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Planeta Criança



Poesia & Contos Infantis

 

 

 


BRUXOS E BRUXAS / James Patterson
BRUXOS E BRUXAS / James Patterson

                                                                                                                                                   

                                                                                                                                                   

 

 

Biblio VT

 

 

 

 

É DEMAIS PARA MIM. Essas caras feias me encarando como se eu fosse uma criminosa perversa; e isso garanto que não sou. O estádio está lotado, aliás ultrapassou a capacidade de lotação. As pessoas estão de pé nos corredores, nas escadarias, nos parapeitos de concreto, e alguns milhares delas estão no campo. Não tem nenhum time de futebol aqui hoje. Eles não conseguiriam sair dos túneis que vêm dos vestiários, nem se tentassem. Essa coisa abominável está sendo transmitida pela TV e pela internet também. Todas as revistas e os jornais inúteis estão aqui. É, estou vendo os cinegrafistas empoleirados em vários pontos do estádio. Tem até uma daquelas câmeras de controle remoto, que desliza por fios acima do campo. Ali está, ó, pairando em frente ao palco, balançando para lá e para cá em silêncio, ao sabor da brisa. Sem dúvida, há milhões de outros olhos assistindo a tudo isso além dos que consigo enxergar. Mas são esses, que estão aqui no estádio, que partem meu coração. Ser confrontada por dezenas, talvez até centenas de milhares de rostos curiosos, maldosos ou pelo menos indiferentes... Isso sim dá medo. E não há um único olho marejado, muito menos lágrimas. Nenhuma palavra de protesto. Nenhum pé batendo com força no chão. Nenhum punho erguido em solidariedade.
Nenhum indício de que alguém esteja pelo menos andando em frente, quebrando o cordão de isolamento e levando minha família para um lugar seguro. Está na cara que não é um bom dia para nós, os Allgoods. Na verdade, enquanto o cronômetro em contagem regressiva brilha nas telas gigantes de vídeo nas duas pontas do estádio, está mais com cara de que esse vai ser o nosso último dia. Essa suspeita é confirmada pelo homem careca e muito alto no topo da torre que eles ergueram bem no meio do campo. Ele parece uma mistura de juiz-presidente da Suprema Corte e Ming, o impiedoso, das histórias do Flash Gordon. Eu sei quem ele é. Na verdade, já o conheci. Ele é O Único que é O Único. Bem atrás de Sua Unicidade está uma faixa enorme da N.O. — A NOVA ORDEM. E, então, a multidão começa a berrar, quase cantando “O Único que é O Único! O Único que é O Único!”. Imperiosamente, O Único levanta a mão e seus capangas encapuzados nos empurram para frente, pelo menos até onde as cordas ao redor dos nossos pescoços permitem. Vejo meu irmão, Whit, lindo e corajoso, olhando para baixo, para o mecanismo da plataforma. Ele está calculando se existe alguma maneira de fazer aquilo falhar, algum jeito de fazer com que ela não se abra para evitar a queda que vai quebrar nossos pescoços. Ele está pensando se há alguma esperança de sair dessa no último segundo. Vejo minha mãe chorando, baixinho. Não por ela mesma, é claro, mas por Whit e por mim.
Vejo meu pai, o homem alto, agora curvado em resignação, sorrindo para mim e para o meu irmão, tentando nos animar, fazendo nos lembrarmos de que de nada vale ficar arrasado em nossos últimos momentos nesse planeta. Mas estou me adiantando muito. Eu deveria estar fazendo uma introdução aqui, e não descrevendo os detalhes da nossa execução pública. Então, vamos voltar um pouco no tempo...

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LIVRO UM
SEM CRIME, SÓ CASTIGO
Capítulo1
Whit
ÀS VEZES VOCÊ ACORDA e o mundo está um lugar totalmente diferente. O barulho de um helicóptero voando em círculos foi o que me fez abrir os olhos. Uma luz fria, azul esbranquiçada, invadiu as persianas e inundou a sala de estar. Como se fosse dia. Mas não era. Chequei o relógio no aparelho de DVD com meus olhos embaçados: 2h10 da manhã. Ouvi um tum, tum, tum, como se fosse uma batida forte de coração. Latejando. Fazendo pressão. Chegando mais perto. O que está acontecendo? Fui cambaleando até a janela, forçando meu corpo a voltar para a vida depois de ter desmaiado de sono no sofá, e olhei por entre as placas da persiana. Dei um passo para trás e esfreguei os olhos. Com força. Porque não tinha como eu ter visto o que vi. E também não tinha como eu ter ouvido o que ouvi. Era mesmo a marcha implacável e contínua de centenas de soldados? Marchando na minha rua em perfeita sincronia?
Minha rua não ficava perto o bastante do centro da cidade para estar na rota de paradas de dias comemorativos, e muito menos era costumeiro ter homens em uniformes de combate e armados passando por ali na calada da noite. Balancei a cabeça e dei uns pulinhos, como se estivesse fazendo meu aquecimento. “Acorda, Whit!” Dei um tapa no meu rosto só para garantir. E então olhei de novo. Lá estavam eles. Soldados marchando na nossa rua. Centenas deles tão claros como a luz do dia, visíveis com a ajuda de uma meia dúzia de refletores presos nos caminhões. Apenas um pensamento insistia em se repetir na minha cabeça: “Isso não pode estar acontecendo. Isso não pode estar acontecendo. Isso não pode estar acontecendo”. Então, me lembrei das eleições, do novo governo, dos discursos revoltados dos meus pais sobre o perigo que o país corria, das transmissões especiais na TV, das petições políticas que meus colegas tinham feito circular na internet, dos debates acalorados entre os professores na escola. Eu não tinha entendido nada daquilo até aquele exato momento. Antes que eu pudesse juntar as peças do quebra-cabeça, a vanguarda do batalhão parou bem em frente à minha casa. Mais rápido do que eu pudesse me dar conta, dois esquadrões armados se destacaram da formação e saíram correndo pelo gramado como soldados de forças especiais, um para a parte de trás da casa e o outro tomando posição na frente dela.
Dei um pulo para longe da janela. Já dava para saber que eles não estavam ali para proteger minha família. E eu tinha que avisar a minha mãe, o meu pai, Wisty... Mas bem quando comecei a gritar, a porta da frente foi arrancada das dobradiças.
Capítulo2
Wisty
É BEM HORRÍVEL SER SEQUESTRADA na calada da noite, de dentro da sua própria casa. Foi mais ou menos assim que aconteceu. Acordei com o barulho caótico dos móveis sendo revirados, seguido pelo som de vidro se espatifando, provavelmente parte da porcelana da minha mãe. “Ai, meu Deus, Whit!”, pensei, fazendo que não com a cabeça, sonolenta. Meu irmão mais velho tinha crescido uns dez centímetros e ganhado uns 15 quilos de músculo no último ano. O que fez dele o quarterback mais alto e mais rápido daqui e, eu preciso dizer, o jogador mais intimidador do time de futebol americano da nossa escola, ainda invicto. No entanto, fora do campo, Whit podia ser tão desajeitado quanto um urso, isso se um urso ficasse elétrico com uma caixa de Red Bull e se gabasse porque aguentava 125 quilos no supino. Todas as meninas da escola o achavam o cara mais lindo do mundo. Rolei para o lado e coloquei meu travesseiro ao redor da cabeça. Antes mesmo de a bebedeira começar, Whit era incapaz de andar pela nossa casa sem derrubar alguma coisa. Total síndrome-detouro-em-loja-de-porcelana. Mas aquele não era o verdadeiro problema daquela noite, eu sabia.
Porque três meses antes, a namorada dele, Célia, tinha literalmente sumido sem deixar rastro. E agora todo mundo já estava achando que ela não voltaria nunca mais. Os pais dela tinham ficado arrasados, Whit também. Para falar a verdade, eu também. A Célia era (é) muito bonita, inteligente e nem um pouco fresca. Ela é uma menina gente boa de verdade, apesar de ter muito dinheiro. O pai da Célia tem uma concessionária de carros de luxo na cidade e a mãe dela já foi miss. Eu não conseguia acreditar que algo assim pudesse acontecer com alguém como a Célia. Ouvi a porta do quarto dos meus pais se abrir e me enrolei de novo na cama aconchegante com lençóis de flanela. Dali a pouco, ouvi a voz poderosa do meu pai; eu nunca o tinha ouvido tão bravo. — Isso não pode estar acontecendo! Vocês não têm o direito de entrar aqui. Saiam da nossa casa imediatamente! Eu me sentei rapidinho, estava mais que acordada. Então, ouvi mais barulho de coisas se quebrando e escutei alguém gemer de dor. Será que o Whit tinha caído e machucado a cabeça? Será que o meu pai estava ferido? “Putz!”, pensei, saindo da cama o mais rápido que pude. — Estou indo, pai! Está tudo bem? Pai? E, então, uma série de pesadelos sem-fim começou. Meu queixo caiu quando a porta do meu quarto se abriu com tudo. Dois homens enormes, em uniformes cinza, entraram sem a menor cerimônia, me encarando como se eu fosse uma fugitiva de uma célula terrorista.
— É ela! Wisteria Allgood! — um deles disse, e uma luz brilhante o bastante para iluminar um hangar acabou com a escuridão. Tentei proteger os olhos com as mãos enquanto meu coração parecia querer pular pela boca. — Quem são vocês?! — perguntei. — O que vocês estão fazendo no meu quarto?
Capítulo3
Wisty
— TOME MUITO CUIDADO COM ELA! — um dos homens gigantescos avisou. Eles pareciam soldados das Forças Especiais com números brancos enormes em seus uniformes. — Vocês sabem que ela pode... O outro fez que sim com a cabeça, olhando pelo quarto, nervoso. — Você aí! — ele disse sem um pingo de educação. — Nos acompanhe! Somos da Nova Ordem. Experimente tentar qualquer coisa e será rigorosamente punida! Fiquei olhando para ele. Minha cabeça girava. Nova Ordem? Aqueles caras não eram policiais normais nem de algum serviço médico de emergência. — Hum, eu... Eu... — gaguejei. — Eu preciso trocar de roupa. Posso... Posso ter um pouco de privacidade? — Cale a boca! — o primeiro soldado latiu para mim. — Pegue a menina! E se proteja. Ela é perigosa, todos eles são. — Não! Para! Não se atreva! — gritei. — Pai! Mãe! Whit! Em seguida, um pensamento me atingiu como um trator deslizando sobre gelo. Era isso que tinha acontecido com Célia, não era? Meu Deus! Eu podia sentir o suor frio se acumulando na minha nuca. “Preciso sair daqui”, pensei, desesperada. Tem que haver alguma maneira, algum jeito.
Eu preciso desaparecer.
Capítulo4
Wisty
AQUELES HOMENS MEGAMUSCULOSOS em uniformes cinza congelaram de repente, suas cabeças quadradas indo para frente e para trás como marionetes. — Onde ela está? Ela sumiu! Desapareceu! Para onde ela foi? — um deles disse, a voz rouca tomada de pânico. Apontaram suas lanternas por todo o quarto. Um deles ficou de joelhos e olhou embaixo da minha cama; o outro foi procurar dentro do guarda-roupa. Para onde eu tinha ido? Aqueles caras estavam completamente loucos? Eu estava bem ali. O que estava acontecendo? Talvez fosse um truque deles para terem uma desculpa para usar força bruta. Ou talvez fossem fugitivos de um hospício que tinham vindo me pegar do mesmo jeito que tinham levado a pobre da Célia... — Wisty! — O grito ansioso da minha mãe vindo do corredor atravessou a neblina que tinha invadido meu cérebro. — Fuja, querida! — Mãe! — berrei. Os caras piscaram e deram um passo para trás, surpresos. — Olha ela aqui! Pegue a menina! Ela está bem aqui! Rápido, antes que ela suma de novo!
Mãos enormes e desajeitadas agarraram meus braços e minhas pernas e, depois, minha cabeça. — Me soltem! — gritei, chutando e tentando me livrar deles. — Me. Soltem. Mas as mãos deles eram fortes como aço e me arrastaram pelo corredor até a sala de estar, e depois me jogaram no chão como um saco de lixo. Eu me levantei rapidamente e mais luzes brilhantes embaralharam a minha visão. Então, ouvi Whit gritar ao ser jogado no chão da sala de estar, ao meu lado. — Whit, o que está acontecendo? Quem são esses... monstros? — Wisty! — Ele ficou de boca aberta. — Você está bem? — Não. — Quase chorei, mas não podia, nem iria, e me recusava a deixar aqueles caras me verem com medo. Rememorei todos os filmes horríveis de crime baseados em histórias reais que eu já tinha visto e meu estômago virou do avesso. Eu me aninhei perto do meu irmão, que apertou minha mão com força. De repente, as luzes foram apagadas. Piscamos para nos acostumar à escuridão e começamos a tremer. — Mãe?! — Whit berrou. — Pai?! Se meu irmão não estava sóbrio antes, agora com certeza estava. Engoli em seco. Meus pais estavam de pé ali, ainda em seus pijamas amassados, mas sendo segurados pelos soldados como se fossem criminosos perigosos. É claro que não fazíamos tudo do jeito
mais certinho, mas ninguém da nossa família tinha se metido em confusão antes. Quer dizer, não que eu soubesse.
Capítulo5
Wisty
UMA DAS COISAS MAIS ASSUSTADORAS DO MUNDO, que você nunca quer ver na vida, é seus pais indefesos e de olhos arregalados, com medo de verdade. Meus pais. Eu achava que eles pudessem nos proteger de qualquer coisa. Eles eram tão diferentes dos outros pais... tão inteligentes, gentis, compreensivos, espertos... e eu podia ver que, naquele momento, eles sabiam de alguma coisa que eu e Whit não fazíamos nem ideia. “Eles sabem o que está acontecendo. E estão morrendo de medo disso, seja lá o que for”, pensei. — Mãe? — perguntei, olhando-a bem nos olhos, tentando arrancar dela qualquer mensagem possível, qualquer sinal sobre o que eu deveria fazer agora. Enquanto olhava para a minha mãe, tive um flash, uma série de lembranças começou a aparecer na minha cabeça. Ela e meu pai dizendo coisas do tipo “Você e o Whit são especiais, querida. Especiais mesmo. Às vezes, as pessoas têm medo de quem é diferente. E o medo faz com que elas fiquem bravas e irracionais”. Mas todos os pais acham que seus filhos são especiais, né? “Falando sério, Wisty, vocês são especiais mesmo”, minha mãe tinha dito uma vez, erguendo minha cabeça pelo queixo. “Preste atenção, querida!”
De repente, mais três vultos saíram do meio das sombras. Dois deles tinham armas presas ao cinto. A situação já estava fora de controle, de verdade. Armas? Soldados? Na nossa casa? Em um país livre? No meio da noite? E nem era fim de semana. — Wisteria Allgood? — Quando andaram em direção à luz, vi dois homens e... Byron Swain? Byron era um menino da minha escola de Ensino Médio, um ano mais velho que eu e um ano mais novo que o Whit. Até onde eu sabia, nós dois odiávamos aquele cara. Aliás, todo mundo o odiava. — O que você está fazendo aqui, Swain? — Whit rosnou. — Saia da nossa casa! Byron. Era como se seus pais soubessem que ele ia acabar sendo um idiota e lhe deram um nome apropriado. — Quero ver você me fazer sair daqui — Byron disse ao Whit e então abriu um sorriso amarelo e nojento. Na hora, eu me lembrei de todas as vezes que o tinha visto na escola e pensado: “Mas que imbecil!”. Ele tinha cabelo castanho penteado perfeitamente para trás e olhos cor de avelã, frios como os de uma iguana. E ali estava aquele moleque insuportável, escoltado por dois soldados de uniformes escuros, coturnos pretos e brilhantes, que chegavam acima dos joelhos, e capacetes de metal. O mundo inteiro estava virando de cabeça para baixo e lá estava eu no meu pijama ridículo de gatinhos cor-de-rosa. — O que você está fazendo aqui? — fiz a mesma pergunta do Whit. — Wisteria Allgood — Byron disse sem mudar o tom de voz, como um oficial de justiça, e tirou um rolo de papel que parecia oficial de
não sei onde. — De agora em diante, você estará sob custódia da Nova Ordem até o seu julgamento. Você está sendo acusada de bruxaria. Fiquei boquiaberta. — Bruxaria? Você está maluco?! — gritei.
Capítulo6
Wisty
OS DOIS CAPANGAS DE CINZA MARCHARAM em minha direção. Instintivamente, levantei as mãos. Para a minha surpresa, os soldados da Nova Ordem pararam na hora e eu me senti forte, mesmo que só por um momento. — Será que acabamos de voltar no tempo? — perguntei com uma voz aguda. — Porque, da última vez que eu chequei, estávamos no século 21 e não no 17! Estreitei os olhos. Olhar de novo para aquele puxa-saco do Byron Swain, que também vestia aquelas botas brilhantes, me deu mais coragem. — Vocês não podem simplesmente aparecer aqui e nos pegar... — Whitford Allgood! — Byron Swain me interrompeu, sem educação alguma, e continuou lendo o pergaminho com seu tom oficial e monótono. — Você está sendo acusado de bruxaria e ficará sob custódia até o seu julgamento. Ele deu um sorrisinho sarcástico para Whit, apesar de, em situações normais, meu irmão ser capaz de erguer aquele idiota e torcer o pescoço dele como o de uma galinha. Acho que não é difícil ficar se achando quando se tem dois soldados armados à disposição. — Wisty tem razão. É loucura demais! — meu irmão respondeu, exaltado. Seu rosto estava vermelho, seus olhos azuis brilhavam de raiva. — Essa coisa de bruxaria não existe! Contos de fadas são um monte de besteira. Quem você pensa que é, seu cara de doninha? Um personagem de Gary Podre e a Ordem dos Idiotas? Meus pais pareciam horrorizados, mas nada surpresos. Então, que diabos estava acontecendo? Comecei a me lembrar de umas aulas meio estranhas que nossos pais tinham nos dado quando éramos crianças. Eles falaram sobre plantas, ervas e o clima (sempre o clima), e como se concentrar, como focar em algo. Também nos ensinaram um monte de coisas sobre artistas que nunca tínhamos estudado na escola, como Wiccan Trollack, De Glooming e Frieda Halo. À medida que fui ficando mais velha, comecei a achar que meus pais deviam ser, sei lá, meio hippies. Mas nunca tinha questionado aquilo. Será que aquelas aulas e tudo mais estavam, de alguma forma, relacionadas com esta noite? Byron olhou calmamente para Whit. — De acordo com o Código da Nova Ordem, vocês podem levar um objeto da casa. Eu não concordo, mas se isso é o que a lei diz, a obedecerei, é claro. Sob o olhar observador dos soldados vestidos de cinza, minha mãe foi rapidamente até a estante de livros. Ela hesitou por um momento, olhando de relance para o meu pai. Ele fez que sim com a cabeça e então ela pegou uma baqueta antiga que sempre tinha ficado naquela prateleira. Dizia a lenda da família que meu avô, um cara muito louco na época dele, tinha subido ao palco no meio de um show dos Groaning Bones e arrancado a baqueta da mão do baterista. Minha mãe a estendeu para mim.
— Por favor... — ela disse, quase choramingando. — Pegue-a logo, Wisteria. Leve a baqueta. Te amo tanto, querida! Em seguida, meu pai esticou o braço para pegar um livro sem título na lombada. Nunca o tinha visto. Era tipo um diário e estava na estante ao lado da poltrona de leitura dele. Colocou o livro nas mãos do Whit. — Eu te amo, Whit — ele disse. Uma baqueta e um livro velho? Que tal um tambor também? Eles não podiam nos dar alguma herança de família ou algo vagamente pessoal para nos dar uma força? Ou talvez a pilha gigantesca de porcarias não perecíveis do Whit para matar aquela vontade de comer doce? Nem um segundo daquele pesadelo fazia o menor sentido. Byron pegou das mãos do Whit o livro caindo aos pedaços e o folheou. — Está em branco! — ele disse, surpreso. — Isso mesmo! Como a agenda da sua vida social — Whit respondeu. Às vezes ele é bem engraçado, isso eu tenho que admitir, mas sua capacidade de esperar pelo momento certo para fazer uma piada ainda deixa um pouco a desejar. Byron bateu com o livro no rosto de Whit e sua cabeça foi jogada para o lado como se fosse girar. Whit arregalou os olhos e partiu para cima de Byron, mas foi bloqueado pelos corpos dos soldados no mesmo instante.
Byron ficou atrás dos soldados enormes, com um sorrisinho malicioso nos lábios. — Levem os dois para o furgão! — Byron ordenou e os soldados me pegaram de novo. — Não! Mãe! Pai! Socorro! — berrei e tentei me soltar, mas era como tentar sair de uma gaiola feita de aço. Braços duros como pedra me arrastaram em direção à porta. Consegui virar o pescoço e olhar para os meus pais pela última vez, marcando a ferro e fogo na minha memória o terror no rosto deles, as lágrimas em seus olhos. E, bem naquele momento, me senti envolvida por uma brisa, como se um vento forte e quente estivesse soprando contra mim. Imediatamente, o sangue subiu para a minha cabeça e o suor pareceu pular da minha pele e fritar até virar vapor. Ouvi um zumbido ao meu redor e então... Você não vai acreditar, mas é verdade. Eu juro! Eu vi e senti chamas enormes explodirem de cada poro do meu corpo.
Capítulo7
Wisty
OUVI GRITOS DE PURO PAVOR vindo de tudo quanto é canto, até mesmo dos soldados, enquanto eu mesma observava, embasbacada, as línguas laranja e amareladas que saíam de mim. Se você acha isso estranho, então veja só: depois daquele primeiro momento, não senti calor. E quando olhei para as minhas mãos, elas ainda estavam com cor de pele, e não vermelhas, nem chamuscadas. Na verdade, foi... bem legal! De repente, um dos soldados jogou em mim um vaso com flores da minha mãe. Fiquei ensopada e as chamas desapareceram. Perto de onde os soldados tinham me largado, os capangas de Byron Swain estavam pisando nas chamas das cortinas e também em alguns pontos chamuscantes do carpete. Logo em seguida, o próprio Byron, que aparentemente tinha saído correndo da casa durante minha imolação, reapareceu à porta com o rosto levemente verde. Ele apontou um dedo trêmulo e magrelo para mim. — Viu? Viu? Viu? — ele berrou com a voz rouca. — Prendam a menina! Atirem nela se tiverem que fazer isso. Façam o que for preciso!
De repente, fui tomada pela sensação horrível, dessas de dar nó no estômago, de que aquela noite teria sido inevitável e que já estava programada para fazer parte da história da minha vida. Não tinha a menor ideia de por que estava pensando naquilo nem do que significava exatamente.
Capítulo8
Whit
EU NUNCA HAVIA TIDO UMA ALUCINAÇÃO, mas, ao ver Wisty em chamas, achei que estava tendo uma provocada por estresse. Porque, vamos combinar, acho que até pessoas bem descansadas, conscientes e livres de culpa não pensariam: “Ah, olha só, minha irmã caçula acabou de se transformar em uma tocha humana”. Acho que tenho razão, né? Mas, logo em seguida, com o calor e a fumaça e as cortinas da nossa sala de estar pegando fogo, percebi que aquilo estava acontecendo de verdade. Depois, pensei que os brutamontes da Nova Ordem tinham colocado fogo nela. Acho que foi assim que consegui me livrar deles. E juro que teria acabado com aqueles idiotas se não tivesse saído correndo para apagar o fogo. Então, o caos total se apoderou da nossa casa. Nunca tinha visto um furacão, mas foi exatamente o que pensei que estivesse acontecendo. As janelas explodiram de repente e o vento invadiu a casa com a força de um rio, arremessando tudo: vidro quebrado, abajures e luminárias, mesinhas de canto... Não conseguia ouvir nada além daquele barulhão. Chovia tão forte que a própria água da chuva (isso sem contar os pedaços de objetos
que ela carregava) nos machucava como uma nuvem de abelhas saindo de um aspirador de pó invertido. E é claro que eu também não conseguia ver nada. Abrir os olhos teria sido como pedir para ficar cego para sempre com tantas farpas de madeira, cacos de vidro e pedaços de gesso voando por ali. Por isso, eu ter conseguido me livrar dos capangas não me ajudou muito. Estávamos todos tentando nos segurar no chão, nas paredes, em qualquer coisa mais sólida para não sermos sugados janela afora e voarmos para encontrar a Morte. Tentei gritar para a Wisty, mas não conseguia nem ouvir a minha própria voz. E então, em um segundo, tudo ficou quieto e silencioso de novo. Tirei o braço da frente do rosto... e vi uma cena que não vou esquecer pelo resto da minha vida. Um homem alto, careca e imponente estava de pé ali, bem no meio da nossa sala de estar demolida. Imagina, isso nem dá medo, né? Pois imagina direito. Esse cara é ninguém menos que a personificação do mal. — Olá, família Allgood — ele disse em um tom baixo, porém poderoso, que me fez prestar atenção em cada palavra. — Eu sou O Único que é O Único. Talvez vocês já tenham ouvido falar de mim. Meu pai falou mais alto. — Nós sabemos muito bem quem você é. Mas não temos medo de você e não vamos nos curvar às suas regras horríveis.
— Eu não esperava que você se curvasse à regra alguma, Benjamin. Nem você, Eliza — ele disse à minha mãe. — Aspirantes a subversivos como vocês sempre colocam a liberdade em primeiro lugar. Mas o fato de vocês aceitarem essa nova realidade ou não na verdade não faz a menor diferença. Estou aqui para ver os jovens. Isso é uma demonstração de comando, vocês entendem. Eu comando e eles obedecem. Então, o careca olhou para a minha irmãzinha e para mim, e nos deu um sorriso simpático, carinhoso até. — Vou facilitar para vocês dois. Tudo o que têm que fazer é renunciar a sua existência anterior, como suas liberdades, seu modo de vida e, principalmente, seus pais, e, então, serão poupados. Vocês não sofrerão mal nenhum se obedecerem às regras. Não tocaremos em um único fio de cabelo de vocês. Eu garanto. Renunciem a sua vida anterior e a seus pais. Só isso. Simples, fácil e indolor. — Nem pensar! — berrei para o cara. — Isso nunca vai acontecer. Nunca! — Wisty disse. — Renunciamos a você, Sua Carequidade, Sua Terriveldade! Ele deu uma risadinha ao ouvir aquilo, o que me pegou totalmente desprevenido. — Whitford Allgood — O Único disse e olhou fundo nos meus olhos. Uma coisa estranha aconteceu bem naquela hora: eu não conseguia me mexer, nem falar, só escutar. Foi a coisa mais assustadora que havia acontecido naquela noite até então. — Você é um menino bonito, tenho que reconhecer, Whitford. Alto e loiro, magro, porém musculoso, com proporções perfeitas. Eu sei
que você era um menino muito bom até recentemente, até o desaparecimento infeliz da sua namorada e alma gêmea, Célia. Raiva e frustração começaram a ferver dentro de mim. O que ele sabia sobre a Célia? Deu uma risadinha ao falar sobre o desaparecimento dela. Ele sabia de alguma coisa. Ele estava tirando uma com a minha cara. — A questão é... — ele continuou. — Você consegue ser bom de novo? Você é capaz de aprender a obedecer às regras? Ele jogou as mãos para o alto. — Você não sabe?! — gritou enquanto minha boca paralisada me impedia de berrar a série de palavrões que eu tentava lhe dizer. Ele se virou para Wisty. — Wisteria Allgood, eu também sei tudo sobre você. Desobediente, obstinada, matando aula, mais de duas semanas de detenção disciplinar para cumprir na sua escola. A questão é: você é capaz de ser uma boa pessoa um dia? Será que é capaz de aprender a obedecer? Ele encarou Wisty em silêncio, só esperando pela resposta. E, com uma atitude que é a cara da Wisty, ela fez uma reverência bem bonitinha para ele e proclamou: — É claro, meu senhor, cada desejo que tiverdes será uma ordem para mim. De repente, Wisty interrompeu seu discurso sarcástico e percebi que ele também tinha paralisado minha irmã. Em seguida, O Único que é O Único se virou para seus guardas.
— Leve-os daqui! Eles nunca mais verão os pais. E vocês, Ben e Eliza, só verão seus filhos tão especiais no dia em que todos vocês morrerem.
Capítulo9
Whit
WISTY E EU ESTÁVAMOS EM UM ENORME FURGÃO PRETO, sem janelas. Meu coração batia como o de um coelho epilético e eu não conseguia ver quase nada por causa da adrenalina. Precisei de cada migalha de sanidade que ainda tinha para não me jogar contra a parede do furgão. Eu me imaginei partindo a cabeça contra o metal, abrindo as portas de trás, ajudando Wisty a sair para fugirmos pela noite... Mas nada disso aconteceu. Até onde sabia, eu não era bruxo nem super-herói. Eu era apenas um moleque do Ensino Médio, que tinha sido sequestrado na própria casa. Olhei para Wisty, mas mal podia enxergar seu perfil na escuridão. Seu cabelo molhado estava pingando no meu braço, e ela tremia muito. Talvez de frio ou de choque, talvez de frio e de choque e de descrença total. Coloquei os braços ao redor dos ombros ossudos dela, o que foi difícil porque eu estava algemado. Tive que enfiar a cabeça dela entre os meus braços. Eu não conseguia me lembrar da última vez que a tinha abraçado, a não ser quando tinha vontade de sacudi-la porque ela havia mexido nas minhas coisas ou quando a peguei me espionando... com a Célia.
Eu não podia pensar nela naquele momento ou perderia a cabeça de vez. — Tudo bem? — perguntei. Wisty não parecia estar nem um pouco carbonizada. Não senti nenhum cheiro de linguiça queimada nem nada do tipo. — É claro que não está tudo bem — ela disse, deixando o “seu idiota” de sempre de fora do final da frase. — Eles devem ter jogado alguma coisa inflamável em mim. Mas não estou queimada. — Eu não os vi borrifarem nada em você — respondi. — Foi tipo bum! Fogo! — Consegui dar um sorrisinho. — Claro que eu sempre soube que seu cabelo era perigoso. — Wisty é uma cabeça de cenoura de verdade, com um cabelo ruivo e ondulado que ela odeia, mas que eu acho bem legal. Wisty ainda estava assustada demais para entender a piadinha sobre o cabelo dela. — Whit, o que está acontecendo? O que aquela múmia do Byron Swain tem a ver com isso? O que está acontecendo conosco? E com a mamãe e o papai? — Tem que ser algum erro medonho. A mamãe e o papai não seriam capazes de fazer mal nem a uma mosca. — Eu me lembrei dos meus pais, presos e indefesos, e tive que engolir o ódio de novo. O furgão parou de repente. Fiquei tenso, olhando com atenção para as portas, pronto para pular para cima de alguém. Mesmo algemado. Mesmo que fosse para encarar um soldado gigante e entupido de esteroides.
Eu não ia deixar ninguém machucar a minha irmã. E não ia dar uma de bonzinho e obedecer às regras idiotas deles.
Capítulo10
Whit
FOI COMO SE TIVÉSSEMOS ACORDADO e, de repente, estivéssemos vivendo em um Estado totalitário. A primeira coisa que vi voando ao vento sobre nós foram dezenas e dezenas de bandeiras com as letras N.O., pretas e enormes. N.O. Quase “Não”. Era bem apropriado e até poético. N.O., não. Wisty e eu estávamos do lado de fora de um prédio imenso e sem janelas, cercado por um alambrado com concertina de arame farpado na parte de cima. Letras gigantes, esculpidas em uma pedra que ficava acima do arco de aço da entrada, nos diziam que estávamos no “REFORMATÓRIO DA NOVA ORDEM”. As portas se abriram com um rangido e percebi que bater em todo mundo não ia funcionar muito bem. Mais dez guardas, e esses usavam uniformes pretos, saíram de lá, se juntaram aos dois motoristas e formaram um semicírculo na traseira do furgão. — Tudo bem. Agora, fiquem de olho neles. — Ouvi um deles dizer. — Vocês sabem, eles são... — É, sabemos — disse outra voz rabugenta, de um dos motoristas. — Tenho as queimaduras aqui para provar que sei direitinho quem são.
Eu nem tentei lutar quando aqueles soldados sem cérebro nos empurraram para frente e nos arrastaram pelo portão alto de arame farpado. Eu sou bem grande, 1,85 metro de altura, 86 quilos, mas aqueles caras agiam como se eu fosse um saquinho de pipoca. Wisty e eu tentamos prender os pés no chão, mas eles continuavam nos empurrando e nos fazendo perder o equilíbrio. — Nós conseguimos andar! — Wisty berrou. — Ainda estamos conscientes! — Podemos mudar isso rapidinho — disse um dos guardas monstruosos. Eu bem que tentei dizer: — Olhem, escutem aqui, vocês pegaram as pessoas erra... O guarda ao meu lado levantou o cassetete e eu calei a boca no meio da frase. Eles nos empurraram enquanto subíamos degraus de concreto, passávamos por portas pesadas de aço, até chegarmos em uma sala grande e bem iluminada. Parecia uma prisão, com um guarda do tamanho de um guarda-roupa atrás de uma janela de vidro grosso, um portão trancado e outro guarda com um cassetete pronto para ser usado. Ouvi um zumbido alto e o portão se abriu. — Vocês não se sentem meio idiotas? — eu disse. — Tipo, um monte de caras gigantes só para duas crianças... É meio constrangedor. Vocês não prefeririam... Ai! — Um guarda me deu um cutucão bem forte na costela com o cassetete de madeira.
— Comece a pensar no seu interrogatório de logo mais — o guarda disse. — É falar ou morrer. A escolha é de vocês, fedelhos.
Capítulo11
Wisty
EU ESTAVA COMEÇANDO A ACHAR que aquele pesadelo horrível estava acontecendo de verdade e, agora, eu nem teria mais o conforto de passar por tudo aquilo no meu velho pijama cor-de-rosa. Eles nos fizeram vestir um macacão cinza e listrado de prisão, que parecia relíquia da Segunda Guerra Mundial. O macacão do Whit ficou bom nele, acho que ele é do tamanho padrão dos prisioneiros, mas o meu ficou tão largo que parecia a vela de um veleiro em um dia sem vento. Meu pijama fofo era a última conexão que tinha com a minha casa. Sem ele, a única lembrança da minha ex-vida era a baqueta. A baqueta. “Por que uma baqueta, mãe?”, pensei. Eu já estava com saudade dela e senti uma ansiedade profunda ao pensar no que tinham feito com nossos pais. — Não puxe o braço dela assim! — Whit falou para o guarda. Ele tinha razão. Senti como se meu braço fosse desencaixar do ombro. — Cale a boca, bruxo! — o guarda mal-humorado rosnou de volta e nos arrastou por mais um portão eletrônico em que estava escrito “PROPRIEDADE DA NOVA ORDEM”. Entramos em um salão enorme, com uns cinco andares de altura, cercado por todos os lados com jaulas e celas com barras. Para criminosos.
E nós. Eu e meu irmão. Dá para imaginar? Não, provavelmente não dá. Como é que alguém bom da cabeça poderia imaginar isso? Uma das portas das celas se abriu e os guardas me jogaram lá dentro. Eu caí e bati os joelhos e as mãos com tudo no chão de cimento. — Wisty! — Whit gritou enquanto eles o arrastavam em frente à minha porta, que se fechou imediatamente. Encostei o rosto nas barras, tentando ver para onde estavam levando Whit. Eles o jogaram na cela ao lado da minha. — Wisty, tudo bem? — Whit me chamou logo em seguida. — Mais ou menos — eu disse, examinando meus joelhos machucados. — Só se eu puder mudar totalmente o sentido de “tudo bem”. — Nós vamos sair daqui — ele disse. Eu podia ouvir coragem e raiva na voz dele. — Isso tudo é só um erro idiota. — Au contraire, meu amigo inocente — disse uma voz vinda da cela do outro lado de Whit. — O quê? Quem é você? — Whit perguntou. Eu me esforcei para ouvir. — Sou o prisioneiro número 450209A — disse a voz. — E, acredite em mim, não é erro nenhum. E eles não se esqueceram de ler os direitos para vocês. E eles não vão lhes dar um advogado, nem o direito de fazer uma ligação. E a sua mamãe e o seu papai não vêm buscar vocês. Nunca. E isso vai levar bastante tempo. — O que é que você sabe sobre isso?! — gritei. — Olha só, quantos anos você tem? — a voz perguntou.
— Quase dezoito — Whit respondeu. — E minha irmã tem quinze. — Bom, eu tenho treze anos — ele disse —, então vocês vão se enturmar rápido aqui. Olhei para todas as células do pavilhão. Vi um monte de rostos, uma criança mais assustada do que a outra. Todas vestindo uniformes grandes demais. Parecia que aquela prisão estava cheia de crianças e de mais ninguém.
Capítulo12
Wisty
— É, AS CRIANÇAS SÃO MAIORIA AQUI MESMO AGORA — disse a voz vinda da cela. — Faz nove dias que estou aqui; eu fui um dos primeiros. Mas, nos últimos três dias, esse buraco de rato está ficando cheio rapidinho. — Você sabe o que está acontecendo? — Whit perguntou em voz baixa, para não atrair a atenção de algum guarda. — Não sei muito, não, jefe. Mas ouvi alguns guardas falando sobre uma limpeza geral — a voz respondeu em tom baixo, mais perto das barras. — Vocês se lembram de ouvir falar sobre a Nova Ordem? — Sim — entrei na conversa —, mas não estava prestando muita atenção. — Tá, então você estava morando dentro da sua cabeça... Um lugar escuro e horrível — disse a voz. — Mas, se serve de consolo, o resto do país também não estava nem aí. Olhem só: a Nova Ordem é um partido político que vem ganhando todas as eleições. Agora estão no poder. Em alguns meses, eles acabaram com o governo antigo e instituíram o Conselho dos Únicos. Já ouviram falar dele? O Único No Comando, O Único Que Julga, O Único Que Prende, O Único que Atribui Números, O Único Que é O Único, blá-blá-blá. — Tá, então é a Nova Ordem. Política — disse Whit. — O que isso tem a ver conosco?
— Eles são a Lei e eles são a Ordem, amigos. Eles são Os Únicos que nos colocaram aqui e são Os Únicos que decidem o que fazer conosco. — Mas por que eles estão fazendo essas coisas terríveis contra menores? — falei alto de novo. — Porque respondemos na lata? Porque somos difíceis de controlar? Porque temos imaginação? Porque ainda não passamos por essa lavagem cerebral? Quem sabe? Por que você não pergunta para O Único Que Julga... durante o seu julgamento? Eu me apertei contra as barras com toda a força, tentando enxergar Whit. — Julgamento? Mas qual julgamento? — perguntei. — Vamos ser julgados? Pelo quê? Tum! Um guarda se aproximou de fininho, agarrou meu braço através das barras e o torceu com tudo. — Se você continuar conversando com os outros prisioneiros, vai para a solitária! — ele grunhiu. Deu outra torcida forte no meu braço e riu como um vilão maluco de desenho animado antigo. Fiquei com tanta raiva que queria arrebentar aquelas barras e dar um chute bem na garganta dele; de repente, uma onda elétrica percorreu o meu corpo. Uh-oh! Quando dei por mim, estava olhando para o guarda através de uma cortina de chamas. Chamas estavam saindo de... mim. De novo.
— Ah! — o guarda berrou quando a manga e uma das pernas da calça de seu uniforme pegaram fogo. Ele saiu correndo, pegou um extintor e tomou um banho com aquela espuma enquanto um grupo de seus amiguinhos vinha em direção à minha cela. — Wisty! —Whit berrou. — Fica agachada! Cobri o rosto com as mãos e fiquei encharcada com a espuma sufocadora de chamas. Correção: espuma sufocadora de Wisty. As chamas se extinguiram de repente e eu fiquei parecendo uma árvore de Natal coberta de flocos de neve, ou uma torta de limão, ou uma boneca de neve zumbi com cabelo ruivo. — Chega de truques! — disse o guarda, com a voz rouca. — Você vem comigo. Quatro guardas da Nova Ordem com cassetetes e armas paralisantes vieram marchando e me pegaram pelos braços, me arrastando da cela para o corredor. Outros quatro caras nojentos estavam abrindo a cela de Whit. Quando os guardas nos jogaram em uma sala com uma placa em que estava escrito “INTERROGATÓRIO”, eu estava prontinha para mostrar para O Único Que Interroga por que é que eu tinha duas semanas de detenção disciplinar para cumprir na escola. Mas, quando a porta se abriu, era só aquele imbecil do Byron Swain de novo, seguido por um par de guardas. — Ficou com saudade de mim? — perguntou com um sorriso que me deu vontade de vomitar.
Capítulo13
Whit
AQUELE CORTE DE CABELO de vendedor de seguros, a camisa polo colorida, a calça social bem passada, mas, acima de tudo, aquele jeito dele de sabe-tudo tinham deixado Byron marcado como o maior puxa-saco da história da escola. De perto, a cara dele era bicuda e seu olhar era malvado, como um furão de estimação com planos de se tornar representante da classe. Jogando uma pasta sobre a mesa de metal, ele fez que sim com a cabeça para os dois guardas e deu um passo para trás, contra a parede. — Está malhando, Swain? — perguntei, cerrando os punhos. — Quer dizer, parecer não parece, mas você não precisa de pelo menos seis guardas para tomar conta da sua retaguarda? O rosto de Swain ficou vermelho de raiva. — Sabemos por que é que vocês estão aqui — ele disse, andando de um lado para o outro da sala. — Hein? O idiota estava tentando soar autoritário e machão, mas a voz dele, naturalmente fina e anasalada, se mostrava ao final de cada frase. Seus olhos frios não desgrudavam do meu rosto. — Quanto mais rápido admitirem seus segredos e contarem o que queremos saber, melhor será para você e sua irmãzinha cuspidora de fogo.
— Não tenho a menor ideia do que você está falando, soldadinho — eu disse. Ele estreitou os olhos de furão. De repente, se debruçou sobre a mesa e colocou o rosto bem perto do meu. — Pode parar com o showzinho de vilão de novela, tá? — falei para ele. — Vocês dois, seus canalhas, estão protegendo alguém? — ele perguntou sem cerimônia, ignorando meu sarcasmo. — Bom, porque com certeza eles não estão protegendo vocês. Seus bons amigos já nos contaram tudo o que precisamos saber. Já sabemos do seu problema com a bebida, Whitford. E nem precisamos confirmar as tendências piromaníacas da sua irmã. Mas esse é apenas o começo do carregamento de informações que seus “amigos” entregaram para nós. Foi lindo. Quer dizer, nem uma velha fofoqueira teria contado tudo com tanta facilidade. — Jura? — perguntei. — Tipo, eles contaram para vocês onde eu guardo minha reserva de bolinho de chuva? Meus códigos para roubar nos jogos de video game? O “D” que levei na minha última prova de Biologia e que nem meus pais ficaram sabendo? Sabe, ficar de castigo não é mais uma ameaça tão séria como antes. — Você quase repetiu de ano em Biologia? — Wisty sussurrou enquanto eu via uma veia saltar na testa de Byron. — Legal. — Cala a boca, sua esquisitinha! — ele rosnou para Wisty, que tinha acabado de mostrar a língua para ele. — Eu vi o que você aprontou mais cedo! Você pegou fogo! E nem ficou machucada depois! Se isso não for anormal, não sei mais o que é! Vocês acham que isso aqui é ruim, ficar nessa? Ah, mas vai ficar muito pior! Podem acreditar em mim, seus anormais... Vai ficar muito pior. — Sabe, Byron — Wisty disse com sua voz mais calma e sarcástica —, na verdade, o anormal aqui é você. Podemos muito bem colocar seu nome na nossa listinha secreta de bruxaria e vodu. Swain perdeu a paciência. Ele se jogou por cima da mesa e agarrou o braço de Wisty com tanta força que ela soltou um grito. E, então, a coisa mais estranha, e estou falando sério, aconteceu: um raio de luz tão brilhante que poderia cegar alguém saiu da mão livre da minha irmã e atingiu o peito de Byron. O imbecil soltou um gritinho de porquinho-da-índia e foi jogado para trás, caindo de bunda perto dos guardas surpresos. Meus olhos quase saltaram para fora das órbitas. Eu não acreditava naquilo: olhei para a minha irmã e me dei conta de que ela tinha atingido Byron com um relâmpago. Relâmpago. Um raio pequeno, claro, mas foi um relâmpago! Saindo da ponta dos dedos dela! — Mais uma prova! — Byron berrou com a voz superfininha, o rosto quase roxo. Ele estava passando a mão sobre o peito, obviamente horrorizado com a marca de queimado na camisa. — Você é uma bruxa! Você vai ficar presa para sempre! — Ele finalmente se levantou e saiu cambaleando da sala de interrogatório. — Então, agora você anda jogando raios nas pessoas? — perguntei para a Wisty. — Quer dizer... Uau!
Capítulo14
Whit
EU DEVO TER CAÍDO NO SONO logo depois da visita do imbecil do Swain. Acordei na minha cela com lágrimas mornas rolando pelas bochechas. Não que eu seja uma manteiga derretida total, a não ser às vezes, quando assisto a uns filmes tristes. Eu estava chorando porque tinha acabado de falar com a Célia em um sonho. Acho que foi um sonho, mas foi tão real! Não, foi real mesmo! Eu me lembro de ter abraçado Célia com tanta força como se estivéssemos no encontro mais triste da história do mundo. — Oi, Whit! Estava com saudade de você — ela disse, como se fosse perfeitamente normal para mim vê-la de novo depois de todos aqueles meses, desde que ela desapareceu. — Célia, você está bem? O que aconteceu com você? — Eu queria perguntar tudo ao mesmo tempo. Meu coração batia forte como um tambor. — Chegaremos nesse assunto. Prometo. O mais importante agora é: você está bem? E a Wisty? — Claro... Você me conhece, Célia, eu aguento qualquer coisa. E a Wisty também é corajosa. Na verdade, ela é fogo! — Dei uma risadinha da minha piada fraca. — Mas acho que estamos um pouco chocados com isso tudo.
Célia sorriu de novo e quase não aguentei. Até aquele momento, eu não tinha me ligado como tinha sentido falta daquele sorriso incrível dela. E ela estava mais linda que nunca, se isso fosse possível. Pele lisinha, os cachos pretos e compridos, os olhos azuis tão brilhantes e que sempre me diziam a verdade, mesmo quando eu não queria escutar. — Você está lindo, Whit... para alguém que foi sequestrado, apanhou e ainda foi preso ilegalmente. — Dessa vez ela deu um meio sorriso. — Não se preocupe comigo. Quero saber de você. Célia, o que está acontecendo? Para onde você foi? Ela estremeceu, girou a cabeça lentamente de um lado para o outro e lágrimas rolaram de seus olhos. — É uma pergunta difícil. Sei que acabei de chegar aqui, Whit, mas preciso mesmo ir agora. Só queria confirmar que estava tudo bem. E Whit... é difícil acreditar que sou eu quem está dizendo isso para você... mas você tem que ser forte. Você e a Wisteria. Caso contrário, vocês vão morrer. E, então, Célia desapareceu. Eu estava bem acordado e tinha sido avisado. Nós precisávamos ser fortes.
Capítulo15
Wisty
ANTIGAMENTE, EU ACHAVA que detenção disciplinar era até divertido. Meio uma questão de honra, sabe? Cara, como as coisas mudam rápido. Isso aqui é que era detenção de verdade. Minha vida antiga e os dias em que matava aula sem me preocupar pareciam estar a um milhão de mundos de distância agora. Eu estava com saudade daqueles tempos, da nossa casa e principalmente do papai e da mamãe. Sentia tanta saudade deles que achei que fosse ficar maluca. Eu ficava encarando o teto e sonhando acordada, lembrando... Como a minha mãe ficava deitada na cama com o Whit quando nós éramos pequenininhos, e ela ria e ria e dizia que estava ensinando nós dois a adorar dar risada, porque era uma das melhores coisas do mundo, talvez a melhor de todas elas. E... Como meu pai sempre dizia que tinha que ser nosso pai, não nosso amigo, e que havia uma diferença importante entre as duas coisas, mas ele acabava sendo nosso melhor amigo de qualquer jeito. E...
Como embarcávamos juntos naqueles passeios superlegais para museus de arte como o Betelheim e o Britney. E também naquelas viagens de acampamento potencialmente bregas, uma a cada estação, não importava se estava frio ou chovendo, e assim aprendíamos a sobreviver no mundo; mais que isso, aprendíamos a amar tudo que estava só esperando para ser descoberto. Como o carvalho enorme que ficava no nosso jardim, em que Whit e eu aprendemos a subir e a cair quando ainda nem sabíamos falar direito. E então... Apareceram dois guardas à minha porta. Com algemas. E correntes para os pés. — Para mim? — Sorri para os dois capangas. — Ah, mas não precisava! O mais incrível é que nenhum dos dois achou minha piada nem um pouco engraçada. — Venha, bruxa! — um guarda falou com má vontade. — Chegou o seu dia no tribunal. Agora você vai conhecer O Único Que Julga... E com certeza não vai gostar dele. — É claro — disse o outro —, nada mais justo: ele com certeza não vai gostar de você também. Os dois acharam que aquela sim era a piada do ano.
Capítulo16
Whit
A LUZ DO SOL, QUE VIMOS pela primeira vez no que parecia décadas, entrou através das janelas de dez metros de altura na sala do tribunal, quase nos cegando. Apertei os olhos e tentei protegê-los com a mão, mas acabei batendo com as algemas na minha cabeça. Desajeitado eu? Àquela altura, eu achava que seria difícil me surpreender com mais alguma coisa, mas não conseguia acreditar na cena à minha frente. Um retrato do tamanho de um elefante de O Único Que É O Único estava pendurado bem no meio da sala, como se ele fosse um general ou um imperador. Havia uma jaula enorme em frente à mesa do juiz. Sim, uma jaula, como aquelas que o pessoal usa para mergulhar em meio aos tubarões. Um guarda segurava a porta aberta e o outro nos empurrou lá para dentro. Numa jaula. Num tribunal. — Já estou quase acostumada a olhar através de barras — Wisty disse, parecendo conformada. Nada a ver com a Wisty de verdade. — Não diga isso — sussurrei, falando sério. — Vamos sair desse hospício. Eu prometo!
Mas como? Estudei a sala do tribunal com atenção. Ao nosso redor, havia uma parede impenetrável de indiferença, de ódio até. E pelo menos mais uma dúzia de guardas armados. Um juiz, que devia ser O Único Que Julga, olhava para tudo com um ar ameaçador, do alto de uma plataforma à nossa frente. Seu cabelo grisalho, fino e oleoso estava colado na cabeça. No lado direto do tribunal, atrás de uma parede mais baixa, um júri nos encarava com uma cara de paisagem. Eram todos adultos, homens e aparentemente achavam que duas crianças inocentes sendo julgadas em uma jaula não era nada de mais. Então, agora era oficial: o mundo tinha ficado totalmente maluco.
Capítulo17
Whit
O ÚNICO QUE JULGA colocou uns óculos minúsculos sobre o nariz comprido e fez cara feia para nós. Li a placa dourada dele: “JUIZ EZEKIEL RAIWA”. Ele pegou um pedaço de papel. — Whitford Allgood! — leu com uma voz ardida. — Wisteria Allgood! Esse julgamento foi convocado porque vocês foram acusados dos crimes mais sérios contra a Nova Ordem! — Ele lançou um olhar penetrante sobre nós dois. Havia uma plateia de adultos atrás de nós, todos de pé. Eu me virei para ver melhor a multidão. Os poucos deles que olhavam para mim tinham os olhos frios e cheios de ódio. Esfreguei a testa contra o meu braço enquanto o juiz lia com má vontade um monte de porcaria que parecia ter a ver com leis. Dei uma olhada de leve no júri, tinha certeza de que alguns daqueles adultos iam ficar com dó de dois adolescentes sujos e famintos, certo? Crianças algemadas, em uma jaula, e sem advogado? Mas seus rostos estavam congelados em expressões de condenação. Era como se estivessem sendo pagos para não gostarem de nós. Será que tinha uma placa em neon bem acima das nossas cabeças com os dizeres “CARA FEIA” em vez de “APLAUSOS”, como naqueles programas de TV ao vivo?
— Mas o que fizemos?! — Wisty gritou de repente para o juiz. — Só nos diga isso. Somos acusados de quê? — Silêncio! — o juiz berrou. — Escute aqui, sua menina insolente! Vocês são uma ameaça a tudo o que é adequado, certo e bom. Soubemos pelo testemunho da polícia sobre suas últimas perpetrações nas artes das trevas. Sabemos disso graças a inúmeras investigações conduzidas pela Agência de Segurança da Nova Ordem, e sabemos disso, acima de tudo, graças à Profecia. Fiquei chocada quando vi o júri fazendo que sim com a cabeça. — Profecia? — Comecei a tirar um barato da cara do juiz. — Prometo ao senhor: eu e minha irmã não estamos em nenhuma passagem da Bíblia. Fala sério, Ezekiel! A sala inteira disse “Óóóó!”. — Blasfemador! — uma mulher berrou e balançou o punho cerrado. O guarda correu em minha direção com seu cassetete em punho e ergui as sobrancelhas fazendo cara de medo. “Ahn, estou em uma jaula, seu imbecil! As barras funcionam dos dois lados”, pensei. O juiz Raiwa continuou: — Portanto, com base na preponderância da evidência... — Olha aqui! Quaisquer que sejam essas acusações, nós nos declaramos inocentes! — berrei, agarrando as barras da jaula, apesar das algemas, e a chacoalhei com toda a minha força. Acho que não foi a coisa mais inteligente que eu poderia ter feito.
Pá! O guarda desceu o cassetete com tudo contra os nós dos meus dedos. Wisty se assustou e eu quase não consegui engolir meu grito de dor. O Único Que Julga literalmente pulou da cadeira e se debruçou sobre a mesa, praticamente à distância de uma boa cusparada. — Vamos ensinar para esses vermes o que é bom para a tosse! Muito bem, guarda! Essa é a única maneira de lidar com esse tipo de lixo! Se damos a mão, esses insolentes querem o braço! O rosto dele estava roxo e branco, os olhos quase saltando das órbitas. — Como vocês se declaram em relação a essas acusações? — ele gritou. Totalmente perplexos, Wisty e eu respondemos: — Inocentes! O juiz se virou para o outro lado. — Cavalheiros do júri, com essa afirmação, os réus demonstram completo desprezo pela sua boa vontade e pela missão desse tribunal. Eles zombam de nós. Escarnecem dos padrões da gloriosa Nova Ordem! Eu pergunto aos senhores: qual é o seu veredicto? — É isso? — gritei da jaula — É assim que seremos julgados? — Vocês estão de brincadeira! — Wisty berrou. — Isso não é justo! Pá!, fez o cassetete de novo. Pá! Pá! Pá!
Capítulo18
Whit
TODAS ESSAS COISAS MALUCAS estavam acontecendo tão rápido! Em julgamentos normais, e que levam a lei em consideração, um dos membros do júri se levanta e lê o veredicto em uma folha de papel que ele segura com as mãos, as quais, geralmente, tremem. Mas aquilo era uma imitação grotesca da justiça. Nós só ficamos assistindo enquanto os homens, um por um, viraram os polegares para baixo. Todos eles. Unanimidade. É claro que julgamentos normais têm advogados e princípios do tipo “inocente até que se prove o contrário”, essas coisas. Então, sejam bem-vindos à Nova Ordem, eu acho. O juiz Raiwa bateu seu martelo com tanta força sobre a mesa que Wisty e eu demos um pulo. — Culpados de todas as acusações! — ele disse com um rugido, e o ar congelou no meu peito. — Você, Wisteria Allgood, foi considerada bruxa pela Nova Ordem! E você, Whitford Allgood, foi considerado bruxo! Nós só conseguimos olhar para ele, chocados, sem acreditar no que tínhamos ouvido. Mas ele tinha deixado a melhor frase para o final. — Ambos os crimes serão punidos com o enforcamento... até a morte.
Capítulo19
Wisty
ENFORCAMENTO até a morte? “Isso não está acontecendo de verdade”, pensei. Comecei a ouvir um zumbido. “Isso não pode ser verdade. Esse tipo de coisa não acontece. Isso tem que ser um pesadelo.” Meu coração ficou apertado. A sala começou a ficar verde. E embaçada. Então, ouvi a voz de Whit. Como se estivesse vindo até mim por um túnel bem comprido. Finalmente, ele me chacoalhou pelo ombro. — Fica firme, Wisty... — ele disse em voz baixa. Eu pisquei e enfoquei o rosto dele. — Te amo. Fiz que sim com a cabeça. Whit não se achava especial, mas suas palavras foram como um santo remédio para me dar força. Consegui respirar de novo. — Também amo você — sussurrei. — Mais do que eu sabia. Respirei fundo e me preparei para o que o juiz Raiwa ia dizer em seguida. — Infelizmente, as execuções não são permitidas até que o criminoso atinja os 18 anos de idade.
Meus ouvidos começaram a zunir de novo e a visão embaçada também voltou. Whit ia fazer 18 anos em menos de um mês! Fiquei pensando por que não estava de cabeça quente, nem com vontade de soltar uns raios. Eu queria tanto atacar aquele juiz que até doía. — Portanto, vocês dois ficarão na penitenciária do Estado... — ele continuou, em tom grave, e então sorriu e completou: — ... por enquanto. Acenou com a cabeça para o guarda na sala e disse: — Leve esses dois para longe da minha vista! Os guardas nos tiraram da jaula meio sem jeito, eu preciso dizer, já que Whit estava se debatendo como um animal raivoso. — Você está cometendo um erro terrível! — ele berrou. — Isso é loucura! Você vai perder sua licença de advogado! Isso é contra a lei! — Cale a boca, feiticeiro! — o juiz gritou e, de repente, arremessou seu martelo para cima do Whit. Whit levantou as mãos algemadas e então... O martelo ficou ali, parado no ar por uns cinco segundos, a uns 15 centímetros do rosto de Whit, e caiu com tudo no chão. O tribunal ficou em silêncio completo por um momento. Em seguida, o caos tomou conta do lugar. Vozes cheias de raiva gritavam: — Bruxa! Bruxo! Matem os dois! Executem os dois! Eles estavam falando de nós, né? Wisty e Whit. A bruxa e o bruxo.
Capítulo20
Wisty
A LADAINHA CHEIA DE ÓDIO da multidão que estava no tribunal invadiu nossos ouvidos enquanto eu e Whit éramos arrastados e jogados em um corredor estreito e comprido, em meio a uma multidão de estranhos, todos com sede de sangue, do nosso sangue. Esse sim é um jeito de matar toda a fé que temos na humanidade. Até alguns dias atrás, parecia que a pior coisa que poderia acontecer comigo era acordar com uma espinha enorme no rosto no dia de tirar foto para o anuário da escola. Como é que a vida que eu conhecia podia ter mudado tão rápido e ficado tão bizarra? Meu irmão e eu tínhamos acabado de ser condenados à morte. Essa palavra horrorosa, “execução”, ficou martelando dentro da minha cabeça e me perdi em pensamentos enquanto éramos enfiados em outro furgão. Pensei em todas as pessoas sobre as quais aprendi na escola que tinham sido executadas ou assassinadas. Consegui me lembrar de pelo menos umas 12. Mas eram todos líderes políticos ou religiosos. E eu era só a Wisteria Allgood. Eu não era poderosa o bastante para assustar as pessoas. Era? Eu não era heroína, profeta, santa, nem líder de nada. Toda essa situação não fazia o menor sentido. E, então, mais uma coisa terrível. Chocante. Algo que me fez mudar de ideia sobre o pior que poderia me acontecer.
Enquanto estávamos naquele furgão fedido, passando pela cidade, ficamos com o rosto colado numa janelinha minúscula, desesperados para sentir a luz do sol, vendo as ruas passarem por nós, vendo soldados. Soldados por toda a parte. Até vermos uma placa nova sendo instalada por uns operários.
PROCURADOS POR TRAIÇÃO E PRÁTICA CRIMINOSA DAS ARTES ABOMINÁVEIS
Sob estas palavras, estavam fotografias em preto e branco dos nossos pais. E, então, para enfiar o dedo na ferida mesmo, terminavam a mensagem com:
VIVOS OU MORTOS!
— Eles fugiram — Whit sussurrou. — Eles estão por aí, em algum lugar. Vamos encontrá-los, de qualquer jeito!
LIVRO DOIS
MUITO DICKENSIANO
Capítulo21
Wisty
QUANDO O FURGÃO PRETO E FEIO da Nova Ordem finalmente parou, estava chovendo forte e o vento uivava. Estávamos parados em frente a outro prédio grande, dessa vez com paredes altas de pedra, meio chamuscadas, como se pertencessem a uma fábrica antiga. Manchas acima da entrada revelavam onde letras enormes tinham estado um dia. Ainda podia ser lido “HOSPITAL PSIQUIÁTRICO ESTADUAL GENERAL BOWEN”. Por um momento, achei que aquele pesadelo até poderia fazer sentido. “É isso!”, pensei com um sopro de esperança. “Sou psicótica! Tudo que acabou de acontecer não passa de uma montagem inteligente das minhas próprias ilusões.” Isso explicaria o fogo... o aparecimento estranho e aleatório de Byron Swain... a sentença de morte por eu ser uma bruxa. “Os médicos vão tomar conta de mim, a mamãe e o papai virão me buscar quando eu ficar boa, e tudo vai ficar bem de novo. Eu só sou psicótica, só isso. Nada de mais.” Deixei escapar um sorriso involuntário ao pensar nisso tudo. Whit olhou para mim como se eu fosse, sem nenhuma surpresa para ele, uma louca de pedra. Eu estava cruzando os dedos para ser mesmo. — O que deu em você? Você sorriu? Por quê? Esse lugar parece saído de um filme de terror! — Ele fez cara feia.
— Bom, e o que você estava esperando? — eu disse com uma risadinha. — Um lugar quentinho e aconchegante? Nós fomos tirados do furgão e entramos no lugar. — Vai logo! — O guarda me deu um cutucão nas costas com o cassetete, me empurrando para um corredor largo e escuro. Uma luz fluorescente fraca brilhava ao final dele, bem distante. Uma luz ao fim do túnel? Até parece. — Vou receber tratamento aqui? — Aproveitei para perguntar. — Quando posso falar com o médico? Whit virou a cabeça para trás e me lançou outro olhar confuso. — Isso aqui é uma cadeia da Nova Ordem, menina — um dos guardas disse, mal-educado e nervoso ao mesmo tempo. — Para criminosos perigosos. Como vocês dois. Eles nos empurraram para uma escadaria que tinha apenas uma luz bem fraca e que mal iluminava cada patamar entre os andares. Minhas pernas estavam tremendo, provavelmente porque eu não tinha comido nada de verdade desde o começo daquele pesadelo. Os guardas nos fizeram marchar escada acima, sem parar, até eu me render ao cansaço e parar de contar os andares. Finalmente, entramos em mais um corredor escuro em que havia o que parecia ser uma enfermaria antiga. Uma mulher lá dentro estava debruçada sobre sua mesa, corcunda, distraída com a revista O Administrador da Nova Ordem. Ela devia ser muito alta porque, apesar de estar sentada, ainda conseguia olhar para mim. — Sim? — ela coaxou como um sapo que fumava cigarros demais. — Posso saber por que você está me incomodando?
Olhos escuros, quase sem a parte branca, por um triz não atravessaram os meus. Ela tinha um nariz torto e um queixo pontudo com uma verruga enorme, cheia de pelos bem pretos e enrolados. Putz, se a Nova Ordem estava mesmo a fim de prender bruxas... — Mais dois degenerados desprezíveis para você, enfermeira-chefe — anunciou um dos guardas. — Uma bruxa e um bruxo. Senti meu estômago afundar. A fantasia vivida por tão pouco tempo tinha terminado oficialmente. Eu sei que a vida é uma droga quando você não vê a hora de ser institucionalizado, drogado ou até passar por uma sessão de choque para voltar à realidade. A essas alturas, eu aceitaria uma lobotomia numa boa. Acho que é isso que temos que encarar quando a liberdade deixa de ser um sonho. Lobotomia ou morte!
Capítulo22
Whit
— A POLÍCIA ESTÁ ESCARAFUNCHANDO cada monte de lixo podre do país — a enfermeira-chefe disse, cínica — e me trazendo esses... vermes para eu ficar de olho. E com essa introdução animadora, encontramos um novo fundo do poço. Naquele momento, eu estava bem preocupado com a Wisty, pois seus olhos estavam ficando assustadoramente vidrados. A enfermeira-chefe girou em sua cadeira e se afastou para pegar uma pilha bem grossa de arquivos atrás dela. Ela usava um rabo de cavalo oleoso e pesado, que mais parecia uma alga marinha gigante ou uma enguia morta. — Sim, senhora — o guarda respondeu. — É isso mesmo: vermes, mas talvez a senhora esteja sendo gentil demais, se quer saber. — Pois não perguntei! — respondeu a enfermeira-chefe, de maneira ríspida. O guarda ficou com medo e fez uma imitação de bonequinho que balança a cabeça no painel do carro. Então, ela se ergueu sobre os pés gigantes e soltou um grunhido cansado. — Vocês sabem por que estão aqui e não em uma prisão para mariquinhas? — ela perguntou. — Não, senhor — eu disse, limpando a garganta.
— Menino engraçadinho! — Os olhos dela se estreitaram até virarem riscos brilhantes. — Aqui é um lugar perigoso — ela disse. — Para criminosos perigosos. Mas coloquem uma coisa nessas cabecinhas: seus truques baratos não vão funcionar aqui, meus queridinhos! “Será que ela acabou de nos chamar de ‘meus queridinhos’? Foi isso mesmo que ouvi?”, pensei. Talvez existisse mesmo um motivo para eu estar em um Hospital psiquiátrico. — A Nova Ordem deixou esse lugar totalmente à prova de feitiços — ela disse toda animada, e então sua expressão mudou e ela começou a sussurrar para si mesma. — Mas não sei o que eles acham que vou fazer com mais lixo como vocês. A enfermeira-chefe nos mostrou o caminho pelo corredor até uma porta grossa de madeira com uma janelinha de vidro protegida por uma grade. Ela a destrancou e os guardas nos empurraram lá para dentro sem o mínimo de consideração. Eles tiraram nossas correntes e jogaram nossos poucos pertences, uma baqueta e um livro em branco, no chão. — Bem-vindos ao corredor da morte — ela disse e bateu a porta, nos trancando lá dentro.
Capítulo23
Wisty
— MEIO ASSUSTADOR, HEIN? — eu disse, tentando fingir que aquele lugar não era muito pior que uma mansão assombrada em um parque de diversões. — Ahn, não tão assustador quanto você — Whit respondeu. — Odeio ter que dar essa notícia para você, irmã, mas... hum, você está brilhando. Brilhando? O sistema não computa. O sistema não computa. — Quê? — eu disse, com cara de nada. — Como assim? — Que parte de você estar brilhando você não entendeu? — Esse lance de eu estar brilhando, ué? — respondi. — Como é que poderia... Olhei para baixo e vi que minha pele, minhas roupas e o ar a um centímetro de distância do meu corpo estavam inundados por uma luz esverdeada bem fraca, quase transparente. — Você andou brincando no lixo tóxico? — Whit fez uma piadinha sem graça. Estendi a mão e a examinei melhor. Ela começou a ficar tão brilhante que eu tive que afastá-la do rosto. A sala inteira ficou iluminada: as rachaduras escuras e cheias de fuligem, as pilhas de lixo hospitalar, as comadres, os buracos nos rodapés que podiam muito bem ser esconderijo de ratos. — Ai! — Whit recuou. — Me faz um favor e diminui um pouco essa luz? — Não sei se consigo — eu disse, minha voz estava um pouco trêmula. A não ser pelo meu nome “paz e amor”, eu tinha escapado de me tornar uma pessoa esquisita. Não tive que usar as roupas de uma irmã mais velha. Nunca tinha sido a última a ser escolhida para um time na aula de Educação Física. Nunca tinha sido xingada de quatro-olhos, boca de metal, nem de gorda. Mas agora eu era uma esquisitona profissional. Uma bruxa radioativa, lança-chamas, uma aberração. Isso não é boa notícia para uma menina de 15 anos, posso garantir. De repente, fiquei com os olhos cheios de lágrimas, sentindo muito a falta dos meus pais. — Mãe? Pai? — choraminguei. O eco dessas palavras bateu nos meus ouvidos com crueldade. Whit ficou com aquela cara irritantemente preocupada dele. — Wisty... — Shhh — respondi, já chorando. — A mamãe... me contou tudo, Whit. Ela me contou tudo sobre de onde vêm os bebês, e bem antes que os pais dos meus amigos. Como ela e o papai se apaixonaram... Tão romântico. E o papai... Ele me contou sobre os momentos em que mais passou vergonha na escola. E como tinha orgulho de você e de mim, e... e ele nunca teve medo de falar “eu te amo” como os outros pais. — Respirei fundo. — Mas por que eles nunca me contaram nada sobre isso? Whit se aproximou de mim e me abraçou, mesmo com meu novo brilho e tudo mais. — O pior de tudo, Whit, é que talvez eles tenham me contado. Talvez eu não estivesse prestando atenção. Então, comecei a soluçar. Minhas lágrimas encharcaram o macacão de Whit, ele me abraçou até cairmos no sono e meu brilho foi enfraquecendo e desapareceu.
Capítulo24
Whit
UOU! Célia veio me visitar de novo naquela noite ou a algum ponto daquelas horas atormentadas na nova prisão. Eu não sabia quantas horas tinham se passado. Eu não tinha mais certeza de nada. — Oi, Whit, que saudade de você! — Célia disse como da outra vez, mas agora com uma piscadinha. — Eu estava pensando em você. Em como era a nossa vida. Nos dias felizes. Nosso primeiro encontro. Você estava usando aquela camisa de jogar boliche amarrotada que adora. Gato do Boliche. Lembra? É claro que eu lembrava. “Ah, cara, ah, cara, ô, Célia! O que está acontecendo? Estou louco? É por isso que estou num hospício?” — Celinha, escuta, eu preciso lhe perguntar uma coisa. Por que você ficou longe por tanto tempo? Por favor, se você quiser que eu não fique completamente maluco, me conta o que aconteceu com você. Foi incrível, especialmente porque foi um sonho, Célia ter estendido a mão e encostado em mim. Consegui sentir a sua mão. Aquilo me acalmou. De verdade. Ela parecia a Célia de antes, tinha o mesmo toque da Célia de antes... e tinha até o mesmo sorriso doce. — Eu vou contar o que aconteceu comigo, Whit. Não vejo a hora.
— Obrigado... — Soltei um suspiro com toda a força. — Obrigado. — Mas não agora. Quando nos encontrarmos de verdade. Pessoalmente. Não em um sonho. Temos que tomar cuidado, viu? O Único Que É O Único está de olho em nós. Não podia deixar a Célia ir embora de novo. Eu a abracei com força e pedi, mais uma vez, uma explicação racional. Célia se afastou o suficiente para me olhar nos olhos. Eu adorava poder olhar nos olhos dela novamente. Nossos olhos tinham o mesmo azul. As amigas dela ficavam fazendo piadinhas sobre os filhos que teríamos um dia. — Só posso dizer isso por enquanto, Whit. Há uma profecia. Ela está escrita em um muro no seu futuro. Aprenda mais sobre ela. Nunca se esqueça dela. Você faz parte disso, você vai tomar conta do mundo. É por isso que a Nova Ordem tem tanto medo de você e da Wisteria. Não fui capaz nem de absorver aquele absurdo todo antes de ela respirar fundo e continuar: — Whit, tenho mesmo que ir. Eu te amo. Por favor, sinta saudade de mim. — Não vá! — pedi. — Não vou aguentar isso de novo. Célia? Ela tinha sumido, mas de alguma maneira eu ainda conseguia ouvir sua voz. — Nós vamos ficar juntos de novo, Whit. Eu já estou com saudade. Fique com saudade de mim. Por favor.
Capítulo25
Wisty
NAQUELA MANHÃ, WHIT E EU acordamos com um barulho de alguma coisa batendo, como um cassetete ou talvez a bengala de alguém. Meu coração disparou, mas Whit estava meio grogue e desorientado. — Célia... — ele resmungou. Eu o empurrei para longe. Amo meu irmão, mas aquilo não era hora para romantismo desesperado. — Não, é a sua irmã e, só para lembrar, nós estamos em nosso lar doce... hospício — disse e dei um tapinha de leve nele. — Acorda! Eu preciso de você aqui, cara! Segurei a respiração ao ver a maçaneta girar lentamente. Quando Whit começou a reconhecer onde estava, alguns centímetros da porta já tinham sido abertos, mas eu só conseguia enxergar a luz fraca do corredor entrando pela fresta. Uma voz fria finalmente veio de trás da porta. — Obrigado, enfermeira-chefe. — Aquela frieza do mal quase fez meu coração parar. — Pode deixar comigo agora, se me permite. — Tome cuidado — disse a enfermeira-chefe. — Esses demônios são perigosos. — Agradeço a preocupação, mas acho que está tudo bem.
A porta se abriu mais e uma figura esquelética e alta, desumanamente alta, entrou em nossa cela. Parecia a própria Morte, mas em roupas modernas. Um terno cinza ficava pendurado nele como se fosse feito de cabides. Sua pele era de uma palidez pavorosa e nada saudável, como a de uma planta esquecida em um guarda-roupa. Por anos. Instintivamente, dei uns passos para trás. Então, como uma cobra dando o bote, um chicote de couro preto açoitou o ar com um assobio e bateu em mim com força. — Ei! A chicotada era gelada, mas depois começou a queimar. Parei de respirar e coloquei a mão sobre o peito. — Ah, mas isso você não vai fazer, bruxa! — A figura da Morte comandou. — Seus dias de controlar pessoas e objetos com seus poderes malignos chegaram ao fim. Agora, estou aqui. Eu sou o seu visitante.
Capítulo26
Whit
QUANDO AQUELE MALUCO COVARDE acertou a mão de Wisty com um chicote, que mais parecia uma cobra, quase pulei em cima dele. Eu estava pronto para lutar até a morte, não estava nem aí. Ninguém bate na minha irmã. Wisty, corajosa, só protegeu a mão e olhou para ele, com o maxilar travado. Fiquei encarando aquele visitante estranho, tentando distrair o cara. — Vou tentar adivinhar. Ninguém te amou quando era criança. Ou adulto. Ah, a vida é difícil! E então... pá! Perdi o ar quando o chicote atingiu meu rosto com tudo, abrindo um talho na minha pele que queimava como uma brasa. Um monte de sangue começou a escorrer pela minha bochecha. — Este é o seu primeiro dia inteiro no Hospital, bruxo — disse o visitante. — Então, serei gentil com você. Mas você não falará comigo nem com a enfermeira-chefe dessa maneira novamente. Nós somos as únicas pessoas entre vocês e um destino muito pior que a morte. — Ah, então tem coisa pior que ser sequestrado no meio da noite, levado para a prisão, condenado à morte em um julgamento ridículo e, então, ser trancafiado em um Hospital decrépito com dois sádicos? Vai ficar pior? — Acabou? — ele perguntou com toda a calma. Dei de ombros e estava tentando decidir o que dizer em seguida quando o chicote apareceu do nada e me pegou na orelha esquerda, e então na direita, e então na ponta do meu queixo. — Siiim. Muito pior — disse o visitante. — Sua ficha diz que você não era o aluno mais brilhante da classe. No entanto, faria bem a você aprender algo. — E ele suspirou e mostrou nossa cela fria, úmida e nojenta. — Isso aqui é o seu novo lar. Temos guardas armados, câmeras de segurança, perímetros eletrônicos e vários dispositivos de segurança letais que não tenho permissão para revelar. Além disso, vocês não conseguirão desarmar esses sistemas com os seus truques. O prédio inteiro foi alterado para amortecer a energia de vocês, e vocês verão que não têm poder algum aqui. Em poucas palavras, depois de passarem por aquela porta, vocês efetivamente se tornaram normais. Wisty e eu trocamos um olhar rápido como quem diz “a não ser pelo brilho”. Juro que às vezes conseguíamos ler os pensamentos um do outro, e ultimamente mais ainda. — Quanto aos detalhes desta cela, por favor, notem que a única janela externa está voltada para o oeste e através dela vocês podem ver a escuridão de um poço de ventilação de dez andares de profundidade. No fundo dele, há uma turbina que poderia transformar uma baleia-azul em purê em menos de dez segundos. Fiquem à vontade para se jogar lá embaixo quando quiserem.
Ele continuou falando como um porteiro de hotel ao descrever uma suíte executiva. — Vocês também têm seu próprio banheiro semiprivativo, completo, com nosso papel higiênico de edição especial que parece tão leve que você pode jurar que não está usando nada. Olhei para o canto onde ficava nosso banheiro sem porta, que continha um vaso sem tampa, cercado por pó e pedaços de gesso caído, e confirmei que sim, não tinha papel higiênico. O visitante olhou para nós, apontando seu nariz comprido em forma de gancho na nossa direção. — Voltarei periodicamente para ver como vocês estão — ele disse com uma voz profunda de zumbi. — E se vocês se comportarem mal... bom... — ele fez uma pausa e deu um sorriso que faria um crocodilo parecer seu melhor amigo — ... daí, providenciarei a punição. SSSSST! O chicote cortou o ar e por pouco não acertou meu olho. — Vejo vocês em breve... Prometo. Em seguida, ele foi embora e a fechadura foi trancada. — Não gostei muito dele — Wisty disse. — E você?
Capítulo27
Whit
WISTY RESUMIU NOSSA SITUAÇÃO com a sinceridade e a simplicidade de sempre. — Isso aqui é um saco! — ela disse. Fiquei pensando naquilo. Com tantos roxos, galos, cortes, vergões e roupas rasgadas, parecia que tínhamos acabado de lutar numa jaula com um lobo. E eu tinha menos de um mês de vida. — Otimista demais — eu disse. — Você sempre vê o lado positivo das coisas, né? Fiquei analisando todos os cantos da cela para tentar me distrair da dor dos machucados. Estavam queimando. Mas eu estava tendo dificuldade em elaborar pensamentos... a não ser pensamentos torturantes sobre hambúrgueres suculentos e milk-shake de flocos... e batata frita com queijo derretido. Nunca tinha sentido tanta fome na vida. Então, notei Wisty sentada no colchão, mexendo os lábios em silêncio. — Você está falando sozinha de novo? — perguntei. — E por que não? Estamos num hospício. — Ela sorriu e depois ficou meio sem graça. — Na verdade, se você quer saber, estou tentando inventar um feitiço. Sabe, para nos tirar daqui. Se sou uma bruxa, posso muito bem dizer “Shazam!” e fazer a porta explodir. — Mas eles falaram que não temos poder nenhum aqui. Você não prestou atenção em O Único Com O Chicote? — Jura? Então será que meu momento radioativo foi só um sonho estranho? — ela perguntou. — Tá bom, você venceu, menina-neon! — eu disse. — Se você acha que esse lance de “Shazam!” vai funcionar, vai fundo! E ela apontou com as duas mãos para a porta. — Shazam! — ela gritou. Téc! A porta fez um barulhinho e se abriu.
Capítulo28
Whit
— AQUI. VOCÊS DOIS! — O corpo enorme da enfermeira-chefe preencheu o batente da porta. — Venham comigo, seus vermes! Acho que chegou a hora de aprenderem como pegar água e comida. Nas mãos gigantescas da mulher, havia dois baldes velhos de plástico, que ela jogou para nós. Podia ser apenas um palpite, mas aquilo não estava me cheirando a coisa muito boa. No entanto, eu faria o que precisasse para conseguir um gole d’água. A pia do nosso banheiro não funcionava... e o que tinha lá na privada não era exatamente... hum... potável. Cada um de nós pegou um balde e seguimos a enfermeira-chefe enquanto ela andava fazendo o maior barulho pelo corredor escuro, suas chaves chacoalhando a cada pisada dura e aqueles pés sobrenaturalmente grandes enfiados como salsichas enormes naqueles sapatos brancos e grosseiros. Comecei a ouvir outros barulhos à nossa frente. Pareciam sons... animalescos. Rosnados, roncos e guinchos bem agudos encheram meus ouvidos. — O que é isso? — Wisty resmungou. — E, agora, o que temos que fazer? A enfermeira-chefe apontou para o final do corredor.
— Tem comida lá, bem lá no fundo. E água. Usem seus baldes. — Ela checou o relógio enorme com pulseira de metal. — Vocês têm quatro minutos. E se não tiverem voltado ao final desse tempo — os olhos pretos dela brilharam e sua boca se esticou numa tentativa horrorosa de um sorriso —, vou saber que vocês bateram as botas. Violentamente. Ela se virou e voltou para a enfermaria, que ficava a uns 50 metros, fazendo o maior barulho. — Tomem cuidado! — ela berrou. Minha mão já estava suada só de segurar a alça fina de metal do balde. O corredor à nossa frente estava forrado dos dois lados com... algum tipo de animal canino. Cachorros loucos? Lobos? Hienas com pelo preto? Animais famintos, bravos e hostis, acorrentados às paredes por todo o corredor. De alguma maneira, tínhamos que conseguir passar por eles e voltar em quatro minutos... mas só se quiséssemos comida e água. Só se quiséssemos sobreviver.
Capítulo29
Wisty
QUALQUER PESSOA QUE JÁ TENHA PASSADO por uma situação desastrosa como essa, ou mesmo que já tenha estado perto da morte, poderá contar que as coisas mais banais passam pela sua cabeça nesse momento. Segundos antes de sacrificar minha vida, me lembrei de uma cadela bem mala que morava no nosso quarteirão. Quando eu era criança, eu e meus amigos sempre andávamos de bicicleta do outro lado da rua, porque essa cadela tinha cara de louca e morríamos de medo de ela se soltar e vir morder nossa bunda. O nome dela era Princesa, era da raça shih-tzu. Mas agora ela parecia um ursinho fofinho que eu poderia ter vestido com as roupas das minhas bonecas e ainda ter brincado de casinha com ela. — São cachorros? — Whit perguntou com a voz rouca enquanto olhávamos para o corredor. — Ou lobos? Fiz que não com a cabeça. — Estou achando que são aqueles cães guardiões do inferno. — Você acha que dá para brincar de lança-chamas de novo? — Whit sussurrou. — Não consigo fazer aquilo de propósito — resmunguei, frustrada. — Estou tentando. Mas não está rolando.
— Tá. Bom, então eu vou. — Whit deu um passo para trás e soprou o ar com força. — Não... — bufei. — Sou menor e mais rápida. Mas antes de conseguirmos terminar nossa discussão, vimos uma figura pequena e ainda não identificável aparecer ao final do corredor, segurando um balde. — Quem é? — falei baixinho. Quem quer que fosse, a figura saiu correndo, pulando, se esquivando e quase batendo nas paredes, vindo em nossa direção a toda velocidade. A “coisa” estava a uns 10 metros de nós quando, de repente, tropeçou e caiu. No mesmo instante, vários cães caíram sobre a criatura, rosnando e mordendo-a. Fiquei sem ar só de assistir àquela cena terrível. — Preciso ajudar — Whit disse, dando um passo em direção àquela alma infeliz. Mas, então, a pequena criatura deu um pulo, com o balde ainda na mão, e veio correndo em nossa direção de novo. Não conseguia saber se era um menino ou uma menina, mas com certeza era uma criança, talvez cinco ou seis anos mais nova que eu. O sangue escorria pelo cabelo e grudava na sua camiseta rasgada. Abrimos caminho para ele ou ela passar e, então, a figura caiu no chão sujo, se apoiou na parede, a cabeça e os ombros tremendo. O balde, que tinha caído quando tropeçou, estava completamente vazio. Os cães infernais tinham comido ou bebido tudo pelo que a criança tinha arriscado sua vida.
Chorando baixinho, a figura encolhida pegou o balde vazio, foi engatinhando até uma das portas ao longo do corredor e sumiu lá para dentro. Whit e eu ficamos assistindo a tudo em silêncio, chocados. A enfermeira-chefe olhou de relance para o relógio. — Setenta segundos — ela nos disse. — Tique-taque.
Capítulo30
Whit
JÁ TENTOU PENSAR EM VOZ ALTA? Parece uma contradição. Mas você faz o que tem que fazer quando precisa fingir que não consegue ouvir os rosnados, ver as mandíbulas ou os dentes terríveis que estão lhe cercando. Precisei ficar gritando sem parar na minha cabeça quando saí correndo pelo corredor com os nossos dois baldes. “Faz de conta que você está correndo os 100 metros rasos... no campeonato estadual. Corre, corre, corre!” Ai! Senti meus pés se embaralhando, mas respirei fundo e continuei correndo. “Não é o campeonato estadual”, pensei. “É o campeonato mundial.” — Vitória, vitória, vitória! — berrei que nem um doido, esperando nunca ter que explicar para Wisty que eu cantarolava isso na minha cabeça quando estava numa competição, para me concentrar e me ajudar a fingir ser o menino norte-americano sem defeitos que eu achava que todo mundo quisesse que eu fosse. Soou bem idiota no meio de uma corrida de obstáculos com cachorros malucos, mas estava funcionando. De alguma maneira, consegui chegar ao final do corredor com uma ou duas mordidas de raspão. Eu me virei, fiz um joinha bem psicótico para a Wisty e, com muito custo, passei por uma porta.
E parei na hora. A sala parecia vazia. Estava bem escuro. Será que essa era a ideia de armadilha da enfermeira-chefe? Se era, então eu tinha que tirar meu chapéu para ela. Mandou bem, enfermeira-chefe. Por um segundo, me senti vulnerável como nunca. Eu já estava esperando um cachorro louco ou um lobo pular da escuridão e estraçalhar a minha cara. Depois do que pareceu uma eternidade, meus olhos se acostumaram à escuridão e eu finalmente enxerguei duas coisas que pareciam cochos contra uma parede. A enfermeira-chefe não tinha mentido, afinal de contas. Que incrível! Fui correndo até eles, enchi os baldes com uma gororoba melequenta e água morna. Estava me sentindo tão bem que enfiei a cabeça na água escura e dei um golão nela. Sentir minha cabeça debaixo da água me deu mais energia. Segurando os baldes junto ao peito, saí correndo da sala, passei pelo corredor e fui em direção à minha irmã, que estava pulando como uma líder de torcida louca. — Cachorros bonzinhos! — Eu a ouvi berrar em meio aos latidos daqueles cachorros demoníacos. — Cachorrinhos fofinhos, deixem meu irmão passar. Vem, Whit, vem! Bem naquele momento, senti as mandíbulas de um animal na minha calça. Bati com tudo numa parede, mas mantive o foco, “Vitória, vitória, vitória!”, e continuei correndo entre rosnados e latidos.
Ver o rosto de Wisty à minha frente me deu aquela motivação para percorrer os últimos metros. Eu praticamente voei para os braços dela e ela me abraçou com força. — Você é demais! — ela comemorou. — Você conseguiu, Whit! A enfermeira-chefe estava vindo a passos largos em nossa direção, segurando sua arma paralisante ao nível de seus olhos. — Falta! — ela berrou. Falta? E, sem nenhum aviso prévio, ela me deu o maior choque. Eu mal sabia o que tinha acontecido, mas caí e os baldes tombaram e rolaram. — Quatro minutos e seis segundos! — a enfermeira-chefe gritou. — Nada de comida! Nada de água! Ela levou os baldes embora enquanto eu babava no chão.
Capítulo31
Whit
À MEDIDA QUE OS DIAS PASSAVAM, minha irmã e eu conseguimos escapar da morte por desidratação graças a uma goteira do que torcíamos que fosse água da chuva ou da condensação do poço de ventilação. Enfiamos um pedaço de arame no buraco, que levava a água até um copinho de papel amassado que encontramos, e tomamos uns goles a cada três ou quatro horas. Tinha gosto de pó de reboco, mas salvou a nossa vida. Essa história toda não fazia sentido nenhum. Na semana anterior, ter um dia ruim significava levar uma bronca ao exercer meu direito de não querer fazer tarefa de Trigonometria e ter que encarar mais duas horas com meus amigos na escola, depois das aulas, na detenção disciplinar. Esta semana, com todo o tédio e a depressão daquele lugar, eu teria encarado meu livro de Trigonometria como se fosse o Livro Completo dos Carros Mais Legais do Mundo. Então, uma tarde, eu estava deitado no colchão, pensando na Célia e torcendo para ela voltar, mesmo que fosse em outro sonho, quando minha irmã gritou: — Whit! Whit! WHIT! Olha para mim, por favor! WHITFORD!
A voz da Wisty me trouxe de volta àquele aqui e agora sem sentido. Fiquei de olhos fechados, querendo mergulhar de novo nos meus pensamentos na Célia. — Whit! — A baqueta idiota dela acertou minha perna. — Abra os olhos agora mesmo! — Ai! O que é tão importante? — Eu me sentei e peguei a baqueta, já irritado. — A pizza chegou? Minha irmã estava de pé à minha frente, segurando o diário na mão. — Olha isso! — ela disse, balançando o livro poeirento em frente ao meu rosto. Peguei o catatau e examinei a capa. Ainda parecia o mesmo livro de sempre. — E daí? Esse livro é velho, bolorento e inútil. — Folheie as páginas. Vai, Whit! Faz isso por mim! Então, vi o impossível. De repente, aquele diário estava cheio de palavras, imagens e ilustrações. E com uma letra de mão que parecia a do meu pai. — Caraca... — Eu me levantei. — É o próximo livro da série do Percival Johnson. Mas não ia sair até o ano que vem — eu disse. — Que interessante! O Ladrão de Trovões é um dos meus livros favoritos. — O quê? —Wisty disse. — Você está vendo a mesma coisa que eu? Virei as páginas.
— Caraca! — Examinei o livro mais uma vez. — Mas se não é o Livro Completo dos Carros Mais Legais do Mundo! — Espera aí! Eu não vi isso, não! — Wisty pegou o livro de volta. — Não, não, é a História da Arte Mundial! E com reproduções dos meus artistas favoritos, Pepe Pompano e Margie O’Greeffe. E também tem os meus romances favoritos! — Ela folheou o livro rapidamente. — Você viu só? — Ela segurou o diário sob o meu nariz, as páginas abertas. — Olha só, tudo da minha autora favorita, K. J. Meyers. E tem A Intenção de Sabugo Carnê. E a saga “Aurora”, bem aqui! Fui olhar, mas dessa vez vi a edição de luxo da “Coleção Completa das Garotas de Biquíni”. — Whit... acho que entendi — Wisty disse, surpresa, mas falando baixo. — O livro mostra exatamente o que queremos ver. — Então, ela arregalou os olhos e me encarou. — É mágico! Foi por isso que o papai deu esse livro para você. Peguei o diário das mãos de Wisty. — Mostre para mim onde a Célia está — eu disse com todo o meu coração e segurei a respiração como se estivesse esperando que algo acontecesse de verdade. Nada. A não ser que o Livro Completo dos Carros Mais Legais do Mundo pudesse me levar até a Célia de alguma maneira. — Temos que descobrir como isso funciona — Wisty disse, tensa. — Eu sei que você acha que sou louca, mas estou começando a acreditar nessa história de bruxa e bruxo. Na nossa mágica. Temos que treinar, Whit. Temos que ter mais força de vontade. Talvez você seja um bruxo. Talvez eu seja uma bruxa.
Capítulo32
Wisty
EU TIVE UMA PROFESSORA MUITO LEGAL, a Srta. Solie, que nos contou que conhecia o segredo da verdadeira felicidade. Ela falou que o lance era encarar a vida sempre como um copo meio cheio, nunca como um copo meio vazio, não importasse o que acontecesse conosco. Eu até achava aquilo bem legal. Mas o que fazer quando o copo está 0,000001% cheio? Os dias se passaram, houve testes, testes e mais TESTES. Exames médicos, testes de força física, testes de inteligência, testes de “normalidade”, testes de patriotismo, entre outros. Certa noite, quando eu estava quase dormindo e morrendo de dor por causa da fome, eles pegaram o Whit na nossa cela e o levaram embora. — Vocês não podem fazer isso! — berrei. —Ainda não chegou a hora dele! Eu estou contando os dias! Não chegou a hora! Ele ainda não fez 18 anos! Mas, quando dei por mim, a enfermeira-chefe estava me arrastando para fora da cela e me empurrando por um corredor comprido em direção a uma janela isolada. Ela apontou para o lado de fora, para um pátio. E ela falou meio cantando, com aquele hálito nojento:
— Parabéns pra você, nessa data querida, muitas felicidades no seu último dia! Meu sangue congelou e meu coração quase parou de bater. No pátio, havia uma forca à moda antiga. Ela continuou cantando: — E para o Whit, nada? NADA! — E então deu uma risada que mais parecia um zurro de jumento. Alguns segundos depois, uma tropa de guardas empurrou Whit à frente deles lá no pátio. Ele estava com as mãos e os pés algemados e tropeçava a cada passo. Tentei engolir meu grito ao ver um guarda colocar um capuz preto na cabeça do Whit. — Não! — berrei, batendo meus pulsos contra o vidro. — Não! — Dei um murro no vidro, pisquei e, então, de repente... Eu estava caindo.
Capítulo33
Wisty
BONC! QUASE PERDENDO O AR, a adrenalina acordou meu cérebro com tudo e olhei ao redor daquela cela claustrofóbica. Vi Whit piscando, ao acordar assustado. Em seguida, ele se sentou e me encarou. Naquele momento, percebi que minha bunda e minhas costas doíam e foi então que me liguei. Eu estava flutuando enquanto dormia. O pesadelo sobre a forca tinha me acordado e eu estava... no ar. Infelizmente, minha bundinha ossudinha não tinha sido criada para aterrissar no chão duro a uma altura de, hum, um metro e pouco? — Ô, Wisty! — Whit disse. — Você estava flutuando! Olhei para ele e fiquei tão, mas tão feliz ao ver que ele estava vivo e ali, do meu ladinho. Ainda tremendo por causa daquele pesadelo horroroso, senti o suor gelado secar na minha nuca. Olhei para cima como se fosse ver os arames e as roldanas que podiam estar me segurando no ar. Mas não havia nada. — Flutuando... — Whit repetiu, sem conseguir acreditar — ... enquanto você dormia. E eles acham que não temos nenhum poder especial aqui.
Queria negar, mas ali estava eu com a bunda doendo e tinha certeza de que caíra lá do alto. Eu me levantei, ficando de pé no espaço onde tinha... ahn, flutuado. Só para experimentar, balancei minha baqueta no ar. Não aconteceu nada. — Minha irmã, a bruxa! — Whit deu risada. — Por que você não consegue materializar um cheeseburger duplo ou algo útil? Um sundae tamanho jumbo? Uma arma paralisante? Suspirei e me sentei ao lado dele no colchão. — Você está rindo, Whit, mas... essa coisa de bruxa e bruxo. As chamas. Aquele lance do brilho. O martelo do juiz parado no ar. E agora esse negócio de flutuar. Acho que nós somos mesmo... bruxos. Parecia que eu estava dizendo “Sou mesmo uma top model”. — É isso mesmo, Detetive Allgood — Whit disse. — E agora temos que aprender a usar esses nossos feiticeiros interiores para sair desse buraco. — Tá certo — eu disse, batendo a baqueta de leve no chão. Era só uma porcaria de baqueta, mas eu me sentia melhor com ela na mão. Talvez ela me ajudasse a pensar, ou me trouxesse à mente algum lance espiritual. — Eu bem que podia virar lança-chamas de novo e tacar fogo na enfermeira-chefe — sugeri. — Se eu descobrisse como fazer aquilo quando quisesse. — Ótimo. E então vamos acabar com uma giganta queimada nas mãos, além de um monte de guardas bravos — disse Whit.
—Tá. Ou eu podia sair flutuando do poço de ventilação — eu disse, olhando para a janela minúscula e escura acima da minha cabeça, e então me imaginei caindo lá dentro, voando vários andares abaixo e sendo pulverizada pela turbina que ficava ali. — Talvez consigamos estalar os dedos e uma escada dourada apareça do nada com anjos cantando e apontando para a saída — Whit disse, com um sorriso de mostrar até a gengiva. — Ou talvez ganhemos asas para sairmos voando daqui. Bufei. — É! Imagina nós dois ganhando asas. Até parece. Tum! Whit e eu demos um pulo e nos viramos para a porta. Ela tinha se aberto com tudo e batido com força contra a parede. Ficamos esperando, ambos tão tensos como duas molas encolhidas. Uma coisa eu já tinha aprendido: nada que passava por aquela porta podia ser bom.
Capítulo34
Wisty
— O CAFÉ DA MANHÃ ESTÁ SERVIDO! Ovos poché com bacon, frutas frescas, waffles e melado para acompanhar. Brincadeirinha, crianças! O visitante apareceu, vestido de preto novamente, seus olhos verdes frios brilhavam como se estivesse com febre. Fiquei pensando que, se ele olhasse para mim um pouquinho mais, meu sangue começaria a congelar nas veias. Ele andou pela cela, examinou tudo como se fosse um investigador de cena de crime obcecado por detalhes, dando batidinhas nas paredes e testando a resistência da janela com grade de arame da porta. — Manter vocês aqui é uma perda de tempo, espaço e dinheiro — ele resmungou, sem se dar ao trabalho de olhar para nós. — Esperar vocês completarem 18 anos é optativo. Vocês estão jogando o dinheiro dos impostos dos contribuintes pelo ralo... Temos que alimentar vocês, dar um teto para vocês ficarem até lá... — Hum... não sou especialista em economia, senhor — Whit disse com um sorriso tão falso que até meus dentes doeram —, mas até eu sei que os contribuintes não estão gastando mais de dez centavos para nos manter aqui. O visitante arregalou os olhos para nós da entrada do banheiro.
— Pensei que você tivesse aprendido a não responder para mim, seu idiota! — Ele enfiou a mão no bolso do paletó e tirou uma escova de dentes jurássica de lá. — Como punição, vão esfregar o banheiro com este utensílio de limpeza. Quando eu voltar, é melhor que tudo esteja tão limpo quanto uma sala de cirurgia. O visitante anotou alguma coisa em uma prancheta. — Na Nova Ordem, não há lugar para a sua laia — ele resmungou. — Com licença, senhor — eu finalmente abri a boca. — Mas o que é a Nova Ordem, exatamente? O visitante se virou e olhou fixamente para mim. Seu chicote preto e ameaçador estava perigosamente pendurado em seu braço. Então, ele começou a falar, todo animadinho: — A Nova Ordem é um futuro brilhante! É um futuro que substitui as liberdades corruptas e ilusórias das chamadas democracias com uma disciplina muito maior. Foram necessários muitos e muitos anos de planejamento, cargos políticos estratégicos, pesquisas com rigor científico, comunicação precisa de mensagens importantes e eleições cuidadosamente monitoradas. Para esse momento raro da história da humanidade, aqueles com valores e princípios estão capacitados a fazer o que é melhor. E parte desse melhor, claro, é tomar as medidas necessárias para eliminar os depravados, os criminosos e todos aqueles que ameaçam a prosperidade e a supremacia da Nova Ordem. — Ele passou a mão no cabelo penteado para trás e completou: — Como vocês dois. — Mas... o que há de errado conosco, senhor? — perguntei como se fosse a aluna mais ignorante da classe.
Os olhos gelados do visitante se estreitaram e ele se aproximou de mim até eu conseguir sentir o cheiro de naftalina e brilhantina que exalava dele. — Você sabe muito bem o que há de errado com vocês. Vocês são um vírus — ele disse por entre os dentes. — Vocês são o pior tipo de subversivo. Artistas ilusionistas. Meu queixo quase caiu. — Mas somos apenas dois adolescentes! — Adolescentes! — ele disse cuspindo, como se estivesse dizendo “espinha cheia de pus”. — Muitos, muitos, muitos adolescentes e crianças são inaceitáveis na Nova Ordem. Naquela hora, eu deveria ter calado a boca, feito cara de paisagem e ficado quieta até ele ir embora. Mas, em vez disso, insisti. — Nós. Somos. Só. Dois. Adolescentes! Praticamente gritei a última palavra e, enquanto o visitante erguia o chicote acima da cabeça, seu rosto foi tomado por uma expressão maníaca de prazer... Vush! Fiquei em chamas pela primeira vez desde que tínhamos chegado ao Acampamento Alcatraz. Chamas enormes. Bem impressionantes, até para uma cabeça quente como eu. Whit comemorou. — É isso aí, menina! Através do véu das chamas, que dançavam, vi o visitante me encarando com uma expressão de horror e se afastando rapidamente em direção à porta. Abri os braços e fui atrás dele como um zumbi.
— Me abraça, tio? — Aberração! — o visitante gritou antes de bater a porta da cela. — Que bela maneira de mostrar para ele que somos só adolescentes, menina infernal — Whit disse. — Mas legal demais, mesmo assim!
Capítulo35
Wisty
MOLHEI A ESCOVA DE DENTES na água cinza da privada e esfreguei mais um centímetro do chão. Eu cantava como se tivesse ficado doida de vez, e provavelmente tinha ficado mesmo. “Motorista, motorista, olha o poste, olha o poste, não é de borracha...” A essa altura, já tinha cantado todas as músicas boas de que me lembrava e, acredite em mim, foram muitas. Agora, tinha chegado ao fundo do poço e voltado aos dias da Educação Infantil. Antigamente, eu era a rainha do Karaokê. Cresci com meus pais colocando todo tipo de música para tocar lá em casa: coisa antiga, coisa nova, música clássica, blues, jazz, rock, pop e até hip-hop. Estou falando: tudo mesmo, de Toasterface a Ron Sayer, passando pelo Lay-Z. Carão Vermelho e Bazuza ao Raul Queixas. Meus pais eram muito descolados. Quer dizer, eles são muito descolados. Pensar no meu pai e na minha mãe me deu um aperto no peito que me tirou do ritmo da escovação. Tive até que cantar mais alto para entrar no clima de novo. Óbvio que o Whit não estava a fim de me escutar cantando. — Então, parece que o visitante tem medo de fogo — Whit disse, se apoiando contra a parede para descansar um pouco do serviço.
— Pois é, Whitford, a maioria das pessoas não entra em pânico quando alguém pega fogo de repente — eu disse, virando os olhos. — Aquele visitante é um bundão. — Nós somos bruxa e bruxo. Mas o que isso quer dizer? — Whit continuou. — Faz um tempão que não leio contos de fadas. Nem sei o que bruxas e bruxos fazem, a não ser que... nós não teríamos que saber fazer essas coisas de propósito, em vez de não ter controle sobre nada? — Acho que sim. Se eu ganhasse dez centavos para cada vez que falei “alakazam” e nada aconteceu, já teria grana para renovar meu guarda-roupa. E ainda poderia comprar vários cachorrinhos fofos do tamanho de uma bolsa para combinar com cada modelito. — Parei de esfregar o chão um pouco, meu braço já estava doendo. — Espera aí! Não, isso não! Eu nem quero isso. Eu quero... Whit interrompeu meu devaneio. — Mas tem que fazer algum sentido... A voz dele foi cortada quando ficou sem ar. Eu dei um pulo e fiquei de pé. Whit estava encarando o braço dele. E eu também. A mão dele tinha acabado de afundar na parede. E não foi um “afundar” tipo arrebentar o pulso fazendo um buraco no cimento. Afundou, tipo, sei lá, de um jeito mais “as moléculas que compunham a parede se rearranjaram ao redor da mão dele”. — Cara, você consegue tirar a sua mão daí? — perguntei. — Tente, por favor!
Meu irmão fez uma cara de preocupado, mas tirou a mão da parede sem enfrentar nenhuma dor ou resistência mais óbvia. Nós a examinamos: era a mesma mão de sempre. E, então, ele a colocou sobre a parede e a empurrou de leve. A mão afundou vários centímetros e seu contorno ficou turvo sob as moléculas da parede. — Eu só consigo chegar até o cotovelo — ele me disse. — Depois disso, a parede fica dura de novo. Fiz que não com a cabeça. — Que bizarro! Mas útil? Nem tanto. A não ser que você consiga atravessar a parede com o corpo inteiro. Pelo amor de Deus, não coloque a cabeça ali! — eu disse. Mas só ouvi a voz abafada do Whit. Ele tinha enfiado a cabeça na parede. — Você não vai acreditar nisso! — Eu mal conseguia entender o que ele dizia. — É piração demais!
Capítulo36
Whit
PISQUEI, VOCÊ SABE, tipo quem pisca primeiro perde. Eu conseguia ver... um mundo de sombras. Parecia uma dimensão totalmente diferente, outra realidade. Tudo era preto, ou cinza, ou tingido com um verde meio brilhante. Eu conseguia distinguir umas figuras turvas se mexendo e conseguia ouvir uns trechos bem distorcidos de conversa, cheios de ruídos de estática. Parecia que eu estava assistindo a um filme de terror em uma TV velha com sinal péssimo. A Wisty tinha começado a puxar minha camisa do outro lado da parede. Eu mal podia ouvir a voz dela, o que me deu o maior medo. Algumas sombras estavam ficando mais nítidas porque estavam se aproximando, e disso eu também não estava gostando muito. — Fiquem onde estão! — tentei dizer, mas tinha perdido a voz. Então, uma das pessoas-sombra olhou para mim, como se pudesse me escutar. Parecia um ser humano. Então a boca se abriu, e não era nada além de um borrão sem forma em um mundo escuro de sombras. Se a criatura estava dizendo alguma coisa, não conseguia entender nada. Devagarzinho e com cuidado, a criatura se aproximou. Logo em seguida, ouvi distintamente a pergunta: “Tem alguém aí?”.
Enquanto observava tudo aquilo em silêncio, chocado, o rosto da sombra ficou cada vez mais claro, mais detalhado, e gritei. Era a Célia. E dessa vez não era sonho.
Capítulo37
Whit
— CÉLIA! — EU GRITEI, mas minha garganta ficou seca e minha voz parecia ter sido arrancada de mim de novo; meus joelhos tremiam. Célia congelou, ficou olhando ao redor como se não conseguisse me ver ali, a apenas alguns centímetros de distância dela. — Célia! Sou eu, Whit. Estou vendo você. Estou aqui. Seja que lugar for esse aqui! De repente, ela me olhou nos olhos. E piscou. Piscou de novo. Então, deu um passo para trás, surpresa. — Sou eu. Estou mesmo aqui. Você disse que íamos nos ver de novo. De verdade. Do outro lado, Wisty ainda estava me chamando e pedindo aos berros para eu voltar. Mas eu não conseguia parar de olhar para a Célia. A pele dela parecia ainda mais pálida que nos meus sonhos. Seus olhos ainda brilhavam e me falavam a verdade. Ela estava linda como sempre, talvez ainda mais linda. Ela tinha uma luz interior. — Whit? — Ela molhou os lábios, um tique nervoso bem familiar dela, e, finalmente, chegou mais perto. — Whit, agora estou conseguindo ver você. Como é que você... Onde você está? — Vai ser difícil acreditar, mas estou no banheiro de uma cela em um hospital psiquiátrico — eu disse, despejando as palavras da minha boca. Tinha que tentar tocá-la. Talvez eu conseguisse levar a Célia para o outro lado comigo. — Mas onde você está? Célia me olhou de um jeito esquisito e meu coração gelou. — Whit — ela sussurrou, nervosa. — Você tem que ir agora mesmo. Você não deveria estar aqui. É perigoso! — Por quê? — Perdi a paciência. — Eu sinto muito — Célia começou a falar —, mas tenho que contar o que aconteceu comigo de verdade. — E então, ela perdeu a voz e começou a chorar. — Eles me mataram. Eles disseram... que foi por causa de você e da sua irmã. Aconteceu no Hospital, Whit. A Nova Ordem e O Único Que É O Único, ele está por trás disso. Ele é terrível e tão poderoso... Comecei a chorar também. Meu corpo tremia e estava anestesiado nas extremidades. — Eu consigo ver você. E você disse que íamos nos encontrar. E você está aqui comigo. Você não está morta, Célia! — Não venha aqui de novo, Whit — ela me pediu. — Essa é a Terra das Sombras. É um lugar para os espíritos. É isso o que eu sou agora. Sou um fantasma.
Capítulo38
Whit
— WHIT, VOLTE AQUI agora mesmo! Whitford! De repente, senti os braços da Wisty se enroscarem com força ao redor da minha cintura. — Wisty, não! — Eu tentei empurrá-la, mas ela era como um carrapato, se prendia como ninguém em alguma coisa e nunca se soltava. Eu podia sentir que ela estava apoiando os pés contra a parede para conseguir me puxar de volta. Vai ver que eu não era mais forte como antes, ou então Wisty estava mais forte do que nunca. Ela me arrancou de dentro da parede, para longe de Célia, e nós dois fomos parar do outro lado do banheiro. Batemos com tudo na parede oposta. Ela me soltou e saí correndo de volta para a parede como se estivesse possuído. — Whit, não! — Wisty berrou. — NÃO! Não, Whit. Por favor. — Célia! — gritei, meus lábios pressionados sobre a superfície gelada. — Volta! — Empurrei a parede. Dei vários murros nela. Tentei enfiar a mão ali. Eu não conseguia mais. Finalmente, desisti e fiquei arrasado.
Wisty só ficou me olhando, com as duas mãos no topo da cabeça. Ela tinha toda a razão do mundo para achar que eu tinha ficado doido de vez. —Wisty, eu vi a Célia. — O quê? — Ela me encarou, descrente. — Na parede? Contei para ela tudo o que tinha visto e o que Célia tinha dito. Que ela tinha sido assassinada por nossa causa. E que agora ela era um fantasma. Wisty ficou sem palavras enquanto tentava processar a próxima virada inacreditável nas nossas vidas: eu tinha visto e falado com um fantasma. Em seguida, ouvi o barulho da porta da nossa cela sendo destrancada.
Capítulo39
Wisty
A ENFERMEIRA-CHEFE ENTROU CAMBALEANDO em nossa cela e nos informou que íamos voltar a nos encontrar com o juiz Ezekiel Raiwa. Será que houve um engano e não éramos a bruxa e o bruxo que eles estavam esperando? Ou nossos pais tinham interferido de alguma forma? O que quer que fosse, algo muito importante tinha acontecido. Talvez fôssemos ganhar uma lasca da nossa humanidade de volta. Depois de um adeus não muito carinhoso da enfermeira-chefe, veio um passeio a toda velocidade em um furgão caindo aos pedaços, que exalava o cheiro metálico de sangue e o aroma daquilo que os animais fazem quando estão morrendo de medo. — Você está tremendo — disse Whit. Ele beijou o topo da minha cabeça com todo o carinho. O que acontece é que sempre nos amamos, mas brigávamos pelas coisas mais mesquinhas e ridículas. Desde que fomos sequestrados, não brigamos mais. A vida, como o ditado mais sábio diz, é curta demais. Além disso, ficou tão claro para mim agora: o Whit era um irmão e tanto. Eu só queria que não tivéssemos que ter ficado presos em um cafofo da Nova Ordem para eu me dar conta disso. O furgão brecou cantando os pneus, abriram as portas e fomos arrastados para fora. Entramos num prédio alto e, de repente, estávamos cercados pela normalidade rígida e monocromática da Nova Ordem: luzes fluorescentes, o corredor de um tribunal, pessoas normais da Nova Ordem usando roupas limpinhas e sem graça da Nova Ordem, celulares tocando com a mesma musiquinha pré-programada de uma nota só. Fotos de O Único Que É O Único por toda a parte. E placas vermelhas com N.O. escrito em preto estavam em todas as paredes. Ver tudo isso fazia nossos dias e noites na prisão parecerem um pouco mais suportáveis. Pelo menos não estávamos cercados por toda essa porcaria. Whit aproximou seu rosto do meu e sussurrou: — Se tivermos a chance, vamos sair correndo! Damos as mãos e corremos. E não olhamos para trás, aconteça o que acontecer. Um guarda abriu com tudo uma porta toda entalhada e... Estávamos de volta àquela sala horrorosa do tribunal. E lá estava o juiz Ezekiel Raiwa, parecendo o primo de primeiro grau e favorito da Morte. — O Único Que Julga! — anunciou um puxa-saco da Nova Ordem com um sorriso afetado. Só para garantir, né? Vai que nos esquecemos da cara daquele idiota. Dessa vez, não tinha um júri que nos odiava, nem a plateia para tirar uma da nossa cara. Só O Único Que Julga, os guardas armados e... o visitante. Resmunguei baixinho quando vi que ele estava ali. Provavelmente, estava nos acusando de limpeza malfeita do banheiro ou de derrubar coisas de um balde no Corredor dos Cachorros Loucos.
O juiz Raiwa estava lendo um relatório bem grosso e lançou um olhar rápido e enojado em nós antes de virar a página e continuar a leitura. — Wisteria Allgood — o juiz finalmente disse, levantando os olhos sem vida para mim. — Whitford Allgood. — De alguma maneira, ele conseguia fazer o “good”1 dos nossos nomes soar como se fosse todo o mal que existe no mundo. — Acredito que vocês estejam gostando da estadia no Hospital? — Está sendo fantástica! — eu disse. Não consegui resistir. — Cinco estrelas. — Estou com seus relatórios médicos aqui — ele continuou, me ignorando completamente e balançando o documento grosso no ar, como se não fosse nem um pouco pesado. Os olhos dele pareciam raios laser sobre nós dois. — Seus exames voltaram... normais. Cada um deles! Meu coração deu um pulinho. Obrigada, meu Deus! Tudo aquilo não tinha passado de um engano terrível. Agora, podíamos voltar para nossos pais e ir para casa. O pesadelo tinha, finalmente, acabado. — O que quero saber agora é o seguinte... — O juiz fez uma pausa dramática. — Quem vocês subornaram? Foi ele? Foi o visitante? Eu suspeito que tenha sido ele.
Capítulo40
Wisty
— COMO ASSIM, SUBORNARAM? — Whit berrou e eu pensei que o cocuruto dele fosse explodir e sair girando pela sala. Afinal, a essa altura, coisas mais estranhas já tinham acontecido. — O visitante? — eu disse. —Você não precisa se preocupar com ele, vai por mim, ele é um carrasco fiel, sádico e dedicado. — Mas é claro que vocês subornaram alguém! — o juiz gritou. — Normais? Vocês são a coisa mais distante de “normal” que pode existir. Ser insolente não é normal. Ser traiçoeiro não é normal. Ser perigoso para a sociedade não é normal. Whit estava quase chegando ao limite. — E totalmente louco não é normal também! Como poderíamos ter subornado alguém? Com mingau de aveia? Cocô de rato? Dicas de beleza daquela enfermeira-chefe assustadora? O rosto do juiz Raiwa ficou quase roxo de tanta fúria. — Você não faz as perguntas aqui, garoto — ele disse, emanando ira como as fontes italianas vertem água. — Aqui você responde às perguntas! E agora, pela última vez, quem foi? Eu sei que não foi a enfermeira-chefe. Ela é a minha amada irmã.
“Nossa, que informação mais chocante”, pensei, cansada de tudo aquilo, e deixei um recadinho mental para não fazer mais piadas sobre a enfermeira-chefe. — E — ele continuou — se você disser mais alguma palavra contra ela, será acusado de desrespeito à corte. E a pena para esse crime vai fazer tudo isso aqui parecer um parque de diversões. “Você é uma barata miserável e nojenta”, pensei. Whit respondeu: — Desculpe. Talvez suas máquinas de exames puxa-sacos não estivessem funcionando direito naquele dia? — Cale a boca! — o juiz berrou. — Vocês obviamente fizeram alguma coisa com as máquinas dos exames. Usaram feitiçaria nelas! Alteraram os exames! “Barata! Você é um baratão!”, gritei, dentro da minha cabeça. “Ah, se eu pudesse transformar o juiz Raiwa em uma barata”, pensei. “Eu sou bruxa, certo? Então, por que não posso fazer isso? Por quê? Por quê? Por quê?” — Vire uma barata — sussurrei. — Vire uma barata! Meu cérebro começou a doer com todo aquele esforço. Bruxas lançam feitiços. Eu não sabia feitiço algum. Só conseguia me lembrar de umas rimas que aprendi quando era criança. Será que eu sabia algum versinho sobre baratas? A única coisa que rimava de que eu conseguia me lembrar era esta musiquinha:
Mosca na cozinha bate as asas Papel pega-mosca não pegou Mosca na cozinha bate as asas Na boca aberta ela já entrou.
E quem é que ia saber o que aquilo queria dizer? O juiz ainda estava gritando com Whit e o rosto do meu irmão continuava tenso. Ele estava se segurando para não explodir de raiva. Só uma irmã é capaz de reconhecer esses sinais. De repente, um zumbido alto me distraiu e olhei para o teto. Seria possível mesmo? O barulho ficou ainda mais alto e, então, um dos guardas disse: — Mas que mer... Uau! Meu Deus, Senhor, meu Deus! De repente, a sala do tribunal estava cheia de moscas-varejeiras enormes, prontinhas para nos picar. Eu tinha lançado uma praga.
Capítulo41
Wisty
MOSCAS-VAREJEIRAS. Elas estavam se lançando sobre as pessoas com tudo, mergulhando no ar por toda a parte, aquelas bandidas malucas estavam doidinhas para chupar nosso sangue. Eu as tinha criado. Ops, ops total! Se alguém tivesse jogado um saco daquelas bombinhas que o pessoal chama de fedegoso, ou uns mísseis M-80 na sala bem naquela hora, a confusão teria sido menor. Os guardas, que pareciam tão durões, tentavam afastar as moscas com as mãos e berravam como menininhos que tinham tropeçado em um ninho de marimbondos. O juiz Raiwa ficou de queixo caído, horrorizado. Mas ele fechou a boca rapidinho quando várias moscas gigantescas começaram a se jogar em missões kamikazes na direção da garganta dele. Whit e eu nos encolhemos debaixo de uma mesa. — O que está acontecendo? — ele perguntou. — Você... — Hum... — comecei a responder, cheia de culpa. — Pode ser. Mais ou menos. Sim. — Wisty, o que você fez? — Whit sussurrou no meu ouvido. — Não sei bem o que fiz — respondi. — Cantei uma musiquinha sobre moscas, e moscas na cozinha, e batendo as asas, sei lá.
De repente, o zumbido parou. “Só isso?”, pensei. “A praga é só isso?”
Capítulo42
Wisty
OLHEI DE RELANCE, ainda debaixo da mesa, e vi o visitante girando pela sala e dando golpes no ar com seus braços finos como galhos. O juiz Raiwa deu uma olhada rápida de debaixo de sua montanha de túnicas, os olhos arregalados do tamanho de bolas de tênis. Em seguida, um dos guardas berrou: — Oh, meu Deus! — Oh, meus Deus, não! — gritou outro. — Isso é pior! Muito pior! Eu mal podia acreditar no que estava vendo. Todas as moscas tinham sumido. Mas, grudadas nos braços e rostos de todo mundo, em cada pedacinho de pele que estivesse à mostra, havia manchas pretas e pequenas... Que se mexiam! — Meu Deus! — Whit suspirou. — As moscas se transformaram em sanguessugas! — Mas eu não falei nada sobre sanguessugas — respondi com um sussurro, na defensiva. Pelo jeito, aquelas criaturinhas vampirescas eram tão elásticas quanto um professor de ioga. Um guarda tentou desgrudar uma delas de seu lábio e a sanguessuga se esticou e se esticou até se arrebentar como uma bomba de meleca amarela. Mais sanguessugas estavam grudadas pelas paredes, mesas e cadeiras; milhares delas se movendo e famintas por sangue. Algumas estavam caindo do teto. — Acho que essa é a coisa mais nojenta que eu já vi — Whit disse. — Mesmo depois de passar por tudo aquilo no Hospital. Mas estou gostando. — Ei — eu disse —, se você ainda não notou, elas não estão a fim de grudar em nós. Então, uma voz estrondosa encheu a sala. — Parem! Parem agora mesmo com essa loucura de parque temático! Chega de moscas, chega de sanguessugas, chega dessa confusão! De repente, senti minhas pernas ficando moles; na verdade, fiquei paralisada. Eu ainda me lembrava daquela sensação, como poderia ter me esquecido? Ele estava ali, tinha aparecido naquela hora e já tinha estragado tudo. A compostura chata, a Nova Ordem, a monotonia de sempre... estava tudo de volta ao seu lugar. — Eu sou O Único Que É O Único. Em caso de vocês terem se esquecido ou reprimido a lembrança. Ele deu passos largos para frente até ficar quase em cima de Whit e de mim. — Eu tenho observado vocês aqui no tribunal e também no Hospital. Sabe, jovenzinhos, estou por toda a parte, sou todo-poderoso e vocês não são. Ele olhou para o Whit e deu uma piscadinha!
— Eu consigo até calar a boca da sua irmã. Então, quem pode duvidar do meu poder? Agora... vamos fazer mais exames, exames, exames e exames. Até encontrarmos a resposta que buscamos, até resolvermos esse quebra-cabeça dos Allgood. Quero saber mais sobre o poder deles! Antigravidade? Cura? Imortalidade? Transformação física? Telecinesia? Levem os prisioneiros de volta para o Hospital! E chega de táticas boazinhas. Vamos dobrar a carga de trabalho deles, a quantidade de exames e também o desconforto. Eu quero respostas! Finalmente, Sua Unicidade se dobrou para frente em minha direção, parando a centímetros do meu queixo. — Bruxinha, há algo que você gostaria de dizer? Qualquer coisa? Talvez você tenha se sentido ofendida com a frase “loucura de parque temático”, que usei para descrever seus truquezinhos insignificantes aqui hoje? Bom, você conhece o ditado: BRINCADEIRA É COISA DE CRIANÇA! Tirem esses dois da minha frente! E então, e eu juro que é verdade, foi como se um furacão de categoria cinco tivesse invadido a sala e O Único Que É O Único desapareceu. E o vento levou?
Capítulo43
Wisty
QUAL É AQUELE DITADO IDIOTA MESMO? “O que não nos mata nos fortalece.” Bom, talvez houvesse certa verdade nisso. Com certeza eu me sentia mais forte e com mais raiva que nunca. Eu estava queimando por dentro. Quando voltamos para a nossa cela no Hospital, eu estava esperando que a enfermeira-chefe fosse chegar com a arma paralisante e dar choques em nós até pedirmos perdão. Eu estava esperando que o visitante fosse aparecer com seu chicote e nos retalhar. Eu estava esperando que fôssemos virar a janta daqueles cães infernais. Mas, na verdade, foi um pouco pior que isso. Eles mandaram... Byron Swain. Byron-Nojento-Puxa-saco-Traíra-Monitor-do-Corredor-Swain. Eu queria que estivéssemos na escola para o Whit acabar com ele. — Olá, prisioneiros — Byron disse naquela voz anasalada e falsa que poderia fazer uma imagem de Jesus virar os olhos de tanto nojo. — O que você quer? Não dá para ficar longe de nós, não? — perguntei. — Ou você ainda é um estagiário de visitante? — Então, nos encontramos novamente — disse Byron. Igualzinho à outra vez, ele parecia ter acabado de sair de um balde gigante de água sanitária. O cabelo castanho estava arrumadinho, os olhos frios como bolinhas de gude. E sua calça social trazia um vinco perfeito em cada perna. Ergui as sobrancelhas. — Essa é a sua melhor frase de efeito? “Então, nos encontramos novamente.” É meio clichê, né? Quando chegamos pela primeira vez no Hospital para os supostamente dementes, eu ainda era uma criança assustada. Agora, eles precisariam de muito mais para me assustar. Eu não ia deixar aquele Cara de Fuinha me botar para baixo. Byron ficou com o rosto vermelho e apertou os lábios com força. — Cale a boca, bruxa — ele disse sem educação —, ou vou mandar a enfermeira-chefe usar a arma paralisante até você ficar tão pensante quanto uma folha de alface. Byron me deu um sorrisinho sarcástico, que eu tinha certeza que ele havia praticado em frente ao espelho depois de um de seus banhos esterilizantes. — Agora, escutem aqui. Vocês dois foram considerados extremamente perigosos, que é como a Nova Ordem caracteriza as ameaças mais severas e os piores inimigos. — Extremamente perigosos — Whit repetiu. — Mas que honra! Gostaríamos de agradecer aos nossos pais, é claro. E ao técnico Schwietzer, da escola. Byron, ou o Fuinha Tagarela, como eu tinha decidido que ele deveria se chamar agora, continuou.
— Então, tenho uma boa e uma má notícia para vocês. A boa notícia é que vocês vão fazer todos aqueles exames de que ouviram falar no tribunal. E a má notícia? Bom, ser considerado extremamente perigoso baixa a idade mínima para execução de 18 anos para... zero. O que quer dizer, deixe-me ver, que agora vocês dois podem ser executados... amanhã. Ele deu um sorrisinho e alisou aquele cabelo já alisado. — O que vocês têm a dizer sobre isso? O gato comeu a língua de vocês? Nenhuma piadinha sobre feitiçaria? Sinceramente, eu adoraria saber: o que vocês acham dessa notícia recém-saída do forno?
Capítulo44
Wisty
PELO MENOS ALGUÉM, nesse planeta monótono, estava feliz e animado. Mas o sorriso nojento do Fuinha Tagarela tinha tirado Whit e eu do sério. — Você acha isso engraçado? — meu irmão perguntou em voz baixa. — E se a Wisty fosse sua irmã e ela fosse executada amanhã? O Fuinha Tagarela olhou para nós, se achando. — Minha irmã foi uma traidora da Nova Ordem — ele falou devagar para deixar suas intenções bem claras. — E... eu... a entreguei. Eu não podia acreditar naquilo. Mesmo quando Whit tinha desenhado bigodes em todas as minhas bonecas e eu desejei com todas as forças que ele não tivesse nascido, pelo menos eu sabia que não queria nunca que ele fosse condenado à morte. Tortura, sim, claro, mas não morte. — Então, você acha que somos extremamente perigosos? — perguntei, batendo a baqueta contra a lateral da minha perna. — Sim — disse o F. T. — O mundo será um lugar muito melhor sem vocês. — Porque eu sou uma bruxa assustadora? — eu disse, tirando uma da cara dele. — Uma bruxa assustadora e malvada?
— Correto — disse o F. T. — Você provavelmente vendeu sua alma para ganhar poderes demoníacos. Mostrei a baqueta para ele. Vi medo e orgulho naquela cara pontuda dele. Ele arregalou os olhos para mim. — Abaixe isso! É uma ordem! — Ah, não, sou uma bruxa malvada e assustadora! — eu disse com uma voz meio psico. — Vou transformar você em uma abóbora! Abracadabra! Então, balancei a baqueta no ar, como se fosse mesmo uma varinha mágica. E, para a minha total e completa surpresa, ouvimos um estalo elétrico e faíscas de verdade saíram de uma ponta da baqueta. O F. T. gritou, assustado, e então ouvimos um bum!, como se um avião a jato tivesse acabado de romper a barreira do som. Quando a fumaça baixou, Whit e eu estávamos ali, olhando para... bom, um erro inocente. Mas, ao mesmo tempo, um erro terrível.
Capítulo45
Wisty
EU PODIA JURAR QUE tinha falado “abóbora”. Eu não falei “abóbora”? — Hum, acho que acabei de transformar o Fuinha Tagarela em um leão — eu disse baixinho. — Bom, isso é bem óbvio — foi só o que Whit conseguiu dizer. O leão tossiu, colocando uma pata sobre o peito. — Ah-ham — ele “falou” com uma voz rouca. E o felino enorme abriu ainda mais a boca e tentou rugir. — Faça ele voltar a ser o Fuinha! — Whit disse ao me empurrar para a parede mais próxima. — Agora! Rápido, rápido, rápido! Antes que ele perceba que virou um carnívoro que come gente! Tente dizer alguma coisa além de “abóbora”! O leão rugiu de novo, mais alto. Ele parecia estar gostando da ideia de ser leão e sorriu para mim. Fiquei encarando, paralisada, aqueles dentes compridos e afiados. — Faça ele voltar a ser o Fuinha! — Whit repetiu, sem tirar os olhos do rei dos animais. O leão abriu a boca de novo e soltou um rugido tão poderoso que fez meu cabelo voar para trás, enchendo a cela e reverberando nas paredes.
Ergui minha baqueta. — Abracadabra! — eu disse, com firmeza. Nada aconteceu. Lógico, né? Eu me concentrei. Um negócio engraçado com esse lance de concentração é que você não percebe como se concentra pouco até se concentrar de verdade. Na verdade, acho que nunca tinha me concentrado mesmo em alguma coisa até ter a companhia de um leão enorme naquela cela minúscula. — Volte para a sua forma natural! — Eu bati a baqueta de novo. — Agora! AGORA! ESTOU FALANDO SÉRIO! Bum! Relâmpago, faíscas, um cheiro forte etc., e muita fumaça. Balancei a mão em frente ao rosto para conseguir enxergar em meio à fumaça. Ficou bem claro que não havia mais nenhum leão ali. Mas também não tinha nenhum Byron, ou a Desgraça para as Crianças no Mundo Inteiro. Whit e eu nos olhamos, espantados, mas também muito confusos. Então, ouvi um barulhinho e uns chiados perto da porta. — Hum... — eu disse. — Hum... — Whit disse. Não sei se dizer “forma natural” tinha sido traduzido em linguagem mágica, como “abóbora” tinha virado “leão”, mas dessa vez tinha dado um pouco mais certo. Porque Byron-Fuinha-Tagarela-Swain agora era uma fuinha de verdade.
Capítulo46
Whit
— MINHA IRMÃ, UAU! Caraca, você mandou muito bem! — eu disse a ela. — Verdade — ela concordou. — Sou uma bruxa malvada e assustadora mesmo. — Estou tão feliz por você não ter descoberto esses poderes antes! Tipo quando você era uma criancinha e eu sempre tirava uma com a sua cara por causa do seu cabelo — eu disse e ela sorriu como se tivesse acabado de ganhar na loteria. Quando olhamos para baixo, o animalzinho, anteriormente conhecido como Byron, ficou de pé nas patinhas traseiras e nos xingou, todo nervosinho. — Acho que ele gostava mais de ser leão — tentei adivinhar. Naquele momento, a porta da nossa cela se abriu com tudo e a enfermeira-chefe estava ali com dois de seus guardas mais fortinhos e mal-encarados. Vamos chamá-los de João e Balão. Nós chamamos. — O que foi aquele barulho horroroso, terrível? — ela perguntou, esquadrinhando a cela com os olhos. — Hum... que barulho? — perguntei com a inocência de um escoteiro numa festinha ao redor da fogueira.
— Parecia... um leão rugindo — ela disse, sua pele branquela de cadáver ficando cor-de-rosa de vergonha. — Tá bom... — eu disse, franzindo a testa de leve e erguendo as sobrancelhas. — Um leão? Aqui? Na nossa cela? Os dois guardas se olharam. De canto de olho, vi a fuinha escapar pela porta, escondida pelas sombras. — Onde está o Informante Júnior Swain? — A enfermeira-chefe exigiu saber. — Sinto muito, mas ele foi embora, enfermeira-chefe — eu disse, me esforçando para soar respeitoso. — Ele passou por aqui rapidamente. Mas leu um ato de rebeldia resumido para nós. Ele é durão. — Você está mentindo! — As narinas cavernosas dela se abriram, fazendo linhas brancas aparecerem nos dois lados do seu lindo nariz. Quando dei por mim de novo, ela se jogou para frente e colocou a arma paralisante na minha lombar.
Capítulo47
Whit
EU CONGELEI, ESPERANDO CAIR no chão com uma dor insuportável como antes e talvez até desmaiar; mas só senti... uma coceguinha. Primeiro, pensei que talvez ela não tivesse carregado a arma direito, mas olhei para baixo e vi as faíscas azuis do mal e senti o cheiro de ozônio, como da outra vez. Mas dor horrível não senti. Nada. A enfermeira-chefe arregalou os olhos, esperando que eu me estrebuchasse no chão e, então, obedientemente resmunguei e caí de joelhos, passando as mãos pela parede como se não tivesse forças para ficar de pé. Dei uma piscadinha rápida para Wisty, para que ela soubesse que eu estava fingindo. Enquanto isso, os guardas tomaram suas posições do lado de fora da porta, conforme a enfermeira-chefe examinava a pequena janela do poço de ventilação. Estava na cara que era pequena demais para termos jogado Byron lá embaixo, pelo menos com o corpo que ele tinha antes. Ela inspecionou o banheiro pelo que pareceu uma eternidade, como se talvez tivéssemos dado descarga nele e ela fosse encontrar vestígios do gel de cabelo na água cinza como prova. Então, me dei conta de que a enfermeira-chefe e seus capangas tinham deixado a porta aberta. Olhei de relance para Wisty e vi que ela tinha notado também. Começamos a andar de fininho em direção à porta, mas podíamos ver os guardas lá fora, prontos para agir com suas armas paralisantes. Será que conseguiríamos enfrentar os dois? Quem sabe Wisty pudesse transformá-los em sapos? Vi alguma coisa entrando correndo na cela. Uma sombra. Ela se misturou instantaneamente à escuridão profunda da parede. Wisty arregalou os olhos, ela tinha visto também. Trocamos olhares confusos e preocupados. A enfermeira-chefe olhou para nós suspeitosamente. — Eu voltarei. E saiu pisando duro. Ao passar por um dos guardas, ela teve uma ideia de última hora e colocou sua arma paralisante contra o peito de um deles. No mesmo instante, “João” berrou e caiu que nem manga madura no chão. Ficamos olhando seu corpo musculoso se contorcendo como uma enguia gigante. A enfermeira-chefe olhou para ele, olhou para a arma paralisante, e, então, fechou a nossa porta com tudo e a trancou. — Então? Armas paralisantes não funcionam mais em você? — Wisty perguntou. Foi difícil não dar uma risadinha. — Pelo jeito, não — respondi, de olho nas sombras de novo. Eu tinha certeza de que havia visto alguma coisa se mexendo por ali. — Eu devo ter desenvolvido algum tipo de resistência ou nossos poderes estão ficando mais fortes...
Fiquei quieto de repente, ao ver uma sombra se separando da outra. Uma sombra com forma de gente. E que vinha na nossa direção. — Meu Deus! — Wisty disse. — Acho que agora estou vendo fadas!
Capítulo48
Whit
— NÃO É BEM ASSIM — a criatura disse com uma voz que me fez perder o ar. À medida que a sombra chegava cada vez mais perto da luz fraca, se tornava mais tridimensional. Diante de nossos olhos, a forma... foi se preenchendo, até que ela ficou incrivelmente real. E linda. — Célia — sussurrei. — Você veio. — Célia! — Wisty confirmou. — Você veio de onde? Ela sorriu, uma luz fraca passava por seu rosto. Não estava mais tão pálida, o que achei um bom sinal. Fiquei cheio de esperança. — Oi, Wisty — Célia disse, com seu sorriso mais doce. Ela sempre tinha sido superlegal com a Wisty. Aliás, com todo mundo: com os nerds, os metidos a atleta e os góticos da escola, e criancinhas em geral. Para ela não havia diferença entre as pessoas, sempre enxergava o melhor nelas e, principalmente, em mim. — Ma-ma-mas... como? — Wisty gaguejou enquanto Célia se aproximava de nós sem fazer barulho. De repente, notei que havia outra coisa diferente: ela não tinha cheiro. Ela costumava usar um perfume de rosa e, toda vez que eu sentia aquele aroma, meu coração dava um capote e meu sangue parecia bombear mais rápido. Mas, agora, respirei fundo e só senti o cheiro da umidade do Hospital.
— Posso... dar um abraço em você? — perguntei. — Acho que não, mas podemos tentar — Célia disse, ficando mais emocionada. — Ah, Whit, tente, por favor. Eu preciso que você me abrace. — Eu queria deixar vocês a sós — Wisty disse —, mas não tenho para onde ir. Desculpem. Mas eu... eu fecho os olhos. Coloquei meus braços ao redor de Célia bem de leve. E consegui senti-la, de verdade. Com certeza ela não era feita de fumaça, nem era uma ilusão, mas também não era exatamente sólida. Tentei mexer no cabelo dela, fazer carinho com o nariz em seu pescoço, algo que já tinha me transportado para vários lugares felizes. Mas não consegui tirar o cabelo dela do lugar. Célia entendeu na hora. Ela sorriu e jogou o cabelo para trás. Aquele gesto familiar... que eu pensei que jamais fosse ver de novo. Provavelmente era só minha imaginação, mas parecia que uma brisa fresca tinha passado pela cela quando ela fez aquilo. Meus olhos ficaram marejados. Não consegui evitar. — É por isso que eu amo você — ela sussurrou. — Você é diferente, Whit. Não entendo nada do que está acontecendo, mas sei mais que você. Depois de te ver, não consegui encontrá-lo de novo logo de cara e nenhum dos Curvos podia me ajudar a voltar aqui para o Hospital. A Terra das Sombras é um lugar escuro e complicado... onde é muito fácil se perder... mas, de repente, a fuinha passou correndo por um dos portais para a Terra das Sombras. Foi ela que me mostrou como chegar aqui. Vim tirar vocês desse Hospital horroroso. Antes que sejam executados. O único problema é que, para sair daqui, vocês precisam passar pela Terra das Sombras. Wisty, pode abrir os olhos agora. Whit... bem, não sei se vamos conseguir sair de lá depois. Pode ser que vocês fiquem por lá para sempre.
Capítulo49
Wisty
ATÉ ALI, A ÚNICA COISA QUE TINHA FEITO SENTIDO para mim era a palavra “fuinha”. Eu não sabia que negócio era aquele de Curvos, muito menos sobre portais ou essa Terra das Sombras. E ainda estava abalada por presenciar aquela situação tão agridoce, de ver Whit e Célia juntos de novo, o jeito como eles se olhavam, para processar os detalhes sobre nossa nova e maluca realidade. Célia era de longe a minha favorita entre todas as ex-namoradas e admiradoras do Whit. Para começar, ela sempre tinha tempo para falar comigo. E até para me escutar. Além disso, Célia era tudo o que eu não era (e sonhava ser em segredo). Às vezes, eu me olhava no espelho, a pele branca demais, com sardas demais e esse cabelo ruivo horroroso, e pensava que a natureza, a genética e meu carma estavam mesmo de brincadeira comigo. — Hum... — eu disse, sem saber por onde começar. — Você encontrou a nossa fuinha? Você não a odiou? Célia sorriu, parecendo uma top model, mas nada metida nem superficial. — Não a odiei, não. Era uma fuinha viva, não uma Meia-Luz como eu. Então, eu sabia que deveria ser importante, de alguma maneira. — O que é uma Meia-Luz? — Tive que perguntar. — Eu sou uma Meia-Luz. Porque... bom... estou morta, Wisty.
Fiz que não com a cabeça. — Não fala assim, Célia. Olha, o Whit e eu, bom, provavelmente você já sabe o que está rolando por aqui, nós agora temos uns... poderes. Talvez consigamos salvar você. — Não é tão simples assim, Wisty — Célia continuou, com toda a paciência do mundo. — Deixa eu explicar mais um pouco. Os MeiasLuzes, ou espíritos, vivem na Terra das Sombras. Eu não conseguia parar de fazer perguntas. — A Terra das Sombras? Esse lugar é tipo... o purgatório? O limbo? Não é para lá que vão os bebês mortos? Célia estremeceu. — Bom, a resposta é não para os bebês mortos, mas sim para o purgatório e o limbo, mas a Terra das Sombas é tipo sua própria dimensão da realidade. Lá tem mais do que o presente, o aqui e o agora com os quais estamos acostumados. Bom, de qualquer maneira, os Meias-Luzes às vezes conseguem entrar e sair desse mundo através de portais. Os portais são buracos entre esses dois domínios. Eles se desenvolvem com o passar do tempo, mas podem desaparecer de repente. Enquanto essas aberturas estão por ali, os Meias-Luzes, certas pessoas e animais, os chamados Curvos, conseguem passar por elas. Como a sua fuinha fez. — Ela não é bem a nossa fuinha — Whit disse. — Na verdade, ela é nossa inimiga. Uma traíra imbecil. — Bom, ela conhecia vocês — Célia disse. — E nos contou o que estava para acontecer com vocês. Disse que está tudo marcado para executá-los amanhã.
— Não acredito que ela falou tudo isso assim, na lata — eu disse. — Não é como se fosse a fuinha mais parceira do mundo. Célia revirou os olhos. — Ela não queria nos contar nada — ela disse. — Nós a torturamos. E daí ela abriu a boca. Aquele verbo soou bem. — Torturaram? Célia fez que sim com a cabeça. — Nós a seguramos e fizemos cócegas na barriguinha dela até ela chorar de tanto rir e implorar para pararmos e nos contar tudo o que sabia. Acho que ela não quer voltar para cá agora. — Eu não culpo a fuinha — Whit disse. — Se eu pudesse sair daqui, também não voltaria mais. Nem em um milhão de anos. — E, falando nisso, amorzinho — Célia disse para Whit —, é hora de irmos. Temos que arriscar... entrar na Terra das Sombras. Concordei, mas minha cabeça estava em outro lugar. Se Whit e Célia podiam ficar juntos agora, por que não poderiam ficar juntos para sempre? De alguma forma, eu queria trazer Célia de volta do mundo dos mortos para Whit. Será que uma bruxa podia fazer isso?
Capítulo50
Wisty
— TEMOS QUE NOS APRESSAR — Célia disse. — Não posso ficar no seu mundo por muito mais tempo. Tenho que tirar vocês desse lugar miserável. — Ah, mas por que nós não pensamos nisso? — Whit perdeu a paciência e Célia sorriu. Eu não sei como ela consegue. As coisas que Whit diz e que me fazem quase gritar de tanta raiva fazem a Célia rir. Eu já falei do quanto gosto dela? — Assim que conseguirmos abrir a porta — Célia continuou, tocando a bochecha do Whit de leve —, vocês têm que sair voando dessa cela e entrar no portal mais próximo para chegar ao Submundo. — Submundo? — Whit perguntou. — Célia? — Desculpem. Eu esqueço que tudo isso é novo para vocês. O Submundo é tudo aquilo que não é a Superfície — Célia explicou, como se fosse um conceito tão óbvio quanto, sei lá, arroz com feijão. — Ou pelo menos era, até a Nova Ordem começar a atrapalhar. Célia tinha duas caras de paisagem à sua frente. — Desculpem. Vou explicar direito. Agora, a Nova Ordem controla quase toda a Superfície que é, como posso dizer, o mundo normal ao qual vocês estão acostumados. O Submundo contém o resto do universo conhecido, a Terra das Sombras e as outras dimensões. Por enquanto, a N.O. não manda em tudo quanto é lugar. Mas o pessoal que trabalha nela está tentando. O Único Que É O Único quer o controle total. E, por alguma razão, vocês estão no caminho dele. Esse é um quebra-cabeça que vocês têm que resolver. — Certo — Whit disse, determinado. — Cadê o portal? No banheiro? — Não, aquele lá já era — Célia respondeu. — Eu demorei um pouco para encontrar outro. — Então, o portal que você usou — eu quis saber — fica exatamente onde? — No fim do corredor — Célia disse. — Passando pelos cachorros, infelizmente. E então vocês têm que correr até a parede e se jogar através dela. Vocês vão passar. — Você está brincando — Whit disse. — Putz, Célia, fala sério! — Não é justo! — reclamei. — A definição de “portal” não é, tipo, uma abertura? Na verdade, tenho certeza de que a minha professora do 4º ano chamaria uma parede de tijolos de “antônimo” para a palavra “portal”. — Wisty, por favor, confie em mim. Eu sei que vocês não querem dar de cara com uma parede a toda velocidade, mas é a única maneira de fugirem daqui. Vocês têm que fazer o que estou dizendo. Olhei para Célia, rezando para aquilo não ser uma pegadinha do mal. Será que ela era mesmo a Célia que eu e o Whit tínhamos conhecido? E se tudo não passasse de uma armadilha?
— Podemos correr e passar pela parede — Whit disse, sério e determinado. O velho capitão do time estava de volta. — E quando temos que fazer isso? Célia nos olhou. — Em mais ou menos um minuto.
Capítulo51
Whit
CERTO, EM TERMOS DE PREPARAÇÃO para emergências, “em mais ou menos um minuto” nunca cai na categoria “tempo suficiente”. Mas que escolha tínhamos? Era correr e atravessar uma parede ou ser executado. Olhei para Wisty. — Pegou a baqueta? Ela ergueu aquele negócio. — Checando. Baqueta. Peguei o meu diário e o enfiei dentro do macacão. — Você acha que vai conseguir fazer alguma coisa com os cachorros do inferno? — perguntei para a menina-relâmpago. Wisty deu de ombros, sem saber. — Vou tentar, Whit. Mas ainda estou aprendendo a soltar essas coisas. — Certo, podemos fazer o seguinte — eu disse. — Depois de sair daqui, corremos feito doidos pelo corredor. Você vai ter alguns segundos para tentar fazer alguma coisa com os cachorros. Se não conseguir, vou ter que passar por eles com tudo, como sempre faço para pegar comida. Vou segurar a sua mão. Você precisa correr o mais rápido que conseguir, mesmo se levarmos umas mordidas. Tudo bem gritar, mas parar, não. Wisty engoliu em seco, parecendo um pouco assustada, mas resolvida a seguir o plano. — Beleza. Gritar, mas não parar! Célia fez que sim com a cabeça. — E eu vou acompanhando vocês de perto. Mas é claro que sou à prova de mordidas. Então, pensei numa coisa horrível. — E se a enfermeira-chefe e os guardas-show-de-horror também se jogarem no portal? — Eles não vão fazer isso — Célia respondeu. — A não ser que sejam Curvos disfarçados. Se forem Retos e Estreitos, só vão bater na parede com tudo. Pode até ser bem engraçado, na verdade. Ah, mas que bom! Podíamos ficar animados com alguma coisa. Adicionei “Retos e Estreitos” à lista interminável de termos que ia render umas perguntas para a Célia mais tarde. Enxuguei minhas palmas suadas no macacão. Nós íamos, tipo, “atravessar” para o outro lado agora, né? E aquilo não era meio como morrer?
Capítulo52
Whit
— RÁPIDO! BATAM TRÊS VEZES NA PORTA. Com força! — Célia pediu, nervosa. — Agora! Não posso ficar aqui por mais tempo, Whit. Meu espírito pode morrer. — E o que isso quer dizer? — perguntei. — Só bate na porta, Whit... Três vezes! Bati na porta com tudo, como se minha vida dependesse daquilo, e dependia mesmo. Um segundo depois, ouvimos a fechadura fazer um “click”. Olhei para Célia. — O que acabou de acontecer? — Whit, vai! — ela disse. — A porta está destrancada. Célia foi pegar a maçaneta... e passou através da porta. — Eu sempre esqueço — ela disse baixinho. — Não consigo mais pegar as coisas. Deixei a porta escancarada para Célia, peguei a mão de Wisty e coloquei a cabeça para fora, para olhar o corredor. A enfermeira-chefe estava longe da sua mesa, conversando com uns guardas a uns 30 metros, à direita. Pelo menos até agora eles nem tinham se tocado da nossa presença. Eu não conseguia ver quem ou o que tinha destrancado a porta. Será que tinha sido mágica? Da Célia? Da Wisty? — Vai! — Célia disse no meu ouvido, e então eu e Wisty pulamos para fora da cela e saímos correndo até a maldita enfermaria. Derrapamos na curva bem na hora em que ouvimos a enfermeirachefe berrar com toda a força lá de trás: — Peguem os dois! Eles estão tentando escapar! Deem o alarme! Atirem para matar! Não os quero vivos! Mais seis ou sete passadas largas e estávamos no Corredor Canino. O chão estava literalmente tremendo com os guardas vindo em nossa direção; a enfermeira-chefe também estava atrás de nós. — Rápido, rápido! — falei para a Wisty. — Faça o seu lance aí. Transforme todos em filhotinhos. Ou cachorros de pelúcia. Wisty se afastou o bastante para não tomar uma dentada dos animais, que não paravam de rosnar e latir. Ela ergueu a baqueta como se fosse uma batuta de maestro e os cachorros, sua orquestra. Uma bela imagem, mas será que ia dar certo? De canto de olho, vi os guardas e a enfermeira-chefe fazendo a curva. — Congelem! — Wisty comandou bem alto e apontou a baqueta para os cachorros. Por uma fração de segundo, nada aconteceu; peguei a mão dela com força, pronto para seguir o caminho em direção ao inferno. Mas, de repente, os ganidos e latidos dos cachorros pararam. Os animais congelaram de verdade.
As patas levantadas, as mandíbulas à mostra. Alguns cachorros foram pegos no momento em que estavam se preparando para se jogar em cima de nós, pegando impulso nas patas traseiras. — Uh-hu! Eu sou bruxa! — Wisty berrou. — Vamos! — Perfeito! Você é demais, Wisty! — Célia disse, ao meu lado. — Olha, lá está o portal! — Ela apontou para perto do final do corredor, para uma parede pelada que não mostrava nenhum sinal óbvio de que ia se abrir ou se transformar em espuma, nem nada do tipo. — Corram o mais rápido que puderem! Agora! Eu não conseguia tirar da cabeça aqueles vídeos a que tinha assistido nas aulas de direção na autoescola. Os bonecos de testes se estraçalhando em câmera lenta, enquanto os carros batiam contra uma parede. “Não”, pensei. Pense “vitória, vitória, vitória”. A enfermeira-chefe e os guardas estavam bem atrás de nós e já tinham passado por metade dos cachorros congelados. Saí correndo em direção à parede como se fosse um quarterback de novo e passei para o outro lado bem pelo meio do portal. Mas acabei largando a mão da Wisty. Ela se soltou, estava gritando meu nome. Eu perdi a Wisty!
Capítulo53
Whit
MEUS PÉS ATERRISSARAM em alguma coisa dura, talvez um chão de pedra, e fiquei rolando até parar. Pulei e fiquei de pé de novo. — Wisty! — gritei. — Mana? Do lado da Terra das Sombras, eu ainda conseguia vê-la no corredor do Hospital. Era como se eu estivesse olhando através de um vidro espesso e ondulado. Célia estava tentando agarrar Wisty, mas não conseguia, é claro. É coisa de fantasma, eu acho. De repente, vi Wisty erguer a baqueta de novo e gritar: — Libertar! No mesmo instante, os cachorros loucos, de volta à vida, rosnaram e avançaram nos guardas e na enfermeira-chefe como uma pilha gigante de jogadores de rúgbi. Os cachorros não só tinham saído do transe como também tinham se soltado de suas correntes. Um guarda conseguiu passar pelos animais e foi correndo tentar pegar Wisty, erguendo sua arma paralisante. Um cachorro se soltou da matilha e foi atrás dele, latindo como um cão fugido do inferno.
O guarda e o cachorro doido estavam quase alcançando Wisty e Célia quando elas passaram com tudo pelo... bom, o que quer que fosse aquilo. — Cuidado! — gritei. — Atrás de vocês! Wisty fechou os olhos e se jogou pelo portal, caindo em cima de mim. — Whit! — ela gritou. — Deu certo mesmo! Célia estava com ela e, logo atrás de Célia, o cachorro mergulhou com as patas dianteiras pelo portal. Ele parou no ar, caiu no chão e derrapou até parar. De repente, ele parecia mais confuso que maluco e feroz. Olhamos para trás assim que o guarda deu de cara na parede com toda a força. Atrás dele, a figura de avental branco da enfermeirachefe ainda estava sendo atacada pela matilha de animais ferozes. Os braços enormes dela estavam sendo devorados, sua arma paralisante foi parar longe. Em seguida, ela desapareceu sob a pilha de mandíbulas se abrindo numa mordida gigante. Tchau, tchau. — Tem alguém que está acertando algumas contas bem sérias com o carma — Wisty disse, mas, em vez de aproveitar aquela visão, estendi os braços para tentar abraçar Célia, em um momento de alívio por termos conseguido passar para o outro lado. Não importava quão ridículo nem desajeitado parecesse tentar abraçar um fantasma. Esse é o lance legal do amor. É a minha opinião, pelo menos. Então, um ganido me fez virar a cabeça.
— O cachorro — disse Wisty, arregalando os olhos para ele e esperando o pior. — Não, acho que tudo bem... é um cachorro Curvo — Célia se admirou. — Um Curvo é alguém que tem acesso ao Submundo, sabendo disso ou não. Esse cachorro não sabia. Ele deve ter passado pela maior lavagem cerebral dos Retos e dos Estreitos. Os lábios do cachorro se curvaram para baixo em um sorriso simpático de quem diz “Desculpe por tentar comer vocês”. Baixou a cabeça e veio de mansinho em nossa direção, bem perto do chão. — Ele parece bem arrependido — Célia disse. — Eu queria tanto fazer carinho nele. Vai em frente, Wisty. Faz carinho nele. — Quem sabe outro dia, né? — Wisty respondeu, relutante. — Temos muita coisa para aprender primeiro. Mas o cachorro se sentou e olhou com uma cara de dó para ela, com os olhos castanhos mais tristes do mundo, parecendo muito menos horrível e maluco que naquele Canil do Inferno. Wisty olhou para mim e eu sabia o que ela ia perguntar. — Você é louca... — eu disse, suspirando. — Eu sei perdoar — ela respondeu, falando sério. — Então, tá! — resmunguei. — Talvez ele sirva de cão de guarda ou outra coisa útil na Terra das Sombras. Wisty piscou para mim, depois olhou para o cachorro e bateu a mão de leve em um dos joelhos. O animal se levantou, ainda assustado.
— Você pode vir — disse a ele e então completou: — É uma cadela. Vou chamá-la de Feffer. — Então, beleza, agora ela é a Feffer — concordei. — Vamos conhecer uns Curvos e Meias-Luzes e tentar encontrar uns portais novos. De repente, ouvimos um barulho terrível e vimos a cara da enfermeira-chefe esborrachada contra a parede do portal. — Essa aí não é Curvo, não — Wisty disse com um sorriso largo. — Eu sabia.
LIVRO TRÊS
ADMIRÁVEIS MUNDOS NOVOS
Capítulo54
Wisty
WHIT ME AGARROU COM UM ABRAÇO de urso que fez eu me sentir mais segura. — Escapamos de lá! Agora estamos a salvo dela. A salvo da enfermeira-chefe talvez. Mas, no plano geral, eu não tinha muita certeza se não havíamos pulado da frigideira e caído em um lugar bem pior. Estava tentando me familiarizar com a nova paisagem, mas esse “outro lugar” não era nada como eu esperava. Para começar, era frio. Não congelante, mas um tipo de frio úmido e penetrante que dói nos pulmões. E mais: não tinha nada ali. — Hum... Célia... Onde estamos mesmo? — perguntei. — Essa é a Terra das Sombras. Olhei ao redor. Não tinha muito a ver chamar a Terra das Sombras de “terra”. Não havia árvores, grama, prédios, água, sol; aliás, não havia nada a não ser neblina e névoa. — É aqui que você... mora? — perguntei num sussurro, me abraçando para ver se me esquentava um pouco e me virando para trás. O portal, que eu achava que estava às minhas costas, já tinha desaparecido.
— Eu nunca chamaria a Terra das Sombras de lar — Célia respondeu fazendo que não com a cabeça. — E espero que vocês também não a chamem assim. Eu não conseguia ver... nada além da Célia, do Whit e da Feffer. Era como se estivéssemos em uma sala com um pano de fundo cinza, e o que estava além de três ou quatro metros e meio de distância parecia desaparecer em um nada enevoado. Como era irritante não ter no que botar os olhos. Uma onda de pânico claustrofóbico me invadiu. — Célia... — Whit olhava ao redor, meio nervoso. — Temos que tirar você daqui. Você nos tirou do Hospital. Nós podemos... — Whit, deixa pra lá — Célia interrompeu com jeitinho. — Você pode ser um bruxo, mas ninguém pode trazer gente morta de volta à vida. Nem mesmo O Único Que É O Único. Lembre-se disso. É um fato da vida e da morte. É assim que enfrentamos a dor do luto. Feffer saiu para explorar o território ou talvez encontrar um esquilo Meia-Luz para perseguir. A cadela parecia ser a única de nós com senso de direção, então fui atrás dela. — O que tem aí, Feffer? — Wisty, não! — Célia gritou. Eu quase fiquei brava quando ela gritou comigo como se eu fosse uma criancinha de 2 anos se afastando da mamãe no shopping, mas eu sabia que a Célia não era exatamente do tipo nervosinha. Estava assustada de verdade. — Esse lugar pode ser bem perigoso para humanos. Os seus sentidos não funcionam aqui como no seu mundo... E se você se afastar demais de mim e do Whit, podemos nos perder completamente uns dos outros. Principalmente porque é possível seguir por um caminho que leva a outra subdimensão. Eu não entendi a parte sobre a subdimensão, mas olhei ao redor, em pânico, mesmo assim. Eu não conseguia mais ver a Feffer. — Feffer! Aqui, menina! — Assobiei. — Volta, menina! — O mais estranho é que eu já estava me sentindo ligada àquela cadelinha dos infernos. Feffer veio trotando de volta para mim e me ajoelhei para dar um abraço nela. O cheiro quentinho do seu pelo parecia bem real e confortante naquele lugar vazio. — Bom, pelo jeito a Feffer não teve nenhum problema — eu disse, confusa, enquanto a cadela, cheirando o chão, saiu para dar um passeio de novo. — Eu disse que é perigoso para humanos — Célia deixou bem claro. — Feffer é um animal e ela tem instintos animais. Não usamos a visão para se virar por aqui. Os Meias-Luzes e os outros, que estão sintonizados com as forças extrassensoriais, navegam bem mais fácil pela Terra das Sombras. Os humanos que encontram portais geralmente se perdem por aqui. Para sempre. E como se fosse para enfatizar o horror desse pensamento, ouvimos um gemido ao longe. Whit pegou a minha mão sem pensar. — Os Perdidos — disse Célia. — Eles ainda não estão por perto e é assim que queremos que eles fiquem. Acreditem em mim. — Mas o que eles poderiam fazer conosco? — perguntei.
— Eles poderiam... — A Célia-Toda-Calma-E-Controlada parecia que ia perder a cabeça. — Esquece, Wisty. É horrível demais para falar disso agora. Vou levar vocês para um lugar seguro.
Capítulo55
Wisty
— CÉLIA! VOCÊ ESTÁ BEM? — Ouvimos alguém chamar e uma menina alta e loura, talvez da idade do Whit, apareceu. Era uma MeiaLuz, pelo menos eu achava, apesar de nunca ter imaginado meninas mortas usando regatinha e saia xadrez... e mascando chiclete. E será que as meninas mortas precisavam mesmo usar óculos? Talvez só fosse moda. — Você conseguiu tirar os seus amigos de lá! — a menina exclamou e abraçou Célia, do jeito que os Meias-Luzes se abraçam. É difícil descrever. — Essa é a Susan — disse Célia. — Susan, esse aqui é o Whit Allgood e a irmã dele, Wisty. Lembra-se de quando eu falei sobre o Whit para você? Susan revirou os olhos. — Sim. O Sr. Maravilhoso. O Sr. Sensível. O Sr. Barriga de Tanquinho. Acho que você mencionou o Whit uma ou duas vezes. Um cara pukka total. Você falou que ele era uma obra de arte. Pisquei. Achei aquele negócio de “pukka” meio estranho. Mas Célia não estava nem um pouco envergonhada, apesar de Whit ter ficado com as bochechas coradas. — Sejam bem-vindos — disse Susan, que parecia ser engraçada e legal. — Que bom que vocês saíram do Hospital. Aquele lugar é péssimo. Lá que eu fui executada. Por mascar chiclete na rua. Eu acho. — Preciso levar esses dois para a Terra Livre antes que os Perdidos os vejam — Célia disse. — Concordo — Susan respondeu. — Eu vi um grupinho deles a alguns minutos daqui. Provavelmente sentiram que há seres humanos por perto. — Bom, vamos juntar os dois com a fuinha erlenmeyer deles e tirálos daqui. Susan e Célia tinham me deixado totalmente perdida com aquele dialeto esquisito até Célia mencionar Byron-Traidor-Puxa-saco. Eu já tinha me esquecido dele. — Ele não é bem a nossa fuinha — Whit repetiu. Naquele momento, ouvimos outro coro de gemidos de dar frio na espinha! — Não precisamos esperar por ele, de verdade — eu disse, já suando frio. — Não tem problema — Susan respondeu. — E, na verdade, temos que nos encontrar com mais alguém aqui mesmo. Olha só: lá vem ele! Aê, Sasha! — ela gritou e um menino entrou correndo em nosso campo de visão. Eu estava começando a me acostumar com as pessoas parcialmente sólidas e a opacidade dele o tornava um peixe fora d’água na Terra das Sombras. Provavelmente ele era um adolescente normal como eu e o meu irmão. — Você está a salvo, Célia! — Sasha disse com alívio enquanto ela nos apresentava.
Ele parecia mais velho que eu, mas talvez mais novo que o Whit, e tinha um cabelo preto meio compridinho e olhos azul-escuros. Estava usando um boné da Marinha Americana virado para trás e sua camiseta tinha os dizeres: “A LIBERDADE DEVE SER LIVRE”. Também notei que carregava um carretel cuja linha se arrastava pela névoa cinzenta atrás dele. — Então você consegue encontrar o caminho por aqui usando linha? — perguntei para ele. — É — ele respondeu. — Eu até consigo perceber quando há um portal por perto, mas é melhor prevenir. E migalhas de pão são inúteis. Mas vamos falar disso mais tarde. Escutei um grupo de Perdidos enquanto vinha para cá. Ele estava sério, mas tinha uma expressão de confiança que desapareceu em uma fração de segundo. — Cuidado! — ele berrou e pulou à nossa frente para bloquear a forma que emergia da névoa. Mas era só a Feffer. — Ah, tá! — ele disse, envergonhado. — Então quer dizer que vocês trouxeram um cachorro. — Essa é a Feffer — expliquei. — Ela atravessou o portal conosco. — Que legal, uma cadela Curvo! — disse Sasha, ajoelhando-se para fazer carinho nela. — Será que ela vai gostar da sua fuinha? — Ela não é nossa fuinha — Whit repetiu mais uma vez. — Na verdade, aquele roedorzinho, aquele inútil, queria nos executar. Bem naquela hora, outro gemido, que parecia estar mais próximo dessa vez, cortou o crepúsculo. Os olhos lindos de Célia ficaram um pouco tristes.
— Sasha, você precisa levar os dois para o portal da Terra Livre agora mesmo. Whit se virou para ela e disse: — Você não pode vir conosco? Você precisa vir. Célia fez que sim com a cabeça. — É claro que vou. Mas não posso ficar muito tempo, Whit. Ou vou... parar de existir. Esse é outro fato da vida e da morte. — Vamos sair daqui! — disse uma voz aos meus pés. Olhei para baixo e quase gritei. — Vocês vão levar a fuinha! — Susan disse com firmeza. — Aliás, ela precisa de um banho. E precisa aprender boas maneiras também. E a ser mais sociável. Arregalei os olhos para ela. — Não. Você não pode vir conosco. Eu te odeio com todas as minhas forças. Ela se sentou sobre a cauda, seus olhinhos pretos como contas encarando os meus. — Você fez isso comigo. Sasha ficou impressionado. — Você ensinou uma fuinha a falar? — Eu era humano — disse Byron. — E ela é uma bruxa! Sasha parecia ainda mais impressionado.
— E não se esqueça disso — eu disse, orgulhosa. — Feffer? Conheça o Byron-Traidor-Puxa-saco. Talvez, um dia, quem sabe, ele seja o seu lanche.
Capítulo56
Wisty
MAS FEFFER NEM TEVE A CHANCE de descobrir que gosto tinha aquela fuinha. Porque, bem naquela hora, conseguimos ver umas coisas além de nós habitando a Terra das Sombras. E não é que era, de fato, um bando de sombras? As sombras estavam distantes e desapareceram em um piscar de olhos assim que olhamos diretamente para elas. No entanto, uma coisa era certa: ninguém queria se aproximar delas. Célia, Susan e Sasha imediatamente colocaram o dedo em riste em frente aos lábios, indicando para ficarmos quietos. Enquanto Susan e Célia se misturaram com o cinza ao nosso redor, Sasha fez um gesto com jeitão de militar para que o seguíssemos. Com a fuinha agarrada à minha perna, tremendo como aqueles brinquedos que vibram quando você puxa a cauda deles, fomos seguindo Sasha em uma fila atrás dele e andamos em direção ao que eu estava rezando que iria nos tirar dali. — Sasha! — Eu estava sem ar e só tínhamos corrido por mais ou menos um minuto. — Por que ficou tão frio de repente? — São os Perdidos. Entre outras coisas, eles absorvem o calor dos vivos.
— Então... — perguntei com uma sensação desconfortável ao perceber o que estava rolando — ... isso quer dizer... que eles estão por perto? — Chega de falar — ele disse de maneira seca. Sasha parou de repente. Ele estava segurando a ponta da linha e não tinha portal nenhum ali. — Alguém cortou a linha — ele disse, o medo faiscando em seus olhos brilhantes. Um coro de gemidos adicionou um ponto de exclamação bem horrível à afirmação dele. Então, Sasha balançou a cabeça como um nadador tentando tirar a água dos ouvidos e saiu correndo através da neblina. Byron, assustado demais para produzir qualquer forma de discurso coerente, ficou falando umas coisas nada a ver enquanto seguíamos Sasha. Senti o frio na minha nuca ficar cada vez mais intenso. E fiz uma coisa incrivelmente imbecil: olhei para trás, por cima do ombro. Vinte ou mais sombras tortas, baixinhas, altas, curvadas, mancando, mas numa velocidade supernaturalmente alta, estavam nos perseguindo. Elas eram confusas, oscilantes, inconstantes, mas uma delas se ergueu e, com os olhos amarelos mais horríveis e famintos do mundo, pareceu ter me visto. Então, fiz uma coisa ainda mais imbecil: parei e gritei.
Whit imediatamente me pegou no colo e saiu correndo atrás de Sasha. Eu não conseguia parar de berrar e os meninos pareciam saber disso, pois nem tentaram me fazer ficar quieta. Acho que sabiam que aquela era a hora da verdade: Sasha nos guiaria até um portal a tempo... ou não. Assim, descobriríamos exatamente o que os Perdidos faziam com as pessoas.
Capítulo57
Wisty
— CERTO — DISSE SASHA, parando de repente. — Preparem-se. Meu coração deu um pulo. Eu até encarava esse lance de preparação. Mas ser atacada por criaturas sombrias comedoras de almas, nem pensar. Mas onde estava o portal? Só conseguia ver mais neblina. O portal estava ali? Onde? Então Feffer, que estava, olha que fofinha, dando uma de cão de guarda a vários metros atrás de nós, soltou um ganido triste. — Feffer! — Parei de choramingar e berrei enquanto a cadela, incapaz de se controlar, passou correndo em direção a uma nuvem de neblina, que, percebi rapidamente, girava como água em um ralo gigante. Ela estava sangrando. Muito. Alguma coisa tinha aberto um corte na lateral do corpinho dela. E o medo em seus olhos? Ela parecia mais um filhotinho aterrorizado que um ex-cachorro infernal da Nova Ordem. Mas antes que eu pudesse pensar em estender a mão para confortá-la, ela já tinha passado por mim e pulado no meio daquele turbilhão de vapor. E sumiu. — É o nosso portal — disse Sasha. — Vocês dois são os próximos. E tomem cuidado! — ele alertou. — A Terra Livre pode ser bem selvagem.
Selvagem eu também era capaz de aguentar, me candidataria com toda a boa vontade a uma viagem de acampamento no meio da selva com uma turminha de onças famintas. Qualquer coisa, menos aquele pesadelo. Mas eu nem podia brincar com Sasha. Para começar, meus dentes estavam batendo demais e eu não conseguia falar. De repente, sentimos um frio tão intenso que queimava e estava vindo de algum lugar à nossa frente. Não sabemos como, um dos Perdidos tinha se colocado entre nós e o portal. Talvez se alguém misturasse dor, ódio e sofrimento em partes iguais, e por acaso essa mistura tomasse forma e fosse mergulhada em tinta preta, teríamos quase o que eu estava vendo naquele momento. No entanto, havia algo perturbador e assustadoramente humano naquele rosto cheio de sombras. Não havia pele, só um tipo de superfície sombria e trêmula onde esperaríamos ver testa, bochechas, nariz... e eu tive que olhar para aqueles olhos. Sem pupilas. Apenas fendas alaranjadas, brilhando como as tochas que você veria nas paredes do inferno. Eu queria gritar, mas estava oficialmente paralisada pelo ar congelado e pelo horror. Estreitei os olhos contra o frio e fiquei só olhando, inutilmente, enquanto os outros Perdidos se aproximavam de nós. Estávamos cercados. Então, e eu não sei onde ele arrumou força e coragem, Sasha foi em direção ao Perdido que estava entre nós e o portal, ignorando seus dedos-garras que estalavam, e olhou diretamente naqueles olhos amarelos.
— Vocês nos pegaram — ele disse. — Mas vão querer saber de uma coisa. — Ele enfiou a mão no bolso da calça e tirou um pedaço de papel de lá. — É um mapa. Com ele, posso mostrar a vocês como encontrar um portal. Não como este aqui, que não funciona para o seu grupo, mas um que pode tirar vocês da Terra das Sombras. Um caminho de volta para casa. De alguma maneira, a criatura horrível parecia entender e gostar do que Sasha estava dizendo. E então, fazendo o maior teatro, Sasha amassou o papel e o jogou no chão, fazendo a criatura sair correndo atrás dele com um grito de raiva de estourar os ouvidos. Sasha empurrou Whit e eu para dentro do portal e nós três mergulhamos no redemoinho, com Byron-Fuinha-Mala-Puxa-saco se segurando em uma das minhas pernas com as quatro patinhas. Animalzinho insuportável! Senti uma onda elétrica passar pelo meu corpo, fazia cócegas e ficava cada vez mais forte, até eu começar a tremer como se estivesse na traseira de uma carroça por uma estrada de paralelepípedos a 80 quilômetros por hora. E, de repente, passamos para o lado de fora, foi o que pareceu. Primeiro, sentimos o vento, o que foi bom demais, como se fosse o primeiro sopro de ar fresco que tocava a minha pele em anos e anos. Consegui me equilibrar e, então, parei. Chocada, olhei ao meu redor. — Ai. Meu. Deus.
Capítulo58
Wisty
ESTÁVAMOS EM UM MORRO SECO e coberto de pedregulhos. Não era lá essas coisas, mas o sol brilhava e o céu estava azul. Depois daqueles minutos terríveis na Terra das Sombras, eu estava simplesmente chocada ao ver como o mundo real era lindo. — Então aqueles caras Perdidos estão procurando um jeito de sair da Terra das Sombras? — Whit perguntou ao Sasha, enquanto tirávamos a poeira do corpo. — É, eles dizem que é por isso que ficam perseguindo os humanos. Querem que nós os ajudemos a encontrar uma saída. E então, quando não dá certo, porque nunca dá certo mesmo, eles se contentam em roubar o seu calor e comer a sua carne. — Mas você deu o mapa para eles. Quer dizer que agora vão conseguir encontrar o caminho para o mundo real sozinhos? — Whit quis saber. — Bom, em primeiro lugar, acho que eles não sabem ler; em segundo lugar, não sei se eles conseguiriam sobreviver no mundo real, espero que não; e, em terceiro lugar, não era um mapa, era só uma lista de coisas que eu precisava fazer quando voltasse para a base. — Então você simplesmente inventou aquilo na hora e enganou aquelas criaturas para conseguirmos fugir?
Ele deu de ombros e ia dizer alguma coisa, mas, bem na hora, ouvimos um som agudo no ar. — Chegando! — Sasha berrou e veio para cima de mim, me jogando no chão. Caí com tudo e quase fiquei sem ar. Respirei fundo pela boca como um peixe na terra enquanto um assobio agudo, incrivelmente alto e de estourar os tímpanos, enchia meus ouvidos. E então bum! Ou melhor, BUM! Apertei os olhos com força enquanto o chão tremia como em um terremoto. Sasha me apertou com mais força, cobrindo minha cabeça com as mãos. Eu já quase gostava dele. BUM! Mais explosões de fazer a terra tremer, mais poeira e lama e pedregulhos chovendo sobre as nossas cabeças. — Wisty! — Whit gritou. Eu não conseguia respirar. — Whit! Feffer! — Engasguei. E não conseguia ver muita coisa porque havia fumaça e poeira por toda a parte. Depois do que pareceu um tempão, os tremores finalmente se acalmaram e Sasha, lentamente, saiu de cima de mim. Um minuto depois, estava tudo acabado. O que quer que aquilo tivesse sido. — Ufa! — Sasha disse, sorrindo. O rosto dele estava coberto por uma camada espessa de poeira, exceto a boca e os olhos. Ele me lembrou de um palhaço meio assustador. Acho que eu também estava daquele jeito.
— Desculpe — ele me disse, todo animado. — Eu não queria amassar você desse jeito. — Tudo bem — respondi. — Já fui amassada por coisa pior. Eu me esforcei para ficar de pé, e Byron-Mala-Puxa-saco estava enrolado no meu pescoço como uma estola traidora de visom. Piscando para ver se conseguia me livrar da poeira nos olhos, tossindo e sacudindo a poeira do corpo, olhei ao redor. — O que acabou de acontecer aqui? — perguntei, finalmente avistando Whit. E Feffer. E Célia. — Bomba — Sasha respondeu, ficando de pé e tirando a poeira do corpo com as mãos. — Todo mundo está bem? Acho que entramos em uma zona de guerra. Acontece. — Parecia que aquilo era tão comum quanto fazer uma curva errada a caminho da padaria. Olhando ao meu redor, vi prédios meio destruídos naquilo que, um dia, tinha sido um quarteirão normal de uma cidade. Pelas ruas, havia crateras grandes o bastante para engolir caminhões. Havia entulho e poeira por toda a parte. Metal retorcido, vidro quebrado, fios elétricos e pedaços de cimento formavam um tapete perigoso aos nossos pés. — Quem está nos bombardeando? — perguntei, ainda tremendo. Byron também tremia; aquela peste agora estava pegando uma carona no meu ombro, segurando no meu cabelo. — Sai daí! — falei para ele. — A Nova Ordem joga bombas todos os dias — Sasha explicou. — Eles sabem que alguns de nós se escondem aqui, então ordenam ataques aéreos. Depois, eles vêm nos procurar. — Ele tirou o cabelo da frente dos olhos. — Temos que ficar espertos, né? — Claro, nada como um pouco de choque e medo — Whit respondeu, mal podendo acreditar. Sasha ficou sério. — Temos que levar vocês para um lugar seguro, e rápido! — Espera aí — eu disse. — Whit e eu precisamos procurar os nossos pais. Mas vamos sozinhos. Quer dizer, agradecemos muito por tudo, viu? Célia e Sasha se olharam e, pela primeira vez, a expressão de Sasha não tinha um pingo de animação. — Hum — ele disse. — Temos que conversar sobre isso, Ruivinha. Arregalei os olhos para Sasha e o meu irmão disse: — Ela não curte esse apelido. Só para você saber. — Acontece que — Sasha começou, lentamente — não é muito seguro, nem inteligente, vocês saírem por aí sozinhos. — Ele tirou o boné e começou a torcê-lo. Seu cabelo grosso e muito preto caiu sobre os olhos. — Foi mal, Sardentinha.
Capítulo59
Wisty
— SARDENTINHA TAMBÉM NÃO — Whit sugeriu. — Nem cabeça de cenoura. — É isso aí! — eu disse. — Temos que encontrar os nossos pais. Essa é a nossa missão! — Deixei bem claro. — A família vem em primeiro lugar! Célia se aproximou de mim e me estendeu a mão. Senti uma brisa leve tocar meu cabelo e vi a compaixão nos olhos dela. — Wisty, só me escute primeiro. Por favor. Sasha suspirou e apontou para tudo ao nosso redor. — Olhem só essa bagunça de lugar. A maior parte da cidade está assim. A N.O. está dominando as comunidades “dignas” e reconstruindo tudo à sua imagem. O restante está... arrasado. Tipo, quase deixando de existir. — Pois é, isso também é muito triste. É horrível. Eu entendo. Mas o que isso tem a ver com os nossos pais? — Leia os meus lábios, minha amiga: as coisas estão indo mal por toda a parte — ele continuou. — Eu não tenho a menor ideia de onde os seus pais estão presos, nem se eles estão... vivos. — A última palavra saiu como um sussurro. Eu o encarei e senti o sangue abandonar o meu rosto.
— Célia, você nos salvou. Se você conseguiu nos tirar da prisão, por que não pode nos ajudar a encontrar os nossos pais? Eles estão vivos. Tenho certeza! Whit ficou olhando fixamente para Célia, concordando comigo. Uma expressão dolorida tomou o rosto dela, mas Célia não respondeu. — Vejam bem... — Sasha continuou, olhando de lado, meio sem jeito, para Célia. Não entendi nada. — Vamos para um lugar seguro primeiro. Vemos o que fazer depois que chegarmos à Terra Livre. Eu já estava cheia de tanta compaixão. Cruzando os braços, bati os pés como uma criancinha birrenta de 2 anos no shopping. — Eu não vou para lugar nenhum até alguém me dar uma resposta decente! — Wisty — Célia disse, nervosa. — É muito perigoso aqui. Tem coisas piores que bombas, se você conseguir imaginar algo pior que uma explosão. Vocês ainda não sabem onde os seus pais estão. E vocês também não podem salvar ninguém... se estiverem mortos.
Capítulo60
Whit
— PAREM AÍ MESMO, CRIANÇAS! Quero ver as identidades. Agora! Deveria haver uma dúzia deles, quer dizer, 11, todos de uns 16 a 20 e poucos anos, caras grandes com músculos enormes. Dei um passo à frente. — Posso saber quem são vocês antes de mostrar qualquer coisa? É uma parte perigosa da cidade, sabem. O porta-voz dos moleques musculosos parecia ter 20 ou 21 anos. Ele estava na ponta dos pés, provavelmente louco para se meter em confusão. — Você deveria saber quem somos. Nova Ordem. A Patrulha dos Cidadãos. Estamos atrás de Vagabundos e Procurados. Precisamos ver a identidade de todo mundo. É a lei, meu amigo. Wisty já estava do meu lado. — Talvez precisemos ver a identidade de vocês — ela disse. — Amigo. Enquanto isso, uma multidão de 50 ou 60 “cidadãos” estava se juntando. Não era um bom sinal. — Deixa que eu cuido disso, tá? — eu disse. Wisty deu de ombros.
— Beleza. — Por que é que vocês não vão embora e continuamos amigos? — propus para o líder do grupo. Queria continuar falando, mas ele já tinha tirado um cassetete do bolso. A multidão aumentava e ficava cada vez mais barulhenta. — Patrulha dos Cidadãos, até parece! Estão mais com cara do clubinho da escola de “Aspirantes a Ditadores” — disse Wisty, diplomática como sempre. — Olha só esses idiotas bombados. Que patético! Bom, aquilo os tirou do sério e eles atacaram, todos os 11, os cassetetes descendo com gosto e a multidão de idiotas da vizinhança torcendo para eles. — É a minha vez! — Empurrei a Wisty para o lado. — Pode deixar comigo. — Dá para ver, viu? — ela disse. — Uau, Whitford! Ela viu que a Patrulha dos Cidadãos parecia estar se movendo em câmera lenta. Mas, na verdade, não estava. Eu é que tinha ficado muito rápido. Eu havia tido a sensação de que conseguiria fazer aquilo e tinha razão. O cassetete do líder foi para trás e eu o arranquei da mão dele. Depois, passei-lhe uma rasteira e dei um soco nele com toda a minha força; ele caiu na calçada. Eu estava me mexendo tão depressa que tudo virou um borrão. Peguei todos os cassetetes e os joguei em um bueiro. Acabei com aqueles valentões, um por um, exceto com uma menina linda. Por fim, a gangue estava espalhada pelo chão, resmungando e gemendo.
— Agora, vamos ver essas identidades! — Fiquei de pé ao lado deles e comemorei, mas Sasha já estava me puxando para longe e nos fazia correr rua acima e dobrar a esquina mais próxima. — Aquilo foi muito legal — ele disse. — Eu precisava de um treino. Acho que até poderia entrar nessa onda de bruxo. Enquanto isso, Célia estava de braço dado comigo, leve como nunca. — Aquilo foi incrível, Whit! Amei! — Você com certeza tem potencial — Wisty disse e sorriu. E, por um instante, naquele segundo, parecia que tudo tinha voltado a ser como deveria, o tipo de vida que eu sempre pensei que teria um dia. Mas apenas naquele segundo.
Capítulo61
Wisty
DEPOIS DA DEMONSTRAÇÃO das habilidades descobertas recentemente pelo Whit, Sasha nos levou a uma rua deserta em direção a um prédio com a fachada cheia de buracos de balas e explosões de mísseis. Eu mal podia acreditar no que via. Será que aquilo tudo tinha acontecido enquanto estávamos no Hospital? O tempo parecia tão... distorcido. — Cara, eu tinha esperanças de ter ficado por lá tempo suficiente para isso já ter parado. Esses bombardeios todos. — Sasha fez que não com a cabeça. — Como assim? — perguntei. Sasha deu de ombros. — Eu fiquei algumas horas na Terra das Sombras. Whit fez cara feia. — E por que isso seria tempo suficiente para, hummm, a Nova Ordem botar a mão na consciência e parar de jogar bombas? Sasha olhou para mim e para Whit com surpresa. — Mas vocês não sabem? Célia...? — Eu não tive tempo de explicar tudo — Célia respondeu. — Estávamos ocupados demais fugindo, sabe?
— O que é que não sabemos? — perguntei. — O que mais? — Um monte de coisas. Para começar, o tempo é diferente na Terra das Sombras — Sasha explicou, andando bem rápido. — Nesse caso, para mim, parece que eu fiquei por lá por mais ou menos um mês. Mas nem sempre é assim. Depende do portal que você usou. Uma vez, voltei algumas horas mais cedo na mesma manhã. Whit e eu nos olhamos. Não tínhamos como saber quanto tempo já tinha se passado desde que fôramos capturados. Eram tantas as perguntas. Pelo jeito a fuinha também estava cheia de dúvidas. — Então, podemos voltar no tempo para uma época em que a Wisty tomava banho de verdade? O cabelo dela está virando um ninho de rato — a fuinha simpática disse. — Sai de mim, seu ingrato! — eu disse, desgrudando aquele chato do meu pescoço e colocando-o nas costas de Feffer. — Feffer, você é uma alma mais bondosa que eu. Olha só quem é o seu novo melhor amigo. Feffer latiu com boa vontade e abanou o rabo. Como é que ela poderia ter sido um cão do inferno um dia? Em seguida, Sasha parou no meio da rua e apontou. — Aqui vamos nós! Lar doce lar cheio de entulho! Tem uma galera ficando aqui. Está mais para uma míngua, mas demos um bom jeito. Olhei para o alto e li a placa fluorescente quebrada, pendurada por alguns fios, da loja de departamento de luxo mais incrível do mundo. Eu nunca tive grana o bastante nem para passar por aquelas portas.
— Garfunkel’s? — eu disse, sem ar. — Vamos morar aqui? Por um momento, me senti naquele “Dia de Princesa”.
Capítulo62
Whit
APESAR DA INCERTEZA DEPRIMENTE sobre a localização dos nossos pais, a voz de Wisty estava cheia de animação ao dizer o nome familiar de uma loja de departamentos. — Acho que isso aqui é tipo seu sonho virando realidade, hein? — eu disse a ela. Ela me deu um sorriso irônico enquanto Sasha nos levava pelas portas giratórias, uma das quais havia sido arrebentada por um foguete ou talvez um tanque militar. — Total! — Wisty disse. — Por um lado, fomos arrancados de nossos pais, aprisionados, passamos fome, levamos choque de armas paralisantes, não tivemos acesso a nenhum direito humano nem liberdade básica, blá-blá-blá. Por outro, olha só! À minha direita! É tipo a “sutiãlândia” da felicidade! Eu estava prestes a fazer uma piadinha sobre como seria uma felicidade se ela precisasse mesmo usar sutiã, mas ela ergueu a baqueta para mim e calei a boca. — Não tem eletricidade aqui — Sasha disse enquanto subíamos as escadas rolantes paradas. — Mas vocês têm ideia de como perfume é inflamável? Um dos caras consertou um gerador à combustão. Agora podemos ligar um laptop por duas horas com um vidrinho de perfume desses de carregar na bolsa.
Então, uma coisa me atingiu como um soco no queixo. Será que nenhum daqueles adolescentes tinha pais? Tínhamos acabado de chegar ao andar principal. Comecei a olhar ao meu redor e pensei que cada um desses jovens, Meias-Luzes ou não, tinha uma história... e talvez até uma história pior que a nossa. — Quantas pessoas moram aqui? — Acho que umas duzentas e cinquenta — Sasha ficou pensando —, sem contar os Meias-Luzes, que vêm e vão. Eles não podem ficar por aqui muito tempo ou... — Não precisamos tocar nesse assunto — disse Célia, parecendo ansiosa e tão diferente da Célia que eu havia conhecido antes, que estava sempre sossegada. Eu só queria abraçá-la com força, dizer que ia dar tudo certo. Mas nunca mais poderia abraçar a Célia, não é mesmo? E com certeza não poderia dizer para ela que tudo ia dar certo. — Temos a nossa própria sociedade pukka aqui — Sasha explicou. — Incluindo, tchã-nan!, o líder desta semana! — Ele nos levou por um corredor até um conjunto de escritórios. Ali, sentada à mesa com uma plaquinha acobreada em que estava escrito “GERENTE”, estava uma menina bonitinha que não tinha mais que 15 anos; ela estava digitando no laptop. Um fio grosso ia da traseira do computador para o que parecia uma pequena lata de lixo de metal a uns seis metros de distância. Senti o cheiro de fumaça e algo que parecia limão queimado vindo do laptop movido a fragrâncias. Eca! Eu jamais olharia para um vidro de perfume da mesma forma.
A menina bonitinha olhou para cima, jogando o cabelo castanho comprido e encaracolado por cima do ombro. Ela tinha uma expressão séria no rosto, nada de maquiagem, e estava usando um macacão jeans sobre uma camiseta manchada. — Sasha! — ela disse. — Faz, tipo, quarenta e três dias? Precisamos de você aqui. — Não quero colocar a culpa em ninguém, mas foi a Célia que tomou conta da operação — Sasha respondeu. — E, eu gostaria de deixar bem claro, a operação foi muito bem-sucedida. Mas não há como prever como os portais da Terra das Sombras vão se portar. E isso sem falar que tivemos que pensar em uma fuga da prisão. — Whit e Wisty — ele se virou em nossa direção —, quero apresentar a vocês minha ex-parceira de combate básico e a líder desta semana. Dá para saber porque ela está no escritório da gerência, usando um broche na lapela que diz “GERENTE”. Essa é a Janine! — Oi! — Janine disse, sem sorrir. Ainda sentada, ela estendeu a mão e apertou a minha como se eu tivesse acabado de chegar a uma entrevista de emprego. — Bem-vindos! — ela cumprimentou e então se concentrou em Célia. — Você tirou mais alguém do Hospital? Célia fez que não com a cabeça. — Havia só mais um naquele andar e ele não era... salvável. Janine fez que sim com a cabeça. — Que pena ver esses Retos e Estreitos atormentando uma criança! Bom, mas a luta continua! — A luta continua — Célia repetiu e se virou para mim. — Tenho que ir, Whit — ela disse. — Mas vou tentar voltar.
A palavra “tentar” soou nos meus ouvidos como um sino tocando em um enterro.
Capítulo63
Whit
VOCÊ JÁ PERDEU ALGUÉM PRÓXIMO? Então pode imaginar como é que eu estava me sentindo. Eu amava demais a Célia. E vê-la sendo arrancada da minha vida, várias vezes, era insuportável. Fiz sinal a ela para irmos para trás de uma daquelas colunas espelhadas de loja de departamentos. Pelo menos poderíamos ter um pouco de privacidade ali. Tentei segurar as mãos dela. — Volta, por favor — pedi, olhando nos olhos dela. — Não vou aguentar perder você de novo. Ela fez que sim com a cabeça e me deu um daqueles sorrisos. — Eu quero voltar, Whit. Estou tão feliz... estou tão feliz por você estar vivo. De tudo o que sinto saudade, sinto mais saudade ainda de você. Ai, meu Deus, como senti a sua falta! E então Célia fez a coisa mais incrível do mundo. Ela chegou bem perto de mim. Em seguida, ainda mais perto, até eu não conseguir vê-la. Eu só sentia a presença dela de um jeito intenso e íntimo, como nunca antes. Então, nos unimos. De verdade, como se fôssemos uma pessoa só. Era calor, era paz, era beleza pura. Eu era parte da Célia e ela era parte de mim. Só aconteceu por um segundo, mas parecia que o sentimento era grande e poderoso o bastante para durar por uma vida toda. Eu sabia que nunca mais me esqueceria daquilo. E quem poderia? Então Célia se separou de mim. Ela jogou um beijo no ar e correu para um portal que estava por perto, aparentemente no departamento de sapatos masculinos, onde desapareceu. Falando sério, parecia que eu tinha acabado de perder metade de mim. Fiquei ali perto dos tênis por um tempo e sequei as lágrimas. Achei que não podia contar para os outros o que tinha acabado de acontecer, nem mesmo para a Wisty. Não conseguia nem começar a descrever como tinha sido ser uma pessoa só com a Célia... e, logo em seguida, vê-la ir embora de novo.
Capítulo64
Wisty
— O QUE QUER DIZER ESSE NEGÓCIO DE “LÍDER DA SEMANA”? — perguntei para Janine. Era só uma das muitas perguntas que eu faria nos próximos dias. Naquele momento, enquanto Whit conversava, ou sei lá o que fazia, com a Célia, eu estava tentando descobrir mais sobre a vida na Gafunkel’s. — Os adultos já demonstraram amplamente que o poder corrompe as pessoas — Janine explicou, parecendo alguém concorrendo à presidência, mas que merecia mesmo ocupar aquela posição. — Mas você precisa ter uma pessoa cuidando de tudo, alguém que tome as decisões finais, ou tudo vira uma loucura. Então, temos um líder, mas ele muda toda semana. Esta é a minha semana. Sasha explicou: — O novo líder passa um dia aprendendo como as coisas funcionam com o líder anterior. — Ele se apoiou na mesa de Janine. — E então, no último dia, ele treina a próxima pessoa. Funciona bem, sabe? A semana de 22 de setembro foi incrível. Janine revirou os olhos. — Você foi o líder — eu disse a Sasha. — Entendi. Ele sorriu.
— Foi uma época gloriosa para a revolução. Meu decreto sobre ser voluntário para dar a descarga no banheiro ainda é discutido nos círculos intelectuais. Janine olhou para ele por um segundo e então se virou para mim. — Temos muita sorte por ter você e Whit aqui conosco — ela disse. — Estamos precisando das suas habilidades. — Habilidades? Tipo transformar imbecis em fuinhas? — perguntei. — De certa maneira, sim — Janine respondeu como se fosse a coisa mais óbvia do mundo. — Parece que vocês são muito mais fortes que os outros bruxos e bruxas que descobrimos. — Vocês acharam outros? — perguntei, chocada. — Mais ou menos. Mas parece que vocês pertencem a uma categoria totalmente diferente. Uma que não tem nada de burlação — ela disse, ignorando minha cara de confusão. — Acho que vamos ver o que acontece mesmo na missão de amanhã à noite. Vamos libertar uma galera da Prisão da Superfície. Fiz que não com a cabeça. — Desculpe, Janine. Já falamos com o Sasha. Vamos procurar os nossos pais. Janine pegou meu braço de repente. — Vocês têm que nos ajudar, Wisty. Aquele lugar é o Reformatório da Nova Ordem, para onde vocês foram depois de serem sequestrados. Na Terra Livre, chamamos aquilo de Prisão da Superfície porque é um lugar do mal. Você sabe que a vida dessas crianças depende de vocês, não sabe? — Olha, eu já estive lá. Sei como é ruim. Mas você tem que entender que os nossos pais vêm em primeiro lugar para nós. Temos que encontrá-los. E ponto final. Janine ainda estava segurando o meu braço. — Você diz que sabe como é, mas na verdade não tem ideia de como a Superfície é ruim. — Ela olhou para Sasha. — Leve os dois para ver Michael Clancy.
Capítulo65
Wisty
WHIT TINHA ACABADO DE SE DESPEDIR da Célia e não parecia muito bem. Na verdade, ele estava com uma cara péssima, mesmo sendo lindo. Estava exausto e arrasado. — Quem é Michael Clancy? — ele quis saber. — Não tenho a menor ideia. Alguém que eles querem que conheçamos por causa de uma fuga que estão planejando para a prisão — falei alto para Sasha ouvir. Ele estava nos mostrando o caminho. — Quem é Michael Clancy? — perguntei para ele. — Ele está aqui — Sasha disse e abriu a porta de um quarto pequeno e escuro. Havia apenas um colchão no chão. — Meu nome é Michael — uma voz fraca disse. — O que vocês querem comigo? — Conta a sua história para eles — Sasha pediu. Ele se virou para nós. — Sentem aí com o Michael e escutem o que ele tem a dizer. Vocês podem se sentar no colchão dele. Tem bastante espaço. Tinha espaço mesmo, porque Michael era uma das crianças mais magras que eu já tinha visto. Ele fazia eu me lembrar daquelas fotos de vítimas da fome em campos de refugiados... e da Prisão da Superfície e do tempo que passamos lá. — Oi, Michael — eu disse.
— E aí, Mike — Whit cumprimentou. O moleque não só estava acabado, mas seus olhos pareciam mortos. Mesmo assim, tinha algo intenso nele. Ele não perguntou os nossos nomes e foi direto para a história. — A memória é mentirosa, vocês sabem, né? — ele começou. — Mas tenho certeza de que o que vou contar para vocês também tem verdade, mesmo que todos os detalhes estejam errados, apesar de eu achar que não estão. Mas vai saber! — Claro, Michael — eu disse, só para ele saber que estávamos ouvindo atentamente. Ele falava como se fosse bem mais velho. Eu estava até com medo de ouvir o que tinha acontecido com ele. — Os soldados, todos de preto, as botas engraxadas brilhando, vieram nos buscar naquela manhã na prisão e acho que o sol já tinha se levantado. Estávamos em mais ou menos quarenta nesse bloco de celas. Todos entre 15 e 16 anos. Meninos e meninas. Vários tons diferentes, em termos de cor de pele. Todos “Extremamente Perigosos”. Eles nos levaram, marchando, até um pátio. Só havia uns dois guardas lá, acho que não esperavam que alguém fosse dar problema. Nós não aprontávamos quase nada, pois estávamos cansados e famintos demais, e tínhamos perdido a esperança também. Sentimos um vento inacreditável, quase como um furacão, e então um homem alto e careca apareceu à nossa frente. Ele tinha cheiro de amêndoas, eu acho. Ele nunca disse uma palavra, nem se identificou, apesar de eu achar que ele deveria ser O Único Que É O Único. Ele nos olhou com tanto desdém, sabe, como se estivéssemos tão abaixo do nível dele. E então ele simplesmente... girou o pulso. Só isso. Um girar de pulso. Não sobrou nada de nós, a não ser fumaça... e o cheiro de pelequeimando. Ele tinha... não sei... vaporizado todo mundo. Então, ele desapareceu. E eu ainda estava lá, como estou aqui agora. Não perguntem, não se atrevam a perguntar. Não tenho a menor ideia do por quê fui poupado. Mas também não me importo mais com isso. Michael Clancy olhou para Sasha. — Pronto, contei a minha história. Agora, por favor, leve os dois daqui.
Capítulo66
Wisty
DEMOREI VÁRIAS HORAS para começar a me recuperar do encontro com Michael Clancy e para compreender o que ele tinha dito. Você já se sentiu como se a sua cabeça estivesse tentando absorver tanta informação nova, trágica e complicada que parece que vai explodir? Pegue essa sensação, coma alguma coisa nojenta que faça você vomitar por horas e aí vai saber como eu estava me sentindo no momento. Vamos recapitular: Eu, a Wisty normal de todo santo dia, sou uma bruxa. Whit, barriga tanquinho, é um bruxo. Não sabemos exatamente como controlar os nossos poderes. Whit e eu fomos condenados à morte por um indivíduo traiçoeiro conhecido como O Único Que É O Único. Os nossos pais estão sendo procurados por traição. E ainda não temos a mínima ideia de onde eles estejam, nem se ainda estão vivos. Fomos torturados em uma prisão “corta-magia”. Então, é possível que sejamos mais poderosos do que pensávamos. Uma menina morta, que, por acaso, é o amor da vida ainda tão pouco vivida do meu irmão, apareceu misteriosamente e nos salvou da prisão.
Transformei Byron Swain em uma fuinha. Bom, disso, sim, eu tenho muito orgulho. O mundo na verdade é plural, não singular. Entre a Terra das Sombras, a Terra Livre, a Superfície e o Submundo, é difícil não perder a conta. E um desses mundos está sendo controlado por um grupo de adolescentes... da mesa da gerência de uma loja de departamentos semidemolida. Não é o paraíso, mas pelo menos é um lugar onde ainda reina a liberdade. Pediram para eu ajudar a orquestrar uma fuga de prisão que pode salvar adolescentes de serem vaporizados. Mas talvez possa acabar matando todos eles.
Certo, não é pouca coisa para se lidar, mas às vezes uma lista pode ajudar a tomar uma direção na vida. “Uma coisa por vez” é uma das filosofias mais úteis. Semana que vem era a semana que vem. Naquele momento, o item número 9 era o que mais importava para todo mundo além de Whit e eu. Mas ainda estávamos insistindo no número três.
Capítulo67
Wisty
— ENTÃO, SOBRE ESSA MISSÃO... É AMANHÃ? — perguntei. — Na Prisão da Superfície? Vocês sabem como é a planta da cadeia? Não que eu esteja me oferecendo, nem o Whit. Não posso fazer isso. Janine apertou algumas teclas rapidamente e a tela do computador mostrou o esquema de um prédio. Byron-Mala-Tagarela-Fuinhacom-Cara-de-Rato-Swain pulou das costas de Feffer e escalou as minhas costas para se sentar no meu ombro e conseguir ver a tela. Girei a cabeça para falar com ele. — Pare de me escalar ou vou ligar minhas chamas aqui e transformar você no espetinho de churrasco mais nojento do mundo — eu disse a ele. — Só me faltava esta agora: uma fuinha traíra espiã, que vai contar todos os nossos planos para a Nova Ordem. Byron desceu de volta para o chão. — Não vou contar nada! — ele protestou, fazendo cara de pobre coitado. — Nunca. Não vai acontecer. Janine piscou. — A fuinha é uma espiã? Essa fuinha fala? — É uma longa história — respondi. — Mas minha confiança nessa fuinha vai até onde ela aterrissar depois de um chutão, o que deve ser a uns dez metros. — Fiquei pensando, olhando para ele. — Quanto você pesa agora? — Eu não sou espião! — Byron insistiu. — Você acha que eu conseguiria voltar para eles? Desse jeito? Eu poderia ter o maior segredo do universo e eles, mesmo assim, me executariam em menos de um segundo. — Quem se importa, né? Saia daqui! Saia! — eu disse com a voz firme, apontando para o corredor. Ofendido e magoado, Byron me xingou baixinho e se arrastou pelo chão. Voltei a me concentrar na planta da prisão. — Tá, então qual é o plano para salvar essa galera mesmo? Vocês têm um plano?
Capítulo68
Wisty
— PARA COMEÇAR, COMO VOCÊ CONHECE O LUGAR, precisamos fazer um tour rápido com você pela fortaleza principal da Nova Ordem — Janine explicou. — Eles a chamam de Cidade do Progresso porque é a comunidade ideal para eles. É o modelo de acordo com o qual querem transformar o mundo. Esse lugar é cheio de erlenmeyers puxa-sacos. Ela colocou dois dedos na boca e deu um assobio de arrebentar os ouvidos. Uns caras vieram correndo. Janine fez que sim com a cabeça para um menino alto, magrelo e mais arrumadinho. — Jonathan vai fazer o passeio com você. Mas, primeiro, Emmet vai ajudar com os disfarces. — Disfarces? — Whit perguntou. — Com certeza — Janine insistiu. — Vocês têm que se misturar e não podem parecer pukka demais. Senão, vocês já sabem... Cortemlhes as cabeças! Emmet, um cara loiro e bonito, disse: — Venham! Primeiro, vamos ao Departamento de Cosméticos. Vou fazer a maquiagem de vocês. Não se preocupem: eu sou muito bom.
Mais ou menos uma hora depois, meu cabelo totalmente incontrolável estava brilhante e escovado e não ficou sobre o meu rosto o tempo todo graças a um laço de fita engenhosamente instalado ali com umas duas dúzias de grampos. Minhas roupas eram cor-de-rosa patricinha e verde-limão, em vez de preto e cinza que uso geralmente. Byron-Fuinha-Oleosa tinha escalado o arquivo da sala. Ele ficou me medindo com aqueles olhinhos pretos minúsculos. — Você está muito bonita — ele disse. — Eu até aprovo. Mostrei a língua para ele e vi Whit vindo na minha direção. O rosto dele estava corado, o cabelo, mais curto (mais curto até que o corte normal dele), e ele estava tão limpo! Se não fosse sua irmã, poderia dizer que ele estava bonito. Mas como sou sua irmã, eu disse: — Ah, olá, senhor, acho que ainda não fomos apresentados. Sou Wisty, a Bruxa Malvada. E o cavalheiro? — Garoto propaganda da Guarda Nacional. Feffer veio me cheirar só para garantir que eu ainda era a mesma pessoa e Whit ainda era o Whit. Ambos ganhamos lambidas. — Beleza — disse Jonathan, vindo até nós. Ele era alto mesmo, vários centímetros mais alto até que o Whit. Mas provavelmente pesava tanto quanto eu. Com aquela pele branca e o cabelo loiroclaro, ele parecia mais uma barra gigante de chocolate branco. — Não podemos nos esquecer de algumas coisas importantes: em primeiro lugar, nada de burlação. Não falem com ninguém a não ser que seja necessário. Se vocês tiverem que falar, lembrem-se de sorrir e dizer “senhora” ou “senhor”. Não atravessem a rua se o farol estiver fechado, não masquem chiclete em público e, pelo amor de Deus, não deixem a cachorra fazer as necessidades na rua. Todos os cachorros da Cidade do Progresso são treinados para usar caixinhas de areia dentro de casa, como gatos. — Pelo jeito é um lugar bem arrumado — Whit resmungou. — E o que você quis dizer com “truques”? — Nada de burlação — Jonathan declarou. — Beleza, vamos conhecer o inimigo!
Capítulo69
Wisty
A PRIMEIRA COISA QUE NOTEI na Cidade do Progresso foi que O Único Que É O Único estava mesmo por toda a parte: em pôsteres, pinturas, vídeos, na primeira página dos jornais, em murais. Mas quem era aquele maluco? Eu achava que pessoas como ele só conseguiam chegar ao poder em outros lugares, como em livros de história e contos de fadas. Até então nunca tinha percebido como a fantasia tinha a ver com a realidade. O que notei em seguida, na Cidade do Progresso, foi a tinta fresca. Não dava para se livrar daquele cheiro. Tudo era tão arrumadinho e perfeito. Não havia muitos adolescentes por ali também e, quando víamos os adultos, eles nos mediam da cabeça aos pés. Whit e eu aprendemos a copiar o sorriso rápido do Jonathan. Vimos placas do novo regime por toda a parte: adesivos nos parachoques de carros brilhantes e novinhos em folha e de minivans dizendo coisas como: “DIGA SIM PARA A N.O.”, ou “SE VOCÊ VIR ALGUMA COISA, DIGA ALGUMA COISA”, ou “DIGA NÃO À ARTE!”, ou ainda a mensagem mais assustadora de todas, na minha opinião: “PAIS ORGULHOSOS DE UM INFORMANTE JÚNIOR DA NOVA ORDEM”. — Meus deuses — eu disse, vendo um prédio baixo e todo cromado e imediatamente sentindo meus joelhos ficarem fracos. — Uma lanchonete! — A simples ideia de poder comer essas comidinhas reconfortantes de novo quase me fez chorar. — Será que é seguro entrar? Por favor? — Acho que sim — Jonathan respondeu. — Mas não se esqueça das boas maneiras, no estilo “Nova Ordem”. Dentro da lanchonete, quase todas as mesas estavam ocupadas por adultos. Um cara com um boné branco estava passando um pano sobre o balcão imaculadamente branco, sem parar. Nós nos sentamos nos banquinhos giratórios em frente a ele. Meu estômago roncou, o que foi mais que um pouco embaraçoso. — Pois não? — o garçom disse. — Do que vocês gostariam? — Minha nossa, senhor, é tão difícil decidir — eu disse, tentando improvisar uma fuinhisse ou Jonathanisse o máximo possível. — Por favor, uma vaca preta e um cheeseburger especial? Obrigada. — Wisty — Whit falou baixinho, aproximando-se de mim, a respiração dele quente na minha orelha. — Você está sentindo alguma coisa... estranha? Porque eu estou sentindo, sim. Disfarçando, eu girei no meu banquinho. Olhei de relance ao meu redor, mas só vi o povo se empanturrando de hambúrgueres, batatas fritas e milk-shakes. O hino da Nova Ordem, um zumbido cheio de batidas estranhas misturado com uma voz de diva emo, estava tocando na jukebox. Afe! Percebemos que a coisa está feia mesmo quando marchas militares viram música pop. E então uma mulher em particular me chamou a atenção. Ela estava usando um monte de rímel e o seu cabelo era armado. Ela lançou um olhar estranho para mim e voltou a conversar com as outras pessoas à mesa. Duas mulheres de meia-idade, com maquiagem demais e cabelão armado também. — A-ham — sussurrei. — Aquela ali com o rolo de cabelo de teia de aranha na cabeça. E duas iguaizinhas a ela. Elas estão nos observando. — Ela é uma bruxa — uma voz disse. Congelei no meio do giro do meu banquinho. Os pelinhos do meu braço ficaram em pé como soldados. O garçom deixou de lado a limpeza obsessiva e fez uma cara feia como se alguém tivesse disparado uma arma. — O que a senhora disse, Sra. Highsmith? — ele perguntou. — Aquela menina desagradavelmente ruiva ali. Ela é uma bruxa — disse a Sra. Highsmith, com mais ênfase. Era a mesma mulher que estava me observando. — E aquele menino loiro, o bonito, tem alguma coisa errada com ele também! Ela sabia que eu era uma bruxa... porque ela era bruxa também.
Capítulo70
Wisty
— É PRECISO SER UMA BRUXA para reconhecer outra — eu disse. Na verdade, eu não disse nada. Eu já tinha aprendido umas coisinhas sobre como me controlar desde que tinha sido presa e condenada à morte. Então, arregalei os olhos e apresentei o melhor show da minha vida. — Onde? — Meu queixo caiu e girei no banquinho. Fiquei olhando para todo mundo na lanchonete com uma cara de medo. — Minha irmã com certeza não é uma bruxa! — Whit disse, parecendo chocado de verdade. Meninos bonitos são ótimos nisso, principalmente os mais sinceros, pode acreditar. Eu vinha convivendo com o talento teatral do Whit desde criança. — Essa menina acabou de receber a Estrela de Honra de Líder do Setor — Jonathan anunciou. Ele era muito bom também. — Talvez... talvez a Sra. Highsmith esteja imaginando coisas? — eu disse. —Talvez ela... veja coisas? Seria possível? Hein? Sra. Highsmith, a senhora tem visões? Todos os olhos estavam voltados para a mulher e para as suas amiguinhas suspeitas. Ela ficou vermelha. — Testem essa menina! — ela gritou com uma voz ardida.
— Eu faria o teste com a maior boa vontade — respondi rapidamente. — Se você fizer o teste também. Todo mundo ficou em silêncio, esperando para ver o que ela faria em seguida. De repente, a raiva tomou conta de mim. Se ela sabia o que queria dizer ser “diferente”, por que perseguia outras pessoas na mesma situação? — Não sou eu, é ela! — disse a Sra. Highsmith. As pessoas começaram a cochichar. Estava na cara que estavam desconfiadas. Na minha mente, conjurei uma imagem da mesa dela. Vi o garfo de metal sobre o guardanapo ao lado do prato. — Meu pai me disse para não conversar com gente como ela — Jonathan disse, saindo do banquinho e indo até a porta. Whit e eu ficamos de pé também. — Vamos, pessoal. Não temos mais nada a fazer aqui. Vamos denunciar esse lugar. Meio segundo depois, eu vi o garfo dela, o senti, e sabia o que precisava fazer com ele. Foi por isso que o garfo levitou sobre a mesa, voou pela lanchonete e caiu bem na minha cara. — Socorro! — berrei, levantando os braços. — Alguém me ajude, por favor! O garfo bateu nas costas da minha mão, com mais força do que eu tinha planejado, na verdade. Dei um grito agudo, o que conferiu um efeito perfeito à cena. As pessoas começaram a falar alto, chocadas e nada contentes com a situação.
— Por que ela está tentando me machucar? — disse. — Como ela fez aquilo? Isso não é natural! Ela me machucou com o garfo! E o garfo voou! — Chamem os Serviços de Segurança! — Alguém ficou de pé e gritou. — Ela machucou aquela menina da Estrela de Honra. Ela é uma bruxa. — Não sou, ela é! — a Sra. Highsmith gritou de novo enquanto a multidão se fechava ao seu redor. Pela primeira vez, senti uma pontinha bem pequenininha e minúscula de culpa por ter usado meus poderes. Quer dizer, talvez ela fosse simplesmente uma velha chata e indefesa. Mas eu tinha as minhas dúvidas!
Capítulo71
Wisty
O GARÇOM CONSULTOU RAPIDAMENTE um tipo de tabela, como aquelas que as pessoas têm em locais públicos mostrando como socorrer alguém que está engasgado, e berrou: — Apertem os braços dela com força para cortar a circulação e a amordacem para que ela não lance mais nenhum feitiço! Enquanto isso, saímos de fininho pela porta da frente, lançando olhares nervosos para trás a cada passo. Ouvimos sirenes e elas vinham em nossa direção, cada vez mais rápido. Consegui ver a Sra. Highsmith colada à janela da lanchonete, com pelo menos uma dúzia de guardanapos de papel enfiados na boca, que serviram de mordaça improvisada. Fiquei com dó dela, de verdade. A velha viu que eu a estava olhando. Ela me encarou com um olhar maligno e então começou a brilhar, como tinha acontecido comigo aquela vez no Hospital. Eu me senti mais aliviada. Meus instintos estavam certos: ela era uma bruxa mesmo. Então, ela fez o que ninguém esperava: eu a vi fazendo um gesto para irmos embora. Será que ela estava do nosso lado? E as coisas ficaram ainda melhores. Os cidadãos que a atacaram começaram a flutuar como balões gigantes e foram jogados para trás, para longe dela e das suas amigas bruxas, dando cambalhotas e estrelas em direção aos fundos da lanchonete. — Socorro! Alguém nos ajude! Ainda olhando fixamente para mim, ela tirou, com calma, os guardanapos da boca. Suas amigas continuaram mastigando os sanduíches e tomando o chá, como se nada estivesse acontecendo. E então ela fez a coisa mais esquisita: apontou com a mão direita, mas só com o dedo indicador e o dedo mindinho, como se estivesse fazendo algum tipo de sinal para mim. Ou talvez rogando uma praga em mim? O que significava aquilo? De repente, ela e as suas amigas-antiquário desapareceram. Puf! Sumiram. — Uma convenção — sussurrei para Whit. — Era uma convenção de bruxas.
Capítulo72
Whit
NA NOITE DO INCIDENTE COM A SRA. HIGHSMITH, dormimos no departamento de Cama, Mesa e Banho da Garfunkel’s, rezando para não termos sido amaldiçoados e acordar transformados em sapos. Aposto que você não sabia que dá para colocar dois adolescentes, uma cadela grande e uma fuinha traiçoeira em uma cama de casal. É claro que ajuda se um dos adolescentes flutua a alguns centímetros do colchão enquanto sonha. Mesmo assim, algumas camas king-size perto de nós comportavam seis ou sete adolescentes. Havia centenas de nós pela loja. Em colchões, sacos de dormir, pilhas de almofadas de sofás, enrolados em roupas de cama e toalhas de banho. Era como um acampamento de férias pós-apocalíptico e sem monitor. O alívio de ter saído do Hospital e estar longe da enfermeira-chefe, do visitante, do juiz Ezekiel Raiwa e do regime de pesadelo da Nova Ordem fazia aquele lugar parecer um lar. Na manhã seguinte, eu estava me olhando em um espelho fora do provador do departamento masculino. Tinha encontrado uns pesos no departamento esportivo e percebi como tinha ficado fraco durante o tempo que passei na prisão. Comecei a malhar de novo para ganhar força, eu sabia que ia precisar dela em algum momento.
— Aham! — Uma tosse atrás de mim me fez pular de susto. — Bruxo Allgood. — Era Janine. — Eu quero apresentar uma pessoa para você. Como sempre, mesmo sendo bonitinha, Janine estava com uma expressão solene, parecia uma diretora de escola. No entanto, a menina ao lado dela estava sorrindo. Ela deveria ter 16 ou 17 anos, tinha a pele escura, era meio baixinha e pesava uns 100 quilos. — Oi — ela disse, estendendo a mão. — Meu nome é Jamilla. Eu sou a xamã. — A o quê? — eu disse, apertando a mão dela mesmo assim. Percebi como os olhos castanhos dela brilhavam e como seu cabelo encaracolado emoldurava seu rosto. — A xamã — Jamilla repetiu. — Em outras palavras, mais uma esquisitona. Tipo você e a sua irmã, mas não tenho poderes mágicos. Eu só ajudo outras pessoas na burlação. Trabalho com bruxas e bruxos e os ajudo a deixar os poderes deles mais afiados. — Oi — Wisty a cumprimentou, juntando-se a nós. — Nós sabemos que temos poderes especiais, mas às vezes eles são difíceis de controlar. Na maior parte do tempo, na verdade. — É difícil mesmo controlar dons mágicos — Jamilla nos tranquilizou. — O que vimos aqui é que os poderes variam bastante. Tem gente que sabe quem está ligando quando o telefone toca e outras poucas pessoas conseguem fazer objetos pequenos voarem. Outros, ainda, conseguem descobrir o que você tem na bolsa ou nos bolsos. Jamilla sorriu e ergueu as sobrancelhas, para mostrar como estava impressionada com tudo aquilo.
Wisty e eu trocamos olhares. — Estamos ouvindo você. — Mas estou curiosa para saber o que vocês dois conseguem fazer. Nunca tínhamos visto a Nova Ordem gastar tantos recursos, nem tempo, com qualquer pessoa antes. Afinal, nossas fontes dizem que eles reformaram aquela míngua de hospício com materiais antimagia especialmente para vocês. — Acho que deveríamos nos sentir lisonjeados então — eu disse de um jeito meio seco. — É como a Wisty disse: conseguimos fazer magia, mas é difícil controlar os poderes. — Tipo o quê? — Jamilla perguntou, toda animada. Um pessoalzinho começou a se juntar ao nosso redor também. — Bom, tipo isso aqui — Wisty respondeu e começou a arder em chamas. Todo mundo começou a gritar e se afastar, até a xamã. — Exibida! — eu disse.
Capítulo73
Whit
MINHA IRMÃ FICOU ALI, com chamas de um metro e meio saindo de seu corpo, seus olhos piscando, sem um pingo de preocupação em seu rosto, que ardia. Como você pode imaginar, todo mundo estava berrando como, bom, crianças ao verem alguém pegando fogo. Antes de eu ter a chance de descobrir como apagar as chamas, o fogo sumiu. — Consegui! — Wisty deu um soquinho de comemoração no ar. — Eu me apaguei! — Mandou bem, irmã! — comemorei também. — Você é “A” bruxa! Jamilla estava com uma cara de enjoo. — Você fez aquilo de propósito? — ela perguntou com a voz rouca. — Aham, foi — Wisty respondeu. — Mas, geralmente, isso acontece por acidente, tipo quando fico muito brava. Mas essa foi a primeira vez que consegui começar e apagar o fogo sozinha. Normalmente, alguém tem que me deixar muito louca da vida e depois tem que pegar o extintor de incêndio para esfriar meus ânimos. Jamilla assobiou baixinho, mal podia acreditar. — O que mais você consegue fazer?
— Ela flutuou — disse um menino que não tinha mais de 5 anos de idade. Ele apontou para Wisty. — Eu vi. Ela flutuou na noite passada. Como um balão sobre a cama. — Ah, é! — Wisty confirmou, envergonhada. — Às vezes eu faço isso também. Mas não intencionalmente. A galera ficou de queixo caído, cochichando. — Mas o Whit enfiou a mão dentro de uma parede — Wisty contou. — E fez um martelinho de juiz flutuar. E eu joguei um garfo em mim, esta é uma longa história, e fiz um monte de cães de guarda congelarem no Hospital. — Você... conge... — disse Jamilla, quase desmaiando. — E os descongelei também — Wisty disse, na defensiva. — Não os deixei daquele jeito. Não poderia fazer mal a cachorros. Pode perguntar para a Feffer. E eu brilho às vezes também, como aquela bruxa da cidade brilhou antes de fazer todas aquelas pessoas voarem pela lanchonete. Mas ainda não sei o que é isso. Todo mundo poderia ser bem mais cético, mas eles tinham acabado de ver uma tocha humana. — As sanguessugas! — Eu me lembrei, fazendo que sim com a cabeça. — Ah, é! — Wisty respondeu. — Eu fiz um monte de moscas varejeiras aparecerem, apesar de querer arranjar uma barata gigante. — Jamilla tremeu. — E também tem eu, né? — disse uma voz aos nossos pés. — Sua fuinha falante? — Janine perguntou.
— Ela não era uma fuinha antes — Wisty admitiu. — Mas essa é a verdadeira forma dela. — Minha verdadeira forma era o leão — ela deu um gritinho. — Aquela era o oposto da sua verdadeira forma — disse Wisty, olhando ameaçadoramente para Byron, que a encarou também. — Ai, meu Deus! — Jamilla disse, olhando para Janine, que arregalou os olhos. — Você acha mesmo? — ela perguntou para a xamã. — Janine, eu acho que são eles! — Eles quem? — perguntei. — Como assim? — Será que eu queria mesmo ouvir aquilo? — Os Libertadores! — Jamilla disse de uma vez, ainda nos encarando. — Os Salvadores. Olha só: existe uma profecia... e ela fala de vocês dois.
Capítulo74
Whit
JAMILLA SAIU CORRENDO PARA UMA PAREDE ali perto, no caminho do balcão de embrulhos para presente. Seu cabelo armado parecia um monte de molas. A parede tinha uma corda de veludo à frente para ninguém passar por ali, mas Jamilla passou para o outro lado sem cerimônia. — Essa aqui é a Parede das Profecias. Às vezes, umas mensagens aparecem escritas nela. Geralmente são só coisas da loja, tipo Superliquidação em janeiro. Mas às vezes é algo como Vá para a Quinta Rua. Resgate um órfão da casa número 24, e coisas do tipo. Faz um tempinho que a parede previu que dois Libertadores com poderes mágicos iam aparecer para ajudar a acabar com a Nova Ordem. Então, meus amigos, você devem ser eles. Estão me entendendo? Ela se virou para a galera que tinha nos seguido até a parede. — Alguém aqui acha que é só uma coincidência? Alguém? Alguém? De repente, todo mundo começou a bater palmas e comemorar. Todo mundo menos Wisty e eu, né? — Hum — eu disse. Era apenas uma parede, uma parede branca. Seria aquela a profecia mais recente? Nada? Nadica de nada? Será que queria dizer que íamos cair num buraco (e o que poderia ser ainda pior) ou que nada ia mudar?
— Não, falando sério, a mensagem estava ali — Jamilla disse. — Esperem alguns segundos. Nem sempre funciona. Ficamos olhando para a parede branca, com um pedaço de papel de parede se soltando em uma ponta. Nada de especial... Wisty olhou para mim e dei de ombros. — Bom, a mensagem aparece e depois some — disse Janine, tirando o cabelo da frente do rosto. — Mas todos nós já a vimos. — Várias pessoas na multidão fizeram que sim com a cabeça. Beleza. Talvez a parede não estivesse a fim de fazer nenhuma profecia naquele dia. — Mesmo que vocês tenham razão — continuei —, como é que vamos conseguir acabar com um governo poderoso o bastante para destruir cidades inteiras e depois construir outras novas do nada? Além disso, ainda temos que procurar os nossos pais. — Estamos falando isso para vocês desde o começo — disse Wisty. — Olha! — alguém gritou e eu me virei para a Parede das Profecias de novo. Dessa vez, vi letras se formando. Mas o que é...? UM DIA, EM BREVE, OS JOVENS COMANDARÃO O MUNDO... Senti um arrepio na espinha. Eu já tinha ouvido palavras similares antes... da Célia. A mensagem continuou: ... E FARÃO UM TRABALHO MUITO MELHOR QUE O DOS ADULTOS. — Uau... — Wisty sussurrou. — Pressão? Imagina!
De repente, Sasha veio correndo até Janine e cochichou algo em seu ouvido. Janine o escutou, fez que sim com a cabeça e ficou nervosa. No caso dela, era fácil perceber. Ela olhou para Wisty e para mim. — Sasha, conte para eles — ela pediu. — Pode falar. — Acabamos de receber uma mensagem dos nossos espiões que estão monitorando a Prisão da Superfície. Mais extermínios estão marcados para amanhã de manhã. Vaporização. Todo mundo ficou horrorizado e começou a cochichar pela sala, e, depois de ouvir a história de Michael Clancy, tive a mesma reação. Wisty também. — Mas tem mais uma coisa — Sasha continuou e olhou diretamente para nós dois. — Seus pais foram capturados de novo. — O quê?! — eu e Wisty gritamos. — Onde eles estão? — Wisty exigiu saber. — Onde quer que eles estejam, vamos para lá — anunciei. — Imediatamente. Sinto muito por não poder ajudar vocês, Sasha. — Não precisa se desculpar — ele me disse, com confiança. — Na verdade, seus pais estão presos na Superfície. Nem precisei olhar para a Wisty para saber o que ela estava pensando. A palavra “vaporização” latejava na nossa cabeça. — Então, se esse é o caso... — comecei. — Nós vamos — Wisty disse sem titubear.
Capítulo75
Wisty
A LÍDER DA EQUIPE PARA A INVASÃO da Prisão da Superfície era uma menina e eu adorei isso! O nome dela era Margô e, apesar de ela ser da minha altura, era tão poderosa e perigosa quanto uma lâmina. Mas ela tinha que ser. Afinal, já tinha fugido da Superfície e perdido alguns dedos. Ela também era homicida quando o assunto era O Único Que É O Único. Tenho que admitir que eu também estava começando a ficar desse jeito. Puxa, ele planejou vaporizar os meus pais no dia seguinte! Não podíamos deixar aquilo acontecer. Margô liderou o caminho por uma estação de metrô abandonada, fria, úmida e escura, mas tínhamos levado lanternas do departamento de ferramentas da Garfunkel’s. — Quando conseguirmos entrar, vamos deixar as crianças saírem primeiro, pois sabemos onde elas estão. Depois, vamos procurar os seus pais — Margô disse. — Vamos ver o que acontece, tá? — Whit recomendou. — Quando conseguirmos entrar, pensamos no plano final. Mas isso leva à maior questão de todas: como é que vamos conseguir entrar na Prisão da Superfície? Margô olhou para nós dois. — Magia bem que pode ajudar.
Whit e eu paramos no meio da estação e o resto do nosso grupo de nove parou também. — Então vocês não têm um plano de verdade para entrar lá, né? — Whit perguntou. — Podemos ser presos de propósito — Margô disse. — Não deve ser difícil. Eu estava escutando a conversa, mas ao mesmo tempo estava pensando em rever os meus pais, mal podia esperar. Aquela era a hora de resolver a situação. — Tenho um plano — eu disse. — Pensei bastante nele. Para começar, precisamos de disfarces, é claro, para nos misturarmos com o pessoal na prisão. Eu estava pensando que Whit poderia se disfarçar de guarda. Posso dar um uniforme para ele e tentar fazer com que ele pareça mais velho. Assim, Whit poderia entrar na prisão tranquilamente. Não quero ser presa de novo, Margô. — Mas você vai fazer o quê? — Whit me perguntou. — Como é que você vai entrar? — Tem que ser com o uso da magia que eu consegui fazer. Consistentemente. Experimentei umas coisas novas antes de sairmos da Garfunkel’s. Posso fazer uma coisa bem interessante que acho que vai funcionar. — Fazer o quê? — Whit quis saber. — Vocês vão achar que é idiota, que é loucura. — Wisty, o que você vai fazer? Como você vai entrar lá?
— Bom, eu... — Fiz uma pausa e então disse tudo de uma vez. — Vou-me-transformar-em-um-rato.
Capítulo76
Wisty
— EM UM RATO? — Whit parecia estar prestes a explodir. — Em um rato? Você vai entrar lá disfarçada de roedor? Para salvar os nossos pais e todas aquelas crianças? E talvez enfrentar O Único Que É O Único? Fiz que sim com a cabeça. — Um rato pode entrar em qualquer lugar sem que ninguém o perceba. Um rato consegue roer fios e se enfiar em canos bem fininhos. Um rato é capaz de fazer coisas que nem mesmo um elefante pode fazer. — Deixei o meu plano bem claro. — Um rato também pode ser amassado pela bota de um guarda. Ou vaporizado. Não — Whit disse. — É perigoso demais. E é loucura. Eu me recusei a abandonar o meu plano, principalmente porque ele era bom. Eu tinha certeza disso. — Mas eu também vou ter a chance de ir onde ninguém mais pode chegar. Eu vou conseguir fazer isso, Whit. Já tentei cobras, baratas, morcegos, mas um rato eu consigo. E — eu disse com um meio sorriso — eu tenho um bom histórico com animais pequenos, né? Houve um silêncio bem desconfortável por alguns segundos enquanto todo mundo digeria o meu plano. Nesse meio-tempo, já tínhamos saído da estação de metrô e estávamos em uma rua, embora sempre escondidos nas sombras.
— Não estou gostando nada disso — Whit disse, mas eu sabia que ele já estava quase concordando. — Confie em mim — eu disse. — Sou uma bruxa. Olha só isso. Veja bem de perto.
Capítulo77
Wisty
SAQUEI MINHA BAQUETA COMO SE FOSSE um três-oitão e, olha só, ela estalou. Dessa vez minha mágica funcionou como deveria. Comecei a fazer Whit parecer bem mais velho, e vestir meu irmão com um uniforme de guarda foi o toque final perfeito. Coloquei até o logo da Nova Ordem e tudo mais! Em seguida, chacoalhei a baqueta na minha própria direção e todo mundo ficou de queixo caído. Um dos caras quase desmaiou ali mesmo. — Espero que você esteja certa sobre isso — Whit disse, enterrando o boné de guarda na testa. — No momento, eu tenho minhas dúvidas. Margô, que era uma menina mais prática e lógica, fez que não com a cabeça, quase não acreditando. Tenho que admitir: com o resultado do meu trabalho, Whit em seu uniforme de guarda, igualzinho a um rapaz de uns 30 e poucos anos, estava na cara que eu estava ficando muito melhor na minha arte. Isso sem contar que eu consegui me transformar num rato, né? Não tinha me dado conta de como os ratos são pequenininhos. Agora eu era do tamanho de um figo grande e meu corpo estava coberto de pelo brilhante branco e marrom. Eu tinha bigodes brancos e compridos, que faziam cócegas no meu rosto, e orelhas que se mexiam ao menor contato com qualquer coisa.
Balancei a cauda ao meu lado e dei uma boa olhada nela. “Tá, isso é bem legal! E compensa a vergonha que vou passar com o meu tique nervoso de orelha coceguenta”, pensei. Whit me mostrou o meu novo reflexo na fivela prateada do seu cinto padrão da Nova Ordem e, eu tinha que admitir, fiquei bem fofinha para um camundongo. E, com certeza, estava me tornando uma bruxa bem promissora. Mas, de repente, ao olhar para cima e para baixo na rua onde estávamos, a minha confiança foi embora. Imagine um pneu de um carro a toda velocidade, que tem o tamanho de um elefante bombado de esteroides, ou um ser humano pesado do tamanho de um foguete. Eu nunca havia pensado como um rato de verdade deve ser traumatizado com sua pequeneza. “Vou precisar de anos de terapia para superar isso...” — Que horas são? — Emmet sussurrou. — Cinco para as sete — Margô respondeu. — Ainda temos dois quarteirões pela frente. Vamos! É agora. Está na hora da troca dos turnos. — Margô — eu disse —, pegue minha baqueta e, por favor, mas por favor mesmo, tome conta dela. — Ela estendeu a mão e pegou a baqueta que havia caído quando eu deixei de ter mãos para segurá-la. Em seguida, olhei para Whit e lhe pedi: — Me coloca no seu bolso?
Capítulo78
Wisty
NÃO GOSTEI NEM UM POUCO de ficar no bolso do Whit, especialmente quando ele começou a correr. Era como estar a bordo de um barco, no mar, bem no meio de uma tempestade: subindo e descendo, subindo e descendo. Um quarteirão depois, eu já estava ficando verde e fiquei pensando se podia lançar um feitiço para conseguir comprimidos para enjoo para ratinhos. Não ia ser nada legal vomitar na calça do meu irmão. — Olha lá um furgão com os novos prisioneiros — Whit disse. — O mesmo que nos trouxe aqui. — Corram! — Margô mandou. Apertamos o passo, o movimento terrível para lá e para cá das passadas poderosas do Whit me fazia gemer e fechar os olhos com força. Então, ele enfiou a mão no bolso e me tirou de lá para que eu conseguisse ver o que estava acontecendo. Ele tinha chegado aos portões da prisão na mesma hora em que o furgão parou e buzinou. — Vai! — Emmet falou para o Whit. Meu irmão jogou alguma coisa em uma lixeira de arame perto da esquina da rua. Com um barulho discreto, a lixeira se transformou em uma fogueira enorme. — O que é aquilo? O que aconteceu? — Whit gritou, apontando para o lixo.
Imediatamente, os guardas do portão entraram em ação e saíram correndo pela rua, deixando o furgão e o motorista sozinhos por um momento precioso. O motorista apertou um código em um display e os portões altos começaram a se abrir. Whit entrou de fininho, ficando fora do campo de visão do homem. Depois de passarmos pelos portões, meu nariz começou a coçar incontrolavelmente. Parecia que o cheiro da prisão estava chegando ao bolso do Whit através de um cano. Por um momento, achei que não aguentaria encarar tudo de novo. Sabia que era tarde demais para dar meia-volta e então me lembrei dos meus pais. O motorista abriu as portas do furgão e um monte de crianças e jovens magrinhos saiu de lá lentamente, estudando os arredores com os olhos arregalados. Um guarda saiu da guarita, pronto para registrar os novos prisioneiros, alguns deles não passavam de 5 ou 6 anos de idade. Fiquei com enjoo ao pensar em todos os horrores que estavam reservados para aquelas crianças inocentes. Whit e eu nos olhamos e, sim, eu juro que um rato e um ser humano podem fazer isso, e cada um de nós sussurrou exatamente as mesmas palavras, como tínhamos praticado:
Durmam agora, meus amigos, Deitem suas cabeças e durmam. O abraço da noite os envolverá E vocês ficarão a salvo.
Nossos pais tinham cantado essa música de ninar para nós quando éramos pequenos, mas eu não conseguia me lembrar da sequência, pois sempre caía no sono como uma pedra quando eles acabavam de cantar esse trecho. Whit e eu estávamos apostando na possibilidade de eles terem usado mágica para colocar duas crianças elétricas para dormir. Tá bom, talvez estivéssemos forçando um pouco a barra. E é claro que nada aconteceu. O guarda e o motorista conversavam despreocupadamente e folheavam papéis em suas pranchetas, batiam papo, mais um dia encarcerando criancinhas inocentes, blá-blá-blá. Whit e eu nos olhamos e eu vi o pânico começar a invadir os olhos dele. “Durmam, seus capangas, durmam”, pensei, desejando desesperadamente que a minha baqueta estivesse comigo e que eu não acabasse virando patê de rato nos próximos segundos. Os portões se bateram atrás de nós. Nossos amigos estavam trancados para o lado de fora e ali estávamos: um guarda de mentira, que podia se transformar em um adolescente a qualquer momento; um rato, que podia virar uma menina a qualquer momento; e dois capangas da Nova Ordem, que notariam alguma coisa estranha e dariam o alarme. A qualquer momento.
Capítulo79
Wisty
OLHANDO POR CIMA do dedo indicador do Whit, vi os homens gigantescos se virando lentamente para falar com o meu irmão. Um deles ergueu a sobrancelha. — Você é novo aqui, certo? — ele perguntou ao Whit. — Nunca tinha visto você. Qual é o seu nome, filho? “Vocês. Vão. Dormir. Agora!”, berrei as palavras, mas só na minha cabeça, claro. “VOCÊS. VÃO. DORMIR. AGORA!” (As aspas e as letras maiúsculas tinham que funcionar.) E então... os dois homens se esborracharam no chão aos pés de Whit. Caíram num sono de pedra. Boa noite, mamãe! As crianças prisioneiras olharam assustadas para os guardas, como se fossem ficar doidinhas em seguida. — Tudo bem — Whit disse a elas. — Somos amigos de vocês. Vocês têm que confiar em nós, tá? Também somos crianças. Em seguida, Whit me pegou e me colocou perto do rosto dele. — Você acha que isso vai dar certo mesmo? — ele sussurrou. — Isso aqui não é brincadeira, Wisty. — Whit, agora não tem volta. Nossos pais e aquela garotada toda, que pode virar fumaça e cinzas, estão lá dentro. Coloque essas crianças dentro do furgão e as tire daqui. Ache a Margô e o Emmet.
Diga para eles ficarem por perto. Se eu conseguir desarmar o alarme ou o portão, eles vão ter que fugir com as crianças pelos túneis bem rápido. Whit fez cara feia e eu estava achando aquilo tão estranho! Até as marcas de expressão na testa dele estavam enormes. Até mesmo aquela espinha solitária que ele tinha parecia um vulcão. — Se você vir algum pedaço de queijo ou pasta de amendoim bem no meio de uma tábua de madeira, com arame em volta... — Já entendi — eu disse. — Leve esses dois dorminhocos para dentro da guarita. Whit respirou fundo, extremamente descontente comigo. — Nós vamos ficar por perto. Estou de olho em você, Wisteria. — Ele sabia que era assim que o meu pai me chamava em ocasiões especialmente estressantes. —Tá — respondi. Olhei para o chão, que parecia estar a dez andares de distância. Fechei os olhos e pulei, e fiquei bem surpresa e feliz ao aterrissar direitinho sobre as quatro patas, pronta para correr. — Viu só? Eu não me esborrachei! — gritei para o Whit. — Tome cuidado! — ele berrou de volta. — “Cuidado” é meu novo apelido! — Olhei para a frente, para aquela prisão cinzenta gigante. De cara, já vi uma calha e corri para ela. Antes de entrar pelo cano literalmente, olhei de relance para o meu irmão, tentando não pensar que poderia ser a última vez que o via.
— Até daqui a pouco — eu disse em um tom de voz que ele não conseguiria ouvir. Então, espiei a escuridão daquele cano enferrujado. Dava para sentir o cheiro de umidade, folhas velhas e outras coisas nojentas que não consegui identificar. Tinha ouvido falar que ratos escalavam como ninguém. Acho que eu ia ter que comprovar se era mesmo verdade.
Capítulo80
Whit
ESTREMECI E FIQUEI ARREPIADO ao ver o rabinho de saca-rolha da Wisty desaparecer calha acima. Magia nenhuma poderia apagar a imagem grotesca da minha irmã sendo amassada pelo coturno de um guarda da Nova Ordem. Mas agora minha missão era salvar as crianças que tinham sido trazidas no furgão e, depois, eu poderia ir atrás dos meus pais. Quanto mais rápido, melhor. — Não vamos ficar aqui? — uma delas me perguntou, toda tímida, enquanto eu dava marcha a ré no furgão e passava pelos portões. — Isso não é contra as regras da Nova Ordem? — “Não” para a primeira pergunta e “sim” para a segunda — respondi, vendo se não havia nenhum outro carro vindo. — Mudança de planos. Mas está tudo bem. Engatei a primeira e saí cantando pneu em direção ao beco pelo qual tínhamos passado na ida para a prisão. Abri a janela e fiz um tchauzinho. Margô, Emmet e os outros saíram do meio das sombras. — Cadê a Wisty? — Margô perguntou. — Escalando um cano. Onde mais? — eu disse. — Temos que nos livrar desse furgão.
— Não! Talvez precisemos dele mais tarde — Emmet disse, sentando-se ao meu lado no banco da frente. Margô se encolheu para se sentar ali também. — Vá em frente por mais três quarteirões e vire à direita no farol. Margô acalmou a criançada enquanto eu dirigia. — Vocês não são criminosos. Vamos levar vocês para morar conosco. Não é um lugar chique, mas é melhor que a prisão. — Não vamos para a prisão? — uma menina perguntou, enxugando as bochechas molhadas de lágrimas com as duas mãos. — Não — Margô respondeu. — Vamos para a Garfunkel’s. Ver a carinha delas relaxar foi incrível, tenho que admitir. Eu sabia que ainda fariam várias perguntas, mas pelo menos já tinham a esperança de volta. Elas tinham a nós. — Nosso próximo passo é meio complicado — Emmet disse, nervoso. — Mas vamos voltar para a Garfunkel’s sem passar pelas ruas principais. — Ah, não, isso não! — Margô engoliu em seco, parecendo assustada. Tá bom, horrorizada mesmo. — É uma armadilha mortal! — Mas é o único jeito! — Emmet insistiu. — Aham, pode voltar para a parte da “armadilha mortal”? — perguntei. — É aqui! — Emmet gritou de repente, pegando o volante. — Vira com tudo para a esquerda! — Mas não tem nada ali! — gritei de volta enquanto o furgão subia na guia.
— Segurem firme! — Margô comandou. — Vai ficar difícil agora. Olhei para um lado e para o outro, tentando avistar pedestres inocentes que eu poderia atropelar. — Ali! — Emmet berrou, apontando de novo. — Onde? E então vi o que ele queria dizer... tarde demais.
Capítulo81
Whit
FREEI COM TUDO, MAS, APARENTEMENTE, se você está dirigindo um furgão pesado, cheio de crianças e, de repente, está descendo uma escadaria íngreme, os freios param de funcionar na hora. As crianças berravam lá atrás como se estivessem numa montanha-russa construída por um assassino em série. Por uma fração de segundo, fiquei pensando se eles prefeririam estar na prisão, recebendo seus macacõezinhos para experimentar. Mas aquele era o único pensamento coerente que consegui ter antes de despencarmos degraus abaixo a bordo do furgão, pulando demais para pensar direito. Descendo, descendo, descendo! Capof, capof, capof! Por que é que o tempo voa quando estamos nos divertindo, mas, quando você está ao volante despencando escadaria abaixo em um furgão cheio de crianças histéricas, ele praticamente para? As leis da física são tão injustas. — Em quê você estava pensando?! — berrei para Emmet. — Isso aqui é uma estação de metrô! — É isso mesmo! — Emmet gritou sobre o capof, capof dos amortecedores, que tentavam absorver o choque, mas não absorviam muita coisa. Os gritos das crianças pareciam soluços histéricos. — Mais um metrô abandonado. Podemos seguir o trilho até o portal que vai nos levar para casa! “Ah, não, pelamor!”, pensei enquanto o furgão sacudia, destruía tudo ao passar pelas catracas e, então, quicava pela plataforma e derrapava de lado em câmera terrivelmente lenta... Todo mundo gritou em pânico quando o furgão deslizou pela quina da plataforma por alguns segundos agonizantes, antes de cair como um bloco pesado e gigante sobre os trilhos do metrô. O silêncio se apressou a preencher o vazio deixado pelos gritos de parque de não diversão. Parecia que alguém tinha acabado de nos tirar de dentro daqueles misturadores de tinta de lojas de materiais de construção. A questão é que estávamos sobre os trilhos do metrô e os faróis tortos do furgão brilhavam em meio à escuridão cavernosa do túnel. Desliguei o furgão e encarei Emmet. — Viu só? Sem problemas — ele disse, finalmente, sua voz meio tremida naquele silêncio esmagador. O rosto dele estava mais branco que o de uma estátua de mármore. — Todo mundo bem aí? — perguntei com tom sério. — Não vamos fazer isso de novo... — uma das crianças disse, ainda chorando. — Tá bom, senhor? — O pior já passou — Emmet disse. — Agora podemos andar por esses trilhos sem ninguém perseguir o furgão ou os prisioneiros. Um túnel depois de uma curva vai nos levar direto para o portal. Um apito comprido e baixo ecoou de repente em meio à escuridão.
— É outro trem, mas está longe — Emmet disse. — Beleza, vamos embora, então. Por reflexo, chequei o espelho retrovisor enquanto procurava pela chave na ignição, abaixo do volante. Tudo o que vi foi uma única luz brilhante atravessando a escuridão atrás de nós. — Hum... Não tão longe assim. — Virei-me para Emmet, com o coração querendo saltar do peito. — O quê? — ele perguntou. — Dá uma olhada pela janela traseira. Mas ele nem precisou. Os gritos das crianças contaram para Emmet o que ele tinha que saber.
Capítulo82
Wisty
SE VOCÊ ESTIVER UM DIA À BEIRA DA MORTE OU, como no meu caso, mantiver uma vida eterna azarada como roedor, recomendo cantar musiquinhas de criança para dar uma levantada no espírito. Como é que você pode entrar pelo cano sem aproveitar para dar uma palinha animada de “A Dona Aranha Subiu pela Parede”? Cantei aquele verso “Veio a chuva forte e a derrubou” com um tique nervoso enquanto chegava ao complexo da prisão. O cano que subi dava em uma calha. Saí correndo pela pontinha do telhado até encontrar um túnel de ventilação de ar-condicionado, igualzinho ao que eu tinha visto na planta da prisão no computador da Janine. “Excelente.” Eu me apertei um pouco para passar e corri pelo duto até encontrar outro túnel. E então mais um. E outro. Eu era um rato no labirinto. Bem naquele momento, me dei conta de mais um efeito colateral de me transformar em rato: o olfato fica milhões de vezes melhor que o de uma pessoa. Percebi rapidinho que eu podia mesmo seguir meu nariz. Logo cheguei a uma curva que eu sabia que era a certa. Tinha cheiro de inferno em um dia bem quente. O cano estava completamente escuro, mas achei que veria melhor quando meus olhos se ajustassem. Ou eu poderia pegar fogo também. Quase rindo da ideia de haver um rato incandescente correndo pela prisão, estiquei o pescoço por entre as tábuas e consegui passar o resto de meu corpo. Com um último e heroico esforço, de repente, comecei a cair, fundo, fundo, em direção ao nada.
Capítulo83
Wisty
NÃO É À TOA QUE OS NOSSOS PIORES PESADELOS envolvem a sensação de queda. Aquele estado de alerta, à espera de que algo ruim, mas ruim mesmo, aconteça e não poder fazer nada sobre isso é provavelmente a melhor receita do mundo (ou a pior?) para o terror absoluto. Fui mergulhando na escuridão turva, girando, quicando de uma parede de metal empoeirada para a outra, tentando me agarrar a alguma coisa, a qualquer coisa, para brecar a minha queda. Mas não havia nada. Só o vento soprando cada vez mais forte, enquanto eu caía cada vez mais rápido. E mais rápido. E ainda não havia nem sinal do fundo. Apesar de que, nesse túnel preto como a noite, eu provavelmente não conseguiria vê-lo de qualquer maneira. — PARA! — gritei sem pensar. “Pensa rápido, Wisty!” Eu sou uma bruxa. Uma bruxa pode usar magia. Magia pode fazer um objeto parar de cair. Whit tinha congelado aquele martelinho no ar. Por que eu não conseguiria parar algo tão pequeno e leve como um rato? Fiz gestos com minhas patas, sacudi minha cauda como uma varinha, desejei e me enfezei como nas vezes em que fiquei invisível ou peguei fogo... mas nada funcionou. Eu me senti tão mágica quanto um tomate. Um tomate caindo do telhado de um prédio bem alto. E prestes a virar o tomatinho daquela história. Plof! Eu preciso dizer: aquele negócio clichê de rever a vida toda quando se está à beira da morte acontece mesmo. Eu vi tudo: Wisty, a filha nervosinha, porém carinhosa. Wisty, a aluna que matava aula na escola. Wisty, a bruxa má e assustadora. Wisty, a Libertadora. Wisty, o bicho atropelado na estrada. Ou algo bem parecido com isso. E então eu me liguei. E parei literalmente de respirar, em pânico. Não foi a força de uma superfície dura. Na verdade, fui tomada por um fedor que era umas cem vezes pior que o da mochila da academia do Whit. E eu estava prestes a cair bem ali. Uma luz tênue começou a preencher o túnel abaixo de mim e, em um instante, vi o lugar em que minha queda livre acabaria: o lixão da prisão. Por sorte, havia uma tela de aço sobre a abertura do túnel. Bati com tudo nela, a uns 100 quilômetros por hora. Ainda bem que aquela tela estava ali ou eu teria virado panqueca de rato. Se a tela fosse mais justa, ou um pouco mais fina, talvez eu tivesse passado através dela como um extrator de polpa de maçã. Mas, em vez disso, a tela acabou servindo como um trampolim e me mandou de volta lá para cima, para o túnel de ventilação. A força do impacto me deixou sem ar e, na hora, eu tinha certeza de que havia quebrado umas costelas e minha pata esquerda da frente. Ao julgar pelo tanto que a minha cabeça estava latejando e pelo fato de que eu não conseguia ver nada em linha reta, tinha sofrido uma concussão também. Chocada, machucada, desorientada, mas viva, eu me forcei a estudar os arredores. Eu tinha aberto um buraco de bom tamanho na tela e as pecinhas enferrujadas que a seguravam no lugar quase se dobraram por completo. Então, senti um arrepio ao ouvir vozinhas agudas sob mim. Engoli minha vertigem (eu tenho tanto medo de altura que, geralmente, me viro para trás e olho para cima quando estou descendo pela escada rolante), rolei para o lado e dei uma olhada pela tela. Não era tecnicamente uma pilha de lixo, mas um contêiner de aço com o topo aberto, cheio de lençóis rasgados, uniformes sujos de prisioneiros e restos nojentos da cozinha da prisão. E, olha só, estava cheio de olhos me encarando! Ratos. Dezenas deles. Com o pelo imundo, as caudas oleosas e caras de poucos amigos. Normalmente, não dou showzinho por causa deles. Minha professora de Ciências até trouxe um para a sala de aula no ano passado. Mas aqueles não eram ratinhos brancos e bonzinhos que compramos em pet shops. E ali eu não era uma menina humana. Eu era um camundongo, mais conhecido como a presa. “Vamos lá, magia! Vamos lá!” Um feitiço para me ajudar a escalar ou a voar? Um feitiço para acabar com aqueles ratos para sempre? Um feitiço para me transformar em um gato gigante? Um feitiço para fazer de tudo aquilo um sonho do qual eu poderia acordar?
Mas minha mente, minha energia e meu espírito estavam congelados. Eu só conseguia encarar os ratos de volta e arregalar os olhos para o pelo embaraçado, os olhos pretos sem vida, os dentes amarelos horrorosos, as caudas cor-de-rosa enroladinhas feito molas. Eu estava a salvo por aquele momento. Havia pelo menos dois metros e meio de distância entre eles e eu, e a não ser que eles fossem muito bons naquele lance de pirâmide de líderes de torcida, não conseguiriam chegar perto de mim. Olhei para cima e para o túnel e vi um tipo de ponte, um remendo no metal onde duas seções tinham sido soldadas juntas. Não era muito, mas podia ser o suficiente para me segurar ali. E se houvesse outro remendo acima dele, e ainda outro acima dele... Pulei desesperadamente para cima, minha pata boa da frente esticada, mas não consegui alcançar. E foi mesmo uma pena, pois as pecinhas que seguravam a tela não estavam prontas para outra queda minha e cederam na hora. Não, não, não! A tela se abriu com tudo e eu caí de costas, viajando indefesa pelo ar, mais uma vez em direção ao lixo e a um bando de ratos dignos de pesadelos.
Capítulo84
Wisty
ACHO QUE TODOS NÓS CONCORDAMOS que ratos não são os bichos mais fofinhos do mundo. Mas quando você tem dez vezes o tamanho deles, não dá mesmo para perceber como eles são assustadores. Ficar perto deles como eu estava agora... bom, pessoalmente, prefiro encarar um tigre ou um urso. Pelo menos tigres e ursos não fazem seus ninhos em lixões. Esses roedores da prisão fediam como se fossem passar uma doença incurável só de esbarrar em você, e isso sem falar do que aconteceria se eles lhe fincassem aqueles dentes destruidores de ossos. Eles formaram um círculo ao meu redor rapidamente quando aterrissei no lixão e perdi o ar ao tentar respirar em meio àquele fedor sufocante. Não havia nem um cisco de compaixão em seus olhos sem luz. E, julgando pela baba que escorria das suas bocas tortas, estava na cara que eu era bem mais apetitosa que qualquer porcaria mofada que eles encontravam naquela pilha nojenta de gordura, ossos, uniformes rasgados, espuma molhada de colchão, cocô de rato e uma meleca marrom e preta não identificável. Sem perder um minuto pensando em feitiços ou em germes, pulei para o maior espaço vazio no círculo deles e saí correndo o mais rápido que meu corpo dolorido e a pilha nojenta e escorregadia permitiam.
Mas não adiantou nada. Mesmo ao passar pela primeira rodinha de ratos, percebi que eles estavam por toda a parte. Em um segundo, me agarraram pelas quatro patas e me colocaram deitada sobre aquela pilha melequenta. Uma criatura magrela e dentuça, do tamanho de um gato selvagem, apareceu por cima de mim, cheirando meu pelo e babando como se eu fosse um biscoito de gotas de chocolate recém-saído do forno... Um agradinho e tanto para o Rato Rei. Fechei os olhos com força e, bom, gritei até minha cabeça explodir. E, olha só como são as coisas: bem naquela hora, sem aviso prévio, comecei a crescer como aquele pé de feijão dos contos de fadas. Eu tinha me transformado em um ser humano de tamanho natural de novo! Boa notícia: o feitiço do rato tinha passado bem na hora! E meu “eu” humano não estava todo quebrado e estropiado. Má notícia: o último fiapo de magia que eu possuía tinha acabado de evaporar. Boa notícia: e daí? Acabei de escapar da morte por esquartejamento. E digestão. E então mais más notícias: minha transformação de volta em ser humano não tinha vindo com um guarda-roupa novo. Ali estava eu, deitada no lixo, com ratos em cima de mim, sem um trapo de roupa entre mim e eles. Eu estava peladinha da Silva. Um brinquedo mastigável cor-de-rosa e enorme. Mas eu havia me tornado a maior criatura no lixo e os ratos estavam assustados. Eles saíram correndo para o topo do contêiner.
Nesse meio-tempo, comecei a procurar um uniforme abandonado de prisioneiro para vestir e notei os escritos nas costas de cada camiseta:
REFORMATÓRIO DA NOVA ORDEM NO. 426
E muitos outros números. Finalmente, encontrei um uniforme que me servia e que não estava totalmente coberto de meleca. Eu o vesti sem pensar, tentando não sentir o cheiro e a umidade, que me davam ânsia. Havia uma série de degraus de aço na parede da frente do contêiner e, com toda aquela vontade de sair do lixo infestado de ratos, subi mais rápido que um esquilo biônico... e jurei nunca mais na vida elaborar metáforas que envolvessem ratos. Em seguida, desci do contêiner para o chão e apertei os olhos ao avistar a doca de carregamento interna, mal iluminada. Vi o contorno de uma porta acima da doca e corri para ela. Estava destrancada e eu a abri devagar, permitindo que meus olhos se ajustassem à luz fluorescente e forte que iluminava o outro lado. Parecia um corredor de serviço. Tudo estava quieto, e eu enfiei a cabeça com cuidado no corredor. Mas acontece que não tomei tanto cuidado assim. Os seis guardas da prisão, que tinham acabado de virar a esquina, me viram na hora.
Capítulo85
Wisty
NÃO TIVE TEMPO PARA RESPIRAR FUNDO um arzinho-não-fedido antes de sair correndo às cegas, como se minha vida dependesse daquilo. E dependia mesmo. — Fugitiva! — um dos guardas berrou enquanto o outro apertou com tudo um botão vermelho na parede, fazendo tocar sirenes de explodir os tímpanos e acendendo luzes estroboscópicas de cegar qualquer um. Sem poder controlar minha magia e aprisionada em meu corpo humano amigo-dos-inimigos-e-fácil-de-pegar-e-destruir, eu tinha 1% de chance de sobreviver. Mas apostei naquele 1%. Como se fosse a única coisa que restava no mundo. E isso me deu tanta energia que parecia que eu tinha comido um monte de açúcar. Eu não conseguiria ajudar meus pais se fosse capturada e morta. Cheguei a uma escadaria e comecei a subir dois, três degraus por vez. Fiquei pensando se, por acidente, eu tinha voltado com pernas mais compridas ao morfar de camundongo para Wisty. Um andar, dois andares, três andares, as botas atrás de mim chegavam mais perto a cada segundo. Mas eu ainda estava à frente. Adrenalina é tudo!
Ao chegar no último andar e na saída para o telhado, empurrei com tudo a barra da porta e lá estava eu no topo do prédio, cheio de pedregulhos. Saí correndo de novo na única direção que não estava bloqueada por arame farpado. — Pare aí mesmo! Não há como fugir! — Ouvi um guarda imbecil gritar ao abrir a porta com tudo atrás de mim. Fui derrapando até a pontinha do precipício do qual víamos o pátio daquele bloco de celas, uma área de concreto, que ficava cinco andares abaixo. Os guardas sabiam que eu não tinha saída. Minha única chance era cruzar o pátio andando sobre um tubo de 60 centímetros de largura, um cano arredondado que se estendia pela abertura gigante no telhado. Só um louco tentaria fazer aquilo. Mas eu? Além do lance da altura, o equilíbrio e eu não temos uma história de sucesso juntos. Falando sério. Pergunte ao Whit sobre a única vez que tentei fazer snowboarding. Sem me virar para trás para ver os guardas, pisei no cano com cuidado e, com os braços girando como um cata-vento, comecei a atravessar o vão. — Pare e volte agora mesmo. Você vai se matar! — um dos guardas berrou, com um tom de voz que não soava lá muito cheio de preocupação. Mas eu já tinha percorrido um quarto do caminho. E estava conseguindo!
Eu conseguia manter o equilíbrio andando rapidamente. E estar descalça sobre um cano enferrujado e não muito escorregadio provavelmente também me ajudou. Mantive os olhos focados no outro lado do cano e não olhei para baixo por nada desse mundo. O que foi um erro, porque laçaram o cano com uma corda no meio do caminho e eu nem percebi. Tropecei com o dedão, perdi o equilíbrio e caí no espaço.
Capítulo86
Whit
— OLHA O TREM! — Emmet berrou, virando de um lado para o outro nervoso em seu banco. — Está vindo direto na nossa direção. E rápido, bem rápido! — Saiam daqui, crianças! — ele gritou, abrindo a porta. — Saiam do furgão imediatamente! Agora! Agora! Agora! — Não! — Margô berrou. — Dirige, Whit! Ninguém sai daqui! Ninguém se mexe! Temos que ir mais rápido que o trem. Não temos para onde ir! O furgão estava começando a vibrar com a proximidade do trem. Virei a chave e ouvi um barulho engasgado. Atenção, passageiros: o trem com destino à Morte Instantânea está se aproximando da plataforma no trilho número 1. — Eu quero voltar para a prisão! — Ouvi uma das crianças berrar em meio à barulheira de choro e soluços. Virei a chave de novo. Nada. Comecei a suar frio na testa, gotas bem pequenas e distintas de preocupação. O apito do trem parecia um gemido enquanto o chão tremia. Tentei não escutar os gritos. Virei a chave mais uma vez.
“Concentre-se”, pensei. “A vida deles está nas minhas mãos. Essa energia deve passar por mim... Esse furgão TEM QUE andar. ESSAS CRIANÇAS... PRECISAM... VIVER!” E então senti uma coisa passar por mim, uma sensação estranha e não muito agradável, como se eu tivesse enfiado o dedo molhado na tomada. Minhas mãos pareciam estar queimando enquanto uma força passou através dos meus dedos para a chave do furgão. Tenho que admitir: eu me senti... como se fosse um bruxo. Como se tivesse superpoderes. Como se fosse culpado das acusações de O Único Que Julga. De repente, o motor rugiu de volta à vida, como um Lázaro dos furgões. Todo mundo ficou quieto. Era um silêncio cheio de esperança. É claro que ainda estávamos no trilho do metrô com um trem vindo a toda velocidade atrás de nós. Enfiei o pé com tudo no acelerador. As rodas giraram, cuspindo pedras e lixo atrás de nós. O farol do trem iluminou o nosso furgão e apitou tão alto que o som preencheu cada centímetro da minha cabeça. E as rodas do furgão continuaram girando sem sair do lugar. A esperança estava prestes a ser atropelada. “Tchau, Wisty”, pensei. “Até mais, papai e mamãe.” Então, senti uma guinada e o fundo do veículo arranhou os trilhos de metal. O furgão deu um impulso para frente. Margô gritava:
— Vai, vai, vai! — Valeu pela dica! — gritei de volta.
Capítulo87
Wisty
A CORDA NA QUAL TROPECEI também salvou a minha vida. Acabou queimando a minha pele, mas consegui agarrá-la enquanto caía do cano. Enrolei as pernas rapidamente ao redor dela. Dali, já que meu nome não é Whit e eu não tenho lá muita força nos membros superiores, subir pela corda estava fora de questão. Então, comecei a escorregar lá para baixo, esperando que a corda terminasse perto o bastante do chão para que eu conseguisse pular. Ouvi passadas de coturnos e vozes de guardas gritando entre si lá em cima. Eles tinham testemunhado meu momento acrobático e estavam descendo para me capturar no pátio. Essa perseguição chegaria ao fim se eu não chegasse lá primeiro. Nem olhei para baixo. Não queria ver o tamanho da queda e também não queria descobrir que a corda ia acabar. Em vez disso, me concentrei nas fileiras que serviam de janelas para os blocos de celas enquanto descia. Faltam quatro andares, faltam três andares, faltam dois andares... Mas meus pés encontraram algo sólido e coberto com um pano, e eu não consegui mais escorregar corda abaixo. Em retrospectiva, eu não deveria ter olhado para baixo para ver o que era. Deveria simplesmente ter pulado os últimos metros até o chão e sair correndo sem olhar para trás. Porque, ao olhar de relance
para baixo, vi que meus pés estavam repousados sobre os ombros caídos do visitante. Ou, pelo menos, os ombros de seu corpo inchado e morto há muito tempo.
Capítulo88
Whit
INFELIZMENTE, O TREM SUPERVELOZ não parou na estação abandonada que deixamos comendo poeira. A corrida ainda estava valendo. O som de arrepiar, de metal arranhando metal, fazia minha mandíbula tremer, mas continuei enfiando o pé no acelerador o mais fundo possível, e as tábuas de madeira dos trilhos faziam o furgão pular de um jeito insuportável. Estava começando a achar que talvez não conseguíssemos correr mais que o trem. Em alguns segundos, ele bateria com tudo em nós, provavelmente fazendo o furgão tombar para o lado e amassando todo mundo contra a parede de cimento do túnel. “Preciso de outro túnel”, pensei. “Preciso de um desvio!” O problema era que eu não tinha a menor ideia de como usar magia para criar um túnel e Wisty estava ocupada brincando de rato. Não estava conseguindo pensar direito. Cada molécula de energia que eu tinha estava focada em segurar o volante, que não parava de pular, e em apertar o pedal do acelerador até quase fazer um buraco no chão do carro. — Ali! — Emmet gritou, apontando. — Ali! Whit, olha só! E eu olhei: era um desvio! O trilho se dividia em dois mais à frente. — Para qual lado? — berrei. — Eu não sei por onde o trem vai seguir!
O rosto de Emmet ficou branco ao olhar para a bifurcação. Eu sabia que ele também não tinha a mínima ideia. O trem continuava apitando a todo vapor, como se o condutor achasse que, com o barulho, cairíamos na real e sairíamos do caminho dele. —Tá! — berrei sobre aquela barulheira toda. — Tá! Acho que sei o que fazer! O furgão continuou correndo em direção à bifurcação e a luz do trem enchia o carro como aquelas cenas de programas de TV quando alguém morre. Virei o volante para o túnel à direita e, então, joguei a mão esquerda nas costas. Na minha cabeça, vi o trocador de trilhos se mover bem quando estávamos passando por cima dele. O trem de repente fez uma curva a toda velocidade e seguiu pelo túnel à esquerda, se afastando de nós como um cometa. Em segundos, seu apito terrível tinha virado um gritinho sem graça. Continuamos quicando até finalmente parar, mas deixei o motor ligado, só para garantir. Minha camisa estava colada no corpo com o suor gelado. As crianças soluçaram e se abraçaram no banco de trás. Emmet ainda estava branco feito papel e parecia que ia chorar de alívio ou vomitar de tanto balançar. As mãos tensas de Margô agarraram o painel do carro como garras, e então ela se aproximou e apertou o meu ombro com a mesma força. — Você conseguiu, Whit... — ela sussurrou. — Você salvou as nossas vidas.
Levamos vários minutos para respirar de novo e nos livrar daquele transe de adrenalina. E então a voz de Emmet soou animada em meio à comemoração. — Esse é, hum, o desvio de que eu falava para você. — A voz dele ainda tremia. — Podemos pegar o túnel para chegar ao portal. E, dali, vamos voltar em segurança para o porão da Garfunkel’s. — Ele se acomodou no banco, ainda chocado. Uma vozinha veio da traseira do furgão. — Vamos mesmo para a Garfunkel’s?
Capítulo89
Wisty
GRITEI E SOLTEI A CORDA, caindo com tudo no concreto. Quando o ar voltou para os meus pulmões, rolei de lado para dar uma olhada no cadáver inchado. Havia uma placa presa ao peito dele, escrita na tipologia oficial da Nova Ordem, em letras maiúsculas, que dizia:
A falha ao cumprir ordens da Nova Ordem Implica execução daquele que falhou!
Eles tinham matado o visitante por causa da nossa fuga. Eu estava quase ficando com dó dele quando meia dúzia de mãos enormes me agarraram. Sem compaixão. Os guardas sem pescoço, de cabelo escovinha, me ergueram no ar e me jogaram contra a parede de concreto. O líder enfiou um dedo gigante na minha cara e literalmente jogou um spray de raiva em mim (cheio de cuspe). — Ninguém. Nunca. FOGE! — ele berrou. Alguma coisa tinha se quebrado dentro de mim. A Wisty, menina nervosinha, teria lutado. A Wisty, que matava aula, teria respondido
com alguma observação sarcástica como ressaltar que, na verdade, eu estava tentando entrar naquele lugar e não fugir. A Wisty, bruxa má e assustadora, teria jogado um relâmpago para lhe ensinar que não se deve praticar bullying contra meninas que tinham um quarto do tamanho dele. Mas minha magia estava morta. Não sei como descrever, mas era como se aquela faisquinha tivesse sumido. E, então, o que eu fiz? Ah, caí no choro, é claro. Mas, como se esperava, eles tiraram uma com a minha cara. — Ah, pobrezinha! — um disse com uma risadinha e outro fez uma piadinha inútil: — Bom, pelo menos uma coisa está bem clara: com esse tanto de lágrimas, acho que estamos dando água demais para ela. O que me deu a ideia brilhante de cuspir na cara dele. Na ausência da magia, sempre tem a saliva. Tá, então não foi uma das minhas ideias mais geniais. — Arrrrrgh! — ele berrou e agarrou meu cabelo, virando a minha cabeça com tanta força que quase pude ver os meus dedos dos pés sendo arrastados atrás de mim. Achei que eles fossem quebrar o meu pescoço. Era nessa parte que eu tinha que explodir em chamas. Mas não havia magia. Nada. Nada.
Nada.
Capítulo90
Wisty
— NÃO ESTOU ENTENDENDO. Não tem nenhum prisioneiro faltando nos blocos de celas — o administrador disse aos meus guardas. Ele era um homenzinho arrumadinho e andava todo tenso provavelmente para não parecer nem um centímetro mais baixo. — Tivemos três transferidos para a enfermaria após o interrogatório ontem à noite, mas todos os outros foram contados. Senti o sangue fugir completamente do meu rosto. Eles tinham machucado três crianças no interrogatório?! A essas alturas, não deveria me surpreender que essa Nova Ordem, tão cruel, também torturava; no entanto, mesmo assim, fiquei ainda mais arrasada. — Vou perguntar mais uma vez — ele disse, se virando para mim. — Qual é o seu bloco? Eu estava tão acabada que não conseguia nem responder. Ele pensou que eu o estivesse desafiando. Mas eu sabia da triste verdade: não conseguia desafiar mais ninguém. O fone de ouvido do administrador brilhou e ele se virou para o outro lado. Ele estava recebendo uma ligação. — Não, o cabelo dela não foi cortado de acordo com as especificações. Sim, é ruivo... — De repente, o rosto dele ficou vermelho e ele ficou ainda mais ereto ao se virar para me observar.
— Sim — ele continuou —, mais ou menos 1,57 metro e não mais que 45 quilos, eu diria... Sim, sim. — Ele sorriu, todo orgulhoso. — Com certeza é muita sorte, mesmo. E então ele pronunciou as palavras que me deixaram louca da vida. — Agora, só temos que encontrar o irmão e os pais dela, e a ameaça dos Allgood vai virar história. — O quê? — gritei. Os guardas me empurraram com força contra a parede por eu ter me atrevido a interromper a conversa. — Sim... muito bom — ele continuou. — Considere feito... E parabéns para você também. — O fone de ouvido do administrador se desligou e ele me lançou um sorrisinho, tirando uma da minha cara. — Meus pais não estão aqui? — perguntei com um grito agudo, ganhando outro encontrão dos guardas. — E por que colocaríamos seus pais em uma prisão para crianças? — Ele riu. — Não sei — respondi. — Por que vocês são todos loucos de pedra? Os guardas me deram mais um empurrão, mas o administrador me ignorou. — E por que você acha que manteríamos os dois vivos? Você, nós precisamos interrogar, mas eles... Acredite em mim, assim que colocarmos as mãos neles, você pode se considerar oficialmente órfã. Ele sorriu ameaçadoramente, mas, mesmo em meio a toda aquela crueldade, senti um pouco mais de conforto ao saber que os meus pais estavam vivos... e livres.
— Coloque-a no bloco D, cela 412 — ele berrou para os guardas, que me arrastaram do posto dele para o lugar onde eu passaria o resto da minha vida. Olhei ao redor, para os portões das celas, suas barras cheias de rostos de crianças com os olhos fundos, nenhuma com mais de 16 anos. Uma raiva nova estava se acumulando dentro de mim. Será que o Sasha era um espião da Nova Ordem? Será que ele tinha feito Whit e eu virmos para cá para sermos capturados? Eles me arrastaram escada acima e para a cela 412, que, como todas elas, estava cheia de rostos assombrados e sem esperança. Quanto tempo eles ainda sobreviveriam? Quanto tempo qualquer um de nós sobreviveria?
Capítulo91
Wisty
UM PENSAMENTO ME ASSOMBROU enquanto os guardas me empurraram contra as barras e foram abrir o portão. Mesmo se Sasha tivesse nos enganado, era fato que eu havia falhado. Eu tinha falhado com aquelas crianças. Eu tinha falhado com Emmet. Eu tinha falhado com Margô. Eu tinha falhado com Whit. E também tinha falhado com os meus pais. Pela segunda vez naquele dia, chorei como um bebê. Mas, então, algo incrível aconteceu. Uma das crianças, uma menininha magrela dentro da cela, enfiou a mão por entre as barras e tocou o meu braço, tentando me animar. — Não chora, não. Lembre que eles estão fazendo tudo isso porque morrem de medo. Eles têm medo de você. Eles têm medo de todos nós. — Como assim? — Eles sabem que podemos mudar tudo. Eles sabem que temos o poder de lutar contra isso. — Cale a boca, sua pestinha — um guarda latiu para ela como um cão infernal. A menina nem se mexeu. Então, fiquei pensando. Ali estava ela, faminta e oprimida, à beira da morte, uma verdadeira versão feminina de Michael Clancy, e, mesmo assim, ainda tinha forças para me consolar. Ela tinha forças para manter a esperança viva. Talvez um fiapinho de fé ainda sobrevivesse dentro de mim também. Aquele 1% de chance de sobrevivência ao qual eu tinha me agarrado com tanta força antes. Eles têm medo de você. Eles têm medo de todos nós. Eu me virei para os guardas-cães infernais enquanto eles me empurravam para o portão da cela, agora aberto, e me ouvi berrar como se estivesse possuída: — CONGELEM! Eles deram risada e um deles me bateu na cabeça com o cassetete. Vi estrelinhas dançando e então perdi as forças. O que estava acontecendo? Eu não conseguia ouvir os guardas... Não estava mais sendo arrastada... E as crianças da cela estavam me encarando de queixo caído, como se tivessem acabado de ver o Papai Noel descendo pela chaminé. Sim. Sim! Um pouco de magia tinha funcionado! Os guardas estavam congelados! Ao mexer um pouco meus pulsos e cotovelos, consegui me soltar das mãos deles. Mas eu ainda estava longe, muito longe da liberdade. Olhei para cima e vi a luzinha vermelha da câmera de segurança piscando, e agora se virando para mim. Quem sabe por quantas centenas de guardas e dezenas de portas de aço eu teria que passar para chegar do lado de fora?
E não só eu, mas minha consciência enorme e pesada também. Afinal, as crianças da minha cela viriam comigo. Mas e quanto àquelas centenas de outros rostos assustados e com cara de dó olhando para mim, incrédulas, pelas barras das outras celas que ficavam por perto? E os outros no andar seguinte? E os do bloco de celas seguinte? Peguei a chave mestra do cinto de um dos guardas congelados e fui para a cela ao lado. — Quem é que quer sair daqui? — berrei pelo corredor do bloco. Minha pergunta foi respondida com centenas de gritos esperançosos e de partir o coração. Andei rapidamente pelo corredor, destrancando cada cela do caminho. Então, uma sirene começou a tocar e uns 20 guardas entraram correndo no bloco.
Capítulo92
Wisty
AQUELES CAPANGAS DE COTURNO se enfiaram na multidão de crianças que eu tinha libertado das celas, usando os cassetetes e as armas paralisantes com uma crueldade inimaginável. A visão de guardas com mais de 100 quilos cada um descendo o cassetete, empurrando e machucando crianças, algumas com um quarto do tamanho deles, é algo que vai povoar os meus pesadelos pelo resto da minha vida. Naquela hora, aquilo me deu tanto nojo que quase ultrapassei o limite da raiva. Cada célula do meu corpo parecia estar fervendo de ódio. E então... vuuuush! Quer dizer, VUUUSH! As chamas já familiares, de 30 cm, 60 cm, um metro, 1,5 metro de altura, começaram a formar um turbilhão ao meu redor mais uma vez. A-Menina-em-Chamas-Contra-ataca. Mesmo assim, não teria feito a mínima diferença se eu não tivesse sido muito sortuda bem naquela hora. Tive sorte porque estava bem debaixo de um alarme de incêndio. Houve um tempo em que as pessoas que mandavam no mundo na verdade valorizavam a vida e tinham instalado um dispositivo de segurança para que nem todo mundo na prisão morresse num incêndio. Acontece que, ao dominar a prisão criada por uma sociedade baseada na justiça, a Nova Ordem nem tinha se dado ao trabalho de perceber que os alarmes de incêndio abriam automaticamente todos os portões internos, incluindo os das celas. E assim, enquanto o alarme de incêndio misturava seu gemido de sereia à cacofonia em nosso redor, fui em direção aos guardas, deixando pegadas de fogo por onde passava. Eu tinha que levar aquelas crianças lá para fora, o que queria dizer que precisava abrir o caminho. Os guardas não resistiram muito. Fui correndo atrás deles pelo corredor até o próximo bloco de celas antes de os reforços chegarem e antes que eles tentassem impor alguma forma de resistência. Um guarda berrava ordens em um rádio; os outros tinham os cassetetes e as armas paralisantes à mão. Respirei fundo e me lembrei do que aquela menina tinha dito: “Eles têm medo de todos nós”. Bom, pelo jeito eles estavam ao menos com um pouco de medo de uma menina de 15 anos em chamas e furiosa, voando em sua direção com os braços abertos, berrando como uma louca: — Fogo machuca! Machuca mesmo! E: — Eu sou uma bruxa malvada! Passei correndo por eles e não me importei nem um pouco ao ver que suas roupas estavam pegando fogo. Gritando “Parados aí, seus idiotas!”, fui correndo para o próximo bloco de celas. — Todo mundo para fora! — berrei para as crianças dali e para as do último bloco, que vinham me seguindo a uma distância segura. — Fogo! Todo mundo saindo. Agora! Vocês viram a escadaria ali? Aquela é a saída! Na verdade, eu estava começando a ficar um pouco assustada. Nunca tinha ficado em chamas por tanto tempo. Será que havia um ponto sem volta e eu ia virar churrasquinho? Eu não podia pensar nisso naquele momento porque, de repente, centenas de crianças magrelas, sujas e horrorizadas estavam passando por mim. E eu não queria que elas pegassem fogo.
Capítulo93
Whit
DEPOIS DE DEIXARMOS AS CRIANÇAS na Garfunkel’s, decidimos evitar a “Morte Por Metrô” de novo e pegamos um caminho diferente para chegar à prisão. Como eu tinha prometido, evitei as sugestões de Emmet a todo custo. Dessa vez, Margô foi minha copiloto. Estávamos sozinhos no furgão; os outros iam nos encontrar nos portões da prisão. Eu tinha feito um “abracadabra” bem legal no furgão antes de sairmos e agora ele estava pintado de vários tons de azul e com placas do estado de Idaho. Mas aquela não tinha sido a única grande mudança. Até poucos minutos atrás, eu parecia ter uns 30 anos de idade. Então, voltei a ser adolescente, sem nenhum aviso prévio, lógico, quando estava na escada rolante da Garfunkel’s. Tropecei e rolei vários degraus abaixo. Não foi muito legal. Enquanto Margô e eu voltávamos para a prisão, fiquei pensando naquilo. “Será que Wisty já tinha se transformado de volta também? Será que o feitiço tinha prazo de validade?” Eu não tinha a menor ideia de onde ela estava, nem do que estava fazendo, nem em que forma estaria quando eu finalmente a encontrasse. Amassada como uma panqueca, talvez? Ou com um ou dois membros e o restante deixado para trás em uma ratoeira?
— Você parece preocupado, Whit — Margô disse me encarando. — Pois é, né? — eu disse, com uma voz mais para “Não, dããã” que eu pretendia. — E você não está? — Sim e não — Margô respondeu, para a minha surpresa. — Quer dizer, claro, qualquer coisa pode acontecer. Mas... agora essa é a minha vida. É o que eu faço. Sem pais, sem irmãos nem irmãs. Na verdade, não tenho nada a perder. E tenho tudo a ganhar ajudando essas crianças e os seus pais também. Fiquei em silêncio, chocado. Então, eu disse: — Eu sinto muito. Na verdade, eu não conseguia me lembrar da última vez que tinha dito aquilo de coração. E não sabia ao certo por que estava dizendo aquilo agora. Mas parecia ser a coisa certa a fazer. — Não diga isso, Whit! Não sou nenhuma heroína — Margô tirou uma com a minha cara. — É heroico encarar a própria dor e é você que está fazendo isso agora. Eu entendo. Você tem uma irmã que ama ali. Você tem pais procurados pela polícia, vivos ou mortos, também ali. O amor da sua vida está morto, mas ainda assombra você. Ah, é, e ouvi dizer que você deveria ser executado no seu próximo aniversário. — Bom, na verdade — respondi com um sorriso fraco —, eles mudaram a ordem para me executar imediatamente. — E quando é o seu aniversário? — ela perguntou. Putz! Eu não tinha certeza. O tempo parecia ter passado tão rápido. E com todos os portais pelos quais tínhamos passado, o tempo estava todo maluco mesmo.
Olhei para Margô, surpreso. — Acho que já aconteceu. — Nossa, olha só! — Margô disse com um sorriso raro. — E você nem conseguiu comemorar. Ela continuou sorrindo, seus olhos castanhos brilhando, e respirou fundo. Eu sabia quando vinha uma musiquinha por aí. — Nem sonhando! — protestei, mas ela continuou, toda empolgada. — Parabéns pra você! Nesta data querida! Muitas felicidades... Ela parou de cantar ao desviar o olhar do meu rosto e então fez uma cara feia. — O que é aquilo? Ali, nas janelas, no topo do prédio principal? Freei o furgão com tudo. — Chamas. A prisão está pegando fogo! “Ai, Wisty, o que você fez?”
Capítulo94
Wisty
— SAIAM! — BERREI. — Saiam daqui agora! Fogo! As crianças correram descalças pelas escadas de metal, a maioria sem conseguir parar de me encarar. Uma delas finalmente falou com uma voz fininha: — Mas os guardas... — Deixem os guardas para lá! — gritei em um nível novo de histeria que eu não sabia que existia em mim. — Esses guardas têm medo de vocês. Eles têm medo de mim. Eles têm medo de tudo! Uma nova explosão de energia se espalhou entre as crianças. Assim que uma delas chegou ao térreo, apontei para os portões principais, tomando cuidado para não me aproximar demais de ninguém. Outros guardas da Nova Ordem estavam chegando, cassetetes em punho, mas fui correndo na direção deles, com os braços abertos. Eles se afastavam como se eu fosse a peste negra. — Fiquem onde estão! — eu os avisei. — Se vierem perto de mim, não vão poder escolher entre “ao ponto” e “bem passado”! A essas alturas, ondas de crianças estavam tentando sair pelo portão principal, fugindo bem debaixo de um retrato de O Único Que É O Único. Foi aí que me ocorreu que eu nem sabia se Whit e os outros estavam esperando lá fora.
— Fora, fora! — berrei, já rouca. Estava começando a me sentir meio quente e seca, e esperava que eu mesma não estivesse bem passada. As chamas começaram a lamber a porta do escritório e então a sala inteira pegou fogo. Eu tinha deixado vários incêndios pelo caminho. Com sorte, depois de as crianças fugirem, essa prisão horrorosa queimaria até não sobrar mais nada. Após o que pareceu uma vida toda, as últimas crianças passaram pelos portões enquanto os guardas evitavam as chamas, horrorizados, ou tentavam apagar seus inferninhos pessoais. Enquanto isso, eu estava ficando tão quente que não parecia impossível explodir de repente como um saco de pipoca no micro-ondas. Quando o último prisioneiro passou pelo portão, os guardas que sobraram estavam prontos para a vingança. Eles se arrastaram na minha direção, como zumbis queimados, mostrando os cassetetes. — Cuidado! — eu os avisei. — Ou vocês vão virar cinzas! Então, me virei e corri para a saída também, tocando as paredes e tudo mais que podia no caminho. Marcas de mãos e riscos forjados a fogo indicavam por onde eu tinha passado. Foi de arrepiar; digo, de incendiar! Finalmente, vi os raios de luar e os portões externos à minha frente; e, então, os últimos portões. “Por favor, esteja aí fora, Whit”, rezei. “Por favor, bruxo.” O pátio interno estava se enchendo rapidamente com mais guardas e soldados da Nova Ordem. Mas, então, ouvi Feffer latir como o cão do inferno que tinha sido treinada para ser. Vi que alguns guardas ficaram paralisados com os latidos, enquanto Margô levava as multidões de crianças para fora, em segurança. Contei rapidamente quem estava por perto. Margô, Emmet, Sasha... e, uh-hu!, Whit! Estavam todos lá, ajudando os prisioneiros a fugir. Eu mal podia respirar e estava exausta, como se não houvesse mais nada em mim para o fogo consumir. Whit estava olhando ao redor, me procurando. “Será que estou tão irreconhecível assim?” E então ele me viu, e vi a preocupação em seus olhos. Medo, como eu nunca tinha visto no rosto dele antes, nem mesmo quando ele caiu de uma árvore e quebrou a perna em dois lugares. Tentei correr para ele, mas a última coisa de que me lembro foi cair de joelhos e ouvir a voz mais maldita do mundo. — Wisteria Allgood, você foi condenada à morte — a voz disse.
Capítulo95
Whit
FIQUEI COM ÂNSIA DE VÔMITO e engasguei com o cheiro de fumaça e tinta queimada enquanto crianças e mais crianças, centenas delas, passavam pelos portões da Prisão da Superfície. Era uma visão linda, de verdade. “Muito bem, Wisty”, pensei. “Ela conseguiu.” Agora eu só tinha que garantir que ela estava a salvo e então ir atrás dos nossos pais. Onde eles estavam? Parecia que já tinha passado um tempão desde que vimos as chamas nas janelas pela primeira vez, mas havia sido questão de minutos. — Rápido! — Margô berrava enquanto levava mais crianças para fora dos portões como se fosse uma bombeira. — Já planejamos uma rota de fuga pelo esgoto! — Margô gritou. Olhei ao redor, procurando por Wisty, como menina ou como rato, mas não conseguia vê-la em lugar nenhum. Será que ela estava com os nossos pais? Ou a minha irmã estava presa dentro daquele prédio em chamas? Ela tinha sido capturada? A rua estava cheia de crianças reunidas pela nossa segunda equipe, liderada por Sasha. O trânsito parou, ninguém mais podia se mover. Alarmes estavam piscando e tocando por toda a parte. Mas nada da Wisty.
As últimas crianças saíram com tudo pelos portões e eu finalmente a vi, ainda queimando. Mas dessa vez era diferente, e pior: ela estava brilhando mais forte, tão quente que até ficava branca. E ela parecia mais perturbada, mais magra, mais fraca e mais próxima do terror e da morte que eu jamais poderia ter imaginado. Ela me viu e seu rosto, mesmo através das chamas, se acendeu de esperança. Mas então ela virou os olhos e caiu no chão como se tivesse levado um tiro. — Peguem o furgão! — gritei por cima do ombro para a Margô enquanto saí correndo em direção a Wisty. — Eu levo a Wisty! — Acho que não, bruxo — disse uma voz terrível e rouca atrás de mim.
Capítulo96
Whit
ERA COMO UM PESADELO recorrente e dos mais terríveis. Ali estava a maldita enfermeira-chefe, enrolada em esparadrapo e pálida como giz. Ao lado dela, estava O Único Que Julga, Ezekiel Raiwa (o irmão dela, me lembrei), ainda em sua túnica preta e deprimente, parecendo a morte sem a foice na mão. “Especialistas” em segurança, com armas nas mãos, estavam lá como retaguarda. E ao lado deles estava... o nosso Jonathan. Com uma cara de quem está se achando e uma cumplicidade incrível. A decepção caiu sobre mim como uma mortalha. Eu nunca tinha pensado que alguém na Terra Livre poderia sucumbir ao nível de traição de Byron Swain, mas pelo jeito era isso que tinha acontecido com Jonathan. — Jon? — Margô estava de queixo caído. Jonathan simplesmente deu de ombros. — É difícil demais e inútil viver desse jeito. A Nova Ordem oferece uma vida melhor — ele disse. — É melhor que a prisão e a morte. Eu acredito no Único.
Os olhos de Margô se encheram de lágrimas, não de tristeza, mas de raiva. Ela tinha me dado a maior força antes e eu queria ajudá-la a acreditar que ia dar tudo certo. Mesmo se não fosse. Palavras invadiram o meu cérebro. Sei lá de onde elas vieram. — Margô, eles têm medo de nós. Eles têm medo de tudo — e continuei falando sem pensar, até virar quase um cântico:
Eles têm medo de mudança, e nós precisamos mudar. Eles têm medo dos jovens, e nós somos os jovens. Eles têm medo de música, e música é a nossa vida. Eles têm medo de livros, e do conhecimento, e de ideias. Acima de tudo, eles têm medo da nossa magia.
Margô ficou olhando fixamente para mim e fungou. Os olhos dela estavam arregalados, mas as lágrimas tinham desaparecido. Peguei Wisty do chão, ela estava inconsciente e tinha o peso de uma pena nos meus braços, e falei tudo de novo. Mais alto e com mais força dessa vez.
Eles têm medo de nós. Eles têm medo de tudo. Eles têm medo de mudança, e nós precisamos mudar. Eles têm medo dos jovens, e nós somos os jovens.
— Silêncio! — rugiu o juiz, seu rosto manchado ficando com um tom funéreo de roxo. — Espere só até eu colocar as mãos em você de novo! — a enfermeira-chefe rosnou ao lado dele, seus olhos congelantes se estreitando até virarem fendas por onde não passava nem uma moeda.
— Acho que não, enfermeira-chefe. Não vai rolar — eu disse. — Na verdade, você morre de medo de nós. E deveria ter medo mesmo. Nós temos magia e você, não. Falei tudo de novo e Margô, Janine, as crianças da prisão, todo mundo exceto Jonathan, repetiram comigo.
Eles têm medo de nós. Eles têm medo de tudo. Eles têm medo de mudança, e nós precisamos mudar. Eles têm medo dos jovens, e nós somos os jovens. Eles têm medo de...
— Chega! Isso já foi mais que suficiente! — O juiz bateu o pulso contra a outra mão aberta e a ergueu como se fosse me bater. — A bruxa e o bruxo devem ser executados agora mesmo! Nos meus braços, minha irmã abriu os olhos de repente. Olhei para ela, surpreso. Os olhos de Wisty sempre tinham sido azuis. Mas agora estavam quase transparentes. O cabelo dela estava mais avermelhado que o ruivo de antes, mais parecido com o da nossa mãe. Os olhos dela brilhavam e ela fez o máximo para sorrir para mim. — Oi, irmão. — Você e sua irmã vão queimar! E aqui mesmo, nesta prisão! — O juiz cuspia ódio puro em nossa direção. — O incêndio vai tomar conta do problema da nossa sociedade de uma vez por todas! Vocês! — ele latiu para os especialistas em segurança. — Levem os dois para a prisão e tranquem todos os portões! Eles gostam de fogo. Então, que queimem! Este é o meu julgamento final. É a lei da Terra. Eu sou O Único Que Julga!
— Não! — disse uma voz poderosa. A voz de Wisty.
Capítulo97
Whit
— ACHO QUE NÃO — Wisty continuou enquanto se soltava dos meus braços. Eu não tinha a menor ideia do que ela estava planejando, mas sabia que não podia impedi-la. Ela virou a cabeça lentamente para olhar para a enfermeira-chefe e então encarou o juiz Raiwa. Senti um feitiço vindo por ali e me encolhi sem querer. Não tínhamos tempo para testes. — Confie em mim — Wisty sussurrou e se virou para os nossos acusadores. — Você diz que é O Único — ela disse com um tom de autoridade que eu nunca tinha ouvido nela antes. — Mas sua forma agora vai ser desfeita. Pela primeira vez, desde que Wisty tinha lançado o primeiro feitiço, senti um arrepio percorrer o meu corpo. — Somos uma bruxa e um bruxo — Wisty continuou e sua voz foi ficando cada vez mais forte.
Você é um mero subalterno. Não merece continuar Nesse abuso de poder eterno. Vou com prazer anunciar Que você vai direto para o...
Estávamos todos esperando com a respiração suspensa, morrendo de medo. Tenho que admitir: eu estava tremendo. Nem queria ouvir o feitiço inteiro. — Hum, para a Baratolândia — Wisty completou. — Onde será julgado como criminoso hediondo mesmo sob as leis das baratas! Ela estalou os dedos na direção do juiz, que se encolheu todo. — Dou todo o meu poder para você — sussurrei para a minha irmã. — Fale por nós dois. Como se um relâmpago estivesse passando por mim, uma onda de calor passou das minhas mãos para as de Wisty. Mais uma vez, ela estalou os dedos na direção do juiz. Mas, dessa vez, ele deu um gritinho e uma explosão de luz branca tomou conta dele, engolindo o monstro da cabeça à ponta de suas botas pretas de cano alto. Todo mundo ficou só esperando, com o coração quase saindo pela boca, e, então, quando a fumaça se dissipou, a barata mais gigante e horrorosa que eu já tinha visto estava se estrebuchando no chão. A enfermeira-chefe encarou a criatura terrível, horrorizada. — Agora é a sua vez — Wisty disse a ela. A enfermeira-chefe olhou de relance para os especialistas em segurança e eles fizeram que não com a cabeça. Eles saíram correndo o mais rápido que puderam por entre a multidão. Jonathan também. Quando vi a enfermeira-chefe pela última vez, ela estava se arrastando e gritando como um fantasma. Ela tinha entendido o recado e espalharia a notícia até chegar ao Conselho dos Únicos. A luta continua! Wisty arregalou os olhos. — Acho... que conseguimos! — ela disse, sua voz rouca e fraca. Os olhos dela estavam voltando ao azul de sempre. — Eca! — Ouvi uma criança gritar. Olhei para baixo e vi uma ratazana passar por entre as pernas de todo mundo. De repente, ela pegou a barata e arrancou a cabeça dela! Aquilo foi uma das coisas mais nojentas que já tinha visto, mas Wisty estava tendo um ataque de riso. — Do que você está rindo? — perguntei. — Isso sim é que é justiça! — ela disse enquanto a ratazana se afastava com o resto do corpo de Ezekiel Raiwa na boca. — Sabe — ela continuou —, gosto muito mais dos ratos quando eles não são maiores que eu. Eles até que são fofinhos, você não acha? E, então, ela desmaiou de novo. É, a minha irmã é meio estranha. Mas de um jeito bom, na maioria das vezes.
Capítulo98
Whit
AGORA, OLHA SÓ O QUE A MINHA IRMÃ PERDEU: eu me virei e vi que várias crianças estavam chorando, tremendo e se encolhendo. O Único Que É O Único tinha aparecido e, dessa vez, sem ventania, sem nenhum tipo de aviso. Ele apareceu ao lado de Wisty e declarou: — Ela é boa. Ela é muito boa, Whitford. Vocês dois são. É claro que você deve saber que eu não tinha a intenção de permitir que vocês fossem seriamente feridos. Não, não, não. Finalmente encontrei a minha voz. — Aposto que não. — Mas não mesmo, absolutamente. Essa não é uma das profecias. Nem mesmo eu sou capaz de mudá-las. O Único me encarou, quase como se pudesse ver através de mim. — Você sabe das profecias sobre você e a sua irmã, não é? Foi assim que tudo começou. Seus pais não contaram para vocês? Quer dizer, ninguém contou? Vocês não sabiam? Eu queria acabar com ele, mas só consegui perguntar com um resmungo: — Que profecias?
— Ah, Whit, Whit, pobre Whit... Tudo bem, então. Se tenho que ser o mensageiro de mitos e lendas, escute bem. “Primeira Profecia: um menino e uma menina, irmão e irmã, nascerão em uma família de Wiccanos e devem alcançar poderes até então desconhecidos por outros Wiccanos.” Isso é verdade, obviamente. “Segunda Profecia: o menino e a menina liderarão um exército de crianças à vitória.” Bom, olhe ao seu redor. Vocês venceram a Batalha do Reformatório da Nova Ordem, não foi? “Terceira Profecia: o irmão e a irmã conhecerão tristeza, sofrimento e traição terríveis.” Espero que não. Mas acho que sim. “Quarta Profecia: eles precisam visitar todos os cinco Níveis da Realidade, o que ninguém antes deles já conseguiu, e aprender as lições de cada nível.” Parece pior que o Ensino Fundamental e o Ensino Médio. “Quinta Profecia...” Bom, voltamos a essa mais tarde. “Sexta Profecia: ao final, irmão e irmã devem se aliar a um poder ainda maior para o bem e prosperidade de todos.” Parece legal, né? O Único me encarou profundamente, como se estivesse tentando me conhecer melhor e compreender algo sobre mim. — Então, Whitford, o que você acha disso tudo? Sou um amigo ou um inimigo, ou um pouco dos dois? As coisas importantes da vida são preto no branco ou talvez um pouco cinza? Fadas, elfos e espíritos do mal realmente existem? E você vai ver a Célia de novo? Deixo você com essas perguntas e esses pensamentos de peso. E há uma última profecia, meu príncipe: todos os Allgood devem ser executados. Esta é a Quinta Profecia. Tenho certeza de que você e sua irmã vão dar um jeito nisso. Melhoras para ela. Acorde-a com gentileza.
Capítulo99
Wisty
— O QUE ACONTECEU? — perguntei, ainda meio fora do ar, ao abrir os olhos e ver Whit. — Foi só um pesadelo, Wisty. Você está doente faz um tempão. O papai e a mamãe estão preocupados com você. Era aquilo que eu queria ouvir. Então, vi Margô, Sasha e Emmet ao fundo. Houve um momento de decepção, claro, mas senti um alívio enorme por saber que estavam bem e ali comigo. Até mesmo a fuinha mala, Byron Swain, parecia preocupada de verdade comigo. — Você não se lembra? — Whit perguntou. — Da prisão, do juiz Raiwa, da enfermeira-chefe, de todas as crianças que fugiram? — Lembro! — eu disse, tentando me sentar. — Na verdade, me lembro da maior parte das coisas. — Você perdeu O Único Que É O Único — Whit contou. — Eu perdi? Como? Quando? — Eu conto mais tarde. Mas e o papai e a mamãe? — Whit perguntou de repente, seu rosto cheio de preocupação ao ver a decepção no meu. — O que aconteceu? Onde eles estão? Wisty? O que foi? Meus olhos passaram de rosto em rosto, até encontrarem os de Sasha.
— Pergunte para ele — eu disse. — Ele mentiu para nós. Nossos pais nunca foram para aquela prisão. Sasha mentiu para que o ajudássemos. — A amargura subiu pela minha garganta. — Nunca vou perdoar você! — eu disse. Whit demorou um pouco para processar a traição. Em um segundo, sua expressão foi de surpresa para decepção e, então, para nojo. — Não — Whit rosnou e cerrou os pulsos. — Nem eu! Sasha nem tremeu. — Coisas piores aconteceram comigo. Bem piores. Nós precisávamos de vocês. Isso aqui é uma guerra contra o mal. Os fins justificavam qualquer meio eficaz. — Então Sasha deu aquele sorriso animado de sempre e aquilo foi tão, tão triste. E assustador. Ali mesmo prometi nunca deixar a “guerra” ou qualquer outra coisa fazer aquilo comigo. — Eu deveria transformar você em uma lesma! — gritei para Sasha. — Você usou a nossa amizade e acabou com ela para sempre. — Calma — Whit pediu. — Você ficou desacordada um tempão. Ele não vale a pena. — Ela acordou! — alguém gritou e, de repente, percebi que havia centenas de crianças ao meu redor, com chapeuzinhos de aniversário e línguas de sogra. Havia flâmulas de papel por toda a parte. Estávamos na Garfunkel’s de novo. Feffer estava sentada em um sofá, comendo o que parecia bolo em pratinho de papel. Ao ouvir minha voz, ela veio até mim e lambeu o meu rosto.
Fiquei de pé, tremendo, morrendo de fome e ainda meio tonta. Janine, nossa líder da semana, abriu caminho no meio da multidão, trazendo um refrigerante e um prato de bolo de chocolate. “Bolo de verdade!” Pukka total. Eu não comia bolo fazia... sei lá, milhões de anos. Nem usei o garfo. Fui com a mão mesmo e na cobertura primeiro. — Para os Libertadores! — Janine gritou. Todo mundo ao redor repetiu as palavras dela. Fiquei corada ao tentar sorrir e enfiar mais bolo na boca ao mesmo tempo. — Todo mundo ajudou — Whit disse. — A todos vocês! Margô, a comandante, olhava fixamente para Whit, que parecia quase um herói. — Vocês dois fizeram a maior parte. — Então, por hoje, aproveitem! Vocês são heróis! — Janine disse, mas os olhos dela brilharam apenas para Whit. Eu sabia que ele nem tinha percebido, mas ela estava apaixonadinha por ele. Meu irmão não tinha a menor ideia, como sempre. É uma das coisas que eu mais gosto nele. Alguém me deu um cachorro-quente gigante e completo, com o recheio escorrendo, e comecei a devorar tudo, mesmo depois da sobremesa. Credo, mas que gostoso! — Com ênfase no “hoje” — Emmet deixou bem claro, com um sorriso de parar o coração —, não deixamos ninguém ser herói por mais de um dia, pois o sucesso sobe à cabeça. O culto aos heróis leva à corrupção. Ou pelo menos transforma as pessoas em erlenmeyers.
— Entendido — Whit respondeu. — No entanto — Janine continuou —, por ir muito além do dever, você foi promovido a motorista oficial de missões de resgate. Deixamos o furgão em um esconderijo além das linhas do inimigo e está à sua espera para a nossa próxima missão. — Aquela armadilha mortal? — Whit perguntou. — Aquele veículo de resgate — Janine respondeu. — Acabamos de receber a notícia de outro grupo de crianças em um shopping abandonado. Eles precisam da nossa ajuda. — O que... — tentei perguntar, com a boca ainda cheia. — Eles precisam de ajuda — Janine repetiu, como se aquilo explicasse todos os mistérios complexos da vida... e talvez explicasse mesmo. — Outra missão? — Whit disse, mas eu podia ver as engrenagens do cérebro dele girando. Seus olhos encontraram os meus e eu sabia que estávamos pensando a mesma coisa: os nossos pais estavam lá fora também. — Bom, então tá — eu disse, finalmente, e Whit fez que sim com a cabeça. Feffer cutucou minha perna e eu fiz carinho nela. — Lógico que você vai também — garanti a ela. — E eu — disse uma voz perto do meu ouvido.
Capítulo100
Wisty
EU ME VIREI PARA VER BYRON-TRAIDOR-Puxa-saco-Fuinha empoleirado em uma prateleira perto da minha cabeça, enrolado em forma de “S”, como uma cobra. — Não. Você não vai — eu disse, inabalável. — Você não vai a lugar algum conosco. Você ainda é um do contra maldito, traidor e de coração peludo! — Na-na-ni-na-não — Byron respondeu, em um tom que confirmava o que eu tinha dito. Alguém tinha dado metade de uma salsicha para ele, e ele estava mastigando. — Estou mudado. Agora eu gosto de vocês. E eu quero ir junto. — Ai, você é tão falso! — respondi. — Você vai ficar aqui mesmo. Com a minha visão periférica, vi Janine, Margô e Emmet fazendo que não com a cabeça. — Ele tem que ir com vocês — Janine disse. — Vocês o trouxeram para cá. Ele é sua responsabilidade. A fuinha tem que ir. — Tem uma coisa que preciso dizer para vocês — Byron falou, pouco à vontade. — Quero pedir desculpas. — Arregalei os olhos. — Quando nós... nos conhecemos, eu achava que estivesse fazendo a coisa certa. Parecia a única coisa inteligente a se fazer, agir daquela maneira. Mas depois de ver todo mundo morando na Terra Livre, e o Hospital onde vocês estavam, e o cachorro Curvo... e perceber como
talvez eu devesse ter feito algo diferente em relação à minha irmã... bom... só quero dizer que me sinto diferente — ele continuou. — Só queria dizer isso. Whit e eu olhamos um para o outro, surpresos. — Tudo bem — Whit disse e suspirou. — Beleza. Ele vem junto. E então outra coisa estranha aconteceu: lágrimas, lágrimas de verdade, começaram a escorrer dos olhos daquela fuinha maldita. “As pessoas mudam de verdade?”, fiquei pensando. “Talvez seja possível.”
NÃO HÁ LUGAR COMO O NOSSO LAR
Capítulo101
Wisty
ERA MAIS QUE ASSUSTADOR ESTARMOS SOZINHOS, eu e Whit, em um furgão roubado. Bom, sozinhos se você não contar nosso zoológico: Feffer e Byron, a Fuinha-Ex-Traidora-de-Cabeça-Pontuda-MaisIrritante-do-Mundo. De roupa limpa e cabelo lavado, meu lindo cabelo avermelhado, parecíamos dois adolescentes da Nova Ordem, e assim era mais seguro. Estávamos aprendendo a contar mais com a nossa magia e a confiar em nossos poderes. Era mais difícil que eu achava. Whit estava me contando sobre sua Unicidade de novo e sobre as profecias, que não incluíam aquela que tínhamos lido na parede da Garfunkel’s. Além disso, o pobre do Whit estava quase enlouquecendo por causa da Célia, esperando por uma visita dela, mesmo que em sonho. Enquanto isso, eu estava tentando aproveitar a viagem, ouvindo o primeiro álbum do Stonesmack no volume máximo do som do furgão. — Aqui! Preciso de ajuda — disse Byron, trazendo para mim a ponta de uma bandana grande. — Se você amarrar isso aqui no cabide, vou poder dormir em uma rede legal. Peguei a bandana e me virei no banco da frente. Ele já tinha amarrado a outra ponta no apoio para a mão. Conformada, passei a ponta da bandana sobre um pequeno cabide de roupas ao meu lado e então fiz um nó para ele.
— Ah, agora sim! — Byron pulou e se aninhou na sua redinha. Eu só conseguia ver a cabeça pontuda dele. Suspirei. — Ei — Whit disse —, esse lugar parece familiar, não é? Olha só! Estudei a paisagem. Tínhamos passado por campos de cultivo, a maioria de milho, com placas dizendo: “MILHO LIMPO PARA AS PESSOAS: GARANTIMOS QUE ESSE PRODUTO NÃO RECEBEU AGROTÓXICOS, NÃO FOI GENETICAMENTE MODIFICADO NEM ALTERADO POR FEITIÇOS. UMA INICIATIVA DO CONSELHO DE AGRICULTURA DA NOVA ORDEM”. Aquelas palavras estranhas eram provavelmente coisa de O Único Que Cria Placas Irritantes. Mas percebi o que Whit queria dizer. Tinha alguma coisa no formato da terra, no horizonte; era familiar para mim também. Senti tensão nas costas e no pescoço. Familiaridade dá origem a, sei lá, paranoia? — O que é aquilo? — Whit perguntou, parando o furgão no acostamento e apontando para uma forma a distância, algo que se destacava no mar sem-fim de pés de milho. — Uma árvore? — eu disse e senti o pior frio na barriga da história. Por que a N.O. deixaria uma única árvore de pé ali? Saímos do furgão e, sem dizer nada um para o outro, começamos a andar em direção à árvore, com Feffer atrás de nós. Cruzamos alguns campos, que, mesmo cobertos com uma camada de poeira, ainda podiam ser reconhecidos como ruas abandonadas, com linhas duplas amarelas no meio.
Demoramos mais ou menos meia hora para chegar à árvore, e o frio na minha barriga foi ficando cada vez mais gelado. Mas achei que não fosse passar mal até ver a casa de passarinho. Nossa casa de passarinho. A casa de passarinho que o meu pai tinha feito para Whit e eu, e para a mamãe também. Pregada ali onde sempre esteve, a uns seis metros de altura no tronco enorme do carvalho que ficava no nosso quintal. Quantas vezes eu tinha olhado para cima, para aquele carvalho que parecia não ter fim? Meu pai disse que ele estava lá há uns cem anos ou mais. Whit e eu o escalamos quando éramos crianças. Whit tinha usado as sementes dele, as bolotas, para praticar beisebol, arremessando-as sobre o telhado do vizinho. Ele também tinha caído daquela árvore e quebrado a perna como se ela fosse feita de casca de amendoim. Agora, a árvore estava sozinha no meio de uma plantação recente feita pela Nova Ordem. Tudo ao redor dela, todas as casas (inclusive a nossa), tinha desaparecido.
Capítulo102
Wisty
— ONDE ESTÁ A NOSSA CASA? Onde estão o papai e a mamãe? — perguntei com um sussurro, olhando para o ponto no milharal onde vivíamos antes, onde tínhamos crescido, onde tínhamos passado tantos momentos incríveis e felizes, a não ser quando eu era retida na escola. Eu me lembrei do que a mamãe dizia toda vez que voltávamos de férias. Lembrei palavra por palavra.
Norte, sul, leste, oeste Nossa casa fica no meio. Vindo da cidade ou do agreste, Fala amor e entra sem receio.
Para falar a verdade, nunca tinha entendido muito bem o sentido daquilo, principalmente da última frase. Falar sobre amor? Falar com amor? Será que o apelido de alguém é Amor e ela está mandando alguém falar? Repeti as rimas em voz baixa de novo, sem conseguir acreditar muito nelas, como em tudo que tinha acontecido desde que a minha vida normal havia se transformado nessa vida de pesadelo.
— Fala amor e entra sem receio — Whit ficou pensando alto. — Fala amor — repeti, com dor no coração. E então... — Uou, espera aí! Fala amor! Dei um passo à frente, para mais perto de onde os degraus da nossa casa ficavam. — Amor — eu disse claramente, e em voz alta. — Amor. Então, fiquei sem ar enquanto uma forma fantasmagórica começava a se formar à nossa frente. Era a nossa casa, vaporosa e transparente, não totalmente real. Mas a lembrança da nossa casa e a essência dela estavam lá, nos mínimos detalhes, como a trepadeira que subia pela parede e que apontava para o sul, e uma bola murcha de futebol americano que pertencia ao Whit. Então, a porta da frente se abriu e parecia que meu coração ia saltar para fora do peito. “Por favor. Que não seja O Único!”, rezei.
Capítulo103
Wisty
— MÃE... — SUSSURREI, enquanto a forma dela começou a descer os degraus. — Pai! Eles vieram até nós e é claro que queríamos dar um abraço neles, mas não conseguimos, assim como Whit não conseguia abraçar a Célia. Uma conclusão horrível caiu sobre mim. — Vocês são Meias-Luzes? — perguntei, com a voz desafinada, quase gritando. — Vocês morreram? — Não estamos mortos, Wisty — a minha mãe disse. — Só estamos em outro lugar. Vocês vão nos ver de verdade logo, logo. Espero que sim. — Mãe — eu disse de novo, tão feliz com as palavras dela que quase desmaiei. Será que essa montanha-russa de emoções poderia ficar pior que isso? Joguei meus braços ao redor dela e tentei abraçá-la de novo. — Então, por que não conseguimos tocar vocês? — Meus queridos do coração — a nossa mãe disse e era ela de verdade. — Estamos vivos, acreditem em mim. Mas não estamos aqui, nesse momento. A magia nos trouxe até vocês... a magia de outra pessoa. Meu pai concordou.
— O importante é saber que estamos muito orgulhosos de vocês. Do tempo que passaram na prisão. Como vocês salvaram as crianças. De como lidaram com aquele juiz mau e desprezível. E com O Único Que Acha Que É O Único. Vocês foram incríveis! — Vocês dois são o passado e o futuro — a mamãe disse, sorrindo. — E agora sabemos do que são capazes. Até aqui, foi só um aquecimento. — Um aquecimento... para o quê? — perguntei. — Eu só quero voltar para casa de novo. Minha mãe sorriu com melancolia. — Você vai ver. Mas primeiro você tem que acreditar, Wisty, que você é uma bruxa muito, muito boa. E, um dia, você vai ser uma musicista famosa também. — E você é um bruxo muito, muito bom, Whit — meu pai disse a ele. — E, acredite se quiser, você vai ser um escritor muito importante. Whit ficou horrorizado. — Eu achava que essa coisa de bruxo era bem diferentona, pai, mas... um escritor? Você está tirando uma com a minha cara! — Você está com o seu diário? — meu pai perguntou, ainda muito sério, e então olhou para mim. — E a sua baqueta? Vocês não os perderam, certo? Fiz que não com a cabeça e mostrei minha baqueta. Whit tirou o diário da cinta. Tínhamos feito um sacrifício tremendo para manter aquelas coisas a salvo, mas por quê? Porque eu estava destinada a ter uma carreira na música? Porque Whit (Whit?!) seria um escritor importante? Quem tinha tempo para músicos e escritores naquela época sombria? Minha mãe estendeu a mão para a minha baqueta tão usada e suja. — Então, Wisty, você provou que está pronta para fazer isso. Transforme essa baqueta em sua verdadeira forma. A essas alturas, eu estava acostumada a falhar, mas odiava mesmo falhar na frente dos meus pais. — Mãe — congelei de medo —, você sabe que eu ganhei um C menos nesse departamento. — A diferença é que, agora, eu estou aqui. Você pode olhar nos meus olhos. Todos os segredos estão dentro deles. Quando foi a última vez que você olhou de verdade nos olhos dos seus pais? Aposto que nem se lembra. Tipo, desde que você era bebê e ficava arregalando os olhos para a sua mãe. Bom, não fique surpreso ao ver o que acontece quando você entra nesse território. É meio assustador, na verdade, mas de um jeito legal. Não vou falar mais nada. Tente um dia. — Fala amor e entra sem receio — minha mãe sussurrou. E eu entrei. E quando olhei para a baqueta, ela tinha se transformado em uma varinha comprida e escura. É isso mesmo. Uma varinha mágica de bruxa. Como eu, você provavelmente achou que uma varinha era apenas uma invenção fantástica de lendas e contos de fadas. Bom, estávamos errados. Em uma das únicas vezes na minha vida, fiquei sem palavras.
— Agora é a sua vez, Whit. Abra o diário e olhe para mim. — Meu pai colocou as mãos sobre os ombros de Whit e, enquanto minha mãe e eu vimos os dois falando sem pronunciar palavras entre si, o diário se encheu de lições, explicações, feitiços, tudo o que uma bruxa e um bruxo precisariam saber. Whit sussurrou para mim: — Ainda bem que não deixei isso aqui na prisão. — Adoramos vocês dois — minha mãe nos disse. — Mas temos que nos despedir, por enquanto. — Amamos vocês! — meu pai reforçou. — Adeus. Pelo menos por enquanto. —Não! Fiquem! — gritei, mas meus pais já estavam começando a desaparecer. — Mãe! Eu te amo! Volta! Por favor, não nos deixe aqui! Por favor! — E chorei. Então, de repente, os meus pais tinham sumido. E a nossa casa também. Até mesmo a casinha de passarinho. Caí de joelhos. Feffer lambeu o meu rosto. Os cachorros sempre sabem o que fazer, não é? Finalmente, com muito esforço, consegui ficar de pé de novo e Whit me abraçou com força. — Este livro é demais! — ele disse. Estava na cara que ele queria me animar. — Olha só! É disso que eu tô falando! Ele segurou o livro aberto sob o meu nariz. Funguei e dei uma olhada. Era demais mesmo.
“Como Desfuinhar Alguém” estava escrito em uma tipologia bem chique. Fiz cara feia e continuei lendo: “Se você transformou alguém acidentalmente em uma fuinha, e não deseja que a pessoa continue sendo fuinha, primeiramente você precisa...” Olhei para ele. — Arranca essa página, vai, por favor? — Não sei. A fuinha pode ser útil como humano mais tarde. Nunca se sabe. Bom — ele disse, levantando a manga da blusa —, temos muito a fazer, crianças para salvar, a Nova Ordem para detonar, ô... bruxa. — Beleza, bruxo. — Suspirei e fui andando atrás de Whit pelo milharal até o nosso furgão tão acabadinho. Eu estava pronta para o que viesse, pelo menos achava que estava. Afinal, eu era uma bruxa má e assustadora. E Whit era um bruxo superlegal. E, então, aquela esquisitice toda continuou. Saindo do meio do milharal, da mesma direção que nós, estava Byron Swain desfuinhado. — Não olhem assim para mim — ele disse. — Foi a sua mãe. Ela disse que eu deveria ficar de olho em vocês dois. E assim seguimos em frente para acabar com a Nova Ordem. O negócio é que nem tudo aconteceu exatamente de acordo com o plano. Apenas de acordo com as profecias.
Capítulo104
Wisty
O QUE, É CLARO, nos traz de volta para onde tudo começou: nós à espera do enforcamento em um estádio lotado além da capacidade, cheio de malucos medrosos e presidido por um demônio de túnica preta que me dá o maior frio na espinha. Fala sério, O Único Que É O Único irradia energia ruim como se fosse uma estação elétrica do mal. E a parte que me deixa mais louca da vida não é o poder óbvio que ele é capaz de exercer sobre esses idiotas no estádio, dos guardas puxa-sacos postados em cada entrada ao grupinho de adolescentes vagabundos usando moletons coloridos da N.O. sentados sobre a trave, no outro lado do campo. Não, o que me assusta mesmo é que eu posso sentir que ele tem magia. E muita. Um troço bem sério. Sua Unicidade faz um gesto para a multidão ficar quieta e eles calam a boca até mesmo antes de ele erguer totalmente a mão. Quantas vezes na história humana um cara como esse tomou o controle de uma sociedade inteira? Vocês sabem a resposta, meus amigos: vezes demais. Parece que ele vai fazer um discurso, o que definitivamente vai me deixar fula da vida de vez. Quer dizer, já é um saco saber que essa criatura maldita vai ser uma das últimas coisas que os Allgood vão ver na vida, mas agora as palavras dele vão ser as últimas coisas que vamos ouvir também. Ou seja, a não ser que essa sensação vaga, mas cada vez mais forte, seja mesmo um tipo de intuição de bruxa. Sabe, eu tenho essa impressão estranha de que no último momento vamos encontrar um jeito de escapar dessa situação horrível e bizarra... e viveremos, todos, para continuar a luta. Quem sabe até ter alguma coisa a ver com trazer bondade e prosperidade para todos (a Sexta Profecia, né?). Mas esse momento ainda não chegou. Neste momento aqui, tudo é silêncio. Como é que um milhão de pessoas podem ficar num silêncio tão absoluto? Está tudo tão quieto que dá para ouvir uma brisa bem leve passando pelo estádio. Tão quieto que não há nada a se fazer a não ser ficar com medo, muito medo. Então, tudo bem por aí, onde quer que você esteja? Escute, por favor: viva o momento, não se preocupe com o que vai acontecer depois. É o seu cérebro, a sua vida, a sua atitude... Vai lá e encha a sua vida de visões e sons e ideias que são maiores que você. A história já nos contou, isso sem falar nessa realidade doida de agora, o que pode acontecer se simplesmente ficarmos quietos e fizermos apenas o que as outras pessoas mandam. E não se preocupe demais com o Whit e comigo. Notícias sobre o que acontece depois vão dar um jeito de chegar até você. Prometo!

 

 

                                                                  James Patterson

 

 

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