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NÃO É TODO DIA QUE eu bato à porta e uma garota nua vem me atender. Não me entenda mal. Com vinte anos de experiência como policial, isso já aconteceu. Só que não foi com muita frequência. – Vocês são do serviço de quarto? – perguntou a garota. Embora houvesse um brilho em seus olhos, eles eram vazios. Ecstasy. Além disso, dava pra sentir o cheiro de maconha lá dentro. E a música... um techno que me faria cortar os pulsos se tivesse que ouvir por muito tempo. – Não, não somos do serviço de quarto – respondi, mostrando o distintivo. – Polícia Metropolitana. Sugiro que vista uma roupa. Ela não ficou constrangida. – Eu pedi um sanduíche – disse para ninguém em particular. Isso me deixou triste e enojado. A garota não parecia nem ter saído do ensino médio e os homens que viemos prender tinham idade suficiente para serem pais dela. – Reviste as roupas antes de ela se vestir – falei para uma das policiais na equipe de reconhecimento. Além de mim, eram cinco policiais, um assistente social e três oficiais do Segundo Distrito, incluindo o meu amigo, John Sampson. O Segundo Distrito ficava em Georgetown, um lugar não muito convencional para uma Unidade de Prostituição. O local aonde havíamos chegado era comum na vizinhança, um edifício residencial de tijolos brancos na Rua N que valia facilmente mais de 5 milhões. Era uma propriedade alugada pelo Dr. Elijah Creem, um dos cirurgiões plásticos mais requisitados da capital. Pelo que conseguimos descobrir, Creem entrava com os recursos e pagava essas “festas do setor” enquanto seu parceiro, Josh Bergman, conseguia as garotas. Bergman era o proprietário da Cap City Dolls, uma agência de modelos associada ao submundo do tráfico. Com uma das mãos, Bergman dirigia uma agência legítima.
Com a outra, arrumava dançarinas exóticas, acompanhantes noturnas, massagistas e “artistas” pornôs. Nesse momento, a casa estava cheia de “artistas” e todas pareciam ter mais ou menos uns 18 anos. Ênfase no menos. Eu mal podia esperar para acabar com esses dois indivíduos desprezíveis. A vigilância localizara Creem e Bergman no centro da cidade por volta das sete horas da noite e, depois, aqui na festinha às nove e meia. Agora era a hora de caírem as máscaras. Para além do saguão fechado, a festa seguia a toda. O salão principal estava lotado. A mobília em estilo Queen Anne contrastava com as jovens garotas seminuas, agitadas, dançando ao ritmo da música e bebendo em copos descartáveis. – Quero todo mundo no cômodo principal! – gritou Sampson para um dos policiais. – Vasculhem tudo! Estamos procurando drogas, dinheiro, livros-caixa, agendas, celulares, tudo! E desliguem essa maldita música! Deixamos metade da equipe de guarda na frente da casa e levamos o restante para os fundos, onde a festa continuava. Na cozinha aberta, rolava um grande jogo de strip pôquer na bancada com tampo de mármore. Meia dúzia de caras musculosos e o dobro de garotas de calcinha e sutiã estavam de pé segurando cartas, bebendo e passando baseados de mão em mão. Alguns saíram com pressa quando entramos. Umas poucas garotas gritaram e tentaram fugir, mas já tínhamos bloqueado o caminho. Finalmente, alguém desligou a música. – Onde estão Elijah Creem e Joshua Bergman? – perguntou Sampson. – A primeira pessoa que responder corretamente ganha passe livre para fora daqui. Uma garota magrinha, vestindo um sutiã de renda preta e shortinho, apontou na direção da escada. Pelo tamanho do peito em relação ao restante de seu corpo, ela já devia ter passado pela faca com o Dr. Creem ao menos uma vez. – Lá em cima – respondeu ela. – Vaca – murmurou alguém em voz baixa. Sampson fez um gesto com o dedo para que eu o seguisse e nós começamos a subir. – Posso ir agora? – gritou a garota de shortinho atrás de nós. – Vamos ver se você está falando a verdade, primeiro – disse Sampson. O salão do segundo andar estava vazio. A única iluminação vinha de um abajur sobre uma mesa antiga envernizada. Havia retratos de cavalos nas paredes e um corredor comprido que terminava em frente a portas duplas fechadas nos fundos da casa. De onde estava, eu conseguia ouvir música do outro lado. Uma das antigas. Talking Heads, “Burning Down the House”. Eu também podia ouvir risos e duas vozes masculinas diferentes. – Isso, querida. Um pouco mais perto. Agora tire a calcinha dela. Sampson me olhou como se quisesse vomitar ou matar alguém. – Vamos lá – disse ele e caminhamos pelo corredor.
– POLÍCIA! VAMOS ENTRAR! A voz de Sampson ecoou em todo o lugar. Ele esmurrou a porta de mogno, sua sutil versão de bater à porta, depois a abriu com força. Elijah Creem estava de pé, idêntico às fotografias que eu tinha visto dele: cabelos louros penteados para trás, queixo quadrado dividido, sorriso perfeito. Bergman e ele estavam completamente vestidos. As outras três pessoas... nem tanto. Bergman erguia um iPhone à sua frente e filmava o ménage à trois esquisito que rolava na cama king size. Uma das garotas estava deitada de costas, com o sutiã aberto na frente e a calcinha fio dental abaixada até os tornozelos. Ela usava uma máscara respiratória transparente, acoplada a um tanque metálico cinza e comprido que ficava próximo à lateral da cama. O rapaz em cima dela estava nu, a não ser por uma venda preta, enquanto a outra garota estava de pé acima dele com uma pequena câmera digital, filmando de outro ângulo. – Que merda é essa? – gritou Creem. – Tirou as palavras da minha boca – respondi. – Ninguém se mexe. Todos eles estavam de olhos arregalados pelo susto, menos a garota com a máscara. Ela parecia totalmente ausente. – O que há no tanque? – perguntei, enquanto Sampson caminhava até a garota. – Óxido nitroso – disse Creem. – Ela está bem. – Vá se foder – retrucou John e retirou a máscara dela. O efeito do gás durou muito pouco, mas tinha certeza que não fora a única coisa que os três tinham consumido. Viam-se vários comprimidos azuis do que imaginei que fosse metanfetamina. Além disso, havia também algumas garrafas pequenas de vidro marrom, provavelmente nitrito de amila, e um resto de tequila Cuervo Reserva. – Preste atenção, policial – disse Creem tranquilamente, olhando nos meus olhos. De acordo com as minhas informações, ele era o maior responsável pelo que estava acontecendo. – Sabe aquela valise ali no canto? – Elijah? O que está fazendo? – perguntou Bergman. Mas Creem não respondeu. Ele ainda me observava como se fôssemos só nós dois ali. – Ela contém um envelope com 30 mil dólares – informou e olhou para uma das três janelas no fundo do quarto. As cortinas de franjas estavam puxadas, mas não restava dúvida do que ele queria fazer. – Quanto tempo você acha que 30 mil dólares valem? Ele estava surpreendentemente tranquilo com toda aquela história. E arrogante. Acho que esperava que eu aceitasse. – Você não parece o tipo que sai pela janela, Creem – falei. – Normalmente, não – retrucou ele. – Mas se você sabe quem eu sou, então entende que há muito em jogo aqui: família, carreira... – Seis milhões e meio de lucro apenas no ano passado – observei. – De acordo com os seus registros. – E há minha reputação, claro, que é inestimável nesta cidade. Então, o que me diz, detetive? Temos um acordo? Dava para perceber que ele era um homem acostumado a conseguir o que queria. Por outro lado, eu não era uma garota de 17 anos. – Eu vou ter que concordar com o meu parceiro – respondi a ele. – O que foi mesmo que você disse, John? – “Vá se foder” – disse Sampson. – Quantos anos esses garotos têm, Creem? Pela primeira vez, o ar de superioridade do médico pareceu sofrer um golpe. O sorriso ridículo desapareceu e os olhos começaram a se mover rápido. – Por favor – disse ele. – Tenho mais dinheiro, se quiser. Muito mais. Tenho certeza de que podemos dar um jeito. Eu já estava de saco cheio. – Você tem o direito de permanecer calado... – Não quero implorar. – Então, não implore – falei. – Qualquer coisa que disser poderá ser usada contra você... – Compreende o que está prestes a fazer? Você vai acabar comigo! Você entende isso? – Não, Dr. Creem – respondi quando o algemei. – Foi o senhor quem fez isso a si mesmo.
DOIS MESES DEPOIS DO INFELIZ escândalo, Dr. Creem estava pronto para algumas mudanças. Era impressionante o que um pouco de tempo, um bom advogado e muito dinheiro podiam fazer. Claro, ele ainda não estava em liberdade e o dinheiro não ia durar para sempre. Ainda mais se Miranda, sua esposa, abrisse a boca. Por intermédio do advogado, ela era a única que conversava com Creem. Já das filhas, Chloe e Justine, ele não podia nem mencionar os nomes. A futura ex-Sra. Creem as mandara para a casa de parentes em Newport. Segundo o advogado, elas iam terminar o ano letivo por lá. Todas as três belezas louras – Miranda, Justine e Chloe – tinham rapidamente virado as costas para ele, com tanta facilidade quanto fechavam uma porta. Quanto à prática médica, não havia mais nem uma consulta, muito menos um agendamento, desde que a imprensa publicara que o Dr. Creem trocara procedimentos cirúrgicos por sexo com mais de uma das menores de idade de Bergman. Isto e a pequena coleção de vídeos que Creem acumulara no computador eram excelentes evidências para uma prisão. Mas Elijah Creem não tinha intenção de deixar que isso acontecesse. Como as pessoas diziam? “Hoje é o primeiro dia do resto de nossas vidas”? Sim, de fato. E ele ia fazer disso algo importante. – Não posso ser preso, Elijah – disse Joshua ao telefone para ele. – E não estou dizendo que não quero. Quer dizer, não posso. Eu não vou sobreviver lá dentro. – Melhor você do que eu, Joshua. Pelo menos você gosta de pau, não? – Estou falando sério, Elijah. – Estou brincando, Josh. E, pode acreditar, meu desejo não é diferente do seu. Por isso, não vamos deixar as coisas chegarem a esse ponto. – Onde você está? – perguntou Bergman. – Você está falando diferente. – É a máscara – respondeu Creem. – Máscara? – Sim. É isso que estou tentando contar. Houve uma mudança de planos. A máscara era um engenhoso pedaço de látex, moldado a partir das formas humanas. Coisa nova. Creem andava fazendo experimentos com ela desde que o escândalo começara. Agora ele passava por uma vitrine de loja e mal reconhecia o próprio reflexo. Tudo o que via era um homem velho e feio de pele amarelada, bochechas encovadas e um ridículo resto de cabelo grisalho no couro cabeludo manchado. Na verdade, era espetacular. Até poético. O velho no reflexo parecia tão acabado quanto o Dr. Creem se sentia nos últimos tempos. Óculos de aros escuros disfarçavam as aberturas ao redor dos olhos. E embora os lábios fossem apertados e desconfortáveis, também se ajustavam o suficiente para que ele pudesse falar e beber usando a máscara. – Não queria que você soubesse até ter certeza de que isso funcionaria – disse Creem a Bergman –, mas tenho uma surpresa para você. – Como assim? Que tipo de surpresa? – perguntou Bergman. – Joshua, você se lembra de Fort Lauderdale? Fez-se uma pausa do outro lado da linha antes que ele respondesse. – Claro – falou em voz baixa. – Férias de primavera, 1988. – Eu me lembro – interrompeu Bergman, mas então voltou a se acalmar. – Éramos quase crianças na época. – Sei que já faz algum tempo – continuou Creem. – Mas pensei um bocado e não estou disposto a cair sem lutar. E você? – Por Deus... Foi você quem...? Mas você disse... – Eu sei o que disse. Aquilo foi há muito tempo. Isto é agora. Creem ouviu o amigo respirar fundo e lentamente. – Jesus Cristo, Elijah – falou. – Sério? Ele parecia apavorado, mas, além disso, agitado. Apesar da covardia, Bergman sempre ficava mais agitado com os assassinatos que Creem. Para Creem, eles haviam sido tão catárticos quanto todo o restante. Um meio para um fim. E desta vez ele tinha um objetivo completamente novo.
– Então... vai acontecer mesmo? – disse Bergman. – Para mim, vai – respondeu Creem. – Quando? – Neste minuto. Enquanto conversamos estou esperando por ela. – E eu posso ouvir? – Claro – retrucou Creem. – Por que acha que eu liguei? Mas não fale mais. Ela está aqui agora.
CREEM SE POSICIONOU DO OUTRO lado da rua, em frente ao estúdio de ioga, quando a aula terminou. Entre as primeiras pessoas a saírem na direção da Potomac Street estava Darcy Vickers, uma loura alta e de corpo perfeito. Ele não podia levar crédito pela altura nem pelos cabelos louros, mas quanto ao corpo perfeito, isso era graças a ele. O busto amplo de Darcy, o arco perfeitamente simétrico das sobrancelhas e dos lábios e as coxas estreitas representavam um pouco da melhor obra do Dr. Creem. Ela era um exemplo típico de suas clientes: uma lobista da Rua K com a necessidade desesperada de continuar bonita pelo máximo de tempo que pudesse. Tão familiar. Ele esperou do lado de fora da Dean & Deluca, enquanto ela corria para comer alguma coisa. Observou-a entrar na fila do mercado, falando no celular. Então, atravessou a rua para segui-la pelo beco com calçamento de pedra até a garagem onde o BMW de Darcy estava estacionado. Não era preciso manter muita distância. Ele era apenas um velhote com um casaco e sapatos ortopédicos, invisível para as Darcys do mundo. Quando chegaram ao terceiro andar da garagem deserta, ele havia diminuído a distância entre eles para menos de 6 metros. Darcy apertou um botão do pequeno controle remoto em sua mão e o porta-malas do BMW abriu com um clique baixinho. Foi então que ele agiu. – Com licença... Miranda? – perguntou um pouco tímido. – Desculpe, pessoa errada – respondeu Darcy, guardando a sacola do mercado e o tapete lilás de ioga na parte de trás do carro sem nem ao menos lhe lançar um olhar. – Engraçado, você se parece muito com ela. A mulher não respondeu e ele cruzou a linha invisível do espaço pessoal entre eles. – Quase exatamente como ela, na verdade. Quando ela se virou, o aborrecimento em seu rosto era evidente, mesmo com todo o botox. – Senhor – disse ela –, não quero parecer rude... – Você nunca quer, Miranda. Ela ergueu uma das mãos para afastá-lo, mas o Dr. Creem era mais forte que o velho que aparentava ser. Mais forte que Darcy Vickers também. A mão esquerda dele cobriu a boca de Darcy quando ela tentou gritar. – Sou eu, querida – murmurou ele. – Seu marido. E não se preocupe. Perdoei tudo. Ele fez uma pausa, apenas o suficiente para ver a surpresa em seus olhos, antes de enfiar a faca bem fundo no abdômen dela. Um bisturi teria sido bom, mas era melhor ficar longe dos instrumentos da própria profissão por enquanto. Todo o ar pareceu deixar os pulmões de Darcy Vickers com uma lufada, enquanto ela caía para a frente, dobrando-se no meio. Deu um pouco de trabalho retirar a faca, mas ela finalmente saiu. Com um movimento rápido, Creem chutou os tornozelos dela e a ergueu até o porta-malas. Ela nem lutou. Ouviram-se alguns poucos sons de gorgolejos, seguidos pela obstrução da glote. Ele se inclinou para mais perto, para ter certeza de que tudo ia chegar aos ouvidos de Bergman ao telefone. Então ele a esfaqueou novamente, desta vez no peito. E outra vez, mais embaixo, abrindo a artéria femoral com um movimento rápido, para que não houvesse chance de recuperação. Agindo rapidamente, ele pegou um punhado dos longos cabelos louros na mão e cortou com a beirada serrilhada da faca. Depois, cortou outro e mais outro, até o couro cabeludo ficar visível. Guardou apenas um punhado para si mesmo, enfiou no saco Ziploc e deixou o restante caído em tufos ao redor do corpo. Ela morreu de modo tão feio quanto vivera. Quando acabou, Creem se sentia melhor. Fechou o porta-malas e pegou a escada mais próxima na direção da Rua M. Não falou até sair da garagem e chegar à calçada. – Joshua? – chamou. – Ainda esta aí? Bergman levou alguns segundos para responder. – Estou... aqui – disse. Sua respiração estava entrecortada, a voz era pouco mais que um sussurro. – Você está...? – Creem sorriu, embora sentisse um pouco de nojo. – Joshua, você está se masturbando?
– Não – disse o amigo, rápido demais. – Já acabou? – Serviço feito – disse Creem. – E você sabe o que isso significa. – Sim – disse Bergman. – Sua vez, velho amigo. Mal posso esperar para descobrir o que está preparando.
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PARTE UM GANHAR OU PERDER
capítulo 1
NA ESCURIDÃO QUE PRECEDIA O amanhecer do dia 6 de abril, Ron Guidice estava atrás do volante, vigiando a casa do outro lado da rua. A casa de Alex Cross não tinha nada de especial. Era um lugar simples e de três andares na Rua 5, no sudeste do distrito de Columbia. As janelas precisavam de uma demão de tinta e, na varanda da frente, via-se uma minúscula horta. Cross morava com a avó, a esposa e dois dos três filhos: Janelle e Alex Júnior, mais conhecido como Ali. O mais velho dos filhos de Cross, Damon, estava em casa para as férias de primavera, mas passava a maior parte do tempo no internato. Também havia uma criança nova: Ava Williams. A família devia estar na “fila” de adoção. Guidice ainda tinha que investigar algumas coisas. Ele gostava de saber o máximo possível sobre quem perseguia. Havia uma dezena de policiais da Metropolitana na lista e ele mantinha vigilância sobre todos eles, mas Alex Cross era especial. Era quem Guidice queria matar. Mas não ainda. Era fácil matar um homem. Qualquer imbecil com uma arma podia meter uma bala na cabeça de alguém. Mas conhecer verdadeiramente um homem, descobrir seus pontos fracos, entender suas fraquezas e tirar sua vida bem devagar? Isso era profissionalismo. Enquanto isso, soubesse Cross ou não, ele tinha um grande dia pela frente. Guidice observava as janelas, esperando que acendessem alguma luz. Não era rigorosamente necessário perder tanto tempo com uma pessoa, mas ele gostava disso. Gostava da tranquilidade das primeiras horas matinais, mesmo se isso significasse apenas sentar e absorver detalhes que pareciam sem importância: o pedaço de concreto que faltava na escada, a lâmpada ecológica que iluminava a varanda... Tudo era parte de um quadro maior e nunca se sabia quais daquelas peças minúsculas poderiam ser relevantes no fim. Ele passava horas rabiscando observações em um caderno com espiral. Então, pouco depois das cinco da manhã, houve um repentino movimento no banco de trás. – Papai? É hora de acordar? – Não, querida – disse ele. Mantinha o queixo abaixado e os olhos na casa. – Pode voltar a dormir. Emma Lee estava aninhada em um saco de dormir do exército com sua boneca Barbie favorita. A fronha era estampada com os personagens de Cinderela. Ela a escolhera por causa do desenho do Jaque, o pequeno ratinho ajudante, que ela adorava por alguma razão. – Canta alguma coisa pra mim? – pediu ela. Guidice sorriu. – O cravo brigou com a rosa – cantou ele baixinho. – Debaixo de uma sacada... Acenderam a luz na frente da casa de Alex. Através do vidro da porta, ele podia ver o vulto alto e escuro do homem que descia a escada. Guidice continuou a observar enquanto cantava. – O cravo saiu ferido. E a rosa, despedaçada. – Despedaçada? – interrompeu Emma Lee. Ela sempre fazia a mesma pergunta. Ele olhou para trás, por cima do ombro, para os olhos sonolentos da filha e se perguntou se era possível amá-la mais. Provavelmente, não. – Volte a dormir, minha querida. Quando acordar, estaremos em casa.
capítulo 2
ATENDI A PRIMEIRA CHAMADA NO centro de operações por volta de duas da tarde. Uma mulher tinha sido encontrada morta no porta-malas do próprio carro, em uma garagem de Georgetown, algo incomum para aquela área. Por isso, fiquei mais alerta que o normal. Peguei o elevador para a garagem do Daly Building e comecei o expediente com um café extragrande na mão. Ia ser um longo dia. Não me entendam mal. Eu realmente gosto do que faço. Gosto de dar voz às pessoas que não podem mais falar por si mesmas, aquelas cujas vozes foram roubadas. No entanto, em minha linha de trabalho, isso costuma levar a algum tipo de violência. O policial relatou que o funcionário da garagem tinha encontrado o que parecia ser uma poça de sangue seco debaixo da BMW que pertencia a Darcy Vickers. Quando os guardas chegaram, forçaram o porta-malas e confirmaram suas suspeitas. A Sra. Vickers já não tinha pulso e estava morta havia algum tempo. Agora estavam esperando que alguém da Homicídios chegasse e a levasse dali. É onde eu entro. Ou, pelo menos, era o que eu pensava. Era um belo dia de primavera. A melhor época do ano em Columbia. O Festival Nacional das Cerejeiras estava acontecendo, e a primeira onda de calor do verão ainda não havia chegado, nem os turistas. Minhas janelas estavam fechadas e Q: Soul Bossa Nostra, do Quincy Jones, tocava alto o suficiente, quase abafando o toque do meu celular. Era Marti Huizenga, minha sargento na Divisão de Casos Especiais. Eu abaixei o volume do CD player e atendi a ligação antes que entrasse no correio de voz. – Dr. C – disse ela. – Onde o senhor está? – Quase na Rua 27 – respondi. – Por quê? – Ótimo. Vire à direita na New Hampshire. Outro corpo acaba de aparecer e parece bem feio. – E aí você se lembrou de mim? – Naturalmente. Preciso de alguém lá neste minuto. A cena não está nada boa, Alex. Há uma garota enforcada na janela do sexto andar. É possível que ela tenha se suicidado, mas não tenho certeza. – Você quer que eu fique com este em vez do de Georgetown? – Não. Quero você nos dois – disse Huizenga. – Pelo menos, por enquanto. Preciso de alguém em ambas as cenas, o mais rápido possível. E então quero que você me diga que tudo isso é só uma feliz coincidência, ok? Às vezes o senso de humor de Huizenga era tão sombrio quanto o meu. Eu gostava de trabalhar com ela. E nós sabíamos que a diferença entre dois corpos sem ligação e dois com ligação era a mesma entre não dormir muito nas próximas 48 horas e não dormir nada. – Deixe comigo. – Vernon Street, entre a 18 e a 19 – completou ela. – Vou dizer ao Segundo Distrito para começarem sem você na garagem em Georgetown, mas tente estar lá assim que puder. É como perguntar às nuvens quando vai chover. Eu não tinha ideia de quanto tempo ia levar nessa nova cena. Nunca se sabe até chegar lá. E desta vez seria um pesadelo.
capítulo 3
A VERNON STREET É O ÚNICO quarteirão com árvores da Rua U. É uma área residencial tranquila, mas dava para ver uma multidão de pessoas na calçada assim que virei a esquina da Rua 18. A maioria olhava para cima e apontava para o edifício de tijolos com mansardas na parte sul da rua. Assim que saí do carro, vi a garota. Foi como levar um soco nas costelas. Ela pairava suspensa pelo pescoço cerca de um metro abaixo de uma das janelas do sexto andar. O rosto estava sem cor e as mãos pareciam ter sido amarradas nas costas. Meu Deus! Havia duas viaturas e uma ambulância estacionadas na frente do edifício, mas a única pessoa da equipe que encontrei ali foi um guarda. A calçada estava repleta de curiosos que tiravam fotos da vítima com seus celulares. Fiquei muito irritado e impressionado ao mesmo tempo. – Mande cercar esta rua agora! – gritei a caminho do edifício. – Não quero ver ninguém nesta calçada quando estiver lá em cima, entendeu? Eu sabia que o guarda estava tentando fazer seu trabalho e não tinha culpa, mas não tinha como não me sentir angustiado com a situação. A garota tinha família. Não precisavam da foto dela em alguma porcaria de página do Facebook, para ser vista pelo mundo inteiro. Subi as escadas em vez de usar o elevador. Parecia o melhor caminho para se analisar, considerando que aquilo poderia ter sido a obra de um assassino. E só se tem apenas uma chance de ver a cena do crime. Quando cheguei ao sexto andar, outro policial e dois paramédicos estavam parados do lado de fora da porta aberta do apartamento. O edifício tinha três unidades neste andar, todas de frente para a rua. Nossa vítima aparentemente morava no apartamento central. – A porta estava trancada quando chegamos – disse o policial. – Nós arrombamos, mas não mexemos em nada lá dentro. O apartamento era um pequeno estúdio em L. Havia um armário de cozinha de um lado, a porta aberta do banheiro do outro e um grande futon, que devia ser usado como cama. Até onde dava para ver, não havia sinais de luta. Na verdade, a única coisa que parecia fora do lugar era um cabideiro antiquado, apoiado contra a janela aberta, com uma volta de corda pendendo do centro. Fiz um esforço para entrar lentamente no cômodo, procurando marcas de algo sendo arrastado ou qualquer coisa que pudesse ter sido deixada para trás. Quando cheguei à janela e abaixei os olhos, pude ver o alto da cabeça da garota, um pouco fora do alcance. A corda ao redor dos pulsos parecia ser uma parte da mesma corda usada no enforcamento. Isso não descartava suicídio. Muitas pessoas se amarravam pouco antes de cometer o ato, para evitar tentar se libertar no calor do momento. Lá embaixo, outra viatura chegara. A calçada já estava livre dos curiosos, mas eu tinha outro problema. No edifício residencial à frente, pude notar uma dezena de pessoas nas janelas com mais câmeras. Contive a vontade de mostrar o dedo do meio para eles. Ainda assim, não ia deixar aquilo continuar. – Ei! Pode me ajudar aqui? – gritei na direção do corredor. Em qualquer cena de crime, o corpo da vítima pertence ao médico-legista, mas eu não estava pensando em detalhes técnicos. Pensava apenas na garota e em sua família. Eu já havia tirado um monte de fotos do lugar com o meu celular. Fotografei o cabideiro, a moldura da janela, a corda e a garota. Eu tinha que preservar todos os detalhes possíveis, antes de fazer o que estava prestes a fazer. – Senhor? – falou um policial atrás de mim. – Me ajude a puxar – disse. – Hã... o senhor não quer esperar o legista? – Não, não quero – respondi, apontando para o público que tínhamos do outro lado da rua. – Não mais. Agora me dê uma mãozinha ou me traga alguém que possa ajudar.
capítulo 4
DEITAMOS A GAROTA COM O máximo de cuidado. Tudo que eu precisava era que o corpo ficasse longe do olhar do público. E poderia deixar o resto para a investigação. Seu nome era Elizabeth Reilly, de acordo com a carteira de motorista que encontrei em sua bolsa. Ela estava a apenas duas semanas de completar 21 anos. O apartamento tinha todos os sinais de alguém que morava sozinho, do macarrão instantâneo na geladeira à toalha única pendurada com cuidado no banheiro. Obviamente havia mais nessa história, mas eu ainda não estava vendo. Quando o legista chegou, fiquei satisfeito ao descobrir que era Joan Bradbury. Joan era uma texana tranquila de 60 e poucos anos que nunca deixava de usar as suas costumeiras botas de caubói, mesmo depois de vinte anos morando na cidade. Embora fosse teimosa, era fácil trabalhar com Joan. Além disso, ela não me deu nenhum grande sermão quando viu o que eu tinha feito com o corpo. Joan tem quatro filhas; acho que entendeu instintivamente. Enquanto começava o exame inicial, ordenei à equipe de investigadores que batesse às portas e fizesse os interrogatórios. O enforcamento acontecera em plena luz do dia. Alguém devia ter visto alguma coisa. Obtive também informações da sargento Huizenga sobre a vítima. Elizabeth tinha sido estudante de enfermagem do Radians College, na Vermont Avenue, até o último mês de dezembro, quando abandonara o curso. Não havia notícias do seu último emprego e, a não ser por um tíquete de estacionamento que não fora pago, sua ficha criminal era inexistente. Quando voltei para falar com Joan, já estavam se preparando para embalar o corpo a fim de levá-lo ao necrotério. – Vou precisar de uma autópsia completa – disse ela –, mas acho que a garota já estava morta antes de ser pendurada. Talvez tenha sido estrangulada com a mesma corda. Ela apontou para algumas marcas escuras e arroxeadas na base do pescoço de Elizabeth. – Está vendo as contusões? Todas são consistentes com estrangulamento manual. Além disso, há leves hematomas aqui em cima, onde a corda apertou... Se tivesse algum fluxo sanguíneo quando ela foi enforcada, as marcas seriam mais escuras. – Era isso que eu temia – observei. – E tem mais, Alex. Normalmente Joan era muito objetiva, mesmo nas cenas mais terríveis, mas havia uma tensão em sua voz que eu nunca tinha ouvido antes. Isso a estava afetando. – Pelo abdômen e pelas estrias no ventre e nos seios, a vítima deu à luz recentemente. E, Deus me perdoe, foi mais recente do que você imagina.
capítulo 5
JÁ ERA TARDE DA NOITE quando finalmente cheguei à garagem em Georgetown. O local estava bem preservado, mas o corpo de Darcy Vickers já havia sido retirado. Eu teria que coletar o que eu podia por enquanto e preencher algumas lacunas analisando as fotografias da cena do crime mais tarde. O BMW 550i prata da Sra. Vickers estava estacionado no terceiro andar, onde ela fora encontrada. Um dos detetives do Segundo Distrito, Will Freemont, me acompanhou até o local. Seria uma boa ideia explicar para ele por que eu havia chegado tão tarde, mas essa era a menor das minhas preocupações no momento. Meus pensamentos ainda eram consumidos pelo caso de Elizabeth Reilly. – Eles a encontraram aqui – disse Freemont, apontando para o porta-malas aberto. – Ferimentos a faca aqui, aqui e aqui. – Ele apontou com dois dedos para o próprio peito, o abdômen e a coxa. – Não foi bonito, mas pode apostar que foi rápido. Por diversão, ele também cortou o cabelo dela. Deixados para trás estavam um tapete de ioga, algumas sacolas de compras e uma sacola com roupas, tudo coberto com uma mistura de sangue seco e uma massa de cabelos louros. – Ele teve que agir rápido – observei. – É um local bastante arriscado para um assassinato. – Ele? – perguntou Freemont. – Estou chutando – respondi. – O que nós sabemos sobre Darcy Vickers? O detetive folheou um pequeno caderno, do mesmo tipo que eu levava. – Quarenta e dois anos. Divorciada, sem filhos. Trabalha para a Kimball-Ellis na Rua K, prestando serviços para algumas grandes companhias de cigarros. Supostamente tinha uma reputação implacável. Em outras palavras, Darcy tinha muitos inimigos. A maior parte dos lobistas tem, mas não terminam esfaqueados no portamalas de um carro. Quem faria isso? E por quê? Além do mais, haveria alguma ligação com o caso de Elizabeth Reilly? Nada óbvio fora roubado. A carteira, o dinheiro, o celular e as joias ainda estavam lá. Isso me levava a acreditar que a própria morte era o motivo, fosse para satisfazer um impulso doentio ou apenas para se livrar da mulher. Talvez as duas coisas. Quanto a isso, os dois casos eram parecidos. Mas o modus operandi era completamente diferente. Supondo que Elizabeth Reilly não cometera suicídio, o assassino queria que o corpo fosse exibido e tivera um bom trabalho para conseguir isso. Com Darcy Vickers, tudo estava relacionado ao ato em si: as facadas e a questão do cabelo cortado. Não era para um público. Meu instinto me dizia que eram dois casos diferentes, mas ainda tínhamos muito trabalho pela frente. Não sei... Talvez as duas mulheres tivessem algo em comum. – Testemunhas? – perguntei a Freemont. – Não, mas as câmeras de segurança registraram uma coisa interessante. Ele desdobrou alguns papéis do bolso e me mostrou uma série de capturas de tela em preto e branco. – Isso é de 21h04 da noite passada. Temos aqui a Sra. Vickers vindo pela entrada leste do beco. Bem atrás dela, temos esse cara. A imagem mostrava um homem branco de meia-idade. A qualidade das fotos não era boa, mas dava para ver alguns poucos detalhes. Ele era careca, com óculos de aros escuros e vestia um casaco com rasgos nos ombros. – Às 21h09, temos o mesmo cara saindo por um caminho diferente, na direção da Rua M – prosseguiu o detetive. – O que ele fez aqui nesses cinco minutos é o que queremos saber. – E as câmeras deste andar? – perguntei. – Bem ali. Alguém as destruiu às oito e quinze da noite. Jogaram uma pedra ou coisa assim. Parei para pensar sobre aquilo. – Se o senhor da foto tem alguma coisa a ver com isso, por que simplesmente destruir uma câmera? Por que não fez o mesmo com as outras duas? – Boa pergunta – disse ele. – Temos um alerta para o suspeito neste instante. Se conseguirmos pegá-lo, teremos a resposta. Talvez, pensei. Mas algo me dizia que não ia ser tão fácil.
capítulo 6
VOLTEI PARA CASA EM TORNO de cinco da manhã, torcendo para conseguir dormir por algumas horas. Provavelmente foi isso que aconteceu, mas eu quase não me lembro de estar na cama ao lado da minha mulher, Bree. Só consigo me lembrar da luz entrando pelas janelas e de nós dois sendo atacados por um pequeno bando de arruaceiros. – Acordem, acordem, acordem! É um grande dia! Quando percebi, o caçula já se enfiara entre nós. Minha filha, Jannie, estava de pé na extremidade, vestida e pronta para sair. – São sete e meia, pai – disse ela. – A gente precisa estar lá às nove! – Ai... está bem – disse. – Você não se esqueceu, não é? – Não – respondi. – Claro que não. Já vamos descer. Claro. Eu tinha me esquecido. Planejara me encontrar com o legista assim que acordasse, para fazermos a reunião da manhã, e então acompanhar a autópsia de Elizabeth Reilly. Mas as crianças tinham razão. Hoje era um grande dia. Era o dia do sorteio no Marian Anderson, o melhor colégio público do sudeste e um dos melhores da cidade. Jannie e Ava estavam inscritas, junto de outros 420 alunos do oitavo ano, esperando obter uma das 105 vagas disponíveis. Pela lei, as escolas tinham de realizar um sorteio quando a oferta superava a demanda, o que sempre acontece, e estávamos torcendo para que as duas conseguissem entrar. – Você sabe que não precisa ir até lá. Eu vou – disse Bree, esfregando as minhas costas. – Vi o noticiário da noite passada. Sei que você está cheio de trabalho. Nana e eu podemos fazer isso. – Não – respondi. – Eu vou. A família vem em primeiro lugar. Nos últimos meses, eu tinha perdido a véspera de Natal, o teatro de Ali, as quartas de final de Damon e a maioria dos domingos na igreja. Não ia aumentar a lista. Eu chamaria alguém para me cobrir com o legista até chegar lá. No andar de baixo, Nana Mama já estava com a frigideira em punho e todas as crianças tinham pilhas de panquecas à frente. A casa estava cheia agora, com Damon passando as férias de primavera com a gente e Ava aumentando o total de habitantes para sete. – Bom dia, crianças – disse Nana, referindo-se, claro, a mim e a Bree. Ela é a indiscutível matriarca da nossa família e a cozinha é a sua sala do trono. – Panquecas com ou sem geleia de mirtilo? Fui direto para o café. – O que você está aprontando? Não acabou de chegar? – resmungou Nana para mim do fogão. Respondi com um resmungo alguma coisa sobre o grande dia. Não estava pensando muito. Só queria a minha dose diária de cafeína. – Então quem está se sentindo com sorte hoje? – perguntou Bree da cabeceira da mesa. Todos levantaram a mão, menos Ava. Ela continuou comendo, engolindo rápido como sempre fazia. – E quanto a você, Ava? – perguntei. – Não está animada? Ela encolheu os ombros e respondeu com a boca cheia de panquecas. – Eu não vou conseguir. – Não seja tão pessimista – disse Nana. – A atitude é tudo. Para ser sincero, não era difícil entender o pessimismo dela. Ela caíra em nosso colo alguns meses depois que a mãe, uma viciada, teve uma overdose e a deixou sozinha nas ruas. Ainda tinha muitas questões a resolver. Em poucas palavras, Ava estava acostumada a não esperar muita coisa da vida e, consequentemente, não querer muita coisa também. Mas de vez em quando eu conseguia ver um sorriso em seu rosto, quando ela baixava a guarda, e vislumbrava o potencial que está à sua espera se pudermos ajudá-la. A única coisa que faltava a ela era esperança. E nada bloqueia mais uma pessoa do que isso. Era o nosso papel mudar essa situação. Pouco a pouco, um dia feliz de cada vez.
capítulo 7
O GINÁSIO DO MARIAN ANDERSON PARECIA uma feira. Havia balões voando por toda parte e os funcionários e professores, trajando camisetas nas cores verde e amarela, cumprimentavam as pessoas com grandes sorrisos. No interior do ginásio, as arquibancadas foram retiradas e substituídas por fileiras de cadeiras. Havia quase mil pessoas no local, que parecia zumbir com a tensão dos presentes. Nana não parecia muito confortável com a situação. Ela tentava aparentar otimismo por causa das garotas, mas havia exercido o cargo de professora durante 41 anos e tinha algumas opiniões bem particulares sobre aquele ritual. Acho que a paralisia da reforma educacional em Washington a irritava mais que qualquer outra coisa na vida. Não era fácil constatar que três quartos das pessoas naquele ginásio – em particular, as famílias mais pobres – sairiam decepcionadas dali. Encontramos uma fileira de cadeiras na frente e nos sentamos. Jannie ficou em pé com os amigos, mas Ava apenas se sentou em silêncio. Finalmente, depois das nove horas, o diretor da escola foi até o palco para dar as boas-vindas a todos. E então eles passaram direto para o sorteio, retirando cartões de uma caixa e chamando os nomes em voz alta, um por um. – Monique Baxter... Leroy Esselman... Thomas Brown... A cada novo sorteio, ouvia-se um gritinho, um berro ou pulos de comemoração em alguma parte do ginásio. Era mesmo como ganhar na loteria. Cada garoto que tinha o nome chamado ia até o palco e recebia dos professores um pacote de boasvindas. Em seguida, era empurrado de volta à plateia em uma confusão de aplausos. Conforme os nomes prosseguiam, muitas pessoas escreviam em pedaços de papel à sua frente ou faziam a contagem regressiva nos dedos. Jannie estava de um lado e Nana, do outro. A tensão das duas era evidente. Em cerca de dez minutos, o sorteio já estava terminando. Nós chegamos aos números 82, 83, 84 e então... – Janelle Cross! Foi a nossa vez de gritar e nos abraçar, levados pela agitação da coisa toda. Não vou fingir que não fiquei animado. Era uma ótima oportunidade para Jannie. Mas, mesmo enquanto eu me dirigia ao palco com ela, não consegui deixar de olhar para trás e ver o que Ava estava fazendo. Ela continuava simplesmente sentada, fitando o piso como se nada tivesse acontecido. Como se fosse feita de pedra. Bree tinha um braço ao seu redor e fez um gesto com a mão para que eu fosse na direção do palco. Era uma porção de sentimentos confusos para mim. Talvez, só talvez, nós pudéssemos ver o raio cair duas vezes no mesmo lugar antes que tudo acabasse.
capítulo 8
NÃO TIVEMOS TANTA SORTE. Na hora em que Jannie e eu demos a volta pelo local e retornamos aos assentos, o sorteio já acabara. A maioria das pessoas estava de pé agora, conversando e se preparando para sair. Ava ainda continuava na cadeira, arrastando os pés para frente e para trás. Ela parecia entorpecida. Nana parecia aborrecida. Bree, arrasada. – Lamento, Ava – disse, sentando-me ao seu lado. – Queria que tivesse sido diferente. – Tanto faz – disse ela. – Eu sabia que não ia entrar. Para mim, era frustrante quando o mundo se comportava como Ava imaginava. Ela queria e merecia aquilo, tanto quanto Jannie. Jannie se aproximou e sentou-se do outro lado. Muitas famílias ao nosso redor estavam se abraçando e alguns garotos choravam. Tudo tinha acabado muito rápido. – É uma pena – disse Jannie. – Lamento, Ava. – Não, não lamente. Ava virou-se para ela com uma careta repentina. Quando Jannie tentou pegar sua mão, Ava a afastou e se levantou. – Vamos! É hora de ir. O sorteio acabou. Então começou a andar à nossa frente, sem olhar para trás. Não havia nada a fazer no momento, além de acompanhá-la. Nana pegou o meu braço ao sairmos. Ela tremia de raiva. – É loucura – disse ela. – Por que, pelo amor de Deus, crianças deveriam participar de uma droga de sorteio para ter boa educação? E bem aqui, na capital! O que isso diz sobre o nosso país para o resto do mundo, Alex? O quê? Eu sabia como ela se sentia. O problema era tão grande e intratável que era difícil saber com quem eu deveria ficar aborrecido. Com o secretário de educação? O sindicato dos professores? O prefeito? Deus? – Queria ter respostas para você, Nana. Queria mesmo – respondi. – Bem, vou dizer uma coisa – prosseguiu ela. – A Srta. Ava Williams não vai ser esquecida! A garota vai ter a educação que merece nem que eu mesma tenha que ensinar a ela. Em outras palavras, Nana Mama ia providenciar tudo o que o secretário de educação, o sindicato, o prefeito e Deus não fossem capazes de cumprir. E eu tinha fé de que ela faria isso.
capítulo 9
RON GUIDICE SE SENTOU NA arquibancada do Maria Anderson, tomando notas enquanto o sorteio escolar era realizado. O local estava lotado. Não havia muitos homens brancos, mas eram suficientes para ele não chamar a atenção. Emma Lee brincava em silêncio a seus pés durante todo o tempo, despindo e voltando a vestir a boneca sem erguer os olhos. A filha tinha muita concentração e paciência, sem dúvida. Talvez tenha puxado essa parte de mim, pensou. Enquanto isso, Ron ficava sentado e observava a família de Cross. Curiosamente, ele ficou contente ao ouvir o nome de Jannie ser chamado pelo sistema público de alto-falante. E, depois, lamentou quando ficou claro que Ava não havia conseguido. Pobre Ava. A garota não podia ganhar algo uma vez na vida? A menos que entrar para a família Cross fosse um presente. No papel, eram “gente boa”. Guidice estava começando a gostar deles um pouco mais do que deveria. Da avó e das crianças, pelo menos. Acontecia o tempo todo. Ele não conseguia deixar de se envolver com quem vigiava. Será que eles iam ficar arrasados quando Alex morresse? Claro que ficariam. Essa era a parte que não se podia evitar. O mundo estava cheio de vítimas inocentes. Um dia, ele também foi uma dessas vítimas. Por causa de Alex. Mas nada disso importava agora. Não se ele mantivesse um olho no quadro mais amplo. Sempre no quadro mais amplo. Era nele que Alex Cross se encontrava. O futuro falecido Alex Cross.
capítulo 10
PULEI O ALMOÇO EM FAMÍLIA e fui direto para o novo laboratório forense na Rua 4. É um edifício incrível, com 85 metros quadrados de instalações sob um telhado imenso. O Departamento de Polícia Metropolitana finalmente tinha os equipamentos apropriados, toxicologia, DNA, análise das digitais e o legista num único local. Assim que cheguei, coloquei o avental cirúrgico e fui ao encontro de Joan Bradbury, que já estava na metade da autópsia de Elizabeth Reilly. – O que temos até agora, Joan? – perguntei. – Muita coisa – respondeu ela. – Venha cá. O corpo estava sobre a mesa, com o torso aberto em Y . Eu já assistira a mais autópsias do que podia me lembrar e meu estômago já havia superado qualquer tipo de problema com essas coisas. Ao mesmo tempo, não podia me permitir esquecer a razão pela qual estava ali. Devia ao menos isso a Elizabeth. – Fiz um exame toxicológico no sangue dela ontem à noite – explicou Joan. – Conseguimos uma leitura positiva para antidepressivos e... adivinha só? Pitocina. – Pitocina? Você testa isso? – Normalmente não, mas nessas circunstâncias pensei que poderia dar uma olhada. Fico contente por ter feito isso. A pitocina não fica no sistema por muito tempo, apenas cerca de 48 horas. O que significa que Elizabeth Reilly induziu o trabalho de parto menos de dois dias antes de morrer. Essa nova informação começou a martelar na minha cabeça. Até agora não havia registros hospitalares para Elizabeth Reilly, muito menos um trabalho de parto induzido. Seria possível que ela tivesse tomado isso por conta própria por alguma razão? A jovem tinha sido aluna de enfermagem. Podia facilmente pôr as mãos em pitocina e talvez até mesmo saber como administrá-la. Mas por quê? Enquanto isso, havia um bebê de três dias em algum lugar. Eu precisava localizá-lo o mais rápido possível. – E por falar nisso – prosseguiu Joan –, não encontramos nenhuma fibra de corda nos dedos ou nas palmas das mãos. Como se não bastasse, a segunda e a terceira vértebras quebradas são definitivamente post-mortem. Ainda tenho mais algumas horas aqui, mas posso garantir que o meu relatório vai descartar o suicídio. No fim das contas, a causa da morte é determinada pelos legistas e eu dificilmente discordava das conclusões de Joan. Agora era oficial: estava em uma investigação de homicídio. E talvez em um caso de pessoa desaparecida. Eu tinha trabalho para fazer, com certeza.
capítulo 11
A PRIMEIRA COISA QUE FIZ QUANDO saí do necrotério foi me encontrar com Sampson na delegacia do Segundo Distrito. Conheço John há um bom tempo e confio nele plenamente. Sampson conhece as pessoas certas e sabe quem poderia conversar sobre um bebê desaparecido sem pedir primeiro dezoito assinaturas e duas dezenas de formulários. Entendo a razão de termos tantos papéis para preencher, mas isso tem hora e lugar. E a hora não era agora. Se a rapidez era prioridade neste momento, a discrição vinha em segundo lugar. Ficamos parados na delegacia, perto do meu carro, comendo alguns sanduíches e repassando os detalhes. – Tudo indica que tenha sido parto normal. Não há sinal de episiotomia nem de intervenção hospitalar. Com pitocina no organismo de Elizabeth e o fato de ninguém ter mencionado que ela estava grávida, parece bem claro que ela tentou manter a gravidez em segredo. – Não é tão difícil assim esconder – disse John, folheando o arquivo que eu passara para ele. – Concordo. Os vizinhos mal a conheciam e ela largou os estudos há cinco meses. – E quanto à família? – perguntou ele. – Quem é o parente mais próximo? – Ela tem avós na Geórgia que a criaram e é só. De acordo com eles, Elizabeth não dava notícias havia algum tempo. Não falavam com ela desde o Natal. – Em outras palavras, o bebê poderia estar... – Em qualquer parte. É. John tomou o resto da Coca diet e amassou a lata com uma das mãos. Não é à toa que o chamamos de Homem Montanha. – Vou precisar de ajuda – disse ele. – Fale com o Departamento da Infância e da Juventude. Veja se alguma coisa ali chama a atenção – pedi. – Harry vai manter a boca fechada por lá, se você precisar de ajuda. Vá de distrito em distrito, se for necessário. Verifique a base de dados de crianças desaparecidas sempre que puder e converse com o pessoal deles em Alexandria. Só não diga nada sobre mim ou sobre o caso. Essa era a questão. A gravidez de Elizabeth Reilly era a única carta que estávamos mantendo na manga. Se o nosso assassino tinha alguma ligação com o bebê, eu não queria que ele nos visse chegando. Era aí que Sampson entrava. A outra possibilidade era que não houvesse bebê para encontrarmos. Não sabíamos se Elizabeth tivera um bebê prematuro, se ele tinha nascido com vida ou, que Deus me perdoe, se ele fora assassinado por alguma razão que eu não podia compreender. Naquele minuto, tudo isso era um ponto de interrogação. Mas, por causa do bebê, assim como de sua mãe, tínhamos que supor que ainda havia alguém para salvarmos.
capítulo 12
DURANTE TRÊS DIAS, NÃO CHEGAMOS a parte alguma. O caso não evoluía e o telefonema de Sampson que eu esperava nunca vinha. Dava para sentir que a investigação estava esfriando. Então, na manhã de sábado, tivemos uma novidade. Do pior tipo. Outro corpo apareceu em Georgetown. Estava em casa quando recebi o telefonema da sargento Huizenga. Ela queria que eu analisasse a cena do crime sem comparar com nada. Algumas vezes, se você procura ligações, começa a ver o que quer em vez de ver o que realmente está lá. Peguei a Pensilvânia, depois a Rua M, seguindo até a Key Bridge. Várias viaturas já estavam no local e haviam cercado o perímetro externo da fita amarela na direção da Water Street, na parte sul do Potomac Boat Club. Um trabalhador tinha encontrado o corpo do garoto naquela manhã, debaixo de uma das docas. A essa altura alguém já o puxara para a praia e o deixara lá, em um pequeno pedaço de terra e grama pouco abaixo do edifício. A primeira imagem dele foi um choque, mesmo para mim. A causa aparente da morte era um tiro no rosto, com uma ferida bem aberta que indicava ter sido causada por um disparo à queima-roupa. Era difícil saber quantas queimaduras de pólvora ou marcas tinham sido lavadas, mas ainda havia algumas manchas escuras ao redor do que restara das maçãs do rosto. Alguns dentes quebrados ficaram expostos onde a carne fora destruída e isso deu um tipo de sorriso macabro à vítima, como se ele ainda sentisse dor. Não era tudo. A calça jeans tinha manchas escuras ao redor do quadril, provavelmente de facadas. Havia, pelo menos, meia dúzia de perfurações irregulares no tecido, nitidamente centralizadas ao redor da área genital. Era uma ideia horrível pensar no que acontecera ao pobre garoto. Eu só podia torcer, pelo bem do menino, para que ele primeiro tivesse sido baleado e morrido antes de ser mutilado. Não era muito consolador. A parte mais deprimente era ele ser muito jovem. Não parecia ter mais de 18 anos e o casaco era do St. Catherine, um colégio particular no noroeste do distrito de Columbia. Como ele chegara até aqui, desse jeito, era o que todos queriam saber. Minha única pista era que as agressões foram feitas com raiva. Raiva da vítima ou, talvez, de si mesmo. Mutilação pode ser um indício, em geral, de autodepreciação. De um jeito ou de outro, nosso assassino obviamente tinha algum tipo de demônio para exorcizar. Você não precisa de uma arma e de uma faca se a sua motivação é estritamente o assassinato. Na verdade, parecia que o assassino estava usando todas as suas ideias ao mesmo tempo: esfaquear, atirar, afogar. Mas por quê? Depois de colher todos os detalhes que podia, coloquei as luvas e dei uma olhada nos bolsos do garoto. Estavam vazios, mas encontrei um nome, Smithe, escrito na parte de trás do casaco. Telefonei no mesmo instante. Não levou muito tempo para ter uma resposta. Alguns minutos depois, uma ligação de nosso centro de informações relatou que um aluno de 18 anos, do último ano do St. Catherine, Cory Smithe, fora dado como desaparecido pelos pais havia dois dias. Tinha 1,85 metro, cabelos louros e um pequeno sinal de nascença no pulso direito. Correto, correto, correto. – Tem algum endereço? – perguntei. – Já enviei para o seu celular. Nós dois sabíamos o que eu tinha que fazer a seguir.
capítulo 13
QUANDO VOLTEI PARA O CARRO, no outro lado da marina, vi que a nuvem de gafanhotos havia descido: o tipo com câmeras, microfones e torres de transmissão. Em vez da costumeira meia dúzia de repórteres, havia dezenas deles, apenas esperando pela história. Eram três corpos em menos de uma semana, localizados ao redor de uma das vizinhanças menos violentas da capital. Em comparação, os três assassinatos anteriores em alguma parte a oeste de Rock Creek haviam se espalhado durante um período de catorze meses. As pessoas estavam definitivamente parando e tomando notas. – Detetive Cross, aqui! – Quem é a vítima, Alex? – Neste momento, você está considerando que se trata de uma investigação de assassinatos em série? É um pouco como ser um astro do rock, sem nenhum dos benefícios adicionais. Eu dei o mínimo de informação para eles, o que era tudo que eu poderia fazer no momento. – A sargento Huizenga virá para informar vocês depois de avisarmos à família – disse a quem estava mais próximo. – Não daremos nenhum detalhe até lá. – Detetive Cross, você vai supervisionar todos os três casos? Foi Shawna Stewart, do Canal Cinco, quem fez a pergunta. – Ainda não sei – respondi. – Como estão indo as investigações sobre Darcy Vickers e Elizabeth Reilly? – Estão indo – disse ao entrar no carro. – Ei, Alex, é verdade que você tirou o cadáver de Elizabeth Reilly da janela antes de um exame adequado? – gritou alguém. – Isso não compromete a investigação? Essa pergunta me fez ficar imóvel. Eu deveria ter continuado a andar, mas dei meia-volta para ver quem a tinha feito. O cara, à primeira vista, pareceu estar sozinho. Eu já vira o tipo antes: a câmera no pescoço, um gravador manual apontado para mim e um caderno saindo do bolso da bermuda. Ele também tinha barba fechada e não consegui ver suas credenciais de imprensa. Todos em volta tinham os crachás laminados da cidade presos à lapela ou pendendo de cordões do pescoço. – Não conheço você – respondi. – Com quem você está? – Só estou tentando obter os fatos, detetive. – Não foi isso que perguntei – insisti. – Perguntei com quem você está. Então ele elevou a voz, o suficiente para ter certeza de que os microfones ao nosso redor estavam captando o som. – Sou suspeito, detetive? Você está dizendo que quer me prender? Ele estava jogando a isca. Eu já vira isso um milhão de vezes. Se não podem conseguir a história do jeito que querem, tentarão criar uma. Eram sobretudo sujeitos que trabalhavam apenas pelo dinheiro ou que tentavam aparecer. – Não, não estou prendendo você – falei. – Era uma pergunta simples. – Por quê? Eu sou obrigado por lei a me identificar? – perguntou ele. Agora o cara estava apenas sendo um babaca. O civil dentro de mim queria enfiar o gravador bem no fundo da garganta dele. – Não – respondi mais uma vez. – Você não é obrigado a se identificar. – Nesse caso, sem comentários – disse ele, fazendo um esforço para disfarçar um sorriso. Algumas pessoas na multidão riram, mas eu não. A melhor coisa que eu poderia fazer era entrar no carro e ir embora. Eu tinha que ir a um lugar mais importante, de qualquer forma. E não podia esperar.
capítulo 14
QUANDO ESTACIONEI DIANTE DA CASA de Cory Smithe, senti como se tivesse um saco de 20 quilos de pedras no peito. Avisar à família era a parte mais difícil do meu trabalho, sem dúvida. Os Smithes moravam em uma das milhares de casas do início do século XX que ladeavam as ruas da área noroeste de Columbia. Ficava na Shepherd Street, em Petworth, com um gramado verde minúsculo na metade do caminho até os degraus da porta da frente. No meio da grama, via-se uma imagem da Virgem Maria, cercada por um canteiro de tulipas. Talvez Nossa Senhora desse a essas pessoas um pouco de conforto quando elas mais precisassem. Eu já avisara à unidade de pessoas desaparecidas do Quarto Distrito. Eles enviaram o Serviço de Atendimento às Vítimas, mas essa parte era comigo. Subi os degraus e toquei a campainha. O pai de Cory atendeu a porta quase que imediatamente. Ele parecia muito mais velho do que eu imaginara e trazia uma bengala pendurada no pulso. – Posso ajudá-lo? – perguntou, um pouco cauteloso. – Sr. Smithe? Sou Alex Cross, do Departamento de Polícia – falei. – Estou aqui para conversar com o senhor sobre Cory. Posso entrar? Nesse tipo de situação, tem algumas coisas que você quer evitar. Uma delas é mencionar logo de cara que você é da Homicídios. As notificações têm que se desdobrar no ritmo certo, nem muito rápido nem muito lento. – Entre – disse ele e abriu a porta de tela. – Minha mulher está nos fundos. O homem caminhou com dificuldade à minha frente e eu o acompanhei até a cozinha. A Sra. Smithe estava ali, de chinelos e um robe florido. Ela fechou a gola e ficou de pé quando entrei. O telefone sem fio em seu colo caiu no chão, mas nenhum deles pareceu perceber. – O que foi? – perguntou ela. Dava para ver pelo rosto que ela já estava considerando o pior. Rapidamente voltei a me apresentar, mas, desta vez, fui direito ao assunto. – Gostaria que houvesse um jeito fácil de dizer isso – falei para eles. – Ai, Deus. Não... – Sinto muito, mas Cory foi assassinado. Ele foi encontrado hoje de manhã. Foi como se a voz dela sumisse no ar. Não havia palavras agora, apenas uma expressão de tristeza e perda. Ela caiu de joelhos e se apoiou no marido, que ainda segurava a bengala, tentando não desmoronar também. Ele abaixou a cabeça na direção da esposa com os olhos estreitados e a bengala balançando entre os dois. – Onde? – perguntou o Sr. Smithe com dificuldade. – Onde ele estava? – Em Potomac – respondi. – No litoral de Georgetown. Não fazia sentido manter em sigilo aquelas informações a essa altura. Era melhor que soubessem por mim do que por alguma outra versão no noticiário. – Assassinado...? – repetiu. – Como... – Alguém fez isso a ele, sim – falei. – Mais uma vez, não tenho palavras para dizer quanto lamento. Acho que um monte de pessoas supõe que é apenas uma formalidade quando os policiais dizem isso, mas a verdade é que eu podia ter chorado ali junto com eles. A perda de um filho é uma tragédia para qualquer família. Mas você aprende a guardar essas coisas dentro de si. Esperei até sentir que eles poderiam ouvir mais alguma coisa e então prossegui. – Sei como isso é difícil – comecei –, mas se vocês pudessem me dar alguma informação sobre Cory, seria de grande ajuda. O Sr. Smithe assentiu, ainda de pé. A esposa voltara para a cadeira, chorando baixinho. – O que você precisa saber? – perguntou ele. – O tipo de coisa que Cory gostava de fazer, aonde ele costumava ir, os amigos com quem passava mais tempo. Esse tipo de coisa. A mãe dele ergueu os olhos. – Ele estava metido em algum tipo de encrenca? – perguntou. – Não sei – respondi com sinceridade.
– Ele era um bom garoto – disse o Sr. Smithe. – Sei que todas as famílias devem dizer isso... ou talvez não digam. Mas Cory era um jovem de Deus. Rezava conosco todas as noites. Na verdade, ele ia começar a frequentar a Universidade Católica no outono. Faculdade de teologia. Depois, eu saberia que o Sr. Smithe era diácono na igreja que frequentavam e a mãe fora freira por vinte anos. Esse deveria parecer o golpe mais cruel possível de Deus. Eu os pressionei o máximo que podia e anotei os nomes dos amigos mais próximos de Cory. Ele tinha uma namorada: Jess Pasternak. Ela morava a apenas alguns quarteirões dali. Então, dei meu cartão aos Smithes com o telefone celular escrito no verso e os deixei em seu luto particular. A melhor coisa que eu podia fazer por eles agora era voltar para o caso. Como sempre, o tempo não estava a meu favor.
capítulo 15
– FOI ISSO QUE ELES DISSERAM? Universidade Católica? Coroinha e tudo o mais? Meia hora depois, eu estava sentado no carro com Jess Pasternak. As pernas estavam sobre o banco, ela abraçava os joelhos de encontro ao peito e chorava forte enquanto conversávamos. Depois de uma conversa tensa com os pais na porta, ela havia me acompanhado até o meio-fio. Agora, o que quer que ela tivesse para dizer, não ia sair com tanta facilidade. – Por quê? – perguntei a ela. – Tem alguma coisa que os pais de Cory não sabiam? Ela deu um soco no banco em que estava sentada, literalmente lutando para não voltar a chorar. Era como se dois terços dela estivessem arrasados e um terço com raiva de alguma coisa. – Eu avisei a ele – disse ela. – Avisei mesmo. – Jess? Do que é que nós estamos falando? – perguntei. – Sei que é difícil, mas você tem que me contar tudo. Ela sentou muito ereta e enxugou os olhos. Isso deixou um rastro de maquiagem nas costas de sua mão que, distraída, ela limpou no joelho do jeans rasgado. Era uma garota bonita, mas no estilo tradicional, do St. Catherine. Os cabelos louros estavam cortados curtos e ela usava uma camiseta regata com suspensórios de couro finos, além de botas pretas até a panturrilha. Jess parecia mais uma roqueira do que uma líder de torcida. – Cory nem queria ir para a faculdade – falou. – A gente ia viajar no outono. Sabe, França, Itália... Ela torceu a mão no ar como se tudo fosse uma tolice agora. – E o que isso tem a ver com o que aconteceu? – perguntei. Eu não dera nenhum detalhe sobre o assassinato de Cory, mas ela parecia supor que algo horrível acontecera a ele. E tinha acontecido. – Juro que nunca disse nada – falou, torcendo o lenço amassado na mão. Dava para ver que ela estava quase lá, era só eu ficar sentado e esperar. De repente, ela se abraçou e tirou um celular prateado do bolso de trás. Pensei que ia telefonar para alguém, mas, em vez disso, ela entrou na internet até uma página qualquer. – Aí. Eu não disse uma palavra, está bem? Quando peguei o telefone, vi que ela abrira um site chamado Randyboys.com. Mais precisamente, era um perfil de Cory Smithe (ou Jeremy, como ele se chamava lá). Quando rolei a página para baixo, vi que havia fotografias também: Cory sem camisa, de cueca, nu, de costas e com o rosto obscurecido. O perfil dizia que ele estava disponível somente para saídas, sem pernoites, sem viagens. Também não estava disponível aos domingos. – Eles me disseram que você era namorada dele – comentei. – É, bem... – Jess fez um gesto de desdém em meio às lágrimas. – Quero dizer, não me leve a mal. O Sr. e a Sra. Smithe são superlegais e tal. Só não têm ideia dessa coisa gay. E muito menos disso. Ela apontou para o celular sem olhar para ele. – Você sabe alguma coisa sobre os homens com quem Cory saía? – perguntei. – Eram clientes regulares? Ela ergueu as mãos como se não ligasse. – Ele só dizia que todos eram promíscuos e bichas velhas. Caras com dinheiro, imagino. – Você sabe onde ele se encontrava com esses caras? – Onde quisessem – disse. – Num hotel, no parque, no litoral... Ela revirou os olhos e parecia estar assimilando que o amigo se fora. Então as lágrimas começaram a voltar. – Eu disse para ele tomar cuidado. Disse mesmo, mas Cory não me ouvia. Aquele imbecil! Dei a Jess o meu último lenço e deixei que chorasse. Não havia muita coisa naquela raiva, além de um tipo de reação ao sentimento de impotência. Ela estava me dizendo tudo o que podia sobre Cory. E, com sorte, ela também tinha me dito um pouco sobre o assassino também.
capítulo 16
EU NÃO QUERIA NEM OUVIR falar de repassar informações. Depois de um dia inteiro no que seria o pior pesadelo de qualquer pai, eu tinha que dar meia-volta e aparecer em casa com alguma coisa que lembrasse um sorriso no rosto. Sobretudo hoje. Era a última noite de Damon antes que ele tivesse que voltar para o quarto trimestre do colégio e eu levaria todos para jantar no Kinkead’s. Ao menos uma vez, eu fiquei contente por estar atrasado quando voltei para casa. Precisava de uns poucos minutos sozinho. Depois de um banho, camisa e blazer, eu estava, pelo menos, apresentável para sair para comer. No momento em que me sentei no meu restaurante favorito, com minha família conversando e rindo ao meu redor, estava começando a me sentir novamente semi-humano. David Yarboro estava no piano; eu tinha uma bela taça de pinot noir à minha frente e, por um breve período, pude fingir que o meu maior problema era decidir entre o salmão e o bife com molho apimentado do Kinkead’s. A vida era boa. De verdade. Depois de todos pedirem, empurrei a cadeira para trás e fiquei de pé com a taça. Recebi alguns olhares ao redor da sala e percebi que Jannie parecia um pouco mortificada, porém, se envergonhar os filhos não era um dos privilégios de ser pai, não sei o que mais é. – Gostaria de fazer um brinde – falei. – Pra mim? Não precisa me bajular... – Nana brincou e todos riram. Minha avó me conhece melhor do que ninguém. Tenho certeza de que ela conseguia perceber que eu precisava de uma risada naquela noite. – Desculpe, Nana, mas hoje é para o nosso convidado de honra – falei. – Damon, você me enche de orgulho, todos os dias. Vamos sentir a sua falta, mas, nesse meio-tempo, um brinde a você. Um brinde a um excelente trimestre no Chapin. E, sobretudo, um brinde às férias de verão, quando voltaremos a nos ver. – Às férias de verão! – repetiram as crianças em coro. – Muito bom – disse Bree e todos ao redor da mesa tocaram os copos. Depois disso, Damon ficou de pé para fazer o próprio brinde. Dava para ver que o meu garoto mais velho, de pé na cabeceira da mesa com terno e gravata, não era mais um garoto. O fato de ele aparentar ter 20 anos, e não 15, ajudava. – A Ava – disse ele, olhando fixamente para ela. – Sei que não passamos tanto tempo juntos, mas eu só queria dizer que você é bem-vinda à família. – Bem-vinda à família – repetiram todos. Olhei para Ava e fiquei um pouco chocado ao vê-la sorrindo de orelha a orelha. Desde o sorteio na escola, ela andara aborrecida e passava muitas horas sozinha no quarto. Foi como se alguém tivesse acendido as luzes pela primeira vez em muito tempo. E por isso meu garoto, Damon, é um astro. Com poucas palavras, ele conseguiu tirar algo de Ava que eu mal conseguira nos últimos quatro meses. Ele pode ser o mais calado dos filhos, mas este é o lado bom das pessoas quietas: quando abrem a boca, costuma ser por uma boa razão. Uma excelente razão. De repente meus olhos ficaram marejados. Não me dei conta do que ia acontecer. Foi como se o dia inteiro simplesmente tivesse tomado conta de mim em uma única grande onda. Todo o estresse saíra e tudo pelo que era grato me invadira. – Papai? – Ali se inclinou e fixou os olhos no meu rosto. – Por que está chorando? – Não estou – falei, passando a mão nos olhos. – Bem, talvez, só um pouco. – Eu o puxei para o meu colo e pus os braços ao redor do seu corpo pequeno e magro. – Mas são lágrimas de felicidade. – Não liguem para ele, crianças – disse Nana a todos. – Apesar das aparências, o Sr. Matador de Dragões aqui é só um velho de coração mole. – É verdade – respondi. Então Nana piscou para mim e ergueu o copo para fazer mais um brinde. – Ao velho de coração mole, que pode chorar quanto quiser, porque é ele quem vai pagar a conta!
capítulo 17
RON GUIDICE VOLTOU PARA CASA em torno de dez e meia da noite. Depois de acordar às cinco da manhã e cruzar a cidade durante todo o dia, estava exausto. Provavelmente ficaria outra noite fora. Apenas quando chegou à porta da casa simples, em Reston, ele tirou os sapatos. Era um hábito antigo de quem havia crescido em New Hampshire, com seus longos invernos e subsequentes temporadas de lama. Ele colocou os Timberlands ao lado da porta, junto com os pequenos tênis de Emma Lee e os chinelos velhos da mãe. – Oi, mãe, cheguei! – gritou ele. Lydia Guidice acordou assustada no sofá, com sua mão gorducha no peito. Ela adormecera diante da TV ligada. – Bom Deus, você me assustou – disse Lydia. – Ainda não me acostumei com essa barba. Faz você parecer um terrorista. – Hum. – Guidice abriu a geladeira e pegou uma cerveja. – Emma Lee comeu direitinho? – Os nuggets e o purê de maçã. Ela foi dormir por volta das oito e meia. – Bom, bom. A senhora quer alguma coisa? – Um pouco de sorvete seria bom. Na verdade, a última coisa que Lydia Guidice precisava era de sorvete. Ela não tinha se pesado desde que ultrapassara a marca de 136 quilos. Mas a verdade nua e crua era que era muito mais fácil aguentar a mãe quando ela estava devorando alguma coisa. – Onde você esteve hoje? – perguntou, fazendo um esforço para sentar. – Trabalhando. – Você podia ter ligado. – Já conversamos sobre isso, mãe. Se eu não telefonar, significa que estou trabalhando até tarde. Não entendo o que é tão complicado nisso. – Só me preocupo. É só isso. Sua mão vai cair se pegar o celular? Guidice tomou um longo gole de cerveja. Era a mesma discussão, toda santa vez. – Sabe – continuou ele –, se quiser, posso facilmente levar Emma Lee e encontrar um lugar menor... – Não, não – disse a mãe. – Levo meus cheques comigo também. Acho que estão contratando lá no Safeway agora. Quer que eu traga um formulário pra você amanhã? – Não comece – disse ela e estendeu uma das mãos para pegar a sobremesa. Guidice pôs a embalagem do sorvete fora do alcance dela. – Quem manda aqui, mãe? – questionou ele. – Ai, pelo amor de Deus. – Diga. Lydia resmungou e ergueu o olhar para fitá-lo. – Você, Ronald. Sempre foi você – disse ela. – Satisfeito? Guidice entregou o sorvete e se inclinou para dar um beijo na testa da mãe. – Então vamos parar de falar disso, mãe. O que a senhora acha? A questão era que Lydia Guidice nunca terminara o ensino médio, nunca se casara com o pai de Ron e nunca tivera um emprego de verdade na vida. Agora, aos 62 anos, sofrendo de obesidade mórbida, era tão inútil quanto uma camisinha usada e ambos sabiam disso. Guidice não gostava de fazer a mãe contorcer-se desse jeito. Então, fazia isso quando era necessário. – Vou dar um beijo na Emma Lee e depois vou trabalhar no meu quarto. – Ok. – Eu te amo, mãe. – Também te amo – respondeu Lydia enquanto devorava o sorvete. – Não fique acordado até muito tarde.
capítulo 18
GUIDICE ENTROU NO QUARTO DE Emma Lee na ponta dos pés e ficou parado ao lado da cama. Ela estava toda enrolada debaixo das cobertas, como um pequeno ouriço em um canto, e dormia tranquilamente. Não havia nada mais precioso que ela para Guidice. Nada. Ele afagou a delicada bochecha da filha, tirou os cabelos louros da frente dos seus olhos e a beijou na testa. Na metade do quarto, mudou de ideia. Ele podia muito bem trabalhar ali. Sentou-se na cadeira de balanço pintada de branco perto da porta e ouviu com atenção a respiração constante de Emma Lee. Guidice colocou os fones de ouvido enquanto o notebook iniciava. Havia notas do dia para transcrever, sites para checar e listas de servidores para monitorar. Mas, primeiro, ele queria ter certeza de que estava tudo bem na casa de Alex. Como a família havia saído para jantar naquela noite, ele teve muito tempo para instalar transmissores na casa de Cross. Um atrás de cada tomada. Assim, não haveria problemas com a vida da bateria nem com perda de energia. Também havia três microfones do tamanho de uma cabeça de fósforo na cozinha, no quarto do casal e no escritório de Alex, no terceiro andar. Na pior das hipóteses, Guidice ia obter mais informação do que ele jamais teria tempo de examinar. Ele abriu todos os três canais e deixou que transmitissem simultaneamente em seus ouvidos enquanto trabalhava. Na maior parte, estava quieto por lá. Alguém assistia à TV e parecia que, talvez, Alex estivesse no escritório, simplesmente por causa do som de páginas virando e a ocasional limpada de garganta. Era uma experiência bizarra, na verdade. Ficar sentado coletando material na privacidade do quarto da filha. Um momento de paz no meio da tempestade. Ainda havia Lydia com quem se preocupar, mas até agora ela vinha sendo útil para ele. De certo modo, era como se a mãe soubesse quais perguntas podia fazer e quais devia evitar. Como a pergunta sobre como conseguiam dinheiro para viver, para começo de conversa. Os relatórios de Guidice não tinham trazido nenhuma renda por algum tempo. Não desde que tudo mudara, desde o acordo financeiro, depois que os guardas tiraram sua vida. Como se um monte de dinheiro pudesse acabar com o que tinham feito! O modo como deixaram Theresa morrer naquela noite, bem na calçada, como uma criminosa comum, não era mais que incompetência rotineira. E não apenas Theresa. Ninguém soubera na época, mas a criança no ventre dela morrera naquela noite também, junto com a única mulher que ele amara. Ambos assassinados a sangue-frio. E tudo por culpa de Alex.
capítulo 19
ELIJAH CREEM SENTIA PRAZER EM cortar a própria toranja de manhã. Ele gostava do modo como a carne membranosa cedia com facilidade e como isso exigia certa dose de precisão com a lâmina da faca. Ele não se apressou. Demorou-se no café da manhã de frutas, bife e ovos mexidos enquanto lia o Post. Uma história em particular chamou sua atenção. – Kate – disse, chamando a governanta. – Senhor? – respondeu ela, enfiando a cabeça pela porta da sala de jantar. – Você poderia me trazer o telefone? Acho que está no corredor. – Certamente – respondeu ela. De acordo com o jornal, um garoto de Columbia fora baleado, esfaqueado e jogado no Potomac e seu corpo tinha sido encontrado boiando na véspera. A cobertura do Post, pelo menos, indicava que a polícia não sabia quem poderia ter feito isso. – Ah, eu soube dessa história – comentou Kate, que voltara rapidamente com o telefone e olhava por cima do ombro do Dr. Creem. – Estava em todos os canais ontem à noite. – Estava? – repetiu Creem. – Que morte terrível... Ele gostou do fato de ela não se afastar. Em vez disso, inclinou-se para mais perto e deu uma olhada na foto preto e branco da vítima. Estava perto o suficiente para que Creem apoiasse a mão delicadamente na curva do seu traseiro. – Tão jovem – comentou ela. Ela não se encolheu ao toque dele. Kate, que tinha problemas com o green card e o pai doente, certamente sabia que não podia abusar da sorte. – É isso, por enquanto – disse Creem e piscou para ela enquanto a mulher servia o café. Ela sorriu. Ele esperou até que ela estivesse de volta à cozinha, fora do alcance. Então pegou o telefone e ligou para Josh Bergman. – Elijah? – respondeu Bergman. – Alguma coisa errada? – Não – disse Creem. – Sei que concordamos em manter certa distância por enquanto. Mas estou lendo o jornal e preciso perguntar... Fez algo interessante ultimamente? – Ah, isso – disse Bergman, fingindo indiferença. – Imaginei que fosse você – disse Creem. Josh realmente elevara o nível do jogo desde a última vez. Impressionante. – E como vai você, Elijah? – Nunca estive melhor – respondeu Creem ao amigo. Talvez a antiga vida tivesse sido destruída, mas a nova renascia aos poucos, semelhante a uma fênix, para tomar seu lugar. – A verdade é que passei os últimos dezesseis anos odiando a minha mulher. Simplesmente não me dei conta até ela ir embora. – E quanto às garotas? – Sinto muita falta delas – falou Creem. – Mas ser livre também é bom. Embora não tenha mais aqueles jantares na minha agenda, estou considerando seriamente aquela empregadinha de olhos escuros. – A Kate? Boa escolha – comentou Bergman. Ele gostava de ouvir sobre a vida sexual de Creem, só que tentava disfarçar. – O que o impede? – Nada, eu acho – respondeu Creem. – Mas, Josh, preste atenção. Há mais uma coisa. Quero que você saiba quanto gosto de você. Quanto eu gostei de você durante tudo isso. – Elijah, você andou bebendo? – Estou falando sério – continuou ele. – Acho que você é o único amigo de verdade que já tive. – Está bem – disse Bergman. – Então me deixe ouvir enquanto você come a empregada. Creem deu uma gargalhada. Eles divertiam um ao outro, sem dúvida. – Vou desligar agora, Josh. Obrigado por estragar o momento. – Lembre-se que a bola está na sua quadra – disse Bergman. – Sim, claro – concordou Creem. – Mal posso esperar.
Então ele desligou o telefone, pegou a faca serrilhada pequena na mesa e partiu para a cozinha.
capítulo 20
KATE ESTAVA LAVANDO A LOUÇA quando ele entrou. – Posso ajudá-lo, Dr. Creem? – perguntou ela. – Não, não. Tudo bem – disse ele e parou perto da pia. – Só devia ter dito antes que você pode pegar o que sobrou no closet da Miranda no segundo andar. Acho que ela vestia o mesmo tamanho que você. – Isso é muita gentileza. Obrigada. – Além disso, não há mais necessidade de usar uniforme – disse ele, apontando para o vestido cinza e branco com avental que ela usava. – Era mania da Miranda, não minha. Kate continuou a lavar o copo em sua mão, mas deu um sorriso bonito. Para uma garota que obviamente nunca fizera nenhuma plástica, ela era um excelente espécime. – Por falar nisso, como é que você consegue fazer alguma coisa vestindo isso? – perguntou Creem. Ele esticou o braço e pegou a bainha do uniforme dela, deixando o polegar roçar em sua coxa. – Parece terrivelmente desconfortável. – Não sei – respondeu ela e baixou o olhar. – Acho que você ficaria muito mais confortável assim. Creem ergueu a faca na mão até a parte de trás da gola branca. Ele puxou o tecido, enfiou a lâmina e cortou uma linha irregular do pescoço até o fim da saia. A mulher deu um gritinho quando ele fez isso e se enrijeceu no mesmo instante. Assim como Creem. – Está tudo bem – disse ele. – Sou cirurgião. Você está em boas mãos. Ela deu uma risada nervosa, mas também pressionou o corpo contra o dele. Ela o queria, não é? Claro que sim. Ele era o Dr. Elijah Creem. Havia todo tipo de coisas que ele podia fazer para ela. E com ela. Creem esticou a mão para a frente e, em seguida, cortou o tecido fino da calcinha. Não era a mesma coisa que cortar carne, mas tinha seu charme. Além disso, sua vida já estava complicada o suficiente. Ele não poderia matar a própria empregada. Como era a expressão...? Não cuspir no prato em que se come? Em vez disso, curvou-a sobre a pia, com a água morna ainda escorrendo, e penetrou-a bem ali. – Relaxe – disse ele. – Vai ser gostoso. Passou a ponta da faca levemente pela pele exposta das costas dela. Com a menor pressão, apenas o suficiente para erguer algumas poucas células epiteliais, deixou uma fina linha branca, semelhante a uma minúscula marca de giz. Ela estremeceu quando ele fez isso. Se o fez porque gostava ou porque estava fingindo, Creem não se importava. Ele não demorou muito. O uniforme destruído e a visão da garota inclinada sobre a pia, com os cabelos úmidos devido à água quente, foram suficientes. Com a imagem mental da faca entrando nela, Creem rapidamente chegou ao orgasmo. Quando acabou, mandou que Kate subisse e pegasse alguma roupa para vestir. Ele até lhe deu dinheiro para ir ao shopping e o restante do dia de folga. – Obrigada, Dr. Creem. Muito obrigada. – Não. Eu é que agradeço – disse Creem. – Que bela maneira de começar o dia. Ele sorriu enquanto ela saía. Deixaria que se divertisse por enquanto. No fim da semana, ela já procurava outro emprego.
capítulo 21
O ENCONTRO DE CREEM COM O advogado estava marcado para as nove e meia da manhã. Ele apareceu nos escritórios da Schuman e Pace, na Rua L, pouco depois das dez. – Elijah – cumprimentou Bill Schuman, contornando a escrivaninha para apertar sua mão. – Que bom ver você. Fez uma pausa para Creem pedir desculpas pelo atraso, mas o médico simplesmente assentiu. De qualquer forma, ele cobraria por aquele tempo. – Sente-se, por favor – disse o advogado. Ele se sentou no sofá de tweed perto da porta, em vez da cadeira giratória de couro à escrivaninha de Schuman. O advogado pareceu um pouco confuso, mas não disse nada. – Me diga sem rodeios, doutor. Quanto tempo de vida eu tenho? – perguntou Creem. – Você está de bom humor – observou Schuman. – Acabei de trepar, se você quer saber. O advogado olhou para ele com uma expressão entre ofensa e inveja. Era o olhar de um cara que raramente trepava. – De qualquer forma – prosseguiu Schuman –, as coisas estão indo. Lew Carrol vem de Nova York para me ajudar e eu já consegui dois dos melhores consultores da cidade para esse julgamento. – Ótimo. Ótimo. Temos que fazer muita coisa? Agora que Josh estava com tanta determinação, ele tinha coisas muito mais interessantes em que pensar. – Bem... sim – retrucou Schuman. – Claro que temos. Elijah, você tem que se concentrar. Se quer fazer bom uso do seu dinheiro nessa defesa... – A 825 dólares a hora, não sei se isso é possível – disse Creem. Schuman elevou a voz. – O senhor terá que aparecer. E eu não quero dizer apenas fisicamente. A acusação de prostituição é fraca e conseguiremos contornar, mas quero conversar sobre a acusação de pornografia. É aí que o caso fica duro. Creem queria dizer “sem duplo sentido, por favor”, mas manteve a boca fechada. – O pior cenário poderia ser o tempo de prisão real – disse Schuman. – Cinco anos por posse ou, no máximo, quinze se mencionarem distribuição... Você está prestando atenção? – Quando você imagina que eu vá a julgamento? – Creem fez a primeira pergunta séria. – Quatro de junho – respondeu Schuman. – A menos que eu possa falar de alguma coisa mais palatável. – Como o quê? – Bem, um acordo, por exemplo. – Não – retrucou Creem. – Elijah, ao menos ouça as opções... – Não. – Creem ficou de pé e foi até a janela. – Não farei acordos. Vou esperar o julgamento. Simplesmente faça a droga do seu trabalho. – Eu estou fazendo a droga do meu trabalho! – gritou Schuman, mostrando o primeiro sinal de irritação. – Não compreendo. Por que você não...? Então ele se interrompeu e baixou a cabeça. – Ah... merda. Por favor, não me diga que... Então Schuman se pôs de pé e foi até o local em que Creem observava o tráfego na Rua L. – Elijah, por favor, diga que não está planejando fazer nada idiota, como fugir do país. Creem voltou a sorrir, baixando os olhos para Schuman. Talvez o homenzinho fosse mais inteligente do que parecia. – E por que eu faria uma coisa dessas, Bill? – perguntou ele. – Tenho o melhor advogado da cidade trabalhando para mim.
capítulo 22
NA REUNIÃO DAQUELA TARDE, a sargento Huizenga fez todos se agitarem ao nos contar que recebeu uma mensagem de cima: todos os pedidos de horas extras até segunda ordem tinham sido aprovados. Isso mereceu uma rodada de aplausos. Muitas vezes os guardas trabalhavam contra o relógio quando a polícia ficava em situação semelhante à atual. Sem dúvida, assim era melhor. – Um palpite... – Ouvi alguém resmungar atrás de mim. – Al Ayla. Poucos meses antes, Washington recebera vários avisos da organização terrorista saudita, também conhecida como “A Família”. Tanto o prefeito quanto o chefe de polícia passaram por poucas e boas por causa disso, com acusações de recursos desviados e lentidão nas respostas à crise. A única coisa boa que resultara disso era que agora nós tínhamos recursos que nos permitiam fazer alguma coisa. As unidades de patrulhamento em Georgetown e nos arredores foram dobradas durante o dia e, em alguns casos, triplicadas à noite. Uma linha exclusiva fora criada e o nosso pessoal de apoio estava nas ruas diariamente. Parte disso tinha a ver com a ampliação do efetivo da investigação, sem dúvida, mas parte também estava relacionada com evitar o inevitável açoite público que se obtém, por mais que se trabalhe duro. Cada um dos homicídios agora tinha um detetive chefe, além de um esquadrão inteiro de investigadores. Eu ficaria correndo entre os três, com o pessoal que eu conseguisse dos distritos, se necessário. Huizenga estava satisfeita por eu trabalhar com Sampson na busca pelo bebê Reilly, pois a Divisão de Casos Especiais estava sem pessoal naquele momento. Enquanto os três casos estivessem agrupados sob um único guarda-chuva, eu era o cara que o segurava. Quando Huizenga cedeu o espaço para mim, comecei colocando as fotos das três vítimas na tela, na frente da sala, para que todos vissem. Não foi fácil olhar, mas toda a minha concentração agora estava focada em tentar encontrar a ligação entre os casos. – Eles estão oficialmente em ordem cronológica, da esquerda para a direita – disse a todos. – A autópsia determinou que a morte de Cory Smithe se deu 24 horas após a de Reilly e 40 após a de Darcy Vickers. As pessoas começaram a fazer anotações. Algumas apenas observavam e ouviam com atenção, assimilando os detalhes, o que tinha mais a ver com o meu estilo. – Além do problema do tempo – falei –, temos uma boa quantidade de pontos em comum aqui. No entanto, quase nada que encontrei até agora ocorreu em todos os três casos. Duas das vítimas foram esfaqueadas, por exemplo, embora as feridas da Sra. Vickers tenham sido fatais, enquanto as do jovem Smithe sejam uma mutilação post-mortem. Em ambos os casos, foram feitas com uma lâmina estreita, mas não idêntica. – Duas dessas vítimas obviamente eram mulheres – continuei. – Duas foram encontradas em Georgetown, embora não tenhamos certeza de onde Smithe foi deixado no rio, portanto a cena principal do crime nesse caso continua desconhecida. O capitão do nosso Departamento de Homicídios, Frank Salazar, interrompeu para fazer uma pergunta, provavelmente a pergunta na mente de todos: – Alex, sei que estamos na fase de suposições, mas qual é a sua conclusão neste momento? Para quantos assassinos você acha que estamos olhando? Levei um minuto para pensar. A resposta direta era: Eu queria saber. – Esse é o problema – respondi. – Não há cenário agora que não desafie a lógica ou, ao menos, a verossimilhança. Nunca vimos nada como isso antes. Mas vou dizer que me parece que um único assassino é algo altamente improvável. A questão mais importante na minha cabeça é se nossos assassinos estão agindo ou não de modo independente. Isso caiu como um balão de chumbo. As pessoas estavam ficando ansiosas por respostas, dentro e fora do departamento. Mas sem mais informações, ainda estávamos em voo cego em todos os três homicídios. Durante todo o tempo em que falava, senti o meu celular vibrando. Uma, duas, três vezes. Assim que Huizenga tomou a palavra, peguei o telefone e dei uma olhada nas mensagens. Todas eram de Sampson: dois correios de voz e uma mensagem de texto. Para mim, parecia um bom sinal. Como ainda estava na sala de reunião, dei uma olhada na mensagem de texto. Era exatamente o que eu queria ler: Alex, pacote encontrado. Telefone, URGENTE.
capítulo 23
NA MANHÃ SEGUINTE, SAMPSON E eu pegamos o primeiro voo para a cidade de Savannah, na Geórgia. O bebê de Elizabeth Reilly fora encontrado três dias antes. Na verdade, a bebê. Sozinha e recém-nascida, em uma cabana alugada na fronteira norte da reserva florestal Okefenokee. Se não fosse pelo Codis, a base de dados nacional de DNA, essa garotinha teria sido absorvida pelo sistema, levada para adoção e provavelmente nunca seria identificada. Em vez disso, assim que a amostra dela entrou on-line, foi apenas questão de tempo até Sampson cruzá-la com a de Elizabeth Reilly. Com o DNA, isso significava certeza de cem por cento de que a menina era a filha dela. Um assistente do delegado do condado de Charlton, Joe Cutler, se encontrou conosco quando chegamos, no fim da manhã. O local, um terreno de 30 acres, tinha uma dúzia de unidades para alugar e Cutler nos pôs a par de tudo enquanto dirigíamos para a cabine em questão. Eu nem sei o que esperava ali, mas queria saber o que acontecera à pobre menina. – Recebemos uma ligação anônima. Encontrei a pequenina chorando, toda embrulhada em uma toalha – contou Cutler. – Provavelmente não tinha mais que algumas horas de nascimento, mas nós a levamos direto para a unidade neonatal do Charlton Memorial. Ela está bem. Mas, claro, não foi graças a quem a deixou ali. – Nenhuma informação de quem ligou? – perguntei. – Não, mas eu apostaria na mãe. É provável que fosse uma adolescente que não teve coragem de admitir que engravidou, sabe? Talvez, pensei. Obviamente Cutler tinha os próprios sentimentos em relação ao que acontecera aqui, mas eu estava tentando manter a mente aberta enquanto dirigíamos pela mata. Por fim, chegamos a uma clareira, onde uma cabana de madeira se erguia contra enormes carvalhos. A mata era bastante densa e, se havia outras construções nos arredores, eu não conseguia ver. A cabana era uma das chamadas unidades de luxo, o que, na prática, apenas significava que havia um banheiro dentro dela, além de toalhas e roupas de cama. Ainda assim, ali Elizabeth poderia ter tudo de que precisava para dar à luz seu bebê, incluindo total privacidade. Na porta da frente, Cutler parou e indicou marcas ao redor da maçaneta de ferro. – Na verdade, ela não alugou o local – falou ele. – Apenas o usou. Dá para verificar a disponibilidade on-line, portanto, não teria sido muito difícil saber qual estaria vazia. O interior da cabine era bem iluminado, limpo e simples. Resumia-se a uma sala com piso corrido de madeira de pinheiro, com uma mesa feita do mesmo material, uma pequena cozinha e uma cama queen size debaixo da janela. Uma prateleira no canto continha alguns jogos de tabuleiro e livros de ficção: James Patterson, Daniel Silva... Nada que indicasse o que realmente poderia ter acontecido ali. Tentei imaginar a cena. Será que Elizabeth havia se administrado a pitocina? Quanto tempo durara o parto? A garota tinha que estar apavorada, mas isso apenas significava que alguma coisa mais terrível a motivara para chegar ali. Alguma coisa... ou alguém. Seria o pai? O assassino? Seriam eles a mesma pessoa? Eu não tinha provas, mas essa era a versão da história que fazia mais sentido para mim, enquanto John e eu dávamos uma olhada ao redor, tentando juntar as peças desse quebra-cabeça invisível. – Vou dizer uma coisa – falou Cutler, observando da porta. – Espero que o pai não apareça para pegar a filha. A julgar pela mãe, não imagino que ele seja grande coisa também, sabe? Quero dizer, falando sério, em que diabos a garota estava pensando? É o que eu gostaria de saber. Não falei nada, mas comecei a pensar que talvez Elizabeth Reilly apenas estivesse tentando salvar a vida da filha. E que tinha conseguido.
capítulo 24
SHELLMAN BLUFF, CERCA DE DUAS horas ao norte de Okefenokee, é uma cidade pesqueira, na Geórgia, com pântanos ao longo da costa. No mapa, toda a área parece um labirinto de afluentes que alimentam Sapelo Sound, que, por sua vez, alimenta o Atlântico. Sampson e eu não tivemos dificuldade em encontrar a casa de Tommy e Jeannette Reilly, uma pequena construção com vista para um beco sem saída de uma estrada tranquila na aldeia. Tinha sido ali que Elizabeth Reilly crescera e talvez fosse onde a filha dela cresceria também. Fazia 29 graus quando saímos do carro. Não era raro na Geórgia, mas um pouco acima da temperatura com a qual estávamos acostumados. De terno e gravata, eu suava. Perto da água, vi uma senhora mais velha de pé na doca. Ela usava um vestido solto, branco, e tinha uma trança comprida grisalha que descia pelas costas. Quando deu meia-volta, percebi que segurava cuidadosamente um pequeno embrulho. John e eu caminhamos pela estrada suja para encontrá-la no meio do caminho, no trecho marrom e seco de um gramado nos fundos da casa. – Cresceram em Washington, não foi? – perguntou ela, esticando o pescoço, principalmente para Sampson, que tem uns 2 metros. Tínhamos conversado pelo telefone; não havia necessidade de apresentações. – Imagino que estejam com fome por causa da viagem. – Não se preocupe com isso, senhora, obrigado – disse Sampson. A Sra. Reilly sorriu e se virou para nos mostrar a garotinha. – Esta é Rebecca – disse ela. – Nosso milagre. O bebê dormia tranquilamente, enrolado em um cobertor cor-de-rosa. O rosto também era rosinha, por causa do calor, e os cabelos tinham o mesmo tom louro da mãe. Para mim, havia uma sensação de alívio apenas de olhar para ela depois de toda a busca e preocupação em relação ao que poderia ter lhe acontecido. Acho que era provável que Sampson se sentisse da mesma maneira. Dentro da casa, encontramos Tom Reilly, que parecia ter 60 e poucos anos. Eu não poderia imaginar segurar um recémnascido nessa idade, mas ele se iluminou ao pegar Rebecca nos braços. Estava claro para mim que aquelas pessoas já tinham se apaixonado profundamente pela bisneta. Talvez fosse o motivo para eles parecerem tão em paz, depois de tudo. Assim que nos sentamos ao redor da mesa da cozinha, comecei a conversa necessária. – Sr. e Sra. Reilly, não quero alarmá-los – falei –, mas tenho que perguntar: já pensaram em se mudar ou mesmo em deixar Rebecca sob custódia do condado até isso se resolver? – Você diz, até encontrarem quem matou a nossa Lizzie? – completou o Sr. Reilly. – Isso mesmo – concordei. – Somente por precaução. – Sabe, aqui não é Washington, detetive – disse ele, balançando o bebê delicadamente em seu ombro. – Não quero parecer ingênuo, mas é muito tranquilo por aqui. Acho que ficaremos bem. – Mas agradecemos a preocupação – acrescentou a Sra. Reilly. Fiz que sim com a cabeça e levei um tempo para dizer algo. Eu podia imaginar que abrir mão de Rebecca, mesmo que só por um tempo, poderia ser traumático naquelas circunstâncias. – E se nós conversarmos com o delegado para manter uma unidade na sua rua? – perguntei. – Apenas à noite, até segunda ordem. Eu me sentiria muito melhor se nós pecássemos pelo excesso. – Pelo bem de Rebecca – acrescentou Sampson. Os Reillys se entreolharam. Sem dizer nada, pareceram chegar a algum tipo de acordo silencioso, como os casais fazem algumas vezes. – Façam o que tiverem que fazer – disse o Sr. Reilly. – Eu ainda acho que vocês vão desperdiçar o tempo do Earl, mas não vou mandá-lo embora. Com isso acertado, pudemos passar para o próximo assunto. – Sei que provavelmente já perguntaram isso antes – falou Sampson –, mas existe alguém com quem deveríamos conversar em Washington? Algum amigo ou namorado que Elizabeth mencionou? Ou alguém que poderia ter algum tipo de rancor contra ela?
O Sr. Reilly balançou a cabeça e foi pôr Rebecca no pequeno berço perto da janela. – Não tenho certeza se Lizzie tinha muitos amigos por lá – respondeu ele. – Nós achávamos que Washington ia ser uma chance para ela abrir as asas, mas ela nunca ligou para isso. Ou para as pessoas de lá. – Havia um garoto – disse a Sra. Reilly. – Suspeito que ele seja o pai e, talvez, até... – Ela se interrompeu, perdida. – Talvez seja quem vocês estão procurando. Mas, sinceramente, não tenho ideia. Sampson pegou o bloco e uma caneta. – Vocês sabem um dos nomes? – perguntou. – Russell – respondeu ela, enquanto John anotava rapidamente. – Russell? É primeiro nome ou sobrenome? – Primeiro nome – respondeu a Sra. Reilly. – Pelo menos, é o que imagino. Lizzie só o mencionou em algumas cartas. Depois ele simplesmente saiu do radar. – A senhora teria alguma dessas cartas? – perguntei. O sorriso que eu vira antes voltou ao rosto da Sra. Reilly. – Ora, querido, eu tenho todas elas – falou. – Ninguém mais escreve cartas de verdade, mas Lizzie escrevia. Imaginei que valia a pena guardá-las. Fique quietinho aí. Vou pegar minha caixa.
capítulo 25
DURANTE A HORA SEGUINTE, SAMPSON e eu nos sentamos na varanda dos fundos dos Reillys revirando uma caixa antiga, cheia de cartões e cartas que Elizabeth enviara aos avós nos dois anos que passara em Washington. Nós organizamos tudo por data, de acordo com o selo, e começamos a ler. A maioria das cartas era no mesmo papel rosa e cinza com o monograma de Elizabeth no topo. Muitas delas eram decoradas com pequenos desenhos e imagens engraçadas nas margens e Elizabeth sempre assinava com um coração no lugar do pingo do i. Ao mesmo tempo, muitas das cartas eram dolorosamente sinceras sobre a solidão que a jovem sentia e sobre como era difícil conhecer as pessoas na cidade. O que comecei a colher ali era a imagem de uma garota que tinha sido um pouco ingênua em relação ao mundo, um pouco infantil para a idade e provavelmente vulnerável demais para um predador. Quanto ao tal Russell, a primeira menção a ele estava escondida no meio de uma longa carta de abril do ano passado.
Quer ouvir uma coisa engraçada? Conheci um rapaz legal no outro dia. Na lavanderia, podem acreditar? Entre tantos lugares... Nunca se sabe, certo? Ele conversou comigo durante todo o tempo em que estive lá e até se ofereceu para pagar pela secagem. Achei fofo, mas disse que não. Quem sabe na próxima vez. Vou contar um segredo para vocês: espero que TENHA uma próxima vez. Não é fácil encontrar cavalheiros na capital da nação!!! Alguma coisa me diz que vou ter roupas super-hiperlimpas nas próximas semanas, hahaha.
A menção seguinte veio um mês depois, quando ela escreve que se encontrara com o “cara da lavanderia (que, por sinal, se chama Russell)” e que, dessa vez, aceitara um convite para jantar. Uma carta posterior descreveu como Russell a levara em um passeio para ver os monumentos à noite. Era muito falante e nunca dava outros detalhes sobre de onde esse cara era, o que fazia para viver ou quem era realmente. Se Russell estava escondendo essas informações de Elizabeth ou se ela as estava escondendo dos avós, não dava para saber. O que sei é que, no início de dezembro, ela estava mentindo para eles.
Queridos Vovó e Vovô, Estou escrevendo para contar algo que estou nervosa demais para contar pelo telefone. Parece que não vou para casa para o Natal, no fim das contas. Temos provas depois do recesso e prometi ao grupo de estudo que os encontraria três vezes por semana nesse meio-tempo. POR FAVOR, NÃO ME ODEIEM!! E nem pensem em vir até aqui. O Natal não seria o mesmo e, de qualquer forma, os hotéis são absurdamente caros. Saibam apenas que amo vocês e que vou visitá-los quando puder. Todo o meu amor é de vocês, Lizzie
A carta tinha data de 11 de dezembro, oito dias depois de Elizabeth ter abandonado a faculdade de enfermagem. Ela também deveria estar com cinco meses de gravidez. Ela nunca conseguiu voltar para casa. A última carta que enviou foi um cartão de aniversário para Tommy, em março passado, na qual escrevia sobre as aulas que eu sabia que não estava cursando e falava várias vezes quanto queria ver os dois no verão, provavelmente depois de o bebê nascer. John e eu terminamos de ler a correspondência de Elizabeth. Era hora de ir embora. Não tínhamos todas as respostas, mas tínhamos uma nova pessoa nesse caso. Assim que entramos no carro, telefonei para Bree. Eu não queria esperar. Não queria esperar por nada agora. Além disso, a gravidez de Elizabeth já vazara na imprensa. Não havia muitas pessoas em quem confiar nessas questões. – Tenho um nome que quero pesquisar – falei para Bree, enquanto Sampson dirigia. Bree buscaria a informação no Centro Nacional de Informações sobre Crimes, uma base de dados administrada pelo FBI. Qualquer um que já tenha sido preso, condenado ou detido no país está nela. Não era completa para nossos objetivos, mas era um bom começo. Eu também voltaria aos registros telefônicos de Elizabeth, examinaria a correspondência e entrevistaria os
professores da faculdade de enfermagem. Qualquer coisa em que eu pudesse pensar para obter algo sobre o suposto namorado dela. – Qual é o nome? – perguntou Bree. – Russell. – Russell? É primeiro nome ou sobrenome? Sorri, mesmo sem querer. – Primeiro nome, acho, mas deveríamos tentar de ambas as formas. – Você está brincando, não é? – disse Bree. – Você sabe quantos registros isso vai nos dar? – Eu queria estar brincando – falei. – Provavelmente vai haver um endereço na área de Washington nos últimos dois anos. Esse cara talvez seja o pai do bebê de Elizabeth Reilly. Talvez seja o cara que a matou também. – Tem um monte de “talvez” – disse ela. – Eu sei, eu sei. Mas a essa altura, “talvez” era melhor que nada.
capítulo 26
ELIJAH CREEM PEGOU UMA PEQUENA escova de crina de cavalo na escrivaninha e acrescentou diversos pontos de um pigmento amarelado à máscara mais recente. Elas vinham totalmente prontas do fabricante no Arkansas, mas sempre havia alguma coisa a acrescentar. Não era um modo ruim de passar a noite de sexta-feira, considerando o prazer que isso lhe daria com o passar do tempo. Quanto mais velho e feio pudesse tornar esses rostos, melhor. Quando o celular tocou em seu bolso, Creem o ignorou. Havia poucas pessoas com as quais ele estava interessado em conversar. Ainda mais considerando a variedade de canalhas que se incomodava em telefonar: advogados, credores e, eventualmente, repórteres procurando um novo ângulo no escândalo que agora ele começava a ser. Em vez disso, ele aplicou uma fina camada de cola à base de álcool no lábio superior da máscara e espalhou um bigode no lugar com cuidado. Mais tarde, quando estivesse totalmente seco, ele o pintaria de cinza-prateado, para combinar com a peruca que escolhera. Foi somente na segunda vez que o celular começou a tocar que Creem pensou em dar uma olhada na identidade de quem estava telefonando. Era Josh Bergman. Claro. Ele não parecia se importar em manterem distância. – Josh – atendeu. – A que devo o dúbio prazer? – Olá, Dr. Creem, é Joshua Bergman. Como o senhor está passando hoje? A voz de Bergman estava formal e ridiculamente animada do outro lado da linha. – Ah – disse Creem. – Suponho que você não esteja sozinho... – Bom. Bom. Alegro-me em ouvir isso. Ouça, tenho uma jovem aqui em meu escritório. Estou pensando em contratá-la para a agência, mas gostaria que fizesse uma consulta rápida com o senhor primeiro – disse Bergman. – Se você estiver disponível, claro. Sei que é um pouco tarde. Elijah Creem abriu um sorriso largo, enquanto sentia a própria pulsação aumentar. Indicações entre seu consultório e o escritório de Josh não eram novidade. Bergman lhe enviara mais de 1,5 milhão de dólares na forma de clientes nos últimos anos, incluindo um bocado de “possibilidades” que acabaram na cama com Creem. Mas aquilo fora antes. Isto era agora. E tudo mudara nesse meio-tempo. Josh não estava apenas incrementando o próprio jogo, estava? Agora ele tentava elevar o nível do jogo de Creem também. Ou era isso ou estava ansioso para agilizar as coisas e fazer a bola voltar para a própria quadra. Não importava. A questão era que Joshua Bergman sabia exatamente do que Elijah Creem gostava. – Isso é uma surpresa – disse Creem. – Imagino que ela tenha muito potencial. – Sim. Sim. Muito potencial – retrucou Bergman. – Quase perfeita, na verdade. Mas é aí que o senhor entra, não é, doutor? Que tal se passarmos na sua casa por volta de oito? E lá estava. A jogadinha suja de Josh. – Entendo – disse Creem. – Você quer estar aqui quando acontecer. O que é isso, sua comissão? Bergman deu uma gargalhada. – É por isso que gosto de trabalhar com você, Elijah. Você me conhece muito bem. – Ele pareceu estar pondo a mão sobre o fone e, em seguida, se dirigiu à garota: – O Dr. Creem disse que mal pode esperar para conhecê-la, querida. Era, na verdade, uma atuação incrível. Havia poucas pessoas mais confiáveis no mundo das modelos quanto homens gays. E quem mais além de Josh Bergman poderia bancar a amiga e, ao mesmo tempo, oferecê-las para a diversão em seguida? Creem olhou para o relógio. Passava das sete horas. – Às oito e meia – disse ele. – Não estacione na rua. Deixarei a garagem aberta. E... Josh? – Sim. – Se você a está trazendo até aqui, vai ter que se livrar dela. Não vou assumir isso – observou Creem. – Fui claro? – Perfeitamente – disse Bergman. – Bom conversar com o senhor, doutor. Nos veremos em breve.
capítulo 27
PONTUALMENTE ÀS OITO E MEIA, a campainha do lado de fora da sala de espera no primeiro andar da casa do Dr. Creem tocou. Bergman era quase sempre superpontual e hoje não foi exceção. Quando Creem abriu a porta, ele já estava lá, de braços dados com uma beleza loura. Vestia um blazer simples, de dois botões, sobre uma camisa branca com a gola aberta. Era o “uniforme”, como chamava. A jovem usava um vestido curto preto que dizia: “Sou uma modelo séria, mas não me oponho a masturbar um homem ou dois para subir na carreira.” – Eu tinha razão, não tinha? – disse Josh. – Você tinha razão – confirmou Creem, fazendo um gesto para que ambos entrassem. – É uma garota adorável, senhorita...? – Larissa Swenson, Dr. Elijah Creem. – Bergman fez as apresentações, enquanto seus olhos percorriam a sala. – Não creio que você tenha algo para bebermos aqui, não é, Elijah? – Muito obrigada por me receber – disse a garota. A mão que ele apertava era quente e a pele, perfeitamente macia. – O Sr. Bergman disse que o senhor é o melhor. – O Sr. Bergman é um homem inteligente – ressaltou Creem, com os olhos fixos nos dela. – Joshua, veja no console na sala de televisão, seguindo o corredor. Ele já se esquecera do nome da garota, mas ela era, de fato, perfeita. Ele podia sentir a adrenalina subindo sua espinha. Era a sensação de voltar à vida. Sentira-se da mesma maneira na noite de Darcy Vickers. – Minha secretária está de folga esta semana – disse à garota. – Nos preocuparemos com a papelada depois. – Ótimo. Ótimo. – Bergman respondeu por ela, voltando à sala com três copos em uma das mãos e um decantador de cristal na outra. – Larissa? Elijah? Uma bebidinha? – Não, obrigada – respondeu educadamente a garota. – Depois, talvez – disse Creem. – Como quiserem. Bergman se serviu dois dedos de bebida e olhou para a porta da sala de exame. – É ali, suponho? – falou, sem tentar conter a agitação, o que era engraçado e, ao mesmo tempo, nojento. – Vocês dois... vão entrar? – perguntou a garota. Subitamente, ela pareceu cautelosa, mas Creem lhe deu o seu melhor sorriso profissional. Sempre funcionava. – É no melhor dos interesses – garantiu ele. – Josh vai arcar com os custos dos procedimentos, como tenho certeza. Mas se você preferir cancelar a consulta, agora seria uma boa hora para dizer. – Não – respondeu a garota rapidamente. – Está tudo bem. Ela parecia mais estar convencendo a si mesma. Quem disse que não havia ambição cega? – Tem certeza? – perguntou Creem, mais para fazer graça. Sabia que ela já estava em suas mãos. Poucos minutos depois, os três se encontravam na sala de exame. Creem estava parado, esperando, com uma prancheta na mão, enquanto a garota saía do cubículo com uma camisola hospitalar azul e fina. Josh a observava, em expectativa. – Então – disse Creem, baixando os olhos para o formulário de internação em branco à sua frente –, em que estamos pensando aqui? – Aumento dos seios, com certeza – sugeriu Bergman. – Queremos que Larissa trabalhe em anúncios, passarela, editoriais... tudo. – Não é, querida? – Com certeza – respondeu a garota, com outro sorriso determinado. Creem pousou a prancheta atrás dela e tirou o marcador de aço inoxidável do bolso. – Muito bem, fique esticada e bem ereta, com as mãos no quadril. Ele desamarrou a camisola na frente e deu um passo para trás, interpretando ao máximo. – Bela simetria. Boa elasticidade da pele – disse ele. – Tudo de que realmente preciso é fazer uma pequena incisão bem aqui. Ele usou o marcador para traçar uma linha sob o seio da garota. Porém, não era para mostrar a ela, mas a Bergman. Josh fora simpático o suficiente para arranjar aquela pequena entrega a domicílio. – É onde eu gostaria de cortar. Está vendo? – perguntou Creem.
– Estou vendo – disse Bergman. A garota apenas fez que sim com a cabeça. – Mas não vamos nos limitar aqui – prosseguiu Creem. – Devo continuar? – Definitivamente – respondeu Bergman, servindo-se de outra bebida. – Diga-me em que está pensando, Elijah. Creem se afastou para o lado e voltou a usar o marcador, encostando a ponta nos músculos oblíquos bem torneados. – Vamos dizer que queremos fazer uma pequena lipoaspiração, enquanto estamos por aqui. Nesse caso, eu poderia tentar vir bem aqui ou talvez até aqui. Haveria mais resistência aqui, mas isso significaria uma recompensa maior... quando a lâmina entrasse. Algo assim? – perguntou Creem para a garota, mas quem respondeu foi Bergman. – Sim – falou. A voz estava mais baixa que antes. – Algo assim. – E quanto às coxas? – prosseguiu Creem e voltou a atenção para baixo. Desenhou outra linha, ao longo dos psoas e parou exatamente sobre a artéria femoral, sua favorita. – É aqui que eu gostaria de cortar. Bem aqui. – Sim – concordou Bergman. A garota piscou algumas vezes. Parecia confusa agora, o que era bom. – Vou apenas fazer umas anotações – disse Creem e indicou a camisola mais uma vez. – Você pode fechar a parte de cima, Justine. – É Larissa. – Certo. Desculpe. É que... você se parece muito com a minha filha. Na verdade, é quase idêntica. Ele guardou o marcador e pegou a prancheta na bancada atrás dele. Abriu uma gaveta e retirou uma lâmina número 18. Era perfeita para cortes profundos e o cabo personalizado dava a sensação de ser uma extensão do próprio braço. Ele sabia que deveria usar a mesma faca de antes. Na verdade, a faca estava bem ali, na gaveta onde a deixara há meia hora. Mas com uma pele como a dessa garota, teria sido como usar uma serra elétrica em porcelana. Ele tinha apenas que se esforçar um pouco depois, para cobrir os rastros. – Então, o que você acha, Josh? – Creem se virou para encarar o amigo. – Ouviu o suficiente ou devo continuar? – Continue – disse Bergman no mesmo instante. Seus olhos se fixaram no bisturi na mão do Dr. Creem. Ele estava sentado imóvel agora e sua voz era pouco mais que um murmúrio rouco. – Continue. Por favor. – Tudo bem para você se eu continuar, Justine? – perguntou Creem. – Hum... Larissa – repetiu a garota. – Shh – disse Creem. – Não importa, Justine. Só fique esticada e quietinha, como uma boa garota. Acabaremos antes que você perceba.
capítulo 28
QUANDO ACABOU, CREEM E BERGMAN não tiveram problema para embalar e preparar a garota. Usaram luvas de látex e um saco branco de náilon para arrastá-la pelo corredor até a garagem e o porta-malas de Bergman. Era realmente como a primavera de 1988 de novo, pensou Creem. Uma época em que não se aplicavam as regras normais do mundo. Não que eles estivessem melhores naquele tempo, com seus carros de merda e contas bancárias com quatro algarismos, percorrendo Fort Lauderdale em busca de emoções. Mas, na verdade, fora uma época de ouro. – O que é melhor que ouro? – perguntou Creem. – Platina, acho – respondeu Bergman. – Por quê? – É isso que é, Josh. São nossos dias de platina. Ele ergueu o copo em um brinde. Estavam inclinados agora no capô do Audi de Bergman, bebendo um Hisch Reserve, 16 anos, enquanto Creem fumava um charuto. – Vou beber a isso – falou Bergman. – Você vai beber a qualquer coisa – disse Creem e o amigo deu de ombros ao ouvir a verdade. – O que vai fazer com ela? – Rock Creek Park – respondeu ele. – Conheço um lugar. Creem bateu as cinzas do seu charuto cubano, observando-as ao flutuarem feito neve até o piso de concreto da garagem. Ele se sentia calmo e contemplativo, nem um pouco cansado da maneira que Josh estava. Ver Bergman tão feliz o agradava, mas o modo como ele parecia sentir prazer nisso também o deixava um pouco nervoso. Quase demais. – Só tome cuidado – alertou-o Creem. – Não temos mais 22 anos, Josh. Estamos melhores agora. – Sempre tomo cuidado – retrucou Bergman. – Não – rebateu Creem. – De fato, não toma, não. – É verdade – concordou Bergman e ambos riram. – Mas vou tomar, Elijah. Juro. Começamos isso juntos e, quando for a hora, terminaremos juntos. É uma promessa. Creem não tinha certeza do que Bergman queria dizer. Talvez fosse o Bourbon falando. Ou talvez não quisesse dizer nada. Mas, por razões que lhe eram próprias, ele deixou a coisa como estava. Quando fosse a hora certa, voltaria àquilo. Nesse meio-tempo, Elijah Creem terminou a bebida e se esticou, indicando que era hora de Josh ir embora. Ele estava cansado. Queria ir para a cama. E hoje à noite, dormiria como um bebê.
capítulo 29
QUANDO O TELEFONE TOCA ÀS duas da manhã, há uma grande chance de que alguém esteja morto. A única pergunta é para quem estão ligando... para mim ou para Bree. Ela trabalha no Departamento de Crimes Hediondos e eu, na Divisão de Casos Especiais. Nessa noite em particular, a ligação para nos acordar veio do meu lado da cama. Obtive os detalhes da sargento Huizenga antes de despertar por completo. Outro corpo aparecera em Rock Creek Park. Do sexo feminino. Branca. Marcas de múltiplas facadas. Todo o cabelo cortado. Outra Darcy Vickers. – Vou para aí – disse a Huizenga e me levantei com um nó no estômago. Se esse homicídio era o que parecia, estávamos abrindo uma nova dimensão em um caso que já era complicado. Ao descer a escada, alguns minutos depois, me surpreendi ao ver a luz da TV da sala iluminar o corredor. Mama tinha o próprio aparelho no quarto e, até onde eu sabia, as crianças estavam na cama. Encontrei Ava adormecida no sofá. Estava sentada, com o controle remoto na mão e o queixo apoiado no peito. A TV estava sem som e ela não usava pijama. Além das roupas de sair, ainda calçava as novas botas de camurça que Bree comprara para ela. Será que saíra sem ser vista à noite? – Ava, precisa ir pra cama – falei, com uma mão no seu ombro. Ela não se moveu. – Ava? – Dei a volta e a sacudi. – Ava! Então ela se mexeu, mas pouco. Os olhos estavam semiabertos e ela me fitava como se eu fosse um estranho. – Quê? O que foi? – disse, gaguejando, o que fez o meu coração gelar. – Ava, você se drogou? – perguntei. Quando liguei o abajur ao lado do sofá, ela ergueu a mão para proteger o rosto. – Me deixe ver seus olhos. – Não me droguei. Que brincadeira boba! – disse ela, desviando o olhar. Mas eu não estava brincando. Sentei-me e a segurei pelos ombros para que me encarasse. – Olhe pra mim. Agora. Seus olhos não estavam vermelhos, como eu imaginara, mas as pupilas pareciam pequenas, o que, talvez, fosse ainda pior. – Ava, o que foi que você tomou? – falei. – Nada. – Foi Oxi? Outra coisa? OxyContin era caro, mas também havia muitas drogas baratas e mais perigosas por aí. Ava tinha 14 anos, idade mais que suficiente para cruzar com um grande número de substâncias controladas na rua, sobretudo levando em consideração o seu histórico. Os poucos amigos dela que eu conhecia eram crianças de rua com quem Ava costumava se encontrar ao redor de Seward Square. Será que tinha estado lá hoje à noite? – O que é que está acontecendo aqui? – perguntou Nana, aparecendo de repente na arcada do corredor. Seu quarto ficava no primeiro andar da casa e ela também tinha o sono mais leve do mundo. Ava se afastou de mim e foi até o outro lado do sofá. – Ele está dizendo que fiz uma coisa que não fiz. Por que está sempre pensando que faço coisas ruins? Que merda! – Olhe o palavreado! – falou Nana. Ela sentou-se na almofada entre nós e se virou para encarar Ava. – O que foi que você não fez, querida? – Ele está dizendo que eu me droguei. – E por que você está acordada até tão tarde? – perguntei. – Saiu escondida? – Está vendo? – disse Ava, apontando para mim. – Não consigo fazer nada certo para ele. Olhei para Nana, sentindo mais que um pouco de frustração. Eu tinha que chegar à cena de um crime e não podia esperar. – Vou chamar Bree – falei. – Não. Deixe-a descansar. Vou pôr Ava para dormir no meu quarto e ficar de olho nela – disse, olhando as chaves e a gravata na minha mão. – Você obviamente tem que ir a algum lugar. Grande parte do tempo, Nana odeia o meu trabalho. Mas por que subitamente eu estava me sentindo como o bandido ali?
– Nana... – falei. – Pode ir. Dei uma olhada em Ava mais uma vez. Será que estava apenas com sono ou havia algo mais? – Volto de manhã – falei. – Então vamos conversar. Ela revirou os olhos para mim, mas não respondeu. Somente quando estava quase saindo de casa ouvi sua voz, de algum ponto atrás de mim. – Já amanheceu – disse ela.
capítulo 30
EU NÃO FUI O PRIMEIRO na cena do crime desta vez. Além das viaturas paradas na área de piquenique da Beach Drive em Rock Creek Park, havia vários outros carros no estacionamento. A ação estava do outro lado do gramado, na beirada da floresta, onde o Rock Creek corta os 1.700 acres do parque. Teríamos holofotes em breve, mas, por enquanto, todos estavam trabalhando com lanternas. Encontrei a sargento Huizenga recostada na beira de uma mesa de piquenique, assinando alguma coisa para um policial e, ao mesmo tempo, falando ao celular. – Sim, senhor, eu sei. Sim, sim, estamos todos nisso. Vamos fazer. Imaginei que fosse o delegado ou o próprio prefeito na linha. Não eram muitas as pessoas que conseguiam ouvir um “senhor” de Marti Huizenga. Ela é uma boa policial, mas seu temperamento atrapalha algumas vezes. – Estamos ferrados, Alex – disse ela, assim que desligou. – Mesmo se conseguirmos resolver isso hoje. O centro de comando do prefeito está na minha cola, não posso nem respirar. Como já sabiam disso? Era uma pergunta retórica. Cada governo tem uma forma de agir e o atual tinha tendência a se intrometer. O fato de que agora estávamos obtendo um impulso substancial de recursos da prefeitura só piorava a situação. Recursos maiores significavam maior vigilância, responsabilidade e, sim, intervenções. Apenas uma das razões pelas quais eu tento evitar ao máximo promoções no Departamento de Polícia. Acompanhei Huizenga até o bosque e desci até o leito do córrego onde o corpo fora encontrado. Errico Valente já estava ali, junto com Tom D’Auria. Valente era o principal investigador no caso de Darcy Vickers e D’Auria é o capitão da Divisão de Homicídios do Departamento de Polícia Metropolitana. Não parecia que ninguém estivesse cuidando disso aqui. A seus pés estava a vítima, nua, com o rosto virado para baixo na margem. Ela estivera ali tempo suficiente para que a lividez post-mortem surgisse, com uma linha de cor vermelha forte nos membros inferiores, onde o sangue se acumulara devido à gravidade desde a hora da morte. Tinha perdido uma grande quantidade de sangue, mas um rápido exame do solo ao redor não mostrou nenhum sinal dele. Também não havia cabelos soltos, embora obviamente tivessem sido cortados até quase o escalpo. Isso me dizia que ela fora trazida de algum outro lugar. – Identidade da vítima? – perguntei. – Não sabemos ainda – respondeu Errico. – As marcas de facadas estão no peito, abdômen e na parte de cima da coxa. – Como Darcy Vickers – falei. – É. – Merda. Do ponto de vista psicológico, estávamos olhando para um tipo inteiramente novo de assassino. Este era o meu pior pesadelo. Alguém que parecia estar tomando gosto pela coisa. O primeiro assassinato fora suficientemente bem, o que significava que não havia motivação para parar. Muito pelo contrário. O período de descanso entre Darcy Vickers e essa jovem fora estatisticamente muito curto. Se ele já não estivesse pensando no que queria fazer em seguida, o estaria fazendo em breve. Além disso, estava claro que o nosso assassino tinha um padrão. A nudez era o ponto de partida do caso Darcy Vickers, mas a semelhança física das duas era impressionante. A garota poderia ter sido irmã da Sra. Vickers, com a pele pálida, os resquícios de cabelos louros e o corpo atlético e bem-proporcionado. Pensei no velho que tínhamos visto no vídeo da segurança da garagem onde Darcy fora encontrada. Será que alguém como ele a trouxera até ali? Talvez. Mas foi isso que aconteceu? As costas e pernas da garota estavam riscadas de lama. Ela fora trazida até o alto da margem, rolada para baixo e abandonada num lugar visível. Mas havia alguma coisa na inclinação do braço direito sobre a cabeça na qual eu não conseguia acreditar. – Aquela posição parece natural para vocês? – perguntei aos outros. – Por quê? – disse Huizenga. – Em que você está pensando? Dei a volta para ver melhor e apontei a lanterna para baixo. A mão da garota daquele lado estava fechada com os dedos moles, a não ser pelo dedo indicador, que estava esticado. Ou apontando, talvez, na direção da corrente do rio.
– Qual a extensão do nosso perímetro até agora? – perguntei. – Apenas o que você vê – disse Valente. Havia um bocado de técnicos examinando as margens ao nosso redor, mas não parecia que algum deles estivesse a mais de 10 metros do corpo. – Em que você está pensando, Alex? – perguntou Huizenga. – Não tenho certeza. Talvez estivesse pensando demais. Talvez não. – Só estou curioso. Pode vir comigo? Huizenga e eu deixamos Valente e D’Auria com a garota e começamos a seguir um caminho a favor da corrente. Não fomos longe. Depois de uns 30 metros, nós nos deparamos com uma curva rasa e minha lanterna pousou em algo à nossa frente. Outro corpo. Senti uma nova onda de temor. Que merda estávamos enfrentando? – Jesus... – disse Huizenga. – Precisamos de apoio aqui! Agora! Corri para checar os sinais vitais, mas, mesmo antes de me ajoelhar, dava para ver que não havia esperança. Era um rapaz. Branco. Completamente vestido. Levara um único tiro no rosto e havia diversas marcas de facada recentes ao redor da virilha. Outro Cory Smithe. Ele fora deixado na beira da água com um braço esticado sobre a cabeça. A mão daquele lado estava fechada com os dedos frouxos o indicador apontava contra a corrente, para o local de onde acabáramos de vir.
capítulo 31
ANTES QUE ALGUÉM NOS ALCANÇASSE, Huizenga deu meia-volta e ligou a lanterna, apontando para a mata na margem oposta. – O que foi? – perguntei. – Shh! Ela pôs uma das mãos no meu braço e apontou. Foi então que ouvi. Alguém se movia através da mata, quebrando galhos e esmagando folhas mortas ao pisar no terreno fofo. Huizenga partiu naquela direção um segundo antes de mim. – Não importa quem você seja, aqui é a polícia. Fique parado aí! Não me faça ir atrás de você! Minhas pernas são quase duas vezes mais compridas que as de Huizenga. Por isso, quando estava subindo a margem, depois da linha das árvores, já a havia deixado para trás. A Glock estava em uma das mãos, a lanterna na outra. Talvez estivéssemos perseguindo apenas um sem-teto ou um garoto curioso, mas se não fosse isso... Cerca de 18 metros adiante, parei e escutei com atenção. Quem quer que fosse, corria na direção do parque da Rua 16, mas agora ele, ou ela, virara e estava correndo paralelamente ao riacho. Enquanto isso, pude ouvir Huizenga falando no rádio, em algum lugar às minhas costas. – ... todas as unidades disponíveis na Rua 16, ao norte de Sherrill Drive. Temos um desconhecido indo provavelmente na direção de Rock Creek Park... Eu dei um novo pique de corrida. Alguns galhos batiam no meu rosto enquanto prosseguia. A adrenalina me motivava cada vez mais. Os passos à minha frente mudaram de direção mais uma vez, mas eu consegui um vislumbre dele com o feixe da lanterna. Era um homem com roupas escuras. Foi tudo o que vi. Ele acabara de desaparecer em uma pequena subida bem à minha frente. Eu estava logo atrás dele e, alguns segundos depois, saí na calçada da Sherrill Drive. A estrada fazia uma curva ali, na saída do parque. No entanto, não se via sinal do cara. Será que ele tinha voltado para a mata? Dera meia-volta e correra pela estrada? Se eu tivesse meio segundo a mais, teria percebido por que eu não o ouvia mais correndo. Em vez disso, senti algo duro acertando com força a minha nuca. Meus joelhos amoleceram e a pouca visão que eu tinha ficou totalmente borrada. A dor desceu pelo pescoço e pelas costas quando caí na calçada. Tentei me erguer de um salto, mas não foi boa ideia. Tudo girou e eu desabei de novo. – Alex? Era Huizenga agora, movendo-se na mata atrás de mim. – Rua 16 – gritei para ela. – Continue correndo! Eu não tinha certeza, mas um palpite era melhor que nada a essa altura. Tudo o que consegui fazer foi ficar de joelhos ali, esperando que o equilíbrio voltasse enquanto os segundos se passavam. Segundos esses que faziam toda a diferença. No momento em que finalmente alcancei Huizenga, nosso cara já havia fugido.
capítulo 32
PASSEI UMA BOA MEIA HORA com os paramédicos antes de Huizenga me deixar voltar ao trabalho. Não havia concussão, apenas um arranhão e uma terrível dor de cabeça. Ela queria que eu fosse para casa, mas não insistiu. Quando voltei, o delegado Perkins estava no local, junto com Jessica Jacobs. Jessica era a principal investigadora no assassinato de Cory Smithe. De acordo com todas as indicações, nós tínhamos um psicopata muito ocupado em nossas mãos ou, mais provavelmente, dois casos que tinham mais em comum que imaginávamos. Nenhuma das vítimas recentes fora identificada ainda, mas já tinha ficado decidido que o Departamento de Polícia Metropolitana ia dar uma grande coletiva de imprensa mais tarde para relatar a situação. – Tem certeza de que é uma boa ideia? – perguntei. – Sei que estou entrando tarde na conversa, mas... – Você também não teve que atender o telefonema do prefeito. – Foi o que Huizenga me disse. – Está feito, Alex. Esta é a nossa realidade agora. Vamos seguir em frente. Diga o que você está pensando. Para melhor ou para pior, sou eu quem faz os perfis no Departamento de Homicídios. Não que haja algum título oficial para isso. De um jeito ou de outro, eu já tinha começado a elaborar umas poucas ideias novas. – Supondo que estamos falando de dois assassinos – comecei – com base nas estatísticas eu diria que ambos são brancos, como as vítimas. Além disso, são inteligentes e muito bem-organizados, mas também têm raiva. Não necessariamente por causa da mesma coisa. Não que assassinato e raiva andassem juntos, mas essa tinha sido a característica que mais me chamara a atenção em todos os quatro homicídios. Nenhum deles era simples ou objetivo, em termos de método. O trabalho com a faca, em particular, era acima da média. Isso significava que havia emoção. Talvez algum nível de fantasia estivesse sendo exercido também. E era quase certo que algum tipo de psicose estava envolvido, que é o aspecto mais difícil de identificar em um assassino. Muito mais em dois deles. Dei aos outros o meu perfil e voltei a prestar atenção enquanto D’Auria dividia o trabalho que seria feito nas próximas horas. Na pior das hipóteses, nós tínhamos uma bela máquina de investigação em funcionamento. Valente ia trabalhar na identificação das duas vítimas. Jessica Jacobs conduziria a reunião das seis da manhã no centro de operações. O delegado Perkins estaria com a equipe do prefeito pelas próximas horas e, depois, D’Auria seria o rosto do departamento na coletiva de imprensa, enquanto o restante de nós ficaria de pé, atrás dele, como uma demonstração de força. Algumas vezes, a aparência conta mais do que qualquer outro aspecto do trabalho e Washington precisaria de alguma garantia de que o Departamento de Polícia Metropolitana estava no caso. Huizenga e eu começaríamos a juntar as equipes, voltar a cada relatório e relato de testemunha e entrevistar novamente a primeira pessoa em todos os quatro assassinatos. Nós também teríamos que recomeçar do zero o perfil das nossas vítimas. Talvez existisse alguma conexão, alguma referência cruzada que tivéssemos deixado passar. Tinha que existir. Alguma coisa ligava os casos. Nosso trabalho era descobrir o quê.
capítulo 33
POUCO DEPOIS DE O SOL aparecer, consegui um tempinho e passei em casa. Jannie e Ali já tinham saído para a escola, mas Ava estava me esperando. Bree escreveria um bilhete para a escola pedindo desculpas pelo atraso, mas nós precisávamos ter uma conversa. Havia muitas razões para me preocupar. A Ava sorridente e feliz do Kinkead’s fora, no fim das contas, um breve brilho de um sol efêmero. Na maior parte do tempo ela continuava triste, abatida e era quase impossível conversar com ela. – Eu não me droguei – insistiu ela, assim que nos sentamos na sala de estar. – Sério! – Você estava bem mal, Ava – falei. – O que você quer que eu diga? Jure por Deus, é isso? Eu não sabia se acreditava nela ou não. Queria desesperadamente ao menos estabelecer algum tipo de confiança mútua no nosso relacionamento, mas Ava mentia com facilidade e esse não era um padrão que eu pretendia reforçar. Queria que ela usasse sua inteligência para algo mais importante que tentar sair de encrencas. – Por que você estava toda arrumada no meio da noite? Você saiu escondida? – perguntou Nana. Pela primeira vez, parte do fogo sumiu dos olhos de Ava. Ela simplesmente encarou o chão, respondendo a pergunta com silêncio. – Não dá pra aceitar isso, Ava – disse Bree. – Eu sei – respondeu Ava. – Mas eu não usei nada, se é o que vocês estão pensando. – De um jeito ou de outro – disse Nana –, as coisas vão mudar por aqui. Não tem mais idas à loja ou aonde quer que você vá com seus amigos. Não tem mais isso de ficar na rua depois da escola. E nem pensar em sair de casa sozinha à noite. Não me provoque, Srta. Ava. – Como quiser – disse ela e se pôs de pé. – Posso ir agora? – Não. Não pode ir – respondeu Bree. – Sente-se. Ava voltou a se sentar e cruzou os braços compridos no peito. Ela era dois anos mais nova que Damon, mas tão alta e magra quanto ele. – Ava, você entende por que estamos fazendo tudo isso? – perguntou Bree. – É porque amamos você. Não queremos que nada de ruim lhe aconteça. Se acontecesse, atingiria todos nós. Isso faz sentido? Ava deu de ombros mais uma vez, mas dava para ver que, quanto mais tempo levava, mais ela diminuía. Ela respirava pelo nariz e tentava não chorar. Até agora, eu estava me segurando. A verdade era que Ava respondia melhor a Nana e Bree que a mim. Mas não queria continuar em silêncio. Eu pus o carro à frente dos bois e me sentei bem em frente a ela. Ava ia me ouvir. – Você quer ser parte desta família? – perguntei. – Hã? – Não estou dizendo que você pode escolher onde vai morar neste instante. Você está meio que presa a nós por enquanto – prossegui. – Mas o que estou dizendo é que tem uma família nesta casa, se você quiser uma. Você quer? De um jeito ou de outro, Nana, Bree e eu concordamos que esperaríamos até o fim do ano letivo para pensar seriamente em adoção. O sistema ainda estava supervisionando o caso de Ava e talvez eu não devesse ter dito nada ainda. Mas, por outro lado, eu queria ser sincero com ela. Ava pareceu se dobrar um pouco mais sobre si mesma, puxando os braços ao redor do próprio corpo magro. Foi quando vi a primeira lágrima começar a rolar pelo queixo dela. Não pensei naquilo, simplesmente a abracei e apertei. No início, ela ficou rígida. Mas depois, de repente, ela desmoronou. Foi como se tivesse se transformado em uma boneca de pano nos meus braços. Começou a soluçar como eu nunca tinha ouvido antes. Nana esticou o braço e pôs uma das mãos em suas costas. Bree fez a mesma coisa do outro lado e nenhum de nós disse nada por um longo tempo. Na verdade, Ava foi a primeira a falar. – Sinto falta da minha mãe – disse ela contra o meu peito. Foi tudo o que conseguiu dizer antes de começar a chorar, mais forte ainda, como se simplesmente falar fosse doloroso. Foi de cortar o coração. Ninguém jamais mostrara a Ava o que significava apoiá-la de verdade. Ela tivera um pai ausente e uma mãe cujo vício fora mais forte que o próprio relacionamento das duas. Mas ela também era a única mãe que Ava conhecera. Eu ficaria mais preocupado se não sentisse falta dela.
Ainda tínhamos muito para conversar e um monte de problemas para resolver, mas, por enquanto, parecia que o que Ava precisava mais que qualquer coisa era chorar. Talvez fosse até um passo na direção certa.
capítulo 34
A COLETIVA DE IMPRENSA TINHA SIDO marcada para começar às dez da manhã. Todos os lugares estavam ocupados quando cheguei. Oitenta repórteres sentados e, talvez, vinte câmeras na parede dos fundos. Os canais Quatro, Cinco, Seis e Nove iam entrar ao vivo, tinha quase certeza. Na frente, em um estrado pequeno e baixo, o pódio já estava coberto por um buquê de microfones. Uma cortina azul pesada fora puxada. D’Auria aparentava estar pronto para começar, por isso fui até meu lugar atrás dele com os outros investigadores: Huizenga, Jacobs, Valente e o delegado Perkins. Era uma imagem proposital para as câmeras, com certeza. Washington precisava saber e ver que o Departamento de Polícia Metropolitana estava em cima desses assassinatos. Pontualmente às dez horas, nossa relações-públicas, Joyce Catalone, fechou a porta para o corredor e fez um gesto com a cabeça para D’Auria prosseguir. Ele deu um passo até os microfones e começou imediatamente. – Bom dia a todos. Sou o comandante Tom D’Auria, da Polícia Metropolitana. Tenho uma declaração pronta a respeito dos eventos das últimas doze horas e depois teremos algum tempo para perguntas. D’Auria rapidamente cobriu as informações básicas, sem ser muito específico em relação aos métodos, armas ou localização exata em que os corpos foram encontrados. Era muito cedo para tornar aquelas informações públicas. Ele deu os nomes das vítimas: Larissa Swenson e Ricky Samuels. Essa parte era novidade para mim. D’Auria também informou que o Sr. Samuels era um conhecido garoto de programa, a exemplo de Cory Smithe, antes dele; mas não fez qualquer menção à semelhança física entre a Srta. Swenson e sua “vítima” equivalente, Darcy Vickers. Eu teria feito a mesma coisa. Garotos de programa são um grupo específico de pessoas que poderiam usar informações como essas para sua proteção. No entanto, não há meio eficaz de avisar e proteger todas as louras bonitas. Protegê-las contra o quê, exatamente? É uma linha tênue entre o que é útil nesse momento e o que apenas cria pânico. Algumas vezes, você tem que fazer a sua melhor aposta e jogar os dados. Assim que D’Auria chegou ao fim da declaração, as perguntas começaram a ser lançadas. Os corpos foram encontrados próximos um do outro? Sim. A que distância? Sem comentários. Temos evidência de uma conexão entre as duas vítimas? Sem comentários. O Departamento de Polícia Metropolitana dará novas informações à imprensa à tarde? Sim, se houvesse alguma coisa para contar. Mas então, depois de cerca de cinco minutos, foi a vez de Bev Sherman, do Post, fazer sua pergunta e as coisas mudaram de rumo. – Comandante, o senhor falou em dois possíveis casos em série... – Não falei casos em série – interrompeu D’Auria. – Deixe-me esclarecer. Temos o que parecem ser homicídios cometidos pelos mesmos assassinos de dois casos anteriores não relacionados. – Muito bem – prosseguiu Bev. – Minha pergunta é sobre um terceiro incidente. E quanto ao assassinato de Elizabeth Reilly? Minhas orelhas arderam no mesmo instante. Tecnicamente, eu estava participando de todos esses casos, e eu estive em Shellman Bluff. Eu me encontrara com os Reillys. Segurara o bebê. – O que tem ele? – perguntou D’Auria. – Um novo blog, intitulado The Real Deal, tem criticado bastante o Departamento de Polícia Metropolitana ultimamente e, em particular, a investigação sobre Elizabeth Reilly. Mais especificamente, The Real Deal tem se concentrado no detetive Cross, que eu sei que está coordenando os três casos. Eu estava pensando se o detetive se importaria de comentar. Na sala, as pessoas começaram a digitar nos telefones e iPads, provavelmente em busca do The Real Deal. Eu também senti alguns pares de olhos virando-se na minha direção. No entanto, D’Auria manteve a posição. – Bev, não vou responder a rumores de um blog do qual nunca ouvi falar – afirmou. – Teremos que dar uma olhada nisso. – Deixe-me ser mais específico... – Bev começou a falar antes que ele pudesse se mover. – Detetive Cross, o senhor estaria disposto a comentar algumas das afirmações, por exemplo, de que o senhor violou a política do departamento ao mover o corpo da Srta. Reilly antes de um exame adequado? Ou de que o senhor compareceu a um jantar no sábado à noite enquanto a investigação deveria estar sendo feita? Eu estava confuso e ficando furioso. Qual era a origem daquilo? Que blog era esse do qual eu nunca ouvira falar? E quem diabos estivera me observando sair para jantar com a minha família?
Eu tinha cerca de dezoito respostas para Bev, mas nenhuma delas poderia ser impressa. O delegado Perkins também não parecia muito satisfeito. Ele fazia sinal para que Joyce Catalone encerrasse a coletiva. – Apenas posso repetir o que o comandante D’Auria já disse – respondi finalmente. – Até darmos uma olhada no material em questão... – Então você não conhece o The Real Deal? – perguntou alguém. – Pode acreditar, vou conhecer em dez minutos – respondi. Ouvi algumas risadas na sala e então Joyce tomou a palavra: – Senhoras e senhores, isso é tudo o que temos por ora. A equipe de investigação tem outras questões para tratar, mas nós os manteremos atualizados ao longo do dia, se houve alguma novidade. Era uma mentira, mas absolutamente preferível a deixar a coletiva de imprensa sair do controle. As coisas não pareciam nada boas para o departamento naquele momento. E talvez estivessem ainda piores para mim.
capítulo 35
CINCO MINUTOS DEPOIS DA COLETIVA de imprensa, nossa equipe principal estava no gabinete do delegado Perkins, no quinto andar. – Que diabos aconteceu lá embaixo? – Perkins queria saber. – Nós fomos atingidos por um blogueiro – disse D’Auria. – Um milhão de zés-ninguéns teclando e você nunca sabe qual deles vai soltar a bomba até você catar os fragmentos do próprio traseiro. Perkins não tinha computador no gabinete. Por isso, Huizenga abriu o notebook na grande mesa redonda de conferência. Depois de uma rápida pesquisa no Google, tinha o The Real Deal diante dela e todos a seu redor. – Ai, Deus – disse ela. O blog tinha um cabeçalho simples: THE REAL DEAL numa fonte simples e preta. Abaixo estava o subtítulo “Quem vigia os vigilantes?”. À margem, via-se uma lista de 23 policiais do Departamento de Polícia Metropolitana e era possível clicar em cada um deles e ir para alguma outra página. Reconheci diversos nomes no mesmo instante. Todos eram policiais que haviam sido presos no ano passado, por alguma coisa, de roubo a violência doméstica e até um assassinato. Havia também um pequeno mapa dos distritos policiais da cidade, com pontos de cores diferentes, que provavelmente correspondiam a vários tipos de crime. A entrada mais recente no blog tinha a data da manhã de hoje. O título era “A Cidade Mais Perigosa da América?”. Abaixo dele, “Temporada de Assassinatos em Columbia”. E então “Detetive Cross: Dormindo ao Volante?”. – Parece que esse cara gostou de você – disse Huizenga. Dava para clicar no meu nome, como no dos outros. – Você se importa? – Mal posso esperar – respondi. O que abriu foi uma página inteira dedicada a mim. Incluía meu currículo no departamento, uma antiga foto de identidade, uma lista de casos atuais e anteriores e diversas outras pequenas imagens. A primeira delas era uma fotografia que fora tirada na Vernon Street, quando eu havia tirado o corpo de Elizabeth Reilly da janela onde estivera pendurada. O rosto estava até borrado, como se, de forma distorcida, o autor do blog concordasse com a ética jornalística. A outra imagem mostrava o exterior do restaurante Kinkead’s. Abaixo via-se uma captura de tela de um tuíte que aparentemente fora enviado para acompanhá-la:
Três mortos e onde está o policial favorito do distrito de Columbia? Saiu para jantar. Prioridades, alguém? #policiaisincompetentes
Finalmente, havia um longo artigo na parte de baixo, com todas as informações sobre como eu era o homem errado para coordenar esses casos. – Quem é esse cara? – perguntou Valente. O blog tinha uma página de contato, mas quando Huizenga a acessou, ela nos deu tudo menos um nome. Dava para enviar um e-mail com dúvidas, dicas ou outras ideias para o The Real Deal, curtir no Facebook ou “juntar-se à conversa” em algo chamado NewsNet. Para alguém que acabara de começar, o tal repórter evidentemente sabia o que estava fazendo. Eu começava a imaginar quem ele era. Ou, ao menos, que nós o conhecíamos. – Precisamos trazê-lo para campo aberto – disse para Perkins. – Deixe-me dar uma olhada nos registros do provedor e ver quem está ligado à conta. Eu estava me lembrando do sujeito de barba na manhã que o corpo de Cory Smithe fora encontrado. Não tinha credenciais de imprensa e se recusara a dizer seu nome. – Alex, tenho que perguntar – falou Perkins, recuando na cadeira. – Você moveu o corpo de Elizabeth Reilly antes dos paramédicos chegarem à cena? – Movi – respondi francamente.
Não ia mentir para o chefe. E estava tudo no relatório. – E você saiu para jantar naquela noite, como diz aí? Eu podia sentir o calor subindo para o rosto. – Sinto muito, chefe, mas por que diabos isso importa? – Por si só ou pelas consequências? Não importa. Mas se ele está dizendo a verdade, não podemos fazer nada – disse Perkins. – A última coisa de que preciso é uma intimação questionável em cima de um cara como ele. Sobretudo se ele tiver um público fiel. – Se não tinha até agora, você a terá depois da coletiva de imprensa – falou Huizenga, fechando o notebook. – Espere pela chuva de merda, pessoal. – Veja o que pode descobrir, Alex – disse Perkins. – Mas, por favor, tome cuidado. Estamos lutando em uma guerra de opinião pública agora. Os índices de aprovação do departamento nunca estiveram tão baixos. O delegado Perkins não é histérico. Normalmente, não dá a mínima para a opinião pública, não à custa de uma investigação pelo menos. Mas a verdade era que nós estávamos trabalhando com verbas extras e isso depende de um bom relacionamento com o prefeito, que tinha as próprias questões políticas para considerar. O fato de ele e seu pessoal ficarem longe da coletiva de imprensa era significativo. – Desculpe, Alex – disse Perkins. – É a vida. – Sem problema. Essa era a resposta de que o delegado precisava agora e, com sorte, a que ia me manter longe dele ao máximo. Eu só esperava que também fosse verdade.
capítulo 36
MAL SAÍ DA CONFUSÃO, JÁ estava falando ao telefone com Bree, pedindo que desse uma olhada no The Real Deal e continuasse cavando o caso de Elizabeth Reilly. Quando atingi o corredor do terceiro andar, liguei para Sampson. Ele estava no tribunal aquele dia, mas pedi que passasse mais tarde em casa, se pudesse. Os dois já estavam no assassinato de Elizabeth. Eu não via razão para não tornar isso oficial. Assim que voltei para a minha mesa, acessei a página de contato do The Real Deal e enviei um e-mail breve.
A quem interessar possa: entre em contato assim que puder. Obrigado. Detetive Alex Cross, do Departamento de Polícia Metropolitana.
Eu ia bancar o tranquilo por enquanto. Até ia ser simpático, se tivesse que ser, mas apenas como um meio para alcançar um fim. Esse cara andava me vigiando e essa é uma linha que não se cruza. Abri caminho em meio à pequena multidão de cubículos em nosso gabinete até encontrar Jarret Krause. Jarret era um dos novatos da Divisão de Casos Especiais, de Flatbush, no Brooklyn, um rapaz cuja esposa arranjara um emprego para trabalhar no gabinete de um congressista no outono passado. Ele já fizera o próprio nome, rastreando dois criminosos violentos on-line, um estuprador em série que se conectava com as vítimas no Facebook e um idiota de 18 anos que roubara e matara o proprietário de uma loja de bebidas. – Alex? – falou ele, quando apareci acima da parede de seu cubículo ridiculamente arrumado. – Você já ouviu falar deste blog: The Real Deal? – perguntei. – Sim – confirmou, e seus dedos tocaram o teclado diante dele: – Esse cara é um babaca. E parece que odeia mesmo você. Como posso ajudar? Fiquei meio surpreso com quanto Krause já sabia, mas talvez não devesse ter ficado. As notícias ruins viajavam tão rápido no departamento quanto o sol. – Preciso de um nome – falei. Krause já estava examinando as páginas. – Deixe comigo – falou. – Não deve ser muito difícil. – Fico devendo uma. – Você quer que eu pare nisso ou continue? – perguntou ele. – Defina “continuar”. – Bem, isso, por exemplo – disse e voltou para a última entrada do blog, apontando para a tela. – Vinte e seis comentários desde as sete da manhã. Essas são as pessoas que você tem que vigiar. Noventa e nove por cento do tempo, são uns zésninguém. Mas então, de vez em quando, um deles sabe de alguma coisa que não deveria, como um calibre de bala, hora da morte ou coisa assim. Isso pode ser ouro. – Qualquer coisa que você consiga fazer. Mas, primeiro, me dê um nome. – Terá o nome do filho da puta, Cross – disse ele. – Entro em contato no fim do dia.
capítulo 37
ÀS NOVE DA NOITE, EU havia terminado um dia de trabalho cheio, seguido de um jantar com a família, lição de casa com Ava e Jannie e um capítulo de Percy Jackson com Ali antes de dormir. Eu não ia dizer não à cerveja que Sampson trouxe. Enquanto Nana Mama assistia a um episódio de Once Upon a Time com as garotas, John, Bree e eu fomos até o meu escritório no porão e voltamos ao trabalho. – Me atualizem – pediu John, abrindo uma garrafa. – Em que pé estamos? Bree abriu um grande envelope de papel pardo e retirou o material do caso que ela havia separado naquela tarde. Uma pasta e diversas fotos em preto e branco da cena do crime caíram em seu colo. – Passei o dia cruzando casos e encontrei isso. Não posso dizer que esteja definitivamente ligado a Elizabeth Reilly, mas parece um início. Ela pegou o relatório do crime e passou os olhos por ele enquanto continuava falando. – O nome é Amanda Simms. Fugiu de uma casa violenta, na Virgínia, aos 15 anos. A família não teve nem sinal dela durante onze meses, até uma camareira encontrar o corpo na banheira de um hotel em Takoma Park. Isso foi há quatro anos e meio. – Quatro anos e meio? – repetiu Sampson. – Qual é a suposta ligação com Elizabeth Reilly? Bree passou uma das fotos da cena do crime para mostrar. John parecia estar enjoado. – Ela estava grávida – disse Bree. – A autópsia indicou doses altas de Rohypnol e morfina. Tudo indica que foi drogada, aberta e abandonada à morte. – E o bebê? – Nunca encontraram. – Jesus... John esfregou os olhos com o polegar e o indicador. – Então, resumindo, nós temos uma garota longe de casa pela primeira vez e grávida. Isso combina com Elizabeth Reilly. – E quanto ao tal namorado fantasma, Russell? – perguntou John. Bree balançou a cabeça. – Não descobri nada. Provavelmente não é o nome verdadeiro dele. – Mas vamos supor que ele faça parte – continuei. – Talvez Elizabeth descubra, de alguma maneira, sobre Amanda. Ela percebe que o namorado é um monstro e que está grávida do filho dele. Isso explicaria por que ela iria até a Geórgia para induzir o trabalho de parto. – E talvez Amanda não seja a única – disse Bree. Depois de um longo silêncio, Sampson voltou a falar: – Você disse mais alguma coisa ao telefone hoje de manhã. O tal blogueiro. Qual é a história dele? E por que odeia você? – Boa pergunta – respondi e acessei The Real Deal. Havia uma nova postagem, “Departamento de Polícia Metropolitana Fracassa na Própria Coletiva de Imprensa”. Fora postada às quatro da tarde e já tinha 92 comentários. – Ele tem interesse em Elizabeth Reilly ou em mim – falei. – Ou as duas coisas. – Ou – completou Sampson – talvez ele só queira fazer nome, estabelecer o blog e obter um pouco de atenção com histórias de destaque. – É, bem, ele conseguiu a minha atenção – disse Bree, que estava tão puta pela história toda quanto eu. – Sobretudo pela fotografia do Kinkead’s na noite em que estivemos lá. – Alex, deixe eu ter uma conversinha com esse cara... – disse John. – Você tem cinco homicídios em sequência. Seis agora, se contarmos o de Amanda Simms. – Obrigado. Agradeço a ajuda. Você é bem assustador quando quer. Sampson apenas sorriu. – Qual é o nome na conta? – perguntou. – Ainda estou esperando a resposta. Somente por volta de onze da noite, quando John já se preparava para sair, foi que recebi notícias de Krause. A hora perfeita, na verdade.
– Desculpe pela demora, mas rastreei alguns tuítes e encontrei algo. Peguei um lápis na escrivaninha e o pedaço mais próximo de papel. – Vá em frente. – O nome é Ron Guidice – falou e soletrou o nome para mim, depois, me deu o número. – Quer que eu converse com o cara? – Não, obrigado – agradeci. Aparentemente, todo mundo queria pegar o cara – e eu não via problema nisso. Rasguei o papel e o coloquei na imensa mão que Sampson estendia. – A partir de agora, nós assumimos.
capítulo 38
HORAS DEPOIS, EU AINDA ESTAVA acordado. Alguma coisa me incomodava e eu não conseguia descobrir o que era. Aquele nome, Ron Guidice, ficara na minha cabeça por alguma razão. Era familiar ou eu só queria achar que era? Por fim, levantei-me da cama e voltei para o escritório. – Aonde você vai? – perguntou Bree, ainda meio adormecida. – Só checar uma coisa – falei. – Já volto. Na escrivaninha, entrei na internet e acessei os arquivos de casos da Polícia Metropolitana. Os integrantes da Homicídios tinham o nível mais elevado de liberação nos relatórios de investigação, o que significava que eu poderia acessar o sistema de qualquer computador do departamento, incluindo o notebook que eu tinha em casa. Depois de uma busca rápida, o único local em que encontrei o nome de Guidice foi um relatório policial de seis anos atrás. E, na verdade, ele não tinha cometido nenhum crime. Seu nome aparecia como parente mais próximo de uma mulher que morrera durante uma ação policial em Chinatown. Eu me lembrava do caso. Não era uma boa lembrança. Eu liderava uma investigação sobre um vendedor de armas que vinha jogando dos dois lados, providenciando armas automáticas para gangues rivais no sudeste e noroeste do distrito de Columbia. Um informante alegava que uma grande disputa aconteceria em breve. Estávamos falando de armas automáticas nas mãos de dois exércitos que tinham um histórico de rixas entre si. Inocentes pagariam o preço. Era melhor não arriscar. Embora ainda tivéssemos esperança de identificar os fornecedores do cara, fiz a ligação para atraí-lo, o mais rápido possível. Agora, sentando à escrivaninha, não precisei reler o relatório na minha frente para lembrar o que acontecera. O nome do bandido era Marco Bruillo e o último endereço conhecido era um estúdio caro na Rua H. Na noite em questão, o plano era realizar a prisão dentro do apartamento, da forma mais tranquila possível. No entanto, quando chegamos, Bruillo estava simplesmente saindo de casa. Não tínhamos escolha, a não ser pegá-lo bem ali, na calçada, ou correríamos o risco de perdê-lo. O que não podíamos saber era que dois de seus homens estavam num carro estacionado, esperando que ele atravessasse a rua. Assim que encostamos Bruillo na parede, eles abriram fogo. Foi o tiroteio mais rápido no qual estive. Ele acabou em quinze minutos. Bruillo morreu, assim como três inocentes que esperavam na fila para comprar ingressos para o cinema ao lado do edifício. No fim, os legistas demonstraram que dois deles foram mortos por tiros de arma automática. Mas o terceiro, uma mulher chamada Theresa Filmore, fora acidentalmente baleada e morta por um de meus colegas. Tinha sido uma tragédia. Eu nunca me esqueci de Theresa Filmore, mas somente quando voltei a olhar o arquivo foi que percebi por que o nome Guidice chamara a minha atenção. Agora eu sabia. E tudo começava a fazer um pouco mais de sentido.
PARTE DOIS PONTO DE RETORNO
capítulo 39
PESCAR À NOITE ERA TODO o disfarce que Ron Guidice precisava. Não havia necessidade de pseudônimo nem de camuflagem, muito menos de se manter fora do campo de visão. No meio do amplo canal onde ele se encontrava, podia observar a pequena casa na praia. Mesmo se, por acaso, o policial na entrada para carros olhasse para aquele lado e o notasse, tudo o que veria era um idiota tentando pegar um peixe no escuro. Era uma boa hora para se afastar também. Eram grandes as chances de que Alex Cross começasse a desconfiar de quem ele era. E isso era bom. Se Guidice controlasse o fluxo de informação, então controlaria Alex também. Nesse meio-tempo, ele mantinha o remo na água e seus olhos na casa na margem, esperando que seu instinto dissesse a hora de se mover. O equipamento de pesca era o mais barato que ele conseguira encontrar. O barco fora ainda mais fácil de conseguir. Shellman Bluff não era o tipo de lugar em que os caras costumam trancar as coisas à noite, muito menos um barco velho como aquele. No fundo do barco, via-se um fuzil M16 obtido no mercado negro. A mira noturna desmontável estava no colo de Guidice. No bolso da frente do casaco cinza, ele também tinha uma pequena Kahr 9mm com um pente de seis balas. Se tudo corresse conforme o planejado, eram quatro balas a mais que precisava. A única variável ali era o tempo. As luzes na casa se apagaram às onze da noite. À meia noite e meia voltaram a ser acesas por um breve período e, depois, por volta de duas da manhã. Era assim a vida com um bebê recém-nascido. Finalmente, quando a casa ficou no escuro pela terceira vez, Guidice apoiou o M16 no colo. Podia sentir a adrenalina aguçando seu foco enquanto ele erguia o rifle até o ombro e encostava o rosto no barco. Com a lente de visão noturna, o rosto do policial apareceu. Ele estava sentado atrás do volante da viatura do condado de McIntosh, parecendo entediado e tamborilando os dedos no queixo enquanto vigiava a casa. Guidice respirou fundo, mirou no alto, na testa do homem, e apertou o gatilho. O silenciador do rifle liberou um pequeno estampido e nada mais. Uma abertura do tamanho de um floco de neve se abriu no para-brisa da viatura. O homem em seu interior ficou rígido durante uma fração de segundo. E mais nada. Pareceu ter adormecido. Guidice manteve o olho encostado na mira, contando até trinta. Como o policial não se moveu, baixou o rifle e deixou que escorregasse pela lateral do barco para dentro da água. Finalmente, pegou os remos e começou a rumar para a margem. Não era longe. Em um ou dois minutos, o pequeno barco estava arranhando a areia fofa e o seixo na beira da água. Guidice saiu pela proa na direção da propriedade, mantendo as botas secas enquanto tirava a 9mm do bolso. Primeiro, foi direto até a viatura da polícia. O homem dentro do carro não era mais um problema, isso era evidente. Então foi até o lado do passageiro e pegou o quepe e o casaco do uniforme que estava cuidadosamente estendido sobre o apoio de cabeça. Guidice vestiu ambos enquanto dava a volta na casa na direção dos fundos, fora da linha de visão dos vizinhos. Aproximou-se da porta da cozinha, baixou o quepe e, com a coronha da arma, acertou com força um dos pequenos painéis de vidro da porta. Quase no mesmo instante, a luz de alguma parte da casa se acendeu. Os Reillys tinham mesmo um sono leve. Um minuto depois, outra luz foi acesa, desta vez na cozinha. Através da cortina fina, Guidice pôde ver Tommy Reilly amarrando a faixa do robe xadrez. – Sr. Reilly? – falou pela porta. – Desculpe incomodá-lo, mas temos um probleminha aqui fora. O senhor poderia abrir a porta por um segundo?
capítulo 40
JOSH BERGMAN SE VESTIU COM simplicidade. Apenas uma calça jeans, uma camisa de manga comprida e um blazer sem graça. Era importante parecer apresentável, mas não fazia sentido gastar muito dinheiro para isso. De qualquer forma, tudo iria para o incinerador no fim da noite. Ele guardava uma muda de roupas, suas roupas verdadeiras, no porta-malas. Camisa Ian Velardi, calça social Armani e os sapatos personalizados de Vincenza, na Itália, junto com uma cueca e o Rolex Submariner. Para depois. Pouco antes das dez da noite, ele parou o Audi A7 prateado em um estacionamento na Water Street. Enquanto dava a volta até os fundos, avistou alguém solitário de pé. Bergman parou e abaixou o vidro da janela do passageiro. – Travis? O rapaz deu meia-volta e se aproximou. – Você é o Bill? – perguntou ele. – Sim – respondeu Bergman. – Entre. Ele apontou para o envelope bancário no banco enquanto o jovem garoto de programa abria a porta. Havia duas notas de 100 dólares dentro, mas o garoto não checou. Ele apenas enfiou no bolso de trás da calça e se sentou. – Belo carro – comentou. – Obrigado – falou Bergman. Ele era magro. Talvez um pouco magro demais, mas bonito, com covinhas sexy no sorriso. As roupas eram de marca. Mas o que o entregava era o tênis Nike edição limitada verde néon. O garoto obviamente estava ganhando mais dinheiro que os amiguinhos, com certeza. Bergman saiu do estacionamento e se dirigiu para o norte, na direção da MacArthur. Elvis Costello tocava no rádio. “Pills and Soap”. Um pouco de música boa para acompanhar o ótimo humor. Durante um tempo, ele dirigiu e eles conversaram sobre amenidades. O garoto era do Maine. Não vira nenhum filme bom recentemente. E gostava de Costello. Finalmente, o garoto respirou fundo e olhou ao redor. – Aonde estamos indo? – disse ele. – Aqui é, tipo, Maryland? – É Maryland – disse Bergman. – Conheço um lugar. Como você se sente ao ar livre? Seu perfil não mencionava isso. O garoto deu de ombros. – Também gosto de fazer ao ar livre – respondeu ele. Ele colocou uma das mãos no joelho de Bergman enquanto se inclinava para aumentar o volume do som. – O que você quiser. – Perfeito – disse Bergman. Na pequena ponte de pedra, ele virou à esquerda da MacArthur, cruzou e parou 800 metros depois do Clara Barton Parkway. O estacionamento ficava fora da estrada, mas era baixo o suficiente para oferecer privacidade. – Aqui estamos – disse ele, desligando o motor. – Vamos dar uma volta. Se o garoto tinha alguma dúvida, ele a estava guardando para si mesmo. Provavelmente pensava no próximo par de tênis. Eles saíram e se dirigiram para a mata. Bergman caminhava atrás dele na pequena trilha, com a mão no bolso, masturbando-se através da roupa. – Aqui? – perguntou o garoto. – Na verdade, pare bem aqui – disse Bergman. Estavam no meio da mata, entre o estacionamento e o canal morro abaixo. – Aqui está bom. Na escuridão, o garoto caminhou até ele. Esticou o braço e passou a mão pela virilha de Bergman. – Nossa! Você já está pronto, não é? – perguntou o garoto. – Estou – disse Bergman. – Estou, sim. O garoto nem viu a arma. Bergman deu um passo rápido para trás para evitar qualquer borrifo e apertou o gatilho. A sombra do garoto caiu no chão sem cerimônia, como um saco de batatas. Bergman caiu, também, de joelhos. A faca veio depois. Ele a enfiou: uma, duas, três vezes, rápido... depois... quatro, cinco, seis... sete... oito...
Ele se perdeu na contagem em algum momento. Quando foi tomado pelo ato se concentrou numa explosão final e dolorosa... literal e figurativa. Estava feito. De novo. Bergman caiu para trás e se apoiou nos cotovelos. A respiração estava entrecortada. A parte interna da calça estava molhada. Um a um, seus sentidos pareciam voltar ao lugar. O garoto no chão. O som do tráfego na rodovia. Um leve gosto metálico na boca. Quando sua mente clareou, a lógica voltou. Ele não podia continuar ali. Tinha que fugir. Arrastou o garoto rapidamente até o canal, onde esvaziou os seus bolsos e o empurrou para dentro da água. Depois, voltou até o estacionamento, abriu o porta-malas e trocou de roupa rapidamente, guardando todo o restante para jogar fora. Quando estava atrás do volante do carro de novo, pronto para dirigir até o sul da cidade, começou a se sentir melhor. Poderia se lembrar daquela sensação para sempre. A noite era uma criança. Era hora de levar a festa para outro lugar.
capítulo 41
À MEIA-NOITE, BERGMAN ESTAVA DE VOLTA ao centro e pronto para a próxima parte da noite. Ele saiu na esquina da Sétima com a D, entregou as chaves ao manobrista e entrou. O saguão de três andares do Woolly Mammoth Theatre estava pulando com a festa de caridade do A Moda contra a fome. O lugar inteiro estava sob uma luz dourada, com holofotes teatrais cor-de-rosa néon lançando tons de magenta ao redor da sala. Não era exatamente agradável, mas era animado. A mesa do DJ no outro extremo tocava salsa, uma oportunidade única para ver alguns figurões tentando sacudir o esqueleto na pista de dança. Bergman foi ao bar, depois abriu caminho até o terceiro andar, o melhor lugar para ver o cenário. – Joshua! – gritou uma voz assim que ele chegou ao patamar. Deu meia-volta e viu lábios vermelhos indo até ele. Era a amiga Kiki. – Como vai meu queridinho? – perguntou ela e o beijou na boca. – Já faz séculos e mais um pouco! – Isso tudo? – perguntou sorrindo. – Sim! – disse ela. – Garth e Tina vão querer saber que você está aqui também. Ao contrário de Elijah, os recentes problemas de Joshua Bergman apenas lhe deram mais fama. Agora aparentemente ele era o bad boy do estilo e da moda em Washington. Bem, se a carapuça servia, por que não? Ele bebeu o restante do uísque e balançou o copo para Kiki. – Pode trazer outro para mim? – pediu. – Tenho que dar um telefonema. – Lógico – respondeu ela –, mas não suma. Vou trazer Garth e Tina para cá. Acho que Tina tem cocaína, o que é terrivelmente retrô. Não suporto. Assim que ela se foi, Bergman pegou o celular e apertou o número 1 da discagem direta. Ele estava perto do corrimão, observando a festa e esperando que Elijah atendesse. – Josh? – Por que você sempre diz meu nome como se estivesse perguntando? – questionou Bergman. – Não confia no identificador de chamadas? – Não confio nem na minha mãe, Josh. Por que iria confiar no telefone? Bergman adorava o modo como eles funcionavam. Elijah agia como se não se importasse, Josh agia como se ele se importasse e os dois conheciam as motivações um do outro. Era confortável. – Bem, adivinhe onde estou – provocou ele. – Em algum lugar barulhento? – Sim e você devia vir até aqui e beber comigo. – Fica pra próxima – disse Creem. – Estou trabalhando. Bergman sentiu uma bolha de excitação subir por sua barriga até a garganta. – Vou tentar de novo – disse, dando uma risada. – Foi uma noite muito importante, Elijah, e com isso quero dizer que foi importante de um jeito que somente você poderia apreciar. Pensei que seria legal tomarmos uma bebida juntos. Elijah não respondeu nem disse nada por um longo tempo. Kiki, Garth e Tina estavam subindo a escada e Bergman fez um gesto indicando um minuto antes de ir até o mezanino. – Elijah? Você ainda está aí? – Estou. Você precisa ir mais devagar, amigo. Não estamos em uma corrida. – Também não estamos em uma coisa qualquer – rebateu Bergman. – Isso não é parte da beleza da coisa? É o que quisermos que seja. Assim como a vida. Ele podia sentir a adrenalina aumentar em suas veias, tão quente quanto a salsa que tocava lá embaixo. Ele até deu uns passos eufóricos enquanto conversavam. – Bem, divirta-se – disse Creem. – Vejo você depois. Bergman sorriu. – Espero que sim – disse ele. – Porque, só para o seu registro, Elijah... se estivéssemos em uma corrida, eu estaria na frente. – Boa noite, Josh. – Eu te amo, Elijah. Nos falamos.
capítulo 42
O DIA SEGUINTE FOI UM DOS piores que já tive na corporação. Começou pouco antes da reunião das seis da manhã. Nossas reuniões matinais mudaram para o Centro de Comando de Operações Conjuntas, no quinto andar. Tudo relacionado a esses homicídios era acompanhado em tempo real através do CCOC. Nós sempre saberíamos quem estava trabalhando e quem tinha feito algum progresso. Os relatórios eram uma chance de cruzar referências de qualquer ação policial do turno da noite com as nossas investigações para ver se alguma coisa poderia ser relevante. Quando cheguei, Tom D’Auria me esperava com más notícias: Jeannette e Tommy Reilly, além do policial responsável por sua casa em Shellman Bluff, tinham sido mortos em algum momento nas últimas oito horas. – Todos os três foram baleados – disse D’Auria. – Informaram que foram dois calibres. A história está estranha... Eu assenti, mas não estava prestando atenção. Senti um aperto no peito, como se não conseguisse respirar, e fiz a pergunta inadiável: – E o bebê? – Desaparecido. Era um soco no estômago em forma de resposta. D’Auria olhou para baixo, apenas para me dar um tempo para pensar. Ele sabia quanto esse tipo de coisa me afetava. – O que posso fazer? – Não muita coisa – respondeu. – O FBI já está trabalhando com o condado de McIntosh e os guardas estaduais. E todos os estados vizinhos já foram devidamente avisados. – Tem de haver alguma coisa. – Você pode telefonar para o gabinete de Atlanta, se quiser, ou para o escritório de Savannah, se tiver alguém lá. Tirando isso, é esperar mesmo. Eles estavam se preparando para tudo. Isso era bom. Se os sequestradores de Rebecca ultrapassassem as fronteiras estaduais, o caso se tornaria federal. Eu apenas esperava que isso fosse o suficiente. Era difícil dizer há quanto tempo a criança fora levada. Enquanto isso, a mudança de turno afetava o CCOC. Notei muitos policiais bocejando e de olhos vermelhos por estarem terminando o turno da noite ou começando o do dia. – Se quiser conversar... – Estou bem – respondi. – Vou ficar bem aqui. Todo policial que conheço se sente no limite às vezes. Não precisam se envergonhar ou esconder isso. Sempre encorajo meus homens a se abrirem quando acharem necessário. Temos um programa de assistência aos funcionários para isso, além de supervisores, colaboradores, psicólogos, clérigos, etc. Basta escolher alguém. Algumas vezes, aceito meu próprio conselho. Outras vezes, não. Percorri o corredor e me tranquei no banheiro. Precisava apenas de um minuto para respirar. Não tinha sido minha culpa. Eu sabia disso. Mas também era verdade que eu tivera uma chance de impedir que isso acontecesse. Eu poderia ter forçado a barra para deixar Rebecca com o serviço social. Poderia ter colaborado mais de perto com o condado de McIntosh. Mas não foi o que fiz. Eu dei um telefonema. Foi só isso que fiz e agora mais três pessoas estavam mortas e um bebê, desaparecido. Joguei um pouco de água fria no rosto. Quando voltei a erguer os olhos, levei um suto com o meu reflexo. Talvez eu tenha me visto rápido demais ou coisa assim. Não pude evitar. Ergui o punho e parti o espelho. Foi um gesto idiota, o tipo de coisa que me faria gritar com qualquer outra pessoa que a fizesse. Tudo que eu tinha conseguido era um monte de vidro quebrado e alguns nós dos dedos ensanguentados. O dia ruim havia apenas começado.
capítulo 43
PASSEI A MANHÃ REUNINDO TUDO que eu tinha sobre a família Reilly e enviando por fax para o FBI em Atlanta. Também dei a eles o que descobrira a respeito de Amanda Simms. Ainda não sabíamos se os casos das “garotas grávidas” estavam ligados ou não. Além disso, passei um longo tempo tentando fazer com que alguém me respondesse no escritório em Savannah, mas só consegui frustração. Com sorte, estavam todos em campo. A única notícia relativamente boa foi que Rebecca fora apenas levada. Com os três homicídios, aquilo significava que o sequestrador queria mantê-la. Isso era melhor que a alternativa. Ao menos, deixava aberta a possibilidade de que ela ainda podia ser encontrada. Então, enquanto eu tentava estabelecer contato com Savannah pela terceira vez naquela manhã, ouvi chamarem o meu nome de alguma parte da sala. Eu me levantei e olhei ao redor. Do outro lado dos cubículos, Huizenga estava parada na porta de seu escritório com Jessica Jacobs. Quando fez um gesto para que eu me juntasse a elas, apontei para o telefone na minha mão. – Desligue! – gritou de volta e entrou na sala. Eu não tive que pensar muito. Jessica Jacobs era a investigadora responsável pelo caso envolvendo Cory Smithe e Ricky Samuels, os dois jovens garotos de programa que tinham sido mortos. Eu me senti dormente ao caminhar até o escritório de Huizenga, como se não houvesse espaço suficiente para mais nada agora. Não que isso importasse. Huizenga tinha a cabeça apoiada nas mãos quando entrei. Jessica Jacobs falava ao celular, fazendo anotações em um bloco amarelo. – Marti? – perguntei. – Número três – respondeu, sem olhar. – Jovem branco, apenas um disparo, facadas múltiplas, sem identidade. – Um corredor encontrou o garoto em Maryland – falou Jessica. – O condado de Montgomery já está na cena do crime. Três assassinatos cometidos de maneira semelhante. Oficialmente um caso de assassinatos em série. Em geral, é nesse patamar que o FBI começa a fazer perguntas. Eles podem ser tremendamente úteis, graças aos recursos que os federais têm, mas também podem ser um empecilho. Já estive dos dois lados e sei bem como é. Antes de ir até Maryland, o que eu precisava era de um copo de café e um botão de reiniciar para o cérebro. Consegui apenas uma das duas coisas.
capítulo 44
RON GUIDICE ESTAVA PARADO NO corredor principal da velha casa e olhava ao redor. A casa era uma espécie de cápsula do tempo da década de 1970. Havia um tapete cinza felpudo no chão e o banheiro agora se resumia ao vaso sanitário. Mas funcionava, com seus três quartos, um quintal e muita privacidade. Além disso, ficava a apenas uma hora e meia da cidade. O esconderijo perfeito para a família, que ganhara um novo membro. – Não se preocupe com tudo isso – disse a corretora. – Chamei um caminhão para levar o que restou. A menos que o senhor queira ficar com alguma coisa. – Somente a mobília. O resto pode ir embora – disse Guidice a ela. A mulher, a Sra. Patten, parou e baixou os olhos para o canguru onde Grace dormia. Ela andara inquieta no carro, mas tinha se cansado na hora em que chegaram à Virgínia. E era Grace agora. Não Rebecca. Nunca mais. – É um presente de Deus, não é? – disse a Sra. Patten. – Qual a idade? – Três semanas hoje – respondeu Guidice. – E, sim, realmente é. Me apaixonei no segundo em que pus meus olhos nela. E era verdade. A Sra. Patten sorriu, do modo como as mulheres sempre fazem quando os homens mostravam um pouco de delicadeza. Como se ele tivesse acabado de fazer um favor a ela. – Gostaria de ver os fundos? – perguntou ela. – Por favor. Ele a seguiu até uma cozinha grande, com uma janela sobre a mesa de fórmica. Do lado de fora, havia um balanço de madeira. Não parecia pronto para o uso, mas ele podia consertar. Além disso, Guidice podia ver um estábulo em meio às árvores. Meia dúzia de éguas marrons estavam mascando a grama. Emma Lee ia amar aquele lugar. Todos iriam adorar, até Lydia, assim que se acostumasse. – Espero que o senhor não se importe com todo esse toque... hã... vintage – disse a Sra. Patten. – Se é como você chama tudo isso. O Sr. Schiavo parecia gostar. – Sem problema. – Uma pena mesmo o modo como ele morreu tão repentinamente. Mas acho que ele ficaria feliz em saber que um jovem parente estava se mudando para cá. Qual é a sua profissão, Sr. Henderson? – Sou jornalista – disse Guidice. – Mas pretendo passar um tempo sem trabalhar. Assim como Grace, ele tinha um novo nome. Ele usara pseudônimos algumas vezes, para encobrir os rastros quando estava investigando uma história. Paul Henderson era o que havia usado com mais frequência e o único para o qual ele tinha documentação falsa. Era boa o suficiente para garantir uma casa, de qualquer forma. – E quanto à sua esposa? – perguntou a corretora, animada. – Ela vai ficar em casa também? – Minha mulher não está mais entre nós – disse Guidice. – Nós a perdemos na noite em que Grace nasceu. A Sra. Patten parou e levou uma das mãos à boca, cobrindo o pequeno “Oh” que acabara de se formar ali. – Ah, meu Deus. Lamento muito. – Tudo bem – disse Guidice. – Estou apenas procurando um lugar tranquilo onde minha mãe, minhas filhas e eu possamos botar nossas vidas de volta nos eixos. Ela parecia prestes a chorar. Guidice esperava que não o fizesse. – Quantos anos tem sua outra filha? – perguntou ela. – Emma Lee tem 4 anos e meio. Sente falta da mamãe, mas está muito animada por ser a irmã mais velha. – E você tem sua mãe também. É uma bênção. Tenho certeza que ela é incrível com as garotas. – Sim – respondeu Guidice. Ele baixou os olhos para os pequenos cachos macios e angelicais no topo da cabeça da filha. – Pois não há nada mais importante que a família. Não é verdade, Grace?
capítulo 45
LOCK SEVEN NORMALMENTE É UMA pequena área de recreação do Clara Barton Parkway, em Maryland. Hoje havia uma fita amarela em volta da entrada. Mais tarde, esse local tranquilo estará em todos os noticiários. Nossa vítima fora encontrada pouco antes do meio-dia. O corpo estava preso no antigo mecanismo para baixar o portão do que costumava ser um reservatório. O objetivo original da via era o transporte de cargas por um trecho de 300 quilômetros entre Georgetown e Cumberland Park. Agora era, sobretudo, um lugar para correr, andar de bicicleta ou caminhar, embora poucas pessoas usassem essa trilha. Minha aposta era que o assassino não esperava que o corpo fosse descoberto tão cedo. O detetive do condado de Montgomery responsável pelo caso era um cara mais velho de quem eu gostava, Bob Semillon. Ele se encontrou com Jessica Jacobs e comigo no estacionamento e nos conduziu pela mata. – Nossos legistas já foram, mas imaginei que vocês fossem querer que um dos seus desse uma olhada – disse Bob. – A coisa é bem assustadora. “Assustador” era pouco para descrever. Tudo indicava que o assassinato ocorrera ali na trilha. Uma mancha escura de sangue seco na terra fora encontrada na metade da descida do morro e havia algumas marcas muito nítidas de algo sendo arrastado entre o lugar e o canal. O corpo jazia sobre a grama quando chegamos lá, o que me proporcionou uma sensação doentia de déjà vu. Havia um único ferimento de tiro no rosto e múltiplas incisões de facadas pelo quadril e os genitais. Além disso, havia a água. Cory Smithe fora encontrado no rio Potomac, Ricky Samuels no Rock Creek, e agora este. A única diferença real que eu podia ver, além do local, eram as facadas. Cada vítima parecia ter sido esfaqueada algumas vezes a mais que a anterior. O jeans do garoto estava manchado de sangue até os tênis verde-néon. Jessica Jacobs se ajoelhou ao lado do corpo. Dava para ver que ela estava fazendo o que eu fazia às vezes: um esforço para se aproximar e absorver o máximo que podia. – Por que esse cara está com tanta raiva? – disse ela. – O que você acha que ele está tentando fazer? Ela parecia sentir um pouco da mesma raiva que eu sentira ao ver todos esses casos. Aquela história continuava rendendo frutos. – Eu não sei – respondi. – Mas pode ser um círculo vicioso. Quanto mais ele tenta coçar a ferida, mas ele descobre que não pode e mais desesperado fica. – Ou excitado – sugeriu ela, apontando uma das perfurações na calça do garoto com a luva. – Ou as duas coisas. Eu tinha certeza que o tiro era um meio para chegar a um fim. Era no trabalho da faca que as emoções assumiam o controle. Em todos os outros aspectos, ele parecia ser extremamente disciplinado em relação à coisa toda. Não eram assassinatos espontâneos. Cada um deles exigira algum planejamento e premeditação. E isso deu origem à outra pergunta importante. Da última vez, em Rock Creek, nossa vítima não estivera sozinha. Havia dois corpos naquela noite, provavelmente de dois assassinos diferentes. A unidade do condado de Montgomery já havia feito uma primeira passagem pelo canal e ainda estavam verificando a mata, mas parecia evidente para mim que este era outro trabalho solo. Mas por quê? O que mudara agora? Ou o que mudara antes? Eu não tinha ideia, mas mesmo enquanto ficava parado ali, considerando tudo, uma parte de mim já se preparava para o que vinha a seguir. Não importava que jogo essas pessoas estavam jogando, não acabara ainda. E o placar era três a dois.
capítulo 46
FOI POUCO DEPOIS DO ANOITECER que finalmente saí da cena do crime. Eu havia ficado ali muito mais do que gostaria, mas, por outro lado, é o que sempre faço. Caminhei pela mata até o estacionamento e o carro. Quando cheguei, havia alguém esperando por mim. Estava escuro e, no início, não consegui ver quem era, mas depois reconheci a barba. E o casaco com capuz era o mesmo da última vez. – Ron Guidice? Como era de esperar, ele se virou. Eu tinha razão desde o início. Era ele. – Andei tentando falar com você. Temos que conversar. – Ah, agora você quer conversar? – perguntou ele, imediatamente agressivo. – Da última vez, não me pareceu uma conversa. Respirei fundo. Parte de mim queria algemá-lo e jogá-lo no fundo do carro. Mas isso não ia me levar a parte alguma. Em vez isso, insisti. – Ouça, não vou fingir que não sei exatamente o que houve há seis anos. Mas o que você está fazendo agora? Não está ajudando ninguém. – Acho que é uma questão de opinião – retrucou ele. – Quero que você saiba que lamento a sua perda. Lamento realmente, mas... – Mas o quê, Alex? Eu deveria simplesmente calar a boca? Já tentei isso, mas não ajudou. Você e o seu departamento são tão incompetentes agora quanto eram há seis anos. Olhei fixamente em seus olhos, tentando compreendê-lo. Seria paranoia? Eu não estava convencido disso. – Não é apenas a minha vida que você está tornando difícil. Você está pondo as vidas de futuras vítimas em risco aqui. Entende isso? – Engraçado – disse ele. – Porque eu escrevo para proteger as pessoas cujas vidas você está pondo em risco. – Você está errado. – Estou? – insistiu ele. – E quanto a Rebecca Reilly, detetive? O senhor pode me dizer onde ela está? Porque ela desapareceu sob sua vigilância. Eu não seria capaz de acalmar o cara e não tinha mais certeza se valia a pena. Mas eu tinha uma última coisa a dizer. – Muito bem, ótimo. Você quer publicar a sua merda, é direito seu. Mas se descobrir que você está me vigiando quando eu estiver de novo com a minha família, vamos ter um problema de outra natureza. Entendeu? Ele deu um passo para trás. Guidice era um cara grande e obviamente não se intimidava com muita coisa. Mas eu também não. – Está me ameaçando, detetive Cross? – perguntou ele. – É isso que está acontecendo aqui? Eu não tinha percebido o gravador na mão dele até então. Ele o estivera segurando, simplesmente fora da vista. Antes de pensar muito nisso, arranquei-o da mão dele e joguei o mais longe que pude na mata. Provavelmente foi um erro. Outro para o meu currículo. – Você acha que isso vai me impedir? – perguntou ele. Guidice riu antes de prosseguir. – Isso é publicidade. Alex Cross, o Matador de Dragões. Alex Cross, o Sherlock Holmes do Departamento de Polícia Metropolitana. Alex Cross, a segunda maldita encarnação de Cristo! Você é uma mentira. E as pessoas têm que saber disso. Eu já estava indo embora. – Não acabou! – gritou ele, às minhas costas. – Não está nem perto de acabar! – Esse é o único ponto em que concordamos, Guidice – falei quando entrei no carro. – Com certeza, não acabou. Era hora de atingir esse cara de outro ângulo.
capítulo 47
NÃO É QUE EU NÃO SIMPATIZASSE com Guidice. Perdi minha primeira mulher por causa de violência. Foi o pior dia da minha vida e, por isso, tínhamos algo em comum. Mas não significava que eu ia deixá-lo continuar. Já que ele não conversava comigo de verdade, eu tinha que fazer alguma coisa para impedi-lo. Passei a noite reunindo tudo o que tínhamos sobre Guidice e escavando qualquer coisa que pudesse encontrar. O comandante D’Auria me permitiu o acesso LexisNexis dele e isso resultou no que foi basicamente uma bibliografia do trabalho passado de Guidice. Isso me deu uma visão totalmente nova sobre ele. O que eu já sabia era que ele havia servido o exército norte-americano durante vários anos antes de receber uma liberação com honras, em 2005. Foi quando começou sua carreira jornalística A maior parte de seu trabalho no exército fora nas unidades de administração e comunicação. Primeiro em Forte Bragg, depois Newark e Nova Jersey, com uma estadia de seis meses em Bagdá, trabalhando para o Army Times. No exterior, ele escrevera uma série de matérias destacando os esforços humanitários norte-americanos e projetos de infraestrutura no Iraque. Então houve todas as coisas que vieram depois da liberação. Não sei o que aconteceu a Guidice no Exército, mas quando ele começou a trabalhar como freelancer, e muito antes de Theresa Filmore, foi como se tivesse se tornado outra pessoa. Seu foco passou a ser quase que apenas os excessos cometidos pelo governo norte-americano, dentro e fora do país. Ele voltou ao Oriente Médio algumas vezes e até ganhou alguns poucos prêmios obscuros por seu trabalho. Ao mesmo tempo, escreveu matérias sobre tudo, da brutalidade à falsificação de cartões de ponto na polícia, e fez diversas denúncias sobre o suposto descaso do Departamento de Polícia Metropolitana, como os ataques terroristas da Al Ayla no outono. A única coisa sobre a qual ele parecia nunca ter escrito diretamente era a morte da mulher. Por alguma razão, ele deixara esse incidente de fora. Devia ser o combustível que aumentou ainda mais a fogueira que já estava queimando. Agora, tudo isso parecia estar borbulhando, incluindo a culpa que depositava em mim. Eu não sabia o que esperar dele, mas estava claro para mim que eu ainda não vira o pior de Ron Guidice e que o reencontraria.
capítulo 48
EU CONSEGUIRA MARCAR UMA REUNIÃO com o procurador-geral da República às duas da tarde. Nem sempre as coisas funcionavam por ali, mas queria descobrir se poderiam me ajudar com Guidice. À 1h45 da tarde, saí do escritório e percorri o trajeto rápido do centro de operação, pela Rua 4, até o Centro Judiciário. Meu encontro era com um dos assistentes, Larry Kim, no gabinete do terceiro andar. Kim e eu nos conhecíamos mais por reputação. Ele tinha a fama de ser um procurador sólido, com um bom conhecimento sobre a lei e uma vontade férrea de lutar pelo que acreditava. Já havíamos conversado pelo telefone e ele sabia por que eu estava lá. – Sinceramente, não estou seguro de que haja muito que você possa fazer – disse ele. – A questão é que os cidadãos têm todo o direito de investigar assuntos do governo e compartilhar o que descobrirem. – E quanto à invasão da minha privacidade? Além disso, em algum momento ele vai representar uma ameaça para a investigação. Não estou apenas falando dos assassinatos já cometidos. Estou falando de um bebê desaparecido e de mais de um assassino ainda ativos por aí. Kim balançou a cabeça. – Liberdade de imprensa, Alex. Desculpe, mas é assim mesmo. – Ele não é da imprensa – falei. – É só um cara que tem um computador, um celular e muito rancor. – Esse é o meu ponto. Kim pousou o café extragrande que estivera bebendo na mesa e inclinou-se na minha direção. – Em outros tempos, as grandes histórias eram monopólio da imprensa tradicional. Agora é normal ver caras munidos de celulares e donos de blogs. Os tribunais estão reconhecendo isso. Houve um caso sobre segurança nacional no ano passado. A mesma coisa: um cara no Oregon com um notebook e fontes questionáveis. Adivinha o que aconteceu? Nada. Se o Oregon pensasse que o caso se sustentava, teriam recorrido aos federais, mas deixaram a coisa para lá. Kim se recostou e pegou o café. – Essa é a nova realidade. – É um caso isolado – argumentei. – Não. É um de muitos. Guidice deve saber disso e está tirando vantagem. E o fato de que ele andou atrás de você não sustenta um caso. – Estou apenas pedindo uma ajuda – disse a ele. A procuradoria-geral tinha advogados só para pesquisa. Eu confiava na competência de Kim, mas talvez houvesse algum precedente. Larry assentiu várias vezes e começou a remexer nos arquivos na escrivaninha. Era uma indicação não tão súbita de que seu tempo comigo acabara. – Posso fazer isso – disse ele. – Mas preciso de material. Se você puder encontrar algo mais específico sobre Guidice... Se ele violou alguma lei, sei lá... Talvez tivesse uma chance de obter uma forcinha aqui. – Acredite – falei –, estou tentando. Simplesmente torcia para que ninguém mais morresse enquanto isso.
capítulo 49
SAÍ DA REUNIÃO COM KIM e voltei para o carro. Às vezes, não há lugar melhor para fazer o trabalho em particular. Bree o chama de “escritório móvel”. Sobretudo, eu tinha que dar alguns telefonemas. Folheei um bloquinho e digitei o primeiro de alguns nomes na lista: Ned Mahoney. Ned é um bom amigo, um grande agente do FBI e a pessoa em quem eu mais tinha confiança para me dar uma resposta direta. Ele liderava a Equipe de Sequestro e Resgate em Quantico. – Alex – atendeu ele. – Como está o cara que mais trabalha neste mundo? Espere... não me diga. Até o pescoço de trabalho, estou certo? Ned também fala sem parar. Ele é chamado de sarcástico muitas vezes, mas a verdade é que não há muitos tabus no mundo de Ned. É uma das coisas de que gosto nele. – Preciso de uma informação – falei para ele. – É sobre um sequestro na Geórgia – falei. – O nome é Rebecca Reilly. – Hum... – disse ele. – Isso tem algo a ver com a garota da janela em Vernon, algumas semanas atrás? – Cá entre nós? Sim – confirmei. – Rebecca é o bebê. Estava sob a custódia dos avós no Sul quando foi levada. Os avós também foram assassinados. Não consigo conversar com ninguém em Atlanta nem em Savannah sobre isso. Ned fez um som como se inspirasse através dos dentes. – Essa história não está cheirando bem, né? A gente devia mudar de emprego, Cross. Por que não nos tornamos contadores ou algo parecido? – Porque nós nos importamos, Ned. – Ah, claro. Às vezes me esqueço disso – disse ele. – Deixe-me ver o que posso fazer. Entro em contato assim que puder. Não levou muito tempo. Quando terminei as ligações para Jarret Krause, Sampson e a sargento Huizenga, tinha uma mensagem de voz de Ned à minha espera. Ele não quis deixar nenhuma informação específica gravada, por isso telefonei no mesmo instante. – Não tem muito o que dizer – falou. – É provável que haja uma boa razão para acreditarem que Rebecca foi levada da Geórgia. Mas isso foi o máximo que consegui. Eles estão com todas as cartas nas mangas. – Obrigado por tentar – falei, afinal era mais do que eu tinha antes. – Como estão as coisas? – perguntou Ned. – Parece que você andou apanhando feio da imprensa ultimamente. Era um dos assuntos sobre os quais eu não queria falar, mas a curiosidade levou a melhor sobre mim. Com frequência, leva. – Por quê? – perguntei. – O que você ouviu? – Toda a história do tal The Real Deal – disse Ned. – Parece que não posso fazer nada sem ler sobre isso ultimamente. É verdade que jogou o gravador do cara no mato? – Prefiro não comentar – disse a ele. Não que eu achasse que o blog de Guidice fosse segredo, mas não era engraçado lembrar do fato. Quanto mais isso prosseguia, mais eu me tornava parte da história. – Mas o cara está me causando um tremendo problema. – Não esquente, Alex – disse Ned. – Essa coisa é como herpes. Aparece, some por um tempo, depois volta. Não há nada que você possa fazer além de manter a cabeça baixa e se ater ao que é mais importante. Tive que rir. – Herpes, hein? Me lembre de ligar para você da próxima vez que precisar me animar. – A qualquer hora, Alex. Enquanto isso, não leia aquele lixo. Só vai deixar você mais aborrecido. Sobretudo, hoje. Talvez fosse um bom conselho, mas vinha um pouco tarde demais. Assim que terminei o telefonema com Ned, abri o navegador do celular e fui direto para o The Real Deal. Para o melhor ou para o pior.
capítulo 50
UMA NOVA INFÂMIA Postado por RG às 11h52
Algumas vezes, fico surpreso com as profundezas nas quais o Departamento de Polícia Metropolitana vai afundando. Ontem à noite foi um bom exemplo. Minhas críticas ao detetive Alex Cross (vejam a barra lateral aqui) são bem conhecidas. Apesar de sua reputação de bom investigador – que ele pode muito bem ser –, o Dr. Cross também é um ótimo exemplo de lobo em pele de cordeiro. Clique aqui para ter acesso a uma gravação de áudio do meu encontro ontem com o detetive Cross. Vejam o que pensam. Eu estava tentando coletar informações sobre a série de assassinatos de jovens garotos de programa em Georgetown e seus arredores, o chamado caso do Assassino do Rio (para o qual o Departamento de Polícia Metropolitana não informou nenhum progresso, por sinal). No momento do incidente, eu estava no estacionamento de Lock Seven, fora do Clara Barton Parkway. Aqui tem o mapa do Google do local e marquei o perímetro policial como foi determinado, além do ponto onde meu encontro com o detetive Cross ocorreu. Como vocês verão, eu estava nos limites da área permitida para a imprensa e outros observadores. Não foi uma questão de ofensa neste caso. No entanto, vou admitir que escondi um gravador durante a nossa conversa. É algo que sempre faço em contatos com o Departamento de Polícia Metropolitana, mas foi a primeira vez que isso se provou necessário. Cliquem aqui para ouvir o áudio. O que vocês vão testemunhar sou eu interagindo com o detetive Cross, seguido por uma breve discussão, na qual ele pega o gravador portátil que eu estava carregando e o joga no mato, na direção que assinalei com uma seta no mapa. Espero que fique evidente aqui que, de forma crescente, e até mesmo opressiva, o Departamento de Polícia Metropolitana está precisando urgentemente de uma faxina. Esse é o tipo de comportamento policial sobre o qual ouvi falar em locais como o Egito, a Líbia e a China. Será que é isso mesmo que queremos em nossa casa? Como sempre, encorajo vocês a NÃO acreditarem em nada do que digo. Ouçam por si mesmos. Acompanhem o que outras pessoas estão dizendo. Se quiserem comentar ou fazer uma observação sobre o trabalho que o Departamento de Polícia Metropolitana está realizando, cliquem aqui. E lembrem-se: a polícia trabalha para vocês. Não o contrário.
capítulo 51
QUANDO VOLTEI PARA CASA ANTES das sete da noite, tudo estava desconcertantemente quieto. Não havia som de Xbox vindo da sala de estar, nem Nicki Minaj tocando atrás de uma porta fechada. Nada de pés batendo na escada. Em vez disso, o que vi foi Bree sentada na cozinha com Stephanie Gethmann, nossa assistente social. Stephanie foi a funcionária do Serviço de Atendimento à Família e à Criança escolhida para o caso de Ava. Nós costumávamos vê-la uma vez por mês para visitas domiciliares, mas a última visita fora há uma semana. Alguma coisa estava acontecendo. – Alex, sente-se – pediu Bree. Ela parecia tensa e tocou minha mão quando me juntei a elas. – O que está acontecendo? Onde estão as crianças? – perguntei. – Jannie e Ali estão com Tia – disse Bree. – E Ava? – insisti. – Ela está bem? – Uma viatura a trouxe para casa hoje à tarde – disse Bree. – Eles a encontraram na Seward Square, inconsciente sobre um banco do parque. A notícia me atingiu como um soco no estômago. – Inconsciente? – disse. – Com as pupilas contraídas. Isso significava opiáceos. OxyContin possivelmente, mas Ava não teria dinheiro para isso. Talvez fentanil, que era mais barato e mais fácil de obter, mas também era mais difícil de controlar. A minha mente de policial não conseguia deixar de percorrer uma lista de possibilidades. – Nana está lá em cima com ela agora. Ava está dormindo. Faremos um exame de urina amanhã. Eu assenti e olhei para baixo na mesa. De repente, me senti mais uma vez em julho de 1989. Tinha sido a última vez que as drogas assombraram esta casa. Blake, meu irmão, fora viciado. Uma noite, ele havia aparecido na porta de Nana, drogado e implorando por ajuda. Nana me telefonou no alojamento em Georgetown e pediu que eu viesse para casa, o que fiz. Foram longas e suadas doze horas, mas nós sobrevivemos. Nana foi um anjo de piedade. Eu apenas ajudei no que pude. O que eu não sabia na época era que seria a última vez que nós três ficaríamos juntos. Blake prometeu seguir à risca o programa de reabilitação que Nana encontrara para ele, mas rapidamente o abandonou e desapareceu. Recebemos a má notícia na manhã de 2 de setembro. Blake fora encontrado em uma pensão em Anacostia, morto por overdose de heroína. Agora, sentado ali, eu não podia deixar de ficar apavorado por Ava. Obviamente, ela não era Blake. Mas também era verdade que Nana e eu tínhamos feito tudo o que podíamos pelo meu irmão e não fora suficiente. – E agora? – perguntei para Stephanie. – Com certeza, Ava precisará de aconselhamento – disse ela. – Tratamento, talvez. Depende do que Ava tem a dizer. Precisamos descobrir há quanto tempo isso vem acontecendo e se ela estava enfrentando o vício aqui. Além disso, se você conseguir descobrir onde ela consegue as drogas, isso pode ser um passo importante na recuperação. – Nós a mantivemos por perto – falou Bree –, mas notamos que ela estava passando por alguns problemas ultimamente. – Problemas com drogas? – perguntou Stephanie. Bree e eu trocamos olhares. – Não tínhamos certeza – respondeu ela. – Mas agora... – Bem, é melhor que Ava fique aqui. Vou deixá-la descansar hoje, mas gostaria de vê-la amanhã. E vou fazer visitas mais frequentes. Que tal às quartas e aos sábados? – Está ótimo – respondeu Bree. Eu me sentia como se estivesse tentando acompanhar. Minha cabeça também estava cheia. Quando voltei a erguer os olhos, Stephanie e Bree me encaravam. – Desculpe... o quê? – perguntei. – Quartas e sábados? – repetiu Stephanie. – Está tudo bem para você, Alex? – Sim, claro – falei. – O que for preciso. Vamos resolver isso.
capítulo 52
– SIM, CLARO. O QUE FOR preciso. Vamos resolver isso. Ron Guidice tirou os fones de ouvido e se recostou. Ele ouvira tudo o que precisava ouvir. Parecia que Alex estava em uma má fase. Seu plano vinha funcionando perfeitamente. Guidice assinalou a hora no bloco de anotações ao lado do computador e simplesmente começou a digitar algumas ideias quando ouviu uma batida do corredor. – Ronald, querido? – Pode entrar – disse ele e fechou o notebook. Quando a mãe abriu a porta, estava segurando o bebê Grace no colo com apenas um braço. Uma fralda de pano branca estava dobrada sobre o ombro e o bico de uma pequena mamadeira aparecia no bolso do penhoar. – Emma Lee disse que quer que o papai a ponha na cama hoje. – Sem problema – disse Guidice. Quando ele alcançou a porta, porém, Lydia não se moveu. Ela simplesmente ficou parada ali, obstruindo o vão com a sua considerável circunferência. Era como uma vaca nos trilhos. Obviamente, ela estava pensando em alguma coisa. Guidice se encheu de paciência. Não sabia ao certo se deveria morder ou assoprar com a mãe. Talvez, os dois. – O que foi, mãe? – perguntou ele. – Você já ligou para a polícia? – Não – respondeu ele. – Não se preocupe com isso. – Bem, eu me preocupo, sim – disse ela, balançando a criança distraidamente. – Quer dizer... – Agora ela baixara a voz para um sussurro, como se alguém mais estivesse ouvindo. – Como é que você sabe que ela é sua? Guidice estendeu a mão e afagou a bochecha rosada da filha com um dedo. Os olhinhos semicerrados o fizeram sorrir. – Olhe para ela – disse ele. – É igualzinha a mim. – Ainda assim. É da mãe da garota que estamos falando – insistiu Lydia. – Ela era apenas uma prostituta, mãe. Uma trepada só. A mãe virou um pouco a cabeça e ergueu a mão. – É informação de mais, obrigada. Só estou dizendo que o que ela fez não foi certo. – Exatamente – disse ele. – Pense, mãe. Trata-se de uma pessoa que deixa um bebê em um carro com um bilhete e vai embora. A senhora quer mesmo esse tipo de pessoa na vida de Grace? Lydia apertou o bebê um pouco mais. – Bem, não, mas... – Por isso nós nos mudamos. Eu não queria que ela nos encontrasse. E, sinceramente, não quero encontrá-la também. Acho que Grace merece uma vida melhor do que aquela. – Imagino que sim – respondeu Lydia, hesitante, porque concordava com ele ou porque a pouca educação não a preparara para nenhum tipo de discussão sólida na vida. – Não imagine, mãe. A senhora realmente quer que alguém assim crie a sua neta? – Não – respondeu ela, com mais decisão desta vez. – Não – repetiu ele. – Não quer. E eu também não quero. Ele deixou a poeira baixar por um instante e então baixou o tom de voz conforme falava. Hora de assoprar. – Pode acreditar, a senhora é melhor mãe do que ela jamais seria – garantiu ele. Sempre fora fácil bajular Lydia Guidice. Ela sorriu, corou e finalmente abriu passagem. – Pode ir – disse ela. – Emma Lee está esperando. Guidice beijou a mãe na bochecha antes de ir para o corredor. Sem dúvida, havia outras soluções. Do ponto de vista físico, Lydia poderia ser eliminada com tanta facilidade quanto qualquer outra pessoa. Seria um alívio pôr uma ordem de restrição definitiva naquela chateação constante. Porém, em termos gerais, era uma questão de custo-benefício a essa altura. Lydia desempenhava um papel fundamental na família. Gostando ou não, ele precisava dela agora. Seria imprudente matá-la apenas para que a mãe calasse a boca. Não, pensou Guidice. Ele não podia fazer isso. Não podia nem pensar nisso. A menos que fosse absolutamente necessário.
capítulo 53
TENTEI ME CONCENTRAR DURANTE A reunião da manhã, mas era difícil manter a minha mente na sala. Começava a me perguntar se eu estava exagerando. É uma pergunta que surge com frequência. Oficialmente, eu tinha três casos. Ava era o quarto. No fim do dia, teríamos uma reunião no Serviço de Atendimento à Família e à Criança. Enquanto isso, eu tinha mais que o suficiente para me manter ocupado. Coisas de mais, na verdade, mas como você diz não quando a vida das pessoas está correndo risco? Nós tínhamos nove mortos até então e, com três suspeitos desconhecidos à solta, a promessa iminente de mais por vir. Há uma boa quantidade de discordância sobre os casos. Algumas pessoas dizem que não são nada além de coincidência e que provavelmente veremos atividades simultâneas de tempos em tempos. Afinal, os Estados Unidos são a capital mundial dos assassinatos em série, com 25 a 50 assassinos ativos em determinada época. O caso mais famoso de concentração de assassinos em série que eu conhecia ocorrera no sul de Los Angeles, do início dos anos 1980 até 2007. O Departamento de Polícia de Los Angeles rastreara cinco casos separados na época. Quando todos os cinco casos foram encerrados, 55 pessoas tinham sido mortas no total, todas num raio de 80 quilômetros. Havia também o caso dos três assassinos que atuavam ao mesmo tempo nos condados de Nassau e Suffolk, em Long Island. As últimas notícias eram de que dois suspeitos foram presos, um ainda estava solto e que a contagem de cadáveres chegara a trinta. Passei praticamente todo o tempo repassando os três casos. Pensando nos métodos, perfis das vítimas, possíveis motivos e, sobretudo, me perguntando onde um desses caras poderia atacar em seguida. O assassino número um era o homem que eu chamava de “Russell”, o suposto namorado de Elizabeth Reilly. De certo modo, era o mais imprevisível, com quatro anos e meio de intervalo entre as vítimas grávidas e provavelmente um rapto no currículo. O número dois era o cara conhecido como “Assassino do Rio”. Três garotos de programa gays foram encontrados mortos até agora, mas meu temor era de que poderíamos encontrar mais vítimas. Pode levar semanas até um corpo submerso, em decomposição, acumular ar suficiente para boiar e subir até a superfície. O assassino de número três era o menos estabelecido, mas ele tinha dois apelidos diferentes. Alguns o chamavam de “Estripador de Georgetown”. Outros usavam “Assassino de Barbies”, por causa dos cabelos louros e do corpo perfeito das duas vítimas conhecidas. O Departamento de Polícia Metropolitana retirara essas comparações das declarações oficiais, mas a imprensa tomara conhecimento disso. Este era o caso que mais me preocupava. Considerando a aparente relação entre o Assassino do Rio e esse cara, não dava para não sentir como se nosso Assassino de Barbies tivesse que acompanhá-lo. Nos termos mais simples possíveis, era como se ele estivesse devendo outra loura morta. Três dias depois, descobrimos que eu tinha razão. Desta vez, foram duas.
capítulo 54
OS CORPOS FORAM ENCONTRADOS PELA empregada quando chegou para trabalhar na manhã seguinte. A hora da morte foi determinada posteriormente como sendo por volta das dez da noite de sábado, o que significava que essas mulheres estavam mortas havia 36 horas. Outra má notícia para a investigação. Fui até o local assim que recebi o telefonema. Era um edifício de tijolos cor-de-rosa em Cambridge Place, em um quarteirão confortável, mas intensamente povoado de Georgetown. Ainda assim, não houvera nenhuma informação de gritos ou de algum tipo de confusão. – Não há sinais de arrombamento – informou Errico Valente da entrada. – O sistema de alarme também estava desligado. Parece que abriram a porta para ele. – Há câmeras na vizinhança? – Sim. De uma empresa de segurança particular. Estamos rastreando os registros neste momento. A maior parte das câmeras de segurança municipais da capital normalmente era reservada para os bairros mais violentos. A ironia era que esses dois homicídios puseram o Segundo Distrito, que é Georgetown, no mesmo nível que qualquer outra parte da cidade. Acompanhei Valente à suposta cena do crime, o quarto de casal com suíte no segundo dos três andares. As vítimas eram mãe e filha: Cecily e Keira Whitley, com idades de 43 e 19 anos. A Sra. Whitley era divorciada, mas o ex-marido ainda morava em Columbia, onde criaram as duas filhas. A irmã gêmea de Keira cursava a Universidade de Santa Bárbara, na Califórnia. A família Whitley havia se reduzido à metade. Ao entrar no quarto, vi primeiro a mãe. Estava deitada sobre os lençóis de uma cama king size desarrumada. As cobertas tinham sido puxadas e formavam um monte no chão. A filha estava em uma chaise longue no canto, olhando para a mãe. As marcas no tapete me diziam que a chaise fora movida recentemente para aquela posição. As duas vítimas eram mulheres altas, louras e bonitas. Na verdade, eram muito parecidas. Mais duas bonecas para o Assassino de Barbies. Se havia alguma dúvida, o uso característico da faca era a palavra final. Ambas receberam punhaladas no lado esquerdo do peito, no abdômen, na coxa direita, próximo à artéria femoral. Sangue seco formava uma coroa escura ao redor dos corpos no colchão e na chaise, respectivamente. – Filho da puta – disse Valente. – Mata pelo prazer de matar. Esse parecia ser o caso. Não havia sinais de estupro nem de roubo. A bolsa azul de couro da Sra. Whitley estava presa sobre uma cômoda próxima à janela e os brincos pesados de diamantes nas orelhas de Keira permaneceram intocados. A idade também não parecia ser um fator relevante para ele. As únicas semelhanças reais eram o tipo físico muito bem definido, o uso da faca e, claro, os cabelos cortados. Eles estavam em todos os lugares para onde eu olhasse, cobertos com sangue nos móveis, mas também em tufos soltos pelo cômodo. Era uma das cenas de crime mais estranhas em que já estive. Mas será que um desses elementos era mais importante que o outro? Ele estava preparando alguma coisa, não havia dúvida. Ou talvez estivesse revivendo uma fantasia de algum tipo... Era possível que essas mulheres fossem substitutas de outra pessoa. Alguém que o nosso assassino apenas gostaria de atingir. A mãe falecida ou uma ex. Eu realmente não conseguia enxergar isso, mas, de alguma forma, meu instinto me dizia que fazer aquela pergunta me indicava a direção certa. Quem era esse cara e quem ele estava tentando matar repetidas vezes?
capítulo 55
VALENTE E EU DEMOS UMA boa olhada na casa antes de ouvirmos do sargento na entrada que um funcionário da Baseline Security chegara. Errico ordenou pelo rádio que mantivessem quem quer que fosse fora da casa e fomos até a rua para nos encontrarmos com ele. Um Range Rover preto estava estacionado entre a casa das Whitleys e as barreiras no fim do quarteirão. O homem que esperava por nós ali se apresentou como John Overbey, proprietário da Baseline. A empresa trabalhava para diversas associações de bairro, oferecendo câmeras de vigilância e cobertura a distância onde havia escassez de câmeras municipais. E o negócio parecia prosperar. A gravata de seda verde de Overbey custava mais que todo o meu terno. – Temos cem por cento de cobertura neste quarteirão – disse ele. – Comecei a examinar os registros assim que soube das terríveis notícias. E tenho quase certeza que pegamos o seu homem. Ele ficava olhando para o apartamento das Whitleys, no edifício residencial, enquanto conversávamos. Eu também iria querer dar uma olhada lá dentro, mas Valente fez um gesto para que abrisse o notebook bem ali no capô do carro. Quando a tela do computador piscou, Overbey já tinha duas imagens de vídeo lado a lado à espera. A marcação do tempo parecia confusa para mim, talvez fosse algum tipo de criptografia, mas ele a leu com facilidade. – Foi às 21h47 de sábado – disse ele, indicando a imagem à esquerda. – E a outra, às 22h15. Ambas da mesma unidade, que fica bem ali. Ele virou e apontou para o fim do quarteirão, na esquina da Cambridge com a Rua 13. Pude ver uma pequena caixa preta instalada no segundo andar da janela da casa naquela esquina. – Vamos seguir cronologicamente – disse Valente. Overbey colocou a primeira imagem em tela cheia e ligou o vídeo. Ao contrário das câmaras da prefeitura, esta gravava uma imagem digital em cores e nítida. A limitação era o fato de que fora feita à noite. O lugar era mal iluminado por alguns postes de luz em estilo antigo, ao longo da calçada de tijolos. Depois de alguns segundos de imagens vazias, um homem entrou no quadro, caminhando pelo quarteirão de costas para a câmera. – É ele – disse Overbey. Não havia muito para ver, exceto que ele usava boné e vestia um casaco preto, na altura dos joelhos. Quando chegou à casa das Whitleys, parou na varanda e pareceu tocar a campainha. Era assustador saber o que ia acontecer depois e não poder fazer nada. A luz da varanda foi acesa. Parecia ter havido uma breve conversa na porta enquanto o homem apontava para a rua diversas vezes. Finalmente, uma mulher loura saiu de dentro da casa. Estava muito distante para dizer se era a Sra. Whitley ou a filha, mas ela pôs o braço em volta do homem e o ajudou a entrar. Enquanto fazia isso, ele fez um movimento brusco, mancando, que não fora percebido antes. – Provavelmente disse a ela que foi assaltado – concluiu Overbey ao minimizar a gravação e aumentar a outra. – Agora vejam. Vinte e nove minutos depois. A mesma cena de rua de antes, gravada pela mesma câmera. Depois de um instante, o homem surgiu e fechou a porta atrás de si. Virou para a esquerda ao sair da varanda, então começou a percorrer o quarteirão, movendo-se com facilidade e sem mancar. Ao se aproximar novamente da câmera, vimos o rosto dele pela primeira vez. O homem até ergueu o olhar para as lentes por uma fração de segundo, depois passou por baixo dela e ficou fora do campo de visão. – Bem ali – disse eu. – Isso. Overbey parou, voltou ao minuto que queríamos e congelou a imagem. O homem parecia estar olhando para nós. Valente se inclinou para ver mais de perto e então xingou baixinho. – Parece familiar? – disse ele. Parecia. O rosto era semelhante, embora não exatamente o mesmo na fita de segurança da noite em que Darcy Vickers foi assassinada. Ele parecia ter a mesma idade, cerca de 70 anos, mas, ao contrário da última vez, este cara usava bigode e óculos. Dois tufos brancos de cabelos cacheados apareciam debaixo do boné também. O último homem era quase completamente careca.
– É uma prótese – falei, ao mesmo tempo que percebia isso. Valente assentiu. – Um tipo de máscara, é isso? Jesus. Isso explicaria muita coisa. – Não acho que ele se importe com o fato de sabermos disso também – acrescentei. – Obviamente ele teve alguma intenção, pelo modo como olhou direto para a câmera. Talvez até quisesse que nós o víssemos. Isso pode ser bom, pensei. Ele está confiante que nunca o identificaremos. Por outro lado, quanto mais confiante ele ficar, mais passível de falhas estará, e é aí que daremos o troco. Olhei para Overbey. – Pelas imagens, você pode descobrir para onde ele foi a partir daqui? Ou de onde veio? – Verei o que posso fazer – respondeu Overbey. – Nossa área de operação só vai até a Rua Q. Mas vocês poderiam usar as câmeras da prefeitura também. – Vou checar – disse Valente, teclando um número no celular. – Ei, detetive Cross? Alguém mais estava ali agora. Ao me virar, vi um policial tentando chamar a minha atenção. – O que foi? – perguntei. – O senhor tem uma visita. – Uma o quê? Isso não fazia sentido. Era a cena fechada de um crime. O guarda deu de ombros. – Ele disse que o senhor ligou e pediu que viesse imediatamente. Está esperando ali. Olhei para o fim da rua na direção que o guarda apontava. Ali, com o tradicional casaco com capuz, estava Ron Guidice. – O que aquele imbecil está fazendo aqui? – disse Valente. – Você quer que eu dê um jeito nele? – Não – respondi. – Vou cuidar disso. Na verdade, vai ser um prazer. De alguma maneira, Guidice descobrira como chegar até a cena do crime. Sem dúvida, eu iria ajudá-lo a sair dela.
capítulo 56
NÃO PENSO DUAS VEZES EM pegar um jornalista pela gola e fazê-lo ir embora se ele estiver interferindo em uma cena de crime. Na verdade, nunca tive que prender um antes. – Ei! Guidice! – chamei, caminhando direto até ele. – Tem que ir embora. Ele saiu da calçada de tijolos e ficou parado entre dois carros estacionados quando me aproximei. – Detetive Cross, você está drogado? – perguntou ele, alto o suficiente para que o ouvissem. – Muito engraçado – respondi. Eu não tinha dúvida de que ele queria me provocar. Guidice era inteligente demais para não saber que estava invadindo a cena de um crime a essa altura. Mas eu também estava determinado a não cair no joguinho dele. – Você tem cinco segundos para voltar para o outro lado daquelas barreiras. Apontei para a parte de cima do quarteirão, onde a multidão se reunira. Algumas pessoas seguravam cartazes de protesto: MANTENHAM GEORGETOWN SEGURA. Tinha certeza de que Guidice estava adorando aquilo. Ele cerrou os olhos e as pupilas dançaram de um lado para o outro, me observando. – Você está drogado, não é? – falou. – Eu não queria escrever sobre isso até ter certeza, mas... – Ronald Guidice, você está preso por invadir a cena indicada de um crime – disse a ele, já tirando as algemas. – Vire-se e ponha as mãos atrás das costas. Ele ainda estava parado entre os carros e eu tive que ir até lá para tentar fazê-lo andar. Mas então, senti uma pontada aguda na perna. Baixei os olhos a tempo de ver Guidice retirar a mão. Ele estava segurando alguma coisa, mas eu não conseguia ver o que era. Minha resposta seguinte foi automática. Dei um soco nele, com força. Meu punho fez o nariz dele sangrar e o sangue escorreu pela boca. Provavelmente eu deveria ter parado por aí, mas a adrenalina tomou conta de mim e Guidice ainda estava de pé. Arrematei o soco de direita com um gancho de esquerda. Desta vez, ele caiu. Bateu de costas, com cara de assustado. Meu joelho estava no peito dele agora, mantendo-o no lugar. Minha coxa latejava de dor. Ele me acertara bem no músculo. – Que merda você fez? – gritei com ele. – Com o que você me espetou? Eu havia começado a enfiar a mão em seus bolsos quando dois policiais me puxaram para longe dele. Um terceiro se ajoelhou perto de Guidice e o puxou na direção oposta, para a calçada. Valente estava lá também e vi Huizenga sair correndo do carro. – Alex? O que está acontecendo aqui? – perguntou ela. – Ele está preso! – Apontei para Guidice. – Revistem os bolsos dele! Prendam-no! Guidice se soltara e me observava enquanto nos separavam. – Sargento, o detetive está obviamente drogado. Ele simplesmente me atacou sem motivo. Ele limpou o sangue da boca, mantendo a mão esticada para as câmeras no fim do quarteirão. – Alex Cross fez isso comigo! – Volte aqui! – gritei para ele, mas Huizenga se meteu no caminho e me fez recuar. Valente também me segurou pelo braço. – Acalme-se, Alex! – disse Huizenga. – E me dê uma boa razão para isso. – Ele acabou de me furar! – falei. – Do que você está falando? – Não sei... – respondi. – Não sei o que... era. Estava difícil me concentrar e meus pensamentos começavam a flutuar. Senti um formigamento por todo o corpo. Uma sensação quente subia pelas pernas e braços até a cabeça. – Acho que vou... Eu queria dizer “Acho que vou desmaiar”, mas nunca cheguei a isso. Não fora apenas um golpe ou uma picada comum de agulha, percebi. Era outra coisa. A última coisa que pensei e da qual me recordo antes de perder a consciência foi que eu acabara de ser envenenado. Será que Guidice havia me matado? Será que eu estava morrendo?
capítulo 57
ACORDEI NA AMBULÂNCIA. HUIZENGA ESTAVA lá e nós nos movíamos. No início, nada fazia sentido, mas rapidamente eu me lembrei do que acontecera. – Deite-se – disse ela, empurrando-me para a cama quando tentei me sentar. Dois paramédicos estavam empoleirados de cada lado. Um deles segurava um medidor de pressão arterial no meu braço. O outro passava por rádio as informações sobre a minha condição, supostamente para o hospital para o qual nos dirigíamos. Georgetown, talvez. – Ele me picou... – Apenas relaxe. – Ele... Meu corpo inteiro parecia feito de gelatina, a não ser pelo movimento das mãos. Minha mente ainda estava flutuando. Que merda era aquilo? Eu tinha noção de que alguma coisa estava terrivelmente errada, mas, por algum motivo, não conseguia me sentir assim. Estava em um estado de euforia e, ao mesmo tempo, com um medo incontrolável. Era mais como se eu estivesse assistindo ao filme da minha própria emergência do que se realmente estivesse nela. Revirei os olhos. Um paramédico ergueu uma das pálpebras para dar uma olhada. – Ele está apagando – disse o cara. Foi a última coisa que ouvi.
capítulo 58
QUANDO ACORDEI, ESTAVA EM UM hospital. Uma caixa fluorescente brilhava acima de mim. Em vez de paredes, havia uma cortina azul puxada ao redor da sala ou do cubículo de exame no qual me colocaram. Huizenga ainda estava ali. Agora Bree a acompanhava. – Olá – disse ela, apertando minha mão. – Como você está se sentindo? Eu continuava tonto, porém sorri assim mesmo. Tudo à minha volta estava um pouco turvo. – Há quanto tempo você está aqui? – perguntei para ela. – Algumas horas. São seis da tarde. – O que foi que aconteceu? – Encontraram opiáceos na sua corrente sanguínea – disse Huizenga para mim. – Como isso é possível? – E um pouco de morfina. – Ah. – Recostei a cabeça no travesseiro. – Eu sabia que aquela sensação era familiar. Eu já recebera minha cota de morfina também. Da última vez, quando fui baleado em um caso em Vermont. Agora tudo começava a voltar em fragmentos. Eu me lembrava da cena do crime em Georgetown. A empresa de segurança. Guidice... De repente, me sentei e puxei o fino cobertor com o qual me cobriram. – Onde está Guidice? – perguntei. – Está preso? – Uau – disse Bree. – Acalme-se, Alex. Fique tranquilo. – Onde ele está? – repeti. – Acho que eles ainda estão com Guidice no departamento. – Foi o que Huizenga me disse. – Mas, não, ele não está preso. – Do que é você está falando? Eu estava prestes a algemá-lo quando ele me picou. Marti respirou fundo e olhou para Bree antes de responder. Ambas sabiam de alguma coisa que eu não sabia. – Não havia nada com ele, Alex – disse ela. – Apenas a identidade, dinheiro trocado e a câmera. – Bem, ele deve ter largado a agulha – falei. – Estou dizendo... Ela me interrompeu. – Tudo o que encontramos estava com você. Incluindo isso. Huizenga estendeu um frasco marrom de farmácia. – Estava no seu bolso quando chegamos. E sem digitais dele. – O quê? – Guidice disse que você estava drogado e, de uma forma ou de outra, você estava. Além disso, você o atacou sem motivo. Se ele furou você, Alex, ninguém viu. – Ai, meu Deus. Voltei a me recostar. A realidade totalmente distorcida daquilo começava a fazer sentido. Huizenga ainda não terminara. – Ele está acusando você de atacá-lo. E pediu uma ordem de restrição também. Diz que você o persegue desde que ele começou a escrever sobre você. Olhei Huizenga nos olhos. – Estão armando pra mim, Marti. Jesus, você acredita em mim? Você conhece a história desse cara, certo? Ela se afastou da cama e dava para ver que odiava cada segundo disso. – Não quero falar demais, Alex. Não até sabermos de tudo. Mas vou precisar de sua arma e do seu distintivo. – Ela respirou fundo mais uma vez. – E vou ter que levar você quando acabarmos aqui. – Vá para o inferno! – interveio Bree. – Você ouviu o homem. Ele foi atacado. Está realmente questionando a palavra dele quanto a isso? Ele é um dos nossos melhores policiais! – Eu não estou questionando nada – disse Huizenga para Bree. – Mas o departamento está tentando se proteger. Temos uma cidade inteira querendo que a polícia preste contas atualmente e a questão é que, por uma razão qualquer, Alex atacou o cara. – Não acredito nisso – disse Bree. – Vocês enlouqueceram! Pela primeira vez, Huizenga elevou a voz. – Bree, você está aqui por uma cortesia profissional e eu sou a sua superior. Entendeu? Agora vá se acalmando ou vou ter que pedir que saia.
– Peça o que quiser – respondeu Bree. – Ele vai para casa comigo. – Também posso pedir que tirem você, se for preciso – retrucou Huizenga. Eu não podia acreditar em tudo o que estava ouvindo. – Marti, o que você quer dizer com me levar? – perguntei. Poderia acontecer uma de duas coisas. Ou eles precisavam conversar comigo no gabinete ou ela realmente ia me prender. Huizenga baixou o queixo e respondeu sem dar uma resposta. – Vou dar dois minutos a sós para vocês – disse. Em outras palavras, eu não ia voltar para casa hoje à noite.
capítulo 59
EU NÃO FUI INFORMADO SOBRE o que estava sendo dito no centro de operações até receber alta do hospital. Não haveria tratamento especial neste caso. O departamento não poderia bancar isso. Não com o ambiente atual. Era um jogo de futebol político e nesse momento a bola era eu. Huizenga me levou direto para o centro de operações. Ela evitou a imprensa reunida do lado de fora na Indiana Street e estacionou na garagem sem que nenhum de nós falasse uma palavra. A expressão no rosto dos policiais quando chegamos lá era um meio-termo entre choque e fascínio. Não creio que soubessem o que eu estava fazendo ali, mas certamente sabiam quem eu era. Trouxera centenas de presos para aquelas instalações ao longo dos anos. Agora tinha acontecido a pior reviravolta possível. Eu tirei as digitais e fui fotografado. Meus bolsos foram esvaziados e o conteúdo, catalogado em um saco plástico. Recebi um sanduíche fino e um cobertor e fui levado pelo corredor até a cela onde passaria a noite. As celas são exatamente o que você imaginaria: portas com barras de aço que retiniam ao fechar, piso de concreto, catres de ferro sem colchão e uma privada no canto. Mais de uma vez eu havia trancado alguém e pensado em como era feliz por não ter que passar a noite ali. Huizenga usou toda a sua autoridade para que eu ficasse sozinho em uma cela, e se ofereceu para me trazer o jantar de fora. Mas eu não consegui nem olhar para ela na hora em que ficou do outro lado das barras. – Vamos resolver isso pela manhã, Alex – disse ela. – Prometo. Acho que ela estava desesperada para me deixar algum fragmento de otimismo. A verdade era que ela não podia saber quanto tempo ia levar. Como não respondi, ela só disse boa-noite e foi embora. Sentei-me no catre com a cabeça nas mãos. A coisa toda beirava o surreal. Ou, pelo menos, parecia um pesadelo. Eu realmente não podia acreditar que estava ali por uma coisa que não fiz. Fiquei me perguntando o que Bree diria às crianças. E imaginei como Ava reagiria. O que Jannie e Ali pensariam de tudo isso. Até me perguntei como iria a investigação do duplo homicídio em Cambridge Place e se Valente fizera algum progresso. Quando as luzes se apagaram, não havia nada a fazer até de manhã além de ficar sentado ali, sozinho, com os meus pensamentos. Deus sabe que eu não ia conseguir dormir. Sempre que fechava os meus olhos, via o rosto de Ron Guidice. Continuei pensando sobre a maldita palma da mão. O modo como ele a estendera para as câmeras. Isso ia servir direitinho para ele, não é? Em especial junto com as histórias sobre a minha prisão, que, sem dúvida, estariam em todos os noticiários agora. Se eu pudesse desejar ver aquele homem morto, poderia simplesmente tê-lo feito.
capítulo 60
DE MANHÃ, FUI ACORDADO PELA troca de turno das 5h30, quando trouxeram os presos da noite dos distritos e levaram outros para os tribunais. Por que faziam isso tão cedo, nunca soube ao certo. Algumas horas depois, tiraram-me da minha cela para uma reunião com o Departamento de Assuntos Internos. A sede do DAI fica em Penn Branch, mas este encontro aconteceu em uma das salas de interrogatório que ficavam três andares abaixo da minha sala na Divisão de Casos Especiais. Era estranho ser escoltado daquela maneira pelo prédio em que eu trabalhava. Quando o policial me levou até a sala, não reconheci nenhum dos investigadores à minha espera. Ninguém se mexeu para me cumprimentar. Simplesmente fizeram um gesto para a cadeira vazia. A sala era um cubículo simples. Uma câmera de circuito fechado estava montada no canto acima da porta e, nesta manhã em particular, havia um DVD player e uma televisão antiga. Os dois se apresentaram como os policiais Wieder e Kamiskey da Seção de Má Conduta Policial e Corrupção Pública. Só isso era o suficiente para me deixar de cabelo em pé, como se eu já não tivesse aborrecimento suficiente. Má conduta policial? Inacreditável! Ainda assim, era uma chance de contar o meu lado da história. – Então, detetive Cross – começou Wieder. – Pelo que entendi, o senhor afirma ter sido deliberadamente drogado durante o incidente de ontem. Está correto? – Sim – respondi e apontei para o quadril. – Fui picado por algum tipo de agulha hipodérmica. O relatório do prontosocorro pode confirmar. – Certo, mas não confirma quem fez isso – interrompeu Wieder no mesmo instante. – E essa suposta agulha o furou antes ou depois de o senhor atacar o Sr. Guidice? – Imediatamente antes – falei. – Essa foi a razão para eu revidar. A única razão. – Duas vezes. – Como é que é? – O senhor o acertou duas vezes. Primeiro quebrou o nariz dele. Depois, o derrubou. Meu coração batia forte. Eu não gostava do tom de voz do cara nem do rumo que o interrogatório tomava. – Vamos dar uma olhada, está bem? – pediu Wieder. Kamiskey usou o controle remoto para ligar a reprodução de um vídeo na TV . Parecia um clipe do noticiário do Canal Cinco, que mostrava Guidice e eu entre os dois carros estacionados em Cambridge Place. Não havia áudio, mas era óbvio que nós dois estávamos no meio de uma conversa acalorada. E depois, aparentemente do nada, meus punhos se ergueram e eu derrubei Guidice com um soco, fora da vista. – Essa é uma das câmeras – falei. – Havia, pelo menos, uma dezena de outras no local. – Todas mostraram a mesma coisa – disse Wieder. Ele parou um segundo, tempo suficiente para me lançar um olhar condescendente. – Não estou dizendo que sua afirmação sobre a agulha seja falsa, detetive. E sabemos sobre o seu histórico com o Sr. Guidice... – Tecnicamente, não há histórico – falei. – Foi a noiva dele. E não foi a minha arma que a matou. Mas Wieder não queria me deixar assumir a conversa. – O que estou dizendo – prosseguiu, elevando a voz – é que seu trabalho neste momento é se concentrar na possibilidade de má conduta policial no incidente de ontem. Até agora, não temos evidência que confirme sua versão dos eventos. Mas eis o que nós temos. Ele abriu a pasta. Em seu interior, havia um boletim de ocorrência preso no topo de diversas outras folhas. Não reconheci a letra nem a assinatura na parte de baixo. – Temos um histórico curto, mas assinalado por artigos desfavoráveis sobre o senhor, todos escritos pelo Sr. Guidice. Temos registro de uma discussão, no Lock Seven, onde, ao que tudo indica, o senhor se comportou de modo agressivo com o Sr. Guidice e jogou longe o equipamento de gravação dele. Temos isso, certamente – disse ele, apontando para a imagem congelada da TV . – E, por fim, temos um teste positivo para opiáceos em seu organismo, com uma confirmação química para os comprimidos encontrados em seu bolso ontem. Wieder fez mais uma pausa e ergueu as sobrancelhas para mim. Recordou-me de todos os bambambãs que já conheci, os que nem mesmo tentam disfarçar quanto gostam do próprio poder.
– Então, deixe-me perguntar – disse ele. – O senhor é um detetive experiente. A que conclusão chegaria se estivesse no meu lado da mesa? – Se eu fosse você? Eu me perguntaria, para começo de conversa, por que Ron Guidice estava escrevendo os artigos. E estaria pensando: não é exatamente isso que alguém como ele gostaria que acontecesse? Os dois investigadores se entreolharam. – Com todo o respeito, detetive, isso parece teoria da conspiração para mim – disse Wieder, fechando a pasta. O gesto não passou despercebido. Esses dois não estavam nem um pouco interessados na minha história. Já haviam entrevistado as testemunhas. Eles criaram a própria narrativa e essa reunião era apenas o quê? Uma formalidade? Uma etapa necessária para a acusação que eles obviamente queriam? Nesse caso, não havia razão para eu estar ali. Empurrei a cadeira, fiquei de pé e soquei a porta da sala de interrogatório. – Com licença... – disse Wieder. – Se vocês querem criar um caso contra mim, podem fazer isso sem pressa – falei. – Estou pronto para voltar para a cela. Era hora de chamar um advogado.
capítulo 61
ASSIM QUE FUI CONDUZIDO PARA fora da sala de interrogatório, encontrei o delegado Perkins esperando no corredor. Não era exatamente a última pessoa que eu poderia ter esperado, mas também não era a primeira. – Delegado? – Venha – falou para mim e acenou para o policial que me escoltava. Em vez de me levar à cela em que eu estava, demos a volta em direção ao elevador principal. – Para onde estamos indo? – perguntei. – Você foi solto – disse ele. – A imprensa já conseguiu a poça de sangue. – O quê? – Eu não estava entendendo. – Bree pagou a fiança? As feições do delegado assumiram um ar severo quando ele desviou os olhos dos meus. Não era fácil para ele. – Estou fazendo o que posso, Alex. Eu não sabia o que responder ao ouvir isso. Para começo de conversa, Perkins poderia ter evitado a minha prisão. Agora, ao que parecia, estava mexendo os pauzinhos para me salvar de mais tempo lá embaixo. – Obrigado – falei. – Eu acho. Ele não questionou minha resposta nem disse mais nada até estarmos a sós no elevador. Eu estava com um mau pressentimento. – Huizenga está esperando você no gabinete. Vamos manter você em status de “sem contato” por enquanto – disse ele. – “Sem contato”? – repeti. O pouco alívio que eu sentira acabara de ser partido ao meio. “Sem contato” significa que você vai para o trabalho diariamente, senta à mesa e atende os telefonemas, ou preenche papelada, ou alguma das centenas de outras coisas que ninguém mais quer fazer. Isso também significa que fui afastado de todas as atividades de investigação em um momento em que o esquadrão quase não podia suportar. – Posso pedir que o senhor reconsidere? – argumentei. – Nunca estivemos mais ocupados. – Pode acreditar, eu queria que você pudesse – disse ele, balançando a cabeça. – Você ainda não está solto. As queixas contra você continuam valendo. Se o procurador-geral decidir fazer uma acusação, então isso ficará fora do meu controle. – Pelo jeito, o Assuntos Internos está se preparando para isso. – Se o prefeito fizesse as coisas do jeito dele, você estaria sentado em casa sem um pagamento. E não é porque ele não goste de você – disse Perkins. – Droga, Alex, não acreditei naquela merda de drogas nem por um segundo, mas queria que você não tivesse batido no cara. – Ele mereceu. – Sem dúvida – concordou o delegado, assim que as portas do elevador se abriram no corredor do terceiro andar. – Mas o que fez foi justiça. Isto aqui é política. Acho que essa poderia ter sido a coisa mais cética que já ouvi de Perkins. O que não queria dizer que também não fosse verdade.
capítulo 62
QUANDO ENTREI NO GABINETE DA Divisão de Casos Especiais, não esperava muita coisa. Um encontro com a sargento Huizenga e o equivalente a um ano de papéis acumulados para arquivar. Em vez disso, o que encontrei mais parecia uma festa surpresa. – Aqui está ele! – gritou Valente quando passei pela porta. Subitamente, todos ficaram de pé, olhando por cima dos próprios cubículos ou vindo na minha direção. Todos eles aplaudiam e gritavam e me davam tapinhas nas costas. E todos eles vestiam as mesmas camisetas amarelas sobre as camisas. As camisetas diziam LIBERTEM ALEX CROSS. Fazia alguns dias que eu não ria tanto. – Fez alguma tatuagem nova? – perguntou Valente, com um braço sobre o meu ombro. Jarret Krause me entregou uma xícara de café. – É bom ver você, Alex. Bem-vindo de volta. – Mas eu nem fui. – Por pouco – retrucou Valente. A verdade era que eu estava profundamente emocionado com a coisa toda. Ao ficar naquela cela durante toda a noite, não havia meio de saber quem me apoiaria nisso ou não. Agora nem precisava pensar muito. O pessoal dos casos principais me deu exatamente a resposta que eu teria esperado e o mesmo apoio que teria dado a qualquer um deles. Então vi a sargento Huizenga. Ela estava de pé na porta do gabinete, me observando quando entrei. Não sorria nem usava uma das camisetas. Mas percebi que estava com péssima aparência. Também usava o mesmo blazer e a calça da véspera. Não parecia que tivesse ido para casa. Quando entrei no escritório, a primeira coisa que fez foi me estender a mão. – Sem ressentimentos? – perguntou. Balancei a cabeça, animado. – Sem ressentimentos – falei. Ao menos, eu a respeitava por ela mesma me prender e não passar a responsabilidade para outra pessoa. – Sente-se – disse ela. – Temos alguns detalhes aqui. Ela me deu dois formulários de soltura para assinar e então devolveu meus pertences, menos a Glock. Depois repassou os detalhes da ordem de restrição. Eu não podia ficar a menos de 150 metros dele enquanto existisse a ordem de restrição temporária. Se ela se tornasse permanente, eu seria informado. Era uma das viradas mais estranhas que eu já vira em algum tempo. Levando em conta tudo o que acontecera, não era eu que precisava de proteção contra Guidice? – Você já viu o noticiário? – perguntou Marti. – Acho que ele deu uma dezena de entrevistas “exclusivas” ontem à noite. Além disso, ele tem um maldito blog. – Lamento sobre tudo isso – disse. – Você vai ficar sem um investigador por enquanto. – Não acho que vá ficar pior que você – observou ela. – Dá para ver, basta olhar para o seu rosto. Era verdade. – Por que você não tira o dia de folga e fica com a sua família? – propôs Huizenga. – Tem certeza? – perguntei. Na verdade, era justamente do que eu precisava. – Tenho – disse Marti, finalmente abrindo um sorriso. – Acho que os papéis podem esperar até amanhã.
capítulo 63
É UMA CAMINHADA DE MENOS DE 3 quilômetros do centro de operações até a minha casa, mas Bree insistiu em me pegar de carro naquela manhã. Meu carro ainda estava em Georgetown e eu tinha que ir buscá-lo mais tarde. Por enquanto, só queria ir para casa, tomar um banho e dar à minha família tudo o que precisassem pelo resto do dia. As crianças ficariam na escola até as 3h15 da tarde, portanto, havia tempo suficiente para me juntar a Nana e Bree. Ou foi o que pensei. Quando me aproximei do Explorer branco de Bree, esperava que ela estivesse feliz em me ver, mas também ainda furiosa com a minha prisão. O que vi, em vez disso, foram lágrimas. Ela pôs os braços ao meu redor e nos beijamos. – Você está bem? – perguntou ela. Pude ver como seus olhos estavam vermelhos de tanto chorar. – Estou – falei. – Você está bem? Era evidente que não. – Eu ia tentar chegar em casa primeiro, mas... você tem que saber, Alex. Vão tirar Ava da gente. Hoje. – O quê? Quem vai tirar? – perguntei. – O Serviço de Atendimento à Família e à Criança. Stephanie ligou de manhã cedo. Ava andou usando drogas ultimamente e agora com essas acusações contra você... Passei da descrença para a raiva. – Isso é bobagem – falei. – Eu nem fui acusado ainda! Muito menos, condenado! Mas era a raiva falando. Eu sabia o que estava acontecendo, assim como Bree. – Eles não têm opção. Preferem pecar por excesso – disse ela. – E também não vão esperar. Em outras palavras, toda aquela história de culpa até que se provasse que eu era inocente agora estava reverberando na minha vida pessoal. Na minha vida familiar. E a culpa de tudo isso era de Ron Guidice. – Para onde ela vai? – perguntei. – Por enquanto? Para um abrigo. Vão levá-la hoje à noite. Aquilo piorava cada vez mais. Abrigos são uma mistura de crianças sem outro lugar para ir: órfãos, membros de gangues, usuários de drogas, de tudo um pouco. A não ser pela rua, um abrigo era o último lugar no qual eu gostaria de ver Ava. Bree me disse que nós tínhamos um encontro às onze da manhã com a advogada da família, Juliet Freeman. Isso era bom. Eu já consultara Juliet sobre alguns problemas preliminares para a adoção de Ava e Bree a informara rapidamente sobre a situação atual. Agora eu queria apenas chegar em casa para que pudéssemos começar a resolver essas coisas. O trânsito matinal ainda estava irritantemente denso. Perdemos muito tempo até a Constitution Avenue, passando pela cúpula branca do Capitólio, rumo ao sudeste. Ao cruzarmos a Seward Square, onde vimos Ava pela primeira vez, Bree e eu ficamos em um silêncio depressivo. Nana não estava melhor que a gente. Quando voltei para casa, ela andava de um lado para outro pela cozinha o mais rápido que uma mulher de 90 anos podia caminhar. Ela gosta de se manter ocupada quando está aborrecida e parecia que estivera cozinhando durante toda a manhã. Eu podia sentir o cheiro de pão fresco assando no forno. Quando ela me viu, parou, e os braços caíram dos lados do corpo. Cheguei mais perto e lhe dei um abraço apertado. – Estávamos começando a acertar as coisas com ela – disse Nana. – Apenas começando a quebrar aquela casca. E agora... – Agora vamos preparar o café da manhã para Alex – disse Bree. – Vamos nos encontrar com Juliet às onze. E vamos enfrentar isso. Bree é uma policial de verdade. Sabe como superar o estresse e cuidar da situação quando tem que fazer isso, o que incluía os ovos que ela agora batia em uma tigela. – O que você está fazendo? – falei. – Não se preocupe com isso. – Você precisa de uma refeição decente, depois da noite que acabou de ter – disse Bree. – O que foi que serviram hoje de manhã, uma rosquinha? – Ela tem razão – falou Nana e afagou a minha mão. – Vá tomar um banho e volte aqui pronto para comer. – Isso – concordou Bree. Ela batia os ovos a mais ou menos a 160 quilômetros por minuto.
– E pronto para lutar – emendou minha esposa.
capítulo 64
– ENTREM, ENTREM. POR FAVOR. Juliet Freeman não é o tipo de pessoa que você diria que é advogada se a visse andando na rua. Ela é quase tão baixa quanto Nana, bem gordinha e não se veste para causar uma boa impressão quando não está no tribunal. Da mesma forma, o interior do seu escritório parece mais um cômodo de uma casa. Eu gostava do fato de que ela mantinha um cesto com brinquedos no canto para os filhos dos clientes e que os livros nas prateleiras incluíam tudo: de história constitucional a livros infantis. Juliet não apenas conhece direito familiar, como também compreende a família, e o que é necessário para mantê-la unida. Ela causa uma boa impressão de todos os modos certos. Fui direto ao assunto, enquanto nos sentávamos. – Tenho três perguntas – falei. – Como conseguimos Ava de volta? O que faremos enquanto isso? E em que tudo isso interfere com as outras acusações que tenho sobre a minha cabeça? Juliet serviu chá de um antigo samovar que ficava no aparador enquanto respondia: – De certa forma, é apenas uma grande pergunta – disse ela. – Mas uma pergunta complicada. Suponho que vocês queiram que eu fale sem rodeios. – Sem dúvida – disse Nana Mama, aceitando uma xícara. – Sou uma mulher idosa, Juliet. Não tenho tempo para um monte de falsas esperanças. – Ok, então. O fato de que Ava andou usando drogas combinado com as acusações contra Alex torna tudo mais difícil. E mesmo sem isso, vocês ainda não têm direitos em relação a ela ou a qualquer criança acolhida. – Não. Mas temos um relacionamento com ela – disse Nana Mama. – Isso tem que significar algo para uma garota que não tem ninguém no mundo. Ava é parte da família agora. Juliet assentiu, mas somente reconhecendo o que Nana dissera, sem concordar. – Do ponto de vista jurídico, ela não é. Se eles a colocarem com outra família e der certo, então está feito. Ava não vai voltar para vocês. A notícia desceu pesada sobre todos nós. Bree apertou a minha mão em silêncio. – O que você sugere? – perguntei. – Vocês precisam esclarecer à funcionária do serviço social que Ava não conseguiu drogas com você. – Eu já disse isso para ela – falou Bree. – Ela tem que ouvir de Ava. Se você conseguir que essa conversa aconteça, é um bom primeiro passo. Eu não tinha tanta certeza. – Isso não poderia ser considerado um tipo de confissão em relação ao fato de que estou usando drogas? – perguntei. – Uma coisa de cada vez – disse Juliet. – O mais importante agora é lidar com a situação de Ava e depois com as suas acusações. Quando é a audiência? – Daqui a uma semana. Ela foi até a escrivaninha e rabiscou uma anotação. – Veja o que vocês podem fazer. Existe alguma ordem de restrição contra você? – Sim, mas foi armação – disse a ela. – Embora não possa provar nada... ainda. Vou processar, se for necessário, ou algo assim. Juliet se inclinou para a frente e olhou nos meus olhos sobre a armação vermelha dos óculos. – Alex, preste atenção. Se você já teve uma razão para ficar acima disso, é esta. Não importa o que você faça, não comece a dobrar as regras nem, pelo amor de Deus, infrinja a lei para expor esse cara. Ela me conhecia bem, talvez até bem demais. Era um bom conselho. Ainda assim, em alguma parte da minha mente, eu estava decidido a manter minhas opções em aberto. O fato de Ron Guidice me injetar com o mesmo tipo de drogas que Ava estava tomando não era coincidência. Eu sabia disso. Não tinha ideia de como ele descobrira sobre ela. Talvez subornando alguém para obter os exames laboratoriais ou conversando com o policial que a levara de volta para nossa casa naquele dia. De qualquer forma, não era a primeira vez que ele descobria informações confidenciais. Talvez Guidice fosse mais repórter do que eu acreditara. Um repórter e um filho da puta vingativo.
Agora eu tinha que provar. De um jeito ou de outro.
capítulo 65
QUANDO AS CRIANÇAS VOLTARAM DA escola, sentamos com elas para a conversa mais difícil que já tive como pai. Tivemos que dizer a Ava para arrumar suas coisas e explicar o motivo a todos. Não entrei em detalhes quanto à situação difícil na qual me encontrava. Simplesmente contei que houvera algumas complicações jurídicas e que precisávamos resolvê-las antes que Ava pudesse voltar a viver conosco. Stephanie adiou o máximo que pôde, mas eles tinham que levar Ava para o abrigo até as seis da tarde. Quando ela apareceu, a mala de Ava aguardava ao lado da porta e nossa casa estava tão silenciosa quanto um necrotério. Ficamos sentados na sala de estar, aguardando o inevitável. Stephanie também estava angustiada. Ela tinha lágrimas nos olhos quando abri a porta. Já havíamos conversado sobre a acusação de drogas e perguntei se ela poderia conversar com Ava sobre isso assim que tivesse chance. Stephanie prometera que faria isso. Deveríamos esperar 48 horas antes de visitar Ava em sua nova casa. Isso significava que não teríamos notícias por, no mínimo, dois dias. – Ava, querida, você está pronta para ir? – perguntou Stephanie, tentando parecer animada. Ava apenas deu de ombros e caminhou, arrastando os pés, até a porta. Eu já podia perceber a dureza de volta em seus olhos. Era como se ela sempre tivesse esperado por isso. A única constante na vida dessa garota até agora fora a própria inconstância. Por que ela iria esperar que esta situação fosse diferente? – Fiquem aí – disse Nana. Enquanto acompanhava Ava até a porta, Nana tirou o camafeu que trazia no pescoço. Dentro dele, eu sabia que havia uma minúscula foto de toda a família e uma fotografia boba de um bebê. – Tome – disse Nana e pôs a corrente ao redor do pescoço de Ava. – Isso é emprestado, portanto não ouse trocar nem vender. Vou querer de volta no minuto que você voltar para cá. Ava moveu um dos ombros para cima e para baixo e fitou o chão. – Obrigada por ser legal comigo – disse ela, sem nenhuma emoção discernível. – Lamento nem sempre ter sido boa. Nesse momento, a expressão de Nana se turvou. Ela esticou o braço e pegou Ava pelos ombros com as mãos pequenas e ossudas. – Garota, você não tem que pedir desculpas por nada – disse ela, com a voz começando a falhar. – Você é amada nesta casa, Srta. Ava Williams. Está me ouvindo? Nada que você faça vai mudar isso. Nada! Ela deu um abraço apertado em Ava e todos ficamos ao redor delas. Eu podia sentir que Ava estava no meio de nós rígida como uma tábua. Era como se ela estivesse tentando não sentir. A garota que chorara em meus braços havia uma semana agora parecia ter desaparecido, assim como o resto das coisas. Para mim, era uma tragédia. – Pessoal, desculpe, mas temos mesmo que ir – disse Stephanie. – Está ficando tarde. – Tchau, Ava – disse Jannie. – Vamos sentir muito a sua falta! – Tchau, Ava! – disse Ali, chorando nos meus braços, enquanto nós a acompanhávamos nos degraus da frente. Quando chegamos ao meio-fio, onde outra mulher do Serviço de Atendimento à Família e à Criança estava em fila dupla, Ava nem olhava mais para nós. Ela entrou no banco de trás e pegou a mala de Bree. – Nós amamos você, Ava – disse Bree. – E vamos visitá-la em dois dias. Ava olhou fixamente para a frente, para a Rua 5, com olhos secos. – Tchau. Foi tudo o que disse. Um instante depois, elas se foram.
capítulo 66
RON GUIDICE OBSERVOU O RETROVISOR enquanto a mulher do serviço social descia os degraus da frente com Ava. Ele não conseguira ouvir muita coisa dentro da casa de Cross. A escuta no primeiro andar ficava na cozinha. A pequena cena, no entanto, falava por si mesma. Houve uma época em que ele poderia ter lamentado pelos Cross. Agora, era como se fosse uma confirmação. Cada olhada ao espelho mostrava os curativos no nariz quebrado. Ele também tinha um olho roxo e o queixo estava rígido como concreto. Era inegável que uma linha fora cruzada. Alex estava correndo agora e ele sabia que Guidice iria atrás dele. Mas Guidice ainda levava a melhor. A qualquer momento que se sentisse ofendido, tudo o que tinha que fazer era puxar o gatilho... literal e figurativamente. Era por isso que tinha uma Kahr 9mm debaixo do banco do carro. A partir de agora, ele a manteria sempre por perto. Enquanto isso, seus polegares se moviam no celular, dando os retoques em um texto rápido para o The Real Deal. Conforme Ava entrava na minivan marrom em frente à casa de Alex, ele anotou os últimos pensamentos daquele dia. Depois, quando o carro se afastou do meio-fio e antes que Guidice o seguisse, apertou “Enviar”.
INFELIZ E INEVITÁVEL Postado por RG às 17h28
Parece que o detetive Cross, do Departamento de Polícia Metropolitana, saiu mesmo dos trilhos. Qualquer pessoa que tenha acompanhado essa história poderia dizer que as últimas 24 horas não surpreenderam. Chamo isso de infeliz inevitabilidade. Antes de mais nada, vamos repetir que estou disponibilizando essa informação como uma questão de registro público. Não tenho intenção de vender nem de lucrar mais do que você vê neste espaço com a minha história. Em poucas palavras: o detetive Cross me deu muita p***ada ontem. Não foi a primeira briga sem motivo que tive com o detetive, mas certamente foi a mais violenta. (Cliquem aqui para ter uma ideia dos erros de avaliação mais recentes de Cross.) No momento que o encontrei fora da cena de crime mais recente do Estripador de Georgetown, suspeitei que o detetive Cross estava alterado de alguma maneira: bêbado, drogado ou ambos. Quando perguntei a ele sobre isso, no mesmo instante ficou irritado e hostil. Quando insisti na pergunta, ela incitou uma reação que surpreendeu até a mim. Depois de seis anos informando sobre as práticas policiais dentro e fora dos Estados Unidos, nunca passei por nada assim. Recebi um soco no rosto que quebrou meu nariz, depois um soco no queixo e um chute na barriga enquanto estava no chão. Cliquem aqui para ver as imagens (aviso conteúdo gráfico inadequado para crianças). Vou usar essas imagens como evidência na minha ação civil contra o detetive Cross, contra quem já tenho uma ordem de restrição. Mas a história não termina por aqui. Imediatamente após o incidente, o detetive foi visto desmaiando e depois foi levado numa ambulância. (Sei disso porque o Departamento de Polícia Metropolitana atendeu às necessidades médicas dele antes das minhas.) Como eu não bati no detetive Cross, nem sequer o toquei, tenho mais certeza do que nunca que ele estava, de fato, sob influência de alguma substância ilícita. A prefeitura parece concordar comigo. Justamente hoje à tarde, a criança que era mantida sob os cuidados do detetive Cross foi retirada da casa dele. Com sorte, ela agora viverá num ambiente mais seguro e saudável. Por fim, que fique registrado: admito totalmente ter usado essa plataforma para fazer do detetive Cross um exemplo durante as últimas semanas. Depois do que aconteceu ontem, fico me perguntando se alguém vai me culpar. Se um oficial de polícia é tirado das ruas em consequência das minhas investigações, então este trabalho (e, sim, os ferimentos que tive recentemente) vale a pena. Comentários? Ideias? Compartilhe-os aqui.
PARTE TRÊS MORTA, QUERIDA
capítulo 67
ELIJAH CREEM ESTAVA DE PÉ em um trecho escuro de Palm Beach, admirando a própria casa a distância. – Sabe que, no fundo, vou sentir falta desse lugar? – disse para Bergman ao telefone. – Não se preocupe com isso. É apenas uma casa – respondeu Bergman. – É, mas é uma tremenda casa e quem paga sou eu, não ela. Mesmo à noite, com tudo fechado, o local brilhava por causa da pintura branca perolada no exterior moderno polido. Miranda insistira em revestir desse jeito quando compraram a casa, pagando, no total, 300 mil dólares. Fora um exagero da parte dela, mas ele acatara a ideia no fim. A vadia tinha bom gosto. Não dava para negar. Ela deixara bem claro que ia querer a casa de Palm Beach no divórcio. Sem o próspero exercício da medicina e o dinheiro, Miranda estava se vingando com a propriedade. Creem não teria esperado menos dela. – Ah, bem... Acho que terei que fazer isso sozinho de alguma maneira. – Você está usando uma daquelas máscaras malucas, não está? – perguntou Bergman. – Dá para perceber pela sua voz. Eles tinham conversado durante cinco minutos antes mesmo de Josh perceber a leve aspiração que se seguia a cada fala de Creem, quando o ar esbarrava nos lábios de látex. Era um bom sinal. Essas máscaras eram um negócio extraordinário. Mesmo se alguém o percebesse lá embaixo, o que veria? Um senhor branco e idoso de casaco. Não era exatamente algo que chamasse a atenção no sul da Flórida. Essa seria a última vez que Creem usaria o protótipo do homem idoso. Agora que a polícia descobrira a história da máscara, tudo o que tinha a fazer era mudar o modelo. Apenas ser outra pessoa da próxima vez. Simples assim. Em sua introspecção, tinha se esquecido de Josh. – Não tenho certeza se gosto de você andando por aí – disse ele. Sua voz estava baixa, lenta e ligeiramente alterada devido ao uísque. – Essa pequena excursão não era parte do plano. – Que plano? – retrucou Creem. – Você mesmo disse. Isso pode ser o que nós quisermos. Nunca me senti tão livre assim desde... – Fort Lauderdale. É, eu sei. A questão é essa. Pensei que estávamos juntos nisso – disse Josh. – Estamos. Até o fim, prometo. Josh, pare de agir feito uma mulherzinha! A última coisa de que preciso agora é outra esposa. – Muito engraçado – falou meio indistintamente. – Ah, já imaginei como você pode me ajudar na próxima. Quando você volta? – Em breve – disse Creem. – Conversaremos, então. Mas agora tenho que resolver umas coisas. – Posso ouvir? Por favor? Creem sorriu ao fitar a areia no escuro. Ele teria ficado surpreso se Josh não tivesse pedido. – Certamente – respondeu. – Apenas mantenha a boca fechada até eu terminar.
capítulo 68
CREEM OBSERVOU A PRAIA ENQUANTO um casal caminhava de braços dados pela areia. Quando finalmente se afastaram, ele percorreu a areia e cortou caminho pela grama alta até os fundos de sua propriedade. – E, por falar nisso, o que exatamente você está fazendo? – murmurou Josh pelo Bluetooth. – Uma coisa um pouco diferente desta vez – disse Creem. – Espere e verá. Bergman deu uma risadinha agitada quando mais alguns cubos de gelo caíram dentro do copo, há 1.600 quilômetros dali. Creem passou pelo portão e contornou a área cercada da piscina até a entrada lateral. O conjunto de peças de xadrez de pedra no pátio estava exatamente onde ele deixara, havia quase oito meses. Ele jogara com Roger Wettig, seu vizinho. E o vencera, se ele se recordava bem. O conjunto ficara intocado desde então. Xadrez estava além da capacidade mental de Miranda e das meninas. Na porta da área de serviço, ele parou e girou a maçaneta. Estava trancada, claro, mas ele sabia que o sistema de alarme na entrada não funcionava fazia dois Natais. Ele encaixou o silenciador na pequena Beretta que estava no bolso interno do casaco e atirou na maçaneta. Ouviu-se um retinido rápido e alto de metal. De qualquer forma, nada que fosse ouvido além dos limites da propriedade. Um instante depois, estava dentro. Era mais que estranho esgueirar-se pela própria casa dessa maneira. Ele deixou as luzes apagadas enquanto caminhava em silêncio até o corredor dos fundos e prosseguia até a cozinha. Quando passou pela despensa, Creem parou para tirar um saco de plástico da gaveta e enfiá-lo no bolso. Ele continuou, traçando um pequeno circuito ao redor do primeiro piso. Todo o local estava deixando-o ridiculamente emocionado. Houvera, de fato, algumas épocas decentes naquela casa. Alguns Natais principalmente, antes de começarem a se odiar. E não era o sexo que havia incomodado Miranda. Nem um pouco. Ela tinha os casos dela e ele, os dele. Não, era o escândalo e tudo que ela havia perdido com isso. Nunca mais teria uma renda de sete dígitos, nem reputação de carolas, nem vida perfeita. Isso deu a ela todas as desculpas de que precisava para concluir o que eles já deviam ter feito havia muito tempo. Só que agora Miranda estava aborrecida. E ambiciosa. Creem subiu a escada escultural de bambu e aço até o segundo andar. Levou o tempo necessário, abrindo portas ao longo do corredor. Primeiro a suíte de Chloe, depois a de Justine. Nenhuma delas deixara muita coisa para trás, mas ele encontrou um par de brincos de diamante na cômoda de Chloe e o anel de opala que Miranda e ele trouxeram para Justine de Santorini, alguns anos antes. Antigamente, ele amava suas pequenas belezas louras. Mas estava dolorosamente claro em que tipo de mulheres a mãe as estava transformando. Nenhuma das duas telefonava para ele fazia mais de um mês, nem mesmo para dizer alô. Houvera apenas uma mensagem da parte delas: Chloe queria um aumento no limite do cartão de crédito. Era tarde demais para salvá-las agora. Ele abriu cada gaveta do closet de Miranda, derrubando calcinhas e bibelôs no carpete. Pegou o que havia de valor ali e algumas antigas receitas médicas do armário. Não era muito... não que isso importasse. Hoje era tudo uma questão de aparência. Finalmente, deu meia-volta e saiu da casa. – Josh? – chamou, na metade do corredor. – Ainda está consciente? – Ainda aqui – respondeu Bergman –, mas ficando um pouco entediado. O que está acontecendo? – Apenas fique aí – disse-lhe Creem. – Falta pouco para ficar mais interessante.
capítulo 69
SAINDO PELA PORTA DA ÁREA de serviço, Creem contornou o pátio lateral e passou pelas tuias de 3 metros entre a sua propriedade e a casa ao lado, de Roger Wettig. Era como passar através de um espelho. A casa do outro lado da sebe estava toda iluminada, com uma luz dourada suave através das fachadas de vidro. De fato, Roger e Annette Wettig eram um tipo de versão contrária dos Creems. Roger era vinte anos mais velho que Elijah, e Annette tinha pelo menos dez anos a menos que Miranda. O típico caso da esposa-troféu de Palm Beach, disposta a ser uma viúva rica assim que Roger tivesse o inevitável segundo ataque cardíaco. Chegando ao terraço com tábuas de ipê de Roger, Creem cumpriu o seu papel: arrastou a perna direita e colocou a mão nela, mancando assim os 18 metros até uma das portas dos fundos dos Wettigs. No interior da casa, ele pôde ver Roger assistindo a um jogo do Marlins em uma televisão enorme. As costas estavam viradas para a porta, com as mãos entrelaçadas por cima da cabeça calva. Quando Creem bateu no vidro, Roger quase caiu da cadeira. – Olá? – chamou Creem. Roger olhou para trás, estreitando os olhos, mas sem se aproximar. – Quem é? – gritou ele. Creem apontou para a praia. – Acabei de ser atacado – disse ele. – O senhor poderia me ajudar? Do modo como Roger estava olhando para ele tão fixamente, era evidente que ele não tinha ideia de que era Creem por trás da máscara. Apenas um velho estranho que fizera a proeza de ser assaltado em Palm Beach. Ele nem tentou disfarçar o aborrecimento ao se aproximar. – Um minuto. Um minuto – falou. Ele digitou um código no teclado próximo às portas deslizantes. O jogo dos Marlins estava no volume máximo. Reyes tem se saído bem nos jogos da pré-temporada... – Quer que eu chame a polícia? – perguntou Roger. – Não – disse Creem. – Não será necessário. Resta saber se o resultado será semelhante ao do ano passado... – Bem... em que posso ajudar? – perguntou Roger. – O senhor está ferido? – Ferido? – disse Creem. – Apenas os meus sentimentos. O senhor poderia ao menos ter ligado. Ao fundo, ele podia ouvir Josh rindo com a mão sobre o fone. – Como assim...? – perguntou Roger. Strike um. – Sou eu, Roger. Elijah Creem. Essa foi toda a graça que Creem se permitiu antes de tirar a pistola e atirar no mamilo esquerdo de Roger. Ele não aguentou a dor nem o susto. Ataque do coração. Caiu morto bem ali. Strike dois! Talvez não seja a noite dele, afinal de contas. Creem continuou caminhando. Passou por cima do corpo de Roger e seguiu para dentro da casa. Ele estivera ali para tomar algumas cervejas, para alguns jantares, e conhecia o local. O quarto de casal ficava no primeiro andar, na ala da direita. Quando deixou a enorme sala de estar para trás, conseguiu ouvir o som da TV do quarto, onde Annette estava. – Roger? – chamou ela, assim que Creem abriu a porta do quarto e deu o terceiro tiro da noite. Ele a atingiu no ombro quando ela começava a se erguer com dificuldade da cama. A bala seguinte, a quarta da noite, acertou-a bem no rosto. Ela morreu usando o moletom do Dallas Cowboys do marido, com pedaços brancos de algodão entre os dedos dos pés e uma camada fresca de esmalte vermelho nas unhas. Um pequeno trabalho com a faca teria sido mais ao gosto dele, mas não hoje. Não havia sentido em traçar paralelos para a polícia daqui. Ele esvaziou as gavetas de Annette rapidamente e guardou em um saco as duas caixas de veludo que caíram, além da bolsa dela. Depois, pegou as carteiras do casal, que ficavam na parte de cima do closet. Era o suficiente. Não importava o que ele poderia ter deixado passar. Era melhor sair dali.
Mas a curiosidade de Creem falou mais alto. Ele deu meia-volta e foi até onde Annette estava deitada, de olhos arregalados na cama. Com uma das mãos enluvada, ele ergueu a barra do moletom e da camisola para dar uma olhada. Sem dúvida, os seios tinham uma assimetria perceptível, com a sombra de uma cicatriz ainda aparente de cada lado. Dava para perceber que Roger fizera economia na única coisa na qual não fazia sentido economizar. Que idiota. Dois minutos depois, Creem voltava à praia, caminhando para o norte rumo à vaga onde havia estacionado o carro alugado. – É isso, Josh – disse ele. – Está feito. Vou chamar de uma noite e tanto. – Ainda não entendi – disse Josh. – O que foi que acabou de acontecer? – Bem, primeiro, eu devo ter sozinho derrubado os valores imobiliários neste pequeno trecho da Costa Dourada. Mas o mais importante? É ter certeza de que Miranda e as garotas nunca vão querer usar esta casa de novo. Nada mau para uma noite de trabalho. Por trás da máscara, o Dr. Creem deu um sorriso.
capítulo 70
O DIA SEGUINTE COMEÇOU COM ALGUMAS notícias boas. A sargento Huizenga devolveu minha arma e meu distintivo. O próprio delegado assinou a papelada da Glock, o que me pareceu um voto de confiança. Pena que não houve mudança no status do meu trabalho. Eu ainda estava preso ao escritório e, em resumo, passei o dia inteiro fazendo três coisas: atendendo telefones, registrando relatórios de casos não resolvidos e conversando com todos com quem eu andara trabalhando até então. Tecnicamente eu estava fora dos três casos: Elizabeth Reilly, Estripador de Georgetown e Assassino do Rio. Mas você não trabalha em um homicídio múltiplo em um dia e no seguinte deixa de se preocupar com ele. Eu queria saber o que estava acontecendo. Eu também ainda pensava em Ava e em Ron Guidice. – Alex. Como é que estão as coisas? – perguntou Jerret Krause, voltando a sentar enquanto eu entrava em sua baia. – Estou bem – respondi. – Só fiquei curioso se você, por acaso, teria alguma informação nova sobre Ron Guidice. Krause se recostou mais ainda, com as mãos no alto da cabeça, como se estivesse tentando afastá-las o máximo possível do teclado. – Caramba, não sei como responder a isso. – Como assim? – perguntei, apenas para continuar pressionando. Eu sabia o que ele queria dizer. – Huizenga foi bem específica. Você está sem “contato”, certo? E, sinceramente, você não deveria deixar o Guidice em paz? Eu não ia responder. A verdade era que entendia a situação de Krause. Ele era novato e, provavelmente, mais ambicioso que corajoso. Isso pode mudar com o tempo, mas, naquele momento, ele estava se esforçando para seguir as regras. Eu quem ia mudar isso. Por isso, deixei para lá. Errico Valente foi a pessoa mais franca comigo naquela manhã. A última vez em que realmente conversamos foi no duplo homicídio em Cambridge Place, pouco antes da minha grande cena com Guidice. Eu ainda tinha acesso aos arquivos on-line da investigação, mas Errico me deixou dar uma olhada em suas notas também. O que descobri foi que o uso da faca no caso mãe/filha era surpreendentemente semelhante. As incisões eram parecidas o suficiente umas com as outras na região e na extensão para indicar algum nível de conhecimento. A maior parte dos cortes aparentemente aleatórios era secundário, quase como se quem o fizera tivesse deliberadamente voltado e acrescentado alguma confusão à coisa toda. Na pior das hipóteses, nosso assassino estava melhorando com a prática. Errico andara pesquisando sobre fabricantes de máscaras também. De acordo com a câmera de segurança, ele chegara a três possíveis empresas, da Carolina do Norte, do Texas e da Califórnia. Era duvidoso que o Assassino de Barbies, ou Estripador de Georgetown, ou não importa sua alcunha, fizesse alguma coisa tão óbvia quando pedir que essas máscaras fossem enviadas para um endereço rastreável. De uma forma ou de outra, o departamento agora estava tratando publicamente das máscaras, inclusive nos informes à imprensa. Era uma boa ideia. Na pior das hipóteses, deixaria o assassino na defensiva e talvez até mesmo o forçasse a cometer algum tipo de erro. Qualquer coisa que se possa fazer para perturbar o padrão de um serial killer pode ser uma ferramenta em potencial, especialmente quando você não tem mais nada com que trabalhar. No fim do dia, eu sabia muito mais do que quando cheguei pela manhã. Mas ainda estava frustrado. Queria ajudar. Em vez disso, tudo o que podia fazer era andar por aí, alheio a tudo isso, simplesmente esperando. E, até agora, não havia sinal de mudanças.
capítulo 71
HAVIA UMA VANTAGEM DE TRABALHAR “sem contato”: o horário. Eu entrava às oito da manhã e batia o ponto às cinco. Pela primeira vez em muito tempo cheguei antes de Bree em casa e, melhor ainda, sentei-me para jantar com a família. Se há uma coisa que eu gostaria de mudar na minha vida, seriam justamente todos os jantares que eu perdi. Depois de terminar o meu sorvete e lavar os pratos, eu estava ajudando Jannie com um pouco de álgebra, quando Sampson entrou pela varanda dos fundos. – Com licença... Posso entrar? – perguntou ele. Estávamos todos nos sentindo desanimados com a situação da Ava. Ele era sempre bem-vindo. – Como é que estão as coisas, Nana? – perguntou ele, dando um abraço apertado nela. – Estamos bem – respondeu ela, mas eu sabia que era uma resposta automática. – Quer um pouco de sorvete, querido? – Na verdade, queria conversar com o Alex e a Bree por um minuto – disse ele, batendo no meu ombro. – Lá fora, que tal? Ele se abaixou para dar um beijo na bochecha de Jannie enquanto íamos até a mesa de piquenique no quintal. – Qual é o problema? – perguntei, assim que John fechou a porta. Sampson parou à nossa frente com o corpo do tamanho de um urso e colou as mãos na mesa. Levou um segundo até entender o que ele queria dizer ou, pelo menos, como ele queria dizer. – Hipoteticamente – disse ele –, suponha que um cara faça uma acusação falsa contra outra pessoa. E que esse cara esteja fazendo todo o possível para armar para essa pessoa e dificultar a vida dela. Talvez ele até infrinja a lei para fazer isso, mas ninguém tem como provar. – Ok – falei. Obviamente, estávamos falando sobre Guidice, mas também não estávamos falando sobre ele. Eu entendia o suficiente para manter minha boca fechada e acompanhar a lógica de John. – Continue. – Estou achando que esse tipo de cara pode ter alguns esqueletos no armário – disse Sampson. – Do tipo que não costumam aparecer na verificação de antecedente comum. Percebi que Bree estava sentada imóvel, sem dizer uma palavra. – Que tipo de esqueletos? – perguntei. Sampson se recostou e deu de ombros. – Abuso de drogas? Dívidas? Não sei, talvez ele esteja dormindo com a mulher do melhor amigo. Mas vamos dizer que alguém descubra isso. Alguém como eu, por exemplo. Esse tipo de informação poderia ser usada para fazer uma pessoa reconsiderar essas acusações. E talvez isso facilite um pouco mais a vida para o outro cara. Para ele e para a família. – Jesus Cristo, John! Se eu não estivesse tão preocupado com tudo isso, a suposição poderia até ter parecido engraçada. – Eu não poderia pedir a você que fizesse algo assim. – Mesmo que estivéssemos conversando sobre isso – disse John. – O que não estamos. Mas, Alex, você já me pediu antes que fizesse esse tipo de coisa. Mais de uma vez. – É, quando estava trabalhando nos casos. Isso é diferente. Finalmente, Bree resolveu falar. Sua voz estava baixa e tive a impressão de que ela estivera esperando por isso. – Querem minha opinião? – disse ela. – Não acho que John viria até aqui se não quisesse fazer isso. – Isso é verdade – disse Sampson. Eu acreditava nele, mas também era verdade que Sampson faria qualquer coisa por nós. Do mesmo modo que eu faria qualquer coisa por ele. Nem sempre isso é bom. Era da carreira de John que estávamos falando. – Não sei, Sampson – retruquei. – Mas eu sei. – Bree falou para mim. – Há muita coisa em jogo aqui, Alex, e você está bem no meio disso. Me deixe resolver isso. Por favor. Quando olhei nos olhos dela, vi mais alguma coisa. Havia algo que ela não estava dizendo... e finalmente entendi tudo. A menos que eu estivesse muito enganado, não era apenas ideia de John. Bree pedira para ele vir. Eu ainda estava dividido em relação a isso, mas Bree tinha razão. Havia muita coisa em jogo, de uma forma ou de outra. Era eu quem tinha a ordem de restrição, e eles estavam fazendo o que podiam para me proteger.
E havia a nossa Ava... Em outras circunstâncias, eu também me sentiria culpado pela perda que Guidice sofrera em 2007. Mas ele perdera a razão no instante que começara a mexer com a minha família. Então, em vez de dizer alguma coisa, eu simplesmente me pus de pé e comecei a andar de volta para dentro de casa. – Eu vou terminar de ajudar Jannie com o dever de casa – falei. – Vocês dois podem entrar quando terminarem de conversar.
capítulo 72
FINALMENTE NOS PERMITIRAM VISITAR AVA. A mulher de Sampson, Billie, foi gentil e veio tomar conta das crianças, enquanto Nana, Bree e eu íamos de carro até a Quarles Street, a noroeste. O abrigo no qual Ava fora colocada ficava nos arredores de uma das piores vizinhanças da cidade. Era um lugar chamado Howard House. Nele, moravam doze garotas, além do administrador da casa, dois plantonistas e alguns conselheiros de meio expediente. Nunca esperei milagres da prefeitura e tenho muito respeito pelo trabalho dessas pessoas. Ainda assim, tive que manter meus sentimentos sob controle quando caminhamos pela calçada rachada e tocamos a campainha. No interior, o local me lembrava um pouco os dormitórios da faculdade. A mobília era velha e não combinava, e havia um carpete esfarrapado que ia de uma parede à outra e que parecia ter sido novo em algum momento dos anos 1970. Algumas jovens mulheres estavam se divertindo diante da TV da sala de estar. Dava para ouvir o barulho de alguém cozinhando e metade de uma conversa telefônica, bem alta, em alguma parte do segundo andar. Sim, eu fiz. Não! Não! Não comece, Lamar! Nem comece com essa merda! Eu não tinha dúvida de que Ava poderia resistir sozinha e até se sair bem em uma briga, se chegasse a esse ponto, mas me entristecia o fato de saber que ela estava morando ali por minha causa. Bastava olhar para Nana e Bree para saber que elas se sentiam da mesma forma. Finalmente, uma mulher de meia-idade veio dos fundos da casa, enxugando a mão em um pano de prato. A camiseta sobre o imenso busto tinha um retrato de James Baldwin, um grande crítico do preconceito em meio à década de 1950 e um dos autores favoritos de Nana. Decidi tomar aquilo como um bom sinal. O primeiro do dia todo. – Posso ajudá-los? – disse ela. – Estamos aqui para visitar Ava Williams. A mulher jogou o pano sobre o ombro. – E vocês são? – A família dela – disse Nana, com uma pontada de estresse na voz. – A família adotiva dela – explicou Bree em voz baixa. – Stephanie Gethmann, do Serviço de Atendimento à Família e à Criança, disse que poderíamos vê-la hoje depois das cinco da tarde – completei. A mulher assentiu e respirou fundo. Imagino que ela respire fundo várias vezes em seu trabalho. – Ava teve alguns problemas hoje – disse, por fim. – Agora não é uma boa hora. Talvez vocês pudessem voltar amanhã. – Ela está aqui? Bree fitou a escada. A pessoa que falava alto ao telefone descia. – Droga, Lamar, o que você quer de mim? – disse ela no celular, mas então parou entre nós e a mulher com quem falávamos. – Posso ir à loja? A mulher estendeu os cinco dedos da mão como se indicasse que ela tinha cinco minutos para voltar. A garota continuou andando até a porta e desceu os degraus, xingando Lamar durante todo o trajeto. – Desculpe – disse a mulher. Ela saiu do vestíbulo na direção da sala de jantar vazia, que, acho, era a coisa mais próxima de privacidade por aqui. – De qualquer forma... Não, Ava não está por aqui agora. – De que tipo de problemas se trata? – disse Bree. – Ela está ferida? – Ela vai ficar bem – disse a mulher. – Drogas? – perguntou Bree. Ao ouvir isso, a mulher fez uma pausa e olhou nos meus olhos, em vez de nos de Bree: – Eu realmente não posso falar sobre isso – disse ela. – Foram drogas? – insistiu Bree. – Incrível. Dois dias aqui e ela voltou a usar drogas! Tentei fazer alguma coisa antes que o temperamento de Bree ou de Nana nos metesse em encrenca. – Podemos ajudar, se a senhora nos deixar – falei. – Que tal esperarmos por ela? – Lamento – disse a mulher. – O horário de visitas vai até as sete da noite e ela só vai chegar mais tarde. Seria mais
apropriado que vocês telefonassem primeiro. Não parecia haver algo que pudéssemos fazer ali. Por um minuto, ficamos simplesmente parados, sem querer ir embora. Era uma tremenda decepção. – Bem, dê isso a ela – falou Nana entre os dentes. E entregou a lata que trouxera, cheia de brownies caseiros e as balas de caramelo favoritas de Ava. – Não se preocupe, senhora. Vou me certificar de que ela os receba. – Ei, senhora, o que é isso? – gritou alguém da sala de estar. – Alguma coisa boa? Que merda, ninguém me traz nada! Nana olhou por cima do ombro. – Meça bem suas palavras, minha jovem – disse ela e, em seguida, esticou a mão e pegou a lata das mãos da gerente. – Mudei de ideia. Traremos amanhã – disse ela. A administradora estava tentando fazer o trabalho dela da melhor maneira possível. Não conheço ninguém no sistema de cuidados à criança que não trabalhe em excesso, que não seja mal remunerado e menosprezado. Ainda assim, ao sairmos da casa, tenho certeza que nós três pensamos a mesma coisa. Ava só teria alguma chance se nós a tirássemos dali.
capítulo 73
MEU TERCEIRO DIA DE BUROCRATA transcorreu do mesmo jeito que os dois primeiros. Eu estava começando a me sentir feito uma criança de castigo. Depois, no fim da tarde, recebi um telefonema. – Homicídios – atendi, pela milésima vez naquele dia. – Sim, olá, quem fala é o detetive Penner, da polícia de Palm Beach, na Flórida. Estou procurando o detetive Cross. – É ele – respondi. Colaborei bastante com departamentos de todo o país. Não é incomum receber ligações assim. Podia apostar que ele faria algum tipo de consulta. – Primeiro, posso dizer que sou fã do seu livro? – perguntou o detetive Penner. – Espero que você escreva mais alguma coisa. – Claro, no tempo livre – respondi friamente. – Como posso ajudar? – Temos em andamento uma investigação de duplo homicídio de duas noites atrás. Marido e mulher, com todas as indicações de um roubo simples. A razão por que liguei é que acabamos de pegar o depoimento do caseiro da casa ao lado desta. Parece que também foi assaltada. – E você está ligando...? – Estou com dificuldade para localizar o proprietário da segunda casa. No fim das contas, o cara é alguém que você prendeu há algum tempo. Um médico chamado Elijah Creem. Lembra-se dele? Sem dúvida, eu me lembrava. A noite da festinha de Creem com menores e sua prisão eram bem difíceis de esquecer. Além disso, ele também havia aparecido em algumas manchetes. Tinha certeza de que Elijah e seu amigo, Josh Bergman, seriam julgados muito em breve e que Sampson iria testemunhar. – Eu estava me perguntando se você poderia mandar alguém para ir ver se o Dr. Creem está em casa ou na cidade – disse Penner. – Ele não tem atendido nenhum telefonema. – Ele é suspeito? – perguntei. O cara era um filho da mãe tão grande que eu não duvidaria disso. – Depende de onde ele estava há duas noites – disse Penner. – Na pior das hipóteses, tenho que notificá-lo do roubo e fazer algumas perguntas. Do ponto de vista técnico, eu estava infringindo o meu status de “sem contato” ao interagir com o público. Mas todos os outros estavam ocupados e, para falar a verdade, parte de mim queria ver como o cara decaíra desde a noite em que pus as algemas nele. Se desse em alguma coisa, passaria para Sampson. De qualquer forma, ele trabalhava fora do Segundo Distrito, onde Creem morava. Aguardei até as cinco da tarde, bati o ponto e me dirigi à casa de Creem.
capítulo 74
O DR. CREEM MORAVA EM UMA impressionante rua sem saída em estilo Tudor na Wesley Heights. Toda a propriedade dava para o Glover-Archbold Park, com muita privacidade ao redor. Do pouco que conhecia da situação de Creem, imaginei que o próximo endereço dele seria em um lugar um pouco mais modesto. Com guardas e um colega de quarto, talvez? Por outro lado, homens ricos como ele eram conhecidos por comprar justiça e liberdade. Eu não estivera planejando acompanhar o julgamento, mas agora que ele voltara ao meu radar, talvez eu acompanhasse. Não houve resposta quando toquei a campainha, mas a garagem estava aberta e tinha um Escalade azul estacionado em seu interior. Entrei pelo portão lateral, a meio caminho da propriedade. Foi onde eu o encontrei. Ele estava de pé, com um cigarro preso nos dentes, inclinado sobre um taco de golfe em um campo verde e grande nos fundos da casa. Havia uma pequena bandeira amarela fincada em cada um dos três buracos na grama artificial. – Dr. Creem? Ele não pareceu me reconhecer de início. Tenho certeza de que tudo o que viu foi um cara negro de terno, parado ali em sua propriedade. – Você sabe tocar a campainha? – perguntou ele. – Sei – respondi e mostrei o meu distintivo. – Sou o detetive Cross, do Departamento de Polícia Metropolitana. Já nos encontramos antes. Um lampejo de reconhecimento apareceu em seu rosto. Fiquei me perguntando se ele também se lembrou de que tentara me subornar. De um jeito ou de outro, Creem continuou a disfarçar. Pegou uma bola do bolso da calça de moletom, jogou-a na grama e voltou a segurar o taco com as duas mãos. O cara simplesmente exalava arrogância. Tentei não sentir muito prazer pelo fato de que eu trazia más notícias. – O que exatamente posso fazer por você? – disse ele. – Recebemos uma ligação de Palm Beach. O departamento de polícia está tentando falar com o senhor. – Sério? O que foi que eu fiz desta vez? – perguntou ele e deu uma tacada regular de 6 metros que errou a marca. – Aparentemente houve um roubo em sua casa na outra noite. Na sua casa e na do seu vizinho. Infelizmente, eles foram assassinados pelo invasor. – Não diga – falou Creem e deixou a bola cair no chão. – Estamos falando dos Wettigs ou dos Andersons? – Lamento, não sei. – Jesus, espero que sejam os Wettigs – disse ele. – Não me leve a mal, mas o cara é um babaca. “Não me leve a mal”? Era um pouco tarde para isso. Eu sabia que havia uma razão para eu não suportar esse cara. Conversei um pouco com Creem e ouvi a história dele. Estivera em casa na noite dos assassinatos na Flórida e disse que eu poderia verificar isso com um amigo, Josh Bergman, se necessário. Falei para ele que passaria todas as informações para o Departamento de Polícia de Palm Beach. – Agora, se isso é tudo, detetive, tenho um compromisso social. Ele parou e olhou nos meus olhos, com um sorriso amistoso. – Acredite ou não, ainda há pessoas nesta cidade que querem minha companhia. Estranhamente, o modo como Creem evitava toda e qualquer sensação de emoção real, a respeito de si mesmo ou de qualquer outra pessoa, me fez pensar em Ava. A seu modo, o homem se fechara para o mundo. Assim como ela. A diferença era que eu amava Ava.
capítulo 75
CREEM ESTIVERA ESPERANDO ALGUM TIPO de notificação do Departamento de Polícia de Palm Beach. Ele apenas não esperava que viesse de alguém como o detetive Cross. Era mais curioso que preocupante. Uma pequena coincidência maliciosa que ele preferia não compartilhar naquela noite. Supostamente, esta era a noite de Josh. Não importava qual fosse a surpresa que Josh planejara (e Creem tinha quase certeza de que sabia qual era), não havia sentido em ficar paranoico. Ao menos, não de antemão. Ainda assim, ele aguardou até metade do jantar e então falou sobre isso do modo mais casual de que foi capaz. – E, por falar nisso, se alguém perguntar, nós dois estávamos na minha casa na sexta-feira à noite – comentou ele. – Preparamos alguns bifes grelhados, como os que estamos comendo agora, e assistimos a um filme. Taxi Driver, por exemplo. Você saiu pouco antes da meia-noite. Josh deu um sorriso, pois gostava dessa parte do jogo. O fato de estar de bom humor, talvez até um pouco agitado, também ajudava. Creem servira outra dose de vinho e voltara para seu excelente bife. Não havia lugar melhor para comer carne que o Bourbon Steak, do hotel Four Seasons. Josh escolhera o lugar, mas ele sabia que Elijah adorava. – Então, qual é a grande surpresa? – perguntou Creem. – Para onde vamos, depois daqui? Josh baixou o garfo. – Elijah, preciso que você mantenha a mente aberta quanto a isso, está bem? Creem o olhou nos olhos, segurando o ar por um instante, como se tivesse havido um entendimento silencioso entre eles. – Não estou pedindo muito – disse Josh. Mas isso era contestável. Ele estava fazendo a expressão de cãozinho triste. Era óbvio que já decidira qual deveria ser a resposta de Creem. – Por favor, não diga não. Eles vão nos encontrar lá em cima. Dei um maço de notas e eles mesmos reservaram o quarto. Tudo de primeira linha. Josh se inclinou para ficar mais próximo de Creem e voltou a baixar a voz. – Eu até escolhi uma capa de plástico para o colchão para esta sessão. Provavelmente devem achar que sou estranho, mas está tudo bem. A questão é que já cuidei de tudo, Elijah. De cada detalhe de última hora. Creem o deixou sem resposta por alguns segundos, mas então encolheu os ombros, indiferente. – O que posso dizer? – perguntou ele. Josh abriu um grande sorriso e brindou a ele. – Você não vai se arrepender. – Claro, tenho que pedir... – Na verdade, não tem. Isso é comigo, lembra? Ela é absolutamente perfeita – disse Josh. – E ele também, se você quer saber. Creem assentiu e bebericou o vinho. O buquê no copo era quase o suficiente para embriagar. Ele tinha que ir devagar. – A que horas? – perguntou. – Dez da noite. Eram nove e meia. – Não teremos sobremesa – comentou ele. Bergman sinalizou para o garçom, do outro lado da mesa. Bem-humorado, girou o vinho no copo com o dedo, depois lambeu para limpar e engoliu o restante antes de jogar um guardanapo branco sobre a refeição deixada pela metade diante dele. – Teremos, sim.
capítulo 76
NA SUÍTE, JOSH APRESENTOU ELIJAH ao belo casal que os aguardava. – Este é Richie. E esta – disse ele, com um sorriso que mal pôde disfarçar – é Miranda. Creem olhou duas vezes para a garota. – É seu nome verdadeiro? – perguntou ele, mas ela apenas lançou um olhar constrangido a Josh. Ela estava mais para Chloe que para Miranda, mas ele apreciou o doentio, porém gentil, gesto. Josh estava tentando tornar isso especial para ele e, de qualquer forma, ela era alta, flexível, loura e, sim, perfeita. Parecia que Richie e “Miranda” tinham começado sem eles. Uma garrafa de tequila estava aberta na mesinha de cabeceira e, embora não houvesse nenhum comprimido à vista, seus olhares diziam a Creem que eles estavam totalmente prontos. Ele se serviu de uma pequena dose de tequila e sentou-se em uma cadeira confortável perto da cama. Uma faca roubada da churrascaria no andar de baixo estava no bolso da parte de cima do blazer. Para sua surpresa, estava começando a se sentir à vontade. Talvez Josh o conhecesse melhor do que ele imaginara. – Então, Miranda, o que a excita? – começou Creem. Com esse pequeno estímulo, o casal contratado se sentou na beirada da cama king size enquanto Creem e Bergman os dirigiam. O rapaz estava passando a mão pela saia da garota. A garota, por sua vez, pôs uma das mãos com as unhas bem-feitas sobre a virilha dele. – Não tão rápido – disse Josh. – Só abra a calça e deixe assim por um tempinho. Não havia necessidade de muita conversa. Eles já tinham feito isso antes. Josh dizia à garota o que ela devia fazer com o rapaz e Creem dizia ao rapaz o que devia fazer com a garota. – Ponha o dedo nela. Isso. Muito bom. Depois de um tempo, Creem começou a desejar que eles tivessem trazido a câmera. A belezinha parecia não ter um único fio de cabelo abaixo do pescoço. Ele registrou com os olhos, observando de lado enquanto Bergman se sentava no banco acolchoado aos pés da cama. Nos sete minutos seguintes, os dois ficaram nus. A garota gozou antes, agarrando a cabeceira enquanto suas costas arqueavam e os olhos se fechavam de prazer. Quando Creem já vira o suficiente, acenou para Josh com a cabeça, para avisá-lo de que estava pronto. Mas Josh esticou um dedo. Ele queria ver o rapaz terminar. Retirou a pistola do estojo na qual a carregava e deixou-a deitada no próprio colo, que latejava. Os dois coelhinhos na cama nem perceberam. Não era um modo tão ruim de morrer, na verdade. Lentamente, Josh ficou de pé. O olhar elétrico era inconfundível. Era sua expressão de assassino. Creem já a vira antes... há 25 anos, em Fort Lauderdale. Fora a última vez que mataram juntos. – É isso, crianças – disse Josh. – Exatamente assim. Não parem agora. Até o fim. Provavelmente, o rapaz nem poderia se quisesse. Ele investiu mais algumas vezes e penetrou furiosamente na garota, enquanto ela dava gritinhos embaixo dele. Ele apertou os olhos e jogou a cabeça para trás. Foi então que Josh começou. Com um som abafado, ele atirou bem no meio da cabeça do rapaz. Isso fez com que ele caísse em cima da garota, feito um boneco de trapo. No início, ela nem pareceu tomar conhecimento. Quando percebeu, a faca de Creem já estava na mão e era tarde demais para ela fazer alguma coisa.
capítulo 77
ERA QUASE TRÊS DA MANHÃ quando Creem e Bergman decidiram que já era hora de parar. Ficaram sentados dentro do carro, no estacionamento deserto próximo a Fletcher’s Cove, olhando para o rio. Richie e “Miranda” já tinham dado um longo mergulho, a garrafa de tequila estava quase vazia e Josh fumava um charuto com Elijah, embora apenas fingisse gostar. Ainda fingindo, depois de todo esse tempo. – Tem uma coisa que você deveria saber – disse Creem. – Eu não quis dizer nada antes, e não é tão ruim quanto parece, mas um detetive veio me ver hoje. Josh continuou calmo, o que deixou Creem um pouco surpreso. – Um detetive? – Cross. Um daqueles que nos prenderam naquela noite. Ele veio para dizer que a casa em Palm Beach foi assaltada. Os vizinhos estão mortos também, imagine só. – Por que ele? – perguntou Josh. – Não tenho ideia, mas tinha a ver com o roubo. Não estou muito preocupado. – Se você está dizendo, Elijah... Creem se tranquilizou ao ouvi-lo falar daquela maneira. Sem dúvida, Josh também estava meio bêbado e ainda agitado com aquela noite. Ele fechou os olhos enquanto o silêncio crescia no carro. – O que você faria se a polícia estivesse na nossa pista? – perguntou Creem finalmente. – Se você soubesse que eles estavam atrás de você? Bergman deu de ombros. – O que tivesse que fazer. – Fugiria? – Se pudesse, com certeza. Ouvi dizer que o Vietnã é legal. Garotos bonitos, boa comida. Ou a Argentina. – E se não pudesse fugir? O que faria? – insistiu Creem. – Ainda temos que pensar no julgamento. – Pode acreditar, já pensei – respondeu Bergman. – E nas palavras da minha mãe alcoólatra: “Sempre deixe a festa antes de ela acabar, querido.” Então ele ergueu a cabeça e olhou fixamente para Creem com uma seriedade repentina. – Quero dizer que não vou para a cadeia, Elijah. Lamento, mas não pretendo envelhecer desse jeito. As respostas prontas de Bergman pareciam explicar algumas coisas. Talvez esta fosse a vantagem do estilo paranoico de Josh. Ele sempre considerava um plano de fuga, de um modo ou de outro. – Você disse uma coisa no outro dia. – Creem o recordou. – Alguma coisa sobre como terminaremos isso juntos quando chegar a hora certa. Era disso que você estava falando? Bergman ergueu a garrafa entre eles e tomou um gole. – Você já viu Thelma e Louise? – perguntou ele. – Não. – Bem, deixe para lá. Mas para responder à sua pergunta... sim. Era disso que eu estava falando. Amo você, Elijah. Você pode rir à vontade, mas eu amo. Sem você, sem tudo isso, eu realmente não tenho nenhuma boa razão para viver. Não mais. – Eu me sinto da mesma maneira, Josh – disse ele. – Em relação a tudo. Não trocaria as últimas semanas por nada. – Nem eu, Louise – disse ele. – Não sei o que isso significa – observou Creem. – Deixe para lá.
capítulo 78
NO FIM DO DIA SEGUINTE, finalmente conseguimos ver Ava. Eu tinha todo tipo de pergunta para fazer a ela, mas sabia que não poderia forçar a barra na primeira visita. Ela passara por muita coisa desde a última vez que nós nos vimos. Quando chegamos, o lugar estava estranhamente em silêncio e a própria Ava abriu a porta. Estivesse ou não feliz em nos ver, sentimos uma brisa fria de tolerância quando fomos abraçá-la. Abraços sem retribuição. Nenhum sorriso. Fiquei examinando a pele exposta dos braços e até atrás das orelhas, procurando marcas de agulha. Eu me entristecia ao considerar que Ava poderia estar se injetando, mas já vira viciados mais jovens que ela. Depois disso, sentamos na varanda da frente em cadeiras de jardim velhas, com Coca-Colas e a lata de brownies do dia anterior. No início, Nana falou bastante e contou a Ava sobre a escola que ela já examinara para ela. Bree e eu demos a ela um cartão de “Sentimos sua falta” feito por Jannie e Alie. Conseguimos com isso o primeiro e único sorriso do dia. Tudo era meio formal e estranho, mas era melhor que ser mantido a distância. Fiquei feliz simplesmente por vê-la. Ainda assim, após quinze minutos vendo Ava assentir e responder de maneira monossilábica, decidi fazer alguma coisa. Stephanie nos dissera que ela estava inscrita em um programa de aconselhamento sobre drogas, mas não muito mais do que isso. – Ava, tem algo que preciso perguntar... Ela ficou perfeitamente imóvel e apoiou as pontas dos tênis contra o concreto. Isso me lembrou um corredor pronto para disparar e fugir. – Sabemos um pouco sobre o que andou acontecendo nos últimos dias e quero que você saiba que estamos muito preocupados com você – completei. – Não sobre o que você fez. Com você. Nana olhou para mim como se eu estivesse indo rápido demais, mas Bree continuou: – Querida, ouça. É muito importante que você nos diga onde está conseguindo essas drogas. Em que esquina, com qual vendedor ou amigo... – Eu não tenho que responder isso – disse Ava. – Vocês dois são policiais. Mesmo depois de meses morando em nossa casa, ela nos via como uma ameaça. Essa desconfiança em relação à autoridade estava em seu DNA. – Não estamos aqui pra ferrar com ninguém – disse. – O problema é que você nunca sabe o que está arranjando aí. Os garotos têm overdoses acidentais todos os dias, especialmente com o tipo de substância que você andou consumindo. – Eu não estou usando drogas! – disse ela subitamente. Eu a conhecia muito bem para reconhecer a mentira rápida que Ava dizia quando se sentia ameaçada. A questão não era acreditar nela. Era dizer o que tivesse que ser dito no momento. Antes que pudéssemos dizer mais alguma coisa, a porta da frente se abriu e outra garota saiu. Era a garota que falava em voz alta no telefone, no outro dia. Tinha mais ou menos a idade de Ava, com um jeans de cintura baixa e um casaco apertado. – Quem são, Ava? – perguntou ela. – Sua família? – Sou Alex – respondi. – Estas são Bree e Nana. Somos a família adotiva de Ava. Os olhos da garota pousaram nos brownies e Nana Mama estendeu a lata para ela. – Obrigada, senhora – disse ela e pegou dois, com um pequeno sorriso. – Ava disse a vocês por que tá ficando acordada até tarde? – Cale a boca, Nessa! – gritou Ava. – Vá cuidar da sua vida! – Dane-se – respondeu a garota. Imaginei que ela estivesse falando sobre o aconselhamento para drogas, mas, de um jeito ou de outro, ela não parecia levar Ava muito a sério. Na verdade, pegou o celular para tirar uma foto de nós, como se nada tivesse acontecido. – Digam xis, pessoal. – Xis – dissemos, menos Ava, claro. Eu dei meu número de telefone para a garota e ela enviou a fotografia pouco antes de pegar mais um brownie e desaparecer dentro da casa de novo. – Ela não parece tão ruim – disse Nana. – É sua amiga?
– Colega de quarto – disse Ava. – Ela é legal. Nós nos oferecemos para levar as duas para jantar, se ela quisesse, mas Ava disse que estavam preparando tacos naquela noite e preferia ficar por lá. Fomos obrigados a concordar e agir como se tivéssemos entendido, mas a verdade é que ficamos frustrados. Não considerava Ava ingrata nem mal-educada. Eu a considerava arrasada e incapaz de processar tudo o que estava sentindo. É o tipo de vácuo que os jovens tentam preencher o tempo todo com drogas. Quando você acrescenta um histórico de negligência, como o de Ava, e a pressão de viver no sistema de adoção, mudanças significativas poderiam começar a parecer quase impossíveis. Com sorte, poderia haver um pequeno progresso. E isso nos dias bons. Hoje não era um dia bom.
capítulo 79
ENQUANTO ISSO, OS GOLPES CONTINUAVAM chegando. De volta ao trabalho, na manhã seguinte, tentei acessar os arquivos do caso e o sistema respondeu com uma mensagem indesejada. ID de acesso não reconhecido. Tentei mais algumas vezes, mas continuei vendo a mesma mensagem. Era evidente que o meu acesso ao sistema fora cancelado nas últimas doze horas. Meu status de “sem contato” estava completo. Eu não deveria ter ficado surpreso. Bastava uma revisão rotineira para alguém descobrir minhas digitais por todos os arquivos do Assassino do Rio, do Estripador de Georgetown e do caso Elizabeth Reilly. Com base nas regras da minha suspensão, eu não deveria andar por aí fuçando o sistema, para começo de conversa. Mas isso não me impediu de reclamar com a sargento Huizenga. – Não comece, Alex – disse ela, assim que apareci no vão da porta. Ela sabia por que eu estava ali. – Não estou de bom humor – avisou ela. – A questão não sou eu. Temos três possíveis assassinos em série ativos nos registros neste momento. Quando foi a última vez que sentimos tanta pressão assim? – Isso não importa – disse ela. – Você não acatou uma ordem e o comandante D’Auria caiu em cima de mim. Sou a responsável por você e, por isso, tenho que limpar a sua merda. De nada, Cross. – Não estou falando de voltar para as ruas – falei. – Estou falando de ler os arquivos, para ter uma noção melhor do caso quando voltar a ele. – O que você não entendeu em relação ao seu status atual? – gritou Huizenga para mim. – Você acha que quero que fique de fora? Jesus Cristo! Era o 18o dia da crise e o caso não progredia. Quanto mais as investigações demorassem, mais Huizenga teria a administração em cima dela, cobrando resultados. É quando os gritos costumam começar. E estava prestes a ficar pior. Foi então que a detetive Jacobs entrou no gabinete de Huizenga. Fosse o que fosse, era algo grande. Dava para ver apenas pelo modo como ela se portava. – Más notícias, sargento – disse ela. – Um momento – pediu Huizenga, erguendo uma das mãos para ela, depois se virou para mim. – Isso é tudo, Alex. Já terminamos. Eu não ficava de fora de uma conversa da Divisão de Casos Especiais desde que eu podia me lembrar. A coisa toda estava me deixando totalmente louco, mas não havia muitas opções. Não fui muito longe. Em vez de voltar para a minha mesa, parei do lado de fora da porta de Huizenga e ouvi com atenção. Não era uma atitude da qual eu me orgulhasse, mas como disse, o problema não era eu. Eram as vítimas e suas famílias e, talvez, sobretudo, as possíveis vítimas que ainda estavam por vir. Todas essas pessoas mereciam cada recurso que poderíamos oferecer e, sem querer me gabar, não estavam recebendo isso. – Qual é o problema, Jessica? – perguntou Huizenga. – Acabamos de ser informados sobre dois corpos flutuando no Potomac. Eles foram levados pela água até a ilha Roosevelt há cerca de uma hora. Um jovem branco baleado na cabeça e esfaqueado ao redor da virilha. Uma jovem branca... – Não me diga. Loura. Três ferimentos a faca cuidadosamente calculados. Corte de cabelo feio. – Infelizmente, sim – confirmou a detetive. – E você está dizendo que foram encontrados exatamente na mesma hora? – É isso que está causando estranheza nessa história toda. As duas vítimas foram algemadas uma à outra. Respirei fundo. Isso significava que nossos dois assassinos de Georgetown estavam de volta e juntos. Ouvi a cadeira de Huizenga ser empurrada para trás e o retinido de chaves. – Valente já sabe? – perguntou ela. – Ainda não. – Chame-o. Vou avisar ao chefe. E diga a quem estiver na cena para não tocar em nada.
Quando Jessica Jacobs saiu, ela olhou para mim de cara feia, mas continuou andando. Dez minutos depois, todo o pessoal livre da Divisão de Casos Especiais tinha sido chamado e o gabinete estava vazio. A não ser por mim, é claro. Fui deixado atendendo telefones e olhando para o teto. De novo. Eu realmente não tinha certeza de quanto mais poderia aguentar.
capítulo 80
ASSIM QUE FIQUEI SOZINHO NO gabinete, telefonei para Bree. Eu sabia que ela estava trabalhando em um caso de tiroteio entre gangues em Garfield Terrace, a noroeste. Ela saíra de casa de manhã cedo quando o telefone tocou. Com sorte, estaria terminando por lá e poderia dar uma olhada na cena em Roosevelt Island. – Ainda tenho mais uma hora por aqui – disse ela –, mas posso passar lá depois disso. – Qualquer coisa ajuda – falei. Eu estava determinado a rastrear o caso, de um modo ou de outro. – Tente encontrar Errico Valente. Ele a manterá informada, se puder. Quando casamos, Bree e eu havíamos decidido evitar trabalhar no mesmo homicídio. Isso só tornava a vida em família mais difícil, tanto para ficar com as crianças quanto para manter as coisas bem em casa. Mas, em alguma parte do caminho entre o problema com Ava e Ron Guidice, e agora os meus problemas no trabalho, as regras do jogo mudaram. E, para melhor ou para pior, nós formamos uma bela equipe. Gosto de trabalhar com ela. Depois disso, passei as horas seguintes sozinho, sentado à mesa, atendendo ligações e refletindo sobre tudo o que sabia sobre esses casos. Era evidente que, o que quer que nossos assassinos estivessem obtendo desses homicídios duplos, estava funcionando para eles. Duas vítimas algemadas no rio era um passo além de ter um corpo abandonado em Rock Creek Park. Eles estavam trabalhando juntos agora. Isso fora planejado. E planejado parecia o termo certo. Era como se eles estivessem encenando algum tipo de show. Para quem? Nós? Um para o outro? O mundo? Quem sabe? Eram apenas perguntas ao vento, enquanto eu ficava ali, sentado à mesa, atendendo a telefonemas. Finalmente, no meio da tarde, tive notícias de Bree. – Acabei de chegar – disse ela. – E já estou de volta ao perímetro. D’Auria me mandou sair antes que eu pudesse dar uma olhada nos corpos. – Você disse a ele que tem uma conexão anterior com o caso? – Ele não aceitou – disse ela. – O local está sob forte vigilância. – E quanto a Valente? – perguntei. – Está na água. Vou ficar por aqui um pouco, mas tenho que estar no gabinete antes das cinco e depois... – A voz de Bree sumiu. – Ai, puta merda! Só pode ser brincadeira. – O que foi? – perguntei. Odiava saber de tudo em segunda mão. – É Ron Guidice. Ele está junto à fita com outros repórteres. O filho da puta me fotografou. Meu rosto começou a arder, só de pensar nisso. Claro que ele estava lá. Ron Guidice estava em toda parte nos últimos tempos. – Não dê a ele o prazer de uma reação – falei. – É exatamente isso que ele quer. – Queria poder apertar a tira da câmera ao redor do pescoço dele. – Pode acreditar que sei como você se sente – retruquei. – Mas não faça isso, Bree. Ignore-o. Eu a ouvi respirar fundo. E fiz o mesmo. – É, está certo – disse ela. – Vou deixá-lo viver. Mas ouça, tenho que ir. Vou telefonar se conseguir alguma coisa do Valente. Eu te amo. – Também te amo. Normalmente, eu podia entender Bree muito bem. Desta vez, não. Depois que desligamos, fiquei sentado imaginando se ela contara o que eu precisava ouvir ou se realmente estava se distanciando de Guidice. Ela odiava o cara tanto quanto eu. Se conheço bem a minha mulher, ela já poderia ter quebrado a cara dele antes mesmo que eu desse o próximo telefonema.
capítulo 81
JOHN SAMPSON ESTAVA NO CARRO quando recebeu a mensagem de texto de Bree.
Olho no Guidice. Agora se der.
Esperavam por essa oportunidade. Em vez de ir até o treinamento da polícia, ele virou à direita na Rua K. Os registros mostravam o nome de Ron Guidice ligado a uma casa alugada, em Reston, nos últimos três anos. O local pertencia a um agente imobiliário de fora de Atlanta, com uma empresa de administração com sede em Columbia, mas nenhuma daquelas pessoas parecia ter algo interessante a dizer sobre o inquilino. Guidice pagava o aluguel em dia e parecia normal. A casa era surpreendentemente suburbana, por falta de uma palavra melhor. Era pequena e simples, toda pintada de azulclaro, no meio de uma vizinhança densamente povoada. Não era nada parecida com o buraco no chão para o qual se esperaria que um verme como Guidice rastejasse. Na porta da frente, ele tocou a campainha, para o caso de ser necessário. Como ninguém atendeu, Sampson saiu da varanda baixa e se direcionou aos fundos da casa. Não havia carro na entrada. Não havia garagem também. Apenas o quintal cercado. Achou estranha a falta de ferrolhos nas portas de Guidice. Não havia telas nem cortinas nas janelas. Com base nas primeiras impressões, não parecia que o cara tivesse algo a esconder. Mas havia um meio de descobrir. Sampson tirou um cartão de plástico da carteira e passou com facilidade pela fechadura simples da porta dos fundos, destrancando-a. Depois disso, não demorou muito para dar uma olhada no primeiro andar. Vazio parecia ser a palavra ideal. Não havia muita coisa na geladeira, e apenas uma espreguiçadeira isolada perto de uma mesa dobrável de TV na sala de estar. A pilha de jornais na porta da frente era de três semanas atrás – o Post, o The New York Times e o Al-sabah, por um motivo qualquer. Ele continuou a subir para o segundo andar e viu um arranjo simples de três pequenos quartos. Um totalmente vazio. Outro com um futon no chão e algumas roupas dobradas contra a parede. O terceiro quarto parecia ser o escritório temporário de Guidice. Havia uma mesa com pastas e uma impressora barata no chão. Dentro das pastas, recortes sobre todas as coisas, de brutalidade policial a planejamento financeiro, reparos em motores de carro e até a horta da Casa Branca. O lugar todo era meio deprimente, na verdade. Era muito fácil imaginar Guidice passando suas noites ridículas ali, criando teorias conspiratórias e escrevendo aquela merdinha de blog. Ainda assim, Sampson tinha esperança de sair com alguma coisa. Ele precisou de mais vinte minutos para checar os closets, as reentrâncias no piso e a ventilação do ar, por precaução. Mas não havia nada. De volta ao lado de fora, ele estava prestes a entrar no carro quando avistou um dos vizinhos. Era um homem idoso, com roupas de golfe, que levava o lixo até o meio-fio. Perguntar não ofende. Sampson parou para pegar um envelope no banco de trás do carro e seguiu em frente. – Com licença – disse ele. – Estou procurando por Ron Guidice. O senhor pode me dizer se é aqui que ele mora? O idoso fitou a pequena casa e balançou a cabeça. – Lamento. Sei que é um cara alto, de barba, mas não sei o nome dele. – Parece ele – disse Sampson. E estendeu o envelope. – Ele precisa assinar isso. Alguma ideia do horário em que costuma chegar em casa? – Difícil dizer. O homem tinha a expressão “solteirão” estampada na testa. Além disso, era do tipo que gostava de conversar. – Desde que a senhora e a garotinha se mudaram, ele simplesmente vem e vai. Mais vai do que vem. Sampson assentiu, com expressão impassível. Senhora? Garotinha? Por que não havia nenhuma referência a isso nas verificações de antecedentes? E por que elas não moravam mais aqui? – Então, acho que é a família dele, não é? – perguntou ele. O homem deu de ombros. – Acho que a senhora grande e gorda é a avó da garotinha. A menina é uma graça. Da mesma idade da minha netinha, mais
ou menos. Talvez 5 ou 6 anos, acho. A mente de Sampson estava revirando enquanto o vizinho falava. Isso explicava uma ou duas coisas... Por exemplo, por que Guidice poderia escolher um lugar como esse. – O senhor não saberia onde posso encontrá-las, saberia? – perguntou Sampson. – Filho, nem sem quem elas são. Como vou saber para onde foram? – Verdade – respondeu ele. – Se eu o vir, vou dizer que você está procurando por ele. Qual é o seu nome? – gritou o idoso enquanto Sampson voltava para o carro. – Joe Smith – mentiu. – Mas não se preocupe com isso. Sou muito bom em encontrar alguém quando quero.
capítulo 82
QUASE NO FIM DA TARDE, recebi um segundo telefonema do detetive Penner, de Palm Beach. Eu já passara as informações de Elijah Creem para Penner e o álibi de Creem para a noite dos assassinatos na Flórida tinha sido verificado. Então qual era o problema? – Em que posso ajudar? – perguntei. – Na verdade, pode ser que eu tenha algo para você – disse ele. – Temos visto a cobertura dos casos de assassinato em série de Georgetown. Parece uma coisa bem doida. – Para dizer o mínimo. – Então, tem essas máscaras que o bandido está usando. O que você pode me dizer sobre elas? – perguntou ele. Penner não tinha como saber que eu estava “sem contato” e eu não tinha pressa em esclarecê-lo. Eu queria ver o que ele tinha a dizer. Para isso, eu teria que compartilhar algumas informações. – Elas pareciam ser fabricadas em látex – falei. – Definitivamente eram muito bem-feitas e convincentes o bastante para enganar as pessoas na rua. Dá para perceber que são máscaras pela filmagem, mas só olhando com muita atenção. – É. Foi o que eu pensei – disse ele. – Temos uma curta filmagem de segurança aqui também. Filmamos um cara entrando em um sedã escuro 400 metros ao norte do nosso homicídio duplo, cerca de meia hora depois do tempo estimado da morte das nossas duas vítimas. Havia alguma coisa estranha nele... Penner não dissera tudo o que tinha a dizer, mas percebi o que era. – Idoso branco? Mais ou menos 1,80 metro? Uns 80 ou 90 quilos? – Então você sabe de quem estou falando – disse ele. – Sei muito bem – respondi. – Achei que poderíamos trocar imagens e confirmar que estamos falando do mesmo cara – disse Penner. – E, por mesmo cara, você quer dizer Elijah Creem? – No mínimo, Creem é altamente suspeito – disse ele. – Ele tem uma casa em Georgetown e uma em Palm Beach, que simplesmente são os locais onde as máscaras estão aparecendo. Eu já estava de pé. Levando em consideração o tipo de tendências sociopatas que Creem demonstrara nas duas vezes que nos encontramos, isso parecia inteiramente plausível. Creem também era cirurgião, o que significava um alto grau de perícia no uso de uma arma branca, fosse um bisturi ou a lâmina serrilhada que era a assinatura do assassino. Em homicídios, evidências circunstanciais podem se tornar armadilhas. Tenho experiência suficiente para evitar ser levado por primeiras impressões. No entanto, quando desliguei o telefonema de Penner, aquela informação não parecia ser apenas uma teoria para mim. Parecia ser a solução.
capítulo 83
NÃO DEMOROU MUITO PARA CONFIRMAR a suspeita do detetive Penner. A máscara de idoso na imagem de segurança na Flórida era uma combinação perfeita com as que tínhamos visto em Georgetown. Era hora de chegar perto do Dr. Creem. A primeira coisa que fiz foi ligar para Errico Valente. Depois, imprimi o que tinha e deixei em um envelope sem identificação na mesa dele. Eu já tivera emoções suficientes por um dia. Não precisava que associassem aquelas informações a mim de novo. Além disso, sabia que Errico conseguiria lidar com aquele material discretamente. O fato de ele ficar com o crédito era a menor das minhas preocupações. Depois disso, tudo o que eu podia fazer era terminar o meu dia, ir para casa e esperar para ouvir o que eles conseguiriam com aquilo. Claro, isso não impediu que Bree, Sampson e eu juntássemos nossas mentes naquela noite. Ainda havia muito sobre o que conversar. Parecia que estávamos administrando uma empresa de investigação particular no porão. Todo aquele segredo era meio ridículo, mas também era recompensador. Depois de três dias sentado à mesa de trabalho, eu sentia que estava realmente fazendo alguma coisa. Contei tudo o que descobri naquele dia para Bree e John e discutimos algumas teorias. Minha melhor aposta era que Elijah Creem seria interrogado pela manhã, se não fosse preso. Isso também iria pôr os holofotes sobre seu amigo, Josh Bergman, que estava começando a parecer uma boa opção para o nosso Assassino do Rio. Valente ia conversar com ele também, sem dúvida. Depois disso, passamos para o caso de Elizabeth Reilly e do namorado fantasma, o homem que apenas conhecíamos como Russell. Bree continuara a checar os registros, marcando as prisões de qualquer um com o mesmo nome ou sobrenome. Até então, nenhuma das pistas que encontrara demonstrava nem mesmo a remota possibilidade de haver uma relação. O mesmo acontecia com Rebecca Reilly, a filha sequestrada de Elizabeth. Eu andara checando com Ned Mahoney no FBI, mas sem bons resultados. A dura verdade era que a nossa melhor chance de encontrar o bebê seria “Russell” sair das sombras para ir atrás de outra garota grávida. Eu me odiava até por ter esse pensamento. E tudo isso deixava o problema de John Guidice sobre a mesa. – E quanto ao nosso outro amigo? – perguntei. – Aquele sobre o qual não falamos. Bree e Sampson trocaram olhares. O que quer que estivessem fazendo em relação a Guidice, eles andavam guardando o assunto apenas para si mesmos. – Não há muito a dizer – respondeu John. – Não há muito? – repeti. – Ou não há nada? Eu estava curioso demais para deixar para lá. Ou talvez estivesse cansado de ficar de fora. Sampson deu de ombros e virou o restante da cerveja. – Supostamente, havia uma mulher idosa e uma garotinha morando com ele até pouco tempo atrás. O vizinho acredita que eram a mãe e a filha de Guidice, mas não tinha certeza de nada. De uma forma ou de outra, eles se foram. O local de seu retiro em Reston parece uma casa mal-assombrada. – Pensei que não era para conversarmos sobre isso – falou Bree. – Conversarmos sobre o quê? – perguntou Sampson e deitou no meu sofá de couro velho. Levantei o polegar para John em sinal de agradecimento. Queria poder me envolver nisso, mas enquanto a ordem de restrição de Guidice estivesse em vigor, eu não ia tocar nele. Se isto significava que Guidice ia vencer algumas batalhas no caminho, não tinha importância. Eu ainda estava determinado a ganhar a guerra.
capítulo 84
RON GUIDICE TIROU OS FONES de ouvido. Filho da puta! Ele queria ir atrás de John Sampson. De modo algum aquele policial ridículo ia se aproximar de sua família mais do que já fizera. De um jeito ou de outro, os sinais eram inegáveis. Era hora de dar um grande passo. O único problema era... quem seria o primeiro? Quando o celular em seu bolso tocou, Guidice trincou os dentes. Ele não precisava olhar no identificador de chamadas. Sua mãe era a única que tinha aquele número de telefone e era a quarta vez que ela tentava falar com ele na última hora. Isso estava ficando ridículo. – O que foi, mãe? – Ele atendeu finalmente. – Estou trabalhando. – Papai? Em vez de Lydia, era Emma Lee no outro lado da linha. Imediatamente ele se arrependeu do tom de voz. – Oi, docinho – disse ele em voz baixa. – O que é que você está fazendo acordada até tão tarde? – Quando você vai voltar pra casa? – perguntou a filha. O leve sotaque da Virgínia o encantava, mandando seu coração através do telefone. Ele se sentiu culpado, mas não havia como resolver aquilo agora. – Só mais uns dias – respondeu ele. – Não demora muito. – O bebê anda chorando muito. Acho que está sentindo sua falta. – É isso que os bebês fazem, gatinha. Não se preocupe. Agora dê o telefone para a vovó, está bem? – Amo você, papai. – Também amo você. Amor maior que o Universo. Depois de uma breve pausa, Lydia entrou na linha. – Ronald? Guidice pôde sentir seu estômago revirando ao ouvir a voz dela. – Que merda ela está fazendo acordada? – perguntou ele. – Você devia tomar conta dela. – Não xingue ao falar comigo – disse a mãe. – Sua filha está sentindo falta do pai. Você pode culpá-la? Você nos traz até aqui e depois não aparece por dias. E o leite está acabando, por falar nisso. Não posso ficar indo à loja com os meus tornozelos. Guidice contou até dez. Não havia nada a fazer. Agora ele precisava de Lydia mais do que nunca. – Mãe, já conversamos sobre isso – disse ele lentamente. – Até essa história do processo se resolver, não acho que seja seguro ficar muito perto de você e das meninas. Não é segredo nenhum que a polícia está querendo me pegar. – Mas você é a vítima! Foi você quem ficou com o nariz quebrado. – É disso que estou falando. A última coisa que você quer é uma equipe de policiais assim indo até aí, fazendo perguntas. Depois é só uma questão de tempo até os repórteres tentarem tirar fotos de você e das meninas. – Pare com isso – disse ela. – Agora você está me deixando assustada. – Não estou tentando fazer isso, mãe. Só estou explicando. Na verdade, ele estava um pouco. Se havia uma coisa que Lydia Guidice odiava era ver fotografias dela. As da época de gorda a recordavam que estava gorda e as de quando era magra a lembravam que já não estava magra. Em algum lugar havia uma caixa de fotos de família, incluindo meia dúzia do pai de Guidice, de pé com o braço em volta de um rasgo onde um dia esteve a imagem da mãe. Fora muito ruim o velho ter morrido de repente. Ele poderia, na verdade, ter apreciado o que Guidice estava tentando fazer. – Não confie em ninguém, mãe – disse ele. – Você conhece os seus direitos, não conhece? – Sim, Ronald. Você já me disse isso mil vezes. – Se alguém aparecer e fizer perguntas, diga que não é obrigada a se identificar e que você quer falar com seu advogado primeiro. – Ah, pelo amor de Deus. Eu sei. Eu sei. Era um dos melhores modos de tirar Lydia do telefone. Ela odiava falar sobre essas coisas.
– Vou tentar chegar aí assim que puder – disse ele. – Eu só preciso que você e as meninas aguentem mais um pouco sem mim, está bem? – Temos escolha? – perguntou ela, voltando a falar no tom infantil de sempre. O tom que fazia Guidice pensar que talvez o pai fosse um homem de sorte. – Não, mãe – disse ele, antes de desligar –, acho que não.
capítulo 85
NA MANHÃ SEGUINTE, VALENTE INFORMOU a toda a equipe de investigação sobre Elijah Creem. Pelo menos, foi o que deduzi. Eu não podia participar das reuniões. Mas assim que todo mundo começou a voltar, dava para ouvir as conversas. Valente fez um sinal para mim, do outro lado da sala, antes de sair novamente, seguido por Huizenga e Jessica Jacobs. Eu não esperava que ele me atualizasse na frente de todos, mas era evidente que o caso estava caminhando agora. Antes que pudesse começar a resolver alguma coisa, recebi um telefonema inesperado. Era do gabinete do delegado Perkins me dizendo que eu tinha que ir ao andar de cima. A assistente de Perkins, Tracy, não me deu detalhes. Apenas disse para ir imediatamente. Eu sabia que esses chamados podiam significar boas ou más notícias. Até agora, Perkins não estivera procurando por mim. Ele me deixara passar a noite na cadeia, mas também me tirara da cela bem cedo. Ele me mantivera de fora durante todo esse tempo, mas também fizera questão de que eu tivesse a arma e o distintivo de volta, o que ele não era obrigado a fazer. E agora? – Pode entrar – disse Tracy, fazendo um sinal atrás do balcão da recepção quando cheguei. – Ele está esperando por você. A porta do gabinete de Perkins estava aberta e ele estava sentado atrás da imensa mesa de bordo, assinando uma pilha de papéis. – Sente-se, se quiser – disse ele. Fiquei de pé enquanto ele assinava mais alguns formulários. Quando finalmente ergueu os olhos, tirou uma folha da caixa e a estendeu para mim. – O que é isso? – perguntei. – Uma carta de recusa do procurador-geral – disse ele. – Parece que hoje é o seu dia de sorte. Eles estão alegando provas insuficientes para a acusação. Senti como se um peso tivesse sido tirado de mim. Uma carta de recusa significava que não levariam meu caso adiante. – Estou um pouco surpreso, para ser sincero. – Vamos dizer que você me deve uma. Ou duas. Ou três – retrucou Perkins sem sorrir. Não importa o que tivesse feito, ele movera os pauzinhos a meu favor, o que eu apreciava, mas, para ser sincero, não deveria ter sido difícil de fazer, pois eu era inocente. – Você ainda vai fazer testes de urina pelos próximos meses – acrescentou ele. – Posso viver com isso – respondi. Também havia a possibilidade de multas administrativas e Guidice com certeza prosseguiria com a ação civil. Mas nada disso ia me impedir de finalmente voltar ao trabalho. Eu ficara de fora durante quatro dias e, em um homicídio, é como se fossem uma eternidade. Eu tinha que me atualizar. – Mais alguma coisa? – perguntei. – Sim. Nem todo mundo está satisfeito com isso. Vamos ter que aguentar um pouco de pressão – disse Perkins. – Preciso que você mantenha sua boca fechada sobre a coisa toda. Não se defenda para a imprensa, não fale sobre Ron Guidice nem nada. Apenas mantenha a cabeça baixa e volte a trabalhar. – Obrigado, Lou – falei. – Bom – disse ele. – Porque acho que estão esperando você lá embaixo. Agora temos que interrogar Elijah Creem.
capítulo 86
QUANDO DESCI PARA A SALA de interrogatório no quarto andar, eles já mantinham o Dr. Creem sozinho com o detetive Valente. Encontrei Huizenga, D’Auria e a detetive Jacobs sentados no fim do corredor, reunidos ao redor de um notebook para observar e ouvir. O delegado Perkins devia ter dito alguma coisa a Huizenga na reunião da manhã, porque ela apenas assentiu e abriu espaço para mim na mesa. – É bom ter você de volta – disse ela. – Shh! – fez D’Auria e bateu na tela à nossa frente. Eu podia sentir a tensão no grupo. Não tinha certeza de há quanto tempo Creem estivera ali, mas algo me dizia que as coisas não iam bem. O médico estava sentado em uma cadeira de alumínio. Sua linguagem corporal era relaxada, com as mãos nas laterais do corpo e as pernas abertas. Na pior das hipóteses, ela me parecia estudada. Arrogante até, como se ele estivesse gostando disso ou, pelo menos, quisesse que pensássemos assim. Valente puxou uma cadeira dobrável e se sentou com as costas na porta. A mesa de formato triangular no canto estava vazia e a única coisa colorida na sala era o botão vermelho na parede, usado para chamar reforços. – Dr. Creem, o senhor reconhece essa assinatura? – perguntou Valente. Ele acabara de tirar uma folha de uma pasta e se virava para mostrá-la a Creem. – É um dos meus formulários de internação – disse ele. – Sim. Para Darcy Vickers – retrucou Valente. – Estou vendo isso. Valente pegou o formulário de volta e o guardou. Queria que Creem olhasse para ele, não para a folha. – O procedimento mais recente com o senhor foi uma plástica no pescoço – disse ele. – Onze meses antes de ela ser assassinada. – Um lifting cervical, sim – confirmou Creem. – É uma infelicidade. Fiz alguns dos melhores trabalhos nela. Eu não sabia qual era o objetivo dele, mas era o mesmo jogo que tentara comigo enquanto brandia os tacos no quintal. A última coisa que Elijah Creem queria que nós pensássemos era que ele se importava com alguma coisa além de si mesmo. Valente se recostou e cruzou os braços. Dava para ver sua paciência diminuindo. – Há um monte de coincidências, o senhor não acha? – disse ele. – Sua ex-paciente... Seus vizinhos em Palm Beach... – Então, percebeu? – perguntou Creem, subitamente mais animado. – Por que você precisaria me fazer essa pergunta? A menos que você estivesse sem informações... Não sou detetive, mas até eu sei que vocês não processam com base em coincidências. Na minha mente, isso se parecia muito com um Sim, eu sou culpado, mas você não pode provar. Um dos aspectos mais importantes de um interrogatório é o que não é dito. E Creem parecia não estar dizendo muita coisa. Ele gostava do fato de nós sabermos o que ele fizera, não gostava? Desde que Creem ficasse do lado certo da linha muito tênue que ele estava cruzando. Era um jogo de sensações para ele: o assassinato propriamente dito, mas essa parte também. – Está bem – disse Valente. Ele se levantou e dobrou a cadeira contra a parede. – Vou fazer uma pergunta diferente: o senhor matou Darcy Vickers? – Não vou negar. Tive vontade de matá-la... – disse Creem. – Isso não é ilegal, é? – Matou Roger e Annette Wettig, na Flórida? – perguntou Valente. Creem pareceu considerar isso. – Mesma resposta. – Então, o senhor os matou – insistiu Valente. – É isso que estou ouvindo. Subitamente, Creem ficou de pé. Os dois ficaram a centímetros um do outro. Eu me levantei também, mas D’Auria esticou a mão sinalizando para eu esperar. – O que acha que está fazendo? – perguntou Valente. – Está vendo isso? – Creem ergueu as mãos entre eles. – Nada de algemas. Não é como da primeira vez que vocês vieram atrás de mim. Isso significa que não fui preso e que não tenho que estar aqui!
– Sente-se! – gritou Valente para ele. – Não. Não quero sentar – disse Creem. – Estou pronto para chamar meu advogado. Então pode me emprestar o seu celular ou me deixar sair deste cubículo ridículo. De um jeito ou de outro, a conversa acabou. A questão era que Creem conhecia o placar. Nós estávamos em cima dele, mas toda evidência que tínhamos era circunstancial. Tudo o que podíamos fazer agora era continuar arrancando as camadas até encontrarmos um pouco mais de sangue nas mãos do médico. Nesse meio-tempo, ele estava disposto a sair dali. E não havia nada que pudéssemos fazer para impedi-lo.
capítulo 87
ÀS SEIS DA TARDE, ELIJAH Creem voltara para casa e se preparava para sair à noite. Quando a campainha tocou, ele estava dando um nó na gravata-borboleta. A primeira vez em meses. Da janela do quarto, viu Josh parado do lado de fora. Parecia tão debilitado quanto um viciado. Era uma tentação ignorar a campainha, mas provavelmente não era uma boa ideia. Quando desceu para atender, Bergman passou por ele e, sem nem olhá-lo, foi direto para o bar. Seu blazer de linho estava amassado e manchado de suor. – Josh? – disse Creem, acompanhando-o para dentro de casa. As mãos de Bergman tremiam quando ele deixou cair dois cubos de gelo dentro de um copo e um pouco no carpete oriental personalizado. Ele pareceu não perceber. – Eles foram até a minha casa, Elijah... Fizeram todo tipo de perguntas. – Quem fez? – A polícia! Quem você acha que foi? – O que você disse a eles? – perguntou Creem. – Nada! Eu disse que queria falar com o meu maldito advogado. Bergman engoliu o primeiro drinque e serviu-se de outro. Provavelmente, ele tomara um ou dois comprimidos de calmante também. Não que parecesse estar ajudando. – Em primeiro lugar, acalme-se – disse Creem. – Acalmar? – Bergman virou-se para ele, com olhos frenéticos. – Tenho sorte de estar aqui. Se eu soubesse que estavam vindo... bem, tudo aconteceu rápido demais, e minha arma estava no cofre... – Opa, opa, opa – disse Creem. Ele foi até Josh e pôs as mãos nos ombros que tremiam. – Pode acreditar, sei como se sente. Passei a manhã com a polícia. – O quê? Por que não me avisou? – Foi a mesma coisa – disse Creem. – Não os vi chegar e, sinceramente, fiquei com medo de telefonar. Sei que estão de olho em mim. Bergman examinou o rosto dele, antes de pegar outra bebida. – Você consegue nos tirar do país? – perguntou ele. – Não – admitiu Creem. – Não mais. Agora é tarde para isso. Seu melhor amigo riu então, de maneira um pouco maníaca, e totalmente sem humor. – Bem, então é isso – disse ele. – Acabou o jogo. Acho que sabíamos que isso ia acontecer. Quando Josh tirou a pequena pistola preta e prateada da parte de trás do cinto, os olhos de Creem se arregalaram. A arma balançou na mão de Bergman, mas ele a pôs fora do alcance quando Creem tentou pegá-la. – Não ouse me convencer a não fazer isso! – disse Josh. – Não agora! – Não vou – falou Creem. – Minha arma está no andar de cima. E não estou com medo, Josh. – Então o que você está esperando? Bergman olhou para o saguão, onde a escadaria principal conduzia até o segundo andar. Lágrimas desciam pelas maçãs do seu rosto. – Preciso de mais uma noite – disse Creem para ele. – E... eu preciso de um favor. Isso valia mais uns dedos de uísque, aparentemente. Josh voltou ao bar e pousou a pistola para pegar o decantador de cristal. – Você é inacreditável – disse ele. – Um favor? Que tipo de favor? – De que tipo você acha? – insistiu Creem. – Você pode fazer isso como quiser. Atirar, cortar, não me importo. Só quero que seja feito. Depois disso, estaremos quites. – Por que não faz você mesmo? Creem apontou para a janela alta que dava para o gramado. – Você viu o carro parado do lado de fora? Estão em cima de mim, Josh. Se estivessem em cima de você, você saberia. Por favor... um último favor. É tudo o que peço.
Bergman chegou ao fundo do copo mais uma vez, antes de responder: – Está bem. Mas você tem que fazer algo para mim também. – O que é? – perguntou Creem. Olhando fixamente nos olhos dele, Bergman falou: – Quero que você me beije, Elijah. Creem deu uma gargalhada antes de entender que Josh estava falando sério. Sem dúvida, estava. Era a piada interna mais antiga que tinham, do tipo que cresce ao redor de um fundo de verdade. Josh tinha sido a fim dele desde a faculdade. E, evidentemente, essa ia ser a última chance de fazer alguma coisa a respeito do que sentia. – Não vou beijar você, Josh – falou Creem. – Tudo bem, então. Com um gesto rápido, Josh deixou o copo cair no carpete e ergueu a pistola para a própria boca aberta. – Não! Creem se lançou para a frente e bateu com a mão para afastar a arma. Josh tropeçou, chorando, e se apoiou contra o encosto de uma cadeira forrada da sala de jantar. Um dos dentes incisivos estava lascado e o lábio estava sangrando, mas ele não parecia perceber. – Você não pode me impedir, Elijah – disse ele. – Você é inacreditável, sabia disso? – disse Creem. – Jesus Cristo! Era óbvio que só restava uma coisa a fazer. Ele segurou Bergman pelos ombros mais uma vez e o ergueu. Então ele o puxou para perto. E até fez com que durasse um longo tempo. Foi meio nojento, meio estranho e tinha um forte bafo de bebida. Quando eles se afastaram, os olhos de Bergman estavam vermelhos e inchados, mas ele parara de chorar, de qualquer forma. A boca estava melada com o próprio sangue. – Eu sei que você não sentiu nada – falou. – Mas está tudo bem. Eu também sei que você me ama. – Amo, Josh. Mas, pelo amor de Deus, já chega de afetação. Vamos terminar isso com um pouco de dignidade. Como homens. Bergman sorriu, parecendo mais cansado do que nunca agora. – Como você quiser, Elijah. Só me diga o que fazer.
capítulo 88
AGORA QUE TÍNHAMOS UM SUSPEITO principal, Elijah Creem rapidamente se tornou alvo da vigilância do Departamento de Polícia Metropolitana. O comandante D’Auria distribuíra as tarefas e a minha era cobrir um turno na residência de Creem naquela noite, estivesse ele em casa ou não. Quando apareci para a troca de turno, às oito da noite, recebi a informação de que Creem saíra, vestindo um smoking, meia hora antes. Um serviço de aluguel de carros o deixara em uma residência no número 3.000 da Rua Q, uma das vizinhanças mais ricas de Georgetown. Aparentemente, um jantar para arrecadar fundos para combater o diabetes mellitus tipo 1. Isso fazia sentido. Eu realmente não via como Creem podia ser bem-vindo nos círculos sociais, a menos que comprasse sua entrada. Meu parceiro da noite era um detetive grandalhão do esquadrão do Segundo Distrito, Jerry Doyle. De acordo com Sampson, o apelido do cara era “O Boca” e não levei muito tempo para descobrir o porquê. Nos primeiros cinco minutos, ele já estava reclamando. – O que estamos fazendo? – perguntou ele. – Creem vai passar a noite fora! Enquanto ficamos sentados aqui, arranjando pedras nos rins, ele está se enturmando com os ricos, comendo caviar ou coisa parecida. É, tá certo, isso faz muito sentido. – Bem... – falei, mas foi tudo o que consegui dizer. – Sem mencionar que, se iam fazer isso, deveriam fazer direito – continuou Doyle. – A administração está criando todo tipo de equipe e hora extra, mas, se você quer saber, ainda não estamos cobrindo direito esse cara. Quero dizer, se eu fosse ele e quisesse me livrar de nós, tenho certeza de que conseguiria. – Isso não se discute – falei. – Não sei se já vi unidades de investigação tão dispersas antes. – E, por falar nisso, achei que estivesse fora do caso – prosseguiu Doyle. – Quero dizer, não estou julgando. Só estou surpreso por vê-lo aqui. Eu não estava interessado em discutir minha situação com “O Boca”, por isso, a maior parte do tempo só ouvi. Durante horas, para ser mais exato. Doyle não pareceu perceber a diferença. Finalmente, por volta de meia-noite, recebemos uma chamada no rádio avisando que Creem estava a caminho. Ele deixara a festa com uma mulher desconhecida e parecia estar se dirigindo para casa. – Vocês estão brincando comigo – disse Doyle. – Quero dizer, ele sabe que estamos em cima dele, certo? E vai trazer uma mulher para cá? – Acho que é tudo parte do show. Creem não fazia nada sem uma razão. Ele estava tentando esfregar a própria liberdade na nossa cara. Apenas as acusações de pornografia não bastavam para mandá-lo para a cadeia. Ele estava evidentemente se aproveitando da situação. Dez minutos depois, um sedan preto de luxo chegou ao quarteirão e estacionou na entrada de carros da casa de Creem. Um motorista de uniforme saiu de dentro dele, mas Creem estava um passo à sua frente. Ele se inclinou e ajudou a acompanhante a sair do veículo. Uma luminária na varanda da frente lançava luz suficiente para me indicar que a mulher era alta, linda e loura. Exatamente o tipo do Dr. Creem. Isso era tudo que eu podia aguentar. – O que você está fazendo? – perguntou Doyle quando estendi a mão na direção da maçaneta da porta. – O que eu puder fazer – respondi e saí do carro. Caminhei direto pelo gramado para alcançar o casal quando eles chegassem à trilha principal de tijolos da casa de Creem. – Com licença – gritei. A mulher se assustou e apertou o braço de Creem. – Está tudo bem – disse ele. – Este é um dos policiais sobre os quais eu estava contando. Sheila Bishop, gostaria que conhecesse o detetive Cross. Ele está aqui para ter certeza de que não vou fazê-la em pedacinhos. A mulher revirou os olhos e continuou com o braço no dele. Um par de sandálias de salto alto balançava em sua mão e ela usava um vestido comprido e brilhante que se acumulava ao redor dos pés descalços. – Lamento assustá-la, Sra. Bishop – falei –, mas não estou à vontade com o fato de a senhora entrar. Gostaria de lhe chamar um táxi, se não tiver problema. – E eu gostaria que o senhor cuidasse da própria vida – disse ela rispidamente. Creem apenas sorriu, como se estivesse deixando isso para nós dois.
– A senhora deveria saber a razão por que estamos aqui – respondi. – O Dr. Creem é o principal suspeito em uma série de assassinatos em Georgetown. Provavelmente ouviu falar neles. Eu sugiro fortemente... Mas a Sra. Bishop me interrompeu. – Há um cabideiro de mogno antigo na entrada da casa – disse ela, apontando para a porta principal. – Como? – No andar de cima, à esquerda, fica o quarto de casal. É onde Elijah e Miranda mantêm a coleção de cerâmica de Rookwood. Também há um Lucien Freud fantástico pendurado sobre a cama. Devo continuar? Eu havia pensado que a Sra. Bishop se constrangera com a minha presença, mas me enganara. A amante do Dr. Creem estava apenas irritada e ansiosa para entrar. Ele lançara a isca e eu a pegara, assim como ele queria. Inacreditável. – Não se preocupe, detetive – disse Creem. – É um erro compreensível. Mas não imagino que Sheila poderia estar mais segura com o senhor e seu parceiro aqui fora. Estou certo? Ele não esperou pela resposta e abriu a porta para que a Sra. Bishop entrasse na frente dele. Enquanto ela caminhava, Creem virou as costas para mim e falou baixo da varanda. – Se isso faz você se sentir melhor, vou deixar as cortinas abertas – falou com um sorriso. Depois, ele entrou, fechou a porta e apagou as luzes atrás de si.
capítulo 89
AS PRÓXIMAS HORAS FORAM UM tipo próprio de tortura. Eu me senti atingido por Creem e odiava o modo como ele continuava jogando. Para piorar as coisas, Doyle continuou com o monólogo durante todo o tempo. Ele sabia uma ou duas coisas sobre vigilância e tinha algumas opiniões válidas sobre como essas investigações deveriam se estruturar, mas a maior parte disso era encerrada com uma longa história sem objetivo após a outra. Por volta de três da manhã, um táxi amarelo parou em frente à casa. Um minuto depois, a iluminação da varanda acendeu e Creem acompanhou a Sra. Bishop ao lado de fora. Ela estava trazendo uma sacola de compras e vestia roupas casuais, que, suponho, vieram direto do closet da Sra. Creem. Nenhum deles se deu ao trabalho de olhar para nós até Creem colocá-la no táxi e vê-la partir. Então ele se virou, deu um tchauzinho simpático e voltou para dentro de casa. – Que babaca – disse Doyle. – Não entendo. Por que mulheres gostosas ficam com babacas ricos? Pra falar a verdade, é melhor deixar pra lá. Acabo de responder à minha pergunta. Mas ainda assim... Resumindo, eu não gosto de falar quando estou perdendo o jogo. Não podia suportar a ideia de mais cinco horas disso. – Doyle, não me leve a mal – falei –, mas tem alguma chance de nós terminarmos este turno com um pouco menos de conversa? Isso fez com que ele ficasse irritado e indiferente, mas se era o preço do silêncio, eu estava disposto a pagá-lo. Com um pouco de sorte, seria o nosso primeiro e último trabalho juntos. Depois disso, o silêncio se instalou dentro e fora do carro. Creem manteve as luzes acesas e ficou andando pela casa, fazendo o que quer que estivesse fazendo ali. Às cinco da manhã, ele recolheu os papéis na varanda da frente e voltou para o andar de cima, imagino. Depois disso, eu não o vi. Então, pouco depois do nascer do sol, o celular tocou. Não é raro que eu receba ligações a qualquer hora. Esperava ver no identificador de chamadas um número do departamento ou, talvez, de Bree. Mas não era nenhum deles. Era o número de Stephanie Gethman, a assistente social de Ava. Imediatamente soube que alguma coisa estava errada. – Stephanie? – Desculpe ligar tão cedo – disse ela. – Na verdade, queria ligar ontem à noite, mas... bem, é complicado. – Aconteceu alguma coisa com Ava – falei. Não era uma pergunta. Meu coração batia forte e eu já repassava as possibilidades em minha mente. Overdose? Fuga? Acidente? – Ela está desaparecida, Alex. – Desaparecida? – Ontem Ava não voltou para casa depois da escola e ninguém sabe onde ela está. Espero que não seja inapropriado, mas sei que você e Bree são policiais. E estava pensando que talvez... Eu só queria que Stephanie tivesse ligado antes. – Claro que faremos isso – respondi. – Vamos fazer isso logo. Conte-me tudo o que você sabe.
PARTE QUATRO RUINDO
capítulo 90
BREE E EU PASSAMOS A manhã em nossos carros, conversando por celular com todas as pessoas nas quais conseguíamos pensar para rastrear Ava. Comecei com os todos os contatos que conhecia dos departamentos que investigam casos envolvendo jovens no Primeiro, Terceiro e Sexto Distritos. Os que cobriam o abrigo de Ava, a escola, nossa casa e Seward Square, onde ela costumava passar o tempo. Eles têm uma base de dados centralizada de crianças desaparecidas, mas não há nada mais eficiente nesses casos que contactar as pessoas que trabalham nas ruas todos os dias. Para isso, você tem que ir de distrito em distrito. No fim das contas, a fotografia que Nessa tirara de nós no abrigo se mostrou mais valiosa do que eu imaginara. Enviei mensagens com ela para todos em quem consegui pensar. Bree começou na Howard House e entrevistou algumas das garotas ali, além de Sunita, a gerente de tranças que conhecemos no outro dia. Pelo que nos disseram, ninguém vira Ava desde o café da manhã do dia anterior. Ela andara quieta, mas isso não era novidade. Seu quarto estava intacto, o que significava que ela não tivera intenção de fugir. Depois disso, Bree foi até a Seward Square, caminhando pela vizinhança e procurando os antigos colegas de Ava. Pelo celular, ela me contou que conversara com dois deles: Patrice e K-Fly. Supostamente, ninguém via Ava há semanas, mas você não pode acreditar em tudo o que ouve de crianças de rua. Bree deu a cada um deles um cartão e prometeu cem pratas para quem pudesse ajudar a encontrá-la. Fui a todos os hospitais da região e, por fim, dirigi-me à principal Unidade de Narcóticos do Departamento de Polícia Metropolitana, na Rua 3. Eu estava começando a buscar novas ideias, mas pensei que, se alguém soubesse sobre traficantes específicos de OxyContin nas ruas que Ava frequentava, poderia ajudar. Quanto mais tempo levava, pior eu me sentia. Principalmente quando havia drogas no meio, o que eu supunha que fosse o caso. Opiáceos provavelmente são as substâncias menos controladas hoje em dia e os traficantes se aproveitam desse fato o tempo todo. Vendem lixo como se fosse OxyContin verdadeiro e não há meio de controlar a dosagem, muito menos o conteúdo. Não estava sendo superprotetor quando disse a Ava que jovens sofriam overdoses com muita frequência. No meio da tarde, estávamos de mãos completamente vazias. Era difícil não imaginar algumas das piores situações e me enlouquecia o fato de que Ava estava em alguma parte, enquanto nós repassávamos ideias sobre onde procurá-la. Eu sabia que tinha que me manter positivo, por causa de Nana e das crianças, além de mim. Mas a verdade era que eu tinha uma sensação horrível a esse respeito.
capítulo 91
– ALEX, ONDE VOCÊ SE METEU? Era a sargento Huizenga. Eu estava saindo da delegacia do Sexto Distrito de volta para a minha casa, quando atendi a ligação. – Desculpe, sargento. Emergência familiar. – É, bem, precisamos de você. Agora. – O que foi? – perguntei. – Sheila Bishop, a acompanhante do Dr. Creem na noite passada. Ela foi encontrada morta. Aquilo poderia ter me atingido com mais força, mas eu estava praticamente anestesiado. Ainda assim, era um tapa na cara. – Creem está preso? – perguntei. – Não – respondeu Huizenga sem rodeios. – O filho da puta está desaparecido. Isso me pegou. Na verdade, freei bem ali, na Rua D, e parei o carro. – Desaparecido? Como isso é possível? Estamos em cima dele desde ontem. – Saiu escondido pelos fundos da propriedade, ao que parece – disse ela. – Para o bosque e... Deus sabe para onde depois. A primeira coisa em que pensei foi em Jerry Doyle. Ele ficara repetindo que a vigilância de Creem era insuficiente. Não é que o cara estava certo? O local ficava ao lado de Glover Archbold Park. É um pedaço de terra que se estende por Cathedral Heights até o Potomac. Cobríramos a frente da casa de Creem, mas não havia meio de cobrirmos todo o trecho de campo aberto nos fundos. Dava para perceber isso agora. – Temos um alerta emitido para ele, mas, enquanto isso, quero você no apartamento de Sheila Bishop. Ela me deu um endereço no Logan Circle. Não era uma questão de sim ou não. Se eu quisesse continuar trabalhando, tinha que estar lá. Ainda assim, depois de terminar de falar com Huizenga, passei em casa. Foda-se o protocolo. Eu precisava ver a minha família antes. Na verdade, Bree me incentivou a voltar ao trabalho, quando a encontrei. Nana e ela estavam paradas ao lado do telefone fixo, aguardando notícias de Stephanie, enquanto Bree continuava no celular em contato com os distritos, o hospital e a Howard House. As crianças estavam com Tia e poderiam passar a noite lá, se fosse necessário. – Vá – falou ela. – Você está a apenas um telefonema, se algo acontecer. Sampson e Billie estão pela vizinhança procurando por ela. – Você está bem? – perguntei. – Não – respondeu Bree. – Mas e daí? Vá! Olhei para Nana, que estava com as mãos sob o queixo. Eu não tinha certeza se ela estava rezando ou apenas pensando, mas ela também não parecia bem. Dei um beijo de despedida nas duas e continuei andando até a porta dos fundos.
capítulo 92
O APARTAMENTO DE SHEILA BISHOP CONSISTIA na metade de uma enorme e bela casa geminada de tijolos e pedras, ao norte de Logan Circle. Além do costumeiro engarrafamento, tudo estava tranquilo quando cheguei. Não havia repórteres, pelo menos, o que era uma bênção. A maior parte da equipe de investigação já chegara ao local, junto com a unidade móvel da perícia forense. Os profissionais de casaco azul estavam por todos os lados, subindo e descendo as escadas, nos corredores e no quarto de casal, onde o corpo da Sra. Bishop havia sido descoberto por uma empregada algumas horas antes. Foi aí que eu encontrei Valente. Quando entrei, ele estava ajoelhado perto do corpo e olhava da Sra. Bishop para cada uma das portas e janelas. Ela fora baleada uma vez no peito e, segundo a posição do corpo, caíra diante das portas duplas abertas do closet. Eu não podia garantir, mas parecia que a Sra. Bishop estava usando as mesmas roupas que ela vestia quando deixou a casa do Dr. Creem. Uma sacola de roupa da Barneys estava sobre a cama, com o vestido de noite e os sapatos dentro dela. E, de acordo com Valente, a banheira na suíte estava cheia pela metade. – Parece que ela entrou em casa, deixou a sacola sobre a cama e começou a preparar um banho – falou ele. – Então ela voltou até aqui para tirar a roupa e pam. Ele estava esperando por ela no closet. Sem sinal de arrombamento. Creem poderia facilmente ter uma chave deste lugar. A maior parte do que Valente descobrira fazia sentido para mim... a não ser a parte sobre Creem. – Eu o vi colocá-la em um táxi às três da manhã – falei. – Ele não foi a lugar nenhum depois disso. Pelo menos, não antes das cinco. Não seria possível. – Acho que a questão então é a hora da morte – disse Valente. – Detetives? Errico e eu nos viramos e vimos Manny Lapore, um dos peritos, de pé na porta do banheiro. Ele estava segurando uma pinça de acrílico transparente com a impressão escura de uma mão. Mesmo olhando de relance, a impressão era grande demais para ter vindo da Sra. Bishop. – Encontrei esta no azulejo do banheiro – disse Lapore. – Tem algumas parciais que combinam na torneira quente e na fria também. Poderia significar alguma coisa. Meu primeiro pensamento foi que o assassino entrara para fechar a banheira e evitar uma inundação que chamaria a atenção. Meu segundo pensamento foi que parecia um erro bem descuidado, a menos que ele não se importasse. Ou que não estivesse raciocinando direito. Acompanhamos Lapore até o andar de baixo para ver em que dava essa digital, se é que resultaria em algo. Com o escâner de impressão digital automático portátil que estávamos usando agora, um processo que costumava levar horas, sem mencionar uma viagem ao laboratório, pode acontecer em qualquer parte e em questão de minutos. Eu nem tive tempo de falar com Bree antes de Lapore encontrar uma combinação e imprimir os resultados. – Aqui está o seu homem – disse ele, entregando-me o relatório. – O nome Joshua Bergman significa algo para você?
capítulo 93
FALEI COM BREE PELO CELULAR enquanto Valente e eu seguíamos até a Rua M, onde Josh Bergman morava. Não havia notícias de Ava. Estava tudo assustadoramente quieto nesse quesito. Mesmo assim, eu precisava me concentrar no caso. Pode levar uma hora ou mais para reunir a SWAT, mas esse era um tempo que nós não tínhamos. Em vez disso, enviamos uma equipe interna para a operação. Trinta minutos depois, já tínhamos um sargento e cinco oficiais com treinamento tático prontos para entrar em um estacionamento na Water Street, a um quarteirão do edifício de Bergman. Bergman tinha um loft bastante caro no último andar de um moinho do século XIX reformado da época em que Georgetown era industrial. De acordo com o nosso informante, que se encontrava no telhado atrás do dele, Bergman parecia estar sozinho em casa. Depois de uma rápida conversa com o comandante D’Auria, nos dividimos em duas vans brancas e demos a volta no quarteirão. Os motoristas pararam na frente da casa de Bergman, as portas se abriram e fizemos uma fila para entrar. Além dos seis oficiais táticos, a equipe de entrada incluía Valente, outros dois detetives da Divisão de Casos Especiais e eu, abrindo caminho pelos três lances de escada até o topo. Tínhamos oficiais ao redor do quarteirão, paramédicos de prontidão e D’Auria com uma pequena equipe em um centro de comando móvel na Water Street. A força tática de invasão estava armada com fuzis AR-15 e pistolas SIG P226. Tasers e spray de pimenta eram padrão também. Eu empunhava a minha Glock pela primeira vez desde que fora reintegrado. Todos nós usávamos coletes à prova de balas. Muito provavelmente ele estava armado e era perigoso. Talvez também estivesse um pouco desesperado. Ele poderia tentar disparar alguns tiros. Quando chegamos ao patamar do terceiro andar, o sargento à frente da fila balançou dois dedos para dois oficiais, que se aproximaram carregando o pesado aríete. Todos estavam com os fones de ouvido, mas o protocolo era para silenciar o rádio assim que entrássemos no edifício. Dentro, dava para ouvir Bergman falando. Parecia uma conversa telefônica. – Onde você está? Você disse que estaria aqui há uma hora – falou. Ele estava agitado e parecia caminhar. Quando voltou a falar, a voz foi sumindo na direção dos fundos do apartamento. – Não me importo! Apenas... Não, você que tem que ouvir. Apenas me tire daqui! Agora! Era isso. Dava para sentir a pulsação coletiva quando o sargento fez uma contagem regressiva com os dedos: três, dois, um. O estrondo do aríete destruindo a porta ressoou pela escada. Qualquer cobertura que tivéssemos agora se fora. – Unidades C e D, de prontidão – falou o sargento por rádio. – Ele pode tentar fugir. Foram necessários mais dois golpes antes da porta finalmente se separar da moldura e abrir com força. – Vai, vai, vai, vai, vai!
capítulo 94
VALENTE E EU NÃO ESPERAMOS uma confirmação e seguimos logo atrás da força tática. Em geral a equipe de investigação deve manter sua posição até limparem a área, mas nenhum de nós tinha paciência. A porta do apartamento abriu para um loft bem amplo e impecavelmente minimalista. Bergman não tinha quase nada. Havia um conjunto de mobília modular branco sobre um imenso tapete cinza, com uma única seringueira alta que ia até as vigas expostas no teto. Uma cozinha toda em aço inoxidável na lateral parecia nunca ter sido usada. Não havia sinal de Bergman na parte da frente do apartamento. A equipe percorreu rapidamente o imóvel, caminhando um ao lado do outro pelo loft, e então pelo longo corredor até os fundos do edifício. – Departamento de Polícia Metropolitana! Joshua Bergman? – chamei. – Fique parado onde está! Não se mova! No fim do corredor, vimos uma porta aberta e a luz passava através de algumas janelas com esquadrias, que iam do teto ao chão. Assim que o primeiro oficial chegou, ouvi Bergman começar a gritar. – Saiam de perto de mim! Para trás! – Senhor, abaixe a arma! – gritou um dos oficiais. – Mantenha as mãos onde possamos ver e deite-se no chão! – Vão para o inferno! Quando entrei no cômodo, Bergman estava sentado muito ereto, com as pernas cruzadas em uma cama king size. Suas costas estavam apoiadas na parede de tijolos de concreto pintados, com um iPhone branco em uma das mãos e um pequeno revólver na outra. Poderia facilmente ter sido a mesma arma que usara para matar os rapazes, além de Sheila Bishop. – Bergman, abaixe a arma! – falei. – Você não quer fazer isso. – Ah, não quero?! Ele estava visivelmente agitado, mas também, de certa forma, concentrado. E me olhava fixamente ao dizer isso. – Tente apenas se acalmar – pedi. – Vamos fazer uma coisa de cada vez. Baixei a minha arma e dei um passo na direção dele, mas somente até ele encostar o revólver no queixo. – Você acha que estou brincando? – insistiu ele. – Josh... não – falei. – Por favor. – Tarde demais – retrucou ele. Ergueu o celular até o ouvido e falou uma única palavra para quem quer que estivesse do outro lado da linha. – Adeus. Depois apertou o gatilho. Por mais horríveis que pudessem ser as coisas que Bergman tivesse feito para outras pessoas, era terrível vê-lo morrer assim. Fora um ato de puro desespero irracional. Talvez mesmo de insanidade. Sem mencionar que era uma bagunça de revirar o estômago. A arma de Bergman caíra sobre o edredom manchado de sangue e o celular estava no chão. Foi nisso que me concentrei, pois eu tinha certeza de que sabia com quem ele estivera falando, mas precisava confirmar. Fui direto até o celular, peguei-o e apertei a rediscagem. No primeiro toque, fui enviado direto para a caixa postal. “Olá.” Ouvi uma voz familiar. “Você ligou para o Dr. Elijah Creem. Não posso atender agora, mas deixe uma mensagem. Obrigado e tenha um ótimo dia.”
capítulo 95
NÃO ERA O FIM. Até agora, tínhamos apenas evidências circunstanciais contra Creem. Do ponto de vista jurídico, uma coisa é observar da rua alguém que está em casa. Outra coisa é entrar na casa. Os tribunais ficam nervosos com esse tipo de coisa. Por isso era irônico receber o empurrão de que precisávamos não de Creem, mas de Bergman, nosso suposto Assassino do Rio. O fato de que ele telefonara para o celular de Creem inúmeras vezes antes de se matar era suficiente para nos deixar entrar. Uma hora após a morte de Bergman, nós tínhamos autorização do tribunal para vasculhar a casa de Creem e um mandado de prisão para o próprio médico circulando por todo o litoral leste. Um alerta foi dado. Creem poderia estar disfarçado. Por isso, o mandado incluía a foto de sua carteira de motorista junto com a melhor imagem que tínhamos da máscara de idoso que ele estivera usando, mas não queríamos eliminar nenhuma possibilidade. Ele poderia facilmente ter mudado sua aparência agora. Meu palpite era que Creem estivera planejando essa saída desde o início. Isso explicaria o modo como ele se exibira para a polícia com tanta audácia. Sem mencionar as mortes de Sheila Bishop e Josh Bergman. Seria tudo apenas uma grande e arriscada cortina de fumaça para ele? Se fosse isso, havia funcionado. Tínhamos perdido de cinco a dez horas, dependendo do momento em que ele fugira de nós. Para revistar a casa em Wesley Heights, Valente e eu levamos uma equipe com três outros detetives, além de quatro integrantes da perícia forense. É um processo lento e metódico, algo complicado quando o suspeito é um fugitivo. Nós nos espalhamos pelos três andares quando chegamos ali para cobrir a maior área que pudéssemos. Eu comecei no andar de baixo, onde ficava o consultório de Creem. Havia também uma sala de televisão e uma garagem. No fim das contas, Creem nem tentava esconder algumas coisas. Nos primeiros minutos, encontrei um kit de maquiagem na gaveta de cima da escrivaninha. Havia pincéis diferentes, uma embalagem de cola à base de álcool e diversos itens que não reconheci. Talvez ele até estivesse trabalhando na última máscara bem ali na escrivaninha, enquanto eu ficava sentado no meio-fio, do lado de fora, observando a casa na noite anterior. Outra coisa que fiz enquanto revistava foi continuar a ligar para o número de Creem. Eu não esperava que ele atendesse, mas imaginei que valia a pena tentar. Ele era o tipo de cara que poderia gostar de se vingar dos policiais, se tivesse a oportunidade. Durante a primeira hora, obtive a mesma resposta repetidas vezes: direto na caixa postal. Provavelmente, ele desligara o telefone para evitar deixar um rastro atrás de si. Mas isso não significava que eu estivesse errado sobre Creem. Ele deve ter rastreado minhas chamadas de alguma forma, pois quando o celular tocou de novo, era ele que retornava as minhas ligações. Em seus termos, é claro.
capítulo 96
NÃO RECONHECI O NÚMERO NO identificador de chamadas quando eu o peguei. – Detetive Cross – atendi. – Sou eu – falou Creem. – O homem do momento. Bati o joelho na escrivaninha quando, de súbito, me levantei. Valente estava entrando no cômodo e estalei os dedos para chamar a atenção dele. – Dr. Creem – falei formalmente. – Estou um pouco surpreso por ter notícias suas. No mesmo instante, Valente pegou o próprio celular e começou a telefonar, provavelmente para rastreá-lo. – Queria perguntar sobre o Josh. – O que quer saber? – perguntei. – Ele está morto? Valente fez um gesto para que eu não me apressasse e conversasse aos poucos com ele. – Não vou conversar sobre isso com o senhor pelo telefone. Onde está? Vou encontrá-lo onde quiser. Sem outros policiais. Creem fez uma pausa, talvez apenas para sorrir para si mesmo. Ele estava gostando disso, sem dúvida. – E, por falar nisso, não se importe com este telefone – disse ele. – Comprei há uma hora e vou jogá-lo fora depois desta ligação. Provavelmente, ele estava usando um celular pré-pago ou algo assim. Esses eram os piores. Podem ser impossíveis de rastrear. Fiquei imaginando que o melhor modo de manter Creem falando seria alimentar o ego gigantesco dele. Era a única língua que ele parecia falar. – Sabe, tem uma tremenda caçada acontecendo agora – falei. – O senhor acabou nos enganando. – Tiveram sorte até agora? – perguntou ele. – Se tivéssemos... – Claro. Não estaríamos conversando – falou Creem. Eu também sabia que não deveria concordar com ele. Havia uma questão com Creem: ele não era burro. Se eu o perdesse agora, alguma coisa me dizia que seria o fim. – Eu adoraria saber como fez isso. Tem sido um caso fascinante. O senhor, Bergman, tudo. Suponho que vocês estavam juntos desde o começo. Desta vez, Creem suspirou, quase com nostalgia. – Desde a época do colégio, na verdade. Tomamos certo gosto pela coisa na época. – Como funcionava? – Ele gostava de garotos, eu gostava de garotas. E nós dois juntos lambíamos o prato. O orgulho calmo, controlado durante toda a história, me deu arrepios. Para onde quer que fosse, Creem não pararia de matar. – E agora? – perguntei. – Vai desaparecer e nunca mais ouviremos falar a seu respeito? – Esse é o plano. – Vai sair do país? – perguntei, mas Creem não respondeu. – Eu telefonei porque queria saber sobre o Josh – falou ele. – Se você não tem nada a dizer sobre isso, vou desligar. Quando olhei para Valente, ele apenas balançou a cabeça e passou os dedos pelos cabelos. Não estava indo bem. – O que quer saber? – perguntei. – Ele está morto ou não? – Está – respondi. De qualquer forma, em breve tudo estaria nos noticiários. – Onde foi? – perguntou Creem. – No loft, na Rua M – respondi, hesitante. – Não. Quero dizer... Foi na boca? – Debaixo do queixo. – Deus do Céu. Deve ter sido uma sujeira e tanto.
– Foi – retruquei. – É uma notícia ruim para o senhor? Afinal, ele era seu amigo. Creem fez nova pausa. Ouvi com atenção, procurando algum tipo de ruído de fundo que indicasse sua localização, mas não havia nada. – Alex, você é médico? – perguntou então. – Sou. Psicólogo – respondi. – Que interessante... – Falei para você sobre Josh. Vou ganhar alguma coisa em troca? Há outras vítimas sobre as quais deveríamos saber? Diga-me quantas vocês mataram ao longo dos anos. – Sinto muito – respondeu Creem –, mas nosso tempo acabou. Não é assim que vocês, psicólogos, dizem? – Espere um minuto. Tenho mais uma pergunta. – Foi bom enquanto durou, detetive, mas acho que nós dois já estamos indo bem além do nosso alcance. Eu não iria mais fundo nessa história, se fosse você. – Creem, espere! – falei, mas era tarde demais. Ele já havia desligado. Quando baixei o celular, pude ver na expressão de Valente que ele não chegara à parte alguma. Tivemos uma chance de pegar Creem e, mais uma vez, ele escorregara pelos nossos dedos. Talvez pela última vez.
capítulo 97
TENTEI LIGAR PARA O NOVO número de Creem, mas tudo o que consegui foi um aviso da caixa postal. Provavelmente ele destruíra o telefone assim que desligara. Voltei minha atenção para o consultório dele. Talvez ele tivesse deixado alguma pista sobre o local para onde planejara fugir. Creem era extremamente organizado. Talvez até com transtorno obsessivo-compulsivo. Tudo na casa era bem-estruturado e combinava: o porta-lápis e o grampeador ficavam em ângulos perfeitos sobre a escrivaninha. Era fácil ver aquilo como a manifestação exterior de um homem que precisava controlar todos os aspectos de seu universo: dos detalhes físicos mundanos ao modo repetitivo e hiperpreciso como ele abria cada uma das vítimas. Os assassinatos de Bergman também foram semelhantes uns aos outros, mas havia uma diferença. A cada morte, Bergman se tornara menos controlado. Cada um dos jovens garotos de programa fora esfaqueado e mutilado um pouco mais que o anterior. Retrospectivamente, Bergman era a bomba-relógio prestes a explodir e Creem era mais como um relógio suíço. Depois da escrivaninha, dei uma volta pelo consultório: abri gavetas, examinei arquivos e até levantei a mobília para olhar embaixo dela. Somente quando cheguei ao rack preto envernizado perto da porta encontrei alguma coisa fora do lugar. Ali, atrás do armário e de uma caixa com publicações da Associação Médica Americana organizadas em ordem cronológica, encontrei três molduras que combinavam. Parecia que haviam sido jogadas ali, em vez de colocadas de modo deliberado. Quando eu as retirei dali, vi que grande parte do vidro se fora e alguns estilhaços estavam no chão do armário. Todas as fotos eram da família de Creem. Uma delas diante de uma árvore de Natal imensa; uma fotografia de Miranda Creem, de pé, em uma praia em algum lugar; e uma moldura dupla dobrável com fotos de escola das duas filhas de Creem lado a lado. Todas as três mulheres: Miranda, Chloe e Justine Creem, eram bonitas, altas e louras. No mínimo, as duas garotas tinham uma semelhança muito maior com as vítimas de Creem que a mãe. E foi então que vi a inegável surpresa. Cada uma das fotos fora cortada com algum tipo de objeto pontiagudo de um lado a outro. Três vezes cada. Tudo em trios. Eram elas que ele estava tentando matar, não? Creem andara apagando de modo metódico e simbólico as três mulheres que o abandonaram após o escândalo. Se ele fosse direto a elas, teria sido muito suspeito. Por isso ele fizera o que estava a seu alcance. Fora atrás de um fornecimento teoricamente infinito de substitutas, talvez um meio de evitar ter realmente de matar a própria família. Ou talvez ele apenas estivesse caminhando para isso. Corri até o andar de cima para encontrar Valente. Ele estava no quarto de casal do segundo andar, examinando a escrivaninha da Sra. Creem. – Qual é o problema? – perguntou ele. – Onde está a família de Creem agora? – perguntei. – Rhode Island. Estavam na casa de parentes em Newport, da última vez que tive notícias. Por quê? Estendi uma das fotos mutiladas para Errico. – Porque não acho que ele tenha acabado – falei.
capítulo 98
– ÔNIBUS 53 PARTINDO PARA NOVA York, Bridgeport, Providence e Boston, o embarque estará aberto em dez minutos. Os passageiros podem se encaminhar para a área de embarque. Elijah Creem estava parado diante do espelho do banheiro em uma rodoviária no centro da Filadélfia, olhando seu reflexo e verificando se estava pronto para seguir viagem. Creem tocou a nuca, onde o látex estava colado com cola invisível à pele. Ele apalpou a peruca preta e ajeitou a roupa de baixo. Realmente era uma nova visão do que as mulheres passavam. A maquiagem não era um problema, mas a cinta modeladora era um martírio. Ainda assim, sua eficiência era incrível. Ele não estava olhando para si mesmo no espelho sujo e raiado. Era uma mulher vagamente infeliz, de idade avançada, com pele manchada e um pequeno mas pronunciado queixo duplo. Mesmo os dentes amarelados de fumante eram facetas individuais. Se Creem já tivera uma obra de arte, era isso. Até agora, ninguém reagira a ele. Nem o idoso gordo que vendera a passagem de ônibus na Union Station, nem o garoto que sentara ao lado dele. O disfarce o havia permitido sair de Washington sem ser percebido, mesmo que fosse em um maldito ônibus. Essa não seria a última indignidade da pequena viagem, mas com sorte tudo valeria a pena no fim. Rhode Island. Flórida. América do Sul. Essa era a ideia. Ele já arrumara passagem em um navio cargueiro de Trinidad que partia de Miami. Depois disso, bastava apenas pular para o continente. Assim que chegasse a Buenos Aires, poderia começar a tentar conhecer a comunidade de cirurgiões para ver de quem ele poderia se aproximar em segurança. Ele tinha 11 milhões em ouro, mantidos numa conta em um banco argentino. Dava para uma vida, se ele fosse cuidadoso. Enquanto estivesse nos Estados Unidos, Elijah Creem sabia muito bem como ficar invisível... e como se divertir. Quando a porta do banheiro se abriu, Creem deixou a mão se afastar do rosto. Ele tirou um batom cor de ameixa da bolsa, um dos que Miranda deixara, e se ocupou com ele diante do espelho. Ele mantinha o olhar à frente, observando o reflexo da jovem que passava atrás dele e entrava em um dos cubículos. Era loura e bonita, de maneira um pouco vulgar. Ela era perfeita? Dificilmente, mas fazia a palma da mão de Creem coçar. Quando guardou o batom na bolsa de novo, deixou os dedos roçarem no cabo de um bisturi com lâmina 18 enfiado em um dos bolsos laterais. Quando a calcinha amarela desceu e se juntou às sandálias perto do chão, ele lentamente deu meia-volta para fitar a fila de cubículos. E checou a entrada mais uma vez. Era tentador. Tentador demais. Havia muito tempo que ele não conseguia usar um instrumento de verdade. Ainda assim, a rodoviária estava lotada. Ele tinha que mudar de ônibus e, em breve, haveria muitas oportunidades para usar o bisturi. – Ei! – A voz da garota interrompeu seus pensamentos. – Tem gente! – Ah! – falou ele. – Desculpe! Sua voz afetada não soava como a voz de uma senhora, mas disfarçava muito bem. Ele podia ver a garota agora, apenas um pedacinho dela através da abertura, agachada e com a mão esticada para manter a porta do cubículo fechada entre eles. – Pode relaxar, querida – acrescentou ele. – Você está segura. Ela não esboçou nenhuma reação e, na verdade, por que faria isso? Ela não tinha como saber que, neste dia em particular, era a vadiazinha mais sortuda da Filadélfia. Quando Creem alcançou a porta do banheiro, virou-se mais uma vez. – Sabe, você devia pensar nessas bolsas debaixo dos seus olhos... – O quê? – retrucou a garota. Mas Creem já se fora.
capítulo 99
ALGUMAS HORAS DEPOIS, O DR. CREEM saiu de um táxi diante da casa em Newport. O motorista pegou a mala do porta-malas, chamando-o de senhora antes de partir. Até ali, tudo bem. O local estava escuro, mas ele trouxera uma das chaves de Miranda. Passou pela entrada e foi até o grande hall que conduzia ao centro da construção antiga. Era um daqueles típicos “chalés” de oito quartos e doze banheiros. Realmente era ridículo. Miranda era rica muito antes de os dois se conhecerem. Os pais dela, que atualmente moravam na Provença, tinham um tipo de fortuna infinita ligada a meio milhão de acres de cana-de-açúcar no Havaí e na Austrália. Ela podia não ter se casado com Creem pelo dinheiro, mas certamente estava se divorciando por causa dele. Os últimos seis meses a transformaram em uma vaca vingativa e ambiciosa. Ela e os dois pequenos clones. Não havia chance de preservar esses relacionamentos agora. Na verdade, faria exatamente o contrário. Creem evitou a nostalgia desta vez e foi direto para o “Quarto Azul”, no terceiro andar. Era o preferido de Miranda. Ele ficara nesse quarto algumas vezes. Chloe fora concebida ali, na cama do século XIX. Ele entrou no quarto, retirou a máscara, o vestido e a roupa de baixo horrorosa, dobrando-os com cuidado e colocando tudo sobre a cama. Um segundo par de máscaras foi enrolado em plástico bolha para dentro da mala, para a viagem de ônibus de dois dias até Miami. Ele pegou algumas de suas próprias roupas e se vestiu rapidamente. Também tirou três pares de algemas, um rolo de fita isolante e um frasco pequeno e fechado de hidrato de cloral. Da mesa de jogo no canto, Creem pegou uma das cadeiras e moveu-a até o espaço debaixo da janela e perto da cama. Tudo fora planejado. Miranda seria a última, mas ela teria o show de sua vida antes disso. A única coisa que ele mantinha no bolso era o bisturi. Ele o deslizou com cuidado para o bolso de trás e olhou para fora pela janela. Dali ele podia ver onde a entrada de seixos brancos para carros fazia a curva ao redor da casa até o pátio para estacionar. Ainda não havia sinal de Miranda nem das garotas, mas elas não iam demorar. Ficou mais alguns minutos parado ali, examinando os fundos da casa, até que uma coisa subitamente chamou a sua atenção. Um vulto assustador refletido no vidro. Ele se virou rapidamente a tempo de se deparar com o homem na porta do quarto. – Elijah Creem, o senhor precisa me acompanhar. Está preso. Creem ainda não conseguia distinguir o rosto, mas ele reconheceu o tom de voz grave do homem no mesmo instante. Era o seu novo melhor amigo, Alex Cross.
capítulo 100
MINHA APOSTA É QUE CREEM pensou que fugir de avião seria muito arriscado. Por isso, perdeu um bom tempo chegando à casa em Newport por terra. Eu, não. Fui de helicóptero, o de Ned Mahoney, para ser mais específico. Assim, Valente e eu chegamos a Rhode Island em duas horas e meia. Também havíamos entrado em contato com o gabinete do delegado do condado de Newport. A casa onde ficavam Miranda Creem e as filhas fora esvaziada muito antes do Dr. Creem sequer chegar lá. Graças ao meu contato anterior com ele, minha formação em psicologia e o desastre do suicídio de Josh Bergman, ficara decidido que eu abordaria Creem primeiro. Eu tinha um rádio preso ao meu cinto, com um microfone de apoio no punho. Uma equipe completa da polícia e dos detetives locais estava em posição agora, do lado de fora. Bastava uma palavra para obter ajuda, se eu precisasse. Quando acendi a luz do quarto, parecia que Creem tinha algum tipo de ferimento ao redor do rosto. Depois, percebi que estava olhando para os resquícios de látex e cola da máscara que ele estivera usando para chegar ali. – Vou ser sincero – disse Creem. – Estou surpreso em ver você. Fiz um gesto com a Glock na mão. – Ajoelhe-se e coloque as mãos atrás da cabeça. Creem não se moveu. Dava para vê-lo se recompondo e olhando ao redor do quarto. Mesmo agora, ele estava procurando uma saída. – Tenho todo o direito de estar aqui – falou ele, reassumindo a arrogância habitual. – Entrei com uma chave. É você quem está invadindo. Estou aqui para ver minha mulher. – Aposto que está. Ia matar suas filhas também, Creem? Ele sorriu ao ouvir isso, de um modo que eu nunca vira antes. Era puro Elijah Creem, caminhando na linha tênue entre confiança e sociopatia. – É tipo um déjà vu, não é? – perguntou ele. – Na noite em que nos encontramos em Georgetown, eu ofereci 20 mil dólares, 30 mil, talvez, em troca de uma pequena vantagem pela janela do quarto. – Lembro que não teve sucesso – retruquei. – Não. Não tive, não é? – falou ele e acenou com a cabeça algumas vezes, como se estivesse finalmente chegando à conclusão lógica. Em vez disso, porém, Creem fez uma pausa. Pôs as mãos nas costas de uma cadeira de madeira alta e a arremessou direto na janela do quarto. Isso causou uma chuva de vidro, enquanto ele subia no peitoril para pular. Fui atrás dele, quase tarde demais para agarrá-lo, mas não tão tarde assim. Minha mão se fechou nas costas da camisa assim que ele pulou. Ela repuxou e rasgou, mas então ele fez um movimento brusco para trás. Seu corpo quicou com força na casa. Por um breve momento, perdi o equilíbrio e quase caí da janela com ele. Se tivesse havido algum vidro quebrado no peitoril nesse momento, teria entrado direto no meu estômago. – Me dê sua mão! – gritei, enquanto ele lutava, balançando no fim do meu braço. Uma fileira de policiais se aproximava da casa agora e eu conseguia ouvir outros vindo em direção ao quarto. – Solte-me! – gritou Creem. Quando ele tentou soltar a camisa, eu me inclinei e segurei seu braço para puxá-lo de volta. Foi quando ele tirou o bisturi que eu nem sequer sabia que ele tinha. Creem o ergueu de uma vez e enfiou a ponta nas costas da minha mão. Uma dor nauseante percorreu meu braço. Gritei e soltei-o sem pensar. Foi um reflexo, mais do que qualquer coisa. Gotas de sangue da minha mão o seguiram até o chão, três andares abaixo. Creem girou os braços ao cair. Suas pernas teriam quebrado se ele caísse na vertical, mas, em vez disso, ele caiu de costas, acertando o pátio abaixo de nós com uma pancada nauseante. Alguns oficiais, incluindo Valente, fizeram um cerco ao redor dele com as armas em punho. – Não se mova! – gritou um deles. – Fique bem onde está! Mas era desnecessário dizer aquilo. Primeiro, pensei que Creem estivesse morto. Depois, ouvi um leve gemido. Ele virou a cabeça alguns centímetros para o lado e resmungou mais uma vez, mas foi isso. A carreira do Dr. Creem estava encerrada.
Finalmente.
capítulo 101
ASSIM QUE O PARAMÉDICO ENFAIXOU minha mão, deixei Valente em Rhode Island e voei de volta ao distrito de Columbia no meio da noite. Errico me telefonou assim que eu desembarquei em Quantico. No fim das contas, Elijah Creem quebrara duas vértebras na queda. Ele também fizera uma confissão completa antes de ser levado para o hospital de Newport. Além de ir para a cadeia para o resto da vida, ele passaria esse tempo em uma cadeira de rodas. Não posso dizer que lamentava muito. Eu veria Creem novamente no julgamento, mas por enquanto tinha outras coisas em mente. Na verdade, apenas uma: Ava. Fui direto ao escritório sem passar em casa. O melhor meio de voltar para a minha família era fazer o meu relatório na calada da noite, antes que o escritório começasse a ficar cheio. A quantidade de trabalho administrativo em um caso assim é torturante. O fardo principal recairia sobre Valente, além da detetive Jacobs, por causa do Assassino do Rio. Cada arquivo teria que passar por não menos que sete níveis de revisão do departamento antes que recebesse a aprovação final. Já vi o processo levar mais de seis meses. É um dos motivos que me impedem de tentar ir além no Departamento de Polícia Metropolitana. Em certo nível, você acaba passando todo o seu tempo com a burocracia e a política em vez de em campo, onde o verdadeiro trabalho é necessário. Às sete da manhã, um relatório completo das últimas 24 horas estava pronto para a sargento Huizenga. Ela já tinha conversado com Valente e seu humor não estava nada bom, como sempre. Eu estava em apuros, considerando que pretendia entregar a papelada e pedir alguns dias de folga. – Sei que acabei de voltar, mas Ava está desaparecida há três dias... Huizenga foi milagrosamente compreensiva. Ela me dispensou de seu gabinete abanando o arquivo que eu acabara de entregar. – Vá antes que eu mude de ideia. Encontre a sua garota e volte para cá assim que puder. Mas deixe o celular ligado! Havia mais de uma dezena de ligações naquele dia, com meio milhão de perguntas sobre Creem e Bergman, mas ao menos isso me deu o espaço que eu precisava para colocar minhas prioridades de volta em ordem. Minha família.
capítulo 102
VOLTEI PARA CASA A TEMPO de ver as crianças antes da escola. Se eu estava cansado? Cansado não era realmente a palavra para me definir. A certa altura, o que sentia ultrapassava isso. No entanto, eu ia tentar resolver toda a história e dormir quando desse. – Quem é você mesmo? – perguntou Jannie e sorriu para mim por cima dos ovos quando apareci depois de uma ducha rápida. – Sou o homem invisível – respondi. – Prazer em conhecê-lo – respondeu Ali. – Não tem graça – disse Nana. – E se você não percebeu, ainda tem uma emergência familiar nas mãos. – É por isso que estou aqui, Nana – retruquei. Eu dei um abraço apertado nela e roubei um pedaço de seu bacon incrivelmente fino. – Vou deixar as crianças na escola, depois vou sair para procurar por Ava de novo. O dia inteiro, se for preciso. Ninguém comentou sobre Elijah Creem ou Josh Bergman. Bree já sabia e ninguém mais na família precisava ficar se preocupando com tudo isso. Nós fizemos questão de deixar a TV desligada. – Eu queria marcar uma consulta com a Dra. Finaly – falou Nana, assim que as crianças foram vestir os casacos. – Engraçado você dizer isso... – comentei com ela. – Tive a mesma ideia. Adele Finaly é a psiquiatra que me atende. Ela sempre está à disposição quando preciso de uma opinião objetiva e inteligente sobre a vida, o trabalho, a família e, sobretudo, sobre o hábito que essas três coisas têm de colidir umas com as outras. Na primeira chance que eu tivesse, me deitaria no divã de Adele. Mas hoje não. Assim que deixei Ali e Jannie na escola, dei a volta para conversar com cada um dos guardas de rua e detetives com quem eu estive trabalhando desde que Ava desapareceu. Era, sobretudo, um exercício frustrante. Não havia novidades em parte alguma. Disse a todos a mesma coisa. Se eles vissem alguém parecido com Ava, deveriam segurá-la e me telefonar imediatamente. Eu viria e assumiria a partir daí. As ligações mais difíceis foram as que fiz para a Unidade de Prostituição. Gostando ou não, havia uma possibilidade muito desagradável e inevitável em tudo isso. Com o vício em drogas, sem dinheiro e com o histórico familiar de Ava, ela poderia muito bem ter começado a se prostituir. Eu ficava deprimido sempre que pensava nisso. A garota tinha 14 anos! Ninguém melhor do que eu sabia que a vida nas ruas podia ser muito sombria. Mas era Ava. A nossa Ava. E nada que eu fizesse parecia me levar mais perto de encontrá-la. Eu estava começando a me perguntar se algo levaria.
capítulo 103
FORAM DOIS DIAS INTEIROS DE busca até finalmente termos notícias de Ava. Eu estava em casa havia algumas horas naquela quarta-feira, simplesmente passando o tempo com a família antes de voltar a sair. Andara alternando dia e noite, percorrendo a longa lista de ruas onde eu achava que Ava poderia aparecer. Quando a campainha tocou, eu me levantei do sofá com as crianças e fui atender. Cada toque da campainha esses dias trazia uma sensação mista de esperança e temor. Talvez esse fosse o toque que nos daria algum tipo de resposta. E, de fato, era. Quando abri a porta da frente, Sampson estava parado na varanda. Não demorei muito para saber o que ele queria dizer. Entre o fato de que ele não tinha vindo pela porta dos fundos, como sempre, e as lágrimas em seus olhos, soube no mesmo instante por que ele estava ali. Senti como se uma cratera tivesse se aberto no meu peito. Meu maxilar ficou tenso e uma parte de mim começou a tentar inventar uma conclusão diferente. Talvez eu estivesse interpretando Sampson errado, embora soubesse que não era o caso. Ele não teve que dizer nada. Dei um passo para fora e fechei a porta atrás de mim. – Jesus Cristo, John – falei, engasgando. Ele me abraçou com força. – Sinto muito, Alex. Lamento. Eu já passara por isso antes. Perdera pessoas que amava e tivera que dar a outras pessoas as piores notícias que elas poderiam ter. Mas nada facilita isso. Ava se fora. Eu tinha certeza disso. Mas, mesmo assim, não parecia real. – Onde? – perguntei. – Em um edifício residencial abandonado próximo ao rio. Viciados dormem ali o tempo todo. Era uma... Jesus Cristo, Alex, era uma cena terrível. As lágrimas escorriam pelo rosto dele, mesmo quando a raiva começava a fluir. Sampson estava passando por um momento difícil com essa história toda. – Apenas me diga uma coisa – pedi. – Do que mais você sabe? John respirou fundo bem devagar. – O corpo foi queimado. Não dá para identificar. Não sei por quê. Talvez ela tenha descoberto alguma coisa e alguém quisesse calá-la. Talvez alguém a tenha matado por acidente e tentou acobertar. – Mas era ela? – insisti. – Com certeza? – Era uma jovem. Afro-americana. Com a altura e o corpo de Ava. E, Alex, encontraram isso no corpo. Abri um envelope e despejei os fragmentos do camafeu de Nana na minha mão. As duas metades haviam se separado da corrente e as fotos ou foram queimadas ou perdidas. Mas, sem dúvida, era o colar que Nana Mama dera a Ava no dia que ela foi embora. Eu podia distinguir as iniciais R. C. gravadas na parte de trás, de Regina Cross. Subitamente, a porta da frente se abriu e Nana apareceu com Bree. – O que está acontecendo aqui? – perguntou Nana. Ela parou no mesmo segundo em que me virei para olhar para ela. Foi da mesma maneira que eu vira a verdade na expressão de John. Seus olhos desceram para os fragmentos do medalhão na minha mão. Eu estiquei o braço e a puxei para perto de mim. – Não! – gritou ela, enrijecendo-se a princípio, mas então amoleceu os joelhos bem rápido. – Não. Não. Não. Não a nossa Srta. Ava. Ai, Deus. Por favor, não! – Ela se foi, Nana – falei. – Lamento muito. Bree estava chorando também e eu podia ver as crianças de pé atrás dela, de olhos arregalados e observando. Só de ver seus rostos e saber o que eu precisava revelar, sentia ondas de tristeza. Minha mente estava em outra parte, de certa forma. Sem dizer uma palavra, todos voltamos para dentro, juntos, como uma família. Sampson nem sequer entrou. Não houve despedida. Ele nos deixou sentir a perda e tentar explicar para Jannie e Ali como uma coisa dessas poderia acontecer. Como poderia ser verdade.
capítulo 104
NÃO ACREDITO EM UM DEUS vingativo, mas vou dizer que me senti mais confuso do que qualquer outra coisa naquelas primeiras horas. Como algo assim poderia acontecer? E por quê? Sobretudo, por quê? Será que eu fiz algo para merecer isso? A minha família merecia? E Ava? Não é o tipo de pergunta que eu faça com muita frequência, mas eu tinha que enfrentar o fato de que qualquer escolha que eu tivesse feito me trouxera a este ponto, de modo direto ou indireto. Agora eu nunca saberia se poderia ter feito algo mais para impedir isso. Jannie e Ali receberam as notícias de modo muito diferente. Depois que nos sentamos, conversamos e choramos juntos, Jannie não resistiu. Disse que queria ficar sozinha e pensar em seu quarto e nós deixamos que ela fosse. Ali ficou imóvel. Acho que ele tinha idade suficiente para entender o que acontecera, mas era jovem demais para já ter sentido algo assim antes. Li para ele na hora de dormir por um longo tempo e segurei sua mão depois de apagar a luz, como ele me pediu. – Até eu dormir – falou. – Está bem, pai? – Vou fazer isso, amigão – falei e fiquei ali até ele adormecer lentamente. Eu não tinha certeza de qual dos meus filhos estava fazendo meu coração doer mais. Todos eles, suponho. Inclusive Ava. Quando falamos com Damon no telefone, ele pediu para voltar para casa na manhã seguinte, no primeiro ônibus. Eu disse que ele não tinha que fazer isso se não quisesse, mas fiquei feliz por ele insistir. Senti que era a coisa certa, estarmos todos juntos. Nana foi para a cama mais cedo, mas Bree e eu ficamos sentados no sótão até tarde, conversando durante horas. Parte de mim gostaria de dizer que eu não estava pensando em investigar o caso, mas eu estava. Bree também. Estávamos tão envolvidos na procura por Ava que era como se nós já tivéssemos um plano de onde começar. – Não importa quem tenha vendido a ela ou quem fez isso... Nós vamos descobrir – falou Bree. – E eles vão pagar, Alex. Pode ficar certo disso. Bree era a mais forte de todos nós. De certa forma, ela era a base de nossa família que nem mesmo sabíamos que estava perdida até ela aparecer. Eu a amo ainda mais sempre que penso nisso. – Obrigado – falei. – Obrigado por ser minha mulher. E por entrar na minha vida exatamente quando eu mais precisava. Não sei se poderia ter... – Claro que poderia – interrompeu Bree. – Você já fez isso, durante anos. Mas fico feliz por estar aqui. Eu amo você, Alex. E amo esta família. Isso nunca vai mudar. Quando finalmente fomos para a cama, fizemos amor e choramos mais um pouco nos braços um do outro antes de adormecermos.
capítulo 105
BREE E EU NOS REVEZAMOS no dia seguinte. Eu fiquei em casa com Nana e as crianças durante a manhã enquanto ela saía e conversava com todas as pessoas que conseguia na escola de Ava. Quando voltou, almoçamos juntos, embora ninguém estivesse com muita fome. Então foi a minha vez de sair à tarde. Tecnicamente, eu estava de luto e de licença. Deixei minha arma em casa, mas levei o distintivo. Uma das primeiras paradas foi a Howard House. Eu estivera em contato com Sunita, a administradora, e ela havia concordado em fazer uma reunião com todos os garotos e garotas depois da escola. Quando cheguei lá, os onze jovens esperavam na sala de estar. Eles sabiam que Ava morrera e dava para ver que muitos deles tinham chorado. No entanto, seus semblantes pareciam impassíveis. Isso me lembrou Ava, o modo como pareciam tão decididos a mostrar o mínimo de emoção possível. – Sei que vocês já responderam a algumas dessas perguntas – falei para o grupo. – Mas quero que todos pensem bem. Alguém se lembra de mais alguma coisa sobre o dia em que Ava desapareceu? Alguma coisa na qual não tinham pensado antes ou que pensaram desde então? O que obtive em resposta foi uma sala em silêncio. Parte disso tinha a ver com o fato de que nós já havíamos falado sobre isso antes, mas não era tudo. Há uma regra das ruas, de onde um monte dessas crianças vem. A linha entre ajudar e dedurar é tênue. A aposta mais segura é simplesmente manter a boca fechada, principalmente se tiver mais alguém ouvindo. Pode parecer apatia, mas eu sabia que era mais complicado que isso. Fiz mais algumas perguntas, mas realmente não cheguei a lugar nenhum até passar para as entrevistas individuais. Sunita me deixou usar seu escritório para ter privacidade e ela trouxe as garotas, uma por uma. A colega de quarto de Ava, Nessa, foi a quinta garota com quem conversei. Eu pude perceber que ela estivera chorando de novo, embora tentasse disfarçar. Eu também pude ver que ela estava escondendo alguma coisa no instante em que passou pela porta. Sentamos do mesmo lado junto à escrivaninha de Sunita, em duas cadeiras dobráveis. Nessa mantinha os pés esticados no espaço entre nós e olhava mais para o celular do que para mim. – Você parece nervosa. Ela não ergueu os olhos até começar a falar. – Eu não estava escondendo nada antes, tá? – disse ela. – Eu meio que perguntei a você sobre isso, quando veio aqui da primeira vez. Tentei me lembrar de qualquer coisa do dia em que nos conhecemos, na varanda, do lado de fora. Ela havia tirado nossa foto. Eu só me lembrava disso. – Você perguntou sobre o quê? – falei. – Bem, não perguntei exatamente – respondeu Nessa. – Anda, Nessa. Bota pra fora. Do que estamos falando aqui? – Do namorado da Ava, ok? Ela estava sempre dizendo que ele não era nada para ela, mas, se você quer saber, acho que ela só estava com vergonha. O namorado era velho. – Quem é ele? – perguntei. – Como ela o conheceu? Nessa deu de ombros e fez beicinho. – Ela só falou que o nome dele era Russell. Era com ele que ela conseguia as drogas. O nome me atingiu como uma descarga elétrica súbita. Poderia ser o Russell? O mesmo namorado fantasma que nós estávamos procurando no caso de Elizabeth Reilly? O sequestrador de Rebecca Reilly? Ou era apenas uma horrível coincidência? Tentei manter a calma enquanto insistia, mas não foi fácil. Minha mente não parava. – Nessa, o que você pode me dizer sobre ele? – perguntei. – Você sabe como ele era? Ou talvez o tipo de carro que dirigia? – Era um jipe – disse ela imediatamente. – Ele era branco também, mas Ava não se importava. Acho que ela gostava do jipe... e do que ele dava a ela, se é que você me entende. Sem maldade. Fiquei enjoado. Ainda não era possível saber se era o mesmo homem, mas as semelhanças estavam lá... Elizabeth Reilly, Amanda Simms... Todas essas garotas de algum modo desligadas das famílias.
Jovens. Vulneráveis. Sozinhas. A ideia de que esse monstro enchera Ava de drogas, promessas, sexo... Dava vontade de pedir licença e vomitar no banheiro. – Você disse que ele era branco – continuei. – O que mais? Ela sentou-se um pouco mais ereta e começou a mexer no celular. – Tenho uma foto. Ela passou algumas dezenas de imagens antes de encontrar a que estava procurando e então estendeu o aparelho para me mostrar. – Olha – disse ela. – Eu costumava vê-la na Eastern, conversando com ele no jipe, sabe? Ava nem sabia que eu tirei essa foto, mas quando mostrei, ela parou de falar bobagens sobre não ter namorado. A fotografia fora tirada, talvez, de meio quarteirão de distância. Ava estava de costas para a câmera, mas eu reconheci facilmente o vulto esguio e alto, e as botas de camurça que ela costumava usar quase que constantemente desde que Bree as comprara para ela. Mas isso não era tudo. Também reconheci o jipe da foto e o homem alto e de barba ao volante. Era Ron Guidice.
capítulo 106
NÃO SEI SE POSSO EXPLICAR o que me aconteceu em seguida. Ou se eu mesmo compreendo totalmente. Quando saí da Howard House, era como se não houvesse palavras para nada do que eu sentia. Não havia nada dentro de mim, além de pura raiva em ebulição. Isso e a imagem do celular de Nessa ardendo na minha mente, tão clara quanto todo o restante. Eu mal me lembro de dirigir. Quando entrei em casa, Bree estava lá, com Sampson e Billie à mesa da cozinha. A minha aparência devia ser horrível porque todos pararam o que estavam fazendo e me fitaram. – Alex? – chamou Bree. – O que foi? Parei na cabeceira da mesa, apoiando-me com ambas as mãos nas costas de uma cadeira. – Onde estão as crianças? – perguntei. – Saíram com Nana. Billie queria sucrilhos. Por quê? O que aconteceu? – Foi Guidice – falei. E já estava saindo do cômodo. – Espere... Guidice o quê? – insistiu Bree, me acompanhando. – O que Guidice fez? Subi os degraus de dois em dois, enquanto tentava explicar a Bree o que Nessa me mostrara. As palavras praticamente ficaram presas na minha garganta. Era difícil me concentrar em alguma coisa, a não ser no que eu viera fazer aqui. – Você avisou a alguém? – perguntou Bree enquanto íamos até o quarto. – Não. Vou encontrá-lo sozinho. Abri a porta do closet e comecei a girar a combinação do cofre. Não havia teclado eletrônico ali: 23 direita, 39 esquerda, 9 direita. Peguei a Glock e a guardei no casaco. Não me importei com o coldre. – Espere aí – falou Bree. Ela pegou a própria arma do cofre antes de fechar a porta. – Se você vai prendê-lo, eu vou também. – Não vou prendê-lo. Ela segurou meu braço e me olhou nos olhos. Se eu estivesse controlado, veria o suficiente para interromper o que estava fazendo e pegar o telefone. Ou mesmo enviar Sampson em meu lugar. Mas não estava. A única coisa da qual tinha certeza nesse momento era que ninguém merecia morrer mais que Ron Guidice. Antes que Bree pudesse me impedir, eu já estava fora do quarto, descendo as escadas, dirigindo-me à porta dos fundos. Talvez eu encontrasse algum juízo ou uma razão para não fazer aquilo na hora que encontrasse Guidice. Talvez, não. Eu realmente não sabia.
capítulo 107
RON GUIDICE TIROU OS FONES de ouvido, pegou a Beretta 9mm de debaixo do banco do motorista e saiu do jipe. O fim da história. No instante que ouviu Alex mencionar seu nome, Guidice soube. A operação estava prestes a acabar. Erguendo os olhos para a Rua 5, onde estacionara, Ron podia ver a porta da frente na casa de Alex. Ainda não havia sinal dele, mas não demoraria muito agora. Seu carro estava bem ali, no meio-fio. Ele o deixara totalmente aberto ao entrar, momentos antes. Guidice mantinha a Beretta enfiada na manga do casaco e fora da vista. Havia algumas pessoas na rua. Um homem aparando o jardim. Uma mulher com duas crianças pequenas andando de velocípede na calçada. Nada chamava atenção para ele ainda. Quando isso acontecesse, seria em campo aberto e ele precisava de certo elemento surpresa. Não era a hora, o local nem o método que Guidice teria escolhido, mas isso não tinha importância agora. Ele se tornara insaciável. Permitira-se acompanhar o sofrimento de Alex por um dia a mais, apenas o suficiente para que ele ligasse os últimos pontos. Mas talvez isso fosse bom. Na verdade, talvez fosse perfeito. Alex ia levar uma bala na cabeça, bem ali na rua, na frente do lar que se esforçara tanto para manter seguro. E quando isso acontecer, o modelo de perfeição do Departamento de Polícia Metropolitana mostrará a própria incompetência. Pode vir, Alex Cross, pensou Guidice.
capítulo 108
– NÃO FAÇA ISSO, ALEX! Foi somente quando Bree me seguiu até a varanda dos fundos que eu me lembrei que havia entrado pela frente da casa. Normalmente eu dava a volta e estacionava em nossa garagem, mas não havia nada normal no dia de hoje. Quando eu me virei, ela estava bem ali. – Apenas trinta segundos – disse ela. – É o tempo que estou pedindo. Vou pedir a Sampson para comunicar isso. E então vou com você. Por mim, Alex. Acho que ela estava tentando se agarrar a qualquer coisa. Talvez acreditasse que podia me convencer dentro do carro. – Está bem – falei. – Vou esperar você ali na frente. – Ótimo – disse ela e olhou para mim mais uma vez antes de correr para dentro de casa. – Volto já. Na verdade, eu não tinha intenção nenhuma de esperar por Bree. Não importa o que fosse acontecer com Guidice, seríamos apenas ele e eu. Não fazia sentido envolvê-la nisso. Ou a qualquer outra pessoa, por sinal. Caminhei pela passagem estreita entre a nossa casa e a do vizinho, passei pelo portão trancado e fui até a Rua 5, onde eu estacionara. Não olhei para trás nem uma vez. Apenas entrei no carro, liguei o motor e me afastei do meio-fio. Na verdade, se não tivesse lançado um olhar rápido ao retrovisor para ver os carros que se aproximavam, nunca teria visto Guidice. Ele estava parado, bem no meio da rua. Ergueu o braço na minha direção assim que eu o vi. Eu realmente não vi a arma, mas reconheci a postura imediatamente. No momento em que desviei e virei o carro para a esquerda, o vidro traseiro explodiu numa chuva de cacos. Quando voltei a olhar, Guidice já estava se movendo e vinha na minha direção, com a arma ainda em punho. Com o coração batendo forte, girei no assento, abri a porta do lado do carona e me joguei na rua. Eu pegara a Glock agora e lançava um olhar acima da beirada da porta para ver se ele estava diminuindo a distância entre nós. Dava para ver que ele fora treinado. Ele não encheu o carro com balas enquanto se aproximava. Estava esperando para atirar sem obstáculos. E eu também. Algumas pessoas estavam gritando pelo quarteirão e procurando se abrigar em algum lugar. A essa distância, eu não poderia me dar ao luxo de uma bala perdida. Se eu o errasse, poderia acertar mais alguém. Guidice não tinha o mesmo problema. Assim que me viu na porta do carona, tentou novamente, com dois disparos rápidos desta vez. Eu me abaixei e ouvi os tiros acertarem a lateral do carro com duas pancadas secas. Eu ainda podia ouvir algumas pessoas correndo pela calçada atrás de mim também. A situação só iria piorar, se eu não fizesse alguma coisa. Confiando no meu instinto, fiquei perto do chão e dei a volta pela frente do carro. Talvez, apenas talvez, eu pudesse pegar Guidice desprevenido quando ele se aproximasse, perto demais para errar. Quando cheguei à frente do carro, tentei lançar mais um olhar rápido. Ele estava bem ali, a menos de 10 metros e correndo. Era isso. Um de nós ia cair. Eu me ergui rapidamente, segurando a Glock com as duas mãos e pronto para atirar, mas não cheguei a isso. Assim que fiz contato visual com Guidice, outro tiro disparou a distância. Guidice cambaleou e caiu, com o rosto no asfalto e os braços estendidos à sua frente. Ele nem tentou se levantar. – Alex! Olhei por cima do ombro e vi que Bree descia os degraus da frente da nossa casa. A Glock 19 dela estava erguida e ainda apontada na direção em que Guidice caíra. – Você está bem? – gritou ela. – Estou bem – respondi. Ela o acertara no pescoço. Provavelmente na carótida, pelo modo como o sangue bombeava. Uma poça havia começado a se formar no asfalto ao redor dele. Sampson estava do lado de fora também, pouco atrás de Bree. – Os paramédicos estão a caminho – disse ele e parou imediatamente ao ver Guidice. Eu rasguei minha camisa e a pressionei na ferida do pescoço dele, mas não havia meio de deter a hemorragia. Não com uma camisa. Acho que Guidice sabia disso também. Ele fez um esforço para virar e me fitou nos olhos, enquanto eu estava ajoelhado ao lado dele. – Parabéns – falou com dificuldade. – Não acreditei que você fosse conseguir...
– Ah, pode acreditar – interrompeu Bree, com a voz trêmula. – Onde está Rebecca Reilly? Você a pegou, Guidice? Foi você? Você é Russell? Eu ainda estava juntando as peças, mas se eu tinha razão sobre isso, também sabia que não restava muito tempo. Ele estava morrendo. Guidice agarrou meu braço, afastou-se alguns centímetros do asfalto. Tentou engolir o que quer que estivesse obstruindo sua garganta. – Diga às meninas... diga a elas... – Responda a minha pergunta! – falei. Mesmo nesta hora eu estava lutando contra meus próprios sentimentos. Era tudo que eu podia fazer para me impedir de dar um passo para trás e deixá-lo sangrar até morrer. Antes que eu pudesse dizer mais alguma coisa, Guidice teve uma convulsão. Cuspiu uma grande quantidade de sangue, estremeceu uma vez e depois ficou imóvel. Quando a cabeça caiu para trás, seus olhos estavam abertos, ainda fixos em mim. Ou era o que parecia. Eu podia ouvir uma sirene se aproximando, vinda de algum lugar. – É isso – concluiu Sampson. – Ele se foi. – Que apodreça no inferno – falou Bree. Quando olhei para ela, seu rosto tinha uma expressão que eu nunca vira antes. Ela era a pessoa mais afetuosa que eu conhecia e, de certo modo, era como se tudo que eu estivesse sentindo tivesse passado para ela. Bree também estava chorando. Sem dúvida, pensava na pobre Ava. Ele a usara feito um peão, apenas para chegar até mim. O máximo que podíamos dizer agora era que mais nenhuma vida seria desperdiçada por causa de Guidice. Suponho que se fosse qualquer outro caso, seria bom saber isso. Mas não desta vez. Rebecca Reilly ainda estava em alguma parte. E Ava estava morta. Nada nos faria sentir melhor em relação à forma como tudo isso terminara. Certamente, não agora. Nós tínhamos que chegar a esse estágio sozinhos e com o tempo que fosse necessário. Ainda assim, de alguma maneira, eu sabia que conseguiríamos.
EPÍLOGO CICLO DA VIDA
capítulo 109
DEPOIS QUE RON GUIDICE MORREU, toda a situação dele veio à tona. Foi a mãe quem ligou para a polícia, quando o nome do filho se tornou manchete nacional. Foram necessários mais cinco dias e dois testes de DNA para confirmar que o bebê sob os cuidados de Lydia Guidice era, na verdade, Rebecca Reilly. Além disso, sua irmã, Emma Lee Guidice, era filha biológica de Ron Guidice e Amanda Simms. Isso trouxe à tona todo tipo de especulações sobre Ava e o que Guidice poderia ter planejado para ela antes de sua morte. Mas a cremação de Ava já havia acontecido. Um funeral pequeno e íntimo ocorrera. Ela não tinha nenhum prontuário odontológico para comparação e os restos mortais foram identificados da melhor forma possível. Mas era isso. Nenhum de nós estava preparado para encarar a possibilidade de que, no fim, ela estivesse grávida. Essa pergunta simplesmente iria desaparecer rumo ao grande desconhecido, o que era provavelmente a melhor coisa. Mas eu sempre vou me perguntar isso, sem dúvida. Vou imaginar um monte de coisas. Quando o Serviço de Atendimento à Família e à Criança assumiu a custódia das duas filhas de Guidice, Bree e eu colaboramos com a agência para ter certeza de que a Sra. Guidice poderia ver as meninas de vez em quando. Ela pode não ter sido capaz de criá-las, mas ela também não fora negligente do ponto de vista criminal. Eu sentia pena dela mais que qualquer coisa. Stephanie concordou em conduzir o caso e também prometeu não desistir até encontrar um lar onde as duas garotas pudessem morar juntas. Nesse meio-tempo, elas foram colocadas em um lar adotivo provisório em uma pequena casa em Foggy Bottom. Levar Rebecca e Emma Lee pessoalmente não era algo que pudéssemos sequer imaginar, considerando que tínhamos acabado de perder Ava. Mas Bree e eu fizemos algumas visitas à casa nos primeiros meses. – Olha só... – falei, na primeira vez que Bree encontrou Rebecca. Ela estava embalando o bebê em uma cadeira de balanço, lentamente, para frente e para trás como já fizera um milhão de vezes. – Você é boa nisso. Bree simplesmente deu de ombros e manteve os olhos em Rebecca daquela maneira que (sim, vou dizer isso) somente uma mulher pode olhar para um bebê. Termos nossos próprios filhos nunca esteve em questão. Conversamos sobre isso antes de nos casarmos e já havíamos resolvido esse dilema. Mas, algumas vezes, a vida é um ciclo, não é? Aquilo que você pensa que foi resolvido pode voltar até estar bem ali diante de você. Não estou dizendo que Bree e eu tínhamos algum tipo de novo plano ou que haveria algum novo plano. Mas se eu tivesse que apostar, diria que provavelmente estávamos sentindo um pouco das mesmas coisas, enquanto ela estava sentada ali, balançando-se para que Rebecca voltasse a dormir. Depois de um tempo, Bree ergueu os olhos e me viu observando-a. – O que foi? – perguntou ela. – Nada – respondi. Ela sorriu, como se pudesse ler minha mente. – Nada, é? Agora era a minha vez de dar de ombros. – Você só está bonita de verdade agora – falei para ela. – Só isso. – É essa garotinha – disse ela. – Ela fica bem comigo. E eu não podia argumentar contra isso.
capítulo 110
– ALEX, É BOM VER VOCÊ. Admiro muito Adele Finaly. Acho que ela é uma das melhores psicoterapeutas que já vi em ação. Imagino que seja por isso que aceito sua regra de não usar sapatos durante as sessões. Nem pensava mais nisso. Simplesmente deixei os tênis no tapete perto da porta do escritório cheio de plantas e fui me sentar no lugar de sempre no divã. – Faz um bom tempo – comentou ela, ajeitando-se na poltrona florida. – Houve alguma coisa específica que causou essa chamada? Ela me lembra Audrey Hepburn. Adele tem um jeito de ser incrivelmente inteligente e ao mesmo tempo, acessível. – Apenas a pergunta mais antiga do livro – falei. – Do meu livro. – Ah – fez ela e sorriu em solidariedade. – Essa. Passei um bom tempo da sessão explicando a ela tudo o que acontecera no último mês. Ela sabia quem era Ava, mas não sabia como tudo aquilo terminara mal. Eu contei sobre Ron Guidice também. Não apenas o que ele fizera, mas o que acontecera comigo naquele último dia e também o que poderia ter acontecido se as coisas tivessem sido diferentes. Não sei se já fui tão consumido pelo próprio ódio antes e isso me assustava. – Digo a mim mesmo que, dessa vez, era diferente. Era pessoal. O fato de Ava estar no meio disso mudou tudo e eu me envolvi até o pescoço. A questão toda nem tinha a ver com os outros dois casos que eu estava acompanhando. – Bem, sim – disse Adele. – Era diferente. Essa garota estava morando na sua casa e muito provavelmente preparando-se para se tornar parte de sua família. Ela teria sido sua filha. Concordei com a cabeça, sem saber realmente se eu podia falar sobre essa parte sem cair em prantos. – Mas, Alex – disse Adele, inclinando-se e pondo uma das mãos sobre meu pulso. – Sempre é diferente com você. Há sempre uma razão para que você termine se esforçando. É por isso que você sempre termina aterrissando nesses lugares sombrios. Era verdade. De fato, eu nem sabia como responder isso. Então Adele continuou. Eu sempre posso contar com ela para me mostrar os dois lados da moeda. – Você sabe o que mais é verdade? – disse ela. – Há pessoas ruins no mundo. Alguém tem que fazer o trabalho que você faz e todos temos muita sorte de que você faça isso tão bem. Mas acho que você se importa demais. E nessas horas eu me preocupo com você, porque sei o que isso poderia fazer à... bem, à sua alma. – Você se preocupa comigo? – repeti e sorri. – Adele, estou emocionado. Ela sabia que eu estava tentando me desviar de alguma coisa e não queria morder a isca. Em vez disso, ela continuou forçando. – Talvez nós devêssemos parar de perguntar por que você é assim e começar a nos concentrar naquilo que você quer fazer sobre isso, se é que tal coisa é possível. Olhei para Adele, um pouco constrangido. – Quero continuar a vir aqui até que esteja enjoada de me ouvir falar que finalmente quero uma mudança. Uma mudança real. Adele se recostou e olhou para mim como se eu tivesse acabado de ganhar um concurso de soletrar. – Essa é uma boa resposta. Para começar. – E quanto a você? – perguntei. – Se você fosse uma mulher que aposta, diria que eu viria aqui pelo resto da minha vida? Que viria aqui e responderia as mesmas malditas perguntas para sempre? – Meu Deus, espero que não. Você tem vinte anos a menos que eu. Adele sempre faz piada na hora certa. É assim que ela me conquista. – Você sabe o que quero dizer. Quando vamos resolver isso, Adele? – Se você continuar vindo aqui? – retrucou ela. – Nesse caso... um dia. – Um dia? Essa é a sua resposta? – E acredito nela – respondeu ela. Na verdade, era provável que ela tivesse razão. Um dia, nós chegaríamos a uma resposta. Nós resolveríamos.
A menos, claro, que não resolvêssemos. Ninguém sabe melhor que eu que um dia é uma ideia, não um fato. Não há garantia de que um dia eu saiba de alguma coisa, incluindo o que vou tomar no café de amanhã. Mas, da mesma forma, tenho que permitir essa possibilidade. Caso contrário, não tenho nada. E não é assim que eu sou.
James Patterson
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