora na minha antiga escola me ensinou a virar os pés para rebater a bola na direção certa.
Peter ficou bastante impressionado. Pela primeira vez desde que eu fora morar com ele e Pamela, senti orgulho de mim mesma, confiante de que ainda poderia fazer com que se orgulhassem de mim.
Quando chegamos em casa, Pamela ainda estava de molho no banho de leite, algo que sempre fazia depois de uma massagem. Peter foi lhe falar sobre o jogo. Tomei uma chuveirada, lavando os cabelos, vesti roupas limpas. Peter queria nos levar a um restaurante elegante para comemorar. Mas primeiro queria mostrar a Pamela alguns dos principais lances do jogo.
Esperei lá embaixo, na sala da família. Os dois finalmente apareceram, Pamela radiante e bela. Peter pôs a fita no aparelho e ligou a televisão.
— Lavou os cabelos com o xampu que comprei para você? — perguntou Pamela.
Era óbvio que ela não se importava com o meu desempenho no jogo.
— Lavei.
Pamela passou os dedos por meus cabelos e acenou com a cabeça.
— Você não compreende os danos que o sol pode causar a seus cabelos.
— Usei um boné.
— Mas não cobre toda a sua cabeça, não é?
— Lá está ela! — exclamou Peter. — Veja essa jogada, Pamela!
Era o momento em que eu rebatera a primeira bola, lançando para a esquerda. Pamela se limitou a balançar a cabeça.
— Esfregou a loção para a pele nas mãos?
Eu tinha esquecido, mas inclinei a cabeça numa resposta afirmativa assim mesmo. Ela contraiu os olhos, desconfiada, passou os dedos por minhas mãos.
— Estão ressequidas.
— Este é o momento em que ela derrota a melhor batedora do time adversário. Observe seus três lançamentos.
— Tem de subir agora e passar a loção nas mãos.
— Está bem.
— Veja agora, Pamela! Essa foi a jogada decisiva, a que ganhou o jogo!
— Ela está desenvolvendo músculos — murmurou Pamela, com uma careta. — Que garota da sua idade tem músculos? O esporte vai deixá-la masculinizada, Brooke. Por que insiste em se dedicar a essas atividades absurdas?
Senti um aperto no coração. Esperava que Pamela não fosse mais contra a minha participação em esportes depois de assistir ao meu desempenho, mas nada do que Peter mostrava na fita parecia impressioná-la.
— Estou com fome, Peter — murmurou ela.
— Estamos prontos. O que você acha, Pamela? Temos uma pequena Babe Ruth, não concorda?
— Eu preferia ter uma pequena Cindy Crawford. Suba depressa e passe a loção nas mãos, Brooke.
Olhei para Peter e depois deixei a sala. Os dois esperavam no carro quando voltei.
— Cuidado com sua postura — advertiu Pamela, pela janela do carro, quando me aproximei. — Anda encurvada demais. Por causa dos seus ombros. Estão muito grandes, provavelmente de balançar aquele enorme pedaço de pau.
— É o que se chama de bastão — murmurei, ao entrar no carro.
Ela me lançou um olhar irritado. Depois, viu seu reflexo no vidro e preocupou-se com um ponto vermelho na face direita por todo o percurso até o restaurante.
Não houve mais nenhum comentário sobre o meu jogo de softball. Por tudo o que Pamela se importava, eu poderia ter errado em todas as vezes que peguei o bastão.
Até mesmo a sra. Talbot, do orfanato, costumava se mostrar mais orgulhosa de mim. Antes de o jantar terminar, olhei para Pamela e perguntei:
— Alguma vez jogou softball, Pamela?
— Eu? Claro que não! — Ela fungou, desdenhosa. — Jamais!
— Então como sabe que não gosta?
— O que você disse?
— É como dizer que não gosta de caviar sem nunca ter provado.
Pamela olhou para Peter.
— O que ela está querendo dizer?
Peter sorriu, mas eu não sorri de volta. E logo, pela primeira vez, divisei uma certa preocupação em sua expressão, quando olhou para Pamela e depois para mim.
Desviei os olhos. Pensei na sensação maravilhosa que me envolvera quando acertara em cheio aquela rebatida. Todas as loções, ervas, vitaminas e xampus não podiam me fazer sentir melhor comigo mesma do que experimentara naquele momento. O que aconteceria se Pamela me obrigasse a parar de jogar? Algum dia eu voltaria a me sentir bem comigo mesma?
Prova de fogo
Apesar da minha falta de entusiasmo e da aversão ao professor Wertzman, consegui tocar uma tosca interpretação de ”When the Saints Come Marching In” cinco semanas depois de começar as aulas. Pamela achava que isso demonstrava que eu era bastante talentosa para me apresentar no primeiro concurso. À medida que aumentava a realidade de minha participação de fato nesse evento, ela decidiu começar a me instruir sobre como fazer o que chamava de Andar na Passarela.
— A única diferença é que em vez de apresentar a nova moda de algum estilista, estará na verdade apresentando a si mesma — explicou ela.
Usamos o longo corredor no primeiro andar da casa. Pamela criticou no mesmo instante o tamanho dos meus passos.
— Você está se arrastando como um robô, em vez de andar. Tem de deslizar sobre aquele palco, flutuar. Pense em si mesma como feita de ar. Foi assim que me ensinaram. Suave, suave, feminina, suave... — Ela entoava enquanto eu repetia o percurso da porta da frente à sala de jantar. — Deslize. Não mexa tanto os braços. Relaxe. Abra as mãos. Não pode andar com os punhos cerrados. Não está sorrindo, Brooke. Sorria. Pare!
Pamela pensou por um momento.
— Não pode parecer entediada ou constrangida, Brooke. A beleza deve ser inflamada pelo entusiasmo. É o lema que me ensinaram. Você também deve aprendêlo e viver de acordo.
— Eu me sinto ridícula — murmurei.
— Deve superar isso. O que está fazendo não tem nada de ridículo. É profissional. Os juizes devem sentir que você tem autoconfiança.
— Mas meu lugar não é num concurso de beleza. Não sou bonita.
Ela ergueu os olhos para o teto e deu a impressão de que contava até dez.
— Muito bem, Brooke — disse ela em seguida, a voz mais suave. — Venha comigo.
Pamela seguiu apressada para a escada. Esperou que eu a alcançasse. Pegou minha mão e levou-me para seu quarto.
— Sente ali — ordenou ela, apontando para a mesa de maquilagem. Obedeci, e ela continuou: — Contemple-se no espelho. Em sua opinião, quais são as suas piores características?
— Todas.
— Errado. Você possui uma enorme beleza em estado bruto. Agora, faça o que eu mandar. — Pamela pegou seus lápis de lábios. — Os lábios ousados estão de volta. Nem toda jovem pode usar uma sombra mais ousada nos olhos, mas a maioria pode sem dificuldade usar uma cor mais ousada nos lábios.
Ela sorriu.
— Se você soubesse alguma coisa sobre maquilagem e rostos, compreenderia que não possui o que chamamos de lábios inchados. Por isso, deve evitar as tonalidades escuras e foscas. Precisa de cores com mais intensidade. As cores escuras farão com que sua boca pareça menor. Primeiro, abra a boca. — Ela demonstrou. — Quero delinear seus lábios por completo. Fiz o que ela mandara. Pamela começou.
— Ótimo. — Ela deu um passo para trás, a fim de me avaliar. — Gosto de misturar e comparar batons. Pela manhã, começarei com um batom fosco. Mais tarde, em vez de acrescentar mais desse batom, o que pode dar a impressão de uma crosta, passarei um brilho para clarear, ou um protetor para os lábios. Às vezes experimento um batom umidificador ou um brilho colorido.
Pamela não parava de falar enquanto trabalhava. Como virara meu rosto em sua direção, eu não podia ver o que ela fazia. Mas sabia que seu trabalho era de uma artista. Ao final, ela disse:
— Pronto.
Virei-me e olhei com surpresa para o meu rosto. Meus lábios haviam se tornado proeminentes.
— Minha boca parece tão diferente... Pamela riu.
— Audrey Hepburn, que tinha lábios finos, costumava delineá-los um pouco acima da linha superior. Cada mulher tem seus pequenos truques.
Ela estudou minha imagem no espelho por um momento.
— Creio que você pode usar um delineador de olhos escuro.
Pamela continuou a maquilar meu rosto, passando pó-de-arroz, ajeitando os olhos, até conseguir o que queria. Disse para eu me olhar de novo no espelho.
— E então, Brooke?
— Pareço tão...
— Bonita?
Tive medo de usar essa palavra. Ousaria pensar assim?
— Diferente. Estou bonita?
— Venho lhe dizendo isso desde o nosso primeiro encontro. Agora que está maquilada e sabe como pode parecer, deve se sentir mais tranqüila e confiante. Quero que faça um pouco mais de maquilagem todos os dias, Brooke, a fim de se acostumar.
— Está querendo dizer que devo me maquilar para ir à escola?
— Claro. É o motivo pelo qual comprei tudo isto para você e mandei trazer para cá antes da sua chegada. Quero que prepare seu rosto como se estivesse entrando num concurso de beleza. No fundo, a vida é isso mesmo para nós, um permanente concurso de beleza.
— Mas nenhuma das outras garotas costuma se maquilar. Vão pensar que tento parecer mais velha para me dar com as alunas das últimas séries.
— Deixe elas pensarem o que quiserem. Não possuem a metade da beleza que eu... que você tem. E agora vamos descer para praticar o andar na passarela.
Ela me fez desfilar de um lado para outro do corredor por quase outra hora, usando música. Ensinou como eu devia me virar, parar, olhar para a audiência, como me mostrar sedutora ou inocente.
— Cada concorrente, Brooke, cada modelo, é na verdade uma atriz. Você tem de assumir uma personalidade. Pense em si mesma como alguém especial, e seja essa pessoa por algum tempo. Às vezes eu me imaginava como Marilyn Monroe, em outras era mais sutil, uma Ingrid Bergman ou uma Deborah Kerr. Hoje em dia todas as garotas de sua idade tentam ser como uma daquelas horríveis Spice Girls, mas você será diferente. Será... eu. — Pamela riu. — Continue a me estudar durante todo o tempo. Vai acabar sendo como eu.
As palavras me assustaram. Pamela queria mesmo me transformar nela. Meus talentos e desejos não tinham a menor importância. Não conseguia entender... por que ela não podia gostar de mim como eu era? E se ela nem sequer gostava de mim, como poderia vir a me amar?
No dia seguinte comecei a me sentir um pouco melhor quando compreendi que pelo menos as garotas na escola gostavam de mim pelo que eu era. No ônibus, naquela manhã, todas queriam sentar ao meu lado, conversar sobre o jogo. Na sala de aula, o sr. Rudley, que admitiu jamais ter comparecido a um evento esportivo da escola, disse que ouvira o comentário de que deveria assistir à nossa próxima partida de softball. A escola tinha uma estrela. Fiquei corada da cabeça aos pés. Quando olhei para as outras, descobri que Heather me fitava fixamente. Ela parecia furiosa, o que fez meu coração bater forte.
No almoço, recebi os convites mais diversos. Fui convidada a visitar colegas, informada sobre festas e eventos iminentes, recebi propostas para ingressar em clubes. Lisa Donald, uma das melhores tenistas da escola, ofereceu-se para me dar aulas na quadra de sua família.
— Você poderia aparecer no próximo fim de semana, Brooke. Receberei vários amigos, inclusive alguns garotos da Brandon Pierce.
Eu sabia que era uma escola masculina nas proximidades.
— Quem você conhece na Brandon Pierce? — indagou Heather.
— Meu primo Harrison, que vai levar um amigo. Podemos fazer um jogo de duplas.
Todas as garotas se mostraram invejosas. Tive de admitir que nunca antes jogara tênis.
— Nunca? Como é possível? — perguntou Heather. — Seus pais não têm uma quadra em casa?
Pela maneira como ela falava, parecia que uma quadra de tênis era uma coisa tão corriqueira quanto um banheiro.
— Claro que têm.
— E então?
— Só que nunca joguei.
— Por que não joga se tem uma quadra em casa? — insistiu ela, adiantando-se para quase encostar o rosto no meu.
— Que diferença isso faz? — interveio Lisa. — Ela vai aprender agora com a melhor professora... eu.
As garotas riram, mas Heather continuou a me fitar com seus olhos pequenos e brilhantes. Helen Baldwin interpôs-se na sua frente para me perguntar alguma coisa sobre o nosso dever de estudos sociais. Depois, Helen passou a falar sobre Harrison, o primo de Lisa.
— Ele é um maníaco sexual. — Todas as outras se viraram para ela, prestando a maior atenção. — Não é mesmo, Lisa?
— Acho que ele pensa mais em sexo do que os outros garotos. Quando tínhamos sete e oito anos, Harrison só queria brincar de médico sempre que nos encontrávamos.
— E você brincava? — indagou Eva.
— Não. Mas uma ocasião ele me perseguiu por toda a casa e os jardins, tentando me persuadir a tirar a calcinha.
— Eu não me importaria se ele tirasse a minha — comentou Rosemary, provocando risadas.
— Você nunca se incomoda — acusou Heather. — Mas pare de bancar a gostosa.
— Ele é bonito — disse Lisa. — Você mesma admitiu isso, Heather. E acrescentou que gostaria que Harrison olhasse para você.
— Não falei nada disso, sua mentirosa.
— O que disse então? — insistiu Lisa. Heather olhou para as outras.
— Comentei que ele perdia seu tempo com aquela Paula Dworkins, mais nada.
— Aposto que ele vai gostar de Brooke — declarou Rosemary.
As garotas se viraram para mim.
— Por que ele gostaria de mim? — indaguei.
— Harrison gosta de qualquer garota nova por um dia ou dois — explicou ela. — Mas depois que ele observar você jogando softball, tenho certeza de que vai se apaixonar.
— É verdade... e com toda essa maquilagem que está usando, será um alvo fácil — alfinetou Heather.
As garotas riram mais uma vez, Heather mais alto do que as outras.
— Ela está brincando — disse Lisa. — Mas Harrison gosta mesmo de garotas que praticam esportes. Sei, porque ele me contou.
Todas se calaram, enquanto ela acrescentava:
— É por isso que quero que você aprenda a jogar tênis direito o mais depressa possível. Mas imagino que não precisará de muito tempo.
— Parece estranho que seu pai nunca tenha lhe ensinado — comentou Heather. — Não se dá bem com ele?
— Não se meta na vida das outras — murmurou Helen.
— Claro que nos damos bem. Acontece apenas que ele é muito ocupado.
Senti-me contente por desviar a conversa da horrível maquilagem que Pamela me obrigara a pôr naquela manhã. Heather sorriu e comentou:
— É exatamente o que meu pai diz cada vez que peço para fazer alguma coisa comigo.
— A única diferença é que o pai de Brooke não está mentindo — disse Eva.
As garotas desataram a rir mais uma vez. Tive de sorrir. Heather me fitava. Se seus olhos pudessem disparar dardos, eu ficaria cheia de buracos.
O resto da semana transcorreu sem problemas. Todas se mostravam mais excitadas do que nunca nos treinos de softball. Consegui me sair bem em duas provas. Os professores elogiaram meu esforço. A sra. Harper chegou a me parar no corredor para declarar que eu vinha fazendo uma ótima transição.
— Continue assim — murmurou ela.
Sua expressão era tão intensa que mais parecia uma advertência. Agradeci e me afastei apressada.
Em casa, fazia as aulas de piano com uma atitude de resignação. Chegara à conclusão de que era uma coisa que tinha de fazer, como ir ao banheiro. O professor Wertzman não achava que eu melhorara como pianista, mas já não criticava e se queixava tanto quanto antes.
Peter passou a maior parte da semana ausente, tratando de um caso importante na cidade de Nova York. As conversas sobre a escola e outras coisas importantes que aconteciam no mundo desapareceram do jantar. Pamela continuou a usar a refeição como uma sala de aula, desenvolvendo minha educação sobre as maneiras apropriadas à mesa. Ficou impressionada por eu ter sido convidada a ir à casa de Lisa Donald para almoçar e jogar tênis. Por conta própria, descobrira que o pai de Lisa era um dos Donald que possuíam a loja de departamentos local.
— Eu sabia que você faria amizade com pessoas de qualidade, Brooke.
O que ela queria dizer com aquilo... pessoas de qualidade? O que proporcionava a uma pessoa uma qualidade superior à de outra? Eu não constatara que as garotas na Agnes Fodor eram mais simpáticas do que as minhas colegas na escola pública. Tinham os mesmos complexos, problemas, preocupações e queixas.
Apesar dos elogios retumbantes da sra. Harper, eu descobrira que suas alunas, suas garotas perfeitas, não eram tão perfeitas assim, no final das contas. Eram apenas mais sutis e mais insidiosas nas coisas que faziam. Quando o professor deixava a sala, elas colavam. Passavam bilhetes durante as aulas. Até fumavam no banheiro, mas sempre junto da janela, a fim de soprarem a fumaça para fora. Depois, jogavam as guimbas no vaso e puxavam a descarga. O grafite não era desconhecido: alguém escreveu ”Brooke usa um suporte atlético” na porta do meu armário no ginásio. A treinadora Grossbard teve de pedir ao zelador que arrumasse um detergente forte para limpar. Ninguém contou à sra. Harper. Era como se ela tivesse de ser protegida de qualquer notícia desagradável, para poder continuar a acreditar que suas garotas eram perfeitas.
Peter voltou de Nova York na noite de sexta-feira. Pamela mandou que eu demonstrasse meu andar de passarela para ele. Obrigou-o a sentar numa cadeira antiga de encosto alto no corredor, observando como se fosse um juiz num concurso de beleza. Eu esperava que Peter caísse na gargalhada quando comecei a andar, mas sua expressão foi diferente... eu nunca o vira me fitar com tanta intensidade antes.
— E então? — indagou Pamela, assim que completei a última volta.
— Espantoso! Fez um trabalho incrível, Pamela. Ela parece... mais velha.
— Claro que sim. Está mais madura, mais sofisticada e confiante. E foi convidada para almoçar na casa dos Donald amanhã.
Eu não achava tão importante assim, mas Pamela me fez descrever como fora feito o convite, a proposta de Lisa para me ensinar a jogar tênis, os meninos ricos que se juntariam a nós para o jogo e o almoço. Peter assumira uma expressão séria, mas havia um ar divertido em seus olhos.
— Você não tem um jogo neste sábado? — perguntou ele.
— Mesmo que ela tivesse um jogo — interveio Pamela — iria à casa dos Donald.
Claro que não, pensei, mas achei melhor deixá-la pensar o que quisesse.
— Não. Nosso próximo jogo será em casa, no outro sábado. Você vai?
— Tentarei ir — disse Peter, abstendo-se de fazer uma promessa. — Pela maneira como o caso Jacobi está se desenvolvendo, não sei quando terei tempo livre este mês. Pensamos que aceitariam um acordo, mas eles decidiram nos pressionar.
Pamela não pediu mais explicações. Percebi que durante todo o tempo em que morava ali nunca a ouvira perguntar sobre o trabalho de Peter, nem demonstrar qualquer interesse por seus casos. Isso só ocorria quando havia um cliente que a interessava; e mesmo nesse caso, Pamela se mostrava mais curiosa sobre a pessoa do que sobre o caso.
- Qual é o problema com esse Jacobi? — perguntei.
— O caso é que se chama Jacobi — explicou Peter. — Não é um problema com uma pessoa.
— Ahn... — murmurei, sentindo-me uma idiota. Para me fazer sentir melhor, Peter começou a falar sobre o caso. Mas Pamela interrompeu para perguntar se ele já me arrumara um patrocinador.
— O que isso significa? — indaguei. — Por que preciso de um patrocinador?
— Para o concurso de beleza — disse Pamela. — Cada garota tem de ser patrocinada... e não pode ser por sua própria família. A companhia pagará todas as suas despesas. Claro que não precisamos disso, mas é assim que se faz.
— Quem poderia me patrocinar?
— Diversas empresas — respondeu ela, irritada. — E então, Peter?
— Falarei com Gerry Lawson amanhã. Ele já me deu uma aprovação preliminar. Não se preocupe.
Pamela relaxou. Aquilo ia mesmo acontecer? Eu participaria de um concurso de beleza? Logo eu? Experimentei a sensação de que alguma coisa dentro de meu peito fazia cócegas no coração com uma pluma. Mas tive medo de deixar transparecer qualquer relutância, pois isso deixaria Pamela de mau humor e agressiva.
No sábado, Peter levou-me à casa de Lisa. Pamela postou-se atrás de mim à mesa de maquilagem, para ter certeza de que eu faria tudo direito.
— Quem sabe que pessoas você poderá encontrar lá? — murmurou ela.
Pamela foi conosco, para poder ver a casa dos Donald. Era maior do que a nossa, o que eu não imaginava que fosse possível. Tinha mais terreno, a piscina era maior, contava com uma casa de hóspedes e duas quadras de tênis de argila. Pamela comentou que a casa era ao estilo Renascimento grego. Manifestou sua inveja pela porta da frente recuada.
— Eu queria ter uma porta assim — lamentou-se ela. — Temos de reformar a fachada da nossa casa.
— Não há nada de errado com a nossa entrada, Pamela — protestou Peter.
Ela ficou contrariada. Mas logo se reanimou quando saí do carro. Disse que eu devia me comportar direito, lembrar todas as boas maneiras que me ensinara.
— Especialmente quando estiver comendo, Brooke. Acenei e me afastei apressada. Lisa abriu a porta ao toque da campainha. Já usava um traje de tenista.
— Ainda bem que você chegou mais cedo. Venha comigo.
Ela pegou na minha mão e me puxou pela casa enorme. Pude apenas vislumbrar salas grandes, móveis luxuosos e muitos quadros. A decoração era diferente da nossa, com uma aparência mais antiga.
Saímos por uma porta lateral e seguimos para a quadra de tênis. Havia um aparelho instalado num lado.
— O que é aquilo?
— Papai comprou para treinarmos a devolução do serviço. Já vai ver como funciona.
Ela me entregou uma raquete, ressaltando que era uma das melhores. Depois me mostrou como segurá-la, os movimentos para bater na bola. Estava excitada com a idéia de me ensinar.
— Jamais conheci alguém que nunca tivesse sequer segurado uma raquete de tênis, Brooke.
Mas ela não me interrogou, como Heather faria. Apesar de praticamente crescer com uma raquete de tênis na mão, Lisa não era uma boa jogadora. Não demorei muito para dominar os movimentos básicos. Depois de uma dúzia de rebatidas, passei a desenvolver um serviço razoável. Logo descobri que tudo o que precisava fazer para derrotá-la era jogar a bola para um lado e depois para o outro com um pouco mais de força. Mas tratei de me controlar, porque percebi que Lisa começava a se irritar.
— Você é atlética demais. — Ela fez uma pausa, fitando-me com uma expressão desconfiada. — Estava mentindo? Já tinha jogado tênis antes?
— Não. — Sacudi a cabeça. — Nunca tinha jogado.
— Parece estranho, ainda mais agora que posso ver como você joga.
Compreendi que ela não ia acreditar em mim.
— Juro que nunca tinha jogado.
Lisa acabou aceitando. De qualquer forma, não houve mais tempo para conversar a respeito. Harrison e seu amigo gritaram para nós da frente da casa. Atravessaram o gramado para as quadras de tênis.
As garotas na escola tinham razão: Harrison era mesmo um rapaz bonito, de cabelos escuros. Era alto, as pernas compridas e esguias, saindo de um short de tênis branco. Usava uma camisa pólo branca, com filetes pretos nas mangas e na gola. Ao chegarem perto, vi que Harrison tinha sobrancelhas espessas e escuras. Os olhos eram quase pretos, num rosto estreito com malares salientes e uma boca forte. Exibia um sorriso malicioso nos lábios firmes e mantinha um ar arrogante, como faria um rapaz que sabia que era bonito e rico.
Seu companheiro era mais baixo, corpulento, cabelos claros, o rosto redondo e olhos azuis. O lábio inferior parecia mais grosso que o de cima. Havia uma certa suavidade em suas faces e queixo que o faziam parecer mais infantil do que bonito.
— É esta a sua Mickey Mantle, a grande jogadora de beisebol? — indagou Harrison, rindo.
Seu amigo dava a impressão de que seu rosto era de cera, alguém gravando ali um sorriso.
— Brooke, meu primo Harrison — apresentou Lisa.
— Oi — disse ele. — Este é Brody Taylor. Já conhece minha prima Lisa.
— Já, sim — murmurou Brody.
— É tão boa no tênis quanto é no softball? — perguntou-me Harrison.
— Não. Acabo de ter minha primeira aula.
- De Lisa? - Ele riu. - É uma cega ensinando a uma cega.
- Acha mesmo? - Lisa olhou para mim e sorriu. Por que não começamos com homens contra mulheres?
— Não teremos adversárias — gabou-se Harrison.
— Estamos dispostas a correr o risco.
— Qual é a aposta?
— O que você quer apostar?
— A virgindade?
Lisa ficou vermelha. Brody soltou uma risada, quase uma fungadela, com o ar sendo expelido pelo nariz e o corpo tremendo.
— Você ainda é virgem? — contra-ataquei.
Era como se estivéssemos jogando tênis com as palavras. Foi a vez de Harrison ficar vermelho.
— Vamos apostar vinte dólares — sugeriu ele.
— Combinado — respondeu Lisa.
— Vinte dólares? — repeti. — Eu não trouxe nenhum dinheiro.
— Não se preocupe — disse Lisa. — Você sempre poderá me pagar na escola se perdermos.
— Que história é essa de se perderem? — interveio Harrison. — Deveria dizer quando perderem.
Brody riu de novo.
— Nem mesmo conheço as regras — sussurrei para Lisa.
— Basta rebater a bola dentro das linhas. — Ela virou-se para Harrison. — Por que vocês dois não fazem um aquecimento?
— Não precisamos de um aquecimento... não é mesmo, Brody?
Ele deu de ombros. Harrison tirou sua raquete da bolsa. Brody fez a mesma coisa. Foram ocupar suas posições no outro lado da rede.
— O primeiro serviço é meu — disse-me Lisa. Meu coração batia forte. Vinte dólares! Eles falavam a respeito como se fosse uma quantia insignificante.
Começamos a jogar. Harrison era bom, mas Brody era lento. Logo percebi a maneira como ele costumava se postar e descobri que em geral ficava desequilibrado. Havia coisas que eram comuns a todos os esportes: postura, equilíbrio, condicionamento e ritmo. Tudo o que eu precisava fazer era devolver a bola para Brody com alguma rapidez. Ele a rebatia para fora ou na rede. Ao vencermos um set depois de outro, Harrison foi se tornando cada vez mais irritado. Concentrou sua raiva em Brody, o que só o fez jogar pior. Quando Lisa e eu ganhamos a partida, Harrison jogou sua raquete para o gramado.
— Você mentiu — declarou ele, apontando para Lisa.
— Menti em quê?
— Não acabou de ensiná-la a jogar. Ninguém aprende tão depressa a bater na bola desse jeito.
— Não menti! — protestou Lisa, as mãos nos quadris. — Foi o que ela me contou. Certo, Brooke?
— É verdade.
Como Harrison ainda não parecesse satisfeito, resolvi acrescentar:
— Vamos esquecer o dinheiro.
— Quem se importa com o dinheiro? — murmurou ele. — Brody, dê a elas os vinte dólares.
— Por que tenho de pagar tudo?
— Porque você deixou que duas garotas da Agnes Fodor nos fizessem bancar os idiotas.
Brody enfiou a mão no bolso e tirou um rolo de dinheiro. Separou duas notas de dez e entregou a Lisa. Ela pegou o dinheiro com um sorriso de satisfação. Estendeu-me uma nota.
— Não quero o dinheiro, Lisa.
— Porque você mentiu, não é? — interveio Harrison.
— Não. Porque não preciso do dinheiro e porque joguei apenas para me divertir.
— Está bem. Vamos comer alguma coisa, Lisa. Ela não parava de sorrir. Harrison pegou sua raquete no gramado, e fomos todos para a casa. Nosso almoço já fora posto. Parecia bastante abundante para uma recepção de casamento, em minha opinião, mas para eles era apenas outra refeição. Havia muitas opções, carnes e frios, pães, saladas, batatas diferentes.
— Onde estão seus pais? — perguntou Harrison a Lisa.
Sentávamos a uma mesa no pátio, coberta com uma toalha. Os empregados se movimentavam ao redor, discretos, tirando pratos, trazendo mais comida.
— Foram jogar golfe.
A comida estava deliciosa. Tentei me lembrar da etiqueta às refeições. Mas como sentia muita fome, comecei a comer depressa demais.
— Faminta ou o quê? — indagou Harrison.
— Esqueci de tomar o café da manhã.
Não fora o que acontecera, mas era algo que Lisa ou uma das outras garotas diria. Ele aceitou.
— Por que demorou tanto para chegar aqui? — perguntou Harrison.
— Como?
Olhei para Lisa, sem entender.
— Ele está falando da Agnes Fodor.
— Ah... Não sei. Apenas... meus pais decidiram de repente que era a escola que eu deveria cursar.
Ele me fitou atentamente, para depois sorrir.
— São de verdade?
— Como?
— Esses peitos. São de verdade?
— Harrison! — protestou Lisa.
— Só estou perguntando. Não há nada de errado em perguntar, não acha, Brody?
Brody, concentrado na salada de lagosta, levantou o rosto e sacudiu a cabeça. Tinha as bochechas estufadas por comida.
— E então? — insistiu Harrison.
— Não é da sua conta. Ele riu.
— Isso em geral significa que não... certo, Brody? Brody acenou com a cabeça, enfático.
— O que ele é? — perguntei abruptamente. — Seu fantoche?
Harrison soltou outra risada.
— Gostei dela, Lisa. Melhor do que aquelas outras garotas irritantes que você chama de amigas. — Ele inclinou-se para mim, por cima da mesa. — Talvez eu a convide para um mano a mano em minha casa.
— Como?
— Um jogo de tênis. — Ele se recostou, sorrindo. — Ou você prefere fazer outra coisa?
— Não quero fazer nada com você.
— Qual é o problema? Preocupada com a sua virgindade?
Brody começou a rir.
— Não. Com a minha reputação.
Brody fez uma pausa, para depois continuar a rir ainda mais alto.
— Fique quieto! — disse Harrison, ríspido. Ele me fitou, furioso.
— Não é qualquer garota que convido para a minha casa.
— O que me surpreende.
Brody teve de morder o lábio para conter outro acesso de riso. Harrison percebeu, pelo canto dos olhos.
— Querem escutar música? — indagou Lisa, nervosa. — O que você prefere, Harrison?
Ele virou-se para fitá-la, irritado.
— Para quê? Não estou interessado em desperdiçar mais do meu tempo. — Harrison levantou-se. — Talvez eu vá assisti-la no seu próximo jogo de softball.
— Está certo.
— Não vá errar as três bolas na rebatida — disse ele, com um sorriso satisfeito —, ou mandarei meu fantoche aqui rir de você.
— Não posso pensar numa razão melhor para acertar.
Olhei para Brody, que limpou a boca, agradeceu a Lisa pelo almoço e se afastou apressado para alcançar Harrison. Ficamos observando os dois em silêncio. Depois de algum tempo, Lisa virou-se para mim.
— Foi demais. Ninguém jamais respondeu a Harrison desse jeito. A maioria das minhas outras amigas fica atordoada quando o encontra.
Ela inclinou a cabeça, fitando-me com uma evidente curiosidade.
- O que é?
— Você é diferente, Brooke.
— Como assim? — perguntei, sentindo o coração bater como um martelo dentro do peito.
— Não sei. É cheia de surpresas, como aquele inesperado home run. Mas... — Lisa levantou-se de um pulo. — É isso o que gosto em você. E agora vamos ouvir música e conversar.
Segui-a para dentro da casa, sentindo-me uma mentirosa, como se não pertencesse àquele lugar. Mas me sentia mais transtornada por mentir para mim mesma do que para minhas novas amigas.
A verdade é que eu só me sentia autêntica quando jogava softball ou me empenhava em algum outro esporte. Nessas ocasiões, minha verdadeira personalidade não podia permanecer oculta.
Harrison ficaria desapontado. Eu não erraria nenhuma bola.
Bases ocupadas
Perdemos o jogo seguinte, mas não porque eu errasse as rebatidas ou porque as adversárias acertassem meus lançamentos. Nosso time cometeu erros demais, o maior de Cora Munsen, que deixou cair uma bola fácil, com duas jogadoras nas bases. A maneira como ela me fitou depois dava a impressão de que fizera de propósito, só para me prejudicar. A treinadora Grossbard devia ter pensado a mesma coisa, porque no vestiário perguntou o motivo para não segurar uma bola tão fácil.
— O sol não estava em seus olhos e sua posição era boa. O que aconteceu, Cora?
— Não sei — respondeu Cora, baixando os olhos.
— Não consigo entender. Qualquer uma poderia segurar aquela bola.
Cora não disse nada.
— Talvez ela estivesse ansiosa demais — sugeri. — Já aconteceu comigo. Fico pensando em lançar a bola antes mesmo de pegá-la.
Claro que nunca ocorrera comigo, mas já vira acontecer várias vezes com outras garotas. Cora levantou os olhos no mesmo instante, grata pela sugestão.
— Acho que foi isso.
A treinadora ainda parecia desconfiada.
— Vamos torcer para que não aconteça de novo na partida contra Westgate no próximo sábado. Nunca chegamos sequer perto de vencê-las. Nos últimos três jogos nem conseguimos marcar qualquer ponto.
— Não vai acontecer de novo — prometeu Cora.
A treinadora colocou cartazes com as palavras ”Vamos detonar Westgate” nas paredes do vestiário durante a semana. Descobri que havia uma intensa rivalidade entre as duas escolas. A pressão para o sábado começou a aumentar. Era difícil para mim me concentrar nas aulas de piano e nas aulas de modelo, ao mesmo tempo em que fazia os deveres da escola e participava dos treinos.
Durante a aula de piano na quarta-feira, o professor Wertzman teve um ataque.
— Você parece ter esquecido tudo. Esses erros não poderiam ser cometidos por alguém que deveria estar praticando.
Ele levantou-se de um pulo, foi até o piano, balançando a cabeça, com uma expressão furiosa.
— Desculpe — murmurei. — Estou me esforçando.
— Não está, não! Sei quando uma aluna se esforça. Fiz promessas à sua mãe, mas você torna impossível cumpri-las.
Lágrimas turvaram meus olhos. Baixei a cabeça e esperei que sua fúria se dissipasse.
— Vão rir de mim. Tenho uma reputação a proteger. E minha reputação é meu sustento.
— Estou me esforçando. Prometo que me empenharei ainda mais.
Wertzman fitou-me com uma expressão que me fez sentir que não era digna de sequer ficar na sua presença. Meus lábios começaram a tremer. Foi nesse momento que Pamela entrou na sala. Logo depois do jantar sua esteticista viera fazer um tratamento em seus cabelos. Pamela garantira que isso os tornaria mais cheios e lustrosos. Não me pareciam nem um pouco diferentes.
— O que está acontecendo aqui? — indagou ela, com as mãos nos quadris.
O professor fitou-me e balançou a cabeça.
— Devo ter a total cooperação e atenção da aluna para ter êxito.
— Brooke, você não está se esforçando?
— Estou, sim. Apenas não sou tão boa ao piano quanto todo mundo pensa.
— Quem pensa assim? — murmurou o professor. — Mas você não pode ser boa se não pratica e não presta atenção. E sei que não tem praticado o suficiente.
— Juro que tenho praticado.
— Acha que ela precisa de mais prática? — perguntou Pamela.
— No ritmo em que vai, isso é indispensável. Eu gostaria que ela acrescentasse pelo menos mais quatro horas de prática por semana.
Foi como se eu tomasse uma colher de sopa de óleo de rícino ou levasse uma chicotada nas costas.
— Mais quatro horas? Quando eu poderia fazê-lo? Pamela fitou-me com uma expressão fria.
— Creio que o mínimo que pode fazer é encontrar tempo, considerando os sacrifícios e despesas que Peter e eu temos feito por você. Ela vai praticar mais quatro horas, todos os sábados, daqui por diante.
O professor ficou satisfeito.
— Não posso praticar mais no sábado... especialmente no próximo sábado. Será o maior jogo do ano!
— Jogo? — repetiu o professor, olhando para Pamela.
— Não dê atenção ao que ela diz, professor Wertzman. Por favor, dê suas instruções sobre o que quer que ela pratique e o que espera que faça no próximo sábado.
Ela virou-se para mim, os olhos como pedras frias.
— Estou enviando o pedido para o primeiro teste do concurso esta noite, Brooke. Você precisa estar pronta para todas as possibilidades. — Ela acrescentou, quando fiz menção de falar: — Não quero ouvir mais nenhuma palavra a respeito.
— Mas o sábado é muito importante! — insisti, apesar de sua ordem. — Todas dependem de mim!
Pamela revirou os olhos para o teto, como se sofresse uma profunda angústia emocional. Sem olhar para mim, ela declarou:
— Se houver mais algum problema ou se o professor se queixar de novo, ligarei para a sra. Harper e direi que você está proibida de integrar qualquer equipe, de beisebol, damas ou outra coisa.
Ela fez a ameaça sem desviar os olhos do teto. Virou-se em seguida, saiu da sala e afastou-se pelo corredor. O professor virou-se para mim e ordenou:
— Vire a página e comece de novo.
As lágrimas em meus olhos deixavam as notas indistintas. Respirei fundo e tentei dissolver o aperto na garganta. Mas persistiu, como se fosse um pedaço de chiclete grudado ali. A respiração era difícil. Ainda assim, fiz o que o professor pediu. Era mais como uma tortura agora, sua respiração em meu rosto, seus grunhidos e tapas no piano. Mas suportei cada momento, apavorada com a possibilidade de Wertzman queixar-se de novo a Pamela.
Assim que a aula terminou, levantei e saí correndo da sala. Subi a escada, os pés ressoando nos degraus com tanta força que toda a estrutura tremia. Bati a porta do quarto e sentei à escrivaninha, furiosa. Sentia-me zangada demais para fazer qualquer dever.
Minutos depois, houve uma batida na porta.
- Entre!
Peter abriu a porta.
— Vi você passar voando pelo corredor e depois ouvi a casa caindo sobre a minha cabeça. Qual é a crise de hoje?
— O professor de piano acha que estou indo muito mal e quer que eu tenha pelo menos mais quatro horas de prática. Pamela diz que tem de ser no sábado... e neste sábado teremos o maior jogo do ano. Ela disse também que se eu criar mais problemas, vai pedir à sra. Harper para me tirar de todos os times. Não é justo!
— Parece severo demais — concordou Peter. Depois de um momento pensativo, seus olhos se iluminaram. — Que tal levantar mais cedo e praticar antes de ir para a escola?
— Praticar não vai me ajudar. Não sou boa no piano.
— Se fizer o que sugeri, cuidarei para que Pamela não fale com a sra. Harper.
Outra negociação, pensei, outro acordo obtido pelo advogado que é meu pai adotivo. Já me levantava mais cedo para cuidar da maquilagem, porque Pamela queria que eu parecesse bonita. Talvez fosse melhor nem dormir, pensei. Mas que opção eu tinha? Uma criança adotada era como alguém sem direitos ou sentimentos. Se eu queria pais, um lar e um sobrenome, tinha de ser obediente. Pamela falara num teste para o concurso de beleza, mas na verdade eu fazia um teste para ser sua filha.
— Está certo. Praticarei também pela manhã, antes de comer.
— Ótimo. Outra crise resolvida.
Peter estalou os dedos, satisfeito, e desceu para comunicar a Pamela como seria.
Apesar do meu entusiasmo e determinação, os muitos compromissos começaram a cobrar seu tributo.
Era mais difícil durante as aulas da manhã. Tinha a sensação de que me arrastava pelos corredores, mais arriava do que sentava na carteira. Por duas vezes cheguei a cochilar por uns poucos minutos na aula de inglês. O sr. Rudley teve de se aproximar e me sacudir pelo ombro depois de fazer uma pergunta. Meus olhos estavam abertos, mas eu não o ouvira. Pedi desculpas, é claro.
Mas acordava, de alguma forma, nos treinos de softball. Talvez fosse porque voltava a respirar ar fresco. Era a terceira semana de maio agora. As plantas estavam viçosas, com um verde lustroso. Duas noites de chuva durante a semana trouxeram os mosquitos, no entanto, e as outras garotas começaram a se queixar. O gramado estava mole, até úmido em alguns pontos. Todas ficávamos imundas ao final do treino, os uniformes sujos de lama, as mãos e cabelos suados, com picadas de mosquitos nos braços e pescoço.
Nada disso importava para mim. Sentia que estava em casa. Mas minhas colegas de time queriam que a treinadora Grossbard mandasse limpar e secar o campo. Por toda parte em que iam na vida, aquelas garotas ricas e mimadas esperavam que alguém mudasse as coisas, para agradá-las ou tornar tudo mais fácil.
Naquela tarde, quando voltei para casa, Pamela viu as pequenas manchas vermelhas na minha nuca. Teve um acesso histérico. A princípio, ela pensou que fosse por causa de alguma coisa que eu comera. Acusou-me de consumir chocolate na escola. Depois, achou que era uma reação alérgica a algum outro alimento. Já ia pegar o telefone para falar com seu dermatologista. Foi nesse instante que eu disse que não passavam de picadas de mosquitos. Pamela ficou imóvel, aturdida, como se eu tivesse enlouquecido.
— Mosquitos? Picadas de mosquitos? Mas é inadmissível! Suba e entre na banheira imediatamente. Não percebe como isso pode destruir sua pele... e a poucas semanas do teste para um concurso de beleza?
— As marcas das picadas não duram muito. E na próxima vez usarei um repelente.
O que disse só serviu para deixá-la ainda mais furiosa.
— Não se pode passar substâncias químicas na pele sem mais nem menos. Já me viu fazer isso? Pensei que tinha lhe dito para me estudar, ser como eu. Suba.
Pamela me acompanhou. Foi uma surpresa quando me levou para o seu banheiro. Ali, mandou que eu me despisse e entrasse na sauna de vapor. Ligou um controle. O vapor começou a sair dos dutos, até que eu não podia mais ver a porta. Experimentei a sensação de estar sendo cozinhada. Gritei que já era demais, mas o vapor continuou a sair. Encontrei a maçaneta, mas descobri que não podia abrir a porta.
— Pamela! — gritei. — Está quente demais!
O vapor continuou. Deitei no chão, porque era o lugar mais fresco, e esperei. Quase dez minutos depois, o vapor cessou e a porta foi aberta.
— Saia!
Eu me sentia tonta e pensei que ia desmaiar, mas me mantive imóvel enquanto Pamela examinava meu corpo.
— Ótimo! — exclamou ela.
— Estava muito quente lá dentro.
— Tem de ser assim para eliminar os venenos. Agora, você precisa tomar seu banho.
Joline fora chamada para prepará-lo. Depois que entrei na banheira, Pamela pôs-se a esfregar minha pele com uma escova dura, deixando-a mais vermelha nos pontos das picadas dos mosquitos. Ela despejou diversos óleos na água. Passou o xampu em meus cabelos com tanto vigor que até pensei que deixaria o couro cabeludo sangrando.
Saí da banheira, exausta, quando ela mandou. Mal tinha forças para me enxugar. Como demorava demais, Pamela gritou para que me apressasse.
— Use o secador nos cabelos, Brooke.
Antes de enrolar a toalha, ela examinou meu corpo com mais interesse do que nunca.
— Qual é o problema? — perguntei. Ela sacudiu a cabeça.
— Ainda está acontecendo. Na verdade, até se torna pior. Você parece muito... masculina. Não tem lugares macios. Até os seios parecem feixes de músculos.
Pamela fez uma careta, a boca contorcida, os olhos cheios de preocupação.
— Quero que vá ao meu médico.
— Médico? Por quê?
— Acho que você não está se desenvolvendo direito. Vou marcar uma consulta.
— Eu me sinto bem.
— Não me parece estar bem. Talvez precise de alguns hormônios femininos. Não sei. Deixaremos o médico decidir.
Pamela saiu. Eu me sentia quase que fraca demais para segurar o secador. Depois que me vesti, desci para o jantar. Só poderia ficar mais apática se dormisse. Peter viajara a trabalho de novo. Não havia sequer uma possibilidade de que ele voltasse a tempo para o grande jogo no sábado. Pamela sentou à mesa e fez uma preleção sobre a importância de proteger minha pele.
— Há muita coisa que a maquilagem pode fazer, Brooke. Alguns dos juizes desses concursos de beleza chegam tão perto que podem perceber as menores imperfeições. E não pense que isso não desempenha um papel importante em suas decisões. Porque desempenha. Se encontrarem uma mancha feia em sua pele, o efeito será desfavorável, por melhor que seja seu
desempenho nas outras categorias. Especialmente os juizes do sexo masculino.
Ela fez uma pausa para respirar fundo, depois perguntou:
— Por que não está comendo?
— Perdi o apetite porque passei muito tempo na sauna.
Foi o suficiente para lançá-la a uma nova tirada.
— O problema não foi a sauna. A remoção do veneno deve tornar seu corpo mais eficiente. O problema é aquele estúpido jogo de softball, ao sol quente e destrutivo, os mosquitos se banqueteando em sua pele, enchendo os poros de sujeira. E não tem usado de maneira adequada o creme para as mãos.
Ela me fitava atentamente, os dedos tamborilando sobre a mesa, enquanto Joline circulava ao nosso redor tão silenciosa e rápida quanto podia, tirando os pratos, ajeitando talheres, servindo água nos copos. Estudei Pamela. Não havia um único fio de cabelo fora do lugar. Sua maquilagem estava perfeita. Parecia pronta para uma sessão fotográfica profissional. Ocorreu-me que ela fazia um esforço maior para parecer bonita do que a maioria das pessoas para ter um bom desempenho em seu trabalho.
Depois do jantar, a aula de piano foi extenuante. O professor Wertzman sentiu minha exaustão assim que começou. Em vez de facilitar a aula, obrigou a repetir os exercícios várias vezes, pondo defeito em tudo, como sempre. Em determinado momento, ficou tão irritado que chegou a dar um tapa em minha mão esquerda. Não me machucou, mas foi surpreendente e abrupto. Senti um choque elétrico no coração e perdi a respiração por um momento.
— Não, não, não! — exclamou ele. — Não, não, não! De novo! De novo!
Como sempre, eu me encontrava à beira das lágrimas quando a aula terminou. Subi para meu quarto, sentei à escrivaninha, atordoada, olhei para os deveres da escola ainda por fazer. Não tinha energia suficiente para abrir o livro, muito menos para iniciar o trabalho escrito. Adormeci sentada ali e despertei com um sobressalto, quando a porta do quarto foi aberta.
— O que está fazendo? — perguntou Pamela. Esfreguei os olhos e olhei para o livro aberto.
— Terminando o dever de matemática.
— Quero examinar sua pele. — Ela se adiantou para inspecionar meu pescoço. — Vou ligar para a sra. Harper pela manhã e apresentar uma queixa formal contra tudo isso. Não devem permitir que as alunas fiquem expostas enquanto não eliminarem os insetos.
— Não, por favor, Pamela, não faça isso. Prometo que manterei o pescoço coberto. Não haverá mais picadas amanhã. Por favor!
— Tudo isso é absurdo demais. Moças bonitas se arriscando a esses danos. Os esportes são para os homens. A pele deles é mais dura que a nossa. E seus músculos maiores.
— Lisa Donald e eu vencemos seu primo Harrison e o amigo dele no tênis no outro dia — ressaltei.
Ela tornou a me fitar com aquela estranha expressão nos olhos, uma mistura de preocupação e espanto.
—- Já ouvi dizer que algumas moças pensam como rapazes por causa de deficiências hormonais. Começo a me perguntar se você não tem essa condição médica. Em vez de se orgulhar por vencê-los no tênis, deveria se orgulhar da maneira como olham para você, como atrai e conquista sua atenção. A consulta médica será na próxima terça-feira, depois das aulas. Portanto, venha direto para casa.
— Não preciso ir ao médico.
— Sou sua mãe agora, e estou lhe dizendo que quero que seja examinada por um médico. — Pamela exibiu um sorriso cruel. — Sei que não está acostumada a ter alguém se preocupando tanto com você, Brooke, mas é isso o que significa ter pais. Deveria ser grata, em vez de rebelde. Eu bem que gostaria de ouvir um agradecimento de vez em quando, em vez desse constante fluxo de reclamações. E tudo por causa de seu estúpido envolvimento com o time de softball.
— Claro que estou grata. Apenas não entendo por que tenho de ir ao médico. Não estou doente ou qualquer outra coisa.
— Às vezes vamos ao médico para prevenir as doenças. Não pode compreender isso?
— Posso.
Respirei fundo e olhei para o livro.
— O que mais, Brooke?
— Obrigada, Pamela.
— Assim é melhor. Ah... — Ela já estava na porta. — Peter telefonou. Não voltará para casa a tempo de comparecer ao banquete dos mosquitos no sábado. Você terá de providenciar seu transporte. Tenho uma consulta especial com meu dermatologista no sábado. Ele quer me mostrar um novo tratamento para o rejuvenescimento da pele. Boa-noite.
Passei a me sentir mais atordoada do que cansada. Minha mente era um turbilhão, todas as declarações e idéias de Pamela ricochetando por toda parte como bolas de tênis descontroladas. Sabia que não fizera direito os deveres de casa. Quando os recebi de volta, um dia depois, a nota era insuficiente.
— Se não melhorar sua média na próxima prova — disse o sr. Sternberg, na frente de toda a turma —, talvez não possa participar das atividades extracurriculares no ano que vem.
Eu sabia que isso incluía todos os esportes.
Meu coração esvaziou como um balão murcho. Olhei para algumas colegas. À exceção de Heather, todas pareciam preocupadas por mim. Ela sorria, os olhos verdes de inveja faiscando como as chamas de duas velas. Até mesmo Cora Munsen sentiu pena de mim. Depois da aula, ao deixarmos a sala, ela me abordou no corredor e sussurrou:
— Se precisar das respostas na próxima segundafeira, basta dar uma olhada em meu trabalho.
Enquanto ela se afastava apressada, Rosemary Gillian postou-se ao meu lado e murmurou:
— Se precisar do dever de estudos sociais, pode copiar o meu durante o almoço.
Ri para mim mesma, lembrando os comentários iniciais da sra. Harper.
As alunas da Agnes Fodor não colam. Eram garotas especiais, a nata da sociedade, sofisticadas, privilegiadas e refinadas, das melhores famílias.
Sinto muito, sra. Harper, pensei. A única coisa realmente especial na Escola Feminina Agnes Fodor eram as mentiras entrelaçadas em seu emblema.
Tivemos o nosso maior público no jogo de sábado. Não poderia ser um dia melhor para uma partida de softball. O céu era de um azul gelado, com uma nuvem ocasional, mais parecendo um sopro de fumaça. Soprava uma brisa fresca, apenas o suficiente para deixar as pessoas mais confortáveis na arquibancada.
Como eu não tinha quem me levasse, Rosemary pediu a seu irmão David que fosse com ela me buscar. David não estudava numa escola particular. Achei isso estranho, até ele explicar que era amigo de muitos colegas na escola pública e não queria deixá-los.
— Também conheço gente em Westgate — comentou ele, depois que entrei no carro. — Disseram que haverá mais emoção na partida de hoje do que em muitos jogos masculinos. Pela primeira vez em anos pode haver uma disputa de verdade.
A declaração foi um tanto exagerada. As garotas de Westgate eram mais fortes e mais determinadas do que todas as outras com quem já jogáramos. Tornara-se uma questão de honra para elas manter a série de vitórias de sua escola contra a Agnes Fodor. Como alguém podia
perder um jogo para uma escola de garotas ricas e mimadas?
Mas nosso time também estava determinado. A treinadora Grossbard nos fez uma preleção para a vitória.
— Todos pensam que vocês são um bando de garotas sem fibra. Vão esperar que cedam sob pressão e entreguem o jogo, como sempre aconteceu no passado. Mas há um novo espírito aqui. Cada uma e todas vocês melhoraram. — Ela fez uma pausa, lançando-me um olhar. — E me orgulho do que jogam hoje. Saiam agora e mostrem a todo mundo o que são capazes de fazer.
Aplaudimos a preleção e fomos para o campo. Fiz os meus melhores lançamentos e elas só acertaram uma bola durante os cinco primeiros turnos. O problema era a lançadora delas, uma garota alta e morena, de cabelos castanho-escuros, com um corpo tão musculoso que sem dúvida faria Pamela desfalecer de horror. Ela lançava as bolas com uma precisão implacável. Passei pelo bastão duas vezes, sem conseguir rebater nenhuma bola. Cora ainda acertou uma, mas foi direto para a mão de uma jogadora adversária.
Um erro do nosso lado pôs uma jogadora delas na base, no último turno. A jogadora seguinte errou as rebatidas, mas a que entrou depois acertou uma bola que caiu entre a segunda base e a nossa jogadora no centro. Seu lançamento conseguiu manter a jogadora delas na terceira base. Uma das melhores batedoras adversárias entrou no jogo. Respirei fundo, várias vezes, enquanto olhava para a multidão. Havia um silêncio de expectativa. Algumas pessoas davam a impressão de que prendiam a respiração. Avistei o sr. Rudley na arquibancada. Ele me sorriu e levantou o polegar. Teria sido maravilhoso ver Peter ali também, me aplaudindo, pensei.
Meu primeiro lançamento foi fora da área, mas o segundo foi na parte baixa da zona de rebatida. A batedora errou. Ela alegou que a terceira bola foi fora dos limites. Acertou em seguida uma bola que veio direto para cima de mim. Permaneci na posição e peguei-a, embora doesse a mão, mesmo com a luva. Virei-me no instante e joguei a bola para a nossa jogadora na primeira base. A corredora delas já fora muito longe e não conseguiu voltar a tempo. Conseguimos tirar do jogo ao mesmo tempo a batedora e a corredora.
Nossa torcida delirou. Pais, irmãos, irmãs e amigos se levantaram para nos aclamar, ao sairmos do campo. A vitória ainda era possível, com o jogo indefinido. Mas nossa primeira batedora errou três lançamentos. Nossa confiança começou a definhar. Ninguém o disse, mas quase que se podia ouvir as pessoas pensando que cansaríamos primeiro.
Eu era a quarta, mas alguém teria de entrar na base. Heather foi a seguinte. Desferiu o bastão com os olhos fechados, afastando-se tanto da base que provocou risos e zombarias da torcida adversária.
— Qual é o problema, meu bem? Está com medo de borrar a maquilagem?
— Acha que vai estragar a plástica no nariz?
— Tome cuidado. A próxima bola tem seu nome gravado: Garota Medrosa.
Os risos contagiaram os torcedores. Apesar dos nossos esforços e da boa partida até aquele momento, ainda nos consideravam uma piada. Percebi que algumas companheiras sentiam-se magoadas. Se não fizéssemos alguma coisa agora, pensei, certamente perderíamos o jogo.
Eva Jensen era a seguinte no bastão. Parei a seu lado, a caminho da base.
— Ela está lançando um pouco mais para dentro, Eva. Dê um passo para trás e tente acertar no lado direito.
Eva acenou com a cabeça e assumiu a posição. O primeiro lançamento foi muito baixo, mas o segundo foi exatamente como eu indicara. Eva recuou e desferiu o golpe. Acertou em cheio. A bola seguiu para a primeira base. A garota ali calculou errado. A bola passou por cima de sua cabeça e foi para o lado direito. Uma corredora nossa alcançou-a primeiro.
Olhei para a treinadora Grossbard, que me ouvira dar o conselho a Eva.
— Ela é esperta — disse Grossbard. — Você não vai ter outro lançamento previsível.
Acenei com a cabeça e fui para a base. Mais uma vez, houve silêncio na arquibancada. A lançadora tentou me fazer rebater dois lançamentos que foram baixos e fora, mas consegui me conter. O lançamento seguinte veio pelo canto externo. Era do tipo que exigia muita força na rebatida. Inclinei-me para a direita e desferi o golpe. O bastão acertou na bola um pouco abaixo da extremidade.
A bola subiu.
E continuou a subir, passando por cima da cabeça da jogadora no lado esquerdo, passando por cima da cerca. Eu conseguira um home run.
Já estivera em jogos na escola pública, especialmente as partidas de basquete mais emocionantes, em que o público gritava tão alto que meus ouvidos zumbiam. Eis o que acontecia agora. Enquanto eu contornava as bases, nossos torcedores aclamavam tão alto que senti os ouvidos doer em. O sr. Rudley tinha um sorriso enorme, a treinadora Grossbard... a treinadora Grossbard tinha lágrimas de alegria escorrendo pelo rosto, durante minha corrida pela segunda e terceira bases.
Cora me deu um abraço que quase rachou minhas costelas. Todas no time me cercaram. Heather manteve-se à beira do grupo, exibindo um sorriso forçado. Não podia me lembrar de outra ocasião em minha vida na qual me sentisse mais emocionada e mais orgulhosa de mim mesma. A multidão manifestava seu reconhecimento. Mas, infelizmente, nem meu novo pai nem minha nova mãe se encontravam presentes para testemunharem aquele momento. Eu continuava sozinha como sempre estivera antes, mesmo agora, mesmo quando queria tanto meus pais que o coração até doía.
Lisa Donald anunciou uma festa da vitória em sua casa. Todas do time foram convidadas, é claro, até mesmo a treinadora Grossbard. Seria um churrasco. Ao voltar, entrei correndo em casa, na esperança de que o convite para a festa de Lisa pudesse fazer Pamela compreender como tudo aquilo era importante para mim. Talvez até ela passasse a se orgulhar de meus feitos esportivos.
Em vez disso, encontrei-a quase transtornada. Peter não voltara para casa tão cedo quanto ela esperava. Antes mesmo que eu tivesse tempo para contar qualquer coisa, Pamela gritou:
— Tudo está desmoronando!
— O que aconteceu?
Parei no vestíbulo, segurando a luva e a bola da vitória. Todas haviam assinado... e a assinatura da treinadora Grossbard era a maior. Também constava a data do jogo.
— Seu teste para o concurso foi confirmado, mas esqueci a parte mais importante, não sei como. Provavelmente por causa de toda a confusão em torno de suas aulas de piano.
Pamela começava a esvaziar minha bolha de excitamento.
— O que é tão importante assim?
— Suas fotos! — Ela olhou para a porta. — Onde ele está? Onde ele está?
— Quem? Peter?
— Não. O fotógrafo. Mandei que ele viesse para cá e aprontasse tudo antes de sua volta. Quero que as fotos sejam tiradas no átrio, perto das portas da sala de estar. As flores ali vão proporcionar um fundo colorido. A impressão será mais real... e você será como uma princesa. Por que continua parada aí, Brooke? Suba correndo e tire a sujeira de sua pele. Tome um banho, passe bastante xampu, comece a se maquilar. Devemos estar prontas dentro de uma hora.
— Não quer saber o que aconteceu no jogo?
— Jogo? Que jogo? Aquilo que vocês chamam de softball?
— Isso mesmo. Vencemos o jogo. Consegui um home run no último turno e virei o jogo a nosso favor. Foi como uma decisão de campeonato. Havia muita gente presente, mais do que nunca, até os professores. Fiz alguns lançamentos sensacionais. Há uma festa de comemoração na casa de Lisa Donald. Todas no time vão comparecer. Os professores e pais também foram convidados.
— Quem tem tempo para isso? Você enlouqueceu? A sessão fotográfica vai levar horas. Não podemos apresentar fotos comuns aos juizes do concurso. Devem ser profissionais, batidas como se você fosse uma modelo. Agora, pare de perder tempo e suba para se aprontar. Usaremos mais de um traje, é claro. Inclusive o maiô que comprei para você na semana passada. Vá logo!
Pamela acenava com a mão para a escada, na maior ansiedade. Olhei para a bola em minha mão. De que adiantaria mostrar a ela? Pamela bem que seria capaz de jogá-la na máquina de lavar roupa. Comecei a subir a escada.
— Podemos pelo menos ir- à festa depois que tirarmos as fotos?
— Veremos, Brooke. Não consigo pensar em qualquer outra coisa neste momento. Joline! Joline!
— Pois não, madame?
— Suba e prepare o banho de Brooke! Depressa!
— Pois não, madame.
Joline subiu apressada, passando por mim. Já estava no banheiro, arrumando os óleos de banho, antes mesmo que eu tirasse o uniforme.
Fiquei sentada ali, atordoada. Não sentia a menor disposição para posar como modelo, a fim de participar de um concurso de beleza. Voltara para casa numa nuvem de felicidade e agora sentia que era arrastada pelos cabelos e empurrada para algum palco, cercada por estranhos olhando para mim com números nos olhos.
Como era de se prever, não me apressei o suficiente para Pamela. Quando ela entrou correndo no quarto, eu ainda estava sentada à mesa de maquilagem secando os cabelos.
— Ainda não ficou pronta, Brooke? É capaz de correr como o vento por aquelas bases idiotas num jogo, mas vira uma tartaruga na hora de se aprontar para uma coisa realmente importante.
Ela atravessou o quarto, a caminho do closet, enquanto falava.
— O jogo é realmente importante para mim — declarei, o orgulho aflorando.
Pamela ignorou meu comentário. Vasculhou as roupas penduradas no closet.
— Quero uma roupa bem colorida. Ao mesmo tempo, deve ser algo que ofereça uma exposição simples de sua beleza.
— Não sou bonita — murmurei, mais para mim mesma.
Mas ela ouviu e virou-se bruscamente.
— Pare com isso! Não quero ouvir mais. Já expliquei que não ficará bonita se disser a si mesma que não é. A atitude é fundamental. Por que eu trabalharia tanto com você, ensinando-a a sentar, andar, falar, erguer a cabeça, até mesmo a virar os olhos, se não achasse que era bonita? As fotos também não mentem. Portanto, você tem de mudar sua atitude antes de descer. Quero ver efervescência, vida, juventude, seus olhos irradiando confiança. Pare de me olhar assim! Escove logo os cabelos e comece a se maquilar!
— Okay.
— Não diga okay. Diga sim, está bem. Já esqueceu o que lhe falei? Okay é... inferior.
Pamela separou a roupa que queria que eu vestisse, depois pegou o maiô.
— O fotógrafo já chegou. É um profissional dos mais respeitados. Está armando tudo no átrio neste momento. Conversarei com ele sobre o que você deve usar primeiro e voltarei em seguida. Até lá, já deve estar pronta para pôr o vestido. Está bem?
— Está. Mas se terminarmos a tempo, poderemos ir à festa da vitória? Por favor?
— Veremos.
Pamela saiu do quarto. Olhei para o relógio. As outras jogadoras e suas famílias deviam estar começando a chegar na casa de Lisa naquele momento, enquanto eu me encontrava retida ali. Minha única esperança era cooperar e acabar com a sessão de fotos o mais depressa possível.
Já me aprontara quando Pamela voltou. Ela me disse para pôr o vestido azul-claro, com a gola em V. Ajeitou o sutiã com enchimento para realçar meu pequeno busto, depois me entregou um colar de pérolas. Assim que acabei de me vestir, ela me postou na frente dos espelhos e ajeitou os meus cabelos.
— Você está corada. Eu sabia que isso ia acontecer. Ficar tanto tempo ao sol naquele campo não podia deixar de arruinar sua pele.
Pamela me fez sentar de novo. Trabalhou na maquilagem até ficar satisfeita. Levou quase meia hora.
— Quando Peter voltará para casa? — perguntei, ao descermos.
— Não me lembro. Mais tarde.
Eu torcia para que ele chegasse antes de terminar a sessão de fotos e concordasse em me levar à festa.
O fotógrafo era um rapaz simpático, de cabelos crespos escuros. Seu nome era William Daniels. Pela maneira como Pamela o elogiara, eu esperava alguém muito mais velho e mais experiente. Quando William começou, no entanto, compreendi que ele sabia muito bem o que fazia. Cada vez que Pamela apresentava uma sugestão, ele explicava calmamente por que não daria certo, por que a iluminação seria errada, por que meu perfil não ficaria tão favorável, ou por que a cena de fundo perderia seu valor.
William percebeu no mesmo instante como eu estava tensa e infeliz. Fez o que podia para me deixar relaxada.
— Não resista — murmurou ele, enquanto ajustava minha pose. — Terminaremos mais depressa se você relaxar e deixar que tudo aconteça naturalmente.
Ele tinha toda razão, é claro. Parei de desejar e torcer para que acabasse logo.
— Assim está ótimo — dizia ele a todo instante. Pamela também relaxou. Subi correndo para trocar de roupa. Mas quando voltei, Pamela achou que meus cabelos haviam perdido a forma. Fez William esperar, enquanto os escovava de novo, até se sentir satisfeita.
Já estávamos trabalhando há quase uma hora e meia. Eu sabia que a festa na casa de Lisa se encontrava no auge da animação àquela altura. Imaginei que todos especulavam quando eu chegaria. Heather deveria estar dizendo que eu queria apenas fazer uma entrada especial, por isso me atrasara de propósito. Era uma coisa que ela própria não hesitaria em fazer.
Pamela teve mais problemas ainda com minha foto de maiô. Assim que o vesti, ela soltou um grunhido desesperado.
— Não pode evitar que esses músculos sobressaiam em suas pernas?
— Não estou fazendo nada!
— Não há nada que você possa fazer? — perguntou ela a William.
Ele me estudou por um momento, ajustou minha pose, e sacudiu a cabeça.
— Ela tem um corpo excepcional, sra. Thompson. Não entendo por que quer escondê-lo.
— Vão pensar que é uma dessas mulheres que fazem musculação ou algo parecido. Quem quer uma amazona como Miss América? Relaxe os braços, Brooke!
Tentei ficar tão descontraída quanto podia, mas nada era capaz de satisfazê-la.
— Vão detestar esta foto — murmurou ela.
— Verei o que posso fazer — disse William. — Talvez seja possível dar alguns retoques.
— Pode dar certo nas fotos, mas não quando ela estiver Desfilando pelo palco em carne e osso — lamentou Pamela.
Ele fitou-a em silêncio, esperando.
— Está bem, está bem — resmungou ela, com um aceno de mão. — Faça o que puder.
A sessão fotográfica finalmente terminou. Subi correndo para vestir uma calça comprida e uma blusa. Voltei antes que William tivesse acabado de guardar seus equipamentos.
— Podemos ir para a festa agora, Pamela? — pedi, mal conseguindo conter meu excitamento.
— Tenho uma terrível dor de cabeça de toda essa tensão e problemas — declarou ela, balançando a cabeça. — E levaria horas me aprontando para aparecer em público.
— Mas... todos estão me esperando. Prometi que iria. Por favor.
— Eu posso levá-la — ofereceu William. Olhei para Pamela.
— Está bem — concordou ela, relutante.
— Obrigada, Pamela, obrigada!
Ajudei William a carregar os equipamentos para o carro, a fim de que ele partisse mais depressa.
— Qual é a comemoração da festa? — perguntou ele, depois que entramos no carro.
Contei tudo. William sorriu, impressionado. Por que meus pais não podiam ser assim?, pensei. Ele falou que era casado, tinha filhas gêmeas, com quatro anos.
— As duas são graciosas e iguais. Vivo tirando fotos delas, como pode imaginar, mas não gostaria que entrassem em concursos de beleza. Hoje em dia há concursos até para meninas de cinco anos. Ficam parecendo mais velhas, vestidas e maquiladas para o concurso. É um exagero.
— Também não quero entrar num concurso.
— Deu para perceber — comentou ele, sorrindo. — Mas se não fosse por pessoas como sua mãe, eu teria dificuldades para ganhar a vida.
Conversar com William me ajudou a relaxar. Ele assoviou quando viu a casa dos Donald.
— Você sabe escolher os lugares que freqüenta. Como costumam dizer, é melhor nascer rico do que nascer.
Se ele soubesse a verdade, pensei, rindo para mim mesma. Agradeci a carona e saltei do carro.
O atraso me valeu uma grande recepção. Assim que me viram, houve silêncio na festa... e um momento depois, todos gritaram meu nome e aplaudiram. Cercaram-me para dar os parabéns. Muitos dos professores estavam presentes. Até a sra. Harper viera. Lançou-me um olhar contido de aprovação. Harrison, o primo de Lisa, falando com mais respeito na voz, tentou me persuadir a ser mais generosa com ele. Meu coração transbordava tanto de alegria que não podia detestar ninguém. Para mim, aquele era o maior dia de minha vida, aquela a melhor festa a que eu poderia comparecer, talvez melhor até do que meu casamento. Nada poderia projetar uma nuvem escura sobre aquele dia, pensei.
Estava enganada.
Pura satisfação
Eu tinha a sensação de que flutuava por cima da festa, não era de fato uma participante. Nunca, em toda a minha vida, tantas pessoas haviam pensado tão bem de mim. Havia muitas outras garotas que eram boas em esportes na escola pública. Além disso, eu sempre era considerada como uma daquelas meninas do orfanato, o que reduzia a importância dos meus feitos.
Não podia deixar de me sentir especial aqui. Vivia numa casa tão grande ou até maior que as casas da maioria das outras garotas. Usava roupas que eram tão caras quanto as delas, se não até mais caras. Ninguém podia me menosprezar e desdenhar meus feitos com meras palavras, dizendo ”É uma delas”.
Eu sabia que estava me deixando ficar inebriada demais. O irmão de Lisa e seus amigos me cercavam durante a maior parte do tempo. Ainda usava o que qualquer outra pessoa provavelmente chamaria de maquilagem de palco. Imaginei que todos pensavam que me arrumara assim só para a festa. Sentia-me embaraçada demais para falar sobre o concurso de beleza às minhas amigas. Por isso, nada disse.
Mas percebi os olhares de inveja de algumas colegás, enquanto os rapazes disputavam as posições ao meu redor, queriam me prestar favores, buscar comida ou alguma coisa para beber, tentavam me impressionar com suas histórias e piadas.
Logo depois que cheguei, Lisa e Eva me chamaram. Fomos nos encontrar com as outras garotas dentro da casa, para rir e falar dos rapazes. Pela primeira vez na vida, eu sentia que era alguém aos olhos de minhas colegas de escola. Podia até aturar todas as exigências de Pamela só para desfrutar aquele momento e aquela oportunidade.
Mais tarde, pouco antes de a festa terminar, Heather inclinou-se para mim e sussurrou:
— Preciso conversar com você. Tenho uma coisa muito importante para lhe dizer. Não pode esperar.
— Agora?
Ela acenou com a cabeça e afastou-se. Heather me ignorara durante a maior parte da noite. Por isso, fiquei surpresa com seu tom de urgência. Segui-a até um ponto bem distante dos outros, para podermos falar em particular.
— O que é? — perguntei, olhando para a festa.
Eu gostaria que pudesse continuar para sempre, a música, as luzes, a comida maravilhosa, toda a diversão.
— Acabei de ouvir minha tia falando a seu respeito — anunciou Heather.
Era como se estivéssemos num filme, a câmera parasse de repente, a imagem na tela começasse a se dissolver. A festa se tornou nebulosa, enquanto meus olhos ficavam turvos de medo.
— Como assim? — indaguei, num fio de voz.
— Sei que é uma órfã e que seus pais não são realmente seus pais. Nunca sequer conheceu sua verdadeira mãe. Não tem um pai de verdade. Sabe como chamam uma pessoa sem pai?
Sacudi a cabeça.
— Não quero ouvir. Heather sorriu, friamente.
— Pensei que você deveria saber que eu sei.
Seu tom era de profunda satisfação. Mas o sorriso logo se dissipou e foi substituído por uma expressão de raiva.
— Não é de admirar que pratique esportes como um menino.
— O que isso tem a ver com o assunto?
Ela tornou a sorrir, como se eu devesse saber.
— Só não quero que se meta a besta para cima de mim — advertiu Heather, para se afastar em seguida.
Meu coração batia forte. A minha pessoa, que eu imaginara flutuando por cima da comemoração da vitória, arriou lentamente para o chão. Com as pernas trêmulas, fui me juntar às outras pessoas na festa, mas não escutava o que diziam, não ouvia a música. De vez em quando avistava Heather me observando e sorrindo, com uma intensa satisfação.
Para ser franca, fiquei grata quando Peter chegou para me buscar. Ele foi apresentado às pessoas, que lhe deram os parabéns por meus feitos.
— Sinto muito ter perdido o jogo — disse ele, quando nos encaminhamos para o carro. — Pela maneira como todos falaram, você foi sensacional. Não contou a Pamela? Ela não me disse nada quando cheguei em casa.
— Tentei contar, mas ela estava preocupada demais com as fotos. Quase perdi a festa da vitória.
— Pamela não entende... Explicarei tudo. E então, grande batedora... — acrescentou ele, com um sorriso, sentindo que havia algo errado. — ... qual é o problema?
— Estou apenas cansada.
Eu queria desesperadamente evitar que qualquer coisa estragasse aquele dia e aquela noite.
— Não é de admirar. Fazendo os trabalhos atrasados da escola, estudando os novos, aprendendo a tocar piano, levando o time de softball a grandes vitórias... uma pessoa que faz muita coisa. Sinto orgulho de você, Brooke. Com toda sinceridade.
O comentário me fez sentir melhor. Pamela já se deitara quando chegamos. Peter subiu apressado para conversar com ela sobre o jogo, a fim de fazê-la compreender. Fui para a cama. Quando encostei a cabeça no travesseiro, experimentei a sensação de que o corpo se transformara em chumbo. Mergulhei num sono profundo, e não acordei até que os raios do sol incidiram em meu rosto pela manhã.
Peter recebeu um telefonema no início da manhã que estragou seu domingo. Antes mesmo de eu descer para o café da manhã, ele teve de seguir para seu escritório. O que deixou Pamela furiosa, de mau humor. Passei a maior parte do tempo estudando para as provas. Não recebi nem a metade dos telefonemas que esperava. Peter só voltou quase na hora do jantar. Dava para perceber que ainda persistia uma enorme tensão entre ele e Pamela. Foi uma das refeições mais silenciosas desde que eu chegara na casa.
Tudo-isso cobrou seu tributo sobre mim naquela noite. Adormeci com os livros no colo. Quando acordei, na manhã de segunda-feira, era mais tarde do que o habitual. Por isso, tive de omitir a prática de piano e não consumi tanto tempo na maquilagem. Por sorte, Pamela dormiu até mais tarde e não teve chance de me inspecionar antes da ida para a escola, como costumava fazer. Mas ela deixou recado com Peter para me lembrar que tinha uma consulta com o médico no dia seguinte, depois das aulas. Comentei que achava isso um absurdo. Não havia nada errado comigo.
— Não há mal nenhum em fazer um checkup, Brooke. Pense nesses termos.
Se houvesse qualquer possibilidade de um acordo, Peter saberia descobri-lo, pensei. De qualquer forma, era óbvio que no momento ele queria evitar discussões com Pamela.
Pude perceber que havia alguma coisa diferente no ar assim que cheguei à minha sala principal na escola. Todo mundo tem de descer de um pique de excitamento, refleti, e era assim que parecia. Voltávamos ao dia de estudo normal. A vitória já começava a se desvanecer no passado, tínhamos de pensar nas provas iminentes, nos novos trabalhos.
Atrasei-me para o almoço porque fiquei mais tempo na sala para conversar sobre um problema de matemática. No instante em que entrei no refeitório, houve um súbito silêncio nas conversas. Quando olhei para as garotas, algumas baixaram os olhos, com uma expressão culpada. Por quê? Servi-me da comida e fui sentar à mesa habitual das minhas amigas.
— Pensei que o sr. Brazil fosse me manter ocupada durante toda a hora do almoço — comentei, rindo. — Sabem como ele fala devagar.
Eva sorriu, mas foi a única. Comecei a comer. Notei que todas se mantinham um tanto caladas.
— Algum problema? — perguntei.
Ninguém respondeu. Era como se eu não estivesse ali. A campainha tocou para a aula seguinte quase antes que eu terminasse de comer. Todas começaram a se afastar. Agarrei Lisa pelo pulso.
— O que está acontecendo com todas hoje? Agem como se alguém tivesse morrido.
Ela olhou para as garotas que se encaminhavam para a porta e murmurou:
— Alguém morreu.
— O que isso significa? Quem morreu?
— Muitas das garotas acham que você é uma impostora — disse ela, friamente.
— Uma impostora? Por quê?
— Porque não contou a ninguém que era adotada.
— Ahn... — Olhei para a cabeça de Heather Harper, que ria alto naquele momento. — Por que eu tinha de anunciar isso?
— Não precisava anunciar, mas também não tinha de fingir que era alguém que não era.
— Tem toda razão — respondi, ríspida. — Ainda mais aqui, onde todas julgam todas por quanto dinheiro seu pai ganha ou o tamanho de sua casa.
— Isso não é verdade.
— É, sim.
Lisa me lançou um olhar furioso.
— Provavelmente você sabia jogar tênis desde o início. E me fez bancar a idiota.
— O quê?
Ela começou a se afastar.
— Eu não sabia jogar. Como poderia? Acha que tínhamos uma quadra de tênis no orfanato?
Algumas das outras garotas olharam para trás ao ouvirem meu grito, mas nenhuma esperou para me acompanhar até a sala.
Menos de quarenta e oito horas antes, pensei, eu era uma heroína da escola. Hoje, sou uma pária. Uma ocasião, quando me queixara que algumas das outras alunas na minha antiga escola me faziam sentir inferior, uma das conselheiras no orfanato dissera que às vezes você é mais respeitada por causa da natureza das péssoas que a detestam. Ela tinha razão. Se podia sentir alguma coisa, eu me sentia furiosa comigo mesma por tentar ser parecida com aquelas garotas. Por mais dinheiro que Pamela e Peter tivessem, por mais que gastassem em roupas para mim, por mais concursos de beleza que eu entrasse, por maior que fosse nosso carro e nossa casa, eu nunca seria como aquelas garotas. Tinha a sensação de que nascera e vivera num país diferente. Praticamente falava uma língua diferente.
Abaixei a cabeça e avancei. Concentrei-me nas aulas pelo resto do dia. Ignorei todas as colegas. A maioria era polida, embora não cordial. Até os professores me pareciam diferentes. Talvez fosse minha imaginação. Talvez estivesse sentindo pena de mim mesma. De repente, tinha pouco por que esperar.
Meu ânimo sombrio e desolado se dissipou quando fui para a aula de educação física. A treinadora Grossbard me chamou à sua sala antes de eu vestir o uniforme de exercícios. Sentava atrás de sua mesa com um enorme sorriso.
— Recebi um telefonema sensacional há meia hora e fiquei esperando por você, Brooke.
O que poderia ser?, especulei. Ela teria recebido um telefonema para avisar que eu era órfã? E isso, por algum motivo, deixava-a na maior felicidade?
— O que tem a ver comigo?
— Tudo. Você foi escolhida pela liga para participar de um jogo com as melhores do condado. É bem provável até que seja a primeira lançadora.
— É mesmo? As melhores do condado? Ela acenou com a cabeça.
— Nunca antes tive uma aluna na seleção. Parabéns, Brooke.
Grossbard se levantou. Em vez de me apertar a mão, ela me deu um abraço. Não pude deixar de chorar.
— Ei, esta deveria ser uma ocasião feliz! — exclamou a treinadora, rindo.
Mas havia um excesso de bagagem emocional. Eu não podia mais agüentar. Passei a chorar ainda mais.
— Qual é o problema, meu bem? — indagou ela, fazendo-me sentar.
Contei tudo, tão depressa quanto podia. Ela se recostou, ouviu em silêncio, o rosto vermelho de raiva.
— Deveriam chamar isto aqui de Escola para Esnobes Agnes Fodor. Mas não deve deixar que elas a angustiem. Estão todas com inveja, mais nada.
— Não, não estão. Não há nada que elas possam invejar. Pois todas têm uma família de verdade.
— Você é duas vezes melhor que qualquer uma, meu bem. Com ou sem família de verdade. As pessoas vão julgá-la por você mesma, não por causa do nome de sua família. Vai ver só. Se não se sentir com vontade de fazer a aula hoje, pode ir embora. Trate de descansar.
— Não — murmurei, removendo as lágrimas dos olhos e respirando fundo. — Quero fazer a aula.
Ela sorriu.
— O jogo das melhores do condado! Sensacional! Serviu para me animar. Sentia-me mais forte ao deixar o prédio do que no momento em que entrara. A notícia a meu respeito ainda não se espalhara, mas não imaginava que minhas supostas novas amigas continuariam tão felizes em relação a mim quanto eram antes. Tentei não pensar a respeito.
Pamela não estava em casa quando voltei. Fui para o meu quarto e comecei a fazer os deveres da escola. Mas meu excitamento era tão grande que não conseguia me concentrar direito. Finalmente ouvi passos na escada. Saí para ver Joline subindo, carregada de pacotes. Pamela vinha logo atrás.
— Tive de comprar algumas roupas novas para usar durante o concurso — explicou ela, parando no corredor. — É importante que eu também me apresente no rigor da moda. Sempre tiram fotos das mães e filhas.
— Tenho uma coisa para lhe contar. — Eu sabia como era importante para ela que ninguém soubesse a verdade a meu respeito. — As garotas descobriram tudo. Sabem que sou uma filha em processo de adoção.
— O quê? Como isso pôde acontecer?
— Heather Harper ouviu a tia comentar com alguém e espalhou para todo mundo. São um bando de esnobes. Eu as detesto. E detesto aquela escola, com exceção da treinadora Grossbard. Até os professores me olham de uma maneira diferente agora.
Pamela ficou furiosa.
— Espere só até eu contar a Peter! Vamos processála por revelar um segredo!
— E de que isso adiantaria para mim?
Mas ela não respondeu. Virou-se e desceu a escada. Peter chegou em casa pouco mais de uma hora depois. Ouvi as vozes alteradas lá embaixo e desci para encontrá-los na sala da família. Peter parecia exausto, o rosto vermelho, os cabelos despenteados.
— Não há base para processar ninguém — disse-me ele, assim que entrei.
— Não quero que faça isso, Peter. Não adiantaria nada.
— Ela tem razão, Pamela. Vamos esquecer o assunto.
— Não vou esquecer nada. Aquela mulher vai saber do que sou capaz. Falarei com o conselho de administração. Ela deve ser despedida por isso.
— O mal já está feito, Pamela, é melhor esquecer — insistiu Peter.
— Não quero ir para aquela escola no ano que vem — declarei.
Pamela fitou-me, com um movimento brusco da cabeça.
— Não quer ir para lá? E onde estudaria? Numa escola pública?
— Não me importo. Detesto aquelas garotas. E muito em breve elas sentirão ainda mais inveja de mim.
Peter alteou as sobrancelhas.
— Por quê?
— Fui escolhida para participar do jogo das melhores do condado, uma verdadeira seleção. E serei a primeira lançadora.
Ele ficou radiante, com um enorme sorriso.
— Mas isso é fantástico, Brooke! Peter levantou-se para me abraçar.
— Que tipo de proeza é essa? — murmurou Pamela.
— É a coisa mais importante que já me aconteceu. Ela sorriu e sacudiu a cabeça.
— Não posso suportar toda essa tensão. É prejudicial à pele. — Pamela levantou-se. — Preciso sentar em minha cadeira de massagem elétrica antes do jantar.
— Estou emocionado por você, querida — disse Peter. — Quando será o jogo?
Informei a data. Pamela parou de andar, perto da porta. Virou-se para mim.
— O que você disse? Quando será esse jogo absurdo? Repeti a data.
— Vocè não poderá ir, Brooke. Não se lembra o que vai acontecer nesse dia? Estive falando sozinha durante semanas e semanas? É a data do seu teste para o concurso de beleza. Já está tudo providenciado.
— Não é possível. — Sacudi a cabeça vigorosamente. Olhei para Peter, mas ele parecia preocupado. Mas com certeza encontraria um dos seus engenhosos acordos, pensei. — Fui escolhida entre todas as garotas de todas as escolas. É uma grande honra.
— Não é honra nenhuma — protestou Pamela. — Como pode comparar um jogo de softball a ganhar um concurso de beleza?
— Não me importo. Vou jogar. Fui escolhida para a seleção do condado. Não irei ao concurso.
— Mas claro que irá! — gritou ela. — Vou telefonar imediatamente para aquela sua diretora que fala demais. Direi que proíbo a sua participação no jogo... e se ela não quiser me obedecer, ameaçarei procurar o conselho de administração para contar sua fofoca!
— Pamela... — murmurou Peter.
— O que é? Não está pensando em permitir que ela vá ao jogo em vez do concurso, não é? Pense em tudo o que tenho feito, o que já gastamos, as aulas de piano, o trabalho, as fotos!
— Talvez possamos marcar outro dia para o teste — argumentou Peter, ainda falando em voz suave.
— Sabe muito bem que não podemos fazer isso. Sabe como foi difícil arrumar essa data. — Pamela virou-se para mim. — Você irá ao concurso. Esqueça o tal jogo. É uma menina. Uma jovem bonita. Não é alguma... alguma amazona. Não vou admitir. Sou Pamela Thompson. Minha filha vai ganhar um concurso de beleza!
— Não vou ao concurso de jeito nenhum! — gritei também, para depois sair correndo da sala.
— Vou ligar para a sra. Harper agora mesmo! — berrou Pamela, enquanto eu começava a subir a escada. — Pode tirar esse jogo da sua cabeça, Brooke! Está me ouvindo?
Bati a porta do quarto e tranquei-a. Fui me jogar na cama, comprimi o rosto contra o travesseiro até que não conseguia mais respirar.
Por que aquilo tinha de acontecer comigo?
Sentei e olhei para a minha imagem no espelho da mesa de maquilagem. Por que eu nascera, se era para sofrer tanto? Por que as pessoas tinham filhos que não queriam?
Ao entrar no orfanato e olhar para mim, Pamela na verdade não me vira. Em vez disso, vira a si mesma. Vira o que queria que eu fosse. Trouxera-me para sua casa e tentara me transformar na garota que vira. Mas não sou essa garota, disse à minha imagem no espelho. Nunca serei essa garota.
A maquilagem ficara borrada com as lágrimas. Limpei o batom. Depois, num acesso de raiva, fui para o banheiro e lavei o rosto até a pele arder. Saí do banheiro e tornei a me contemplar no espelho. Praticamente arranquei a blusa e o sutiã com enchimento. Abri a gaveta da cômoda e peguei a fita rosa desbotada que minha mãe deixara comigo. Prendi-a nos cabelos. Tornei a vestir a blusa e sentei, furiosa.
Ouvi passos no corredor.
— Por que trancou a porta? — gritou Pamela.
— Não quero falar com ninguém.
— Acabei de falar pelo telefone com a sra. Harper. Pode esquecer o tal jogo. Já resolvi esse assunto. Agora, pare com essa besteira. Quero conversar com você sobre o teste. Tenho outras coisas para explicar.
As lágrimas escorriam de novo por minhas faces. Sentia um tremendo peso nos ombros.
Todas as colegas na escola me desprezavam. Ainda por cimaperdia o único grande feito que já conseguira na vida. A treinadora Grossbard também ficaria desapontada.
— Brooke! Está me ouvindo?
Senti alguma coisa se romper dentro de mim. Era como se meu corpo fosse feito de vidro, que de repente se partia. Daqui a pouco eu cairia no chão. Quando Pamela entrasse, encontraria apenas um monte de cacos.
— Brooke!
Quanto mais ela gritava, mais eu sentia que me desfazia em pedaços. Estendi a mão e peguei a tesoura que havia ali. Com a outra mão, comecei a suspender punhados de cabelos, cortando as mechas. Largava tudo em cima da mesa. Cortei por cima da velha fita desbotada, ao acaso, até que vi trechos do couro cabeludo aparecendo.
Pamela batia na porta, gritava meu nome, ameaçava, exortava. Podia ouvir Peter por trás dela, suplicando, pedindo-lhe que se acalmasse.
Quando acabei, larguei a tesoura na mesa, levantei-me e atravessei o quarto, sem fazer barulho, como uma sombra. Destranquei a porta e abri-a.
Quando Pamela me viu, seus olhos quase explodiram. Ela abriu e fechou a boca, sem que qualquer som saísse a princípio. Depois, levantou as mãos para as têmporas e gritou, mais alto do que eu jamais pudera me imaginar gritando. O esforço deixou seu rosto vermelho. O corpo tremia violentamente. Ela tinha de negar o que via, tinha de se recusar a acreditar.
Peter contornou-a para me fitar e também entrou em estado de choque. Os olhos de Pamela reviraram. Ela ergueu as mãos para o teto e caiu nos braços de Peter.
Fechei a porta.
— É melhor para você — murmurou Peter
As batidas do relógio de pêndulo pareciam muito mais altas.
Peter sentou na minha frente, na luxuosa sala de estar, as mãos cruzadas, inclinado para mim. Tinha um ar de extremo cansaço, o bronzeado perene se desvanecera, os cabelos estavam um pouco despenteados. Não usava gravata. Tinha o colarinho da camisa aberto, não abotoara o casaco esporte marrom. Quase que senti mais pena por ele do que por mim. Sabia dos problemas que ele enfrentava com Pamela. Houvera na casa um desfile de médicos e outras pessoas relacionadas com cuidados com a saúde, subindo a escada para o quarto dela, a fim de aplicar massagens, tratamentos para a pele e os cabelos, oferecer orientação nutricional. Aparecera até um especialista em meditação, que passara horas com Pamela. Ela alegava que eu a envelhecera anos em minutos, que haveria necessidade de meses para reparar a degeneração. Até se queixara de problemas cardíacos.
Ainda não nos faláramos desde o incidente.
— Ninguém quer obrigá-la a viver onde se sente constrangida — continuou Peter. — Ou estudar numa escola em que se sente infeliz.
Fitei-o nos olhos, até que ele virou o rosto.
As pessoas que mentem para si mesmas têm dificuldades para fitar as outras nos olhos. Receiam que seus olhos revelem a impostura.
Depois do meu acesso, Peter queria me levar a um médico também. Recusei. Na verdade, sentia-me muito bem, até mais forte. Era como se tivesse removido um peso dos ombros. Vinha tentando me ajustar a um molde em que não cabia. O que eu desejava naquele momento era ter as minhas antigas roupas de volta. Ainda usava a velha fita rosa desbotada nos cabelos. Não pretendia tirá-la.
Peter recostou-se, pensativo. O relógio bateu. Sacket apareceu na porta.
— Já chegou o carro para a srta. Brooke, sr. Thompson. Devo levar a bagagem?
— Eu agradeceria, Sacket.
Eu dissera que não queria minhas roupas novas, mas Peter insistira que eu levasse tudo.
— O que fará depois com as coisas será problema seu, Brooke. Mas tudo é seu.
Fui intransigente na decisão de não levar nem um único tubo de batom. Pela maneira como me sentia agora, não sabia se voltaria a me maquilar em qualquer momento do resto da minha vida.
— Sente-se bastante bem para viajar? — perguntou Peter.
Quase ri. Desviei os olhos e depois me levantei. Ele contratara uma limusine para me levar ao lar de adoção provisório. Eu sabia apenas que o lugar pertencia a um casal, que antes o operava como uma pousada para turistas. Ao que tudo indicava, já havia pelo menos uma dúzia de crianças de idades diversas ali. Peter fora informado — e tentara me convencer — que era apenas uma situação temporária. Outros lares melhores estavam sendo procurados. Muito em breve eu teria um lugar mais apropriado, talvez até outro casal quisesse me adotar.
Não pude deixar de pensar em minha mãe e sonhar que era ela quem me esperava lá fora. Soubera da minha situação, viera do lugar em que vivia para me buscar. Agora, esperava no carro lá fora. Dentro de um instante, eu a veria pela primeira vez.
Era uma fantasia maravilhosa, que me ajudava a andar com determinação e confiança, numa pose de que Pamela se orgulharia. Isso trouxe um sorriso ao meu rosto e confundiu Peter, que me observava com um estranho meio sorriso.
— Providenciei para que você tivesse algum dinheiro — avisou ele, na porta. — Está depositado no banco.
Quase que falei ”Eu bem que mereci”, mas preferi me conter. Deixei a casa. Era um dia nublado, bem cinzento, com uma brisa firme, que levantou os cabelos restantes da minha testa. Fora idéia de Peter comprar um boné de beisebol. Eu o tinha na cabeça agora.
Ele não poupara despesa com a limusine, pensei. Era um carro preto comprido, com um motorista de uniforme. Ele saltou e esperou.
— Você é uma jovem excepcional, Brooke — declarou Peter. — Não deixe ninguém convencê-la do contrário. Qualquer coisa que decidir fazer, tenho certeza de que irá conseguir. Talvez se torne advogada um dia e venha trabalhar em minha firma.
— Não creio.
O sorriso de Peter sumiu. Ele parecia muito triste, a pique de chorar.
— Eu queria coisas melhores para você, Brooke. Espero que acredite nisso.
Acenei com a cabeça. Olhei para a escada. Pamela nem sequer saberia que eu fora embora, pensei. Que importância tinha? Nunca fôramos realmente como mãe e filha, não da maneira como eu sonhara. Peter inclinou-se para a frente e me beijou na testa.
— Adeus, Brooke. Boa sorte.
— Obrigada.
Fui para o carro. Quando olhei para trás, Peter continuava parado na porta. A brisa agitava seus cabelos. Ele ergueu a mão. No instante seguinte, como se ouvisse alguém chamá-lo, virou-se e entrou na casa.
Partimos. O motorista tentou puxar conversa, mas não respondi a nenhuma pergunta. Logo passei a viajar em silêncio, ouvindo apenas meus próprios pensamentos. Pouco menos de duas horas depois paramos na frente do lar de adoção provisório, conhecido como Lakewood House. Era enorme, com dois andares, cinzenta, com uma varanda ao redor. Compreendi que estava silenciosa assim porque todas as crianças deviam ter ido para a escola. O motorista começou a descarregar minha bagagem no momento em que um homem alto, de cabelos escuros caindo sobre a testa, contornou o canto da casa. Estava sem camisa, com uma picareta no ombro. Os ombros largos eram musculosos, assim como os braços compridos. As mãos pareciam tornos de aço. Os dedos seguraram a picareta com a maior facilidade quando ele parou e balançou-a.
— Louise! — gritou o homem, olhando para mim. — Louise!
Desta vez ele acompanhou o chamado com uma batida do lado da picareta na parede da casa. Imaginei que a estrutura e tudo dentro de casa haviam tremido.
A porta da frente foi aberta. Uma morena alta, com cabelos até os ombros, saiu apressada. Devia ter seus cinqüenta anos, com pequenas rugas nos cantos dos olhos e sobre o lábio superior. Pensei que rugas assim causariam em Pamela o infarto que ela alegara que eu quase provocara. Só que Louise tinha olhos azuis jovens, cordiais e vibrantes.
— Tem certeza que ela trouxe tudo? — indagou o grandalhão, acenando com a cabeça para a minha pilha de malas e bolsas.
— Encontraremos um lugar para tudo — assegurou-me Louise.
— Não no quarto em que ela vai ficar.
— Daremos um jeito. Oi, querida. Meu nome é Louise. Este é meu marido, Gordon. Ele cuida da propriedade. Foi uma viagem longa?
— Não.
— Não poderia ser uma viagem longa num carro como esse — comentou Gordon, adiantando-se.
Ele parou, olhando para mim, enquanto limpava as mãos na calça.
— Você tem sorte — disse Louise. — Ficará sozinha num quarto. Não precisará partilhá-lo com ninguém neste momento. Mas Gordon tem razão. Não há espaço suficiente para tudo isso.
Ela gesticulou para a minha bagagem. O motorista fechou a mala do carro.
— Quanto você recebe por uma viagem dessas? — perguntou Gordon.
— Cento e cinqüenta.
— Talvez eu devesse entrar no negócio de limusine — murmurou Gordon.
— À vontade.
O motorista entrou no carro. Não nos despedimos, já que na verdade nem nos cumprimentáramos. Eu não sabia seu nome, e duvidava que ele soubesse o meu.
— Quem vai carregar tudo isso para dentro? — indagou Gordon.
— Eu mesma levarei. E não precisa se preocupar com o espaço. Há muita coisa que eu não quero.
Ele me estudou atentamente, depois sorriu.
— Independente, hein?
— Vamos instalá-la primeiro, Gordon. E depois poderemos nos conhecer melhor.
— Não posso esperar — resmungou Gordon, encaminhando-se para a garagem.
— Gordon não está acostumado a ter crianças na casa — explicou Louise. — Tínhamos aqui uma pousada. Mas isso foi antes de o turismo começar a cair.
Ela relatou sua história pessoal e do prédio, enquanto levávamos algumas das minhas coisas para o quarto. Depois, mostrou-me a casa, onde ficava a sala de jantar, a sala de jogos, a cozinha, explicando o que acontecia em cada lugar no auge do movimento turístico. Havia retratos nas paredes de hóspedes e empregados. Achei que era interessante, quase senti que me encontrava num hotel.
Mas foi um sentimento que não duraria muito tempo.
— Vou levá-la para a escola amanhã — prometeu Louise. — Agora, por que não descansa e espera que as outras crianças voltem para casa? Vai fazer muitas amizades aqui.
Não falei nada. O céu nublado começava a abrir, manchasazuis surgiam aqui e ali. A brisa ainda soprava forte, mas quente. Dei uma volta pelo terreno, sentei no alto de uma pequena elevação, contemplando o lago. Havia ali pássaros bonitos e interessantes para observar. Fiquei tão absorvida em meus pensamentos que quase não ouvi o ônibus escolar chegar e as vozes de outras crianças. Sorri ao vê-las. A casa parecia ter adquirido vida com sua chegada, como se fosse uma mãe enorme e afetuosa, abrindo os braços.
Não demorou muito para que algumas crianças curiosas viessem me ver. Imaginei que Louise lhes dissera. Uma garota pequena, com lindos cabelos dourados e um rosto de boneca, aproximou-se por trás de uma garota mais velha e mais alta, com óculos de lente grossa, carregando um livro e um caderno. Pararam a poucos passos de distância.
— Louise disse que você acaba de chegar — começou a garota de óculos. — Sou Crystal. Esta é Janet Taylor. Pode pensar em nós como seu comitê de recepção.
O tom sarcástico me fez rir. Elas se adiantaram.
— Meu nome é Brooke.
— Este é o meu lugar predileto — comentou Crystal. — Sempre que o tempo está bom, gosto de começar meus deveres da escola aqui.
Acenei com a cabeça e olhei para Janet, que parecia tão tímida que só me lançava olhares furtivos. Sorri para ela, que lentamente retribuiu. As duas sentaram também. Ficamos contemplando o lago. O sol surgia agora, seus raios em meu rosto me proporcionavam uma sensação maravilhosa. Era como se estivesse removendo todos os falsos rostos que eu tivera de usar por algum tempo.
Crystal e Janet me observavam, mas permaneceram em silêncio. Sabia que elas haviam passado pelo sistema. Éramos como soldados que haviam travado guerras similares e sabiam que não precisavam se apressar para se conhecerem. Teríamos muito tempo, porque todas as promessas de novos lares desapareceriam nos dias subseqüentes.
Eu não me importava. Não podia pensar nisso agora. Olhava além do lago.
Podia ouvir todas as vozes, os aplausos e os gritos. Estava na base. Olhei para a lançadora e depois para a treinadora Grossbard. Ela fechou os olhos, como se fizesse uma oração, tornou a abri-los e sorriu. Respirei fundo e assumi a posição.
Quase que no momento mesmo em que acertei na bola, tive certeza de que seria um home run. A bola levava toda a minha esperança ao subir, cada vez mais alto. Não me importava se esquecesse todo o resto, se perdesse todas as memórias recentes, contanto que pudesse fechar os olhos e reviver aquele momento.
Desde que pudesse completar o home run, passar por todas aquelas casas para chegar ao meu lar.
V. C. Andrews
O melhor da literatura para todos os gostos e idades