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Planeta Criança



Poesia & Contos Infantis

 

 

 


CAÇADA MORTAL / Anne e Serge Golon
CAÇADA MORTAL / Anne e Serge Golon

 

 

                                                                                                                                                

  

 

 

 

 

 

O extremo norte da América, do Canadá até a baía de Hudson é uma região de invernos rigorosos, com nevadas fortes e constantes, embora os verões quentes, porém curtos, revelem uma terra permeada de lagos, rios e florestas de pinheiros e abetos. Talvez por isso fosse uma das áreas menos habitadas do continente, à época da chegada dos primeiros colonos europeus. Tribos nómades de índios algonquinos e iroqueses repartiam precariamente o território, vivendo da caça e da pesca, e de uma agricultura intermitente.

Os primeiros anos de colonização, tanto para ingleses quanto para franceses, foram anos de fome. Metade dos peregrinos do Mayflower, aportado na Nova Inglaterra em 1620, pereceu de doenças causadas por má alimentação. E também metade dos franceses que chegaram à América de 1535 a 1606 foi vitimada pelo clima rude e pela absoluta falta de recursos.

Agora é a vez de Angélica enfrentar esse desafio. Com o marido, os filhos e um punhado de pioneiros, ela segue para o interior da Acádia francesa (atual Maine), para tentar sobreviver nas estepes geladas, num local temido até pelos índios, durante o inverno rigoroso.

"Aqui somos todos malfeitores condenados à forca", declara o Conde de Peyrac. "Por isso sobreviveremos!''

Com o olhar perdido no horizonte gelado das cabeceiras do rio Kennebec, na região sagrada de Wapassu, o Lago de Prata, Angélica torcia as mãos de ansiedade pela volta de seu amor. Se algo acontecesse a Joffrey de Peyrac ao fim daquela perseguição insana, sua vida perderia a razão de ser.

Sob o grosso manto de peie de castor, seu corpo arrepiava-se de um frio misterioso, mórbido. O corpo ardente que as mãos dele não cansavam de acariciar nas longas noites de delírio junto a lareira na alcova. Noites de paixão!

Por que aquela maldição os perseguia onde quer que fossem? Por que pretendiam separá-los? Não bastavam os quinze anos de infortúnios no Velho Mundo, os desencontros no Oriente, a fuga desabalada através do oceano e da floresta repleta de perigos?

Banidos de seu país de origem, estavam prisioneiros das estepes brancas da América, prisioneiros do silêncio, do espaço infinito, melancólico e deserto. Mas não permitiriam o triunfo do terror, júbilo dos conspiradores que adoravam os poderes infernais.

Angélica e Peyrac, cúmplices e amantes, unidos pela vida inteira por seu amor imbatível...

Desprovidos de todos os bens, após a destruição do forte de Katarunk, Angélica e os filhos Florimond, Cantor e Honorina, mais um grupo reduzido de intrépidos pioneiros franceses e canadenses, seguiam o Conde Joffrey de Peyrac através da grande floresta do norte da América, na fronteira com o Canadá. Avançavam com grande dificuldade sob a chuva ê o frio, a caminho das cabeceiras do rio Keonebecv rirmo-à região que os índios chamavam de Wapassuí o Lago da Prata. No alto dos montes Apalaches, ó Conde de Peyrac possuía uma mina de ouro, entregue a quatro homens de confiança (o restante de seu pessoal seguira para o forte de Gouldsboro, um porto do Atlântico, na atual Nova Escócia). Wapassu era o último reduto onde poderiam abrigar-se antes da chegada do inverno.

 

 

 

 

CAPÍTULO I

A caravana dos desesperados - Reaparece Kuassi-Ba

A tempestade desabava com furor. Misturadacom neve, a chuva chicoteava os rostos, tornava pesadas as capas. A caravana avançava sob as árvores, arrastando os pés pesados de húmus e lama. Os que carregavam -js duas canoas que tinham servido para subirem o rio e os riachos pelo menos estavam protegidos da chuva. Mas embaraçavam-se nos galhos baixos de sarças e era preciso que dois homens armados de machados os escoltassem.

Angélica levantou a cabeça e viu na claridade esverdeada da floresta quedas d'água que se erguiam como colunas brancas, marcos de fronteira. As cataratas ressonantes são as sentinelas da floresta americana. Aparecem por toda parte, proclamando: - Não passarão!

Estas pareciam mais altas e inexoráveis do que todas as outras. Das folhagens gotejantes despencou de repente um aguaceiro sobre o rosto de Angélica e ela arrepiou-se.

Estava encharcada até os ossos.

A água infiltrava-se em toda parte. A capa de tecido grosso, embora tão resistente, estava completamente molhada e já não protegia Honorina, a quem Angélica levava nos braços, coberta, para protegê-la da água. Todos pararam diante das quedas d'água, desencorajados, alçando para o topo da falésia um olhar melancólico.

Joffrey de Peyrac uniu-se a eles, puxando pela rédea o garanhão negro. Levou os companheiros para o relativo abrigo de uma saliência do rochedo. Mostrando-lhes as cataratas, disse:

- Atrás delas, lá em cima, fica Wapassu.

-        E se não encontrarmos ninguém? - indagou um homem aos gritos para dominar o ruído da água. - Talvez os franceses também tenham passado por lá, ou os iroqueses. Nosso companheiros morreram e a cabana ardeu.

_ Não - disse Peyrac. - Wapassu é muito bem guardada. Para ir lá, seria preciso saber o que existe lá, e ninguém sabe ainda.

— Talvez estejam mortos, os seus quatro lá em cima - insistiu Clóvis. - O'Connell disse que não os vê há dois meses.

— Não, não estão-.rhortos - disse Peyrac.

— Por quê?

— Porque o destino não pode nos fazer isso.

Tomou a pequena Honorina dos braços de Angélica, recomendou a todos que só avançassem com uma prudência extrema, e começou a escalar a rampa escarpada e escorregadia que margeava a água espumosa.

Havia homens encarregados de guiar e vigiar os dois cavalos que eles haviam conservado. Angélica gostaria de oferecer-se para cuidar da égua, mas já não aguentava mais, e já lhe bastava ter que cuidar de si mesma. As folhas arrancadas das árvores atingiam-na no rosto, turbilhonantes, e a cegavam. O menor passo em falso podia acarretar a morte.

Olhou à volta para ver se as companheiras ou as crianças necessitavam de ajuda. Viu que o cozinheiro Otávio Malaprade amparava Elvira, quase carregando-a. O Sr. Jonas, calmo, atento, embora seu largo rosto encharcado mais parecesse o de um tritão recém-surgido das ondas, empurrava, sustentando-a e segurando-a, a pobre Sra. Jonas, completamente exausta.

Florimond e Cantor haviam-se incumbido cada um de um garotinho, levando-o às costas, e Angélica via os dois filhos avançar e subir lentamente, arcados sob a carga, os cabelos pendendo à frente qual cortina gotejante.

Um quadro alucinante de desesperados. Fazia três dias que a caravana deixara os arredores da destruída Katarunk. Os viajantes traziam consigo apenas um casal de cavalos. Maupertuis e seu filho, Pedro José, encarregados de levar os outros animais, haviam tomado a rota do sul, rumo a Gouldsboro.

Nenhum dos que tinham decidido continuar seguindo Peyrac para o interior ignorava que Wapassu de forte tinha apenas o nome. Antes de se porem a caminho, o conde não lhes ocultara que mal passava de uma habitação grosseira, sem paliçada, uma espécie de toca onde os quatro mineiros que deixara ali há um ano não deviam ter feito nenhuma instalação particular, pois em princípio deviam hibernar em Katarunk. O conde, porém, esperava que tivessem tempo de ajeitar o lugar antes do inverno rigoroso.

No primeiro dia da viagem, duas canoas tinham subido o rio com uma parte das bagagens e as crianças, a quem a atividade divertia e descansava. Os outros viajantesleguiram pela margem.

No segundo dia, deixaram-o,Kennebec, cujo curso se tornava agitado e entrecortado de corredeiras, é, virando para leste, seguiram o curso de um riacho que, azul, tranquilo, parecia atravessar um parque de planície, de salgueiros e olmos. Não se viu vivalma. Por razões misteriosas, era um riozinho sagrado.

Contavam chegar na tarde do terceiro dia, mas depois de uma noite em que o "vento sacudira duramente seus abrigos de galhos, eles foram pegos por uma tempestade gelada que não parava mais.

Wapassu, o Lago de Prata, guardado pelo riacho sagrado e pelos génios dos metais nobres, defendia ferozmente sua vizinhança.

Angélica caiu de joelhos. Prendera o pé numa raiz. Achou que não teria forças para- se levantar e que teria que terminar de vencer a encosta de quatro.

Fez um esforço para erguer a cabeça e quase gritou de alívio. O poço escuro entreabria-se afinal e divisava-se um rasgo alvacento de céu percorrido por nuvens desgrenhadas.

Joffrey de Peyrac est.ava em pé, lá no alto, olhando-os subir. Segurava a filha nos braços. A íilha dela. E nem em seus sonhos mais audaciosos Angélica imaginara aquilo. "O meu amor, era mesmo você a quem eu via em meus sonhos... Leva-nos pela tempestade sempre para mais longe, sempre mais longe. E como Caim, fugindo com os seus, diante da maldição... Mas não fez nada de mau... Por quê?... Por quê?"

Peyrac vira que Angélica caíra, e seu olhar, lá de cima, instava-a a levantar-se num último esforço para ir-lhe ao encontro. Por entre as dobras da capa ela entreviu o olhar de Honorina, brilhante de alegria. Contra o peito daquele pai finalmente encontrado no fim do mundo, Honorina olhava o mundo escuro do qual ele a protegia, e regozijava-se, estava feliz.

Joffrey de Peyrac não podia fazer-se ouvir devido ao ruído do vento e das águas, mas fez um sinal de cabeça para mostrar-lhe alguma coisa e Angélica entreviu à esquerda, do outro lado da catarata, uma construção de tábuas com pás erguidas como grandes asas negras.

Aquele vestígio de trabalho humano devolveu a todos um pouco de esperança e coragem.

Mas ainda não haviam chegado ao término de suas dificuldades. Aquele moinho era apenas um posto avançado.

Um pouco adiante as árvores da floresta se afastaram e uma paisagem mais vasta se revelou. Avistaram a extensão melancólica e desolada de um grando lago, martelado pela chuva e margeado de montanhas arredondadas. No topo delas, enegrecido por uma fuligem úmida, esfiapavam-se nuvens que o vento arrastava velozmente. Joffrey de Peyrac, sempre carregando Honorina, guiou os companheiros para a margem esquerda do lago. Depois de fazê-los cruzar uma pequena passarela de madeira, conduziu-os por um caminho muito bem traçado, mas que a chuva transformava em lamaçal. Alguns estavam tão cansados, que escorregavam e caíam na lama viscosa. Um único pensamento os reanimava: verem-se logo num abrigo onde ardesse um bom fogo.

Mas atingiram a extremidade do lago sem que aparecesse luz alguma. Atravessaram então um estreito desfiladeiro, que comunicava o primeiro lago com outro, menor, rodeado de falésias escarpadas. A ribanceira abrupta desfazia-se sob os passos. Era preciso tomar cuidado para não caminharem na borda. Passaram, depois, por outra garganta rochosa, apareceu um terceiro lago, mais vasto e ladeado, à esquerda, de pradarias alagadas e colinas baixas. O caminho que atravessava o pantanal estava semeado de pranchas de madeira para facilitar a passagem.

Mas ainda desta vez chegaram à extremidade do lago sem avistarem a silhueta de uma construção.

Os infelizes olhavam à volta e não viam nada. Ainda assim, através da chuva, chegou até eles o odor acre de um fogo de madeira.

- Sinto cheiro de fumaça - exclamou o pequeno Bartolomeu, com uma voz tremula. - Estou sentindo cheiro de fumaça.

Batia os dentes e tiritava tanto, que teria caído se Florimond não o tivesse segurado solidamente. Os cabelos dos dois filhos de Angélica, habituaímentes bastos, eram dignos, nesse dia, dos cabelos das náiades da Grécia antiga. Mas Florimond e Cantor enfrentavam com bravura a prova. Diziam que já tinham visto outras. Aquilo não passava de um pequeno aguaceiro!

A pedido do pai, Cantor procurou em sua sacola e dela tirou uma concha grande, uma dessas conchas marinhas em que os marinheiros sopram para se anunciar quando há nevoeiro.

O rapazinho estufou as bochechas e por várias vezes o eco das falésias devolveu o som cavernoso da concha.

Pouco depois, de um promontório rochoso, plantado de abetos e lariços que avançavam lago adentro, viu-se chegar por entre o nevoeiro cinza-azulado uma barca conduzida por uma criatura indistinta. Um rosto pálido com olhos vítreos examinava-os em silêncio; a embarcação alinhou-se com a margem.

O Conde de Peyrac dirigiu-sé ao remador em inglês. Este não respondeu. Era mudo. Era o navegante das.brumas, pálido como um fantasma, de cabeça toda branca. As mulheres e as crianças embarcaram primeiro, seguidas de Joffrey de Peyrac, que levava Honorina.

O grupo atracou numa praia esponjosa, e enquanto a embarcação retornava para buscar os demais, os recém-çhegados subiram uma suave inclinação que os conduzia até a extremidade do promontório.

O cheiro de fumaça sé~ fez'mais intenso. Parecia brotar da terra e misturar-se ao nevoeiro.

Sob os passos do grupo, abriujse um buraco, com degraus de toras. Nesse buraco, nesse covil, desceram e empurraram uma porta.

Foi quando, explodiu como um sol o cheiro de gordura cozida, de tabaco e de rum, da luz das lâmpadas e candeias, e também ò calor bom e suave, envolvente e benfazejo do fogo.

E contra a tela escarlate daquele fogo alegre, um negro gigantesco os via entrar, surpreso.

Estava vestido de peles e couro. Argolas de ouro brilhavam-lhe nas orelhas. Seus cabelos lanosos eram brancos como a neve. E com um grito Angélica reconheceu aquele rosto negro do passado:

- Kuassi-Ba!

CAPÍTULO II

Hospitalidade em Wapassu, o Lago de Prata

Ela acabava, então, de reencontrar Kuassi-Ba, o bom, o devotado, o capacíssimo Kuassi-Ba, o escravo grandalhão que, antigamente, paramentado de cetim bordado e de seu sabre, guardava-lhe a porta no palácio de Toulouse. O Conde de Peyrac o comprara ainda jovem aos bárbaros e dividira com ele seus conhecimentos. Kuassi-Ba o seguira até a condenação, até as galés, e fora com o negro que o conde fugira da prisão e desaparecera no Mediterrâneo.

Como não lhe ocorrera perguntar antes ao marido acerca do fiel criado? E que ainda não usavam conversar sobre o que acontecera depois do cadafalso. E as ressurreições continuavam!

Ele, o homenzarrão negro, não a conheceu de imediato.

Espantou-se de ver aquela mulher descabelada e encharcada correr na sua direção e apertar-lhe as mãos grossas e negras entre as suas, finas e geladas, repetindo:

-        Kuassi-Ba! Oh, meu caro Kuassi-Ba! - enquanto a chuva lhe escorria pelas faces, assemelhando-se a lágrimas.

E, diante daqueles olhos claros, inesquecíveis, a recordação voltou-lhe à mente. Deu uma olhada no Conde de Peyrac e, entendendo que ocorrera o milagre pelo qual rezava ingenuamente há tantos anos, explodiu numa alegria irradiante que não sabia como exprimir-se naquele espaço estreito onde os recém-chegados se amontoavam.

Até que caiu de joelhos, beijando as mãos de Angélica e repetindo como que uma litania:

-        Oh, senhora! Oh, senhora! A senhora entre nós finalmente!

A senhora, a felicidade do amo!... Oh, agora posso morrer.

Eram quatro mineiros vivendo naquela toca enfumaçada. Um italiano, cuidadoso e sério, Luigi Porguani; um mestiço de espanhol e índio, Quidua, do Peru; um inglês mudo, Lymon White, a quem os puritanos de Boston tinham arrancado a língua por causa de blasfémias, e Kuassi-Ba. Todos,Inclusive o italiano, tinham algo que os diferenciava dò comum dos mortais, algo que cheirava a enxofre e pólvora, e netes,' assim que os viu, Angélica reencontrou sua primeira impressão de quando o marido a levara para visitar a mina de Salsigne. Eram criaturas de outra essência, em aliança com as forças ocultas da terra,' e o senhor de todos eles era aquele que acabava de entrar e a quem saudavam com solicitude e devoção, o Conde de Peyrac, o sábio de Toulouse. Com ele, tudo ali ganhava significado.

E o refúgio enchia-se. Sombras tristonhas e encharcadas não paravam de chegar. Ja ninguém podia se mexer. Ouviam-se dentes batendo e os suspiros de bem-estar dos recém-chegados estendendo as mãos para o fogo..

Passando o primeiro choque, Angélica atendeu ao mais premente e foi desembaraçar Honorina e os garotinhos das roupas molhadas.

-        Um pano seco, Kuassi-Ba. Cobertas - dizia ela. - Depressa, ajude-me a secar estas crianças!... Envolva-as bem!

E ao som da voz dela, como antigamente, ele se apressava. Ela olhou no caldeirão suspenso -a cremalheira, achou uma espécie de caldo fumegante, e encheu tigelas. Num instante as crianças, alimentadas e aquecidas, pegaram no sono em camas de vento, cobertas por pilhas de peles.

O cozinheiro Malaprade tocou o ombro de Angélica.

— Senhora, há um problema com a garota...

— Que garota?

— Aquela..

E apontou Elvira, recurvada sobre si mesma, em meio a uma crise de nervos.

-        Não aguento mais! Não aguento mais!

Angélica sacudiu a jovem e obrigou-a a tomar alguns goles de um grogue fervente.

— Quero morrer! Quero morrer! - repetia Elvira. - Não aguento mais... Por que não morri no navio, com o meu homem?

— Acalme-se, minha querida - dizia Angélica, rodeando-a com os braços. - Vamos, beba. Você tem sido muito corajosa! Agora estamos salvos. Aqui estamos bem, está quente, temos um teto sobre a cabeça e temos Kuassi-Ba. Não vê como ele é bom? Mala-prade, tire-lhe os sapatos. É preciso tirar-lhe a roupa encharcada... Achem-me mais uma coberta...

Foi uma grande confusão, ativa, em ordem. Pouco a pouco as vozes se tornaram mais altas e seguras de si. De um canto começou a erguer-se um vapor: fazia-se um "suadouro" à maneira índia,. atirando pedras aquecidas numa tina de água. Os quatro mineiros desdobravam-se em cuidados, trazendo tudo o que havia como mudas de roupa, alimentando o fogo, enriquecendo a sopa com o último pedaço de toucinho.

Gradualmente Elvira se acalmou. Então o cozinheiro Malapra-de ergueu-a nos braços e foi deitá-la perto das crianças, onde ela adormeceu pesadamente enquanto ele continuava a prodigalizar-Ihe baixinho palavras de conforto. Mas Angélica o interrompeu.

-        Sua vez, meu amigo.

Otávio Malaprade não era de constituição muito robusta. Podia adoecer na roupa molhada. De uma garrafa que passava de mão em mão, ela serviu-lhe um copo de álcool, obrigou-o a tirar o casaco e, apesar dos protestos embaraçados dele, chegou a friccioná-lo, enquanto se certificava de que Florimond e Cantor também tinham despido a roupa gelada. Os trajes encharcados fumegavam diante do fogo, as botas e sapatos enlameados se acumulavam. Atiraram-nos a um canto. No dia seguinte veriam o que poderiam fazer com eles, já que o espaço na frente da lareira era pequeno demais para se tentar secá-los agora. A luz das lâmpadas de gordura de urso, os corpos nus e arrepiados se aglomeravam diante da única lareira.

— Não consumimos muito da mercadoria de troca - disse Por-guani, o italiano. - Ainda nos restam cobertas e rum.

— Por esta noite não precisamos de mais do que-isso - disse Peyrac.

O italiano distribuiu as mantas e todos se embrulharam nelas. Foi uma assembleia de índios solenemente envoltos em panos que começou a se descontrair e pouco a pouco a readquirir vida. Então, ajudados pelo rum, puseram-se a rir, começaram a fazer troças uns dos outros e a contar o que acontecera desde a véspera ou nos últimos meses. As crianças dormiam como anjos.

Angélica correu à volta um olhar tranquilizado. Sob a tempestade eles tinham sido as criaturas mais miseráveis do mundo, e a única chama humana que se conservava neles - coisa de que ela sempre se lembraria - fora socorrer e aquecer primeiro os mais fracos. Ela vira Malaprade reconfortar Elvira, e Yann, o bretão estender um copo de aguardente aos Jonas antes de ele próprio beber, e Clóvis atirar seu cantil para Yann, e Nicolau Perrot obrigar Florimond e Cantor a se despirenr rapidamente em vez de ficarem batendo os dentes diante do fogo. E Joffrey de Peyrac, antes de tirar o casaco enlameado, certificara-se de que todos estivessem alimentados e secos. Angélica cruzou o olhar com o dele e o marido veio-lhe ao encontro. Segurou-a de modo peremptório.

-        Agora há que pensar em você, minha bem-amada.

A voz dele vibrava de uma bondade e de uma ternura profundas. Foi então que ela percebeu que continuava a tiritar e a tremer como uma possessa acometida de epilepsia.

E ele a obrigou a engolir uma dose de rum diluído em água fervente com açúcar mascavo - o suficiente para derrubar um boi!

-        Bendito seja quem inventou o rum - disse Angélica. - Quem foi? Não sei, 'mas deveriam erguer-lhe uma estátua.

A partir desse instante suas lembranças se tomaram um pouco fluidas. Lembrou-se claramente do canto onde* as pedras superaquecidas faziam ferver a água de uma tina, e da sensação agradável provocada pela vapor ardente contra a sua pele gelada, e de grandes mãos solícitas e hábeis que a ajudaram a envolver-se em cobertas, de braços fortes c sólidos quê a levantaram como a uma criança e a levaram para deitar-se e de como ele a cobrira com peles macias, e como o rosto dele, seus olhos escuros, tão eloquentes, lhe apareciam num nevoeiro, tal e qual numa visão como seus sonhos de outrora... Mas desta vez a visão não desaparecia... E ela ouvia as palavras que ele lhe murmurava enquanto cuidava dela e a aquecia, palavras doces como carícias, como se ambos estivessem sozinhos no mundo... Naquela noite isso não tinha importância: eram todos como animais esmagados pelos elementos hostis, pela natureza madrasta...

No meio da noite, Angélica .despertou, e foi com intensa alegria que ouviu a chuva batendo lá fora e' os grandes gemidos do vento. Sombras brincavam nas vigas efíegrecidas do teto baixo. Estava estendida no chão, entre outros corpos agasalhados, e roncos sonoros se erguiam dos quatros cantos do aposento. Mas ela teve certeza de ouvir um porco grunhir atrás da parede. Um porco! Que maravilha!... Havia um porco, que matariam para o Natal! E cobertas e rum! De que mais se precisava?

Ergueu um pouco a cabeça, que lhe parecia pesada e leve ao mesmo tempo, e viu toda a sua gente pesadamente adormecida uns contra os outros, e a um canto da lareira, Kuassi-Ba acocorado, que velava por todos, como um deus tutelar, cuidando do fogo.

O calor era sufocante, quase insuportável. Angélica se pôs a gozar dele, do modo como, depois de sentir muita fome, a gente goza do alimento que, parece, nunca nos há de saciar.

E a alegria de Angélica brilhava como uma candeia no fundo de seu coração. Sem dúvida alguma o cálido rum das ilhas tinha alguma participação nesse estado de espírito.

A situação lembrava-lhe o Pátio dos Milagres. A comunidade fraternal de enjeitados, de malditos... Mas não se podia comparar, naturalmente, pois aqui ficava tudo enaltecido pela presença daquele a quem amava, e não era a miséria e a ruína que os uniam, um ao outro e aos companheiros, mas a comunhão de uma obra secreta e grandiosa que somente eles podiam assumir e levar a termo. Tratava-se de um começo, não de um fim.

Era bom que Katarunk tivesse desaparecido. Ela gostaria de Wa-passu. Katarunk era um local destinado à tragédia. Melhor queimá-lo de uma vez. Fora atormentada por sonhos naquele lugar... Aqui dormiria bem. Para se atingir Wapassu, era necessário vencer várias passagens, assim como inúmeros ferrolhos protegiam o vale entre montanhas onde há milénios, dentro da rocha mesma, repousavam o ouro e a prata. Um trecho da trilha índia dos Apalaches passava perto dali, mas os índios que por vezes a seguiam sequer pensavam em se deter e se apressavam, assustados com a escuridão das falésias e uma vaga e feroz expressão de solidão inscrita nos montes. Quem se atreveria a atravessar, principalmente no inverno, a alta soleira nevada que guardava o vale onde se estendia a cadeia de três lagos?

Sob as pálpebras semicerradas de Angélica passavam imagens que a enchiam de uma emoção profunda e lhe traziam lágrimas aos olhos: Joffrey de Peyrac destacando-se contra o céu da tempestade e carregando Honorina nos braços; Florimond e Cantor, curvados sob o peso das crianças e tropeçando na lama; Yann estendendo um copo de aguardente ao velho relojoeiro transido de frio; Malaprade esfregando os pés gelados de Elvira para aquecê-los... E agora... "Deus! Que calor!" Angélica tirou um braço de

sob as cobertas e soergueu-se.

Toffrey de Peyrac dormia perto dela. Angélica lembrou-se de repente. Fora ele, aquela noite, que a envolvera em peles e a deitara ali, e que fora o último a deitar-se para reparar as forças. Dormia imóvel, como uma estátua, forte e sereno. Mais uma vez triunfara sobre a guerra, a morte, os elementos, e recobrava forças para enfrentar um novo dia.

Ela contemplou-o, apaixonada.

O odor mineral que ela sentirá nas roupas dos quatro mineiros, exalado de suas mãos rugosas e marcadas de estilhaços de pólvora e pedras, impregnava tudo, e eSse aroma particular era o mesmo de que, outrora, ela o sentira rodeado,-como de um mistério sutil e pessoal. Não sabia tudo sobre ele. Descobrira-o pouco a pouco. O Conde de-Peyrac, que ofuscava Toulouse com seus faustos, ou que conduzia um navio em meio à tempestade, ou que enfrentava-reis e sultões, sim, ele era tudo isso...

Mas além do guerreiro e do cavalheiro, havia outra personagem, quase ineonfessatla, pois'ninguém de seu tempo conseguia compreendê-lo. Era o homem da mina, da primeira ciência, a que exprime o nascimento da criação pela revelação de segredos escondidos e invisíveis... Aqui, em Wapassu, ele ia ao encontro das entranhas do solo, onde cochilavam o ouro e a prata, seu reino. Ela já percebia, apenas pelo modo como ele dormia, que ali ele estaria melhor do que em Kataruk. E porque ele dormia tão profundamente, tão completamente ause-nte -de qualquer presença, inclusive da dela, Angélica ousou estender o braço e passar-lhe na face ferida uma mão maternal.

CAPITULO III

Preparativos para o inverno - Aliança com os metallaks

Os dois carpinteiros já não deixavam o fosso. Da manhã à noite, um debruçado sobre a viga que transformavam em pranchas, o outro no buraco, os dois manejavam a serra enorme com movimentos de autómato. Alguns dos outros homens abatiam árvores, desgalhavam-nas, esquadriavam-nas. Choupos para as tábuas divisórias, carvalho negro para as paredes externas e os bastiões, pinheiros para as calhas, móveis e ripas do teto. Rapidamente ampliava-se, erguia-se. Logo de início a sala principal do entreposto ganhou o dobro do comprimento: acrescentou-se a ela um cómodo grande, onde se alojariam os Jonas e as crianças. Uma pequena alcova que, devido à disposição rochosa do terreno, ficava situada um pouco acima do resto da construção, foi desembaraçada das ferramentas e tonéis que a atulhavam e transformada em quarto para o Conde de Peyrac e sua mulher. Abriu-se uma janela no aposento e construiu-se uma lareira de seixo unida à chaminé central.

Construiu-se um sótão, onde se armazenariam as provisões e que, formando um colchão de ar, conservaria melhor o calor dentro de casa. O Conde de Peyrac também mandou cavar uma adega numa rocha e erguer um abrigo para os cavalos. Ressoavam os ecos dos golpes nos troncos, das marteladas, do canto monótono e rangente da serra, das pranchas e vigas sendo empilhadas.

Chegou o dia em que, como a construção inteira estivesse sem telhado, o grupo acampou de novo ao ar livre, como durante a viagem, por entre o coaxar das rãs e a tagarelice dos patos entre os caniços.

Felizmente o céu limpara outra vez.

A remissão predita pelos augúrios dos canadenses concretizava-se. Os últimos dias de outubro e os primeiros de novembro passaram numa seca súbita e miraculosa, numa deliciosa tepidez. Só as noites eram frias e às vezes, de manhã, as- montanhas apareciam azuladas de gelo.

Desde a primeira manhã Angélica constatou que suas impressões se confirmavam. Wapassu, cujo nome significava "o Lago de Prata" era um local escondido, afastado de tudo, um local onde se hesitava em penetrar. O mais urgente eram os preparativos para o inverno. Com exceção do milho e do porco, que fora engordado durante o verão, as provisões de Wapassu estavam quase esgotadas. Os quatro mineiros preparavám-se para descer de volta a Katarunk quando a caravana chegou. Katarunk já não existia, e agora umas trinta pessoas tinham que sobreviver junto do "Lago de Prata", corri-um par de cavalos.

Abrigar-se, aquecer-'se, comer. Havia que construir, caçar, pescar, acumular" provisões de madeira e comida..

Angélica disputava com os pássaros os últimos frutos vermelhos da sorveira e os frutos negros do sabugueiro. Com essas gabas ela trataria das febres, das bronquites, das dores, dos males renais...

Despachava Elvira e as crianças para colherem tudo o que ainda encontrassem de comestível nas moitas, nas sarças, nos matagais - frutos diversos, mirtilos, airelas, pequenas maçãs ou peras selvagens e mirradas.

A colheita parecia irrisória ante os inúmeros apetites que seria preciso saciar, mas tinha grande valor, pois talvez fosse um punhado daqueles frutos que os salvaria do escorbuto pelo final do inverno. Escorbuto, o mal dos marinheiros. Mas também o das longas hibernações nas regiões desconhecidas. Razão pela qual os marinheiros o chamam de o mal da terra. No decorrer de suas viagens, Savary ensinara Angélica a dar valor à menor casca de fruta. Aqui quase não havia delas e passaria muito tempo até que se vissem algumas amadurecer. As bagas secas, contudo, seriam salutares.

Em seguida as crianças colheram bagas e cogumelos nos recantos umidos, bolotas de carvalho para o porco, avelãs. -Depois foram incumbidas de apanhar seixos nas ribanceiras do lago, quando os pedreiros começaram a levantar a grande lareira central com quatro bocas e construir outra no fundo do aposento principal.

Depois disso tiveram que vigiar as mesmas ribanceiras, visitadas por aves migratórias, a fim de proteger a erva e as plantas necessárias aos cavalos. Chapinhavam na areia o dia inteiro, soltando grandes gritos para as aves e desenterrando pémac, uma espécie de batata-doce que dava em penca e que as crianças disputavam comos gansos selvagens.

A Sra. Jonas se encarregara de cozinhar para todos. Todos os dias punha para cozer nos caldeirões milho, abóbora, carnes e peixes... Com os dois braços girava uma concha de madeira tão grande quanto ela em três grandes caldeirões colocados sobre fogões rudimentares. Pediu ao marido que de um velho chifre de pólvora lhe fizesse uma trompa, que lhe permitisse reunir a todos na hora das refeições. O resto do tempo viam-na saltitar daqui para ali, entre as achas de lenha e as ferramentas, levando aguardente ou cerveja para os carpinteiros, para os lenhadores na floresta, para os operários na casa. Tinha as faces vermelhas e lustrosas. Ria e dizia que sempre sonhara em ser cantineira.

A maior parte das carnes e peixes trazidos pelo grupo de caçadores e pescadores, de que Florimond e Cantor faziam parte, destinavam-se à defumação. Tinham-se erguido jiraus sob os quais ardiam o tempo todo braseiros de ervas secas e odoríferas.

Auxiliada por Kuassi-Ba e Elói Macollet, Angélica assumiu a operação. Passava os dias ajoelhada na grama manchada pelo sangue da caça e das vísceras que eram rejeitadas. De mangas arregaçadas e mãos lambuzadas, cortava em fatias muito finas os pedaços de carne previamente desossados pelo velho Macollet. Kuassi-Ba ia colocando as fatias acima do fogo. Diante da urgência dessas tarefas, todo o trabalho nas minas fora suspenso, e o velho negro já não se afastava um metro de Angélica. Como antigamente, ele não parava de fazer-lhe confidências, evocando o passado, contando suas aventuras com o Conde de Peyrac no Mediterrâneo e no Sudão, toda aquela parte da vida do marido que ela podia apenas imaginar.

— Ele não era feliz sem a senhora - dizia o velho negro. - O trabalho, sim, a mina, o ouro, as viagens, o comércio com os sultões, o deserto, sim, tudo isso contentava-lhe o espírito... Mas quanto às mulheres, nada...

— Hum.... Não lhe acredito muito...

-        Sim, sim! Acredite em mim, senhora! As mulheres eram só

para o corpo. Para o coração, nada...

E ela ouvia o amigo Kuassi-Ba falar, enquanto, com a mão hábil de cozinheira da Taberna da Máscara Vermelha, cortava, dividia, chegava, até a desossar com punho enérgico um pernil ou jarrete ou costelas, com um-golpe preciso de facão.

Elói Macollet observava-a de soslaio. Bem^que gostaria de criticá-la, mas não havia nada a dizer. ."

-        Dir-se-ia que você passou á vida, inteira numa wigwam.

De cabeça inclinada, os olhos avermelhados pela fumaça, as mãos

vermelhas de sangue, Angélica não se deixava, distrair do trabalho. Cada pilha de fatias bem defumadas que.se formava nos cestos de casca de árvores ou de ervas trançadas era uma refeição a mais; cada cesto.cheio era um dia de sobrevivência...

Gamos, veados, cabritos eram arrastados pela pradaria, e as facas afiadas se punham prontamente ao trabalho. Houve até um urso que Florimond matou7 saltando-lhe às costas e cravando-lhe a faca na nuca, para -depois rasgar-lhe a carótida.

-        Nunca ouvi falar de um urso' morto dessa: maneira - dizia

Nicolau Perrot. Florimond'nunca fazia as coisas como todo mun

  1. Saiu da proeza com o gibão rasgado e uma cutilada de garra.

Sobre o peitojovem ainda liso, Angélica aplicou uma compressa refrescante, enquanto Florimond lhe contava a façanha com pormenores, devorando uma asa de peru assado. A força de Florimond era prodigiosa, e Já-se formava- uma lenda a seu respeito. Os colonos da América gostavam dos superlativos. Florimond estava em vias de tornar-se "o rapaz mais forte da América setentrional". Olhando-o orgulhosa, Angélica lembrava-se de como ele fora frágil, pequeno.

A gordura do urso foi colocada a derreter para alimentar as lâmpadas, e a pele, curtida para se fazer mais uma coberta para o inverno.

Ainda que tardio, o inverno agora chegava a passos largos. Às vezes uma lufada áspera, vinda não se sabe de onde, passava brutalmente pelo cimo das árvores. De vermelho a rosa, de rosa à malva, a floresta se tornara cinzenta. Os picos redondos das montanhas, plantados de pinheiros e abetos, pareciam encimados por uma calota mais escura, de um marrom violáceo, que sublinhava o relevo ondulante dos Apalaches. O hálito da floresta perdera o aroma quente de fera e de frutos das sarças. Os animais peludos

- ursos, raposas e marmotas - começaram a retirar-se para suas tocas; restava um odor de cogumelos e musgo, de folhas mortas e cascas de árvores, que já era o cheiro do inverno.

Toda noite, bandos cada vez mais numerosos de aves migratórias, patos e gansos principalmente, abatiam-se sobre os lagos e represas. Durante o dia escureciam o céu. Manifestavam um pânico ruidoso, o de pessoas que se atrasaram no caminho e tentam recuperar o tempo perdido. Já não se conseguia expulsá-los dos campos. Um dia, armada de um bastão, Angélica teve que defender Honorina dos ataques de um grande ganso branco, preto e cinza.

Diante do corpo da ave, que levou pelo pescoço para a Sra. Jonas, para a refeição seguinte, Angélica pensou nas vantagens da gordura de ganso para as doenças de inverno, os cataplasmas para os brônquios, os unguentos para as queimaduras. E também pensou em como seria bom comer saborosos guisados de ave para variar. Toda aquela caça aquática que fervilhava ali em profusão, não se podia pegá-la, encerrá-la em tachos para os dias de escassez?... Como conservá-la? Angélica refletiu. Havia uma abundante provisão de gordura de urso. Pouco a pouco germinou-lhe a ideia de envolver cada ave numa camada de gordura, do modo como se prepara o ganso em conserva em Charentes e no Périgord.

Joffrey de Peyrac aprovou o projeto, confirmando que a gordura protegeria as aves das alterações causadas pelo contato com o ar. Como precaução suplementar, aconselhou que fossem levemente defumadas antes. Como recipientes, prepararam-se bexigas de alces fêmeas e de ursos, que os caçadores costumam guardar para essa finalidade, pois têm uma grande capacidade. Construiu-se uma cabana de defumação, para se fazer rapidamente a operação, e empilhou-se ali madeira de zimbro.

Toda noite um grupo de homens armados com bastões descia até o lago. Era uma verdadeira matança. Rolavam cabeças verdes, roxas, vermelhas, brancas, empenachadas, cintilantes, em meio a grande profusão de penas. Sentadas um pouco afastadas, as três mulheres depenavam até esfolar os dedos, retiravam entranhas, atavam pernas e asas, cortavam pescoços e patas. As crianças corriam a colocar as aves assim preparadas sobre as ripas da cabana. Na manhã seguinte, retiravam-nas, devidamente defumadas, e, depois de encerrá-las nas bexigas ou, na falta dessas, em recipientes de casca de árvore, de madeira ou vime, regavam-nas com gordura quente. Quando os recipientes terminaram, costuraram-se as aves em sacos de pele de gazela.

À força de colherem braçadas de zimbro, as crianças tinham os dedos cobertos de picadelas. Angélica, por sua vez, já não ousava olhar as próprias mãos. Enegrecidas, rugosas, feridas, estavam medonhas.

O aroma da defumação e das frituras, que estagnava no fundo do vale, misturava-se ao da madeira fresca cortada em achas.

Uma nuvem baixa, espessa, esténdia-se longe acima dos lagos, levando até seus confins os odores dé seiva, resina, ervas e espinhos, de sangue e da acre carne selvagem.

Havia homens trabalhando ali... 

Os poucos índios que ainda passavam pela trilha dos Apalaches farejavam esses cheiros insólitos e se aproximavam do acampamento.

Vinham sem"bagagem, nómades, famílias solitárias, à procura de uma represa onde apanhar o castor no inverno. Seguiam a crista das montanhas acima.'ilos lagos, e antes de desaparecerem do outro lado da falésia se debruçavam para espiar, curiosos, por entre as ramagens escuras das coníferas, o acampamento do Lago de Prata, sonoro comas machadadas nos troncos, azul sob a névoa que subia dos jiraus de-defumação.

Será que os brancos pretendiam ficar ali durante o inverno?, perguntavam-se ele£ Eram muitos. Estavam loucos, iam morrer... O lugar era tabu. Além doTnais^. havia animais estranhos pastando à beira dos lagos. Nem alces, nem bisontes... Mas também precisariam comer. O quê, no inverno? Assustados, os índios se afastavam rapidamente. Aquilo não anunciava nada de bom...

Mas uma manhã, Angélica, sempre ocupada em cortar carne, sentiu no ombro o peso de uma mão imperiosa. Erguendo os olhos, reconheceu Mopuntuk, o sagamore dos metallaks.

Sempre soberbo, e seminu apesar do frio cortante, ele lhe fez sinal para se levantar e segui-lo.

Levou-a primeiro até a beira do primeiro lago, tocou a areia, provou várias vezes a água junto à borda e a de um regato que desembocava ali, formando uma bacia tranquila antes de desaguar no lago. Como certo cristal de rocha quê conserva em suas transparências reflexos de âmbar, a água límpida estava marrom. Era a agua dos charcos, carregada de húmus. Própria para lixívia.

Angélica entendeu que Mopuntuk lhe perguntava se ela estava satisfeita com a qualidade das águas naquele local, e meneou a cabeça várias vezes, afirmativamente.

Levou-a, então, para mais longe, fê-la subir a encosta outra vez, descer do outro lado, detendo-a diante de represas, riachos e nascentes.

- Ware! Ware! - dizia ele.

Ou seja: água. Era uma palavra abenaki que, com ele, ela acabaria conhecendo!

Adiante encontraram uma água muito clara, mas que tinha gosto de calcário duro. Portanto, uma água salobra. Angélica balançou a cabeça, fez como se cuspisse a água e declarou que não se podia bebê-la.

Mopuntuk aprovou sonoramente. A mulher branca tinha muito discernimento. O passeio prosseguiu e eles toparam com águas vermelhas, ferruginosas, águas turvas e inquietantes, mas saborosas.

A tarde ia avançada quando ele lhe revelou uma nascente quase invisível numa pequena clareira, uma água que jorrava e desaparecia simultaneamente, sem um ruído, logo tragada pelo terreno esponjoso, uma oferenda silenciosa e ininterrupta da terra, uma água de gosto acre. Com ela sentia-se na língua o gosto de folha. A primavera ressuscitava ali: agrião, salva e hortelã misturados. O encanto daquela nascente agiu sobre Angélica a ponto de fazê-la perder a noção de tempo.

De início tentara fazer Mopuntuk entender que ela não devia afastar-se demais do forte. Depois, desistiu, pois tinham andado tanto em círculos na floresta, que ela temeu perder-se se o deixasse.

A noite caía quando a viram reaparecer atrás do grande diabo vermelho. Estava exausta. E mais uma vez todos tinham procurado, inquietos, pela Condessa de Peyrac.

Mopuntuk pavoneou-se. Estava extremamente satisfeito com o seu dia de prospecção de fontes e da facilidade de Angélica em reconhecê-las. Digno e familiar, rodeou com um braço protetor os ombros do conde, bastante descontente, e disse-lhe que seu coração se regozijava.

A mulher branca, explicou ele, era naturalmente, como todas as mulheres, bastante rebelde e inclinada um pouco demais a convencer um homem de que ele não sabia o que fazia, mas reconhecia a água das nascentes e sabia distinguir-lhe o paladar. Era um grande dom. Um dom benéfico. Ele, o chefe local, pois o lago Umbagog ficava na sua região, desejava que os brancos ficassem muito tempo no Lago de Prata, e a trilha dos Apalaches renasceria, aquela trilha que os índios seguiam outrora comerciando desde o grande rio do norte até as margens do oceano.

O dia acabou tendo consequências benéficas. Pois já no dia seguinte os índios metallaks apareceram dizendo que seria bom que os brancos fossem com eles para uma.última grande caçada antes do inverno. Os brancos levariam seus fuzis, pólvoras e balas, e em troca do auxílio mútuo ficariam com uma parte dos animais abatidos.

Os alces começavam a descer do Canadá para as regiões menos inclementes do Maine. Mopuntuk, retornando de Wapassu, fora estimular seus índios, censurando-lhes a preguiça bem no momento em que a caça aumentava ligeiramente e lembrando-lhes que sua indolência era a causa da fome que se abatia sobre eles todo ano. Sempre imaginavam ter provisões suficientes, mas nunca se tem provisões que bastem, para atravessar o longo inverno. De resto, Mopuntuk tivera um ?onhp: Manitu lhe ordenava que organizasse uma última grande caçada e convidasse os brancos do Lago de Prata que tinham enfrentado os ferozes iroqueses e se haviam safado com vida e com os cabelos na cabeça, graças à habilidade de sua língua e de suas magias! E não era pouco o que se precisava para convencer um iroquês a desistir de sua vingança. Aqueles brancos tinham pago o preço do sangue ateando fogo às próprias mercadorias. Seguiã-se então a relação dessas inúmeras e esplêndidas mercadorias, sacrificadas ao fogo, e que os índios metallaks recitavam deleitados num tom de litania. Cem fardos de peles, aguardentes, cobertas de escarlatim etc. O Homem do Trovão não era um branco como os outros. Tinha poderes. Era melhor fazerem amizade com ele. Mopuntuk e os seus, e as tribos do lago Umbagog, seus vizinhos, tomavam-nos sob sua proteção.

Nicolau Perrot, Florimond, Cantor e um dos ingleses partiram, em companhia deles, por quatro ou cinco dias. Seguiram para o oeste a fim de organizarem a maior caçada do ano, enquanto os outros se esforçavam por concluir as obras.

Quando os caçadores do lago Umbagog retornaram, no final da primeira semana de novembro, houve uma recrudescência de tarefas e trabalhos. Finalmente se pôde"considerar que a reserva de víveres era suficiente. Com sorte, uma primavera precoce, alguns animais apanhados nas armadilhas que seriam xleixadas na neve, atravessariam o inverno. Elói Macollet balançava a cabeça, tranquilizado:

— Talvez não sejamos obrigados a nos comer entre nós.

— O que está dizendo! Que horror!

— Eh, já aconteceu, minha boa senhora.

E em suas palavras havia menos troça do que parecia.

Ao ouvi-lo, Angélica se sentia presa de uma súbita apreensão. Oscilava de um estado de euforia, que lhe inspirava a beleza do local' deserto e escondido, a um estado de temor natural quando pensava na provação que os aguardava e em como estavam pouco armados para enfrentá-la. Aqueles homens e poucas mulheres amontoados num espaço exíguo, com víveres insuficientes, sem remédios, o isolamento total, pesado, num círculo fechado, aquelas crianças principalmente, vidas frágeis, deveriam sobreviver ao inverno.

CAPÍTULO IV

Nefastos presságios de Angélica - Confidências tranquilizadoras

Joffrey de Peyrac não dissera nada quando vira Angélica assumir a dura tarefa da defumação, Ela desconfiava de que ele a observava de longe, e fazia questão de se mostrar à altura. "Será que está imaginando que £ião sou boa para nada e que vou ficar de braços cruzados?" Era preciso ganhar um ano. Fora bem isso o que ele dissera, não fora? E no momento eles possuíam pouco mais do que a joupa do corpo.

Ajudá-lo a sobreviver, a triunfar, com que exultação secreta ela se dedicaria a isso, ela, que há tanto tempo não podia servi-lo.

A ideia de trabalhar para: ele e, corri isso, de alguma maneira compensar suas traições passadas iluminava os olhos de Angélica. E as tarefas mais rudes lhe pareciam fáceis.

Há coisas que só o tempo pode provar. A fidelidade de um amor, entre outras. Angélica conseguiria demolir aquele muro de desconfiança em relação a ela que por vezes atormentava Joffrey de Peyrac. Havia de provar-lhe que ele era tudo para ela, e também que ela não invadia em nada a sua liberdade de homem, que não pesaria sobre a vida dele, que não havia o risco de desviá-lo dos trabalhos e metas que ele se atribuíra.

O medo de que um dia ele pudesse lamentar tê-la trazido consigo, ou mesmo de tê-la reencontrado, davá-lhe calafrios. Foi um período em que as enventualidades do acampamento os separavam de novo. Ela se atormentava longe dele. Assim como durante a viagem, os homens se amontoavam de qualquer jeito sob rústicos abrigos de casca de árvore, à indígena; para as mulheres e crianças, havía-se construído uma wigwatn mais espaçosa, com uma pequena chaminé erguida às pressas numa extremidade. O abrigo era quente o suficiente, mas Angélica punha-se a pensar novamente que ainda estava sozinha, procurando desesperadamente pelo seu amor através do mundo, ou então via-o rejeitando-a, com aquele olhar inflexível que tivera a bordo do Gouldsboro.

Assim, trabalhava como uma escrava. E num momento livre que tivesse, corria para a floresta, para recolher gravetos com as crianças. Faltava lenha miúda, e ela sabia por experiência que não há nada pior, numa- manhã de inverno, do que não poder acender o fogo.

Apressavam-se em juntar galhos e galhinhos caídos no chão para empilhá-los junto com a reserva de achas.

Catar lenha era uma tarefa de que Angélica sempre gostara. No castelo do pai, quando era garotinha, a tia Pulquéria dizia que era o único trabalho que ela consentia em fazer de boa vontade. Sabia fazer rapidamente feixes enormes, que carregava sem fraquejar. Na primeira vez que os homens de Peyrac a viram retornar da mata como uma floresta ambulante, curvada como uma velha sob o peso da carga, seguida pela pequena tropa de crianças, ficaram boquiabertos, sem saber o que dizer ou fazer.

Ela realizava com tamanha perfeição todas as tarefas que iniciava, que uma intervenção pareceria deslocada, e os homens se abstiveram. Mas interrogavam-se entre si e não conseguiam chegar a uma conclusão. Angélica era uma mulher que trabalhara duro na vida e a quem nada assustava, mas também era uma grande dama habituada a ser servida, a dar ordens, a ter o seu lazer. Só que não gostava de que misturassem os dois lados de seu caráter.

E se um homem, nesses tempos de trabalhos grosseiros e urgentes que precederam o primeiro inverno em Wapassu, se aproximava dela para ajudá-la, acontecia de ela repeli-lo um pouco secamente.

- Deixe, meu rapaz, você tem outra coisa a fazer de mais urgente! Se precisar, saberei chamá-lo.

Joffrey de Peyrac também a observava. Vira-a azafamar-se à volta dos braseiros de defumação, com uma competência quase profissional. Vira-a pelar veados e cervos, esvaziar entranhas, quebrar ossos, depenar, escorrer a gordura nauseabunda, tirar caldeirões do fogo, tudo isso com a habilidade quase miraculosa de suas mãozinhas finas e elegantes, e uma energia de galego.

Com uma mistura de espanto e estima, ele a descobria extremamente vigorosa, capaz, entendendo de mil coisas a que sua educação, e principalmente a vida dourada e luxuosa que ele lhe dera em Toulouse, não pareciam tê-la destinado.

E no movimento de irritação que, às vezes, estivera a ponto de levá-lo até ela para arrancar-lhe o trinchante, a faca de açougueiro que ela manejava com tanta destreza, oiTentão o pesado caldeirão que ela deslocava com um único movimento, ou o fardo de lenha sob o qual se curvava, efe sentira a violência do sofrimento doloroso que a lembrança dos anos de ausência lhe causava.

Pois era a outra mulher, "a desconhecida", a que aprendera a viver sem ele, que ela lhe revelava, e ele quase lhe queria mal por ser tão forte, sem defeitos, e por haver aprendido tanto longe dele.

Lembrava-se da frase que ela lhe lançara um dia, a bordo do Gouldsboro: "E como gostaria de me reencontrar? Malvada, tola, inútil, sem ter aprendido nada_com a vida que tive que enfrentar?..."

Sim, na verdade ele não contara com o valor real da personalidade de Angélica e conro quê efa, entregue a si mesma, faria disso. E dizia consigo que,;por causa-desta, ainda tinha muito o que aprender sobre as mulheres. A admiração e o ciúme rivalizavam em seu coração.

Angélica nao ignorava de todo essa fraqueza dele. Perspicaz, compreendia-lhe. a causa e quase gostava disso, pois ele era tão forte, tão superior, que ela ficava como que tranquilizada de senti-lo um pouco vulnerável. Ao passar por ele, éntãò, ela atirava-lhe uma olhada onde havia ao mesmo tempo uma suave ironia, ternura, mas também algo de insondável, que fazia mal a ele.

- Não se preocupe - dizia-lhe ela, balançando a cabeça com um sorriso. - Gosto destes trabalhos, e depois... conheci escravidões piores do que juntar lenha por amor a você...

E ele sentia como que uma lâmina afiada cravando-se-lhe no coração. Como podia ela continuar sendo assim a única mulher capaz de fazê-lo sofrer, ele, tão entediado, e isso, sendo apenas ela mesma?

Para falar francamente, ele não podia censurar-lhe nada. Não havia falsa humildade nem provocação na atitude dela. Mas o que possuía, adquirira longe dele. E isso o atormentava com um feroz desejo de vingança. Por ela, estava mais decidido do que nunca a vencer os elementos hostis, e era tal o seu ardor de dominar o destino, que o comunicava aos seus, com a certeza de que nada

podia levar a melhor sobre ele.

Reinava em Wapassu uma atividade de formigueiro.

Ele próprio se ocupava de tudo, dirigindo os carpinteiros e os pedreiros, aconselhando os curtidores e os marceneiros, e não era raro vê-lo empunhar o longo machado de lenhador e abater uma árvore com alguns golpes precisos e violentos, como se quisesse enfrentar pessoalmente a natureza rebelde e vencê-la em combate singular.

Assim, sem se falarem, esse tempo de labor continuava a ligá-los, pelo que aprendiam de si mesmos, pelo que não se confessavam, pelo que pressentiam um do outro. Peyrac adivinhava as inquietações de Angélica. Notara que um excesso de fadiga tornava-a sujeita a momentos de dúvida, em que ela via tudo negro.

Nesses momentos, a visão de Caim na tempestade voltava a atormentá-la.

E se fosse verdade que Deus estava contra eles?, indagava-se ela... E se eles fossem realmente uns malditos?... Condenados por antecipação aonde quer que fossem, ela ou ele? Para que lutar?... Voltava-lhe então a recordação de um olhar de ódio de uma criatura agachada entre as moitas à beira de um lago, fito nela num dia, quando se banhava, e que lhe cravara uma flecha envenenada no coração... Essa recordação lhe vinha com frequência. Acontecia-lhe de se deter na orla da mata, retornando de lá, para poder dar uma olhada longa e devoradora pelos arredores.

Havia construções estranhas ao pé das duas colinas, à esquerda: pranchas eretas e rodas, que se destacavam como instrumentos de suplício, de pesadelo, pelos flancos descampados da montanha que mostrava buracos escancarados de sombras ou chagas lívidas e frescas. No topo se erguia a coroa de uma pequena floresta de onde longos filetes de fumaça não paravam de subir, dia e noite, como de um incensório. Ela sabia que aquilo não era mais do que cabanas de carvoeiro, de teto arredondado e recobertas de argila, tapando no calor de uma combustão ininterrupta a madeira de sabugueiro e de bétula, árvores de que os mineiros tiravam o carvão necessário a esses trabalhos.

A construção onde eles todos iam encerrar-se como na Arca saía da terra na extremidade do promontório, e agora viam-se bem nitidamente seu telhado de ripas brancas e as três altas chaminés de seixos.

Outra coisa preocupava Angélica em surdina. Apesar das qualidades que começara a apreciar neles, os companheiros de Pey-rac continuavam sendo homens rudes, ríspidos, em suma, inquietantes. Quando se fechassem no forte, o que aconteceria com a promiscuidade, a oposição de caracteres, as privações, a falta de mulheres? Tudo isso não criaria uma atmosfera irrespirável?

Quando fora chefe de guerra, no Poitou, lembrava-se de que seus camponeses odiavam aqueles que suspeitavam fossem seus amantes: La Morinière ou o Barão de Croisset...

Aqui a situação era análoga. K reserva que manifestavam em relação à mulher do chefe talvez se transformasse em outro sentimento. Angélica bem sabia que a atitude distante do marido na frente dos outros tinha por objetivo não despertar o ciúme daqueles homens solitários.

A Sra. Jonas também pensava nisso e se preocupava por Elvira, mulher jovem, em idade de ser:corteja"da. Até agora os homens se tinham mostrado polidos para com ela, mas quando estivessem todos trancados-e o tédio os dominasse...

Uma noite Joffrey deHPeyrac tomou Angélica pelo braço e levou-a até a beira do lago. 0 frio seco era agradável.

-        Está preocupada, minha bela?. Vejo-o em seu rosto. Confie-

me suas penas!

Um pouco embaraçada, ela lhe contou dos receios que às vezes a acometiam. Para começar, a má sorte, o azar não seria mais forte do que a bravura deles?

A fome, o frio, o trabalho? Não, não os temia. Quando ela estava em Monteloup, a vida que levavam no inverno era tão diferente da que os aguardava aqui? O isolamento, o trabalho pesado, até a ameaça de incursões de bandidos, como, aqui, a de índios ou franceses, criando ó mesmo clima de insegurança e alerta. Não, não era isso... Ela gostava de Wapassu...

Ele entendeu o que ela não queria dizer.

-        Você tem medo da maldição que me persegue? Mas, meu amor, não há maldição. Nunca houve maldição. Pelo contrário, tudo o que houve foi um desacordo entre seres que se retardaram pelos caminhos da ignorância e.mim, para quem Deus houve por bem iluminar caminhos desconhecidos. E ainda que devesse pagá-la com a perseguição, eu não lamentaria que Ele me tivesse concedido essa graça. Vim para estas paragens para valorizá-las. Há algo nisso que possa desagradar ao Criador? Não. Não seja

supersticiosa, portanto, nem desconfiada com relação a Deus. Nisso é que estaria o Mal...

Sacou do gibão a cruzinha de ouro que arrancara do pescoço do abenaki morto.

— Olhe isto... O que vê?

— E uma cruz.

— A mim, o que me chàmà a atenção é que seja de ouro... Foi porque vi muitas desta joiazinhas no pescoço dos indígenas, cruzes e outros símbolos, que me decidi a explorar o país. A única explicação que me davam era que essas jóias tinham sido oferecidas aos ribeirinhos por marujos de Saint-Malo em escala na costa, e isso não me contentava. Nossos bretões não são tão generosos. Uma cruz de cobre teria bastado como presente. Estas, portanto, tinham sido feitas no local, o que provava que havia ouro e prata nesta região onde os espanhóis ávidos não encontraram nada, habituados que estavam aos tesouros incas e astecas. Muito pouco ouro visível, de fato, como as pepitas que se lavam nos riachos, mas talvez muito ouro invisível. As cruzes tinham razão. Encontrei. A cruz me guiou, como você vê. Wapassu é a mais rica dessas minas, mas tenho outras, um pouco por toda parte no Maine. Agora que sei que o governo do Canadá está de olho em mim, tenho que me apressar para fazer frutificar minhas descobertas... Gostaria de tê-la instalado com mais conforto em Katarunk. No entanto, vindo para cá ganhamos tempo. Só precisamos atravessar o inverno. Será duro. Aqui o nosso único inimigo será a natureza. Mas também é dela que tirarei meu poder. Antigamente tive fortuna sem poder. Ainda preciso adquirir a primeira para ter o direito de viver. Será mais fácil para mim conseguir isso no Novo Mundo do que no Velho.

E, caminhando lentamente ao longo do lago e estreitando-a com força, continuou:

-        Escute-me, minha querida, aqui somos todos malfeitores condenados à forca, e é por isso que sobreviveremos. Escolhi meus homens porque sei que conhecem o valor da paciência. A prisão, as galés, o cativeiro, o fundo da abjeção atingido em companhia da pior escória da humanidade, isso é uma escola de paciência... Longos dias de neve a suportar, às vezes de barriga vazia? São todos capazes disso. Foram capazes de mais... O frio, a fome, a promiscuidade... O que é isso para eles? Conheceram pior... Talvez você receie que as crianças resistam mal. Mas se lhes reservarmos o necessário e se sentirem rodeadas de afeto, não sofrerão. As crianças têm uma resistência extraordinária quando o coração está contente. - Ele a olhou antes de continuar: - Também tenho confiança em seus amigos Jonas... essa gente conhece a paciência, igualmente. Aguardaram durante anos pelo retorno dos filhos. Um dia entenderam que jamais os reveriam. E sobreviveram. Elvira? Concordei em trazer essa moça çonosco porque ela me suplicou que o fizesse. Sei por quê. Ela já não podia^suportar os companheiros de La Rochelle, acusando-os de haverem causado a morte do marido arrastando-o a unia Rebelião que tive que debelar e em que ele foi morto. Ela se refará'melhor entre nós do que em Gouldsboro. Aliás, acho que foi um sentimento parecido que motivou os Jonas a deixar a costa e nos acompanhar. Recebi-os com boa vontade. Eu desejava para você companheiras com quem pudesse conversar .sobre suas preocupações menores. E os filhos de Elvira seriam companheiros de brinquedos para Honorina, para que ela se sinta-menos solitária, agora que a monopolizo.

— Agradeço-íhe por. haveFpensado em tudo isso e de fato estou feliz por ter amigas e por ver Honorina entendendo-se bem com Bartolomeu e Tomás, que ela já conhecia em La Rochelle. Mas começo a perceber que; para você, trazer crianças e principalmente mulheres foi criar-se uma fonte de embaraços e dificuldades.

— Pelo contrário, pode ser uma fonte de vantagens e benefícios - disse Peyrac alegremente. - As presenças femininas exercem influência sobre o espírito dos-homens. Cabe a vocês, senhoras, provar-nos isso.

— Então, você nunca teme nada?

— Gosto do risco.

— Mas não pensa que esses homens privados de mulheres sintam, a longo prazo, ciúme de você, a quem acompanhei, ou concupiscência em relação a Elvira, que é jovem e bonita, e que isso acarrete conflitos, brigas entre eles? Elvira começa a se sentir assustada e perturbada com a ideia de que possa ser alvo de galanteios quando estivermos todos trancados por longos meses nesse pequeno forte.

— Ela tem motivos de queixa de algum deles?

— Não creio.     

— Portanto, que não tema nada, diga-lhe de minha parte. Meus homens foram prevenidos. A forca é o menor dos castigos que eles estão arriscando caso se permitam faltar com o respeito a uma das mulheres que se encontram aqui.

— Você faria isso! - exclamou Angélica, olhando-o assustada.

— Claro! Hesitei, no navio, em enforcar o mouro Abdullah, que quis violentar Bertille Mercelot? E no entanto era um criado fiel, cujo devotamento, hoje, posso lamentar não ter. Mas a disciplina vem na frente de tudo. Meus homens sabem disso. Minha cara, aqui continuamos a bordo de um navio. Na caravana, ainda estávamos a bordo. Isso quer dizer que continuo sendo o único senhor de bordo. Com rodos os direitos. O de vida e morte sobre meus homens, o de recompensar ou punir, e também o de organizar minha vida a meu modo, e até de ter como esposa a mais bela mulher do mundo.

Beijou-a, rindo.

-        Não tema nada, minha pequena madre abadessa!... As mulheres às vezes fazem ideias falsas acerca da verdadeira natureza do homem. Você viveu tempo demais entre ociosos depravados, de coração seco, impotentes na verdade, que procuram em perpé

tuas aventuras sexuais um remédio para a própria incapacidade, ou então entre brutamontes, que não têm outra coisa na cabeça

senão o apetite de seus instintos. Os homens do mar são de outra espécie. Se não soubessem passar sem mulheres, não embarcariam.

O que para eles substitui a paixão, a volúpia, é a aventura, a miragem da fortuna, da descoberta, é o sonho e a rota para atingi-lo...

Para alguns, saiba que uma tarefa amada pode ocupar sentidos e coração. A mulher não é mais do que um adendo, agradável certamente, mas que não lhes determina a existência. Aqui há mais do que isso para nós, repito, minha cara! Não esqueça o que nos une. Somos todos condenados à forca, até os huguenotes, condenados à ignomínia pelos jesuítas e pelo rei da França... Quanto aos outros!... Cada um tem seu segredo... Também na prisão se aprende a passar sem mulher. Acontece de o amor à liberdade substituir todos os outros amores. E uma paixão muito mais forte, muito mais ardente do que se acredita... Ocupa o ser inteiro. Enobrece-o sempre...

Angélica escutava-o, emocionada com o fato de aquele homem, facilmente cáustico, falar-lhe tão gravemente de súbito, com a intenção de fortalecer-lhe o coração e o espírito diante da provação, e descobrir-lhe outro aspecto da vida em que ela nunca pensara e que era fruto de seus sofrimentos e meditações.

A noite agora os cercava, dura e clara, embora sem lua. O céu tinha luminosidades orientais. Parecia cravejado. Tão pequenas lá em cima, as estrelas mergulhavam na água arrepiada do lago reflexos trémulos que se assemelhavam a rosários de pérolas. Angélica meneou a cabeça, com humildade.

-        Também eu fui cativa - disse -, mas parece-me que não aprendi de maneira alguma a paciêncra, como" você diz. Pelo contrário, tremo sem cessar... não Suporto a coerção. Quanto a passar sem seu amor... 

Joffrey de Peyrac caiu na gargalhada.

-       Você! Você é diferente, minha bem-amada, diferente de todos! De outra essência. É uma fonte viva que jorra com força para refrescar a terra e encantá-la... Paciência; minha fonte, um dia você caminhará por vales mais tranquilos, para enfeitiçá-los com seu encanto e beleza... Paciência, controlarei sua loucura, hei de vigiá-la ciumentamente, de medo que se desoriente ou se perca... Começo a conhecê-la-... Não se pode deixá-la sozinha muito tempo. Por uns poucos dias de separação, dormindo longe de mim, eis que já está delirando. Mas o tetp da construção está terminado, e insisti com os jcarpinteiros para que fizessem um grande e belo leito para o nosso repouso. Logo a tomarei de novo nos braços. E tudo irá melhor, não é?...

No dia seguinte, mudaram para o forte.

CAPÍTULO V

Amor na primeira noite a sós

A cama! Angélica a olhava quase com receio na primeira noite em que ela e o marido entraram na espécie de buraco de teto baixo que dali em diante seria o quarto deles. A cama parecia enchê-lo quase todo. Era vasta e sólida, com colunas de nogueira escura, descascada, esquadriada, com um aspecto régio em sua rusti-cidade. Coberta de peles, era o leito de um príncipe viking.

Um cheiro fresco e aromático se exalava da madeira nova. Sobre a fibra escura, percebia-se, em rosa, a ação do fio dos machados.

Diante daquele móvel, extraído da floresta de que trazia toda a poesia e o sabor, diante daquele leito oferecido, que falava de repouso benfazejo e de noites de amor, Angélica se sentiu perturbada e desconcertada... E contemplava-o, em pé junto à cabeceira e mordendo os lábios.

Uma fase de sua vida abria-se para ela. A fase com que tanto sonhara.

Mas, no momento de abordá-la, recuava, prestes a fugir como uma gazela arisca. Essa vida que começava era a que ela devia passar, dia após dia, noite após noite, ao lado do marido, porque era mulher dele. Ora, na realidade ela já não estava acostumada com isso. Sempre fora uma nómade do amor. Mesmo nos últimos tempos, desde o dia ainda recente, há coisa de três meses, em que, no Gouldsboro, ele a reconquistara, sua existência movimentada e de viagens quase não lhes permitira serem outra coisa senão amantes de passagem, sob tetos de campanha.

Mesmo antigamente, em Toulouse, se às vezes dormiam lado a lado, nem por isso deixavam de ter apartamentos separados, sun-tuosos e vastos, para onde, dependendo do humor de cada um, podiam retirar-se ou receber o outro.

Aqui só haveria refúgio estreito, aquela enxerga de musgo e líquenes, um único refúgio para ambos, onde seus corpos se deitariam próximos, enlaçados nó amor e no sono, noite após noite.

Era novidade para os dois.

Angélica dava-se conta de que pela primeira vez começaria a viver uma autêntica vida conjugal... '

E sua perplexidade lhe transparecia nas feições, enquanto Peyrac a olhava de soslaio, rindo e tirando ó gibão sem pressa na frente do fogo.  

Ele, o pirata dos mares e oceanos, o grão-senhor dos palácios orientais, ainda mais errante do que elá, escolhendo seus prazeres ao acaso de seus caprichos e riquezas, ele quisera assim: estar sozinho com ela naquele único quarto, naquele único leito. Uma necessidade ciumenta da presença dela, de certificar-se de sua captura, de não deixá-laTmais evadir-se dele dali em diante.

Mais do que Angélica, como homem de experiência que se detivera muito na natureza humana e* feminina, ele tinha consciência da fragilidade daquilo que os unia então: um casamento antigo, a perenidade de um sentimento que se nutrira de recordações e, entre eles, aquele abismo da quase totalidade de uma existência vivida longe um-dõ outro.

O vínculo mais seguro qlie restava do desastre passado não era, em suma, a sua atração carnal? Era preciso soprar sobre essas brasas incandescentes, e ele esperara com impaciência esse momento de senti-la toda sua, aos olhos de todos, e de ostentar, pela coabitação, essa posse e os seus direitos. Se desejava reconquistá-la, tinha que conservá-la perto, numa estreita dependência. Mas adivinhava um pouco os sentimentos complexos que agitavam Angélica. Foi até ela e recitou-lhe os versos de Homero.

- "Por que essa desconfiança, Mulher?... Certamente os deuses não quiseram que conhecêssemos juntos os dias de juventude, mas tampouco que nos reencontrássemos no limiar da velhice... Ainda podemos nos reconhecer... O leito que construí com minhas mãos, crê que não lhe conheço o segredo? Só você e eu o compartilhamos, nós que nele dormimos juntos..." Assim falou Ulisses ao reencontrar após uma longa viagem Penélope dos braços brancos...

O Conde de Peyrac debruçou sobre Angélica seu grande torso nu e moreno.

Enlaçou-a com força e, acariciando-lhe a fronte insubmissa, murmurou-lhe palavras tranquilizadoras, como nos primeiros tempos de seus amores.

CAPÍTULO VI

A neve - Elói Macollét em sua wigwam

Durante todo o final do outono, a rude terra americana pareceu firmar um-pàcto_com os audaciosos de Wapassu. Quis conceder-lHés, a eles que haviam sacrificado tudo o que possuíam, uma prorrogação .salvadora. Quando o inverno chegou, estavam prontos.

Chegou depois dessa remissão clemente. A neve começou a cair. Caiu por vários rlias, sem um único instante de interrupção. O mundo tornou-se cego e surdo, abafado por tapeçarias brancas e espessas, que o envolviam como uma mortalha.

Arvores, terra e céus desapareceram. Não existia mais do que uma única realidade: a neve silenciosa, seu lento movimento di-luviano, que nenhuma lufada perturbava. E ela se amontoava, recobrindo a terra adormecida.

As pessoas, então, trancaram-se no forte, para ali viver os longos dias anunciados, em que calor e alimento se tornariam as duas preocupações essenciais. Peyrac acrescentou a isso um terceiro elemento, não menos indispensável, considerava ele, à conservação da vida: o trabalho.

O subterrâneo da galeria-túnel, que saía da sala principal, permitia acesso às oficinas. Ninguém ficaria ocioso, ninguém teria tempo de sentir a opressão branca do jnyerno: haveria muito trabalho para todos.

Para as mulheres era simples. Alimento e calor: eram essas as palavras de ordem. Ninguém precisara impô-las a elas, que tinham sabido repartir a tarefa entre si com diligência. Era mais uma das qualidades de Angélica.

Labutava tão arduamente quanto os outros, sem dar a impressão de assumir o controle das coisas, mas na verdade era dela que partia o impulso. Senhora de fato, não reclamava título nem prerrogativas. Por instinto sabia que a hora chegaria. Sua atitude era servir e fazer tudo para preservar o bem-estar das pessoas que lhe eram confiadas. E Joffrey continuava a observá-la.

Alimento e calor - o fqgo e a cozinha -, e depois, ordem. Sem ordem e limpeza a vida se tornaria insustentável naquela toca su-perpovoada. Assim que amanhecia, as vassouras de urzes entravam em ação. Antes disso reanimavam-se as brasas, colocando gravetos e achas sobre os cães das lareiras, e penduravam-se panelas para ferver nos cinco fogões.

O tempo ganho ao inverno permitira ampliações notáveis. A entrada da habitação era seguida de um aposento estreito, destinado às roupas e botas cobertas de neve.

No fundo desse cómodo, uma lareira angular, com um único átrio, perto das divisórias onde se alinhavam as enxergas dos homens, destinava-se mais especialmente a essa secagem indispensável, que desprendia muito vapor e odores estonteantes de couro e peles encharcados.

As pessoas reuniam-se mais à vontade em torno da chaminé central, onde coziam lentamente as sopas e os guisados. Essa chaminé também comportava quatro lareiras, duas de frente e do lado direito para o salão, as outras duas destinadas a aquecer, uma, o quarto de Angélica e seu marido, a outra, à esquerda, o grande aposento separado por uma divisória de tábuas onde se acomodavam os Jonas e as crianças, sob a guarda de Elvira. Uma saliência do promontório rochoso, sobre o qual fora construído, ou melhor, escavado o forte de Wapassu, erguia o terceiro quarto, que era o dos condes de Peyrac.

Da sala, chegava-se ali por quatro degraus e um estrado, que corria a meia altura e sobre o qual Angélica dispôs escudelas, caixas e cestos, diretamente úteis à cozinha e às refeições.

A porta de carvalho grosso e pesado, em gonzos de couro, abria com dificuldade e como que a contragosto. Era preciso baixar a cabeça para entrar. Havia uma única janela, muito pequena, com quadrados de pergaminho. E todo o resto era de carvalho negro esquadriado. O átrio se abria para o fundo.

A direita uma porta dava para um pequeno aposento ajeitado para os banhos de vapor e onde Angélica conhecia seus melhores momentos de descontração e podia satisfazer sua paixão pela água quente. No Pátio dos Milagres censuravam-na muito por esse gosto, mas nem por isso ela se curara dele.

Angélica gostou imediatamente desse buraco obscuro, meio enfiado na rocha, parcialmente coberto pela queda dos galhos negros de abetos que, do lado de fora, roçavam-lhe o telhado de ripas.

Atrás do salão, havia uma espécie de abrigo sob a rocha, que servia de depósito e despensa. Fazia-se cerveja ali, fabricava-se sabão, lavava-se roupa. O porco, criança mimada da casa, vivia ali, recebendo as visitas dos que velavam para que ele continuasse gordo e lhe traziam os restos de comida. Depois o corredor coberto levava até o local mist&rioso das oficinas e forjas. Ao longo desse subterrâneo, canos de chumbo levavam água quente até os fornos da mina.

Às vezes Angélica exclamava:

- Vão ve-r se Elói Macollet não morreu!

Pois o velho canadense nãp quisera trancar-se com os demais e se instalara no pátio, dó lado de fora, como um velho urso, num wigwam de casca de árvore, que ele construíra com as próprias mãos, com um fogareiro no centro, fechado num círculo de seixos. Foi só diante da sua recusa em compartilhar da vida em comum que os outros se deram conta de que na realidade ele não pertencia à caravana,"mas que era apenas um velho explorador solitário que, descendo do monte Kathedin, parara uma noite no forte de Katarunk, na altura em que o exército canadense acampava ali e Peyrac acabava de chegar. Por que ficara com eles e os acompanhara? Ninguém, além dele próprio, sabia dizer. E tinha ideias bem firmes a respeito: não confessaria seus motivos a qualquer um. Na verdade, ficara por causa de Angélica. Macollet era rebelde por natureza. Ora, seus compatriotas de Quebec lhe haviam dito que aquela mulher era, com quase toda a certeza, a Diaba da Acádia, e ele lembrava que a nora, de Lévis, também acreditava nessa diaba que devia causar a infelicidade da Acádia. Então ele dissera consigo que a nora havia de ficar de cabelo em pé quando soubesse que ele passara um inverno inteiro com a mulher que agora se desconfiava que fosse a diaba. Além disso, ele refletira bastante: diabos e diabas, ele os conhecia, ele que andara por todas as florestas da América. Pois bem, aquela que acusavam de ser uma diaba não o era. Ele poria a mão no fogo por ela. Simplesmente era uma mulher diferente das outras, uma mulher bela e amável que sabia rir, comer bem, e até embebedar-se um pouco ocasionalmente. Ele a vira tão alegre e tão grande dama ao mesmo tempo em Katarunk, que se lembraria da cena como de um dos melhores momentos de sua existência. Não havia desonra em servir a uma mulher como aquela, pensava ele. Sem contar que aquela gente precisava dele, ou não se safariam. Tinham inimigos demais, portanto Macollet ficava com eles.

A obstinação de Elói Macollet em querer dormir fora causava muitas preocupações a Angélica. Um di!a não se poderia mais chegar à cabana, e ele corria o risco de morrer sem que se soubesse.

Para agradar a Angélica, os mais devotados iam duas vezes por dia informar-se do velho e levar-lhe sopa quente. Voltavam tossindo depois de penetrar na densa atmosfera enfumaçada da choça, onde Elói Macollet, acocorado diante do fogo, fumava voluptuosamente seu cachimbo de pedra branca, saboreando sua liberdade.

CAPITULO VII

A convivência no cefúgio invernal

A neve continuava caindo.

-Que sorte que não rios pegou oito dias mais cedo - dizia-se.

Todos viam nissoUinrsinaí do céu, e voltavam sempre ao assunto, como prova segura de que todos sairiam vivos da aventura.

-        É que não tem acontecido, a todo mundo de escapar!

E punham-se a recordar precedentes.

E que tinha havido colonos mortos durante o inverno nas costas da América. Mais ainda de fome e doença do que massacrados pelos selvagens. Entre outros, a metade dos peregrinos de Plymouth, no primeiro- inverno depois do seu desembarque do Mayflower na Nova Inglaterra, em 1620. O "Mayflower permaneceu na enseada, mas o que podia fazer o navio, não mais rico do que eles em víveres frescos, senão ver aqueles infelizes morrerem e falar-lhes das costas longínquas da Europa? E os franceses do Sr. de Monts e do Sr. Champlain, uns na ilha do rio Sainte-Croix, os outros não longe de Gouldsboro, em 1606? Também a metade morrera. A metade do contingente desembarcado - número clássico nas histórias de fome.

Olhavam-se de soslaio, cada um indagando consigo quais dos presentes estariam vivos na primavera.

E o inverno de Jacques Cartier, em 1535, no rio Saint-Charles, abaixo de Quebec? Dois navios avançaram demais pelo Saint-Laurent, e quando o inverno chegou, deslizaram prudentemente para o riozinho Saint-Charles, abrigaram-se contra a falésia e agora os dois navios estão transformados em fortalezas de gelo. Dentro deles os homens morrem um depois do outro, com as gengivas sangrando. O chefe selvagem de Stadacomé leva-lhes uma infusão de casca de árvore e, depois de beberem, eles saram e os sobreviventes se salvam.

E a Senhorita, a história da Senhorita? E a sobrinha do Sr. de Roberval, que veio para o Canadá em 1590. O tio, ciumento maldito, abandonou-a numa ilha do golfo Saint-Laurent com o namorado, Raul de Ferland; acabaram morrendo loucos.

E a história da fundação de Jamestown, onde as pessoas se comeram? Tantas outras histórias! Quando se começa a contar histórias de fome na América, não se acaba mais.

A mais trágica é a dos ingleses de Sir Walter Raleigh na ilha de Roanoke, na Virgínia. Foi em 1587. O chefe dos colonos, John White, teve que fazer uma viagem à Inglaterra para buscar socorro. Quando retornou à ilha, não encontrou vestígio algum dos colonos, entre os quais se encontravam sua mulher e sua neta, Virgínia, a primeira criança branca nascida em solo americano. Ele esquadrinhou todos os mares, todas as costas, todas as florestas durante um ano: nunca encontrou nada. O mistério continua a pairar sobre o destino desses primeiros colonos.

Ouvindo esses relatos, Angélica pensava em tudo o que ainda poderia fazer para afastar deles o espectro da fome e do escorbuto. Sentia-os atormentados pelo terror ancestral ao "mal da terra". Um excesso de naufrágios, de invernos passados em terras desoladas e desconhecidas aumentou a lenda. Durante séculos as pessoas se entupiram de toucinho salgado e biscoitos. Ignoravam o valor de comerem vegetação nativa. De resto, nunca plantaram nada. Não havia tempo!

Depois, plantar não é coisa de marinheiros. A terra imóvel, que não vai a parte alguma, dorme sob a mortalha branca, madrasta implacável e indiferente. Ela encolhe, endurece, morre. Vai-se, deixa os homens ali, sem nada. Mais nada. Nem sinal de pássaro, animal, folha. Tudo é matéria inconsumível: pedra, madeira, neve. Mais nada, e pouco a pouco o mal da terra se introduz nas veias, corrói a vida, abate a alma. O próprio ar que se respira torna-se inimigo, despojado de toda vitalidade pelo gelo... Faz tossir, depois morre-se...

Agora era a vez deles, a gente de Peyrac, de enfrentar tudo isso!

O forte de Wapassu, em pleno deserto, a mais de cem léguas de qualquer local habitado por brancos e mesmo vermelhos, era uma loucura. Aquelas mulheres entre homens eram uma aposta. Aquelas vidas a preservar durante o longo tempo da morte total da natureza circunvizinha eram um feito insensato. Aqueles espíritos a manter saudáveis por entre as fantasmagorias que criam a solidão e a ameaça silenciosa dos espaços ilimitados eram um desafio de uma audácia louca. Mas quemdiz deserto, diz oásis. Quem diz grandes espaços cruéis, diz refúgio, e suavidade. Quem diz males e mal-estares, diz cuidados e remédios. Quem diz medo e cansaço, diz consolo e repouso. Quem diz solidão, diz acolhida.

Assim Angélica resolveu qué para" todos aqueles que se encontravam sob sua guarda ela seria o contrário do que os ameaçava.

Queria que os homens, ao retornarem do trabalho à noite, pudessem encontrar a mesa posta e um aroma- apetitoso já pairando no salão. As escudelas alinhadas sobre a longa mesa central já eram a promessa de que seu apetite seria saciado. Havia sempre um caldeirão de grogue fervendo no canto da lareira, para servir-lhes uma tigela enquanto espetavam. O simples odor do grogue bastava para reconfortá-los-e;fazê4os ter paciência, bem como a visão dos escabelos alihhadoá"diante da lareira. Eles tiravam as roupas molhadas, iam" pendura-las diante do fogo, no fundo, depois voltavam para sentar diante do fogo, trocando algumas palavras com as senhoras, mas de olho nós preparativos do jantar.

A maior privação para eles era o tabaco. A raridade do artigo conferia importância às poucas baforadas que se podiam conceder à noite, antes ou "depois da refeição, e a perda ou a ruptura de um cachimbo ganhava ares ~de drama.

Angélica mandou instalar nas entrada, perto da porta, uma espécie de cabide, onde cada um colocava o precioso cachimbo depois de usá-lo, para reencontrá-lo ali à noite, depois do trabalho, como uma recompensa. Havia cachimbos de todas as formas: curtos, longos, de madeira, de argila, até de pedra. Elói Macollet fumava um de pedra branca, ladeado por duas velhas plumas completamente chamuscadas, que lhe tinha sido dado pelos mas-kutins do lago de Illinois, quando ele, na juventude, fora o primeiro branco a chegar lá.

Durante o dia os homens trabalhavam nas oficinas ou em obras de desobstrução do lado de fora. Caída a noite, reagrupavam-se no salão do forte, que se transformava em dormitório, cozinha e refeitório.

As enxergas eram feitas de caniços e galhos de abeto. Por cima atiravam-se roupas de peles e cobertas. No primeiro dia Peyrac fez uma distribuição e certificou-se de que todos tinham o suficiente para cobrir-se. Depois houve algumas trocas entre os friorentos e aqueles cuja constituição permitia que dormissem num buraco na neve e tivessem bons sonhos.

Para as mulheres e crianças, nos quartos, construíram-se camas. As toras que as compunham conservavam a casca.

As circunstâncias nas quais aquelas pessoas se viam reunidas para viver uma difícil provação obrigavam Angélica a interrogar-se sobre o sentido de sua p"resença entre elas, sobre o que podia dar-lhes. O necessário, o indispensável.

Por nuances imperceptíveis, descobriu que, sem saber nem confessá-lo, seus companheiros ficavam contentes de encontrá-la ali quando regressavam do trabalho e se reuniam na sala comum. E pouco a pouco deixou de ir à noite para o apartamento dos Jonas, onde passava serões mais tranquilos entre pessoas de boa companhia. Passou a ficar entre os homens.

Sentava-se no pequeno estrado diante da "sua lareira", onde adquirira o hábito de preparar suas tisanas ou medicamentos. Descascava uma raiz, escolhia ervas, arrumava os potinhos de madeira cheios de unguentos. Ficava ali, um pouco recuada, um pouco acima dos outros, no seu canto de estrado, um pouco ausente, mas presente. Não se misturava nas conversas, mas não se passava uma noite sem que a solicitassem a participar.

— Senhora condessa, a senhora que tem conhecimentos, o que pensa do que disse Clóvis?

— De que se trata, meus amigos?

— Pois bem, este imbecil pretende que...

Submetiam-lhe o dilema, agrupavam-se perto dela, sentavam-se familiarmente no degrau de madeira. Conversando com eles sobre tudo e sobre nada, ela começava a conhecê-los melhor. Quando se armava uma discussão no fundo da sala, bastava que ela levantasse a cabeça e olhasse naquela direção para que logo baixassem o tom.

Angélica encorajou a Sra. Jonas e Elvira a virem para a sala também. Soube demonstrar-lhes como a presença delas fazia bem ao moral dos homens.

A Sra. Jonas tratava todos como a criancinhas. Quando não estava ali, eles se sentiam abandonados. Gostavam do rosto dela, redondo e afável, de seu riso tranquilo. De tudo o que lhe diziam, ela ria com a admiração de uma mãe pela prole numerosa, deixava-os alegres, sem que se sentissem tentados a ultrapassar os limites da decência e do bom humor.

Elvira, tímida e suave, às vezes bem que era alvo de troças. Brincavam com ela por causa de seus olhos baixos, de seu ar assustado quando uma voz se alterava ou surgia uma discussão, mas, vivaz e cortês, ela inspirava respeito. Como fora padeira em La Rochel-le estava habituada a todo tipo de gente. Em suma, todos acabaram se entendendo. A noite, depois de sepvirem a refeição, as mulheres se instalavam diante da lareira da direita, e os homens diante da maior, no centro. As crianças, enfiando-se entre uns e outros, reclamavam histórias, ouviam de olhos arregalados, admirando tudo o que se quisesse contar-lhes, e contribuíam para criar essa atmosfera de família que repousa e suaviza o coração do homem.

As crinças eram felizes em Wapassu. Tinham tudo de que precisavam: uma existência sempre renovada,.amigos para mimá-las e contar-lhes histórias misteriosas ou aterrorizantes, os joelhos maternos onde se .aninhar.

E quando via" os trê_s pirralhos erguerem para a grande estatura tutelar de Joffrey de Eeyrat as -carinhas sempre um pouco sujas, olhando com confiança o gentil-homem que lhes: sorria, Angélica pensava: "A felicidade! É isso a felicidade!"

Também aos filhos Angélica podia observar vivendo naquela intimidade nova, descobrindo que eram bem instruídos e que o pai para eles erá:um pedagogo universal, mas exigente. Os rapazinhos não tinham tempo para devaneios. Trabalhavam na mina, no laboratório, cobriam pergaminhos com cálculos e desenhavam mapas. Florimond tinha a mesma'disposição de caráter que o pai, original e ávido de conhecimento e aventura. Cantor era diferente, difícil de entender, embora parecesse tão aberto quanto o mais velho ao ensino que lhe era ministrado. Sempre unidos, os dois irmãos conversavam longas horas em inglês, para acabarem indo pedir a Angélica ou ao pai que os desempatassem. Com frequência eram questões religiosas e bíblicas, apresentadas a eles em Har-vard, que os diyidiam, mas também discussões filosóficas mais argutas. Comumente Angélica também ouvia a palavra "Mississipi". Florimond sonhava com a passagem para o mar da China, que todos os navegadores procuravam desde a descoberta da América, e achava que o grande rio que um geógrafo canadense e um jesuíta, o Padre Marquette, tinham descoberto recentemente podia levar até lá. Joffrey de Peyrac não estava convencido disso, e Florimond se aborrecia.

CAPÍTULO VIII

Angélica é o novo cirurgião-barbeiro

A cada dia Angélica se alegrava um pouco mais com a presença dos Jonas. Ali estavam pessoas que não se deixariam seduzir pelos encantos da vida indígena. A sujeira dos selvagens causara arrepios à boa dona-de-casa huguenote. Ela era de uma religião que cedo ensina às moças que a boa vontade delas para com o Senhor se manifesta na bela aparência de uma coifa imaculada e passada com cuidado, numa cama bem-feita, uma mesa bem-posta, e que negligência significa pecado.

O Sr. Jonas era igualmente precioso. Sua bonomia, seu caráter benévolo contribuíam para manter um estado de equilíbrio na pequena sociedade. Tinha um modo de se erguer e fazer "hum! hum!", quando ouvia algo que não lhe convinha, que detinha o mais atrevido. Tomara a seu cargo os protestantes, ou seja, além de sua família, os três ingleses, e aos domingos lia a Bíblia em francês para eles, mas com uma voz tão solene, que os ingleses ouviam, tocados pela gravidade do leitor. Pouco a pouco os católicos adquiriram o hábito de, naquela hora dominical, rodear o Sr. Jonas. 'Afinal de contas, a Bíblia é a mesma para todos nós", dizia-se, "e há belas histórias nesse livro..."

O Sr. Jonas também era apreciado pelos mineiros, pois não havia igual para fabricar pequenos instrumentos delicados, necessários às manipulações deles. Trouxera de La Rochelle sua lupa de relojoeiro.

Todos ficaram desolados quando, no final de novembro, o bom homem teve uma fluxão dentária que o pôs de cama. Depois de experimentar tisanas e cataplasmas inutilmente, Angélica se preocupou e entendeu que seria preciso valer-se de soluções mais drásticas.

-        Tenho que arrancar-lhe a arnela, Sr. Jonas, senão seu sangue vai estragar.

Seguindo as indicações dela, ele. próprio fabricou os instrumentos de seu suplício: um pequeno alicate e uma^lavanca do mesmo tamanho, bifurcada numa ponta. Angélica nunca praticara esse tipo de operação, mas ajudara algumas vezes o Grande Mateus, no Pont Neuf, em Paris. Apesar de suas fanfarronadas, sua orquestra e seus berros, o charlatão popular também era um homem hábil. Achava que um alicate passado na,aguardente antes da operação podia ter uma influência benéfica. Notara que raramente as feridas infeccionavam quando tratava o instrumento assim, ou o passava ao fogo. Para maior precaução, Angélica fez as duas coisas: mergulhou as ferramentas no álcool e acendeu-as.

Clóvis, o auvergnaty._segurõu a cabeça do paciente. Era o parceiro habitual do pobre relojoeiro em seus trabalhos, e ela o requisitara, por isso e também porque tinha uma força hercúlea.

Angélica impregnara a gerigiva com uma decoeção insensibili-zante de cravos muito concentrada, e levou habilmente o alicate e a alavanca ao IpcaLsuspeito. O dente saiu sem muita dor nem esforço. Mestre Jonas não conseguia acreditar.

-        Pode-se realmente dizer que você tem a mão leve!

Olhava, como se não acreditasse nos próprios olhos, os pulsos aparentemente frágeis e macios de Angélica. Mas aqueles pulsos de mulher podiam suportar o peso de armas, dominar cavalos indóceis, erguer cargas pesadas. Se um dia fosse a Quebec ou às cidades da Nova Inglaterra, ela compraria pulseiras. Enquanto esperavam, suas mãos tinham encontrado um novo emprego: o de barbeiro-cirurgião.

-        Sua vez, mestre Clóvis - disse ela, estendendo o alicate na direção do forjador.

Já muito pálido e perturbado com a operação que acabara de presenciar, o auvergnat sumiu às pressas.

Formou-se o hábito, então, de no final da manhã virem até ela para que os tratasse ou fizesse curativos.-fiem no canto de uma das lareiras, Angélica mandara fixar uma mesinha, sobre a qual deixava os objetos necessários. Requisitara um caldeiràozinho para suas tisanas e misturas. Yann Le Couénnec lhe fabricara um cofre leve, de madeira de olmo, onde ela guardava os medicamentos. Era preciso prevenir acidentes, febres ou a insidiosa aproximação das doenças. Angélica decidira de uma vez por todas que o mal devia ser atacado pela raiz. Se possuía o necessário para deter um simples resfriado ou cuidar de uma ferida ou queimadura, diante de pulmões congestionados por uma gripe ou um braço inchado por causa da evolução de um corte negligenciado os recursos de sua farmacopeia se revelariam insuficientes. Assim, desde o menor acesso de tosse, as pessoas se viam condenadas aos brotos de abeto, ad tijolo quente nos pés, e não havia ferida que ela não se obrigasse a lavar com muita água para em seguida aplicar um tampão de aguardente. Havia que desconfiar dos sensíveis e dos durões, dos que ocultavam a dor para não terem que sofrer a provação do curativo e dos que se ajeitavam com uma faca suja para retirar uma farpa ou abrir um panarício. Logo eles perceberam que ela estava de olho em tudo.

— Mestre Clóvis, você levou com um peso no pé há pouco.

— Quem lhe disse isso?

— Estou vendo que está mancando.

— Não é verdade. E depois, não estou sentindo dor.

— É possível, mas mostre-me o pé.

— Nunca na vida!

— Mostre-me, por favor.

Ela usava de um tom categórico a que o mais cabeçudo não conseguia esquivar-se.

Resmungando, o ferreiro se descalçava, exibia um pé inchado, azulado, com o dedão esmagado. Imediatamente Angélica o fazia mergulhar o pé numa decocção de casca de castanheiro, envolvia-o em casca de bétula e, apesar dos protestos do homem, obrigava-o a pousar a perna doente num banquinho, para aliviá-la.

Rapidamente passaram a testemunhar-lhe o respeito mesclado com um pouco de temor devido àqueles e àquelas que podem poupar o sofrimento... ou dispensá-lo. Quando se estava entre as mãos dela, era melhor mostrar-se dócil. Ela não se deixava enternecer com facilidade, nem desarmar, e sempre se tinha que fazer o que ela queria.

Assim, pouco a pouco, a desconfiança inicial diluiu-se. O que eles haviam temido de uma mulher como Angélica entre eles não era tanto o seu bisturi e as suas poções. Vendo-a tão bela, muitos haviam pensado: "Vai haver problemas!..." Ora, as coisas se haviam revelado de modo completamente diferente, sem que ninguém tivesse tempo de entender como. Com ela, todos os homens se viam tratados do mesmo modo. E quando ela abria um abscesso com uma lâmina rápida ou enfiava pela garganta de um paciente um tampão embebido em algum líquido desconhecido, cada homem se sentia como um garotinho: Ninguém tinha vontade de se fazer de conquistador.

Quando o Conde de Peyrac não se retirava para seu quarto com um ou outro de seus acólitos para conversar longe do alarido, sentava-se à extremidade da grande mesa e desdobrava mapas e cartas, sobre os quais se debruçavam Florimond, Cantor, Porguani e Kuassi-Ba.

-        Nenhum de vocês morrerá - dizia Joffrey de Peyrac. - O que morrer, cuidado, terá que haver-se.-comigo!

Os homens levavam algum tempo para sorrir do gracejo. Tomavam-no m"uito a .sério. "Com certeza a simples ideia de que o chefe pudesseir pedLr4he£ satisfação no outro mundo impediria alguns de morrer."-'

Entre Peyrac e seus homens existia uma cumplicidade indefinível, vínculos indestrutíveis =que mergulhavam suas raízes no segredo mútuo. Angélica estava certa de que Joffrey sabia tudo sobre a vida deles, sobre os pensamentos de cada um. Estavam ligados ao chefe por confidências, por confissões que ele nunca reclamara, mas que fora-o único a receber. Angélica começava a entender que aquele vínculo não poderia ser rompido por nenhuma mesquinharia, nenhuma "história de mulheres".

A oficina, a mina, o laboratório, eram o centro da vida dos homens. Vinham de lá ruídos, odores estranhos, e às vezes vapores, fumaças...

-        É melhor não saber o que estão tramando - dizia a Sra. Jonas, perturbada.

Angélica, porém, procurava pretextos para ir até lá. Pretendia necessitar de um pilão para socar raízes ou de um pouco de enxofre para uma pomada.

Fora em cenário semelhante, de forjas,.pedras moídas e moinhos rangentes que ela começara a descobrir ò homem com quem se casara e a amá-lo.

Mantinha-se muito quieta, num canto, olhando à volta com entusiasmo. Era o reverso da vida dos-homens, o mundo deles, e ela revia Kuassi-Ba segurando nas mãos brasas incandescentes. O gnomo auvergnat, Clóvis, adquiria a grandeza dos génios infernais ativando-se no clarão vermelho dos fogos, e o inglês, mudo e pálido, vertendo o chumbo cintilante com um gesto de oficiante, parecia menos- miserável e ganhava ares de participar de um drama antigo e solene.

Também Angélica, um dia, levara camponeses ao combate. Eram criaturas de mentalidade grosseira, simples e limitadas,facilmen-te dominadas.

Estes, sensíveis, exaltados, eram muito diferentes. Ela já sentira que em muitos deles existia o ódio à mulher. Outros, como Clóvis, temiam ser desprezados por ela devido a seus modos grosseiros, que eles exageravam de propósito. Em todos aqueles homens havia algo de terrível.

"Mas em mim também há algo de terrível", pensou Angélica uma manhã. 'Atos inconfessáveis! Um passado que dá medo... Também eu matei... Também eu fugi..."

Ela se reviu de adaga na mão, degolando o Grande Coèsre... o rei dos bandidos. Reviu-se vagando, descalça, coberta de lama, pelas ruas de Paris, com os ladrões. Reviu-se na cama do capitão de armas no Châtelet, como uma prostituta.

Uma manhã em que ela tratava de um ferimento na mão do carpinteiro Tiago Vignot, o homem - um parisiense de língua afiada - praguejou baixinho, com o desejo secreto de escandalizá-la. Irritada de repente, ela o fez calar-se com uma palavrinha certeira, emprestada às nuances mais secretas da gíria dos bandidos. O homem ficou boquiaberto. Não conseguia crer nos próprios ouvidos. Ouvir uma coisa daquelas de lábios tão belos e respeitáveis... E lhe aconteceu uma coisa que não lhe acontecia há anos, a ele, carpinteiro de Paris e flibusteiro por vocação: corou. E ela empalideceu, devido a todas as recordações que acabavam de reviver em seu espírito naquele momento. Assim, um pálido, o outro vermelho, trocaram como que um olhar de reconhecimento, o da "malandragem". Depois Angélica retomou o controle da situação.

— Veja, meu rapaz - disse, muito calma -, com a sua linguagem vamos todos começar a falar gíria... Assim, lembre-se de que aqui está a serviço do Sr. de Peyrac e não na casa do Grande Coèsre.

— Sim, senhora condessa - respondeu ele, humilde.

A partir de então o homem se policiou. As vezes a seguia com um olhar perplexo, depois se recompunha depressa. Não, não valia a pena tentar saber: ela era a mulher do chefe. Esposa ou amante, não tinha importância. Se ela tinha coisas a esquecer, era um di-reito seu. Como o dele! Nem sempre se tem vontade de encontrar alguém que nos recorde o passado com a linguagem ou as maneiras. De vez em quando ela o-chamava de "Sr.Vignot", o aue lhe dava a sensação de ser alguém. Nesses momentos o carpinteiro lembrava que de fato fora um homem honesto, e se um dia se metera com um bando de ladrões, fora para salvar a mulher e os filhos da miséria. O que'não impediu que tivesse sido mandado para as galés...

Angélica não falava ao marido sobre ás dificuldades que podiam surgir entre ela e os durões. Mas adquiriu Q hábito de, às vezes, à noite, no quarto deles, enquanto conversavam antes de se deitar, interrogá-lo sobre os companheiros. E pouco a pouco foi descobrindo cada um deles, imaginàndo-lhês a vida, a infância. De seu lado, eles se-abriam mais e deixavam escapar confidências.

Do homem, Angélica tinha uma noção particular e segura. A experiência lhe ensinara què de'um a outro, príncipe ou labrego, não havia diferença muito grande..Soúbera pousar uma mão amiga sobre a solidão de uni rei, conquistar o afeto de velhos ríspidos e intratáveis, como mestre Dourjus ou Savary, amansar tanto bandidos perigosos _quanto um Filipe du Plessis. Preferia mil vezes enfrentar os rancores de um Clóvis ou as suscetibilidades de um mineiro chileno a ter que medir-se com os criminosos dissimulados e refinados da corte de Versalhes. Aqui tudo era franco. Franco e simples como a madeira, a carne, o frio ou a sopa de milho. A própria vida e o contato humano tinham um sabor rústico que tonificava. Em seu espírito ela se divertia dividindo os companheiros em três categorias: os inocentes, os estrangeiros e os perigosos.

CAPÍTULO IX

Os inocentes de Angélica

Os inocentes eram os que tinham a alma límpida e boa vontade. Ela gostava particularmente do jovem Yann Le Couénnec e tratava-o como a um filho. Era solícito, diligente. Sempre encontrava tempo de fazer com madeira aquilo que as senhoras lhe pediam: pazi-nhas de bater a roupa, tábuas de lavar, de abrir massa ou de cortar carne, com uma bela canaleta para recolher todo o sangue, ou cubos de madeira dura de carvalho sobre os quais se estendiam os biscoitos de farinha de milho antes de levá-los ao fogo. Chegado o inverno, ele fez escudelas e jarros. A cada vez acrescentava pequenos ornamentos, guirlandas e florzinhas. Esculpia raízes tortuosas, dava-lhes a forma de dragões, e ensinava Florimond e Cantor a manejar a goiva, no que eles se saíam muito bem.

O Conde de Peyrac o comprara um dia a uma tripulação barba-resca. Visitando as galés com o capitão marroquino que o levava a Salé, ele notara aquele adolescente de olhar céltico e sentira que o jovem estava prestes a morrer. Comprara-o a bom preço, apesar dos protestos obsequiosos do rás árabe que pretendia não poder recusar nada àquele que contava com a confiança do grande sultão do Marrocos. Mandara tratá-lo e o teria ajudado a retornar à França caso o jovem bretão não lhe tivesse suplicado que o mantivesse a seu serviço. Aliás, ele já sonhava em partir para a América e viver como colono.

Natural das profundas florestas de Huelgoat, no maciço armori-cano, ele aprendera o ofício de carpinteiro assim como o de lenhador e o de carvoeiro, e um pouco o de tamanqueiro também. Era mais um homem das matas que dos mares. Se embarcara, fora porque o mar é o caminho natural do bretão assim que ele se aventura fora de suas florestas ou charnecas, e também porque já não tinha como permanecer no país. Seu pai fora enforcado pelo senhor do domínio por caçar em território proibido. Fora apenas uma lebre que o pobre homem pegara para festejar melhor o Natal com os filhos, com frequência alimentados com papas de trigo. Mas a velha lei da servidão não perdoara, e ele fora enforcado.

Adulto, Yann matou o guarda-caça responsável pela condenação. Uma noite, na curva de um sendeiro, sob a abóbada de carvalhos e castanheiras, entre dois montes de granito, ele topara face a face com o homem de libré bordada com as armas do senhor da terra. Ergueu o machado e abateu-o. Depois atirou-o nas profundezas da torrente que corre sob os pôlderes, cavando a pedra com seus turbilhões. E abandonou o país. Ele costumava se esquecer dessa história. Quando se .lembrava, era_para se felicitar pelo que fizera. Hoje já não era um servo: Era mais velho do que fazia pensar seu rosto de menino risonho. Devia ter uns trinta anos.

Inocente tarííbém, isto é, amigo certo, aos olhos de Angélica, amigo que não podia cometer traição alguma, era o maltês Henrique Enzi. Nele havia algo de turco, de grego, de veneziano e também de cruzado franco, com aquele fundo semita que a população da ilha de Malta deve àsua origem fenícia. De estatura média, pequena mesmo, ele era bonito, imberbe, de pele olivácea, com uma musculosa flexibilidade de peixe cujas Tabanadas podem ser mortais. O conde o engajara em Malta quando ele não passava de um garoto de quinze anos, pescador de coral e colocador de brulotes nos flancos das galeras do Grão-Turco, a serviço da religião. Um feroz defensor da cristandade, esse órfão de quem os Cavaleiros de Malta exploravam a extrema habilidade e a espantosa resistência, conseguia permanecer embaixo da água por um tempo que os mais hábeis especialistas de Malta consideravam um recorde. Sozinho ele causara mais danos ao Crescente e à Sublime Porta do que muitos cavaleiros reputados. O que recebia em troca? A certeza de que iria para o paraíso.

Colhia também o prazer daquelas expedições arrebatadas às entranhas verdes e frias do mar. A fúria dos muçulmanos e a admiração dos outros mergulhadores, seus irmãosj de membros marcados pela água salgada, e o peito dilatado pelas longas viagens sob as ondas, bastavam para satisfazê-lo. Se essa existência contentava a hereditariedade do cavaleiro cruzado, a quem devia os olhos claros, o lado veneziano e semita de sua natureza acabava por se cansar. Aonde o levaria aquela vida miserável? Quando ficaria rico? Quando encontraria sob as ondas um tesouro que teria o direito de conservar? Também para ele apareceu em boa hora o pirata mascarado que diziam ser justiceiro e invencível, o Rescator, e que, uma manhã, no cais de La Valette, pousara o olhar na criança sentada à sombra de um muro.

-        Você é Henrique, o que nada mais longe, mais fundo e por mais tempo? Quer-yir para meu navio e integrar minha equipe de mergulhadores? - perguntou-lhe o Rescator.

Assustado, o menino meneou a cabeça ferozmente.

— Não quero abandonar Malta e os meus amigos.

— E Malta que o abandonará, meu garoto. Malta o trocará por outros quando já não lhe for útil, com suas vísceras doentes. Mas eu, se me servir bem, não o abandonarei nunca.

O adolescente levantou-se lentamente. Era pequeno e magro. Aparentava uns treze anos. Foi olhar de perto, alçando a cabeça, aquele que falava.

— Eu o conheço. É o Rescator. Sei que os que o servem não se arrependem.

— De fato. Hoje vim especialmente por sua causa, pois preciso de você.

Os olhos do jovem maltês se arregalaram em seu rosto fino cor de buxo.

-        Não é possível. Nunca ninguém me disse isso. Ninguém nunca precisou de mim.

Depois gritou, encolerizado:

— Se eu embarcar, será com a condição de poder desembarcar a qualquer momento, onde quer que esteja, e de que mé dará com que retornar a Malta.

— Combinado. Aceito seus termos, pois preciso de você - repetiu Peyrac.

— Não sou capaz de ser escravo de ninguém. Só o perigo me atrai.

— Você terá mais do que poderá dar conta.

— Sou bom católico. Fará com que eu me bata contra as galeras da religião?

— Não terá que fazê-lo desde que os Cavaleiros não me ataquem. E não há motivo algum para que isso aconteça, visto que firmei tratados com eles.

— Está bem!

Henrique embarcou, então, sem outra bagagem além da tanga de tela que usava em torno dos rins. Transformara-se muito nos dez anos a bordo dos navios do Conde de Peyrac. Além de seus talentos como colocador de minas e sabotador de navios, era de uma perícia incomparável na luta, no lançamento de facas e no tiro, o aue fazia dele um elemento precioso nos combates de abordagem. Nunca pedira para regressar a Malta.

Quando Joffrey de Peyrac deixou o Mediterrâneo, levou Henrique consigo para o mar das Caraíbas, e foi graças à sua equipe de mergulhadores malteses, de que Enzi er^ o chefe, que ele organizou sua empresa excepcional mas lucrativa de resgate de tesouros dos galeões espanhóis afundados pelos flibusteiros franceses.

O jovem maltês estava rico agora. O conde lhe dera de presente os três vasos de ouro mais bonitos encontrados durante sua-carreira nas Caraíbas, e gle sempre tivera direito a um salário fixo de tripulante, bem como a uma participação em todo butim.. Assim, Joffrey de Peyrac ficará, surpreso, ao pedir voluntários que o acompanhassem por terra para o interior, de ver apresentar-se o homem-peixe que nos dez anos em que o servira; nunca quisera se afastar mais de cem passos de uma praia ou de uma cidade na costa.

— Henrique, a floresta, as montanhas e os charcos lhe convirão? Você é filho dó Mediterrâneo. Vai sofrer com o frio.

— O frio! - disse Henrique com desdém. - Quem o conhece melhor do que eu?... Quem não mergulhou tão fundo quanto eu no oceano não sabe o que é o frio da mortalha da morte. Monseigneur, não há homem mais habituado ao frio do que eu.

— Também não terá muitas ocasiões de mergulhar. O ouro que vou procurar se encontra embaixo da terra e não sob o mar.

— O que importa isso! Contanto que eu receba minha parte - disse Henrique com aquela desenvoltura que às vezes se permitia na qualidade de velho amigo do patrão, e estimado por ele. - Depois - acrescentou, rindo -, há os lagos, muitos lagos, pelo que me dizem. Sempre poderei mergulhar para lhe trazer peixe.

Aproximou-se e disse a meia voz, no dialeto sardo que Peyrac compreendia:

-        É bom que eu o acompanhe, ao senhor que é meu patrão e meu pai, pois se eu não for, quem vai preveni-lo das ameaças que pesam sobre sua pessoa? Eu, que sou cruzado de sereia com albatroz, vejo a flecha invisível que o espreita nas matas."Se soubesse rezar, ficaria na costa e rezaria por sua vida. Mas rezo mal, pois acredito mais no Diabo do que na Madona. Assim, tudo o que posso fazer pelo senhor é acompanhá-lo. Minha faca sempre será ágil para defendê-lo.

Peyrac sorriu olhando aquele homenzinho moreno, envelhecido, sim, mas sempre ardoroso, que o encarava de cabeça levantada, como dez anos antes, no cais ensolarado de La Valette. Respondeu em italiano:

- Que seja. Venha, preciso de você.

Fora ele, contudo, quem demonstrara mais desconfiança em relação a Angélica, isso desde o Gouldsbbro, seguindo-a com um olhar feroz e resmungando reflexões amargas e palavras de conjuração. Era ele também quem mais tinha ciúme, receando que a paixão do patrão por aquela mulher alterasse a imagem muito elevada que fazia dele. Nunca conhecera um homem que não fosse diminuído pelo domínio da mulher. Claro, até o momento nunca vira nenhuma exercer poder sobre o conde. Só que com esta ficava tudo diferente. Observava-a preocupado, pronto a julgar com descrédito tudo o que ela fizesse ou dissesse. Foi também para vigiá-la que ele quis seguir para a floresta. E ainda para proteger a pequena Honorina, que seu amigo siciliano, morto no Gouldsboro, lhe recomendara com um sinal.

Angélica descobrira essa situação durante a longa viagem, quando em cada etapa Henrique aparecia de repente com ar de mártir que cumpre um voto secreto para ajudá-las, a ela e a Honorina, trazer-lhes água, e esforçar-se por distrair a garotinha e satisfazer-lhe os caprichos. De início surpresa, pois sabia que ele não gostava dela, Angélica entendera afinal, e seu afeto por ele nascera. De seu lado, o maltês constatara que a jovem inquietante conhecia muito bem o porto de La Valette, que fora recebida pelo grão-mestre dos Cavaleiros de Malta, que estivera até em Cândia, numa palavra, que estivera um pouco por toda parte do Mediterrâneo. Compreendia melhor as seduções que ela devia ter para seu patrão e, adivinhando os laços que os uniam, inclinava-se. Angélica velava por ele, pois sua saúde era frágil. O frio o deixava verde. A secura do ar irritava-Ihe as mucosas nasais, habituadas à umidade dos climas de mar. Ele tossia frequentemente e sangrava pelo nariz.

O ágil homem-peixe, atraído ao coração da floresta, que, com seus vinte e cinco anos, suas feições trigueiras e buriladas, e a expressão insondável de seus grandes olhos, aparentava mais idade do que a que tinha, era com certeza o membro mais hábil e engenhoso do bando. Hábil nos nós e cordas como todo marujo, trançava cestos e redes, e sob a orientação de Elói Macollet se iniciava na fabricação de raquetas. Era o seu trabalho durante a vigília, em companhia do carpinteiro Tiago Vignot e do inglês mudo. Quando faltava corda, usavam-se tripas de animais, à maneira indígena. Joffrey de Peyrac também utilizava Henrique na oficina, nos preparados químicos. O menino maltês sempre fora atraído por essas manipulações. Os sábios árabes frequentavam La Valefte. Os garotos piolhentos subiam nas grades de madeira das janelas para espiá-los preparando misturas explosivas e fulminantes nos laboratórios cheios de retortas. Henrique elaborara com o conde várias fórmulas de fogo grego cujas receitas ele surrupiara. As experiências os faziam tossir até esfolar a garganta, mas nem por isso desistiam.

Aquele por quem Angélica mais temia quanto aos rigores do inverno era o bom e velho Kuassi-Ba.

Mas Kuassi-Ba enfrentara de tudo. Estava acima de sua raça e condição. Era o deus' pagão, da cópelação do ouro, inclinando o rosto tenebroso sobre recipientes de cinzas de ossos, onde o metal em fusão adquirira reflexos cambiantes. Ele era habitado pelos segredos da terra e quase não via nada além daquele trabalho mágico de que fora impregnado desde a infância nos poços profundos dos catado-res de ouro dó Sudão onde se desce interminavelmente, apoiando as costas e a planta dos pés nas paredes rochosas. Em seu país o ouro era oferecido ao-Diabo. Sua dedicação à terra profunda e ao ouro associava-se-estreitamente à que nutria pelo patrão. Ajudá-lo, salvá-lo, servi-lo, olhar pelos filhos dele, isso também fazia parte, a seus olhos, do trabalho com o ouro. Kuassi-Ba era grave, poderoso, calmo, infantil e sábio.

Seu conhecimento de metais e minas era grande. Aprendera tudo na escola de Peyrac, assimilara e misturara tudo com sua intuição genial de filho das profundezas do solo. Assim, impunha-se aos brancos que trabalhavam com ele. Fizera conferências na universidade de Palermo e em Salé, no Marrocos, e os grande doutores, os árabes letrados, tinha ouvido com respeito o escravo negro. Nada o atingia. Em sua resignação profunda e suave diante das forças da natureza, reconhecia-se a herança dos filhos de Cam. Seu cabelo estava todo branco agora, e as rugas fundas de se-u rosto marcavam-lhe a hereditariedade africana. Na verdade ele era muitos anos mais novo do que o conde. Mas os filhos de Cam envelhecem cedo. Nada o atingia e tudo lhe era sensível. Para Angélica, sua presença constituia um autêntico reconforto. Quando ele sentava diante da lareira, ela sentia que havia entre os presentes um homem sábio e bom, de natureza elevada, que trazia para o seio de suas paixões de civilizados um elemento de simplicidade antiga e primitiva.

Outros por quem Angélica sentia uma amizade sem apreensões eram o piemontês Porguani, sempre diligente, bem-falante e de uma escrupulosa discrição, o inglês mudo, Lymon White, de quem na verdade não se sabiá nada, mas de quem se sentia que se podia contar com ele, e Otávio Malaprade, o cozinheiro bordeies. Entre este último e ela havia uma cumplicidade de profissionais. Quando se falava de cozinha, entendiam-se com meias palavras. Ela dirigira outrora a Taberna da Máscara Vermelha e a chocolotaria do Faubourg Saint-Honoré. Sua experiência transparecia em suas palavras. E ela não duvidava de que tinha pela frente, naquele cozinheiro dos mares, de casaco puído, e que vira lutar corajosamente no Gouldsboro durante a tempestade, um autêntico maitre d'hôtel da classe dos Vatel e dos Audiger.

Por que, quando ele mexia a papa de milho ou cortava com uma faca diligente uma peça de caça, ela o imaginava não apenas com a touca branca dos mestres-cucas, mas antes com a peruca empoada e a casca adornada de um oficial da mesa do rei, operando de mangas arregaçadas entre o alarido de um banquete na corte?

Depois que passou o período em que precisou pôr a mão no machado para ajudar na construção da habitação, ele retomara seu lugar diante das panelas. Deixava à Sra. Jonas e a Elvira o trabalho grosso, como a pelagem dos legumes, mas provava pessoalmente a sopa mais grosseira e examinava o tempero com um cuidado religioso.

De tempos em tempos era tomado por delírios de grandeza. Falava de cardápios suntuosos, dizia que ia fazer um molho de alcaparras a la Royale, sopa de lagosta a la Sauternes, bombas de chocolate.

As pessoas se aproximavam, ouviam.

Angélica rivalizava com ele. Lembrava receitas de patas de carneiro à lionesa e de sorvetes à persa. Eram os contos das mil e uma noite deles, para os serões.

CAPITULO X

Os estrangeiros e osperigosos

Os estrangeiros eram o esp_anhóis e os ingleses. Sentavam-se à mesma mesa que os-outros^ compartilhavam dos mesmos trabalhos e dos mesmos ris.çòs, demonstravam a mesma coragem e a mesma paciência, mascontinuavam sendo estrangeiros. Dir-se-ia que tinha acabado de chegar e que iam partir em seguida, só estavam de passagem, e que na verdade não tinham nada a fazer entre aquelas pessoas, onde, no entanto, a vida deles transcorria dia após dia.

Os cinco artilheiros espanhóis e seu chefe, Dom Juan Alvarez, eram, como este, sombrios, áftivos-e sóbrios. Não se podia censurá-los por se mostrarem difíceis nem por criarem discórdia. Executavam as ordens e as tarefas que lhes eram dadas. Ocupavam-se meticulosamente de suas armas e das outras pelas quais eram responsáveis, trabalhavam na forja e na mina com muita capacidade. Eram todos atiradores de elite, guerreiros da selva e do mar. Tinham integrado as tropas que Sua Majestade Muito Católica da Espanha embarcara nos galeões carregados de ouro para garantir-lhes a defesa contra piratas. Todos tinham participado daquelas expedições perigosas pelas florestas úmidas e quentes, infestadas de serpentes, ou pelo pico das montanhas tão altas dos Andes, que era preciso avançar de quatro, pondo sangue pelas orelhas e pelo nariz. Todos tinham passado pelas mãos dos índios e saído com cicatrizes, doenças incuráveis e um arraigado ódio pelos peles-vermelhas. Os soldados só conversavam entre si e só se dirigiam a seu chefe direto: Dom Alvarez. Este, por sua vez, falava apenas com o Conde de Peyrac. Mesmo no interior de uma comunidade calorosa, rodeada pelo inverno, eles conservavam o isolamento de mercenários em terra estrangeira. Angélica ignorava as condições em que tinham sido engajados a serviço do conde.

Com certeza era mais difícil tratar da saúde deles do que da do ferreiro auvergnat. Angélica notava frequentemente que Dom Alvarez mancava muito e que Juan Carillo empalidecia com as dores de um estômago rebelde, mas não se imaginava obrigando manu militari, o longilíneo senhor castelhano, de olhar distante e desdenhoso, a descalçar-se, nem indagando ao arisco e taciturno Carillo sobre sua digestão. Era impensável.

Limitava-se, então, a mandar levar a Juan Carillo tisanas de hortelã e absinto. Era Otávio Malaprade quem as levava e se certificava de que eram tomadas. O cozinheiro, que não fumava, dava seu tabaco ao jovem mercenário andaluz e em troca disso este às vezes lhe dirigia algumas palavras sobre o tempo. Era um grande sinal de sociabilidade de sua parte.

Quanto a Dom Juan Alvarez, ela ainda não encontrara o pretexto indispensável para abordá-lo e aplicar-lhe nos reumatismos os cataplasmas de farinha de linho que o aliviariam. Ao diabo os homens orgulhosos e de educação mourisca e senhorial! Desprezam a mulher, desejam-na encerrada atrás de grades e destinada a dois objetivos apenas: rezar e gerar filhos. Dom Alvarez era súdito digno de seu soberano, Filipe IV, que morreu queimado por um braseiro que ninguém pôde afastar porque o encarregado disso pela etiqueta estava ausente.

Civilização mumificada, brutal, austera, mística, de onde, no entanto, tinham saído aqueles conquistadores prodigiosos, que em menos de cinquenta anos - de 1513, com Balboa atravessando o istmo do Panamá para descobrir o oceano, a 1547, com Orella-na descendo o Amazonas desde a nascente nos Andes até o Atlântico - tinham conquistado a maior parte de um continente imenso e haviam absorvido e colocado sob seu jugo três brilhantes civilizações indígenas: a asteca, a maia e a inca.

As vezes Joffrey de Peyrac conversava com eles em espanhol:

- Graças a vocês quatro - dizia -, a Espanha não estará ausente da conquista da América do Norte. Seus irmãos se desencorajaram porque não encontraram objetos de ouro nos povoados algonquinos ou abenakis. Valia mesmo bem a pena serem de uma raça de mineiros, como sempre foi a raça ibérica, para se tornarem meros saqueadores! Como me acompanharam, apenas vocês saberão reatar os laços com seus ancestrais que extraíam da terra a prata, o cobre e o ouro escondidos.

Então, ouvindo-os, os olhos ardentes dos espanhóis brilhavam de súbito com. humanidade, e eles pareciam felizes.

"Perigosos", Angélica contava quatro. CGonnel, Vignot, o mineiro hispano-peruano e o ferreiro auvergnat, Clóvis.

Com o parisiense Tiago Vignot ela já não se preocupava muito. Insolente, chegado à bebida, mas, maleável, sensível no fundo, e desde que lhe satisfizessem a vaidade, notando-o de vez em quando, ele se mostrava serviçal e bom companheiro. Angélica acabou por depositar muita confiança nele. Era necessário transformá-lo em aliado, pois com seu escárnio, suas tiradas e suas reivindicações ele poderia mudar q humor do grupo.

0'ConnelLnão era perigoso apenas pelo caráter violento e sua mentalidade tle perseguida Perseguido ele era de, fato. Não se podia negá-lo. Perseguido.peles ingleses por ser católico, e pelos franceses por falar inglês:;Era o que menos se conformava com a queima do forte de Katarunk conftodas as suas riquezas. Deviam ter-se safado de outra maneira» dizia ele, sem queimar Katarunk. Não conseguia perdoar e queria mal a todo mundo por isso.

Angélica hão sabia por onde conquistá-lo. Seu rosto sombrio, seus resmungos ameaçadores, seu rancor permanente a oprimiam, tanto mais que ela lhe^entendia amágoa.

O mineiro hispano-peruano; Sorrino, não criava embaraços, contanto que o ignorassem, sem no entanto se ter a imprudência de esquecê-lo totalmente. Tinha ódio mortal a Angélica, que ao chegar o tomara por índio. Tê-la-ia odiado do mesmo modo caso depois o tivesse tomado por espanhol. Sofria acima de tudo por ser considerado mestiço.

Seu espírito era permanentemente um campo fechado onde due-lavam com^ferocidade dois inimigos irredutíveis: um índio quí-chua, dos Andes, e um espanhol de Castela, mercenário de Pizarro, inimigos que só se reconciliavam rapidamente para considerar com desprezo igual a pessoa de "sangue misturado que ele era, conspurcando hoje com sua presença a terra-nobre dos incas. O Conde de Peyrac soubera fazê-lo entender que o trabalho de mineração era uma vocação de força igual nas duas raças que o compunham, e que assim como o sangue misturado unindo essas duas heredi-tariedades e seus dons, ele nascera para ser o mais notável especialista em minas do Peru. A predição comprovou-se correta. Quando se debruçava sobre seus trabalhos, ele se acalmava. Bastava deixá-lo às suas forjas e evitar dirigir-lhe a palavra, mas sempre tratando-o com consideração.

O mais perigoso, então, era Clóvis, a má índole caracterizada pela violência, o lado desconfiado de seu espírito, seu egoísmo feroz. Angélica sentia que ele não gostava de ninguém. Era desses que podem morder a mão que os alimentou ou salvou. Em certos momentos Angélica se perguntava se o marido refletira bem ao aceitar como voluntário para a expedição aquele indivíduo duvidoso e tão difícil de conviver. Verdade que era bom ferreiro, hábil em todo tipo de trabalho de serralheiro e forjador. Um autêntico criado de Vulcano, preto, atarracado, suando, sempre com a barba a sujar-lhe a cara como fuligem. Ferrava cavalos melhor do que ninguém. Mas essa qualidade, ainda que preciosa, não chegava a fazer esquecer, agora que a viagem terminara, sua grosseria e seu espírito briguento. Detestava as mulheres e era o único a se mostrar indecente em suas observações, a fim de chocar os ouvidos pudicos da Sra. Jonas e de Elvira. Com Angélica, mostrara-se algumas vezes de uma rara insolência. De modo que ela desferia contra ele um combate tão encarniçado e abafado quanto o dele.

Estavam de acordo pelo menos num ponto: que o eco desses combates não devia chegar ao Conde de Peyrac. Ela receava importunar o marido. E ele... receava a corda, simplesmente. Nos três anos em que estava a serviço do Sr. de Peyrac, tivera tempo de aprender que ele era um chefe que não brincava. Assim, tinha motivos mais que suficientes para se conter na frente dele. Os companheiros lhe censuravam a dissimulação. E ele se consideraria desonrado caso fizesse um esforço para se entender com eles ou com quem quer que fosse.

Uma noite, durante o serão, Angélica lhe pôs nas mãos uma trela furada.

-        Aqui tem uma agulha e lã, mestre Clóvis. Remende isso de pressa.

O ferreiro protestou, não sem antes se certificar de que o conde não estava por perto.

— Isso é trabalho seu, de mulher.

— Não, os marinheiros todos sabem usar a agulha, faz parte de seu ofício.

— Por que eu? Já a vi remendar as roupas dos outros.

-        É possível, mas você precisa fazer penitência.

O argumento convenceu. Clóvis examinou-a um instante, segurando numa das mãos a roupa, na outra a agulha, e se pôs a trabalhar em silêncio. Seu vizinho de escabelo, Tiago Vignot, ouviu-o murmurar várias vezes: - Fazer penitência! Fazer penitência! Pois sim!... Só me faltava essa!

Ele costumava dizer uma frase cujo sentido era um mistério para Angélica e os outros - Ah sim! - dizia, sacudindo a cabeleira negra desgrenhada. - Valeu mesmo a pena que eu levasse minhas correntes a Sainte-Foy de Cpnquespara chegar a isto!

Outro dia, ouvindo o ruído de uma altercação violenta do lado de fora, Angélica saiu bem a tempo de ver o auvergnat brandindo uma acha acima dji cabeça de um índio. Como ele balançava o projétil, a fim de mirar melhor o golpe, Angélica teve tempo de agarrar a pistola e atirar na direção deles. A acha estilhaçou-se, escapando das mãos de Clóvis, que caiu de bruços no chão gelado. Angélica acorrentara, deter o gesto do índio, que sacara da faca e se preparava pára escalpelar o carvoeiro. Vendo o agressor por terra, o índio se acalmou.

O barulho do tiro atraiu todo mundo para fora. Desta vez era difícil dissimular o incidente. O conde se aproximou a passos largos e com uma olhada identificou os protagonistas do drama.

— O que aconteceu? - indagou ao ferreiro, que se levantava, pálido como um morto.

— Ela... Ela tentou me matar - gaguejou ele, apontando Angélica. - Mais três polegadas e seria o meu cérebro que explodiria.

— Que prejuízo! - disse Angélica, rindo. - Não tentei matá-lo, pobre imbecil, mas evitar que cometesse uma tolice que lhe custaria a vida. Acha que conseguiria evitar a faca deste índio, caso o tivesse atingido? Atirei na acha de lenha, não em você. Se eu realmente quisesse matá-lo, isso já estaria feito, acredite.

Mas Clóvis balançou a cabeça. Seu rosto esburacado de varíola estava lívido sob a barba malfeita. Tivera medo de fato e continuava convencido de que Angélica quisera matá-lo, que só continuava vivo por puro acaso. Fazia muito tempo que achava que isso aconteceria, que aquela mulher terrjvel o mataria, com a lanceia, o bisturi ou algum sortilégio. Mas a pistola, era o cúmulo!

— Não acredito - resmungou. - Não poderia mirar tão bem. Mulheres não sabem mirar.

— Imbecil - disse o conde, encolerizado. - Quer repetir a experiência? Verá que se a senhora condessa tivesse querido atingi-lo, já não estaria neste mundo. Pegue essa acha, levante-a e vai poder comprovar que é verdade o que lhe contaram sobre o tiro no vau de Sakoos. Pegue a acha.

O ferreiro recusou-se energicamente. Yann, o bretão, ofereceu-se, confiante. Ele estivera perto de Angélica quando ela detivera Pont-Briand. Levantou a acha, e Angélica, que fora postar-se à entrada da casa, atirou e a acha voou em estilhaços. Romperam aplausos. Pediram-lhe outras demonstrações. Dom Alvarez despertou de seu torpor e quis vê-la usar um mosquete de mecha, depois um mosquete de pedra. Ela ergueu sem dificuldade as armas pesadas e todos se maravilharam com sua força, começando a orgulhar-se de tê-la entre eles.

CAPITULO XI

A Dama do Lago de Prata

Se faz tanto frio em Wapassu, pode-se imaginar a temperatura nas cidades, mais ao norte?-

Três cidades... Três ,poveados perdidos na imensidão, às margens do Saint-Laurent: Os navios só retornarão na primavera. A couraça dos gelos fechõu-se sobre elas, à volta delas, que estão prisioneiras das estepes brancas, prisioneiras do silêncio, do espaço infinito, melancólico e deserto.

Montreal, na sua ilha, ao pé do pequeno vulcão extinto. Trois-Rivières, presa entre os canais de seu delta gelado. E a rainha de todas, Quebec, sobre seu rochedo. Três.cidades, coroadas pelo diadema das fumaças brancas que" não param de sé alongar, tranquilas, das chaminés, no róseo gelado das manhãs e das tardes.

Três cidades perdidas. Que o fogo crepite na lareira para salvá-las da morte!

A vida do fogo é tão ardente, que as pessoas esquecem a morte, o silêncio e o deserto. Movimentam-se nas cidades, mexericam, tramam, intrigam, batalham o inverno inteiro, soltando a língua nos salões, agredindo-se com banquinhos nos cabarés, violenta, surda, cordialmente, entre amigos, entre primos, entre gente do Canadá. Também se reza muito, fazem-se muitas confissões, medita-se, devaneia-se, com o olhar voltado para a guirlanda branca das montanhas ou para o horizonte cinzento da floresta, para o sul.

Sonha-se com a partida. Para o mar e a Europa, ou para oeste, rumo às peles e aos selvagens... Por aqui ou por ali... Mas partir, sempre partir... Quando chegará de novo a época de partir?...

Também se ama, às escondidas, às ocultas, com remorsos, mesmo entre marido e mulher, por causa do olho dos jesuítas, que pesa em todas as consciências.

Bebe-se muito. E o único prazer. Aguardente e mais aguardente. Aguardente de maçã, de centeio, de ameixa ou trigo, perfumada, transparente, destilada em alambique próprio.

As ruas de inverno recendem a bagaço, a fogos de lenha, a sopas de toucinho e enguias defumadas.

Os dias de inverno .são impregnados do odor do incenso das missas e das vésperas, e o odor de pergaminho dos livros encadernados em couro, trazidos da Europa, folheados e relidos sem cessar junto da lareira.

As noites de inverno estalam sob o gelo. Dir-se-ia que as vidraças vão rebentar. Flores de geada colam-se aos vidros.

É nessas cidades que estoura e corre a notícia.

Os estrangeiros de Katarunk, que todos imaginavam massacrados pelos iroqueses, estão vivos. Está viva a mulher tão bela do fundo dos bosques, que apareceu, montada a cavalo, nas nascentes do Kennebec. Está viva a Diaba! Triunfo e terror! Júbilo dos que crêem nos poderes infernais.

Vocês imaginam, meus compadres, que o Diabo se dê ao trabalho de enviar à terra um de seus sequazes para que um grupelho de iroqueses o transforme em fumaça?... Ora!... O Diabo é muito mais poderoso do que isso!... Ainda não causou mal suficiente na Acádia para que já se possa prever sua derrota ou sua vitória!

Prova disso é que a Diaba continua lá... embora Katarunk tenha ardido.

Loménie repete: - Eu mesmo vi as cinzas de Katarunk...

Mas aquele que trouxe a notícia transcendente é categórico: afirma que os estrangeiros estão vivos nas montanhas, no lugar chamado Wapassu, o Lago de Prata.

Pois quem^ duvidaria daquele que trouxe a notícia? Viu tudo à distância. É um santo. Viu que os estrangeiros escaparam dos iroqueses sem sequer travar batalha, e aí está a prova de que são enviados de Satanás.

Se não foi Deus quem os salvou miraculosamente, só pode ter sido o Diabo.

Ora, Deus não não pode ter socorrido gente que não finca a cruz, que pratica heresias e não se aproxima dos sacramentos!

Portanto, foi o Diabo!

O Sr. de Loménie perdeu a razão. Foi a Diaba que o enfeitiçou com seus encantos, dizem, como a Pont-Briand, que todos viram vagar melancólico e desorientado pelas ruas de Quebec, falando de uma mulher bela como o dia, que encontrou no fundo das

matas...

Montada a cavalo...   

Como se isso pudesse existir!,Nunca howve mulheres brancas nas matas. Os que a viram num cavalo enganaram-se. Sem dúvida alguma era um unicórnio... Alguns-dos que estavam na ravina, quando a forma apareceu a primeira vez, ao luar, dizem que notaram o chifre pontudo... Cobrem-nos de perguntas, rogam-lhes que sé lembrem melhor, rodeiam-nos, aos que participaram da expedição no outono com o Sr. de Loménie e que encontraram a personagem negra-e mascarada, e a mulher, a quem ainda não ousam chamar em voz altade Diaba, mas a quem já designam como a Dama do Lago de Prata.

E agora, o que vai acontecer?

O senhor bispo ordenou" procissões e jejuns. Foi visitar a Irmã Madalena, a vidente, em seu convento, depois se dirigiu à casa do governador do Canadá, o Sr. de Frontenac, para avistar-se com o Sr. de Loménie e. com o=Sr. d'Arreboust, o devoto síndico da cidade de Quebec, e com diversas personalidades e jesuítas.

Durante longo tempo as candeias brilham por trás das janelas do castelo, sobre o.rochedo...

O Saint-Laurent, ao luaj, é uma vasta planície branca.

CAPITULO XII

Aprendizado das línguas indígenas - Conselhos de príncipe

Em Wapassu, uma pequena família de índios foi instalar-se a cerca de,uma légua do forte, junto a uma represa, para caçar o castor. Era comum vê-los perambular pelos arredores.

A altercação do auvergnat com um deles ocorrera por causa da irmã do índio, uma selvagem bem bonita, de longas tranças e que, ao rir, mostrava o brilho de seus dentes brancos. Ela não escondia o que esperava dos "normandos", que se dizia serem chegados aos prazeres do amor. Havia outra moça, de aparência mais tímida, mas que nem por isso concedia encontros amorosos com menos facilidade.

Aliás, era surpreendente como os homens aproveitavam pouco de uma proximidade complacente. O jovem Yann, Tiago Vignot e um dos ingleses foram os únicos a servir-se dela, e suas ausências eram raras.

Constatou-se, mesmo, que a briga do auvergnat com o índio não foi por causa de galanterias, mas porque a jovem, vagando pelo pátio do forte, roubara-lhe o fumo e a faca.

Angélica lembrou-se do que o marido lhe contara um dia. A gente do mar é dada à continência. Gapaz, ele próprio, de viver muito tempo sem mulher quando era preciso, Joffrey de Peyrac soubera escolher os homens que trouxera consigo. Tinham acompanhado Peyrac porque este lhes prometera ouro. O atrativo da aventura e do êxito- substituía-lhes o gozo. A mulher fazia parte do butim. Ainda não se ganhara a partida. Mais tarde veriam!... E uma desconfiança instintiva dos apegos sentimentais, que conduzem o indivíduo pelo caminho da escravidão, ajudava-os a controlar os sentidos.

Angélica pensava também em Nicolau Perrot, que há três anos abandonara mulher e filho para correr as matas e, se pudesse, a terra inteira.

Por ora, um pouco antes de cair a neve, ele partira para o sul, a fim de tentar atingir um pequeno-entreposto de troca, mantido por um holandês na desembocadura do ftennebec, e trazer artigos indispensáveis como sal, açudar, farinha, um pouco de óleo...

O que se mostrava mais assíduo junto às belas selvagens era - quem acreditaria? - o velho Macollet. Estava sempre indo e vindo, fosse qual fosse o tempo que fizesse, entre sua tenda enfumaçada e a dos índios. Um bom coelho esse Macollet! Que também gostava de sentar perto do fogo de um índio e conversar com ele.

O chefe daquela tribo era rrreio feiticeiro. Levava para Angélica raízes, ervas e resinas. Passado ó primeiro momento de susto, quando uma bela manhã ela v4ra atrás de si o braço levantado em sinal de paz, más tao^peLudo^quanto um urso, que, naturalmente, se aproximara sem-Tuído- algum, eles se tornaram bons amigos. Ela começava a poder conversar com ele em sua língua e não se orgulhava pouco disso, gois lhe'disseram que as línguas indígenas eram muito difíceis de aprender. Os missionários que falavam delas na França diziam que se precisava de anos, e os exploradores não pareciam encorajar os recém-chegados a se lançar nesse estudo. Era preciso ser do país, explicavam eles. Mas Jof-frey de Peyrac se familiarizara muito rapidamente com esses idiomas e explicara a Angélica que as dificuldades eram só aparentes. Quem se queixava era porque não tinha espírito de observação.

De seu lado, ele logo notara que a maioria das tribos que os rodeavam eram todas de uma mesma origem linguística, provavelmente descendentes em parte dos incas, ou dos quíchuas, do Peru. E que fora por isso que o seu mineiro mestiço conseguira entendê-las desde logo, assim que chegara à América do Norte.

Iroqueses, algonquinos, huronianos e abenakis eram primos pela língua, diferindo apenas em sotaque e entonação, ou em algumas palavras usuais como "água" ou "criança", ou então porque, dependendo da tribo, adotavam-se interpretações diferentes de determinada palavra. "Agua", por exemplo, podia ser nascente, liquido, enquanto uma criança podia ser um jove-m, um pequeno, um filho...

Para se entenderem, era a raiz que. dava o sentido geral; a precisão era dada por sufixos e prefixos. Essas raízes eram relativamente pouco numerosas, de modo que com umas quinhentas palavras básicas era possível enfrentar qualquer situação, apesar da diversidade aparente dessas línguas.

Munida dessa chave que o marido lhe forneceu, Angélica se surpreendia com os progressos que fazia.

Evidentemente por muito tempo ela não seria uma purista no assunto, e continuaria a ser motivo de troça para os índios, que estouravam de rir a cada um dos erros'dela. De início era necessário ouvir muito. Gravava-se, assim, o sotaque e a tonalidade, e principalmente a maneira especial de articular com a garganta sem que os músculos faciais se movessem, o que fazia que os índios, pronunciando palavras ultrajantes, fossem obrigados a permanecer impassíveis. Já quando não falavam, eram muito careteiros, e não perdiam ocasião de rir. Ao final Angélica percebeu que havia apenas dezesseis sons, mas que o intervalo de cada um era quatro vezes mais longo do que nas línguas europeias ou, pelo contrário, duas vezes mais rápido. Assim, o ritmo do tempo que se levava para pronunciar uma palavra sofria oito vezes mais variações do que em- francês ou inglês, e era isso que criava os matizes linguísticos.

Mas, enquanto aguardavam a perfeição, todo mundo treinava em Wapassu, e os mais avançados corrigiam os demais. Angélica, então, desembaraçava-se muito bem com o velho chefe da wig-wam dos castores, que, por indiferença ou serenidade de ancião, não a repreendia pelos erros de linguagem, de modo que com ele ela se atrevia a se lançar em grandes discursos, que divertiam muito Joffrey de Peyrac quando este a surpreendia conversando com o emplumado mago vermelho.

Sua vivacidade, seu apetite pela vida, sua coragem, tudo nela encantava o conde, e agora era ele quem a seguia com o olhar.

No começo ele pensara: "Tudo vai depender dela". Wapassu será a hora da verdade. Maravilhava-se de ver como ela soubera reunir à sua volta aqueles nómades hostis, todos agora prontos a chamá-la, no coração, de mãe, irmã, amiga, soberana.

Uma noite Joffrey de Peyrac pediu a Angélica que chamasse Elvira para uma conversa particular e que a acompanhasse enquanto ele a recebesse no pequeno quarto do casal. Na falta de um lugar para conversar longe de ouvidos indiscretos quando precisava receber alguém em particular, o quarto fora promovido a "gabinete do capitão no tombadilho", e subir alguns degraus completava a ilusão.

O mobiliário se ornara de uma„poltrona rústica, coberta de pele, na qual se sentava o conde. O homem convocado permanecia em pé, com a cabeça roçando o teto, sem que precisasse ser muito alto.

Quando a conversa era amistosa, Joffrey de Peyrac mandava-o sentar-se no degrau da lareira, â sua frente, e fazia vir um jarro de cerveja e duas taças.

Era frequente, durante o serão, retirar-se assim com um ou outro. Os homens gostavam dessa conversa em separado, longe do grupo. Podiam explicar-se com o patrão, queixar-se, e ouvir dire-trizes que, caso. necessário, recolocavam a cabeça no lugar.

Muito emocionada, então, â pobre Elvira subiu, tremendo, os cinco degraus que levavam ao "tombadilho".

A presença' de Angélica tranqúilizava-a um pouco, mas ela se atormentava, pois era escrupulosa e se sentia sempre em falta.

Cerrada a-pesada porta, os ruídos da sala comum se abafaram. No pequeno aposento fechado, só se ouvia o crepitar do fogo e, às vezes, o roçar dos abetos do lado de fora, que o vento lançava contra o teto..

O conde sentou. A jovem ficou de pé e, atrás dela, Angélica via-lhe os ombros- estreitos se crisparem, encolhendo a nuca frágil. A coitada não sabiá que atitude tomar sob o olhar escuro que a examinava de alto a baixo, enquanto um sorriso indulgente errava sobre os lábios do conde.

Ele sabia pôr no olhar uma atenção calorosa que emocionava qualquer mulher.

— Elvira, minha criança - disse, com suavidade -, ouça-me com a maior calma.

— Cometi alguma {aha,_Monseigneur? - balbuciou ela, torcendo a ponta do avental.

— Eu lhe disse para me ouvir com calma e sem medo... Tranquilize-se... Só tenho o que elogiar de você e de sua gentileza. Mas nem por isso você é menos responsável por um movimento que pode ter alguma gravidade aqui.

— Eu?... Oh, Monseigneurl...

— Sim, você, apesar de sua discrição e modéstia, mas que assim tem belos olhos ternos e faces rosadas.

Elvira, cada vez mais desconcertada, encarou-o sem entender.

-        Notei que um de meus homens está a cortejá-la. Diga-me sem rodeios se essas atenções a importunam, se deseja que cessem, ou se ele levou longe demais, para o seu gosto, a expressão de seus sentimentos. - Como ela permanecesse calada, ele continuou: - Aqui, no forte, há apenas três mulheres, e você é a única a não estar em poder de um marido. Deram-se as ordens mais severas a seu respeito. É necessário que eu saiba se a disciplina foi respeitada. Responda! Você sabe de que homem quero falar, não é?

Desta vez ela baixou os olhos, corando, e fez um sinal afirmativo.

-        Otávio Malaprade - disse ele.

Ele deixou passar algum tempo, o tempo de evocar a figura do cozinheiro, sua silhueta agradável e seu sorriso respeitoso.

Depois pegou de um bolso do gibão um dos raros charutos que ainda lhe restavam e, inclinando-se para o fogo, acendeu-o num tição.

Reclinou-se, tirou uma baforada e continuou, calmamente:

-        Se ele infringiu a ordem recebida, será enforcado.

Elvira soltou um grito e tapou o rosto.

— Enforcado!... Oh, Monseigneur! Oh, não, pobre rapaz! Ah, não por isso! Não por minha causa!... Eu não mereço...

— A mulher é rainha nesse domínio, você não sabia, minha bela criança?

Olhava-a novamente com aquele seu sorriso inimitável que lhe repuxava os cantos da bela boca, na expressão cáustica e carinhosa que Angélica conhecia tão bem.

-        Não sabia que as mulheres são rainhas? - insistiu.

-        Não, Monseigneur, não sabia - respondeu ela, ingenuamente.

Tremia com todos os membros, mas o medo que sentira por Malaprade dava-lhe a força de organizar as ideias e defender aquele que sentia ameaçado.

— Monseigneur... Juro-lhe, faço-lhe um juramento... Ele nunca teve um gesto inconveniente, que me fizesse corar. Eu só sentia que... que ele...

— Você o ama?

Quase não era uma pergunta. Ela se interrompeu, olhou à volta, desnorteada.

— Não... eu... não sei.

— Você perdeu seu marido há três meses no Gouldsboro.

Ela o encarou, esgazeada.

— Meu marido?

— Você o amava?

Ele a desorientava, esquadrinhava, seu olhar penetrante retendo-lhe as pupilas infantis, obrigando-a a olhá-lo.

— Você o amava? Ao seu marido?.

— Sim... claro. Quer dizer, eií;.. não sef mais.

Ele desviou os olhos outra vez, e fumou em silêncio. Ela não se m'exia, não tremia mais, estava ali, encarando-o, com os braços pendentes.

Ele continuou, sempre calmo:

-        Otávio Malaprade veio falar comigo há pouco. Ele a ama.

Adivinhando que eu não deixaria de notar-lhe os sentimentos, adiantou-se e méfez a confidência... Iricumbiu-me de dizer-lhe isto, a seu respeito e a respeito de seu passado: cinco anos atrás, na cidade de Bordeaux, onde tinha um hotel renomado, ele matou a mulher e o ãmante.dela, depois de surpreendê-los juntos. Depois, sem saber como escapar às consequências de seu ato e como esconder das buscas,.quecertamente se realizariam, a prova de seu duplo crime, cortou os dois cadáveres èm pedaços, queimou uma parte e conseguiu livrar-se do resto num monturo...

Angélica conteve* uma exclamação abafada e mordeu os lábios. Elvira cambaleou. Parecia atingida por um raio. Peyrac continuava a fumar, examinand.o-a com curiosidade.

-        Feito isso - continuou -;-ele esperou algum tempo, depois fugiu para a Espanha. Foi lá que ele se apresentou a bordo de meu navio e que o engajei.

Houve um longo silêncio.

De súbito a jovem rochelesa se recompôs, endireitou o corpo e pareceu fitar alguma coisa para além dela mesma.

-        Senhor conde... - disse afinal, com uma voz firme e mais clara, uma voz que não lhe conheciam -, que o senhor conde me perdoe se lhe pareço pouco sensível. Mas estes são os pensamentos que me vêm ao espírito. Acho que esse homem matou por fúria ciumenta, por surpresa também, e depois se viu sozinho e perdido diante desse horror, não sabendo como se safar. Agiu como pôde para salvar a vida. Essa coisa em sua vida é uma infelicidade, um acidente, como uma enfermidade que acometes se alguém de repente.

Respirou profundamente.

-        Mas não é essa enfermidade que me impedirá de amá-lo -disse, com energia. - O que o senhor acabou de dizer revelou-me meus sentimentos. Suas perguntas me ajudaram a ver com clareza em mim mesma. Sim, eu amava meu falecido marido... sem dúvida... já que casei com ele... um dia... Mas isso nunca se pareceu com o que sinto hoje por este. Podem dizer-me a respeito dele o que quiserem. Para mim, sinto que continuou sendo bom, direito e delicado, apesar de tudo. Conheço-o o suficiente agora para afirmar que ele é infeliz.

Calou-se, para acrescentar, sonhadora:

-        Ele me amparou pelo caminho, durante a tempestade, na noite em que chegamos a Wapassu. Não esquecerei nunca...

Joffrey de Peyrac deu-lhe uma olhada benévola.

-        Muito bem, muito bem - fez ele. - Eu queria ouvir de você uma resposta assim. Sua alma é forte, pequena Elvira, seu coração é nobre. Seu espírito é lúcido e não se deixa enganar por uma pieguice que seria compreensível, mas que não tem lugar no caso presente. É verdade que Malaprade é um homem seguro, corajoso e capaz. Esse... acidente, como você diz, marcou-o pelo resto da vida. Amadureceu-o e deu-lhe outra dimensão à vida, até então bastante banal, embora tivesse conhecido o sucesso mais lisonjeiro em sua profissão de maitre d'hôtel. Depois de perder tudo, poderia ter-se tornado um destroço humano. Outros acha

rão que a justiça não foi satisfeita, e eu admito isso. Mas as vítimas dele eram gente bem pouco interessante, e nunca o exortei ao remorso ou à expiação. Esta vem por si mesma, todos os dias, com a recordação. Encorajei-o, antes, a tornar-se o que você reconhece nele: um homem bom, delicado, mas também enérgico e previdente, qualidades que lhe faltavam outrora, antes de seu drama. Ele a amará muito.

A jovem, de mãos postas, bebia-lhe as palavras.

-        Ouça-me ainda - continuou ele. - Dar-lhes-ei um dote, para que o começo de sua existência conjugal seja fácil. Ele terá direito a uma parte importante da fortuna que vamos extrair da mina do Lago de Prata. Além disso, dar-lhe-ei, a título de presente pessoal, o suficiente para abrir um restaurante, albergue ou salão, na região que lhe convier, na Nova Inglaterra ou mesmo na Nova Espanha, se o coração assim o inclinar. E olharemos pela educação de seus dois primeiros filhos, para que eles possam estabelecer-se melhor mais tarde...

-        Oh, Monseigneurl - exclamou ela. - Oh, como dizer-lhe... Oh, Monseigneur, Deus o abençoe!...

Caiu de joelhos perto dele, com o rosto cintilante de lágrimas.

"Como ele sabe fazer as coisas!", pensava Angélica. "Poderia ter todas as mulheres do mundo a seus joelhos. Por mais apaixonada que esteja por outro, esta estaria pronta a entregar-se a ele, como homenagem e reconhecimento. Direito de príncipe..."

Joffrey de Peyrac inclinou--se, com bondade para a forma feminina no chão. Obrigou-a a levantar â cabeça e cravou o olhar nos olhos marejados, perdidos de gratidão.

— Não há por que chorar, minha amiguinha. Você suportou corajosamente provas injustificadas. Quanto ao homem que ama, sei que ele expiou. É justo tentar reparar tudo isso agora. A vida é clemente. Bem mais do que os homens. Ela põe à prova, mas recompensa...

— Sim. Oh, úmy Monseigneur, eu entendo... Entendo o que quer dizer.

Falou numa vozinha sumida,, entrecortada de soluços.

-        Quando estava em La Rochelle eu não passava de uma mulher comum... Não pensava em "nada. Percebo que eu não tinha vida... O senhor me ensinou, Monseigneur, me ensinou, e agora sou outra. Quantas coisas entendi desde... desde que vivo entre vocês - disse ela, tímida. - Oh, como gosto de Wapassu, como gosto de sua casa, MonseigneuA Não iremos embora. Nunca! Ficaremos aqui, ele e eu, para servi-lo...

Ele a interrompeu com um gesto indulgente.

-        Acalme-se! Já é muito tarde para fazer projetos esta noite. Primeiro você tem que descansar. O choque foi rude. Enxugue os olhos. Ele não deve ver que você chorou ou ficará convencido de que o rejeitou e vai dar um tiro na boca antes que eu tenha tempo de tranquilizá-lo. Retire-se para seu quarto. É preferível que deixe à noite o tempo de amadurecer sua decisão. Para ele também uma noite de dúvida e meditação não será demasiado. Apreciará melhor o valor de seu sentimento. Vou dizer-lhe apenas que você pediu para pensar.

Ela o ouvia, dócil.

-        Em seguida pedirei a vocês ambos que continuem a viver como antes, como amigos. Vamos entrar no auge do inverno. Não é tempo de amores. Temos uma etapa difícil a vencer, e dela devemos todos sair vivos, em boa saúde moral. Entendeu?

Ela inclinou a cabeça, gravemente.

— Quando a primavera chegar, desceremos até Gouldsboro e lá o pastor os casará... ou o padre, conforme lhes convenha.

— Oh, é verdade que sou huguenote e ele papista - exclamou ela, parecendo aterrorizada.

— Se só o constatou neste momento, o fosso que existe entre vocês me parece fácil de vencer. Paz! Paz na terra aos homens de boa vontade... Eis uma frase que nos diz respeito a todos. E boa noite!     

Angélica acompanhou a jovem até a soleira de seu quarto e beijou-a antes de deixá-la.

A maioria dos homens se havia recolhido atrás da grande cortina de peles cosidas, que lhes escondia o dormitório de dois andares.

Passando outra vez pela sala, Angélica ouviu cair panelas e utensílios, e percebeu que acabavam de cair das mãos perturbadas do pobre Malaprade. O cozinheiro estava pálido e deu-lhe uma olhada, de cão ferido. Angélica teve piedade e, aproximando-se, sussurrou-lhe com vivacidade: - Ela o ama.

CAPÍTULO XIII

O noivado de Elvira e Malaprade- Reflexões sábias de Peyrâc

No dia seguinte Elvira foi-pessoalmente ao encontro de Malaprade e, como o tempo esiava bom, desceram até a beira do lago e foram vistos a passear longamente pelo caminho que seguia a margem. 

Quando voltaram, vinham radiantes, de mãos dadas.

Fizeram-lhes uma festinha de noivado, que transcorreu em meio a grande cortesia. Sè Malaprade teve que suportar dos camaradas as brincadeiras habituais, foi longe dos ouvidos femininos.

Ele estava transfigurado. Essa felicidade fazia bem a todo mundo.

Apesar de tudo Angélica passou algum tempo sem conseguir esquecer as revelações de Peyrac sobre o cozinheiro. Com certeza ficara mais transtornada do que Elvira. Talvez porque fosse menos inocente. O caso trazia-lhe de volta ao espírito suas próprias lembranças sórdidas. A noite, diante do fogo do pequeno quarto, .não podia deixar de pensar nisso.

Amantes cortados em pedaços pela faca de um cozinheiro. Mãos besuntadas de sangue, o medo, o suor na testa, a solidão do animal acossado...

Angélica lembrava.

Foices abatendo-se sobre pescoços adormecidos, a cabeça que lhe tinham levado, medonha e sombria,„de um homem de quem ela queria vingar-se e que um camponês segurava à sua frente pelos cabelos, e aquele sangue escorrendo, sangue em que ela teve vontade de lavar com volúpia os dedos brancos.

Esse ódio, esses sobressaltos de fera ao mesmo tempo implacavel e aterrorizada, essa exprobração de todo o ser arrastado em sua lama e em sua podridão, ela confessara tudo isso ao prior da Abadia de Nieul, e ele a absolvera.

Mas a marca, o timbre doloroso de tais momentos, como apagá-los? Ajoelhada diante da lareira de seu quarto, ela inclinava o fino perfil, continuava arrepiada, com uma vaga náusea. Compreendia Malaprade. Principalmente depois: o terror sem nome, a criatura como que sacudida por uma tempestade, o horror a si mesmo.

Atirava lenha ao fogo para ocupar os dedos trémulos. Pensava que Elvira fora muito corajosa. Tinha a coragem das almas puras, daquelas que "não sabem".

"Não é fácil fazer essas huguenotezinhas falar", dizia Joffrey de Peyrac consigo, pensando em Elvira. "Mas esta ainda é mais difícil".

E observava Angélica, ajoelhada a alguns passos dele, tão ausente, tão distante, que nem notava o olhar dele.

Dos seus "homens", dos "seus", era ela quem menos fazia confidências. Havia tantas coisas desconhecidas a não melindrar nela! Era preciso aguardar que ela viesse procurar o conforto dele.

"Ela é mulher. A mulher não é feita para o inferno, apesar do que se pensa. Guarda por longo tempo a vergonha de suas covár-dias, de seus terrores, de suas abjeções... Não foi criada para o escuro e a desordem, mas para a luz e a harmonia... Não sofra tão longe de mim, pequena alma, conheço sua fraqueza. E o ferimento da vida. Não há vergonha em ser atingida por ela. E o destino do ser humano. O importante é saber como curar-se. Antigamente", pensava Joffrey, "as mulheres, as crianças, o camponês, o artesão, o homem do povo, todos os fracos tinham um defensor. Era o cavaleiro. O papel do cavaleiro era bater-se pelos fracos, tomar a responsabilidade de revanches, pagar o preço do sangue por aqueles cujos punhos e força de alma eram frágeis. Era papel do cavaleiro defender aquele que não nasceu para a luta, o crime, o sangue, os golpes, a infelicidade. Hoje os tempos mudaram. Já não há cavalaria. Cada um se debate. As mulheres se defendem com unhas e dentes, e o homem do povo, pois bem, faz como Malaprade, sucumbe ao medo e ao pânico. O homem do povo foi feito para uma existência abençoada. No dia em que precisa confrontar-se com a vida, a paixão, o mal, ele enlouquece, não está preparado, nunca pensou que algo pudesse acontecer-lhe. Com medo, um homem dessa espécie pode fazer qualquer coisa, o pior, o impensável. A única coisa que ele imagina de fato é a solidão do pecador. Vejo muito bem esse homem respeitável, considerado em sua cidade, cortando, com a testa banhada em suor, os membros ainda quentes de dois seres a quem conheceu e que sem dúvida amou, e confesso que essa imagem me inspiraria mais piedade do que horror.' "Pobre artesão! Onde está seu defensor? Onde está seu justiceiro?

"Quando se nasce gentil-homém, tem-se coragem para olhar de frente o risco, a morte, o pior e tudo o que pode existir na terra, nascido da enfermidade do mundo.

"Foi o que faltou a Malaprade, artesão consciencioso e sem histórias. Se fosse gentil-hcunem, não teria assassinado aqueles que o injuriavam, não teria cedido auma agressividade cega e demente. Teria encerrado a mulher pelo resto da vida- num convento e se teria batido em duelo cem o amante, às claras, e o teria matado, mas sem correr o risco de prisão ou forca, pois a impunidade do assassínio em combate franco era garantida ao cavaleiro. Mas a cavalaria morreu, e o Cardeal "de Richelieu a enterrou, proibindo o duelo.

"Para que mundo devo educar meus filhos hoje? Um mundo onde a astúcia e a paciência são as primeiras armas incontestes. Mas nem por se tornar subterrânea a força se torna menos indispensável." Agora', conversjndo consigo, Peyrac estava tão longe, que foi Angélica que de repente-percebeu isso e levantou os olhos na direção dele.

Fitou aquele homem sentado, de rosto voltado para as chamas, seu rosto cinzelado, onde apenas os olhos e os lábios pareciam dotados de uma vida sensível, tanto o vento, o sol e o mar tinham feito de sua pele uma máscara endurecida como couro. Já não usava barba. Os índios não gostam de barbudos, dizia ele. E recomendava a seus homens que o imitassem, a fim de não indispor os indígenas, para quem a vista dessa desordem de pêlos era tão penosa de suportar quanto uma obscenidade. Se os caçadores não se sacrificavam a essa obrigação, era por preguiça e negligência, incompreensão também. Séria melhor que o fizessem. Ninguém ignorava que o admirável Padre Bréboeuf pagara com um martírio medonho duas desgraças conjugadas, insuportáveis para os índios: era careca e usava .barba.

Joffrey de Peyrac sempre adivinhava esse tipo de coisa. Era o respeito que tinha pelo interlocutor que o guiava em sua adivinhação. Angélica aproximou-se dele e pousou a testa contra seus joelhos.

-        Como você faz para permanecer impávido, para nunca ter medo? - indagou. - Dir-se-ia que, aconteça o que acontecer, vo

cê é incapaz de sentir essa covardia infamante, esse nojo por si mesmo... Mesmo diante do cadafalso, mesmo diante da tortura...

Como você faz? É homem desde a infância?

Ele, então, conffou-lhe os pensamentos que acabavam de atravessar-lhe o espírito, e que precisavam enfrentar um tempo sem honra nem dignidade, em que o ser humano não tinha outro recurso senão esconder-se, dissimular-se sob o disfarce da docilidade às forças reinantes, ou então lutar sozinho e até o fim, fossem quais fossem as suas forças. As derrotas não eram de surpreender. Já era muito estar vivo. E já que ela falava de infância, ele se lembrava de que conhecera bem cedo o terror, pois tinha somente três anos quando soldados católicos lhe haviam, a ele, criança católica, fendido o rosto com um golpe de sabre e o tinham atirado pelas janelas de um castelo em chamas. Foi ali, na inocência primitiva da infância, que ele experimentara o choque mítico do Mal, que conhecera todos os medos num só. Depois disso, nunca mais. Sobrevivendo, é verdade que se tornara um homem, ou seja, que se sentira preparado para enfrentar qualquer coisa. E não lhe desagradara acabar encontrando o monstro face a face. Aí está você, terror, dizia-lhe ele, aí está você, Massacre! Aí está você, rosto hediondo do medo dos homens. Pode abater-me, mas não espere emocionar-me outra vez...

Disse-lhe ainda que não devia sentir vergonha das fraquezas que experimentara durante as terríveis provações com que fora atingida, pois ela era mulher, e era na covardia dos homens, que falharam em seus papéis de guias e protetores, que se encontrava a origem do mal de que ela sofria.

-        E um conflito antigo: a tentação do homem de empregar a força bruta, o poder temporal, para afastar o que o desafia, para abafar à força a lição do espírito...

Ele próprio, mesmo sendo homem, não fora vítima disso? Pois a vontade de um nem sempre pode levar a melhor sobre uma coalizão demasiado poderosa. Há um tempo para tudo, há um tempo para a maré lamacenta, que sobe, irresistível.

-        Nosso século, desdenhando a doutrina cristã, de que se prevalece, abriu-se para um desejo exasperado de dominação... Dominação a qualquer preço, vinda de todos os pontos do horizonte: os reis, as nações, a Igreja... Ainda não saímos disso, e aquele que não deseja ser esmagado não tem outro recurso senão dominar por sua vez. Mas sob essa avalancha de pedras pesadas, o espírito tem que subsistir de todo modo,' abrir caminho...

Com uma mão pensativa, ele acariciava a testa lisa de Angélica. E de olhos fechados, aconchegada contra o calor e a força dele, ela se lembrava das palavras do pequeno médico árabe, que fora amigo de Joffrey de Peyrac e quê dizia que o conde era o maior sábio de seu tempo, e que era por isso que, em qualquer lugar onde estivesse, seria sempre perseguido... "Pois, de fato, esse tempo recusa a lição do espírito."

CAPITULO XIV

Audácias de sereia sedutora

Quando se deitavam lado a lado, Joffrey de Peyrac gostava de que a claridade do fogo levasse tempo para morrer no quarto silencioso, onde só se ouviam os suspiros de amor do casal e o suave crepitar das chamas.

Ao sabor dos clarões rosados ou dourados, ele gostava de descobrir as formas enlanguescidas de sua mulher e a carnação de sua pele, levemente perfumada.

E quando fazia muito frio e sua mão ia procurar sob as peles o segredo daquele corpo, só restava na penumbra a incrível cabeleira loura, espalhada como uma alga fosforescente e que, misteriosamente, cintilava ao movimento suave e sonhador da bela cabeça abandonada.

Angélica era a única mulher da qual ele não conseguia abstrair-se, desligar-se. Mesmo no mais íntimo do prazer, ela continuava presente. Ele se surpreendia, pois tivera inúmeras mulheres nos braços e não se privara de negligenciá-las quando convinha a seu egoísmo masculino, mais preocupado com as volúpias carnais que podia retirar do contato com elas do que com contentá-las no domínio dos sentimentos, pronto a lográ-las com protestos amáveis.

Com Angélica, não conseguia esquecer que era a ela que enlaçava, que era a ela que ele tinha o poder de enfraquecer, de enlevar, de inebriar, que era o corpo dela que ele dobrava à sua vontade, que eram seus lábios altivos que se entreabriam, vencidos, sob os dele.

Ela permanecia o tempo todo intensamente presente.

Talvez fosse um hábito que ele adquirira no tempo de seus primeiros amores. Ela era tão jovem e arisca, que ele precisara mostrar-se atento às reações dela, a fim de aprisioná-la. Mas o sortilégio se prolongava.

Dir-se-ia que em Angélica a sensualidade estava sempre ligada a algo de secreto e espiritual, é que animava, no sentido próprio do termo, os impulsos mais impudicos de**seu belo corpo.

E ele chegava a perguntar-se,-céjtico e surpreso, se ela não estaria lhe devolvendo aquela emoção de se familiarizar com os prazeres da carne, de que um homem maduro se esqueceu. Certa ansiedade, uma dúvida, a preocupação com o outro e, partindo disso, aquele lado paradisíaco da volúpia quando a ela se mescla a consciência de se ser dois e de viverem juntos uma comunhão irresistível e quase mágica. Momentos de enlevo e embriaguez, fraqueza consentida, abandonos sem reservas, e na entrega mútua um gosto como que de. morte e de vida eterna!

Apenas ela tinha^esse dojn de dispensar-lhe isso, e ele se encantava com o mò'do como ela adivinhava o prazer do homem. Não havia um gesto que ela não soubesse fazer - ou conter - quando necessário. E mesmo que ela mergulhasse no abismo, cega, morta para tudo, ainda assirh suas mãos, seu corpo, seus lábios continuavam a-acompanhá-lo, sabiam esquivar-se ou oferecer-se, estreitar-se ou abandonar-se, levada pela ciência misteriosa que Eva transmitiu a suas-filhas.

Ela estava sempre preseffte em seu espírito porque, ao possuir-lhe o corpo, ele nunca tinha certeza de possuí-la de todo, de que ela não voltaria a escapar-lhe.

Sabia que nela já não havia a docilidade inerente às mulheres muito jovens, que ela abandonara aos espinheiros do caminho, substituída por uma independência lúcida, a consciência de si mesma.

No amor, Angélica tinha seus bons e maus dias. Havia aqueles em que, apenas pelo brilho de seu sorriso, ele a adivinhava acessível, e aqueles em que, sem que seu comportamento exterior parecesse modificar-se, ele sentia- nela como que uma recusa, um distanciamento.        

Então ele se comprazia, à noite, em descobrir a manobra com que contornar o humor difícil, aquecê-la, atiçar a chama adormecida.

O mais frequente era respeitar esse recuo feminino, essa necessidade não raciocinada de se desligar, afastar-se do homem, e que na maioria das vezes é apenas a manifestação de um cansaço físico, mas também, às vezes, a obediência a ordens invisíveis, a presença de perturbações próximas, tais como a aproximação de uma tempestade, uma ventania, ou de um mal-estar moral não formulado, ou de um perigo, coisas que exigem daquela que as capta um estado de alerta e atenção.

Ele a deixava descontrair-se, adormecer. O sono dissipava-lhe os fantasmas e no decorrer da noite alguma coisa mudava nela ou fora dela, ele não sabia, e ela acordava diferente. Era ela, então, quem se aproximava dele. :

O alvorecer, o quase sonho dessas horas indecisas que prece-dem o dia, davam a Angélica audácias que ela não teria se plenamente desperta. Ficava mais alegre, menos inquieta.

Sereia sedutora, deslizava para junto dele, que via bem perto, à luz do dia nascente, o brilho de seus olhos com profundezas marinhas, o brilho de seus dentes revelados por um sorriso. Sentia chover sobre ele a seda tépida de seus cabelos, e a leve oferenda de seus lábios adoráveis, em múltiplos beijos.

Com a ciência das escravas orientais que poupam o trabalho a seu senhor e amo, ela o levava ao prazer sem que ele pudesse defender-se.

— Foi no harém de Mulay Ismael que adquiriu tanto conhecimento, senhora? Quer fazer-me esquecer as odaliscas que me serviram outrora?

— Sim... Sei como elas fazem... Que o meu sultão confie em mim...

Beijava-lhe ardentemente os lábios, os olhos, todo aquele rosto bem-amado, e ele cedia, entregava-se a ela, deixando-a dispensar-lhe prazer habilmente.

-        Você é uma ótima companheira de amor, senhora abadessa - dizia-lhe ele ainda.

Acariciava-lhe os quadris macios, aprisionava-os em seu abraço, e quando ela se derribava sobre ele, fulminada, ele não se cansava de contemplar-lhe as belas formas. As pálpebras, semicerradas, filtravam uma luz imprecisa. Da boca entreaberta escapava um hálito imperceptível e ofegante.

Era como uma morte suave. Ela expirava longe dele, em lugar desconhecido, e esse afastamento mesmo ainda era uma homenagem a ele.

Joffrey se regozijava quando a via tão profundamente atingida. A mulher que nasceria do inverno e da dura existência no forte e daquelas noites melancólicas sob o gelo, a mulher que emergiria daquela peregrinação às fronteiras da vida, que é um longo inverno no norte, com a fome por companheira e todas as ameaças latentes que pairavam acima tleles, seria no final das contas uma mulher moldada por ele.

Chegaria o dia em que o passádo.dolorôso já não deixaria vestígios.   

Ele se ocupava dela. E quando o prazer tinha realizado nela sua obra de alegria, um hino de reconhecimento subia-lhe aos lábios e ela murmurava: - Oh! meu amor, meu senhor... Só você...

Não fazia muito tempo que, numa noite de tempestade, no Gouldsboro, ela se entregara, trémula. O momento que ela temia desde a noite do Plessis acontecera e não houvera nada de terrível. Apenas aquele sabor de sonho, de infinito,-que, no embalo do navio, levou-a.nas asasse uma felicidade renascente.

Aqui era o oco nórurno das matas e do inverno, a estagnação do leito rústico, com perfume dé. seiva-e musgo.

Um sonho de novo, pesado de silêncio ligeiramente quebrado pelos uivos distantes de cojotes e lobos. Um momento vivido fora do tempo. Uma doce viagem. A realização desse vago sonho dos homens, de mergulhar no fundo de uma toca e ali dormir no calor do a"mor.

Acontecia-lhe de despertar e, mal ousando respirar, saborear a maravilhosa sensação de plenitude. Ele não pudera dar-lhe o palácio, a casa com que haviam sonhado. Mas havia a cama. A cama! A noite!...

Antigamente, quando estavam em Toulouse, dormiam pouco juntos de noite. Tinham os dias para se amar, e longas sestas, deliciosas.

Mas aqui, na vida rústica e selvagem, era como para os pobres, só havia a noite.

Ela respirava bem contra a tranquila força dele. Ás vezes acordava e o olhava dormir, presente, vivo. Invejava a insensibilidade masculina, que o tornava tão calmo, quando as mulheres transpõem para a própria carne todas as suas imaginações e as pulsações das estrelas, esses mundos desconhecidos.

As brasas estavam arroxeadas na lareira. Um mero reflexo nas traves.

Angélica não enxergava nada, mas ouvia a respiração regular de Peyrac, perto dela, deleitada.

Todas as suas nostalgias, todas as suas perambulações levavam a ele. E era seu marido, não a deixaria mais!

Avançava a mão para tocá-lo, reconhecê-lo, emocionada pela rudeza insólita daquelas formas angulosas. Então, com um gesto instintivo ele a puxava, no sono, contra o torso vigoroso, todo costurado de cicatrizes. Tinha cicatrizes pelo corpo todo, e ela as tocava. Tantas vezes a vida daquele homem fora ameaçada e sua carne, torturada. Das horas atrozes restavam apenas aqueles vestígios inscritos, com que ele não se importava. Muitas se haviam apagado.

— Você disse um dia que cada uma destas marcas tinha o nome de uma causa diferente pela qual você derramou seu sangue...

— Seria mais exato dizer que são a assinatura de meus inimigos, tão numerosos quanto diversos. As mais feias? A do carrasco do rei da França. Tirou-me a coitada da perna, para devolvê-la mais ágil, mas deixou-me com uma dor nos nervos do braço esquerdo, que sinto às vezes, principalmente ao atirar. - E continuou: - As mais belas? As dos -duelos ou batalhas no Mediterrâneo. Maneja-se bem o sabre ali, e é uma arma que faz grandes rasgões. Um buraco fundo do lado? Uma bala nas Caraíbas, espanholas ou francesas, já não sei. A mais recente, aqui, na testa, que você tratou tão delicadamente com suas belas mãos: um tacape abenaki, armado pela Nova França. A primeira, talvez, de uma longa série.

— Cale-se, querido! Você me dá medo!

— E você, minha bela, minha guerreira, mostre-me suas marcas heróicas.

Mas Angélica puxou o lençol e todas as peles para se proteger.

-' Nunca! As cicatrizes dos homens são marcas gloriosas. Realçam o prestígio deles e contam sua proezas. As das mulheres são erros, inabilidades, a marca da vida sobre elas, o sinal de que foram bisbilhotar onde não deviam... Uma derrota...

— Mostre.

— Não. Só há a queimadura da flor-de-lis.

Uma noite ele conseguiu pegar o fino tornozelo de Angélica e voltá-lo para a luz, a fim de examinar a marca violácea do ferimento que ela conservava de sua fuga no Marrocos.

Ela teve que contar. Acontecera no deserto. Uma cobra a picara. Colin Paturel cortara a carne, depois cauterizara... Uma operação cruel, ela desmaiara. Depois!... Pois bem! Colin a levara nas costas durante longos dias. Só sobravam eles. Os outros companheiros tinham morrido a caminho.

Evocara a lembrança de Colin Paturel com reserva. Como se Toffrey pudesse saber! Mas certamente sabia. Nesses momentos ele tinha um jeito de apertá-la e observá-la cem uma atenção que a assustava um pouco.

No entanto, se a evocação de suá odisseia pelo Marrocos continuava para ela, apesar do sofrimento, aureolada de beleza pela magia do amor simples que o normando lhe dedicara, ela já não entendia como pudera entregar-se a ele.

Quando tentava lembrar-se hoje, tudo o qUe conhecera de prazer nos braços dos amantes lhe parecia sem importância. Minutos agradáveis simplesmente. Mas à luz das descobertas presentes, essas sensações-passadas lhe pareciam incompletas.

Não sabia mais a que poder atribuir a renovação de seu prazer quando estava-entre os~braços dele. A cada vez se descobria como uma desconhecida, entregue a revelações múltiplas que a surpreendiam e atordoavam. Sentia-Se feliz em todas as fibras de seu ser. Nela se misturavam poteneia e langor, e o prazer era como um canto estridente, longo e intenso. De volta a si, depois de um sono rápido, ás vezes se censurava por ser sensual demais.

A mentalidade calvinista, que conhecera entre os protestantes de La Rochelle, voltava-lhe- ao espírito e lhe acalorava as faces.

Ele, com o canto do olho, via-a vestir-se com rigor, pôr a coifa branca, prender bem os belos cabelos, sem deixar escapar um único fio, num cuidado de correção um pouco tardio que pretendia apagar ou reparar os embates noturnos livres demais.

Ela não sabia que essa libertação de todo o seu ser, esse desabrochar de seus sentidos eram normalíssimos.

Estava com trinta e sete anos. Ignorava que a maturidade é a idade do prazer~para as mulheres. Ao apetite um pouco triste da juventude pelos jogos amorosos, sucede-se o refinamento das descobertas. Pouco sabem ou entendem disso.

O despertar da Bela Adormecida no bosque não leva cem anos. Mas requer alguns anos. Chega o tempo em que esse corpo ignorante se torna santuário. Doravante os ritos eternos podem cumprir-se nele em toda a sua magia. E isso transpira num olhar. Poucos homens se enganam a esse respeito.

É idade em que com frequência a mulher atinge o auge de sua beleza.

Pois o mesmo fenómeno de perfeição que a fez, sob a pressão da vida, enriquecer sua personalidade, parece agora atingir-lhe a forma exterior, para transfigurá-la até nos gestos, na voz, no andar.

Ela é ela mesma, concluída, na posse de suas riquezas próprias, ó encanto, a beleza, a feminilidade, o coração, a intuição. E a juventude ainda...

Conjunção temível e que, por pouco que a mulher tenha sabido preservar os valores que a compõem, faz dela, nessa, idade, a criatura de amor mais perigosa com que se possa sonhar.

Foi como a viu o Tenente de Pont-Briand, quando Angélica lhe apareceu na margem do lago, numa clara manhã gelada, no momento em que ele, depois de uma viagem insensata de vários dias, chegava a Wapassu.

CAPÍTULO XV

Enigmática chegada do Tenente de Pont-Briand

O lago estava "gelado; A neve o recobria inteiramente. Era uma planície lisa, imaculada. OTenente de Pont-Briand a atravessou com seu passo, de bárbaro qUe destruía os veludos do suntuoso tapete branco, marcando a neve com ° rastro redondo das raquetes. Avançara, pesado e titubeante, de olhos fixos- à frente. Acabava de avistar Angélica. Ela! Era ela!... Estava viva mesmo, então. E ele a alcançava, depois de tanto haver sonhado com ela.

Angélica estava à beira do lago, no caminho, e o via aproximar-se, não crendo nos próprios-olhos que viam chegar uma silhueta estranha.

O frescor azulado de certas manhãs de inverno ainda banhava o círculo de florestas e falésias, onde o forte se escondia.

O céu, nem ouro, nem prata, nem rosa, nem azul, mas uma agua incolor, transparente, cóm meandros de nuvens lilás no horizonte, lá onde as falésias desciam na direção das quedas-d'água. A oeste, ao nível dos picos, descobriam-se laivos rosados, reflexo de um sol levante, que ia surgir à frente mas que ainda não havia cruzado a orla dos abetos negros.

Todas essas montanhas pareciam distantes, seus cumes perdidos num sonho frio e puro, inacessíveis. A claridade do sol espalhou-se aos poucos sobre o lago, e a-srlhueta do tenente se recortava em preto, contornada de luz, com a sua sombra comprida projetada para os lados.

'Quem será?", perguntava-se Angélica.

Com o coração inquieto, e embora já tivesse o pressentimento de quem fosse, interrogava-se.

Outra forma, mais distante, envolta em peles, surgiu por sua vez da escuridão fria, na extremidade do lago.

- Franceses! Senhor! Será que há muitos outros?

O tenente canadense atravessara o lago, hipnotizado.

A seu espírito esgotado por duas semanas de viagem extenuante, parecia urn sinal evidente de seu êxito o fato de ela ser a primeira que ele via ao se aproximar do refúgio do Conde de Peyrac.

Como se ela o tivesse esperado! Como se ela não tivesse deixado de esperar vê-lo surgir em sua solidão de mulher abandonada, com um brutamontes, no fundo de uma floresta desumana! Era isso o que ele imaginava.

Aproximando-se, teve um lampejo de lucidez. "No final das contas, é apenas uma mulher. Decepcionante sem dúvida, como as outras. Por que então essa loucura?"

Quase imediatamente o deslumbramento o dominou de novo, mas centuplicado pela realidade da visão que tinha diante dos olhos. Um canto de alegria elevou-se nele, apagando todo o cansaço e a dúvida. "Valeu a pena, sim, cem vezes, valeu a pena..."

Angélica o observava sem dizer palavra, incrédula, pois não parecia possível que aquela paisagem morta e gelada trouxesse viajantes.

Quanto a ele, olhava-a com os braços pendentes. Parado, mas vacilante. Tinha andado_ tanto, e tão depressa, que a imobilidade o atordoou e ele encontrou dificuldade em manter-se em pé.

"Tanta beleza", pensava Pont-Briand, "tanta beleza, ó meu Deus!"

Portanto, não sonhara.

Era de fato tão bela quanto a recordação que ele guardara, com um brilho que parecia emanar dela, mais ainda que a luz corus-cante da manhã.

A sombra do grosso capuz que lhe cobria a cabeça, o fulgor dos lábios dela era vermelho e a ele pareceu cintilar como uma jóia, e suas faces tinham a carnação da roseira. Eram como a eclosão de uma suavidade primaveril aqueles dois matizes delicados, rosa-claro e rosa-vermelho, avivando-lhe a carne e marcando com um frescor juvenil aquele rosto de traços harmoniosos e quase hieráticos de Madona. Uma mecha de ouro claro roçava-lhe a fronte.

O olhar de água verde, sério, intimidante, examinava-o, sondava-o. Ela o julgava e parecia ver além dele. Um olhar que tinha cem anos. O das fadas de cinco gerações num corpo de juventude inalterável.

Um ser que sabe tudo, conhece tudo, que tem todos os poderes, um corpo adornado de todas as seduções.

Feiticeira, deusa, fada.

Sim, de fato, era a Mulher. Ou talyez a Diaba!...

Aquele que fora visitar Pont-Briand em seu* forte de Saint-Anne, sobre o rio Saint-François, aquele que o impelira àquela louca travessia, prevenira-o: "Se ela é tão bela quanto você diz, só pode ser uma armadilha do Demónio..."

E ele a contemplava. As sobrancelhas"de Angélica, clareadas pelo sol, franziam-se ligeiramente, projetando uma' sombra, como a de uma nuvem que passa, sobre a limpidez das pupilas verdes, dando-lhes uma profundidade marinha, tornando-as quase escuras de repente. Ela hesitava ao vê-lo.

Fazia um friq"terrível, qu£ petrificava. O vapor que escapava dos lábios de Angélica-criaya em torno dela, à claridade do sol, uma auréola preciosa^vanéscente.

Aos primeiros instantes de enkvo, sucedeu-se em Pont-Briand um sentimento de receio de que seu estado de fraqueza o impedia de defender-se.

Disse com.; uma vez brusca e rouca:

— Saúdo-a, senhora. Não me reconhece?

— Com certeza! Você é o Tenente de Pont-Briand.

Ele estremeceu, pois o som da-.voz dela, fazendo eco à sua recordação, emocionava-o.

— De onde está vindo? - indagou ela.

— Lá de cima - disse ele, com um gesto na direção do norte. - Três semanas de blizzard, o vento tempestuoso do norte, ou de neve incessante. Foi por milagre que meu huroniano e eu não fomos engolidos.

Ela se deu conta então de que estava faltando com todas as leis da hospitalidade impostas pela rudeza da região.

— Mas você está esgotado! - exclamou. - Venha logo para o forte. Pode caminhar até lá?

— Depois de vencer tantas léguas, posso percorrer mais essas poucas toesas. A salvação está próxima. O"que digo? Já está aqui. Pois o simples fato de ver sua pessoa me dá todas as forças...

Esforçou-se por sorrir. As sentinelas, de mosquete em punho, vinham ao encontro deles. Os dois espanhóis ladearam o tenente francês e perguntaram por meio de gestos se estava sozinho. Para maior certeza, um deles avançou na direção de onde tinham vindo os viajantes. O huroniano alcançou-os, puxando uma perna.

-        Ele caiu do alto de uma falésia - disse Pont-Briand. - Tive que carregá-lo durante dois dias.

Angélica precedeu-os. Pelo caminho endurecido, andava sem raquetes.

O acampamento estava inundado de sol agora. O som de vozes interpelando-se soava longe, bem como o ruído de martelos, o ronco da forja. As crianças brincavam dando gritos alegres em torno do tanque de madeira. Frascos de água gelada ajudavam-nos a deslizar.

Todos os homens presentes acorreram para contemplar os recém-chegados. Â simples visão deles, houve um recuo geral, e estiveram todos a ponto -de saltar sohre as armas. Os franceses!

-        Estão sozinhos - avisou Angélica.

E mandou procurar o Conde de Peyrac.

Pont-Briand tirou as raquetes e encostou-as à parede externa. Pousou o mosquete, que escorregou e caiu, e ele não teve forças para apanhá-lo.

Atrás de Angélica, ele desceu pesadamente os degraus que davam acesso à sala comum do pequeno forte. Apenas duas janelas a iluminavam. Tinham acabado de abri-las e o sol se infiltrava, mas uma penumbra acolchoada de perfume de tabaco e de sopa quente pairava no ar, morna, e ele teve a impressão de penetrar no paraíso.

Desabou sobre um banco contra a mesa. O índio deslizou como um cão doente até a lareira e se acocorou contra o batente de pedra. As roupas de peles de ambos estavam endurecidas de gelo.

Rapidamente Angélica reavivou as brasas das duas lareiras. Numa atirou pedaços de rocha verde,-para aquecê-las, e em seguida utilizá-las no banho de vapor.

Os caldeirões já borbulhavam. Tinham estado em fogo brando a noite inteira, para a primeira refeição do dia.

-        Você tem sorte. Hoje há toucinho salgado no caldeirão, ervilhas e cebolas. Estamos festejando o primeiro dia de sol depois da tempestade.

Debruçou-se para retirar a tampa do caldeirão e nesse movimento ele adivinhou-lhe sob as pregas da capa curta as ancas plenas. Uma vertigem por pouco não o fez desmaiar. Era verdade, então! Ela estava viva, estava presente! Ele não sonhara em vão!

Angélica encheu uma tigela e levou-a para ele, junto com uma taça de aguardente. Depois serviu o huroniano.

— Não podemos oferecer-lhe muito conforto. Nossas reservas arderam em Katarunk. Sem dúvida você oUviu falar sobre isso.

— Sim! Vi as cinzas.

Ele ouvia-lhe a voz harmoniosa é esquecia de comer, devorando-a com os olhos. "Este rapaz está mais louco ainda do que na primeira vez", pensou ela, resignada.

-        Mas come! - intimou em voz alta.

Ele obedeceu e se pôs a comer lentamente; com convicção numa espécie de beatitude.

Da porta, os demais espreitavam, e, era com desconfiança que olhavam o intruso. O espanhol o mantinha sob a mira de seu mosquete.

Pont-Briand não çTuvia.nada, não via nada senão Angélica. Este instante lhe custaria bem caro.

— O forte incendiou-se, mãs vocês encontraram o meio de estar salvos - disse. - Como puderam escapar, aos iroqueses? Em Quebec, quando se soube que estavam vivos, o efeito que causou foi o de um trovão...

— Não devem ter ficado muito felizes, não é? Nossa condenação à morte fora assinada a despeito do Sr. de Loménie.

Ela o desafiava, as pupilas'escuras agora.

"Como é bela", pensou ele.

Angélica atirara o manto sobre um escabelo. Colocara ali também um ramo de uma espécie de buxo escuro, que fora colher à beira do lago, na orla da floresta.

Pont-Briand admirou-lhe a cintura fina, desembaraçada agora da capa pesada, e, apesar dos trajes comuns, seu porte único.

"Ê uma rainha", pensava. "Nos salões, em Quebec, só veriam a ela! O que está fazendo no fundo destas matas? E preciso arrancá-la daqui."

Vê-la ali punha-lhe as entranhas em chamas. Mesmo no estado de fadiga em que se encontrava, ela lhe.despertava a cobiça. Como na primeira vez em que a avistara sob as árvores, sentia um choque brusco, uma atração mesclada de medo, algo absolutamente novo. Mesmo semimorto, não ppdia impedir-se de desejá-la.

Pouco a pouco o calor do ambiente o invadia, enquanto a comida lhe enchia o estômago dolorido e ele cedida, molemente, à doce e imperiosa tensão de seu corpo, sem tentar controlá-la, acolhendo-a, pelo contrário, como um sinal de vida e renascimento, depois das horas mortais que acabava de passar.

Aquela mulher exercia sobre ele um inegável poder erótico. Valia a pena ter vindo por ela, quase ter perdido a pele. Era uma Diaba, talvez? O que importava?

-        Quem queria a sua perdição? - protestou, tentando exibir um sorriso sedutor nos lábios gretados. - Nem mesmo eu, em quem no entanto você atirou tão amavalmente quando de nosso primeiro encontro.

A essa lembrança, Angélica, que o reviu saltando vau e chafurdando na água, pôs-se a rir. O riso fresco e espontâneo acabou com Pont-Briand. Como ela se aproximasse dele para tirar-lhe o prato, ele segurou-lhe o pulso.

_ £u te adoro - disse, numa voz surda.

Ela parou de rir e se soltou, dahdo-lhe uma olhada contrariada. Joffrey de Peyrac entrava no aposento.

-        Aqui está então, Sr. de Pont-Briand - disse, num tom que não denotava surpresa alguma. Era como se o aguardasse.

O tenente ergueu-se, não sem dificuldade.

-        Fique sentado. As forças lhe faltam. Vem do Saint-Laurent? Precisa-se de uma coragem pouco comum para atravessar o interior deserto nesta estação do ano... É verdade que você é canadense.

Apalpando com a mão, Pont-Briand procurou o cachimbo no bolso. O conde passou-lhe tabaco. O huroniano, de olhos semi-cerrados, já havia enchido o seu.

Angélica entregou um tição a cada um.

Algumas baforadas pareceram reanimar o tenente, que se pôs a descrever as dificuldades que enfrentara no caminho. As tempestades de neve desnortearam-nos diversas vezes.

-        E que Urgência o obrigou a fazer essa viagem, sozinho, nesta época? perguntou ° conde. - Uma missão a cumprir?

Pont-Briand não pareceu ouvir. Depois teve um sobressalto, como se despertasse de um sonho. Cravou em Peyrac um olhar de quem não entendera

— O que quer dizer?

— O que eu disse. Foi o acaso que o trouxe até nós?

— Certamente que não.

— Tinha então, a intenção de atingir o nosso forte? De encontrar-nosí

— Sim.

— E com que finalidade?

Novamente Pont-Briand estremeceu, despertou, e seu olhar pareceu ver pela primeira vez aquele a quem se dirigia e entender quem ele era. Não respondeu.

-        Creio que este homem está com son6 - disse Angélica a meia voz. Depois de um bom repouso nos contará os motivos de sua vinda.

Mas o Conde de Payrac insistia.

-        Por quê, afinal? Você está incumbido de alguma mensagem? Não? Então por que essa viagem solitária numa estação perigosa?

Pont-Briand relanceou o olhar pela sala. Passou a mão várias vezes pela testa. Finalmente, deu um resposta estranha.

-        Por que era preciso, senhor, era preciso.

CAPITULO XVI

Planos secretos do emissário

Anoiteceu. A escuridão caía depressa. O Tenente de Point-Briand estava como que desdobrado. Recuperara a eloquência e distraía o grupo com seus relatos e as notícias que trazia da Nova França.

Recuperara a coloração habitual. Falava de Quebec, onde estivera recentemente, de um baile realizado ali, de uma peça de teatro levada no colégio dos jesuítas.

Angélica o escutava, com os lábios entreabertos pelo interesse, pois ele contava bem e ela sentia uma curiosidade devoradora pelo que ele evocava - as cidades, as três cidades do norte: Quebec, Trois-Rivières e Montreal.

Em várias ocasiões ela riu, movida pela alegria dos comentários dele, e Pont-Briand não pôde impedir-se de lançar-lhe uma olhada cujo ardor ele se continha por refrear. Recobrara uma prudência elementar. Lembrava-se apenas de que a ouvira rir, com aquele riso franco e cristalino que lhe dava um arrepio na raiz dos cabelos. O Conde de Peyrac não voltara a perguntar o motivo de sua viagem, coisa que ele teria muita dificuldade em explicar. Assim, uma parte dele conversava alegremente com o grupo: a outra, num sombrio tormento, recordava os horrores dos últimos meses - primeiro quando a imaginara morta, e a vida lhe parecera tão desolada que ele até perdera o gosto pelo tabaco.

Nunca os dias lhe pareceram tão longos. Revia-se caminhando pelas muralhas de seu forte, olhando para o horizonte como se uma forma feminina pudesse surgir dali ou perdendo-se na contemplação do rio imóvel, cujo murmúrio fora morto pela carapaça de gelo.

Expulsara brutalmente a moça índia com quem vivia há dois anos, e como era filha de um chefe local, a decisão lhe atraíra aborrecimentos.

Não tomou conhecimento.

E depois, de repente, chegara a notícia, não sabia como, de que os estrangeiros de Katarunk não tinham morrido sob a faca dos iro-queses. Estavam todos vivos, nas montanhas..TE as mulheres? Sim, as mulheres também... Protegidos do Diabo, com certeza, para terem escapado a uma cilada daquelas... Para Pont-Briand, então, a vida se tornara mais insuportável. Quis voltar a ser como antes. Tentou outras índias. Jovens, desinibidas.

Mandava todas embora. Nauseava-o a pele engordurada e luzidia delas. Sonhava com uma pele luminosa e fresca, de aroma suave e picante, perfume que se adivinha de imediato, a um gesto, um movimento, e que salta às narinas e inebria.

Mesmo um defalhe, que lhe agradara muito nas indjazinhas quando chegara ao Canadá - o-fatcj.de não terem pêlos -, hoje lhe repugnava como uma anomalia. Sonhava com o velo íntimo, destacando-se do brancor da pele. A^menos que ela se depilasse, como fazem as grandes damas. Mas será que j>odia continuar grande dama, na sel-vageria daquela floresta para onde o temível marido a levara? Nunca houvera mulheres* brancas no fundo das matas.

Era a primeira vez, e era absurdo. Imoral. Falava-se nisso em Quebec inteira e ao longo do rio inteiro, até Montreal.

Era em vão que o Sr. de 'Loménie lembrava que, quando o Sr. de Maisonneuve e seus homens subiram para instalar-se na ilha de Montreal para fundar Ville-Marie, a Srta. Mance, que o acompanhava, viu-se em situação análoga e mesmo mais espinhosa do que a da Sra. de Peyrac. Ninguém lhe dava ouvidos. Retorquiam-lhe que o Sr. de Maisonneuve levava consigo a legião de anjos e santos, e contava com a presença de dois capelães, bem visíveis, e que plantara pessoalmente a cruz no monte Royal, enquanto aquele Peyrac se fazia acompanhar de homens ímpios, lascivos e heréticos, entre os quais a condessa, sem dúvida, escolhia seus amantes.

Pont-Briand sabia o que diziam.- Numa viagem que tivera que fazer a Quebec, comparecera perante o areópago do Grande Conselho e fora interrogado por Monseigneur Lavai, pelos jesuítas e, em separado, pelo Governador Frontenac. Repetiu â todos que aquela mulher era a mais bela do mundo, que - sim, não podia ocultá-lo - ela lhe arrebatara o coração. E suas descrições cada vez mais entusiasmadas ajudaram a criar um estado de histeria em torno da desconhecida. Nas ruas viam-no passar com um misto de medo e inveja: "Olhem em que estado ela o pôs!... Meu Deus! Será possível?... Com um único olhar!"

Seu desgosto não se dissipava. Ele sonhava. Sonhava com ela. Às vezes era o som da voz dela que lhe voltava à memória; às vezes, a forma perfeita do joelho que entrevira ao entrar na casinha sem bater:

Imaginava esse joelho liso, branco como mármore, via-se acariciando-o, pesando sobre aquele joelho para entreabrir as pernas admiráveis... e se virava na cama, gemendo.

E agora estava em Wapassu, a dois passos dela, e sentia de forma mais aguda ainda essa mescla de desejo e temor que o perseguia há tanto tempo.

O suor umedecia-lhe a testa. Falara muito esta noite, com entusiasmo, mas seu copo estava vazio e ninguém o enchia mais. Os homens começavam a se dispersar para irem deitar-se...

Foi depois de uma visita que recebera em seu forte de Sainte-Anne que resolveu partir ao encontro dela. Antes não pensara nisso. A viagem naquele início de inverno já rigoroso teria sido uma imprudência, e ele tinha que permanecer no posto. Mas o recém-chegado lhe eliminara todos os escrúpulos e até o receio de se apresentar sozinho e desarmado entre pessoas suspeitas...

Hoje mesmo, ao ficar sozinho à mesa de madeira, sentia que estava entre inimigos, entre estrangeiros. Notara com um olhar: não havia crucifixo, nem orações em comum. E não se havia plantado a cruz do lado de fora. Ouvia falar inglês, espanhol. O padre tinha razão! Eram descrentes, ímpios, senão perigosos hereges. Correu novamente os olhos à volta.

Ela já não estava ali. Recolhera-se. E atrás daquela porta fechada, ia dormir ao lado do Acutilado, talvez até se dar a ele.

Pont-Briand sofria mil mortes. O que fizera era loucura. Ela lhe escaparia. Era de outra essência..: inacessível...

E então lhe vinha à memória a voz tranquilizadora: "Arrancar essa mulher a uma existência imoral é uma obra pia e que contará para a sua salvação. Apenas você pode levá-la a bom termo".

Dissera então, bruscamente: - E se for uma diaba, de verdade?

- Minhas preces o protegerão.

Aquele que fora vê-lo usava uma batina preta e um crucifixo de madeira e cobre no peito. Acima da efígie do crucifixo havia um brilho de rubi incrustado. O homem se mantinha um pouco arqueado, pois ainda sofria de um ferimento no flanco, feito pelos iroqueses recentemente, na escaramuça perto de Katarunk. Tinha olhos azul-escuros de grande beleza, profundamente engastados sob sobrancelhas espessas, e um barbafrisada e avermelhada que escondia uma boca amável e suave. . _

Era de porte médio, vigoroso. Pont-Briand*nãó gostava dele. Tinha-lhe medo, como a todos os jesuítas, que são inteligentes demais e querem privar a pessoa de todos os prazeres do mundo.

As mãos mutiladas pelas torturas iroquesas. inspiravam repulsa ao tenente, embora nunca tivesse sentido nada de parecido em relação às marcas de seus amigos caçadores, como UAubignière, que sofrera o mesmo suplício.

Surpreendeu-se com a visita do Padre d'Orgeval, que, desconfiava, desprezava-o pela sua falta de cultura.

Mas o padre lhe falara com muita afabilidade. Dissera que sabia que Pont-Briand estaYâ loucamente apaixonado pela mulher estrangeira encontrada no 'Alto Kehnebec.

Não parecia chocado com isso, pelo contrário; Deus talvez tivesse inspirado esse sentimento a um «homem honesto, cristão e francês ainda por cima, para ajudar a afastar os perigos que ameaçavam a Acádia e.a Nova^França, pela presença usurpadora do Conde de Peyrac, renegado e traidor, a serviço dos ingleses.

— Então o senhor sabe quem ele é, meu padre, de onde vem?

— Saberei em breve. Enviei rneus informantes em todas as dire-ções, até para a Europa.

— Foi o senhor, padre, quem encorajou Maudreuil a escalpar os chefes iroqueses em Katarunk?

— Mandreuil tinha um voto a cumprir. É uma criança pura. A Virgem lhe apareceu como recompensa pela sua vitória.

— Como foi que Peyrac escapou à vingança daqueles demónios?

— Diabolismo de sua parte. Não há outra explicação. Você mesmo entende que é preciso abatê-lo, caso contrário sua presença contaminará nosso país. E você pode ajudar-nos nisso...

Continuou:

-        Duvido muito que essa mulher, que ele faz passar por sua, seja realmente sua esposa perante Deus. Certamente é uma infeliz que ele seduziu e desviou.

"Se ele for vencido, a mulher será sua".

Estas últimas palavras, o Padre d'Orgeval com certeza não as pronunciara, mas Pont-Briand não cessava de ouvi-las muito distintamente nele, à volta dele, durante o diálogo inteiro.

— E se for uma diaba, de verdade?

— Minhas preces o protegerão.

A tranquila segurança do jesuíta ganhara a adesão do oficial. Depois de confiar o posto a seu sargento, tomara a rota de sudeste, acompanhado apenas de um huroniano.

Na-realidade ele não tinha medo de fato de que ela fosse uma diaba, mas às vezes, diante do tormento de amor que era o seu, vinha-lhe uma suspeita, um medo de enfeitiçamento.

Preservado em sua missão pelas potências celestes, às vezes dizia consigo mesmo que deveria haver algo de picante em fazer amor com uma diaba.

Foi se atirar no leito que lhe haviam preparado, mas custou a pegar no sono.

"Acredite-me, você será recebido por ela como um salvador. Chegou-me a informação de que aquele que se diz seu marido leva e sempre levou uma vida libertina. Mandou vir algumas famílias de uma pequena nação indígena para os arredores de Wapassu a fim de ter mulheres à disposição, e embora tenha à mão uma mulher branca, de quem se diz que é muito sedutora, visita as selvagens com frequência. Parece que nessa questão esse flibusteiro sempre deu ouvidos apenas ao próprio prazer... As infelizes que se apegam a"ele são de lastimar..."

O Padre d'Orgeval sempre sabia tudo, e logo, e apesar das distâncias estava informado sobre cada um de uma maneira segura. Indicações, adivinhação e psicologia se misturavam na sua temível ciência.

Seu olhar devassava o segredo das consciências. Mais de uma vez detivera gente na rua, dizendo: - Confesse-se, depressa! Você acabou de cometer o pecado da carne...

Quando se sabia que ele estava em Quebec, os que saíam da casa da amante tomavam precauções de sioux para evitar encontrá-lo pelas ruelas. Além disso, dizia-se que era protegido do papa e do rei da França, e que o próprio superior dos jesuítas em Quebec, o Padre de Maubeuge, às vezes tinha que inclinar-se diante de suas decisões.

Munido de tal salvo-conduto, o que podia temer Pont-Briand pela sua alma, sua carreira e o sucesso de suas conquistas amorosas? Tinha Deus e a Igreja consigo.

Adormeceu, esgotado, mas decidido a triunfar.

CAPÍTULO XVII

Pont-Briand perde a cabeça por Angélica

Retornando do lago, Angélica entrou no salão do forte. Examinou outra vez as folhagens que acabava de colher e que lhe haviam custado arranhões rios dedos, sem contar a mordida do frio. Era mesmo uva-ursina, uma planta espinhenta, de folhas persistentes. Se o fruto, o medronho, á precioso, a folha também possui as mesmas propriedades benfazejas e diuréticas. Com elas Angélica esperava eliminar os cálculos renais de Sam Holton. Azar do pobre Sam Holton, pudico e tímido, de estar às voltas com essa dolorida doença."As morenas hetaíras do wigwam não tinham nada que ver com a históriav,pois ele era comportado e nunca fora visto seguindo para o outro lado da montanha. Mas confundiam sua doença com aquelas causadas pelas flechas de Vénus, e Angélica, inquieta, vira-o debilitar-se, sofrendo visivelmente, sem conseguir fazê-lo dizer onde e por quê...

Fora preciso que o conde interviesse. Intimidado a confessar, o inglês puritano revelara, mas exigindo segredo. Imaginava-se castigado por alguma falta da juventude. Angélica precisava encontrar um jeito de tratá-lo sem que ele soubesse que ela sabia. Felizmente pensara nos arbustos de uva-ursina, que tivera a impressão de notar à beira do lago. Já apanhara um pouco na véspera, e hoje voltara lá para fazer uma colheita maior.

Pegou seu caldeirãozinho, encheu-o de agua e pendurou-o à cre-malheira.

Aquela hora da tarde, estava sozinha na sala, cuja porta estava aberta, pois fazia sol.

O Conde de Peyrac e cinco ou seis homens tinham ido até a extremidade dos três lagos, junto às quedas-d'água, para examinar os estragos que a pressão do gelo causara ao moinho chileno. Não poderiam retornar antes do anoitecer.

Os demais trabalhavam na mina ou se ocupavam nas falésias.

Angélica, suas amigas e as crianças foram primeiro até as margens do lago para colher folhas de uva-ursina, pois Angélica desejava fazer uma decocção bem concentrada, capaz de dissolver as pedras inoportunas que torturavam o pobre inglês.

Quando o cesto se encheu, as crianças pediram para ir mais adiante, até uma pequena encosta onde poderiam escorregar na neve endurecida, sentadas em peles secas, que serviam de trenó.

A Sra. Jonas e Elvira as acompanharam, e Angélica voltou para casa, pois queria iniciar o preparo da tisana.

Atirou as folhas soltas na água fervente. Depois cortou pedaços de raiz de grama, amoleceu-os em outro recipiente, jogou fora a primeira água, pôs tudo para cozer outra vez, e por fim socou as fibras em seu pilãozinho.

Ao se erguer, chocou-se literalmente com o Tenente de Pont-Briand, que estava bem atrás dela. Chegara sem que o ouvisse.

— Oh, você! - exclamou. - E pior que um índio! Pior do que o sagamore Mopuntuk ou que o velho chefe da wigwam dos castores, em cujo pé eu sempre piso a toda vez que ele aparece. Nunca me acostumarei com os modos que têm neste país de se aproximarem das pessoas sem o menor ruído.

— Os índios me reconhecem a qualidade, bem rara entre os brancos, de caminhar como eles.

— Você engana sua gente - disse Angélica, lançando-lhe um olhar nada afável.

— Não se deve confiar nas aparências...

Pont-Briand não tivera a intenção de surpreendê-la. Seu andar silencioso já era uma segunda natureza. E de fato parecia inesperada num colosso daqueles, de gestos tão desajeitados. Em compensação, calculara muito bem que ela devia estar sozinha no salão, e que seria agora ou nunca que a abordaria.

Contemplara-a da soleira, enquanto, envolta em vapores medicinais, ela manejava suas ervas e seus potes, com uma expressão concentrada que tornava severos seus lábios carnudos e suaves.

Era um novo rosto, e à luz do fogo, entre o arsenal de recipientes e líquidos escuros ardendo, não deixava de inspirar-lhe alguma ansiedade. Pont-Briand se aproximara, com o coração disparado.

— Deseja alguma coisa? - perguntou Angélica, arrumando os utensílios.

— Sim, você bem o sabe...

— Explique-se.

— Não pode ignorar, Angélica, que me inspirou uma paixão que me devora. - Ele arquejava de emoçlo: - Foi por sua causa que vim...    

Tentou explicar-lhe suas aspirações.'Como, pela primeira vez, uma mulher lhe parecera digna de amor... Sim, de amor... Purificado da grosseria... Ele repetia a palavra surpreendente, amor, e tinha vontade de chorar.      

-        Você é um tolo - disse ela, indulgente. - Sim, é um tolo! Acredite-me. Mas o que importa? - continuou, impaciente. - Pensou, senhor, que fui criada e posta no mundo apenas para contentar suas nostalgias militares, quando por acaso lhe dá vontade de tornar-se sentimental? Tenho marido, filhos, e você deve entender que ha minha vida não pode ocupar outro lugar senão o de um hospede a quem se acolhe com simpatia. Simpatia que perderá, caso continue a desvairar.

Voltou-lhe as costas, para dar a entender que ele não devia insistir e que paralela o incidente estava encerrado.

Não gostava desse género de homem, muito comum entre os oficiais, o colosso com pés de argila. Só têm qualidades no domínio estritamente viril daguerfa, mas com as mulheres sua canhestrice só tem igual na sua fatuidade. Convencidos de serem irresistíveis, acham que lhes pertence por direito toda mulher que tenha tido a ventura de agradar-lhes, e não compreendem que ela seja cruel com eles.

Pont-Briand não era exceção à regra. Insistiu, e a premência do desejo que o atormentava enquanto se via assim tão próximo dela tornava-o quase eloquente. Disse-lhe que precisava dela. Não era como as outras. Não parara de sonhar com ela: em sua beleza, seu riso, e era como uma luz na noite... Ela não podia repeli-lo, era impossível... Amanhã ele talvez morresse... Mas antes de ser queimado pelos iroqueses, que ela pelo menos lhe concedesse a alegria de sua pele branca. Fazia muito tempo que não lhe sentia o gosto. As selvagens não têm alma. Cheiram mal... Ah, reencontrar uma mulher branca...

-        E foi a mim que você escolheu para esse papel inevitável: fazer-se provar um pouco de pele branca? - perguntou Angélica, não podendo deixar de rir, tanto ele lhe parecia desajeitado e ingénuo. - Não sei se devo considerar-me lisonjeada... Pont-Briand ficou roxo ante a zombaria.

— Não quis dizer isso...

— Você está me aborrecendo.

Pont-Briand pareceu uma criança castigada. A meiguice que adivinhara nela transformava-se para ele em farpas aceradas. Não entendia mais nada.

Renunciar, não, nãó podia. Jamais soubera controlar sua sensualidade, e a imperiosa necessidade que sentia naquele momento de tomar aquela mulher nos braços e possuí-la, cegou-o. Por cima do ombro de Angélica, percebeu uma porta entreaberta e uma grande cama de madeira.

A fome que o dominava, a fragilidade da ocasião fizeram-no perder todo o comedimento.

-        Escute, meu amor, estamos sozinhos. Venha comigo até aquele quarto. Serei rápido, prometo. Mas depois, você verá! Entenderá que devemos amar-nos. É a única mulher no mundo que já me inspirou tais sentimentos. Tem que pertencer-me.

Angélica, que ia pegar a capa para sair dali e acabar com aquilo, olhou-o, sufocada, como se ele acabasse de perder a razão. ,

Não teve tempo de dizer-lhe energicamente o que pensava de sua proposta, pois ele a agarrou e aplicou-lhe os lábios sobre os seus. Não conseguiu soltar-se logo, pois ele era muito forte e a paixão o exasperava. Ele lhe impôs sua boca, obrigando-a a abrir os dentes, e esse contato, lembrando-lhe outros que a haviam forçado e conspurcado, deu-lhe ânsia de vomitar e encheu-a de uma raiva súbita e assassina.

Conseguiu recuar, afinal. Então, pegando um atiçador atrás dela, contra a chaminé, desferiu um golpe na cabeça do tenente com todo o vigor.

O crânio de Pont-Briand soouduro. Ele viu estrelas, cambaleou e caiu de repente, molemente.

Quando voltou a si, estava deitado num banco. A cabeça lhe doía, mas ele percebeu de imediato a maciez da almofada sobre a qual ela repousava. Eram os joelhos de Angélica. Levantou os olhos e viu o rosto dela inclinado sobre ele, com uma expressão preocupada. Estava cuidando de um ferimento que ele tinha no couro cabeludo, e por isso apoiara a cabeça do ferido nos joelhos.

Ele sentiu o aroma da carne de Angélica, que lhe chegava através da lã das roupas. Estava bem perto do seio dela. Teve vontade de se voltar para aquele ventre morno e macio e afundar-se ali como uma criança, mas conteve-se.

Já fizera tolices suficientes por hoje. Fechou os olhos e soltou um profundo suspiro.

— Então - disse ela -, como, se sente?

— Bem mal. Você tem um ounho rude.

— Você não é o primeiro beoerrãó a quem ensino uma lição...

— Eu não estava bêbado.

— Certamente.

— Foi sua beleza capitosa que me embriagou.

— Não comece a delirar, meu pobre amigo.

Angélica sentia um pouco de remorso por tê-lo tratado com tanta dureza. Uma bofetada teria bastado... Mas a reação fora impulsiva,

— Que loucura foi essa, afinal, que lhe deu de se afeiçoar por mim? - disse em tom de censura. - Apenas a prudência deveria tê-lo contido. Não pensou que meu marido poderia se sentir insultado com a sua atitude?

— Seumarido? Dizem que não é seu marido...

— Sim, é. Juro sobre a cabeça de meus dois filhos.

— Então odeió-o ainda mais. Não é justo que ele sozinho tenha o direito de amá-la.

— Essas leis de exclusividade foram instituídas pela nossa Santa Madre Igreja.

— Leis iníquas e injustas.

— Fale disso com o papa...

Amuado, infeliz, Pont-Briand se sentia completamente sem ilusões. Caramba! Por pouco ela não o matara! Ao mesmo tempo, porém, num misto de admiração por ela e ternura por si mesmo, ele recomeçava a dizer consigo que se tratava de uma criatura realmente excepcional, e gostaria de prolongar a discussão a fim de ficar mais tempo contra o seio dela, respirando o perfume de seu pescoço e de seus braços.

Mas Angélica se levantou. Ajudou-o a erguer-se e a sentar. Ele vacilava e entendeu que estava tudo acabado para sempre; sentia-se cansado e invadido de tristeza.

— Sr. de Pont-Briand?

— Sim, meu belo amor.

Alçou os olhos para ela, que o fitava com uma gravidade maternal.

— Não abusou da bebida? Não mascou dessa ervas indígenas que dizem ser estupefacientes?

— Por que me pergunta isso?

-        Porque você não está em seu estado normal.

Ele deu uma risadinha.

— Como estar no estado normal aquele que tem pela frente a mais bela criatura "do mundo e que acaba de lhe desferir um golpe na cabeça? :

— Não, já antes... Desde que chegou.

Examinava-o, perplexa. Point-Briand era uma dessas forças da natureza onde se misturam ingenuidade, orgulho e indulgência incomensuráveis pelas suas próprias paixões.

Esse tipo de homem tem o espírito fraco, facilmente hipnotizado por ideias que lhe escapam, ou vontades superiores à sua. Hipnotizado?... Veio-lhe uma suspeita que ela não conseguiu definir.

-        O que acontece? - insistiu, benévola. - Diga-me...

-        Mas você sabe - gemeu ele. - Estou apaixonado por você.

Ela meneou a cabeça.

-        Não! Não a ponto de cometer loucuras tão imbecis. O que tem você afinal?

Ele não respondeu. Levou dois dedos à têmpora, num gesto de dor. De repente teve vontade de chorar. Começava a entender o que lhe acontecera.

Sim, ele andava atormentado pelo amor desde que a conhecera, mas desde quando esse amor se tornara insuportável? Não se tornara insuportável desde a visita do jesuíta? Como se aquela voz não tivesse parado de martelar nele: "Vá... Vá... A mulher será para você". No fundo de sua noite, um olhar azul, brilhante como uma safira, não se desviava dele. Fora enviado para uma obra da qual seria um mero instrumento. Destruir, aviltando-a, a mulher que amava, e destruir Peyrac através dela.

Agora fracassara e se via despojado de tudo. Um pobre imbecil. De qualquer maneira estava condenado. Mesmo que tivesse tido êxito. Principalmente se tivesse tido êxito. Tinham-no enviado para a morte... Compreendeu de súbito, num lampejo, que não tinha muitas horas de vida...

-        Vou partir - disse, levantando-se, esgazeado.

Titubeando, dirigiu-se até a enxerga onde dormira, pegou suas raquetes, seu blusão, seu gorro de pele, vestiu-se e voltou, carregando a mochila.

-        Deixe-me dar-lhe algumas provisões - disse Angélica, perturbada ante a idéiá de que durante longos dias ele estaria sozinho, acompanhado apenas do huroniano, naquela natureza hostil e gelada.        

Pont-Briand viu-a providenciar, indiferente, com o espírito habitado por amargas reflexões. Á derrota estava por toda parte, à sua frente, atrás dele. A luz crua dessa repentina lucidez, alguns incidentes lhe voltavam à memória-e ele notava que na realidade nunca agradara às mulheres, conforme imaginara. Chegando à soleira da porta, quis vingar-se de todas essas mulheres numa só, e ferir aquela que lhe-infligira todos os sofrimentos. Voltou-se.

— Seu marido, você o ama? - perguntou.

— Sim, com certeza - murmurou ela, surpresa. Ele deu uma gargalhada sardónica.

-        Então, -azar seu-. Põ"k isso não o impede de seduzir índias. Há duas, lá na floresta, que ele mandou vir para se distrair, quando se cansa de seus "braços: Você é.tola de não tratar de seu prazer com quem passa e se guardar para esse libertino, que escarnece de sua pessoa. Não sabe de nada, mas o Canadá inteiro está ao corrente... E os homens aqui riem e zombam de você!...

Como que chamado por um sinal invisível, o huroniano apareceu ao lado dele e se pôs a seguido.

CAPÍTULO XVIII

Peyrac com ciúme - Reconciliação na "ilha dos amores"

-Ele foi embora - avisou Angélica, quando os outros voltaram. E desviou o rosto.

Joffrey de Peyrac aproximou-se dela. Conforme seu hábito quando a revia após uma ausência um pouco prolongada, tomou-lhe a mão e beijou-lhe a ponta dos dedos.

Mas ela se esquivou a essa homenagem furtiva.

-        Embora! - exclamou Malaprade, indignado. - Anoitecendo, com uma tempestade ameaçando e sem se despedir de ninguém! O que foi que deu nesse doidivanas? Decididamente esses canadenses são loucos...

Angélica se ocupava com os trabalhos do anoitecer. Chamou Florimond e lhe pediu baixinho que levasse a xícara de tisana a Sam Holton. Depois ajudou a Sra. Jonas a dispor as escudelas sobre a mesa e foi estender os casacos molhados diante do fogo.

Fazia o que devia fazer com diligência e calma aparente, mas tinha o espírito transtornado.

As horas passadas desde a partida de Pont-Briand haviam-lhe causado fulgurantes devastações.

Já não pensava nas declarações do tenente, mas a flecha envenenada que ele lhe atirara da soleira da porta ao partir destilara pouco a pouco o veneno.

De início Angélica dera de ombros ao ouvir Pont-Briand previni-la de que o marido a enganava com as índias do pequeno acampamento vizinho. Depois, de repente, a vida cotidiana lhe parecera diferente e ela começou a se perguntar, com as faces afogueadas, se no final das contas a coisa não era plausível. Nunca lhe passara pela cabeça a ideia de que ele pudesse distrair-se com aquelas moças, embora o conde fizesse visitas frequentes ao chefe da tribo e ela já tivesse notado os meneios das duas mulheres Argenti e Wannipa, em torno dele. Tentavam atraí-lo com afagos e ele lhes respondia alegremente na sua .língua, beliscando-lhes o queixo e dando-lhes pérolas de pres&nte, como a crianças mimadas de quem a gente quer,desembaraçar-se... Esses contatos inocentes não escondiam uma familiaridade equívoca cujo significado escapara a Angélica?

Sempre fora ingénua para descobriras intrigas, e nesse tipo de incidente, os mais interessados são sempre, os- últimos a saber.

Depois que Pont-Briand partira, ela fora procurar pérolas no depósito de mercadorias; com a intenção de fazer um colar para Honorina, como presente de Natal.

Mas suas mãos estavam febris, o trabalho não avançava, e às vezes ela dava de ombros, como que para se livrar de uma ideia inoportuna.

Ainda assim, a idéiaabria caminho. Ela voltava a ter aquela sensação de afastamento que lhe dava aquele que era seu marido quando ela pensava em todo o desconhecido què existia nele. A independência~-del& sempre fora um elemento profundo de sua natureza. Deveria renunciar a ela porque reencontrara uma esposa sem a qual pudera passar quinze anos? Afinal, ele era o senhor, o único senhor a bordo, •conforme declarara certo dia.

Sempre fora livre, para além de todos os escrúpulos. Não tinha medo do pecado nem do inferno. Era em outro lugar quele colocava as leis de sua disciplina...

De repente ela se sentiu tão mal que se levantou, abandonando o trabalho, e correu para a mata, como que para fugir.

A neve não permitia ir longe. Angélica não poderia sequer caminhar longamente para acalmar-se. Era uma prisioneira. Voltou, então, e começou a chamar-se à razão.

"È a vida", pensou, repetindo sem se dar conta as palavras desiludidas das pobres moças quando ultrapassaram a própria coragem e vêem que já não serão as mais. fortes.

"É a vida, entende!", dizia-lhe outrora, dez vezes por dia, a Polaca, sua amiga do Pátio dos Milagres. "Os homens são assim."

Os homens não têm do amor a mesma concepção que têm as mulheres. O modo de amar das mulheres é cheio de ilusões, sonhos, aspirações sentimentais e desmedidas.

O que imaginara ela? Que para além de seus abraços, havia elos reatados, algo que só podia existir entre ele e ela, que essa fusão dos sentidos significava o sentimento eletivo dos corpos de ambos, a impossibilidade de se distraírem disso e de se separarem, símbolo de acordo mais elevado de seus corações e espíritos.

Era crer num milagre impossível. Esse acordo é raríssimo. E o que lhes fora dado outrora não podia repetir-se, pois ambos haviam mudado. E era irrazoável chamar de infidelidade a embates com índias.

Era preciso esconder dele sua profunda desilusão. Ele logo se cansaria de uma esposa ciumenta e dominadora. Para ela, porém, a luz se apagara, e ela se perguntava como enfrentaria o amanhã.

O raciocínio era perturbado por certas visões precisas que a atormentavam. Ele ria com as índias, acariciava-lhes os seios pequenos, sentia prazer em penetrar-lhes os corpos macios, de forte odor-primitivo, e essa visões faziam Angélica estremecer e a faziam sofrer na carne e no orgulho.

Esse sentimento que os homens nunca entendem: o orgulho de uma mulher. Há o ferimento, mas também a nódoa. Isso não se explica: é! Eles não entendem...

As crianças voltaram, gritando alegremente, animadas, com o passeio e as brincadeiras. Contavam suas aventuras: tinham deslizado em velocidades extraordinárias, tinham visto pegadas de lebre, a Sra. Jonas caíra numa vala, fora difícil retirá-la...

As faces de Honorina estavam vermelhas como maçãs, e a menina estava muito excitada.

-Fui eu que deslizei mais depressa, mamãe! Escute, mamãe...

- Estou escutando - dizia Angélica, distraída.

Pusera-se a pensar novamente em Pont-Briand. Havia algo nele que lhe lembrava aquele ogro ruivo que fora seu guardião no castelo do Plessis-Bellière, quando ó rei a manteve prisioneira ali. Como se chamava?... Já não se lembrava. Também ele era louco de desejo por ela, e tão sutil quanto Pont-Briand para exprimi-lo. De noite ia bater-lhe à porta, e importunava-a de mil maneiras...

Ela sempre achara que, na noite do estupro, fora ele quem gerara Honorina. E Pont-Briand parecia-se com ele. Apenas por se lembrar disso uma onda de náusea lhe contraía a garganta.

Quando os homens chegaram por sua vez, vinham com um apetite feroz. Serviram-lhes uma refeição de carne seca e biscoitos de milho. Angélica queimou os dedos, virando os biscoitos sobre a cinza.

-        Mas que tola! - exclamou, com os olhos brilhando de lá grimas que não conseguiu conter.

Durante todo o serão, conseguiu-distrair o abatimento com suas ocupações. Acendeu as lâmpadas uma. a uma, um trabalho de que gostava. A luz das lâmpadas de gordura era avermelhada e fraca. Tinha suavidade, mistério. Instintivamente as pessoas começavam a falar mais baixo.   '

Nem por isso Angélica deixava de sonhar com velas mais finas e de claridade mais amarela e forte.

— Você deveria fabricar formas de velas para nós - disse ao ferreiro. - Poderíamos enchê-las com cera de abelha, caso exista nestas florestas.

— O missionário que estava no Kerfhebec, o Padre d'Orgeval - disse Elói Macollet -, sej que ele fabricava velas verdes com uma.cera vegetal tirada de uma baga que os índios lhe traziam.

— Ah, isso me interessa muito...

Conversou "com o velho explorador, foi deitar Honorina, que não aguentava mais, ajudou no serviço da mesa, e no final se sentiu bem comente por não Beixar transparecer ò tormento que a corroía.        

Joffrey de Peyrac era tolo? Em alguns momentos teve a impressão de que pesava sobre ele o olhar inquisitivo dela, mas não podia adivinhar o que ela sentia, e ela nãolhe diria nada... Não, nada.

Mas, no momento de irem para o quarto, Angélica sentiu um verdadeiro pânico. Nessa noite lamentou não morar num vasto castelo, a fim de poder retirar-se para seus aposentos, pretextando uma enxaqueca, para esquivar-se à presença dele, senão de seu abraço.

No quarto, ajoelhou-se diante da lareira e reavivou o fogo com gestos febris. Teria preferido que estivesse muito escuro e que Joffrey não lhe pudesse ver o rosto.

Durante todo o serão representara uma comédia insuportável.

Na cama, aninhou-se na beirada, de costas para ele, fingindo sono.     

Mas nessa noite ele não respeitou, conforme ela esperava, a sua fadiga. Sentiu a mão dele sobre o ombro nu e, não ousando pô-lo de sobreviso com uma atitude inabitual, voltou-se para ele e forçou-se a passar os braços em torno do pescoço do marido.

Oh, por que precisava tanto dele? Jamais pudera esquecê-lo, e o amor que sentia por ele estava tecido nas fibras de seu ser. O que seria dela se não pudesse se conformar? Tinha que fazer tudo o que pudesse para que ele não desconfiasse de nada.

-        Distraída, bela amiga?

Inclinado sobre ela, ele interrompera as carícias e a interrogava meigamente. Ela se maldisse por não ter podido enganá-lo.

-        Distraída, não é?

Sentiu-o à espreita e"se inquietou. Ele não admitiria que ela se calasse. Insistiu.

-        O que há? Não era você mesma esta noite. O que está acontecendo? Diga-me...

Angélica pôs tudo para fora.

-        É verdade que você vai com as selvagens? Que são suas amantes?

Ele não respondeu de imediato.

-        Quem lhe enfiou na cabeça tamanha tolice? - perguntou afinal. - Pont-Briand, não foi? Considerou-se em termos suficientemente bons com você para dar-lhe esse género de aviso. Acha que não notei a paixão que lhe inspirou?... Ele a cortejou, não foi? Deu ouvidos a ele?

Os dedos se crisparam bruscamente sobre o braço dela, ele a machucava.

— Você o encorajou? Foi coquete com ele?

— Eu, coquete com aquele labrego! - exclamou ela, dando um pulo. - Preferia ser feia como os sete pecados capitais, caso isso pudesse me livrar de homens da sua espécie... Imagina que a culpa é sempre da mulher quando um imbecil qualquer resolve fazer-lhe avanços!... E você?... Sabia que Pont-Briand me faria declarações de amor e partiu de propósito para ver como eu me comportaria, se eu não ia saltar ao pescoço do primeiro amante que me aparecesse, como pensa sem dúvida que fiz durante estes quinze anos, enquanto eu estava sozinha, sempre sozinha, muito sozinha. Oh, eu o detesto, você não tem confiança alguma em mim!

- Você tampouco, parece-me! O que vêm as índias fazer nessa história? A cólera de Angélica arrefecia.

— Oh, acho que ele disse isso para me magoar, vingar-se por eu tê-lo repelido.

— Tentou abraçá-la, beijá-la?

A escuridão escondia o rosto de Peyrac, mas Angélica adivinhou que não devia estar tranquilizador. Minimizou as coisas.

-        Ele insistiu e eu fui um pouco... áspera. Depois entendeu

e foi embora...

Pont-Briand tentara beijá-la, tinhacerteza agora! Pousara os lábios sobre os dela, com a brutalidade dos soldados.

Ele próprio não deixava de ter responsabilidade pelo incidente. Se se afastara voluntariamente, conforme acusava Angélica, não fora para jogar inconscientemente còm a situação criada por Pont-Briand? Deixar agir os acontecimentos" para fazer uma experiência. Mas não se brinca com o coração-e a sensibilidade de uma mulher, do modo como se faz com retortas, alambiques e minerais inertes. É verdade que às vezes duvidava dela em segredo. Agora, pagava por isso.  

— E verdade? - murmurou ela:numa voz queixosa que ele não lhe conhecia. -E verdade que você vai com ás selvagens?

— Não, meu "amor - disse ele, com força e gravidade. - O que teria eu a fazer com índias" quando tenho a você?

Ela soltou um breve suspiro e pareceu descontrair-se. Joffrey de Peyrac estava odian3o-se. Onde, afinal, Pont-Briand pudera ir buscar uma invenção tão baixa?... Falaya-se dele no"Canadá? Quem falava? Inclinpu-se sobre Angélica para tentar aproximá-la outra vez. Mas, embora tranquilizada sobre a pretensa fidelidade do marido, o humor de Angélica em relação a ele continuava indócil.

Tentava recompor-se, más -sofrera muito tempo. Abandonara esperanças em demasia para conseguir recuperá-las tão rápido. Evocara, sobretudo, recordações demais, um número excessivo de rostos repugnantes... Entre outros, o de Montadour, que se parecia com Pont-Briand... Era esse o nome do ogro ruivo, lembrou de repente: Montadour... Montadour...

E quando o marido quis retomá-la nos braços, ela se crispou. Peyrac teve um profundo desejo de degolar Pont-Briand e, com ele, todos os militares, todos os homens. O que acontecera fora mais que uma escaramuça sem importância, de que uma mulher experiente sai ilesa, conforme ele pensara.

O incidente reabrira chagas mal cicatrizadas naquela mulher ferida pela vida. Houve um desses breves- momentos em que o homem e a mulher se enfrentam, com todas as forças contrárias eriçadas um contra o outro, numa espécie de ódio feroz e irremediável, com o recuo dela diante da submissão, com o desejo dele de vencê-la para torná-la sua outra vez, porque se não conseguissem se reunir naquela noite, havia o risco de o espírito fugaz e um pouco misterioso de Angélica afastar-se outra vez e escapar a ele.

Ele sentia as mãos delicadas da mulher pesando-lhe sobre os ombros num espasmo para repelir, e apertava-a com mais força ainda, incapaz de soltá-la e afastar-se dela. Pois se o espírito de Angélica errava para longe dele, numa solidão árida, seu corpo estava bem perto dos lábios dele, e Peyrac não escapava à atração de sua beleza, mesmo que aquela carne se retraísse sob seus beijos, que aquele recuo o irritasse e ao mesmo tempo lhe exasperasse a fome.

A cobiça, que em todos os tempos levou o homem à conquista da mulher, por vezes é uma força incomoda. Pesava sobre os rins dele e o levava a impulsos de violência que ele encontrava dificuldade em controlar.

Somava-se ao pensamento de todos os que a haviam tocado e possuído. Ele, que era homem e que vivera muito, não ignorava qual era um dos segredos da sedução de Angélica e que deixava os que a conheciam no sentido bíblico com uma nostalgia incurável. É que ela era maravilhosamente feita lá onde era preciso sê-lo. Órgãos perfeitos, em bom lugar, daqueles de que o mestre na arte de amar diz que "possuem a arte dos dois gozos..." Entranhas venusianas estreitas, habitadas de uma força prênsil e calorosa de que ela sabia servir-se por instinto. Ele descobrira isso desde os primeiros tempos de seus amores. "Putinha que se ignora", pensara, divertido, surpreso de encontrar naquele corpo virgem perfeições que nem sempre encontrara nas mais brilhantes cortesãs.

Ora, esse corpo magnífico, criado para o homem e o prazer dele, guardava intactos todos os seus poderes, e quinze anos mais tarde Peyrac reencontrara nela, surpreso, encantado, as maravilhosas sensações de antanho.

Naquela noite no oceano, soubera que seria seu escravo novamente, como antes, como os outros, pois não era possível cansar-se dela, esquecê-la.

Mas se o corpo estava intacto, o mal se encontrava em outro lugar. E Peyrac maldizia a vida que a machucara e todas as recordações que por vezes erguiam entre ela e ele um muro intransponível. Todos esses pensamentos desfilaram num átimo pelo seu espírito, enquanto, com todas as fibras de seu ser retesadas na direção dela, num irresistível movimento de posse, ele tentava atraí-la e dominá-la. Nunca sentira de modo tão ciumento e selvagem que ela era dele, e que por nada no mundo podia deixá-la fora dele, abandoná-la aos outros, a ela mesma, a seus pensamentos e lembranças.

Teve que tomá-la quase à força.

Mas assim que se sentiu nela, sua cólera # sua violência se acalmaram. Não fora apenas para a satisfação de seu desejo que nessa noite ele fizera valer um pouco rudemente seus direitos de esposo. Era preciso que a levasse consigo 'para Citera, pois quando retornassem de lá as más sombras teriam desaparecido.

Não existe remédio mais mágico para os rancores, as dúvidas e as ideias cinzentas do que uma pequena viagem bem-sucedida, a dois, à ilha dos amores.

Ele soube esperar. Nada de pressa egoísta, de embarque na tempestade.

Um xamã, que eleconhecera nas índias Orientais quando de suas primeiras-viagens-àqúele país onde se ensina o amor nos templos, apontara-lhe as duas virtudes do amante perfeito, que são paciência e autocontrole, pois as mulheres são lentas no prazer. Nem sempre um homem* apaixonado é capaz disso sem certos sacrifícios, mas a recompensa não está nesse maravilhoso despertar de uma carne indiferente?

Quando a sentiu relaxar um pouco, menos arfante e fremente, e como que cega, começou a estimulá-la suavemente. Ele já passara as pernas dela à sua volta, a fim de mover-se melhor dentro dela, que assim já estava mais entregue, mais independente. Contra o peito dela, ele ouvia-lhe o coração batendo, irregular. O coração de um animalzinho assustado. Por instantes, procurava-lhe o frescor dos lábios, para um beijo leve, tranquilizador. E apesar do jugo da volúpia que o invadia até a medula e lhe dava violentos arrepios na espinha, ele não se abandonava.

Nunca mais~ele se permitiria deixá-la sozinha no caminho. Ela era sua mulher, sua criança, uma parte de sua carne.

E Angélica, no tormento de um coração onde a cólera e rancores incontroláveis se debatiam asperamente, começou a percebê-lo debruçado sobre ela com uma curiosidade atenta. A presença dele dentro dela era com um bem, um bálsamo calmante que lhe irradiava a doçura para os membros e até o âmago de seu ser. Tentada a abandonar-se a esse bem-estar, ela fez calar as vozes agitadas de seu espírito que a impediam de saboreá-lo. Mas mal conseguira fazê-lo e as vozes reiniciavam o alarido e a sensação delicada sumia.

E ela virava e revirava a cabeça, impaciente.

Então ele se retirou dela e foi como se ela tivesse sido despojada de tudo, um sofrimento de gritar, um vazio que a deixava retesada num apelo doloroso, e atirou-se para ele, cujo retorno lhe propiciou tal alívio, que ela o enlaçou para retê-lo, e ele sentiu-lhe os dedos leves nos flancos, nos rins, e ficou encantado de senti-la ávida novamente.

— Não me deixe - gemia ela. - Não me deixe... Perdoe-me, mas não me deixe...

— Não a deixarei...

— Tenha paciência, rogo-lhe... tenha paciência...

— Não se inquiete, estou bem dentro de você... Ficarei assim o resto da vida!... Cale-se agora. Não pense em nada.

Mas continuava a fazê-la sofrer, separando-se dela e parecendo querer prolongar a espera, inclinando sobre ela numa expectativa fremente; ou então roçava-a ligeiramente em carícias vivas, insidiosas, que não a satisfaziam em absoluto, mas lhe despertavam no corpo inteiro sensações diferentes, agudas ou adocicadas, enquanto arrepios incontroláveis lhe eriçavam a pele, em ondas que ela sentia até a ponta das unhas, até a raiz dos cabelos!... Ah, por que se revoltara tanto esta noite? O que lhe haviam feito outrora? Ah, contanto que ele não a abandonasse... que não se cansasse...

E se impacientava com o próprio corpo, não mais insensível, mas rebelde, recusando-se à submissão, numa reação íntima, obstinada. Joffrey acalmava-a com uma palavra. Não se cansava de modo algum, pois ela lhe era mais cara do que a vida, e a cada instante sentia, como um dardo, a força e o apego que ela lhe inspirava, e a alegria do triunfo começava a espalhar-se-lhe pelas veias. Pois agora a via inteiramente ocupada naquela luta voluptuosa que ela travava no fundo de si mesma e que ele suscitava sem trégua. Aqueles espasmos ligeiros que lhe corriam à superfície da pele acetinada, aquelas crispações dos lábios e da garganta quando ela retomava fôlego - e de repente ele surpreendia o brilho de seus pequenos dentes brancos e contraídos - eram o sinal de que ela deixava de estar solitária, e que mais uma vez ele conseguira conduzi-la às praias luminosas, longe do abismo gelado. E riu ao vê-la levar bruscamente as costas da mão à boca para abafar um queixume. As mulheres têm pudores enternecedores... Em meio aos enlevos mais ofuscantes, o menor ruído, um rangido, um estalido as alerta... O receio de serem surpreendidas, de traírem o próprio abandono.

Sim, criaturas estranhas, fugidias, difíceis, mas que inebriante cativá-las, arrancá-las a elas mesmas e fazê-las abordar, moribundas, em praias proibidas. Com esta ele conhecia sensações indescritíveis, pois- lhe devolvia em cêntuplo o que podia prodigalizar-lhe. E Angélica queria pedir mercê e não queria, pois ele sabia como atingi-la em toda parte e ela estava sem defesas diante da ciência amorosa dele. Até que se aliou com todo o seu ser ao movimento profundo e poderoso do amor que os arrastava a ambos aos cumes da sua alegria comum. Ela o adorava, pela promessa que se elevava nela e de que agora ele reclamava o cumprimento. Ele já não a poupava; pois ambos sentiam a mesma pressa e paixão ^e chegar à ilha encantada.

Levados pela onda. violenta e irresistível, foram dois a atingir as praias e, enlaçados, deram juntos em areias de ouro, ele, subitamente agressivo, na tensão do assalto supremo, ela rendendo-se, enlanguescendo numa liberação última, deliciosa, delirante...

E ao abrirem os olhos surpreenderam-se de que não houvesse areias douradas e mar azul... Citera... Pátria dos amantes... Sob todos os céus ppde-se atingi-la...

Peyrac ergueu-se sobre um cotovelo. Angélica continuava ausente, com uma expressão senhadora, e-os clarões declinantes do fogo acendiam-lhe um reflexo sob as pálpebras semicerradas.

Ele a viu lamber num reflexo maquinal a mão que mordera há pouco, e esse gesto animal emocionou-o de novo.

O homem quer fazer da mulher uma pecadora ou um anjo. A pecadora, para distrair-se com ela; o anjo, para amá-lo com uma dedicação inalterável. Mas a mulher eterna frustra-lhe os planos, pois para ela não existe pecado nem santidade. Ela é Eva.

Ele enrolou-lhê os longos cabelos à volta do pescoço e pousou a mão sobre o ventre tépido. Talvez aquela noite gerasse um novo fruto...

Se fora imprudente, não se censuraria. Não se pode ser prudente sempre quando se trata de salvar algo de essencial entre dois corações, e ela mesma lhe pedira isso de modo muito perturbador no instante decisivo.

- E então, aquelas índias? - disse Peyrac a meia voz.

Ela estremeceu, riu baixinho e, virando a cabeça para ele, num movimento lânguido e submisso:

— Como pude acreditar nisso? Já não sei...

— Tolinha, como é fácil zombar de você quando se trata do coração... Chegou até a se atormentar! Realmente, o que quer que eu faça com índias?... Não nego <jue essas espertinhas malcheiro-sas podem dar satisfação ocasionalmente... Mas no que podem me atrair, quando tenho a você?... Será que me toma pelo Deus Pã ou por um de seus acólitos de pé fendido? Onde e quando quer que eu encontre tempo para fazer amor com alguém mais senão você?... Deus, como as mulheres são tolas!...

A aurora ainda estava distante quando o Conde de Peyrac se levantou sem ruído.. Vestiu-se, afivelou a espada, acendeu uma lâmpada e, deslizando para fora do quarto, atravessou o salão e ganhou o local onde dormia o italiano Porguani. Após um rápido conciliábulo em voz baixa, retornou à sala comum e levantou algumas das cortinas de peles atrás das quais dormiam pesadamente seus companheiros. Ao encontrar quem procurava, sacudiu-o suavemente para despertá-lo. Florimond abriu um olho e viu à luz da lanterna o rosto do pai, que lhe sorria amigavelmente.

-        Levante, filho - disse o conde - e acompanhe-me. Quero ensinar-lhe o que é uma dívida de honra.

CAPITULO XIX

Angélica surpresa com a partida do marido

Angélica espreguiçou-se longamente, surpresa de que o dia tivesse sucedido à noite, tão subitamente. Dormira um sono só.

Uma indefinível alegriaflutúava no fundo de seu espírito enevoado e lhe entorpecia os membros.

Lembrou-se. Houvera a dúvida, o medo, os pensamentos negros, o abatimento, e depois" tudo isso desaparecera nos braços de Joffrey de Peyrac. Ele se recusara a deixá-la debater-se sozinha, forçara-a a refugiar-se nele, e era maravilhoso...

A mão de Angélica doía. Examinou-a com espanto, viu uma marca e lembrou. Morderam para abafar seUs queixumes de amor.

Então, sorrindo, enrolou-se sob as peles. Aninhada na tepidez das cobertas, lembrou-se de certos gestos, certas palavras da noite. Esses gestos que se fazem, essas palavras que se pronunciam sem ouvi-las quase, no mistério da penumbra e na efervescência do prazer, e pelas quais se enrubesce depois...

Que foi que ele lhe dissera naquela noite?... "Sinto-me tão bem em você... Passaria a vida assim..."

Recordando-se, ela sorria, e sua mão acariciava o lugar vazio a seu lado, onde ele repousara.

Assim, na vida dos casais, noites de púrpura e ouro balizam seus destinos, e essas noites os marcam em segredo, às vezes com mais intensidade do que os ruidosos acontecimentos diurnos.

Quando Angélica, cheia de remorsos por assumir mais tarde do que de hábito suas tarefas domésticas, uniu-se às companheiras na sala comum, soube pela conversa que o Sr. de Peyrac deixara o forte, logo cedo, acompanhado de Florimond. Tinham calçado as raquetes e se haviam abastecido de víveres para um percurso bem longo.

-        Ele disse para onde iam? - indagou Angélica, surpresa com uma decisão que ele não a deixara pressentir em nada.

A Sra. Jonas balançou a cabeça. Apesar das negativas, Angélica teve a-impressão de que a boa senhora desconfiava do objetivo daquela expedição inesperada, pois desviava os olhos e trocava olhares cúmplices com a'sobrinha.

Angélica foi interrogar o Signor Porguani. Este não sabia muito mais que os outros. O Sr. de Peyrac fora procurá-lo de madrugada, para avisar que se ausentaria por alguns dias, apesar do rigor do frio.

— Não lhe disse mais nada? - exclamou Angélica, alarmada.

— Não, apenas me pediu que lhe emprestasse a espada... Ela se sentiu empalidecer. Encarou o gentil-homem italiano.

E afastou-se, sem insistir. Cada um retornou à sua tarefa e o dia passou como todos os outros, naquele inverno tranquilo e severo. Ninguém falou acerca da partida do Sr. de Peyrac.

CAPÍTULO XX

Peyrac e Florimond em marcha na neve - Evocação dos inimigos de Angélica

A perseguição que o Condejie Peyrac e seu filho empreenderam exigiu deles um duplo esforço, pois Pont-Briand, que os precedia de meio dia, também se' apressava.

Começaram a andar uma parte da noite, num ar tão gelado, que tinha a dureza do metal e os envolvia até a opressão. Paravam na hora em que a lua começavía descer, aqueciam-se numa barraca de campanha,, dormiam algumas horas e levantavam acampamento ao nascer do sol. Por sorte a neve continuava dura e o tempo, estável.

As estrelas cintilavam com uma nitidez particular e, valendo-se do sextante, o conde por duas- vezes ousara abandonar a pista traçada por aqueles que o precediam e cortar por outro caminho, que o fazia ganhar várias horas. Possuía da região mapas muito precisos, feitos pelos seus homens ou por ele mesmo no ano anterior; conhecia de cor os mapas traçados a partir desse dados, recolhera dos índios e dos exploradores as informações necessárias referentes as pistas, às passagens acessíveis. Tanto durante o inverno quanto na época do degelo, a importância desse estudo cartográfico de que Florimond, que manejava muito bem a pena, o pincel e as medidas, participara, explicava a aparente imprudência com que os dois, recém-chegados à região, se haviam, lançado a uma corrida que, nessa época do ano, podia ser considerada loucura.

O relevo, ao mesmo tempo acidentado e"mónótono, do país enganador sob a maquilagem uniforme de neves e gelos, suas inúmeras armadilhas e suas raras benevolências, tudo isso estava inscrito sem erro na memória do conde e na de seu filho. Ainda assim Florimond não deixara de se preocupar quando, abandonando a pista visível ao luar e que atravessava sem empecilhos uma extensa planície, o conde decidira cortar pelo platô que se destacava através dessa planície, evitando um longo desvio. O platô era rasgado por falhas profundas, dissimuladas sob árvores carregadas de neve, onde havia o risco de se cair. Mas quando ao alvorecer, deslizando pelos contrafortes, eles haviam topado com o acampamento do tenente e do huroniano, onde brasas ainda quentes davam testemunho de que os dois homens acabavam de deixá-lo, Florimond empurrara para trás o gorro de pele, soltando um assobio de admiração.

— Pai, confesso que por instantes receei que nos tivéssemos perdido.

— E por quê? Não foi você mesmo quem verificou a existência deste atalho? Meu filho, nunca desconfie dos números nem das estrelas... São, mesmo, as únicas coisas que jamais decepcionam...

Após um breve repouso, reencetaram a marcha. Falavam pouco, conservando as forças para o esforço intenso que a longa caminhada representava, com as raquetes de corda aos pés, bastante incomodas e que faziam de cada passo uma dificuldade; insuficientes, porém, para mantê-los sempre à superfície da neve mole ou poeirenta. Tinham que safar-se, então, levantando bem alto o joelho, para sentir, no passo seguinte, a neve ceder outra vez sob o peso deles. Florimond resmungava, dizia que era preciso encontrar outro jeito de caminhar na neve. A visão que o pai lhe oferecia, avançando a passo seguro e infatigável, não era diferente da que em poucos instantes teria dele o Tenente de Pont-Briand. Silhueta sombria e implacável de justiceiro, ia na frente sem manifestar cansaço algum, e dava a impressão de que na verdade a natureza feroz, reconhecendo um mestre, apagava-se e se deitava a seus pés. Essa floresta que de longe parecia intransponível, eis que a deixavam para trás; a planície que se imaginava não poder atingir, eis que a atravessavam e lhe atingiam os confins.

Os músculos de Florimond doíam. Ele, que se acreditava jovem e forte, dava-se conta de que tinha braços de alfenim quando tinha de repetir dez vezes seguidas em vinte minutos o esforço necessário para se içar de uma vala, agarrando-se aos galhos dos abetos. A culpa era de todo aquele tempo que ele perdera aprendendo hebraico e latim naquela caverna de orações que era Harvard. O suficiente para perder todo o preparo físico e a faculdade de mover-se num país gelado. Era também porque o pai se comportava como uma máquina de esmagar o espaço, e se Florimond, em sua arrogante adolescência, duvidara alguma vez da resistência de um homem como Peyrac, suas inquietações tinham sumido.

"Ele está me levando para a morte", pensava, preocupado. "Se continuar, serei obrigado a me dar por vencido."

Calculava por quanto tempo seu amor-próprio lhe permitiria aguentar sem confessar a fadiga, dava-se adiamentos, e se regozijava quando a ordem de Peyrac, "Paremos um instante", se fazia ouvir meio minuto antes de ele desabar sobre'os joelhos. Podia, então, oferecer-se o luxo de dizer com desenvoltura, com uma voz um pouco ofegante:

- É necessário, pai? Se quiser, posso muito bem... caminhar... mais um pouco...

Peyrac meneava a-cabeça"negativamente é recobrava fôlego em silêncio, com uma espécie de concentração interior,, e Florimond esforçava-se por imitá-lo.

Para dizer a verdade, ;ao longo de todo o trajeto o conde quase não se preocupõtl com Q próprio desempenho. De uma resistência a toda prova, qu"e já comprovara em inúmeras circunstâncias, a vontade feroz de alcançar o rival ajudava-o muito a vencer, como que brincando, as.etapas mais duras.

Assim como àquele-a quem perseguia, a imagem de Angélica não lhe deixava o espírito. Animava-lhe o impulso para o percurso, acendia-lhe no coração um fogo que parecia até torná-lo insensível às mordidas do frio. E os pensamentos que se entrecruzavam em sua cabeça ocupavam-lhe o tempo de tal modo, que ele atravessava vales e montanhas quase sem se dar conta disso. O rosto de Angélica brilhava nele, que o contemplava para ali descobrir o tempo todo novos encantos. Mal deixara a mulher e ela estava mais presente do que nunca para ele. Mal se extinguiam os ecos abafados de suas alegrias voluptuosas, e a mera evocação daquele ser adormecido, conforme a abandonara de manhã, na fria aurora, a cabeça atirada para trás e os olhos fechados, despertava nele novas cobiças. Era outro dos poderes de Angélica. Saber muito bem acalmar e seduzir os sentidos de um homem apaixonado, mas não saciá-lo nunca, a ponto de, mal o amante se afaste dela, o desejo e o langor de estar junto dela outra vez, contemplá-la, tocá-la e abraçá-la novamente voltem a incendiar-lhe o sangue. A cada vez ela era nova, jamais falhava a expectativa, não desapontava. E a cada vez era como uma descoberta, que deixava o corpo feliz e realmente encantado. Quanto mais liberdade tinha para usar dela no decorrer das noites, menos ele podia passar sem esse prazer.

Quanto mais oportunidade tinha de aproximar-se dela, na existência cotidiana do forte, que compartilhavam tão de perto, quando podia observá-la sem dissimulação, mais se afirmava o domínio que ela exercia sobre ele pela sedução de toda a sua pessoa. E ele se surpreendia, pois estivera preparado para ser desapontado por ela.

Não havia motivo para abordar com uma ponta de desconfiança o mistério de tal poder?... Por que astúcia secreta, que dons de fadas recebidos no berço, que poderes adquiridos por magias que não traía era ela habitada?

Punha-se a discutir como os homens de seu tempo, tão fortemente tentados a se referir ao milagre para descobrir o segredo do que os espanta.

Desde o primeiro instante em que ela pousara o pé no solo das Américas, todas as coisas tinham adquirido uma nova amplidão. E os canadenses já viam encarnar-se nela a visão demoníaca que os assustava: uma mulher alçando-se acima da Acádia para causar-lhes a perdição...

Embora quisesse impedir-se disso, Joffrey de Peyrac sentia-se tentado a reconhecer naquela Angélica que reencontrara após quinze anos de ausência poderes surpreendentes.

Se ele próprio chegava, admitia, a encarar a realidade presente, que naquelas regiões áridas, onde se percebem com mais acuidade as grandes correntes primitivas e naturais, tal figura de mulher, por ser dotada de qualidades excepcionais, impõe-se, desde sua aparição, como uma criatura inquietante, logo suspeita, até transformar-se em mito e lenda.

Fenómeno costumeiro num país de miragens, onde manifestações inacreditáveis se multiplicam: fagulhas crepitantes, cuja origem não se pode determinar, correndo pelo corpo e a roupa e causando choques doloridos; panejamentos coloridos, desdobrando-se no céu em fogos de artifício inexplicáveis; sóis suspensos nas trevas, ali permanecendo durante horas, para subitamente se fundirem com uma velocidade absurda na obscuridade do firmamento... Os canadenses viam nisso a aparição de canoas em chamas, transportando a alma de seus mortos, exploradores ou missionários, torturados pelos iro-queses; os ingleses puritanos já viam a presença de um planeta, anunciando terríveis castigos para seus pecados, e punham-se a jejuar e a rezar...

Num continente assim, brutal, austero, onde se recebia toda verdade sem deferências, era natural, inevitável, que o brilho de Angélica causasse um irresistível movimento passional. Era natural, disse consigo o conde, que desde que o seu belo pé pousara na praia se falasse dela, da Nova Inglaterra a Quebec, dos grandes lagos do oeste às ilhas do golfo Saint-Laurent, a leste, e, por que não, do vale dos mohawks, na terra dos iroquesés, até os nipissing e nadessiux das ribanceiras geladas da baía Saint. James. Mas se ele entendia as razões desse comportamento impulsivo, não-deixava de ver-lhe os riscos.

Às dificuldades de seu empreendimento no Novo Mundo se somaria agora um conflito muito particular, que tinha Angélica como centro.

E com a lucidez de um coração apaixonado, logo compreendera que a vinda do Tenente de Pont-Briand a Wapassu era resultado de uma trama, talvez ainda informúlada, mas de importância muito maior do que a conseqúênciajie uma paixão amorosa isolada. Pont-Briand, expondo-se a riscos loucos, não passava de uma escaramuça, um pretexto; a vanguarda dé algo mais poderoso, mais hostil, que, ao atacar -a aura privilegiada de sua mulher, tencionava abater a ele, através dela...

Colocando-a a seu lado, elefa expusera às flechas.'Revelara-a, e sem dúvida a um mundo que não estava pronto para essa revelação e que se esforçaria por rejeitá-la a qualquer preço.

Desde o momento em que, segurando-lhe a mão, ele dissera à gente reunida na praia de Gouldsboro: - Apfeseríto-lhes minha mulher, a Condessa de Peyrac - fizera-a sair da sombra, onde, sozinha, com astúcias de animalzinho acuado, ela tentava passar despercebida; ele a expusera novamente aos olhares, olhares que só poderiam ser de amor ou de ódio, pois Angélica não deixava ninguém indiferente.

Peyrac se pegava olhando em redor a imobilidade branca, a natureza gelada e inumana, como se visse reunir-se ali inimigos de rostos ainda dissimulados, mas implacáveis. Avançando assim, caía na armadilha do inimigo, fazia o que se esperava que ele fizesse, mas nada podia retê-lo, pois no centro daquelas ameaças havia uma mulher, que era sua por direitos imprescritíveis, uma mulher que apenas ele sabia que era frágil, uma mulher em toda a vulnerabilidade de seu sexo e que ele devia a si mesmo defender com ferocidade e intransigência...

—      Pai! Pai!

-        O quê?

-        Nada - dizia Flori mond, zonzo de fadiga.

Diante do rosto que o conde voltava para ele, um olhar com a dureza de uma lâmina acerada, o pobre garoto não encontrava coragem para confessar que tinha os pés como chumbo. O pai era a única criatura diante de quem às vezes ele se sentia atrapalhado. E ao mesmo tempo não podia deixar de admirar à luz de um céu sombrio, um poente nublado, cinza e ouro, o homem gigantesco, de têmporas prateadas, rosto marcado de cicatrizes e as vezes impressionante, que ele fora procurar do outro lado dos oceanos e que não o desapontara: seu pai.

O Conde de Peyrac retomou o trajeto, indiferente às dificuldades da caminhada. Contentava-se em superá-las com os reflexos de seu corpo treinado nas piores fadigas, e seu pensamento reencetava o monólogo interior: quem seria essa gente que atacaria a ele e a ela?

Ainda não sabia. Seria uma sombria conjuração material ou, pelo contrário, espiritual, pela defesa de uma ideia, de uma mística, ou seriam interesses sórdidos, um movimento de multidão, ou a vingança de um único indivíduo que simbolizaria todos os demais?

O certo é que a presença de Angélica, que aumentara as forças de ambos, também os destinara a forças destrutivas, que por vezes ficam adormecidas e neutras, mas que uma provocação excessiva desperta de súbito na sua ferocidade.

Ora, Angélica sozinha, tão bela, tão viva, já não era uma provocação, um desafio?...

Se, pela astúcia, ele podia iludir os adversários, sabia que por intermédio dela haveriam de querer sua perda, sua destruição... Era um pouco como se ele fosse o "Outro" e lhe adivinhasse os pensamentos...

Parou. Florimond aproveitou para respirar, enxugando-se. De cenho franzido, Peyrac contemplava no fundo de si mesmo aquilo que acabava de descobrir. Ao atracar no Novo Mundo, Angélica despertara contra si um inimigo muito poderoso.

-        Muito bem - disse entre dentes. - Veremos.

As palavras não lhe atravessaram os lábios, pois, endurecidos de frio, eles mal se moviam.

CAPÍTULO XXI

Noite de confidências entre pai e filho

Ainda naquela noite encontraram um abrigo utilizado por Pont-Briand. Sob à densa ramagem de um pinheiro, protegido por muralhas de neve soprada, ò. solo ligeiramente úmido era de musgo seco, terra e agulhas de pinheiro, e apresentava os vestígios negros de uma fogueira. Galhos de eoníferas estavam jogados pelo chão, num grosso tapete. Outros, colocados junto com os que formavam uma abóbada acima do local protegido, compunham um entrelaçamento cerrado e particularmente hermético através do qual a fumaça do fogo que eles acenderam encontrou dificuldade em abrir caminho. Peyrac alargou a abertura ^çom seu facão, enquanto Florimond se enrodilhava no chão, tossindo e "chorando, sufocado. Ainda não adquirira a resistência dos índios, cujos olhos suportavam bem a presença corrosiva e habitual da fumaça, que no verão os protege dos mosquitos. Ao cabo de algum tempo, porem, o fogo estava claro e alto, naquele abrigo natural que a floresta lhes oferecia. Não havia o risco de os galhos se incendiarem, devido à neve amontoada sobre eles. Apenas algumas agulhas se avermelhavam e crepitavam em torno do orifíc-io de ventilação, lambidas por uma ou outra chama e soltando um odor balsâmico. Havia apenas lugar para dois, sentados com os pés junto ao fogo ou deitados em círculo, com a cabeça pousada sobre as sacolas, um de cada lado da fogueira. Em pouco tempo fez um calor bem agradável e Florimond parou de bater os dentes, resmungar e assoar-se. O sangue circulando de novo pelas extremidades geladas causava-lhe fortes dores, mas ele se impediu de fazer caretas, pois era uma dor para valer, e queixar-se seria indigno de um explorador das matas que deve se preparar para uirr dia suportar a tortura na mão dos iroqueses. O conde havia posto sobre as brasas um pequeno recipiente de ferro contendo neve. Rapidamente a água entrou em ebulição. Depois de fazer uma infusão com frutos de roseira-brava, ele juntou uma boa dose de rum, que, habituado que estava às Caraíbas, ele preferia à aguardente, e alguns pedaços de açúcar-cândi. Apenas com o perfume da bebida ardente,. Florimond ressuscitou, e depois de beber sentiu-se muito eufórico. Em silêncio, pai e filho devoraram biscoitos de milho com, ó delícia, fatias de toucinho e carne defumada. Depois, frutas secas, aquelas bagas um tanto ácidas que Angélica distribuía às vezes, com a solenidade de quem distribui pepitas de ouro.

De vez em quando uma pesada gota de água caía com um ruído seco sobre as grossas roupas deles. Eram pedaços de gelo, presos às agulhas do pinheiro acima deles, que derretiam mansamente com o calor do fogo.

Difícil era juntar madeira suficiente dentro daquele abrigo para alimentar sem interrupção a chama necessária. Com alguns golpes de machadinha, Florimond cortara um feixe de lenha dos galhos baixos das árvores circunvizinhas. O rapaz pensava que, às vezes, na época em que sonhava com o pai, ouvindo os relatos do velho Pascalou, na Mansão do Beautreillis, sentira aquele pai mais próximo de si do que diante do homem mesmo, reencontrado. No entanto, o encontro, há alguns anos, fora muito semelhante ao sonho. Encontrara na Nova Inglaterra um homem do mar, um grão-senhor e um sábio, que lhe transmitiria sua ciência, à qual o jovem aspirava, bem mais do que à afeição paterna. Quando os jesuítas, com quem ele vivera algum tempo, perto de Paris, acolhiam mais que friamente as surpreendentes invenções de Sire Florimond, este se consolava dizendo-se: "Meu pai é bem mais sábio do que todos estes... imbecis, para quem somente a escolástica conta, e não os fatos observados", e era verdade. Se lhe acontecia, agora que seu pai estava à sua frente, vivo, de ficar paralisado e mudo de confusão, a ele, Florimond, que conversara familiarmente com o rei Luís XTV e tratara de cima professores tão eminentes, era porque na verdade se sentia subjugado pela personalidade transcendente daquele pai, cujo saber, experiência e até a excepcional resistência física ele descobria um pouco mais a cada dia. Joffrey de Peyrac sentia que o filho o considerava menos como pai do que como mestre. Quando partira à sua procura, Florimond estava fazendo catorze anos. Comecava a sentir a necessidade de um professor a quem pudesse seguir com confiança, e como não descobria entre os que lhe designavam outra coisa senão sofisma e covardia, subterfúgios, fugira deles.

Ao se inclinar para Florimond, o ..Conde de Peyrac tinha a impressão de contemplar a imagem mesma de sua própria juventude, como num espelho fiel. Reconhecia no garote 0 admirável egoísmo dos apaixonados pela Ciência e pela Aventura, que os torna insensíveis a tudo o que não seja a satisfação-devoradora de sua paixão. Lembrava-se de como partira aos quinze anos, coxeando a atraindo chistes pela sua feiúra e pelo andar claudicante, para dar a volta ao mundo. Preocupara-se um único instante com a mãe que deixava para trás e que o via distanciar-se, a ele, o filho único que ela arrancara à morte?...

Florimond era da sua espécie. Possuía á mesma desenvoltura sentimental. Ela lhe-permitiria atingir os objetivos que ele se fixasse sem se deixar distrair, Só seria de fato mortalmente ferido se lhe recusassem o saber à altura dê suí avidez. Ele reclamava a satisfação do espírito muito mais do que a do coração.

Peyrac, meditando sobre o cáráter do-filho, pensava que, tornando-se homem, quando se afastasse definitivamente dos seus, ele corria o risco de mostrar-se insensível, às vezes, duro mesmo. E com muito mais arrogância, pois não teria que superar a desvantagem paterna de um rosto e uma aparência sem encantos. A beleza lhe facilitaria muita coisa...       

— Pai - disse Florimond a meia voz - Você é muito mais forte do que eu, sabe? Como adquiriu tamanha resistência?

— Com uma vida longa, meu filho, em que quase não tive tempo de deixar os músculos enferrujar.

— Eis a questão - exclamou Florimond. - Como exercitar-se na marcha e na corrida naquela Boston onde a nossa única distra-ção consistia em nos debruçarmos sobre os livros de hebraico?

— Lamenta o conhecimento que adquiriu nesses poucos meses de internato?

— Para falar a verdade... não. Pude ler o Êxodo no original e progredi muito em grego, estudando Platão...

— Perfeito! No internato que se abre parS você sob a minha jurisdição, terá oportunidade de fortificar o corpo bem como o espírito. Hoje você se queixa de que o treinamento tenha sido brando demais?

— Ai, não! - exclamou Florimond, que se sentia exausto dos pés à cabeça.

O conde estirou-se do outro lado do fogo, apoiado sobre a mochila. A floresta os rodeava de um silêncio gelado, pontilhado de mil ruídos secos e inexplicáveis, que causavam sobressaltos.

-        Você é mais forte do que eu, pai - repetiu Florimond.

Os últimos dias tinham sido uma lição para a vaidade do rapaz, que se satisfazia com facilidade.

— Não em tudo, meu garoto. Seu coração é claro, sereno. A sua insensibilidade o protege como uma armadura e lhe permitirá realizar certas coisas que eu já não posso enfrentar, pois meu coração está acorrentado.

— Então o amor enfraquece? - indagou Florimond.

— Não, mas ser responsável por outras vidas entrava terrivelmente a liberdade, ou aquilo a que chamamos de liberdade na primavera da vida. Veja, o amor, como todo conhecimento novo, enriquece, mas está escrito na Bíblia: "Aumentar o seu conhecimento é aumentar o seu sofrimento". Não seja impaciente para possuir tudo, Florimond. Não se renuncie a nada do que a existência possa oferecer-lhe, de medo de sofrer. A loucura está em querer possuir tudo ao mesmo tempo. O jogo da existência consiste em substituir uma força por outra. A juventude é livre, que seja, mas o adulto é capaz de amar, e é um sentimento maravilhoso.

— Acha que conhecerei essas alegrias?

— Que alegrias?

— O amor de que fala.

— O amor se faz merecer, meu filho, e pagar.

— Acho que sim... E faz os outros pagarem também - disse Florimond, esfregando as pernas doloridas.

O Conde de Peyrac deu uma gargalhada. Com Florimond, entendia-se sempre por meias palavras. Florimond também riu e deu-lhe uma olhada de cumplicidade.

— Você está mais alegre, pai, desde que trouxe nossa mãe para junto de nós.

— Você também, meu filho, está mais alegre.

Calaram-se, pensando em coisas vagas por onde passava o rosto de Angélica e que aos poucos se cristalizavam em torno do homem a quem perseguiam e que se introduzira entre eles, como um lobo para causar dano.

-        Sabe, pai, quem é que me lembra esse Tenente de Pont-Briand? - disse, bruscamente Florimond. - Mais refinado, menos vulgar é verdade, mas no fundo do mesmo estofo. Ele parece o Capitão Montadour.

— Quem era esse Capitão Montadour?

— Um porco ignóbil que guardava o nosso castelo com seus soldados, por ordem do rei, e que insultava minha mãe apenas com o olhar. Quantas vezes não tive vontade de furar-lhe a pança! Mas eu não passava de uma criança e não podia fazer nada para defendê-la. Eram numerosos demais, aqueles soldados, e poderosos demais também... O próprio rei queria á perda de minha mãe e a sua rendição...

Calou-se e puxou para junto do corpo o pesado casaco forrado de pele de lobo, que lhe servia de coberta. Seu silêncio prolongou-se e Joffrey de Peyrac acreditou que o garoto tivesse adormecido, mas de repente ele disse: 

— Você diz que meu coração ainda está fechado, insensível, mas engana-se, pai.

— É mesmo?... Estaria você-apaixonado?

— Não no sentido em que entende. Mas tenho no coração uma chaga de amor que com frequência não me deixa em paz, e há algum tempo um ódio profundo me atormenta. Odeio os homens que mataram meu irmãozinho Carlos Henrique. A ele eu amava...

Ergueu-se-sobre um cotovelo e seus olhos brilhavam febris enquanto ele inclinava o rosto para a frente, à claridade das chamas.

"De fato, eu estava enganado", pensou o conde, "o coração dele está vivo."

Florimond explicou:

— Era meu meio irmão, o filho que minha mãe teve do Marechal du Plessis-Bellière.

— Eu sei.

— Era uma criança adorável, e eu o amava. Tenho certeza de que foi Montadour que o estrangulou com as próprias mãos para se vingar de minha mãe, que o repelia. Um homem semelhante a Pont-Briand, que ainda há alguns dias se pavoneava, satisfeito com a bela presença, o sorriso jovial... Exatamente a mesma arrogância!... E quando penso em Montadour, ponho-me a odiar todos os franceses, grosseiros e lascivos, seus sorrisos tão contentes de si mesmos. Mas também sou francês. Às vezes quero mal a minha mãe por ter-me impedido de levar meu irmãozinho comigo a cavalo: eu o teria salvado. É verdade que ele era muito pequeno. Será que eú teria conseguido protegê-lo de tudo?... Quando repenso essas coisas é que vejo que eu não passava de uma criança... Não acreditava nisso naquele momento, mas eu não passava de uma criança desarmada... apesar da minha espada. E minha mãe estava mais desarmada ainda. Eu não podia fazer nada para defendê-la, subtraí-la à covardia dos seus torturadores. Só pude partir à sua procura. Agora o encon-tri e somos fortes os dois, você, seu marido, eu, seu filho. Mas é tarde demais, eles tiveram tempo de consumar sua obra de covardia. Nada poderá ressuscitar o pequeno Carlos Henrique...

— Sim, um dia ele ressuscitará um pouco para você.

— Que queres dizer?

— No dia em que você tiver um filho.

Florimond encarou o pai, surpreso, depois soltou um suspiro.

-        É verdade! Tem razão de falar assim. Obrigado, pai!

Fechou os olhos e pareceu cansado. Durante toda essa evocação ele falara em frases breves e lentas. Como se aos poucos fosse descobrindo verdades que ainda não olhara de frente. É para o conde também foi uma ponta do véu misterioso que se rasgava sobre a existência desconhecida e dolorosa que Angélica levara longe dele. Ela nunca falava do pequeno Carlos Henrique. Por tato para com ele, receio também, talvez. Mas seu coração de mãe sangrava menos que o de Florimond?...

A vergonha, a dor, a impotência ardiam no coração do adolescente, e Joffrey de Peyrac sentiu que ambos, pai e filho, sentiam a mesma cólera do homem ultrajado, cólera que o dominava desde que ele deixara o forte de Wapassu, à caça de Pont-Briand.

Esse ressentimento era quase da mesma natureza que o amor ferido e mergulhava nas mesmas fontes antigas e ardentes de um passado em que os dois, o menino e o homem, tinham sido rejeitados, traídos e vencidos. Inclinou-se para o filho, a fim de aliviar o peso insuportável daquele coração juvenil e desviá-lo da amargura para a ação.

-        Nem sempre se pode escapar à dura lei das provações e das derrotas, meu rapaz - disse. - Mas a roda gira. Agora, você mesmo acabou de dizê-lo, somos fortes os dois, estamos reunidos. Agora chegou finalmente o tempo da vingança, para você e para mim meu filho... Por fim podemos responder aos insultos, defender a fraqueza, devolver os golpes recebidos. Amanha, ao matar esse homem, vingaremos Carlos Henrique, vingaremos sua mãe insulta da; amanhã, ao matá-lo, mataremos Montadour...

CAPÍTULO XXII

Pont-Briand em fuga na neve

Foi nos arredores do rago Mégantic que ocorreu o encontro.

Nesses dias de rnVerno, nenhum grito humano pode fazer-se ouvir sem.logo ser tragado pela infinita indiferença da planície. As árvores mortas, acima das águas geladas, são colunas de puro cristal. Apenas esses gigantes de gelo povoam o reino dos lagos, dos rios, dos canais e dos charcos, que a neve dissimula sob um enganador tapete de veludo branco imaculado.

No verão, no -outono, desse reino das águas partirão de novo para o sul os gentis-homens canadenses e seus selvagens, para colherem escalpos e "indulgências" na Nova Inglaterra, salvando a alma e o comércio com o sangue de hereges derramado. O caminho aquático marrom e transparente do Chaudière os conduzirá sem dificuldade até ali. Antes de descer para a outra encosta, falarão alto e rezarão, entoarão cânticos com seus capelães, à volta de fogueiras imensas.

Assim, quando o Tenente de Pont-Briand, do alto de um rochedo, divisou a região do Mégantic e sua desolação pálida e cintilante, familiar a seus olhos de canadense, o torno que lhe comprimia o coração se soltou e ele respirou melhor. Agora o seu país, a sua terra do Canadá estava perto. Ali inúmeras recordações o aguardavam, e fazia pouco -tempo que estivera nessa região com o Conde de Loménie, quando retornavam daquela desastrosa expedição ao forte de Katarunk.

Sim, desastrosa, repetiu para si mesmo com força, pois ao topar com a gente de Katarunk ele perdera a paz do coração.

Mas por nada no mundo quereria não ter vivido a experiência. O sentimento que depois disso nutrira por uma mulher única enriquecera-lhe a vida de tal modo, que a ideia de que doravante estaria privado disso o acabrunhava. Não poder mais sonhar com ela, compará-la a outras para gozar melhor de seu brilho, contemplá-la, adorá-la. Na verdade, uma loucura inexplicável, mas que o acalentara. Sentia-se incapaz de sobreviver, pois a vida sem ela perdia o atrativo. Inc-luíra-a demais na sua, nos últimos meses.

- Eu voltarei - exclamou, desesperado. - Não, não poderei renunciar, nunca... nunca... E a ela que eu quero... Não posso morrer sem possuí-la... Se ela não era para mim, por que então cruzou o meu caminho?...

E repetia consigo que sua carne tinha o sabor das frutas maduras, doces e saborosas, e que ela nutria o ser inteiro. Recordava o tempo todo menos o instante em que lhe violara a boca, e de que se envergonhava, do que o momento em que recobrara consciência com a cabeça sobre os joelhos dela, contra o seu seio de curvas maternais. Mais ainda do que gestos de consentimento, a atenção apiedada que ela lhe testemunhara transtornava-o, enfraquecia-o e exaltava-o alternadamente.

Revia-lhe o olhar modificado, meigo e profundo. Uma indulgência por ele naquele olhar de que ele se sentia indigno, e que lhe fizera bem, e sua voz cativante: "Então, vamos, o que está acontecendo?... Você não está em seu estado normal, Sr. de Pont-Briand..."

Ora, ele sabia que-era verdade. Dera-se conta no momento em que ela o fitara com aqueles seus olhos maravilhosos, mas que pareciam ler para além dele e souberam pressentir algo de anormal em redor dele. Ele entendera que era vítima de uma vontade assustadora, que se lhe colava à pele e de que, apenas com a própria força, ele não poderia desembaraçar-se. Aliás, o mal fixado antecipadamente se cumprira. Ele executara seu papel, certamente, mas não alcançara o objetivo, e agora seria rejeitado e abandonado por todos. Partira cambaleando, a pancada na cabeça o libertara por um instante da obsessão de seus pensamentos, mas logo o efeito se dissipara e, escoltado pelo seus fantasmas habituais, ele continuara o trajeto.

De Angélica conservava uma impressão mais do que uma visão, como a marcha de um elfo a seu lado, mas que cessara de ser inteiramente sexual para se transformar numa presença mais amical, mais etérea e mais condoída pela sua angústia. Às vezes dirigia-se a ela, a meia voz:

-        Você, Angélica... Talvez pudesse salvar-me daquele que me dirige e me sujeita. Talvez pudesse ajudar-me a rechaçá-lo... Não, infelizmente é impossível! Ele é mais forte do que você... Possui o espírito da Força... Não podemos fazer rfada, não é? Ele é mais forte do que todos!

Por vezes imaginava perceber ás pregas do vestido de Angélica por entre as ramagens azuladas das árvores. Mas era sempre uma forma fluida e imprecisa. Em compensação, o olhar que via nitidamente não era o da mulher que amava. Era um olhar azul, meigo e sorridente, mas masculino e implacável. A voz que ouvia era quente, persuasiva: "A rrtulher será para você../' Pont-Briand rompia numa gargalhada estridente que repercutia pela floresta petrificada pelo gelo ou pelos yales de curvas pálidas, e o huroniano que o seguia lançava-Jhe uma olhada oblíqua. O tenente falava sozinho a mera voz,.'dando risadinhas.

-        Não, a mulher jamais será para mim, meu padre... e você sabia disso antes de me enviar, você que sabe tudo... Meu padre!

Mas valia a.pena tentar, nao é? E também era o meio de atingir aquele que.você queria eliminar! O meio de atingir Peyrac no coração!

Dirigia-se ao olhar azul:

-        Por que você, padre?" E-por qué eu?

Continuava a resmungar, avançando na marcha pesada e cadenciada de seus pés calçados em raquetes.

Havia outro medo que continuava a espreitá-lo ao longo daquela jornada insensata. Raciocinando, poderia concluir que Peyrac não o perseguiria, pois não ousaria lançar-se através do país na quela estação do ano: era preciso ter perambulado muito por ali,

como Pont-Briand fizera, para atrever-se a isso. Mas algo o persuadia de que o Conde de Peyrac era capaz de tudo, e via-o, magicamente aliado aos elementos, grande forma negra passando rápido, ali onde o homem comum se debate, destruído e perdido antecipadamente. 

Como pudera ser louco, estar tão desnorteado para ousar desafiar tal homem? Realmente era preciso que tivesse perdido o juízo...

E agora chegara aos confins do Maine e contemplava a região desolada do Mégantic. Ainda precisaria de uma ou duas longas semanas para chegar ao forte, à segurança, aos seus!... Mas, no alívio que sentia por haver vencido essa etapa, reconhecia implicitamente que todas as terras que se estendiam atrás dele, ao sul dos Apalaches, já pertenciam àquele que dissera: "Farei do Mai-ne o meu reino". Reconhecia que atingira as fronteiras dos territórios do Conde de Peyrac. Já aceitava que aquelas terras disputadas estivessem sob a influência do conquistador que lhes forçara a virgindade, penetrando axavalo até o coração das florestas e dos lagos selvagens, e estabelecendo-se ali para impor sua lei e a prosperidade. O forte de Wapassu, encravado lá longe entre rochas negras, era como um navio de guerra que ali tivesse lançado âncora. A âncora estava bem firme. Não a soltariam com facilidade. Aquele que a lançara não estava lá por acaso, mas sabia o que fazia e o que queria. Isso era tão verdadeiro, que ao longo de todo o trajeto Pont-Briand não pudera afastar o sentimento de que ao chegar ao Mégantic escaparia a Peyrac, pois estaria fora de suas fronteiras. Agora estava lá.

Mais alguns passos e afundaria no nevoeiro cintilante da planície, perder-se-ia entre as sombras brancas, dissimular-se-ia, desapareceria pouco a pouco aos olhares de Peyrac, que já não poderia alcançá-lo. Fugindo sempre, atingiria o Saint-Laurent, encontraria um forte de madeira, depois alguns povoados de pedra em torno de um campanário pontudo, fazenda sólida onde entraria para comer junto à lareira monumental uma porção gargantuesca de porco salgado, regado a vinho quente. Ali, principalmente, ele estaria protegido, no Canadá...

Mas teria perdido o mais precioso de si mesmo, seu sonho pendurado, desfeito, nos galhos pontudos das árvores mortas, retalhado ao longo da pista branca...

Sacudiu-se, limpou-se encolerizado, espalhando neve à sua volta, como um alce cujo peso o tivesse feito tombar numa vala e da qual não conseguisse sair. Agarrava-se à visão prosaica de uma escudela de olmo cheia de sopa de ervilha e toucinho, sobre os joelhos, perto da grande lareira. Mas essa cena tinha um gosto de fel depois das felicidades entrevistas. Pois também em Wapassu ele sentara perto do fogo, diante de uma sopa quente e reconfortante, uma taça de álcool na mão, mas então ela estava ali, a alguns passos, inclinada sobre o clarão do fogo, com seus braços robustos e dourados, e ele a contemplava; com a presença dela, o fogo tinha mais brilho, os alimentos, mais sabor, e ele experimentara um instante de felicidade total.

Pesadamente, desceu a colina, deserta e glacial. Cada passo o arrancava um pouco a esperanças impossíveis, e sem ter a força de renunciar nem a de assumir suas consequências, ele se sentia o mais infeliz dos homens. Seguindo pelo vale que desembocava nas margens do lago, o índio toçou-lhe o braço e mostrou-lhe algo acima deles^ um pouco antes da planície. Ele viu formas escuras movendo-se, e a súbita animação da paisagem até então fixa numa paralisia gelada fê-lo estremecer. Havia muito tempo que nada se movia à sua volta. O ritmo estava rompido e imediatamente a coisa pareceu inimiga.

-        Ursos? - murmurou.

Quase no mesmo instante deu de ombros, chamando-se de imbecil. No inverno os ursos dormem. E dos animais que não hibernam, não encontrap nenhum ao longo da viagem. Em certos períodos dos meses frios de inverno, o lobo, a raposa e o alce ca-ribu se tornam tão furtivos que parecem haver desaparecido para sempre, como se quisessem deixar ao inverno todo o seu poder.

-        índios?

Mas o que fariamos índios naquelas paragens, nessa época do ano? Também eles-se entocam em sua cabanas, roendo suas provisões. Ainda não chegara o momento em que a fome os lança pelas pistas geladas para perseguir a qualquer preço o cervo no cio e salvar a própria existência miserável com a captura de uma caça rara e emagrecida.

-        Mas são homens,- disse Pont-Briand, alto.

Brancos!... Exploradores! E de chofre fechou os olhos e se imobilizou, ouvindo ressoar dentro dele a batida surda do destino. Já sabia quem chegava.

Um profundo suspiro logo lhe escapou dos lábios, aureolando-o de um vapor esbranquiçado que se estirou longamente no ar frio, como se sua alma imaterial já o deixasse.

Um arrepio de medo percorreu-o da cabeça aos pés. Depois ele se recompôs. A. que não estava ele reduzido, um guerreiro que só conhecera batalhas e mortes em seu caminho!

Ergueu-se em toda a sua altura e, impassível, com um vago sorriso nos lábios, olhou o Conde de Peyrac e o filho, que vinham em sua direção.

CAPÍTULO XXIII

Revelações desesperadas de Pont-Briand

Vendo-os avançar, escuros e insólitos no valezinho forrado de branco, os olhos de Pont-Briand fixavam-se menos na silhueta do Conde de Peyrac do que na do rapaz que o seguia.

Em Wapassu prestara pouca atenção nele. Notava agora que o adolescente era a réplica exata do homem que o gerara, mas nos traços, na expressão sobretudo, talvez no sorriso, tinha algo que evocava irresistivelmente o rosto de Angélica. Vendo no homenzinho a conjunção de dois seres, com a confissão ofuscante de que a mulher com que ele alimentara seus sonhos pertencia a outro, que estava ligada a esse outro e àquele menino por vínculos cuja força ele, Pont-Briand, jamais poderia adivinhar, o tenente mediu a própria solidão. O garoto ainda não tinha a altura do pai, mas já possuía nos movimentos um poder oculto e displicente que inspirava desconfiança, e no rosto liso, nos lábios frescos e vermelhos que brilhavam por entre as peles dos agasalhos, o reflexo de uma vontade precisa, raciocinada, que não se deixava emocionar facilmente.

Os dois vinham para matá-lo. Iam matá-lo.

Pont-Briand pensou no filho que jamais teria, que talvez tivera, mas nunca se preocupara com essas possíveis paternidades. Um ciúme moroso despertou nele e ajudou-o a odiar o homem que se aproximava, que vinha tomar-lhe satisfações e que possuía tudo o que ele não tinha. Uma mulher, um filho. O tenente esteve a ponto de levar o mosquete ao ombro e atirar imediatamente, matar a ambos. Depois desprezou a si mesmo pelo pensamento pouco digno de um gentil-homem. De resto, estava convencido de que o conde, que o vigiava, seria mais rápido do que ele no tiro. Sua reputação de atirador temível chegara até o Canadá.

"Por que esse Peyrac não ficou no mar?", pensou Pont-Briand, que teria dado toda a sua fortuna para não precisar enfrentá-lo. Desde o primeiro dia a personalidade do-conde lhe causara um grande mal-estar. Odiara o Sr. de Loménie por haver simpatizado tão rapidamente com o inquietante desconhecido. Tefla pressentido que morreria pela mão dele? Se Pont-Briand tivesse querido olhar no fundo de si mesmo, notaria que sofria principalmente por se descobrir tão completamente inferior àquele homem.

Observaram-se em silêncio, imóveis', a alguns passos um do outro. Pont-Briand não manifestava surpresa alguma, não fazia pergunta alguma. Teria julgado desprezível entregar-se a tal comédia.

-        Senhor -disse Pêyrac -, sabe por que estou aqui?

Gomo o tenente permanecesse impassível:

-        Você tentou roubar-rne minha mulher, e venho pedir-lhe uma reparação por isso. Sou Q ofendido. Escolho as armas.

O outro indagoura contragosto:

— Que armas?

— A espada. Você é gentil-hornem...

— Não-.-usò espada.

— Aqui- tem uma.

Atirou-lhe a que tomara emprestado a Porguani e desembainhou a sua.

-        O terreno me parece poueo propício - continuou, correndo os olhos à volta. - Neste local a neve é mole e profunda. Depois de tirarmos as raquetes, não-poderemos nos" aguentar. Vamos, então, para a beira do lago, onde o solo está endurecido. Durante o combate, meu filho vigiará o índio que o acompanha, a fim de que este, ignorando nosso código de honra, não tente socorrê-lo atacando-me traiçoeiramente. Previna-o, pois ao menor gesto dele, meu filho o abaterá sem. piedade.

Junto ao lago encontraram uma crosta de neve vitrificada e que estalava sob as botas. Imitando o conde, Pont-Briand depôs a mochila, o mosquete, o chifre de pólvora e as pistolas, desafivelou o largo cinturão e tirou o casaco forrado de-pele. Tirou também o colete de couro sem mangas, que usava por cima de uma camisa de lã. E por último tirou a camisa. O frio mordeu-lhe a pele nua. Peyrac o imitara. Pont-Briand foi colocar-se diante dele.

Olhou o sol que descia no horizonte e mergulhava nas brumas, um sol róseo e algodoado, imenso, e que de repente espalhava clarões de aurora sobre a brancura deslavada da paisagem. Sombras de que não se havia suspeitado durante o dia alongavam-se ao pé das árvores, azuis e delgadas, com a vivacidade de répteis. Caía a noite. Pont-Briand tinha uma expressão trágica nos olhos. A cena que vivia parecia-lhe irreal. Tinha vontade de escapar-lhe... Era verdade que ia morrer?... A raiva que o dominou devolveu-lhe a confiança. Ele não valia nada na espada, que seja! Sabia disso. Mas pelo menos a neve seria sua cúmplice. Peyrac não estava acostumado a bater-se na neve. O Mégantic hão trairia um canadense na Nova França. Pont-Briand se retesou e gracejou:

— Decididamente são um bocado severos em sua família... A Sra. de Peyrac já me atacou com um atiçador.

— Um atiçador! É mesmo? - disse Peyrac, que pareceu encantado. - Ah, como ela é divertida!

— Ria, ria! - exclamou Pont-Briand, amargo. - Um dia rirá menos, pois ele o separará dela, garanto.

— "Ele"? Quem? De quem está querendo falar? - interrogou vivamente o conde, levantando a guarda e franzindo o cenho.

— Sabe tão bem quanto eu!

— Mas gostaria de ouvi-lo pronunciar um nome. Fale!

O tenente olhou o cenário petrificado à sua volta como se espíritos invisíveis pudessem ouvi-lo.

— Não - fez ele, soprando com força -, não, não direi nada. Ele é poderoso. Poderia atingir-me.

— Enquanto isso sou eu quem vai atingi-lo, e com certeza.

— Que me importa! Não direi nada, não o trairei. Não quero que ele me abandone.

Soltou uma espécie de soluço.

-        Quero que ele reze por mim quando eu estiver no purgatório!

O desespero invadia-o de novo. Via-se só, nu e gelado naquela paisagem que antecipava o limbo por onde em breve sua alma erraria.

-        Foi ele quem me impeliu - gritou. - Sem ele eu jamais teria cometido essa falta. Nunca me lançaria, de cabeça baixa, contra sua espada... Mas ainda assim ele triunfará. Ele é mais forte... Suas armas são do outro mundo... Ele o abaterá... Há de separá-lo da mulher que ama. Ele não pode suportar o amor... Há de separá-lo dela... Você verá!

Começara gritando, depois sua voz enfraqueceu, tornou-se rouca, enquanto seus olhos dilatados brilhavam com um clarão fixo.

Baixinho, repetiu várias vezes, com uma intensidade lancinante:

— Você verá! Você verá...

Depois beijou as medalhas que levava ao pescoço e se pos em guarda.

CAPÍTULO XXIV

Angélica chora a ausência do marido

A ausência de Joffrey de Peyrac e Florimond já durava demasiado. A ansiedade de Angélica transformara-se em angústia louca. Ela se esforçava por permanecer calma, mas seus traços se retesavam. Passava as noites em claro. Se por acaso adormecia, despertava bruscamente, sobressaltada, à espreita de ruídos, de estalidos do gelo em que esperava reconhecer a aproximação de um passo, vozes cochichando. Mas os silvos do vento anunciavam apenas o desencadear de uma tempestade cujos turbilhões desnorteariam e tragariam para sempre seu marido e seu filho mais velho. De dia não conseguia resistir ao impulso de ir vinte vezes até a porta ou descer até o lago, observar longamente a ribanceira à espera do milagre de duas silhuetas longínquas emergindo da floresta. -No final, não aguentou mais: seus nervos cederam.

Foi numa noite em que um céu violáceo descera sobre a natureza, devorando aos poucos toda a claridade. Às três da tarde já estava escuro. Soprava um vento enlouquecido. Os que quiseram sair para buscar no pátio uma ferramenta ou fechar uma barreira tinham sido derrubados pelo vento e tiveram que retornar ao abrigo de rastos. Contra a vontade, e apesar das portas bem fechadas, todos ouviam os gritos furiosos da noite de inverno, e a consciência da fragilidade humana infiltrava-se nos corações. As crianças foram para a cama cedo e a ceia foi servida antes do habitual.

Os homens comiam em silêncio, sombrios e inquietos.

Angélica sentia que não aguentava mais. Sua resistência ruía. Pôs-se a ir e vir pela sala, torcendo as mãos, levando-as à boca

para reter os queixumes, cruzando-as convulsivamente, enquanto murmurava: - Meu Deus! Meu Deus!... - Ao cabo de um instante os homens levantaram a cabeça e tomaram consciência de sua agitação, depois, de seu desespero. Primeiro com espanto, depois com susto e emoção: ela soubera tão bem colocar-se acima deles, tornar-se a castelã de quempodiam esperar socorro, auxílio ou conselho, e até admoestações, que descobri-la fraca e confessando o próprio medo os transtornava.

-        Mãe, mãe querida! - murmurou Cantor. E dando um salto de sua cadeira, precipitou-se para ela, pãrá abraçá-la.

Todos então se levantaram, rodeando-a, cobrindo-a de protestos bruscos mas bem-intencionados.

-        Mas por que se atormenta, senhora condessa?... Mas o que quer que lhes aconteça, afinal?... Não é razoável afligir-se por tão pouco!... Aqueles dois são resistentes, creia são exploradores e tanto!... Já vi o senhor conde em ação!... Mesmo na tempestade, num bom abrigo de easca de árvore, não se teme nada!... Acho que há uma aldeia de àlgonquinos no trajeto...

Não se precisou o trajeto. Sabia-se desde o início que o conde partira para o norte, perseguindo um homem que a ofendera. Era a lei... Havia muitos ali a quem os modos do Tenente de Pont-Briand deram vontade de quebrar-lhe a cara... Angélica sentiu, no entanto, que áenhum daqueles homens rústicos duvidava dela ou da maneira como acolhera as atenções do francês. Na pequena comunidade, não se podia dissimular nada. Se a cena com Pont-Briand não tivera testemunhas, nem por isso cada um deixava de adivinhar o essencial. Pont-Briand lhe fizera uma declaração, ela o pusera no lugar, e o conde, ao ser informado da coisa partira para matá-lo. Tudo isso seguia a norma. Mas agora havia aquela mulher angustiada que torcia as mãos e olhava um a um como a pedir reconforto. E eles se sentiam oprimidos e obscuramente envolvidos no ato inqualificável daquele canadense que ousara o que eles não se permitiam sequer em pensamento.

— Ele tinha que ir, senhora - disse Tiago Vignot -, mas vai ver, ele voltará.

— Ele voltará! Ele voltará!... -

Repetiam essas palavras como uma encarnação benéfica.

Angélica sentiu o calor dos sentimentos deles e de repente se pôs a soluçar contra o ombro do velho Macollet, que estava ali, bem naquela noite. Não estava sempre ali quando se precisava dele, como uma velha árvore de raízes imbatíveis, resistente a todas as tempestades? Ele a amparou solidamente contra si dizendo:

-        Isso! Isso, chore! Faz bem.

Mas os outros estavam absolutamente aterrados. Curiosamente, foi o ferreiro auvergnat, que ficara à distância, com ar feroz, que encontrou a melhor frase para acalmá-la:

-        O que pode recear? Ele está com Florimond!

Angélica ergueu a cabeça e olhou-o, esperançosa.

— E verdade! Tem razão, Clóvis! Ele está com Florimond! E Florimond não se perde nunca, não é?

— Nunca! Nós até 'dizemos que esse menino deve ter engolido uma bússola quando pequeno.

E tranqúilizaram-se ao vê-la esboçar, enxugando os olhos, um pálido sorriso. Amontoaram-se novamente em torno dela, com palavras simples, cordiais. O solene Dom Alvarez mostrou-lhe o terço negro, fazendo-a entender que orava ardente e diariamente pelo retorno do Conde de Peyrac e seu filho.

Diante de tanta amizade sincera e franca, Angélica começou a chorar outra vez, sem conseguir parar.

A Sra. Jonas tomou-a pelos ombros:

-        Venha comigo, meu anjo, você não pode mais! Tem que deitar e repousar, caso contrário parecerá um espectro quando eles voltarem em breve, todos dispostos e faceiros.

Angélica jamais se dera conta de como a Sra. Jonas podia ser bondosa. A brava mulher amparou-a até o quarto, ajudou-a a despir-se, colocou-a na cama, depois de enfiar entre os lençóis duas pedras bem quentes, e uma infusão calmante, falando o tempo todo.

Pouco a pouco Angélica se acalmou. O fato de compartilhar de suas apreensões aliviara-lhe a inquietação, e a Sra. Jonas não lhe dava tempo de retornar aos maus pensamentos.

— A resistência dos homens é coisa que não se pode imaginar... Nós, mulheres, de longe, fazemos um bicho-de-sete-cabeças... Pense, o frio, a neve, a distância, eles os enfrentam tranquilamente, contanto que não dure demais. Têm a pele dura, os homens, o sangue quente e a cabeça fria. Já viu o senhor conde manifestar um único sinal de cansaço ou temor?... Eu não!...

— Eu sei - disse Angélica, aspirando a infusão e começando a bebê-la aos golinhos -, mas ele pode se perder, principalmente com esse blizzard.

— Perder-se! Eu ficaria muito surpresa se aqueles dois se perdessem!... O Sr. Rescator não e o melhor piloto de todos os oceanos?... Temos uma ideiazinha sobre isso, não é? O deserto não é muito diferente do mar, e as estrelas estão sempre aí para quem sabe ler no firmamento. O Sr. Porguani me disse que o senhor conde levou o sextante.

— Ah, é mesmo? - exclamou Angélica, reconfortada pela notícia.

Depois, novamente anuviada:

— Mas há a tempestade, a noite. Essa neve infernal, que apaga as pistas e esconde as estrelas.

— Eles devem ter-se abrigado em buracos, talvez numa cabana de índio, à espera do fim .da tormenta. Durante o dia eles encontrarão o caminho de novo. O senhor eonde não é um sábio a troco de nada, e Florimond não se perde nunca'.

— Sim, é verdade, hl Florímond - repetiu Angélica, esboçando um sorriso.

Fechou os olhos; a Sra. Jorias tombu-lhe a tigela das mãos, afofou os travesseiros e tfançou-lhe os cabelos para que ela se sentisse mais à vontade. 

— Como "agradecer-lhe? - murmurou a jovem, que sentia um sono benfazejo envolvê-la.

— E bem justo que se cuide um pouco de sua pessoa, meu anjo, você que nos carrega a todos no colo - disse a corajosa roche-lesa, emocionada.

Angélica descobria naquela noite o lugar que adquirira no coração da gente de Wapassu.

Em troca de tudo o que ela lhes dispensara, como coragem, auxílio, paciência, bom humor, alegria, eles a tomavam a cargo. Ela era um deles.

— Os homens disseram que se o senhor conde não chegar amanhã, vão organizar uma expedição para ir ao encontro dele - disse ainda a Sra. Jonas.

— Nem se sabe em que direção ele partiu...

— Mas desconfia-se. Ele partiu para o norte, em perseguição àquele exibido do Pont-Briand...    

Angélica reabriu os olhos e mirou fixamente o rosto rubicundo da brava senhora, depois afundou o rosto nas mãos, prostrada.

-        A culpa é minha - gemeu. - O que foi que eu fiz ao céu para que um homem sensato se considere autorizado a vir insultar meu esposo sob seu próprio teto? Sra. Jonas, seja sincera, suplico-lhe! Diga-me, há no meu comportamento alguma coisa que possa ter encorajado ainda que um mínimo o Tenente de Pont-Briand a me faltar com o respeito?

— Não, e não comece a se culpar... Conheço-a bem, minha amiga, vi-a em La Rochelle e no navio, com ou sem marido. Lá e em outros lugares sempre houve homens para admitir que você pudesse ser bem-comportada e outros para não admitir. A culpa não é sua se você é bela demais! Só que isso cria mal-entendidos.

— Ah, esse meu marido será sempre o mesmo! - exclamou Angélica. - Que lhe importam os meus tormentos! Segue seu impulso, seu código de honra, vai embora sem sequer me prevenir... e se ele...

— Você não poderia amá-lo tanto, caso ele fosse diferente. Com um homem mais sossegado, você seria mais tranqiiila, é verdade, mas menos apaixonada, creia-me. Seu quinhão é belo!... Veja, um tesouro atrai inveja. Não deve surpreender-se se tentam destruir o que possui, e agora chega de conversa. Esta noite fico perto de você. Se acordar e não conseguir conciliar o sono de novo, bateremos um papinho.

Antes de adormecer, elas ouviram o vento silvar, as vigas ranger, árvores caindo com estalidos dilacerantes, grandes bramidos que pareciam abafar-se de súbito, como sob a mordaça sufocante das rajadas de neve poeirenta. Sentia-se a neve ali perto, amontoando-se.

-• Amanhã estaremos soterrados - disse a Sra.. Jonas.

Pegaram no sono afinal, acordaram, falaram um pouco a meia voz, de La Rochelle e das pessoas de Gouldsboro e de coisinhas urgentes a fazer.

— Preciso pedir a Clóvis que nos faça outro ferro de passar - disse a Sra. Jonas -, mas ele tem tão mau caráter!

— Mas não há como ele para fazer desses ferros pesados e leves ao mesmo tempo. Não se precisa soprar as brasas nunca.

A manhã chegou sem ruído. Um mundo esgotado não ousava ganhar vida outra vez. Nos quartos do forte, a claridade era cinzenta, pois a neve obstruía as janelas. Mas assim que se abriu a porta para dentro, não sem dificuldade, apareceu um glorioso dia de inverno, de nácar e ouro. A natureza sorria, no brilho de uma beleza virginal quase excessiva, tão puros eram o brancor da neve, o cetim azul do céu, a lourice do sol, e perfeitas as formas suaves das árvores erguidas à volta como longos círios consumidos.

-        Não se deve tocar, é bonito demais - exclamou Honorina que logo em seguida correu para o tapete branco, para rolar na neve, deliciada.

Os homens se armaram de pás pára desimpedir a entrada. Em certos lugares, do lado onde o vento soprara com mais violência, a neve subia até o telhado. Eles labutaram em meio a nuvens impalpáveis e cristalinas, vapores gelados impalpáveis, debatendo-se naquela invasão suave, e seu hálito-jorrava'em nuvenzinhas translúcidas à superfície da terra coberta.

Angélica, mais sensível à beleza irisada da paisagem do que a tudo o que ela representava de ameaça mortal/decidiu que num dia assim não podia haver luto nem desespero. Eles voltariam!... E serenamente se entregou âo trabalho, esfórçando-se por não soltar a imaginação.

A manhã ia a.meio quando-um grito a chamou para fora. Apontavam na falésia enrjfmesi)locos de neve que se desprendiam.

— Uma avalanche!

— Mas quem está -provocando a avalanche, quem? - berrou Tiago Vignot. - Olhe, senhora. São eles!

Avistaram-se então duas silhuetas humanas na face negra e abrupta da falésia,-descendo lentamente de uma rocha a outra, agarrando-se aos galhos de arbustos e touceiras.

-        São eles!

Os homens davam urras e atiravam para o alto os gorros de pele. Houve uma corrida bastante entravada até o pé da montanha, pois sem raquetes era impossível avançar. Tiveram que renunciar a ir ao encontro dos dois viajantes e o tempo que passou antes que eles aparecessem na orla da floresta pareceu interminável.

Por fim surgiram, próximos, vivos.

Angélica agia como se tivesse perdido o espírito. Entrara no forte, saíra, entrara de. novo. Andava em círculos na sala. Lembrou-se afinal do que fora buscar e pegou o frasco de aguardente, que guardava num baú, trancado à chave, e acorreu outra vez para a soleira.

Joffrey de Peyrac chegava. Seus-olhos cravaram-se nos dela. Exibia um meio sorriso num rosto barbudo que a ela pareceu mais ema-ciado, quase uma careta com as linhas Bescoradas das cicatrizes e os olhos ardentes, escuros, que se detinham nela com uma espécie de febre. Naquele dia, ele a olhava.

Olhava-a indiferente aos que a cercavam, olhava-a como se fosse a única criatura no mundo. E para ela ele surgia como o sol sem o qual ela não poderia sobreviver: só via a ele. Vignot precisou tomar-lhe a garrafa das mãos.

— Beba, senhor conde - disse, servindo uma dose numa taça e estendendo-a ao chefe.

— Boa ideia - disse Peyrac.

Engoliu o álcool de um só trago, caminhou num passo um pouco duro e claudicante até. a lareira, e sentou-se num escabelo.

Angélica então correu até ele e se ajoelhou a seus pés.

Seria mais justo dizer que ela caiu de joelhos diante dele, tão intensa e estranha foi a fraqueza que lhe deu a felicidade naquele instante. A intenção e,ra tirar-lhe as botas, mas quando suas mãos tocaram a dura realidade das musculosas pernas dele sob o tecido endurecido pelo gelo, ela fraquejou de novo. Não sabia se era de alegria, de amor ou de medo ante o pensamento de que um ser tão caro pudesse um dia ser-lhe arrancado, mas seu espírito, como que atingido por uma revelação, perdeu a consciência, para subsistir apenas nele, com ele. Atirou os braços à volta dele, estreitando-lhe os joelhos, contemplando-o com os seus grandes olhos luminosos de onde corriam lágrimas silenciosas, como se nunca se cansasse de olhar aquele rosto de homem cujas feições excepcionais jamais deixaram de perseguir sua vida desde.o dia em que o vira pela primeira vez.

E também ele, inclinando-se um pouco, olhou-a intensamente.

Foi muito rápida a troca de olhares. Mas o suficiente para que as testemunhas da cena retivessem uma impressão inesquecível. Nenhum deles, porém, poderia dizer o que os transtornou mais naquele momento: a adoração que a atitude de Angélica ajoelhada revelava ou a paixão calorosa que iluminou o rosto imperioso do conde, daquele a quem estavam habituados a considerar um homem inacessível às fraquezas humanas, quase invulnerável.

Um sentimento de contentamento e uma vaga nostalgia contraíram-lhes o coração. Um pudor repentino fê-los baixar os olhos. Cada um deles, com suas recordações tristes, seus sonhos e desencantos, via naquele instante, como num relâmpago que irrompe de uma nuvem e ilumina dois seres estendidos um para o outro, o próprio rosto do Amor.

O Conde de Peyrac pousou suavemente as duas mãos sobre os ombros de Angélica, para trazê-la de volta a si, e voltou-se para seus homens, imóveis.

-        Eu os saúdo, meus amigos - disse com sua voz rouca que o cansaço abafava -, estou contente por revê-los.

-        Nós também, senhor conde - responderam em coro.

Ainda tinham o espírito enevoado, e o tempo que acabava de passar contava-se em dobro. Fez-se silêncio de novo. Elvira de repente enxugou uma lágrima e apertou a mão de Malaprade, a seu lado.

-        E eu! E eu! - gritou Florimond- Estou semimorto e ninguém se ocupa de mim.        

Todos se voltaram e caíram na risada.

Coberto de neve, com franjas de gelo no gorro, Florimond estava apoiado na porta. O conde lançou ao filho um olhar de afètuosa cumplicidade.

— Ajudem-no. Ele não aguenta mais!

— Não o acompanho mais -resmungou Florimond -, não o acompanho mais.

O pobre garoto estava literalmente gelado e sem forças. Cantor e Tiago Vighbt pegarám-no e levaram-no para o leito. Tiraram-lhe a roupa e as botas. Angélica correu para examiná-lo.

-        Pobre criaturinha! - disse, beijando-o.

Friccionou-o da cabeça aos pés com aguardente, depois sentou-se à cabeceira para massagear-lhe longamente, com suas belas mãos, as enrijecidas pernas.

Ele adormeceu, em paz como uma criança, enquanto a Sra. Jonas se incumbia de preparar um grogue para todos.

CAPÍTULO XXV

"Matarei todos os que tentarem tirá-la de mim"

-Assim, você o matou? - indagou Angélica quando se viu sozinha com o marido no reduto que lhes servia de quarto. - Você o matou, não foi? Pôs sua vida em risco por esse loucura? Porque um homem me cortejou?... Diga-me, isso é razoável, Sr. de Peyrac?

O conde se atirara atravessado no leito, onde estendia os membros cansados. Com um olhar irónico, de alto a baixo, enfrentava a cólera de Angélica.

— Pont-Briand era alguém lá de cima, do norte - prosseguiu ela. - Agora o que é que vão fazer no Canadá, ao saberem disso? Vão tentar vingar-se, denunciar os tratados...

— Faz muito tempo que os tratados foram denunciados - disse Peyrac. - A tinta mal secara e já nos condenavam à morte e despachavam os patsuiketts.

Soergueu-se e segurou-a pelo cabelo, sem brutalidade mas para que ela o encarasse.

— Ouça-me bem, meu amor. Há uma coisa que não está prestes a morrer em mim. E a ardente necessidade que tenho de você, e é natural que eu vele para que pertença apenas a mim, e inteira. Chame a isso de ciúme, se quiser, que importa! Nem você nem eu atingimos a idade em que a carne se acalma, longe disso. Nunca a deixarei por conta apenas de suas forças e das dos tentadores...

— Você pôde temer que eu fosse seduzida por um indivíduo como aquele?

— Não. Mas pressinto que poderia haver outros mais ousados do que ele. A fraqueza de uns é boa conselheira de outros. Saiba

que defender a própria honra nestes ermos selvagens é questão de vida ou morte!... Ora, você é a minha vida!... Matarei todos os que tentarem tirá-la de mim... Pronto! Isso precisava ser dito... E como ela se inclinou sobre ele, o conde puxou-a bruscamente para si e beijou-lhe a boca, cóm força, cpm seus lábios secos e feridos pelo gelo. 

Florimond fazia confidências à Cantor.

— Achei que morreria. Nosso pai tem. tanto "fôlego na luta quanto um pele-vermelha ou um canadense.

— A espada ou pistola?

— Espada. Foi magnífico. Meu pai conhece todas as manhas, e caramba que é preciso ser malabarista para o conseguir!... O outro se defendeu bem. Era medíocre, mas ágil- e resistente.

— E... e ele-morreu? -

— Claro que morreu. Aurn imbecil como ele não se perdoa! Em plena testa!

Florimond se atirou à cama, com os olhos brilhando.

-        Ah, a espada! Essa é unia arma de gentil-homem. Aqui, neste país de joões-ninguém, já não se sabe o que é a espada. Batem-

se com cassetetes, cõm machados, como os índios, ou a mosquete, como os mercenários. Há que se lembrar da espada. É o dardo das almas nobres!... Ah, ser corneado um dia e poder oferecer-me um belo duelo!...        

CAPÍTULO XXVI

O retorno de Nicolau Perrot - Preparativos para a noite da Epifania

Recomposto de suas fadigas, um dia Florimond subiu ao sótão e escolheu com grande mistério uma abóbora gorducha, cor do sol. Com a faca bem afiada, talhou os olhos, um nariz, uma boca largamente fendida numa curva hílare.

Fazendo uma abertura no topo, esvaziou o fruto de sua polpa e instalou uma vela no interior. Depois escondeu a obra num canto. O Natal se aproximava.

O costume ditava que houvesse muita alegria com a chegada dos Reis Magos, na Epifania, que se fizesse muita algazarra depois de coroar o feliz soberano de uma noite e que, imitando-o, as pessoas trocassem alguns presentes.

Houve, então, uma grande rivalidade de engenhosidade. Elvira foi até a orla da mata colher galhos de azevinho guarnecidos de bolas vermelhas. Otávio Malaprade acompanhou-a e ajudou-a. Ajudou-a também a instalá-los nos três grandes almofarizes de ferro, emprestados da oficina para a ocasião. O efeito foi belíssimo, e quando eles recuaram para julgar o conjunto, admirando o brilho da folhagem envernizada com suas pérolas vermelhas luzidias, nos grandes vasos escuros colocados às duas extremidades da mesa, entreolharam-se e sorriram, dominados por uma alegria serena e suave.

Toda a alegria e a paz dos verdadeiros dias de Natal pareciam envolvê-los, e eles se davam as mãos timidamente.

Aliás, havia algo de diferente desde o retorno do conde de sua expedição ao norte, desde, exatamente, que viram Angélica ajoelhar-se diante dele e abraçá-lo com um olhar que eles jamais esqueceriam.

- Se a gente pudesse amar assim, valeria a pena casar... Sim, valeria a pena - dissera um pouco mais tarde o velho Macollet, balançando a cabeça. E todos em redor dele haviam balançado a cabeça também, sugando os cachimbos. Tinham descoberto que um grande amor podia existir,

Não era para eles, evidentemente, os banidos, os azarados; a eles isso não aconteceria nunca.

Mas existia...

Embelezava a vida, fazia sonhar...

Eles também sentiam que já não dependiam apenas de um único chefe, mas da tranquilizadora autoridade de um casal.

O sempiterno cozido de milho e carne defumada era alegremente consumido" em meio a graçolas durante refeições agradáveis em que as pessoas se mantinham aquecidas com uma prosa decente. Eram todos bons amigos, bons companheiros, que se entendiam. E viesse alguém provocar disputas!

Preparavam-se banquetes com todo o sigilo. Primeiro haveria as mil e uma saborosas variedades da carne de porco, finalmente imolado.

Haviam comido logo os pés, a cabeça e as tripas temperados de várias maneiras, mas os pedaços mais delicados tinham sido reservados para a noite de festa. Nesse ínterim, Nicolau Perrot retornara do sul, e sua boa cara amistosa era, sozinha, um presente inestimável. Ele falava dó pequeno entreposto no Kennebec, onde fizera suas aquisições, mantido por um holandês taciturno e intratável, sozinho com dois empregados ingleses em sua ilha no meio do rio, cinzento como uma serpente e carregado de blocos de gelo.

Trouxe açúcar, sal, farinha de trigo, óleo de girassol e de foca, ameixas secas, ervilhas, abóboras secas, cobertas, rolos de linho e de lã para as roupas. Tudo isso num trenó que empurrara por léguas com seu índio panis.

Angélica encerrou os preciosos géneros num baú que Joffrey de Peyrac mandara fazer para seu uso, com chave e ferrolho, e que estava colocado no quarto do casah.

As vezes, à noite, abria o baú, para verificar se continuava tudo ali.

A Sra. Jonas quis cozer um pernil em massa. Discutiu-se para saber se uma parte da pequena reserva de farinha de trigo que Angélica escondera seria afetada com isso ou se seria melhor deixá-la para o bolo tradicional.

Optou-se pela fabricação do bolo, onde se esconderia a fava para o sorteio ritual da realeza.

O pernil, rosado e perfumado com grãos de zimbro, bastaria.

Angélica trabalhou pessoalmente na massa do bolo, de mangas arregaçadas sobre os braços vigorosos, com um pouco de sal, levedo de cerveja e gordura de porco.

Nunca, desde a infância, ela participara com tanta alegria e divertimento dos preparativos de uma festa.

A massa, matéria amistosa e familiar desde a Taberna da Máscara Vermelha, era dócil sob seus dedos. Os fantasmas do poeta Crotté, de mestre Bourjus, de Flipot e de Linot rodopiavam à volta dela.

Ali nada a atingiria mais. Ela estava protegida contra tudo. Tudo... Longe, longe, muito longe na floresta.

Ela parava para espreitar, com um sorriso, o silêncio profundo da neve que tombava sobre eles.

E era a realização de um sonho muito antigo que ela tivera com frequência: preparar bolos rodeada de crianças com o nariz levantado para ela.

As crianças observavam-na, movendo-se em todos os sentidos, de olhos brilhantes. Gritavam: "Bravo" cada vez que, com um pouco mais de vigor, o grande rolo de madeira manejado pelos dedos de Angélica alongava um pouco mais sobre a mesa polida o disco pálido de massa, cada vez mais leve, cada vez mais delgada, e exalando um sutil aroma de pão, tépido e inebriante.

Angélica deixou que as crianças ficassem perto dela para o preparo. Foi Honorina quem desenhou, com a língua de fora, inúmeros losangos e quadriláteros sobre o grande disco macio, e Bartolomeu o pincelou com óleo de girassol, pois Angélica notara que o óleo extraído das sementes negras da grande flor produzia, no fogo, um belo verniz dourado, no mínimo tão agradável quanto o obtido pelas pinceladas com gema de ovo, coisa que não tinham ali. Finalmente Tomás enfiou a fava no bolo com seu dedo inocente. Sempre seguida de toda a sua escolta infantil, a que se uniram sem falsa vergonha Florimond e Cantor, Angélica enfiou o bolo na cavidade feita com essa finalidade entre os dois fogos da grande chaminé. Esse forno era o melhor que ela já utilizara. Dali se obtinham excelentes gratinados, sem nenhum risco de queimar nada. As crianças foram encarregadas de vigiar o fogo, aspirando os vapores que não tardaram a escapar pelos interstícios da porta de ferro.

Mas ela expulsou todo mundo na hora de tirar o bolo do forno: a surpresa da noite da Epifania devia permanecer intacta.

A criançada se refugiou com gritos "de prazer e impaciência na penumbra da adega, sob a rocha, onde naquele dia Tiago Vignot fazia cerveja.    

-        Não podemos ver o bolo, Tiago... Adivinhe como vai ser tudo bonito!... O bolo é grande como um sol...

Sim, ficou grande e brilhante e tostado como um sol, com reflexos de ouro queimado sublinhando o mosaico inflado dos quadriláteros.

Numa palavra, uma obra-prima!

Angélica colocou-o no alto de uma pirâmide composta de uma grelha com pés", enfeitada de azevinho e três colocíntidas de cores suntuosas:verde-ouro, vermelho-fogo, limão-claro.

O enfeite compunha um centro de mesa que talvez não tivesse a riqueza daqueles que a Sra. du Plessis-Bellière preparava outrora por entre baixelas corusoantes, quando recebia em sua Mansão do Beautreillis, mas tinha muita majestade.

A mesa Toi coberta com uma toalha que tocava o chão. Requisitaram-se para a circunstância uns panos do forte, que foram tão bem passados que- já não se -via a marca das dobras.

Durante as últimas horas que precederam o sarau solene, todo mundo foi despachado para a oficina, para os celeiros, até para a estrebaria.

Elói MacoUet convidou as crianças para ir a sua cabana, a fim de ajudá-las a ter paciência. Isso redobrou a alegria delas, pois o antro de MacoUet era um local misterioso, que elas ardiam por conhecer e onde nunca tinham tido o direito de penetrar.

Quando, chamadas mais tarde pelo som da trompa de marfim e das sinetas agitadas por Florimond e Cantor, elas se precipitaram, correndo, escorregando e caindo na neve gelada, pararam na soleira, maravilhadas, tão fascinadas e maravilhadas quanto todas as crianças do mundo.      

—      Oh!...

A sala reluzia de mil luzes, e a mesa, no centro dela, parecia sobrecarregada de um amontoado de tesouros e jóias. E era difícil dizer o que seduzia mais: a alegria dos olhos ou a satisfação do olfato, adulado pelo perfume do chouriço frito e dos confeitos.

Ficaram à soleira, os três Pequenos Polegares do Lago de Prata, com os olhos brilhando como estrelas nas carinhas vermelhas de frio.

Honorina deixara de ser a garotinha carregada de vergonhas secretas.

Os menininhos protestantes esqueciam as tragédias incompreensíveis que os arrancaram de sua terra natal e os tornaram órfãos.

Foi preciso pegá-los pela mão para fazê-los aproximar-se. Sobre a mesa, a cada lado do arranjo monumental e estranho que sustentava o bolo, havia duas aves arrumadas com toda a plumagem. Malaprade, autor da obra-prima, reconstituíra-lhes a forma com pâtés e pedaços de caça defumada. Os bicos originais tinham sido passados em ouro em pó e cintilavam com arrogância. Os olhos eram pedaços de azeviche.

Otávio Malaprade meneava a cabeça com um sorriso satisfeito. Não se lembrava de jamais haver tido tanto êxito com uma peça montada quando trabalhava em Bordeaux.

As aves principescas repousavam sobre um leito de abobrinhas odoríferas, num trono feito de dois pratos de um vermelho profundo, que lhes aumentava a suntuosidade.

Do mesmo vermelho cambiante, com todas as variantes do fogo agonizante, eram os grandes pratos que tinham sido dispostos diante da cada conviva.

O serviço de faiança inusitado saía do refúgio dos mineiros. Era o presente dos servos de Vulcano. Alguns deles o tinham modelado em argila, enquanto Joffrey de Peyrac compusera a fórmula dos esmaltes com óxido de chumbo.

Outros haviam composto e distribuído os desenhos, e os pratos da Epifania tinham sido cozidos no forno de copelação, animado pelos foles de Kuassi-ba e de Clóvis.

Rutilavam agora sobre a toalha branca, cada um acompanhado de uma escudela mais modesta de madeira branca para o pão e de um pequeno pires de estanho, para avelãs, balas e frutos secos.

E Florimond era o autor de duas grandes sopeiras com asas em formas de cabeça de lobo. A Sra. Manigault não teria lamentado seus Palissy. Ao longo de toda aquela comprida mesa, não havia um único espaço vazio. Nas duas extremidades fumegavam um prato de chouriço negro e um prato de chouriço branco.

Num aparador separado, haviam disposto as taças e os recipientes destinados à bebida. Um barrilete de vinho de Bordeaux, trazido por Nicolau Perrot, um de aguardente e outro de rum repousavam sobre suportes de madeira.

Outra mesa, mais baixa, sustentava os presentes amontoados, que o efémero soberano do dia distribuiria,em breve.

E, pendurada nas traves, a abóbora entalhada por Florimond, dentro da qual ele acendera a vela, ria com um grande riso luminoso.      

Ele apresentou-a às crianças:

- Miss PumpkinL. Senhorita Abóbora!... .

CAPÍTULO XXVII

Os reis efémeros - Distribuição dos presentes de Natal

Foi o pequeno Bartolomeu quem ganhou a fava. E escolheu Honorina para rainha.

A mão de Florimond, que deslizara sob a toalha branca para escolher os pedaços de bolo, talvez tenha ajudado o acaso. Mas por que a suspeita?

O acaso foi um bom cúmplice para responder ao desejo de todos e favorecer a infância.

Angélica ficou contente por Bartolomeu. O menino era muito bonzinho. Era um pouco vesgo e tinha uma grande mecha rebelde que lhe caía sobre os olhos.

Vermelho de alegria, ele recebeu a preciosa coroa de prata das mãos do Conde de Peyrac, pôs ele mesmo a outra coroa sobre a fronte de Honorina, que a emoção fazia enrubescer e que por um instante pareceu perguntar-se se não ia atirar longe e com violência a insígnia de uma incómoda realeza. Mas o orgulho e o contentamento a arrebataram.

Levantaram-se um pouco as cadeiras deles, que reinaram, presidindo lado a lado a mesa do banquete.

As coroas de prata pura cintilavam sobre suas ingénuas cabeças. Os cabelos de Honorina lhe faziam sobre os ombros uma capa acobreada que também parecia de metal precioso, e com o seu porte de rainha, a cabeça bem erguida e ereta sobre o pescocinho redondo e branco, ela estava bela.

Honorina estava tão feliz e tão imbuída da grandeza de seu destino, que teria considerado abaixo de sua dignidade relancear o olhar para a mãe. Mas sabia que a mãe a contemplava. E a alegria fazia-lhe uma espécie de auréola, enquanto os cumprimentos, os risos, os gracejos a cercavam como um incenso.

Cada vez que levava a taça aoslábios, todos gritavam: - A rainha está bebendo! A rainha está bebendo!

Angélica tinha os olhos cravados" na' njenina. Durante todo o sarau, não parou de pensar que o que sofrera outrora não tinha importância alguma diante da; felicidade da criança.

Não conseguiu despregar os olhos da filha, tão bela a achava.

Nesse noite todos fizeram toalete. Alguns até, como o Sr. Jonas, Porguani, Dom Alvarez, ostentavam elegantes perucas. Vindas de onde?....,

O Conde de Peyrac vestirão traje-vermelho-escuro que usava no dia em que enfrentara os iroqueses na colina de Katarunk. Trouxera esse traje de gala às costas, bem como a gravata de renda e os punhos das mangas. Na verdade era o seu único costume, que ele guardava dobrado numa arca. Habituado a uma elegância refinada e muito pessoal, ele não parecia incomodado por se vestir de couro e lãs grosseiras-Mas nessa noite, sob a libré senhorial, Angélica reencontrava-lhe o porte único. Era um príncipe sombrio e cintilante.

Retornava do reino dos mortos.

Sob o chapéu de seda .carmesim, bordado de plumas, o cabelo que lhe tombava sobre os ombros continuava espesso e negro, salvo pelo brilho prateado que reluzia perto de suas têmporas morenas.

Angélica pusera uma gola de renda sobre o vestido, e penteara habilmente o cabelo, seu único adorno. Com algumas plumas, um broche emprestado pela Sra. Jonas, ela poderia apresentar-se em Versalhes.

As senhoras tinham feito trocas entre si. A Sra. Jonas usava um belo lenço de"cetim vermelho e verde, e brincos que pertenciam a sobrinha e que esta não quisera pôr devido ao luto.

Elvira usava um vestido claro, cinza-pérola, que era de Angélica, que a ajudara a pentear-se muitíssimo bem.

O Sr. Jonas, no chapéu preto, exibia-uma fivela de prata, tirada de um sapato fora de uso, e a fivela do outro sapato servia de broche a Elvira.

Até Elói Macollet se vestiu. Ninguém o reconheceu quando ele surgiu com a aparência de um ancião alerta, amável e empoado, com os cachos brancos de uma peruca saindo de um chapéu redondo de castor da melhor qualidade, engalonado de ouro na aba. Peitilho de renda, colete florido, casaca cor de tabaco...

-        Fomos nós que o ajudamos a se vestir - disseram as crianças.

Era difícil imaginar aqueles adornos na wigwam enfumaçada do velho explorador.

Mas se era um milagre, o resultado ali estava.

Elói tomara seu lugar sob exclamações de admiração e aplausos. Bebericava seu vinho, de olhos semicerrados, pensando no que diria a nora se o visse festejar assim, em traje de gala.

Estavam todos ainda mais satisfeitos consigo mesmos pelo fato de que para obterem uma aparência civilizada tinham precisado exibir prodígios de engenhosidade. E havia que admitir que qualquer um que surgisse da neve e da noite, ali na soleira, ficaria es-tupefato diante daquele grupo no fundo das matas. Ofuscado pela luz, pelo ruído da música e dos cantos, pelos risos e pela elegância, ele se teria imaginado vítima de uma dessas visões de lendas, e que os primeiros albores do amanhecer fazem evanescer para sempre.

Na qualidade de filhos do senhor e amo do lugar, Florimond e Cantor garantiram o serviço, auxiliados por Yann, que fora criado de quarto de um oficial da marinha antes de ingressar na pirataria.

-        Não esqueçamos que de minha parte fui pajem da mesa do rei da França - dizia Florimond, brandindo os pratos sobre cinco dedos abertos.

Sua vida aventurosa não o fizera esquecer os reflexos adquiridos num duro aprendizado. Trinchou os gansos e o peru à maravilha, imitando o Sr. Duschesne e os grandes oficiais da Boca do Rei. Falou-se do grande Luís XIV e de Versalhes e seu esplendor, o que encantou os franceses do Canadá presentes e impressionou ingleses e espanhóis.

Cantor serviu as bebidas. Primeiro vinho, depois aguardente e rum para ajudar a descer todas as nutritivas vitualhas. Depois do período de mau passadio, festejava-se. Já não se devia pensar no dia seguinte.

E de repente Sam Holton falou. Evocou o tempo em que era um garotinho, na baía de Saco, na Nova Inglaterra, numa cabana de tábuas malpregadas. Todos os dias comiam cozido de cevada e bacalhau. Mas no Natal matavam o porco e a mãe tirava as reservas de mirtilo. Ia-se à meeting house, a igreja, a quatro léguas dali, os homens com seus mosquetes ladeando as mulheres e as crianças. Ao passarem, os vizinhos se juntavam a eles. Caminhavam pela floresta gelada entoando cânticos. Uma manhã, ao retornarem do culto, surgiram abenakis e os mataram a todos, exceto Sam, que tinha dez anos e que prontamente se refugiara no alto de um abeto. ,

Depois disso, chegara a Sprmgfièld batendo os dentes. Desde então não conhecera festas dê que valesse a pena se lembrar, exceto esta festa de Reis que ele'estava vivendo hoje, em Wapassu.

Assim falou Sam Holton, num* francês muito correto e até poético.

Foi seu presente de Epifania, oferecido ao grupo, que o ouviu num silêncio religioso e fascinado, apesar da conclusão trágica do relato.

Ficou-se com a impressão de se ter-assistido a um desses milagres de que os tempos da Natividade são férteis.

Depois de agradecerem è"cumprimentarem calorosamente o narrador, começaram aldistribuição dos presentes, e nisso também houve motivo para' admiração.

Quem havia esculpido em madeira aqueles brinquedos para as crianças? Um moinho para Tomás, um pião para Bartolomeu, e para Honorina uma boneca com as faces bem vermelhas. Angélica sorriu para os artistas que souberam manejar a goiva com uma habilidade tão notável quanto anónima: Yann, Cantor e o velho Elói.

Com o auxílio de Florimorid - e por sugestão de Angélica -, também haviam talhado as personagens de um jogo de xadrez, montado o tabuleiro, e também um tabuleiro de damas, com suas peças e o copinho de casca de árvore.

A paz dos longos saraus de inverno estava garantida.

Angélica ganhou dois pares de luvas finamente curtidas, para preservar as mãos no trabalho. Numa caixinha de prata, ela encontrou um camafeu napolitano representando um perfil de deusa, em branco puro sobre o fundo rosa avermelhado da concha. Fitou os olhos em Cantor: sabia que o camafeu lhe servia de talismã desde a infância no Mediterrâneo. Separara-se da jóia por ela.

- Eu forjei a caixinha de prata e as Goroas dos reis - disse Florimond, um pouco enciumado do olhar emocionado dedicado ao irmão mais novo.

Apesar de toda a sua altura, também recebeu seu quinhão de beijos.

Honorina contemplava a boneca com ar circunspecto. Nunca manifestara muito gosto pelos jogos de seu sexo. Angélica temia uma explosão que desapontaria os artesões daquele objeto concebido com tanto amor. Mas após alguns instantes de reflexão, Honorina pegou a boneca no colo, com ares de importância, e todos sorriram, enquanto Angélica soltava um suspiro de alívio.

Com a outra mão Honorina examinava os inúmeros tesouros que logo iriam unir-se, aos que já estavam acumulados na caixa querida, trazida de La Rochelle; os colares de pérolas enfiadas pela mãe a encantavam. Passou-os pelos braços, pelo pescoço, e enfeitou com eles a coroa de prata e a de seu pequeno companheiro.

Numa bonbonnière de prata, ela encontrou ainda pastilhas que Angélica confeccionara com massa de nozes misturada com mel ciumentamente conservado.

Havia muitos objetos de prata entre aqueles presentes, que mãos hábeis haviam moldado no segredo da forja, com o minério extraído da terra. Era a riqueza mineral de Wapassu que começava a surgir de seus esconderijos e a cintilar, pura...

Depois de todos soltarem exclamações e se extasiarem à exaustão, lembraram ao Conde de Peyrac que ele havia anunciado duas "surpresas".

A primeira, o conde logo confessou, apenas os veteranos do Mediterrâneo saberiam apreciar.

Era um saquinho contendo pó de café! Ruidosos hurras se elevaram, revidados pelos protestos dos adversários daquela mistura escura. Como, diziam ingleses e canadenses, de acordo pelo menos numa coisa, podiam lamber os beiços por uma lama acre daquelas? Era preciso ser de origem no mínimo tão bárbara quanto os turcos. Em compensação, os adeptos da beberagem divina mudaram de lugar e se agruparam em torno do conde para não perder nada da cerimónia do preparo.

Enquanto Kuassi-Ba trazia numa bandeja de cobre o serviço habitual, sobrevivente a diversos desastres em que Angélica o imaginara desaparecido, o conde distribuiu aos demais tranças de fumo da Virgínia da melhor qualidade.

Florimond passou os cachimbos e aproximou as brasas dos fornilhos bem recheados.

Ele não gostava de café. Preferia o chocolate, disse, com uma piscada cúmplice para Angélica.

Já Cantor não desdenhava aspirar o perfume que lhe recordava viagens pelo Mediterrâneo na infância, com o pai, as escalas, os combates, e Palermo, onde estudava com os jesuítas, à sombra de antigas mesquitas e palácios normandos.

Angélica, por sua vez, exultou e bateu palmas de alegria.

Sua predileção pelo café érâ pueril, talvez. Mas o comunicado do marido lhe fizera brilhar os olhos, e séú rosto estava todo iluminado de contentamento.

Com Cantor, Henrique Enzt, Porgúani, os espanhóis, os peruanos, havia um bom aglomerado à volta-lo Conde de Peyrac.

-        Lembra daquele velho turco em Cândia que fazia o café mais

maravilhoso do mundo? - disse Peyrac a Enzi.

Angélica aspirava o aroma evocador, e como a cada vez revia nas fantasmagorias da "fumaça azul obatistan de Cândia, as silhuetas de carnaval, turbantes e longas túnicas, ela revivia impressões violentas~que se haviajji gravado nela: terror de início, depois um alívio inebriante-ao lado do homem mascarado que acabava de comprá-la...

Tomou o café ardente. "Sim, Monseigneur Rescator, era você!... Como não adivinhei?" Maldizia a-sorte irónica que zombara dela.

-        Você me odiou, não* foi, por não havê-lo reconhecido? - cochichou, inclinando-se para ele.

E, lado a lado, bem juntos um do outro, na extremidade da grande mesa, perdidos no seio da floresta do Novo Mundo, olharam-se com ternura e pensaram que estava tudo bem assim.

CAPÍTULO XXVIII

Um presente divino

-Alguns dentre vocês sabem o que vai acontecer agora - disse o Conde de Peyrac, levantando-se. - Para os demais será realmente uma surpresa. Para todos, porém, penso que a alegria será igual, pois todos a mereceram.

O italiano Porguani e Clóvis tinham ido até a oficina. Quando reapareceram, emergindo lentamente da escuridão viu-se que traziam um andor de madeira suja carga pesada fazia salientar-se os músculos deles. Sobre o andor, um objeto cintilava suavemente. Aproximaram-se todos e divisaram uma espécie de bloco grosseiro, de onde emanava uma luz misteriosa, secreta e fria. Os dois carregadores depuseram o andor na extremidade da mesa, diante de Peyrac.

Era ouro.

O bloco era formado de vários lingotes de ouro empilhados.

O conde pegou um e ergueu-o à luz das velas e lâmpadas.

-        Eis o fruto de nosso trabalho. Nestes últimos meses de inverno, entregamo-nos ativamente à copelação do minério extraído durante o verão. Cada lingote representa três libras de ouro puro, ou mil e setecentas onças. É a primeira parte que entregarei a cada um de vocês nesta noite de Epifania. O resultado ultrapassou nossa expectativa. Pensem que a nossa produção de ouro vale um total de cento e cinquenta mil libras, ou seja, mais do que todo o orçamento anual do Canadá. O resultado está aí, considerável portanto. Lembrem que no século passado os Médicis, a família mais rica do mundo, não possuíam em seus cofres mais que cem mil libras de ouro. Em menos de dois anos extraímos da terra uma vez e meia isso. Somos mais ricos do que os Médicis. No próximo ano, quando nosso forte estiver aumentado, bem armado bem defendido, quando tivermos mandado vir pelo Kenne-bec uma leva de mercenários, canhões, víveres, poderemos dedicar-nos em paz a nossos trabalhos e -à produção, que aumentará mais ainda. - Ele continuou: - Segundo contrato que firmamos, um quarto desta produção, será dividido regularmente entre vocês todos, meus primeiros companheiros, permitindo a cada um de vocês constituir uma fortuna pessoal. Com o resto, assumirei benfeitorias e a ampliação de nossos fortes, a remuneração de nossos mercenários, o armamento de nossos navios, etc. Assim, ligados uns aos outros com a força do ouro e da prata, volumoso subproduto, seremos poderosos. Aumentaremos nossa frota, que se entregará ao comércio, com Gouldsboro como um dos portos de-abastecimento. Estabeleceremos feitorias ao longo do Kennebec e do Penobscot., Abriremos outros canteiros de obras, de que alguns dentre nós poderão tornar-se proprietários, caso estejam dispostos-a reencetar de um começo difícil para valorizá-los... O Maine, país_de florestas e rios, e também país de praias abertas para um oceano piscoso, país até agora selvagem e que inúmeras nações disputaram sem proveito, o Maine, país da prata e do ouro invisíveis, se tornará nosso rejno, porque seremos os únicos a descobrir, o segredo de sua riqueza. Estão arrependidos de me haverem seguido?

- Não!... Não, Monseigneur! - disseram vozes embargadas.

Mas a maioria não pôde dizer nada.

Kuassi-Ba passou perto de cada um, depositando com sua mão negra, sua mão de rei mago, -um lingote de ouro.

Mal ousavam tocá-lo.

Seus olhos um pouco turvos pelos vapores do álcool e do fumo fixavam-se naquele suave reflexo e não conseguiam despregar-se dele. No brilho do ouro, como na bola de cristal dos videntes, percebiam a visão de seus velhos sonhos mais secretos, de suas ambições mais irrealizáveis. E Angélica foi tomada de medo. O ouro corrompe. Aqueles homens não perderiam a cabeça diante da cintilação da riqueza? Ela olhou o marido. Ele estava como o mago que observa as paixões humanas depois de havê-las provocado.

Aqueles que ele formara à sua imagem num labor cotidiano o desapontariam, sucumbiriam aos mitos insensatos que parecem conduzir a humanidade desde suas origens mais longínquas?

Angélica sentiu uma opressão que turvou sua alegria de há pouco.

-        Ouro! Sempre o ouro! - murmurou. - Tenho medo! Foi em seu nome que o maldisseram outrora!

Ele deu-lhe uma olhada de soslaio.

-        Não se deve temer o ouro e seu poder - disse. - Não há coisa criada que possa envilecer o homem se ele não consentir nisso por si mesmo. Mas o homem se quer puro espírito, semelhante a Deus, e quando mede sua materialidade, acusa a matéria. Não quer aceitar-se terreno... É assim que ora maldiz ora idolatra tudo o que o fascina mais na criação: o ouro, a mulher, a ciência, a riqueza... quando deveria apenas tentar conciliar tudo. Para aquele que ama o espírito, o espírito habita toda matéria.

Tiago Vignot, o carpinteiro, girava o lingote entre os dedos com ar dubitativo.

— Eu, por ora, não peço mais do que estar aqui. Um bom trabalho, com esperança ao cabo dele, sem beleguins no meu encalço... Mas nem por isso deixa de fazer bem segurar isto na mão: já vi tanto disto...

— Ele o impressionará menos quando o vir em Boston transformado em escudos sonantes e com o peso de lei. Então saberá o que fazer com ele - disse Peyrac.

— Uma bolsa cheia de escudos? - indagou o outro, olhando-o, perplexo.

— Duas, três... Há umas mil libras nisso que você tem na mão.

— Ah, meus amigos, que pândegas, que noitadas vamos nos oferecer! - exclamou o carpinteiro, dando, uma sonora palmada na omoplata do vizinho.

Todos se puseram a falar ao mesmo tempo, fazendo projetos, entregando-se a cálculos complicados, numa atmosfera de excitação que tornava as vozes agudas.

A Sra. Jonas levantou-se para retirar os pratos. Achava inconveniente misturar ouro tão belo com os restos de uma refeição, por melhor que tivesse sido.

Ela e o marido tinham recebido cada um um lingote de ouro, ou seja, três mil e quatrocentas onças. Elvira ganhara um para si e outro para os seus garotinhos.

O velho Elói brandiu o seu no ar.

— Cometeu um erro, senhor conde. Não sou dos seus. Vim assim por nada, e fiquei. O senhor não me deve nada.

— Você é o trabalhador da undécima hora, velho pirata - respondeu Joffrey de Peyrac. - Conhece o seu Evangelho?... Sim, pois bem, medite nele e fique com o que lhe dão. Vocâ comprará uma canoa nova e dois anos de mercadorias de troca, para recolher todas as peles do oeste. Todos os seus concorrentes sufocarão de inveja... /:

O velho canadense arregalou os olhos, caiu na risada e se pôs a sonhar em voz alta, descrevendo já a maneira como devastaria os rios do país.

Depois eles se entreolharam com ar embaraçado e, após um conciliábulo, disseram:

— O que vamos fazer com todo este ouro? Senhor conde, enquanto não partirmos cada um para o seu lado é não retornarmos às cidades, guarde-o consigo, o senhor que não tem medo do ouro, pois é defnais para nós; e sob o nosso travesseiro ele nos tiraria o sono.

— Que seja -.disse Pêyrac -, mas,-por esta noite, olhem-no bem. É obra sua e presente de Deus, que criou a Terra.

CAPITULO XXIX

Angélica tem um pressentimento

Foi nesse instante que Angélica teve a impressão de ouvir um chamado.

Para além do alarido dos refrões cantados, dos acordes da guitarra e dos ritornelos da sanfona um pouco estridente que a Sra. Jonas tocava, uma voz chamava.

-        Socorro! Socorro!...

Mas era materialmente impossível, e ela entendeu, na hora, que ouvira a voz dentro de si mesma. Quase em seguida achou que bateram na porta.

Angélica ergueu-se de um pulo.

— O que você tem? - indagou Joffrey, retendo-a pela mão, surpreso com a sua brusquidão.

— Bateram na porta.

— Bateram?... Está sonhando, minha amiga. Os cantores pararam e voltaram-se para eles.

— O que está acontecendo?

— Bateram.

-        Bateram! - troçou Nicolau Perrot, com uma desenvoltura

que não lhe era habitual e que libações excessivas desculpavam.

- Quem bateria à nossa porta nesta noite? Só espíritos ou franceses do norte ousariam estar fora de casa com um tempo destes!

Calaram-se e se olharam, com os olhos indecisos. Espíritos! Sentiram que eram homens sós, enfiados no fundo das neves, no fundo do inverno como no fundo de uma gruta. O abraço gelado apertava-os ferozmente, e agora que o fogo baixava um pouco, adivinhavam o frio insinuante e mortal que persistia em se infiltrar pelos menores interstícios, e ouviram o uivo suave, permanente, da brisa que arranhava a neve gelada do lado de fora e os rodeava como que com uma encarnação maléfica.

Sabiam que nesta estação mais ninguém ousaria ir ao encontro deles. Quem poderia bater naquela noite glacial e de ventos?

Os espíritos!

Angélica teve a impressão de ouvir novas batidas.

-        Não estão ouvindo? - perguntou, com um sobressalto.

Mas os sons lhe pareceram menos precisos, e vendo as caras incrédulas dos que a rodeavam, começou a indagar-se se não teria sido vítima de uma alucinação.

— Talvez um galho deslocado pelo vento, que bate a instantes na parede - murmurou.

— Nós também ouviríamos...

Joffrey de Peyrac levantou-se por sua vez e dirigiu-se até a porta.

-        Cuidado, pai - .gritou Florimond,: acorrendo.

E, precedendo o pairfoi ele quem abriu a primeira porta e depois, no fundo do corredor de entrada, a segunda que a neve bloqueava e que exigiu força para ser aberta para o interior.

Imediatamente o-frio penetrou silvando, com um leve turbilhão de neve poeirenta.

Florimond mantinha a pistola eirt riste e se atirou para o lado.

De longe, Angélica e os ontros^incliriando-se, viram apenas uma vaga claridade na qual se erguiam penachos de neve, levantados pela ventania. Um luar inesperado havia surgido de entre as nuvens, o que explicava a luminosidade exterior, de uma fosforescência prateada, na moldura da porta.

-        Não há ninguém - disse Florimond. - E está fazendo um frio terrível - acrescentou, empurrando a porta.

Retornou à sala comum e fechou a segunda porta. Houve um alívio geral.

Antes se sentirem bem no calor daquela cova do que pensarem no que estava acontecendo do .lado de fora.

A baforada de ar gelado penetrara como uma onda mortal, dissipando as nuvens de fumo estagnadas e 'caíregando-as numa corrente, de modo que as pessoas agora só se viam através de estrias de vapores brancos que serpeavam e se enroscavam à volta dos rostos.

As chamas das lâmpadas e das velas haviam abaixado com o sopro brutal e algumas haviam apagado e fumegavam em volutas espessas e malcheirosas.

-        Acho que os bons vinhos lhes turvam um pouco o entendimento - disse Peyrac.

E sua voz dissipou o mal-estar.

Só Angélica continuava indecisa.

"E se houver alguém morrendo na neve, longe ou perto, não sei", pensou.

Olhou ansiosamente a volta, contando os seus. Os que lhe eram caros ao coração estavam todos ali, em segurança, sob a sua guarda.

Joffrey de Peyrac enlaçou-a pela cintura como que para tranquilizá-la. Inclinou o rosto para ela, numa indagação muda. Ela se esquivou.

Depois de ter abusado um pouco da boa refeição e das bebidas "aquecedoras", haviam de acusá-la de ouvir "vozes".

Mas o incidente assinalou o fim das festividades.

As crianças estavam caindo de sono. Levaram-nas para a cama com todos os brinquedos. Sobre um banquinho, instalaram diante delas Miss Pumpkin para vigiá-las com seu sorriso escarlate, um pouco macabro. Durante um bom tempo Bartolomeu, Tomás e Honorina fizeram força para manter os olhos abertos a fim de ver se os olhos e o sorriso de Miss Pumpkin se fechariam primeiro.

A luta foi de curta duração, e eles adormeceram à luz suave a translúcida da abóbora mágica.

Angélica procurou um pretexto para ir dar uma olhada lá fora. Não conseguiria dormir tranquila com a ideia que lhe martelava a cabeça de que um ser humano perdido morria na neve a alguns passos do refúgio deles.

Avisou que ia levar quatro pedaços de açúcar aos cavalos, que também mereciam uma festa na noite da Epifania.

Ninguém desconfiou de nada. Ela enfiou as grossas perneiras de pele sob a saia, as botas forradas e atirou sobre os ombros um manto forrado de pele de lobo. Tudo isso mais um par de luvas espessas bastariam para uma breve excursão.

Diante da segunda porta, Elói Macollet, também ele equipado por sobre os trajes de festa, acendia uma lanterna.

— Está voltando para casa? - perguntou ela.

— Não, vou acompanhá-la, senhora, já que quer de todo jeito ver o que está acontecendo lá fora.

CAPITULO XXX

Busca de espíritos

A luz da lanterna era supérflua.

Uma vez atravessado-o estreito corredor entre duas paredes de gelo que, da soleira da-pona, subiam para a superfície endurecida do pátio, estava claro.devido ao luar.

Nuvens fuliginosas corriam, velando de vez em quando o astro cintilante. No começo da noite, porém, o céu estivera baixo o suficiente par&qu« nevasse, amontoando uma camada da altura de u'a' mão, que o gelo tornava farinhenta e rangente sob os sapatos.

Ao saírem do forte, foram atingidos pela cortante poeira de gelo, tão temível quanto a fina' poeira de um metal abrasivo, que o vento transportava consigo.

Contra a roupa, o gelo fazia um ruído de areia; no rosto, um efeito de queimadura. De cabeça baixa, dirigiram-se cambaleando para a estrebaria. No caminho, porém, Angélica lançou aos arre-| dores um olhar abrasador, tentando devassar o segredo das sombras daquela noite excepcionalmente clara.

Via-se bem longe, até a outra extremidade do primeiro lago.

Envolta na poeira de neve que o vento raspava à superfície do solo, a paisagem parecia emergir de uma nuvem turva e brilhante, que lhe embaçava os contornos.'Era uma poeira de diamante que turbilhonava como um halo à volta do cimo dos bosques, ou coroando a curva das colinas, sublinhando as margens do lago, que, sob a extensão de neve lisa e gelada, na qual se refletia a luz, merecia mais do que nunca o nome de lago de Prata.

Silvos e uivos contínuos e agudos compunham o canto irascível de uma paisagem noturna entregue a todo o rigor do inverno setentrional.

Os olhos de Angélica começaram a verter lágrimas irritantes que logo gelavam e se colavam aos cílios. De repente um fantasma branco rondou lá embaixo, do outro lado do lago, um espectro transparente que agitava os braços e que, depois de girar sobre si mesmo, desapareceu como que dissolvido pelos turbilhões implacáveis do vento.

A jovem e o velho estavam parados, estupefatos, à extremidade do promontório. .

-        Viu desta vez, viu, Elói? - gritou Angélica.

O velho explorador meneou a cabeça.

-        Sao espíritos - balbuciou. - Nicolau Perrot tinha razão: espíritos... Só espíritos mesmo, para estar ao relento com este tempo...

-        Claro que não, você está divagando... talvez sejam seres vivos.

Tossiu, pois o ar gelado, ao lhe encher os pulmões, sufocava-a.

Eles eram obrigados a falar com a cara colada para se ouvirem, e a gritar.

-        Seres vivos, estou dizendo... e que morrem...

Retornaram às pressas para o forte. Seu relato causou grande confusão.

Angélica tentava convencer os companheiros do que vira do outro lado do lago. Mas o velho Macollet repetia, obstinado:

-        São espíritos, estou dizendo... Afinal, são coisas que acontecem... De minha parte, não é a primeira vez que os vejo...

-        Eu também! Eu também! - exclamaram vozes.

Angélica, batendo com o pé e gritando mais alto do que eles, deteve o fluxo de histórias de fantasmas e aparições que ia desencadear-se.

— Basta, é gente viva, estou dizendo! E o grito que ouvi! E as batidas na porta?

— Pois sim! Justamente esse grito, essas batidas, senhora... Se vêm de gente viva que viu lá do outro lado do lago, como poderia tê-los ouvido aqui dentro, a mais de uma milha?

— É bem coisa de espíritos rondar assim, bater na porta e assustar as pessoas na época do Natal - disse mestre Jonas, levantando um dedo sentencioso.- Só nos resta nos protegermos bem e fazer orações.

Angélica passou a mão pela testa, tão fria que parecia feita de madeira dura e insensível.

Acreditar no quê? O que pensar?... Se o que ouvira podia confundir-se com uma alucinação, o que vira não podia!...

O Conde de Peyrac saiu do quarto, para onde se retirara. Desceu os degraus do estrado que levavam à sala e indagou as causas da agitação.

-        Nós vimos... alguma coisa lá.embaixo, do outro lado do lago - explicou Angélica.

-        Fantasmas, sim - afirmou,Macollet. - Com certeza que eram almas penadas, eu via a floresta através do corpo deles.

Angélica não soube o que dizer, pois também ela tivera essa impressão de transparência.

— Trombas-de-neve sopradas pelo vento? - sugeriu Peyrac. Mas desta vez Angélica e Macollet se puseram de acordo.

— Não! Não! Era." outra coisa.

Joffrey de Peyrac olhava a mulher com atenção. Achou-lhe um olhar perdido, que ela tinha às vezes quando alguma coisa se apoderava dela por dentro^

Ficava ausente nessas ocasiões, preocupada unicamente com as perguntas que não formulava e cuja resposta tinha que encontrar sozinha. Ele começava a conhecíê-la, a ela que era extremamente sensível aos fenómenos que, embora fazendo parte da física material, nem por isso são menos inexplicáveis. De seu lado ele acreditava de bom grado nas possibilidades de transmitir mensagens, chamados em ondas invisíveis, pois fora testemunha, em suas viagens, de fatos perturbádores.

O conde continuava pensativo.

Nicolau Perrot também compartilhava dessas dúvidas. Pousou em Angélica o mesmo olhar perplexo e sagaz do chefe, e ergueu-se bruscamente:

— Temos que ir lá! - decidiu. E com um gesto interrogativo na direção de Angélica: - É isso o que quer, senhora? Sim?... Então, se é issx>, vamos!

— Que seja - disse Peyrac, decidindo-se. - Afinal, só corremos o risco de um passeio um pouco desagradável, e assim você ficara com a consciência tranquila, não é, querida?

Clóvis, o auvergnat, recusou com gestos espalhafatosos.

-        Correr atrás de fantasmas, eu? Isso nunca! - exclamou, escondendo-se sob as cobertas.

E o descrente se persignou várias vezes.

Seguidos de Nicolau Perrot, de dois espanhóis, de Tiago Vignot, de Florimond e de Cantor, Angélica e o marido desceram rumo ao lago, levando lanternas. Tinham achado inútil perturbar Porguani que já se deitara no seu canto, perto da oficina. Elói Ma-collet acompanhava à distância, resmungando e apertando o rosário num dos bolsos do casaco.

De vez em quando a lua se escondia. A neve estava tão dura, que era desnecessário calçar as raquetes.

O pequeno grupo seguiu pela margem direita do lago. A marcha não era fácil e iam todos calados. Só se ouvia o ranger das botas e mocassins sobre a neve, e os ruídos roucos e irregulares das respirações, cujo som o ar gelado amplificava.

Atingindo a extremidade do lago, fizeram alto.

-        Pois bem, era aqui - disse Angélica, olhando em redor.

Estava tudo tão calmo, tão solenemente calmo, que sua ansiedade de pouco antes parecia injustificada.

Até o vento amainara um pouco, soprando apenas ao nível do solo e erguendo a neve fresca.

Avançando um pouco mais, seria possível ver brilhar as cascatas de gelo, com borbulhas paralisadas, em tubos de órgãos de cristal. Tudo parecia melancólico e adormecido.

-        Vamos procurar - disse Peyrac.

Afastaram-se uns dos outros, passeando pelo chão o círculo de luz das lanternas.

Mas o tapete de neve estava virgem.

Transida de frio, Angélica estava a ponto de se censurar. De manhã, ao despertar, dissipados os vapores do vinho, ela riria de sua tolice, e teria que se preparar para suportar por algum tempo as troças do grupo. Mas uma vontade brusca, inquieta e obstinada de encontrar absolutamente qualquer coisa voltava a dominá-la, e ela procurava, chocando-se contra árvores, arbustos, tropeçando nas fendas no solo.

Um pouco mais tarde eles se reuniram de novo e decidiram retornar ao forte.

Para Angélica, porém, era como se uma mão invisível continuasse a puxá-la para trás. Não se resolvia a abandonar o local e deixou que os demais se distanciassem.

Lamentava que o índio panis de Nicolau Perrot não tivesse vindo, pois ele tinha um faro de cão de caça. Mas o índio tinha medo demais dos espíritos da noite, e nem o próprio amo o convenceria a acompanhá-los.

Mais uma vez os olhos de Angélica foram da margem do lago para a orla da floresta.

-        Há um amontoado ali adiante...

Nesse instante a lua apareceu em todo o seu esplendor, um facho de luz prateada deslizou por entre os galhos e roçou o montículo de neve. Ela quase soltou um gritcy".

A claridade difusa, moldando novas sombras, redesenhando as saliências e cavidades do lugar, fizera surgir, como numa visão fugitiva, silhuetas humanas estendidas por terra.

Ela vira, sim, vira, sob aquela mortalha branca de curvas suaves, o contorno de uma cabeça, seguido da curva dos quadris.

E ali, não era um braço estendido?

Ela se precipitou, o.coração disparado. O lugar mergulhara de novo numa semi-escuridão. Angélica se pôs de joelhos, cavando com frenesi. Encontrou alguma coisa, não sabia o quê, mas que sentia nos dedos crispados à medida que puxava, e não eram folhas, nem terra, nem... o quê?... o que é que se podia esperar achar sob a neve?...

Angélica tirou a- luva a fim de apalpar melhor: era pano!

Então, pôs-se a puxar, a puxar sempre mais.. E apareceu algo pesado e endurecido, um braço humano.

Ela continuava'. Soltou um ombro, ergueu um busto inteiro, e a neve escorria de um lado e de outro, facilmente, pois a camada era leve e delgada, apenas espessa o suficiente para dissimular aos olhares o corpo do homem -que caíra ali de esgotamento.

Angélica ergueu a lanterna e iluminou em redor. Havia outros. Agora os adivinhava nitidamente. Como puderam passar perto deles há pouco sem vê-los?

Ela reencetou a tarefa, conseguiu livrar o primeiro corpo e puxá-lo para longe das árvores, agarrando-se àquelas roupas endurecidas com seus dedos nus e doloridos.

Em sua emoção, respirara com tanta precipitação, que a garganta lhe queimava. Já não tinha força para chamar.

Felizmente uma voz próxima a chamou, era o conde que voltava sobre os próprios passos..

— Onde você está?  

— Aqui - respondeu ela. - Venha logo: eles estão aqui!

— Por Deus! - exclamou ele.

Viu-a sair do escuro das árvores carregando às costas uma forma inerte e negra.

CAPÍTULO XXXI

Achado macabro na noite da Epifania - Tensão insuportável

Acharam oito. Seres indistintos sob a carapaça gelada dos capotes e mantos. Inertes, mas não rígidos.

— Estão vivos. Devem ter caído há menos de uma hora, e o pouco de neve que o vento soprou os recobriu.

— Quem são? - perguntou Vignot.

— Quem quer que sejam? - retrucou Macollet.

— Você ouviu o que disse Perrot: se não são espíritos, só podem ser franceses do Canadá para passear nestes ermos nesta estação.

Só um estava duro como um tronco de árvore: o que Tiago Vignot carregava.

-        Este pesa tanto quanto um asno morto - resmungou o parisiense, arrastando-se pelo caminho. - É um cadáver que você está levando, meu filho! Não há dúvida alguma. É um morto que você tem às costas, Tiago, meu amigo!

Ó suor, gelando-lhe sobre o rosto, fazia-lhe uma máscara viscosa. Por pagão que fosse, Tiago Vignot, esmagado pelo peso, acabou pensando em Jesus levando a cruz.

Era a noite da Epifania. Uma noite diferente das outras.

No forte, dir-se-ia que já não havia lugar na sala. Os que tinham ficado, olhavam espantados. Chegava cada vez mais gente, e tanto os salvos quanto os salvadores tinham todos os mesmo aspecto fantasmagórico, cobertos de neve, sobrancelhas e queixo brancos de gelo.

Todos espectros gelados com olhos ardentes, que, em alguns, ainda pareciam contemplar as trevas do Além.

Tiago Vignot depôs o cadáver sobre a mesa mesmo, onde o corpo enrijecido caiu entre pratos e alguns lingotes de ouro com um ruído seco. O pobre homem não aguentava mais. Arquejava como um lobo-marinho e sacudia os dedos azulados.

Estenderam no chão os mais inertes, mas sentaram outros nos bancos, pois eles pareciam voltar a si.,- '

Na medida do que era possívelperceber pelo exame dos rostos branqueados e amarelados peFp gelo, havia cinco europeus e três selvagens. Franceses, todos barbudos.

O gelo derretia entre os pêlos das barbas e caía no chão com um barulhinho de vidro quebrado. Levaram-lhes aos lábios taças de aguardente. Eles beberam, e sua respiração tornou-se mais rouca e profunda. Sua imobilidade num sono perigoso, no frio da noite, sob a neve que os tragava, não durara mais de duas horas.

Um deles; porém, estava bem morto. O que se encontrava sobre a mesa.

Nicolau Perrot aproximbu-se e puxou o capote de lã que escondia o rosto do morto.

Soltou uma exclamação abafada:

- Deus! Virgem Míria!... Que lástima!.

Persignou-se..

Os outros aproximaram-se igualmente; reconheceram o morto e recuaram com exclamações sufocadas. O medo, um temor supersticioso, invadia os-corações. Pois aquele, cujo rosto fixo numa imobilidade de pedra eles acabavam de contemplar, estava morto, sabiam, há muito tempo, há quase três semanas no mínimo, morrera às margens do Mégantic.

Era o Tenente de Pont-Briand!

Voltaram-se para o Conde de Peyrac. Este chegou perto, de cenho franzido, e observou sem emoção o rosto de olhos fechados, de carne marmórea colada aos ossos.

Com unTdedo, afastou de todo o capote, viu uma estrela negra na têmpora. O ferimento sangrara pouco, devido ao frio.

Meneou a cabeça. Sim, o homem que estava ali era mesmo aquele a quem matara com a ponta de sua espada. Os olhos que ele próprio fechara, como a um adversário-ieal, não se tinham reaberto.

O morto era muito simplesmente um morto de três semanas, conservado pelo gelo, nos galhos da árvore para onde o huroniano o içara. Sepultura tradicional do inverno, ao abrigo de raposas e lobos, enquanto se aguarda que o solo reapareça para se abrir uma cova.

— O morto - cochichou a Sra. Jonas, debruçando-se sobre Angélica, que se ocupava em reanimar o fogo e aquecer as sopas e as carnes.

— Sim?

— É o Sr. de Pont-Briand.

Angélica teve um sobressalto e se aprumou. Estava perto do átrio erguido e podia ver a sala inteira, que oferecia um espetáculo estranho, com aquela gente paralisada em torno da mesa, contemplando um corpo de pedra, estendido por entre os restos do festim e os lingotes de ouro que ainda brilhavam.

-        Sim, o Tenente de Pont-Briand - disse com força uma voz estranha.

Vacilando, um dos desconhecidos se erguia, levantava o rosto pálido, ainda marcado com os sinais da tragédia. Os olhos ardiam, arregalados e fixos.

-        Sim, Pont-Briand, que você assassinou e em nome de quem nós todos vimos pedir-lhe justiça, Sr. de Peyrac.

Joffrey examinou-o com calma.

— De onde me conhece, senhor?

— Sou o Conde de Loménie-Chambord - disse a voz. - Não me reconhece? Encontrei-o em Katarunk.

Nicolau Perrot, que estava ausente quanto o Tenente de Pont-Briand viera ao forte, não entendia e fitava ora um ora outro dos assistentes daquela cena extraordinária.

— Não, não é possível - exclamou ele, precipitando-se para o Conde de Peyrac e agarrando-o impulsivamente pelo gibão, gesto que não teria ousado não estivesse ele movido por uma violenta emoção. - Matou este homem?... Mas era meu amigo... Meu irmão... E foi o senhor, o senhor, quem o matou!... Não, não é verdade...

— Sim, é verdade - disse a voz enfraquecida de outro dos sobreviventes. - É esse o senhor a quem você serve, Nicolau!... Ele jamais hesitará em abater um de seus compatriotas se isso lhe convier...

Joffrey de Peyrac, até então impassível entre a assistência perturbada e ansiosa, pareceu subitamente dominado por uma violenta cólera, sobretudo quando cruzou o olhar desamparado do honesto canadense Perrot.

-        Sim, matei-o - disse com voz surda e rouca. - Mas Nicolau Perrot é meu amigo. Não tentem separá-lo de mim.

Os olhos negros fulguraram e tornaram-se terríveis.

-        Hipócritas! Hipócritas! Sabem por que o matei. Então, por que fingem indignação?... E me'acusam de um crime? Quando não fiz mais do que vingar minha honra ultrajada!... Então não têm sangue de gentil-homem? Podem ignorar que esse homem cobiçava minha mulher?... E Veio' até aqui para tentar seduzi-la... apropriar-se dela, levá-la... Veio para roubá-la e ultrajá-la sob meu próprio teto... E eu devia aceitar essa perfídia? Devia deixar seus gestos e suas paixões impunes?... Se ele foi loUco o bastante para tentá-lo, que pagasse pela loucura!... É a lei!,.. Batemo-nos em duelo franco e regular... Elernorreu. E saibam que qualquer um que ouse cobiçar minha esposa conhecerá a mesma sorte, pertença à raça ou à nação que pertencer.

Sua voz diminuiu num~silêncio de pedra. Os olhares iam dele, em pé no seu traje jpúrpura.e magnífico, para aquela que estava também em pé, acima deles, à luz móvel das chamas, e que lhes aparecia em sua beleza excepcional, com a auréola de seus cabelos luminosos e o brilha de seus* olhos de água verde, por onde naquele instante passava uma expressão assustada... Sentiu-se que os franceses que ainda não a conheciam tremiam como sob um choque. Ela era tão bela quanto tudo o que se dizia a seu respeito, a Dama do Lago de Prata! E sua vista subjugava o perturbado espírito deles. Permaneceram boquiabertos por um longo momento. Depois um deles passou a mão pela testa.

— Deus justo! - disse a meia voz. - Que insensato! E, voltando-se para Loménie:

— O senhor tinha razão...

Ninguém ignorava que Pont-Briand estava apaixonado pela estrangeira do fundo das matas. Ele parecia meio demente... Nicolau Perrot baixou a cabeça.

-        Se as coisas se passaram assim, o senhor devia agir assim, Monseigneur. Devia... Perdão, pelo meu amigo!

Tirou o gorro de pele e inclinou-se diante do corpo.

"Pode-se imaginar raça mais terrívele exagerada que a dessa gente do Canadá?", pensava Peyrac. Via-os correndo através do inverno, cor de mortalha, com o cadáver rijo do amigo a vingar...

-        Que vieram fazer novamente em minha casa, senhores da Nova França? - continuou, numa voz tingida de amargor. - Queriam que Katarunk fosse queimado?... Pois bem, já foi, alcançaram seus objetivos. Queriam que meu nome fosse apagado da América setentrional ou que eu tombasse sob o ódio eterno dos iroqueses ou no mínimo que eu me alinhasse a seu lado na luta que travam contra eles. Mas nisso seus planos fracassaram.

— Senhor, nunca desrespeitei as promessas que lhe fiz em Katarunk - protestou Loménie.

— Se não foi você, foram seus irmãos. Maudreuil e principalmente o jesuíta que estava no Kennebec e não queria aceitar os acordos que você fez comigo., um estrangeiro... Foi ele quem impeliu Maudreuil e os patsuiketts, e aparentemente o governo da Nova França não se envolveria em nada nesse crime...

— O senhor está enganado. Nosso desejo de fazer uma aliança com o senhor foi sincero, e dou-lhe como prova disso que, assim que o Sr. de Frontenac soube que o senhor estava vivo, despachou-me ao seu encontro, apesar da estação pouco clemente, para trazer-lhe uma mensagem e novas propostas.

— Quer dizer que ao deixar Quebec desta vez suas intenções em relação a mim não eram hostis?

— Não! De resto, não somos numerosos, bem vê.

O conde deu uma olhada nos quatro homens esgotados e nos três selvagens que, apesar dos cuidados prodigalizados, não pareciam recuperar-se.

— O que lhes aconteceu, afinal?

— É difícil explicar. Estamos habituados a essas expedições hibernais. Tudo correu bem até o Mégantic. Foi lá que encontramos os vestígios do seu duelo e o corpo deste infeliz. Desde então uma sorte funesta se colou a nossos passos, com esse cadáver que carregávamos... Era como se um sortilégio se abatesse sobre nós à medida que nos aproximávamos...

— Wapassu é um local proibido.

— Nossos selvagens sabiam disso. Estavam com medo. Enfraqueceram, e até nós sentíamos que perdíamos as forças um pouco mais a cada dia. Era impossível voltarmos atrás sem correr a uma morte certa. Ao final só tínhamos uma esperança: chegar apesar de tudo ao seu forte. Mas depois do esforço que tivemos que despender para atravessar as cataratas, a fadiga nos abateu, pôs-nos inconscientes, e... Como puderam encontrar-nos a tempo?

Ninguém respondeu.

-        Como puderam encontrar-nos? - repetiu um dos franceses, olhando-os desconfiado.

— É noite da Epifania! - replicou Peyrac, com um sorriso cáustico.

E encarou longamente o homem, de um modo enigmático.

__ Nem sempre as coisas saem conforme as queremos - continuou. - Vocês deixaram Quebec, quero crer, com a intenção de vir ao meu encontro com toda.., a neutralidade, posso dizer? No caminho, seu espírito, emocionado cóm a vista do amigo morto fez-se mais belicoso e vingativo, Mas o inverno é um inimigo mais feroz do que eu e no final das contas estão bem contentes de me haver encontrado aqui para protegê-los contra ele. Decididamente parece que os nossos encontros devem sempre ocorrer sob o signo de certa ambiguidade. Devo considerá-los prisioneiros, reféns, em consideração" aos projetos de vingança que nutriram contra mim, ou hóspedes, pelas suas" intenções iniciais?

Mais uma vez Q'grupo de franceses pareceu consultar-se com o olhar, e um deles, um homem de boa compleição, de certa distinção, tomou a palavra;'

-        Apresento-me. Sou p Barão d'Arreboust, primeiro síndico da cidade de Quebec, e posso confirmar-lhe as palavras do Sr. De Loménie de que fomos incumbidos pelo Sr. Governador Frontenac de vir ao seu encontro com intenções pacíficas. Ele fazia questão de apresentar-lhe um projeto que... Mas talvez possamos conversar sobre isso mais tarde - disse o pobre barão esfregando os dedos dormentes, onde a circulação voltava e que deviam fazê-lo sofrer atrozmente.

Deu uma olhada no cadáver do oficial canadense, que, já roído pelas mordidas do vento e do gelo, e atirado entre o brilho dos lingotes, parecia simbolizar, numa imagem fúnebre e fulgurante, a vaidade dos bens deste mundo.

— Dadas as circunstâncias que.o levaram a matar esse homem, havemos por bem considerar que não houve de sua parte ato de hostilidade contra a Nova França, ainda que não possamos nos impedir de lamentar tanta brutalidade. O Sr. de Loménie e eu, que vivemos muito tempo nessas comunidades restritas dos primeiros tempos da colónia, não ignoramos-que é necessária uma disciplina estrita para impedir o demónio da luxúria de se desa-correntar, mas tínhamos a prece...

— Não administro um convento! - disse Peyrac. - Tenho pólvora e corda... e a espada para os gehtis-homens.

— Não há santidade em sua pessoa.

— Não! Deus me livre!...

Eles se juntaram como se estivessem prestes a empunhar as armas. A ironia violenta e paradoxal da resposta escandalizou-os. Também ele parecia bem com o que haviam contado: o Diabo Negro, junto da Diaba, enfrentando-os com seu rosto careteiro e seu. olhar coruscante.

A tensão aumentou até tornar-se insuportável.

Angélica desceu os degraus do estrado e avançou na direção deles.

-        Venham sentar-se junto do fogo, senhores - disse com sua

voz harmoniosa e calmai - Estão esgotados... .

Vendo que o Conde de Loménie desfalecia, ela rodeou-o com um braço e amparou-o.

-        O que se faz com o cadáver? - cochichou Tiago Vignot

ao ouvido de Peyrac.

O senhor de Wapassu fez sinal para que o carregassem para o frio, para fora, para as trevas geladas. Não havia outra solução. Era o lugar dos mortos.

A AMEAÇAf

CAPÍTULO XXXII

Elói Macollet denuncia a doença dos índios

Era a insuficiência de um sono curto demais, um hipernervo-sismo devido aos acontecimentos da noite, o frio que acentuava ainda mais seu rigor opressivo? Angélica, acordada, não conseguia fazer um movimento. -

Não ousava mover-se de medo de sentir um grande arrepio sacudi-la. Adivinhava-se uma crosta de geada em escamas sobre os quadrados da estreita janela. A claridade que se filtrava era parcimoniosa. Suficiente, porém, para que a hora parecesse avançada. Via de regra o levantar-se jcontecia na noite mais profunda... Ora, essa manhã, ninguém ainda "Se mexia.

Angélica repetia consigo que precisava levantar-se para ir acender o fogo, mas de minuto em minuto voltava a mergulhar num torpor de que lhe parecia que nunca teria forças para arrancar-se.

Como lhe ocorrera a ideia há algumas semanas, no dia seguinte a certa noite de amor, pensou novamente que talvez estivesse grávida. Tal perspectiva tirou-a da sonolência, seu sentimento hesitava entre a depressão e o vago contentamento que inspira à maioria das mulheres o aparecimento de uma nova vida em sua existência.

Meneou a cabeça. Não! Não era isso.

Era outra coisa.

Uma apreensão, quase um medo, pesava sobre o forte, e era a primeira vez que ela sentia isso desde a chegada a Wapassu.

Lembrou-se.

Havia estranhos sob o seu teto.

Não lamentava tê-los salvado, mas com eles entrara uma ameaça na casa.

Levantou-se sem ruído para não despertar o marido, que dormia perto dela, no seu sono habitual, regular e tranquilo.

Depois de calçar os borzeguins de lã, vestir o vestido de fustão, o mantelete de pele, sem mangas mas forrado, e o manto, sentiu-se melhor.

A cada semana acrescentavam mais uma peça aos "arreios". A Sra. Jonas dizia que quando o inverno terminasse elas três, sob as inúmeras superposições de roupas, pareceriam antes rolar que andar.

Como de hábito, Angélica pôs o cinto de couro que suportava à direita um coldre com a pistola, à esquerda duas bainhas, uma para o punhal, outra para a faca. Também a esse cinto ela não parava de acrescentar diversos objetozinhos indispensáveis: barbante, luvas, bolsas...

Quando tinha tudo à mão, Angélica se sentia melhor, pronta para enfrentar o mundo e a responder a tudo o que reclamavam dela. E Deus sabe como reclamavam!...

O mais frequente era Angélica torcer os cabelos num birote alto e encerrá-los sob uma coifa estreita, com as bordas ligeiramente viradas nas têmporas, à moda das grandes damas burguesas de La Rochelle.

O penteado desenhava bem a oval pura de seu rosto, dava a seus traços algo de hierático, de severo. Angélica era dessas que podem suportar sem danos um adorno tão austero. Ficava à vontade assim. Mas às vezes punha sobre a coifa branca um feltro de mosqueteiro castanho-escuro, com uma pluma lilás. As abas desse chapéu não eram estreitas a ponto de impedi-la de puxar sobre ele, quando nevava, o grande capuz forrado do manto.

Por cima dos calçados, usava em casa polainas de pele acamurçada, modeladas e costuradas à indígena e que mantinham o calor. Quando saía, punha perneiras de pele que iam até os joelhos e botas grossas.

A cada dia um peitilho limpo, bem branco e engomado, às vezes uma gola de renda, ornava o pescoço das senhoras e iluminava sua aparência austera.

Junto com as coifas imaculadas e engomadas, era a única coqueteria que se permitiam.

No instante em que Angélica deixava o quarto, alguém se preparava para bater. Quando ela entreabriu a porta, viu-se cara a cara com a pessoa ali postada.

O rosto de Elói Macollet, talhado em arestas vivas numa madeira nodosa, com a fenda negra de sua boca desdentada e o gorro escarlate novamente enterrado na testa escalpelada, não era desses que uma pessoa, mesmo que pouco nervosa, pode encontrar na penumbra sem estremecer.    

Angélica levou um susto.

Por pouco o velho não caía em cima dèlà, e assim de tão perto ela lhe viu os olhinhos brilhando como pirilampos.

Era raro encontrá-lo no forte àquela hora matinal.

Ela abriu a boca para cumprimentá-lo, mas ele lhe fez sinal para que se calasse, avançando os lábios contra o indicador levantado. Depois, caminhando na ponta dos. pés, com encantos de gnomo, dirigiu-se para a porta de entrada, gesticulando para que ela o seguisse. -

No fundo do aposento, homens se espreguiçavam e bocejavam. O fogo maior ainda não estava aceso.

Angélica puxou o manto para junto do corpo, para enfrentar o frio da manhãzinha, de transparências de safira.

-        O que há, Macollet?

Ele continuava a fázer-lhe sinal para que se calasse e avançava pela trincheira de neve como se andasse sobre ovos, com os joelhos arqueados e separados. A neve gelada choramingava estranhamente sob os passos de ambos. -

Era o único ruído.

A leste, espraiava-se uma claridade de ouro avermelhado, e o mundo, pouco a pouco, emergia em massa petrificada do azul noturno.

O odor de fumaça era particularmente denso. Ela se filtrava, lenta, espessa, pelos interstícios das placas de casca de árvore e pelo topo arredondado da wigwan de Macollet.

Angélica teve quase que ajoelhar para entrar ali, atrás do velho. Na penumbra enfumaçada, não se distinguia muita coisa. As brasas eram insuficientes para iluminar a cabana, bem ampla mas atulhada de objetos heteróclitos. Angélica discerniu apenas os três selvagens encolhidos junto do fogo, e na hora a imobilidade deles lhe pareceu estranha.

— Está vendo? - resmungou o velho.

— Não, precisamente, não estou vendo nada - disse Angélica, tossindo por causa da fumaça que lhe picava a garganta.

-        Tenha paciência, vou acender...

Ele se debateu com uma pequena lanterna de chifre. Angélica examinava apreensiva as silhuetas dos índios deitados sob cobertas.

— O que é que eles têm? Estão mortos?

— Não!... E pior!

Conseguira afinal fazer a chama brotar.

Sem cerimonia Macollet agarrou um dos huronianos pela mecha do escalpo e ergueu-Ihe a cabeça, expondo o rosto à claridade da lanterna.

O selvagem não reagiu, inerte e inconsciente. Um sopro ardente escapava-lhe dos lábios tensos, ressecados pela febre, com uma feia cor violácea. Sua pele estava muito escura, realmente vermelha, e toda pontilhada de manchas roxas.

-        Varíola!

O terror ancestral inspirado pela doença terrível passou pela boca do ancião e no clarão que lhe iluminou sub-repticiamente o olhar sob as sobrancelhas espessas.

Varíola!... Varíola vermelha... a medonha varíola...

Angélica sentiu um arrepio percorrer-lhe a espinha. Nenhum som conseguiu atravessar-lhe os lábios.

Voltou para Elói Macollet os olhos arregalados, e ficaram os dois ali, olhando-se em silêncio.

Afinal o velho cochichou:

— Foi por isso que eles caíram na neve esta noite. Já estavam com ela, com o mal vermelho!

— O que vai acontecer? - fez ela, num sopro.

— Eles vão morrer. Os índios não resistem a essa imundície... Quanto a nós... Vamos morrer também... Nem todos, naturalmente. Pode-se sair dessa, mas, claro, com um rosto esburacado como uma forma de chumbo!

Soltou a cabeça do índio, que gemeu por longo tempo e retornou à imobilidade abatida.

Angélica correu para o forte, cambaleando. Precisava encontrar Joffrey antes de começar a pensar. Caso contrário o pânico a dominaria. Sabia que se isso acontecesse teria uma única ideia na cabeça: agarrar Honorina e fugir com ela para as matas geladas, berrando.

Quando entrou na sala, Cantor acendia o fogo e Yann Le Couénnec varria a frente da lareira para ajudá-lo. Cumprimentaram-na gentilmente, alegremente. Ao vê-los, a verdade aparecia a Angélica, esmagadora, atroz.

Iam todos morrer!

Só haveria um sobrevivente: Clóvis, o auvergnat.

Ele já tivera varíola e escapara. . -

Iria enterrá-los um depois do outro...-Enterrá-los? Na verdade abrigá-los sob alguns blocos de gelo,;esperando a primavera para enterrá-los.

O quarto pareceu a Angélica o último refúgio, e o homem adormecido diante dela, na cama, com sua força sadia, a última muralha diante da morte.

Há alguns instantes havia apenas felicidade em torno dela. Uma felicidade rústica, escondida, oculta,, que não se assemelhava a nada de comum, mas uma felicidade apesar de tudo, porque o casal tinha para si o bem mais precioso: a vida, a vida triunfante.

Agora a morte se ínsinyava-entre eles como um nevoeiro, uma fumaça ao nivelada terra, e seria vão-fechar todas as saídas, ela invadiria tudo. Angélica1 chamou "a mçia voz:

-        Joffrey! Joffrey!

Nem ousava" tocá-lo, de medo de já contaminá-lo.

No entanto,~quándo~ele abriu os olhos e fitou-a com suas pupilas vivas e escuras, que .sorriam, ela esperava loucamente que também daquele perigo ele pudesse defendê-la.

— O que há, meu anjo?

— Os huronianos do Sr. de Loménie estão com varíola... Ela o admirou por nem se sobressaltar, por se levantar sem pressa,

sem dizer palavra. Passou-lhe as roupas. Ele apenas deixou de se espreguiçar longamente, como fazia com frequência ao levantar-se, com uma satisfação de grande fera que se prepara para enfrentar o mundo. E não falou.

Não havia nada- a di.zer, e ele sabia que ela não era mulher a se enganar sobre a situação, nem a se agarrar em palavras vãs de consolo.

Mas ela sentia que ele refletia."Por fim, disse:

-        Varíola? Isso me espanta. Seria preciso admitir que fosse uma epidemia trazida de Quebec. Ora, esse tipo de doença chega sempre com os navios, na primavera. Se não houve nenhum caso em Quebec desde o outono, ou seja, desde que o Saint-Laurent foi invadido pelo gelo, não pode ser varíola...

O raciocínio pareceu justo, evidente. E ela se pôs a respirar melhor, recuperou a cor.

Antes de sair ele lhe pousou a mão sobre o ombro, com uma pressão firme e rápida, e disse:

- Coragem.

CAPÍTULO XXXIII

A suspeita de enfermidade maligna - Padre Massérat, o jesuíta

Na wigwam, Joffrey de Peyrac inclinou-se longamente sob os huronianos doentes! Estçs, cer de chumbo em brasa, estavam impressionantes. Quando se lhes levantavam as pálpebras, percebia-se que estavam com os-òlhos-injetados de sangue. A respiração era sibilante e eles tinham perdido a consciência.

— Eles já estavam mais ou menos nesse estado ontem à noite quando foram recolhidos da neve - explicou Macollet. - E quando os instalei aqui achei que o torpor deles se devesse ao frio.

— O que acha, Macollet? - indagou .Peyrac. - Não dá para se pronunciar, hein? Os sintomas são bem os de varíola, não nego, mas ainda não se vêem nos corpos deles as pústulas características. Apenas manchas vermelhas...

O canadense balançou a cabeça, dubitativo. Havia que esperar... Não havia outra coisa a fazer.

Falaram os três em voz baixa das precauções a tomar e das dire-trizes a dar. Macollet declarou que- se encarregaria dos huronianos. Sua experiência lhe ensinava que o álcool era um bom protetor contra todas as epidemias e infecções.

Ele se instalaria ali, com um barril de aguardente.

O velho reconheceu, meneando a cabeça,, que as piores situações no final têm suas vantagens. Ele beberia a aguardente e, com frequência, lavaria a boca com ela, bem como as mãos que tocavam os selvagens.

Perto de sua wigwam instalaria uma cabaninha, para fazerem suadouro. Ele passaria por ali cada vez que se dirigisse ao forte

e trocaria de roupa.

-        Não se preocupem comigo, estive com os montanheses e com os huronianos quando houve a grande epidemia de varíola que os dizimou em 1662. Eu ia de uma aldeia a outra e só topava com mortos. Escapei. Vou fazer estes aqui tomarem um caldo de erva e manter-lhes o fogo aceso. Depois, veremos...

-        'Vou buscar-lhe provisões e ervas para as tisanas - disse Angélica.

Seu passo estava mais firme ao retornar. Ela precisava conservar toda a calma. O dia chegara, rosado, frio, sereno.

Ao entrar na sala, viu-se cara a cara com o mais autêntico jesuíta que se podia imaginar.

Era um religioso de estatura mediana, roliço, uma expressão de bonomia inscrita nos traços amenos. Os olhos eram sorridentes, a testa lisa, a barba opulenta. A sotaina era de droguete bom e resistente. Ele usava um cinto de couro preto, que suportava alguns objetos pequenos: faca, bolsa... E no peito, uma cruz negra bem grande, com os quatro cantos de cobre, presa por um cordão de seda. O pescoço, um pouco grosso, transbordava de um colarinho duro, ereto, forrado de linho branco.

-        Apresento-me - disse. - Sou o Padre Massérat, da Companhia de Jesus.

Ao vê-lo num momento daqueles, Angélica se sentiu atingida como que por uma aparição. Recuou vários passos e precisou apoiar-se na parede.

— Mas - balbuciou -, de onde saiu?

— Desta cama, senhora - disse ele, com um gesto para o fundo do aposento -, desta cama onde me depôs a senhora mesma, ontem à noite, com tantos cuidados.

Ela entendeu então que ele era um dos que na véspera tinham sido arrancados bem na hora ao sepultamento mortal. Não fora ele, precisamente, que ela descobrira primeiro e que puxara para fora da neve?

Sob a capota Jura de gelo, ela não adivinhara a batina.

-        Sim, era eu mesmo - disse ele, como se lhe acompanhasse os pensamentos. - A senhora me carregou às costas. Tive consciência disso, mas estava endurecido e paralisado demais pelo frio para me apresentar e agradecer naquele momento.

Os olhos continuavam a sorrir, mas observavam-na com uma atenção aguda, e por trás daquela alegria podia-se notar uma circunspecção astuta e lúcida de camponês. Angélica passou pelo rosto duas mãos desorientadas.

-        Padre, como apresentar-lhe as minhas desculpas... Eu estava tão longe de pensar que tínhamos um jesuíta entre nossos hóspedes... e estou sob o choque de uma notícia terrível.

Aproximou-se e murmurou-lhe:

— Teme-se que os huronianos estejam acometidos de varíola. O rosto bonachão do Padre" Massérat mudou de cor.

— Diabo! - exclamou, empalidecendo.

Tal exclamação em sua boca era sinal de" uma viva emoção.

— Onde estão eles?

— Na wigwam do velho Macollet. E como ele acorresse- para fora:

— Espere! Não saia assim, padre! Faz um frio terrível.

Ela pegou o-grande manto preto de gola alta que ele colocara sobre um canto da.mesa e atirou-o ela mesma à volta dos ombros dele, envolvendo-o bem."

Em outras-circunstâncias talvez não tivesse agido assim. Se, por exemplo, o respeitável jesuíta lhe .tivesse sido apresentado num salão.

Mas, atordoada pela inquietação, seus gestos começaram a se tornar mecânicos e ela se sentia intensamente responsável pela saúde de cada um, a ponto de temer que o jesuíta, apanhando frio, se tornasse vulnerável à doença. Estendeu-lhe o chapéu também. Ele se afastou a grandes passadas.

Angélica achou que precisava beber algo quente para se recompor. Aproximou-se da lareira, verteu um pouco de água fervente numa tigela de madeira e pegou de sobre mesa a garrafa de sidra.

Alguns homens acabavam de tomar uma sopa que eles próprios haviam esquentado. Outros mergulhavam nacos de bolo de milho frio numa dose de aguardente.

-        Ainda nío viram a Sra. Jonas? - perguntou-lhes Angélica.

Menearam negativamente a cabeça.

Estavam intimidados pela presença dos estranhos sentados à extremidade da mesa. Um deles era o que se apresentara como Barão d'Arreboust.       

O barão era grande e forte, tinha as têmporas grisalhando, um porte de gentil-homem, e dera-se ao trabalho de barbear-se. O outro era um rapaz alto, de cara austera.

Mas Angélica, absorta, sequer os notou.

Preocupava-se com a ausência da Sra. Jonas, que era sempre a primeira a levantar-se e se incumbia de pôr os fogos e as panelas em andamento.

Tampouco o Sr. Jonas e Elvira tinham aparecido.

Será que a doença já. fizera vítimas? E as crianças?

Angélica forçou-se a não ir procurar saber deles antes de tomar as precauções recomendadas pelo Conde de Peyrac. Voltou ao quarto, trocou a roupa de cima, que expôs ao ar gelado, pelo vestido da véspera, que usara durante a ceia da Epifania, mudou de coifa, esfregou as mãos e lavou a boca com aguardente.

Depois foi bater, com o coração disparado, na porta dos Jonas. Ficou aliviada ao ouvir vozes em resposta.

As crianças estavam em pé e vestidas, brincando num canto, mas os três rocheleses, cada um sentado num escabelo, muito ere-tos, voltaram para ela um rosto pálido e entristecido.

— Está sabendo? - murmuraram.

— Infelizmente!

— O que será de nós?

— Mas como foi que já foram informados? - perguntou Angélica.

— Oh, percebemos quase imediatamente quando os trouxeram, ontem à noite.

— Poderiam ter-nos dito logo.

— Para quê? Não se pode fazer nada.

— Teríamos tomado na hora as precauções necessárias... O Sr. Jonas olhou-a sem entender.

— Precauções?

— Mas... do que estais falando? - exclamou Angélica.

— Do jesuíta, ora! Angélica riu, nervosa.

-       Bem que desconfiei um pouco, ontem à noite, que era um jesuíta - explicou a Sra. Jonas. - Havia alguma coisa naquele barbudo que não me inspirava confiança, embora estivesse tão congelado quanto os demais. Mas esta manha, quando o vi entrando na sala, todo escuro da cabeça aos pés, com sua batina preta, o colarinho duro, a cruz, tive a impressão de que ia desmaiar. Ainda estou tremendo...

-        Há coisa pior que o jesuíta aqui - disse Angélica tristemente.

Expôs-lhes a situação.

O isolamento era o melhor meio de defesa contra o contágio.

Até segunda ordem, os Jonas ficariam em seu apartamento com as crianças.

Levar-lhes-iam provisões, e eles preparariam suas refeições, para si e para as crianças. Tomariam arjsaindo pelos fundos da casa.

A neve estava bem alta, de modo que poderiam sair pela janela sem dificuldade. 

Graças a essas precauções, talvez evitassem ser atingidos pela praga terrível.     

Ao retornar à sala, Angélica viu que um grupo rodeava uma das camas, no fundo do cómodo, perto do dormitório dos homens.

Ela se aproximou e reconheceu sobre o travesseiro o rosto arroxeado do Conde de Loménie, que já mergulhara na inconsciência.

CAPITULO XXXIV

Incidente hilariante, apesar da tragédia

Um dos huronianos morreu naquela noite, devidamente confessado e assistido pelo Padre Massérat.

- Pelo menos - dizia Nicolau Perrot - teremos o socorro da Igreja ao nosso alcance. Não é muito frequente para os que morrem durante o inverno no fundo das matas.

O Conde de Loménie tinha sido transportado para um dos celeiros.

A chaminé da lareira atravessava o celeiro, o que conduzia algum calor. Além disso, pôs-se ali um braseiro e deixou-se o alçapão aberto.

Por medo de um incêndio, o grande medo do inverno, alguém ficaria permanentemente à cabeceira do doente. De resto, era necessário vigiá-lo, pois ele estava muito agitado e tentava levantar -se. Era preciso dar-lhe de beber, umedecer-lhe as têmporas, cobri-lo o tempo todo. Angélica se fez ajudar por Clóvis, o auvergnat. Ele não tinha nenhuma disposição particular para o papel de enfermeiro, mas apenas o ferreiro tivera varíola e por isso era o único que podia aproximar-se impunemente do doente.

Angélica punha as luvas de pele que lhe haviam dado na véspera para administrar os cuidados que o estado do pobre conde reclamava. Não tinha certeza absoluta de que essas medidas bastariam. Deixava as luvas à cabeceira do doente e recolocava-as quando retornava.

Passou o resto do dia fervendo enormes quantidades de água e desfolhando tudo o que tinha como raízes e folhas medicinais.

Além de tudo, tinha que assumir o trabalho da Sra. Jonas e de Elvira. Vendo isso, o Conde de Peyrac pôs dois homens à sua disposição. O conde trabalhava na oficina, como de hábito, mas esteve diversas vezes junto à cabeceira- do Conde de Loménie e na wigwam de Elói Macollet, que-Hdava filosoficamente com os seus doentes, fumando cachimbo atrás, de cachinabo e tomando gole atrás de gole.

Quando retornou de sua última'visita da noite, estava acompanhado do padre jesuíta e anunciou a morte do primeiro huroniano.

O jantar estava pronto. Puseram-se-todos à mesa, mas muitos tinham um nó na garganta. Cada um espreitava no rosto do outro o reflexo de uma condenação mais ou menos breve. Olhava primeiro os três estranhos: o jesuíta, o Barão d'Arreboust e o rapaz muito alto, que só descerrava os dentes para comer. Todos se tranquilizaram ao vê-lo comer com bom apetite, pois na ordem lógica das" coisas-também eles deveriam ter sido atingidos pela varíola.

Falou-se da prática corrente nos países do Levante de se protegerem da doença esfregando uma fejrida artificialmente provocada pela ponta de uma faca* ou lâmina cega nas pústulas ainda úmidas de um enfermo curado. Alguns desses curados até faziam comércio dfsso, mantendo suas pústulas durante anos e indo de cidade em cidade propor às pessoas o contato salvador.

Mas ali na América as condições desse tratamento de preservação não eram as mesmas. As pústulas do único varioloso que tinham à disposição, Clóvis, estavam secas e ineficazes há muito tempo, o huroniano estava morto, aliás morrera antes de as pústulas características fazerem a sua aparição... Não havia chance!

Essas conversas à mesa acabaram de eliminar o apetite de Angélica, que já precisava se forçar a engolir algumas colheradas.

Como sói acontecer nesses dias, as crianças, liberadas de uma tutela severa pela ansiedade concentrada dos adultos, obedeceram ao instinto de sua idade entregando-se a façanhas imprevisíveis.

Subitamente ouviu-se um grito terrível vindo do apartamento do Jonas, e Angélica, a primeira a acorrer, viu-se diante de uma Elvira soluçante e do casal Jonas, mudo de assombro. Apontavam-lhe alguma coisa num canto, ou melhor, alguém, que ela não reconheceu de imediato.

Era Honorina.

Aproveitando-se do milagre graças ao qual a atenção dos adultos se desviara dela, Honorina resolvera fazer um penteado à iro-quesa e convencera o pequeno Tomás a ajudá-la.

O trabalho não foi fácil, e apesar da atividade sucessiva e simultânea de um par de tesouras e de uma navalha, as duas crianças levaram uma boa hora para fazer cair ao chão a pesada cabeleira de Honorina, deixando no alto do crânio apenas a cimeira gloriosa' da mecha do escalpo.

Quando Elvira, inquieta com o silêncio deles, descobriu as duas crianças, elas tentavam avaliar o resultado debruçando-se sobre um pedaço de armadura que lhes servia de espelho.

Os gritos da jovem, as exclamações desoladas dos Jonas, a irrupção de Angélica, imobilizaram-nos no canto, muito pequenos e de olhos arregalados.

Os dois estavam desconcertados, mas de modo algum convencidos de sua tolice.

- A gente ainda não acabou - disse Tomás. - Eu ainda vou pôr as plumas nela.

Angélica desabou sobre um banquinho- Caiu numa risada interminável. A carinha redonda de Honorina, encimada por aquela crista vermelha e eriçada, estava realmente muito engraçada.

Havia uma boa dose de nervosismo no riso, mas o que fazer? Há dias em que os demónios parecem ter uma licença particular para atormentar os seres humanos. Quem se deixa atingir, é dominado e reduzido à demência.

A Elvira, que continuava a chorar e a quem a reação materna escandalizava, ela tentou explicar que naquele dia estavam acontecendo muitas coisas muito mais graves, para que se desse importância àquilo.

O milagre era que Honorina saía da aventura sem uma orelha cortada, sem sequer um arranhão. Quem sabe? Talvez o pequeno Tomás tivesse inclinações para o ofício de barbeiro!

O casal Jonas propunha castigos sérios: as crianças deviam ser privadas de pão e de queijo. Mas Angélica se interpôs. Não hoje, e principalmente nada de privá-los de pão e queijo; eles precisavam conservar todas as forças para terem algumas chances de resistir à epidemia aterrorizante.

Séria de novo, aproximou-se dos dois garotinhos e disse com severidade que, pegando as tesouras e uma navalha sem pedir permissão, eles tinham cometido uma grave desobediência. E só se conteve de aplicar-lhes um sonoro par de bofetadas por medo do contagio.

Decididamente os diabinhos tinham escolhido bem o dia.

Foram ambos mandados para a cama, no escuro. Apenas essa punição, a que eles eram sensíveis, podia fazer-lhes bem.

No salão, Angélica relatou as façanhas de Honorina. O relato provocou um grande acesso de riso, que descontraiu a atmosfera.

Todos pressentiam que essa maneira de fazer pouco-caso do azar talvez afastasse os génios funestos. Honorina acabava de proclamar bem alto com seus gestos que hão se preocupava com a varíola.

Tinha outras coisas a fazer.

Isso bem podia desconcertar, desapontar os espíritos tenebrosos, que nem sempre são sutis para entender as reações humanas.

Outro fator de consolo foi a descoberta de pão e queijo nas bagagens dos canadenses.

Três homens tinham regressado à extremidade do lago para de-sencavar da neve e do gelo o-resto do equipamento dos franceses. Entre os víveres habituais - carne-seca e toucinho salgado, farinha de trigo-da-índia (milho) e tabaco, bem como suficientes provisões de aguardente -, tinham encontrado a metade de uma grande forma de queijo e um pão de trigo inteiro. Tudo duro como pedra.

Mas bastou enfiar o pão no forno e pôr o queijo junto às cinzas para devolver a cada um as qualidades de seu estado original.

O pão estava morno, o queijo, tenro sem excesso e com um perfume excelente.  

Os franceses insistiram em dividir com os anfitriões as vitualhas de que se nutriam comumente em Quebec, mas de que os habitantes das florestas estavam privados.

Alguns falaram do possível contágio trazido naquelas comidas. Mas a gula falou mais alto. Angélica hesitou. Depois, azar! Traçou uma cruz sobre os pedaços de pão e de queijo, para conjurar os maus espíritos, e mandou uns bocados às duas crianças castigadas, cujas lágrimas se tornaram menos amargas.

CAPITULO XXXV

A luta contra a doença - Novos projetos de desbravamentos

Os homens do forte de Wapassu tinham recebido com sangue-frio o comunicado da ameaça que pesava sobre eles. Em seu fatalismo, havia em muitos sentimentos realmente cristãos, resignação à vontade de Deus.

Angélica não possuía esse tipo de resignação. Amava a vida com uma paixão tornada ainda mais forte pelo fato de lhe parecer que fazia pouco tempo que conhecia toda a magnificência dessa vida.

E não queria que Honorina nem os outros filhos fossem privados na flor da idade desse fruto saboroso. A morte de crianças ou de rapazes era um crime pelo qual ela se sentiria responsável.

Mas há momentos em que é preciso saber sacrificar a própria vida, por si e pelos seus, admitir que o cutelo pode tombar a qualquer hora um dia, entregar-se sem revolta inútil a esse destino que é o destino de todos...

"É assim que se caminha com a vida e a morte por companheiras - ambas têm a sua importância, não se deve temer a morte!"

Quem lhe dissera essas palavras impregnadas de grandeza? Co-lin Paturel, o rei dos escravos de Miquenez, um normando, um simples marinheiro, da mesma espécie dos que estavam ali, reunidos numa terra estrangeira e cativos do inverno...

Quando Joffrey de Peyrac decidiu velar uma parte da noite o gentil-homem doente, para em seguida ceder o turno de guarda ao ferreiro, Angélica não temeu por ele. Sentia-o invulnerável diante da doença.

No oitavo dia, o último dos huronianos morreu, consumido de febre e crivado de manchas vermelhas.

Mas nada de pústulas.

Ao amanhecer do dia seguinte, vindo substituir Clóvis, o au-vergnat, na vigília, Angélica encontrou-o quase inconsciente, a respiração curta, q rosto vermelho tomo o metal de sua forja e muito pior do que o doente que-ele velaya. s-

Angélica examinou-o um longo rhomento/Depois caiu de joelhos, exclamando: - Deus seja louvado!

O auvergnat haveria de odiá-lâ um bórri tempo pela exclamação. Podiam contar-lhe fosse o que fosse, ele não se convencia: a senhora condessa se regozijara de vê-lo doente.

Ela sequer se preocupara em socorrê-lo. Dissera: - Deus seja louvado! - E, deixando-o ali, saíra correndo para anunciar a todo mundo: - Clóvis esta doente. Regozijem-se...

Ele a ouvira nitidamente, com seus próprios ouvidos.

E 'ela pulara ao- pescoço do primeiro que encontrara, por acaso, Nicolau Perrot.

Ninguém conseguiu-fazer Clóvis entender que o que deixara Angélica tão contente-ao vê-lo, um ex-varioloso, acometido pelo contágio, fora a prova e a certeza, afinal, de que não era varíola!

Era uma rubéola maligna, e muitos a contraíram, mas a doença já não apresentava a "gravidade da peste terrível.

Os huronianos morreram, sim, mas eles morriam por pouca coisa, conforme os canadenses podiam atestar. Uma simples gripe os punha nas últimas. É úma raça frágil desde que fez aliança com os brancos. Seus génios protetores parecem tê-los abandonado, e muitos chegaram a acusar o batismo de ser a causa de sua ruína e da extinção de sua raça.

Atingidos por uma febre maligna, não podiam resistir.

Durante várias semanas a doença ia requerer todas as forças dos habitantes de Wapassu.

Paixões, rancores e projetos deviam silenciar. Foram postos de lado, para depois. Mas de início era preciso tirar daquele túnel vermelho onde permanecia escondida no escuro, a inimiga, a morte. Até o último convalescente que se levantasse, pálido e vacilante, para ir sentar-se à mesa comum e cuja presença seria celebrada com vivas e copos levantados, a morte podia atacar. Era preciso combater pé a pé, fazer a febre recuar, enfrentar os desmaios, as recaídas, ajudar a atravessar a crise, tomar nos braços um doente que se debatesse, ardendo, levá-lo por longas horas, como na crista de uma onda ou dentro dela, até o outro lado, lá onde ele, esgotado, coberto de suor, vai finalmente dar na praia da vida. Então Angélica contemplava o corpo inerte. A atitude era a mesma. O sopro que separava a vida da morte era imperceptível. Mas Angélica sabia que o mais difícil fora vencido, que ele viveria. Para ficar bem certa, ainda pousava a mão sobre a testa, as têmporas, de onde vinham, como uma tempestade, as pulsações incandescentes da febrç, depois, tranquilizada, ela o cobria cuidadosamente, providenciava para que ele não sentisse frio, e ia para a cabeceira de outro.

Ver um doente triunfando da provação dava-lhe grandes forças, e ela guardava para ele a simpatia e a estima que inspira um bom combatente. Reconhecimento também. Pelo menos aquele não a abandonara, não a desacreditara, não a deixara vencida com suas pobres armas irrisórias.

-        Não me deixe. Não me deixe - dizia-lhe ela. - Não posso fazer tudo, você tem que me ajudar.

Depois, restava entre ela e aqueles que ela ajudara a sarar a solidariedade de se terem batido lado a lado. Pela vida, contra a morte.

Diante da doença os homens tendem a entregar-se, a ceder. E uma inimiga que os subjuga facilmente porque lhes repugna e eles não querem encará-la. Angélica os sacudia, obrigava-os a dosar o poder da adversária e a se organizar para reagir. Explicava-lhes:

-        Amanhã você estará mal. Não me chame a cada cinco minutos, pois não posso me ocupar de todo mundo ao mesmo tempo, e isso sem dúvida vai durar algumas horas... Deixarei perto de você uma tigela de tisana e uma taça. Tudo o que terá que fazer é bebê-la, mas beba de fato. Quando se está diante de alguém que nos quer mal, a gente saca a faca. Não se espera que alguém o faça pela gente...

Com isso ela dava a impressão de deixá-los por conta própria. Mas eles a sentiam presente o tempo todo. Passava, lançava apenas uma olhada rápida, mas o seu sorriso dizia "bravo, você não está me desapontando!", e isso os revigorava em sua lassidão, seu quase delírio, seu desejo de entregar-se totalmente. Depois, quando era necessário, ela podia sentar por muito tempo à cabeceira deles, e ficar horas ali sem se impacientar nem se desencorajar.

No começo as três mulheres se revezavam na vigília noturna. Joffrey de Peyrac com frequência assumia- as horas do amanhecer, as piores, mas constatava que a presença de Angélica tinha a virtude de uma panaceia. Gostaria de poupar-lhe uma fadiga sobre-humana que pouco a pouco lhe consumia as feições, dava-lhe olheiras. A falta de sono foi o que mais a desgastou. Apesar disso, parecia ao conde que se ela passasse uma noite inteira sem ir ver os seus doentes, ao despertar ela os encontraria todos mortos ou moribundos. Obriga va-sè-a fazer no, mini mo uma vez toda noite uma ronda, indo de uni á outro, inclinando-se sobre cada um. Ajeitava cobertas, pousava a mão sobre testas ardentes, ajudava alguém a tomar uns goles, murmurava palavras de consolo.

No torpor da doença, eles ouviaru-.lhe a voz, saboreavam-lhe a inflexão, suave como um bálsamo, como uma carícia, reservada apenas a eles, e quando ela se inclinava uni pouco mais, velando com sua sombra a luz difusa vinda do. fogo ou da lanterna, os sentidos deles, ao mesmo tempo.entorpecidos e exacerbados pela sensibilidade da febre, regozijavam-se de perceber aquele odor de mulher, e na abertura da blusa a claridade de seu pescoço roliço, um prazer furtivo, menos-malicioso do que nostálgico, o de uma presença cálida e maternal que lhes devolvia a segurança longínqua, deliciosa e nunca esquecida da infância.

Uma noite Loménie-Chambord achou que ia morrer. Em seu espírito se esfumava toda a sua vida passada. Ele estava em outro mundo, doxmtro lado da porta que ele jamais ousara empurrar. Pela abertura do alçapão chegavam-lhe ruídos de vozes, odores de refeições, um zumbido confuso, e esses.sons familiares adquiriam uma densidade e um significado novos. Descobria neles um sabor excepcional, o mesmo da vida. A vida que ele nunca saboreava. E agora que ia morrer, todo o seu ser tinha daquele gosto uma percepção carnal, ainda que difusa. E ele, que passara a existência a aspirar pelo dia da- morte e pelo encontro com Deus, lamentava deixar a terra material e rude, a ponto de lhe escorrerem lágrimas dos olhos. Estava sufocando. Sentia-se só. Então se pôs a espreitar a- visita da Sra. de Peyrac ao celeiro escuro como a de um anjo salvador. Quando ela veio, entendeu de imediato, com um único olhar, as angústias dele, tranqiiilizou-o com palavras calmas e sérias: - Você se'sente mal porque está prestes a ter uma crise... A cura virá logo depois.- Tenha confiança... Você vai atravessar esse mau passo... Se estivesse em perigo, eu saberia... Tenho uma grande experiência de doentes e feridos... Você não está em perigo...

Ele acreditou imediatamente nela e já respirou melhor. Ela o envolveu numa coberta, ajudou-o a levantar-se e amparou-o para levá-lo até uma cadeira, onde o fez sentar-se. Ele ainda sentia a pressão daquele braço de mulher sustentando-lhe a fraqueza.

Depois ela tirou os lençóis úmidos, sacudiu a palha da enxerga esmagada pelo peso do corpo febril, arejou as cobertas e pôs lençóis limpos, tudo isso com gestos amplos, precisos, mas tão harmoniosos, em sua vivacidade, que ele não se cansava de mirá-la. Angélica ajudou-o a deitar-se novamente e ele se lembrava do bem-estar da roupa frescal sua volta. Finalmente ela se sentou à cabeceira dele e, enquanto ele se entregava ao torpor da febre, ela pousou-lhe a mão sobre a testa úmida, a mão como um talismã, um símbolo precioso, uma força indefectível, que barrava a estrada aos fantasmas, sua mão como uma certeza, uma promessa, uma calma atenção, uma luz que vela... Um coração que vela. O conde adormeceu como uma criança, para despertar fraco mas disposto, curado.

Quando ele desceu do celeiro e tomou lugar à mesa comum, fizeram-lhe uma festa como para os demais. Para os franceses a exiguidade do forte se adequava mal à sua situação de prisioneiros. Depois de tê-los cuidado como a recém-nascidos, Angélica dificilmente podia afastá-los e não velar pela convalescença deles...

Houve um período, pelo final de janeiro, em que mais da metade do contingente estava de cama. Por umas três semanas a doença atingiu o auge.

O próprio Joffrey de Peyrac foi atingido, e com certa violência, mas levantou-se antes dos outros. Durante alguns dias a intensidade da febre o deixou quase inconsciente.

Angélica tratou-o, surpreendendo-se por não se sentir mais inquieta. Assim deitado, rígido, parecia que uma força indestrutível continuava a emanar dele, e a doença não chegava a derrubá-lo, a torná-lo lastimoso.

Angélica examinava suas lembranças e de fato nunca o via inspirando piedade. Mesmo quando era um destroço humano de camisola, a corda ao pescoço, no átrio de Notre-Dame, na abjeção de seu corpo torturado, ele não parecia menos forte do que os demais. E era da multidão odienta e tola, no mínimo histérica, meio louca, que se seria tentado a sentir piedade... O que ele possuía, nada e ninguém poderiam tirar-lhe nunca.

Entre os resgatados da noite da Epifania, o Padre Massérat foi o único a não contrair o mal vermelho, e para Angélica ele se revelou um precioso auxiliar. Infatigável, de solicitude a toda prova, ele se incumbia das tarefas mais repugnantes, poupando-a, assim, das fadigas mais pesadas, pois levantar o tempo todo homens inertes, alguns dos quais estavam entre os espécimes mais atléticos da humanidade, esgptava-a. O padre jesuíta agarrava o enfermo como um boneco, remexia a palha, estendia as"epbertas, e quando o doente estava deitado de novo,'dava-lhe a sopa na boca, com uma paciência de babá. Como muitos de seus colegas, ele cuidara de selvagens nas epidemias, por vçzes o único homem válido para aldeias inteiras, indo de cabana em. cabana. Contava com bom humor que a coisa sempre acabava mal, pois os selvagens, como crianças, acusavam-no de querer fazê-los morrer de fome, dando-lhes apenas sopa e guardando para si somente a carne e os legumes, e como ele passava bem de saúde, não demoravam a responsabilizá-lo pelas infelicidades que os abatiam.

Os tempos de calamidade~são favoráveis aos feiticeiros, que logo se puseram a contarias suas .ovelhas que os deuses estavam irritados porque as aldeias tinham acolhido o Casaco Negro... Mal os doentes recobravam algumas forças, e o jesuíta tinha que desaparecer no fundo das matas, para evitar a morte... O padre tinha sempre uma história a contar para distrair seus pacientes. Divertia as crianças é fazfa-lhes companhia, brincando com elas na sua convalescença, sem.se importar com os três huguenotes, que se refugiavam num canto do quarto sem ousarem mexer-se, esperando o pior...

Quando o cuidado dos doentes lhe dava uma trégua, ele envolvia na cintura curta e quadrada um avental de pano engomado e ia fazer cerveja na adega, fabricar sabão ou mesmo lavar roupa energicamente.

A Angélica, que, confusa, tentava interpor-se, ele opunha uma-força de inércia absolutamente jesuítica.

Como contiauar inimigos depois disso?

Assim, foi sem paixão nem animosidade preconcebida que se abordaram as questões que tinham ficado pendentes na noite de Reis.

O Sr. de Loménie, assim que se recuperou, não escondeu a Peyrac que ele de fato fora enviado pelo Sr. de Frontenac para pedir-lhe que financiasse a expedição que tinha por finalidade explorar o curso do grande rio Mississipi, o qual, certamente, desembocava no mar da China. O governador queria encarregar da missão o seu homem de confiança, Roberto Cavelier de La Salle, que era precisamente o rapaz alto, frio e austero que os acompanhara ao forte de Wapassu. A este os lingotes de ouro, entre os quais tinham deitado Pont-Briand na primeira noite, não escaparam. Mas depois disso ele ficara doente como um cão. Assim que sarou, porém, conversou com Loménie e Arreboust, impelindo-os a levar a bom termo as conversações com o senhor de Wapassu.

— Então o senhor é mesmo tão rico quanto se diz? - perguntou ao conde o Cavaleiro de Malta.

— Sou, e ficarei mais ainda com o trabalho que, precisamente, vim executar aqui.'

Florimond estava no sétimo céu, pois explorar o Mississipi e descobrir o mar da China era o seu sonho secreto. Projeto que nutria desde a infância. Cartógrafo consumado, sonhava diante do desconhecido dos pergaminhos que ele próprio desenhava e sobre os quais se entregava a cálculos e a verificações intermináveis.

Assim que soube das intenções do Sr. de La Salle não se afastou mais dele. Era um homem frio, que aparentava muito menos idade do que a real, e que tinha atrás de si a experiência de uma vida bem diversificada. Era de uma suscetibilidade de adolescente, exigia que o chamassem ora de Sr. de La Salle, ora de Cavelier, quando lhe atravessava o espírito que o Canadá seria criado e conquistado por homens simples. Fora recentemente nobilitado, e para que Angélica não pudesse duvidar dele, coisa em que ela nem pensava, mostrou-lhe as cartas assinadas pelo rei: 'Ao nosso caro e bem-amado Roberto Cavelier de La Salle, pelo bom e louvável relatório que nos foi feito das boas ações que ele executou no país do Canadá..."

Um galgo correndo em fundo de areia encimado por uma estrela de oito raios de ouro tornou-se o brasão simbólico do novo senhor. Com isso, ele possuía uma erudição certa, uma coragem a toda prova, uma tenacidade de visionário. Persuadido de que um dia seria o descobridor da famosa passagem da China, o sonho de todos os audaciosos que ousaram lançar-se para oeste, ao mar das Trevas, no século passado, ele se impacientava por ainda não ter alcançado seu objetivo... e retornado. Florimond o entendia.

-        Tenho certeza de que esse rio imenso que os índios chamam de pai das águas nos levará, sem sairmos da canoa, até a China; Não acredita, pai?

Não, Joffrey de Peyrac não acreditava nisso, e ao entusiasmo do filho opunha um muxoxo de dúvida que atormentava o rapaz, mas nem por isso o desencorajava.

Angélica ficava desolada por Florimond. Na qualidade de mãe admiradora e -tocada pelo entusiasmo juvenil, bem que gostaria de oferecer o mar da China ao filho numa bandeja, mas por outro lado a confiança de devota qiié tinha no génio científico do marido não lhe permitia ter esperança. Joffrey de Peyrac reconhecia, porém, que as suas dúvidas não repousavam sobre dados precisos.

— Na verdade - dizia Florimond -, o seu ceticismo não é confirmado por cálculos...

— De fato! No estado _atual dos nossos conhecimentos, seria difícil estabelecê-los...

— O melhor então, é ir até lá, ver...

— Certamente...

— Penso que seria bom deixar Florimond acompanhar essa gente fanática, iluminada-^ genial em sua expedição - disse ele uma noite a Angélica. - Em contato com eles, ele aprenderia o valor das qualidades contrárias: o das medidas, da organização, e que uma sólida formação científica pode às vezes substituir facilmente o génio. Por outro lado, realizaria seu sonho de exploração na companhia de homens a.quem nada pode descorçoar e que nunca se mostram tão engenhosos quanto rias situações difíceis e mesmo desesperadas. É o dom próprio do francês. Florimond, que é muito pouco provido disso, poderá desenvolvê-lo folgadamente, sem que a severa e prudente mentalidade anglo-saxã venha resfriar-lhe os ardores. Por outro lado ainda, se eles alcançarem êxito, isso me dará um lugar decisivo na América do Norte. Caso fracassem, restará que financiei a expedição e evitei que o Sr. de Frontenac onerasse com ela o tesouro público. Por simples reconhecimento - e é um homem honesto, gascão ainda por cima -, ele fará questão de preservar a minha situação nas fronteiras de sua colónia. Se avanço esse ouro como fundo perdido, extrairei pelo menos uma vantagem moral, e para o nosso filho mais velho uma escola sem preço, sem contarrjS planos, notas e informações que me trará sobre o subsolo das regiões atravessadas. Coisa que Cavelier, apesar de alguma experiência, não poderia fazer. Nesse sentido. Florimond já é mais sábio do que ele...

CAPITULO XXXVI

Carisma de Angélica no serões de Wapassu

Ao saber da decisão do pai, Florimond recuperou a espontaneidade da infância para se lançar contra ele e beijá-lo; depois, ajoelhando, beijou-lhe a mão. A tempestade, que foi quase ininterrupta durante quase dois meses, substituída por abundantes ne-vascas, impedia qualquer partida para um percurso muito longo. Munido do viático concedido por Peyrac, Cavelier de La Salle não pretendia retornar a Quebec, mas seguir para oeste, a fim de atingir Montreal pelo lago Champlain. Nos arredores de Ville-Marie ele possuía uma propriedade com um modesto solar a que os habitantes da região haviam batizado de "A China", tanto o proprietário lhes enchia os ouvidos com seus projetos. Ali ele prepararia a expedição, compraria mercadorias de troca, armas, canoas. Depois seria a partida para os grandes lagos e Cataracui, a primeira etapa. Peyrac entregou ao filho determinado número de lingotes de ouro e uma carta de crédito para um tal Lemoyne, comerciante em Ville-Marie de Montreal, que se incumbiria de entregar-lhes o equivalente em mercadorias.

— O quê! - exclamou Cavelier. - Não me farão crer que esse velho bandido é capaz de amoedar ouro puro.

— Faz mais do que isso - disse o Barão dArreboust. - Acredita que ele seria tão rico se não fosse a Orange traficar com os ingleses? O papel do Canadá não vale o ouro desses senhores! Olhem!

Tirou da bolsa uma moeda de ouro, que atirou sobre a mesa.

-        Esta é uma moeda corrente, que levava consigo um prisioneiro inglês que os abenakis nos venderam em Montreal, no outono. Leiam o que está escrito em torno da efígie de Jaime II: rei da Inglaterra, duque da Normandia, da Bretanha e... rei da França!... Estão ouvindo bem: rei da França. Como se não lhes tivéssemos retomado a Aquitânia,' o Maine e o Anjou há mais de trezentos anos, com a santa menina Joana d Are... Mas não, eles se obstinam. Deram a uma dás novas pfovíncias que pretendem colonizar o nome de Maine„ a pretexto de que a rainha da Inglaterra foi outrora soberana dessa província francesa. É com esse ouro insultante que se faz pagar um Lemoyne...

-        Não se aborreça, barão - disse Peyrac, sorrindo -, enquanto os ingleses se limitarem a alguns golpes de buril em seus escudos para afirmar sua soberania sobre a França, não é grave. E não tente saber o que fazem esses grandes homens do Canadá, os Lemoyne ou os Le Ber, quando se enfiam na floresta, pois eles são os pilares da sua colónia, não só os primeiros que chegaram, mas os mais astutos, os mais fortes e também... os mais ricos.

O Padre Massérat tirou da boca o cachimbinho curto, feito de raiz de espinheiro.

— Essas pessoas são muito piedo*sas, devotadas à Igreja. Diz-se que uma filha de Le Ber vai entrar para o convento...

— Que sejam absolvidos, então! - exclamou Peyrac. - E quanto às mercadorias, pode confiar, Sr. de La Salle.

Angélica estendeu a mão para a moeda jogada pelo Sr. d'Arreboust.   

— Dá-me essa moeda?

— De bom grado, senhora... Se isso lhe agrada... O que fará com ela?

— Um talismã, talvez. .

Fê-la pular na palma da mão. Era uma moeda comum, com o peso de um luís. Mas naquele arredondado imperfeito, nas inscrições em inglês antigo, Angélica encontrava um encanto estranho. Havia muitas coisas contidas naquela moeda: ouro, a Inglaterra, a França, ódios hereditários, que prosseguiam até no fundo das florestas do outro mundo, e ela imaginava o espanto do pobre inglês, arrancado à sua praia de Casco e aos seus bacalhaus para ser arrastado por índios emplumados até aqueles medonhos mercadores de peles papistas do Saint-Laurent.

-        Ele não entendeu nada da nossa cólera - explicou ainda d'Arreboust. - Enfiamos-lhe embaixo do nariz a moeda que lhe achamos na bolsa... Rei da França! "Oh, yes!" dizia ele. Por que não! Ele sempre vira isso inscrito na sua moeda nacional... Saibam, foi justamente a Sra. Le Ber que resgatou esse homem para fazer dele um criado. Espera convertê-lo em breve.

- Estão vendo! - disse o Padre Massérat, benevolente.

Nessa atmosfera de projetos e relatos, os serões recuperavam o ambiente amistoso. As pessoas se vigiavam para não fatigar os doentes com vozes muito altas. E havia muita alegria quando um convalescente vinha juntar-se ao círculo.

Angélica colocava Honorina sobre os joelhos e a embalava para fazê-la dormir, ou então descascava algumas raízes, mas era toda ouvidos. Havia que reconhecer naqueles canadenses o dom de entreter o auditório e de fazê-lo compartilhar o passado bem como o futuro, de fazer surgir um mundo, uma epopeia com uma ou duas anedotas.

Essa noite falavam daqueles Lemoyne, Le Ber, pobres artesãos ou trabalhadores braçais alugados por duros fazendeiros, e que, cansados da servidão pela vida toda, tinham chegado com os navios. Tinham-lhes posto nas mãos uma enxada, uma foice, um mosquete. Casavam-se com as Moças do Rei. Tinham quatro, cinco, dez, doze filhos. Todos valorosos, vigorosos, intratáveis. Bem depressa abandonaram a foice e, apesar das admoestações do Sr. de Maisonneuve, partiram para comprar peles aos índios, cada vez mais longe, sempre mais para oeste. Descobriram os grandes lagos, as cataratas, as nascentes de rios desconhecidos, tribos cada vez mais diversas. Também eles diziam que o mar da China não existia e que o continente não acabava e discutiam com aquele louco do Cavelier de La Salle diante de uma caneca de boa sidra. Sidra de maçãs de suas macieiras normandas, que tinham acabado crescendo nos seus campos do Canadá, graças aos cuidados das mulheres. Traziam fortunas de volta, montanhas de peles macias e esplêndidas, sobre as quais passavam os dedos mutilados pelas torturas iroquesas.

Seus filhos agora os acompanhavam pelas estradas líquidas do norte. A filhas adornavam-se de rendas e cetim, como os burgueses de Paris. Faziam doações à Igreja...

O Sr. de Loménie, por sua vez, pôs-se a evocar os primeiros tempos de Montreal, quando os iroqueses penetravam à noite nos jardins e ficavam escondidos entre as folhas de mostarda a ouvir as vozes dos homens brancos. Ai daquele ou daquela que se aventurasse fora de casa naquelas noites... Pois Ville-Marie de Montreal não tinha muralhas nem paliçada para protegê-la. Seu fundador queria que os índios pudessem ir até eles, sem dificuldades, como quem vai ao encontro de irmãos. Quantas vezes as religiosas da Madre Bourgoys, mergulhadas em suas orações, não tinham visto, ao alçarem os olhos, a carahorrível de-um iroquês, colada à janela e olhando-as...    

Quanto ao padre, evocava as suas primeiras missões. Macollet, suas primeiras viagens. Cavelierj o Mississipi, e d'Arreboust, os primeiros tempos de Quebec.

E era tal o poder de evocação da voz deles, no crepitar do fogo e o acompanhamento incessante da tempestade lá fora, ou no silêncio de tumba que confere à natureza a neve caindo pesadamente, era tal a diversidade de recordações, pintadas como quadros por aquelas vozes de homens, que Angélica não se cansaria de ouvi-las.

- Dos doze jesuítas que. vi com os iroqueses, dez morreram mártires - dizia com orgulho Macollet. - Acreditem-me, a série não terminou.

O Padre Massérat.evocava as -falésias violeta da baía georgiana, retinindo o eco de um débil campanário, uma missão perdida entre o matae as árvores, fortes de madeira plantados aqui e ali, todos corroo mesmo odor de fumaça, de carne salgada, de peles e de aguardente.

Era o avesso do ambiente que Angélica vira na corte ou em Paris. Nos salões, os ouvintes entusiasrhavam-se com os relatos dos jesuítas e com a salvação do Canadá. Atiravam-se anéis e brincos nas mãos horrivelmente mutiladas de um mártir que um navio, depois de aventuras inacreditáveis, trouxera do Canadá. Muitas grandes damas eram as benfeitoras de obras longínquas.

Algumas até tinham ido para a América, pagar pessoalmente; a Sra. de Guermont, a Sra. dAurole, e a mais célebre, a Sra. de la Pagerie, que fundara a Ordem das Ursulinas de Quebec.

Angélica tinha um tal jeito de olhar o jesuíta, que este em breve falava apenas para ela. É verdade que as evocações de todos a apaixonavam da mesma forma.

Um mundo totalmente estranho se revelava a ela, e Versalhes parecia longe com suas intrigas mesquinhasse o reino parecia longe com suas perseguições, suas misérias, o peso dos tempos passados sobre ele de modo inelutável, em face daquelas existências novas e do entusiasmo dos seres que se lançavam à conquista de um mundo. A liberdade!

Nos olhos de Angélica eles ficavam sabendo que tinham sido "escolhidos e separados", que eram de outra espécie, tocados, sem o saberem, pela graça da liberdade. E quando ela os interrogava ou gargalhava depois de alguns episódios tragicômicos como os há em toda epopeia, DArreboust e Loménie a contemplavam, sem se darem conta de que uma expressão extasiada lhes transparecia nos rostos austeros, "Ah, se a vissem em Quebec!", pensavam eles. "Ao lado daquelas mulheres ranzinzas que não param de se queixar de sua sorte... a cidade inteira ficaria aos pés dela... Ora, mas isso é coisa em que se pense!"

De repente eles encontraram o olhar irónico do Padre Massérat.

O que não podiam adivinhar é que Angélica, em parte sem saber, e porque farejava neles o possível inimigo, o perigo, não hesitava em usar de seus poderes de sedução. Como poderiam escapar àquela perdição? Há certos gestos, certos olhares, certas expressões do sorriso, invisíveis aos olhos e que não acarretam consequências, mas que pela sua simplicidade cúmplice acorrentam a amizade de um homem.

Angélica tinha disso o conhecimento instintivo e experimentado.

Joffrey de Peyrac notava, mas não dizia nada. A habilidade de Angélica, sua astúcia feminina e tudo o que havia nela de tão to: talmente mulher o encantava, como a contemplação de uma obra de arte de execução perfeita. E ocorria-lhe de se divertir muito, pois a cada dia via definir-se melhor a derrota dos gentis-homens franceses e mesmo do jesuíta, que se acreditava fortíssimo.

Em outros momentos Peyrac rilhava os dentes. O jogo lhe parecia perigoso, e ele era astuto o suficiente para perceber que o Conde de Loménie inspirava à sua mulher uma simpatia autêntica. Um dia poderia haver entre aqueles dois algo mais que amizade. Mas ele não fazia nada, consciente de que nada na atitude de Angélica podia inspirar inquietações a um marido apaixonado, consciente também de que tentar transformar, constranger uma natureza assim calorosa, espontânea, sedutora em essência, seria inútil e quase criminoso. Ela reinara sobre Versalhes, sobre príncipes... Conservava o encanto imperioso e irresistível daqueles que são feitos para estar acima dos demais, pois o dom da sedução também confere uma espécie de realeza.

Capítulo XXXVII

Preocupações do Padre Massérat

Desde esses primeiros dias, na. qualidade de anfitriã que conhece os seus deveres, Angélica propusera ao Padre Massérat um recanto onde ele poderia rezar sua missa cotidiana.

O jesuíta mostrou-se .muito reconhecido por isso, embora, explicou-lhe, a regra de Santo Inácio dispensasse seus religiosos dessa obrigação de celebrar todos os dias o santo sacrifício. Eles podiam conteraar-se com duas orações por semana, mesmo solitárias.

Não eram obrigados a ouvir confissões, nem a oficiar, mesmo a pedido dos crentes.        

A única coisa que não podiam recusar era a extrema-unção em caso de risco de morte acidental do próximo.

Quanto aos seus próprios deveres para com Deus, a comunhão da missa deveria ser substituída.pela comunhão espiritual. Soldados da vanguarda do exército de Cristo tinham a liberdade daqueles que traçam o caminho, a escolha de seus atos, e disciplinas demasiado rígidas ou absorventes não deviam entravar-lhes os movimentos. Nem por isso ele se sentia menos feliz de poder celebrar em Wapassu o santo sacrifício, fonte de reconforto para o missionário isolado. Trazia consigo a sua capela de viagem, um modesto cofre de madeira, recoberto de couro preto, tacheado, que continha um cálice, uma patena, galhetas, um cibório, diversos panos sagrados, um missal e um evangelho.

Tudo aquilo fora ofertado pela Duquesa dAiguillon, benfeitora.

Nicolau Perrot, os espanhóis, Yann Le Couénnec assistiam à missa e estavam visivelmente contentes de poderem praticar sua religião.

Já o Padre Massérat não estava muito contente. Se era muito solícito na vida comum, não tinha o sentido secular paroquial. Viera para a América por causa dos índios. Os brancos não lhe interessavam.

Além.disso, teólogo notável, grande letrado, fascinado pelo esplendor de Deus que ele descobria um pouco mais em cada uma de suas meditações, a piedade grosseira do homem humilde e ignorante, que ousa conversar com o seu criador, irritava-o. Mais um pouco e ele teria lamentado que o próprio Deus o autorizasse a isso.

Como muitos de seus colegas, preferia a solidão, o diálogo individual com o mistério divino. Franzia o cenho quando via deslizar atrás dele, à luz escassa dos dois círios a cada lado de seu altar de viagem, um ou outro dos soldados espanhóis, ou o jovem bretão, ou mesmo Perrot, que apoiava o ombro vigoroso à porta e ficava ali, de braços cruzados, a hirsuta cabeleira de canadense piedosamente inclinada.

Não esquecer que Santo Inácio era espanhol!... O Padre Massérat esforçava-se por ter paciência com os compatriotas do fundador. Então o jovem bretão o acolitava na missa com devoção. A todos aqueles fiéis amontoados na penumbra* ele distribuía o pão da vida, a pequena hóstia branca.

. O Padre Massérat pensava que a alguns passos havia hereges que não podiam ver um crucifixo sem quase terem um ataque epilé-tico, e que ao mesmo tempo se entregavam às suas preces pecaminosas.

Na cozinha as mulheres começavam a ir e vir, cortar lenha, bater o isqueiro. Ouvia-se crepitar as chamas e o ruído dos caldeirões que eram pendurados às cremalheiras, e a água que se derramava.

Bocejos de homens despertando.

As vezes uma vozinha de criança, aguda como um guizo, e que disparava para se interromper subitamente na nota mais alta, pois deviam ter-lhe feito sinal para que se calasse.

Ainda mais perto, na oficina, sons mais rudes, os dos instrumentos que pousavam na bancada, o guincho de um fole da forja que se punha em funcionamento, e murmúrios de vozes graves, que também ali trocavam as respostas de um ritual em termos sibilinos.

Um negro imenso, jovial e intimidante, tão sábio que desconcertava, um mestiço com cabeça de fanático, um mediterrâneo parecido com ele que conhecia as profundezas do mar, um mudo pálido, um auvergnat brutal, jovens belos como arcanjos...

Ouviam-se os ruídos de pedras, rochas, de terxa sendo peneirada, triturada, odores de brasa, de, fçrro, de enxofre.

O Padre Massérat dizia consigo que teria um relatório muito interessante a apresentar quando retornasse a Quebec.

CAPÍTULO XXXVIII

Angélica dá exibição de tiro - Sombrias considerações do Barão d'Arreboust

Angélica resolveu limpar as armas, examiná-las, certificar-se de seu funcionamento e fazê-las brilhar com todos os seus fogos. Era uma tarefa de que se desincumbia com tanto cuidado e minúncia, um savoir-faire digno de um veterano um pouco maníaco, que o mais ciumento dos exploradores confiava-lhe sua arma favorita sem preocupação. Tinham adquirido o hábito de pedir-lhe uma "revisão", como a um armeiro de ofício, e o próprio Clóvis lhe confiava, a velha balestra de roda de caçador, da qual nunca se separava.

Os senhores DArreboust, De Loménie e De La Salle, assim como o Padre Massérat, encontraram-na uma bela manha em meio a todo um arsenal, e tão absorta que esqueceu de cumprimentá-los. Intrigados, eles examinavam aquelas mãos de mulher, finas, pequenas, pousadas sobre coronhas brutais ou seguindo com o dedo a linha de um cano áspero, seu perfil inclinado sobre o mistério de uma caçoleta que fedia a pólvora, a graxa fria, a metal queimado, examinando-a com a atenção de uma mãe para com o seu recém-nascido.

Angélica lamentava que Honoriha não estivesse ali com ela para a operação, como sempre que ela se entregava àquilo, mas a pequena ainda estava doente. A febre mal começava, a deixá-la. Habitualmente a menina vinha sentar-se perto da mãe. Seus dedinhos faziam os mesmos gestos que os dela, com uma prudente familiaridade para tocar as armas. Ela fora criada entre armas.

Angélica tinha sobre a mesa todo tipo de ganchos, varetas, sove-las, óleos refinados que ela mesma filtrava, ceras, todo um material que fizera com as próprias mãos e que só ela sabia usar. Os senhores de Quebec olhavam-na agir, esfregar, polir, examinar, franzir o cenho e murmurar. Não entendiam. Ela finalmente levantou a cabeça, notou-os e dirigiu-lhes um sorriso distraída .

-        Bom dia. Já almoçaram? Como estão passando? Sr. de Loménie, diga-me, já viu arma mais bela do que este fuzil da Saxônia?

Florimond entrou, saudou os presentes e^clisse:

-        Minha mãe é o melhor atiradpr de todas as colónias da América. Querem ver?

Depois de vários dias de tempestade, o tempo estava bom, claro, e o grupo se dirigiu ao centro de tiro, peito das falésias. Florimond levava dois mosquetes a pedra, um a mecha e du'as pistolas. Queria que a mãe fizesse uma demonstração completa de seus talentos, e como ela desejava verificar as armas, prestou-se de bom grado ao pedido. Tinha nos músculos o peso de cada mosquete, adivinhava antecipadamente o porte da arma sobre seu ombro, o recuo, o tiro.

-        Uma mulher não pode levantar isso! - disse o Sr. D'Arreboust quando a viu pegar o- mosquete saxão.

Ela, porém, "levantauo sem dificuldade aparente.

Mirou, de cabeça inclinada, o pé direito para a frente, depois disse que a arma de fato era pesada e que ela ia se apoiar para atirar no falso parapeito que servia para o treino. Ajoelhou-se a meio, inclinando-se com uma expressão atenta do corpo inteiro, que a dominava dos rins aos ombros. Sua atitude não revelava tensão, mas uma calma profunda, completa: «la possuía a faculdade de passar, em alguns segundos, da vivacidade dos gestos a esse estado próximo ao sono, que diminui as batidas do coração e torna a respiração imperceptível. E na claridade aguda do inverno, com o cintilar estrelado do gelo à sua volta, a face rosada pelo frio onde se alongava a sombra de uma pálpebra semicerrada, Angélica parecia inclinar-se num gesto de abandono.

O tiro partiu._

A fumaça subiu suavemente, branca, da ponta do cano, com torções de réptil. A pena colocada a cem passos desaparecera.

— O que dizem? - exclamou Florimond. Eles balbuciaram aprovações.

— Estão com inveja! Eu entendo - comentou o jovem. Angélica apenas ria.

Ela gostava da sensação de poder experimentada por todo o seu corpo com o prolongamento da arma dócil. Era algo que parecia

ter-lhe sido dado. Um dom! Poderia te-lo ignorado sempre, caso as circunstâncias não lhe tivessem posto armas na mão. Em suas cavalgadas pela floresta de Nieul, descobrira a correspondência inata que existia entre ela e aqueles objetos cruéis de aço e madeira. Esquecia que eles eram forjados para matar, que matavam. Esquecia a vida e a morte que se encontravam no fim da trajetória deles. E embora parecesse estranho, ela às vezes achava que a atenção que dedicara àquela arte, a calma e a concentração que tinha exigido dela, a tenacidade que demonstrara para se tornar uma atiradora hábil tinham ajudado muito o seu cérebro inflamado pelas infelicidades a se preservar dos riscos da loucura. As armas a tinham defendido de tudo.

"As armas são coisas santas e boas", pensava ela. "Os fracos precisam de armas num mundo sem doutrina, sem consciência." Amava-as.

Falou ainda um pouco com eles, perguntando-se que sentimento os agitava e dava ao belo rosto de Loménie-Chambord uma expressão quase de dor. Acabou deixando-os e se afastou com o filho, que levava os fuzis embaixo do braço, conversando animadamente.

O Conde de Loménie e o Sr. dArreboust se olharam.

O Padre Massérat desviou os olhos e pegou seu livro de orações num dos bolsos da batina. Cavelier fitou os três, esfregando as mãos frias, que ele esquecera de calçar com luvas. Casquinou:

-        Pois bem! Uma coisa é certa: essa mulher atira como uma feiticeira... Talvez como uma diaba...

Enfiou as mãos nos bolsos do casaco e se afastou com uma indiferença afetada e orgulhosa.

Não estava longe de sentir prazer ao ver aquelas edificantes personalidades embaraçadas. Podia adivinhar melhor que qualquer um os tipos de tormentos teológicos e místicos a que o embaraço os entregava. Estava habituado com esses casos de consciência. Ele próprio fora jesuíta durante dez anos.

-        Pronto! - exclamou o Sr. dArreboust. - Foi exatamente por isso que viemos até aqui. Diaba ou não? Espírito perigoso ou não?...

É o âmago da nossa pesquisa. Pedir ao Conde de Peyrac que financiasse a expedição ao Mississipi foi apenas um pretexto!... Conhecíamos apenas o seu julgamento, Loménie! Era necessário cotejar opiniões diferentes. Fui escolhido, o Padre Massérat também. Para falar francamente, não posso ocultar-lhe, meu caro Loménie, eu estava convencido de que você se tinha deixado desorientar, lograr. E agora, o que vamos fazer?

O Barão d'Arreboust limpa a garganta. Olha o céu azul, de uma suavidade enganadora, o forte de madeira a alguns passos, coberto de-neve, as falésias, a extensão branca dos lagos.

Vendo que o Padre Massérat nãòparec-ia ouvir; continuou a faiar, dirigindo-se apenas ao Cavaleiro dé Ixjménie.

-        Pois bem! Era preciso chegara isto... Viemos, vimos... Vimos -       repetiu a meia voz, como para si' mesmo. - O que pensa o Padre Massérat da Companhia de Jesus?.„ O Padre Massérat faz de conta que não entende. E sabe por quê, meu caro"cavaleiro?... Por que o caso o ultrapassa... Sim, pois ele já julgou. Enquanto nos entorpecíamos num bem-estar enganador, ele já havia feito o seu balanço. Parou de fazer a pergunta que nos atormenta a todos hoje e que nos parece louca: quem é ela? Diaba? Sedutora? Bruxa? Inofensiva? Inimiga? Ele está bem-tranquilo. Sua arte da dialética serviu-lhe no mínimo para isso: para ver, preto no branco, que o caso o ultrapassa e que ele não-deve de jeito nenhum, ah, não, de jeito nenhum, imiscuir-se em tudo isso. Então mergulha em seu breviário!... Padre Massérat, diga afinal, estou errado ao me exprimir assim?

A voz do Sr. d'Arreboust, que pouco a pouco se elevara com mau humor, ainda ressoou dois segundos no ar cristalino, depois o seu eco ligeiro extinguiu-se ironicamente. O Padre Massérat levantou os olhos, olhou os dois amigos com espanto, esboçou um sorrisinho amável.  

Jamais se poderia saber se DArreboust atingira o ponto certo, se, pelo contrário, o jesuíta considerara o ataque uma inofensiva brincadeira, ou se, de fato, não ouvira nada, pois era de natureza sonhadora. Voltou a mergulhar no livro de orações e se afastou com passo tranquilo, movendo os lábiuos.

O Sr. dArreboust levantou os braços, num gesto de impotência.

— Aí estão os jesuítas! - disse. - Ao lado deles, Pôncio Pilatos era um menino de coro.

— No entanto, caberia ao Padre Massérat destrinçar esta questão -      decidiu Loménie. - Sou religioso, naturalmente, mas não possuo os títulos nem a formação que se exige dos jesuítas. E se se lhes exige é para que sejam capazes de julgar, com a luz do Espírito Santo, situações que ultrapassem o simples mortal laico. Afinal, o Padre Massérat veio aqui para isso!

-        Não dirá nada, você bem o sabe - disso o outro, desiludido -Já encontrou uma boa razão para ter o direito de calar-se. Há

de conservá-la para si, junto com o resto.

-        Isso não é justamente uma prova de que não temos nada a temer dessa gente? Caso o Padre Massérat tivesse julgado que eles são suspeitos, falaria,-se oporia aos acordos que estamos em vias de estabelecer.

— Talvez tenha razão! Mas talvez ele julgue que não tenha força, que não lhe daríamos-ouvidos, subjugados que estamos pela nossa anfitriã! Talvez espera estarmos em Quebec para fazer explodir o brulote que guardamos ingenuamente, anunciar que toda esta história cheira a enxofre, a danação, e que é preciso exterminar todos estes criminosos até o último, sob pena de se perecer com toda a causa católica do Canadá. Então pareceremos realmente ridículos, se não culpados. Os jesuítas serão os salvadores, o Padre d'Orgeval, o arcanjo São Miguel.

— A partir de que se pode reconhecer com certeza que uma pessoa que não se comporta de modo insensato é feiticeira ou diaba? -continuou Loménie, preocupado. - Ela é belíssima e, é verdade, de uma beleza que pode parecer suspeita pelo fato de não ser... comum. Mas a beleza alguma vez é comum?

— As feiticeiras não choram - afirmou o Sr. dArreboust. - Alguma vez a viu chorar?

— Não - disse o cavaleiro, emocionado contra a vontade pela imagem suscitada -, mas a ocasião pode ter-me escapado...

— Também dizem que as feiticeiras flutuam quando são atiradas na água. Mas é difícil fazermos esse tipo de prova com a Sra. de Peyrac.

Correu os olhos à volta, com um sorriso inquietante.

-        Falta água, está tudo gelado - murmurou.

O Conde de Loménie examinava-o com estupor. Nunca o vira entregar-se assim ao humor negro.

O Sr. d'Arreboust pediu-lhe desculpas. O rigor do clima e as preocupações o tornavam amargo. Ia aproveitar o bom tempo para caminhar.

Loménie disse que ia retirar-se para rezar e pedir conselho a Deus.

O barão afastou-se rumo ao lago.

Andava com dificuldade, pois tudo o que o pátio oferecia ao passeio era uma rede de galerias geladas, pequenos caminhos abertos a enxada ou picareta, tão complicados quanto as circunvoluções de um trabalho de toupeira, e que levavam à fonte gelada, à cabana de Macollet, à oficina, à estrebaria, ao centro de tiro, ou a lugar nenhum, ou seja, à floresta inacessível.

Depois de cambalear muito, o primeiro síndico de Quebec conseguiu alcançar as margens do lago. Quando a neve estava bem du-ja, podia-se acompanhar a ribanceira. No fim dela, uma vereda gelada e endurecida permitia que se caminhasse, e quando fazia bom tempo como aquele dia, silhuetas seguiam-devagar, ao sol, por aquele esboço de pista rumo a outros horizontes, e voltavam, depois de haverem topado na outra extremidade do lago com as portas fechadas das dunas de neve. Quando o barãq atingiu a extremidade do lago, pôs-se a devanear contemplando aqueles lugares onde quase encontrara a morte. Lembrava-se da impressão de fraqueza resignada que tivera ao ceder à neve, da opressão do frio e da noite pesando-lhe sobre o peito como uma laje de pedra, e pensara: contanto que seja rápido! A última sensação fora uma queimadura nas maçãs do rosto, quando ele entendeu qtie a neve lhe caía no rosto e que os seus traços, já fixos nunôa máscara glacial, nunca mais fremiriam.

Não podia explicar o torpor mortal em que haviam sucumbido mais do que podia explicar a salvação, a ressurreição. Tudo aquilo tinha a ver com aquele lugarr lugar proibido. E Peyrac tivera a audácia de instalar-se ali.

Ao se aproximar de Wapassu, a pessoa entrava numa zona estranha, de armadilhas sutis e desconhecidas. Ele não podia explicar nada, no entanto era dever seu fazê-lo. Tinha no mínimo o dever de passear por ali. Fora incumbido disso em Quebec.

Lembrava-se de como lhe parecera insólito e pouco coerente com o caráter comedido do Conde de Loménie o entusiasmo delirante que este manifestava a propósito da gente de Katarunk. Falava com estima daqueles aventureiros que fora mandado para exterminar e de quem se felicitava por haver-se tornado amigo. Regozijara-se por sabê-los vivos, quando a solução de vê-los desaparecer pela mão dos iroqueses parecera excelente a todos, e se ele não falava da Sra. de Peyrac nos mesmos termos exagerados do Tenente de Pont-Briand, pudera-se adivinhar em várias ocasiões que ele não se permitiria pronunciar nenhuma palavra insultánte contra ela.

Frontenac, que nunca os vira, tomava de -bom grado o partido de Loménie. Mas Frontenac era um doidivanas. Gostava do paradoxo e do belo sexo, detestava os jesuítas; sua nomeação corno governador do Canadá fora antes uma desgraça do que uma honra. Luís XIV não lhe perdoava ter tido a imprudência de cortejar a Sra. De Montespan.

Era um bom político, porém, quando se tratava de gerir um país. Logo de início confiara no recém-chegado, Peyrac, que lhe denunciavam como um inimigo da Nova França, porque tinha, como ele, um nome gascão, mas também porque se informara. O Conde de Peyrac era rico. Ocorreu ao governador a ideia de pedir-lhe símbolos tangíveis de sua amizade pela Nova França... Enviou-lhe, então, Loménie e o ambicioso cavaleiro...

O Sr. dArreboust/e o Padre Massérat se uniram a eles com recomendações expressas do bispo para desvendarem as suspeitas que pesavam sobre os intrusos. Que se pronunciassem sobretudo sobre a qualidade demoníaca ou não da mulher que os acompanhava, de quem se falava tanto e demasiado.

Aí estava! Estavam agora naquele covil de Wapassu e nada acontecera conforme o previsto. Um verdadeiro vespeiro. Um sortilégio!

Ele, François d'Arreboust, a quem haviam colocado, assim como ao Padre Massérat, ao lado do Conde de Loménie para, em suma, vigiá-lo e também para formar uma opinião sobre o Conde e a Condessa de Peyrac, ele, homem tranquilo, piedoso, de costumes cordatos e modestos, ocupado com a própria salvação, com o bem dos outros e da colónia, não vira nada, não adivinhara nada.

Despertara de seu sono de morto e começara a viver de modo totalmente diferente, sem refletir, coisa que talvez nunca lhe tivesse ocorrido em sua existência.

Comera, bebera, fumara num calor tranquilo, e tinham conversado, trocado recordações e sonhos, e ele se animara no brilho de um olhar verde que transformava a corte.

— Mas naquele momento, Sr. dArreboust, quando os mascutins lhe ameaçaram cortar o escalpo, não sentiu medo algum, não sentiu que a partida estava perdida?

— Não - dizia ele, aprumando-se. - Tudo parece simples no momento de comparecer perante Deus.

Até aquele dia ele nunca soubera que era um homem heróico.

Não mais do que os outros.

Era um homem modesto. Mas fazia-lhe bem perceber que na realidade tinha a alma valente, o coração bem no lugar, e que merecia a admiração de uma mulher.

Ele esquecera, esquecera completamente que era dela que se suspeitava em Quebec ser talvez a Diaba da Acádia, ela, aquela mesma mulher com quem conversara tão cortês e alegremente.

Até aquela manhã!

Ao encontrá-la de armas na mão, levara um choque.

As armas despertam a ideia de perigo, e o medo inspirado pela visão inesperada da mulher de belas mãos manejando armas e usando-as com uma habilidade inquietante, viera misturar-se, trançar-se a todos os medos escondidos no coração do homem: medo da mulher, da sedução, da maga?... Ele se lembrava dos boatos que corriam, da opinião do Padre d'Orgeyal. Loménie-Chambord- levara o mesmo choque, tinha certeza! E talvez o Padre Massérat. Mas quanto a este, nunca se saberia nada...

O Sr. d'Arreboust estremecia, levando as dobras do manto à boca.

"Aí está o que aconteceu sem percebermos",'pensava. "Aconteceu, eu sinto. Estou preocupado, não me sinto bem, e a oração me foge. Há uma hora não posso me impedirde pensar nela, de pensar nas mulheres, nò amor... na minha mulher!."

Via sua mulher, imaginava, tão perfeita, tão pudica, em posturas extravagantes, lúbricas, que ela jamais assumira, mesmo nos primeiros tempos'do casamento, quando, por deferência e dever, ele a homenageava às pressas, censurando-se pelas satisfações que sentia nesse ato vergonhoso. Lembrava-se também da reflexão maliciosa de um amigo, que lhe observara, num baile, que a Sra. d'Arreboust, sua mulher, .tinha seios pequenos e encantadores e que ele não devia se entediar.

Não gostava de jeito nenhum desse tipo de reflexão. O amor, o casamento, o desviavam de "Sua vocação de piedade. Se os estudos da Companhia de Jesus não fossem tão difíceis e longos, ele teria ingressado na ordem. Renunciando à vida religiosa, casara-se para agradar aos pais. Mas estes morreram e ele renunciara definitivamente a oferecer-lhes um herdeiro na pessoa de um neto. Por que essa vaidade de perpetuar um nome?... Melhor consagrar a Deus a sua fortuna. Ora, calhou de sua mulher compartilhar de sua maneira de ver. Também ela gostaria de ter tomado os votos; assim, entendiam-se muito bem. Ambos sonhavam em se consagrar a Deus, a uma grande obra difícil. O Canadá respondera à sua expectativa, à sua ideia de sacrifício...

O Sr. d'Arreboust soltou um suspiro. Afinal, as visões pecaminosas começavam a se esfumar. Conseguia evocar a mulher de modo diferente do de uma lúbrica cortesã.

Via-a conforme lhe era mais familiar, orando na penumbra de uma capela ou de um oratório, de cabeça inclinada, e justamente um pouco de lado, como naquela manhã a Sra. de Peyrac sobre o mosquete. Esse gesto sempre o emocionara e, sem o saber, ele o associava ao abandono de uma mulher contra o ombro masculino, e inclinava-o à ternura. A Sra. d'Arreboust era muito pequena e mal lhe chegava ao ombro. Nos primeiros dias do casamento ele a chamava de "pequena", num esforço de familiaridade conjugal, mas notara que isso lhe desagradava, pois na verdade ela não tinha de modo algum a mentalidade de uma mulher "pequena" e frágil. Era audaciosa, empreendedora, de uma saúde a toda prova, com algo de implacável que os anos tinham acentuado.

Que pena! Que remorso!

Ela poderia ter sido uma mulher encantadora e alegre, mas pensava demais em perfeição. Renegava o próprio corpo, era toda cere-bralidade e grandes impulsos místicos.

"E por causa desta mulher do Lago de Prata que me vêm esses pesares, esse langor, essa incerteza. Por causa de um riso de mulher feliz, por causa de um olhar que ela alça para um homem, um único homem, e do gesto desse homem abraçando-a, e da porta que se fecha sobre eles à noite... É por causa da dependência dessa mulher pelo homem a quem ama que me pego sofrendo.

"Pois a minha mulher já não depende de mim. Sou pouco mais para ela do que o seu diretor de consciência, o Padre d'Orgeval; muito menos, até; sou um diretor de consciência que só se ocupa de números e de negócios. Quando nos víamos uma vez por ano, depois da chegada dos primeiros navios que trazem a correspondência da França, falávamos do estado de nossa fortuna e da obra em que empregar o montante de nossa renda. Minha mulher não me deve nada, nem mesmo um pouco de solicitude. Ela se deve apenas a Deus.

"E uma alma santa. Edifica a comunidade de Montreal!...

"Tem os seios pequenos e encantadores... Ainda são bem bonitos... Oh! Senhor, por que pensar nisso? O que vim fazer neste lugar maldito?... O que vou contar-lhes em Quebec?... Se é que voltaremos para lá... Será que esse homem zombeteiro nos deixará partir, pois afinal de contas somos seus prisioneiros?... Ele poderia muito bem... Mas o que é aquilo que avança pelo lago?... Dirse-ia que..."

O Sr. dArreboust levou a mão acima dos olhos.

CAPÍTULO XXXIX

Pacífico Jusserand, emissário do Padre d'Orgeval ao Conde Loménie-Chambord

A dois, sempre a dois caminham os viajantes do inverno.

A morte se colaria aos passos do solitário.

Dois a dois, um francês e um índio. Só os franceses para terem a ideia absurda de enfrentar as armadilhas do frio, da neve, das tempestades, dos espaços abandonados de toda vida humana. E só o índio para segui-lo, porque o branco tem o poder, pela sua eloquente impenitência, de afastar os demónios da neve.

Semelhantes sob os capotes forrados, com franja de couro, e com o mesmo andar pesado de raquetes, o francês e o índio avançaram através do lago. A somBradeles era curta, pois era meio-dia. Quando chegaram perto, François dArreboust teve a impressão de reconhecer um rosto que lhe era familiar, mas antes de haver situado o homem e lembrado o nome dele, teve uma sensação desagradável, uma crispação do corpo inteiro pela presença de um intruso.

Não se decidia a chamá-lo. Via-o avançar com um sentimento de desconfiança,, quase de hostilidade. Tinha vontade de gritar: - O que veio fazer aqui? Por que veio perturbar estes lugares onde a gente é feliz?... Afaste-se!...

Do forte os recém-chegados tinham sido_ayistados, e Florimond e Yann Le Couénnec desciam para a praia, de mosquetes nas mãos.

O homem que avançava vinha de cabeça erguida, um pouco atirada para trás, no gesto de quem tenta captar o máximo de luz sob as pálpebras semicerradas. Quando chegou mais perto, D'Arreboust entendeu. O viajante estava cego, seus olhos tinham sido queimados pela reverberação da neve, um dos males mais terríveis daquelas marchas hibernais.

As pálpebras vermelhas e inchadas tinham crostas esbranquiçadas de leproso. Ele estava medonho de ver. Gritou:

-        Há alguém aí? Eu o adivinho, mas não vejo bem...

O.índio, a seu lado, empunhava o fuzil e olhava com ar sombrio as armas assestadas sobre ele.

— Quem é? De onde vem? - indagou DArreboust.

— Sou Pacífico Jusserand, de Sorel, mas venho de Noridgewook, sobre o Kennebec, e trago uma carta para o Coronel de Loménie-Chambord, da parte do Padre d'Orgeval...

Acrescentou:

-        Vão atirar em mim? Não fiz nada de mal. Sou francês como vocês que falam francês...

A cegueira parcial incomodava muito o viajante. Devia sentir-se à mercê daqueles a quem abordava, incapaz de ler-lhes no rosto os sentimentos de recusa ou aceitação. D Arreboust acabou reconhecendo o homem que encontrara com frequência em Quebec e que há quatro anos era o "emissário" do Padre d'Orgeval.

Seu primeiro movimento foi como o de engolir algo penoso, com gosto de fel, mas a caridade falou mais alto e ele correu:

— Infeliz! Em que estado se encontra! E, voltando-se para Florimond:

— Este homem está a serviço do Padre d'Orgeval e de sua missão.

— Parece-me que esse servidor já esteve em Katarunk - lançou o rapaz, franzindo o cenho.

— Não atirem em mim - repetiu o homem, olhando nas diferentes direções de onde vinham as vozes -, não sou um inimigo. Sou apenas o portador de uma mensagem para o Conde de Loménie.

— E por que teria medo de que atirassem em você assim que o vissem? - perguntou Florimond. - Teria alguns maus feitos a se censurar em relação ao senhor e proprietário deste forte, o Conde de Peyrac?

Visivelmente embaraçado, o homem não respondeu. Quis dar alguns passos na direção das sombras que devia perceber muito debilmente, mas tropeçou na inclinação da ribanceira. DArreboust pegou-o pelo braço para ajudá-lo a seguir a pista até o forte.

O Conde de Loménie-Chambord empunhou a mensagem.

Aquela carta, dobrada, espessa e fechada com lacre de cera onde se inscreviam as armas de Sebastião d'Orgeval lhe causaria ferimentos profundos; ele sabia disso; contemporizou, não a abriu de imediato e interrogou o "emissário", que o Sr. d'Arreboust fizera sentar num banco. Os "emissários" eram homens ou jovens piedosos que se punham voluntariamente a serviço dos missionários durante um ou vários anos, a fim de ganhar indulgências. Aquele homem, Pacífico Jusserand, estava a serviço do Padre d'Or-geval há quatro anos.

-        Como foi que o padre soube jja minha presença no forte de Wapassu? - indagou o Cavaleiro de Malta.

O homem voltou para ele seu rosto feroz e inchado, e respondeu com orgulho:

-        Bem sabe que o padre sabe tudo. Os anjos o informaram.

Angélica limpava a queimadura que inchava as pálpebras e punha-lhes compressas refrescantes. Depois serviu-lhe sopa e aguardente. De olhos vendados, Pacífico Jusserand comeu, muito ereto e desdenhoso.

. Era um homem que desde o primeiro instante Angélica adivinhou como inquietante e^singular. Só respondera com monossílabos às perguntas e às palavras que ela lhe dirigira. Animava-se apenas quando falava de seu mestre, o Padre d'Orgeval. Era uma particularidade, que ela aprenderia com o tempo, que o Padre d'Orgeval, religioso de notável urbanidade, se. cercasse como que voluntariamente de seres selvagefft nos quais ele parecia projetar o lado escuro e torturado, bem escondido, de sua própria natureza. Assim eram, entre outros, o Padre Le Guérande e o Padre Luís Paulo Maraicher, que desempenharam papel preponderante ao lado dele na luta que travou para conservar para a Igreja Católica e para o rei da França e Acádia e o grande território do Maine. Note-se que os dois religiosos, a quem se deve acrescentar Pacífico Jusserand, morreram de morte violenta no decorrer dessa luta.

E mais tarde seria o caso de se perguntar se ele, que sabia tudo, não "vira" igualmente, bem antes dos outros, o que se anunciava quando escreveu a Loménie-Chambord para pô-lo de sobreaviso.

"Meu caro amigo", dizia a carta, "surpreéndeu-me que você tivesse seguido para Wapassu, onde Peyrac e o seu bando se refugiaram depois do desastre de Katarunk. Uma coragem assim, demonstrada por você para alcançá-lo apesar do inverno, não permanecerá infrutífera, espero. No entanto, quero escrever-lhe para instá-lo a não demonstrar nenhuma fraqueza em suas decisões desta vez. Tremo ante a ideia de você poder sucumbir a nào sei que dialética sutil e falsa aparência de virtude que esses aventureiros souberem apresentar-lhe para melhor se insinuarem entre nós e destruir a nossa obra. Quando o vi em Quebec, você falava da lealdade do Sr. de Peyrac, de seus protestos de amizade. Depois disso ele matou Pont-Briand, um dos nossos, e avançou um pouco mais no território da Nova França.

"Você argumentava que só via nele um homem de grande valor, interessado somente em fazer frutificar uma terra selvagem. Mas, digo-lhe eu, em benefício de que rei, pela glória de que religião? Além disso, a presença de uma mulher nesses lugares não parecia emocioná-lo, não no sentido em que eu gostaria.

"Pois bem, que seja, admitamo-lo e falemos desse sentimento.

"Falemos dessa sedução hábil, mas que consiste em ornamentar o mal com todas as aparências do bem e a que você parece haver sucumbido, na sua franqueza um pouco ingénua.

"Você me disse e repetiu que admirava nesse homem o fato de ele ser livre e realmente livre.

"Mas não se disse que o satanismo estava inteiramente contido no problema da liberdade?

"Segundo Santo Thomás, Satã não chegou a querer ser Deus? Mas Satã quis auferir sua honra e sua felicidade apenas de si mesmo. É esse o seu sinal certo e distinto. Não sei se você se dá conta do quanto esse sentimento de amor, que reconhece entre duas pessoas que se separaram abertamente de Deus a ponto de apoiarem os inimigos de sua religião nativa, pode ter de extraviado, e ser, para falar propriamente, um insulto a Deus. A adoração não pode ir da criatura para a criatura, mas apenas da criatura para Deus. O amor corrupto não é mais amor.

"E é bem aí, finalmente, que reside o perigo mais grave e terrível entre todos os que creio discernir desde que essa gente desembarcou nas nossas fronteiras, o que digo?, na nossa Acádia francesa mesma.

"Pois, oferecendo um modelo enganador, eles induzem a erro as almas simples e fazem-nas aspirar a felicidades que não são deste mundo e de que só se pode gozar em Deus e na morte.

"Sobrevêm-me ansiedades terríveis. E se fosse precisamente nessa doçura e ternura que o emocionam que a Diaba quisesse oferecer suas armadilhas mais sutis?

"E se fosse através do saber que o subjuga nesse homem que o mal mostrasse seu rosto mais tentador? Todos os teólogos estão de acordo para admitir que Deus deixou ao Maligno o seu poder sobre o conhecimento, sobre a carne, sobre a mulher e sobre a riqueza. É por isso que a Igreja, ern sua prudência e sabedoria, recusa à mulher um poder, uma influência, pois uma sociedade que lhe concedesse tais direitos se entregaria ao mesmo tempo ao império de tudo o que a mulher representa, ou seja, a carne. E, partindo daí, a queda fica próxima, o retorno ao paganismo mais cego.

"Carne e idolatria, são esses os perigos que espreitam o espírito seduzido pelas graças do outro sexo, sejam quais forem essas graças morais ou físicas. Em sua admiração pela Sra. de Peyrac, onde me pareceu distinguir alguma nostalgia, quanto não há de concupiscência? Pont-Briand não perdeu a cabeça e a vida por isso? Devo lembrar-lhe, então, que demorar-se em felicidades terrestres é desviar-se do único objetivo a que estamos votados, nossa salvação pessoal em união com a salvação de todos, é atrasar o desabrochar de nossa alma, que deve, para atingir a Deus, libertar-se da carne.

"Releia a quinta Epístola de São Paulo aos Gálatas. Fornecerá material às SUas meditações: 'Meus irmãos, conduzam-se segundo o espírito e não cederão aos desejos da carne. Pois a carne tem desejos contrários aos do espíritos... Ora, é fácil conhecer as obras da carne: são as fornicações, a impureza, a impudicícia, a luxúria, a idolatria, os envenenamentos, as inimizades, as contestações, os ciúmes, as querelas, as divisões, as heresias, as invejas, os assassinatos, as bebedeiras, os deboches e outros crimes semelhantes. Lembrem-se de que aqueles que pertencem a Jesus Cristo crucificaram sua carne com seus vícios e cobiças...'

"Após as palavras do grande apóstolo, o que poderia eu acrescentar? 

"Concluirei, portanto, dizendo-lhe: adjuro-o, meu caro irmão, sim, adjuro-o a libertar-nos do perigo que representa o Conde de Peyrac para nós, para o Canadá, para as almas de que estamos incumbidos.      

"Certamente não é o primeiro aventureiro nem os primeiros hereges que desembarcam nestas costas, mas um pressentimento me avisa de que se ele não for em breve colocado em condição de não poder prejudicar, verei, através dele, através deles, o colapso de toda a nossa obra da Acádia, a minha ruína e também a minha morte. Vejo, sinto isso... juro!"

-        Oh, meu Deus, o que será de mim? - exclamou quase em voz alta o pobre Loménie, segurando a cabeça com as duas mãos.

Seu coração se partia. O dilema que o Padre d'Orgeval lhe impunha o torturava.

Pousou os dedos sobre a carta como se quisesse furtar à vista cada uma daquelas palavras que lhe laceravam cruelmente a sensibilidade.

Já não se fazia perguntas, não indagava se ainda era possível escolher, encontrar outra solução para uma situação que ele já nem tinha em mãos.

Mas o que examinava com horror era o abismo que começava a abrir-se entre ele e seu amigo mais caro, e o pânico o dominou ante o pensamento de não encontrá-lo mais, sempre presente, forte, iluminado, a seu lado nesta vida árida.

"Não me deixe, meu amigo, tente compreender. Meu irmão, meu pai", suplicava ele, "meu pai, meu pai!"

E, censurando-se por não se dirigir a Deus: "Oh, meu Deus, não me separe de meu amigo. Ilumine as nossas almas a fim de que, cada um compreendendo melhor o outro, não conheçamos a imensa dor de nos olharmos como estranhos... Meu Deus, mostre-nos a sua verdade..." Levantou os olhos e viu Angélica, a alguns passos. "Ei-la aí", pensou, "a mulher que o Padre d'Or-geval gostaria de destruir a qualquer preço."

Ela olhava o fundo de uma tigela, depois se inclinou para o caldeirão para pegar água. Reergueu-se, deu uma olhada no Conde de Loménie e, vendo-lhe o rosto, foi até ele.

-        Está triste, Sr. de Loménie?

Sua voz, com inflexões ternas, fê-lo estremecer e dilatou nele uma onda pesada, prestes a romper num soluço, num queixume infantil.

-        Sim... estou triste... muito triste...

Examinava-a, em pé, perto dele, desconcertado, seduzido, já vencido por ela, enquanto a voz rude o fustigava internamente.

"Não chegou o tempo de nos entregarmos à mulher e a tudo o que ela representa, ou seja, a carne."

"A carne?... sim, talvez", pensou ele, "mas também o coração... a benevolência, a ternura que florescem no coração das mulheres e sem as quais o mundo seria apenas frios combates."

Revia-a amparando-o em seus braços enquanto ele estava doente.

Angélica era mais sensível do que admitia a si mesma ao encanto do Conde de Loménie-Chambord. Havia nele doçura e uma erande coragem, e sua aparência era' a imagem mesma de seu ca-ráter. Não havia nada de enganador nele. Seu aspecto bem-talhado de oficial dedicado aos feitos e provações da^uerra, e seu olhar cinzento de expressão circunspecta, indicavam um coração cavalheiresco. Ao se conhecê-lo melhor, não'sê podia ficar desapontado. Certas hesitações em seu comportamento nunca vinham da covardia, mas de uma consciência escrupulosa, de uma preocupação de lealdade para com os amigos ou aqueles a quem tinha o dever de defender e servir.

Era desses homens que a gente tem vontade de proteger dos avanços de mulheres más ou de amigos exclusivos, pois há a tentação de se abusar da sensibilidade^e da fidelidade deles.

Era o que fazia'o Padre d'Orgeval, ela tinha certeza. Diante da carta branca com letra orgulhosa, "teve vontade de dizer a Loménie:

- Não leia isso, peço-lhe. Não toque nisso...

Mas aquilo era domínio de uma vida inteira que o Conde de Loménie e o Padre d'Orgeval'tinham vivido em amizade, e Angélica ainda nao podia penetrar ali.

O Cavaleiro de Malta levantou-se pesadamente, como que acabrunhado, e afastou-se de cabeça baixa.

CAPÍTULO XL

Tormento interior de Loménie-Chambord

O pensamento do Padre d'Orgeval - sua presença, se poderia dizer - não o deixou mais pelo resto do dia. Acompanhou-o como uma sombra que o adjurava com força, baixinho. Mas à medida que a noite caía, a voz se transformava, adquiria inflexões trágicas e quase infantis para murmurar: - Não me abandones... Não me traias em minha luta...

Era a voz de Sebastião d'Orgeval na adolescência, no colégio dos jesuítas, onde a amizade deles se travara.

Como o Conde de Loménie-Chambord, aos quarenta e dois anos, não carecia de experiência, não podia iludir-se de todo com os impulsos que lançavam seu amigo d'Orgeval numa luta tão surda quanto violenta contra os recém-chegados.

Havia lembranças que lhe explicariam a intransigência. Ele, Loménie, não conhecera, como Sebastião d'Orgeval, as trevas geladas de uma infância órfã.

Tivera uma mãe amável, atenta embora mundana, e que nunca se desinteressara do aluninho dos jesuítas, nem do Cavaleiro de Malta que ele se tornara mais tarde. Escrevia-lhe com frequência, mandava entregar-lhe na infância presentes surpreendentes que por vezes o embaraçavam, por vezes o encantavam: um tonel de flores do começo da primavera, um facão veneziano cravado de gemas, um medalhão de tartaruga contendo uma mecha de seus cabelos, doces e, para os catorze anos dele, todo um equipamento de mosqueteiro, com um cavalo de raça... Os padres jesuítas não achavam isso muito certo. Mas as mães são assim...

Também houvera duas irmãs, uma das quais se tornara freira. Eram alegres, divertidas, impulsivas. Quando a mãe morrera, há dez anos, Lomenie a chorara como a uma amiga. Mantinha-se agora em contato com as irmãs, que p amavam muito e que tinham todo o seu afeto.

Naquela noite, em Wapassu, no,refúgio do italiano Porguani, releu mais atentamente a carta dpjesuíta, e quando adormeceu estava como que impregnado do amargo .desgosto latente que sentia por trás das palavras da missiva e cuja fonte apenas ele conhecia.

Sonhou ou reviveu, meio acordado, aquela noite que passara ao lado do amigo na infância?

Sebastião fora a vítima, mas ele próprio se envolvera inconscientemente, dormindo o sono dos justos, com os cachos sobre a testa, enquanto no escuro próximo", debatendo-se como num pesadelo esverdeado, cuja realidade, mais tarde, ele quis negar, Sebastião estava' às yoltas com a Mulher.

Era uma noite em-qufos alunos tinham sido mandados para dormir nos quartos dos criados, pois havia um bispo e seu séquito, que tinham chegado inesperadamente. Tinham dormido sobre palha. D'Orgeval estava bem na extremidade do aposento. Não gostava de" se misturar com os outros, e de repente, no escuro, vira uma mulher bela como a noite, que o olhava com um sorriso equívoco, e aquele sorriso queimava como fogo e o punha trémulo.     

-        Vade retro, Satana! - lançou ele, conforme aprendera nos livros, mas sentiu que a ordem era vã. Estendeu a mão para tocar sob a roupa numa sineta de ferro gravada com a imagem de Santo Inácio e que tinha o poder, ao ser agitada, de expulsar as aparições diabólicas. Mas a própria aparição tinha o riso da sineta de prata. Ela cochichou: - Não tema nada, meu querubim... - Pousou a mão sobre o corpo dele, fez gestos a que ele não pôde resistir, e ele se deixou arrastar por uma força desconhecida e carnal cuja violência o submergiu. Aceitou as carícias impudicas, admitiu tudo, correspondeu ao que ela esperava dele, entregando-se a uma espécie de loucura horrorizada.

Ao despertar:    

-        Você viu, não foi? Você viu?

D'Orgeval sacudia o vizinho, o pequeno Loménie. Este nao se lembrava de nada de preciso. Era uma criança inocente, bem-comportada, e que dormia como um anjo.

Ainda assim, lembrava-se de ter visto uma mulher, ouvido ruídos, sentido perfumes, percebido movimentos perturbadores. Essas cenas haviam-lhe atravessado o sono cândido. A perturbação e o desespero do mais velho eram tamanhos, que contou tudo ao amigo, que não compreendeu muita coisa. Mas o que o jovem Loménie jamais esqueceria era o olhar azul, atravessado de lampejos ora de desespero, ora de fúria, daquele a quem tanto admirava. Sentia tremer perto dele aquele corpo de adolescente violentado e a quem as forças irresistíveis da luxúria acabavam de derrubar, de subjugar. Até o amanhecer tentou consolá-lo com palavras débeis de criança:.

-        Não se preocupe... Vamos contar ao superior... A culpa não foi sua. Foi da mulher.

Não disseram nada... Ou melhor, não conseguiram fazer-se entender... Desde as primeiras palavras foram interrompidos:

— Tranqúilizem-se, minhas crianças, não foram visitados por uma aparição, mas por uma grande benfeitora de nossas obras. É ela que subvenciona a manutenção tão custosa de alunos necessitados, dos quais você é um, d'Orgeval, e tem o privilégio de vir de repente visitar os seus protegidos. Privilegiae mulieres suplentes. É uma regra bem antiga que muitas outras comunidades cristãs e educadoras adotaram, e isso prova que não temos nada a ocultar, nem de noite, nem de dia...

— Mas...

Ficaram assombrados. Os padres eram tolos? Ou seriam eles, os adolescentes, que tinham sonhado?...

Acabaram esquecendo. Impuseram silêncio a seu espírito frágil, que o dia serenou.

Tornando-se mais tarde o Padre d'Orgeval, o ex-condiscípulo do Conde de Loméie estava agora no auge de uma carreira excepcional. Na força da idade, a serenidade de sua vida sacerdotal, o equilíbrio de uma existência mortificada, de um corpo que, à força de macerações, se tornara insensível ao frio, à fome, às torturas, não sorriria ele dessas recordações ou desses sonhos imprecisos da infância?

Duas vezes, três vezes, Loménie-Chambord saiu de um sono nauseado, enxugou o suor frio que lhe encharcava o rosto. Escutava a noite de Wapassu e se tranquilizava. Voltou a mergulhar num torpor inquieto e via a Diaba com o rosto da sedutora no-turna que ele imaginara a partir das descrições do amigo, com serpentes negras contorcendo-se em seus cachos e fogo saindo-lhe das pálpebras semicerradas. Cavalgava um unicórnio e assolava as regiões cobertas de neve da Acádia. Pelo fim da noite, ele notou uma alteração na visão, viu-lhe cabelos de ouro, olhos cor de esmeralda...

O Padre d'Orgeval, desde que recebera as ordens e fora devolvido ao mundo, depois de quinze anos de nôviciato, nunca fora pego em erro de clarividência.

Clarividência de almas, de acontecimentos, de situações. Até profecias, avisos que nada parecia justificar^ que ele lançava como que por acaso e que pouco depois se concretizavam...

De todas as confissões que tivera a felicidade de dirigir àquele grande jesuíta, o Cavaleiro de Malta sempre saíra melhor, mais instruído sobre si mesmo, mais certo de seu caminho. E entendia que batessem ao confessionário dele, que fizessem fila durante horas, na pequefta e glacial capela da antiga missão do rio Saint-Charles, onde ele-se-hospedava quando ia a Quebec.

Nada autorizava a.'cluvidar-se dele hoje.

Loménie era um homem sábio, observador, e que soubera aproveitar a experiência adquirida na vida das comunidades coloniais. Fora testemunha, inúmeras vezes, da paciência, da tenacidade, da astúcia invf roâsímeis que certas mulheres podem demonstrar.

Resolveu ser mais prudente, mais severo e, pouco depois de se aconselhar com o Sr. dArreboust, tentar desmascarar, em Angélica, o lado diabólico... caso houvess"e um.

CAPÍTULO XLI

O sacrifício dos cavalos

A noite continuou. Uma noite que durou seis dias. Neve e vento se uniam para comprimir o forte em seus turbilhões, e nem um raio de luz conseguia penetrar pelas janelas opacas de neve. Abrir a porta era uma tarefa a que, em certos dias, foi preciso renunciar. No interior das chaminés, o vento soprava baforadas de fumaça, e eles sufocavam, sem poder abrir para arejar. Mas o forte resistiu, a toca de Wapassu continuou sendo abrigo seguro, apesar das pancadas que, de vez em quando, faziam estalar o teto. As duas pranchas de carvalho preto, esquadriadas e como que soldadas uma à outra por uma areia endurecida, aguentaram.

Eles se agrupavam no calor do refúgio, apertavam-se uns contra os outros.

Foi durante essa longa noite que um dos cavalos foi levado pelos lobos, o garanhão preto.

Joffrey de Peyrac decidiu então abater o animal que restava, a égua Wallis. A estrebaria e as cavalariças estavam destruídas. Já não havia abrigo para os animais, forragem ou comida para eles, e os homens tinham fome.

Joffrey de Peyrac censurava-se por haver adiado a execução na esperança de um milagre impossível. Sabia que as reservas de carne chegavam ao fim, e mesmo que tivessem podido caçar todos os dias, era pouco provável que a caça bastasse para garantir o passadio. E agora a perda do garanhão preto diminuía as chances de sobrevivência.

Angélica não disse nada.

A urgência das necessidades deslocava o centro dos valores. Eles todos tinham lutado pelos cavalos. Trazê-los para o interior adquirira, aos olhos deles, um sentido simbólico, e salvá-los, mante-los, parecera a todos de importância capital.

Agora se trataya de salvar vidas humanas. Já não era a presença dos cavalos no Alto Kennebec que se encontrava em jogo, mas a de Peyrac e dos seus.   

Todos se calaram. No fracasso imerecido há uma grande amargura. A façanha não pudera ser realizada até o fim. Mas Angélica repetia consigo que não se pode exigir que tudo dê certo e não se pode atingir a meta fixada sem sacrificar nada no caminho.

Sua amargura desapareceu, substituída por uma grande onda de euforia que a invadiu quando se viu na possibilidade de fazer seus doentes e convalescentes tomarem um caldo grosso e tonificante, e durante alguns dias a abundância de carne fresca, o odor dos grelhados que vinha estimular os estômagos cansados deu-lhes uma alegria um pouco nervosa que os ajudou a recuperar forças e a ter paciência.

Jamais Ang"élica teria imaginado que um dia comeria cavalo. Para os nobres, esse animal não podia se comparar em nada com o animal doméstico destinado ao matadouro: o boi, o carneiro, o vitelo...

Era o amigo, desde a mais tenra infância, o companheiro de passeios, de viagens e guerras...

Em tempos normais eia feria sentido tanto horror a comer cavalo quanto a praticar canibalismo.

Deu para adivinhar as diferenças de origem dos que estavam reunidos ali pela reação que tiveram. Os canadenses, os ingleses camponeses, os marinheiros, e até jovens como Florimond e Cantor não hesitaram. Lamentavam que tivessem tido tanto trabalho para trazer os cavalos e que fossem obrigados a abatê-los. Mas, mais tarde, trariam outros. Recomeçariam.

Não sentiam aquele recuo interior do gentil-homem, para quem o cavalo faz parte integrante de si mesmo.

Angélica pensaria de novo nisso tudo mais tarde. No momento, estava cansada demais para se entregara digressões. O que via era que Honorina recuperava uma boa cor, que todo mundo ressuscitava, e começava a entender melhor a deificação do alimento pelo índio e como reunir-se em torno de um fogo, entre amigos, para "fazer um festim", é uma verdadeira cerimonia religiosa.

CAPÍTULO XLII

Assustadora revelação do Conde Loménie

Angélica pegou o lingote de ouro e examinou-o. Era seu. O Conde de Peyrac entregara-lho como aos demais, como a um de "seus homens"... Ela agora queria pôr em prática um projeto que lhe era caro há algum tempo.

Como prometera um maço de velas a todos os santos do paraíso caso escapassem da varíola, agora queria oferecer o lingote ao santuário de Santa Ana de Beaupré, de que os canadenses falavam com frequência.

Fora edificado por marinheiros bretões, salvos de um naufrágio, nas margens do Saint-Laurent, e dizia-se que ali ocorriam inúmeros milagres.

Ao entrar na sala comum naquela tarde, Angélica achou que o momento era propício, pois o Sr. d'Arreboust e o Coronel de Loménie estavam sozinhos ali, lendo seus missais.

Angélica foi até eles e entregou-lhes o lingote, comunicando-lhes suas intenções.

Desejava que o ouro fosse utilizado pelos servidores da paróquia e do local de peregrinação conforme lhes aprouvesse, fosse para a compra de casulas e ornamentos sacerdotais para realçar os ofícios, fosse para a execução de uma via crucis ou de um belo altar-mor. Pedia apenas que seu nome fosse gravado numa placa de mármore branco, comemorando ao lado de tantos outros ex-votos nas paredes da igreja o seu reconhecimento ao céu que os poupara da horrível doença.

Os dois gentis-homens se levantaram de um salto e recuaram com tanta precipitação, que o Sr. dArreboust virou uma cadeira. Olhavam horrorizados o ouro que reluzia suavemente sobre a mesa, diante deles.

— Impossível - balbuciou o barão. - Jamais em Quebec aceitarão esse ouro, sobretudo quando se souber de onde vem e quem o ofereceu.             

— O que está querendo dizer?.

— O senhor bispo preferiria certamente queimar o santuário ou mandar exorcizá-lo.         .

— Mas o que está dizendo?

— Esse ouro é maldito.

— Não o entendo - disse Angélica. - O senhor não fez tanta cerimonia para aceitar o ouro que meu marido colocou à sua disposição para a viagem ao-Mississípi. Quer me parecer mesmo que veio pedi-lo...

— Não é a mesma coisa.

— E por quê?. . -.

— Da sua mão!... Imagine uma coisa dessas!... Seríamos apedrejados.

Angélica examinou-os erri silênck». Não acreditava que estivessem loucos. Era pior.

-        Senhora -r disse Loménie, baixando a cabeça -, tenho o coração dilacerado. Devo desobrigar-me de uma tarefa desagradável revelando-lhe que se formou um boato a seu respeito, que ganhou corpo e que dividiu os nossos concidadãos de Quebec e até do Canadá inteiro. Alguns, surpresos com a sua chegada, com os seus feitos mesmo, preocuparam-se, tiveram a impressão de ver em certas coincidências...

O olhar de Angélica cravado nele não lhe facilitava a confissão.

Ela já sabia o que ele queria dizer, mas a coisa lhe parecia tão aberrante, que preferia deixá-lo desembaraçar-se sem ajudá-lo. O certo é que... começava a irritar-se. Claro, não reclamava uma gratidão desvairada, mas afinal!... Aqueles piedosos militares não estariam exagerando um pouquinho? Ela cuidara deles. Servia-os a qualquer hora do dia. Estava exausta. Agora mesmo os músculos das costas e dos braços lhe doíam, pois acabava de quebrar com a picareta a soleira da trincheira, transformada em pista de patinação. O Sr. Jonas escorregara naquela manhã e sofrera um dolorido entorse. Para evitar que o acidente se repetisse, Angélica trabalhara duas horas seguidas, depois espalhara cinza e pó de carvão. E era o momento que eles escolhiam para vir atirar-lhi à cara imbecilidades insultantes, acusá-la de poderes diabólicos D'Arreboust, vendo que Loménie não ia adiante, lançou:

-        Desconfiam de que você encarna a Diaba da Acádia. Ouviu falar dessa predição?

-        Sim! Trata-se, creio, de uma visão que teve uma das suas religiosas, revelando que um demónio fêmea procurava causar a perdição das almas dá Acádia. São coisas que acontecem - disse Angélica, com um sorrisinho. - Com o que, então, reúno as condições necessárias pára o papel?

- Senhora, não podemos, infelizmente, troçar a respeito de conjunturas tão trágicas - suspirou Loménie. - O destino quis que o Sr. de Peyrac se instalasse na Acádia na mesma época em que essa predição inquietava os espíritos; no Canadá, soube-se que havia deste lado uma mulher cuja descrição parecia corresponder à dada pela vidente, e as suspeitas recaíram sobre sua pessoa.

Apesar de tudo, Angélica estava preocupada. Quando vira o recuo dos dois gentis-homens, na hora pressentira que era grave. Não se enganava de todo. Ouvira falar da visão. Nicolau Perrot já aludira a ela... Ela adivinhava que se pudesse ser tentado a estabelecer aproximações. Mas não achava que a coisa pudesse tornar-se séria.

Agora, contudo, via o que estava acontecendo. A besta se punha em marcha... Ela ouvia-lhe o passo pesado... A Inquisição!

O monstro que a esperava na América não era, então, a natureza indomada, mas sempre o mesmo inimigo, mais virulento ainda, talvez, do que no Velho Mundo. Pois ela não ignorava que nos territórios espanhóis a Inquisição não parara de acender os mais gigantescos autos-de-fé da história. Milhões de índios tinham sido queimados por não quererem trabalhar para os servidores da Igreja.

Lá, na França, tinham-na perseguido porque era uma bela jovem, amada, de brio, e diferente das outras... Aqui lhe atirariam um nome: a Diaba... como outrora haviam gritado a Peyrac: "Feiticeiro!..."

Na América tudo é mais nítido. As paixões são claras, exacerbam-se. Ela precisaria aprender a enfrentar o mito, a defender-se, vencê-lo, e era como se já tivesse pela frente um mau espírito que se tivesse insinuado na sua casa. Mas, mesmo aos maus espíritos é preciso enfrentar...

— Explique-se, Sr. de Loménie - disse ela, numa voz apesar de tudo alterada. - Não quer pretender que em Quebec haja pessoas de importância,, de qualidade, que dão algum crédito a essa história, que acreditam seriamente que eu possa ser... a encarnação dessa diaba que foi predita!"

— Infelizmente! Tudo a acusa-exclamou Loménie com um gesto de desespero. - Você desembarcou no próprio local onde se pôde determinar que a visão se situava. Viram-na avançar a cavalo, através das regiões mesmas que a religiosa dizia ameaçadas pela Diaba... E você é... belíssima. Todos os que a viram só fizeram testemunhar isso... Assim, é dever do senhor bispo informar-se mais antes...

— Não está querendo dizer que as autoridades eclesiásticas atribuem importância a essas tagarelices... e principalmente à interpretação delas! - exclamem Angélica.

— Sim, senhoraf Q| relatórios do Padre d'Orgeval, de Frei Marcos do rio Saint-Jean; não podiam ser tratados levianamente pelo monsenhor. Além disso, o capelão das ursulinas de Quebec, Sr. de Jorras, atesta pela saúdg mental e o equilíbrio da Irmã Madalena, de quem é confessor há longos anos. O Padre de Maubeuge, superior dós jesuítas, está igualmente convencido de ver na sua chegada sinais irrefutáveis das calamidades anunciadas...

Angélica arregalava olhos horrorizados.

-        Mas por quê? - exclamou!"- Por que todos esses padres contra mim?

Joffrey de Peyrac, que entrava, vindo da oficina, ouviu esse grito. Ouviu-o como um grito simbólico. O grito da Mulher indignada. Indignada, rejeitada há tantos séculos.

-        Por quê?... Por que esses padres contra mim?

Ele ficou no escuro, não avançou. Cabia a ela defender-se.

Havia muitos séculos que isso se fazia, a rejeição da mulher por uma Igreja misógina, e era tempo de que se lançasse o grito. E era justo que o lançasse a mais bela, a mais "mulher" que a terra jamais vira.

Imobilizou-se, invisível, contemplando-a de longe, com um orgulho, uma ternura profundos, ela, tão linda na sua surpresa, e sua indignação, que crescia pouco a pouco e lhe punha uma mancha vermelha nas maçãs do rosto e faíscas nos olhos verdes.

Apenas o Barão dArreboust notou a presença de Peyrac.

Adivinhou-lhe o clarão do sorriso olhando Angélica e um acre ciúme contraiu-lhe o coração.

"Esse Peyrac possui um tesouro e sabe disso", pensou. "Sabe disso... Quanto a mim, minha mulher nunca me pertenceu..."

O fel vinha-lhe aos lábios, o veneno enchia-lhe o coração, e ele tinha vontade de cuspir todo o seu desgosto em palavras violentas, de denúncia, para abater aquele amor triunfante, mas ao mesmo tempo percebia que tudo o que dissesse viria de uma fonte poluída lá do fundo dele mesmo. Calou-se.

Corajosamente, conscienciosamente, Loménie continuava. Tirou do gibão uma carta que desdobrou com ar de sofrimento.

- Tenho aqui, registrados, os termos exatos da perdição. Algumas descrições de paisagens são perturbadoras. Recentemente um recoleto, Frei Marcos, capelão do Sr. de Vauvenart, sobre o rio Saint-Jean, reconheceu sem dúvida alguma o local onde você desembarcou há pouco tempo, você, Angélica, assim como o Sr. de Peyrac...

Angélica arrancou-lhe o papel sem cerimónias, e se pôs a ler.

A visionária descrevia primeiro o lugar aonde fora levada em sonho.

CAPÍTULO XLIII

Relato de uma visionária - Angélica expulsa os hóspedes indesejáveis

"Encontrava-me à beirado mar. As árvores avançavam quase até a praia... A areia tinha um reflexo rosado... A esquerda havia um forte de madeira, com uma alta paliçada, e um torreão onde flutuava uma bandeira... Pof toda parte na enseada, ilhas em grande número, cqrno_-monstros agachados... No fundo da praia, sob a falésia, casas de madeira clara... Na enseada, dois navios que balançam ancorados... Do outro lado dessa praia, a alguma distância, e depois de se vencer urna ou-duas milhas, havia outro amontoado de cabanas, com rosas ao redor... Eu ouvia gaivotas e alcatrazes gritar..."

O coração de Angélica começou a bater de modo desordenado. Mais tarde se censuraria essa emoção, pois desde então ela poderia ter notado na leitura do documento pormenores que lhe teriam permitido refutar de imediato a acusação que se levantava contra ela. Um dia esse texto lhe voltaria à memória. E ela entenderia tudo. Más seria quase tarde demais.

Naquele dia o que a atingia sobretudo era o que designava certamente Gouldsboro, e ela se gentia invadida de uma cólera impotente.

"De repente uma mulher de grande beleza ergueu-se das águas e eu soube que era um demónio feminino. Ficou suspensa acima das águas onde seu corpo se refletia, e vê-la me era insuportável, pois era uma mulher... e eu via nela o símbolo da minha condição de pecadora... De súbito, do fundo do horizonte, um ser, em que de início acreditei reconhecer um demónio, avançou em rápido galope e notei que era um unicórnio cujo longo chifre cintilava ao sol poente como um cristal. A Diaba montou-o e lançou-se pelo espaço.

"Então vi a Acádia, como uma planície imensa que eu contemplasse do alto dos céus. Eu soube que era a Acádia. Dos quatro cantos, demónios a seguravam como uma coberta e sacudiam-na violentamente. A Diaba percorreu-a numa concha alada e ateou fogo....Durante todo o tempo que durou esta visão, lembro-me de que tive a sensação de que havia, como que num canto do ambiente, um demónio negro e careteiro, que parecia velar pela criatura cintilante e demoníaca, e por instantes eu tinha o medo terrível de que fosse o próprio Lúcifer.

"Eu estava lá e me desesperava, porque via que era a catástrofe para o caro país que tomamos sob nossa proteção, quando tudo pareceu acalmar-se.

"Outra mulher passou no céu. Eu não saberia dizer se era a Santa Virgem ou alguma santa protetora das nossas comunidades. Mas a sua aparição pareceu acalmar a Diaba. Ela recuava, assustada... E vi sair do mato uma espécie de monstro peludo que se atirou sobre ela e a fez em pedaços, enquanto um jovem arcanjo de espada coruscante se alçava nas nuvens..."

Angélica tornou a dobrar as folhas. Deu tempo a seu medo, mesclado de irritação, de acalmar-se... Aquilo não passava de um amontoado de insanidades, elucubrações de freira enclausurada visivelmente louca. E havia gente séria para dar crédito àquilo!

Mas todo mundo sabe que os conventos estão cheios desses visionários!... Ainda assim, havia no relato algo que a fazia temer alguma parcela de verdade. Assim, ao invés de protestar, ficou pensativa.

— Se é verdade - murmurou afinal - que tiveram a impressão de reconhecer nos lugares descritos o cenário de Gouldsbo-ro, admito que a interpretação dos padres tenha sido perturbada pela chegada de mulheres, cavalos, a esta costa... Pela minha chegada, que seja!... Mas como me defender? O simbolismo das imagens oculta tantas realidades diversas, você sabe. As coincidências não me parecem convincentes. Assim, a sua visionária não precisa se a Diaba era morena ou loura?... Parece curioso, depois da descrição tão exata da paisagem.

— De fato. Mas a Irmã Madalena nos disse em pessoa que a aparição se levantou das águas contra a luz e que ela não podia distinguir-lhe as feições.

_ Muito cómodo - disse Angélica. - E como pôde pretender que a mulher era bela, se não lhe viu o rosto?

__ Ela falava principalmente da beleza do corpo. Insistiu muito nisso. O corpo dessa mulher lhe pareceu de'uma beleza surpreendente, a tal ponto que a própria-freira se sentiu atingida, perturbada...       

— Quero crer-lhe, mas isso me parecejnsuficiente para que venham honrar-me com essa encarnação. Ninguém pode pretender ter-me visto, nua, saindo das águas...

Interrompeu-se abruptamente e de súbito lima grande palidez invadiu-lhe as faces. A lembrança do pequeno lago azul onde se banhara durante a viagem voltou-lhe à memória. Aquele momento em que o medo a dominara, porque tivera a impressão de que um olhar a espreitava dentre «s árvores.

Então era verdade! Alguém a vira! Fitou desnorteada Loménie e D Arreboust, e pela expressão deles entendeu que pensavam o mesmo que ela!... Eles-sabiam... alguém a vira e falara.

Pousou a mão sobre o punhojde Lomenie-Chambord e apertou-o quase a ponto-de quebrá-lo.

— Quem me viú? Quem me viu enquanto eu me banhava no lago? - Seus olhos fulguravam. O pobre Cavaleiro de Malta baixou os olhos.

— Não posso dizer-lhe, senhorarMas é verdade que foi vista, e isso só fez aumentar o receio que começava a se alastrar devido a essa visão.

Angélica teve uma sensação de pânico. Então não sonhara quando, à beira do lago, sentira constrangimento e medo, apesar do lugar deserto.

-        Quem me viu? - repetiu, de dentes cerrados.

Ele balançou a cabeça, decidido a não responder. Ela o soltou. Que importava!... Por muito tempo achara que a impressão fora falsa ou então que, por causa do medo, fora espiada por iroque-ses, talvez pelo próprio Utakê, más aí estava: fora um daqueles canadenses franceses que rondavam, soldadp, .oficial ou explorador, pela floresta! E a lenda se materializara. Tudo se encadeava. Ela fora vista "nua, saindo das águas..." Maldição!

A cólera dominou-a por completo e seu punho abateu-se sobre a mesa.

— Que o Diabo os carregue! - disse, de dentes cerrados. - A vocês, ao seu rei, suas religiosas e seus padres! Será que não existe um país suficientemente longínquo para se encontrar refúgio contra essas tolices? Vocês têm que estar em toda parte a semear a discórdia, sob o pretexto de salvar almas ou servir o rei. Têm que aparecer em toda parte para impedir a gente honesta de viver em paz!... De se lavar em paz!... Cinquenta mil lagos! Há cinquenta mil lagos neste país e eu não poderia escolher um único deles para me refrescar num dia de calor sem que um dos seus estivesse ali para transformar esse banho em fenómeno do Apocalipse...

— Ela continuou: - Porque um grosseirão também se acredita honrado por visões celestes, vocês o imitam... Felicitem-se de que ele tenha sido avisado dos perigos que ameaçam a Nova França com a presença de uma mulher que se banha num lago... E quem foi que me guiou, a mim, quando me veio a ideia de ir procurá-los na neve, onde estavam morrendo?... Se o meu mestre é o Diabo, é de crer que lhes tem muita amizade, pois foi a sua vida que salvei. Nós cuidamos de vocês, dividimos com vocês nossos últimos víveres, fomos obrigados a matar o nosso último cavalo...

— Ela respirou fundo e continuou: - E não contentes de nos terem trazido a peste com os seus huronianos, não contentes de terem aceitado os nossos cuidados, a nossa hospitalidade, de terem compartilhado das nossas últimas reservas, de terem recebido a promessa de apoio para a expedição do Sr. de La Salle, ainda vêm perguntar se não somos emissários de Satã, se não sou a Diaba anunciada... Até quando serão crianças tacanhas?"

Angélica agora sentia desprezo, quase piedade por eles.

-        Por causa dos amos que os governam, hoje vocês se mostraram estúpidos, covardes e ingratos... Não quero mais vê-los.

Saiam!...

Repetiu em tom mais calmo, mas igualmente gelado:

-        Saiam! Saiam de minha casa!

Os dois gentis-homens se levantaram, de cabeça baixa, e se dirigiram para a porta.

CAPÍTULO XLIV

Loménie e D'Arreboust meditam sobre suas ofensas a Angélica

Um crepúsculo violáceo e triste, frio como uma lâmina afiada, acolheu-os do lado de fora. Caminharam ao acaso, tropeçando no chão gelado,'pararam à beira do lago, de olhos voltados para o horizonte ao mesmo tempo escuro *e alvacento, de onde vinha um pouco de. claridade.

Acontecia-lhes - aventura extraordinária para homens da sua idade e têmpera -, naquela hora do entardecer, em que silvava o vento infatigável sobre a neve, de se sentirem tão desamparados quanto órfãos.

Estavam em vias de entender que se perdessem a amizade da Sra. de Peyrac a vida se tornaria realmente insuportável para eles.

— Não merecemos isso... - disse Loménie, lúgubre.

— Não... Mas, da parte dela, sim... Entendo sua cólera. Amaldiçôo-me por ter-me feito porta-voz dessas tagarelices que feriram essa jovem adorável de quem só recebemos bons tratos. Ela tem razão, Chambord! Somos os últimos dos patifes! E a culpa é dos jesuítas. Entulharam-nos o espírito com as imbecilidades deles! Já nem somos homens.

— Caramba! - disse Loménie,- espantado. - Eu o acreditava muito devotado àqueles senhores da Companhia de Jesus. Quase um dos seus!... Você e sua mulher não são um exemplo que...

— Os jesuítas que tomaram minha mulher - disse o barão. - Eu não sabia que ela me pertencia. Aproveitaram para tomá-la de rrúm. Vale dizer que não existo mais. Fizeram de mim um eunuco a serviço da Igreja... Estado .excelente, pois o casamento, mesmo cristão, é pecaminoso aos olhos deles. Foi a Dama do Lago de Prata que me fez tomar consciência de tudo isso. Ela é tão bela, tão mulher... Gosto de seu ardor, do calor de sua presença... Uma mulher que se pode tomar entre os braços...

Tossiu, pois falara muito alto, e o ar gelado lhe queimava os pulmões.

— Compreenda-me, você que é meu amigo, pois ninguém me compreenderá em Qiíebec quando eu atirar essa pedra naquele charco de rãs. A Dama do Lago de Prata pertence apenas a Peyrac. Foi feita para ser tomada entre os braços de um homem... É isso que estou dizendo. Foi feita para os braços daquele homem. E isso é bom! E isso está bem! É isso o que quero dizer.

— Meu amigo, você está delirando, já não é você mesmo.

— Talvez, ou será que estou em vias de tornar-me eu mesmo? Pois esse eu mesmo, ardente, alegre, algo pândego, que confia em Deus e na vida, nós o deixamos bem longe para trás, numa curva da juventude, sob o peso de restrições e exigências inconciliáveis com a verdade. Peyrac nunca renegou a si mesmo. Permaneceu como uma rocha em meio a uma vida de torpezas. Invejo Peyrac, e não apenas porque é o homem daquela mulher. Porque ele nunca renegou a si próprio - repetiu D'Arreboust, obstinado -, ainda que tivesse que morrer por causa disso, em nenhuma das etapas de sua existência. E a etapa da juventude é a mais perigosa de vencer. É nela que se tomba sob influências de que nada nos vem libertar, porque imaginamos que resultam da nossa própria vontade. Você ainda suspeita de que ela seja um demónio? - indagou, apontando um dedo enfurecido para Loménie, que batia os dentes de frio.

— Não, nunca suspeitei. Lembre-se de que em Quebec eu me opunha a esses falatórios, e todo mundo me censurava, me acusava de ter sido enfeitiçado. Você foi o primeiro.

— Sim, é verdade, perdoe-me! Agora entendo. Deus do céu! Estou morrendo de frio. Entremos, depressa! E vamos apresentar nossas desculpas a essa mulher encantadora a quem ofendemos tão gravemente.

CAPÍTULO XLV

Reconciliada, Angélica avalia sua liberdade - Os desbravadores partem

antes do degelo - Os emissários retornam a Quebec com novidades espantosas

— Então tem tanto medo assim de que eu não lhes dê mais de comer? - indagou Angélica quando os viu em pé atrás dela, numa atitude contrita.

— "Rejeitados nas trevas, entre lágrimas e ranger de dentes" --- citou o Conde de Loménie -, e um frio de rachar as pedras

— acrescentou com um sorriso digno de dó.

Ao ficar sozinha Angélica se acalmara um pouco. De início magoada e inquieta, logo o seu senso de humor falou mais alto e, pensando que a sua chegada à América pudesse ter pregado tamanha peça nos supersticiosos canadenses, mesclando-se com as visões deles, surpreendeu-se sorrindo. O embaraço dos plenipotenciários do bispo vingava-a um pouco. O pobre Loménie ficara sobre brasas. Quanto a D'Arreboust, ela não conseguira definir o que o deixara tão furioso: o aborrecimento de precisar dialogar com uma suposta enviada de Lúcifer ou o de desempenhar o papel de inquisidor diante dela. Angélica inclinava-se pela última possibilidade. Todos tinham aprendido a se avaliar durante as últimas semanas. Assim, quando os viu envergonhados atrás dela, pendeu à indulgência.

O Cavaleiro de Malta explicou-lhe que entendia a penosa emoção dela e pedia-lhe que o desculpasse por ter sido inábil. Ela se enganara. Longe da cabeça deles a ideia dé suspeitá-la unida com as legiões infernais. Queriam apenas preveni-la de uma situação de fato, preveni-la de um perigo... Seus compatriotas estavam desnorteados. Eles saberiam fazê-los entender ao retornarem a Quebec. Angélica estendeu-lhes a mão a beijar e perdoou-lhes.

- E uma grande dama, não há dúvida - diria o Barão d Arreboust. - Eu juraria que foi recebida em todos os salões de Paris e até na corte do rei, simplesmente pela maneira de estender a mão.

No decorrer do acalorado diálogo que Angélica tivera com os dois gentis-homens, ela não notara a presença do marido. Ele se retirara sem ruído. Esperou que ela lhe falasse do incidente, mas ela se calou. Refletindo no assunto, Angélica achou que não valia a pena comentar o caso. Ainda não! Mais tarde, talvez, se adquirisse vulto capaz de prejudicá-los. Ela receava as reações de Pey-rac quando era ela que estava em pauta. Por outro lado, o entendimento que tivera com os dois representantes canadenses dera-lhe aliados seguros. Duas influentes personalidades do Canadá tinham sido obrigadas a pronunciar-se em favor dela.

O Padre Massérat não parecia hostil. Quanto ao Cavaleiro de La Salle, recebera o seu dinheiro. Pouco lhe dava que o dinheiro viesse do Diabo ou da Providência. Só importava a realização de seus projetos. Duro, materialista, todo ocupado com seus próprios assuntos, era de se perguntar como aquele jovem frio e ousado pudera, durante dez anos, crer-se chamado por uma vocação religiosa.

Enquanto Angélica se sentia entre os seus, no forte, não tinha medo. A situação era bem diferente da que Joffrey de Peyrac tivera que enfrentar quando o acusaram de feitiçaria e a autoridade do rei e da Inquisição podiam insinuar-se em toda parte, até no próprio palácio dele.

Livre! Ela começava a entender melhor o sentido dessa palavra quando o seu olhar vagava pelos montes cobertos de neve, virgens, indómitos. Uma terra sem príncipe, não vassala, e que fazia pouco caso dos direitos do rei da França ou do rei da Inglaterra.

Era grande demais para os homens que tentavam apropriar-se dela. No forte, Angélica sentia mais profundamente ainda que o único senhor de quem dependia a sua sorte era Joffrey de Peyrac, e que ele tinha poder, e teria força, para defendê-la de todos. Ele lhe prometia que na primavera uma leva de no mínimo vinte ou trinta mercenários subiria a Wapassu, o que lhes deixaria uma guarnição permanente três vezes maior do que todas as guarnições que podiam ter os mais protegidos dos estabelecimentos franceses. Os homens construiriam um forte cuja planta já prometia que seria o mais belo e o mais bem concebido da América do Norte.

Angélica gostava de se debruçar com o marido e os filhos sobre aquela planta. De seu lado, preocupava-se com o conforto da gente da casa, previa apartamentos para os casais, uma sala de jantar comum, e também um salão dando para um depósito onde os índios poderiam entrar, cuspir e arrotar à;v:ontade... Um jardim, uma horta, estrebarias...

Em março, uma melhora do tempo pareceu propícia à partida dos diferentes grupos. Se esperassem, correriam o risco de ser pegos na neve mole do fim do inverno, as vezes até mais abundante, mas pesada, molhada, traiçoeira.

Nicolau Perrot partia para o sul, reconduzindo, à missão de Noridgewook, Pacífico Jusserand, cujos olhos ainda não lhe permitiam orientar-se sozinho. "O índio que acompanhara o emissário foi designado para seguir até Quèbec cõm os senhores D Arre-boust e De Lorflénie e com o Padre Massérat.

Por fim, o grupo -que tinha o, mais longo percurso a vencer, pois se encaminhava para oéste^ na direção do lago Champlain, era o composto pelo Cavaleiro de La Salle, Florimónd, Yann Le Couénnec e um jovem índio da pequena tribo vizinha que pedira para participar da viagem? A partilha de víveres ofereceu problemas espinhosos. Carne salgada, carne defumada, farinha de milho, aguardente... Caso se desse a todos o necessário para várias semanas de viagem, os habitantes do forte ficariam quase inteiramente desprovidos. Ccmfiou-se, então, na Providência, que lhes poria caça no caminho.

No dia da partida, Angélica postou-se à soleira da porta, com uma taça e um jarro de aguardente na mão. Todos tiveram que beber o gole do adeus, ainda que não fossem saltar para a sela. As raquetes estavam às costas. A neve, ainda elástica e dura, permitiria avançar por muito tempo sem calçá-las.

Continuava fazendo um frio seco, mas que já cedia um pouco. Os viajantes faziam bons presságios sobre a temperatura. Que durasse seis dias, e eles estariam fora de perigo...

Florimónd beijou a mãe sem demonstrar emoção, nem, na excitação da partida, uma alegria juvenil demais. Estava calmo. Verificou uma última vez com o pai os instrumentos e mapas que levava, e trocou algumas palavras com ele. Ao lado do Cavaleiro de La Salle e até do bretão, Florimónd parecia o mais velho. Não se sabia quais eram os detalhes sutis que faziam adivinhar isso, mas todos sentiam que no caso de dificuldades os outros pouco a pouco adquiririam o hábito de voltar-se para ele. Sangue de gentil-homem se impõe.

Quando Florimond voltou o olhar negro para a distância, avaliando a natureza antes de enfrentá-la, e começou a se encaminhar na direção do lago, Angélica sentiu o coração contrair-se, mas de admiração e alegria. De satisfação também.

Um novo Joffrey de Peyrac partia pelo mundo...

Um pouco antes da; partida, Otávio Malaprade e Elvira, aproveitando a presença do Padre Massérat, casaram-se. De início o jesuíta recusara-se categoricamente a aprovar a união entre um bom católico e uma protestante notória. Depois fez a Malaprade um pequeno discurso lembrando que o casamento é um sacramento que os esposos administram um ao outro, que a intervenção de um ministro do culto não é obrigatória, exceto no que concerne à inscrição do seu testemunho nos registros de uma nação.

Se ele entendera bem, era o Sr. de Peyrac que representava ali o oficial da nação deles. Quanto à bênção divina, nada impedia esposos que desejassem coroar assim o seu juramento recíproco de recebê-la junto com os membros de uma reunião de fiéis durante um ofício religioso.

Malaprade era perspicaz. Disse que entendera e se afastou sem insistir. Mas na manhã seguinte, o canto onde o Padre Massérat celebrava a missa lotou-se estranhamente com quase a totalidade da população do forte, todos devidamente vestidos, e quando o oficiante se voltou para traçar sobre a congregação o sinal da paz, não pôde distinguir particularmente duas humildes silhuetas, lado a lado, que tinham na mão, naquele dia, uma aliança de ouro.

Assim, Otávio Malaprade e Elvira se casaram diante de Deus e dos homens. Prepararam para eles um novo apartamento no celeiro.

Quando chegaram a Quebec, os enviados do Sr. de Frontenac, que todos acreditavam mortos na neve ou assassinados pelo Conde de Peyrac há muito tempo, foram recebidos como ressuscitados.

Tinha-se a impressão de que retornavam no mínimo do inferno, e foram rodeados com medo e respeito. O circunspecto Barão dArreboust logo provocou perturbação com um comportamento jovial que ninguém lhe conhecia e com suas declarações no mínimo espantosas.

-        O mal está feito - disse. - Estou apaixonado. Estou apaixonado pela Dama do Lago de Prata!

O Conde de Loménie-Chambord não mudara a sua opinião inicial. Apesar da revelação da visionária, apesar da morte de Pont-Briand, que transtornou todo mundo, ele continuava vendo amigos nos estrangeiros de Wapassu.        

Fechou-se um dia inteiro no castelo de São Luís com o governador. Depois se dirigiu ao mosteiro dos jesuítas, com a intenção de fazer um retiro.

Quando se falava da morte de Pont-Briand:

-        Ele mereceu - dizia o barão.

Mostrava-se prolixo sobre suas aventuras esua estada entre os "perigosos hereges", descrevia cada um deles, que se tornaram quase lendários: a grande estatura e o conhecimento de Peyrac, os mineiros com lingotes de ouro nas mãos negras, e a beleza delal Nessa altura se tornava inesgotáveis

-        Estou apaixonado «- repetia, com uma obstinação infantil.

O rumor desses distúrbios chegou até Montreal, e a mulher dele, a quem o despeito conferia certo refinamento de espírito, escreveu-lhe:

"Dão informações desagradáveis a seu respeito... Eu, que o amo..."     

Ele respondeu:

"Não, não me ama, senhora, e eu também não a amo..."

Nunca, como naquela estação, os mensageiros tiveram que percorrer tanto as cinquenta léguas que separavam as duas cidades. Nunca se pronunciara tanto a palavra "amor" em Quebec e Montreal, roçando, de passagem, em Trois-Rivières, que não entendia nada, e nunca se discutiu tanto para definir o significado desse sentimento essencial.

O Sr. d'Arreboust reconhecia que algo mudara nele, mas admitia que não fora no mau sentido, e aí as pessoas já não conseguiam acompanhá-lo. Ele se mostrava orgulhoso de suas declarações escandalosas, fazendo rir um Frontenac deliciado. O governador desejara que as negociações travadas com o Conde de Peyrac se mantivessem, e congratulou-se com o barão nas salas superiores do castelo, diante de um tronco ardendo, sobre o encanto das be-as mulheres e os prazeres e desprazeres do amor, pois Frontenac deixara na França uma mulher brilhante, volúvel e descuidada, a quem amava muito.

Discussões apaixonadas, devaneios candentes, projetos grandiosos mantinham os ânimos, aqueciam os espíritos, e isso ajudava os canadenses naquele fim de inverno que ainda precisavam enfrentar. Pois chegava o tempo da fome, do desgaste do frio e, até nas cidades, a lassidão de homens privados de comida, esgotados pela luta contra uma temperatura cruel. Receava-se não sobreviver até a chegada dos primeiros navios da França. Sabia-se que pelas vastidões desoladas a morte ia passar como um blizzard cortante. As guarnições dos fortes distantes enterravam seus mortos de escorbuto. No interior de povoados imprevidentes, o missionário roía seu cinto de caribu. Aldeias inteiras, impelidas pela fome, partiam rumo a refúgio ignorado e morriam nas pistas brancas. Outras aguardavam a morte, envoltas em suas cobertas, vermelhas e azuis, perto de um fogo languescente...

Quando, no início de abril, nevou novamente por muito tempo, uma neve pesada e gelada, o Coronel de Castel-Morgeat, governador militar, um dos inimigos irredutíveis da gente de Wapassu, repetia em toda parte em Quebec, com um sorriso sardónico, que já não havia necessidade de discutir méritos ou inconvenientes daquela gente, pois agora, com certeza, estavam todos mortos, no fundo da mata, com mulheres, crianças e cavalos.

CAPÍTULO XLVI

Cansaço de Angélica - O delírio do auvergnat Clóvis

Pouco a pouce Angélica sentira-se invadir por um grande cansaço.      

Sentia-o desde-a manhã. Mal abria os olhos, embora lúcida e desejosa de iniciar o seu dia, sentia o corpo de chumbo, afundado no colchão, como um destroço nas areias. No entanto, não sentia nenhuma dor. O mal estar vinha de dentro, ainda que ela já soubesse que não estava grávida. Quebrara-se algo nela, que não tinha forças para reparar. "Estou cansada", repetia consigo mesma, espantada. Prolongar o repouso não servia para nada, pelo contrário. Ficava ainda mais pesada, mais apática, um pedaço de pau com o espírito desperto e que gostaria de agir mas que na verdade não se movia mais do que uma acha de lenha.

Sentia falta de Florimond. Era tão alegre, constante em seu humor, já apresentando aquela recusa em se autocompadecer que caracterizava o pai. Quando fazia isso, era com bom humor, como no dia em que gritara: - E eu? E eu? - quando ninguém lhe dava atenção e ele estava caindo de exaustão. Era francês de temperamento e tíhha esse dom popular, que se encontra até na antecâmara do rei: quanto, mais desconfortável e até espinhosa e a situação, mais disparam as pilhérias. Ela não se preocupava com ele. Talvez se preocupasse, como toda mãe, caso tivesse forças para refletir nisso. Mas andava tão cansáHá, que deixava de lado essa preocupação. Havia a outra, mais lancinante, com a comida, que dia a dia escasseava. Já não se suportava o insípido cozido-de milho. Eles estavam de novo totalmente sem sal. A carne era tão dura, que era preciso mastigá-la longamente.

-        Estou cansada - repetia Angélica.

E às vezes dizia isso em voz alta, como que para se reconfortar de uma confidência que não ousava fazer a ninguém.

Com um esforço arrancava-se da cama. Cada gesto lhe custava muito, mas quando se via vestida, depois de fazer escrupulosas abluções, a coifa bem posta, as inúmeras saias e roupas de pele bem ajustadas, o estojo.da pistola favorita contra a anca, sentia-se melhor. O cansaço quase desaparecia. Em compensação, enquanto não comesse um pouco, o seu nervosismo era tal que ela evitava dirigir-se aos companheiros, de medo de rebentar em censuras e imprecações. Isso acontecera duas ou três vezes, uma vez contra Honorina, que chorara o dia inteiro, pois agora a menina chorava facilmente, e outra vez contra Cantor, que desde então vivia amuado. Houve uma vez, ainda, contra Clóvis, que cuspira no chão, e por pouco ela não se engalfinhou com aquele "carvoeiro". Depois se reconciliaram. Enfim, era preciso admitir que o corpo é vulnerável e que o espírito, sem esse amparo carnal, é fraco. Angélica sentia uma permanente irritação consigo mesma, como se fosse culpada, como se tivesse uma falta a se censurar. Uma noite falou com o marido a respeito, deitada a seu lado e com a cabeça apoiada no ombro dele.

— É simplesmente fome, minha senhorinha - disse-lhe ele, acariciando-lhe suavemente o ventre crispado e dolorido. - Quando comer outra vez, à saciedade, a vida recuperará suas cores amáveis para você.

— Mas você não se queixa, seu caráter permanece o mesmo... Como faz?

-        Sou uma carcaça velha, endurecida ao fogo.

Apertou-a longamente contra si, como que para comunicar-lhe a força viril de seu corpo indomável. Ela enroscou as pernas nas dele, rodeou-o com os braços e adormeceu com a testa apoiada naquele torso duro.

-        Sinto - disse-lhe ele um dia - que a mulher realmente saiu

do flanco do homem, assim como a criança saiu da mulher.

Era frequente ela sofrer de enxaquecas intoleráveis. E no dia seguinte a neve caía abundantemente. Por causa dessa neve que caía em massas compactas e que não gelava mais, Nicolau Perrot só retornou no final de março. Apesar das raquetes, por pouco ele não fora várias vezes soterrado com o seu índio em dunas de neve. Na missão de Noridgewook, encontrara apenas um ajudante do Padre d'Orgeval, o Padre de Guérande, a quem entregara Pacífico Jusserand. Hesitara em prosseguir para o sul, até o entreposto do holandês, mas diante do tempo horrível que lhe teria prolongado a viagem e da incerteza da primavera, que, assim que começasse o degelo, tornaria impraticáveis todas as pistas, ele preferira retornar a Wapassu. Propôs.uma grande caçada. Uma parte dos homens o acompanharia para oeste, até o lago Umbagog, do domínio de Mopuntuk. Era a época em que os índios, impelidos pela fome e pela obrigação de procurar peles de troca, punham-se a caçar em bandos. O cervo no cio, que começava a invadir os bosques gelados com o seu apelo veemente, era presa fácil, embora emagrecido pelo inverno e pelos combates com os rivais. Talvez também encontrassem manadas de corças, matariam o urso adormecido em seu covil preparado no outono, por fim abateriam a pauladas- todos os castores que o gelo das represas e canais começava a libertar. Para os índios, os caçadores brancos chegando com reservas de pófvora e chumbo seriam bem-vindos na tribo. Nicolau Perrot propôs que, para deixar mais víveres no forte, cada homem só levaria umà pequena provisão de sebo, farinha, trigo-da-índia e carne-seca socada com ervas. O suficiente para comer duas vezes por dia durante a viagem, dissolvendo um punhado desses ingredientes com a mão, como os índios. Perrot calculou a ração para seis dias de caminhada.

— E se a tempestade ou e degelo os atrasar? - indagou Angélica, a quem as provisões pareciam nitidamente insuficientes.

— Caçaremos! Os pássaros começam a se agitar de novo sob as árvores. Perdizes brancas, maçaricos polares, às vezes até gansos do Labrador. Também há lebres... Não se preocupe conosco, senhora. Era assim que fazíamos a guerra no tempo do Sr. de Tracy. Cento e vinte léguas em pleno inverno, até os povoados iroque-ses no vale dos monawks. Infelizmente, no ardor da guerra, ateamos fogo aos celeiros dos iroqueses, sem pensar que também não tínhamos reservas para o retorno.

— E então?

— Muitos morreram - disse Nicolau,- filosófico.

Muniu-se de pólvora, seus cartuchos a-tiracolo, a faca de selvagem no estojo bordado de pérolas e pêlos de porco-espinho, o cantil de aguardente, o machado e o cassetete, o isqueiro e o cachimbo, e a bolsa com pedras de sílex, a de fumo, o capote com franja de couro, a "touca" de lã vermelha, o cinto multicolorido, enrolado cinco vezes à cintura, e partiu, infatigável nómade das matas, avançando com o passo pesado e plantígrado das raquetes, à testa do pequeno grupo.

Esqueceu o saco de provisões sobre a mesa, e Angélica teve que correr atrás deles.

Já estavam longe, do outro lado do lago, e fizeram sinal de que não tinha importância." Fosse o que Deus quisesse!

Enfiaram pela mata, no universo penugento e cândido das árvores cobertas de neve que se. erguiam à volta deles em pirâmides majestosas, círios, fantasmas pálidos, e a passagem deles deixava atrás, por muito tempo, uma esteira poeirenta com mil partículas cintilantes.

Só ficou no forte, então à parte as mulheres e as crianças, um pequeno número de homens, e mesmo para esse grupo os víveres se revelaram insuficientes.

Cantor, mais uma vez, ficara furioso porque o pai o proibira de acompanhar os caçadores, assim como o proibira de partir com Florimond. Angélica compartilhava com o marido a ideia de que, como o adolescente estivera doente, não teria resistência suficiente para enfrentar a marcha até o lago Umbagog. Sem contar que, chegando lá, havia o risco de toparem com tribos dizimadas pela fome ou que tinham emigrado para o sul, numa impossível esperança de fugir ao inverno assassino.

Peyrac consolou o filho mais novo dizendo-lhe que precisavam de alguém em boas condições físicas para ir armar as armadilhas. O garoto partia corajosamente todas as manhãs. Às vezes trazia uma lebre, às vezes voltava de mãos vazias. Era difícil montar as armadilhas. Apesar de sua coragem, Cantor se cansava depressa. Voltava com tamanha fome, que sozinho devoraria a magra caça trazida. Ficou doente, e parou de pôr armadilhas.

Os índios do pequeno acampamento dos Castores tinham vindo várias vezes pedir milho. Era preciso dar-lhes. Em troca ofereciam um pouco de carne de castor. Um dia, fizeram a trouxa e se foram, ninguém soube para onde.

Exceto Joffrey de Peyrac, os que continuavam no forte estavam fracos ou inválidos. Eram dois espanhóis, entre os quais Juan Alvarez, que já não deixava o leito, o inglês mudo, Henrique Enzi, sempre tiritando, o Sr. Jonas e Kuassi-Ba, considerados velhos demais para participar da caçada. Estes dois últimos continuavam em bom estado e assumiam uma boa parte dos trabalhos mais duros: rachar lenha, limpar a neve, quebrar gelo, reparar o que podia ser reparado.

Clóvis deveria acompanhar os caçadores, mas na véspera da partida fora vítima de uma grave intoxicação com sais de chumbo.

Kuassi-Ba percebeu a tempo que o ferreira estava com a língua inchada e queixava-se de um gosto .estranho, açucarado, inexplicável. Dirigindo-se ao pequeno telheiro onde o auvergnat se entregava de hábito a suas operações metalúrgicas, o preto constatou que Clóvis, que sem dúvida sentira mais frio, vedara todos os interstícios e orifícios que permitiam ao frio entrar mas também ao ar ventilar o aposento, sem refletir que os vapores nocivos da copelação podiam estagnar. Kuassi-Ba logo preveniu o Conde de Peyrac e fizeram o artesão beber infusões calmantes para aliviar-Ihe as cólicas terríveis que começavam a contorcê-lo. Mas o verdadeiro remédio contra esse tipo de intoxicação grave inexistia: leite. Eles não viam nem tomavam uma gota sequer de leite desde que tinham-posto os pés na América, na verdade, desde a partida de La Rochelle, descontando-se as poucas escudelas de leite de cabra reservado às crianças no Gouldsboro. Na falta de leite, os mineiros sabiam que vísceras de coelho, limpas e comidas cruas, principalmente o fígado e o coração, podiam ser eficazes. Mas onde encontrá-las? Cantor fora visitar suas armadilhas e achara duas lebre brancas. Angélica ficou tão-feliz, que começou a entender por que os franceses do Canadá viam milagres em toda parte naquele país.

Assim que ingeriu a mistura que o Conde de Peyrac preparou e pessoalmente o fez engolir, o ferreiro se sentiu melhor e foi dado como fora de perigo. Mas teve que ficar longos dias de cama, tiritando sob as cobertas apesar das pedras quentes que não paravam de pôr à volta dele para aquecê-lo.

Angélica já não tinha forças para cuidar dele.

- Felizmente que é você, Clóvis. E mau o suficiente para se defender sozinho, pois eu não aguento mais.

Mas Clóvis recusava os cuidados da Sra. Jonas e de Elvira, com gemidos choramingas.    

— Quero que ela cuide de mim - dizia. - Com vocês não e a mesma coisa. Ela tem nas mãos alguma coisa que cura...

Teve então Angélica que ir sentar à cabeceira dele, às vezes, e ralar-lhe um pouco a fim de que ele não se detivesse em reflexões melancólicas.

-        O que fará com o ouro que ganhou a serviço do Sr. de Peyrac? - perguntou-lhe um dia.

Ele deu uma resposta tão surpreendente, que de início ela supôs que ele estivesse delirando.

-        Quando eu tiver juntado bastante ouro, vou enterrá-lo no fundo do mar, numa enseada do monte Deserto que eu conheço na baía de Gouldsboro e. depois irei a Nova Granada, no coração da América do Sul. Dizem que lá a gente encontra esmeraldas grandes como briquetes. Encontrarei algumas. E depois irei às Índias Orientais, onde dizem que a gente acha rubis, safiras e diamantes, e se for preciso vou arrancá-los dos olhos dos ídolos nos templos. E quando eu tiver juntado o que quero de pedras preciosas, vou buscar o meu ouro e forjarei um vestido para a pequena Foy, de Conques. Vou forjar para ela uma coroa e pantufas, cobertas de gemas, bem mais bonitas do que tudo o que já lhe fizeram.

Angélica, perplexa, perguntou quem era Foy, de Conques. Tratava-se de algum antigo amor, uma noiva desaparecida? Clóvis lançou-lhe uma olhada tão furiosa quanto escandalizada.

-        Como, senhora, não conhece Santa Foy de Conques? Mas é o maior santuário do mundo! Nunca ouviu falar?

Angélica admitiu que era imperdoável e que sua falta de memória talvez se devesse ao cansaço. Claro, ouvira falar do santuário de Conques-en-Rouergue, nas montanhas da Auvergne. Ali, no interior de uma igreja fortificada, num relicário de ouro puro, conservava-se um dente e alguns fios de cabelo da pequena mártir romana do século II, que tinha a reputação de fazer inúmeros milagres, particularmente intercedendo pelos prisioneiros e ajudando-os em suas fugas.

— Três vezes eu lhe levei as minhas correntes - disse Clóvis com orgulho. - As correntes mais grossas que já se viram. As da prisão de Aurignac, as do torreão de Mancousset e as das masmorras daquela maldita prisão do Bispo de Riom.

— Então você fugiu? - indagaram as crianças, aproximando-se.

— Pois claro! E que bela escapada, graças à santinha que me foi ajudar...

Quando Angélica era chamada em outro lugar, Honorina assumia a guarda junto do doente e o velava, segurando-lhe a grande pata negra nas mãozinhas, conforme vira a mãe fazer.

Angélica notara, no decorrer do inverno, como a filha sabia escolher os mais inabordáveis dentre os companheiros. Tiago Vig-not e Clóvis eram os seus favoritos. Fez tantas investidas na dire-ção deles e tinha tantas atenções para com eles, que acabaram capitulando.

-        Por que é afinal que você gosta tanto de mim? - pergunta ra um dia o carpinteiro à garotinha..

-        Porque você grita bem alto e diz muitos palavrões!...

Honorina tornava-se esguia, pálida e adquiria uma aparência

doentia. Os cabelos cresciam devagar e Angélica já a antevia calva pelo resto da vida. Vinte vezes por dia dava uma olhada preocupada na direção da criança. Notava que a garota frequentemente arreganhava os lábios, careteando sobre as gengivas inflamadas, e tremia, pressentindo a chegada do mal terrível do inverno: o escorbuto, o mal da terra.

Angélica sabis, assim como o marido, que apenas o consumo de legumes ou frutas frescas podia evitar a doença, mas a neve ainda recobria a terra.inteira.

CAPÍTULO XLVII

A suprema provação antes do degelo - Os iroqueses estavam nus

Peyrac adivinhava a lassidão profunda da mulher. Ela andava menos alegre, falava pouco, só lutava pelo essencial, mantendo acesa apenas a força de que necessitava para levar avante a vida cotidiana e para preservar a própria saúde e a daqueles que estavam sob sua guarda. A preocupação, pela filha e pelo filho, pelos doentes ou por aqueles cuja resistência ela sentia frágil e prestes a ceder, e pelo marido também, ocupava-lhe todo o ser e a enfraquecia.

Quando se deitava junto dela, à noite, o abandono daquele corpo encantador despertava-lhe o desejo, e ele sabia que ela se mostraria dócil caso ele a solicitasse, mas havia nela uma ausência de que ela já não era senhora. Uma ausência natural, própria da mulher, a quem toda ruptura de harmonia atormenta, a quem toda ameaça conserva em estado de vigília.

Pois mesmo quando ela dormia, um sono pesado e derreado, ele a adivinhava alerta.

Mantinha-se à espreita de tudo o que lhe acontecia ao redor: a tempestade que silva, o frio que se torna mais áspero. Desde o despertar suas inquietações estavam ali. Os víveres que diminuíam, Ho-norina que empalideccia, Cantor que tossia há três dias, a Sra. Jonas que emagrecia e se mostrava menos jovial, os caçadores que não retornavam e pareciam haver-se dissolvido, desaparecido no império de algodão e gelo da floresta coberta de neve, e a primavera que se recusava a renascer.

Em Angélica, portanto, havia ausência e indiferença, ausência e presença. Presença atenta a tudo o que era necessário defender. Ausência ao que não tinha a ver com esse objetivo de sobreviver. E, refletindo, Peyrac admirava a submissão instintiva da criatura feminina às leis naturais e terrestres. Naquela mulher que repousava perto dele, pálida e exausta, ao mesmo tempo distraída e inquieta, apática e à espreita, ele reconhecia o rnal-estar presente na terra, na natureza inteira, que esgotava suas últimas rêservas^para atravessar o fim do inverno, que também as reunia para enfrentar o ataque desenfreado da primavera. Era o tempo da morte antes do renascimento. Arvores morriam, animais morriam, cansados de uma luta desgastante, homens morriam, com as mãos vazias do último punhado de milho, a alguns dias da esperança. Enquanto na mata o broto indomável já rompia o galho mumificado, ás criaturas exalavam o último suspiro...

Sem saber, Angélica se punha em uníssono com essa lei suprema. Havia que evitar todo desperdício. Na sociedade iroquesa, as mulheres prevêem as provisões áTreunir para o inverno, os deslocamentos a fazer caso a teria se tome árida, as guerras a travar se a sobrevivência da comunidade depende delas. Os homens dizem: - Nós, homens, somos criados-para o presente, a ação. Fazemos guerra, não decidimos por ela..„ São as mulheres que sabem...

Ele se debruçava sobre ela, quase com respeito, e acariciava-lhe a cabeleira macia, murmurando-lhe palavras de reconforto. Ambos calculavam o tempo que os caçadores poderiam levar para voltar com caça fresca, mais uma vez dividiam, mentalmente as rações, decidiam aumentar a de Clóvis, que se recobrava mal... E será que deviam deixar o velho Elói Macollet, que falava em ir quebrar o gelo das represas para apanhar castor ou qualquer outra coisa?... Podia perder-se, adoecer, apesar de toda a sua rijeza, pois era muito velho...

Com frequência Angélica punha Honorina sobre os joelhos e ficava perto do fogo, olhando as chamas dançar. A criança, habitualmente tão buliçosa, procurava um refúgio. Aninhava-se na tepidez dos braços maternos, fechados sobre ela, como no seio que a nutrira. De tempos em tempos Angélica murmurava uma história para ela ou cantarolava uma canção. Mas também podiam permanecer longo tempo caladas. Angélica já não se sentia culpada, nem se incriminava de nada. A situação autorizava uma inação que, em outros tempos, não lhe seria natural. É, pelo contrário, indício de boa saúde mental poder aceitar-se acabrunhado, ou infeliz, quando as circunstâncias o justificam, sem por isso sentir ansiedade, sem procurar desculpas, sem tentar proibir-se disso. Há orgulho numa atitude que recusa a fraqueza humana. Angélica tinha o estômago vazio, frio, ávido, e a cabeça lhe zumbia. Nauseada frequentemente pela sensaboria dos alimentos, sentia-se tentada a distribuir sua parte às crianças, mas se forçava a engolir. Constatava que apesar do seu desejo de enfrentar tudo, ela não era da mesma têmpera física do conde de Peyrac. A ele nada parecia atingir, e sua animação, sua calma, não eram fingidas nem forçadas.

Angélica não ignorava que a sua preocupação lhe corroía a resistência. Mas não se pode reformar de todo a própria natureza. Ela, que lutara duramente como um homem, numa solidão esmagadora e carregada de um fardo que com frequência ultrapassava a resistência de seu sexo, podia, desta vez, aceitar-se mulher na provação e repousar inteiramente sobre o homem.

No entanto, havia em Peyrac uma alteração de que ela não se dava conta no momento, mas de que se lembraria mais tarde, com emoção. De senhor, fizera-se servo. Devotava-se integralmente àqueles seres frágeis que lhe estavam confiados. Como sabia que lhes pedia muito, ou seja, que sobrevivessem, exigia menos. Assim, ajudava a Sra. Jonas a pendurar as pesadas panelas sobre o fogo, a carregar baldes de água, trocando ele próprio os curativos dos feridos ou cuidando dos doentes, a fim de evitar a Angélica a repetição muito frequente dessas tarefas. Dissipava o mau humor de Cantor com brincadeiras amistosas, cessava com uma pressão benévola da mão no ombro as discussões estúpidas e involuntárias que surgiam, distraía as crianças, mostrando-lhes, na forja e no laboratório onde agora só se trabalhava em marcha lenta, pequenos truques de magia que as encantavam. Geralmente as crianças não tinham o direito de ir às oficinas; agora, porém, recebiam-nas ali.

Ia examinar as armadilhas em companhia de Lymon White ou de Cantor, e Angélica o viu um dia, ao regressar, estripar ele próprio o animal, um rato almiscarado, com grande destreza. Com algumas palavras tranquilas, soube colocar Elvira em guarda contra uma depressão que a fazia duvidar de seu novo amor e lhe dava remorsos. A ausência de Malaprade a torturava. Para puni-la por se haver consolado tão rapidamente da morte do primeiro marido, o Senhor lhe tomaria o segundo, pensava ela.

- Não pense em nada enquanto tiver fome - disse-lhe Peyrac - e não misture a grande, a majestosa ideia de Deus com os fantasmas nascidos apenas de suas cãibras estomacais. A fome é má conselheira. Ataca o amor-próprio e envilece. Libera forças egoístas, reduz a uma solidão abjeta. Permaneça forte. Seu marido retornará e comerão juntos.

A atenção aos gestos sustentava os corpos desfalecentes. Agiam um pouco como autómatos, lentamente, mas com' cuidado. Quando o indispensável era executado, Peyrac aconselhava que fossem para a cama dormir. "Quem dorme, janta"e um velho provérbio. Também nesses momentos foi visto a levar pedras quentes para aquecer as cobertas dos que tinham esquecido de fazjê-lo. Uma noite levantou-se para vigiar e avivar os fogos.

Disse um dia a Angélica:

- Levemos Honorina conosco para a nossa cama, a fim de ajudá-la a conservar o calor.        

Notara que Angélica a cada noite sentia uma apreensão maior ao deixar Honorina lutar sozinha na sua caminha contra a hostilidade negra da noite. A tenjperatura descia tanto, que era difícil os corpos enfraquecidos se aquecerem. Ao amanhecer, as pessoas batiam os dentes sob as cobertas. Honorina, entre o pai e a mãe, ficou tão feliz, que as cores lhe jroltaram ao rosto. O vento uivava na noite. Honorina dormia entre eles como um animalzinho feliz.

Quando fazia bom tempo, os habitantes de Wapassu se obrigavam a dar alguns passos ao ar livre e retornavam depressa ao calor do forte. Precisavam de muito tempo para_se reaquecer. Honorina tinha as mãos brancas e geladas o "tempo todo. Angélica fazia-a mergulhá-las em água quente, e ela própria se esquentava assim, junto com as companheiras. Tomavam-se de afeto pela madeira agora, a madeira sempre fiel, crepitando sem se cansar na lareira, mas o conde de Peyrac velava com um cuidado cada vez mais atento pelo risco de incêndio. Como a atenção dos outros se relaxava com a fraqueza, ele redobrava a própria vigilância, dando toda noite uma volta em cada aposento e-saindo com uma lanterna para verificar se não havia nada obstruindo as aberturas das chaminés, se nenhuma centelha ameaçava o telhado de ripas.

Bruscamente, fez muito calor. A atmosfera tõrnou-se de estufa. Os corpos exaustos cobriam-se de suor e passava-se o tempo a despir roupas de peles, abrir portas e janelas, apagar os fogos nas lareiras, que eram reacesos à noite, no momento em que o sol se punha precipitando o mundo em trevas geladas de novo.

Durante o dia, a neve derretia, derretia com um gotejar subterrâneo e inesgotável. Parecia algodão encharcado, medula de sabugueiro impregnada de líquido. Despencava das árvores em pacotes pesados. Em dois dias, a floresta, de imaculada, tornou-se cinzenta, depois negra, toda constelada de gotinhas brilhantes. As franjas de gelo à beira do telhado se soltavam e caíam com ruídos de vidro partido.

O único resultado imediato desse retorno do calor foi estragar as últimas provisões de carne gelada, guardada nos celeiros. Quando os hibernantes lembraram que o calor podia ser nocivo à carne que lhes restava, Angélica subiu prontamente a escada que levava ao celeiro de provisões, onde estavam penduradas algumas peças de caça e de cavalo, o último presunto, o último pedaço de toucinho, e um odor nauseabundo advertiu-a logo dos estragos. Até as carnes defumadas pareciam ter sofrido, e além disso todo tipo de animalzinho, que se imaginava morto ou adormecido - camundongos, ratos, esquilos -, tinham surgido de todos os cantos e roíam tudo, incumbindo-se de tornar incomível o que ainda poderia ter sido utilizado. Demasiado abatida para tecer comentários sobre a infelicidade, Angélica, auxiliada por Kuassi-Ba e pelo Sr. Jonas, separou o que não parecia afetado demais em meio àquela podridão e jogou o resto bem longe, carcaça que talvez atraísse chacais e lobos.

Angélica não se perdoava por haver esquecido a carne no celeiro.

— Eu devia ter lembrado - repetia. - Teria sido tão fácil logo proteger o que nos restava, na despensa, entre pedaços grandes de gelo...

— Eu também devia ter lembrado - disse Peyrac para consolar a depressão da mulher. - Você está vendo, minha amiga, que também a mim as privações influenciam - observou, sorrindo -, pois não pensei nos estragos que esse brusco abrandamento do tempo podia causar aos nossos víveres.

— Mas você não estava aqui! Saiu de manhãzinha com Cantor para aproveitar a neve endurecida e examinar as armadilhas. Não, eu é que sou imperdoável.

Passava a mão pela testa.

-        Tenho tanta dor de cabeça! Será que isso quer dizer que vai nevar de novo?

Alçaram os olhos para o céu de um azul dourado e estremeceram de medo ao ver girar na sua limpidez um vôo de gralhas. As aves escuras anunciavam a neve com tanta certeza quanto a enxaqueca.

E já no dia seguinte a neve chegou. Precedida por novo vôo de pássaros negros. A primavera fazia um recuo. Às nevascas sucederam-se dias de nevoeiro branco. A neve que caía agora, levada por um vento rápido, era miúda e dura como vidro e ouvia-se o seu sonido contra a parede e as peles das janelas.

Só restavam dois dias de víveres nó acampamento. De manhã cada um recebeu a sua porção, mas Angélica se felicitou por não sentir a menor atração pela sua. Pôs -a tigela de lado, contra as cinzas. Seria uma refeição a mais para Honòrina. Postou-se em pé diante da lareira, os braços caídos, olhando sonhadoramente as chamas. Suas ideias eram vagas, sem relação entre si, mas cada uma era clara. Angélica não sentia desespero, nem mesmo inquietação. Os hibeman-tes não morreriam, sobreviveriam; disso tinha Certeza! Havia que esperar e não ceder. Não ia acontecer alguma coisa? A primavera estava a caminho. Um dia estaria ali e os animais voltariam a correr sob as árvores e ao longo dos rios de margens cobertas de flores. E os rios voltariam a correr, as canoazinhas dos índios e dos exploradores, carregadas de mercadorias, voltariam a descer e a subir o curso das águas, conduzindo a vida como o sangue nas veias. Só era preciso esperar. Ela não sabia por que evento esperava, mas já estava a caminho e mais próximo do que se supunha. Aproximava-se e eis que já estava ali.

Ela se aproximou, xle ouvido atento: "Há alguém lá fora!"

Só o vento assobiava em turbilhões ao redor da habitação, mas Angélica sabia, tinha certeza!

Havia alguém lá fora! '

Envolveu-se no seu manto e caminhou com dificuldade até a porta. Ninguém a viu sair.

Lá fora, a neve açoitando feriu-lhe o rosto com mil vergastadas. Embora a manhã fosse a meio, o dia tinha a cor do crepúsculo. Só se via a massa cinzenta do nevoeiro. Angélica levantou os olhos. Acima dela, silhuetas humanas se inclinavam e a observavam. Eram índios. As lufadas de neve davam-lhes um aspecto fluido, irreal. No entanto, ela logo os reconheceu pelo penacho. Eram iroqueses. Mas o que havia de mais extraordinário e assustador na aparição deles era que, exceto por uma tanga entre as pernas, eles estavam nus.

CAPÍTULO XLVIII

Gesto amistoso dos iroqueses

Estavam nus. Inclinavam-se para ela, ao vento feroz que lhes jogava toda para um lado a cabeleira trançada com plumas e as franjas da tanga. De pescoço espichado, pareciam estudar com curiosidade a mulher branca que acabava de aparecer na saída do forte. A volta deles o vento assobiava uma canção áspera e irritada. No entanto, não tremiam. Seus olhos negros brilhavam, calmos. A Sra. Jonas saiu por sua vez. Não perdeu tempo com comentários e dirigiu aos recém-chegados um gesto veemente para convidá-los a entrar.

- Venham logo, jovens, e depressa. Vocês nos fazem congelar só de olhá-los! Que ideia absurda, passear nus com um tempo desses!

Eles logo entenderam a mímica. Rindo às gargalhadas, saudaram as duas mulheres levantando a mão, de palma estendida. Depois entraram no forte em fila.

Eram seis, e quem os conduzia era Tahutaguete, o chefe dos oneiutes, de cara assustadora, gretada pela varíola. Desdenhosos, não dirigiram um olhar sequer às lastimáveis criaturas metidas em roupas e peles que os olhavam de olhos arregalados. A impassível carne deles, untada de gordura, brilhava como um mármore amarelo e polido.

Quando Peyrac parou diante deles, Tahutaguete estendeu-lhe com as duas mãos um colar de wampum composto de várias tiras de couro enfiadas com continhas de porcelana roxas e brancas, formando um desenho simbólico.

-        Foi Utakê que me enviou, o grande chefe das cinco nações. Este colar contém a sua palavra. Diz ele que se lembra de você e das riquezas que deu às almas dos grandes chefes... Este colar é o símbolo de sua amizade. Utakê o espera...

Peyrac já entendia o suficiente da língua iroquesa para traduzir e agradecer pessoalmente.  

Voltando-se para Angélica, o iroques éntregrju a ela também um colar de wampum. Ela hesitou em aceitar, não sabendo se o cerimonial permitia essa entronização de'uma mulher na solenidade das alianças, mas Tahutaguete insistiu:

-        Aceita, Kawa! Este colar contém a palavra das mulheres da nossa tribo. O Conselho das Mães se reuniu no momento da lua vermelha e disse: "O Homem que Ouve o Universo, o Homem do Trovão está em perigo com sua tribo, pois deu aos nossos chefes mortos até a última parcela de suas reservas a fim de apagar a vergonha. Se ele morrer, de que nos servirá sua aliança e o que ela nos custou? Se morrer,-levará consigo as riquezas de seu espírito e de seu coração, e teremos perdido um amigo de nossa raça. Se seus filhos morrerem, sua mulher nos amaldiçoará. Se sua mulher morrer, ele nos amaldiçoará, pois lembrará que a mulher salvou a vida de Utakê e Utakê a terá deixado perecer. Não, nem ele, nem a mulher riem'os filhos devem morrer. Isso não acontecerá. Cada um de nós dará um punhado de suas reservas para conservar a vida de Kawa, a mulher branca, que conservou a vida de Utakê, nosso chefe. Sem ele, estaríamos órfãos. Sem ela, nós todos estaríamos órfãos. Nossos filhos gritarão um pouco mais frequentemente no inverno: 'Estou com fome'. A fome é um mal que se cura assim que a primavera chega, mas a perda de um amigo é um mal que não se cura". Pegue-o, mulher, este colar contém oferenda de nossas tribos. Aqui, veja, são as mulheres sentadas do conselho, aqui é você, e aqui são os punhados de feijões que elas lhe enviam par,a que possa se alimentar, você e seus filhos.

Dizendo isso, fez um sinal. Um de seus acompanhantes foi abrir a porta e seis índios nus - que tinham esperado do lado de fora! - entraram trazendo pesados sacos de peles cosidas. Tahutaguete desfez as amarras de um dos sacos e despejou sobre a mesa de madeira feijões, legume com que o Velho Mundo começava a se familiarizar desde que os primeiros viajantes o tinham trazido da América do Sul, no século anterior. Os grãos tinham amadurecido às margens dos seis grandes lagos iroqueses, nas encostas ensolaradas do vale dos Mohawks, e as cascas abertas, cor de ouro e mel, ainda se misturavam ao seu esplendor escuro e rutilante. Havia a espécie que cresce sobretudo nas margens do lago Cayuga, vermelho-rosada estriada de branco, a cultivada pelos mohawks do leste, nos arredores de Orange, quase redonda, de um negro brilhante e levemente arroxeado, e outras mais longas, de um rosa liso e uniforme de seixo rolado, outras com curvas elegantes, cor de vime e curiosamente salpicadas de roxo, outras de um branco puro.

Sob o revestimento envernizado e luzidio, os feijões espalhavam um aroma fresco, de horta, como se tivessem conservado, encerrado'na escuridão do inverno, um pouco do ar puro das colinas do momento da colheita, antes de o outono avermelhar as árvores, quando as abóboras ainda estão pálidas sob suas folhas aveludadas, o milho ereto se envolve num verde ácido e o ar está tão puro, seco, ardente no fundo do vale dos Mohawks, por onde já não segue rio algum e onde as vagens amadurecem mais depressa e estouram como granadas.

As três crianças se insinuaram até a beirada da mesa. Mergulharam as mãos entre os grãos e deixaram-nos escorrer por entre os dedos, com risos de alegria. O olhar de Angélica ia do monte de feijão para o colar de wampum e se erguia para os rostos impassíveis das bárbaras criaturas que acabavam de vencer uma centena de léguas, através de ermos gelados, para trazer-lhes, em trenós, a oferenda das Cinco Nações. Ela não sabia o que dizer, estava emocionada a ponto de as lágrimas lhe brilharem nos olhos diante do inesperado, do inexplicável daquela atitude, muito mais do que de alegria e alívio pela segurança que aquilo representava.

— Que a nação iroquesa receba os nossos agradecimentos - disse Joffrey de Peyrac, circunspecto, e sua voz pareceu baixa e rouca, como se então ele pudesse ceder ao cansaço. - Nesse mesmo lugar onde acaba de colocar seu presente, Tahutaguete, colocarei eu presentes para que leve a seus irmãos. Mas, por mais preciosos que eu os escolha, jamais igualarão estes! Pois foi a nossa vida que você trouxe nesses sacos de peles, e cada um desses grãos é uma batida dos nossos corações que lhe devemos.

— Pode-se pendurar o caldeirão? - perguntou a Sra. Jonas.

— Que seja! Vamos comer - admitiu o impressionante Tahutaguete, que tinha o ouvido apuradíssimo e algumas noções de francês.

E logo todos se reuniram, iroqueses nus, cor de couro, e europeus de cara pálida, agasalhados até o nariz, homens, mulheres e crianças, em torno do grande caldeirão de ferro preto.

Angélica o segurou enquanto a Sra. Jonas o enchia de água e Tahutaguete lançava, gravemente, várias medidas de feijão.

Joffrey de Peyrâc depositou pessoalmente urn último pedaço de gordura de urso e Elói Macollet sugeriir*que se juntasse um pouco de potassa de cinzas, a fim de se obter um cozimento mais rápido. Na falta de sal e frutinhas^ pôs-seno caldeirão uma boa quantidade de folhas aromáticas e suspenderam-no à cremalhei-ra, enquanto as crianças empilhavam achas e gravetos embaixo dele. O grupo sentou-se religiosamente. O fogo estava tão vivo, que a sopa logo ferveu furiosamente. Havia gente sentada sobre peles de ursos atiradas acr chão, sobre as pedras da lareira e até sobre as cinzas. E as crianças, debruçadas sobre o caldeirão, já se alimentavam xom o vapor perfumado.

Os índios aceitaram o.tabaco da Virgínia e encheram os cachimbos, puxados da cintura; mas recusaram com desdém a aguardente.

— Crê que poderíamos enfrentar o demónio do inverno como nos viu fazer - disse Tahutaguete a Peyrac -, caso bebêssemos desse veneno que os bancos trouxeram para nos roubar a alma?

— Qual é a força, qual é o deus que lhes permite enfrentar o inverno, sem sequer se cobrir, conforme nós, os brancos, somos obrigados a fazer? - indagou o .conde".

— E Oranda - respondeu o índio, sério -, não é um deus. É a alma da vida. Está em toda parte, no grão de milho que o alimenta, no ar que o rodeia e que você respira, e no céu imenso.

— Acredita que eles tenham vindo assim desde o país dos iroqueses? - cochichou Angélica ao velho canadense Elói, enquanto este a ajudava a reunir as escudelas e tigelas de madeira a fim de servir o festim.

— Qual! - fez o velho, dando de ombros. - A resistência deles e suas feitiçarias têm limites, afinal! Mas são comediantes como o diabo e prepararam o efeitozinho. Enfiaram as roupas de peles, as cobertas e os víveres num esconderijo não longe daqui, depois de fazerem exercícios especiais de respiração, e apareceram assim para nos deixar de boca aberta. Convenhamos que isso já não é pouco. Vi alguns deles aguentarem assim, ao ar livre, por dois dias e duas noites de inverno..."

Angélica encheu uma a uma as escudelas estendidas, enquanto as palavras pronunciadas pelo iroquês ainda lhe ressoavam aos ouvidos: - É para você, mulher-mãe, que teve as Cinco Nações entre os braços quando amparou Utakê...

"São líricos e supersticiosos esses iroqueses, mas ousam exprimir coisas que nós, brancos, jamais quereríamos olhar de frente... Ousam fazer outras que nós, cristãos, sequer conceberíamos..."

Sua exaltação era tamanha, que ela já não se dava conta de sua fraqueza. Encheu com uma porção de feijões um caldeirãozinho e correu a levá-lo para o quarto, onde o pôs sobre brasas, perto do fogo, na lareira. Também colocou sobre o banquinho o colar de conchas oferecido pelo Conselho das Mães, depois voltou para junto dos demais. Não comeu na companhia deles. Fez Honorina comer e depois a pôs na cama, entorpecida por toda aquela comida que a menina engolira à saciedade. Depois de aquecer a cama, cobriu bem a filha, vendo-a finalmente mergulhar num sono repousante.

Tahutaguete, ao final da refeição, sacara de uma espécie de mochila o equivalente a um alqueire de arroz muito fino, tão transparente que parecia um minério.

-        Isto se colhe na água, no país das Aveias Loucas, do lado do lago Superior - disse Elói Macollet. - Colhem, sim, mas nunca há o suficiente para alimentar muita gente.

-        O suficiente, porém, para salvá-la - disse Tahutaguete.

Chamou Macollet de ignorante. Aquilo não era comida, mas medicamento, disse. Explicou ao Conde de Peyrac que aqueles grãos deviam ser espalhados sobre uma grande travessa, umedeci-dos com água e mantidos no calor. Assim que aparecesse o tali-nho do germe, bastaria aos brancos ingerir um punhado de arroz para se curar do mal que tão frequentemente os dizima. E o índio bateu com o dedo engordurado nos dentes brancos, magníficos e quadrados, que o escorbuto jamais sequer roçara.

-        Se entendo bem, esse arroz nos protegerá do escorbuto - comentou Peyrac. - Ora, mas claro! O germe, por menor que seja, não deixa de ser vegetação nova que compensa as carências do inverno. Mas basta ingerir tão pouco?

Ainda assim, confiou na experiência do iroquês e se levantou com ele para ir preparar o arroz conforme o outro lhe aconselhara.

-        Agradecemos a Deus - concluiu a Sra. Jonas, arrumando os pratos.

O Sr. Jonas foi buscar o livro de orações.

CAPÍTULO XLIX

Angélica e seu colar de wampum

Quando viu todo mundo alimentado, dormindo ou quase, Angélica deslizou para ò seu quarto. O barulho do vento lá fora já lhe parecia menos implacável. O quarto estava impregnado do aroma do guisado, que ficara -ali cozendo brandamente sobre as brasas. Ela reanimou um pouco as chamas a fim de ver mais nitidamente. Sentou-se e pôs o colar de wampum em tima do joelho. E começou a dedilhar os grãos apertados e acetinados de conchas, reunidos num trabalho longo e paciente. No início não entendia o valor dos colares de wampum. Vira com espanto as trocas de algumas tiras de couro enfiadas de pérolas, que cessavam guerras, instauravam "a paz e representavam para os selvagens um tesouro mais precioso que, outrora, para os Médicis, as suas cem libras de ouro. A tribo que possuía inúmeros colares de porcelana era rica. Ao ser derrotada, entregava-os e se via empobrecida.

Angélica, agora, via aqueles pedaços de calcário rolados pelas ondas do mar, gastos pelas areias, sutilmente matizados pela alquimia adorável da natureza, triturados e perfurados por um artesão que guardava o seu segredo, selecionados pelos dedos de mocinhas, reunidos pelas mãos de mulheres, por fim usados religiosamente pelas esposas dos chefes, a expressão mais elevada da raça vermelha americana, sua essência transmissível, já que ela não conhecia a escrita. Naqueles laços de couro e porcelana a raça americana inscrevia sua história e os encarregava de salvaguardá-la. Angélica contou o desenho de cinco mulheres sentadas dos dois lados da forma hierática que pretendia representá-la. Os grãos de feijão evocados estavam espalhados um pouco por toda parte, como estrelas azul-èscuras sobre o mosaico branco do fundo. A faixa era bordeada de uma linha de pérolas roxas, sublinhada por outra linha, branca, menos larga. Era uma obra de arte perfeita, larga e longa, as franjas de couro regulares sobre os dois lados.

Haveriam de ter inveja dela por possuir aquele testemunho da consideração dos iroqueses. Angélica não se cansava de fazê-lo passar e repassar entre as mãos. Quando o seu entusiasmo e o seu fervor se acalmaram, ela voltou a considerações mais terra a terra.

Pôs então numa escudela a.sopa que fumegava. E começou a comer lentamente, apertando a escudela contra si, os olhos semicerra-dos, sonhando com o vale dos Mohawks, aonde ela iria um dia e onde reinam os três deuses: o milho, a abóbora e o feijão...

Esse vale é claro. Sua claridade é cor-de-rosa. Paira ali um odor de fumaça, devido aos inúmeros povoados, de casas compridas, que se reúnem no vale. Ela via, no alto das colinas, essas casas compridas, tão estranhas, de que Nicolau Perrot lhe falara. Abrigavam dez, quinze famílias. Angélica as via alinhadas, com seus tetos arredondados, em-penachados por filetes de fumaça que escapam dos diversos fogareiros, rutilando como relicários ao sol poente sob o revestimento de ouro escuro que lhes cobre a fachada e as paredes e que é formado pelas espigas de milho penduradas para secar.

Reina ali também urn aroma de campo, por causa das inúmeras culturas que se estendem pelo flanco das colinas, salpicadas de bosques menos cerrados e escuros do que os da floresta do norte. Sem nunca tê-la visto, ela adivinhava que havia uma diferença entre o vale fértil dos iroqueses, entre sua gente jovem e séria, e os peneplanos selvagens, cavados de gargantas e falhas como armadilhas, o país que não cultivava nada, dos abenakis.

Joffrey de Peyrac entrou e a viu, sentada sozinha, comendo calmamente, o colar de wampum sobre os joelhos e os olhos fechados.

-        Você estava com fome, meu amor!

Envolveu-a num olhar terno e pensou que ela não se assemelhava a nenhuma outra mulher e que tudo o que fazia era marcado pelo seu encanto. Nem a ele ela saberia explicar a natureza de sua alegria. Transparecia-lhe nos olhos, porém. Ela ressuscitava.

Longe, para além dos ermos gelados, criaturas estranhas, inimigas, selvagens, tinham-na reconhecido e agora ela existia para aqueles corações primitivos.

— O que quer dizer Kawa, esse nome que me deram? - perguntou.

— Mulher superior, mulher acima das outras!... - murmurou ele. - Mulher, Estrela Fixa!

A PRIMAVERA

CAPÍTULO L

Honorina versus Cantor - Os àbenakis e seus cativos ingleses

— Mãe, a primeira flor!        -

A voz de Cantor elevou-sé-no anoitecer claro e fresco. Angélica ouviu-a pela janela aberta de seu quarto, onde varria na lareira as cinzas do fogo apagado.

Deu um pulo.

-        O que você disse?

Cantor alçou para ela um rosto alegre e risonho.

-        A primeira flor!... Ali, sob as janelas!...

Angélica saiu correndo, chamando as crianças.

-        Honorina! Tomás! Bartolomeu! Venham, rápido! Venham ver a primeira flor!

Era um açafrão de primavera, puro e branco, brotado direto da terra lamacenta. As pétalas transparentes deixavam adivinhar o clarão de ouro do pistilo estreitamente protegido.

-        Oh, meu Deus! Oh, que maravilha! - exclamou Angélica, caindo de joelhos no solo úmido.

E ficaram todos ali,_extasiados, a contemplar o milagre. A flor crescera na orla mesma da neve.

A partir desse dia, descobriram muitas. Quando se removiam os pedaços de neve aquosa, descobriam-se talos de um amarelo claro, ja prontos para desabrochar, que já no dia seguinte, ao sol, adquiriam uma cor verde e compacta, enquanto o cálice das flores passava suavemente para o malva ou o branco.

Havia também, até a beirada do telhado, violetas surgidas de um dedo de musgo e que se debruçavam sobre o ininterrupto gotejar de neve derretendo.

Estava-se no fim de abril.

Sob o sol ardente, o degelo prosseguia rapidamente. Antes de a neve haver desaparecido do pé das árvores, eles foram até a floresta fazer incisões nos troncos de bordo para recolher uma água açucarada e deliciosa.

Com esse líquido Elói Macollet, cozendo-o num caldeirão, obteve uma espécie de mel, com que as crianças se regalaram.

Na floresta a neve estava suja. Toda recoberta de musgo meio preto, galhos quebrados, cones de pinheiro podres, rejeitados pelos esquilos. O degelo produzia um leve ruído de temporal, enquanto os esquilos pulavam de galho em galho.

Muitas árvores e arbustos exibiam as chagas lívidas feitas pelos dentes de animais esfomeados, lebres ou corças. Havia os partidos pelo gelo, quebrados sob o peso da neve, e outros, inclinados, com a rama escondida em blocos de gelo que, abrigando-se na base das colinas, em baixios escuros e frios, se recusavam a derreter ou a desaparecer.

Mas a aveleira já punha amentilhos verdes, em forma de lagartas, formados desde o outono. Balançava-os ao sabor do vento, espalhando no ar o seu pólen, que tingia de amarelo a neve a seus pés.

A bétula, ainda na véspera branca como osso, esqueleto de marfim descarnado, cobria-se de pingentes, arroxeados e cinzentos, como de uma cortina de franjas. Os olmos, abertos em leque solene, punham seu veuzinho de esmeralda. Os caçadores tinham retornado trazendo os pedaços defumados de dois cervos, a metade de um alce e as entranhas recheadas de um urso, iguaria presenteada por Mopuntuk, que prometia uma visita em breve. Ainda não se ousava semear sementes de legumes, pois não havia terra suficiente visível, e nãó estava de todo eliminada a possibilidade de novas geadas ou nevascas. A cada dia, porém, a primavera ganhava.

O lago rígido começava a se parecer com um grande espelho manchado, depois se cobrira de água e agora se dividia em ilhas transparentes.

O que encantava Angélica na primavera era o som das águas ressuscitadas. Começara com um leve cochicho, nascendo do grande silêncio do inverno. Depois se distinguiram os soluços das cascatas. E agora a natureza inteira era sonora, enchendo as noites com um ronco imenso e contínuo.

Angélica sonhava. Era primavera!

O alvorecer vinha mais cedo. O sol, ao entardecer, demorava-se à soleira da porta e já não se acendiam as candeias.

O ruído das águas rodeava o forte e seus lagos com um círculo mágico.

- Os canadenses e seus selvagens seguiram para leste - informou um dia o escravo panis, que, chapinhando nas raquetes, realizava às vezes intermináveis reconhecimentos dos arredores. Vira-os dirigindo-se para o Kennebec. Tropeçando nas fendas no solo, na lama gelada, nas valas cheias de galhos quebrados e podres, os indómitos canadenses seguiam novamente para o sul, a fim de surpreender os povoados de ingleses.

Quem eram, não se soube. Ignoraram o forte. Talvez tivessem ordens nesse sentido... A gente do Lago de Prata se ocupava, à luz pálida do sol, em recobrar as forças e reconstruir tapumes. Muita coisa estava demolida, quebrada, barreiras, telhados, tudo ameaçava vir abaixo, e à medida que a terra se descobria, oferecia um aspecto de massacre. Os homens alçavam para o sol os rostos emagrecidos e pálidos, piscando os olhos doentes e deixando a luz escorrer-lhes pela pele como água da fonte da juventude. As crianças, às vezes, ficavam imóveis ija tepidez da luz, como pintinhos friorentos.

No começo, Angélica teve paciência.

Amanhã cuidaria das mãos estragadas e gretadas. Amanhã lavaria o rosto na água das primeiras chuvas. Amanha faria com a Sra. Jonas uma limpeza imensa. Hoje, porém, ficaria sentada com Ho-norina no colo, como no tempo do cansaço e da fome. Esperaria que suas forças voltassem e subissem nela, como a seiva nas árvores. O esforço merecia um pouco de convalescença. Ela sempre exigira demais de sua energia. A experiência lhe ensinara que ela podia pagar bem caro os dias seguintes à vitória... Uma vez, em Paris, por pouco não se suicidara, num momento em que atingiu o limite... Não fosse, por Desgrez, ela já não estaria no mundo dos vivos.

Consciente de sua fragilidade, dava-se tempo, trabalhando intencionalmente sem pressa e adiando para o dia seguinte as tarefas urgentes, cuja lista aumentava em sua cabeça.

Em primeiro lugar correr para a montanha e os rios, e para as margens dos lagos para descobrir flores, arbustos, raízes, com que ela encheria as caixas e os potes de sua botica! Não deixaria esca-par uma única! Haveria de procurá-las até nas menores fendas dos rochedos. E mesmo das desconhecidas ela desvendaria o segredo.

Prometia a si mesma que nunca mais atravessaria um inverno tão penoso, praticamente sem outros recursos para tratar dos doentes além de água fervida e gordura de ganso ou de urso. Seus celeiros ganhariam bálsamos. Os potes e as caixas rotulados em cores vivas se alinhariam nas prateleiras. De vinte léguas ao redor viria gente tratar-se no forte de Wapassu...

Um dia, finalmente, partiu com Honorina em descoberta da primavera, das flores e dos'remédios.

Na palha amarelada de erva seca, as violetas piscavam um olho pálido, ofuscado. A primavera levantara o penacho rosa, o renún-culo branco arregalava corolas tão leves, que um ventinho de nada as maltratava. A anêmona-do-feno, que no Poitou chamam de "a filha antes da mãe", pois nasce antes das folhas cor de fuligem, desabrochava flores azuis nas clareiras cor de tília.

Na vertente das rampas rochosas, a minúscula tussilagem multiplicava suas borlas de ouro, acompanhando as campainhas-brancas. Todas flores frágeis e nuas, que tremiam à beira da neve sob uma brisa ainda áspera. Angélica ia com passo célere de colinas a vales, feliz de caminhar sob o sol e não se incomodando com a lama e charcos. Nos dias de coleta também levava consigo as crianças, e então pedia ajuda a Elvira ou a um dos jovens do forte, pois era preciso andar depressa. A colheita dos simples só pode ser feita quando o tempo está seco e ensolarado, no meio do dia, a fim de evitar o orvalho noturno e do crepúsculo, pois a menor umidade danifica as pétalas frágeis e priva-as de suas qualidades terapêuticas. Havia grande abundância de tussilagem, medicamento eficaz contra os males da garganta e da boca. A violeta era mais rara, grande dama da farmacopeia, igualmente reservada para a tosse e as gripes. A infusão de violeta é remédio de princesa. A tussilagem, de-cocção de camponês.

Honorina gostava de se ocupar das violetas e punha-as para secar no celeiro com todo o cuidado. A mãe lhe dissera que faria com aquelas flores um xarope perfumado para as crianças que tossem e que não gostam de tomar remédio. O dente-de-leão estrelava por toda parte com sua roseta pontuda a relva ainda amarelada. As crianças, armadas de faquinhas, extraíam e limpavam sua raiz branca e penugenta, e à noite comiam-na com vinagre e bétula. Mais tarde, quando a raiz se tornou avermelhada, Angélica a guardou e deixou secar. Cortava em dois, pelo comprimento, os rizomas de erva-benta amarela, curiosa florzinha tímida, que arrasta atrás de si sob a terra uma longa cauda preta e lenhosa, de sumo amargo, amiga dos estômagos doloridos, e o rizoma de aróidea, o aromático caniço colhido à beira dos pântanos. Angélica raspava a raiz da bardana, a erva tinhosa de sua província. Não tinha certeza de havê-la reconhecido, pois diferenças imperceptíveis confundiam às vezes as flores do Novo Mundo com as estrangeiras. Angélica virava-as e revirava-as pensativamente.

Um dia Honorina lhe trouxe um pequeno buque de flores em sininho que pareciam urze, mas eram moles e frescas. As folhas, leves, araneiformes, eram verde-cinzentas e os sininhos, rosados. Angélica reconheceu afinal a fumaria ou fumo-da-terra, da qual sabia que se extraía uma água cosmética que purificava a pele, e cujas flores e o leite fervidos em agua refrescavam. A loção ocular deixava o olho claro e brilhante. A infusão abria o apetite. E tinha a reputação de curar o escorbuto.

Honorina foi elogiada pela bela descoberta e o inglês Sam Hol-ton, que tinha leituras, citou Shakespeare quando este fala do rei Lear coroado de'fumo-da-terra luxuriante e de ervas-loucas...

Quando saía à procura de plantas e não à coleta, Angélica levava somente Honorina.

Terminado o.invernOj Honorina deixava de ser uma criança como as outras, preocupada com fogueiras e comida e brincadeiras, e voltava a ser a companheira da mãe. Para armas e flores, havia um entedimento entre as duas'Honorina era resistente, caminhava resolutamente sobre os passos de Angélica e até chegava a fazer o dobro do trajeto, à força de correr e bisbilhotar por todo o lado. Para ter certeza de não perdê-la naquelas matas imensas, Angélica pendurava-lhe um sininho ao pulso. Assim, em toda parte o alegre ruído revelava-lhe a presença.

- Não se incomode com a pequena, senhora, deixe-a conosco dizia Elvira às vezes, solícita. Mas Angélica meneava a cabeça. Honorina não a incomodava. Ela não gostaria de estar sozinha na exploração-da natureza em flor. As riquezas da primavera foram feitas para ser compartilhadas. Então, diante de uma flor recém-descoberta, ajoelhavam-se uma perto da outra. O país era perfeito para Angélica, que às vezes se sentia tão feliz, que pegava Honorina nos braços e a beijava, apaixonada; dançava com ela, e os ecos selvagens repetiam por muito tempo o riso da criança.

Os ursos despertavam. Certo dia Honorina achou no oco de uma vala uma bolinha preta e alegre, que logo lhe fez mil gracinhas. Angélica só teve tempo de acorrer quando ouviu o grunhido da mãe ursa e o estalido dos galhos que ela quebrava ao passar. Abateu o animal feroz que se erguia nas patas traseiras para se tornar mais temível. Uma bala bem mirada na goela vermelha escancarada deteve o impulso da fera.

Honorina ficou triste com a execução, que deixou órfão o ursinho encantador.

-        Ela defendeu o filhote como eu a defendi - disse Angélica. - Ela tinha suas garras e sua força, e eu a minha pistola.

O ursinho, levado para o íortt, foi alimentado com xarope de bordo e cozido de milho. Já era suficientemente grande para passar sem o leite materno.

Para Honorina, era o mais belo brinquedo da criação. Começou a estimá-lo com uma paixão que apagava todos os demais. Foi preciso chamá-la à razão para que permitisse aos companheirinhos habituais - Bartolomeu e Tomás - aproximarem-se do bicho.

O ursinho, a quem se deu nome de Lancelot, pois era um herói das histórias que contavam às crianças, foi a causa de um conflito grave entre Cantor e Honorina.

Desde os primeiros dias bonitos, Cantor também partira para as colinas, com um objetivo muito preciso. Ia à procura de um animal a que odiava, aquele que malvada e traiçoeiramente devorara quase todas as poucas lebres ou coelhos caídos nas armadilhas de inverno, enquanto ele se arrastava, esgotado, na esperança de finalmente levar alguma comida aos seus. O autor do crime, o pirata maldito da floresta, era bem conhecido, era o glutão. Na fauna das matas, existe completamente à parte. Cruel como o arminho ou a doninha, a cuja espécie pertence, não é muito mais volumoso do que um castor.

Cantor achou o inimigo jurado, uma fêmea. Matou-a, mas trouxe o filhote, uma pelotinha de pêlo eriçado, grande como um gato, que já arreganhava os dentes pontudos com ar agressivo.

— Fazes mal em ficar com essa fera, meu filho - disse Elói Macollet, que franziu o cenho diante do achado -, isso é puro mal e mentira. É o pior de todos os animais da floresta. Até os índios dizem que os diabos se escondem nele, e não passam por um vale onde sabem que um glutão fez sua toca. Eles não virão mais aqui.

— Pois bem, isso só nos deixará mais tranquilos - disse Cantor, que ficou com o animal.

Deu-lhe seu nome em inglês, Wolverines. Wolverines ia ameaçar com suas presas o pobre Lancelot aterrorizado. No dia em que conseguiu mordê-lo, Honorina teve um acesso de raiva que sublevou o forte inteiro. Foi procurar um pau, uma faca, um machado, qualquer coisa para matar o glutão..O garoto, que enfiara seu protegido num refúgio, zombou da raiva, da pessoinha.

-        Agora eu sei quem eu quero .escalpelar - disse Honorina.

- É Cantor!

Cantor riu ainda mais e se afastou, chamando-a de Miss Beaver. Era o apelido que dava a ela, pois achava que a menina tinha olhinhos de castor.

-        Ele me chamou de Miss Beaver - soluçou Honorina, derretendo em lágrimas ante o supremo insulto.

Angélica conseguiu consolá-la fazendo-a ver que os castores são animais muito simpáticos e portanto não havia motivo para se aborrecer. Levou-a com Lancelot,. para vê-los, os novos pensionistas da represa atrás da montanha, fazendo grande alvoroço enquanto construíam numa maravilhosa atiyidade suas casinhas redondas.

-        Os castores são bem bonitos e você é tão bonita quanto eles.

Honorina divertiu-se tanto de vê-los mergulhar, ágeis e ativos, debatendo-se pela água transparente, que se acalmou.

Mas a rixa entre ela e o meio irmão não se resolvera, e voltou a se acalorar a propósito do Velho da Montanha. Pouca coisa bastava para acender a guerra entre o adolescente taciturno e a garotinha suscetível. A oeste, as falésias que bordejavam o círculo de Wapassu avançavam num longo esporão rochoso, bem recortado, que desenhava o perfil de um velho índio, ou melhor, de um velho meio pirata. Principalmente quando o sol poente cinzelava na rocha reflexos de cobre, sua expressão tornava-se surpreendente. Todo mundo o admirava. De manhã o Velho da Montanha parecia resmungão, ao anoitecer ele ria.

Só a pequena Honorina não conseguia distingui-lo. Arregalava os olhos, procurava fitar os pontos que lhe indicavam, mas se dizia "Estou vendo!", era sem convicção e para evitar as troças. Na verdade, não o via.

Cantor não se privava de arreliá-la, dizendo que ela não era um castor, mas uma toupeira, e Honorina cravava na montanha um olhar sombrio procurando entre árvores e rochas o contorno que e era vedado.

Mais uma vez, naquela manhã, Cantor pegou-a para alvo; mais uma vez ela se atirou em cima dele de punhos erguidos e seus gritos foram tais, que o próprio Joffrey de Peyrac se dirigiu ao local.

— O que está acontecendo?

— Todo mundo quer a minha morte - disse Honorina em lágrimas -, e eu nem tenho uma arma para me defender.

O conde achou graça e se ajoelhou diante da criança. Passou a mão sobre a face úmida"dela e prometeu-lhe que, se ela se acalmasse, ele faria uma pistola só para ela, que atiraria chumbinho e cuja coronha de prata poderia servir de cassetete. Pegou-lhe a mão e se afastaram juntos rumo à oficina.

Angélica voltou-se para Cantor, que acompanhara a cena com ar feroz.

— Deixe-a em paz com essa história de Velho da montanha. Se ela não o vê, não tem importância. Você a humilha por prazer.

— Ela é tola e preguiçosa.

— Não. Ela tem quatro anos. Quando você se tornará razoável, Cantor? É estúpido por querer brigar com uma criança dessa idade.

-        Todo mundo a mima - disse Cantor, amuado.

Afastou-se, resmungando consigo.

-        Os outros que se deixem escravizar por essa bastarda. Eu, não!...

Angélica recebeu o choque no coração. Só ela ouviu as palavras. Era bem a ela que estavam destinadas. Ficou ali, imóvel, paralisada com uma dor súbita, depois se dirigiu para o seu quarto e se trancou. Sua primeira reação seria esbofetear Cantor, sacudi-lo como a uma ameixeira e... sim, teria sido bem capaz de espancá-lo a coronhadas. Estava vibrando de raiva contra a arrogância e a grosseria do garoto, a quem amavam, a quem cercavam de atenções, que tinha um pai que o instruía com paciência, amigos, quase criados deferentes, pois ele era o filho do senhor e sabia manter sua posição, e que ainda se permitia, na frente dela, fazer-se de criança ultrajada.

Ele fora o seu tormento secreto durante os meses de inverno, pois apesar dos bons momentos em que ela falava com os filhos, ria ou cantava com eles, quando Cantor arranhava a guitarra e então voltava a ser alegre e bom companheiro, ela não deixara de sentir nele uma reticência e, pouco a pouco, uma animosidade secreta. O tempo, longe de arranjar as coisas, parecia envenená-las. Os sentimentos de Cantor permaneciam escondidos, inconfessos, e ela não sabia se ele continuava a querer-lhe mal por ter estado separada deles por tanto tempo - o que era pueril - ou se, julgando-a com uma intransigência infantil, não aceitava que ela tivesse levado uma vida livre longe de seu pai. Sem dúvida havia um pouco de tudo, e Angélica recuara diante da .dificuldade de explicar aos filhos que uma "viuvez" de quinze anos dera algumas escusas às liberdades que ela tomara, no mais das vezes impostas pela circunstâncias. 

Angélica pensava em como a juventude -é intransigente e deve amadurecer para compreender certas coisas. Dera isso como pretexto a si mesma para conservar o silêncior Mas já não podia dissi-fular que com isso escolhera uma solução de preguiça. Angélica sabia perfeitamente que a juventude pode compreender tudo, desde que seja esclarecida. Era ela quem não se sentia amadurecida para esse papel.

Não tivera coragem de tocar no terrível passado, principalmente diante deles. Também tivera medo de suas reações, e das próprias. Pois sabia muito bem que, na juventude, há o melhor de tudo: julgamento seguro; coração ardente, espírito de justiça infinita. Considerara os filhos crianças e não os jovens de quinze e dezessete anos que eram. Não confiara neles e agora Cantor respondia a essa desconfiança cojn a hostilidade de um coração magoado que não recebera satisfação.

Com Florimond a situação era mais simples. Ele aceitava sem rodeios. Tinha o caráter mais simples, mais desprendido que o irmão. Da antecâmara do rei aos porões dos navios, vira tanta coisa! Muito pouco lhe importava, contanto que alcançasse sua meta e se safasse sem danos.

Ela juraria que ele já tinha alguma experiência das coisas do amor.

O irmão, por outro lado, mais jovem, menos flexível, de temperamento menos feliz, levava tudo a sério. E Angélica se perguntava se tivera razão de mantê-lo à distância ou se, pelo contrário, ele não ficaria ainda mais eriçado diante das confidências dela.

Pensava e pensava no assunto e não conseguia se decidir. Andava em círculos no quarto, tratando-o de imbecilzinho, ingrato, sem coração, com vontade de mandá-lo embora.*., se era assim, não queria mais vê-lo. Não valia a pena que Deus os tivesse reunido a todos!... Depois se acalmava, pois vinha-lhe o sentimento de que ele a'nda era uma criança, seu filho, e que cabia a ela ir a ele.e tentar desembaraçar aquele coração cheio de rancores que lhe tornavam a vida tão difícil... Mas não seria melhor que ele fosse embora? Detestava Honorina. Reencontrara a mãe tarde demais. Há coisas que não se recuperam... Poderia ter partido com Florimond, e aliás até pedira isso, mas o pai lhe respondera que ele ainda não estava pronto.

Angélica se censurava por não haver discutido com o marido esse veredicto abrupto, pois então deveria conversar a respeito com Cantor e" dissipar o mau humor em que ele se encerrava.

Há coisas que não se recuperam, sim, mas as pessoas podem unir-se... podem tentar... Agora Cantor estava ali, fechado como uma ostra, e ela não via por onde abordá-lo, tanto lhe parecia que ele a trataria como inimiga.

Mas era preciso agir. Cantor acabaria tornando Honorina má. Uma criança de quatro anos! Quem sabia que esta primavera na América lembrava pela quarta vez o vergonhoso nascimento dela no antro da feiticeira da floresta druídica? Apenas Angélica sabia, e não ousara contá-lo a ninguém.

Sentou-se na cama. A partida de Cantor parecia-lhe inevitável, necessária. Mandá-lo em missão para Gouldsboro? Talvez. Ele gostava de viajar. De repente teve medo de que Cantor nunca lhe perdoasse essa espécie de auxílio imposto por ela, e de perder para sempre a possibilidade de recuperar o filho.

Realmente não sabia o que decidir, e resolveu tirar a sorte.

Pegou no bolso do cinto a moeda de ouro inglesa que guardava a título de talismã. Cara, o lado da efígie real: ela falaria com o marido da insolência de Cantor e discutiria com ele a necessidade de afastá-lo. Coroa, lado das armas da Grã-Bretanha e da inscrição ultrajante: rei da França! Desse coroa, ela iria ao encontro do jovem revoltado e lhe confessaria tudo.

Atirou a moeda no ar. Deu coroa.

Cantor, que trabalhava numa peça de forja, viu a mãe aproximar-se e se levantou imediatamente, pois não tinha a consciência tranquila.

- Venha comigo até a mata - disse-lhe ela.

O tom não permitia réplica. Ele a seguiu não sem inquietação. Ela parecia resolvida a tudo. Era um dia de primavera, claro, mas muito fresco, quase frio, pois chovera muito na véspera. A terra, encharcada, tinha uma cor violácea por entre a tímida invasão das ervas. O próprio vento estava fresco e leve. A atmosfera sob as árvores, azul e dourada.

Angélica andava depressa. Conhecia cada pista, e embora caminhasse sem destino e com o espírito preocupado, não se perdia. Cantor tinha dificuldade em segui-la e se sentia desastrado para passar entre o entrelaçado de ramos perolados de verde com as primeiras folhas. Angélica às vezes dizia:

-        Ora! É preciso voltar a esta ravina''no outono, os cogumelos crescem ao pé dessas árvores.

Ou então: 

-        O loureiro branco vai florir... Que cheiro é esse?... Ah, valeriana.

Não parava, de olho alerta, o rosto um pouco levantado, captando o perfume mais sutil, e vendo-a avançar assim à sua frente, a passo tão célere, como se os galhos se afastassem diante dela, ele pensava: "Uma fada".

Atingiram o alto da montanha e ali o solo áspero se abria a seus passos, enquanto entre os troncos o vento passava murmurando. Nos pinheiros havia.rebentos ouco-amarelados e ouro-esverdeados. Vermelho-cereja nos abetos: Rosa no espinheiro, lilás no lariço. Um aroma delicioso e balsâmico evaporava-s.e como um incenso.

Angélica estacou" na extremidade do platô e olhou para o horizonte. Abaixo deles via-se o rio sagrado 'serpentear, seguindo seu curso para leste. Ela se voltou para Cantor.

-        Você não gosta dela - disse. - Mas uma criança, seja quem for, venha de onde vier, seja quem for seu pai, sua mãe, é sempre uma criança, e oprimir a fraqueza é sempre uma covardia.

Cantor estava um pouco sem"fôlego. As palavras atingiram-no e ele ficou mudo. Uma criança, uma covardia...

-       Se o sangue de seus ancestrais cavaleiros não lhe ensinou isso, lembro-lhe hoje.

Angélica retomou a marcha. Desceu um pouco e se enfiou por uma vereda que, a meia encosta, seguia o traçado do rio e descia aos poucos, para chegar ao vale.

-        Quando você nasceu - continuou -, era o dia em que seu pai foi queimado em efígie na Place de Greve. Eu acreditava que estivesse morto... Quando o levei ao Temple, tão pequeno nos meus braços, era o dia da Candelária e lembro que Paris estava envolta no odor de filhoses de limão que as crianças órfãs vendem nas ruas nesse dia. Eu tinha vinte anos. Veja que eu hão era muito mais velha do que você, hoje. Quando cheguei ao pátio do Temple, ouvi um bebé que chorava e vi Florimond perseguido por moleques, que lhe atiravam pedras, neve, e gritavam: "Bruxinho! Bruxinho! Mostre-nos seus chifres".

Cantor estacou e ficou vermelho, enquanto cerrava os punhos de fúria.

— Ah! - exclamou. - Se eu estivesse lá! Se eu estivesse lá!

— Mas você estava - disse Angélica, rindo. - Só que não passava de uma criança com poucos dias de vida.

Olhou-o, rindo, como se zombasse dele.

-        Hoje você cerra os punhos, Cantor, mas naquele tempo seu punho não era maior do que uma noz!

E riu mais, pois revia aquele punhozinho rosado erguido para o céu.

Mas seu riso ressoava de modo estranho, amargo, nas matas, e ele a olhava, perplexo, enquanto um sofrimento indefinível começava a crescer nele. O riso de Angélica cessou e ela pareceu recobrar a seriedade.

— Você está contente por estar vivo, não é, Cantor?

— Sim - balbuciou ele.

— Não foi fácil conservar-lhe a vida. Um dia lhe conto isso, se você quiser. Na verdade, você nunca pensou nisso, não é? Nunca se perguntou: como é possível que eu esteja vivo, eu, filho de feiticeiro, condenado à morte antes de nascer? Não conservou a lembrança! Então, que lhe importa! Você está aí, vivo! Não precisa perguntar a si mesmo tudo o que sua mãe de vinte anos teve que fazer, pôde fazer, precisou fazer para lhe conservar esse tesouro que hoje tem nesse peito sólido, sua vida!

E bateu-lhe com o punho frágil e forte, tocando-o no coração. Ele recuou, assustado, olhando-a com seus olhos claros, tão parecidos com os dela, como se a visse pela primeira vez.

Então Angélica pôs-se a andar de novo, descendo o caminho. Agora o som da água do rio chegava a eles com o murmúrio das árvores agitadas. Amieiros, choupos, salgueiros sobre as margens tinham todos longas folhas movidas molemente pela brisa, e via-se que naquele lugar a primavera fora precoce, pois a relva já estava alta e espessa.

Angélica deu-se conta de que já não queria mal ao filho. O olhar desamparado do garoto confessava-lhe que ele nunca refletira em tudo o que ela acabava de dizer-lhe. Claro! Era uma criança.

Ela errara não lhe falando antes, pelo menos das lembranças que diziam respeito a ele.

Isso o teria tornado mais indulgente, menos intolerante. As crianças gostam de que se lhes fale daquele tempo de que elas não se recordam. Esses relatos preenchem o desconhecido angustiante da memória delas.

Gostam que se lhes guiem neste mundo de sensações primitivas e frequentemente incoerentes, que são as suas próprias recordações.

Cantor, por não ter sido orientado, fora obrigado a julgar pelas aparências.   

Crescendo, tivera ciúme de uma mãe, infiel, descida do pedestal em que ele a colocara na infância ingénua.

Restava fazer o mais difícil... dizer. E Angélica voltava sempre a Honorina, a quem era preciso proteger de rancores injustos.

Chegaram perto das pradarias à beira da água. Ela sê voltou bruscamente para o filho.

-        Já lhe disse que não se deve oprimir a inocência. Repito isso. A mim você pode odiar se quiser. Não a ela. Não pediu para nascer. Mas também nisso você estari enganado ao me julgar. Quando se ignora o que aconteceu, é mau deixar escorrer fel do coração, e é tolo também.

Olhava Cantor fixamente, e este via pouco a pouco os olhos da mãe tornarem-se esverdeados na tempestade e ganharem um clarão de ódio que ele imaginou dirigido contra ele e que o assustava.

-        Você é uma criança.,. Logo será um homem. Um homem -repetiu ela, em tom pensativo. - Fará a guerra, meu filho, com baterá ferozmente, até o fim... e está bem. Um homem não deve ter medo de matar. E você penetrará nas cidades com os direitos do vencedor e celebrará sua vitória e se embriagará e tomará mulheres. E suas vítimas, vais preocupar-se com elas depois? Não! É a guerra, não é? Vai se preocupar em saber se morreram de vergonha, se se atiraram num poço? Não! É a guerra! E depois não há motivo para tanta história... "Quando as bandeiras cavalgam, a mulher perde a honra", dizia com frequência a velha Rebeca. Responda-me. Na sua opinião, o que deve fazer uma mulher que leva no seio um filho da guerra? O que achas que ela possa fazer? Matá-lo e se matar? Acontece que há mulheres que põem essa criança no mundo, que a criam e amam e que querem garantir-lhe uma vida feliz, porque é uma criança. Está entendendo? Está entendendo?

-        E repetiu: - Está entendendo? - fitando-ó nos olhos.

Depois desviou o olhar para o vale, suave e murmurante, à frente deles.

"Se não entender, tanto pior. Se for duro como a pedra, pior para ele. Que vá embora, que se torne um homem sem coração, um bruto, um retre... que vá embora. Fiz o que pude".

Esperou e ousou encará-lo de novo. Viu que os lábios do filho tremiam.

-        Se é isso - disse ele, com voz embargada -, se é realmente isso, então, mãe, perdoe-me, perdoe-me! Eu não sabia...

Caiu de joelhos diante dela, escondendo o rosto entre as mãos, e rebentou em sonoros soluços.

Ela não esperava uma reação assim e abraçou-o com força. E acariciava-lhe os cabelos, repetindo maquinalmente:

-        Acalme-se! Não é nada... Acalme-se, meu pequeno.

Como quando ele era criança. E lembrava de como o cabelo dele era leve e macio, enquanto agora estava tão espesso, cerrado e áspero.

-        Acalme-se - repetiu. - Peço-lhe, o passado já não deve ter o direito de nos fazer sofrer. Estamos salvos, Cantor. Estamos juntos, nós todos, que nascemos uns para os outros e que o destino havia separado. Para mim, é só o que importa!... Não chore mais.

Pouco a pouco ele se acalmou. Com sua voz tranquila, sua mão suave e firme, ela afastava dele o drama, os remorsos, repetia-lhe que o dom da vida era a única coisa que importava, que para ela estar entre os seus era o paraíso, e que apenas a alegria de haver reencontrado o seu Cantor, a quem considerara perdido e por quem chorara tanto, compensava-lhe largamente os poucos espinhos que tivesse de suportar do caráter sombrio dele. Ele então sorriu timidamente, ainda sem ousar levantar a cabeça. E ela o apertava contra o coração, invadida pelo sentimento de que ele era seu filho, nascido de sua carne, e que pelo mistério da maternidade que os unia e que nada podia substituir ela ainda podia fazer muito por ele, e por muito tempo.

Ele se afastou dela, mas antes de se levantar olhou-a, sério de repente, com uma seriedade que o modificava, dava-lhe vários anos mais.

-        Perdoe-me - repetiu.

Ela intuiu que era o homem nele que lhe pedia perdão em nome de todos os outros homens. Tomou aquele rosto jovem entre as mãos.

— Sim, perdôo-lhe - disse baixinho -, perdôo-lhe. Depois, quando ele levantou, ela riu.

— Não é ridículo? Você é meia cabeça mais alto do que eu.

Parados ali, ainda transtornados e procurando recobrar a calma, Angélica teve a impressão de ouvir a floresta prolongar indefinidamente os soluços de Cantor.

Era um fenómeno incompreensível. Primeiro achou que fosse vítima de sua emoção. Pouco a pouco, porém, teve que reconhecer uma realidade certa, ainda que surprêenden.fe. Pois os soluços se aproximavam ao invés de se afastarem e extinguirem. E logo misturaram-se a eles vozes gementes; que se lamentavam.

-        Também está ouvindo? - perguntou, olhando o filho, que erguera a cabeça.

Ele fez um sinal afirmativo e, com prudência instintiva, logo a puxou para a proteção de um bosquezinho. Vozes, choros, naquele lugar deserto!...

-        Psiu - fez Cantor.

As vozes se aproximavam e ouviram-se nitidamente os passos de várias pessoas que andavam sobre a relva.

Um índio apareceu ha,xurva do rio, seguindo a margem. Era alto, a tez cor de argila, desfigurado por pinturas de guerra vermelhas e brancas, o rabo de cavalo oleoso, espetado de peles, penas e pêlos de porco-espinho. Entre os braços havia um mosquete. A coberta sobre os ombros parecia pesada de umidade. Chovera de manhã. O índio vinha de longe. Devia ter andado sem parar, mesmo durante o temporal. Ia a passo lento, embora regular, a cabeça inclinada e o ar cansado. Seguia o rio. i

Já chegava à altura do bosquezinho onde se escondiam Angélica e o filho, que, conhecendo o faro sutil dos índios, temiam que ele estivesse alerta. Mas outras pessoas já surgiam na orla da clareira.

Mais um índio, depois uma mulher branca, com as roupas em farrapos, os cabelos desfeitos, o rosto sujo de lama, e apoiada ao índio.

Atrás, outra mulher. Essa trazia nos braços uma criança de uns dois anos. Era da criança que se ouvia o choro. A mãe, exausta, avançava como uma sonâmbula. Vieram depois dois índios que traziam um menininho de cinco ou seis anos e uma garota um pouco mais velha, adormecida, a menos que estivesse semimorta. Depois um branco, que arrastava outro, os dois-em andrajos, a camisa rasgada, o rosto e os braços cobertos de arranhões, depois um menino de doze anos, de ar aturdido, carregado como um asno com um amontoado heteróclito de fardos e objetos diversos, encimado por um jarro de estanho.

Por fim, atrás do grupo e dando a impressão de empurrar para a frente aquela tropa, um índio solene, balançando numa mão o machado, na outra o tacape.

O curioso e deplorável cortejo desfilou diante de Angélica e Cantor sem notar-lhes a presença. Os próprios índios pareciam cansados.

De súbito a jovem que carregava a criança caiu de joelhos. O índio como mosquete voltou atrás e desferiu-lhe uma boa coronhada entre as omoplatas.-A criança começou a berrar agudamente. O índio, furioso de repente, agarrou o pequeno pela perna, balançou-o no ar e atirou-o no rio.

Angélica soltou um grito.

-        Cantor, depressa!

O rapazinho deu um salto, atravessou o prado com duas pernadas e mergulhou sob os olhos atónitos do bando. Angélica saiu a descoberto. Vinha com a mão sobre a pistola, pois não ignorava que com os abenakis e iroqueses o menor incidente pode facilmente degringolar em carnificina. Mas tudo também pode se resolver da melhor maneira. É questão de sorte e diplomacia.

-        Saúdo-o - disse, dirigindo-se ao chefe. - Você não é o gran de sachem Scacho, dos etchemins?

Pela disposição do colar de dentes de urso e agulhas de porco-espinho cravadas na cabeleira dele, ela identificara a tribo a que pertencia. Ele respondeu:

-        Não! Mas sou parente dele, Quandequiba.

"Deus seja louvado", pensou Angélica. Enquanto isso Cantor saía da água, gotejando, segurando a criança, que sufocava, cuspia, mas que não chegara a perder a consciência.

O terror enchia os olhos azuis do pequeno e o deixava mudo. A mãe o agarrou selvagemente e o abraçou. Os dois batiam os dentes, tremendo com tanta violência que mal se aguentavam em pé, mas permaneciam em silêncio, sob o efeito de um medo animal.

-        São ingleses - disse Cantor. - Esse grupo de abenakis deve tê-los capturado no sul.

Diante da intervenção inesperada, os etchemins se reuniram às pressas à volta de seus cativos. Desconfiados, esperavam uma palavra do chefe para determinar se o encontro devia ser mal interpretado. O fato de a branca que acabava de surgir da mata falar a língua deles os dispunha favoravelmente.

-        Então sabe falar a nossa língua, mulher? - interrogou o chefe, como que a duvidar dos próprios ouvidos.

-        Tento! Uma mulher não pode falar a língua dos Verdadeiros Homens?

Era o título que a raça abenaki se arrogava. Filhos da Aurora, mas Verdadeiros Homens também. Os únicos, por excelência. Os outros, todos os outros, inclusive algonquinos e iroqueses, não eram mais que cães bastardos. O chefe pareceu apreciar que ela distinguisse a nuance e que também tivesse consciência da honra de empregar tal linguagem. Sua cólera parecia dissipada.

No silêncio pontilhado de roçar de folhas e cantos de aves, os dois grupos se olhavam e avaliavam.

Nesse momento, um dos ingleses, o que estava ferido e a quem o companheiro colocara no chão, tocou a barra da saia de Angélica.

— Vós? Francês?     

— Yes - respondeu Cantor. - ~We ate French. Sim, somos franceses.

Num instante todos os-infelizes se aproximaram e se atiraram aos pés de Angélica e Cantorfrogando-lhes:

-        Prey, purchase usl Prey, do purchase us! Por misericórdia, comprem-nos!

Agarravam-se a eles com as mãos geladas. Estavam pálidos, os rostos estriados de equimoses causadas pelos galhos na floresta. Os homens tinham barba de vários dias.

Os índios os olhavam com desdém.

Dominando os lamentos e súplicas, Angélica tentou convencer o chefe a ir até o forte, onde guerreiros valentes como eles encontrariam repouso, tabaco e sagamite. Mas os índios menearam a cabeça. Tinham pressa, disseram, de chegar ao rio Saint-François e de seguir dali para a aldeia que tinham nas margens do Saint-Laurent. Mais tarde levariam os prisioneiros a Montreal para vendê-los a bom preço. E, para começo de conversa, os brancos daquele forte de Wapassu não eram amigos dos ingleses? O Casaco Negro dissera que sim!

Tornaram-se ameaçadores. Angélica tomou o cuidado de se apoiar no tronco de uma árvore e viu que Cantor fazia o mesmo. Um golpe de tacape pelas costas é bem rápido! Recuando, sempre com o grupo de ingleses infelizes agarrados a ela, Angélica continuava a falar, ajudada por Cantor, metade em francês, metade em abenaki. Falou de Piksarett, de Mopuntuk e do velho Massaswa, a quem o Homem do Trovão se aliara.

Novamente eles pareceram tentados, curiosos.

-        É verdade que o Homem do Trovão explode a montanha?- indagaram. - É verdade que os iroqueses fugiram diante dele?

Angélica disse:

— Sim, o Homem do Trovão explode a montanha. Não, os iroqueses não fugiram. Simplesmente fizeram uma aliança com o Homem do Trovão, pois este lhes pagou o preço do sangue mais alto que jamais se vira.

— E verdade - perguntaram os abenakis - que nos presentes aos iroqueses havia pérolas vermelhas como sangue, amarelas como ouro e transparentes como a seiva que corre na árvore, pérolas desconhecidas pelos outros comerciantes?

— Sim, é verdade. Venham ao forte e verão com os próprios olhos.

A chuva começou a cair suavemente sobre as folhas.

Um grito agudo e fraco se fez ouvir, uma espécie de miado... Os índios caíram na risada diante das caras atónitas de Angélica e Cantor. Contentes por surpreendê-los por sua vez, um deles tirou de uma espécie de saco que trazia a tiracolo uma criaturinha vermelha e nua, que ele pegou pelos pés e que se pôs a berrar com toda a energia de um recém-nascido descontente.

Uma das mulheres, então, falou chorando. Dirigia-se a Cantor, pois constatara que o rapaz entendia bem inglês.

— Diz que é filho dela. Que nasceu há seis dias, na floresta...

— Senhor! - murmurou Angélica. - Temos absolutamente que convencer os índios a ir até o forte, a fim de cuidar um pouco desses infelizes.

"Por fim, multiplicando as promessas de pérolas, tabaco e munições para o mosquete, e cobertas esplêndidas, conseguiram persuadir os índios.

Durante o trajeto, enquanto Cantor amparava o ferido, o outro contava sua odisseia.

Eram todos habitantes de um vilarejo no interior, "habitantes das fronteiras", conforme os designavam os ribeirinhos. Biddeford, perto do lago Sebago. No interior de suas paliçadas o forte encerrava umas trinta famílias. Mas alguns agricultores mais independentes, com os William, haviam-se instalado do lado de fora. Ele, Daugherty, e o filho, o jovem Samuel, haviam-se "agregado" àquela família. Chegando uma manhã com o filho para trabalhar, mal a porta da casa se abriu e viu-se aparecer da mata um grupo de abenakis, que deviam ter-se escondido ali durante a noite e que esperaram por uma ocasião de penetrar na habitação.

Num passe de mágica os selvagens capturaram todos os que se encontravam ali, arrancando as crianças da cama, o que explicava por que as infelizes estavam descalças e só de camisa, assim como a própria Sra. William, que acabava de se levantar. Surrupiaram tudo o que puderam encontrar de roupas, utensílios, provisões, e arrastaram todo mundo para a orla da ílorestí

Depois se enfiaram na mata comos cativos. A incursão se realizara tão prontamente e em tamanho silêncio, que nem do forte nem da aldeia se pôde ouvir nada. Nem ver, pois naquela manhã o nevoeiro estava tão denso, que não se enxergava a dez passos de distância.

Então se iniciara para os infelizes uma marcha torturante. Os índios, querendo distanciar-se o mais rápido possível do palco de suas façanhas, apressavam-nos e molestavàm-nos. O fazendeiro, que só tinha um sapato nó pé - estava-calçando as meias quando os selvagens se apoderaram dele - deu as meias à mulher, que estava descalça. Vendo isso, um -dos sei vagens,, entendendo que a cativa, quase em final de" gravidez, não. aguentaria a caminhada com um par de meias, deu-lhe um par de mocassin de pele de.alce. William feriu o pé descalço num espinho. No dia seguinte atingiram as margens do Androscoggin. Os selvagens fabricaram balsas para a travessia. Depois, como se afastavam dos estabelecimentos ingleses, os índios concordaram em diminuir um pouco a marcha. O pé de William inchava. Tiveram que ampará-lo. Depois a Sra. William entrara em trabalho de parto...

A voz do pobre "agregado", Phileas Daugherty, não parava de subir e descer nos lamentos, como uma litania ininterrupta; tantas confidências de seus sofrimentos a um ouvido finalmente complacente davam-lhe consolo, e a chuva aumentava, tornando mais difícil a caminhada no barro molhado. Quando avistaram o forte de Wapassu, ladeando os lagos, a borrasca despencou e as bétulas, contorcendo as ramas, encharcavam-nos ao passarem.

Finalmente Angélica e seus convivas indígenas entraram na sala bem aquecida, e enquanto Joffrey de Peyrac, posto a par da situação, recebia com deferência os índios, Angélica se dedicava aos prisioneiros. Deitaram a Sra. William na cama bem aquecida da Sra. Jonas. Lavada, pensada, aquecida, a pobre mulher recuperou as cores do rosto branco como giz. A outra mulher, aquela cujo filho de dois anos fora atirado no rio, ficara no banco, tiritando. Quando Angélica quis levá-la para um quarto para fazê-la tirar a roupa encharcada, o chefe Quandequiba se opôs. Segundo o costume dos abenakis, o primeiro a pôr a mão sobre um prisioneiro era considerado seu amo e proprietário, e devia ser obedecido sob pena dos mais duros tratamentos. A jpvem e o filho pertenciam a Quandequiba, que não parecia disposto a ser um amo particularmente terno.

-        Esse. Quandequiba é ruim como a tinha - confiou Angélica a Nicolau Perrot, conversando à parte. - Tente convencê-lo, você, canadense, a me deixar tratar dessa infeliz.

Estava indignada com a indiferença de Perrot pelo destino daquela gente, sobretudo das mulheres. Embora fosse homem de valor, era canadense antes de tudo, e para ele o inglês herético não pertencia a uma espécie por quem se devesse ter consideração. Mas, vendo uma decepção mesclada de horror nos olhos de Angélica, tentou desculpar-se.

-        Não acredite, senhora, que haja muito a lamentar por essas mulheres. Claro, os índios talvez as tratem como servas, mas não tema pela honra delas. Os índios nunca violentam as prisioneiras, como se faz na Europa. Acham que uma mulher forçada atrai azar para a wigwam. Além disso, acho que a mulher branca lhes inspira certa repugnância. Se essas inglesas e seus filhos se mostrarem dóceis, não serão infelizes. E se tiverem a sorte de ser compradas por uma honrada família de Montreal, serão batizadas e assim sua alma se salvará. Esses ingleses têm sorte de ser arrancados à heresia.

Lembrou-lhe também que os canadenses tinham sofrido muito com os iroqueses, que também capturavam brancos, mas para fazê-los sofrer terrivelmente, coisa que os abenakis, aliados dos franceses, não faziam.

Depois da explicação, foi ao encontro de Quandequiba e convenceu-o a deixar a prisioneira descansar e comer, pois se a mulher morresse no caminho, que lucro tiraria ele da expedição, exceto por algumas cordas e panelas que ele arrastara por centenas de milhas? Mergulhado na euforia de um tabaco da Virgínia, Quandequiba assentiu.

A moça era irmã da Sra. William. Morava no forte de Bidde-ford, mas como o marido partira numa viagem de alguns dias a Portland, ela aproveitara para visitar a irmã com o garotinho. O que diria o pobre Jaime Darwin, seu marido, ao encontrar o lar vazio? Ela chorava sem parar. Auxiliada por Elvira, Angélica fê-la tomar um banho de vapor, deu-lhe roupa seca, penteou-lhe o cabelo, e ela acabou sorrindo debilmente, sobretudo quando viu o seu homenzinho, alimentado e aquecido, adormecer no seu colo.

Tremia por ele. Durante toda a viagem o menino não parara de chorar ruidosamente, e seus gemidos exasperavam os índios, que por sua vez quase o mataram para sé livrarem dele. Sem a intervenção de Cantor, isso teria acontecido. Ela beijava a mão de Angélica e continuava a suplicar-lhe que os comprasse. Finalmente adormeceu deitada ao lado da irmã. -JSi Sra. Jonas pediu conselhos a Angélica para o pé do agricultor William, mergulhado numa bacia de água com benjoim e consolda. Imçdiatamente Angélica viu que apenas o bisturi evitaria a grangrena na perna inchada e distendida. Os índios olharam com admiração enquanto ela manejava sem hesitação a faquinha cintilante que o Sr. Jonas forjara para ela, para suas operações delicadas..;

Os selvagens ficaram contentes com a acolhida que lhes foi dada. O amor de William agradeceu a Angélica por devolver-lhe um cativo em condições de Caminhar.

De vez em quando os vagidos do reeém-nascido saíam da bolsa de caça de um dos índios, onde este o conservava como uma lebre esfolada, reservada para o jantar. Angélica novamente precisou de muita diplomacia para tirar-lhe a criaturinha. Finalmente levou-a nas mãos e fez-lhe a toalete sobre a cama da mãe.

- Deus seja louvado, é uma menina! Ela sobreviverá... as meninas são mais resistentes que os meninos...

Protegeu com óleo de girassol a pele frágil, enfaixou o bebe e colocou-o ao seio da mãe, que felizmente tinha um pouco de leite. A pobre mulher contava os horrores que enfrentara, a caminhada insensata pela floresta, o frio, a fome, o medo, os pés em carne viva. A Sra. Jonas, que sabia inglês como toda boa comerciante de La Rochelle, traduzia.

A inglesa contava que, ao entrar em trabalho de parto, imaginou que sua última_hora chegara. Os índios,r porém, mostraram-se humanos. Construíram uma cabana a fim de abrigá-la e deixaram-na aos cuidados do marido e da irmã, afastando as outras crianças. Depois do nascimento, que transcorrera sem muita dificuldade, pareceram alegres com o evento e até celebraram, dançando e soltando berros medonhos. Consentiram em permanecer um dia no local, para deixar à doente tempo de repousar, e naquele dia fizeram uma liteira com galhos de árvores. Durante dois dias ela fora carregada assim pelo marido e pelo "agregado" branco. Depois, estes, esgotados, principalmente William, cujo pé infeccionava, não puderam mais aguentá-la. Os índios nem cogitavam de carregar a liteira. Não condizia com a dignidade deles. Como falassem em abandonar a mulher e a criança na floresta, depois de matá-las a machadadas, a Sra. William, em seu torpor, encontrara forças para andar, e fora assim que o seu calvário continuara. Agora se acreditava no paraíso, mas no dia seguinte o martírio prosseguiria.

Angélica indignava-se ante a ideia de abandonar aquelas mulheres brancas às mãos dos selvagens. Conversou com o marido sobre a possibilidade de arrancá-las à_sua triste sorte. O Conde de Peyrac já propusera comprar todos os cativos, mas os abenakis se mostravam intratáveis. Aceitavam os presentes por haverem concordado em parar no forte, e quando se acrescentaram várias fieiras de pérolas, seis facas, uma coberta para cada um, aceitaram ficar mais um dia, a fim de permitir os prisioneiros que se recuperassem um pouco.

Mas faziam muita questão da entrada gloriosa na sua aldeia, empurrando à frente os prisioneiros enfeitados com cores vivas, em meio aos gritos de entusiasmo, para voltarem de mãos vazias de uma perigosa expedição. Também tinham em Montreal amigos canadenses que os felicitariam muito por contribuírem para salvar almas para o paraíso dos franceses.

E que lhes pagariam bom preço. Os franceses eram muito generosos quando se tratava de ganhar almas para a sua fé. Certamente porque eram pouco numerosos, precisavam de todas as forças invisíveis consigo. E nesse domínio, a legião era bela: os santos, os anjos, as almas de seus mortos, as almas convertidas... Era por isso que os franceses do Canadá acabariam triunfando sobre os iroque-ses e os ingleses, apesar de seu pequeno número. Quandequiba não podia trair os franceses privando-os daquelas almas com que eles tanto contavam. Peyrac podia garantir que mandaria batizar os ienn-gli pelo Casaco Negro? Não, não é? Então, por que as discussões inúteis?

Ao cair da noite, Angélica começou a entender, senão a ter certa indulgência pelos conquistadores espanhóis que queimaram vivos uma boa parte dos vermelhos. Em certos momentos, eles deviam ter tido boas desculpas para isso.

De bom grado Angélica teria pegado em armas, mas, apesar do desprazer que sentiam todos em deixar brancos nas mãos de selvagens, Peyrac não podia correr o risco de uma guerra com a Nova França e com as nações abenakis por um punhado de trabalhadores ingleses. Mortificada, Angélica acabou cedendo às razões. Ainda tinha muito a aprender sobre a América.

Passou a manha do dia seguinte à cabeceira da menina inglesa. Mesmo com os cuidados atentos, não era garantido que se pudesse salvá-la. A mãe não nutria ilusões sobre-o estado da filha mais velha, que se chamava Rosa Ana. Acompanhava*as idas e vindas de Angélica com um olhar patética.

Deve ter entendido a conversa que Angélica teve com a Sra. Jonas. As duas mulheres discutiam sobre a intransigência dos selvagens não querendo ceder os primeiros, e pensando no frio úmido das noites na floresta que a doentinha enfrentaria quando tivesse que partir, a fazendeira puritana ficou com os olhos cheios de lágrimas.

-        My daughter will die - murmurou. - Minha filha morrerá!

A tarde Angélica viu o índio que era proprietário da pequena Rosa Ana sentado na' pedra àz lareira, fumando seu cachimbo. E foi sentar-se diante dele.

-        Já viu a montanha explodir? - perguntou. - Já viu a lagarta verde descer do céu e as estrelas caírem em chuya?

O homem pareceu interessado. Ou seja, seus olhos viraram um pouco na fenda das pálpebras semicerradas. Angélica aprendera a interpretar esses sinais e não se deixou desencorajar pelo rosto impassível.

-        Os iroqueses viram. E caíram com a cara no chão.

O selvagem, que se chamava Squanto, tirou o cachimbo da boca e se inclinou para a frente.

-        Se você também vir - continuou Angélica - e puder contar aos seus, não precisará da cativa para que o felicitem e se interessem por você. Muito pelo contrário, acredite-me! Um espetáculo assim, apenas para você, vale bem a pena de consentir em nos vender a cativa. Depois você não ignora que ela vai morrer. Então?

As palavras tentadoras e pérfidas provocaram entre Squanto e os seus uma discussão que por pouco não degenerou em pugilato. Os outros ficaram com inveja de Squanto por assistir ao espetáculo mágico. Mas também não desejavam libertar os cativos. Era um caso de consciência. Joffrey de Peyrac conciliou-os dizendo que somente Squanto podia ver, os outros poderiam ouvir e relatar o que ouvissem. Squanto lhes contaria o que visse. E também não seria mau para os canadenses saber o que acontecia em Wapassu.

Ao crepúsculo, levaram Squanto para trás da montanha. Ele pôde ver a falésia abrir-se, fender-se e cuspir suas entranhas, num ruído aterrorizante. E quando a noite caiu, três ou quatro petardos, que explodiram apesar da umidade, completaram o deslumbramento dele. Voltou para junto dos irmãos com a expressão de Moisés descendo do Sinai.

- Sim, vi as estrelas cair do céu!

Na manhã seguinte, ao alvorecer, a Sra. William beijou a filha inconsciente, mas salva, que' certamente nunca mais reveria.

Deixou com Angélica indicações sobre o estabelecimento de Brunswick Falis, sobre o rio Androscoggin, onde moravam os avós da criança. Talvez pudesse levá-la para lá um dia. Apertando contra o seio a filha recém-nascida, acompanhou corajosamente os seus guardas ferozes.

Angélica olhou o grupinho afastar-se sob a chuva que caía suavemente. Brumas e nevoeiros pairavam à superfície dos lagos. O cimo das árvores se esfumava em nuvens aquosas e pesadas. Os índios e seus cativos ladearam o lago, as crianças carregadas pelos donos; Samuel Daugherty, o menino de doze anos, sempre carregado como um asno, o "agregado" amparando William, que coxeava.

O bebé ia com a mãe, vestida e calçada, como a outra mulher. Angélica drogara Cornélio, a criança barulhenta, para que ficasse quieto, e dera um frasco da poção à mãe.

As duas cativas levantavam a cabeça e caminhavam valentemente a fim de acompanhar o passo ágil e rápido dos índios e de não provocar-lhes o descontentamento. Viu-se o pequeno grupo sumir, desaparecer através da floresta, como no seio de um elemento turvo, esponjoso, líquido...

CAPÍTULO LI

Chegada triunfal dos mercenários

A medida que atestação avançava, os índios chegavam de toda parte para o comércio. Entravam sem cerimonia, atiravam suas peles em cima da mesa é'se instalavam imediatamente sobre as camas, com os cachimbos e os mocassins enlameados. Pediam aguardente e tocavam em tudo. Era o desespero da Sra. Jonas.

A febre das peles atingia os mais indiferentes. Peyrac repetia que não desejava esse comércio e que os lucros que extraíssem dele logo seriam um logro. Também sabia que para o franceces da Nova França havia duas coisas sagradas: a cruz e o monopólio do castor, e achava inútil atrair a inimizade do governo de Quebec com um comércio de que não necessitava. Mas era difícil manter-se completamente afastado do comércio. Era ao mesmo tempo a doença do país e da primavera. Abalava as pessoas assim como uma febre da estação.

Como resistir ao fascínio daquelas peles ricas e tépidas, de uma suavidade inimitável, à brancura imaculada dos arminhos, ao negro profundo das lontras, à suavidade cinzenta, malva ou azulada dos visões ou das raposas prateadas, e principalmente ao ouro escuro e polido dos castores, medalhões perfeitos, às vezes com dez polegadas de largura, ou, enfim, às peles de ursos-negros, de lobos, de doninhas rosadas, de gambás listrados...

Apareceram exploradores canadenses, co"ino Romão de LAubignière, carregados de peles que haviam coletado nas montanhas, na outra margem do Saint-Laurent. Ousavam fazer a viagem, contra a vontade dos compatriotas, para pedir a Peyrac que vendesse as peles deles nas cidades inglesas ou holandesas, coisa que eles próprios não podiam fazer, sob pena de serem acusados de traição. Mas eles sabiam que desse modo ganhariam o dobro, e que com os ingleses também encontrariam objetos de ferro e latão mais barato e de melhor qualidade que no Canadá. O lucro, portanto, seria quádruplo, se não vendessem em Quebec.

O conde concordou em servir de intermediário, contanto que eles o ajudassem e lhe fossem amistosos quando surgisse a ocasião.

Depois da visita de LAubignière, o velho Elói Macollet não conseguiu resistir. Em meioa todos aqueles odores de peles e animais, ele era como o velho cavalo de batalha que ouve o som dos pífaros e tambores.

Tirou casca de bétulas, costurou, colou, colmatou e, terminando a pequena canoa, colocou-a sobre a cabeça e partiu à procura de um curso d'água que o levasse até o rio Saint-François e, dali, à terra dos utauais. Angélica e as crianças o acompanharam em cortejo pela distância que puderam, e acenaram-lhe muitos adeuses enquanto ele se lançava, muito alerta, pelas corredeiras de uma torrente.

A jovem inglesa, Rosa Ana, já estava curada. Era uma criança alta, frágil, pálida, a quem a exuberância de Honorina parecia assustar. Esta, com ar protetor, chamava-a de "a pequena", embora Rosa Ana tivesse o dobro de sua idade. Entendiam-se em torno da boneca maravilhosa, e passavam horas preparando para a princesa misturas estranhas, que depois Lancelot engolia.

Angélica notava que Cantor parara de provocar Honorina e às vezes se mostrava bondoso com ela. Corria pela montanha o dia todo, até à noite, seguido da bolinha escura do glutão. E o pai o deixava. Trazia curiosos relatos de seus passeios noturnos e prometia a Honorina que uma noite a levaria para observar um casal de lobos com os filhotes ao luar.

Tornara-se mais tagarela, comunicando seus pensamentos com mais facilidade.

- Gosto dos lobos - dizia -, são sensíveis, inteligentes. O cão é feroz; o lobo, não, só se defende. O cão conta com o homem. O lobo, não. Sabe que é sozinho, que não tem amigos.

Tendas se erguiam à volta do forte, com seus anéis de fumaça displicente e gritos de crianças e cães.

Um dia apareceu o soberbo Piksarett. Serguiu pela beira do lago, sacudindo orgulhosamente o adorno de penas de corvo que lhe ornava os cabelos entremeados com colares de pérolas. Entrou sorrindo no pátio, lançando olhares arrogantes à sua volta. Não pareceu notar a emoção que sua vinda provocava e andou direto ruimo aos homens que se encontravam no pátio, junto com Elvira e Angélica. O índio ergueu a mão, numa saudação cordial. Depois estendeu para o carpinteiro Vignot um punhado do que todos tomaram de início por peles e que se assemelhavam a rabos de rato bem sujos.        

-        Querem escalpos de ienngli? ... Escalpos de ingleses...

Elvira levou a mão aos lábios, teve uma náusea e sumiu.

-        Querem escalpos de ienngli? - repetiu o selvagem. - Estão inteiros! Eu mesmo os cortei em Jamestook, da cabeça daqueles coiotes infames que mataram Nosso Senhor Jesus... Querem pendurar isto na sua porta se "são bons cristãos?

E, caindo na risada diante dos rostos assustados dos interlocutores, o grande abjènaki deu uma pirueta e foi como viera, cheio de arrogância e brandindo os troféus medonhos.

Pelo começo dé junho, correu o boato de que homens armados subiam o rio Kennebec em botes. Andava-se tranquilo demais há algum tempo. Às vezes riam pensando nas ideias que haviam tido ao se fecharem no forte para o inverno. Imaginavam que não veriam ninguém por longos meses. Quem ousaria atravessar aqueles ermos mortais? Mas os franceses do Canadá ousam tudo. Eis o que o inverno lhes ensinara. Visitas não faltaram! E agora que eles tinham forçai; para dar e vender e havia pólvora e balas fabricadas na mina, tudo o que queriam era mais visitas...

Mas, por certos detalhes dados pelos índios que trouxeram a notícia, logo pareceu que se tratava de mercenários recrutados por Curt Ritz, o homem de confiança que Peyrac deixara com essa finalidade na Nova Inglaterra.

A excitação mudou de objetivo. Nicolau Perrot partiu como estafeta, enquanto se aceleravam as obras da construção destinada a abrigar o novo contingente. Alguns dias mais tarde apareceu o panis de Nicolau Perrot.

-        Eles estão chegando!... Estão chegando!

Deixaram tudo. A gente de Wapassu e os índios saíram correndo pela margem. Ao atingirem a extremidade do terceiro lago, o primeiro homem emergiu do buraco cheio de folhas onde des-pencava a água da descarga. Apareceu encouraçado de aço, quadrado, germânico, o olho claro sob sobrancelhas hirsutas, a imagem perfeita do mercenário dos campos de batalha da Europa pousando o pé pesado na terra do Novo Mundo. Rodearam-no e saudaram-no com emoção. Ele respondeu em alemão.

Chegavam outros, guiados por Perrot. Eram uns trinta: ingleses, suecos, alemães, franceses e suíços.

Joffrey de Peyrac viu de imediato que Curt Ritz não se encontrava entre eles, mas o tenente e amigo fiel deste se apresentou. Era um geritil-homem helvético, de um cantão de língua francesa, chamado Marcelo Antine. Saudou o Conde de Peyrac e entregou-lhe uma carta bastante volumosa, na qual, disse, estava explicada a ausência do comandante da tropa. Ela viera no comando e estava feliz por haver chegado a bom porto. Informou também que um barco a vela subira o rio com eles e que viriam outros. Despacharam-se provisões com os homens. Cada um trazia um barrilete de aguardente ou de vinho, previsto para as celebrações da chegada.

Às perguntas de Peyrac, querendo saber se Ritz estava doente, ferido, ele respondeu evasivamente, dizendo que a explicação estava na carta e que, se Monseigneur quisesse, ele a discutiria mais tarde.

O conde aquiesceu. Era preferível não perturbar a alegria daquelas primeiras horas de contato.

Em Wapassu, mesas compridas sobre cavaletes aguardavam os recém-chegados. Festejaram sob os olhos dos índios, atónitos. Angélica ia de um a outro, servindo-os ou sentando-se perto deles para fazer-lhes perguntas e trocar algumas palavras com cada um.

Seu coração exultava. Um canto de alegria vibrava nela. "Ganhamos, ganhamos!", pensava.

Com os veteranos de Wapassu ela trocava longos olhares cúmplices, cheios de luz, e ao passarem um pelo outro apertavam-se as mãos com força. Ela tinha vontade de beijá-los a todos, até Clóvis, e agradecer-lhes chorando. Lembrava-se do que o marido lhe dissera antes de se encerrarem no forte para o inverno. O que ele lhe explicara, cravando-lhe os olhos escuros e flamejantes: o que ia acontecer dependeria do valor de cada um.

E o inverno passara. E estavam todos ali. Cada um dos habitantes de Wapassu provara o seu valor, até as crianças, até as mulheres! Tinham sido fiéis a si mesmos e com aqueles que fizeram com eles a aposta de sobreviver. E agora a vitória estava ali.

Pois trinta homens é o poder no Novo Mundo, onde a maioria dos fortins não pode honrar-se da presença senão de cinco ou seis soldados. Que nação, doravante, poderia levar a melhor contra o forte do Lago de Prata?... Amanhã os mercenários se porão à obra, abaterão árvores e muralhas inexpugnáveis se elevarão.

Tinham ganhado!

Essa América onde tinham desembarcado, enganadora, pois parecia deserta, no fundo tinha o que a opor-lhes? Seis mil canadenses no norte, duzentos mil ingleses no sul, repartidos ao longo das margens e da embocadura dos grandes rios; a oeste, duzentos mil iroqueses pró-ingleses, e a leste outros tantos abenakis, algon-quinos, huronianos, pró-franceses.

Pouca coisa, na verdade, pois o país era imenso e todo aquele mundo branco e vermelho vivia dividido em querelas perpétuas e debilitantes.       

Eis por que sessenta pessoas resolutas eram umaforça imbatível, pois o espírito dominava tudo. Os canadenses da Nova França já provavam isso: trinta vezes, menos numerosos, conseguiam aterrorizar toda a América setentrional, até Nova York, e em breve, talvez até o mar da China. .

Joffrey de Peyrac ganhara então sua liberdade e sua independência. E quando a lua se levantou, os festejos se reiniciaram. Os índios receberam 'sua parte e se uniram à algazarra. No meio da noite, ainda se comia, bebia, cantava e dançava ao som da guitarra de Cantor e do violino endiabrado,de um irlandês recém-chegado. E, elevando-se do acampamento indígena, as batidas de tambores e guizos de tartarugas marcavam o ritmo das farândolas e das tarantelas que Henrique Enzi dançava fazendo malabarismo com punhais.

As três mulheres de Wapassu não podiam queixar-se da falta de cavalheiros. Angélica e Elvira experimentaram todos os passos das províncias da França, e a própria Sra. Jonas teve que dançar o seu rigodão.

As falésias devolviam os ecos surpreendentes de risos e refrões, música e aplausos, e a lua viajava suavemente acima dos três lagos.

Pouco depois da meia-noite, Angélica retornou ao forte. O marido mandava chamá-la. Ela o encontrou no quarto, diante de uma espécie de sacola de couro lavrado, trazida na bagagem da tropa, e que, ao se abrir, revelou um belíssimo vestido de cetim azul-claro, com uma gola de filigrana de prata. Ele mandara trazer o vestido de Gouldsboro, e para si próprio um traje de veludo verde, com todos os acessórios.

Angélica vestiu-se quase com timidez.

Quando ambos apareceram na soleira do forte, sobre o promontório, uma imensa aclamação se alçou da pradaria onde os homens e os índios estavam reunidos.

E naquele grito vibraram o orgulho, o contentamento, a exaltação da vitória e também o amor de muitos corações por aquele casal que se erguia ali, voltado para os companheiros com um sorriso que os recompensava".de tudo...

Ao luar, o vestido de Angélica parecia de prata, e seus cabelos soltos, de ouro claro.

— Malandro - disse um dos franceses que fizera amizade com Tiago Vignot -, é uma princesa! Se eu tivesse imaginado que tinham isso aqui!

— Não é uma princesa - disse o carpinteiro, olhando-o com desprezo - , é uma rainha!

Voltou os olhos para Angélica, que vinha na direção deles com a mão pousada sobre a de Joffrey Peyrac.

-        Nossa rainha! - murmurou ele. - A rainha do Lago de Prata!

CAPITULO LII

Depois do êxtase amoroso, planos de uma nova expedição

Naquela noite? nos braços de Joffrey de Peyracs ela saboreou o amor com uma alegria, e uma leveza que lhe parecia não sentir desde a juventude. Peyrac adivinhava pelo brilho do sorriso de Angélica que ela estava- liberta das tensões que por muito tempo lhe cercearam a espontaneidade. A alegria deles-era nova.

Cantos de pássaros começavam a brotar de sob as ramas. O escuro fazia-se claro. A "beira dos lagos ainda havia movimentos de chamas, algumas fogueiras em torno das quais se fumava. Os ruídos da floresta e das águas entravam pela janelinha.

O leito rústico acolhia os êxtases do casal. Aquela cama fora a barca que os levara para o outro lado do inverno. Ali ela dormira tão perto dele, que às vezes lhe sentia o hálito nas faces, o perfume de sua pele a perseguia em sonhos, de manhã bastava-lhe entreabrir os lábios para sentir o toque suave da língua dele contra a sua. Gestos imperceptíveis, calor, ternura. Sua cura nascera daquele sono de amantes.

Finalmente encontraram o fio de Ariadne e reataram o diálogo interrompido quinze anos antes pelos fogos da Inquisição e o ostracismo decretado pelo rei da França.

Foi só no dia seguinte que Joffrey de Peyrac leu a carta. Fora escrita por Mestre Berne. O mercador rochelês dava notícias da colónia de Gouldsboro e de como ela passara o inverno. No conjunto, tudo ia bem, mas recentemente vinham tendo aborrecimentos com um pirata conhecido como Barba de Ouro, que incursionava pela baía Francesa. Perseguido por uns -e outros, refugiara-se nas ilhas Gouldsboro, e fora ele que capturara - o Diabo sabia por quê - Curt Ritz, que acabava de desembarcar com seus homens.

Apesar do aborrecido incidente, Manigault e Berne tinham encorajado os recrutas, chegados da Nova Inglaterra num dos pequenos navios do conde, a continuar o percurso conforme o previsto até o Alto Kennebec, pois o Sr. de Peyrac podia estar necessitando de reforço. Em todo caso, ambos esperavam rever o Sr. de Peyrac em breve, á fim de acertarem aquela história do pirata e outras.

Berne acrescentara um post-scriptum: sua mulher, Abigail, passava bem, mas esperava um filho para o verão. Estava um pouco assustada com o evento e desejava muito que a Sra. de Peyrac estivesse a seu lado quando chegasse a hora. Se a Sra. de Peyrac pudesse acompanhar o esposo em sua inspeção a Gouldsboro, todos ficariam muito felizes...

O conde permaneceu longo tempo pensativo.

"O que significa tudo isso?", dizia consigo. Pensava no estranho rapto do alemão Ritz. Embora as visitas de piratas fossem habituais na vida ribeirinha, havia algo de insólito naquela captura. Conversou com Marcelo Antine sobre as condições em que o sequestro ocorrera. Era misterioso. Curt Ritz fora dar um passeio na praia uma noite, depois uns índios vieram avisar que tinham visto os marujos do navio de Barba de Ouro cair em cima dele, depois de golpéa-lo, e levá-lo na chalupa.

Joffrey de Peyrac comunicou que partiria para Gouldsboro. Num instante a vida familiar de Wapassu se transformou. Peyrac não parecia pretender separar-se de Angélica, e esta não via como poderia afastar-se no mínimo por dois meses. Gostaria tanto de assistir à construção do novo forte! E depois, não seria imprudente deixar uma tropa como aquela pelas costas?

Também precisava arrumar todos os víveres trazidos pelo rio, e depois nas costas dos homens até a mina. E todas as colheitas a fazer, para remédios, geléias...

Em compensação, também se sentia tentada a rever Gouldsboro, seus amigos... Falar com Abigail, abraçar Severina e Laurier, e o pequeno Carlos Henrique, enfim, rever o mar, comer ostras e lagostas...

- Eu não a deixaria - disse Peyrac. - Meu amor, já não posso viver sem você...

- Mas, e Wapassu?

Joffrey de Peyrac disse que Wapassu estava em mãos excelentes. Os antigos se encarregariam de acolher os novos e de incutir-lhes a disciplina do "navio". Ele tinha toda aconfiança na boa influência dos dois casais, Jonas e Malaprade, assim como em Marcelo An-tine, gentil-homem helvético de língua france§â, mas que falava com a mesma facilidade alemão, italiano, espanhol e inglês. O conde delegaria seus poderes ao italiano Porguani, em quem sempre apreciara a lealdade, a diligência e a energia. Aquele celibatário de belos olhos escuros era um enigma para Angélica, mas ela sabia que o marido soubera em quem confiar.

Levariam consigo os mais difíceis: Vignot, Clóvis, 0'Connell e Cantor. Mas Peyrac dissuadiu Angélica de levar Honorina. Apesar do aparente desprendimento còm que"Berne falava daquele pirata que incursiqnava pela baía Francesa e pela de Gouldsboro, poderia haver maus momentos. Peyrac não estava disposto a deixar que lhe seqiiestrassenT assim úm homem que contratara em Nova York em sua primeira viagem à América e que desde então o servia com dedicação.

Em compensação, Wapassu doravante lhe parecia protegido contra surpresas. A paliçada subiria rapidamente e a tropa bem armada poderia enfrentar do alto dela qualquer canadense, iroquês ou abenaki que resolvesse vir criar problema.

Claro que com aquela corja-nunca se podia ter certeza de que mosquito a picaria. Mas não parecia haver nenhum pretexto de conflito. Em Quebec o governador se ocupava da expedição de Cavelier, que a generosidade de Peyrac tornara possível. Os iro-queses haviam comprovado seus sentimentos amistosos. Os abe-nakis, absortos com o comércio, desciam para o sul.

Angélica ficou um tanto preocupada e desapontada por deixar a filha. Nunca se haviam separado. Honorina, felizmente, encarou bem a coisa. Andava bem ocupada com o seu ursinho e com todas as modificações provocadas pela chegada dos mercenários. Perderia uma amiguinha de brincadeiras, pois Peyrac ia levar a pequena Rosa Ana para tentar devõlvê-la à família inglesa na costa. Mas restavam-lhe seus dois inseparáveis,,Bartolomeu e Tomás, e Elvira e Malaprade a adotariam de bom grado durante a ausência dos pais.

CAPITULO LIII

A felicidade de Angélica e o medo de Peyrac: "Seja o que Deus quiser"

A noite caía sobre Wapassu, uma noite nova na paz da natureza exuberante. Joffrey de Peyrac deslizou o braço em torno da cintura de Angélica e, apertando-a contra si, dirigiu-se para a floresta. Atravessaram o acampamento indígena, depois subiram pela margem esquerda do lago, rumo ao bosque de pinheiros. Andavam no mesmo passo vivo, alerta, em sintonia.

Logo que atravessaram o cume, o silêncio voltou a reinar, perturbado unicamente pelo amplo sopro do vento que movia as folhagens. A rocha ficava à flor da terra, sob musgos, e eles andavam sem dificuldade, seguindo sem pensar por uma senda que lhes era familiar. O caminho levava a um desvio acima da planície, aberta sobre as distâncias montanhosas. A cor mudara de novo. A floresta assumia seus adornos de verão, de um esmeralda sun-tuoso. Uma bruma seca, impalpável como uma poeira de aço, esfumava as linhas e conferia à paisagem uma pesada densidade. Mas por toda parte os raios do sol devolviam o brilho vivo dos inúmeros lagos. Eles pararam.

Era o último passeio deles por aquele lugar. No dia seguinte se poriam em marcha. Iriam a pé até o Kennebec, e dali, em barcos e canoas, desceriam o rio e atingiriam o oceano.

Antes de partirem era agradável para Joffrey de Peyrac e para Angélica contemplar assim, ao cair da noite, o país que lhes fora dado.

- Fui feliz aqui - disse Angélica.

E saboreava no coração essa palavra delicada; felicidade... Pois os perigos, as provações compartilhadas também fazem a felicidade!

Um fermento misterioso pode misturar-se de repente à massa grosseira da vida, e de repente está ali, já não nos deixa, o ina-preensível: a felicidade!

Ela respirou suavemente, a plenos pulmões, o ar aromático.

-        Meu amorzinho! Minha companheira - disse ele, devorando-a com os olhos. - Você compartilhou da minha existência e não a vi fraquejar... Nenhuma mesquinharia em você... Aceita a tarefa, carregou-a sobre os ombros...

Estavam felizes, haviam triunfado sobre o inverno, haviam abatido as barreira que existiam entre eles.

-        Preciso ganhar um ano - dissera Peyrac.

E já se podia constatar que a virulência dos inimigos deles se fazia menos perigosa.

Só restava um agora.

Os pensamentos deles seguiam o mesmo curso, seus olhos se detinham sobre a floresta-longínqua que se transformava suavemente num mar tenebroso.

— Tenho medo desse padre - disse Angélica em voz baixa. - Não posso deixar de crer em seu dom 'de vidência,, na ubiquidade de seu espírito. Do fundo da floresta ele vê tudo, adivinha tudo. Ele soube de imediato que éramos o contrário de tudo o que ele é.

— Sim! Eu viso ao ouro e à riqueza, ele à cruz e ao sacrifício. Estou do lado dos ímpios, dos hereges, dos rebeldes, e ele do lado dos justos, dos dóceis. Por fim, há o pior: adoro-a, venero-a, mulher. - O conde continuou: - Mulher encantadora a meu lado, minha vida, minha alegria, minha carne... E isso é o pior para ele... Amo-a, Mulher, a você, a tentadora eterna, mãe de todos os males. Estou do lado da criação e ele, do lado do Criador. Agora vejo bem que não há conciliação possível entre ele e nós. Será ele ou nós. Ele se grgueu para defender a cristandade indígena. Há de combater até a morte! E o compreendo... Trata-se para ele de defender o que é a significação mesma de sua existência, a trama de sua vida. Lutará até a morte, não admitirá nenhuma concessão. Pois bem, que seja, também eu lutarei... Basta de covardia, Adão! Aceite o mundo que mereceu! Lutarei pelos ímpios e pelos hereges, e pelo ouro e pela criação... e pela Mulher que me foi dada por companheira.

E ao pronunciar estas palavras, um pensamento fulgurante atravessou-lhe o espírito, de modo tão agudo que ele sentiu uma dor física.

"E se for esse o punhal com que ele vai tentar me atingir: tirar-me a mulher que me foi dada por companheira?"

A voz arquejante e surda de Pont-Briand ressoava-lhe aos ouvidos:

-        Ele os separará, você verá! Você verá!... Ele odeia o amor!

Nesse momento, Joffrey de Peyrac, o homem da razão e do julgamento frio, temeu a magia invisível e traiçoeira que poderia desviar dele o coração de Angélica. Se aquele coração deixasse de amá-lo, sua força e sua vida se escoariam dele como sangue. Ele não poderia sobreviver.

"Estranho", pensou. "Quando cheguei aqui, no outono, eu não tinha medo. Ignorava se os dias que íamos conhecer juntos a revelariam a mim sob uma luz decepcionante ou, pelo contrário, se nos aproximariam, mas não temia a prova de modo algum... Hoje já não é o mesmo."

Ele agora aprendia o que era o medo. Olhou-a tentando imaginar o que sentiria se um dia aquele olhar claro e terno se pusesse a brilhar de amor pousando sobre outro homem... Sentiu uma impressão de dor tão viva, que Angélica percebeu-lhe o estremecimento e fitou-o, surpresa.

Nesse momento um longo grito harmonioso e leve se ergueu atrás deles, vindo da alta falésia acima. Era um chamado que inflava aos poucos, com trémulos que diminuíam, repetições, para se prolongar num canto de nota única, que parecia não querer terminar nunca e onde havia ao mesmo tempo êxtase e dor.

-        Ouça - disse Angélica -, o coro dos lobinhos!

Imaginava-os conforme Cantor os descrevera, os seis lobinhos sentados a cada lado do grande lobo, os focinhos redondos e rosados espichados num esforço cândido para imitar o pai, e este voltando o perfil trágico para a lua.

-        Dir-se-ia que a floresta está cantando - murmurou Angélica. - Não sei se estou certa, mas acho que me pareço com Can

tor. Também eu gosto dos lobos.

Ele a olhou com intensidade, sensível a cada nuança na voz dela, a cada palavra que ela pronunciava.

"Estranho", pensou. "Antigamente eu a amava loucamente; no entanto, durante anos pude viver longe dela, saborear a vida e até provar o prazer com outras mulheres... Agora, porém, já não poderia... Não podem afastá-la de mim sem ao mesmo tempo arrancar-me pedaços da carne... Sem ela, agora, eu já não suportaria a vida... E como foi que isso aconteceu?... Nem eu sei..."

Ante a ideia de que poderiam tentar roubá-la, não pela morte, mas de modo mais sutil, ele cerrava os punhos, pois se do pedestal em que ele a pusera, criatura de beleza e luz, ela se precipitasse nos infernos da traição, ele cairia cdm ela,, atingido e minado em suas forças vivas, ébrio de cólera -e vingança, a ponto de esquecer qualquer outra obra humana e toda a sabedoria. Através dela, as flechas que o atingissem seriam todas envenenadas.

De cenho franzido, apertava-lhe suayemente a mão enquanto ela se deixava enfeitiçar pela nostálgica poesia do chamado dos lobos. Depois o olhar de Peyrac se desviou dela e se fixou ao longe, na direção da mata tenebrosa, como se seus olhos atentos acabassem de descobrir ali um inimigo oculto.

Foi então que aconteceu. Um clarão tremeu no horizonte, na direção sul, alçou-se crescendo acima das árvores e das montanhas, até desenhar uma jjnensa oval luminosa onde parecia se destacar uma silhueta gigante, envolta em véus drapeados, e esses drapeados passaram aa rosa, ao verde, sobrepondo-se numa espiral que começou a desagregar-se fazendo chover -à volta grandes centelhas luminescentes.

— O que é? - exclamou Angélica, atónita.

— Uma aurora boreal - respondeu Peyrac.

Explicou, com voz tranquila, que aquele fenómeno, de causas ainda desconhecidas, era frequente naquela estação na região onde se encontravam. Angélica, que ficara paralisada, respirou.

-        Tive medo, por um instante acreditei que também nós seríamos vítimas de uma aparição celeste!... Eu teria... enfim, acho que ficaria muito embaraçada!

Riram os dois. O Conde de Peyrac inclinou-se e fechou em torno dela as dobras de seu manto, pois um frio repentino parecia subir das ravinas. Envolveu-a com cuidado, passando várias vezes as mãos sobre os ombros dela, depois, segurando o rosto fresco da mulher, beijou-a longamente na boca. Clarões fugazes iluminavam-nos intermitentemente, enquanto a chuva verde e rosa gotejava sobre as trevas do firmamento.

Depois ficaram em silêncio, invadidos pela sensação indescritível de serem dois, cúmplices e amantes, diante da vida, e tão dominados pelo valor do que haviam recebido neste mundo com o amor, que entendiam que se tivesse inveja deles. Por vezes um medo furtivo os percorria. Então Peyrac abraçava Angélica com mais força.

Olhando para o sul, pensavam num homem só, deitado num leito de ramas para um breve repouso. Quando soasse a meia-noite, ele se levantaria e iria, por entre a ronda sussurrante dos mosquitos, ajoelhar-se numa choça com chão de tem batida, diante de um altar onde arde uma lâmpada vermelha. A direita do altar há uma bandeira que representa quatro corações vermelhos em cada canto e um gládio. No meio do altar, abaixo da cruz, o mosquete da Guerra Santa.

A cruz é de madeira.

Joffrey de Peyrac pensava. Que forma tomaria a luta surda e obstinada que começava a travar-se entre eles, sem que nunca se tivessem encontrado?

Peyrac aprendera todas as modalidades de combate, mas tinha a impressão de que o que estava para vir não se assemelharia a nada de conhecido.

Restava uma esperança. Em todo antogonismo existe um ponto de encontro, uma possibilidade de entendimento...

Os valores em jogo eram suficientemente elevados de uma parte e de outra para que essa graça lhes fosse concedida.

- Seja o que Deus quiser! - murmurou o conde.

Parecia um milagre que Angélica e seusfami liares e protegidos tivessem sobrevivido ao longo e implacável inverno, à fome e à doença, nas vastidões perdidas de Wapassu, o Lago de Prata. Por pouco teriam esmorecido, não fosse a fraternal ajuda dos iroqueses, que lhes levaram conforto e alimento.

Apesar de tantos sacrifícios, haviam encontrado a felicidade naquelas paragens. Mas um novo desafio os requisitava. Era preciso seguir de volta ao litoral, onde o pirata Barba de Ouro ameaçava a segurança de Gouldsboro. Por trás da floresta imensa, um inimigo tenebroso os espreitava. Não fora a visita do emissário traiçoeiro um aviso de que tentavam separá-los?

No próximo volume, Angélica e Seu Amor Proibido, terríveis adversários ocultos persistirão em seu propósito de impedir a felicidade do casal. Numa conspiração diabólica, semearão de armadilhas o caminho de Angélica. Não hesitarão em apelar a desejos secretos, recuperados a um passado quase esquecido...

 

 

                                                                                                    Anne e Serge Golon

 

 

 

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