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Planeta Criança



Poesia & Contos Infantis

 

 

 


CAÇADA AO PREDADOR / James Patterson
CAÇADA AO PREDADOR / James Patterson

                                                                                                                                                   

                                                                                                                                                  

 

 

Biblioteca Virtual do Poeta Sem Limites

 

 

CAÇADA AO PREDADOR

 

Geoffrey Shafer, impecavelmente vestido com um paletó azul de gola esportiva, camisa branca, gravata listrada e calça cinza de corte reto da H. Huntsman & Sons, saiu de sua casa às sete e meia da manhã e entrou no Jaguar preto XJ12.

Deu a ré com cuidado na frente da garagem e depois pisou no acelerador. O lustroso carro esporte atingiu os oitenta antes de chegar ao sinal vermelho da avenida Connecticut, no elegante bairro de Kalorama da cidade de Washington.

Shafer não parou no movimentado cruzamento. Ao contrário, pisou mais fundo no acelerador, aumentando a velocidade.

Já estava passando dos cem, ansioso para espatifar o carro na imponente mureta de pedra que margeava a avenida. Ele apontava com cuidado o Jaguar. Podia imaginar a batida de frente, visualizá-la, senti-la por todo o corpo.

No último segundo, tentou evitar a colisão fatal. Guinou com força o volante para a esquerda. O Jaguar rabeou violentamente pelo asfalto, os pneus guinchando, esquentando, o cheiro de queimado impregnando o ar.

O carro foi derrapando e parou, mas virado para a contramão. A superfície brilhante e escura do pára-brisa encarava a barragem dos carros que se aproximavam no rush da manhã.

Quando Shafer tornou a pisar no acelerador e partiu contra o fluxo do tráfego, a buzina de cada carro e de cada caminhão não parou mais de tocar.

Ele não procurou tomar fôlego, nem se controlar. Continuou em disparada pela avenida, cada vez mais rápido, recuperando a sua mão ao entrar a jato na ponte e dobrar à esquerda, depois novamente à esquerda, saindo na via Rock Creek.

Um guincho muito curto de angústia escapou de sua boca. Involuntário, brotando de maneira brusca e inesperada. Um instante de medo, de fraqueza.

Pisou novamente até o fundo e a máquina roncou. A bem mais de cem, quase a cento e trinta, ele costurava entre os carrinhos mais lentos, os pequenos utilitários e um caminhão de entregas da A&P, coberto de fuligem.

Agora só uns poucos buzinavam. A maioria dos motoristas estava apenas apavorada, realmente morrendo de medo.

Deixou a Rock Creek a oitenta por hora, mas pisou fundo de novo.

 

Àquela hora, o engarrafamento na rua P era ainda pior que na avenida. Washington acordava, saía para trabalhar. Ele ainda podia ver aquela convidativa mureta de pedra da Connecticut. Não devia ter parado. Logo começou a procurar outro objeto sólido como rocha, algo para bater com bastante força.

Estava a cento e trinta ao se aproximar do Dupont Circle, onde se atirou como um morteiro. Duas filas de carros tinham parado na frente do sinal vermelho e desta vez não havia saída. Nem para a direita, nem para a esquerda.

Não queria atingir por trás um punhado de carros! Não queria acabar com aquilo (com sua vida) trombando coisas tão ordinárias quanto um Chevy Caprice, um Honda Accord, um caminhão de entregas.

Guinou violentamente para a esquerda, na direção das pistas do tráfego que vinha do leste, que vinha direto contra ele. Viu os rostos perplexos, em pânico atrás dos pára-brisas empoeirados, com manchas de óleo. As buzinas explodiram, uma estridente sinfonia de medo.

Shafer correu para a próxima esquina, onde mal conseguiu se espremer entre o jipe que vinha em sentido contrário e um caminhão de concreto.

Desceu voando a rua M, entrou na avenida Pensilvânia e tomou o rumo do Washington Circle. O centro médico da Universidade George Washington estava bem na sua frente - um final perfeito?

De algum lugar, surgiu uma viatura da polícia municipal, a sirene ligada, gritando seu protesto, a luz rotativa brilhando, sinalizando para ele estacionar. Shafer foi diminuindo a marcha e parando no meio-fio.

 

Com a mão no coldre da arma, o policial correu para o Jaguar. Parecia assustado, nervoso.

- Saia do carro, senhor - disse num tom de comando. - Saia agora do carro!

De repente, Shafer parecia calmo e relaxado. Como se nenhuma tensão tivesse sobrado em seu corpo.

- Tudo bem, tudo bem. Estou saindo. Sem problemas.

- Sabe qual era a sua velocidade? - perguntou o policial num tom agitado, o rosto muito vermelho.

Shafer reparou que o homem mantinha a mão sobre a arma e contraiu a boca, procurando uma resposta.

- Bem... acho que uns cinqüenta, seu guarda - disse por fim. - Talvez um pouco acima do limite.

Então ele puxou um cartão de identidade e deu ao policial.

- Mas você não pode fazer nada. Sou da embaixada britânica. Tenho imunidade diplomática.

Naquela noite, quando ia do trabalho para casa, Geoffrey Shafer achou que estava perdendo outra vez o controle. E começou a ficar assustado. Toda sua vida passara a girar ao redor de um jogo fantástico chamado Os Quatro Cavaleiros. No jogo, ele representava a Morte e o jogo representava tudo para ele; era a única parte de sua vida com um real significado.

Saíra da embaixada britânica e atravessara a cidade, sempre na direção de Petworth, um bairro da zona noroeste. Sabia que um homem branco, ao volante de um incrível Jaguar, nunca deveria ir lá, mas ele ia sempre. Como naquela manhã, por exemplo.

Pouco antes de entrar em Petworth, Shafer parou o carro, abriu o laptop e digitou uma mensagem para os outros jogadores - os outros Cavaleiros.

 

         AMIGOS, A MORTE ESTÁ

         À SOLTA EM WASHINGTON.

         O JOGO CONTINUA.

 

Ligou novamente a ignição e rodou mais algumas quadras na direção de Petworth. As prostitutas habituais, ostensivamente provocadoras, já estavam subindo e descendo as ruas Varnum e Webster. Uma canção chamada Nice and Slow saía de um cintilante BMW azul. A voz meiga de Ronnie McCall enchia o início da noite.

As garotas acenavam e mostravam os seios grandes, chatos, empinados ou caídos. Algumas usavam bustiers cujas cores combinavam com bermudas curtinhas e sapatos-plataforma prateados ou vermelhos, com saltos pontudos.

Shafer diminuiu a marcha e parou ao lado de uma garota negra, baixinha, com um rosto extraordinariamente bonito. As pernas eram belas e muito compridas para um corpo tão pequeno. Devia ter uns dezesseis anos e usava maquiagem demais para seu gosto. Contudo, era difícil resistir a ela, e por que deveria?

-Bonito carro - disse a menina num tom suave.-Jaguar. Acho incrível! - Ela sorriu e desenhou um O pequeno e sensual com os lábios pintados. - Você também é uma graça, parceiro!

 

Shafer devolveu o sorriso.

- Por que não entra? Vamos sair para um teste ao volante. Ver se é mesmo amor ou só coisa de momento. - Ele deu uma olhada rápida na rua. Nenhuma das outras garotas estava trabalhando naquela esquina.

- Cem pelo serviço completo, benzinho? - ela perguntou, tocando com a nádega pequena, mas firme, o banco do Jaguar. O perfume tinha um cheiro de goma de mascar e a garota parecia ter tomado banho com ele.

- Entre, feche a porta. Cem dólares é troco para mim. Sabia que não devia colocá-la no Jaguar, mas resolveu levála para dar um passeio. Agora já não podia se controlar.

Conduziu a moça para a praça pequena, arborizada, que existe numa parte de Washington chamada Shaw, e estacionou junto à fileira de araucárias que esconderiam o carro. Contemplou a prostituta, achando-a ainda menor e mais nova do que tinha imaginado.

- Quantos anos tem?

- Quantos anos prefere que eu tenha? - disse ela sorrindo. - Primeiro o dinheiro, meu bem. Sabe como funciona, não é?

- Sei, mas será que você sabe?

Shafer enfiou a mão no bolso e puxou uma faca automática. Num instante a encostava na garganta da moça.

- Não me machuque - ela sussurrou. - Fique frio, está bem?

- Saia do carro. Com calma, porque vai se arrepender se gritar. Você fica fria.

Shafer saltou com ela, grudado nela, a faca fazendo pressão na cavidade da garganta.

- É só um jogo, meu bem - ele explicou. - Meu nome é Morte e você é uma moça de muita sorte. Eu sou o melhor dos jogadores.

Como para provar, ele a esfaqueou pela primeira vez.

 

                                     AS MORTES DAS FULANINHAS

 

As coisas estavam indo muito bem naquele dia. Eu atravessava a zona sudeste ao volante de um belo ônibus escolar alaranjado e era uma límpida e quente manhã do fim de julho. Enquanto dirigia, assobiava um trecho do Al Green. Ia pegar dezesseis meninos em casa e em dois orfanatos. Serviço porta-a-porta. Insuperável.

Só se passara uma semana desde minha volta de Boston, onde encerrara o caso de assassinato envolvendo o sr. Smith e um louco homicida chamado Gary Soneji. Precisava de um descanso e tinha tirado aquela manhã de folga. Para variar, esperara ansiosamente pela oportunidade de fazer o que estava fazendo agora.

Meu parceiro, John Sampson, e um garoto de doze anos chamado Errol Mignault estavam sentados atrás de mim no ônibus. John usava um boné Wayfarer, calça jeans preta e uma camiseta com a inscrição ALIANÇA - CIDADÃOS PARTICIPANTES. FAÇA HOJE MESMO o SEU DONATIVO. Ele tem dois metros de altura e cento e quinze quilos muito bem dosados. Somos amigos desde os dez anos de idade, quando me mudei pela primeira vez para Washington.

Eu, ele e Errol conversávamos sobre o boxeador Sugar Ray Robinson, quase gritando por causa da barulheira do ônibus, que de vez em quando morria e custava a pegar. O enorme braço de Sampson caía ligeiramente sobre os ombros de Errol. Um adequado contato físico era encorajador quando se lidava com esses garotos.

Finalmente, pegamos a última peça de nossa lisia, um menino de oito anos que morava no condomínio Benning, um sombrio conjunto de casas que alguns chamavam de Cidade Rasa.

Na saída do condomínio, uma inscrição borrada dos grafiteiros informava tudo que os visitantes precisavam saber acerca do ambiente: VOCÊ ESTÁ SAINDO DA ZONA DE GUERRA E VIVEU PRA CONTAR COMO É.

 

Levávamos os garotos para o Lorton, um presídio na Virgínia. Passariam a tarde visitando os pais. Eram todos muito novos, entre oito e treze anos. Toda semana a Aliança levava de quarenta a cinqüenta guris para visitar pais e mães em diferentes prisões. O objetivo era meritório: reduzir de um terço a taxa de criminalidade em Washington.

Eu já nem fazia idéia do número de vezes que tinha entrado no Lorton. Conhecia muito bem o diretor, Marion Campbell. Andara muito por lá em certa época, entrevistando Gary Soneji.

Campbell tinha destinado uma grande sala do primeiro andar para o encontro dos meninos com os pais. Era uma cena fantástica, mais comovente do que eu podia esperar. A Aliança investe uma parte de seu tempo treinando os pais que querem participar do programa. Há quatro passos: como demonstrar amor, como assumir as próprias culpas e responsabilidades, como atingir a harmonia entre pais e filhos, como começar de novo.

Ironicamente, todos os meninos tentavam parecer mais duros do que de fato eram. Ouvi um deles dizer: ”Você sempre esteve fora de minha vida; por que acha que vou lhe dar atenção agora?” Os pais, no entanto, procuravam mostrar um lado mais suave.

Eu e Sampson nunca tínhamos ido até Lorton daquele jeito. Era nossa primeira vez no ônibus alaranjado, mas eu tinha certeza de que haveria outra. Via tanta emoção bruta e esperança naquela sala, tamanho potencial para algo bom e decente! Mesmo se nem todas as boas intenções pudessem ser concretizadas, pelo menos um esforço estava sendo feito e alguma coisa positiva poderia resultar daí.

O que mais me impressionava era o laço que ainda existia entre certos pais e filhos. Pensei em meu próprio garoto, Damon, e como éramos afortunados. O interessante acerca da maioria dos presidiários de Lorton era que eles sabiam que o que tinham feito estava errado; simplesmente não sabiam como parar de fazer.

Durante a maior parte da hora e meia, fiquei andando de um lado para o outro e escutando. De vez em quando, era solicitado como psicólogo e procurava improvisar da melhor maneira possível. Num pequeno grupo, ouvi a conversa de um pai: ”Por favor diga à sua mãe que gosto muito dela e que ela me faz uma falta tremenda.” Nesse momento, o presidiário e o filho irromperam em lágrimas e se abraçaram calorosamente.

Já estávamos na prisão há cerca de uma hora e Sampson se aproximou de mim. Sorria muito. Seu sorriso, quando aparecia, era realmente incrível.

- Cara, estou adorando isso. Porra nenhuma é melhor que fazer o bem!

- É, também estou impressionado. Quero dirigir de novo o ônibus laranja.

- Acha que ajuda? - ele me perguntou. - Pais e filhos se encontrando assim?

Olhei ao redor da sala.

- Pelo menos hoje, neste momento, a coisa é um sucesso para esses homens e seus filhos. O que já é muito bom.

Sampson abanou a cabeça.

- O velho encontro marcado. Tudo bem, pra mim também funciona. Mexeu comigo, Alex.

Comigo também, comigo também. Sou maluco por esse tipo de coisa.

Naquela tarde, levando os garotos para casa, vi pela cara deles como tinham sido positivas as experiências com os pais. Voltaram para Washington sem fazer muito barulho nem muita bagunça. Já não tentavam ser tão durões. E só agiam como crianças.

Praticamente todos agradeciam a mim e ao John Sampson quando saltavam do grande ônibus laranja. Não era preciso. Sem dúvida fora bem melhor ir com eles até a prisão do que correr atrás de maníacos homicidas.

O último a saltar foi o garotinho de oito anos do Condomínio Benning. Deu um abraço no John, outro em mim e começou a chorar.

- Tenho saudades do meu pai - disse antes de correr para casa.

 

Naquela noite, eu e Sampson estávamos de serviço na zona sudeste. Éramos antigos detetives da homicídios e eu sou também oficial de ligação entre o FBI e a polícia de Washington. Por volta da meia-noite e meia, recebemos uma chamada nos mandando ir para a área de Washington chamada Shaw, onde alguém tivera uma morte terrível.

Na cena do crime, havia apenas um carro-patrulha da polícia municipal e um número bastante razoável dos píssicos das redondezas.

Lembravam um bizarro grupo de convidados no meio do inferno. Ao lado, alguém tinha acendido fogueiras, que atiravam centelhas em dois latões de lixo. Isso não fazia sentido, dado o calor escaldante da noite.

Segundo o informe do nosso rádio, a vítima era uma jovem, tendo provavelmente entre catorze e dezoito anos.

Não foi difícil achá-la. O corpo nu, mutilado, estava jogado na moita de arbustos de um pequeno parque, a menos de dez metros de uma trilha pavimentada.

Quando eu e Sampson nos aproximamos do corpo, um garoto gritou do outro lado da fita amarela:

- Ei, ei, era apenas uma puta de rua!

Parei e olhei para ele. Lembrei-me dos garotos que tínhamos acabado de levar ao presídio de Lorton.

- Uma puta barata. Não percam o tempo de vocês nem o meu, de-te-tives - ele continuou sentenciando num incômodo tom de rap.

Aproximei-me do engraçadinho.

- Como sabe disso? Costumava encontrá-la por aqui?

O garoto recuou, mas acabou sorrindo, mostrando uma estrela dourada num dos dentes da frente.

- Estava caída de costas. Sem roupa. Claro que alguém tinha metido nela. Pra mim, só podia ser puta.

Sampson observou melhor o rapaz, que parecia ter por volta de catorze anos, mas podia ser ainda mais novo.

- Sabe quem é ela?

- Qual é, não - O garoto fingia estar insultado. - Não ando com prostitutas, cara!

Finalmente, ele foi se afastando, olhando-nos uma ou duas vezes pelo ombro e balançando a cabeça. Eu e Sampson saímos andando e nos juntamos a dois tiras uniformizados que estavam de pé ao lado do corpo. Obviamente esperavam reforços e, ao que tudo indicava, os reforços éramos nós.

- Falaram com a perícia? - perguntei.

- Trinta e cinco minutos atrás e contando - disse o que parecia mais velho. Com menos, provavelmente, de trinta anos, exibia um esboço de bigode e tentava aparentar experiência em cenas como aquela.

- Devem estar chegando - disse eu balançando a cabeça. - Acharam alguma identidade?

- Negativo - disse o mais moço. - E demos uma boa olhada no mato. Só havia esse corpo, num estado que não é dos melhores. - Ele transpirava muito e parecia meio enjoado do estômago.

Pus as luvas de borracha e me curvei sobre o cadáver, que parecia ter entre catorze e vinte anos. A garganta fora cortada de orelha a orelha. O rosto estava terrivelmente retalhado, assim como as solas dos pés, o que parecia estranho. Fora esfaqueada pelo menos uma dúzia de vezes no peito e na barriga. Abri suas pernas.

Vi uma coisa que me deu um vazio por dentro. Havia um cabo de metal. Tive quase certeza de que era uma faca e que a lâmina fora introduzida até o fim na vagina.

Sampson se abaixou e me olhou.

- O que está pensando, Alex? Mais uma?

- Talvez - respondi balançando a cabeça, encolhendo os ombros. - Era viciada em drogas, John. Tem marcas nos braços e nas pernas. Provavelmente também atrás dos joelhos e embaixo dos braços. Em geral, nosso homem não corre atrás de viciadas; faz sexo seguro. Quanto à brutalidade do assassinato... É bem o gênero. Está vendo o cabo de metal? Sampson assentiu. Pouca coisa lhe escapava.

- E as roupas... - disse ele. - Para onde foi a porra da roupa? Temos de achar.

- Devem ter sido levadas por alguém da vizinhança - disse o policial mais novo. Havia muita coisa mexida em volta do corpo. Várias pegadas na terra. - É assim que as coisas acontecem na área. E parece que ninguém liga.

- Nós estamos aqui - eu disse a ele. - Nós ligamos. E viemos por todas essas fulaninhas sem identificação.

 

Geoffrey Shafer quase não conseguia esconder sua felicidade da família. Teve de tomar cuidado para não dar uma gargalhada quando beijou a esposa, Lucy, no rosto. Sentiu o aroma do Chanel n2 5 e, ao beijá-la de novo, saboreou a quebradiça secura dos lábios.

Estavam de pé como estátuas no meio do elegante vestíbulo da grande casa neoclássica em Kalorama. As crianças tinham sido chamadas para dar até logo.

A esposa, cujo nome de solteira era Lucy Rhys-Cousins, tinha cabelo louro-escuro e os cintilantes olhos verdes brilhavam mais que as jóias da Bulgari & Spark, que ela sempre usava. Já nos seus trinta e sete anos, um tanto magra e não muito bonita, Lucy freqüentara, antes de se casarem, dois anos do Newnham College em Cambridge. Agora lia poemas e romances literários inúteis e passava a maior parte do tempo livre em almoços igualmente sem sentido, nas compras com suas amiguinhas especiais, indo a partidas de pólo, velejando. Ocasionalmente, Shafer velejava com ela. Já fora um ótimo marujo.

Lucy tinha sido (e talvez ainda fosse) considerada um troféu de família rica para certos homens. Claro, eles teriam as arestas meio esquálidas de seu corpo e todo o sexo sem paixão que pudessem suportar.

Shafer suspendeu as gêmeas Tricia e Erica, de quatro anos, pondo uma em cada braço. Duas imagens no espelho da mãe, imagens que ele venderia pelo preço de um selo dos correios. Abraçando as meninas, riu como o papai legal que sempre aparentara ser.

Depois apertou formalmente a mão do Robert, de doze. Corria um debate na casa para saber se Robert devia voltar à Inglaterra para freqüentar um internato, talvez em Winchester, onde o avô estudara. Shafer fez uma esperta continência militar para o filho. Já fora militar, coronel Geoffrey Shafer. Agora só Robert parecia lembrar dessa parte da vida do pai.

- vou passar alguns dias em Londres e isso é trabalho, não descanso. Não pretendo passar as noites no Athenaeum nem nada do gênero - ele disse à família. Sorria com ar jovial, do jeito que esperavam dele.

- Mas tente se divertir um pouco enquanto estiver fora, papai! - disse Robert naquele tom homem a homem, uma oitava mais grave, que parecia vir adotando ultimamente. - Dê umas risadas. Deus sabe que você merece.

- Tchau, papai! Tchau, papai! - disseram as gêmeas num coro estridente, deixando Shafer com vontade de atirá-las contra a parede.

- Tcha-tchau, Erica! Tcha-tchau, Tricia!

- Não esqueça da Ore’s Nest - disse Robert com uma repentina urgência. - Dragão e O duelista. - A Ore’ s Nest era uma loja que vendia livros com figuras móveis e jogos. Ficava no Earlham, em Londres, bem ao lado do Cambridge Circus. Dragão e O duelista eram as duas revistas inglesas mais quentes de jogos para computador.

Infelizmente para Robert, Shafer não iria a Londres, pois tinha um programa muito melhor para o fim de semana. Fazer lá mesmo, em Washington, seu joguinho fantástico.

 

Corria direto para o leste, não para o aeroporto Dulles em Washington. A sensação era de que um peso tremendamente incômodo fora tirado de suas costas. Deus, detestava sua família inglesa perfeita e, ainda pior, a vida de isolamento que levavam na América!

Sua própria família paterna também fora ”perfeita” na Inglaterra. Shafer tinha dois irmãos mais velhos e ambos haviam sido ótimos estudantes, jovens-modelo. O pai fora adido militar e a família viajara ao redor do mundo até ele fazer doze anos, quando então voltaram à Inglaterra e se estabeleceram em Guildford, a cerca de meia hora de Londres. Uma vez lá, Shafer aprimorou as façanhas de colegial que vinha praticando desde os oito anos. No centro de Guildford, havia vários prédios histórico, que bem-humorado ele se empenhava em desfigurar. Começou pelo Abbot’s Hospital, onde a avó estava morrendo: rabiscou obscenidades nas paredes. Depois passou para o castelo de Guildford, a prefeitura, a Royal Grammar School e a catedral. Rabiscou palavrões ainda piores e grandes pênis em cores brilhantes. Não sabia muito bem por que sentia tamanha satisfação emporcalhando coisas bonitas, mas era o seu prazer. Adorava aquilo - e adorava especialmente não ser apanhado.

Finalmente, mandaram Shafer para a escola em Rugly, onde as proezas continuaram. Depois ele freqüentaria o St. John’s College, onde ia se concentrar no japonês, em filosofia e na conquista do maior número possível de belas mulheres. Seus amigos não entenderam nada quando, aos vinte e um anos, ele foi para o Exército. Sua formação em línguas estrangeiras era excelente e o designaram para a Ásia, onde as travessuras atingiriam um novo patamar e onde ele começaria a jogar o jogo dos jogos.

Deu uma parada para um café numa lanchonete de Washington Heights: na realidade, para três cafés. Todos sem leite, cada um com quatro tabletes de açúcar. Tomou quase toda a última xícara andando para a saída.

O índio que estava na caixa olhou-o com um ar sério, desconfiado, mas Shafer riu em sua cara barbada.

- Acha mesmo que eu não ia pagar os setenta e cinco centavos do maldito café? Seu palhaço cretino! Imbecil!

Atirando o dinheiro no balcão, saiu antes de estrangular o empregado, o que não lhe seria muito difícil fazer.

Foi direto da lanchonete para o nordeste de Washington, mais exatamente para um bairro de classe média chamado Eckington. Começou a reconhecer as ruas quando estava a oeste da Universidade Gallaudet. A maioria das construções eram casas de altos e baixos, com parapeitos envernizados, tijolos vermelhos ou uma terrível pintura plástica azul que sempre lhe dava arrepios.

Parou diante de uma das unidades de tijolo vermelho do ajardinado condomínio Uhland, perto da Second Street. Aquela casa em particular tinha uma garagem anexa e um ocupante anterior adornara a fachada com dois gatos de cimento branco.

- Alô, bichanos - disse Shafer, sentindo-se aliviado por estar ali. Estava ”entrando no clima”, isto é, ficando alto, maníaco. Adorava a sensação, nunca se fartava dela. Era hora de começar o jogo.

 

Na garagem para dois carros, havia o táxi com alguns pontos podres e listas azuis e roxas que Shafer vinha usando havia cerca de quatro meses. O táxi lhe proporcionava anonimato, tornando-o quase invisível por onde quer que circulasse. Ele o chamava de ”máquina do pesadelo”.

Espremeu o Jaguar ao lado do táxi, subiu rapidamente a escada, entrou e ligou de imediato o ar-condicionado. Bebeu outro café cheio de açúcar.

Em seguida, como um bom menino, tomou seus remédios. Thorazine e Librium. Benadryl, Xanax, Vicodin. Havia anos vinha usando diferentes combinações dessas drogas. Era principalmente um processo tipo ensaio-e-erro, mas soubera aprender com cada resultado. Sentindo-se melhor, Geoffrey? Sim, muito melhor, obrigado.

Tentou ler a última edição do Washington Post, depois um velho exemplar da revista Private Eye, por fim um catálogo do DeMask, o atacadista de Amsterdã especializado na venda de trajes e acessórios de borracha e couro, o maior do mundo. Fez duzentas flexões, depois alguns abdominais, esperando, impaciente, que a escuridão caísse sobre Washington.

Às nove e quarenta e cinco, Shafer começou a se aprontar para uma boa noitada. Foi até o pequeno e árido banheiro, com cheiro de detergente barato, onde parou na frente do espelho.

Gostou do que viu. De fato gostou muito. Um cabelo louro, espesso e ondulado que ele jamais perderia. Um sorriso carismático, eletrizante. Grandes olhos azuis com uma qualidade hipnótica. Excelente forma física para um homem de quarenta e quatro anos.

Mergulhou no trabalho, começando com lentes de contato castanhas. Fizera tantas vezes aquilo que podia quase se preparar de olhos fechados. Era parte de seu artesanato. Pegou o pó preto da maquiagem teatral e aplicou-o no rosto, no pescoço, nas mãos e nos pulsos. Depois vestiu um casaco acolchoado, que fazia o pescoço parecer maior do que era, e pôs um boné escuro para cobrir cada fio solto de cabelo.

Encarou-se com firmeza - e viu um negro razoavelmente convincente, em especial se a luminosidade não fosse muito forte. Nada mau, absolutamente nada mau. Era um bom disfarce para uma noite na cidade, principalmente se a cidade fosse Washington.

Que os jogos, então, começassem. Os Quatro Cavaleiros.

Às dez e vinte e cinco, tornou a descer para a garagem, onde rodeou cuidadosamente o Jaguar e abriu a porta do táxi azul e roxo. Já começava a se deixar absorver pela deliciosa fantasia.

Shafer pôs as mãos no bolso da calça, de onde tirou três dados de aspecto incomum. Para começar, tinham vinte faces, como os usados na maioria dos jogos RPGs. E tinham números em vez de pontos.

Segurou os dados com a mão esquerda e sacudiu-os.

Havia regras explícitas para os Quatro Cavaleiros; tudo ficaria na dependência do arremesso dos dados. A idéia era chegar a uma fantasia radical, um detonador de mentes. Os quatro jogadores estavam competindo ao redor do mundo. Nunca tinha havido um jogo como aquele - nada sequer se aproximara.

Shafer esquematizara sua aventura, mas havia alternativas para cada evento. Tudo se apoiando basicamente nos dados.

Havia também o ponto principal: tudo podia acontecer.

Shafer entrou no táxi e ligou o motor. Sim, meu Deus, ele ja estava pronto!

 

Tinha um magnífico plano, todo mapeado. Pegaria apenas os raros passageiros - ”peças” - que atraíssem sua atenção, inflamando ao limite sua imaginação. Não estava com pressa. Tinha a noite inteira; tinha todo o fim de semana. Oficialmente estava em Londres, trabalhando num dia de folga.

A trajetória fora traçada de antemão. Primeiro, seguiu para a elegante área de Adams-Morgan, onde ficou observando o fluxo dos pedestres, o comprido, sincopado ritmo do movimento das calçadas. As pessoas faziam a ronda dos bares e se deixavam levar pelas novidades. Aparentemente, cada restaurante de Adams-Morgan se autodenominava ”café”. Dirigindo devagar e registrando o brilho das imagens, passou pelo Café Picasso, Café Lautrec, LaFourchette Café, Bukom Café, Café Dalbol, Montego Café, Sheba Café.

Por volta das onze e meia, na avenida Colúmbia, ele diminuiu a marcha do táxi. O coração começava a disparar, pois algo muito interessante tomava forma à sua frente.

Um belo casal saía do popular Chief Ike’ s Mambo Room. O homem e a mulher tinham aparência latina e provavelmente teriam menos de trinta anos. Muito sensuais.

Rolou os dados sobre o banco da frente: seis, cinco, quatro - total de quinze. Um número alto.

Perigo! Aquilo tinha lógica. Um casal implicava sempre uma situação arriscada e traiçoeira.

Shafer esperou que saíssem debaixo da marquise do restaurante e cruzassem a calçada. Sim, vinham bem na sua direção. Muito conveniente. Ele se encostou no cabo do magnum que havia sob o banco da frente, pois estava preparado para qualquer coisa.

Quando os dois começaram a subir no táxi, Shafer mudou de idéia. As regras do jogo permitiam isso!

Reparou que nenhum dos dois era tão atraente quanto imaginara. O homem tinha o rosto e a testa um tanto manchados e o gel no cabelo preto era gorduroso, grosso demais. A mulher carregava dois ou três quilos a mais do que ele gostaria, embora não tivesse parecido gorducha à distância, sob as generosas luzes da rua.

- Ocupado - disse ele, arrancando com o carro e vendo ambos erguerem o dedo num gesto obsceno. Shafer riu e falou em voz alta: - Tiveram sorte esta noite, panacas! Nunca voltarão a ter a sorte que tiveram hoje. Mas jamais saberão disso, não é?

A onda incomparável da fantasia tomava completamente conta dele. Tivera poder absoluto sobre o casal. Controle absoluto de vida e de morte.

- A Morte pode ser orgulhosa - sussurrou.

Parou para mais um café num Starbucks da avenida Rhode Island. Nada como aquilo. Foram três cafés puros, amontoando seis tabletes de açúcar em cada um.

Uma hora depois, estava na zona sudeste. Não tinha parado para nenhuma outra peça. As ruas estavam entulhadas de pedestres. Nem mesmo com a ajuda dos clandestinos, havia táxis suficientes naquela parte de Washington.

Já lamentava ter deixado o casal latino escapar, pois começara a montar fantasias românticas sobre eles, imaginando-os, sempre, como tinham lhe parecido sob as luzes da rua. Ajudado por reminiscências de coisas passadas, não era? E ele pensou na monumental primeira frase de Proust: ”Durante muito tempo, costumei ir cedo para a cama” E o mesmo fizera Shafer... até descobrir o jogo dos jogos.

De repente ele a viu: uma perfeita deusa morena de pé logo ali, diante dele, como se alguém tivesse acabado de lhe dar um tremendo presente. Caminhava sozinha, a cerca de uma quadra da rua E e se deslocava depressa, com determinação. Shafer, instantaneamente, tornou a ficar ligado.

Gostou do modo como ela andava, da ginga das pernas compridas, do ajuste impecável do porte.

À medida que Shafer se colocava atrás dela, a mulher começava a olhar ao redor, varrendo a rua com os olhos. Procurava um táxi? Podia ser isso? Precisava dele?

Usava uma túnica creme, quase branca, uma saia roxa, de seda, e sapatos de salto alto. Parecia muito grã-fina e madura para estar a caminho de alguma boate. E tinha um ar muito autoconfiante.

Shafer rapidamente tornou a jogar os dados de vinte lados e prendeu a respiração. Contou os números. Seu coração deu um salto. Aquilo era tudo que os Cavaleiros queriam.

Ela sacudia a mão, fazia sinal, gritava:

- Táxi! Táxi! Está livre?

Shafer aproximou o carro do meio-fio e a mulher deu três passos rápidos e delicados em sua direção. Os sapatos de salto alto eram cintilantes, sedosos, simplesmente deliciosos. De perto, parecia muito mais bonita, correspondendo, pelo menos em noventa e cinco por cento, a todas as suas expectativas.

Ele escancarou a porta do táxi, bloqueando por um segundo a própria visão.

E de repente viu que ela carregava flores. Por quê? Algo especial naquela noite? Bem, não deixava de ser verdade. As flores eram para o seu funeral.

- Oh, muito obrigado por ter parado! - disse ela meio ofegante ao se instalar no carro. Shafer, no entanto, teve certeza de que estava relaxando e se sentindo segura. O tom, embora macio e acariciante, fora também decidido, controlado.

- Às suas ordens - disse Shafer se virando, sorrindo. - E por falar nisso, eu sou a Morte. Você é minha fantasia para este fim de semana.

 

Nas manhãs de segunda-feira, eu geralmente ajudo na sopa do Dispensado de Santo Antônio, na zona sudeste, onde venho há seis anos trabalhando como voluntário. Meu turno é das sete às nove, três dias por semana.

Naquela manhã, sentia-me inquieto e agitado. Ainda estava me recuperando do caso do sr. Smith, que me fizera viajar por toda costa leste e pela Europa. Talvez estivesse realmente precisando de uma folga, um feriadão bem longe de Washington.

Contemplei a habitual fila de homens, mulheres e crianças que não tinham dinheiro para a comida. Estendia-se por centenas de metros de comprimento, subindo até a segunda esquina da Twelfth Street. Parecia tão terrível, tão deplorável que tanta gente ainda passasse fome em Washington ou só pudesse se alimentar uma vez por dia.

Há anos eu começara a ajudar na sopa por causa de minha esposa, Maria, que, quando nos conhecemos, fazia estágio como assistente social no dispensário. Maria era a princesa não-coroada do Santo Antônio; todos gostavam dela e ela gostava de mim. Fora baleada, assassinada num incidente de trânsito não muito longe do dispensário. Estávamos casados havia quatro anos e tínhamos dois filhos pequenos. O caso nunca foi esclarecido, o que ainda me tortura. Talvez seja isso que me impele a levar cada caso até o fim, por menores que sejam as chances de solução.

No Dispensário de Santo Antônio, ajudo a garantir que ninguém fique muito irritado ou cause tumulto durante as refeições. Tenho um metro e oitenta e oito, por volta de noventa quilos e a musculatura adequada para manter a paz, se e quando necessário. Em geral, consigo afastar os problemas com algumas palavras de calma e gestos não-ameaçadores. E a maioria das pessoas estão ali para comer, não para brigar ou fazer tumulto.

Também sirvo gelatina e creme de amendoim para quem comer um segundo ou mesmo um terceiro prato. Jimmy Moore é um americano de ascendência irlandesa que dirige o dispensário com muito amor e apenas a dose certa de disciplina. Ele sempre acreditou no poder curativo do creme de amendoim e da gelatina. Alguns freqüentadores habituais do dispensário se referem a mim como ”o homem da gelatina”. Há anos tem sido assim.

Você parece meio abatido hoje - disse a mulher baixa

e gorda que havia um ou dois anos vinha freqüentando o dispensário. Sabia que se chamava Laura, que nascera em Detroit e tinha dois filhos adultos. Trabalhava como doméstica na rua M, em Georgetown, mas a família achou que ficara muito velha para o trabalho e despediu-a com algumas semanas de indenização e palavras calorosas de estima.

Ela prosseguiu:

- Mas continua servindo bem. Pelo menos a mim. - Riu maliciosamente. - Alguma novidade?

- Laura, você é muito gentil com seus elogios - disse eu, servindo-lhe o habitual prato extra. - Vai falar com Christine, não é? Tenha certeza de que já a recomendei.

Laura riu e se abraçou com os dois braços. Tinha um riso franco, gostoso, mesmo naquela situação.

- Uma jovem tem de sonhar, você sabe. Como sempre, foi bom encontrá-lo.

- A satisfação foi minha, Laura. Como sempre, gostei de vê-la por aqui. Aproveite a refeição.

- Oh, vou aproveitar. Você vai ver que sim. Enquanto dava meus cordiais alôs e servia enormes porções

de creme de amendoim, permiti-me pensar em Christine. Provavelmente Laura tinha razão; talvez eu não estivesse muito bem naquele dia. Talvez fosse a minha pior fisionomia dos últimos tempos.

Lembrei-me de uma noite, cerca de duas semanas atrás. Acabara de resolver um caso de homicídios em série em Boston, e e eu estávamos na varanda da casa dela, nos arredores Mitchellville. Eu tentava modificar minhas opções de vida, mas era difícil mudar. O coração dirige a razão, essa é uma máxima de que gosto muito.

No ar da noite, pude sentir o cheiro das flores, das rosas e das orquídeas que brotavam por todo lado. Também senti o aroma da Paixão Gardênia, o perfume favorito de Christine, o perfume que ela estava usando.

Já nos conhecíamos há um ano e meio. Tínhamos nos encontrado durante uma investigação de assassinato, um caso que resultará na morte de seu marido. Por fim, começamos a sair juntos e agora eu percebia como tudo fora nos levando àquele momento na varanda. Pelo menos era assim que eu via a coisa.

Sempre que nos encontrávamos, Christine estava sorridente e fazia com que eu me sentisse de cabeça leve. Ela é alta, quase um metro e setenta e cinco, o que acho ótimo. Tinha um sorriso que podia provavelmente iluminar metade do país. Naquela noite, usava um jeans apertado e desbotado e uma camisa branca amarrada na cintura. Estava descalça, com unhas pintadas de esmalte vermelho. Os belos olhos castanhos brilhavam.

Estendi as mãos, puxei-a para meus braços e de repente tudo no mundo me pareceu perfeito. Esqueci completamente o terrível caso de que acabara de sair; esqueci do matador particularmente perverso conhecido como sr. Smith.

Minhas mãos envolveram carinhosamente o rosto generoso, meigo. Gosto de pensar que nada mais consegue me assustar, e isso em geral é verdade. Acho, no entanto, que quanto mais coisas boas a pessoa tem na vida, mais fácil se torna experimentar o medo. Christine parecia tão preciosa para mim - talvez por isso eu estivesse assustado.

O coração dirige a razão.

Não era assim que a maioria dos homens agiria, mas eu ainda estava aprendendo e falei:

-Eu a amo mais que tudo que amei na vida, Christine. Você me ajuda a ver e sentir as coisas de modo diferente. Amo seu sorriso, seu jeito com as pessoas, especialmente com as crianças. Amo sua gentileza. Amo abraçá-la como faço agora. Amo mais do que eu poderia dizer se ficasse aqui parado falando o resto da noite. Gosto muito de você. Não quer se casar comigo, Christine?

Ela não respondeu de imediato. Senti-a recuar, só um pouco, e meu coração se apertou. Olhar dentro dos seus olhos e ver dor e incerteza partiu meu coração.

-- Oh, Alex, Alex - ela sussurrou, parecendo que ia chorar. - Não posso lhe dar uma resposta. Você acabou de chegar de Boston. Esteve em outro horrível, horrível caso de assassinato! Acho isso insuportável. Sua vida ficou novamente em perigo! Aquele louco furioso esteve em sua casa. Ameaçou sua família. Não me diga que não foi assim!

Não ia dizer. Fora uma experiência apavorante e eu quase morrera.

- Não posso negar nada do que está me dizendo. Mas eu realmente gosto muito de você. E isso também não posso negar. Deixo a força policial se for preciso.

- Não. - Uma expressão suave brotou nos olhos dela, que balançava a cabeça de um lado para o outro. - Seria um erro terrível. Para nós dois.

Continuamos abraçados na varanda, mas eu sabia que estávamos numa encrenca. Uma encrenca que eu não sabia como resolver. Não fazia a menor idéia. Talvez se deixasse a polícia e voltasse a ser um terapeuta em tempo integral, pudesse proporcionar uma vida mais equilibrada a Christine e às crianças. Mas quando ia fazer isso? Conseguiria mesmo largar a polícia?

- Peça de novo - ela murmurou. - Peça de novo, um dia.

 

Eu e Christine ficamos namorando desde aquela noite, e tudo parecia certo, cômodo, conveniente e romântico. Sempre seria assim entre nós. Contudo, eu me perguntava se nosso problema tinha solução. Poderia ela ser feliz com um detetive de homicídios? Poderia eu largar o posto? Realmente não sabia.

Fui arrancado desses pensamentos pelo gemido estridente, entrecortado, de uma sirene na Twelfth Street, logo depois da esquina da rua E. Franzi a testa quando vi o Nissan preto de Sampson parar na frente do Santo Antônio.

Ele desligou a sirene no teto do carro, mas logo começou a tocar a buzina, e com insistência. Percebi que estava à minha procura, provavelmente para me levar a um lugar aonde eu não queria ir. A buzina continuava a tocar.

- É seu amigo John Sampson - gritou Jimmy Moore. - Não está ouvindo, Alex?

- Eu sei quem é - respondi a Jimmy também gritando. - Estou querendo que ele vá embora.

- Não é o que parece estar querendo fazer. Finalmente resolvi sair e ouvi alguns apupos e queixas ao atravessar a fila dos que esperavam a sopa. Gente que eu já conhecia muito bem me acusava de ter um turno muito pequeno. Diziam que se eu não gostava do dispensário, eles estavam prontos para tomar o meu lugar.

- O que houve? - gritei para Sampson antes de chegar ao carro esporte preto.

A janela de Sampson começou a baixar e logo eu punha a cabeça para dentro.

- Esqueceu? É meu dia de folga - lembrei a ele.

-E Nina Childs - disse Sampson no tom baixo, suave, que ele só usava quando se sentia irritado ou quando o assunto era muito sério. Naquele momento, Sampson tentava controlar seus músculos faciais, parecer durão, não emotivo, mas a coisa não estava funcionando muito bem. - Nina está morta, Alex.

Tremi sem querer. Depois abri a porta do carro e entrei. Nem mesmo voltei ao Santo Antônio para me despedir de Jimmy Moore. Sampson deu a partida com uma guinada do volante, que afastou bruscamente o carro do meio-fio. A sirene voltou a tocar, mas naquele momento eu quase acolhi com alegria o tom fúnebre daquele gemido. Ele me entorpecia.

- O que soube até agora? - perguntei depois que saímos das ruas intensamente áridas da zona sudeste, entramos na ponte e começamos a atravessar as águas cinza-azuladas do rio Anacostia.

- Encontraram-na numa casinha abandonada, entre a Eighteenth e a Garnesville-disse Sampson. - Jerome Thurman foi para o local. Diz que provavelmente ela está lá desde o fim de semana. Algum tomador de pico achou o corpo. Ela estava sem roupa e sem identidade, Alex.

E como souberam que era Nina? - perguntei, olhando-o com atenção.

Foi reconhecida na cena do crime por um dos policiais de uniforme. Ele a conhecia do hospital. Todos conheciam Nina.

Fechei os olhos, mas vi o rosto de Nina Childs e abri-os de novo. Tinha sido a enfermeira-chefe do turno das onze às sete numa unidade de emergência, a mesma onde um dia eu entrara como um tornado, com um menino morrendo em meus braços. Seria impossível lembrar o número de vezes que eu e Sampson tínhamos recebido ajuda de Nina. Sampson fora seu namorado por mais de um ano; depois romperam. Ela acabara se casando com um vizinho, um homem que trabalhava na prefeitura. Tiveram dois filhos, dois bebezinhos, e Nina me parecera muito feliz da última vez que eu a vira.

Era difícil acreditar que estivesse morta num prédio imundo, do lado errado do rio Anacostia. Fora jogada ali, como uma das fulaninhas.

 

O corpo de Nina Childs foi encontrado numa velha casa geminada, numa das áreas mais empobrecidas, deterioradas e deprimentes da cidade. No local, havia apenas um carro-patrulha e o furgão enferrujado e amassado do necrotério; na zona sudeste, os homicídios já não atraem muita atenção. Um cão latia em algum lugar, e era o único som naquele trecho de rua.

Para chegar lá, eu e Sampson tivemos de atravessar a pé um mercado de drogas ao ar livre na esquina da Eighteenth Street. A maioria do público era de homens novos, mas algumas crianças e duas mulheres também estavam desafiadoramente ali reunidas. Por toda parte existem pontos de venda de drogas naquele trecho da zona sudeste. A atividade dos jovens da vizinhança é o comércio do crack.

- Pegando o corpo do dia, oficiais? - disse um dos rapazes. Estava de calça e suspensórios pretos, sem camisa, meias ou sapatos. Tinha um físico de pátio de prisão e tatuagens por todo lado.

- Se vão tirar o lixo da casa - resmungou um homem mais velho, atrás de uma mancha de barba espigada e suja -, levem também a porra do cachorro. Latiu a noite inteira. Façam alguma coisa de útil - acrescentou.

Ignorando os comentários, eu e Sampson continuamos atravessando a Eighteenth até chegarmos à casa de madeira com três andares. Debruçado numa janela do terceiro andar, como um antigo morador, havia um boxer preto e branco, que latia sem parar. Excluindo isso, a construção parecia deserta.

A porta da frente, que já fora forçada com pé-de-cabra uma centena de vezes, escancarou-se com facilidade. O prédio cheirava a fumaça, lixo, água suja. Havia um enorme buraco no teto feito por um cano de aquecimento que estourara. Era terrível que Nina tivesse acabado seus dias num lugar tão sombrio, tão asqueroso!

Durante mais de um ano eu investigara extra-oficialmente crimes não-resolvidos na zona sudeste, muitos deles envolvendo moças sem identificação, ”fulanas de tal”, fulaninhas. Minha conta era de bem mais de cem, embora ninguém no departamento estivesse disposto a concordar com esse número ou qualquer coisa perto disso. Várias das mulheres assassinadas eram usuárias de drogas ou prostitutas. Mas esse não era o caso de Nina.

Descemos cuidadosamente uma escada em caracol sem tocar na madeira oscilante e meio podre do corrimão. Vi lanternas brilhando à frente e eu mesmo já acendera minha Maglite.

Nina estava no fundo do porão do prédio abandonado. Pelo menos alguém se preocupara em esticar uma fita amarela para proteger a cena do crime.

Fitei o corpo de Nina - e tive de desviar os olhos.

Não apenas por ela estar morta: era o modo como fora morta. Tentei fixar o olhar e a mente em algum outro ponto para recuperar um certo controle.

Jerome Thurman estava lá com o pessoal do necrotério. Vi também um policial da patrulha, provavelmente o que identificara o corpo. Não havia ninguém da perícia. Muitas vezes a perícia nem aparecia nas cenas dos crimes da zona sudeste.

No chão, perto do corpo, havia flores murchas. Ainda incapaz de olhar outra vez para Nina, concentrei-me nas flores. A coisa não se encaixava muito bem nas mortes em série das fulaninhas, mas nem sempre o matador seguia o mesmo padrão. Era um dos problemas que eu enfrentava. Talvez as fantasias dele ainda estivessem em processo de evolução; talvez ainda não tivesse acabado de engendrar todos os detalhes de sua história horrível.

Vi pedaços de papel alumínio e folhas de celofane espalhados pelo chão. Ratos são atraídos por coisas brilhantes e freqüentemente as levam para os ninhos. Grossas teias de aranha se entrelaçavam de uma ponta a outra do porão.

Eu tinha de olhar outra vez para Nina. Precisava olhar com mais atenção.

- Sou o detetive Alex Cross. Deixe-me examiná-la, por favor - disse finalmente à dupla do necrotério, um homem e uma mulher na casa dos vinte. - Só vou levar alguns minutos; depois não atrapalho mais.

- Os outros detetives já liberaram o corpo - disse o rapaz. Era muito magro e tinha um cabelo comprido, louro-escuro. Nem se preocupou em olhar para mim. - Vamos acabar nosso trabalho e sair logo deste maldito esgoto. Toda a área é extremamente insalubre. Só há cheiro de merda.

- Abram caminho - berrou Sampson. - Você! Saia logo da frente se não quiser que eu arranque os ossos do seu rabo!

O técnico do necrotério disse um palavrão, mas se levantou e se afastou do corpo de Nina. Cheguei mais perto, tentando me concentrar, ser profissional, procurando me lembrar dos detalhes específicos que vira nas ”fulaninhas” assassinadas na zona sudeste. Procurava alguma conexão e me perguntava se um único predador poderia estar matando tanta gente. Se assim fosse, aquilo seria uma das matanças mais selvagens já ocorridas.

Respirei fundo e me ajoelhei ao lado de Nina. Os ratos tinham andado nela, eu podia ver, mas o trabalho do assassino fora muito pior.

Era como se tivesse sido espancada até a morte, com socos e possivelmente pontapés. Parecia ter sido golpeada cem vezes ou mais. Raramente eu vira alguém ser submetido a um tratamento tão brutal. Por que aquilo tinha de acontecer? Ela, uma mulher de trinta e um anos, mãe de dois filhos, generosa, talentosa, dedicada a seu trabalho no hospital.

De repente, houve um barulho na casa, como um tiro de rifle. Ecoou através das paredes do porão. Os funcionários do necrotério deram um pulo.

Rimos num tom nervoso. Eu sabia exatamente que barulho era aquele.

- Só ratoeiras - informei à dupla do necrotério. - Vão se acostumando.

 

Fiquei na cena do crime um pouco mais de duas horas, muito mais tempo do que queria ficar, e detestei cada segundo. Não conseguia encaixar num padrão específico as mortes das fulaninhas, e o assassinato de Nina Childs só complicava. Por que o criminoso a golpeara tantas vezes e de modo tão selvagem? O que as flores estavam fazendo ali? Será que tudo era obra do mesmo matador?

Meu modo habitual de operar no local de um crime é deixar a investigação assumir quase um enfoque cartográfico. Tudo emana do corpo.

Eu e Sampson circulamos por todo o local, passando do porão aos andares superiores e daí ao telhado. Depois caminhamos pelos arredores. Ninguém vira nada de estranho, o que não foi surpresa para nós.

Agora vinha a parte realmente má. Eu e Sampson fomos da miserável habitação para o apartamento de Nina na Brookland, uma área de Washington a leste da Universidade Católica. Eu sabia que estava me envolvendo de novo num caso perigoso, mas não podia fazer nada.

Era um dia de calor sufocante, com o sol castigando cruelmente Washington. Seguíamos em silêncio, ambos retraídos. O que tínhamos a fazer era a pior parte do nosso trabalho - informar uma família da morte de um ente querido. Daquela vez, eu não tinha certeza se seria capaz de fazê-lo.

O apartamento de Nina ficava na rua Monroe, num conservado prédio de paredes marrons com tijolos aparentes. Nas janelas, pequenas rosas amarelas floresciam em canteiros pintados de verde. Não parecia que algo de ruim pudesse acontecer com alguém que morasse ali. Tudo parecia tão claro e promissor, exatamente como Nina tinha sido.

Eu me sentia cada vez mais perturbado, cada vez mais nervoso com o assassinato brutal, obsceno, e com o fato de que provavelmente o caso não ganharia uma boa investigação por parte do departamento, pelo menos não oficialmente. Nana, minha mãe, teria sua oportunidade de recorrer a teorias conspiratórias sobre os senhores brancos e seu ”criminoso desinteresse” nas pessoas do sudeste. Diversas vezes ela me dissera que se sentia moralmente superior às pessoas brancas, pois nunca, jamais as trataria do modo como elas tratavam as pessoas negras de Washington.

- A irmã de Nina, Marie, cuida das crianças - disse Sampson enquanto descíamos a Monroe. - É uma boa moça. Já teve um problema com drogas, mas superou. Nina ajudou. A família é muito unida, Alex. Um pouco como a sua. Bem, isso vai ser realmente desagradável.

Virei-me para ele. Como era natural, a morte de Nina estava sendo uma experiência ainda mais difícil para Sampson do que para mim. Raramente, no entanto, ele deixava transparecer as emoções.

- Faço isso sozinho, John - disse eu. - Fique aqui no carro. Eu subo e converso com a família.

John Sampson balançou a cabeça e suspirou alto. •- Não é assim que funciona, parceiro.

Ele encostou o Nissan no meio-fio e saltamos. Quando não me puxou pelo braço, percebi que estava querendo que eu o acompanhasse até o apartamento. Tinha razão. A coisa ia ser realmente má.

A residência dos Childs ocupava o primeiro e o segundo pisos do pequeno prédio. A porta da frente tinha grades de alumínio ligeiramente trabalhadas. O marido de Nina já estava na porta. Vestia o uniforme proletário da secretaria da habitação, onde trabalhava: botas manchadas de terra, calça jeans azul e uma camisa com a inscrição: Prefeitura de Washington. Um dos bebês estava aninhado em seus braços, uma bela menina que olhou para mim, sorriu e deu um gritinho.

- Podemos entrar um instante? - perguntou Sampson.

- Já sei, é Nina - disse o homem, começando a perder o controle ali mesmo, no umbral da porta.

- Sinto muito, William - falei em voz baixa. - Você tem razão. Ela se foi. Encontraram o corpo esta manhã.

William Childs começou a soluçar. Tinha um físico imponente, mas naquele momento isso não importava. Abraçando a atordoada menininha, tentava controlar o choro, mas não conseguia.

- Oh, Deus, não. Oh, Nina, Nina meu bem! Como alguém teve a coragem de matá-la? Como alguém pôde fazer isso? Oh, Nina, Nina, Nina!

Uma jovem e bela mulher se aproximou por trás dele. Só podia ser Marie, a irmã de Nina. Ela tomou o bebê dos braços do cunhado e a menininha começou a chorar, como se soubesse o que tinha acontecido. Eu já vira tantas famílias, tantas pessoas de bem perdendo entes queridos no clima impiedoso das ruas! Sabia que a coisa nunca cessaria por completo, mas um dia achei que ia melhorar. Isso nunca aconteceu.

A irmã fez sinal para entrarmos e vi dois livros de bolso numa mesinha de centro, como se Nina ainda estivesse lá. O apartamento era confortável e bonito, com almofadas brancas nas poltronas de vime. Havia o zumbido constante de um aparelho de ar refrigerado. Na mesa ao lado do sofá, vi a boneca de porcelana da Llardo, uma enfermeira.

Eu ainda procurava encaixar os detalhes da cena do crime, tentando conectar o assassinato às outras mortes anônimas. Ficamos sabendo que, na noite de sábado, Nina fora a um jantar nue devia angariar fundos para assistência a doentes carentes. Nesse mesmo dia, William fizera horas extras. A família chamou a polícia no fim dessa noite de sábado. Dois detetives apareceram, mas nenhum deles conseguiu encontrá-la.

De repente, vi-me segurando o bebê enquanto a irmã de Nina esquentava a mamadeira. Era um momento tão triste; era tão pungente saber que aquela pobre menina jamais tornaria a ver a mãe, jamais saberia como Nina fora uma pessoa realmente especial. Lembrei-me de meus próprios filhos, da mãe deles e de Christine, que tinha medo que eu morresse durante a investigação de um assassinato como aquele.

A menina mais velha se aproximou de mim enquanto eu estava segurando sua irmãzinha. Teria no máximo dois ou três anos.

- Fiz um novo penteado - disse orgulhosa, dando uma volta para me mostrar.

- Você fez? É bonito. Mas quem amarrou as tranças?

- Mamãe - disse a menina.

Só uma hora mais tarde, eu e Sampson deixamos a casa. Partimos calados, angustiados, no mesmo clima, aliás, da ida. Depois de atravessarmos duas quadras, Sampson parou na frente de uma decrépita adega do bairro, um lugar cheio de cartazes com anúncios de soda e cerveja.

Ele deu um suspiro profundo, pôs as mãos no rosto e chorou. Apesar de sermos amigos há muitos anos, eu nunca tinha visto John naquele estado, nem mesmo quando éramos garotos. Estendendo o braço, pousei a mão em seu ombro. Ele não se esquivou e me disse uma coisa que nunca havia compartilhado com ninguém:

- Eu gostava muito de Nina, mas a deixei escapar, Alex. E nem cheguei a dizer a ela como lamentava. Temos de pegar esse filho-da-puta.

 

Senti que estava no início de outro terrível caso de homicídio. Não queria mergulhar tão fundo, mas não podia controlar o meu horror. Tinha de fazer alguma coisa a respeito das mortes das fulaninhas. Não podia ficar assistindo de braços cruzados.

Embora tivessem me mandado para o sétimo distrito como simples detetive, ainda que veterano, meu posto de oficial de ligação com o FBI dava-me um certo status privilegiado e a liberdade eventual de trabalhar sem demasiada supervisão ou interferência. Minha mente estava se soltando e eu já encontrara certos pontos de contato entre o assassinato de Nina e pelo menos algumas das outras mortes misteriosas. Primeiro, em nenhuma cena do crime fora encontrada uma identificação da vítima. Segundo, os corpos tinham sido freqüentemente jogados em prédios onde não seriam localizados tão cedo. Terceiro, nem uma única testemunha tinha visto alguém que pudesse ser considerado suspeito. Nossa situação mais promissora foi quando apareceu um corpo num ponto movimentado da área de população negra de Washington, um local onde geralmente havia tráfego e gente na rua. Também ali não houve testemunhas, mas pelo menos foi possível deduzir que o assassino só se misturaria facilmente com as pessoas se também fosse negro.

Por volta das seis daquela noite, cheguei finalmente em casa, onde tinha coisas a fazer. Aquele devia ser meu dia de folga e eu estava tentando equilibrar o melhor que podia as exigências do trabalho com a vida doméstica. Pus um sorriso na cara e entrei.

Damon, Jannie e Nana cantavam (Sit Down, vou ’ré Rockin’ de Boat) na cozinha. O clima de show foi ótimo para meus ouvidos e outras partes essenciais de minha anatomia. Muita coisa se poderia dizer da incrível inocência da infância e os garotos pareciam realmente estar se divertindo muito.

- Que tal... - ouvi Nana sugerir - / Can Tell the World?

Os três iniciaram uma das mais belas canções evangélicas que conheço e a voz de Damon me pareceu particularmente forte. Sem dúvida, eu ainda não tinha reparado nisso.

Tenho a impressão de estar entrando numa história de Louisa May Alcott - disse eu, rindo pela primeira vez naquele longo dia.

Encaro isso como um incrível elogio! - disse Nana. Já estava em algum ponto entre setenta e tantos e oitenta e poucos anos, mas não dizia (e também não aparentava) a idade.

- Quem é Louisa Maise Alcott? - Jannie perguntou com o ar de quem comeu limão. Era sempre sadiamente cética, embora quase nunca cínica, no que se parecia com o pai e com a avó.

- O que acha de procurar descobrir hoje à noite? - disse eu. - Cinqüenta centavos de dólar no seu bolso pela resposta correta.

- vou descobrir - disse Jannie sorrindo. - Se quiser, pode me pagar agora mesmo.

- E eu? - perguntou Damon.

- É claro. Você pode pesquisar sobre Jane Austen - sugeri. - Gostei muito da música celeste, mas por que não me dizem o que a ocasião tem de tão especial?

- Só estávamos cantando enquanto preparávamos o jantar - disse Nana, empinando o nariz e piscando os olhos. - Às vezes você toca jazz e blues no piano, não é? E às vezes nós cantamos como anjos! Não precisamos de nenhuma razão especial. É bom para a alma, acho que alimenta a alma. Mal não faz.

- Bem, não parem de cantar por minha causa - disse eu, mas eles já haviam parado. Muito esquisito. Algo estava acontecendo; pelo menos disso eu tinha certeza. Um mistério musical a ser resolvido em minha própria casa.

-Ainda estamos animados para o boxe depois do jantar? - perguntei com cuidado.

Sentia-me um tanto vulnerável, pois não queria que se concentrassem demais nas lições de boxe - lições que vinham se transformando num ritual.

- É claro - disse Damon franzindo a testa, como se eu tivesse de estar fora de mim para fazer uma pergunta daquelas.

- E claro que estamos animados! - disse Jannie, também repelindo a pergunta boba com um aceno de mão. - Por que não estaríamos? - E depois: - Como vai a sra. Johnson? Vocês se encontraram hoje?

Respondi a Jannie com uma pergunta.

- Ainda gostaria de saber qual era o motivo da cantoria.

- Bem, você tem informações valiosas. Eu também. É toma lá, dá cá. O que acha da idéia?

Um pouco mais tarde, decidi telefonar para a casa de Christine. Ultimamente, nossa relação era mais ou menos como antes de meu envolvimento no caso do sr. Smith. Conversamos um pouco e convidei-a para sair na sexta-feira.

- É claro, eu gostaria muito, Alex. O que acha que devo usar?

- Bem - disse eu num tom hesitante -, sempre gosto das suas escolhas... Mas use alguma coisa especial.

Ela não perguntou por quê.

 

Após um dos jantares de Nana (o frango assado com batatasdoces mais o pão caseiro), levei as crianças para a aula semanal de boxe no andar de baixo. Esperei que completassem sozinhas o roteiro de lutas daquela terça-feira e, quando consultei o relógio, já passava um pouco das nove.

Logo a seguir, a campainha tocou. Larguei o livro, um livro horroroso chamado A cor da água, e me levantei da cadeira.

- vou atender - gritei. - Deve ser pra mim.

- Talvez seja Christine, a gente nunca sabe - disse Jannie disparando para a porta da cozinha. As duas crianças adoravam Christine, apesar de ela ser a diretora da escola onde estudavam.

Eu, no entanto, sabia exatamente quem havia chegado. Estava esperando quatro detetives da seção de homicídios do primeiro distrito: Jerome Thurman, Rakeem Powell, Shawn Moore e Sampson.

Três deles se achavam de pé na varanda dos fundos. Eu e Rosie, a gata, os deixamos passar. Sampson chegou cinco minutos depois e nos reunimos no quintal atrás da casa. O que estávamos fazendo não era ilegal, mas também não nos conquistaria muitos amigos na alta hierarquia do departamento de polícia.

Sentamos em cadeiras de jardim e eu servi cerveja e os biscoitos dietéticos que deram motivo para a zombaria de Jerome, com cento e vinte quilos.

. Cerveja com biscoito dietético. Dê um tempo, Alex!

Ficou maluco? Ei, está tendo um caso com minha mulher? Porque uma idéia dessas só pode ter vindo da cabeça de Claudette.

Comprei os biscoitos especialmente para você, rapaz.

-Os outros deram boas gargalhadas e acrescentei: - Estou tentando fazer alguma coisa pelo seu coração. - Jerome, sem dúvida, costumava ser o nosso pato.

Há duas semanas vínhamos os cinco nos encontrando informalmente. Estávamos começando a trabalhar no caso ”das fulaninhas”, como o apelidamos. A seção de homicídios não tinha qualquer investigação oficial em andamento e ninguém lá dentro tentara vincular os crimes a um serial killer. Tentei iniciar uma investigação e fui dissuadido pelo chefe Pittman. Ele alegou que eu não encontrara qualquer padrão ligando os assassinatos e que, além disso, não havia detetives de reserva para substituir nossa equipe na zona sudeste.

- Acho que, a essa altura, todos aqui já ouviram falar de Nina Childs, certo? - Sampson perguntou aos outros. Todos tinham conhecido Nina; Jerome, é claro, estivera conosco na cena do crime.

- A coitada morreu muito moça. - Rakeem Powell franziu severamente a testa e balançou a cabeça. Rakeem é inteligente, enérgico e podia fazer uma bela carreira no departamento. Ele acrescentou com um olhar frio, duro: - As coisas são assim no sudeste.

Eu disse a eles o que sabia, especialmente que Nina fora encontrada sem nenhuma identidade. Mencionei tudo que observara no prédio abandonado. Também aproveitei a ocasião Para falar um pouco mais sobre a torrente de crimes não resolvidos no sudeste. Fui repassando as devastadoras anotações que lzera (a maior parte delas em minhas horas de folga).

- ”Vejam o que mostram as estatísticas em Georgetown ou no distrito do Capitólio” - eu li. - ”As pessoas nesta cidade estão ficando exasperadas, em ponto de bala. Vejam as manchetes diárias do Washington Post. O próprio presidente se envolveu na questão. Dinheiro já não é problema. Uma tragédia nacional!”

Jerome Thurman sacudiu a cabeça e agitou os braços como bandeiras de sinalização.

- Bem, estamos aqui para tomar alguma providência - disse eu num tom mais calmo. - Dinheiro é problema entre nós. Tempo também. Mas deixem que eu diga o que acho deste criminoso. Penso que sei algumas coisas a respeito dele.

- Não acredito que já tenha conseguido um perfil! - disse Shawn Moore. - Não sei como suporta ficar pensando nesses desgraçados.

Sacudi os ombros.

É o que faço melhor - respondi. - Analisei todas as fulaninhas. Passei semanas trabalhando por conta própria, enfrentando sozinho o patife.

- Tem mais - disse Sampson -, ele chega a examinar o cocô dos ratos. Já o vi recolhendo os montinhos. Esse é seu verdadeiro segredo!

Mostrei os dentes e disse a eles o que conseguira até aquele momento:

- Acho que um único homem é responsável por pelo menos algumas dessas mortes. Talvez uma dúzia delas. Não acredito que seja um assassino brilhante, como Gary Soneji ou o sr. Smith, mas é suficientemente esperto para não ser apanhado. Parece organizado, razoavelmente cuidadoso. Sua ficha policial deve ser limpa e provavelmente tem um trabalho decente. Talvez uma família. Meus amigos do FBI em Quantico concordam com isso.

Prossegui:

- Ele está quase definitivamente enredado no ciclo de escalada de suas fantasias. Acho que começa a viver em tempo integral dentro delas. Talvez, até, esteja à beira de produzir alguma coisa nova, de se transformar em alguém diferente. Pode estar criando uma nova personalidade para si próprio. E sem dúvida ainda não acabou com a matança, com certeza que não. ”vou fazer algumas suposições razoáveis”, continuei. ”O sujeito odeia a si mesmo, embora as pessoas que convivem com ele provavelmente não percebam isso. Pode estar pronto a abandonar a família, o trabalho, os amigos que por acaso tenha. Em algum momento, ele provavelmente teve sensações e crenças muito fortes a respeito de alguma coisa (lei e ordem, religião, governo), mas não tem mais. Mata de diferentes modos; não há uma fórmula preestabelecida. Sabe, sem dúvida, muita coisa acerca de matar pessoas e tem usado diferentes tipos de armas. Talvez já tenha estado no exterior. Talvez já tenha passado algum tempo na Ásia, por exemplo. Acho que muito possivelmente é negro. Já matou várias vezes na zona sudeste e ninguém reparou nele.”

- Cacete! - disse Jerome Thurman depois do que ouviu. - Será que você não tem nenhuma coisa boa para dizer, Alex?

- Tenho, só que é uma suposição arriscada. Mas me parece correta. Acho que pode ser um suicida. O que se ajusta ao perfil que estou esboçando. Está vivendo perigosamente, assumindo um bom número de riscos. Pode muito simplesmente implodir.

- E aí é que o gambá torce o rabo - disse Sampson. Foi assim que passamos a chamar o assassino: Gambá.

 

Geoffrey Shafer aguardava ansioso as noites de quinta-feira. Era quando fazia o jogo dos Quatro Cavaleiros, das nove até mais ou menos uma da manhã.

O jogo e a fantasia significavam tudo para ele. Havia três outros grandes jogadores no mundo: o Cavaleiro no Cavalo Branco, a Conquista; o Cavaleiro no Cavalo Vermelho, a Guerra, e o Cavaleiro no Cavalo Negro, a Fome. Ele era o Cavaleiro no Cavalo Sem Cor, a Morte.

Lucy e as crianças estavam proibidos de perturbá-lo por qualquer motivo quando ele se trancava na biblioteca do segundo andar. Numa parede, estava sua coleção de adagas rituais, quase todas compradas em Hong Kong e Bangkok. Também na parede achava-se o remo do ano em que a equipe de sua faculdade ganhou a ”Esticada”. Shafer quase sempre ganhava os jogos que disputava.

Há anos vinha usando a Internet para se comunicar com os outros jogadores, muito tempo antes do resto do mundo entrar na rede. A Conquista jogava da cidade de Dorking, em Surrey, periferia de Londres; a Fome viajava de um lado para o outro entre Bangkok, Sidney, Melbourne e Manila; a Guerra costumava jogar da Jamaica, onde tinha uma grande propriedade à beiramar. Havia sete anos faziam o jogo dos Cavaleiros.

Em vez de se tornar repetitivo, o jogo se expandira. Vinha se desenvolvendo a cada ano, renovando-se, tornando-se cada vez mais desafiador. O objetivo era criar a mais deliciosa e incomum fantasia ou aventura. A violência (mas não necessariamente assassinato) quase sempre fazia parte do jogo. Shafer fora o primeiro a alegar que suas histórias não eram absolutamente fantasias, pois as vivera no mundo real. Agora, os outros já garantiam que tinham passado a fazer o mesmo. Shafer, é claro, não podia saber se realmente estavam dizendo a verdade. De qualquer forma, tratava-se de criar, a cada noite, a mais espantosa fantasia, de modo a obter uma vantagem sobre os outros jogadores.

Às nove horas de sua vez de jogar, Shafer estava no laptop. Assim como os outros. Raramente algum deles perdia uma sessão, mas se isso acontecesse na vez de Shafer, o faltoso poderia recorrer ao material que ele deixava: extensas mensagens, às vezes desenhos ou mesmo fotos de supostas amantes e vítimas. Até filmes eram eventualmente usados, e nessas ocasiões os outros jogadores tinham de analisar se viam seqüências encenadas ou ”cinema vérité”.

Shafer não podia se imaginar deixando passar a sua vez de jogar. A Morte era de longe o personagem mais interessante, o mais poderoso e original. Já faltara a importantes eventos sociais reuniões na embaixada só para estar disponível nas noites de quinta. Jogou quando teve pneumonia; jogou no dia seguinte a uma delicada operação de hérnia dupla.

Sob diferentes aspectos, os Quatro Cavaleiros eram muito especiais, mas o mais importante era o fato de não existir um primeiro jogador para ativar e controlar a ação do jogo. Desde que jogasse pelo arremesso dos dados e permanecesse dentro dos parâmetros do personagem, cada um tinha completa autonomia para escrever e visualizar sua própria história.

Na realidade, havia quatro primeiros jogadores nos Cavaleiros e nenhum outro jogo era como ele. Só dependia da imaginação dos participantes e de suas habilidades na apresentação dos lances fazê-lo o mais chocante, o mais horripilante possível.

A Conquista, a Fome e a Guerra estavam todas presentes.

 

Shafer começou a digitar.

A MORTE TRIUNFOU NOVAMENTE EM WASHINGTON. vou NARRAR OS DETALHES. DEPOIS OUVIREI AS GLORIOSAS HISTÓRIAS QUE ME CONTARÃO COM A FORÇA IMAGINATIVA DA CONQUISTA, DA GUERRA E DA FOME! VIVO PARA ISSO, COMO É TAMBÉM, Eu SEI, O CASO DE VOCÊS.

NESTE FIM DE SEMANA, PEGUEI DE NOVO MEU FANTÁSTICO TÁXI, A ”MÁQUINA DO PESADELO”, E ME DEPAREI COM VÁRIAS OPÇÕES DE VÍTIMAS PROMISSORAS. REJEITEI, NO ENTANTO, TODAS ELAS COMO DESPREZÍVEIS ATÉ ENCONTRAR MINHA RAINHA, A MULHER QUE ME TROUXE À MEMÓRIA OS DIAS EM BANGKOK E MANILA QUEM PODERÁ ESQUECER A SENSUALIDADE SANGRENTA DE UM RINGUE DE BOXE?

O FATO, SENHORES, É QUE MONTEI UMA ENGRAÇADA PARTIDA DE KICK BOXING, ONDE A ACERTAVA COM AS MÃOS E OS PÉS. ESTOU MANDANDO FOTOS

 

Algo estava acontecendo e não acho que fosse uma coisa muito boa. Cheguei à central de polícia do sétimo distrito pouco antes das sete e meia da manhã seguinte. Fora convocado por quem exercia devidamente a autoridade ali e a conversa não seria fácil. Tinha trabalhado até as duas da manhã, tentando descobrir uma pista para o assassinato de Nina Childs.

Tive a sensação de que o dia começava mal. Estava tenso, mais inquieto do que em geral eu me permitiria, e não gostei nem um pouco da chegada daquela ordem logo no início da manhã.

Balançando a cabeça, franzindo a testa, tentei rolar o pescoço para livrá-lo da cãibra. Finalmente, rangi nervosamente os dentes e abri a porta de mogno. George Pittman, chefe dos investigadores, estava à minha espera em seu gabinete, que consistia em três salas conjugadas, incluindo uma sala de reuniões.

O Chefe, como era chamado por seus muitos ”admiradores”, vestia um grande e quadrado paletó cinza, uma camisa branca muito engomada e uma gravata prateada. O cabelo, salpicado de grisalho e branco, estava penteado para trás. Parecia um banqueiro e, sob certo ponto de vista, era um. Como ele mesmo nunca se cansava de dizer, trabalhava com um orçamento prefixado e devia estar sempre atento às despesas com mãode-obra, aos custos das horas extras, aos custos de cada caso. Ao que parece, era um administrador eficiente, sendo talvez por isso que a corregedoria de polícia fazia vista grossa ao fato de ser um carreirista pedante, intolerante, racista.

Na parede havia três grandes e imponentes gráficos repletos de indicadores. O primeiro retratava dois meses consecutivos de estupros, homicídios e assaltos em Washington. O segundo fazia o mesmo com arrombamentos em residências e estabelecimentos comerciais. O terceiro gráfico se referia a carros roubados. Os gráficos e o Post diziam que os crimes tinham ocorrido em Washington, mas não onde eu morava.

- Sabe por que está aqui, por que mandei chamá-lo? - perguntou Pittman sem rodeios. Nenhuma cordialidade, nenhuma troca inicial de palavras, nenhuma sutileza do Chefe. - É claro que sabe, dr. Cross. É psicólogo, eu continuo me esquecendo disso. Não deve ignorar como a mente humana funciona.

Fique calmo, tenha cuidado, eu dizia a mim mesmo. E então, fiz a coisa que o chefe Pittman menos esperava. Sorri e respondi em voz baixa:

Não, eu realmente não sei por que me mandou chamar.

Recebi um telefonema do seu assistente e estou aqui.

Pittman devolveu o sorriso, como se eu tivesse dito uma boa piada, mas de repente ergueu a voz, o rosto e pescoço ficando muito vermelhos, as narinas brilhando, expondo os cabelinhos espigados que havia lá dentro. Uma de suas mãos se transformara num punho fechado, enquanto a outra estava toda esticada. Os dedos pareciam rígidos como os lápis que saíam da xícara de couro em cima da escrivaninha.

- Não enganou ninguém, Cross, muito menos a mim! Tenho a mais absoluta certeza de que está investigando homicídios na zona sudeste, homicídios que não estão em suas mãos... O chamado ”caso das fulaninhas”. Está fazendo isso contra as minhas ordens explícitas. Alguns desses casos já foram arquivados há mais de um ano e não vou admitir, não vou tolerar sua insubordinação, sua atitude arrogante! Sei o que está tentando provocar. Problemas para o departamento e, mais especificamente, problemas para mim. Já chega de puxar a porra do saco do prefeito agindo como herói folclórico da zona sudeste!

Detestei o tom de Pittman e o que ele estava dizendo, mas há muito tempo aprendi um truque, que é provavelmente a coisa mais importante que uma pessoa, dentro de qualquer organização, deve saber sobre política de escritório. Algo muito simples, mas uma chave para cada pequeno reino, cada pequeno feudo. O conhecimento é verdadeiramente poder, é tudo; se você não tiver nenhum, finja que tem.

Então eu não respondi ao chefe Pittman. Não o contradisse; não admiti coisa alguma. Não fiz nada. Eu e Mahatma Gandhi.

Deixei-o pensar que talvez eu andasse investigando casos antigos na zona sudeste - mas não admiti isso. Também deixei-o pensar que talvez tivesse algumas conexões poderosas com o prefeito Monroe, e só Deus sabe com que figuraça no Capitólio. Deixei-o pensar que podia estar atrás do cargo dele ou que teria até (Deus não permita) aspirações ainda mais elevadas.

- Estou trabalhando nos casos de homicídios que me foram atribuídos. Verifique com o comando. Faço o possível para concluir o maior número possível de casos.

Pittman balançou a cabeça concisamente - uma vez. Seu rosto continuava vermelho como num ataque cardíaco.

- Tudo bem, vou querer que me resolva um determinado caso e vou querer que o resolva depressa - disse. - Um turista foi roubado e abatido a tiros ontem à noite na rua M. Era um alemão de Munique, médico muito respeitado. Está na porra da primeira página do Post de hoje. Isso para não mencionar o International Herald Tribune e, é claro, cada jornal da Alemanha. Quero vê-lo neste caso de assassinato, e quero que seja prontamente concluído.

- O tal médico, ele é branco? - perguntei, mantendo uma expressão neutra.

- Já lhe disse, é alemão.

- Já tenho um bom número de casos abertos na zona sudeste - argumentei com Pittman. - Uma enfermeira foi morta no fim de semana.

Ele não quis ouvir. Balançou a cabeça - uma vez.

- E agora tem este importante caso em Georgetown. Resolva-o, Cross. Não está incumbido de trabalhar em mais nada. Essa é uma ordem direta... do Chefe.

 

Assim que Cross saiu do gabinete do chefe Pittman, uma antiga detetive de homicídios chamada Patsy Hampton entrou pela porta lateral que levava à sala de reuniões. A detetive Hampton fora instruída para ouvir toda a conversa, avaliar a situação do ponto de vista de um policial de rua, relatar e aconselhar.

Hampton não gostava da tarefa, mas eram ordens de Pittman.

Também não gostava de Pittman. Era tão próprio da natureza

dele ficar remexendo e ralando as coisas que, se você enfiasse carvão em seu eu, em duas semanas teria um diamante. Era ordinário, mesquinho, vingativo.

Vê com quem estou lidando? Cross sabe apertar todos os meus botões. Antigamente, ele teria perdido a calma. Hoje simplesmente ignora o que eu digo.

Ouvi tudo - disse Hampton.-É esperto, não há dúvida.

Concordaria com o chefe Pittman, não importa o que ouvisse.

Patsy Hampton era uma mulher atraente, com cabelo meio louro meio ruivo, cortado curto, e os mais penetrantes olhos azuis deste lado de Estocolmo. Tinha trinta e um anos e fazia uma carreira bem rápida no departamento. Aos vinte e seis, fora a mais jovem detetive de homicídios em Washington. Agora, tinha em mente objetivos bem mais ambiciosos.

- Não menospreze sua capacidade, Pittman. Você o pegou de jeito. Eu sei que sim. - Dizia ao chefe o que ele queria ouvir. - Cross apenas internalizou muito bem a própria insegurança.

- Tem mesmo certeza de que ele está se encontrando com aqueles detetives?

- Pelo que sei, já se encontraram três vezes - ela respondeu -, e sempre na casa de Cross, na Fifth Street. Desconfio que houve outras reuniões. Fiquei sabendo por um amigo do detetive Thurman.

- Mas não se reúnem quando estão de serviço?

- Não, não que eu saiba. São cuidadosos. Fazem as reuniões quando estão de folga.

Pittman franziu a testa e balançou a cabeça.

- Isso é muito mau - disse. - Porque fica mais difícil provar qualquer coisa de peso real.

- Pelo que ouvi, acreditam que o departamento esteja retendo recursos que poderiam resolver alguns homicídios na zona sudeste e em partes da área nordeste. A maioria dos assassinatos envolve mulheres negras e de origem hispânica.

Pittman empinou o queixo e desviou os olhos de Hampton.

- Os números que Cross utiliza são uma besteira, não prestam pra nada - disse irritado. - O que ele está fazendo é pura política. Quantos recursos financeiros podemos aplicar nos casos de assassinato de viciados e prostitutas no sudeste? São criminosos matando outros criminosos. Você sabe como as coisas acontecem nessas áreas negras!

Hampton sacudiu de novo a cabeça, sempre concordando quando via a chance. Tinha medo de se dispersar e dizer a coisa errada ao falar a verdade.

- Eles acham que pelo menos certas vítimas eram mulheres inocentes que moravam naqueles bairros. A enfermeira de pronto-socorro que foi assassinada no fim de semana, por exemplo, era amiga de Cross e do detetive John Sampson. Cross acredita que haja um matador à solta na zona sudeste, à espreita de novas vítimas.

- Um serial killer no gueto? - disse Pittman. - Ora, dê um tempo! Nunca tivemos uma coisa dessas naquela área! Eles são raros em qualquer região densamente povoada. Por que apareceriam agora? Por que lá? Claro, porque Cross quer encontrar um deles, a razão é essa!

- Cross e os outros rebateriam dizendo que nunca tentamos investigar seriamente a coisa.

Os olhos de Pittman subitamente arderam em seu crânio.

- E concorda com essa estupidez, investigadora?

- Não, senhor. Eu não necessariamente concordo ou discordo. Sei que o departamento realmente não dispõe de recursos suficientes em parte alguma da cidade, com a possível exceção da área do Capitólio. Cross está fazendo política e nos insultando.

Pittman sorriu com a resposta. O Chefe sabia que Patsy jogava um pouco com ele, mas ainda assim gostava da moça. Era ótimo estar ali sozinho com Patsy Hampton. Ela era uma beleza, uma graça.

- O que sabe a respeito de Cross?

Patsy sentiu que o chefe estava se abrindo um pouco. Agora parecia querer que a conversa ficasse mais informal. Tinha

56 de que o homem gostava dela, que tinha uma queda por ela mas era demasiado imponente para agir conforme seus desejos, graças a Deus.

-- Sei que Cross entrou na polícia há cerca de oito anos. Ele é o atual oficial de ligação entre o departamento e o FBI e trabalha no Programa de Arresto de Criminosos Violentos. Pelo que sei tem boa reputação como investigador. Possui um Ph.D. em psicologia da Universidade Johns Hopkins. Antes de se ligar a nós, manteve por três anos um consultório particular. Viúvo, dois filhos, toca blues no piano que tem em casa. Isso chega? O que mais deseja saber? - Hampton finalmente sorriu. - Fiz meu dever de casa, você sabe que sim.

Agora Pittman também estava sorrindo. Tinha dentes pequenos com espaços entre eles, o que sempre fazia Hampton pensar em refugiados da Europa Oriental ou nos mafiosos russos.

A detetive, no entanto, continuava sorrindo. Sabia que Pittman gostava quando ela brincava - desde, é claro, que continuasse se sentindo respeitado.

- Alguma outra observação importante com relação a este ponto? - Pittman perguntou.

Que panaca, que besta quadrada que você é, Patsy Hampton teve vontade de dizer, mas só sacudiu a cabeça.

- Ele tem um certo charme e é bem relacionado nos círculos políticos. Posso entender por que está preocupado.

- Acha que Cross é um homem charmoso?

- Bem, Cross é interessante. Sem dúvida. As pessoas o acham parecido com o jovem Muhammad Ali. Acho que às vezes ele gosta de um joguinho: dance como borboleta, ataque como abelha! - Ela riu de novo; ele também.

- Vamos tirar a máscara desse Cross - disse Pittman. - Vamos fazê-lo voltar a jato para o consultório particular. Espere pra ver. E você vai ajudar na coisa. Afinal, também gosta de tudo em ordem, não é, detetive Hampton? Consegue ver o quadro é disso que eu gosto em você. Ela tornou a sorrir.

- É disso que eu gosto em mim, também.

 

A embaixada britânica é uma propriedade plana, imponente, localizada no número 3.100 da avenida Massachusetts. Fica ao lado da casa do vice-presidente e do observatório nacional. O embaixador reside numa grandiosa construção neoclássica com altas e graciosas colunas brancas; é na chancelaria, porém, que se concentram verdadeiramente as funções da representação.

Numa das salas da chancelaria, sentado atrás de sua pequena escrivaninha de mogno, Geoffrey Shafer contemplava a avenida. Naquele momento, o pessoal da embaixada incluía 415 pessoas, mas logo seria reduzido para 414, ele pensava. Nesse contingente havia assessores de defesa, especialistas em política externa, comércio e negócios públicos, além de funcionários comuns e secretárias.

Embora os Estados Unidos e a Grã-Bretanha tivessem um acordo de não-espionagem mútua, Geoffrey Shafer era um espião; um dos onze homens e mulheres do Serviço de Segurança (antigamente conhecido como MI-6) que trabalhavam na embaixada em Washington. Esses onze, por sua vez, comandavam agentes ligados aos consulados-gerais em Atlanta, Bostor Chicago, Houston, Los Angeles, Nova York e San Francisco.

Naquele dia, extremamente agitado, ele se levantava a toda hora da escrivaninha para andar no tapete que cobria os rangentes parquetes do assoalho. Deu telefonemas que não precisava dar tentou fazer alguma coisa, pensou em como desprezava esse trabalho e os detalhes da vida cotidiana.

Devia estar trabalhando num comunicado imbecil sobre absurdo e crescente comprometimento do governo com a defesa dos direitos humanos. O Ministério do Exterior proclamara, um tanto bombasticamente, que a Grã-Bretanha daria seu apoio uma condenação internacional dos regimes que não respeitavam os direitos humanos e aos organismos internacionais envolvido causa, e que denunciaria violações desses direitos, blablablá adnauseam.

Passou os olhos pelos jogos de computador que gostava de jogar quando estava tenso (Riven, MechCommander, Unreal, TOCA, Ultimate Soccer Manager), mas nenhum conseguiu interessá-lo; nenhum mesmo.

Começava a entrar em colapso; conhecia a sensação. Estou afundando e só há um meio certo de parar com isso: jogar os Quatro Cavaleiros.

Para piorar as coisas, chovia e o céu ficara tremendamente carregado. A cidade de Washington assim como as áreas rurais ao redor pareciam miseráveis, deprimentes. Tudo extremamente desagradável. Cristo, ele estava realmente de mau humor, mesmo para seus padrões!

Continuou a contemplar o lado direito da avenida Massachusetts, vendo as árvores na margem de uma praça dedicada ao artista Kahlil Gibran, com toda aquela besteira pacifista. Procurou, então, fantasiar um pouco, e se imaginou fodendo várias mulheres atraentes que trabalhavam naquele momento na embaixada.

Telefonara para a residência-consultório de Boo Cassady, sua psiquiatra, mas ela ia começar uma sessão e não puderam conversar muito tempo. Combinaram, no entanto, um encontro após o trabalho: uma passada desagradável e rapidinha no consultório antes dele voltar para casa, antes de encarar Lucy e as lamúrias da prole.

Não se arriscaria a jogar novamente os Cavaleiros naquela noite. Era cedo demais depois da enfermeira. Mas, pelo TodoPoderoso, como queria jogar! Gostaria de pegar alguém e usar da mais absoluta criatividade, ali mesmo dentro da embaixada.

E tinha uma excelente coisa para fazer à tarde, às três da tarde, algo que já estava reservado. Já usara os dados, já jogara um pouco dos Cavaleiros, pelo menos na dose suficiente para ajudá-lo a tomar uma decisão.

Telefonara para Sarah Middleton pouco antes do almoço, dizendo que precisavam ter uma conversa, perguntando se ela nao podia passar em seu escritório, digamos, às três?

Sarah estava obviamente tensa ao telefone, e disse que podia passar até mais cedo, na realidade a qualquer hora que conviesse a ele.

- Não está ocupada? - perguntou Shafer. - Tem pouco trabalho hoje? - Às três está ótimo, ela respondeu depressa.

Sua secretária, a rústica Betty, criada em Belgravia, tocou o intercom prontamente às três horas. Finalmente conseguira que ela agisse com precisão.

Shafer deixou-a tocar várias vezes, depois pegou abruptamente o fone, como se tivesse sido interrompido no meio de alguma atividade vital para a segurança.

- O que foi, sra. Thomas? Estou extremamente ocupado com o comunicado para o ministério.

-Desculpe por incomodá-lo, sr. Shafer, mas a sra. Middleton está aqui. Parece que o senhor marcou uma entrevista com ela às três horas.

- Hummm. Marquei? Sim, tem razão. Por favor, mande Sarah esperar. vou precisar de mais alguns minutos. Ligo quando estiver pronto para recebê-la.

Shafer deu um sorriso satisfeito e pegou um exemplar do The Red Coat, o boletim informativo dos funcionários da embaixada. Sabia que Betty odiava quando ele chamava a sra. Middleton pelo primeiro nome: Sarah.

Passou alguns instantes fantasiando um pouco a respeito de Sarah. Desde a primeira entrevista dos dois, tivera vontade de fazer uma tentativa junto a Sarah Middleton, mas era suficientemente cauteloso para não agir assim. Deus, como odiava a puta! A coisa ia ser muito engraçada.

Apreciou por mais dez minutos a chuva batendo nos carros que passavam na avenida Massachusetts. Por fim, agarrou e levantou o fone. Não dava para esperar nem mais um minuto.

- vou falar agora com Sarah. Mande-a entrar.

Ele sacudiu os dados de vinte lados. Aquilo podia ser realmente divertido. Terror no escritório.

 

A adorável Sarah Middleton entrou em sua sala e administrou um olhar cordial, quase um sorriso. Ele se sentiu como uma jibóia fitando um camundongo.

Sarah tinha um cabelo ruivo naturalmente cacheado, um rosto rrasoavelmente bonito e ar superior. Naquele dia, usava um casaco muito curto, uma blusa de seda vermelha com decote em V e meias pretas. Era óbvio para Shafer que estava atrás de um marido em Washington.

O pulso de Shafer palpitava com força. Sentia-se estimulado por ela, sempre fora assim. Gostava de imaginar como seria bom arrebatá-la, era a palavra que preferia usar. Sarah parecia menos nervosa e insegura do que seu estilo habitual, mas talvez isso apenas indicasse que se sentia de fato assustada e tentava não demonstrar. Shafer se esforçou, ao máximo, para se colocar na pele de Sarah. Desse modo, a coisa ficava ainda mais divertida, embora ele achasse um verdadeiro desafio conseguir se sentir tão frágil e inseguro quanto ela certamente estaria.

- Sem dúvida estávamos precisando da chuva - disse Sarah, baixando os olhos antes mesmo de terminar a frase.

- Sente-se, Sarah, por favor - disse Shafer, tentando manter uma expressão sóbria e convencional. - No que me diz respeito, eu abomino a chuva. É uma das muitas razões pelas quais nunca quis ficar servindo em Londres.

Suspirou de modo teatral atrás dos dedos erguidos e abertos como uma grade. Tinha vontade de saber se Sarah já teria reparado no comprimento de seus dedos e especulado sobre o que mais ele poderia ter de grande. Apostaria qualquer coisa que sim. Era desse modo que as mentes das pessoas trabalhavam, embora mulheres como Sarah jamais o admitissem.

Sarah limpou a garganta, depois pousou as mãos nos joelhos- Os nós dos dedos estavam brancos. Deus, ele estava se divertindo com seu evidente constrangimento! Ela parecia à beira de pular de dentro da pele. Ou, que tal, de dentro da blusa e da curta saia apertada?

Shafer começou a esticar os dedos sobre a mão direita, fazendo sua parte como dominador perfeito.

- Talvez eu tenha más notícias, Sarah. É bastante lamentável, de fato, mas não podem ser evitadas.

Ela se inclinou nervosamente na poltrona. Era realmente bem-feita de corpo e Shafer começava a ficar excitado.

- O que houve, sr. Shafer? Qual é o problema? O senhor está me dizendo que talvez tenha más notícias. Tem ou não?

- Precisamos dispensá-la. Eu tenho de dispensá-la. Cortes no orçamento, infelizmente. Sei que deve achar que é muitíssimo injusto, e também inesperado. Principalmente porque atravessou meio mundo, vindo da Austrália para pegar este emprego, e está morando em Washington há menos de seis meses. De repente, o machado cai.

Shafer tinha certeza de que ela estava realmente lutando para conter as lágrimas. Os lábios tremiam. Sarah, obviamente, nunca esperara uma coisa como aquela. Jamais lhe teria passado pela cabeça. Era uma mulher razoavelmente inteligente e controlada, mas não poderia deixar de ter fraquejado diante do que ouvira.

Excelente. Conseguira abatê-la. Pena não ter uma câmera para registrar a expressão do rosto, pois seria bom rever a cena inúmeras vezes em caráter particular.

Percebeu o exato instante em que ela desmoronou e guardou-o na memória como um tesouro. Contemplou os olhos molhados e viu as grandes lágrimas rolarem pelas faces, marcando a maquiagem de moça trabalhadora.

Teve a sensação de poder. E foi bom, correspondendo exatamente à sua expectativa. Um jogo pequeno e insignificante por certo, mas delicioso. Adorava sentir-se capaz de insular tamanho choque e dor.

- Pobre Sarah - murmurou. - Pobre, pobre querida.

Então Shafer fez a coisa mais cruel, mais imperdoável. Também a mais ultrajante e perigosa. Levantou-se da escrivaninha e deu a volta para consolá-la. Ficou atrás dela, encostando-se em seus ombros. Sabia que era a última coisa que Sarah queria, ser tocada por ele, sentir a sua ereção.

Sarah esticou o corpo e se esquivou como se Shafer estivesse em chamas.

- Desgraçado - disse ela entre dentes cerrados. - É um consumado porco!

Sarah Middleton saiu da sala, trêmula, em pranto, correndo tropegamente, como costumam fazer as mulheres quando estão de salto alto. Shafer adorava aquilo. O prazer sádico, não apenas de machucar, mas de destruir uma mulher ingênua como aquela. Guardaria para sempre na memória a imagem atordoante e a reproduziria vezes sem conta.

Sim, era um porco. Consumado, sem dúvida.

 

Observado por Rosie, a gata, empoleirada no parapeito da janela, eu me vestia para o encontro com Christine. Adoro caçar meus ratinhos, adoráveis ratinhos a devorar-como eu invejava a simplicidade da vida de Rosie!

Finalmente desci. Tirava folga naquela noite e havia muito que não me sentia tão nervoso, tão inquieto e agitado. Nana e as crianças percebiam que alguma coisa estava acontecendo, mas não sabiam o quê. Isso enlouquecia aqueles meus três curiosos.

- Papai, me diga o que está acontecendo, por favor! - Jannie apertava as mãos num gesto de prece, implorava.

- Já disse que não, e não é não. Nem que ficasse ajoelhada nos ossinhos do seu joelho eu ia contar - acrescentei, sorrindo.

Tenho um encontro hoje à noite. Só um encontro. E é só o que você precisa saber, senhorita.

- Um encontro com Christine? - perguntou Jannie. - pelo menos isso você podia dizer!

- Isso cabe a mim resolver - disse eu ao lado da escada, dando o laço da gravata no espelho. - E você, minha namorada perguntadeira, não vai descobrir!

- Está usando aquele paletó elegante de listras azuis, aquele sapato elegante de baile, aquela gravata elegante de que você gosta. Você está muito elegante.

- Acha mesmo que estou bem? - perguntei olhando para minha camareira pessoal. - Bonito para um encontro?

- Está muito bonito, papai. - O rosto de minha garotinha brilhou e tive certeza de que podia acreditar nela. Seus olhos eram espelhinhos cintilantes que sempre diziam a verdade. - Você sabe disso - ela continuou. - Você sabe que é muito bem apanhado.

- É mesmo a minha garota - disse eu, rindo de novo. Muito bem apanhado. Essa ela só podia ter comprado de Nana, não havia dúvida!

- Está muito bonito, papai - disse Damon arremedando a irmã. - Como se puxa o saco, hein? O que você está querendo do pai, Jannie?

- Fiquei mesmo bem? - perguntei me virando para Damon.

- Ficou ótimo - disse ele revirando os olhos. - Mas por que se arrumou desse jeito? Pode me dizer. De homem pra homem. Qual é o lance?

- Responda às pobres crianças - disse Nana por fim. Olhei na direção dela com um grande sorriso.

- Não use as ”pobres crianças” para arrancar de mim a cota de fofocas. Bem, estou indo - anunciei. - Chego antes do sol nascer. Muu-há-há-há. - Era minha imitação favorita de monstro e os olhos dos três rolaram nas órbitas.

Faltava mais ou menos um minuto para as oito quando pisei na varanda. Nesse momento, um Lincoln Town Car preto estacionou na frente da casa. Chegara bem na hora e eu não queria me atrasar.

- Uma limusine? - Jannie perguntou com voz ofegante, quase desmaiando. - Você vai sair numa limusine

- Alex Cross! - disse Nana. - O que está havendo?

Desci a escadinha da varanda praticamente dançando. Entrei no carro que me esperava, bati a porta e mandei o motorista arrancar. Acenei pela janela de trás e pus a língua de fora, enquanto o carro se afastava suavemente de nossa casa.

 

Minha última imagem foi dos três, Jannie, Damon e Nana, todos me fazendo caretas com as línguas de fora. Realmente às vezes nos divertíamos muito em família, pensava eu enquanto o carro se dirigia para o Prince Georges County. Fora lá que um dia, durante os anos dourados dos matadores de Jack e Jill, eu me deparara com um homicida de doze anos de idade. Era lá que Christine Johnson morava.

Eu tinha definido um mantra para aquela noite: O coração dirige a razão. E precisava acreditar que era assim.

- Um carro particular? Uma limusine? - Christine exclamou quando á peguei em sua casa em Mitchellville.

Jamais a vira tão incrivelmente bela, e isso não é exagero. Usava uma blusa preta, comprida, sem mangas, e sapatos pretos de cetim, com correias. Tinha uma jaqueta combrocados florais jogada no braço. Os saltos a deixavam com um pouco mais de um metro e oitenta. Deus, como eu amava aquela mulher, como eu amava tudo que lhe dizia respeito!

Fomos até o carro e entramos.

- Ainda não me disse aonde vamos hoje à noite, Alex. Falou num lugar incrível, em algo especial.

- Bem, já contei ao nosso motorista - expliquei, batendo na divisória de vidro e fazendo a limusine tomar o rumo da noite de verão. Alex, o misterioso.

Segurei as mãos de Christine enquanto seguíamos pela rodovia John Hanson, de volta a Washington. Seu rosto se inclinou para o meu e beijei-a na aconchegante escuridão, gostava da doçura de sua boca, de seus lábios, da maciez e suavidade da pele. Ela estava usando um perfume novo, que eu não conhecia, mas de que também gostei. Beijei a cavidade da garganta, depois as faces, os olhos, o cabelo. Só isso teria bastado para me deixar feliz pelo resto da noite.

- É incrivelmente romântico - disse ela por fim. - É especial. Você tem algo mais... Tem açúcar.

Fomos abraçados e nos acarinhando até Washington. Conversamos, mas não me lembro do assunto. Podia sentir seus seios roçando para cima e para baixo no meu peito e cheguei a me espantar quando chegamos ao cruzamento das avenidas Massachusetts e Wisconsin. Estávamos nos aproximando da surpresa.

Fiel à sua palavra, Christine não fizera mais perguntas. Não até o carro encostar na frente da Catedral Nacional de Washington e o motorista saltar e abrir a porta.

- A catedral? Estamos mesmo no lugar certo?

Abanei a cabeça e ergui os olhos para a impressionante obra-prima gótica que desde menino eu admirava. A catedral se estende por cinqüenta acres de gramados e bosques, sendo o ponto mais alto de Washington, mais alto até que o monumento a Washington. Se me lembro corretamente, é a segunda maior igreja dos Estados Unidos e possivelmente a mais bela.

Tomei a frente e Christine entrou atrás de mim. Ela segurava levemente minha mão. Penetramos na ala noroeste da nave, que se estende por cento e cinqüenta metros até o grande altar.

Tudo parecia especial e muito bonito, espiritual, bastante adequado. Fomos até um banco no meio da nave, sob a impressionante janela central. Para onde quer que eu olhasse, via janelas com vitrais de valor inestimável, cerca de duzentos no total.

A luminosidade interior era soberba e me senti abençoado. Havia um caleidoscópio de cores cambiantes nas paredes: tons vermelhos, amarelos fortes, azuis suaves.

- Bonito, não é? - sussurrei. - Eterna, sublime, todo aquele esplendor gótico descrito por Henry Adams.

- Oh, Alex! Acho que é o lugar mais bonito de Washington. A janela central, a capela das crianças... Sempre adorei esta igreja. Já tinha lhe dito isso, não foi?

Talvez tenha mencionado uma vez. Ou talvez eu tenha adivinhado.

Continuamos andando até entrarmos na capela das crianças. Era pequena, bonita, maravilhosamente aconchegante. Paramos Sob o vitral que descrevia a história de Samuel e Davi quando jovens.

Virei-me e olhei para Christine. Meu coração batia tão alto que tive certeza de que ela podia ouvir. Seus olhos brilhavam como jóias sob a luz trêmula das velas. Cintilando, o vestido negro parecia flutuar em seu corpo.

Ajoelhei-me com um dos joelhos e ergui a cabeça.

-Eu a amo desde a primeira vez que a vi na Sojourner Truth School - sussurrei para que só ela pudesse me ouvir. - Só que quando a vi pela primeira vez, não podia saber que tinha um íntimo tão especial. Nem que era tão sensata e generosa. Nunca imaginei que eu pudesse me sentir assim, tão realizado, tão completo, porque é como me sinto quando estou ao seu lado. Faria qualquer coisa para agradar-lhe. Mesmo que só para ficar com você um instante a mais.

Parei para uma breve pausa e respirei fundo. Ela não virou a cabeça e continuou me olhando.

- Eu a amo demais, sempre vou amar - continuei. - Não quer se casar comigo, Christine?

Ela continuou a me observar fixamente e havia muita ternura e amor em seu rosto, mas também humildade, parte integrante da personalidade de Christine. Era como se achasse impossível que eu pudesse amá-la.

- Sim, quero me casar com você. Oh, Alex, talvez não devesse ter esperado até esta noite, mas foi a espera que criou uma situação tão perfeita, tão especial. Sim, quero ser sua esposa!

Peguei uma antiga aliança, que enfiei cuidadosamente em seu dedo. A aliança fora de minha mãe e guardei-a desde que ela morreu, quando eu tinha nove anos. A exata história da aliança não era clara, mas parece que remontava a pelo menos quatro gerações dentro da família Cross. Era meu único legado.

Beijamo-nos no interior da esplêndida capela das crianças na Catedral Nacional e foi esse o melhor momento de minha vida, um momento que eu nunca ia esquecer, que eu jamais desqualificaria sob qualquer aspecto.

Sim, quero ser sua esposa.

 

Dez dias se passaram sem outro jogo de assassinato, mas agora uma poderosa flutuação de humores tinha se apoderado de Geoffrey Shafer e ele se deixava levar.

Voava muito alto: hiperativo, maníaco, bipolar, não importa como os médicos quisessem chamar sua condição. Já tomara Ativan, Librium, Valium e Depakote, mas as drogas só pareciam abastecer os seus jatos.

Naquela noite, por volta das seis, tirou o Jaguar preto de sua vaga na ala norte da embaixada e cruzou a estátua desmesurada de Winston Churchill (a atarracada mão direita fazendo o V da vitória, a mão esquerda com o inseparável charuto).

Eric Clapton tocava uma guitarra barulhenta no CD do carro. Ele aumentou o volume e começou a bater com força no volante, sentindo o ritmo, a percussão, o ímpeto primário.

Dobrou na avenida Massachusetts e depois parou num Starbucks, onde entrou apressado para arranjar três cafés do seu jeito: pretos como seu coração, com seis tabletes de açúcar. Mmm, hummm. Como de hábito, só foi até o caixa quando já estava quase terminando o primeiro.

Quando se viu de novo dentro do Jaguar, tomou mais lentamente a segunda xícara descartável. Engoliu também Benadryl e Nascan. Só podia ajudar, não deixá-lo pior. Então pegou os dados de vinte lados. Naquela noite precisava jogar.

Qualquer resultado igual ou superior a doze o despacharia para o consultório de Boo Cassady, com aquela transa rapidinha antes da volta para o temível seio da família. Sete a onze seria um desastre total: direto para casa, com Lucy e as crianças. Três, quatro, cinco ou seis significariam a liberdade de ir até o seu sconderijo para uma noite não-programada de alta aventura.

- Vamos lá: três, quatro, cinco. Vamos lá, garotos, vamos!

Preciso disto hoje à noite. Preciso de uma dose! Preciso!

Sacudiu os dados por cerca de trinta segundos. Fazia o suspense durar, procurava prolongá-lo ao máximo. Finalmente, largou os dados sobre o couro cinzento do banco do carro e ficou atento enquanto acabavam de rolar.

Jesus, conseguira um quatro! Contra todas as probabilidades! Seu cérebro estava em brasa. Sim, podia jogar naquela noite. Os dados haviam falado; o destino havia falado.

Agitado, discou um número no celular.

- Lucy? - perguntou, e já estava sorrindo. - Que bom pegá-la em casa, querida... Sim, você adivinhou de cara. De novo completamente atolados por aqui. Dá para acreditar? Eu, pelo menos, acho que não. Acham que sou propriedade deles e desconfio que têm uma ponta de razão. De novo aquela porcaria sobre o tráfico de drogas! vou para casa assim que puder, mas não fique acordada me esperando.

Amo as crianças. Beijos para todo mundo... Eu também, querida, também a amo. Você é a melhor, a mais compreensiva esposa viva.

Muito bem jogado, Shafer pensou ao dar um suspiro de alívio. Excelente performance, considerando as drogas que já tomara. Shafer desconectou-se da mulher, cujo dinheiro de família, infelizmente, pagava a casa em Washington, as férias, e até mesmo, é claro, o Jaguar e seu elegante Range Rover.

Discou outro número no celular.

- Dra. Cassady? - Ouviu a voz dela quase imediatamente. Cassady sabia que era ele. Geralmente telefonava do carro quando estava a caminho. Um gostava de deixar o outro ligado e meio ansioso do outro lado da linha. Telessexo como preparação. - Fizeram isso de novo comigo - ele acrescentou.

Shafer choramingava miseravelmente ao telefone, mas estava sorrindo de novo, maravilhado com seu talento para o Patético.

Um curto silêncio.

Está querendo dizer que fizeram isso de novo conosco, não é? Não há nenhum jeito de escapar? É apenas um maldito trabalho e um trabalho que você detesta, Geoff!

- Você sabe que eu faria o que fosse possível. Realmente não suporto isto aqui, acho cada momento detestável. E em casa ainda é pior, Boo. Deus, você sabe melhor do que ninguém!

Ele imaginou a tensão da testa franzida e a contração nos lábios de Boo.

- Parece meio no ar, Geoffrey. Estou certa, querido? Tomou seus remédios hoje?

- Não seja assim! É claro que tomei os remédios. E estou mesmo no ar. Ligadaço. Pairando no teto, para falar a verdade. Estou telefonando entre um monte de reuniões alucinadas do pessoal. Oh, droga, tenho saudades de você, Boo! Queria estar dentro de você, bem no fundo. Na sua buceta, no seu eu, na sua garganta. É nisso que estou pensando agora. Cristo, um tesão de rocha neste escritório de embaixada! vou ter de derrubar esse pinto no peito e na raça. Dando uma coca nele, entendeu? É como nós, ingleses, resolvemos essas coisas.

Boo riu e Shafer quase passou a achar que seria uma boa idéia encontrar-se com ela.

- Volte ao trabalho - disse Boo Cassady. - vou estar em casa se acabar cedo. Posso dar um toque final.

- Te amo, Boo. Você é tão incrível comigo.

- Eu sou, e provavelmente também vou acabar entrando numa pequena coca.

Ele desligou e seguiu para o esconderijo em Eckington, onde pôs o Jaguar na garagem, ao lado do táxi azul e roxo. Depois subiu correndo para se caracterizar para o jogo. Deus, adorava aquilo, sua vida secreta, suas noites longe de todos e de tudo que detestava

Estava assumindo riscos demais agora, mas ele não se importava.

Shafer se viu totalmente produzido para a aventura na cidade. Os Quatro Cavaleiros em ação. Qualquer coisa podia acontecer naquela noite. Ele percebeu, no entanto, que estava introspecti vo, pensativo. Na realidade, podia saltar do delírio à depressão num piscar de olhos.

Contemplava a si mesmo como o espectador de um sonho. Fora agente da inteligência inglesa, mas, agora que a Guerra Fria acabara, seus talentos não tinham muita utilidade. Só graças à influência do pai de Lucy conseguira se manter na embaixada. Duncan Cousins, antigo general do exército, tornara-se presidente de um conglomerado voltado para o comércio atacadista de detergentes, sabões e perfumes de amplo consumo. Chamava Shafer de ”coronel”, insistindo em sua ”ascensão para a mediocridade”. O general também gostava de conversar sobre o tremendo êxito dos dois irmãos de Shafer, tendo ambos ganhado milhões nos negócios.

Shafer devolveu seus pensamentos ao presente. Ultimamente vinha fazendo muito isso, ligando e desligando como um rádio com problema de contato. Respirou fundo para se acalmar e tirou o carro da garagem. Momentos mais tarde, dobrava na avenida Rhode Island e via que já começava a chover de novo, um chuvisco leve que dava às luzes do tráfego um borrado tom impressionista.

Ele foi se aproximando do meio-fio e abriu a porta para um negro alto, elegante. O homem parecia um traficante de drogas, alguém sem utilidade para Shafer. Talvez apenas baleasse o desgraçado e jogasse o corpo fora. Provavelmente isso já atenderia à sua necessidade de ação daquela noite. Um palerma negociando drogas, cuja falta ninguém ia notar.

- Aeroporto - o homem anunciou num tom arrogante enquanto subia no táxi.

O miserável entrara respingando água da chuva no banco, batendo a rangente porta de trás e pegando de imediato o celular.

Shafer não estava indo para o aeroporto; nem ele nem seu Primeiro passageiro da noite. Prestou atenção no telefonema. A voz do homem parecia surpreendentemente educada, mas com uma certa entonação pedante.

- Creio que vou chegar a tempo de pegar o das nove, Leonard. É o vôo da Delta, certo? Já consegui um táxi, graças ao senhor Jesus. A maioria deles não pararia perto da casa da coitada da minha mãe, que mora na zona nordeste. Então apareceu este carro, uma perfeita sucata azul e roxa que, graças a Deus, me pegou.

Cristo, fora identificado! Em seu íntimo, Shafer disse alguns palavrões contra a falta de sorte. O jogo, no entanto, era assim mesmo: incríveis altos e terríveis baixos. E ele teria de levar o puto até o Aeroporto Nacional. Se o homem desaparecesse, a coisa seria de imediato relacionada a um táxi azul e roxo, ”uma perfeita sucata azul e roxa”.

Shafer pisou fundo no acelerador, rumo ao Nacional. A viagem até o aeroporto não era rápida, mesmo às nove da noite, e ele ia xingando a meia voz. A chuva estava forte, entrecortada de grandes trovões e do faiscar dos relâmpagos.

Tentando controlar a raiva crescente, o humor cada vez mais sombrio, levou quase quarenta minutos para chegar ao maldito terminal, onde largou o passageiro. A essa altura, seu ânimo já passara por outra enorme flutuação, mergulhando-o numa nova fantasia. O ciclo o levava de novo para cima.

Talvez devesse ter ido mesmo visitar a dra. Cassady. Precisava de mais comprimidos, principalmente Lithium. Aquela noite estava sendo uma cavalgada num carrossel: para cima e para baixo, para cima e para baixo. Ele, no entanto, queria levar as coisas o mais longe possível. Sentia-se enlouquecido. Sim, estava definitivamente perdendo o controle.

Tudo podia acontecer quando o sujeito chegava àquele ponto. A coisa era assim. Acabou na fila dos táxis, esperando voltar com um passageiro para o centro.

À medida que se aproximava da frente da fila, a trovoada aumentava. Os relâmpagos estalavam sobre o aeroporto e seus candidatos a vítima se amontoavam debaixo de uma marquise que gotejava. Sem a menor dúvida, os vôos estariam atrasando ou sendo cancelados. Ele saboreava o melodrama barato, o suspense. Qualquer um podia ser o próximo, do executivo de uma corporação à secretária afobada, passando talvez por uma família inteira de volta das férias em Disney World.

Mas enquanto avançava milímetro por milímetro, não olhou uma única vez para a fila de vítimas potenciais. E já estava quase lá. Só havia mais dois táxis na sua frente. Podia sentir a fila pelo canto do olho e, finalmente, teve de dar uma espiada rápida.

Era um homem alto.

Espreitou de novo, não podia evitar.

Branco, um executivo. Descendo do meio-fio, entrando em seu carro. Vinha irritado e amaldiçoava a chuva.

Shafer examinou melhor o sujeito. Americano, trinta e tantos anos, muito seguro de si. Analista de investimentos ou mesmo banqueiro - algo assim.

- Se isso não o incomodar - o homem falou bruscamente -, podemos ir- Desculpe, senhor - disse Shafer, sorrindo cordialmente pelo retrovisor.

Jogou os dados no banco da frente: seis! Seu coração começou a martelar.

Seis significava ação imediata. Mas ainda estava no aeroporto. Era grande o número de carros; havia policiais e luzes brilhando por toda parte. Perigoso demais, mesmo para ele.

Os dados, porém, tinham falado. Não havia escolha. O jogo prosseguia naquele exato instante.

Na sua frente, cintilava o mar das luzes vermelhas das lanternas traseiras; por todo lado havia carros. Seria mesmo possível agir de imediato? Shafer começou a transpirar intensamente.

Tinha de fazer. Era a própria essência do jogo. Tinha de fazer prontamente. Precisava matar aquele idiota ali mesmo, no aeroporto.

Deu uma guinada para a área de estacionamento mais próxima. Não, aquilo não era bom. Foi descendo depressa uma pista estreita e o novo relâmpago que cortou o céu pareceu realçar a loucura e o caos do momento.

- Que porra você está fazendo? - gritou o executivo, ”batendo com a palma da mão nas costas do assento. - A saída na° é por aqui, seu asno!

Shafer fitou a raiva do passageiro pelo retrovisor. Odiava aquele homem que o chamara de asno. Um desgraçado que, ainda por cima, lhe trazia uma lembrança dos irmãos.

- Não estou indo para lugar algum - gritou para trás. -Mas você está fazendo sua entrada no inferno!

- O que você disse? - perguntou o executivo num tom engasgado. - O que acabou de me dizer?

Shafer detonou seu Smith & Wesson de nove milímetros, torcendo para ninguém ouvir os tiros entre os trovões e as buzinas que não paravam de tocar.

Ensopado de suor, teve medo que a pintura negra começasse a derreter e a escorrer do seu rosto. Esperava ser detido a qualquer momento. Esperava que a polícia cercasse o táxi. O sangue muito vermelho respingara por todo o banco e janela traseiros. O homem estava afundado no canto, como se dormisse. Shafer não conseguia ver por onde a bala tinha saído do carro.

Antes de ficar completamente louco, já deixara o aeroporto. Dirigiu, então, cautelosamente para Benning Heights, na zona sudeste. Não podia se arriscar a ser parado por excesso de velocidade. Delirava, porém, e não tinha certeza se estava fazendo a coisa certa.

Parou numa rua transversal, examinou o corpo, depois o despiu. Decidiu jogar o cadáver ali mesmo, no meio da rua. Sem dúvida, tentava agir de modo inteiramente imprevisível.

Pouco depois corria para casa, afastando-se da cena do crime.

Não tinha deixado qualquer identificação no corpo da vítima. Nada além de um cadáver.

Era uma pequena surpresa. Não uma fulaninha, mas um joão-ninguém.

 

Eu estava muito bem quando cheguei da casa de Christine às duas e meia da manhã. Há anos não me sentia tão feliz. Pensei acordar Nana e as crianças para contar as novidades. Queria os olhares de surpresa nos rostos. Seria ótimo se tivesse trazido Christine comigo para que pudéssemos comemorar todos juntos.

O telefone tocou momentos depois que entrei em casa. Oh, não pensei, não naquela noite! Um telefonema às duas e meia da manhã traz sempre más notícias.

Atendi na sala de estar e era a voz de Sampson murmurando

na linha:

- Parceiro...

-Me deixe em paz - disse eu.-Ligue amanhã de manhã. Estou fechado à noite.

- Não, Alex, não está. Não hoje à noite. Vá até a avenida Alabama, cerca de três quadras à direita do parque Dupont. Encontraram um homem na sarjeta; estava morto e nu. O sujeito é branco e não achamos nenhuma identidade.

Logo de manhã, eu falaria de Christine com Nana e as crianças. Mas agora tinha de ir. O local do crime ficava a dez minutos de minha casa, do outro lado do rio Anacostia. Sampson estava à minha espera na esquina da rua. Junto ao corpo do desconhecido.

Onde também encontrei uma multidão agitada e um tanto sórdida. O cadáver de um homem branco nu jogado no bairro despertara muita curiosidade; era quase como ver uma corça descendo a avenida Alabama.

- Gasparzinho, o fantasminha camarada, não teria atraído tanta gente.

Um dos espectadores teve de ser afastado à força para que eu e Sampson pudéssemos passar sob a fita plástica amarela que demarcava a cena do crime. No fundo, fileiras de sobrados em ruínas pareciam gritar os nomes dos perdedores, dos esquecidos, dos que nunca tiveram uma chance.

Naquela região a água costuma empoçar nas esquinas das ruas, pois os bueiros raramente são vistoriados. Eu me ajoelhei junto ao cadáver contorcido e nu, parcialmente imerso na água estagnada, na água que sem dúvida eliminara quaisquer marcas e Pneus. Será que o assassino tinha pensado nisso?

Eu estava fazendo anotações mentais. Realmente não precisava escrevê-las, pois me lembraria de tudo. O homem tinha as unhas dos pés e das mãos cortadas por manicure. Não havia calos nem nas mãos nem nos pés. Não tinha contusões, nem marcas ou cicatrizes, só a cruel desfiguração da bala, que fizera explodir o lado esquerdo do rosto.

O corpo estava muito bronzeado, exceto onde ele usara um calção de praia. Vi ainda uma marca fina e clara em volta do dedo indicador da mão esquerda, onde provavelmente havia uma aliança de casamento, que também se perdera.

Não achamos qualquer identidade - exatamente como nos crimes das fulaninhas.

A morte resultara obviamente de um tiro único e devastador na cabeça. A avenida Alabama era a cena primária (onde o corpo fora encontrado), mas eu suspeitava da existência de uma cena homicida secundária, o local onde a vítima teria sido realmente assassinada.

- O que acha? - Sampson perguntou se abaixando do meu lado. Seus joelhos estalaram alto. - O filho-da-puta que fez isso devia estar com muita raiva de alguma coisa.

- Realmente bizarro que tenha descarregado a vítima aqui, em Benning Heights. Não sei se isso tem relação com as mortes das fulaninhas, mas se tem, o matador queria que encontrássemos este corpo bem depressa. Geralmente, nessa região, os cadáveres são jogados no parque Fort Dupont. Sem dúvida a coisa vai ficando cada vez mais estranha. E você tem razão, ele estava realmente furioso.

Minha mente rapidamente acumulava novas observações sobre o local do crime, além de processar, é claro, o habitual fluxo de perguntas de um detetive de homicídios. Por que deixar o corpo numa sarjeta? Por que não numa daquelas casas em ruínas? E por que em Benning Heights? Será que o matador era negro? Isso ainda fazia sentido para mim, embora fosse muito baixo o percentual de assassinos em série negros.

Um sargento da perícia se aproximou.

- O que vai querer de nós, detetive?

Olhei para trás, para o cadáver nu do indivíduo branco.

- Uma fita de vídeo, fotos, esboços.

E um pouco do lixo que houver na sarjeta e na calçada?

- Pegue tudo. Mesmo o que estiver ensopado. O sargento franziu a testa.

Tudo? Todo esse lixo molhado? Por quê?

A avenida Alabama fica no alto e, na distância, se podia ver o prédio do Capitólio fracamente iluminado. Como um remoto corpo celeste ou o próprio Paraíso. Uma visão que me fazia pensar sobre os que têm em Washington e os que nada têm.

- Pegue realmente tudo - respondi. - É como eu trabalho.

 

A detetive Patsy Hampton chegou à arrepiante cena do homicídio por volta das 2:15h. O assistente do Chefe ligara para o apartamento dela comunicando um estranho crime em Benning Heights, algo que podia ter relação com as mortes das fulaninhas. Sob certos aspectos, aquele assassinato era diferente dos outros, mas ainda assim havia muitos pontos em comum e Patsy achou melhor não ignorá-los.

Observou Alex Cross trabalhando no local do crime e ficou impressionada por ele ter saído àquela hora da madrugada. Tinha curiosidade, há muito tempo tinha curiosidade, de saber quem ele realmente era. Patsy Hampton conhecia a reputação de Cross e acompanhara alguns de seus casos. Chegara inclusive a trabalhar algumas semanas no trágico seqüestro de Maggie Rose Dunne e Michael Goldberg.

Até então só tivera sentimentos confusos a respeito de Cross. Um homem que chamava atenção, pois tinha ótima aparência. Alex Cross era alto, de compleição forte, e Patsy achava que ele recebia um injusto tratamento especial pelo fato de ser psicólogo forense. Sim, realmente soubera coletar suas informações acerca de Cross.

Hampton compreendeu que a missão era desmascarar Cross, sobrepujá-lo, fazê-lo baixar a crista. Sabia que o páreo não ia ser fácil, mas também sabia que era a pessoa certa para enfrentá-lo; nunca fracassara em nada.

Já fizera seu próprio exame do local. Só permanecia ali por causa da chegada inesperada de Cross e Sampson.

Continuou examinando Cross, vendo-o atravessar várias vezes a cena do crime. Sem dúvida, era fisicamente imponente, assim como seu parceiro, que teria pelo menos dois metros de altura. Cross tinha um e oitenta e oito e pesava noventa quilos. Não aparentava os quarenta e um anos que tinha e parecia ser respeitado pelos patrulheiros e pela perícia. Ele apertava algumas mãos, batia em alguns ombros e, de vez em quando, compartilhava um sorriso com quem estava de serviço.

Hampton percebeu que era parte de seu show. Nos dias de hoje, todos têm sua própria performance, especialmente em Washington. Cross era obviamente seu carisma e seu charme.

Droga, ela também possuía um papel a desempenhar. Que consistia em parecer não-ameaçadora, ”feminina”, para logo começar a agir contrariamente às expectativas dos homens na força policial. Em geral, conseguia pegá-los com as defesas abertas. À medida que fazia carreira no departamento, todos foram percebendo que ela era uma parada dura. Surpresa, surpresa. Trabalhava mais tempo que todo mundo, mostrava-se bem mais decidida que os homens e nunca se tornava amiga íntima dos outros tiras.

Mas cometera um grande erro. Invadira, sem mandado, o carro de um suspeito de homicídio e fora apanhada por outro detetive, um sujeito invejoso e mais velho. E assim, Pittman colocara as garras nela, as garras que agora não queria soltar.

Por volta das duas e quarenta e cinco, Patsy caminhou para o Explorer verde-floresta, que de fato estava precisando de um banho. Já tinha algumas idéias sobre o corpo estendido na rua e não havia, em sua mente, nenhuma dúvida de que levaria a melhor sobre Cross.

 

                 A MORTE VEM NUM CAVALO SEM COR

 

George Bayer era a Fome entre os Quatro Cavaleiros. Há sete anos vinha participando do jogo e o adorava. Pelo menos até recentemente, quando Geoffrey Shafer começou a perder o controle.

A Fome era um sujeito de físico medíocre, com um metro e setenta, oitenta e seis quilos. Era barrigudo, careca e usava óculos com aro de metal. Sabendo que tinha uma aparência decepcionante, passara a se projetar naqueles que o subestimavam. Gente como Geoffrey Shafer.

Lera um dossiê de quarenta páginas durante o longo vôo da Ásia para Washington. O dossiê lhe dissera tudo sobre Shafer, mas também sobre o personagem que Shafer encarnava, a Morte. No aeroporto Dulles, usou um nome falso para alugar um seda Ford azul-escuro e, desligado e introspectivo, começou a fazer a viagem de meia hora até a cidade.

Logo, porém, se sentiria ansioso, apreensivo com relação a todos os Cavaleiros, principalmente com relação a si próprio. Afinal, era ele quem ia enfrentar Shafer e tinha medo que Shafer estivesse enlouquecendo, explodindo em mil pedaços.

George Bayer fora um MmanMde MI6) e conhecera Shafer no serviço. Agora viera a Washington para descobrir, antes de qualquer outra pessoa, o que estava acontecendo. Os outros jogadores desconfiavam que Geoffrey Shafer passara dos limites e não estava mais seguindo as regras, o que representava um sério perigo para todos. Como Bayer já servira em Washington e conhecia a cidade, fora a pessoa certa para ir até lá.

Não quis ser visto na embaixada britânica da avenida Massachusetts, mas conversou com alguns amigos, gente que manteria silêncio sobre o fato de ter sido contatada. As informações acerca de Shafer pareciam realmente tão más quanto ele suspeitava. Estava tendo amantes e não era discreto. Havia por exemplo uma psiquiatra, que agia também como terapeuta sexual. Shafer ia à casa dela diversas vezes por semana, freqüentemente durante as horas de trabalho. Corriam rumores de que estava bebendo muito e, possivelmente, tomando drogas. Bayer já suspeitava. Ele e Shafer haviam sido amigos e tinham tomado drogas juntos quando serviram nas Filipinas e na Tailândia. Naquela época, sem dúvida, eram mais jovens e mais irresponsáveis (pelo menos no caso de Bayer isso era verdade).

A polícia de Washington protestara recentemente junto à embaixada por causa de um perigoso incidente de tráfego. Shafer podia ter estado ”alto” na ocasião. Suas atuais atribuições na embaixada eram mínimas e, sem a interferência do general Duncan Cousins, pai da mulher, ele já teria sido despedido ou mandado de volta à Inglaterra. Em que terrível pântano Shafer transformara sua vida!

Mas isso não era o pior, certo, Geoffrey?, pensava George Bayer enquanto seguia para a zona nordeste de Washington, conhecida como Eckington Place. Há mais, não é, meu amigo? É muito pior do que a embaixada imagina. Trata-se, provavelmente, do maior escândalo na longa história do Serviço de Segurança e você está bem no meio dele. Assim, é claro, como eu.

Bayer trancou as portas do carro ao parar num sinal de trânsito. A área lhe parecia bastante suspeita, como tantas partes de Washington nos dias de hoje. Que país triste e totalmente insano a América se tornara! Que refúgio perfeito para Shafer!

A Fome dava uma olhada nas ruas ordinárias enquanto avançava pelo bairro ostensivamente pobre. Nada havia de comparável em Londres. Fileiras e mais fileiras de casinhas com tijolo vermelho, muitas em péssimo estado de conservação. Não tanto decadência urbana quanto apatia urbana.

Viu a toca de Shafer bem à frente e estacionou no meio-fio. Conhecia a exata localização do esconderijo graças aos elaborados relatos de fantasias que Shafer fizera para os companheiros de jogo. Sabia o endereço. Agora precisava saber de mais uma coisa: os crimes que Geoffrey alegava ter cometido eram fantasias ou coisas reais? Seria ele realmente um frio matador que estava operando ali em Washington?

Bayer caminhou para a porta da garagem. Só demorou um momento para forçar a fechadura e entrar.

Ouvira tanta coisa sobre a ”máquina do pesadelo”, o táxi azul e roxo que Shafer usava para praticar os crimes. Estava na sua frente. Tão real quanto ele. George Bayer sacudiu a cabeça. Agora sabia a verdade. Shafer matara todas aquelas pessoas. A coisa não era mais um jogo.

 

Bayer subiu com dificuldade a escada para o interior do esconderijo. Sentia as pernas e os braços pesados, além de uma ligeira dor no peito. Sentia a vista embaçada. Puxando as persianas empoeiradas, começou a olhar em volta.

Durante o jogo, Shafer tinha várias vezes descrito arrogantemente a garagem e o táxi. Gabara-se da existência do esconderijo, jurando aos demais participantes que a coisa era real, não mera fantasia num lance de jogo. Geoffrey os desafiara abertamente a verem por si mesmos, e era exatamente por isso que Bayer estava em Washington.

Bem, Geoffrey, o esconderijo é real, ele admitia. Você é um assassino frio como pedra. Não era blefe, certo?

 

Às dez horas daquela noite, Bayer entrou no táxi azul e roxo. As chaves estavam na ignição, quase como um desafio. Seria mesmo? Percebeu que tinha uma noite para experimentar exatamente o que o outro experimentara. Segundo Geoffrey, a metade da graça do jogo estava na expectativa - na avaliação das possibilidades, na visão de todo o tabuleiro antes do movimento.

Das dez às onze e meia, Bayer explorou as ruas de Washington, mas não pegou nenhum passageiro, mantendo sempre desligado o aviso de livre. Que jogo, Bayer continuava pensando enquanto dirigia. Então era assim que Geoffrey fazia a coisa?

Assim que se sentia quando rondava pela cidade?

Foi arrancado do devaneio por um velho mendigo de chapéu amassado que apareceu bem na sua frente. Empurrando um carrinho cheio de latas e outros materiais recicláveis, o homem nem parecia se importar se seria atropelado ou não. Bayer, no entanto, pisou fundo no freio, o que o fez pensar em Shafer. A linha entre a vida e a morte fora desaparecendo aos olhos de Geoffrey, certo?

Ele continuou a avançar devagar. Passou por uma igreja. O culto acabara e saía uma multidão de gente.

Parou o táxi para apanhar uma atraente mulher negra de vestido azul e sapatos de salto alto no mesmo tom. Precisava ver a coisa do ponto de vista de Shafer. De Shafer encarnando o personagem da Morte. Parecia impossível resistir.

-Muito obrigada-disse a mulher ao deslizar para o banco de trás do táxi. Parecia distinta, respeitável. Ele a observava furtivamente no retrovisor. Não teria tanta coisa a oferecer, mas o rosto sem dúvida era bem bonito. Apenas as meias cobriam as pernas marrons, compridas, e ele tentou imaginar o que Shafer poderia fazer num momento como aquele. Não conseguiu.

Shafer se gabara de andar matando gente nos bairros mais pobres de Washington, gente com quem ninguém se importava. Bayer achava que ele podia estar dizendo a verdade. Sabia coisas a respeito de Shafer, detalhes dos tempos em que viviam na Tailândia e nas Filipinas. Conhecia seus mais íntimos e sombrios segredos.

Ao deixar em casa a mulher atraente, de ar educado, Bayer aceitou divertido a gorjeta de sessenta centavos que ela deu pela corrida de quatro dólares. Quinze por cento, uma boa margem. Pegou o dinheiro e agradeceu amavelmente.

- Um motorista inglês - disse ela. - Isso é raro. Tenha uma boa noite.

E Bayer ainda continuaria rodando depois das duas da manhã, meio atônito, mergulhando cada vez mais no clima de jogo da noite. Foi então que teve de parar de novo. Duas moças faziam sinal numa esquina da área chamada Shaw, bem perto, segundo diversas placas, da Universidade Howard.

Eram belas garotas, posando em sapatos de salto muito alto e com roupas lustrosas que brilhavam no escuro. Uma delas usava uma saia extremamente curta e, quando parou o carro, Bayer conseguiu ver o alto de uma meia-calça azul-marinho ou preta. Devem ser putas - as presas favoritas de Shafer, pensou.

A segunda prostituta era ainda mais bonita e sensual que a primeira. Calçava sandálias de praia com salto, calça atlética de malha com uma faixa do lado e um pequeno bustier num tom azulado.

- Para onde nós vamos? - perguntou Bayer quando as duas começaram a subir no carro.

A moça na microssaia tomou a iniciativa.

- Nós vamos para Princeton Place. Fica em Petworth, querido. Depois você vai embora. - Ela jogou a cabeça para trás e soltou uma risada de zombaria. Bayer deu um estalo com a boca. Estava realmente entrando no clima.

Quando as moças sentaram-se no carro, ele não pôde resistir a um exame pelo retrovisor. A moça da microssaia surpreendeu seu olhar e Bayer se sentiu como um colegial. A sensação, no entanto, foi inebriante e ele não desviou os olhos.

A moça sacudiu um dedo para ele, mas Bayer não parou de olhar. Não conseguiu. Então era assim que Shafer se sentia. Sim, era o jogo dos jogos.

 

Parecia impossível tirar os olhos das moças e seu coração disparava. A da microssaia usava um bustier muito justo, com alças. As unhas compridas estavam pintadas em tons de manga e quiuí. Tinha um pager no cinto. Provavelmente um revólver na bolsa.

A outra moça sorriu timidamente na direção dele. Parecia mais inocente. Seria mesmo? Um colar com a inscrição Baby Girl dançava no meio dos seios novos.

Se estavam indo para Petworth, tinham de ser putas. E sem dúvida eram jovens, atraentes - dezesseis, dezessete anos. Bayer viu-se transando com as garotas e a imagem começou a dominar sua imaginação. Sabia que tinha de ser cuidadoso, o perigo da coisa ficar completamente fora de controle.

Afinal, começara a fazer o jogo de Shafer, não era? E estava gostando muito.

- Quero lhe fazer uma proposta-ele disse à da microssaia.

- Tudo bem, querido. Cem dólares pela transa. Mais nossa corrida para Petworth. Essa é minha proposta para você.

 

Shafer gostava de saber quando algum dos outros jogadores viajava, principalmente se fosse uma viagem a Washington. Enfrentava um monte de problemas para conseguir monitorar os passos deles no computador, mas não queria perdê-los de vista. Recentemente, a Fome tinha comprado passagens aéreas e agora estava na cidade. Para quê?

Não fora difícil seguir George Bayer desde que ele chegou. Shafer ainda era razoavelmente bom na coisa; acumulara bastante prática de vigilância e acompanhamento durante os anos no serviço.

Sentiu-se desapontado quando a Fome decidiu ”atravessar” seu personagem. O atravessamento acontecia de vez em quando, mas era raro, pois os jogadores se movimentavam com base num acordo prévio. A Fome, sem a menor dúvida, estava quebrando as regras. O que, afinal, Bayer sabia ou achava que sabia?

Foi então que George Bayer o surpreendeu. Pois além de visitar o esconderijo, saiu com o táxi! Que diabo estava fazendo?

Pouco depois das duas da manhã, Shafer viu o carro pegando duas garotas em Shaw. Bayer queria imitá-lo? Estaria montando alguma armadilha? Ou se tratava de algo completamente diferente?

A Fome levou as garotas para a rua S, que não ficava longe do ponto em que as apanhara, e seguiu-as pelas escadas escuras de um velho prédio com fachada de pedra.

Shafer desconfiou que o casaco azul dobrado no braço direito de Bayer escondia uma pistola. Deus! Pegara logo duas.

Podia ter sido visto por alguém na rua. O táxi podia ter sido identificado.

Shafer estacionou e ficou vigiando, esperando. Não gostava de estar naquela parte de Shaw, especialmente sem seu disfarce e dirigindo um Jaguar. Na rua havia algumas casas velhas com muros de pedra caindo aos pedaços e dois barracões de madeira, rabiscados pelos grafiteiros. Não havia ninguém do lado de fora.

Vendo uma leve luminosidade no alto do prédio, imaginou que Bayer estaria lá com as garotas. Provavelmente, era o apartamento delas.

Ficou de vigia quase até as quatro horas. Parecia-lhe impossível tirar os olhos de lá. Enquanto esperava, imaginou dezenas de situações que podiam ter trazido a Fome a Washington, sempre se perguntando se os outros jogadores também estariam na cidade. Estaria a Fome agindo sozinha? E estaria ele, Bayer, jogando naquele momento os Quatro Cavaleiros?

Shafer ficou à espera que Bayer saísse do prédio. Como ele não descia, foi ficando cada vez mais ansioso, preocupado, irritado. Não parava de mexer os dedos. Respirava cada vez mais depressa. Tinha nítidas e paranóicas fantasias acerca do que Bayer podia estar fazendo lá em cima. Já teria assassinado as duas moças? Pegado seus cartões de identidade? Seria aquilo uma cilada? Ele achava que sim. O que mais poderia ser?

Ainda nem sinal de George Bayer.

Shafer não suportava mais. Saltou do Jaguar e parou na calçada, fitando as janelas, achando que ele também podia estar sendo vigiado. Sua desconfiança de que a coisa era uma armadilha só aumentava, e ele começava a pensar que talvez fosse melhor fugir.

Cristo, onde afinal Bayer se metera? Qual era a jogada da Fome? O prédio teria alguma saída pelos fundos? Mas e o táxi? Bayer deixaria o táxi ali fora para servir de prova? Cachorro!

Nesse momento, porém, Bayer saiu, atravessou apressado a S, entrou no táxi e arrancou.

E Shafer decidiu subir. Correu para a porta da frente, que encontrou aberta, e começou a subir rapidamente a íngreme escada em caracol. Ligou a lanterna que tinha numa das mãos (na outra, segurava o semi-automático).

Avançou até o quarto andar, onde não foi difícil saber qual dos dois apartamentos era o certo. Um pôster do CD Qual é o

411 ?, de Mary J. Blige, estava afixado na porta lascada e riscada à sua direita. Certamente era lá que as garotas moravam.

Girou a maçaneta e, com cuidado, foi empurrando a porta, o revólver pronto, apontando para o interior.

Uma das garotas saiu do banheiro com uma toalha felpuda preta enrolada na cabeça - só isso. Um pedaço de garota com peitinhos incríveis. Cristo, a Fome devia ter pagado mesmo por isso! Idiota. Panaca.

- Quem é você, porra! - gritou a moça furiosa. - O que está fazendo aqui?

- Sou a Morte - ele sorriu, anunciando: - Vim para buscar você e a belezinha da tua amiga.

 

Eu chegara à casa (vindo da cena do crime das fulaninhas) um pouco depois das três e meia da manhã. Fui para a cama, mas coloquei o despertador para as seis e meia. Consegui me levantar antes dos garotos saírem para a escola.

- Alguém ficou na rua ontem à noite até muito, muito, muito tarde. - Jannie começou a implicar antes que eu acabasse de descer a escada e entrasse na cozinha. Encontrei-a tomando o café da manhã ao lado de Damon e Nana.

- Alguém, sem dúvida, está com a cara de quem ficou na rua até tarde - disse Nana empoleirada em seu banco habitual.

- A surpresa chegou no pedaço - brinquei para aquietálos. - E quero ter uma conversa com vocês antes de irem para a escola.

Jannie deu uma piscadela e sugeriu:

- Tenham modos. Prestem atenção na aula, mesmo se o professor for um chato. Vão para o portão e fiquem me esperando se virem alguma briga no pátio.

Revirei os olhos.

O que eu ia dizer - comecei - é que devem ser racialmente simpáticos com a sra. Johnson hoje. Sabem como - ontem à noite Christine disse que se casaria comigo. isso significa, eu acho, um casamento com todos nós.

Nesse momento, tudo na cozinha se transformou em calorosa barulhenta comemoração, e os meninos acabaram derramando Toddy e a gordura do bacon em cima de mim. Eu nunca tinha visto Nana tão feliz. E o pior é que me sentia exatamente do mesmo jeito. Provavelmente, ainda melhor do que eles.

Finalmente saí para o trabalho. Fizera algum progresso no caso do homicídio do joão-ninguém e, logo no início daquela manhã de terça, fiquei sabendo que o homem cujo corpo fora jogado na avenida Alabama era um pesquisador forense de trinta e quatro anos, chamado Franklin Odenkirk. Trabalhava na Biblioteca do Congresso para o serviço de pesquisa do legislativo.

Não demos qualquer comunicado à imprensa, mas assim que fui informado, o gabinete do chefe Pittman ficou sabendo. De qualquer modo, Pittman descobriria.

Depois que obtive o nome da vítima, não tardaram a chegar novas informações e, como geralmente acontece, todas tristes. Odenkirk era casado, com três filhos pequenos. Tinha voltado num vôo noturno de Nova York, onde fizera uma palestra no instituto Rockefeller. O avião havia chegado na hora e ele desembarcara no Aeroporto Nacional por volta das dez. O que acontecera depois era um mistério.

Pelo resto da semana, ocupei-me deste crime. Fui à Biblioteca do Congresso e fiquei conhecendo sua mais nova unidade, o James Madison Building, na Independence Avenue. Conversei com quase uma dúzia de colegas de Frank Odenkirk, que foram gentis e prestativos.

Ouvi repetidamente que Odenkirk, embora às vezes arrogante, era tido geralmente em alta estima. Ao que parecia, não usava drogas nem bebia em excesso; também não jogava. Era fiél à esposa. Desde que passara a trabalhar ali, nunca se envolvera numa discussão séria.

Estava vinculado ao Departamento de Educação e Saúde Pública e passava longos dias na espetacular Sala Um de Leitura. Nenhum motivo aparente para seu assassinato, e era isso que eu temera. Em termos gerais, o crime se assemelhava às mortes das fulaninhas, mas sem dúvida o chefe dos investigadores nem queria ouvir falar nisso. Segundo ele, não existia um matador de fulaninhas. Por quê? Porque o Chefe não queria deslocar dezenas de detetives para a zona sudeste, dando início a uma intensa investigação, baseado nos meus instintos e nas minhas sensações. Eu já ouvira Pittman brincar dizendo que a zona sudeste não fazia parte da sua cidade.

Antes de deixar o Madison Building, tive o impulso de dar uma olhada na Sala Um de Leitura. Fora recentemente restaurada e eu ainda não estivera lá depois das obras.

Sentei numa mesa, contemplando a incrível abóbada sobre minha cabeça. Ao redor da sala havia vidraças com os emblemas de quarenta e oito estados da união, além de estátuas de bronze de personalidades célebres, incluindo Michelangelo, Platão, Shakespeare, Edward Gibbon e Homero. Fiquei intrigado ao imaginar o pobre Frank Odenkirk trabalhando ali. Por que fora assassinado? Meramente por acaso?

O crime tinha sido realmente um choque terrível para todos que trabalhavam com ele e dois de seus colegas chegaram a chorar enquanto falávamos sobre sua morte.

Não fazia parte dos meus planos entrevistar a sra. Odenkirk, mas no fim da tarde de sexta-feira, cruzei a 295 e a 210 na direção de Forest Heights. Chris Odenkirk estava na casa da mãe, assim como os pais do marido, que tinham chegado de Briarcliff Manor, no condado de Westchester, estado de Nova York. Contaram a mesma história que as pessoas da Biblioteca do Congresso. Ninguém da família imaginava que alguém pudesse querer fazer mal a Frank. Era um pai carinhoso, um bom marido, um filho e um genro atencioso.

Na casa de Odenkirk, fiquei sabendo que ele saíra com um paletó de verão, que seu compromisso em Nova York fora cumprido e que ficara quase duas horas esperando um vôo no aeroporto La Guardiã. Geralmente pegava um táxi quando aterrissava em Washington, pois muitos vôos chegavam tarde.

Antes de ir para a casa em Forest Heights, eu despachara dois detetives para o aeroporto. Eles mostraram fotos de Odenkirk, entrevistaram funcionários das companhias aéreas, empregados das lojas, carregadores, despachantes de táxi e motoristas.

Por volta das seis, fui até a perícia para saber dos resultados da autópsia. Todas as fotos e esboços da cena do crime estavam ali expostos. A autópsia demorara cerca de duas horas e meia. Cada cavidade do corpo de Frank Odenkirk fora raspada e examinada, o cérebro removido.

Conversei com a médica legista por volta das seis e meia, enquanto ela terminava o trabalho em Odenkirk. Chamava-se Angelina Torres, sendo há anos minha conhecida, pois havíamos entrado mais ou menos na mesma época na polícia. Angelina tinha menos de um metro e cinqüenta e, na melhor das hipóteses, pesaria por volta de quarenta quilos.

-Dia difícil, Alex?-perguntou. -Parece completamente exausto.

- Acho que para você também foi um dia cansativo, Angelina. Mas sua aparência é boa. Pequena, mas boa.

Ela riu, abanou a cabeça e foi suspendendo os dois bracinhos delicados. O gemido baixo que deixou escapar correspondia aproximadamente ao modo como eu também me sentia.

- Alguma novidade? - perguntei depois de deixá-la se espreguiçar em paz e completar aquele seu lamento de partir o coração.

Na realidade, eu não esperava nenhuma surpresa, mas ela tinha alguma coisa.

- Algo incrível - disse Angelina. - O homem foi sodomizado depois de morto. Alguém fez sexo com ele, Alex. Nosso matador parece funcionar dos dois modos.

 

Daquela noite, guiando para casa, senti necessidade de tirar um pouco da cabeça o caso do assassinato. Pensei em Christine, o que era muito melhor, mais agradável para o lóbulo frontal. Cheguei a desligar meu bipe. Não queria que nada me perturbasse por dez ou quinze minutos.

Embora há algum tempo não tocássemos no assunto, ela ainda achava meu trabalho perigoso demais. O pior é que tinha toda razão. As vezes eu ficava com medo de deixar Damon e Jannie sozinhos no mundo; agora devia me preocupar também com Christine. Cruzando as ruas familiares da zona sudeste, perto da Fifth Street, eu me perguntava se realmente conseguiria abandonar o trabalho policial. Já pensara em reabrir um consultório particular como psicólogo, mas ainda não dera um único passo para tornar a coisa real, o que provavelmente significava que não era isso, de fato, o que eu queria.

Quando cheguei, por volta das sete e meia, Nana estava sentada na varanda da frente. Parecia irritada, com uma expressão nos olhos que eu conhecia muito bem. Ainda conseguia fazer com que eu me sentisse um menino de nove ou dez anos diante da mamãe que sabia de tudo.

- Onde estão as crianças? - gritei abrindo a porta do carro e saltando.

A pipa rasgada, com a estampa de Batman e Robin, continuava em cima da árvore do quintal e pensei, chateado, que há duas semanas eu já devia tê-la tirado de lá.

- Acorrentei-as à pia - disse Nana. - Estão lavando os pratos.

- Desculpe por ter perdido o jantar.

- Diga isso a seus filhos - Nana revidou com um ar carregado. Ela controla as emoções com a sutileza de um tornado. - É melhor ir depressa falar com eles. Seu amigo Sampson ligou há pouco. Jerome Thurman também. Houve mais assassinatos, Alex. Usei a palavra no plural, caso não tenha reparado. Sampson está à sua espera no que vocês chamam de cena do crime. Dois corpos em Shaw, perto da Universidade Howard. Não encontraram lugar melhor! Mais duas moças negras morreram. Isso não vai parar, não é? Nunca pára na zona sudeste.

Não, nunca pára.

 

O local do homicídio era um velho prédio, com o granito das paredes se desmanchando. Ficava em Shaw, na parte má da rua S Muitos calouros da universidade e alguns jovens profissionais liberais moravam no bairro eclético, onde a classe média, no entanto, ainda predominava. Ultimamente, a prostituição se tornara um problema ali. Segundo Sampson, as duas moças assassinadas eram prostitutas que às vezes trabalhavam nos arredores, embora seu ponto principal ficasse em Petworth.

Um único carro-patrulha e um furgão da perícia estavam estacionados no local do homicídio. Havia um policial uniformizado na entrada da frente, sem dúvida para barrar os curiosos. Era moço, com a pele muito lisa e gordurosa na cara de garoto. Como não o conhecia, exibi minha credencial de detetive.

- Detetive Cross. - Ele conferiu resmungando e percebi que já ouvira falar de mim.

- O que temos até agora? - perguntei antes de iniciar a penosa subida de quatro lances de degraus. - O que você sabe, policial?

- Há duas moças mortas lá em cima. Ambas, ao que tudo indica, eram prostitutas. Uma morava no prédio. Um telefonema anônimo informou dos corpos. Talvez um vizinho, talvez o gigolô. Devem ter dezesseis, dezessete anos, talvez menos. Coisa feia. Não mereciam isso.

Balancei a cabeça, tomei um pouco de fôlego e comecei a subir rapidamente o caracol íngreme e rangente dos degraus até o quarto andar. As prostitutas tornam muito difícil as investigações da polícia e eu me perguntava se o criminoso sabia disso. Em média, uma puta de Petworth pode se deitar com uma dúzia ou mais de homens a cada noite, o que significa um bom acúmulo de evidência forense em seu corpo.

A porta do apartamento 4A estava escancarada, revelando o interior. Era um conjugado, com uma sala grande, a quitinete e o banheiro. Um tapete branco felpudo jazia entre dois sofás-camas. Um abajur de lava ondulava estrelinhas verdes ao lado de vários pênis de borracha.

Sampson estava abaixado na ponta de um dos sofás. Lembrava um jogador de basquete procurando as lentes de contato no chão.

Entrei na desordem do aposento, que cheirava a incenso, perfume de pêssego e comida engordurada. Uma embalagem vermelha e amarela de fritas do McDonald’s estava aberta no sofá.

Roupas sujas cobriam as poltronas: malhas para pedalar, bermudas muito curtas, conjuntos da Karl Kani. Jogados no chão, havia pelo menos uma dúzia de vidros de esmalte e acetona, além de duas limas de unhas e bolinhas de algodão. O cheiro de perfume de pêssego saturava realmente o lugar.

Rodeei a cama para observar as vítimas. Duas mulheres muito jovens, nuas da cintura para baixo. Ele tinha andado por lá - eu podia sentir.

As garotas estavam deitadas uma sobre a outra, como se fossem amantes. Era como se tivessem feito sexo no chão.

Uma delas usava um bustier azul, a outra uma lingerie preta. Ambas ainda calçavam os ”tamanquinhos”, essas sandálias altas de praia que são populares nos dias de hoje. Embora estivessem praticamente sem roupa, como a maioria das outras fulaninhas que haviam morrido, não nos seria muito difícil (ao contrário do que geralmente acontecia) identificá-las.

- Bem, nenhuma tem identidade - disse Sampson sem desviar os olhos do trabalho.

- Mas uma delas alugava o apartamento - respondi.

- E provavelmente pagava sempre em dia - ele acrescentou sacudindo a cabeça. - Seu preço devia ser alto.

Usando luvas de borracha, Sampson se ajoelhara perto das duas.

- O matador também usou luvas - disse ele ainda sem me olhar -, e aparentemente não deixou impressões digitais em parte alguma. Foi isso, aliás, que a perícia informou de imediato. As duas foram baleadas, Alex. Um tiro na testa de cada uma.

Continuei examinando o local, absorvendo informações deixando os detalhes da cena do crime fluírem sobre mim. Vi um conjunto de produtos para o cabelo: Soft Sheen, Care Free Curl, el para o penteado, várias perucas. No alto de uma das perucas havia um casquete do exército, um casquete com tiras, geralmente chamado de meia foda entre o pessoal militar, que o considera eficiente para pegar as mulheres, em especial no sul. Havia ainda um pager.

As garotas eram jovens e bonitas. Tinham perninhas magras, delicadas e pés ossudos; os anéis de prata nos dedos dos pés de cada uma pareciam ter vindo da mesma loja. As roupas que haviam tirado formavam trouxinhas insignificantes nos tacos ensangüentados do chão.

Num canto do pequeno aposento, havia vestígios de brincadeiras de infância: um jogo de loto, um urso de pelúcia azul (já meio surrado, talvez da mesma idade das garotas), uma Barbie, uma mesa Ouija.

- Dê uma boa olhada, Alex. A coisa fica cada dia mais estranha. Nosso Gambá está entrando na área das anomalias.

Suspirei e me abaixei para ver o que Sampson tinha descoberto. A menor e talvez a mais nova das duas garotas era a que ficara por cima. Os olhos castanhos, vidrados, da moça que estava por baixo (deitada de costas) se arregalavam na direção de um lustre quebrado no teto - como se tivessem visto alguma coisa terrível lá no alto.

A moça que estava por cima fora posicionada com o rosto, ou melhor, com a boca inclinada para o meio das pernas da outra.

- O criminoso realmente brincou com as duas depois de matá-las - disse Sampson. - Desloque um pouco a que está em cima. Levante a cabeça dela, Alex. Está vendo?

Sim, eu via. Um modus operandi completamente novo no caso das fulaninhas, pelo menos nas mortes que conhecíamos. A frase ”enfiem uma na outra” atravessou minha mente e me Perguntei se aquela não seria a ”mensagem” do matador. A moça de cima estava conectada com a de baixo... pela língua.

Sampson suspirou e disse:

- Acho que a língua está presa dentro da outra garota. Estou bem certo disso, Alex. O Gambá prendeu as duas com fita adesiva.

Observei as moças e sacudi a cabeça.

- Acho que não. Uma fita adesiva, mesmo um esparadrapo cirúrgico, se soltaria na superfície da língua... Mas uma cola muito forte, como a superbonder, poderia funcionar.

 

O matador estava trabalhando mais depressa, por isso eu tinha de fazer o mesmo. As duas moças mortas não ficaram anônimas por muito tempo. Consegui seus nomes naquela mesma noite, antes do noticiário das dez. Ignorando as ordens explícitas do chefe dos detetives, eu continuara a trabalhar na investigação.

No dia seguinte, de manhã cedo, eu e Sampson nos encontramos na Stamford, a escola secundária que Tori Glover e Marion Cardinal haviam freqüentado. As moças assassinadas tinham dezessete e catorze anos.

A lembrança da cena do crime me deixara com uma sensação de enjôo, de náusea, que não se dissipava. Eu continuava pensando: Christine tem razão. Saia disto, faça alguma outra coisa. Está na hora!

A diretora da escola Stamford era uma mulher pequena, de cabelo ruivo e expressão frágil, chamada Robin Schwartz. Seu assistente, Nathan Kemp, reunira algumas alunas que tinham conhecido as vítimas e destinara duas salas de aula para serem usadas por mim, Sampson e Jerome Thurman nas entrevistas. Jerome trabalharia numa das salas, eu e Sampson na outra.

O curso de férias estava em andamento e a escola parecia agitada como um shopping num dia de sábado. Passando pela cantina a caminho das salas de aula, vimos o lugar apinhado de gente, mesmo às dez e meia. Nenhum espaço de sobra. Sentimos o vapor das batatas fritas, o mesmo cheiro de gordura que havia no apartamento da moça.

Alguns garotos faziam barulho, mas a maioria parecia bem comportada. A música de Wu Tang e Jodeci escapava dos fones dos walkman. A escola parecia bem dirigida e ordeira. No corredor, alguns alunos e alunas se cumprimentavam afetuosamente, engatando os dedos mindinhos e roçando levemente os rostos.

- Não eram meninas más - disse Nathan Kemp enquanto andávamos. - Acho que ouvirão a mesma coisa de seus colegas. Xori deixou de freqüentar a escola no semestre passado, mas os problemas que tinha em casa foram a principal razão. Marion figurava no quadro de honra da Stamford. Estou dizendo a vocês, elas não eram meninas más.

Eu, Sampson e Thurman passamos o resto da tarde com os garotos. Ficamos sabendo que Tori e Marion tinham sido populares. Eram leais com os amigos, divertidas, geralmente cheias de vida. Marion foi descrita como ”flamejante”, o que significava uma pessoa realmente incrível. Tori ”zoava de vez em quando”, o que significava ser às vezes meio louca. A maioria dos alunos não sabia que as meninas trabalhavam como prostitutas em Petworth, mas Tori Glover era conhecida por ter sempre dinheiro.

Uma determinada entrevista ficaria algum tempo gravada em minha memória. Evita Cardinal era uma antiga aluna da escola Stamford e prima de Marion. Usava uma calça branca de atletismo e um boné roxo caído de lado. Os óculos de sol de aro amarelado e preto estavam presos no alto da cabeça.

Logo que se sentou à minha frente na escrivaninha, começou a chorar amargamente.

- Estou sentindo realmente muito a morte de Marion - disse eu, e era verdade. - E quero pegar quem fez esta coisa terrível. Eu e o detetive Sampson moramos na zona sudeste, perto de onde aconteceu. Meus garotos estudam na Sojourner Truth School.

A moça me encarou. Tinha um ar de descrédito nos olhos vermelhos.

Não vão pegar ninguém - disse ela. Era a atitude Predominante nos arredores, sem dúvida perfeitamente justificada Eu e Sampson não devíamos sequer estar ali. Eu havia dito à minha secretária que ia fazer algumas investigações sobre assassinato de Frank Odenkirk. Havia outros detetives cobrindo certas obrigações nossas com relação ao caso.

- Há quanto tempo Tori e Marion estão trabalhando em Petworth? Conhece alguma outra moça da escola que trabalhe lá?

Evita balançou a cabeça.

- Tori era a única que trabalhava na rua em Petworth. Não Marion. Minha prima era uma boa pessoa. As duas eram. Só que Marion era como um bichinho de estimação - disse Evita, as lágrimas começando de novo a cair.

- Marion estava lá com Tori - disse eu, tentando passar o que sabia que era verdade. - Conversei com gente que a viu em Princeton Place naquela noite.

A prima arregalou os olhos.

- O senhor não sabe o que diz, detetive! Está errado. Não é dono da verdade!

- Estou pronto para escutá-la, Evita. É por isso que estou aqui.

- Marion não estava lá para vender o corpo ou algo desse tipo. Estava apenas preocupada com Tori. Estava lá para proteger Tori. Ela nunca fez nada de mau por dinheiro; sei que é verdade!

A moça começou de novo a soluçar.

- Minha prima era uma boa pessoa e era minha melhor amiga. Só tentava proteger Tori e acabou sendo morta por causa disso. A polícia não vai fazer nada. O senhor nunca mais vai voltar a esta escola, é o que sempre acontece. Vocês estão pouco se importando conosco. Nós não significamos nada para ninguém - disse Evita Cardinal, parecendo querer resumir tudo que podia ser dito.

 

Não significamos nada para ninguém. Era uma declaração terrível, absolutamente verdadeira e tocava nas mais profundas raízes da investigação das mortes das fulaninhas e da procura do Gambá. Também resumia a cínica filosofia de George Pittman sobre a cidade que não era a dele. Era também a razão pela qual eu estava me sentindo cansado e tenso até os ossos às seis e meia daquela noite. Acreditava que os assassinatos das fulaninhas estavam aumentando.

Sem dúvida, nos últimos dias vira muito pouco meus filhos e achei melhor ir para casa. No caminho, pensei em Christine, o que me acalmou de imediato. Desde a época em que era menino, eu tinha uma fantasia que se repetia sempre. Estava sozinho num planeta frio e árido. Era assustador mas, pior que tudo, era tremendamente solitário. Então uma mulher se aproximava de mim. Começávamos a nos dar as mãos, a nos acarinhar e de repente tudo ficava bem. A mulher era Christine e eu não tinha idéia de como ela conseguira sair dos meus sonhos e entrar no mundo real.

Nana, Damon e Jannie saíam de casa quando dobrei na entrada da garagem. O que estava acontecendo?

Para onde quer que fossem, pareciam muito arrumados, muito elegantes. Nana e Jannie usavam seus melhores vestidos e Damon se metera num paletó azul com camisa social e gravata. Damon quase nunca usava o que chamava seu traje ”de palhaço” ou ”de ir a enterro”.

-Aonde vocês vão?-perguntei ao saltar do velho Porsche. - Não estão fugindo de casa, certo? O que está havendo?

- Não é nada - disse Damon, estranhamente evasivo, os olhos se movendo rápidos por toda a frente da casa.

- Damon entrou no Washington Boys Choir, o coro da escola! - Jannie deixou orgulhosamente escapar. - Ele não queria que você soubesse até ele ter certeza. Bem, ele agora tem. Agora Damon é corista.

O irmão deu-lhe um tapinha no braço. Nada forte, mas na dose certa para mostrar que tinha ficado muito chateado por ela ter contado o segredo.

- Ei! - disse Jannie, erguendo os punhos ante meus olhos atentos. Parecia uma pequena boxeadora semiprofissional.

- Ei, ei! - gritei, avançando como um juiz no ringue, como o Mills Lane, aquele sujeito que arbitra as lutas famosas. - Nada de socos fora do ringue. Conhecem os regulamentos. Agora me digam o que é essa história de coro?

- Damon se inscreveu para o Boys Choir e foi selecionado - Nana explicou, contemplando Damon com um sorriso de orgulho. - Fez tudo sozinho.

- Você ainda por cima canta? - disse eu, também sorrindo. - Rapaz, rapaz!

- Acho que ele pode cantar em qualquer lugar, papai. Tem a voz muito macia e suave. Uma voz puuuura.

- É verdade, Irmã Sol? - disse para minha menininha.

- Pode crer - Jannie continuou dando palmadinhas nas costas de Damon. Percebi que estava incrivelmente orgulhosa dele. Era sua maior fã, mesmo que Damon ainda não tivesse se dado conta. Um dia ele ia perceber.

Damon não pôde reprimir um grande sorriso, mas logo procurou fechá-lo com um sacudir de ombros.

- Não é uma coisa tão importante. Eu só canto mais ou menos.

- Milhares de outros garotos se inscreveram - disse Jannie. - E uma coisa muito importante, a mais importante que já aconteceu em sua vida breve, irmão!

- Eram centenas - Damon a corrigiu. - Só centenas de garotos se inscreveram. Acho que eu apenas tive sorte.

- Centenas de milhares! - Jannie insistiu com entusiasmo. - E você já nasceu com sorte - continuou antes que Damon, como o tremendo chato que às vezes conseguia ser, tornasse a contrariá-la.

- Posso entrar na conversa? - perguntei. - vou me comportar bem. Não vou fazer barulho. Não vou atrapalhar ninguém além da conta.

- Se hoje pelo menos você tiver tempo. - Nana entrava com um nítido cruzado. Ela certamente não precisava ter nenhuma aula de boxe. - Se sua agenda repleta de trabalho deixar e você tiver tempo, venha conosco.

- É claro, pai - disse Damon por fim. E fui junto com eles.

 

Caminhei feliz, com Nana e as crianças, pelas seis pequenas quadras até a Sojourner Truth School. Eles usavam suas melhores roupas e eu nem me aprontara. Bem, o importante não era isso. Subitamente, dei uma brecada em meu passo e segurei o braço de Nana. Ela sorriu quando pus sua mão na curva do meu braço.

- Assim é melhor - exclamei. - Como antigamente.

- Às vezes você é tão descaradamente encantador - disse Nana, rindo alto. - Foi assim desde que era da idade de Damon. Quando quer, sabe ser especial.

- Quem foi a velha senhora que me ajudou a ser assim? - falei num tom de segredo.

- E tenho orgulho disso. Assim como estou muito orgulhosa de Damon.

Chegamos à Sojourner Truth School e fomos diretamente para o pequeno auditório que havia nos fundos do prédio. Achei que Christine podia estar lá, mas não a encontrei em parte alguma. Eu me perguntava se ela sabia que Damon entrara no coro. Será que Damon já lhe contara? Gostei da idéia que pudesse ter contado primeiro a ela. Queria que fossem muito amigos. Sabia que Damon e Jannie precisavam de uma mãe, não apenas de um pai e de uma avó.

- Ainda não estamos muito bons - Damon me informou antes de se juntar aos outros garotos. Sua expressão revelava claramente a insegurança, o medo de uma apresentação ruim que o deixasse envergonhado. - É apenas nosso segundo ensaio. O sr. Dayne acha que estamos horrendos como um barril de óleo de rícino. Ele é tremendamente duro, pai! Faz você ficar uma hora Parado, sem se mexer.

- O sr. Dayne é pior que você, papai, pior que a sra. Johnson disse Jannie, sorrindo com um ar travesso. - É como ter

Sarros em cima!

Eu já tinha ouvido dizer que Nathaniel Dayne era um maestro exigente (chamavam-no ”Dayne, o Grande”) e que seus coros estavam entre os melhores do país. Diziam também que a maioria dos garotos tirava um imenso proveito do treinamento dedicado, da disciplina. Ele ja começara a organizar os meninos no palco. Era um homem de estatura abaixo da média e corpo cheio demais. Talvez uns cem quilos em um metro e sessenta e cinco. Usava um paletó preto com uma camisa escura abotoada no colarinho, mas sem gravata. Pôs os garotos para funcionar com alguns versos divertidos do Three Blind Mice, que não soaram assim tão mal.

- Estou realmente contente por Damon ter entrado no coro - sussurrei para Nana e Jannie. - Ele parece tão orgulhoso lá em cima. É também um guri muito bonito.

- No outono, o sr. Dayne vai formar um coro de meninas -Jannie murmurou um tanto alto no meu ouvido.-Você já me viu, isto é, já me ouviu cantar. Eu vou me inscrever!

- Entre nessa, garota! - disse Nana, abraçando Jannie. Ela é muito boa para animar os outros.

De repente, Dayne falou em voz alta:

- Ah, ouvi um sopro Não quero sopros aqui, cavalheiros! Quero uma dicção clara, um timbre puro. Quero seda e prata. Não quero sopros.

De repente, pelo canto do olho, vi Christine no vestíbulo. Estava observando Dayne e os garotos, mas logo olhou em minha direção. Durante um instante, seu rosto manteve a seriedade do cargo de diretora. Depois ela sorriu e piscou.

Levantei-me para ir a seu encontro, o coração batendo no peito.

- Meu garoto não é incrível? - disse num tom orgulhoso e brincalhão quando cheguei perto dela. Christine vestia um conjunto cinza com uma blusa rosa-coral. Deus, como eu gostava de me encontrar com ela, de me sentir a seu lado, abraçado com ela, não fazendo nada relacionado a trabalho, em suma, serviço completo.

Christine sorriu. Ou melhor, chegou a rir um pouco.

- Damon é muito bom em tudo que faz. - Ela não recuou quando a toquei, mesmo que tenha tido vontade. - Achei que ia encontrá-lo aqui, Alex. Agora mesmo estava sentindo extremamente a sua falta. Conhece esta sensação?

Sim, estou bem familiarizado com ela.

Demos as mãos enquanto o coro praticava Jesus, alegria dos homens, de Bach. Tudo parecia tão perfeito, que achei difícil me acostumar com a sensação.

Às vezes... ainda sonho com George sendo baleado e morto - disse ela parada a meu lado. O marido de Christine fora morto em casa; ela o vira morrer. Era uma das grandes razões pelas quais hesitara em continuar comigo: tinha medo que eu também morresse cumprindo o meu dever, tinha medo que eu acabasse levando terror e violência para sua casa.

-Também me lembro perfeitamente da tarde em que fiquei sabendo que Maria fora baleada. A lembrança se abranda com o tempo, mas nunca se apaga.

Christine sabia disso. Tinha descoberto as respostas para a maioria de suas perguntas, mas gostava de conversar sobre essas respostas. Nós dois éramos assim.

- E no entanto - disse ela -, continuo a trabalhar aqui na zona sudeste. Indo todo dia para o centro velho. E podia ter escolhido uma boa escola em Maryland ou Virgínia.

- Sim, Christine - disse eu abanando a cabeça -, mas preferiu trabalhar aqui.

- Assim como você.

- Assim como eu.

Ela segurou minha mão com um pouco mais de força.

- Acho que fomos feitos um para o outro - disse. - Por que resistir a isso?

 

No dia seguinte, de manhã cedo, eu estava de volta à sala de arquivo da delegacia do sétimo distrito, trabalhando no homicídio de Frank Odenkirk. Fora o primeiro a chegar.

Ao que parece ninguém vira Odenkirk deixar o aeroporto. Sua roupa ainda não tinha sido encontrada. O relatório da autópsia reportou que ele fora realmente sodomizado após ter sido morto. Como eu suspeitava, não havia esperma. O assassino usara um preservativo. Exatamente como nos crimes das fulaninhas.

O comissário de polícia estava envolvido no caso Odenkirk e fazia uma pressão adicional sobre o departamento, o que l deixava todo mundo irritado, meio maluco. O chefe Pittmanl atormentava ao máximo seus investigadores, mas o único caso em que ele parecia interessado era mesmo a morte de Odenkirk, especialmente porque no crime do turista alemão já havia um suspeito detido.

Por volta das onze daquela manhã, Rakeem Powell parou ao lado de minha mesa, curvou-se e murmurou:

- Talvez tenhamos uma coisa interessante, Alex. Lá embaixo no xadrez, se você dispõe de um minuto. Pode ser uma primeira pista no caso das duas moças assassinadas em Shaw.

O xadrez ficava no fundo de uma escada íngreme de concreto, depois de um conjunto de pequenas salas de interrogatório, celas de triagem e uma saleta de identificação. Os presidiários tinham enchido o teto e as paredes de inscrições, às vezes usando a tinta preta que servia para tomar impressões digitais. Aquilo era uma tolice incrível, pois geralmente resultava em informações adicionais para nossos arquivos.

Deixamos o xadrez propositadamente sempre escuro. Cada cela tem um metro e oitenta por um e cinqüenta, com uma cama de metal e uma combinação pia-vaso sanitário. Nos corredores, havia tênis jogados na frente das portas de grades. É o que fazem os prisioneiros experientes para que não tirem os cordões de seus tênis; por razões de segurança, não se permitem cordões nas celas.

Alfred ”Fuinha” Streek, um ladrãozinho barato e pequeno vendedor de drogas, estava sentado com um ar de Grande Senhor de Washington numa das celas de triagem. Assim que entrei, o punk de rua levantou a cabeça para me encarar, enquanto um sorrisinho astuto e meio nauseante lhe atravessava o rosto.

Fuinha usava óculos escuros de aros fechados do lado. Sob o chapéu de croché amarelo e verde-escuro, apareciam cachos de um cabelo sujo e tremendamente emaranhado. A camiseta branca tinha o rosto de Hailé Selassié e os dizeres: Caçador de Cabeças. Rastafarian.

- Você é do gabinete da promotoria? Não, acho que não - ele me disse. - Então não tem acordo, cara, não tem papo! Caia fora!

Rakeem ignorou o que ele estava me dizendo.

- O Fuinha diz que tem uma informação útil sobre as mortes de Glover e Cardinal, mas gostaria que fizéssemos um acordo em troca do que alega saber. Ele está enrascado numa denúncia de ter assaltado um apartamento em Shaw. Foi flagrado pulando a janela de um quarto com um aparelho de TV Sony. Dá para imaginar? Uma fuinha costuma ser bem mais sutil.

-Eu não assaltei porra nenhuma de apartamento. Nem vejo televisão, cara. E também não estou vendo nenhum assistente da promotoria com a devida autoridade para fazer um acordo!

- Tire os óculos escuros - disse eu.

Ele não me deu atenção, mas eu mesmo tirei os óculos. Como diz um bem conhecido ditado de rua, seus olhos eram túmulos. Percebi de imediato que o Fuinha não estava apenas vendendo drogas; estava tomando.

Fiquei na frente dele na cela do xadrez e olhei-o de cima. Teria provavelmente vinte e poucos anos; um rapaz cínico, com raiva, perdido no tempo e no espaço.

- Se não roubou o apartamento, por que está tão interessado em ver um advogado do gabinete da promotoria? Isso não faz muito sentido, Alfred. E agora escute bem o que posso fazer por você, porque só vou falar uma vez. Escute com atenção. Se eu sair daqui, não vou voltar!

Fuinha parecia estar ouvindo alguma coisa do que eu dizia.

- Se der uma informação que realmente nos ajude a resolver os assassinatos das duas moças, então nós o ajudaremos no que diz respeito à acusação de roubo. vou cuidar pessoalmente do assunto. Mas se não soltar a informação, vou deixá-lo aqui com o detetive Powell e o detetive Thurman. É a primeira e única vez que faço uma oferta tão generosa! Esta é outra promessa e, como esses detetives sabem muito bem, eu sempre cumpro minha palavra.

Fuinha continuava calado e uma sombra ia tomando conta de seus olhos. Ele tentava atirar contra mim um olhar intimidador, mas geralmente eu sou melhor na coisa que a média dos vilões da TV.

Finalmente sacudi os ombros e me virei para Rakeem Powell e Jerome Thurman.

- OK, tudo bem. Cavalheiros, temos de descobrir o que esse cara sabe das garotas assassinadas em Shaw. E ele não vai ter nada de nós quando vocês tiverem acabado. É possível que ele próprio esteja envolvido com os homicídios. Pode ser até mesmo o nosso matador e precisamos resolver a coisa depressa. Tratem bem dele até termos alguma novidade.

Começava a sair quando o Fuinha falou.

- O Porta dos Fundos, cara. Ele costuma rodar pelo parque Downing. Ele, o Porta, pode ter visto quem fez o estrago nas moças. Foi assim que ele falou no parque. Disse também que viu o matador. E aí, como vai me ajudar?

- Já lhe disse como é o acordo, Alfred - respondi já fora da cela.-Vamos resolver o caso. Sua informação vai nos ajudar e eu vou ajudá-lo.

 

Talvez estivéssemos perto de alguma coisa. Dois carros da polícia metropolitana e dois sedans sem identificação estacionaram junto à entrada da cerca do parque Downing, a pequena praça de esportes de Shaw. Rakeem Powell e Sampson tinham ido comigo para conversar com Joe ”Porta dos Fundos” Booker, uma bem conhecida ameaça às casas da vizinhança.

Eu conhecia o Porta de vista e localizei-o de imediato. Era baixo, com cerca de um metro e sessenta e cinco e cavanhaque. Tão bom no basquete que às vezes jogava de botas só para provar. Naquele dia, por exemplo, estava com umas empoeiradas botas alaranjadas usadas na construção civil. A roupa era uma surrada jaqueta preta de náilon e uma calça no mesmo tom, muito comprida, fazendo uma sanfona junto à bainha.

Jogavam na quadra de basquete. Um jogo rápido, brilhante, num nível de bom amadorismo universitário e quase profissional em termos de capacitação atlética. A quadra não podia ser mais rudimentar: macadame preto, linhas brancas meio apagadas, tabelas de metal e cestas com malha de arame.

Os jogadores de duas ou três outras equipes estavam sentados em volta, esperando a vez. Por todo lado havia calções e calças de náilon e o barulho dos tênis Nike. Cercada por quatro divisórias de metal trançado, a quadra era conhecida como ”a jaula” e, quando chegamos, todos viraram a cabeça, inclusive Booker.

- Somos os próximos! - gritou Sampson.

Dentro e fora da quadra, os jogadores trocaram olhares e alguns arreganharam os dentes na direção da voz de Sampson. Sabiam quem éramos. O firme tamp-tamp-tamp da bola, no entanto, não parou.

O Porta estava na quadra. Não era raro sua equipe passar uma tarde inteira vencendo os jogos e permanecendo na cancha. Ele vivia entrando e saindo de prisões e reformatórios desde os catorze anos, mas realmente sabia jogar. Agora implicava com um parceiro de quadra, um sujeito sem camisa, de boné e calça cinza de malha.

- Panaca - dizia o Porta. - Te deixo sem calça, quer apostar? Te bato no beisebol, no tênis, no boliche, em qualquer jogo, duvida? Tire a chupeta da boca, seu merda!

Rakeem Powell soprou o apito de prata de juiz que sempre carregava. Ele atuava como juiz de futebol em seu tempo livre. O apito, sem dúvida, era uma excentricidade, mas atraía a atenção das pessoas em lugares barulhentos. O jogo parou.

Nós três caminhamos na direção de Booker, que estava diante de uma cesta, perto da área de lance livre. Sampson e eu nos inclinamos como torres sobre ele, mas a maioria dos jogadores fez o mesmo. O fato é que o Porta continuava sendo o melhor jogador do pedaço. Provavelmente derrotaria a mim e ao Sampson se jogássemos com ele na base de dois contra um.

- Ahhh, deixe o irmãozinho em paz! Ele não fez nada - queixou-se em voz grave um dos homens mais altos. O sujeito tinha tatuagens, estilo presídio, por toda a superfície das costas e dos braços. - Ele só está jogando bola, cara!

- O Porta tem estado todo dia aqui - disse mais alguém. - Há dias anda por aqui. Há dias não perde um único lance!

Alguns riram do humor da praça de esportes. Sampson se virou para quem falara, o maior homem da cancha.

- Cale a boca e pare de bater essa bola. Duas garotas, duas irmãs foram assassinadas. É por isso que estamos aqui. Não estamos fazendo nenhum jogo!

O sujeito não falou mais nada e pegou a bola. A praça ficou extremamente silenciosa. Pudemos ouvir uma corda de pular batendo em ritmo rápido na calçada e três menininhas, que brincavam na frente da ”jaula”, começaram a cantarolar: A pequena Pinky enterrada na areia, morreu no domingo pelas duas e meia. Era uma cantiga de pular corda, com uma sugestão tristemente verdadeira.

Pus o braço no ombro do Porta e tirei-o do meio de seus amigos.

Sampson continuou com a iniciativa da conversa:

- Vai ser muito rápido e fácil, Booker. Num segundo estaremos voltando para os carros e deixaremos você morrendo de rir com os caras.

- É. Hum-hum - disse Joseph Booker, tentando manter a calma sob a força do meu olhar e do olhar de Sampson.

- A coisa é grave como um ataque cardíaco, rapaz. Você viu algum detalhe que pode ajudar no caso do assassinato de Tori Glover e Marion Cardinal. É simples assim. Você conta e voltamos daqui mesmo.

Booker olhou para Sampson como se estivesse ofuscado pelo sol.

- Não vi porra nenhuma. Como disse Luki, estou há dias aqui! Não perco nunca para essa turma de idiotas.

Levantei minha mão com a palma para fora. Deixei-a muito perto da achatada cara de lua do Porta.

Hoje estou com os minutos contados, Booker. Então, por

favor, não complique o meu lado. Eu lhe prometo. Dois minutos e caímos fora. A decisão, agora, fica por sua conta. Um: você não diz nada e nós vamos embora. Dois: você e seus nobres parceiros acabam de jogar em paz enquanto os detetives Powell e Sampson começam a esmiuçar o que você tem feito. Três: cem dólares cash pelo tempo e pelo incômodo.

”O relógio está batendo”, continuei. ”Tique, tique, tique, taque. Dinheiro na mão.”

Ele finalmente abanou a cabeça e estendeu a palma.

- Vi as duas gurias serem apanhadas. Na rua E, por volta das duas ou três da manhã. Não vi o motorista, não vi a cara dele, nada! Estava escuro demais, parceiro! Mas era mesmo um táxi, um desses ilegais, que ficam circulando. E tinha uma faixa azul e roxa. Algo assim. As garotas entraram no banco de trás e o carro partiu.

- Só isso? - perguntei. - Não quero ter de voltar aqui para interromper outra vez o jogo.

Booker pensou e falou mais alguma coisa:

- O motorista era branco. Vi o braço dele pendurado na janela. Nenhum cara branco circula de noite no Shaw, pelo menos eu nunca tinha visto.

Abanei a cabeça, esperei mais um pouco, depois sorri para os outros jogadores.

- Fiquem à vontade, senhores. Podem jogar. Tamp, tamp, tamp.

Cesta.

Booker realmente sabia jogar.

 

Os novos fragmentos de informação nos deram algo para investigar. Tínhamos feito uma enorme quantidade de ingrato trabalho de rua e alguma coisa finalmente aparecera. Sabíamos da cor do táxi que pegara as garotas perto da hora dos crimes. E o fato do motorista ser branco era a melhor pista que tínhamos até o momento.

Eu e Sampson fomos para minha casa em vez de voltarmos à delegacia. Seria mais fácil trabalhar nas novas pistas a partir da Fifth Street. Levei cerca de cinco minutos para conseguir mais informação de um contato na associação de taxistas. Nenhuma frota operando naquele momento em Washington tinha táxis azuis e roxos, o que provavelmente significava que o carro era um táxi ilegal, como Booker tinha dito. Fiquei sabendo que uma empresa chamada Vanity Cabs usava táxis azuis e roxos, mas a Vanity está fora do negócio desde 1995. O representante da associação dos taxistas disse que talvez uma meia dúzia daqueles velhos carros ainda circulassem. Originalmente a frota tivera quinze carros, o que não era uma quantidade tão difícil de investigar, mesmo se todos ainda estivessem rodando, hipótese altamente improvável.

Sampson telefonou para todas as empresas de táxi que rodavam regularmente no sudeste, especialmente na área de Shaw. Segundo os registros deles, só três motoristas brancos tinham estado de serviço naquela noite.

Trabalhávamos na cozinha. Sampson estava no telefone e eu usava o computador. Nana fizera café e colocara na mesa algumas frutas e metade de uma torta de nozes.

Rakeem Powell nos ligou por volta das 4:15h. Fui eu que atendi.

- Fred Cook, o cão vigia do Pittman, está fuçando de um modo um tanto febril por aqui. Ele queria saber em que você e Sampson estavam trabalhando hoje à tarde. Jerome disse que era no assassinato de Odenkirk.

Respondi sacudindo a cabeça.

- Se os crimes na zona sudeste estiverem de algum modo relacionados, isso é a pura verdade.

- Mais uma coisa - disse Rakeem antes de desligar. - Verifiquei no departamento de trânsito e consegui uma informação interessante. Por volta da uma da manhã, um táxi roxo foi multado por avanço de sinal na área de Eckington, perto da universidade. Mais exatamente na Second Street. Talvez nosso rapaz more por lá.

Bati palmas e dei parabéns a Rakeem. Finalmente nossas longas horas de trabalho no caso das fulaninhas estavam começando a render seus frutos.

Talvez estivéssemos à beira de pegar o Gambá.

 

Ultimamente, ele vinha sendo muito mais cuidadoso. A visita a Washington de George Bayer (a Fome) fora uma advertência e Shafer a encarara muito seriamente, como um tiro junto à cabeça. Os outros jogadores também podiam ser muito perigosos. Afinal, eles é que o haviam ensinado a matar, não vice-versa. Se quisesse mesmo ganhar o jogo, não poderia em momento algum subestimar a Fome, a Conquista e a Guerra.

No dia seguinte à visita da Fome, os demais jogadores confirmaram que Bayer tinha ido a Washington e que ele, Shafer, estava sendo vigiado. O Gambá supunha que esta fosse uma segunda advertência. Sua atividade os assustara e eles agora retaliavam. Tudo fazia parte do jogo.

Naquela noite, após o trabalho, ao se dirigir para o esconderijo em Eckington, ele avistou cerca de meia dúzia de policiais dando uma batida na rua.

Shafer suspeitou de imediato dos outros Cavaleiros. Eles o haviam traído, afinal. Ou será que tudo não passava de um jogo mental contra ele? Mas, nesse caso, o que os tiras faziam ali?

Estacionou o Jaguar a várias quadras de distância e saiu a pé na direção da pequena casa com garagem que lhe servia de esconderijo. Precisava dar uma olhada no local. Vestia um terno com listas finas, camisa social, gravata. Sabia que sua aparência estava bastante respeitável. Com a maleta de couro que carregava, devia lembrar o perfeito executivo que saíra tarde do escritório.

Dois policiais afro-americanos estavam visitando casa por casa no condomínio Uhland. Não, isso não era bom - a polícia se encontrava a menos de cinco quadras do esconderijo.

Não sabia por que estavam ali. Seu cérebro rodopiava, a adrenalina corria pelo sistema nervoso como uma tromba-d’ água. Talvez aquilo nada tivesse a ver com ele, mas sem dúvida precisava tomar cuidado. Desconfiava dos outros jogadores, especialmente de George Bayer. Só não entendia.por que faziam isso. Vontade de encerrar o jogo dando cabo dele?

Quando a dupla de policiais que ia na sua frente entrou na rua transversal que havia ao lado do condomínio, Shafer decidiu parar numa das casas onde eles tinham feito perguntas. Era meio arriscado, mas precisava saber o que estava acontecendo. Nos degraus da entrada, havia dois homens idosos e um rádio antigo transmitindo um jogo de beisebol com os Orioles.

- O que eles perguntaram? - Shafer perguntou no seu tom mais descontraído. - Algum problema no bairro? Eles me pararam lá no alto da quadra.

Um dos homens, sem dúvida irritado, se limitou a encará-lo, mas o outro sacudiu a cabeça e respondeu em voz alta:

- Sim, eles fizeram perguntas. Estão atrás de um táxi azul e roxo, um carro que tem relação com alguns crimes, segundo explicaram. Mas eu não me lembro de ter visto nenhum táxi roxo de uns tempos para cá. Antigamente havia uma empresa chamada Vanity. Você se lembra, Earle? Eles tinham um táxi roxo que fazia lotação.

- É, já foi há alguns anos - disse o outro homem balançando a cabeça. - Acho que os policiais continuaram subindo a rua.

- Deviam ser da polícia metropolitana, mas não me mostraram nenhuma credencial - falou Shafer abanando os ombros, tendo o cuidado de manter aquele sotaque americano que sabia imitar tão bem.

- Investigadores Cross e Sampson - disse o mais falador dos dois homens. - O investigador Cross mostrou-me seu distintivo. Era mesmo da polícia.

- Oh, tenho certeza que sim! - disse Shafer saudando os dois. - Gostei de ver a polícia nas vizinhanças.

- Tem esse direito.

Tenham uma boa noite.

O senhor também.

Shafer deu meia-volta, pegou o carro e tomou o rumo da embaixada. Ao chegar, foi direto para sua sala, onde se sentia seguro e protegido. Procurou se acalmar. Pouco depois já ligava o computador e dava início a uma busca cuidadosa para rastrear dois detetives, Cross e Sampson, ambos lotados em Washington. Encontrou mais informações do que esperava, principalmente acerca do detetive Cross, e tentou avaliar como os acontecimentos recentes poderiam alterar os lances.

Por fim, enviou uma mensagem para os outros Cavaleiros. Falou de Cross e de Sampson, sublinhando que os investigadores tinham resolvido ”entrar no jogo”. Então, muito naturalmente, ele, Shafer, faria planos também para os dois.

 

Zachary Scott Taylor, do Washington Post, é um repórter cuidadoso, ponderado e muito decidido. Tenho muito respeito por ele e podíamos ter sido grandes amigos se eu não achasse difícil integrar a meu cotidiano sua implacável dose de cinismo e descrença. Mantemos, no entanto, um bom relacionamento e, apesar de minhas reservas com relação à maioria dos jornalistas, confio nele.

Encontrei-o naquela noite no Irish Times, na rua F, perto da Union Station. O isolado e antiquado prédio de tijolos vermelhos onde funciona o bar-restaurante fica cercado por modernos edifícios comerciais. Zachary chamou-o de ”barzinho sórdido um lugar perfeito para este nosso encontro”.

Seguindo a velha e respeitada tradição de Washington, eu era ocasionalmente uma de suas ”fontes confiáveis” e tinha agora uma coisa importante para contar. Só esperava que assumisse a história e convencesse o editor-chefe do Post a publicá-la.

- Como vai mestre Damon e madame Jannie? - ele perguntou ao se sentar comigo num canto escuro, sob a velha foto de um homem de ar severo usando uma cartola preta. Zachary é alto e muito magro, um pouco parecido com o homem da fotografia. Fala sempre muito depressa, de modo que as palavras se atropelam umas às outras: comovaimestreDamonemadame Jannie ? Havia apenas um leve vestígio do sotaque da Virgínia para abrandar sua fala.

Finalmente, a garçonete se aproximou da mesa que ocupávamos. Ele pediu café puro e eu fiz o mesmo.

- Dois cafés? - ela perguntou para se certificar de que nos ouvira bem.

- Dois de seus excelentes cafés - disse Zachary.

- Aqui não é o Starbucks, vocês sabem - disse ela. Sorri ante o bom humor da garçonete; depois sorri para o que

Zachary tinha dito antes: suas palavras sobre meus filhos. Provavelmente eu já teria mencionado os nomes dos garotos e ele parecia ter uma memória enciclopédica para os tipos mais díspares de informação.

- Também devia arranjar um casal de filhos - disse eu, mostrando um grande sorriso.

Zachary ergueu os olhos para o ventilador. Um antigo ventilador que zumbia no teto, parecendo que ia cair. Parecendo também uma boa metáfora da vida na América, com sua envelhecida infra-estrutura ameaçando sair de controle.

- Ainda não tenho uma esposa, Alex - disse ele. - Continuo procurando a mulher ideal.

- Tudo bem, então. Consiga primeiro a esposa, depois um casal de filhos. Pode acalmar um pouco as suas neuroses.

A garçonete pousou duas xícaras fumegantes de café na nossa frente.

- Não vão querer mais nada - ela perguntou. Depois sacudiu a cabeça e se foi.

- Talvez eu não queira acalmar meu delicioso comportamento neurótico. Talvez acredite que é isso que me torna um repórter tão bom. Acho que sem as neuroses meu trabalho não passaria de merda rasteira eu não seria nada aos olhos de Don Graham e companhia.

Tomei um gole do café de um ou dois dias atrás.

Bom, se tivesse um casal de filhos - insisti -, pelo menos para eles você seria sempre alguma coisa.

Zachary piscou um dos olhos e fez estalar o lado esquerdo dos lábios. Pensava de um modo muito expressivo.

- Talvez eles não gostassem muito ou não gostassem nada de mim.

- Não se considera digno de amor, certo, Zachary? Mas pode ter certeza que é. Confie em mim. Você é simplesmente ótimo! Seus garotos iam adorá-lo e seriam adorados por você. Viveria numa sociedade de adoração mútua.

Ele acabou rindo e batendo palmas com força. Geralmente nós dois ríamos um bocado quando estávamos juntos.

- Então está me propondo um casamento e quer me dar filhos - disse sorrindo sobre a beirada da xícara fumegante. - Tudo bem, afinal este bar é um local de encontros. O pessoal solteiro do Centro de Estatísticas do Trabalho e da imprensa nacional costuma vir aqui. Ficam azarando os prédios vizinhos, escolhendo alguém para levar para a cama.

- O que se justifica, não acha? Ninguém entraria neste barzinho sórdido só para tomar um café requentado.

Zachary Taylor sorveu com ruído um gole do seu café.

- Pelo menos está bem forte. O que já devia bastar para nos darmos por satisfeitos. O que houve, Alex?

- Está interessado em outro prêmio Pulitzer? Ele fingiu refletir, mas os olhos se iluminaram.

- Bem, poderia estar. Você sabe, preciso pôr alguma coisa de valor no console da minha lareira. Uma de minhas namoradas roe disse isso. Uma moça, aliás, que nunca mais tornei a ver. Ela trabalhava numa loja de decorações.

Nos próximos quarenta e cinco minutos, contei a Zachary o eu achava que estava acontecendo. Falei dos assassinatos não-resolvidos que haviam ocorrido na zona sudeste e em Partes da nordeste. Contei como as investigações nos casos de rank Odenkirk e do turista alemão em Georgetown tinham sido diferentes das investigações das mortes de Tori Glover e Mariori Cardinal, duas adolescentes negras. Falei de Pittman, de suas idiossincrasias, de seus preconceitos, da percepção negativa que eu tinha do seu caráter, chegando a admitir que antipatizava profundamente com o chefe dos investigadores. Zachary sabia que, excluindo aqueles que faziam do assassinato um modo de vida, era difícil eu não gostar de alguém.

Ele me ouviu balançando a cabeça de um lado para o outro, de um lado para o outro, e não parou quando eu terminei.

- Não que eu duvide do que está me dizendo - falou por fim -, mas tem algum documento?

- Gosta de fuçar nos detalhes, não é? Vocês, repórteres, são insuportáveis quando alguém resolve falar de algo que realmente interessa.

Quando pus a mão embaixo da cadeira e puxei dois grossos fichados, seus olhos brilharam.

- Isto deve ajudar. São cópias de sessenta e sete relatórios de homicídios não-solucionados. E também incluí uma cópia das investigações nas mortes de Glover e Cardinal. Observe o número de investigadores designados para cada caso. Verifique os relatórios feitos nos locais dos crimes. Vai encontrar enormes discrepâncias. Foi o que consegui pegar... mas ainda existem outros relatórios.

- E por que estaria acontecendo esta malévola negligência? - ele me perguntou.

Balancei a cabeça ante a sensatez da pergunta.

- vou lhe dar a razão mais cínica - respondi. - Certos tiras da polícia metropolitana gostam de se referir ao sudeste como ”fornos de autolimpeza”. Isto não soa como os primeiros passos de uma negligência malévola? Alguns corpos da zona sudeste são chamados NPE, ou seja, ”nenhuma pessoa envolvida”. É uma expressão usada pelo chefe Pittman.

Zachary folheou rapidamente os relatórios. Depois apertou minha mão.

- vou para casa, para minha solitária morada, tornada suportável apenas pelo meu único Pulitzer. Tenho todas estas fascinantes fichas policiais sobre NPEs para ler, e depois, ao que tudo indica, um arrepiante cardápio de fatos a narrar. Vamos ver!

Tom sempre, foi ótimo encontrá-lo, Alex. Abraços em Damon, e na mamãe Nana. Um dia gostaria de conhecê-los. Dar rostos aos nomes!

Vá assistir a próxima apresentação do Coro dos Meninos de Washington - disse eu. - Todas as nossas caras vão estar lá. Damon é um corista.

 

Trabalhei naquela noite até as oito e meia. Depois fui ao Kinkead’s, em Foggy Bottom, para me encontrar com Christine. O Kinkead’s era um de nossos restaurantes favoritos e também um excelente lugar para ouvir jazz e abraçar um ao outro.

Sentei-me ao balcão e fiquei saboreando os sons de Hilton Felton e Ephrain Woolfolk até ver Christine chegar da escola, onde tinha havido uma comemoração. Ela chegou bem na hora. Era pontual. Como sempre, muito atenciosa para com os outros. Perfeita em quase tudo, pelo menos diante dos meus olhos. Sim, eu serei sua esposa.

- Está com fome? Quer pegar uma mesa? - perguntei depois de nos abraçarmos como se estivéssemos separados há muitos anos, por milhares de quilômetros.

Seu hálito tinha um leve aroma de hortelã e o rosto parecia tão suave, tão macio, que tive de acariciá-lo com ambas as mãos.

- Não podemos ficar uns minutos aqui no balcão? Você se importa? - disse ela.

- Nada, em todo este vasto mundo, me agradaria mais - respondi.

Christine pediu um conhaque Harvey’s Bristol e eu uma caneca de cerveja. Conversamos com a música fluindo ao nosso redor, fluindo através de nossos corpos. Fora um longo dia; eu Precisava daquilo.

- Esperei o dia inteiro por este momento. Não via a hora de estar com você - eu disse sorrindo. - Será que estou sendo novo romântico demais, piegas?

- Não para mim. Para mim você nunca será romântico demais ou piegas, Alex.

Christine sorriu. Gostava muito de vê-la daquele jeito, com os olhos piscando e dançando nas órbitas. Às vezes eu me perdia naquele olhar, como se caísse em lagos fundos. Ficava imerso naquele belo clima que comove as pessoas, mas que poucas parecem querer admitir hoje em dia, o que é triste.

Ela também me olhava e meus dedos acariciaram levemente seu rosto. Depois a peguei pelo queixo. Tocavam Stardust, que é uma de minhas canções favoritas, mesmo em situações comuns. Eu me perguntava se Milton e Ephrain não estariam tocando a música para nós; quando olhei para eles, Hilton me deu uma piscada furtiva.

Nos aproximamos mais um do outro e dançamos sem sair do lugar. Pude sentir o coração de Christine, senti-lo bem contra meu peito. Devemos ter ficado assim por dez ou quinze minutos. Ninguém no balcão parecia reparar, ninguém nos perturbou, oferecendo-se para nos servir mais dois copos ou para nos acompanhar à nossa mesa. Acho que compreenderam.

- Gosto realmente do Kinkead’ s - Christine sussurrou. - Mas sabe, hoje à noite eu preferia estar em casa com você. Num lugar um pouco menos público, percebe? Faço uns ovos mexidos ou alguma outra coisa, o que acha? Você se incomoda?

- Em absoluto. É uma idéia perfeita, vamos!

Pedi a conta, me desculpando por abrir mão da reserva para o jantar, e levei Christine para casa.

- Podemos começar pela sobremesa - disse ela, sorrindo maliciosamente. Eu gostava muito daquele seu jeito.

 

Havia esperado muito tempo para me apaixonar de novo, mas senti que tinha valido a pena, realmente tinha. Logo que entramos, abracei Christine. Minhas mãos começaram a seguir o contorno de sua cintura e dos quadris; depois tocaram nos seios, ombros, acariciaram os ossos delicados do rosto. Gostávamos de fazer devagar - por que correr? Beijei seus lábios, esfreguei-lhe suavemente as costas, os ombros. Puxei-a mais e mais.

Adoro esse seu jeito carinhoso - ela murmurou perto do meu rosto. - Eu podia ficar assim a noite inteira. Só ficar assim. Quer um pouco de vinho? Alguma coisa? Dou o que você pedir, basta ter em casa.

- Te amo - disse eu, ainda alisando afetuosamente a parte de baixo das costas de Christine. - Vai ser sempre assim conosco. Tenho certeza.

- Gosto muito de você - disse ela, a respiração ligeiramente contida. - E por favor, tente ter cuidado no seu trabalho, Alex.

-Tudo bem, vou tomar cuidado. Mas hoje à noite não estou de serviço.

- Hoje à noite não - disse Christine sorrindo. - Hoje à noite você pode viver perigosamente. Nós dois podemos. Você é bonito e é muito macio, apesar de ser policial.

- Mais macio que um ladrão internacional de jóias. Suspendi-a, atravessei o corredor com ela nos braços e entrei no quarto.

- Hum, é forte também. - Christine acendera a luz do corredor ao passar, uma luz apenas suficiente para vermos o caminho.

- Que tal viajarmos para algum lugar? - disse eu. - Preciso dar uma fugida.

- Parece uma boa idéia. Sim... antes do início das aulas. Qualquer lugar. Leve-me para longe de tudo isso.

O quarto tinha um aroma de flores. Havia flores rosadas e rosas vermelhas na mesa-de-cabeceira. Christine tinha paixão por flores e jardinagem.

- Você planejou tudo, não foi? - perguntei. - Fez isso. Uma emboscada, sua sonsa!

-É, estive armando o dia todo - ela confessou, suspirando com ar feliz. - Imaginando a hora em que estaria perto de você. Fiquei pensando na escola. Na minha sala, nos corredores, no pátio. Depois pensei no carro, a caminho do restaurante. Passei o dia inteiro com devaneios eróticos a seu respeito.

- Vamos ver se consigo corresponder.

- Vai conseguir, não tenha dúvida.

Tirei-lhe a blusa de seda preta num movimento rápido e pousei a boca no seio, beijando-o através do sutiã bastante cavado. Ela usava uma saia de couro lustroso, que não tirei; só empurrei devagar para cima. Ajoelhei-me e beijei seus tornozelos, o alto dos pés, depois fui subindo pelas pernas compridas. Ela massageou meu pescoço, minhas costas e ombros.

- Você está perigoso esta noite, mas isso é muito bom.

- É terapia sexual.

- Hummm, pode fazer pelo corpo inteiro, doutor. Christine mordeu com força meu ombro; depois, com força ainda maior, o lado do meu pescoço. Nós dois estávamos respirando rápido. Ela fez um movimento em minha direção e abriu os joelhos. Eu a penetrei. Ela parecia incrivelmente quente. As molas da cama começaram a ranger e a cabeceira batia na parede.

Vi quando empurrou o cabelo para o lado, colocando-o atrás da orelha. Adorava seu jeito de fazer aquilo.

- Está tão bom. Oh, Alex, não pare, não pare, não pare - ela sussurrava.

Fiz o que Christine mandava e adorei cada instante, cada movimento que fizemos juntos. Por um segundo, cheguei a me perguntar se não teríamos arranjado um bebê.

 

Naquela noite, muito mais tarde, estávamos mexendo alguns ovos com cebola, mozarela, queijo cheddar e abrindo uma bela garrafa de Pinot Noir. Para completar, acendemos a lareira em pleno verão, com o ar-condicionado ligado no máximo.

Sentados na frente da lareira, conversamos e rimos muito, planejando uma rápida saída de Washington. Quando nos decidimos pelas Bermudas, Christine perguntou se não podíamos levar Nana e as crianças. Tive a sensação de que minha vida, transformando-se a passos largos, rumava para um novo e bom lugar- Se ao menos tivesse a sorte de pegar o Gambá... Poderia ser o coroamento perfeito de minha carreira na polícia metropolitana.

Fui tarde para minha casa na Fifth Street e quando entrei já eram quase três da madrugada. Não queria, porém, que Damon e Jannie acordassem de manhã e não me encontrassem. Assim, por volta das oito horas da manhã seguinte, eu já estava de pé, rumando para o andar de baixo, para os cheiros deliciosos de café fresco e daqueles pães doces mundialmente famosos de Nana.

A terrível dupla estava à beira de disparar para a Sojourner Truth School, onde teriam aulas de reforço pela manhã. Lembravam um par de anjinhos dourados. Dificilmente eu os acompanhava no café e me senti muito bem com a nova experiência.

- Como foi seu encontro ontem à noite, papai? - perguntou Jannie, arregalando um olhar meloso.

Abri espaço para ela se sentar no meu joelho.

- Quem disse que tive um encontro?

Ela deu uma mordida no pãozinho fofo que Nana colocara em meu prato e respondeu num tom esganiçado:

- Digamos que um passarinho me contou.

- Hã-hã, passarinhos fazem gostosos pães doces - disse eu. - Meu encontro foi bem razoável. Como foi o seu? Aposto que também teve um encontro na escola. Porque não ficou sentada em casa sozinha, ficou?

- Seu encontro foi muito razoável. Rapaz, você chegou em casa com o leiteiro! - Jannie riu em voz alta. Damon também. Ela sabe nos animar quando quer; é assim desde bebê.

- Olhe como fala, Jannie Cross! - disse Nana, mas deixando seguir. Seria inútil tentar fazer com que Jannie agisse, em todas as situações, como uma típica menina de sete anos. Era esperta demais e muito franca, muito engraçada, muito cheia de vida. Além disso, temos uma filosofia em nossa família: deixar rir quem ri primeiro.

- Por que já não estão morando juntos? - Jannie perguntou. - o que todo mundo faz nos filmes e na TV.

Acabei rindo e franzindo a testa ao mesmo tempo.

- Não venha me falar das tolices que fazem na TV e nos filmes, menininha. É sempre a coisa errada. vou me casar em breve com Christine e depois todos nós vamos morar juntos.

- Falou com ela? - perguntaram todos em uníssono.

- Falei.

- E ela deu o sim?

- Por que o ar de espanto? Claro que ela concordou. Quem não ia querer fazer parte de uma família como esta?

- larrúúú! - Jannie gritou e eu tive certeza de que aquilo vinha do fundo do seu coração.

- larrúúú - repetiu Nana. - Graças a Deus! Oh, graças a Deus!

- Também concordo - Damon finalmente se manifestou. - Está na hora de termos uma vida mais normal por aqui.

Todos continuaram me felicitando por vários minutos até que Jannie finalmente disse:

- Agora tenho de ir para a escola, pa-pai. Não quero desapontar a sra. Johnson chegando tarde, não é? Está aqui o seu jornal.

Ela me passou o Washington Post e meu coração deu um salto. Aquele era de fato um bom dia. Vi a matéria de Zachary Taylor no rodapé direito da primeira página. Não era a manchete principal, como merecia ser, mas pelo menos saíra na página um.

Provável escândalo envolvendo crimes não-resolvidos na zona sudeste Possível preconceito racial na atividade da polícia

- Provável escândalo, sem dúvida-disse Nana franzindo a cara. - Um genocídio é sempre escandaloso, não acha?

Entrei na central de polícia por volta das oito e um subserviente assessor do chefe Pittman correu para me receber. O velho Fred Cook, antigo e mau detetive, se transformara num administrador igualmente mau e desonesto, embora fosse o melhor puxa-saco que se poderia encontrar no departamento ou em qualquer outra parte de Washington.

- Venha logo, o Chefe quer falar com você em seu gabinete disse Fred. - É importante.

É claro que é importante, ele é o chefe dos detetives - disse eu abanando a cabeça e tentando manter meu bom humor intacto. - Não pode me dar uma pista, Fred? Não quer me dizer qual é o assunto para que eu fique preparado?

- É coisa séria - disse Cook, com ar feliz e nada solidário. - É o máximo que posso lhe dizer, Alex.

Ele se afastou, me deixando ao desamparo, e comecei a sentir um gosto amargo na garganta. Meu bom humor já se dissipara.

Segui os tacos barulhentos do corredor até a sala do Chefe. Não tinha idéia do que ia acontecer, mas certamente o que encontrei superou minhas expectativas.

Pensei de imediato no que ouvira de Damon naquela manhã: Está na hora de termos uma vida normal por aqui.

Vi Sampson no gabinete do Chefe. Rakeem Powell e Jerome Thurman também estavam lá.

- Entre, dr. Cross. - disse o chefe Pittman, acenando com a mão estendida. - Por favor entre. Estávamos esperando o senhor chegar.

Sentei numa cadeira ao lado de Sampson e cochichei no ouvido dele:

- O que é isto?

- Ainda não sei, mas boa coisa não é. O Chefe ainda não deu uma palavra a nenhum de nós. Parece o canário que comeu o gato.

Pittman caminhou para a frente de sua mesa, encostando as nádegas grandes contra ela. Naquela manhã, parecia particularmente cheio de si e de besteira na cabeça, uma cabeça redonda, onde o cabelo, com manchas grisalhas e emplastrado para trás, Parecia um capacete.

- Posso lhe contar o que o senhor quer saber, detetive Cross - disse ele. - Na realidade, eu não quis comunicar a esses outros senhores antes do senhor chegar. Desde esta manhã, os investigadores Sampson, Thurman e Powell estão suspensos do serviço ativo. Eles vêm trabalhando em casos sem a aprovação deste departamento. Ainda estamos acumulando provas sobre a plena extensão de suas atividades, bem como provas do eventual envolvimento de outros detetives.

Ia começar a falar, mas Sampson me agarrou (com força) o braço.

- Esfrie a cabeça, Alex. Pittman olhou para os três.

- Investigadores Sampson, Thurman e Powell, os senhores podem ir. Seu delegado sindical já foi informado da situação. Se tiverem reparos ou discordâncias quanto à minha decisão, recorram ao sindicato.

A boca de Sampson estava totalmente contraída, mas ele não disse uma palavra. Apenas se levantou e saiu do gabinete. Thurman e Powell seguiram logo atrás. Também em silêncio. Os três eram profissionais competentes, dedicados ao seu trabalho, e achei terrível ver o que estava acontecendo.

Não sabia por que o Chefe tinha me poupado até aquele momento. Também não sabia por que Shawn Moore não estava lá. A cínica resposta era que Pittman queria nos jogar uns contra os outros, fazendo-nos acreditar que Shawn teria denunciado nossas reuniões.

Pittman estendeu a mão pela escrivaninha e pegou um exemplar dobrado do Washington Post.

- Por acaso leu este artigo hoje? Embaixo da página, à direita?

Ele me empurrou o jornal, que tive de agarrar bruscamente, para que não caísse no chão.

- ”Escândalo envolvendo crimes não-resolvidos na zona sudeste” - disse eu. - Sim, eu li. Li em casa.

- Aposto que sim. O sr. Taylor, do Post, cita fontes não identificadas no departamento. - Pittman me olhou fixamente) e perguntou: - Você não teria nada a ver com o artigo?

Por que eu iria falar com o Washington Post? - foi

minha pergunta em resposta à pergunta dele. - Foi com você que discuti o problema no sudeste. Acho que pode haver um serial killer agindo por lá. Por que levar o assunto mais longe? suspender aqueles detetives realmente não vai ajudar a resolver o problema. Principalmente se o assassino estiver se aproximando de um nível de fúria, como eu acho que está.

.- Não engulo esta história de serial killer! - disse Pittman balançando a cabeça e franzindo a testa. Ele estava fervendo de irritação, tentando se controlar. - Não vejo qualquer padrão consistente vinculando os crimes. Ninguém mais vê, além de você.

De repente tornou a estender a mão para mim e seus dedos eram como salsichas cruas. Baixou muito a voz; falou quase num sussurro:

- Eu gostaria realmente de lhe foder e é o que ainda vou fazer. Mas por ora não seria conveniente afastá-lo do homicídio de Odenkirk. Não deixaria boa impressão e desconfio que também ia dar notícia nas páginas do Post. vou ficar esperando seus relatórios diários sobre as chamadas ”mortes das fulaninhas”. Sem dúvida, está na hora de você tirar alguns desses crimes não resolvidos dos arquivos. E vai se reportar diretamente a mim, Cross. Tenha certeza, vou ficar o tempo todo em cima de você! Alguma pergunta?

Saí rapidamente do gabinete do chefe Pittman. Antes de lhe dar um soco.

 

Sanpson, Thurman e Rakeem Powell já haviam saído do prédio quando deixei o gabinete do Chefe. Sentia-me realmente à beira de perder o controle, quase voltando à sala de Pittman para esfregar a cara dele no chão.

Fui para minha mesa, pensar no que fazer. Queria me acalmar em vez de reagir de modo precipitado e estúpido. Pensei em minhas responsabilidades para com as pessoas da zona sudeste, e isso me ajudou. Mas sem dúvida quase voltei para pegar o Pittman.

Liguei para Christine, fazendo um pequeno desabafo, e de repente, num impulso, perguntei se não podia levá-la para um fim de semana prolongado, possivelmente a partir da próxima quinta-feira à noite. Christine respondeu que sim. Pouco depois, eu já estava preenchendo um pedido de licença, que deixei na mesa de Fred Cook. Era a última coisa que ele e Pittman esperariam de mim. Mas eu já decidira que a melhor coisa a fazer seria me afastar um pouco, esfriar a cabeça - antes de montar um novo esquema para avançar em meu trabalho.

Quando ia saindo do prédio, fui parado por um investigador.

- Estão no Hart’s Bar. Sampson mandou lhe dizer que guardaram um lugar para você.

O Hart’s, um velho barzinho tipo botequim da Second Street, é muito popular. Não é um bar de tiras, e é justamente por isso que alguns de nós gostamos dele. Eram onze da manhã, mas o lugar já estava cheio de gente. Havia um clima animado, até mesmo amistoso.

Jerome Thurman me saudou com a caneca de cerveja pela metade.

- Aí vem ele!

Vi mais meia dúzia de detetives e amigos. A notícia das suspensões se espalhara muito depressa. Havia muita gente rindo, falando alto.

- É sua despedida de solteiro! - disse Sampson, sorrindo. - Descobrimos, sugar! Com uma pequena ajuda de Nana. Ei, mas não precisa ficar com essa cara!

Na próxima hora e meia, os amigos continuaram a chegar ao Hart’s. Pelo meio-dia, o bar já estava cheio, e então os fregueses habituais começaram a entrar para o almoço no balcão. O proprietário, Mike Hart, estava radiante. Eu realmente nunca pensara numa despedida de solteiro, mas naquele momento, no meio da festa, gostei da coisa. Muitos homens ainda reprimem seus sentimentos e emoções, mas não certamente numa despedida de solteiro, pelo menos não numa das boas, montada pelas pessoas com quem se tem mais intimidade.

Uma ocasião como aquela. As suspensões anunciadas no início da manhã tinham ficado praticamente esquecidas, ao menos por algumas horas. Deram-me mais abraços e parabéns do que pude contar, até mesmo um ou dois beijos. Obedecendo ao comando de Sampson, todo mundo me chamava de sugar [açúcar]. Era o modo como Christine passara a me chamar na intimidade, uma palavra de que estavam usando e abusando. Também me assaram na grelha dos discursos sentimentais, todos muito engraçados. Ninguém, é claro, parava de beber.

Pelas quatro da tarde, eu e Sampson já saíamos do bar, caminhando um ao lado do outro, entrando na luz ofuscante da Second Street. O próprio Mike Hart tinha nos chamado um táxi.

Por um instante (um instante muito concreto), lembrei-me do táxi azul e roxo que estávamos procurando, mas logo aquela luz quase branca do sol evaporou o pensamento.

- Sugar - Sampson murmurou perto de minha cabeça ao entrarmos no carro -, não imagina como gosto de você! É verdade. Gosto dos seus garotos, da Nana, da sua futura esposa, essa adorável Christine.

E se virando para o motorista:

- Vamos pra casa, Alex vai se casar!

- Ele é o padrinho - eu disse ao motorista, que sorriu.

- Sim, é verdade - disse Sampson -, um superpadrinho.

 

Quinta-feira à noite, Shafer jogou de novo os Quatro Cavaleiros. Estava trancado no escritório, mas só quando ficou tarde deixou de ouvir o barulho da família rodando pela casa. Sentia-se tremendamente isolado; estava nervoso, ansioso e com raiva, aparentemente sem motivo algum.

Enquanto esperava a entrada dos outros jogadores, começou a recordar sua selvagem corrida de automóvel por Washington.

Uma particular sensação era revivida sem parar: o momento imaginário do impacto contra uma estrutura fixa. Podia enxergar, com clareza ofuscante, os objetos físicos e ele próprio sendo estilhaçados como vidro para depois se tornarem de novo parte do universo. Mesmo a dor que ia sentir faria parte do reagrupamento da matéria para constituir outras fascinantes figuras e formas.

Sou um suicida, ele finalmente pensou. É só uma questão de tempo. Sou realmente a Morte.

Exatamente às nove, começou a digitar uma mensagem no computador. Os outros Cavaleiros já estavam on-line, querendo saber de sua reação à visita, à advertência de George Bayer. Não pretendia desapontá-los. O que eles tinham feito o deixara ainda mais entusiasmado pelo jogo. Escreveu:

 

ESTRANHAMENTE, A MORTE NÃO FICOU SURPRESA QUANDO A FOME APARECEU EM WASHINGTON. É CLARO QUE ELA TINHA TODO DIREITO DE IR ATÉ LÁ. EXATAMENTE COMO A MORTE PODE IR A LONDRES, CINGAPURA, MANILA OU KINGSTON; TALVEZ, QUEM SABE, A MORTE RESOLVA EM BREVE RETRIBUIR A VISITA A ALGUM DE VOCÊS.

ESSA É A GRAÇA DO NOSSO JOGO - QUALQUER COISA PODE ACONTECER.

A ÚNICA SAÍDA É CONFIARMOS UNS NOS OUTROS, NÃO É? DEVO CONFIAR QUE ME DEIXARÃO JOGAR EM PAZ? AFINAL, É ISTO QUE TORNA O JOGO TÃO ESPECIAL E FASCINANTE: A LIBERDADE QUE EXPERIMENTAMOS.

ESSE É O JOGO AGORA, NÃO É? EVOLUÍMOS PARA ALGUMA COISA

NOVA. VIRAMOS FINALMENTE A MESA E VAMOS NOS DIVERTIR DE VERDADE, AMIGOS CAVALEIROS! TENHO ALGUMAS IDÉIAS PARA TESTAR EM VOCÊS. TUDO ESTÁ NO ESPÍRITO DO JOGO E NENHUM RISCO DESNECESSÁRIO SERÁ ASSUMIDO.

FAÇAMOS CADA LANCE COMO SE NOSSAS VIDAS DEPENDESSEM DISSO.

SERÁ QUE A MINHA JÁ DEPENDE?

COMO DISSE A VOCÊS, TEMOS NOVOS JOGADORES. UMA DUPLA DE DETETIVES DE WASHINGTON: ALEX CROSS E JOHN SAMPSON.

OPONENTES QUE DEVEMOS LEVAR EM CONTA. ESTOU VIGIANDO OS DOIS, MAS DESCONFIO QUE EM BREVE TAMBÉM PODEREI ESTAR SENDO VIGIADO POR ELES.

VOU CONTAR O ENREDO QUE CRIEI PARA SAUDAR A ENTRADA DESSES NOVOS PARCEIROS EM NOSSO JOGO. ESTOU MANDANDO FOTOS DO DETETIVE CROSS E DO DETETIVE SAMPSON.

 

Levamos um dia para organizar nossa viagem, mas todos nós estávamos muito contentes com o inesperado da coisa, com o prazer especial de, pela primeira vez, sairmos juntos de férias. E foi assim que eu, Damon, Jannie, Nana e Christine partimos de Washington à tarde e desembarcamos, bastante animados, na noite de quinta-feira, 25 de agosto, no Aeroporto Internacional das Bermudas.

Realmente eu queria ficar alguns dias longe de Washington. O caso do assassinato do sr. Smith fora seguido muito rapidamente pela investigação das mortes das fulaninhas. Estava precisando de um descanso. Um dos proprietários de um dos hotéis das Bermudas era meu amigo e a viagem aérea de Washington até lá seria relativamente curta.

Tudo perfeito para nós.

Uma cena vivida no aeroporto continuará para sempre gravada em minha memória: Christine cantando ”Ja-da, ja-da” com Jannie abraçada a ela. Não pude deixar de imaginá-las como mãe e filha, o que me comoveu profundamente. Pareciam tão felizes e cheias de ternura, tão naturais. Era uma foto mental que devia ser conservada, um daqueles momentos que eu jamais esqueceria. As duas dançavam e cantavam como se já se conhecessem há séculos.

Fomos abençoados por um tempo extraordinariamente bom. Todo dia havia sol e um céu muito azul. Ao cair da noite, uma combinação mágica de tons vermelhos, laranjas e roxos tomava conta do céu. Os dias fascinavam a todos nós, mas especialmente as crianças. Fomos nadar e mergulhar de máscara em Elbow Beach e na baía Horseshoe; depois, andar de bicicleta nas pitorescas avenidas Middle e Harbour.

As noites eram minhas e de Christine, e aproveitamos muito bem a maioria delas. Visitamos todos os pontos de interesse: o Terrace Bar, em Palm Reef, a pousada Gazebo Lounge, em Princess, a Clay House Inn, os bares Once Upon a Table, em Hamilton, e Horizons, em Paget. Adorava estar com Christine - esse pensamento não parava de rodar na minha mente. Sem dúvida o que estávamos compartilhando se fortaleceria no tempo e no espaço abertos por aquela fuga. Sentindo-me novamente inteiro, eu não parava de me lembrar da primeira vez que a vira no pátio da escola. É ela, Alex. Era outra imagem que rodava sem parar na minha cabeça.

Sentamos no Terrace Bar, apreciando a cidade e o porto de Hamilton. A água estava salpicada de pequenas ilhas, velas brancas, barcaças indo de um lado para o outro entre Warwick e Paget. De mãos dadas, eu não parava de contemplar seus olhos, não queria parar.

- Grandes pensamentos? - ela finalmente perguntou.

- Tenho pensado muito em reabrir um consultório particular - disse eu. - Talvez seja a melhor coisa a fazer.

Ela me encarou.

- Não quero que se sacrifique por mim, Alex. Por favor, não me transforme na causa de você abandonar o trabalho na polícia. Sei como gosta do que faz. Pelo menos na maior parte do tempo.

- Ultimamente, venho me aborrecendo muito. Pittman não é apenas um patrão difícil; acho que também é corrupto. O que aconteceu a Sampson e aos outros é pura safadeza. Eles estavam trabalhando em casos não-resolvidos em seu tempo livre. Tenho vontade de contar a Zach Taylor, do Post, tudo que aconteceu. As pessoas ficariam possessas se soubessem da verdade. É aliás por isso que não vou passar a informação ao Post.

Christine ouviu com ar compreensivo e gostei do modo cauteloso como se manifestou:

- Parece uma coisa terrível, complicada, nojenta, Alex! Eu também gostaria de dar um soco em Pittman. Ele está fazendo pura política. Tenho certeza de que você saberá agir no momento certo. Na manhã seguinte, encontrei-a passeando no jardim com flores tropicais enfiadas no cabelo. Parecia radiante, mais do que lhe era habitual, e de novo me senti inteiramente apaixonado. - Há um velho ditado que escuto desde criança - disse ela quando eu me aproximei. - Se só tiver duas moedas, compre uma bisnaga com uma e um lírio com a outra.

Beijei seu cabelo no espaço entre as flores. Beijei os lábios doces, a face, a cavidade da garganta.

No início da tarde, fui de novo com os garotos à praia da baía Horseshoe. Nunca se cansando daquele mar tão azul, os dois só queriam nadar, mergulhar, construir castelos de areia. Sem dúvida estava quase na hora de voltar à escola e tudo em nossas pequenas férias adquiria um significado intenso, muito especial.

Christine foi de lambreta até Hamilton. Queria comprar lembranças para alguns professores da Sojourner Truth. Ficamos acenando até ela desaparecer de vista na avenida Middle. Depois tornamos a entrar na água!

Por volta das cinco horas, eu, Damon e Jannie voltamos ao hotel. Entre o verde luxuriante das colinas e a moldura da porcelana azul dos céus, o Belmont despontava como uma sentinela. Por toda parte, para onde quer que eu olhasse, brotavam os chalés de cores suaves e telhados brancos ocupados pelos hóspedes. Nana estava sentada na varanda da sede, conversando com alguns de seus novos amigos íntimos. O paraíso conquistado, eu pensei, sentindo que alguma coisa sagrada e profunda voltara a viver dentro de mim.

Vendo o imaculado céu azul, lamentei que Christine ainda não tivesse chegado para compartilhar o momento comigo. Na realidade, mesmo em tão pouco tempo eu já sentia saudades. Abracei Jannie, Damon e nós três sorrimos para o óbvio: era muito bom estarmos juntos ali; era uma sorte incrível termos uns aos outros.

-- Está sentindo a falta dela - sussurrou Jannie. Era uma afirmação, não uma pergunta. - E isso é bom, papai. É assim que deve ser, não acha?

Por volta das seis horas, como Christine ainda não havia chegado, comecei a enfrentar vontades conflitantes: ficar esperando no hotel ou ir de carro até Hamilton para buscá-la. Podia ter sofrido um acidente. Aquelas malditas lambretas, pensei, embora as tivesse achado engraçadas e perfeitamente seguras no início da tarde.

De repente, vi uma alta e bela mulher entrando pelos portões da frente do Belmont. Ela se deslocava contra um fundo d trepadeiras e fícus. Suspirei aliviado, mas quando comecei descer a escada percebi que não era Christine.

Christine não voltara nem ligara para o hotel às seis e meia. Nem às sete da noite.

Finalmente, chamei a polícia.

 

O inspetor Patrick Busby, da polícia de Hamilton, chegou ao Belmont Hotel por volta das sete e meia. Era um homem baixo e calvo que, ao menos de longe, parecia ter uns cinqüenta e tantos anos, talvez sessenta. Contudo, quando ele se aproximou da varanda da frente, percebi que teria no máximo uns quarenta anos, aproximadamente a mesma idade que eu.

Depois de escutar minha história, disse que era comum os turistas perderem a noção do tempo e de si mesmos nas ilhas Bermudas. Havia, é claro, acidentes ocasionais com lambretas na avenida Middle. Garantiu, porém, que Christine não demoraria a chegar, talvez com um leve ”arranhão” ou ”um pé ligeiramente torcido”.

Não acreditei. Ela era sempre pontual e certamente teria ligado para o hotel.

Convencido por mim de que Christine não deixaria de telefonar se tivesse sofrido um acidente sem gravidade, o inspetor me acompanhou numa busca: inicialmente entre o hotel e Hamilton; depois nas ruas da capital. Reviramos, particularmente, as ruas Front e Reid. Calado, com uma solene tensão no rosto, olhava pela janela do carro, esperando ver Christine apreciando as vitrines numa rua lateral, completamente esquecida da hora. Não a encontramos, porém, em parte alguma, e ela ainda não ligara.

Quando entramos pelas nove da noite sem que Christine aparecesse, o inspetor Busby começou relutantemente a admitir que ela podia estar perdida. O teor das perguntas que fez me convenceram de que era um sujeito confiável. Quis saber, entre outras coisas, se houvera algum desacordo, alguma discussão entre nós.

- Sou investigador criminal em Washington - eu disse por fim. Até aquele momento fizera silêncio sobre isso, pois não queria chamar atenção. - Tenho investigado casos extremamente delicados envolvendo assassinatos em série e conheci alguns sujeitos bastante cruéis. Pode haver uma conexão. Espero que não, mas é uma possibilidade que não deve ser descartada.

- Entendo - disse Busby, cujo bigode muito fino transmitia uma idéia de trabalho ordenado e detalhista. Lembrava antes um metódico professor que um tira e, sem dúvida, se parecia mais com um psicólogo do que eu. - Alguma outra revelação que eu deva ouvir, detetive Cross? - ele perguntou.

- Não, isso é tudo. Mas espero que entenda por que fiquei preocupado e por que lhe telefonei. Agora mesmo estou trabalhando numa terrível série de homicídios em Washington.

- Sim, entendo o motivo de sua preocupação. vou preencher de imediato um boletim de ocorrência.

Dei um longo suspiro e subi para falar com Nana e os garotos. Esforcei-me ao máximo para não assustá-los, mas Damon e Jannie começaram a chorar. Depois Nana.

Por volta da meia-noite, ainda nada sabíamos de Christine ou de seu paradeiro. O inspetor Busby deixou o hotel à meianoite e quinze. Sem dúvida fora muito atencioso, tendo inclusive a consideração de me dar o telefone de casa para eu ligar de imediato se tivesse notícias de Christine. Depois disse que rezaria por mim e pela minha família.

Às três, ainda acordado, eu andava de um lado para o outro apartamento do terceiro andar do hotel e tomava sozinho a iniciativa de rezar. Acabara de falar ao telefone com Quantico. O FBI estava suficientemente a par de todos os meus casos de homicídio para saber se algum investigado teria alguma conexão com as ilhas Bermudas. O Bureau já começara a se interessar pelos crimes não-resolvidos da zona sudeste e eu tinha passado um fax para eles com o que imaginava fosse o perfil do Gambá.

Não havia qualquer motivo plausível para suspeitar que o assassino pudesse estar ali, nas Bermudas, mas era o que eu temia, embora fosse exatamente esse tipo de pressentimento que o Chefe tinha rejeitado na investigação dos crimes na zona sudeste.

Percebi que provavelmente o FBI só me daria algum retorno no meio da manhã seguinte. Fiquei tentado a ligar para amigos na Interpol, hesitei... Mas também acabei recorrendo à Interpol.

O quarto do hotel estava equipado com cadeiras de vime, móveis Queen Anne de mogno e carpetes rosados, cheios de pó. Parecia árido, solitário. Fiquei parado como um fantasma diante das vidraças das janelas que saíam no telhado. Contemplava os oscilantes contornos negros da cidade contra o céu enluarado e me via com Christine nos braços. Sentia-me incrivelmente desamparado, incrivelmente sozinho com a falta dela. Nem conseguia acreditar que aquilo tivesse realmente acontecido.

Abracei a mim mesmo com força e tomei consciência de uma dor terrível junto do coração. A dor pressionava como uma coisa sólida que fosse do peito até a cabeça. Podia ver o rosto, o belo sorriso de Christine. Via-me dançando com ela no Rainbow Room, em Nova York. Lembrava-me de nossos jantares em Washington, no Kinkead’s, e da noite especial em sua casa, quando rimos ao achar que podíamos ter arranjado um bebê. Estaria Christine em algum lugar da ilha? Tinha de estar. Rezei de novo pedindo que estivesse em segurança. Tinha de estar em segurança. Recusava-me a passar mais que um ou dois segundos imaginando alguma coisa ruim.

Pouco depois das quatro da manhã, um barulho curto. O telefone tocava dentro do quarto.

Fiquei com o coração na boca. Minha pele formigou - como se estivesse encolhendo e não desse mais no corpo. Corri pelo quarto e, com a mão tremendo, agarrei o telefone antes do segundo toque.

A voz estranha, abafada, me assustou:

- Você tem um e-mail.

Não conseguia nem pensar direito. Não conseguia absolutamente pensar.

Levara o laptop para as férias.

Quem poderia saber que eu tinha levado meu computador? Quem poderia conhecer um detalhe tão insignificante a meu respeito ? Quem estava me vigiando ? Quem estava nos vigiando ?

 

Escancarei a porta do armário, peguei o computador, liguei e entrei no word. Depois puxei o e-mail para ver a mensagem.

Era breve, muito concisa.

POR ENQUANTO ELA ESTÁ BEM. NÓS A PEGAMOS.

A mensagem curta e fria foi pior que qualquer coisa que eu pudesse imaginar. Cada palavra ficou gravada em meu cérebro, onde se repetiria sem cessar.

Por enquanto ela está bem.

Nós a pegamos.

 

                                                                ELEGIA

 

No dia seguinte ao desaparecimento de Christine, quando Sampson chegou ao Belmont Hotel, desci correndo para encontrá-lo no pequeno saguão da frente. Ele atirou os braços grandalhões à minha volta e me abraçou com firmeza, mas com afeto - como se estivesse segurando uma criança.

- Tudo bem com você? - perguntou. - Conseguiu localizar?

- Nem cheguei perto - respondi. - Passei a metade do dia checando o endereço do e-mail que recebi ontem à noite. Foi mandado como cortina@pulomental.com. O endereço era falso. Nada está dando certo.

- Vamos trazer Christine de volta. Vamos encontrá-la. Ele disse o que eu queria ouvir, mas tenho certeza de que acreditava realmente que ia conseguir. Sampson é o ser humano mais otimista que já encontrei. E também não gosta que duvidem de sua palavra.

- Obrigado por ter vindo - disse eu. - Seu apoio significa muito para todos nós e eu já não consigo pensar calmamente em mais nada. Fiquei realmente atordoado, John! Não tenho sequer a mais vaga idéia de quem possa ter feito isso. Talvez o Gambá, não sei.

- Se você conseguisse pensar calmamente num momento desses - disse John -, eu estaria muito mais preocupado. Vim justamente porque sei como é difícil.

- Já desconfiava que você viria.

- É claro que sim. Ou não me chamaria Sampson. É uma conclusão elementar que eu não ficaria de fora de toda a encrenca que armaram por aqui.

Havia meia dúzia de hóspedes no saguão do hotel, que olhavam em nossa direção. Os empregados do Belmont sabiam do desaparecimento de Christine e tenho certeza de que, àquela altura, os hóspedes e praticamente toda a população da ilha pequena e tagarela também sabiam.

- A notícia saiu na primeira página do jornal local - disse Sampson. - Vi as pessoas lendo no aeroporto.

- Bermudas é um lugar pequeno - disse eu -, extremamente pacífico e ordeiro. O desaparecimento de um turista, algum tipo de crime violento, é muito raro aqui. Não entendo como o jornal deu a notícia com tanta rapidez. A fonte deve ter vindo da central de polícia.

- A polícia local não poderá nos ajudar - Sampson murmurou encaminhando-se ao balcão de recepção. - Atrapalhar, talvez. - Ele assinou o livro de registro e subimos devagar para mostrar a Nana e às crianças que o tio John estava lá.

 

Na manhã seguinte, eu e Sampson ficamos horas reunidos com a polícia de Hamilton. Eram profissionais, mas um seqüestro era uma raridade entre eles. Deixaram-nos trabalhar em sua delegacia central, na Front Street. Eu ainda não conseguia me concentrar, acertar o foco como era preciso.

Bermudas tem cinqüenta e três quilômetros quadrados. Embora seja uma pequena colônia britânica, logo descobrimos que existem mais de 1.200 estradas na ilha. Eu e Sampson nos dividimos e cobrimos, cada um, o máximo possível de terreno. Rodamos, nos dois dias seguintes, das seis da manhã às dez ou onze da noite, sem intervalos. Eu não queria parar, nem mesmo para dormir.

Não tivemos, porém, melhor resultado que a polícia local. Ninguém tinha visto nada e chegamos a um beco sem saída. Christine desaparecera sem deixar vestígios.

Estávamos cansados até os ossos. Na terceira noite, depois de sairmos da delegacia, fomos nadar na Elbow Beach, perto da estrada onde ficava o hotel.

Tínhamos aprendido a nadar na piscina municipal em Washington Nana se empenhara para que aprendêssemos. Ela era, então, uma obstinada mulher de cinqüenta e quatro anos. Também decidida a aprender, resolvera participar conosco das aulas que seriam ministradas pela Cruz Vermelha. Naquela época, a maioria das pessoas da zona sudeste não sabia nadar e Nana achava que isso era um símbolo das limitações impostas pela cidade às experiências de seus habitantes mais pobres.

Assim, num certo verão, eu e Sampson nos dedicamos, juntamente com Nana, às aulas de natação na piscina municipal. Os treinos eram três vezes por semana, sempre de manhã, e costumávamos ficar mais uma hora praticando sozinhos. A própria Nana logo foi capaz de dar cinqüenta voltas ou mais na piscina. Tinha uma boa resistência, exatamente como agora. Raramente eu entrava na água sem me recordar dos incríveis dias de verão da minha juventude, quando me transformei num razoável nadador.

A uns cem metros da praia, eu e Sampson mergulhávamos na superfície calma do mar. O céu noturno era uma profunda sombra de azul salpicada com incontáveis estrelas e eu podia ver, estendendo-se por muitos quilômetros em ambas as direções, a curvatura branca da areia. Palmeiras e casuarinas ondulavam na brisa marinha.

Nadei com uma sensação de desespero, totalmente arrasado. Com os olhos abertos ou fechados, continuava vendo Christine. Não me conformava que ela não estivesse mais comigo e sentia uma pontada de angústia quando pensava no que tinha acontecido, quando constatava como às vezes a vida podia ser dura.

- Quer conversar sobre a investigação? - Sampson perguntou quando começamos a boiar serenamente de costas. - Quer saber das minhas conclusões e das pequenas coisas que fiquei sabendo hoje? Ou acha melhor parar até amanhã de manhã? Conversamos ou damos um tempo?

- Conversamos, eu acho. Não consigo pensarem mais nada além de Christine. Não consigo raciocinar direito. Algo chamou sua atenção? Diga o que está pensando.

- Foi um detalhe, mas talvez seja importante.

Fiquei calado. Só deixei que continuasse.

- O que me intriga é a notícia estampada tão depressa no jornal. - Sampson fez uma pausa, mas logo continuou: Busby diz que não falou com ninguém naquela primeira noite Absolutamente ninguém, ele garante. Você também não. E, no entanto, a história saiu na edição da manhã.

- É uma ilha pequena, John. Venho lhe dizendo isso e você acabou de ver com seus próprios olhos.

Quando Sampson insistiu no assunto, comecei a achar que ele podia ter uma ponta de razão.

- Escute, Alex, só quem sabia era você, Patrick Busby e o seqüestrador. Ele deu a notícia ao jornal. O próprio seqüestrador. Falei com a funcionária do jornal, a moça que atendeu à chamada. Ela não quis me dizer nada ontem, mas hoje à tarde finalmente admitiu. Pensou que fosse um cidadão ligando para comunicar o que sabia. Acho que alguém está brincando com sua cabeça, Alex, fazendo um joguinho sujo com você!

Nós a pegamos.

Um jogo? Que tipo de joguinho sujo? Quem eram os sujos que jogavam? Um deles seria o Gambá? Era possível que ainda estivesse ali, nas Bermudas?

 

Não pude dormir quando voltei ao hotel. E ainda não conseguia me concentrar em nada, o que parecia tremendamente deprimente. Era como se estivesse perdendo a razão.

Um jogo! Não, não era um jogo. Era tudo choque e horror. Era um tremendo pesadelo, que superava qualquer coisa que eu já tivesse enfrentado. Quem poderia ter feito isso com Christine? Por quê? Quem era o Gambá?

Sempre que fechava os olhos e tentava dormir, via o rosto de Christine, Christine dando adeus pela última vez na avenida Middle e atravessando os jardins do hotel com flores no cabelo.

Fiquei toda noite ouvindo a voz de Christine - e então amanheceu de novo. Minha culpa com relação ao que lhe acontecera tinha dobrado, triplicado.

Eu e Sampson continuamos a revirar a avenida Middle, a Harbour Road, a South Road. Todas as pessoas da polícia e do exército com quem falamos achavam impossível que Christine tivesse se evaporado na ilha. Durante uma semana, dia após dia, eu e Sampson ouvimos a mesma ladainha. Nenhum lojista, motorista de táxi ou de ônibus a vira em Hamilton ou St. George, e era possível que ela jamais tivesse chegado a qualquer lugar naquela tarde.

Nenhuma testemunha. Ninguém se lembrava de vê-la passar de lambreta pelas avenidas Middle ou Harbour, pois talvez jamais tivesse chegado tão longe.

O mais terrível era não ter havido mais comunicação depois daquele e-mail na noite do desaparecimento. O agente do FBI que investigara o endereço do e-mail informara que ele não existia. Quem tinha feito contato comigo era um hacker habilidoso, perfeitamente capaz de ocultar a identidade. As palavras que eu lera naquela noite, porém, não me saíam da cabeça.

Por enquanto ela está bem.

Nós a pegamos.

Quem eram eles? E por que não faziam um novo contato? O que queriam de mim? Sabiam que estavam me deixando louco? Era o que queriam que acontecesse? Será que o Gambá encobria mais de um matador? Sim, de repente isso parecia fazer muito sentido.

Sampson voltou a Washington no domingo, levando Nana e as crianças. Não queriam partir sozinhos, mas estava na hora de voltar. Para mim, parecia impossível sair das Bermudas. Eu me sentiria como se estivesse abandonando Christine.

No domingo, por volta das nove da noite, Patrick Busby apareceu no Belmont Hotel e me pediu que fosse com ele até a área de Southampton. Seria um trajeto de, no máximo, uns dez quilômetros, que faríamos em cerca de vinte minutos. Os berrnudenses medem as distâncias em linha reta, mas todas as estradas são cheias de curvas e semicírculos; por isso viajar leva sempre muito mais tempo do que se poderia crer.

- O que há, Patrick? - perguntei enquanto seguíamos a avenida Middle. - O que vamos ver na área de Southampton? - Assustado com o silêncio de Patrick, eu tinha o coração na boca.

- Não encontramos a sra. Johnson - ele disse por fim. - Mas há alguém que pode ter visto o seqüestro. Quero que escute a história dele e conclua por si mesmo. Você é o detetive da cidade grande, não eu. Pode fazer as perguntas que quiser. Extraoficialmente, é claro.

Perri Graham, como se chamava a testemunha, estava nos aguardando no Port Royal Golf Club, num minúsculo apartamento da ala dos funcionários. Era alto e tremendamente magro, com um cavanhaque comprido. Sem a menor dúvida, não pareceu contente quando me viu na porta com o inspetor Busby.

Busby me contara que Graham viera de Londres e agora trabalhava como porteiro e homem de manutenção no semiprivado clube de golfe. Ele também vivera em Miami e em Nova York, onde tinha ficha criminal por venda de crack.

Perri Graham falou pouco depois que nos viu parados na sua porta:

-Já contei tudo a ele - disse na defensiva.-Vão embora, me deixem em paz. Qual seria o meu interesse de ocultar alguma coisa ou...

Cortei-o.

-Meu nome é Alex Cross. Sou investigador de homicídios de Washington. A mulher que o senhor viu era minha noiva, sr. Graham. Podemos entrar e conversar um pouco? Só vamos demorar alguns minutos.

Frustrado, o homem balançou a cabeça de um lado para o outro.

- Bem, podem entrar - disse ele por fim, num tom condescendente. - Como alguém me chamou de sr. Graham, vou contar o que eu sei, de novo.

- É só o que quero - disse eu. - Não vim aqui para incomodá-lo a respeito de qualquer outra coisa.

Entrei com Busby no apartamento, que era pouco mais que um pequeno quarto. Peças emboladas de roupa, principalmente cuecas e meias, estavam jogadas nos móveis e no chão de lajotas.

Uma mulher que eu conheço mora em Hamilton - disse

Graham num tom de voz saturado. - Fui visitá-la na terça-feira nassada, tomamos muito vinho e foi ficando tarde... vocês sabem como é. Mas acabei me levantando porque tinha de estar ao meio-dia no clube. Sabia, é claro, que ia chegar atrasado e ia ser descontado no pagamento. Não tenho carro, nem nada que rode, e saí de Hamilton a pé, seguindo a South Shore Road. Perto de Paget, achei que a tarde estava tremendamente quente e fui até a água. Para ver se conseguia me refrescar um pouco. Na volta, ao sair da praia, passei por um morrote arredondado e vi um acidente na estrada. Do morro até lá devia haver uns quatrocentos metros. Estão me acompanhando?

Balancei a cabeça e prendi o fôlego para ouvi-lo melhor. Lembrava do calor sufocante daquela tarde, lembrava de tudo. Na minha cabeça, sempre a imagem de Chrístine se afastando numa brilhante lambreta azul. Ela acenava, sorria. A lembrança do sorriso, que costumava me trazer tanta alegria, agora só me dava um nó no estômago.

- Vi uma van branca bater numa lambreta azul guiada por uma mulher. Não posso jurar, mas tive a impressão de que a van batera de propósito. Vi o motorista da van que saltou de imediato para ajudar a mulher a se levantar. Ela não parecia muito ferida e o homem ajudou-a a entrar na van. Pegou a lambreta também. Depois arrancou. Achei que ia levá-la para o hospital; foi só o que pensei.

- Tem certeza de que ela não estava muito ferida? - perguntei.

- Não certeza absoluta. Mas ela se levantou com facilidade e conseguiu se manter em pé.

Quando falei de novo, tinha a voz meio embargada.

- E o senhor não falou com ninguém do acidente, nem mesmo quando viu a notícia no jornal?

O homem balançou a cabeça.

- Não vi notícia nenhuma. Não me interesso muito pelas notícias locais. Em geral são coisas sem importância, fofoca inútil. Minha garota gosta, é claro. Leu o jornal e começou a falar no assunto. Eu não queria ir à polícia, mas ela me obrigou, me obrigou a falar com este inspetor aqui.

- Reparou como era a van? - perguntei.

- Era branca. Talvez alugada. Limpa e nova.

- Placa?

Graham balançou a cabeça.

- Não tenho a menor idéia.

- Como era o homem? - perguntei. - Nenhum detalhe útil que ainda possa nos contar, sr. Graham? O senhor está nos ajudando muito.

Graham sacudiu os ombros, mas achei que tentava reviver aquela tarde.

- Não havia nada de especial com o sujeito. Não era da sua altura, mas era alto. Mesmo assim, tinha uma aparência totalmente comum. Um homem negro, como qualquer outro.

 

Num pequeno apartamento de um subúrbio de Washington chamado Mount Rainier, a investigadora Patsy Hampton estava deitada na cama, virando incansavelmente as páginas do Post. Não conseguia dormir, embora nada houvesse de extraordinário nisso. Ela enfrentava problemas para dormir desde os tempos de menina em Harrisburg, na Pensilvânia. A mãe dizia que Patsy devia ter a consciência culpada de alguma coisa.

Depois de assistir à reprise de um episódio do Arquivo X, foi buscar um iogurte Stonyfield com framboesas, ligou o computador e clicou na America Online. Encontrou um e-mail enviado pelo pai, que vivia em Delray Beach, na Flórida, e outro de uma colega do alojamento feminino da Universidade de Richmond, da qual jamais fora amiga muito íntima.

A moça acabara de saber, através de uma amiga comum, que patsy havia se tornado uma brilhante investigadora policial em Washington e devia estar levando uma vida realmente emocionante. A colega de quarto escreveu que tinha quatro filhos e morava num subúrbio de Charlotte, Carolina do Norte, acrescentando que andava muito irritada com o rumo que sua vida havia tomado. Mal sabia ela que Patsy Hampton daria qualquer coisa para ter pelo menos um filho.

Patsy voltou à cozinha e pegou uma garrafa gelada de água mineral Evian. Tinha consciência de como sua vida se tornara absurda. Passava tempo demais no trabalho; também passava tempo demais sozinha em seu apartamento, principalmente nos fins de semana. Conseguia alguns namorados, sem dúvida, mas os homens sempre acabavam se afastando dela.

Continuava fantasiando sobre a possibilidade de se unir a alguém compatível, que já tivesse filhos, mas estava cada vez mais cansada do ciclo deprimente e enlouquecedor de tentativas inúteis para encontrar a pessoa certa. Geralmente se via agarrada a sujeitos desesperadamente chatos ou a panacas de trinta e tantos anos que agiam como adolescentes, embora sem o charme da juventude. Terrível, terrível, terrível, ela repetia mentalmente enquanto digitava uma simpática mentira para o pai na Flórida.

Quando o telefone tocou, Patsy Hampton deu uma olhada no relógio de pulso (meia-noite e vinte) e levantou bruscamente o fone.

- Hampton falando.

-É Chuck, Patsy. Realmente me desculpe por telefonar tão tarde. Tudo bem? Estava acordada?

- É claro, sem problema, Queijinho. Estou acordada como os outros vampiros... Você incluído, eu acho.

Era um pouco tarde, mas ficou feliz ao escutar a voz de Chuck (Queijinho) Hufstedler, o homem que mexia com os computadores do FBI em Washington. Os dois se ajudavam de vez em quando e, há pouco tempo, Paísy conversara com ele sobre os crimes misteriosos que vinham acontecendo na cidade, Principalmente sobre as mortes das fulaninhas. Chuck dissera que também costumava manter contato com Alex Cross, mas Patsy sabia que naquele momento o detetive Cross andava excessivamente mergulhado em seus problemas pessoais. Ela se perguntava se o seqüestro da noiva de Cross não teria alguma relação com as mortes na zona sudeste.

- Estou bem acordada, Chuck. O que há? O que você tem nessa cabeça?

- Talvez nada... - foi a negativa com que ele começou, deixando claro que sua auto-estima continuava num nível bastante baixo - mas talvez exista alguma coisa interessante sobre as mortes na zona sudeste, principalmente sobre a morte das duas garotas em Shaw. O problema é que sai bastante do nosso terreno habitual.

O perito em informática do FBI tinha toda a atenção de Patsy.

-E onde podemos achar esse matador senão profundamente fora do nosso terreno habitual? Diga-me o que tem aí. Estou bem acordada e atenta. Quero saber, Queijinho.

Chuck hesitou e começou a limpar a garganta. No fundo, Chuck Queijinho era um sujeito realmente simpático; pena que agisse sempre com tanta timidez.

- O que sabe sobre RPGs, Patsy?

- Sei que é a abreviatura de ”role-playing games”, jogos onde cada pessoa encarna um personagem, e vamos ver, há um muito popular chamado Armagedon ou Carmagedon, não estou bem certa.

- É Carmagedon ou Advanced Carmagedon. Tudo bem, hora de confessar: de vez em quando gosto de jogar um RPG chamado Fim do Milênio. Isto é, costumo jogar umas duas horas por dia. Mais nos fins de semana.

- Nunca imaginei. - Deus, ela pensou, confissões ciberespaciais no meio da noite! - Continue, Chuck.

- É um jogo muito popular, mesmo entre os pretensos adultos. Os personagens do Fim do Milênio trabalham para a Black Eagle Security. É uma entidade privada de detetives que são contratados para serviços de investigação nos quatro cantos do mundo. Os personagens são todos bons sujeitos, cruzados do bem.

Hã-hã, Queijinho. Agora reze seis Ave-Marias, diga ”eu pecador me confesso” e entre na porra do assunto! Já é meia hora depois da meia-noite, parceiro!

Está bem, eu sinto muitíssimo e me sinto muito envergonhado também. De qualquer modo visitei um chat chamado Gamester’s Chatroom, que fica na AOL. Quando entrei, transcorria uma fascinante discussão sobre um novo tipo de jogo. Na realidade é mais um antijogo. Em todos os RPGs há personagens jons tentando domar o caos e o mal. Esse outro jogo tem alguns personagens maus tentando triunfar sobre o bem. Sendo mais exato, Patsy: um dos personagens ataca e mata mulheres na zona sudeste de Washington. E dá muitos detalhes chocantes sobre os crimes. Sem dúvida, os que estavam no chat conheciam bem o jogo, mas não deviam ser os verdadeiros jogadores. Certamente o jogo é protegido. Achei que devia informá-la. O jogo se chama Os Quatro Cavaleiros.

Agora Patsy

Hampton ficara definitivamente desperta.

- Entendi e obrigada, Chuck. Vamos manter a coisa entre nós por enquanto, está bem?

- Sim, está bem.

 

Ela demorou alguns minutos para acessar a AOL e para entrar no Gamester’s Chatroom, onde de início apenas leu o que os outros tinham a dizer. Era interessante, e Patsy se perguntava se não teria acabado de tropeçar na primeira grande pista do caso das fulaninhas.

Os outros do chat chamavam-se Víbora, Cercado, J-Boy e Lancelot. Conversavam sem parar sobre os jogos mais quentes e as revistas mais em voga sobre os jogos mais quentes, o que quase conseguiu fazê-la dormir. Os Quatro Cavaleiros foram evocados duas vezes, mas só de passagem, como ponto de referência. A menção fora de Lancelot. Chuck tinha razão: aqueles provavelmente não eram os verdadeiros jogadores, embora soubessem da existência do jogo.

À uma e quinze, a caipirada dos RPGs começou realmente a fatigá-la. Cheia de frustração, ela se batizou de Safo e digitou uma mensagem para os pequenos cocôs.

ENTREI MEIO TARDE, MAS OS QUATRO CAVALEIROS ME PARECEM UM TIPO MUITO CAPRICHADO DE JOGO REVOLUCIONÁRIO, LANCELOT. BASTANTE ARROJADO, NÃO ACHA?

Lancelot respondeu:

ACHO QUE NÃO, SAPO. HÁ MUITOS DO GÊNERO RODANDO POR Aí. ANTI-HERÓIS, PÍSSICOS, ESPECIALMENTE NO CÍRCULO DOS JOGOS DE VAMPIRO.

Hampton digitou:

SERÁ QUE NÃO VI NO JORNAL CRIMES COMO AQUELES DOS CAVALEIROS? E É SAFO, A POETISA, LEMBRA?

Lancelot respondeu:

LEMBRO, MAS A MAIORIA DOS RPGs USAM COISAS CORRENTES, NÃO COISAS GRANDES, SAPO.

Hampton sorriu. Lancelot era um campônio chato, mas ela o pegara - ao menos, por algum tempo. E precisava dele. O que exatamente Lance sabia dos Quatro Cavaleiros? Não seria mesmo um dos jogadores? Resolveu dar uma espiada no perfil de Lancelot, mas o acesso era restrito.

VOCÊ É ENGRAÇADO. É MESMO UMJOGADOR, LANCE? Ou SÓ CRÍTICO DE ARTE?

NÃO GOSTO DO CONCEITO BÁSICO DOS CAVALEIROS. DE QUALQUER MODO, É UM JOGO PRIVADO. ESTRITAMENTE PRIVADO. PROTEGIDO POR SENHAS.

CONHECE ALGUM JOGADOR? TALVEZ Eu TAMBÉM GOSTASSE De JOGAR...

Não houve resposta. Patsy achou que podia ter pressionado demais, depressa demais. Droga! Ela já devia saber. Droga, droga! Volte, Lancelot. Mais terra-a-terra com Lancelot.

Eu REALMENTE GOSTARIA De JOGAR OS QUATRO CAVALEIROS. MAS SE NÃO PUDER NÃO FAZ MAL. NÃO FAÇO MUITA QUESTÃO. LANCELOT?

Patsy Hampton esperou, mas Lancelot saíra do chat. Ela perdera o Lance. E junto com ele o contato com alguém interessado na suposta fantasia de um RPG, onde crimes medonhos eram executados em Washington. Crimes que tinham de fato ocorrido.


Voltei a Washington na primeira semana de setembro e nunca, em toda minha vida, me sentira tão mal. Tinha ido para as Bermudas com a família e Christine; agora voltava sozinho. Quem levara Christine fizera um único contato comigo. Eu sentia a sua falta praticamente a cada segundo de cada dia e me angustiava ao extremo imaginando onde ela poderia estar.

Quando cheguei à cidade, era um dia incomum, de muito frio e vento. Parecia que eu tinha ficado fora todo verão e estava chegando em pleno outono. Andara numa névoa de irrealidade nas Bermudas e tive a mesma sensação ao voltar para Washington. A coisa nunca estivera assim tão ruim. Sentia-me tão perdido, tão confuso, tão arrasado!

Quem sabe eu e Christine não seríamos parte do elaborado delírio de um louco, daquilo que os perfis de criminosos costumam chamar ”extremos da fantasia”. Se assim fosse, quem era o louco e onde estaria ele naquele momento? Seria mesmo o Gambá? Algum dia já nos teríamos visto? Covarde e cruel, o desgraçado me comunicara: nós   a pegamos! E fora só isso. Nem uma palavra a mais. Depois só o silêncio, que era ensurdecedor.

Ao tomar um táxi no aeroporto, lembrei-me do que acontecera com Frank Odenkirk, que inocentemente também pegara um táxi numa noite de agosto e se transformara no corpo baleado da avenida Alabama, perto do parque Dupont. Eu já não me ocupava do caso de Odenkirk havia três semanas e, desde que pisara nas Bermudas, tinha esquecido quase por completo das mortes das fulaninhas, embora naquele momento minha consciência culpada estivesse se lembrando delas. Sim, eu não era o primeiro a sofrer uma perda dolorosa.

Ignorava se as investigações tinham feito algum progresso e tinha curiosidade de saber quem ficara encarregado dos inquéritos, principalmente do inquérito referente a Odenkirk. Sem dúvida eu não acreditava que conseguisse trabalhar de imediato naqueles crimes misteriosos. Achava que meu lugar ainda era nas Bermudas e, no momento em que o avião pousou, estava quase decidido a voltar.

Pouco depois, no entanto, vi-me diante de nossa casa na Fifth Street. E percebi o enorme ajuntamento - sim, algo de estranho estava acontecendo!

 

Alguns estavam parados na varanda, outros se amontoavam na frente da casa quando o táxi chegou. De uma ponta a outra da rua havia carros estacionados, inclusive em fila dupla.

Reconheci uma tia. Nana e minha cunhada Cilla achavam-se na varanda, ao lado das crianças. Sampson estava acompanhado de uma namorada chamada Millie, advogada do departamento de justiça.

Muitos acenaram quando parei o carro e percebi que tudo estava bem. Não era um novo problema. Mas o que significava todo aquele movimento?

Vi minha sobrinha Naomi e o marido, Seth Taylor, que tinham vindo de Durham, na Carolina do Norte. Vi Jerome Thurman, Rakeem Powell e Shawn Moore conversando no gramado da frente.

- Ei, Alex, que bom ver você! - A voz muito grave de Jerome ressoou quando passei por ele a caminho da varanda. Finalmente, pousei a bolsa de viagem e comecei a apertar as mãos, a distribuir abraços, a receber pancadinhas nas costas e beijos de todos os lados.

- Todo mundo estava à sua espera. - Naomi se aproximou e me deu um forte abraço. - Gostamos muito de você, Alex. Mas vamos embora se não nos quiser aqui.

- Não, não. Estou feliz por terem vindo, minha querida - disse eu, beijando minha sobrinha dos dois lados do rosto. Há algum tempo, Naomi fora seqüestrada em Durham e eu saíra em seu socorro, assim como Sampson. - Acho ótimo vê-la em minha casa com seu marido. Acho ótimo que todos estejam aqui. nem pode imaginar como é bom!

Abracei parentes e amigos, minha mãe, meus dois belos filhos e percebi como eu era afortunado por ter tanta gente incrível em minha vida. Dois professores da Sojourner Truth School também estavam ali. Eram amigos de Christine e começaram a chorar ao se aproximarem de mim. Queriam saber se tinha havido algum progresso nas investigações e se podiam fazer alguma coisa para ajudar.

Contei que havíamos localizado uma testemunha do seqüestro e que andávamos com muitas esperanças. Os professores ficaram animados com a notícia, embora ela não fosse tão boa quanto eu a fizera parecer. Nada mais tínhamos conseguido além do relato dessa única testemunha. Ninguém mais tinha visto a van branca que levara Christine.

Por volta das nove horas, Jannie me encurralou no quintal. Eu acabara de passar meia hora com Damon no porão, conversando de homem para homem e treinando um pouco de boxe.

Damon me dissera que já não conseguia se lembrar muito bem da fisionomia de Christine. Respondi que era normal isso acontecer e que não fazia mal. Depois compartilhamos um longo abraço.

Jannie esperara pacientemente para falar comigo.

- Minha vez? - perguntou ela.

- Toda sua, meu bem.

Jannie pegou minha mão, puxou-me para dentro de casa e me conduziu em silêncio para o andar de cima - não para o quarto dela, mas para o meu.

- Se você se sentir sozinho aqui esta noite, pode ir para o meu quarto - disse ela fechando suavemente a porta atrás de nós dois. - Estou falando sério.

Era tão esperta e tinha tão boas percepções. Tanto ela quanto Damon eram crianças excelentes. Nana dizia que tinham ”ótima índole” e estavam recebendo uma ótima formação. Pelo menos até aquele momento.

- Obrigado, querida. vou para seu quarto se a coisa ficar feia por aqui. Você é muito atenciosa e simpática.

- Eu sei, papai. Você me ajudou a ser assim e fico muito contente com isso. Só que agora tenho uma pergunta realmente séria para lhe fazer, papai. E difícil, mas tenho de perguntar!

- Vá em frente - disse eu, pouco à vontade sob aquele olharzinho sério. Jannie estava inteiramente concentrada em mim e eu não sabia se conseguiria suportar uma de suas perguntas duras. - Estou ouvindo, querida. Pode falar.

Jannie tinha largado minha mão, mas a pegou de novo, prendendo-a com força entre as mãozinhas dela.

- Christine morreu, papai? Pode me contar. Por favor, quero a verdade verdadeira. Preciso saber!

Sentado com Jannie na beira da cama, eu quase perdi o controle. Sem dúvida, ela não fazia idéia de como aquela pergunta doía ou de como era difícil responder.

Tive a impressão de estar oscilando na beira de um abismo escuro, quase escorregando, mas lutei comigo mesmo, respirando fundo e forte. Depois tentei responder, da melhor maneira possível, à pergunta honesta de minha menininha.

- Não sei ainda, essa é a verdade. Ainda temos esperança de encontrá-la, meu bem. Achamos uma testemunha.

- Mas ela pode estar morta, papai?

- Bem, vou dizer o que sei de melhor a respeito da morte. Realmente o que eu sei de melhor. Talvez, aliás, a única coisa que eu sei.

- A pessoa vai embora e fica pra sempre com Jesus - disse Jannie. Seu tom de voz não me dava certeza se ela realmente acreditava no que estava dizendo. Podia estar apenas repetindo uma das ”verdades evangélicas” de Nana ou algo que tivesse ouvido na igreja.

- É isso, e pode ser um grande consolo saber que é assim, querida. Mas pensei em outra coisa. Talvez dê no mesmo, embora seja um modo diferente de encarar o problema.

O olharzinho intenso não se desviou, não se desgrudou do meu rosto.

- Pode me dizer, papai. Por favor! Preciso ouvir. Estou muito interessada no assunto.

Não é uma coisa má e me ajuda sempre que morre alguém. Pense no seguinte... Entramos na vida com tanta facilidade; vindo de algum lugar, do universo, de Deus. Por que tem que ser mais complicado quando deixamos a vida? Viemos de um bom lugar- Um dia partimos... e voltamos para um bom lugar. acha que isso faz sentido, Jannie?

Ela abanou a cabeça e continuou a olhar bem dentro dos meus olhos.

- Entendo - ela murmurou. - É uma questão de equilíbrio.

Parou um segundo, refletiu mais um pouco e continuou:

- Mas papai, Christine não está morta. Eu sei disso. Não está! Ela ainda não foi para esse bom lugar. Não perca as esperanças!

 

A índole e os traços da Morte eram muito parecidos com os seus, pensava Shafer correndo para o sul pela interestadual 95. A Morte não parecia brilhante, mas era sempre radical e acabava sempre ganhando.

Enquanto o Jaguar preto passava em disparada pelas entradas de várias cidadezinhas, Shafer se perguntava se gostaria de ser apanhado naquele momento, se precisaria ser desmascarado, se precisaria mostrar seu verdadeiro rosto a alguém. Boo Cassady achava que ele estava se escondendo, inclusive dela, principalmente de si próprio. Talvez tivesse razão, mas talvez no fundo quisesse que Lucy e as crianças vissem quem ele realmente era. Lucy, as crianças, a polícia. E, em especial, o deprimente e hipócrita pessoal da embaixada.

Sou a Morte - eis quem eu sou. Um assassino em série - eis quem sou eu. Não sou mais Geoffrey Shafer; talvez nunca tenha sido. Se um dia fui, é coisa de um passado distante, muito distante.

 

Shafer sempre tivera um caráter naturalmente mau. Do gênero vingativo, mesquinho. Ele ainda se lembrava dos anos de infância, quando rodava de um lado para o outro acompanhando a família. Primeiro foram as viagens pela Europa, depois pela Ásia. Por fim, a volta à Inglaterra. O pai estivera no exército e fora um homem realmente ”durão”, mesmo em casa. Batia com freqüência em Shafer e nos seus dois outros filhos, mas não com a mesma freqüência com que batia na mulher. Ela morreu de um tombo quando Shafer tinha doze anos.

Shafer, um menino grandalhão, se transformara num ”sujeito massudo”, um homem que realmente inspirava respeito. Os outros garotos tinham medo dele, mesmo Charles e George, seus irmãos, que o achavam ”capaz de tudo”. Ele era.

Nada no tempo de infância o preparara para ter a personalidade que finalmente brotou quando ele se uniu ao MI6, onde aprendeu que era capaz de matar outro ser humano... e onde descobriu que adorava fazer isso. Tinha descoberto sua vocação, sua verdadeira paixão na vida. Era o extremo ”sujeito durão” - era a Morte.

Continuou avançando para o sul na rodovia interestadual. Como era tarde, havia pouco tráfego, em geral caminhões velozes na provável direção da Flórida.

Shafer compôs mentalmente uma mensagem para seus parceiros no jogo dos Cavaleiros.

 

ESTA NOITE, A MORTE VAI PARA FREDERICKSBURG, EM MARYLAND. UMA MULHER COM 37 ANOS E BOA APARÊNCIA MORA LÁ COM A FILHA DE 15 ANOS, QUE PARECE UMA IMAGEM NO ESPELHO DA MÃE. A MULHER, DIVORCIADA, É UMA ADVOGADA DE CIDADE PEQUENA, UMA PROMOTORA. A FILHA ESTÁ ENTRE AS PRIMEIRAS ALUNAS NA ESCOLA E É LÍDER DE TORCIDA NO FUTEBOL. AS DUAS ESTARÃO DORMINDO. A MORTE VAI PARA MARYLAND PORQUE WASHINGTON PARECE MUITO PERIGOSO AGORA (SIM, ENCAREI A ADVERTÊNCIA DE VOCÊS COM TODA A SERIEDADE). A POLÍCIA DE WASHINGTON CORRE ATRÁS DO MATADOR DAS FULANINHAS. UMA INVESTIGADORA FAMOSA, CHAMADA PATSY HAMPTON, TAMBÉM ENTROU NO CASO E O DETETIVE CROSS JÁ VOLTOU DAS BERMUDAS. SERÁ INTERESSANTE VER SE O PERSONAGEM DELE SOFREU ALGUMA MODIFICAÇÃO O CARÁTER DO PERSONAGEM É TUDO, VOCÊS NÃO CONCORDAM POSSO IMAGINAR COM CLAREZA AS DUAS INCRÍVEIS MULHERES DE SOBRENOME CAHILL. JÁ CONSIGO ATÉ VER A CHÁCARA NA MINHA FRENTE. É LÁ QUE FICA A CASA DE QUATRO QUARTOS, ONDE ELAS MORAM. NA RUAZINHA DOS ARREDORES DA CIDADE, O SILÊNCIO É PRATICAMENTE TOTAL À UMA DA MANHÃ E SEI QUE NINGUÉM VAI CONSEGUIR RELACIONAR ESSES DOIS CRIMES COM AS MORTES DAS FULANINHAS. GOSTARIA QUE ESTIVESSEM AQUI COMIGO. GOSTARIA QUE ESTIVESSEM SE SENTINDO EXATAMENTE COMO EU.

 

Com uma estranha sensação de solidão e medo, Shafer parou o Jaguar na rua sombria. Na realidade, tinha medo de si mesmo. Das coisas que imaginava e fazia. Ninguém possuía uma mente tão corrompida - ninguém pensava como ele. Ninguém jamais tivera e colocara em prática idéias e fantasias tão bizarras.

Embora os outros jogadores também experimentassem fantasias complicadas e bastante mórbidas, todas fariam pálida figura diante das suas. A Fome reivindicava a autoria de uma série de homicídios de teor psicossexual na Tailândia e nas Filipinas. A Guerra gostava de se imaginar como a cabeça não coroada do grupo, alegando ”influenciar” todas as aventuras dos demais. A Conquista, confinada a uma cadeira de rodas, fabricava histórias onde usava a enfermidade para atrair a presa, fazendo-a chegar suficientemente perto para morrer.

Shafer duvidava que qualquer um deles tivesse realmente estômago para executar os lances do jogo no mundo real.

Mas talvez pudessem surpreendê-lo. Talvez cada um deles estivesse pensando em colocar realmente em prática uma fantasia homicida. Isso já seria alguma coisa, não é?

As duas mulheres de sobrenome Cahill acreditavam estar em absoluta segurança em sua chácara, a menos de cinqüenta metros de distância de Shafer. Ele podia ver a cerca de madeira verde que cercava um pátio de lajotas e rodeava a piscina nos fundos. A casa tinha portas de correr, que se abriam para a área da piscina. Muitas possibilidades a serem analisadas.

Podia entrar na casa, matar as duas num estilo simples de execução e voltar diretamente a Washington.

A polícia local e o FBI ficariam totalmente desconcertados. A história, quem sabe, talvez chegasse a ganhar destaque nas redes de TV. Duas mulheres baleadas e assassinadas enquanto dormiam, mãe e filha, admiradas por todos na pequena cidade. Nenhum motivo aparente para o crime hediondo, nenhum suspeito.

Seu corpo estava todo contraído agora e era difícil até caminhar. Shafer achava engraçada aquela absurda semiparalisia. A boca desenhava um sorriso.

Duas ou três casas abaixo, um cachorro uivava - um pequeno cãozinho de estimação, a julgar pelo barulho. Depois um cachorro maior fez coro com o primeiro. Pressentindo a morte, não é? Sabiam que ele estava lá.

Shafer se ajoelhou ao lado de um álamo na extremidade da área dos fundos, permanecendo na sombra, se protegendo da suave luz esbranquiçada que a lua atirava pelo terreno.

Pouco depois tirava do bolso os dados de vinte faces e os deixava cair sobre os tufos de grama. Aqui vamos nós! Obedecendo às regras. Vamos ver o que a noite tem a oferecer. Somou os valores daqueles dados especiais. Nada era muito nítido no escuro.

Não, não podia acreditar no que via. Teve vontade de uivar como os cachorros desnorteados e furiosos dos vizinhos.

A soma dos dados era cinco.

A morte tinha de ir embora! Naquele instante! Não poderia haver assassinatos naquela noite!

Não! Não faria isso! Ao diabo com os dados. Nada de ir embora. Não podia ir. Já estava perdendo todo o controle sobre seus impulsos, certo Agora era fazer o que era preciso. Álea jacta est - disse ele, usando as aulas de latim do seu tempo de escola (”A sorte está lançada”; fora o que exclamara Júlio César antes de cruzar o Rubicão).

Era uma noite monumental. Pela primeira vez, Shafer estava quebrando as regras. E alterando o jogo para sempre.

Precisava matar alguém; esse impulso era tudo que importava.

Correu em direção à casa antes de mudar de opinião. Estava nervoso. A adrenalina disparando pelo corpo. Usou primeiro um cortador de vidro, mas acabou simplesmente estraçalhando a pequena janela com a mão enluvada. Uma vez lá dentro, moveu-se rapidamente pelo corredor escuro. Suava - e suava tão raramente! Entrou no quarto de uma das mulheres, Deirdre. Apesar do barulho do vidro, ela não acordara. Os braços nus estavam atirados para trás da cabeça, numa posição de entrega.

- Adorável - ele sussurrou.

Deirdre usava uma estreita calcinha branca e um sutiã da mesma cor. As pernas compridas estavam delicadamente espalhadas, na expectativa. Pelo menos nos sonhos ela devia saber quem estava chegando. Shafer acreditava que os sonhos dizem a verdade e é sempre bom dar-lhes ouvidos.

Ainda estava com ereção e muito contente por ter resolvido transgredir as regras.

- Quem é você? - ouviu de repente. A voz vinha de trás. Ele se virou rapidamente.

Era Lindsay, a filha. Usando apenas uma calça rosa-coral, um sutiã, um par de meias.

Shafer foi erguendo calmamente o revólver até mirar entre os olhos dela.

-Psssss! No fundo, Lindsay, acho que você nem quer saber quem eu sou. - Falava num tom muito tranqüilo, sem ao menos se preocupar em esconder o sotaque inglês. - Mas de qualquer maneira vou lhe mostrar.

Ele apertou o gatilho.

 

Pela segunda vez em minha vida eu experimentava a sensação de ser vítima de um crime terrível, não um detetive que chega para investigar. Estava disperso e desorientado. Precisava me dedicar concretamente a algum caso ou voltar ao trabalho voluntário no Santo Antônio - qualquer coisa que desviasse minha mente do que acontecera.

Tinha de mergulhar no trabalho, mas sabia que perdera a capacidade de concentração, algo de que eu sempre pudera tão naturalmente dispor. Deparei-me com duas mortes chocantes em Maryland, dois homicídios que, por alguma razão não-especificada, tinham começado a me preocupar. Não estava, no entanto, acompanhando as investigações. Devia estar.

Eu me sentia como outra pessoa; estava perdido. Ainda ficava horas a fio pensando em Christine, lembrando o tempo que passamos juntos, vendo seu rosto onde quer que eu fosse.

Sampson tentava me fazer reagir. E conseguia. Eu e ele fizemos a ronda das ruas da zona sudeste e espalhamos a notícia de que estávamos procurando um táxi roxo e azul, possivelmente clandestino. Investigamos de porta em porta na área de Shaw, onde Tori Glover e Marion Cardinal haviam sido encontradas. Freqüentemente nosso trabalho se estendia até as dez ou onze do lusco-fusco.

Eu não me importava. Afinal, não conseguiria mesmo dormir.

Sampson se importava. Era meu amigo.

- Você devia estar cuidando do caso Odenkirk, certo? - disse Sampson enquanto nos arrastávamos tarde da noite pela rua S. - E eu nem devia estar trabalhando, porque fui suspenso. O Chefe cairia duro se soubesse. Não, não estou gostando dessa história.

Sampson morava naquela região havia anos e conhecia toda a fauna do local.

- Jamal, você sabe de alguma coisa que eu devesse saber? - ele gritou. Jamal era um rapaz de cavanhaque. Estava sentado na entrada de uma casa, no escuro, em degraus de pedra cinzenta.

- Não sei de nada. Só estou relaxando a mente, pegando um pouco da aragem da noite. E você, o que está fazendo?

Sampson se virou para mim.

- Hoje em dia, para onde quer que se olhe, os malditos vendedores de crack estão lá. Nunca saem dessas ruas. É um belo lugar para alguém cometer um crime e nunca ser apanhado. Tem falado com a polícia das Bermudas?

Abanei a cabeça e meus olhos se fixaram num ponto fixo à nossa frente.

- Patrick Busby diz que o desaparecimento de Christine saiu das primeiras páginas dos jornais. Não sei se isso é bom ou mau. Provavelmente é mau.

Sampson concordou.

- Tira a pressão de cima deles. Está pensando em ir até lá?

- Não de imediato. Mas, claro, tenho de voltar. Tenho de descobrir o que aconteceu.

- E está mesmo prestando atenção no que eu digo? - perguntou Sampson me encarando. - Tem certeza de que não está voando, sugar!

- Não, estou aqui. Pelo menos a maior parte do tempo. Estou funcionando bem. - Apontei para uma construção de tijolo vermelho próximo dali. - Daquele lugar se teria uma vista da entrada da frente do prédio das moças. De qualquer uma daquelas janelas. Vamos até lá.

Sampson concordou.

- Sim - disse ele -, aonde você for eu também vou. Naquela noite, sentia alguma coisa estranha me fazendo

mergulhar cada vez mais no trabalho. Falamos com todos os moradores que pudemos encontrar nos apartamentos, cerca de metade do prédio. Ninguém tinha visto um táxi roxo e azul, assim como ninguém vira Tori ou Marion. Pelo menos foi o que nos disseram.

- Vê alguma coisa que possa se encaixar? - perguntei enquanto descíamos do quarto andar por uma escada íngreme.

Vê alguma conexão? O que, afinal, pode ter nos escapado?

- Nada, Alex. Não perdemos nada. O problema é que o Gambá não deixou nenhuma pista. É assim que ele faz.

No saguão do prédio encontramos um homem idoso que carregava três sacolas de plástico com as compras do Stop & Shop.

- Duas moças foram assassinadas do outro lado da rua - disse eu. - Somos investigadores criminais.

O homem abanou a cabeça.

- Tori e Marion, eu as conhecia - disse ele. - Estão querendo saber do cara que ficou espiando o prédio, não é? Bem, ficou sentado no carro quase a noite inteira. Um carro preto fantástico, todo brilhante. Mercedes, se não estou enganado. Acham que pode ser ele o matador?

Fiquei alguns dias fora, entendem? Fui visitar minhas duas irmãs, duas corujas velhas que moram na Carolina do Norte. Foi uma semana de boas lembranças e comida caseira - disse o homem subindo conosco para o quarto andar. - Eu estava viajando. Foi por isso que os primeiros detetives que vieram aqui não me acharam.

Talvez nem tivessem procurado, pensei enquanto subia, pois a investigação porta a porta era considerada uma técnica policial obsoleta - o tipo de trabalho que a maioria dos investigadores tentaria evitar.

O nome do homem era DeWitt Luke, um aposentado da Bell Atlantic, a gigantesca companhia telefônica que atende à maior parte do nordeste. Além dele, eu já entrevistara, até aquele momento, outras cinqüenta e duas pessoas no Shaw.

- Vi o sujeito sentado no carro por volta de uma da manhã e a princípio não dei muita importância. Achei que estava esperando alguém. Apenas um homem cuidando da própria vida. O problema é que às duas ele ainda continuava lá. Sempre sentado no carro, e a coisa já me pareceu meio esquisita. - Fez uma longa pausa, como se estivesse tentando lembrar.

- O que houve depois? - aticei.

- Acabei dormindo - disse Luke. - Mas me levantei por volta das três e meia para dar uma espiada e ele ainda estava metido naquele carro preto brilhante. Desta vez, no entanto, examinei com mais atenção. O sujeito olhava para o outro lado da rua, como se fosse um espião ou algo do gênero. Não sei o que podia estar espreitando, mas sem dúvida era algo que o interessava muito. Cheguei a pensar que pudesse ser da polícia. Só que o carro dele era bom demais.

- Você tocou no ponto - disse Sampson, dando uma risada. - Não tenho um Mercedes na garagem.

- Sentei numa cadeira de armar atrás da janela e deixei as luzes apagadas para ele não me ver. Eu já estava bastante curioso. Se lembram daquele filme antigo chamado Janela indiscreta! Bem, tive vontade de saber o que o sujeito estava fazendo lá embaixo, sentado dentro daquele carro, à espera. Amante ciumento, marido ciumento, um conquistador à espera da caça? Se bem que em momento algum ele pareceu disposto a incomodar alguém.

- Não deu uma olhada melhor no sujeito? - perguntei. - Só é capaz de descrevê-lo como um homem sentado no carro?

- Quando eu estava me levantando para ir ao banheiro, ele saiu do carro e a porta ficou aberta. Só que a luz de dentro não acendeu. Achei estranho a luz não acender num carro incrível como aquele. A coisa mexeu ainda mais com minha imaginação. Apertei os olhos, tentando ver melhor. - Outra longa pausa.

- E?

- Bem, era um homem distinto, alto e louro. Um cara branco. Não vemos muitos brancos rondando por aqui à noite. Nem mesmo de dia, aliás.

 

A investigação da detetive Patsy Hampton sobre a mortes das fulaninhas já revelara um certo dinamismo e os primeiros resultados começavam a aparecer. Ela achava que podia ter alguma coisa boa na mão. Confiava na sua capacidade de resolver os crimes. Sabia, por experiência própria, que era mais esperta que todo mundo.

Ajudava ter o chefe Pittman e todos os recursos do departamento a seu lado. Passara o último dia e meio com Chuck Hufstedler no prédio do FBI. Sabia que estava usando um pouco o Queijinho, mas ele não parecia se importar. Era solitário e Patsy gostava realmente da companhia dele. Os dois ainda estavam juntos por volta das três e meia da tarde, quando alguém tornou a entrar no chat. Lance, ela se lembrou.

- Lancelot não pôde resistir, não é? - comentou com o Queijinho. - Peguei você, seu lance de bosta!

Arqueando as grossas sobrancelhas negras, Chuck olhou para ela.

- Três e meia da tarde, Patsy. O que isso nos diz? Diz a você o mesmo que diz a mim. Ele pode, é claro, estar jogando do trabalho, mas acho que o nosso Lancelot é um garoto de escola.

- Ou alguém que gosta de jogar com garotos de escola - disse Patsy e, no mesmo momento em que lhe deu voz, o pensamento a transtornou.

Daquela vez ela não tentou fazer contato com Lancelot. Limitou-se a acompanhar uma estupidificante discussão de vários jogadores de RPG. Enquanto isso, Chuck ia tentando localizar Lancelot.

- Ele é muito bom na coisa, um verdadeiro hacker. Trabalha com muitos dispositivos de segurança. Mas acho que vamos pegá-lo.

- Estou confiando em você, Queijinho.

Lancelot ficou no chat até depois das quatro e meia e, de repente, estava tudo acabado. Chuck tinha o nome e o endereço: Michael Ormson, Hutchins Place, Foxhall.

Faltando poucos minutos para as cinco, duas vans azulescuras pararam na frente da casa de Ormson, no lago Georgetown. Os cinco agentes com jaquetas azuis do FBI que acompanhavam a detetive Patsy Hampton cercaram a mansão estilo Tudor, que tinha um ou dois acres de gramados, além de uma vista majestosa.

Hampton e o veterano agente Brigid Dwyer caminharam até porta da frente, que encontraram aberta. De armas na mão, foram entrando silenciosamente até se depararem com Lancelot em sua toca.

Devia ter por volta de treze anos. De cueca e meias pretas, o pequeno interaauta continuava sentado na frente do computador.

Ei, que diabo é isso? - Michael Ormson perguntou com uma voz estridente. - Ei! O que estão fazendo na minha casa? Não fiz nada de errado. Quem são vocês? - Era um tom irritado, mas um tanto trêmulo.

Um garoto magricela. Com o rosto coberto de acne. Uma erupção nas costas e nos ombros que parecia um eczema. Chuck Hufstedler acertara em cheio. Lancelot era um adolescente mexendo no seu computador fantástico depois da escola. E não era o Gambá. Aquele garoto não podia ser o Gambá.

- Você é Michael Ormson? - perguntou Patsy Hampton. Ela havia baixado a arma, mas não a colocara no coldre.

O garoto olhou para o chão, parecendo que ia chorar.

- Oh, Deus, Deus... - ele gemia. - Sim, sou Michael Ormson. Quem são vocês? Vão contar aos meus pais?

 

O pai e a mãe de Michael foram imediatamente contatados em seus empregos, respectivamente no Hospital Universitário de Georgetown e no Observatório Naval dos Estados Unidos. Embora saindo de pontos distintos, os dois conseguiram chegar a Foxhall em menos de dez minutos, mesmo com o tráfego da hora do pico começando a se formar. As filhas dos Ormson, Laura e Anne Mane, já tinham voltado do colégio.

Patsy Hampton convenceu os pais a deixarem-na falar com o garoto. Disse que podiam estar presentes, interferir na conversa ou encerrá-la no momento que quisessem. Caso contrário, ela e o agente Dwyer teriam de levar Michael para uma entrevista na sede do FBI.

Os Ormson, Mark e Cindy, concordaram em deixar Michael conversar. Estavam visivelmente assustados, especialmente com a presença do pessoal do FBI, mas pareciam confiar na investigadora Hampton. Uma atitude comum entre a maioria das pessoas. Patsy era bonita, sincera e, quando era preciso, sabia usar seu sorriso extremamente simpático.

- Estou interessada num jogo que se chama Os Quatro Cavaleiros - disse Hampton ao garoto. - É a única razão que me trouxe aqui, Michael. Preciso que me ajude.

O menino enterrou novamente o queixo no peito e balançou a cabeça de um lado para o outro. Hampton percebeu o nervosismo e decidiu arriscar. Tinha um palpite que queria checar.

- Michael, isso que você acha que fez de errado nada significa para nós. Nada. Pouco nos importa o que andou aprontando no computador. O problema não é com você, nem com sua família, nem com suas entradas piratas. Tem havido assassinatos terríveis em Washington e pode haver uma relação entre eles e o jogo chamado Os Quatro Cavaleiros. Por favor, nos ajude, Michael. Você é a única pessoa que pode nos ajudar. A única pessoa.

Mark Ormson, que era radiologista no Hospital Universitário de Georgetown, inclinou-se no sofá de couro preto que havia no pequeno escritório. Já parecia mais assustado do que quando entrara em casa.

- Estou começando a achar que é melhor chamar um advogado - disse ele.

Patsy Hampton balançou a cabeça e sorriu amavelmente para os pais.

- O problema não é com seu filho, sr. e sra. Ormson. Nada temos contra ele, eu garanto.

Virou-se para o adolescente.

-Michael, o que você descobriu sobre Os Quatro Cavaleiros? Tenho certeza de que não é um dos jogadores. Sei que é um jogo muito secreto.

O garoto levantou a cabeça. Patsy podia apostar que já estava gostando dela, talvez confiando um pouco.

- Não sei muita coisa. Acho que não sei nada que possa interessar à senhora.

Tudo nos interessa muito, Michael - disse Hampton, sacudindo a cabeça. - Alguém está matando pessoas na zona sudeste de Washington. No real, Michael. Não num RPG. Creio que pode nos ajudar. E impedir que outras pessoas sejam mortas.

Michael deixou cair novamente o queixo. Mal olhara para a mãe e o pai desde que eles tinham chegado.

.- Sou bom em computadores. Provavelmente vocês já perceberam isso.

A detetive Hampton continuava abanando a cabeça, dando ao rapaz um sinal positivo de apoio.

- Sabemos que você é bom, Michael. Não foi fácil localizar o seu endereço. Você é muito bom em computadores. Meu amigo Chuck Hufstedler do FBI ficou realmente impressionado. Quando isto acabar, poderá ver onde ele trabalha. Vai gostar do Chuck e vai adorar seu equipamento.

Michael sorriu, mostrando os dentes grandes e salientes no aparelho de correção.

- No começo do verão, provavelmente em fins de junho, o sujeito entrou no Gamester’s Chatroom, o chat onde você me encontrou.

 

Patsy Hampton procurava não tirar os olhos do garoto. Precisava extremamente dele; tinha a impressão de que era a grande chance de sair do pântano, a maior que tivera até aquele momento.

Michael continuava a falar em voz baixa.

- Ele entrou mais ou menos como se quisesse tomar conta da conversa. Parecia ter um monstro sob controle dentro dele. Ficou arrasando o Highlander, o D & D, o Milênio, todos esses jogos quentes que já não estão com nada. Não deixava mais ninguém dar uma palavra. Era como se tivesse tomado alguma coisa.

E Michael prosseguiu:

- Só ficava insinuando que tinha um jogo completamente diferente chamado Os Quatro Cavaleiros. A princípio achei que não ia dizer nada do jogo, mas ele foi deixando escapar alguns pedaços, alguns detalhes, não grande coisa. Só que não parava de falar.

”Disse que os personagens do Carmagedon, da Duna, do Condottiere eram todos previsíveis e chatos... coisa, eu tenho de admitir, que eles às vezes realmente são. Aí disse que certos personagens do seu jogo faziam o mal caótico em vez do legítimo bem. Disse que não eram heróis de mentira como na maioria dos RPGs; seus personagens seriam como pessoas na vida real e eram basicamente egoístas, não dando a mínima para os outros, não respeitando nenhuma regra social. Disse que os Cavaleiros eram o mais radical jogo de personagens. E disse que tinha falado demais e não ia nos contar mais nada sobre Os Quatro Cavaleiros. Achei que tinha razão, pois com o que ele nos contou já se podia deduzir que era um jogo de gente completamente louca.

- Qual foi o nome que ele deu? - o agente Dwyer perguntou a Michael.

- O nome que ele deu ou o nome verdadeiro? - Michael perguntou, ostentando um sorriso matreiro e superior.

O agente Dwyer trocou um olhar com Hampton. O nome que ele deu ou o nome verdadeiro ?

Viraram-se para Michael, que continuou:

- Saí no rastro dele, como vocês saíram no meu. Consegui passar por todos os sistemas de proteção. Sei o nome e sei onde mora. Sei até mesmo onde trabalha. É Shafer... Geoffrey Shafer. Trabalha na embaixada britânica, que fica na avenida Massachusetts. É uma espécie de analista de informações, segundo o próprio site da embaixada. Tem quarenta e quatro anos.

Michael Ormson olhou timidamente em volta e encarou rapidamente os pais, que enfim pareciam aliviados. Depois tornou a olhar para Hampton.

- Acha que vai poder usar a informação? Eu ajudei?

- Sim, ajudou, Lancelot.

 

Geoffrey Shafer tinha jurado que naquela noite não encheria a cabeça de medicamentos. Também decidira que ia manter as fantasias sob controle, sob amarras. Compreendia precisamente o que os malucos que faziam os perfis nos casos de homicídio estariam pensando: sua vida fantasiosa estava chegando a um novo patamar; ele estava se aproximando de um estágio de fúria. E os malucos tinham toda a razão: por isso é que resolvera jogar macio durante algum tempo.

Shafer era um cozinheiro habilidoso (suas habilidades, sem dúvida, cobriam um campo muito vasto). Às vezes preparava refeições sofisticadas para a família e mesmo grandes jantares para os amigos. Quando cozinhava, gostava de ter a mulher e os filhos a seu lado na cozinha; adorava um público, mesmo doméstico.

- Esta noite vamos experimentar a cozinha clássica tailandesa-informou a Lucy e às crianças que o viam trabalhar. Sentia-se um tanto exaltado, mas repetia mentalmente que não podia deixar as coisas saírem dos eixos em casa. Talvez devesse ter tomado Valium antes de começar a cozinhar. Tudo que ingerira até então fora um pouco de Xanax.

”O que distingue a cozinha tailandesa das outras cozinhas do sudeste asiático são as regras bastante definidas para a combinação dos ingredientes, especialmente dos condimentos”, disse ele, arranjando numa travessa uma salada de verduras. ”A cozinha tailandesa é uma mistura toda especial das cozinhas chinesa, indonésia, indiana, portuguesa e malaia. Aposto que não sabiam disso, Tricia e Erica!”

As menininhas riram, confusas, assim como a mãe.

Depois de colocar botões de jasmins no cabelo de Lucy, Shafer deu uma flor para cada uma das gêmeas. Quando tentou fazer o mesmo com Robert, o garoto se afastou, rindo.

- Nada muito quente esta noite, querido - disse Lucy. - Por causa das crianças.

- As crianças, é claro, meu bem. Por falar de quente, o verdadeiro calor vem da capsaicina, que se acumula nas nervuras da pimenta. A capsaicina é uma substância irritante, que queima quem a toca, mesmo através da pele; por isso é sinal de inteligência usar luvas. Não estou usando luvas porque não sou inteligente. Sou até um pouco maluco. - Ele riu. Todos riram. Mas Lucy parecia preocupada.

O próprio Shafer serviu o jantar, sem qualquer ajuda, anunciando o nome de cada prato em tailandês e em inglês.

- Plaa meukyaang, ou lula assada. Delicioso. Mieng kum, enroladinhos de chuchu com recheios incríveis. Muito gostoso. Plaayaang kaengphet, tartaruga na grelha ao curry. Excepcional. Um pouco quente, talvez. Hmmm!

Ele os viu provar hesitantemente de cada prato; quando experimentaram a tartaruga, as lágrimas começaram a rolar dos rostos. Erica se engasgou. Robert engoliu sem mastigar.

- Papai, tem muita pimenta! - ele se queixou.

Shafer sorriu e sacudiu alegremente a cabeça. Adorava aquilo - as lágrimas escorrendo, a aflição da familiazinha perfeita. Saboreava a beleza de cada instante do sofrimento deles. Conseguira, afinal, converter o jantar num jogo torturante.

Quando faltavam quinze para as nove, deu um beijo em Lucy e entrou no nível ”salutar”, como ele chamava a atmosfera que cercava suas fugidas noturnas. Pegou o Jaguar e dirigiu algumas quadras até Phelps Place, uma rua tranqüila, sem muita iluminação.

Tomou doses bem generosas de Thorazine e Librium; depois se auto-aplicou uma ampola de Toradol. Tomou outro Xanax.

Por fim, foi para o prédio de sua médica.

 

Shafer, que não gostava dos porteiros cretinos e arrogantes do prédio de Boo Cassady, percebeu que os porteiros também não gostavam dele.

Bem, que pensassem o que quisessem. Eram incompetentes, totalmente incapaz e preguiçosa. Não sabiam fazer grande coisa além de manter as portas abertas e mostrar sorrisos simpáticos para seus patrões moradores.

- Quero falar com a dra. Cassady - Shafer anunciou a um negro que já conhecia. O nome do homem, Mal, aparecia elegantemente no crachá. Provavelmente estava ali para que ele próprio não o esquecesse.

- Um momento - disse Mal.

- Não seria ”um momento, senhor?

- Tem razão, senhor. vou ligar para a dra. Cassady. Espere aqui, senhor.

Shafer ouviu a voz de Boo chiando no fone do porteiro. Será que ela não teria dado instruções explícitas para que o deixassem subir imediatamente? Boo sabia que ele estava chegando; Shafer ligara do carro depois de sair de casa.

- Pode subir agora, senhor - disse finalmente o porteiro.

- Estou fodendo com ela por todos os poros, Mal - disse Shafer sorrindo e gingando para os elevadores. - Quero subir sozinho, Mal. Não deixe ninguém entrar comigo no elevador.

Quando a porta do elevador se abriu no décimo andar, Boo estava no corredor, usando pelo menos uns cinco mil dólares em roupas de uma grife exclusiva. Tinha um corpo grande e o traje vistoso a deixava parecida com um toureiro ou um líder de bandinha. Não era de admirar que já dois maridos tivessem se divorciado dela. O segundo também fora psicoterapeuta. Boo, no entanto, uma boa e leal amante, dava muito mais do que recebia. E como se não bastasse, ainda fornecia as receitas de Thorazine, Librium, Ativan e Xanax, além das amostras grátis dos representantes comerciais. Inclusive as amostras que o segundo marido não levara quando os dois se separaram. O número de ”amostras” deixadas pelos representantes espantava Shafer, mas ela garantia que se tratava de uma prática comum. Para completar, Boo tinha outros ”amigos” que também eram médicos e, como ela sempre insinuava, poderiam lhe fornecer um estoque extra em troca de alguma foda eventual. Todas as drogas de que Shafer precisava estavam asseguradas.

Shafer teve vontade de pegá-la ali mesmo no corredor, e sabia que Boo ia gostar da espontaneidade, da paixão que tão evidentemente fazia falta em sua vida. Isso, porém, não ia acontecer naquela noite. Pois ele tinha uma necessidade mais imediata: as drogas.

- Não parece muito feliz em me ver, Geoff - ela se lamentou pegando o rosto dele com as unhas tratadas. Cristo, aquelas unhas compridas e pintadas de vermelho o assustavam! - O que houve, querido? Alguma coisa aconteceu, não foi? Conte à sua Boo o que foi. Shafer acabou pegando-a nos braços, apertando-a contra o peito. Boo tinha grandes seios macios, belas pernas também. Ele alisou o cabelo louro muito claro e fez carinho com o queixo. Gostava do poder que tinha sobre ela - sua psiquiatra.

- Não quero conversar sobre isso agora. Estou aqui com você e já me sinto muito melhor.

- Mas aconteceu alguma coisa. O que foi, querido? Precisa compartilhar seus problemas comigo.

Então ele inventou rapidamente uma história e começou a representar.

- Lucy diz que sabe a nosso respeito. Deus, ela já estava paranóica antes de começarmos a nos encontrar! Lucy sempre ameaça destruir minha vida. Diz que vai me deixar. Que vai processar cada transa minha, por menor que seja! Diz que o pai pode me colocar na rua e me queimar no governo e na área privada, o que sem dúvida ele é perfeitamente capaz de fazer. O pior é que ela está envenenando meus filhos, virando-os contra mim! Eles já usam as mesmas expressões ofensivas que a mãe: ”colossal fracasso”, ”zero à esquerda”, ”arranje um trabalho de verdade, papai”, é o que me dizem. Às vezes me pergunto se não estão com a razão.

Boo beijou-o de leve na testa.

- Não, não, querido. Você tem boa reputação na embaixada. Sei que é um pai amoroso. O único problema é ter uma mulher acanalhada, mesquinha, estragada de mimos, que liquida sua auto-estima. Não a deixe fazer isso.

Sabia o que Boo queria ouvir em seguida, e por isso lhe disse:

Bem, não vou suportar uma mulher acanalhada por muito tempo. Juro por Deus que não, Boo! Eu te amo, querida, e muito em breve vou me separar de Lucy.

Shafer contemplou o rosto fortemente maquiado e viu as lágrimas se formando para arruinar a pintura.

- Também te amo, Geoff - ela sussurrou, e Shafer sorriu como se ficasse contente ouvindo aquilo.

Deus, ele era tão bom nesse departamento. Nas mentiras. Nas fantasias.

Nos jogos com personagens.

Desabotoou a frente da blusa lilás, acariciou-a e depois a carregou para dentro, até o sofá.

- Esta é minha idéia de terapia - murmurou em tom aceso no ouvido de Boo. - É toda a terapia de que estou precisando.

 

Eu estava acordado desde antes das cinco daquela manhã. Ia ligar para o inspetor Patrick Busby nas Bermudas. Tinha vontade de falar todo dia com ele, às vezes mais de uma vez, mas eu me segurava.

A insistência só serviria para piorar as coisas, complicar minhas relações com a polícia local, pois ia parecer que eu não confiava neles para conduzir adequadamente a investigação.

- Patrick, é Alex Cross ligando de Washington. Não está muito ocupado? Podemos conversar um instante? - Eu tentava sempre falar no tom mais otimista possível.

Era um falso otimismo, claro. Depois de tomar o café da manhã com Nana, eu ficara andando de um lado para o outro, esperando impacientemente que desse oito e meia, hora de telefonar para a central de polícia em Hamilton e falar com Busby. Ele era um homem eficiente; eu sabia que estaria lá toda manhã, por volta das oito.

Vi sua estampa enquanto conversávamos. Um policial magro, mas forte. Vi o cubículo arrumado onde trabalhava. E, como numa imagem superexposta, vi Christine dando adeus em sua lambreta naquela impecável tarde de sol.

 

- O contato na Interpol me trouxe algumas novidades disse eu.

Falei do seqüestro de uma mulher na Jamaica, no início do verão, e de outro em Barbados; eram semelhantes (embora não idênticos) ao desaparecimento de Christine. Não realidade, eu não achava que houvesse alguma conexão, mas senti necessidade de transmitir alguma coisa, qualquer coisa.

 

Patrick Busby era atencioso, paciente, e me ouviu em silêncio antes de fazer sua dose habitual de perguntas pertinentes. Não confiava muito nele como interrogador, pois o achava excessivamente gentil. Mas pelo menos era persistente.

 

- Presumo que esses seqüestros não tenham sido resolvidos, Alex. O que me diz das mulheres que foram levadas? Alguém as encontrou?

 

- Não, nunca mais foram vistas. Não houve mais nenhum sinal delas. Continuam perdidas.

 

Ele suspirou no telefone.

 

- Bem, Alex, espero que sua notícia possa nos dar alguma ajuda. Certamente vou ligar para as outras ilhas e verificar com cuidado. Mais alguma coisa da Interpol ou do FBI?

 

Queria mantê-lo na linha, que agora me parecia uma bóia de salvação.

 

- Algumas possibilidades interessantes no Extremo Oriente, em Bangkok, nas Filipinas, na Malásia. Mulheres seqüestradas e assassinadas, todas fulaninhas. Para ser honesto, nada muito promissor até agora.

 

Imaginei-o franzindo os lábios finos e balançando pensativamente a cabeça.

 

- Entendo, Alex. Por favor continue me passando o que puder conseguir de suas fontes. Nesta pequena ilha, é sempre difícil obter ajuda de fora. Com muita freqüência, meus pedidos de assistência nem recebem resposta. Gostaria sinceramente de lhe dar em breve uma notícia boa, mas acho que não vai ser fácil.

 

Ele continuou:

Além de Perri Graham, ninguém viu o homem com a van. ginguem parece ter visto Christine Johnson em Hamilton ou St. George. É de fato um mistério desconcertante. Não acredito que ela tenha sequer chegado a Hamilton, o que também é frustrante para nós. Minhas preces estão com você, sua maravilhosa família e, é claro, com John Sampson.

 

Agradeci a Patrick Busby e desliguei o telefone. Depois subi para o quarto, pois tinha de me vestir para o trabalho.

 

Ainda não conseguira nada de realmente substancial sobre o assassinato de Frank Odenkirk e o Chefe me contatava diariamente pelo e-mail. Eu podia imaginar como a família de Odenkirk estaria se sentindo. O interesse da mídia pelo homicídio fora se extinguindo, como em geral acontece. Infelizmente, o mesmo se dera com os artigos do Post sobre os crimes sem solução da zona sudeste.

 

Enquanto tomava um banho quente, lembrei-me de DeWitt Luke e do misterioso ”observador” da rua S. O que o homem do Mercedes ficou fazendo lá por tanto tempo? Teria ele alguma conexão com as mortes de Tori Glover e Marion Cardinal? Nada parecia fazer muito sentido e esse era o aspecto verdadeiramente terrível das mortes das fulaninhas e das andanças do Gambá. Ele não era como outros assassinos em série. Parecia eficiente, mas não tinha o gênio criminoso de um Gary Soneji. Apenas conseguia, é claro, executar o trabalho.

 

Sem dúvida, precisava refletir mais um pouco no motivo que levaria alguém a ficar espiando na frente do prédio de Tori Glover. Quem poderia fazer isso? Um detetive particular? Um paquerador? O próprio assassino? Uma possibilidade me assaltava. Talvez o homem no carro fosse cúmplice do matador. Não Poderiam ser dois, trabalhando juntos? Já vira isso na Carolina do Norte.

 

Girei a torneira para a água esquentar mais um pouco. Talvez me concentrasse melhor com o calor. Talvez o vapor pudesse tirar do meu cérebro as teias de aranha. Livrar-me daquela inércia mental própria dos mortos.

 

Lá embaixo, na cozinha, Nana começou a bater no boiler.

 

175Desça logo e vá trabalhar, Alex! - gritou ela sobre o barulho do chuveiro. - Está acabando com a minha água quente!

 

- Da última vez - gritei - que vi as contas de água e de gás, era meu nome que estava lá!

 

-Ainda assim é minha água quente! -respondeu Nana. Sempre foi e sempre será!

 

Eu estava todo dia e toda noite nas ruas da zona sudeste, trabalhando como nunca, mas com poucos resultados positivos. Continuava correndo atrás do misterioso táxi roxo e azul e do Mercedes preto, último modelo, que DeWitt Luke dizia ter visto na rua S.

 

Às vezes experimentava a sensação de caminhar como um sonâmbulo, mas eu insistia, avançando o mais depressa possível. Tudo acerca da investigação parecia um longo tiro no escuro. Eu ficava o dia inteiro recebendo informações e pistas que tinham de ser rastreadas; nenhuma delas, porém, levava a parte alguma.

 

Cheguei a casa um pouco depois das sete daquela noite e, ainda que muito cansado, deixei as crianças me arrastarem para o treino de boxe. Damon quis dar demonstrações de velocidade, incluindo um ótimo jogo de pernas e ótima dose de força para a idade dele. Era um garoto de bom temperamento e eu tinha certeza de que não ia abusar na escola de suas prematuras habilidades.

 

Jannie era essencialmente uma praticante teórica do boxe, embora admitisse a importância de ser concretamente capaz de se defender por si mesma. Dominava rapidamente as técnicas principais e observava as seqüências, mesmo que não se deixasse absorver de todo pelo esporte. Preferia usar seu senso de humor para torturar a mim e ao irmão.

 

- Alex, telefone! - Nana chamou do alto da escada do porão.

 

Olhei para o relógio e vi que eram sete e quarenta.

 

- Pratiquem o jogo de pés - disse aos garotos antes de subir penosamente os íngremes degraus de pedra. - Quem é?

 

- Não quis dizer - Nana respondeu quando cheguei à cozinha. Estava fritando bolinhos de camarão e o aposento também se enchera dos cheiros esplêndidos das maçãs assadas no mel e do pão com gengibre. Seria um tardio jantar em família, pois Nana me esperara chegar.

 

Peguei o telefone no balcão da cozinha.

 

- Alex Cross.

 

- Sei que é você, detetive Cross. - Também reconheci imediatamente a voz, embora só a tivesse ouvido uma vez... no Belmont Hotel, nas Bermudas. Um arrepio correu por todo meu corpo; as mãos tremeram.

 

O homem continuou:

 

- Existe um telefone público na frente da drogaria Budget Drugs, na Fourth Street. Por enquanto ela está bem. Nós apegamos. Mas corra. Corra! Ela pode estar agora mesmo no telefone público! Falo sério. Corra!

 

Saí a jato pela porta de trás da cozinha sem dizer uma palavra a Nana ou às crianças. Não tinha tempo de explicar onde ia ou por quê. Além disso, eu nem sabia exatamente o que estava acontecendo. Teria acabado de falar com o Gambá?

 

Corra! Ela pode estar agora mesmo no telefone público! Falo sério.

 

Disparei pela Fifth Street, depois desci por uma travessa lateral para a Fourth. Corri mais quatro quadras na direção do rio Anacostia. As pessoas ficavam me olhando nas ruas. Era como um tornado que tivesse começado a roncar pela zona sudeste.

 

A mais de uma quadra de distância, no caminho da Budget Drugs, pude ver a placa metálica de um telefone público. Havia uma moça encostada no muro riscado da drogaria, falando ao telefone.

 

Mostrei de longe a credencial de investigador e corri os últimos metros da quadra em sua direção.

 

Aquele telefone era bastante usado. Naquela área, algumas pessoas não tinham telefone em casa.

 

- Polícia! Sou investigador criminal! - informei à moça, que parecia ter uns dezenove anos. - Saia do telefone!

 

Ela me encarou. O que lhe importava que um policial de Washington tentasse se apoderar do telefone?

 

- Estou usando o telefone, senhor. Não estou interessada em saber quem é. Espere sua vez como todo mundo. - Ela me virou as costas. - Aposto que só quer falar com a namorada.

 

Puxei o telefone e bati no gancho.

 

- Que porra você pensa que é?! - a moça gritou, o rosto vermelho de raiva. - Eu estava falando. Que porra você acha...

 

- É melhor sair da minha frente. Estou numa encrenca de vida ou morte. Saia de perto deste telefone! Já! Saia daqui! Percebi que ela ainda não tinha intenção de ir embora. - Houve um seqüestro!! - Eu já estava gritando como louco.

 

Finalmente a moça recuou. Com medo, é claro, que eu estivesse realmente maluco (o que talvez fosse verdade).

 

Fiquei parado segurando o fone, tremendo, esperando a chamada que devia vir. Meu corpo se retorcia. O suor me cobria a pele.

 

Olhava de cima a baixo a Fourth Street.

 

Nada óbvio ou suspeito. Não havia nenhum táxi roxo e azul estacionado. Ninguém me observava. Mas sem a menor dúvida o homem do telefone sabia quem eu era. Ligara para o Belmont Hotel; tinha ligado agora para minha casa. Ainda podia ouvir a voz ecoando alto dentro da cabeça. Há semanas, aliás, eu ouvia aquele desgraçado tom solene.

 

Por enquanto ela está bem.

 

Nós a pegamos.

 

Tinham sido as mesmas palavras de seis semanas atrás, nas Bermudas. E só agora o sujeito voltara a me ligar.

 

Os baques do meu coração pareciam estar sendo amplificados dentro das orelhas e a adrenalina disparava como um rio caudaloso em minha corrente sangüínea. Era insuportável. O homem insistira para que eu corresse.

 

Um rapaz se aproximou, os olhos fixos no fone que eu segurava.

 

- Acabou, cara? - disse ele. - Preciso usar o telefone. O telefone! Está me ouvindo?

 

- É assunto de polícia. - Atirei-lhe um olhar duro. - Vá dar um passeio, por favor. Vá!

 

- Será mesmo assunto de polícia?

 

O rapaz se afastou de cara feia, olhando pelo ombro enquanto descia a Fourth Street, mas sem parar para discutir.

 

Sem dúvida, quem havia telefonado gostava de se sentir integralmente no controle. Eu continuava parado na frente da movimentada drogaria, sem poder fazer nada. Possivelmente para dar uma demonstração de força, o sujeito me fizera esperar todo aquele tempo desde o telefonema das Bermudas. Agora me fazia esperar de novo. O que, afinal, estava querendo? Por que pegara Christine? Nós a pegamos, ele dissera, e repetira exatamente as mesmas palavras ao telefonar para minha casa. Haveria realmente mais de um? Que tipo de grupo ele poderia representar? O que eles queriam?

 

Fiquei dez, quinze, vinte minutos no telefone público. Achei que ia enlouquecer, mas continuaria a noite inteira ali se fosse preciso. Comecei a me perguntar se estava no telefone certo, mas sabia que sim. As instruções tinham sido claras como vidro, calmas, controladas.

 

Pela primeira vez em semanas, eu me permiti ter alguma esperança de que Christine pudesse estar viva. Imaginei seu rosto, aqueles olhos tão castanhos mostrando amor e ternura. Talvez, apenas talvez, eu tivesse permissão para falar com ela.

 

Por um instante, deixei minha raiva fluir para o interlocutor desconhecido, mas logo consegui sufocá-la. Era preciso calar minhas emoções, ficar esperando de cabeça fria.

 

Gente passava de um lado para o outro, entrando e saindo da drogaria. Alguns queriam usar o telefone e olhavam rapidamente para mim. Depois continuavam a andar em busca de outro aparelho.

 

Às cinco para as nove, quando a campainha tocou, ergui de imediato o fone.

 

- Alex Cross falando.

 

- Sim, eu sei quem é você. Isso já ficou bem claro. Mas quero que preste atenção. Recue daqui! Simplesmente volte atrás. Antes de perder tudo que tem importância na sua vida. A coisa pode acontecer com tanta facilidade. Num piscar de olhos. Você é inteligente o bastante para entender, não é?

 

E o homem desligou. A linha ficou muda. Bati com o fone no gancho e disse um palavrão em voz alta. O gerente da drogaria tinha saído e me olhava.

 

- vou chamar a polícia - disse ele. - Isto é um telefone público. - Nem me preocupei em dizer que eu era a polícia.

 

Fora mesmo o Gambá quem ligara? Eu estava lidando com um matador ou com mais de um?

 

Se ao menos tivesse uma idéia de quem havia ligado e a quem ele se referia quando dizia nós. A mensagem me assustara tanto quanto a primeira, talvez ainda mais, embora também tivesse me trazido esperanças de que Christine ainda pudesse estar viva.

 

E com a esperança veio uma pontada de dor. Se ao menos ele tivesse colocado Christine no telefone. Eu precisava ouvir a voz dela.

 

O que o homem estava querendo? Recue daqui. Recuar de onde?

 

Das investigações sobre a morte de Odenkirk? Sobre a morte das fulaninhas? Quem sabe das investigações sobre o próprio desaparecimento de Christine? Será que a Interpol ou o FBI tinham chegado perto de alguma coisa? De algo que o assustara?

 

Na minha opinião, não estávamos próximos de coisa alguma que pudesse resolver qualquer um dos casos; ainda por cima, estávamos atuando sem nenhuma articulação.

 

No início da manhã de quarta-feira, eu e Sampson fomos até Eckington, atrás de uma mulher que dizia saber onde havia uma garagem com um táxi roxo e azul. Já tínhamos seguido pelo menos uma dúzia de pistas como aquela, mas era assim mesmo. Cada pista, por menor que fosse, teria de ser investigada.

 

- O dono do táxi se chama Arthur Marshall - eu disse a Sampson enquanto parávamos na frente da deteriorada unidade de um condomínio de casas com tijolo aparente. - O detalhe é que Arthur Marshall parece ser uma falsa identidade. A mulher que alugou a casa diz que o sujeito trabalha numa das lojas Target. Mas a loja diz que não. Garante que nunca houve alguém com esse nome em qualquer estabelecimento da rede. A senhoria também informou que há algum tempo ele não tem sido visto por aqui.

 

- Talvez o tenhamos assustado - disse Sampson.

 

- Espero que não, mas acho que é possível.

 

No caminho, fui avaliando o bairro de baixa classe média. O céu lá no alto era uma abóbada muito azul, quase sem nenhuma nuvem. A rua do condomínio estava repleta de casas térreas e de altos e baixos. Tampas alaranjadas se abriam nas caixas de correio. Cada janela, sem dúvida, seria um possível esconderijo para o Gambá. Volte atrás, ele advertira. Eu não podia. Não depois do que ele fizera. Por mais que tivesse consciência dos riscos que estava correndo.

 

Provavelmente ele já nos teria visto fazendo investigações na área e, sem dúvida, se fosse mesmo responsável pelas mortes das fulaninhas, há muito estaria trabalhando na sombra. Era um sujeito habilidoso, bom em matar e não ser apanhado.

 

A senhoria nos disse o que sabia de Arthur Marshall - não muito mais que as informações de que precisara para alugar-lhe a casa de um quarto com garagem. Ela nos deu as chaves e disse que podíamos examinar sozinhos.

 

A casa era semelhante à da senhoria, mas pintada com uma tinta plástica azul. Primeiro entrei com Sampson na garagem.

 

O táxi roxo e azul estava lá.

 

Arthur Marshall dissera à proprietária que era o dono do táxi e que fazia bico com ele. Era uma possibilidade, mas um tanto improvável. O Gambá estava perto. Eu podia sentir. Será que ele sabia que íamos achar o táxi? Provavelmente. E agora? O que viria depois? Qual seria o plano dele? A próxima fantasia?

 

-Vou arranjar um meio de trazer alguém da perícia aqui disse eu. - Tem de haver alguma coisa no táxi ou pelo menos lá em cima, dentro da casa. Cabelo, fibras, impressões digitais.

 

- Quem sabe pedaços de corpos - disse Sampson fazendo uma careta. Um típico humor de tira, tão mecânico que nem me preocupei em dar atenção. - Pedaços de corpos estão sempre aparecendo nesses casos, Alex. Nem quero vê-los. Gosto de pés ligados a pernas, cabeças a pescoços, mesmo que todas as partes estejam mortas.

 

Usando luvas de borracha, Sampson deu uma busca no banco da frente do táxi.

 

- Há papéis aqui. E embalagens de balas e gomas de mascar. Por que não pedir um favor a Kyle Graig? Traga o pessoal do FBI até aqui.

 

- Falei com Kyle ontem à noite - disse eu. - O Bureau tem feito algumas investigações e Kyle vai ajudar se for preciso.

 

Sampson me atirou um par de luvas e revistei o banco de trás. Vi manchas, que podiam ser de sangue, no tecido do assento. Não seria difícil analisá-las.

 

Finalmente, eu e John Sampson subimos para a casa que havia em cima da garagem. Era um lugar encardido, empoeirado, sem muita mobília. Um ambiente lúgubre, desagradável à primeira vista. Aparentemente não morava ninguém ali e, se morasse, teria de ser uma pessoa muito estranha. Era a opinião da própria senhoria.

 

Na cozinha, praticamente vazia, a única comodidade era um espremedor de frutas (ainda que de última geração - um aparelho caro). Puxei meu lenço e abri a geladeira. Não havia nada além de água mineral e algumas frutas velhas. As frutas estavam apodrecendo e eu nem quis imaginar que outra coisa podre ainda podíamos encontrar.

 

- Um maluco - sugeriu Sampson.

 

- Maluco, sem dúvida - concordei. - Há um clima de medo animal aqui. Certamente ele fica muito tenso, muito agitado, quando vem a este lugar.

 

- Sim - disse Sampson. - Conheço a sensação. Entramos no quarto, onde havia uma pequena cama de solteiro e duas poltronas, mais nada. O clima de medo também estava lá.

 

Abri a porta do armário embutido e o que vi me deixou paralisado. Além de uma calça caqui, uma camisa azul de cambraia, um blazer azul, havia mais alguma coisa.

 

- John, venha cá - eu chamei. - John!

 

- Oh, merda. Preciso mesmo ir até aí? Já chega de corpos, certo?

 

- Apenas venha cá; é pior do que um corpo. Acertamos. Caímos na toca do Gambá.

 

Abri mais a porta do armário e deixei Sampson ver o que eu achara.

 

- Merda - ele repetiu. - Porra, Alex!

 

Havia algumas fotos ali; meia dúzia de fotografias em preto e branco coladas com fita adesiva na parede do armário. Não estávamos, porém, num relicário do matador. Não, aquilo fora feito para ser encontrado.

 

Eram fotos de Nana, de Damon e Jannie, assim como minhas e de Christine. Christine, que parecia estar sorrindo para a câmera, mostrava aquele sorriso incrível, aqueles olhos grandes, acolhedores.

 

As fotos tinham sido tiradas nas Bermudas. Tiradas por quem havia alugado a casa onde nos encontrávamos. Finalmente, havia alguma coisa para ligar o seqüestro de Christine aos crimes de Washington. Sim, eu já sabia quem a levara.

 

Recue.

 

Antes que você perca tudo.

 

Senti de novo o clima de medo. Do meu medo.

 

Patsy Hampton concluíra que ainda não estava pronta para contar o que sabia a George Pittman. Não queria o Chefe interferindo ou fazendo pressão sobre ela. Além disso, certamente não confiava nem gostava do desgraçado.

 

Ainda não decidira o que fazer com relação a Alex Cross. Cross era uma complicação, pois quanto mais se informava, melhor ele lhe parecia. Ao que tudo indicava, era um investigador dedicado, muito competente; sentia-se mal por estar mantendo longe dele as informações que recebera de Chuck Hufstedler. Chuck fora primeiro uma fonte de Cross, mas Patsy Hampton usara o fascínio que os técnicos tinham por ela para levar vantagem. Não, não gostava de ter feito isso.

 

No fim daquela tarde, Patsy pegou o seu jipe e foi até a embaixada britânica. Estava mantendo Geoffrey Shafer sob vigilância parcial - mas vigilância direta dela. Podia conseguir mais gente, mas para isso teria de falar com Pittman e não queria que ninguém soubesse o que havia descoberto. Não queria ser pressionada.

 

Fizera o dever de casa a respeito de Shafer. Ele estava no Serviço de Segurança, ou seja, era um funcionário da inteligência britânica operando fora da Inglaterra. Muito provavelmente um espião trabalhando na embaixada da avenida Massachusetts. Tudo parecia bem com sua reputação - era boa, sem dúvida. Aparentemente suas atribuições atuais estavam vinculadas ao programa de direitos humanos do governo inglês, o que não seria considerado um encargo muito importante. Morava em Kalorama, um bairro rico, um endereço que não poderia ter se vivesse apenas do salário. Mas quem, afinal, era esse tal de Shafer?

 

Hampton ficou sentada no carro estacionado na rua Califórnia, ao lado da embaixada. Fumando um Marlboro Light, começou a avaliar as coisas. Realmente devia conversar com Alex Cross sobre a investigação. Talvez ele soubesse de algo que pudesse ajudar. Talvez também estivesse próximo de Shafer. Além disso, seria quase criminoso não entrar em contato com Cross e compartilhar as informações que conseguira através de Chuck, o Queijinho.

 

A aversão que Pittman sentia por Cross era bem conhecida; achava que o detetive competia com ele. Hampton não o conhecia assim tão bem, mas sem dúvida Alex Cross estava sempre na crista da onda. Gostaria, é claro, de saber o que Cross tinha em seus arquivos; gostaria de saber se Geoffrey Shafer já aparecera no radar de Alex Cross.

 

Naquela rua sombria, ao lado da embaixada britânica, havia muito ruído desagradável. Pedreiros faziam reformas na chancelaria turca que ficava na outra calçada. Hampton já estava com dor de cabeça (sua vida era uma grande dor de cabeça) e seria ótimo se parassem de marretar, martelar, bater, serrar. Por alguma razão, havia também uma multidão de gente ao redor da Mesquita Nacional.

 

Alguns minutos depois das cinco, Shafer foi até sua vaga no estacionamento (em frente às paredes de vidro da Rotunda) e entrou no Jaguar.

 

Já o vira duas vezes antes dessa. Um homem atraente, em ótima forma, mas que não fazia o seu tipo. Sem dúvida, parecia ansioso para se afastar da embaixada. Ou tinha algum lugar muito preciso aonde ir ou de fato odiara seu dia de trabalho. Possivelmente ambas as coisas.

 

Ela seguiu o carro preto pela engarrafada avenida Massachusetts, mas sempre a uma distância segura. Não, Shafer não estava indo para casa. E também não estava indo para a zona sudeste.

 

Onde vamos esta noite?, ela se perguntava. E o que isso tem a ver com Os Quatro Cavaleiros? Qual é, afinal, seu verdadeiro jogo? Quais são suas fantasias?

 

Você é um assassino safado, Geoffrey? Mas não parece, meu louro. Um carro tão bom, tão alinhado para um reles matador.

 

Depois do trabalho, Geoffrey Shafer mergulhou na artéria entupida pelo tráfego da hora do rush e foi se arrastando pela avenida Massachusetts. Ao sair da embaixada, vira o jipe pelo retrovisor.

 

O jipe que foi descendo a avenida com ele.

 

Quem estaria ao volante? Um dos outros jogadores? A polícia de Washington? O detetive Alex Cross? Teriam encontrado a garagem de Eckington. E agora tinham encontrado a ele, certo? Só podia ser a maldita polícia!

 

Observou melhor o jipe, agora quatro carros atrás. Só havia uma pessoa em seu interior; parecia uma mulher. Seria Lucy, era possível? Teria ela descoberto a verdade a seu respeito? Deus, teria Lucy finalmente percebido quem e o que ele era?

 

Pegou o celular e ligou para casa. Lucy atendeu depois de dois toques.

 

- Querida, já estou indo para casa. Hoje o dia foi meio tranqüilo por aqui. Pode mandar servir o jantar... A não ser que você e as crianças tenham outros planos.

 

Como de hábito, Lucy começou a tagarelar de um modo um tanto frenético. Ela e as gêmeas tinham pensado em pegar um filme, Antz, mas todas iam preferir ficar em casa com ele. Podiam pedir alguma coisa na Pizza Hut. Era bom para variar um pouco.

 

- Sim, seria bom - disse Shafer, encolhendo-se ante a idéia. A Pizza Hut servia um papelão intragável, encharcado de péssimo molho de tomate. Depois de desligar, tomando alguns Vicodins e um Xanax, teve a sensação de que fendas se abriam devagar no alto da cabeça.

 

Na avenida Massachusetts, fez uma perigosa curva em forma de U e tomou o rumo de casa. Ao passar pelo jipe indo na direção oposta, ficou tentado a acenar. Uma mulher ao volante. Sim, mas quem era?

 

A pizza foi entregue por volta das sete e Shafer abriu uma garrafa cara de Cabernet. Depois engoliu outro Xanax com vinho, no banheiro do andar de baixo, de onde saiu meio atordoado, apalpando as beiradas. Era assim mesmo, ele achava.

 

Jesus Cristo, não conseguia suportar a companhia da família

- dava-lhe vontade de rastejar para fora da pele! Desde a infância, passada na Inglaterra, vivia a fantasia de ser um réptil e poder trocar de pele. Muito tempo antes de ter lido qualquer livro de Kafka, tivera repetidamente este sonho; ainda era atormentado por ele.

 

Sempre tomando vinho, sacudiu três dados na palma da mão e começou a fazer o jogo na mesa do jantar. Se naquela noite a soma fosse dezessete, mataria todos. Jurou que faria. Primeiro as gêmeas, depois Robert, por fim Lucy.

 

A esposa continuava falando sem parar sobre as peripécias do dia e Shafer mostrava um sorriso jovial enquanto ouvia a descrição das compras no Bloomingdale’s, no Barh & Body Works e no Bruno Cipriani do bulevar. Considerava uma suprema ironia tomar toneladas de antidepressivos e ficar cada vez mais deprimido. Jesus, o ciclo puxava de novo para baixo! Até que profundidade ele conseguiria chegar?

 

- Vamos lá, dezessete! - ele acabou pedindo em voz alta.

 

- O que foi, querido? - perguntou Lucy de repente. Disse alguma coisa?

 

- Ele já está fazendo o jogo desta noite - disse Robert, abafando o riso. - Certo, papai? É um RPG. Tenho ou não tenho razão?

 

- Tem toda, filho - respondeu Shafer. Cristo, estou maluco!

 

Deixou os dados caírem suavemente na mesa de jantar. Ia realmente matá-los se... o número certo aparecesse. Os dados rolaram várias vezes e acabaram se depositando ao lado da gordurosa caixa de pizza.

 

- Papai e seus jogos! - comentou Lucy rindo. Erica e Tricia riram. Robert também.

 

Seis, cinco, um, ele contou mentalmente. Droga, droga! -Por que você não joga comigo hoje à noite? - perguntou Robert.

 

Shafer deu um sorriso forçado.

 

- Hoje não, Rob Boy. Eu gostaria, mas não posso. Tenho de sair de novo.

 

Aquilo estava ficando muito interessante. Patsy Hampton observou Shafer saindo do imponente casarão em Kalorama por volta das oito e meia. Ia começar outra expedição noturna. O sujeito era um verdadeiro vampiro.

 

Sabia que a turma de Cross chamava o matador de Gambá, um nome sem dúvida adequado. Havia algo de fedorento em volta de Shafer, algo se decompondo.

 

Ela foi atrás do Jaguar preto, mas, para seu desapontamento, o carro não tomou o rumo da zona sudeste. Seguiu, em vez disso, para um moderno supermercado chamado Sutton on the Run, junto do Dupont Circle. Hampton sabia como o lugar era caro ela costumava chamá-lo de ”supermercado pague mais”.

 

Estacionando de forma irregular o carro esporte, Shafer entrou num passo pouco firme. Imunidade diplomática. Aquilo conseguia realmente irritá-la. Na realidade ele não passava de um bicho. Pior. Um verdadeiro lixo vindo da Europa.

 

Então, enquanto o Gambá estava no mercado, Hampton tomou uma importante decisão. Ia realmente conversar com Alex Cross. Já pesara bastante os prós e os contras. Percebia agora que podia estar pondo vidas em risco na zona sudeste ao não compartilhar pelo menos um pouco do que sabia. Seria insuportável se mais alguém morresse. Além disso, era Cross quem teria conseguido a informação se ela não tivesse intercedido junto a Chuck Hufstedler. ”

 

Shafer saiu meio trôpego do Sutton on the Run e deu uma olhada no movimento do Dupont Circle. Trazia, em um dos braços, a pequena sacola das compras (caras) que fizera e nem olhou na direção do jipe, que aliás mal despontava na esquina. Para quem seriam as compras?

 

Hampton continuou seguindo o Jaguar preto a uma distância segura, agora num tráfego leve. Shafer pegou a avenida Connecticut. Ela não acreditava que já tivesse sido localizada, mas Shafer fora era preciso cuidado.

 

Bem, ele não estava longe da rua da embaixada, mas não ia voltar ao escritório, não é? Por que as compras se fosse voltar à embaixada?

 

Em Woodley Park, o Jaguar finalmente entrou no subsolo de um edifício garagem de antes da guerra. O nome do prédio, Farragut, estava gravado numa placa de metal.

 

Patsy Hampton esperou alguns minutos, depois também entrou na garagem. Precisava dar uma olhada no lugar, descobrir o que fosse possível.

 

O condomínio tinha algumas vagas rotativas, como num edifício-garagem, por isso sua chegada não despertou muita atenção. Havia um pequeno balcão com um funcionário e ela se identificou.

 

- Esse Jaguar que entrou antes de mim, o senhor já o tinha visto por aqui?

 

- Claro - disse o homem abanando a cabeça. Era mais ou menos da idade dela e parecia disposto a impressioná-la. - Mas nunca falei com o dono. Ele costuma visitar uma senhora no décimo andar, dra. Elizabeth Cassady. Ela é psiquiatra; ele deve ser um cliente. Um sujeito com um ar engraçado nos olhos, mas há muita gente assim.

 

- Eu também tenho esse ar? - perguntou Patsy.

 

- Não... bem, talvez um pouco - disse o homem sorrindo. Shafer ficou lá em cima com a dra. Cassady por quase duas

 

horas. Depois desceu e voltou direto para sua casa em Kalorama. Patsy Hampton o seguiu e ficou mais meia hora vigiando a casa. Por fim, ao concluir que Shafer já se recolhera para dormir, foi até um restaurante vizinho. Não entrou de imediato; pegou o celular antes de começar a mudar de idéia. Sabia o nome da rua onde Cross morava e conseguiu o número do telefone pelo 102. Parecia tarde demais para ligar, mas e daí? Era exatamente o que ia fazer.

 

Ficou espantada quando a ligação foi atendida no primeiro toque. Era uma agradável voz masculina. Simpática. Forte.

 

- Alô, Alex Cross falando.

 

Patsy quase desligou na cara dele. Interessante que, por um momento, a voz de Cross a tivesse intimidado.

 

- Sou a detetive Patsy Hampton e estou fazendo investigações sobre as mortes das fulaninhas - disse ela. - Estive seguindo um suspeito e acho que devíamos conversar.

 

Cross não hesitou:

 

- Onde você está, Patsy? vou ao seu encontro. Basta me dizer o local.

 

- Estou no restaurante City Limits, na avenida Connecticut.

 

- Já estou a caminho - disse Cross.

 

Não fiquei totalmente surpreso por Pittman ter encarregado alguém das investigações sobre as fulaninhas. Principalmente depois da matéria de Zach Taylor no Washington Post. Eu estava interessado em qualquer pista que a detetive Hampton pudesse ter encontrado.

 

Cruzara algumas vezes com Patsy Hampton e obviamente ela também me conhecia de vista. Diziam que estava fazendo uma bela carreira; já era uma veterana na investigação criminal, uma mulher inteligente, eficiente. Também ouvi dizer que se tratava de uma loba solitária. Pelo que sabia, não tinha amigos no departamento.

 

Patsy era muito mais bonita do que a lembrança que eu tinha. Com uns trinta e poucos anos, estava em perfeita forma (e forma atlética). Sob o cabelo louro e curto, os penetrantes olhos azuis cortavam a fumaça do salão do restaurante.

 

Passara um batom muito vermelho para se encontrar comigo ou talvez fosse seu batom habitual. Eu não sabia o que teria em mente, qual era sua motivação. Não achei que fosse confiável.

 

- Quem fala primeiro, eu ou você? - disse Hampton depois de pedirmos café. Estávamos sentados numa mesa do Qty Limits, perto da janela que dava para a avenida Connecticut.

 

- Realmente não sei do que se trata - respondi.

 

Patsy tomou um gole do café e me olhou sobre a beirada da xícara. Parecia uma pessoa decidida, segura de si (era o que me diziam seus olhos).

 

- Não sabia mesmo que havia mais alguém trabalhando nos casos das fulaninhas?

 

Balancei a cabeça numa negativa.

 

- Pittman disse que os inquéritos estavam arquivados respondi -, e acreditei na palavra dele. O Chefe suspendeu alguns bons detetives que tinham resolvido trabalhar nesses casos em suas horas de folga.

 

- Há certos jogos seriamente repulsivos no departamento

- disse ela pousando a xícara e dando um profundo suspiro. Bem, sempre foi assim, não é? Achei que pudesse levar a coisa sozinha. Agora, já não tenho tanta certeza.

 

- Pittman a designou para as fulaninhas? Pessoalmente? Ela assentiu, estreitando os olhos azuis.

 

- Fiquei com os assassinatos de Glover e Cardinal ou com quaisquer outros que pudessem me interessar. Ganhei carta branca.

 

- E acha que já tem alguma coisa?

 

- Talvez. Um possível suspeito. Um homem envolvido num RPG que produz vítimas de assassinatos, principalmente na zona sudeste. Tudo é pós-fato, ou seja, o sujeito pode simplesmente ter lido as notícias e fantasiado em cima delas. Ele trabalha na embaixada britânica.

 

Era realmente uma informação nova, uma informação que me deixava espantado.

 

- Até onde você chegou?

 

- Não pousei a notícia na mesa de Pittman, se é isto que quer saber. Fiz um trabalho discreto checando o suspeito. O problema é que ele parece ser um cidadão respeitável. Tem uma família em Kalorama e, a acreditar num comunicado oficial da embaixada, é muito bom no seu trabalho. Tenho vigiado um pouco esse tal de Shafer, sempre esperando um lance de sorte o primeiro nome dele é Geoffrey.

 

Eu sabia que Patsy era considerada uma espécie de metralhadora giratória e que não brincava em serviço.

 

- Estava aqui fora sozinha hoje à noite? Hampton sacudiu os ombros.

 

- É como costumo operar. Parceiros em geral me atrasam. O chefe Pittman sabe como eu gosto de trabalhar. Como já disse, ele me deu sinal verde. Sempre verde, do início ao fim de cada dia.

 

Certamente ela estava esperando que eu também passasse alguma coisa (se eu tivesse alguma coisa, é claro) e decidi fazer o jogo.

 

- Encontramos o táxi que o matador parece ter usado na zona sudeste. Estava guardado numa garagem de Eckington.

 

- Ninguém viu o suspeito nas redondezas? - Era a correta primeira pergunta de Patsy Hampton.

 

- A senhoria viu, e era bom que ela desse uma olhada nas fotos do seu Shafer. Quem mostra as fotos, você ou eu?

 

O rosto dela estava impassível.

 

-Eu faço isso. Amanhã cedo. Algo de importância na casa? Queria ser honesto. Afinal, Patsy tomara aquela iniciativa de se reunir comigo.

 

- Fotografias minhas e de minha família forravam o interior de um armário. Fotos tiradas nas Bermudas, durante nossas férias. Ele esteve todo o tempo lá, nos vigiando.

 

A fisionomia de Hampton ficou mais branda.

 

- Soube que sua noiva desapareceu nas Bermudas. Essas coisas sempre se espalham.

 

- Também havia fotos de Christine.

 

Uma sombra tomou conta de seus olhos azuis e tentei dar uma rápida espiada atrás daquela fachada de pedra.

 

- Realmente lamento o que aconteceu.

 

- Ainda não desisti - respondi. - Olhe, não quero qualquer crédito por ajudar a resolver esses casos, mas me deixe ajudar! Ele telefonou para minha casa ontem à noite. Alguém telefonou. Mandou que eu recuasse. Presumo que estivesse se referindo a esta investigação, embora oficialmente eu nem esteja nela. Se Pittman souber desse nosso encontro...

 

A detetive me interrompeu.

 

-- Deixe-me pensar no que você disse. Você sabe que pittman vai realmente me crucificar se descobrir! Você nem faz idéia. Mas eu não confio nele, esse é o problema. - O olhar de Harnpton era intenso e direto.-Não mencione nada disso a seus colegas, nem mesmo a Sampson. Nunca se sabe. Sim, sim, quero pensar um pouco nesta nossa conversa e tentar agir da melhor maneira possível. Não sou nenhuma besta intolerante. Só um pouco desconfiada, você sabe.

 

- Não somos todos desconfiados? - disse eu, sorrindo. Hampton era uma detetive durona, mas eu me sentia bem com ela e acabei tirando uma coisa do meu bolso, um bipe.

 

- Fique com isso. Se tiver algum problema ou conseguir outra pista, pode bipar. A qualquer hora. Se descobrir alguma coisa, por favor me informe. vou fazer o mesmo. Se Shafer for a pessoa certa, quero falar com ele antes de o prendermos. Para mim, a coisa é pessoal. Você não pode imaginar como é pessoal!

 

Hampton continuou a me olhar, a me examinar. Lembrava alguém que eu conhecera, outra complicada mulher policial chamada Jezzie Flanagan.

 

- vou pensar - disse. - vou informá-lo.

 

- Está bem. E obrigado por ter me colocado nisso.

 

- Ainda não está em nada, Cross - disse ela se levantando. - Como eu disse, vou informá-lo. - Patsy tocou minha mão e acrescentou: - Realmente sinto muito o que houve com sua amiga.

 

Nós dois, no entanto, sabíamos muito bem que eu estava na coisa. E que tínhamos feito uma espécie de acordo no restaurante chamado City Limits. Eu só esperava não estar sendo vítima de alguma armação de Hampton, de Pittman e só Deus sabe de quem mais.

 

Conversamos quatro vezes nos dois dias seguintes. Não tinha certeza se podia confiar nela, mas não havia opção. Era preciso continuar avançando. Patsy já visitara a mulher que alugara a casa com garagem em Eckington. A senhoria não reconhecera as fotos de Shafer. Possivelmente o homem usara um disfarce ao se encontrar com ela.

 

Se Patsy Hampton estava me aprontando alguma, era uma das melhores mentirosas que eu já conhecera (e sem dúvida eu tinha conhecido algumas ótimas). Durante um de nossos telefonemas, confessou que sua fonte tinha sido Chuck Hufstedler e que fora a pedido seu que ele não me passara a informação. Sacudi os ombros. Não dispunha de tempo nem de energia para ficar irritado com nenhum dos dois.

 

Eu passava muito tempo em casa. Não acreditava que o matador viesse atrás de minha família, pois afinal ele já tinha Christine, mas era preciso cuidado. Ao sair, pedia a alguém, em geral a Sampson, para dar uma olhada na casa.

 

Na terceira noite depois do nosso encontro, eu e Patsy Hampton começamos a nos sincronizar melhor e ela acabou me convidando para acompanhá-la na vigilância da mansão de Shafer em Kalorama Heights.

 

Shafer chegou do trabalho antes das seis e ficou lá até depois das nove. Tinha uma bela família estrangeira: esposa, três filhos, uma babá. Vivia muito bem. Nada em sua vida ou no seu ambiente sugeria que fosse um homicida.

 

- Ao que parece, ele sai toda noite mais ou menos a essa hora - disse Hampton vendo Shafer caminhar para o brilhante Jaguar preto estacionado na estradinha de cascalho ao lado da casa.

 

- Uma criatura de hábitos fixos - disse eu: um Gambá, pensei.

 

- Uma criatura - disse ela e nós dois sorrimos. O gelo estava se derretendo um pouco. Hampton confessou que, depois de colher informações completas sobre mim, havia concluído que o vilão da história era o chefe Pittman, não eu.

 

O Jaguar partiu e nós fomos atrás, seguindo o suspeito até um bar em Georgetown. Aparentemente Shafer não sabia que estava sendo seguido. O problema era que tínhamos de pegá-lo fazendo alguma coisa; afinal, não havia qualquer evidência concreta de que fosse ele o nosso matador.

 

Da rua, vimos quando se sentou sozinho no balcão e me perguntei se não teria se instalado de propósito na frente da janela. Será que sabia que estava sendo vigiado? Estaria brincando conosco? Tive a má impressão que sim. Para ele, aquilo poderia ser alguma espécie bizarra de jogo. Saiu do bar por volta das onze e quarenta e cinco e chegou em casa pouco depois da meia-noite.

 

-Desgraçado - disse Patsy fazendo uma careta e sacudindo a cabeça. O macio cabelo louro tinha um belo ritmo. Ela realmente me fazia lembrar de Jezzie Flanagan, uma agente do Serviço Secreto com quem eu havia trabalhado na investigação do seqüestro de duas crianças em Georgetown.

 

- Já entrou para dormir? - exclamei. - O que isto significa? Sai de casa para ver o jogo de beisebol dos Orioles num bar em Georgetown?

 

- É o que tem acontecido nas últimas noites. Provavelmente ele sabe que estamos aqui.

 

- É um funcionário da inteligência-disse eu. - Conhece vigilância. Também sabemos que gosta de jogos. De qualquer maneira, ele já entrou e eu também vou para casa, Patsy. Não quero deixar minha família sozinha por muito tempo.

 

- Boa noite, Alex. Obrigada pela ajuda. Vamos pegá-lo. E talvez não demoremos a encontrar sua amiga.

 

- É o que espero.

 

A caminho de casa, pensei um pouco na investigadora Patsy Hampton. Era estranho que parecesse tão solitária, pois atrás de uma fachada de pedra havia uma mulher receptiva, interessante. Eu só não tinha certeza se alguém já conseguira atravessar aquela fachada.

 

Havia uma luz acesa em nossa cozinha quando dobrei na entrada da garagem. Saltei do carro e dei a volta até a porta dos fundos, de onde vi Damon e Nana de roupões de banho, perto do fogão. Tudo parecia em ordem.

 

- Interrompo uma festa de pijamas? - perguntei ao entrar.

 

- Damon não se sente muito bem do estômago. Ouvi o barulho dele na cozinha e desci para ver o que estava acontecendo.

 

- Já estou bom - disse Damon. - Só não conseguia dormir. Vi que você ainda não tinha voltado e já passava da meia noite.

 

Damon parecia preocupado e um pouco triste. Tinha realmente gostado de Christine e me dissera algumas vezes que estava ansioso para ter uma segunda mãe. Já começara a pensar nela desse jeito. Ele e Jannie sentiam muito a falta de Christine. Já por duas vezes haviam sido despojados de mulheres importantes na vida deles.

 

- Fiquei trabalhando até um pouco tarde, foi só isso expliquei. - Tenho um caso muito complicado, Damon, mas acho que estou fazendo progressos.

 

Fui até o armário e peguei dois saquinhos de chá. Nana se ofereceu. - vou lhe fazer o chá.

 

-Eu faço - disse, mas ela pegou os saquinhos e deixei que os levasse. Não vale a pena discutir com Nana, especialmente em sua cozinha.

 

”Quer um pouco de chá com leite, garotão?”, perguntei a Damon.

 

- Nos trinques - ele respondeu com a inflexão característica dos playgrounds e do pátio de recreio da escola.

 

- Está me lembrando um jogo da NBA - disse Nana. Falou como o Allen Iverson justificando uma defesa primária.

- Nana não gostava muito das gírias da rua, nunca tinha gostado. Começara sua vida como professora de inglês e jamais perdera o amor pelos livros e pelo idioma. Adorou quando Toni Morrison, Alice Walker, Maya Angelou e Oprah Winfrey começaram a escrever para um público mais amplo.

 

- Ele é o mais rápido jogador de defesa, grande avó disse Damon. - O que você entende de basquete? Aposto que ainda acha que Magic Johnson está jogando na liga. E Wilt çhamberlain.

 

- Bem, eu gosto do Marbury, que joga no Timberwolves, Q do Stoudamire, que jogava no Toronto e hoje está no Portland disse Nana com um leve sorriso de triunfo. - Não entendo?

 

Damon riu. Nana provavelmente sabia mais sobre os meias da NBA que nós dois juntos. Poderia sempre nos pegar, se quisesse.

 

Sentei à mesa da cozinha e tomei chá com leite e muito açúcar. Ficamos quase em silêncio, mas foi gostoso. Gosto da vida em família, sempre gostei. Tudo que sou vem daí. Vi Damon bocejar, levantar-se da mesa e ir até a pia para lavar a xícara.

 

- Agora provavelmente já posso dormir - ele nos informou. - Pelo menos vou tentar.

 

Antes de voltar para seu quarto no andar de cima, quis dar um beijo em Nana e em mim.

 

- Sente falta dela, não é? - sussurrou do lado do meu rosto.

 

- É claro que sinto falta de Christine - respondi. - O tempo todo. A cada minuto do dia. - Não mencionei o fato de que ficara na rua até tarde porque estava vigiando o filho-da-puta que talvez a tivesse seqüestrado. Nem falei da investigadora que participara comigo da vigilância, Patsy Hampton.

 

Quando Damon saiu, e antes que eu também subisse para meu quarto, Nana encostou na minha mão e ficamos alguns minutos em silêncio.

 

- Também sinto falta dela - disse Nana por fim. - Estou rezando por vocês dois, Alex.

 

No dia seguinte, por volta das seis da tarde, saí cedo do trabalho para ver o ensaio do coro de Damon na Sojourner Truth School. Já reunira um dossiê de bom tamanho sobre Geoffrey Shafer, mas ainda não tinha nada que o ligasse concretamente a qualquer um dos crimes. Assim como Patsy Hampton também não tinha. Talvez ele fosse apenas o jogador inocente de um RPG. Mas também podia ser o Gambá, sem dúvida. E um Gambá que estava sendo mais cuidadoso depois que seu táxi fora encontrado.

 

Virei-me pelo avesso para ir à Truth School, mas seria impossível faltar. Percebi como devia ser difícil para Damon e Jannie estarem todo dia lá. A escola trazia um excesso de recordações de Christine. Senti-me como se estivesse sufocando, como se todo o ar tivesse sido extraído dos meus pulmões. Ao mesmo tempo, um suor frio cobria minha nuca e minha testa.

 

Pouco depois do ensaio começar, Jannie estendeu silenciosamente o braço e pegou na minha mão. Ouvi seu suspiro suave. Estávamos mais emotivos e carinhosos desde a vinda das Bermudas; acho que nunca havíamos sido uma família tão unida.

 

Ficamos de mãos dadas durante quase todo o ensaio do coro, que incluía uma canção folclórica do País de Gales, Ali Through the Night, uma cantata de Bach, My Heart ever Faithful Sing Praises, e um arranjo muito especial de uma antiga canção evangélica, O Fix Me.

 

Continuava imaginando que Christine apareceria de repente na escola e uma ou duas vezes cheguei a olhar para a arcada que levava à sua sala. Evidentemente, ela não estava lá, o que me enchia de inconsolável tristeza e do mais profundo vazio. Por fim, consegui calar esses pensamentos e limpar minha mente para que todo o meu ser pudesse mergulhar no glorioso som das vozes dos garotos e se transformar na música.

 

Depois do ensaio do coro, quando chegamos em casa, Patsy Hampton me telefonou de seu posto de vigilância. Passava um pouco das oito. Nana e as crianças estavam pondo a mesa com frango defumado, pedaços de pêra e maçã, queijo tipo ricota e uma salada de alcachofra e alface cortada em tiras.

 

Shafer ainda estava na casa dele em Kalorama e, por incrível que pudesse parecer, havia uma festa lá, um aniversário de criança, segundo Patsy.

 

- Há muitas crianças da vizinhança, todas sorrindo. Há também um palhaço contratado para animar a festa: Bestão. Talvez estejamos seguindo a pista errada, Alex.

 

- Acho que não. Acho que nossos instintos estão certos. Disse que me encontraria com ela por volta das nove, que era quando Shafer costumava sair.

 

Pouco depois das oito e meia, enquanto fatiávamos o delicioso e bem temperado frango defumado, o telefone tornou a tocar na cozinha. Nana fez cara feia quando atendi.

 

Reconheci a voz.

 

- Mandei que recuasse, não foi? Agora terá de enfrentar certas conseqüências pela desobediência. A culpa é sua! Há um telefone público na velha Casa do Macaco, no Zoológico Nacional. O zoológico fecha às oito, mas poderá entrar pelo portão dos funcionários. Talvez Christine Johnson esteja lá à sua espera. É melhor chegar depressa e ver por si mesmo. Corra, Cross, vá rápido, corra! Nós a pegamos.

 

O homem desligou e subi em disparada para pegar o meu Glock. Liguei para Patsy Hampton, contando que recebera outro telefonema, aparentemente do Gambá, e estava de saída para o Zoológico Nacional.

 

- Shafer continua na festa de aniversário - disse ela. Evidentemente, pode ter ligado de casa. De onde estacionei, vejo o caminhão do palhaço que ele contratou.

 

-Fique em contato comigo, Patsy. Através do telefone e do bipe. O bipe só no caso de emergências. E cuidado com Shafer.

 

- OK. Estou bem aqui, Alex. Uma festa animada pelo Bestão não representa exatamente uma ameaça. Nada acontecerá nesta casa. Vá até o zoológico. Você é que precisa tomar cuidado!

 

Por volta das dez para as nove, cheguei ao Zoológico Nacional, que sem dúvida ficava bastante próximo do apartamento da dra. Cassady no Farragut. Seria apenas uma coincidência que eu estivesse tão perto da psiquiatra de Shafer? Bem, eu não acreditava mais em coincidências.

 

Liguei para Patsy Hampton antes de sair do carro, mas desta vez ela não atendeu. Não bipei, pois não havia uma emergência - pelo menos até aquele momento.

 

Conhecia o zoológico, onde já entrara muitas vezes em companhia de Damon e Jannie. Também o conhecia de meu tempo de garoto, quando Nana, e eventualmente Sampson (que já tinha quase um metro e oitenta aos onze anos) costumavam me levar até lá. O acesso principal ficava na esquina das avenidas Connecticut e Hawthorne, mas para chegar à Casa do Macaco era preciso entrar e andar cerca de um quilômetro e meio em diagonal.

 

Não vi ninguém e o portão dos funcionários, por onde o homem disse que eu poderia passar, estava sem tranca. Sem dúvida eu não era o único que conhecia o zoológico. Mais jogos, pensei. Evidentemente ele adorava jogar.

 

Entrei correndo e logo me vi cercado por um horizonte de árvores e encostas tapando as luzes da cidade ao redor. Só havia meia dúzia de lampiões; era meio sinistro e assustador estar ali sozinho. Pior: eu tinha certeza de que não estava sozinho!

 

O conjunto de jaulas conhecido como Casa do Macaco ficava bem mais longe do portão do que imaginei, mas finalmente, e apesar do escuro, consegui localizar a construção. Parecia uma antiga estação ferroviária da era vitoriana. Do outro lado da pracinha calçada com pedras redondas, havia uma estrutura mais moderna, conhecida como Casa do Réptil.

 

Uma placa sobre as portas geminadas da Casa do Macaco dizia: Cuidado, Quarentena - Não Entre! Mais coisas estranhas. Ainda tentei abrir aquelas portas altas, mas elas estavam bem trancadas.

 

Na parede, ao lado das portas, vi o azul e branco desbotado de uma placa, a convenção internacional para indicar que havia um telefone lá dentro. E esse o telefone que ele quer que eu use?

 

Sacudi as portas, velhas portas de madeira que rangiam muito. Podia ouvir os macacos começando a gritar e a virar cambalhotas nas jaulas. De início foram os primatas menores: cuatás, chimpanzés, gibões. Depois veio o grunhido mais profundo dos gorilas.

 

Nesse momento, vislumbrei um brilho vermelho do outro lado da pracinha de pedra. Havia outro telefone público ali.

 

Atravessei correndo a pracinha e consultei o relógio. Passavam dois minutos das nove.

 

Da última vez ele me deixara esperando.

 

Pensei em seu jogo. Será que para o Gambá tudo se resumia a um jogo com personagens? Mas nesse caso o que a pessoa fazia para vencer? Para perder?

 

Fiquei preocupado por não estar no telefone certo. Não via nenhum outro, mas havia sempre o aparelho trancado no interior da Casa do Macaco.

 

Era aquele o telefone que ele queria que eu usasse? Sentia-me extremamente nervoso, superagitado. Muitas emoções perigosas iam ganhando forma dentro de mim.

 

Ouvi um longo, prolongado aaaaaahhhh - como o som de uma arquibancada de futebol na hora do chute inicial. Fiquei sobressaltado, mas logo percebi. Era apenas o barulho dos macacos nas jaulas.

 

Havia mais alguma coisa errada por ali, não é? Um intruso. Alguma coisa ou alguém perto do telefone?

 

Esperei mais cinco minutos, que foram se transformando em dez. Aquilo estava me enlouquecendo. A sensação era quase insuportável e quase mandei um bipe para Patsy.

 

Mas foi o meu bipe que tocou! Estremeci.

 

Era Patsy. Tinha de ser uma emergência.

 

Fiquei olhando para o silencioso telefone público, mas ainda esperei cerca de meio minuto. Depois peguei bruscamente o fone.

 

Liguei para o bipe, dando o número do telefone público. Esperei mais um pouco.

 

Patsy não deu retorno.

 

Nem o homem misterioso que me ligara.

 

Eu suava.

 

Devia tomar uma decisão imediata. Estava num lugar péssimo e minha cabeça começava a rodopiar.

 

De repente o telefone tocou. Agarrei-o de chofre, quase deixando cair o fone. Meu coração batia como um tambor.

 

- Nós a pegamos.

 

- Onde? - gritei.

 

- No Farragut, é claro.

 

O Gambá desligou. Sem dizer se ela estava bem.

 

Eu não podia imaginar por que Christine estaria em Washington, no Farragut, mas fora o que ele dissera. Por que falaria isso se não fosse verdade? O que, afinal, ele estava fazendo comigo? Com ela?

 

Corri para onde achei que ficava a Cathedral Avenue, mas estava muito escuro no zoológico, quase escuro como breu. Minha visão se estreitava, talvez porque eu estivesse prestes a entrar em choque. Já não conseguia pensar direito.

 

Com uma espécie de névoa na cabeça, tropecei num pedregulho e caí sobre um dos joelhos. Dei um corte nas mãos, rasguei a calça, mas logo me levantei e comecei de novo a correr, agora entre os arbustos altos e densos que me agarravam e me arranhavam o rosto e os braços.

 

Por todo o zoológico havia animais uivando, gemendo, gritando de modo insano. Percebiam que havia algo errado. Quando identifiquei os sons de ursos pardos e elefantes-marinhos, percebi que estava me aproximando da área conhecida como Círculo Ártico, mas não tinha a menor idéia de onde isso ficava com relação ao resto do zoológico e às ruas da cidade.

 

Tentando me localizar, escalei de imediato o rochedo (miniatura do de Gibraltar) que apareceu na minha frente.

 

Vi, lá embaixo, lojas de souvenirs fechadas, lanchonetes, dois grandes gramados e um amontoado de jaulas. Conseguindo me situar, desci de imediato da pedra e comecei a correr de novo. Christine se achava no Farragut. Será que finalmente eu ia encontrá-la? Era isso mesmo que ia acontecer?

 

Ultrapassei a Aléia Africana, a Estação de Preservação da Chita e cheguei a um campo vasto, onde os animais lembravam grandes montes de fenos. Percebi que eram búfalos. Chegara a algum lugar perto da Via das Grandes Planícies.

 

Outra vez o bipe tocou no meu bolso.

 

Patsy! Uma emergência! Onde ela estava? Por que não ligara para o número do telefone público que eu dei?

 

Estava ensopado de suor, quase perdendo o fôlego. Graças a Deus já podia ver a Cathedral Avenue e, mais à frente, a Woodley Road.

 

A contar do ponto onde eu deixara o carro, era um longo caminho, mas agora já estava próximo do edifício de apartamentos chamado Farragut.

 

Corri mais cem metros no escuro e pulei o muro de pedra que separava o zoológico das ruas da cidade. Não sabia de onde vinha o sangue que manchava minhas mãos. Do joelho que eu tinha ralado? Dos arranhões dos galhos que bateram emmim. Não de muito longe, vinha um gemido alto de sirenes. Era do Farragut?

 

Passava um pouco das dez. O telefonema para minha casa já fora havia mais de uma hora. Eu acelerei ainda mais.

 

O bipe tocava no bolso da camisa.

 

Alguma coisa má tinha acontecido no Farragut. Os gritos estridentes das sirenes se aproximando foram ficando mais fortes enquanto eu corria pela Woodley. Sentia-me tonto, realmente atordoado. Não conseguia me fixar em nada e percebi que, como só acontecera umas poucas vezes nos últimos anos, estava próximo do pânico.

 

Nenhum carro-patrulha e nenhuma viatura da perícia tinham chegado ao prédio. Eu seria o primeiro.

 

Dois porteiros e vários moradores vestindo roupões se amontoavam na entrada da garagem subterrânea. Não podia ser Christine. Simplesmente não podia ser. Atravessei correndo uma área gramada. Estaria o Gambá no Farragut?

 

Eles me viram correr e pareciam tão assustados quanto eu. Sem dúvida minha aparência devia estar incrível. Lembrei-me de ter caído uma ou duas vezes no interior do zoológico. Provavelmente era a própria imagem de um louco, talvez até de um homicida. Tinha sangue nas mãos e só Deus sabe onde mais!

 

Puxei e abri minha carteira, expondo a credencial de investigador.

 

- Polícia! - gritei. - O que houve aqui? Sou investigador da polícia. Meu nome é Alex Cross.

 

- Alguém foi assassinado, detetive - disse finalmente um dos porteiros. - Venha por aqui, por favor!

 

Segui o porteiro pela rampa íngreme que levava à garagem.

 

- É uma mulher - dizia ele. - Acho que realmente está morta. Liguei para o 911.

 

- Deus! - exclamei em voz alta. Meu estômago se contraiu quando vi o jipe de Patsy Hampton na vaga do canto. A porta do veículo estava aberta e a luz escoava lá de dentro.

 

Senti um terrível medo, angústia e choque ao correr para a porta. Patsy Hampton se achava estendida no banco da frente. Tive quase certeza de que estava morta.

 

”Nós a pegamos.” Então era isso que a mensagem queria dizer. Deus, Jesus, não! Tinham me dito para recuar. Agora tinham assassinado Patsy Hampton. Pelo amor de Deus, não!

 

Via as pernas nuas, contorcidas sob o volante. A parte de cima do corpo estava dobrada quase em ângulo reto. A cabeça fora atirada para trás e jazia parcialmente fora do assento, já no banco do carona. O cabelo louro parecia molhado de sangue. Os vazios olhos azuis me encaravam.

 

Patsy usava uma blusa de malha branca. Em sua garganta havia cortes profundos e um sangue muito vermelho ainda escoava dos ferimentos. Estava nua da cintura para baixo, mas não vi em parte alguma o resto de suas roupas. Podia ter sido estuprada.

 

Suspeitei que fora estrangulada com uma espécie de arame e que só tinha morrido havia apenas alguns minutos. Haviam utilizado uma corda ou garrote em alguns dos crimes das fulaninhas. O Gambá gostava de usar as mãos, trabalhar intimamente com as vítimas, provavelmente contemplando, acompanhando sua dor - enquanto as atacava sexualmente, talvez.

 

O que havia ao redor dos profundos ferimentos da garganta me pareciam lascas de tinta. Mas como lascas de tinta?

 

Havia outra coisa que julguei muito estranha: o rádio do jipe se achava um tanto fora do lugar, mas continuava lá. Não compreendia por que o rádio fora forçado, embora isso não parecesse relevante naquele momento.

 

Inclinei minha cabeça para fora do jipe.

 

-Mais alguém ferido?-perguntei ao zelador.-Já foi ver?

 

- Não, ainda não - disse ele balançando a cabeça. - vou dar uma olhada.

 

Finalmente as sirenes soaram dentro da garagem, as luzes vermelhas e azuis piscando, girando nos tetos e paredes. Alguns moradores também haviam entrado na garagem. Por que aquela necessidade de se horrorizar diante de um crime tão terrível?

 

Quando o medonho pensamento lampejou em minha mente, saltei do jipe, tirei as chaves de Patsy da ignição e corri para a traseira. Empurrei de imediato o botão e a mala se abriu. Meu coração martelava de novo. Não, não queria olhar lá dentro, mas tinha de fazer! Não havia nada. Jesus, Jesus, Jesus. ”Nós a pegamos!” Será que Chrístine também estaria por perto? Onde?

 

Dei uma olhada na garagem e vi, junto da entrada, o carro esporte, o Jaguar preto de Geoffrey Shafer. Estacionado bem ali no Farragut. Patsy, então, devia ter vindo atrás dele.

 

Corri pela garagem na direção do Jaguar e pus a mão no capo, depois no cano do escapamento. Ambos quentes. Não havia muito tempo que o carro estava lá. As portas haviam sido trancadas e eu não podia arrombá-las. Tinha plena consciência das normas a seguir nas operações de busca e apreensão.

 

Olhei para o interior do Jaguar. No banco de trás, vi camisas sociais penduradas em cabides de arame. Os cabides eram brancos e pensei nas lascas de tinta nas lesões da detetive Hampton. Fora estrangulada com um cabide? Shafer seria mesmo o Gambá e ainda estaria no prédio? E Christine? Ela também estava lá?

 

Troquei algumas palavras com os patrulheiros que haviam chegado, os primeiros a pisar na cena do crime depois de mim. Levei-os comigo.

 

O obsequioso zelador me informou onde ficava o apartamento da terapeuta de Shafer. Era a unidade do décimo andar, a cobertura. Como todos os prédios de Washington, o Farragut não pudera ser mais alto que a abóbada do Capitólio.

 

Tomei o elevador com os dois policiais uniformizados, ambos na faixa dos vinte e, podia apostar, ambos inexperientes e assustados. Sentia-me à beira de um acesso de cólera, mas tinha plena consciência de que era preciso ser cauteloso; devia agir profissionalmente, procurando sempre controlar as emoções. Teria de dar muitas explicações ao Chefe se tentasse prender alguém. Antes de mais nada, havia que justificar minha presença ali. Em qualquer hipótese, Pittman estaria num segundo no meu pé.

 

Enquanto o elevador subia, fui conversando com os policiais, mais para me acalmar que para qualquer outra coisa. Um deles perguntou:

 

- O senhor está bem, detetive?

 

- Estou bem, estou ótimo. Talvez o matador ainda se encontre no prédio. A vítima era uma investigadora, uma parceira nossa. Estava de serviço, mantendo o suspeito sob vigilância. Ele tem um relacionamento com uma mulher que mora aqui em cima.

 

Os dois tiras mais jovens ficaram tensos. Já era bastante desagradável ter visto a moça assassinada no jipe, mas saber que se tratava de uma colega, de uma investigadora que vigiava um suspeito, só piorava as coisas. Na realidade, estavam prestes a se defrontar com o matador de um policial.

 

Corremos do elevador para o apartamento 10D. Eu fui na frente para tocar a campainha. Gotas, que pareciam de sangue, tinham caído no tapete junto à porta. Só então reparei no sangue que havia em minhas mãos e vi os olhos arregalados dos dois policiais.

 

Quando ninguém atendeu à campainha, comecei a bater com o punho na madeira da porta. Todos estavam bem lá dentro?

 

- Polícia, abram! Polícia de Washington!

 

Pude ouvir uma mulher gritando e saquei o meu Glock, mas sem engatilhar. Tinha raiva suficiente para acabar com Shafer. Não sabia se conseguiria me conter.

 

Os policiais de uniforme também tiraram os revólveres dos coldres e após alguns segundos eu estava pronto para arrombar a porta, seguindo ou não as normas de busca e apreensão. O rosto de Patsy Hampton não saía da minha frente, aqueles olhos vazios, sem vida, aqueles bárbaros ferimentos na garganta.

 

Por fim, a porta do apartamento foi se abrindo devagar.

 

Era uma mulher loura, dra. Cassady, eu presumi. Usava um conjunto azul-claro, com muitos botões dourados e aparência de roupa cara, mas estava descalça. Parecia assustada, irritada.

 

- O que vocês querem? - perguntou asperamente. - Que diabo está acontecendo aqui? Sabem o que fizeram? Interromperam uma sessão de terapia!

 

Geoffrey Shafer se aproximou da porta, mas parou um metro atrás de sua irada terapeuta. Era um homem alto, imponente, de cabelo muito louro. É o Gambá, certo?

 

-Afinal qual é o problema?-ele perguntou num sincopado sotaque inglês. - Quem são os senhores e o que estão querendo?

 

- Houve um assassinato; sou o detetive Cross. - Mostrei o distintivo e continuei olhando para trás de Shafer e da dra. Cassady, tentando encontrar um motivo plausível para entrar no apartamento. Havia muitas plantas nas soleiras das portas e nas janelas: begônias, azaléias, trepadeiras. Havia tapetes do Irã em suaves tons claros e sofás confortáveis.

 

- Não, certamente não há nenhum homicida aqui dentro disse a terapeuta. - Vá embora!

 

- É melhor fazer o que a senhora está mandando - disse Shafer.

 

Não parecia um assassino. Usava um terno azul-marinho, camisa social, gravata com uma estamparia de ondas, um par de abotoaduras curvas. Impecável bom gosto. Inteiramente tranqüilo, sem temor algum.

 

Então dei uma olhada nos sapatos e quase não pude acreditar. Os deuses tinham finalmente sorrido para mim.

 

Apontei minha Glock para Shafer. Para o Gambá. Dei um passo à frente, pus um joelho no chão e examinei a perna direita de sua calça. Todo o meu corpo tremia.

 

- Que porra você está fazendo? - ele perguntou, afastando-se de mim. - Isto é completamente absurdo.

 

E declarou:

 

- Sou da embaixada britânica. vou repetir: sou da embaixada britânica! Você não tem nenhum direito aqui.

 

- Policiais! - disse eu, chamando os dois patrulheiros que continuavam parados diante da porta. Tentava agir calmamente, mas não podia. - Venham dar uma olhada. Estão vendo isto?

 

Os dois se aproximaram de Shafer, penetrando no living.

 

- Saiam deste apartamento! - A terapeuta transformara quase num grito o tom de sua voz.

 

- Tire a calça - eu disse a Shafer. - Você está preso. Shafer levantou a perna e deu uma olhada. Viu a mancha escura - o sangue de Patsy Hampton grudado na bainha da calça. O medo piscou em seus olhos e a tranqüilidade se foi.

 

- Você pôs o sangue aqui! Você fez isto! - gritava ele me mostrando uma carteira de identidade. - Sou funcionário da embaixada britânica e não vou tolerar um ultraje como esse. Tenho imunidade diplomática. Não vou tirar minha calça e vou ligar imediatamente para a embaixada! Exijo minha imunidade diplomática.

 

- Saiam daqui agora! - foi o grito alto da dra. Cassady, empurrando um dos policiais.

 

Era exatamente o que Shafer precisava. Ele se livrou e correu pelo living. Num segundo, entrava no primeiro cômodo do corredor, um lavabo, batendo e trancando a porta.

 

O Gambá tentava escapar, mas isso não podia acontecer, eu não ia deixar. Num instante, estava parado diante da porta fechada.

 

- Saia daí, Shafer! Está preso pelo assassinato da detetive patsy Hampton.

 

A dra. Cassady veio gritando pelo corredor atrás de mim.

 

Ouvi a descarga do vaso sanitário. Não, não, não! Recuei bruscamente e chutei a porta.

 

Shafer estava tirando a calça, equilibrado numa só perna. Joguei-me contra ele, esmurrei-o, encostei-lhe a cara no piso de ladrilhos. Ele me gritava palavrões, sacudia os braços, contorcia a parte de baixo do corpo. Empurrei com mais força seu rosto contra o chão.

 

A terapeuta procurava me tirar de cima de Shafer. Arranhava meu rosto, batia com os punhos nas minhas costas. Foi preciso a força dos dois policiais para contê-la.

 

- Não pode fazer isto comigo! - Shafer gritava no seu tom mais alto, debatendo-se, contorcendo-se debaixo de mim como um cavalo bravo. - É ilegal. Tenho imunidade diplomática!

 

Virei-me para um dos patrulheiros.

 

- Ponham as algemas.

 

Foi uma noite longa e muito triste no Farragut, de onde só saí depois das três da manhã. Era a primeira vez que perdia um parceiro de trabalho, embora um dia, na Carolina do Norte, quase tivesse ficado sem o Sampson. Percebi que tinha começado a pensar em Patsy Hampton como parceira e como amiga. Bom, pelo menos havíamos detido o Gambá.

 

Dormi quase na manhã do dia seguinte, concedendo-me o pequeno luxo de não pôr o relógio para despertar. Ainda assim, já estava bem acordado às sete horas. Sonhara com Patsy Hampton e também com Christine - cenas muito nítidas, mas diferentes, com cada uma delas; o tipo de sonho frenético que faz a pessoa acordar mais cansada do que dormiu. Antes de deitar, eu rezara para as duas. Tínhamos o Gambá. Agora era preciso fazêlo dizer a verdade.

 

Enfiei-me num robe branco, de cetim, já um tanto gasto Muhammad Ali o usara durante seu treinamento em Manila antes da luta com Joe Frazier. Fora o presente que Sampson me dera quando fiz quarenta anos. Ele achava incrível que enquanto a maioria das pessoas trataria o robe como uma espécie de objeto de culto, eu o usasse rotineiramente no café da manhã.

 

Gosto do velho robe, o que é estranho, pois nunca me interessei muito por esses presentes de estimação. Talvez o mistério se explique em parte por me achar fisicamente parecido com Ali (pelo menos é o que as pessoas me dizem). Talvez eu tenha uma aparência um pouco melhor, mas ele sem dúvida é o número um.

 

Quando cheguei à cozinha, Nana e as crianças estavam sentadas à mesa, assistindo à pequena TV portátil que ela mantém ali, embora não use com muita freqüência. Nana prefere ler, conversar e, é claro, cozinhar.

 

- Muhammad - disse Jannie erguendo a cabeça e rindo, mas logo voltando a prestar atenção na TV. - Devia estar vendo isto, papai.

 

- Seu matador britânico está em todos os noticiários desta manhã - Nana murmurou perto da xícara de chá. - E também é manchete nos jornais. ”Imunidade diplomática pode impedir que suspeito da embaixada britânica seja processado”, ”espião ligado à morte de investigadora”. Já fizeram entrevistas na Union Station e na avenida Pensilvânia. Todos estão furiosos com essa tal de imunidade diplomática, que consideram uma vergonha. É simplesmente terrível!

 

- Também estou furioso - disse Damon. - Isso não é justo. Se ele é mesmo culpado, é claro. Foi ele, não é, papai? Foi ele mesmo, não é?

 

- Foi ele sim - respondi sacudindo a cabeça e despejando leite no café. Ainda não estava de todo preparado para enfrentar Geoffrey Shafer, nem meus filhos, nem especialmente o terrível, estúpido assassinato da noite anterior. - Mais alguma coisa nos noticiários?

 

- Os Wizards mantiveram colocação - disse Damon com uma expressão neutra. - Rod Strickland perdeu duas jogadas.

 

- Psssiü! - Nana atirou-nos um forte olhar de irritação. CNN está dando notícias de Londres. A mídia inglesa já está fazendo comparações com aquele infeliz caso da babá em Massachusetts. Dizem que Geoffrey Shafer é um condecorado herói de guerra e que alega, com boas razões, que vem sendo vítima da armação de um policial. Acho que quer se referir a você, Alex.

 

- Sim, a mim, mas vamos ouvir um pouco a CNN - disse eu. Ninguém fez objeções e aumentei o volume. Um nó começava a se formar no meu estômago. Não gostava do que estava vendo e ouvindo na TV.

 

Quase imediatamente, apareceu um repórter em Londres, que depois de se apresentar fez uma pomposa sinopse de trinta segundos sobre os acontecimentos da noite anterior.

 

O repórter fixou gravemente os olhos na câmera e continuou:

 

- E agora, numa reviravolta dramática, ficamos sabendo que o departamento de polícia de Washington está fazendo uma bizarra investigação, pois o detetive que prendeu Geoffrey Shafer, um antigo policial, pode ser ele próprio suspeito do assassinato. Pelo menos é o que tem sido comentado pela imprensa americana.

 

Balancei a cabeça e franzi a testa.

 

- Sou inocente - disse para Nana e as crianças. Eles sabiam disso, é claro.

 

- Até prova em contrário - disse Jannie, com um pequeno piscar de olhos.

 

Ouvimos uma algazarra na frente da casa e Jannie foi olhar pela janela da sala. Pouco depois voltava correndo, de olhos arregalados, sussurrando o mais alto que podia:

 

- Lá fora tem gente dos jornais e câmeras de TV. CNN, NBC, muitas redes. É como daquela outra vez, na época do Gary Soneji. Estão lembrados?

 

- É claro que estamos lembrados - disse Damon. - A. única retardada nesta casa é você.

 

- Oh, meu Deus, Alex! - exclamou Nana. - Não sabem que isto é a hora em que as pessoas decentes estão tomando o café da manhã? - Balançou a cabeça, revirando os olhos. - Os abutres estão aqui de novo; talvez fosse bom atirar alguns pedaços de carne pela porta da frente.

 

- Você vai falar com eles, Jannie - disse eu, olhando de novo para a TV. Não sabia por que estava me sentindo tão cínico, mas estava.

 

-Eu? - disse ela apontando um dedo para si mesma. Ficou paralisada por meio segundo, mas logo percebeu que era brincadeira.

 

Certo de que eles não iriam embora tão facilmente, peguei a xícara de café e caminhei para a porta da sala. Pisei numa bela manhã de outono com temperatura de 17 ou 18 graus.

 

Folhas roçavam aprazivelmente nos olmos e bordos; sombras rendilhadas do sol caíam nas cabeças do pessoal da TV e dos jornais, toda aquela gente que se apinhava na borda do nosso gramado da frente.

 

Os abutres.

 

- Por favor não sejam absurdos e ridículos - disse eu contemplando a barulhenta turma da imprensa e sorvendo calmamente um gole de café. - É óbvio que não matei a detetive Patsy Hampton nem acusei falsamente qualquer pessoa pelo assassinato.

 

Dito isto, virei as costas e voltei para dentro sem responder a nenhuma pergunta.

 

Nana e as crianças estavam logo atrás da grande porta de madeira, escutando.

 

- Agiu muito bem - disse Nana com os olhos brilhantes, sorridentes.

 

Fui para cima, vestir-me para o trabalho.

 

- Vão para a escola, - gritei para Jannie e Damon. Conversem direito com seus colegas, tenham um comportamento impecável. Não dêem atenção à loucura que virem ao redor de vocês.

 

- Sim, papai!

 

Geoffrey Shafer invocou sua imunidade diplomática e não nos foi permitido interrogá-lo sobre a morte da detetive Hampton ou sobre qualquer outra coisa. Fiquei incrivelmente frustrado. Tínhamos o Gambá, mas não podíamos chegar perto dele.

 

Naquela manhã, havia investigadores à minha espera na central de polícia e tive certeza de que o dia seria longo e infernal. Fui entrevistado pela corregedoria, pelo conselho administrativo da cidade, por Mike Kersee do gabinete da promotoria.

 

Não dê atenção à loucura ao seu redor, repeti várias vezes mentalmente, um bom conselho que não funcionava muito bem.

 

Por volta das três horas, o promotor em pessoa apareceu. Ron Coleman era um homem elegante, alto, de porte atlético; muitas vezes tínhamos trabalhado juntos enquanto ele fazia carreira no gabinete da promotoria. Sempre o considerara um sujeito consciencioso, bem informado, comprometido com a racionalidade, com a sanidade das coisas. Como nunca demonstrara grande tato político, todos levaram um choque quando foi nomeado promotor público pelo prefeito Monroe. Monroe, sem dúvida, gostava de chocar as pessoas.

 

- O sr. Shafer já tem um advogado - anunciou Coleman -, e é um dos astros mais brilhantes de nossa galáxia. Não se contentou com ninguém menos que Jules Halpern! E foi provavelmente Halpern que plantou a história de que você é considerado um dos suspeitos... O que não é verdade, pelo que sei até agora.

 

Cravei os olhos em Coleman. Não podia acreditar no que acabara de ouvir.

 

- Pelo que sei até agora? O que está querendo dizer, Ron? O promotor público deu de ombros.

 

- Provavelmente teremos Cathy Fitzgibbon do nosso lado

- disse ele. - É nossa melhor advogada, eu acho. E podemos escudá-la com Lynda Cole e talvez Stephen Apt, que também são excelentes. Esta manhã, minha primeira preocupação foi pensar na equipe.

 

Eu conhecia os três, que sem dúvida tinham boa reputação, Fitzgibbon em particular. Ainda relativamente jovens, eles me passavam uma idéia de esforço, dedicação, inteligência - mais ou menos como o próprio Coleman.

 

- Você me dá a impressão de estar se preparando para uma guerra, Ron.

 

Ele balançou a cabeça.

 

- Como já disse, Jules Halpern é o advogado de defesa de Shafer. Ele raramente perde. Para dizer a verdade, acho que nunca perdeu uma causa importante. O homem derruba tudo que enfrenta, Alex.

 

Olhei diretamente nos olhos pretos de Coleman.

 

- Temos o sangue de Patsy Hampton na roupa do sujeito. Temos sangue no ralo do banheiro e aposto que, antes do dia terminar, teremos encontrado algumas impressões digitais de Shafer no carro de Hampton. Talvez encontremos até o cabide de arame que ele usou para estrangulá-la. Ron?

 

- Estou ouvindo, Alex. Sei o que vai dizer. Sei qual vai ser sua pergunta. É a mesma que eu tenho,

 

- Shafer tem imunidade diplomática? Mas então por que recorreu a Jules Halpern?

 

- É uma pergunta muito boa, cuja resposta nós dois teremos de descobrir. Desconfio que Halpern foi contratado para conseguir que retiremos completamente as acusações.

 

- Mas temos provas substanciais. Ele esteve lavando o sangue de Patsy Hampton no banheiro. Ainda há vestígios na pia.

 

Coleman assentiu e se recostou na poltrona.

 

- Não compreendo por que Jules Halpern se envolveu, mas tenho certeza de que não demoraremos muito a descobrir.

 

- Tenho medo que descubramos bem rápido - disse eu. Naquela noite, achei melhor sair da central por uma porta dos fundos, pois não queria correr o risco de encontrar a imprensa na avenida Alabama. Quando pus o pé na rua, um homem baixo e calvo, de terno verde-claro, saiu bruscamente de trás do muro de pedra ao meu lado.

 

- É uma boa maneira de levar um tiro sem querer - disse eu, e não estava de todo brincando.

 

- Riscos do trabalho - balbuciou o homem. - Mas não atire num simples portador, detetive.

 

Deu um sorrisinho fraco ao me entregar o envelope branco de correspondência.

 

- Alex Cross, neste ato a sua intimação acaba de ser entregue - disse ele num sibilante tom de lamento. - Tenha uma boa noite, detetive. - O homem sumiu de repente, exatamente como aparecera.

 

Abri o envelope e rapidamente esquadrinhei a carta. Dei um suspiro alto. Agora entendia por que Jules Halpern tinha sido contratado. Agora sabia o que estávamos enfrentando.

 

Eu estava sendo acusado numa ação cível por ”detenção ilegal” e ”difamação do caráter do coronel Geoffrey Shafer”. A ação pleiteava uma indenização de cinqüenta milhões de dólares.

 

Na manhã seguinte, tive de comparecer à secretaria de justiça do distrito de Colúmbia, no centro de Washington. O que não foi nada bom. O procurador-geral da cidade, James Dowd, e Mike Kersee, do gabinete da promotoria, estavam refestelados em grandes poltronas de couro vermelho.

 

Assim como Pittman, chefe dos investigadores, que começara a fazer um escarcéu num dos assentos da frente.

 

- Estão querendo me dizer - gritava ele - que, pelo fato de ter imunidade diplomática, Shafer não pode ser submetido a um processo criminal num tribunal? Mas ele pôde se esgueirar para nossos tribunais civis e pleitear garantias contra detenção ilegal e difamação!

 

Kersee abanou a cabeça e emitiu estalidos com a língua e os dentes.

 

- Sim senhor, isso é exato. Nossos embaixadores e seus auxiliares gozam do mesmo tipo de imunidade na Inglaterra e nos quatro cantos do mundo. Nenhuma soma de pressão política faria os britânicos renunciarem à imunidade. Shafer é herói da guerra das Malvinas. E deve ser muito respeitado no Serviço de Segurança, embora ultimamente pareça ter tido alguns problemas.

 

- Que tipo de problemas? perguntei. - Não vão nos dizer.

 

Pittman continuou a atormentar os procuradores.

 

- E o que me diz do palhaço daquela embaixada de um país do Báltico? Aquele que atropelou toda a calçada de um café? Ele foi a julgamento.

 

Mike Kersee sacudiu os ombros.

 

- O homem era apenas um funcionário de baixo escalão de um país de baixo escalão que podíamos enquadrar. Seria impossível agir assim com a Inglaterra.

 

- E por quê? - disse Pittman fechando a cara e dando uma pancada no braço da poltrona.-A Inglaterra não vale mais nada.

 

Tocou o telefone na mesa de Dowd, que levantou a mão pedindo silêncio.

 

- Provavelmente é Jules Halpern. Disse que ligaria às dez e é extremamente pontual. Se for ele, vou deixar que escutem a conversa pelo alto-falante. Pode ser interessante como um exame de toque retal feito com um cacto.

 

Dowd atendeu, trocou gentilezas por uns trinta segundos com o advogado de defesa, mas foi subitamente interrompido por Halpern.

 

- Acho que temos problemas sérios a discutir. Minha agenda está meio apertada hoje. Tenho certeza de que o senhor também se encontra sob pressão, dr. Dowd.

 

- Bem, vamos entrar na coisa - Dowd assentiu, erguendo o contorno espesso e crespo das sobrancelhas pretas. - Como o senhor sabe, a polícia tem o privilégio legal de deter qualquer pessoa se houver motivo plausível. Não há simplesmente nada que possa servir de base a uma ação, doutor, e...

 

Halpern interveio antes que Dowd acabasse de falar.

 

- O privilégio policial não se aplica se a pessoa imediatamente se identifica e afirma estar protegida por imunidade diplomática, coisa que meu cliente fez. O coronel Shafer ficou parado na soleira da porta de sua terapeuta, brandindo o nome do Serviço de Segurança Britânico como um sinal vermelho, dizendo que tinha imunidade.

 

Dowd suspirou alto ao telefone.

 

- Ele tinha sangue na calça, doutor. O homem é um assassino e matou um policial. Acho que não se precisa dizer mais nada sobre este ponto. E quanto à alegada difamação, a polícia também dispõe do privilégio legal de dar declarações à imprensa quando um crime é cometido.

 

- E suponho que a declaração do chefe de investigação na frente dos repórteres... e de várias centenas de milhões de pessoas no mundo inteiro não é por si difamatória...

 

- Exatamente, não é! É um privilégio legal quando se trata de homens públicos, como no caso de seu cliente.

 

- Meu cliente não é um homem público, dr. Dowd, mas um indivíduo de existência bastante discreta. É um agente da inteligência. Sua subsistência, quando não sua própria existência, depende da capacidade de trabalhar em sigilo.

 

O procurador-geral já estava exasperado, possivelmente devido à calma e, ao mesmo tempo, à rapidez de Halpern no gatilho.

 

- Tudo bem, dr. Haípern. Por que, afinal, está nos telefonando?

 

Halpern fez uma pausa suficientemente longa para aguçar a curiosidade de Dowd e recomeçou:

 

- Estou autorizado por meu cliente a fazer uma oferta bastante incomum. Embora eu o tenha advertido severamente contra tal iniciativa, ele insistiu no seu direito de agir assim.

 

Dowd parecia sobressaltado e tive certeza de que qualquer tipo de barganha lhe parecera inteiramente fora de cogitação. Minha sensação era a mesma. Qual seria a proposta?

 

- Continue, dr. Halpern. - Arregalados e muito atentos, os olhos de Dowd vagaram, nos observando, pela sala. - Estou ouvindo.

 

- Sei que está, assim como seus estimados colegas. Inclinei-me para ouvir cada palavra.

 

Jules Halpern começou a esclarecer a verdadeira razão do telefonema.

 

- Meu cliente quer que fique excluída qualquer possibilidade de uma ação cível contra ele.

 

Revirei os olhos. Halpern queria garantir que ninguém acionaria seu cliente numa corte cível após a conclusão do processo-crime. Ele nos lembrou como O. . Simpson fora libertado num tribunal e condenado no outro.

 

- Impossível! - disse Dowd. - Concordar com isso está absolutamente fora de questão. Nenhuma possibilidade.

 

- Escute com atenção. Há uma possibilidade ou eu nem teria ventilado o assunto. Se isto for feito, e se Shafer e eu nos convencermos da rapidez do processo-crime, ele pode abrir mão da imunidade diplomática. Sim, você me ouviu corretamente. Geoffrey Shafer quer provar sua inocência numa corte criminal. Na realidade, ele insiste nisso.

 

Dowd balançava a cabeça, sem poder acreditar no que ouvia. Mike Kersee também; quando resvalaram pela sala em minha direção, seus olhos estavam vidrados de assombro.

 

Nenhum de nós podia acreditar no que tínhamos acabado de ouvir do advogado de defesa.

 

Geoffrey Shafer queria ir a julgamento.

 

                                                     ERROS E JULGAMENTO

 

A Conquista a vira trabalhar na High Street, em Kensington, por quase seis semanas. Ela se tomara sua obsessão, a mulher de suas fantasias, sua ”peça de jogo”. Sabia de tudo a respeito dela e sentia (sabia) que estava começando a agir como Shafer. Todos eles estavam, não é?

 

O nome da moça era Noreen Anne, que havia muito tempo (três anos, para ser mais exato) chegara a Londres vinda de Cork, na Irlanda, com doces sonhos de conquistar o palco do mundo como top model.

 

Na época tinha dezessete anos, quase um metro e oitenta, era magra e loura. Na sua terra, todos os rapazes, e mesmo os homens mais velhos, diziam que tinha o rosto certo para as capas de revistas ou até para o cinema.

 

O que estava então fazendo ali, na High Street, à uma e meia da manhã? Era a pergunta que se fazia enquanto forçava um sorriso sensual e, vez por outra, sacudia a mão para os homens que a olhavam de lado. Eles passavam devagar em seus carros, fazendo a ronda da High Street, dos jardins DeVere e da Exhibition Road.

 

Achavam-na bonita, sem dúvida-mas não bonita o bastante para as capas das revistas inglesas ou americanas, nem suficientemente distinta ou elegante para servir como esposa e namorada.

 

Bem, pelo menos Noreen tinha um plano, e ela achava que era um bom plano. Noreen Anne economizara quase duas mil libras desde que começara a fazer a vida. Achava que precisava de mais umas três mil para voltar à Irlanda. Então abriria uma pequena loja de cosméticos, pois conhecia os segredos da beleza e sabia muita coisa sobre os sonhos de uma mulher.

 

E enquanto isso continuo na frente do Kensington Palace Hotel, ela pensou. Congelando meu belo par de coxas.

 

- Se me dá licença...

 

Ela se virou assustada, pois não ouvira ninguém se aproximar.

 

-Não pude deixar de apreciá-la, pois é uma moça de beleza extraordinária. Mas é claro que sabe disso, não é?

 

Noreen Anne ficou aliviada desde o momento em que o viu. Aquele homem não podia machucá-la; mesmo que quisesse, não ia conseguir. Ela é que poderia machucá-lo, se fosse preciso.

 

Era velho, uns setenta e poucos anos talvez. Parecia obscenamente gordo e estava numa cadeira de rodas.

 

E então ela aceitou... a Conquista.

 

Tudo fazia parte do jogo.

 

Os tolos americanos tinham prometido rapidez no julgamento e cumpriram realmente a palavra.

 

Cinco meses haviam se passado desde o assassinato da investigadora Patsy Hampton. Alex Cross ficara indo e vindo das Bermudas, mas ainda não tinha idéia do paradeiro de Christine. Embora em liberdade, Shafer continuava submetido a estrita vigilância e, desde a morte de Hampton, não jogara uma única vez. O jogo dos jogos estava suspenso, o que começava a deixá-lo alucinado.

 

Sentado no Jaguar preto, numa vaga do estacionamento que ficava diretamente sob as janelas do fórum, Shafer estava esperançoso, ansioso para enfrentar o julgamento sob a acusação de homicídio qualificado e premeditado em primeiro grau. As regras do jogo tinham sido definidas e ele gostava disso.

 

As audiências, que duraram semanas, continuavam nítidas em sua mente. Saboreara cada minuto delas. A audiência preliminar, ocorrida antes da seleção do corpo de jurados, determinara que tipo de prova poderia ser apresentada no tribunal. Teve lugar no espaçoso gabinete do juiz Michael Fescoe. O juiz estabeleceu as regras e, em certo sentido, passou a funcionar como mestre do jogo. Delicioso. Muito, muito engraçado.

 

O advogado de defesa, Jules Halpern, alegou que Shafer, participando de uma sessão de terapia no consultório que a dra. Cassady mantinha em sua residência, gozava de pleno direito à privacidade.

 

- Essa privacidade foi violada. Primeiro: a dra. Cassady recusou-se a deixar entrar o detetive Cross e os outros policiais que o acompanhavam. Segundo: o coronel Shafer mostrou sua identificação ao detetive, provando assim que estava vinculado à embaixada britânica e tinha imunidade diplomática. Apesar disso, Cross entrou sem licença no consultório da terapeuta. Conseqüentemente, qualquer prova obtida, se é que alguma prova foi de fato obtida, é resultado de busca ilegal.

 

O juiz Fescoe levou o resto do dia para deliberar. Na manhã seguinte, anunciou sua decisão:

 

- Pelo que pude depreender de ambos os lados, os procedimentos foram corretos, de modo algum inabituais num caso de homicídio. O sr. Shafer goza, sem dúvida, de imunidade diplomática, mas a meu ver o investigador Cross agiu de modo lícito e razoável quando se dirigiu ao apartamento da dra. Cassady. Afinal, ele suspeitava que um grave crime tivesse sido cometido. A dra. Cassady abriu a porta, permitindo que o investigador Cross visse claramente o traje do sr. Shafer. Embora o coronel Shafer tenha insistido que sua imunidade diplomática impedia que o investigador Cross entrasse na unidade, vou permitir que a promotoria apresente como evidência a roupa que o coronel usava na noite do crime, assim como o sangue que foi encontrado no tapete diante da porta do apartamento.

 

”A promotoria também poderá recorrer a qualquer evidência proveniente da garagem do prédio, venha ela do carro da investigadora Hampton ou do carro do coronel Shafer.”

 

Quando o juiz Fescoe prosseguiu, veio o ponto-chave da decisão:

 

- Não autorizo a apresentação de qualquer prova encontrada depois que o investigador Cross penetrou no apartamento contra a vontade expressa tanto do coronel Shafer quanto da dra. Cassady. Toda e qualquer evidência obtida a partir daí será suprimida e não poderá ser apresentada no tribunal.

 

A promotoria foi também informada de que não devia fazer referência, durante o julgamento, a quaisquer outros eventuais crimes que Shafer fosse suspeito de ter cometido em Washington, O júri devia compreender que o julgamento de Shafer só dizia respeito à morte da investigadora Patrícia Hampton. Tanto a promotoria quanto a defesa cantaram vitória no final dessa audiência de exame das provas.

 

Na manhã do primeiro dia, uma multidão agitada e barulhenta enchia a escadaria de pedra do fórum. Os ”partidários” de Shafer usavam broches com os dizeres UK/OK* e faziam ondular bandeiras inglesas novas em folha. Aqueles tremendos bobalhões o fizeram sorrir, suspender as duas mãos e apertá-las num gesto de vitória. Estava gostando imensamente de ser um herói.

 

Que momento de glória! Mesmo que estivesse meio alto e disperso por causa de algumas combinações farmacológicas.

 

Os dois lados não paravam de antecipar ”retumbantes” vitórias. Advogados eram sujeitos muito arrogantes, sem dúvida!

 

A imprensa começara a vender o escandaloso mistério como o ”julgamento da década”. A fabricação de expectativas e o barulho ritual da mídia deixavam Shafer entusiasmado. Ele internalizava a coisa como tributo e adulação. Uma justa homenagem.

 

Trabalhava conscientemente uma imagem vistosa, pois queria deixar sua marca... no mundo. Usava um terno cinza sem enchimentos, feito sob medida, uma camisa social da Budd com pequenas listras e sapatos pretos com o corte clássico da Lobb’s, no shopping St. James’s. Foi fotografado uma centena de vezes nos poucos momentos em que esteve sozinho.

 

Caminhou para o fórum como se estivesse num sonho. O mais delicioso era a possibilidade de perder tudo.

 

O salão número quatro ficava no terceiro andar. Era o maior do prédio. De ambos os lados das portas de acesso estendiam-se

 

* UK, United Kingdom, ou seja, Reino Unido. (N. do T.)

 

galerias com capacidade total para cento e quarenta espectadores. Depois vinha o ”recinto do tribunal” propriamente dito, onde ficavam as mesas dos advogados. Mais à frente se erguia a ”bancada do juiz”, que ocupava cerca de um quarto do espaço reservado.

 

O julgamento começou às dez da manhã, trazendo uma agitação fascinante para Shafer. A acusação ficaria a cargo de Catherine Marie Fitzgibbon, representante da promotoria. Shafer se perguntava se seria mesmo impossível colocar em prática sua vontade de matá-la. Queria pôr na cinta o couro da cabeça da dra. Fitzgibbon. Católica irlandesa, com trinta e seis anos de idade, era uma advogada solteira, sensual (ainda que de modo discreto) e dedicada a nobres ideais, como tantas outras pessoas de sua ilha de origem. Dava preferência aos trajes AnnTaylor cinzentos ou azul-escuros e usava permanentemente um cordão de ouro com uma pequena cruz dourada. Era conhecida na comunidade jurídica de Washington como a ”diva do drama”. Seu relato melodramático de detalhes sangrentos estaria sem dúvida destinado a conquistar a simpatia do júri. Por certo uma oponente à altura. Uma presa à altura também.

 

Sentado ao lado do advogado de defesa, Shafer tentava se concentrar. Havia muito tempo não sentia tanta necessidade de ouvir e acompanhar o que se passava ao seu redor. Sabia que todos os olhos estavam cravados nele. Como poderia ser de outra forma?

 

Ele continuava observando, mas com o cérebro em chamas. Quando o respeitado advogado Jules Halpern começou a falar, Shafer ouviu repetidamente o próprio nome, o que sem dúvida excitou seu interesse. A estrela era ele, certo?

 

Jules Halpern tinha pouco mais de um metro e sessenta; era, contudo, uma figura imponente no tribunal. Levemente tingido por uma loção e penteado bem para trás, o cabelo aderia ao couro cabeludo. O terno fora feito por um alfaiate inglês, exatamente como o de Shafer. Ambos gostavam, como os velhos judeus, de velhos ternos ingleses e Shafer pensou um tanto divertidamente: vestir-se em inglês, pensar em yiddish. Sentada ao lado de Halpern estava sua filha, Jane, que atuava como suplente da defesa. Uma mulher alta, graciosa, mas com o cabelo preto e o nariz adunco do pai.

 

Jules Halpern certamente tinha uma voz forte para um homem tão pequeno e franzino.

 

- Meu cliente, Geoffrey Shafer, é um marido exemplar. É também excelente pai e estava participando da festa de aniversário de suas duas filhas meia hora antes da morte da detetive Patrícia Hampton.

 

”O coronel Shafer, qualquer um lhes informará, é membro valoroso e condecorado da comunidade britânica de inteligência. Um velho soldado, com ótima folha de serviços.

 

”A acusação de assassinato contra o coronel Shafer foi claramente encomendada, pois a polícia de Washington precisava que este terrível crime tivesse uma solução. É o que vou provar neste tribunal, até deixá-los sem a menor sombra de dúvida. O sr. Shafer foi vítima desta falsa acusação porque um determinado investigador criminal, atravessando uma fase muito difícil em sua vida, perdeu o controle da situação.

 

”Finalmente, o que é a coisa mais importante a ser lembrada, o coronel Shafer quer estar aqui. Não estava obrigado a comparecer a este tribunal, tem imunidade diplomática. Geoffrey Shafer está aqui para limpar o seu bom nome.”

 

Shafer quase se levantou para aplaudir.

 

Faltei propositadamente, e talvez sensatamente, ao primeiro dia. Depois também faltei ao segundo e ao terceiro dia do circo montado no tribunal. Não queria enfrentar a imprensa internacional, nem o público, mais do que eu já tinha enfrentado. Era como se eu também estivesse em julgamento.

 

Embora já houvesse um frio assassino no banco dos réus, a investigação continuava mais febril do que nunca, pelo menos para mim. Ainda era preciso resolver o mistério das mortes das fulaninhas, o desaparecimento de Christine e tentar encontrar alguma nova prova no caso Hampton. Queria garantir que Shafer não sairia livre daquele tribunal e, mais importante, queria desesperadamente descobrir a verdade sobre o paradeiro de Christine. Tinha de descobrir. Minha maior frustração era que os privilégios diplomáticos me tivessem impedido de interrogar Shafer. Eu teria dado qualquer coisa para passar algumas horas com ele.

 

Transformei o lado da rua de nosso sótão num centro de operações de guerra. Sem dúvida havia muito espaço sem utilização ali. Tirei das sombras uma velha mesa de jantar de mogno. Consertei um antigo exaustor, que tornou o espaço do sótão quase suportável na maioria dos dias - principalmente de manhã cedo e no fim da tarde, quando eu mais precisava trabalhar naquela minha gruta de eremita.

 

Instalei o laptop na mesa e prendi na parede fichas de cores diferentes. Queria manter sempre na minha frente os dados mais importantes de cada caso. Reservei grandes e amassadas caixas de papelão para reunir todo e qualquer fragmento de pista sobre o seqüestro de Christine ou qualquer nova descoberta sobre as mortes das fulaninhas.

 

Os casos de assassinato formavam um quebra-cabeça enlouquecedor, criado durante vários anos, e que não se prestava a soluções fáceis. Eu começara a disputar um jogo complexo com um adversário habilidoso - e sem conhecer as regras do jogo, sem saber como jogar. Aí estava a injusta vantagem de Shafer.

 

Algumas notas interessantes, encontradas nos arquivos da detetive Patsy Hampton, levaram-me a entrevistar um adolescente chamado Michael Ormson, que conversara no computador com Shafer sobre os Quatro Cavaleiros. Continuei a trabalhar intimamente com Chuck Hufstedler do FBI. Chuck sentia-se culpado por ter colocado a pista inicial nas mãos de Patsy Hampton, principalmente porque quem recorrera primeiro a ele fora eu. Usei sua culpa.

 

Tanto o Bureau quanto a Interpol estavam fazendo uma ativa busca do jogo na Internet. Eu mesmo visitei inúmeros chats, mas, além do jovem Ormson, não encontrei nenhuma outra pessoa que estivesse ciente do misterioso jogo. Shafer fora descoberto porque se aventurara a entrar num chat e eu me perguntava se ele não teria corrido outros riscos.

 

Depois da prisão de Shafer no Farragut, dei uma pequena busca no Jaguar e consegui passar quase uma hora em sua casa - antes, é claro, que seus advogados soubessem por onde eu andava. Conversei com Lucy, a esposa, e Robert, o filho. Ambos confirmaram que ele participava de um jogo chamado os Quatro Cavaleiros. Estava jogando havia sete ou oito anos.

 

Nem a esposa nem o filho conheciam os outros jogadores ou tinham qualquer informação a respeito deles. Não acreditavam que Geoffrey Shafer tivesse feito alguma coisa errada.

 

O filho dizia que o pai era ”o mais correto dos homens corretos”. Lucy Shafer também disse que o marido era um homem bom. E parecia acreditar nisso.

 

No escritório dele, encontrei revistas de RPG e dezenas de dados. Não obtive, porém, qualquer pista relacionada especificamente a seu jogo. Shafer era cuidadoso; sabia cobrir as pegadas. Afinal, tinha trabalhado na inteligência. Era inconcebível que jogasse dados para selecionar suas vítimas, mas talvez isso ajudasse a explicar o padrão irregular que havia nas mortes das fulaninhas.

 

O advogado Jules Halpern denunciou em alto e bom som a invasão da casa de Shafer; se eu tivesse encontrado alguma pista útil, sem dúvida ela teria sido suprimida. Infelizmente o tempo que tive foi bastante escasso e, de qualquer modo, Shafer não seria tolo de guardar em casa alguma coisa que pudesse incriminálo. Já cometera um grande erro ao entrar no chat; era improvável que cometesse outro, certo?

 

Às vezes, bem tarde da noite, interrompia meu trabalho no sótão e curtia alguma recordação de Christine. As lembranças eram tristes, dolorosas, mas também me acalmavam. Comecei a ansiar por essas oportunidades de pensar nela sem ser incomodado. Certas noites, vagava até o piano no jardim de inverno e tocava as canções que tinham sido importantes para nós: Unforgettable, Moonglow, ’S Wonderful. Ainda me lembrava de sua figura, especialmente quando a encontrava em casa: jeans desbotados, pés descalços, uma camiseta ou o suéter amarelo decotado de que ela tanto gostava, o cabelo comprido, sempre com cheiro de xampu, um prendedor de casco de tartaruga.

 

Não queria ter pena de mim mesmo, mas não podia deixar de me sentir miseravelmente mal. Estava preso num limbo, sem saber o que podia ter acontecido a Christine. Não queria perdêla. A incerteza estava me paralisando, me deixando inerte, me trazendo uma terrível sensação de vazio e tristeza. Precisava continuar minha vida, mas não sabia se ia conseguir. Precisava de respostas, pelo menos algumas. Christine fazia parte do jogo?, eu não parava de me perguntar. Já estava obcecado com o jogo.

 

Eu era parte dele?

 

Acreditava que sim. E num certo sentido, esperava que Christine também fosse. Era a única esperança de ainda estar viva.

 

E assim me vi como um dos participantes de um jogo verdadeiramente bizarro, um jogo que, por todas as razões erradas, estava me viciando. Comecei a inventar minhas próprias regras. Introduzi novos jogadores. Estava naquilo para vencer.

 

Chuck Hufstedler, da sede do FBI em Washington, continuava sendo útil. Quanto mais falava com ele, mais percebia como era profundo o seu remorso com o que acontecera à detetive Hampton. Sua angústia, e a minha angústia por causa da perda de Christine, era o sentimento que nos unia.

 

Na noite de sexta-feira, assisti à A máscara do Zorro com Damon, Jannie, Nana e Rosie, a gata, e subi bastante tarde para o sótão. Tinha alguns fatos novos para examinar antes de ir para a cama.

 

Liguei o computador, abri um arquivo e vi a mensagem familiar: você tem um e-mail. Desde aquela noite nas Bermudas, essas palavras sempre me davam um susto incrível e um calafrio da cabeça aos pés.

 

Sandy Greenberg, da Interpol, estava respondendo a um de meus e-mails. Fizera amizade com ela quando trabalhamos juntos no caso do sr. Smith. Pedira-lhe para verificar algumas coisas.

 

ME LIGUE HOJE À NOITE, ALEX, A QUALQUER HORA, REALMENTE A QUALQUER HORA. SUA TEIMOSIA IRRITANTE PODE TER TE COMPENSADO. É VITALMENTE IMPORTANTE QUE ME TELEFONE. SANDY.

 

Liguei para Sandy na Europa e ela atendeu após o segundo toque.

 

- Alex? Penso que achamos um deles. Sua terrível idéia parece que funcionou. Shafer jogava com pelos menos um de seus velhos camaradas do MI-6. Você acertou na mosca!

 

- Tem certeza de que ele é mesmo um dos jogadores?

 

- Certeza absoluta - disparou ela. - Estou sentada na frente do meu computador, apreciando uma cópia dos Quatro Cavaleiros, de Dürer. Como você sabe, os Cavaleiros são a Conquista, a Fome, a Guerra e a Morte. Um grupo horripilante. De qualquer modo, fiz o que me pediu. Conversei com alguns conhecidos do MI-6. Eles me confirmaram que Shafer mantém contato regular pelo computador com um velho companheiro. Também me apoiei nas indicações que me mandou, Alex. Elas são muito boas. Nem posso acreditar que tenha descoberto tudo isso aí, nos Estados Unidos. Você é um cara incrível, não há dúvida.

 

- Obrigado - disse eu, deixando Sandy divagar um pouco. Eu acabara de perceber que ela era uma pessoa sozinha e que, embora exibisse uma imagem de auto-suficiência, estava ansiosa por companhia.

 

- Conquista, era essa a alcunha que o velho camarada estava usando no jogo - disse Sandy. - A Conquista mora em Dorking, no Surrey, Inglaterra, e seu nome real é Oliver Highsmith. Ele é um aposentado do MI-6, Alex. O homem comandou muitos agentes na Ásia na época em que Shafer andava por lá.

 

Shafer estava subordinado a ele. Aqui são oito da manhã. Por que não telefona para o desgraçado? Ou lhe manda uma mensagem. Tenho seu e-mail, Alex.

 

Comecei a me perguntar sobre os outros jogadores dos Quatro Cavaleiros. Seriam realmente quatro ou este era apenas o nome do jogo? Onde estavam esses parceiros? Como era realmente o jogo? Será que algum deles, ou será que todos eles punham em prática suas fantasias na vida real?

 

Minha mensagem para a Conquista foi simples, direta e, eu esperava, não muito ameaçadora. Achava difícil que deixasse de me responder.

 

                    CARO SR. HIGHSMITH,

SOU UM INVESTIGADOR CRIMINAL DE WASHINGTON, D.C., PROCURANDO INFORMAÇÕES SOBRE O CORONELGEOFFREYSHAFER E SUA PARTICIPAÇÃO NOS QUATRO CAVALEIROS. ESTOU A PAR DE QUE SHAFER TRABALHOU PARA O SENHOR NA ÁSIA. RAPIDEZ É ESSENCIAL. PRECISO DE SUA AJUDA. POR FAVOR, CONTATE O DETETIVE ALEX CROSS.

 

Fiquei surpreso ao receber de imediato a resposta. Oliver Highsmith, a Conquista, devia estar no computador quando meu email chegou.

 

DETETIVE CROSS. JÁ O CONHEÇO BEM, POIS O JULGAMENTO POR ASSASSINATO QUE ORA SE REALIZA TEM CAUSADO UM CERTO IMPACTO NA INGLATERRA E, SEM A MENOR DÚVIDA, TAMBÉM NO RESTO DA EUROPA. CONHEÇO G. SHAFER HÁ DOZE ANOS OU MAIS. ELE FOI INCLUSIVE MEU SUBORDINADO. NO ENTANTO, É ANTES UM CONHECIDO QUE UM AMIGO ÍNTIMO, POR ISSO NÃO POSSO FAZER NENHUMA AVALIAÇÃO NEM ESPECULAÇÃO SOBRE SUA CULPA Ou INOCÊNCIA. CONTO, É CLARO, COM A ÚLTIMA ALTERNATIVA.

VAMOS AGORA À PERGUNTA QUE ME FEZ SOBRE OS QUATRO CAVALEIROS. O JOGO é APENAS UM JOGO COM PERSONAGENS, DETETIVE) TEM A CARACTERÍSTICA MUITO ESPECIAL DE PERMITIR QUE TODOS OS JOGADORES DESEMPENHEM O PAPEL DE MESTRES. O QUE SIGNIFICA DIZER QUE CADA UM DE NÓS CONTROLA SUA PRÓPRIA SORTE, SUA PRÓPRIA HISTÓRIA. A HISTÓRIA DE G. SHAFER É, SEM DÚVIDA, OUSADA EINCOMUM. SEU PERSONAGEM, O CAVALEIRO NO CAVALO SEM COR (A MORTE) É PROFUNDAMENTE PERTURBADOR. TALVEZ SE PUDESSE MESMO DIZER - É MAU. O PERSONAGEM SE PARECE UM POUCO COM A PESSOA QUE ESTÁ SENDO JULGADA EM WASHINGTON, OU PELO MENOS ESSA É A MINHA PERCEPÇÃO.

CONTUDO, É PRECISO FAZER ALGUMAS OBSERVAÇÕES IMPORTANTES. O APARECIMENTO DE QUAISQUER FANTASIAS DE HOMICÍDIO EM NOSSO JOGO SEMPRE OCORRE DIAS DEPOIS DA PUBLICAÇÃO DOS CRIMES NOS JORNAIS. TENHA CERTEZA, ISTO FOI CUIDADOSAMENTE CHECADO POR NÓS QUANDO ACUSARAM G. SHAFER. A COISA FOI INCLUSIVE LEVADA AO CONHECIMENTO DO INSPETOR JONES DO SERVIÇO DE SEGURANÇA EM LONDRES, E ESTOU SURPRESO QUE AINDA NÃO O TENHAM INFORMADO A ESSE RESPEITO.

O SERVIÇO VEIO CONVERSAR COMIGO SOBRE G. SHAFER E SE DEU INTEIRAMENTE POR SATISFEITO, EU PRESUMO, POIS ELES NÃO VOLTARAM.

POR OUTRO LADO, OS DEMAIS JOGADORES (QUE TAMBÉM FORAM CHECADOS PELO SERVIÇO DE SEGURANÇA) SÃO TODOS REPRESENTADOS POR PERSONAGENS POSITIVOS. E COMO EU DISSE, POR MAIS ENVOLVENTE QUE SEJAM OS CAVALEIROS, TRATA-SE APENAS DE UMJOGO. ALIÁS, SABIA QUE SEGUNDO CERTOS INFORMES MAIS DETALHADOS EXISTE UM QUINTO CAVALEIRO? NÃO PODERIA SER O SENHOR, DR. CROSS?

PARA TERMINAR... O NOME NO SERVIÇO É SR. ANDREW JONES. TENHO CERTEZA DE QUE ELE CONFIRMARÁ A VERACIDADE DE MINHAS DECLARAÇÕES. SE QUISER CONVERSAR MAIS, ARRISQUE-SE O SENHOR MESMO A FAZER O CONTATO. TENHO 67 ANOS DE IDADE, SOU REFORMADO DA INTELIGÊNCIA (COMO GOSTO DE DIZER) E RELATIVAMENTE FAMOSO COMO TAGARELA. DESEJO-LHE MUITA SORTE EM SUA BUSCA DA VERDADE E DA JUSTIÇA. EU NÃO AS ALCANCEI.

A CONQUISTA

 

Li e reli a mensagem. Muita sorte em sua busca? Qual seria o nível de sinceridade nesta frase?

E eu era agora um jogador - o quinto Cavaleiro?

 

Na semana seguinte, fui ao fórum todos os dias e, como tantos outros, fiquei fascinado pelo julgamento. Jules Halpern era o mais impressionante orador que eu já vira numa corte, mas Catherine Fitzgibbon também parecia eficiente. O veredicto dependeria de qual dos dois seria mais digno de crédito aos olhos do júri. Era tudo teatro, jogo. Lembro que, quando garoto, eu costumava assistir regularmente a filmes de julgamento com Nana. Havia uma série chamada Os defensores e, no início de cada episódio, a voz grave do narrador introduzia o espectador no clima: ”O sistema americano de justiça está longe da perfeição, mas ainda é o melhor sistema de justiça do mundo.”

 

Talvez seja verdade, mas quando sentei no salão do tribunal em Washington, não pude deixar de reconhecer que o julgamento por homicídio, o juiz, o júri, os advogados e todas as regras eram apenas outro jogo sofisticado e Geoffrey Shafer, saboreando cada movimento que a promotora fazia contra ele, já devia estar planejando a próxima façanha.

 

O controle do tabuleiro ainda era dele. Shafer era o verdadeiro mestre do jogo e sabia muito bem disso, assim como eu.

 

Observei a suavidade com que Jules Halpern conduzia os interrogatórios. Queria deixar a impressão de que o monstruoso psicopata seu cliente era inocente como um recém-nascido. Na realidade, qualquer um poderia se dispersar durante aquelas cansativas inquirições. Eu não era exceção, mas não perdia nada, pois todos os pontos relevantes eram repetidos vezes sem conta, adnauseam.

 

- Alex Cross...

 

Quando ouvi mencionarem meu nome, concentrei-me ainda mais em Jules Halpern. A foto que ele apresentava, publicada pelo Post no dia seguinte ao crime, fora tirada por um morador do Farragut e vendida ao jornal.

 

Halpern se inclinou perto do homem que estava no banco das testemunhas, Carmine Lopes, zelador noturno do prédio de apartamentos onde Patsy Hampton fora morta.

 

- Sr. Lopes, estou lhe mostrando a Prova da Defesa, uma foto de meu cliente e do detetive Alex Cross. Foi tirada no corredor do décimo andar, logo após a descoberta do corpo da detetive Hampton.

 

Grande o bastante para ser vista em detalhe mesmo da quarta fileira, onde eu estava sentado, a fotografia foi um choque para mim.

 

Nela, Shafer parecia ter acabado de sair das páginas de uma revista de modas. Em compensação, minhas roupas não passavam de trapos encardidos. Eu tinha saído de minha louca maratona pelo zoológico e estivera na garagem com o corpo da pobre Patsy. Com os punhos fortemente cerrados, parecia estar urrando de raiva na cara de Shafer. Fotografias podem realmente mentir; sabemos disso. A foto era extremamente impressionante e senti que podia instigar preconceitos nas mentes dos jurados.

 

- Esta fotografia expressa corretamente como estavam os dois homens às dez e meia daquela noite? - perguntou Halpern ao zelador.

 

- Sim, senhor, expressa bastante bem. É o que eu me lembro de ter visto.

 

Jules Halpern assentiu, como se estivesse recebendo pela primeira vez alguma informação vital, e perguntou:

 

- Poderia agora descrever, com suas próprias palavras, como estava o detetive Cross naquele momento?

 

O zelador hesitou, mas entendi perfeitamente a pergunta que o confundia. Sabia aonde Halpern queria chegar.

 

Halpern deu um passo à frente e insistiu do modo mais simples possível.

 

- Estava sujo?

 

- Ha, sujo... claro. Estava terrível.

 

- E suado? - perguntou o advogado de defesa.

 

- Suado... é. Como todos nós. De estar lá embaixo na garagem, eu acho. Fazia realmente calor naquela noite.

 

- Gotas escorrendo pelo nariz?

 

- Sim, senhor.

 

- As roupas do detetive Cross estavam rasgadas, sr. Lopes?

 

- Sim, estavam. Rasgadas e sujas.

 

Jules Halpern olhou primeiro para o júri, depois para a testemunha.

 

- As roupas do detetive Cross estavam manchadas de sangue?

 

- Sim... sem dúvida. Foi a primeira coisa em que reparei, o sangue.

 

- Havia sangue em algum outro lugar, sr. Lopes?

 

- Nas mãos dele. Era impossível não ver. Eu certamente vi.

 

- E o sr. Shafer, qual era a aparência do sr. Shafer?

 

- Estava limpo, bem-arrumado. Parecia muito calmo, muito sóbrio.

 

- Viu sangue no sr. Shafer?

 

- Não, senhor. Nenhum sangue.

 

Halpern abanou a cabeça e se virou para o júri.

 

- Sr. Lopes, qual dos dois homens se parecia mais com alguém que tivesse acabado de cometer um crime?

 

- O detetive Cross - respondeu o zelador sem hesitação.

 

- Objeção! - gritou a promotora, mas o estrago já tinha sido feito.

 

Naquela tarde, a defesa estava programada para convocar George Pittman, chefe de investigadores. Sabendo que era a vez de Pittman, a promotora Catherine Fitzgibbon pediu-me para encontrá-la no almoço.

 

- Se é que tem apetite agora que Pittman vai entrar em cena - ela acrescentou.

 

Catherine era esperta e meticulosa. O número de maus elementos que colocara atrás das grades era mais ou menos igual ao número de maus elementos que Jules Halpern pusera em liberdade. A pequena lanchonete perto do fórum, onde comemos juntos nossos sanduíches, estava apinhada de gente. Nem eu nem Catherine estávamos muito animados com o depoimento de Pittman. Minha reputação como detetive ia sendo arruinada pela defesa e era terrível ter de assistir àquilo de braços cruzados.

 

Ela deu uma mordida no pesado sanduíche da Reuben, que esguichou mostarda nos dedos indicador e polegar. Depois sorriu.

 

- Lamacento, mas gostoso. Você e Pittman estão realmente em choque, um querendo mais ou menos acabar com o outro, certo?

 

- É, é uma séria aversão, e é mútua - admiti. - Ele já tentou me prejudicar algumas vezes. Acha que sou uma ameaça para sua carreira.

 

Catherine atacava o sanduíche.

 

- Hmmm, uma pergunta interessante. Você seria um melhor chefe de detetives?

 

- Não estou concorrendo, estou fora. Não quero ficar engaiolado num escritório fazendo política, jogando esse pinguepongue.

 

Catherine riu. Era uma daquelas pessoas que pode achar quase tudo engraçado.

 

- Tem a mais absoluta razão, Alex. Bem, a defesa está convocando o chefe dos investigadores como uma de suas testemunhas. Ele foi listado como hostil, mas não acho que seja.

 

Ajudei Catherine a comer o resto do sanduíche.

 

- Vamos descobrir o que o dr. Halpern traz hoje na manga - disse ela.

 

No início da sessão da tarde, Jules Halpern fez uma completa e cuidadosa exposição das credenciais de Pittman, que, no abstrato, pareciam razoavelmente impressionantes. Aluno da George Washington e da faculdade de direito na American University, passara vinte e quatro anos na força policial, onde ganhara medalhas por bravura e citações de três diferentes prefeitos.

 

- Chefe Pittman, como descreveria o desempenho do detetive Cross no departamento? - perguntou Halpern.

 

Eu me encolhi na cadeira. Senti a sobrancelha se franzir, os olhos se estreitarem. Lá vamos nós, pensei.

 

- O detetive Cross participou de alguns casos envolvendo criminosos destacados, casos que o departamento resolveu disse ele e parou aí. Não se tratava exatamente de um elogio, mas pelo menos não houvera ataque frontal.

 

Halpern balançou sabiamente a cabeça.

 

- Houve alguma alteração recente em seu desempenho? Pittman olhou na minha direção e respondeu:

 

- Uma mulher com quem se encontrava desapareceu quando estavam de férias nas Bermudas. Desde então, passou a se mostrar distraído, distante, sempre à beira da raiva, uma outra pessoa.

 

Tive vontade de me levantar para protestar. Pittman não sabia nada sobre mim e Christine.

 

- Chefe Pittman, o detetive Cross foi considerado suspeito no caso do desaparecimento de sua namorada, sra. Christine Johnson?

 

Pittman assentiu.

 

- A polícia deve ter seguido o procedimento padrão disse. - Tenho certeza de que foi interrogado.

 

- E sua conduta no trabalho mudou desde esse desaparecimento?

 

- Sim. Sua concentração não é a mesma. Tem perdido dias de trabalho. Tudo está devidamente registrado.

 

- O detetive Cross foi instado a procurar ajuda profissional?

 

- Sim.

 

- O senhor lhe pediu que procurasse ajuda?

 

- Sim, pedi. Eu e Cross já trabalhávamos juntos havia alguns anos e eu sabia que ele andava tenso.

 

- Seria correto dizer que andava muito tenso?

 

- Sim. Não concluíra um só de seus casos mais recentes.

 

Halpern abanou a cabeça.

 

- Duas semanas antes do assassinato de Hampton, o senhor suspendeu alguns detetives com quem ele mantinha laços de amizade.

 

- Infelizmente é verdade - disse Pittman com uma expressão sombria.

 

- Por que suspendeu os detetives?

 

- Estavam fazendo investigações à revelia do departamento.

 

- Seria justo dizer que estavam fazendo suas próprias regras, que estavam querendo agir como justiceiros?

 

Catherine Fitzgibbon ficou de pé e objetou, mas o juiz Fescoe autorizou a pergunta.

 

- Isso eu não sei - disse Pittman. - Justiceiros é uma palavra forte. Mas estavam trabalhando sem a devida supervisão. O caso ainda se encontra sob investigação.

 

- O detetive Cross fazia parte do grupo disposto a agir por conta própria para resolver casos de homicídio?

 

- Não tenho certeza - disse Pittman. - Adverti-o para que não participasse, mas achei que, naquele momento, ele não saberia lidar muito bem com uma suspensão. Adverti-o e deixei a coisa passar. Não devia ter feito isso.

 

- Sem mais perguntas. Não era preciso, eu pensei.

 

Naquela noite, Shafer saiu do fórum voando alto e achando que estava ganhando o jogo. Tremendamente agitado, com o carro já estacionado na garagem escura sob o prédio de Boo Cassady, sentia-se ao mesmo tempo bem e mal. A maioria dos maníacos não tem consciência do momento em que os signos da fase de delírio começam a se manifestar, mas Shafer era capaz de reconhecê-los. Suas ”espirais” não brotavam de repente do vazio; armavam-se aos poucos.

 

A ironia e o risco de estar de volta àquele prédio não o afetavam. O criminoso sempre volta à cena do crime - que bobagem! Naquela noite queria ir para a zona sudeste, mas seria perigoso demais. Não podia caçar, não de imediato. Contudo, os próximos movimentos do jogo já rodavam em sua mente.

 

Era inabitual, embora não inédito, o réu de um julgamento por homicídio em primeiro grau ficar vagando pelas ruas, mas um dos pré-requisitos para Shafer abrir mão da imunidade fora participar do julgamento em liberdade. Que alternativa teria a promotoria? Absolutamente nenhuma. Se o promotor não concordasse, ele tinha passe livre para se manter fora do xadrez.

 

Shafer entrou com um morador, um homem que já vira diversas vezes, no elevador da garagem e subiu para o apartamento de Boo. Tocou a campainha. Esperou. Ouviu os passos abafados pela madeira do assoalho. Sim, o primeiro ato do espetáculo daquela noite estava prestes a começar.

 

Sabia que Boo o espiava pelo visor da porta, exatamente como ele espiara Alex Cross na noite em que Patsy Hampton recebeu o que merecia. Vira Boo algumas vezes após sua soltura, mas logo começara a evitá-la.

 

Quando Boo percebeu que os encontros tinham realmente parado, perdeu a compostura e passou a ligar para o trabalho de Shafer, para a casa dele e, a todo momento, para seu celular, até obrigá-lo a trocar o maldito aparelho. No pior momento, chegou a lembrar o personagem alucinado de Glenn Close no filme Atração fatal.

 

Shafer não sabia se ainda podia apertar os botões de Boo. Era uma mulher razoavelmente brilhante, o que sem dúvida constituía boa parte do problema dela. Pensava demais, o dobro, o triplo do que devia. A maioria dos homens, principalmente os estúpidos americanos, não gostava disso, o que a deixava ainda mais pirada.

 

Encostou a cara na porta, sentindo no rosto o frio da madeira. Estava começando sua performance.

 

-Preciso muito ver você, Boo. Não imagina como tem sido difícil. Um deslize, qualquer coisa que possam usar contra mim e estou acabado. E o que torna as coisas piores é que sou inocente. Você sabe disso. Naquela noite falei todo tempo com você no caminho de minha casa até aqui. Sabe que não matei aquela detetive. Elizabeth? Boo? Por favor diga alguma coisa. Pelo menos me xingue. Ponha a raiva pra fora... Doutora?

 

Não houve resposta e Shafer gostou, pois isso aumentava seu respeito por ela. Boo, afinal, estava jogando duro.

 

- Sabe exatamente o que estou passando. É a única pessoa que compreende minhas oscilações de humor. Preciso de você, Boo. Sabe que sou maníaco-depressivo, bipolar, não importa o nome que vocês, psiquiatras, queiram dar à minha condição. Boo?

 

Então Shafer começou a chorar terrivelmente, o que quase o fez soltar uma gargalhada. Proferia soluços altos, violentos. Agachou-se e segurou a cabeça. Sabia que era um ator muito melhor que a maioria dos impostores de alto preço que via nos filmes.

 

A porta do apartamento lentamente se abriu.

 

- Úúúú... - ela sussurrou. - Geoff está sofrendo? Coitadinho, que pena.

 

Que puta, ele pensou, mas precisava vê-la. Boo ia testemunhar em breve. Precisava dela naquela noite e precisava de sua ajuda no fórum.

 

- Ei, Boo - ele também sussurrou.

 

Segundo ato do espetáculo da noite.

 

Ela o fitou com os enormes olhos castanho-escuros que pareciam contas de âmbar, do tipo que havia nas lojas caras que ela freqüentava. Perdera peso, o que a tornara ainda mais sensual, mais desesperada. Usava um short azul-marinho de caminhada, uma elegante camiseta de seda cor-de-rosa e... também exibia sua carga de sofrimento.

 

- Ninguém jamais me feriu como você - murmurou.

 

Simulando uma difícil tentativa de recobrar o controle, Shafer atingiu um desempenho digno de um Oscar.

 

- Estou lutando pela minha vida. Eu juro, só penso em me matar! Não ouviu nada do que eu disse? Não percebe? É para preservá-la que tenho me mantido afastado. Será que está querendo ver novamente sua foto em todos os tablóides?

 

Ela riu com desdém e amargura.

 

- De qualquer modo isso vai acontecer quando eu testemunhar. Os fotógrafos vão me acompanhar por toda parte.

 

Shafer fechou os olhos.

 

- Bem, será sua chance de me dar o troco, querida. Ela balançou a cabeça e franziu a testa.

 

- Sabe que eu não faria isso. Oh, Geoff, você nem ao menos telefonou! Agiu como um canalha!

 

Como um garoto arrependido e malcriado, Shafer baixou a cabeça.

 

- Você sabe como eu estava perto de um colapso nervoso antes disso tudo acontecer. Agora a coisa piorou. Espera mesmo que eu me comporte como um adulto responsável?

 

- Não, acho que não. - Boo deu um sorriso torto e Shafer viu o livro no console do hall atrás dela: O homem e seus símbolos, de Carl Jung; muito adequado. - O que está querendo, Geoff? Drogas?

 

- Preciso de você. Quero abraçá-la, Boo. Só isso. Naquela noite, ela deu o que Shafer queria. Fizeram amor como animais no canapé de veludo cinza que os clientes usavam, depois na cadeira de balanço estilo JFK onde ela se sentava durante as sessões. Ele possuiu seu corpo... e sua alma.

 

Depois ela deu as drogas: antidepressivos, analgésicos, em geral amostras grátis. Boo ainda conseguia tirar as amostras de seu ex-marido, um psiquiatra. Shafer não sabia como era a relação dos dois e, francamente, não se importava. Ainda na casa dela, engoliu alguns Libriuns e tomou um trago de Vicodin.

 

Depois possuiu novamente Boo, desta vez no balcão da cozinha, ambos nus, suando freneticamente. O cepo do açougue, ele pensou.

 

Por volta das onze, quando deixou o apartamento, percebeu que estava se sentindo pior do que ao chegar lá. Mas sabia o que ia fazer. Já sabia antes mesmo de ir para a casa de Boo. Uma coisa que explodiria as mentes tacanhas. As mentes de todos eles. Incluindo a imprensa. O júri.

 

Agora o terceiro ato.

 

Pouco depois da meia-noite, recebi uma chamada de emergência que me estourou a cabeça. Daí a minutos, meu velho Porsche se aproximava dos cento e quarenta na rodovia Rock Creek, a sirene gritando para a escuridão ou, talvez, para Geoffrey Shafer.

 

Cheguei a Kalorama às 12:25h. Ambulâncias da polícia, carros-patrulha, furgões das redes de TV estavam estacionados por toda a rua.

 

Acordados, vários vizinhos dos Shafer tinham saído de seus imponentes casarões para contemplar a cena de pesadelo. Não podiam acreditar que aquilo estivesse acontecendo naquele enclave de classe alta.

 

O chiado e zumbido dos vários rádios da polícia enchiam a noite. O helicóptero de um telejornal já pairava sobre o local. Um pequeno caminhão da CNN chegou e estacionou bem atrás de mim.

 

Juntei-me a um detetive chamado Malcolm Ainsley no gramado da frente. Já nos conhecíamos de outros homicídios e de algumas reuniões no departamento. De repente, a porta da frente da casa de Shafer se abriu.

 

Dois paramédicos saíram carregando uma maça. Dezenas de câmeras espocavam.

 

- É Shafer - Ainsley me disse. - O filho-da-puta tentou se matar, Alex. Cortou o pulso e tomou uma tonelada de drogas. Havia caixas de comprimidos por todo lado. Mas ele deve ter tido alguma segunda intenção. Ele próprio pediu ajuda.

 

As informações que obtivera sobre Shafer nas entrevistas com os advogados antes do julgamento e no meu próprio trabalho de fazer o seu perfil não me deixaram fazer suposições muito gentis acerca do que poderia ter acontecido. Meu primeiro pensamento foi que ele sofria de uma desordem da personalidade que causava episódios maníacos e depressivos. Uma segunda possibilidade era a ciclotomia, que pode se manifestar por meio de numerosos episódios hipomaníacos ou sintomas depressivos. A sintomatologia associada pode incluir uma exagerada autoestima, uma necessidade de sono cada vez menor, excessivo envolvimento em atividades ”prazerosas” e um incremento das atividades voltadas para um determinado objetivo - no caso de Shafer, talvez, a intensificação do esforço para vencer seu jogo.

 

Avancei como se estivesse flutuando num sonho muito ruim, o pior que se pudesse imaginar. Reconheci uma das técnicas da perícia, Nina Disesa, com quem já trabalhara algumas vezes em Georgetown.

 

- Socorremos bem na hora o desgraçado - disse Nina, estreitando os olhos pretos. - Que pena, hein?

 

- A tentativa foi séria? - perguntei. Nina sacudiu os ombros.

 

- É difícil dizer com certeza. Ele cortou bastante o pulso. Justamente o pulso esquerdo. Depois tomou as drogas, uma tonelada de drogas, amostras grátis.

 

Balancei a cabeça bastante confuso.

 

- Mas ele sem dúvida pediu ajuda.

 

- A esposa e o filho ouviram-no chamar do escritório: ”Papai precisa de ajuda. Papai está morrendo. Papai está doente”, ele dizia.

 

- Bem, ele foi correto nessa parte. Papai estava incrivelmente doente. Papai é um tremendo maluco!

 

Caminhei até a ambulância vermelha e branca. Câmeras ainda se movimentavam por toda rua. Eu me sentia atordoado, com a cabeça girando. Para ele, tudo é um jogo. As vítimas na zona sudeste, Patsy Hampton, Christine. Agora isto. Joga inclusive com a própria vida.

 

- O pulso ainda está forte - ouvi ao me aproximar da ambulância. Vi um dos paramédicos tirando o eletrocardiograma no interior do furgão e ouvi os bipes da máquina.

 

Então vi o rosto de Shafer. Tinha o cabelo ensopado de suor e a palidez lembrava uma folha de papel branco. Ele tentava enxergar, me encarava e acabou me reconhecendo.

 

- Você fez isto comigo! - disse ele reunindo toda a sua energia e procurando se sentar na maça. - Arruinou minha vida pela sua carreira. Você fez isto! Você é o responsável! Oh, Deus, oh, Deus! Minha pobre família! Por que tanta coisa está acontecendo conosco?

 

Sem parar de rodar, as câmeras de TV captaram a excelência da interpretação. Exatamente o que Geoffrey Shafer sabia que ia acontecer.

 

Por causa da tentativa de suicídio de Shafer, o tribunal teve de entrar em recesso. Provavelmente, em menos de uma semana, a corte não conseguiria retomar seus trâmites.

 

Enquanto isso, a mídia preparava uma nova dose de emoção, incluindo grandes manchetes no Washington Post, no New York Times e no USA Today. Pelo menos eu teria tempo de analisar alguns outros ângulos da história. Shafer era bom - Deus, era realmente bom na coisa!

 

Quase toda noite eu fazia contato com Sandy Greenberg. Ela estava me ajudando a coletar informações sobre os outros jogadores. Tinha, inclusive, ido conversar com Oliver Highsmith, a Conquista, e duvidava que ele fosse um assassino. Era um homem de sessenta e tantos anos, com um grave excesso de peso e preso a uma cadeira de rodas.

 

Sandy ligou para minha casa às sete da noite. Era uma boa amiga. Obviamente andava fazendo serão por minha causa. Atendi no refúgio de meu escritório no sótão.

 

- Andrew Jones do Serviço de Segurança está querendo conversar com você - ela anunciou no seu jeito vibrante e agressivo. - Não acha uma boa notícia, Alex? Bem, tenha certeza de que é Na realidade, ele está ansioso para encontrá-lo. Não me disse isso diretamente, mas acho que não simpatiza muito com o coronel Shafer. Não sei por quê, não me pergunte. Por sorte, ele está em Washington. É um homem importante. Uma figura de proa na área de inteligência. E é muito competente, Alex; não brinca em serviço.

 

Agradeci a Sandy e liguei imediatamente para o hotel de Jones, que atendeu no quarto.

 

- Sim. Alô. É Andrew Jones. Quem fala, por favor?

 

- Sou o investigador Alex Cross da polícia de Washington. Acabei de falar ao telefone com Sandy Greenberg. Como vai?

 

- Bem, muito bem. OK, talvez nem tanto. Já vivi dias melhores. Não só dias, mas semanas e meses. Na realidade, estava parado aqui em meu quarto esperando que telefonasse. Não quer se encontrar comigo, Alex? Existe algum lugar onde pudéssemos conversar sem atrair muita atenção?

 

Sugeri um bar na rua M, dali a meia hora, e cheguei adiantado um minuto ou dois. Reconheci Jones pela descrição que ele me passara ao telefone: ”Sou meio robusto, pesadão, de rosto vermelho. Mais ou menos como imagina um ex-jogador de rugby, embora eu nunca tenha jogado nada, nem mesma a toalha para um reserva. Oh, sim, tenho um cabelo ruivo tipo fogo e bigode combinando. Isso deve ajudar, não é?”

 

Ajudou. Sentamo-nos numa mesa no fundo escuro do bar e começamos a nos reconhecer. Jones passou os próximos quarenta e cinco minutos seguintes colocando-me a par de várias coisas importantes, incluindo questões de política e decoro dentro das comunidades da polícia e da inteligência inglesa. Falou-me do bom nome do pai de Lucy Shafer, de seu prestígio no exército, do zelo pela sua reputação. Falou do interesse do governo em evitar um escândalo ainda pior do que a atual repercussão do julgamento.

 

- Se um de nossos agentes, de serviço no exterior, tivesse mesmo cometido crimes hediondos e se a inteligência britânica nada soubesse, o escândalo seria verdadeiramente terrível, Alex, causando terrível complicações. Mas se o MI-6 soube de alguma coisa a respeito das suspeitas que caíram sobre o coronel Shafer e manteve silêncio! Bem, isso é absolutamente inconcebível.

 

- Acha mesmo? - perguntei. - Esta situação seria mesmo inconcebível?

 

- Não vou responder, Alex... Você sabe que não posso. Mas estou disposto a ajudá-lo em tudo que for possível.

 

- Por quê? - perguntei. - Por que agora? Precisei da ajuda de vocês antes do início do julgamento.

 

- Uma pergunta justa e uma boa pergunta. Estamos dispostos a ajudá-lo porque agora você tem informações que podem nos causar uma montanha de aborrecimentos. Você está intimamente convicto do inconcebível.

 

Fiquei em silêncio. Achei, no entanto, que entendia o que ele estava dizendo.

 

-Você descobriu um RPG chamado Os Quatro Cavaleiros. Há quatro jogadores, incluindo Shafer. Sabemos que já fez contato com Oliver Highsmith. O que você provavelmente ainda não sabe, mas que vai acabar descobrindo, é que todos os jogadores são ex-agentes ou atuais agentes. O que significa dizer: Geoffrey Shafer pode ser apenas o início de nossos problemas.

 

- Todos os quatro são assassinos? - perguntei. Andrew Jones não respondeu; não era preciso.

 

- Acreditamos que o ”jogo” tenha se originado em Bangkok, onde três dos quatro jogadores serviam em noventa e um. O quarto, Highsmith, era o mentor de George Bayer, que é a Fome nos Quatro Cavaleiros. Highsmith sempre trabalhou baseado em Londres.

 

- Fale-me de Highsmith - pedi.

 

- Como eu disse, ele sempre esteve no escritório central, em Londres. Era um analista de alto nível e chegou a comandar vários agentes. É um camarada muito brilhante, de ótima reputação.

 

- Highsmith afirmou que os Quatro Cavaleiros não passava de um inofensivo jogo com personagens.

 

- Pode estar dizendo a verdade. Talvez para ele seja assim, Alex. Desde oitenta e cinco vive numa cadeira de rodas. Acidente de automóvel. Sua esposa acabara de abandoná-lo e ele andava baratinado. É um sujeito enorme, com quase cento e cinqüenta quilos. Duvido que esteja rondando pelos bairros mais sórdidos de Londres e matando moças. É o que vocês acham que Shafer está fazendo em Washington: matando as fulaninhas, certo?

 

Era exato e eu confirmei.

 

- Sabemos que se envolveu em vários assassinatos e acho que o estávamos apanhando. Ele pegava suas vítimas com um táxi clandestino. Encontramos o táxi. Sim, já sabíamos muita coisa a seu respeito, Andrew.

 

Jones estendeu os dedos grossos, franziu os lábios.

 

- Shafer sabia que você e a detetive Hampton estavam chegando perto?

 

- Talvez soubesse. Já enfrentava, sem dúvida, muita pressão. Cometeu erros que nos levaram a um apartamento alugado por ele.

 

Jones abanou a cabeça. Também parecia saber muita coisa a respeito de Shafer e achei que o andara vigiando. Talvez eu mesmo tivesse sido espionado.

 

- Como seria a reação dos outros parceiros de jogo vendo Shafer tão fora de controle? - perguntei.

 

- Tenho quase certeza de que se sentiram ameaçados. Quem não se sentiria? Shafer passara a ser um risco para todos eles. Ainda é.-E Jones continuou: - Então, temos Shafer, que provavelmente vem cometendo crimes aqui em Washington, que provavelmente vem pondo em prática suas fantasias na vida real. E temos Highsmith, que talvez não possa fazer isso, mas possa atuar como uma espécie de supervisor. Depois existe um homem chamado James Whitehead, da Jamaica, mas não têm ocorrido crimes como os das fulaninhas naquela ilha ou em qualquer outra da região. Isso foi muito bem verificado. E ternos George Bayer no Extremo Oriente.

 

- O que me diz de Bayer? Presumo que também o tenha investigado.

 

- É claro. Aparentemente sua ficha não tinha nada de especial, mas havia um incidente, uma possível pista a seguir. No ano passado, em Bangkok, duas moças que trabalhavam numa boate de strip-tease em Pat Pong desapareceram. Simplesmente se evaporaram nas ruas barulhentas e cheias de gente. As garotas, que tinham respectivamente dezesseis e dezoito anos, eram dançarinas da boate e prostitutas. Foram achadas, Alex, pregadas juntas na posição missionária, usando apenas meias e ligas. Mesmo na agitada e velha Bangkok, isso causou arrepios. Não parece desagradavelmente semelhante às duas moças assassinadas em Eckington?

 

Abanei a cabeça.

 

- Temos, então, pelo menos dois casos não-resolvidos de fulaninhas em Bangkok. Será que alguém já interrogou Bayer?

 

- Até agora não, mas ele está sendo vigiado. Lembra da política, do medo do escândalo que mencionei há pouco? Há uma investigação em andamento sobre Bayer e os outros, mas, até certo ponto, temos as mãos amarradas.

 

-As minhas não estão - eu disse a Jones.-É o que queria ouvir, não é? É o que espera de mim, certo? Foi por isso que quis se encontrar esta noite comigo...

 

Jones ficou muito sério.

 

- É como o mundo funciona, eu acho. Vamos andar juntos daqui em diante. Se você nos ajudar... prometo fazer o que puder para descobrir o que aconteceu com Christine Johnson.

 

O julgamento recomeçou mais cedo que o previsto - de fato, na quarta-feira seguinte. Houve especulação na imprensa sobre a gravidade dos ferimentos que Shafer se auto-infligira. O interesse perverso que o público manifestava pelo caso parecia inalterável.

 

Era impossível antecipar o veredicto. Isso era um fato que eu devia aceitar sem me deixar excessivamente abater. Estive presente, ao lado de Shafer, no tribunal empilhado de gente daquela primeira manhã de reabertura dos trabalhos. Shafer parecia pálido, fraco - alguém digno de simpatia, talvez. Eu certamente não conseguia desviar os olhos dele.

 

As coisas ficavam cada vez mais estranhas. Ao menos para mim. O sargento Walter Jamieson foi chamado naquela manhã. Jamieson tinha sido meu instrutor na época da Academia de Polícia. Ele me ensinara o ofício e ainda continuava lá, ensinando outros. Eu não podia imaginar por que o teriam chamado para depor no caso de Patsy Hampton.

 

Jules Halpern aproximou-se da testemunha com um pesado livro de capa dura aberto nas mãos. - vou ler um trecho de Preservando a cena do crime: o a-bê-cê de um detetive. O senhor escreveu este manual didático há vinte anos e continua a usá-lo em suas aulas. ”É imperativo que o detetive não modifique a cena do crime até receber o apoio técnico capaz de corroborar os passos dados para trazer as provas à luz. De outro modo, esses passos poderiam ser confundidos com aqueles da perpetração. Luvas têm de ser sempre usadas na cena de um crime.” Foi o senhor que escreveu isso, sargento Jamieson?

 

- Sim, fui eu. Com toda a certeza. Há vinte anos, como o senhor disse.

 

-Ainda sustenta este ponto de vista?-perguntou Halpern.

 

- Sim, é claro. Muita coisa mudou, mas não isso.

 

- E o senhor ouviu um depoente afirmar que o detetive Cross usou luvas tanto no interior do carro da detetive Hampton quanto no apartamento da dra. Cassady?

 

- Sim, ouvi o testemunho. Também li os autos do processo. Halpern ligou o projetor de slides do tribunal.

 

- Chamo a atenção do senhor para as impressões digitais de número cento e setenta e seis e duzentos e onze fornecidas pelo gabinete da promotoria. Pode vê-las?

 

- Números cento e setenta e seis e duzentos e onze. Estou vendo.

 

- Bem, as impressões são assim denominadas: ”Fivela do Cinto da Detetive Hampton: ID: Alex Cross/Polegar Direito” e ”Lado Esquerdo do Painel: ID: Alex Cross/Indicador Esquerdo”. O que isso significa? Pode nos explicar essas referências?

 

- Significa que as impressões de Alex Cross foram encontradas no cinto da detetive Hampton assim como no painel de instrumentos de seu carro.

 

Jules Halpern parou dez segundos inteiros antes de continuar.

 

-E portanto não devemos concluir, sargento Jamieson, que nosso assassino e estuprador pode ser o próprio detetive Cross?

 

- Protesto! - Catherine Fitzgibbon se levantou e gritou.

 

- Retiro o que disse e dou por concluído o depoimento respondeu o advogado de defesa.

 

Advogados de acusação e defesa continuaram a aparecer regularmente no Larry King e em outros programas de TV, sempre se vangloriando de que seriam ”tranqüilamente” vitoriosos no caso. Ouvindo essas pessoas, ficava-se com a impressão de que a derrota de qualquer um dos lados era impossível.

 

No fórum, Jules Halpern tinha o olhar febril e a expressão corporal de alguém transbordando de confiança e determinação. Levava o caso muito bem. Como um jóquei acertando o lombo de seu puro-sangue na reta final.

 

O oficial de justiça se levantou e anunciou:

 

- A defesa chama o sr. William Payaz.

 

Não reconheci o nome. O que vinha agora? Quem vinha?

 

Não houve resposta imediata no tribunal.

 

Ninguém se adiantou.

 

Pescoços se esticaram. Contudo, ninguém atendeu ao chamado. Quem seria a misteriosa testemunha?

 

O oficial de justiça repetiu, um pouco mais alto:

 

- Sr. Payaz. Sr. William Payaz.

 

De repente as portas duplas se abriram no fundo do salão e alguém, fantasiado como palhaço de circo, avançou para o banco das testemunhas. Um murmúrio alto tomou conta da galeria e alguns riram. Em que mundo estávamos vivendo, em que circo.

 

O palhaço ocupou o banco, e tanto a promotora quanto o advogado de defesa foram imediatamente chamados pelo juiz Fescoe para uma conferência. Seguiu-se uma discussão acalorada, mas que nenhum de nós pôde ouvir. A questão do palhaço foi aparentemente resolvida em favor da defesa e, após o juramento de praxe, pediram que o palhaço desse início ao depoimento dizendo o nome.

 

Coberta por uma luva branca, sua mão direita ficou ainda algum tempo levantada:

 

- Bestão.

 

- O nome verdadeiro, por favor - pediu o oficial de justiça.

 

-Meu nome é Bestão. O nome verdadeiro é Bestão - disse o palhaço, virando-se para confidenciar ao juiz. - Troquei legalmente de nome.

 

Jules Halpern tomou então a frente e tratou o palhaço com respeito e seriedade. Primeiro, pediu-lhe para declarar suas credenciais, o que o palhaço cordialmente fez. Depois Halpern perguntou:

 

- E o que o traz hoje aqui?

 

- Fiz uma festa para o sr. Shafer em Kalorama, na funesta e terrível noite do crime. Suas gêmeas completavam cinco anos. Eu também participara da festa há um ano, no quarto aniversário. Trouxe uma fita de vídeo - disse ele como se falasse a uma turma de crianças de três anos -, querem ver?

 

- É claro - disse Jules Halpern.

 

- Protesto! - Catherine Fitzgibbon gritou bem alto.

 

Apesar das objeções da promotoria e depois de outra demorada conferência dos advogados com o juiz, a exibição do vídeo foi autorizada. Os jornais tinham afirmado que o juiz Fescoe se deixara intimidar por Jules Halpern, o que realmente parecia verdade.

 

A fita começava com o impressionante close de um rosto de palhaço. Depois a câmera recuava, revelando a todos no tribunal que se tratava de uma pintura na van do Bestão. A van estava estacionada na frente de um belo casarão de tijolos vermelhos, junto a um jardim de inverno todo envidraçado. Era a casa de Shafer.

 

A cena seguinte mostrava o Bestão tocando a campainha da frente e fazendo uma surpresa aos filhos de Shafer.

 

Mais uma vez a promotoria protestou contra a fita, cuja exibição foi interrompida. Houve outra conferência. Os advogados voltaram a seus assentos e a exibição continuou.

 

As outras crianças presentes na festa de aniversário correram para a porta. O palhaço, então, começou a tirar presentes do saco que carregava nas costas: ursos de pelúcia, bonecas, brilhantes caminhões de bombeiros.

 

O Bestão fez alguns truques de mágica e piadas no jardim de inverno. Em segundo plano via-se a parte de trás do terreno, com laranjeiras-anãs, roseiras, jasmins e um gramado muito verde.

 

De repente ele se virou e disse para a câmera:

 

- Esperem! Estou ouvindo alguma coisa lá fora!

 

O Bestão correu e sumiu de vista, deixando para trás as crianças que o seguiam. A expectativa da surpresa e do riso iminente transparecia nos olhos das crianças.

 

Um pônei creme apareceu, trotando ao redor de uma extremidade da casa. Aparentemente era o Bestão quem montava o pônei.

 

Contudo, quando o palhaço saltou do animal, as crianças descobriram que não era o Bestão, mas Geoffrey Shafer! E acabaram fazendo um alvoroço, em particular as gêmeas. Elas correram e abraçaram Shafer, que parecia o pai perfeito.

 

Houve comoventes e bonitas tomadas das crianças comendo bolos enfeitados e participando de brincadeiras. Havia outras cenas de Shafer rindo e brincando com várias crianças. Desconfiei que Jules Halpern teria supervisionado a edição final do tape. Era muito convincente.

 

Os convidados adultos, todos com trajes a rigor e ar sofisticado, davam enfáticos testemunhos. Diziam que Geoffrey Shafer e sua esposa eram excelentes pais. Não mais no traje de palhaço, mas com elegante terno azul-marinho, Shafer rechaçava modestamente os elogios. Já estava usando a roupa com que seria detido no Farragut.

 

A fita terminava com as belas gêmeas sorrindo para a câmera e dizendo que amavam muito a mamãe e o papai, pois eles tinham ”transformado seu sonho em realidade”. As luzes se acenderam. O juiz concedeu um breve recesso.

 

A exibição do vídeo me deixou extremamente irritado, pois fazia Shafer parecer um pai maravilhoso - e uma tremenda vítima.

 

O júri era todo sorrisos, assim como Jules Halpern. Ele alegara, num lance magistral, que a fita era indispensável para esclarecer o estado de ânimo de Geoffrey Shafer pouco antes do assassinato de Patsy Hampton. Sendo um orador extremamente habilidoso, Halpern transformara a absurda solicitação de exibir a fita num desejo perfeitamente lógico. Sem dúvida, o estrago estava feito.

 

O próprio Shafer sorria muito, bem como a esposa e o filho. E de repente imaginei-o cavalgando um pônei sem cor no aniversário das crianças. Ele era a Morte, dos Quatro Cavaleiros.

 

Para ele, tudo era teatro e jogo. Sua vida se resumia a isso.

 

Às vezes eu queria fechar com força os olhos para não ter outra imagem do julgamento. Queria que as coisas fossem como eram antes do Gambá.

 

Catherine Fitzgibbon fazia um trabalho muito bom com cada testemunha, mas o juiz parecia aproveitar todas as oportunidades para favorecer a defesa. Esta tendência começara a se manifestar já nas importantes audiências preliminares e continuava agora.

 

Lucy Shafer ocupou o banco das testemunhas no início da tarde. A ternura doméstica das imagens em videoteipe da família Shafer ainda estava fresca nas mentes dos jurados.

 

Desde a primeira vez que a vi, na noite da morte de Patsy Hampton, tentei compreender a estranha, a desconcertante relação de Lucy com o marido. Que mulher poderia conviver com um monstro empedernido como Shafer e não desconfiar de nada? Teria sido mantida num estado de completa ignorância? Ou haveria algo mais a motivá-la, algo que a deixava cativa de Shafer? Já vira as mais diferentes relações conjugais na minha prática terapêutica, mas nada como aquilo.

 

Jane Halpern, que conduziu o interrogatório, parecia confiante e vitoriosa como o pai. Era alta e bonita, o cabelo preto e liso amarrado num rabo-de-cavalo com uma fita vermelho-escura. Tinha vinte e oito anos e saíra há apenas quatro da faculdade de direito da Universidade de Yale. Contudo, parecia mais velha e mais experiente.

 

- Sra. Shafer, há quanto tempo conhece seu marido? Lucy Shafer falou em voz baixa, mas clara.

 

- Conheço Geoffrey praticamente desde que me tornei adulta. Meu pai foi seu comandante no Exército. Acho que tinha apenas catorze anos quando vi Geoff pela primeira vez. Ele era nove anos mais velho. Casei-me com ele aos dezenove anos, depois de meu segundo ano em Cambridge. Um dia, quando eu estava estudando para os exames, Geoffrey apareceu na universidade com um traje militar completo, sabre polido, insígnias, botas pretas de montaria muito bem engraxadas. Encontrei-o no meio da biblioteca. Eu vestia um suéter de malha ou algum blusão horrível e acho que estava há dias sem lavar o cabelo. Geoff disse que não fazia mal. Disse que não dava a menor importância às aparências e disse também que me amava e que ia sempre me amar. Posso garantir que manteve a promessa.

 

- Muito bem. - Jane Halpern fingia estar realmente fascinada, como se não tivesse ouvido a história antes. Ela prosseguiu: - Seu marido continuou romântico?

 

- Oh, sim, até mais que antes! É rara a semana em que Geoff não me traz flores ou um dos belos cachecóis da Hermes, que eu coleciono. E há também nossas excursões ”não acredito”.

 

Jane Halpern torceu o nariz e os olhos castanho-escuros piscaram.

 

- O que são excursões ”não acredito”? - ela perguntou com a exuberante curiosidade de uma apresentadora de programa matutino.

 

- Geoff me leva a Nova York, talvez a Paris ou a Londres e eu começo a comprar roupas novas até ele dizer ”não acredito”. Ele é assim, muito generoso.

 

- Um bom marido, então?

 

- O melhor que se pode imaginar. Muito dedicado ao trabalho, mas não a ponto de se esquecer da família. As crianças o adoram.

 

- Sim, foi o que vimos no filme desta manhã, sra. Shafer. É raro darem festas como essa?

 

- Não. Geoffrey está sempre dando festas. Ele é muito alegre, cheio de vida, cheio de bom humor e surpresas. Um homem sensível, muito criativo.

 

Meu olhar correu de Lucy Shafer para o júri. Ela enfeitiçara a banca dos jurados, onde nenhuma cabeça se desviava. Era também convincente. Mesmo eu tive a impressão de que ela realmente amava o marido, e mais importante, que acreditava ser amada por ele.

 

Jane Halpern tirou o máximo que pôde do depoimento. Não pude censurá-la. Lucy Shafer era atraente e se mostrava simpática, gentil. Obviamente parecia estar muito apaixonada pelo marido e adorar os filhos. Não parecia uma tola, mas alguém que, tendo encontrado exatamente o homem que queria, lhe dava o justo valor. Esse homem era Geoffrey Shafer.

 

Foi a indelével imagem que os jurados levaram com eles no fim do dia.

 

E era uma assombrosa mentira, forjada com mestria.

 

Analisei a situação com Andrew Jones quando cheguei em casa após a sessão daquela tarde. Tentara entrar novamente em contato com Oliver Highsmith, mas não havia obtido nenhuma resposta até aquele momento. Além disso, não conseguira nenhum dado novo que vinculasse Shafer às mortes das fulaninhas em Washington. Aparentemente, ele não matara mais ninguém nos últimos meses, pelo menos na região.

 

Após um jantar de pastelão de frango, salada e suflê de beterraba, Nana dispensou os garotos da tarefa noturna de lavar os pratos e me pediu que ficasse para ajudá-la, para ser seu ”parceiro no encardido da pia”, como ela gostava de dizer.

 

- Como nos bons tempos, como sempre aconteceu entre nós - disse eu passando água e sabão nos talheres e nos pratos. A pia era velha como a casa.

 

Nana ia enxugando o que eu lhe passava. Seus dedos continuavam tão ágeis quanto sua mente.

 

- Gosto de pensar que estamos mais velhos e mais espertos como a louça - disse ela num tom agudo quando quase deixei um prato cair.

 

- Não sei. Ainda sou aquele que tem as mãos furadas. De repente, Nana ficou séria.

 

- Não lhe disse uma coisa e devia ter dito...

 

- Tudo bem - respondi, parando de esparramar água e bolhas de sabão pela pia. - Pode soltar.

 

- Quero dizer que estou orgulhosa do modo como vem conseguindo enfrentar as coisas terríveis que aconteceram. Sua energia e sua paciência têm me dado inspiração. E olhe que nunca me deixei sugestionar com facilidade, especialmente por policiais. Sei que o efeito tem sido o mesmo sobre Damon e Jannie. Eles não perdem nada do que está se passando.

 

Debrucei-me na pia. Estava mergulhando num clima de confissões.

 

- É a pior fase de minha vida, o momento mais difícil de suportar. Parece impossível, Nana, mas está sendo ainda pior do que quando Maria morreu. Pelo menos naquela época eu tinha certeza de que ela se fora e estava livre para chorá-la. E finalmente pude me conformar e tocar minha vida.

 

Quando Nana deu a volta na pia e segurou-me os dois braços, fiquei, como sempre, espantado com sua força.

 

Estava cravando os olhos em mim, como costumava fazer desde meus nove anos de idade.

 

- Chore por ela, Alex - disse. - Mas deixe-a ir em paz.

 

Geoffrey Shafer tinha uma esposa atraente, que gostava dele. Era uma incongruência, um fato monstruosamente desconcertante que muito me preocupava. Não conseguia entendê-lo, nem como psicólogo nem como detetive.

 

O simpático depoimento de Lucy Shafer continuou no início da manhã seguinte e durou pouco mais de uma hora. Jane Halpern queria que o júri ouvisse falar mais sobre o maravilhoso marido de Lucy.

 

Finalmente, chegou a vez de Catherine Fitzgibbon, que não deixou de ser tão dura, e talvez tão brilhante, quanto Jules Halpern.

 

- Sra. Shafer, todos a ouvimos atentamente e tudo pareceu encantador e idílico, mas existe uma coisa que me incomoda e me confunde. Minha preocupação é a seguinte: seu marido tentou se suicidar oito dias atrás; seu marido tentou se matar. Talvez ele não seja exatamente quem aparenta ser. Talvez não seja tão equilibrado e sensato. Talvez a senhora esteja equivocada sobre quem ele realmente é.

 

Lucy Shafer cravou os olhos na advogada de acusação.

 

-Nos últimos meses, meu marido viu sua vida, sua carreira e seu bom nome jogados na lama. Geoffrey simplesmente não podia acreditar que acusações tão terríveis estivessem sendo feitas contra ele. Foi uma provação tipicamente kafkiana que o levou a um desespero quase integral. A senhora não sabe como é terrível perder a credibilidade.

 

Catherine Fitzgibbon sorriu.

 

- Claro que sei. Não tenha dúvida. Não tem lido o National Enquirerl

 

Isso trouxe risos, não só da audiência, mas também dos membros do júri. Percebi que gostavam de Catherine. Eu também gostava.

 

- Não é verdade - ela continuou - que seu marido vem sendo tratado há muitos anos desse ”desespero”? Ele tem uma psicoterapeuta, sra. Shafer. Sofre de psicose maníaco-depressiva ou desordem bipolar, correto?

 

Lucy sacudiu negativamente a cabeça.

 

- Ele passou por uma crise existencial. Foi só isso. Coisa muito comum entre os homens de sua idade.

 

- Entendo. E a senhora conseguiu ajudá-lo a superar esta crise?

 

-É claro que sim. Embora não no que diz respeito ao trabalho. A maior parte do que ele faz é classificado como de sigilo absoluto. Tem de compreender isso.

 

-Tenho, eu sei - disse a promotora, mas logo emendando:

- Então seu marido tem muitíssimos segredos que não lhe conta.

 

Lucy franziu a testa e seus olhos se fixaram com irritação na advogada astuta.

 

- Segredos de trabalho, sim.

 

- Sabia que ele estava se consultando com a dra. Cassady? Boo Cassady?

 

- Sim, é claro que sim. Conversamos freqüentemente sobre o assunto.

 

- Com que freqüência ele a visita? A senhora sabe? Contou-lhe isso? Ou era coisa de sigilo absoluto!

 

- Objeção! - gritou Jane Halpern.

 

- Objeção mantida, dra. Fitzgibbon - advertiu o juiz Fescoe com uma sobrancelha arqueada.

 

- Desculpe, excelência. Desculpe, Lucy. Tudo bem? Com que freqüência seu marido ia ao consultório de Boo Cassady?

 

- Ia lá quando precisava, eu acho. Creio que ela se chama Elizabeth.

 

- Uma vez por semana? Duas? Todo dia? - Fitzgibbon pressionava, sem deixar a menor brecha.

 

- Acho que uma vez por semana. Geralmente era uma vez por semana.

 

- Mas os porteiros do Farragut testemunharam que costumavam ver seu marido um número muito maior de vezes. Em média, três ou quatro vezes por semana.

 

Lucy Shafer balançou a cabeça com ar cansado e ergueu os olhos para Fitzgibbon.

 

- Confio inteiramente em Geoffrey. Não quero mantê-lo preso numa coleira. Por certo eu jamais pensaria em contar suas sessões de terapia.

 

- Não se importa com o fato da dra. Cassady, Elizabeth Cassady, ser uma mulher tão atraente?

 

- Não, seria uma preocupação absurda. Fitzgibbon parecia realmente surpresa.

 

- Por que absurda? Não acredito que seja. Acho que ficaria preocupada se meu marido estivesse se encontrando com uma mulher atraente duas, três, quatro vezes por semana em seu consultório doméstico.

 

Fitzgibbon moveu ligeiramente a cabeça e continuou:

 

- Não teve receio que Boo Cassady também pudesse funcionar como terapeuta sexual!

 

Parecendo surpresa, Lucy hesitou e olhou de relance para

 

Shafer. Ela não sabia. Seria impossível não sentir pena de Lucy.

 

Jane Halpem havia se erguido bruscamente de sua cadeira.

 

- Protesto, excelência! Não há evidência de que meu cliente estivesse fazendo sexo com a terapeuta.

 

No banco de testemunhas, Lucy Shafer visivelmente se recompôs. Sem dúvida era mais forte do que parecia. Ou estaria também jogando? Poderia ser uma parceira nos Quatro Cavaleiros? Ou seu jogo era completamente diferente do jogo do marido?

 

- Gostaria de responder à pergunta - ela falou. - Geoffrey, senhora promotora, tem sido um marido tão bom, um pai tão exemplar, que mesmo que ele achasse necessário visitar uma terapeuta sexual e não quisesse me contar por causa da mágoa ou da vergonha que estivesse sentindo, eu compreenderia.

 

- E se ele cometesse um frio assassinato... e não quisesse lhe contar? - a promotora perguntou, virando-se para o júri.

 

Elizabeth ”Boo” Cassady estava no fim da casa dos trinta. Era bonita e tinha um corpo muito atraente, com um lustroso cabelo castanho que usava comprido desde menina. Era também cliente habitual da Neiman Marcus, da Saks, Nordstrom, Bloomingdale’ s e diversas lojas chiques e exclusivas de Washington - um lado que se destacava em sua personalidade.

 

Pegara desde bebê o apelido de Boo. Ela sempre ria muito quando alguém brincava de assustá-la e logo aprendera a murmurar ”boo, boo, boo, boo ”. Na escola, e mesmo na universidade, o apelido fora mantido, pois segundo os amigos ela se assustava com facilidade.

 

Para o importante dia de seu depoimento na corte, escolhera um conjunto de corte cuidadoso, macio, de ótimo caimento. O tom predominante era uma agradável mistura de cinza e café com leite. Parecia, sem dúvida, uma profissional, uma profissional bem-sucedida.

 

Jules Halpern pediu-lhe que declarasse nome e ocupação para os autos. Pareceu cordial, mas um tanto distante, um pouco mais frio do que fora com outras testemunhas.

 

- Dra. Elizabeth Cassady. Sou psicoterapeuta. - Era uma resposta calma.

 

- Dra. Cassady, qual é sua relação com o coronel Shafer?

 

- Há cerca de um ano ele é meu paciente. Uma ou duas vezes por semana vai ao meu consultório na avenida Woodley, número .208. Recentemente, após a tentativa de suicídio do sr. Shafer, aumentamos a freqüência das sessões.

 

Halpern abanou a cabeça.

 

- A que horas são as sessões? - perguntou.

 

- Geralmente no início da noite, mas podem variar conforme os compromissos de trabalho do sr. Shafer.

 

- Dra. Cassady, quero dirigir sua atenção para a noite do assassinato da detetive Hampton. Geoffrey Shafer teve uma sessão de terapia com a senhora nessa noite?

 

- Sim, teve. Das vinte e uma às vinte e duas horas. Talvez tenha chegado um pouco antes da hora nesse dia. Mas a sessão estava marcada para as vinte e uma horas.

 

- Pode ter chegado, por exemplo, às oito e meia?

 

- Não, seria cedo demais. Desde que saiu de casa em Kalorama até a chegada a meu prédio, veio conversando comigo no celular e já passava das oito e meia. Sentia-se muito culpado pelo último acesso de melancolia ter ocorrido no meio da festa de aniversário das filhas.

 

- Entendo. Houve alguma interrupção em sua conversa com o coronel Shafer?

 

- Sim. Mas uma interrupção muito breve. Halpern manteve o ritmo vigoroso.

 

- Quanto tempo se passou entre o momento em que pararam de falar no celular e a chegada de Shafer a seu consultório?

 

- Dois ou três minutos, cinco no máximo. O tempo dele estacionar e subir no elevador. Não mais que isso.

 

- Ao chegar a seu consultório, Geoffrey Shafer aparentava algum nervosismo?

 

- Não, de modo algum. Ele me pareceu até relativamente contente. Afinal, tinha sido o anfitrião do belo aniversário de suas gêmeas. É louco pelos filhos e ficou satisfeito com o êxito da festa.

 

- Não estava sem fôlego, tenso ou transpirando? - perguntou Halpern.

 

- Não. Como eu disse, estava calmo, parecia realmente muito bem. Lembro disso com clareza. E depois da intrusão da polícia, tomei o cuidado todo especial de guardar com precisão as coisas na memória - disse ela, olhando para a mesa da promotoria.

 

- Então se esforçou para manter lembranças precisas?

 

- Sim, foi isso.

 

- Dra. Cassady, viu alguma mancha de sangue na roupa do coronel Shafer?

 

- Não, não vi.

 

- Sei. A senhora não viu nenhum sangue em Shafer. E quando o detetive Cross chegou, viu alguma mancha de sangue nesse policial?

 

- Sim, vi manchas escuras ou filetes de sangue em sua camisa e no jaquetão. Também tinha sangue nas mãos.

 

Jules Halpern fez uma pausa para deixar a coisa ser bem absorvida pelo júri. Depois fez uma última pergunta:

 

- O coronel Shafer parecia ter acabado de matar alguém?

 

- Não, certamente não.

 

- Sem mais perguntas - disse o advogado de defesa. Daniel Weston reinquiriu a testemunha para a promotoria.

 

Era um homem de vinte e nove anos, inteligente, esperto, uma estrela em ascensão; no gabinete da promotoria, tinha fama de ser um guerreiro implacável.

 

Dan Weston, que era também um homem de boa aparência, louro, de traços bem marcados, chegou bastante perto de Boo Cassady. Formavam um casal fascinante, e era precisamente essa a idéia que ele queria passar.

 

- Dra. Cassady, a senhora não era a psiquiatra do sr. Shafer, certo?

 

Ela franziu ligeiramente a testa, mas logo exibiu um sorriso discreto.

 

- Não, um psiquiatra tem de ser formado em medicina. O senhor sabe disso, tenho certeza.

 

- E a senhora não é formada em medicina?

 

- Não - disse ela balançando a cabeça. - Tenho doutorado em sociologia. O senhor também sabe disso.

 

- A senhora é psicóloga! - perguntou Weston.

 

- Uma psicóloga geralmente se diploma em psicologia, às vezes com um doutorado.

 

- A senhora tem um diploma de psicóloga?

 

- Não. Eu sou psicoterapeuta.

 

- Entendo. Onde recebeu sua formação de psicoterapeuta?

 

- Na American University. Fiz pós-graduação em Serviço Social.

 

Daniel Weston continuou apertando Cassady. Não havia praticamente um segundo de intervalo entre pergunta e resposta.

 

- Este seu ”consultório de psicoterapia” no Farragut. Como ele está montado?

 

- Há um divã, uma escrivaninha, um abajur. Sem dúvida é bastante frugal. Tenho ainda muitas plantas. Os pacientes acham a atmosfera funcional, mas também relaxante.

 

-Nenhuma caixa de lenços de papel ao lado do diva? Achei que isso era vital - disse Weston sorrindo furtivamente.

 

A testemunha agora estava visivelmente irritada, talvez mesmo ofendida.

 

- Encaro meu trabalho com muita seriedade, dr. Weston. Assim como meus pacientes.

 

- Geoffrey Shafer a procurou por indicação de alguém?

 

- Na realidade nos conhecemos na National Gallery... Na exposição de desenhos eróticos de Picasso. Ela’tivera uma ampla cobertura da imprensa.

 

Weston abanou a cabeça e um leve sorriso aflorou em seus lábios.

 

- Ah, entendo. Suas sessões com Geoffrey Shafer são eróticas? Sempre tratam de sexo?

 

Jules Halpern se levantou de repente - um movimento que não faria vergonha a um boneco de molas.

 

- Protesto! A relação do paciente com o terapeuta é confidencial.

 

O jovem promotor sacudiu os ombros e, com a mão, jogou para trás alguns cachos de cabelo.

 

- vou retirar a pergunta, sem problema. A senhora presta serviços sexuais?

 

- Não, não faço isso. Como já declarei, sou psicoterapeuta.

 

- Na noite do assassinato da detetive Hampton, a senhora e Geoffrey Shafer tratavam...

 

- Protesto! - gritou Jules Halpern se levantando de novo.

- Se a promotoria insiste em expor o direito de sigilo do paciente...

 

Weston ergueu os dois braços num gesto de frustração. Depois sorriu para os jurados, esperando que eles estivessem sentindo a mesma coisa.

 

- Está bem, está bem. Vamos ver. vou sair da suposta relação terapeuta-paciente e lhe perguntar, de forma bastante direta, se a senhora, Cassady, uma mulher, teve relações sexuais com Geoffrey Shafer, um homem?

 

Elizabeth ”Boo” Cassady deixou cair a cabeça e fixou os olhos no chão.

 

Daniel Weston já estava sorrindo quando o protesto de Jules Halpern foi sustentado pelo juiz Fescoe. Weston sabia que atingira seu objetivo.

 

- Esta corte chama o detetive Alex Cross.

 

Respirei fundo, tentei acalmar a mente, o corpo, a alma, e avancei pela ampla ala central do tribunal. Todos me observavam, mas Geoffrey Shafer era a única pessoa que eu enxergava. O Gambá. Ele continuava desempenhando o papel do inocente caluniado e eu queria derrubá-lo. Eu mesmo gostaria de inquirilo, perguntando o que realmente devia ser perguntado, revelando ao júri as provas que foram suprimidas, fazendo a justiça cair com força esmagadora sobre ele.

 

Era muito duro ter trabalhado honestamente por tantos anos e enfrentar a acusação de ser um tira safado, alguém que tinha forjado provas ou feito coisa pior. Era irônico, mas talvez aquele momento me desse oportunidade de retificar minha ficha, de limpar o meu nome.

 

Jules Halpern concedeu-me um sorriso cordial quando sentei no banco das testemunhas, olhou-me um instante de frente, observou o júri e voltou a se concentrar em mim. Os olhos negros irradiavam inteligência e era um terrível desperdício ele estar trabalhando para Shafer.

 

- Quero começar dizendo que é uma honra conhecê-lo, detetive Cross. Há anos eu, como a maioria dos jurados, tenho certeza, somos informados através dos jornais de Washington dos casos de homicídio que o senhor ajudou a solucionar. Admiramos sua antiga folha de serviços.

 

Abanei a cabeça e consegui dar um sorriso amarelo.

 

- Obrigado. Espero que venha a admirar também minha atual e futura folha de serviços.

 

- Vamos esperar que sim, detetive - disse Halpern. Ele começou o interrogatório e, depois de meia hora trocando leves golpes de esgrima, fez a pergunta:

 

- Sofreu uma terrível tragédia pessoal pouco antes da prisão do coronel Shafer. Poderia nos dizer alguma coisa sobre isso?

 

Tive o ímpeto de estender o braço e agarrar pelo pescoço aquele homenzinho traiçoeiro, de fala macia. Debrucei-me sobre o microfone, lutando para manter o controle.

 

- Alguém de quem gosto muito foi seqüestrado quando passávamos férias nas Bermudas. Ela ainda está desaparecida, mas não perdi as esperanças de que seja encontrada. Rezo, todo dia, para ainda estar viva.

 

Halpern fez um aceno de solidariedade. Ele era bom, exatamente como seu cliente.

 

- Eu realmente sinto muito. O departamento lhe deu uma licença adequada?

 

- Eles foram compreensivos e prestativos - disse eu, sentindo o ressentimento endurecer meu queixo. Achava detestável que Halpern estivesse usando o que acontecera com Christine para me deixar nervoso.

 

- Detetive, o senhor estava oficialmente de serviço na época do assassinato da detetive Hampton?

 

- Sim, tinha voltado plenamente ao serviço ativo uma semana antes do crime.

 

- Mas não lhe pediram que tirasse mais alguns dias de folga?

 

- Deixaram a coisa a meu critério. O chefe dos investigadores realmente questionou minha aptidão para retomar o serviço, mas a decisão final caberia a mim.

 

Halpern sacudiu pensativamente a cabeça.

 

-Ele achou que o senhor podia estar com a cabeça em outro lugar. O que seria natural, não acha?

 

-Eu estava transtornado, ainda estou, mas tenho conseguido trabalhar. E tem sido bom para mim. Foi uma decisão acertada voltar logo ao serviço.

 

Houve várias outras perguntas sobre meu estado de ânimo e, de repente, Halpern perguntou:

 

- E o senhor ficou muito nervoso quando descobriu que a detetive Hampton fora assassinada?

 

- Fiz o meu trabalho. Era uma terrível cena de homicídio.

- Seu cliente é um açougueiro. Quer realmente deixá-lo solto ? Será que não percebe o que está fazendo?

 

- Suas impressões digitais estavam no cinto da detetive Hampton e no painel de seu carro. O sangue dela estava em suas roupas.

 

Fiz uma pausa de vários segundos antes de falar de novo. Então tentei explicar.

 

- Havia uma enorme e terrível laceração na veia jugular da detetive Hampton. Havia sangue por todo o carro e mesmo no piso de cimento da garagem. Tentei ajudá-la até me certificar de que estava morta. É por isso que minhas impressões digitais foram encontradas no carro e o sangue da detetive Hampton estava em minhas roupas.

 

- Deixou algum rastro de sangue ao subir para a cobertura?

 

- Não, de modo algum. Examinei com cuidado os sapatos antes de sair da garagem. Examinei duas vezes. Fiz isso porque não queria marcar o prédio com uma trilha de sangue.

 

- Mas o senhor andava transtornado, o senhor mesmo admitiu. A vítima era uma policial. O senhor esqueceu inclusive de pôr as luvas quando deu a busca inicial na cena do crime. Havia sangue em suas roupas. Como pode ter tanta certeza de não ter deixado um rastro?

 

Olhei diretamente nos olhos de Halpern e tentei aparentar a mesma calma.

 

- Sei exatamente o que aconteceu naquela noite. Sei quem matou Patsy Hampton a sangue frio.

 

- Não, o senhor não sabe! - disse ele erguendo de repente a voz. - Esse é o ponto. O senhor não sabe! Não é correto dizer que, ao revistar o coronel Geoffrey Shafer, o senhor entrou em contato físico com ele?

 

- Sim.

 

- E não é possível que o sangue de suas roupas tenha passado para as roupas dele] Não é mesmo provável?

 

Eu não lhe daria a mínima brecha. Não podia.

 

- Não, não é possível. Aquele sangue estava na calça de Geoffrey Shafer antes de minha chegada.

 

Halpern se afastou de mim. Queria apontar suas baterias. Ele se aproximou da banca dos jurados e, de vez em quando, olhava firme em minha direção. Fez algumas outras perguntas sobre a cena do crime e disse a seguir:

 

- Mas a dra. Cassady não viu nenhum sangue. E os dois outros policiais também não viram nenhum sangue, não até o senhor entrar em contato físico com o coronel Shafer. O coronel Shafer ficou de três a cinco minutos no telefone antes de se encontrar com sua terapeuta. Ele saiu da festa de aniversário das filhas e foi direto para o consultório. O senhor não tem provas, detetive Crossl Excluindo os rastros que o senhor mesmo deixou no apartamento da dra. Cassady. O senhor não tem absolutamente qualquer prova, detetive! Prendeu o homem errado! Incriminou um inocente!

 

Jules Halpern levantou as mãos num gesto de repugnância.

 

- Não tenho, de fato, mais nada a perguntar.

 

Saí do tribunal por uma porta dos fundos. Geralmente eu fazia isso, mas naquele dia foi essencial. Queria evitar a multidão e a imprensa, e precisava ficar um pouco sozinho para me recuperar do tempo que passara no banco das testemunhas.

 

Levara um bom chute no traseiro de um exímio chutador de traseiros. No dia seguinte, Cathy Fitzgibbon tentaria neutralizar uma parte do estrago na reinquirição.

 

Não tinha pressa quando desci a escada dos fundos usada pelo pessoal de limpeza e manutenção do prédio e que também servia como saída de emergência.

 

A possibilidade de que Geoffrey Shafer fosse absolvido ia ficando clara para mim. Seus advogados eram os melhores e tínhamos perdido o direito de apresentar provas importantes na audiência preliminar.

 

Para completar, eu cometera um grande erro na cena do crime, quando, na minha pressa de ajudar Patsy Hampton, não me preocupara em calçar as luvas.

 

Um erro compreensível, mas capaz de fomentar dúvidas nas cabeças dos jurados. Havia mais sangue em mim do que em Shafer. Era verdade. Shafer podia realmente sair impune, uma idéia que me parecia insuportável. Desci os degraus sinuosos da escada com vontade de berrar.

 

E foi exatamente o que fiz. Berrei com toda a força dos pulmões, achando ótimo soltar a pressão. O alívio fluiu pelo meu corpo, por mais efêmera que a sensação pudesse ser.

 

No fim dos degraus de cimento, um longo e escuro corredor levava à garagem do fórum e à vaga distante onde eu deixara o Porsche. Continuei avançando cheio de pensamentos confusos, ainda que mais tranqüilo depois do grito primai.

 

Perto da saída desse corredor, havia uma curva aguda, e antes de completá-la eu vi. Não podia acreditar. O Gambá estava bem na minha frente.

 

Foi o primeiro a falar.

 

- Que surpresa, dr. Cross. Escapando da multidão enlouquecida... ou seria melhor dizer enlouquecedora? Está com o rabo entre as pernas hoje? Não se atormente, o senhor fez o que pôde lá em cima. Era o senhor quem estava gritando nos corredores? Gritos primais sempre fazem bem, não é?

 

- O que está querendo, Shafer? - perguntei. - Não devemos nos encontrar ou conversar.

 

Ele sacudiu os ombros largos e tirou o cabelo louro dos olhos.

 

- Acha que me importo com regras? Elas não valem porra nenhuma para mim. O que eu estou querendo? Meu bom nome restaurado. Quero que minha família não precise mais passar por isso. É o que eu quero.

 

- Então não devia ter assassinado todas aquelas pessoas. Principalmente Patsy Hampton.

 

Shafer riu.

 

- Está muito seguro de si, não é? Não dá o braço a torcer, o que admiro até certo ponto. Eu mesmo já brinquei de ser herói. No exército. Durante algum tempo é interessante.

 

- Mas é muito mais interessante ser um lunático e furioso assassino - disse eu.

 

- Está vendo? Você simplesmente não recua um passo de suas opiniões fantásticas. Gosto disso. Você é incrível.

 

- Não são opiniões, Shafer. Sabe disso tão bem quanto eu.

 

- Então prove, Cross. Vença este caso lamentável, patético, está bem? Me bata numa luta justa e aberta no tribunal. Já lhe dei a vantagem de um fórum perto de casa, não acha?

 

Comecei a avançar para ele; não pude me conter. Ele ficou parado.

 

- Para você, tudo não passa de um jogo insano. Mas não é a primeira vez que encontro filhos-da-puta, Shafer. E assim como os derrotei, vou derrotar você!

 

- Sinceramente eu duvido - disse ele rindo no meu rosto. Dei uma guinada no túnel estreito e ultrapassei-o.

 

Ele me puxou - com força, por trás. Era um homem alto e ainda mais forte do que parecia.

 

Perdi o equilíbrio e quase caí no chão de pedra. Não estava esperando aquele acesso de raiva por parte dele. Afinal, sufocara tão bem essa emoção na corte, por mais que ela estivesse perto da superfície. Fiquei impressionado com a loucura que era Geoffrey Shafer. Com a violência.

 

- Vamos lá, então. Me dê um soco! - ele gritou a plenos pulmões. - Vamos ver se consegue. Me dê um soco aqui, agora mesmo! Acho que não tem coragem, Cross. Sei que não tem.

 

Shafer deu um passo rápido em minha direção. Não era apenas forte, mas também ágil e atlético. Éramos quase do mesmo tamanho, um metro e oitenta e cinco ou um pouco mais, noventa quilos. Lembrei-me que ele fora oficial do exército e depois estiveranoMI-6. Ainda parecia estar em excelente forma.

 

Shafer tornou a me empurrar com ambas as mãos e deu um resmungo alto.

 

- Se já derrotou tanta gente, não vai ter medo de um tipo como eu.é verdade ou não? Não acha que comigo é mole!

 

Quase lhe dei um soco; foi o que tive vontade de fazer. Ansiava por derrubá-lo, remover daquela cara o ar superior, convencido.

 

Limitei-me, no entanto, a agarrá-lo com força, a empurrá-lo contra a parede do túnel de pedra e a mantê-lo ali.

 

- Não agora, não aqui - disse eu num murmúrio rouco e rude. - Acho que não vou bater em você, Shafer. Para quê? Para você correr para os jornais e para a TV? Mas vou derrotá-lo. Em breve.

 

Ele reagiu com uma risada louca.

 

-É um fodido ridículo, sabia? É umpalhaço. Eu gosto disso.

 

Afastei-me de Shafer no túnel escuro. Foi a coisa mais difícil que fiz em minha vida. Queria arrancar as respostas dele, ter uma confissão. Queria saber de Christine. Tinha muitas perguntas, mas sabia que ele não ia respondê-las. Estava ali para me provocar, para jogar.

 

- Você está perdendo... tudo - ele disse por trás de mim. Naquele momento, achei que seria capaz de matar Geoffrey

 

Shafer.

 

Quase me virei, mas não o fiz. Em vez disso, abri a porta rangente e saí de lá. Por um instante, a luz do sol me ofuscou quase inteiramente. Protegendo o rosto com um dos braços, subi mais alguns degraus de pedra até o estacionamento, onde uma desagradável surpresa me aguardava.

 

Uns doze jornalistas, incluindo certos repórteres bem conhecidos, tinham se reunido de cara feia nos fundos da área de estacionamento. Alguém os alertara; alguém soprara que eu estava saindo por ali.

 

Virei-me para a porta de metal cinzento, mas Geoffrey Shafer não vinha atrás de mim. Ele recuara, desaparecendo no subsolo do prédio.

 

- Detetive Cross - ouvi a voz de um repórter. - Está perdendo este caso. Sabe que é verdade, não é?

 

Sim, eu sabia. Estava perdendo tudo. E simplesmente não tinha idéia do que podia fazer para me defender.

 

Minha inquirição por Catherine Fitzgibbon tomou todo o dia seguinte. Catherine fez um bom trabalho e conseguiu neutralizar alguns dos estragos feitos por Jules Halpern, mas não todos. Halpern quebrava consistentemente seu ritmo com objeções. Como nos demais julgamentos recentes de grandes assassinos, havia também ali um clima alucinante. Devia ser fácil condenar e prender Geoffrey Shafer, mas não era isso que estava acontecendo.

 

Dois dias mais tarde, tivemos nosso melhor momento, um momento que o próprio Shafer nos proporcionara, como se estivesse nos desafiando. Percebíamos que ele era ainda mais louco do que pensávamos. O jogo era sua vida; nada mais parecia importar.

 

Shafer concordara em sentar-se no banco das testemunhas e eu fui o único na sala do tribunal a não ficar de todo espantado com essa atitude. Sabia que ele queria fazer o jogo na frente de todos.

 

Catherine Fitzgibbon tinha quase certeza de que Jules Halpern o aconselhara, o advertira e finalmente implorara para que não fizesse isso, mas lá ia Shafer, andando a passos largos para o banco das testemunhas, como se tivesse sido convocado pela rainha para subir num estrado e ser solenemente armado cavaleiro.

 

Não podia resistir a um palco, certo? Parecia tão confiante e controlado quanto na noite em que o prendi pelo assassinato de Patsy Hampton. Vestia um terno azul-marinho tipo jaquetão, camisa social e gravata dourada. Não havia um único fio de cabelo louro fora do lugar, nem se via qualquer traço da raiva que devia ferver sob aquele exterior meticulosamente arrumado.

 

Jules Halpern se dirigiu a ele em tom descontraído, mas tenho certeza de que se sentia pouco à vontade participando daquele jogo inútil.

 

- Primeiro, coronel Shafer, quero lhe agradecer por ter vindo ao banco das testemunhas, uma iniciativa inteiramente voluntária da sua parte. Desde o início do julgamento, o senhor tem declarado que queria sentar-se aqui para limpar o seu nome.

 

Shafer sorriu cordialmente, mas logo interrompeu Jules Halpern com a mão erguida. Os advogados de ambos os lados do cancelo trocaram olhares. O que estava acontecendo? O que ele ia fazer?

 

Inclinei-me mais para a frente e ocorreu-me a idéia de que Halpern podia realmente saber que seu cliente era culpado. Se assim fosse, ele não conseguiria inquiri-lo. Legalmente, não podia fazer perguntas que ocultassem os fatos reais de que tivesse conhecimento.

 

Era esse o único meio de Shafer ter seu momento de glória: através de um monólogo. Uma vez chamado para depor, poderia fazer um discurso. Era incomum, mas absolutamente legal - e se Halpern soubesse que seu cliente era culpado, era o único meio de Shafer ocupar o banco sem ser incriminado pelo próprio defensor.

 

Shafer tinha a palavra.

 

- Se me permitir, dr. Halpern, acho que eu mesmo posso falar com essas pessoas de bem. Realmente sou capaz de fazêlo. O senhor entende, não preciso de uma tonelada de ajuda especializada para dizer a verdade pura e simples.

 

Jules Halpern recuou, abanou sabiamente a cabeça e procurou manter a pose. O que mais podia fazer naquelas circunstâncias? Se não soubesse desde o início que tinha um cliente narcisista e insano, certamente o saberia agora.

 

Shafer olhou para o júri.

 

- Foi declarado neste tribunal que estou ligado à inteligência britânica e que fui um MI-6, um espião. Atualmente, no entanto, acho que não passo de um funcionário meio sem glamour, um zero à esquerda, se quiserem.

 

O leve e bem armado golpe de modéstia conquistou risos na corte.

 

- Sou um simples burocrata, como tantos outros que vão cavando seus dias e noites em Washington. Cumpro tarefas bem definidas na embaixada e praticamente tudo que faço depende de ordem superior. Minha vida doméstica também é simples e ordeira. Eu e minha esposa estamos casados há quase dezesseis anos e gostamos muito um do outro. Também somos devotados aos nossos três filhos.

 

”Por isso quero me desculpar ante minha esposa e meus filhos. Os senhores não imaginam como lamento a terrível provação pela qual eles estão passando. Lamento por meu filho, Rob, e pelas gêmeas, Tricia e Erica. Se eu tivesse tido uma idéia clara do circo que isto ia se tornar, teria preferido invocar a imunidade diplomática e tentar limpar de outro modo meu nome, nosso nome, o nome deles.

 

”E já que estou pedindo desculpas sinceras, quero me desculpar também ante todos vocês pelo incômodo de terem de participar desta coisa. Sem dúvida, ao ser acusado de assassinato, algo tão hediondo, tão inconcebível, um homem inocente terá desesperadamente de colocar para fora o aperto que sentirá no peito. Não haverá, para ele, coisa mais importante que dizer a verdade. E é isso que estou fazendo hoje.

 

”Os senhores ouviram a acusação... e não havia simplesmente nenhuma prova. Ouviram os depoimentos sobre meu caráter. E ouvem agora o meu próprio testemunho. Eu não matei a detetive Patsy Hampton. Acho que os senhores já sabem disso, mas eu queria lhes dizer com minhas próprias palavras. Obrigado pela atenção.” Shafer se inclinara ligeiramente na cadeira ao concluir.

 

Fora um depoimento breve, mas Shafer tinha pose, era articulado e, infelizmente, parecia muito digno de crédito. Em momento algum parara de olhar para os membros do júri. As palavras, sem dúvida, eram menos importantes que o modo como eram passadas.

 

Catherine Fitzgibbon se adiantou para inquiri-lo. A princípio foi cuidadosa; sabia que o júri ficara momentaneamente a favor de Shafer. Esperou até perto do fim do interrogatório para procurar atingi-lo no ponto mais vulnerável.

 

- O depoimento foi muito interessante, sr. Shafer. Sentado diante deste júri, o senhor alegou que seu relacionamento com a dra. Cassady era estritamente profissional e que o senhor não teve contato sexual com ela, correto? Não esqueça que está sob juramento.

 

- Sim, absolutamente correto. Ela foi, e espero que continue a ser, minha terapeuta.

 

- Afirma isso apesar dela admitir que manteve um contato sexual com o senhor?

 

Shafer ergueu a mão para Jules Halpern, fazendo sinal para ele não protestar.

 

- Acho que a transcrição dos depoimentos poderá mostrar que ela não admitiu isso.

 

Fitzgibbon franziu a testa.

 

- Será que não? Por que o senhor acha que ela não respondeu ao advogado?

 

- Mas é óbvio - disparou Shafer. - Porque não quis validar uma pergunta dessas.

 

- E quando ela abaixou a cabeça e olhou para o chão? Era um assentimento, não acha?

 

Shafer olhou para o júri e balançou a cabeça com ar de espanto.

 

- A senhora se equivocou inteiramente. Errou novamente o alvo, advogada. Não se lembra do que disse o rei Carlos antes de ser decapitado? ”Tragam-me o manto. Não quero que achem que estou com medo quando virem meu corpo tremer.” A dra. Elizabeth Cassady ficou profundamente embaraçada pela rude sugestão de seu sócio. Minha família também ficou. Eu também fiquei.

 

Geoffrey Shafer olhou para a promotora com uma expressão severa e se voltou novamente para o júri.

 

- Eu também fiquei.

 

Com o julgamento praticamente encerrado, chegara a parte realmente difícil: a espera do veredicto. Naquela terça-feira, os jurados se retiraram para a sala do júri e começaram a deliberar sobre o julgamento de Geoffrey Shafer por homicídio. Pela primeira vez, eu me permiti realmente conceber o inconcebível - que Shafer pudesse ser posto em liberdade.

 

Sentados na última fila do tribunal, eu e Sampson observamos a partida dos doze membros do júri: oito homens e quatro mulheres. John comparecera várias vezes à corte, dizendo que era lá que acontecia ”o melhor e mais louco show deste lado da Casa Branca”, mas eu sabia que comparecia para me dar força.

 

- O filho-da-puta é culpado; e é tão maluco como aquele Berkowitz que enfrentamos - disse Sampson olhando para Shafer. - Mas está cercado por uma turma de ótimos atores: esposa devotada, amante devotada, advogados bem pagos, o Bestão. Ele pode sair dessa.

 

- Pode acontecer - admiti. - As decisões de um júri são sempre uma incógnita. É cada vez mais difícil compreendê-las.

 

Vi Shafer trocando gentis apertos de mão com os membros de sua equipe de defesa. Jules e Jane Halpern mostravam sorrisos forçados. Eles sabem, não é? Têm como cliente o Gambá, um assassino em série.

 

- Geoffrey Shafer tem a capacidade de fazer as pessoas acreditarem nele quando é preciso - disse eu.-É o melhor ator que já vi.

 

Depois que John foi embora, escapei de novo pela porta dos fundos. Desta vez nem Shafer nem a imprensa estavam de tocaia no subsolo ou nos fundos do estacionamento.

 

Ao me aproximar do carro, ouvi uma voz de mulher e parei de andar. Achei que era Christine. Havia uma dúzia ou mais de pessoas se encaminhando para seus carros, aparentemente nem percebendo que eu estava lá. Agitado e febril, observei cada uma, mas Christine não estava entre elas. De onde a voz teria vindo?

 

Coloquei meu velho Porsche para rodar ouvindo George Benson no CD player. Lembrei-me do relatório policial sobre a corrida alucinada de Shafer até os arredores do Dupont Circle, o que, estranhamente, era mais ou menos o que eu tinha vontade de fazer. Seguindo meu próprio conselho, procurava não fazer suposições sobre a decisão do júri. A coisa podia ir num sentido ou no outro.

 

Comecei a pensar em Christine e fiquei engasgado. Era demais. Lágrimas começaram a correr pelo meu rosto e tive de encostar o carro.

 

Dei um suspiro fundo, depois outro. A dor em meu peito era tão aguda quanto no dia de seu desaparecimento nas Bermudas. Ela tentara não se comprometer comigo, mas eu não permitira. Era responsável pelo que tinha lhe acontecido,

 

Tornei a avançar por Washington, rodando sem objetivo e quase em círculos. Finalmente, mais de duas horas e meia depois de sair do fórum, consegui chegar em casa.

 

Nana veio correndo me receber. Devia ter me visto entrar na rampa da garagem. Obviamente, estava me esperando.

 

Pus a cabeça para fora, pois o DJ continuava a falar compulsivamente na rádio FM.

 

- O que é, minha velha? - perguntei a Nana. - Qual é o problema agora?

 

- A dra. Fitzgibbon telefonou, Alex. O júri está voltando. Eles têm um veredicto.

 

Estava muito apreensivo. Mas também curioso; nunca, em minha vida, ficara tão curioso.

 

Dei a ré na frente da garagem e disparei para o centro da cidade, conseguindo chegar ao fórum em menos de quinze minutos. A multidão na rua E estava maior e mais barulhenta que no auge do julgamento. Pelo menos meia dúzia de bandeiras inglesas se sacudiam no vento; contrastando com elas, havia bandeiras americanas, incluindo algumas pintadas em rostos e peitos nus.

 

Foi preciso literalmente conquistar cada centímetro de caminho por entre o aglomerado de gente para conseguir chegar aos degraus do fórum. Ignorei as perguntas da imprensa. Procurei evitar todos que tivessem uma câmera na mão. Procurei me esquivar do olhar faminto dos repórteres.

 

Entrei na sala lotada do tribunal pouco antes do júri retornar em fila indiana. ”Quase perdi a coisa”, disse para mim mesmo.

 

Depois que todos se sentaram, o juiz Fescoe se dirigiu à audiência.

 

- Não haverá manifestações quando este veredicto for lido. Se elas ocorrerem, os oficiais de justiça evacuarão de imediato o recinto. - As instruções foram dadas em voz baixa, mas bastante nítidas.

 

Algumas fileiras atrás da equipe da promotoria, eu tentava recuperar meu ritmo respiratório. Era inconcebível que Geoffrey Shafer pudesse sair livre; eu não tinha a menor dúvida de que ele matara muita gente além de Patsy Hampton - por exemplo, algumas fulaninhas. Tratava-se de um cruel serial killer, um dos piores, e havia anos vinha conseguindo se esquivar da justiça. Percebi, naquele momento, que dentre todos os homicidas com que me defrontara, talvez Shafer fosse o mais arrojado e desumano. Armava seus lances pisando bem fundo, pois se recusava radicalmente a perder.

 

- Chegaram ao veredicto, senhor primeiro jurado? perguntou o juiz Fescoe num tom melancólico.

 

Raymond Horton, o primeiro jurado, respondeu:

 

- Meritíssimo, chegamos ao veredicto.

 

Olhei de relance para Shafer; parecia confiante. Como acontecia desde o início do julgamento, usava um terno feito sob medida, camisa social e gravata. Era um homem sem um pingo de consciência e não tinha medo de nada que pudesse lhe acontecer. Talvez isso explicasse, pelo menos em parte, por que conseguira escapar por tanto tempo.

 

Ao contrário das outras vezes, o juiz Fescoe tinha um ar bastante severo.

 

- Muito bem - disse ele. - O acusado pode se levantar, por favor?

 

Na mesa da defesa, Geoffrey Shafer se levantou, o cabelo louro, meio longo, brilhando sob as luzes brilhantes do teto. Devido à altura, destacava-se ao lado de Jules Halpern e da filha Jane. Shafer conservava as mãos nas costas, como se estivesse algemado. Talvez tivesse dois dados de vinte faces sacudindo nelas, do tipo que eu vira em seu escritório.

 

O juiz Fescoe se dirigiu novamente ao primeiro jurado.

 

- Quanto à acusação de homicídio em primeiro grau com premeditação, qual foi o veredicto?

 

- Inocente, meritíssimo - disse o primeiro jurado. Tive a sensação de que minha cabeça começara a rodar. Os espectadores que se comprimiam no pequeno salão ficaram realmente exultantes. Os jornalistas correram para as bancadas. O juiz, que prometera evacuar a sala se houvesse manifestações, foi logo se retirando para seu gabinete.

 

Shafer pareceu caminhar na direção dos fotógrafos, mas logo os ultrapassou. O que estava fazendo? Ele identificou um homem na multidão, para quem acenou formalmente. Quem era a pessoa?

 

Então Shafer foi se aproximando da quarta fileira, onde eu me encontrava. Tive vontade de saltar sobre as cadeiras e correr atrás dele. Queria realmente pegá-lo e senti que perdera a chance de fazer isso da maneira correta.

 

- Detetive Cross - disse ele com aquele seu jeito arrogante. - Quero lhe dizer uma coisa, detetive Cross. Há meses ando com isso na ponta da língua.

 

A imprensa fazia um cerco; a cena se tornava sufocante, claustrofóbica. Câmeras espocavam por todo lado. Agora que o julgamento tinha terminado, os repórteres não estavam mais impedidos de fotografar no interior do tribunal. Sem dúvida, Shafer estaria plenamente consciente daquela rara oportunidade. Quando os murmúrios cessaram, ficamos no meio de uma bolha de silêncio e de sinistra expectativa. E ele falou de novo, para que todos pudessem ouvir:

 

- Você a matou - disse com um olhar que pareceu me atravessar o crânio. - Você a matou!

 

Fiquei entorpecido, com as pernas repentinamente bambas. Sabia que ele não estava se referindo a Patsy Hampton. Estava se referindo a Christine. Ela morrera.

 

Fora morta por Geoffrey Shafer. Ele tirara tudo de mim, exatamente como disse que ia fazer. Ele vencera.

 

Shafer era um homem livre e estava nas nuvens. Apostara sua vida. Jogara e vencera em grande estilo. Em grande estilo! Nunca sentira qualquer coisa comparável à exaltação do momento em que soube do veredicto.

 

Em companhia de Lucy e dos filhos, foi até a sala do grande júri, um recinto imponente, de teto alto. Daria ali a entrevista exclusiva a alguns jornalistas. Posou para inúmeras fotos ao lado da família, que não parava de abraçá-lo. Lucy também não parava de chorar como a criança desmiolada, estragada de mimos e maluquinha que era. Quem achava que ele abusava das drogas ficaria chocado com o consumo de Lucy. Cristo, fora através dela que ele fizera o primeiro contato com o surpreendente mundo farmacológico!

 

Finalmente Shafer ergueu o punho fechado e manteve-o assim, como um debochado emblema de vitória. Câmeras rodavam por todo lado. Ninguém se fartava dele. Quase uma centena de jornalistas se comprimia na sala e as mulheres repórteres tinham verdadeira adoração por ele. Shafer se tornara um verdadeiro astro da mídia, certo? Era de novo um herói.

 

Agentes literários, à caça de fama e fortuna, empurravam seus cartões e prometiam obscenas somas de dinheiro pela história. Ele não precisava de nenhuma dessas ofertas espalhafatosas. Já escolhera, meses atrás, um poderoso agente de Nova York e Hollywood.

 

Deus, estava livre como um passarinho! E começava realmente a voar. Após a entrevista coletiva, alegando razões de segurança, despachou a esposa e os filhos.

 

Depois foi para o cartório do fórum, onde Jules Halpern o ajudou a acertar com representantes do Bertelsmann Group, o mais poderoso conglomerado editorial do mundo, detalhes para a publicação de um livro. Shafer garantiu que teriam um relato completo, mas evidentemente não lhes forneceria qualquer coisa que se aproximasse da verdade. Não era o que normalmente acontecia com as histórias supostamente baseadas em fatos reais? O pessoal da Bertelsmann sabia disso, mas mesmo assim pagaria regiamente sua colaboração.

 

Após a entrevista, ele pegou o lento elevador para o estacionamento. Ainda se sentia incrivelmente agitado, o que podia ser perigoso. Um conjunto de dados de vinte faces parecia estar queimando no bolso da calça do seu terno.

 

Queria desesperadamente jogar. De imediato! Os Quatro Cavaleiros. Ou melhor, Solipsis - sua versão solitária do jogo. Mas não cederia àquele impulso, pelo menos ainda não. Era perigoso demais, mesmo para ele.

 

Desde o início do julgamento, vinha estacionando o Jaguar na mesma vaga; tinha, sem dúvida, seus hábitos. Nunca se preocupara em pôr moedas no parquímetro, nem uma só vez, e sempre encontrava uma pilha de tíquetes de cinco dólares sob os limpadores do pára-brisa.

 

Aquele dia não era exceção.

 

Tirou os ridículos tíquetes de estacionamento dos limpadores, fez uma bolinha de lixo com eles e jogou-os nas manchas de óleo do piso de cimento.

 

- Tenho imunidade diplomática - disse em voz alta. Depois sorriu, entrando no Jaguar.

 

                                                             RETA FINAL

 

Shafer não podia acreditar. Cometera um erro muito sério e talvez irreversível. O resultado não era o que ele esperava e agora todo o seu mundo parecia estar se desintegrando. Às vezes achava que teria sido melhor ir para a prisão pelo frio assassinato de Patsy Hampton.

 

Shafer sabia que não se tratava apenas de paranóia ou loucura. No interior da embaixada, funcionários patéticos o espreitavam cada maldita vez que punha os pés fora da sala. Aparentavam ressentimento e franco desprezo, especialmente as mulheres. Quem os colocara contra ele? Porque, sem dúvida, tinha de haver um responsável.

 

Sentia-se como um Simpson branco e inglês. Uma estranha piada, a despeito da cor. Culpado, embora tenha provado sua inocência!

 

Por isso passava a maior parte do tempo dentro do escritório e com a porta fechada, às vezes trancada. Achando tudo aquilo absurdo, executava as poucas tarefas que ainda lhe cabiam com um crescente sentimento de irritação, de frustração. Era loucura ser encurralado daquele jeito, ver-se reduzido a um triste espetáculo para a equipe da embaixada.

 

Mexia ociosamente no computador à espera da continuação do jogo dos Quatro Cavaleiros, mas os outros jogadores tinham desertado. Estavam achando perigoso não apenas jogar, mas até mesmo se comunicarem entre si. Nenhum deles entendia que aquele era exatamente o momento perfeito para fazer os lances.

 

Shafer passava longos, intermináveis períodos do dia contemplando a avenida Massachusetts. Ouvia, no rádio, programas de entrevistas pelo telefone e ia ficando cada vez mais irritado. Precisava jogar.

 

Alguém estava batendo na porta de sua sala. Ao virar bruscamente a cabeça, sentiu uma pontada de dor na nuca. O intercom também começou a tocar. Quando atendeu, escutou a voz da sra. Wynne Hamerman, a secretária que lhe fora atribuída pela embaixada.

 

- O sr. Andrew Jones quer falar com o senhor. Andrew Jones? Shafer ficou chocado. Jones era um dos chefões do Serviço de Segurança em Londres. Shafer não sabia que o homem estava em Washington. Para que aquela visita? Jones era um safado do alto escalão, um sujeito impertinente que jamais o procuraria para um chá com biscoitos. Não devia deixálo esperar muito tempo.

 

Andrew Jones estava de pé no corredor e parecia impaciente, quase furioso. O que aquilo significava? Os olhos azuis tinham a frieza, a dureza do aço. Havia, em seu rosto, a tensão de um soldado inglês estacionado em Belfast. Em compensação, o brilho do cabelo e do bigode ruivos davam-lhe um ar afável, quase jovial. Em Londres, chamavam-no de Andrew, o Ruivo.

 

- Vamos entrar em sua sala, está ouvindo? - disse Jones em voz baixa, mas num tom de comando. - Feche a porta depois de entrarmos.

 

Superada a surpresa inicial, Shafer começava a perder a calma. Quem aquele arrogante filho-da-puta achava que era para ir entrando no seu escritório daquele jeito? Com que direito estava ali? Como tinha a coragem? O velho sapo! O glorificado lacaio de Londres!

 

- Sente-se, Shafer - disse Jones. Outro comando imperioso. - Serei breve e vou direto ao ponto.

 

- É claro - respondeu Shafer, permanecendo de pé. - Por favor seja breve e entre logo no assunto. Tenho certeza de que nós dois estamos ocupados.

 

Jones acendeu um cigarro, deu uma forte tragada e soltou devagar a fumaça. Shafer o espicaçou.

 

- Isso é ilegal aqui em Washington.

 

- Em trinta dias, receberá ordens para voltar à Inglaterra disse Jones, continuando a tirar baforadas do cigarro. - Você é um problema nesta cidade, como será certamente em Londres. Lá, é claro, os tablóides sensacionalistas inventaram para você a imagem de mártir da polícia e do sistema judicial americanos, que seriam ineficientes e brutais. Eles gostam de ver nisso os ”segredos de Washington”, com o caso rendendo novas provas da corrupção generalizada e do provincianismo da América. O que nós dois sabemos que, pelo menos na sua situação, é inteiramente falso.

 

- Como se atreve a entrar aqui e me falar nesse tom? disse Shafer com escárnio na voz. - Fui julgado por um crime hediondo que não cometi e fui absolvido por um júri americano. Já se esqueceu?

 

Jones franziu a testa e cravou os olhos nele.

 

- O resultado teria sido outro se provas cruciais não tivessem sido suprimidas. Como o sangue em sua calça. Como o sangue daquela pobre mulher no ralo do banheiro da casa de sua amante. - Ele soprou mais fumaça pelo canto da boca. Sabemos de tudo, seu tolo ridículo! Sabemos que é um monstro assassino frio como pedra. Por isso vai voltar a Londres e ficar lá... até que o peguemos fazendo alguma coisa. Porque é o que vai acontecer, Shafer. E nesse momento acertaremos nossas contas.

 

Jones prosseguiu:

 

- O simples fato de estar no mesmo ambiente que você me dá náuseas no estômago. Desta vez, conseguiu escapar legalmente da punição, mas agora passarei a observá-lo muito de perto e um dia vou pegá-lo com a mão na massa.

 

Shafer parecia estar se divertindo e não pôde reprimir um sorriso. Sabia que não devia fazer isso, mas era impossível resistir.

 

- Bem, você pode tentar, seu merda metido a besta. Pode realmente tentar. Mas espere a sua vez. E agora, se me dá licença, eu preciso trabalhar.

 

Andrew Jones sacudiu a cabeça.

 

- Na realidade, você não tem mais qualquer trabalho a fazer. Mas fico feliz em ir embora. O fedor aqui é absolutamente insuportável. Quando tomou banho pela última vez, Shafer? Jones riu com um ar de desprezo. - Deus, você perdeu inteiramente a cabeça!

 

Naquela tarde, encontrei-me com Jones e três de seus agentes no Willard Hotel, perto da Casa Branca. A reunião fora convocada por mim. Sampson também estava lá. Fora reintegrado ao departamento, mas continuava a fazer o que originalmente lhe causara problemas.

 

- Acho que está louco - disse Jones. - Parece ter perdido todos os limites e cheira como uma privada num quartel. Como você vê seu estado mental?

 

Agora eu conhecia Geoffrey Shafer por dentro e por fora. Já me informara sobre sua família: os irmãos, a mãe sofredora, o pai dominador. As viagens de base militar a base militar até ele completar doze anos.

 

- Em minha opinião, tudo começou com uma séria polarização da personalidade, uma desordem que costumávamos chamar de psicose maníaco-depressiva. A coisa se manifestou quando Shafer era criança. Agora ele tenta se segurar numa mistura farmacológica: Xanax, Benadryl, Haldol, Ativan, Valium, Librium e outras drogas. Um verdadeiro coquetel. Obtido com receitas de médicos locais. Acho incrível que a cabeça dele ainda possa funcionar. É incrível, mas ele vai sobrevivendo, não afunda. E sempre vence.

 

- Eu disse a Geoff que ele ia embora de Washington. Qual será o efeito disso? - Jones me perguntou. - Juro que a sala dele cheirava como se um cadáver estivesse há dias apodrecendo lá.

 

-Na realidade, sua desordem pode vir acompanhada de um certo odor, geralmente um aroma seco, metálico. Como ele não deve estar tomando banho, a coisa se torna muito pungente, grudando-se nas narinas de quem está por perto. Mas, como eu estava dizendo, seus instintos para o jogo, para vencer e sobreviver, são impressionantes. Ele não vai parar.

 

- O que está acontecendo com os outros jogadores? Sampson quis saber. - Os chamados Cavaleiros?

 

Foi Jones quem respondeu:

 

- Alegam que o jogo acabou e que, para eles, tudo se resumia a um mero RPG. Oliver Highsmith continua em contato conosco, principalmente, tenho certeza, para nos vigiar. Na realidade ele próprio é um tremendo safado. Diz que lamenta muito o assassinato da detetive Hampton, mas que ainda não tem certeza absoluta de que Shafer seja o matador. E me aconselha a manter a mente aberta a esse respeito.

 

- E sua mente continua aberta a esse respeito? - perguntei, olhando também para os outros.

 

Jones não hesitou.

 

- Não tenho dúvidas de que Geoffrey Shafer é um serial killer - disse ele. - Já vimos o bastante e você também já nos disse o bastante. Muito possivelmente, Shafer é o pior maníaco homicida que encontramos até agora. Mas também não tenho dúvidas de que ele vai acabar sendo derrotado.

 

- Concordo - disse eu sacudindo a cabeça -, concordo com tudo que disse. Principalmente com a qualificação de maníaco homicida.

 

Naquela noite, Shafer estava falando de novo sozinho. Não podia evitar. Quanto mais tentava se controlar, pior a coisa se tornava; quanto mais se afligia, mais falava sozinho.

 

- Que eles todos se fodam: Jones, Cross, Lucy e as crianças, Boo Cassady e os outros jogadores covardes. Que se ferrem todos. Havia uma razão atrás dos Quatro Cavaleiros. Não era apenas um jogo. Era mais que apenas um jogo duro.

 

À noite, a casa em Kalorama ficava deserta, excessivamente silenciosa. Uma casa enorme e ridícula como só uma casa americana poderia ser. O living com dois ambientes, as seis lareiras, as flores há muito murchas do florista Aster, os livros com capas douradas e marrom que ninguém leu, os vasos de porcelana de Lucy, os detalhes arquitetônicos ”originais”, tudo o fazia subir pelas paredes de quatro metros de altura.

 

Passou a hora seguinte tentando se convencer de que não estava louco e, mais especificamente, que não era um drogado. Há pouco tempo, acrescentara outro médico de Maryland às suas fontes de medicamentos. Infelizmente, as receitas ilegais custavam-lhe uma fortuna. Uma situação que não se sustentaria para sempre. O Lithium e o Haldol eram para controlar as bruscas mudanças de humor, sempre muito reais. O Thorazine servia para a ansiedade aguda, também tremendamente real. O Narcan estava igualmente indicado para as alterações de humor. As múltiplas injeções de Loradol eram para alguma outra coisa, algum mal-estar que ele não sabia muito bem quando sentia. Sem dúvida, também tinha boas razões para tomar o Xanax, o Compazine, o Benadryl.

 

Lucy já partira para Londres, levando as traiçoeiras crianças com ela. Acontecera exatamente uma semana após o término do julgamento. A verdadeira causa fora a intervenção do sogro. Ele estivera em Washington e conversara menos de uma hora com a filha. Depois ela fizera as malas e partira como a ridícula caipira que sempre fora. Antes de embarcar, tivera a coragem de dizer a Shafer que ficara ao lado dele para não prejudicar as crianças e o pai, mas que, a partir daquele momento, considerava cumprido seu ”dever”. Não acreditava que ele fosse um assassino, como o pai viera lhe dizer, mas sabia que era adúltero e tinha certeza de que não suportaria mais um único segundo daquela situação.

 

Deus, como desprezava sua mulherzinha. Antes dela partir, ele deixou claro que o verdadeiro motivo pelo qual Lucy cumprira seu ”dever” fora para ele não contar à imprensa que a esposa era uma tremenda viciada em drogas, o que, sem a menor dúvida, poderia ter feito e ainda podia muito bem fazer.

 

Às onze horas, teve de sair para um passeio de carro - a ”regulamentar” excursão noturna. Sentia-se nervoso ao extremo, com uma sensação de claustrofobia. Não sabia se dava para se controlar por mais uma noite, por mais um minuto. Com a pele formigando, percebia que dezenas de irritantes pequenos tiques tomavam conta dele. Não conseguia, por exemplo, parar de bater com a porra do pé!

 

Os dados pareciam estar queimando no bolso da calça e a mente disparava em centenas de direções aleatórias, todas péssimas. Shafer queria, precisava matar alguém. Era um impulso com que convivia havia muito tempo, seu segredinho sujo. Os outros Cavaleiros sabiam da história; sabiam até como tudo começara. Shafer fora um decente militar inglês, mas, no fundo, ambicioso demais para permanecer no exército. Então ele conseguira, com a ajuda do pai de Lucy, uma transferência para o MI-6, onde achava que teriamais campo para avançar na carreira.

 

Seu primeiro destino foi Bangkok, onde conheceu James Whitehead, George Bayer e, por fim, Oliver Highsmith. Whitehead e Bayer passaram várias semanas testando Shafer, tentando recrutá-lo para uma área especializada: seria um matador, o perito que queriam ter para o trabalho sujo. Nos dois anos seguintes, Shafer executou três missões na Ásia, descobrindo que gostava da sensação de poder ao matar alguém. Oliver Highsmith, que comandava de Londres tanto Bayer quanto Whitehead, sugeriu-lhe, um dia, que despersonalizasse o ato, que visse a coisa como um jogo, e foi o que ele fez. Mas nunca deixara de ser um matador.

 

Shafer ligou o CD do Jaguar. Alto, para afogar a multidão de vozes que assolavam sua mente. Os velhos roqueiros ingleses Jimmy Page e Robert Plant iniciaram um dueto no interior do carro.

 

Ele deu a ré na saída da garagem e tomou o rumo de Tracy Place. Disparando com o carro, já havia se aproximado dos cem na quadra entre sua casa e a Twenty-fourth Street. Hora de outra corrida suicida?, ele se perguntou.

 

Luzes vermelhas piscaram ao lado da Twenty-fourth Street. Shafer começou a xingar quando viu o carro-patrulha da polícia metropolitana descendo em sua direção. Porra!

 

Parou o Jaguar no meio-fio e esperou. ”Babacas”, seu cérebro gritava. ”Malditos babacas, sempre criando caso!”

 

- E você, Shafer, é outro babaca também! - disse a si mesmo num murmúrio alto. - Mostre algum autocontrole, Geoff. Veja se consegue se acalmar. Tranqüilo! Já!

 

O carro-patrulha da polícia metropolitana, com dois tiras emboscados, parou atrás dele, quase encostando.

 

Um dos policiais saltou devagar e caminhou para a janela do Jaguar. O homem vinha inflado como a porra de um daqueles heróis do cinema americano. Shafer teve vontade de explodi-lo. Sabia que podia fazer isso. Tinha um ótimo semi-automático debaixo do banco. Tocou a coronha e, Deus, gostou daquele contato!

 

- Carteira e certificado de propriedade, senhor - disse o tira, parecendo insuportavelmente convencido. Dentro da cabeça de Shafer, uma voz distorcida urrava: Dê agora um tiro nele! A cabeça das pessoas vai explodir se você matar outro policial.

 

Shafer, no entanto, entregou os documentos e conseguiu mostrar um grande sorriso de timidez.

 

- Estamos sem fraldas descartáveis em casa e queria chegar depressa à Seven-Eleven. Sei que estava indo rápido demais e sinto muito, seu guarda. Sabe como é essa história com os bebês. O senhor tem filhos?

 

O patrulheiro não disse uma palavra; nem uma gota de civilidade no merda. Ele anotou uma multa por excesso de velocidade. Anotou devagar, bem devagar.

 

- Então ficamos assim, sr. Shafer - disse o guarda passando-lhe o talão da multa. - Oh, só para constar, você está sob vigilância, babaca. Estamos na sua cola, cara. Não assassinou Patsy Hampton e escapou. Você apenas acha que escapou!

 

Uma fileira de luzes de automóveis piscava sem parar, sem parar, na rua lateral onde o carro-patrulha surgira alguns momentos antes.

 

Ele se concentrou, procurando firmar os olhos na escuridão e reconheceu um dos carros, um Porsche preto.

 

Cross estava lá, observando. Alex Cross não desistiria.

 

Andrew Jones sentou-se a meu lado na penumbra silenciosa do Porsche. Havia quase duas semanas vínhamos trabalhando em estreita colaboração. Jones e o Serviço de Segurança pretendiam deter Shafer antes que ele cometesse um novo crime. Estavam também seguindo o rastro da Guerra, da Fome e da Conquista. Em silêncio, observamos Geoffrey Shafer dar a volta no Jaguar e retornar à casa.

 

- Ele nos viu, ele conhece meu carro - disse eu. - Isso é bom.

 

Não consegui ver o rosto de Shafer no escuro, mas pude quase sentir a cólera se erguendo do alto de sua cabeça. Sabia que estava enlouquecido. A expressão ”maníaco homicida” não parava de rodar em minha mente. Eu e Jones contemplávamos o próprio, que continuava em liberdade. Um homem que escapara impune de um assassinato - de vários assassinatos.

 

- Não acha, Alex, que ele pode entrar num estado de fúria? Isso não o preocupa? - Jones perguntou quando o Jaguar diminuiu a velocidade e parou na frente do casarão neoclássico. Como não havia luzes na garagem, Geoffrey Shafer saiu por alguns segundos de nossa vista. Seria impossível ter certeza de que entrara.

 

- Ele já está em fúria. Perdeu o emprego, a mulher, as crianças, o jogo que era a sua vida. Pior de tudo, sua liberdade de ir e vir tem sido restringida. Shafer não gosta que lhe imponham limitações, detesta ser encurralado. Não suporta perder.

 

- Acha, então, que ele fará algum gesto impensado?

 

- Não exatamente impensado; é esperto demais para isso. Mas vai fazer algum movimento. É assim que o jogo se passa.

 

- E vamos ter uma nova oportunidade de colocar as mãos nele?

 

- Sim, vamos. Sem a menor dúvida.

 

Tarde da noite, quando eu ia para casa, decidi parar na igreja de Santo Antônio, cuja característica mais inabitual é ficar aberta à noite. O monsenhor John Kelliher acha que é assim que deve ser e se dispõe a conviver com o vandalismo e os pequenos roubos. Felizmente, os vizinhos costumam zelar pelo templo.

 

Ao entrar, por volta da meia-noite, vi um casal de fiéis sob a luz das velas. Mesmo àquela hora é comum encontrar alguns ”paroquianos”. Não deixam os sem-teto dormir ali, mas eles ficam a noite inteira entrando e saindo.

 

Sentei-me observando o familiar clarão vermelho das velas votivas e pisquei. Traguei o forte cheiro do incenso para as bênçãos. Ergui os olhos para o grande crucifixo banhado a ouro e as belas janelas envidraçadas que eu amava desde menino.

 

Acendi uma vela por Christine e torci para que de algum modo, de alguma forma, ela ainda pudesse estar viva. Parecia improvável, é claro. Sua imagem desbotara um pouco em minha mente, coisa que me parecia terrível. Quando a coluna de dor me subiu do estômago para o peito, ficou difícil respirar. É o que vinha acontecendo desde a noite em que ela desaparecera, havia quase um ano.

 

E então, pela primeira vez, admiti que Christine se fora. Que eu nunca mais a veria. E o pensamento foi como um caco de vidro na minha garganta. Lágrimas me encheram os olhos.

 

- Eu a amo - sussurrei para ninguém. - Eu a amo demais e sinto terrivelmente a sua falta.

 

Disse mais algumas preces, levantei-me do comprido banco de madeira e me encaminhei em silêncio para as portas do vestíbulo. Não vi a mulher ajoelhada numa fileira lateral, mas ela me assustou com um movimento brusco.

 

Reconheci-a do dispensário. Chamava-se Magnólia, que talvez fosse um nome falso. Era tudo o que eu sabia a seu respeito. Ela me chamou em voz alta:

 

- Ei, homem da manteiga de amendoim, agora você sabe como é a barra!

 

Jones e Sandy Greenberg da Interpol tinham ajudado a manter os outros três Cavaleiros sob vigilância. Estávamos atirando uma grande rede e, se fôssemos bem-sucedidos, teríamos uma grande pesca.

 

O enorme potencial de escândalo na Inglaterra estava sendo cuidadosamente avaliado e acompanhado pelo Serviço de Segurança. Se ficasse constatado que quatro agentes ingleses eram assassinos envolvidos num ”jogo” bizarro, a repercussão seria tremenda e o estrago devastador para a comunidade de inteligência.

 

Shafer foi zelosamente para a embaixada na quarta e na quinta-feiras. Chegou pouco antes das nove e saiu pontualmente às cinco. Uma vez lá dentro, permaneceu fora de vista, trancado no pequeno escritório, não se arriscando sequer a sair para o almoço. Passou horas na America Online, que nós monitorávamos.

 

Usou, nos dois dias, a mesma calça cinza e um paletó azul, tipo blazer. Suas roupas pareciam incomumente amarrotadas, amassadas. Penteado para trás, o espesso cabelo louro também parecia sujo, gorduroso, capaz de resistir aos fortes ventos que estavam soprando em Washington. Shafer estava pálido e tinha um ar nervoso, agitado.

 

Estaria à beira de desmoronar?

 

Na sexta-feira à noite, após o jantar, eu e Nana nos sentamos nos fundos da casa na Fifth Street. Havia anos não passávamos tanto tempo juntos. Sabia como ela estava preocupada comigo e não recusei sua ajuda. Pelo bem de nós dois.

 

Lá dentro, Jannie e Damon estavam conseguindo lavar os pratos praticamente sem brigar. Damon lavava e Jannie enxugava. O CD player de Damon tocava o bonito sucesso do filme Beloved.

 

- Hoje em dia, a maioria das famílias tem uma lavadora e secadora de pratos - disse Nana depois de tomar um gole de chá. - A escravidão já acabou na América, Alex. Não ouviu nada sobre isso?

 

- Nós também temos uma lavadora e uma secadora. E parece que agora mesmo estão trabalhando muito bem. Baixo custo, fácil manutenção. Difícil de enguiçar.

 

- Bem, vamos ver quanto tempo vai durar - disse Nana com uma risadinha.

 

- Se quer uma lavadora de pratos, podemos comprar... ou só está querendo argumentar por amor à arte? Não é melhor buscar outra coisa mais à altura de seus talentos? Sei que é uma fã inveterada de Demóstenes e Cícero.

 

- Sabidinho - disse ela me tocando com o cotovelo. Acha que é muito esperto.

 

Sacudi a cabeça.

 

- Não é verdade, Nana. A vaidade nunca foi um dos meus grandes problemas.

 

- É, penso que tem razão, devia se preocupar mais consigo mesmo. - Quando Nana cravou os olhos em mim, foi como se espreitasse minha alma. Possuía a capacidade de olhar bem no fundo das coisas que realmente importavam. - Não acha que já se culpou demais? Sua cara anda horrível.

- Obrigado - eu disse sorrindo. Nana tinha aquele modo especial de me arrancar da depressão. - Não acha que já me amolou demais?

 

- Claro que sim - disse ela balançando a cabeça pequena -, mas um dia vou parar. Ninguém vive para sempre, filhote.

 

- Você vai viver, provavelmente. - Dei uma risada. Pelo menos mais tempo que eu ou as crianças.

 

Nana mostrou dezenas de dentes - dentes de verdade.

 

- No fim das contas, eu realmente ainda me sinto muito bem - disse ela. - Continua atrás dele, certo? É o que vem fazendo nessas últimas noites. Você, John Sampson e aquele inglês, Andrew Jones.

 

- Sim, é verdade. - Dei um suspiro. - E vamos pegá-lo. Pode haver quatro homens envolvidos numa série de crimes. Aqui e na Ásia, na Jamaica, em Londres.

 

Ela transformou o dedo num gancho e me fez sinal.

 

- Chegue mais perto.

 

Sorri. Nana era implicante às vezes, mas também era tão delicada, tão gentil.

 

- Quer mesmo que eu sente no seu colo, minha senhora? Tem certeza disso?

 

- Meu Deus, não! Não sente em cima de mim, Alex. Só quero que se incline, mostre um pouco de respeito por minha idade e sabedoria, e aproveite a oportunidade para me dar um grande abraço.

 

Fiz o que ela mandava e reparei que não vinham mais vozes nem barulho da cozinha.

 

Quando olhei para a porta de vidro, flagrei os dois pequenos intrometidos, os rostos apertados contra a barra das vidraças. Fiz sinal para que se afastassem e os rostos desapareceram.

 

- Quero que tenha muito, muito cuidado - Nana murmurou no meio do abraço suave. - Mas quero que consiga um modo de pegá-lo. Esse homem é o pior de todos eles. Geoffrey Shafer é o pior, Alex, o mais perverso.

 

Na realidade o jogo não acabara, mas se modificara tremendamente desde o julgamento em Washington.

 

Eram cinco e meia da tarde em Londres e a Conquista esperava em seu computador. Ele ficara ansioso e tremendamente empolgado com a novidade: os Quatro Cavaleiros se encontravam novamente em marcha.

 

Em Manila, nas Filipinas, era uma e meia da manhã. A Fome estava pronta para uma mensagem, para um novo começo do jogo que tanto adorava.

 

E a Guerra aguardava notícias dos Quatro Cavaleiros em seu casarão na ilha da Jamaica. Ele também estava obcecado para saber como o jogo ia terminar e quem seria o vencedor.

 

Era meio-dia e meia em Washington. Geoffrey Shafer saíra da embaixada e agora avançava rapidamente para o White Flint Mall. Tinha muita coisa a fazer naquela tarde. Estava agitado, na fase maníaca.

 

Deixando para trás a embaixada britânica e a casa do vice-presidente, subiu velozmente a avenida Massachusetts, achando perfeitamente possível que o estivessem seguindo. Alex Cross e os outros policiais estavam lá fora, sempre à espera de uma oportunidade para pegá-lo. Shafer ainda não os vira, mas isso só podia indicar que agora eles estavam jogando mais duro.

 

Dobrou bruscamente à direita, entrou no movimento de um trevo e saiu na avenida Nebraska, no sentido da American University. Rodou por ruas secundárias perto da universidade, depois saiu na Wisconsin e disparou para o shopping.

 

Estacionou e entrou na Bloomingdale’s, mas achou que a loja de departamentos estava meio deserta - uma atmosfera, sem dúvida, um tanto depressiva. Deus, como desprezava aqueles shoppings americanos que lhe traziam a lembrança de Lucy e da prole! Andando devagar, Shafer atravessou a seção de roupas masculinas, onde pegou algumas camisas pólo da Ralph Lauren, supercaras, e dois pares de calças pretas.

 

Jogou ainda no braço um terno preto de Giorgio Armani e começou a andar com a trouxa na direção das cabines. Acabou, no entanto, parando numa mesa da segurança e devolvendo as roupas ao funcionário - sem dúvida um homem que só estava lá para desencorajar ladrões de loja.

 

- Mudei de idéia - disse.

 

- Não faz mal, senhor.

 

Shafer, então, seguiu um corredor estreito que levava a uma saída nos fundos e disparou pelas portas de vidro que davam em outra área de estacionamento. Ao ver as placas da Bruno Cipriani e da Lord & Taylor, percebeu que estava na direção certa.

 

Um Ford Taurus se achava estacionado perto da seção F e Shafer saltou dentro dele, deu a partida e subiu a via Rockville até o trevo Montrose, uma distância de menos de dois quilômetros.

 

Agora já acreditava que ninguém o seguia. Ultrapassou Montrose e tomou o sentido norte, na direção do shopping Federal Plaza. Chegando lá, entrou no Cyber Exchange, que vendia software novo e usado e toneladas de computadores.

 

Seus olhos guinaram à esquerda e à direita até encontrarem exatamente o que estava precisando.

 

- Gostaria de experimentar o novo iMac - disse ao vendedor que se aproximava.

 

- Fique à vontade - disse o vendedor. - Se precisar de ajuda, é só me chamar. Mas é fácil.

 

É, acho que sei mexer. Se tiver problema eu chamo. E quase certo que vou comprar o iMac, acredite.

 

- Excelente escolha.

 

- Sim. Excelente, excelente.

 

O vendedor preguiçoso deixou-o sozinho e Shafer entrou de imediato no windows. O modelo em exibição estava on-line e ele sentiu um jorro de entusiasmo maníaco, mas também uma ponta de tristeza ao digitar a mensagem para os outros jogadores. Já meditara e já sabia o que tinha de ser dito, o que tinha de ser feito.

 

CUMPRIMENTOS E SAUDAÇÕES. ESTA GLORIOSA E INÉDITA AVENTURA DE OITO ANOS - OS QUATRO CAVALEIROS - ESTÁ CHEGANDO AO FIM. VOCÊS DEFENDERAM SEUS PONTOS DE VISTA COM MUITA LÓGICA E ACEITO A LAMENTÁVEL CONCLUSÃO A QUE CHEGARAM. O JOGO SE TORNOU MUITO PERIGOSO. POR ISSO PROPONHO QUE CRIEMOS UM FINAL INESQUECÍVEL. CREIO QUE UM ENCONTRO CARA A CARA SERIA UM FIM ADEQUADO. É O ÚNICO DESFECHO QUE POSSO ACEITAR.

ISTO ERA INEVITÁVEL, Eu SUPONHO, E JÁ DISCUTIMOS VÁRIAS VEZES A COISA. VOCÊS SABEM ONDE O JOGO ACABA. PROPONHO QUE COMECEMOS A JOGAR NA QUINTA-FEIRA. CONFIEM EM MIM, Eu ESTAREI LÁ PARA O GRANDE FINAL. SE NECESSÁRIO, POSSO COMEÇAR O JOGO SEM VOCÊS. NÃO ME OBRIGUEM A FAZER ISSO MORTE

 

Às nove horas da manhã de segunda-feira, Shafer entrou na monótona, nauseante fila dos débeis mentais que diariamente arrastavam seus carros na direção da área das embaixadas. Teve a inebriante certeza de que, depois daquele dia, nunca mais precisaria trabalhar. Tudo em sua vida estava prestes a mudar. Já não havia retorno.

 

O coração martelava quando parou no sinal verde da avenida Massachusetts, perto da embaixada. Atrás dele, as buzinas lhe trouxeram à memória a tentativa de suicídio que fizera havia um ano. Ano complicado aquele, ele pensou, arrancando bruscamente no sinal vermelho e continuando em disparada. Esquematizara sua fuga. Seria uma ocasião memorável.

 

Viu duas quadras de rua desimpedida à frente e pisou ainda mais fundo. O carro esporte arremeteu com força crua, fálica, por assim dizer. O Jaguar parecia um foguete no rumo do emaranhado de ruas transversais em volta da American University.

 

Dez minutos depois, o carro dobrou a oitenta no acesso do White Flint Mall, cujo estacionamento, ainda praticamente vazio, foi atravessado a noventa, a cem, a cento e dez. Shafer tinha certeza de que ninguém o estava seguindo.

 

Avançou para a fachada de uma grande filial da Borders Books & Music, depois guinou à direita e subiu como um raio a estreita alameda entre os prédios.

 

Conhecia cinco saídas do shopping e acelerou de novo, os pneus cantando.

 

Nos arredores, havia um labirinto de ruas estreitas. Ninguém vinha atrás dele, nem um só carro.

 

Conhecia um acesso pouco usado para a via Rockville, um desvio de mão única. Uma vez na estrada, foi em sentido contrário à barragem de tráfego que fluía para os escritórios do centro. Não vira carros correndo atrás dele na área do shopping, nem nas ruas transversais, nem na Rockville.

 

Era provável que só tivessem um veículo, no máximo dois, para vigiá-lo de manhã, o que parecia muito lógico. Nem a polícia metropolitana de Washington nem o Serviço de Segurança aprovariam um trabalho mais cerrado de vigilância. Sem dúvida não iam exagerar.

 

Quando achou que conseguira despistá-los, Shafer deu um tremendo berro e começou a buzinar para todos os patéticos imbecis a caminho do trabalho, para todos os merdas enfiados do outro lado da estrada. Tinha esperado quase oito anos por aquilo.

 

E a hora finalmente chegara.

 

Reta final.

 

- Não o perdemos? - perguntei a Jones, olhando nervoso para a meia dúzia de agentes trabalhando na sala da segurança dentro da embaixada britânica. O local estava cheio de equipamento eletrônico de última geração, incluindo meia dúzia de monitores de vídeo.

 

- Não, não o perdemos. Ele não escapará assim tão facilmente, Alex. Além disso, acho que sabemos para onde ele e os outros estão indo.

 

Tínhamos instalado um minúsculo e sofisticado aparelho de localização no Jaguar, mas havia uma chance razoável de que Shafer o descobrisse. Até aquele momento, tudo bem. E ele continuava em disparada no carro, levando a isca - pelo menos era o que achávamos que estava acontecendo.

 

Todos os Cavaleiros tinham entrado em movimento. Oliver Highsmith fora seguido de sua casa, em Surrey, até o aeroporto Gatwick, na periferia de Londres. Agentes postados no aeroporto garantiam que a Conquista embarcara no vôo da British Airways para Nova York e ligara para Washington avisando que estava a caminho.

 

Duas horas depois, um agente ligou das Filipinas. George Bayer se encontrava no aeroporto Ninoy Aquino, em Manila. A Fome comprara uma passagem para a Jamaica, com escala em Nova York.

 

Já sabíamos que James Whitehead se retirara para a Jamaica e que se achava na ilha naquele momento. A Guerra estava esperando a chegada dos outros.

 

- Estou tentando descobrir o esquema dos Quatro Cavaleiros - disse eu -, mas há um conjunto de esquemas possíveis. É por isso, aliás, que gostam tanto do jogo; é isso que o torna tão fascinante.

 

Continuávamos à espera de novas informações e eu pude prosseguir:

 

- Sabemos que pelo menos três deles vêm participando do jogo desde 91, quando serviam na Tailândia. Nessa época, táxigirls e prostitutas começaram a desaparecer em Bangkok. A polícia local não dispensou muito tempo às investigações. Não era a primeira vez que desapareciam garotas em Pat Pong. E nossa polícia teve uma atitude muito parecida aqui em Washington, com relação às mortes das fulaninhas. Eram mulheres que não tinham grande importância. Eram proscritas. Homicídios e desaparecimentos na zona sudeste certamente não são investigados como os que ocorrem em Georgetown ou em Capitol Hill. É um dos segredinhos sujos de Washington.

 

Jones acendeu mais um cigarro com a guimba do outro e deu uma tragada.

 

- Pode ser - disse ele - que apenas Shafer tenha se envolvido em crimes reais, Alex. Porque se os outros também matam, sem dúvida são muito mais bem-sucedidos em não deixar pistas.

 

Sacudi os ombros. Minha opinião não era essa, mas eu não tinha provas concretas para defender com eficiência outro ponto de vista diante de Jones, que não tinha exatamente a postura de um detetive.

 

- O fim dos Quatro Cavaleiros está chegando, certo? Sampson perguntou. - Mas será que vão mesmo querer encerrar seu pequeno RPG?

 

- Parece que estão realmente bem articulados - disse eu.

- Quatro ex-agentes britânicos, quatro homens adultos que gostam de brincar com joguinhos diabólicos. Em minha opinião, quatro assassinos.

 

- É possível. - Andrew Jones finalmente admitiu que era preciso conceber o inconcebível. - Tenho medo, Alex, de que você tenha razão.

 

Devem ter escolhido a Jamaica porque era um lugar relativamente isolado e porque era lá que James Whitehead tinha uma grande casa de praia. Talvez, no entanto, houvesse outras motivações, ligadas a outros ângulos do jogo dos Quatro Cavaleiros. Eu esperava que em breve pudéssemos descobrir quais eram.

 

Oliver Highsmith e George Bayer chegaram à ilha com um intervalo de minutos. Depois de se encontrarem junto à esteira de bagagem do aeroporto Donald Sangster, viajaram cerca de uma hora para o elegante Jamaica Inn, em Ocho Rios.

 

Nós também estávamos em ação. Eu chegara com Sampson no início da manhã, num vôo de Washington. O tempo parecia esplêndido. Céus azuis, brisas quentes. No aeroporto, ouvimos frases em inglês e em dialeto crioulo, assim como sons de reggae e ska. O roçar das bananeiras, quando a brisa marinha passava por elas, lembrava um coral em surdina.

 

Com apenas quarenta e cinco apartamentos dando para o mar, o hotel em Ocho Rios parecia muito discreto e antiquado.

 

Chegamos lá simultaneamente com quatro equipes da polícia inglesa. Havia também duas duplas de detetives de Kingston.

 

Alertado de nossa presença e de nosso objetivo ali, o consulado inglês em Kingston tinha prometido cooperação integral. Todos pareciam dispostos a pôr as mãos nos quatro parceiros de jogo, não importavam as conseqüências. Fiquei, sem dúvida, muito impressionado com o grupo inglês e com os detetives locais.

 

Continuaríamos à espera de Geoffrey Shafer. Eu e Sampson estávamos estrategicamente posicionados numa luxuriante encosta entre o hotel e o cintilante mar azul do Caribe. Queríamos vigiar a estrada estreita e cheia de sombras que levava ao Jamaica Inn. Andrew Jones e outro agente achavam-se num segundo carro escondido perto da entrada dos fundos do hotel. Havia seis agentes de Jones disfarçados de porteiros e pessoal de manutenção. Os detetives jamaicanos também tinham tomado posição na área.

 

Não ouvimos mais notícias de Shafer. Ele conseguira realmente nos despistar, mas acreditávamos que se juntaria aos outros jogadores. Jones se queixava de que não havia um efetivo suficiente para deter Shafer se ele estivesse indo atrás dos outros. Eu concordava; se Shafer quisesse brincar de camicase, não teríamos uma defesa adequada.

 

Ficamos então esperando, esperando. Informes contínuos entravam no rádio de ondas curtas do carro. As mensagens não pararam toda tarde. Eram uma espécie de pulsar eletrônico para nosso destacamento de vigilância.

 

Oliver Highsmith está agora em seu apartamento. Ao que parece, não quer ser perturbado...

 

Bayer também está em seu apartamento e há cerca de dez minutos localizamos o indivíduo no terraço, observando a praia com binóculos...

 

Bayer deixou o apartamento. O mar está muito azul e ele foi dar um mergulho. O indivíduo usa um calção com listras vermelhas. Seria difícil perdê-lo de vista, o que torna o conjunto do trabalho mais fácil. Mesmo assim é preciso estar sempre atento...

 

Mercedes preto chegando ao portão da frente. O motorista é alto e louro. Pode ser Geoffrey Shafer. Consegue vê-lo, Alex?

 

Reportei imediatamente.

 

- O louro não é o Shafer. Repetindo, não é o Shafer. Moço demais, provavelmente americano. Acompanhado de uma esposa jovem e dois filhos. Falso alarme. Não é Shafer.

 

As mensagens continuaram a chegar pelo rádio.

 

Highsmith acabou de pedir um serviço de quarto. Dois breakfasts ingleses no meio do dia. Um dos nossos vai tentar se aproximar dele...

 

Bayer voltou da praia. Bastante bronzeado. Um sujeito pequeno, mas forte. Tentou abordar algumas senhoras. Se deu mal.

 

Finalmente, por volta das seis horas, foi a minha vez de mandar outro informe.

 

- James Whitehead acabou de chegar num Range Rover verde! Está entrando no hotel. A guerra é aqui.

 

Só faltava mais um jogador. Esperamos. Faltava a chegada da Morte.

 

Shafer não estava com muita pressa de sacudir a bandeira de largada. Ficou um bom tempo analisando cada possível cenário. Já haviam se passado horas desde que vira pela primeira vez a costa da Jamaica no horizonte. Ele tinha voado para Porto Rico e fretado um iate. Queria ter alternativas de fuga também por mar.

 

Agora, esperando calmamente a noite cair, deixava o barco ser levado pelos frescos ventos alísios. Era a famosa ”hora azul” no mar, pouco depois do início do crepúsculo, extraordinariamente serena e bela. Também mágica, ligeiramente irreal. Concluíra outras quinhentas flexões no convés do barco e achava que ainda seria capaz de fazer mais. Podia ver meia dúzia de grandes navios de cruzeiro ancorados ao largo de Ocho Rios. E por todo lado havia iates como o seu.

 

Lembrava-se de ter lido em algum lugar que a ilha da Jamaica fora um dia propriedade pessoal de Cristóvão Colombo.

 

Gostava de imaginar que, em certa época, um homem podia se apossar de qualquer coisa, e freqüentemente o fazia. Seu corpo estava contraído e tenso. Estava também bronzeado devido aos três dias de sol da viagem. O cabelo, meio descorado, parecia ainda mais louro que de hábito. Já fazia quase uma semana que vinha mantendo as drogas sob controle. Um gesto de força de vontade, um desafio que resolvera enfrentar. Shafer queria vencer.

 

Sentia-se como um deus. Ou melhor, era um deus. Controlava cada movimento em sua própria vida e nas vidas de vários outros. Sobravam algumas surpresas, ele pensou borrifando lentamente o corpo com jatos frios de água. Havia surpresas para todos que tivessem preferido continuar no jogo.

 

         Seu jogo.

         Seu esquema.

         Sua reta final.

 

Pois aquilo não era apenas um jogo; nunca fora. É claro que, a essa altura, os outros jogadores já sabiam disso. Já teriam compreendido o que ele fizera e por que tinha de haver um acerto de contas. Era assim que, desde o início, os Quatro Cavaleiros tinham funcionado: na reta final, um aceno de contas, um acerto de Shafer... ou deles; ninguém podia dizer com certeza.

 

Shafer e os irmãos tinham aprendido a velejar com o pai, provavelmente a única coisa útil que o pai fizera por eles. E Shafer realmente conseguia encontrar tranqüilidade no mar. Talvez fosse essa a razão mais forte para chegar à Jamaica num iate.

 

Às oito horas, nadou para a costa, ultrapassando veleiros e algumas lanchas. Considerou o exercício físico um ótimo antídoto para sua ansiedade, seu nervosismo. Era ótimo nadador e mergulhador, assim como era bom na maioria dos outros esportes.

 

A atmosfera da noite estava calma, pacífica, perfumada. O mar parecia liso. Nenhuma ondulação perturbava a superfície da água. Bem, logo ia haver um bom número de ondulações.

 

Um carro esperava por ele junto à estrada da costa, um Ford Mustang preto, que o luar tornava vítreo, brilhante.

 

Shafer sorriu. O jogo prosseguia às mil maravilhas.

 

A Fome estava lá para encontrar-se com ele.

 

Não, a Fome estava lá por outra razão, não era?

 

George Bayer estava esperando à beira-mar para matá-lo.

 

George Bayer não está no quarto. E também não está com Oliver Highsmith ou James Whitehead. Maldição! Nós o perdemos.

 

Foi essa a alarmante mensagem que veio pelo rádio. Eu e Sampson, no entanto, estávamos vigiando o lado sul do hotel há quase oito horas e tínhamos certeza de que George Bayer não passara por ali.

 

Ouvimos a voz preocupada de Andrew Jones no rádio.

 

- Não esqueçam que os Quatro Cavaleiros são agentes como nós. São competentes e letais. Vamos logo encontrar Bayer e montar um alerta máximo para Geoffrey Shafer. Shafer é o jogador mais perigoso; pelo menos é nisso que acreditamos.

 

Saí correndo com Sampson do nosso seda alugado. Tínhamos sacado as armas, que pareciam inadequadas ao belo e tranqüilo resort. Lembrei-me de que tivera a mesma sensação há quase um ano, nas Bermudas.

 

- Bayer não passou por aqui - disse Sampson e percebi como ficara chateado por ver o pessoal de Jones despistado pela Fome. Nós, que éramos encarados como efetivo de apoio, não como tropa de choque, jamais teríamos cometido um erro desses.

 

Subi rapidamente com Sampson numa elevação das proximidades. De lá, pudemos ter uma boa visão dos gramados bem tratados que iam descendo até a praia privativa do hotel. Escurecia, mas a área perto do hotel parecia relativamente bem iluminada. Um homem de calção e uma mulher com saída-depraia caminhavam lentamente em nossa direção. Iam de mãos dadas, ignorantes do perigo. Nem sinal, porém, de George Bayer. E nem sinal de Shafer.

 

- Como estão querendo acabar esta coisa? - perguntou Sampson. - Como o jogo termina?

 

- Acho que nem eles próprios sabem muito bem. Provavelmente seguiam um esquema de jogo, mas a essa altura qualquer coisa pode acontecer. Tudo vai depender de Shafer, do fato de ele seguir ou não as regras. Penso, é claro, que ele ja não está se importando muito com regras, e os outros jogadores sabem disso. Continuamos a busca, correndo perto das benfeitorias do hotel. Ganhávamos olhares inquietos, nervosos, dos hóspedes que passavam por nós na calçada estreita e sinuosa.

 

- São todos assassinos - disse eu. -Mesmo Jones acabou chegando a esta conclusão. Matavam quando eram agentes e não quiseram parar. Gostaram da coisa. Talvez, agora, estejam planejando matarem-se uns aos outros. O vencedor, se houver, leva tudo.

 

- E Geoffrey Shafer detesta perder - disse Sampson.

 

- Shafer nunca perde. Já vimos isso. Esse é o esquema dele, John. O padrão que desde o início não conseguimos perceber.

 

- Desta vez ele não escapa, sugar, Tenha certeza, ele não vai se safar.

 

Não fiz mais nenhum comentário.

 

Shafer não estava sequer ofegante ao se aproximar da praia de areia branca. Viu George Bayer saltar do Ford Mustang preto, ficou esperando o brilho de uma arma, mas continuou a avançar. Era o lance supremo pelo maior de todos os prêmios: sua vida.

 

- Estava mesmo nadando! - perguntou Bayer, a voz jovial um pouco tensa.

 

- Bem, acho que é uma noite ótima para nadar - disse Shafer, batendo distraidamente no corpo para tirar a água. Esperava que Bayer desse um passo em sua direção e observou o modo como ele abria e fechava a mão direita. Também notou que os ombros se inclinavam para a frente.

 

Shafer pegou uma mochila impermeável, de onde tirou um par de sapatos e roupas limpas, secas. Agora tinha acesso a suas armas.

 

- Deixe-me adivinhar - ele continuou. - Oliver sugeriu que unissem forças para me atacar. Três contra um.

 

Bayer deu um sorriso hipócrita.

 

- É claro. Isso teve de ser cogitado como opção. Mas a rejeitamos, pois não seria coerente com os personagens que encarnamos no jogo.

 

Enquanto se vestia, Shafer se virou um pouco e sacudiu o cabelo, deixando a água pingar. Sorria secretamente. Deus, adorava aquilo - o jogo de vida ou morte contra outro Cavaleiro, outro mestre do jogo! Admirou a calma de Bayer, sua capacidade de parecer tão sereno.

 

- Oliver continua o mesmo agente de sempre e o lance dele é extremamente previsível - disse Shafer. - Ele o mandou porque acha que eu jamais suspeitaria que você ia querer me tirar do caminho. Você é a primeira tentativa. Uma coisa tão óbvia, George. E a terrível perda de um jogador.

 

Bayer franziu ligeiramente a testa, mas manteve o sanguefrio e não deixou transparecer o que estava sentindo. Achou que era a atitude mais sensata, mas foi justamente ao observá-la que Shafer percebeu como suas suspeitas tinham fundamento: a Fome estava ali para matá-lo. Teve certeza disso. O ar frio de George Bayer o denunciara.

 

- Não é o que você está pensando, Shafer. Esta noite vamos jogar obedecendo às regras. Elas são importantes para nós. Tem de ser um grande jogo, um confronto de estratégias, uma disputa de inteligência. Só vim pegá-lo, de acordo com o plano. Ficaremos frente a frente no hotel.

 

- E acataremos o que os dados disserem? - perguntou Shafer.

 

- Sim, é claro, Geoff. - Bayer estendeu a mão, mostrando três dados de vinte lados.

 

Shafer não pôde conter uma risada alta. Aquilo era tão bom, tão incrível!

 

- E o que disseram os dados, George? Como eu perco? Como eu morro? Punhal? Pistola? Uma overdose de drogas seria perfeitamente lógica no meu caso.

 

Bayer também não pôde deixar de rir. Shafer, o desgraçado, era tão arrogante e tão bom matador! Uma esplêndida personalidade psicopática.

 

- Bem, tudo isso pode nos ter ocorrido, mas faremos um jogo radicalmente limpo. Como eu disse, eles estão à nossa espera no hotel. Vamos!

 

Shafer ficou um instante de costas para Bayer. Depois se virou e avançou. Atirou-se contra Bayer.

 

Bayer, que estava mais do que preparado, respondeu com um soco baixo e forte. O soco atingiu o rosto de Shafer, sacudindo e talvez soltando alguns dentes. O lado direito da cabeça de Shafer ficou totalmente entorpecido.

 

- Bom para começar, George. Ótimo lance!

 

Então Shafer, reunindo toda a sua energia, deu uma forte cabeçada em Bayer. Ouviu a batida de osso contra osso e seus olhos sentiram uma espécie de explosão, de brancura ofuscante, o que fez a adrenalina fluir.

 

Os dados voaram da mão de Bayer quando ele tentou pegar o revólver ou alguma outra arma enfiada atrás da cintura.

 

Shafer agarrou o braço direito de Bayer e torceu-o com toda a força, quebrando-o na altura do cotovelo. Bayer deu um berro de dor.

 

- Não pode me vencer! - gritou Shafer a plenos pulmões.

- Ninguém pode, ninguém vai conseguir!

 

Ele agarrou a garganta de George Bayer e apertou-a com uma energia sobre-humana. Bayer engasgou e ficou extremamente vermelho, como se todo o sangue do corpo tivesse corrido para a cabeça. George era mais forte do que parecia, mas Shafer estava impregnado de adrenalina e de anos de ódio radical. Além disso, pesava mais uns cinco quilos que Bayer, e eram cinco quilos de músculo.

 

- Nãooo! Escute o que estou dizendo. - George Bayer ofegava, arfava. - Não assim. Não aqui.

 

- Sim, George. Sim, sim. O jogo está correndo. O jogo que vocês começaram, seus desgraçados! E o ponto é meu, parceiro. Vocês me fizeram isso. Vocês me transformaram no que eu sou: a Morte.

 

Ele ouviu um estalo alto, muito nítido, sentiu George Bayer cambalear sobre ele e se afastou, deixando o corpo cair na areia.

 

- A primeira baixa - disse Shafer.

 

Satisfeito, enfim se permitindo respirar fundo, pegou os dados caídos, sacudiu-os de novo e atirou-os na água.

- Não vou mais usá-los.

 

Sentia-se bem. Extremamente bem. Deus, que falta aquilo estava lhe fazendo! Que sensação incrível aquele afluxo de adrenalina! Como sabia que provavelmente o Jamaica Inn estaria sendo vigiado pela polícia, estacionou o Mustang numa pousada vizinha, o Plantation Inn.

 

Num andar veloz, atravessou o Bougainvillea Terrace, apinhado de gente. Yellowbird, uma canção deprimente, tocava alto, enquanto bebidas eram servidas. Quando teve a arrepiante fantasia de começar a atirar no meio do bar, matando um bom número dos turistas que estavam nas mesas, saiu imediatamente da área. Fez isso pelo bem deles - mas principalmente pelo seu próprio bem.

 

Deu uma caminhada pela praia, que o deixou mais calmo. Tudo era tranqüilo, repousante, os acordes do calipso dançando suavemente na atmosfera da noite. O trecho entre os dois hotéis parecia bem interessante, com muitas luzes, areia cor de champanhe e guarda-sóis de sapê a intervalos regulares. Uma área de lazer realmente incrível.

 

Sabia que Oliver Highsmith estava hospedado na famosa Suíte Branca, onde Winston Churchill, David Niven e lan Fleming tinham um dia dormido. Highsmith estimava os confortos materiais quase tanto quanto estimava o jogo.

 

Shafer desprezava os outros Cavaleiros, em parte porque não era de sua esnobe classe social. Fora posto no MI-6 pelo pai de Lucy; os outros jogadores tinham chegado lá depois de freqüentarem as universidades certas. Sua raiva, no entanto, tinha uma motivação mais poderosa: eles haviam tido a coragem de usá-lo; eles sempre tinham se julgado superiores e sempre tinham atirado isso na sua cara.

 

Ao atravessar o portão com cerca de madeira branca e penetrar nos terrenos do Jamaica Inn, Shafer começou a correr devagar. Queria malhar, suar um pouco. Estava se sentindo outra vez na fase maníaca. O primeiro lance do jogo o deixara bastante exaltado.

 

Ele se deteve um instante na trilha que subia da praia, apoiando-se num poste de madeira. Precisava tomar fôlego, mas tinha vontade de rir e gritar com toda a força dos pulmões. Sabia que estava entrando em pane e que era o pior momento para aquilo acontecer.

 

Um garçom do hotel parou.

 

- O senhor está bem?

 

- Oh, não podia estar melhor! - disse Shafer, fazendo sinal para o homem ir embora. - Estou no próprio céu, acredita?

 

Ao retomar o caminho para a Suíte Branca, sentia-se como naquela manhã do ano anterior, quando quase espatifara seu carro em Washington. Enfrentava de novo sérios problemas. Podia perder o jogo, podia perder tudo de uma hora para a outra. Era imperioso mudar de estratégia, certo? Teria de ser mais arrojado, mais agressivo. Era preciso agir sem pensar demais. As chances contra ele continuavam sendo de dois para um.

 

Viu então, na extremidade do pátio do hotel, um casal vestido a rigor. Passeavam junto a um pórtico com jardineiras brancas cheias de flores e Shafer concluiu que era gente de Andrew Jones. Tinham realmente cercado o hotel. Estavam lá por causa dele, o que o deixava muito honrado.

 

Quando o homem olhou em sua direção, Shafer baixou rapidamente a cabeça. Não podiam impedi-lo, não podiam prendê-lo. Não podiam provar que havia cometido algum crime. Não estava sendo procurado pela polícia. Não, era um homem livre.

 

Caminhou então com passo sereno na direção deles, como se nem os tivesse visto. Assobiava o Yellowbird.

 

Só ergueu os olhos a alguns metros do par.

 

- Sou a pessoa que estão esperando. Sou Geoffrey Shafer. Bem-vindos ao jogo.

 

Puxou seu Smith & Wesson de nove milímetros, semiautomático, e atirou duas vezes.

 

A mulher gritou, agarrando o lado esquerdo do peito. Um sangue muito vermelho começou a manchar o verde-escuro do vestido e os olhos, antes de rolarem na direção da fronte, revelaram choque e perplexidade.

 

O agente ficou com um buraco preto no lugar do olho esquerdo. Shafer percebeu que o homem morrera antes mesmo daquela pancada alta e seca, quando a cabeça bateu no chão.

 

Certo de que nada perdera da experiência adquirida no serviço secreto, correu para a Suíte Branca, para a Conquista.

 

Sem dúvida, alguém teria ouvido os tiros. Jamais, contudo, iam supor que ele corresse justamente para a armadilha que haviam montado. Mas lá estava.

 

Duas camareiras saíam com um barulhento carrinho de limpeza da Suíte Branca. Teriam feito a cama da Conquista? Teriam deixado o gordo ao lado de uma caixa de pequenos bombons de chocolate?

 

- Saiam já daqui! - ele gritou levantando a arma. Rápido, fora ou levam um tiro!

 

As camareiras jamaicanas fugiram como se tivessem acabado de ver o próprio demônio. Mais tarde, diriam aos filhos que tinham visto mesmo.

 

Shafer irrompeu pela porta da frente da suíte e encontrou Oliver Highsmith deslizando na cadeira de rodas pelo chão recentemente varrido.

 

- Foi você, Oliver! - disse Shafer. - Estou realmente convencido de que peguei o temido matador de Covent Garden. Você praticou aqueles crimes, não foi? Imagine só. O jogo acabou, Oliver!

 

Não tire os olhos dele, pensava Shafer. Cuidado com a Conquista.

 

Oliver Highsmith parou de se mover e lentamente, mas com uma certa agilidade, virou a cadeira de rodas para encarar Shafer. Um encontro cara a cara. Aquilo era bom. Ótimo. De Londres, Highsmith tinha controlado Bayer e Whitehead quando eram todos agentes. O jogo original, os Quatro Cavaleiros, fora idéia dele, uma diversão que inventara quando começou a desfrutar de sua aposentadoria. ”Nosso tolo joguinho das fantasias”, era como sempre o chamava.

 

Ele examinou Shafer com um ar de frieza e avaliação. Highsmith era brilhante - um homem com uma cabeça realmente incrível, um gênio; pelo menos era o que Bayer e Whitehead diziam.

 

- Vamos ter uma conversa franca, Geoffrey. Somos seus amigos, meu querido parceiro. Os únicos que tem agora. Compreendemos seu problema.

 

Shafer riu daquela patética mentira do gordo, daquela atitude superior e condescendente, do descaramento.

 

- Não foi isso que George Bayer me disse, sabe? Ele me contou que você ia me matar! Que modo mais chato de tratar um amigo.

 

Sem piscar, Highsmith respondeu de imediato:

 

- Não estamos sozinhos aqui, Geoff. Eles estão no hotel. A equipe do Serviço de Segurança está na área. E certamente o seguiram.

 

- Como seguiram você, Bayer e Whiteheadl Sei disso tudo que está me contando, Oliver. Encontrei uma dupla de agentes de primeira linha lá embaixo e matei-os com dois tiros. É por isso que tenho de andar depressa, não posso esperar! O jogo está no desfecho agora. Os desvios já ficaram para trás.

 

- Temos de conversar, Geoff.

 

- Conversar, conversar... - Shafer sacudiu a cabeça, franziu a testa e soltou uma risada. - Não, não temos nada para conversar. Conversar é uma chatice inútil. Na minha prática de campo, aprendi a matar e isso é muito melhor do que conversar. Na realidade, é o que eu adoro fazer.

 

- Você está louco! - exclamou Highsmith, os olhos castanho-azulados se arregalando de medo. Finalmente entendia quem era Shafer e parava de racionalizar. Tinha a sensação de um nó no estômago.

 

- Não, não estou demente. Sei exatamente o que faço, sempre soube, sempre vou saber. Conheço a diferença entre o bem e o mal. E olhe quem fala! O Cavaleiro no Cavalo Branco!

 

Shafer deu um passo rápido na direção de Highsmith.

 

- Nem haverá luta, Oliver, exatamente como me mandavam agir na Ásia. Você vai morrer. Não é uma idéia fantástica? Não é ótimo o nosso jogo?

 

De repente Highsmith ficou de pé, o que não foi surpresa para Shafer. Highsmith, é claro, não poderia ter cometido os crimes em Londres numa cadeira de rodas. Ele era obeso, mas tinha quase um metro e oitenta e fora surpreendentemente ágil. Seus braços e mãos ainda eram muito fortes.

 

Shafer foi mais rápido. Acertou Highsmith com a coronha do revólver e viu a Conquista cair sobre um dos joelhos. Shafer golpeou uma segunda vez, depois uma terceira, até deixar Highsmith estirado no chão, gemendo alto, babando sangue e cuspe. Shafer chutou-o nos rins, depois no joelho, depois no rosto.

 

Por fim se curvou e encostou o cano do revólver na testa larga de Highsmith. Pôde ouvir, nesse momento, o barulho de gente correndo pelo corredor. Nada bom aquilo - estavam querendo pegá-lo. Depressa, depressa!

 

- Vão chegar tarde - disse ao conquistador. - Ninguém pode salvá-lo. Exceto eu, Oliver. Qual é o lance? Me dê um conselho. Devo salvar o barco?

 

- Por favor, Geoff, não! Não faz sentido você me matar. Ainda podemos nos ajudar.

 

- Eu adoraria já ter encerrado o expediente, mas realmente ainda falta alguma coisa. Sim, estou arremessando os dados. Mentalmente. Oh, má notícia, Oliver! Não tem jeito. Você perdeu mesmo.

 

Pôs o cano do revólver na polpuda orelha direita de Highsmith e atirou. O tiro espalhou por todo o quarto a massa cinzenta do cérebro da Conquista. Shafer só lamentava não ter podido torturar Oliver Highsmith por muito, muito mais tempo.

 

Ao fugir, foi repentinamente assaltado por uma idéia que o surpreendeu: ele tinha uma motivação para viver. A motivação de um jogo incrível, incrível.

 

Quero viver.

 

Eu e Sampson disparamos para a ala isolada do hotel onde ficava a suíte de Oliver Highsmith. Tínhamos ouvido os tiros, mas não podíamos estar em toda parte. Ouvimos também os estampidos do outro lado do Jamaica Inn.

 

Eu não estava preparado para a sangrenta cena de massacre com que nos deparamos. Havia dois agentes ingleses caídos no pátio. Eu já trabalhara com os dois, exatamente como trabalhara com Patsy Hampton.

 

Jones e outro agente, juntamente com uma turma de detetives locais, amontoavam-se na suíte de Highsmith, onde a desordem era absoluta. Tudo se transformara em caos e carnificina naquela explosão de loucura homicida.

 

- Shafer acabou com dois elementos meus para chegar aqui

- disse Jones, fumando. Na tensão da voz, havia irritação e tristeza. - Ele se aproximou atirando, abatendo Laura e Gwynn. Highsmith também morreu, mas ainda não encontramos George Bayer.

 

Ajoelhei-me e procurei avaliar rapidamente os estragos feitos no crânio de Oliver Highsmith. Não eram poucos. Ele fora baleado à queima-roupa e o ferimento era grave. Segundo Jones, Shafer invejava a inteligência do homem mais velho e agora estourara seus miolos.

 

- Eu disse que ele gostava de matar. Ele tem de fazer isto, Andrew. Não pode parar.

 

E acrescentei:

 

- Falta Whitehead! O finaí do jogo.

 

Dirigimos mais rápido do que seria aconselhável na estradinha estreita e sinuosa. Disparávamos para a casa de James Whitehead, que não era longe.

 

Passamos por uma placa: Mallard’s Beach - San Antônio.

 

Tanto eu quanto Sampson íamos calados, concentrados em nossos pensamentos. Eu continuava pensando em Christine, não podia impedir que as imagens viessem. Nós a pegamos. Ainda estaria viva?

 

Não sabia. Apenas Shafer ou talvez Whitehead podiam me dar a resposta. Por isso eu faria o possível para mantê-los vivos. Tudo naquela ilha, incluindo os cheiros e os panoramas exóticos, me faziam lembrar de Christine. Mas eu não conseguia, por mais que tentasse, imaginar um bom desfecho para aquilo.

 

Avançamos na direção da praia e logo cruzávamos fachadas de belas casas, incluindo propriedades muito grandes. Algumas ficavam no fim de tortuosas trilhas de acesso que se estendiam por cem metros ou mais da estrada à casa.

 

Ao longe, vi o brilho de outras casas iluminadas e achei que devíamos estar chegando ao endereço de James Whitehead, a Guerra. Ele ainda estaria vivo? Ou será que Shafer chegara na nossa frente?

 

A voz de Jones começou a explodir com violência no rádio:

 

- Este é o lugar que você procurava, Alex. Logo à frente, uma casa envidraçada, com alicerce de pedra. Não vejo ninguém.

 

Estacionamos perto da trilha de conchas que levava à casa. A escuridão era acetinada e preta como breu. Não havia luzes em parte alguma da propriedade.

 

Saltamos dos carros, No total éramos oito, incluindo uma dupla de investigadores de Kingston, Kenyon e Anthony, que pareciam bastante nervosos.

 

Não os censurava. Sentia-me exatamente do mesmo modo. O Gambá estava num acesso de fúria e já sabíamos que ele era um suicida em potencial. Geoffrey Shafer era um maníaco homicida-suicida.

 

O pequeno jardim que eu e Sampson atravessamos correndo tinha, de um lado, uma piscina e uma área de lazer, do outro um gramado que ia até o mar.

 

Vimos o pessoal de Jones se espalhando pelo terreno. Shafer entrou no hotel com o dedo no gatilho, pensei. Realmente não parece se importar se vai sobreviver ou não. Mas eu sim. Preciso interrogá-lo. Tenho de descobrir o que ele sabe. Preciso de todas as respostas.

 

- E o que me diz de Whitehead, este porco? - perguntou Sampson enquanto nos aproximávamos da casa.

 

Perto da água estava escuro. Era sem dúvida um bom local para Shafer nos atacar. Sombras escuras se estendiam de cada árvore, de cada arbusto.

 

- Não sei o que dizer, John. Whitehead esteve rapidamente no hotel. É um dos jogadores, por isso também está atrás de Shafer. A coisa entrou na reta final. Um deles agora vence o jogo.

 

E murmurei:

 

- Shafer está aqui, eu sei disso.

 

Podia realmente sentir a presença de Geoffrey Shafer; tinha certeza que sim. E o fato de saber que ele estava lá me deixava quase tão assustado quanto vê-lo em carne e osso.

 

Vieram tiros da casa às escuras.

 

Senti um aperto no coração e tive um pensamento extremamente contraditório e perturbador: Por favor, que Geoffrey Shafer não esteja morto!

 

Mais um alvo, um último oponente. Depois tudo estaria acabado. Oito esplêndidos anos de jogo, oito anos de revanche, oito anos de ódio. Ele não podia suportar a idéia de perder o jogo. Dera uma lição a Bayer e Highsmith; agora mostraria a James Whitehead quem era realmente ”superior”.

 

Depois de se mover ruidosamente pelo mato denso, Shafer começara a atravessar um pântano fedorento. A água, que lhe chegava à cintura, era desagradavelmente tépida e o musgo esverdeado, gorduroso, da superfície, chegava a atingir cinco centímetros de espessura.

 

Tentava esquecer o pântano, bem como os insetos e cobras que podiam infestá-lo; afinal, já cruzara águas muito piores durante os dias e noites passados na Ásia. Não tirava os olhos da imponente casa de praia de James Whitehead. Mais um a despachar, só mais um Cavaleiro.

 

Estivera na mansão e a conhecia bem. Além do pântano havia um segundo trecho de mato denso, que acabava numa cerca com tela metálica. Além da cerca, vinha o terreno bem cuidado de Whitehead. Imaginava que aquela travessia do pântano fosse algo com o qual Whitehead não estivesse contando. Se bem que Whitehead, a Guerra, era mais esperto que os outros, pois havia anos vinha cometendo crimes no Caribe sem deixar uma única pista que pudesse sugerir um padrão à polícia. A Guerra também o ajudara a cuidar de Christine Johnson e a coisa acabara perfeitamente bem. Christine fora um mistério dentro de um mistério; tudo fazendo parte de um complexo jogo maior.

 

Por um instante, Shafer perdeu a noção do que era real. Não soube onde estava, quem era, o que estava fazendo ali.

 

Aquilo parecia de fato assustador: um pequeno colapso mental no pior momento possível. Ironicamente, Whitehead fora o responsável por suas primeiras dependências de estimulantes e tranqüilizantes na Ásia.

 

Shafer continuava a patinhar no pântano fétido, torcendo para a água não lhe cobrir a cabeça. Não cobriu. Ele conseguiu atingir a outra margem, escalou a cerca de tela metálica e começou a atravessar a parte de trás do gramado.

 

Estava realmente obcecado em acabar com James Whitehead. E queria torturá-lo - só não sabia se ia dar tempo. Whitehead fora seu primeiro instrutor. De início na Tailândia, depois nas Filipinas. Mais que qualquer outro, fora Whitehead quem o transformara num matador. Era Whitehead quem ele queria responsabilizar em primeiro lugar.

 

A casa continuava às escuras, mas Shafer acreditava que a Guerra estivesse lá.

 

De repente, alguém começou a atirar de dentro da casa. Era a Guerra, de fato!

 

Shafer ziguezagueou como um bem treinado soldado de infantaria. O coração lhe saltava pela boca. A realidade que pipocava entre suas guinadas de avanço e recuo se resumia ao tiroteio. Não sabia se Whitehead tinha mira noturna e se seria mesmo um bom atirador.

 

Se já teria entrado alguma vez em combate.

 

Estaria com medo? Estaria vibrando com a ação?

 

Shafer imaginou que as portas da casa estivessem trancadas e que Whitehead, a Guerra, continuaria escondido lá dentro, bem abaixado, querendo atirar sem se expor em demasia. A Guerra, afinal, nunca fizera pessoalmente o trabalho sujo; nenhum deles aliás - nem Whitehead, nem Bayer, nem Highsmith. Tinham usado a Morte e agora ela vinha buscá-los. Se não tivessem concordado com aquele encontro na Jamaica, Shafer iria atrás deles para pegar um por um.

 

Avançou o mais depressa que pôde em direção à casa e os tiros continuavam saindo lá de dentro. As balas passavam zumbindo; ele nem entendia por que não era atingido. Porque sabia se esquivar muito bem? Porque a Guerra não era boa na coisa?

 

Levantou os dois braços para proteger o rosto. Era agora! E ele mergulhou pela grande janela de vidro que dava para o vestíbulo.

 

Cacos de vidro voaram para todo lado quando a janela se despedaçou em mil pequenos pedaços. Estava lá dentro!

 

A Guerra também estaria por ali, bem perto dele. Mas exatamente onde? Até que ponto James Whitehead era bom de jogo? Sua mente estava cheia de importantes perguntas. Em alguma parte da casa, um cão latia.

 

Ele tropeçou no piso de lajotas e atingiu o pé de uma mesa pesada, mas logo se levantou atirando. Nada. Não havia ninguém ali.

 

Escutou vozes do lado de fora, na frente da casa. A polícia chegara! Sempre tentando estragar sua festa.

 

Então viu a Guerra querendo escapar. Alta, de andar desengonçado, com o cabelo preto um tanto comprido. Whitehead, a Guerra, o olhara de relance e agora tentava correr para a porta da frente, esperando justamente a ajuda da polícia.

 

- Não pode fazer isto, Whitehead. Pare! Não vou deixá-lo escapar! Continue no jogo.

 

Percebendo que não conseguiria passar pela porta da frente, Whitehead guinou para uma escada e Shafer foi atrás, só alguns passos atrás. A Guerra se virou de repente e atirou de novo.

 

Shafer passou a mão num interruptor e as luzes do vestíbulo se acenderam.

 

- A Morte veio pegá-lo! - ele gritou. - É a sua vez. Olhe pra mim! Olhe para a Morte!

 

Whitehead não parou e Shafer lhe deu calmamente um tiro nas nádegas. O ferimento foi sério, doloroso. Gritando como um porco atingido por uma faca, Whitehead rodopiou e rolou a escada, batendo com o rosto no corrimão de metal.

 

Acabou estendido junto ao último degrau, onde Shafer tornou a acertá-lo, desta vez entre as pernas. A Guerra tornou a gritar. Depois começou a gemer, a soluçar.

 

Shafer se debruçou sobre ele, triunfante, o coração aos pulos.

 

- Não acha que estas sanções fazem parte do jogo? perguntou no seu tom mais suave. - A coisa continua sendo um jogo, não é, e eu acho tudo muito engraçado. Você não?

 

Whitehead tentou falar no meio dos soluços:

 

- Não, Geoffrey. Não é mais um jogo. Pare, por favor. Já basta!

 

Shafer começou a sorrir, mostrando dentes enormes.

 

- Oh, como você está equivocado! Tudo é fascinante! É o mais incrível jogo mental que se possa imaginar. Queria que sentisse o que estou sentindo agora: um poder de vida e de morte.

 

Foi então que teve uma idéia, e isso mudou tudo, todo o seu jogo e o jogo de Whitehead. A alteração foi ainda melhor do que ele originalmente planejara.

 

- Resolvi deixá-lo viver... Não muito bem, mas vai viver. E atirou novamente com o semi-automático, desta vez na base da coluna de Whitehead.

 

- Você nunca vai se esquecer de mim e o jogo continuará pelo resto de seus dias. Jogue direito. Porque tenha certeza de que eu vou jogar!

 

No momento em que ouvimos os tiros, corremos para a casa principal. Fui na frente dos outros. Queria chegar a Shafer antes deles. Tinha de pegá-lo primeiro. Tinha de falar com ele, saber da verdade de uma vez por todas.

 

Vi Shafer escapar da casa por uma porta lateral. Whitehead devia estar morto. O Gambá vencera o jogo.

 

Num passo rápido e determinado, ele avançou na direção da praia, desaparecendo atrás de uma pequena duna de areia que lembrava uma tartaruga. Para onde ia? O que pretendia fazer?

 

Tornei a vê-lo. Chutando os sapatos, tirando a calça. O que ia fazer?

 

Ouvi Sampson correndo atrás de mim.

 

- Não atire, John! - gritei. - Só se for preciso.

 

- Já sei, já sei!

 

Dei um passo brusco à frente.

 

E Shafer se virou, apontou a arma, atirou. Estava muito longe para usar com precisão um revólver; mesmo assim era um bom atirador e o tiro passou raspando. Sabia o que fazer com uma arma e não apenas de uns poucos metros de distância.

 

Olhei de relance para o lado e vi Sampson se livrando dos tênis e puxando a calça. Fiz o mesmo com minha camiseta e minha calça de malha.

 

Apontei para a praia.

 

- Ele deve ter um barco lá embaixo. Um daqueles. Vimos Shafer entrando nas ondas suaves do mar do Caribe.

 

Seguia na direção de um cone de luz feito pela lua.

 

Depois de um mergulho raso, ele começou a nadar. Braçadas de um leve estilo crawl.

 

Apenas com nossa roupa de baixo, que não era das melhores, eu e Sampson fomos atrás e também mergulhamos.

 

Shafer, um ótimo nadador, aumentava cada vez mais a distância. Avançava com a cara na água, só erguendo a cabeça de vez em quando para tomar fôlego.

 

Escorrido para trás, seu cabelo louro brilhava ao luar. Sim, um daqueles barcos ancorados ao largo da praia tinha de ser o dele. Mas qual?

 

Um único pensamento se repetia em minha cabeça: derrubar e chutar, derrubar e chutar. Era como se eu estivesse tirando cada vez mais energia de dentro de mim. Tinha de pegar o Shafer. Tinha de saber a verdade. Tinha de saber o que fora feito de Christine.

 

Derrubar e chutar, derrubar e chutar.

 

Sampson se esforçava para me acompanhar, mas de repente começou a ficar cada vez mais para trás.

 

- Volte - eu gritei. - Vá buscar ajuda. Não se preocupe comigo. Traga alguém para inspecionar esses barcos.

 

- Ele nada como um peixe - respondeu Sampson.

 

- Volte. Eu vou agüentar. Sei me virar sozinho.

 

Lá na frente, a cabeça e a ponta dos ombros de Shafer brilhavam no luar cremoso, esbranquiçado. Ele dava braçadas regulares e muito fortes.

 

Eu também continuava avançando, jamais olhando para a praia, preferindo nem saber até que ponto já estava longe. Recusei-me a sentir o cansaço, a desistir, a perder.

 

Nadei com mais energia, procurando reduzir a distância com relação a Shafer. Os barcos ainda pareciam muito afastados. Sem dúvida, ele continuava seguindo com disposição. Nenhum sinal de cansaço.

 

Comecei a fazer meu próprio jogo mental. Parei de olhar para ver onde ele estava e me concentrei exclusivamente em meu próprio movimento. Nada havia além das minhas braçadas; elas eram todo o universo.

 

Sentia o corpo mais em sintonia com a água. Como se ganhasse disposição à medida que me distanciava. Meu nado ia ficando simultaneamente mais decidido e mais suave.

 

Finalmente olhei. Ele estava começando a se cansar. Ou talvez isso fosse apenas o que eu queria ver. De qualquer modo, ganhei um novo alento, um acréscimo de energia.

 

E se realmente eu conseguisse pegá-lo? O que ia acontecer? íamos lutar até a morte?

 

Não podia deixar que chegasse ao barco, pois certamente haveria armas a bordo. Precisava derrotá-lo sem demora. Desta vez eu tinha de vencer. Mas afinal, qual daqueles barcos era o seu?

 

Nadei ainda mais rápido, achando que eu também estava em boa forma. Era verdade. Havia quase um ano, desde que Christine desaparecera, ia todo dia à academia.

 

Tornei a levantar a cabeça e fiquei chocado com o que vi.

 

Shafer estava lá! Só a alguns metros de distância. A algumas braçadas adicionais. Teria desistido ou apenas esperava por mim, acumulando forças?

 

O barco mais próximo estaria no máximo a uns cem, cento e cinqüenta metros.

 

- Cãibra! - ele gritou. - Terrível! - E mergulhou.

 

Eu não sabia o que pensar ou exatamente o que fazer. A dor no rosto de Shafer parecia real; aparentemente ele estava com medo. Mas era também um bom ator.

 

Pouco depois senti alguma coisa embaixo de mim! Shafer me agarrava com força entre as pernas. Dei um grito e consegui me safar, mas ele me machucou.

 

De repente, estávamos nos engalfinhando, lutando como animais marinhos, e ele me forçava a mergulhar. Era forte. Tinha braços compridos que pareciam tornos poderosos e que me agarravam com força.

 

Quando descemos, comecei a sentir o medo mais frio, mais sério de toda a minha vida. Não queria morrer afogado, mas Shafer estava vencendo. Ele sempre achava um meio de escapar.

 

Cravou os olhos em mim. Tinha um olhar incrivelmente intenso, delirante, enlouquecido. Sua boca estava fechada, mas se contorcia num esgar sinistro. Ele me pegara; ia vencer outra vez.

 

Então, quando Shafer aumentou a pressão, tentei desesperadamente reverter a coisa. Usei toda a minha força para empurrálo e acertei-lhe um chute sob o maxilar, talvez na garganta. Empregara de fato toda a minha energia naquele chute; ele começou a afundar.

 

O cabelo comprido e louro flutuava em volta de seu rosto. Seus braços e pernas pareciam desconjuntados.

 

Shafer continuou descendo e fui atrás dele, a escuridão aumentando cada vez mais sob a superfície do mar. Por fim, consegui agarrar um de seus braços.

 

Não pude controlar. Seu peso me fazia ir junto com ele para o fundo. Mas não ia largá-lo. Tinha de saber a verdade sobre Christine. Não podia continuar vivendo se não soubesse.

 

Não tinha idéia da profundidade ali. Os olhos de Shafer continuavam bem abertos, assim como a boca; a essa altura os pulmões já deviam estar se enchendo de água.

 

Achei que podia ter quebrado seu pescoço com aquele chute. Ele estaria morto ou apenas inconsciente? Não deixei de me animar com a possibilidade de ter quebrado o pescoço do Gambá.

 

E então aquilo já não tinha importância. Nada tinha importância. Meu fôlego acabara. Meu peito parecia que ia se desintegrar e uma espécie de fogo se espalhava freneticamente por dentro de mim. Um severo zumbido começou a tomar conta dos meus ouvidos. Atordoado, eu estava à beira de perder a consciência.

 

Soltei Shafer, deixei-o descer para o fundo. Não havia alternativa. Nem conseguia pensar mais nele. Precisava chegar à superfície. Era impossível prender por mais tempo a respiração.

 

Nadei febrilmente para cima, dando marradas na água, batendo os pés com toda a força. Achei que não ia conseguir; estava longe demais da superfície.

 

Não tinha mais fôlego.

 

Então vi o rosto de Sampson se debruçando sobre mim. Perto, muito perto. E isso me deu energia.

 

Algumas estrelas e o azul-escuro do céu emolduravam a cabeça dele.

 

- Sugar - ele me chamou quando finalmente pude parar e tomar fôlego.

 

Sampson me segurou, ajudando-me a recuperar o fôlego, o precioso fôlego. Por algum tempo ficamos os dois parados, batendo as pernas sem sair do lugar. Minha cabeça rodava.

 

Meus olhos exploraram a superfície à procura de Shafer. Senti a vista embaçada e não havia nenhum sinal dele. Tive certeza, então, de que se afogara.

 

Voltei com Sampson lentamente à praia.

 

Não tinha conseguido o que precisava. Shafer não me dissera a verdade antes de se afogar.

 

Olhei uma ou duas vezes para trás. Queria me certificar de que ele não vinha atrás de nós, que realmente morrera. Não havia traço de Shafer. Apenas o som de nossas braçadas exaustas cortando a maré.

 

Levamos mais dois cansativos dias e noites para ajudar a concluir o inquérito da polícia local, mas foi bom manter a mente ocupada, concentrada. Eu não tinha mais esperanças de encontrar Christine ou sequer de descobrir o que lhe acontecera.

 

Sem dúvida, havia a possibilidade remota de não ter sido Shafer o seqüestrador de Christine, mas outro louco com quem eu tivesse esbarrado numa investigação passada. Considerei, porém, apenas de passagem esta possibilidade. Seria impossível encará-la com seriedade. Era uma idéia demasiado fantástica, mesmo para mim.

 

A princípio fora incapaz de realmente chorar por Christine, mas o monstruoso absurdo do destino me atingia agora com toda a sua força brutal. Era como se minhas entranhas tivessem sido esvaziadas. A mágoa constante, depressiva, que por tanto tempo eu suportara, transformara-se numa dor aguda que me perfurava o coração a cada momento do dia. Não conseguia dormir, embora tivesse a sensação de nunca estar de todo acordado.

 

Sampson sabia o que acontecia comigo. Não podia fazer nada, mas pelo menos jogava conversa fora e me distraía um pouco.

 

Quando Nana ligou para o hotel, percebi que isso fora obra de Sampson, embora os dois o negassem. Jannie e Damon também entraram na linha, como sempre carinhosos, amáveis, cheios de vida, de esperança. Chegaram a conseguir de Rosie, a gata, um amigável miau de longa distância. Não mencionaram Christine, mas eu sabia que ela não saía de seus pensamentos.

 

Em nossa última noite na ilha, eu e Sampson fomos jantar com Jones. Tínhamos feito amizade com ele, que acabou me contando certos fatos até então mantidos em segredo por razões de segurança. Queria que eu tivesse alguns esclarecimentos; achava que pelo menos isso eu merecia.

 

Nos idos de 1989, após se juntar ao MI-6, Shafer fora recrutado por James Whitehead, que por sua vez, juntamente com George Bayer, estava subordinado a Oliver Highsmith. Nos três anos seguintes, Shafer realizara pelo menos quatro ”missões punitivas” na Ásia. Suspeitava-se, mas nunca ficara provado, que ele, Whitehead e Bayer tinham assassinado prostitutas em Manila e Bangkok. Tais crimes foram obviamente os precursores das mortes das fulaninhas, bem como do próprio jogo, e o conjunto desses fatos representava um dos piores escândalos na história do serviço secreto. Um escândalo que seria efetivamente abafado. Pelo menos era assim que Jones queria tratar o assunto e eu não faria objeções a isso. Já havia um número mais que suficiente de histórias infelizes para deixar as pessoas descrentes com relação a seus governos.

 

Por volta das onze horas, quando nosso jantar se concluiu, eu e Jones prometemos nos manter em contato. Afinal, havia um resíduo perturbador na coisa, embora ninguém pretendesse superestimar seu significado: o corpo de Geoffrey Shafer ainda não fora encontrado. De qualquer forma, isso parecia estar dentro do esperado.

 

Na terça-feira, eu devia pegar com Sampson o primeiro vôo para Washington, com partida programada para as nove e dez.

 

Naquela manhã, porém, nuvens escuras se deslocavam pelo céu e uma chuva forte martelou a capota do carro durante todo o trajeto entre o hotel e o aeroporto Donald Sangster. Vi escolares correndo pela margem da estrada e usando folhas de bananeiras para se protegerem da chuva.

 

O aguaceiro pegou-nos em cheio depois que entregamos o carro e deixamos o toldo que havia na frente da locadora. A chuva era fresca e gostei de senti-la no rosto, na cabeça, na camisa grudada nas minhas costas.

 

- Vai ser realmente bom voltar para casa - disse Sampson quando finalmente conseguimos atingir a passarela de metal do aeroporto, pintada de amarelo-vivo.

 

- Não vejo a hora de partir - concordei. - Sinto muita falta de Damon, Jannie e Nana. Estou com saudades de casa.

 

- Vão encontrar o corpo - disse Sampson. - O de Shafer.

 

- Entendi o que quis dizer.

 

Ouvindo a chuva bater sem parar no telhado do aeroporto, lembrei-me de como detestava voar em dias assim. Contudo, seria bom estar em casa e conseguir dar um fim àquele pesadelo. Um pesadelo que invadira minha alma, que se apoderara de minha vida. Em certo sentido, eu supunha que mergulhara num ”jogo”, exatamente como Shafer. Afinal, o caso de assassinato vinha me obcecando havia mais de um ano, e isso era bastante tempo.

 

Christine me pedira para desistir. Nana também, mas eu não lhes dera ouvidos. Talvez naquela época ainda não fosse capaz de ver minha vida e minhas ações tão claramente quanto podia vê-las agora. Eu era o exterminador de dragões, com tudo que isso implicava de bem e de mal. No fim das contas, sentia-me responsável pelo seqüestro e assassinato de Christine.

 

Eu e Sampson cruzamos os coloridos balcões da free shop quase sem virar a cabeça - uma indiferença praticamente total. Camelôs, chamados ali de ambulantes, vendiam não só bijuterias de madeira e outros entalhes, mas também café e chocolate jamaicanos.

 

Eu carregava uma mochila preta, assim como Sampson. Ainda assim não passávamos exatamente por turistas em férias. Ainda parecíamos policiais.

 

Quando escutei a voz nos chamando lá de trás, virei-me para ver quem fazia todo aquele alvoroço.

 

Era um dos detetives jamaicanos, John Anthony. Ele gritava meu nome e corria pelo terminal barulhento. Vinha alguns passos à frente de Andrew Jones, que parecia extremamente consternado.

 

Jones e Anthony no aeroporto? O que em nome de Deus estava acontecendo? O que podia ter dado errado?

 

- O Gambá] - perguntei, como se dissesse um palavrão. Parei ao lado de Sampson e ficamos à espera deles. Eu quase

 

preferia não ouvir o que tinham a dizer.

 

- Tem de voltar conosco, Alex - disse Jones, um tanto sem fôlego. - Trata-se de Christine Johnson. Há uma novidade. Vamos lá.

 

- O que houve? O que aconteceu? - perguntei a Jones e depois, quando o inglês demorou a responder, virei-me para o detetive Anthony.

 

Anthony hesitou, mas acabou contando:

 

- Não temos certeza. Pode ser rebate falso. Mas uma pessoa garante que a viu. Sem dúvida, ela pode estar aqui, na Jamaica. Venha conosco.

 

Eu não podia acreditar no que acabara de ouvir. Senti o braço de Sampson em volta do meu ombro, mas tudo parecia irreal, como num sonho.

 

A coisa ainda não chegara ao fim.

 

Na estrada do aeroporto, Andrew Jones e o detetive Anthony nos colocaram a par do que sabiam. Percebi que não queriam me dar falsas esperanças. Sem dúvida eu já enfrentara muitas dessas situações delicadas, só que não era a vítima.

 

- Ontem à noite, pegamos um ladrãozinho local arrombando uma casa em Ocho Rios - disse Anthony ao volante da Toyota onde nós quatro nos espremíamos. - Quando ele pediu para negociar uma informação, dissemos que queríamos ouvir o que tinha a nos contar e depois, então, decidiríamos. Ele então revelou que uma mulher americana fora mantida em cativeiro nas colinas a leste de Ocho Rios, perto do lugarejo chamado Euarton. Parece que um grupo de gatunos costuma se esconder por lá.

 

E Anthony prosseguiu:

 

- O homem diz que a mulher se chamava Beatitude. Pelo menos ele nunca ouviu usarem outro nome. Hoje de manhã, assim que obtive a informação, liguei para Andrew e vim correndo com ele para cá. Ainda fiz contato com seu hotel, mas você já saíra. Então viemos buscá-lo.

 

- Obrigado - eu disse por fim, achando que provavelmente já tinham me dito tudo que sabiam.

 

- Mas por que - perguntou Sampson em voz alta - este prestativo ladrão só aparece agora, após tanto tempo?

 

- Ele disse que o tiroteio de algumas noites atrás mudou tudo. Como os brancos tinham morrido, a mulher já não tinha importância. Foram essas suas palavras.

 

- Você conhece esses tais brancos? - perguntei ao detetive Anthony.

 

- Sim, conheço os homens, as mulheres e as crianças. Já conversei uma vez com eles. Fumam muita maconha e praticam um sincretismo religioso onde cultuam o imperador Haile Selassié. Alguns praticam pequenos furtos. Em geral, deixamos a coisa correr.

 

Todos se calaram e o carro avançou em silêncio pela estrada costeira no rumo de Runaway Bay e Ocho Rios. A tempestade passara logo e o sol infernal da ilha voltava a queimar de novo. Com facões na cintura, os cortadores de cana voltavam ao trabalho nos campos.

 

Depois de cruzar a localidade de Runaway Bay, o detetive Anthony saiu da estrada principal e pegou a Route Al, que subia as colinas. Ali as árvores e arbustos começavam a formar uma verdadeira floresta. Pouco depois, a estrada se transformava num túnel entre galhos e cipós. Anthony precisou acender os faróis.

 

Tive a sensação de avançar através de uma névoa, vendo tudo como num sonho. Percebi que tentava manter uma atitude de indiferença e percebi que não estava funcionando.

 

Quem era Beatitude? Não conseguia realmente acreditar que Christine estivesse viva, mas havia uma chance e me agarrei a ela. Eu já desistira havia semanas, mas agora voltava a me lembrar de como gostava dela e de como ela me fazia falta. Tive um forte engasgo e virei o rosto para a janela. Estava mergulhando fundo dentro de mim mesmo.

 

De repente, uma forte luminosidade brilhou nos meus olhos. Após quatro ou cinco quilômetros, o carro saíra da mata, cuja extensão nos parecera muito maior por causa das curvas. Tínhamos entrado em colinas luxuriantes, talvez parecidas com o sul dos Estados Unidos nos anos cinqüenta ou sessenta - quem sabe a Geórgia, o Alabama. Crianças em roupas antiquadas brincavam na frente de pequenas casas em ruínas. Em varandas decadentes, cambaias, os mais velhos apreciavam a passagem do carro.

 

Tudo parecia, tudo produzia uma sensação tão surrealista. Eu não conseguia me concentrar.

 

Na estradinha estreita de chão onde viramos, havia uma tira alta e densa de mato entre sulcos fundos de pneu. Só podia ser ali. Batendo forte, meu coração lembrava um tambor de lata tocado dentro de um túnel e cada solavanco da estrada era como um soco.

 

Beatitude? Quem seria a mulher que estavam guardando? Seria mesmo Christine?

 

Sampson conferiu a carga do seu Glock. Ouvi o mecanismo deslizar, ouvi o clique e olhei de relance.

 

- Não vão gostar de nos ver aqui, mas não precisaremos de armas - disse Anthony virando a cabeça. - Provavelmente já sabem que estamos chegando, pois vigiam as estradas locais. Christine Johnson pode não estar aqui agora, se é que algum dia ela esteve aqui. Mas tenho certeza de que vocês vão querer verificar por si mesmos.

 

Não falei nada. Não podia. Sentia uma incrível secura na boca e havia um branco em minha mente. Ainda estávamos envolvidos com os Quatro Cavaleiros, não é? Talvez aquilo ainda fizesse parte do jogo de Shafer. Ele não sabia que íamos acabar descobrindo aquele lugar nas montanhas? Não poderia ter nos preparado uma armadilha final?

 

Chegamos a uma velha casa pintada de verde com janelas de cortinas brancas rasgadas e um saco de aniagem como porta da frente. Quatro homens saíram imediatamente, todos mal-encarados.

 

Avançaram em nossa direção, os queixos endurecidos, a suspeita enchendo os olhos. Eu e Sampson, no entanto, já estávamos acostumados a ver aquelas expressões nas ruas de Washington.

 

Dois deles carregavam grandes facões de mato. Os outros dois usavam camisas folgadas e percebi que tinham armas sob as roupas.

 

-Vamo lá, vão’bora caras! - um deles gritou. - Num tem mulé aqui.

 

- Não!

 

O detetive Anthony saiu do carro com as mãos levantadas. Eu, Sampson e Jones seguimos seu comando.

 

Podíamos ouvir a tradicional batida de tambores saindo dos bosques diretamente atrás da casa principal e dois vira-latas, erguendo preguiçosamente os focinhos para nos olhar, deram alguns latidos. As pancadas de meu coração tinham se acelerado.

 

Realmente não gostei do rumo que as coisas estavam tomando.

 

Outro homem se dirigiu a nós.

 

- Eu e eu gostaríamos que fossem embora. Reconheci o estilo da fala: a repetição do pronome simbolizava o homem que falava e Deus, que coabita em cada pessoa.

 

- Patrick Moss está na cadeia. Eu sou o detetive Anthony, de Kingston. Estes são o detetive Sampson, o detetive Cross e o sr. Jones. Vocês têm uma mulher americana aqui. Chamam-na Beatitude.

 

Beatitude? Seria mesmo Christine? Um homem empunhando um facão cravou os olhos em Anthony e falou:

 

- Num é problema teu. Deixa em paz. Num tem mulé aqui. Numa mulé.

 

- O problema é meu e não vamos deixá-lo em paz - disse eu, surpreendendo o homem com minha compreensão de seu dialeto. Mas eu conhecera Rastaman, em Washington.

 

- Numa mulé aqui, numa mericana - o homem repetiu irritado, me olhando de frente.

 

Andrew Jones ergueu a voz:

 

- Queremos a mulher americana, depois vamos embora. Seu amigo Patrick Moss voltará para casa esta noite. E poderá conversar o que quiser com ele.

 

- Nuhá mulé americana aqui. - O homem de falar curioso cuspiu desafiante no chão. - Meia-volta, vão ’bora.

 

- Conhece James Whitehead? Conhece Shafer?-perguntou Jones.

 

Não houve negativas, mas duvidei que pudéssemos conseguir mais alguma coisa deles.

 

- Eu a amo - disse. - Não posso ir embora. Ela se chama Christine.

 

Minha boca ainda estava seca e eu não conseguia respirar muito bem.

 

- Foi seqüestrada há um ano - continuei. - Sabemos que foi trazida para cá.

 

Sampson puxou o Glock e deixou-o pender ao lado da perna. Encarava os quatro homens, que também não tiravam os olhos de nós. Toquei a coronha do meu revólver, mas sem puxá-lo do coldre. Não queria um tiroteio.

 

- Podemos lhes causar um monte de problemas - disse Sampson num tom grave, rouco.-Nem vão acreditar na quantidade de encrenca que terão de enfrentar.

 

Por fim, eu simplesmente avancei por uma trilha estreita através do mato alto. Ultrapassei os homens, inclusive esbarrando levemente num deles.

 

Ninguém tentou me deter. Senti cheiro de maconha e suor nos seus trajes de trabalho. A tensão crescia dentro de mim.

 

Sampson me seguiu a uma distância de um passo ou dois, no máximo.

 

- Estou de olho - disse ele. - Até agora ninguém fez nada.

 

- Não importa o que façam - respondi. - Tenho de ver se ela está aqui.

 

Uma mulher idosa, com um cabelo grisalho comprido e extremamente embaraçado, cruzou a porta da frente quando atingi a escadinha riscada, descascada. Havia um anel vermelho em torno dos olhos dela.

 

- Vamo lá. - Ela suspirou. - Vem comigo. Tu num precisa de numa arma.

 

Pela primeira vez em muitos meses, eu me permiti acalentar pelo menos um lampejo de esperança, embora não houvesse razão para isso. Tudo, afinal, se limitava ao rumor sobre uma mulher sendo mantida ali contra sua vontade.

 

Beatitude? Algo a ver com bem-aventurança e felicidade? Seria mesmo Christine?

 

Com passo incerto, a velha mulher circundou a casa e começou a avançar pelos fundos do terreno, entre árvores, mato rasteiro e samambaias. Depois de andar uns sessenta ou setenta metros na mata cada vez mais fechada, chegamos a meia dúzia de pequenas choupanas, onde ela parou. Eram choupanas feitas de madeira, bambu e chapas de zinco.

 

Demos mais alguns passos até ela parar na penúltima choupana do grupo.

 

A mulher puxou uma chave presa na correia de couro que havia em seu pulso, enfiou-a na fechadura da porta e girou.

 

Empurrada para a frente, a porta deu um rangido alto nas dobradiças enferrujadas.

 

Espiei lá dentro e vi um espaço modesto, mas arrumado e limpo. Alguém escrevera O Senhor é meu Pastor com tinta preta na parede.

 

           Não havia ninguém.

           Nenhuma Beatitude.

           Nenhuma Christine.

 

O desespero tomou conta de mim. Deixei meus olhos se cerrar.

 

Mas lentamente eles foram se abrindo. Não entendi por que tinha sido levado àquele lugar vazio, àquela velha choupana na floresta. Senti novamente um aperto no coração. Seria uma cilada?

 

Do Gambá? De Shafer? Ele estaria lá?

 

Então, quando alguém saiu de trás de um pequeno biombo num canto da choupana, foi como se eu estivesse em queda livre. Um pequeno suspiro saiu de minha boca.

 

Não sabia qual fora a minha expectativa, mas certamente não tinha sido aquela. Sampson estendeu a mão para me apoiar e mal tive consciência de seu toque.

 

Christine pisava devagar nos raios de sol que vinham da única janela que havia na choupana. E eu que pensara jamais tornar a vê-la!

 

Estava bem mais magra, nunca usara o cabelo tão espesso e tão comprido, mas a beleza sóbria dos olhos castanhos parecia a mesma. A princípio, nenhum de nós foi capaz de falar. Era o mais extraordinário momento de minha vida.

 

Fiquei gelado da cabeça aos pés e tudo começou a se mover em câmera lenta. O silêncio do pequeno aposento parecia sobrenatural.

 

Christine segurava um cobertor amarelo-claro, em cuja beira despontava a cabeça de um bebê. Dei um passo à frente, embora minhas pernas estivessem tremendo, ameaçando vergar. Pude ouvir o suave murmúrio do bebê entre as dobras da coberta.

 

- Oh, Christine, Christine... - finalmente consegui dizer.

 

Lágrimas brotaram em seus olhos; depois nos meus. Avançamos juntos e logo eu a segurava, meio desajeitado. O bebê olhava pacificamente para nossos rostos.

 

- É nosso filho e provavelmente foi ele quem salvou minha vida - disse Christine. - É parecido com você.

 

Beijamo-nos de leve, um beijo tão doce, tão carinhoso. E demos um abraço muito, muito apaixonado. Como se quiséssemos nos fundir um no outro. Nem eu nem ela podíamos acreditar que aquilo estava realmente acontecendo.

 

- Chamei-o de Alex - disse Christine. - Porque você esteve sempre do meu lado. Esteve sempre comigo.

 

                               PONTES DE LONDRES, ENTARDECER

 

Seu nome era Frederick Neuman e ele gostava de se imaginar como cidadão da comunidade européia, mas não de um país específico. Se alguém perguntasse, no entanto, diria que era alemão. Tinha o cabelo cortado a navalha, o que lhe dava um ar não apenas severo, mas também imponente. A seu ver, só aquilo já podia ser considerado uma notável alteração.

 

Seria lembrado como um sujeito ”muito alto, magro e calvo” ou uma ”interessante figura de artista”, pois diversas pessoas realmente o viram naquela semana em Chelsea, Londres. Queria ser lembrado. Isso era importante.

 

Fez compras, ou pelo menos olhou as vitrines, na King’s Road e na rua Sloane.

 

Foi ao cinema em Kensington High Street.

 

E visitou a livraria Waterstone.

 

À noite, tomou um canecão ou dois num pub, o King’ s Head, onde se manteve completamente isolado.

 

Tinha um plano central. Outro jogo começava.

 

Uma tarde, viu Lucy e as gêmeas no Safeway. Observou-as atrás de prateleiras de latas de ervilha, depois seguiu-as pelos corredores apinhados de gente. Não haveria nenhum estrago, nenhum lance impensado - não causaria problema para ninguém.

 

Não pôde, contudo, resistir ao desafio. Os dados que começaram a rodar em sua cabeça revelaram o número que ele queria ouvir.

 

Continuou, então, se aproximando cada vez mais da família, procurando manter o rosto ligeiramente de lado, mas sempre espiando Lucy pelo canto do olho, espiando as gêmeas, talvez mais perigosas.

 

Lucy examinava um salmão temperado. De repente, sem a menor dúvida, se deu conta de que ele estava ali, mas não o reconheceu - obviamente não. As gêmeas também não. Menininhas cretinas, bobas. Espelhos da mãe.

 

De novo o jogo se desenvolvia - tão delicioso. E pensar no tempo que ficara longe dele! Tinha o dinheiro do livro, o adiantamento sobre aquela narrativa que revelaria os bastidores do seu julgamento. Guardava o dinheiro na Suíça. Depois de fugir de barco da Jamaica, tinha perambulado pelo Caribe. Fora para San Juan, onde tentara jogar, mas acabara seguindo para a Europa: Roma, Milão, Paris, Frankfurt, Dublin. Por fim, o retorno a Londres. Em todo o trajeto, só vagara duas vezes pelas ruas. Agora era um moço muito cuidadoso.

 

Sentiu-se realmente nos velhos tempos ao chegar perto, oh, tão perto, de Lucy no corredor do mercado. Jesus, os tiques físicos tinham voltado! Estava batendo nervosamente o pé, sacudindo as mãos.

 

Era de se esperar que pelo menos naquilo Lucy reparasse, mas ela lembrava um paquiderme absolutamente estúpido, uma nulidade loura, um real desperdício de tempo. Mesmo quando foi se aproximando cada vez mais, até ficar a meio metro dela, Lucy não o reconheceu.

 

- Oh, Luuu-cy... sou eu - disse ele abrindo um sorriso largo. - Sou eu, querida.

 

Zum. Zum. Golpeou-a duas vezes, de um lado para o outro, quando se cruzaram como estranhos no corredor do Safeway. Os golpes quase nem marcaram a garganta de Lucy, mas cortaram fundo.

 

Ela caiu sobre os joelhos ossudos, apertando o pescoço com as duas mãos, como se estivesse estrangulando a si mesma. E de repente, ao ver quem estava ali, os olhos azuis saltaram de dor, de choque, até se imobilizarem numa espécie de profunda tristeza.

 

- Geoffrey - ela ainda conseguiu dizer num tom gorgolejante, enquanto o sangue borbulhava pela boca aberta.

 

Sua última palavra sobre a Terra. O nome dele.

 

Bonito para Shafer ouvir - o reconhecimento pelo qual ansiava - e uma vingança em nome de todos. Ele se virou, forçou-se a isso, antes de acabar também com as gêmeas.

 

Nunca voltou a ser visto na área de Chelsea, mas muita gente se lembraria dele até morrer.

 

Deus, realmente iam se lembrar!

 

O monstro alto e calvo.

 

Aquele vestido todo de preto, a aberração inumana.

 

O cruel matador, que cometera tantos assassinatos horríveis que ele mesmo tinha perdido a conta.

 

Geoffrey Shafer.

 

A Morte.

 

                                                                                James Patterson  

 

                      

O melhor da literatura para todos os gostos e idades

 

 

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